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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A POUSADA DO ANJO DA GUARDA / Condessa de Ségur
A POUSADA DO ANJO DA GUARDA / Condessa de Ségur

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A POUSADA DO ANJO DA GUARDA

 

                   O encontro

Fazia frio e o céu estava coberto de nuvens; caia sem cessar uma chuva miudinha.

Debaixo de uma grande árvore, mesmo à beira da estrada, estavam dois rapazinhos, adormecidos sobre um monte de folhas; um teria três anos, e o outro, que não ia além de seis, deitava‑se‑lhe aos pés, para lhos aquecer com o corpo, e agasalhar‑lhe os ombros e o peito com o seu casaco, sem se preocupar com os arrepios que faziam estremecer o seu próprio corpinho enregelado.

Apesar disso e da expressão de sofrimento que transparecia no seu rosto, o corajoso pequeno dormia profundamente, segurando numa das mãos uma medalha que trazia ao pescoço e apertando com a outra as mãos do mais novinho, para lhes dar calor.

Pela parecença que havia entre ambos, deveriam de ser irmãos, mas a carita alegre do mais novo Indicava que ele não sofrerá tanto como o outro.

Quando, ao amanhecer, passou na estrada um homem acompanhado de um belo cão de S. Bernardo, as duas crianças ainda dormiam.

A avaliar pelo seu aspecto, o homem era decerto militar. Ao aproximar‑se dos dois irmãozinhos, o cão levantou o focinho, arrebitou as orelhas e, afastando‑se do dono, correu para junto da árvore, sem ladrar. Farejou as crianças, lambeu‑lhes as mãos e soltou um ligeiro latido, como se quisesse chamar a atenção do dono, sem contudo as acordar.

O homem parou, voltou‑se e chamou o cão:

‑ "Capitão"! Vem cá, "Capitão"!

Mas o animal ficou aonde estava e soltou um latido mais forte.

Percebendo que era necessário socorrer alguém, o dono aproximou‑se e viu as duas crianças. O seu primeiro pensamento foi que estivessem mortas, mas logo verificou que respiravam. Apalpou‑lhes as faces: as do pequeno mais novo não estavam muito frias, mas as do mais velho pareciam geladas e a sua camisa encontrava‑se encharcada pelas gotas de chuva que escorriam da árvore.

Compadecido, o homem ficou indeciso, sem saber a resolução a tomar, pois pensou:

"A minha jornada é grande; vou a pé e eles não terão forças para me acompanhar! Mas também não posso deixá‑los aqui abandonados..."

Entretanto, o cão mostrava‑se impaciente e começou a ladrar, acordando o mais velho, que dirigiu ao desconhecido um olhar espantado e suplicante. Depois, vendo o cão a seu lado, o pequeno fez‑lhe uma festa e disse:

‑ Não acordes o Paulo. Enquanto dorme, não sofre... Ao menos está quentinho.

‑ Em compensação, tu estás a tremer de frio! ‑ observou o homem.

RAPAZ ‑ Isso não tem importância. Sou mais crescido e mais forte que ele.

HOMEM ‑ Porque estão aqui sozinhos?

RAPAZ ‑ Porque a nossa mãe morreu e o nosso pai foi preso. Ficámos sozinhos e sem casa.

HOMEM ‑ Porque motivo prenderam o teu pai?

RAPAZ ‑ Não sei!

HOMEM ‑ Quem lhes tem dado de comer?

RAPAZ ‑ As pessoas que se compadecem de nós.

HOMEM ‑ E não passam fome?

RAPAZ ‑ às vezes... O que vale é que Paulo contenta‑se com qualquer coisa.

O homem tinha um bom coração e comoveu‑se com a desgraça daquelas crianças; decidiu‑se, por isso, a levá‑las consigo, convencido de que sempre havia de encontrar alguma alma caridosa que as tomasse a seu cargo até ele voltar.

HOMEM ‑ Como te chamas tu?

RAPAZ ‑ Chamo‑me Tiago e o meu irmão é Paulo.

HOMEM ‑ Queres vir comigo? Tomarei conta de ti.

TIAGO ‑ E o Paulo?

HOMEM ‑ O Paulo também. Acorda‑o, porque não posso demorar‑me.

TIAGO ‑ Mas o Paulo está cansado e não poderá acompanhar o seu passo.

HOMEM ‑ O meu cão se encarregará de o levar; vais ver.

O viajante pegou cautelosamente no Paulo, ainda adormecido, escarranchou‑o sobre o cão, apoiando‑lhe a cabecita sobre o pescoço do valente "Capitão"; em seguida despiu o seu próprio blusão para envolver o pequeno, tendo o cuidado de atar as mangas por baixo da barriga do cão, para evitar que o rapazinho caísse.

‑ Toma o teu casaco; veste‑o, porque tens os ombros gelados ‑ disse ele a Tiago. ‑ Agora, toca a andar...

Tiago levantou‑se, mas tornou logo a cair no chão e começou a chorar.

HOMEM ‑ Que tens tu? Porque choras?

TIAGO ‑ Não tenho forças para andar.

HOMEM ‑ Estás doente?

TIAGO ‑ Não; tenho muita fome. Ontem não comi nada. Um bocado de pão que trazia foi para o Paulo.

O homem sentiu os olhos a encherem‑se‑lhe de lágrimas. Tirou imediatamente um bocado de pão e queijo do saco em que levava o farnel, e deu‑o a Tiago.

O pequeno levou logo um bocado de pão à boca, mas, olhando para o irmão, perguntou:

‑ E para o Paulo?

‑ Tenho mais para ele. Come à tua vontade. ‑ respondeu o homem.

Tiago não esperou que ele repetisse o oferecimento. Comeu regaladamente, dizendo de vez em quando:

‑ Obrigado! Pedirei a Nossa Senhora que lhe dê muita felicidade.

Depois de ter comido, sentiu‑se outro. Já podia caminhar.

O cão conservava‑se imóvel junto dele, aquecendo com o calor do seu corpo o pequenito Paulo, que continuava a dormir.

Quando se puseram a caminho, o homem foi fazendo perguntas a Tiago e ele contou‑lhe a sua vida.

A mãe morrera após uma longa doença; depois venderam tudo quanto tinham em casa; por fim, só lhes restava pão para comer. O pai andava triste e não havia maneira de encontrar trabalho. Um dia os guardas vieram buscá‑lo; ele não queria ir e dizia: ‑ Meus filhos! Meus pobres filhos! ‑ Mas os guardas tinham de cumprir as ordens que haviam recebido e não o deixaram ficar.

Um deles deu um bocado de pão a Tiago e disse‑lhe: Toma conta do teu irmão até que eu venha buscar‑te

O pequeno esperou durante algum tempo; mas, como ninguém apareceu, deu a mão ao irmãozito e foi andando pela estrada fora. Depois de andarem muito, chegaram a uma casa. Era hora de jantar. Tiago pediu que dessem um caldo ao irmão; mandaram‑nos entrar, sentaram‑nos à mesa e deram um grande prato de sopa a cada um. Ali dormiram, aquela noite, sobre um monte de palha. Na manhã seguinte deram‑lhes leite, meteram‑lhes pão nas algibeiras e disseram‑lhes:

‑ Sigam o vosso caminho e que Deus os acompanhe.

Os dois pequenos partiram e foram andando, durante muitos dias, comendo e dormindo onde lhes davam agasalho.

Chegou, porém, o dia em que não encontraram casa alguma, nem ninguém a quem pedir de comer. Só lhes restava um bocadinho de pão. Tiago deu‑o a Paulo e deitou o irmãozinho sobre um monte de folhas secas, debaixo de uma árvore. Como o pequenito chorasse de frio, o mais velho despiu o casaco para o agasalhar e deitou‑se sobre os seus pés, pensando: "Nossa Senhora não nos há‑de abandonar!" Depois rezou, chorou e, por fim, acabou também por adormecer.

Assim encontrou o viajante naquela manhã.

Quando o pequeno acabou de contar a sua tão triste história, o homem apertou‑lhe carinhosamente a mão. Pouco depois, reparando que o rapazinho dava sinais de cansaço, perguntou‑lhe com doçura:

‑ Estás cansado?

‑ Ainda posso andar mais! Quando chegar à aldeia, descansarei. ‑ respondeu. Mas o homem pegou nele e pô‑lo aos ombros, dizendo:

‑ Assim iremos mais depressa!

TIAGO ‑ Olhe que eu sou pesado... O senhor vai‑se cansar.

HOMEM ‑ Não te preocupes. Trouxe às costas outros mais pesados que tu, quando estava na guerra.

TIAGO ‑ O senhor era soldado?

HOMEM ‑ Era; mas acabei o serviço militar e volto agora para a minha terra.

TIAGO ‑ Como se chama o senhor?

HOMEM ‑ Chamo‑me Moutier.

TIAGO ‑ Nunca esquecerei o seu nome, Sr. Moutier.

MOUTIER ‑ E eu também nunca esquecerei o teu, porque és um bom rapazinho e um excelente irmão.

Moutier, com Tiago às costas, andava mais depressa, de maneira que não tardaram a chegar a uma povoação. Logo à entrada havia uma pensão de boa aparência. Moutier perguntou:

‑ Tem acomodações para mim, para os meus pequenos e para o meu cão?

‑ Na minha casa só se recebem homens, não se recolhem animais ‑ respondeu o estalajadeiro.

‑ Nesse caso não ficamos aqui ‑ disse Moutier, e continuou a andar.

Quando o estalajadeiro viu que ele se afastava, ficou arrependido do que dissera e gritou:

‑ Ó senhor viajante, não se vá embora!

‑ Que quer de mim? ‑ perguntou Moutier, voltando‑se.

ESTALAJADEIRO ‑ Tenho acomodações para todos.

MOUTIER ‑ Guarde‑as para si; a primeira palavra é que tem valor para mim.

ESTALAJADEIRO ‑ Não encontra na aldeia pensão melhor que a minha!

MOUTIER ‑ Tanto melhor para os seus hóspedes.

ESTALAJADEIRO ‑ Olhe que não pensei no que disse! Não foi por mal.

MOUTIER ‑ Pois, para outra vez, pense antes de falar...

Dizendo isto, Moutier voltou‑lhe as costas e dirigiu‑se a outra pensão de aparência modesta, que ficava no extremo norte da aldeia, enquanto o estalajadeiro se arrependia, mil vezes, de ter perdido aquele hóspede que lhe daria, decerto, bastante dinheiro a ganhar.

 

                   O anjo da guarda

‑ Há lugar para mim, para dois pequenos e um cão? ‑ perguntou Moutier à porta da pousada.

‑ Temos lugar para todos! Faz favor de entrar! ‑ respondeu uma voz de dentro, e logo chegou à porta uma mulher de aspecto muito simpático.

Quando viu Moutier, disse logo, rindo:

‑ Entre depressa, senhor, para o aliviar do peso do seu cavaleiro.

E tirou‑lhe o pequeno Tiago dos ombros. Depois, reparando em Paulo, exclamou:

‑ E este, que dorme como um justo às costas do cão! Que linda criança e que bom animal! Nem se mexe, para não acordar o pequeno.

Neste momento, Paulo acordou. Abriu os olhos, muito espantado, e, como não viu logo o irmão, começou a chorar e a gritar:

‑ Tiago! Quero o Tiago!

TIAGO ‑ Estou aqui, Paulo! Não chores! Estamos bem. Vês este senhor? Foi ele quem nos trouxe para aqui, e vai dar‑te de comer; não é verdade? ‑ disse ele, dirigindo‑se a Moutier.

MOUTIER ‑ Terás sopa e muito mais que te apetecer.

A dona da casa olhava para eles com o ar admirado.

MOUTIER ‑ Não compreende nada, não é verdade? É uma triste história. Encontrei estes pobres pequenos sozinhos, cheios de fome e frio, e trouxe‑os comigo. Depois lhe contarei tudo. Por agora, o mais urgente é dar‑lhes uma boa sopa. Prepare também qualquer coisa para mim. Do cão encarrego‑me eu, não é assim, "Capitão"?

O cão, como se tivesse compreendido, lambeu a mão do dono.

Pouco depois, os pequenos estavam sentados à mesa, saboreando o queijo, a manteiga fresca e o pão quentinho que a estalajadeira lhes dera enquanto o caldo fervia. Moutier sentou‑se também a observá‑los.

Antes de se servir, Tiago deu de comer ao irmão, que se mostrava contentíssimo.

"Pobres pequenos! ‑ pensava o homem ‑ Que teria sido feito deles se o "Capitão" os não tivesse descoberto!"

A dona da casa também reparou no carinho com que Tiago tratava o pequenito e apreciou a expressão honesta e simpática de Moutier. Estava cheia de curiosidade e, logo que os pequenos terminaram a refeição, levou‑os para o jardim, onde havia um tanque cheio de água e um regador, e disse‑lhes que se entretivessem a regar as plantas. Lá ficaram, radiantes, correndo e rindo como há muito não faziam.

Ao voltar para casa, a estalajadeira encontrou Moutier ainda na sala de jantar. Comia vagarosamente, com um ar pensativo. Depois de tomar o café e um cálice de aguardente, Moutier olhou para ela e disse‑lhe:

‑ Está à espera da história que lhe prometi; vou contar‑lha e espero que me ajude a encontrar a solução que procuro.

Fez‑lhe então a narrativa de tudo o que se passava e daquilo que Tiago lhe tinha contado. Por fim, disse:

‑ Ficou sabendo tanto como eu. E agora, que hei‑de fazer destas crianças? Não tenho coragem de as abandonar, mas a viagem que preciso fazer é muito longa. Terminei o serviço militar e volto para a minha terra, que fica a uma grande distância daqui. Além disso, sou solteiro. Minhas irmãs estão casadas e já não tenho mãe. Quem havia de tomar conta delas? Diga‑me: que faria no meu lugar.

ESTALAJADEIRA ‑ Que faria?... Que faria?... Confesso‑lhe que não sei.

MOUTIER ‑ Isso não é um conselho...

ESTALAJADEIRA ‑ Que lhe hei‑de dizer? O que não deve, com certeza, é abandoná‑las.

MOUTIER ‑ É isso mesmo que penso.

ESTALAJADEIRA ‑ Também não as pode levar a pé para tão longe...

MOUTIER ‑ Pois não...

ESTALAJADEIRA ‑ Só vejo uma solução... mas o senhor talvez não a aceite...

MOUTIER ‑ Quem sabe? Diga...

ESTALAJADEIRA ‑ Confiar‑mas!

Moutier olhou para a mulher com o ar tão admirado, que ela fez‑se corada e baixou os olhos, dizendo:

‑ Logo calculei que o senhor não queria. Não sabe quem sou, e talvez receie que eu trate mal as crianças...

MOUTIER ‑ Não, minha senhora, não a julgo capaz disso. Mas... nem sei como hei‑de explicar... realmente, não a conheço...

ESTALAJADEIRA ‑ Mas pode tomar informações minhas. O Sr. Cura lhe dirá quem é a dona da Pousada do Anjo da Guarda. O padeiro, o merceeiro, o leiteiro, todos lhe poderão dizer quem sou. Tenho vinte e seis anos e sou viúva. Não tenho filhos e vivo com uma irmã de dezassete anos. Não sou rica, mas ganho o suficiente para viver sem dificuldades. Farei de conta que estes pequenos me pertencem e sinto que me afeiçoarei a eles. Não lhe peço nada pelo seu sustento, porque não faço isto com a ideia de qualquer lucro, acredite! Estou convencida de que eles não serão infelizes comigo e o senhor nunca se arrependerá de mos ter confiado.

Moutier levantou‑se, apertou a mão da mulher e disse‑lhe, comovido:

‑ Muito obrigado! Onde mora o pároco da freguesia?

‑ Mesmo aqui defronte. Empurre a porta do jardim e entre.

Moutier foi. Quando voltou, pouco depois, trazia um ar tranquilo e feliz. Dirigiu‑se à dona da Pousada do Anjo da Guarda e disse:

‑ Os pequenos ficarão consigo. Quanto a mim, espero que me dê alojamento por hoje, pois tenciono partir amanhã.

ESTALAJADEIRA ‑ Pode ficar o tempo que quiser, meu caro senhor. É natural que goste de verificar como eu instalo os meus filhos... porque, de hoje em diante, assim os considero.

MOUTIER ‑ E também são um pouco meus... É possível que volte qualquer dia para os tornar a ver.

ESTALAJADEIRA ‑ Sempre que queira! E agora, vou dar início aos meus cuidados maternos... Tenho de arranjar roupa, calçado...

MOUTIER ‑ É verdade! E eu que nem sequer pensei nisso... Estou envergonhado por lhe causar tanto trabalho e despesa. Só tenho comigo dez francos. Se quiser, dou‑lhe metade. Passarei sem tabaco.

ESTALAJADEIRA ‑ Guarde os seus dez francos, senhor! Agradeço‑lhe a boa intenção e tenha a certeza de que nada faltará aos pequenitos.

Ao dizer isto, a estalajadeira sorriu, cumprimentou‑o amigavelmente e saiu.

 

                   As informações

A Srª Blidot ‑ assim se chamava a estalajadeira ‑ chamou a sua irmã Elfy e contou‑lhe o que acabava de se passar:

‑ Foi Deus quem os mandou! ‑ exclamou Elfy. ‑ Faltavam crianças nesta casa! São simpáticos?

SRª BLIDOT ‑ Muito simpáticos! Basta olhar para eles , para ver que são diferentes dos filhos do nosso vizinho Penerd.

ELFY ‑ Onde estão eles? Quero vê‑los.

SRª BLIDOT ‑ Mandei‑os para a horta.

Elfy correu para lá e encontrou Tiago a arrancar ervas daninhas, que o irmão ia juntando em molhinhos.

Ao ver Elfy olhar fixamente para eles, Tiago endireitou‑se e perguntou‑lhe:

‑ O que estamos a fazer é mal feito?

ELFY ‑ Pelo contrário!

PAULO ‑ Esta horta é sua?

ELFY ‑ É sim, meu menino.

PAULO ‑ Isso é que não! É da senhora que está na cozinha e que nos deu de comer!

ELFY ‑ Que engraçado! E se eu quiser arrancar legumes, que fazes tu?

PAULO ‑ Agarro num pau e peço ao Tiago que me ajude a pô‑la daqui para fora.

Elfy agarrou o pequeno, beijou‑o muito, tornou‑o a pô‑lo no chão, e explicou:

‑ Eu sou irmã da senhora que está na cozinha, e vivo com ela. Aqui tens a razão porque a horta nos pertence, às duas.

‑ Ainda bem! ‑ disse Tiago. ‑ A senhora também parece muito boa. Quem me dera que o Sr. Moutier ficasse aqui!

ELFY ‑ Ele tem de se ir embora, e os meninos é que ficam... E serão muito bem tratados, se tiverem juizinho...

Tiago fez‑se muito corado, baixou a cabeça e rolaram‑lhe pelas faces duas grandes lágrimas.

ELFY ‑ Porque estás tu a chorar? Não gostas de ficar comigo e com a minha irmã?

TIAGO ‑ Não é por isso. Tenho pena do Sr. Moutier...

ELFY ‑ Ele volta... E ainda não se vai hoje embora.

Tiago limpou as lágrimas com as costas da mão e ficou outra vez alegre, continuando o trabalho interrompido.

O "Capitão", que andara a farejar toda a casa, à procura dos pequenos, encontrando a porta da horta aberta, foi sentar‑se junto de Paulo, espalhando o molho das ervas.

O garotinho bem quis afastá‑lo, mas o cão tinha mais força do que ele.

‑ Tiago! Tiago! Olha o que está a fazer o cão! ‑ gritou Paulo, aflito.

O irmão acudiu logo, mas o cão principiou a brincar com eles, pouco disposto a sair dali, e acabou por atirar com Paulo ao chão.

‑ Tem juízo, "Capitão"! ‑ exclamou Tiago. ‑ Não vês que Paulo é pequenino?!

Como se tivesse compreendido, o "Capitão" lambeu as mãos de Tiago e foi‑se embora, lentamente, à procura do dono.

Entretanto, Moutier pensava:

"O Cura deu‑me muito boas informações da Sr.a Blidot, não há dúvida. Mas os padres dizem sempre bem de toda a gente... E isto de lhe confiar duas crianças, não é uma brincadeira... O melhor que tenho a fazer, para ficar sossegado, é ir colher mais informações".

E Moutier, deixando o saco de viagem sobre a mesa, chamou o cão e saiu.

Falou com o homem do talho que morava ali perto; falou com a padeira. As informações colhidas não podiam ser melhores. Ambos afirmavam que a Sr.a Blidot era uma excelente criatura, trabalhadora, alegre e honesta. Quando souberam que Moutier desejava confiar‑lhe duas crianças, julgaram que eram filhos dele e logo disseram:

‑ Não encontra ninguém mais capaz de tomar conta de crianças!

Satisfeito, Moutier preparava‑se para regressar à Pousada do Anjo da Guarda, quando lhe ocorreu uma ideia.

" Irei ouvir, também, a opinião do estalajadeiro que encontrei à entrada da aldeia. "

Quando o viu aparecer, o estalajadeiro recebeu‑o com o boné na mão, convencido que ele reconsiderara e vinha hospedar‑se em sua casa.

Moutier correspondeu ao cumprimento e entrou. Mas o "Capitão" começou a rosnar e a mostrar ao homem a dentuça afiada.

" Este homem deve ser mau, e o cão já adivinhou... " ‑ pensou Moutier.

Chamou o "Capitão", fê‑lo deitar a seus pés e sentou‑se. Depois, dirigindo‑se ao estalajadeiro, perguntou‑lhe se conhecia a Sr.a Blidot.

O outro apressou‑se a negar, porque não se dava com essa gente. E acrescentou que era uma mulher sem préstimo e que, tanto ela como a irmã, eram duas parvas, orgulhosas, que não iam aos bailes, e mal saíam de casa. Além disso, alegou também que na pousada delas a comida não prestava e os quartos eram péssimos. E concluiu, dizendo:

‑ Verá a diferença que há entre a minha casa e a delas! Vou servi‑lhe um belo jantar!

Depois voltou‑se e gritou:

‑ Torchonet? Onde te meteste tu, meu grande animal, meu preguiçoso?

‑ Estou aqui! ‑ respondeu um rapazito magro, com a voz abafada pelo medo, pálido e esfarrapado, que surgiu de trás da porta.

O patrão deu‑lhe um sopapo e disse:

‑ Estavas a escutar, grande mariola? Vai já à cozinha e diz à patroa que prepare um bom jantar para este senhor. Despacha‑te! Senão...

O rapaz fugiu.

Moutier estava indignado.

