... — Detesto o que Darken Rahl fez conosco, o modo com que ele nos obriga a fazer coisas. — Apertou a mão dele. — Ela entrou muito depressa nos nossos corações.
Richard a abraçou.
— É verdade. Rachel é uma menininha especial. Espero que encontre o que procura e que esteja segura. — Foi até o pinheiro amigo, para apanhar as coisas deles. — Vamos embora.
Nenhum dos dois queria pensar no que sentia, que estavam abandonando Rachel, condenando-a a perigos que ela desconhecia e contra os quais estava indefesa, por isso se concentraram em percorrer a maior distancia, o mais depressa possível. O dia continuou claro e chegaram a uma vasta área de floresta; com a pressa, nem notaram o frio.
Richard sempre gostava de encontrar uma teia de aranha estendida no meio da trilha. Começava a pensar nas aranhas como guardiãs. Quando era guia, não gostava de teias de aranha no rosto. Obrigada, irmã aranha, ele pensava agora, cada vez que passava por uma.
Quase ao meio dia, pararam para descansar nas rochas aquecidas pelo sol em um regato gelado, Richard passou água fria no rosto, tentando criar mais energia. Já estava cansado. Almoçaram comida fria que durou apenas o tempo de descer pela garganta. Enfiaram os últimos pedaços na boca, limparam as mãos nas pernas das calças e desceram da rocha plana e cor-de-rosa.
Por mais que tentasse não pensar em Rachel, Richard não podia evitar. Às vezes, quando Kahlan se virava para trás, ele a via olhando para os lados, com a testa franzida. Uma vez ele perguntou se Kahlan achava que ele tinha tomado a decisão certa. Ela não precisou perguntar de qual decisão ele estava falando. Perguntou de quando tempo ele calculava que precisariam para alcançar Rachel. Richard disse que uns dois dias, se tudo corresse bem, pelo menos um para alcançá-la e outro para voltar. Dois dias, Kahlan disse, era mais do que tinham. Richard ficou tranqüilo ouvindo isso.
No fim da tarde, o sol deslizou para trás do pico distante de uma montanha de Rang’Shada, tirando o brilho e diminuindo a intensidade das cores do bosque, acalmando o vento e envolvendo paisagem em silêncio. Richard conseguiu afastar o pensamento de Rachel, concentrando— se no que fariam quando chegassem a Tamarang.
— Kahlan, Zedd disse que precisamos ficar longe de Darken Rahl, porque não temos poder contra ele, nenhuma defesa.
Kahlan olhou brevemente para trás.
— Foi o que ele disse.
Richard ficou intrigado.
— Bem, Shota disse que a rainha não teria a caixa por muito mais tempo
— Talvez estivesse nos avisado que a caixa logo estaria em nossas mãos.
— Não, foi uma advertência de que a rainha não teria por muito mais tempo e que por isso precisávamos nos apressar. E se Darken Rahl já estiver lá?
Kahlan olhou para trás, diminuiu o passo e foi até ele.
— E se tiver? Não há outro meio. Eu vou a Tamarang. Quer esperar aqui por mim?
— Claro que não! Só estou dizendo que devemos nos lembrar do que estaremos enfrentando, que Darken Rahl pode estar lá.
— Há muito tempo estou pensando nisso.
Richard andou ao lado dela por algum tempo sem dizer nada. Finalmente perguntou.
— E o que concluiu? O que faremos se ele estiver lá?
Ela disse olhando para frente: — Se Darken Rahl estiver em Tamarang e nós chegarmos, então o mais provável é que... morreremos.
Richard perdeu um passo, Kahlan não esperou por ele, mas continuou a andar.
À medida que o bosque escurecia, algumas nuvens pequenas se tingiam de vermelho, as brasas agonizantes do dia. A trilha começado a seguir o Rio Callisidrin, às vezes levando-os para bem perto dele; quando não o viam podiam ouvir o barulho da corrente de água marrom. Richard não vira qualquer pinheiro amigo durante toda a tarde. Olhando para as copas das árvores, não viu nem sinal deles. O dia escurecia rapidamente e ele perdeu a esperança de encontrar algum antes da noite, por isso começou a procurar outro abrigo. A uma distância segura da trilha, encontrou uma face de rocha pequena, no sopé de uma subida. Árvores a protegiam de todos os lados e achou que era um bom lugar para acampar, embora aberto para o céu.
A lua estava alta quando Kahlan pôs o assado no fogo e, por um golpe de sorte que o surpreendeu, Richard encontrou dois coelhos na armadilha muito antes do que esperava e os acrescentou ao assado.
— Acho que temos o suficiente para satisfazer Zedd — disse ela.
Como que chamado, o velho homem, com o cabelo branco despenteado, entrou no círculo de luz, parando no outro lado do fogo, as mãos na cintura, o manto parecendo um pouco andrajoso.
— Estou faminto! — anunciou ele. — Vamos comer.
Richard e Kahlan se levantaram surpresos. O velho piscou os olhos quando Richard desembainhou a espada. Numa fração de segundo, ele estava no outro lado do fogo com a espada encostada no peito do velho.
— O que é isso? — perguntou ele.
— Para trás — ordenou Richard. Eles recuaram, a espada entre os dois, até as árvores. Richard olhou cuidadosamente para o bosque.
— Posso perguntar o que estamos fazendo, meu rapaz?
— Fui chamado por você uma vez e o vi uma vez e em nenhuma dela era você.
Deixar-se enganar pelo mesmo truque pela terceira vez é a marca do tolo — citou Richard. Viu o que procurava. — Não vou ser enganado uma terceira vez, não serei tolo. Para lá — apontou com o queixo. — Vá para o meio daquelas duas árvores.
— Não vou fazer isso! — protestou o homem. — Embainhe sua espada, meu rapaz.
— Se não for para o meio das duas árvores — disse Richard, com os dentes cerrados —, enfio minha espada nas suas costelas.
O velho ergueu os ombros, surpreso, segurou o manto e passou pelo mato, resmungando, enquanto Richard o espicaçava com a espada. Olhou rapidamente apenas uma vez para trás, antes de parar entre as árvores. Richard viu a teia de aranha se partir. Um sorriso iluminou seu rosto.
— Zedd! É você mesmo?
Zedd, mãos na cintura, olhou para ele com um olho só.
— Tão verdade quanto sapos assados, meu rapaz.
Richard embainhou a espada e abraçou o velho amigo, quase lhe quebrando os ossos; olhou para ele com um sorriso feliz e o abraçou outra vez.
— Temo só em pensar o que aconteceria se você estivesse mais feliz por me ver.
Richard o levou para perto do fogo com o braço nos ombros dele.
— Desculpe tudo aquilo, mas eu precisava ter certeza. Nem posso acreditar que esteja aqui! Estou tão feliz por vê-lo! Tão feliz por você estar bem! Temos muito que conversar.
— Sim, sim. Podemos comer agora?
Kahlan se aproximou e o abraçou também.
— Estávamos muito preocupados com você.
Zedd olhou para a panela com olhos compridos, por cima dos ombros dela.
— Sim, sim. Mas tudo isso vai melhorar com o estômago cheio.
— Mas ainda não está pronto — sorriu ela.
Zedd olhou para ela desapontado.
— Não está pronto? Tem certeza? Talvez a gente possa verificar.
— Tenho certeza. Começamos agora mesmo.
— Não está pronto — resmungou ele, segurando o cotovelo com uma das mãos, passando os dedos da outra no queixo. — Muito bem, vamos ver isso. Para trás, os dois.
O mago arregaçou as mangas olhando para o fogo como se olha para uma criança mal-comportada. Estendeu os braços magros e os dedos para a frente. Luz azul chiou em volta de suas mãos, parecendo ganhar impulso. Com um assobio, emitiu uma faixa azul denteada, que atingiu a panela, que deu um pulo. O fogo azul ficou debaixo da panela, girando, acariciando. O assado ferveu e borbulhou com luz azul. O mago retirou as mãos e o fogo azul se apagou.
Zedd sorriu satisfeito.
— Agora está pronto. Vamos comer!
Kahlan se ajoelhou junto ao fogo e provou o assado com uma colher de pau.
— Tem razão. Está pronto.
— Muito bem, não fique aí olhando, meu rapaz. Pegue os pratos!
Richard balançou a cabeça e obedeceu. Kahlan serviu um prato cheio, pôs alguns biscoitos secos ao lado e Richard deu para Zedd. O velho não se sentou, mas ficou ao lado deles, perto do fogo, comendo com grandes garfadas. Kahlan serviu mais dois pratos e, quando terminou, Zedd estava estendendo o dele para uma segunda porção.
Terminando o primeiro prato, Zedd agora teve tempo para se sentar. Richard se sentou numa pequena saliência da rocha. Kahlan ficou sentada ao lado dele, com as pernas dobradas, e Zedd no chão, à frente dos dois.
Richard esperou que Zedd comesse metade do assado do prato, finalmente permitindo uma pausa para perguntar — Então, como foi com Adie? Ela tomou bem conta de você?
Zedd olhou para ele, piscando os olhos. Mesmo à luz do fogo, Richard podia jurar que Zedd corou.
— Adie? Bem, nós... — Olhou para a expressão intrigada de Kahlan. — Bem, nós... nos demos... muito bem. — Franziu a testa para Richard. — Isso é pergunta que se faça?
Richard e Kahlan se entreolharam.
— Eu não quis dizer nada — disse Richard. — Só que não deixei de notar que Adie é uma bela mulher. É interessante. Só pensei que você a tivesse achado interessante,— Richard sorriu mentalmente.
Zedd enfiou o rosto no prato.
— Ela é uma ótima mulher. — Girou alguma coisa no prato com o garfo. — O que é isto? Comi três e ainda não sei o que é.
— Raiz de tava — disse Kahlan. — Não gostou?
Zedd rosnou.
— Não disse que não gostei. Só queria saber o que era, nada mais. — Ergueu os olhos do prato. —Adie me disse que deu uma pedra da noite a você. — Sacudiu o garfo na direção de Richard. — Espero que esteja tendo cuidado com essa coisa. Não a tire da bolsa se não for extremamente necessário. Necessário mesmo. Pedras da noite são muito perigosas. Adie devia ter avisado. E eu disse isso a ela. — Espetou uma raiz de cava com o garfo — Seria melhor você se livrar dela.
Richard empurrou um pedaço de carne no prato.
— Nós sabemos.
A mente de Richard estava tão repleta de perguntas que nem sabia por onde começar. Zedd perguntou primeiro.
— Vocês dois têm feito o que eu disse? Têm evitado encrenca? O que andam fazendo?
— Bem — disse Richard, respirando profundamente —, passamos muito tempo com o Povo da Lama.
— O Povo da Lama? — pensou Zedd por um momento. — Bom — resolveu finalmente, com o garfo no ar com um pedaço de carne espetado. — Não se pode arranjar muita encrenca com o Povo da Lama. — Tirou a carne do garfo com os dentes e mergulhou o garfo outra vez para pegar mais assado e um pedaço de biscoito. Falou mastigando: — Então passaram um tempo agradável com o Povo da Lama. — Notou que os dois estavam calados e olhou de um para o outro. — Não é possível arranjar muita encrenca com o Povo da Lama. — Parecia uma ordem.
Richard olhou para Kahlan. Ela molhou o biscoito no assado.
— Eu matei um dos anciãos — disse Kahlan, levando o biscoito à boca sem erguer os olhos.
Zedd deixou cair o garfo e o apanhou no ar pouco antes de chegar ao chão.
— O quê?
— Foi autodefesa — disse Richard para ela. — Ele ia matar você.
— Maldição! Por que um ancião ousaria matar uma... — Fechou a boca e olhou para Richard.
— Uma Confessora. — Richard terminou a frase. Sua zanga amainou.
Zedd olhou de uma para outra cabeça abaixada.
— Então finalmente você contou a ele.
— Há poucos dias — disse Kahlan.
— Só há poucos dias — resmungou Zedd, depois comeu mais ensopado em silêncio, olhando desconfiado para os dois de vez em quando. — Por que um ancião ousaria matar una Confessora?
— Bem — disse Richard —, foi quando descobrimos o que a pedra da noite pode fazer. Um pouco antes de nos declararem membros do Povo da Lama.
— Eles fizeram de vocês membros do Povo da Lama? Por quê? — Zedd arregalou os olhos. — Você se casou?
— Bem... não. — Richard tirou a tira de couro de baixo da camisa e mostrou o apito a Zedd. — Trocaram por isto.
Zedd olhou rapidamente para o apito.
— Por que concordaram que não se casasse... E por que fizeram de vocês membros do Povo da Lama?
— Porque pedimos. Tínhamos de pedir. Era o único meio de fazer com que convocassem uma reunião para nós.
— O quê? Fizeram uma reunião para vocês?
— Fizeram. Isso foi um pouco antes de Darken Rahl chegar.
— O quê? — gritou Zedd outra vez, levantando de um salto — Darken Rahl esteve lá! Eu disse para ficar longe dele!
Richard ergueu os olhos.
— Bem, nós não chegamos a convidá-lo...
— Ele matou uma porção de gente — disse Kahlan em voz baixa, ainda olhando para o prato, mastigando devagar.
Zedd olhou para a cabeça dela, depois voltou a se sentar lentamente.
— Desculpe — disse ele com voz mansa. — Então o que os espíritos dos ancestrais disseram?
Richard deu de ombros.
— Que tínhamos de procurar uma feiticeira.
—Uma feiticeira! — Zedd entrecerrou os olhos. — Qual feiticeira? Onde?
— Shota. Em Agaden Reach.
Zedd estremeceu e quase derrubou o prato, o ar sibilando entre os dentes quando respirou.
— Shota!—Olhou em volta como se alguém pudesse ouvir. Inclinou-se para Kahlan e disse em voz baixa: — Maldição! O que deu em você para levá-lo a Agaden Reach? Você jurou protegê-lo!
— Acredite — disse ela, olhando nos olhos dele. — Eu não queria ir. —Tínhamos de ir — disse Richard, defendendo Kahlan.
Zedd olhou para ele.
— Por quê?
— Para saber onde encontrar a caixa. E descobrimos. Shota nos disse.
— Shota disse a vocês — zombou Zedd. — E o que mais da disse? Shota não diz nada que você quer saber sem dizer alguma coisa que você não quer.
Kahlan olhou de soslaio para Richard, mas ele não retribuiu o olhar.
— Nada. Ela não disse nada mais. — Não desviou os olhos dos de Zedd. — Ela disse que a rainha Milena, em Tamarang, está com a última caixa de Orden. Contou porque a vida dela depende disso.
Sempre olhando nos olhos de Zedd, Richard duvidava de que o amigo acreditasse nele, mas não queria contar o que Shota tinha dito. Como podia dizer que um deles ou os dois podiam acabar como traidores? Que Zedd usaria o fogo do mago contra ele, que Kahlan o tocaria com seu poder? Temia que isso acabasse sendo justificado. Afinal, era ele quem sabia do livro. Eles não sabiam.
— Zedd — disse ele com voz calma —, você disse que queria que eu os trouxesse para Midlands e que quando chegássemos aqui você teria um plano. Foi derrubado por aquela besta do mundo subterrâneo, você estava inconsciente, não sabíamos quando, nem se ia acordar. Eu não sabia o que fazer, não sabia qual era seu plano. O inverno está chegando. Temos de deter Oarken Rahl.
Sua voz ficava mais áspera à medida que falava.
— Estive fazendo o melhor possível sem você. Perdi a conta das vezes em que quase fomos mortos. Tudo que eu sabia fazer era tentar encontrar a caixa. Kahlan ajudou e descobrimos onde ela está. Custou caro para nós dois. Se você não gosta do que fizemos, então tire de mim sua maldita Espada da Verdade, estou ficando cheio dela! Cheio de tudo!
Jogou o prato no chão, saiu para o escuro e parou de costas para eles, sentindo um nó na garganta. As árvores escuras à frente dele pareciam estar debaixo d’água. Richard se surpreendeu com o modo com que sua ira cresceu e o dominou. Queria tanto ver Zedd e, agora que ele estava ali, ficou zangado com ele. Deixou a ira solta, esperando que desaparecesse por conta própria.
Zedd e Kahlan se entreolharam.
— Sim — disse ele. — Posso ver que você contou mesmo para ele. — Pôs o prato no chão, levantou-se e bateu de leve no ombro dela. — Eu sinto muito, minha cara.
Richard não se moveu quando sentiu a mão de Zedd no seu ombro.
— Desculpe, meu rapaz. Acho que você tem tido muitas dificuldades.
Richard assentiu, balançando a cabeça, olhando para o escuro.
— Eu matei um homem com a espada. Com a magia.
Zedd esperou um pouco antes de responder.
— Bem, eu conheço você, tenho certeza de que tinha de matá-lo.
— Não — disse Richard num murmúrio doloroso. — Não precisava. Pensei que estava protegendo Kahlan, protegendo a vida dela. Não sabia que ela era uma Confessora, que não precisava de proteção. Mas eu queria. E tive um grande prazer.
— Você só pensou que teve. Foi a magia.
— Não tenho certeza. Não tenho certeza do que está acontecendo comigo.
— Richard, perdoe-me se falei como se estivesse zangado com você. É comigo que estou zangado. Você agiu bem, fui eu que falhei.
— Como assim?
Zedd bateu no ombro dele.
— Vamos nos sentar. Contarei a vocês o que aconteceu.
Caminharam juntos para o fogo, Kahlan olhando os dois, parecendo muito solitária. Richard se sentou ao lado dela e sorriu. Kahlan sorriu também.
Zedd apanhou seu prato, olhou muito sério para ele e o pôs no chão outra vez.
— Infelizmente temos um grande problema — disse ele em voz baixa.
Uma observação sarcástica imediatamente surgiu na mente de Richard, mas ele a afastou e disse apenas: — Por quê? O que aconteceu? Qual é o seu plano?
— Meu plano — sorriu Zedd, levantou os joelhos e puxou o manto para cima deles, formando uma pequena barraca. — Meu plano era deter Rahl sem ter de me aproximar dele e sem que vocês dois corressem perigo. Meu plano era vocês ficarem fora de encrencas enquanto eu tratava disso. Parece que seus planos são os únicos que temos agora. Eu não contei a vocês tudo sobre as caixas de Orden porque vocês não precisavam saber. Não era da sua conta, só eu devia saber. — Olhou para os dois, a ira faiscou nos seus olhos por um momento e depois desapareceu. — Mas acho que agora importa.
— O que não devíamos saber? — perguntou Kahlan, franzindo a testa, ira nos olhos. Aparentemente ela não gostou mais do que Richard do fato de estarem em perigo sem saber tudo.
— Bem — disse Zedd —, as três caixas funcionam exatamente como eu disse, mas você precisa saber quais deve ser aberta. Essa é a parte que eu sei. Está toda num livro chamado o Livro das sombras contadas, que é um livro de instrução para as caixas. Eu sou seu guardião.
Richard ficou rígido. O dente pareceu que ia saltar do cordão pendurado no seu pescoço. Não podia mover um músculo, não podia respirar.
— Você sabe quais são as caixas? — perguntou Kahlan. — Sabe qual ele deve abrir?
— Não. Sou o guardião do livro. Essas informações estão no livro. Mas eu nunca li. Não sei qual é a caixa, nem como descobrir. Se eu abrisse o livro, arriscaria espalhar o conhecimento. Ele não deve ser aberto. Pode ser muito perigoso. Por isso nunca o abri. Sou guardião de muitos livros, esse entre eles, mas ele é muito importante.
Richard percebeu que seus olhos estavam arregalados e tentou relaxar, fazendo-os voltar ao normal, piscando. Durante quase toda a vida, esperou ansiosamente pelo dia em que encontrasse o guardião do livro e era Zedd o tempo todo. O choque o deixou gelado.
— Onde ele estava? — perguntou Kahlan. — O que aconteceu?
— Estava na minha fortaleza, a Fortaleza do Mago. Em Aydindril.
— Você foi a Aydindril? — perguntou Kahlan ansiosamente.
Zedd desviou a vista.
— Aydindril caiu.
Kahlan tampou a boca com a mão e seus olhos se encheram de lagrimas.
— Não.
Zedd disse: — Infelizmente é verdade. — Puxou a bainha do manto — Não está sendo bom para eles. Pelo menos dei à força de ocupação alguma coisa para pensar— acrescentou, em voz baixa.
— Capitão Riffkin? Tenentes Delis e Miller? A Guarda Doméstica?
Zedd olhou para o chão quando ela disse os nomes. Kahlan levou a mão ao peito, respirando fundo e mordendo os lábios. Fossem quem fossem aqueles homens, ela parecia muito abalada com a notícia.
Richard pensou que devia disfarçar o próprio choque dizendo alguma coisa.
— O que é a Fortaleza do Mago?
— Um refugio, um lugar onde os magos preservam coisas importantes de magia, como livros de profecias e outros mais importantes, livros de magia e instrução, como o Livro das sombras contadas. Alguns deles são usados para ensinar aos novos magos, alguns como referência e outros usados como armas. Outros itens de magia são guardados ali também, como a Espada da Verdade entre um Seeker e outro. A fortaleza é vedada por magia, ninguém pode entrar a não ser um mago. Pelo menos ninguém a não ser um mago devia poder entrar. Mas alguém entrou. Como conseguiu sem ser morto, não sei. Deve ter sido Darken Rahl. O livro deve estar com ele.
— Talvez não tenha sido Darken Rahl — disse Richard, o corpo ereto como uma tábua.
Zedd olhou para ele com a testa franzida.
— Se não foi Darken Rahl, então foi um ladrão. Um ladrão muito esperto, mas um ladrão.
Richard engoliu em seco.
— Zedd... eu... Você acha que esse livro, O Livro das sombras contadas, pode nos dizer como deter Rahl? Como evitar que ele use as caixas?
Zedd ergueu os ombros magros.
— Como eu disse, nunca abri o livro. Mas pelo que aprendi em outros livros de instrução, só ajudará a quem tiver as caixas. Tem como finalidade ajudar a usar a magia, não ajuda alguém a evitar que seja usada. O mais provável é que não nos ajudaria. Meu plano era simplesmente pegar o livro e destruí-lo, para evitar que Rahl conseguisse a informação. Com o livro perdido não temos alternativa, precisamos encontrar a ultima caixa.
— Mas, sem o livro, Rahl pode abrir as caixas? — perguntou Kahlan.
— Com tudo que ele sabe, tenho certeza de que sim. Mas mesmo assim não saberia qual abrir primeiro.
— Então, com ou sem o livro, ele vai abrir uma caixa — disse Richard — Ele tem de abrir. Se não o fizer, ele morre. Rahl não tem nada a perder. Mesmo que tivesse recuperado o livro, ele abriria a caixa. Afinal, há uma chance de ele escolher a caixa certa.
— Bem, se ele está com o livro, saberá qual deve abrir. Eu tinha esperança, se não conseguíssemos achar a última caixa, de pelo menos poder destruir o livro, evitando que Rahl o tenha, o que nos daria uma última chance. A chance de que ele escolha certo para nós — disse Zedd desanimado. — Eu daria qualquer coisa para destruir aquele livro.
Kahlan pôs a mão no braço de Richard, que quase deu um pulo.
— Então Richard fez o que o Seeker devia fazer. Ele descobriu onde está a caixa. Está com a rainha Milena. — Sorriu para Richard. — O Seeker fez bem seu trabalho. — A mente dele estava a mil, rápida demais para retribuir o sorriso.
Zedd tocou o queixo com dois dedos.
— E como pretendem tirar a caixa dela? Saber onde está é uma coisa, conseguir pega é outra.
Kahlan sorriu para ele.
— Foi para a rainha Milena que a serpente com manto prateado vendeu seus serviços. Ele vai ter um encontro desagradável com a Madre Confessora.
— Giller? Giller está trabalhando para a rainha Milena? — As rugas no seu rosto se aprofundaram. — Acho que ele vai ficar atônito quando olhar outra vez para meus olhos.
Kahlan franziu a testa.
— Deixe isso comigo. Ele é o meu mago. Eu cuido dele.
Richard olhava de um para o outro, sentindo-se de repente deslocado. O grande mago e a Madre Confessora discutindo como iam lidar com o mago presunçoso, como se estivessem falando em tirar ervas daninhas de um jardim. Pensou no seu pai quando disse que tinha roubado o livro para evitar que caísse em mãos erradas. Nas mãos de Darken Rahl. Ele falou sem pensar.
— Talvez de tenha tido uma boa razão para fazer o que fez.
Os dois olharam para ele, como se tivessem esquecido sua presença.
— Uma boa razão? — disse Kahlan, zangada. — Cobiça foi a boa razão. Ele me abandonou e me deixou para os quads.
— Às vezes as pessoas fazem coisas por razões que não são o que parecem — disse Richard, olhando nos olhos dela. — Talvez tivesse pensado que a caixa era mais importante.
Kahlan ficou surpresa demais para falar.
Zedd franziu a testa, seu cabelo branco despenteado iluminado pela luz do fogo.
—Talvez você tenha razão. Pode ser que Giller soubesse que a rainha tinha a caixa e queria protegê-la. Certamente ele sabia o que são as caixas. — Sorriu ironicamente para Richard. — Talvez o Seeker nos tenha dado uma nova perspectiva. Talvez tenhamos um aliado em Tamarang.
— E talvez não — disse Kahlan.
— Logo saberemos — suspirou o mago.
— Zedd — disse Richard —, ontem estivemos num lugar chamado Horners Mill.
— Sim, eu vi. E tenho visto muitos iguais.
Richard se inclinou para a frente.
— Não foram os soldados de Westland, foram? Não podia ser. Eu disse para Michael reunir o exército e proteger Westland. Não mandei atacar ninguém. Muito menos pessoas indefesas. Não podem ter sido os homens de Westland, eles não fariam aquilo.
— Não, não foi ninguém de Westland. Não vi Michael nem recebi qualquer mensagem dele.
— Quem foi então?
— Os homens de Rahl, seguindo suas ordens.
— Não tem sentido — disse Kahlan. — A cidade era leal a D’Hara. Lá havia homens do Exército Popular da Paz e foram todos mortos.
— Exatamente por isso ele fez aquela matança.
Richard e Kahlan olharam para ele, intrigados.
— Não faz sentido — disse Kahlan.
— A primeira regra do mago.
— O quê? — perguntou Richard.
— A primeira regra do mago: as pessoas são tolas. — Richard e Kahlan ficaram mais intrigados ainda. — As pessoas são tolas. Com a motivação adequada, qualquer pessoa acredita em quase tudo. Porque são tolas, acreditam numa mentira porque querem acreditar. Ou porque têm medo de que seja verdade. As cabeças delas estão cheias de conhecimentos, fatos e crenças e a maior parte é falsa, mas elas pensam que é a verdade. As pessoas são tolas, raramente distinguem a diferença entre mentira e verdade, mas pensam que podem distinguir, por isso é mais fácil enganá-las.
“Por causa da primeira regra do mago, os magos antigos criaram as Confessoras e os Seekers como meios para ajudar a encontrar a verdade, quando a verdade é suficientemente importante para dar uma sensação de propósito definido. Rahl conhece as regras do mago. Está usando a primeira. O povo precisa de um inimigo para ter uma sensação de propósito. É fácil conduzir um povo quando ele tem uma noção de propósito. A noção de propósito é mais importante do que a verdade. De fato, a verdade não tem nada a ver com isso. Darken Rahl está dando a eles um inimigo, além dele mesmo, uma noção de propósito. As pessoas são tolas, querem acreditar, por isso acreditam.”
— Mas era o povo dele — protestou Kahlan. — Ele estava matando os que o apoiavam.
— Devem ter notado que nem todos foram mortos, alguns foram violentados, torturados, mas deixados vivos para fugir, para espalhar a notícia. Devem notar também que nenhum dos soldados foi deixado vivo para negar a história. O que importa não é a verdade e os que ouvirem contar acreditarão porque dá a eles uma noção de propósito, um inimigo para combater. Os sobreviventes espalharão a notícia como fogo na floresta. Embora Rahl tenha destruído algumas cidades leais a ele e alguns dos seus soldados, ganhou mais cidades para seu lado, muitas mais. Mais pessoas se reunirão a ele e o apoiarão porque ele disse que quer proteger o povo contra esse inimigo. É difícil vender verdade, não dá uma noção de propósito. É simplesmente a verdade.
Richard estava perplexo.
— Mas não é verdade. Como Rahl pode fazer isso? Como todos podem acreditar nele?
Zedd olhou para ele, zangado.
— Você sabia muito bem, você sabia que não foi o povo de Westland, mas mesmo assim duvidou dessa certeza. Teve medo de que fosse verdade. Ter medo de alguma coisa é aceitar a possibilidade. Aceitar a possibilidade é o primeiro passo para acreditar. Pelo menos você é bastante inteligente para questionar. Pense em como é fácil acreditar para as pessoas que não questionam, que nem ao menos sabem a pergunta. Para a maioria das pessoas, não é a verdade que importa, é a causa. Rahl é inteligente, ele deu a eles a causa.—Seus olhos cintilaram. — É a primeira regra do mago, por ser a mais importante. Lembre-se disso.
— Mas os que mataram, eles sabiam que era assassinato. Como puderam fazer isso?
Zedd ergueu os ombros.
— Noção de propósito. Fizeram por uma causa.
— Mas isso é contra a natureza. Assassinato é contra a natureza.
O mago sorriu.
— Assassinato é o modo da natureza, de todas as coisas vivas.
Richard sabia que Zedd o estava doutrinando — era o modo de ele fazer aceitar uma declaração absurda, mas seu sangue estava ativado e ele não pôde deixar de protestar.
— Só uma parte da natureza. Como os predadores. E isso é só para sobreviver. Olhe para aquelas árvores, elas não podem sequer pensar em assassinato.
— Assassinato é o modo de todas as coisas, o modo da natureza — repetiu Zedd. — Todas as coisas vivas são assassinas.
Richard olhou para Kahlan, pedindo ajuda.
— Não olhe para mim — disse ela. — Há muito tempo aprendi a não debater com magos.
Richard olhou para cima, para o belo pinheiro grande com os galhos sobre eles, iluminado pela luz do fogo. Uma centelha de compreensão se acendeu em sua mente. Viu os galhos esticados com intenção de matar, numa luta de anos, para atingir a luz do sol e despachar os vizinhos com sua sombra. O sucesso daria espaço à sua prole, em grande parte tremendo de frio na sombra dos pais. Vários vizinhos próximos do grande pinheiro estavam murchos e fracos, todos eles vítimas. Era verdade, o desígnio da natureza era o sucesso pelo assassinato.
Zedd observou os olhos de Richard. Aquilo era uma lição, como o velho mago tinha ensinado a Richard desde muito jovem. — Aprendeu alguma coisa, meu rapaz?
Richard fez que sim com a cabeça.
— Vida para o mais forte. Não há simpatia pelo crime, só admiração pela força do vencedor.
— Mas as pessoas não pensam assim — disse Kahlan, incapaz de ficar calada.
Zedd sorriu para ela.
— Não? — Apontou para uma árvore pequena e murcha perto deles. — Olhe para esta árvore, minha cara. — Apontou para o pinheiro. — E para esta. Diga qual você admira mais.
— Esta — disse ela, apontando para o pinheiro grande. — É uma bela árvore.
— Esta. Está vendo? É assim que as pessoas pensam. É bonita, você disse. Você escolheu a árvore que mata, não a que é assassinada. — Zedd sorriu, triunfante. — Assim é a natureza
Kahlan cruzou os braços.
— Eu sabia que devia ter ficado com a boca fechada.
— Pode ficar com a boca fechada se quiser, mas não feche sua mente. Para vencer Darken Rahl, precisamos compreendê-lo para saber como podemos destruí-lo.
— É assim que ele está ganhando tanto território — disse Richard, batendo com os dedos no punho da espada. — Está deixando que outros façam o trabalho para ele, dando a eles uma causa, depois tudo que tem a fazer é se preocupar com as caixas. Não haverá alguém para interferir.
— Ele usa a primeira regra do mago para fazer quase todo o trabalho. É isso que torna nosso trabalho tão difícil. Ele consegue que as pessoas fiquem do seu lado porque elas acreditam no que querem acreditar e lutam até a morte por essas crenças, a despeito do quanto são falsas.
Richard se levantou olhando para a noite.
— Durante todo esse tempo, pensei que estávamos lutando contra o mal. O mal libertado enlouquece. Mas não é nada disso. Estamos lutando contra uma praga. Uma praga de tolos.
— Isso mesmo, meu rapaz, uma praga de tolos.
— Dirigida por Darken Rahl — observou Kahlan.
Zedd olhou para ela por um momento.
— Se alguém cava um buraco e ele se enche de água da chuva, onde está a culpa? A culpa é da chuva? Ou de quem cavou? É culpa de Darken Rahl ou dos que cavam o buraco e deixam que a chuva entre nele?
—Talvez dos dois — disse Kahlan. — Isso nos deixa com uma porção de inimigos.
Zedd ergueu um dedo.
— São muito perigosos. Tolos que não vêm a verdade são letais. Como Confessora talvez você já tenha aprendido essa lição, não é? — Ela inclinou a cabeça, assentindo. — Nem sempre eles fazem o que você pensa que fariam ou que deveriam fazer e você pode ser apanhada desprevenida. Pessoas que você não acha que são problemas podem matá-la num instante.
— Isso não muda nada — disse Kahlan. — Se Rahl conseguir todas as caixas e abrir a caixa certa, é ele quem vai nos matar. Ele é ainda a cabeça da serpente e é essa cabeça que temos de remover.
Zedd deu de ombros.
— Você está certa. Mas devemos ficar vivos para ter uma chance de matar a serpente e há uma porção de pequenas serpentes que nos podem matar primeiro.
— Essa lição já aprendemos — observou Richard. — Mas, como Kahlan disse, não muda nada. Ainda precisamos da caixa para matar Rahl.— Ele se sentou outra vez ao lado dela.
Zedd ficou sério.
— Lembrem-se, Darken Rahl pode matar vocês — apontou com o dedo magro para Richard e para Kahlan, depois para si mesmo — e a mim, facilmente.
Richard inclinou o corpo um pouco para trás.
— Então por que ele ainda não nos matou?
Zedd ergueu uma sobrancelha.
—Você anda por um aposento matando todas as moscas? Não. Você as ignora. Elas não merecem sua atenção. Até que comecem a picar. Então você as mata. — Inclinou-se para eles. — Estamos prestes a picá-lo.
Richard e Kahlan se entreolharam.
— A primeira regra do mago. — Richard sentiu o suor escorrendo nas costas. — Vou lembrar.
— E não repita para ninguém — avisou o mago. — As regras dos magos só devem ser conhecidas pelos magos. Podem parecer cínicas ou triviais para você, mas são armas poderosas quando se sabe usá-las, porque são verdadeiras. A verdade é poder. Eu contei duas para vocês porque sou o chefe dos magos e acho importante que compreendam. Devem saber o que Rahl está fazendo, uma vez que somos nós três que devemos detê-lo.
Richard e Kahlan juraram guardar segredo.
— É tarde — bocejou Zedd. — Viajei um longo tempo para encontrar vocês. Conversaremos mais depois.
Richard se levantou imediatamente.
— Faço o primeiro turno de vigia. — Tinha de fazer algo importante e devia ser antes que acontecesse alguma coisa. — Use meus cobertores, Zedd.
— Certo. O segundo turno é meu. — O segundo turno de vigia era o menos agradável porque dividia o sono em duas partes. Kahlan começou a protestar, mas Richard disse. —Eu falei primeiro, minha cara.
Richard apontou para a saliência da rocha onde ia ficar, depois da área examinada e além. Sua mente fervia com milhares de pensamentos, mas um acima de todos. A noite estava calma e fria, mas não demais. Deixou o casaco aberto enquanto caminhava entre as árvores, atento aonde ia. Criaturas da noite chamavam umas às outras, mas ele não notava. Subiu numa rocha e olhou para trás, para os espaços entre as árvores, vendo o fogo, esperando até ver os dois enrolados nos cobertores, então desceu da rocha e continuou na direção da água corrente.
Na margem do rio, procurou até encontrar um pedaço de madeira trazida pela água do tamanho que queria. Richard se lembrou de Zedd ter dito que ele devia ter a coragem de fazer o que fosse necessário para seu objetivo e que devia estar preparado para matar qualquer um dos dois, se fosse preciso. Richard conhecia Zedd e sabia que ele não estava falando só por falar. Zedd falava sério. Sabia que Zedd era capaz de matá-lo ou, o mais importante, matar Kahlan.
Tirou o cordão com o dente de baixo da camisa. Segurou o dente triangular, sentindo o peso, examinando-o à luz da lua e pensou no seu pai. O dente era o único meio de provar a Zedd que seu pai não era ladrão, que tinha apanhado o livro para evitar que fosse parar nas mãos de Darken Rahl. Richard queria tanto dizer a Zedd que seu pai foi um herói, tinha dado a vida para deter Rahl e morreu como herói para proteger todos eles... Queria que ele fosse lembrado pelo que tinha feito. Queria dizer a Zedd.
Mas não podia.
O mago queria o Livro das sombras contadas destruído. Richard era o Livro das sombras contadas. Shota o avisara de que Zedd usaria o fogo do mago contra ele, mas que Richard tinha uma chance de vencê-lo. Talvez esse fosse o meio. Para destruir o livro, Zedd teria de matá-lo. Richard não se importava por si mesmo, não tinha nada pelo qual valesse a pena viver, a morte não era importante.
Mas não queria que Kahlan morresse. Se Zedd soubesse que Richard tinha o livro dentro dele, certamente o faria recitar o livro todo e então ficaria sabendo que, para ter certeza de que o livro era verdadeiro, Rahl teria de usar uma Confessora. E havia só uma Confessora viva. Kahlan. Se Zedd soubesse, ele a mataria para evitar que Rahl soubesse o que o livro dizia.
Richard não podia permitir que Zedd soubesse e matasse Kahlan.
Enrolou a tira de couro no pedaço de madeira e apertou o dente contra ele numa fenda da rocha, prendendo-o à madeira para não cair, Richard queria o dente tão longe dele quanto possível.
— Perdoe-me, pai — murmurou ele.
Jogou a madeira com o dente enfiado nela com toda a força. Ele viu a madeira fazer um arco no ar e mergulhar na água escura com um som distante. À luz da lua, ele a viu subir para a superfície. Com um nó na garganta, viu o dente ser levado rio abaixo. Richard se sentiu despido sem o dente.
Quando o dente desapareceu, ele deu a volta ao acampamento, atordoado. Sentia-se vazio. Sentou-se na rocha onde dissera que ia ficar e olhou para o acampamento lá embaixo.
Detestava ter de fazer aquilo. Detestava ter de mentir para Zedd, sentir que não podia confiar nele. No que se estava tornando? Não era mais capaz de confiar no seu mais velho amigo? A mão de Rahl se estendia para ele mesmo a distância e o levava a fazer coisas que não queria.
Quando tudo aquilo terminasse, Kahlan estivesse a salvo e se ele vivesse, podia voltar para casa.
Perto do meio do turno de vigia, mais uma vez ele percebeu a coisa que os seguia. Não podia ver os olhos dela, mas os sentia. Estava na colina oposta ao campo, vigiando. Richard sentiu um arrepio.
Um som distante o fez ficar alerta. Um rosnado, seguido por um ganido. Silêncio outra vez. Alguma coisa acabava de ser morta. Os olhos de Richard estavam atentos, esforçando-se para enxergar no escuro. A coisa que os seguia acabava de matar algo. Ou fora morta. Sentiu uma preocupação estranha. Enquanto os seguia, nem uma vez tentou fazer mal a eles. E claro que isso não queria dizer nada. Podia estar esperando a hora certa. Mas, por algum motivo, Richard não achava que ela pretendia fazer mal a eles.
Sentiu os olhos outra vez. Richard sorriu, estava viva ainda. Teve vontade de procurá-la descobrir o que era, mas desistiu do impulso. Aquele não era o momento. Era uma criatura da noite. Melhor enfrentá-la nos próprios termos.
Mais uma vez no seu turno de vigia, ele ouviu alguma coisa ser morta. Mais perto. Sem que Richard precisasse chamá-lo, Zedd apareceu para seu turno de vigia, parecendo descansado, comendo um pedaço de carne-seca. Zedd se sentou ao lado dele.
— Zedd, e Chase, ele está bem?
— Está. Pelo que sei, ele foi para Westland, segundo suas instruções.
— Ótimo. Fico feliz por saber que ele está bem. — Richard desceu da rocha, pronto para ir dormir.
— Richard, o que Shota disse a você?
Richard olhou para o amigo à luz fraca da lua.
— O que Shota me disse é assunto privado. Não é para ninguém mais ouvir. — A aspereza da própria voz o surpreendeu. — E ponto final.
Zedd deu uma mordida na carne, olhando para Richard.
—A espada tem muita raiva nela. Vejo que está tendo dificuldade para a controlar.
— Está bem, está bem. Vou contar uma coisa que Shota disse. Ela disse que acha que devo falar com você sobre Samuel.
— Samuel?
Richard cerrou os dentes e se inclinou para Zedd.
— Meu predecessor.
— Ah, aquele Samuel.
— Sim. Aquele Samuel. Não gostaria de me explicar? Não quer me dizer que é assim que vou acabar também? Ou pretendia esconder de mim até eu acabar de fazer o trabalho do mago e você ter de dar a espada para outro tolo? — Zedd olhava para ele calmamente e Richard ficava cada vez mais zangado. Agarrou o manto de Zedd e o puxou para si. — Primeira regra do mago! É assim que os magos encontram alguém para empunhar a espada? Procuram alguém bastante tolo que não sabe de nada? Diga-me! Há mais alguma outra coisinha que devo saber?
Richard soltou o manto de Zedd e o empurrou para trás. Ele arfava de raiva. Zedd o olhou calmamente.
— Eu sinto muito, meu rapaz — murmurou ele —, que ela o tenha magoado tanto.
Richard olhou para ele, tudo que tinha acontecido tomou conta dele e extinguiu a raiva. Tudo parecia sem esperança. Começou a chorar, abraçado a Zedd. Chorou com soluços dolorosos, incapaz de se controlar.
— Zedd, eu só quero ir para casa.
Zedd o acalentou gentilmente.
— Eu sei, Richard, eu sei.
— Queria ter dado ouvidos a você. Mas não pude evitar. Não posso deixar de me sentir assim, por mais que tente. Sinto como se estivesse me afogando e não posso respirar. Quero que este pesadelo acabe. Odeio Midlands. Odeio magia. Só quero ir para casa. Zedd, quero me livrar desta espada e da sua magia. Nunca mais quero ouvir falarem em magia.
Zedd o abraçou e o deixou chorar.
— Nada é fácil.
— Talvez não fosse tão ruim se Kahlan me odiasse ou coisa assim, mas sei que ela gosta de mim. É a magia. A magia nos separa.
— Acredite, Richard, sei como está se sentindo.
Richard se sentou no chão encostado a uma rocha, chorando. Zedd sentou ao lado dele.
— O que vai ser de mim?
— Você vai continuar. Não pode fazer mais nada.
— Não quero continuar a viver. E Samuel? E assim que vou acabar?
Zedd balançou a cabeça.
— Sinto muito, Richard. Eu não sei. Dei a espada a você contra minha vontade, porque tinha de dar, por todos os outros. A magia da Espada da Verdade, no fim, faz aquilo ao Seeker. As profecias dizem que quem domina realmente a espada mágica e com isso faz a lâmina ficar branca será protegido desse destino. Mas não sei como é feito. Não sei nem mesmo o que significa. Não tive coragem de dizer a você. Desculpe. Se quiser, pode me matar pelo que eu fiz. Mas prometa que vai continuar e vai deter Darken Rahl.
Com um riso amargo entre as lágrimas, Richard disse: — Matar você! Isso é piada, Você é tudo que eu tenho, tudo que posso amar. Como posso matá-lo? Eu devia me matar.
— Não diga isso — murmurou Zedd. — Richard, sei o que você sente sobre a magia. Eu também me afastei dela. Às vezes acontecem coisas que você não pode ignorar. Você é tudo que me resta. Procurei o livro porque não queria que você corresse perigo. Eu faria qualquer coisa para evitar que você fosse magoado. Mas isso não posso evitar. Temos de deter Rahl, não só por nós mesmos, mas por todos os que não têm chance alguma.
Richard esfregou os olhos.
— Eu sei. Não vou abandonar o trabalho antes de terminar, prometo. Então talvez possa desistir da espada antes que seja tarde demais para mim.
— Procure dormir um pouco. A cada dia, as coisas ficam um pouco melhores para você. Se servir de consolo, embora eu não saiba por que os Seekers acabam como Samuel, realmente não acredito que acontecerá com você. Mas, se acontecer, vai demorar ainda, portanto, isso só pode significar que você venceu Darken Rahl e todos os povos da terra estarão a salvo. Saiba que, se acontecer, sempre tomarei conta de você. Se pudermos deter Darken Rahl, talvez eu possa ajudá-lo a descobrir o segredo de fazer a lâmina ficar branca.
Richard se levantou, fechando o casaco.
— Muito obrigado, meu amigo. Desculpe se fui tão duro com você esta noite. Não sei o que deu em mim. Talvez os bons espíritos tenham me abandonado. Desculpe por não poder dizer o que Shota me disse.
“E, Zedd, tenha cuidado esta noite. Há alguma coisa por ai. Há dias vem nos seguindo. Não sei o que é, não tive tempo de fazer um círculo em volta dela. Mas não acho que nos queira fazer mal, pelo menos não fez até agora, mas em Midlands nunca se sabe.”
— Vou ter cuidado.
Richard começou a se afastar. Zedd o chamou, Ele parou e virou para trás.
— Procure ficar satisfeito com o fato de Kahlan gostar tanto de você. Se não gostasse, poderia ter tocado em você.
Richard olhou para o mago por um longo momento.
— Eu acho que, de algum modo, ela já me tocou.
Kahlan andou no escuro, entre as árvores e as rochas e encontrou Zedd sentado numa rocha, com as pernas cruzadas debaixo do corpo, vendo-a se aproximar.
— Eu a teria acordado quando chegasse a hora — disse ele.
Kahlan se sentou ao lado dele, apertando o manto contra o corpo.
— Eu sei, mas não consegui dormir, por isso pensei em vir me sentar com você.
— Trouxe alguma coisa para comer?
Kahlan tirou do bolso um pequeno embrulho.
—Tome. — Ela sorriu. — Coelho e alguns biscoitos.
Zedd esfregou as mãos e começou a comer imediatamente. Kahlan olhava a noite, pensando em como faria a pergunta pela qual estava ali. Zedd não demorou para acabar o lanche.
— Maravilhoso, minha cara, maravilhoso. Foi tudo que você trouxe?
Kahlan riu.
—Trouxe também algumas frutas silvestres. —Tirou do bolso um embrulho enrolado em um pano. — Achei que você ia gostar de alguma coisa doce. Posso comer também?
Ele a olhou de cima a baixo.
— Acho que você é bem pequena, não pode comer muito.
Ela riu outra vez e tirou um pequeno punhado de frutas do embrulho aberto nas mãos dele.
—Acho que sei por que Richard é bom para encontrar comida. Crescendo perto de você tinha de ser bom, do contrario morreria de fome.
—Eu nunca o deixaria morrer de fome — protestou Zedd. — Gosto muito dele.
— Eu sei. Também gosto.
Zedd comeu algumas frutinhas.
— Quero agradecer a você por manter sua palavra.
— Minha palavra?
Zedd ergueu os olhos para ela, inclinado sobre as fruías, comendo-as uma de cada vez
— Sua palavra de não tocá-lo, não usar seu poder nele.
— Sei.. — Ela olhou outra vez para a noite, juntando coragem.
— Zedd, você é o único mago que sobrou, a não ser Giiler. Eu sou a última Confessora. Você morou em Midlands, morou em Aydindril, Você é o único que sabe o que é ser uma Confessora. Tentei explicar a Richard, mas ele precisaria de uma vida inteira para compreender realmente; mesmo assim acho que ninguém, a não ser um mago ou uma Confessora, pode compreender.
Zedd bateu de leve no braço dela.
— Acho que tem razão.
— Não tenho ninguém. Não posso ter ninguém. Pode imaginar o que é isso? Por favor, Zedd. — Ela franziu a testa. — Por favor, pode usar sua magia para tirar isso de mim? Pode tirar a magia da Confessora de mim e me deixar ser uma mulher normal?
Kahlan tinha a impressão de estar dependurada num fio fino sobre um abismo escuro. Girava na ponta do fio enquanto olhava os olhos dele.
Zedd abaixou a cabeça. Não ergueu os olhos.
— Só há um modo de livrar você da magia, Madre Confessora.
O coração de Kahlan subiu para a garganta.
— Como? — murmurou ela.
Zedd olhou nos olhos dela, com um olhar repleto de dor.
— Posso matar você.
Kahlan sentiu o fio se partindo. Com esforço, procurou não demonstrar nada, mantendo seu rosto de Confessora, sentido-se desaparecer na escuridão.
— Muito obrigada, mago Zorander, por ouvir meu pedido. Na verdade, não pensei que fosse possível, mas mesmo assim quis perguntar. Aprecio sua franqueza. Acho melhor você tratar de dormir um pouco.
— Antes você tem de me dizer o que Shota disse.
Com o rosto ainda inexpressivo, ela respondeu: — Pergunte ao Seeker. Foi com ele que ela falou, no momento eu estava coberta de serpentes.
— Serpentes. — Zedd ergueu uma sobrancelha. — Shota deve ter gostado de você. Já vi Shota fazer muito pior.
Kahlan olhou para ele.
— Ela fez o pior para mim também.
— Perguntei a Richard, mas ele não quis me contar. Você deve me dizer.
— Acha que eu ficaria entre dois amigos? Está pedindo para trair a confiança dele?
Não, muito obrigada.
— Richard é inteligente, talvez o Seeker mais inteligente que já vi, mas sabe pouco sobre Midlands. Viu apenas uma parte dela. De certo modo, é sua melhor defesa e a vantagem mais forte. Ele descobriu onde está a caixa, procurando Shota. Nenhum Seeker de Midlands teria feito isso. Você passou toda a vida aqui, conhece os perigos, Há criaturas que podem usar a magia da Espada da Verdade contra ele. Há criaturas que sugariam a magia dele e o matariam com ela. Há perigos de toda espécie. Não temos tempo de ensinar tudo que ele precisa saber, por isso precisamos protegê-lo para que possa fazer se trabalho. Preciso saber o que Shota disse para julgar se é importante ou não, se precisamos proteger Richard.
— Zedd, por favor, ele é meu único amigo. Não me peça para trair sua confiança.
— Minha cara, ele não é teu único amigo, eu sou seu amigo também. Ajude-me a proteger Richard. Não direi a ele que você me contou.
Kahlan olhou para ele, indignada.
— Ele tem um modo estranho de descobrir coisas que você não quer que de saiba.
Zedd sorriu compreensivo, depois seu rosto ficou sério outra vez.
— Madre Confessora, isso não é um pedido, é uma ordem. Espero que a considere assim.
Kahlan cruzou os braços e se virou de lado para ele, zangada. Não podia acreditar que Zedd estivesse fazendo aquilo com ela. Não tinha escolha...
— Shota disse que Richard é o único que tem chance de deter Darken Rahl. Ela não sabe como ou por quê, mas ele é o único com essa possibilidade.
Zedd esperou em silêncio.
— Continue — disse ele finalmente.
Kahlan cerrou os dentes.
— Ela disse que você tentará matá-lo com o fogo do mago e que ele tem uma chance de vencer você. Há uma chance de você não conseguir.
Fez-se silêncio outra vez.
— Madre Confessora.
— Ela disse que eu também usaria meu poder contra ele. Mas que de não tem a menor chance de se livrar. Se eu viver, não falharei.
Zedd respirou profundamente.
— Vejo agora por que ele não me quis contar. — Pensou em silêncio por um momento. — Por que Shota não matou você?
Kahlan queria que ele parasse de fazer perguntas. Virou-se para Zedd.
— Shota tinha tudo planejado. Você estava lá. Bem, não era realmente você, apenas uma ilusão, mas pensamos que fosse de verdade. Você, quero dizer, sua imagem tentou matar Shota, Richard sabia que ela era o único meio de encontrar a caixa, por isso ele a protegeu. Ele...
Zedd ergueu uma sobrancelha.
— Francamente...
— Em troca de salvar a vida dela, Shota concedeu a ele um desejo. Ele o usou para nos salvar, fez com que ela poupasse nossas vidas. Ela disse que, se alguma vez ele voltasse a Agaden Reach, ela o mataria.
— Esse rapaz nunca deixa de me surpreender. Ele realmente conseguiu informações negociando a minha vida?
Um pouco surpresa com o sorriso dele, ela assentiu, balançando a cabeça.
— Ele saltou na frente do fogo do mago e usou a espada para desviá-lo.
Zedd coçou o queixo.
— Que extraordinário! Isso é exatamente o que ele devia ter feito. Sempre temi que não fosse capaz de fazer. Não preciso mais ter medo disso. E depois?
Kahlan olhou para as mãos.
— Eu queria que Shota me matasse, mas ela não quis, porque tinha prometido a Richard. Zedd, eu... não podia suportar a idéia de fazer isso com ele. Pedi a ele para me matar. Eu não queria viver para realizar a profecia, para fazer mal a ele.
Kahlan engoliu em seco e trançou e destrançou os dedos.
— Ele não quis. Então eu tentei. Durante dias eu tentei. Ele tirou minha faca, ele me amarrava à noite e me vigiava a cada segundo. Eu tinha a impressão de estar enlouquecendo. Talvez por algum tempo, tenha estado louca. Finalmente de me convenceu de que não sabemos o que significam as profecias, nem mesmo se não era ele quem ia se voltar contra nós e teria de ser morto para deter Darken Rahl. Ele me fez ver que eu não podia agir baseada numa profecia que ainda não compreendíamos.
— Eu sinto muito, minha cara, ter feito você me contar, depois de tudo por que você passou. Mas Richard tem razão. Profecias são coisas perigosas, quando levadas muito a sério.
— Mas as profecias de uma feiticeira sempre são verdade, não são?
— Sim — ele deu de ombros e falou mansamente. — Mas nem sempre do modo como pensamos.
Kahlan olhou para ele, intrigada.
— É mesmo?
— Claro. Imagine, só para dar um exemplo, que eu tente matar você para proteger Richard, para evitar que a profecia se realize. Ele vê isso, lutamos, um de nós vence, digamos que seja ele. Aquela parte da profecia se realiza, portanto, ele teme que a outra parte também se torne verdade e acha que precisa matar você. Você não quer ser morta, então o toca para se proteger. Aí está a profecia realizada.
“O problema é que é uma profecia que se auto-realiza. Sem ela, nada dessas coisas teria acontecido. Não houve influência externa, a não ser a profecia. Profecias sempre são verdade, mas raramente sabemos como.” Olhou para ela, para ver se Kahlan tinha compreendido.
— Sempre pensei que profecias deviam ser levadas a sério.
— São, mas só por quem compreende essas coisas. Profecias são perigosas. Os magos guardam livros de profecias, como você sabe. Quando eu estava na minha fortaleza, reli os livros mais importantes. Mas não compreendi a maior parte. Antigamente havia magos que não faziam outra coisa a não ser estudar os livros de profecias. Há profecias neles que deixam a gente morrendo de medo. Às vezes até eu acordo à noite suando de medo. Há coisas nesses livros que acho que são sobre Richard, mas não sei o que significam não me atrevo a agir baseado no que eu li. Nem sempre podemos saber o que as profecias significam, por isso devem ser guardadas em segredo. Algumas podem provocar grandes problemas se outras pessoas souberem.
Kahlan arregalou os olhos.
— Richard está nos livros de profecias? Nunca conheci quem estivesse o nome nos livros de profecias.
Zedd olhou para ela.
— Você também está nos livros.
— Eu? Meu nome está nos livros de profecias?
— Bem. Sim e não. Não é assim que funciona. Raramente se sabe ao certo. Mas neste caso eu sei. Diz coisas como “A última Madre Confessora” isso e “A última Madre Confessora” aquilo, mas não pode haver duvida de quem é a última Madre Confessora. É você, Kahlan. Também não há duvida de quem é “o Seeker que comanda o vento contra o herdeiro de D’ Hara”. É Richard. O herdeiro de D’ Hara é Rahl.
— Comanda o vento! O que quer dizer isso?
— Não tenho a menor idéia.
Kahlan olhou para baixo.
— Zedd, o que os livros de profecias dizem de mim?
Zedd a observou quando seus olhos se encontraram.
— Desculpe, minha cara, não posso dizer. Você teria medo de dormir pelo resto da vida.
— Sinto-me muito tola agora por querer me matar por causa da profecia de Shota. Por querer evitar que se realize, quero dizer. Você deve me achar idiota.
— Kahlan, até que aconteça, não poderemos saber. Mas não deve achar-se tola. Pode ser que, exatamente como diz, Richard seja a única chance e que você nos vai trair e vai tocá-lo, desse modo dando a vitória a Rahl. Pode ser que você faça isso para salvar nós todos.
— Você não está fazendo me sentir nada melhor.
— Pode ser também que Richard venha a ser o traidor e que você nos salve.
Kahlan olhou para ele sombriamente.
— De um modo ou de outro, não me agrada.
— Profecias não são para ser vistas. Podem causar mais problemas do que se pode imaginar. Já houve guerras por causa delas. Mesmo eu não compreendo a maior parte. Se tivéssemos ainda os antigos magos, os estudiosos das profecias, talvez eles pudessem nos ajudar, mas sem eles para nos orientar, o melhor é esquecer a profecia de Shota. A primeira página de um dos livros das profecias diz: “Veja essas profecias com a mente, não com o coração.” É a única coisa escrita em uma página inteira, num livro do tamanho de uma mesa grande. Cada letra é delineada com ouro. Para você ver como é importante.
— A profecia de Shota é de algum modo diferente das dos livros, não é?
— Sim. Profecia dita diretamente de uma pessoa para outra tem por objetivo ajudar esta pessoa, Shota estava tentando ajudar Richard. Ela mesma não sabia como. Ela era apenas um canal. Algum dia, pode significar alguma coisa para Richard, se puder ajudá-lo. Não há meio de dizer. Eu esperava poder entender e ajudá-lo. Richard não gosta de enigmas. Infelizmente é do tipo chamado profecia de duas pontas e não posso ajudar.
— Duas pontas quer dizer que pode significar duas coisas diferentes?
— Sim. Pode significar o que diz ou qualquer outra coisa. As profecias de duas pontas geralmente são inúteis, pouco mais do que uma adivinhação. Richard teve razão em não se deixar guiar por ela. Eu gostaria de acreditar que foi porque eu lhe ensinei bem, mas pode ser instinto. Ele tem o instinto de um Seeker.
— Zedd. por que você não diz a ele essas coisas, como disse a mim? Ele não tem o direito de saber?
