Horácio Nunes
COMÉDIA ORIGINAL EM UM ATO
PERSONAGENS: BERNARDO (45 anos) MANECA (23 anos) MARIQUINHAS (18 anos) Atualidade.
ATO ÚNICO Sala simples, mas decente. É noite.
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CENA I
BERNARDO (sentado, afinando um violão) Dó... dó... dó... dó... mi... dó... mi... dó... Não está bom ainda. (Pausa) Há um ano entendi que devia aprender a tocar violão, e deitei-me logo à obra. Comprei o violão, procurei um mestre e principiei a coisa. Mas os progressos não têm sido muitos... Em um ano aprendi apenas a tocar um acompanhamento... Din... din... din... don... don... don... e disse! Entretanto, ainda não perdi a esperança de ser mestre também. (Afinando) Ré, mi... ré, mi... ré, mi... dó... dó... dó... Está bom agora. Vamos ao meu acompanhamento predileto... porque é o único que sei...
CENA II Bernardo e Maneca.
MANECA Boa noite, meu tio.
BERNARDO Deus te abençoe e te dê juízo, rapaz. MANECA O tio passa a vida agarrado ao seu instrumento! BERNARDO (dedilhando) E o que tens com isso? MANECA Eu, nada; mas a Mariquinhas diz que é aborrecido. BERNARDO Aborrecido, por quê? MANECA Porque o tio não toca nada que preste e leva os dias a encher os ouvidos da gente com – dons, dons, dons e dins, dins, dins, que é um nunca acabar. BERNARDO Ora, tu e a Mariquinhas que vão passear! Não executo grandes coisas, é verdade; mas já toco um acompanhamento, e não é pouco... MANECA Um acompanhamento que o tio impinge para tudo: modinhas, recitativos, habaneras... BERNARDO Mas é bonito. MANECA E maçante também. BERNARDO Para quem toca, não duvido.
MANECA E ainda mais para quem ouve. BERNARDO (zangado) Vai para o diabo, e deixa-me sossegado! MANECA Quanto por mês paga o tio ao seu mestre? BERNARDO Cinco mil réis. MANECA E há quantos meses paga? BERNARDO Quatorze meses. MANECA Ora, aí tem: quatorze meses a cinco mil réis – setenta mil réis. Setenta mil réis que o seu mestre lhe tem roubado sem consciência, porque o sujeito pode ser tudo, menos mestre. BERNARDO (zangado, erguendo-se) Homem, queres que te diga uma coisa? (Dando-lhe o violão) Vai guardar o meu instrumento. MANECA (recebendo-o) Onde, meu tio? BERNARDO Lá dentro. Deita-o com todo o cuidado, e raspa-te. Vê lá, não o desafines. MANECA Não tenha medo. (Vai sair e volta) Oh! tio, não acha melhor que vá o senhor mesmo guardar o seu instrumento?
BERNARDO Por quê? MANECA Porque é melhor. BERNARDO Tens razão. És um estabanado, e podes fazer alguma asneira. (Toma o violão e sai) CENA III MANECA Já é uma mania! Almoça violão, janta violão e ceia violão! E nós que estejamos aqui para aturá-lo!... Já tenho tido gana de arrancar o fundo ao tal instrumento... mas receio as consequências: o tio era capaz de meter-me a bengala e comprar outro violão! CENA IV Maneca e Mariquinhas. MARIQUINHA Onde está o papai? MANECA Foi guardar o violão. MARIQUINHA É um aborrecimento! Oh! Maneca, vamos atirar o violão pela janela fora? MANECA Atira-o tu, si quiseres; eu não me meto nisso.
MARIQUINHA Por quê? MANECA Pois estou lá para experimentar de que pau é feita a bengala de teu pai? MARIQUINHA Mas aquilo é um martírio que eu não posso mais suportar! MANECA Paciência... é preciso ter paciência. Talvez que Deus leve esse martírio em conta dos nossos pecados. MARIQUINHA Nada! De repente quebro o maldito violão! MANECA Mas olha as consequências. MARIQUINHA Qual nada! MANECA Depois não digas que não te aconselhei. MARIQUINHA Você é um medroso! Corre até da própria sombra! CENA V Os mesmos e Bernardo. BERNARDO (cantarolando) Din, don, din, don... din, din, din... don, don, don. Lá o deixei perfeitamente guardado na cama do Maneca... (Vendo os dois) Ah! estão aí? Preciso falar-lhes seriamente.
MARIQUINHA A mim, papai? MANECA A mim, meu tio? BERNARDO A todos dois. Digam-me cá uma coisa: por que é que vocês, de certo tempo a esta parte, andam sempre metidos pelos cantos, cochichando e cheios de mistérios? MARIQUINHA Mistérios, eu? MANECA Eu, com mistérios? BERNARDO Sim, vocês. Então pensam que não tenho olhos?... Ainda ontem estava eu perto da janela da varanda, afinando o violão, quando, casualmente, olhando para o quintal... MARIQUINHA (disfarçando, a suspirar) Ai! Ai! MANECA (à parte) Mal! mal! BERNARDO Lá estavam vocês agarrados um ao outro, como dois carrapatos... MARIQUINHA Eu, papai? MANECA Eu, tio?