‑ Basta! ‑ disse ‑ Não quero o seu jantar. Vim aqui somente para colher informações sobre a Sr.a Blidot. Já sei o que desejava. Considero essa senhora muito honesta, e vou confiar‑lhe o tesouro que desejava guardar para mim..

Estas palavras de Moutier encheram o estalajadeiro de cólera, mas, ao ouvir falar em tesouro, mudou logo de atitude; a sua cara de fuinha tomou logo a expressão de amabilidade e chegou mesmo a agarrar‑lhe o braço para que não se fosse embora.

O "Capitão", julgando talvez que ele pretendia agredir o dono, lançou‑se sobre ele e mordeu‑lhe a mão. Se Moutier o não tivesse agarrado pela coleira, o valente animal ter‑lhe‑ia saltado ao pescoço.

O estalajadeiro fugiu para dentro de casa, com a mão a sangrar, e Moutier, como se não tivesse visto coisa alguma, voltou com o cão para a Pousada do Anjo da Guarda.

 

                   Torchonet

Como não estava ninguém na sala, quando Moutier chegou, dirigiu‑se para a horta, que tinha também alguns canteiros de flores. Tudo quanto via lhe agradava. Começava a ter a certeza de que os seus protegidos ficariam muito bem ali.

Pouco depois, a Sr.a Blidot veio chamá‑lo para jantar, o que lhe causou satisfação, pois já tinha comido o almoço há bastante tempo.

Foi então que ele conheceu Elfy, a quem ainda não vira.

Os pequenos já estavam na sala de jantar, e Paulo, por sua vontade, deitaria a mão a tudo quanto via sobre a mesa. Mas Tiago não lho permitiu, dizendo:

‑ Espera, Paulo. Tem juizinho! Não se toca em coisa alguma sem pedir licença.

PAULO ‑ Então, dá‑me licença...

TIAGO ‑ Não é a mim que deves pedir.

PAULO ‑ Mas eu tenho fome, quero comer!

TIAGO ‑ Espera só um momento...

Pronunciava ele estas palavras, quando Moutier entrou acompanhado pela Sr.a Blidot e Elfy.

Sentaram‑se todos à mesa e comeram, com apetite, a bela refeição que lhes foi servida.

Depois do jantar, Moutier mandou os dois irmãozinhos brincar para a rua e começou a fumar. Entretanto as duas irmãs ocuparam‑se do arranjo da casa e serviram outros hóspedes que iam chegando.

Moutier conversava com eles e, sempre que podia, procurava prestar qualquer serviço às donas da casa.

Tiago e Paulo, satisfeitíssimos da vida, foram andando pela rua fora, muito entretidos a olhar para as montras das lojas, até que chegaram à entrada da aldeia. Encontraram então um pobre pequeno de oito anos, esfarrapado e magro, levando de rastos um grande saco de carvão, pesado de mais para a sua idade e para a sua força. Parava de momento a momento, limpando, com as costas da mão, o suor que lhe escorria pela testa.

A sua magreza e o seu ar triste chamaram a atenção de Tiago, que lhe perguntou:

‑ Porque vais a arrastar esse saco tão pesado?

‑ Foi o meu patrão que me mandou ‑ respondeu o outro, com os olhos cheios de lágrimas.

‑ Porque não lhe dizes que não podes com ele?

‑ Não me atrevo. Ele batia‑me...

‑ Então é mau!

‑ Cale‑se! ‑ exclamou o pobrezinho. ‑ Se ele o ouvisse, batia‑me com um chicote.

‑ Porque te deixas ficar em casa dele?

RAPAZ ‑ Puseram‑me lá... Não tenho pai nem mãe... Não sei para onde ir...

TIAGO ‑ Também nós não. Mas faz como eu, pede a Nossa Senhora que te proteja e verás como Ela te ouve.

RAPAZ ‑ Mas eu não a conheço, nem sei onde mora.

TIAGO ‑ Eu também não sei, mas isso não importa. Se lhe pedires, Ela ouve‑te, com certeza.

RAPAZ ‑ Quem me dera! Mas se eu pedir em voz alta, o meu patrão pode ouvir‑me e bate‑me.

TIAGO ‑ Não é preciso gritar. Diz assim, em voz baixa: "Virgem Santíssima, protegei‑me; Vós sois a nossa mãe; tende piedade de mim!"

O pobrezinho repetiu aquelas palavras e ficou parado, como quem espera qualquer coisa. Por fim disse, muito desconsolado:

‑ Não aparece ninguém... Vou‑me embora, porque o meu patrão está à minha espera.

‑ Vou eu ajudar‑te ‑ exclamou Tiago. ‑ A Santíssima Virgem não acode imediatamente, mas nunca deixa de proteger.

Dizendo isto, Tiago colocou‑se ao lado do rapazinho, a puxar o saco, e disse a Paulo que empurrasse também.

Tiago era muito mais forte do que o rapazito, e puxou com tanta força, que o saco, arrastado por cima das pedras, rompeu‑se e o carvão espalhou‑se na calçada. Os pequenos ficaram aflitíssimos, mas Tiago não perdeu a cabeça...

‑ Espera aí ‑ disse ele. ‑ Vou chamar o Sr. Moutier, que é muito bom. Foi Nossa Senhora quem mo mandou e também to mandará a ti. Vem daí, Paulo, e apressemo‑nos.

Correram os dois, de mão dada, até à Pousada do Anjo da Guarda, e lá encontraram ainda Moutier conversando com os outros viajantes.

TIAGO ‑ Sr. Moutier! Venha acudir a um pobre rapazito, muito mais desgraçado do que eu e o Paulo. Ele não tem força para arrastar um grande saco de carvão que eu e o Paulo rompemos. Tem um patrão muito mau, que lhe bate, e está cheio de medo. A Virgem Santíssima manda‑lhe dizer que o vá ajudar.

‑ Onde encontraste tu a Virgem Santíssima para te encarregar desse recado? ‑ disse Moutier a rir, levantando‑se.

‑ Não A vi, mas senti‑A na minha cabeça e no meu coração. Bem sabe que foi Ele quem o mandou salvar‑nos, a mim e ao Paulo. Agora tem de salvar aquele pobre pequeno.

‑ Está bem, meu rapaz! Ensina‑me o caminho ‑ disse Moutier, e pediu a Elfy que ficasse com Paulo. Depois, acompanhou Tiago, em passo apressado, até encontrarem a desgraçada criança. Era Torchonet, o criado do mau estalajadeiro. Moutier reconheceu‑o logo. Aproximou‑se dele e, tirando do bolso da farda uma agulha e linha grossa, coseu os buracos, ao mesmo tempo que perguntava ao pequeno:

‑ Não haverá outro caminho para levar o carvão, sem ser a rua principal e de modo que o teu patrão não nos veja? Não tenho vontade de o encontrar, pois me parece que lhe dava uma sova de que ele se lembraria toda a vida...

RAPAZ ‑ Há sim, senhor. Pode‑se passar por detrás das casas e despejar o carvão na carvoeira que fica do lado de fora da cozinha.

‑ Então, vamos lá! ‑ disse Moutier, pondo o saco às costas.

Torchonet olhava para ele, muito admirado. Depois murmurou:

‑ Afinal era verdade... Nossa Senhora sempre me ajudou... Diga‑Lhe que Lhe agradeço muito.

‑ Eu não te dizia? ‑ exclamou Tiago, radiante.

Moutier ria da ingenuidade das crianças. Chegaram num instante à carvoeira. O bom homem despejou o saco, dobrou‑o e pô‑lo a um canto. Dispunha‑se já a ir‑se embora, quando o pequenito lhe disse:

‑ O senhor é capaz de pedir à Virgem Santíssima que me mande alguma coisa para comer?

‑ Pobrezito! ‑ respondeu Moutier, comovido. ‑ Olha, vem ao Anjo da Guarda e eu te recomendarei à Sr.a Blidot, que é muito boa.

TORCHONET ‑ Não posso, meu senhor!. O meu patrão matava‑me, se eu lá fosse.

MOUTIER ‑ Nesse caso, cá virá ter todos os dias alguma coisa para comeres. O Tiago se encarregará disso.

TIAGO ‑ De muito boa vontade! Guardarei sempre alguma coisa para ele. Mas como lhe hei‑de dar a comida? Tenho medo do patrão dele.

TORCHONET ‑ Pode pô‑la num buraco da árvore que está ao pé do poço. Vou lá todos os dias buscar água.

MOUTIER ‑ Está bem, fica combinado. Daqui a um quarto de hora já lá encontrarás alguma coisa. Agora, vamo‑nos embora, antes que nos vejam.

Quando chegou, com Tiago, à Pousada do Anjo da Guarda, Moutier contou à Sr.a Blidot o que se passara e pediu‑lhe licença para Tiago fazer, todos os dias, aquela caridade.

‑ Não quero, porém, que a senhora tenha o encargo das minhas boas acções. Desejo pagar a alimentação daquele desgraçado. Virei duas vezes por ano liquidar a conta.

Sr.a BLIDOT ‑ As nossas contas serão fáceis de fazer, e terei muito prazer em receber as suas visitas. Poderá verificar, ao mesmo tempo, como os pequenos se vão dando aqui. Toma, Tiago, vai pôr isto no buraco da árvore para que a pobre criança não se deite sem comer.

Tiago recebeu um embrulho com pão e carne. Tomou Paulo pela mão e foi fazer o que a Sr.a Blidot lhe mandara. Pôs o pacote no buraco da árvore, que ficava a uns cem metros da Pousada do Anjo da Guarda.

Minutos depois chegava Torchonet com uma bilha de barro. Foi logo ao lugar indicado, abriu o embrulho, comeu com avidez uma parte do que ele continha e tornou a meter o resto no buraco. Depois encheu a bilha, pô‑la ao ombro, com dificuldade, e voltou para casa do patrão.

 

                   A separação

à noite, depois das crianças estarem deitadas, Moutier demorou‑se um pouco a conversar com as donas da casa, acerca dos seus protegidos.

MOUTIER ‑ Tiago disse‑me que ainda têm pai. Mas como os havemos de o encontrar? Não sei o seu nome, nem em que terra vivia quando o prenderam. É possível que esteja preso por qualquer crime que tivesse praticado. Talvez seja preferível os pequenos não conhecerem o pai... Em todo o caso, amanhã de manhã, antes de partir, irei à Administração do Concelho fazer a minha declaração. Será a única maneira de saber o apelido que lhes havemos de dar. Se a interrogarem, a senhora deverá dizer apenas a verdade. Também quero deixar‑lhe a minha morada, para me poder dar notícias, se for preciso.

Sr.a BLIDOT ‑ Prefiro que o senhor venha recebê‑las pessoalmente. Porque, afinal, as crianças continuam sob a sua protecção e pertencem‑lhe mais do que a mim.

MOUTIER ‑ Para dizer a verdade, ficaria bem embaraçado se tivesse de as levar comigo. Estão muito melhor na sua companhia. Mas... já é muito tarde e sinto‑me um pouco fatigado.

Sr.a BLIDOT ‑ Vou já mostrar‑lhe o seu quarto.

Dizendo isto, a hospedeira acendeu uma vela e pô‑la no quarto que preparara para o hóspede. Moutier agradeceu, deitou‑se e só acordou no outro dia, já a manhã ia alta. Quando abriu a porta do quarto, viu as irmãs lavando e vestindo os pequenitos.

MOUTIER ‑ Acordei tarde. Desculpem‑me! A culpa foi da cama, por ser tão macia...

TIAGO ‑ Bom dia, Sr. Moutier. Dormiu bem?

MOUTIER ‑ Optimamente! E tu estás com uma cara esplêndida. Pelo que vejo sentes‑te feliz!

TIAGO ‑ Muito! E o Paulo está contentíssimo.

MOUTIER ‑ Ainda bem.

Depois, voltando‑se para a Sr.a Blidot e para a irmã, disse‑lhes:

‑ Posso ajudá‑las em alguma coisa?

ELFY ‑ Visto ser tão amável, agradecia‑lhe que fosse com os pequenos até à vacaria onde costumamos comprar o leite, para eles aprenderem o caminho. Fica mesmo ao fim da aldeia.

Moutier levou os pequenos pela mão e lá foram os três muito contentes. Quando chegaram à vacaria, dirigiu‑se a uma mulher gorducha que ordenhava a vaca:

‑ Faz favor de me vender leite!

MULHER ‑ Que porção quer?

MOUTIER ‑ Para dizer a verdade, não sei. Dê‑me o do costume.

MULHER ‑ Mas para quem?

MOUTIER ‑ Para a Sr.a Blidot, da Pousada do Anjo da Guarda.

MULHER ‑ Então está ao serviço da Sr.a Blidot? Desde quando?

MOUTIER ‑ Desde ontem.

‑ Acho esquisito ‑ disse a mulher, deitando‑lhe na bilha três medidas de leite.

‑ É preciso pagar? ‑ perguntou Moutier, metendo a mão na algibeira.

‑ Não, senhor. Então não sabe que só fazemos as contas à terça‑feira, que é o dia do mercado?

MOUTIER ‑ Como quer que eu saiba se só aqui estou desde ontem?

A mulher não respondeu, mas ficou a pensar por que motivo teria a Sr.a Blidot tomado um soldado ao seu serviço.

Moutier voltou com os pequenos para a estalagem. Tinham achado imensa graça ao espanto da mulher.

‑ Aqui tem, menina ‑ disse ele a Elfy. ‑ Aposto que vai receber uma visita, não tarda nada...

ELFY ‑ Porquê?

MOUTIER ‑ Porque a dona da vacaria ficou muito admirada quando lhe disse que estava a seu serviço.

ELFY ‑ E porque lhe disse semelhante coisa?

MOUTIER ‑ Porque é verdade. Não estou eu inteiramente ao seu serviço?

ELFY ‑ Está a brincar!

MOUTIER ‑ Pelo contrário, falo muito a sério. Se me vê rir, é porque estou contente; não a queria ofender.

ELFY ‑ Desculpe se fui desagradável. Mas bem vê, seria tão ridículo que o tivéssemos tomado para nosso serviço, que senti receio de que se rissem de nós.

MOUTIER ‑ Quer que volte à vacaria, para dizer à mulher que estava a brincar?

Sr.a BLIDOT ‑ De maneira nenhuma. A minha irmã ainda é muito nova e, como o senhor tem sido tão amável, ela abusou da sua bondade.

MOUTIER ‑ Oh minha senhora! Não diga isso. E para lhe provar que não tem razão, vou perguntar à menina Elfy se deseja que faça qualquer coisa.

‑ Ajude‑me a fazer o café! ‑ disse Elfy, tornando‑se muito corada.

Dali a pouco tempo foram tomar o pequeno almoço.

Em seguida, Moutier foi à Administração do Concelho, como dissera. à noite, depois de jantar, preparou‑se para partir, mas, quando quis pagar a conta, a Sr.a Blidot respondeu que não lhe devia coisa alguma.

A separação foi triste. Os pequenos abraçaram‑se ao cão e não queriam apartar‑se dele. Moutier, muito comovido, apertou a mão das duas irmãs, beijou enternecidamente as duas crianças que lhe deviam, afinal, a sua felicidade, e afastou‑se sem olhar para trás.

Os dois ficaram à porta, a olhar para o seu protector, e, quando ele desapareceu, Tiago voltou para dentro e lançou‑se, a chorar, nos braços da Sr.a Blidot.

‑ Agora, que o Sr. Moutier se foi embora, não nos põem fora de casa, a mim e ao Paulo, pois não? ‑ disse ele.

Sr.a BLIDOT ‑ Está sossegado! Tu e o teu irmão sereis como meus filhos. E, para começar, de hoje em diante quero que me tratem por mãe.

TIAGO ‑ Que bom! A nossa mãe morreu, e assim teremos outra mãezinha. Ouviste, Paulo? Hás‑de tratar esta senhora por mãe.

PAULO ‑ Não quero! Quero ir com o Sr. Moutier e com o "Capitão"!

TIAGO ‑ Então tu não és amigo da mãe Blidot?

PAULO ‑ Sou, mas gosto muito do "Capitão".

ELFY ‑ Deixa‑o lá! Ele há‑de habituar‑se a pouco e pouco, e virá a ser tão nosso amigo como do "Capitão". Mas, visto que a minha irmã vai ser vossa mãe, eu também quero ser vossa tia!

TIAGO ‑ Sim! Minha querida tiazinha!

E o pequeno abraçou Elfy, cheio de alegria. Depois inventou várias brincadeiras para distrair o irmão.

Todo o seu empenho era ser útil à mãe e à tia adoptivas, que tão carinhosamente o tratavam. Fazia‑lhe os recados, lavava a louça e ajudava a servir os jantares.

Uma tarde, aproximou‑se da Sr.a Blidot e disse com timidez:

‑ A mãe prometeu ao Sr. Moutier que daria de comer ao pobre Torchonet. Vi‑o, há bocado. Fez‑me sinal de que vinha buscar água ao poço. Posso ir pôr alguma coisa no buraco da árvore?

Sr.a BLIDOT ‑ Certamente. Aqui tens um resto de carne e um bocado de pão. E ficas encarregado de me lembrar isto todos os dias, ouviste?

TIAGO ‑ Muito obrigado! A mãe é tão boa como o Sr. Moutier.

E o pequenito lá foi, todo contente, pôr o farnel no buraco da árvore.

Pouco depois chegou Torchonet com a bilha da água. Devia ter chorado, porque trazia os olhos vermelhos. Comeu sofregamente a carne e o pão, bebeu água e foi‑se embora, com a bilha às costas.

Quando passou por Tiago e Paulo, olhou para eles com ternura, e seguiu o seu caminho tristemente.

Os dias iam passando com alegria na Pousada do Anjo da Guarda. Mas para o desgraçado Torchonet, a vida era cada vez mais dura. O patrão maltratava‑o sem cessar. Tiago ajudava‑o, muitas vezes, às escondidas, e era isso que valia ao infeliz pequenito para não morrer de fome e de fadiga.

 

                   Uma agradável surpresa

Passaram três anos. A Sr.a Blidot e a irmã tinham‑se afeiçoado profundamente aos dois pequenos que haviam tomado sob sua protecção, e eles adoravam‑nas.

A ternura de Tiago pelo irmãozito encantava toda a gente. Quando estavam todos reunidos, falavam do Sr. Moutier com enternecimento. Havia muito tempo que não sabiam nada dele. Nos primeiros tempos ainda viera duas vezes, com o "Capitão", fazer uma visita à Pousada do Anjo da Guarda e escrevia frequentemente, pedindo notícias.

Um dia, souberam que ele se alistara novamente no exército e, depois disso, nunca mais tiveram novas dele, o que lhes causava grandes apreensões.

Certa manhã, quando Tiago e Paulo estavam varrendo o passeio diante da porta da Pousada, apareceu um homem, que se aproximava sem fazer ruído e segurou a vassoura de Paulo. Este voltou‑se e começou a gritar:

‑ Acode‑me, Tiago! Querem tirar‑me a vassoura!

Tiago correu para o irmão, mas, olhando o suposto ladrão, lançou‑se nos braços do homem, a gritar:

‑ Minha mãe! Minha tia! Está aqui o Sr. Moutier!

A Sr.a Blidot e Elfy apareceram logo. Foi um momento de grande alegria. Falavam todos ao mesmo tempo, faziam perguntas, sem esperar pelas respostas, e foi com dificuldade que Moutier conseguiu explicar o motivo do seu prolongado silêncio.

Tinha estado na guerra da Crimeia. Fora gravemente ferido e só por um milagre escapara da morte, mas tivera de reformar‑se. Logo que lhe deram alta, regressou a França, e o seu pensamento foi dirigir‑se à Pousada do Anjo da Guarda. E acrescentou:

‑ Como tinha a certeza de ser bem recebido, pensei que podia vir aqui passar uns dias e ajudar a menina Elfy, que sabe tão bem dar ordens de comando.

ELFY ‑ Oh Sr. Moutier, ainda não se esqueceu das minhas crianças de há três anos? Agora já sou mais ajuizada...

MOUTIER ‑ Nesse caso serei forçado a adivinhar e, naturalmente, só farei tolices... Quanto a esquecimento, pode crer que nunca esqueci a Pousada do Anjo da Guarda. E tu, meu Tiago, reconheceste‑me logo!

TIAGO ‑ Então não havia de reconhecer? Olhe que eu todos os dias rezava por si, Sr. Moutier.

MOUTIER ‑ Também aprendi a rezar... Foi o padre Partère quem me ensinou a viver como um bom cristão! Era um santo, esse padre!

‑ Que é isto? ‑ perguntou Paulo, que estava sentado nos joelhos de Moutier, a brincar com a Cruz de Guerra que ele tinha ao peito.

MOUTIER ‑ É uma medalha que ganhei em Malakoff.

ELFY ‑ E não nos tinha ainda dito... Estou certa de que foi bem ganha!

MOUTIER ‑ Todos nós cumprimos o nosso dever.

ELFY ‑ O senhor é modesto...

PAULO ‑ Mãe, tenho fome; quero almoçar.

MOUTIER (levantando‑se) ‑ Vejo que fiz atrasar o serviço. Menina Elfy, aqui me tem pronto a executar as suas ordens.

ELFY ‑ Só lhe peço que nos deixe servi‑lo. Tiago, vai pôr na mesa o talher do teu grande amigo.

Pouco depois estavam todos sentados à mesa. Tiago pediu para ficar ao lado de Moutier, e Paulo ficou ao lado do irmão, como de costume.

‑ Como vocês estão crescidos! ‑ disse Moutier, passando‑lhes a mão sobre os cabelos.

ELFY ‑ O Paulo já sabe ler!

MOUTIER ‑ E tu, Tiago, como vão os teus estudos?

TIAGO ‑ Como sou mais velho do que Paulo, tenho obrigação de estar mais adiantado de que ele. Hei‑de mostrar‑lhe as minhas notas.

MOUTIER ‑ Bravo! Estás um sábio!

TIAGO ‑ Faço o que posso... E o senhor ainda é soldado?

MOUTIER ‑ Sou sargento.

ELFY ‑ Outra novidade que ainda não nos contou... Como foi promovido?

MOUTIER ‑ Não gosto de falar nisso. Cumpri apenas o meu dever.

ELFY ‑ O senhor é muito modesto!

Como iam conversando ao mesmo tempo o almoço demorou bastante. Moutier narrou vários episódios heróicos da guerra em que tomara parte, e todos o escutaram com grande emoção, principalmente quando ele contou como conseguiu fazer prisioneiro um general russo, a quem salvara a vida e que se tornou seu amigo. Tinham vindo juntos para França e o general não queria separar‑se dele. Por fim, o bravo sargento disse:

‑ Por mais que o general me pedisse que o acompanhasse a Bagnols, onde ia fazer uma cura de águas, eu logo que me vi em França e recebi alta no hospital de Marselha, onde estive em tratamento, só tive um pensamento: ver os meus pequenos e as minhas boas amigas! Creio que me permitem

chamar‑lhes boas amigas! Estimo‑as tanto que, se fosse possível, nunca mais sairia da Pousada do Anjo da Guarda e prestar‑lhes‑ia todos os serviços que necessitassem.

