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A Porta das Sete Chaves / Edgar Wallace
A Porta das Sete Chaves / Edgar Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Porta das Sete Chaves

 

Que terrível segredo era aquele que desencadeou a morte, e coisas piores do que a morte, numa tranqüila região campestre da Inglaterra?

Lew Pheeney era conhecido, entre os seus colegas de ofício, como um arrombador de muito sangue-frio. Entretanto, quando ele se viu diante da porta das sete chaves e de seu sinistro guardião, fugiu aterrorizado. E a morte violenta de Pheeney levou o menos ortodoxo dos detetives da Scotland Yard a empreender uma caçada repleta de perigos. Pois atrás dele caminhava sempre a sombra da morte. 

                  

No seu último dia de serviço como agente de Scotland Yard, o detetive Dick Martin prendeu Lew Pheeney no interior de um pequeno café de bairro, no momento em que o ladrão, que vinha sendo procurado por toda a polícia londrina por suspeita de participação no grande assalto ao Banco de Helborough, tomava tranqüilamente seu modesto café.

Ao receber voz de prisão, Lew mostrou-se surpreso.

 - Deve ser algum engano. Acaso cometi alguma falta? Qual é a queixa?

 - Quem se queixa é o Banco de Helborough... da falta disto... - replicou Dick, fazendo o gesto de contar dinheiro.

 - Não tenho nada com essa história - protestou o outro - Faz muito tempo que não me meto mais em assaltos a bancos.

 - Será? Então me diga, o que estava fazendo terça-feira à noite?

Um largo sorriso encrespou os cantos da boca do assaltante.

 - Se eu lhe contar, vai morrer de rir.

 - Não custa experimentar - volveu Dick, com ar divertido.

Lew não respondeu de imediato. Em pensamentos avaliou os perigos de uma franqueza exagerada.

 - Fiz um serviço sobre o qual prefiro não falar - disse finalmente - Um serviço imundo... nenhum crime - apressou-se a acrescentar.

 - E foi bem pago? - perguntou Dick, incrédulo.

 - Regiamente. Recebi um adiantamento de cento e cinqüenta libras. E, agora arregala os olhos, meu prezado senhor detetive, mas é a pura verdade. Quiseram que eu arrombasse algumas fechaduras. Como sabe, é essa a minha verdadeira especialidade; no entanto, as danadas das fechaduras resistiram a toda a minha habilidade. A propósito, o local ao qual fui levado é um lugar horripilante. Não voltaria lá nem por um baú cheio de ouro, mas devo a essa circunstância um álibi inabalável. Posso provar que passei a noite de terça-feira no "Hotel dos Correios", em Chichester, que lá jantei por volta das oito horas e que fui dormir às onze. Lamento muito, senhor Martin, mas deve procurar o autor do assalto em outro lugar.

Trancafiaram Lew numa cela por uma noite e o telégrafo e os telefones entraram em ação. Ficou logo provado que o gatuno dissera a verdade: até registrara pelo próprio punho o seu nome no livro de hóspedes do hotel de Chichester. Diante disso não restava às autoridades policiais outra alternativa senão soltá-lo ao alvorecer do dia seguinte. Dick convidou-o a tomar o desjejum com ele, pois não existia nenhuma animosidade real entre aquele ladrão profissional e seu captor, e o subinspetor Dick Martin era tão benquisto no mundo do crime quanto nas dependências de Scotland Yard.

 - Não, senhor Martin, não posso satisfazer a sua curiosidade - disse Lew obstinadamente, - Pode me xingar de mentiroso, não ficarei aborrecido por isso. Pagaram-me de fato cento e cinqüenta libras em dinheiro vivo e teria ganho oitocentos e cinqüenta mais, em caso de êxito. Quanto ao resto, não adianta insistir; terá de adivinhar, mas duvido que o consiga.

Dick observara-o com olhar especulativo.

 - Lew, eu noto que, intimamente, você tem vontade de contar tudo. Por que não desabafa de uma vez?

Ele encarou-o bem de frente com olhar esperançoso, mas Lew sacudiu a cabeça.

 - Dizendo-lhe tudo, eu comprometeria um cidadão asqueroso, o qual espero não encontrar nunca mais; porém, em toda a minha vida jamais traí alguém que tivesse de alguma forma confiado em mim.

Dick fez um gesto de impaciência.

 - Não precisa mencionar nomes, apenas conte-me o que houve, sem entrar em pormenores - insistiu.

Lew virou a xícara e bebeu o café quente em largos tragos. Limpou a boca com as costas da mão.

 - Eu não conhecia o sujeito que me engajou... isso é, não pessoalmente, mas já havia ouvido falar nele. Ele já esteve por alguns meses na cadeia. Certa noite veio me procurar e me levou à casa dele. Brrr! Uma cova horrível! - Lew arrepiou-se tudo só de se lembrar - Martin, um ladrão é de certo modo um marginal honesto, ele pratica um jogo limpo com a polícia. Arrisca a sua liberdade e, se perde, muito bem, ele não fica por isso com ódio de ninguém e cumpre a sua pena. Mas existem criminosos que vivem impunes, pois sabem como agir sem se enredar nas malhas da lei... Sujeiras que até enojam um ladrão comum. Quando o homem explicou o que pretendia, a princípio pensei que estava gracejando, mas ao perceber que falava seriamente, o meu primeiro impulso foi ir-me embora o mais depressa possível. Contudo, como sou muito curioso por natureza, concordei após alguns momentos de reflexão. Por favor, lembre-se de que não se tratava de uma incumbência criminosa. O sujeito era movido por curiosidade, queria descobrir algo, e para isso precisava dos serviços de um experimentado arrombador. Bem, ele não vai conseguir nada, pois ninguém será capaz de abrir aquelas fechaduras.

 - Fechaduras? Que fechaduras? - perguntou Dick, interessado.

Mas Pheeney sacudiu a cabeça e mudou de assunto. Falou de seus planos; iria começar vida nova. Seu irmão, arquiteto nos Estados Unidos, talvez pudesse ajudá-lo a encontrar uma ocupação honesta.

Dick despediu-se dele e retornou a Scotland Yard para o seu último despacho com seu superior imediato.

O inspetor Sneed, que de tão gordo quase não cabia na sua ampla cadeira giratória, fitou-o com uma ponta de censura nos olhos.

 - Então é verdade! Você vai dar as costas à mais nobre das profissões, vai comprar uma bela casa de campo e levar duquesas para bailes e festas! Que existência mais ignóbil para um homem da sua idade!

Dick Martin sorriu com tristeza. No íntimo já se arrependera de haver apresentado seu pedido de demissão.

- É curioso como a posse de dinheiro corrompe o caráter - filosofou o Capitão Sneed com ar melancólico - Se eu, por exemplo, herdasse uma quantia de seis zeros, passaria o resto dos meus dias num "dolce far niente".

 - Mas isso você já vem fazendo há muito tempo sem precisar de herança. A sua preguiça é mais que notória - observou Dick, irreverente

 - Isso beira a insubordinação! - resmungou Sneed, enfezado. - Por enquanto você ainda faz parte do quadro de agentes de Scotland Yard, portanto exijo mais respeito. E não esqueça que deve tratar-me de "senhor". - Fez uma pausa e depois acrescentou, meio ressentido: - Aliás, eu não sou preguiçoso, sou letárgico. A letargia é uma doença, da mesma forma como o é a obesidade.

 - Você é obeso porque é preguiçoso, e preguiçoso porque é obeso - insistiu Martin com a arrogância própria da juventude, pois ele era musculoso e esguio como uma vara de salgueiro.

O Capitão Sneed coçou o queixo com ar meditativo. Ele tinha ombros de boxeador, corpanzil de granadeiro e a energia de uma anaconda superalimentada. Suspirando, remexeu numa gaveta e retirou dela um formulário azul.

 - Não se regozije cedo demais, hoje você ainda é o meu escravo. Portanto, vá agora à Biblioteca Bellingham e investigue esta queixa a respeito de um livro roubado.

O subinspetor Martin deixou escapar um cômico gemido.

 - Concorde que não é uma incumbência própria para colher louros - disse seu chefe com uma risada. - Investigar casos de cleptomania é para um detetive o que para uma dona-de-casa é espanar pó. Mas isso lhe sirva de lição, para que, quando viver no mundo do ócio, se lembre que milhares dos seus colegas menos afortunados são obrigados todos os dias a gastar as solas dos seus sapatos em diligências deste tipo.

Dick (também chamado "Slick” pois como se sabe, todos os detetives têm seu apelido) atravessou, de cabeça baixa, os compridos corredores do prédio de Scotland Yard, consciente de que, por decisão dele mesmo, a sua carreira policial, curta mas brilhante, estava por terminar. Ele era especialista em roubos e furtos, o melhor "caçador de gatunos" que Scotland Yard lá tivera. Sneed afirmava abertamente que Martin tinha uma secreta inclinação para exercer, ele próprio, a profissão de larápio, e considerava isso um elogio. De fato, certa ocasião Dick, para ganhar uma aposta, esvaziara os bolsos de um Secretário de Estado, e até os colegas mais atentos e experimentados não puderam dizer quando e de que jeito ele executara a proeza.

Dick Martin nascera no Canadá, onde seu pai fora superintendente de presídio. Não se preocupava ele muito com o filho, e tampouco com seus presos Desde os tenros anos, Dick considerava o pátio da prisão o seu “play-ground", e muito antes de dominar as regras de álgebra, já conseguia desprender um alfinete de gravata sem que a vítima desse por isso. Peter du Bois, um condenado à prisão perpétua, ensinara-lhe a arte de abrir qualquer porta com um simples grampo de cabelo recurvado. Lew Andrewski, um hóspede freqüente do Fort Stuart, que cortava as capas dos livros de orações para transformá-las em minúsculos baralhos, iniciara o menino na técnica de roubar no jogo de cartas. Muito cedo aprendera como ocultar três cartas em cada mão. Se ele não possuísse aquela intrínseca honestidade que confere imunidade a influências nocivas, ele, provavelmente, teria levado um triste fim.

 - Dick tem o coração no lugar certo; não faz mal que aprenda o ofício dos gatunos - dizia o indolente Coronel Martin quando seus parentes o criticavam por deixar o menino, órfão de mãe, exposto à perniciosidade da penitenciária. - Os presos adoram-no. Espero que ele mais tarde siga a carreira policial, e, neste caso, o ensino que aqui lhe é ministrado de graça, lhe será de grande valia.

Ereto como um pinheiro, de olhos azuis, sadio de corpo e alma, Dick correspondera plenamente à confiança do pai. A guerra o levara à Inglaterra, depois Scotland Yard reclamara seus serviços, e como viera precedido de excelente reputação, isentaram-no do costumeiro período de experiência.

 - Olá, Martin... É verdade que vai nos deixar? - O terceiro-comissário alcançou Dick no topo da escadaria. - Que pena. A que vai dedicar-se daqui em diante?

Dick encolheu os ombros. Ele mesmo o ignorava. O outro, fitando-o com súbito interesse, pousou-lhe a mão no braço.

 - Eu tenho uma idéia de como poderá preencher seu tempo livre. Conhece o advogado Havelock?

Dick abanou a cabeça negativamente.

 - Ele é considerado um causídico brilhante. Você encontrará seu endereço no catálogo telefônico. Creio que seu escritório fica nas imediações de Lincoln's Inn Field. Ele, outro dia, perguntou-me se eu não conhecia algum detetive de confiança. Respondi que gente assim só existia na imaginação dos autores de romances e roteiros cinematográficos... mas agora que o vejo à minha frente. Dick, já sei quem poderei recomendar ao senhor Havelock.

 - Por que precisa ele dos serviços de um detetive? - quis saber Dick, demonstrando pouco entusiasmo

 - Não sei. Não precisa aceitar se não gostar da proposta que ele acaso lhe fizer, mas pelo menos não deixe de procurá-lo. Havelock é uma pessoa bastante aprazível e eu lhe prometi arranjar alguém. Tenho a impressão de que se trata de vigiar um cliente que, de alguma forma, lhe causa preocupações. Você me faria um grande favor, Martin, se fosse falar com ele.

A última coisa que Martin desejava era continuar a exercer a profissão de detetive, e ainda por cima em caráter não-oficial. Entretanto, em várias ocasiões o terceiro-comissário lhe havia dado provas de afeição e amizade, e por isso não podia ignorar o seu pedido sem passar por ingrato. De qualquer forma, uma simples visita ao advogado não o obrigaria a nada. For conseguinte, concordou.

 - Ótimo - elogiou o comissário. Vou avisar o senhor Havelock. Tenho a certeza de que você lhe poderá ser muito útil.

 - Espero que sim - disse Dick, sem convicção. Ele, na verdade, tinha outros planos para o futuro.

 

Bellingham, o erudito fundador da biblioteca do mesmo nome, conhecida apenas por um pequeno e seleto número de pessoas em Londres, estatuíra no documento de fundação que duas criaturas inteligentes do sexo feminino, vivendo em condições modestas, deveriam ser admitidas na qualidade de bibliotecárias, e foi à presença de uma delas que Dick foi conduzido a sua chegada.

Numa sala alta e estreita, com estantes que se erguiam ate o teto, num ambiente impregnado de um leve cheiro de mofo e couro velho, uma jovem, sentada a uma mesa, preenchia fichas.

 - Sou de Scotland Yard - apresentou-se Dick. - Vim por causa de uma queixa referente ao roubo de um livro que teria ocorrido aqui.

Enquanto pronunciava estas palavras, deixou vaguear os olhos pelos milhares de livros que se alinhavam nas prateleiras das estantes, sem prestar maior atenção na "criatura de sexo feminino" à sua frente; só reparou vagamente que ela trazia um vestido preto e que tinha cabelos castanho-dourados penteados de um jeito que parecia ser a última moda entre as mocinhas que trabalhavam em escritórios.

 - É - confirmou ela. - Um livro sumiu desta sala na minha ausência. Uma obra de Haeckel: Morfologia Geral".

Abrindo um arquivo, retirou uma das fichas e entregou-a ao detetive. Este se pôs a estudar as anotações constantes da ficha sem entendê-las muito bem.

 - Quem a substituiu na sua ausência? - indagou.

 - A senhorita Helder, minha assistente.

 - E neste tempo veio alguém trocar livros ou fazer consultas?

 - Vieram algumas pessoas, sim... mas todas estão acima de qualquer suspeita. Tomei nota dos nomes. São todos leitores cadastrados, com exceção de um, de nome Staletti, um médico italiano, que veio pedir esclarecimentos quanto ao nosso regulamento sobre a inscrição de novos leitores.

 - Ele mesmo revelou sua identidade? - quis saber Dick.

 - Não - disse a bibliotecária - A senhorita Helder reconheceu-o, pois já tinha visto o retrato dele nos jornais. O senhor não o conhece?

 - Por que havia eu de conhecê-lo, benzinho? - perguntou Dick, um tanto irritado.

 - E por que não, meu caro senhor? - volveu ela, petulante. Só neste momento Dick Martin, pela primeira vez, olhou com atenção para a moça, que começou a projetar-se plasticamente do fundo para se transformar numa personalidade nítida, distinta. Os olhos dela, ligeiramente amendoados, eram cinzentos, o nariz reto e pequeno, a boca um pouco larga e, de fato, os cabelos eram castanho-dourados.

 - Desculpe - riu ele. - Confesso que estou pouco interessado neste ladrão de livros - Dick, às vezes, mostrava uma sinceridade invulgar e surpreendente. - Acontece que hoje é meu último dia de serviço. Amanhã vou me desligar de Scotland Yard encerrando esta ingrata profissão.

 - Haverá então grande júbilo no mundo do crime - comentou ela em tom grave, mas com um brilho travesso nos olhos, que logo lhe conquistou o coração.

Ele puxou uma cadeira para perto da mesa e sentou-se sem esperar por um convite.

 - Bem... quem é esse Staletti?

Ela mediu-o com olhar sério, mas um leve sorriso brincou-lhe nos lábios.

 - E o senhor é o que chamam de detetive? Uma dessas criaturas quase sobrenaturais, que vigiam nosso sono?

Dick riu muito.

 - Chega! Eu me rendo! - ergueu os braços. - Mas agora, por favor, responda à minha pergunta: quem é esse Staletti?

 - Realmente não sabe? Segundo a minha assistente ele é um velho conhecido da polícia. Quer ver a obra dele?

 - Ele escreveu algum livro? - perguntou Dick com surpresa.

 - Escreveu. Vou buscá-lo.

Ela levantou-se e deixou a sala. Instantes depois ela voltou trazendo nas mãos um calhamaço empoeirado.

Ele pegou-o e leu o título. "Novas Idéias sobre a Biologia Construtiva. De Antonio Staletti." Depois correu as folhas cheias de diagramas e tabelas.

 - E por causa deste alfarrábio ele teve aborrecimentos com a polícia? É a primeira vez que ouço que escrever livros constitui um delito

 - Mas é claro que é crime; infelizmente, porém, não costuma ser devidamente punido - brincou ela.

 - Mas não foi por causa do livro que pegou cadeia. Foi por outra coisa, bem mais horrível. Vivissecção, eu acho.

 - De que trata este livro? - ele devolveu-o à moça, que o largou sobre a mesa.

 - De seres bípedes, como o senhor e eu - respondeu ela com voz solene - Segundo ele, a humanidade seria bem mais feliz se nós, em vez de aprendermos latim e álgebra, nos alimentássemos de raízes e nozes e vivêssemos no mato, livres e nus em pêlo.

Dick endireitou o corpo, alçou as sobrancelhas:

 - E onde mora este esquisitão ?

Ela abriu o livro e leu a nota constante da parte inferior da página do prefácio.

 - Em Sussex, no "Átrio do Patíbulo". Céus, que nome macabro!

 - Quem mais esteve aqui no dia do roubo, além de Staletti?

Ela mostrou-lhe uma lista com quatro nomes.

 - Creio que nenhum destes pode ser considerado suspeito; são todos historiadores que dificilmente estariam interessados em biologia. Na minha presença tal coisa jamais teria acontecido - acrescentou, aborrecida. - Eu costumo ficar atenta aos movimentos dos leitores e não ia...

Ela parou no meio da frase, olhando para a mesa.

 - O senhor pegou o livro de Staletti? - perguntou com a surpresa estampada no rosto.

 - Acaso viu quando eu o peguei? - replicou ele

 - Não, eu não vi, mas posso jurar que um instante atrás o livro ainda estava em cima da mesa.

Ele tirou-o do bolso do casaco e devolveu-o à moça.

 - É raro encontrar gente que realmente está sempre atenta—observou.

 - Mas como fez isso? - exclamou ela, perplexa.

 - Eu estava com a mão pousada sobre o livro e só arredei os olhos por um segundo.

 - Qualquer dia destes eu volto para lhe mostrar o truque - prometeu ele, bem-humorado.

Ao deixar o prédio, lembrou-se que esquecera de perguntar pelo nome da moça.

 

Sybil Lansdown correu à janela de onde se descortinava a praça e seguiu com os olhos o jovem policial que se distanciava, até desaparecer na esquina da rua. Um sorriso encrespou-lhe os lábios e nos seus olhos reluzia um brilho singular. No primeiro momento achara-o antipático, pois ela detestava homens presunçosos; depois, porém, teve uma impressão melhor. Será que algum dia tornaria a vê-lo? Era raro encontrar indivíduos divertidos, e o sub-inspetor Dick Martin (ela pegou o cartão de visitas e leu o nome em voz baixa) era uma dessas poucas pessoas cuja presença aquecia o coração da gente.

 

Faltava pouco para meio-dia quando Dick estacionou o carro em frente do decrépito muro e do pesado portão de gonzos enferrujados de "Átrio do Patíbulo".

Atrás de uma curva repentina do sinuoso caminho, em muitos trechos tomado por ervas daninhas, erguia-se, em lugar ermo, uma casa de fachada despretensiosa. Não encontrando puxador de campainha, bateu com o punho várias vezes na madeira da velha porta principal. Ouviu o tinir metálico de correntes, e a porta rangeu devagarinho, mas não se abriu mais do que dois centímetros.

Pela estreita fresta Dick divisou um rosto alongado, macilento, vincado de rugas como uma maçã murcha e onde crescia uma abundante barba preta que descia até a altura do estômago. Um par de olhos negros, nos quais reluzia uma luz malévola, o fitava desconfiado.

 - Doutor Staletti?

 - Sou eu - soou uma voz áspera e com sotaque estrangeiro. - O senhor quer falar comigo? Mas isso é fenomenal, pois não tenho o hábito de receber visitas!

Ele parecia vacilar por um momento, depois virou a cabeça e falou com alguém que estava atrás dele. O detetive, seguindo-lhe o olhar, viu por um instante o vulto de um homem ainda moço, de  rosto rosado, elegantemente trajado, que apressadamente deu um passo para trás.

 - Bom dia. Tommy - cumprimentou-o Dick Martin com polidez. - Que prazer inesperado.

Era realmente um prazer contemplar Tommy Cawler. A sua gravata era impecável, a sua camisa de finíssima qualidade, o seu terno o produto de um alfaiate de primeira categoria.

 - Bom dia, senhor Martin - Tommy não se perturbava facilmente. - Estou aqui por acaso, para dizer "alô" ao meu velho amigo Staletti.

Dick fitou-o com admiração.

 - Sim, senhor! Está se vendo que prosperou muito! Em que ramo de negócios está metido atualmente?

Tommy baixou os olhos com ar resignado.

 - Não se preocupe, não me meto mais em encrencas. Exerço agora uma profissão honesta que dá para meu sustento. Bem, então até breve, Staletti

Apertou a mão do homem barbudo com exagerada cordialidade e fez menção de descer os degraus da escadaria.

Dick deteve-o com um gesto.

 - Espere, Tommy. Quer fazer o favor de aguardar um momento? Preciso falar-lhe,

Tommy Cawler hesitou e relanceou um olhar furtivo para o rosto do doutor Staletti, como quem procura conselho.

 - Pois não - resmungou, aborrecido. - Mas não tenho muito tempo. Mais uma vez muito obrigado pelo remédio, doutor.

Entretanto, Dick entendeu a manobra imediatamente e um sorriso zombeteiro crispou-lhe os lábios. Ele seguiu Staletti até o vestíbulo.

 - O senhor é da polícia, não é? - perguntou-lhe aquele homem estranho, antes que Dick pudesse mostrar-lhe sua identidade. - Isso é fenomenal! Há muito tempo tive este prazer de uma visita policial. Foi por causa de um cachorrinho sacrificado aos interesses da ciência. Tanto alvoroço em torno de um animal irracional! E de que se trata desta vez?

Dick apressou-se a explicar-lhe em poucas palavras o motivo da sua vinda. Para surpresa sua Staletti admitiu prontamente o furto do livro.

 - O livro estava em cima da mesa. Ele me interessava, por isso apanhei-o e levei-o comigo

 - Mas, doutor - exclamou Dick com incontido espanto. - Como se atreve a se apossar de um livro que não lhe pertence, somente porque ele o interessa?

 - E por que não? Aquilo é uma biblioteca pública, cuja única finalidade é emprestar livros às pessoas interessadas, e, assim sendo, tomei-o por empréstimo. Não o fiz furtivamente, longe disso. Meti o livro debaixo do braço, à vista de todos, cumprimentei a “signorina" sentada à mesa, e saí. Já terminei o livro e ele pode voltar para seu lugar. Haeckel é um idiota. As suas conclusões são absurdas, embora suas teorias sejam fenomenais. Ao senhor certamente pareceriam enfadonhas, mas eu... - interrompeu-se, deu de ombros e emitiu um grasnido que para ele provavelmente era uma risada.

O detetive fez-lhe uma breve preleção sobre os regulamentos das bibliotecas públicas, em seguida sobraçou o livro e saiu. Agora tinha o pretexto para uma segunda visita à biblioteca, o que o deixava muito contente.

Tommy Cawler esperava-o junto do portão. Dick dirigiu-se para ele.

 - E agora, Tommy, chegou a sua vez - disse sem rodeios, com voz autoritária. - Staletti é amigo seu?

 - É meu médico - redargüiu Tommy Cawler, sem vacilar.

Os seus olhos tinham uma expressão alegre. Dick dava-se bem com ele, que havia sido um famigerado ladrão de automóveis, por sinal um mestre nesse ofício, que sem-cerimônia se apoderava de qualquer carro não vigiado. Duas das suas condenações tinham sido obra de Dick e o resultado de cansativas diligências, mas mesmo assim não existia ressentimento.

 - Eu agora tenho emprego fixo - orgulhou-se Tommy. - Sou chofer do senhor Bertram Cody. Depois da minha última detenção abandonei o mau caminho.

 - Onde mora este senhor Cody? - inquiriu Dick, um tanto incrédulo

 - Weald House. Fica pertinho daqui. Se quiser, pode vir comigo e perguntar.

 - O senhor Cody sabe do seu glorioso passado? - perguntou Dick delicadamente.

 - Sabe, sim Não lhe ocultei nada. Ainda assim me considera o melhor chofer que já teve em toda a sua vida - retrucou o outro com jactância.

Dick mediu o rapaz demoradamente.

 - E é esta roupa o uniforme que seu patrão lhe

Fornece?

 - É minha roupa particular. Hoje é meu dia de folga - respondeu Cawler - O meu patrão é muito liberal no que respeita às folgas. Eis o meu endereço.

Tirou do bolso um envelope sobrescrito a ele mesmo: Tommy Cawler. a/c do sr. Bertram Cody, Weald House, South Weald, Sussex.

Martin ofereceu-lhe um lugar no seu carro, mas como o outro recusasse o convite, voltou sozinho para Londres. Ficou decepcionado quando, ao chegar à biblioteca, não encontrou mais sua amiguinha desconhecida, que encerrara o expediente meia hora antes.

Ele guardou o automóvel numa garagem e tomou o rumo de sua residência. De repente ouviu passos atrás de si e uma voz ofegante que o chamava. Virou-se e avistou a figura do homem que fora preso por ele no dia anterior e posto em liberdade naquela manhã.

Quando Lew Pheeney o alcançou, tremia da cabeça aos pés. Articulou algumas palavras ininteligíveis.

 - Posso lhe falar, Slick? - perguntou, depois de se refazer um pouco.

 - Sim, é claro. O que aconteceu?

Lew Pheeney, muito apreensivo, olhou para trás por cima dos ombros.

 - Alguém está me seguindo - disse entre os dentes.

 - Não é a polícia, posso lhe garantir isso - tranqüilizou-o Dick e recomeçou a andar.

 - A polícia? Oxalá fosse ela! Não, é aquele homem sinistro de que lhe falei, que contratou meus serviços na terça-feira passada. Eu não lhe contei tudo, Slick. Enquanto eu procurava forçar aquelas fechaduras, pude notar que o sujeito tirava uma pistola do bolso da calça, passando-a para o bolso do casaco. O tempo todo ficou com a mão enfiada naquele bolso, e de repente compreendi que, uma vez a porta aberta, ele me liqüidaria. Aleguei então uma necessidade fisiológica, e depois de me afastar alguns passos parti a correr. Mas algo vinha atrás de mim. Não sei o que era; uma coisa estranha... meio homem, meio animal. E eu estava desarmado.

Enquanto conversavam, os dois atravessaram o vestíbulo e subiram para o apartamento de Slick. Sem esperar por um convite, o assaltante entrou também. O detetive levou-o ao seu gabinete de trabalho.

 - Lew, agora quero saber toda a verdade! O que foi que você tentou arrombar terça-feira à noite?

Lew, com expressão atarantada, olhou para todos os lados.

 - Um sepulcro - sussurrou.

 

Por uns instantes fez-se um profundo silêncio. Dick, com os olhos muito abertos, inclinou-se e encarou o homem fixamente, julgando que não tinha ouvido direito.

 - Um sepulcro? - perguntou, incrédulo. - Lew, agora me faça o favor de sentar-se, e diga-me tudo, tintim por tintim!

 - Não posso. Estou com medo - foi a resposta.

 - Aquele sujeito é o Demo em pessoa.

 - Quem é ele?

 - Não posso dizer-lhe - teimou Lew Pheeney. - Mas talvez eu ainda resolva fazer uma confissão por escrito, para que exista uma prova no caso de me acontecer alguma coisa.

Percebia-se que ele tentava disfarçar seu nervosismo, e Dick, que sempre o julgara um indivíduo calmo e ponderado, quase não o reconhecia.

Lew recusou o jantar que a criada de Dick serviu, contentando-se com um uísque-soda. Dick Martin absteve-se de fazer outras perguntas, mas sugeriu:

 - Fique a noite aqui no meu apartamento e escreva um relatório completo. Ninguém o perturbará e estará em segurança

Esta idéia parecia ter já ocorrido ao próprio Lew, pois ele não levantou objeções; mas quando Dick se dispunha a combinar os detalhes com ele, o telefone tocou.

 - É o senhor Martin?

Era uma voz desconhecida.

 - É - respondeu Dick.

 - Quem está falando aqui é Havelock. O comissário me falou a seu respeito e me disse que o senhor viria procurar-me ainda hoje no meu escritório. Esperei em vão. É possível vir ainda esta noite? É um assunto urgente - havia medo e súplica na voz.

 - Está bem - replicou Dick. - Qual é o endereço?

 - Fica perto. Acácia Road, número 907, St. John's Wood.

 - Estarei aí dentro de poucos minutos - prometeu Dick.

Neste momento lembrou-se de Lew Pheeney, mas não podia desfazer o compromisso, pois Havelock já tinha desligado. Talvez fosse até melhor deixar Lew Pheeney a sós. Chamou, pois, a criada e disse-lhe que não precisava mais dela naquela noite e que ela podia sair se quisesse. Lew Pheeney concordou com tudo; a perspectiva de poder redigir a sua confissão sem ninguém por perto até parecia agradar-lhe.

Dick pôs-se a caminho e poucos minutos mais tarde tocou a campainha de uma casa imponente que se erguia num terreno ajardinado da melhor área de St. John's Wood. Um velho criado tirou-lhe o agasalho e conduziu-o a uma sala estreita e comprida, mobiliada com gosto apurado.

Havelock era um homem de cinqüenta e tantos anos, alto e magro. Tinha a testa e o queixo de um lutador e suas grossas costeletas grisalhas davam à sua fisionomia uma aparência circunspecta e até um tanto carrancuda. Apesar disso Dick simpatizou com ele, pois os olhos por detrás dos óculos irradiavam inteligência e afabilidade.

 - Senhor Martin, não é verdade? - estendeu-lhe sua mão fina e longa. - Sente-se, por favor. Fique à vontade, como se estivesse em sua própria casa. O que toma? Posso recomendar-lhe meu velho vinho do Porto, artigo de primeira. Walter, sirva um copo ao senhor Martin.

Recostando-se na cadeira, franziu os lábios e contemplou o moço com olhar penetrante.

 - Então é detetive? Hum...

Esta pergunta era parecida com outra que Dick ouvira na parte da manhã de lábios mais bonitos e suaves, e ele sorriu consigo mesmo ao se lembrar.

O advogado continuou:

 - O comissário me disse que pretende deixar Scotland Yard amanhã e que talvez estivesse interessado em encontrar uma ocupação com que preencher o seu tempo livre. Se é isso, talvez eu saiba algo para o senhor - ele fez sinal ao criado. - Walter, pode ir. E desligue o telefone. Não estarei para ninguém.

Depois que a porta se fechara atrás do criado. Havelock levantou-se da poltrona e começou a caminhar de um lado para o outro na sala. Ele tinha um modo rápido e brusco de  falar, como se arremessasse acusações contra um adversário invisível.

 - Eu sou advogado; talvez já tenha ouvido falar em meu nome. Na realidade, pouco tenho a ver com tribunais. A minha atividade é mais de caráter consultivo. Sou procurador de várias associações, e além disso curador dos bens de raiz da família Selford.

Ao dizer isso, aprumou-se. Calou-se por um instante, depois suspirou:

 - Antes esse cálice tivesse passado de mim. O velho Lord Selford... quer dizer, "velho", na verdadeira acepção desta palavra, ele não ficou... O número dos seus vícios e pecados superou em muito o dos seus anos... Bem, como eu estava dizendo, o falecido Lord Selford fez-me o único testamenteiro da sua fortuna e nomeou-me o tutor do seu filho. Selford era um sujeito antipático e ranzinza, meio louco, como a maioria dos Selfords há muitas gerações. Acaso conhece o solar deles?

Dick sorriu.

 - Ontem ainda não o conhecia, mas hoje, por pura coincidência, passei de carro pela estrada que passa ao longo da propriedade. Então é lá que mora o atual Lord Selford?

 - Não, senhor - retrucou Havelock, e seus olhos atrás dos óculos faiscaram de raiva. - Ele não mora em lugar algum. Quer dizer, não mora em lugar algum por mais de dois ou três dias. Ele é o rei dos nômades. O pai dele era a mesma coisa na sua mocidade. Pierce... é este o seu nome, ele não faz uso do título... Pierce passou os últimos dez anos viajando. Só volta à Inglaterra em grandes intervalos. Eu mesmo não o vejo há quatro anos. Quando Selford morreu, Pierce tinha seis anos. Cresceu sem mãe, sem irmãos, sem parentes próximos. Seu pai também havia sido filho único, de sorte que não existiam tios com quem eu pudesse dividir as minhas responsabilidades. O menino era franzino, gozava pouca saúde, não podia freqüentar regularmente uma escola pública. Arranjei-lhe um preceptor que fez o que era possível, mas ele tinha dificuldades em aprender e não conseguiu entrar para a universidade. Por isso, achei que ele deveria viajar, conhecer o mundo, para completar a sua educação. Hoje me arrependo daquela idéia infeliz, pois desde então ele não pára mais em lugar nenhum. Transformou-se num eterno andarilho sem pousada fixa. Quatro anos atrás voltou a Londres e me fez uma visita; estava a caminho dos Estados Unidos. Falou-me da sua intenção de concretizar seu sonho de escrever um livro sobre as suas aventuras nos cinco continentes e se mostrava mais irrequieto do que nunca. Eu estou ficando cada vez mais preocupado. De vez em quando ele me telegrafa pedindo dinheiro, e eu lhe remeto somas consideráveis. É verdade que ele tem direito ao dinheiro, pois já é maior de idade.

 - A situação financeira dele... - começou Dick

 - E sólida - interrompeu-o Havelock. - Não é isto o que me causa preocupações. O que imagino são outras coisas ruins que lhe possam ter acontecido. É possível, por exemplo, que esteja sendo explorado por gente inescrupulosa.

Ele hesitou por um momento, depois prosseguiu:

 - Eu preciso entrar em contato com ele; não diretamente, mas por intermédio de outra pessoa. Por isso lhe peço que embarque para os Estados Unidos o quanto antes e procure travar conhecimento com Lord Selford, que usa o nome de John Pierce. Confesso que isso pode constituir-se numa empresa difícil. Em todos os lugares pelos quais passa, ele costuma demorar-se muito pouco O senhor precisará ficar atento às suas constantes mudanças, porque eu não sei se poderei mantê-lo sempre informado a esse respeito; não deve recorrer, em hipótese alguma, à polícia americana, seja para que for. Tudo o que empreender deverá ser feito sem dar na vista e sem molestá-lo. Antes de mais nada é indispensável apurar três coisas. Primeiro, ele convive com gente duvidosa? Segundo: ainda é dono de sua vontade? Terceiro, o dinheiro que lhe mando está sendo aplicado em seu benefício? Ele escreveu-me há algum tempo que havia adquirido uma série de ações de várias empresas industriais; algumas dessas ações ele até confiou à minha guarda, mas a maior parte está nas mãos dele, e a uma pergunta minha a respeito dessas outras ações ele respondeu que as tinha depositado num banco sul-americano. Isso é tudo que eu lhe posso dizer. O que acha desta incumbência?

Dick riu.

 - Parece-me que o senhor está me oferecendo uma excelente oportunidade para uma viagem de férias gratuita. - Depois, mais sério, acrescentou: - Quanto tempo levaria esta missão?

 - Não sei. Dependerá das circunstâncias e, sobretudo, do que vai constar dos seus relatórios. Não me escasseiam recursos, e além de arcar com todas as despesas, proponho-me a remunerar seus serviços generosamente.

Ele mencionou uma quantia elevada e Dick bateu as pálpebras, espantado.

 - Quando devo partir? - perguntou após pequena pausa.

O advogado pegou um caderno de notas e consultou a folhinha.

 - Hoje é quarta-feira. Digamos, dentro de oito dias. No momento Pierce se encontra em Boston, colhendo dados sobre a guerra da Independência da América, dos quais necessita para o seu livro. Entretanto, ele comunicou-me que em breve irá para Nova Iorque e se hospedará no Hotel Commodore.

 - Mais outra pergunta - disse Dick, levantando-se. - O senhor tem algum motivo para suspeitar de que o jovem Lord Selford contraiu uma aliança indesejável? Em outras palavras, que casou com mulher de nível inferior?

Havelock fez um gesto vago.

 - Nenhum outro motivo além do meu coração desconfiado - respondeu, meneando a cabeça. Continuou: - Depois de conquistar a confiança dele, que certamente conseguirá logo, deve convencê-lo de que é seu dever de cidadão inglês regressar à Inglaterra. É uma lástima e um desdouro abandonar aos ratos uma propriedade histórica como o castelo Selford... Quer queira, quer não, algum dia terá de voltar mesmo, a fim de ser enterrado lá - acrescentou com um sarcasmo mordaz, cuja significação oculta Dick só descobriria oito meses mais tarde.

Tratava-se de uma incumbência "fenomenal", para usar a palavra predileta do Dr. Staletti; uma viagem de férias em grande estilo. Não era de estranhar, pois, que a melancolia que Dick sentia por deixar Scotland Yard se desvanecesse um pouco diante de tão agradável perspectiva.

Um vento gélido fustigava-lhe o rosto enquanto voltava apressadamente peias ruas desertas rumo ao seu apartamento. Nenhum táxi apareceu dentro da noite, de modo que teve de fazer todo o percurso a pé.

Ao abrir a porta do apartamento encontrou todas as peças vazias e às escuras. Com surpresa verificou que Pheeney tinha ido embora. Em cima da mesa estavam algumas folhas de papel em branco e uma caneta-tinteiro, dando a impressão de que Lew se ausentara apenas por pouco tempo: na certa retornaria ainda na mesma noite.

Todavia, não voltou. Esperando até duas horas da madrugada que Lew desse sinal de si, Dick finalmente foi-se deitar.

De manhã bem cedo se dirigiu para a Biblioteca Bellingham, onde entregou o livro à sua amiguinha, que o cumprimentou com um sorriso.

 - Bom dia, senhor Martin. Confesso que estou muito impressionada com a sua eficiência. O próprio Sherlock Holmes não poderia ter feito melhor. Como foi que o recuperou? - ela apontou para o livro.

 - Foi muito simples - riu ele. - Falei com o sujeito de quem suspeitávamos, e ele admitiu tudo. Ele tem umas idéias extravagantes sobre a função das bibliotecas públicas.

Não havia mais nenhum pretexto para continuar ali na biblioteca, mas Dick, com muita habilidade, estendeu a conversa por mais algum tempo, até que finalmente ela lhe disse que aquilo era hora de expediente e que ela precisava trabalhar.

 - Em breve deixarei a Inglaterra por alguns meses - comentou ele. - E nem sei exatamente para onde vou.

 - Viagem de recreio? - indagou ela.

 - Depende do ponto de vista - disse ele em tom casual. - Será antes uma aventura nos moldes das fitas cinematográficas.

Ela encarou-o com uma interrogação nos olhos.

 - Será que o senhor é o detetive que o senhor Havelock contratou para achar meu parente? - inquiriu.

Agora era a vez dele de mostrar espanto.

 - Seu parente? Lord Selford é parente seu? - perguntou, arqueando uma sobrancelha.

Ela confirmou com um aceno de cabeça.

 - Um primo afastado. O nosso parentesco só se torna visível através de uma lente de aumento. Minha mãe e eu estivemos anteontem na casa do senhor Havelock e ele contou-nos que, preocupado com a prolongada ausência de Lord Selford, pensava em contratar um investigador.

 - Conhece pessoalmente este seu primo?

Ela sacudiu a cabeça.

 - Não, mas minha mãe o conheceu quando ele era menino. Dizem que o pai dele foi um sujeito insuportável. Então irá atrás de Lord Selford?

Dick anuiu.

 - É esta a triste notícia que eu pretendia transmitir-lhe com muito tato - acrescentou em tom brincalhão.

Neste momento a conversa dos dois foi interrompida. Chegavam os primeiros leitores e Dick, embora ansioso por ficar mais um pouco, não teve outra alternativa senão despedir-se e tomar o rumo de Scotland Yard, a fim de fazer ao Capitão Sneed, a quem telefonara pela manhã, um relato sucinto do que acontecera.

 - É uma história muito esquisita - disse o capitão. - Não posso compreender por que Pheeney foi embora se estava disposto a confessar tudo. E quem estaria interessado em segui-lo? Você notou alguma coisa suspeita?

 - Absolutamente nada, mas ele tremia como varas verdes quando me chamou na rua, e seu medo era genuíno.

Sneed pressionou um botão de campainha e esperou a chegada do sargento de plantão.

 - Escute, eu quero que alguém saia em procura de Lew Pheeney. Preciso falar com ele. É urgente.

Mas quando o sargento já ia fechar a porta atrás de si, chamou-o de volta.

 - O inspetor Martin conhece todos os esconderijos onde Pheeney costuma se meter. É melhor ir ele mesmo.

 - O meu serviço termina hoje às doze horas - protestou Dick.

 - Às doze horas da noite - respondeu Sneed laconicamente. - Até lá muita água ainda vai passar por baixo das pontes de Londres.

Resmungando, Dick pôs-se a caminho.

Lew Pheeney morava havia muitos anos na Great Queen Street, mas a sua senhoria não sabia onde se encontrava no momento.

 - Saiu a passear ontem por volta das cinco horas e não voltou mais - informou.

Um dos locais favoritos de Pheeney era um famigerado clube cujo quadro de sócios se compunha principalmente de antigos e futuros presidiários. Era ali que comumente tomava o seu desjejum. No entanto, lá também não estava, nem esteve.

Dick regressou para seu apartamento, desapontado. Dirigiu-se ao quarto de dormir e tirou o casaco para vestir uma roupa mais leve e confortável, como era do seu hábito quando estava em casa. Quando abriu a porta do pesado guarda-roupa de mogno que ocupava quase toda a largura do quarto, o corpo de um homem caiu para a frente e rolou aos seus pés com um baque surdo.

Dick deu um pulo para trás, os olhos esgazeados.

Era Lew Pheeney, e estava inerte, rígido, morto.

 

A perícia aguardava na sala de jantar o resultado do exame cadavérico. Todo mundo só conversava em voz baixa, como é praxe num momento destes.

Finalmente o médico disse:

 - Pelo que pude constatar, a morte ocorreu há muitas horas e foi causada por violenta fratura do pescoço.

Dick sentiu um arrepio correr-lhe pela espinha. Ele dormira naquele quarto, sem saber que a porta envernizada do seu guarda-roupa ocultava tão apavorante mistério.

 - Não encontrou sinais de luta? - perguntou-lhe Sneed, que também estava presente.

 - Não, nada - redargüiu Dick. - Acho que ele foi atacado pelas costas - balançou a cabeça, perplexo. - Não compreendo como o assassino conseguiu entrar no apartamento.

O elevador do prédio era operado por uma moça que, ouvida pela polícia, declarou não ter visto ninguém

Todo o apartamento foi meticulosamente revistado em busca de pistas que pudessem lançar luz sobre o crime, mas nada foi encontrado.

 - Só havia uma via de acesso para o invasor - opinou Sneed. - Pela cozinha.

A porta da cozinha dava para uma pequena sacada, ao lado da qual existia um ascensor externo para o transporte de mercadorias que funcionava mediante uma espécie de sarilho.

 - Esta porta estava trancada por dentro? - quis saber o capitão.

Dick não se lembrava, mas a criada, que chorava baixinho e enxugava as lágrimas na fralda do avental, afirmou que encontrara a porta aberta pela manhã.