BERNARDO (imitando-os) Eu, tio?... eu, papai? Não... havia de ser eu com a vizinha. Eu não gosto muito destas coisas, e resolvi pôr-lhes um termo. MARIQUINHA Ah! MANECA (à parte) Vai pôr-me no olho da rua! BERNARDO Resolvi que vocês não se agarrariam mais no quintal, enquanto não se agarrassem primeiro na igreja. É uma medida de precaução. A mocidade de hoje caminha muito depressa... MANECA Nem por isso, meu tio. MARIQUINHA Eu também acho que nem por isso... BERNARDO No meu tempo os rapazes andavam em fraldas de camisa até aos vinte anos... MARIQUINHA E as raparigas, papai? BERNARDO (atrapalhado) As raparigas... não me lembro bem. Mas isso... sim... mas isso pouco importa ao caso... MANECA Eu acho que importa muito. MARIQUINHA E eu também.
BERNARDO Pois os rapazes andavam em fraldas de camisa. MANECA Era uma imoralidade! BERNARDO Não era tal, não, senhor. Era inocência... tanto que os rapazes brincavam com as raparigas, sem lhes pegarem nas mãos, como fazem hoje... Um desaforo! MARIQUINHA Ora! MANECA Nesse tempo, estava tudo muito atrasado, e os rapazes eram uns tolos... "Le monde marche", tio... BERNARDO Pois sim... mas cá por casa é que ele não há de marchar. MARIQUINHA Então o papai não é progressista. BERNARDO Sou o Bernardo, pai da Mariquinhas e tio do Maneca, e é quanto basta. MANECA É um retrógrado. BERNARDO (zangado) Ora... dá um nó na língua e cala-te! Mariquinhas, gostas do Maneca? MARIQUINHA Eu gosto.
BERNARDO Maneca, gostas da Mariquinhas? MANECA Muito, meu tio. Sou doido por ela. BERNARDO Então preparem-se para daqui a um mês estarem casados. Eu cá sou assim: antes que o mal cresça, corto-lhe a cabeça... Nada! Atrás das minhas orelhas ninguém faz ninho! MARIQUINHA Papai... BERNARDO (imitando-a) Papai! Não te faças de manto de seda. Por isto estavas tu morrendo. MANECA Eu confesso que estava. BERNARDO Mas cuidado. Daqui até lá, podem conversar... mas nada de muitas liberdades... MANECA Em vista da sua resolução, posso preparar-me para daqui a um mês, não? BERNARDO Sem dúvida. Daqui a um mês nosso vigário conjuga o verbo e vocês ficam autorizados a fazer o que lhes parecer. (Outro tom) Bom. Vou aqui à venda da esquina comprar cigarros, e já volto. Fiquem muito quietinhos e nada de apertos de mão, senão. Quem me avisa, meu amigo é. (Fazendo cócega no queixo de Mariquinhas) Estavas morrendo por isto, hein? (Batendo na barriga de Maneca) E tu também, maganão! (Sai)
CENA VI Maneca e Mariquinhas.
MANECA Nesta! MARIQUINHA Contraria-te a resolução do papai? MANECA Não me contraria, não; mas... MARIQUINHA O quê? MANECA Uma coisa assim tão de repente... MARIQUINHA Pois eu gosto das coisas feitas de repente. MANECA (irônico) Sim, hein? MARIQUINHA Ora, graças a Deus, que vamos ficar livres do tal violão do papai... MANECA Como? MARIQUINHA Pois não vamos nos casar, e, por consequência, mudar de casa? MANECA Nem penses nisso. Havemos de ficar aqui mesmo. Se alugarmos casa, a despesa vai longe... MARIQUINHA (com desdém) Usurário! MANECA Espírito de economia, minha querida, espírito de economia. Se eu posso fazer as coisas sem despesa, para que hei de gastar inutilmente? MARIQUINHA Mas não tens vergonha de me dizer isso, a mim, que sou tua noiva?... Os noivos devem sempre mostrar-se francos e generosos diante das noivas; ao contrário, fazem um triste papel, que pode dar lugar a... MANECA A quê? MARIQUINHA A que as noivas os mandem passear e voltem-se para outro lado. (Sobe, contrariada) MANECA (seguindo-a) Mas, Mariquinhas... MARIQUINHA (voltando-se) É isto mesmo, meu senhor. E não me aborreça. (Sai) MANECA (saindo) Mas, vem cá, menina... deixa me explicar-te... (Sai) CENA VII BERNARDO (fumando um enorme cigarro)