Sr.a BLIDOT ‑ Temos muito prazer em que seja nosso amigo, acredite, e gostamos muito de o tornar a ver. Não é verdade, Elfy?

ELFY ‑ Sem dúvida! Falávamos de si muitas vezes, ansiosas por notícias que nunca chegavam...

MOUTIER ‑ Obrigado, minhas boas amigas. Com a alegria de me encontrar aqui, esqueci‑me de perguntar pelo Torchonet. Que é feito dele?

TIAGO ‑ Continua a ser muito infeliz. Cada vez trabalha mais. Há três dias que não o vejo; talvez tenha tido muito que fazer, porque a semana passada chegou à pensão do patrão um senhor que viajava numa bela carruagem. O hóspede foi‑se ontem embora. O mais curioso é que, enquanto lá esteve, nunca saiu de casa.

MOUTIER ‑ Faremos um reconhecimento para esse lado, logo à noitinha, para ver se encontramos o pobre pequeno.

PAULO ‑ E o "Capitão"? Onde está ele?

MOUTIER ‑ O "Capitão" morreu no cerco de Sebastopol; estava fazendo uma guarda, a meu lado, quando veio uma bala que lhe levou a cabeça.

PAULO ‑ Pobre "Capitão". Sempre esperei tornar a vê‑lo...

 

                   Moutier salva um amigo

A tarde passou‑se agradavelmente.

Só depois de jantar, quando já principiava a anoitecer, é que Moutier, acompanhado por Tiago, se dirigiu para o lado onde ficava a pensão do patrão de Torchonet. Deram uma grande volta para ir ter às traseiras da casa. Estava tudo em silêncio. Não havia nem uma luz acesa.

Minutos depois de eles terem chegado, abriu‑se uma porta e apareceu um homem. Moutier reconheceu logo o estalajadeiro. Trazia na mão uma lanterna e dirigiu‑se à carvoeira, separada do pátio por um tabique de madeira. Abriu a porta e entrou.

‑ Aqui tens o teu jantar ‑ disse ele em voz baixa e com mau modo. ‑ O estrangeiro já se foi embora. Recomeçarás amanhã o teu trabalho, mas, se contares a alguém uma palavra só do que viste e ouviste ou disseres que estiveste aqui fechado enquanto ele cá permaneceu, quebro‑te os ossos e queimo‑te vivo.

‑ Esteja descansado! ‑ respondeu Torchonet com voz trémula.

O estalajadeiro saiu, tornou a fechar a porta e voltou para casa.

Quando teve a certeza de que mais ninguém poderia ouvi‑lo, Moutier aproximou‑se do tabique e disse a Tiago que chamasse Torchonet.

Tiago obedeceu imediatamente e, com a boca encostada às tábuas, perguntou:

‑ Torchonet! Porque estás aqui fechado?

TORCHONET ‑ É o menino Tiago! Como conseguiu descobrir que eu estava aqui?

TIAGO ‑ Depois te explicarei. Quando foi que o teu patrão te meteu neste buraco?

TORCHONET ‑ Foi quando chegou um estrangeiro com uma maleta cheia de coisas de ouro. Esse senhor teve pena de mim e disse ao meu patrão que lhe daria dinheiro se ele me deixasse ir para outra casa. Mas o patrão não quis. Então o estrangeiro deu‑me uma moeda de ouro para lhe ir comprar tabaco e disse‑me que guardasse o troco. O patrão foi atrás de mim e arrancou‑me o dinheiro da mão, ainda antes de eu sair de casa. Quis gritar e ele agarrou‑me pelo pescoço e trouxe‑me aqui para a carvoeira, dizendo que me matava se eu chamasse alguém. Traz‑me um bocado de pão e uma bilha de água todas as noites...

MOUTIER ‑ Pobre rapaz!

A voz de Moutier fez tremer Torchonet.

TORCHONET ‑ Valha‑me Deus! Está aí alguém consigo, menino Tiago? Se o meu patrão sabe que eu falei, mata‑me!

MOUTIER ‑ Podes ficar tranquilo, pequeno. Sou aquela pessoa que há três anos te ajudou a trazer o saco de carvão. Sou o amigo de Tiago. Podes contar tudo, que eu não direi nada a teu patrão. Quando foi embora o tal estrangeiro?

TORCHONET ‑ O meu patrão diz que ele já partiu, mas eu não acredito, porque ouvi falar muito alto e um grande barulho, como se estivessem à bulha. Também ouvi as vozes do irmão e da mulher do patrão. Depois calaram‑se todos e o patrão veio trazer‑me pão e água, como do costume.

Moutier estava indignado. Que significaria tudo aquilo? Teriam feito algum crime? Seria ainda tempo de impedir que o praticassem? Que devia fazer?

Reflectiu um momento e disse a Tiago:

‑ Volta para casa, menino: preciso de ficar só.

TIAGO ‑ Eu não me separo de si. Compreendo muito bem que o senhor quer ficar para salvar o estrangeiro e posso ajudá‑lo.

MOUTIER ‑ Em lugar de me ajudares, estorvas‑me. Vai‑te embora! É preciso que te vás embora imediatamente!

Estas palavras foram ditas num tom imperativo que não admitia réplica.

Tiago curvou a cabeça e partiu.

Momentos depois, quando Moutier se preparava para sair do sítio onde estava escondido, abriu‑se novamente a porta da estalagem e apareceu o estalajadeiro, caminhando com passos cautelosos. Voltando‑se para trás, disse em voz baixa:

‑ Não se vê ninguém... Toca a despachar. Porque daqui a pouco nasce a Lua e já não podemos fazer nada...

Tornou a entrar, deixando a porta aberta; Moutier foi atrás dele e parou em frente de um quarto onde o estalajadeiro tinha entrado. Lá dentro havia apenas a luz fraca de uma candeia, mas Moutier viu um homem estendido no chão, amordaçado.

O irmão e a mulher do estalajadeiro levantaram‑no pelos ombros, e ele pegou‑lhe pelas pernas.

Preparavam‑se, os três, para o levar para fora do quarto, quando Moutier caiu sobre eles, partindo uma perna ao estalajadeiro com um tiro, e dando uma pancada na cabeça do irmão com a coronha da pistola. Como a mulher quisesse agredi‑lo, deu‑lhe também um murro na testa.

Caíram os três no chão. Rapidamente, Moutier cortou as cordas que amarravam o desgraçado estrangeiro, tirou‑lhe o lenço que o amordaçava e, depois de ter prendido as mãos do estalajadeiro, que tentava erguer‑se, correu à porta que dava para a rua, disparou um tiro para o ar e gritou:

‑ Acudam! Ladrões! Assassinos!

Logo se abriram outras portas e apareceram algumas pessoas, com ar apavorado.

Moutier continuava a gritar:

‑ Aqui, na estalagem! Venham depressa! Já não há perigo!

Estas palavras deram coragem àquela boa gente, pouco habituada a desordens. Alguns homens, armados de varapaus, agruparam‑se à porta da estalagem com uma certa hesitação, pois ignoravam o que se passara.

Entretanto, chegou Elfy, precipitadamente. Ao ouvir o tiro da pistola e os gritos de Moutier, correra imediatamente, chamando toda a gente da aldeia para lhe acudir. Como supunha que o Tiago se encontrava ainda com ele, estava aflitíssima.

ELFY ‑ Que sucedeu? Onde está o Sr. Moutier? Porque não entram?

ALDEÃO ‑ Não sabemos do que se passa e este Bournier é mau homem.

ELFY ‑ Nesse caso deixam matar uma pessoa com medo de apanhar também... Pois eu que sou mulher, vou entrar!

E arrancando uma navalha da mão do que estava mais próximo, entrou corajosamente, gritando:

‑ Onde está o Sr. Moutier? Onde está o Tiago? Que lhes sucedeu?

Ao ver o estalajadeiro com as mãos amarradas e a mulher e o irmão dele caídos no chão, sem sentidos, Elfy compreendeu que se passara qualquer coisa muito grave. A um lado, Moutier lavava com água a cara de um desconhecido, cheia de sangue, sem saber ainda se esse sangue era resultante de alguma ferida ou de uma pancada no nariz.

Ao ouvir a voz de Elfy, Moutier voltou‑se, surpreendido, e disse:

‑ Custa‑me vê‑la aqui! Porque veio? Peço‑lhe que se vá embora!

ELFY ‑ Quando ouvi um tiro e gritos, julguei que lhe tivesse sucedido algum desastre, e vim logo. à entrada da casa está um grupo de homens, mas, como nenhum se atrevia a entrar, entrei eu.

‑ Como é corajosa, Elfy! Nunca me esquecerei do que fez hoje! ‑ exclamou Moutier, apertando‑lhe afectuosamente as mãos. ‑ Mas, visto que está aqui, peço‑lhe que chame essa gente. É preciso tratar desses patifes que estão por terra e chamar a polícia. Também é preciso levar daqui esse pobre homem que eles queriam matar e roubar. Quanto ao Tiago, mandei‑o embora antes de entrar aqui.

Sem esperar nem mais um momento, Elfy transmitiu aos aldeões o recado de Moutier e foi, a correr, tranquilizar a irmã. No caminho encontrou Tiago, a tremer de medo. O rapaz pretendia, por força, ir defender o seu amigo pois julgava que lhe queriam fazer mal, mas Elfy tranquilizou‑o e levou‑o para casa consigo.

Quanto aos homens que estavam à entrada da estalagem de Bournier, logo que viram o estalajadeiro e os outros fora de combate, ofereceram‑se para fazer o que fosse preciso.

MOUTIER ‑ Desejo apenas que me ajudem a levá‑los à prisão da cidade mais próxima. Estou aqui de passagem e não conheço ninguém. Mas, principalmente, o que é de grande urgência é prestar socorro a este homem que eles pretendiam assassinar e que ainda não voltou a si. Onde podemos encontrar um bom médico?

A farda e as condecorações de Moutier impuseram‑no logo ao respeito dos camponeses, que lhe obedeceram sem protestar. Dois foram à cidade, requisitar guardas. Quatro ficaram a tomar conta do estalajadeiro, da mulher e do irmão dele, a quem ataram também as mãos. Mandou um à Pousada do Anjo da Guarda perguntar à Sr.a Blidot se podia alojar o desconhecido que continuava sem sentidos. Os outros ficaram juntos de Moutier.

Pouco depois, chegou a resposta da Sr.a Blidot: ‑ Punha à disposição do sargento Moutier tudo quanto fosse necessário e estivesse ao seu alcance.

Ajudado por três homens vigorosos, Moutier colocou o estrangeiro sobre um colchão e transportou‑o para a Pousada do Anjo da Guarda; a Sr. Blidot lavou‑lhe cuidadosamente o rosto, que estava coberto por coágulos de sangue, mal se lhe distinguindo as feições. Minutos depois, ao olhar para ele, Moutier soltou uma exclamação:

‑ Mas... é o meu pobre general prisioneiro! Como foi ele meter‑se naquela casa? Parece que começa a recuperar os sentidos...

Efectivamente, o general voltava a si, olhando para todos com espanto, como se tentasse adivinhar o que se tinha passado. Ainda não vira Moutier, porque este se colocara atrás dos cortinados. Mas quando o general perguntou: ‑ Onde estou eu? ‑ Moutier apareceu e, tomando‑lhe a mão, disse:

‑ Está em casa de pessoas amigas! Os bandidos que tentaram assassiná‑lo já apanharam a sua conta e foram entregues à polícia.

GENERAL ‑ Sempre o bravo Moutier! Saiba que foi por sua causa que caí naquele covil. Mas fico a dever‑lhe a vida mais uma vez!

MOUTIER ‑ Como estou contente por lhe ter sido útil! Mas, diga‑me, meu General, como é que, por minha causa, foi instalar‑se em casa daqueles bandidos?

Antes de responder, o general pediu que lhe dessem uma chávena de café bem forte e depois, já um pouco mais animado, explicou a Moutier:

‑ Como me tinha dito que tencionava vir visitar umas amigas e os pequenos que elas haviam recolhido, resolvi encontrar‑me consigo aqui, em vez de esperar por si em Bagnols. Logo tive a pouca sorte de me hospedar em casa daquele bandido.

MOUTIER ‑ Porque se conservou lá tantos dias? Porque queriam eles matá‑lo?

GENERAL ‑ Tivemos uma discussão por causa de um rapazito, de aspecto faminto, que lá encontrei. Soube que o malvado estalajadeiro o fora buscar a um asilo, para o tomar como criado. Ofereci‑me para lhe pagar a aprendizagem de qualquer ofício, mas o bandido recusou. Disse‑lhe, então, que daria parte dele à autoridade. Tanto bastou para que ele tentasse ver‑se livre de mim... Como tinha visto que eu trazia comigo bastante dinheiro e jóias, calculo que a cobiça acabou por lhe fazer tomar uma resolução criminosa a meu respeito. Serviram‑me o almoço num quarto que dava para um pátio interior, mas eu não reparei. Só depois, ao notar que haviam fechado a porta por fora, é que compreendi tudo. Chamei, gritei, mas ninguém me respondeu. Abri a janela, mas tinha grades de ferro. Tornei a gritar e, então, desceram as persianas da janela e senti que as barricavam, pelo lado de fora. Não tinha levado armas comigo e os próprios talheres haviam sido retirados da mesa. Continuei a gritar, mas, como ninguém me respondia, resolvi esperar. Ao anoitecer, passaram‑me, pelas grades da janela, umas fatias de pão. "Tem água na garrafa!" ‑ disse o estalajadeiro, e tornou a entaipar a janela. Fiquei ali dois dias, a pão e água, tendo apenas uma cadeira para me sentar. Ao terceiro dia, ouvi um ruído junto da porta, e preparei‑me logo para me defender de qualquer agressão. Com efeito, deram a volta à chave e a porta abriu‑se lentamente.

"O quarto estava tão escuro, que eles não me distinguiram. Logo que vi um vulto, atirei‑me para cima dele. Recebi então um murro no nariz, que fez espirrar o sangue e me turvou a vista. Não sei quantas pessoas eram, mas deveriam ser bastantes, porque me deram muitas pancadas na cabeça."

"Depois... não senti mais nada... Mas, como soube você, Moutier, o perigo em que eu estava?"

MOUTIER ‑ Contar‑lhe‑ei tudo quando o meu General estiver melhor!

GENERAL ‑ Só preciso de repouso. Não vale a pena chamar o médico. Deixe‑me dormir.

Assim fizeram. O general bebeu, ainda, um cálice de vinho e não tardou a adormecer.

 

                   Torchonet encontra um protector

Enquanto o general sossegava, a Sr.a Blidot pôs o quarto em ordem e recomendou a Moutier que fosse saber o que era feito do estalajadeiro e dos seus cúmplices.

Moutier foi, primeiro, saber onde estavam os pequenos. Encontrou‑os junto de Elfy. Mostravam‑se muito excitados. Tranquilizou‑os e, quando lhes disse que ia à estalagem de Bournier, Tiago perguntou:

‑ Deixa‑me ir consigo?

MOUTIER ‑ Com todo o gosto. E, agora, precisamos de pensar também em Torchonet. O melhor será levá‑lo para casa do Sr. Cura.

ELFY ‑ Porque não o traz cá para casa?

MOUTIER ‑ Em primeiro lugar porque esta casa não é um asilo; depois, porque não conheço bem o rapaz e não sei se a convivência dele poderá ser nociva aos nossos dois pequenos.

ELFY ‑ Tem razão. Faça como entender.

Moutier saiu, acompanhado por Tiago. Ao entrarem na pensão de Bournier, ouviram gemidos e imprecações. Os criminosos já tinham voltado a si e tentavam, à viva força, libertar‑se das cordas com que os haviam amarrado, insultando os aldeões que os guardavam.

O primeiro pensamento de Moutier foi libertar Torchonet. Como não encontrasse a chave da carvoeira, Moutier arrombou‑a. Torchonet, muito assustado, estava a um canto, todo encolhido. Apesar de Tiago lhe explicar tudo o que sucedera, o pobre pequeno não podia acreditar na sua libertação.

Estava tão contente, que se abraçou aos joelhos de Moutier e quis beijar Tiago.

TORCHONET ‑ Obrigado, meu senhor! Obrigado, menino Tiago!

MOUTIER ‑ É a Deus que deves agradecer! Agora vem connosco. Vamos levar‑te a casa do Sr. Cura.

TORCHONET (juntando as mãos) ‑ Não! Não! Para casa do Sr. Cura, não, peço‑lhe!

MOUTIER ‑ Porque tens tu medo do Sr. Cura? Ele já te fez mal?

TORCHONET ‑ Nunca me fez mal, porque nunca me aproximei dele; mas se me tocasse era capaz de me comer vivo!

MOUTIER ‑ Quem te disse semelhante disparate?

TORCHONET ‑ Foi o meu patrão. Ele até me proibiu de lhe falar.

MOUTIER ‑ O teu patrão não passa de um criminoso. Mas, deixemo‑nos de palavras, vem comigo e não tenhas medo.

Pouco depois batiam à porta do presbitério. Veio o próprio Cura abrir, e logo reconheceu Moutier.

CURA ‑ Então novamente por cá? Quando chegou?

MOUTIER ‑ Cheguei esta manhã e já aqui me tem a pedir‑lhe uma obra de caridade.

CURA ‑ Disponha de mim à sua vontade.

MOUTIER ‑ Trata‑se de dar guarida e alimento, por algum tempo, a um rapazinho que aqui lhe trago.

E, dizendo isto, Moutier indicou‑lhe Torchonet.

CURA ‑ E o patrão consentiu que ele viesse? Aproxima‑te, pequeno.

Quando o Cura ia a pegar na mão de Torchonet, este soltou um grito e fugiu para um canto.

CURA ‑ Mas que tem ele?

Moutier contou, então, o que o estalajadeiro metera na cabeça da criança.

‑ Meu pobre rapaz! ‑ exclamou o Cura ‑ podes estar descansado. Todos os rapazes da aldeia vêm a minha casa e ainda não comi nenhum, nem mesmo os mais gorduchos...

Voltando‑se para Moutier, o Cura perguntou:

‑ Trata‑se, então, de tomar conta deste pequeno durante algum tempo. Mas que dirá o patrão?

Moutier explicou‑lhe tudo o que se passara. O Cura chamou a criada, entregou‑lhe Torchonet e recomendou‑lhe que lhe desse de comer e lhe preparasse uma cama. Depois, saiu com Moutier e Tiago. O bom pároco desejava visitar Bournier e os cúmplices, com esperança de lhes incutir a ideia de um arrependimento sincero.

Quando chegaram à Pousada do Anjo da Guarda, Moutier e Tiago encontraram a Sr.a Blidot e Elfy ainda levantadas.

Mandaram Tiago para a cama, pois já era bastante tarde para os seus hábitos.

Sr.a BLIDOT ‑ Não imagina como estes pequenos são bons! Estimo‑os tanto como se, na realidade, fossem meus filhos.

MOUTIER ‑ Eles é que tiveram muita sorte em virem para esta casa. Aqui ninguém pode sentir‑se infeliz.

Sr.a BLIDOT ‑ Se gosta tanto de cá estar, porque não fica também?

MOUTIER ‑ Porque não posso viver na ociosidade. Agora, preciso de ir a Bagnols fazer uma cura das águas, para ver se as minhas feridas cicatrizam por completo. Depois resolverei...

ELFY ‑ Não pensa em alistar‑se novamente?

MOUTIER ‑ Talvez sim... talvez não...

ELFY ‑ Em todo o caso não tome qualquer resolução sem falar primeiro connosco.

Conversaram ainda algum tempo, acerca dos acontecimentos daquele dia agitado.

Moutier e a Sr.a Blidot iam, de vez em quando, ver se o general precisava de qualquer coisa, mas ele continuava a dormir. Moutier queria passar a noite de pé, junto dele, embora a Sr.a Blidot e Elfy se opusessem.

Mas, por fim, Elfy foi buscar colchões e arranjou‑lhe uma bela cama, ao lado da do general.

MOUTIER ‑ Ora, digam‑me se não é vergonhoso para um soldado prepararem‑lhe uma cama como se fosse um príncipe!

Riram, felizes, e despediram‑se ainda mais amigos do que eram até ali.

 

                   A gratidão do general

A manhã já ia alta quando o general acordou. Tinha dormido como um justo. à parte de ligeiras dores no nariz, sentia‑se bem disposto e só pedia que lhe dessem de almoçar.

‑ Três dias a pão e água ‑ dizia ele ‑ despertaram‑me o apetite.

MOUTIER ‑ Vou imediatamente tratar disso, meu General.

Ao entrar na cozinha, encontrou Elfy, que voltava da vacaria, onde fora buscar o leite.

Vinha triste. Moutier pediu‑lhe café para o general; ela pô‑lo ao lume, sem responder.

MOUTIER ‑ Que tem, Elfy? Porque está triste?

ELFY ‑ Porque não é tão meu amigo como eu julgava... Pressinto que se irá embora e não voltará mais...

MOUTIER ‑ Que ideia, Elfy! Oiça bem o que eu lhe vou dizer: se tivesse meios de fortuna que me permitissem oferecer‑lhe uma vida sem preocupações, nunca mais me separaria de si, minha boa amiga. Mesmo assim, era preciso que nos unissem os laços do parentesco ou... do casamento...

ELFY (sorrindo) ‑ E não quer, porque é pobre e eu tenho alguma coisa de meu?

MOUTIER ‑ É essa a única razão.

ELFY ‑ O senhor trata‑nos como suas amigas e diz‑se nosso amigo também. Porque é, então que se preocupa por não ter fortuna, quando pode dar‑nos a mesma felicidade que deseja para si, se quiser partilhar o que possuímos?

Moutier, muito comovido, não se atrevia a responder.

Entretanto, o general, cheio de impaciência, tinha entrado na cozinha sem que dessem por ele, e ouvira a última parte da conversa. Aproximou‑se de Moutier e de Elfy, pegou‑lhes nas mãos e disse:

‑ Quem vai ser o padrinho de casamento sou eu! Então, para que estou aqui? Não é de mais dar um dote a quem me salvou duas vezes a vida.

MOUTIER ‑ Oh! Meu General, eu não posso aceitar a sua generosidade.

GENERAL ‑ Deixemo‑nos de orgulho exagerado! Há‑de aceitar o que eu quiser.

MOUTIER ‑ Está bem, meu General. A verdade é que me falta coragem para renunciar à minha querida Elfy.

GENERAL ‑ Assim é que está certo!

MOUTIER ‑ Como poderei eu provar‑lhe o meu reconhecimento?