Dick foi à sacada e olhou para o pátio interno do prédio O apartamento ficava no terceiro andar e seria necessária a habilidade de um artista de circo para subir pelo cabo do ascensor até aquela altura.

 - Ele nunca deu a entender, de alguma forma, de quem tinha medo? - perguntou Sneed.

Dick sacudiu a cabeça.

 - Ele não tinha coragem de contar, mas posso jurar que falou a verdade. Estou plenamente convencido de que realmente foi contratado para uma profanação de sepulcro e que o desconhecido que o recrutara tinha a intenção de matá-lo depois.

No dia seguinte Dick dirigiu-se ao escritório do advogado. Havelock já lera as notícias do homicídio nos jornais.

 - Receio que tenhamos de adiar a sua partida - comentou. - Duvido que Scotland Yard vá permitir agora que se ausente do país.

Concluído o inquérito policial, as autoridades decidiram não impedir a viagem de Dick, desde que ele se comprometesse a permanecer em contato com Scotland Yard. a fim de que, em caso de necessidade, pudesse regressar imediatamente para testemunhar.

Ao meio-dia de sábado Dick Martin deixou a Inglaterra.

 

Todos os jornais deram ampla publicidade ao assassinato de Lew Pheeney. Também Dick refletiu muito sobre o caso, mas a viagem inundou-o de tantas emoções novas que a lembrança do crime foi aos poucos se desvanecendo. Outra recordação, todavia, se tornava mais e mais luminosa, à medida que se afastava da Inglaterra. Mentalmente via, a todas as horas do dia, um lindo rostinho e o brilho de um par de olhos cinzentos, e escutava o som de uma voz suave e alegre.

Repreendia-se a si próprio por não ter indagado do nome dela, pois se o tivesse feito poderia lhe escrever. Nos dias que precederam a sua partida, os acontecimentos haviam-se precipitado e não lhe tinha sido possível procurá-la mais uma vez. Uma carta endereçada “à linda moça de olhos cinzentos na Biblioteca Bellingham" talvez chegasse ao seu destino, mas era possível que outra jovem daquela instituição possuísse as mesmas características.

Em Chicago teve finalmente uma idéia brilhante. Enviou uma carta à biblioteca, solicitando admissão no seu círculo de leitores. Nutria a esperança de que talvez o nome dela constasse da resposta. Somente depois de jogar a carta na caixa do correio lembrou-se que a resposta, provavelmente, não mais o alcançaria.

A sua única fonte de informações eram os jornais ingleses. De acordo com eles, a polícia ainda não conseguira agarrar o culpado. Aos poucos o interesse do público em torno do caso Pheeney foi diminuindo e os relatos de várias colunas dos primeiros dias encolheram até se transformarem em brevíssimas notícias.

Dick passou por Buenos Aires e de lá viajou para a Cidade do Cabo, onde também não chegou a alcançar o homem que procurava, pois este partira daquela cidade alguns dias antes. Entretanto, ele teve a grata surpresa de receber um telegrama de Havelock ordenando-lhe que regressasse sem demora. Contente, embarcou no primeiro navio.

Ele seguira o jovem lorde de vida errante em torno do globo terrestre e seu entusiasmo inicial arrefecera muito. A viagem até a Ilha da Madeira levou treze dias, pois o barco fez escala em vários portos. Foi para Dick o período mais enfadonho e monótono da sua vida.

Mas quando o navio atracou na ilha paia embarcar carvão, aconteceu o milagre. Minutos antes da partida uma lancha encostou, meia dúzia de passageiros subiu a escada...

Dick sentiu pular o coração, pensou que estava sonhando,..

Era ela! Não havia dúvida. Ele a teria reconhecido entre milhares de pessoas.

Ela pisou no convés a poucos passos de onde ele se encontrava, mas não o viu, e ele não se adiantou, nem acenou. Agora que ela estava tão perto dele, que se lhe oferecia uma oportunidade de aproximação como não havia considerado possível nem nos seus sonhos, mais ousados; reteve-o uma estranha timidez.

Somente no último dia de viagem, dando de rosto com ela, resolveu dirigir-lhe a palavra. Ela mediu-o de alto a baixo.

 - Sim, eu sabia que o senhor estava a bordo. Vi seu nome na lista de passageiros - disse.

Ele não notou o sorriso divertido que brilhou nos olhos dela.

 - Então por que fez como se eu não existisse? - quis saber.

 - Pensei que o cavalheiro viajava incógnito - respondeu ela. - Além do mais, creio que nos encontraremos freqüentemente daqui em diante, já que agora é portador de um cartão de leitor e consulente da nossa biblioteca

 - É verdade, eu tenho um - concordou Dick com ar encabulado.

 - Eu sei, pois fui eu mesma quem expediu o cartão - retrucou ela prontamente.

 - Oh! então você é... - esperou que ela completasse

 - A pessoa que expediu seu cartão - disse ela em tom sério.

Ele não se conteve mais e perguntou abertamente:

 - E como se chama, por favor?

 - Sybil Lansdown.

 - Ah, é! Agora me lembro.

 - O senhor viu minha assinatura no cartão?

Ele fez que sim com a cabeça.

 - Engraçado. Como se explica então o fato de que ele nos foi devolvido mais tarde pelo correio sob a alegação de que o destinatário tinha mudado de endereço?

Aí ambos soltaram uma gargalhada e o contato estava restabelecido.

À noite tornaram a conversar Trevas e solidão os cercavam. De tempos a tempos a luz de um farol longínquo riscava a escuridão.

 - Vai continuar a viajar? - perguntou ela.

 - Não. Vou ficar em Londres, e muito me alegro com isso. Tenho um pequeno, mas confortável apartamento em Clargate Gardens. Quem se planta no centro da sala e estende os braços para ambos os lados, toca nas paredes, mas eu gosto dele. Não sou muito exigente.

 - O que não diria se visse o tamanho do nosso na Coram Street!

 - Que número? - perguntou ele depressa.

 - Um entre muitos - sorriu-lhe ela. - Mas já é hora de descer. Está ficando tarde. Boa noite, senhor Martin.

Ele não a acompanhou à escada que conduzia aos camarotes, mas seguiu-a com a vista até ela desaparecer na escuridão.

Por que teria Sybil Lansdown viajado à Ilha da Madeira? Evidentemente ela não pertencia àquele pequeno círculo de afortunados que todos os anos trocavam o nevoeiro londrino pelo sol de regiões mais amenas. Ela estava mais bonita do que nunca. Era esbelta sem ser magra, tinha uma beleza pálida, quase oriental. Talvez fosse a ligeira obliqüidade dos olhos cinzentos que lembravam o Oriente.

Na manhã seguinte, depois de desembarcar, Dick arranjou as coisas de tal modo que acabou viajando no mesmo vagão.

 - Está contente por voltar a Londres? - perguntou.

Ela soltou um suspiro.

 - Estou contente por poder falar novamente a minha língua. Não é fácil fazer-se entender em português.

Admirado, ele arqueou uma sobrancelha.

 - Mas em todos os hotéis se fala o inglês - disse.

 - Sim, isso é. Mas eu não me hospedei em nenhum hotel, e sim numa pequena pensão nas montanhas, onde só entendem o português. Seja como for, parece que minha viagem foi inútil.

 - Então podemos nos dar as mãos - replicou ele. - Eu também dei com os burros na água, por assim dizer.

Ela sorriu.

 - Mesmo assim, não estou voltando de mãos completamente vazias.

Ela tirou uma caixinha da bolsa e ergueu a tampa.

A caixa continha uma chave chata de formato singular, com ambos os lados denteados.

 - Que chave esquisita! - exclamou ele. - E foi por causa dela que viajou para a Ilha da Madeira?

Ela fez um aceno afirmativo com a cabeça.

 - Entretanto, esperava outro resultado da minha viagem. É uma história curiosa que tem relação com Lord Selford. A propósito, com quem se parece meu primo?

 - Com o imperador da China. O que quero dizer é que não conheço nem um, nem outro. Não cheguei a encontrar seu primo.

Ela fez-lhe muitas perguntas sobre as inúmeras peripécias da sua viagem em busca de Lord Selford: só depois lhe contou a sua própria aventura.

 - Meu pai, durante certo tempo, empregava um jardineiro português de nome Silva, que mais tarde recomendou a Lord Selford. Depois da morte do velho lorde, esse Silva mudou-se para a Ilha da Madeira. Há pouco mais de três meses minha mãe recebeu uma carta de um padre que nos comunicava que Silva tinha falecido na ilha. Ainda na hora da morte o atormentava o mal que ele, conforme afirmava, nos tinha causado. Implorando o perdão dos seus pecados, confiou seus pertences ao padre para que este os entregasse pessoalmente a um membro de nossa família. Nem eu nem minha mãe podíamos pensar em viajar para Madeira: para isso faltavam-nos os recursos. Entretanto, logo em seguida chegou uma segunda carta, postada em Londres. O envelope continha cem libras esterlinas e uma passagem de navio para a Ilha da Madeira.

 - Conhecia o remetente? - indagou Dick depressa.

 - Não sei, não constava da carta, mas eu resolvi fazer a viagem. O velho padre ficou muito contente com a minha chegada. No curso do último mês a sua casa tinha sido assaltada três vezes, e ele achava que havia alguma relação entre os assaltos e o pequeno embrulho que recebera do falecido jardineiro. Eu, é claro, esperara algo muito mais precioso, algo que valesse a pena de uma longa viagem marítima, ainda mais porque os vizinhos do senhor Silva diziam que ele tinha sido um homem muito rico. Entretanto, só encontrei esta chave. Pode imaginar como fiquei desapontada.

Dick revirou a chave entre os dedos com ar pensativo.

 - Silva foi jardineiro de Lord Selford, foi o que disse? Curioso. De onde provinha então a sua riqueza? Ele deixou alguma coisa por escrito?

Ela fez sinal que não.

 - Mas preste atenção, a minha história ainda não acabou. Eu meti a chave no bolso do meu casaco e deixei o casaco pendurado no cabide do meu quarto. Foi a minha sorte, pois mal chegara à rua, um homem se precipitou sobre mim e arrebatou-me a bolsa das mãos. Gritei por socorro, juntou gente, mas ele já tinha desaparecido. A bolsa não continha nada de valor, pois meu dinheiro e passaporte estavam depositados no cofre da pensão. Então me lembrei dos assaltos à casa do padre, e daquele momento em diante não tive mais sossego. Assim que subi a bordo do navio, confiei a chave ao comissário.

 - E deixaram-na em paz?

Ela riu baixinho.

 - Por duas vezes alguém revistou minhas malas, e uma vez até chegaram a virar o colchão. Mas estou grata por não ter-me acontecido coisa pior.

Dick tornou a examinar a chave, depois perguntou em tom casual.

 - Coram Street, número... ?

Eia mencionou o número, e só depois se lembrou de que não pretendia revelar-lhe seu endereço.

Ele devolveu-lhe a caixinha. Ela perguntou:

 - Tem alguma idéia do que significa tudo isso?

Ele encolheu os ombros.

- Não - confessou. - Eu precisava descobrir primeiro a fechadura para esta chave.

O trem diminuiu a marcha e entrou na estação de Waterloo.

Ela ficou um pouco sentida quando Dick se despediu dela apressadamente e, dando-lhe as costas, desapareceu no torvelinho de passageiros.

Sybil levou algum tempo para retirar a bagagem. Um empregado da estação arranjou-lhe um táxi. Mal tirara a carteira de dinheiro, um homem roçou nela, enquanto outro lhe deu um esbarro. A carteira escapuliu-lhe das mãos, e antes que ela pudesse se abaixar para apanhá-la, um terceiro sujeito já a tinha recolhido e passado para um cúmplice que estava atrás dele. O ladrão virou-se para fugir, mas neste moimento foi agarrado por uma mão musculosa, e quando estrebuchou para se defender, recebeu violento soco no maxilar que o derrubou ao chão.

 - Espere, patife, que eu lhe ensino como se comportar! - exclamou Dick Martin.

 

Eram dez horas de uma linda manhã de abril quando Dick Martin entrou no escritório de Havelock.

O advogado, fazendo-lhe um aceno amável, ofereceu-lhe uma cadeira e terminou de ditar uma carta à secretária. Depois da saída da secretária, levantou-se e encheu o cachimbo.

 - Então não encontrou Lord Selford? - perguntou.

 - Infelizmente não. Passei os dias todos em trens ou automóveis, mas parece que ele viajava sempre mais depressa do que eu. Quando cheguei ao Rio de Janeiro, ele tinha deixado o Rio pela manhã. Na Cidade do Cabo ele tinha uma dianteira de três dias. Talvez o alcançasse em Beira, mas ai chegou o seu telegrama chamando-me de volta.

Havelock tirou uma baforada e balançou a cabeça com ar circunspecto. Depois apertou o botão da campainha, e a secretária reapareceu.

 - A última pasta relativa a Selford, por favor - disse, e esperou calado. Ela voltou após alguns instantes e entregou-lhe uma pasta azul. Ele abriu-a e estendeu-a ao detetive. Dick viu, arquivado, um telegrama expedido na Cidade do Cabo, que dizia:

"Havelock Londres. Proíbo terminantemente ridícula perseguição por detetive. Procuração a caminho. Chego Londres agosto.

Pierce"

O telegrama fora expedido três dias antes da chegada de Dick à Cidade do Cabo.

 - Como está vendo, não tive outra alternativa senão ordenar seu regresso - disse Havelock, dando de ombros. - Conseguiu apurar algumas coisas sobre ele?

Dick riu.

 - Não, ele nunca se demorou o suficiente em lugar nenhum. Conversei com porteiros de hotel, camareiros, garçons e outros, mas ninguém notou nada de anormal. - Depois de ligeira hesitação, acrescentou: - Ele se encontrava na Cidade do Cabo no dia em que chegou o novo Governador Geral.

 - Hum... - fez Havelock. - E daí?

 - Daí nada - replicou Dick. - Acontece que me lembrei deste detalhe. - Ele fez uma pausa e depois recomeçou: - O que o senhor acha de todo esse comportamento meio misterioso? O que há por trás de tudo isso?

Havelock contraiu os lábios.

 - Nada de especial, creio. Na pior das hipóteses, uma esposa que ele não pode apresentar à sociedade inglesa.

Dick passou a mão pelo queixo, com ar pensativo.

 - Recebeu cartas dele?

Havelock fez que sim com a cabeça.

 - Posso vê-las?

 - Pois não - redarguiu Havelock, e com um aceno de cabeça indicou a pasta que Dick ainda tinha nas mãos.

Dick pôs-se a folheá-la.

Havia telegramas de todos os cantos do mundo, documentos, instruções, cartas compridas e cartas sucintas, algumas escritas a mão, outras datilografadas.

 - É a correspondência do último ano - esclareceu o advogado.

 - E o senhor reconhece a letra dele em cada uma destas cartas?

 - Sim... Quanto a isso, nunca tive qualquer dúvida.

Dick devolveu-lhe a pasta.

 - Sinto muito não ter tido melhor êxito, senhor Havelock. Acho que é mais fácil apanhar uma andorinha voando do que esse jovem lorde. Posso assegurar-lhe, porém, que não há mulher envolvida nisso. Ele esteve sozinho em Nova Iorque e sozinho em São Francisco. Desembarcou sem acompanhamento feminino em Xangai, e em toda a Índia não foi visto com nenhuma mulher. - Depois de um momento de silêncio, acrescentou: - Se for possível, por favor, apresente-me a ele em agosto.

 - Pois não, com muito prazer - sorriu Havelock. - Isto é, se eu puder retê-lo aqui o tempo suficiente.

Dick despediu-se e voltou para casa, revolvendo na cabeça um problema que muito o preocupava. Chegado ao apartamento, sentou-se à escrivaninha com um ar de quem procura resolver uma questão matemática. Vez por outra passava nervosamente os dedos no cabelo. Depois de meia hora de intensas meditações, o seu penteado assemelhava-se à cabeleira de um aborígine da Papua, mas o problema continuava sem solução.

Ele esvaziara todas as suas malas com exceção de uma, que agora abriu e emborcou, derramando sobre a mesa o seu conteúdo que consistia em uma profusão de papéis: apontamentos, recibos, contas de hotéis, recortes de jornal, e até uma folha de mata-borrão que ele agora ergueu com ambas as mãos e inspecionou contra a luz. Via-se nitidamente a impressão de um endereço: Sr. Bertram Cody, Weald House, South Weald, Sussex.

Tratava-se de uma folha de mata-borrão encontrada por Dick na escrivaninha do quarto de hotel ocupado pelo jovem lorde quarenta e oito horas antes da chegada do detetive a Buenos Aires.

Dick guardou a folha numa gaveta, dirigiu-se ao quarto de dormir e postou-se em frente ao espelho.

 - E você pretende ser um detetive. Dick Martin? - perguntou à sua imagem refletida. - Um pedaço de asno, é isso o que você é!

Passou o resto do dia praticando um velho truque de cartas que consistia em fazer desaparecer a primeira carta e transformá-la na nona carta do baralho. Com um cronômetro mediu o tempo necessário para a execução do truque, e só se deu por satisfeito quando conseguiu reduzi-lo a um quinto de segundo.

Levantou-se e foi apanhar o carro na garagem.

 

- Faça-o entrar - disse Bertram Cody.

Ele era um homem baixo e calvo, com uma voz macia.

Cerimoniosamente colocou os óculos com aros de ouro no nariz e deitou um olhar ao cartão que trazia o nome do visitante:

John Rendle, Collins Street 194, Melbourne.

O nome nada lhe dizia. Ele conhecera um senhor Rendle no passado, um honrado comerciante de chá, mas o encontro fora tão rápido e superficial que não acreditava tratar-se da mesma pessoa.

Estivera sentado à mesa, a folhear um pequeno caderno de notas, quando o informaram da visita. O caderno tinha uma capa de couro de marroquim vermelho e continha, além das folhas de papel para apontamentos, uma divisão para selos e outra maior para cédulas de dinheiro.

Quando o desconhecido cruzou o limiar da porta, Cody meteu o caderninho mais que depressa debaixo da pilha de papéis.

 - O senhor Rendle - anunciou a voz estridente de uma mulher, e da penumbra surgiu um homem moço ainda, alto e espadaúdo, que não tinha a menor semelhança com o comerciante de chá.

 - Sente-se, por favor - convidou Bertram Cody com civilidade. - E queira desculpar esta semi-escuridão em que eu vivo. Luz forte fere os meus olhos. A claridade desta lâmpada de mesa com quebra-luz é suficiente para mim, embora às vezes as pessoas que me vêm visitar reclamem.

John Rendle, meio tateando, puxou uma cadeira e sentou-se.

 - Sinto incomodá-lo a uma hora tão tarde, mas acabo de chegar da Austrália e amanhã tornarei a embarcar.

 - E o que deseja?

 - Vou já explicar. Eu sou dono de uma pequena fazenda nos arredores de Ten Miles Station. - Fez uma pausa e prosseguiu lentamente: - O senhor é meu vizinho mais próximo.

Cody acenou afirmativamente. Investira todo o seu capital em terras de outros continentes.

 - Eu tenho motivos para acreditar que um filão de ouro se estende por nossas terras - continuou Rendle. - Fiz esta descoberta há um ano aproximadamente, mas evitei tornar este fato público enquanto não tivesse certeza total.

Ele passou a tecer considerações sobre composições mineralógicas. Cody escutava-o com atenção e de vez em quando balançava a cabeça, concordando. Ao fim ambos se debruçaram sobre um mapa que o moço estendera em cima da mesa.

Depois que ele encerrou a sua exposição, Cody disse:

 - Eu já sabia da existência de ouro, senhor... hum!... senhor Rendle, por intermédio do meu corretor. Existe um veio aurífero, sim, mas, infelizmente, não é comercialmente explorável, pois não contém ouro em quantidade suficiente para compensar as despesas da sua extração. Os jornais exageraram. O senhor não leu as notícias? Ah, sim... Provavelmente o senhor estava navegando no meio do oceano quando foram publicadas. Mas seja como for, fico-lhe muito agradecido. A sua amabilidade e honestidade me comovem.

 - O senhor comprou suas terras de Lord Selford, não foi? - perguntou o visitante.

Bertram Cody pestanejou, como repentinamente ofuscado por um forte raio de luz.

 - Não dele diretamente - respondeu tossindo - mas do seu... bem, como direi... do seu agente, uma firma de advocacia em Londres. No momento não me ocorre o nome. O lorde está sempre viajando... muito difícil de ser encontrado. Escorregadio como uma enguia - fez um gesto com as mãos como se procurasse agarrar um fantasma. - Ele é um apaixonado por ferrovias e transatlânticos. Um dia chegam notícias dele do interior da África; a carta seguinte vem... hum... dos pampas argentinos. Eles enviam-lhe dinheiro para a China, para o Pólo Sul, Deus sabe para onde. Ele leva uma vida divertida, mas certamente muito enervante para os seus parentes... se tem parentes, o que não sei.

Ele meneou a cabeça com tristeza. Logo endireitou o corpo como se de repente se lembrasse que as suas observações tinham como ouvinte uma pessoa estranha. No mesmo momento estendeu o braço para a despedida.

 - Agradeço-lhe por ter vindo me procurar - disse, e tomando a mão do outro, apertou-a com delicadeza entre as suas. - A monotonia da vida se ilumina quando nos deparamos com tanto altruísmo e abnegação.

O visitante, cujos pensamentos ainda giravam em torno do jovem lorde, retirou a mão devagarinho.

 - O senhor ainda tem contato com ele? - inquiriu.

 - Com quem? Ah!... com Lord Selford? Absolutamente. Decerto ele nem sabe que eu existo.

E segurando-lhe o braço, acompanhou-o à porta.

 - O senhor veio de carro? Ótimo. Parece que vamos ter chuva, e já é tarde. Dez e meia, não é? Bem, muito boa noite.

De pé na varanda coberta, seguiu o automóvel com a vista até que as luzes traseiras sumiram atrás de um grupo de arbustos de rododendros. Depois retornou ao vestíbulo.

A mulher vestida de seda preta, que Rendle tomara pela governanta de Cody, veio ao encontro do marido. As suas feições grosseiras revelavam dureza e insensibilidade. Juntos voltaram à sala.

 - Quem era? - perguntou aborrecida, com voz esganiçada.

Bertram Cody, tornando a sentar-se à sua escrivaninha de mogno, largou uma risadinha ao refestelar-se na poltrona estofada.

 - Quem era? Ora... Dick Martin. Um oficial de Scotland Yard.

A senhora Cody fez-se pálida.

 - E você está me dizendo isso com essa calma, Bertie? - exclamou, alarmada, pondo a mão espalmada sobre o peito. - O que ele queria?

 - O que queria? Meter o nariz, é isso o que ele queria - replicou Cody. - Ele é muito esperto, mas não conseguiu nada. Reconheci-o imediatamente. Tenho pelo menos três fotografias dele. O que estará tramando? É... Que será?

Meteu a mão por baixo dos papéis, procurando o pequeno caderno de notas que havia escondido ali. Subitamente uma lividez cadavérica espalhou-se pelo seu rosto.

 - Sumiu - gritou. - O caderno sumiu! E a chave! Meu Deus... a chave!

Ele pôs-se de pé, cambaleando como um bêbado, o horror estampado nos olhos esbugalhados.

 - Deve ter acontecido quando me mostrou o mapa - gaguejou, rouco de emoção. - Eu tinha esquecido que ele pode rivalizar com os melhores punguistas. Diabo, feche a porta, mulher! Preciso telefonar!

 

Embora Dick tivesse ligado o limpador de pára-brisa, a água da chuva torrencial escorria pela vidraça e ele teve de baixar o vidro da janela do seu lado para poder enxergar a estrada. A chuva escachoava na capota sem cessar, os faróis lutavam contra a escuridão, e de vez em quando um relâmpago riscava o negrume da noite, seguido de uma trovoada estrepitosa.

 - Coram Street 107 - ocorreu-lhe. No momento seguinte surgiu em seus pensamentos a imagem da moça.

Por que se lembrou de repente de Sybil Lansdown, se momentos antes estava pensando em Bertram Cody?

Tendo por hábito analisar seus pensamentos, ficou a refletir, e subitamente a sua mão esquerda, metida no bolso do paletó, apalpou um pequeno caderno de notas. Um objeto duro que ele continha, e cujos contornos se realçavam através da capa de couro, havia ligado o caderno a Sybil Lansdown, em sua mente.

Ele pisou no freio tão bruscamente que o carro derrapou no asfalto molhado e quase tombou na vala que beirava a estrada, mas no último instante deu uma guinada e restabeleceu o equilíbrio. Desligou o motor e acendeu a luz para examinar o "achado" Abrindo-o, já adivinhava o que iria encontrar, e não se enganou.

Fitando a chave na palma da sua mão, admirou-se do seu tamanho e formato. Era uma cópia quase exata da chave que Sybil Lansdown lhe mostrara no trem e que a esta hora se encontrava bem guardada num cofre de banco.

Dick deu um assobio baixinho, recolocou o caderno no bolso e escondeu a chave debaixo do capacho de borracha aos seus pés. O bando inescrupuloso que por vários meios havia tentado apoderar-se da chave de Sybil certamente não iria hesitar em interceptar seu carro, e neste caso a sua pessoa não constituía um bom esconderijo.

O respeito de Dick por essa misteriosa confraria de "chaveiros" aumentava e ele previa peripécias bem mais empolgantes do que as vividas durante a sua viagem em volta do mundo. Ele tornou a apagar a luz e pôs o carro em movimento. Enquanto pisava no acelerador, refletia sobre a sua descoberta.

Cody havia negado qualquer tipo de relação com Lord Selford. Só podia ser mentira. E qual era o mistério da chave? Ela devia ler uma grande importância para Cody, pois ele observara como este ocultou o caderno de notas apressada e furtivamente à sua chegada. Por curiosidade ou mera diabrura aproveitara a primeira oportunidade que se lhe oferecera para escamoteá-lo. Agora ele já tinha duas dessas chaves estranhas em seu poder, e a descoberta das fechaduras às quais pertenciam e daquilo que estas ocultavam tornava-se uma tarefa cada vez mais urgente.

Ele buzinou, irritado. Um enorme caminhão, debaixo de cujas rodas o chão da estrada estremecia, quase o empurrara para dentro da vala ao ultrapassá-lo.

Não, ele não podia distrair-se. Precisava concentrar toda a sua atenção na estrada.

Mal tinha tomado essa decisão, três luzinhas vermelhas emergiram da noite chuvosa e de péssima visibilidade. Isso só podia significar que a estrada estava impedida por causa de obras na pista. Entretanto, ele havia passado por esse mesmo trecho pela manhã e não se lembrava de obras: além do mais, o caminhão devia ter passado por ali havia pouco.

Ele meteu a cabeça para fora e vislumbrou, à luz dos faróis, ao lado da estrada, um muro meio desmoronado, coberto de musgo e limo. Numa parte do muro existia uma brecha. Ali havia evidentemente um portão. Os olhos de Dick voltaram para as três lanternas de luz vermelha. Ele apagou os faróis, sacou o revólver e saltou.

Nada se ouvia além do ruído monótono da chuva e o esfuziar do vento. Mantendo-se cautelosamente no meio da estrada, caminhou os poucos passos até os lampiões sem ser molestado. Ergueu um deles e pôs-se a examiná-lo atentamente. Era velho e enferrujado e seus vidros haviam sido pintados de maneira desigual com tinta vermelha; o segundo lampião era de formato diferente, mas seus vidros também tinham sido pintados recentemente; o mesmo sucedera ao terceiro.

Com violento pontapé Dick afastou o lampião do meio, que mais lhe estorvava a passagem. Retornou apressadamente para o carro, bateu a porta e deu partida. O arranque pegou, mas o motor não se mexia. Dick tornou a saltar e fez a volta do carro. Depois deitou um olhar ao medidor da gasolina, e este lhe revelou o motivo do enguiço. O ponteiro indicava falta de combustível!

 - Então é isso! - murmurou Dick, estupefato. Ele enchera o tanque antes de deixar Londres e não podia ter gasto toda a gasolina. Contudo, quando bateu no tanque, ele produziu um som cavo.

Uma súbita lutada de vento quase lhe cortou a respiração. De repente sentiu o cheiro de gasolina no ar. Ele acendeu sua lanterna de bolso e iluminou o chão. A luz refletiu-se no asfalto, irisando. Agora entendeu tudo: alguém havia esvaziado o tanque enquanto ele, mais à frente, examinava os lampiões. Admirou-se, pois não escutara nenhum ruído. Fosse como fosse, ele não tinha gasolina de reserva, e se ninguém nas redondezas lhe acudisse, teria de passar a noite naquele lugar ermo da estrada. Só faltava esta!

À luz da lanterna de bolso foi até o muro e examinou o portão arruinado pelo tempo, que pendia inclinado dos gonzos, como um bêbado encostado numa árvore. Até aquele momento Dick não tivera idéia de onde se encontrava, mas neste instante reconheceu repentinamente o lugar: o muro confinava o terreno do "Átrio do Patíbulo", do lado da estrada.

Mantendo a lanterna sempre acesa, subiu a alameda. De ambos os lados a escuridão e a vegetação cerrada impediam distinguir o resto do parque. Choupos frondosos formavam um dossel sobre sua cabeça.

Subitamente o feixe de luz da sua lanterna foi absorvido pelas trevas de uma escavação no chão de cerca de seis pés de profundidade e do comprimento de um corpo humano. "Meu Deus, parece uma cova recém-aberta!" pensou, e suas carnes se arrepiaram. Ele dobrou o passo até avistar à sua frente a construção cúbica e feiosa da casa. Iluminou a parede e só agora notou como estava carcomida. Em muitos lugares havia caído o reboco revelando os tijolos que lembravam a carne viva de uma ferida.

O prédio jazia num silêncio sepulcral: nenhum cachorro latia e por trás das vidraças das janelas reinava uma escuridão maior do que fora.

Dick aguardou uns segundos antes de subir a escadaria que conduzia à porta principal. Ele deu algumas pancadas com a grossa aldrava de cobre e um eco cavernoso rolou pela casa. Estava ela vazia? Bateu de novo e tornou a esperar, e de repente escutou o ruído de pés arrastando-se pelo vestíbulo, o rangido de uma chave enferrujada e o tinir de uma corrente. A porta entreabriu-se com um chiado e apareceu a cara amarelenta e a barba negra do doutor Staletti.

Embora Dick já o tivesse visto uma vez, agora ele lhe parecia tão repelente e asqueroso que quase deixou cair a lanterna de susto.

 - Quem é? O que deseja? - perguntou a voz agastada do velho. - Gasolina?... Ah, o seu tanque vazou? Deve ser uma boa geringonça, seu carro. Sim, posso arranjar-lhe gasolina; é claro, mediante pagamento. Nos tempos que correm não se pode dar nada de graça.

Ele não fez nenhum gesto de reconhecimento, nem quando abriu a porta um pouco mais e deixou Dick entrar no vestíbulo. Ele vestia uma espécie de guarda-pó preto, amarrado na cintura e manchado de cima a baixo. Calçava um par de botas de cano, também de cor preta, já bastante usadas, que lhe chegavam à meia perna. Pelo jeito não havia tomado banho desde seu outro encontro com Dick, alguns meses atrás. As suas mãos grandes e musculosas estavam sujas e as unhas tinham crescido e se transformado quase em garras. Do vestíbulo Dick pôde ver o salão cuja suntuosa decoração contrastava singularmente com seu dono e a fachada deteriorada do prédio. Um espesso tapete recobria o soalho, os reposteiros eram de veludo, as cadeiras e as poltronas de madeira dourada e forradas de damasco branco. Um candelabro de prata com uma dúzia de lâmpadas pendia do teto e espalhava uma claridade feérica. Quando Dick pisou no tapete, ergueu-se uma pequena nuvem de poeira.

 - Aguarde aqui. Vou buscar a gasolina: um galão por um xelim e dez pence.

Quando o ruído dos passos de Staletti se perdeu na distância, Dick pôs-se a examinar a sala ligeiramente, mas não encontrou nada que pudesse fornecer-lhe alguma pista quanto ao caráter e à ocupação daquele homem sinistro.

De repente escutou o estrépito de latas de gasolina, Staletti voltou. Ele depôs dois vasilhames no chão e limpou a poeira das mãos.

 - Quatro galões da melhor qualidade.

Dick relanceou-lhe um olhar desconfiado. Será que ele ainda não o reconhecera?

Como se tivesse adivinhado a suspeita do outro, Staletti pigarreou e inquiriu, fitando Dick mais de perto:

 - Parece-me que já nos encontramos antes. O senhor é o detetive que me privou do livro "Morfologia Geral", não é verdade? Eu sou o professor Staletti.

 - É isso mesmo, professor, eu sou aquele detetive - redargüiu Dick. Experimentava uma sensação de perigo e não tirava a vista do homem barbudo.

 - Com certeza já ouviu o meu nome antes. Eu gozo de ótimo conceito nos círculos médicos - vangloriou-se Staletti. - Mas agora queira pagar, por favor. Estou caindo de sono.

Dick Martin deu-lhe dez xelins.

 - Pode guardar o troco - disse com magnanimidade.

Para surpresa sua, Staletti realmente meteu o dinheiro no bolso, sorrindo satisfeito. Pelo jeito, o seu orgulho não era de molde a impedir-lhe de tirar proveito do pequeno favor que acabava de prestar.

Doutor Staletti acompanhou Dick até a porta da entrada. Ele abriu a boca como se quisesse ainda dizer alguma coisa, mas pensou melhor e fechou a porta ruidosamente atrás do detetive.

O eco do estrépito da porta ainda não se extinguira de todo, quando no interior da casa, por trás das vidraças empoeiradas, ressoou de repente um grito horripilante, um grito tão impregnado de sofrimento e pavor que Dick sentiu um calafrio na espinha. O grito cresceu durante um momento, depois foi diminuindo e, finalmente, terminou em soluços de cortar o coração. Dick, petrificado, sentiu o suor brotar-lhe na testa. Cerrando os punhos, teve ímpetos de derrubar a porta e exigir explicações, mas logo compreendeu a futilidade de semelhante ato. Abaixou-se, pegou as duas latas de gasolina e a toda pressa desceu a alameda.

No momento em que se aproximava do buraco no chão, sentiu um leve movimento às suas costas, um crepitar de raminhos, um farfalhar de folhas secas, mas quando se virou, só viu o muro escuro dentro da noite chuvosa.

De súbito notou, porém, que um vulto se esgueirava por entre os arbustos. Imediatamente se deu conta do perigo. Largou os vasilhames e sua mão procurou o revólver, mas antes que pudesse sacar a arma recebeu violento golpe por cima do braço e algo frio, viscoso e animalesco cingiu-o pelo peito e cortou-lhe a respiração.

Braços gigantescos encordoados de músculos tentaram deslocar-lhe o ombro, uma pesada mão tapou-lhe a cara, Dick martelou com os punhos um peito desnudo, que mais parecia uma couraça. No auge do desespero lembrou-se de um golpe de jiu-jitsu, agarrou com ambas as mãos o braço nu do outro que lhe apertava o rosto, revirou-o com um movimento súbito e arremessou o seu misterioso atacante ao chão. Um corpo pesado tombou com um baque surdo, soltando um ganido de dor, um soluço infantil de lamento. Depois se seguiu um silêncio total.

Dick puxou o revólver com uma das mãos, na outra ainda segurando a lanterna de mão. Seus dedos apertaram o botão. Uma luz branca jorrou e alumiou o chão. Não havia ninguém. Fez o clarão deslizar num semicírculo. O seu agressor tinha sumido. Céus, estaria ele agora as suas costas? Dick virou-se rápido e dirigiu a luz na direção da casa. Neste instante viu um vulto com aspecto de gigante, nu da cintura para cima, desaparecer entre os arbustos com os braços pendentes.

Dick Martin permaneceu por alguns momentos como que paralisado, depois pegou as latas e correu até alcançar a estrada. Encheu o tanque e, respirando aliviado, pôs o carro em movimento, rumo a Londres.

Durante todo o trajeto, a cova à beira da alameda, ao lado da sebe, não lhe saía da cabeça. Tinha quase certeza agora de que aquela escavação destinara-se a receber o seu cadáver e que, se o monstruoso plano do doutor Staletti tivesse tido êxito, ele teria sumido do mapa sem que ninguém soubesse que estava morto.

 

Naquela mesma noite fria e chuvosa, Bertram Cody, que era um homem medroso por natureza e não gostava de andar a pé, acordou seu chofer e lhe ordenou que o levasse de carro ao "Átrio do Patíbulo", que distava seis milhas dali. Tommy Cawler fez cara feia, mas teve de obedecer.

A cerca de cem metros do portão da propriedade de Staletti, Cody mandou parar.

 - Apague todas as luzes e não se mexa daqui até eu voltar.

Faltavam poucos minutos para uma hora da madrugada e a escuridão era total. Cody caminhou ao longo do muro, tateando com as mãos, até chegar ao portão; em seguida enveredou com cuidado pela alameda, sempre tateando o caminho. A certa altura quase despencou num buraco no chão, mas o instinto reteve-o a tempo. Ele respirou fundo quando chegou à casa; mas em vez de bater na porta, deu três pancadas numa janela escura. Depois voltou à entrada principal. Encontrou a porta já aberta e Staletti esperando-o no limiar.

 - Ah! É o senhor. Está atrasado, meu caro amigo. E para que saiba logo: não tivemos sorte.

 - Ele escapou? - perguntou Cody, e sua voz tremia de medo.

Doutor Staletti deu de ombros e com a mão alisou a longa barba.

 - "Kismet"! - disse com placidez. - Se dependesse de mim, ele, a estas horas, estaria numa cova fria da qual nunca mais se levantaria. Logo depois do seu telefonema mandei colocar os lampiões na estrada e pessoalmente esvaziei o tanque de gasolina. Em seguida voltei rapidamente e abri-lhe a porta quando chegou. Foi fenomenal! Mas a corrente tinha um elo fraco e assim ele conseguiu rebentá-la.

Nervoso, Cody relanceou os olhos pelo vestíbulo. Não podia dissimular seu medo. O suor inundava-lhe a fronte.

 - O que acontecerá agora? - perguntou num sussurro.

Staletti fitou-o com desprezo.

 - “Per Dio", o que havia de acontecer? Toda Scotland Yard vai aparecer por aqui e revirar a casa. E o que encontrará? Ratos!

 - O senhor...? - balbuciou Cody, completando a frase com um olhar.

 - Sim, pus alguém no encalço dele, mas este alguém se portou feito idiota. Acontece que só é possível desenvolver os músculos às expensas da substância cerebral. Mas por que ficamos parados aqui fora? Não quer entrar?

Ele levou Cody ao seu gabinete de trabalho. A escrivaninha estava parcialmente coberta de cartas enodoadas de um baralho. Staletti estivera entretido com um jogo de paciência quando as pancadas o interromperam.

 - E agora me conte. Quem é afinal esse jovem que o senhor parece temer tanto? Aliás, ele já esteve aqui uma vez. Veio por causa de um livro que a Biblioteca Bellingham me tinha emprestado. Foi naquele dia em que o seu motorista veio procurar-me pela primeira vez.

Cody concordou com um sinal de cabeça. O seu rosto estava pálido, seus lábios secos e rachados. De vez em quando os lambia nervosamente.

 - Ele é o detetive que o senhor Havelock enviou em volta do mundo para procurar Selford - ciciou; e as sobrancelhas de Staletti se alçaram.

 - Não me diga! Mas isso é fenomenal! O detetive de Havelock? - ele estourou numa risada esganiçada que, ao extinguir-se, se assemelhava ao crepitar de pergaminho. - É uma piada formidável! Realmente, a vida tem coisas muito engraçadas. Só dando gargalhadas!

Cody mexeu-se nervosamente na cadeira. Staletti rindo era pior do que rogando pragas.

 - Este Havelock! Este Havelock! - crocitou Staletti, torcendo a boca. - Um modelo de retidão, um exemplo de honradez! Mas conte-me, o nosso amigo, o detetive, conseguiu achar Sua Excelência, o lorde? Não? Que pena! Ele deveria ter usado um par de botas de sete léguas!

Atirou-se numa cadeira e com seus dedos sujos tamborilou na mesa uma canção napolitana.

 - Sinto que o senhor está querendo me dizer alguma coisa - disse subitamente, fixando Bertram Cody com olhar penetrante.

 - Preciso de dinheiro - resmungou o outro, em tom queixoso.

Staletti encarou Cody por um instante, depois se abaixou sem dizer palavra, abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou dela um cofrezinho, abriu-o e estendeu a Cody um grosso maço de notas.

 - Como agora o tamanho do nosso grupo diminuiu, a sua cota aumentou - disse. - Se eu algum dia vou desta para melhor, o senhor também vai lucrar novamente; no entanto, se o senhor...

 - Por que falar em coisas tão desagradáveis? - queixou-se Cody. - Devíamos regozijar-nos por estarmos vivos e gozando boa saúde. Já nos desviamos demais dos nossos planos originais. Lembre-se das palavras da Bíblia: "Quem derramar sangue..”

 - Eu acaso derramei sangue?

 - Não matou? - perguntou o homenzinho e ficou esperando

Staletti franziu os lábios ironicamente.

 - Era uma vez um sujeito de nome Lew Pheeney - falou com voz pausada. - Ele morreu de morte violenta, mas já que o assassino nunca foi apanhado, ele deve ter cometido suicídio.

E riu-se à socapa. Em seguida observou:

 - Eu não suporto pessoas que correm para abrir seus corações às altas autoridades. Isso prejudica os negócios, pois a polícia não possui nem um pingo de imaginação, nem tem quaisquer noções de biologia. Também ignora que vale mais uma simples teia de aranha do que uma mosca que nela estrebucha. Tampouco sabe...

Ele se interrompeu de repente e colocou o dedo nos lábios em sinal de silêncio. Cody não tinha escutado nada, porém ao ouvido apurado de Staletti não escapara o leve chiar da janela.

 - Há alguém lá fora - cochichou.

 - Giaco? - ciciou Cody, aterrorizado.

 - Não, não é Giaco. Fique aqui, que eu vou ver.

Saiu da sala nas pontas dos pés. Cody ainda escutou o fraco ranger da porta que se abria. Depois nada. Apenas o vento que sibilava em torno da casa.

Daí a pouco Staletti voltou, piscando, como se tivesse de acostumar os olhos à claridade, mas Cody já o vira antes com a mesma expressão no rosto e sabia que Staletti estava muito agitado.

Depôs em cima da mesa um objeto que parecia ser o auscultador de um aparelho telefônico, preso a um fio de borracha.

 - Alguém junto da janela procurou ouvir nossa conversa, e eu desconfio quem foi. O senhor veio de carro? Agiu contrário do que combinamos?

 - Vim a pé - mentiu Bertram Cody.

 - O senhor tem um motorista excelente, mas muito curioso.

 - Já lhe disse, vim a pé... e sozinho.

 - Quem sabe se ele não o seguiu. - Staletti tirou do bolso um boné amassado. - Já viu alguma vez este boné?

Cody fez que não com a cabeça.

 - Ele o tirou para poder encostar o ouvido no auscultador. Infelizmente não pude encontrar o microfone, mas tenho a certeza de que ele ouviu tudo o que falamos.

 - No entanto, não pode ter sido Cawler - teimou Cody. - Por que iria ele nos espiar? Ele é sobrinho da minha esposa.

 - E a adora como se ela fosse sua própria mãe - ironizou Staletti. Ele virou o boné pelo avesso e leu o nome do fabricante. - Um espião dentro da sua casa... Isso pode acabar mal. Convém trazê-lo de olho. Ele é um conhecido ladrão de automóveis e seu retrato enfeita os álbuns de todas as delegacias. Não há policial que não o conheça. Quando esse Martini... não, Martin... quando esse Martin veio aqui pela primeira vez, ele reconheceu Cawler imediatamente e eu fiquei comprometido.

 - Cawler está por demais envolvido e não pode dar-se ao luxo de denunciar-nos - observou Cody.

Ele inclinou-se sobre a mesa e, baixando a voz, falou por longo tempo. Nos olhos de Staletti cresceu o interesse. Por várias vezes, deleitado, bateu na mesa com a palma da mão.