Zedd olhou para a noite por um longo tempo.
— É difícil explicar. Richard sente as coisas. — Franziu a testa. — Você já atirou com um arco?
Kahlan sorriu. Levantou os joelhos, cruzou as mãos em volta deles e apoiou o queixo nas mãos.
— Moças não devem fazer isso. Por isso fiz como diversão, quando era jovem. Antes de começar a ouvir confissões.
Zedd deu uma risada.
— Alguma vez sentiu o alvo? Alguma vez conseguiu ignorar todo o barulho dentro de sua cabeça e ouvir o silêncio e saber para onde ia a flecha?
Ela fez que sim com a cabeça, o queixo encostado nas mãos.
— Uma ou duas vezes. Mas sei do que você está falando.
— Muito bem, Richard pode sentir o alvo desse modo quase quando quer. Às vezes eu penso que ele poderia acertar até com os olhos fechados. Quando lhe perguntei como fazia isso, ele deu de ombros e não foi capaz de explicar: simplesmente diz que pode sentir para onde a flecha deve ir. Richard pode fazer isso um dia inteiro. Mas eu comecei a dizer certas coisas a ele, como a velocidade do vento, a quantos metros está o alvo ou que o alvo passou a noite úmida fora de casa, o que afetava o tiro, e então ele não conseguia nem acertar no chão. O pensamento interfere com o sentimento.
“Ele faz a mesma coisa com as pessoas. É implacável na procura de uma resposta. Ele está se dirigindo à caixa como uma flecha. Richard nunca esteve em Midlands, mas encontrou um meio de passar pela fronteira e encontrou as respostas de que precisava para continuar, para procurar o alvo. Um verdadeiro Seeker é assim. O problema é que, se eu der a ele muitas informações, ele começa a fazer o que pensa que eu quero que faça, em vez do que sente. Tenho de mostrar a direção certa para o alvo e depois deixar que ele vá, Deixar que encontre sozinho.”
— Isso é muito cinismo. Richard é um ser humano, não uma flecha. Ele só faz isso pela consideração que tem por você e faria qualquer coisa para agradar-lhe. Você é um ídolo para ele. Richard o ama muito.
Zedd olhou para ela, taciturno.
— Eu não poderia sentir mais orgulho dele, nem amá-lo mais, porém, se ele não detiver Darken Rahl, serei um ídolo morto. Às vezes os magos devem usar as pessoas para fazer o que deve ser feito.
— Acho que sei o que você sente, não dizendo a ele o que desejaria poder dizer.
Zedd se levantou.
— Sinto que vocês tenham tido tantas dificuldades. Talvez comigo aqui, fique mais fácil. Boa noite, minha cara. — Saiu para a escuridão.
—Zedd? — Ele parou e olhou para trás, um vulto escuro na floresta iluminada pela lua. — Você já foi casado.
— Sim, fui.
Ela pigarreou e engoliu em seco.
— Como era? Amar alguém mais do que a própria vida e poder estar junto, e essa pessoa nos amar do mesmo modo?
Zedd ficou imóvel e em silêncio por longo tempo, olhando para ela no escuro. Kahlan esperou, desejando poder ver o rosto dele. Decidiu que ele não ia responder.
Kahlan ergueu o queixo.
— Mago Zorander, não estou pedindo. É uma ordem. Você deve responder.
Ela esperou. A voz de Zedd veio suave.
— Era como encontrar minha outra metade e ser completo, inteiro pela primeira vez na vida.
— Obrigada, Zedd. — Ficou contente por ele não poder ver suas lágrimas e, com esforço, disse com voz firme: — Eu só queria saber.
Richard acordou quando ouviu Kahlan voltar e pôr lenha na fogueira. A luz apenas começava a aparecer no topo das montanhas distantes, tingindo-as de rosa-claro, nuvens escuras atrás, destacando mais ainda os picos nevados. Zedd estava deitado de costas, olhos completamente abertos, roncando. Richard esfregou os olhos para afastar o sono e bocejou.
— Que tal um mingau de tava? — murmurou ele, para não acordar Zedd.
— Boa idéia — murmurou ela também.
Richard tirou as raízes da mochila e começou a descascá-las com a faca e Kahlan apanhou a panela.
Quando acabou de cortas as raízes, ele as jogou na água que Kahlan tirou de um odre.
— Estas são as últimas. Temos de começar a desenterrar mais raízes esta noite. Duvido de que encontremos tava. Não neste solo rochoso.
— Eu apanhei algumas frutas silvestres.
Juntos, aqueceram as mãos no fogo. Mais do que uma rainha, ele pensou. Tentou imaginar uma rainha com belos trajes e uma coroa, apanhando frutas no mato.
— Viu alguma coisa quando estava vigiando?
Ela balançou a cabeça. Então se lembrou e ergueu o rosto.
— Mas, uma vez, ouvi algo estranho. Eu estava lá, perto do acampamento. Era como um rosnado, depois um grito. Quase vim acordar você, mas acabou tão depressa quanto tinha começado e não ouvi outra vez.
— Isso mesmo. — Ele olhou para trás. — Lá onde você estava. Gostaria de saber o que era. Acho que eu estava tão cansado que não me acordou.
Richard amassou as raízes na panela e, quando a mistura ficou pronta, ele acrescentou um pouco de açúcar. Kahlan serviu os pratos de mingau com um punhado de frutas silvestres em cima.
— Por que você não o acorda? — perguntou ela.
Richard sorriu.
— Veja isto.
Bateu com a colher no prato de lata. Zedd rosnou e se sentou de um pulo.
O velho homem piscou os olhos duas vezes.
— Café da manhã?
De costas para ele, os dois riram.
— Você está bem-disposto esta manhã — disse Kahlan, olhando para ele.
Richard sorriu.
— Zedd “voltou à terra”.
Richard deu a Zedd um prato de mingau, depois se sentou na rocha baixa. Kahlan se ajeitou no chão, enrolando um cobertor nas pernas enquanto equilibrava o prato com uma das mãos. Zedd não se deu ao trabalho de sair de baixo dos cobertores para comer. Richard esperou aproveitando o tempo, comendo devagar enquanto Zedd devorava o mingau.
— Ótimo — exclamou Zedd, levantando-se para se servir de outra porção da panela.
Richard esperou que o velho amigo se servisse e então disse:
— Kahlan me contou o que aconteceu. Que você a fez contar o que Shota disse.
Kahlan ficou rígida, como se tivesse sido atingida por um raio.
Zedd se virou para ela.
— Por que contou para ele? Pensei que não queria que ele soubesse que você...
— Zedd, eu não...
Zedd fez uma careta. Voltou-se lentamente para Richard, que se debruçou sobre o prato, comendo metodicamente.
Ele não ergueu os olhos.
— Ela não me contou. Mas você acaba de contar.
Richard levou a última colherada à boca, lambeu a colher e a pôs no prato de estanho com um tinido.
O mago viu a expressão, calma e triunfante.
— A primeira regra do mago — anunciou ele com um leve sorriso. — O primeiro passo para acreditar em alguma coisa é querer acreditar que é verdade... ou ter medo de que seja verdade.
— Eu disse a você. — Kahlan voltou-se furiosa para Zedd. — Eu disse que ele ia descobrir.
Zedd a ignorou, com os olhos fixos em Richard.
— Pensei nisso a noite passada — explicou Richard, pondo o prato no chão. — Resolvi que você estava certo, que devia saber o que Shota disse. Afinal, você é um mago, talvez haja algo nisso que nos possa ajudar a deter Darken Rahl. Eu sabia que você não descansaria enquanto não soubesse. Resolvi contar hoje, mas então pensei que você tentaria fazer Kahlan contar primeiro, de um modo ou de outro.
Kahlan se deitou no cobertor, rindo.
Zedd empertigou o corpo e pôs as mãos na cintura.
— Maldição! Richard, você tem idéia do que acaba de fazer?
— Magia — sorriu Richard. — Um truque, quando bem feito, é magia. — Deu de ombros. — Pelo menos foi o que me disseram.
Zedd assentiu, balançando a cabeça devagar.
— Sem dúvida. — Apontou para cima, o brilho voltando aos seus olhos castanhos. — Você enganou um mago com a regra dele. Nenhum dos meus magos foi jamais capaz de fazer isso. — Aproximou-se de Richard com um largo sorriso. — Maldição, Richard! Você tem o dom, meu rapaz! Você pode ser um mago da Primeira Ordem, como eu.
Richard franziu a testa.
— Eu não quero ser mago.
Zedd o ignorou.
— Você passou no primeiro teste.
— Você acabou de dizer que nenhum mago conseguia fazer isso, então como podiam ser magos, se não passavam no primeiro teste?
Zedd olhou para ele com um sorriso de canto de boca.
— Eles eram magos de Terceira Ordem. Nenhum passou no teste para a Primeira Ordem. Não tinham o dom. Só vocação.
Richard sorriu com ar superior.
— Foi só um truque. Não aumente a coisa, não foi nada.
— Foi um truque muito especial. — Zedd entrecerrou os olhos. — Estou impressionado. Estou também muito orgulhoso de você.
— E são quantos os testes, se esse é o primeiro?
Zedd deu os ombros.
— Ah, nem sei. Talvez uns cento e poucos. Mas você tem o dom, Richard. — Uma sombra de preocupação passou por seus olhos, como algo inesperado. — Você tem de aprender a controlá-lo ou... — Ergueu os olhos outra vez. — Eu ensino. Você pode realmente ser um mago da Primeira Ordem. — Richard percebeu que estava ouvindo com toda a atenção e balançou a cabeça.
— Eu já disse. Não quero ser mago — acrescentou em voz baixa. — Não quero nada a ver com magia nunca mais, quando isso acabar. — Viu que Kahlan olhava para ele. Olhou de um para o outro. — Foi apenas um pequeno truque idiota. Nada mais.
— Um pequeno truque idiota quando feito pra outra pessoa. Não quando é feito para um mago.
Richard virou os olhos para cima.
— Vocês dois são...
Zedd se inclinou para a frente, ansioso, interrompendo. — Você pode comandar o vento?
Richard se inclinou um pouco para trás.
— É claro que posso — disse ele, entrando no jogo. Ergueu as duas mãos para o céu. — Venha a mim irmão vento! Junte suas forças! Faça uma tempestade de vento para mim! — Abriu os braços dramaticamente.
Kahlan se enrolou no casaco e esperou. Zedd olhou em volta. Nada aconteceu. Os dois pareceram desapontados.
— O que há com vocês dois? — perguntou Richard. — Comeram alguma fruta estragada?
Zedd se voltou para Kahlan.
— Ele deve aprender mais tarde.
Kahlan pensou no que Zedd acabava de dizer, depois olhou para Richard.
— Richard... ser mago não é uma oferta que se faz a qualquer um.
Zedd esfregou as mãos.
— Maldição! Eu queria ter os livros comigo agora. Mas então há o caso da dor... e....
Richard pareceu sentir-se desconfortável.
— E que tipo de mago você ê? Você nem tem barba. Zedd deixou seus pensamentos e franziu a testa.
— O quê?
— Uma barba. Onde está sua barba? Tenho pensado nisso desde que descobri que você é mago. Magos devem ter barba, você sabe.
— Quem disse isso?
— Bem... não sei. Todo mundo sabe. Magos devem ter barba. E de conhecimento geral. Surpreende-me você não saber.
Zedd fez uma careta como se tivesse chupado um limão.
— Mas eu odeio barbas. Barba coça.
Richard deu de ombros.
— Parece que você não sabe tanto quanto pensa sobre ser um mago. Se nem sabe que magos devem ter barba...
Zedd cruzou os braços.
— Uma barba, é? — Descruzou os braços e passou o polegar e o indicador aos dois lados do queixo. Passou os dedos repetidamente. A barba começou a aparecer. Quanto mais ele fazia isso, mais longa a barba ficava. Richard olhou arregalado, até uma barba branca como a neve chegar ao meio do peito de Zedd.
Zedd inclinou a cabeça para um lado, olhando atentamente para Richard.
— Isto chega, meu rapaz?
Richard se deu conta de que estava com a boca aberta. Fechou-a, mas apenas fez que sim com a cabeça.
Zedd coçou o queixo e o pescoço.
— Ótimo. Agora dê-me sua faca para raspar esta coisa. Coça como se estivesse cheia de formigas.
— Minha faca? Para que precisa de uma faca? Por que simplesmente não a faz desaparecer como a fez aparecer?
Kahlan riu, depois ficou séria quando Richard olhou para ela.
— Não é assim que funciona. Todo mundo sabe disso — zombou Zedd. Voltou-se para Kahlan. — Não é verdade que todo mundo sabe? Diga para ele.
— A magia só pode fazer coisas que usam o que já existe. Não pode desfazer coisas que aconteceram.
— Não compreendo.
Zedd olhou para ele atentamente.
— Sua primeira lição, se algum dia resolver ser mago. Nós três temos magia. Magia Aditiva. Funciona com o que existe e acrescenta alguma coisa ou a usa de algum modo. A magia de Kahlan usa a centelha de amor da pessoa por menor que seja e acrescenta a ela, até se transformar em outra coisa. A magia da Espada da Verdade usa sua raiva e acrescenta alguma coisa, toma força dela até se tornar uma coisa diferente.
— Eu faço a mesma coisa. Posso usar o que preciso da natureza para mudar as coisas. Posso transformar um inseto numa flor. Posso transformar o medo num monstro. Posso soldar ossos quebrados. Posso tirar calor do ar à minha volta e acrescentar a ele, multiplicá-lo transformando-o em fogo do mágico. Posso fazer crescer minha barba. Mas não posso fazê-la desaparecer. — Uma pedra do tamanho do seu pulso começou a se erguer no ar. — Posso levantar coisas. Posso mudá-las. — A pedra se desfez em pó.
— Então você pode fazer qualquer coisa — murmurou Richard.
— Não. Posso erguer ou amassar a pedra, mas não posso fazê-la desaparecer. Para onde ela iria? Desfazer as coisas chama-se Magia Subtrativa. Minha magia, a magia de Kahlan e a da Espada são deste mundo. Toda magia deste mundo é Magia Aditiva. Darken Rahl pode fazer tudo que eu faço — continuou Zedd sombriamente. — A Magia Subtrativa é do mundo subterrâneo. Darken Rahl sabe como usar essa também. Eu não sei.
— É tão poderosa quanto a Magia Aditiva?
— Magia Subtrativa é o oposto da Aditiva. Como o dia e a noite. Porém, tudo é parte da mesma coisa. A Magia de Orden é a magia das duas, Aditiva e Subtrativa. Pode acrescentar ao mundo e pode transformar o mundo em nada. Para abrir as caixas, você deve ser mestre nas duas magias. As pessoas nunca se preocuparam com a possibilidade de isso acontecer, porque ninguém jamais conseguiu usar a Magia Subtrativa; Mas Darken Rahl a comanda com a mesma facilidade com que comanda a Aditiva.
— E como você supõe que isso aconteceu?— perguntou Richard, intrigado.
— Não tenho idéia. Mas me perturba extremamente.
Richard suspirou.
— Bem, eu ainda penso que você está exagerando. Tudo que fiz foi um pequeno truque.
Zedd olhou para ele muito sério.
— Se fosse feito para uma pessoa normal, você teria razão. Mas eu sou mago. Sei como funcionam as regras dos magos. Você não faria isso comigo, a não ser que tivesse magia. Ensinei muitos a serem magos. Tive de ensinar a eles o que você fez. Eles não teriam feito se eu não ensinasse. Uma vez ou outra, muito raramente alguém nasce com o dom. Eu fui um deles. Richard, você também tem o dom. Mais cedo ou mais tarde terá de aprender a controlá-lo. — Estendeu a mão. — Agora me dê a faca para me livrar desta barba ridícula.
Richard pôs o cabo da faca na mão de Zedd.
— A lâmina não está afiada. Estive desenterrando raízes com ela. Não está boa para fazer a barba.
— É mesmo? — Zedd segurou a ponta da lâmina entre o polegar e o indicador e os passou até o cabo. Virou a faca e a segurou delicadamente entre o polegar e dois dedos. Richard fez uma careta vendo o mago se barbear a seco. Com uma leve passagem da lâmina, uma parte da barba saiu.
— Você usou Magia Subtrativa! Fez com que parte da lâmina desaparecesse para afiar.
Zedd ergueu uma sobrancelha.
— Não, eu usei o que já existia, reformei o corte, para afiar.
Richard balançou a cabeça e começou a apanhar suas coisas enquanto Zedd se barbeava. Kahlan o ajudou.
— Quer saber, Zedd — disse ele, apanhando os pratos. —Acho que você esta sendo muito obstinado no que faz. Acho que, quando isso tudo acabar, vai precisar de alguém para tomar conta de você, ajudá-lo a manter as perspectivas. Tirar a luz do dia da sua imaginação. Acho que precisa de uma mulher.
— Uma mulher?
— Sim, é o que eu acho que você precisa. Talvez você deva voltar e dar outra olhada em Adie.
— Adie?
— Sim, Adie — disse Richard muito sério. — Você se lembra de Adie. A mulher com um só pé.
— Ah, me lembro muito bem de Adie. — Olhou para Richard inocentemente. — Mas Adie tem dois pés, não um.
Richard e Kahlan se levantaram apressadamente.
— O quê?
— Sim — sorriu Zedd e deu as costas a eles.
— Parece que o pé cresceu outra vez. — Inclinou-se e apanhou uma das maçãs da mochila de Richard. — De repente.
Richard puxou Zedd pela manga e o fez virar para ele.
— Zedd, você...
O mago sorriu.
— Tem certeza de que não quer ser mago? — Deu uma mordida na maçã, satisfeito por ver o espanto de Richard. Deu a faca a ele, a lâmina mais afiada do que nunca. Richard balançou a cabeça e voltou ao que estava fazendo.
— Eu só quero ir para casa e ser guia. Nada mais. — Pensou por algum tempo e perguntou: — Zedd, enquanto eu crescia com você, você era o mago e eu nunca desconfiei. Você não usava magia. Como conseguiu se controlar? Por que não usou da magia?
— Bem, há perigos no uso da magia. Sofrimento também.
— Perigos? Quais, por exemplo?
Zedd olhou para ele por um momento.
— Você usou magia com a espada. Diga-me você.
— Mas isso é a espada, é diferente. Que perigo há para um mago em usar de magia? E que sofrimentos?
Com um breve sorriso malicioso, Zedd disse:
— Acaba de terminar a primeira lição e já quer a segunda?
— Deixe para lá. — Pôs a mochila nas costas. — O que eu quero ser é guia florestal. Com a maçã na mão, Zedd caminhou para a trilha.
— Foi o que você disse. — Deu uma mordida na maçã. — Agora, quero que vocês dois me contem tudo que aconteceu desde que fiquei inconsciente. Não deixem de contar nada, por mais trivial que seja. Richard e Kahlan trocaram um olhar.
— Não conto se você não contar — murmurou ele.
Ela pôs a mão no braço dele, puxando-o para mais perto.
— Juro. Nem uma palavra sobre o que aconteceu na casa dos espíritos.
Pelo olhar dela, Richard tinha certeza de que Kahlan cumpriria sua palavra. Durante o resto do dia, enquanto caminhavam pelas trilhas, evitando as estradas principais, os dois contaram a Zedd tudo que tinha acontecido desde que foram atacados na fronteira. Zedd os fazia voltar para trás e repetir certos eventos e os trechos mais estranhos da história. Richard e Kahlan, um ajudando o outro, conseguiram contar a história do Povo da Lama, sem mencionar o que aconteceu entre os dois na casa dos espíritos.
Quando estavam perto de Tamarang, atravessaram estradas e começaram a ver refugiados carregando tudo que tinham nas costas ou em pequenas carroças. Richard se encarregou de fazer com que não ficassem por muito tempo sob as vistas das pessoas e se punha entre elas e Kahlan sempre que podia. Não queria que reconhecessem a Madre Confessora. Ficava aliviado cada vez que voltavam para a floresta. Era onde ele se sentia mais à vontade, embora os bosques tivessem comprovado seus perigos.
Quase no fim do dia, tiveram de tomar a estrada principal para cruzar o Rio Callisidrin, muito grande e rápido para ser atravessado a pé, por isso passaram pela grande ponte de madeira. Zedd e Richard mantinham Kahlan entre os dois enquanto andavam entre o povo que atravessava também a ponte. Kahlan puxou para a cabeça o capuz do casaco, para que não vissem seu cabelo comprido. A maioria das pessoas ia para Tamarang à procura de abrigo e segurança contra as forças que pilhavam e saqueavam, supostamente vindas de Westland. Kahlan disse que chegariam a Tamarang no meio do dia seguinte. Dali por diante, teriam de viajar a maior parte do tempo na estrada. Richard sabia que precisavam sair da estrada à noite, para ficarem longe do povo. Começou a observar o sol para ter tempo de entrar na floresta antes que ficasse muito escuro.
— Assim está bem?
Rachel fez de conta que Sara respondeu que sim e juntou mais relva em volta da boneca, para ficar certa de que ela estava bem aquecida. Pôs perto de Sara o pão embrulhado no pano.
— Você estará aquecida por enquanto. Preciso apanhar lenha antes que fique muito escuro e aí teremos uma fogueira e nós duas nos aqueceremos.
Deixou Sara com o pão no abrigo do pinheiro e saiu. O sol se punha, mas ainda havia luz suficiente. As nuvens estavam tingidas de um belo tom cor-de-rosa. Rachel olhou para elas uma vez enquanto apanhava gravetos e os segurava contra o corpo com o outro braço. Pôs a mão no bolso para se certificar de que o acendedor ainda estava lá. Tinha quase se esquecido dele na noite anterior e agora estava com medo, por isso queria ter certeza de não o esquecer outra vez.
Olhou novamente para as belas nuvens. Então uma coisa escura passou baixo sobre as árvores um pouco acima da montanha. Deve ser algum pássaro grande, ela pensou. Corvos eram grandes e negros. Deve ser um desses corvos barulhentos. Apanhou mais gravetos. Viu um arbusto com frutas silvestres num lugar aberto, as folhas começando a ficar de um vermelho vivo. Pôs os gravetos no chão.
Estava com fome, por isso se sentou ao lado do arbusto e começou a comer o mais pressa possível. O ano estava quase no fim e as frutas começavam a murchar, mas ainda eram gostosas. Na verdade, tinham um gosto maravilhoso. Começou a pôr no bolso uma fruta para cada que comia. Apoiando-se nas mãos e nos joelhos, colhia as frutas, as comia e as punha no bolso. Começou a escurecer. Uma vez ou outra olhava para as belas nuvens, que estavam ficando purpúreas.
Quando aliviou a fome e seu bolso estava cheio, apanhou os gravetos e voltou para o pinheiro amigo. Desamarrou o pano que envolvia o pão e pôs as frutas em cima. Sentou-se e começou a comer, enquanto falava com Sara, oferecendo as frutas silvestres. Sara não comeu muitas. Rachel gostaria de ter um espelho. Gostaria de ver seu cabelo. Tinha visto o reflexo do seu rosto num pequeno lago escuro. O cabelo estava uma maravilha, todo igual. Richard foi muito bondoso em fazer aquilo.
Sentia falta de Richard. Queria que ele estivesse ali para fugir com ela, para abraçá-la. Seu abraço era o melhor do mundo. Ele também podia abraçar Kahlan, se ela não fosse tão malvada. Então Kahlan saberia como era maravilhoso seu abraço. Por algum motivo, Rachel sentia falta dela também. De suas histórias, suas canções e dos dedos na testa. Porque Kahlan tinha de ser tão má e dizer que ia fazer mal a Giller? Giller era um dos melhores homens do mundo. Giller lhe tinha dado Sara.
Rachel partiu os gravetos do melhor modo possível, para que coubessem no circulo de pedra que tinha feito. Então tirou o acendedor do bolso. —Acenda para mim.
Pôs o acendedor sobre o pano, junto com as frutas silvestres, aqueceu as mãos e comeu um pouco mais, enquanto contava a Sara alguns dos seus problemas: queria que Richard a estivesse abraçando. Queria que Kahlan não fosse malvada; esperava que ela não machucasse Giller; desejava ter outra coisa para comer que não aquelas frutas.
Um inseto lhe picou o pescoço. Ela soltou um grito e o amassou com a palma da mão. Viu um pouco de sangue na mão. Era uma mosca. — Veja, Sara. Olhe como essa mosca idiota me picou. Tirou sangue.
Sara ficou triste por isso. Rachel comeu mais algumas frutas. Outra mosca lhe picou o pescoço. Rachel a amassou, sem gritar dessa vez. Outra vez, um pouco de sangue na mão.
— Isso dói! — disse ela a Sara. Franzindo a testa, jogou no fogo a mosca amassada. A mosca picou seu braço e ela deu um pulo. Amassou também. Outra picada no pescoço. Rachel enxotou com as mãos as moscas à sua volta. Duas outras picadas no pescoço, tirando sangue antes que ela tivesse tempo de amassar. Seus olhos se encheram de lágrimas por causa da dor.
— Vão embora! — ela gritou, enxotando os insetos com as mãos.
Algumas estavam dentro do seu vestido, picando seu peito e suas costas. Outras lhe picavam o pescoço.
Rachel começou a gritar agitando as mãos no ar, tentando fazer com que elas fossem embora. O zumbido no seu ouvido a fez chorar e gritar enquanto enfiava a mão na orelha para tirar a mosca. Agitava os braços e gritava.
Rachel saiu do abrigo do pinheiro, gritando estridentemente, enxotando moscas dos olhos. Correu, sempre agitando os braços. As moscas a seguiram quando ela correu gritando.
Uma coisa a fez parar de repente.
Olhou para cima, para o corpo gigantesco coberto de pêlo. A barriga cor-de-rosa estava cheia de moscas.
Contra as cores do céu que esmaeciam, a coisa lentamente abriu as asas. Não asas cobertas de penas, mas cobertas de pele. Rachel viu as veias grandes pulsando.
Juntando toda a sua coragem, ela pôs a mão trêmula no bolso. O acendedor não estava lá. Suas pernas estavam paralisadas. Nem sentia mais as picadas das moscas. Ouviu um som como o ronronar de um gato, mas muito mais alto. Olhou mais para cima.
Olhos verdes brilhantes a olharam. O ronronar era um rosnado baixo.
A boca se abriu com um rosnado mais forte e os lábios se afastaram, mostrando os dentes longos e curvos.
Rachel não conseguia fugir. Não conseguiu se mexer. Não conseguiu sequer gritar. Estremeceu quando olhou para aqueles olhos cruéis, verdes e brilhantes. Esqueceu como mover os pés.
Uma garra grande se estendeu para ela.
Rachel sentiu uma coisa quente lhe escorrer pelas pernas.
Richard cruzou os braços e se encostou na rocha.
— Chega!
Zedd e Kahlan olharam para ele como se tivessem esquecido sua presença. Por mais ou menos meia hora, Richard ouvia a discussão dos dois sentados perto do fogo e estava cansado daquilo. Na verdade, estava simplesmente farto. Havia muito tempo tinham jantado e eles deviam procurar dormir um pouco, mas estavam tentando decidir o que fariam no dia seguinte quando chegassem a Tamarang. Agora, pararam de discutir e começaram a apresentar o caso a ele.
— Eu digo que devemos entrar no castelo e resolver o caso de Giller. Ele foi meu aluno. Quero que me conte o que está acontecendo. Ainda sou um mago da Primeira Ordem. Ele vai me obedecer. Giller me dará a caixa.
Kahlan tirou da mochila o vestido de Confessora e o mostrou a Richard.
— É assim que vamos tratar Giller. Ele é meu mago e me obedecerá porque sabe das conseqüências.
Richard respirou lentamente, esfregando os olhos com as pontas dos dedos.
— Vocês dois querem comer uma galinha que ainda não depenamos. Nem sabemos a quem ela pertence.
— Como assim? — perguntou Kahlan.
Richard se inclinou para a frente. Finalmente tinha a atenção dos dois.
— Na melhor da hipóteses, Tamarang está ouvindo D’Hara com simpatia. Na pior das hipóteses, Darken Rahl está lá. O mais provável está entre essas duas probabilidades. Se entrarmos dizendo o que queremos, eles podem não gostar. Tamarang tem um bom exercito para nos dizer o quanto não gostaram. E então? Nós três vamos lutar contra o exercito? Como isso nos dará a caixa? Como isso vai nos levar a Giller? Se tivermos de lutar, prefiro estar saindo, não entrando.
Richard esperava que um dos dois apresentasse uma objeção, como se estivesse ralhando com crianças, mas ninguém disse nada. Então ele continuou:
— Talvez Giller esteja esperando que alguém apareça para ajudá-lo a pegar a caixa. Por outro lado, talvez ele não esteja muito disposto a se separar dela. Mas não saberemos se não chegarmos a ele, certo? — Voltou-se para Zedd. — Você disse que a caixa tem magia que um mago, ou Rahl, pode sentir, mas um mago pode também cobrir a sensação dessa magia com uma teia de mago, para que a caixa não seja descoberta. Talvez, por isso, a rainha Milena tenha querido um mago: para esconder a caixa de Rahl e usá-la como instrumento de negociação. Se fizermos muito barulho e assustarmos Giller, não importa o que ele sente por nós, ele pode aproveitar a oportunidade para fugir. Pode ser também que Rahl esteja esperando que a presa saia do esconderijo, para então atacar.
Zedd olhou para Kahlan.
— Acho que o Seeker tem bons argumentos. Talvez seja bom ouvir o que ele tem a dizer.
Kahlan sorriu e disse: — Acho que você está certo, bom mago. — Voltou-se para Richard. — O que você acha que devemos fazer?
— Você conhece a rainha Milena, certo? Que tipo de pessoa ela é?
Kahlan não preciso de tempo para responder.
— Tamarang é um reinado pequeno e relativamente insignificante. Mesmo assim, a rainha Milena é pomposa e arrogante, mais do que qualquer outra rainha.
— Uma serpente pequena mas que nos pode matar. — Richard observou.
Kahlan disse: — Mas uma serpente com cabeça grande.
— Serpentes pequenas precisam ser cautelosas quando não sabem o que estão combatendo. A primeira coisa que devemos fazer é deixá-la preocupada. Fazer com que fique insegura o bastante para não nos picar.
— Como assim? — Kahlan perguntou.
— Você disse que já tratou com ela antes. Confessoras vão aos lugares para inspecionar prisões, para encontrar o que querem. Ela não ia quere fechar Tamarang a uma Confessora, certo?
— Não se ela tiver a metade de um cérebro. — Zedd riu baixinho.
— Muito bem, então é isso que devemos fazer. Você veste seu vestido e faz seu dever. Simplesmente uma Confessora fazendo o que se espera que uma Confessora faça. Ela pode não gostar, mas quer tratá-la bem, quer que você fique feliz. Vai querer que você veja o que quiser e vá embora. A ultima coisa que ela vai querer é criar problemas. Então, você inspeciona a masmorra, sorri, ou franze a testa ou seja lá o que você faz e então antes de nos pormos a caminho, você diz que quer falar com seu antigo mago.
— Você acha que ela deve ir sozinha? — protestou Zedd.
— Não. Kahlan não tem um mago com ela. A rainha verá isso como uma vulnerabilidade tentadora. Não queremos que ela fique com água na boca.
Zedd cruzou os braços.
— Eu serei o mago!
— Não, você não será seu mago! — exclamou Richard. — Darken Rahl está matando gente enquanto conversamos aqui, à sua procura. Se você remover a teia do mago, eles saberão quem você é e ficaremos com problemas até os olhos antes de conseguirmos a caixa. Quem sabe qual é a recompensa por sua pele enrugada? Você será a proteção dela, mas uma proteção anônima. Você será... — Richard bateu com a mão no punho da espada, pensando. Abaixou os olhos outra vez. — Você será um intérprete das nuvens. Um conselheiro de confiança da Madre Confessora, na ausência de um mago. — Richard franziu a testa, ouvindo Zedd resmungar. –Tenho certeza de que você sabe como representar essa parte.
— Então você também esconderá da rainha sua espada e sua identidade? — perguntou Kahlan.
— Não. A presença do Seeker a fará hesitar, será alguma coisa para preocupá-la, uma coisa que a fará manter as presas dentro da boca até irmos embora. A intenção é dar-lhe algo que ela conheça, uma Confessora, para não a alarmar. Ao mesmo tempo, ela vai preferir se livrar de nós a descobrir que tipo de problema podemos criar. O modo com que vocês querem agir nos leva a uma luta, onde um de nós ou os três podemos sair machucados. O meu modo oferece um mínimo de risco de luta e, se acontecer, pelo menos será quando estivermos saindo com a caixa. — Olhou severamente para os dois. — Vocês se lembram da caixa, não lembram? Para o caso de terem esquecido, é o que queremos, não a cabeça da Giller num cesto. De que lado ele está não é a questão. Devemos apenas pegar a caixa, nada mais.
Kahlan cruzou os braços e franziu a testa. Zedd passou a mão no queixo, olhando para o fogo. Richard deixou que pensassem por algum tempo. Sabia que o modo por que eles queriam agir certamente criaria problemas e que logo eles iam compreender isso.
Zedd o olhou.
— É claro que você está certo. Eu concordo — Voltou o rosto magro para Kahlan. — Madre Confessora?
Ela olhou para Zedd por um momento e depois para Richard.
— Concordo também. Mas, Richard, vocês dois terão de representar o papel de cortesãos da Madre Confessora. Zedd conhece o protocolo, mas você não.
— Espero não ficar lá muito tempo. Diga apenas o que preciso saber para um curto tempo.
Kahlan respirou profundamente.
— Bem, acho que o mais importante é parecer que vocês são parte da minha escolta. Sejam... respeitosos. — Ela desviou os olhos. — Finjam que eu sou a pessoa mais importante com a qual já estiveram e me tratem de acordo, que ninguém vai questionar. Todas as Confessoras permitem aos seus acompanhantes certas liberdades e, desde que sejam respeitosos, ninguém vai pensar nada se vocês fizerem alguma coisa imprópria. Mesmo que considerem meu comportamento estranho, continuem representando. Está bem?
Richard olhou para ela por um momento enquanto Kahlan olhava para o chão. Ele se levantou.
— Será uma honra para mim, Madre Confessora. — Ele fez uma reverência.
Zedd pigarreou.
— Curve-se um pouco mais, meu rapaz. Você não está viajando com uma mera Madre Confessora. Você faz parte da escolta.
— Muito bem — suspirou Richard. — Farei o melhor possível. Agora durmam um pouco. Cumpro o primeiro turno de vigia. — Ele começou a andar para as árvores.
— Richard — chamou Zedd. Richard parou e olhou para trás. — Muita gente em Midlands tem magia. Muitos tipos diferentes e perigosos de magia. Nunca se sabe quantos sicofantas a rainha Milena tem à sua volta. Preste atenção ao que Kahlan e eu dizemos e procure não irritar alguém. Você não pode saber quem ou o que são seus ajudantes.
Richard fechou o casaco.
— Entrar e sair com o mínimo de alvoroço. É o que pretendo fazer. Se tudo correr bem, amanhã a esta hora teremos a caixa e a única preocupação será encontrar um buraco para escondê-la até o inverno.
— Ótimo. Vejo que compreendeu, meu rapaz. Boa noite.
Num lugar com poucos arbustos, Richard encontrou um tronco coberto de musgo para se sentar, enquanto vigiava o acampamento e o bosque. Verificou se o musgo estava seco. Não queria sentar-se em musgo molhado para não molhar a calça e sentir frio. O musgo estava seco, por isso ele ajeitou a espada, se sentou e fechou bem o casaco. Nuvens escondiam a lua. Se não fosse o fogo que iluminava o bosque próximo, seria o tipo de noite escura que nos faz pensar que estamos cegos.
Richard se sentou e mergulhou em pensamentos. Não gostava da idéia de Kahlan ter de usar o vestido e enfrentar o risco. Gostava menos ainda do fato de a idéia ter sido sua. Preocupado, tentou imaginar o que ela quis dizer com agir “estranhamente” e ele fazer o jogo. Imaginou e se preocupou mais com o fato de Kahlan ter falado sobre fingir que ela era a pessoa mais importante que ele já conhecera. Não gostava nem um pouco disso. Sempre imaginava Kahlan sua amiga, pelo menos. Não gostava de vê-la como Madre Confessora. Era a magia da Confessora que tornava impossível para eles serem mais do que amigos. Tinha medo de ver Kahlan como os outros a viam, como a Madre Confessora. Qualquer lembrança do que ela era e da sua magia só aumentava a dor do seu coração.
Um ruído quase inaudível o fez ficar alerta.
Os olhos estavam nele. Estavam perto e, embora Richard não os visse, sentia. Saber que alguma coisa estava perto vigiando o fez sentir um arrepio na espinha. Sentiu-se despido. Vulnerável.
Seus olhos estavam bem abertos, o coração batia forte, quando olhou diretamente para a frente, para onde sabia que a coisa estava. O silencio, exceto pelas batidas do seu coração nos ouvidos, era opressivo. Richard prendeu a respiração, tentando escutar.
Outra vez o som leve de um pé furtivo no chão da floresta. Ia na sua direção. Richard olhou nervosamente para a escuridão, tentando ver algum movimento.
A coisa estava a menos de dez passos quando apareceram os olhos amarelos, bem perto do chão. Olhando para ele. A coisa parou. Richard prendeu a respiração.
Com um uivo, ela saltou. Richard se levantou rapidamente, levando a mão à espada. Quando a coisa pulou, Richard viu que era um lobo. O maior lobo que já vira. Estava em cima dele antes de sua mão alcançar o punho da espada. As pernas da frente do lobo atingiram seu peito. O impacto o atirou para trás contra o tronco onde estava antes sentado.
Quando Richard caiu para trás, sem poder respirar, viu atrás uma coisa mais assustadora do que o lobo.
Um sabujo do coração.
As mandíbulas enormes se lançaram para seu peito no momento em que o lobo saltou para o pescoço do sabujo.
Richard bateu com a cabeça em alguma coisa dura. Ouviu um ganido e som de dentes dilacerando um músculo. Então tudo escureceu.
Richard abriu os olhos. Zedd olhava para ele com os dedos médios das mãos nas suas têmporas. Kahlan segurava um archote. Atordoado, se levantou, sentindo as pernas fracas, e Kahlan o fez se sentar no tronco caído.
Preocupada, ela acariciou seu rosto.
— Você está bem?
— Acho que sim — disse ele. — Minha cabeça dói. — Pensou que ia vomitar.
Zedd tirou o archote da mão de Kahlan e o segurou atrás do tronco, iluminando o corpo de um sabujo do coração, com a garganta rasgada. Zedd olhou para a espada de Richard, ainda na bainha.
— Como foi que o sabujo não pegou você?
Richard pôs a mão atrás da cabeça. Doía como se tivesse punhais espetados.
— Eu... não sei. Tudo aconteceu tão depressa. — Então lembrou, como quem lembra de um sonho ao acordar. Ficou de pé outra vez. — Um lobo! Era um lobo que nos vinha seguindo.
Kahlan se aproximou e pôs a mãos na sua cintura para ajudá-lo a se equilibrar.
— Um lobo? — Ouvindo o estranho tom de suspeita, Richard olhou para ela. — Tem certeza?
Richard fez que sim com a cabeça.
— Eu estava sentado aqui e, de repente, senti que alguma coisa me vigiava. Ele chegou mais perto e vi os olhos amarelos. Então ele saltou para cima de mim. Pensei que estava me atacando. Ele me derrubou bem em cima do tronco. Nem tive tempo de desembainhar a espada, tudo aconteceu muito depressa. Mas o lobo não estava me atacando. Atacava o sabujo do coração, para me proteger. Eu só vi o sabujo quando caí para trás. O lobo deve ter matado o sabujo. Salvou minha vida.
Kahlan pôs as mãos fechadas na cintura.
— Brophy! — chamou ela, olhando para o escuro. — Brophy! Sei que está ai. Venha agora mesmo!
O lobo apareceu à luz do archote com a cabeça abaixada e o rabo entre as pernas.
Seu pêlo espesso tinha a cor do carvão, da ponta do nariz até a ponta da causa. Os olhos amarelos, ferozes, brilhavam na cabeça negra. Com a barriga no chão, se arrastou até os pés de Kahlan. Então se virou de costas com as patas para o ar e ganiu.
— Brophy! — disse ela, zangada. — Você estava nos seguindo?
— Só para protegê-la, senhora.
Richard olhou boquiaberto. Imaginou se a pancada na cabeça tinha sido forte demais.
— Ele fala! Eu ouvi! Esse lobo não pode falar!
Zedd e Kahlan olharam para ele. Zedd então olhou para Kahlan.
— Pensei que você tinha contado a ele.
Kahlan ficou um pouco embaraçada.
— Bem, não contei tudo. — Olhou para Zedd com a testa franzida. — É difícil se lembrar de tudo que ele não sabe. Nós vivemos com isso a vida toda. Esqueci que ele não teve as mesmas experiências.
— Vamos — disse Zedd —, vamos voltar para o acampamento. Nós todos.
O mago saiu na frente com o archote, Kahlan atrás, o lobo ao lado dela, orelhas caídas, a cauda arrastando no chão.
Quando se sentaram em volta do fogo, Richard se dirigiu ao lobo sentado ao lado de Kahlan.
— Lobo, imagino que...
— Brophy. O meu nome é Brophy.
Richard sentou-se um pouco mais para trás.
— Brophy. Desculpe. Meu nome é Richard e este é Zedd. Brophy, eu queria agradecer a você por salvar minha vida.
— De nada — rosnou ele.
— Brophy — disse Kahlan, em tom de desaprovação —, o que você está fazendo aqui?
O lobo abaixou mais as orelhas.
— Há perigo para a senhora. Eu a estava protegendo.
— Está desculpado — disse ela.
— Era você a noite passada? — perguntou Richard.
Brophy voltou para ele os olhos amarelos.
— Era. Sempre que vocês acampavam, eu limpava a área dos sabujos do coração. E de outras coisas desagradáveis. A noite passada, quase de manhã, um deles chegou perto do acampamento. Eu me encarreguei dele. O sabujo desta noite estava caçando você. Ele podia ouvir as batidas do seu coração. Eu sabia que a Senhora Kahlan ficaria triste se ele devorasse você, por isso eu evitei isso.
Richard engoliu em seco.
— Muito obrigado! — disse ele, com voz fraca.
— Richard — perguntou Zedd, passando a mão no queixo. — Os sabujos são feras do mundo subterrâneo. Até agora não se importaram com você. O que foi que mudou?
Richard quase se engasgou.
— Bem, Adie deu um osso a Kahlan, para que pudéssemos passar pela fronteira e para nos proteger das feras do mundo subterrâneo. Eu tinha um osso antigo que meu pai me deu e Adie disse que teria o mesmo efeito. Mas eu o perdi há uns dois dias.
Zedd pensou por um momento. Richard olhou para o lobo, querendo mudar de assunto.
— Como é que você pode falar?
Brophy passou a língua nos lábios.
— Do mesmo modo como você. Posso falar porque... — Olhou para Kahlan. — Quer dizer que ele não sabe quem eu sou?
Kahlan olhou zangada para ele e Brophy se deitou e apoiou a cabeça nas patas. Kahlan cruzou as mãos num joelho, estalando as unhas dos polegares uma na outra.
— Richard, lembra quando eu disse que às vezes, quando ouvíamos confissão, descobríamos que a pessoa era inocente? — Richard balançou a cabeça, assentindo. Kahlan olhou para o lobo — Brophy ia ser executado por matar um menino...
— Eu não mato crianças — rosnou o lobo, ficando de pé.
— Você quer contar a história?
O lobo se deitou outra vez.
— Não, senhora.
— Brophy preferiu ser tocado pelo poder de uma Confessora a ser considerado um assassino de criança. Para não mencionar o que mais foi feito ao menino. Ele pediu uma Confessora. Isso é feito raramente, a maioria dos homens prefere o carrasco, mas significava muito para ele. Eu contei que levamos um mago conosco, quando ouvimos confissões. Uma das razoes é proteção, mas há outra. Em um caso como esse, quando a pessoa é acusada injustamente e descobrimos que é inocente, ela continua tocada por nosso poder, não pode voltar a ser o que era antes. Então o mago a transforma em alguma outra coisa. A transformação remove parte da magia da Confessora e dá à pessoa disposição para começar uma nova vida.
Richard perguntou, incrédulo: — Você era inocente? Mesmo assim foi transformado em um lobo? Para toda a vida?
— Completamente inocente — confirmou Brophy.
— Brophy — disse Kahlan em um tom mais alto, que Richard conhecia bem.
O lobo se sentou.
— Da morte daquele menino. — olhou para Kahlan humildemente e ela olhou para ele. — Foi o que eu quis dizer. Inocente da morte daquele menino.
Richard franziu a testa.
— Como assim?
Kahlan olhou para ele.
— Quer dizer que ele confessou também outras coisas das quais não foi acusado. Você compreende, Brophy tinha tomado parte em coisas de natureza duvidosa — olhou para o lobo — à margem da cinzenta lei.
— Eu era um comerciante honesto — protestou o lobo.
Kahlan olhou outra vez para ele enquanto falava com Richard.
— Brophy era negociante.
— Meu pai era negociante — disse Richard, começando a ficar zangado.
— Eu não sei o que os negociantes fazem em Westland, mas, em Midlands, alguns deles negociam coisas de magia.
Richard pensou no Livro das Sombras Contadas.
— E daí?
Kahlan ergueu uma sobrancelha.
— Algumas delas ainda estão vivas.
Brophy se ergueu nas patas dianteiras.
— Como eu ia saber? Nem sempre é fácil. Às vezes você pensa que uma coisa é apenas um artefato, como um livro, pelo qual um colecionador pagaria um bom dinheiro. Às vezes é algo mais, uma pedra, uma estátua ou um cajado ou talvez uma... bem, como eu ia saber que elas ainda estavam vivas?
Kahlan continuava a olhar para o lobo.
— Você negociava outras coisas de magia, além de livros e estátuas — disse ela, severa. — No seu negocio inocente, ele às vezes entrava em desacordo com as pessoas, desacordos como direito de propriedade. Brophy era tão grande para um homem como é para um lobo. Às vezes usava o tamanho para “persuadir” as pessoas a fazerem sua vontade. Não é verdade, Brophy?
As orelhas do lobo murcharam outra vez.
— É verdade, senhora. Eu tenho gênio forte. Do tamanho dos meus músculos. Mas só se manifestava quando eu era enganado. Muita gente pensa que pode enganar os comerciantes, pensa que não passamos de ladrões e que não podemos nos defender. Quando eu resolvia os desacordos com meu gênio, essas pessoas tendiam a “se acalmar”.
Kahlan sorriu para o lobo.
— Brophy tinha uma reputação que, embora não fosse imerecida, era maior do que a verdade. — Olhou para Richard. — O negocio dele era perigoso, portanto lucrativo. Brophy ganhou dinheiro suficiente para sustentar seu “passatempo”. Quase ninguém sabia disso até depois que eu o toquei e ele confessou.
O lobo pôs as patas sobre a cabeça.
— Oh, senhora, por favor! Precisamos contar?
Richard perguntou, intrigado: — Qual era seu “passatempo”?
Kahlan sorriu.
— Brophy tinha uma fraqueza: crianças. Quando viajava à procura de coisas para negociar, parava nos orfanatos e providenciava o que eles precisavam para tomar conta das crianças, para que elas não passassem fome. Ele intimidava as pessoas que dirigiam os orfanatos, para obrigá-las a jurar guardar segredo. Não queria que ninguém soubesse. É claro que não era difícil fazer com que elas concordassem.
Com as patas ainda sobre a cabeça, Brophy fechou os olhos com força.
— Senhora, por favor — choramingou ele. — Eu tenho uma reputação. — Abriu os olhos e levantou o corpo nas patas dianteiras. –E bem merecida! Quebrei um bom numero de braços e narizes! Fiz coisas desprezíveis!
Kahlan ergueu uma sobrancelha.
— Sim, você fez mesmo. Algumas delas suficiente par a mandá-lo para a prisão por bom tempo. — Olhou para Richard. — Você compreende, uma vez que Brophy era visto rodeando os orfanatos e, por causa da sua reputação, ninguém ficou surpreso quando ele foi acusado da morte de um menino.
— Demmin Nass — rosnou Brophy. — Acusado por Demmin Nass. — Arreganhou os lábios, mostrando os dentes compridos.
— Por que o pessoal dos orfanatos não o defendeu?
— Demmin Nass — rosnou Brophy outra vez. — Ele teria cortado os pescoços deles.
— Quem é esse Demmin Nass?
Kahlan trocou um olhar com o lobo.
— Está lembrado quando Darken Rahl foi ao povoado do Povo da Lama e pegou Siddin? Lembra quando ele disse que era um presente para um amigo? Demmin Nass é esse amigo. — Olhou significativamente para Richard. — Demmin Nass tem um interesse doentio por meninos.
Richard sentiu uma pontada de medo por Siddin e por Savidlin e Weselan. Lembrou-se da sua promessa de encontrar o menino. Sentiu-se mais impotente do que nunca.
— Se algum dia eu o encontrar — rosnou Brophy ferozmente —, acertarei algumas contas. Ele não vai morrer imediatamente. Vai sofrer pelas coisas que fez.
— Você fique longe dele — avisou Kahlan. — Ele é um homem perigoso. Não quero que você se machuque mais do que já foi machucado.
Os olhos amarelos do lobo faiscaram ferozes para Kahlan por um momento mas a raiva passou logo.
— Sim, senhora — voltou a se deitar. — Eu teria enfrentado um carrasco com a cabeça erguida, os espíritos sabem que eu posso ter merecido, mas não por causa de que fui acusado. Não ia querer que me matassem pensando que fiz aquelas coisas para crianças. Por isso exigi uma Confessora.
— Eu não queria ouvir a confissão dele. — Kahlan apanhou um graveto e riscou a terra com ele. — Sabia que ele não teria exigido uma Confessora se não fosse inocente. Falei com o juiz. Ele disse que, por causa da gravidade do crime, não comutaria a sentença. Era morte ou uma confissão. Brophy insistiu na confissão. — Richard viu a luz do fogo refletida nos olhos verdes úmidos. — Depois, pedi a ele para escolher a criatura na qual queria ser transformado, se tivesse escolha. Ele escolheu um lobo. Por quê, eu não sei — sorriu ela. — Acho que combina com sua natureza.
— Porque os lobos são criaturas honradas — sorriu Richard. — Você não viveu na floresta, mas sempre com pessoas. Os lobos são criaturas muito sociáveis, têm laços afetivos e relacionamentos muito fortes. Protegem ferozmente sua prole. Toda a alcatéia luta para proteger os filhotes. Todos eles tomam conta dos filhotes.
— Você compreende — murmurou Brophy.
— É mesmo, Brophy? — perguntou Kahlan.
— Sim, senhora. Tenho uma boa vida agora. — Sacudiu o rabo. — Tenho uma companheira! É uma bela loba. Tem um cheiro divino e suas tetas me dão arrepios e tem o mais engraçadinho... bem, deixa para lá. — Olhou para Kahlan. — Ela é a líder da nossa alcatéia. Está satisfeita comigo. Diz que eu sou o lobo mais forte que já viu. Tivemos uma ninhada na ultima primavera. Seis. São ótimos filhotes, estão quase crescidos. É uma boa vida, dura, mas boa. Muito obrigado, senhora, por me libertar.
— Fico contente com isso, Brophy. Mas por que você está aqui? Por que não está com sua família?
— Bem, quando a senhora estava descendo do Rang’Shada, passou perto da minha caverna. Senti sua presença. Descobri que posso farejá-la. O impulso de protegê-la foi forte demais para ser ignorado. Sei que corre perigo e não posso estar em paz na minha alcatéia até saber que está segura. Devo protegê-la.
— Brophy — disse ela —, estamos lutando para deter Darken Rahl. É muito perigoso para você estar conosco. Não queremos que você perca a vida. Já sacrificou muito por causa de Darken Rahl, por meio de Demmin Nass.
— Senhora, quando fui transformado me lobo, grande parte da minha necessidade da sua presença desapareceu, minha necessidade de agradá-la. Porém, ainda daria a vida pela senhora. É extremamente difícil contrariar seus desejos. Mas, neste caso, preciso. Não a deixarei correndo perigo. Devo protegê-la, do contrário jamais terei paz. Ordene que eu vá embora, se quiser, mas não irei. Eu a seguirei até que esteja a salvo de Darken Rahl.
— Brophy — disse Richard. O lobo olhou para ele. — Eu também quero que Kahlan seja protegida para que possa fazer seu trabalho de deter Rahl. Será uma honra ter você conosco. Você já provou seu valor e seu coração. Se pode ajudar a proteger Kahlan, ignore o que ela diz e continue a protegê-la.
Brophy ergueu os olhos para Kahlan. Ela sorriu.
— Ele é o Seeker. Jurei proteger sua vida, bem como Zedd. Se é esse o caso, eu concordo.
O focinho de Brophy se abriu, surpreso.
— Ele manda em você? Ele manda na Madre Confessora?
— Sim, ele manda.
O lobo olhou para Richard vendo-o sob uma nova luz e balançou a cabeça.
— Maravilha das maravilhas. — Passou a língua nos lábios. — A propósito, eu queria agradecer a comida que ele deixou para mim.
Kahlan franziu a testa.
— Do que você está falando?
— Sempre que ele pega comida, deixa um pouco para mim.
— Você faz isso? — perguntou ela.
Richard deu de ombros.
— Bem, eu sabia que ele estava lá e não sabia o que ele era, mas não achei que nos pretendia fazer mal. Então eu deixava comida, para que ele soubesse que eu também não pretendia mal. — Sorriu para o lobo. — Mas quando você veio para cima de mim, pensei que tinha me enganado. Outra vez, obrigado.
Brophy pareceu embaraçado com aquela gratidão e se levantou.
— Já estou aqui já muito tempo. Tenho de patrulhar a floresta. Pode haver coisas por aí. Vocês três não precisam fazer vigia com Brophy por perto.
Richard empurrou um graveto para o fogo, olhando para as centelhas que giravam no ar.
— Brophy, qual a sensação quando Kahlan o tocou? Quando ela liberou seu poder em você?
Ninguém disse nada. Richard olhou para os olhos amarelos do lobo. Brophy virou a cabeça para Kahlan.
— Diga a ele — disse Kahlan, com voz entrecortada.
Brophy se deitou outra vez e cruzou as patas, com a cabeça erguida. Ficou em silencio por longo tempo. Finalmente falou.
— É difícil lembrar tudo daquele tempo, mas tentarei explicar do melhor modo possível. — Inclinou a cabeça um pouco para o lado. — Dor. Lembro-me da dor. Era intensa, além de qualquer coisa que possa imaginar. A primeira coisa que lembro depois da dor é o medo. Um medo avassalador de estar respirando de modo errado e de algum modo desagradar-lhe. Então, quando eu disse o que ela queria saber, foi a maior alegria que já senti. Alegria porque eu sabia o que fazer para agradar-lhe. Fiquei alegre por ela ter me pedido alguma coisa, porque eu podia fazer alguma coisa para agradar à Madre Confessora. É disso que mais me lembro: a necessidade desesperada e frenética de fazer o que ela queria, de satisfazê-la e deixá-la feliz. Não havia nada mais em minha mente, só agradar à Madre Confessora. Estar na presença dela era mais do que uma benção. O prazer de estar em sua presença me fez chorar de alegria.
“Ela mandou que eu dissesse a verdade e fiquei tão feliz porque era uma coisa que eu tinha certeza de poder fazer. Fiquei entusiasmado por ter uma tarefa dentro das minhas possibilidades. Comecei a falar o mais depressa que podia, contando a verdade. Ela me disse para falar mais devagar porque não estava me compreendendo. Se eu tivesse uma faca, eu a teria usado contra mim por ter desagradado à Madre Confessora. Então ela disse que estava tudo bem e chorei porque ela não estava zangada comigo. Contei o que tinha acontecido. — Suas orelhas caíram um pouco. — Depois de afirmar que eu não tinha matado o menino, lembro que ela pôs a mão no meu braço, quase desmaiei de prazer, e disse que sentia muito. Eu não compreendi. Pensei que ela sentia o fato de eu não ter matado o menino. Pedi para me deixar matar outro menino para ela.”
As lágrimas desceram dos cantos dos olhos do lobo.
— Então ela explicou que sentia muito por mim, por ter sido acusado do crime injustamente. Lembro-me de ter chorado incontrolavelmente porque ela demonstrou bondade, sentia por mim, gostava de mim. Lembro o que sentia perto dela, como me sentia na sua presença. Acho que era amor, mas as palavras eram vazias perto da força do meu desejo por ela.
Richard se levantou. Olhou apenas de relance para Kahlan, que chorava.
— Obrigado, Brophy — fez uma pausa para ter certeza de que sua voz não ia traí-lo — É tarde. Acho melhor dormimos um pouco. Amanhã é um dia importante. Vou começar minha vigia. Boa noite.
Brophy ficou de pé.
— Vocês três vão dormir. Eu fico de vigia esta noite.
Richard tentou engoliu o nó que sentia na garganta.
— Agradeço, mas vou ficar de vigia. Se você quiser, pode guardar minhas costas.
Ele deu alguns passos.
— Richard — chamou Zedd. Ele parou sem olhar para trás. — Que osso seu pai lhe deu?
A mente de Richard disparou em pânico. Por favor, Zedd, ele pensou, se alguma vez você acreditou em uma mentira que eu tenha dito, acredite nessa também.
— Você deve lembrar. Era redondo. Você o viu. Sei que o viu.
— Oh sim, devo tê-lo visto. Boa noite.
A Primeira Regra do Mago. Obrigado, meu velho amigo, Richard pensou, por me ensinar a proteger a vida de Kahlan.
Saiu para a noite, a cabeça latejando de dor, de fora para dentro e de dentro para fora.
A cidade de Taramang não podia abrigar toda aquela gente. Simplesmente era gente demais. Pessoas vindas de todos os lados à procura de proteção e segurança inundaram o campo em volta dos bairros. Barracas e barracões surgiam no solo vazio fora dos muros da cidade, criando um bairro comercial provisório. Pessoas vindas de outras cidades, vilarejos e povoados se instalavam nas ruas de modo desordenado, com quiosques improvisados, vendendo o que tinham. Vendiam tudo, desde roupas a jóias finas. Outras barracas estavam repletas de frutas e vegetais.
Havia barbeiros e curandeiros e cartomantes, pessoas com papel que queriam desenhar rostos e pessoas que tinham sanguessugas e queriam tirar o sangue dos outros. Vinho e bebidas fortes estavam à venda por toda a parte. Apesar das circunstancias, o povo parecia alegre. Eram a proteção imaginada e o amplo suprimento de bebida, Richard suspeitava. As conversas fluíam livremente sobre as maravilhas do Pai Rahl. Oradores, no centro do pequeno grupo de cidadãos, contavam as ultimas noticias, as ultimas atrocidades. Os esfarrapados gemiam e gritavam, contando os ultrajes perpetrados pelos soldados de Westland. Havia gritos de vingança.