GENERAL ‑ Tá, tá, tá! Quem fala aqui em reconhecimento? O que eu quero é que sejam ambos meus amigos..

ELFY ‑ Pode contar com a minha mais sincera amizade! O que eu lhe agradeço não é o dote que oferece a... como é o seu nome? ‑ perguntou ela, dirigindo‑se a Moutier.

‑ José.

‑ Ao José ‑ continuou ela, rindo ‑, mas sim tê‑lo decidido a não se separar mais de nós. Mas... eu ainda não disse nada a minha irmã! Resolvi casar sem a ter consultado!

Elfy saiu, correndo. O general estava espantado, e exclamou, dirigindo‑se a Moutier:

‑ Que quer isto dizer? Então a irmã ignora o vosso projecto de casamento, e ela nem sequer sabe o seu nome?

MOUTIER (rindo) ‑ Não faça caso, meu General. Tudo se há‑de arranjar.

GENERAL ‑ Confesso que não compreendo nada! Mas o que está fora de dúvida é que esta rapariga é encantadora.

MOUTIER ‑ É boa, sensata, corajosa...

GENERAL ‑ Etc., etc.,... Sei muito bem o que isso é. Quando se está apaixonado...

O general não teve tempo de acabar a frase, porque a Sr.a Blidot entrou acompanhada por Elfy.

MOUTIER ‑ Perdoe‑me, minha querida amiga; foi o general quem precipitou os acontecimentos.

Sr.a BLIDOT ‑ Há muito que desejava que tomassem essa resolução, para felicidade de Elfy. Quando o senhor esteve aqui a primeira vez, pensei logo que os dois fariam um belo par. Já vê que não tenho nada a perdoar‑lhe.

Tiago e Paulo apareceram também. Ao perceber do que se tratava, Tiago exclamou:

‑ Que bom! Que bom! Nunca mais nos separaremos, e a tia Elfy não tornará a chorar às escondidas!

GENERAL ‑ Acabemos com isto. Acham que ainda é cedo para me darem o café?

Sr.a BLIDOT ‑ Tem razão, General. Vou servi‑lo imediatamente.

GENERAL ‑ Sejam felizes, já que eu não posso ser... Não passo de um prisioneiro.

MOUTIER ‑ Por pouco tempo, meu General; a paz vai ser assinada e não tardará que volte à sua pátria.

GENERAL ‑ Quer que lhe diga, meu amigo? Não desgostava de ficar aqui uma temporada

MOUTIER ‑ Assistirá ao nosso casamento.

GENERAL ‑ Sem dúvida alguma. Quem paga as despesas da boda sou eu, já fica sabendo...

 

                   Preparação da boda

O general refez‑se rapidamente do abalo sofrido. Recuperou o seu belo apetite e tornou‑se grande amigo dos dois irmãos, com quem dava longos passeios. Tiago, um dia, levou‑o a casa do Cura, para lhe mostrar Torchonet, que já não parecia o mesmo.

Tinha sido baptizado e o seu nome, agora, era Pedro Torchonet. O rapazito perdera por completo o medo terrível que tinha do bondoso padre, a quem se afeiçoara de todo o coração, bem como à criada que o tratava com muita bondade.

O general mostrou‑se carinhoso com o pobre pequeno e conversou longamente com o Cura, a quem achou muito simpático, e a quem participou o próximo casamento de Elfy com José Moutier.

O padre não pôde dominar o seu contentamento e, quando o general saiu, acompanhou‑o à Pousada do Anjo da Guarda, para felicitar os noivos.

CURA ‑ Desejo‑lhe todas as felicidades, Elfy. Estou convencido que fez uma boa escolha.

MOUTIER ‑ Agradeço‑lhe a boa opinião que faz de mim, Sr. Cura, e prometo‑lhe, solenemente, empregar todos os meus esforços para tornar a vida agradável à minha querida Elfy.

Ao dizer isto, o bravo sargento tinha os olhos cheios de lágrimas. A Sr.a Blidot chorava e Elfy mal podia disfarçar a sua emoção.

GENERAL ‑ Então, não querem lá ver? Parece que também vou puxar pelo lenço...

MOUTIER ‑ São as primeiras lágrimas da minha vida!

O general, bastante nervoso, dirigiu‑se para o quarto, enquanto o Cura se entretinha a conversar com as duas irmãs e Moutier.

De repente, a porta do quarto abriu‑se e o general deitou a cabeça de fora, para perguntar:

‑ Quando é a boda?

‑ Ainda não tivemos tempo de pensar nisso! ‑ respondeu Elfy.

GENERAL ‑ Mas eu preciso de saber para encomendar o jantar no melhor restaurante de Paris.

MOUTIER ‑ Alto lá, meu General. Esqueceu‑se do nosso tratamento em Bagnols?

GENERAL ‑ Não esqueço nada, mas a boda está primeiro que tudo.

ELFY ‑ Perdoe‑me, General, mas o José tem razão: primeiro devem ir a Bagnols e ele irá consigo para o tratar.

GENERAL ‑ Mas, então, por quem me tomam? Dispõem de mim como se eu fosse uma criança! E se eu não quiser ir a Bagnols? E se eu não quiser arredar pé daqui antes da boda?

ELFY ‑ Nesse caso ficará, para me guardar, enquanto José for, sozinho, fazer a cura das águas.

GENERAL ‑ Esta pequena é endiabrada! Não tenho outro remédio senão ceder. Partiremos amanhã.

ELFY ‑ Amanhã, não. Ainda não temos nada preparado para a viagem. Além disso... não quero que ele parta antes de...

O general esfregava as mãos de contente, exclamando:

‑ Ora aqui está! Quem tem razão sou eu.

ELFY ‑ Não é o que julga, General. O José não pode partir antes de fazer o seu depoimento acerca do caso Bournier. E também há‑de ser preciso que o General preste declarações. Que diz a isto?

CURA ‑ Elfy tem razão. Têm de esperar mais alguns dias.

E assim acabou a discussão por causa da data do casamento daqueles noivos felizes.

 

                   As "partidas" do General

Tendo concordado em adiar a boda para depois do regresso das águas, o general exigiu, porém, que se fixasse o dia, para poder encomendar o jantar com antecedência. Quis fazer, ele próprio, a lista dos pratos, mas, como ninguém parecia interessar‑se pelo assunto, foi com Tiago e Paulo para um canto da sala e entreteve‑se a descrever‑lhes todas as iguarias de que se lembrou.

Ao ouvi‑lo, os pequenos abriam muito os olhos e também os beiços.

PAULO ‑ Que é um "bábá"?

GENERAL ‑ É um doce excelente, com passas de uvas.

TIAGO ‑ Já sei: é como os pudins que a tia Elfy costuma fazer.

GENERAL ‑ Parvinho! É cem vezes melhor!

E o general não se cansava de fazer a descrição minuciosa do jantar, respondendo a todas as perguntas dos pequenos.

Assim se passou aquele dia, com a alegria costumada. Chegaram bastantes viajantes, uns para jantar, outros apenas para se refrescarem com qualquer coisa. Tiago ajudava ao serviço da mesa com uma grande actividade, e o general divertia‑se a conversar com os viajantes, que o tomavam por um negociante de gado.

A certa altura, travou‑se uma discussão entre ele e um viajante que parecia pouco disposto a concordar com as suas opiniões.

Chegaram mesmo a trocar palavras pouco amáveis...

Terminado o jantar, o general chamou Tiago e pediu:

‑ Dois cafés e dois cálices de aguardente, para mim e este senhor. ‑ E, voltando‑se para o outro, concluiu: ‑ Não vai recusar‑se à reconciliação, com certeza...

‑ Aceito de boa vontade! ‑ respondeu o viajante. ‑ Estou convencido de que o senhor não me quis ofender.

GENERAL ‑ De forma alguma! A verdade é que eu não entendia nada do assunto e respondi‑lhe ao acaso.

VIAJANTE ‑ Eu falava de bois. O senhor não é marchante?

GENERAL ‑ Não, senhor. Sou viajante, como o senhor, e fui feito prisioneiro por aquele homem...

Ao dizer isto apontou para Moutier, que acabava de entrar.

VIAJANTE (assustado) ‑ Prisioneiro?!... O senhor!... Então é...

GENERAL (rindo a bom rir) ‑ Descanse! Não sou ladrão nem assassino, embora tenha morto e feito matar muita gente. (O viajante instintivamente, recuou.) Fui feito prisioneiro de guerra, em Malakoff, por este homem, que me salvou, quando a fortaleza foi pelos ares. Saltava sobre os escombros; caia aqui, levantava‑se acolá... Apesar do grande sofrimento que os meus ferimentos me causavam, admirava a coragem com que se arriscava a vida para salvar um inimigo! E aqui tem, meu caro senhor, a razão por que sou viajante e prisioneiro.

VIAJANTE ‑ Qual é o seu posto?

GENERAL ‑ General.

O viajante deu um salto da cadeira, tirou o chapéu e disse, confundido:

‑ Queira desculpar, senhor! Eu não sabia... não podia adivinhar...

GENERAL ‑ Não há de quê!

Quando o viajante quis pagar a conta, o general não lho consentiu e o outro saiu agradecido e envergonhado.

TIAGO ‑ Muito agradável deve ser viajar!

GENERAL ‑ Queres tu ir comigo?

TIAGO ‑ Com todo o gosto, mas com a condição de levar também o Sr. Moutier, o Paulo, a minha mãe e a minha tia.

GENERAL ‑ Isso era a felicidade de mais e eu não tinha lugar para tanta gente. A propósito: onde estará a minha carruagem? E a minha mala? E as minhas jóias?

TIAGO ‑ O Bournier levou a carruagem e ninguém mais tornou a vê‑la. Toda a gente julgava que o senhor já tinha partido.

GENERAL ‑ Grande malandro!

Depois, voltando‑se para Moutier, concluiu:

‑ É preciso ir amanhã tratar deste caso.

ELFY ‑ Já amanhã?

MOUTIER ‑ Quanto mais depressa se arrumar este assunto e formos a Bagnols, mais depressa casaremos.

Elfy suspirou.

GENERAL (tomando um ar malicioso) ‑ Foi por mim que deu esse suspiro? Não responde? Quem cala consente... Esse suspiro vale um relógio de ouro e o respectivo cordão.

ELFY ‑ Oh Sr. General, eu não posso aceitar.

GENERAL ‑ Não foi por mim que suspirou há pouco?

ELFY ‑ Bem sabe que foi pelo José...

GENERAL ‑ Uma franqueza assim merece recompensa. Por isso terá não só um relógio e o cordão, mas também um broche e uns brincos.

ELFY ‑ O General exagera! Isso é de mais para mim. Eu não mereço tanto!

GENERAL ‑ Afinal, esta pequena não sabe o que diz... Ora pergunte a Moutier se ele a trocaria por cem relógios de oiro.

MOUTIER ‑ Nem todos os tesouros do mundo.

GENERAL ‑ Vê? Mas eu preciso de desentorpecer as pernas e Moutier vai acompanhar‑me numas voltas que quero dar. Precisamos de descobrir o paradeiro das minhas coisas.

MOUTIER ‑ Estou às suas ordens, meu General.

 

                   Os presentes do general

O general e Moutier encontraram o oficial de Administração na estalagem de Bournier.

Depois de dar as indicações e esclarecimentos necessários, provando a sua identidade, o general conseguiu reaver a sua mala e tudo quanto lhe pertencia.

O entusiasmo de Paulo e Tiago ao verem o que a mala continha, o estojo de viagem e as condecorações do general, não se pode descrever. Entre todas aquelas maravilhas havia uma colecção de relógios, com as respectivas correntes, que deslumbrou os rapazes.

O general pegou num, lindíssimo, meteu‑o num estojo, e disse a Tiago:

‑ Este relógio é para a tia Elfy.

Depois, escolhendo mais dois, menos ricos, continuou:

‑ Estes para vocês. É um presente que o Sr. Moutier lhes vai dar. Mas não digam que já lhos mostrei...

TIAGO ‑ Mas, afinal, é o Sr. Moutier ou o General quem nos dá?

GENERAL ‑ É o Sr. Moutier.

TIAGO ‑ Então ele comprou‑os?

GENERAL ‑ Comprou‑os. Mas, deixa‑te de perguntas...

Os dois pequenos, compreendendo a generosidade do general, não perguntaram mais nada e foram beijar‑lhe a mão, com grande irritação do velho militar, que se fingia zangado, pois não gostava de agradecimentos. Por fim, ordenou a Tiago que fosse chamar Moutier.

O sargento entrou, um tanto surpreendido com o ar enigmático dos rapazes e do general. Este, sem mais explicações, disse:

‑ Aqui tem o seu dote.

E meteu‑lhe, à força, nas mãos, uma carteira bem recheada de notas.

GENERAL ‑ Aqui tem, também, um presente para Elfy. E, como os rapazes de hoje são uns "cabeças no ar", tem aqui dois relógios para os seus pequenos. Quem lhos dá, é o senhor, está claro. Percebeu! O senhor é que encontrou o Tiago e o Paulo, não fui eu. E, se o senhor os não tivesse encontrado e protegido, eu não lhes poderia dar os relógios. Percebeu? E, já agora, deixe‑me dizer‑lhe que estou muito aborrecido por ser general, conde Dourakine, russo, e ter sessenta e três anos, porque, se tivesse trinta anos, fosse sargento e francês, seria seu cunhado, pois casaria com a Sr.a Blidot.

Moutier nem encontrava palavras para interromper o general. Estava surpreendido e profundamente comovido. Sem saber como manifestar o seu reconhecimento, Moutier começou a rir, a rir, ao mesmo tempo que dizia: muito obrigado!

O general, novamente de bom humor, desatou a rir tanto que a Sr.a Blidot, Elfy e os pequenos vieram saber o que sucedera.

GENERAL ‑ Nós estamos a rir porque... Ah!... Ah!... Ah!... Minha boa Sr.a Blidot... Oh!... Oh!... Oh!... eu queria ser cunhado de Moutier e casar consigo... Ah!... Ah!... Ah!...

Ainda antes que ele chegasse ao fim da explicação, Elfy soltara também uma gargalhada. Os pequenos, vendo‑os rir, fizeram o mesmo e, durante alguns momentos, ouviu‑se um coro de ah!... ah!... ah!... em todos os tons.

De repente, o general pôs‑se muito sério e exclamou:

‑ Não percebo porque se riem tanto! Já muitos russos se cassaram com francesas; muitos homens de sessenta e três anos desposaram mulheres mais novas do que eles. Serei, porventura, tão velho, tão ridículo, tão feio e tão mau, que ninguém queira casar comigo? Que lhe parece, Moutier?

MOUTIER ‑ Tem razão, meu General, mas a sua posição é superior à nossa, que a ideia nos parece extravagante.

GENERAL ‑ É verdade! Foi uma simples brincadeira. Tanto mais que a Sr.a Blidot não daria, por certo, o seu conhecimento.

Sr.a BLIDOT (rindo) ‑ Com certeza, General. Mas, para que é toda esta exposição de oiro?

GENERAL ‑ Já vai saber.

E o general distribuiu os relógios, como tinha determinado. Por fim, pegando num muito bonito, ofereceu‑o à Sr.a Blidot, que ficou cheia de confusão.

Todos lhe manifestaram o seu conhecimento, mas o general logo atalhou:

‑ Brr! Basta, basta, meus amigos. Vamos jantar, que estou com apetite. Trabalhei hoje muito e sinto necessidade de descansar.

Depois de jantar abriram uma garrafa de vinho e o general fez um brinde:

‑ Hurrah! Pela Pousada do Anjo da Guarda! Que belo vinho! A garrafeira da casa está muito bem fornecida. Até dá gosto fazer saúdes com vinho tão bom.

Conversaram ainda durante algum tempo e depois foram deitar‑se. Tiago e Paulo puseram os relógios debaixo do travesseiro, e Elfy não se cansava de admirar o seu.

A Sr.a Blidot e Moutier, apesar de já não serem crianças, fizeram os mesmos que os pequenos e, de manhã, o seu primeiro gesto foi verificar se os relógios trabalhavam bem.

 

                   Conflito com o juiz

No dia seguinte, logo depois do almoço, o general resolveu dar um passeio a pé, e encontrou os guardas que conduziam Bournier e os cúmplices, para serem interrogados.

O estalajadeiro estava deitado numa maca e não encobria a sua raiva, olhando para todos com um ar de desafio.

O juiz ordenou que chamassem o queixoso e as testemunhas. Entretanto, o general, que já tinha entrado na sala onde funcionava o tribunal, dirigiu‑se nestes termos a Bournier:

‑ Malvado! Assassino!

O juiz, surpreendido, voltou‑se para ele e perguntou:

‑ Quem é o senhor? Quem o autorizou a entrar? Ponham‑no lá fora.

GENERAL ‑ Queira perdoar, Sr. Juiz! Entrei porque devia entrar. E, se me obriga a sair, há‑de arrepender‑se.

JUIZ ‑ Seja mais delicado. Pessoas estranhas ao caso não podem assistir ao interrogatório que vou fazer. Por isso, ordeno‑lhe novamente que saia.

GENERAL ‑ Ordena? Saiba que não recebo ordens de ninguém, salvo do meu imperador, que está muito longe. Saiba também que, se me obriga a deixar esta sala, não haverá forças humanas que cá me tragam de boa vontade e não direi uma única palavra acerca desses mariolas.

JUIZ ‑ É justamente isso que desejamos; cale‑se e vá‑se embora.

GENERAL ‑ Vou sair. Sr. Juiz, e já me estou a rir das dificuldades em que se vai ver...

O general enfiou o chapéu na cabeça e dirigiu‑se para a porta. Nesse mesmo instante entrou Moutier, que parou e fez a continência militar, dizendo:

‑ Perdão, meu General!

O general saiu. O juiz ficou surpreendido e perguntou a Moutier: ‑ Quem é o senhor?

MOUTIER ‑ Sou Moutier, a principal testemunha desta ocorrência. Fui eu quem partiu a perna a esse patife e esmurrou a cabeça aos outros dois.

JUIZ ‑ Diga o que tem a dizer sem comentários. E quem é aquele homem que acaba de sair?

MOUTIER ‑ É o general Dourakine, que eu fiz prisioneiro e que estes... não sei bem que nome lhes hei‑de dar para não faltar ao respeito ao Sr. Juiz... teriam assassinado, se eu não aparecesse a tempo.

JUIZ ‑ Então eu pus fora o general? Vá a correr chamá‑lo, Sr. Moutier, e apresente‑lhe as minhas desculpas. Peça‑lhe que venha consigo. O depoimento dele é indispensável.

Moutier foi imediatamente procurar o general, que o recebeu cheio de cólera. Depois de ouvir o recado do juiz, disse, com voz exaltada:

‑ Não vou. Diga a esse palerma que se lembre das minhas palavras.

MOUTIER ‑ Mas... meu General, o seu depoimento é indispensável.

GENERAL ‑ Façam de conta que eu morri.

MOUTIER ‑ Impossível, meu General. Nada se pode fazer sem o senhor.

GENERAL ‑ Então para que me mandou embora? Agora arranjem‑se como quiserem...

Ao dizer isto, o general entrou no quarto e fechou a porta à chave.

Moutier não teve outro remédio senão voltar ao tribunal e contar ao juiz o que se passara.

JUIZ ‑ Se não vier a bem, virá a mal!

MOUTIER ‑ Está enganado, Sr. Juiz. É capaz de se deixar partir aos pedaços, mas não vem... Pela força não conseguirá nada. Deixe‑me ver se descubro maneira de ele fazer o depoimento completo.

O juiz ouviu as declarações de Moutier; depois acompanhou‑o até à Pousada do Anjo da Guarda e ficou na sala, enquanto o sargento foi conversar com Elfy. Momentos depois ela foi bater de mansinho à porta do quarto do general.

‑ Quem é? ‑ perguntou ele lá de dentro.

ELFY ‑ Sou eu, General.

‑ O que deseja? ‑ volveu ele, com voz mais branda.

ELFY ‑ Queria conversar um bocadinho consigo, para o consultar sobre o meu casamento.

GENERAL ‑ Da melhor vontade.

A porta abriu‑se, mas o juiz e Moutier colocaram‑se em sítio onde o general não os podia ver.

‑ Desculpe‑me incomodá‑lo, mas, como foi o general que decidiu o nosso casamento, não quero fazer nada sem ouvir a sua opinião. Lembrar‑me eu de que, se não fosse o José, aqueles malvados o teriam assassinado! Não era o que eles queriam?

GENERAL ‑ Pois está claro que era.

ELFY ‑ Nunca me contou bem como as coisas se passaram. Não compreendi o motivo porque eles o queriam matar nem como conseguiram amarrá‑lo, a si, que é tão forte e valente.

O general, lisonjeado, fez‑lhe a narrativa pormenorizada de tudo o que sucedera na estalagem de Bournier; e, como a porta estava aberta, o juiz pôde tomar as notas necessárias para o julgamento.

De repente, Elfy bateu com a mão na testa, como quem se lembra de qualquer coisa, e exclamou:

‑ Esqueci‑me de depenar a galinha para o jantar! Que dirá minha irmã! Perdoe‑me, General, mas não posso demorar‑me mais.

GENERAL ‑ E do casamento, não se fala?

ELFY ‑ Fica para outra vez.

Elfy saiu rapidamente e o general acompanhou‑a até à porta do quarto. Sentindo um ligeiro ruído, voltou a cabeça e deparou‑se‑lhe o juiz que acabara de tomar todos os apontamentos referentes ao crime.

Com ar digno e ofendido, o general exclamou:

‑ O senhor insiste em insultar‑me, em minha própria casa?

JUIZ ‑ Pelo contrário, Sr. General, venho pedir‑lhe desculpa. Não sabia com quem falava, quando o tratei desabridamente. Espero que esqueça o que se passou entre nós.

GENERAL ‑ Muito bem! O meu ressentimento passou, mas o que não posso é faltar à minha palavra: disse que não voltaria à pensão de Bournier e não voltarei, nem responderei a qualquer pergunta que o Sr. Juiz me faça sobre o crime.

JUIZ ‑ Quanto a isso, já não tenho necessidade de o interrogar. O seu depoimento está feito.

O general ficou muito espantado e disse:

‑ Já compreendo... Ora vá lá uma pessoa fiar‑se em raparigas bonitas! Aquela traidora... E o Moutier onde está? Foi ele quem me preparou esta armadilha. Então ele julga que, lá por me ter salvo a vida duas vezes, há‑de tratar‑me como a uma criança? Pois vou adoptá‑lo! Não tenho mulher nem filhos. Quem me impedirá de o fazer? Não se ria, Sr. Juiz. Sou dono da minha fortuna, posso dá‑la a quem eu quiser. Moutier! Apareça, homem!