 - Que pena que Giaco não estivesse no jardim! Neste caso não haveria mais dúvidas.

Ele acompanhou Cody à porta.

Cody encontrou o automóvel estacionado no mesmo lugar. O motorista dormitava ao volante. Esfregou os olhos quando Cody lhe sacudiu o braço.

 - Tommy - perguntou Cody, e a voz saiu-lhe rouca. - Você fez o que lhe mandei? Ou você me seguiu?

 - Com este tempo horroroso? Acaso sou louco?

Ele virou a chave e ligou os faróis. Cody não se moveu. Olhava o chofer fixamente. Ele estava sem boné.

Cody tremeu de raiva.

 - Cawler, onde está seu boné?

 - Voou com o vento! - retrucou Tommy sem se abalar e sem nenhum sinal de constrangimento.

 - Olhe, estou avisando... Não tente pregar-me uma partida, nem faça pouco de mim, senão vai se arrepender.

 - Entre logo e pare de dizer bobagens - resmungou Tommy Cawler indelicadamente.

Durante toda a viagem de volta Cody viu à sua frente o perfil anguloso de Tommy. Afundou-se no assento. Planos de represálias e de castigo formavam-se no seu cérebro, mas intimamente sabia que jamais poderia executá-los, porquanto Cawler já o tinha demasiadamente nas suas mãos.

 

Mal o senhor Havelock tinha posto os pés no seu escritório na manhã seguinte, anunciaram-lhe a presença de Dick. As espessas sobrancelhas do advogado alçaram-se ao avistar o visitante.

 - Sinto importuná-lo a uma hora tão cedo, mas vim fazer-lhe uma confissão - principiou Dick.

 - Pelo jeito deve ser coisa muito grave - gracejou Havelock, piscando para ele. Mas o semblante de Dick continuava sério.

 - Mais grave do que pensa, senhor Havelock. Eu, ontem, ocultei-lhe algo que agora faço questão absoluta de lhe dizer.

Falou-lhe do mata-borrão com o endereço de Cody, que tinha encontrado no hotel de Buenos Aires.

 - Aparentemente Lord Selford se corresponde com ele. Achei do meu dever seguir esta pista.

 - Bertram Cody? - indagou Havelock, franzindo a testa. - Este nome não me é estranho.

 - Foi ele quem comprou algumas glebas da família Selford na Austrália.

O rosto de Havelock aclarou-se.

 - Ah, agora estou lembrado. A história até deu em complicações. Uma vez consumada a venda, foi encontrado naquelas terras um veio aurífero. O caso foi até aos jornais. O "Times" chegou a publicar uma nota sobre o assunto. Cody, claro! Como pude esquecê-lo! Entretanto, não acredito que ele conheça Lord Selford pessoalmente.

 - Por que, então, Lord Selford lhe escreveria cartas?

 - Sei lá... Talvez em resposta a uma carta de Cody pedindo alguma informação - especulou o advogado, agora visivelmente preocupado.

 - Cody negou com firmeza ter conhecido ou ter se correspondido com Lord Selford, e foi justamente isso que despertou a minha atenção, ainda mais porque logo depois fiz uma descoberta que prova que ele estava mentindo.

Ele puxou do bolso o caderno de notas de Cody. Ao abri-lo, a chave caiu em cima da mesa. O senhor Havelock apanhou-a e examinou-a com grande interes se.

 - Que coisa curiosa... Uma chave, não é? E foi Cody quem lha deu?

 - Bem, não foi bem isso: seria mais perto da verdade dizer que ele a deixou sobre a mesa. Mas veja este caderno de notas. Está cheio de anotações referentes às viagens de Lord Selford. Eis a data da sua chegada a Buenos Aires e o endereço ao hotel em que se hospedou. Aqui, o dia da sua partida de São Francisco, ali o desembarque em Xangai. Não falta o nome de nenhum navio, não falta nenhuma data. O próprio Lord Selford não poderia ter sido mais meticuloso.

Havelock virou as folhas do caderno devagarinho.

 - É, muito estranho - conveio.

Dick inclinou-se para a frente.

 - Por falar nisso, acaso conhece um sujeito de nome Staletti? Ele mora em Sussex, na Estrada de Brighton.

Ele notou a surpresa de Havelock.

 - Staletti? Sim, este eu conheço. Ele arrendou uma casa de Lord Selford. Toda aquela região pertence à família Selford. Aliás, o próprio Cody deve ser um dos nossos arrendatários. Recordo-me muito bem do arrendamento do "Átrio do Patíbulo", pois justamente naquela época os jornais ocupavam-se de Staletti. Ele era acusado de praticar a vivissecção e foi condenado por isso, creio. Um sujeito sebento que faz a gente pensar num hipnotizador de circo.

 - O senhor caracterizou-o muito bem - elogiou Dick. - Hipnotizador! Esta palavra lhe assenta como uma luva!

 - Mas por que mencionou Staletti? Estávamos falando de Cody.

 - Vou-lhe contar. Escute bem!

Enquanto falava com voz pausada, os pensamentos de Dick tomaram rumo bem diverso. A cortina, por trás da qual o destino do jovem Lord Selford se desenrolara até agora, rasgara-se, de chofre, de alto a baixo, e ele enxergava o palco dos acontecimentos como se o visse por um par de binóculos invertidos: a grande distância e em tamanho reduzido, mas infinitamente claro e nítido. Via os atores que nele se movimentavam... marionetes cujos cordões eram manipulados por poucas mãos. O seu coração começou a martelar como uma máquina superaquecida, o cérebro lhe fervia febrilmente.

Quando terminou de relatar os acontecimentos terrificantes da noite anterior, o advogado quis saber se ele tinha dado queixa à polícia. Dick sacudiu a cabeça.

 - Ainda não, mas acho que vou falar com Sneed.

 - Quem é Sneed? - inquiriu Havelock.

 - Um inspetor de Scotland Yard, excelente na elucidação dos mais profundos mistérios! Um gênio na decifração de enigmas! E por falar em enigmas: de que vive o doutor Staletti? Qual a sua fonte de rendimentos?

 - Não faço a menor idéia - replicou o advogado. - Pelo que sei, trata-se de um famoso biólogo, porém excêntrico e de idéias muito arrojadas. Espere! Ocorre-me neste momento que, se estou bem lembrado, foi Cody quem nos recomendou esse Staletti. Posso verificar isso já, consultando a correspondência daquela época.

Saiu apressadamente e pouco mais tarde voltou com um classificador nas mãos.

 - Não me enganei. Um mês depois de comprar as terras na Austrália, Cody nos apresentou Staletti. Na ocasião o "Átrio do Patíbulo" se encontrava vazio - ele sorriu. - O nome mete medo. Dizem que antigamente lá se erguia um cadafalso, uns cem anos atrás.

 - Neste caso ele foi removido cem anos mais cedo do que devia. Parece que por aqueles lados moram uns bandalhos bem perigosos - comentou Dick.

Ele agora sabia tudo o que precisava saber e até mais, de maneira que tratou de despedir-se de Havelock. Voltou para seu apartamento, onde fez apressadamente suas duas malas. Deu licença de quatro semanas à criada, que antes teve de jurar que não entraria no apartamento durante todo o tempo da sua ausência. Ao porteiro do prédio deu instruções no sentido de encaminhar toda a sua correspondência ao setor de Roubos e Furtos, de Scotland Yard.

Não revelou seus planos a ninguém, pois achou melhor guardar segredo.

 

A senhora Lansdown era uma dama mimosa, de rara beleza. Nem sempre tivera de conformar-se com um apartamento de dois quartos e sala. Houve tempos em que passava por uma das mulheres mais ricas da Inglaterra. O marido possuíra grande extensão de terras férteis em Berkshire, vastas propriedades em Norfolk onde realizava caçadas, outras na Escócia onde promovia pescarias, um prédio de apartamentos no bairro mais elegante de Londres, uma criação de cavalos de corrida e uma lancha de luxo. Entretanto, tudo isso acabara numa única noite. Ele tinha sido um dos diretores de uma empresa cujo presidente um dia se viu forçado a uma viagem apressada, que mais tarde terminou na cadeia. A empresa foi à falência. A justiça mandara confiscar os bens dos diretores para compensar os incalculáveis prejuízos dos acionistas. Gregory Lansdown fora o único cujos bens estavam registrados em seu próprio nome, e assim este homem íntegro tivera de responder sozinho pela enorme dívida.

Dessa terrível ruína os Lansdowns conseguiram salvar apenas o prédio de apartamentos onde agora moravam no apartamento mais modesto. Aqui a senhora Lansdown reunira o que sobrara da bela mobília de outrora. As feridas que o destino lhe havia causado foram sarando aos poucos. A sua felicidade agora se resumia na filha Sybil, que representava o sentido da sua vida.

Comumente as duas passavam as horas da noite juntas naquele apartamento, contentes e alegres. Às vezes Sybil lia algo em voz alta, outras vezes ficava a escrever na pequena escrivaninha empurrada contra a parede num canto da sala. A mãe, ocupada então com alguma costura ou bordado, de quando em quando olhava para a filha com expressão carinhosa.

Raramente recebiam visitas. Por isso a senhora Lansdown assustou-se um pouco e seus olhos se abriram espantados quando numa noite o som da campainha da porta cortou o silêncio que reinava no apartamento. Quem seria?

Sybil foi abrir e ficou surpresa ao dar de rosto com Dick Martin.

 - Sinto não ser o lendário tio rico que volta da América, mas apenas Dick Martin - desculpou-se ele.

Ela riu e o convidou para entrar,

Quando Dick, meio sem jeito, surgiu no limiar da sala, a mãe de Sybil examinou-o com um olhar demorado e penetrante. Finalmente a sua fisionomia adquiriu uma expressão amável e ela estendeu ao detetive a sua mão fina e delicada.

 - Alegro-me de conhecê-lo, senhor Martin – ela o cumprimentou. - Assim propicia-me a oportunidade de agradecer-lhe pessoalmente o cavalheirismo que demonstrou para com minha filha,

 - Não foi nada - disse Dick, encabulado. Com os olhos procurou um lugar para sentar-se e, para o desespero de Sybil, escolheu justamente a cadeira mais frágil. Entretanto, esta delicada peça de mobília, que havia sobrevivido à ruína da família, também resistiu ao peso de Dick Martin - Eu previra aquele assalto na rua e só lamento ainda não ter conseguido prender o mandante.       

 - Não tem importância - comentou Sybil, sorrindo. - Não perdi a bolsa, apenas a chave sumiu, como num passe de mágica.

Ela teve a impressão de que Dick intimamente se divertia com isso, de maneira que estacou e inquiriu, desconfiada:

 - Por acaso foi o senhor o mágico?

Ele assentiu com a cabeça, abrindo a boca num largo sorriso.

 - No trem, antes de lhe devolver a caixinha, tirei e guardei a chave.

 - Mas como é que não percebi nada? Não tirei os olhos da caixinha.

Ele sorriu com uma ponta de orgulho.

 - Pois é nisso que reside a arte da prestidigitação: tudo é feito diante dos olhos de todos! Aliás, a chave está em segurança, no meu cofre no banco, e se alguém a incomodar por causa dessa chave, não deixe de me avisar.

A senhora Lansdown empalideceu um pouco.

 - Então acha que ainda não deixarão a minha filha em paz?

 - Não sei - respondeu Dick. - Vim hoje aqui para discutir este assunto. Antes de mais nada quero fazer-lhe uma pergunta importante. Lord Selford tem outros parentes, além da senhora e sua filha?

 - Nenhum, salvo se casou entrementes - respondeu Sybil em lugar da mãe.

Dick fitou-a demoradamente. Seus olhos estreitaram-se, os lábios endureceram, os músculos da face debaixo da pele enrijeceram.

 - Foi o que eu temia - disse afinal. Relanceou um olhar para o aparelho telefônico. Acrescentou uma observação aparentemente desconexa: - Têm telefone! Ainda bem! Assim poderão ser alcançadas em caso de emergência.

Mãe e filha dirigiram-lhe olhares inquisitivos.

 - Têm amigos fora de Londres? - perguntou Dick.

A senhora Lansdown fez que sim com a cabeça. Dick respirou aliviado.

 - Isso me deixa um pouco mais tranqüilo. Eu vim para pedir-lhes que deixassem a cidade ainda hoje, mas agora acho que uma partida tão precipitada ainda não é necessária.

A senhora Lansdown inclinou-se para a frente.

 - O senhor poderia explicar melhor por que... - começou com os lábios exangues e olhar apreensivo para o detetive.

Dick sacudiu a cabeça,

 - Ainda não posso explicar nada - disse. - Estou ainda tateando no escuro, mas sinto que já está se fazendo alguma luz. Aqui e lá percebo uns detalhes, mas só Deus sabe o que ainda está para surgir da escuridão.

 - Mas, apesar de tudo, acha que existe perigo para mim e minha filha? É o que deduzo das suas palavras.

 - É verdade - admitiu Dick, e repentinamente encarou a senhora Lansdown bem de frente. - É melhor que fiquem de sobreaviso. Eu pressinto perigo, embora não para já. E tudo isso por causa de uma chavezinha - acrescentou com ar sério. E dirigindo-se novamente à mãe de Sybil: - A senhora conhecia o falecido Lord Selford? Que tipo de homem era ele ?

 - Certamente não se pode dizer que era o que se chama um bom sujeito - informou a senhora Lansdown, e, recordando o passado, a sua fisionomia turvou-se - Ele bebia, e quando estava com raiva batia nos empregados. Corriam muitos rumores desabonadores a respeito dele. Mas, afinal de contas, todos os Selfords foram sempre personagens discutíveis. O que erigiu o castelo, por exemplo, levou uma vida tão escandalosa que acabou sendo excomungado pelo Papa. Foi ele também quem mandou construir a cripta da família. Nunca ouviu falar nos túmulos dos Selfords?

Ele fez que não com a cabeça. Eles não o interessavam. Mas subitamente as palavras "cripta" e "túmulos" ecoaram dentro dele, como se elas tivessem uma significação especial. Surgiram na sua lembrança as imagens do seu quarto de dormir e do cadáver de Lew Pheeney no guarda-roupa, fitando-o com olhos espectrais. Não havia ele tentado arrombar um sepulcro, e não fora isso o motivo do seu triste fim? De repente Dick sentiu o sangue pulsar mais forte. Ele estava diante de uma pista e teve de fazer uni grande esforço para não se trair. Contudo, a senhora Lansdown percebera o súbito brilho nos seus olhos. Levantou-se e tirou um velho e amarelecido volume de pergaminho da estante.

 - É uma crônica da família, do ano 1584 - explicou. - Todas as ações reprováveis dos Selfords estão aqui perpetuadas. Leia o que diz sobre a cripta.

Ele pegou o livro e leu:

"E Sir Hugh, excommungado por decreto papal, e destarte privado dos bens espirituais da Santa Madre Igreja e da administração dos Sacramentos, resolveu e mandou cavar ao pé de hum penhasco huma krypta funda e forte com vinte e huma camaras, para que naquelle lugar fosse elle sepultado como merece hum fidalgo christão ao ser chamado para a vida eterna por Deos nosso Senhor, e da mesma forma fossem ali sepultados os seus filhos, e filhos destes. E chamou gente de outras terras para a construção de dita krypta, que o Capellão Ehrn Marcus abendiçoou, homem piedoso e virtuoso, que de tão devoto ao seu amo e bemfeitor não fez caso da excommunhào. E as camaras forão fermosamente ornadas de Anjos e Santos talhados na mui dura rocha."

Dick não tirava os olhos daquelas linhas. Visualizava uma escada escorregadia descendo abruptamente para as profundezas da terra, viu altos-relevos, ataúdes de pedra em nichos estreitos, nos quais pairava o gélido ar da morte.

 - Onde fica a cripta? - inquiriu.

 - Numa das extremidades do parque do castelo dos Selfords. Completamente isolado, no topo de uma elevação cercada por sombrios arvoredos. O lugar mete medo. Raramente se pode ouvir ali um passarinho cantar nas copas das árvores. Segundo a crendice popular é um lugar amaldiçoado, mas a causa é provavelmente a aridez do solo.

 - Quem reside atualmente no solar? - perguntou Dick, cujo interesse aumentava de minuto em minuto.

 - Apenas o administrador. Aliás, aquela propriedade é uma herdade feudal, inalienável, caso contrário o atual Lord Selford já a teria vendido.

 - Alguma vez viu o jovem lorde ?

 - Apenas uma vez, quando o pai dele ainda estava vivo. Ele me escrevia de vez em quando, mas nos últimos anos apenas duas vezes. O senhor quer ver as cartas dele?

 - Quero - respondeu Dick imediatamente.

Ela deixou a sala e voltou com uma caixa de ébano que continha uma porção de cartas numa tremenda desordem. Pôs-se a arrumá-las e finalmente depositou nas mãos do moço uma que trazia o endereço de um hotel em Berlim.

A carta dizia:

"Faz tanto tempo que deixei de lhe enviar notícias minhas que agora até me sinto envergonhado de escrever-lhe. Porém nunca é tarde demais para reparar os erros cometidos, e como sei que você coleciona objetos antigos de porcelana, despachei hoje, endereçado a você, um bonito jarro alemão do século quinze, que descobri numa loja de antigüidades daqui. Espero que ele me assegure o seu perdão por todas as minhas faltas. Cordialmente, seu Pierce."

Dick reconheceu a caligrafia; sem dúvida era a mesma das cartas dirigidas a Havelock.

 - Aqui a outra carta - disse a senhora Lansdown.

Esta trazia uma data do ano anterior e o carimbo de uma agência postal da cidade de Colombo.

"Sinto muitíssimo a irreparável perda que sofreu Posso fazer algo por você? Estou à sua inteira disposição. Faça-me o favor de procurar Havelock e mostre-lhe esta carta. Ele já está a par e tem instruções de auxiliá-la de todas as formas e de fornecer-lhe qualquer importância de que você porventura necessitar.

"Quanto a mim, estou bem. Desde que tomei a decisão de escrever um livro, eu vivo mais intensamente, e as viagens me proporcionam um prazer dobrado."

Dick Martin não perguntou que tipo de perda a senhora Lansdown sofrera; era fácil adivinhar. Ela ainda se vestia de preto, chorando a morte do marido.

 - Eu não fiz uso da oferta de Lord Selford, embora recebesse uma carta de Havelock em que amavelmente me oferecia sua ajuda. Não sei... - a senhora Lansdown hesitou. - Eu sentia, dentro de mim, sempre uma espécie de alarme ao ouvir o nome Selford. Foi com a maior relutância que deixei Sybil fazer a viagem à Ilha da Madeira, e só porque representava uma distração merecida na vida dela.

Houve um silêncio. Dick remordia os lábios. A senhora Lansdown observava-o atentamente.

 - Poderia dar-me agora uma explicação9 - perguntou afinal.

Dick continuou calado.

Sybil levantou-se e pôs a mão sobre o ombro da mãe.

 - Acho que devemos confiar no senhor Martin, mesmo sem explicações - fitou-o com olhar franco. - Senhor Martin, minha mãe e eu estamos prontas a deixar Londres assim que o senhor o determinar.

 - Eu lhes agradeço muito - respondeu ele em voz baixa.

Já estava indo embora quando se lembrou de algo mais.

 - Conhece um tal de Staletti?

A senhora Lansdown meneou a cabeça negativamente.

 - Mas talvez um senhor Cody?

A senhora Lansdown franziu as sobrancelhas, refletindo.

 - Ouço este nome pela primeira vez - disse finalmente, com convicção.

 

Chegando à rua, Dick pensou por alguns momentos, depois caminhou em direção a Belford Square. Enquanto andava, foi tomado por uma sensação estranha. Cautelosamente voltou a cabeça. Na calçada oposta, um desconhecido marchava no mesmo ritmo. Um segundo seguia a pouca distância. Na esquina da praça um táxi vazio aguardava fregueses; o motorista pôs-se a fazer veementes acenos para ele, o que era tão contrário à habitual indiferença dos choferes de táxi de Londres que Dick logo desconfiou. Fingiu não perceber o convite. Na rua ainda podia defender-se contra vários agressores, mas não num automóvel fechado.

Neste momento aproximou-se outro carro de praça desocupado. Dick deteve-o e mandou o motorista levá-lo ao Hotel da Estação. Pelo vidro de trás observou que o outro táxi o seguia a pequena distância.

Quando apeou em frente do hotel e pagou a corrida, o outro carro de praça estacionou um pouco mais atrás. Dois homens saltaram. Dick entrou no hotel, pediu um quarto e subiu pelo elevador. Atravessou um corredor e desceu lépido por uma escada lateral que conduzia diretamente às plataformas da estrada de ferro. Alcançou um trem que começava a mover-se, pôs-se a correr ao lado dele, agarrou o trinco de uma das portas e pulou em cima do estribo.

Não tinha a menor idéia para onde o acaso o levava. Tanto podia estar no trem expresso para a Escócia, sem paradas até a fronteira, como num trem de subúrbio. Logo verificou que tinha tomado um trem parador, de modo que pôde saltar em Willesden, de onde voltou pelo trem subterrâneo.

Apenas uma hora depois da sua despedida de Sybil e sua mãe, já se encontrava novamente no centro de Londres. O sargento na entrada de Scotland Yard reconheceu-o imediatamente, e disse:

 - Se quiser falar com o inspetor Sneed, ele ainda está no seu gabinete.

Como de costume, Sneed estava sentado na sua enorme cadeira de braços, por trás da escrivaninha. Um fogo fraco bruxuleava na lareira. Um charuto apagado pendia-lhe dos lábios. Sua cabeça balouçava no sono como uma fragata em mar encapelado. Só se encontrava ainda àquela hora tardia em Scotland Yard porque não tivera a energia para levantar-se e dirigir-se para a sua casa. Tal coisa acontecia em média cinco vezes por semana.

Ele abriu os olhos, estremunhado.

 - Estou ocupadíssimo, não disponho de um minuto sequer - rosnou, como sempre, ainda meio adormecido.

Dick, dando uma gargalhada, puxou uma cadeira confortável.

 - Não preciso mais de alguns segundos - disse, e fez menção de começar impiedosamente a sua longa narrativa, mas antes de completar a primeira frase, os olhos de Sneed ficaram animados, e quando chegou ao meio do seu relato, toda a sua fisionomia demonstrava invulgar interesse.

 - Tal qual como nos contos policiais - exclamou com seu vozeirão. - Está repetindo o último romance de Conan Doyle.

Mas Dick não se deixou interromper. Ao terminar, Sneed, com expressão séria, premiu o botão da campainha. Instantes depois entrou um subordinado.

 - Sargento - disse-lhe Sneed - a partir de amanhã o prédio situado na Coram Street 107 receberá segurança policial. Quero-o vigiado as vinte e quatro horas do dia. E um dos nossos melhores detetives deve colocar-se à disposição do senhor Martin: o acompanhará durante o dia sem dar na vista e passará as noites no apartamento do senhor Martin.

O sargento tomou notas das instruções.

 - E amanhã cedo telefone para o chefe de polícia de Sussex. Diga-lhe que eu tenho motivos para suspeitar que no lugar onde reside o médico Staletti, no assim chamado "Átrio do Patíbulo", estejam ocorrendo certas transgressões da lei e que pessoalmente estarei lá com meu pessoal às onze e quinze da noite para revistar a casa. Deixo, porém, ao critério dele se quer participar da diligência.

O sargento saiu e Sneed ergueu-se da cadeira, gemendo com o esforço.

 

 - Acho melhor irmos para casa agora. Vamos, Martin, eu o acompanho até seu apartamento.

 - Nada disso - protestou Dick. - Não devemos ser vistos juntos; isso pode estragar tudo. Não se esqueça de que todo mundo o conhece... você é quase que um cartaz ambulante da Scotland Yard. Sejam quem forem os meus inimigos, eles não devem saber que estou me precavendo.

 - Está bem, como quiser, Martin. Mas voltando mais uma vez à vaca-fria: o sujeito que o atacou estava realmente nu?

 - Não totalmente. Usava uma tanga.

 - Staletti - refletiu o inspetor. - Tinha de ser Staletti! Indivíduo sórdido, perigoso! Será que esse pilantra recomeçou suas velhas tolices? Uma vez já lhe arrumei três meses de cadeia.

 - E que tolices foram essas? - perguntou Dick

Sneed soltou uma baforada de fumaça em direção ao teto.

 - A criação de uma nova raça humana.

 - E desde quando isso é crime?

 - Não se esqueça - retrucou Sneed - que tudo depende de como as coisas são feitas. Staletti acredita que uma criança criada no mato, como um animal, acaba se tornando um ente que, embora não saiba falar nem pensar logicamente, constitui um membro mais perfeito da espécie humana, devido ao seu desenvolvimento físico superior. Ele afirma que os seres humanos atingiriam uma altura de dez pés e conseguiriam a força de gigantes pré-históricos se toda a energia vital, que hoje é absorvida pelo cérebro, se concentrasse na formação dos músculos e ossos. Naquela época se contentava em experimentar com animais. Parece que agora passou a usar material mais nobre. Mas eu juro que desta vez irá para a cadeia pelo resto da vida se eu encontrar na sua casa uma pessoa adulta que não saiba recitar o a-bê-cê.

 

Dick saiu de Scotland Yard pela porta que dava para Whitehall. Deteve um táxi e saltou no Regent Park. Deu algumas voltas para despistar possíveis seguidores. Chegando ao prédio onde morava, evitou a entrada da frente, embora sabendo que a estas horas o porteiro já estava dormindo. Penetrou no prédio pela porta dos fundos, passando pela garagem. Subiu a escada depressa, abriu a porta do apartamento sem fazer barulho e trancou-a por dentro. Em seguida percorreu todos os aposentos, acendendo as luzes e examinando todos os cantos. Não encontrou nada suspeito. Tudo estava como o havia deixado horas antes. À tarde, antes de sair, ele tivera o cuidado de correr cuidadosamente as pesadas cortinas das janelas e de fechar também a janela de duas folhas da cozinha, a fim de impedir que a luz acesa no interior pudesse ser notada do lado de fora. Ainda que alguém na rua estivesse vigiando, nada lhe revelaria a presença do proprietário do apartamento.

Ao abrir as portas do guarda-roupa para pendurar o casaco, a súbita lembrança de que naquele espaço exíguo Lew Pheeney exalara o seu ultimo suspiro arrepiou-lhe a pele. Que teria ele visto nos túmulos dos Selfords, qual dos ataúdes teria ele tentado violar naquela cripta sinistra onde tanto os pecados, as paixões e taras dos Selfords como os seus sonhos e suas ambições tinham virado cinzas?

Dick preparou um café e levou para a mesa no centro da sala um dos volumes da coleção de jornais antigos que lhe havia sido entregue a tarde. A "Gazeta de Londres" podia não ser tão variada e divertida como as revistas modernas, mas ele achou aquelas páginas, abarrotadas de notícias sobre crimes e processos, tão instrutivas que só se levantou quando o relógio bateu as duas horas.

Dirigiu-se ao quarto de dormir, apagou a luz, afastou as cortinas, abriu a janela um pouco e espiou para fora. A lua em quarto minguante boiava num céu sem nuvens. Uma aragem soprava e agitou a cortina, e a claridade da lua penetrou no aposento, projetando na parede oposta um desenho de luzes e sombras que variava conforme as ondulações da cortina.

Dick, respirando fundo, afundou a cabeça no travesseiro e adormeceu.

Vagarosamente o luar deslizava através das paredes até atingir a porta laqueada de branco. Neste momento Dick acordou com um sobressalto. Que o despertara? A lua? O movimento da cortina? Ele não tinha certeza, mas o seu instinto o avisava de um perigo oculto nas trevas da noite. Estava deitado com o rosto voltado para o lado da porta e viu nitidamente a maçaneta de metal que brilhava à luz pálida da lua, e essa maçaneta... não, não era uma alucinação do cérebro ainda estonteado de  sono, mas aterradora realidade... movia-se em sua direção.

Com os olhos muito abertos fixou a porta, que, subitamente, de uma inanimada tábua de madeira se transformara num objeto vivo. Nesse momento apareceu no seu campo de visão uma grande mão humana, terrivelmente distinta na claridade baça da lua. Apenas uma mão, mas de feitio arrepiante cujos dedos compridos e musculosos avançavam como se fossem tentáculos de um polvo.

Dick pulou da cama e atirou-se ao chão. No mesmo instante uma criatura agigantada saltou em cima do leito, soltando um grito gutural, que nada tinha de humano.

O detetive, no momento em que bateu no assoalho, levantou a mão esquerda para apanhar o revólver que estava debaixo do travesseiro. Nisso, seu antebraço, por um breve instante, roçou no dorso intumescido daquela mão e uma sensação de náusea quase o sufocou. Cerrando os dentes, voltou a cabeça para o inimigo invisível, esticou o braço para trás e arrancou a cortina com violento puxão. No mesmo momento a claridade da lua inundou todo o quarto. Não havia ninguém.

A porta estava totalmente aberta. Dick tateou em busca do interruptor e acendeu a luz. Alguém escancarara também a porta da cozinha, e pela janela da cozinha penetrava a brisa noturna. Ele correu para a sacada e inclinou-se sobre o parapeito. Ainda viu o seu agressor, um vulto disforme, descender precipitadamente por uma escada de cordas presa no gradil da sacada. Ele ergueu o revólver, mas a escuridão do pátio interno do prédio engolira o invasor.

Dick quedou-se imóvel, perscrutando com os olhos os cantos do pátio e o corredor da garagem, mas tudo jazia tranqüilo e silencioso. Nenhuma sombra suspeita, nenhum vulto estranho. Mas enquanto ainda espiava, ouviu de repente da rua o zumbido de um motor de automóvel que cresceu por alguns segundos e depois se perdeu na distância.

Dick voltou para o seu gabinete de trabalho e olhou o relógio. Eram quatro horas e vinte. Ao leste as primeiras luzes da manhã já clareavam o céu.

Quem teria sido o assassino mal sucedido? Agora ele compreendia como Lew Pheeney tinha morrido. De uma coisa ele tinha certeza: o seu atacante no "Átrio do Patíbulo" e esse visitante noturno eram a mesma pessoa.

Retornou à sacada e puxou a escada de cordas. Aparentemente ela fora feita à mão, pois eram muito irregulares as distâncias entre os degraus de cânhamo torcido, fixos nas cordas verticais. Procurando explicar como a escada de cordas fora içada à sacada, chegou à conclusão de que, provavelmente, tinham atirado um laço sobre o parapeito saliente e em seguida puxado a escada para cima com a ajuda desse laço. Essa suposição confirmou-se quando desceu para o pátio e achou uma catapulta, um barbante enrolado num pequeno dardo de ferro e a corda amarrada no barbante, O enigma da morte de Lew Pheeney estava finalmente solucionado. O assassino penetrara no apartamento subindo pela escada de cordas!

Caindo de sono. Dick atirou-se sobre a cama, meio vestido ainda, e mergulhou num sono pesado.

 

Dick acordou com o som estridente do telefone. Relutantemente se virou na cama e levou o fone ao ouvido. A sua fisionomia porém mudou ao reconhecer a voz.

 - Alô, que bela surpresa! É gostoso saber que ainda se lembra de mim.

Na outra extremidade do fio alguém riu baixinho.

 - Como sabe quem está falando? Eu não lhe disse meu nome!

 - Ora... a sua voz é inconfundível, minha cara senhorita Lansdown.

Seguiu-se uma pausa embaraçosa.

 - Há alguma razão especial para este telefonema? - perguntou Dick, preocupado. De repente lembrava-se dos fatos acontecidos nessa mesma noite e sentiu medo pela segurança da moça da qual estava enamorado.

 - Não, não é bem isso - respondeu Sybil. - É que eu gostaria de conversar com o senhor sobre um assunto que não pode ser tratado por telefone.

 - Pode vir logo, se quiser - disse Dick. - Vou avisar o porteiro imediatamente.

Sybil desligou. Ela não entendia bem o que o porteiro tinha com isso, pois não podia adivinhar que, para lodos os efeitos, Dick se encontrava ausente, a viajar, desde a véspera.

Apressado, Dick tentou executar três coisas diferentes ao mesmo tempo: tomar banho, fazer a barba e fritar dois ovos.

Soou a campainha. Dick enfiou depressa o roupão e correu para o corredor. Com um puxão violento abriu a porta e começou imediatamente a pedir desculpas: uma vez que tinha dado licença à criada, era ele mesmo quem tinha de cuidar da casa e...

A moça franziu as narinas.

 - Alguma coisa está queimando - disse, desconfiada

Dick bateu com a mão na testa e correu para a cozinha. Sybil seguiu-o. Da frigideira erguia-se um vapor azulado e os ovos protestavam contra a maneira de tratá-los.

 - Para fritar ovos é preciso pôr gordura na frigideira - observou Sybil em tom de censura e dissolveu uma colherada de manteiga numa tentativa de salvar o que talvez pudesse ser salvo.

Ela relanceou um olhar pela cozinha e notou a escada de cordas a um canto, formando um montículo.

 - O que é aquilo? - perguntou com curiosidade.

 - É minha escada de incêndio - mentiu Dick - Conservo-a sempre à mão.

Sybil, neste momento, estava demasiadamente ocupada com os ovos, de maneira que não deu pela fragilidade da explicação.

 - É uma vergonha tomar o desjejum ao meio-dia

 - criticou. - Acho até que foi o meu telefonema que o tirou da cama.

Dick admitiu isso, baixando os olhos com ar de culpado, e Sybil meneou a cabeça. Ela mesma encarregou-se de pôr a mesa. Deitou o café na xícara e cortou o pão. Ele acompanhou seus movimentos com olhares de admiração, mas o motivo da visita ela só explicou quando ele acabou com os ovos, o pão e o último gole de café.

A biblioteca não abria neste dia, em homenagem ao aniversário da sua fundação, e Sybil pretendia aproveitar o feriado para mostrar a Dick o lugar dos túmulos dos Selfords. Havelock estava a par e até se oferecera para acompanhá-los. A pedido da mãe ela havia procurado o advogado de manhã cedo para fazer-lhe um relato da sua viagem à Ilha da Madeira. Havelock tinha ficado muito alarmado, pensando até em requerer segurança policial para mãe e filha, mas Sybil dissuadira-o desse propósito, dizendo-lhe que deixasse tudo por conta de Dick Martin.

Como Dick já tinha pensado em visitar as sepulturas dos Selfords nesse mesmo dia, concordou imediatamente com os planos da jovem. Quando Sybil se despediu, ele sentiu que ela via nele seu protetor natural, o companheiro enviado pelo destino, e o seu coração pulsou com mais força.

Dirigindo-se, sem demora, ao seu banco, apanhou as chaves que havia depositado no cofre. Por volta das duas horas parou o carro em frente da casa de Sybil.

 - Trouxe as chaves? - ela perguntou depressa, antes mesmo que ele tivesse tempo de cumprimentá-la. Ele tranqüilizou-a e a tensão nervosa dela abrandou.

Fazia um lindo dia primaveril e notava-se que o passeio a deleitava. Um quarto de hora mais tarde, em Lincoln's Inn Fields, Havelock juntou-se a eles.

 - A senhorita Lansdown já lhe revelou seu segredo? - perguntou. Dick arregalou os olhos para Sybil, mas ela meneou a cabeça negativamente.

 - Bem, nesse caso não direi nada - sorriu Havelock. - Mas verá que a senhorita Lansdown formulou uma teoria que pode constituir uma pista valiosa.

 - Uma teoria que poderá ser confirmada pelos túmulos? - quis saber Dick, guiando o carro habilmente em ziguezague por entre um enorme ônibus e um calhambeque antediluviano.

 - Talvez - Havelock recostou-se comodamente no assento. - Mas queira refrear a sua impaciência, meu prezado senhor detetive! Amadores, às vezes, também sabem como tirar alguma surpresa da manga do paletó, e não somente os senhores de Scotland Yard.

Dick dirigiu a Sybil outro olhar. Ela olhava fixamente para a frente, um sorriso brilhando-lhe nos olhos. Tivesse ela adivinhado o que a esperava nos túmulos dos Selfords, ela, no mesmo momento, teria renunciado à revelação do seu segredo

Assim que o carro passou por Horsham, o horizonte começou a escurecer, e duas horas mais tarde, quando parou diante da casa do vigia, à entrada de automóvel para o parque do solar dos Selfords, nuvens negras se aproximavam de todos os lados; contudo, ao sudoeste, o sol ainda brilhava num céu límpido e sereno.

Ao som da buzina, uma mulher, vestida com simplicidade, saiu apressadamente da casinha, fez uma cortesia diante de Havelock e abriu o portão.

Dick ficou bem impressionado com o que via.

O caminho de cascalho estava bem cuidado. O parque todo em frente do casarão testemunhava o zelo de um jardineiro cumpridor dos seus deveres.

 - Mantemos tudo em perfeita ordem - comentou Havelock, com uma ponta de orgulho. - O herdeiro pode vir e tomar posse na hora que quiser. Só falta uma criadagem disciplinada, mas isso se resolve facilmente.

 - Quer dizer que não há criados no castelo?

 - É, exceto o administrador e sua mulher - respondeu Havelock. - Mas o administrador entende de jardinagem e cuida também do parque. Além disso, de tempos a tempos, providenciamos uma limpeza geral do castelo, de maneira que ele se encontra em perfeitas condições. Uma pena que esteja desocupado - Por algum tempo ficou em silêncio, depois prosseguiu animadamente: - A propósito, Selford tornou a escrever-me para avisar de que, infelizmente, se vê obrigado a adiar a sua volta à Inglaterra até o inverno. Isso quer dizer que dificilmente chegará antes da próxima primavera.

 - Por onde anda Lord Selford atualmente? - inquiriu Dick, enquanto pisava no pedal do freio.

Havelock deu de ombros.

 - Essa pergunta é daquelas que não têm resposta. Recentemente se encontrava no Cairo, a estas horas, provavelmente, já está em Damasco. Se dependesse de mim, ele estaria em Marte e eu na lua! - resmungou.

O automóvel parou. No meio de um extenso gramado erguia-se o vulto do castelo, uma edificação oblonga de tijolos, com cumeeiras e chaminés, construído no estilo da época dos Tudors. O administrador, alertado pelo ruído do carro, saiu do casarão. Era um homem de meia-idade, com a honestidade estampada no rosto. Trocou algumas palavras com Havelock, dando-lhe conhecimento de uma cerca danificada e um carvalho desenraizado.

 - Vamos, companheiros! - exclamou Havelock, que foi o primeiro a saltar do carro. - Temos à nossa frente uma caminhada de meia hora e precisamos andar depressa se quisermos voltar sem apanhar chuva!

Erguendo a bengala, apontou para o céu, onde, neste instante, o sol desaparecia por trás de densas nuvens negras prenunciando um temporal.

Puseram-se a caminho. Atravessaram um campo ceifado, enveredaram por um pomar e atingiram um sítio que, tirando meia dúzia de galinhas cacarejantes e um cachorro sonolento que piscava os olhos, parecia desabitado. Por trás do sítio desdobrava-se o parque. Uma íngreme elevação, que protegia a casa senhorial dos ventos rijos do nordeste, constituía o atrativo mais marcante da propriedade, que se estendia num amplo semicírculo em volta do pequeno monte. Os espaços livres dos prados revezavam com pitorescas moitas. Uma floresta escura debruava um vale plano.

Quando galgaram a encosta, no topo da qual começava a mata cerrada e de poucas veredas, Dick estranhou o profundo silêncio que os cercava. Nenhum pássaro chilreava, nenhuma folha se mexia. As árvores pareciam mortas, e no céu havia uma nuvem cinzenta que se abalofava mais e mais, ameaçando estourar e despejar um aguaceiro a qualquer momento.

Uma estreita trilha serpeava pela floresta, sempre subindo, e galhos e vergônteas salientes da mata emaranhada que margeava o caminho pareciam querer deter o avanço dos intrusos. Uma luminosidade cinzenta, difusa, fluía entre os troncos das árvores, e numa volta súbita da trilha depararam inesperadamente com uma clareira, no meio da qual se erguia um penhasco.

 - Eis a cripta dos Selfords - disse o advogado. Estendeu o braço e com a bengala indicou a grande rocha isolada. - A entrada para os túmulos fica do outro lado.

Eles saíram para a clareira e rodearam o penhasco. Na grande abertura oval cortada na pedra reinava noite tenebrosa. Uma pesada grade de ferro, já meio carcomida pela ferrugem, impedia o acesso à galeria subterrânea.

Havelock enfiou a mão no bolso e retirou uma chave de formato antiquado. O portão abriu-se com um rangido dissonante.

Atrás do portão, uma lanterna pendia da parede rochosa. Havelock acendeu-a. A pálida luz oscilante alumiou uma escada escorregadia.

 - Irei na frente! - anunciou o advogado.

Abaixou-se e desceu os degraus cautelosamente, bem devagar. Um gélido cheiro de bolor subiu-lhes às narinas. Os degraus estavam cobertos de musgo. Dick contou-os, eram doze ao todo. Desembocavam numa pequena antecâmara abobadada, fechada também por grade, esta de material mais leve. A chave que abrira o portão de ferro, também serviu para esta segunda porta. Encontravam-se agora num corredor estreito, ao longo do qual, dos dois lados, viam-se as portas para as câmaras mortuárias, dez de cada lado, enquanto a vigésima primeira constituía o fim do túnel. Pesadas portas de carvalho conduziam para os túmulos. Os nomes dos ali sepultados haviam sido talhados em madeira e alguns já estavam indecifráveis. A mão do tempo passara por cima deles e os apagara.

 - Venha ver aqui, é este o segredo de Sybil Lansdown! - disse Havelock, erguendo a lanterna.

A luz fraca iluminou a vigésima primeira porta, no extremo da galeria. Ela não era de madeira. A superfície parecia-se com granito.

Dick olhou fixamente para a porta como se ela lhe revelasse todos os mistérios dos Selfords numa única confissão geral.

A porta linha sete fechaduras!

Sete redondas placas de metal com estreitas fendas, dispostas verticalmente, uma abaixo da outra. Ele achara o fio da meada! Encontrava-se diante da câmara mortuária que nem a habilidade de Lew Pheeney conseguira arrombar. Nesta catacumba horripilante, ele havia trabalhado com uma gratificação de mil libras e a morte inevitável diante dos olhos.

Uma fantástica representação de caveiras moldurava a porta e dois esqueletos de pedra, de um realismo arrepiante, formavam os pilares.

Dick deu três pancadas à porta: a falta de sonoridade e repercussão indicava que ela devia ter peso e grossura enormes.

 - Pode dizer-me quem está sepultado nesta tumba? - perguntou.

Sem dizer palavra, Havelock apontou para a lápide tumular:

SIR HUGH SELFORD, GRANDE PECADOR, QUE DA CASA SELFORD FOI O FUNDADOR, AQUI JAZ ATÉ A SUA RESSURREIÇÃO DA MORTE. AS SETE CHAVES E A PORTA FORTE LHE GUARDAM A PAZ.

 - Quem está sepultado aqui é Sir Hugh, mas o epitáfio é de data recente; quem o colocou foi o penúltimo Lord Selford - explicou Havelock. - Ele mandou derrubar a porta anterior, que também tinha sete chaves, e colocar no lugar dela esta de aço e concreto. Antes de fazê-lo, revistou a câmara toda minuciosamente, mas nada encontrou além de uma urna de pedra, vazia. E é só o que a gente consegue ver quando olha dentro da cela.

 - Olhar dentro da cela? - perguntou Sybil, admirada. - Mas não existe nenhuma fresta!

 - Existe, sim - sorriu Havelock, e com uma ligeira pressão da mão contra a lápide, fez deslizar esta para o lado, revelando uma estreita abertura. - Eu devia ter trazido uma lanterna de bolso - lamentou-se.

Dick tinha uma. Erguendo-a até a altura dos olhos, correu o pequeno facho de luz por todo o interior da câmara.

Do outro lado da porta havia um recinto que formava um quadrado de cerca de seis pés de cada lado. As paredes, esverdeadas, pareciam úmidas, o chão de pedra estava coberto de uma grossa camada de poeira. No centro, uma urna funerária repousava sobre um rústico cadafalso.