Richard não viu mulher alguma com cabelo que passasse da altura do queixo.
O castelo ficava no topo de uma alta colina, com seus muros, dentro das muralhas da cidade. Flâmulas vermelhas com a cabeça de um lobo negro voejavam em intervalos regulares em volta dos enormes muros do castelo. As enormes portas de madeira que davam para a cidade permaneciam fechadas. Provavelmente para manterem longe a ralé.
Soldados a cavalo patrulhavam as ruas, as armaduras cintilando ao sol do meio-dia, pontos de luz no oceano de gente. Richard viu um destacamento, bandeiras vermelhas com o lobo negro, passando pelas novas ruas. Algumas pessoas aplaudiam, algumas se inclinavam, mas todas recuavam quando os cavalos passavam. Os soldados as ignoravam como se elas não existissem. Quem não saia depressa do caminho levava uma bota na cabeça.
Mas ninguém se afastava tanto dos soldados quanto de Kahlan. O povo evitava a proximidade da Madre Confessora como um bando de cães fugindo de um porco-espinho.
O vestido branco de Kahlan brilhava ao sol. Ereta, a cabeça erguida, ela andava como se fosse dona da cidade. Olhando para a frente, não falava com ninguém. Recusou-se a usar a capa, dizendo que não era apropriado e que não queria que houvesse duvida sobre que ela era. Não havia duvida alguma.
As pessoas se atropelavam para abrir caminho para Kahlan e todos se curvavam no amplo círculo formado à sua passagem. Murmúrios discretos diziam seu titulo para a multidão. Kahlan ignorava as mesuras.
Zedd, carregando a mochila de Kahlan, andava ao lado de Richard, dois passos atrás dela. Ele e Richard examinavam a multidão. Em todo o tempo em que Richard conhecia o mago, jamais o vira com uma mochila nas costas. Seria pouco dizer que era estranho. Richard levava a capa dependurada atrás da Espada da Verdade. Algumas sobrancelhas se erguiam, mas nada como para a Madre Confessora.
— É assim em todo lugar que ela passa? — murmurou Richard para Zedd.
— Receio que sim, meu rapaz.
Sem hesitar, Kahlan atravessou a ponte maciça de pedra que levava aos portões da cidade. Guardas na extremidade da ponte afastaram-se, abrindo caminho. Ela os ignorou. Richard examinava tudo, para o caso de precisar sair rapidamente.
As duas dúzias de guardas nos portões da cidade tinham instrução para não deixarem ninguém entrar. Olharam nervosamente uns para os outros. Não esperavam uma visita da Madre Confessora. Com um tilintar de metal contra metal, alguns deles recuaram, atropelando-se, e outros não se mexeram, sem saber o que fazer. Kahlan parou. Olhou para os portões, como se esperando que evaporassem. Os guardas à sua frente se encostaram nos portões, olhando para o capitão.
Zedd se aproximou de Kahlan, se virou para ela, fez uma profunda curvatura, como que pedindo desculpas por passar à frente, depois olhou para o capitão.
— O que há com vocês? Estão cegos? Abram os portões!
Os olhos escuros do capitão iam de Zedd para Kahlan.
— Desculpem, mas ninguém entra. E seu nome é...?
Zedd ficou rubro. Richard com esforço, se manteve serio. A voz do mago soou baixa como o silvo de uma cobra.
— Está me dizendo, capitão, que disseram a você “se a Madre Confessora aparecer, não a deixe entrar”?
O capitão hesitou.
— Bem...recebi ordens...eu não...
— Abra os portões imediatamente! — gritou Zedd, os punhos fechados aos lados do corpo. — E providencie uma escolta!
O capitão quase saltou de dentro da armadura. Gritou ordens e os homens obedeceram apressadamente. Os portões se abriram. Cavaleiros apareceram e entraram em forma na frente de Kahlan, com suas flâmulas. Outros entraram em forma atrás dela. Soldados da infantaria chegaram correndo e posicionaram-se ao lado dela, mas não muito perto.
Richard viu o mundo de Kahlan pela primeira vez, o mundo solitário da Confessora. No que seu coração tinha se metido? Dolorosamente, ele sentiu o quanto ela precisava de um amigo.
— Você chama isso de escolta? — rugiu Zedd. — Bem tem que servir. — Voltou-se para Kahlan com uma curvatura. — Peço desculpas, Madre Confessora, pela insolência desse homem e por seu fraco esforço de providenciar uma escolta.
Kahlan olhou para Zedd e inclinou levemente a cabeça.
Mesmo sabendo que não tinha o direito, ver Kahlan com aquele vestido fazia Richard transpirar de desejo.
Discretamente, os soldados olhavam para Kahlan esperando: quando ela recomeçou a andar, andaram com ela. A poeira se ergueu em volta dos cavalos quando passaram pelos portões.
Zedd voltou para o lado de Richard quando a procissão começou a se mover e inclinou-se para o capitão.
— Agradeça o fato de a Madre Confessora não saber seu nome capitão! — ele disse, furioso.
Richard sorriu quando o capitão relaxou, aliviado. Ele queria dar a eles motivos para se preocuparem, mas nunca pensou que fosse dar tão certo.
Havia tanta ordem dentro da cidade quanto havia desordem lá fora. Lojas com as mercadorias expostas nas vitrines alinhavam-se ao lado das calçadas pavimentadas que saiam da fortaleza do castelo. As ruas não tinham a poeira nem os cheiros do lado de fora. Estalagens pareciam melhores do que todas as que já tinha visto e nas em que tinha estado. Algumas tinham porteiros com uniformes vermelhos e luvas brancas. Belas tabuletas pendiam sobre as portas: Estalagem Jardim Prateado, Estalagem Collins, O Garanhão Branco e Casa da Carruagem.
Homens com casacos de cores vivas, acompanhando senhoras de vestidos elegantes, moviam-se com graça tranqüila. Uma coisa não era diferente do povo do lado de fora: é que eles também se curvavam profundamente quando a Madre Confessora se aproximava. Alertados pelas patas dos cavalos na pedra, quando viam Kahlan, abriam caminho e se curvavam, embora não tão rapidamente. Não havia convicção na deferência, nenhuma sinceridade no gesto de submissão. Nos seus olhos, notava-se leve sugestão de desprezo. Kahlan os ignorou. O povo dentro da cidade também notava mais a espada. Richard via os homens olhando para ela e as mulheres coravam com desdém.
Os cabelos das mulheres eram curtos, mas, ocasionalmente, os de algumas chegavam aos ombros. Nunca além disso. Desse modo, Kahlan se destacava ainda mais com seu cabelo cascateando quase até o meio das costas. O de mulher alguma sequer chegava perto. Richard ficou satisfeito por não ter cortado o cabelo dela.
Um dos cavaleiros recebeu ordens e saiu das fileiras galopando para o castelo, para anunciar a chegada da Madre Confessora. Kahlan estava calma e inexpressiva, como Richard estava acostumado a ver. A expressão da Madre Confessora.
Antes de chegarem aos portões do castelo, trombetas anunciaram a chegada da Madre Confessora. O topo dos muros estava repleto de soldados: lanceiros, arqueiros e espadachins. Todos enfileirados, curvavam-se quando Kahlan se aproximava e ficavam assim até ela passar pelos portões que se abriam. Dentro dos portões, soldados em atenção enfileiravam-se nos dois lados da rua e se curvaram em uníssono quando Kahlan passou.
Algumas varandas tinham floreiras dos dois lados, com folhagens e folhas que certamente eram levadas diariamente das estufas. Grandes áreas planas exibiam cercas vivas.
De desenhos complicados, até com labirintos. Mais perto dos muros do castelo, as cercas vivas eram maiores, cortadas como objetos ou animais. Estendia-se para os lados até onde a vista podia alcançar.
Os muros do castelo erguiam-se acima deles. O complicado trabalho na pedra encantou Richard. Nunca tinha estado tão perto de qualquer coisa daquele tamanho feita pelo homem. O palácio de Shota era grande, mas não tanto e ele não chegara perto dele. Torres grandes e pequenas, muros e rampas, balcões e nichos se erguiam para o ar acima deles. Admirou-se ao lembrar o que Kahlan tinha dito: que era um reino insignificante e imaginou o que seriam os castelos de reinos mais importantes.
A cavalaria os tinha deixado no baluarte e, quando entraram no castelo, os homens da infantaria, seis na frente com espaço para mais seis de cada lado, entraram marchando pelas enormes portas duplas revestidas de bronze e abriram as fileiras, dando passagem aos três, Kahlan a frente.
Na sala imensa. Um oceano cintilante de azulejos brancos e pretos estendia-se a perder de vista. Colunas de pedra polida tão grandes que precisariam de dez pessoas de mãos dadas para circundar, caneladas, com espirais gravadas, erguiam-se de cada lado, encimadas por arcos na borda do teto abobadado com nervuras gravadas. Richard se sentiu pequeno como um inseto.
Enormes tapeçarias mostrando cenas heróicas de batalhas pendiam das paredes. Richard já tinha visto tapeçarias. Seu irmão tinha duas. Richard gostava delas e sempre pensou que eram uma grande extravagância. Mas as tapeçarias de Michael estavam para as do castelo como um desenho feito na terra com um graveto está para um quadro a óleo. Ele nem sabia que coisas tão majestosas existiam.
Zedd se inclinou para ele e murmurou.
— Ponha os olhos de volta nas órbitas e feche a boca.
Magoado, Richard fechou a boca e olhou para frente. Inclinou-se para Zedd e perguntou em voz baixa: — É este o tipo de palácio a que ela está acostumada?
— Não. A Madre Confessora está acostumada a coisa muito melhor.
Richard ficou atônito.
Na frente ficava a escadaria. Richard calculou que sua casa caberia, e ainda sobraria espaço, na parte central. De cada lado, corrimões de mármore esculpido. Entre eles e a escadaria, um grupo de pessoas esperava.
Na frente deles, estava a rainha Milena, mulher grande, gorda, vestida com camadas de seda de cores berrantes. Usava uma capa guarnecida com pele rara de raposa pintada. Seu cabelo era quase tão longo quanto o de Kahlan. A principio Richard não distinguiu o que ela carregava, mas então ouviu um latido e ficou sabendo que era um cachorrinho.
Quando se aproximaram, todos, exceto a rainha, dobraram um joelho, numa profunda reverencia. Quando eles se inclinaram, Richard olhou diretamente para a rainha Milena. Nunca vira uma rainha antes. Zedd chutou-lhe a perna. Richard dobrou o joelho e, seguindo o exemplo de Zedd, abaixou a cabeça. As duas únicas pessoas que não se ajoelharam nem abaixaram a cabeça foram Kahlan e a rainha.
Mal ele se ajoelhou, todo mundo se levantou e Richard foi o ultimo. Ele deduziu que as duas mulheres não precisavam fazer reverencia uma para a outra.
A rainha olhou para Kahlan que, com a cabeça erguida, não perdeu a calma e sequer olhou para a rainha. Ninguém disse nada.
Kahlan levantou um pouco a mão, a poucos centímetros do corpo, sem dobrar o braço. A expressão da rainha se anuviou. A de Kahlan continuou a mesma. Richard imaginou que, se alguém piscasse, ele ouviria. A rainha se virou um pouco para o lado e entregou o cachorrinho a um homem de roupa verde vivo, manga doublet, camisa justa negra e pantalonas listradas de vermelho e amarelo. Havia um grupo de homens atrás da rainha vestidos do mesmo modo. O cachorro rosnou ameaçadoramente e mordeu a mão do homem. Ele fez o possível para não notar.
A rainha dobrou os dois joelhos à frente de Kahlan.
Um jovem vestido de negro imediatamente se pôs ao lado da rainha, segurando uma bandeja. Abaixou a cabeça quase até o chão e estendeu a bandeja para a rainha. Ela apanhou uma pequena toalha, mergulhou na água de uma vasilha e passou nos lábios. Devolveu a toalha à bandeja.
A rainha segurou de leve a mão da Madre Confessora e a beijou com os lábios limpos.
— Fidelidade jurada a Confessora por minha coroa, minha terra, minha vida.
Richard nunca tinha ouvido alguém mentir tão suavemente.
Finalmente Kahlan moveu os olhos. Olhou para baixo, para a cabeça inclinada da rainha.
— Levante-se, minha filha.
Sem duvida mais do que uma rainha, pensou Richard. Lembrou quando ensinou Kahlan a fazer uma armadilha, ler os rastros, desenterrar raízes e corou.
A rainha Milena se levantou com dificuldade. Seus lábios sorriam. Os olhos não.
— Não pedimos uma Confessora.
— Mesmo assim, estou aqui — A voz de Kahlan dava para congelar a água.
— Sim, bem, isso é...ótimo. Simplesmente...ótimo — seu rosto se iluminou. — Teremos um banquete. Sim, um banquete. Mandarei mensageiros com convites imediatamente. Todos virão. Tenho certeza que terão o maior prazer em jantar com a Madre Confessora. É uma grande honra. — Virou-se, indicando os homens com pantalonas vermelhas. — Esses são meus advogados. — Os homens se inclinaram. — Não lembro os nomes de todos eles. — Estendeu a mão para dois homens com mantos dourados. — E esses são Silas Tannic e Brandin Gadding, os principais conselheiros da coroa. — Os dois inclinaram a cabeça levemente. — E meu ministro das Finanças, Lord Rondel, e minha estrela guia Lady Kyley. — Richard não viu mago algum com manto prateado no séquio da rainha. A rainha acenou para um homem vestido simplesmente, lá atrás. — E James, meu artista da corte.
Com o canto dos olhos, Richard viu Zedd ficar rígido. James se curvou de leve, com os olhos concupiscentes em Kahlan. O sorriso meloso do artista fez Richard levar instintivamente a mão ao punho da espada, antes de perceber o que fazia. Sem olhar para ele, Zedd segurou seu punho e tirou a mão da espada. Richard olhou em volta, para ver se alguém havia notado. Ninguém viu. Todos olhavam para a Madre Confessora.
Kahlan se voltou para os dois.
— Zeddicus Zorander, interprete das nuvens, conselheiro de confiança da Madre Confessora. — Zedd se curvou dramaticamente. — E Richard Cypher, Seeker, protetor da Madre Confessora. — Imediatamente Richard imitou a curvatura de Zedd.
A rainha olhou para ele e ergueu uma sobrancelha, duvidosa.
— Uma patética proteção para a Madre Confessora.
A expressão de Richard não mudou; Kahlan continuou serena.
— É a espada que corta. O homem não é importante. Seu cérebro pode ser pequeno, mas seus braços não são. Mas ele tende a usar a espada com muita freqüência.
A rainha pareceu não acreditar. Atrás do grupo real, uma menina desceu a escada. Usava um vestido rosa de cetim e jóias grandes demais para ela. Foi para o lado da rainha, jogando o cabelo longo para trás do ombro. Não se curvou.
— Minha filha, princesa Violeta. Querida, esta é a Madre Confessora.
A princesa Violeta olhou carrancuda para Kahlan.
— Seu cabelo é comprido demais. Talvez possamos cortar.
Richard percebeu o leve traço de satisfação no rosto da rainha. Decidiu que estava na hora de elevar o nível de preocupação dela.
A Espada da Verdade saiu da bainha, enchendo a sala com um tilintar único, a pedra ampliando o som. Com a ponta da espada a um centímetro do nariz da princesa Violeta, ele deixou que a raiva tomasse conta dele, para que suas palavras soassem com maior dramaticidade.
— Curve-se para a Madre Confessora — sibilou ele — ou morrerá.
Zedd pareceu entediado. Kahlan esperou calmamente. Ninguém tinha os olhos tão arregalados quanto a princesa, olhando para a ponta da espada. Caiu de joelhos e inclinou a cabeça. Levantou-se e olhou para Richard, como que perguntando se tinha feito direito.
— Tenha cuidado com essa língua — disse Richard com desprezo. — Da próxima vez eu a separo de você.
A princesa Violeta inclinou a cabeça afirmativamente, deu a volta na mãe e ficou longe dela. Richard embainhou a espada, se virou, fez uma profunda curvatura para Kahlan, que não olhou para ele, e voltou a ficar atrás dela.
A demonstração teve o efeito desejado na rainha e a voz dela ficou mais clara e animada.
— Sim, bem, como estava dizendo, é ótimo ter a senhora aqui. Nós todos estamos simplesmente encantados. Deixem que lhe mostrem nosso melhor quarto. Deve estar cansada da viagem. Talvez queira descansar antes do jantar e então depois podemos ter uma longa...
— Não estou aqui para comer — Kahlan a interrompeu. — Estou aqui para inspecionar sua masmorra.
— Masmorra? — ela fez uma careta — É sujo lá embaixo. Tem certeza de que não prefere...
Kahlan parou de andar.
— Conheço o caminho. — Richard e Zedd se puseram atrás dela. Kahlan parou outra vez e olhou para a rainha. — Você espere aqui — sua voz estava gelada — até eu terminar. — Quando a rainha começou a se inclinar, assentindo, Kahlan se virou com um farfalhar do vestido e continuou a andar.
Se Richard não a conhecesse tão bem, todo o encontro o teria deixado morto de medo. Para dizer a verdade, ele não tinha certeza de que não era exatamente como se sentia.
Kahlan desceu uma escada e atravessou salas cada vez menos grandiosas à medida que desciam. Richard estava atônito com o tamanho do castelo.
— Eu esperava que Giller estivesse lá — disse Kahlan. — Então não precisaríamos fazer isto.
— Eu também — resmungou Zedd. — Você faz uma inspeção rápida, pergunta se alguém quer se confessar e, quando eles disserem que não, voltamos lá para cima e perguntamos por Giller. — Ele sorriu. — Você se saiu muito bem até agora, minha cara. — Ela sorriu para os dois. — E Richard. — preveniu ele —, fique longe daquele artista James.
— Por quê? Ele pode fazer um desenho horrível de mim?
— Tire esse sorriso dos lábios. Fique longe porque ele pode enfeitiçar você com um desenho.
— Um feitiço? Por que é preciso um artista para fazer um feitiço?
— O caso é que há muitas linguagens diferentes em Midlands, embora a mais usada seja a mesma de Westland. Para ser enfeitiçado, você tem de compreender o feitiço. Se não conhecer a língua, não pode enfeitiçar alguém. Mas todo mundo compreende um desenho. Ele pode fazer um feitiço para qualquer pessoa, não para Kahlan ou para mim, mas para você, sim. Fique longe dele.
Seus passos ecoavam nos degraus de pedra. Nas paredes muito abaixo do nível do solo a água escorria, e em alguns lugares estavam cobertas de limo.
Kahlan indicou uma porta pesada.
— Por ali.
Richard puxou o anel e abriu a porta. As dobradiças rangeram. Archotes iluminavam um corredor estreito de pedra com o teto tão baixo que ele precisou ter cuidado para não bater a cabeça. O chão era coberto de palha e cheirava a decomposição. Quase no final, Kahlan diminuiu o passo e se aproximou de uma porta de ferro com uma portinhola. Olhos espiaram para fora quando ela parou.
Zedd passou à frente dela.
— A Madre Confessora está aqui para ver os prisioneiros — rosnou ele — Abra a porta.
Richard ouviu o eco de uma chave girando na fechadura. Um homem atarracado com um uniforme imundo puxou a porta para dentro. Um machado pendia de seu cinto, ao lado das chaves. Ele se curvou para Kahlan, aparentemente contrafeito. Sem uma palavra, ele os levou para uma pequena sala perto da porta, onde viram que o guarda estava comendo sentado a uma mesa quando chegaram, e por outro corredor escuro até outra porta de ferro. Bateu na porta com o punho fechado. Os dois guardas do outro lado se curvaram, surpresos. Os três guardas apanharam archotes da parede e os levaram por um corredor curto a uma terceira porta de ferro que obrigou todos a abaixarem a cabeça para passar por ela.
Luz bruxuleante de archotes cortava a escuridão. Atrás de barras de ferro paralelas de cada lado, homens se encostavam nos cantos, protegendo os olhos da claridade. Kahlan disse o nome de Zedd em voz baixa, indicando que ela queria alguma coisa. Zedd aparentemente compreendeu, tirou um archote da mão de um dos guardas e o segurou na frente de Kahlan para que todos os homens nas celas pudessem vê-la.
Os homens a reconheceram, com exclamações abafadas.
Kahlan se dirigiu a um dos guardas.
— Quantos destes homens estão condenados à morte?
Ele passou a mão redonda na barba por fazer.
— Ora, todos.
— Todos — repetiu ela.
— Crimes contra a coroa — disse o guarda.
Kahlan olhou para os prisioneiros.
— Todos vocês cometeram ofensas capitais?
Depois de um momento de silencio, um homem emaciado se aproximou, segurou as barras de ferro e cuspiu em Kahlan. Ela ergueu a mão para deter Richard antes que ele tivesse tempo de se mexer.
— Veio fazer o trabalho sujo da rainha, Confessora? Eu cuspo em você e na sua rainha imunda.
— Não estou aqui pela rainha. Estou aqui pela verdade.
— A verdade! A verdade é que nenhum de nós fez nada! A não ser talvez falar contra as novas leis. E desde quando reclamar que sua família está morrendo de fome ou morrendo congelada é um crime capital? Os coletores de impostos tomaram toda a minha colheita, mal deixando alguma coisa para alimentar minha família. Quando vendi o pouco de que podia me desfazer, disseram que eu estava explorando o povo. Os preços de tudo sobem cada vez mais. Não estou fazendo nada além de sobreviver. Sim, vou ser executado por trapacear nos preços. Todos estes homens são fazendeiros inocentes, negociantes ou comerciantes. Nós todos vamos morrer por tentar ganhar a vida com nosso trabalho.
Kahlan olhou para outro homem no canto.
— Algum de vocês quer se confessar para provar sua inocência?
Eles confabularam em voz baixa. Um homem emaciado se levantou no escuro e foi até as grades. Olhou para eles com olhar assustado.
— Eu quero. Não fiz nada e mesmo assim vou ser decapitado, deixando uma mulher e os filhos sozinhos. Estou disposto a confessar. — Enfiou um braço entre duas grades, procurando alcançá-la. — Por favor, Madre Confessora, ouça a minha confissão.
Outros homens se levantaram e foram até as grades, todos pedindo para se confessar. Kahlan e Zedd trocaram um olhar.
— Em toda a minha vida só encontrei três homens dispostos a se confessar. — murmurou ela para o mago.
— Kahlan? — A voz familiar veio da cela escura, no outro lado do corredor.
Kahlan segurou as barras com os dedos abertos.
— Siddin? Siddin! — Ela se voltou rapidamente para os guardas. — Todos esses homens se confessaram à Madre Confessora. São todos inocentes. Abra as portas!
Richard desceu a espada num arco entre grades. Lascas de aço quente e fagulhas encheram o ar. Ele se virou e, com o pé, fechou a porta na frente dos guardas anônimos.
— Abra as portas ou corto você pelo meio e tiro as chaves do seu cinto.
O guarda com as chaves obedeceu, tremendo. A porta se abriu, Kahlan entrou e foi até o fundo, no escuro. Voltou carregando nos braços Siddin muito assustado, segurando a cabeça dele sobre o ombro. Kahlan murmurava no ouvido dele, acalmando-o. Siddin respondeu na língua do Povo da Lama, Kahlan sorriu e disse coisas que o fizeram sorrir também. Quando ela saiu, o guarda abriu a outra cela. Segurando Siddin com um braço com a mão livre, Kahlan segurou o guarda pelo colarinho da camisa.
— A Madre Confessora declara todos esses homens inocentes. — Sua voz era dura como o ferro que os rodeava. — Devem ser soltos por minha ordem. Vocês três os escoltarão para fora da cidade. — O guarda era uma cabeça mais baixo do que ela. Kahlan puxou o rosto dele para perto do seu. — Se alguma coisa sair errada, vocês se verão comigo.
O guarda balançou a cabeça, assentindo vigorosamente.
— Sim, Madre Confessora, eu compreendo. Suas ordens serão cumpridas. Dou minha palavra.
— Ou dará sua vida — disse ela.
Soltou o colarinho do guarda. Os prisioneiros saíram das celas e caíram de joelhos em volta dela chorando, segurando e beijando a bainha do seu vestido. Kahlan se afastou.
— Chega disso. Vão embora todos vocês. Apenas não esqueçam. Confessoras não servem a ninguém. Só servem à verdade.
Todos juraram que não esqueceriam e saíram com os guardas. Richard viu que a maior parte das camisas dos homens estava rasgada ou com manchas de sangue seco, as costas cobertas de marcas de chibatadas.
Antes de entrar na sala onde a rainha esperava, Kahlan parou e pôs Siddin nos braços de Zedd. Ajeitou o cabelo, alisou o vestido e compôs o rosto, respirando profundamente.
— Lembre por que estamos aqui, Madre Confessora — disse o mago.
Kahlan assentiu com um gesto, ergueu a cabeça e entrou na sala. A rainha Milena esperava onde eles a tinham deixado, acompanhada de seus cortesãos. Ela olhou impaciente e carrancuda para Siddin.
— Espero que tenha encontrado tudo em ordem, Madre Confessora.
Kahlan continuou calma, mas sua voz severa.
— Por que esta criança está na sua masmorra?
A rainha ergueu as mãos abertas.
— Bem, não tenho certeza. Lembro que foi apanhado roubando e foi levado para lá até que seus pais possam ser encontrados, isso é tudo. Posso garantir que não foi mais do que isso.
Kahlan olhou friamente para ela.
— Todos os prisioneiros são inocentes e por isso mandei soltá-los. Tenho certeza de que fica satisfeita por eu ter evitado que executasse homens inocentes e que vai providenciar para que suas famílias sejam compensadas pelos problemas que esse “erro” causou. Se um “erro” como esse se repetir, da próxima vez não esvaziarei apenas sua prisão, mas seu trono também.
Richard sabia que Kahlan não estava representando para conseguir a caixa, mas fazendo seu trabalho. Por isso os magos tinham criado as Confessoras. Era o que ela era realmente, a Madre Confessora.
A rainha arregalou os olhos.
— Ora... sim. É claro. Tenho alguns comandantes do exército muito ambiciosos e eles devem ter feito isso. Eu não tinha conhecimento. Obrigada por nos salvar de cometer um grande erro. Vou tratar disso imediatamente, como deseja. O que, é claro, não é menos do que eu mesma teria feito se tivesse...
Kahlan a interrompeu.
— Nós vamos agora.
O rosto da rainha se iluminou.
— Já? Ora, que pena! Nós todos esperávamos ansiosamente ter a honra da sua presença no jantar. Sinto muito que tenha de ir.
— Tenho outros negócios prementes para tratar. Antes de ir, quero falar com meu mago.
— Seu mago?
— Giller — sibilou Kahlan.
Por um breve momento, a rainha olhou para o teto.
— Bem, isso não será possível.
Kahlan se inclinou para ela.
— Faça ser possível. Imediatamente.
Toda a cor desapareceu do rosto da rainha.
— Por favor acredite, Madre Confessora, não vai querer ver Giller na condição em que ele está.
— Imediatamente — repetiu Kahlan.
Richard tirou a espada da bainha o bastante para chamar a atenção dela.
— Muito bem. Ele está... lá em cima.
— Você espere aqui até eu terminar de falar com ele.
A rainha olhou para o chão.
— É claro, Madre Confessora. — Voltou-se para um dos homens de pantalonas. — Mostre o caminho.
O homem os levou pela escadaria até o ultimo andar e por vários salões, depois por uma escada de pedra em espiral ao quarto mais alto de uma torre, parando finalmente com um olhar temeroso para uma porta de madeira no patamar. Kahlan o dispensou. Ele se curvou, feliz por ir embora. Richard abriu a porta, que fechou depois que entraram.
Com uma exclamação abafada, Kahlan escondeu o rosto no ombro de Richard. Zedd virou o rosto de Siddin.
O cômodo estava completamente destruído. O teto tinha desaparecido como levado por uma explosão, deixando entrar a luz do sol e o céu. Poucas vigas aparentes restavam. Uma corda pendia de uma delas.
O corpo nu de Giller balançava lentamente, de cabeça para baixo, dependurado na corda, um gancho de açougueiro enfiado no tornozelo. Se não fosse pelo teto aberto, o fedor os teria feito sair do quarto.
Zedd entrou com Siddin e Kahlan e, ignorando o corpo, começou a andar vagarosamente em volta do quarto circular, com ar pensativo. Parou e tocou lascas móveis enfiadas na parede, como se a pedra fosse feita de manteiga.
Richard olhava paralisado para o corpo de Giller.
— Richard, venha ver uma coisa — chamou Zedd.
O mago estendeu o braço e passou um dedo numa área negra na parede. Na verdade, havia duas áreas negras. Uma ao lado da outra, duas manchas escuras, com o formato de duas pessoas em posição de sentido, que tivessem ido embora, deixando sua sombra. Logo acima de cada cotovelo, em lugar da cor preta, havia uma faixa de metal cor de ouro derretido na pedra da parede.
Zedd ergueu uma sobrancelha.
— Fogo de mago.
Richard disse, incrédulo: — Quer dizer que isso eram homens?
Zedd balançou a cabeça afirmativamente.
— Embutidos na parede pelo fogo — experimentou a mancha negra na ponta do dedo e sorriu. — Mas isso foi mais do que o fogo do mago. — Richard olhou para ele, intrigado. Zedd apontou para a mancha negra na parede. — Experimente.
— Por quê?
Zedd roçou a cabeça de Richard com a mão fechada.
— Para aprender alguma coisa.
Com uma careta, Richard passou o dedo na fuligem negra, como Zedd tinha feito.
— É doce!
Zedd sorriu, satisfeito.
— Isto é mais do que fogo de mago. Giller deu sua vida e sua energia a ele. Deu sua vida ao fogo. Isso foi um fogo de vida do mago.
— Ele morreu fazendo o fogo do mago?
— Sim. E tem gosto doce. Isso significa que deu a vida para salvar outra. Se tivesse feito só por ele mesmo, para se livrar da tortura, seria amargo. Giller fez isso por outra pessoa.
Zedd ficou à frente do corpo de Giller, enxotando as moscas, virando a cabeça para ver melhor. Com um dedo, empurrou a corda de esparto para ver o rosto de Giller. Endireitou o corpo.
— Ele deixou uma mensagem.
— Uma mensagem? — perguntou Kahlan. — Qual?
— Há um sorriso nos lábios dele. Um sorriso, imobilizado pela morte, significa, para quem entende dessas coisas, que ele não entregou o que eles queriam. — Richard se aproximou quando Zedd apontou para o corte na barriga. — Está vendo esse corte? É feito pelos que praticam a magia chamada antropomancia, adivinhação das respostas, inspirada nas entranhas. Darken Rahl faz seu corte muito parecido com o de seu pai.
— Tem certeza de que foi Darken Rahl? — perguntou Kahlan. Zedd deu de ombros.
— Quem mais? Darken Rahl é o único que ficaria ileso quando atacado pelo Fogo da Vida do Mago. Além disso, o corte é sua assinatura. Veja isto. Está vendo o fim da abertura? Vê como começa a voltar?
Kahlan virou o rosto.
— O que tem isso?
— Isso é o gancho. Pelo menos deve ser. Ele vira para trás num corte curvo. Enquanto são ditas encantações, o gancho é cortado, unindo quem pergunta a quem está sendo interrogado. O gancho os obriga a dar a resposta certa às perguntas. Mas, está vendo isto? O gancho começou, mas não acabou — disse Zedd, com um sorriso tristonho. — Foi quando Giller deu sua vida para o fogo. Ele esperou que Rahl estivesse quase terminando e então, no último momento, negou-lhe o que Rahl procurava. Provavelmente o nome de quem está com a caixa. Sem vida, então, suas entranhas não podiam dizer nada a Rahl.
— Nunca pensei que Giller fosse capaz de um ato tão altruísta — murmurou Kahlan.
— Zedd — perguntou Richard —, como Giller pôde fazer isso, com a dor do que estavam fazendo com ele, e conseguiu manter um sorriso?
O olhar de Zedd fez Richard sentir um frio na espinha.
— Os magos devem saber tudo sobre a dor. Na verdade, devem conhecê-la muito bem. Para poupar você dessa lição, aceitei alegremente sua escolha de não ser mago. É uma lição à qual poucos sobrevivem.
Richard imaginou as coisas misteriosas e secretas que Zedd devia saber e jamais compartilhara com ele.
Zedd pôs a mão carinhosamente no rosto de Giller.
— Você fez muito bem, meu aluno. Honra no fim.
— Aposto que Rahl ficou furioso — disse Richard. — Zedd, acho melhor sairmos daqui. Está me parecendo muito uma isca no anzol.
Zedd concordou.
— Seja onde for que a caixa está, não é aqui. Pelo menos Rahl não a encontrou ainda. — Estendeu as mãos. — Dê-me o menino. Precisamos sair como entramos. Não queremos dizer a eles por que viemos.
Zedd murmurou alguma coisa no ouvido de Siddin e o menino riu, abraçando o pescoço do mago.
A rainha Milena ainda estava pálida, torcendo o canto da capa, quando Kahlan caminhou calma e com passo firme para ela.
— Obrigada pela hospitalidade — disse Kahlan. — Nós vamos agora.
A rainha abaixou e levantou a cabeça.
— É sempre um prazer ver a Madre Confessora. — A curiosidade superou o medo –
— E... Giller?
Kahlan olhou friamente para ela.
— Sinto que você tenha passado à minha frente. Eu só queria ter o prazer de fazer aquilo ou, pelo menos, testemunhar. Mas o que importa é o resultado. Foi uma divergência, imagino?
A cor voltou ao rosto da rainha.
— Ele roubou uma coisa que me pertencia.
— Compreendo. Bem, espero que a consiga de volta. Um bom dia. — Começou a se mover e parou, — Rainha Milena, eu voltarei para verificar, portanto, não deixe de manter na linha seus comandantes muito ambiciosos e que eles não se enganem executando pessoas inocentes.
Richard e Zedd, este com Siddin no colo, saíram atrás de Kahlan.
Os pensamentos de Richard giravam loucamente enquanto seguia, inexpressivo, ao lado de Zedd, acompanhando Kahlan, no meio do povo que se curvava, para fora da cidade. O que iam fazer agora? Shota tinha avisado que a rainha não teria a caixa por muito tempo e estava certa. Onde poderia estar agora? Certamente nao podia voltar e perguntar a Shota. Para quem Giller teria dado a caixa? Como iam descobrir? Sentia-se desesperadamente deprimido, com vontade de desistir. Via, pelos ombros caídos de Kahlan, que ela sentia a mesma coisa. O único que falava era Siddin e Richard não entendia a língua dele.
— O que ele está dizendo? — perguntou ele a Zedd.
— Que foi muito corajoso, como Kahlan tinha dito que devia ser, mas está satisfeito por Richard, o Esquentado, ter vindo também para levá-lo para casa.
— Acho que sei o que ele está sentindo. Zedd, o que vamos fazer agora?
Zedd olhou intrigado para ele.
— Como vou saber? Você é o Seeker.
Ótimo. Ele tinha feito o melhor possível e ainda não tinha a caixa, mas esperavam que de algum modo a encontrasse. Sentia como se tivesse batido com a cabeça numa parede que não sabia que estava fá. Continuaram a andar, mas Richard não sabia para onde deviam ir agora.
O sol poente era dourado entre nuvens douradas. Richard teve a impressão de ver algo ao longe. Foi ficar ao lado de Kahlan. Ela também estava vendo. Todos tinham desaparecido da estrada com o cair da noite.
Demorou para, finalmente, Richard saber o que era. Quatro cavalos galopando na direção deles. Só um tinha cavaleiro.
Por segurança, Richard segurou o punho da espada, enquanto via os quatro cavalos levantando uma nuvem de pó dourada à luz do sol poente. Logo ouviu o som das patas dos cavalos. O cavaleiro solitário se inclinou na cela, incitando o animal a ir mais depressa. Richard puxou a espada da bainha, para verificar se estava solta, depois a empurrou para dentro outra vez. Quando o cavaleiro vestido de preto se aproximou, Richard achou que havia nele algo familiar.
— Chase!
O guarda da fronteira parou com os cavalos na frente deles, quase derrapando. Ele olhava para a poeira que se ergueu no ar.
— Vocês todos parecem que estão bem.
— Chase! É muito bom ver você — sorriu Richard. — Como nos encontrou?
Chase ficou insultado.
— Sou guarda da fronteira. — Achou que essa explicação bastava. — Encontraram o que procuravam?
— Não — admitiu Richard com um suspiro.
Viu braços pequeninos abraçando a cintura de Chase. Um rostinho miúdo apareceu ao lado da capa preta.
— Rachel? É você?
Ela mostrou mais o rosto, com um largo sorriso.
— Richard! Estou tão feliz por ver você outra vez. Chase não é maravilhoso? Lutou contra um gar e me salvou de ser devorada.
— Não lutei contra ele — resmungou Chase. — Só atravessei a cabeça dele com uma flecha, nada mais.
— Mas teria lutado. Você é o homem mais corajoso que já vi.
Franzindo a testa, embaraçado, Chase revirou os olhos para cima.
— Ela não é a menina mais feia que já viram? — Virou-se para trás e olhou para ela. — Não posso acreditar que mesmo um gar quisesse comer você.
Rachel riu e apertou a cintura dele.
— Veja, Richard. — Estendeu a perna mostrando o sapato. — Chase caçou um gamo. Ele disse que foi um erro, porque era muito pesado, por isso trocou com um homem, mas tudo que o homem tinha para trocar eram estes sapatos e a capa. Não são maravilhosos? E Chase diz que posso ficar com eles.
Richard sorriu para ela.
— Sim, isso é mesmo maravilhoso. — Viu a boneca de Rache e o embrulho com o pão entre ela e Chase. Notou também que ela olhava para Siddin como se o tivesse visto antes.
Kahlan pôs a mão na perna de Rachel
— Por que você fugiu? Ficamos preocupados.
Rachel se encolheu com o toque da mão de Kahlan. Apertando mais a cintura de Chase com uma das mãos, pôs a outra no bolso. Não respondeu à pergunta de Kahlan, mas olhou para Siddin.
— Por que estão com ele?
— Kahlan o salvou — disse Richard. — A rainha o tinha trancado na masmorra. Não é lugar para uma criança, então nós o tiramos de lá
Rachel olhou para Kahlan.
— A rainha não ficou zangada?
— Não permito que ninguém faça mal a crianças — disse Kahlan. — Nem mesmo uma rainha.
— Muito bem, não fiquem aí parados. Eu trouxe cavalos para vocês. Montem. Calculei que os encontraria hoje. Tenho um javali cozinhando no lugar em que ficaram a noite passada, deste lado do Callisidrin.
Com uma das mãos na sela e a outra segurando Siddin, Zedd saltou para montar.
— Javali! Que tipo de tolo é você? Deixar um javali cozinhando sem ninguém para proteger. Alguém pode passar e roubar seu javali!
— Por que pensa que estou com pressa? O lugar está cheio de pegadas de lobo, embora eu duvide que eles cheguem perto do fogo.
— Não se atreva a machucar aquele lobo — disse Zedd. — Ele é amigo da Madre Confessora.
Chase olhou para Kahlan, depois para Richard, antes de virar o cavalo e levá-los para o sol poente. Richard se animou com a presença de Chase. Ele sentia outra vez que tudo era possível. Depois de montar, Kahlan pegou Siddin e os dois seguiram, conversando e rindo enquanto cavalgavam.
No acampamento, Zedd não perdeu tempo, foi ver o javali e disse que estava pronto para comer. Ajeitou o manto e se sentou, esperando, com um sorriso no rosto enrugado, que alguém com uma faca trinchasse o jantar. Siddin, com um largo sorriso, inclinou-se para Kahlan quando ela se sentou. Richard e Chase começaram a trinchar o javali. Rachel se sentou perto de Chase, olhando para ele, de vez em quando para Kahlan, com a boneca no colo e o pão embrulhado no pano, ao seu lado.
Richard cortou um pedaço grande de carne para Zedd.
— Então, o que aconteceu com meu irmão?
Chase sorriu.
— Quando eu disse a ele o que você mandou, ele disse que, se você estava encrencado, ele ajudaria. Ele reuniu o exército e mandamos grande parte para as posições defensivas ao longo da fronteira, com os guardas da fronteira no comando, Depois que a fronteira desmoronou, ele se recusou a esperar. Conduzi mil dos seus melhores homens para Midlands. Estão todos aquartelados no Rang’Shada neste momento, esperando para ajudar você.
Richard, atônito, parou de cortar o javali.
— Foi mesmo? Meu irmão disse isso? Ele veio ajudar? E com um exército!
— Ele disse que, se você está metido nisso, ele também está.
Richard sentiu remorso por ter duvidado de Michael e ficou alegre porque o irmão deixou tudo para ajudá-lo.
— Ele não ficou zangado?
— Eu estava certo de que ficaria e isso me preocupava, mas ele só queria saber de você, quais os riscos que você corre e onde você está. Disse que o conhece bem e que, se você acha que é importante, então ele também acha. Ofereceu-se para vir comigo, mas eu não deixei. Ele está com seus homens, provavelmente esperando na sua barraca neste momento, andando de um lado para o outro. Tenho de dizer que eu também fiquei surpreso.
Richard estava maravilhado.
— Meu irmão com mil homens, em Midlands, para me ajudar. — Olhou para Kahlan. — Não é maravilhoso? — Ela apenas sorriu.
Chase olhou para ele severamente enquanto cortava o javali.
— Em certo momento, pensei que você estava acabado, quando vi seu rastro indo para Agaden Reach.
Richard ergueu os olhos.
— Você foi a Agaden Reach?
— Eu pareço idiota? Não se chega a chefe dos guardas da fronteira sendo idiota. Comecei a pensar como ia dizer a Michael que você estava morto. Então encontrei seu rastro saindo de Agaden Reach. — Franziu a testa. — Como conseguiu sair vivo do Reach?
Richard disse, com um largo sorriso: — Acho que os bons espíritos... Rachel gritou.
Richard e Chase se viraram com as facas na mão. Antes que Chase tivesse tempo de usar a faca, Richard o deteve. Era Brophy.
— Rachel? É você mesmo?
Ela tirou o pé da boneca da boca e arregalou os olhos.
— Parece a voz de Brophy.
O lobo abanou a cauda.
— Isso é porque eu sou Brophy! — Ele trotou até ela.
— Brophy, como é que você virou lobo?
Ele se sentou à frente dela.
— Foi porque um mago bondoso me transformou em lobo. Era o que eu queria e ele me fez virar lobo.
— Giller transformou você num lobo? Richard prendeu a respiração.
— Isso mesmo. Tenho uma vida nova maravilhosa.
Rachel abraçou o pescoço do lobo e riu quando Brophy lambeu o rosto dela.
— Rachel — perguntou Richard —, você conhece Giller?
Rachel passou um braço cm volta do pescoço de Brophy.
— Giller é um bom homem. Ele me deu Sara, — Olhou temerosa para Kahlan. — Você quer fazer mal a ele. Você é amiga da rainha. Você é malvada. — Encostou em Brophy para proteção.
Brophy lambeu o rosto dela.
— Você está enganada, Rachel. Kahlan é minha amiga. É uma das melhores pessoas do mundo.
Kahlan sorriu e estendeu a mão para Rachel.
— Venha cá.
Rachel olhou para Brophy; o lobo fez sinal de que tudo estava bem. Ela foi até Kahlan, amuada. Kahlan segurou as mãos de Rachel entre as suas.
— Você me ouviu dizer uma coisa contra Giller, não foi? — Rachel fez que sim com a cabeça.
— Rachel, a rainha é malvada. Até hoje eu não sabia quanto. Antigamente Giller era meu amigo. Quando foi morar com a rainha, pensei que ele também fosse malvado e estava do lado dela. Eu me enganei. Eu jamais faria mal a Giller, agora que sei que ele ainda é meu amigo.
Rachel olhou para Richard.
— Ela está dizendo a verdade. Estamos do mesmo lado de Giller.
Rachel se voltou para Brophy.
Ele também assentiu, balançando a cabeça.
— Você e Richard não são amigos da rainha?
Kahlan riu.
— Não. Por mim ela não seria rainha por muito tempo. Quanto a Richard, bem, ele desembainhou a espada e ameaçou matar a princesa. Não acho que isso faça dele um amigo da rainha.
Rachel arregalou os olhos.
— A princesa Violeta? Você fez isso a ela?
— Ela foi grosseira com Kahlan — respondeu Richard — e eu disse que, se ela fizesse aquilo outra vez, eu cortaria a língua dela.
Rachel ficou boquiaberta.
— Ela não mandou cortar sua cabeça?
— Não vamos deixar que elas cortem mais cabeças — disse Kahlan.
Rachel olhou para Kahlan com os olhos cheios de lágrimas.
— Pensei que você fosse malvada e ia fazer mal a Giller. Estou muito feliz por você não ser má. — Passou os braços em volta do pescoço de Kahlan, abraçando-a com força. Kahlan também a abraçou com força.
Chase perguntou a Richard: — Você ameaçou a princesa com a espada? Sabe que isso é um crime capital?
Richard olhou friamente para ele.
— Se eu tivesse tempo, teria posto a princesa nos meus joelhos e dado uma boa sova nela. — Rachel riu. Richard sorriu para ela. — Você conhece a princesa, não conhece?
O riso desapareceu.
— Sou sua companheira de brincadeiras. Eu morava num belo lugar com outras crianças, mas, depois que meu irmão morreu, a rainha apareceu e me levou para ser companheira da princesa.
Richard olhou para Brophy.
— Foi ele? — O lobo balançou a cabeça solenemente, assentindo. — Então você morou com a princesa. Foi ela que cortou seu cabelo daquele jeito, não foi? Ela batia em você.
— Ela é má para as pessoas — disse Rachel. — Ela está começando a mandar cortar cabeças. Fiquei com medo que quisesse cortar a minha e fugi.
Richard olhou para o embrulho com o pão, ao lado dela.
— Giller a ajudou a fugir, não foi?
Rachel estava quase chorando.
— Giller me deu Sara. Ele queria fugir comigo. Mas então um homem malvado, Pai Rahl, chegou. Ele ficou muito zangado com Giller. Giller me disse para fugir e me esconder até o inverno, depois encontrar uma boa família para tomar conta de mim. — Uma lágrima desceu pelo rosto dela. — Sara me disse que ele não podia mais fugir comigo.
Richard olhou outra vez para o pão. Era do tamanho certo. Pôs as mãos nos ombros dela. — Rachel, Zedd, Kahlan, Chase e eu estamos lutando contra Darken Rahl para que ele não possa mais fazer mal a ninguém.
Ela olhou para Chase.
Chase assentiu, balançando a cabeça.
— Ele está dizendo a verdade, minha filha. Conte a verdade a ele também.
Richard apertou as mãos nos ombros dela.
— Rachel, Giller deu este pão para você? — Ela fez que sim com a cabeça.
— Rachel, nós íamos procurar Giller para apanhar uma caixa, uma caixa que nos ajudará a evitar que Darken Rahl continue a fazer mal às pessoas. Você a daria para nós? Ajudaria a deter Rahl?
Com os olhos cheios de lágrimas, Rachel olhou para Richard. Então, com um bravo sorriso pegou o pão e o deu a ele.
— Está dentro do pão. Giller a escondeu aí com magia.
Richard pegou Rachel, a abraçou com força, quase sufocando-a e a girou no ar até ela rir.
— Rachel, você é a menininha mais corajosa, mais esperta que conheci! — Quando a pôs no chão, ela correu para Chase e subiu para o colo dele. Chase passou a mão na cabeça dela e eles se abraçaram.
Richard segurou o pão com as duas mãos e o ofereceu a Kahlan. Ela sorriu e balançou a cabeça. Richard o ofereceu a Zedd.
— O Seeker o encontrou — disse Zedd. — O Seeker deve abrir.
Richard partiu o pão e lá estava a caixa de Orden, incrustada com pedras preciosas. Ele limpou as mãos nas pernas da calça e a ergueu a luz da fogueira. Sabia, pelo Livro das Sombras Contadas, que a caixa externa apenas servia de cobertura para a caixa verdadeira. Richard sabia pelo livro como abrir a caixa externa.
Pôs a caixa no colo de Kahlan. Quando ela olhou para Richard com o maior sorriso de já tinha visto, impulsivamente Richard se inclinou e beijou de leve os lábios dela. Kahlan arregalou os olhos e não retribuiu o beijo, mas a sensação de tocar os lábios dela com os seus o fez se dar conta do que acabava de fazer.
— Oh, desculpe — disse ele.
Kahlan riu.
— Está desculpado.
Richard abraçou Zedd, os dois rindo. Chase riu também, olhando para eles. Richard mal podia acreditar que um pouco antes quase tinha desistido, não sabia o que fazer, aonde ir ou como deter Rahl. E agora tinham a caixa.
Pôs a caixa sobre uma rocha, onde podia ser vista à luz do fogo, enquanto tinham o melhor jantar de que podiam se lembrar. Richard e Kahlan contaram a Chase alguma coisa do que lhes tinha acontecido. Richard riu quando Chase ficou perturbado ao saber que devia sua vida a Bill, em Southaven. Chase contou algumas das suas histórias sobre conduzir um exército de mil homens do outro lado do Rang’Shada. Gostava de contar histórias das tolices da burocracia no acampamento dos soldados.
Rachel se aninhou no colo de Chase enquanto comia e ele falava. Richard achou interessante ela ter escolhido o mais temível de todos eles. Quando ele finalmente terminou sua história, a menina olhou para ele e perguntou: — Chase, para onde devo ir para me esconder até o inverno?
Chase olhou para ela muito sério.
— Você é feia demais para ficar andando por aí. Um gar certamente vai comer você — Ela riu. — Eu tenho filhos, todos feios também. Você se encaixa direitinho entre eles. Acho que vou levá-la para morar em minha casa.
— Verdade, Chase? — perguntou Richard.
— Estive em casa muitas vezes e minha mulher sempre me presenteava com um novo filho. Acho que está na hora de mudar isso. — Olhou para Rachel, que se agarrava nele como se Chase fosse desaparecer de repente. — Mas tenho regras, você sabe. Você terá de seguir minhas regras.
— Eu farei qualquer coisa que você quiser, Chase.
— Muito bem, para começar, a primeira regra. Não permito que qualquer filho meu me chame de Chase. Se quiser ser um membro da família, tem de me chamar de pai. E seu cabelo é curto demais. Todos os meus filhos têm cabelos compridos e eu gosto. Terá de deixar crescer um pouco o cabelo. E terá uma mãe. Deve obedecer a ela. E precisará brincar com seus novos irmãos e irmãs. Acha que pode fazer tudo isso?
Ela fez que sim com a cabeça, incapaz de falar, abraçada a ele, com lágrimas brilhando nos olhos.
Todos eles, entusiasmados, acabaram de comer. Até Zedd parecia satisfeito. Richard estava exausto e ao mesmo tempo cheio de energia, por ter finalmente conseguido a caixa. Tinham feito a parte mais difícil, encontrar a caixa antes de Rahl. Agora era só guardá-la longe dele até o inverno.
— Há semanas estamos nessa busca — disse Kahlan. — Falta um mês para o primeiro dia do inverno. Hoje de manhã parecia que mal tínhamos tempo para encontrar a caixa. Agora que a temos, um mês parece uma eternidade. O que vamos fazer nesse tempo?
Chase foi o primeiro a falar.
— Nós todos precisamos proteger a caixa e temos mil homens para nos protegerem. Quando estivermos outra vez no outro lado da fronteira, teremos mais do dobro.
Kahlan olhou para Zedd.
— Você acha prudente? Será fácil nos encontrarmos com mil homens? Não será melhor nos escondermos em algum lugar, separados?
Zedd passou a mão na barriga cheia.
— Podemos nos esconder melhor sozinhos mas também estaremos mais vulneráveis, se formos descobertos. Talvez Chase esteja certo. Haverá muita proteção numa força tão grande e, se for preciso, podemos deixá-los e nos esconder.
— Acho melhor sairmos cedo amanhã — disse Richard.
A luz do dia mal começava a aparecer e estavam todos montados seguindo para a estrada, Brophy acompanhando, de volta para a floresta, ou às vezes passando na frente do grupo para ver se tudo estava bem. Chase, cheio de armas, os conduzia, os cavalos a trote, com Rachel agarrada à sua cintura. Kahlan outra vez com a roupa de andar na floresta, com Siddin no colo, cavalgava ao lado de Zedd. Richard insistiu em que a caixa ficasse com Zedd. Estava embrulhada com o pano, como o pão antes, e amarrada no arção da sela. Richard ia atrás, vigiando, enquanto seguiam rapidamente no ar frio da manhã. Agora que tinham a caixa, ele se sentia de repente vulnerável, como se todo mundo fosse saber, só de olhar para eles.
Richard ouviu as águas do Callisidrin, antes da última curva para a ponte. Ficou satisfeito quando viu a estrada deserta. Chase pôs o cavalo a galope quando se aproximou da grande ponte de madeira; os outros acompanharam o passo. Richard sabia o que Chase estava fazendo. O guarda da fronteira sempre dizia que as pontes eram a ruína dos descuidados. Richard olhou para todos os lados e os três galoparam na sua frente. Não viu nada.
Bem no centro da ponte, a galope, ele bateu com força em alguma coisa que não estava lá.
Atordoado, Richard caiu sentado no chão enquanto seu grande ruão seguia a galope, acompanhando os outros três, só parando quando eles pararam e voltaram para trás. Olharam confusos quando Richard, ainda aturdido, desnorteado, se ergueu com dificuldade. Ele tirou o pó da roupa e, mancando, foi pegar seu cavalo. Antes que chegasse ao centro da ponte, bateu outra vez na coisa invisível. Teve a impressão de bater num muro de pedra, mas não havia nada. Caiu sentado outra vez. Os outros agora estavam em volta dele quando se levantou.
Zedd apeou do cavalo e, segurando as rédeas com uma das mãos, ajudou Richard com a outra.
— Que aconteceu?
— Eu não sei — disse Richard. — Foi como se eu tivesse batido numa parede. Mas devo apenas ter caído, nada mais. Estou bem agora.
Zedd olhou em volta, segurando o cotovelo de Richard. Antes de ir muito longe, ele bateu outra vez, mas como se movia devagar, não caiu, apenas foi lançado para trás. Devagar, deu um passo para a frente e entrou em contato com a coisa outra vez. Zedd franziu a testa, muito sério. Richard estendeu as mãos e sentiu a forma sólida e macia da parede que não queria deixá-lo passar, mas tinha deixado os outros. Quando tocou na parede, ficou tonto e nauseado. Zedd passou de um lado para o outro da barreira invisível.
O mago ficou exatamente onde estava a parede.
— Vá até o fim da ponte e ande para cá, para mim.
Richard levou a mão ao galo na cabeça e foi até o fim da ponte. Kahlan apeou do esvaio, perto de Zedd. Brophy se aproximou para ver o que estava acontecendo e ficou ao lado dela. Dessa vez, Richard andou com os braços estendidos para a frente.
Antes de chegar ao meio do caminho, entrou em contato com a parede sólida e não conseguiu continuar, obrigado a recuar pela sensação provocada pelo toque.
Zedd coçou o queixo.
— Maldição!
Os outros foram até Richard, uma vez que ele não podia ir até eles. Zedd o levou para a frente outra vez. Quando fez contato, recuou um pouco.
Zedd segurou a mão esquerda de Richard.
— Toque na coisa com a outra mão.
Richard tocou até a náusea e a tontura o obrigarem a retirar a mão. Zedd pareceu sentir por meio de Richard. A essa altura, estavam no começo da ponte. A cada toque, a coisa o fazia voltar um pouco.
— Maldição! Dupla maldição!
— O que é? — perguntou Richard.
Zedd olhou para Kahlan e Chase, antes de responder.
— Um feitiço do carcereiro.
— O que é um feitiço do carcereiro?
— É uma maldição lançada por aquele imundo artista, James. Ele a lançou em volta de você e quando você a tocou pela primeira vez ativou o feitiço. Assim que você a toca, ela se solidifica como uma armadilha. Se não a retirarmos, vai encolher até você estar todo dentro dela, sem poder se mover.
— E depois?
— O toque é veneno. Quando ele acaba de se fechar em volta de você, como um casulo, ele o amassa ou o veneno o mata.
Kahlan segurou na manga de Zedd, com pânico nos olhos.
— Temos de voltar! Temos de tirar isso dele.
Zedd puxou o braço, soltando a manga da mão dela.
— Bem, é claro que vamos tirar. Encontraremos o desenho e o apagaremos.
— Eu sei onde ficam as cavernas sagradas — ofereceu Kahlan, segurando na sela com uma das mãos e pondo o pé no estribo.
O mago voltou para onde estava seu cavalo.
— Não podemos perder tempo. Vamos.
— Não — disse Richard.
Todos se viraram para ele.
— Richard, é preciso — disse Kahlan.
— Ela tem razão, meu rapaz. Não há outro meio.
— Não — ele olhou para os rostos espantados. — É o que ele quer. Você disse que o artista não pode enfeitiçar você ou Kahlan, por isso me escolheu, pensando que nos faria voltar. A caixa é muito importante. Não podemos correr o risco. — Olhou para Kahlan. —Você me diz onde ficam as cavernas e Zedd me ensina a neutralizar o feitiço.
Kahlan segurou as rédeas do seu cavalo e as do cavalo de Richard, fazendo-os dar alguns passos. — Zedd e Chase podem proteger a caixa, eu vou com você.
— Não, não vai! Eu vou sozinho. Tenho a espada para me proteger. O que importa é a caixa, é nossa responsabilidade. Devemos protegê-la acima de tudo. Apenas me diga onde ficam as cavernas e como desfazer o feitiço. Quando eu terminar, alcanço vocês.
— Richard, eu acho...
— Não! Trata-se de deter Darken Rahl, não se trata de qualquer um de nós. Isto não é um pedido, é uma ordem!
Zedd se voltou para Kahlan.
— Diga a ele onde ficam as cavernas.
Zangada, Kahlan entregou as rédeas a Zedd e pegou um graveto. Desenhou um mapa na terra da estrada e começou a indicar as linhas com o graveto.
— Este é o Callisidrin e aqui a ponte. Esta é a estrada e aqui ficam Tamarang e o castelo. — Desenhou a linha de uma estrada ao norte da cidade. — Aqui. Nestas montanhas, a nordeste da cidade, há um regato que corre entre as duas montanhas, mais ou menos a dois quilômetros ao sul de uma pequena ponte que atravessa o regato. As montanhas gêmeas têm penhascos nos lados do regato. As cavernas sagradas ficam no penhasco no lado nordeste do regato. É onde o artista desenha seus feitiços.
Zedd tirou o graveto da mão dela e o partiu em dois pedaços do comprimento de um dedo. Rolou um deles entre as palmas das mãos.