Moutier entrou, com ar comprometido.

GENERAL ‑ Vem cá, meu filho! Sim, tu és meu filho e Elfy minha filha. Adopto‑os: faço‑os conde e condessa de Dourakine; dou‑lhes seiscentos mil rublos de rendimentos.

Ao ouvir chamar por Moutier, Elfy encaminhou‑se também para a sala. Se o general se zangasse, ela queria colocar‑se ao lado do noivo. Esperava tudo, menos a decisão que ele acabava de tomar. Achou aquela ideia tão impossível de realizar, que soltou uma gargalhada e, fazendo uma reverência diante de Moutier, disse:

‑ Sr. Conde Dourakine, tenho a honra de o saudar.

A seguir beijou afectuosamente as mãos do general e exclamou:

‑ O que acaba de fazer é uma simples brincadeira, mas eu não posso deixar de rir, ao pensar na figura que eu e Moutier faríamos num salão.

Moutier também ria a bom rir, o juiz fazia o mesmo e Elfy, essa então dava grandes gargalhadas.

O general compreendeu que o seu pensamento era disparatado. Envergonhado, declarou:

‑ Têm razão! De vez em quando digo asneiras! Façam de conta que eu não disse nada.

MOUTIER ‑ O meu General é a melhor pessoa do mundo!

O juiz de instrução despediu‑se e foi‑se embora, dizendo de si para si: "Que tipo tão original!"

 

                   Outras ideias do general

Quando se reuniram para jantar, o olhar malicioso do general chamou a atenção de Elfy, que ficou à espera dalguma partida.

A refeição decorreu alegremente, mas, pela altura da sobremesa, o general suspirou e disse, dirigindo‑se a Elfy:

‑ O dia de amanhã vai ser muito triste para si.

ELFY (assustada) ‑ Porquê?

GENERAL ‑ Eu e Moutier partiremos para Bagnols.

ELFY ‑ Porque é toda essa pressa?

GENERAL ‑ Graças a si, já fiz o meu depoimento. Portanto, nada mais tenho que fazer aqui.

ELFY ‑ Nesse caso sou eu a culpada de partirem tão cedo?

MOUTIER ‑ Quanto mais depressa formos, mais depressa voltaremos...

ELFY ‑ Isso é verdade.

GENERAL ‑ Talvez prefira acompanhar‑nos. Havemos de precisar de alguém que trate das nossas coisas. Está resolvido, levo‑a comigo!

ELFY ‑ O General tem ideias...

GENERAL ‑ Disparatadas, absurdas. Diga, diga, não faça cerimónia.

ELFY ‑ Não é isso, General... Eu queria dizer... ideias extravagantes.

GENERAL ‑ Vem dar ao mesmo. Está, pois, provado que tenho ideias absurdas. Muito obrigado, menina Elfy.

ELFY ‑ Não seja mau! Bem sabe que não tive intenção de o magoar.

Ao dizer isto, Elfy levantou‑se e saiu da sala, amuada. O general, pelo contrário, mostrava‑se muito bem disposto, e disse a Moutiier:

‑ Vá chamá‑la, meu amigo; diga‑lhe que é uma maluquinha e que eu estava a brincar, para me vingar daquela história do meu depoimento.

Elfy não se fez esperar.

‑ Então é vingativo?! ‑ disse ela ao general. E, pegando‑lhe na mão e beijando‑lha respeitosamente, continuou: ‑ Perdoe‑me a familiaridade com que lhe falei e creia que a minha alma está cheia de reconhecimento. Devo‑lhe a felicidade!

O general, mais comovido do que queria parecer, apenas respondeu:

‑ Minha querida menina! Tem um excelente coração!

E, com as lágrimas nos olhos, dirigiu‑se para o quarto.

PAULO ‑ Porque está ele a chorar?

TIAGO ‑ Tenho cá uma ideia: o general chora porque tem pena de se separar de nós.

PAULO ‑ Então porque não lhe dizemos que fique?

Sr.a BLIDOT ‑ Ele não quer, meu filho. Se ficasse, acabava por se aborrecer.

Entretanto, o general voltou à sala. Vinha triste. Paulo chegou‑se a ele e disse:

‑ Porque não fica connosco?

‑ Não posso, meu rapaz! ‑ respondeu o general, e concluiu: ‑ Mas levo‑os ambos comigo, se vocês quiserem.

PAULO ‑ Eu não vou! Quero ficar com a mãe e com a tia Elfy.

GENERAL ‑ E tu, Tiago? Queres vir?

TIAGO ‑ Eu não deixo o Paulo, nem a mãe, nem a tia Elfy.

O general ficou a olhar para os dois pequenos e a pensar que podia muito bem adoptá‑los, visto não terem pai nem mãe. Depois, não podendo dominar‑se, disse‑lhes:

‑ Se vierem comigo, fá‑los‑ei meus herdeiros e terão tudo quanto desejarem.

TIAGO (com firmeza) ‑ Não, não quero. Não troco a companhia da mãe, da tia Elfy e do Sr. Moutier pela maior riqueza do mundo. Sinto‑me feliz com o que tenho.

PAULO ‑ Eu também não.

GENERAL ‑ Está bem... Não se fala mais nisso. Não tenho ninguém a quem amar. Não sei o que hei‑de fazer ao dinheiro. Sou um desgraçado, afinal! Ninguém gosta de mim!

E o general, sentou‑se numa cadeira, escondeu a cabeça entre as mãos, numa atitude de grande desalento. Mas, de repente, levantou‑se e deu um murro tão forte na mesa, que a Sr.a Blidot e Elfy assustaram‑se, os pequenos soltaram um grito e o próprio Moutier ficou surpreendido.

Olhando para todos tranquilamente, o general declarou:

‑ Sou um estúpido! Desgraçado, eu, porquê? Por não ter família? Posso muito bem adoptar o Torchonet. Moutier, vá dizer ao Cura que desejo levar o Torchonet comigo, adoptá‑lo e dar‑lhe seiscentos mil rublos de rendimento!

‑ Mas... meu General ‑ observou Moutier ‑, não sei se o Sr. Cura consentirá.

GENERAL ‑ O quê? Achará pouco, para um pobretão como o Torchenet? Veremos... Vou lá eu próprio...

Dizendo isto, o general dirigiu‑se para a porta, tão precipitadamente, que nem levou o chapéu.

Moutier ficou pasmado; a Sr.a Blidot e Elfy entreolharam‑se surpreendidas e, por fim, riram‑se.

Sr.a BLIDOT ‑ É doido!

ELFY ‑ Mas tem bom coração.

MOUTIER ‑ Tem razão, Elfy. Não imagina como é bondoso e dedicado de sentimentos. O que ele tem é um génio impulsivo e deixa‑se levar pelas primeiras impressões. Olhe, aí vem ele. A ausência não foi grande...

O general entrou tão precipitadamente como havia saído, e exclamou:

‑ Um perfeito urso, aquele padre! Não quer... E sabem porquê? Porque não sou católico! É inacreditável. Que direito tem ele sobre o rapazito? Roubou‑o ao Bounier e agora quer impedir‑me de o fazer rico! Eu lhe direi! Vou queixar‑me ao juiz de instrução. E se o Torchonet não quiser vir comigo, meto os dois na cadeia!

MOUTIER ‑ Mas... meu caro General...

GENERAL ‑ Não há mas, nem meio mas... Quero o meu Torchonet!

MOUTIER ‑ E quem lhe diz, meu General, que o Torchonet é digno da sua protecção? Lembre‑se de que ele é mal‑educado e talvez tenha defeitos graves, pois viveu na companhia de bandidos.

GENERAL ‑ Isso é verdade... É capaz de praguejar e roubar, como o malvado do patrão. Havia de ter graça: um conde Dourakine a roubar os vizinhos... Não tinha pensado nisso. Obrigado, meu bravo Moutier! Impediu‑me de fazer uma grossa asneira.

MOUTIER ‑ Não chegaria a fazê‑la, porque havia de reflectir. Além de que seria complicado, por causa da diferença de nacionalidades.

GENERAL ‑ Tanto melhor! Vou já a casa do Cura dizer‑lhe que renuncio a Torchonet.

MOUTIER ‑ Vou lá eu, se quiser, meu General. É sempre desagradável voltar com a palavra atrás...

GENERAL ‑ Pois sim, meu amigo, e não tenha dó de mim; diga‑lhe que sou um idiota e que irei lá amanhã, pessoalmente, pedir‑lhe desculpa.

MOUTIER ‑ Não direi nada disso, mas, pelo contrário, que o meu General é o melhor dos homens.

Moutier foi logo a casa do pároco, que riu a bom rir das resoluções rápidas e contraditórias do general.

 

                   A partida

Por fim, Elfy e Moutier concordaram em que não deveriam demorar mais a partida para Bagnols, mas receavam comunicar ao general a sua resolução.

‑ Veja que não se zangue ou não tenha nenhuma das suas ideias... ‑ disse Elfy ao noivo.

Moutier entrou no quarto do general e disse‑lhe, sem mais explicações:

‑ Se não vê nisso qualquer inconveniente, partiremos amanhã.

GENERAL ‑ Quando quiser. Eu estou aqui mais por Elfy e por si do que por mim. Mas o que é preciso é arranjar uma carruagem, visto que ainda não sei onde pára a minha.

MOUTIER ‑ Posso ir à cidade procurar uma.

GENERAL ‑ Pois vá; mas tenho outra ideia: pergunte à Sr.a Blidot se passa por aqui perto alguma diligência.

Moutier saiu e voltou logo depois com a notícia de que, a duas léguas dali, passava uma diligência, tendo ligação com o caminho‑de‑ferro.

GENERAL ‑ Podemos tomá‑la amanhã.

MOUTIER ‑ E para chegar até lá?

GENERAL ‑ Iremos a pé.

MOUTIER ‑ Permita‑me que lhe diga que duas léguas é uma distância grande de mais para o meu General.

GENERAL ‑ Acha‑me assim tão velho?

MOUTIER ‑ Não é isso... Mas a sua ferida...

GENERAL ‑ E o senhor não tem uma como eu? Ora deixe‑se de histórias e fale claro. O que o senhor pensa é que estou velho, gordo, pesado e não aguentarei o caminho. Ora olhe para mim, a direito, sem se rir! Pois eu digo‑lhe que sou capaz de andar tanto como qualquer outro e farei a viagem a pé, ainda que me arranje dez carruagens.

MOUTTIER ‑ Estou às suas ordens, meu General.

GENERAL ‑ Vamos tratar da bagagem. Só quero levar a roupa que tiver vestida e o dinheiro em oiro que couber nas algibeiras.

O general sentia‑se satisfeitíssimo com a ideia de ir a pé, armado em turista. Ao voltar para a sala encontrou lá um viajante. Era um soldado que se havia sentado a uma extremidade da mesa e acabava de jantar com um ar taciturno. O general viu‑o puxar pela bolça, contar o pouco dinheiro que ele continha e perguntar, hesitante:

‑ Quanto devo?

Sr.a BLIDOT ‑ Pão, um vintém; queijo, um vintém; vinho, dois vinténs; ao todo quatro vinténs.

SOLDADO ‑ Julguei que tivesse feito uma despesa maior. A senhora esqueceu‑se de contar os rabanetes.

Sr.a BLIDOT ‑ Isso não tem importância.

No momento em que o soldado ia pagar, Elfy, a quem o general dissera qualquer coisa em voz baixa, pôs sobre a mesa, em frente do soldado, uma chávena de café e um cálice de aguardente.

SOLDADO (assustado) ‑ Eu não pedi isso.

ELFY ‑ Bem sei, mas isto não entra na conta. Costumamos dar café e aguardente, gratuitamente, aos militares.

O soldado bebeu tudo com grande satisfação e depois agradeceu muito a Elfy.

Aproximando‑se dele, o general perguntou:

‑ Para onde vai?

‑ Para as águas de Bagnols ‑ respondeu o soldado, muito surpreendido.

GENERAL ‑ Eu também para lá vou. Talvez possamos fazer a viagem juntos.

SOLDADO ‑ Com muito gosto, mas eu vou a pé até Domfront, para tomar a diligência de ligação com o caminho‑de‑ferro...

GENERAL ‑ Também nós. Partiremos amanhã.

SOLDADO ‑ Tenho muita pena, mas eu preciso seguir já, porque está alguém à minha espera para tratar de um negócio importante ainda hoje. Lá nos encontraremos em Bagnols.

O soldado fez continência e saiu com o mesmo ar triste com que entrara. Ao chegar à porta viu Tiago e Paulo que voltavam para casa. Estremeceu ao reparar em Tiago e, quando se dispunha a continuar o seu caminho, ouviu‑o dizer à Sr.a Blidot:

‑ Mãe, o Sr. Cura está muito contente comigo.

O pequeno mostrou as notas que trouxe da escola, as dele e as de Paulo. Como eram boas, o general quis imediatamente dar uma moeda de oiro a cada um, dizendo:

‑ Tomem isto, rapazes. É a minha despedida. Lá por eu ser um pobre prisioneiro, não devem recusar...

TIAGO ‑ Ó meu bom General, como pode pensar semelhante coisa!

GENERAL ‑ Então aceitem e não digam mais nada.

Aquele dia acabou triste. No seguinte tomaram o pequeno almoço cedo, pois deviam partir às nove horas. Terminada a refeição, o general despediu‑se. abraçou a Sr.a Blidot, Elfy e as crianças.

Moutier despediu‑se também, com grande ternura e comoção, e puseram‑se a caminho para Bagnols.

 

                   Torchonet mostra os seus sentimentos

Tiago e Paulo ficaram muito pesarosos com a separação do seu bom amigo Moutier. A Sr.a Blidot e Elfy também estavam tristes, mas procuraram reagir e principiaram os seus trabalhos domésticos como habitualmente.

Ao entrar no quarto do general, a Sr.a Blidot ficou espantada. Estava tudo desarrumado e viam‑se jóias, condecorações e talheres de oiro espalhados sobre as cadeiras. Até o cofre estava aberto! O que mais preocupava a boa criatura era ser responsável por todas aquelas riquezas. E não se pôde conter que não dissesse:

‑ Que homem tão extraordinário! Aposto que não sabe o que tem.

Entretanto, chegou Tiago, muito aflito:

‑ Mãe, está aqui o Torchonet, furioso comigo, porque não o avisei da partida do general. Fiz mal?

Sr.a BLIDOT ‑ Não, meu filho. Para que o havias de avisar?

TIAGO ‑ Ele diz que o general o teria levado, com certeza.

Sr.a BLIDOT ‑ Que ideia foi essa?

Torchonet, entretanto no quarto, começou a protestar:

‑ Tinha‑me levado, sim senhora. Ele até queria tornar‑me seu filho. O Sr. Cura é que não deixou. Se eu tivesse chegado a tempo, iria com ele, porque o Sr. Cura não tem nenhum direito sobre mim!

Sr.a BLIDOT ‑ Ouve, Torchonet, o que estás a dizer é muito feio. Então o Sr. Cura teve a bondade de tomar conta de ti quando eras um pobre desgraçado, conserva‑te em sua casa por caridade, trata‑te tão bem, e tu falas assim?

TORCHONET ‑ Mas eu é que não quero lá ficar. Bem ouvi o que o general lhe disse e o que ele lhe respondeu. Se não fosse ele, eu seria rico e não precisaria de trabalhar. Quero ir com o general, pronto.

Sr.a BLIDOT ‑ Parece‑me que a tua língua cresceu muito de há um tempo para cá! Não eras tão palrador e atrevido quando estavas em casa do teu patrão.

TORCHONET ‑ Já não tenho patrão, nem estou disposto a tê‑lo. Quero ir com o general, já disse.

Sr.a BLIDOT ‑ Pois vai e deixa‑me em paz. Anda, Tiago, ajuda‑me a guardar todos estes objectos.

TORCHONET ‑ Tudo isto é do general? Se ele me tomar como filho, será tudo meu. Porque ficaram com todas estas coisas? Quando encontrar o general, hei‑de fazer‑lhe queixa.

Sr.a BLIDOT ‑ Faz as queixas que quiseres, meu grande maroto, mas põe‑te já daqui para fora.

Em vez de sair, Torchonet deu mais uns passos para o interior do quarto e, sem que o vissem, deitou a mão a um copo e a um talher de ouro, que escondeu debaixo do blusão.

Quando Tiago foi guardar o estojo de viagem, reparou que dois compartimentos estavam vazios, e disse logo:

‑ Falta aqui qualquer coisa, mãe. Deve ser um copo e um talher, pelo feitio dos lugares vazios.

Sr.a BLIDOT ‑ É verdade. Talvez tivéssemos colocado mal os outros objectos.

Entretanto, Torchonet desaparecera.

Depois de muito procurar, a Sr.a Blidot confirmou:

‑ Não há dúvida, faltam duas peças.

TIAGO ‑ E eu tenho a certeza de que os lugares estavam todos ocupados quando o general me mostrou o estojo.

Sr.a BLIDOT ‑ Talvez ele os levasse. Ou seria o Torchonet?

TIAGO ‑ Isso não, mãe. O Torchonet já se foi embora, e não fazia semelhante coisa, com certeza. Se o fizesse era um ladrão.

Sr.a BLIDOT ‑ Tu és um bom rapaz, Tiago, mas não avalies os outros por ti. O Torchonet viveu com más companhias e não me inspira confiança. Pelo menos é ingrato. Já se esqueceu de que, durante três anos, ias levar‑lhe todos os dias o jantar, ao buraco da árvore. E até nos ameaçou de fazer queixa ao general!

TIAGO ‑ É verdade, mas, naturalmente, ele nem pensou no que disse.

A Sr.a Blidot abraçou Tiago, sem lhe responder, e meteu as jóias e os outros objectos de valor, pertencentes ao general, num armário que fechou à chave.

Torchonet só voltou mais tarde para casa do pároco.

‑ Foste à escola? ‑ perguntou ele.

TORCHONET ‑ A escola aborrece‑me e não aprendo lá nada.

CURA ‑ Pois por não aprenderes nada é que te aborreces. Precisas de aprender a ler, escrever e contar, senão nunca arranjarás um bom emprego.

TORCHONET ‑ Não preciso de empregos...

CURA ‑ Que dizes tu, rapaz?

TORCHONET ‑ Ora, eu cá sei...

CURA ‑ Sabes o quê?

TORCHONET ‑ E o senhor sabe tanto como eu.

CURA ‑ Cada vez te compreendo menos. Onde queres tu chegar?

TORCHONET ‑ Quero chegar a isto: o senhor não é o meu patrão e não pode impedir o general de me perfilhar e de me dar toda a sua fortuna. Ora, fique sabendo que eu quero ser rico e fazer figura!

O bom padre nem acreditava no que ouvia e não encontrou palavras para lhe responder.

TORCHONET ‑ Talvez julgue que eu não ouvi toda a conversa que teve com o general? Mas está enganado. Hei‑de ir e verá o que farei...

‑ Pobre criança! ‑ murmurou o pároco com os olhos cheios de lágrimas. ‑ Não tens a consciência do que dizes. Se te fores embora, ficarás ao desamparo; o general teve, com efeito, a ideia de te levar, mas logo a pôs de parte.

TORCHONET ‑ Como sabe isso, se ele não voltou cá?

CURA ‑ Mandou‑mo dizer por Moutier. Perdoo‑te tudo quanto acabas de dizer e continuarei a dar‑te asilo em minha casa, até que encontres coisa melhor. Agora vamos almoçar e não pensemos mais no que se passou...

O bom Cura dirigiu‑se à sala de jantar e Torchonet seguiu‑o, um tanto envergonhado, mas sentou‑se à mesa e comeu como se coisa nenhuma o incomodasse.

O mesmo não sucedeu ao padre, que estava profundamente triste e pensava na maneira de incutir melhores sentimentos no espírito do seu protegido, resolvendo tratá‑lo ainda com mais paciência e bondade.

 

                   O primeiro dia de viagem

Enquanto Torchonet roubava e injuriava os seus benfeitores, e Tiago procurava defendê‑lo, o general marchava com passo firme para Domfront, acompanhado por Moutier que olhava para ele um tanto inquieto. Na primeira meia légua o general andou com firmeza, mas depois começou a afrouxar o passo; o suor inundava‑lhe a testa e a respiração tornava‑se‑lhe ofegante.

Moutier propôs‑lhe descansarem um pouco, mas o general recusou, com modo irritado, ao mesmo tempo que tirava o chapéu e limpava a cabeça.

GENERAL ‑ Não acha que está muito calor, Moutier? Tenho vontade de tirar o casaco.

MOUTIER ‑ Tire‑o, meu General, que me encarrego de o levar. É muito peso para si.

GENERAL ‑ Isso é que não leva!

Continuaram a andar.

GENERAL ‑ Está um calor infernal.

MOUTIER ‑ Dê cá o casaco, meu General.

GENERAL ‑ E ao senhor, se o levar, não lhe sucederá o mesmo? Se é pesado para mim, também é pesado para si.

MOUTIER ‑ Eu ainda não passei por todos os passos para chegar a general!...

GENERAL ‑ Quer dizer com isso que sou uma velha carcaça, sem préstimo para nada...

MOUTIER ‑ Não é isso, meu General. Lembro‑me apenas das canseiras e sofrimentos que passei para chegar ao simples posto de sargento. Que faria para ganhar o de general à ponta da espada, como lhe sucedeu a si!

O general sorriu e entregou o casaco a Moutier, apertando‑lhe a mão, e, para disfarçar a sua comoção, disse:

‑ O caminho é comprido!

A certa altura, o gorducho general já não podia mais. Olhava para todos os lados, à procura de um lugar cómodo onde pudesse descansar, até que descobriu um que lhe agradou. Mas não se atrevia a dar parte de fraco. Moutier percebeu muito bem, mas não se deu por achado.

Vendo que ele não falava, o general parou e disse:

‑ Meu bom Moutier, vejo que você está alagado em suor e fatigadíssimo. Talvez seja melhor sentarmo‑nos aqui para restaurar as suas forças.

MOUTIER ‑ Está enganado, meu General, não sinto a menor fadiga.

GENERAL ‑ Não negue, Moutier, eu bem vejo.

MOUTIER ‑ Para lhe provar que não estou cansado vou acelerar o passo.

E Moutier, rindo à socapa, começou a andar apressadamente. O pobre general, já sem forças, principiou a gritar:

‑ Pare aí, Moutier. Como demónio quer que eu o acompanhe assim? Já lhe disse que não posso mais mexer os pés. Venha ao pé de mim!

Moutier voltou para trás a passo de carga e já encontrou o general sentado à sombra de uma árvore.

MOUTIER ‑ Por aqui, meu General? Julgava que vinha acompanhando.