 - Curioso - murmurou Dick. - Para abrigar um corpo, a urna é pequena demais, e naquela época ainda não existia a cremação. Talvez ela contenha jóias?

Havelock abanou a cabeça negativamente.

 - Lord Selford... - começou, mas parou no meio da frase. Uma súbita chama azulada faiscou no corredor. Assustada, Sybil agarrou o braço de Dick.

 - Um raio - disse Havelock. - O temporal desabou.

Logo em seguida o ribombo de um trovão ecoou dentro da caverna, acompanhado de outro relâmpago, que iluminou as portas espectrais das câmaras mortuárias. Sybil empalideceu, vacilou, e escondeu o rosto no ombro de Dick.

 - Se há um lugar onde estamos seguros, é aqui, debaixo da terra - disse o detetive, acalmando-a. - Além do mais, um temporal não tem nada de terrível; é até uma bela manifestação da natureza. Desde os tempos em...

Novo relâmpago cortou-lhe a palavra. Mais forte do que os anteriores, aclarou as fisionomias pálidas e terminou numa violenta explosão que fez tremer o chão. Seguiu-se um fragor, como se toda uma pedreira desabasse. O trovão reboou e lentamente se extinguiu.

No mesmo momento ouviu-se um barulho metálico, como que dois ferros se entrechocando

Dick largou Sybil e partiu em vertiginosa corrida em direção à antecâmara, precipitando-se dali escada acima. Um raio ofuscou-o, o estrondo do trovão tolheu-lhe os passos. Então, petrificado, viu o que temera: alguém fechara a grade de ferro. O chão de barro molhado mostrava as impressões de pés descalços de tamanho sobrenatural.

 

Havelock e Sybil emergiram da escuridão da galeria subterrânea, ofegantes. Os olhos de Sybil tinham uma expressão atarantada e a cara de Havelock estava coberta por uma lividez cadavérica. A sua mão tremia convulsivamente, quando ele se pôs a sacudir os varões da grade.

 - Quem será o desgraçado que fez esta brincadeira conosco? - perguntou, zangado, em meio da fúria do temporal, numa voz trêmula que, por efeito do medo, lhe saía estridente.

Dick não respondeu. Com os lábios apertados, olhava fixamente em direção da mata espessa. Em poucos minutos a claridade do dia se transformara num negrume aterrador. A água da chuva torrencial martelava o chão com grande estrépito, ricocheteava e respingava-lhe no rosto. Mas na hora do perigo os seus olhos adquiriram uma acuidade invulgar. Ele viu nitidamente que algo se movia por trás dos arbustos de rododendros. Vislumbrou uma perna desnuda. Rapidamente ergueu a pistola e atirou duas vezes. Já ia premer o gatilho pela terceira vez, quando Sybil, soluçando, agarrou-se ao seu braço.

 - Por favor, não atire - implorou com voz sumida. - Ainda não sabemos se temos o direito de ferir alguém.

Encostou a cabecinha no ombro dele, e Dick, com um sorriso, baixou a arma.

 - Dê-me a sua chave - virou-se para Havelock.

Como só existisse uma fechadura do lado de fora, ele meteu o braço por entre as barras de ferro da grade para introduzir a chave. Com um giro da mão abriu o portão. Voltando-se para os companheiros, disse:

 - Façam o favor de irem na frente. Eu já vou também - e em segundos desapareceu na floresta.

Não precisou ir longe: com sua vista de lince distinguiu um objeto amarelo entre as sarças. Abaixou-se e deu com um garrafão de aço, em cuja superfície lisa achou algumas manchas de sangue, prova de que seus disparos tinham acertado o alvo. O recipiente de aço media cerca de quatro pés e era tão pesado que Dick teve de fazer força para levantá-lo. Do cano de saída pendia um tubo de borracha. Poucos passos mais adiante achou um segundo garrafão idêntico ao primeiro, mas que trazia uma etiqueta vermelha, redonda, que havia sido raspada do primeiro recipiente. Apesar da chuva, que ameaçava tornar as letras quase ilegíveis, ainda era possível decifrá-las. Elas diziam: "Cloro! Cuidado! Veneno!”

Lentamente se endireitou. Alguém planejara asfixiá-los com gás cloro. Teria sido suficiente o conteúdo de apenas uma destas garrafas para impedir que eles deixassem com vida aquela cripta. Cautelosamente afastou os galhos das moitas próximas, mas o sinistro gigante desaparecera como que tragado peio chão: as suas pegadas o aguaceiro já apagara.

Caminhando a passos largos, Dick alcançou Sybil e o advogado em poucos minutos.

A chuva caía em bátegas, relampejava a todo instante, e as trovoadas sucediam-se sem cessar, o vento curvava as copas das árvores. Sybil andava aos tropeços naquele terreno acidentado, quase desfalecendo. Galhos molhados açoitavam-lhe o rosto e desalinhavam-lhe os cabelos. Sem dizer nada, Dick caminhou na frente.

 - Que foi que o senhor viu? Em quem atirou? - perguntou Havelock, com voz rouca.

 - Num fantasma da minha imaginação - retrucou Dick calmamente.

A floresta clareava. Todos respiraram fundo se bem que agora estivessem ao céu aberto, totalmente à mercê da chuva. Dick acompanhou Sybil até a casa senhorial mas declinou o convite para entrar e tomar uma chávena de chá para aquecer-se. O mais importante ainda estava por fazer.

Esperou até que a porta se fechasse atrás de Sybil, depois voltou pelo mesmo caminho. Diminuiu o passo ao penetrar na floresta. Relanceava olhares para todos os lados. Chegou são e salvo à cripta, que encontrou como a havia deixado.

Tirou algemas do bolso do casaco e passou-as em volta da fechadura do portão, impedindo assim que alguém o pudesse prender no interior da galeria subterrânea. Em seguida desceu os degraus e iluminou com a luz forte da sua lanterna de bolso as sete fechaduras da vigésima primeira porta. Escondidas num dos bolsinhos do colete, ele trazia as duas chaves misteriosas. Tirou-as e experimentou-as nas fechaduras. Uma delas servia para a quarta, a outra entrava na última fechadura. Ele girou ambas, as lingüetas estalaram, mas a porta não se deixou mover, continuando pendurada imóvel nas dobradiças. Era óbvio que somente poderia ser aberta se ele conseguisse todas as sete chaves.

Ele deslocou o postigo e contemplou a câmara pela estreita fresta. Reparou num nicho, talhado na parede lateral da rocha que, em outros tempos, provavelmente abrigara o féretro com os restos mortais do grande pecador. Devido à umidade da cripta, o caixão se desfizera aos poucos, e agora o nicho estava vazio; apenas uma camada de pó cobria o chão.

Dick tornou a guardar as duas chaves no bolso do colete e, pensativo, voltou para a antecâmara. Subiu os degraus molhados e estremeceu.

A poucos passos da entrada para as catacumbas estava o garrafão que antes descobrira entre as ervas das brenhas da mata. Isso significava que o perseguidor implacável continuava à espreita entre as moitas, tal qual uma pantera, que é capaz de rondar a sua vítima durante horas, antes de dar o salto modal.

Dick, embora destemido por natureza, foi, neste momento, tomado por uma sensação de temor. Fazendo um grande esforço, ergueu o pesado garrafão e carregou-o até onde começava a mata; lá jogou-o no chão.

Ficou alguns instantes parado, olhando fixamente para as moitas. Todos os seus instintos impeliam-no a fugir; nem assim se mexeu. Dominando os nervos, pôs-se a varejar as moitas mais próximas, e só depois de certificar-se de que seu invisível inimigo não se ocultava ali, tomou o rumo da casa senhorial, caminhando lenta e tranqüilamente. Não virava a cabeça para trás, mas, apertando os maxilares e cerrando os punhos, concentrava toda a sua atenção e energia para que não lhe passasse desapercebido qualquer estrepitar estranho na floresta. Finalmente, com uma sensação de alívio, avistou à sua frente o castelo e achou-o quase uma construção formosa, a despeito da rigidez do seu estilo arquitetônico.

A fria perversidade do seu temível adversário, a obstinação com que o perseguia apesar do ferimento que sofrera, a sua vontade firme de matar, colocavam-no fora da esfera humana. Devia ser um demônio, um louco, um indivíduo que não sabia distinguir o bem do mal. O passeio à cripta, a descoberta da porta das sete fechaduras que cerrava um recinto contendo apenas pó, por um triz não custara a vida a Dick Martin.

Tudo parecia mais um sonho confuso do que realidade. Dick tinha a sensação de que a qualquer momento iria acordar e então rir dos desvarios da sua mente.

Apenas uma vez na vida ele tivera um encontro com crimes incomuns. em Toronto, onde uma série de catástrofes inexplicáveis abalaram a cidade até os alicerces. Naquela ocasião se defrontara com o criminoso do tipo inteligente que, perverso por natureza, se deleita com a sua própria perversidade. Dick nunca teria conseguido agarrá-lo se o próprio criminoso, enfastiado de tudo, não se tivesse traído finalmente.

O criminoso comum é brutal ou astucioso, desprovido de nervos e sentimentos. O desejo de luxo e prazeres leva-o ao crime. Indolente ou obtuso demais para conquistar a vida regalada que almeja por meio de talento e aplicação, incapaz de um esforço contínuo, ele vive como parasita do trabalho de outros. É rápido em seus movimentos, talvez também na avaliação da situação, mas sem imaginação.

O criminoso diabólico, porém, que não cobiça as comodidades da vida, que comete crimes por mero prazer, ou que ambiciona o poder, ou é impelido por ódio à humanidade, se distingue por uma imaginação elevada. Ele não só adivinha o raciocínio dos seus captores, como também se antecipa às manobras deles. Amiúde os seus crimes se situam além de todas as leis ou numa linha que extrapola os limites da experiência.

Dick sabia agora que lutava contra adversários equivalentes, que ele não conseguiria vencer pelos meios comuns. Não obstante, confiava na justiça do destino que mais cedo ou mais tarde pune todo elemento nocivo.

Chegou ao castelo molhado até os ossos. A água escorria-lhe pelo corpo. Apesar disso não queria se demorar mais, e Sybil teve de se conformar.

 - Procurou pelo misterioso fantasma da floresta? Acho que ele não passa de um ente da sua imaginação - disse Havelock, que reencontrara a sua fleuma.

 - Eu não diria isso - retrucou Dick. - Não achei o fantasma, mas vi suas pegadas.

 - Ele está ferido? - perguntou Sybil, condoída.

 - Gravemente não, disso tenho certeza - tranqüilizou-a Dick. - As balas não devem ter-lhe causado grandes estragos.

 - O que é uma pena - observou Havelock, subitamente com raiva. - Se tivesse morrido, seria um mau elemento a menos no mundo.

Ele tinha pedido emprestado ao administrador uma capa de chuva; sentado num canto do carro, abotoado até o pescoço, fechou os olhos, cansado, e só acordou quando o automóvel parou diante da sua casa.

O temporal se dissipara, mas a temperatura tinha caído O ar estava frio e desagradável.

Sybil desculpou-se com ele por tê-lo induzido a participar de um passeio tão desastroso. Ele fez um gesto conciliatório.

 - Olhe para o senhor Martin - disse. - Está todo ensopado. Eu com esta capa, pelo menos não senti frio. Além do mais, foi bom eu ter podido certificar-me com meus próprios olhos das intrigas que parecem estar sendo urdidas, não sei com que propósito. Apenas receio que aquilo que observamos não seja nada em comparação com o que continua oculto.

 - Meu Deus - murmurou Sybil. - Estou com medo.

Havelock sacudiu a cabeça

 - Não é a minha intenção intranqüilizá-la, senhorita Lansdown, mas se não estou muito enganado, o nosso jovem amigo aqui - e ele voltou a cabeça para Dick, que mantinha as mãos pousadas sobre o volante - conseguiu fazer uma descoberta bastante perigosa.

Com um amável aceno de cabeça estendeu as mãos para ela, apeou e, a passos largos, dirigiu-se para a sua casa.

Dick estava ocupado em fazer a volta com o carro no meio da rua, o que, em vista do asfalto molhado, não era tarefa fácil, e Sybil reprimiu a pergunta que lhe queimava os lábios.

Na Coram Street separaram-se. Ele teve de prometer à moça que, ao chegar em casa, tomaria imediatamente um banho quente e trocaria de roupa. Era o que ele mesmo mais desejava. Um mergulho na banheira se lhe afigurava naquele momento uma delícia divina.

Mal tinha saído do banho, telefonou para o inspetor Sneed.

 - Sinto muito se o tirei de um dos seus cochilos, mas peço-lhe que venha imediatamente à minha casa. Tenho uma porção de novidades para você.

Sneed grunhiu aborrecido, mas após alguns instantes concordou, e pouco depois tocou a campainha do apartamento de Dick. Cansado, cambaleou pelo corredor até o gabinete de trabalho e com um profundo suspiro deixou-se cair na primeira poltrona de couro com que deparou.

 - Já estou com o mandato de busca contra Staletti. A coisa vai acontecer hoje às dez horas da noite.

 - Mas você não combinou com a polícia de Sussex que chegaria às onze e quinze? - perguntou Dick, surpreso.

 - Meu Deus, sim. O que quer que eu faça para evitar que a polícia local me estrague tudo? "Panela em que muitos mexem, ou sai insossa ou salgada". Mas agora vai falando. Você tem uma mania esquisita de viver todo dia um novo capítulo do seu excitante romance.

Ele escutou com os olhos fechados, descerrando-os apenas uma vez, quando Dick mencionou a escada de cordas que descobrira no parapeito da sacada.

 - Lew Pheeney! - comentou em tom breve.

Dick assentiu com a cabeça e prosseguiu, falando agora sobre a visita à cripta senhorial dos Selfords. Aí Sneed se endireitou, resoluto.

 - Mais alguém tem uma chave para o portão da cripta - observou. - Como também uma das chaves para o vigésimo primeiro túmulo - acrescentou.

Passou a mão pelo rosto.

 - Sete fechaduras, sete chaves - refletiu. - Você tem duas Quem terá as cinco restantes? Se nós pudéssemos reunir todas as chaves em nossas mãos, o enigma ficaria solucionado... Mais simples, porém, seria usar dinamite.

Dick revirou o cigarro na piteira de espuma-do-

mar.

 - Para isso precisaríamos da permissão de Lord Selford, e este dificilmente a dará enquanto não souber os nossos motivos.

Sneed franziu as sobrancelhas.

— Talvez se possa arrombar as fechaduras?

Dick sacudiu a cabeça.

 - Impossível! Lew Pheeney já tentou isso.

Sneed arrepiou-se.

 - Lew Pheeney... É, tem razão. Ele descobriu o mistério das sete chaves e pagou-o com a vida. Sete chaves... sete vítimas. Silva e Lew Pheeney estão mortos... Quem será o terceiro na fila7

Olhando fixamente para a frente, ficou a pensar. Subitamente levantou os olhos;

 - Por favor, mostre-me essas chaves!

Dick colocou-as na palma da sua mão estendida. A luz refletia-se na superfície lisa e nas pontas curiosamente denteadas.

Sneed balançou a cabeça e as devolveu a Dick

 - E quanto ao gigante seminu, do qual me falou... Pode dar-me uma descrição mais precisa?

Dick acenou negativamente.

 - As minhas mãos o conhecem melhor do que os meus olhos - disse. - Além da sua força descomunal, ele é ágil e escorregadio como uma enguia. Creio, porém, que posso assegurar-lhe uma coisa: ele segue ordens de outrem!

Nos olhos entrecerrados do inspetor reluziu um súbito interesse.

 - Ah! De Staletti, não é? Ele se serve das vítimas das suas experiências!

Dick fez um aceno afirmativo com a cabeça. Houve uma pausa demorada, prenhe de palavras não pronunciadas e de revolta interior.

Com ar circunspecto, o inspetor tirou as conclusões finais:

 - Obviamente, os garrafões de aço já se encontravam lá. Já o esperavam há mais tempo, Martin. Provavelmente não reconheceram Havelock de imediato e julgavam que você abrira o portão principal com uma gazua. Só assim se explica por que vocês foram encerrados na galeria. Usar gazua leva tempo, sobretudo neste caso, onde a fechadura só é acessível do lado de fora. Antes de conseguirem sair de lá, todos teriam morrido de asfixia. Aí surgiu Havelock ao seu lado e foi provavelmente reconhecido. A presença dele, com que não tinham contado, afugentou os sujeitos. E claro, isso são apenas suposições, mas acredito que elas não estão muito longe da verdade.

Ergueu-se com uma careta como se isso fosse um enorme esforço.

 - E agora ao encontro de Staletti! Espero apanhar a aranha em sua teia!

 

A porta foi aberta de repelão. Um contingente de policiais à paisana derramou-se pela casa toda. Outros, uniformizados, vigiavam as portas e janelas do lado de fora.

Staletti lançou um olhar na direção dos agentes de Scotland Yard postados junto da escada. Um sorriso encrespou-lhe levemente os cantos da boca. O seu rosto era mais amarelento e sujo do que nunca, as faces pareciam mais chupadas, a barba mais desgrenhada. Ele vestia um comprido roupão e calçava chinelos de feltro esgarçado.

Sneed explicou-lhe em breves palavras o motivo da sua visita noturna e exibiu-lhe o mandato de busca e sua identificação.

Staletti fez um gesto magnânimo. -

 - Lembro-me muito bem do senhor, inspetor. Permita-me que eu acrescente "infelizmente" - alongou o olhar para Dick. - Ah!... e ali remos também o cavalheiro que recentemente bateu à minha porta em busca de gasolina! Entrem, por favor! Não façam cerimônia!

Inclinou-se numa mesura exagerada e conduziu seus visitantes ao vestíbulo, que inundou de luz acendendo todas as lâmpadas.

 - O que querem que lhes mostre, cavalheiros? O salão? Ou talvez a sala de jantar?

 - O laboratório - retrucou, com uma ruga na testa, o inspetor Sneed, pois sentia o insultuoso escárnio do outro.

 - Ah! Compreendo. É o templo da ciência que excita a sua curiosidade. A minha modesta casa está à sua inteira disposição.

Ele escancarou a porta para o laboratório. Sneed lançou um olhar desconfiado em direção à escrivaninha, coberta de folhas soltas, livros e revistas. Nada que pudesse suscitar suspeitas se oferecia aos olhos do inspetor.

 - Deve haver outro laboratório - disse Sneed rudemente. - Pelo que sei, fica no andar superior. Leve-nos até lá.

Staletti deu de ombros.

 - Como quiser. Também lá só encontrará provas de pesquisas e estudos sérios e inofensivos.

Voltou ao vestíbulo e indicou a escada. Havia três portas no corredor de cima. A primeira conduzia a um quarto cuja mobília, extremamente pobre, contrastava consideravelmente com a decoração do vestíbulo. Um lavatório sujo, um catre e uma poltrona puída, atendiam, bem ou mal, às necessidades do seu ocupante.

 - A clausura de um homem dedicado à ciência - disse Staletti, em tom irônico.

À esquerda uma porta dava para outro aposento juncado de móveis de mau gosto que não combinavam entre si. Parecia o depósito de uma casa de penhores. A desordem reinante naquele cômodo era indescritível.

Num dos cantos havia um armário de aço com uma porção de gavetas.

Staletti, sempre observando Sneed pelo canto dos olhos, notou a curiosidade do inspetor. Acenou em direção ao armário.

 - Querem saber o que há naquele armário? Vejam por si mesmos - disse, puxando uma das gavetas. Ela continha uma coleção de besouros exóticos. - Meu museu histórico-natural. É de aço por causa do perigo de incêndio.

Sneed contemplou superficialmente o brilho colorido das asinhas irisadas. Espiou nos cantos, mas não achou nada que lhe desse algum motivo para tomar medidas contra Staletti.

Com expressão soturna empurrou a porta do terceiro cômodo, um pequeno quarto que continha apenas dois colchões e alguns cobertores.

 - O meu depósito de cacarecos - respondeu Staletti ao olhar inquisitivo do inspetor.

 - Bem... e agora vamos ao segundo laboratório - insistiu Sneed.

Staletti anuiu com um aceno de cabeça. Subiram mais alguns degraus e, solícito, o médico italiano conduziu seus dois acompanhantes para outra porta, mais alta que as anteriores. Por trás dela ficava o laboratório que aparentemente fora acrescentado ao prédio em época mais recente. Duas janelinhas sobre o telhado forneciam a iluminação. Uma enorme estante cobria as duas paredes, em cujas prateleiras se alinhavam vidros de toda a espécie. Uma cômoda, sobre a qual havia um aparelho de esterilização, continha um amontoado de instrumentos cirúrgicos. No centro do laboratório estava uma mesa estreita e comprida, e sobre ela, numa confusão medonha, via-se um rato meio seccionado, com as quatro patinhas espetadas no tampo da mesa, além de um grande e valioso microscópio, alguns instrumentos de medida, uma porção de provetas, uma balança de precisão e uma garrafa cheia de um líquido vermelho tapada com um chumaço de algodão.

Sneed debruçou-se imediatamente sobre o rato. Staletti torceu a boca e as suas mãos crisparam-se como numa contração de raiva.

 - É, inspetor falou com voz untuosa. - Aqui pode observar em primeira mão como um cientista passa as suas horas de lazer. O senhor freqüenta teatros de revista, os seus olhos deleitam-se com o espetáculo de lindas pernas de mulher. O cientista não, ele contempla os intestinos de um rato; o olhar dele vê nas dobras intestinais do bicho o mais belo sentido da vida. Não, não se preocupe... O rato já estava morto quando eu o cortei! - acrescentou depressa quando Sneed começou a tocar com as pontas dos dedos no corpinho do roedor, com ar desconfiado - As leis inglesas são mais fortes do que eu. Já não vivissecciono mais. Com o coração sangrando, eu desisti de palmilhar o elevado caminho do saber, porque o seu país assim o quer.

 - Está muito loquaz hoje, senhor Staletti - observou Sneed numa voz rancorosa.

 - É a alegria que me deixa assim, inspetor. A alegria de reencontrar gente. Passo semanas a fio sozinho nesta casa. Não ouço nada além do frêmito do vento pelas folhas das árvores e, de vez em quando, o ruído distante de um automóvel na estrada. E fico triste. Penso nos homenzinhos de peito chato que estão dirigindo os carros e cujos cérebros só servem para negócios enfadonhos; penso nas mulheres pintadas que só sabem flertar, fumar e jogar tênis. Como são todos escravos das suas insignificantes preocupações e míseros desejos! Eu não sou escravo de coisa alguma. Não preciso sequer de cozinheira, pois como carne crua, como o quis meu Criador quando me fez um ente carnívoro. Porém o senhor, inspetor, é diferente daquelas pulgas de estrada que me irritam com seu fedor de gasolina. E alto e é forte! Aproxima-se do meu ideal e é uma interrupção bem-vinda na minha solidão! É por isso que não paro de tagarelar... para ter o prazer de poder admirá-lo o maior tempo possível!

Sneed pôs fim ao palavrório com um gesto impaciente dos braços.

 - Quem derme naqueles dois colchões no outro quarto? - perguntou, irritado.

 - Ninguém - Staletti meneou a cabeça, admirado. - Eu já lhe disse, aquilo é meu depósito de cacarecos. Os colchões são colchões velhos, que não uso mais.

Subitamente os seus olhos acenderam-se de repentino brilho.

 - Ah!... Agora compreendo! O senhor esperava encontrar aqui comigo alguns "pensionistas"! Certamente pensou: "Veja só, esse Staletti mora sozinho naquela casa isolada: deve existir alguma razão para isso. Pelo jeito, os três meses de cadeia não o curaram. Na sua cozinha de bruxo esse patife está novamente trabalhando para transformar miseráveis criaturas da degeneração humana em gigantes pré-históricos." Mas não é nada disso, inspetor. Coisas horripilantes assim podem soar muito bem em teoria, mas na prática...

 - O senhor Martin escutou um grito horrível quando aqui esteve à procura de gasolina - Sneed cortou a interminável verborragia do médico.

 - É verdade? Então ele não deve estar passando muito bem de saúde. Aliás, eu bem notei nele uma sobre-excitação nervosa.

 - Ele foi atacado dentro do seu parque por um selvagem seminu. Chama isso de sobre-excitação nervosa?

 - Mas naturalmente. O senhor não sabe como uma mente nervosa é passível de receber as mais estranhas impressões.

Sneed encarou Staletti bem dentro dos olhos, como se quisesse penetrar nos mistérios mais ocultos da sua alma. Staletti enfrentou o olhar com uma expressão zombeteira e sem pestanejar.

Sneed virou-lhe as costas sem proferir palavra e deixou a casa, acompanhado do séqüito de auxiliares. Staletti, da janela do seu quarto, seguiu com a vista a fila de viaturas policiais que lentamente se distanciava. Esfregando as mãos de contente, dirigiu-se ao laboratório contíguo. Fechou a gaveta... aliás a única que se podia abrir... e apertou um botão. Toda a parte anterior do armário girou, e na escuridão do fundo dois olhos piscavam, ofuscados pela luz repentina.

 

Na manhã seguinte, quando Dick entrou apressadamente no escritório de Havelock, encontrou este preocupado, com uma carta na mão, que havia chegado horas antes pelo correio

 - Espero que meu telefonema não tenha sido inoportuno, senhor Martin - desculpou-se o advogado. - Não o teria incomodado por causa desta carta se os acontecimentos destes últimos dias não me tivessem deixado com a pulga atrás da orelha.

Estendeu a Dick a missiva de Lord Selford, escrita numa folha de papel que trazia o nome do hotel em Cairo onde Selford se hospedara.

Dick leu:

"Prezado Sr. Havelock: "Recebi o seu telegrama fazendo indagações a respeito do Dr. Cody e apresso-me a confirmar-lhe que, efetivamente, conheço Dr. Cody pessoalmente. Encontrei-o certa ocasião no estrangeiro e, por algum tempo, mantivemos uma animada troca de correspondência. Não compreendo por que ele nega conhecer-me, mas é possível que ainda esteja zangado comigo. Tempos atrás ele escreveu-me a fim de pedir um vultuoso empréstimo, alegando que na Inglaterra se sentia ameaçado por algum inimigo desconhecido e que tinha motivos para temer pela sua vida. Eu, porém, não acreditei. Achava que suas apreensões não passavam de um expediente e que ele apenas visava a induzir-me a fornecer-lhe a quantia solicitada. Em suma, recusei, e desde então nunca mais tive notícias dele,

"Aproveito a oportunidade para avisá-lo de que preciso, com urgência, de 25.000 libras. Envie este valor em moeda francesa, como encomenda com valor declarado, para o Hotel Pêra Palace, em Constantinopla. Logo após o recebimento deste dinheiro pretendo partir para a Romênia. Segundo ouvi dizer, pode-se adquirir lá extensas e valiosas propriedades a preço vil."

A carta terminava com algumas expressões de cortesia e trazia a assinatura "Pierce".

 - Vai atender ao pedido? - perguntou Dick.

 - Não tenho escolha.

Dick meneou a cabeça.

 - É uma grande responsabilidade!

Havelock mordeu nervosamente os beiços.

 - O que posso fazer7 Ele é maior de idade e meu cliente. Não tenho o direito de lhe negar o que quer que seja - deu de ombros, num gesto de impotência.

 - Situação desagradável - observou Dick,

 - É, sim Às vezes sinto vontade de largar tudo, O meu chefe de escritório, cujo critério muito respeito, já me aconselhou nesse sentido. Entretanto, é uma decisão que precisa ser estudada com cuidado, já que a administração dos bens rende anualmente cerca de cinco mil libras.

Dick embasbacou ao ouvir essa soma.

 - A fortuna é tão grande assim?

 - É uma das maiores da Inglaterra, e todo ano cresce mais um pouco.

 - Sim, senhor! Então o jovem lorde deve levar uma vida bem mais folgada do que todos os seus colegas aristocráticos na Câmara dos Pares. Acaso seu pai descobriu algum tesouro?

Havelock sorriu.

 - Sei que a sua pergunta é irônica, mas acontece que acertou em cheio. De fato, ele descobriu um tesouro, um tesouro inesgotável de diamantes negros. As suas minas de carvão em Yorkshire e Northumberland transformaram-se nas últimas duas décadas em verdadeiros filões de ouro. As suas terras na África do Sul e na Austrália valem hoje cem vezes o que ele pagou por elas. Mas vejo pela expressão do seu rosto que o senhor pensou num outro tipo de tesouro... moedas de ouro enterradas por trás das sete chaves, ou coisa que o valha. Não, senhor Martin, seja qual for o segredo que a porta oculta, tenho a certeza de que não será nada que possa ser transformado em dinheiro.

 - O jovem lorde nunca teve vontade de abrir aquela porta?

 - Não que eu saiba. John é um moço prático, que vive na realidade. Eu também nunca me interessei pela porta, e somente por causa dos incidentes de ontem ela agora me aparece numa luz meio sinistra. Mas como abri-la? Não temos as chaves, e Lord Selford jamais permitiria a sua demolição por explosivos. Ele respeita demais seus ancestrais para fazer uma coisa dessas. Entretanto, ouvi dizer que o senhor é muito hábil em abrir fechaduras. Que tal se usasse a sua arte para tentar abrir a vigésima primeira câmara mortuária?

 - Impossível! Eu conheço minha capacidade e seus limites.

Havelock, concordando com a cabeça, pegou novamente a carta, com ar pensativo.

 - E se o senhor fosse levar o dinheiro para Constantinopla? Dessa maneira não poderia deixar de se encontrar com Lord Selford!

Dick sacudiu a cabeça energicamente.

 - Agradeço penhoradamente! Já chega de viagens.

 - É. Lamento sua recusa, mas posso compreendê-la. Acho que é mais fácil apanhar o homem na lua do que Pierce.

Agora foi a vez de Dick de examinar a carta.

 - Não seria possível tratar-se de uma contrafação?

 - Absolutamente! Conheço a caligrafia de John e suas particularidades de estilo melhor do que... Bem, quase eu disse "melhor do que as minhas". Além do mais, uma vez ele escreveu uma carta na minha presença, diante dos meus olhos, e é a mesma letra.

 - Existe também a possibilidade de que o senhor esteja sendo tapeado por algum sósia.

 - Não, senhor Martin. O rosto estreito dele, os cabelos cor de areia, seus olhos com expressão absorta, a sua voz ciciosa, tudo isso junto não existe duas vezes. De mais a mais, ele tem um sinal de nascença no rosto, abaixo da orelha direita. Ainda que as outras coisas pudessem enganar a gente, este sinal seria um indicio seguro. Eu mesmo já pensei na possibilidade de um sósia, mas abandonei essa idéia por completo - Ele sacudiu a cabeça e acrescentou: - Ora, por que quebrar a cabeça por causa de Lord Selford? Perguntamo-nos se ele estaria sendo explorado por chantagistas: se está representando alguma comédia, por motivos desconhecidos; qual a explicação de tudo. Bem, o que eu acho é que o jovem fidalgo é apenas um inglês excêntrico com a ambição de gastar solas de sapatos e pneus.

Dick concordou com uma inclinação da cabeça. O seu olhar cravou-se mais uma vez na folha de papel com o emblema do hotel de Shepherd.

 - Excêntrico ele é, sem dúvida - comentou com voz pausada, levantando os olhos. - Por exemplo, escreveu a carta com tinta verde...

 

Sybil Lansdown tinha dormido mal, Sentia-se nervosa, inquieta, muito agitada. Compreendia que entre ela e Dick se estabelecera um novo tipo de relacionamento e não sabia se devia alegrar-se com isso. Meio envergonhada, lembrou-se do momento em que repousara a cabeça no peito dele. Exprobrava a sua fraqueza de caráter, que era algo que não condizia com seu feitio moral. Como é que uma moça de educação moderna podia apavorar-se tanto por causa do simples estrondo de uma descarga elétrica, a ponto de perder seu pundonor e sentimento de respeitabilidade? Fosse como fosse, acontecera, e toda a sabedoria extraída dos livros da biblioteca não lhe fornecia nenhuma explicação razoável do seu comportamento. E subitamente, com o coração a pular, perguntou de si para si: era realmente necessária uma explicação científica para seu caso?

Era perto de meio-dia. Já não havia mais ninguém na sala de leitura. Os livros estavam todos nos seus lugares nas prateleiras. Tornara-se um hábito de Sybil aproveitar o sossego da hora do almoço para arrumar novamente as fileiras de livros.

Neste momento uma mulher magra atravessou a porta, espalhando um perfume ativo, que sobrepujava o acre odor das encadernações em couro. Do pescoço pendia-lhe um "lorgnon", preso numa corrente de ouro.

 - Estou falando com a senhorita Lansdown? - perguntou com voz estridente.

Sybil fez que sim com a cabeça e levantou-se da cadeira.

 - Vim aqui para tratar de um assunto muito delicado - explicou a mulher e aboletou-se cerimoniosamente numa cadeira. - Eu conhecia seu pai, senhorita Lansdown.

Descalçou as luvas, o que lhe deu ensejo para fazer faiscar os brilhantes dos seus anéis.

Sybil fitou a mulher com olhar perscrutador. Já à primeira vista achava-a antipática. Sentia que ela provinha de um meio inferior e que lhe faltava o gosto de desfrutar a sua riqueza de uma maneira distinta. Os dedos repletos de anéis, o perfume penetrante, a corrente por demais suntuosa, bastavam para imprimir-lhe o cunho da vulgaridade; as feições grosseiras e a boca ordinária eram apenas indícios adicionais.

Enquanto isso, a mulher palreava sem parar.

 - Seu pai foi um homem excelente, minha filha, mas confiava demais nas pessoas. Falsos amigos se aproveitaram da sua ingenuidade e o abandonaram quando a canoa furou. Quantas vezes meu marido me disse: "Elisabeth, marque as minhas palavras, isso vai acabar mal!” E quando aconteceu o pior, o orgulho de seu pai não permitiu que ele procurasse seus verdadeiros amigos. Nós teríamos tido muito prazer em ajudar-lhe.

Sybil continuava fixando a mulher, cuja garrulice a incomodava.

 - Não estou entendendo. Afinal, quem é a senhora? Que deseja de mim? Por que não se explica de uma vez?

 - A sua felicidade, é o que desejo! Eu sou a senhora Cody - replicou a desconhecida.

Cody... Cody... Esse nome não lhe era estranho. Sybil enrugou a testa, mas não conseguiu se lembrar direito.

 - Como já disse, estou aqui em seu próprio interesse - recomeçou a senhora Cody com ar meio ofendido. - Meu marido, naquele tempo, estava envolvido nos negócios de seu pai e também sofreu prejuízos. Agora acabou de receber certas informações que talvez possam servir de ponto de partida para a recuperação de uma parte da sua fortuna. - E batendo com o "lorgnon" na mesa - Foi uma grande injustiça, minha filha, deixar que seu pai respondesse sozinho pelas perdas da sociedade, Houve falcatruas, trapaças, de arrepiar os cabelos. Meu marido juntou provas, lemos a certeza de que, fundamentados nelas, existem boas chances para conseguir uma indenização.

Sybil sentiu-se tonta. Teve de sentar-se. Era verdade tudo aquilo? Era realmente possível que fosse verdade? E por que não? Durante os últimos anos da sua vida, particularmente depois da ruína da empresa, seu pai tinha lidado com gente muito estranha. Talvez Cody tivesse sido um dos prejudicados e efetivamente houvesse feito uma descoberta importante. Em todo caso devia ouvi-lo, sobretudo no interesse da mãe, que intimamente ainda lamentava a perda da fortuna, embora jamais se queixasse. Rapidamente tomou uma decisão.

 - Não poderia eu falar pessoalmente com seu marido? - perguntou à mulher.

Era o que a outra esperara.

 - Mas naturalmente, minha filha! E por isso que estou aqui, para convidá-la a tomar chá conosco. Meu marido faz questão de falar-lhe ainda hoje. "Elisabeth", ele disse, "pegue o carro, vá à Biblioteca Bellingham, e procure convencer a senhorita Lansdown a nos dar o prazer de sua visita. O assunto que precisamos discutir exige um lugar reservado." É por isso que vim. Asseguro-lhe que não foi fácil localizá-la. Mas o que a gente não faz quando se trata da filha de um velho colega!

 - Fica longe onde moram? - inquiriu Sybil, interrompendo o novo fluxo de palavras.

 - O que quer dizer longe quando se vai de automóvel! E não num fordeco qualquer, nada disso, mas num Rolls-Royce! - Ela rolou esta palavra na língua com uma expressão de gozo intenso. - Nós moramos em Sussex, à margem da Estrada de Londres. Chegaremos lá num instante.

Svbil lembrou-se que rodara na mesma estrada no dia anterior, em companhia de Dick Martin e do senhor Havelock.

 - Está bem - disse. - Eu irei. Mas nós só fechamos às quatro horas. Não posso abandonar a biblioteca antes disso.

 - Não tem importância, minha filha – apressou-se a senhora Cody a responder. - Farei algumas compras e a espero depois em frente da saída.

E despediu-se. A fragrância do seu perfume seguiu-a como um rabo de cometa.

Por alguns momentos Sybil quedou-se imóvel. A visita da senhora Cody evocara a figura do pai, a tristeza daqueles meses que antecederam à sua morte. Ela estava emocionadíssima. A monstruosa injustiça que seu pai sofrera ainda a abalava, Muitíssimo mais do que a fortuna perdida a magoava o infortúnio do pai.

Ela telefonou para a mãe a fim de comunicar-lhe à novidade. Ninguém atendeu. Lembrou-se então de que a mãe lhe dissera que pretendia passar o dia com uma amiga, e desligou. Em seguida discou o número de Dick Martin. Relutava em admitir de si para si que intimamente estava insegura e ansiava ouvir a voz vigorosa e confiante dele. Entretanto, também esta ligação não deu resultado.

Às quatro horas em ponto deixou a biblioteca. O carro já a esperava junto ao meio-fio da calçada, O chofer era um moço de libré. Ele cumprimentou-a com um sorriso, e diante desse sorriso franco e amável se dissiparam as suas últimas dúvidas.

Tom Cawler pôs o carro em movimento. O magnífico automóvel deslizava pela estrada suavemente, como que transportado por asas, a excelente suspensão de mola absorvendo todos os solavancos.

 - Chegou a avisar sua mãe? - perguntou a senhora Cody, estendendo um cobertor de moiré sobre os joelhos da moça.

Sybil balançou a cabeça negativamente.

 - Ela não estava em casa - respondeu com simplicidade.

 - Suponho que neste caso disse a outra pessoa aonde iria, para que sua mãe não fique preocupada com sua ausência.

 - Oh! - disse Sybil. - Não tem importância. Minha mãe está acostumada. Ela sabe que às vezes me encontro com amigas e me demoro.

A senhora Cody não falou mais nada. Sorriu interiormente, satisfeita.

 

 - Então você é a filha do meu velho amigo! - Com estas palavras paternais Cody cumprimentou

a moça quando o carro parou em frente da varanda da sua casa.

Sybil fitou-o atentamente, procurando lembrar-se. Ela tinha quase certeza de que nunca antes tinha visto esse homenzinho careca.

 - Não consegue se lembrar de mim? - perguntou ele.

Svbil sacudiu a cabeça negativamente, sorrindo como para pedir desculpas.

 - Bem... - observou Cody. - Na verdade, não é de estranhar. Quando a vi pela última vez estava começando a ensaiar seus primeiros passinhos.

Ofereceu o braço à moça e conduziu-a para o interior da casa. A senhora Cody cravou-lhe um olhar irritado e ameaçador, mas ele preferiu não tomar conhecimento da carranca dela.

Na sala de estar deu a Sybil a poltrona mais confortável, e apesar dos alegres protestos dela colocou-lhe uma almofada macia atrás das costas.

A mesa estava posta e convidativa.

 - O chá será servido já, já, filhinha. Deve sentir-se cansada depois de um dia de trabalho e mais essa viagem - fitou-a nos olhos.

Subitamente apareceu a senhora Cody à frente dos dois, como que emergida do chão. Cody, que naquele exato momento se inclinara sobre a moça, recuou, meio encabulado.

 - Bertram - disse ela - posso falar-lhe por um instante? - E acrescentou com um sorriso adocicado para Sybil: - Dá licença?

Sybil, que adivinhava o que se passava com ela, quase não pôde suster o riso. Contentou-se em fazer um gesto cortês e conciliador.

Entretanto. Cody não tinha a menor vontade de ouvir um sermão. Fuzilou a esposa com um olhar irado.

 - Seja o que for, creio que isso pode muito bem ficar para mais tarde - disse com frieza.

O rosto dela tornou-se apoplético. Ela tentou castigar o marido com um olhar aniquilante, e como não o conseguia, precipitou-se para fora da sala. Só restou dela o cheiro de flores murchas.

Imediatamente Cody ofereceu à visita um cigarro, e em breve a fumaça encobriu o odor do perfume.

No vestíbulo estava o chofer, ambas as mãos nos bolsos da calça, fazendo tilintar um punhado de moedas e assobiando baixinho. Quando a senhora Cody saiu furibunda da sala, ele girou nos calcanhares.

 - Tia, quem é a moça? Por que o tio dança em volta dela como uma galinha em torno dos pintinhos? É tão ridículo!

Ela azedou-se.

 - Você não tem nada com isso - retrucou com aspereza. - A sua curiosidade não está me agradando!

Ele fingiu não ter entendido a repreensão e insistiu.

 - Ela tem uma cara bonitinha. Admira-me que você os deixa sozinhos.

 - E melhor você ficar calado e guardar o carro

na garagem. E tenho outras instruções para você.

Tom Cawler encolheu os ombros.

 - Para que toda essa pressa? Um provérbio de que eu gosto muito dia: "Devagar se vai ao longe". O que é que o velho está querendo dela? - com o polegar indicou a sala de estar.

 - Como vou saber? - gritou a senhora Cody, e sua voz denotava uma raiva prestes a explodir.

Tom deu um longo assobio. Então era essa a situação. A raposa lá dentro caçava passarinhos por conta própria.

 - Ela está com a chave? - perguntou, espaçando as palavras.

A senhora Cody encarou-o fixamente. Seus olhos se dilataram.

 - O que é que você sabe a respeito das chaves?

Toni Cawler balançou a cabeça. Tornou a enfiar a mão nos bolsos, fingindo não ter escutado a pergunta.

 - Não há ninguém nesta casa hoje - observou. - Pelo jeito, eu mesmo vou ter de preparar meu chá. A governanta e a cozinheira estão de licença, a arrumadeira está doente no hospital. Muito esquisito tudo isso, E que casal esquisito são vocês...!

Sem outro olhar para a tia, caminhou em direção à porta. Pousou a mão no trinco... mas subitamente voltou-se. A testa esticada para a frente, o queixo recolhido, perguntou:

 - O que vocês estão tramando, tia?

A senhora Cody perdeu o controle que durante toda a conversa mantivera a muito custo.

 - Cale a boca, Tom! Estou avisando, cale essa boca! - gritou com voz estridente. - E daqui em diante não sou mais a sua tia, ouviu? Sou a senhora Cody! Entendeu, patife? Você pode...

Calou-se abruptamente.

Tom Cawler virou-lhe as costas e saiu para levar o carro à garagem.

Havia sete anos que morava com a tia. Tinha um bom salário. Suas obrigações eram poucas. Muita gente o invejava. Desfrutava essa posição excepcional por saber de certos detalhes da vida dela, de fatos anteriores ao seu casamento com Cody Portanto, por que arriscar-se? Tinha já assistido a muitas coisas estranhas e sempre fizera vista grossa. Por que não agir da mesma forma agora? Mas ele não se sentia muito à vontade com essa maneira de pensar.

Ele tentou aparentar indiferença enquanto descia os degraus da escadaria. Subitamente, porém, estacou.

Ele tinha sido um ladrão, mesmo agora não respeitava lá muito as coisas alheias, porém não era um canalha. Entretanto, não se tornaria ele um canalha se cruzasse os braços, se permitisse a realização de uma canalhice?

O sangue subiu-lhe à cabeça, o coração pulsou-lhe mais depressa. Voltou a galgar a escadaria, correndo. Encontrou a tia na cozinha.