— Tome, isto vai apagar o feitiço. Sem ver o desenho, não posso dizer qual parte você deve apagar, mas você certamente pode descobrir. É um desenho e você tem de compreender, do contrário, não adianta.
O graveto que Zedd rolou entre as palmas das mãos não parecia mais madeira. Era macio e pegajoso. Richard o pôs no bolso. Zedd fez o mesmo com o outro pedaço e o entregou a Richard. Esse também não parecia madeira. Era negro, quase como carvão, e duro.
— Com isto — disse o mago —, você pode desenhar no feitiço e mudá-lo, se for preciso.
— Mudar como?
— Não posso dizer sem ver o desenho. Você mesmo terá de resolver. Agora, vá logo. Mas eu ainda penso que nós devíamos...
— Não, Zedd. Nós todos sabemos do que Darken Rahl é capaz. O que importa é a caixa, não um de nós. — Trocou um longo olhar com o velho amigo. — Cuide-se. E cuide de Kahlan. — Olhou para Chase. — Leve os dois para Michael. Ele poderá proteger a caixa melhor do que nós sozinhos. E não parem para me esperar. Eu os alcanço. — Richard olhou para ele com ar decidido. — Se eu não os alcançar, não quero que ninguém volte para me procurar. Tratem de tirar a caixa daqui. Compreenderam?
Chase olhou para ele muito sério.
— Por minha vida. — Disse brevemente como Richard podia encontrar o exército de Westland lá em cima do Rang’Shada.
Richard olhou para Kahlan.
— Tome conta de Siddin. Não se preocupe. Logo estarei de volta. Agora vão.
Zedd montou. Kahlan deu Siddin para o mago e fez um sinal para ele e para Chase.
— Vão. Eu os alcanço dentro de poucos minutos.
Zedd começou a protestar, mas a moça o interrompeu e disse outra vez para continuarem a viagem. Ela viu os dois cavalos e o lobo galopando na ponte e logo na estrada. Então se voltou para Richard.
Com profunda preocupação, ela disse: — Richard, por favor, deixe-me...
— Não.
Ela deu a ele as rédeas do cavalo. Os olhos verdes estavam cheios de lágrimas.
— Há perigos em Midlands que você não conhece. Tenha cuidado. — Uma lágrima rolou no rosto dela.
— Estarei de volta com você antes de ter tempo de sentir minha falta.
— Temo por você.
— Eu sei. Mas estarei bem.
Ela ergueu para ele os olhos que o desnorteavam.
— Eu não devia fazer isso.
Kahlan passou os braços em volta do pescoço dele e o beijou. Com força, rápida e desesperadamente.
Richard a abraçou e a puxou para ele, os lábios dela nos seus; o pequeno suspiro e a sensação dos braços dela o fizeram esquecer o próprio nome.
Aturdido, ele a viu pôr a bota no estribo e passar a perna sobre a sela. Kahlan puxou as rédeas, levando o cavalo para perto dele.
— Não se atreva a fazer tolice alguma, Richard Cypher. Prometa.
— Eu prometo. —Richard não disse que a idéia de permitir que algum mal acontecesse com ela era a maior tolice que podia imaginar.
— Não se preocupe. Estarei outra vez com você assim que esse feitiço for desfeito. Proteja a caixa. Rahl não a pode ter. É isso que importa. Agora vá.
Ele ficou segurando as rédeas do cavalo, vendo Kahlan atravessar a ponte a galope e desapareceu ao longe.
— Eu a amo, Kahlan Amnell — murmurou.
Batendo no pescoço do ruão para encorajá-lo, Richard levou o cavalo grande para fora da estrada e o esporeou ao longo da margem do regato. O cavalo galopava facilmente, espirrando a água rasa quando os arbustos impediam o caminho. Montanhas iluminadas pelo sol, a maioria sem árvores, erguiam-se ao longo do regaço. Quando as margens ficaram íngremes, ele conduziu o cavalo para o terreno mais alto, onde podia ir mais depressa. Richard estava atento à possibilidade de estar sendo seguido ou vigiado. Mas não viu ninguém. As montanhas pareciam desertas.
Penhascos brancos como giz se erguiam dos dois lados do regato, faces fendidas nas montanhas idênticas, uma de cada lado da água. Richard apeou antes que o cavalo parasse. Olhando em volta, ele o amarrou numa árvore de sumagre, com as frutas vermelhas já secas e murchas. Suas botas escorregaram na terra solta quando desceu a margem íngreme. Viu uma trilha estreita na inclinação de rochas e terra. Seguindo a trilha, chegou à entrada de uma caverna.
Com a mão no punho da espada, Richard espiou pela abertura, para ver se o artista ou qualquer outra pessoa estava lá dentro. Não havia ninguém. Logo depois da entrada, as paredes eram repletas de desenhos que cobriam toda a superfície e continuavam para o fundo escuro.
Richard ficou impressionado. Havia centenas de desenhos, talvez milhares. Alguns eram pequenos, não maiores do que sua mão, outros eram grandes, da sua altura. Cada um mostrava uma cena diferente. A maioria exibia apenas uma pessoa, mas alguns exi-biam mais. Era evidente que tinham sido desenhados por mãos diferentes. Alguns eram delicados, ricos em detalhes, com sombras e realces, mostrando pessoas com membros quebrados ou bebendo em xícaras com caveiras e ossos cruzados ou no campo, ao lado da colheita murcha. Outros eram feitos por mãos menos hábeis, as pessoas eram desenhadas com linhas simples. Mas as cenas eram igualmente medonhas. Richard concluiu que o talento do artista não era importante, o que contava era a mensagem.
Richard encontrou desenhos feitos por mãos diferentes sobre o mesmo assunto. As pessoas tinham uma espécie de mapa desenhado em volta delas, mas em cada um havia um círculo com a caveira e os ossos cruzados.
Feitiços do carcereiro.
Mas como encontrar o seu. Os desenhos estavam por toda a parte. Ele não sabia como era o seu. Procurou nas paredes, com o pânico crescendo dentro dele, entrando mais no escuro. Passava as mãos nos desenhos enquanto caminhava, tentando ver todos para não perder o seu. Olhava para todos os lados, espantado com o número de feitiços, procurando alguma coisa familiar, sem saber ao certo o que era ou onde estava.
Richard continuou a andar no escuro, pensando que talvez em algum lugar os desenhos acabassem e que os mais novos estivessem no fim. Estava escuro demais para ver. Foi até a entrada da caverna para apanhar um dos archotes de junco que tinha visto.
Antes de ir muito longe, colidiu com a parede invisível. Com pinico crescente, percebeu que estava preso na caverna. Seu tempo estava quase acabando. Os archotes estavam fora de alcance.
Ele correu para o escuro, procurando. Era difícil ver os feitiços e nunca chegava ao fim deles. Um pensamento definitivamente desagradável tomou conta de sua mente. Se fosse realmente necessário. A pedra da noite.
Sem tempo a perder, ele tirou da mochila a bolsa de couro. Olhou para ela, tentando decidir se seria uma ajuda ou simplesmente outro problema. Lembrou-se das vezes em que tinha visto a pedra fora da bolsa. Sempre demorava algum tempo para as sombras aparecerem. Talvez se a tirasse por pouco tempo, olhasse os desenhos e a guardasse, teria o tempo de que precisava até que as sombras o encontrassem. Não sabia se era uma boa idéia.
Se fosse realmente necessário.
Virou a bolsa e pôs a pedra na mio. A luz encheu a caverna. Richard não perdeu tempo e continuou a olhar os desenhos, porém cada vez se aprofundava mais, procurando o fim. Com o canto dos olhos, viu a primeira sombra se materializar. Ainda estava longe. Ele continuou a andar.
Finalmente, chegou ao fim dos desenhos. As sombras estavam quase em cima dele. Guardou a pedra na bolsa. No escuro, ele prendeu a respiração, com os olhos arregalados, esperando o toque doloroso da morte. Mas não veio. A única luz era um brilho fraco com um ponto cintilante no centro, a entrada, mas não era suficiente para ver os desenhos. Tinha de tirar outra vez a pedra da bolsa.
Antes disso, procurou no bolso e encontrou o pedaço de madeira macio e pegajoso que Zedd tinha dado. Segurando o graveto com mão firme, tirou a pedra da bolsa. A luz o cegou por um segundo. Virou a cabeça, procurando.
Então ele viu. O homem no desenho tinha sua altura, mas o resto era maior ainda. Era um desenho tosco, mas Richard sabia que era ele. A espada na mão direita tinha gravada a palavra Verdade. Havia um mapa em volta dele, igual ao que Kahlan desenhara ao chão. De um lado, a linha que circundava o mapa descia para o Callisidrin e chegava ao centro da ponte. Onde tinha colidido com a parede.
As sombras diziam seu nome. Richard olhou para cima e viu mãos procurando alcançá-lo. Guardou a pedra na bolsa e se encostou na parede, sobre seu desenho, com o coração batendo disparado. Desanimado, viu que o desenho era muito grande para apagar o circulo desenhado em volta. Se apagasse só uma parte, não tinha meio de saber onde ficava a abertura ou como apagar a abertura em que estava na caverna.
Richard recuou para ver melhor na próxima vez em que tirasse a pedra da bolsa. Então bateu na parede invisível. Seu coração pareceu perder uma batida A parede dava quase uma volta completa. Não tinha mais tempo.
Tirou a pedra e começou a apagar a espada, esperando desfazer sua identidade e anular o feitiço. As linhas se apagavam com grande dificuldade. Recuou um passo para ver e colidiu com a parede. As sombras estendiam as mãos para ele e diziam seu nome sedutoramente.
Richard tornou a guardar a pedra e ficou parado no escuro, respirando com dificuldade, quase em pânico com a sensação de ter caído numa armadilha. Sabia que não podia usar a espada contra as sombras enquanto trabalhava no desenho. Antes, quando lutou contra elas, precisou usar todas as suas forças. Tinha apagado a espada e não adiantou. O feitiço ainda o reconhecia. Não tinha tempo para apagar toda a linha que lhe circundava a figura. Sua respiração era agora um arquejo desesperado.
Então surgiu uma luz bruxuleante. Richard virou para trás. Um homem com um dos archotes de junco aproximou-se dele com um sorriso obsequioso. Era James, o artista.
— Achei que o encontraria aqui. Vim verificar. Posso ajudar em alguma coisa?
Pela risada dele, Richard percebeu que James não tinha a menor intenção de ajudar. James sabia que, com a parede entre os dois, Richard não podia usar a espada. Ele riu da impotência de Richard.
Richard olhou rapidamente para o lado. A luz do archote era suficiente para ver o desenho. A parede invisível empurrava seu ombro, levando-o para a parede da caverna. Com o toque vieram a náusea e a tontura. Estava a um passo da parede. Em poucos momentos seria encasulado, amassado ou envenenado.
Richard virou para o desenho. Enquanto trabalhava com uma das mãos, com a outra tirou do bolso o graveto que Zedd dissera que servia para alterar o desenho.
James se inclinou para a frente rindo baixinho, vendo Richard trabalhar.
O riso cessou.
— O que você está fazendo?
Richard não respondeu, começando a apagar a mão direita da figura.
— Pare com isso! — gritou James.
Richard o ignorou e continuou a apagar. James jogou o archote no chão, pegou um graveto e começou a desenhar rapidamente, seu cabelo oleoso sacudindo a cada movimento. James estava desenhando uma figura. Outro feitiço. Richard sabia que, se James terminasse antes dele, não teria uma segunda chance.
— Pare com isso, seu tolo! — gritou James, apressando-se a terminar seu desenho. A parede invisível fazia pressão nas costas de Richard, obrigando-o a chegar cada vez mais perto da parede da caverna. Mal tinha espaço para mexer os braços. James desenhou uma espada e começou a desenhar a palavra Verdade.
Com o graveto, Richard ligou com uma linha os dois lados do pulso da figura, amputando a mão. Exatamente como o defeito de James.
Quando terminou, a pressão nas costas se aliviou e a náusea desapareceu.
James gritou.
Richard se virou para trás e viu o artista se contorcendo no chão da caverna, encolhido como uma bola e vomitando. Richard estremeceu e pegou o archote.
O artista o olhou com olhos súplices.
— Eu... não ia deixar que a parede o matasse... Só queria prendê-lo...
— Quem o mandou fazer esse feitiço?
Com um sorriso fraco, James murmurou: — Mord-Sith. Você vai morrer...
— O que é um Mord-Sith?
Richard ouviu um longo suspiro e ossos se partindo. James estava morto. Richard não podia dizer que sentia muito...
Não sabia o que era um Mord-Sith, mas não ia esperar para descobrir. De repente, sentiu-se sozinho e vulnerável. Zedd e Kahlan o tinham avisado de que havia muitas coisas em Midlands, muitas criaturas de magia que eram perigosas e que ele não conhecia. Ele odiava Midlands, odiava a magia. Só queria voltar para Kahlan.
Richard correu para a entrada da caverna, deixando cair o archote no caminho. Correndo para a luz brilhante do sol, protegendo os olhos, parou de repente. Forçando a vista, viu um círculo de pessoas à sua frente. Soldados. Vestiam uniformes de couro negro e cota de malha com as espadas nos ombros, achas de batalha nos cintos largos.
A frente dos soldados, Richard viu uma pessoa diferente, uma mulher com cabelo longo castanho-avermelhado. Vestia couro dos pés à cabeça, justo como uma luva. Couro vermelho-sangue. O único desvio do vermelho era uma meia-lua amarela e uma estrela no peito. Richard viu que os homens usavam a mesma meia-lua e a estrela no peito, só que a deles era vermelha. A mulher olhou para ele sem emoção, a não ser o traço leve de um sorriso.
Richard parou com os pés bem separados defensivamente, a mão no punho da espada, sem saber o que fazer nem ter idéia do que eles queriam. Ela olhou para cima e para trás. Richard ouviu dois homens saltarem do penhasco. Sentiu a ira da espada dominando-o rapidamente através da mão que segurava o punho da arma. Com os dentes cerrados, ele conteve a espada enraivecida.
A mulher estalou os dedos para os dois homens, depois apontou para ele.
— Peguem-no. — Richard ouviu o som das espadas sendo desembainhadas.
Era tudo de que precisava saber. O compromisso estava feito.
O portador da morte.
Sua espada saiu da bainha num arco e ele se virou para trás. Liberou a cólera violentamente. Seus olhos encontraram os dos homens. Com os músculos do rosto contraídos de raiva, eles tiraram as espadas da bainha.
Richard manteve a Espada da Verdade abaixada, à altura da cintura, com toda sua força e peso subjacente a ela. As espadas dos dois homens se abaixaram defensivamente. Richard gritou com raiva letal, ódio letal. Necessidade letal. Entregou-se completamente ao desejo ardente de matar, sabendo que qualquer coisa menos do que isso significaria seu fim. A ponta da sua espada sibilou.
A portadora da morte.
Lascas de aço partido espiralaram no ar da manhã.
Dois rosnados. Um impacto, dois golpes molhados, como melões maduros caindo no chão. Entranhas saindo em longas tiras vermelhas. As partes superiores dos corpos caíram quando as pernas dobraram.
A espada continuou traçando uma linha de sangue. Ele voltou a se concentrar na raiva, no ódio, na necessidade. A mulher os comandava. Richard quem seu sangue. A magia se agitou dentro dele, completamente liberada. Richard gritava ainda. Ela ficou parada com a mão na cintura.
Richard olhou nos olhos dela e alterou levemente o curso da espada para que ela os atingisse. O sorriso dela só serviu para alimentar o fogo violento da sua ira. Os dois te entreolharam. A espada silvou no ar, na direção da cabeça da mulher. Sua necessidade de matar estava além do ponto de retorno.
A portadora da morte.
A dor da magia da espada o acometeu como uma cascata de água fria no corpo nu.
A lâmina não alcançou a mulher. A espada caiu no chão quando a dor o fez ajoelhar, dilacerando-o, dobrando seu corpo.
Com a mão ainda na cintura, ainda sorrindo, ela parou ao lado dele. Richard cruzou os braços com força, vomitando sangue, sufocando. Fogo queimava todo seu corpo. A dor da magia o estava consumindo, tirando o ar dos seus pulmões. Desesperadamente tentou controlar a magia, tentou afastar a dor, como tinha aprendido. Mas a magia não respondeu à sua vontade. Com pânico crescente, Richard compreendeu que não tinha mais controle sobre a magia.
A mulher a controlava.
Richard caiu com o rosto na terra, tentando em vão gritar, respirar. Pensou em Kahlan um instante, mas então a dor tirou-lhe até isso.
Nenhum dos homens do círculo se moveu. A mulher pôs o pé na nuca de Richard e, com o cotovelo apoiado num joelho, abaixou-se ao lado dele. Com a outra mão, segurou-o pelos cabelos e levantou sua cabeça. Ela chegou mais perto, o couro da sua roupa estalando.
— Ora, ora. E eu pensei que teria de torturá-lo por dias e dias até conseguir fazer com que sua raiva finalmente o fizesse usar sua magia contra mim. Bem, não se preocupe. Tenho outras razões para torturá-lo.
No meio da dor intensa, Richard compreendeu que cometera um erro terrível. De algum modo tinha dado a ela o controle da magia da espada. Sabia que estava na maior encrenca de toda a sua vida. Kahlan estava a salvo, ele pensou, era tudo que importava.
— Você quer que a dor vá embora, meu querido?
A pergunta o enraiveceu. A raiva que sentia dela, a vontade de matar aquela mulher intensificou a dor.
— Não — conseguiu dizer, reunindo todas as suas forças. Ela deu de ombros e soltou a cabeça dele.
— Tudo bem para mim. Mas quando resolver que quer se livrar da dor da magia, tudo que tem a fazer é parar de ter esses pensamentos horríveis a meu respeito. A partir de agora, eu controlo a magia da sua espada. Se pensar em erguer um dedo que seja Contra mim, a dor da magia o derrubará. — Ela sorriu. — E a única dor que poderá controlar. Pense algo agradável a meu respeito, que a dor desaparece.
“É claro que eu terei também o controle da dor da magia e posso a qualquer momento provocar outra dor, como vai verificar.”
Ela franziu a testa.
— Diga-me, meu querido, você tentou usar a magia contra mim porque é um tolo, ou porque se julga corajoso?
A dor aliviou um pouco. Richard tentou respirar. Ela amorteceu a dor apenas o bastante para que ele pudesse responder.
— Quem... é... você?
Outra vez ela ergueu a cabeça de Richard puxando seu cabelo e a virou para olhar nos olhos dele. Quando ela se abaixou, o pé no seu pescoço provocou uma dor aguda nos ombros. Richard não podia mover os braços. Ele viu a curiosidade no rosto dela.
— Você não sabe quem eu sou? Todos em Midlands me conhecem. Eu sou... Westland.
Ela ergueu as sobrancelhas, encantada.
— Westland! Ora, ora! Que delícia! Isso vai ser divertido. — Ela sorriu. — Eu sou Denna. Senhora Denna para você, meu querido. Sou uma Mord-Sith.
— Não... direi... onde Kahlan está. Acho melhor... me matar... agora.
— Quem? Kahlan?
— A Madre Confessora.
— Madre Confessora — disse ela, com repugnância. — Por que cargas d’água eu ia querer uma Confessora? É você, Richard Cypher, que Mestre Rahl me mandou buscar, ninguém mais. Um dos seus amigos o traiu para ele. — Virou a cabeça dele com força, apertou mais o pé no pescoço. — E agora eu tenho você. Pensei que seria difícil, mas você não me divertiu nem um pouco. Estou encarregada do seu treinamento. Mas é claro que você não sabe disso, uma vez que é de Westland. Olhe, uma Mord-Sith sempre se veste de vermelho quando tem de treinar alguém, para que o sangue não apareça muito. Tenho o pressentimento de que terei muito do seu sangue na minha roupa antes de terminar o treinamento. — Largou a cabeça dele e pôs todo o peso do pé no seu pescoço, com a mão a frente do rosto dele. Richard viu que as costas da luva eram protegidas por armadura até os dedos. Um bastão de couro vermelho-sangue, de uns trinta centímetros, pendia do pulso num elegante cordão de ouro. Balançava de um lado para outro à frente dos olhos dele.
— Este é o Agiel. É parte do que usarei para treinar você. — Olhou para ele com um sorriso, erguendo uma sobrancelha. — Curioso? Quer ver como funciona?
Denna comprimiu o Agiel no lado do corpo de Richard. Richard gritou de dor, embora não quisesse dar a ela essa satisfação. Todos os seus músculos enrijeceram com a agonia daquela coisa no seu corpo. Sua mente só pensava em se livrar daquilo. Denna pressionou um pouco mais, fazendo-o gritar mais alto. Richard ouviu um estalo e sentiu uma costela se quebrando.
Ela retirou o Agiel e sangue quente brotou do lado do corpo dele. Richard estava coberto de suor, deitado na terra, ofegante, as lágrimas escorrendo dos olhos. Tinha a impressão de que a dor lhe dilacerava todos os músculos. Tinha terra e sangue na boca.
Com um sorriso cruel e zombeteiro. Denna disse: — Agora, meu querido, diga: “Obrigado, senhora Denna, por me ensinar.” — O rosto dela se aproximou. — Diga.
Reunindo toda a sua força mental, Richard focalizou seu desejo de matá-la e visualizou a espada explodindo na cabeça dela.
— Morra, cadela.
Denna estremeceu e semicerrou os olhos, passando a língua no lábio superior em êxtase.
— Oh, essa foi uma visão deliciosamente cruel, meu querido. É claro que você vai aprender a se arrepender seriamente de ter dito isso. Treinar você vai ser um divertimento especial. Pena que não saiba o que é uma Mord-Sith. Se você soubesse, estaria com muito medo. Eu gostaria muito. — Sorriu, mostrando os dentes perfeitos. — Mas acho que vou ter o prazer de surpreendê-lo mais ainda.
Richard guardou a visão de matar aquela mulher até ficar inconsciente.
Richard abriu um pouco os olhos. Confuso, viu que estava deitado de bruços num chão frio de pedra, iluminado por um archote. As paredes de pedra não tinham janelas para ele saber se era dia ou noite. Tinha um gosto amargo na boca. Sangue. Tentou pensar onde podia estar e por quê. Uma dor aguda no lado o fez prender a respiração quando tentou inalar. Todo o seu corpo doía, latejava. Era como se tivesse sido espancado com um bastão.
A lembrança do pesadelo voltou à sua mente. Pensou em Denna e a cólera se acendeu. Imediatamente a dor da magia o fez perder o fôlego. O choque inesperado o fez dobrar os joelhos, com um gemido de agonia. Richard afastou a ira da mente. Pensou em Kahlan, lembrou o beijo dela. A dor desapareceu. Desesperado, tentou continuar a pensar em Kahlan, não suportaria outra vez aquela dor. Era demais.
Tinha de pensar num meio de sair daquela situação. Se não controlasse a raiva, não teria chance. Lembrou-se do seu pai dizendo que raiva não era coisa boa, que durante quase toda a vida tinha conseguido controlá-la. Zedd dizia que muitas vezes era mais perigoso liberar a ira do que abafá-la. Aquela era uma dessas vezes. Tinha uma vida inteira de experiência de manter a cólera sob controle. Devia fazer isso agora. Esse pensamento lhe trouxe uma fagulha de esperança.
Cautelosamente, sem se mover muito, procurou avaliar sua situação. A espada estava na bainha, a faca também, a pedra da noite ainda no bolso. Sua mochila estava encostada na parede. O lado esquerdo da camisa estava cheio de sangue seco. A cabeça latejava mas não estava pior do que o resto do corpo.
Virou um pouco a cabeça e viu Denna reclinada numa cadeira, com os tornozelos cruzados. Com o cotovelo direito apoiado numa mesa de madeira, comia alguma coisa de um prato que segurava com a outra mão. Vigiando Richard. Ele pensou que talvez devesse dizer alguma coisa.
— Onde estão seus homens?
Denna mastigou por algum tempo, olhando para ele. Finalmente pôs o prato na mesa e apontou para um ponto no chão ao seu lado. Sua voz era calma, quase gentil.
— Fique de pé aqui.
Com grande dificuldade, Richard se levantou e foi para onde ela apontou. Denna olhava para ele sem emoção. Richard esperou em silêncio. Ela se levantou e, com o pé, empurrou a cadeira para o lado. Era quase da altura dele. Deu as costas para Richard, apanhou uma luva na mesa e a calçou na mão direita, puxando bem os dedos da luva para baixo.
Então virou bruscamente t bateu com força na boca de Richard com as costas da mão enluvada. A parte encouraçada cortou seu lábio.
Imediatamente, antes que a raiva o dominasse, Richard pensou num belo lugar na Floresta Hartland. Seus olhos se encheram de lágrimas com o ardor do corte.
Com um sorriso amistoso, ela disse: — Você esqueceu o título, meu querido. Eu já disse, deve me chamar de senhora ou de senhora Denna. Tem sorte de ter a mim como treinadora, a maioria dos Mord-Sith não é tão leniente. Eles teriam usado o Agiel na primeira ofensa. Mas eu tenho um lugar no coração para homens bonitos e, além disso, embora a luva não seja um bom castigo, devo admitir que sou favorável ao seu uso. Gosto de fazer contato. O Agiel é estimulante mas não substitui o uso das mãos para sentir o que se faz, — Franziu a testa e sua voz endureceu.
— Tire a mão do lábio.
Richard obedeceu e ficou com as mãos dos dois lados do corpo. Sentia o sangue pingar do queixo. Denna olhou satisfeita. Inesperadamente, ela se inclinou e lambeu o sangue do queixo dele, saboreando com prazer. Aparentemente, isso a excitou. Apertou o corpo contra o de Richard e dessa vez sugou os lábios dele, depois mordeu bem em cima do corte. Richard fechou os olhos e as mãos, segurando a respiração até ela recuar, lambendo o sangue dos lábios com um sorriso. Ele estremeceu de dor, mas manteve na mente a visão da Floresta Hartland.
— Esse foi só um leve aviso, como você logo vai ver. Agora, repita a pergunta apropriadamente.
Richard resolveu que ia chamá-la de Senhora Denna e que seria um título de respeito e que nunca a chamaria simplesmente de Senhora. Seria seu modo de lutar contra ela, de manter o amor-próprio. Pelo menos em sua mente.
Ele respirou profundamente para firmar a voz.
— Onde estão seus homens, Senhora Denna?
— Muito melhor assim — disse ela, com voz branda. — A maioria dos Mord-Sith não permite que as pessoas que estão sendo treinadas falem, muito menos que façam perguntas, mas eu acho que isso é tedioso. Gosto de falar com quem treino. Como eu disse, você tem sorte por eu ser sua treinadora — continuou com um sorriso gelado. — Mandei meus homens embora. Não preciso mais deles. Só são usados para capturar e manter o cativo até ele usar sua mágica contra mim. Então não são mais necessários. Você não pode fazer nada para escapar ou para lutar. Nada.
— E por que tenho ainda minha espada e minha faca?
Tarde demais, ele lembrou. Ergueu a mão fechada para proteger o rosto. O ato de deter Denna trouxe outra vez a dor da magia. O Agiel foi aplicado no seu estômago. Richard rolou no chão, gritando de agonia.
— Levante-se!
Richard sufocou a raiva para eliminar a dor da magia, mas a dor do Agiel não desapareceu tão depressa. Levantou-se com grande dificuldade.
— Agora ajoelhe-se e peça perdão.
Richard demorou para se mover e ela aplicou o Agiel com força no ombro dele. Seu braço ficou entorpecido.
— Por favor, senhora Denna, perdoe-me.
— Assim é melhor — sorriu ela. — Levante-se. — Ela esperou que de ficasse de pé. — Você tem sua espada e sua faca porque não constituem perigo para mim e talvez algum dia você as use para proteger sua senhora. Prefiro que meus bichinhos de estimação fiquem com suas armas, como lembrança constante de que são impotentes contra mim.
Deu as costas para ele e tirou a luva. Richard sabia que ela estava certa: a espada tinha magia e ela a controlava. Mas imaginou se seria esse o único meio. Precisava saber. As mãos dele se estenderam para o pescoço dela.
Denna continuou a descalçar a luva devagar quando Richard caiu de joelhos, gritando com a dor da magia. Desesperadamente, procurou pensar na Floresta Hartland. A dor diminuiu e ele se levantou quando ela mandou. Denna o olhou, impacientemente.
— Você vai dificultar as coisas, certo? — Seu rosto desanuviou e ela sorriu suavemente. — Mas acontece que gosto quando um homem dificulta o treinamento. Mas você está fazendo errado. Eu disse que para fazer passar a dor deve pensar em algo agradável a meu respeito. Não é o que está fazendo. Está pensando em árvores idiotas. Este é o último aviso. Pense alguma coisa agradável a meu respeito para fazer passar a dor da magia, ou eu o deixarei em agonia a noite inteira. Compreendeu?
— Sim, Senhora Denna.
Com um largo sorriso, ela disse: — Muito bem. Está vendo? Você pode ser treinado. Apenas lembre alguma coisa agradável a meu respeito. — Segurou as mãos de Richard e, olhando nos olhos dele, comprimiu-as sobre os seios. — Penso que a maioria dos homens focaliza seus pensamentos agradáveis aqui. — Chegou mais perto, segurando as mãos dele contra ela, e disse, com voz leve: — Mas se você prefere outra coisa, por favor, deixe que sua mente a visualize.
Richard decidiu que achava seu cabelo bonito e que isso era a única coisa agradável que pensaria dela. A dor inesperada o fez cair de joelhos, até não poder respirar. Abriu a boca, mas em vão. Seus olhos pareciam que iam saltar das órbitas.
— Agora mostre que você pode fazer o que eu mando. Elimine a dor quando quiser, mas como eu mandei.
Richard olhou para o cabelo dela. Sua vista estava embaçada. Concentrou-se e pensou o quanto achava atraente sua trança. Obrigou-se a pensar nela como bonita. A dor aumentou e ele caiu de lado, sem poder respirar.
— Levante-se. — Richard obedeceu, ainda ofegante. — Esse é o modo certo. É o único modo que poderá remover a dor no futuro, do contrário mudarei a magia e nunca mais poderá se livrar dela. Compreendeu?
— Sim, Senhora Denna. — Richard ainda tentava respirar. — Senhora Denna, a senhora disse alguma coisa sobre alguém ter me traído. Quem foi?
— Um dos seus.
— Nenhum dos meus amigos faria isso, Senhora Denna.
Ela olhou para ele com desprezo. — Então eu diria que não são realmente seus amigos, certo?
Richard olhou para o chão e sentiu um nó na garganta. — Não, Senhora Denna, mas quem foi?
Ela deu de ombros. — Mestre Rahl não julgou importante me dizer. A única coisa importante que você deve saber agora é que ninguém virá salvá-lo. Você nunca mais será livre. Quanto antes aprender isso, mais fácil será para você, mais fácil também seu treinamento.
— E qual o propósito do meu treinamento, Senhora Denna?
Ela voltou a sorrir.
— Ensinar a você o significado da dor. Ensinar que sua vida não é mais sua, é minha e posso fazer o que quiser com ela. Qualquer coisa. Posso machucá-lo como eu quiser e ninguém vai ajudar você. Só eu. Vou ensinar que cada momento que você tiver sem dor é um momento que só eu posso determinar. Você vai aprender a me obedecer sem questionar, sem hesitar, seja o que for. Vai aprender a pedir qualquer coisa que queira.
— Depois de alguns dias de treinamento aqui — e acho que você já fez um grande progresso —, eu o levarei a outro lugar, onde os outros Mord-Sith e eu continuaremos seu treinamento até o fim, não importa o tempo que for preciso. Deixarei que outros Mord-Sith brinquem com você, para que veja como tem sorte em ter a mim. Eu gosto de homens. Outras os odeiam. Deixarei que algumas delas o tenham por algum tempo, para que você veja como sou gentil.
— E qual o propósito desse treinamento, Senhora Denna? Qual o objetivo? O que vocês querem?
Ela parecia realmente ter prazer dizendo essas coisas.
— Você é especial. O próprio Mestre Rahl quis que fosse treinado — continuou com um largo sorriso. —Ele mandou me chamar para isso. Imagino que ele queira perguntar alguma coisa a você. Não deixarei que me embarace aos olhos dele. Quando terminar com você, vai pedir para dizer qualquer coisa que ele queira saber. Quando Mestre Rahl terminar, você será meu para o resto da vida. Por mais longa que seja.
Richard teve de se concentrar no cabelo dela, para dominar a raiva. Sabia o que Darken Rahl queria saber. Ele queria saber onde estava o Livro das Sombra Contadas. A caixa estava a salvo. Kahlan também. Nada mais importava. Denna podia matá-lo, ele pouco se importava. Na verdade, ela estaria lhe fazendo um favor.
Denna olhou para Richard dos pés à cabeça, andando em volta dele.
— Se for um bom animalzinho de estimação, posso escolher você para meu companheiro. — Parou à frente de Richard, com o rosto muito perto do dele e um sorriso tímido. — Companheiro da Mord-Sith para a vida toda. — O sorriso mostrava os dentes, — Tive muitos companheiros. Mas não fique muito entusiasmado com a perspectiva, meu animalzinho — murmurou ela. — Duvido de que vá gostar da experiência, se viver. Nenhum deles está vivo. Todos morreram depois de um curto espaço de tempo.
Richard não achou que precisava se preocupar com aquilo. Darken Rahl queria o livro. Se ele não descobrisse um meio de fugir, Darken Rahl o mataria do mesmo modo com que matou seu pai e Giller. O máximo que ele podia ficar sabendo com a leitura das entranhas de Richard era o lugar onde estava — dentro da sua cabeça — e, por mais que ele lesse suas entranhas, Richard não recitaria o livro para ele. Só esperava viver o bastante para ver a surpresa de Rahl quando percebesse que havia cometido um erro fatal.
Sem o livro, sem a caixa, Darken Rahl era um homem morto. Só isso importava. Quanto à questão de ter sido traído, decidiu que não acreditava. Darken Rahl sabia as Regras do Mago e estava usando apenas a primeira, tentando fazer com que Richard tivesse medo da possibilidade. O primeiro passo para acreditar. Richard resolveu que não ia ser enganado pela Primeira Regra do Mago. Conhecia Zedd. Chase e Kahlan. Não ia acreditar mais em Darken Rahl do que nos seus amigos.
— A propósito, onde você conseguiu a Espada da Verdade?
Richard olhou nos olhos dela.
— Comprei do último homem que a usou, Senhora Denna.
— E mesmo? O que você teve de dar a ele?
Sempre olhando nos olhos dela, Richard respondeu: — Tudo que eu tinha. Ao que parece, custou também minha liberdade e provavelmente minha vida.
Denna riu.
— Você tem coragem. Gosto de domar um homem com coragem. Sabe por que Mestre Rahl me escolheu?
— Não, Senhora Denna.
— Porque sou inflexível. Posso não ser tão cruel quanto os outros, porém tenho mais prazer do que eles em quebrar a vontade de um homem. Gosto de machucar meus animaizinhos de estimação mais do que tudo no mundo. Vivo para isso. — Ergueu uma sobrancelha e sorriu. — Eu nunca desisto, nunca me canso e nunca cedo. Nunca.
— Sinto-me honrado, Senhora Denna, por estar nas mãos da melhor.
Ela encostou o Agiel no corte do lábio dele e segurou ali até Richard cair de joelhos, com as lágrimas descendo dos olhos.
— Essa é a última coisa irreverente que quero ouvir de você. — Tirou o Agiel e deu uma joelhada na boca de Richard. Ele caiu para trás. Denna pôs o Agiel no estômago dele. Antes de Richard desmaiar, ela o retirou. — O que você tem a dizer?
— Por favor, Senhora Denna — conseguiu ele dizer com o maior esforço —, perdoe-me.
— Tudo bem, levante-se. Está na hora de começar o treinamento.
Denna apanhou alguma coisa da mesa e apontou para um lugar no chão.
— Fique de pé ali. Agora!
Richard se moveu o mais depressa possível. Não podia endireitar o corpo. A dor não permitia. Ficou de pé no lugar indicado, respirando com dificuldade, suando. Denna deu a de uma coisa presa a uma corrente. Era uma coleira de couro da mesma cor da sua roupa.
Então ela disse, com voz estranhamente suave: — Ponha a coleira.
Richard não estava em condição de fazer perguntas. Convenceu-se de que faria qualquer coisa para evitar o Agiel. Prendeu a coleira no pescoço. Denna pegou a corrente. Na extremidade havia um laço de metal que ela prendeu no espaldar da cadeira.
— A magia castigara você por contrariar meus desejos. Quando eu ponho a corrente em algum lugar, quero que fique lá até eu a soltar. Quero que aprenda que não pode remover a coleira. — Apontou para a porta aberta. — Durante a próxima hora, tente tanto quanto possível chegar àquela porta. Se tão tentar realmente, é isto que farei no resto da hora. — Pós o Agiel no lado do pescoço dele até Richard cair de joelhos, gritando de agonia e pedindo a ela para parar. Denna retirou o Agiel e mandou que ele começasse, depois se encostou numa parede, com os braços cruzados.
A primeira coisa que ele fez foi simplesmente tentar andar para a porta. A dor dobrou suas pernas antes que pudesse pôr uma pequena tensão na corrente e só parou quando ele recuou, procurando voltar para a cadeira.
Richard levou a mão à coleira. A dor da magia prendia seus braços e ele tremeu quando tentou tocar a coleira. O suor escorria do seu rosto. Ele tentou voltar para a cadeira depois se virar, mas antes que seus dedos tocassem a corrente, a dor o derrubou outra vez. Com esforço, Richard tentou alcançar a cadeira, mas não suportou a dor e caiu novamente no chão, vomitando sangue. Quando terminou, apoiou-se na mão, com as lágrimas escorrendo no rosto, a outra mão no estômago, tremendo. Com o canto dos olhos viu Denna descruzar os braços e se desencostar da parede. Richard começou a se mover outra vez.
O que ele estava fazendo evidentemente não ia funcionar. Tinha de pensar em alguma coisa. Ele desembainhou a espada, pensando em levantar a corrente. Por um breve momento e com o maior esforço, conseguiu tocar na corrente com a lâmina. A dor o fez soltar a espada. Só podia fazer passar a dor se pusesse a espada na bainha.
Richard teve uma idéia. Deitou-se no chão e, com um movimento rápido, chutou a cadeira debaixo da corrente antes que a dor o paralisasse. A cadeira deslizou no chão, bateu na mesa e caiu. A corrente se soltou.
A vitória durou pouco. Com a corrente fora da cadeira, a dor aumentou. Ele caiu no chão sufocado, tentando respirar. Com esforço, Richard se arrastou no chão de pedra. A cada centímetro que se adiantava, a dor aumentava até ele não conseguir mais enxergar. Parecia que seus olhos iam explodir. Tinha conseguido se mover apenas uns sessenta centímetros. Não sabia o que fazer, a dor o impedia de se mover e de pensar.
— Por favor, Senhora Denna — murmurou com toda a força que tinha ainda —, me ajude. Por favor! — Percebeu que estava chorando, mas não se importou. Só queria a corrente outra vez na cadeira, para a dor passar.
Ouviu os passos dela. Denna se inclinou, pegou a cadeira do chão e refez o laço na cadeira. A dor desapareceu mas ele não conseguiu parar de chorar, deitado no chão.
Denna parou perto dele, com as mãos na cintura.
— Foram só quinze minutos, mas, como tive de ajudar você, a hora começa agora. Da próxima vez em que eu tiver de ajudá-lo, serão duas horas. — Inclinou-se e encostou o Agiel no estômago dele, a dor explodiu dentro do seu corpo. — Entendeu?
— Sim, Senhora Denna — exclamou ele. Richard temia que houvesse um meio de escape e temia o que podia acontecer se o encontrasse e tinha medo de não tentar. Se havia um meio, até o fim daquela hora de não achou.
Denna ficou de pé ao lado dele e Richard se apoiou nas mãos e nos joelhos.
— Acha que compreende agora? Compreende o que acontecera se você tentar escapar?
— Sim, Senhora Denna. — E ele realmente compreendia. Não havia meio de escapar. O desespero o dominou, como se fosse sufocá-lo. Richard queria morrer. Pensou na faca que tinha no cinto.
— Levante-se. — Como se estivesse lendo sua mente, ela disse com voz suave: — Se pensa que seu serviço como meu animal de estimação pode acabar, pense outra vez. A magia evitará que se mate, como evita que você mova a corrente do lugar. — Richard piscou os olhos, atordoado. — Não há meio de você escapar daqui, nem pela morte. Você será meu o tempo que eu achar que deve viver.
— Não será muito longo, Senhora Denna. Darken Rahl vai me matar.
— Talvez. Mas, mesmo que isso aconteça, será só depois de você revelar o que ele quer saber. O que eu quero é que você responda às perguntas dele e você vai fazer o que eu quero, sem hesitar. — Os olhos castanhos de Denna tinham a dureza do aço. — Talvez você não acredite agora, mas não tem idéia de como sou boa para treinar pessoas. Nunca deixei de quebrar a vontade de um homem. Você pode pensar que será o primeiro, mas logo começará a implorar para me agradar.
O primeiro dia de tortura não havia terminado e Richard já tinha certeza de que faria quase qualquer coisa que ela quisesse. Denna tinha semanas para treiná-lo. Se Richard pudesse se matar, já o teria feito. A pior coisa era saber que ela estava certa, ele não podia fazer nada para detê-la. Estava à mercê de Denna e sabia que ela nem começara ainda.
— Compreendo, Senhora Denna. Acredito no que diz. — O sorriso amável de Denna o fez pensar em como era bonito o cabelo dela.
— Ótimo. Agora, tire a camisa. — Sorriu vendo a expressão intrigada dele e o modo como começou a desabotoar a camisa. Denna segurou o Agiel na frente dos olhos dele. —Está na hora de você aprender todas as coisas que o Agiel pode fazer. Se não tirar a camisa, vai ficar coberta de sangue e não poderei encontrar um novo lugar no seu corpo. Vai entender por que minha roupa é vermelha.
Richard tirou a camisa. Respirava com dificuldade, quase em pânico. — Mas, Senhora Denna, o que eu fiz de errado?
Ela pôs a mão no lado do rosto dele, fingindo preocupação. — Ora, você não sabe? —Richard balançou a cabeça, sentindo um nó na garganta. —Você se deixou capturar por uma Mord-Sith. Devia ter matado todos os meus homens com sua espada. Tenho certeza de que poderia ter feito isso. Você foi impressionante, até onde chegou. Então devia ter usado a faca para me matar, quando eu ainda estava vulnerável, antes de controlar a magia. Jamais devia ter me dado a chance de controlar a magia. Nunca devia ter usado a magia contra mim.
— Mas por que precisa usar o Agiel agora?
Ela riu.
— Porque você quer aprender. Aprender que posso fazer o que quiser e de modo algum você pode me deter. Deve aprender que está completamente indefeso e que, se está tendo o prazer de algum tempo sem dor, é só porque eu quero assim. — O sorriso desapareceu. Ela foi até a mesa e voltou com algemas presas a uma corrente. — Muito bem. Você tem um problema que me desagrada. Está sempre caindo. Vamos consertar isso. Ponha isto.
Jogou as algemas para ele. Richard se esforçou para controlar a respiração quando fechou as algemas nos pulsos trêmulos. Denna arrastou a cadeira para baixo de uma viga do teto e o mandou ficar bem debaixo dela. Subiu na cadeira para prender a corrente numa cavilha de ferro.
— Estique o corpo. Ainda não alcanço. — Richard teve de ficar nas pontas dos pés para que ela prendesse a corrente. — Pronto — ela sorriu. — Agora não teremos mais o problema de você estar sempre caindo.
Dependurado na corrente, Richard tentou controlar o terror; as algemas cortavam os pulsos por causa do seu peso. Sabia que não era possível ter feito nada antes, mas isso era diferente. Aumentava sua impotência, o fazia muito mais consciente de que não podia lutar. Denna calçou as luvas, andou em volta dele várias vezes, batendo o Agiel na mão, prolongando sua ansiedade.
Se ao menos tivesse sido morto tentando deter Darken Rahl, estaria preparado para pagar esse preço. Isso era diferente. Era morte sem morrer. Morte em vida. Não lhe seria permitida sequer a dignidade de lutar. Sabia o que o Agiel podia fazer. Ela não precisava mostrar outra vez. Denna só fazia aquilo para tirar dele todo o orgulho, todo o amor-próprio. Para dominá-lo.
Denna bateu com o Agiel no peito e nas costas dele, sem parar de andar. Cada batida era como uma punhalada. Cada contato o fazia gritar de dor e girar na corrente e Richard sabia que ela nem tinha começado ainda. O primeiro dia não terminara e haveria muitos outros. Richard chorava por estar completamente indefeso.
Richard imaginou seu senso de individualidade, sua dignidade como coisas vivas que podia ver em sua mente. Imaginou um quarto. Um quarto inacessível. Pôs a dignidade e o amor-próprio dentro dele e trancou a porta. Ninguém teria a chave. Nem Denna, nem Darken Rahl. Só ele. Suportaria o que estava para vir, sem sua dignidade. Faria o que tinha de fazer e algum dia abriria a porta e seria ele mesmo outra vez, nem que fosse só na morte. Mas, por enquanto, seria escravo de Denna. Por enquanto. Mas não para sempre. Algum dia aquilo tinha de acabar.
Denna segurou o rosto dele com as duas mãos e o beijou com força bastante para fazer o lábio ferido latejar e arder. Aparentemente ela sentia mais prazer em beijá-lo quando estava prestes a começar a tortura. Ela afastou o rosto do dele, com imenso prazer nos olhos. — Vamos começar, meu querido? — murmurou ela.
— Por Favor, Senhora Denna — murmurou ele —, não faça isso.
Ela Sorriu.
— Era o que eu queria ouvir.
Denna começou a mostrar o que o Agiel podia fazer. Se o passasse no corpo dele formaria vergões inchados e se o apertasse um pouco mais, os vergões se encheriam de sangue. Quando ela encostou o Agiel no seu corpo, Richard sentiu uma umidade morna na pele suada. Ela podia também provocar exatamente a mesma dor sem deixar marcas. Os dentes de Richard doíam com a força com que ele os cerrava. Às vezes Denna ficava atrás dele esperando que estivesse desprevenido, para usar o Agiel. Quando cansou disso, mandou-o fechar os olhos enquanto ela andava em volta dele, apertando um lugar com o Agiel ou passando-o no peito dele.
Ela ria quando conseguia fazer com que Richard se preparasse para a dor do Agiel e não o usava. Um golpe especialmente violento o fez abrir os olhos, dando a ela pretexto para usar a luva. Ela o fez pedir perdão por abrir os olhos sem ser mandado. Os pulsos de Richard sangravam por causa das algemas que cortavam sua carne. Era impossível aliviar o peso do corpo na corrente.
Richard só perdeu o controle da raiva quando Denna pôs o Agiel na sua axila. Denna sorriu vendo-o girar o corpo, tentando pensar no cabelo dela. Percebendo que Richard tinha perdido o controle da raiva, ela se concentrou na área por um longo tempo, mas ele não repetiu o erro. Uma vez que ele não demonstrou novamente a dor da magia, ela se encarregou disso e, quando provocada por ela, Richard não conseguia se livrar, por mais que tentasse. Richard teve de pedir a ela que o fizesse. Às vezes ela ficava na frente dele, vendo-o segurar a respiração. Algumas vezes, apertava com força o corpo contra o dele, o couro duro renovando a dor de cada ferimento.
Richard não teve idéia do quanto durou essa tortura. A maior parte do tempo não percebia coisa alguma, a não ser a dor, como uma coisa viva dentro dele. Só sabia que, em algum momento, faria tudo que ela mandasse, não importava o quê, se pelo menos deixasse de torturá-lo. Ele procurou não olhar para o Agiel. Só de vê-lo seus olhos se enchiam de lágrimas. Denna estava certa, nunca se cansava ou se entediava com o que fazia. Parecia que aquele trabalho a fascinava, divertia, satisfazia. A única coisa que a fazia mais feliz do que provocar dor era quando de lhe implorava para parar. Richard teria implorado mais para fazer Denna feliz, mas quase todo o tempo era incapaz de falar. Respirar era quase mais do que podia suportar.
Não tentava mais diminuir a pressão nos pulsos e ficou dependurado flácido, delirante. Pensou que a tortura tinha parado por algum tempo, mas era tanta a dor que sentia ainda, que não tinha certeza. O suor nos olhos o cegava, escorria nos ferimentos, queimando como fogo.
Quando sua mente clareou um pouco, ela voltou e ficou atrás dele. Richard juntou todas as forças, preparando-se para o que sabia que ia acontecer. Mas Denna puxou sua cabeça para trás pelo cabelo.
— Agora, meu bichinho, vou mostrar uma coisa nova. Vou mostrar que sou uma dona realmente bondosa. — Puxou a cabeça dele para trás até a dor fazer Richard retesar os músculos do pescoço para resistir à pressão. Denna pôs o Agiel no pescoço dele. — Pare de lutar contra mim, ou não tiro mais.
O sangue escorria na sua boca. Richard relaxou os músculos, deixando que ela puxasse sua cabeça à vontade.
— Agora, meu querido, ouça com atenção. Vou pôr o Agiel no seu ouvido direito. — Richard quase sufocou de medo. Denna puxou a cabeça dele para fazê-lo parar. — É diferente de qualquer outro lugar. É muito mais doloroso. Mas você deve fazer exatamente o que eu mandar. — Ela falou com a boca muito perto do ouvido dele, murmurando como uma amante: — No passado, quando eu tinha uma irmã Mord-Sith comigo, nós duas aplicávamos o Agiel nos dois ouvidos do homem ao mesmo tempo. O grito era diferente de qualquer outro. O som é embriagador. Fico arrepiada só de lembrar.
“Mas isso também os matava. Nunca tivemos sucesso com o uso de dois Agíeis ao mesmo tempo daquele modo, sem os matar. Tentamos por longo tempo, mas eles sempre morriam. Agradeça por ser eu a sua dona; outras continuam tentando.”
— Obrigado, Senhora Denna. — Richard não sabia ao certo o que estava agradecendo, mas não queria que ela fizesse fosse o que fosse que tinha planejado.
— Preste atenção — murmurou ela asperamente. Então sua voz suavizou outra vez. — Quando eu fizer isso, você deve ficar imóvel. Do contrário, danificará coisas dentro de você. Não o matará, mas provocará dano irreparável. Alguns homens que se movem ficam cegos, outros não podem mover um lado do corpo, outros ainda perdem a fala ou nunca mais podem andar. Mas em todos os que não ficam imóveis, alguma coisa é danificada. Quero você perfeitamente funcional. Mord-Siths mais cruéis do que eu não dizem aos seus animaizinhos para não se moverem, simplesmente aplicam o Agiel sem os avisar. Então, está vendo? Não sou tão cruel como pensa. Porém poucos dos homens em quem eu fiz isso conseguiram ficar imóveis. Mesmo depois de serem avisados, ficam danificados para sempre.
Richard não se conteve e gritou: — Senhora Denna, por favor, não faça isso, por favor.
Richard sentiu o hálito do sorriso dela. Denna passou a língua na orelha dele e a beijou.
— Mas eu quero fazer, meu querido. Não esqueça, fique parado, não se mova.
Richard cerrou os dentes, mas nada o teria preparado para aquilo. Era como se sua cabeça fosse de vidro e estivesse sendo estilhaçada. Suas unhas cortaram as palmas das mãos. Toda noção de tempo desmoronou com todo o resto. Ele estava num deserto de agonia sem começo nem fim. Cada nervo do seu corpo queimava com um tormento agudo como uma navalha. Não teve idéia do tempo que durou, mas quando ela o retirou, seus gritos ecoavam nas paredes de pedra.
Quando finalmente Richard relaxou o corpo, Denna beijou sua orelha e murmurou ofegante: — Foi um grito simplesmente delicioso, meu querido. Nunca ouvi melhor. Exceto o grito da morte, é claro. Você foi muito bem, não se moveu nem um centímetro. — Beijou o pescoço dele carinhosamente, depois a orelha outra vez. — Vamos tentar o outro lado?
Richard relaxou todo o corpo. Não podia sequer chorar. Denna puxou com força a cabeça dele para trás e passou para o outro lado.
Quando finalmente ela terminou e soltou a corrente, Richard caiu falecidamente no chão. Não acreditava que seria capaz de se mover, mas, quando Denna fez um gesto com o Agiel, só de ver o instrumento de tortura ele fez o que ela quis.
— Por hoje é só, meu querido. — Richard pensou que ia morrer de alegria — Vou dormir um pouco. Hoje foi só uma parte do dia, amanhã teremos o dia inteiro de treinamento. Você vai achar um dia inteiro muito mais doloroso.
Richard estava exausto demais para pensar no amanha. Tudo que queria era se deitar. O chão de pedra era a melhor cama que já tinha visto. Olhou para o chão ansiosamente.
Denna levou a cadeira para debaixo da viga, soltou a corrente do pescoço dele e aprendeu no gancho de ferro. Richard olhava confuso, cansado demais para imaginar a intenção dela. Quando terminou, Denna foi para a porta. Richard viu que a corrente não dava para deitar no chão.
— Senhora Denna, como vou dormir?
Ela se voltou com um sorriso condescendente.
— Dormir. Não me lembro de ter dito que você podia dormir. O sono é um privilegio que você ganha. Você não o mereceu ainda. Não se lembra desta manhã, quando teve aquela maldosa visão de me matar com sua espada? Lembra que eu disse que você ia se arrepender?
Ela fez menção de sair do quarto, mas voltou.
— E se está pensando em tirar a corrente do gancho e deixar que a dor o faça desmaiar, eu não tentaria se fosse você. Mudei a magia. Agora ela não permite que você perca a consciência. Se tirar a corrente ou cair no chão acidentalmente e for estrangulado pela corrente, não estarei aqui para ajudá-lo. Você ficará sozinho durante toda a noite, com a dor. Pense nisso, se tiver sono. Denna saiu do quarto, levando o archote.
Richard ficou no escuro, chorando. Depois de algum tempo, obrigou-se a parar e pensou em Kahlan. Era algo agradável que Denna não podia tirar dele. Pelo menos não essa noite. Esforçou-se para se sentir bem por saber que Kahlan estava a salvo e com pessoas para protegê-la. Zedd e Chase e logo o exército de Michael. Imaginou onde ela estaria naquele momento, num acampamento em algum lugar, com Siddin e Rachel, tomando conta deles, contando histórias, fazendo-os rir.
Richard sorriu vendo a imagem de Kahlan em sua mente. Saboreou a lembrança daquele beijo, a sensação do corpo dela junto ao seu. Mesmo de tão longe, Kahlan ainda o fazia sorrir e feliz. O que acontecesse com ele não importava. Ela estava a salvo. Só isso era importante. Kahlan, Zedd e Chase estavam seguros e com a última caixa. Darken Rahl ia morrer e Kahlan ia viver.
Quando tudo isso acabasse, não importava o que acontecia com ele. Agora era o mesmo que estar morto. Denna ou Darken Rahl se encarregaria disso. Só precisava suportar a dor até lá. Ele conseguiria isso. Que importância tinha? Nada que Denna fizesse era uma dor maior do que não poder estar com Kahlan. A mulher que ele amava. A mulher que ele amava e que devia escolher outro para seu companheiro.
Ficou feliz por saber que estaria, morto antes disso. Talvez pudesse fazer alguma coisa para apressar o processo. Certamente não precisava muita coisa para enfurecer Denna. Se eu não ficar imóvel na próxima vez em que da puser o Agiel no meu ouvido, pensou, ficarei permanentemente inutilizado e então talvez não tenha mais utilidade para ela. Talvez ela o matasse. Richard nunca tinha se sentido tão sozinho em toda a vida.
— Eu amo você, Kahlan — murmurou ele no escuro.
Como Denna prometera, o dia seguinte foi pior. Ela estava descansada e ansiosa para gastar um pouco de energia na tarefa de quebrar a vontade de Richard. Ele sabia que era possível controlar uma coisa, uma escolha. Esperava que ela repetisse a tortura de pôr o Agiel no seu ouvido e ele então faria um movimento com todas as suas forças e seria gravemente inutilizado, mas Denna não repetiu a tortura, como se adivinhasse o que ele pretendia fazer. Isso deu a Richard uma migalha de esperança. Ele a tinha obrigado a não fazer aquilo. Tinha impedido que ela usasse o Agiel daquele modo. Denna não tinha todo o controle que pensava ter. Richard podia ainda obrigá-la a fazer uma coisa que ele escolhesse. Esse pensamento o animou. Lembrar como havia trancado seu amor-próprio, sua dignidade naquele quarto secreto permitia a ele fazer o que era necessário. Deixou que ela fizesse tudo que queria com ele.
As únicas vezes em que Denna fez uma pausa, sentou-se à mesa e comeu. Ela o vigiava enquanto comia frutas bem devagar, sorrindo quando ele gemia. Não deu comida alguma a Richard, só água num copo que Denna segurou, quando acabou de comer.
No fim do dia, ela prendeu a corrente na viga outra vez, obrigando-o a passar a noite de pé. Richard não se deu ao trabalho de perguntar por quê. Não importava. Denna ia fazer o que queria e ele não podia fazer nada para mudar isso.
De manhã, quando ela voltou com o archote, ele estava ainda de pé, mas precariamente. Ela parecia estar de bom humor.
— Quero um beijo de bom-dia — sorriu ela. — Espero que você retribua. Mostre como ficou feliz por ver sua dona.
Richard fez o melhor possível, mas precisou se concentrar na beleza do cabelo dela. O abraço acendeu chamas de dor nos ferimentos. Quando terminou e ele estava trêmulo de dor, ela tirou a corrente do gancho e a jogou no chão.
— Você está aprendendo a ser um bom animalzinho de estimação. Ganhou duas horas de sono.
Richard caiu no chão e adormeceu antes de ela sair da sala. Ele descobriu que ser acordado pelo Agiel era um terror à parte. O sono breve pouco fez para revivê-lo. Precisava de muito mais do que duas horas. Jurou a si mesmo lutar com todas as forças para passar o dia todo sem cometer erros, fazer tudo que ela mandasse e assim talvez ganhar uma noite inteira de sono.
Juntando todas as forças, procurou fazer tudo que ela queria, esperando agradar-lhe. Richard esperava também merecer alguma coisa para comer. Não comia desde sua captura. Não sabia o que mais desejava — sono ou comida. Decidiu que seu maior desejo era parar de sentir dor. Ou que o deixassem morrer.
Estava no fim das forças, sentia a vida se esvair e esperava ansiosamente a morte. Denna aparentemente percebeu a queda na resistência dele e aliviou a tortura, dando mais tempo para Richard se refazer, alongando o tempo dos intervalos. Richard não se importou. Sabia que aquilo jamais ia acabar, que estava perdido. Renunciou ao desejo viver, de continuar, de resistir. Denna falava ternamente, acariciava seu rosto, enquanto ele estava dependurado pelas algemas. Ela o encorajou, incitando-o a não desistir e prometeu que, quando sua vontade estivesse quebrada, tudo seria melhor. Richard apenas ouvia, incapaz até de chorar.