GENERAL (de mau humor) ‑ Como quer que eu acompanhe um diabo de homem que corre como um veado? Acha que um homem da minha idade, com a minha corpulência, ferido e doente, pode andar léguas e léguas sem descansar?

MOUTIER ‑ Tem muita razão, mas o meu General não quis acreditar...

GENERAL ‑ Julga que não o percebi? O que o senhor quis foi envergonhar‑me, e disse lá de si para si: "Hás‑de sentar‑te e descansar, meu velho! Eu salto; tu cais. Eu corro; tu paras. Vivam os rapazes! Abaixo os velhotes!"

MOUTIER ‑ Ó meu General, estou desconsolado por ter pensado isso de mim.

GENERAL ‑ Desconsolado? Essa é boa... Está contentíssimo! O seu desejo era ver‑me com a língua de fora e a arrastar as pernas, para dizer: "Aqui está o castigo do orgulho deste velho inútil, crivado de balas e baionetadas." Mas a verdade é que lhe devo a vida, meu caro Moutier, e, por isso, dedico‑lhe profunda estima e farei tudo quanto o senhor quiser!

O enternecimento dominou, mais uma vez, a cólera do general, que estendeu a mão a Moutier, tentando levantar‑se, mas tornou a cair. Moutier sentou‑se ao lado dele, e disse:

‑ Descansemos um bocado. Também tenho uma ferida que me incomoda quando marcho, e bem gostaria...

‑ Isso é verdade? ‑ perguntou o general, com satisfação. ‑ Também sente necessidade de descansar?

MOUTIER ‑ É assim mesmo, meu general. Que bem sabe estar aqui deitado à sombra!

Dizendo isto, Moutier deitou‑se ao comprido sobre a relva, como quem está realmente fatigado.

O general encostou‑se no tronco da árvore, fechou os olhos e, poucos momentos depois, adormeceu.

Logo que o ouviu ressonar, Moutier levantou‑se e partiu a correr, deixando ao pé dele um bocado de papel em que escreveu: "Espere aqui por mim, meu General, que volto já".

Logo que chegou a Domfront, Moutier alugou uma carruagem e voltou ao sítio onde deixara o companheiro, mas não encontrou lá ninguém. O general tinha desaparecido, deixando ficar o casaco que Moutier colocara a seu lado.

O pobre Moutier ficou aterrado e resolveu ir até à Pousada do Anjo da Guarda. Efectivamente, lá encontrou o general, em mangas de camisa, com a cara congestionada, de boca aberta e o olhar desvairado.

Ao vê‑lo chegar, o general exclamou:

‑ Que quer isto dizer? Sou, por acaso, algum Polichinelo, para que o senhor me faça semelhante partida? Deixar‑me sozinho debaixo de uma árvore! Perder‑me como se eu fosse o pequeno Poucet! Aproveitar‑se do meu sono para desaparecer! Que é isto, Sr. Moutier? Fale! Responda!

MOUTIER ‑ Meu General...

GENERAL ‑ Deixe‑se de palavrinhas doces... Explique‑se.

MOUTIER ‑ Mas como quer o meu General que eu me explique, se não me deixa dizer uma única palavra?

GENERAL ‑ Diga lá o que tem a dizer.

MOUTIER ‑ É somente isto: vendo o meu General tão cansado, aproveitei o seu sono para ir a Domfront procurar uma carruagem, que felizmente encontrei e trouxe a todo galope, e está aqui à porta à sua espera. E agora que já me expliquei, consinta que eu vá dizer duas palavrinhas a Elfy.

E, sem esperar autorização, Moutier foi ter com Elfy e disse‑lhe, em voz baixa, qualquer coisa que a fez rir com vontade.

GENERAL ‑ Meu bravo Moutier, perdoe‑me. Você tem outra vez razão! Eu é que não tenho juízo. Aproveito a carruagem. A sua ideia foi esplêndida!

Tornaram a despedir‑se das duas irmãs e partiram. Mas, quando chegaram a Domfront, já não encontraram a diligência. Seguiram, porém, na carruagem e lá conseguiram apanhar o comboio das quatro horas.

 

                   Nas termas de Bagnols

Quando se preparavam para comprar os bilhetes de comboio, o general avistou o soldado que encontrara na véspera na Pousada do Anjo da Guarda.

‑ Compre três bilhetes de primeira classe, Moutier ‑ ordenou ele.

Moutier assim fez, entregando‑lhe dois bilhetes e guardando um, sem compreender aquela nova fantasia do companheiro.

Mas o mistério logo se esclareceu, porque o general deu um dos bilhetes ao soldado, que agradeceu, muito surpreendido.

Subiram os três para o mesmo compartimento. Durante a viagem o general conversou longamente com o soldado, que também tinha feito a guerra da Crimeia.

A atitude reservada do soldado, as suas respostas claras e modestas, o seu modo honesto e inteligente agradaram muito ao general, que resolveu logo tomá‑lo para o seu serviço, fosse porque preço fosse, tanto mais que lhe dissera estar livre e precisando de dinheiro.

A viagem decorreu sem incidentes, até que chegaram a Bagnols, perto de Alençon.

Ao sair da estação, o soldado ia a despedir‑se, mas o general protestou:

‑ Que ideia é essa? Quer deixar‑me? Ofendi‑o nalguma coisa? Ou acha‑me tão ridículo que tenha vergonha de me acompanhar?

SOLDADO ‑ De modo nenhum, meu General, mas receio abusar, pois já lhe aceitei muitos favores.

GENERAL ‑ E para me agradecer abandona‑me, como se eu fosse uma pessoa insuportável!

SOLDADO ‑ Ó meu General, pelo contrário, gostaria muito de ficar consigo.

GENERAL ‑ Então fique, que demónio!

O soldado olhava para Moutier com ar indeciso, e este fez‑lhe sinal para aceitar; porém, antes que ele falasse, o general decidiu:

‑ Está muito bem. Fica ao meu serviço. Dou‑lhe cem francos por mês e todas as despesas pagas. Não está contente? Dobro a parada e dou‑lhe duzentos francos!

SOLDADO ‑ É de mais, meu General. Se me der alimentação e vestuário, já fico satisfeito.

GENERAL ‑ O quê? Julga que eu sou um ladrão! Um bravo soldado, que foi condecorado na Crimeia, merece muito mais do que ofereço. Como se chama?

SOLDADO ‑ Tiago Derigny, meu General.

GENERAL ‑ Não o tratarei por Tiago, para não o confundir com um amiguinho que eu tenho com esse nome. Para mim e para Moutier ficará sendo apenas Derigny.

Quando chegaram ao Grande Hotel do Estabelecimento Termal, o general escolheu os melhores quartos do rés‑do‑chão e ali se instalou com os seus companheiros. O criado perguntou se era preciso ir buscar as malas, e o general, olhando para ele com um ar malicioso, respondeu:

‑ Não tenho bagagem. Admira‑se? Pois é verdade.

‑ E... estes senhores? ‑ insistiu o criado.

‑ Estes senhores constituem o meu séquito e estão nas mesmas circunstâncias.

O criado olhou para o general, desconfiado, e saiu sem dizer palavra. Prevendo o que ia suceder, o general esfregava as mãos de contente. Minutos depois, chegava o dono do hotel. Fez um ligeiro cumprimento ao general e disse com ar grave:

‑ Estes quartos foram‑lhe mostrados por engano. Já estão tomados e, por isso, os senhores não podem ficar neles.

GENERAL ‑ Tenho muita pena, mas, como me agradam, não saírei daqui.

HOTELEIRO ‑ Mas se eu lhe digo que já estão tomados...

GENERAL ‑ Esperarei que chegue a pessoa que os tomou e cá me arranjarei com ela. Até lá ficarei, visto que já cá estou.

HOTELEIRO ‑ Quando os hóspedes não trazem malas é costume pagarem adiantado...

O general fez um sinal a Moutier e fingiu que estava embaraçado.

‑ Meu caro senhor ‑ disse ele ‑, nunca me impuseram tais condições; nunca paguei adiantado.

O hoteleiro tomou um modo impertinente e declarou:

‑ Hóspedes sem bagagem não inspiram confiança e, quase sempre, vão‑se embora sem pagar.

GENERAL ‑ Nesse caso são ladrões!

HOTELEIRO ‑ Pouco mais ou menos...

GENERAL ‑ Quer dizer com isso que me considera um ladrão?

HOTELEIRO ‑ Eu não disse isso.

GENERAL ‑ Não disse mas pensou.

O hoteleiro calou‑se. O general avançou para ele e, encarando‑o bem de frente, exclamou:

‑ O senhor é insolente e eu sou um homem de bem. Agora oiça: sou o conde Dourakine, prisioneiro de guerra sob palavra; tenho uma fortuna enorme e trago comigo dinheiro mais que suficiente para pagar o dobro por estes quartos. Teria pago um mês adiantado se o senhor não fosse malcriado. Assim, passe bem, porque vou procurar alojamento noutro hotel.

O hoteleiro estava confundido e desolado. Quando o general, de chapéu enterrado na cabeça, se dispunha a sair acompanhado por Moutier e Derigny, ele dirigiu‑se‑lhe nestes termos:

‑ Desculpe, Sr. Conde. Eu não o quis ofender. Mas o criado disse‑me que o senhor só tinha o fato que vestia e, no ano passado, esteve aqui um austríaco que se dizia titular e não passava de um gatuno... Nós temos de ser cautelosos. Mas não imagina quanto eu lamento este engano.

GENERAL ‑ Então não havia de lamentar perder um hóspede como eu!

HOTELEIRO ‑ Também me custa que o Sr. Conde possa imaginar...

‑ Basta, basta ‑ disse o general rindo. ‑ Quanto quer pela nossa hospedagem completa durante um mês? Previno‑o que desejo alimentação de primeira qualidade, para mim e para os meus amigos, que devem ser tratados como príncipes.

O hoteleiro reflectiu, fez várias reverências diante do general e dos companheiros, e pediu‑lhe dois mil francos pelo serviço completo.

GENERAL ‑ Aqui tem o dinheiro. Agora deixe‑nos em paz.

Aquele incidente divertiu o general e deu‑lhe óptima disposição. O seu primeiro cuidado foi procurar roupa interior e fatos que lhe servissem e aos companheiros. Não encontrou tão bom como desejava, mas, enfim, lá se remediou.

O período de tratamento passou agradavelmente, tanto mais que o general se divertia com a maior facilidade e achava graça a tudo.

Moutier e Derigny mostravam‑se, por vezes, tristes: o primeiro sentia saudades de Elfy, e o segundo tinha qualquer secreto pesar que o minava e lhe roubava a alegria.

Por mais que fizesse, Moutier nunca conseguiu descobrir a causa daquela tristeza, e o general, apesar das mil perguntas que lhe fazia, também não foi capaz de desvendar o segredo de Derigny. Isso, porém, não impedia que o estimasse deveras e estivesse tão satisfeito com o seu serviço, que chegou a proclamá‑lo "pérola dos criados".

Quando o general lhe dava dinheiro, ele respondia: ‑ Peço‑lhe o favor de mo guardar, meu General, porque, presentemente, não sei o destino que lhe hei‑de dar.

No dia da partida, enquanto o general e Moutier davam largas à sua satisfação, Derigny conservava‑se pensativo, o que intrigava fortemente os seus companheiros.

A despedida do general foi triunfante. Como tinha distribuído importantes gratificações, todos os empregados e criados vieram à partida, com pena de ver retirar‑se um hóspede tão original e generoso.

 

                   A história de Derigny

A viagem de regresso foi rápida.

A Sr.a Blidot, Elfy e os pequenos esperavam‑nos, cheios de contentamento. Moutier apresentou‑lhes Derigny. Este, ao ver‑se junto de Tiago e Paulo, abraçou‑os e beijou‑os, ficando de tal maneira perturbado, que saiu de casa. Moutier e os pequenos foram atrás dele.

MOUTIER ‑ Que tem, meu amigo?

DERIGNY ‑ Estou passando por momentos de profundíssima comoção.

Depois, dirigindo‑se a Tiago, perguntou:

‑ Como te chamas tu?

‑ Tiago.

‑ E o teu irmão.

‑ Paulo.

Derigny soltou uma exclamação abafada, quis dar um passo, mas cambaleou e teria caído no chão se Moutier não o tivesse amparado. Depois, num esforço enorme ainda perguntou:

‑ Esta senhora é vossa mãe?

‑ É ‑ respondeu logo Paulo.

‑ Não é ‑ emendou Tiago. ‑ Paulo não sabe nada; era muito pequeno. A nossa verdadeira mãe morreu. Esta é uma boa mãe, mas não é a verdadeira.

‑ E o vosso pai? ‑ perguntou Derigny com a voz estrangulada pela comoção.

‑ O nosso pai? Pobre pai... os guardas levaram‑no! ‑ respondeu o pequeno.

Ainda Tiago não tinha concluído a frase, quando Derigny o ergueu nos braços, e ao Paulo, soltando um grito que fez acudir o general e as duas irmãs.

O pobre Derigny queria falar mas não conseguia articular palavras. Por fim gritou: "Meus pobres filhos" e tombou sem sentidos, com os filhos apertados contra o peito.

‑ É o pai! É o pai! ‑ soluçava Tiago, a tremer. ‑ Reconheci‑o quando disse: "Meus pobres filhos".

A vizinhança da Pousada do Anjo da Guarda acorrera toda, atraída pelo grito de Derigny.

‑ Que foi isto? ‑ perguntou uma mulher.

E cada um respondia os disparates que lhe vinham à cabeça.

Entretanto, o general procurava reanimar o pobre homem, mas ele não dava acordo de si. Assustado. Moutier decidira ir chamar o pároco, quando o viu aparecer.

CURA ‑ Que há? Disseram‑me que tinha morrido um homem? Porque não me chamaram há mais tempo?

MOUTIER ‑ Não está morto! Parece que lhe deu uma síncope, por ter sentido uma grande alegria.

O Cura ajoelhou‑se junto de Derigny e, depois de auscultar, disse:

‑ Isto não deve ter importância. Deitem‑no bem ao comprido, esfreguem‑lhe a testa com vinagre, e logo que possa engolir, dêem‑lhe uma chávena de café bem forte.

Vendo que não era ali preciso, o bom padre voltou para casa.

TIAGO ‑ Deixem‑me beijar o paizinho antes que ele morra.

MOUTIER ‑ Podes beijá‑lo à vontade, mas não te assustes porque, daqui a bocado, será ele quem te abraçará e beijará muito.

O pequeno olhou para Moutier com reconhecimento e precipitou‑se sobre o pai, a beijá‑lo com grande carinho.

Pouco a pouco, Derigny foi recuperando os sentidos. Logo que pôde, ergueu‑se e, então, não se cansava de beijar os filhos por quem tanto chorara.

Depois, sentiu‑se envergonhado com a curiosidade de toda a gente que ali se juntara. Levantou‑se, pegou na mão dos filhos e entrou em casa. Quando chegou à sala, sentou‑se numa cadeira e murmurou:

‑ Perdoem‑me! A comoção que senti ao reconhecer os meus filhos foi mais forte que eu! Mas o que não posso compreender é como venho encontrá‑los aqui com uma mãe, uma tia e um bom amigo!

Ao dizer isto, Derigny olhou para as donas da casa e para Moutier, com reconhecimento.

TIAGO ‑ Não é um, meu pai, são dois! O general também é um bom amigo!

Derigny estremeceu, ouvindo Tiago tratá‑lo por pai, e abraçou o pequeno, dizendo:

‑ Tinhas a mesma voz, quando eras pequenino, e dizias pai do mesmo modo.

O general, que se conservava calado até então, não pôde dominar‑se mais e exclamou:

‑ Estou contente por ver a sua felicidade, Derigny. Sim, muito mais contente do que se tivesse casado com todas as raparigas de Bagnols ou tivesse adoptado Moutier, Elfy e Torchonet. Estou contente, muito contente!

Derigny levantou‑se e fez a continência militar, dizendo:

‑ Muito obrigado, meu General!

Depois, voltando‑se para as duas irmãs, perguntou:

‑ Mas como é que os meus filhos se encontram aqui, a mais de vinte léguas do local onde os deixei?

Sr.a BLIDOT ‑ Foi Deus e Moutier que os trouxeram.

TIAGO ‑ E também a Virgem Santíssima, porque nunca deixei de implorar a Sua protecção, como a mãezinha me recomendava.

DERIGNY ‑ Lembras‑te ainda da tua mãe?

TIAGO ‑ Muito bem!

Derigny beijou‑o, e o pequeno perguntou:

‑ Ainda está triste, pai?

DERIGNY ‑ Penso na vossa pobre mãe! Foi ela quem pediu por vós a Deus e a Nossa Senhora, tenho a certeza. Como conheceu os meus filhos, Moutier?

MOUTIER ‑ Contar‑lhe‑ei tudo depois de jantar, meu amigo, quando os pequenos já estiverem deitados. Eles já conhecem muito bem essa história, não precisam de a ouvir outra vez.

GENERAL ‑ E como foi que o senhor perdeu os seus filhos? Como foi para a guerra da Crimeia? Já não tem família?

DERIGNY ‑ Não tenho mais ninguém além dos meus filhos, e a minha história é bem triste, meu General. Era filho único e órfão. Minha mulher era órfã como eu. Fomos criados juntos, com a avó dela. Quando a velhinha morreu, nós casamos. Eu tinha vinte e um anos e Madalena, minha noiva, dezasseis. Vivíamos felizes; eu era serralheiro mecânico e ganhava bom salário. Tivemos estes dois pequenos, que completaram a nossa felicidade. Tiago era tão bom, que chegava a enternecer‑nos. De repente, estala a guerra e as reservas foram chamadas. Ora, eu pertencia à reserva. A minha pobre Madalena chorava dia e noite. Adoeceu, e eu, vendo‑me assim, perdi a cabeça. Quando recebi ordem para me apresentar, resolvi fugir. Vendi tudo quanto tinha em casa e partimos. Fomos andando, ora a pé, ora de carroça, até chegarmos a um sítio lindo, que devem ficar a umas vinte léguas daqui. Aluguei uma casinha e ali vivemos escondidos, o mais economicamente que podíamos, para pouparmos o pouco que possuíamos. Eu não me atrevia a procurar trabalho, com receio de ser preso. A doença de minha mulher agravou‑se, e, quando ela estava já muito mal, pediu‑me que chamasse um padre, que foi vê‑la muitas vezes. Depois, quando ela morreu deixando‑me só com os nossos filhos, teve de o comunicar às autoridades e declarar o meu nome. Três semanas depois, precisamente no dia em que dava a meus filhos o último bocado de pão que tinha e me dispunha a procurar trabalho fosse onde fosse, vieram buscar‑me sob prisão, para eu ir juntar‑me ao meu regimento. Um dos guardas prometeu‑me vir buscar as crianças. Soube depois que não lhe foi possível voltar logo e que, quando voltou, já não encontrou os pequenos. No quartel fiquei preso durante algum tempo, por não me ter apresentado no prazo devido. Logo que fui posto em liberdade, pedi uma licença para ir procurar os meus filhos, e o comandante, que era um excelente homem, concedeu‑ma. Mas, ao voltar a Kerbiniac, ninguém me soube dizer o que era feito de Tiago e Paulo. Percorri todos os arredores; dirigi‑me à polícia, a toda a gente que poderia dar‑me informações. Nada consegui saber. A minha licença estava terminada e tive de apresentar‑me no regimento, que partiu para sul. Só Deus sabe quanto sofri! A lembrança da minha pobre mulher e dos meus filhos não me abandonava nunca. Se não fossem os meus sentimentos religiosos, não teria suportado a vida. Aqui tem a minha história, meu General.

 

                   O general continua a fazer projectos

Tiago e Paulo tinham escutado a narrativa do pai sem desfitar dele os olhos, e quando ele acabou lançaram‑se‑lhe nos braços. Paulo soluçava e Tiago chorava silenciosamente. O pai beijou‑os e enxugou‑lhes as lágrimas, dizendo:

‑ Agora acabou tudo, meus filhos! Não há mais desgraças nem tristezas. Nunca mais nos separaremos e viveremos sempre unidos, os três.

‑ E a mãe Blidot? E a tia Elfy? ‑ perguntou Tiago com ansiedade.

DERIGNY ‑ Gostam muito delas?

TIAGO ‑ Muito! São tão boas como o pai e a mãe. Ficaremos todos juntos?

Derigny não tinha pensado naquele problema, mas não queria, de forma alguma, quebrar os laços de amizade e reconhecimento que unia os filhos às suas benfeitoras. Uma nova angústia se apoderava dele e logo lhe transpareceu no rosto.

GENERAL ‑ Não se apoquente. Quem vai resolver tudo sou eu. Mas a primeira coisa que temos a fazer é jantar, não lhe parece? Por mim, estou com uma fome devoradora.

Momentos depois estavam todos sentados à mesa, excepto Derigny que se preparava para servir o general.

GENERAL ‑ Então, não quer jantar, Derigny? A alegria fez‑lhe perder o apetite?

DERIGNY ‑ Sou seu criado, meu General, não devo sentar‑me a seu lado.

GENERAL ‑ Ai, que este homem perdeu a cabeça! Até está disposto a servir os filhos, como se fosse criado deles. Que ideia tão extravagante! Vamos, nada de tolices. Na Pousada do Anjo da Guarda somos todos iguais. Sente‑se ali, entre Tiago e Paulo, e tratemos de comer. Ainda hesita? Ou é preciso que eu me zangue?

Moutier fez sinal a Derigny para que se sentasse, e ele assim fez. O general, ao vê‑lo instalado entre os filhos, soltou um suspiro de alívio e começou a comer a sopa com satisfação. A alegria dele comunicou‑se a todos e o próprio Derigny ria despreocupadamente.

MOUTIER ‑ Vês, Tiago, os prodígios que tu e o teu irmão são capazes de fazer? Teu pai, que nem sequer sorria, está agora tão alegre como a tia Elfy e eu próprio.

DERIGNY ‑ Já não posso ter a alegria da menina Elfy, mas confesso que me sinto tão feliz, que seria capaz de fazer as maiores loucuras.

GENERAL ‑ Pois bem, peço‑lhe que faça uma, que me dará grande prazer.

DERIGNY ‑ Contanto que não tenha de me separar dos meus filhos, estou pronto a fazer o que o meu General quiser.

GENERAL ‑ Muito bem. Peço‑lhe que nunca deixe os seus filhos e que nunca me deixe, a mim. Isto quer dizer que ficarão todos três comigo, pois sinto que não poderei habituar‑me a ser servido por outra pessoa. Em reconhecimento pelos seus cuidados comigo, dar‑lhe‑ei uma bela propriedade onde se instalará depois da minha morte, com os seus filhos e... quem sabe?... com a sua esposa. Enquanto eu for prisioneiro, ficaremos em França...

DERIGNY ‑ E depois?