 - A que horas a moça volta à cidade? - perguntou em tom belicoso.

A senhora Cody, de costas para ele, retrucou mal humorada:

 - Ela vai ficar.

Tom mordeu os beiços; sem querer, os seus punhos se cerraram.

 - É a vontade dela? - inquiriu, mudando para um tom ameaçador.

 - Por que pergunta? Ela não é nem sua irmã, nem sua namorada.

 - Fui eu quem a trouxe aqui - redargüiu ele, teimoso - e vou levá-la de volta. Não pense que eu me presto a tudo.. Até um ladrão tem uma noção de honra. Prefiro que me cortem a mão do que deixar que maltratem uma pobre moça indefesa. Dentro de uma hora eu vou tirar o carro e levar a garota para casa.

E saiu, batendo a porta com violência.

A senhora Cody despejou a água fervente no bule de chá. A sua mão tremia, seus lábios se crisparam, as veias se lhe ressaltaram nas fontes.

Passado algum tempo, levou o chá à sala de jantar, e logo se retirou.

Sybil ainda não desconfiava de nada. Ela acreditava que a senhora Cody se mantinha à distância por discrição. Até esse momento tudo que o seu anfitrião lhe dissera não passara de generalidades; ele só repetia coisas que Sybil já sabia. Ela começava a ficar impaciente, e finalmente fez uma pergunta mais direta.

Cody levantou-se, foi ao aposento contíguo e retornou com uma pasta azul, bastante volumosa. Bateu com o dedo indicador na capa.

 - O resultado de muitos meses de investigações - disse. - Pode acreditar, filhinha, você não tem amigo melhor no mundo do que Bertram Cody. - Ele procurou os óculos e, como por acaso, reparou no relógio: - Meu Deus, já são seis e meia! É muito tarde para começarmos a examinar toda essa papelada.

Esfregou a testa. De repente teve uma idéia.

 - Que tal se pernoitasse aqui?

 - Não posso deixar minha mãe sozinha - retrucou Sybil secamente.

 - Oh, nesse caso podemos convidar sua mãe também. Eu mando-lhe o carro; ela, decerto, estará muito interessada em tomar conhecimento das provas.

 - Por que o senhor não se comunicou com minha mãe em primeiro lugar? - perguntou Sybil. De súbito começou a desconfiar que Cody talvez não passasse de um farsante.

 - Eu sabia que até hoje sua mãe não se conformou com a morte do marido. Achei, por isso, que eu não deveria incomodá-la em sua grande dor com assuntos de negócio. Compreendo agora que foi talvez um erro excluí-la da nossa conversa. Mas isso posso remediar facilmente. Qual é o número do seu telefone?

 - Nós íamos ao teatro esta noite - ponderou Sybil.

 - Talvez seja possível devolver os ingressos e conseguir a restituição do dinheiro. Permita-me que, pelo menos, faça tal sugestão à sua mãe.

Sybil concordou com uma inclinação da cabeça. Podia dar seu consentimento sem perigo, pois sua mãe dificilmente estaria em casa antes das oito horas.

Cody desapareceu atrás do reposteiro. Decorridos cinco minutos, voltou radiante, esfregando as mãos de contente.

 - Está tudo arranjado. O carro já está a caminho. Sua mãe concordou. Ela vai trocar os ingressos para outra apresentação.

Sybil fitou-o com espanto e franziu os lábios com frio desprezo, pois sabia que era mentira. Os ingressos para o teatro não existiam, eles tinham sido uma súbita idéia, um mero produto da sua imaginação, para terminar o mais rápido possível uma visita que absolutamente não lhe agradava. Ele, todavia, acreditara piamente na sua mentirinha de emergência. Obviamente, não houve telefonema nenhum. Era uma mentira descarada. A ligeira aversão que desde o começo sentira no subconsciente, subitamente se transformou em asco.

Mas por que a haviam atraído para este lugar, por que a retinham?

De repente o medo gelou-lhe o sangue. Perigo! uma voz interior a alertava. Perigo!

Sybil descontrolou-se apenas por um breve instante. Por alguns segundos seu coração pulsou descompassadamente, mas quando Cody tornou a olhá-la, ela já readquirira o controle.

 - Fico muito contente por poder ficar - disse, admirada de conseguir falar com voz natural. - O senhor tem uma casa muito confortável.

 - É, não é das piores - disse ele, com ar satisfeito, sentando-se junto dela. - É uma antiga propriedade feudal que ainda hoje pertence ao seu parente. Lord Selford. Eu a arrendei por intermédio do senhor Havelock.

 - Conhece o senhor Havelock? - perguntou Sybil depressa.

 - Não pessoalmente. Tratei do arrendamento e de outros negócios com o chefe de escritório dele. E você... você o conhece?

Sybil abanou a cabeça afirmativamente e disse algumas coisas elogiosas a respeito de Havelock. Em sua mente procurava febrilmente uma solução, uma saída. E se ela lhe pedisse que lhe mostrasse o parque? Uma vez fora da casa, poderia confiar na agilidade dos seus pés. Correria em direção à estrada principal e ao povoado mais próximo, que não podia ficar muito distante. Ainda ontem ela tinha passado pelo vilarejo.

O olhar dela cravou-se na janela.

 - Que bonita vista! - sorriu e, reunindo forças para sustentar-se em pé, levantou-se e chegou até a janela, em frente da qual se estendia um canteiro de narcisos. - O senhor precisa mostrar-me seu belo jardim, senhor Cody. Eu sou uma apaixonada por jardins bem cuidados.

Cody sacudiu a cabeça.

 - Está molhado, por causa da chuva. Os caminhos estão enlameados.

 - Não faz mal - disse ela rindo, e aos seus próprios ouvidos o riso soava falso. - É justamente após uma chuva que eu adoro passear ao ar livre; quando tudo cheira a terra úmida e folhas frescas.

- Muito bem, se faz questão, vamos dar uma volta pelo parque. Mas antes eu gostaria de tomar mais um pouquinho de chá.

Despejou o chá na xícara. Depois, espiando dentro da xícara dela, exclamou:

 - Mais você não tomou quase nada! Seu chá deve estar frio. Espere, vou lhe servir uma xícara quentinha.

 - Não muito agradecida; não quero mais, realmente - recusou Sybil. Tornou para a poltrona. Quase não se agüentava em pé, e ela precisava de todas as suas forças para mais tarde.

Como fora ingênua de confiar nas palavras de uma mulher desconhecida! Sim, tudo soara tão convincente, mas não lhe tinham acontecido, nas últimas semanas, muitas coisas que deveriam ter-lhe servido de alerta?

Sentia a boca seca, seus pensamentos se embaralhavam. Novamente o senhor Cody lhe serviu chá. Desta vez ela não vacilou em aceitá-lo. Dominou seu nervosismo para evitar o tremor da mão, e levou a xícara à boca.

O chá tinha um sabor metálico. "É requentado", pensou, e depois de um gole descansou a xícara sobre a mesa. Talvez fosse a terrível tensão do momento que tornava seu paladar tão sensível.

 - Aguarde um momento, só vou buscar o boné - disse Cody, erguendo-se. Sorriu e passou a mão pela cabeça. - Com esta careca, neste tempo úmido, estou sujeito a pegar um resfriado!

Sybil, emudecida, concordou com um aceno de cabeça. Uma sensação de náuseas paralisava-lhe a língua.

A porta, Cody virou-se mais uma vez.

O rosto de Sybil estava lívido; com olhar vítreo, agarrava-se à borda da mesa.

 - Meu Deus, que está sentindo? - exclamou Cody.

Ela deslizou ao chão, desfalecida.

Arrastando-a e carregando-a, ele transportou a moça até o sofá, colocou uma almofada sob sua cabeça e contemplou-a com ar de triunfo. Em seguida deixou a sala nas pontas dos pés e fechou cuidadosamente a porta atrás de si.

 

Cody encontrou o chofer na varanda. Sentado sobre o peitoril, bamboleando as pernas, fumava calmamente um cigarro; nem se deu ao trabalho de mudar essa posição displicente quando seu patrão se aproximou.

 - Onde está minha mulher? - indagou Cody com voz irritada, rubro de indignação: mas não ousava dizer a Tom Cawler como desaprovava seus maus modos e sua falta de respeito.

 - Não faço a menor idéia. Provavelmente no quarto dela.

 - Suba e avise-a de que preciso falar com ela.

 - Vá você mesmo, ora - retrucou Cawler de mau humor. Tirou o cigarro da boca e esmagou-o sob o calcanhar.

Somente a muito custo Cody conseguiu controlar sua raiva.

 - Então dê um pulo até o povoado e traga-me uns selos postais. Tenho correspondência urgente.

 - Nada feito. Vou ficar aqui mesmo e vigiar ai porta. Onde está a moça?

 - Foi deitar-se. Ela teve um forte acesso de enxaqueca.

 - Engraçado. Parecia muito bem disposta ao chegar Quando volta à cidade?

 - Acho que somente amanhã, Tom. Enquanto isso, ela será nossa hóspede; um acesso como esse que ela teve pode durar até vinte e quatro horas. Eu vim para pedir à minha mulher para mudar a roupa de cama no quarto de hóspedes.

Tom Cawler não respondeu, mas seus olhos irradiavam uma ameaça. Debaixo desse olhar Cody se encolheu, e com o estardalhaço dos poltrões, gritou:

 - Afinal, o que está fazendo aqui na varanda? Apanhando moscas? Vá para a cozinha, que lá é seu lugar! Não casei com você, casei com sua tia!

Tom Cawler enfiou as mãos nos bolsos. Jogando a cabeça para trás, soltou uma gargalhada.

 - É verdade, e com isso fez uma grande tolice, teria feito melhor negócio desposando a avó do diabo!

Cody bufava de raiva.

 - Como se atreve a falar desse jeito da sua única parenta próxima? Perdeu todo o respeito?

Cawler franziu os lábios e esticou o queixo para a frente.

 - Oh, sim, sinto muito respeito... pela torpeza da sua mulher. Nunca em toda a minha vida encontrei alguém tão desumano e infame. Não me interrompa, Cody! Durante sete anos fiquei calado, mas agora chega! Minha tia e eu não descendemos de nenhuma família da qual pudéssemos nos orgulhar. Corre sangue muito ruim em nossas veias. Contudo, não obstante toda sua fortuna, eu não trocaria com a senhora Cody. Ela é avarenta como um dragão que na sua cova choca os seus tesouros. Nas suas mãos sujas o dinheiro gruda como piche. Ela é capaz de vender a alma ao diabo por um xelim. O que não faria em troca de uma fortuna!

Ele cerrou os olhos. Em seguida tornou a abri-los, e Cody recuou assustado ante o ódio que lhe reluzia no olhar.

 - Ela acha que eu lhe devo gratidão. Gratidão por quê? Foi com fome e pancadas que ela me criou - ele riu feroz e estridentemente. - Você alguma vez ouviu falar no meu irmão gêmeo Johnny? Outra noite sonhei com ele, e desde então a imagem dele não me sai da cabeça. Ele era um garotinho de sete anos quando sumiu sem deixar vestígio.

 - Quando morreu - corrigiu Cody à meia-voz.

 - Será que morreu mesmo? A tia o afirma, mas eu não assisti à morte dele.

A sua respiração se tornara ofegante, uma ruga se lhe cravara na testa. Cody recuou até a porta e já levantava a mão para o trinco, quando Cawler deu um pulo e lhe obstruiu o caminho da retirada.

 - Fique onde está e escute o que tenho para lhe dizer! Com meus próprios olhos eu vi a surra que ela deu no menino, sem motivo algum, até ele perder a consciência! Ele caiu ao chão como um saco de farinha. E você acha que morreu de morte natural? A sua mulher deve saber por que morreu, e o dia virá em que terá de responder por isso! Se ela fosse homem, eu saberia o que fazer: quebrava-lhe todos os ossos! Seria o ajuste de contas pelo o qual anseio há anos! E agora vou buscar o carro. Tome muito cuidado, Cody!

Bertram Cody seguiu-o com olhar fixo. O seu rosto estava pálido, os joelhos lhe tremiam, o medo aniquilara-lhe qualquer idéia de resistência. Parando no vestíbulo, enxugou o suor da testa. Em seguida subiu a escada para o primeiro andar e entrou, ofegante, no quarto da esposa. A porta fechou-se com estrondo atrás dele. Duas vozes começaram a discutir, uma esganiçada, a outra grossa e rouca. Algum objeto pesado caiu ao chão. A voz de mulher subiu de tom até tornar-se estridente e finalmente terminou em soluços. Seguiu-se um prolongado silêncio.

Decorrido algum tempo, a senhora Cody saiu do aposento. Os seus olhos estavam inchados de tanto chorar, suas feições desfiguradas, seus lábios apertados. Ela desceu silenciosamente a escada, e, detendo-se diante da sala de estar, reteve a respiração e aplicou o ouvido. Devagarinho, girou a maçaneta.

Sybil, sentada no sofá, apertava a cabeça entre as mãos e gemia baixinho. Os seus olhos tinham uma expressão vazia; era um olhar parado, apático. Ela parecia não estar bem consciente do que se passava à sua volta.

Sem dizer palavra, a senhora Cody agarrou-a no braço e puxou-a. Pôs uma das mãos debaixo da axila e com a outra foi empurrando a moça para a frente. Levou muito tempo para conseguir subir a escada até o andar superior, e mais ainda para galgar os degraus para o sótão.

Parando diante de uma porta tosca, empurrou-a com o pé. Largou Sybil em cima de um catre encostado à parede do cômodo, debaixo do telhado inclinado.

Sybil, de olhos cerrados, não deu acordo de si enquanto a senhora Cody passeava pelo pequeno quarto, mexendo aqui e ali A noite já descera quando esta deu volta à chave do lado de fora. O ruído dos seus passos perdeu-se nos fundos da casa.

Sybil não conseguiu lembrar-se de nada quando finalmente voltou a si, com a cabeça a estourar. As suas veias nas fontes e na testa latejavam de dor. Com um gemido sentou-se. Junto ao leito de ferro havia uma mesinha-de-cabeceira, e sobre ela um abajur que espalhava uma luminosidade mortiça. Ao lado do abajur estava um copo com água. Ela pegou o copo sofregamente e, descobrindo um vidrinho com alguns comprimidos de aspirina, instintivamente pôs dois na boca e tragou-os com um gole de água.

Depois ficou novamente deitada por algum tempo sem se mexer, sentindo o pulsar do sangue que ameaçava rebentar-lhe as veias. Aos poucos a intensidade das pulsações e do zumbido nos ouvidos diminuiu e de súbito dissipou-se a névoa que lhe turvara o cérebro. No espaço de um segundo lembrou-se de tudo que lhe sucedera. O medo apertou-lhe o coração ao se dar conta da sua situação desesperadora. Devagarinho aprumou-se. Entretanto, os seus olhos ainda não tinham readquirido plenamente a faculdade perceptiva, os ângulos entrecruzavam-se. Sucumbindo a uma sensação de vertigem, perdeu de novo os sentidos.

Entretanto, também isso passou. As distorções corrigiram-se, os objetos tornaram-se distinguíveis, e ela viu que se encontrava numa água-furtada. Um armário pesado de cor marrom, ocupava completamente uma das paredes. Havia uma jarra e uma bacia de louça sobre uma mesinha, além da cadeira junto do leito. Um velho tapete cobria o soalho.

Fazendo um esforço, Sybil saltou para o chão e, cambaleante, dirigiu-se para a porta cuja borda inferior terminava alguns centímetros acima do chão. Sacudiu o trinco; a porta estava trancada. Ela levantou os olhos para a janelinha no forro, que ficava tão alta que da teve de trepar na cadeira para tocá-la. Erguendo o abajur, iluminou a vidraça suja de poeira.

Levou muito tempo para abri-la. Quando finalmente o conseguiu, suas esperanças de encontrar uma via de fuga ficaram frustradas. Uma grade de ferro protegia o postigo do lado de fora, com barras tão apertadas que não dava nem para passar a cabeça por ali, portanto, não era possível sair.

De súbito parecia-lhe ouvir o ruído de pés subindo a escada. Apressadamente fechou a janela, pulou da cadeira e recolocou-a junto da cama. Do lado de fora alguém fez deslizar o ferrolho, enfiou a chave na fechadura e deu duas voltas.

Entrou Cody, trazendo nas mãos uma pasta de cartolina. A sua fisionomia denotava preocupação.

 - Mas, filhinha - principiou a atravessar o umbral - Que susto nos deu! Esses seus acessos são freqüentes?

Ela encarou-o fixamente. Num relâmpago compreendeu as intenções dele.

 - Acessos? Que acessos? - perguntou devagar.

 - Bem... para não usar uma palavra mais rude - replicou, agora com alguma frieza na voz. - Eu não estou querendo culpá-la, absolutamente! Os filhos sempre pagam pelos pecados dos pais. Por acaso é hereditária a epilepsia em sua família?

O descaramento descomunal do obsequioso homenzinho a revoltou. Ela não respondeu.

 - Naturalmente não posso afirmar tratar-se de convulsões epilépticas - prosseguiu Cody. - Para julgar isso, faltam-me os conhecimentos psiquiátricos. Contudo, acho que é epilepsia: senão como explicar as contorções e gritos sem qualquer motivo exterior?

Sybil fez força para dominar-se. Teve ganas de estrangular esse patife. "Calma, calma!" pensou consigo. Devia tomar cuidado para não piorar ainda mais a sua situação.

 - Não me lembro absolutamente de contorções e gritos - disse, num fio de voz.

Cody descansou a pasta sobre a mesa e retirou dela uma folha de papel, balançando a cabeça com tristeza, como um mandarim chinês.

 - Já esperava por isso... perda parcial da memória! Primeira fase da epilepsia, depois sobrevirão os acessos de fúria.

Sybil cerrou as mãos com tanto ódio que as unhas chegaram a ferir-lhe as palmas das mãos. Ela aprumou o corpo.

 - Saia do meu caminho! - disse. - Quero ir-me embora daqui.

Cody postou-se diante da porta.

 - Calma, minha jovem. Antes há algumas formalidades a preencher.

Sacando uma caneta-tinteiro do bolso do colete, pôs-se a desatarraxar cerimoniosamente a tampa. Em seguida alisou com a mão uma folha de papel.

 - Ficará livre se assinar isto - disse, apontando o dedo para a folha sobre a mesa.

Ela estendeu a mão para o papel, mas ele rapidamente o recolheu.

 - Espero que compreenda: - disse em tom professoral, sem encarar a moça de frente - que com a sua histeria me deixou numa situação embaraçosa e sumamente desagradável. Eu a convido para uma discussão importante, e logo às primeiras palavras você entra em convulsões e começa a gritar e a rolar no sofá. Eu carrego-a nos meus braços até este quarto e fecho a porta para protegê-la de si mesma. Uma mãe não poderia fazer mais pela própria filha. Até aí, tudo bem... mas minha mulher, com toda a razão, acha que mocinhas histéricas às vezes sofrem de estranhas alucinações. "Quem sabe" disse ela, "se a senhorita Lansdown não vai alegar que pusemos veneno no seu chá e que a retivemos aqui contra a sua vontade. Como poderíamos mais tarde nos defender contra semelhantes acusações? Talvez não acreditassem em nós!" Por via de regra os promotores têm a mania de esperar sempre o pior dos seus concidadãos. Peço-lhe, pois, que não me leve a mal se procuro prevenir-me contra tais possibilidades. Por isso redigi uma declaração que nos defenderá contra eventuais calúnias posteriores. Aponha-lhe sua assinatura, e meu carro a levará para casa imediatamente

 - Mas o senhor não disse que minha mãe já vinha para cá? - perguntou Sybil, não podendo reprimir a vontade de desfechar-lhe essa bordoada. Mas Cody estava preparado para essa observação.

 - Tornei a telefonar e pedi-lhe que não viesse mais - contestou habilmente. - O carro ainda não voltou, mas deve chegar a qualquer momento.

 - Posso ler o documento? - perguntou ela.

 - Para quê? É pura perda de tempo. Tenho pressa. Assine!

 - Mandar que eu mesma ateste a minha insanidade mental, é exigir muito! - replicou ela, dando um passo para trás.

 - Absolutamente não se trata disso. Só quero um documento assinado pelo seu punho declarando que não lhe foi causado nenhum mal; que, ao contrário, foi bem tratada durante a sua permanência nesta casa.

 - Sendo assim, por que não posso lê-lo?

 - Simplesmente porque nenhuma mulher consegue entender direito a fraseologia jurídica. Você não compreenderia uma porção de coisas, o que motivaria mal-entendidos e exigiria demoradas explicações. Vamos com isso, tenho o que fazer! Não posso ficar aqui esperando pelo resto da minha vida! Você já me causou muitos aborrecimentos. Minha mulher ficou tão nervosa que teve de se recolher ao leito. Preciso ir ao povoado e chamar o médico.

Com um gesto de impaciência estendeu a caneta para Sybil.

Ela aproximou-se da mesa e viu que era um documento extenso, datilografado. Ao notar a curiosidade dela, Cody, mais que depressa, cobriu o texto com a mão; com a outra indicou o lugar onde ela deveria assinar: Já se aprestava ela para fazê-lo, movida pelo desejo de obter a liberdade, fosse qual fosse o preço a pagar, quando conseguiu ler, entre os dedos da mão espalmada, a seguinte linha:

"Caso a referida Sybil Lansdown venha a falecer antes do referido Bertram Cody, a..."

 - Não - disse, com calma e firmeza. - Eu tenho por princípio não assinar nada que eu não tenha antes lido e examinado.

Diante dessa resposta, caiu a máscara do seu anfitrião. O seu maxilar inferior mexeu-se sob a pele encarquilhada, seus beiços entreabriram-se, deixando à mostra os dentes amarelados, os olhos entrecerraram-se. Já não era mais aquele senhor jovial e bem-falante de horas antes; agora se transformara no malfeitor contumaz e incorrigível que não recua diante de nenhuma torpeza, por mais infame que ela seja.

 - Assine, ou vai se arrepender! - gritou, fulo de raiva.

 - Não assino. Não adianta insistir – respondeu-lhe ela com frieza.

Ele pegou a folha de papel e recolocou-a na pasta com um gesto irado.

Era o momento pelo qual ela esperara. Com um pulo alcançou a porta. A sua mão já tocava o trinco, mas neste momento ele agarrou-lhe o pulso e arremessou-a para trás, com tanta violência que ela se estatelou no chão.

Fitando-a com ar zombeteiro, ele já não se dava mais ao trabalho de fingir.

 - Vai ficar aqui até amansar, benzinho. Posso esperar. Se você também o pode, é outro problema. Se a sua inteligência não lhe indica o único meio para salvar-se, a fome certamente o fará!

E fechando a porta atrás de si, deu volta à chave. O rumor dos seus passos esmoreceu à distância. Sybil estava sozinha.

Durante algum tempo sentia-se tonta e não conseguia refletir com clareza. Depois, controlando os nervos, tentou avaliar a situação. A esperança dela era Dick Martin. Ele era o único com quem podia contar. Ele, com toda a certeza, iria encontrá-la antes que a fome lhe minasse a resistência.

O mais importante no momento era inventar um meio para impedir Cody de penetrar no quarto enquanto ela dormia.

Ela tentou empurrar o armário contra a porta, mas achou-o pesado demais. Empurrou então a mesa e colocou em cima dela a jarra, bem debaixo do trinco que, desta maneira, não podia ser movido. Feito isso, exausta, no limite das suas forças, jogou-se sobre o colchão. O sono rodeava-a como uma pantera. Ela fez tudo para resistir. Desesperada, ela se pôs a relembrar poesias, o alfabeto, as quatro operações, sem sucesso. No meio de uma multiplicação, os seus pensamentos se confundiam e tudo se dissolveu num grande vácuo.

Ela acordou com um sobressalto, o coração batendo furiosamente. Apesar do sono profundo, o seu ouvido, seu fiel guardião, percebera um ruído de passos do lado de fora e o transmitira ao cérebro. Seria Cody novamente, para torturá-la, para insistir com ela? Bem, ela estava preparada; enfrentá-lo-ia com a cadeira. Venderia cara a sua vida. Entretanto, o ruído cessou. Por longo tempo tudo ficou em silêncio. De repente, porém, ressoou pela casa um baque surdo, como se um corpo tivesse tombado ao chão. Um homem começou a berrar, duas três vezes. Parecia que móveis estavam sendo desmantelados. Ela aplicou o ouvido, os nervos tensos, a mão apertada contra o peito, o sangue pulsando forte.

Agora outro grito, alto e pungente, como o de uma besta selvagem aterrorizada... um grito que gelava o sangue de quem o ouvia. E outro, mais baixo e gutural, impregnado de sofrimento e dor.

Sybil agarrou-se com ambas as mãos à barra da cabeceira da armação de ferro da cama, tão horrorizada que durante um momento quase desmaiou. Sentiu o seu coração se confranger e a testa gotejar de suor frio. Mas como os gritos não se repetiram mais, as suas pulsações voltaram lentamente ao normal.

Acercou-se novamente da porta para escutar melhor. Chegavam-lhe aos ouvidos, de longe, fracos soluços; depois tudo ficou em silêncio durante uns dez minutos, que lhe pareceram os momentos mais angustiantes passados naquela casa de terror.

Subitamente ouviu de novo o rumor de passos na escada e em seguida no corredor, bem em frente à porta. Coisa estranha... tratava-se de alguém que andava descalço. Agora os pés estacaram. Sybil escorregou devagarinho da cama, agarrou a cadeira com ambas as mãos e recuou até a parede oposta à porta. Cerrou os dentes para reprimir o grito prestes a irromper-lhe da garganta.

Do lado de fora, uma mão pousou no trinco e tentou abaixá-lo, o que não conseguiu graças às precauções tomadas por Sybil. Seguiu-se outro momento de silêncio, só quebrado pela respiração alterada da moça. Depois duas mãos martelaram a porta, que estremeceu, mas não cedeu. Fosse quem fosse que tentava invadir o quarto, ele não possuía outra ferramenta senão os próprios punhos.

Ela ouviu um barulho à altura do chão e baixou os olhos com um sobressalto. No momento seguinte, com os olhos espavoridos, levantou a mão à boca para sufocar um grito de pavor. Entre a porta e o soalho apareceu o dedão deformado de um pé de gigante. Em seguida surgiram três dedos de uma mão ensangüentada, e depois duas mãos assassinas agarraram a porta por baixo no intuito de arrancá-la das dobradiças. Diante disso, toda a idéia de resistência parecia inútil a Sybil. A sua boca abriu-se num prolongado grito de desespero. Era preciso fugir! Fugir!

Pulou em cima da cadeira. Neste momento de pânico só a dominava um pensamento confuso: saltar pelo postigo que dava para o telhado. Esquecera-se da grade que vedava a passagem. Mas assim que seus dedos tocaram a tranqueta, recuou e apertou as mãos contra a boca, apavorada. Por trás das barras de ferro apareceu um rosto desfigurado que a espreitava... um rosto lívido, reluzente de suor.

 

O inspetor Sneed, que compartilhava a opinião de Dick Martin de que os inimigos desconhecidos do detetive não ousariam levar a cabo outro atentado depois do malogro da primeira tentativa, retirou o policial que havia destacado para guardar o apartamento de Dick, de modo que este, ao voltar tarde da noite, achou seus aposentos estranhamente vazios. Durante a tarde estivera na biblioteca, supostamente como leitor, na verdade, porém, porque sentira saudade de Sybil. Ficara muito desapontado quando a colega de Sybil lhe dissera que uma senhora tinha vindo buscá-la de automóvel.

Ele pegou um livro e pôs-se a ler, mas não conseguia concentrar-se na leitura. As letras se embaralhavam diante dos seus olhos formando o nome "Sybil", e seus pensamentos giravam em volta do mistério das sete chaves em que ela estava de alguma forma envolvida.

Finalmente sentiu sono. Levou o telefone para o quarto e foi-se deitar. Durante alguns minutos lembrou-se do monstro que por pouco não o estrangulara na cama e um arrepio percorreu-lhe a espinha.

Ele fechou os olhos e ficou meio acordado, meio adormecido, num estado de semi-consciência.

Sentou-se na cama com um sobressalto. O telefone tilintava com insistência, bem junto do seu ouvido. Ele pegou o receptor, e com a outra mão acendeu a luz.

 - Alô - falou.

 - Interurbano. Queira aguardar - respondeu uma voz de mulher.

Ele ouviu alguns estalos na linha, depois tudo ficou em silêncio. Mas, de repente...

 - So... cor... ro! As... sas... sino! So... cor... ro! - gritava alguém, e novamente: - So... cor... ro! Querem me matar!

A mão de Dick que segurava o fone, começou a tremer. Alguém precisava da sua ajuda. Mas aqui estava ele sem poder fazer nada, a grande distância do lugar onde alguma coisa terrível estava acontecendo.

 - Quem está falando? - perguntou com voz rouca.

Ninguém respondeu.

 - Quem fala? – ele elevou a voz. - Pelo amor de Deus, responda! Senão, como posso ajudar-lhe?

A resposta foi um grito, uma pancada surda, um longo gemido.

 - Quem é? - gritou Dick, sacudido pela emoção. - Quem é? De onde está telefonando?

Subitamente voltou a voz. Ela balbuciou uma palavra. A palavra transformou-se num grito de angústia mortal, que se extinguiu em soluços.

Depois a voz se distanciava, como que sendo afastada do aparelho à força, e só chegava aos ouvidos de Dick muito enfraquecida:

 - Não me toquem! Tenho relações... com a polícia! Eu denuncio vocês! So.. cor... ro! So... cor... ro!

Um estampido interrompeu os gritos.

Dick deu pancadinhas na forquilha do aparelho. Após alguns segundos, que lhe pareceram uma eternidade, respondeu a voz da telefonista interurbana.

 - A senhorita pode verificar de quem foi a chamada?

 - Creio que veio de Sussex. O senhor tem alguma razão especial para pedir uma verificação?

 - Uma razão especialíssima. Foi um pedido de socorro. Alguém, que me conhece, está sendo atacado e parece encontrar-se em perigo de vida.

 - O seu nome, por favor.

 - Dick Martin, de Scotland Yard.

 - Seu número de telefone?

Dick forneceu o número.

— Obrigada. Queira desligar agora. Nós voltaremos a chamá-lo.

Dick Martin descansou o fone e saltou da cama. Ele sabia distinguir a mentira da verdade e tinha plena certeza de que, neste caso, a pessoa que lhe havia telefonado estava ameaçada de morrer. Se bem que a voz não lhe parecesse de todo estranha, não conseguia identificá-la. Quando calçava os sapatos, o telefone tornou a tocar.

 - Aqui o serviço interurbano. O chamado veio de South Weald, Sussex.

Dick ficou um momento como que petrificado. Letras acenderam-se à sua frente como num anúncio luminoso, formando a palavra "Cody".

Cody era o arrendatário de South Weald House e tivera uma conversa com ele. Decerto esperara que as suas relações com o temido detetive pudessem deter os assassinos, mas essa esperança frustrara-se. O seu grito de morte testemunhara isso de um modo sinistro.

 

Dick precisou de alguns segundos para acalmar-se; depois deu à telefonista do serviço interurbano as necessárias explicações e pediu-lhe que informasse o posto policial mais próximo de South Weald House do que estava ocorrendo.

Em seguida discou o número do inspetor Sneed. Ele podia ajudar. A questão era tirá-lo do sono. O tilintar da campainha de telefone talvez não fosse bastante alto para acordá-lo.

Para seu espanto, Sneed atendeu imediatamente.

 - É você, Martin? Mas será possível? Está interrompendo a minha melhor partida de bridge. Estou "limpando" alguns colegas do quartel-general. Eles são verdadeiros bebês... - ergueram-se, ao fundo, algumas vozes de protesto. - Que é que há, vocês acham que entendem mais de bridge do que uma criancinha de chupeta?

Dick perdeu a paciência.

 - Pare com essas bobagens, Sneed. Trata-se de um assunto urgente. Cody me telefonou. Ele estava sendo atacado. Há assassinos na casa dele!

E explicou como ficou sabendo disso.

 - Isso não está me cheirando bem - disse Sneed, subitamente sério. - Vamos até lá! Vou chamar um táxi.

 - Não, eu vou buscá-lo. Com meu carro será mais rápido.

 - Está bem. Martin. Nós vamos ao seu encontro. Espere por nós debaixo do viaduto. O inspetor Elbert e o sargento Staynes irão comigo.

 - Ótimo. Vamos precisar de gente, receio.

Dick desligou, satisfeito com a ajuda que acabava de conseguir. Apanhou a capa e precipitou-se para a porta. Quando a abriu, recuou, espantado. Uma mulher de rosto pálido estava erguendo a mão para o botão da campainha.

 - Senhora Lansdown! - exclamou Dick. Sybil! Sentiu um frio correr-lhe pelo corpo.

 - Não sei mais o que fazer - queixou-se ela. Minha filha desapareceu.

 - Faça o favor de entrar - disse Dick, com o coração batendo descompassadamente. - Conte-me o que aconteceu, com todos os detalhes. Cada pormenor pode ter importância.

A senhora Lansdown não tinha muito para relatar. Ao chegar em casa, por volta das oito horas, Sybil não estava. Até as dez ela não se preocupara com isso. Então resolvera telefonar para a amiga que Sybil às vezes visitava depois do expediente. Esta não a tinha visto havia dias. Um segundo e um terceiro telefonema, para outras conhecidas, também não deram resultado. Mais tarde conseguira falar com a colega de trabalho de Sybil. Esta lhe fornecera finalmente uma pista. Uma mulher desconhecida convidara Sybil para um passeio de automóvel. Quem era essa mulher? A mãe não conseguia atinar. A meia-noite Sybil continuava sumida.

Dick escutou com toda a atenção, procurando disfarçar a sua aflição.

 - Essa colega forneceu-lhe uma descrição da mulher?

A senhora Lansdown acenou afirmativamente e deu-lhe algumas indicações. Antes de terminar, o coração de Dick quase parou. Ele conhecia essa senhora ossuda, perfumada, que a princípio tomara por uma governanta simplória. Era a senhora Cody.

 - Meu Deus, o senhor sabe alguma coisa?

 - Dentro de duas horas saberemos de tudo - respondeu Dick, fingindo calma. - Quer esperar aqui mesmo, até eu lhe telefonar?

 - Não, não! Acho melhor voltar para casa. Afinal, é possível que o desaparecimento de minha filha fique explicado de um momento para outro. Ela pode chegar em casa e ficaria muito assustada se não encontrasse ninguém. Mas vá, senhor Martin, vá! Não se preocupe comigo. Eu me arranjo sozinha, meu carro está me esperando em frente do prédio.

Não havia um minuto a perder. Dick seguiu-lhe o conselho e desceu a escada antes dela. Abriu a porta da garagem, pulou dentro do carro e partiu. Sentiu-se um pouco melhor ao escutar o ruído do motor e as rodas rolarem pelo asfalto. Cada segundo o aproximava agora do local dos acontecimentos.

Debaixo do viaduto da estrada de ferro três vultos agasalhados o esperavam.

 - Entrem, depressa! - gritou-lhes Dick.

Sneed sentou-se ao lado dele.

Dick ficou de olhos fixos na rua deserta, iluminada pelos faróis.

 - A senhorita Lansdown desapareceu - disse entre os dentes. - Eu receio...

Calou-se por um momento para fazer uma curva fechada.

Com a pista novamente livre à sua frente, expressou em palavras secas os seus terríveis temores. Em seguida permaneceu calado por algum tempo, com os lábios apertados.

 - A esta altura a polícia de Sussex já deve estar em South Weald - comentou afinal, e a sua voz exprimia ao mesmo tempo esperança e dúvida

Sneed sacudiu a cabeça.

 - Se eu fosse você, não contava com isso, Martin. Você nem imagina como é atrasada a organização policial nos distritos rurais. É bem possível que o posto mais próximo nem possua telefone, ou, se possuir, que o aparelho esteja quebrado; ou então, que o posto local de serviços telefônicos não esteja funcionando a esta hora, porque fecha às dez. Mesmo admitindo que a polícia recebeu a comunicação, é pouco provável que o policial do povoado vá saltar da cama e tomar providências. Ele cinge-se rigorosamente ao regulamento e só vai agir se o pedido de socorro for formalmente confirmado. Nem nós sabemos ao certo se Cody falou a verdade. Quem sabe, talvez queiram apenas armar-lhe uma cilada?

Dick não pôde responder imediatamente, pois um pesado caminhão vinha em direção contrária.

 - Não - comentou afinal. - Não foi uma farsa. Não foram gritos simulados.

Durante o quarto de hora seguinte guardaram silêncio.

 - Não estamos aqui perto do tal "Átrio do Patíbulo"? - indagou Sneed subitamente, pondo a cabeça para fora do carro.

 - A esquerda - confirmou Dick.

O muro em ruínas surgiu da escuridão, iluminado pela luz crua dos faróis. O portão pendia dos gonzos mais torto do que nunca. As árvores erguiam-se contra o céu, recortadas pela lua. Logo a seguir tudo isso afundou novamente no abismo da noite, o carro continuou avançando em alta velocidade.

 - Um fantasma, uma sombra, toda essa história Selford - observou Sneed, com ar meditativo. - Quando a gente pensa que vai agarrar alguma coisa, a mão se fecha num vácuo. - E após pequena pausa acrescentou; - Gostaria de saber se ele tem culpas no cartório.

 - Ele! quem? - perguntou Dick.

 - Ora, o lorde! Por que ele viaja sem parar em torno do globo terrestre, como um segundo judeu errante? Para escrever um livro? Para conhecer povos e países? Não me venha com essa! Todo jovem par do Reino tem o desejo natural de brilhar, antes de tudo, na própria Inglaterra. Se ele fosse um inofensivo "globetrotter", que interesse poderia ter ele de evitar qualquer investigação a seu respeito mediante constantes mudanças de endereço? Lembre-se que você foi atrás dele durante oito meses e nunca conseguiu vê-lo cara a cara.

 - Ele não, é verdade, mas seu retrato, sim.

Sneed teve um sobressalto. A luz do painel Dick notou-lhe o olhar cintilante.

 - Mil raios! E só agora me diz isso?

Dick continuou impassível.

 - Que valor tem um simples retrato?

 - Não diga uma coisa dessas! Tendo o retrato, a gente tem a pista do criminoso, e metade do trabalho está feito.

 - No caso presente, se realmente se trata de um criminoso, ele pertence à mais alta nobreza da Inglaterra.

Com um gesto, Sneed deu a entender que pouco se importava com isso.

 - Conte-me - insistiu. - Como foi que conseguiu o retrato? Foi Havelock quem lhe deu a foto?

 - Não - replicou Dick. - Foi graças a um feliz acaso. Lord Selford encontrava-se na Cidade do Cabo quando o novo Governador Geral chegou para tomar posse. Por curiosidade ele foi à sacada do seu quarto de hotel, justamente no momento em que um fotógrafo de jornal bateu a chapa. Quando, três dias mais tarde, pedi ao porteiro do hotel que me fornecesse uma descrição de Lord Selford, ele me mostrou a foto publicada no jornal. Eu me dirigi imediatamente à redação, pedi o negativo emprestado e mandei fazer uma ampliação.

 - E que tal ele? - perguntou Sneed, retendo a respiração.

 - Uma cara comum - foi a resposta insatisfatória de Dick. - Acontece, porém, que tive a impressão de já tê-la visto antes em algum lugar.

Calou-se, concentrando-se no volante. Tinham chegado ao povoado de South Weald. As pacatas casinhas à margem da larga estrada que atravessava o bucólico lugar dormiam no silêncio da noite. O luar refletia-se nas vidraças das janelas escuras. Vez por outra um cão latia.

O automóvel deteve-se diante do prédio da polícia local que, atrás de uma janela com grades, abrigava uma minúscula cela para presos. Pancadas na porta e muitos gritos, e finalmente a cabeça desgrenhada de uma mulher, ainda meio tonta de sono, assomou à janelinha da água-furtada.

Não, ela não sabia de nenhum chamado de socorro. O marido havia saído ao meio-dia com o guarda florestal, em busca de caçadores clandestinos. O posto não possuía aparelho telefônico. Para quê? Desde tempos imemoráveis nunca tinha acontecido nada que pudesse justificar a despesa de semelhante invenção. Mas ela teria muito prazer em transmitir ao marido qualquer recado que lhe dessem.

Aparentemente os agentes da polícia londrina não a impressionavam muito.

Sneed encarou Dick com ar de triunfo, pois mais uma vez tivera razão. Fez comentários que se perderam no ruído do carro que arrancou e correu velozmente pela estrada, freando bruscamente diante da entrada de automóveis de South Weald House.

Dick pôs-se a premer a buzina em intervalos regulares, mas ninguém apareceu. Finalmente apeou e examinou o portão. Só estava fechado por um velho ferrolho corrediço. Dick empurrou-o e o portão abriu-se devagarinho. Ele enganchou as duas batentes e voltou ao volante. As rodas do carro crepitavam no saibro do caminho. Subitamente surgiu diante deles a fachada de casa com a escadaria e o pórtico.

O automóvel parou. Quatro pares de olhos perscrutaram a fachada.

Nenhuma das janelas estava iluminada. Um silêncio total envolvia o prédio.

Dick puxou a campainha, cujos sons alegres retiniram no interior. Esperou um minuto. Tocou pela segunda e terceira vez, sempre com o mesmo resultado negativo. O seu ouvido apurado não escutava um só ruído.

Em seguida todos juntos martelaram a porta com os punhos, e depois se puseram a atirar pedrinhas contra as janelas do andar de cima. Mesmo assim, nada se mexeu.

 - Se não querem abrir, vamos ter de quebrar alguma vidraça - disse Sneed, relanceando o olhar pela fachada. As janelas do andar térreo estavam todas guarnecidas de grades.

Dick apontou para duas janelinhas decorativas sem grades, que ladeavam o portal de ambos os lados.

Sneed fez um aceno negativo com a cabeça.

 - Quem conseguiria passar por ali?

 - Eu - retrucou Dick laconicamente.

 - Você? - o inspetor mediu-o da cabeça aos pés. - Se fosse um garotinho de cinco anos, eu ainda admitia essa possibilidade, mas assim... ?

 - Quer apostar? - perguntou Dick.

Voltou correndo para o automóvel e mexeu na caixa de ferramentas. Tornou com uma chave de fenda. Raspando a tinta do caixilho, desaparafusou este. Decorridos uns cinco minutos, conseguiu retirar a vidraça incólume. Ajudado por Elbert e Staynes, enfiou o corpo pela abertura. Contorcendo-se como uma cobra, contraiu os ombros, e ao sentir o chão debaixo dos pés, recolheu a cabeça com cuidado. Afora um arranhão na orelha, não sofrera nenhum dano.

Sneed assistira a tudo de boca aberta.

Uma vez dentro da casa, Dick endireitou o corpo e levantou os olhos, procurando perscrutar a escuridão. Ouvia-se o tique-taque cadenciado de algum relógio de parede. Era como o coração batendo ainda num corpo já sem vida. Dick dominou o terror que o assaltava das negras trevas da casa como uma fera e pôs-se a avançar lentamente, tateando o caminho.

De repente teve um momento de recuo. Um cheiro peculiar ferira-lhe o apuradíssimo olfato. Ele sacou e acendeu a lanterna de bolso. Uma corrente e dois ferrolhos fechavam a porta. Ele abriu-a, tirando a corrente e empurrando os ferrolhos.

Trocando um olhar com Sneed, disse:

 - Os facínoras já fizeram seu trabalho aqui. A casa toda cheira a sangue!

 - A sangue? - perguntou Sneed, aspirando o ar pelas narinas. - Não sinto cheiro nenhum!

Fitou com ar desamparado os colegas, que relanceavam olhares apavorados em torno. Entrementes, Dick tateava em busca de um interruptor. Acabou descobrindo uma chave geral e abaixou a alavanca. Uma lâmpada acendeu no vestíbulo, outra iluminou o patamar da escada. Onde ficavam as demais lâmpadas ligadas à chave ainda não se sabia.

Os olhos dos homens vasculharam o vestíbulo e a escada que conduzia ao primeiro andar. Abruptamente. o inspetor Sneed agarrou o braço de Dick.