Quando finalmente ela soltou a corrente das algemas, ele pensou que devia ser noite outra vez, não tinha mais a noção do tempo. Esperou que ela prendesse a corrente ou a jogasse no chão, dizendo que ele podia dormir. Denna não fez nada disso. Prendeu torrente na cadeira, mandou que ele ficasse de pé e saiu do quarto. Voltou carregando um balde.
— De joelhos, animalzinho. — Sentou-se na cadeira ao lado dele, tirou uma escova da água quente e começou a lavá-lo. As cerdas duras da escova sobre os ferimentos provocaram uma dor completamente nova. — Temos um convite para jantar. Preciso limpar você. Gosto muito do cheiro do seu suor, do seu medo, mas certamente ofenderia os convidados.
Ela trabalhou com uma estranha espécie de ternura. Era como se ele fosse um cão. Apoiou-se nela, incapaz de ficar de pé. Não faria isso se tivesse forças para evitar, mas não tinha. Ela o deixou ficar assim enquanto o lavava. Richard imaginou de quem seria o convite, mas não perguntou.
Mas Denna contou.
— A rainha Milena nos convidou para jantar com seus convidados. Uma grande honra para uma pessoa tão baixa quanto você, não acha?
Richard apenas balançou a cabeça afirmativamente, sem forças para ralar.
A rainha Milena. Então estavam no castelo! Isso não o surpreendeu. Para onde mais ela teria tido tempo de levá-lo? Terminado o banho, Denna concedeu-lhe uma hora de sono, como descanso para o jantar. Richard dormiu aos pés dela.
Denna o acordou com o pé, não com o Agiel. Richard quase chorou com aquele ato de misericórdia e ouviu a própria voz agradecendo profusamente tanta bondade. Ela fez recomendações quanto ao seu comportamento. A corrente estaria presa ao cinto dela e Richard devia olhar só para ela, só falar quando falassem com ele e só depois de pedir permissão a Denna. Não se sentaria à mesa, mas no chão, e se fosse bem-comportado receberia alguma coisa para comer.
Ele prometeu fazer tudo isso. A idéia de se sentar no chão parecia maravilhosa, poder descansar e não ficar de pé o tempo todo, sofrendo dor. E ter alguma coisa para comer, finalmente. Prometeu a si mesmo se esforçar para não fazer nada para desagradar a Denna e evitar que não lhe dessem comida.
Atordoado, seguiu Denna, ligado a ela pela corrente da coleira, concentrando-se para evitar que fosse esticada. Denna tirou as algemas, mas os cortes estavam vermelhos inchados e latejavam. Richard se lembrou vagamente das salas que atravessaram.
Na sala, com os convidados, Denna parou para conversar com pessoas bem vestidas. Richard não tirou os olhos do cabelo dela. A trança evidentemente fora preparada para o jantar. O uso vigoroso do Agiel a desfizera em parte, liberando fios de cabelo. Ela devia ter refeito a trança enquanto ele dormia.
Richard se surpreendeu pensando em como o cabelo deda era realmente bonito e que Denna era a mais bonita das mulheres presentes. Sabia que todos o olhavam, pela sua espada, enquanto era levado pela coleira e pela corrente. Lembrou que, por enquanto seu orgulho estava trancado num quarto. O importante agora era ter uma chance para descansar e ficar livre da dor por algum tempo.
Richard se curvou e ficou assim enquanto Denna falava com a rainha. A rainha e a Mord-Sith trocaram apenas uma inclinação da cabeça. A princesa estava ao lado da rainha. Richard lembrou como a princesa Violeta tinha tratado Rachel e teve de voltar a pensar na trança de cabelo de Denna.
Quando Denna se sentou, estalou os dedos e mostrou um lugar no chão atrás de sua cadeira. Richard se sentou no chão com as pernas cruzadas. Denna estava à esquerda da rainha, à direita da princesa Violeta, que olhou para ele friamente. Richard reconheceu alguns dos conselheiros da rainha e sorriu mentalmente. O artista da corte não estava entre eles. A mesa da rainha era mais alta do que as outras, mas, sentado no chão, ele não podia ver muitos dos convidados.
— Como você não come carne — disse a rainha a Denna —, mandei os cozinheiros prepararem um jantar especial de que, tenho certeza, vai gostar. Sopas maravilhosas, legumes e frutas raras.
Denna sorriu e agradeceu. Enquanto comia, um criado apareceu com um prato simples numa bandeja.
— Para meu animalzinho de estimação — disse ela, interrompendo brevemente a conversa.
O criado tirou o prato da bandeja e o deu a Richard. Era uma espécie de mingau, mas para Richard, segurando o prato com as mãos trêmulas, preparando-se para comer, pareceu a melhor refeição que já tivera.
— Se ele é seu animalzinho de estimação — disse a princesa Violeta—, porque permite que ele coma assim?
Denna olhou para a princesa.
— Assim como?
— Bem, se ele é um animal — a princesa sorriu —, devia comer no chão, sem usar as mãos.
Denna sorriu com um brilho nos olhos.
— Faça o que ela diz.
— Ponha o prato no chão — disse a princesa Violeta — e coma como um cachorro para que todos vejam. Que todos vejam que o Seeker não é melhor do que um cão.
Richard estava com muita fome para se arriscar a perder a refeição. Concentrado na imagem do cabelo de Denna, pôs o prato cuidadosamente no chão, olhando nos olhos da princesa Violeta, vendo-lhe o sorriso de desprezo, e comeu o mingau ao som das risadas. Deixou o prato limpo, dizendo a si mesmo que era porque precisava de todas as forças.
Depois que a rainha e os convidados terminaram de comer, um homem acorrentado foi levado para o centro da sala. Richard o reconheceu. Era um dos homens que Kahlan tinha livrado da masmorra. Os dois trocaram um breve olhar de compreensão e desespero.
Falaram de infrações e crimes cometidos. Richard se esforçou para ignorar, sabia que era mero pretexto. A rainha fez um discurso curto sobre os crimes do homem e depois se voltou para a princesa.
— Talvez a princesa queira determinar o castigo para este homem.
A princesa Violeta se levantou, com um sorriso satisfeito.
— Por crimes contra a coroa, cem chicotadas. Por crimes contra o povo, sua cabeça.
Um murmúrio de aprovação passou pela sala. Richard ficou nauseado, mas ao mesmo tempo pensou que gostaria de trocar de lugar com o homem. As cem chicotadas seriam fáceis e, no fim, haveria o machado.
A princesa Violeta voltou-se para Denna.
— Algum dia, quero ver como você castiga.
— Quando desejar — Denna olhou para trás —, deixarei você assistir.
Quando voltaram ao quarto de pedra, Denna não perdeu tempo em tirar a camisa dele e logo Richard estava outra vez dependurado na viga. Ela informou friamente que os olhos dele tinham se movido demais durante o jantar. O coração de Richard disparou. Mais uma vez as algemas queimavam seus pulsos. As habilidades de Denna em pouco tempo o deixaram coberto de suor, tentando respirar, gritando em agonia. Ela disse que ainda era cedo e que queria fazer muito treinamento antes do fim da noite.
Os músculos de Richard se retesaram, levantando-o do chão quando Denna aplicou o Agiel nas suas costas. Em vão pediu a ela para parar. Quando mais uma vez ele relatou todo o corpo, viu uma silhueta na porta.
— Gosto do modo como você o faz implorar — disse a princesa Violeta.
A Mord-Sith sorriu.
— Chegue mais perto, minha querida, que eu mostro mais.
Denna o abraçou, apertando o corpo contra seus ferimentos. Beijou a orelha dele e murmurou:
— Vamos mostrar para a princesa como você sabe implorar bem?
Richard jurou a si mesmo que não ia implorar, mas logo quebrou o juramento. Denna fez uma demonstração, para a princesa Violeta, dos diferentes modos de ferir Richard. Parecia ter orgulho em mostrar seus talentos.
— Posso tentar? — perguntou a princesa.
Denna olhou para ela por um momento.
— É claro, minha querida. Tenho certeza de que meu animalzinho não vai se importar — Sorriu para ele. — Não é verdade?
— Por favor, Senhora Denna, não deixe que ela faça isso. Por favor. Ela é apenas uma criança. Faço o que a senhora quiser, mas não deixe. Por favor!
— Pronto, está vendo, minha querida, ele não se importa.
Denna deu a ela o Agiel.
A princesa Violeta sorriu para ele quando pegou o instrumento de tortura. Tentativamente, aplicou o Agiel no músculo da coxa de Richard. Feliz ao vê-lo se encolher de dor. Satisfeita com o resultado, andou em volta dele, usando o Agiel.
— É fácil! — disse ela. — Nunca pensei que fosse tão fácil fazer uma pessoa sangrar.
Com os braços cruzados, Denna olhou para ele com um sorriso quando a princesa ficou mais ousada. Não demorou para que sua crueldade se revelasse. A princesa entrou na nova brincadeira com prazer.
— Lembra o que fez a mim? — perguntou ela a Richard. Apertou o Agiel contam lado do corpo dele. — Lembra como me deixou embaraçada? Acho que está tendo o que merece, não acha? — Richard manteve os dentes fortemente cerrados. — Responda! Não acha que você merece isso?
Richard fechou os olhos e tentou controlar a dor.
— Responda! E depois me peça para parar. Quero confirmar isso enquanto você pede.
— Acho melhor você responder—disse Denna. — Parece que ela aprende depressa.
— Por favor, Senhora Denna, não ensine isso a ela. O que está fazendo a ela é pior do que o que faz a mim. Ela é só uma criança. Por favor, não faça isso a ela. Não deixe que ela aprenda essas coisas.
— Eu aprendo o que quiser. Acho melhor você começar a pedir. Agora mesmo!
Mesmo sabendo que era pior para ele, Richard esperou até não poder suportar a dor.
— Desculpe, princesa Violeta — disse ele, ofegante. — Por favor, perdoe-me. Eu estava errado.
Richard descobriu que foi um erro ter respondido. Só serviu para excitar a princesa, que não demorou em aprender a fazê-lo pedir e chorar, embora procurasse com todas as forças controlar a dor. Richard não podia acreditar no absurdo de uma menina estar fazendo aquilo. Muito menos tendo prazer. Era uma loucura.
Ela aplicou o Agiel no estômago de Richard, sorrindo para ele.
— Mas isto é menos do que a Confessora merece. Algum dia ela terá muito mais. E sou eu quem vai fazer. Minha mãe disse que eu ficarei encarregada disso, quando ela voltar. Quero que você me peça para machucar a Confessora. Vamos ouvir você me pedir para cortar a cabeça da Madre Confessora.
Richard não tinha idéia do que era, mas algo dentro dele despertou.
A princesa Violeta cerrou os dentes e apertou o Agiel com toda força na barriga dele.
— Peça! Peça que eu mate a feia Kahlan!
A dor fez Richard gritar com toda a força dos pulmões.
Denna ficou entre os dois e tirou o Agiel da mão da princesa Violeta.
— Chega! Você vai matá-lo usando o Agiel desse modo
— Obrigado, Senhora Denna — ele arquejou, sentindo estranha afeição por ela.
A princesa Violeta recuou um passo, amuada, carrancuda.
— Não me importa que ele morra!
Denna disse, com voz fria e autoritária: — Mas eu me importo Ele é valioso de mais para ser desperdiçado desse modo. — Denna era sem duvida a única que mandava ali. Não a princesa ou a rainha. Denna era agente de Darken Rahl.
A princesa Violeta olhou furiosa para ele.
— Minha mãe diz que a Confessora Kahlan voltará e que uma surpresa a espera. Quero que saiba, porque minha mãe disse que você estará morto quando ela voltar, minha mãe diz que eu vou decidir o que fazer com ela. Primeiro, vou cortar seu cabelo. — suas mãos estavam fechadas, o rosto rubro de raiva. — Depois vou deixar que seja violentada pelos guardas, todos eles! Então vou deixá-la na masmorra por alguns anos, para que eles tenham com quem se divertir! Quando eu me cansar de ferir a Confessora mandarei cortar sua cabeça e a espetar num poste onde eu possa vê-la apodrecer!
Richard sentiu pena da pequena princesa. A tristeza por ela foi como uma onda que o envolveu. Com essa tristeza, o que havia despertado dentro dele cresceu.
A princesa Violeta fechou os olhos e pôs a língua para fora.
Era como uma bandeira vermelha.
A força do poder despertado explodiu no corpo de Richard.
Sentiu a mandíbula dela despedaçar como cristal no chão de pedra quando a atingiu com o pé. O impacto do golpe ergueu a princesa no ar. Seus dentes cortaram completamente a língua antes de se estilhaçarem também. Ela caiu de costas, a uma boa distância dele, tentando em vão gritar no meio do sangue que jorrava.
Denna olhou rapidamente para ele. Por um momento, ele viu o medo nos olhos dela. Richard não tinha idéia de como conseguira fazer isso, por que a magia não o tinha impedido e, pela expressão de Denna, teve certeza de que não devia poder fazer.
— Eu a avisei antes — disse Richard, olhando para os olhos de Denna. — Promessa feita. Promessa cumprida — ele sorriu. — Obrigado, Senhora Denna, por salvar minha vida. Sou-lhe devedor.
Denna olhou para ele por um momento antes de ficar furiosa. Saiu da sala. De onde estava, dependurado nas algemas, viu a princesa se contorcendo no chão.
— Vire-se de costas, Violeta, senão vai se afogar no sangue. Vire-se de costas!
A princesa conseguiu se virar com uma poça de sangue debaixo dela. Homens apareceram e correram para ela. Denna só olhava. Eles a ergueram cuidadosamente e a levaram.
Então ele ficou sozinho com Denna.
As dobradiças de couro rangeram quando ela fechou a porta com um dedo de unha comprida. Naqueles últimos dias, Richard tinha aprendido que Denna tinha uma bondade perversa. Aprendeu a interpretar o estado de espírito dela pelo modo com que ela usava o Agiel. Às vezes, quando ela o machucava, Richard sabia se estava controlando um instante por ele. Richard sabia que era loucura, mas compreendeu que às vezes ela partilhava o que sentia por ele, torturando-o o mais possível — Sabia também que nessa noite Denna ia fazer o pior.
Ela ficou parada na frente da porta, olhando para ele. Disse, com a voz suave: — Você é uma pessoa muito rara. Richard Cypher. Mestre Rahl me preveniu contra você. Disse para ter cuidado, que as profecias falavam através de você — Ela se adiantou lentamente, as botas ecoando os passos na pedra, e ficou na frente dele, muito perto. Olhou nos olhos dele, com a testa levemente franzida. Sua respiração no rosto de Richard estava mais rápida do que o normal. — Isso foi extraordinário — murmurou ela completamente excitante. — Seus olhos examinaram avidamente o rosto dele. — Resolvi — disse ela, ofegante — tomar você por companheiro.
Dependurado pelas algemas, Richard se sentiu impotente contra aquela loucura. Não sabia qual o poder que tomara conta dele, nem como chamá-lo de volta. Ele tentou. Nada aconteceu.
Denna parecia dominada por alguma coisa que ele não compreendia, como se estivesse reunindo coragem para fazer algo, ao mesmo tempo com medo, mas desejando ansiosamente. Incrédulo, ele viu algo que a crueldade dela jamais o tinha deixado ver. Denna era atraente. De tirar o fôlego, estupendamente atraente. Richard pensou estava ficando louco.
Chocado e estranhamente preocupado, ele a viu pôr o Agiel entre os dentes. Vendo as pupilas dela aumentarem de tamanho, Richard sabia que ela estava sentindo dor, Denna ficou pálida. Respirava rapidamente, tremendo um pouco. Ela pôs os dedos na nuca de Richard e segurou sua cabeça. Lentamente encostou os lábios nos dele, Denna o beijou profunda e apaixonadamente, partilhando com ele a dor do Agiel. Com a língua, ela o manteve entre os lábios dos dois. O beijo foi selvagem, bestial, enquanto ela esfregava o corpo no dele.
Cada fibra do corpo de Richard queimava com a tortura. Seus gemidos abafados sugaram todo o ar dos pulmões dela, o mesmo acontecendo com ele. Richard só podia respirar o ar que vinha da boca de Denna e ela só respirava o que vinha da boca de Richard. Ele se esqueceu de tudo, exceto da dor, que invadiu sua mente. Sabia, pelos sons que Denna fazia, que ela estava sentindo a mesma agonia que ele. Os dedos dela se crispavam no cabelo dele, por causa da dor. Ela gemeu. Seus músculos se retesaram. A dor os invadiu e dominou.
Sem compreender por quê, ele a beijou com a mesma paixão, com a mesma selvageria. A dor alterou sua percepção de tudo. Desesperadamente. Richard jamais havia beijado alguém com tanta luxúria. Ele queria parar desesperadamente. Desesperada-mente não parou.
O poder estranho despertou outra vez. Richard tentou segurá-lo, ficar com ele. Mas o poder escapou da sua vontade e desapareceu.
A dor o esmagou quando Denna apertou mais os lábios contra os dele, o Agiel entre os dois, seus dentes se encostando. Ela apertou mais o corpo contra o dele, enganchou as pernas nas de Richard, abraçou-o com força. Seus gritos de angustia eram cada vez mais desesperados. Richard quis desesperadamente abraçá-la.
Quando ele estava quase inconsciente, Denna se afastou, ainda com os dedos no cabelo dele. As lágrimas escorriam dos seus olhos quando olhou nos olhos dele, a poucos milímetros de distância. Denna girou o Agiel com a língua, mantendo-o entre os dentes, tremendo de dor, como para mostrar que era mais forte do que ele. Ergueu a mão devagar e tirou o Agiel da boca. Seus olhos rolaram nas órbitas. Ela procurou respirar.
Denna franziu a testa. Lágrimas de dor e de alguma coisa mais brotavam dos seus olhos. Ela o beijou. Richard ficou chocado com a ternura, a delicadeza do beijo.
— Estamos ligados — murmurou ela. — Ligados pela dor do Agiel. Desculpe, Richard. — Passou os dedos trêmulos no rosto dele, a sombra da dor ainda nos seus olhos. — Desculpe o que vou fazer com você. Você é meu companheiro pelo resto da vida.
Richard ficou atônico com o tom de compaixão na voz dela.
— Por favor, Senhora Denna. Por favor, deixe-me ir. Ou, pelo menos, ajude-me a deter Darken Rahl. Prometo que estarei disposto a ser seu companheiro para a vida toda, se me ajudar a detê-lo. Juro por minha vida que, se me ajudar, ficarei, sem ser obrigado pela magia. Para sempre.
Denna pôs a mão no peito dele para se equilibrar enquanto se refazia da dor.
— Pensa que não compreendo o que estou fazendo com você? — Com um brilho vazio nos olhos, continuou: — Seu treinamento e serviço vão durar apenas semanas, antes da sua morte. O treinamento de uma Mord-Sith dura anos. Tudo que faço com você e muito mais foi feito milhares de vezes comigo. Um Mord-Sith deve conhecer seu Agiel melhor do que conhece a si mesmo. Meu primeiro treinador me tomou para companheira quando eu tinha quinze anos, depois de me treinar desde os doze anos. De modo algum eu podia suportar sua crueldade ou sua habilidade para manter uma pessoa no ápice entre a vida e a morte. Ele me treinou até os dezoito anos, quando eu o matei. Fui punida com o Agiel todos os dias durante dois anos. Com este Agiel. O mesmo que usei em você foi o que ele usou para me treinar. Ganhei de presente quando me tomei Mord-Sith. Vivo só para usá-lo.
— Senhora Denna — murmurou ele. — Eu sinto muito.
A dureza reapareceu nos olhos dela.
— Você vai sentir. Ninguém poderá ajudá-lo. Nem eu. Vai descobrir que ser companheiro de uma Mord-Sith não traz qualquer privilégio, somente muita dor.
Richard continuava indefeso pendurado pelas algemas, arrasado com a enormidade de tudo aquilo. Compreender um pouco Denna só aumentou sua impotência. Não havia escape para ele. Era o companheiro de uma louca.
A testa franzida e o sorriso voltaram.
— Por que foi tão tolo fazendo o que fez? Certamente sabe que preciso fazer você sofrer por isso.
Richard olhou para ela por um momento, sem compreender.
— Senhora Denna, que diferença faz? Vai me torturar de qualquer modo. Não posso imaginar o que mais pode fazer comigo.
Ela sorriu com desprezo.
— Oh, meu amor, sua imaginação é muito limitada.
Denna desafivelou o cinto dele.
Ela cerrou os dentes.
— Está na hora de descobrirmos algum lugar novo no seu corpo. Chegou a hora de ver do que você é feito realmente. — A expressão dos olhos dela deixou Richard gelado. — Muito obrigada, meu amor, por me dar um pretexto para fazer isso. Nunca antes fiz em outra pessoa, mas já foi feito muitas vezes. Foi o que quebrou minha vontade quando eu tinha catorze anos. Esta noite — murmurou ela —, nenhum de nós vai dormir.
Água fria do balde jogada no seu corpo nu mal chegou a reavivar Richard. Ele viu vagamente os filetes de água tingidos de vermelho escorrerem do seu corpo para as rachaduras das pedras nas quais estava deitado de bruços. Cada respiração era um esforço tremendo. Imaginou quantas costelas estariam quebradas.
— Vista-se. Vamos embora — disse ela.
— Sim, Senhora Denna — murmurou ele com voz rouca por causa dos gritos, sabendo que ela não podia ouvir e ia torturá-lo por não responder, porém Richard não podia fazer mais do que aquilo.
Quando o Agiel não foi usado, Richard se moveu um pouco, viu suas botas e as puxou para ele. Sentou-se mas não conseguia erguer a cabeça. Com grande dificuldade, começou a calçar as botas. Os cortes nos pés fizeram seus olhos se encherem de lágrimas.
Com o joelho no queixo dele, Denna o derrubou para trás. Sentou-se no peito dele, batendo no seu rosto com os punhos fechados.
— O que há com você? É idiota? A calça vai antes das botas. Será que tenho de dizer tudo?
— Sim, Senhora Denna, não, Senhora Denna, perdoe-me, Senhora Denna, obrigado, Senhora Denna, por me machucar. Obrigado, Senhora Denna, por me ensinar — murmurou ele.
Denna sentou no peito dele, ofegando de raiva. Depois de um tempo, sua respiração se acalmou.
— Vamos, vou ajudar você. — Inclinou-se e o beijou. — Venha, meu amor. Vai poder descansar enquanto viajamos.
— Sim, Senhora Denna. — O som de sua voz foi pouco mais de um suspiro.
Ela o beijou outra vez.
— Vamos, meu amor. Será melhor agora, que eu quebrei sua vontade. Vai ver.
Uma carruagem fechada os esperava no escuro. Nuvens formadas pela respiração dos cavalos subiam e deslizavam no ar frio e parado. Richard tropeçou várias vezes atrás dela, tentando manter frouxa a corrente. Não tinha a mínima idéia de quanto tempo fazia exatamente que Denna decidira que ele seria seu companheiro, nem se importava com isso. Um guarda abriu a porta da carruagem.
Denna jogou a ponta da corrente no chão.
— Entre.
Richard segurou nos dois lados da porta. Ouviu vagamente que alguém se aproximava. Denna deu um puxão na corrente, indicando que ele devia ficar onde estava.
— Denna! — Era a rainha, na frente dos seus conselheiros.
— Senhora Denna — corrigiu ela.
A rainha parecia furiosa.
— Aonde pensa que vai com ele?
— Não é da sua conta. Devemos partir agora. Como vai a princesa?
A rainha olhou para ela, carrancuda.
— Não sabemos ainda se viverá. Eu fico com o Seeker. Ele tem de pagar.
— O Seeker pertence a mim e ao Mestre Rahl. Ele está sendo punido e continuará assim até ser morto por Mestre Rahl ou por mim. Você não pode fazer nada que se compare ao que já foi feito.
— Ele deve ser executado. Imediatamente.
A voz de Denna era fria como o ar da noite.
— Volte para seu castelo, rainha Milena, enquanto ainda tem um castelo.
Richard viu uma faca na mão da rainha. O guarda ao lado dele tirou do cinto sua acha e a segurou com força. Houve um momento de silêncio claro como cristal.
A rainha empurrou Denna com as costas da mão e avançou para Richard com a faca. Denna aplicou o Agiel no peito volumoso da rainha.
Quando o guarda passou por ele, com a acha erguida para atacar Denna, o poder estranho despertou com um rugido. Reunindo todas as suas forças, Richard, completamente tomado pelo poder, passou o braço esquerdo em volta do pescoço do guarda e o esfaqueou. Denna olhou brevemente para o homem quando ele soltou um grito. Ela sorriu e olhou outra vez para a rainha, que tremia, paralisada, com o Agiel entre os seios. Denna girou o Agiel. A rainha desmoronou.
Denna olhou para os conselheiros da rainha.
— O coração da rainha deixou de bater. — Ergueu uma sobrancelha. — Inesperadamente. Por favor, transmitam meus sentimentos ao povo de Tamarang pela morte da sua rainha. Sugiro que procurem outro governante mais disposto a dar atenção aos desejos do Mestre Rahl.
Todos se curvaram brevemente. O poder desperto tremeluziu e desapareceu. O ato de matar o guarda exigiu toda a força, que ainda havia em Richard. Suas pernas trêmulas cederam ao peso do corpo. O chão se inclinou e subiu ao encontro dele.
Denna segurou a corrente perto da coleira, levantando a cabeça dele do chão.
— Não mandei você se deitar! Não dei permissão! Levante-se!
Richard não conseguiu se mexer. Ela aplicou o Agiel no estômago dele e subiu para o peito, para a garganta. Richard estremeceu convulsivamente de dor, mas não consegui fazer o que ela queria.
— Desculpe — murmurou ele.
Denna deixou a cabeça de Richard cair no chão, quando viu que ele não podia se mover, e voltou-se pára os guardas.
— Levem-no para dentro da carruagem.
Subiu depois dele, gritando para o cocheiro para partir e fechou a porta. Richard caiu para trás quando a carruagem se moveu.
— Por favor, Senhora Denna — disse ele com voz quase inaudível —, perdoe-me por desapontá-la, por não poder fazer o que a senhora quer. Sinto muito. Farei melhor no futuro. Por favor, me castigue, para que eu aprenda a ser melhor.
Ela segurou a corrente com força perto da coleira, as juntas da mão brancas, e o levantou do banco. Com um sorriso desdenhoso e os dentes cerrados, disse: — Não se atreva a mover agora, não ainda. Você precisa fazer algumas coisas antes.
Richard estava com os olhos fechados.
— Às suas ordens, Senhora Denna.
Ela largou a corrente, segurou os ombros dele e o fez deitar no banco e lhe beijou a testa.
— Tem permissão para descansar agora, meu amor. O caminho pela frente é longo. Terá muito tempo para descansar antes de tudo recomeçar.
Richard sentiu os dedos dela atrás da cabeça, os solavancos da carruagem e adormeceu.
De quando em quando, ele acordava, nunca totalmente consciente. Às vezes Denna se sentava ao lado, deixando que Richard se encostasse nela, e dava comida a ele. Engolir era doloroso, quase mais do que ele podia suportar. Todo o seu corpo se contraía a cada colherada, a fome insuficiente para anular a dor na garganta, e Richard afastava a cabeça da colher. Denna o incitava a comer por ela. Fazer por ela era a única coisa à qual ele respondia.
Sempre que um solavanco o acordava bruscamente, Richard se agarrava a ela para proteção, segurança, até que Denna dizia que não era nada e o mandava voltar a dormir. Richard sabia que às vezes dormia no chão, às vezes no banco. Não via nada da paisagem lá fora, mas não se importava. O que importava era estar perto dela, nada mais. A não ser estar pronto para obedecer às ordens de Denna. Algumas vezes ele acordava e a via sentada no canto do banco, ele deitado, coberto com o casaco, a cabeça no colo dela, seus dedos acariciando o cabelo dele. Quando isso acontecia, Richard tentava não deixar Denna perceber que estava acordado, para poder continuar assim.
Nesses momentos, sentindo o calor reconfortante dela, Richard sentia também despertar o poder dentro dele. Não tentava alcançá-lo nem se apossar dele, apenas o sentia. Certa vez, Richard o reconheceu, sabia o que era. Era a magia da espada.
Deitado no colo de Denna, sentindo que precisava dela, a magia ficava com ele. Richard a tocava, acariciava, sentia seu poder. Era como o que evocava quando ia matar com a espada, mas diferente de um modo que ele não podia compreender. O poder que conhecera antes não podia mais sentir. Agora pertencia a Denna, mas ela não sabia. Quando Richard tentava alcançar a magia, ela desaparecia como vapor. Uma vaga parte de sua mente queria essa ajuda, mas, como não podia controlá-la, pedir ajuda a ela, Richard se desinteressou.
Com o passar do tempo, seus ferimentos começaram a cicatrizar. Cada vez que ele acordava, estava um pouco mais alerta. Quando Denna disse que tinham chegado, Richard conseguiu ficar de pé sozinho, embora sua cabeça não estivesse completamente clara.
No escuro, saíram da carruagem. Richard observava os pés de Denna para manter suficientemente frouxa a corrente presa no cinto. Mesmo assim, ele notou onde entravam. Era um lugar imenso, muito maior do que o castelo de Tamarang. Os muros se estendiam a perder de vista. Torres e telhados se erguiam a alturas estonteantes. Estava suficientemente consciente para notar que o desenho da vasta estrutura era elegante e gracioso. Imponente, mas leve e nada agressivo.
Denna o conduziu por corredores de mármore e granito polidos. Colunas apoiavam arcos magníficos. Enquanto caminhavam, Richard notou o quanto tinha recuperada as forcas. Alguns dias antes, não suportaria ficar de pé por tanto tempo.
Não viram ninguém. Richard olhava para o cabelo dela, pensando no quanto era bonito, em como tinha sorte por ter uma companheira tão bela. Pensando no quanto gostava de Denna, o poder despertou. Antes que desaparecesse, a parte fechada e vaga de sua mente o segurou, enquanto o resto pensava nela e essa parte se agarrou à esperança de fuga. Quando compreendeu que controlava o poder, parou de pensar em Denna. O poder se evaporou.
O coração de Richard se apertou. O que importava, ele pensou, jamais podem escapar, e afinal, por que queria tanto? Era o companheiro de Denna. Para onde iria? O que faria sem ela para dar as ordens?
Denna passou por uma porta e a fechou. Uma janela terminada em ponta na parte superior, emoldurada por cortinas simples, estava aberta para a escuridão da noite. Richard viu uma cama com um cobertor grosso e travesseiros. O assoalho era de madeira polida. Lampiões estavam acesos ao lado da cama e na mesa com cadeira, no outro lado do quarto. Sobre uma estante havia uma bacia e uma jarra. Denna soltou a corrente.
— Estes são meus alojamentos. Como você é meu companheiro, pode dormir aqui se eu quiser. — Prendeu a corrente num dos postes dos pés da cama, estalou os dedos e apontou para o chão. — — Pode dormir aqui esta noite. No chão.
Richard olhou para o chão. O Agiel aplicado no seu ombro o fez ajoelhar.
— Eu disse no chão. Agora.
— Sim, Senhora Denna, desculpe, Senhora Denna.
— Estou exausta. Não quero ouvir o menor som esta noite. Compreendeu?
Ele balançou a cabeça afirmativamente, com medo de falar.
— Ótimo. — Ela se deitou de bruços na cama e adormeceu imediatamente.
Richard passou a mão no ombro dolorido. Fazia algum tempo que ela não usava o Agiel. Pelo menos dessa vez não tirou sangue. Talvez, ele pensou, ela não quisesse sangue no quarto. Não, Denna gostava do seu sangue. Richard se deitou no chão. Sabia que no dia seguinte ela o machucaria mais. Tentou não pensar nisso, seus ferimentos apenas começavam a cicatrizar.
Richard acordou antes dela, queria evitar o choque de ser acordado pelo Agiel Ouviu o longo badalar de um sino. Denna acordou, ficou algum tempo deitada de costas, calada, então se sentou e verificou se ele estava acordado.
— Orações matutinas — anunciou ela. — Isso foi o sino, o chamado. Depois das orações, você será treinado.
— Sim, Senhora Denna.
Ela prendeu a corrente no cinto e o levou outra vez pelos corredores até uma praça aberta, com colunas apoiando arcos dos dois lados. No centro da praça, a céu aberto, havia areia com desenhos de linhas concêntricas, em volta de uma rocha escura. Em cima da rocha havia um sino — o que Richard ouvira há pouco. No chão de azulejos, entre as colunas, pessoas estavam ajoelhadas, com o corpo inclinado para a frente, a testa tocando o chão.
Eles cantavam em uníssono: “Mestre Rahl seja o nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl nos proteja. Em sua luz, prosperamos. Na sua misericórdia, nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas”.
Cantavam incessantemente a mesma coisa. Denna estalou os dedos, apontando para o chão. Richard se ajoelhou, imitando os outros. Denna ajoelhou-se ao lado dele e encostou a testa no chão de ladrilhos. Ela começou a cantar junto com os outros, mas parou quando percebeu que Richard não escava cantando.
— Duas horas — disse ela, olhando carrancuda para ele. — Se tiver de lembrar você outra vez, serão seis.
— Sim, Senhora Denna.
Richard começou a cantar. Teve de se concentrar na visão da trança de Denna para dizer as palavras sem provocar a dor da magia. Não sabia ao certo quanto tempo aquilo durou, mas calculou umas duas horas. Suas costas doíam por ficar tanto tempo naquela posição. As palavras eram sempre as mesmas. Depois de algum tempo, se desfizeram num som incoerente e pareceram um mingau na sua boca.
O sino tocou duas vezes e as pessoas se levantaram, saindo cada uma para um lado. Denna ficou de pé. Richard ficou onde estava, sem saber o que fazer. Sabia que ia arranjar encrenca por ficar ali parado, mas sabia também que, se se levantasse sem ser mandado, a punição seria muito pior. Ouviu passos se aproximando deles, mas não ergueu os olhos.
Uma voz de mulher disse: — Irmã Denna, como é bom ver que está de volta! D’Hara estava vazia sem você.
D’Hara! Através da névoa do seu treinamento, a palavra acendeu-lhe a mente. No mesmo instante pensou na trança de Denna, protegendo-o.
— Irmã Constance! É bom estar em casa e ver você outra vez.
Richard percebeu sinceridade na voz de Denna. O Agiel tocou sua nuca, deixando-o sem fôlego. Era como se uma corda lhe estivesse apertando o pescoço. Pelo modo com que o Agiel foi aplicado, ele sabia que não foi obra de Denna. — E o que temos aqui? — perguntou Constance.
Ela retirou o Agiel. Tossindo, cheio de dor, Richard procurou respirar. Levantou-se quando Denna mandou, querendo poder se esconder atrás dela. Constance era bem mais baixa do que Denna, gorducha e sua roupa era de couro como a de Denna, porém marrom. O cabelo castanho sem brilho estava trançado também, mas não era tão farto quanto o de Denna. Tinha cara de quem comeu e não gostou.
Denna bateu de leve no estômago dele com as costas da mão.
— Meu novo companheiro.
— Companheiro — falou Constance, como se a palavra fosse algo amargo.
— Juro, Denna, nunca vou entender como você agüenta ter um companheiro. Só de pensar fico com dor de estômago. Então é o Seeker, vejo pela espada. Um belo partido. Deve ter sido difícil.
Denna sorriu, com ar de superioridade.
— Ele só matou dois dos meus homens, antes de me entregar sua magia. — Denna riu, vendo o choque de Constance. — Ele é de Westland.
Constance ergueu as sobrancelhas.
— Não! — Olhou para os olhos de Richard. — Está domado?
— Está. — disse Derma com um suspiro. — Mas ainda me faz sorrir. Estamos ainda nas orações matutinas e ele já ganhou duas horas.
Constance deu um risinho e perguntou: — Importa-se se eu assistir?
Denna sorriu calorosamente.
— Você sabe que o que é meu é seu, Constance. Você será minha assistente.
Constance ficou satisfeita e orgulhosa. Richard teve de pensar furiosamente no cabelo de Denna quando sentiu que por pouco quase perdeu o controle da raiva.
Denna se inclinou para a amiga.
— Na verdade, só para você, se o quiser emprestado por uma noite, não faço objeção. — Constance ficou rígida. Denna riu.
— Sem experimentar, nunca vai saber.
Constance disse, carrancuda: — Terei prazer com a carne dele de outros modos. Vou vestir minha roupa vermelha e encontro você lá.
— Não, essa roupa serve, por enquanto.
Constance olhou atentamente para ela.
— Nem parece você, Denna.
— Tenho minhas razões. Além disso, o próprio Mestre Rahl me mandou apanhar este.
— Mestre Rahl... Seja, então, como você quer. Afinal, ele é seu para fazer o que quiser.
A sala de treinamento era um quadrado com paredes e assoalho de granito cinzento e teto com vigas de madeira. Quando entraram, Constance passou uma rasteira em Richard. Ele caiu de bruços. Antes que tivesse tempo de se controlar, a raiva tomou conta dele. Ela parou ao lado dele, satisfeita consigo mesma, vendo-o lutar para se controlar.
Denna prendeu os pulsos e cotovelos dele muito juntos atrás das costas. A espécie de algema dupla estava unida a uma corda que passava por uma roldana no teto e era presa na parede. Ela o levantou até ficar nas pontas dos pés e amarrou a corda na parede. A dor nos ombros era tremenda, dificultando a respiração, e ela nem havia usara o Agiel ainda. Richard estava completamente indefeso, desequilibrado e em agonia antes mesmo de a tortura começar. Sentiu um profundo desânimo.
Denna se sentou numa cadeira inclinada para trás, encostada na parede, e disse para Constance se divertir. Denna sempre o treinava sorrindo. Constance não sorria.
Trabalhava como um boi puxando o arado, fios de cabelo se soltando e logo seu rosto estava coberto com uma camada brilhante de suor. Nunca variava o toque do Agiel. Era sempre o mesmo, duro, furioso. Richard não precisava antecipar, não havia pressa. Ela trabalhava ritmadamente, sem descanso. Mas não tirava sangue. Sentada na cadeira encostada na parede. Denna assistia com um sorriso. Finalmente Constance parou. Richard ofegava e gemia.
— Ele suporta bem. Há muito tempo eu não tinha um assim. Todos os que consegui ultimamente desmoronam ao primeiro toque.
A cadeira foi para frente, caindo sobre as pernas dianteiras com um baque surdo.
Denna ficou atrás dele e parou por um momento, fazendo-o se encolher de antecipação por uma coisa que não aconteceu. Assim que ele soltou o ar dos pulmões. O Agiel foi aplicado em um lugar sensível no lado direito do seu corpo, Richard gritou e ela pressionou mais o Agiel. Não consegui controlar o peso do corpo e a corda puxou seus ombros com tanta força que ele pensou que seus braços iam se deslocar. Com um sorriso de desprezo, Denna manteve o Agiel até ele começar a chorar.
— Por favor, senhora Denna — soluçou ele. — Por favor.
Ela retirou o Agiel.
— Está vendo?
Constance balançou a cabeça.
— Eu queria ter sua habilidade, Denna.
— Aqui é outro lugar. — Ela o fez gritar. — E aqui e aqui também. — ficou na frente dele e sorriu. — Não importa que eu mostre a Constance seus lugares especiais, importa-se?
— Por favor, Senhora Denna. Não faça isso. Dói demais.
— Está vendo? Ele não se importa.
Voltou para a cadeira. As lágrimas desceram no rosto de Richard. Se sorrir. Constance recomeçou a trabalhar e também a fez implorar ofegante. Mas aquele modo de nunca variar a pressão era pior que o de Denna. Não dava a ele um momento de descanso. Richard aprendeu a temer o toque de Constance mais que o de Denna. Denna às vezes agia como que levada por uma estranha compaixão. Constance, não. Quando a tortura ia alem de certo ponto, Denna a mandava parar por um momento, orientando-a para não provocar algum dano mais sério. Constance lhe obedecia e deixava Denna orientar o trabalho.
— Você não precisa ficar, Denna, se tiver de fazer alguma coisa. Não me importo.
Medo e pânico se apossaram dele. Não queria ficar sozinho com Constance. Tinha certeza de que ela faria com ele coisas que Denna não queria que fossem feitas. Não sabia o quê. Mas tinha medo.
— Em uma outra ocasião, eu a deixarei sozinha com ele... para fazer as coisas ao seu modo, mas hoje eu fico.
Richard se esforçou para não demonstrar alívio. Constance voltou ao trabalho.
Depois de algum tempo, quando estava atrás, Constance o segurou pelo cabelo e puxou sua cabeça para trás com força. Richard sabia muito bem o que significava. Lembrou-se da dor do que ela ia fazer. A dor de ter o Agiel aplicado no ouvido. Ele estremeceu incontrolavelmente. Não pode respirar, de tanto medo.
Denna levantou-se da cadeira.
— Não faça isso, Constance.
Constance rilhou os dentes e olhou para ele, puxando a cabeça com mais força.
— Por que não? Certamente você já fez!
— Sim, mas não quero que você faça. Mestre Rahl ainda não falou com ele. Não quero arriscar.
Constance sorriu malevolamente.
— Denna, vamos fazer juntas, ao mesmo tempo. Você e eu. Como costumávamos fazer.
— Eu já disse. Mestre Rahl quer falar com ele.
— Depois, então?
Denna sorriu.
— Há muito tempo não ouço aquele grito. — Olhou nos olhos de Richard. — Se Mestre Rahl não o matar e se ele não morrer antes por... outras coisas, então, sim, faremos. Está bem? Mas não agora. E, Constance, por favor, respeite meu desejo no uso do Agiel no ouvido dele.
Constance soltou o cabelo de Richard.
— Não pense que se livrou assim facilmente. — Olhou para ele com o cenho franzido. — Mais cedo ou mais tarde, você e eu ficaremos sozinhos e então terei todo o prazer que desejo.
— Sim, Senhora Constance — murmurou ele com voz rouca.
Quando terminaram o treinamento, elas saíram para almoçar. Richard foi atrás, com a corrente presa ao cinto de Denna. A sala de jantar era elegante, de estilo simples, com painéis de carvalho e assoalho de mármore branco. O suave murmúrio de conversação nas várias mesas enchia o ar. Denna estalou os dedos, apontando para o chão atrás de sua cadeira. Os criados serviram às duas Mord-Sith mas não a Richard. O almoço era de sopa que parecia apetitosa, queijo, pão preto e frutas. O cheiro bom da comida deixou Richard atordoado. Não foi servida carne. No meio da refeição, Denna se virou para trás e disse que ele não ia almoçar por ter ganho duas horas de treinamento naquela manhã. Disse que, se ele se comportasse, ganharia o jantar.
A tarde foi passada com outra sessão de orações e, depois, várias horas de treinamento. Denna e Constance se revezaram. Richard se esforçou para não fazer nada errado e foi recompensado no jantar com um prato de arroz com legumes. Depois do jantar, mais orações e mais treinamento até que finalmente deixaram Constance e voltaram aos alojamentos. Richard estava morto de cansaço, com o corpo curvado de dor.
— Eu quero tomar banho — disse ela. Mostrou a ele o cômodo ao lado do dela. Era pequeno, vazio, a não ser por uma corda presa ao teto, com a presilha e uma banheira num canto. Ela disse que o aposento era para treinamento, se ele precisasse de repente, e evitava sangue no quarto de dormir e para quando ele tivesse de deixá-lo dependurado durante a noite. Garantiu que ele passaria muito tempo no pequeno cômodo.
Ela o fez arrastar a banheira até os pés da cama. Richard apanhou o balde da banheira e Denna disse onde devia ir buscar água quente. Ele não devia falar com ninguém, mesmo que falassem com ele, e devia ir e voltar correndo, para que a água não esfriasse antes de a banheira estar cheia. Disse que, se ele não seguisse suas instruções, mesmo longe dela a dor da magia o derrubaria e, se ela precisasse sair à sua procura, ele se arrependeria. Richard jurou solenemente fazer o que ela mandava. A água quente vinha de uma fonte numa piscina circundada por assentos de mármore e ficava a uma boa distância do aposento. Quando a banheira ficou cheia, Richard estava molhado de suor e exausto. Richard esfregou as costas dela, escovou-lhe o cabelo e ajudou-a a lavá-lo. Com os braços para fora da banheira, Denna inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos, relaxando, e Richard se ajoelhou ao lado, para o caso de Denna precisar de alguma coisa.
— Você não gosta de Constance, gosta?
Richard não sabia o que responder. Não queria falar mal da amiga dela, mas se mentisse seria punido também.
— Eu... tenho medo dela, Senhora Denna.
Denna sorriu, com os olhos fechados.
— Resposta inteligente, meu amor. Você não está tentando ser insolente, está?
— Não, Senhora Denna. Eu disse a verdade.
— Ótimo. Você deve ter medo dela. Ela odeia homem. Sempre que mata um, ela grita o nome do homem que a treinou, Rastin. Lembra quando falei do homem que me treinou? Ele foi o treinador de Constance. Chamava-se Rastin. Foi ele quem a domou. Foi Constance que me disse como matá-lo. Eu faria qualquer coisa por ela. E, porque eu matei o homem que ela odiava tanto, ela fará qualquer coisa por mim.
— Sim, Senhora Denna. Mas, Senhora Denna, por favor não me deixe sozinho com ela.
— Sugiro que preste muita atenção aos seus deveres. Se fizer isso e não merecer muito mais tempo de treinamento, eu estarei presente quando ela estiver treinando você. Está vendo? Vê como tem sorte por ter uma treinadora bondosa?
— Sim, Senhora Denna, muito obrigado por me ensinar. É uma professora talentosa.
Denna abriu um olho para ver se não havia sugestão de ironia no rosto dele. Não viu nenhuma.
— Traga-me uma toalha e arrume minha roupa de dormir na mesa ao lado da cama.
Richard ajudou Denna a se enxugar. Ela não se vestiu mas se deitou na cama com o cabelo úmido espalhado no travesseiro.
— Apague o lampião daquela mesa, — Richard obedeceu. — Dê-me o Agiel, meu amor.
Richard se encolheu. Detestava quando ela o fazia apanhar o Agiel. Tocar nele provocava dor. Temendo mais o resultado da hesitação, ele cerrou os dentes e pegou o instrumento de tortura, segurando-o nas palmas das mãos abertas. A dor vibrava nos seus cotovelos e nos ombros. Ele mal podia esperar para dar a ela o Agiel. Denna estava recostada nos travesseiros, olhando para ele. Com um suspiro de alívio, Richard entregou o Agiel.
— Senhora Denna, por que não sente dor quando segura o Agiel?
— Eu sinto o mesmo que você, porque é o que foi usado para me treinar.
Richard ficou surpreso.
— Quer dizer que durante todo o tempo em que está com ele na mão sente dor? Durante todo o tempo que está me treinando?
Ela balançou a cabeça afirmativamente, desviando os olhos dos dele por um segundo. Então sorriu, franzindo a testa.
— Raros são os momentos em que não sinto dor, de um modo ou de outro. Por isso o treinamento de uma Mord-Sith leva anos, para aprender a suportar a dor. Acho que por isso só as mulheres são Mord-Sith. Os homens são fracos demais. A corrente no meu pulso me permite deixá-lo dependurado e assim não provoca dor. Mas quando eu o uso em alguém, a dor é constante.
— Nunca imaginei. — Richard ficou angustiado. — Sinto muito, Senhora Denna, que deva sofrer para me ensinar.
— A dor pode causar um prazer diferente de todos os outros, meu amor. Essa é uma das coisas que estou ensinando a você. E está na hora de outra lição. — Olhou para ele de alto a baixo. — Chega de conversa.
Richard reconheceu o olhar dela, a respiração acelerada.
— Mas, Senhora Denna, acaba de tomar banho e eu estou suado.
Uma insinuação de sorriso apareceu no canto da boca de Denna e ela disse:
— Gosto do seu suor.
Olhando nos olhos dele, ela pôs o Agiel entre os dentes.
Os dias passaram iguais e tediosos. Richard não se importava com as orações porque era um descanso do treinamento. Mas detestava dizer as palavras e tinha de se concentrar no cabelo de Denna o tempo todo em que cantava com os outros. Cantar a mesma coisa hora após hora, de joelhos, com a cabeça nos ladrilhos do chão era pouco mais desagradável do que o treinamento. Richard acordava durante a noite, ou de manhã cantando Mestre Rahl, seja nosso guia. Mestre Rahl, nos ensine. Mestre Rahl, nos proteja. Na sua luz, prosperamos. Na sua misericórdia, somos protegidos. Na sua sabedoria,nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.
Denna não se vestia mais de vermelho. Agora usava couro branco. Ela disse a ele que significava que sua vontade estava quebrada, que fora escolhido para seu companheiro e o fato de ter resolvido não o fazer sangrar demonstrava seu poder sobre ele. Constance não gostava disso. Para Richard não fazia muita diferença. O Agiel machucava do mesmo modo, quer fizesse sangrar ou não. Constance passava quase a metade do tempo do treinamento com Denna. Ocasionalmente ia treinar outro animalzinho de estimação. Insistia em ficar sozinha com Richard, mas Denna não deixava. Ela se entregou totalmente ao treinamento dele. Quanto mais a via, mais Richard se apavorava, Denna sorria para ele sempre que cedia seu lugar a Constance.
Certo dia, depois das orações vespertinas, quando Constance tinha saído para treinar outra pessoa, Denna o levou para o pequeno cômodo pegado ao dela, para o treinamento. Ela o suspendeu com a corda até ele mal poder tocar no chão.
— Senhora Denna, com sua permissão, deixaria que a Senhora Constance se encarregar do meu treinamento a partir de hoje?
A pergunta teve efeito inesperado. Denna ficou furiosa. Olhou para ele, o rosto rubro de cólera, e começou a bater nele com o Agiel, gritando, dizendo que ele não valia nada, que era insignificante, que estava farta de ouvir sua voz. Denna era forte e batia com a maior força possível. Aquilo parecia não ter fim.
Richard não se lembrava de ter visto Denna tão zangada, tão severa, tão cruel. Logo, ele não conseguiu se lembrar de nada mais, nem mesmo de onde estava. Só tinha noção da dor. Não podia dizer nada nem fazê-la parar, nem respirava a maior parte do tempo. Denna não esmorecia, não diminuía a força. Parecia ficar cada vez mais furiosa. Ele viu sangue no chão, muito sangue, manchando a roupa de couro branco de Denna. Ela arfara com o esforço, com a raiva. A trança do cabelo se soltou.
Denna agarrou o cabelo dele e puxou-lhe a cabeça para trás. Sem aviso, enfiou o Agiel no ouvido de Richard com força. Repetidas vezes. O tempo se distorceu em eternidade. Richard não sabia mais quem era, o que estava acontecendo. Não tentava mais pedir, chorar, agüentar.
Denna parou perto dele, ofegante, furiosa.
— Vou jantar. — Richard sentiu a agonia da magia. Tentou respirar, arregalou os olhos. — Enquanto eu estiver fora, e não vou apressar-me, deixarei a dor da magia com você. Não poderá desmaiar, nem fazê-la cessar. Se perder o controle da sua raiva, a dor ficará pior. Garanto.
Ela o suspendeu até erguer os pés dele do chão. Richard gritou. Parecia que seus braços estavam sendo arrancados.
— Divirta-se — disse ela e saiu.
Na linha tênue entre a sanidade e a loucura, dilacerado pelo sofrimento, incapaz de controlar a raiva, como Denna garantira, Richard balançava no ar. As chamas da dor o consumiam. De certo modo, era pior na ausência dela. Richard nunca se sentiu tão só, tão indefeso, e a dor nem o deixava gritar, só conseguia ofegar de agonia.
Não tinha idéia de quanto tempo ficou sozinho. Só teve consciência de cair de repente no chão, das botas de Denna, uma de cada lado da sua cabeça. Ela desligou a dor da magia, mas os braços dele estavam ainda presos nas costas e o inferno escaldante da dor nos ombros não passou. Ele gritou quando viu o sangue no chão.
— Eu disse antes — sibilou ela, com os dentes cerrados —, você é meu companheiro para toda a vida. — Ele ouviu raiva na respiração entrecortada dela. — Antes de começar fazer coisas piores a você, e você não puder mais falar, quero que me diga por que pediu que Constance se encarregasse do seu treinamento no meu lugar.
Ele tossiu com a garganta cheia de sangue, tentando falar.
— Não é assim que deve falar comigo! De joelhos! Agora!
Richard tentou se ajoelhar, mas com os braços presos nas costas era impossível, Denna o segurou pelos cabelos e o fez se levantar. Atordoado, ele caiu em cima dela, com o rosto encostado na roupa suja de sangue. O seu sangue.
Denna o empurrou, aplicando a ponta do Agiel na testa dele. Isso o fez abrir os olhos. Richard a olhou, para responder.
Denna bateu na boca do homem com as costas da mão.
— Olhe para baixo quando falar comigo. Ninguém deu permissão de olhar para mim — Richard olhou para as botas dela. — Seu tempo está acabando. Responda!
Richard tossiu e o sangue escorreu no seu queixo. Só com esforço não vomitou.
— Porque, Senhora Denna — disse ele com voz rouca. — Sei que a senhora sente dor quando segura o Agiel. Sei que é doloroso para a senhora me treinar. Eu queria que a Senhora Constance fizesse isso, para poupar a senhora da dor. Eu sei o que é sentir dor, a senhora me ensinou. A senhora já sofreu muito. Não quero que sofra mais. Prefiro que a Senhora Constance me castigue, a saber que a senhora está sentindo dor.
Richard fez um esforço para se equilibrar nos joelhos. Fez-se longo silêncio. Richard olhou para as botas dela e tossiu um pouco, respirando com dificuldade por causa da dor nos ombros. O silêncio parecia que nunca mais ia acabar. Richard não sabia o que ia acontecer agora.
— Eu não compreendo você, Richard Cypher — disse ela suavemente, sem raiva na voz. — Que os espíritos me levem, eu não compreendo você.
Foi para trás de Richard, soltou os braços dele e saiu do quarto sem dizer mais nada. Richard não conseguiu estirar os braços e caiu para a frente. Não tentou se levantar, apenas ficou chorando com o rosto no sangue do chão.
Depois de algum tempo, ouviu o sino chamando para as preces do começo da noite. Denna voltou, agachou-se ao lado dele, passou o braço gentilmente por sua cintura e o ajudou a se levantar.
— Não nos deixam perder a prece — explicou ela em voz baixa, prendendo a corrente ao cinto.
O sangue na roupa de couro branco era chocante. Havia sangue também no rosto e no cabelo de Denna. Quando entraram na sala de orações, as pessoas que geralmente falavam com ela desviaram os olhos e abriram caminho. Ajoelhar com a cabeça no chão fazia doer as costelas de Richard e era difícil respirar, quanto mais cantar. Ele não sabia se estava dizendo direito as palavras, mas Denna não o corrigiu e ele continuou. Richard não tinha idéia de como agüentou ficar tanto tempo naquela posição.
Quando o sino tocou duas vezes, Denna se levantou, mas não o ajudou. Constance apareceu, exibindo um raro sorriso.
— Ora, ora, Denna, parece que você esteve se divertindo. — Constance o empurrou com as costas da mão, mas Richard conseguiu ficar de pé. — Você se comportou mal, não foi?
— Sim, Senhora Constance.
— Muito mal, pelo que vejo. Delicioso. — Voltou para Denna os olhos ávidos. — Estou livre. Vamos ensinar a ele o que duas Mord-Siths podem fazer juntas.
— Não, não esta noite, Constance.
— Não? Como assim, não?
Denna explodiu.
— Estou dizendo que não. Ele é meu companheiro e vou treiná-lo assim! A não ser que queira assistir quando vou para a cama com meu companheiro! Quer assistir ao que eu faço quando estou com o Agiel entre os dentes?
Richard se encolheu. Então era isso que ela estava planejando. Se ela fizesse aquilo outra vez nessa noite, ferido como ele estava...
Homens com mantos brancos — missionários, Denna tinha dito — olharam para eles. A um olhar furioso de Constance, eles saíram apressadamente da sala. As duas mulheres estavam coradas: Denna de raiva, Constance de embaraço.
— É claro que não, Denna — disse ela em voz baixa. — Desculpe. Eu não sabia. Vou deixar você em paz. — Sorriu com desdém para Richard. — Parece que você já tem problemas demais, meu rapaz. Espero que consiga desempenhar seus deveres.
Bateu com o Agiel no estômago dele e saiu da sala. Atordoado, Richard tocou o lugar da pancada e gemeu. Com a mão no braço dele, Denna o ajudou a ficar de pé. Olhando furiosa para a porta por onde Constance acabava de sair, Denna começou a andar, esperando que ele a seguisse. Richard a seguiu.
De volta ao quarto de Denna, ela deu o balde a ele. Richard quase desmoronou só de pensar em encher a banheira.
Ela disse, em voz baixa e calma:
— Vá apanhar um balde de água quente.
Richard quase morreu de alívio quando soube que não precisava encher a banheira. Apanhou a água, um pouco confuso. Denna parecia zangada, mas não com ele. Richard esperou com os olhos baixos, até ela pôr o balde no chão e levar a cadeira para perto. Ele ficou surpreso por ela não ter mandado que ele fizesse isso.
— Sente-se. — Ela foi até a mesa ao lado da cama e voltou com uma pêra. Olhou para a fruta por um momento, girando-a na mão, esfregando o polegar na casca e a estendeu para ele.
— Eu trouxe isto do jantar. Mas não estou com fome. Você não jantou, pode comer.
Richard olhou para a pêra na mão dela.
— Não, Senhora Denna. É sua. Não minha.
— Eu sei de quem é, Richard — falava ainda em voz baixa. — Faça o que estou mandando.
Richard apanhou a pêra e a comeu toda, até as sementes. Denna ajoelhou e começou lavá-lo. Ele não tinha idéia do que estava acontecendo, mas aquilo doía, embora não tanto quanto o Agiel. Perguntou-se por que ela fazia isso quando estava na hora de re-começar o treinamento.
Denna pareceu sentir a apreensão dele.
— Estou com dor nas costas.
— Sinto muito, Senhora Denna, a culpa é minha por causa do meu comportamento.
— Fique quieto — disse ela gentilmente. — Quero dormir numa superfície dura, para melhorar a dor nas costas. Vou dormir no chão. Você pode dormir na minha cama e não quero que a suje de sangue.
Richard ficou atônito. No chão havia espaço suficiente para os dois e com certeza Denna já tivera sangue na cama antes. Isso nunca a incomodou no passado. Richard decidiu que não cabia a ele questionar, por isso ficou calado.