GENERAL ‑ Depois?... ver‑se‑á. Temos tempo para pensar nisso. Então que diz?

DERIGNY ‑ Peço‑lhe licença para reflectir, meu General. Hoje não tenho cabeça para nada.

GENERAL ‑ Está muito bem. Terá tempo para pensar, até às bodas de Elfy e Moutier. Amanhã fixaremos o dia, mas já os previno de que será dentro de duas semanas.

ELFY ‑ É impossível, general. Têm de se fazer os proclamas e tratar de todos os documentos.

GENERAL ‑ Pelo que vejo, em França tudo isso leva muito tempo. Veremos o que se pode arranjar.

Depois de conversarem durante muito tempo, o general retirou‑se para o seu quarto, dizendo que sentia necessidade de descansar. Derigny, terminado o serviço do general, foi deitar os filhos, mas não teve coragem de os deixar. Quando os viu adormecidos, beijou‑os ternamente, sentou‑se numa cadeira, entre as duas camas, e ali adormeceu, tão pesadamente, que só acordou quando Moutier, inquieto com tão grande demora, o foi procurar e o levou à força para o quarto que lhe estava destinado.

 

                   Torchonet desmascarado

No dia seguinte, depois do almoço, estando todos reunidos, a Sr.a Blidot perguntou ao general se não lhe faltava nenhum dos objectos que deixara ficar no quarto quando partira para as águas.

GENERAL ‑ Só reparei na cama, porque estava muito fatigado. Porque está a minha mulherzinha tão séria?

(O general resolvera tratar a Sr.a Blidot por minha mulherzinha). E a Elfy e Moutier também? Só Derigny é que não faz outra coisa senão olhar para os filhos.

Ao ouvir pronunciar o seu nome, Derigny perguntou, sobressaltado:

‑ O meu General precisa de alguma coisa?

GENERAL ‑ Nada, meu amigo. Continue o seu trabalho... Reparem, lá está ele na mesma...

Neste momento, a porta abriu‑se violentamente e Torchonet precipitou‑se na sala correndo para o general e lançando‑se‑lhe nos braços a gritar:

‑ Meu General, meu pai, meu benfeitor!

O general, surpreendido, procurou desembaraçar‑se dele, mas Torchonet agarrava‑se cada vez mais e procurava beijá‑lo.

GENERAL ‑ Moutier, Derigny, pelo amor de Deus, livrem‑me deste rapaz. Deixa‑me, garoto, vai‑te embora.

TORCHONET ‑ Não, meu pai, meu bom pai. Não o largo enquanto não me perfilhar e me declarar herdeiro do seu nome e da sua fortuna.

GENERAL ‑ Acudam‑me! Ponham este doido na rua. Agarre‑o, Moutier, não vê que ele dá cabo de mim?

Moutier puxou Torchonet que se abraçara às pernas do general, como um polvo, mas fê‑lo com tanta força, que caíram os três no chão, ficando Torchonet debaixo do general que o esmagava com o seu enorme peso.

Moutier levantou‑se rapidamente e, ajudado por Derigny, conseguiu pôr de pé o general, cuja fúria contra Torchonet era cada vez maior.

‑ Grande maroto! Patife! ‑ gritava ele. ‑ Eu te ensinarei a ser amável para mim! Só dizes asneiras e atiras comigo ao chão sob o pretexto de me abraçares!

Mas a ideia de Torchonet estava de tal forma arreigada no seu espírito que o rapaz não se deu por vencido, e continuou:

‑ Perdão, meu benfeitor! Perdão, meu pai, leve‑me consigo!

O general agarrou‑o por um braço, deu‑lhe uns sopapos e levou‑o até à rua, fechando‑lhe a porta sem se importar com os gritos que ele soltava; em seguida, foi para o quarto sem dar uma palavra.

PAULO ‑ Ele é mau. Bateu no Torchonet, já não sou amigo dele.

TIAGO ‑ Não posso compreender aquela teimosia de Torchonet!

Sr.a BLIDOT ‑ O Torchonet não é bom. Tenho medo dele... E a propósito, diga‑me, Moutier: o general levou para Bagnols um copo e um talher de oiro?

MOUTIER ‑ Nem sombra disso! O general não levou absolutamente nada.

A Sr.a Blidot, então, explicou‑lhe a razão por que fizera aquela pergunta, acrescentando que, depois da cena que se passara com Torchonet, na ausência do general, tinha proibido Paulo e Tiago de brincarem com ele.

Entretanto, o general apareceu outra vez, com um ar muito aborrecido, e disse, dirigindo‑se à Sr.a Blidot:

‑ Na sua casa entram muitas pessoas; uma delas roubou‑me duas peças do meu estojo de viagem.

Sr.a BLIDOT ‑ Eu própria já tinha dado por isso, General. Mas além das pessoas da casa não esteve mais ninguém no seu quarto a não ser Torchonet.

‑ Torchonet? ‑ exclamou o general, sufocado.

PAULO ‑ É ele que tem o copo e o talher. Eu vi‑os, quando ele me veio pedir que os escondesse no enxergão do Tiago.

GENERAL ‑ O Torchonet pediu‑te?... Quando?... Onde?... Conta‑me tudo.

PAULO ‑ Foi num dia em que voltava da escola sozinho. O Torchonet veio direito a mim e perguntou‑me: ‑ Queres amêndoas? ‑ Eu respondi‑lhe que sim. E ele disse‑me: ‑ Então toma lá estes objectos em oiro e vai já escondê‑los no enxergão de Tiago. Depois volta, para eu te dar as amêndoas. ‑ Eu não quis, sem perguntar primeiro à mãe e ao Tiago se eles me davam licença. E o Torchonet, todo zangado, chamou‑me tolo, disse‑me que não perguntasse nada a ninguém e foi‑se embora com o copo e o talher.

‑ Malvado! ‑ exclamou Derigny. ‑ Se ele aqui estivesse agora, quem lhe dava uma sova era eu. Querer que o Tiago passasse por ladrão!

GENERAL ‑ E é este miserável que se atreve a pedir‑me que o leve comigo, e tem cara para me chamar pai! Meu caro Moutier, vá buscar esse atrevido, esse mariola, esse ladrão!

MOUTIER ‑ Meu General, permita‑me que, antes de o ir buscar, eu conte ao Sr. Cura o que se passou.

GENERAL ‑ Para que serve isso? O Cura é muito bondoso e não saberá castigá‑lo como ele merece. Traga‑mo, e eu me encarrego de o fazer perder a ideia de ser perfilhado por mim e herdar a minha fortuna.

MOUTIER ‑ Está bem, meu General. Vou buscá‑lo.

 

                   A cólera e o arrependimento do general

Moutier foi, efectivamente, a casa do Cura, mas não para trazer Torchonet, pois sabia que a fúria do general era perigosa. Procurou o bom padre,

contou‑lhe tudo o que se estava passando, pediu‑lhe que o ajudasse a resolver o assunto e explicou:

‑ Se o general apanha o Torchonet, mata‑o. Se volto para casa sem ele, o general virá buscá‑lo. Além disso, o pai dos pequenos está tão indignado com a maldade e a ingratidão de Torchonet, que é capaz de perder também a cabeça.

CURA ‑ Fez bem em vir falar comigo. A única forma de evitar o perigo é afastar daqui o Torchonet.

MOUTIER ‑ Para onde? Mandá‑lo para casa de quem? E com quem?

CURA ‑ A minha criada vai levá‑lo a casa de um irmão que é guarda em Domfront.

Neste momento ouviram‑se gritos aflitivos. Moutier e o Cura correram, a ver o que seria.

Quando chegaram à porta da sala donde os gritos partiram, deram com ela fechada à chave

‑ Estão a matar alguém ‑ exclamou o Cura, cheio de terror.

Moutier, sem esperar mais nada, meteu ombros à porta; mas, como ela abria por fora e era muito forte, não foi capaz de a arrombar.

Os gritos continuaram.

‑ Entremos pela janela! ‑ disse Moutier.

E, saindo de casa, quebrou um vidro da janela, abriu o fecho e saltou para dentro, vendo, então, um homem, que a princípio não conheceu, a chicotear um rapaz meio nu, que se torcia a cada chicotada que recebia.

Moutier atirou‑se ao homem, arrancou‑lhe o chicote das mãos e preparava‑se para o castigar, quando reconheceu o general e Torchonet.

Vendo que Moutier se demorara, o general não podendo conter mais a sua ira, pegara num chicote e resolvera ir ele próprio procurar Torchonet, que tinha encontrado mesmo à entrada do presbitério. As consequências foram aquelas...

Ao ver Moutier e o Cura, o general sentiu‑se, de repente, envergonhado, e não soube o que dizer.

O corpo de Torchonet escorria sangue, e Moutier quebrou o silêncio, dizendo ao padre:

‑ É necessário chamar a criada. Este pequeno precisa de curativo.

CURA ‑ Vou eu próprio chamá‑la.

Moutier abriu a porta. Nem ele, nem o Cura e a criada, prestaram atenção ao general, que parecia cada vez mais vexado e confuso.

Moutier e a criada levaram Torchonet, quase desmaiado, para o quarto.

O general, dirigindo‑se ao pároco, disse‑lhe em voz baixa:

‑ Vou dar‑lhe dez mil francos para esse ladrão...

O Cura lançou‑lhe um olhar severo e disse apenas:

‑ O dinheiro não paga o sofrimento.

GENERAL ‑ Mas que quer o senhor que eu faça?

CURA ‑ Nada. Mas de futuro deve reprimir a sua cólera.

GENERAL ‑ Não me trate tão severamente, Sr. Cura. Olhe que eu não sou mau, sou apenas um pouco arrebatado.

CURA ‑ Bater dessa maneira numa criança indefesa é um crime. Peça perdão a Deus. É o único conselho que posso dar‑lhe.

Dizendo isto, o padre saiu, deixando o general sucumbido, a pensar:

"Que grande idiota que eu sou! Estão todos contra mim porque lhe bati. Mas ele é malvado. E dizer que cheguei a ter a ideia de o perfilhar! Sou um imbecil e tenho o que mereço."

Fazendo estas reflexões, o general chegou à Pousada do Anjo da Guarda. Abriu a porta cautelosamente e hesitou durante alguns momentos. Entrou, por fim, e deu de cara com Elfy que lhe perguntou, rindo:

‑ Então, General, sempre ajustou contas com Torchonet? Está satisfeito?

GENERAL ‑ Ajustei contas, mas não estou satisfeito...

ELFY ‑ Porquê?

GENERAL ‑ Porque em vez de o castigar como merecia, chicoteei‑o a matar...

DERIGNY ‑ Fez muito bem, meu General. No seu lugar teria feito o mesmo.

GENERAL ‑ Acha? Pois o Cura disse‑me que eu era cruel e devia pedir perdão a Deus. Ora, esse Cura merece‑me confiança. Não há dúvida de que bati de mais. Estou furioso comigo mesmo! Mas a verdade é que me sentia capaz de matar aquele miserável que, depois de me ter roubado, quis lançar as culpas sobre o Tiago e ainda se atreveu a chamar‑me pai. Se o Moutier não tivesse aparecido, teria dado cabo dele.

ELFY ‑ E que lhe disse Moutier?

GENERAL ‑ Nada. Nem sequer olhou para mim. Magoou‑me mais com o seu silêncio e o seu desprezo do que se me tivesse batido. Sinto pena de que ele esteja assim zangado comigo. Parece‑me que ele vem aí... Vou‑me embora, e quando ele já estiver bem disposto, chamem‑me.

Com uma agilidade que não era de esperar nele, o general fugiu para o quarto precisamente no momento em que Moutier abria a porta da Pousada do Anjo da Guarda.

Elfy correu para ele, e o seu sorriso logo desanuviou o semblante carregado do noivo.

ELFY ‑ O general está triste e envergonhado...

MOUTIER ‑ Já percebi que ele a encarregou de o defender, mas é difícil...

ELFY ‑ O general tem um feitio colérico... Quando lhe chega a fúria perde a cabeça, mas depois arrepende‑se...

MOUTIER ‑ O pior é que o mal está feito.

ELFY ‑ Mas quando o arrependimento é sincero, temos de perdoar; e, depois, é preciso não esquecer a perversidade e a ingratidão desse malvado Torchonet. Merecia um castigo severo.

DERIGNY ‑ Sou da opinião da menina Elfy. Este rapaz é um verdadeiro bandido.

Sr.a BLIDOT ‑ E também é preciso notar que o general é russo e que na Rússia o chicote trabalha com mais frequência do que em França.

MOUTIER ‑ Talvez tenha razão... O general escolheu bons advogados. Ele está realmente arrependido?

ELFY ‑ Imenso. Faz‑me dó vê‑lo tão abatido. Até fugiu quando lhe ouviu os passos. Nunca o imaginei capaz de ser tão ligeiro...

Moutier sorriu, apertou afectuosamente a mão de Elfy e bateu à porta do quarto do general.

GENERAL ‑ Quem está aí? Entre!

Moutier abriu a porta e parou no limiar; o general olhou para ele quase timidamente, como quem pede perdão. Depois abraçaram‑se e o general apertou‑o tanto que, por pouco, o sufocava; por fim, disse:

‑ Safa! Tirou‑me um peso do coração, Moutier. Se perdesse a sua amizade era como se tudo tivesse acabado para mim.

‑ Obrigado... obrigado, meu General ‑ disse Moutier, comovido.

GENERAL ‑ Agora podemos ir ter com os outros. Já não sentirei vergonha de me apresentar. Mas diga‑me, meu amigo, como está o pobre mariola?

MOUTIER ‑ Não está bem, meu General, mas o caso não é de gravidade. O bálsamo que o Cura lhe aplicou, produziu bom efeito.

E o general, mais tranquilo, entrou na sala seguido de Moutier.

 

                   A reparação

Pelo ar alegre com que o general se apresentou, Elfy compreendeu logo que as coisas tinham corrido bem. Dirigiu‑se‑lhe, por isso, com ar sorridente, e o general apertou‑lhe as mãos repetidas vezes, dizendo:

‑ É uma excelente rapariga!

Depois, voltando‑se para os pequenos, que acabavam de entrar, perguntou‑lhes:

‑ E vocês? Acham que fui muito mau?

PAULO ‑ Eu acho, e se estivesse no lugar da mãe castigava‑o.

GENERAL ‑ E qual seria o castigo?

PAULO ‑ Punha‑o a pão seco e obrigava‑o a comer sozinho, a um canto da sala.

GENERAL ‑ E tu, Tiago? Não dizes nada? Qual é a tua opinião?

            TIAGO ‑ Penso que o Sr. General fez muito mal, mas que, apesar disso, devemos ser seus amigos porque não é mau por sua vontade.

Derigny quis interromper o filho, mas o general não o consentiu, e disse:

‑ Deixe‑o falar, Derigny. Quero saber o que ele pensa. Explica‑me porque dizes que faço mal contra a minha vontade.

TIAGO ‑ Porque se deixa dominar pela cólera, a ponto de não saber o que diz nem o que faz; como, porém, fora disso, é muito bom, devemos ser seus amigos.

GENERAL ‑ Obrigado, meu rapaz. De hoje em diante tratarei de me não encolerizar. Quando estiver para me zangar, hei‑de lembrar‑me do que acabas de me dizer. Obrigado!

Estas palavras do general tranquilizaram Derigny. Olhou para os filhos com tanta ternura, que o general percebeu o que lhe ia na alma e, pegando‑lhe na mão, disse:

‑ A Pousada do Anjo da Guarda dá felicidade; os seus filhos tiveram muita sorte e são tão bons como a sua segunda mãe e Elfy.

Naquele mesmo dia ficou resolvido que o casamento se realizasse dentro de duas semanas, e o general escreveu logo para Paris a encomendar o enxoval da noiva, presentes para a Sr.a Blidot, para Derigny, para o Cura e para os pequenos; resolveu, além disso, comprar a pensão de Bournier, que ia ser vendida, e aproveitou a ocasião para mandar vir também algum mobiliário. Aquela compra fazia parte de um projecto que desejava realizar e ainda não confiara a ninguém.

Escreveu depois para Domfront, pedindo que lhe mandassem um notário o mais breve possível. Percebeu perfeitamente que estavam todos curiosos, mas só disse a Moutier:

‑ Deseja fazer qualquer benefício à aldeia. Vá pedir ao Cura que venha falar comigo, mas não se demore porque estou impaciente.

MOUTIER ‑ Não sei se ele poderá vir, depois do que se passou esta manhã...

GENERAL ‑ Tem razão, mas é indispensável que eu lhe fale ainda hoje. Dê‑me o meu chapéu. Eu vou lá.

MOUTIER ‑ Talvez fosse melhor eu ir à frente saber se ele...

GENERAL ‑ Não há nada a saber. Quero fazer as pazes com o Cura.

Sem esperar mais nada, o general saiu, quase a correr, acompanhado por Moutier. Atravessaram a sala onde estavam as duas irmãs, que ficaram muito surpreendidas e adivinharam logo que se tratava de alguma nova extravagância do general.

Chegaram num instante a casa do Cura e o general entrou quase como um tufão, quase fazendo cair a criada que estava no corredor. Sem perguntar, sequer, se podia entrar, penetrou no quarto do Cura e exclamou:

‑ Venho dizer‑lhe que procedi muito mal e pedir‑lhe desculpa.

CURA ‑ Não foi a mim que ofendeu; nada tenho que lhe desculpar.

GENERAL ‑ Tem, sim, na sua qualidade de representante de Deus. Venho também dizer‑lhe que, para expiar a minha culpa, quero garantir o futuro de Torchonet, e peço‑lhe que diga, sem cerimónia, que quantia é necessária para isso; desejo, ainda, saber de que melhoramentos carece a freguesia. Mas isto sem demora, porque o notário vem amanhã e eu quero resolver tudo rapidamente.

O Cura estava pasmado. Olhava para Moutier que não pôde deixar de sorrir da impaciência do general e do embaraço do pároco.

GENERAL ‑ Então não responde? Quem cala consente. Só falta dar‑me a relação do que precisa.

CURA ‑ Verdadeiramente, não sei, Sr. General; não compreendo bem.

GENERAL ‑ Pois é fácil de compreender! Procedi como um diabo; quero proceder como um anjo da guarda, para estabelecer o equilíbrio.

O Cura não pôde deixar de rir. O general abraçou‑o e insistiu:

‑ Vamos, Sr. Cura, de que precisa?

CURA ‑ Em primeiro lugar, de esmolas para os pobres e remédios para os doentes; depois, de um grande conserto na minha pobre igreja; de uma sacristia nova com a competente mobília; os paramentos e os vasos sagrados também se encontram num estado deplorável...

GENERAL ‑ Cinquenta mil francos chegam para tudo isso?

O Cura deu um salto na cadeira e disse:

‑ Cinquenta mil francos! Metade chega perfeitamente, Sr. General.

GENERAL ‑ Pois bem, o que sobejar é para mandar reparar o seu presbitério que está em ruínas. E que mais?

CURA ‑ Se conseguíssemos ter quatro irmãs de caridade, podíamos dar instrução às raparigas e rapazes pobres, socorrer os enfermos, dar‑lhes medicamentos...

GENERAL ‑ Cem mil francos chegam para tudo isso?

CURA ‑ Com cem mil francos pode, também, construir‑se e fundar‑se um hospital para seis ou oito doentes. Seria a felicidade desta freguesia.

GENERAL ‑ O Sr. Cura receberá muito em breve cento e cinquenta mil francos, e se essa quantia não for bastante, diga‑mo. Acrescentarei mais dez mil francos que o Sr. Cura empregará como entender a favor do malandrote do Torchonet. O que não quero é tornar a vê‑lo.

Muito comovido, o Cura agradeceu, declarando que ia mandar o rapaz para Casa dos Irmãos da Doutrina Cristã. Quanto aos objectos roubados, o Cura foi imediatamente fazer uma busca e depressa os encontrou no fundo de uma gaveta, escondidos debaixo da roupa.

Quando se despediram, o Cura e o general estavam satisfeitos um com o outro, e o general convidou o padre para jantar, acrescentando:

‑ Não faça cerimónia. Todos nós o estimamos deveras.

Ao ficar sozinho, o Cura pensou: "Que homem tão original! Boa pessoa, generoso, justo, mas terrível! Que grande tareia deu no Torchonet! Ele mereceu‑a, isso é verdade. Talvez fosse um aviso de Deus, porque, afinal, o rapaz ia seguindo mau caminho..."

 

                   Mistérios

Na manhã seguinte chegou o notário, com quem o general conversou em particular durante bastante tempo e, quando ele partiu, tinham ambos o ar de pessoas muito contentes.

‑ Não se esqueça de que está convidado para a boda! Já sabe que é meu hóspede ‑ recomendou o general.

‑ Não tenho quarto para ele ‑ disse a Sr.a Blidot, em voz baixa, muito aflita.

‑ Tá, tá, tá! Eu arranjarei tudo. Não se aflija.

Depois, aproximando‑se da janela, esfregou as mãos e disse, como se falasse consigo próprio:

‑ Estes prados que circundam a casa são bem bonitos! E o pequeno bosque que fica à direita, e o ribeiro que o atravessa, também! É pena não estarem à venda. Ficariam com uma bela propriedade.

A Sr.a Blidot e Elfy não responderam. Elas sabiam que, na verdade, tudo aquilo estava para vender, mas não tinham pensado, sequer, em ser compradoras, porque não possuíam o dinheiro necessário.

E o general também sabia, porque o notário lho havia dito.

MOUTIER ‑ O General tem razão; se mo permitir e Elfy estiver de acordo, poderemos empregar os vinte mil francos que teve a bondade de me dar, na compra de uma parte. Que lhe parece?

O general sorriu maliciosamente e não respondeu. A partir desse dia tomou uns ares misteriosos que surpreenderam os outros. Saía frequentemente numa carruagem que alugara em Domfront, sem dizer para onde ia, levando algumas vezes o Cura na sua companhia.

Quando perguntavam ao cocheiro aonde ia o general, ele respondia:

‑ Tenho ordem para não falar. Se disser qualquer coisa, perco uma gorjeta de cem francos.

Outro motivo de surpresa para a gente da aldeia foi ver, poucos dias depois da visita do notário, muitos operários de Domfront instalarem‑se na pensão de Bournier, onde trabalhavam tão apressadamente, que, numa semana, modificaram tudo por completo. Tanto no exterior como no interior, a casa parecia outra. Todas as tardes chegavam carroças fechadas, com mobiliário, mas só à noite é que descarregavam, para que ninguém pudesse ver o que era, e durante o dia os operários não permitiam que ninguém se aproximasse da casa.