 - Quem... quem... - gaguejou, olhando fixamente para cima.

Quando Dick seguiu-lhe o olhar, pôde distinguir, agachado por trás do corrimão da escada, a sombra de um vulto humano que, com os braços apoiados nos joelhos, os espreitava, sem se mexer. No primeiro momento Dick não tinha nenhuma explicação para aquela aparição sobrenatural e seus olhos se arregalaram: mas a compreensão veio logo, e ele sacou o revólver. A lâmpada do primeiro patamar estava afixada na parede a pouca altura do chão e se achava às costas do vulto acocorado, de modo que sua sombra se projetava em tamanho normal e sem distorção sobre a parede oposta.

Dick subiu a escada correndo. A sua sombra o acompanhava, sumiu por um instante e reapareceu nitidamente ao lado do vulto imóvel.

A sua voz soou fraca e apertada:

 - Venha até aqui, Sneed.

O inspetor subiu um pouco mais devagar. Ao atingir o primeiro patamar, voltou-se. Outra série de degraus conduzia à escuridão do andar superior. Todavia, ele não deu mais nenhum passo. Ficou parado como que petrificado.

Lá de cima, uma cara branca com as pupilas horrivelmente reviradas o encarava fixamente. Era o rosto ossudo de uma mulher envelhecida, vestida de preto. Nas suas feições havia a expressão de um pavor tão intenso, como se ela tivesse visto a máscara de Medusa.

 

 - Morta, não é? perguntou Sneed ao amigo, subindo com passos pesados os últimos degraus.

Dick acenou a cabeça afirmativamente. Sneed inclinou-se e descobriu o que mantinha o corpo da mulher tão ereto. Ela estava ajoelhada sobre uma arca acolchoada encostada ao corrimão e premera o corpo contra a balaustrada de modo que o afrouxamento dos músculos não alterara a posição dos membros; apenas a cabeça derreara sobre o peito.

Com cuidado deitaram a mulher no chão e a examinaram. Em lugar algum encontraram sinais de violência, mas todo o calor já lhe fugira das veias.

 - Ataque cardíaco - concluiu Sneed. - Por susto, provavelmente. Já vi outros casos destes. A mulher deve ter ouvido ou visto alguma coisa horripilante.

 - O que é isso que ela tem na mão? - perguntou Dick subitamente, e separou os dedos da morta.

Um objeto duro caiu ao chão com um leve som metálico. Dick apanhou-o.

 - Sneed! - exclamou, erguendo algo prateado na meia claridade da luz.

Sneed olhou fixamente para sua mão.

 - A terceira chave para a porta subterrânea - disse Dick baixinho, sua voz tremendo de excitação

Sem dizer nada, os dois trocaram um olhar. Estavam eles diante da solução, ou era aquilo apenas mais uma etapa ?

Dick enfiou a chave no bolso. Notando que Sneed examinava a parede em busca de fios, perguntou:

 - Está querendo descobrir onde se encontra o telefone? Eu sei, pois eu o vi quando aqui estive pela primeira vez. Está na biblioteca, pegado à sala de estar.

Nenhum dos dois tinha a coragem de pronunciar o nome Cody.

Dick já fazia menção de descer novamente a escada, quando sua mão, que deslizava pelo corrimão, de repente se contraiu.

 - Meu Deus, veja ali!

Apontou para a passadeira cinza-escura que forrava os degraus. No círculo luminoso da lâmpada via-se uma mancha sinistra.

O que era aquilo?

A impressão vermelha de um pé descalço!

Dick inclinou-se e tocou a mancha com o dedo.

 - Sangue - disse, com voz rouca. - Meu olfato não me enganou, afinal. O pé deve ter pisado numa poça de sangue. A passadeira está ensopada.

Eles encontraram outras pegadas iguais nos degraus inferiores, e quanto mais perto chegavam do pé da escada, mais nítidas elas se tornavam.

 - Ele subiu a escada de dois em dois degraus, às vezes até de três em três - concluiu Dick. - Se olharmos bem, vamos encontrar a trilha também no vestíbulo.

O assoalho do vestíbulo consistia em tábuas lisas envernizadas, cobertas de tapetes da Pérsia de tonalidade vermelha-escura, sobre os quais se tornava difícil distinguir manchas. Contudo, procedendo a um exame minucioso, acharam também aqui as pegadas sinistras. Elas conduziam para uma porta cujo trinco não conseguiram mover.

 - Uma fechadura de mola - explicou Sneed. Engata automaticamente quando a porta é fechada.

 - O que haverá no aposento do lado oposto?

Foi fácil abrir aquela porta. Uma claridade ofuscante fez os homens pestanejarem. Desconfiado, Dick contraiu as sobrancelhas, mas logo se lembrou de que ele mesmo havia ligado todas as luzes da casa ao mexer na chave geral.

A peça servia, obviamente, como sala de jantar. A mesa de refeições estava vazia, as cadeiras alinhadas. Um telefone estava sobre o aparador.

Retornaram para a porta fechada. Era ela que revelaria o mistério.

Dick levava no carro, entre outras ferramentas, um macaco. Este resolveu o problema, depois que falhara também o pé-de-cabra. Colocando-o sobre a mesa comprida do vestíbulo, enfiou a alavanca, e a porta foi arrombada.

Dick viu à sua frente a biblioteca aonde a senhora Cody o conduzira por ocasião da sua primeira visita. Também aqui as lâmpadas do teto estavam acesas. O olhar de Dick dirigiu-se para a escrivaninha. O fone pendurava do fio, encostado ao chão. Com dois pulos Dick penetrou no aposento. Sneed seguiu-o mais devagar.

Neste momento todas as luzes se apagaram. Novamente viram-se rodeados de trevas.

 - Alguém mexeu na chave? - gritou Sneed em direção ao vestíbulo.

 - Não. senhor - respondeu a voz respeitosa do sargento Staynes, que montava guarda junto da porta.

Dick premeu o botão da sua lâmpada de bolso e dirigiu o feixe de luz para o chão. No centro da peça estava, colocado obliquamente, um enorme sofá de couro. Contornando-o, a luz da pequena lâmpada incidiu sobre uma figura humana encolhida que não se movia mais.

Era Bertram Cody, e a morte havia-o alcançado de maneira horrenda. Estava deitado com os joelhos dobrados e a espinha curvada. A sua cabeça pousava numa poça de sangue coagulado. A abóbada craniana havia sido completamente esmagada por meio de violentos golpes.

Puseram-se a procurar a arma com que os golpes tinham sido desfechados e encontraram um pesado tiçoeiro junto da lareira, manchado de sangue.

Todas as gavetas da escrivaninha estavam abertas e vazias. O assassino não deixara nenhum papel. As portas dos armários de livros estavam escancaradas, os livros espalhados no chão. Também aqui alguém, obviamente, procurara documentos comprometedores.

Sneed calçou um par de luvas brancas, de algodão, que sempre trazia consigo, levantou com curiosidade o tiçoeiro e depositou-o sobre a escrivaninha. Depois confabulou com o inspetor Elbert, que em seguida se dirigiu à sala de jantar para telefonar.

 - Ele está falando com a Scotland Yard - esclareceu Sneed ao amigo. - As impressões digitais no tiçoeiro devem ser fotografadas sem demora. Além disso, precisamos da assistência da polícia local, o caso é muito mais grave e complicado do que eu imaginava.

Com a ajuda da lâmpada de bolso eles esquadrinharam todas as paredes e acharam finalmente uma porta que dava para uma arejada copa. Aqui, pelo jeito, servia-se o desjejum, pois em cima de um delicado aparador havia um aparelho para esquentar comida e uma torradeira.

 - Uma coisa está certa - Dick resumiu o resultado das suas investigações. - Cody telefonou-me no momento em que se viu atacado. A senhora Cody atraiu Sybil Lansdown sob qualquer pretexto, e a senhorita Lansdown é a única da qual nada sabemos ainda. Sneed, temos de fazer tudo que estiver ao nosso alcance para encontrá-la.

O medo que sentia por Sybil apertava-lhe a garganta e debaixo da sua voz aparentemente calma ocultava-se uma dúvida torturante.

 - Se pelo menos conseguíssemos agarrar o assassino - disse Sneed em tom rancoroso. - Ele deve estar em algum lugar nas proximidades; a luz não se apagou por acaso.

O inspetor Elbert voltou.

 - O telefonema foi subitamente interrompido. Alguém cortou os fios telefônicos.

Sneed encarou Dick com olhar significativo; em seguida voltou-se para o colega.

 - Como sabe que os fios foram cortados?

 - A Central de Scotland Yard já havia atendido. Eu até estava falando com o senhor Élmer. De repente ouviu-se um estalo e a linha emudeceu. Tentei nova ligação, mas não consegui nem sequer falar com a telefonista do posto de serviço.

 - Mande vigiar todo o andar térreo, Sneed - pediu Dick. - Eu, nesse meio tempo, vou revistar o andar de cima.

Ele tornou a subir a escada, evitando espiar o rosto da mulher rigidamente estirada no patamar. Examinou todos os aposentos. Em toda parte reinava a mais perfeita ordem e em lugar nenhum encontrou qualquer indício de Sybil. No corredor descobriu novamente rastros de sangue e, seguindo-os, chegou a una escada estreita. As pegadas foram ficando menos distintas e finalmente sumiram por completo, afora alguns respingos isolados aqui e ali. Depois encontrou uma mancha irregular a meia altura da parede caiada. Aparentemente alguém, ferido, roçara na parede. A altura da mancha permitia adivinhar o local do ferimento.

Alguns passos mais adiante Dick deparou com uns panos ensangüentados que provavelmente tinham servido de ataduras. Então entendeu o que acontecera: o assassino de Lew Pheeney, o seu agressor no parque Staletti, o sujeito que invadira duas vezes seu apartamento com intenção homicida, também cometera este crime! Cody procurara defender-se contra ele até o último momento e nisso as ataduras saíram do lugar e a ferida reabrira.

Com expressão sorumbática, Dick galgou a escada de poucos degraus e viu-se num corredor estreito de uma água-furtada com três portas. Ele abriu a primeira e tornou a fechá-la, desapontado. Por trás dela havia um recinto que só continha uma banheira de ferro. A segunda porta conduzia para um depósito de móveis descartados, e uma camada de poeira testemunhava que havia meses ninguém tinha pisado lá. Chegando à terceira porta, na extremidade do corredor, percebeu de imediato: a essa porta sucedera algo fora do comum. Ela pendia frouxamente das dobradiças. Havia um enorme buraco na almofada da porta. A fechadura havia sido destroçada com violência, um único parafuso apenas mantinha-a presa à porta. Dentro do aposento os móveis estavam numa tremenda desordem: uma cadeira virada, uma jarra de louça quebrada, os lençóis rasgados. E ali, no chão... sua mão crispou-se em torno da lanterna... um lencinho rendado, ensangüentado.

Durante um instante ficou como petrificado. O coração tornou-se uma pedra de gelo em seu peito e os seus joelhos dobraram-se. Depois, dominando-se, abaixou-se e apanhou o lenço. Examinou-o em busca de um monograma.

Com olhar fixo olhou para as iniciais entrelaçadas: S.L.

O lenço de Sybil Lansdown!

 

Acudindo ao seu chamado, Sneed subiu a escada correndo. Juntos puseram-se a revistar o cômodo.

 - Toda a porta está manchada de sangue, você viu? Até lá embaixo - Sneed fez deslizar a luz da sua lâmpada pela banda inferior da porta. - E também lá no canto - abaixou-se com um gemido - Impressões digitais muito nítidas. Alguém agarrou a porta por baixo para arrancá-la das dobradiças. Uma façanha para um atleta! Santo Deus, que patas tem esse homem! Martin, deve ser o mesmo sujeito que o anda perseguindo!

Dick assentiu com a cabeça. Imaginando o vulto do gigante, agora que sabia que ele também perseguia Sybil, o medo quase o sufocava.

Sneed endireitou-se penosamente. Seu olhar descobriu o pórtico no teto.

 - Isso me parece um caso de fuga e perseguição. Suba e veja, Martin. Eu sou pesado demais para isso.

Dick colocou a cadeira debaixo da janelinha. Subiu e, com os dedos, tateou em busca de um apoio. Depois de encontrá-lo, puxou o corpo para cima e esgueirou-se para o telhado. Encontrava-se numa calha de cimento de cerca de três pés de largura. Um parapeito de pouca altura limitava-a de um lado, do outro o telhado subia até a cumeeira.

Dick projetou a luz da lanterna sobre a calha e de repente avistou a topo de uma escada encostada no parapeito. Ele relatou a sua descoberta ao inspetor, e acrescentou:

 - Alguém de fora veio em socorro da senhorita Lansdown. Decerto ela fugiu por aqui.

Sneed mediu com os olhos a distância até o alçapão.

 - Por favor, ajude-me a subir - disse com ar decidido.

A princípio Dick achou o pedido grotesco, mas logo ficou demonstrado que debaixo da camada de gordura. Sneed dispunha de uma força descomunal. Para o espanto de Dick, a única assistência de que ele necessitava consistia em algumas palavras de estímulo e alguns elogios. Em poucos instantes lá estava ele sentado sobre a calha, bamboleando as pernas e relanceando o olhar pelo telhado.

Subitamente mordeu o lábio inferior e apontou com a mão.

 - O assassino também esteve aqui; está vendo a mancha escura? Ali ele se apoiou sobre as telhas. Depois segurou a escada com as suas mãos ensangüentadas. O primeiro degrau está sujo de sangue, e o terceiro também.

A luz da sua lanterna confirmou suas observações.

Dick trincou os dentes. A leve chama de esperança que o animara desde a descoberta da escada, apagou-se totalmente.

 - Eu vou segurar a escada e você desce e vasculha o parque em busca de rastros - propôs Sneed. Premendo os pés contra o parapeito, agarrou o degrau superior da escada firmemente com ambas as mãos, enquanto Dick descia para a escuridão lá embaixo.

Ao saltar da escada, ele notou que se encontrava numa horta. De ambos os lados do estreito caminho de cascalho ele distinguia as fileiras de repolho, tão certinhas como soldados em formatura.

 - Segure a escada! - gritou-lhe Sneed de repente. - Vou descer também. É melhor não nos separarmos.

Apesar das suas aflições, Dick teve de sorrir ante aquela prova de coragem. Ele assegurou a firmeza da escada com o peso do seu corpo enquanto Sneed dava outra exibição da sua agilidade.

Juntos deram uma busca no parque.

 - Daqui ela não podia alcançar o portão de entrada. Aquela sebe lá impede a passagem. Ela deve ter andado em linha reta - observou Sneed. - Pelo que dá para distinguir nesta escuridão, ali atrás se estende um pomar. Entretanto, como conseguiria escapar do pomar? - acrescentou, coçando a orelha. - Mas vamos adiante!

Porém, mal deu o primeiro passo... tiros pipocaram!

 - Atire-se ao chão e apague a luz! - sibilou o inspetor, e na fração de um segundo os dois se encontravam estendidos, lado a lado, na grama molhada pelo orvalho da noite. No mesmo momento irrompeu um "staccato" ininterrupto de disparos que encheu toda a horta de zunidos, estouros e estalos.

Tão repentinamente como a fuzilaria tinha começado, ela também terminou. Os dois homens, com os nervos tensos, permaneceram deitados, retendo a respiração e aplicando o ouvido. Durante alguns minutos reinou um silêncio sepulcral, depois o ouvido apurado de Dick percebeu um leve farfalhar, como se a roupa do atirador invisível tivesse roçado nos ramos de moitas próximas. Dick atirou na direção do rumor, mas a bala perdeu-se sem atingir ninguém, pois não se ergueu nenhum grito de dor, não se ouvia nenhum estrépito de pés em fuga.

 - Eu gostaria muito de saber quem se esconde por trás dos repolhos - disse Sneed num sussurro. - Um regimento inteiro de soldados? Um exército inimigo?

 - Apenas um homem com duas pistolas automáticas - respondeu Dick. - Não consegui contar os disparos, tudo se passou rápido demais; contudo, foram pelo menos vinte.

Ficaram por mais alguns minutos naquela posição incomoda. Finalmente Sneed observou.

 - Acho que podemos levantar-nos agora. O perigo já passou.

Dick disse apenas, meio indeciso:

 - Será? - mas foi o primeiro a avançar de gatinhas, o que não foi nada fácil. Numa das mãos empunhava a pesada pistola; os músculos distendidos do pescoço doíam-lhe, os saibros pontudos retalhavam-lhe as calças na altura dos joelhos e escoriavam-lhe as mãos.

Finalmente ele chegou ao fim do caminho de cascalho que atravessava a horta e sentiu terreno argiloso debaixo do corpo. Erguendo os olhos para o alto, distinguiu as copas das árvores frutíferas. Uma pétala soprada pela brisa pousou sobre a sua testa.

Ficou algum tempo à escuta, depois pôs-se de pé e voltou-se.

 - Pode vir - chamou. - Está tudo em ordem.

Mal pronunciara estas palavras, fez-se ouvir a detonação de uma arma de fogo. Alguém oculto em lugar próximo atirara contra ele.

 

A bala passou rente à sua cabeça sem feri-lo, mas o deslocamento do ar e a proximidade da explosão estontearam-no por um instante e suas pernas se vergaram. Quando se recuperou, ouviu o rumor de pés que se afastavam correndo. Isso o inflamou, ele se endireitou novamente e iniciou a perseguição, mas logo tropeçou sobre um arame e estatelou-se no chão. Quando se levantou, todo doido, encontrou Sneed ao seu lado.

- Ele escapou? - perguntou o inspetor, esbaforido.

 - Acho que sim - disse Dick, furioso.

Eles puseram-se a examinar o local à luz das lanternas de bolso e encontraram uma porção de arames estendidos entre as árvores do pomar. O assassino preparara a sua fuga com muito cuidado.

Chegando à extremidade do pomar, verificaram que apenas um valado pouco fundo o separava de um campo de centeio. Não valia a pena continuar. Daquele campo se abriam mil caminhos para a fuga.

Desapontados e desanimados, eles retornaram à casa. Lá, uma surpresa agradável os esperava: todas as luzes brilhavam novamente. O sargento Staynes descobrira que a porta de aço do transformador da linha de energia interurbana fora arrombada e a corrente desligada. Bastara-lhe um simples giro da chave para restabelecer o fornecimento de luz. Em seguida ele se pusera a procurar o fio telefônico cortado e achara as duas extremidades no parque, bem abaixo da janela da biblioteca. Ele acabara de efetuar o conserto.

Dentro do prédio, o inspetor Elbert iniciara uma investigação sistemática. Martin e Sneed juntaram-se a ele, sem fazer qualquer descoberta importante. Quando se dirigiam ao quarto de dormir da senhora Cody, chegou um pesado caminhão que transportava toda a tropa da polícia de Chichester para o local do crime.

Pelo visto, a Scotland Yard ouvira o suficiente para interpretar corretamente o telefonema interrompido e dera ordens à policia de Sussex no sentido de mobilizar toda a sua força.

Escondida debaixo da cama da senhora Cody, o inspetor Sneed foi encontrar uma caixinha indiana com belos entalhes. Ela continha cartas, velhas contas, programas de teatro amarelentos e outras coisas desse tipo. Até um buquezinho se encontrava em meio daquilo.

 - Veja só, por mais ressequido que seja, um coração de mulher sempre conservará uma centelha romântica.

E estendeu um maço de cartas a Dick Martin.

 - Tome. Eu vejo o resto.

Dick soltou a fita que prendia as cartas. As primeiras duas a lhe caírem nas mãos, escritas numa caligrafia infantil, traziam a assinatura: “Teu sobrinho Johnny”.

 - E eu pensava que ela não tinha outro sobrinho além de Tom Cawler.

Continuou examinando a correspondência da morta.

 - Aqui estou vendo uma carta em que também é mencionado Tom Cawler. Pelo visto, o chofer tem um irmão.

- Gostaria de saber onde este Tom Cawler está metido a estas horas - refletiu Sneed, de testa enrugada, - A criadagem restante foi, decerto deliberadamente, afastada; mas enganar Cawler deve ser bem mais difícil. Eu vou mandar revistar a casa toda. Ele pode estar escondido em algum canto, quem sabe. Ainda não estou inteiramente convencido de que ele nada tem a ver com o assassinato.

 - Tom Cawler, um assassino? - perguntou Dick, incrédulo. - Será que você conhece tão pouco a natureza humana? Eu não confiaria a Tommy um anel de brilhantes ou uma colher de prata, mas não hesitaria um segundo para confiar-lhe a minha segurança.

Sneed continuava cético. Balançou a cabeça com ar descrente:

 - "Qui vivra, verra."

Dick já não prestava atenção ao que ele dizia. Fizera uma descoberta que o interessava sobremaneira: uma carta escrita numa letra floreada. Ela dizia: "Prezada Sra. Cawler: "Acabo de falar com Staletti. Muito agitado, ele contou-me que Lord Selford se encontra gravemente enfermo. Por favor, não deixe de me informar como ele está passando. Afinal de contas, ninguém o sabe melhor do que a senhora. Tremo de impaciência quando penso quanto depende para nós dos próximos dias. Aguardo suas notícias! Escreva-me sem demora!

Seu fiel amigo H. Bertram"

Dick mostrou a carta ao inspetor, comentando:

 - É a letra de Cody. Eu a conheço bem, pois examinei seu caderno de notas. Por que naquela época ele se chamava Bertram, e hoje Cody? Deve haver alguma razão para isso. - E depois de uma pausa: - Quer dizer que todos se conheciam... Cody, a senhora Cody, Staletti, o velho Lord Selford. Algum mistério os unia, embora Cody o negasse.

 - O que é natural, pois ele vivia num constante medo da forca - disse Sneed, irritado.

Dick leu todas as cartas, mas nenhuma trouxe alguma luz nova. Mas quando a caixa já estava quase vazia deu com outro papel importante: a certidão de casamento da senhora Cody.

 - Hum... - fez, estudando esse documento oficial. - Ela casou oito meses depois do falecimento de Lord Selford. Staletti foi uma das testemunhas William Brown foi a outra. Que diabo! Quem será esse William Brown?

 - Não vá querer procurá-lo no catálogo telefônico - aconselhou o inspetor, gracejando - caso contrário continuará debruçado sobre o catálogo ainda no ano que vem. Existe mais gente com este nome em Londres do que há cabelos na minha cabeça.

A caixinha estava vazia, ela não encerrava outros segredos. Dick, pálido e exausto, recostou-se numa poltrona, com os olhos fitos no teto.

 - O que faremos agora? - perguntou Sneed, deitando-lhe um olhar preocupado.

 - Francamente, não sei - replicou Dick com ar perdido. Distraidamente meteu a mão no bolso. Sentiu o metal frio da chave e tirou-a.

 - Número três - disse entre os dentes. - Quando forem sete, alguém vai pagar caro por tudo que houve esta noite.

 - O que faremos agora? - perguntou Sneed de novo.

Dick tornou a guardar a chave. De repente a sua atitude mudou. A máscula energia sobrepôs-se às preocupações e angústias. Puxou o relógio de bolso. Já tinha passado das duas horas da madrugada.

 - Vamos daqui para o castelo dos Selfords - resolveu. - Você ainda não conhece a cripta. É nos túmulos dos Selfords que se encontra a solução do mistério.

Levantando-se de um salto, desceu a escadaria correndo. Chegou ao seu carro muito antes de Sneed. Entretanto, quando pôs o automóvel em marcha, este não se portou como um corcel fogoso, mas antes como um pato. Deu uns pulinhos e parecia bêbado. Dick freiou e saltou.

Algum patife tinha recortado todos os quatro pneus, num louco acesso de destruição.

 

Há momentos na vida que a gente nunca mais esquece. Eles podem submergir abaixo do limiar da consciência, mas em noites de insônia, em horas de febre, eles voltam à tona e enchem a alma de aflição e agonia.

Foi um momento destes que Sybil viveu quando viu o rosto de Tom Cawler fixando-a através da janelinha no teto do quarto, enquanto às suas costas ouvia a respiração anelante da criatura desconhecida que ameaçava desmantelar a porta com suas mãos gigantescas.

O rosto desapareceu por uns instantes. A porta estremeceu, estalando nas dobradiças. De cima vinha um chiado. A grade moveu-se nas charneiras. A janela abriu-se e um braço estendeu-se em sua direção. Sybil lançou um último olhar para a porta, cuja madeira rachou neste momento. Na abertura surgiu um punho enorme, manchado de sangue. Sem hesitar mais tempo, ela saltou em cima da cadeira e agarrou a mão, que a içou para cima.

 - Segure-se bem, senão eu não agüento! - articulou Cawler, respirando pesadamente.

Ela apertou os dedos em volta do seu pulso. No mesmo instante a porta cedeu, a jarra de louça espatifou-se no chão.

 - Suba! suba! senão é tarde demais! - gritou o chofer. Ajoelhado, inclinou-se, agarrou-a por baixo dos braços e com toda a força puxou-a para cima.

Olhando em torno, ela notou que se encontrava em cima de uma calha. Cawler, erguendo uma lanterna que espalhava uma luz difusa, iluminou o topo de uma escada de madeira, cujos últimos degraus ficavam acima do nível do parapeito do telhado. Sybil entendeu, saltou ligeiro sobre o parapeito, trepou na escada e desceu agilmente para o chão, como tantas vezes fizera em seu tempo de menina. Cawler seguiu-a sem perda de tempo.

Ambos dirigiram um ultimo olhar para o telhado. A lua escondera-se por trás de uma nuvem, mas o reflexo da claridade do céu era bastante para reconhecer a silhueta do corpo gigantesco de um homem agachado sobre as telhas que naquele exato momento agarrava a escada. Era tarde demais para retirá-la; só lhes restava a fuga precipitada.

Cawler puxou a moça pelo braço. Atravessaram a horta correndo e saltaram a vala. Nenhuma luz além da lua alumiava-lhes o caminho.

 - É uma pena não podermos ir para a garagem; aquele Golias temível nos interceptaria. Mas venha comigo, eu conheço um esconderijo.

Diante deles estendia-se um campo de centeio de inverno cujos colmos já tinham atingido boa altura. Atravessaram-no com alguma dificuldade e finalmente conseguiram alcançar o portão de ferro, que felizmente estava apenas engatado. Os ouvidos zunindo, a vista escurecendo, as pernas tremendo depois da louca corrida, relancearam um olhar para trás. Não vendo sinal do seu perseguidor, respiraram aliviados.

Encontravam-se agora numa estrada que corria ao longo de um alto muro.

- O parque do castelo Selford - disse Cawler, em tom seco.

Sybil olhou-o assustada.

 - O parque do castelo?

Consternação e temor transpareciam-lhe na voz. Nunca imaginara que a propriedade de Cody confinasse com as terras da casa senhorial. De todos os lados a rodeava o terrível mistério cuja origem se encontrava em Selford.

 - Eu sei de uma brecha no muro, mais adiante, que ninguém conhece. Passando por ali, estaremos a salvo. Em primeiro lugar devemos cuidar de que ele perca a nossa pista. Caso contrário, estaremos perdidos.

 - Afinal, quem é ele? Por que nos persegue? De quem foi aquele grito horrendo? Parecia que alguém estava sendo degolado.

 - Eu também ouvi aqueles gritos - disse Cawler em voz baixa. - Eu até temia que o velho estivesse matando você. À tarde, eu o tinha advertido energicamente por sua causa. Quando você não reapareceu mais até a noite, a uma pergunta minha, ele respondeu que você tinha ido para o castelo, mas eu não acreditei. Eu suspeitava que ele, por alguma razão qualquer, a mantivesse presa, e disse-lhe isso na cara. Ele mostrou-me todos os aposentos, menos os três cômodos do sótão. Eu não disse nada, pois já havia resolvido investigar por conta própria. Fiquei passeando no jardim. Não queria empreender nada antes que o velho e a velha tivessem ido dormir. De repente escutei uma tremenda algazarra e gritos prolongados. Fui buscar a escada correndo e encostei-a ao telhado. As minhas suspeitas se confirmaram. Você realmente se encontrava presa na água-furtada.

Durante algum tempo caminharam em silêncio.

 - Mas quem é a criatura que quis penetrar no meu quarto?

 - Não sei - disse Cawler. - Já a vi uma vez anteriormente, de longe. Jamais vou esquecer o grande susto que levei. Um monstro desses a gente não vê nem no circo. Além da aparência horrível, ainda anda meio nu; só usa uma calça curta de couro presa na cintura por um pedaço de corda. De uma coisa tenho certeza: onde esse sujeito pisa, a grama não cresce mais. Desconfio que esta noite fez uma chacina na casa de Cody.

Com um arrepio Sybil fechou a gola do vestido com ambas as mãos, mas não disse nada.

Seu companheiro deteve-se de repente. Naquele lugar o muro todo estava coberto de rododendros. Quando Cawler apartou os ramos, apareceu a brecha. Inclinando-se, passaram para o outro lado, primeiro Sybil, depois Tom. Ao se endireitar, ela viu à sua frente, banhado de luar, um campo ondulado que se perdia ao longe.

Tom Cawler contou-lhe que ali costumavam pastar os famosos carneiros merinos do velho lorde, antes da sua morte. Ele esforçava-se por manter a conversa acesa. Queria distrair a moça para que ela esquecesse seu temível perseguidor. Finalmente, para grande surpresa dela, confessou-lhe que ele era sobrinho da senhora Cody.

 - Eu e meu irmão Johnny fomos morar com ela porque éramos órfãos. Teria sido melhor se nos tivessem recolhido a um orfanato.

 - Ela os tratou tão mal assim?

 - "Mal" é dizer pouco. A comida era escassa e ruim. E ela gostava de nos surrar. Pode acreditar, há realmente gente que sente prazer em surrar os outros, e muitas vezes as vítimas são crianças indefesas.

 - Você teve uma infância difícil - disse Sybil, sentindo pena.

 - É verdade - replicou Cawler entre os dentes. - Quando meu irmão morreu, tive inveja dele.

 - E desde aquele tempo sempre viveu em companhia de sua tia? - perguntou Sybil.

Cawler riu com desdém.

 - Nada disso. Fugi, com onze anos. Vendia jornais, cigarros, carregava malas, fui menino de recados e dormia nos bancos das praças públicas. Era melhor do que morar com aquela tarântula.

 - Neste caso, por que voltou?

 - Oh! - disse Cawler com um sorriso enigmático. - Na segunda vez vim para me vingar. Eu tinha-a nas minhas mãos... E por que eu não havia de tirar proveito da boa sorte dela? - acrescentou em tom de revolta, já que Sybil não se manifestava. - Ela estava muito bem de vida, graças à sua astúcia e dissimulação, enquanto eu levava uma vida de cachorro. Por que fingir? Não me importa que você o saiba... Até sete anos atrás eu não passava de um ladrão profissional. Sofri dezesseis condenações.

 - A culpa é da sua tia...

 - Pois é... Era o que eu também achava - disse Cawler, aliviado. - Na última vez que me levaram à presença do juiz, em Old Bailey, este me avisou de que, em caso de reincidência, me enviaria à penitenciária, e por muitos anos. Resolvi então mudar de vida. A quem podia eu recorrer? À tia Cody, foi meu primeiro pensamento. O reencontro não foi um acontecimento agradável, pode crer... Mas ela não teve coragem de me mandar embora. Fiquei morando com ela durante sete anos. Nada me faltava, e eu conservava a boca fechada. Mas hoje... - ele respirou fundo, enchendo o peito - hoje eu disse a verdade aos dois! Lavei a sujeira de sete anos da minha alma e não me arrependo!

Imobilizou-se de repente, pôs o dedo nos lábios e ficou escutando, com a cabeça inclinada.

Sybil olhou em torno. A sua frente erguia-se um rochedo alongado de contornos parecidos com o dorso serreado de um dinossauro.

Cawler notou o olhar dela.

 - É a pedreira - explicou em voz baixa. - Uma estrada passa por ali, muito íngreme e perigosa. Durante a noite não pode ser utilizada. Temos de manter-nos à esquerda.

Calou-se. Novamente ficou à escuta, olhando para trás. De repente atirou-se ao chão e encostou o ouvido à grama.

Depois ergueu o corpo apoiando-se sobre os joelhos.

 - Vá depressa nessa direção - disse num quase imperceptível sussurro, apontando para a frente. - Espere naquela mata por mim. Não vou demorar.

Ela encarou-o com os olhos arregalados.

 - Não, não! - gritou, desesperada. - Não quero que corra perigo por minha causa!

 - Quem está falando em perigo? - retrucou ele, impaciente E como ela vacilasse, bateu com o punho no chão: - Corra, meu Deus! Corra! Não fique aí parada! Só está me atrapalhando.

Ela pôs-se a correr no rumo indicado. Depois de algum tempo olhou para trás. Ele voltara a estender-se ao comprido entre a grama alta e não podia ser visto. Neste momento as nuvens aglomeravam-se em frente da face da lua e toda a paisagem mergulhou em trevas. Um terror pânico apoderou-se dela naquela solidão.

Cosido ao chão, Cawler esperava pelo gigante, cujos passos pesados seu ouvido apurado percebera à distância. Ele sabia que de nada lhes valeria procurar fugir, pois não escapariam, e ele estava decidido de salvar a moça a qualquer preço... mesmo ao preço da sua própria vida. Tom Cawler desconhecia o medo. Sagacidade e a insolência própria dos garotos abandonados que se criam na rua uniam-se nele à galhardia. Ele era forte, ágil e rápido no aproveitamento das suas vantagens. Tudo isso o aparelhava para o terrível encontro que o aguardava. Seus dedos curvaram-se à volta do cabo da chave de parafuso, a única arma que trazia no bolso, e mal o gigante surgiu no seu campo de visão, saltou-lhe em cima num tremendo pulo.

Ao ouvir ao longe o uivo animalesco do monstro, Sybil estremeceu e começou a suar por todos os poros. Ela tinha alcançado a mata e apoiou-se num tronco de árvore. Uma voz dentro dela gritava: depois de matar Tom Cawler, ele virá atrás de mim! As lágrimas deslizavam-lhe pelas faces, sem que ela se desse conta de que chorava. Adentrando-se mais na floresta, tropeçava, se erguia, continuava cambaleando.

Os rumores da luta longínqua cessaram. Finalmente ela chegou à outra extremidade da mata. A sua frente estendia-se um terreno cultivado. Os seus pés pisaram tenras plantinhas, depois ela atravessou algumas colinas e deparou-se com outra mata. Desesperada, achou que talvez tivesse andado em círculos e voltado ao lugar de onde partira. Seria um desastre... Sentiu-se melhor quando se viu novamente rodeada pela confortadora escuridão da floresta. Com as mãos tateava de árvore em árvore. Ela se arranhava nos galhos, espinhos lhe dilaceravam o vestido. Avante!

De repente chegou a uma clareira. A lua ressurgiu entre as nuvens e o luar iluminou o topo de um penhasco alvacento, cuja parte inferior mergulhava num abismo de trevas: os túmulos dos Selfords!

Com um grito, Sybil caiu de joelhos. Diante dos seus olhos, as imagens se confundiam e se duplicavam. Ela cerrou os punhos até sentir as unhas, trincou os lábios, retesou os músculos e empregou toda a sua força de vontade para não desfalecer. Finalmente se levantou, vacilando nas pernas, e acercou-se da entrada para a cripta.

A chave estava na fechadura enferrujada. Um cheiro de mofo vinha do fundo da caverna e refrescou-lhe a testa febril. Ainda estava espiando através da grade para o interior quando, vindo da direção do mato, lhe chegou ao ouvido um ruído que lhe gelou o sangue. O homem-animal decerto assassinara Tom Cawler e agora vinha para fazer o mesmo com ela. Apavorada, agarrou os varões da grade... e o portão se abriu! Esgueirando-se para o interior, ela puxou o portão, que se fechou com grande estrondo. Metendo a mão por entre as barras, girou a chave e recolheu-a.

Respirou mais aliviada, julgando-se a salvo. Esperou alguns minutos. Tudo estava em silêncio.

Ela desceu os degraus, procurando com as mãos apoio nas paredes limosas e escorregadias. Chegou à pequena antecâmara, onde uma segunda grade vedava a passagem para as tumbas.

Ela parou, escutando, o olhar dirigido para cima. Passados alguns momentos, ouviu o arrastar de pés, e um choro baixinho que a apavorou terrivelmente, pois era um homem que choramingava. De novo o medo quase a sufocou e o coração recomeçou a bater loucamente. Ela não duvidava de que o gigante era também capaz de arrombar o portão principal da cripta, e nesse caso ela estaria totalmente à mercê dele. Rompendo em soluços aflitivos, sacudiu a grade. Para surpresa sua, ela cedeu. A porta estava aberta. Ela levantou a mão na escuridão para tatear o caminho, enquanto mantinha o olhar voltado para cima, para o lugar onde sabia que se encontrava seu perseguidor.

Subitamente soltou um grito agudo. Sentiu a mão presa por uma garra, que do fundo das sepulturas se estendia contra ela para arrastá-la irresistivelmente, às profundezas que pertenciam aos mortos.

 

A boca escancarada, os olhos esgazeados, alucinada, Sybil começou a golpear com a outra mão quem estava à sua frente, usando a chave como arma; nisso emaranhou-se numa barba espessa, desgrenhada.

 - Quieta! - sibilou uma voz na escuridão sepulcral. - Pare de gritar! Não vou machucá-la. Quem é você? O que está fazendo aqui?

Era uma voz humana. Recobrando-se do susto, largou a barba. A mão invisível soltou-a.

 - Sou Sybil Lansdown - balbuciou. - Estou sendo seguida. Não sabia para onde ir e refugiei-me aqui.

 - Sybil Lansdown? - perguntou a voz, denotando grande espanto. - Mas isso é fenomenal! Agora procure acalmar-se.

Um fósforo tremeluziu. Sybil distinguiu mãos compridas, macilentas, com unhas sujas. A chama do fósforo foi transportada para uma lamparina a querosene e depois protegida pela pantalha [quebra-luz]. Diante dela estava um homem magro com cara rugosa como couro velho, na qual dois olhos lúgubres ardiam em órbitas cavas. Uma comprida barba negra ocultava-lhe o formato da boca e lhe caía sobre o peito. A casaca antiquada e enodoada, as calças amarrotadas, o pequeno e velho gorro que lhe cobria a parte posterior da cabeça, denotavam total desleixo e falta de asseio. Parecia o bruxo-mor da noite das feiticeiras; mas apesar da sua horrível aparência, ela não se amedrontou. Debaixo do olhar penetrante do homem, as pulsações do seu coração foram-se acalmando aos poucos.

Ela observou que o sujeito tinha tentado arrombar a porta das sete chaves, pois havia uma bolsa de ferramentas no chão e uma broca enfiada na segunda fechadura.

 - Disse que estava sendo seguida? - perguntou ele, encarando-a fixamente.

Ela fez que sim com a cabeça.

 - Quem a segue? - perguntou de novo.

 - Um homem... horrível - balbuciou ela. - Um... um gigante.

 - Gigante?

A sua barba se mexeu; recoberta por ela, a sua boca se torceu num sorriso.

 - E por que ele a persegue? Às três horas da madrugada? Acaso está apaixonado por você?

Sybil estremeceu. O olhar dele agia sobre ela como um soporífero. De repente ela não conseguia mais lembrar-se de coisa alguma. Não sabia por que estava sendo perseguida, não se recordava de onde estivera. Somente via a profundeza negra daqueles olhos flamejantes que refletiam a luz da lamparina.

 - Sente-se - mandou ele em tom peremptório.  - Não gosto de falar com pessoas mais altas do que eu.

Ele indicou uma pedra, e ela obedeceu à ordem, sem sentir a friagem da rocha.

O desconhecido pôs-se a caminhar no estreito túnel de um lado para o outro, sem largar a lamparina. A sua sombra grotesca acompanhava todos os seus movimentos. Com uma ruga cavada entre as sobrancelhas, ele murmurava palavras ininteligíveis.

O seu olhar deparou com a broca. Depositando a lamparina no chão, ele tirou a ferramenta da fechadura, colocou-a na bolsa e fechou esta com cuidado. Depois continuou parado, fixando a porta com expressão soturna. De chofre se virou.

 - Qual é a sua idade, Sybil Lansdown?

 - Vinte e dois anos - respondeu ela, como em sonho

 - Tarde demais, tarde demais - ele deplorou. - É demasiadamente velha para as minhas experiências. Se eu a tivesse apanhado quinze anos mais cedo... - ele passou a mão pela testa. - Também não devia ser mulher. Que valor pode ter para mim uma mulher?  - e fez um gesto desdenhoso, como se afastasse um cisco da manga da casaca. - Isso!

Reencetou sua caminhada irrequieta e seus olhos vaguearam pelas pesadas portas entalhadas, por trás das quais, em nichos úmidos, se decompunham os mortos da casa Selford.

 - Mulheres são material muito frágil para experiências científicas - recomeçou. - Elas não reagem de maneira normal. Uma experiência mais ousada pode levá-las à sepultura e anos de trabalho construtivo e longas pesquisas ficam perdidas!

De repente deteve-se diante da terceira câmara mortuária à esquerda e encostou o ouvido à porta. Depois ergueu a lamparina alumiando a moça. Uma expressão totalmente diferente tomou conta do seu rosto. Com as feições tensas, perguntou:

 - O homem que a persegue mete-lhe medo, não é verdade?

Sybil anuiu.

Ele baixou a lamparina. Com a outra mão alisou a barba.

 - Medo e pavor podem ser anestesiados - murmurou, como num monólogo. - Isso não pode constituir um obstáculo, quando se trata de um objetivo tão elevado. "Per Dio!", isso seria uma solução! Seria a coroação da obra! Se ele apenas não fosse tão desajeitado! Com sua força bruta ele quebra tudo que toma nas mãos. Não é possível criar matéria possante e, ao mesmo tempo, delicada. É preciso que, em vista da imperfeição da natureza, a gente decida por uma coisa ou outra. Quem já viu um cérebro rude reger uma mão fina?

E balançou a cabeça, aborrecido.

 - Mas ao trabalho, ao trabalho!

Apalpando os bolsos do colete meio desabotoado, tirou um tubinho de vidro. Tornou a descansar a lamparina no chão, extraiu a rolha com os dentes e deixou cair dois comprimidos na palma da sua mão.

 - Aqui, engula isso! Vai se sentir melhor! - cacarejou uma risada, e naquela horripilante caverna o riso ecoou como uma gargalhada do demônio.

Obediente, ela estendeu a mão. Ele inclinou-se e apanhou a lamparina, murmurando:

 - O que será, destino ou livre vontade? Onde termina uma coisa e começa a outra? Mistério sobre mistério!

E meteu a mão no bolso da casaca, retirando um molho de chaves. Escolheu uma chave que, ato contínuo, enfiou na fechadura da porta da terceira câmara mortuária.

 - Se todas as portas desta maldita cripta fossem tão fáceis, quanta desgraça e confusão podiam ter sido evitadas.

Subitamente se voltou para Sybil.

 - Estou acostumado a ser obedecido - disse com severidade. - Você ainda não tomou os comprimidos.

As pequenas bolinhas vermelhas reluziam na mãozinha branca da moça como os dois olhos malignos de um réptil.

Faça o que lhe mandei! - repetiu ele, com voz tonitroante.

Submissa, ela levou a mão aos lábios, mas o cheiro singular dos comprimidos repugnava-lhe. Ela meteu-os na boca sem os engolir, o que Staletti, devido à fraca luz da lamparina, não pôde notar. Acreditando que ela havia atendido à sua ordem, ele virou-lhe as costas para abrir a porta da terceira câmara mortuária.

No mesmo instante Sybil sentiu a pressão diminuir e ela cuspiu fora os comprimidos.

Staletti empurrou a porta, que cedeu rangendo. Entrou no cubículo sem outro olhar para Sybil. A porta fechou-se atrás dele. Foi o seu azar... e a salvação para Sybil, pois mal ele desaparecera, desfez-se a insidiosa influência, e a lucidez da sua própria vontade irrompeu através da escuridão da mente.