— Muito bem — disse ela quando terminou —, vá para a cama.
Richard se deitou. Denna o observava. Resignado, ele apanhou o Agiel da mesa de cabeceira e o ofereceu a ela, sentindo a dor no braço. Queria não ter de fazer aquilo nessa noite.
Denna apanhou o Agiel e o pôs na mesa.
— Não esta noite. Eu já disse que estou com dor nas costas. — Apagou o lampião. — Agora, durma.
Ele a ouviu se deitar no chão, praguejando em voz baixa. Richard estava muito cansado para pensar e adormeceu quase imediatamente.
Quando o sino o acordou, Denna já estava de pé. Limpara o sangue da roupa branca e refizera a trança. Não falou com ele quando foram para a oração. Era doloroso para Richard ajoelhar e ficou satisfeito quando terminou. Não viu Constance. Andando atrás de Denna, ele começou a se virar para ir à sala de treinamento, mas Denna seguiu em frente e a corrente se esticou. A dor o fez parar.
— Não vamos para lá — disse ela.
— Sim, Senhora Denna.
Andaram por algum tempo, por corredores que pareciam nunca acabar e então Denna o olhou impaciente.
— Ande perto de mim. Vamos dar um passeio. É uma coisa que gosto de fazer ocasionalmente, quando tenho dor nas costas. Ajuda.
— Sinto muito, Senhora Denna. Eu esperava que estivesse melhor esta manhã.
Denna olhou para ele por um breve momento e depois para a frente outra vez.
— Mas não está. Por isso vamos dar um passeio.
Richard nunca tinha estado tão longe do alojamento de Denna. Olhava esporadicamente para o novo ambiente. De vez em quando, passavam por lugares iguais ao da prece, abertos para o céu e para o sol, todos com uma rocha e um sino no centro. Alguns tinham grama em lugar de areia e até mesmo um pequeno lago onde estava a rocha. Peixes deslizavam em grupos na água clara. Os corredores eram às vezes tão largos quanto as salas, com ladrilhos formando desenhos, arcos e colunas, e o teto muito alto. Eram lugares luminosos e arejados com a luz e o ar que entravam pelas janelas. Havia gente por toda a parte, a maioria vestida de branco ou de cores pálidas. Ninguém parecia ter pressa e quase todos pareciam ter para onde ir, mas havia também alguns sentados nos bancos. Richard viu poucos soldados. Quase todos passaram por eles como se fossem invisíveis, mas alguns sorriram e trocaram cumprimentos com Denna.
O tamanho do palácio era espantoso, os corredores e as passagens entediam-se a perder de vista. Escadas largas levavam para cima ou para baixo, para partes desconhecida do grande edifício. Um salão tinha estátuas de pessoas nuas em poses orgulhosas. As estátuas eram feitas de pedra polida e cinzelada, a maioria branca, algumas com veios de ouro e todas tinham duas vezes a altura de Richard. Ele não viu qualquer lugar escuro, feio ou sujo. Tudo era belo. Os passos das pessoas ecoavam nos salões como sumários reverentes, Richard, admirado, pensava em como um lugar daqueles podia ser concebido e construído. Devia ter levado uma vida inteira.
Denna o levou a uma ampla praça a céu aberto. Árvores grandes cobriam o solo musgoso e uma trilha de ladrilhos de cerâmica marrom serpenteava no centro, levando à floresta interna. Andaram pela trilha, Richard olhando para as árvores. Eram belas Mesmo assim, desfolhadas.
Denna o observava.
— Você gosta de árvores, não gosta?
Ele balançou a cabeça assentindo, olhando em volta.
— Muito, Senhora Denna — murmurou ele.
— Por que gosta delas?
Richard pensou por um momento.
— Parecem ser parte do meu passado. Lembro vagamente que eu era guia. Guia florestal, eu acho. Mas não lembro muito bem, senhora Denna. Exceto que gostava dos bosques.
— O treinamento faz esquecer o passado — disse ela em voz baixa. — Quanto mais eu o treinar, mais você esquece, a não ser as perguntas específicas que eu faço. Logo, não lembrará nada mais.
— Sim, Senhora Denna. Senhora Denna, que lugar é este?
— Chama-se Palácio do Povo. É o centro do poder em D’Hara. A casa de Mestre Rahl.
Almoçaram em um lugar diferente do habitual. Ela o fez se sentar numa cadeira, Richard não sabia por quê. Foram à oração da tarde num lugar que tinha água em lugar de areia e, depois da prece, andaram um pouco mais pelos vastos salões e chegaram ao lugar onde sempre jantavam. A caminhada o fez se sentir melhor. Seus músculos precisavam de movimento.
Depois da oração noturna, no pequeno cômodo ao lado do quarto de Denna, ela prendeu os braços dele nas costas e na corda e o suspendeu, mas não tirou os pés dele do chão. Sentiu dor nos ombros, mas não foi demais.
— Melhorou a dor nas costas, Senhora Denna? A caminhada ajudou?
— Não é nada que eu não possa suportar.
Denna andou lentamente em volta dele, olhando para o chão. Finalmente parou na frente de Richard, girando o Agiel entre os dedos durante um tempo, examinando-o.
Ela não ergueu os olhos. Sua voz era pouco mais do que um murmúrio.
— Diga que me acha feia.
Richard olhou para ela até Denna erguer os olhos.
— Isso seria uma mentira.
Os lábios dela de curvaram num sorriso tristonho.
— Isso foi um erro, meu amor. Você desobedeceu a uma ordem direta e esqueceu do meu título.
— Eu sei, Senhora Denna.
Ela fechou os olhos, mas um pouco da força voltou à sua voz.
— Você só me causa problemas. Não sei por que Mestre Rahl me encarregou do seu treinamento. Você merece duas horas.
Denna deu a ele as duas horas, não com tanto rigor quanto de costume, mas o bastante para fazer Richard gritar de dor. Depois do treinamento, ela disse que ainda estava com dor nas costas e dormiu no chão outra vez, deixando-o dormir na cama.
Nos dias seguintes, voltaram à rotina; o treinamento já não era tão longo nem tão rigoroso quanto antes, a não ser quando Constance estava presente. Denna a vigiava de perto, guiando seus movimentos mais do que antes. Constance não gostava e às vezes olhava furiosa para Denna. Quando ela era mais violenta do que Denna queria, não era convidada para a próxima sessão.
Com as sessões menos rigorosas, a cabeça dele clareou um pouco e Richard começou a lembrar coisas do passado. Umas poucas vezes, quando as costas de Denna a incomodavam, davam longos passeios e visitavam lugares esplendidamente belos.
Depois de uma oração vespertina, certo dia, Constance perguntou se podia tomar parte no treinamento. Denna sorriu e disse que sim. Ela foi mais violenta que de costume e fez Richard gritar de agonia, com as lágrimas lhe inundando o rosto. No fim da sua tolerância à dor, ele esperava que Denna a fizesse parar. Quando Denna se levantou da cadeira, um homem entrou na sala.
— Senhora Denna, Mestre Rahl quer vê-la.
— Quando?
— Imediatamente.
Denna suspirou.
— Constance, quer terminar a sessão?
Olhando nos olhos de Richard, Constance disse: — Ora, é claro, Denna.
Richard ficou apavorado, mas não ousou dizer nada.
— Está quase acabando, apenas leve-o de volta ao meu alojamento e o deixe lá. Tenho certeza de que não vou demorar.
— Com prazer, Denna. Pode contar comigo.
Denna foi para a porta. Constance olhou para Richard cruelmente, com o rosto muito perto do dele. Desafivelou-lhe o cinto. Richard mal podia respirar.
— Constance — Denna voltou da porta —, não quero que faça isso.
Constance foi apanhada de surpresa.
— Na sua ausência, eu estou encarregada e faço o que quiser.
Denna pôs o rosto muito perto do dela.
— Ele é meu companheiro e eu disse que não quero que faça isso. E não quero também que ponha o Agiel no ouvido dele.
— Eu faço o que...
— Não, não faz. — Denna rilhou os dentes e olhou para a mulher mais baixa do que ela. — Só eu fui castigada quando matamos Rastin. Só eu. Não nós duas. Nunca falei nisso antes, mas estou falando agora. Você sabe o que fizeram comigo e eu jamais contei que você tomou parte. Ele é meu companheiro e eu sou sua Mord-Sith. Não você. Eu. Você vai respeitar minha vontade ou haverá problemas entre nós.
— Está bem, Denna — disse ela ofendida. — Está bem. Respeitarei sua vontade.
Denna olhou severamente para ela.
— Faça isso, irmã Constance.
Constance terminou a sessão com o maior esforço possível, mas manteve o Agiel quase sempre onde Denna queria. Richard percebeu que a sessão durou mais do que devia. Quando ela o levou para o alojamento de Denna, passou uma boa hora esbofeteando-o, depois prendeu a corrente nos pés da cama e disse para Richard ficar de pé até Denna voltar.
Constance pôs o rosto o mais perto possível do dele, considerando sua pouca altura, e lhe apertou a virilha.
— Tome bem conta disto para mim — disse com desdém. — Não o terá por muito mais tempo. Tenho motivo para acreditar que logo Mestre Rahl vai passar você para mim e, quando isso acontecer, vou alterar sua anatomia. — Com um largo sorriso, continuou: — E penso que você não vai gostar.
A raiva se acendeu dentro dele, trazendo a dor da magia. Richard caiu de joelhos. Constance, rindo, saiu do quarto. Ele conseguiu controlar a raiva, mas a dor só passou quando ficou de pé.
O sol quente entrava pela janela. Ele esperava que Denna voltasse logo. O sol se pôs. A hora do jantar chegou e se foi. Denna ainda não tinha voltado. Richard começou a ficar preocupado. Sentia que alguma coisa estava errada. Ouviu o sino para a prece da noite, mas não podia ir, amarrado como estava nos pés da cama. Imaginou se devia ajoelhar-se onde estava, mas viu que não podia. Constance lhe tinha mandado ficar de pé. Pensou que assim mesmo devia entoar a prece, mas resolveu que não tinha ninguém para ouvir e por isso não adiantava. A noite chegara havia muito tempo, mas por sorte os lampiões estavam acesos e ele não ficou no escuro. A hora do treinamento chegou e se foi. Nada de Denna. Richard se preocupou.
Finalmente ouviu a porta se abrir. Denna entrou com a cabeça abaixada e o corpo rígido. A trança estava desfeita e o cabelo despenteado. Richard viu a pele dela cinzenta e os olhos úmidos. Denna não olhou para ele.
— Richard — disse ela com voz fraca —, encha a banheira para mim, por favor. Preciso de um banho. Sinto-me muito suja neste momento.
— É claro, Senhora Denna. — Ele arrastou a banheira para o quarto e correu para apanhar água. Nunca tinha feito aquilo tão depressa. De pé, Denna esperou que ele trouxesse baldes e mais baldes de água quente. Quando terminou, ele esperou, ofegante.
Com dedos trêmulos, Denna começou a desabotoar o couro.
— Quer me ajudar com isto? Acho que não posso fazer sozinha.
Richard desabotoou a roupa para ela enquanto Denna tremia de frio.Estremecendo, Richard teve de descolar a roupa de couro das costas dela, tirando também uma parte da pele. O coração dele estava disparado. Denna estava coberta de vergões, desde a nuca até a parte de trás dos tornozelos. Richard, cheio de medo, sofria por ela, com a dor que ela sentia. Seus olhos se encheram de lagrimas. O poder rugiu dentro dele. Richard o ignorou.
— Senhora Denna, quem fez isto?
Ela fez uma careta quando ele pôs o pano ensaboado nas suas costas.
— Constance contou a ele que eu estava sendo pouco rigorosa com você. Mereci isto. Tenho descuidado do seu treinamento. Eu sou uma Mord-Sith. Devia ter feito melhor. Só recebi o que merecia.
— A senhora não merece isso, Senhora Denna. Eu devia ser castigado. Não a senhora.
As mãos dela tremiam segurando os lados da banheira enquanto Richard a lavava. Ele enxugou suavemente o suor do rosto dela. Denna olhava fixo para a frente, as lágrimas descendo no rosto.
O lábio dela tremeu.
— Amanhã Mestre Rahl vai ver você. — A mão de Richard ficou imóvel por um segundo. — Eu sinto muito, Richard. Você responderá às perguntas dele.
Richard olhou para ela, mas Denna continuou a olhar para a frente.
— Sim, Senhora Denna. — Tirou o sabão das costas dela, enchendo de água as mãos. — Deixe-me enxugá-la. — Ele enxugou com a maior suavidade possível. — Quer se sentar, Senhora Denna?
Com um sorriso embaraçado, ela disse: — Não creio que gostaria, neste momento. — Virou a cabeça com dificuldade. — Lá. Vou deitar na cama. — Segurou a mão que ele estendeu. — Parece que não posso parar de tremer. Por que não posso parar de tremer?
— Porque dói, Senhora Denna.
— Já me fizeram muito pior. Isso foi só para lembrar quem eu sou. Mesmo assim, não consigo parar de tremer.
Deitou de bruços na cama, olhando para ele. A preocupação fez a mente de Richard funcionar outra vez.
— Senhora Denna, minha mochila ainda está aqui?
— No armário. Por quê?
— Fique quieta, Senhora Denna, deixe-me fazer uma coisa, se me conseguir lembrar como se faz.
Tirou a mochila de uma prateleira alta do armário, pôs na mesa e começou a procurar alguma coisa. Denna o observava, o lado do rosto nas costas das mãos. Debaixo de um apito de pedra pendurado numa tira de couro, encontrou o pacote que procurava e o abriu sobre a mesa. Tirou uma vasilha, depois a faca do cinto e pôs tudo na mesa. Depois tirou do armário um vidro de creme. Tinha visto Denna passar na pele. Era exatamente do que ele precisava.
— Senhora Denna, posso usar isto?
— Por quê?
— Por favor?
— Está bem.
Richard pôs todas as folhas secas de aum na vasilha de lata, depois escolheu outras ervas cujo cheiro lembrava, mas não o nome, e misturou com as folhas de aum. Com o cabo da faca, amassou tudo até ficar pó. Apanhou o vidro, tirou todo o creme e jogou na vasilha, misturando com dois dedos. Então pegou a vasilha e se sentou na cama ao lado dela.
— Fique quieta — disse ele.
— O título, Richard, o título. Você não aprende!
— Desculpe, Senhora Denna — sorriu ele. — Pode me castigar mais tarde. Agora, fique quieta. Quando eu terminar, vai se sentir suficientemente bem para me punir a noite inteira, eu prometo.
Passou a pasta delicadamente nos vergões. Denna gemeu e fechou os olhos enquanto ele trabalhava. Quando Richard chegou à parte de trás dos tornozelos, ela estava quase dormindo. Ele passou o aum no cabelo dela.
— Que tal, Senhora Denna? — murmurou ele.
Denna virou de lado e arregalou os olhos.
— A dor desapareceu! Como você fez isso? Como fez a dor ir embora?
Richard sorriu satisfeito.
— Aprendi com um velho amigo chamado... — Franziu a testa. — Não consigo lembrar o nome dele. Mas é um velho amigo e ele me ensinou. Estou aliviado, Senhora Denna. Não gosto de ver a senhora sentindo dor.
Denna passou gentilmente os dedos no rosto dele.
— Você é uma pessoa muito rara, Richard Cypher. Nunca tive um companheiro como você. Pelos espíritos, nunca vi uma pessoa como você. Eu matei o homem que fez comigo o que eu fiz com você e você me ajuda.
— Nós todos só podemos ser o que somos, nada mais, nada menos, Senhora Denna. —Ele olhou para as mãos. — Não gostei do que Mestre Rahl fez com a senhora,
— Você não compreende o que é uma Mord-Sith, meu amor. Somos selecionadas com muito cuidado, quando ainda muito jovens. As escolhidas são as mais gentis, de coração mais bondoso. Dizem que a crueldade mais profunda vem do amor mais profundo. Procuram por toda D’Hara cada ano e só cerca de meia dúzia é escolhida. Uma Mord-Sith é treinada três vezes.
— Três vezes? — murmurou ele.
— A primeira do modo com que treinei você, para quebrar o espírito. A segunda para quebrar sua empatia. Para isso devemos ver o treinador dominar a vontade de nossa mãe e fazer dela seu animalzinho de estimação até matá-la. A terceira é para nos fazer perder o medo de machucar outra pessoa e nos ensinar a ter prazer em provocar dor. Para isso devemos quebrar a vontade do nosso pai, sob a orientação do treinador, e fazer dele nosso animalzinho. Quanto mais bondosa for a jovem, melhor Mord-Sith será, porém é mais difícil quebrar seu espírito da segunda e da terceira vez. Mestre Rahl me considera especial porque tiveram muita dificuldade na segunda vez. Minha mãe viveu por longo tempo, tentando evitar que eu perdesse a esperança e isso dificultou o treinamento. Para nós duas. Eles falharam na terceira vez, desistiram e iam me matar, mas Mestre Rahl disse que, se eu pudesse ser treinada, seria especial e se encarregou ele mesmo do meu treinamento. Foi ele quem conseguiu me fazer passar pela terceira fase. No dia em que matei meu pai, ele me levou para a cama, como recompensa. Sua recompensa me deixou estéril.
Richard mal podia falar. Sentia um nó na garganta, Com dedos trêmulos, afastou o cabelo do rosto dela.
— Não quero que ninguém a machuque. Nunca mais, Senhora Denna.
— É uma honra — murmurou Denna entre as lágrimas. — Mestre Rahl ter se dignado a punir alguém tão baixa quanto eu, com meu próprio Agiel.
Richard estava atônito.
— Espero que ele me mate amanhã para que eu não precise aprender nada mais que provoque tanta dor, Senhora Denna.
Os olhos dela, cheios de lágrimas, brilhavam na lua do lampião.
— Fiz coisas para machucar você que nunca tinha feito antes, mesmo assim você é a primeira pessoa, desde que fui escolhida, que fez alguma coisa para aliviar minha dor. — Ela se sentou na cama e pegou a vasilha com a mistura feita por ele. — Ainda resta um pouco. Deixe que eu passe onde Constance fez em você o que eu disse para não fazer.
Denna passou o creme de aum nos vergões dos ombros dele, depois na barriga e no peito, até o pescoço. Seus olhos se encontraram. A mão dela ficou imóvel. O quarto estava muito quieto. Denna se inclinou e o beijou suavemente. Pôs a mão com o dente na nuca de Richard e o beijou outra vez.
Ela se deitou segurando a mão dele sobre sua barriga.
— Venha para mim, meu amor. Quero muito você neste momento.
Richard estendeu a mão para o Agiel na mesa-de-cabeceira, Denna segurou o pulso dele.
— Esta noite eu quero você sem o Agiel. Você me faz esse favor? Quero que me ensine como é sem dor.
Ela pôs a mão na nuca de Richard e gentilmente o puxou para cima dela.
Denna não o treinou na manhã seguinte, mas saíram para um passeio. Mestre Rahl tinha dito que queria ver Richard depois da segunda oração. Quando terminou e eles iam sair, Constance os deteve.
— Você parece surpreendentemente bem hoje, irmã Denna.
Denna olhou para ela sem emoção. Richard, furioso com Constance por ter delatado Denna para Mestre Rahl, por ter feito com que ela fosse punida, teve de se concentrar no cabelo de Denna. Constance se voltou para ele.
— Ouvi dizer que tem uma audiência com Mestre Rahl hoje. Se estiver vivo depois dela, você me verá mais vezes. Só nos dois. Na verdade, quero um pedaço de você, quando ele terminar.
Richard falou sem pensar.
— O ano em que a escolheram, Senhora Constance, deve ter sido um ano de necessidade desesperada, do contrário uma pessoa de inteligência tão limitada jamais teria sido escolhida para Mord-Sith. Só a criatura mais ignorante pode pôr as próprias ambições mesquinhas acima do valor de uma amiga. Especialmente uma amiga que tanto se sacrificou pela senhora. A senhora não merece nem beijar o Agiel da Senhora Denna. — Richard sorriu mansamente, confiante, vendo o espanto dela. — Acho melhor esperar que Mestre Rahl me mate, Senhora Constance, porque, se ele não me matar, da próxima vez em que eu a vir, vou matá-la por causa do que fez à Senhora Denna.
Constance ficou paralisada, mas em seguida ergueu o Agiel para atacá-lo. Denna ergueu o braço e aplicou seu Agiel na garganta de Constance, afastando-a de Richard, Constance arregalou os olhos, surpresa. Tossiu sangue e caiu de joelhos, levando a mão a garganta.
Denna a olhou por um momento e depois saiu da sala sem uma palavra, Richard a seguiu, amarrado à corrente. Apressou-se para ficar ao lado dela.
Denna olhou para a frente, sem demonstrar emoção.
— Adivinhe quantas horas de treinamento você ganhou com isso.
Richard sorriu.
— Senhora Denna, se há uma Mord-Sith capaz de fazer um morto gritar é a senhora.
— E se Mestre Rahl não o matar, quantas horas?
— Senhora Denna, não há horas suficientes numa vida inteira para diminuir meu prazer pelo que fiz.
Ela sorriu, mas não olhou para ele.
— Fico satisfeita por eu ter tanto valor para você. — Olhou de soslaio para Richard. — Eu ainda não o compreendo. Como você disse, não podemos ser mais nem menos do que somos. Sinto não poder ser mais do que sou e temo que você nao possa ser menos. Se não fôssemos guerreiros lutando em lados opostos nesta guerra, eu o guardaria para mim por toda a vida e me esforçaria para fazer com que você vivesse o maior tempo possível.
Richard sentiu o calor da voz dela.
— Eu tentaria viver por muito tempo para a senhora, Senhora Denna.
Passaram pelos salões, pelas praças de oração, pelas estátuas, pelo povo. Ela o levou para cima, atravessaram salas imensas requintadamente decoradas. Denna parou à frente de uma porta dupla, coberta de entalhes representando montanhas e florestas, feitos de ouro.
Denna se virou para ele.
— Está preparado para este dia, meu amor?
— O dia ainda não acabou, Senhora Denna.
Ela passou os braços em volta do pescoço dele e o beijou ternamente. Afastou um pouco o rosto e acariciou a cabeça de Richard. — Desculpe, Richard, por fazer isso com você, mas fui treinada para isso e não posso fazer por menos. Vivo só para machucar você. Quero que saiba que não é por minha escolha, mas pelo meu treinamento. Não posso ser mais do que sou, uma Mord-Sith. Se você tiver de morrer hoje, meu amor, então me dê o orgulho de morrer bem.
“Sou o companheiro de uma mulher louca”, Richard pensou com tristeza. “E não por culpa dela.”
Ela abriu as portas e entraram num jardim grande. Richard teria ficado impressionado, se não estivesse pensando em outras coisas. Seguiram pela passagem entre flores e arbustos, passaram por muros de pedra cobertos de trepadeiras, por pequenas árvores e chegaram a um extenso gramado. O teto de vidro permitia a entrada da luz, mantendo as plantas saudáveis e floridas.
À distância, estavam dois homens identicamente enormes. Acima dos cotovelos dos braços cruzados, ambos tinham faixas com pontas aguçadas. Uma espécie de guardas, Richard pensou. Ao lado deles estava outro homem. Músculos fortes apareciam tensos no peito. O cabelo curto e louro, espetado, tinha uma faixa negra no meio.
Perto do centro do gramado, ao lado de um círculo de areia branca, sob um raio quente do sol da tarde, estava um homem de costas para eles. O sol fazia brilhar o cabelo louro que ia até os ombros e o manto branco. Centelhas de sol se refletiam no cinco de ouro e no punhal curvo.
Quando Richard e Denna se aproximaram, Denna ajoelhou-se e encostou a testa no chão. Richard, instruído para fazer o mesmo, ajeitou a espada para se ajoelhar.
Juntos cantaram: “Mestre Rahl, seja nosso guia. Mestre Rahl, nos ensine. Mestre Rahl, nos proteja. Na sua luz, prosperamos. Por sua misericórdia, somos protegidos. Em sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.”
Cantaram só uma vez e esperaram, Richard tremendo levemente. Lembrou que não devia chegar perto de Mestre Rahl, que devia ficar longe dele, mas não lembrava quem tinha dito isso, só que era importante. Teve de se concentrar ao cabelo de Denna para controlar a raiva do que Mestre Rahl fizera com ela.
— Levantem-se, meus filhos.
Richard levantou-se com o ombro muito perto da Senhora Denna enquanto os intensos olhos azuis o observavam. O fato de o rosto de Mestre Rahl parecer bondoso, inteligente, agradável não acalmou o medo que o consumia nem os pensamentos que ferviam logo abaixo da superfície de sua mente. Os olhos azuis se voltaram para Denna.
— Você parece surpreendentemente bem esta manhã, minha querida.
— A Senhora Denna é boa tanto para suportar quanto para infligir dor. Mestre Rahl— Richard se surpreendeu dizendo.
Os olhos azuis se voltaram para ele. Richard estremeceu vendo a calma, a paz no rosto de Rahl.
— Minha querida disse que você só dá problemas. Fico satisfeito vendo que ela não mentiu. Mas não fico satisfeito vendo que é verdade. — Cruzou as mãos descontraidamente. — Bem, não importa. É muito bom conhecê-lo finalmente, Richard Cypher.
Denna aplicou o Agiel nas costas dele, para lembrá-lo do que devia dizer.
— É uma honra para mim estar aqui, Mestre Rahl. Vivo só para servir. Sinto-me humilhado na sua presença.
Um leve sorriso curvou os lábios de Rahl.
— Sim, tenho certeza disso. — Olhou atenta e desconfortavelmente para Richard por um momento. — Tenho algumas perguntas. Você vai me dar as respostas.
Richard sentiu um leve tremor.
— Sim, Mestre Rahl.
— Ajoelhe-se — disse ele suavemente.
Richard se ajoelhou, com a ajuda do Agiel no ombro. Denna ficou atrás dele com um pé de cada lado. Encostou as coxas nos ombros de Richard, para apoio, e agarrou o cabelo dele, puxando a cabeça um pouco para trás, fazendo-o olhar para os olhos azuis de Mestre Rahl. Richard engoliu em seco, apavorado.
Darken Rahl olhou para ele sem emoção.
— Você já viu o Livro dos sombras contadas?
Algo poderoso no fundo de sua mente disse a Richard para não responder. Ficou calado. Denna puxou o cabelo dele com mais força e apertou o Agiel contra a base do seu crânio.
O pânico explodiu na sua cabeça. A mão de Denna no seu cabelo era a única coisa que o fazia ficar com o corpo ereto. Era como se ela tivesse comprimido a dor de todas as sessões de treinamento naquele toque. Ele não podia mover-se, respirar ou gritar. Estava além da dor, o choque tirou tudo dele, deixando apenas uma agonia consumidora de fogo e gelo. Ela retirou o Agiel. Richard não sabia onde estava, quem o segurava, só que aquela era a maior dor que já sentira e que à sua frente estava um homem vestido de branco.
Olhos azuis o fitaram.
— Você já viu o Livro das sombras contadas?
— Sim — ouviu a própria voz dizer.
— Onde ele está agora?
Richard hesitou. Não sabia a resposta, não sabia o que a voz queria. A dor explodiu outra vez na sua cabeça. Quando cessou, ele sentiu as lágrimas descendo no rosto.
— Onde está o livro agora? — repetiu a voz.
— Por favor, não me machuque mais — exclamou ele. — Não compreendo a pergunta.
— O que há para compreender? Simplesmente diga onde está o livro.
— O livro ou os conhecimentos do livro? — perguntou Richard apavorado.
Os olhos azuis ficaram intrigados.
— O livro.
— Eu o queimei. Há muitos anos.
Richard pensou que os olhos iam despedaçá-lo.
— E onde está o conhecimento?
Richard hesitou demais. Quando voltou a si, Denna puxou outra vez seu cabelo, fazendo-o olhar para os olhos azuis. Richard nunca se sentira tão só, tão indefeso, com tanto medo.
— Onde está o conhecimento que estava no livro?
— Na minha cabeça. Antes de queimar o livro, eu decorei as palavras, o conhecimento.
O homem olhou para ele, imóvel. Richard chorava baixinho.
— Recite as palavras do livro.
Richard, desesperado, não queria o Agiel na nuca outra vez. Tremia de medo.
— A verificação da verdade das palavras do Livro das sombras contadas, se dita para outra pessoa e não lidas por quem comanda as caixas, só pode ser garantida com o uso de uma Confessora...
Confessora.
Kahlan.
O nome Kahlan penetrou a mente de Richard como um raio. O poder despertou com um rugido, afastando a névoa com o brilho escaldante e branco das lembranças. A porta do quarto trancado em sua mente se abriu. Tudo voltou para ele, trazido pelo poder que crescia. Richard era o poder, só de pensar em Darken Rahl ter Kahlan, fazer mal a ela.
Darken Rahl se voltou para os outros homens. O que tinha a faixa negra no cabelo se adiantou.
— Está vendo, meu amigo? A sorte está comigo. Ela já está a caminho daqui com o velho. Encontre-a e a traga para mim. Leve dois quads, mas quero a mulher viva, compreendeu? — O homem fez que sim com a cabeça. — Você e seus homens terão proteção do meu encantamento. O velho está com ela, mas não tem qualquer arma contra o feitiço do mundo subterrâneo, se estiver vivo. — A voz de Rahl ficou mais severa. — E, Demmin, não me importa o que seus homens farão com ela, mas acho bom que esteja viva quando chegar aqui e capaz de usar seu poder.
O homem empalideceu.
— Compreendo. Será feita a sua vontade, senhor Rahl. — Fez uma profunda curvatura.
Demmin saiu depois de olhar nos olhos de Richard e sorrir.
Darken Rahl voltou outra vez os olhos azuis para Richard.
— Continue.
Richard tinha ido até onde pretendia ir. Lembrava-se de tudo.
Estava na hora de morrer.
— Não vou continuar. Não pode fazer coisa alguma para me obrigar. A dor é bem-vinda. A morte é bem-vinda.
Antes que o Agiel chegasse, Rahl olhou para Denna. Richard sentiu que ela soltava seu cabelo. Um dos guardas se adiantou; com a mão enorme segurou Denna pelo pescoço e o apertou até Richard ouvir que ela lutava para respirar.
Rahl olhou para ela.
— Você disse que ele estava treinado.
— Ele estava, Mestre Rahl — Denna falou com esforço, quase sufocada. — Eu juro.
— Estou muito desapontado com você, Denna.
Quando o homem a ergueu do chão, Richard ouviu os sons da dor. Outra vez o poder se acendeu nele. Denna estava sendo machucada. Antes que soubessem o que acontecia, Richard estava de pé, o poder da magia crescendo furioso dentro dele.
Richard passou um braço em volta do pescoço grosso do homem, segurando-o num dos ombros. Com o outro braço segurou a cabeça dele e a virou rapidamente com um golpe seguro. O pescoço do homem estalou e ele desmoronou no chão.
Richard se virou para trás. O outro guarda estava quase em cima dele, com a mão estendida. Richard o segurou pelo pulso e usou a força do movimento para enfiar a faca no peito dele. Ergueu a faca até o coração do homem arregalado, surpreso. As entranhas saltaram no chão.
Richard ofegava. Tudo na sua visão periférica era branco. Branco do calor, branco da magia. Denna, com as mãos no pescoço, procurava aliviar a dor.
Darken Rahl calmamente lambia as pontas dos dedos, olhando para Richard.
Denna usou a dor da magia o suficiente para fazer Richard se ajoelhar com os braços cruzados apertando o corpo.
— Mestre Rahl — disse Denna, ofegante —, deixe-me levá-lo comigo esta noite. Juro que de manhã ele responderá a qualquer coisa. Se ainda estiver vivo, Permita que eu me redima.
— Não — disse Rahl, pensativo, sacudindo a mão. — Peço desculpas, minha querida. A falha não foi sua. Eu não tinha idéia do que estávamos fazendo. Tire a dor dele.
Richard ficou de pé. O atordoamento passou. Teve a impressão de acordar de um sonho para entrar num pesadelo. O que restava dele estava fora do quarto onde o havia trancado e ele não ia guardá-lo outra vez. Morreria perfeitamente consciente, com dignidade, intacto. Controlou a ira, mas havia fogo nos seus olhos. Fogo no seu coração.
— Foi o velho quem lhe ensinou isso? — perguntou Rahl curioso.
— Que ensinou o quê?
— A separação de sua mente. Foi assim que evitou ter sua vontade quebrada.
— Não sei do que está falando.
— Você ergueu uma divisória para proteger o centro e sacrificou o resto ao que ia ser feito. Uma Mord-Sith não pode domar uma mente dividida. Punir, sim. Quebrar, não. — Voltou-se para Denna. — Outra vez peço desculpas, minha querida. Pensei que você tinha falhado. Não falhou. Só a mais talentosa poderia ter conseguido tanto. Você agiu bem, mas isso torna tudo diferente.
Sorriu, molhou as pontas dos dedos na língua, passou nas sobrancelhas.
— Richard e eu vamos ter uma conversa particular. Enquanto ele estiver aqui comigo, quero que você o deixe falar sem a dor da magia, que interfere com o que preciso fazer. Enquanto estiver aqui, ele deve estar fora do seu controle. Pode voltar para seus alojamentos. Quando eu terminar, e se ele ainda estiver vivo, mando chamar você, como prometi.
Denna se curvou profundamente.
— Vivo para servir, Mestre Rahl.
Com o rosto muito vermelho, olhou para Richard e ergueu um pouco o queixo dele com um dedo.
— Não me desaponte, meu amor.
O Seeker sorriu.
— Nunca, Senhora Denna.
Ele liberou a raiva, só para senti-la outra vez, vendo Denna sair da sala. Raiva dela e do que tinham feito com ela. Não pense no problema, ele pensou, pense na solução. Voltou-se para Darken Rahl. Rahl estava calmo, com o rosto inexpressivo. Richard o imitou.
— Você sabe que quero saber o que mais o livro diz.
— Então me mate.
Rahl sorriu.
— Tão ansioso assim para morrer?
— Sim. Mate-me. Como matou meu pai.
Darken Rahl, ainda sorrindo, olhou intrigado para ele.
— Seu pai! Eu não matei seu pai, Richard.
— George Cypher! Você o matou! Não tente negar! Você o matou com essa faca que tem no cinto!
Rahl ergueu as mãos abertas, fingindo inocência.
— Oh, não nego que matei George Cypher. Mas não matei seu pai.
Richard foi apanhado de surpresa.
— Como assim?
Darken Rahl começou a andar em volta dele, olhos nos olhos, quando Richard tentou acompanhá-lo, virando a cabeça.
— É muito boa. Muito boa mesmo. O melhor que já vi. Feito pelo próprio grande homem.
— O quê?
Darken Rahl molhou as pontas dos dedos e parou na frente dele.
— A teia do mago em volta de você. Nunca vi outra igual. Realmente intrincada acho que nem eu posso desmanchá-la.
— Se está tentando me convencer de que George Cypher não é meu pai, você falhou. Se está tentando me convencer de que você é louco, não se dê o trabalho. Isso eu já sei.
— Meu caro rapaz — riu Rahl. — Pouco me importa quem você acredita que é seu pai. Porém há uma teia de mago escondendo a verdade de você.
— É mesmo? Faço seu jogo. Quem é meu pai, se não George Cypher?
— Não sei. — Rahl deu de ombros. — A teia esconde. Mas, pelo que vi, tenho minhas suspeitas. — O sorriso desapareceu. — O que o Livro dos sombras contadas diz?
Richard deu de ombros.
— É essa a sua pergunta? Está me desapontando.
— Como assim?
— Bem, depois do que foi feito ao desgraçado do seu pai, pensei que ia querer saber o nome do velho mago.
Darken Rahl olhou fixo para ele, molhando os dedos com a língua.
— Qual é o nome do velho mago?
Foi a vez de Richard sorrir. Abriu os braços.
— Abra meu corpo com sua faca. Está escrito nas minhas entranhas. Terá de encontrar nelas.
Richard continuou a sorrir com desprezo. Sabia que estava indefeso e esperava que Rahl o matasse. Se morresse, o livro morreria com ele. Sem a caixa e sem o livro, Rahl morreria e Kahlan estaria a salvo. Só isso importava.
— Dentro de uma semana, estaremos no primeiro dia do inverno e eu terei o nome do mago e o poder de descobrir onde ele está e trazê-lo para mim.
— Dentro de uma semana você estará morto. Você tem só duas caixas. Darken Rahl molhou as pontas dos dedos outra vez e passou nos lábios. —Tenho duas agora e a terceira está vindo para cá neste momento.
Richard tentou não acreditar; manteve o rosto impassível.
— Uma gabolice corajosa. Mas uma mentira. Dentro de uma semana, você vai morrer.
Rahl ergueu as sobrancelhas.
— Estou dizendo a verdade. Você foi traído. O mesmo que o traiu para mim traiu também a caixa. Estará aqui em poucos dias.
— Eu não acredito — disse Richard, secamente.
Darken Rahl molhou as pontas dos dedos, se virou de costas e deu a volta no círculo de areia.
— Não? Deixe-me mostrar-lhe uma coisa.
Richard o seguiu até a pedra branca sobre a qual estava uma laje de granito apoiada em dois pedestais curtos, estriados. No centro estavam as duas caixas de Orden. Uma era adornada com pedras preciosas como a que Richard já tinha visto. A outra era negra como a pedra da noite, a superfície um vazio na luz da sala: a caixa propriamente dita sem a cobertura protetora.
— Duas caixas de Orden — disse Rahl, estendendo a mão para elas. — para que vou querer o livro? Será inútil sem a terceira caixa. Você tinha a terceira. Quem o traiu me disse. Se a caixa não estivesse a caminho, para que eu precisaria do livro? Eu abriria seu corpo para descobrir onde escava a caixa.
Richard estremeceu de raiva.
— Quem me traiu e à caixa? Diga seu nome.
— Senão, o quê? Vai me cortar e ler o nome nas minhas entranhas? Não trairei o nome de quem me ajudou. Você não é o único homem honrado.
Richard não sabia no que acreditar. Rahl tinha razão numa coisa. Não ia precisar do livro se não tivesse as três caixas. Alguém o tinha traído realmente. Era impossível, mas devia ser verdade.
— Pois então, pode me matar — disse Richard, com voz fraca. — Não vou dizer. Acho melhor começar a me cortar.
— Antes você tem de me convencer de que está dizendo a verdade. Pode estar me enganando quando diz que sabe de cor todo o livro. Pode ter lido só a primeira página e queimado o resto ou simplesmente ter inventado o que me disse.
Richard cruzou os braços e olhou para trás.
— E por que eu ia querer que você acreditasse em mim?
Rahl deu de ombros.
— Pensei que gostasse da Confessora Kahlan. Pensei que se importasse com o que pode acontecer com ela. Se não me convencer de que está dizendo a verdade, então terei de cortar a Confessora e examinar suas entranhas para ver se elas podem me dizer alguma coisa.
Richard olhou ferozmente para ele.
— Seria o maior erro da sua vida. Você precisa dela para confirmar a verdade do livro. Se fizer isso, destruirá sua chance.
Rahl deu de ombros.
— É o que você diz. Como vou saber se você sabe realmente o que o livro diz? Pode até ser esse o modo pelo qual ela pode confirmar a verdade.
Richard não disse nada; sua mente corria em todas as direções. Pense na solução, ele dizia a si mesmo, não no problema.
— Como você conseguiu tirar a cobertura dessa caixa, sem o livro?
— O Livro das sombras contadas não é a única fonte de informação. Há outros lugares que me ajudam. — Olhou para a caixa negra. — Levou um dia inteiro e todo o talento que possuo para tirar a cobertura. — Olhou para trás com uma sobrancelha levantada. — É presa com magia, você sabe. Mas eu consegui e vou poder retirar das outras duas.
Era desanimador saber disso. Para abrir uma caixa era preciso tirar a cobertura. Richard esperava que, sem o livro, Rahl não pudesse descobrir como fazer isso e abrir a caixa. Essa esperança estava perdida agora.
Richard olhou para a caixa adornada com pedras preciosas. “Página doze do Livro das sombras contadas. Sob o título Retirando as coberturas, está escrito: A cobertura das caixas podem ser retirada por qualquer pessoa com conhecimento, não apenas por quem as ativou”. Richard tirou a caixa coberta de cima do granito. “Página dezessete, terceiro parágrafo. Porém, não nas horas de escuridão, mas nas horas de sol a cobertura deve ser removida da segunda caixa do seguinte modo: Segure a caixa onde possa ser tocada pelo sol, virada para o norte. Se houver nuvens, segure a caixa onde o sol possa tocá-la. Se não houver nuvens virada para o oeste.” Richard segurou a caixa na última luz do dia. “Vire a caixa de modo que a extremidade menor com a pedra azul fique de frente para quadrante com o sol. A pedra amarela está na parte de cima. “Richard virou a caixa. “Com o segundo dedo da mão direita na pedra amarela no centro em cima, leve o polegar da mão direita na pedra clara no canto inferior.” Richard segurou a caixa como o livro mandava. “Ponha o indicador da mão esquerda na pedra azul do lado de fora, o polegar da mão esquerda no rubi, no lado mais próximo”. Richard fez isso. “Livre sua mente de todo pensamento e o substitua apenas pela imagem de branco com um quadrado negro no meio. Afaste as duas mãos, tirando a cobertura com elas.”
Enquanto Rahl observava, Richard limpou a mente e visualizou branco com um quadrado negro no centro e puxou com as duas mãos. A cobertura estalou e se abriu. Ele segurou a caixa acima do granito e tirou a parte de fora, como se estivesse quebrando um ovo para fritar. Duas caixas negras iguais estavam agora lado a lado, parecendo sugar a luz da sala.
— Notável — murmurou Rahl. — E você sabe todo o livro tão bem assim?
— Cada palavra — disse Richard. — O que eu contei não vai adiantar para remover a abertura da terceira caixa. Para cada uma é diferente.
Rahl sacudiu a mão.
— Não importa. Eu vou conseguir. —Apoiou o cotovelo na mão e tocou no queixo com um dedo da outra mão, absorto em pensamentos. — Você pode ir.
Richard franziu a testa.
— Como assim, posso ir? Não vai tentar me fazer recitar o livro? Não vai me matar?
Rahl deu de ombros.
— Não adiantaria. Os meios que tenho para obter informações danificariam seu cérebro. As informações seriam adulteradas. Se fosse outra coisa qualquer, eu poderia refazer, mas posso ver que o livro é muito especifico para isso. As informações seriam danificadas e inúteis. Portanto, você não tem utilidade para mim agora; pode ir.
Richard ficou preocupado. Havia alguma coisa mais.
— Assim, sem mais nem menos? Posso ir? Deve saber que vou tentar deter você.
Rahl molhou as pontas dos dedos e ergueu os olhos.
— Não estou preocupado com o que você pode fazer. Mas deve voltar dentro de uma semana, quando vou abrir as caixas, se é que se importa com o que pode acontecer com todos.
Richard entrecerrou os olhos.
— Como assim, se me importo com o que pode acontecer com todos ?
— Dentro de uma semana, no primeiro dia do inverno, vou abrir uma das caixas. Consegui aprender em outras fontes que não o Livro das sombras contadas, as fontes que me ensinaram a remover a cobertura. Como saber qual a caixa que pode me matar. A não ser isso, terei de adivinhar. Se eu abrir a caixa certa, reinarei incontestavelmente. Se abrir a outra, o mundo será destruído.
— Você deixaria que isso acontecesse?
Darken Rahl ergueu uma sobrancelha e se inclinou para Richard.
— Um mundo só ou nenhum. É como deve ser.
— Não acredito. Você não sabe qual a caixa que o destruirá.
— Mesmo que eu esteja mentindo, ainda tenho duas chances de conseguir o que quero. Você teria apenas uma em três a seu favor. Não é uma boa vantagem para você. Mas não estou mentindo. Ou o mundo será destruído ou eu o governarei. Você deve decidir o que prefere. Se não me ajudar e eu abrir a caixa errada, eu serei destruído com o mundo todo, incluindo as pessoas com quem você se importa. Se me ajudar e eu abrir a caixa que quero, então darei Kahlan para Constance treinar. Um treinamento sólido e longo. Você assistirá a tudo antes de ser morto. Então Kahlan me dará um filho e herdeiro. Um filho que será um Confessor.
Richard ficou gelado, com uma dor pior do que qualquer uma infligida por Denna.
— Está tentando me fazer uma oferta?
Rahl balançou a cabeça, assentindo.
— Se você voltar a tempo e me ajudar, poderá continuar com sua vida. Eu o deixarei em paz.
— E Kahlan?
— Ela vai morar aqui, no Palácio do Povo, e será tratada como uma rainha. Terá todo o conforto que uma mulher pode desejar, o tipo de vida ao qual uma Confessora está acostumada. Uma coisa que você jamais lhe poderia dar. Levará uma vida de paz e segurança e me dará o filho Confessor que eu desejo. De qualquer modo, me dará um filho. A escolha é minha. Sua escolha é como ela vai viver, como um animalzinho de Constance ou como uma rainha. Então, compreendeu? Acho que você vai voltar. E se eu estiver enganado... — Deu de ombros. — Um mundo só ou nenhum.
Richard mal podia respirar.
— Eu acho que você não sabe qual caixa o destruirá,
— Você terá de decidir no que quer acreditar. Não sinto necessidade de convencê-lo — Seu rosto se anuviou. — Escolha sabiamente, meu jovem amigo. Pode não gostar das opções que apresentei, mas gostará menos do resultado se não me ajudar. Nem todas as escolhas na vida são do seu agrado, mas essas são as que nos são apresentadas. Às vezes precisamos escolher o que é melhor para aqueles a quem amamos e não para nós mesmos.
— Eu ainda acho que você não sabe qual é a caixa que o matará — murmurou Richard.
— Pense o que quiser, mas pergunte a você mesmo se está disposto a arriscar o futuro de Kahlan com Constance. Mesmo que esteja certo, ainda terá só uma chance em três.
Richard se sentiu vazio, devastado.
— Posso ir agora?
— Bem, há algumas outras coisas que você vai querer saber.
De repente, Richard se sentiu paralisado, como se mãos o segurassem. Não podia mover um músculo. Darken Rahl pôs a mão no bolso dele e tirou a bolsa de couro com a pedra da noite. Richard lutou em vão contra a força que o detinha. Rahl pôs a pedra na palma da mão, sorrindo.
As sombras começaram a se materializar. Reuniram-se em volta de Rahl, em números cada vez maior. Richard queria recuar, mas não conseguiu mover-se. — Está na hora de irem para casa, meus amigos.
As sombras começaram a girar em volta de Rahl, cada vez mais depressa, até se transformarem numa névoa cinzenta. Com um uivo, foram sugadas pela pedra da noite num redemoinho de sombras e formas. Silêncio. Todas desapareceram. A pedra da noite virou cinza na palma da mão de Rahl. Ele assoprou e a cinza sumiu no ar.
— O velho está à sua procura, usando a pedra da noite. Na próxima vez que ele procurar, vai ter uma surpresa desagradável. Vai se encontrar no mundo subterrâneo.
Richard ficou furioso com o que Rahl estava fazendo com Zedd e furioso por não poder se mover, por estar indefeso e só poder olhar.
Richard relaxou a mente, desistiu do esforço para se mover e o substituiu pela calma. Esvaziou a mente, deixou-se ficar relaxado, flácido. A força desapareceu. Ele deu um passo à frente, livre do que o segurava.
Rahl sorriu calorosamente.
— Muito bom, meu rapaz. Você sabe como quebrar a teia do mago, pelo menos uma pequena. Mas, de qualquer modo, muito bom. O velho escolhe bem seus Seekers. Mas você é mais do que um Seeker. Você tem o dom. Espero ansiosamente o dia em que estaremos do mesmo lado. Terei muito prazer com sua presença. As pessoas com quem temos de tratar são muito limitadas. Depois que o mundo for unificado, eu ensinarei mais a você, se quiser.
— Jamais estaremos do mesmo lado. Jamais.
— A escolha é sua, Richard. Não tenho nada contra você. Espero que venhamos a ser amigos. — Olhou atentamente para Richard. — Há mais uma coisa. Você pode ficar no Palácio do Povo ou pode ir embora, se quiser. Meus guardas o atenderão, porém você estará envolvido por uma teia de mago. Diferente da que acaba de quebrar, essa não o afetará, só os que o vêem, portanto, não poderá quebrá-la. É chamada de teia inimiga. Todos o verão como inimigo. Isso quer dizer que, quando seus aliados o virem, verão você como inimigo. Meus partidários o verão como você é, uma vez que você é meu inimigo, por enquanto, e portanto também inimigo deles. Pelo menos por enquanto. Mas os que são seus amigos o verão como a pessoa que mais temem, seu pior inimigo. Eu gostaria de que você visse o que as pessoas pensam de mim, que visse o mundo com meus olhos, que visse como sou injustamente julgado.
Richard não precisou conter a raiva; ela não existia. Sentia uma paz estranha. — Posso ir agora?
— É claro, meu rapaz.
— E a senhora Denna?
— Quando você sair desta sala, estará outra vez sob o seu poder. Ela ainda comanda a magia da espada. Quando uma Mord-Sith tem sua magia, pertence a ela para sempre. Eu não posso tirá-la dela e devolvê-la a você. Você mesmo tem de recuperá-la.
— Então, posso sair?
— Não é óbvio? Se quer sair, pode matá-la.
— Matar? — Richard ficou atônito. — Não acha que se eu pudesse matá-la já o teria feito? Pensa que teria suportado o que ela fez comigo se pudesse tê-la matado?
Darken Rahl disse, com um breve sorriso: — Você sempre teve essa possibilidade.
— Como?
— Não existe nada com apenas um lado. Até um pedaço de papel fino tem dois lados. A magia também não é unidimensional. Você tem olhado só para um lado dela, a maioria das pessoas faz isso. Veja o todo. — Apontou para os corpos dos dois guardas. Os guardas mortos por Richard. — Ela controla sua magia, contudo, você fez isso.
— Mas é diferente, não funciona contra ela.
— Sim, funciona. Mas você deve ser seu mestre, meias medidas só criarão problemas. Ela o controla com uma dimensão da magia, o lado que você ofereceu. Deve usar o outro lado. É uma coisa que todos os Seekers sempre puderam fazer, mas nenhum conseguiu dominar. Talvez você venha a ser o primeiro.
— E se eu não for? Se não conseguir? — Darken Rahl estava falando de modo muito parecido com o de Zedd, para agrado de Richard. Era assim que Zedd sempre lhe ensinava: fazendo com que pensasse por si mesmo, encontrasse as respostas com a própria mente.
— Então, meu jovem amigo, você vai ter uma semana muito dura. Denna não está satisfeita porque você a embaraçou. No fim da semana, ela o trará para mim e você me dirá o que resolveu. Ajudar, ou deixar que seus amigos sofram e morram.
— Apenas me diga como usar a magia da espada, como dominá-la.
— É claro. Logo depois que você me disser o conhecimento do Livro das sombras contadas. — Rahl sorriu. — Não, não lhe vou ensinar isso. Boa noite, Richard. Não esqueça, uma semana.
O sol estava se pondo quando Richard deixou o jardim e Darken Rahl. Sua mente estava a mil, com tudo que ficara sabendo. O fato de Darken Rahl saber qual a caixa que o destruiria preocupava Richard, mas talvez ele estivesse usando a Primeira Regra do Mago. O pior era que um dos seus o traíra. Não gostava nada disso. Gostava menos ainda de saber quem podia ter sido. Shota tinha dito que Zedd e Kahlan usariam seus podem contra ele. Tinha de ser Zedd ou Kahlan. Richard não podia aceitar essa idéia, por mais que tentasse, por mais que procurasse raciocinar. Não podia ser nenhum dos dois, mas tinha de ser um deles. Richard os amava mais do que precisava viver. Zedd dissera que devia preparar-se para matar qualquer um deles que prejudicasse o sucesso da sua missão, mesmo que pensasse que era apenas uma suspeita. Procurou afastar o pensamento.
Precisava encontrar um meio de se afastar de Denna. Não podia ajudar de modo algum, e só isso importava, se não pudesse se afastar de Denna. Não adiantava pensar em outros problemas se não fizesse isso e se não descobrisse logo um meio. Denna ia torturá-lo e ele não poderia mais pensar. As coisas que ela fazia tornavam impossível pensar, ele esquecia tudo. Precisava se concentrar nesse problema primeiro e deixar os outros para depois.
A espada, ele pensou. Denna controlava a magia da espada. Ele não precisava da espada, talvez pudesse se desfazer dela, desfazer-se da magia que ela controlava. Estendeu a mão para o punho, mas a dor da magia o fez parar antes mesmo que o tocasse.
Seguiu pelos corredores para o alojamento de Denna. Era um longo caminho. Talvez pudesse ir para outro lugar, sair do Palácio do Povo. Darken Rahl tinha dito que nenhum dos guardas o deteria. Quando chegou a um cruzamento nos corredores, seguiu por um caminho diferente. A dor o fez cair de joelhos. Com grande esforço, conseguiu voltar ao caminho certo. Teve de parar para descansar. A dor o deixou sem fôlego.
Perto, logo adiante, o sino para a prece noturna tocou. Iria à oração. Isso lhe daria tempo para pensar. Ajoelhou-se aliviado, ao ver que a dor não tinha voltado. Estava numa das praças com água. Eram as de que ele mais gostava, as mais tranqüilas. Perto da àgua, rodeado de gente, Richard encostou a cabeça no ladrilho e começou a cantar, clareando a mente, esvaziando. Usou o canto para afastar as preocupações. Afastou o pensamento de todos os problemas, deixou que a mente procurasse a paz, que perambulava a esmo. A prece terminou, aparentemente muito depressa. Richard se levantou, descansado, renovado e continuou o caminho para o alojamento de Denna.
Os corredores pelos quais passou, as salas e as escadas eram belíssimos e Richard mais uma vez se maravilhou. Imaginou como alguém tão vil quanto Rahl podia se rodear de tanta beleza.
— Nada é unidimensional. Dois lados da magia.
Richard pensou nas vezes em que o poder estranho tinha despertado nele. Quando sentiu pena da princesa Violeta, quando o guarda da rainha tentou fazer mal a Denna, quando sentiu a dor do que tinham feito com ela, quando pensou em Rahl torturando Kahlan, quando o guarda de Rahl tentou machucar Denna. Lembrou que, em todas as vezes, parte da sua visão ficou branca.
Em todas as vezes, ele sabia que era a magia da espada. Mas no passado a magia da espada era raiva também. Porém, uma raiva diferente. Lembrou como se sentia quando empunhava a espada com raiva, a ira, a fúria, a vontade de matar.
O ódio.
Richard parou de repente no centro do salão silencioso. Era tarde e não havia ninguém por perto. Estava sozinho. Sentiu uma onda de frio, um formigamento na pele.
Dois lados. Ele compreendeu.
Que os espíritos o ajudassem, ele compreendeu.
Ele evocou o poder, deixando que cobrisse tudo de branco.
Entorpecido, embalado na bruma da magia, quase em transe, Richard entrou no alojamento de Denna e fechou a porta. Calmamente sustentou o poder, a brancura, sustentando a alegria e a tristeza dele. O quarto silencioso era iluminado pela luz suave, quente e perfumada de um lampião na mesa-de-cabeceira. Denna estava deitada na cama, completamente nua, com as pernas cruzadas, a trança desfeita e o cabelo escovado. O Agiel no cordão de ouro repousava entre seus seios. As mãos estavam ao colo. Olhou para ele tristemente.
— Veio me matar, meu amor? — murmurou ela.
Richard balançou a cabeça afirmativamente.
— Sim, senhora.
Com um pequeno sorriso, ela disse: — É a primeira vez que me chama simplesmente de senhora. Sempre me chamou de Senhora Denna. Significa alguma coisa?
— Sim. Significa tudo, minha companheira. Significa que perdôo tudo.
— Eu me preparei.
— Por que está nua?
A luz refletiu as lágrimas nos olhos dela.
— Porque tudo que tenho para vestir é Mord-Sith. Não tenho nada mais. Não queria morrer com a roupa de Mord-Sith. Quero morrer como nasci. Denna. Nada mais.
— Compreendo — murmurou ele. — Como sabia que eu vinha matá-la?
— Quando Mestre Rahl me escolheu para procurar você, ele disse que não era uma ordem, mas que eu devia ir voluntariamente. Disse que as profecias falam de um Seeker que será o primeiro a dominar a magia da espada, a magia branca. Que ele faria a lâmina da espada ficar branca. Disse que se você fosse esse Seeker, eu morreria por suas mãos, se você quisesse. Pedi para procurar você, para ser sua Mord-Sith. Algumas das coisas que fiz com você nunca tinha feito com nenhum outro, na esperança de que você fosse esse Seeker e me matasse. Quando você fez aquilo à princesa, suspeitei. Quando você matou os dois guardas hoje, tive certeza. Você não devia ser capaz de fazer aquilo. Eu o mantinha sob a magia da espada o tempo todo.
Tudo era branco em volta da beleza quase infantil do rosto dela.
— Eu sinto tanto, Denna! — murmurou ele.
— Vai se lembrar de mim?
— Terei pesadelos pelo resto da vida.
Ela sorriu.
— Fico feliz com isso. — Parecia genuinamente orgulhosa. — Você ama essa mulher Kahlan?
Richard perguntou intrigado: — Como sabe disso?
— Às vezes, quando torturo bastante alguns homens e eles não sabem o que estão dizendo, choram e chamam pela mãe ou pela esposa. Você chamava Kahlan. Vai escolher Kahlan para sua companheira?
— Não posso — disse ele, sentindo um nó na garganta, — Ela é uma Confessora. Seu poder me destruiria.
— Lamento. Isso o faz sofrer?
Ele balançou a cabeça afirmativamente, devagar
— Mais do que qualquer coisa que você tenha feito.
— Ótimo — sorriu Denna tristemente —, estou contente porque a mulher que você ama pode causar mais dor do que eu causei.
Richard sabia que, do seu modo pervertido, Denna queria consolá-lo, que ficar feliz por alguém provocar mais dor do que ela era uma dádiva de amor. Sabia que Denna às vezes o fazia sofrer para mostrar que gostava dele. Para ela, pelo menos, se essa outra mulher podia provocar mais dor, era uma demonstração de amor.
Uma lágrima desceu pelo rosto dele. O que tinham feito àquela pobre criança?
— É uma dor diferente. Nenhuma pode ser igual às que você me infligiu.
Uma lágrima de orgulho desceu pelo rosto dela.
— Obrigada, meu amor — murmurou Denna. Tirou o Agiel do pescoço e estendeu para ele. — Vai usar isto para se lembrar de mim? Não vai machucar se usar pendurado no pescoço, nem se você segurar a corrente, só se o pegar.
Richard manteve o rosto dela na luminosidade branca.
— Será uma honra para mim, minha companheira. — Inclinou-se e deixou que da passasse a tira de couro por sua cabeça e beijasse seu rosto.