Fumo ordinário! O taverneiro vende isto por Pomba... Pode ser mata ratos, mas Pomba é o que ele não é. (Olhando em roda) Mas onde estão eles?(Sentando-se) Isto já me vai cheirando mal. Sempre pelos cantos, sempre com segredinhos e apertos de mão... Assim é que as coisas principiam. A filha da minha vizinha da esquerda tinha um apaixonado. Começou também por apertinhos de mãos e acabou pondo os pés no mundo com o namorado. A culpa tive eu em meter o sobrinho em casa sem refletir que tinha uma filha bonita e que a pólvora ao pé do fogo faz explosão. Nada! O melhor é casá-los quanto antes... MARIQUINHA (dentro, dando um grande grito) Ai! Maneca! MANECA (dentro) Cala a boca! BERNARDO (dando um pulo) Hem! Que diabo é isto? E é no quarto do Maneca! CENA VIII Bernardo e Maneca. MANECA (assustado) Ah! meu tio, que desgraça! BERNARDO Mas o que foi que sucedeu? MANECA Tio, perdoe-me... perdoe-me... mas... BERNARDO Mas o que foi, homem? Fala! Fala! MANECA Não me atrevo, tio... Eu bem tomei cuidado... bem evitei... mas... BERNARDO Oh! animal, fazes-me perder a paciência! Que desgraça foi essa?... MANECA O quarto estava no escuro... entrei... mas sem má intenção... BERNARDO E então? MANECA Procurei a cama para deitar-me... sempre sem má intenção. Eu sou incapaz de... BERNARDO Fala, estafermo! MANECA E a prima... a prima... BERNARDO (recuando) Hem?... MANECA É verdade... Mas perdoe-me... perdoe-me... BERNARDO (agarrando-o pelo paletó) Ah! infame! Eu bem estava adivinhando! Miserável! patife! MANECA (tentando escapar) Misericórdia, tio!... BERNARDO Misericórdia, para ti, desalmado! para ti, selvagem! para ti, desgraçado!
MANECA Meu tio, não se exalte... BERNARDO Que não me exalte! (Sacudindo-o) E ainda tens cara de pedir-me que não me exalte!... Patife! Cachorro!... És um cachorro!... (Indo ao fundo) Maria! Maria! MANECA Meu tio, não a acuse... O único culpado sou eu. BERNARDO (agitado, passeando) Havemos de ver... havemos de ver!... CENA IX Bernardo, Maneca e Mariquinhas. MARIQUINHA (de cabeça baixa) Aqui estou, meu pai... BERNARDO Venha cá: porque foi que a senhora gritou: — “Ai! Maneca!” MARIQUINHA (olhando disfarçadamente para Maneca e abaixando logo a cabeça) Eu... BERNARDO Sim, a senhora! Não negue, que será pior. MARIQUINHA Ah! Não tenho ânimo de dizer-lhe... Perdoe, papai... BERNARDO Vamos, fale, ou levo tudo à bengala!
MANECA Mas eu já lhe disse, meu tio, que a prima... BERNARDO É verdade, senhora? é verdade?... MARIQUINHA É verdade, papai... é verdade... não posso negar... MANECA É verdade, meu tio... BERNARDO E ainda confessam! A que ponto chegou a falta de vergonha, Santo Deus! (Indo a Maneca) Infame! infame! MARIQUINHA Meu pai! MANECA Compreendo a sua exaltação, meu tio. Mas o fato é naturalíssimo, porque, afinal de contas, uma prima não é um bicho de sete cabeças... BERNARDO (contendo-se) Então achas que uma prima não é um bicho de sete cabeças?... MANECA Sem dúvida. BERNARDO (avançando, com explosão) Oh! canalha! MANECA Arranja-se outra, e o seu violão fica perfeito. BERNARDO (admirado)
Hem?... O meu violão?... MANECA Como lhe disse, o quarto estava no escuro. O tio tinha posto o violão em cima da minha cama. Vou tatear e rebento-lhe a prima... Ora, aí está. BERNARDO (à parte, como que livre de um grande peso) Ai! que alívio!... MARIQUINHA Perdoa, papai? BERNARDO (galhofando) Ora! Boa dúvida!... Eu estava brincando... Amanhã compra-se outra prima, e... Mas vão se preparando, porque daqui a quinze dias casoos. MANECA Mas o tio, há pouco, marcou um mês... BERNARDO É verdade. Mas agora marco quinze dias. É melhor para mim e... para vocês também! (Abraçando-os) Abracem-me, andem! Ora, uma prima! Amanhã compro outra, e está tudo acabado! (À parte) Que alívio! que alívio!. Mas é preciso casá-los quanto antes!... (Descem) MANECA Pela prima... mas que prima!... a prima de um violão o primo quase que toma uma tremenda lição! BERNARDO Pela prima... mas que prima!... a prima de um violão, quase vou da prima ao primo às ventas, sem compaixão! TODOS Vão casar o primo e a prima, da prima finda a questão, suplicando o tio e os primos algumas palmas... pois não!
Horácio Nunes
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