Como que impelida por mola, levantou-se e desabalou pelo corredor e escada acima. Ainda segurava a chave entre os dedos. Mecanicamente meteu a mão pelas grades e volteou em busca da fechadura. Achou-a imediatamente. A disposição singular em que ela se encontrava dava-lhe uma segurança maravilhosa. Abriu a porta empurrando-a com toda a sua força, mas ao tentar fechá-la de novo, ouviu do fundo da cripta um ruído de passos que se aproximavam, de sorte que largou a porta aberta e atirou a chave na grama. Como num sonho, os pés a carregaram para longe do lugar. Os seus olhos não olhavam para a direita, nem para a esquerda. Um instinto infalível dizia-lhe que o terrível mistério em que se achava envolvida estava prestes a se revelar. Isso lhe conferiu asas e lhe deu a segurança de uma sonâmbula, de modo que encontrou a vereda através da floresta e a descida pela colina sem se perder uma única vez.

Quando já tinha a floresta atrás de si, ergueu os olhos e viu ao leste uma claridade rósea. O sol despontava e tingia o céu com as primeiras luzes da manhã. "Oh, que rompa logo o dia!" rezou com o coração a pulsar forte.

O mesmo caminho ela percorrera dois dias antes em companhia de Dick Martin e do senhor Havelock. Dick Martin! Ela parou por um instante e uma irresistível saudade a fez estremecer. Se ela não tivesse faltado ao que prometera a ele, não teria caído na armadilha da senhora Cody: se ela tivesse seguido o conselho dele de não empreender nada sem pedir antes seu conselho, ela não teria passado por essa noite de horrores. Oh, ela já não pensava mais em manter uma aparência de orgulho, tudo o que desejava humildemente era o apoio de um braço forte!

Nesse meio tempo chegara ao sítio. O cachorro, preso pela corrente, começou a latir alvoroçado, arreganhando os dentes. No primeiro momento ela assustou-se, mas logo depois seus nervos relaxaram. Os sons familiares de um mundo real restituíram-lhe a coragem e a confiança. Ela parou, assobiou e pôs-se a falar baixinho ao cão como a um velho conhecido. Depois se acercou da casinha do cachorro sem medo. Os latidos cessaram. O cão dilatou as narinas, aspirando o ar. Ela estendeu a mão para que ele sentisse seu cheiro e reconhecesse nela uma pessoa amiga. Quando se pôs a falar novamente com ele, o animal esfregou mansamente a cabeça nos joelhos dela. Ela alisou-lhe carinhosamente os pêlos espessos e sentiu que ele estremecia prazerosamente sob a sua mão. Provavelmente não estava acostumado a muitos carinhos. Ela soltou a corrente e ficou segurando-o pela coleira. Ele, feliz com a inopinada liberdade, abanava o rabo e puxou-a atrás de si, através da grama, rumo à casa senhorial.

Ao chegar perto do castelo, desviou-se do caminho pavimentado com lajes de cimento, e passou a caminhar pela beira dos canteiros, a fim de não fazer barulho. O cachorro, vez por outra, farejando com curiosidade, enterrava o focinho na terra fofa. Mas, de repente, levantou a cabeça e inspirou o ar, desconfiado. Em seguida rosnou e mostrou os dentes. Os seus olhos cintilaram, seu focinho, numa atitude ameaçadora, se dirigiu contra o casarão, as orelhas em pé.

No mesmo instante iluminou-se uma janela na ala lateral do pavimento térreo. Sybil segurou a coleira do cachorro mais firmemente.

 - Quietinho - murmurou, com olhar imperativo. Atravessando o canteiro que se estendia até o casarão, foi espiar pela janela que não tinha cortinas.

Ela avistou uma sala alta, revestida de lambris de madeira até o teto, em cujo centro estava uma pesada mesa de carvalho. E sobre a mesa... A sua mão voou à boca para sufocar o grito de assombro, ardia a mesma lamparina a querosene cuja tíbia luz, havia pouco, iluminara a cripta dos Selfords.

A princípio parecia não haver ninguém na sala, mas depois notou que algo se movia perto da lareira de mármore, e subitamente um ente da aparência de um homem das cavernas dos tempos primitivos saiu do fundo da sala e penetrou no círculo luminoso da lamparina. Ele tinha uma altura sobre-humana, mas a sua constituição era de uma simetria perfeita; debaixo da sua pele cor de bronze mexiam-se os músculos, que ressaltavam nos braços como cordas. Longos cabelos trigueiros caíam-lhe sobre os ombros como uma juba e uma espessa barba loura cobria-lhe o queixo. Ele trajava um par de calças de linho claro que terminavam em cima dos joelhos. Acercando-se agora da mesa, ergueu a lamparina para iluminar toda a peça, e neste momento ela pôde ver-lhe o rosto. Apesar do seu tamanho incomum, possuía feições quase nobres, porém os olhos azuis tinham uma expressão parva e vazia como a de um retardado mental, e a repulsa que Sybil sentira no primeiro momento transformou-se em profunda compaixão.

Era esse o gigante de quem fugira? Coitado! Ele não passava de um idiota inofensivo. Uma palavra amiga decerto o teria amansado.

O cão rosnou baixinho e ela tapou-lhe o focinho para não trair a sua presença. Mas já um olhar triste daqueles olhos vazios a fixava através da vidraça. O gigante se sobressaltou e rapidamente soprou a chama da lamparina. Toda a sala mergulhou numa escuridão imperscrutável.

Sybil recuou até o caminho. Deveria ela acordar o administrador? Não, melhor seria correr para a casinha do vigia, e dali até o povoado. Entretanto, mal enveredara pela alameda que conduzia ao portão principal do parque, sentiu um rumor de vozes que se aproximavam. Dois vultos escuros vinham em sua direção.

 - Quem é que está aí? Se não responder, solto o cachorro! - ameaçou com voz vacilante.

 - Deus do céu! É Sybil Lansdown! - exclamou uma voz vibrante, e no momento seguinte ela atirou-se ao pescoço de Dick Martin, a soluçar, enquanto o cão saltava em torno deles, alegremente.

 

 - Calma, meu bem, calma - murmurou Dick,quando ela tentou falar e as palavras não articulavam. - Não quero ouvir nada por enquanto. Antes de mais nada você precisa descansar. Há quanto tempo está sem se alimentar?

 - Desde o meio-dia de ontem - confessou Sybil, deprimida.

 - Está vendo! Foi o que eu imaginava. Agora venha! Vamos acordar o administrador, para que ele lhe sirva o que o Solar Selford tem a oferecer a visitas tão inesperadas.

Passou o braço em redor dos ombros dela, sem se incomodar com Sneed, que os seguiu discretamente. Sybil, porém, apertou a mão de Dick com ar aflito.

 - Pelo amor de Deus, não entrem no castelo! - havia uma ponta de histeria em sua voz. - Há poucos minutos espiei por uma das janelas e vi lá dentro um homem terrível, disforme, um gigante! Deve ser algum louco!

Calou-se, emocionada. Lembrava-se de tudo que lhe sucedera desde o seu encontro com Cody.

 - Um gigante? - perguntou Dick, vivamente interessado. Ele e Sneed olharam-se um instante, sem falar. O inspetor meneou imperceptivelmente a cabeça

Dick pediu à moça uma descrição do gigante. Ao ouvi-la, ele fez um esforço para não deixar transparecer no rosto a sua consternação.

 - Provavelmente algum vagabundo, um daqueles santos esquisitos que se vestem como São João Batista e se alimentam de gafanhotos. Já vi muitos sujeitos assim no Hyde Park. Não se preocupe, Sybil, nós somos dois homens fortes e bem armados. Não nos assustamos com o seu Sansão

Ela acompanhou-os, obediente.

 - Havia alguma janela aberta? - perguntou Dick, após uma pausa de reflexão.

Sybil sacudiu a cabeça.

 - Não vi nenhuma janela aberta.

 - Talvez algum amigo do administrador - observou Dick, a fim de tranqüilizá-la. - Vamos tirar isso logo a limpo.

E puxou a campainha.

Dick afagou a mão gelada de Sybil, e ao sentir quanto ela tremia, apertou-a contra si.

Depois a soltou. No interior da casa alguém se aproximava, arrastando os pés. Uma voz agastada perguntou:

 - Quem é? E que quer?

 - Faça o favor de abrir - falou Dick, que reconhecera a voz do administrador. - Sou Dick Martin.

Correntes tiniram, a fechadura estalou, e a porta abriu-se chiando. O administrador, que por cima da camisola vestira apressadamente uma calça que ele mal abotoara, apareceu no limiar, piscando de sono e protegendo com a mão em concha a chama bruxuleante de uma vela.

 - Meu Deus - disse - que vieram fazer aqui? Aconteceu alguma coisa?

 - O bastante para encher todos os jornais matutinos - replicou Dick. - Mas antes de mais nada, diga-me se tem alguma visita.

Ele e Sybil entraram no vestíbulo, seguidos de Sneed.

 - Visita? - perguntou o administrador, espantado. - Não, senhor, não há ninguém... só eu e minha mulher.

Ele trepou numa cadeira e mexeu no candeeiro a gás que, uma vez aceso, espalhou odores fétidos por todo o ambiente.

 - A senhorita Lansdown viu uma pessoa muito estranha em uma das salas do pavimento térreo - disse Dick ao administrador.

Este desceu da cadeira e fitou Sybil com os olhos muito abertos. Sacudiu a cabeça.

 - Impossível! De que maneira teria conseguido penetrar na casa? As portas e janelas estão bem fechadas e todas as noites eu costumo percorrer todo o castelo antes de me deitar.

 - O senhor poderia mostrar-nos os aposentos?

O administrador anuiu, solícito. Eles atravessaram duas salas, e em ambas o administrador acendeu com muita circunspecção os candeeiros, dizendo, voltado para Sybil:

 - Aqui não esteve ninguém!

Finalmente, ao abrir a porta da terceira sala, ela teve um sobressalto. Trocou um olhar com Dick. "Foi aqui!" diziam seus olhos.

Momentos depois o candeeiro derramava uma claridade tíbia pela sala:

Era um aposento de teto alto. Estava completamente vazio. Não havia nenhum sinal do intruso e a lamparina a querosene não estava mais sobre a mesa.

Sybil já se perguntava se a aparição do gigante não havia sido apenas uma imaginação dos seus nervos super-excitados, quando Dick, de repente, assobiou baixinho. Ele descobrira uma bengala tosca encostada no canto formado pela lareira e a parede.

Erguendo-a, examinou-a de todos os lados,

 - É sua? - perguntou ao administrador.

 - Não - disse o outro, sacudindo a cabeça, perplexo. - E não tenho a menor idéia de como isso veio parar aqui. Ontem à noite ainda não estava, tenho certeza.

 - Talvez apenas não a tenha notado - ponderou Dick.

 - Impossível. Minha mulher encerou o chão de mármore ainda ontem, por causa de algumas manchas.

 - Curioso - disse Dick, espaçando as palavras. - Sempre pensei que já não existiam mais feiticeiros no século vinte, mas, quem sabe... - com os nós dos dedos deu algumas pancadinhas nos lambris. - Estas paredes porventura são ocas? Ou existe por trás delas alguma passagem secreta? Nos romances a gente lê a toda hora sobre coisas desse tipo.

Fora apenas uma observação irônica, mas para a sua estupefação o administrador respondeu com ar misterioso:

 - Se as paredes são ocas, bem... isso eu não sei. Mas realmente existe algum segredo. A antiga governanta me afiançou isso, e ela, por sua vez, soube-o do falecido Lord Selford.

Dick inclinou-se sem responder e com sua lanterna de bolso iluminou o interior da lareira. Havia degraus por dentro da chaminé, cimentados em intervalos regulares. Por ali, em tempos passados, costumavam subir os limpadores de chaminé, mas para o corpanzil de um gigante o vão era estreito demais.

Pegando mais uma vez a bengala, examinou a sua ponta de ferro. Havia nela um grânulo de terra fresca e úmida.

 - O que acha disso? - perguntou-lhe Sneed.

Dick encolheu os ombros:

 - Não faço a menor idéia.

Nesse momento reparou em Sybil. Ela estava encostada à lareira, pálida, e batia o queixo como se sentisse frio intenso. Imediatamente deitou a bengala sobre a mesa, pondo fim à inspeção. Carinhosamente conduziu a moça para a sala de estar, na qual, graças à mão habilidosa do administrador, em pouquíssimo tempo começava a arder um fogo alegre que espalhava um calor agradável. Em seguida dirigiu-se com o administrador à cozinha para preparar um café e algumas fatias de pão torrado. Somente depois que Sybil bebeu e comeu, Dick pediu-lhe que contasse a sua história.

Os dois homens tinham empurrado o confortável sofá para junto da lareira; sentada entre eles, os pés estendidos em direção ao fogo para aquecê-los, o rostinho iluminado pelas chamas, ela contou-lhes sua aventura que agora lhe parecia alucinação de um sonho febril. Era quase inacreditável que ela mesma tinha sido a protagonista de todos aqueles horrores.

Ao narrar como Tom Cawler ficara atrás para enfrentar o monstro, ela apertou o braço de Dick com fervor.

 - Oh, Dick, por favor, faça tudo que puder para saber o que aconteceu com ele. Não suporto a idéia de que ele possa ter morrido por minha causa.

As lágrimas rolaram-lhe pelas faces. Pouco a pouco se tranqüilizou e pôde continuar:

 - Só não entendo o que Cody pretendia de mim - concluiu.

Dick não respondeu. Achava melhor não levantar, por enquanto, o véu que envolvia os mistérios de Cody.

Sybil olhava fixamente para a lareira onde queimavam gravetos de pinheiro.

 - Os gritos foram horríveis - murmurou com um arrepio.

Ninguém ousava revelar-lhe a tragédia daqueles gritos.

Dick levantou-se devagar e foi espiar o céu. Assim que a claridade do dia o permitisse, partiria à procura de Cawler. Era o mínimo que podia fazer por Tom.

Entretanto, mal tinha se acercado da janela, recuou bruscamente. Pela alameda aproximava-se um automóvel.

Antes que o motorista pudesse frear completamente o carro coberto de poeira, já se abria a portinhola. Dick avistou a cara pálida e os olhos transtornados de Havelock. Avisando os outros, dirigiu-se apressadamente para o portal, a fim de cumprimentar o advogado.

Havelock vinha correndo, com as abas da casaca voando.

 - Onde está a senhorita Lansdown? Senhor Martin, onde está a senhorita Lansdown? - bufava, agarrando Dick pelas lapelas.

 - Está aqui conosco - acalmou-o Dick. - Mas quem foi que lhe disse que ela poderia ser encontrada no castelo?

 - Eu já... lhe conto... - arquejou Havelock. - Meu Deus, que noite! Por favor, dê-me seu braço.

Ele apoiou-se pesadamente em Dick, que o conduziu ao interior com cuidado.

Ao avistar a moça, Havelock correu para ela e apertou-lhe a mão com força.

Dick apresentou o advogado ao inspetor Sneed, e notou que as sobrancelhas de Havelock se arquearam numa expressão de leve espanto. Depois, visivelmente abalado, deixou-se cair no sofá e enfiou a mão no bolso em busca de uma carta, que passou às mãos de Dick sem uma palavra. Somente agora recuperava a respiração normal.

Dick examinou a carta atentamente Ela trazia o emblema do Ritz-Carlton Hotel. A letra era idêntica à das cartas anteriores de Lord Selford. Ele teve a impressão, contudo, de que era mais descuidada do que de costume.

Lord Selford escrevia:

"Meu caro Havelock

Rogo-lhe encarecidamente que se dirija sem demora para o Solar Selford e providencie uma busca em todo o parque. Não poupe esforços, nem despesas. A minha prima Sybil Lansdown encontra-se no momento nos arredores do castelo, em perigo de vida. O mesmo perigo ameaça todas as pessoas ligadas a ela... inclusive o senhor. Eu bem sei, esta minha carta parecer-lhe-á enigmática, mas mesmo assim, não vacile. Estão em jogo elevados interesses. Tão logo encontre Sybil Lansdown, convide-a para ficar, por enquanto, morando no solar até que eu chegue. Só lá estará em segurança, só lá meu braço poderá assegurar-lhe proteção, a ela e a todos aqueles a que devo e agradeço a firme defesa dos meus interesses. Chegarei ao castelo amanhã, às sete horas da manhã, e terei então oportunidade para esclarecer satisfatoriamente todos os mistérios que no momento os intrigam.

Selford"

 - Quando recebeu esta carta? - indagou Dick.

 - Foi por volta de uma hora da madrugada - redargüiu o advogado. - Eu estava justamente me preparando para ir dormir, pois havia estado a estudar, durante horas, a documentação relativa à Casa Selford. De repente alguém tocou insistentemente a campainha da porta da rua. Levei alguns minutos para descer. Não havia mais ninguém, mas encontrei a carta na caixa. Li-a ainda no corredor e fiquei terrivelmente assustado. "Lord Selford perdeu completamente o juízo?" pensei comigo. Nesse momento, o telefone tocou. Corri para atender, era o próprio Selford. Eu julgara-o no Cairo, mas ele estava telefonando de um aparelho de Londres. Perguntou-me depressa se eu tinha recebido sua mensagem. Eu disse-lhe que sim, e antes que eu pudesse acrescentar mais alguma coisa, ele insistiu em que eu cumprisse imediatamente as suas instruções! Ainda tentei fazer algumas perguntas e oferecer-lhe a minha assistência, mas não obtive resposta. Ele já tinha desligado.

Havelock silenciou exausto.

Sem fazer comentários, Dick estendeu a carta ao inspetor.

— Então me ocorreu a idéia de telefonar para a senhora Lansdown — recomeçou Havelock, um pouco mais calmo agora. — Ela estava muito aflita. Disse-me que a filha andava sumida desde as primeiras horas da tarde. É fácil imaginar como fiquei alarmado. Peguei o carro e vim para cá a toda pressa. Não há palavras para exprimir como me sinto feliz por encontrá-los todos são e salvos.

Recostou-se, respirando aliviado.

Dick ergueu-se e, com um olhar para Sybil, que se mantinha isolada a um canto, observou:

— Acho melhor deixarmos a senhorita Lansdown agora entregue a um sono reparador. O senhor Havelock e o administrador tratarão disso, enquanto eu dou uma busca no parque. O sol já está nascendo.

Todos voltaram o olhar para a janela e viram a claridade rósea entre as copas das árvores do parque.

- E eu, o que faço? — perguntou o inspetor Sneed com ar descontente, conquanto se sentisse muitíssimo bem na sua confortável poltrona.

— Ficará aqui mesmo e tomará todos nós sob suas asas protetoras — disse Dick sorrindo, — Caso eu não esteja de volta até as sete horas, mande alguém à agência dos correios no povoado para telefonar à senhora Lansdown, que deverá ser informada do paradeiro de sua filha o quanto antes.

Dick confiou Sybil aos cuidados da mulher do administrador, que acudiu solícita, e saiu para o jardim, onde foi saudado por um alegre gorjeio dos passarinhos. Em algum lugar um pintarroxo trinava sua canção matinal.

Em menos de meia hora Dick alcançou a cripta funerária dos Selfords. O portão estava fechado. Ele abaixou-se e procurou no capinzal, mas não encontrou a chave que Sybil alegara haver atirado no chão. Decerto Staletti a tinha recolhido e levado consigo.

Ele prosseguiu na sua caminhada. Urgia agora encontrar o lugar onde Tom Cawler aguardara o inimigo desconhecido. Qualquer luta sobre grama raramente deixa vestígios. As gramináceas pisadas pelos pés se ergueriam de novo no orvalho matutino. Apesar disso teve a sorte de deparar com o local da luta depois de demorada busca. Descobriu aqui um tufo de grama arrancado do chão, ali a marca de um salto de borracha, mas em lugar nenhum o solo estava revolvido, nem encontrou qualquer indício de que alguém tivesse arrastado algum corpo pesado através do gramado. Se Tom Cawler perdera a luta corpo-a-corpo com o gigante... e Dick não duvidava disso nem por um segundo... o vencedor devia ter carregado o corpo dali nas costas.

Pensativo, Dick regressou à casa senhorial. Ele teria dado tudo para saber o destino de Tom Cawler, mas ao mesmo tempo temia uma descoberta que viesse confirmar seus maus pressentimentos.

Ao entrar novamente na sala de jantar, Dick interrompeu uma conversação animada.

— Falei ao senhor Havelock do estranho visitante que a senhorita Lansdown viu esta noite nesta casa — explicou Sneed. — O senhor Havelock receia que ele ainda possa estar escondido em algum canto do castelo. O que acha você, Martin?

Dick, em vez de externar sua opinião a respeito, perguntou por sua vez:

— Onde fica a passagem secreta?

Todavia, Havelock garantiu que tal passagem era mera fantasia. Um arquiteto, que havia supervisionado alguns consertos no castelo, tinha-lhe demonstrado, com a planta do prédio na mão, que as paredes não eram suficientemente grossas para esconder vãos e passagens secretas.

— Não — concluiu Havelock. — O solar é um prédio totalmente prosaico e não contém nada de medieval.

— O que faremos agora? — quis saber o inspetor, dirigindo-se a Dick Martin.

— Bem... vou ter de deixá-los agora a fim de acompanhar a senhorita Lansdown, que deve regressar para Londres.

— Regressar para Londres? — protestou Havelock, pondo a mão em concha atrás da orelha, como se não tivesse escutado bem. — Mas... o senhor já esqueceu a carta de Lord Selford?

— A carta de Lord Selford! O senhor toma-a tão a sério?

— Muito a sério — retrucou Havelock com grave ênfase — e peço-lhe que reflita bem se a advertência de Lord Selford não merece toda a nossa atenção. Quanto a mim, eu me repreendo agora por ter dado tão pouca importância às excentricidades e manias de Lord Selford durante todos esses anos! Considerando a sua constante ausência à luz dos últimos acontecimentos, tenho a impressão de que reside nisso a chave de um grande segredo.

Dick balançou a cabeça afirmativamente. Nem com um leve pestanejar revelou que já conhecia o segredo dessa constante ausência.

- Eu compreendo que o senhor não costuma levar muito em conta a opinião de um leigo - continuou Havelock. - Porém, talvez respeite a opinião de um perito no assunto, o inspetor Sneed acabou de me dizer que aceitava a hospitalidade oferecida por Lord Selford.

 - É verdade - admitiu Sneed com franqueza. - Não nego que gostaria de ficar aqui, ainda mais porque é meu dever não me afastar por enquanto desta região.

Dick entendia-o perfeitamente. O inspetor desejava continuar perto do local do crime. O assassinato de Cody ainda reclamava solução e o solar de Selford constituía um centro ideal para as diligências policiais. E a casa de Staletti também ficava próxima.

 - Está bem - disse. - Já que sou minoria, só me resta concordar. Se a senhorita Lansdown está de acordo, ficaremos. É claro que, nesse caso, devemos convidar também a mãe dela.

 - Quanto a isso - atalhou Havelock depressa - não precisa se preocupar. Eu mesmo irei apanhar a senhora Lansdown de carro. Aliás, de qualquer maneira preciso voltar a Londres para resolver alguns assuntos inadiáveis dos quais não me lembrei na afobação da partida. Aqui não lhes faltará nada, meus senhores. O castelo de Selford lhe oferecerá todas as comodidades, e no povoado encontraremos criadagem suficiente. - E voltando-se para Sneed: - Apenas, em seu lugar trataria de convocar um contingente de policiais para vigiar o castelo. Temo que os acontecimentos desta noite possam precipitar a crise.

 

Mil o inspetor Sneed tinha tomado o seu desjejum, ouviu-se o som de uma buzina. Era o chefe de polícia de Sussex em pessoa, trazendo no bolso um mandato de prisão contra o doutor Staletti.

Juntos os dois se dirigiram para o "Átrio do Patíbulo", mas encontraram o ninho vazio; o passarinho tinha batido as asas.

Um operário que morava perto numa cabana e vez por outra cuidava do jardim da casa de Staletti em troca de uma gratificação modesta, declarou que o médico italiano o acordara de madrugada para entregar-lhe as chaves da casa e pedir-lhe que zelasse por ela e pelo jardim até seu regresso.

A revista dos aposentos da casa não produziu quaisquer indícios novos. A cama de Staletti estava arrumada. Ele, obviamente, não dormira nela nessa noite.

Desapontados, os dois policiais rumaram em seguida para Weald House, onde falaram com o médico. Sneed não se enganara, a senhora Cody falecera de um ataque cardíaco, provavelmente causado por grande susto. O inspetor Wilson, que chefiava as diligências, havia recolhido no pomar dezoito cápsulas detonadas, coisa que não sabia como explicar. Sneed cortou-lhe sobre o tiroteio da noite anterior, solucionando assim o enigma.

Cody, ou melhor Bertram, não era nenhum desconhecido da polícia. Ele fora um dos primeiros da Inglaterra a dar aulas por correspondência, afirmando poder ensinar a arte do hipnotismo a qualquer um que lhe enviasse uma libra esterlina. Há sempre incautos que se deixam facilmente ludibriar. Em pouco tempo conseguira ganhar milhares de libras, sem que um aluno sequer tivesse aprendido o hipnotismo. Finalmente o promotor público achara que devia tomar providências. O cúmplice dele, com quem ele havia dividido o lucro, livrara-se da prisão por meio de uma fuga apressada. Esse cúmplice havia sido... Staletti.

 - Veja só... Staletti! - exclamou Sneed, interessado.

 - O senhor se lembra que mais tarde o pegamos praticando vivissecção? - lembrou Wilson. - Aliás, Cody e Staletti mantinham relações cordiais até recentemente. Interroguei os criados. Todos viram Staletti em várias ocasiões. Ordinariamente vinha no meio da noite.

 - Por que os criados não estiveram em casa ontem?

 - Uma das raparigas está doente, a outra se encontrava de folga. Desconfio que Cody planejava algum crime e acabou sendo assassinado na tentativa de executar esse crime.

Eles atravessaram o jardim.

 - Há pouco esteve aqui um senhor Martin - observou o inspetor Wilson. - Ele vinha dirigindo um carro com os pneumáticos furados e ia para Horsham a fim de arranjar pneus novos. Ele pediu-me para lhe dizer que esperasse por ele aqui.

Sneed agradeceu e foi até a estrada. Uma nuvem de poeira aproximava-se depressa. Era Dick com o carro.

 - Entre, eu o levo para o solar - gritou. - Pegaram Staletti? - perguntou, depois que Sneed tomou assento ao seu lado. O inspetor sacudiu a cabeça com ar aborrecido.

 - Foi o que imaginava - observou Dick. - Ele já sabia ontem à noite que tudo estava perdido. Por isso fez uma última tentativa para abrir a porta do túmulo. Ah, se eu tivesse a chave dele!

 - Nada lhe adiantaria - grunhiu Sneed secamente. - Seria apenas a quarta.

 - Apenas a quarta, é verdade, mas espero estar de posse das outras três amanhã de manhã.

 - Por que amanhã de manhã? Não entendo.

 - Amanhã às sete horas chega Lord Selford. Até lá, ou temos todas as chaves, ou não estaremos mais entre os vivos.

O inspetor voltou a cabeça para o lado, fitando Dick com olhar penetrante.

 - Você está escondendo alguma coisa - queixou-se.

Dick preferiu ficar calado. Fez como se precisasse concentrar-se no volante. Primeiro teve de se desviar de uma carroça, e em seguida teve de ultrapassar um Packard que, à sua frente, levantava muita poeira. Poucos minutos depois enveredou pela entrada do parque.

Novas obrigações esperavam Sneed na casa senhorial.

A primeira pergunta de Dick foi a respeito da senhora Lansdown. Ela tinha chegado com Havelock meia hora antes e agora estava no quarto da filha.

Dick encontrou o advogado na sala de estar, visivelmente preocupado.

Ao avistar Dick, empertigou-se.

 - Sabe das últimas? - perguntou em tom grave. Dick encarou-o interessado. Havelock achegou-se e segurou-o pelo braço.

 - Lord Selford não está hospedado no Ritz-Carlton Hotel! Lá não o conhecem nem de nome!

Foi postar-se junto da janela, tentando dominar sua agitação. Depois de uma pausa, virou-se:

 - Pedi um exame dos antigos livros de hóspedes do hotel para verificar se alguma vez no passado Lord Selford esteve lá hospedado. Ainda espero que os empregados do hotel apenas estejam esquecidos, pois do contrário... - interrompeu-se, ajeitando com dedos nervosos o nó da gravata - do contrário terei de recorrer à polícia.

Dick ofereceu-lhe um cigarro. Ele agradeceu e enfiou-o entre os lábios, mas, distraído como estava esqueceu de acendê-lo

 - Não precisa de fogo? - perguntou Dick, com um leve sorriso lhe torcendo os cantos da boca.

Havelock sobressaltou-se, depois aproximou a ponta do cigarro à chama que Dick lhe oferecia. Tirou umas tragadas e sua agitação abrandou.

 - Eu estive na agência de viagens Cook - continuou a relatar. - Quis verificar se realmente Lord Selford já podia estar em Londres. Pois bem, constatei que, efetivamente, ele podia chegar a tempo e me telefonar àquela hora da madrugada se ele aproveitou todas as conexões mais vantajosas das linhas aéreas. Mas como conseguiu saber de tudo que estava acontecendo com Sybil Lansdown na meia hora entre a sua chegada à Inglaterra e o telefonema? Já vi muitas coisas nesta minha atribulada vida de advogado, mas jamais tal amontoado de improbabilidades.

A porta abriu-se e a senhora Lansdown espiou para dentro da sala. Ela estava muito emocionada quando cumprimentou Dick Martin. A angústia da última noite transparecia no seu rosto.

 - Sybil me mandou - disse, depois de se acalmar um pouco. - Ela está aflita para saber se Tom Cawler foi encontrado.

 - Ainda não - informou Dick, sentindo pena.

 - Pode ter-lhe acontecido algo sério? - inquiriu a senhora Lansdown, preocupada.

 - Não sei. Tom Cawler é um rapaz inteligente. Ele já conseguiu safar-se de situações muito mais difíceis - disse Dick em tom tranqüilizador, se bem que ele mesmo não alimentasse muitas esperanças.

A senhora Lansdown respirou algo aliviada,

 - Deus queira que apareça logo, são e salvo. Quero apertar-lhe a mão.

No decorrer da tarde chegaram novas notícias sobre Staletti. Um guarda do povoado, que ia de bicicleta pela estrada, o vira debruçado sobre o motor do seu automóvel, mexendo nas peças. Quando, mais tarde, o guarda voltou a cabeça, o carro sumia numa nuvem de poeira. Provavelmente Staletti estava fugindo para Londres. Já na parte da manhã, todos os postos policiais haviam recebido uma descrição dele, que à noite também seria divulgada pelas estações de rádio, para conhecimento da população.

Após dormir profundamente por algumas horas, Dick levou a cabo uma revista minuciosa de toda a casa. Os antigos aposentos do falecido Lord Selford situavam-se na ala lateral esquerda. Uma escada particular levava ao pavimento térreo. Na ala direita achavam-se os cômodos da criadagem. Morava ali também o administrador. Do lado oposto à escadaria principal, uma grossa porta talhada abria-se para o faustoso quarto de dormir do castelo. Durante séculos os Selfords tinham conduzido para lá as suas noivas após as cerimônias de casamento, e no amplo leito, que ocupava o centro da peça, todos os seus filhos tinham vindo ao mundo.

Era este o quarto que havia sido destinado a Sybil; ali ela aguardava a chegada do último descendente dos Selfords!

 

Dick correu os reposteiros de veludo. Notou então que as duas janelas, pelas quais se filtrava a luz do entardecer, tinham grossas grades de ferro. Ele chamou o administrador e soube que as grades haviam sido instaladas no tempo do falecido Lord Selford, depois de uma atrevida tentativa de assalto. O quarto era o aposento mais luxuoso de toda a casa. Os lambris e os gobelines valiam uma fortuna.

Dick abriu as janelas e sacudiu os varões da grade. Eles estavam tão bem cimentados na alvenaria que teriam sido necessários preparativos de muitos dias para removê-los.

Finalmente pediu ao administrador que lhe mostrasse os porões. Uma íngreme escada descia da cozinha para a espaçosa adega, que continha vinhos de muitas safras famosas. Contrário às adegas da maioria das casas senhoriais, o teto desta não era abobadado. Pesadas traves e pranchas de carvalho sustentavam o teto baixo.

- Muito arriscado em caso de incêndio - observou Dick, voltando-se para o administrador.

Os demais compartimentos contíguos à adega estavam completamente vazios, com exceção de um único, que ficava por baixo do corpo central da casa. Armazenados ali havia três enormes barris de cerveja.

 - Bem, pelo que vejo, líquido é que não falta por aqui! - comentou Dick. - Se Lord Selford quiser, poderá embriagar um regimento inteiro.

Mais tarde dispensou o administrador. Fingiu deixar a adega; todavia, mal seu acompanhante desaparecera de vista, entrou furtivamente na cozinha, onde foi apanhar um abridor de caixote, com que retornou aos barris. Em poucos minutos fez um furo num deles.

Vapores estonteantes ergueram-se. Antes de saber do conteúdo já o adivinhara. Embatocou cuidadosamente com tocos de madeira o orifício que tinha feito.

Satisfeito com o resultado da sua investigação, foi até o pátio pegar o carro. Ninguém reparou na sua partida. Dirigiu o automóvel até o portão de entrada, onde o escondeu entre as árvores. Em seguida voltou lentamente a pé para a casa senhorial.

A hora de crise estava próxima. Ele sentia que a atmosfera estava carregada de eletricidade e na sua mente já via rasgar-se a cortina por trás da qual se ocultava Lord Selford.

 

No relvado diante da casa encontrou-se com Sybil da qual soube que havia chegado reforço policial de Londres. Os homens estavam sendo distribuídos pelos corredores do castelo, orientados pelo inspetor Sneed e pelo senhor Havelock.

 - Você conseguiu dormir? - perguntou ele carinhosamente.

 - Sim, muito bem até. Obrigada. Já me refiz e estou calma agora.

 - Coitadinha - murmurou Dick.

 - Não deve ter pena de mim. Eu mesma sou culpada de tudo que me aconteceu. Não pode imaginar como estou furiosa comigo mesma, por sua causa.

 - Por minha causa? Como assim?

 - Sei que a sua preocupação pela minha segurança o deixou muito aflito. O senhor Sneed me contou.

 - Ele não devia ter feito isso.

 - Ao contrário, sou muito grata ao inspetor por isso. Nunca mais farei o que quer que seja sem pedir sua opinião antes.

Dick tomou-lhe a mão e apertou-a com força, sem dizer nada.

 - Se pelo menos já fosse amanhã. Eu estou muito preocupada com o senhor Havelock - continuou ela. - Seu acabrunhamento cresce à medida que o tempo passa e a noite se aproxima. Ele tem medo de ser a próxima vítima,

 - A vítima de quem?

 - De Staletti - ela teve um arrepio ao pronunciar este nome.

 - Medo de Staletti? - perguntou Dick, admirado.

 - É, e mais ainda. Ele acha que Lord Selford pode estar sob a influência hipnótica de Staletti, fazendo somente o que este lhe ordena.

 - Ele mesmo lhe confessou isso?

 - Bem, - sorriu ela com uma ponta de convencimento ingênuo - ele confia em mim. Ele sente que eu o compreendo. Um homem talvez o desprezasse se ele lhe revelasse que está com medo.

 - O nosso amigo Havelock é um "homme à femmes" - constatou Dick com um sorriso. Entretanto Sybil, absorta em pensamentos, não reparou na sua observação.

 - Eu não consigo compreender Lord Selford - disse ela, com ar meditativo. - Durante anos não se preocupou nem um pouco conosco. Por que agora esse súbito interesse no meu bem-estar?

 - Isso eu lhe posso explicar. Você é a sua legitima herdeira.

Sybil estacou, sobressaltada.

- O que quer dizer com isso? Afinal, ele é moço ainda, pode ter muitos filhos. Quem sabe, talvez até seja casado. Uma vez Havelock deu a entender essa possibilidade.

 - Se você admite, como faz Havelock, que o lorde talvez esteja debaixo da influência de outras pessoas, então pode haver gente interessada na questão da herança e da sucessão. Lord Selford, por esta ou aquela razão, deixava-se explorar facilmente. Você talvez não se preste a tal papel. Está vendo agora por que Selford ou seus manipuladores têm um justificado interesse em você?

 - Meu Deus, mas isso é terrível! - exclamou ela.

 - O perigo que a gente conhece deixa de ser terrível - respondeu Dick com uma calma imperturbável - Você tem muitos amigos para protegê-la contra quaisquer ameaças.

Ela deitou-lhe um olhar de gratidão.

 - Cody já fez uma tentativa contra você e acabou perdendo a vida - continuou Dick após alguns momentos de reflexão. - O que ele lhe deu para assinar foi, sem dúvida, um documento de doação ou até mesmo um testamento. Ele pretendia se apoderar, desse modo, de um trunfo em relação aos demais cúmplices. Talvez ele já se sentisse ameaçado e acreditasse na possibilidade de salvar sua vida mediante a posse de semelhante documento. Entretanto, outros o impediram de levar adiante esse projeto e o castigaram horrivelmente.

Sybil, que agora já sabia do triste fim do senhor Cody, ficou calada. Encarou depois Dick com olhos que refletiam terríveis pressentimentos.

— Mas onde está Lord Selford? - perguntou em voz baixa.

 - Não sei - respondeu ele com simplicidade - Tenho esperanças e tenho temores.

Sybil deteve-se e segurou-lhe o braço.

 - Você acha que... que ele pode estar morto? - balbuciou.

Dick desviou os olhos.

- Será melhor para ele, se estiver morto - disse entre os dentes.

Neste momento o senhor Havelock assomou no portal. Devagarinho Sybil tirou a mão do braço do detetive e foi ao encontro dele.

O rosto do advogado mostrava uma palidez impressionante.

 - Algo de novo sobre Staletti? - perguntou.

 - Nada - replicou Dick. - Mas fique calmo. Ele não escapará. A rede está se fechando inexoravelmente em volta dele e já está bem mais apertada do que ele imagina.

O administrador serviu o jantar na biblioteca. Foi uma refeição silenciosa. Todos estavam absortos em pensamentos.

Enquanto Havelock e Sneed se acomodaram num canto para fumar, Dick voltou com Sybil para o jardim. Passado algum tempo, ela retornou sozinha e pediu à mãe que a acompanhasse. Depois de animada conversa das duas com Dick Martin, elas deram boa-noite ao detetive e recolheram-se aos seus respectivos quartos.

Dick voltou à biblioteca. Ficou junto da janela, espiando o céu. O crepúsculo descia lentamente sobre as copas das árvores. Dentro de uma hora seria noite escura.

 - Alguém me acompanha num passeio aos túmulos? - perguntou.

Havelock consultou o relógio, nervoso.

—É muito tarde para isso. Além do mais, não fica bem deixarmos a senhora e a senhorita Lansdown sozinhas na casa.

 - Elas já foram deitar-se - retrucou Dick - e os vinte policiais distribuídos pelo castelo garantem sua segurança. Eu preciso que me sirva de guia, Havelock.

 - Está bem, senhor Martin. Mas não gosto da idéia.

 - Ora, ora, não será necessário descermos à cripta. Estou mais interessado em conhecer os cantos do parque que ainda não tive oportunidade de ver.

Os dois puseram-se a caminho. Chegando ao vale, um silêncio sepulcral os rodeava. Momentos antes um grilo soltara o seu canto estridente, agora também isso cessara.

 - O senhor acaso tem alguma teoria por que Lew Pheeney teve de morrer? - perguntou Dick ao advogado

 - Lew Pheeney? - Havelock fitou-o admirado. Fez um esforço para se lembrar de quem era esse sujeito Pheeney.

Dick revelou-lhe então o segredo que fora a causa da sua morte violenta. Havelock ficou muito surpreso e visivelmente desnorteado.

 - É uma pena que somente agora fico sabendo dessa história - disse afinal. - Talvez já então eu tivesse adivinhado em que túmulo ele tentara aplicar a sua habilidade. Lew Pheeney chegou a dizer o nome do homem que o contratara para arrombar as fechaduras?

 - Lew Pheeney não era um denunciante. Mas quem poderia ser, senão...

 - Staletti? - atalhou Havelock mais que depressa.

Dick anuiu.

Havelock tirou o chapéu e enxugou a testa.

 - Pelo jeito, quem se associa com Staletti faz bem em fazer seu testamento.

Galgaram a colina. Dick estacou.

 - O que é aquilo? - apontou para uma área branca ao longe, no meio da planície escura.

 - São as pedreiras de Selford - informou o advogado. - Estão há muito tempo desativadas. Há uma estrada passando por ali, mas está impedida, pois oferece muito perigo, até para quem anda a pé.

Atravessaram a floresta e chegaram à clareira. O penhasco que se alçava sobre os túmulos repousava numa quietude total.

Era visível o alívio de Havelock quando encetaram o caminho de volta para a casa senhorial.

Dois policiais montavam guarda junto do portal. Eles informaram que a senhora Lansdown, havia algum tempo, abrira sua janela e lhes pedira para acordá-la às sete horas da manhã.

 - Vamos entrar - propôs o advogado. - As nossas vozes poderão acordá-la.

Foram novamente para a biblioteca, onde Havelock abriu uma garrafa de champanhe. A sua mão tremia ao erguer o cálice para um brinde:

 - Ao feliz regresso de Lord Selford!

Dick e o inspetor trocaram um olhar cético.

 - Se Lord Selford realmente cumprir sua promessa, a primeira coisa que farei será devolver-lhe a administração de seus bens - disse Havelock ao depor o copo vazio. - Os cocos que ele me dá para quebrar são duros demais - esboçou um sorriso depois desta tentativa de gracejar. - Só espero que ele efetivamente apareça! - acrescentou, mais sério.

 - A propósito, onde é que o senhor vai dormir?

 - inquiriu Dick. - Gostaria de saber onde encontrá-lo em caso de uma emergência.

 - Vou dormir na ala residencial do falecido Lord Selford. É muito confortável lá, embora o meu quarto fique um pouco afastado. Mas o que pode me acontecer? Um policial vai ficar no corredor vigiando a minha porta durante toda a noite.

Sneed deixou o champanhe escorrer pela garganta.

 - Eta, vinho bom! - exclamou, estalando a língua.

 - Que tal abrirmos outra garrafa? - sugeriu Havelock.

Depois da segunda garrafa o advogado recuperou sua fleuma.

 - Não me considero nenhum bobo - comentou. - Mas por mais que eu examine os fatos acontecidos, continuo não entendendo nada. Como é que Lord Selford foi-se meter com esse Cody, e o que esse aventureiro italiano Staletti foi procurar nos túmulos dos Selfords?

Dick, apoiando os braços sobre a mesa, inclinou-se para a frente:

 - A estas perguntas posso responder. Alguma vez ouviu o nome "Bertram"?

 - Bertram? - Havelock enrugou a testa com ar meditativo. - Se estou bem lembrado foi este o nome do diretor da escola particular que Lord Selford freqüentava durante a sua infância, após a morte do pai.

 - Então! - exclamou Dick, satisfeito - Agora já temos a explicação. Depois que Bertram deu motivos para se envergonhar do nome que tinha herdado do pai, transformou-o em primeiro nome e acrescentou o nome Cody.

O advogado recostou-se na cadeira.

 - Bertram e Cody são a mesma pessoa? Mas isso é impossível!

 - Ainda vamos ter outras surpresas, senhor Havelock. O administrador mencionou hoje uma antiga governanta que cuidava do garoto no tempo em que Lord Selford ainda vivia. O senhor se lembra do nome dela?

O advogado fez um esforço de memória.

 - Não muito bem; mas guardo no ouvido o som do nome dela. Era algo como Crawther.

 - Não teria sido Cawler? - perguntou Dick.

 - Cawler? - o advogado refletiu. - Sim, pode ser. O nome não me é estranho. Ah, agora me lembro! O chofer de Cody... ele não se chamava Cawler?... Tom Cawler?.. O senhor mencionou este nome várias vezes.

 - Exatamente. A senhora Cawler era a tia dele e a mulher de Cody!

Fez-se um profundo silêncio.