— Como vai fazer? — perguntou ela.
Richard sabia do que ela estava falando. Engoliu em seco. Suas mãos foram para o punho da espada.
Lentamente desembainhou a Espada da Verdade. A lâmina não cantou, como sempre cantava.
Mas sibilou. Com um assobio de calor branco.
Richard não olhou, mas sabia que a lâmina estava branca. Olhou nos olhos úmidos dela. O poder o tomou. Ele estava em paz. Toda a raiva, toda a fúria, todo o ódio, toda a maldade tinham desaparecido. Em vez de sentir tudo isso como antes, sentia só amor por aquela criança, aquele recipiente onde haviam despejado dor, aquele receptáculo de crueldade, aquela alma inocente torturada, treinada para fazer coisas que ela odiava acima de tudo: provocar dor nos outros. Sua empatia o fazia sentir pena, sentir amor por ela.
— Denna — murmurou ele. — Você podia apenas me deixar ir. Isso não é necessário. Por favor! Deixe-me ir. Não me obrigue a fazer isso.
Denna levantou o queixo.
— Se você tentar ir embora, eu o deterei com a dor da magia e farei com que se arrependa por ter criado problemas para mim. Eu sou Mord-Sith. Sou sua senhora. Não posso ser mais do que sou. Você não pode ser menos, meu companheiro.
Richard olhou tristemente para ela e pôs a ponta da espada entre os seios dela; as lágrimas e o brilho branco lhe dificultavam a visão.
Denna gentilmente levou a espada um pouco mais para cima.
— Meu coração está aqui, meu amor.
Com a espada no peito dela, Richard se inclinou e passou o braço carinhosamente em volta dos ombros macios de Denna. Contendo o poder com todas as suas forças, beijou-a no rosto.
— Richard — murmurou ela. — Nunca tive um companheiro como você. Estou feliz por você ter sido o último. Você é uma pessoa muito rara. A única pessoa, desde que fui escolhida, que se importou com a dor que eu sentia ou que fez qualquer coisa para aliviá-la. Obrigada pela noite passada, por me ensinar o que poderia ter sido.
Com o rosto molhado de lágrimas, ele a abraçou com força.
— Perdoe-me, meu amor.
Ela sorriu.
— Perdôo tudo. Obrigada por me chamar de meu amor. É bom ouvir isso de verdade, pelo menos uma vez antes de morrer. Gire a espada, para ter certeza de que está terminado. E, Richard, por favor, absorva meu último suspiro, como eu ensinei. Quero que você fique com meu último suspiro de vida.
Atordoado, ele a beijou nos lábios e nem sentiu o movimento da sua mão direita. Não houve resistência. A espada a atravessou como se ela fosse um tecido diáfano. Richard sentiu sua mão girar a espada e aspirou o último suspiro de vida de Denna.
Ele a deitou gentilmente na cama, deitou-se ao lado dela e chorou incontrolavelmente, acariciando o rosto pálido.
Ele lamentou não poder desfazer o que tinha feito.
Era tarde da noite quando Richard saiu dos alojamentos de Denna. Os salões estavam vazios, a não ser pelas sombras bruxuleantes. Seus passos ecoavam na pedra polida e nas paredes, enquanto caminhava pesaroso, vendo sua sombra girar quando passava pelos archotes, consolado só por ter outra vez a mochila nas costas e por estar deixando o Palácio do Povo. Não sabia para onde estava indo, só que precisava sair dali.
A dor do Agiel nas costas o fez parar de repente, o suor brotando no seu rosto, enquanto tentava em vão respirar. O fogo chamuscou seus quadris e suas pernas.
—Vai a algum lugar? — ouviu o murmúrio cruel.
Constance.
A mão trêmula procurou alcançar a espada. Ela riu olhando para ele. Uma visão de entregar o controle da magia a ela, de todo o pesadelo recomeçar, passou por sua mente. Afastou a mão da espada e controlou a raiva da magia. Ela ficou à frente dele, com o braço em volta do seu corpo, o Agiel nas suas costas, paralisando suas pernas. Constance estava vestida de couro vermelho.
— Não? Ainda não está pronto para usar a magia contra mim? Logo estará. Vai tentar muito em breve, vai tentar se salvar com ela. — Sorriu. — Poupe-se de mais dor, use-a agora. Talvez eu seja misericordiosa se a usar agora.
Richard pensou em todos os modos pelos quais Denna infligia dor e em como lhe tinha ensinado a tolerar, para que ela pudesse provocar mais. Lembrou tudo que tinha aprendido. Controlou a dor, bloqueando-a o tempo suficiente para poder respirar profundamente.
Passou o braço esquerdo em volta de Constance, apertando o corpo dela contra o seu. Segurou o Agiel de Denna dependurado no seu pescoço. A dor subiu por seu braço. Ele a suportou, ignorou. Constance grunhiu quando ele a levantou do chão. Tentou aplicar o Agiel nas costas dele, mas não tinha ponto de apoio e Richard prendeu seu braço, imobilizando-o.
Quando ele a tinha erguido bastante e o rosto contorcido estava à frente do seu, ele aplicou o Agiel de Denna no peito dela. Constance arregalou os olhos. Seu rosto relaxou. Richard se lembrou de Denna segurando o Agiel daquele modo no peito da rainha Milena. Teve o mesmo efeito em Constance. Ela estremeceu, aliviando a pressão nas suas costas. Mas ainda o machucava, bem como o de Denna que tinha na mão.
Richard rilhou os dentes para controlar a dor.
— Não vou matar você com a espada. Para isso teria de perdoar tudo que você fez. Eu jamais poderia perdoá-la por ter traído uma amiga. Posso perdoar o que fez a mim, mas não o que fez contra sua amiga Denna. Essa é uma coisa que jamais perdoarei.
Constance gemeu de agonia.
— Por favor...
— Promessa feita... — zombou de.
— Não... por favor... não.
Richard girou o Agiel como vira Denna fazer com a rainha. Constance se encolheu e ficou flácida nas mãos dele. Sangue escorreu das suas orelhas. Ele deixou o corpo inerte escorregar para o chão.
— Promessa cumprida.
Richard olhou por longo tempo para o Agiel que segurava com força, antes de se dar conta de que estava causando dor, e finalmente o soltou, deixando-o pender do cordão em volta do pescoço.
Enquanto retomava o fôlego, olhou para a Mord-Sith morta. Obrigado, Denna, por me ensinar a suportar a dor. Você salvou minha vida.
Levou quase uma hora para encontrar o caminho no labirinto de corredores, até a noite fria, para fora do palácio. Com a mão no punho da espada, passou por dois guardas corpulentos no portão aberto, para o muro externo, mas eles apenas o cumprimentaram com uma inclinação da cabeça, como se ele fosse um convidado retirando-se depois de um jantar real.
Richard parou, olhando para a paisagem iluminada pelas estrelas. Nunca se sentiu tão feliz por ver estrelas. Virou-se para trás, olhando para tudo. O Palácio do Povo, circundado por muros imponentes, no alto do planalto imenso que descia para uma planície. O planalto ficava a centenas de metros acima da terra estéril, mas havia una estrada cortada nos penhascos que descia para o terreno plano.
— Cavalo, senhor?
Richard se virou rapidamente. Um dos guardas tinha falado com ele.
— O quê?
— Perguntei se quer um cavalo, senhor. Parece que está de partida. É uma longa caminhada.
— Que longa caminhada?
O guarda indicou a descida com a cabeça.
— Aquela é a Planície Azrith. Está olhando para oeste, para além da Planície Azrith. É uma longa caminhada. Deseja um cavalo?
Intrigado, Richard pensou que Darken Rahl parecia pouco se importar com o que ele podia fazer, a ponto de permitir que lhe dessem um cavalo.
— Sim, quero um cavalo.
O guarda assoprou num pequeno apito uma série de sinais curtos e longos, para outro homem no muro. Richard ouviu a curta melodia repetida a distância. O guarda voltou para seu posto.
— Não vai demorar, senhor.
— A que distância ficam as montanhas Rang’Shada?
O homem franziu a testa.
— Onde nos montes Rang’Shada? Eles são muito extensos.
— Noroeste de Tamarang. O mais perto possível de Tamarang.
O homem passou a mão no queixo, pensando.
— Quatro, talvez cinco dias. — Olhou para o outro guarda. — O que você acha?
O outro guarda deu de ombros.
— Se cavalgar depressa dia e noite e mudar várias vezes de cavalo, uns cinco dias talvez, mas duvido que possa fazer em quatro.
O coração de Richard se apertou. Por isso Rahl não se importava que ele tivesse um cavalo. Para onde podia ir? Michael e o exército de Westland estavam a quadro dias de distância, no Rang’Shada. Não podia ir até eles e voltar antes do fim da semana, antes do primeiro dia do inverno.
Mas Kahlan devia estar mais perto. Rahl enviara aquele homem com a faixa negra no cabelo louro e dois quads para apanhá-la. O que ela estava fazendo tão perto dali? Tinha dito para não o procurar. Ficou furioso com Chase por não os ter impedido. Então, a raiva passou. Se fosse ele, não poderia ficar em paz sem saber o que tinha acontecido a um amigo. Talvez não estivessem nas montanhas e sim a caminho dali. Mas de que adiantaria um exercito? Dez bons homens num lugar como aquele podiam conter o avanço de um exército durante um mês.
Dois soldados montados, com armadura completa de combate, saíram pelo portão, trazendo um terceiro cavalo com eles.
— Vai querer uma escolta, senhor? — perguntou o guarda, — São bons homens.
— Não — disse Richard. — Eu vou sozinho.
O guarda dispensou os soldados.
— Então vai para oeste-sudoeste? — Richard não respondeu e o guarda continuou: — Tamarang, o lugar no Rang’Shada que o senhor perguntou. Fica a oeste-sudoeste. Posso dar um conselho, senhor?
— Diga — disse Richard cautelosamente.
— Se vai nessa direção, para atravessar a Planície Azrith, então quando for quase de manhã vai chegar a um campo rochoso entre montanhas escarpadas. Há um cruzamento na estrada num desfiladeiro profundo Siga para a esquerda.
Richard entrecerrou os olhos.
— Por quê?
— Porque à direita há um dragão. Um dragão vermelho. Um dragão muito rabugento. O dragão de Mestre Rahl.
Richard montou e olhou para o guarda.
— Obrigado pelo aviso. Não vou esquecer.
Esporeou o cavalo e começou a descer pelo lado do planalto, pela estrada em ziguezague. Depois de uma curva, viu uma ponte levadiça sendo abaixada. Richard não diminuiu a marcha e entrou a galope nas tábuas pesadas. Viu que a estrada era o único caminho pratico para os penhascos do planalto e o abismo sobre o qual estava a ponte seria um impasse para um exercito. Mesmo sem a força formidável dos defensores que ele tinha deixado para trás, mesmo sem a magia de Darken Rahl, a simples inacessibilidade do Palácio do Povo era defesa suficiente.
Cavalgando, Richard abriu o fecho da coleira odiosa e a jogou para longe, na noite. Jurou nunca mais usar um colar. Para ninguém. Por nenhum motivo.
Atravessando a planície, olhou para trás, para a silhueta negra do Palácio do Povo no alto do planalto, ameaçador, bloqueando um quadrante inteiro de estrelas. Seus olhos lacrimejavam por causa do ar frio. Ou talvez fosse a lembrança de Denna. Por mais que tentasse, não podia afastá-la da mente. Se não tosse por Kahlan e Zedd, ele teria se matado, tamanha era a dor que sentia.
Matar com a espada, enraivecido, cheio de ira e de ódio era horrível. Matar com a magia branca da espada, por amor, era muito além do horror. A lâmina voltara ao brilho prateado, mas ele sabia como fazê-la voltar a ficar branca. Esperava morrer antes que isso fosse preciso. Não sabia se jamais ia poder fazer aquilo outra vez.
Porém, ali estava ele, correndo na noite, correndo para Zedd e Kahlan, para descobrir qual deles contara a Darken Rahl onde estava a caixa, traindo todos.
Nada daquilo tinha sentido. Por que Rahl usaria a pedra da noite para capturar Zedd, se Zedd fosse o traidor? E por que mandar homens atrás de Kahlan, se fosse ela? Mas Shota tinha dito que os dois tentariam matá-lo. Tinha de ser um deles. O que Richard podia fazer? Tornar a lâmina branca e matar os dois? Sabia que isso era tolice. Preferia morrer a fazer mal a qualquer um deles. Mas, e se Zedd os estivesse traindo e o único modo de salvar Kahlan fosse matar seu velho amigo? Ou se fosse Kahlan? Ele preferia morrer a matá-la?
O importante era deter Rahl. Precisava recuperar a última caixa. Tinha de parar de gastar energia pensando em coisas que não podia saber. O que importava era deter Rahl; então todo o resto seria explicado. Richard encontrara a caixa uma vez, tinha de encontrar de novo.
Mas como? Não tinha tempo. Como ia encontrar Zedd e Kahlan? Era só um homem a cavalo, com um país inteiro para procurar. Não estariam viajando nas estradas, não se Chase estivesse com eles. Chase os faria ficar longe das estradas, bem escondidos. Richard não conhecia as estradas, muito menos as trilhas.
Era uma tarefa absurda. Era uma grande extensão para procurar. Darken Rahl tinha criado muitas dúvidas em sua mente. Os pensamentos redemoinhavam, cada vez mais confusos, mais impotentes. Sentia que sua mente era sua pior inimiga naquele momento. Richard esvaziou a mente e entoou uma prece ao homem que ele queria matar, cantou assim mesmo enquanto cavalgava na noite. Mestre Rahl seja nosso guia. Mestre Rahl nos ensine. Mestre Rahl nos proteja. Em sua luz, prosperamos. Em sua misericórdia, nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.
Duas vezes ele apeou para descansar o cavalo, mas o resto do tempo cavalgou o mais depressa possível. A Planície Azrith parecia infindável. O terreno plano quase sem vegetação estendia-se para o infinito. O canto o ajudou a manter a mente livre de todo pensamento, exceto um: o horror de ter matado Denna. Dessa lembrança não podia livrar-se. Essas lágrimas ele não podia conter.
O nascer do dia trouxe sua sombra para ser perseguida. Rochas surgiam, parecendo deslocadas, no terreno plano, lançando sombras longas. À medida que avançava, elas cresciam em número. O terreno começou a ficar ondulado, abrindo-se em ravinas, erguendo-se em cordilheiras. Atravessou passagem estreitas e brechas, um desfiladeiro com paredes esfareladas. A estrada virava para a esquerda, com uma trilha estreita à direita. Richard foi para a esquerda, se lembrando do que o guarda tinha dito.
Em sua mente clara, despontou uma idéia. Parou o cavalo de repente. Olhou para o caminho da direita. Pensou por um minuto, então puxou as rédeas para a direita, espicaçando o animal para a estrada estreita.
Darken Rahl tinha dito que ele era livre para ir aonde quisesse, permitiria até que lhe dessem um cavalo. Talvez ele não se importasse se Richard tomasse emprestado o seu dragão.
Deixando o cavalo escolher o caminho, Richard vigiava atentamente em volta, com a mão no punho da espada. Certamente não seria difícil encontrar um dragão vermelho. O único som era das patas do cavalo no solo duro. Richard não sabia a que distancia estava e cavalgou longo tempo por entre entulhos de rochas no solo do desfiladeiro. Começou a ficar preocupado, pensando que o dragão talvez tivesse ido embora, talvez Rahl tivesse montado nele em algum lugar. Talvez para pegar a caixa. Não sabia se era uma boa idéia, mas era a única que tinha no momento.
Uma rajada ofuscante de fogo explodiu com um rugido estrondoso. O cavalo empinou, Richard saltou da sela, caiu de pé e correu para trás de uma rocha quando o ar se encheu de pedras e fogo. Lascas de pedra ricocheteavam acima de sua cabeça. Ouviu o cavalo patear e sentiu o cheiro de pêlo queimado. O animal relinchou dolorosamente e Richard ouviu o ruído de ossos quebrados. Agachado, ele se encostou mais na rocha, com medo de olhar.
Ouvindo o rugido do fogo a intervalos regulares, o estalo dos ossos se quebrando, a carne sendo dilacerada, Richard decidiu que fora uma idéia perfeitamente idiota. Não podia acreditar que o dragão estivesse tão bem escondido. Imaginou se o teria visto se esconder atrás da rocha. Pelo menos, até o momento, parecia que não. Olhou em volta a procura de um meio de fuga, mas o terreno era muito aberto para ele correr sem ser visto. O som do cavalo sendo devorado lhe revoltou o estômago. Finalmente terminou. Richard imaginou se dragões tiravam uma soneca depois da refeição. Ouviu o dragão bufar. Mais perto agora. Richard tentou se fazer quase invisível.
Garras rasparam a rocha atrás da qual estava escondido e a ergueu do chão, jogando-a para o lado. Richard olhou para os olhos amarelos penetrantes. Quase todo o resto era de um vermelho intenso. A cabeça com ferrões flexíveis, com as pontas negras em volta da base da mandíbula e atrás das orelhas, o pescoço grosso e longo, o corpo imenso. A cauda musculosa terminava em ferrões como os da cabeça, só que rígidos e duros, e abanava de um lado para o outro, empurrando as rochas. Quando flexionava as asas, músculos potentes apareciam sob as escamas sobrepostas dos ombros. Dentes afiados como navalhas, manchados de vermelho da refeição recente, apareceram sob os lábios arreganhados no focinho comprido. A besta bufou. Fumaça saiu das narinas na ponta do focinho.
— O que temos aqui? — disse uma voz firme, feminina. — Um petisco?
Richard se levantou rapidamente e desembainhou a espada. A lamina cantou no ar.
— Preciso da sua ajuda.
— Será um prazer ajudá-lo, homenzinho. Mas só depois que eu o devorar.
— Estou avisando, fique onde está! Esta espada tem magia.
— Magia! — zombou o dragão, fingindo estar com medo. Levou uma das patas ao peito. — Oh, por favor, bravo homem, não me mate com sua espada mágica. — Fez um barulho rouco que Richard interpretou como uma risada.
Ainda empunhando a espada, Richard achou que estava sendo idiota.
— Então pretende me comer?
— Bem, devo admitir que mais por divertimento do que pelo paladar.
— Ouvi dizer que os dragões são independentes, mas você é pouco mais do que um cãozinho de colo de Darken Rahl. — Uma bola de fogo saiu da boca do dragão e se ergueu no ar. — Pensei que você gostaria de se livrar e ser independente outra vez.
A cabeça maior do que ele, Richard notou temeroso, se aproximou, até ficar a poucos metros. As orelhas se inclinaram para a frente. Uma língua vermelha brilhante como a de uma cobra se estendeu para ele, investigando com curiosidade. Richard tirou a espada do caminho quando a língua áspera passou por seu corpo, da virilha até o pescoço. Foi um toque leve para um dragão, mas o fez recuar alguns passos.
— E como um homem pequeno como você vai fazer isso?
— Estou tentando deter Darken Rahl, quero matá-lo. Se você me ajudar, ficará livre.
O dragão ergueu a cabeça; fumaça lhe saiu das narinas e deu uma risada estrondosa. O solo tremeu. Olhou para Richard, piscou os olhos, pôs outra vez a cabeça para trás e deu outra gargalhada.
O estrondo cessou e o dragão franziu a sobrancelha, zangado.
— Acho que não. Não acho que deva confiar meu destino a um homem pequeno como você. Prefiro continuar a servir a Mestre Rahl. — rosnou, soprando pequenas nuvens de pó para o lado, aos pés de Richard. — A diversão acabou. Hora do meu petisco.
— Tudo bem. Estou preparado para morrer. — Richard precisava pensar num modo de ganhar tempo para pensar. Por que um dragão vermelho estaria a serviço de Darken Rahl? — Mas antes de você me comer, posso dizer uma coisa?
— Fale — rosnou o dragão. — Mas seja breve.
— Eu sou de Westland. Nunca tinha visto um dragão. Sempre pensei que fossem criaturas assustadoras e, devo admitir, você é assustadora, mas eu não estava preparado para uma coisa.
— Não estava preparado para o que?
— Você é, sem duvida, a criatura mais estonteantemente bela que já vi.
Era verdade. A despeito da sua natureza letal, o dragão era extremamente belo. O pescoço tomou a forma de um S quando a criatura pôs a cabeça para trás piscando os olhos, surpresa. Richard viu a duvida nos olhos dela.
— É verdade — disse ele — vou ser devorado, não tenho motivo para mentir. Nunca pensei que um dia visse uma criatura tão magnífica. Você tem nome?
— Scarlet.
— Scarlet. Belo nome! Todos os dragões são estonteantemente belos ou você é especial?
Scarlet pôs a pata no peito.
— Não sei dizer. — A cabeça se aproximou dele outra vez. — Nunca um homem prestes a ser comido me disse isso.
Uma idéia se formou na mente de Richard. Embainhou a espada.
— Scarlet, sei que uma criatura orgulhosa como você jamais estaria à disposição de alguém, muito menos de uma pessoa exigente como Darken Rahl, a não ser que tenha uma necessidade premente. Você é bonita e nobre demais para isso.
A cabeça de Scarlet chegou mais perto dele.
— Por que está me dizendo essas coisas?
— Porque acredito na verdade. Acho que você também acredita.
— Qual o seu nome?
— Richard Cypher. Sou o Seeker.
Scarlet levou uma garra negra aos lábios.
— Seeker — franziu a testa. — Acho que ainda não comi um Seeker. — Com um sorriso estranho de dragão, continuou: — Será um petisco raro. Nossa conversa acabou, Richard Cypher. Obrigada pelo elogio. — A cabeça chegou mais perto, os lábios arreganhados.
— Darken Rahl roubou seu ovo, não foi?
Scarlet recuou. Piscou os olhos, depois inclinou a cabeça para trás, com as mandíbulas escancaradas. Um rugido ensurdecedor fez vibrar as escamas do pescoço. Fogo subiu para o céu numa rajada ruidosa. O som ecoou nas paredes do penhasco, provocando deslizamento de rochas.
A cabeça de Scarlet se aproximou dele, com fumaça saindo das narinas.
— O que você sabe sobre isso?
— Eu sei que uma criatura orgulhosa como você nunca se sujeitaria a uma escravidão tão baixa sem um motivo forte. Para proteger algo importante. Como a sua prole.
— Então você sabe. Isso não o salvará — rosnou ela.
— Sei também onde Darken Rahl guarda seu ovo.
— Onde? — Richard teve que se desviar das chamas. — Diga onde ele está!
— Pensei que ia me comer agora.
Um olho chegou muito perto dele.
— Alguém devia ensinar você a não ser tão atrevido — disse a voz tonitruante.
— Desculpe, Scarlet. É um mau habito que me causou muitos problemas no passado. Escute, se eu ajudar a reaver seu ovo, Rahl não terá poder algum sobre você. Se eu puder fazer isso, você me ajudará?
— Ajudar como?
— Bem, você voa com Rahl nas costas. É disso que eu preciso. Preciso que me leve nas costas por alguns dias, que me ajude a encontrar meus amigos, para protegê-los de Rahl. Preciso percorrer grandes distâncias, procurar em uma vasta área. Acho que se puder fazer isso do ar, como um pássaro, poderei encontrá-los e terei tempo suficiente para deter Rahl.
— Não gosto de levar homens nas costas. É humilhante.
— Dentro de seis dias tudo estará acabado, de um modo ou de outro. Se você me ajudar, terei de tudo que preciso. Depois disso, nada mais importa, aconteça o que acontecer. Por quanto tempo terá de servir a Rahl se não me ajudar?
— Tudo bem. Diga onde está o meu ovo que o deixo ir. Deixo você viver.
— Como vai saber que estou dizendo a verdade? Posso inventar um lugar para me salvar.
— Como os dragões, os verdadeiros Seekers têm honra. Isso eu sei. Portanto se você sabe realmente, diga e estará livre.
— Não.
— Não! — rugiu Scarlet. — Como assim, não?
— Não me importo com minha vida. Como você, só me interessam coisas mais importantes. Se quer que a ajude a recuperar seu ovo, tem de concordar em me ajudar a salvar as pessoas de quem gosto. Pegaremos o ovo primeiro, depois você me ajuda. Acho que é mais do que justo. A vida de sua prole em troca de me levar nas costas durante poucos dias.
O olho penetrante de Scarlet chegou muito perto do rosto dele e ela empinou as orelhas.
— E como você sabe que quando eu tiver meu ovo vou cumprir minha parte do acordo?
— Porque — murmurou Richard — você sabe o que é temer pela segurança de outra pessoa e porque tem honra. Não tenho escolha. Não sei de qualquer outro meio para salvar meus amigos e evitar que passem o resto da vida como você vive agora, sob o domínio de Rahl. Estarei arriscando minha vida para salvar seu ovo. Acredito que você seja uma criatura honrada. Confiarei na sua palavra, com a minha vida.
Scarlet bufou, recuando um pouco, olhando atentamente para ele. Fechou as asas. Abanou a cauda, derrubando pedras e fazendo deslizar alguns pequenos rochedos. Richard esperou. Um braço se estendeu para ele. Uma garra com ponta negra, grossa como sua perna, aguçada com a ponta de sua espada. Enganchou no talabarte da espada e puxou de leve. Scarlet aproximou mais a cabeça.
— Está combinado. Por sua honra, pela minha — sibilou Scarlet. — Mas não dei minha palavra de que não vou comer você no fim dos seis dias.
— Se me ajudar a salvar meus amigos e a deter Rahl, não me importo com o que você possa fazer depois — rosnou Richard. — Os gares de cauda curta são uma ameaça para os dragões?
O dragão largou o cinturão a tiracolo da espada.
— Gares... — disse ela com desprezo. — Já comi muitos deles. Não são páreo para mim, a não ser oito ou dez ao mesmo tempo, mas os gares não gostam de andar juntos, portanto, não são problema.
— São um problema agora. Quando vi seu ovo, havia dezenas de gares em volta dele.
Scarlet rosnou e línguas de fogo saíram de sua boca.
— Dezenas? Dezenas deles podem me puxar do céu. Especialmente se eu estiver carregando meu ovo.
Richard sorriu.
— Por isso você precisa de mim. Vou pensar num plano.
Zedd gritou. Kahlan e Chase se viraram para trás, sobressaltados. Kahlan ficou intrigada. Zedd nunca fizera aquilo antes, quando procurava a pedra da noite. O sol já tinha desaparecido, mas à luz fraca ela viu o rosto de Zedd quase tão branco quanto seu cabelo.
Ela segurou nos ombros dele.
— Zedd! O que foi?
Ele não respondeu. Sua cabeça caiu para o lado, seus olhos viraram para dentro das órbitas. Zedd ainda não respirava, mas isso era normal, nunca respirava quando procurava a pedra da noite. Kahlan trocou um olhar preocupado com Chase. Sentiu Zedd tremer sob suas mãos. Ela o sacudiu outra vez.
— Zedd! Pare com isso! Volte!
Ele respirou e murmurou alguma coisa. Kahlan encostou o ouvido na boca do mago. Ele murmurou outra vez.
Kahlan ficou horrorizada.
— Zedd, não posso fazer isso com você.
— O que ele disse? Perguntou Chase.
Kahlan ergueu os olhos cheios de medo para o guarda da fronteira.
— Ele disse para eu tocá-lo com meu poder.
— Mundo subterrâneo — murmurou Zedd. — O único meio.
— Zedd o que está acontecendo?
— Fui apanhado — murmurou ele. — Toque-me ou estou perdido. Depressa.
— Acho melhor fazer o que ele diz — avisou Chase.
Kahlan não gostou nada da idéia.
— Zedd, não posso fazer isso com você!
— É o único modo de quebrar a armadilha. Depressa!
— Faça — berrou Chase. — Não há tempo para discutir.
— Que os bons espíritos me perdoem — murmurou ela, fechando os olhos.
Em pânico, Kahlan sentiu que não tinha escolha. Temendo o que ia fazer, sua mente se aquietou. Ela relaxou a tensão. Sentiu o poder crescer, tirando seu fôlego. Liberado, o poder se chocou contra o mago.
O ar em volta deles sofreu um impacto. Trovão sem som. Agulhas de pinheiro choveram em profusão. Inclinado para os dois, Chase deixou escapar um gemido de dor. Estava mais perto do que devia. O silêncio envolveu o bosque. O mago ainda não respirava.
Zedd parou de tremer, os olhos voltaram ao normal, ele piscou várias vezes, ergueu as mãos e segurou os braços de Kahlan. Com esforço ele respirou.
— Muito obrigado, minha cara — conseguiu ele dizer entre uma respiração profunda e outra.
Kahlan viu, surpresa, que o poder, a magia, aparentemente não teve o efeito devido. Ela ficou aliviada mas atônita.
— Zedd, você está bem?
O mago fez que sim com a cabeça.
— Graças a você. Mas, se você não estivesse aqui ou se tivesse esperado um pouco mais, eu estaria preso no mundo subterrâneo. Seu poder me trouxe de volta.
— Por que ele não mudou você?
Zedd ajeitou o manto, parecendo um pouco embaraçado.
— Por causa do lugar em que eu estava — levantou o queixo. — E porque sou um mago da Primeira Ordem. Usei seu poder de Confessora como uma corda de salvação para encontrar o caminho de volta. Era como um farol no escuro. Voltei sem que eles me tocassem.
— O que você estava fazendo no mundo subterrâneo? — perguntou Chase antes que Kahlan tivesse a chance de perguntar.
Zedd olhou zangado para o guarda da fronteira e não respondeu.
Kahlan ficou preocupada.
— Zedd, responda. Isso nunca aconteceu antes. Por que foi levado para o mundo subterrâneo?
— Quando procuro a pedra da noite, uma parte de mim vai para ela. É assim que eu a encontro e posso dizer onde ela está.
Kahlan tentou não pensar no que eles estava dizendo.
— Mas a pedra da noite ainda está em D’Hara. Richard ainda está em D’Hara. — Segurou o manto dele. — Zedd...
Zedd olhou para baixo.
— A pedra da noite não está mais em D’Hara. Está no mundo subterrâneo. — Olhou para ela, furioso. — Mas isso não quer dizer que Richard não está em D’Hara. Não quer dizer que aconteceu alguma coisa com ele. Só com a pedra da noite.
Chase, tenso, começou a armar o acampamento antes que escurecesse demais. Kahlan continuava agarrada ao manto de Zedd, paralisada de terror.
— Zedd... por favor. Você pode estar errado?
Ele balançou a cabeça devagar.
— A pedra da noite está no mundo subterrâneo. Mas, minha cara, isso não quer dizer que Richard também está. Não se deixe dominar pelo medo.
Kahlan assentiu, com as lagrimas descendo no rosto.
— Zedd, ele tem de estar bem. Tem de estar. Se Rahl o manteve todo esse tempo lá não vai matá-lo agora.
— Nós não sabemos se Rahl está com Richard.
Kahlan sabia que o mago se recusava a admitir isso em voz alta. Por que ele estaria no Palácio do Povo se Rahl não o tivesse capturado?
— Zedd, quando você procurou a pedra da noite antes, disse que podia senti-lo, que ele estava vivo. — Quase não tinha coragem de perguntar, com medo do que ele ia dizer. — Você o sentiu no mundo subterrâneo?
Zedd olhou por longo tempo para os olhos dela.
— Eu não o senti. Mas não sei se sentiria se ele estivesse lá. Se ele estivesse morto. — Quando ela começou a chorar, Zedd a puxou para ele e a fez encostar a cabeça em seu ombro. — Mas acho que só a pedra da noite está lá. Acho que Rahl estava tentando me capturar. Ele deve ter tirado a pedra da noite de Richard e a mandou para o mundo subterrâneo para me atrair.
— Mesmo assim vamos procurá-lo. — exclamou ela. — Não vou desistir.
— Ora, é claro que vamos.
Kahlan sentiu a língua quente nas costas da mão. Acariciou o pêlo do lobo e sorriu.
— Vamos encontrá-lo, Senhora Kahlan. Não se preocupe, vamos encontrá-lo.
— Brophy tem razão — disse Chase, se virando para trás —, estou até esperando ansiosamente a descompostura que vamos ouvir por termos voltado.
— A caixa está segura — disse o mago —, é isso que importa. De amanha a cinco dias, será o primeiro dia do inverno e ai Darken Rahl estará morto. Teremos Richard de volta então, se não antes.
— Eu os levarei antes disso, se é o que quer dizer — resmungou Chase.
Richard segurou com força os esporões grossos dos ombros de Scarlet quando ela fez uma curva fechada para a esquerda. Com surpresa, aprendeu que, quando ela se inclinava numa curva, ele não escorregava das suas costas, porque Scarlet o apertava com mais força contra ela. Richard achou a experiência de voar divertida e assustadora ao mesmo tempo, como estar na beirada de um penhasco impossivelmente alto, que se movesse. A sensação de ser erguido no ar pelo corpo forte do dragão era estimulante. Músculos flexionavam debaixo dele quando ela cortava o ar com asas potente, subindo a cada movimento. Quando ela fechava as asas e descia, o vento enchia de água os olhos dele e a sensação de estar caindo o fazia perder o fôlego, como se seu estômago fosse subir até a boca. Ele se maravilhava à mera idéia de estar montado num dragão.
— Você os vê? — perguntou ele, elevando a voz acima do som do vento. Scarlet rosnou, para indicar que via. A luz fraca do fim do dia, os gares pareciam pontinhos movendo-se no terreno rochoso lá embaixo. Vapor subiu da Fonte de Fogo e até daquela altura Richard sentiu o cheiro ácido. Scarlet subiu mais, fazendo Richard apertar as pernas contra o corpo dela, e depois fez uma curva fechada para a direita.
— São muitos — disse ela.
Virou a cabeça para trás, olhando para ele com o olho amarelo. Richard apontou.
— Desça ali, atrás daquelas colinas, e não deixe que eles nos vejam.
Scarlet subiu, batendo as asas com força. Quando estavam mais alto do que nunca, ela se afastou da Fonte de Fogo. Mergulhou então, entre as encostas rochosas, dirigindo-se para onde Richard a mandara descer. Com um tatalar silencioso das asas, ela aterrissou mansamente perto da entrada de uma caverna e abaixou o pescoço para ele descer. Richard sabia que Scarlet não o queria nas costas mais do que o tempo necessário. Ela virou a cabeça para ele com olhos zangados e impacientes.
— Há muitos gares. Darken Rahl sabe que não posso lutar contra todos eles, por isso são tantos, para o caso de eu encontrar meu ovo. Você disse que ia pensar num plano. Qual é?
Richard olhou para a entrada da caverna. A caverna de Shadrin, Kahlan tinha dito.
— Precisamos uma diversão, alguma coisa para distraí-los enquanto pegamos o ovo. Olhou outra vez para a caverna.
— Uma amiga minha disse que a caverna vai até onde está o ovo. Talvez eu possa ir até lá pegá-lo.
— Pois então vá.
— Não devemos discutir se é uma boa idéia? Talvez a gente possa pensar em algo melhor. Ouvi dizer também que há alguma coisa na caverna.
O olho furioso de Scarlet chegou muito perto dele,
— Alguma coisa na caverna? — Virou a cabeça para a entrada da caverna e mandou uma terrível rajada de fogo para o escuro. — Agora, não tem nada na caverna. Vá pegar o meu ovo.
A caverna tinha quilômetros de comprimento. Richard sabia que o logo não teria feito mal algum a qualquer coisa que estivesse muito adiante. Sabia também que dera sua palavra. Apanhou juncos que cresciam ali perto e os amarrou com trepadeiras. Deu uma Scarlet.
— Quer acender a ponta para mim?
O dragão soprou uma chama na extremidade de um dos amarrados de junco.
— Você espera aqui —— disse Richard. — Às vezes é melhor ser pequeno. Não poderão ver-me facilmente. Vou pensar em alguma coisa, pegar o ovo e trazer para a caverna. É um longo caminho. Pode amanhecer antes de eu voltar. Não sei se os gares estarão perto de mim, por isso talvez tenhamos de sair depressa. Fique alerta, certo? — Dependurou a mochila num dos espigões das costas de Scarlet. — Tome conta disto para mim. Não quero carregar mais do que o necessário.
Richard não sabia se um dragão podia parecer preocupado, mas achou que Scarlet parecia.
— Cuidado com o ovo. Ele logo vai chocar, mas se a casca for quebrada antes do tempo...
Richard sorriu para tranqüilizá-la.
— Não se preocupe, Scarlet. Vamos recuperar o ovo.
Ela o acompanhou até a entrada da caverna e espiou para dentro até Richard desaparecer.
— Richard Cypher — chamou ela —, se você tentar fugir, eu o encontrarei e, se voltar sem o ovo, vai desejar que os gares o tivessem matado, porque vou cozinhar você em fogo lento, começando pelos pés.
Richard olhou para o vulto que tomava toda a entrada da caverna.
— Eu dei minha palavra. Se os gares me pegarem, tentarei matar um número suficiente deles para que você possa pegar o ovo e fugir.
Scarlet rosnou.
— Procure evitar que isso aconteça. Eu ainda quero comer você quando tudo acabar.
Richard sorriu e entrou mais na caverna. A escuridão engoliu a luz do archote e ele teve a impressão de estar caminhando para o nada. Só uma pequena área à sua frente era iluminada. À medida que se adiantava, o chão da caverna se inclinava para o ar frio e parado. Apareceram paredes e um teto de rocha quando o caminho se estreitou, formando um túnel sinuoso que continuava a descer. O túnel terminou numa sala enorme. A trilha seguia ao longo da uma rocha estreita na beirada de um lago verde. A luz bruxuleante do archote mostrou o teto pontudo e paredes de pedra lisa. O teto ficou mais baixo quando ele entrou numa passagem larga. Richard teve de se curvar. Durante uma hora ou mais, ele andou, com o corpo curvada o pescoço começando a doer. Ocasionalmente, encostara o archote no reto para tirar as cinzas e mantê-lo bem aceso.
A escuridão era opressiva. Ela o rodeava, seguia-o e o sugava cada vez mais para dentro, chamando-o pata a frente com visões invisíveis. Formações delicadas e coloridas de rocha cresciam como vegetação, como flores crescendo da rocha sólida. Cristais cintilantes brilharam quando ele passava com o archote, os estalos da chama o único ruído ecoando no escuro.
Richard passou por salas de beleza estonteante. No escuro, erguiam-se colunas de pedra ondulada, algumas terminando antes de chegar ao destino, com companheiras pendentes do teto para encontrá-las no meio do caminho. Lençóis cristalinos flutuavam sobre as paredes em alguns lugares, como pedras preciosas derretidas.
Algumas passagens eram fendas na rocha e ele tinha de passar muito rente; outras aberturas ele tinha de atravessar de quatro. O ar era estranhamente inodoro. Era um lugar de noite perpétua, jamais tocado pela luz e pela vida. Continuando a andar, o corpo aquecido pelo esforço, o ar frio fazia sair vapor da sua pele. Quando passava o archote para a outra mão via o vapor sair dos dedos, como a energia da vida evaporando. Embora não fosse frio como no inverno, era um frio capaz de sugar todo o calor da pessoa numa questão de minutos. Era um lugar que podia matar o descuidado ou quem tivesse pouca sorte. Richard verificava constantemente o archote aceso e os outros que tinha levado.
A noite eterna passava lentamente. Richard sentia as pernas cansadas de tanto subir e descer. Na verdade, todo o seu corpo estava cansado. Esperava que a caverna acabasse logo, parecia que tinha caminhado a noite inteira. Não tinha noção do tempo.
A rocha se fechava em volta dele. O teto plano ficou mais baixo até ele ter de andar curvado outra vez e foi abaixando cada vez mais até precisar ficar de quatro no solo frio, molhado e escorregadio, com limo que cheirava a coisa podre. Era o primeiro cheiro que ele sentia em muito tempo. Suas mãos estavam frias por causa da umidade e a lama era malcheirosa.
O caminho era agora uma pequena abertura, um buraco negro à luz do archote. Richard não gostou do tamanho minúsculo da passagem. O ar gemia, fazendo a chama oscilar e tremeluzir. Ele pós o archote na abertura estreita mas não viu nada, a não ser escuridão. Retirou o archote, pensando no que ia fazer. A abertura era muito pequena, plana em cima e embaixo, e ele não tinha idéia da sua extensão, nem do que havia no outro lado. O ar entrava na passagem, portanto devia levar ao fim da caverna, aos gares, ao ovo, mas ele não sabia a que distância estavam.
Richard recuou. Devia haver outros caminhos lá atrás, em um dos cômodos, mas quanto tempo ele podia perder procurando em vão? Voltou para a abertura e olhou para ela com medo.
Tentando não pensar no medo que sentia, desembainhou a espada e a segurou com a mão que segurava os archotes apagados longe dele e entrou na abertura. Imediatamente sentiu, apavorado, a rocha se fechar em volta dele, por cima e por baixo. Braços estendidos para a frente, cabeça de lado, ele entrou cada vez mais. A pressão aumentou, Obrigando-o a se arrastar por poucos centímetros de cada vez. Pedra fria pressionava seu peito e suas costas. Não podia respirar profundamente. A fumaça do archote lhe ardia os olhos.
Ele continuou na passagem cada vez mais apertada. Balançava os ombros para a frente e para trás, levando uma perna depois da outra à frente, sentindo-se como uma cobra tentando se desfazer da pele. O archote mostrava só escuridão. A ansiedade começou a tomar conta dele. Vá até o fim. Richard pensou, continue para a frente.
Apoiando-se na rocha com as pontas das botas, Richard impulsionava o corpo. Cada movimento o prendia mais. Tentou empurrar novamente. Não se moveu. Zangado, fez mais força. Nada. O pânico se espalhou dentro dele. Estava preso. A rocha pressionava seu peito e suas costas ao mesmo tempo e ele mal podia respirar, imaginou uma montanha de rochas prendendo-o, um peso incalculável por cima dele. Apavorado, girou o corpo tentando voltar, mas não conseguiu. Tentou segurar alguma coita, para dar impulso. Não adiantou. Estava preso. Ofegante, não podia respirar. Sentiu que sufocava, os pulmões queimando como se estivesse se afogando.
Seus olhos se encheram de lágrimas e o medo apertou sua garganta. Seus pés raspavam a rocha, tentando se mover, mas em vão. Seus braços presos junto ao corpo o fizeram lembrar quando Denna o prendeu nas algemas. Impotente. Não poder mover os braços era o pior, sentindo como se a rocha estivesse se movendo, cada vez apertando mais. Em desespero, Richard queria que alguém o ajudasse. Mas não havia ninguém.
Com um grunhido de esforço desesperado, ele se moveu alguns centímetros. Isso só o fez ficar mais preso ainda. Ouviu a própria voz gritando histericamente, tentando respirar. Sentia que a rocha o esmagava.
Mestre Rahl, seja nosso guia. Mestre Rahl, nos ensine. Mestre Rahl, nos proteja. Na sua luz, prosperamos. Na sua misericórdia, nos abrigamos. Na sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.
Entoou a oração muitas vezes, concentrado, até sua respiração voltar ao normal, até ficar calmo outra vez. Ainda estava preso, mas pelo menos sua mente funcionava novamente.
Uma coisa tocou sua perna. Richard arregalou os olhos. Foi um toque hesitante, tímido. Richard deu um chute, ou pelo menos tentou dar, da melhor maneira possível. Foi mais uma contração muscular. A coisa se foi.
Então voltou. Richard ficou gelado. Dessa vez, entrou na perna da sua calça. Fria, molhada, pegajosa. Escorregando, a coisa com ponta dura subiu por sua perna, acariciando-lhe a pele, até a parte interna na coxa. Richard chutou e sacudiu a perna outra vez. A coisa não foi embora. Sua ponta se movia como se estivesse explorando o lugar. Alguma parte dela beliscou Richard, o pânico ameaçou dominá-lo outra vez, mas ele se controlou.
Agora não tinha escolha. Richard soltou o ar dos pulmões, tendo pensado nisso antes, mas com medo de tentar. Quando os pulmões estavam vazios, ele se fez o menor possível, empurrou com os pés e com as mãos e sacudiu o corpo. Conseguiu se adiantar alguns centímetros.
Estava preso ainda. Não conseguia respirar. A garganta doía. Lutou para controlar o pânico. Seus dedos encontraram uma coisa. Uma ponta da abertura, talvez. Possivelmente a abertura do buraco onde estava. Soltou o ar que restava nos pulmões. A coisa agarrou sua perna dolorosamente, com urgência. Ele ouviu um rosnado seco e furioso. Puxou com as mãos e empurrou com os pés. Conseguiu se mover. Seus cotovelos estavam quase na ponta saliente. Alguma parte afiada da coisa se moveu na sua perna; como garras de gato, penetrou sua carne. Richard não conseguiu gritar. Continuou para a frente. Sua perna queimava como fogo.
O archote aceso, os juncos amarrados e a espada caíram. A espada deslizou, batendo na rocha. Usando os cotovelos para dar impulso, ele passou a parte superior do corpo pela abertura, procurando avidamente respirar. A coisa puxou sua perna. Richard saiu do buraco e escorregou de cabeça pela rocha lisa e íngreme.
O archote queimava no fundo curvo da câmara oval. Sua espada estava logo depois dele. Quando caiu de cabeça, com as mãos na frente, estendeu o braço para a espada. As garras presas na sua perna o fizeram parar, segurando-o de cabeça para baixo. Richard gritou de dor, o som ecoando na câmara. Não alcançava a espada.
Dolorosa e lentamente, ele foi arrastado para trás por garras enfiadas nas suas pernas, rasgando a carne. Ele gritou outra vez. Outra parte da coisa subiu por dentro da outra perna da calça, explorando o músculo da barriga da perna com a ponta dura.
Richard tirou a faca da bainha e virou o corpo para alcançar a coisa. Enfiou a lâmina uma porção de vezes na coisa. Do fundo do buraco, ecoou um berro estridente. As garras se soltaram. Richard caiu, escorregando na rocha, e parou ao lado do archote. Segurando a bainha com uma das mãos, ele tirou a espada quando tentáculos como serpentes surgiram do buraco, girando no ar. Procurando. Deslizaram pela rocha na direção dele. Richard atacou com a espada, cortando vários deles. Com um berro, todos voltaram para o buraco. Richard ouviu um rosnado surdo do fundo da escuridão.
À luz trêmula do archote, ainda no chão de pedra, ele viu o vulto grande saindo da abertura, expandindo-se à medida que saía. Não dava para alcançá-lo com a espada, mas Richard não o queria na câmara com ele.
Um tentáculo enrolou-se na sua cintura. Ele viu os dentes brancos. Quando o tentáculo o puxou para os dentes, Richard enfiou a espada no olho do animal. Um berro e o tentáculo o soltou. Richard deslizou outra vez para o fundo. A criatura voltou para o buraco é os tentáculos a seguiram. Os berros morreram na escuridão distante.
Richard se sentou no chão, tremendo, passando a mão no cabelo. Finalmente sua respiração voltou ao normal e o medo diminuiu. Pôs a mão na perna. A calça estava encharcada de sangue. Resolveu que não podia fazer nada no momento, precisava pegar o ovo primeiro. Luz fraca iluminava a câmara. Seguindo pelo túnel largo no outro lado, ele chegou finalmente à outra entrada da caverna.
A primeira luz da madrugada e o chilrear dos passarinhos o receberam. Lá embaixo, ele via dezenas de gares andando de um lado para o outro, vigiando. Richard se sentou atrás de uma rocha para descansar. De onde estava, viu o ovo, envolto em vapor. Viu também que era grande demais para carregar pela caverna. Além disso, não queria entrar nunca mais naquela caverna. O que fazer então, se não podia levar o ovo de volta? Logo seria dia. Precisava pensar numa resposta.
Alguma coisa picou sua perna. Richard a amassou. Era uma mosca de sangue. Richard gemeu. Agora os gares o achariam. Eram atraídos pelo sangue. Precisava pensar em alguma coisa.
Outra mosca o picou e ele teve uma idéia. Rapidamente tirou a faca da bainha e cortou tiras do tecido ensangüentado da perna da calca. Enxugou o sangue da perna com elas e amarrou uma pedra na ponta de cada uma.
Levou o apito do Homem Pássaro aos lábios e assoprou várias vezes com a maior força possível. Girou sobre a cabeça uma tira do tecido amarrada a uma pedra e a jogou para baixo e para longe dele. Para o meio dos gares. Jogou as tiras de pano ensangüentado bem para longe, à direita, para o meio das árvores. Ele não as ouvia, mas sabia que as moscas de sangue estavam alvoroçadas. Tanto sangue certamente provocam uma corrida frenética para se alimentarem.
Pássaros famintos, a princípio poucos, depois centenas, milhares, mergulharam para a Fonte de Fogo, devorando as moscas na descida. A confusão foi total. Gares urraram quando os pássaros devoraram as moscas nas suas barrigas ou as pegavam no ar. Gares corriam para todos os lados, alguns levantaram vôo. Cada pássaro que um gar pegava no ar era substituído por centenas.
Richard desceu correndo a encosta, saltando de rocha em rocha. Não precisava se preocupar com o barulho que fazia, os pássaros faziam muito mais. Os gares, frenéticos, perseguiam os pássaros, uivando e gritando. O ar estava repleto de penas. Se o Homem Pássaro pudesse ver aquilo..., pensou ele, sorrindo.
Richard correu para o ovo. No caos, os gares caíam uns sobre outros, mordendo e dilacerando. Um viu Richard. Ele o atravessou com a espada. Outro, ele cortou na altura dos joelhos. O gar caiu no chão, berrando. De outro, Richard cortou uma asa e de outro ainda, os dois braços. Não os matou, mas os deixou no chão, urrando, gritando, para aumentar a confusão. Na desordem, os gares que o viam nem o atacavam. Mas Richard atacava.
Matou dois ao lado do ovo. Tirou o ovo do lugar. Estava quente, mas não o bastante para queimar seus braços. Era mais pesado do que esperava e teve de usar os dois braços para carregá-lo. Sem perder tempo, Richard correu para a esquerda, para a vala entre as colinas. Pássaros voaram em todas as direções, alguns chocando-se contra ele. Era o caos. Dois gares voaram para ele. Richard pôs o ovo no chão, matou o primeiro e cortou as pernas do segundo. Correu com o ovo o mais depressa que era possível para não cair. Outro gar o atacou. Richard não acertou o primeiro golpe, mas o atravessou com a espada quando o gar se lançou sobre ele.
Ofegante, Richard correu entre as colinas. Seus braços doíam por causa do peso do ovo. Gares aterrissaram em volta dele, os olhos verdes furiosos. Richard pôs o ovo no chão outra vez e atacou com a espada o primeiro, cortando parte da asa e a cabeça. Urrando, os outros lançaram-se sobre ele.
Árvores e rochas se iluminaram quando as chamas começaram a incinerar os gares. Richard ergueu os olhos e viu Scarlet pairando acima da sua cabeça, batendo as asas gigantescas e incendiando tudo à sua volta. Ela estendeu uma garra, pegou o ovo, estendeu outra, agarrou Richard pela cintura e o ergueu. Levantou vôo no momento em que dois gares corriam para atacá-la. Um ele atingiu com a espada, o outro se incendiou e caiu.
Scarlet rugiu furiosa para os gares quando subiu com Richard seguro no ar por uma garra. Richard achou que não era seu modo favorito de voar, mas era melhor do que estar no meio dos gares. Outro gar atacou de baixo, tentando pegar o ovo. Richard cortou uma asa do animal. O gar girou o corpo, urrando, e caiu. Nenhum outro se aproximou, Scarlet o carregou para o alto, para longe da Fonte de Fogo. Dependurado, seguro pela garra do dragão, Richard se sentia como uma refeição levada para os filhotes. A garra de Scarlet machucava um pouco suas costelas, mas ele não se queixou. Não queria que ela o largasse, era um longo caminho até o solo.
Voaram durante horas. Richard conseguiu se ajeitar numa posição mais confortável e viu as montanhas e as árvores passando lá embaixo. Viu regatos e pequenos povoados. As montanhas cresceram, mais rochosas agora, como se a pedra brotasse da paisagem. Rochas escarpadas, penhascos e picos se erguiam na frente deles. Cortando o ar suavemente com as asas, Scarlet subiu acima das rochas que Richard teve a impressão de que ia roçar com os pés. Ela os levou a uma região inóspita, sem vida. Pedras marrons e cinzentas pareciam jogadas a esmo por um gigante, como moedas numa mesa, em colunas finas, algumas isoladas, outras amontoadas, outras, ainda, caídas da pilha.
Além e acima das colunas de rocha, havia penhascos escarpados, cheios de fendas e rachaduras, prateleiras e projeções. Algumas poucas nuvens passavam pela frente dos penhascos. Scarlet se virou para uma parede de pedra. Richard teve a impressão de que iam bater, mas no último momento ela parou, tatalando as asas enormes, e o largou numa prateleira de rocha, antes de aterrissar.
Atrás da prateleira havia uma abertura na rocha. Scarlet passou por ela. Na parte de trás, no escuro, havia um ninho de rochas onde ela depositou o ovo, depois lançou uma chama sobre ele. Richard a viu acariciar o ovo com a garra, virando-o gentilmente, examinando, murmurando para ele. Espalhou o fogo sobre o ovo. Virando a cabeça, ouvindo, vigiando.
— Está tudo bem? — perguntou Richard.
Scarlet se virou para ele com uma expressão sonhadora nos olhos amarelos.
— Sim, está tudo bem.
— Fico satisfeito, Scarlet — disse Richard. — De verdade.
Caminhou até Scarlet, que estava deitada ao lado do ovo. Ela ergueu a cabeça ameaçadoramente. Richard parou.
— Só quero minha mochila. Está num dos ferrões nas suas costas.
— Desculpe, Vá em frente.
Richard apanhou a mochila e se encostou na parede, um pouco mais perto da luz. Olhou por cima da plataforma de pedra. Parecia ter quilômetros de altura. Ele esperava com fervor que Scarlet fosse um dragão de palavra. Sentou-se e tirou da mochila uma calça limpa.
Encontrou outra coisa também. O vidro do quarto de Denna com um pouco de creme de aum que ele havia preparado quando Rahl a machucou. Denna devia ter posto na sua mochila. Olhando para o Agiel, ele sorriu tristemente, se lembrando dela. Como podia gostar de quem fizera aquelas coisas a ele? Richard perdoara Denna, por meio da magia branca.
O creme de aum foi um alívio. Richard gemeu baixinho. Refrescou o ardor dos ferimentos, aliviou a dor. Richard agradeceu silenciosamente a Denna. Tirou o que restava da calça.
— Você fica engraçado sem calça.
Richard se virou para trás. Scarlet olhava para ele.
— Não é tranqüilizador para um homem ouvir isso de uma fêmea, mesmo que a fêmea seja um dragão. — Dando as costas a ela, vestiu a calça limpa.
— Você está ferido. Foram os gares?
Richard balançou a cabeça.
— Foi na caverna — falou baixo, lembrando. Sentou-se encostado na parede, olhando para as botas. — Tive de passar por uma abertura estreita na rocha. Era o único caminho. Fiquei preso. — Olhou para os grandes olhos amarelos. — Desde que deixei minha casa para deter Darken Rahl, senti medo várias vezes. Mas quando fiquei preso naquele buraco, no escuro, a rocha me apertando tanto que mal podia respirar... bem, foi um dos piores momentos. Enquanto estava preso, uma coisa agarrou minha perna e enfiou as garras afiadas na carne. Fez isso quando eu tentava sair.
Scarlet olhou para ele por longo tempo, em silêncio, com uma das garras sobre ovo.
— Obrigada, Richard Cypher, por fazer o que prometeu. Por trazer meu ovo. Você é corajoso, mesmo não sendo um dragão. Nunca pensei que um homem arriscaria a vida por um dragão.
— Eu fiz por algo mais do que seu ovo. Fiz porque tinha de fazer, para conseguir ajuda para encontrar meus amigos.
Scarlet balançou a cabeça.
— Além de tudo, você é honesto. Eu acho que você teria feito o que fez de qualquer modo. Sinto muito que tenha sido ferido e tenha se assustado tanto para me ajudar. Os homens tentam matar dragões. Você deve ser o único que ajudou um deles. Não sei por quê, mas eu tinha minhas dúvidas.
— Bem, foi bom você ter aparecido naquele momento. Os gares estavam quase me pegando. A propósito, pensei ter mandado você ficar onde estava. Por que foi atrás de mim?
— Fico embaraçada por ter de admitir. Pensei que você estava tentando fugir. Fui para ver de perto e então ouvi a confusão. Vou compensar você. Eu o ajudo a encontrar seus amigos, como prometi.
Richard sorriu.
— Obrigado, Scarlet. Mas e o ovo? Pode deixá-lo sozinho? E se Rahl o roubar outra vez?
— Não daqui, daqui ele não rouba. Procurei este lugar durante muito tempo, depois que ele roubou meu ovo, um lugar onde pudesse escondê-lo com segurança, se algum dia o recuperasse. Rahl não pode vir aqui. Quanto a deixar o ovo sozinho, não é problema. Quando os dragões saem à procura de comida, simplesmente aquecem a rocha com suas chamas, para manter o ovo aquecido.
— Scarlet, o tempo é curto. Quando podemos partir?
— Agora mesmo.
Foi um dia frustrante. Scarlet voou baixo sobre bosques fechados enquanto os dois examinavam as estradas e as trilhas. Desanimado, Richard não viu nem sinal dos amigos. Exausto, mal conseguia se firmar nos esporões de Scarlet enquanto voavam, procurando, mas não queria descansar, tinha de encontrar Zedd e Kahlan. Além do cansaço, estava com uma tremenda dor de cabeça por forçar tanto a vista lá de cima. Esquecia a fadiga, a falta de sono, cada vez que viam gente no chão, mas tinha de dizer a Scarlet que não eram seus amigos.
O dragão voava baixo, quase roçando o topo das árvores na beirada de um campo. Soltou um grito estridente que sobressaltou Richard e fez uma volta fechada que o deixou atordoado. Um gamo correu no campo, expulso do esconderijo pelo urro do dragão. Acelerando num mergulho rápido, Scarlet desceu sobre o campo. Sem esforço, ergueu o gamo da relva alta e marrom, quebrando o pescoço dele no processo. Richard estremeceu vendo a facilidade com que ela pegou a presa.
Scarlet subiu para a luz dourada do sol poente, entre as nuvens foras, carregando o puno. Richard teve a impressão de que seu coração descia no peito como o sol no horizonte. Sabia que Scarlet estava voltando para o ovo. Quis dizer a ela para procurar mais, enquanto ainda havia luz, mas sabia também que ela precisava voltar para o ninho, para o ovo.
Estava quase escuro quando Scarlet aterrissou na plataforma da rocha, esperando Richard descer, antes de correr para o ovo. Richard ficou de lado, enrodilhado na capa, tremendo de frio.