Nos campos e no bosque que circundavam a Pousada do Anjo da Guarda sucedia o mesmo. Trabalhavam ali numerosos empregados, abrindo ruas, colocando bancos, plantando flores e lançando pontes sobre o ribeiro. Em frente da casa construíram mesmo um pequeno cais a que estava preso um lindo barquinho.

Ao verem todas aquelas obras, Elfy e Moutier ficaram tristes, convencidos que alguém comprara tudo aquilo, destruindo assim a esperança de poderem, ao menos, tornarem‑se proprietários de uma parte.

‑ Contentemo‑nos com o que temos, minha querida, Elfy ‑ dizia Moutier. ‑ Somos tão felizes!

ELFY ‑ Tem razão. Não há felicidade maior do que estarmos juntos um do outro. Em todo o caso, foi pena não podermos comprar esta propriedade...

‑ É exactamente o que eu penso ‑ disse o general com voz muito doce.

Chegara sem darem por isso e ouvira o que diziam. Sem fazer caso da surpresa deles, continuou:

‑ Acabo de ver as obras; bastava abrir uma pequena alameda da vossa hortazinha para ter uma propriedade lindíssima.

MOUTIER ‑ Perdão, meu General, mas não nos entristeça ainda mais.

GENERAL ‑ Ora, ora! A Elfy ainda há pouco dizia que lhe bastava estar junto de si. O senhor representa para ela a sombra dos bosques, a frescura dos ribeiros, o sol dos prados. Ah! Ah! Ah! Um bocadinho de sentimento não faz mal a ninguém. Até logo, meus amigos; tenho que fazer.

Quando ele partiu, Elfy disse ao noivo:

‑ O general vai‑se tornando insuportável. Começo a desejar que ele se vá embora.

MOUTIER ‑ Não há dúvida: apesar de bondoso, é arreliador. Mas que lhe havemos de fazer? O que não devemos é esquecer o bem que nos fez. Se não fosse ele, eu nunca me atreveria a pedir‑lhe que casasse comigo.

ELFY ‑ Mas casaríamos da mesma maneira, porque eu estava disposta a fazer‑lhe essa proposta.

MOUTIER ‑ Em todo caso, depois de si, é a ele que devo a minha felicidade e, por isso, devo perdoar‑lhe os defeitos.

 

                   O mistério continua

Aproximava‑se o dia do casamento. O general não parava: entrava e saía vinte vezes ao dia. Foi quem encomendou o vestido de noiva e o véu para Elfy. Exigiu que Moutier encomendasse em Domfront um uniforme novo.

A quantia prometida ao Cura já estava entregue, bem como os dez mil francos destinados a Torchonet.

As caixas com o enxoval haviam chegado, excepto as que continham as "toilettes" para o dia do noivado porque o general só as queria entregar no último instante.

Andavam todos radiantes e Elfy já esquecera a sua má disposição contra o general.

A Sr.a Blidot recebeu também muitas roupas, loiças e outros objectos de que a Pousada precisava, e não sabia como manifestar o seu reconhecimento. O general parecia outro; contente, ligeiro e sempre bem disposto, brincava com Tiago e Paulo.

A pensão Bournier parecia um formigueiro; o número de operários que ali trabalhava era cada vez maior.

Chegavam frequentemente pessoas de Paris que ali se instalavam e compravam tantos legumes, ovos e manteiga, que os habitantes da aldeia não sabiam o que pensar.

O mais curioso de tudo era que o general parecia já não ter confiança em Moutier e Derigny. Só permitia que lhe fizessem o que era absolutamente indispensável ao seu serviço pessoal.

Proibia‑lhes que tocassem nos pacotes que chegavam e nem sequer lhes deixava ver o que continham.

A Sr.a Blidot andava inquieta por causa do copo de água, mas, quando falou nisso, o general declarou logo:

‑ Não trate de coisa alguma e não se apoquente, minha mulherzinha. Eu encarrego‑me de tudo, faço tudo e pago tudo.

Sr.a BLIDOT ‑ E os convites?

GENERAL ‑ Bah! Bah! Não pense em nada, já lhe disse. Sou eu quem faz tudo, quem convida, etc., etc..

Sr.a BLIDOT ‑ Mas o General não sabe o nome dos nossos parentes e dos nossos amigos...

GENERAL ‑ Sou capaz de os conhecer melhor do que a senhora... Verá! Amanhã é o dia do noivado. Já não tem muito que esperar... Até já, minha mulherzinha. Vou tomar ar.

O general saiu e a Sr.a Blidot ficou apoquentadíssima com a ideia do jantar do dia seguinte, para o qual não tinha nada, absolutamente nada preparado.

Entretanto na pensão Bournier passava‑se o seguinte:

Os operários tinham terminado as obras e estavam agora pendurando por cima da porta uma placa, cujos dizeres se conservavam tapados por um pano.

Em frente da casa reunira‑se muita gente que olhava, curiosa, a placa.

O general aproximou‑se do grupo e perguntou com ar indiferente:

‑ Que é isto?

HOMEM ‑ Não sabemos, Sr. General. Passam‑se aqui coisas muito extraordinárias. Há oito dias para cá, ninguém entende o rebuliço que por aqui vai.

GENERAL ‑ Talvez seja o processo do crime.

HOMEM ‑ Já ouvi dizer isso.

O general reprimiu a custo uma gargalhada e continuou o seu passeio, mas voltou logo para a pensão, onde entrou pelas traseiras, sem ninguém dar por isso.

Viu tudo, examinou tudo, mostrou‑se satisfeito, deu várias gorjetas e tornou a sair sem que os habitantes da aldeia se apercebessem.

 

                   Generosidade inesperada

Chegou, finalmente, o dia do noivado.

Na Pousada do Anjo da Guarda havia grande inquietação. Só o general estava tranquilo e cavaqueador. Almoçaram, mas para o jantar é que ninguém via preparativos.

Depois do almoço, o general levantou‑se e lembrou que eram horas de se irem vestir. Embora estivessem intrigados com todo aquele mistério, ninguém disse nada, para não irritar o general, e foi cada um para o seu quarto. Dali a minutos ouviram‑se exclamações de alegria. Todos tinham encontrado "toilettes" novas, do melhor gosto e qualidade. Vestiram‑se rapidamente e reuniram‑se na sala.

O último a aparecer foi o general. Abriu majestosamente a porta do quarto e, quando todos o rodeavam para lhe agradecer a surpresa que lhes havia preparado, apenas lhes disse:

‑ Então, meus filhos, já acreditam em mim? Repito‑lhes: não se apoquentem, tudo correrá bem. Agora vamos receber os nossos convidados e o notário.

ELFY ‑ Onde, meu General? E onde estão eles?

GENERAL ‑ É o que vamos ver agora. Em marcha.

O general foi à frente. Ia de pequeno uniforme, com uma única decoração. Dirigiu‑se para a pensão de Bournier e ia dizendo pelo caminho: ‑ Vamos todos, estão todos convidados. ‑ Quando chegaram diante da porta descobriu a tabuleta e o agrupamento pôde, então, ver um quadro representando o general de pé, em grande uniforme, tendo o peito coberto de condecorações.

Por cima da porta estava escrito em grandes letras doiradas: O General Agradecido.

A pintura não constituía obra‑prima, mas a semelhança era perfeita.

Durante alguns momentos ouviram‑se bravos e palmas. Depois o Cura apareceu no alto da escada, indicando que desejava falar. Fez‑se silêncio e ele começou:

‑ Meus amigos: O general comprou a pensão onde esteve quase a ser assassinado, querendo testemunhar o seu reconhecimento ao sargento Moutier e à família a que ele vai unir‑se. Além disso, deu cento e cinquenta mil francos para obras da nossa modesta igreja e para fundar uma casa de protecção à mocidade, dirigida por Irmãs de Caridade, que também prestaram socorros aos enfermos desta freguesia. Eis aqui, meus filhos, em breves palavras, o que devemos à generosidade do general agradecido. Esta placa servirá para perpetuar a memória dos benefícios que fez à nossa aldeia.

Os bravos e as palmas redobraram. Quiseram levar o general em triunfo, mas ele não consentiu. Estava corado e envergonhado como um petiz que mereceu castigo.

Depois de muito trabalho para abrir caminho entre a multidão, subiram a escadaria e entraram na sala, onde os noivos e as pessoas que os acompanhavam encontraram todos os seus parentes, amigos e vizinhos, além do notário de Domfront.

A casa estava renovada, com mobiliário novo e o maior conforto. Havia cadeiras para todos os convidados; o general fez Elfy sentar‑se entre ele e Moutier; a Sr.a Blidot à sua esquerda, em seguida Derigny e os pequenos.

Quando todos se sentaram, o notário começou a ler o contrato de casamento, que dizia:

"A noiva traz para o casal, como dote, os prados, bosques e dependências confinantes com a casa denominada Pousada do Anjo da Guarda".

Ouvindo isto, Elfy ergueu‑se e foi ajoelhar diante do general, que a levantou e a beijou na testa, dizendo:

‑ É o meu presente de noivado. Vai ser a mulher do meu bravo Moutier, que me salvou a vida. Nunca poderei pagar‑lhe tudo o que lhe devo.

Ao mesmo tempo que falava, o general estendeu a mão a Moutier e abraçou os dois.

Moutier mal podia falar. Só conseguiu dizer em voz baixa:

‑ Permita‑me que o abrace também, meu General!

‑ Com todo o coração, meu filho! E agora continue a leitura, Sr. Notário.

O notário assim fez:

"No caso da Sr.a Blidot tornar a casar, a sua parte da Pousada do Anjo da Guarda ficará para Elfy. Em compensação receberá plena propriedade da casa denominada O General Agradecido, com a condição de se casar com o homem que o conde Dourakine lhe indicar."

O notário não pôde reprimir o riso, vendo o espanto causado por esta cláusula.

Assinaram todos. Depois o general declarou que iam jantar.

A Sr.a Blidot estremeceu. Como resolveria o general aquele problema? Não se atreveu, porém, a fazer qualquer observação.

Quando chegaram ao Anjo da Guarda, o espanto de todos aumentou. A casa estava transformada. Havia tapetes, flores e mesas dispostas para um banquete. O jantar foi magnífico, feito por cozinheiros de Paris e servido por criados que também de lá tinham vindo.

Os vinhos e doces eram deliciosos.

Nunca, na aldeia de Loumigny, se tinha comido tão bem.

‑ É proibido apanhar indigestões! ‑ gritava o general. ‑ Reservem‑se para amanhã, que ainda há‑de ser melhor.

Toda a gente estava admirada e bem disposta.

Quando tomaram o café e o licor, o general levantou‑se, ofereceu o braço a Elfy e convidou todos os presentes a acompanhá‑los. Visitaram então a nova propriedade da noiva, que era na verdade encantadora.

Os convidados espalharam‑se pelo bosque e pelos jardins. Ficou só o Cura junto do general, a quem disse:

‑ O Sr. General é a previdência desta excelente família e da nossa freguesia. Nunca o esquecerei nas minhas orações.

GENERAL ‑ Obrigado! Mas a nossa missão ainda não findou. Preciso que me ajude.

CURA ‑ Em tudo o que quiser.

GENERAL ‑ Trata‑se do seguinte: dedico grande estima à Sr.a Blidot e vejo que o casamento de Elfy vai prejudicá‑la. Agora já não é ela, mas Moutier, o dono da casa. Depois podem vir filhos, o que também prejudicará Tiago e Paulo. Ora, eu tenho um projecto... Quando a paz for assinada, o que não deve demorar muito, preciso ir à Rússia e levar Derigny comigo. Não me interrompa... Faço tenção de levar também os pequenos; não separo os filhos do pai. Para compensar Derigny dos seus bons serviços que me tem prestado, compro as terras que confinam com a casa O General Agradecido e faço‑lhe doação delas. Entretanto, verei se convenço a Sr.a Blidot a casar com ele, e desta maneira farei a felicidade de todos. Compreende? Ora, o assunto em que preciso que me ajude é exactamente este: aconselhar a Sr.a Blidot a casar com Derigny.

CURA ‑ Receio que ela não queira tornar a casar.

GENERAL ‑ Talvez a ideia de nunca mais se separar de Tiago e Paulo a convença.

CURA ‑ Farei tudo quanto puder, creia.

A conversa foi interrompida com a chegada de Elfy e dos pequenos que andavam à procura do general. Ela tinha os olhos cheios de lágrimas.

ELFY ‑ Não sei como agradecer‑lhe, General!

E, sem mais palavras, pegou‑lhe nas mãos e beijou‑as.

GENERAL ‑ Deixe‑me, menina. Se continua, é capaz de me fazer chorar também.

Moutier aproximou‑se e repetiu o gesto da noiva.

GENERAL ‑ Deixe‑me, Moutier! Também o senhor?

MOUTIER ‑ É para mim mais que um benfeitor; é um verdadeiro pai.

GENERAL ‑ E esta? Parece o Torchonet a falar.

Moutier sorriu e Elfy soltou uma das suas gargalhadas.

GENERAL ‑ Ora até que enfim, acabaram as lágrimas. Agora permitam‑me que eu faça sair toda esta gente. Vão conversar e passear pela propriedade e deixem‑me vigiar o restabelecimento da ordem. Nada de réplicas. Mandem‑me Derigny e os pequenos e peçam ao notário que venha falar‑me.

Elfy tornou a beijar a mão do general e foi, com Moutier, cumprir as suas ordens.

Pouco depois os convidados vinham despedir‑se e o general recomendou‑lhes:

‑ Até amanhã! Não faltem.

 

                   O Casamento

Depois de inspeccionar os preparativos para a festa do outro dia, que devia terminar com um baile e fogo de artifício, o general foi‑se deitar.

Na manhã seguinte, muito cedo, reuniram‑se todos para almoçar e os agradecimentos repetiram‑se, pois Elfy e a Sr.a Blidot tinham encontrado "toilettes" novas.

GENERAL ‑ O meu desejo é ver todos contentes. Nada têm que me agradecer. E agora, é melhor irem arranjar‑se, que eu farei o mesmo, e, como hoje vestirei grande uniforme, o caso é mais complicado.

Elfy estava encantadora e a cerimónia do casamento foi brilhantíssima. Ninguém se lembrava, lá na aldeia, de uma festa tão bela. Só havia uma pessoa triste: era Derigny.

Como se adivinhasse o que se passava no espírito do pobre homem, o general disse‑lhe:

‑ Não desanime! Então eu não estou aqui? Arranjarei a sua vida como arranjei a de Moutier. Verá.

Depois do casamento realizado, o general perguntou à Sr.a Blidot:

‑ Quando é a boda, minha mulherzinha?

Sr.a BLIDOT ‑ Nunca, General! O primeiro marido não me deixou boas recordações. Agora, dediquei todo o meu afecto a Tiago e Paulo. Só me aflige a ideia que o pai, naturalmente, há‑de querer levá‑los consigo.

GENERAL ‑ Não pensemos agora em coisas tristes. Tudo se há‑de arranjar. Depende só de si que os pequenos fiquem na sua companhia.

Sr.a BLIDOT ‑ Se dependesse só de mim, não havia perigo.

GENERAL ‑ Muito bem. Não esqueça o que acaba de me dizer. Agora, nada de tristezas, é preciso rir, comer e beber.

Um criado fardado abriu a porta da sala e anunciou:

‑ Sr. General, o jantar está na mesa!

Foi um deslumbramento! A mesa estava uma verdadeira maravilha e o jantar primorosamente cozinhado.

Os pratos servidos faziam crescer água na boca aos convidados. Paulo e Tiago provavam de tudo, sem saberem ao certo o que comiam, pois nunca tinham saboreado manjares tão bons.

No fim do jantar Elfy propôs um brinde ao artista autor de tão maravilhoso banquete. Todos aprovaram com entusiasmo e o general mandou chamar o cozinheiro para o felicitar.

à noite houve um baile ao ar livre. Os prados estavam iluminados e havia barracas com bebidas e doces, para quem desejasse comer. Queimou‑se fogo de artifício e todos diziam não haver memória, naquela região, de uma festa assim, voltando para casa na melhor disposição.

É possível que houvesse alguma indigestão, mas a verdade é que ninguém se queixou e todos estavam gratíssimos à generosidade do general.

 

                   A resolução da Senhora Blidot

No dia seguinte, vendo Derigny mais triste que nunca, o general pediu‑lhe que lhe contasse tudo o que o afligia.

DERIGNY ‑ Queira desculpar, meu General, mas desde que me propôs acompanhá‑lo à Rússia, sinto‑me indeciso, sem saber que resolução tomar. Compreendo que, para os meus filhos, é muito vantajoso acompanhar‑me, mas tenho a certeza de que vão sentir muito a falta dos cuidados e da ternura da Sr.a Blidot. Além disso, como poderei eu ocupar‑me do serviço do meu General e tratar da educação deles?

O general ouviu‑o atentamente e, por fim, perguntou:

‑ E se não me acompanhar à Rússia, que fará o senhor?

DERIGNY ‑ É outro problema grave. Perdoe‑me se lhe falo com tanta franqueza, mas entrego‑me nas suas mãos, meu General.

GENERAL ‑ Já tinha pensado nesse problema e só vejo uma solução: o seu casamento com a Sr.a Blidot.

O pobre homem deu um salto e exclamou:

‑ Eu, sem fortuna, sem futuro, sem família, casar com a Sr.a Blidot, que é rica? É impossível, meu General!

O general sorriu e disse:

‑ Impossível não é. O senhor falou‑me com franqueza e eu vou fazer o mesmo. Já estou velho, sou doente e detesto mudanças. Gosto muito de si e o seu serviço agrada‑me inteiramente. Se o senhor casar com a Sr.a Blidot e quiserem‑me acompanhar‑me à Rússia, garanto‑lhes o futuro e faço‑lhes doação da casa O General Agradecido e dos terrenos contíguos, que vou comprar. Pouco tempo me demorarei na Rússia. Desejo apenas pôr as minhas coisas em ordem e tratar da minha reforma. Depois voltarei para França e nunca mais sairei daqui. Quer que eu fale do assunto à Sr.a Blidot?

DERIGNY ‑ Está bem, meu General, faça como entender. Eu e os meus filhos devemo‑lhe a felicidade.

GENERAL ‑ Nada de agradecimentos. Vou tratar do caso hoje mesmo. Peça ao Cura que venha falar‑me. Será ele o intermediário.

Derigny não esperou que ele lhe dissesse segunda vez. Foi ao presbitério dar o recado ao pároco e a seguir foi ver os filhos à Pousada do Anjo da Guarda, pois ele estava agora instalado com o general na sua nova casa. Todos dormiam ainda. Só a Sr.a Blidot estava a pé. Ao vê‑la, Derigny sentiu‑se um pouco embaraçado; ela, porém, como se o adivinhasse, disse‑lhe que desejava falar‑lhe .

‑ Gosto muito dos seus filhos, como se fossem meus, Sr. Derigny. Não posso conformar‑me com a ideia de os perder. Quer deixá‑los comigo?

DERIGNY ‑ A sua ternura pelos meus filhos comove‑me profundamente e desejo de todo coração confiar‑lhos para sempre. O que não me atrevo é a dizer‑lhe como; o general falará consigo a esse respeito...

Sr.a BLIDOT ‑ O general? Os filhos... Muito bem, já entendi.

E, estendendo a mão a Derigny, acrescentou:

‑ Não quero passar por tola ou piegas. O que o senhor deseja é que case consigo para conservar os seus filhos junto de mim. É ou não? Pois, muito bem, aceito com prazer. Vamos ter com o general e contar‑lhe tudo.

DERIGNY ‑ Mas a senhora ainda não sabe... Ele quer dar‑me...

Sr.a BLIDOT ‑ Ele que lhe dê o que quiser. Desde que Tiago e Paulo fiquem sendo meus filhos, o resto não importa.

Sem esperar por Derigny, saiu apressadamente, foi ter com o general e abraçou‑o, dizendo:

‑ Muito obrigada!

O general, espantado, não compreendia o que se passava. A princípio julgou que sucedera alguma coisa na Pousada do Anjo da Guarda. Mas a Sr.a Blidot nem lhe deu tempo a fazer‑lhe perguntas e acrescentou:

‑ Ele dá‑me os filhos! O Tiago e o Paulo ficam a ser meus. Serei a mãe deles e a esposa de Derigny.

O general deu uma gargalhada e, voltando‑se para o Cura, que já havia chegado, exclamou:

‑ E nós aqui a estudar diplomacias para obter o consentimento dela! Que linda comédia! Apresento‑lhe os meus cumprimentos, amigo Derigny. Já vê que as terras produziram bom efeito.

DERIGNY ‑ Não fizeram nada, meu General; ele não sabe desse seu projecto. Nem tive tempo de lho dizer.

GENERAL ‑ Nesse caso foi o amor pelos pequenos que fez o milagre. Parabéns, Derigny, vai ser muito feliz.

DERIGNY ‑ Que Deus o oiça, meu General!

A notícia encheu os dois irmãos de alegria. Elfy e Moutier ficaram também contentíssimos, e os preparativos para o segundo casamento principiaram logo, para que ele se realizasse o mais depressa possível.

 

                   Segundo casamento

Os quinze dias que precederam o casamento passaram depressa e alegremente. A cerimónia celebrou‑se na maior intimidade.

Houve apenas um jantar em casa do general, a que assistiram também o Cura e o notário.

O casal Derigny instalou‑se definitivamente, com os pequenos, em casa do general. Moutier e Elfy ficaram a ser os únicos donos da Pousada do Anjo da Guarda.

O general ainda se demorou na aldeia durante um mês. Depois partiu para a Rússia. Como estava estabelecido, Derigny, a mulher e os filhos acompanharam‑no. Os pequenos iam radiantes, mas a separação das duas irmãs foi dolorosa. O general, porém, não queria tristezas, e abraçou Elfy e Moutier, dizendo:

‑ Até para o ano, meus filhos. Esperem por mim para o baptizado do vosso primeiro filho. Quero ser o padrinho. E lembrem‑se de mim!

A carruagem partiu.

‑ Acreditas que voltem dentro de um ano? ‑ perguntou Elfy ao marido.

‑ Tenho a certeza. O general é muito nosso amigo. Somos a sua família. A nossa felicidade é a sua felicidade.

O tempo foi passando.

Torchonet cresceu, fez‑se um bom rapaz e quando saiu da Casa dos Irmãos da Doutrina Cristã empregou‑se numa casa comercial.

O processo Bournier terminou com a condenação dos réus.

O Cura mandou fazer as obras indicadas pelo general. A igreja de Loumigny ficou sendo a mais bonita da região, que era agora muito visitada. A Pousada do Anjo da Guarda estava sempre cheia de hóspedes.

Quanto ao general e aos seus companheiros, fizeram uma feliz viagem de que regressaram encantados; todos bendiziam o general que se transformou na Providência daquela excelente família.

 

                                                                                Condessa de Ségur  

 

                      

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