 - Tem certeza disso? - perguntou Havelock finalmente.

 - Toda. É verdade que os assassinos de Cody tiveram o cuidado de retirar todos os documentos da escrivaninha, mas passou-lhes despercebido um cofrezinho que a senhora Cody guardava debaixo da cama. Nele encontrei sua certidão de casamento, que revelou três coisas importantes. Primeiro: que casou com Cody três meses após as exéquias do seu amo, o velho Lord Selford. Segundo: que, quando casou, ainda era governanta no castelo. Terceiro: que já naquela época conhecia Staletti, pois foi ele uma das testemunhas de casamento. A propósito, o senhor alguma vez chegou a ver o senhor Cody?

Havelock fez que não com a cabeça.

 - Todas as negociações concernentes à venda de terras na Austrália e ao arrendamento de Weald House foram conduzidas pelo meu chefe de escritório. Eu, naquela ocasião, não me encontrava na Inglaterra, pois estava fazendo uma estação de águas em Karlsbad.

 - O senhor sabia que Staletti freqüentava a casa de Lord Selford e provavelmente até prestava assistência médica ao lorde7 - perguntou Dick.

 - Estou estupefato! - o advogado conseguiu finalmente gaguejar. - Afinal de contas, o médico de Lord Selford era Sir John Finston. Asseguro-lhe que Lord Selford jamais pronunciou o nome Staletti em minha presença.

- Não obstante, Staletti estava perfeitamente a par do seu estado - redargüiu Dick com ênfase especial.

Havelock deitou-lhe um olhar desconfiado

 - Quer me parecer que uma intriga bem engendrada se passou debaixo dos meus olhos, com Lord Selford como ator principal - disse com voz vacilante.

 - Perfeitamente - conveio Dick. - É o que parece Por favor, leia esta carta

E fez um sinal para Sneed. O inspetor sacou a carteira, retirou dela a carta que o senhor Cody escrevera à senhora Cawler e empurrou-a com a mão através da mesa.

 - Esta carta também foi encontrada no cofrezinho - explicou Dick.

Havelock debruçou-se sobre a carta e leu-a, sem tocar nela.

 - Não estou entendendo mais nada - comentou, levantando os olhos. - Pelo visto, fui totalmente enganado. Entretanto, confesso que, quanto mais claras ficam algumas coisas, mais confusa se torna a história toda.

 - Amanhã de manhã deve chegar Lord Selford - consolou-o Dick. - Ele, sem dúvida, vai poder explicar tudo. - Consultou o relógio: - Já é tarde. Vamos dormir. Quem sabe o que ainda nos espera!

Sneed tornou a guardar a carta. Em seguida apoiou-se sobre a mesa com ambas as mãos e ergueu-se da cadeira, gemendo. Mas quando avistou a confortável poltrona junto da lareira acesa, encaminhou-se depressa para ela. Como um saco de batatas afundou entre as almofadas macias.

 - É aqui que armo a minha rede! - anunciou com um suspiro feliz. - Louvado seja o inventor das poltronas!

 

Um quarto de hora depois Dick abriu silenciosamente a porta do seu quarto, cumprimentou com um aceno de mão o policial que montava guarda no corredor, girou a chave do lado de fora e meteu-a no bolso. Desceu a escada nas pontas dos pés e foi até Sneed, que já estava dormindo na poltrona.

 - Está na hora - disse baixinho.

Sneed acordou com um sobressalto, suprimiu um gemido e seguiu seu jovem amigo para a sala onde Sybil tinha visto o misterioso monstro. A luz da lanterna de bolso mostrava apenas quatro paredes nuas.

 - Você ficará esperando à frente da porta, Sneed, e não se mexa! Eu estarei observando esta sala através da janela. Pode demorar muito, mas tenho a certeza de que não foi a primeira vez que o gigante veio aqui, nem terá sido a última!

Deixando o inspetor junto da porta, ele saiu da casa e foi postar-se exatamente no mesmo lugar onde o chão ainda mostrava as pegadas de Sybil,

O tempo foi passando mais devagar do que de costume, porque estava carregado de tensão. Gradualmente os olhos de Dick foram-se ajustando à escuridão. Mais e mais objetos em derredor ganhavam contornos e formas. A lua surgiu e projetou as sombras dás árvores sobre o relvado, Quando a brisa noturna movia as folhas, parecia que lúgubres fantasmas estavam se dando as mãos para uma dança misteriosa.

Através do silêncio soaram doze badaladas do relógio da torre. Depois passou-se outra eternidade. Dick já sentia um formigueiro nervoso nos pés e os músculos da perna começavam a doer-lhe.

De repente o aposento à sua frente se iluminou parcialmente. Um feixe de luz refletiu-se no tampo da mesa. Ele procedia do lugar da lareira. Dick ergueu-se nas pontas dos pés. O raio luminoso ampliou-se. A lareira girou sobre um espigão e revelou um buraco no chão. Apareceu uma mão segurando uma lamparina... a mesma lamparina que Dick já conhecia do relato feito por Sybil.

A mão seguiu-se uma cabeça emoldurada por cachos de cabelos dourados, a cabeça de um deus mitológico... se ela não fosse totalmente destituída de vida e expressão. O único sentimento humano que o rosto neste momento refletia era um sorriso infantil, que contrastava comoventemente com a força dos membros e a exuberância dos músculos.

O gigante adiantou-se e depositou a lamparina sobre a mesa. Em seguida virou-se e enfiou a mão no poço escuro. Alguém a segurou, e com horror indescritível Dick viu surgir outro vulto igual ao primeiro. Este segundo gigante tinha cabelos cortados curtos e uma fisionomia lisa, sem barba. Os seus olhos possuíam o olhar apático dos escravos, mas não eram totalmente sem expressão. Naquele rosto, de zigomas bem marcados e nariz saliente, lia-se certa ferocidade... uma selvageria agora apenas abrandada pela boa índole e alegria antecipada do companheiro. Ambas as criaturas estavam nuas da cintura para cima; vestiam apenas calças curtas rasgadas que mal lhes cobriam as coxas. Com passos furtivos aproximaram-se da parede. O de barba empurrou os lambris, que se deslocaram, deixando à mostra um armário embutido.

Mas no mesmo momento moveu-se o trinco da porta. Os gigantes assustaram-se, e o sem barba, como um relâmpago, precipitou-se para a mesa e apagou a chama da lamparina.

Dick, lançando pragas entre os dentes, saltou por cima do canteiro e entrou correndo no vestíbulo.

Junto ã porta entreaberta encontrou Sneed que, a mão sobre o trinco, olhava fixamente para a frente, como que petrificado.

 - Eu não lhe disse para não se mexer! - sibilou Dick furioso, passando por ele e entrando na sala. Ela estava vazia. Quando acendeu o candeeiro a gás, ele viu que a lareira havia sido recolocada na sua posição normal e que a lamparina sobre a mesa desaparecera.

 - Tive a impressão de que você me tinha chamado - desculpou-se Sneed - Alguma coisa se movia aqui dentro. Abri a porta e vi... - ele estremeceu.

Dick não se dignou a responder. Raiva e desapontamento o dominavam neste momento. Estivera tão perto da solução do mistério, e agora tudo tinha ido a pique!

Acercou-se do armário, que continuava aberto. Os seus olhos se arregalaram. Preparado para uma descoberta terrível, deparou-se com... brinquedos, uma porção de brinquedos para crianças: uma ferrovia, mas sem a locomotiva; bichos de pelúcia e de madeira, uma caixa com soldadinhos de chumbo, bolas coloridas, alguns piões, balizas de boliche infantil, um teatrinho de bonecos...

Dick não perdeu uma palavra sobre esta descoberta, nem tampouco olhou para o inspetor. Nunca na sua vida sentira tanta tristeza e tamanha impotência. Voltando para a lareira, tentou movê-la, mas seus esforços foram inúteis.

Levantando os olhos, disse:

 - Por baixo disto aqui existe um corredor que conduz para uma das câmaras mortuárias da cripta. Fique aqui; enquanto isso vou correr para os túmulos.

Sneed tentou dissuadi-lo, mas Dick não quis saber de discussões. A passos largos atravessou o gramado e sumiu entre as sombras do parque. O caminho parecia interminável. Chegando à clareira, abruptamente estacou. Escutava vozes de gargantas adultas, mas que soavam infantis. Cautelosamente avançou.

O portão para a cripta estava aberto. À frente dele banhados pelo luar, os dois gigantes, segurando-se nas mãos como crianças, dançavam dois passos para a direita, dois passos para a esquerda, enquanto cantavam: "Jimmy por que choras, por que choras tanto assim?"

Entre eles estava um rapaz em culotes e casaco apertado. Ao lado dos dois titãs parecia um anão. A princípio Dick não conseguiu reconhecê-lo porque ele estava sempre meio encoberto pelos corpos dos dois gigantes. Mas de repente pôde vê-lo nitidamente.

Dick agarrou os galhos dos arbustos mais próximos para suster-se e dominar sua emoção. Era Tom Cawler.

Cansados da grotesca dança de roda, as duas crianças gigantes puxaram Tom Cawler pelo braço. Depois apanharam alguma coisa do chão: uma corneta infantil e a locomotiva que faltara no armário de brinquedos. Eles acocoraram-se na grama e mostraram a Tom orgulhosamente os seus tesouros. Tom fingiu que nunca tinha visto coisas tão bonitas, e depois deu corda à locomotiva e deixou-a correr sobre o gramado. Os dois gigantes olhavam de olhos arregalados e bateram palmas entusiasticamente. Um deles soprou a corneta, que emitiu um som estridente que mais parecia um grasnado.

Cawler virou o rosto para o lado, como se não suportasse mais aquele espetáculo patético, e Dick percebeu que ele estava a ponto de chorar. Crispava o rosto e com os dentes mordia o lábio superior, para não irromper em soluços. Neste momento conquistou a afeição de Dick, que tinha vontade de estender-lhe os braços num gesto de amizade.

De repente soou um assobio agudo na floresta, e imediatamente se operou uma terrível mudança nas duas criaturas gigantes.

Eles se abaixaram, ficando de cócoras, numa atitude submissa. Tom Cawler deitou-lhes um olhar aflito, depois se ocultou nas sombras do penhasco. Um segundo assobio riscou o silêncio da noite. Os gigantes levantaram-se num pulo e ficaram de pé, de braços pendurados, soltando gemidos de pavor. Staletti, minúsculo ao lado dos seus pupilos, desprendeu-se da escuridão da mata, empunhando uma pistola engatilhada.

 - Ah, é aí que vocês estão, meus filhinhos! Por que tentam se esconder? Não adianta, eu sempre volto a achá-los! - exclamou. - Sempre! - repetiu em tom duro e enfático.

Postou-se diante deles de braços cruzados, confiante na força do seu olhar penetrante que os fazia tremer de medo.

 - Venham comigo! - ordenou, em tom simultaneamente insinuante e ameaçador. - Terão doces e carne suculenta!

Virou-lhes as costas sem temor e desapareceu na floresta. Os dois gigantes puseram-se a trotar atrás dele como dois cachorrinhos obedientes.

Mal tinham eles sumido entre as árvores, Cawler saltou do seu esconderijo. Os galhos das árvores fecharam-se atrás dele. Dick, tateando, seguiu-o.

Apesar de atento a tudo que se passava, ele se sentia estonteado, como se estivesse num espaço além da realidade, num mundo onde se chocava o cotidiano com o mitológico. Aquele homem que à sua frente pulava da proteção de um tronco para a proteção de outro tronco a fim de ocultar-se, era ele realmente Tom Cawler, chofer de profissão? Ou era ele um dos espíritos de vingança que perseguiam os assassinos da Antiguidade e não descansavam até alcançá-los e estrangulá-los?

Dick não tinha idéia para onde a perseguição o estava levando. Quando as árvores começaram a rarear, parecia lhe encontrar-se à frente do vale, mas depois se deparou de repente com uma estrada desconhecida.

Subitamente ouviu o ronco abafado de um motor. Precipitou-se para a frente, mas chegou tarde. Staletti já tinha alcançado seu automóvel e fugia com suas duas vítimas. Entretanto, outro tinha sido mais rápido do que Dick: Tom Cawler! Ele se pendurara no carro e ia nele como passageiro clandestino.

O carro subia um declive íngreme. Dick, que era um excelente corredor de longas distâncias, tornou a avistar o automóvel que, devido à sua pesada carga, só avançava lentamente. Neste momento viu Cawler deslizar através da capota.

O carro já desaparecera por trás da elevação, quando Dick escutou uma exclamação de terror, que se transformou num grito de dor. Ofegante, atingiu o topo da encosta. À sua frente, do lado esquerdo, ficava o fundo da antiga pedreira, agora transformado num lago de água barrenta. Na estrada, que margeava um abismo, o automóvel, sem ninguém na direção, derrapava, e no instante seguinte as rodas dianteiras ficaram penduradas no vazio. Os gritos no interior do carro se multiplicaram. Um segundo de silêncio sepulcral separou os gritos e o fragor da catástrofe. O automóvel despencou, virando no espaço durante a queda. Depois bateu com grande estrondo na água, desaparecendo no lago subitamente agitado que, momentos antes, se estendera tranqüilo à claridade da lua cheia.

 

Com saltos arrojados. Dick desceu a encosta em direção do automóvel acidentado. Quando, escorregando e tropeçando, finalmente alcançou uma saliência rochosa próxima ao nível da água, viu um vulto nadar para a margem. Dick reconheceu-o imediatamente.

 - Tom! - chamou.

Cawler, o rosto contorcido, o peito arfando, soluçava. Dick agarrou-lhe no braço.

 - Cawler, por que chora? Não está contente por ter saído com vida deste terrível acidente?

Mas Cawler gritava:

 - Ele morreu! Ele morreu! Meu pobre irmão Johnny. Oh, senhor Martin... faça alguma coisa! O carro virou na água e ele está preso por debaixo dele!

Dick não perdeu tempo. Tirando o casaco, atirou-se na água.

O automóvel encontrava-se a poucos centímetros debaixo da superfície da água, mas foi impossível movê-lo. Afundado na lama, entalado entre duas rochas salientes, teriam sido necessárias forças sobre-humanas para mudar sua posição.

Dick voltou à margem, exausto e triste Quando Tom Cawler compreendeu que não havia mais esperança, rolou pelo chão, arrancando a grama e soluçando.

 - Por que... não matei... esse canalha... ontem! Oh, meu Deus! Por que não fiz isso logo, quando reconheci meu irmão!

 - Seu irmão?

 - Sim, senhor Martin, meu infeliz irmão! Eu vi-o se aproximar. Um monstro, e eu sabia que ele vinha para me matar. Mas ignorava que era meu irmão... isso eu não sabia! Agarrei a chave de parafusos com mais força e saltei-lhe nas costas. E aí... - Tom Cawler fez uma pausa, soluços cortavam-lhe a voz... - Aí senti um pequeno apêndice de pele na orelha dele, que ele já tinha em criança e sobre o qual muitas vezes havíamos gracejado. Então o reconheci! "Johnny!" gritei... e ele parou... como que imobilizado por aquele grito. Larguei a chave de parafusos e escorreguei para o chão, olhei-o bem nos olhos e gritei mais uma vez o nome dele. Ele caiu de joelhos, atirou-se na grama, uivando... como um animal ferido. Meu Deus... meu Deus! Era mesmo meu irmão Johnny! Staletti o havia transformado num monstro, num escravo que cumpria todas as suas ordens!

Tom Cawler, louco de dor, martelava o chão com os punhos.

 - Oh, esse demônio, esse Staletti! Há muito tempo eu desconfiava dele. Dias atrás escutei, sem que me vissem, uma conversa entre ele e Cody no seu gabinete de estudos. O sem-vergonha jactava-se do assassinato de Lew Pheeney. Para executar esse crime servira-se também do seu escravo. "Oh, seus cachorros!" eu disse comigo, "Vou acabar com isso! Em breve terei vocês todos em minhas mãos." Idiota que fui! Eu devia ter dado um tiro através da janela, bem no meio da testa desse sujeito!

Soergueu-se e sacudiu o punho em direção do lago:

 - Satanás! Satanás!

Sa... ta... nás! Sa... ta... nás! - ribombou o eco distante.

Cawler abriu o punho, olhando fixamente para sua mão. Uma louca gargalhada de triunfo rompeu-lhe da garganta.

 - Uma ação boa esta mão de gatuno finalmente praticou! - exclamou com feroz satisfação. - Esfacelei a cabeça desse vilão! Ouviu seu grito, senhor Martin? Matei-o com a chave de parafusos, da mesma maneira como ele mandou meu irmão matar Cody!

 - Quem dos dois gigantes era seu irmão?

 - Aquele sem barba. Staletti lubrificava a pele dele com óleo quando o mandava matar alguém... para que ficasse escorregadio e ágil como uma enguia.

 - E quem era o outro? Parece que Staletti mantinha-o sempre escondido.

 - O outro? Então o senhor não sabe?

 - Apenas desconfio - respondeu Dick com voz vacilante.

 - Staletti tinha bons motivos para mantê-lo escondido - disse Tom Cawler, cerrando os punhos. - Era Lord Selford - acrescentou, quase aos gritos.

E novamente o lúgubre eco respondia: Sel...ford! Sel...ford!

A gargalhada insane de Tom Cawler abafou o eco.

 - Lord Selford... Castelão... Latifundiário... Multimilionário... e tudo que possuía não passava de alguns farrapos sobre o corpo e um armário cheio de velhos brinquedos.

Dick não disse nada. Com a palma da mão cobria os olhos. Que valor tem herança... árvore genealógica... aristocracia...? pensava. O último descendente de uma grande linhagem, apesar da exuberância dos seus músculos, acabara como um pobre e infeliz idiota!

Outra horrível gargalhada de Tom Cawler fez com que Dick voltasse à realidade, inclinando-se para o rapaz estendido no chão, agarrou-o firmemente nos ombros e sacudiu-o.

 - Homem, domine-se! - disse em tom imperativo - Naturalmente entendo a sua dor, mas nós devemos nos conformar com o que não pode ser remediado. Suportar tudo com um mínimo de dignidade é um dos privilégios do homem. Lamentos e ódios não vão ressuscitar seu irmão. A nossa obrigação agora é buscar ajuda para que ele possa ter um enterro condigno.

Cawler, porém, não quis deixar o local da tragédia.

Calado agora e teimoso, respondeu às bem-intencionadas exortações de Dick Martin com acenos negativos da cabeça. Finalmente Dick teve de desistir.

Com muita dificuldade, sempre escorregando, ele galgou a encosta, e quando lançou um último olhar para trás, Tom Cawler continuava sentado junto da margem, olhando fixamente para a água.

Apressando o passo, Dick iniciou a longa caminhada em direção do castelo. Quando finalmente avistou as árvores do parque, ouviu apitos e o som de sirenas. Um clarão vermelho tingia o céu. Toda a casa senhorial, dos alicerces até o sótão, era um mar de chamas. Vidraças partiam, explosões estouravam sucessivamente no centro do inferno fumegante, e de todas as portas e janelas saíam línguas de fogo.

A polícia estendera um cordão de isolamento em volta do prédio. Um vulto esquisito, com os cabelos esvoaçando, corria feito louco pelo gramado. Eta Havelock, que vestira depressa uma capa sobre o pijama. Com o braço apontava em direção às janelas sobre o portal central, agora encobertas por uma impenetrável cortina de fumaça. Ele agarrou a manga do casaco do inspetor Snecd, que apaticamente fumava seu cachimbo e de olhar fixo contemplava o espetáculo d? casa em chamas

 - Como pode ficar aí parado como se a vida das duas mulheres lhe fosse indiferente? Mande seus homens serrar as barras da grade! Eu prometo uma gratificação a quem tiver a coragem de penetrar naqueles quartos.

Sneed, todavia, apenas meneou a cabeça, com ar indeciso.

Havelock se dirigiu a um dos policiais:

 - Escute, eu ofereço um prêmio de quinhentas libras a quem pelo menos fizer uma tentativa de salvar as mulheres desse inferno!

Repentinamente Dick surgiu ao seu lado e pôs a mão sobre seu braço.

 - Não precisa ficar tão aflito! - disse - Nem a senhora Lansdown, nem sua filha se encontram na casa.

- - Não se encontram na casa? O que quer dizer com isso? - gaguejou Havelock.

- Eu já previa este incêndio ontem à tarde, e por isso mandei que voltassem para seu apartamento em Londres, no meu carro. Isso aconteceu enquanto nós dois passeávamos pelo parque, ontem à noite, de modo que o senhor não podia sabê-lo.

Por baixo da sua mão o braço de Havelock estremeceu, mas Dick prendeu-o com guante de ferro.

 - O senhor teve um momento infeliz na sua vida, senhor Havelock. Foi quando caiu nas mãos de Staletti. Desde então cometeu uma série de crimes e foi-se aproximando cada vez mais da beira do inferno. Depois do meu regresso, o senhor sentia que o laço se estreitava em volta do seu pescoço, e no desespero teve a idéia de acabar com todos os seus inimigos, queimando-nos vivos num incêndio provocado. Mas eu descobri os seus barris de petróleo no porão, de modo que pude pôr de sobreaviso todos que estavam ameaçados por suas intenções diabólicas!

Havelock empalidecera. Os seus lábios se moviam, mas ele não conseguia articular palavras.

Sneed sentiu que havia chegado o momento psicológico para a sua intervenção. Tirando o cachimbo da boca, pousou a mão direita com ligeira pressão sobre o ombro de Havelock e advertiu com solene gravidade:

 - Arthur Elwood Havelock, o senhor está preso sob a acusação de ser mandante de crime de homicídio, de tentativa de homicídio, de malversação de  dinheiros pupilares e de incêndio premeditado. Fica avisado de que tudo que daqui em diante disser poderá ser usado como material de acusação.

Havelock nada respondeu. Cerrou os olhos, e antes que Sneed terminasse, perdeu os sentidos.

Foi carregado para a casinha do vigia e minuciosamente revistado. Do pescoço pendurava-lhe uma correntinha de ouro que prendia duas chaves de formato singular, denteadas dos dois lados e com entalhes e ranhuras no palhetão. Dick recolheu-as.

Fizeram Havelock engolir alguns goles de conhaque e ele voltou a si. Ele relanceou um olhar em volta e fitou Dick. Empertigou-se:

 - O senhor levantou graves acusações contra a minha pessoa - disse com firmeza. - Queira, por favor, apresentar suas provas.

Dick olhou para Sneed, que assentiu com um sinal de cabeça. Dando um passo à frente, disse:

 - Talvez o senhor se lembre de que uma vez mencionei que Lord Selford, na Cidade do Cabo, assistiu à chegada do novo Governador Geral?

Ele fez uma pausa, mas Havelock não disse nem sim, nem não: limitou-se a encarar Dick fixamente, em silêncio. Trincava os dentes e a linha brutal do seu queixo se acentuara ainda mais.

 - Muito bem - prosseguiu Dick impassivelmente. - Esse pequeno fato foi minha sorte e seu azar, pois nessa ocasião Lord Selford foi fotografado na sacada do seu quarto de hotel. Ele era um velho conhecido meu, um mestre na arte de furtar, já várias vezes condenado Tom Cawler!

O inspetor Sneed deixou escapar um "Ah!" de surpresa. Havelock mordeu os beiços.

 - Desde aquele dia passei a investigar Lord Selford por conta própria, sem tomar em consideração as suas instruções. Confesso que admiro a sua astúcia, senhor Havelock. A fim de demonstrar a sua boa fé, o senhor pôs um detetive no encalço do seu ex-pupilo, mas ao mesmo tempo cuidava para que os dois nunca se encontrassem. Com grande habilidade organizou uma viagem em volta do mundo. Entretanto, no hotel de Buenos Aires encontrei aquela folha de mata-borrão, Cody ficou comprometido, e o atentado contra a minha vida falhou. Então o senhor tomou uma decisão extrema. Cody, que tinha começado a pescar em águas turvas sem avisar ninguém, tornou-se um cúmplice indesejável dos seus crimes, pois o senhor não o julgava capaz de firmeza em circunstâncias adversas. Por isso teve de ser eliminado, e com ele também a mulher. Mas também nessa ocasião as coisas não correram bem. Eu recebi o chamado de socorro de Cody. Aí, para cobrir a sua fuga, o senhor atirou contra mim e contra o inspetor Sneed. Nenhum dos seus disparos atingiu o alvo, embora atirasse simultaneamente com duas pistolas automáticas. Depois restava eliminar mais duas pessoas: a herdeira de Lord Selford e o sujeito que já adivinhava demais. Estou me referindo a mim mesmo. Se tivesse conseguido isso, a próxima vítima teria sido Selford. Em seguida o senhor teria entregue ao tribunal um testamento nomeando-o herdeiro universal dele. Não preciso dizer que esse testamento mostraria a mesma letra que todas as demais cartas de Lord Selford em seu poder: a sua própria letra, senhor Havelock!

Movendo os lábios pela primeira vez, o preso disse em tom de desprezo:

 - Conjeturas! Nada que conjeturas!

 - Os grafólogos dirão se trata-se apenas de conjeturas ou não. Eu, porém, não preciso de provas. Houve um detalhe que não me passou despercebido: seus dedos manchados de verde, anteontem, quando me exibiu a carta de Selford, do Cairo, que alegadamente acabara de chegar. Que coincidência estranha, senhor Havelock. A carta de  Selford fora escrita com tinta verde!

Havelock umedeceu os lábios ressequidos. Dick notou como ele comprimia os polegares nas mãos cerradas. Ele sabia que seu pescoço estava ameaçado.

 - Eu admito - disse com voz arrastada, pesando cada palavra - que as aparências são contra mim, mas nem sempre os indícios têm razão. O senhor ainda não conversou com Lord Selford. Ele derrubará toda a construção da sua acusação com uma única palavra!

 - Não espere por isso - replicou Dick, com ar sério. - Lord Selford está morto!

Ao ouvir estas palavras. Havelock levantou-se num pulo, esquecendo-se das mãos dos policiais que o seguravam com firmeza.

 - Está...? - gaguejou, não conseguindo concluir.

 - Sim, está morto! - trovejou Dick Martin com olhar chamejante. - E eu sei o que fizeram com ele! O senhor entregou-o a esse demônio Staletti para suas horríveis experiências, e só isso já chega para levá-lo à forca!

Havelock cambaleou, o seu rosto cobriu-se de uma lividez cadavérica: instintivamente levou a mão ao pescoço. Nisso percebeu que as chaves tinham desaparecido. Dick ergueu o braço com as chaves penduradas entre os dedos. Havelock fez um movimento brusco para arrancá-las da mão do detetive, mas os policiais não o largaram.

A cabeça pendeu-lhe para trás. Todas as veias ressaltaram-lhe no pescoço, seus membros ficaram rígidos. Sua respiração tornou-se sibilante. Tudo isso durou apenas um momento. Em seguida endireitou o corpo, juntou as mãos e disse, com os olhos apagados:

 - Podem me algemar. Perdi o jogo!

Os seus lábios cerraram-se e Dick, que o encarava atentamente, sentia que elas não revelariam mais nada até o final amargo, mas justo.

 

- Sete chaves... sete fechaduras - murmurou Dick com ar pensativo ao visitar os túmulos dos Selfords pela manhã, em companhia do Capitão Sneed. Cody possuía uma, a senhora Cody outra, o jardineiro Silva a terceira e Havelock e Staletti, como cabeças da conspiração, tinham as quatro restantes. Assim que tirarem Staletti da água, poderemos abrir a porta da vigésima primeira câmara mortuária.

Tiveram de esperar uma hora; então a turma de salvamento voltou da pedreira carregando três macas cobertas por lençóis. Tom Cawler acompanhava o corpo do irmão, de cabeça baixa.

Dick deteve-o por um instante e disse-lhe baixinho:

 - Venha visitar-me um dia destes, Cawler. A senhorita Lansdown faz questão de agradecer-lhe pessoalmente pelo que você fez por ela. E não se preocupe com o futuro. Tudo se arranjará!

Tom Cawler apertou a mão de Dick com firmeza e desapareceu entre as árvores. Além de Dick, ninguém sabia da sua confissão de que Staletti fora morto por ele antes da queda no abismo e nunca ninguém ficaria sabendo desse fato.

Um dos rapazes que tinham ajudado na retirada de Staletti das águas do lago da pedreira trouxe duas chaves molhadas, que Dick recolheu.

Ele foi o primeiro a descer a íngreme escada da cripta. A porta da terceira câmara mortuária estava escancarada. Dick alumiou-a. Havia um grande buraco retangular no chão.

 - Aquilo é uma passagem secreta que, passando por baixo da colina, leva diretamente à casa senhorial e termina debaixo da lareira da sala de jantar. Aquela sala era o único aposento que o infeliz Lord Selford visitava de vez em quando. Mesmo assim, somente durante a noite, quando todos dormiam. Dessa maneira Staletti procurava satisfazer, em parte, a saudade que ele tinha do castelo, do lar da sua infância. Como Selford continuava uma criança mesmo depois de crescido, essas horas no castelo constituíam a única alegria na sua triste existência. Quando Staletti descobriu que a senhorita Lansdown tinha fugido da casa de Cody, o seu pupilo achava-se na casa senhorial. Naquele momento Staletti não teve tempo de se preocupar com suas duas criaturas, pois era mais urgente era pôr-se a salvo primeiro e destruir todos os papéis comprometedores em sua residência. As duas indefesas crianças de idade adulta ocultaram-se, juntamente com Tom Cawler, nesta câmara mortuária. Tom deve ter ficado de guarda aqui, enquanto os outros dois foram às escondidas, para o castelo a fim de buscar os brinquedos de Selford.

Dick e o Inspetor Sneed abandonaram a câmara e dirigiram-se para o fim do corredor. Iluminando a vigésima primeira porta, Dick enfiou todas as chaves nas respectivas fechaduras, uma por uma, e deu volta às mesmas.

Depois de girar a sétima chave, a porta abriu-se devagarinho, silenciosamente. Um ar gelado com cheiro de mofo bateu-lhes no rosto. Dick acercou-se imediatamente da urna de pedra e ergueu a tampa. Dentro da urna achou um pequeno cofre de aço. Afora isso, a câmara estava vazia. Eles carregaram o cofre para fora da cripta, fecharam o portão e atravessaram o parque. Ficaram alguns momentos parados diante dos escombros fumegantes do que à véspera ainda havia sido a casa senhorial. Os bombeiros estavam ocupados com a ação de rescaldo. Dali se dirigiram para a casinha do vigia, onde tentaram abrir o cofre. Levaram um bom tempo nesta tarefa. Quando finalmente conseguiram arrombar a tampa, encontraram apenas um rolo de papel. Desdobrando-o, viram tratar-se de um caderno de colégio, como é usado pelas crianças nas escolas para os deveres de composição. As suas folhas estavam cobertas de uma letra floreada. Ambos os homens reconheceram prontamente a caligrafia de Cody.

 - Leia em voz alta - pediu Sneed. - Você sabe melhor decifrar letras.

Dick abriu o caderno na primeira página e começou a ler a estranha história da porta das sete chaves.

 

"O presente registro é feito por Henry Colston Bertram, também chamado Bertram Cody, com conhecimento e aprovação de todas as pessoas que apuseram suas assinaturas ao fim deste documento. Ficou assim resolvido por todos a fim de impedir que, na hipótese da detenção de um dos signatários, os demais pudessem eximir-se de culpa, às expensas do detento.

Gregory, Visconde de Selford, faleceu em novembro, há três anos. Tinha sido um indivíduo fora do comum a vida toda, mas no decorrer dos últimos anos anteriores à sua morte as suas manias e extravagâncias tinham assumido formas assustadoras. Um dia concebeu a idéia de transformar todas as suas propriedades em dinheiro vivo e ocultar a soma apurada na câmara mortuária ocupada pelo fundador da linhagem dos Selfords e onde também ele desejava ser sepultado quando chegasse a sua hora. Com esse intento mandou demolir a porta antiga da respectiva câmara mortuária, que dificilmente teria resistido a uma possível tentativa de arrombamento, substituindo-a por outra porta de aspecto idêntico, mas fabricada de concreto e aço pela firma italiana Rizini, de Milão. Também esta porta foi provida de sete fechaduras, cujas sete chaves seriam distribuídas entre os sete testamenteiros que, conforme a vontade de Lord Selford, deveriam entregá-las ao seu filho por ocasião da data do seu vigésimo quinto aniversário. Desta forma esperava ele proteger seu herdeiro ao mesmo tempo contra estelionatários e contra estroinice juvenil. Ele deu conhecimento do seu plano ao senhor Havelock, seu advogado, bem como ao médico italiano Dr. Staletti, que costumava ser um hóspede assíduo do Solar Selford. E embora o Sr. Havelock lhe comunicasse que suas intenções infringiam a legislação vigente que regula as heranças e sucessões, ele não se deixou demover.

Lord Selford era alcoólatra e três semanas antes do seu falecimento sofreu um violento ataque de "delirium tremens". Mal o ataque tinha passado, chegou o Sr. Havelock e confessou-lhe que ele lançara mão de depósitos de clientes seus para especular na bolsa e que sofrera tão grandes prejuízos que estava à beira da falência. Admitindo que Lord Selford se encontrava entre os clientes prejudicados, disse que suplicava seu perdão e que esperava poder contar com a sua proteção em caso da ocorrência de uma ação judicial.

Embora a soma envolvida fosse relativamente pequena, bem inferior à renda anual de Lord Selford, este não se dispôs a aceitar as desculpas do advogado e por cima ainda ameaçou denunciá-lo. Contudo, a agitada discussão abalou ainda mais o corpo já enfraquecido pelo ataque anterior, e Lord Selford teve um derrame cerebral. Foi transportado para o leito pelo advogado, que foi ajudado pela governanta Elisabeth Cawler e um jardineiro português de nome Silva. O Dr. Staletti foi incontinenti chamado à cabeceira, e graças ao seu empenho Lord Selford voltou mais uma vez a si. Em tom veemente reiterou as suas acusações contra o Sr Havelock, de modo que mais três pessoas ficaram inteiradas das irregularidades praticadas pelo Sr. Havelock.

Pouco depois sobreveio um segundo derrame, ao qual Lord Selford não resistiu. Totalmente paralisado, veio a falecer na noite de 14 de novembro, na presença do Sr. Staletti, da Sra. Cawler e do Sr. Havelock. Uma vez que Lord Selford não tivera mais tempo para mudar o texto do seu testamento, o Sr. Havelock, consoante as disposições anteriores, se tornou o único testamenteiro e o tutor do seu filho de seis anos de idade, na ocasião.

O Dr. Staletti propôs à Sra. Cawler e ao jardineiro Silva que silenciassem sobre as acusações do falecido amo contra o Sr. Havelock. Este, em troca do silêncio, deveria dividir entre as quatro testemunhas das acusações os futuros rendimentos das propriedades de Lord Selford. Todos aceitaram a sugestão, inclusive o jardineiro Silva, que a princípio vacilara, mas que, além de ser um homem pobre, odiava Lord Selford por este o ter chicoteado certa ocasião por uma falta diminuta.

Inicialmente, a intenção do grupo consistia em se apoderar apenas dos juros da fortuna, mas sem mexer no capital, até que o jovem lorde atingisse a maioridade. Caberia ao Sr. Havelock exercer a administração dos bens neste sentido e de tal modo que fosse de todo impossível descobrir o que se passava, de maneira que ninguém, em tempo algum, precisasse temer uma acusação ou até mesmo um processo. Entretanto, tornava-se cada vez mais patente que o jovem lorde sofria de infantilismo, o que, conforme o Sr. Havelock passou a explicar aos demais, poderia implicar uma ameaça aos novos beneficiários da fortuna de Selford, pois se a doença do menino chegasse ao conhecimento do tribunal de tutelas, este certamente nomearia para a criança um tutor oficial e incumbiria uma junta da administração dos bens.

Em vista dessas circunstâncias, ficou combinado entre todos que o menino deveria ser colocado numa escola particular cujo diretor teria de assumir o compromisso de silenciar sobre o estado mental da criança. A escolha recaiu sobre o infra-assinado Bertram Cody, autor destas linhas, que tivera o infortúnio de cumprir pena por causa de uma insignificante transgressão. Pouco depois de sair da prisão, o Sr. Cody recebeu do Sr. Havelock a proposta de dirigir uma escola com o jovem Lord Selford como único aluno. O Sr. Cody concordou, recebendo em troca uma excelente remuneração.

Foi assim que o Sr. Cody assumiu a educação do menino, mas ficou logo manifesto que a debilidade mental da criança tornaria inútil qualquer tentativa de ensino. Às inibições psíquicas juntaram-se complicações físicas, o que deixava prever uma morte prematura do pequeno lorde. Nessa situação desesperadora, o Dr. Staletti, surgindo como salvador, declarou que tinha desenvolvido um preparado que, com o sacrifício das funções cerebrais, beneficiava extraordinariamente o desenvolvimento físico. O erudito médico já havia feito experiências bem-sucedidas com ratos, coelhos e cães recém-nascidos. Contudo, em se tratando de seres humanos, o tratamento teria de ser acompanhado por ele dia e noite, a fim de que o paciente tratado com esse preparado não se tornasse uma criatura perigosa devido ao desenvolvimento descomunal do corpo. Afirmava o Dr. Staletti que a identidade de uma pessoa podia ser facilmente destruída e substituída por uma obediência automática por meio de sugestão e hipnose, desde que o processo fosse iniciado ainda na infância. A mais ardente ambição do Dr. Staletti era criar uma raça de homens fisicamente perfeitos, dotados de imensa força muscular, que pudessem ser dirigidos como máquinas por um único cérebro. Era isso que o Dr. Staletti se propunha a fazer com o jovem Lord Selford: transformá-lo num servo, forte e obediente, que só conhecesse uma única vontade... a daquele a quem servir.

As suas idéias tiveram a aprovação do Sr. Bertram Cody e dos demais, com exceção do Dr. Havelock, que não estava convencido do êxito de semelhante experiência, nem desejava expor o seu pupilo a um tratamento que talvez oferecesse perigo de vida. Ocorreu então à Sra. Cawler a idéia de pôr à disposição do Dr. Staletti, para uma experiência idêntica, o seu sobrinho, que após a morte do irmão havia sido confiado aos cuidados dela. O Dr. Staletti afiançou ao Sr. Havelock que ele iria ver com os próprios olhos que suas teorias não eram fantasias e, com efeito, no curso de poucas semanas obteve resultados surpreendentes. O menino, franzino de corpo e de temperamento teimoso, depois de oito dias de tratamento já obedecia submissamente às ordens recebidas e desenvolvera-se fisicamente de uma maneira extraordinária, ao passo que sua inteligência declinara perceptivelmente. Diante disso, as objeções do Sr. Havelock deixaram de existir.

No mesmo tempo em que estes fatos ocorreram, o Sr. Bertram Cody sugeriu que os eventos que tinham conduzido a esta situação fossem registrados por escrito, em ordem cronológica, a fim de que nenhum dos co-responsáveis pudesse, mais tarde, tentar negar a sua participação. O documento deveria ser assinado por todos e depositado em lugar seguro, ao qual todos tivessem acesso, mas só conjuntamente. Esse lugar já existia. Onde poderia o segredo ficar mais bem guardado do que atrás da porta das sete chaves?

Uma vez que a nova porta ainda não havia sido entregue até o dia da morte do velho lorde, o seu caixão fora depositado no nicho da câmara mortuária de número seis. Nesse ínterim, porém, a porta já tinha sido colocada, e as chaves se encontravam em poder do Sr. Havelock. Foram agora distribuídas entre os sete signatários do presente documento, que será depositado na urna de pedra.

Atualmente Lord Selford encontra-se sob a guarda do Dr. Staletti. Fisicamente progrediu muito, mas ele não se lembra do seu nome e se diverte com folguedos infantis. Ambos os meninos executam todas as ordens do Dr. Staletti e são tão robustos que, mesmo no inverno, brincam no parque quase nus, sem se queixarem do frio.

Atendendo a uma sugestão do Dr. Staletti, e de acordo com o desejo do Sr. Havelock, o Sr. Bertram Cody consorciou-se com a Sra. Cawler, conquanto..

(O que se seguia havia sido riscado com tinta várias vezes, mas mesmo assim foi possível distinguir as palavras "tivesse planos diferentes para o futuro".)

Os signatários não temem a descoberta do conluio. O único parente vivo de Lord Selford é um primo distante, que já durante a vida de Lord Selford rompera todas as relações com a casa Selford.

O Sr. Havelock pretende divulgar, em época oportuna, que Lord Selford se encontra no estrangeiro, em viagens de estudos.

Em sinal da verdade do acima declarado, subscrevemos..."

Seguiam-se as assinaturas de todos os implicados.

Ao anoitecer Dick retornou ao seu apartamento em Londres. Devagarinho abriu a porta espelhada do seu guarda-roupa. Nas sombras do interior do armário parecia formar-se um rosto pálido; olhos tristes encaravam-no, numa queixa trágica.

 - Você foi vingado, Lew Pheeney - disse Dick baixinho.

E foi postar-se à janela, os olhos fixos na escuridão. Linhas duras se cavaram, do seu nariz para os cantos da boca. Ele odiava Staletti sobretudo por causa deste homicídio. Quanto aos demais crimes por ele praticados, com o tempo ele os esqueceria... mas esta ferida não cicatrizaria nunca. Jamais ele esqueceria o ladrão Lew Pheeney.

Uma hora mais tarde um carro de praça parou em frente do prédio número 107 da Coram Street. Dick apeou e pagou a corrida, depois levantou os olhos para as janelas que agora já lhe eram familiares.

Com passos vagarosos entrou.

Sybil veio recebê-lo à porta. A expressão de alivio que assomou no rosto da moça quando ela o avistou, recompensou-o por todos os contratempos que havia sofrido por causa dela.

 - É você, graças a Deus! - disse ela baixinho, com um frêmito de alegria. - Tive muito medo, mas agora está tudo bem. Estou tão contente, embora... - Ela fez uma pausa, depois recomeçou: - Todas essas coisas horríveis que aconteceram ainda me atormentam e angustiam. Mas, por favor, entre. Apesar de estar sozinha, não posso deixá-lo parado na soleira da porta.

E levou-o para a sala de estar.

 - É verdade que Havelock se encontra preso? Foi o que noticiaram os jornais.

Ele confirmou com um aceno de cabeça e acrescentou lentamente.

 - Também já sabe que é propriedade sua tudo aquilo que o incêndio destruiu?

 - Propriedade minha? Como assim? - ela fitou-o, meio aturdida.

- Lord Selford está morto - disse Dick em tom grave. - Você é sua legítima herdeira.

Em seguida contou-lhe o que acontecera, pois muitas coisas a imprensa ainda ignorava.

Quando ele lhe relatou a vida trágica de Lord Selford, ela cobriu os olhos com a mão. Por algum tempo ficaram em silêncio. Depois ele tomou-lhe a mão carinhosamente.

 - Agora você é rica. Poderá até reconstruir o castelo. Oh, Sybil...

Ele baixou o olhar, passando nervosamente os dedos no cabelo.

 - O que é, Dick? - perguntou ela, inclinando-se para a frente.

 - Tudo isso não vai mudar as coisas?

 - Mudar? Que coisas? Não entendo.

 - Daqui em diante todas as portas lhe estarão abertas. Um futuro cheio de belas promessas a espera. Isso não vai afetar seus sentimentos?

 - Ora, o que sabe sobre meus sentimentos? - perguntou ela com ar travesso.

Um sorriso indeciso encrespou os cantos da boca enérgica de Dick Martin.

 - Muito... e pouco - disse, encabulado.

 - Praticamente nada! - retrucou Sybil.

 - É verdade, praticamente nada - concordou ele, fitando o chão. Mas logo se endireitou, seus olhos brilharam: - Entretanto, sei tudo sobre os meus próprios sentimentos. Você me dá licença para lhe dizer algumas coisas a respeito deles?

Ela aproximou-se devagarinho e sentou-se no braço da poltrona ocupada por ele.

 - Sim! Vá falando! - sussurrou junto do ouvido dele, com uma expressão de expectativa.

 

                                                                                            Edgar Wallace

 

 

                      

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