Depois de verificar o ovo, murmurar para ele e o aquecer com teu fogo, ela voltou a atenção para o gamo. Disse a Richard: — Parece que você não come muito. Acho que posso dar um pouco.
— Você cozinha para mim? Não como carne crua.
Ela disse que sim e ele cortou um pedaço do gamo, enfiou na ponta da espada, segurou bem alto, virou a cabeça para evitar o calor e Scarlet assoprou uma fina faixa de fogo na carne. Richard, virou outra vez e começou a comer, tentando não ver o dragão rasgar o gamo com presas e garras, jogando grandes pedaços para cima e engolindo quase sem mastigar.
— Se não encontrarmos seus amigos, o que você vai fazer?
Richard engoliu um pedaço de carne,
— Acho melhor que os achemos, isso é tudo.
— O primeiro dia do inverno é de amanhã a quatro dias.
Com o indicador e o polegar, ele pegou um pequeno pedaço de carne.
— Eu sei.
— Para um dragão, é melhor morrer do que ser dominado.
Richard olhou para Scarlet. Ela sacudiu a cauda.
— Se escolher para você, talvez, mas e para os outros? Você preferiu ser dominada para salvar seu ovo, para dar a ele uma chance de vida.
Scarlet rosnou sem responder e olhou outra vez para o ovo, acariciando-o com sua garras.
Richard sabia que, se não pudesse encontrar a última caixa e deter Rahl, teria de salvar a vida de todos, poupar Kahlan da tortura de uma Mord-Sith. Teria de concordar em ajudar Darken Rahl a abrir a caixa certa. Então Kahlan poderia viver o tipo de vida a que uma Confessora estava acostumada.
Era uma idéia deprimente e desesperada, ajudar Darken Rahl a conquistar poder absoluto sobre todos. Mas não tinha escolha. Talvez Shota estivesse certa, talvez Zedd e Kahlan tentassem matá-lo. Talvez devesse morrer só por ter pensado em ajudar Darken Rahl. Mas, se precisasse escolher, não permitiria que Kahlan fosse torturada por uma Mord-Sith. Teria de ajudar Rahl.
Richard se deitou, nauseado com aqueles pensamentos, incapaz de acabar de comer. Deitou a cabeça na mochila, fechou a capa em volta do corpo e pensou em Kahlan. Adormeceu quase imediatamente.
No dia seguinte, Scarlet o levou a D’Hara, acima de onde ela disse que ficava antes a fronteira, examinando as estradas e as trilhas. Nuvens finas e altas filtravam a luz do sol. Richard esperava que seus amigos não estivessem tão perto de Darken Rahl, mas, se Zedd tinha procurado a pedra da noite antes de Rahl a destruir, e sabia que ele estava no Palácio do Povo, era para lá que se dirigiam. O dragão fez uma volta, voando baixo sobre as pessoas que encontravam, assustando-as, mas não eram seus amigos.
Quase ao meio-dia, Richard os viu. Zedd, Chase e Kahlan cavalgavam numa trilha perto da estrada principal. Ele gritou para Scarlet descer. O dragão fez uma volta e mergulhou como uma fagulha vermelha. Os três cavaleiros o viram, pararam e desmontaram.
Scarlet abriu as asas vermelhas, interrompendo a descida, e aterrissou numa clareira perto da trilha. Richard desceu e correu. Os três ficaram parados, segurando as rédeas dos cavalos. Chase segurava certa maça na outra mão. Ao ver Kahlan, Richard não conteve a emoção. Reviveu cada lembrança que tinha dela. Os três ficaram imóveis enquanto Richard corria para eles. Descendo uma pequena rampa na trilha, Richard prestou atenção para não tropeçar nas raízes.
Quando ergueu os olhos, viu o fogo do mago sibilando na sua direção. Ficou paralisado e surpreso. O que Zedd estava fazendo? A bola de fogo líquido era maior do que todas as que já vira. Iluminou as árvores com a chama azul e amarela, guinchando estridentemente. Richard a viu se aproximar, girando, se expandindo.
Temendo o que estava para acontecer, a mão de Richard foi para o punho da espada, sentindo a palavra Verdade contra a palma da mão. Com um puxão forte, desembainhou a espada e a lâmina cantou no ar. Como fizeram quando estava com Shota, ele ergueu a espada, segurando o punho com uma das mãos e a ponta com a outra, braços na frente do corpo, como um escudo. A ira acendeu a idéia de que Zedd os estava traindo. Não podia ser Zedd.
O impacto o fez recuar alguns passos com o calor e o fogo em volta. A fúria do mago explodiu, espalhando-se no ar, voltando para onde tinha saído e desaparecera.
— Zedd! O que está fazendo? Ficou louco? Sou eu, Richard! — Adiantou-se, zangado. Zangado por Zedd ter feito aquilo, zangado por causa da magia da espada. O calor da raiva pulsava em suas veias.
Zedd, com seu manto simples parecendo mais frágil do que nunca, não recuou. Chase, fortemente armado, parecendo mais ameaçador que nunca, também ficou firme. Zedd segurou o braço de Kahlan e a fez ficar atrás dele. Chase se adiantou, o olhar tão negro quanto sua roupa.
— Chase — Zedd avisou em voa baixa —, não seja tolo. Fique onde está.
Richard olhou de um rosto determinado para o outro.
— O que há com vocês três? O que estão fazendo aqui? Eu disse para não me procurar! Darken Rahl mandou homens para capturar vocês. Vocês devem voltar.
Zedd, o cabelo branco em desordem como sempre, virou-se um pouco para Kahlan, sem tirar os olhos de Richard.
— Você entende o que ele está dizendo?
Kahlan balançou a cabeça, empurrando para trás o cabelo comprido.
— Não. Acho que é D’Haran culto. Eu não falo D’Haran.
— D’Haran culto? Do que estão falando? Do que...
Com uma onda gelada de compreensão, ele lembrou. Era a teia inimiga tecida em volta dele por Darken Rahl. Eles não o reconheceram. Pensavam que era seu pior inimigo. Pensaram que era Darken Rahl.
Então teve outra idéia. Sentiu um calafrio na espinha. Zedd. pelo menos, pensava que ele era Darken Rahl e usara o fogo do mago contra ele. Zedd não era o traidor. Sobrava só Kahlan. Será que ela o via como ele era realmente?
Gelado de medo, ele avançou para ela e olhou nos olhos verdes. Kahlan se empertigou, com as mãos aos lados do corpo, a cabeça erguida. Richard reconheceu a atitude ameaçadora. De ameaça séria. Sabia o que o toque de Kahlan faria a ele Lembrou-se do aviso de Shota de que poderia vencer Zedd, mas que Kahlan não falharia.
Zedd tentou ficar entre eles. Richard mal o notou quando empurrou o velho amigo para o lado. Zedd, agora atrás dele. pôs os dedos magros na nuca de Richard. A dor quase igual à do Agiel. O fogo lhe correu pelos nervos dos braços e desceu para as pernas. Antes de sua experiência com Denna, a dor o teria paralisado. Mas Denna passara longo tempo treinando Richard, obrigando-o a tolerar a dor, obrigando-o a suportar muito mais do que isso. O poder de Zedd era igual a o que Denna podia fazer, mas Richard encontrou forças no seu íntimo e afastou a dor da mente, substituindo-a pela raiva da espada. Olhou para Zedd para alertá-lo. O mago não desistiu. Richard o empurrou outra vez, com mais força do que pretendia, e Zedd caiu. Kahlan ficou imóvel na frente dele.
— Como você me vê? — murmurou o Seeker. — Darken Rahl ou Richard?
Kahlan estremeceu de leve. Parecia incapaz de se mover. A atenção desviada por um momento. Richard olhou para baixo e viu que estava com a ponta da espada no pescoço dela. Não tinha lembrança de ter feito isso, era como se a magia tivesse resolvido. Mas sabia que não era verdade. Ele mesmo a tinha posto ali. Por isso ela estava tremendo. Uma gota de sangue apareceu na pele, debaixo da ponta da espada. Se ela fosse a traidora. Richard teria de matá-la.
A lâmina agora estava branca. Assim como o rosto de Kahlan.
— Quem você vê? — murmurou ele outra vez.
— O que você fez com Richard? — O murmúrio dela era cheio de raiva. — Se fez algum mal a ele, juro que vou matá-lo.
Richard se lembrou do beijo dela. Não era o beijo de uma traidora, era um beijo de amor. Compreendeu que de nenhum modo poderia matá-la, mesmo que seus temores fossem verdadeiros. Mas sabia agora que não eram. Com os olhos cheios de lágrimas, embainhou a espada.
— Desculpe, Kahlan. Que os bons espíritos me perdoem pelo que eu quase fiz. Sei que não pode compreender o que digo, mas peço desculpas. Darken Rahl esta usando a Primeira Regra do Mago em mim, tentando nos jogar uns contra os outros. Está tentando me fazer acreditar numa mentira e eu quase acreditei. Sei que você e Zedd jamais me trairiam. Perdoe-me por ter pensado isso.
— O que você quer? — perguntou Zedd. — Não compreendemos o que diz.
— Zedd... — Passou a mão no cabelo, frustrado. — Como posso fazer você compreender? — Segurou o manto do mago. — Zedd, onde está a caixa? Preciso da caixa antes que Rahl a encontre! Não podemos deixar que ele a encontre!
Zedd franziu a testa. Richard sabia que aquilo não estava adiantando. Nenhum deles podia entender o que ele dizia. Foi até onde estavam os cavalos e começou a procurar nas mochilas.
— Pode procurar à vontade, jamais a encontrará — sorriu o mago. — Não estamos com a caixa. Você vai morrer dentro de quatro dias.
Richard percebeu que alguma coisa se movia atrás dele. Virou-se rapidamente. Chase estava com a maça erguida. Uma língua de fogo passou entre os dois. Scarlet continuou a soltar fogo até Chase abaixar a arma e recuar.
— Belos amigos você tem — rosnou o dragão.
— Darken Rahl me envolveu numa teia de mago. Eles não me reconhecem.
— Bem, se ficar muito tempo com eles, vai ser morto.
Richard compreendeu que eles não estavam com a caixa. Não, se tinham ido a D’Hara para salvá-lo. Os três observavam em silêncio Richard e o dragão.
— Scarlet, diga alguma coisa a eles, para ver se compreendem.
O dragão pôs a cabeça muito perto dos três.
— Este não é Darken Rahl, mas seu amigo, escondido debaixo de uma teia de mago. Algum de vocês pode me compreender?
O três ficaram calados. Furioso, Richard se aproximou de Zedd.
— Zedd, por favor, tente me compreender. Não procure a pedra da noite. Se procurar, Rahl o prenderá no mundo subterrâneo. Tente compreender.
Nenhum dos três entendeu uma palavra. Richard precisava pegar a caixa primeiro, então voltaria e os protegeria dos homens enviados por Rahl. Com relutância, subiu nas costas de Scarlet. O dragão olhou desconfiado para os três, exalando um pouco de fogo e fumaça, como advertência. Richard queria desesperadamente ficar com Kahlan, mas não podia — tinha de pegar a caixa antes.
— Vamos sair daqui. Temos de encontrar meu irmão.
Com um rugido de fogo, avisando os três para ficarem longe, Scarlet levantou vôo. Richard segurou com força nos esporões. O pescoço vermelho coberto de escamas se esticou quando ela subiu até deixar as nuvens finas entre eles e os três. Richard olhou para os três amigos até desaparecerem. Sentia-se desesperadamente indefeso. Desejou ter visto Kahlan sorrir, pelo menos uma vez.
— E agora? — perguntou Scarlet, virando-se para trás.
— Temos de encontrar meu irmão. Ele deve estar com um exército de mil homens em algum lugar entre aqui e Rang’Shada. Não deve ser difícil encontrá-los.
— Eles não compreenderam o que eu disse. A teia deve ter me afetado também, uma vez que estou com você. Mas deve ser uma teia para humanos, não para dragões, pois eu vejo a verdade. Se aqueles três queriam matar você por causa de uma teia de magos, certamente os outros vão querer também. Não posso protegê-lo contra mil homens.
— Tenho de tentar. Pensarei em alguma coisa. Michael é meu irmão, descobrirei um modo de fazer com que ele veja a verdade. Ele está vindo com seu exército para me ajudar. Preciso muito dessa ajuda.
Uma vez que um exercito era mais fácil de ser encontrado, voaram alto para ver maior extensão de terreno. Scarlet fazia curvas abertas entre as imensas nuvens macias. Richard nunca tinha pensando em como as nuvens eram grandes quando vistas de perto. No meio delas, era como uma terra de maravilhosas montanhas e vales. O dragão roçava nas bases escuras, às vezes passando através de um retalho de nuvem, sua cabeça e as pontas das asas desaparecendo na brancura úmida. O tamanho das nuvens fazia até Scarlet parecer pequena e insignificante.
Procuraram durante horas, sem ver sinal do exército. Richard estava ficando tão acostumado a voar, que não preciso mais segurar com força nos esporões de Scarlet o tempo todo. Encostou em dois deles, relaxou o corpo e apreciou a paisagem lá embaixo.
Enquanto voavam, Richard pensava num modo de convencer Michael de quem ele era. Zedd devia ter deixado a caixa com Michael. Depois de escondê-la com magia, deixou-a sob a proteção do exército. Assim que estivesse com a caixa, faria Scarlet voar para seu ovo. No ninho, a caixa estaria protegida de Rahl.
Então poderia voltar para Kahlan e protegê-la dos homens de Rahl. Talvez fizesse Scarlet levá-la para sua caverna também. Lá ela estaria protegida.
Mas três dias e meio e Rahl estaria morto. Então Kahlan estaria segura. Para sempre. Ai ele voltaria para Westland e acabaria com a magia. Para sempre longe de Kahlan. A idéia de nunca mais vê-la era dolorosa.
No fim da tarde, Scarlet viu o exército. Ela era melhor do que Richard para ver coisas daquela altura. Estavam ainda muito longe e Richard se esforçou para ver. A principio viu apenas uma fina coluna de pó depois viu as fileiras de homem na estrada.
— Muito bem, qual o seu plano? O que pretende fazer? — perguntou Scarlet.
— Acha que pode pousar na frente deles, sem deixar que nos vejam?
Um grande olho amarelo se voltou para ele, intrigado.
— Sou um dragão vermelho. Posso pousar no meio deles sem que me vejam. A que distância quer ficar?
— Não quero que me vejam. Tenho de falar com Michael sem ser visto por seus homens. Preciso evitar problemas. — Richard pensou por um momento. — Pouse a algumas horas de marcha na frente deles. Deixe que venham a nós. Logo estará escuro e então poderei me aproximar de Michael.
Scarlet, com as asas abertas, planou para as colinas na frente do exército em marcha. Desceu um pouco atrás da parte mais alta, sobrevoou os vales, longe da vista da estrada, e pousou numa pequena clareira com relva alta. Suas escamas vermelhas brilhantes cintilaram à luz do fim da tarde. Richard desceu das costas dela.
Scarlet se virou para trás.
— E agora?
— Quero esperar até escurecer, até o exército acampar para a noite. Quando terminar o jantar, poderei entrar na barraca de Michael sem ser visto e falar sozinho com ele. Pensarei num modo de convencê-lo de quem eu sou realmente.
O dragão resmungou, olhou para o céu e para a estrada. Virou a cabeça, com o grande olho amarelo em Richard.
— Logo estará escuro. Preciso voltar para aquecer meu ovo.
— Eu compreendo, Scarlet. — Richard respirou profundamente, pensando. — Volte de manhã. Espero por você aqui, ao nascer do sol.
Scarlet olhou para o céu.
— As nuvens estão se acumulando. — Olhou para baixo. — Se houver nuvens, não posso voar dentro delas.
— Por quê?
Ela rosnou e um jato de fumaça saiu das suas narinas.
— Porque as nuvens têm pedras.
Richard olhou para ela, intrigado.
— Pedras?
Scarlet abanou a cauda, impaciente.
— As nuvens escondem coisas, como o fog, coisas que não se pode ver. Quando você não pode ver, pode bater em colinas e montanhas. Sou forte, mas bater numa rocha quando estou voando pode quebrar meu pescoço. Se a parte inferior da nuvem estiver bastante alta, posso voar por cima dela, mas então não vejo o solo. Não poderei encontrar você. E se houver nuvens e eu não puder encontrá-lo ou se alguma coisa sair errada?
Richard pôs a mão no punho da espada, olhando para a estrada.
— Se alguma coisa sair errada, terei de voltar para meus três amigos. Tentarei ficar na estrada principal para que você possa me ver. — Engoliu em seco, — Se tudo o mais falhar, terei de voltar para o Palácio do Povo. Por favor, Scarlet, se eu não puder deter Rahl com o que fizer aqui, preciso estar no Palácio do Povo depois de amanhã. — Não é muito tempo.
— Eu sei.
— De amanhã a três dias nossa tarefa acaba.
Richard sorriu.
— Foi o que combinamos. Scarlet olhou para cima outra vez.
— Não estou gostando da aparência do céu. Boa sorte, Richard Cypher. Volto de manhã.
Deu uma corrida rápida e levantou vôo. Richard a viu fazer um circulo acima dele e partir, ficando cada vez menor, desaparecendo entre as montanhas. Richard de repente lembrou ter visto Scarlet antes. No dia em que conheceu Kahlan, logo depois da picada da trepadeira serpente. Ele a tinha visto passar lá no alto como agora e desaparecer entre as montanhas. Tentou imaginar o que ela estaria fazendo em Westland naquele dia.
Andando na relva alta e seca, Richard chegou a uma colina próxima e subiu a encosta com poucas árvores, de onde podia ver os caminhos de oeste. Encontrou um bom esconderijo entre os arbustos, sentou-se confortavelmente e comeu carne e frutas secas. Descobriu que tinha ainda umas poucas maçãs. Comeu sem prazer enquanto esperava o exército de Westland e seu irmão, imaginando como poderia convencer Michael de quem ele era.
Pensou em escrever, ou talvez fazer um desenho ou um mapa, mas duvidava de que desse certo. Se a teia de inimigo mudava as palavras ditas oralmente, mudaria também as escritas. Tentou se lembrar de brincadeiras de quando eram pequenos, mas não conseguiu. Michael não brincava muito com ele, naquele tempo. Richard lembrou que Michael só gostava de lutar com espadas de brinquedo. Não achava que desembainhar sua espada para o irmão seria uma boa coisa.
Mas lembrou então. Quando brincava com as espadas, Michael gostava de que Richard fizesse uma saudação, dobrando um joelho. Michael se lembraria disso? Queria que Richard fizesse sempre. Isso o fazia sorrir mais do que qualquer outra coisa. Chamava de saudação do perdedor. Quando Richard vencia Michael não fazia a saudação e Richard não tinha tamanho para enfrentá-lo e obrigá-lo a saudar o vencedor. Mas Michael o fez saudar muitas vezes. Richard sorriu lembrando, embora naquele tempo não tivesse vontade de sorrir. Talvez Michael lembrasse. Valia a pena tentar.
Antes de escurecer, Richard ouviu os cavalos se aproximando, o som das armaduras, os estalos do couro, a batida dos metais, os sons de muitos homens em movimento. Cerca de cinqüenta cavaleiros bem armados passaram rapidamente, levantando poeira e deslocando torrões de terra. Ele viu Michael à frente, vestido de branco. Richard reconheceu os uniformes, o penacho de Hartland nos ombros, a flâmula amarela com a silhueta em azul de um pinheiro e as espadas cruzadas debaixo dele. Cada homem tinha uma adaga presa ao ombro, um machado de guerra no cinto largo e carregava uma lança curta. As cotas de malha, chamadas redes de batalha, eram centelhas de luz entre a poeira. Não eram soldados regulares de Westland, mas a guarda pessoal de Michael.
Onde estava o exército? Do ar, ele vira todos juntos, cavaleiros e infantaria. Esses cavalos se moviam depressa demais para que pudessem ser alcançados pelos soldados a pé. Richard se levantou depois que passaram, olhou para a estrada à espera dos outros. Ninguém apareceu.
No começo, preocupado sem saber o que significava, logo relaxou e sorriu, compreendendo. Zedd, Chase e Kahlan tinham deixado a caixa com Michael, dizendo que iam a D’Hara procurar Richard. Provavelmente Michael não pôde esperar mais e ia ajudá-los. A infantaria não podia acompanhar o passo para chegar a tempo ao Palácio do Povo, por isso Michael partirá na frente com sua guarda pessoal.
Cinqüenta homens, mesmo da guarda pessoal de Michael, por melhores que fossem, não seriam suficientes para enfrentar a força de Rahl. Richard pensou que Michael escava pondo o coração acima da cabeça.
Richard só os alcançou muito depois de escurecer. Eles iam depressa e pararam tarde. Estavam muito mais na sua frente do que esperava e havia muito tinham jantado quando ele chegou ao acampamento. Os cavalos tinham sido tratados e presos para a noite. Alguns homens já estavam deitados nos sacos de dormir, os guardas nos seus postos, difíceis de serem vistos no escuro, mas Richard sabia onde estavam, depois de olhar lá de cima os pequenos fogos do acampamento.
A noite estava escura. Nuvens encobriam a lua. Ele desceu cautelosamente a colina, passou silenciosamente pelos guardas. Richard estava no seu elemento. Foi fácil, sabia onde estavam e eles não o esperavam movendo-se sorrateiramente no escuro. Ele os viu vigiando e se abaixou quando viraram para seu lado. Uma vez passados os guardas, ele foi para o acampamento. Michael facilitara as coisas para ele, sua barraca ficava longe das outras. Se estivesse no meio delas, seria mais difícil. Mas, mesmo assim, havia guardas em volta. Richard os observou por algum tempo, analisando os pontos fracos, até encontrar um lugar por onde podia passar entre eles, na sombra da barraca, desenhada pela luz do fogo. Os guardas ficaram à luz porque não podiam enxergar na sombra.
Richard passou no escuro para a barraca e se agachou, imóvel, silencioso, rente ao chão. Escutou por longo momento para ver se havia alguém com Michael. Ouviu barulho de papéis e viu um lampião aceso, mas não havia ninguém mais. Cuidadosamente fez um pequeno corte com a faca, o bastante para ver dentro da barraca. Viu Michael à sua esquerda, sentado a uma mesa de armar, examinando papéis, com o cabelo revolto apoiado em uma das mãos. Os papéis não pareciam ter linhas nem palavras e, pelo que Richard podia ver, eram grandes. Provavelmente mapas.
Precisava entrar, empertigar o corpo, dobrar um joelho e fazer a saudação, antes que Michael tivesse tempo de dar o alarme. No lado de dentro, à sua frente, estava uma cama de campanha. Era do que Richard precisava para esconder sua entrada. Segurando a corda bem esticada, para que a lona não fizesse barulho, Richard cortou o laço mais ou menos no centro de onde estava a cama, depois levantou a ponta da lona um pouco e a enrolou cuidadosamente atrás dela.
Quando Michael ouviu um barulho e se voltou, Richard te levantou na frente da pequena mesa. Richard sorriu ao ver o irmão mais velho outra vez. Michael se virou para ele. Empalideceu. Levantou-te de um salto. Richard começou a fazer a saudação quando Michaell falou.
— Richard... como você... o que está fazendo aqui? É... tão... bom... ver você! Nós todos estávamos tão... preocupados.
O sorriso morreu nos lábios de Richard.
Quando a teia inimiga foi posta nele, Rahl tinha dito que os seus seguidores o vaiam como ele era.
Michael o via como ele era.
Michael era o traidor. Michael foi quem permitiu que fosse capturado e torturado por uma Mord-Sith. Michael era quem entregaria Zedd e Kahlan a Darken Rahl. Michael era quem entregaria todos a Darken Rahl. Richard gelou.
Tudo que conseguiu foi murmurar: — Onde está a caixa?
— Você parece faminto, Richard. Deixe-me pedir jantar para você. Precisamos conversar. Faz tanto tempo!
Richard não aproximou a mão da espada, com medo de usá-la. Lembrou que era o Seeker e que era isso que importava naquele momento. Não era Richard. Era o Seeker. Tinha um trabalho a fazer. Não se podia permitir ser Richard. Não se podia permitir ser o irmão de Michael. Havia coisas mais importantes. Muito mais importantes.
— Onde está a caixa? Michael olhou em volta.
— A caixa... bem... Zedd me falou nela... Ele ia dá-la a mim, mas então disse alguma coisa sobre encontrar você em D’Hara por meio de uma pedra e os três foram para lá. Eu disse que queria ir também salvar meu irmão mas precisava reunir e preparar meus homens, por isso eles partiram na frente. Zedd ficou com a caixa. Está com ele.
Richard agora sabia. Darken Rahl tinha a terceira caixa. Darken Rahl tinha dito a verdade.
O Seeker dominou suas emoções e fez um rápido estudo da situação. A única coisa que importava agora era estar com Kahlan. Se perdesse a cabeça, ela sofreria, terminaria torturada por um Agiel. Richard se concentrou na imagem mental do cabelo de Denna. Entregou-se a ela. Qualquer coisa que funcionasse, ele pensou. Não podia matar Michael, não podia arriscar-se a ser capturado pelos homens dele. Não podia nem mesmo deixar que Michael soubesse o que ele sabia. Isso não serviria para nada e arriscaria a vida dos outros.
Respirou profundamente e forçou um sorriso.
— Bem, desde que a caixa esteja segura. É tudo que importa.
Um pouco de cor voltou ao rosto de Michael e ele sorriu.
— Richard, você está bem? Parece... diferente. Parece que passou... por muita coisa.
— Mais do que você pode imaginar, Michael. — Sentou-se na cama. Cautelosamente, Michael voltou para a cadeira. Com calça branca folgada e camisa também branca, um cinto de ouro, Michael parecia um discípulo de Darken Rahl. Richard notou os mapas que o irmão estava estudando. Mapas de Westland para Darken Rahl. — Eu estava em D’Hara, como Zedd disse, mas escapei. Temos de sair de D’Hara. Ir para o mais longe possível. Preciso me juntar aos outros, antes que eles cheguem lá à minha procura. Você pode levar seus homens de volta agora. Leve seu exército para proteger Westland. Muito obrigado, Michael, por vir me ajudar.
O irmão disse, com um largo sorriso:— Você é meu irmão. O que mais eu podia fazer?
Com a dor da traição queimando, Richard forçou um sorriso. De certo modo, era pior do que se Kahlan fosse a traidora. Tinha crescido com Michael, eram irmãos e partilhavam de uma boa parte de suas vidas. Richard sempre admirou Michael, sempre o apoiou, dera a ele seu amor incondicional. Lembrava-se de gabar o irmão mais velho para os outros meninos.
— Michael, preciso de um cavalo. Tenho de ir. Agora.
— Nós todos iremos com você, eu e meus homens. — O sorriso ficou mais largo. — Agora que estamos juntos outra vez, não quero mais perder você de vista.
Richard se levantou bruscamente.
— Não! — Procurou se acalmar—Você me conhece, estou acostumado a ficar sozinho na floresta. É o que eu faço melhor. Você só iria me atrasar. Não tenho tempo agora.
Michael se levantou e olhou para a entrada da barraca.
— Nada disso. Vamos...
— Não. Você é Primeiro Conselheiro de Westland. Essa é sua primeira responsabilidade, não tomar conta do seu irmão mais novo. Por favor Michael, leve o exercito de volta a Westland. Eu ficarei bem.
Michael passou a mão ao queixo.
— Bem, acho que tem razão. Íamos a D’Hara só para ajudar você, é claro, e agora que está seguro...
— Obrigado por ter vindo me ajudar, Michael. Vou arranjar um cavalo. Volte para seu trabalho.
Richard se sentiu o maior tolo do mundo. Devia saber. Devia ter imaginado muito tempo atrás. Lembrou-se do discurso de Michael sobre o fogo ser inimigo do povo. Devia ter percebido então. Kahlan tentara avisá-lo naquela primeira noite. As suspeitas dela de que Michael estava do lado de Darken Rahl estavam certas. Se ele ao menos tivesse dado ouvidos a cabeça e não ao coração...
— Primeira Regra do Mago: o povo é tolo, acredita no que quer acreditar. Ele fora o mais idiota de todos. Estava por demais zangado consigo mesmo para ficar zangado com Michael.
Sua recusa em ver a verdade ia custar tudo para ele. Não tinha mais escolhas. Merecia morrer.
Com os olhos nos de Michael, Richard dobrou um joelho lentamente e fez a saudação do perdedor.
Com as mãos na cintura, Michael sorriu.
— Você lembra. Isso foi há muito tempo, irmãozinho.
Richard se levantou.
— Não há tanto tempo. Algumas coisas nunca mudam. Eu sempre amei você. Adeus, Michael.
Richard pensou outra vez, por um momento, em matar o irmão. Sabia que teria de fazer isso com a raiva da espada, jamais poderia perdoar Michael e fazer a lâmina ficar branca. Por ele talvez, mas pelo que ele tinha feito a Zedd e Kahlan, nunca. Matar Michael não era tão importante quanto ajudar Kahlan. Não podia arriscar-se só para minimizar a própria idiotice. Foi até a saída da barraca. Michael o seguiu.
— Pelo menos coma alguma coisa. Temos de conversar. Ainda não tenho certeza...
Richard olhou para o irmão, de pé, na entrada da barraca. Começava a cair uma leve garoa. Percebeu pela expressão do irmão que Michael não pretendia deixá-lo partir, estava apenas esperando a oportunidade para chamar o reforço dos seus homens.
— Faça do meu modo, Michael, por favor. Preciso ir.
— Homens — ele chamou os guardas. — Quero que meu irmão fique conosco, para sua proteção.
Os guardas se adiantaram. Richard saltou por cima dos arbustos, para a escuridão da noite. Eles o seguiram sem saber bem para onde ir. Não eram homens da floresta, eram soldados. Richard não queria ter de matá-los. Eram soldados de Westland. Desapareceu no escuro, enquanto o acampamento despertava com as ordens gritadas. Ouviu Michael gritando ordens para que ele fosse detido, mas não morto. Claro que não, ele queria entregar Richard a Darken Rahl pessoalmente.
Richard deu a volta ao campo até chegar aos cavalos, passando entre os guardas. Cortou todas as rédeas que prendiam os animais e montou em pêlo. Gritou, chutou e bateu com a mão nos outros cavalos. Os animais saíram correndo, em pânico. Homens e cavalos corriam de um lado para outro. Richard esporeou o cavalo.
O som das vozes frenéticas diminuiu e cessou. Seu rosto estava molhado de garoa e de lágrimas quando galopou e penetrou na noite escura.
Zedd permanecia acordado no começo da manhã, com a mente atormentada. Nuvens tinham se acumulado durante a noite e parecia que a jornada seria chuvosa. Kahlan deitada de lado, virada para ele, muito perto, respirava lentamente, num sono profundo. Chase estava de vigia em algum lugar.
O mundo desmoronava e ele se sentia impotente. Uma folha ao vento. Pensou que, depois de tantos anos como mago, devia ter algum controle sobre os acontecimentos. Porém, era pouco mais do que um espectador, vendo os outros serem feridos, mortos, enquanto tentava guiar aqueles que podiam fazer uma diferença, para o que tinha de ser feito.
Como um Mago da Primeira Ordem,sabia que não deviam ir a D’Hara, mas o que podia fazer? Tinham de ir, se havia alguma chance de salvar Richard. Dentro de três dias seria o primeiro dia do inverno. Darken Rahl tinha só duas caixas, ele ia morrer. Se não tirasse Richard de lá, Darken Rahl o mataria primeiro.
Pensou outra vez no encontro com Darken Rahl, na véspera. Por mais que tentasse, não conseguia compreender. Fora por demais estranho. Obviamente, Rahl queria a caixa tão freneticamente, que nem o matou quando teve a chance. O mago que matara seu pai, o homem que ele procurava e, quando encontrou, não fez nada. Todo o seu comportamento era estranho.
Zedd ficou arrepiado quando viu Rahl com a espada de Richard. Por que Darken Rahl, mestre da magia de dois mundos, estaria usando a Espada da Verdade? Mais importante ainda: o que tinha feito com Richard para tirar a espada dele?
O mais estranho foi quando ele desembainhou a espada contra Kahlan. Zedd nunca se sentira mais inútil em toda a sua vida. Era idiotice usar a dor do mago nele. Os que tinham o dom e que sobreviveram ao teste da dor, podiam sobreviver ao toque. Mas o que ele podia fazer? Ver Darken Rahl encostar a espada no pescoço de Kahlan foi extremamente doloroso para ele. Por um momento, teve certeza de que Darken Rahl ia matá-la e então, logo em seguida, antes que Zedd tivesse tempo de fazer alguma coisa, por mais ineficiente que fosse, os olhos de Rahl encheram-se de lágrimas e ele embainhou a espada. Por que Darken Rahl se daria ao trabalho de usar a espada, se quisesse matar Kahlan ou qualquer um deles? Para isso bastava estalar os dedos. Por que usar a espada? E por que parar então?
Porém, o pior era Darken Rahl ter feito a lâmina ficar branca. Quando Zedd viu isso, quase desmoronou. As profecias falavam do homem que feria a Espada da Verdade ficar branca. Falavam com muita cautela. A idéia de que seria Darken Rahl era por demais assustadora. Pensando que seria Richard o assustara, mas Rahl...
O véu era chamado pelas profecias, o véu entre o mundo da vida e o mundo subterrâneo. Se o véu fosse rasgado pela magia de Orden por meio de um agente, prediziam as profecias, só aquele que havia feito a espada ficar branca podia restaurá-lo. A não ser que pudesse fazer isso, o mundo subterrâneo seria libertado para o mundo dos vivos.
A palavra agente tinha um significado terrível, que o preocupava. Podia significar que Darken Rahl não agia por conta própria, mas era um agente. Um agente do mundo subterrâneo. Que conseguira dominar o mistério da magia subtrativa, a magia do mundo subterrâneo. Significava também que, mesmo que Rahl fracassasse e fosse morto, ainda assim a magia de Orden rasgaria o véu. Zedd tentou não pensar ao significado daquelas profecias. A idéia do mundo subterrâneo liberado o sufocava. Seria melhor morrer antes. Melhor para todos.
Zedd se virou para o lado e olhou para Kahlan. A Madre Confessora. A última Confessora criada pelos velhos magos. Seu coração doía com a dor de Kahlan, porque não pudera ajudá-la quando Rahl encostou a espada no seu pescoço. Doía pelo que ela sentia por Richard e por tudo que não podia contar a ela.
Se ao menos não tivesse sido Richard... Qualquer outro, mas não Richard! Nada era fácil.
Zedd se sentou de repente. Alguma coisa estava errada. Já estava claro e Chase já devia ter voltado. Encostando um dedo na testa de Kahlan, ele a acordou. Kahlan viu a preocupação no rosto do mago.
— O que foi? — murmurou ela.
Zedd ficou imóvel, procurando sinais de vida à sua volta.
— Chase não voltou e já devia ter voltado.
Kahlan olhou em volta.
— Talvez tenha adormecido. — Zedd ergueu uma sobrancelha. — Bem, talvez haja uma boa razão. Talvez não seja nada.
— Nossos cavalos desapareceram.
Kahlan se levantou, verificando se estava com sua faca.
— Pode sentir onde ele está?
Zedd estremeceu.
— Há outras pessoas. Pessoas tocadas pelo mundo subterrâneo.
Zedd se levantou bruscamente. Quando fez isso, Chase foi empurrado e caiu de bruços no acampamento. Seus braços estavam amarrados nas costas e havia sangue nele. Muito sangue. Ele gemeu com o rosto no chão. Zedd sentiu a presença de homens em volta deles. Quatro homens. Encolheu-se com a aura que sentiu deles.
O grandalhão que tinha empurrado Chase deu um passo à frente. O cabelo louro curto e espetado tinha uma faixa negra no centro. Os olhos frios e o sorriso provocaram um arrepio no mago.
Kahlan estava meio agachada.
— Demmin Nass — sibilou ela.
Ele enfiou os polegares no cinto.
— Ah, ouviu falar de mim. Madre Confessora — o sorriso cruel se alargou. — Eu certamente ouvi falar de você. Seu amigo aqui matou cinco dos meus melhores homens. Eu o executarei mais tarde, depois das festividades. Quero que ele tenha o prazer de assistir ao que vamos fazer com você.
Kahlan olhou para os outros três homens, não tão grandes quanto Demmin Nass, porém maiores do que Chase, que saíram do bosque. Kahlan e Zedd estavam cercados, mas isso não era problema para o mago. Todos os homens eram louros, musculosos e estavam cobertos de suor, apesar do ar frio. Evidentemente Chase dera trabalho a eles. No momento, não empunhavam suas armas. Estavam certos de controlar a situação.
Essa confiança irritou Zedd. Os sorrisos o deixaram furioso. A luz do dia fazia parecer mais penetrantes os olhos deles.
Zedd sabia que aquilo era um quad e sabia muito bem o que os quads faziam com as Confessoras. Muito bem. Seu sangue ferveu. De modo algum deixaria que aquilo acontecesse com Kahlan. Não enquanto estivesse vivo.
Demmin Nass e Kahlan se entreolharam.
— Onde está Richard? O que Rahl fez com ele? — perguntou ela.
— Quem?
Ela rilhou os dentes.
— O Seeker.
Demmin sorriu.
— Bem, isso é da conta de Mestre Rahl e minha. Não sua.
— Diga-me — exigiu ela.
Com um grande sorriso, ele disse: — Você tem coisas mais importantes com que se preocupar no momento, Confessora. Vai proporcionar um bom divertimento aos meus homens. Quero que pense nisso e procure fazer com que eles se divirtam. O Seeker não é da sua conta.
Zedd resolveu que estava na hora de acabar com aquilo, antes que acontecesse mais alguma coisa. Levantou as mãos e soltou a teia mais paralisante possível. Com um estalo, uma luz verde iluminou o campo em todas as direções ao mesmo tempo, dirigindo-se aos quatro homens de olhos azuis. A luz verde os atingiu com um baque surdo.
Antes que o mago tivesse tempo de reagir, tudo saiu errado.
Assim que atingiu os homens, a luz verde ricocheteou neles. Tarde demais, Zedd compreendeu que eles estavam protegidos por algum encantamento — um feitiço do mundo subterrâneo, que ele não podia ver. De quatro direções ao mesmo tempo, a luz verde atingiu Zedd. Sua própria teia o paralisou. Ficou petrificado. Indefeso. Por mais que tentasse, não conseguiu mover-se.
Demmin Nass tirou o polegar do cinto.
— Problemas, velho?
Kahlan, furiosa, estendeu o braço para libertar seu poder e encostou a mão no peito dele. Zedd se preparou para receber o poder, para o trovão silencioso. Não aconteceu.
Zedd viu a surpresa nos olhos de Kahlan.
Demmin Nass abaixou a mão fechada e quebrou o braço dela.
Kahlan caiu de joelhos com um grito de dor. Levantou-se e tentou atacar Demmin com a faca. Ele a agarrou pelos cabelos e a afastou. Kahlan enfiou a faca no braço que a segurava. O homem torceu o pulso dela, tirou a faca e a atirou numa árvore. Segurando Kahlan pelos cabelos, ele a esbofeteou com as costas da mão. Ela chutou, arranhou e gritou. O homem apenas sorriu. Os outros se aproximaram.
— Desculpe, Madre Confessora, sinto muito, mas você não é meu tipo. Porém, não se preocupe, estes homens ficarão felizes em fazer as honras. Mas procure mexer o traseiro — zombou ele. — Eu terei o maior prazer em assistir.
Demmin a jogou, pelos cabelos, para os outros três. Eles começaram a jogá-la de um lado para o outro, esbofeteando, batendo, fazendo-o girar, até Kahlan ficar atordoada demais para se manter de pé, indo dos braços de um para os de outro. Indefesa como um camundongo nas garras de três gatos. O cabelo cobriu seu rosto. Kahlan tentou alcançá-los, desorientada demais para fazer contato. Eles riram mais ainda.
Um deles deu um soco no estômago dela. Kahlan dobrou o corpo e caiu de joelhos, numa convulsão de dor. Outro a ergueu pelos cabelos. O terceiro arrancou os botões da sua blusa. Eles a jogaram violentamente de um para o outro, rasgando sua blusa, tirando pedaços a cada movimento. Quando a puxaram pelo braço quebrado, ela gritou de dor,
Zedd não podia sequer tremer de raiva. Não podia fechar os olhos, tampar os ouvidos. Lembranças dolorosas de ter visto aquilo antes se sobrepunham à realidade do que acontecia agora. Ele não conseguia respirar com a dor dessas lembranças. Não conseguia respirar com a dor do que estava acontecendo naquele momento. Daria a vida para se libertar. Queria que ela não lutasse contra eles, isso só piorava as coisas. Mas sabia que as Confessoras sempre lutavam. Lutavam com tudo que tinham. E o que Kahlan tinha, Zedd sabia, não era suficiente.
Da prisão do seu corpo, como se fosse de pedra, Zedd se rebelou com todas as forças contra sua impotência, procurando evocar cada encantamento, cada truque. Não foi suficiente. Ele sentiu o rosto molhado de lágrimas.
Kahlan gritou quando um dos homens a puxou pelo braço quebrado e a jogou para os braços dos outros dois. Com os lábios erguidos sobre os dentes cerrados, ela girou o corpo e chutou quando eles a seguraram pelos braços e pelos cabelos. O terceiro homem desafivelou o cinto dela e arrancou os botões da calça. Kahlan cuspiu nele e rogou pragas. Ele riu enquanto tirava a calça dela. Os outros dois a seguraram, ela era quase mais do que podiam controlar. Se seu braço não estivesse quebrado, não poderiam segurar Kahlan. Um dos homens torceu o braço dela brutalmente. Kahlan gritou.
Os dois homens que a seguravam puxaram sua cabeça para trás pelos cabelos e o terceiro pôs os lábios e os dentes no pescoço dela. Apalpando-a com uma das mãos, ele abriu o próprio cinto e desabotoou a calça. Pôs a boca sobre a dela, sufocando os gritos enquanto os dedos grossos desciam dos seios para o meio das pernas.
A calça dele caiu e ele a forçou a abrir as coxas com as pernas. Ela rosnou contra a boca do homem num esforço para evitar o que de estava fazendo, mas em vão. Kahlan arregalou os olhos. Com o rosto rubro de raiva, ela arfou furiosa.
— Deite a Confessora no chão e a faça ficar quieta — rosnou ele. O joelho de Kahlan subiu e atingiu a virilha dele. O homem dobrou o corpo com um gemido. Os outros dois riram. Havia fogo nos olhos dele quando se endireitou. Com um soco, rasgou-lhe o lábio. O sangue escorreu pelo queixo.
Chase, com os braços ainda amarrados nas costas, bateu violentamente contra a cabeça no meio do corpo do homem. Os dois caíram no chão, a calça do homem em volta das pernas fez com que perdesse o equilíbrio e, antes que ele tivesse tempo para reagir, Chase prendeu o pescoço dele entre as pernas cruzadas. Os olhos azuis quase saltaram das órbitas. O guarda da fronteira rolou para o lado, puxando com força a cabeça do homem. Ouviu-se um estalo e o corpo do homem amoleceu.
Demmin Nass chutou as costelas e a cabeça de Chase, até ele ficar imóvel. Como que surgindo do ar, pêlo e presas se abateram contra Nass. O lobo, rosnando selvagemente, saltou sobre o homem grande. Caíram no chão rolando na terra, na direção do fogo. Uma faca brilhou no ar.
— Não! — gritou Kahlan. — Brophy! Não! Vá embora!
Tarde demais. A faca penetrou no lobo com um baque surdo lhe dilacerando as costelas. Com repetidos golpes, Nass abriu a barriga do lobo. Tudo terminou num instante. Brophy caiu no chão, o pelo cheio de sangue. Suas pernas se moveram convulsivamente e depois ficaram imóveis.
Kahlan, segura pelos braços e pelos cabelos, soluçando, repetiu o nome do lobo. Nass se levantou, ofegante com o esforço da breve luta. O sangue saía dos ferimentos no peito e nos braços. A raiva se acendeu nos seus olhos.
— Façam com que ela pague — sibilou para os dois homens que a seguravam. Kahlan continuou a lutar contra eles.
— Qual é o problema, Demmin? — gritou da. — Não é homem para fazer você mesmo? Precisa que outros façam por você?
Por favor, Kahlan, Zedd pediu mentalmente, por favor, fique com a boca fechada. Por favor, não diga mais nada.
O rosto de Nass ficou rubro. Seu peito arfou. Olhou furioso para da.
— Pelo menos eles são homens de verdade. Pelo menos têm o que é preciso para lidar com uma mulher! Provavelmente você não tem. Tem só o necessário para meninos! O que há com você, menino? Tem medo de mostrar o que tem para uma mulher de verdade? Estarei rindo de você enquanto homens de verdade fazem o trabalho que você não pode fazer!
Nass deu um passo para da, rilhando os dentes.
— Cala a boca, vadia.
Kahlan cuspiu no rosto dele.
— Isso é o que seu pai faria se soubesse que você não pode manejar uma mulher. Você é uma desgraça para o nome do seu pai!
Zedd imaginou se Kahlan tinha enlouquecido. Não tinha a mínima idéia de por que ela estava fazendo aquilo. Se queria provocar Nass para fazer pior, esse era o caminho certo.
Nass pareceu que ia explodir, mas seu rosto relaxou e o sorriso voltou. Olhou em volta e viu o que procurava.
— Ali — ele apontou. — Segurem a vadia de bruços naquele tronco caído. — Pôs o rosto muito perto do dela. — Você quer que eu faça? Tudo bem, vadia, vai ter. Mas do meu modo. Agora veremos o quanto você pode se contorcer.
Kahlan estava rubra de fúria.
— Acho que tudo que você tem de grande são palavras! Acho que vai ficar embaraçado. Seus homens e eu vamos nos divertir. Mais uma vez eles terão de fazer o trabalho por você. — Sorrindo desafiadoramente, continuou: — Estou esperando, menininho, faça comigo o que seu pai fazia com você, para que nós todos possamos rir, pensando em você de joelhos debaixo dele. Mostre como ele fazia.
As veias da testa de Demmin ameaçaram explodir, seus olhos saltaram das órbitas. Nass segurou Kahlan pelo pescoço, apertando, erguendo-a do chão. Ele tremia de raiva. Seus dedos se apertaram, sufocando-a.
— Comandante Nass — advertiu um dos homens em voz baixa —, você vai matá-la.
Demmin ergueu os olhos furiosos para o homem, mas soltou os dedos. Olhou para
Kahlan.
— O que uma ordinária como você sabe das coisas?
— Sei que você é um mentiroso. Sei que seu mestre não deixaria um menino como você saber o que foi feito com o Seeker. Você não sabe de coisa alguma. Não pode dizer porque não sabe e é tão imprestável que nem pode admitir isso.
Então era isso, Zedd compreendeu. Kahlan sabia que ia morrer e estava disposta a trocar qualquer coisa que Nass podia fazer com ela pela informação de que Richard estava bem. Não queria morrer sem saber que ele estava a salvo. A enormidade do que estava acontecendo fez com que as lágrimas lhe descessem no rosto. Ele ouviu Chase se mexer aos seus pés.
Nass largou o pescoço de Kahlan e fez sinal para os dois homens. Num assomo de raiva, deu um soco nela. Kahlan caiu de costas. Nass se inclinou e ergueu a cabeça dela pelos cabelos como se Kahlan não tivesse peso.
— Você não sabe de nada! Seus punhos dizem tudo. Seu mestre poderia dizer para seu pai, mas para a menininha do papai ele não diz nada.
— Está bem. Está bem. Vou dizer. Será mais divertido contar quando estiver dentro de você, para que saiba o que fazemos com pestinhas como o Seeker. Então talvez você compreenda que está perdendo tempo lutando contra nós.
Kahlan ficou de pé na frente dele, nua, o rosto contorcido de raiva. Não era uma mulher pequena, mas parecia minúscula na frente de Demmin Nass. Esperou, respirando com dificuldade, uma das mãos fechada ao lado do corpo, o outro braço flácido, o corpo manchado de sangue.
— Mais ou menos há um mês, um artista desenhou um feitiço para capturar o Seeker. Ele matou o artista, mas assim mesmo foi capturado. Capturado por uma Mord-Sith.
Kahlan empalideceu. Ficou branca como um lírio.
Zedd teve a impressão de uma faca atravessando seu coração. Se fosse possível, teria caído no chão, de agonia.
— Não — murmurou ela.
— Sim — zombou Nass. — E por uma Mord-Sith especialmente cruel chamada Denna. Até eu procuro ficar longe dela. É a favorita do Mestre Rahl por causa dos seus... — ele sorria — ... talentos. Pelo que ouvi, ela se superou com o Seeker. Eu a vi um dia, durante o jantar, coberta dos pés à cabeça com o sangue dele.
Kahlan estremeceu, com os olhos cheios de lágrimas, e Zedd teve certeza de que ela empalideceu mais ainda.
— Mas ele ainda está vivo — murmurou ela, com a voz embargada.
Demmin, vendo a reação dela, sorriu satisfeito.
— Para dizer a verdade, Madre Confessora, a última vez em que vi o Seeker ele estava de joelhos na frente do Mestre Rahl, com o Agiel de Denna na nuca. Acho que ele nem sabia o próprio nome. Mestre Rahl não estava muito feliz. Quando Mestre Rahl fica infeliz, as pessoas geralmente morrem. Pelo que Mestre Rahl me disse quando saí, tenho certeza de que o Seeker ficará para sempre de joelhos. Seu corpo deve estar podre agora.
Zedd chorou por não poder consolar Kahlan e por ela não poder consolá-lo.
Kahlan ficou impassivelmente calma.
Ergueu os braços lentamente, os punhos fechados para o céu. Inclinou a cabeça para trás.
Soltou um grito que atravessou Zedd como milhares de agulhas de gelo e ecoou nas montanhas, nos vales, fazendo vibrar as árvores. Zedd mal pôde respirar. Nass e os outros dois homens recuaram alguns passos.
Se já não estivesse petrificado, Zedd ficaria agora, com medo do que ela estava fazendo. Kahlan não devia poder fazer aquilo.
Ela respirou profundamente, apertou os punhos e as lágrimas desceram no seu rosto.
Kahlan gritou outra vez. Um grito longo, penetrante, não deste mundo. Pedras dançaram no chão. A água dançou nos lagos. O ar dançou e começou a se mover. Os homens tamparam os ouvidos. Zedd teria feito o mesmo, se pudesse se mexer.
Kahlan suspirou profundamente outra vez. Esticou o corpo para o céu.
O terceiro grito foi pior. A magia dele rasgou o tecido do ar. Zedd teve a impressão de que seu corpo ia se despedaçar. O ar começou a girar em volta dela, levantando poeira.
A escuridão se aproximou, a magia do grito eliminando toda a luz, puxando a noite como puxava o vento. Luz e escuridão envolveram a Madre Confessora quando ela liberou com o grito a antiga magia.
Zedd quase sufocou de medo. Tinha visto aquilo ser feito só uma vez antes e o resultado não foi bom. Ela estava juntando à magia da Confessora, a magia aditiva, o amor, com a magia do mundo subterrâneo, a magia subtrativa, o ódio.
Kahlan continuou a gritar no centro do turbilhão. A luz foi sugada para ela. A escuridão invadiu tudo. Onde Zedd estava, ficou escuro como a noite. A única luz era a que circundava Kahlan. Noite durante o dia.
Relâmpagos cortaram violentamente o céu escuro, acendendo-se rapidamente em todas as direções, dividindo-se, duplicando-se, crescendo numa fúria contínua misturada com o grito, tornando-se parte dele.
O solo tremeu. O grito ultrapassou o som, chegando a algo inteiramente diferente. O solo rachou em fendas dentadas e ferozes, Colunas de luz violeta subiram das fendas. As cortinas azuis e purpúreas de luz vibravam, dançavam e acelerando, eram sugadas para o vórtice, sugadas para Kahlan. Ela era uma forma de luz brilhante no mar de escuridão. Era a única coisa que existia, todo o resto era nada, completamente sem luz. Tudo que Zedd conseguia ver era Kahlan.
O ar vibrou com um horrível impacto. Num breve e tremendo flash de luz, Zedd viu as árvores em volta de repente despidas das agulhas de pinheiro, todas elas levadas pela nuvem verde. Uma parede de pó e areia tingiu seu rosto como se fosse arrancar a pele na passagem explosiva.
A ferocidade da concussão levou embora o escuro. A luz voltou.
A união estava completa.
Zedd viu Chase de pé ao seu lado, observando, as mãos ainda amarradas nas costas. Guardas da fronteira, Zedd pensou, eram mais resistentes do que tinham o direito de ser.
Luz azul-clara, formando um oval dentado em volta dela, cresceu de intensidade, de decisão e, de certo modo, de violência. Kahlan se virou para trás. O braço quebrado estava ao lado do corpo. O outro, erguido a meio, tocou no mago. A luz azul escorreu do anel que a rodeava, para sua mão. Pareceu fundir-se e numa libertação explodiu no espaço entre eles.
Com um golpe certeiro, atingiu Zedd, iluminando-o como se ele estivesse ligado a Kahlan por um fio de luz viva e o envolveu com o brilho azul-claro. O mago sentiu o toque familiar da magia aditiva e o zumbido desconhecido da magia subtrativa do mundo subterrâneo. Ele foi atirado um passo para trás, a teia que o prendia se partiu. Ele estava livre. A linha de luz desapareceu.
Zedd se voltou para Chase e o desamarrou com um simples movimento de magia. Chase gemeu de dor quando seus braços ficaram livres,
— Zedd — murmurou ele —, o que, em nome dos profetas, está acontecendo? O que ela fez?
Kahlan passou os dedos na luz azul que vibrava em volta dela, acariciando-a, banhando-se nela. Demmin Nass e um dos seus homens a observavam, mas estavam imóveis, esperando. Os olhos de Kahlan viam coisas que eles não podiam ver. Estavam em outro mundo. Zedd sabia que ela estava vendo a lembrança de Richard.
— Isso se chama Con Dar. A Raiva de Sangue. — Zedd olhou de Kahlan para o guarda da fronteira. — É algo que poucas Confessoras mais fortes podem lazer. E Kahlan não devia poder.
Chase pergunto: — Por quê?
— Porque deve ser ensinado pela mãe verdadeira dela; só ela pode ensinar como fazer isso, se for muito necessário. É uma magia antiga, tão antiga quanto a magia das Confessoras, parte dela, mas raramente usada. Só pode ser ensinada depois que a filha atingir certa idade. A mãe de Kahlan morreu antes de poder ensinar a ela. Adie me disse. Kahlan não devia poder fazer isso. Mas fez. O fato de Kahlan poder fazer sem ter aprendido, só por instinto e desejo, fala de coisas muito perigosas nas profecias.
— Muito bem, por que ela não fez antes? Por que não impediu que acontecesse tudo que aconteceu?
— Uma Confessora não pode invocar para si mesma, só por outras pessoas. Kahlan invocou por Richard. Com a raiva por seu assassinato. Estamos numa grande encrenca.
— Por quê?
— O Con Dar é invocado para vingança, as Confessoras que o invocam raramente sobrevivem, dão a vida por seu objetivo, para a vingança. Kahlan vai usar seu poder em Darken Rahl.
Chocado, Chase disse: — Você disse que o poder de Kahlan não pode tocá-lo, não pode prendê-lo.
— Não podia antes. Não sei se pode agora, mas duvido. Mesmo assim, ela vai tentar. Está tomada pelo Con Dar, a Raiva de Sangue. Não se importa de morrer. Vai tentar, vai tocar Darken Rahl, mesmo que seja em vão, mesmo que ela tenha de morrer por isso. Se alguém se interpuser, ela matará. Sem pensar duas vezes. — Aproximou o rosto do de Chase para enfatizar. — Isso inclui nós dois.
Kahlan estava encolhida no chão, a cabeça abaixada, os braços cruzados, as mãos nos ombros, envolta pela luz azul. Esticou o corpo e levantou-se, empurrando a luz, como que saindo de um ovo. Ficou de pé, nua, o sangue saindo ainda dos ferimentos. Sangue líquido e fresco pingou do seu queixo.
Mas seu rosto não demonstrava dor, a não ser dos ferimentos do corpo. E então até isso desapareceu e tudo que ela mostrou foi o rosto de uma Confessora.
Kahlan se voltou para um dos homens que a seguravam antes. O outro tinha desaparecido. Calmamente, ergueu a mão para ele. O homem estava a uns dez passos dela.
Um impacto no ar, trovão sem som. Zedd sentiu dor nos ossos.
— Senhora — disse o homem, se ajoelhando —, quais são suas ordens? O que quer de mim?
Kahlan olhou friamente para ele.
— Quero que morra por mim. Agora.
O homem caiu de bruços no chão. Kahlan foi até Demmin Nass. Ele sorria, com os braços cruzados. O braço quebrado de Kahlan pendia ao lado do corpo. Bateu com a outra mão no peito dele. Os olhos deles se encontraram. O homem era muito mais alto do que ela.
— Impressionante, vadia. Mas você usou todo o seu poder. E eu estou protegido pelo feitiço de Mestre Rahl. Não pode tocar-me com seu poder. Precisa ainda aprender uma lição e eu vou lhe ensinar como nunca ensinei coisa alguma. — Ergueu a mão e agarrou o cabelo despenteado de Kahlan. — Incline-se.
O rosto de Kahlan estava inexpressivo. Ela não disse nada. Um impacto no ar, trovão sem som. Outra vez Zedd sentiu a dor nos ossos. Demmin Nass arregalou os olhos. Abriu a boca.
— Senhora! — murmurou de.
Chase perguntou a Zedd: — Como Kahlan fez isso? Ela acabou de tocar no outro homem e as Confessoras só podem usar o poder uma vez, depois precisam descansar para recobrá-lo.
— Não mais. Ela está no Con Dar.
— Fique aí e espere — ordenou ela a Nass.
Movendo-se com graça, Kahlan foi até o mago. Parou e ergueu o braço quebrado para ele.
Os olhos dela pareciam levemente vidrados.
— Conserte isto para mim, por favor. Preciso deste braço.
Desviando os olhos dos dela, Zedd examinou o braço. Tocou nele levemente, falando em voz baixa para distrair a mente dela da dor, segurou acima do cotovelo e abaixo da fratura, puxou e pôs o osso no lugar. Kahlan não gritou nem estremeceu. Zedd se perguntou se ela sentira alguma coisa. Carinhosamente, seus dedos envolveram a fratura, deixando que o calor da magia penetrasse nela, passando a dor para ele, sentindo-a, sofrendo, suportando estoicamente.
A dor aguda o fez parar de respirar por um momento. Ele a sentiu toda, de mistura com a própria dor, ameaçando dominá-lo, até poder finalmente anulá-la. Sentiu o osso soldar e acrescentou mais magia para proteger e reforçar, até se soldar de todo. Retirou a mão. Os olhos verdes se ergueram para ele, revelando a raiva fria, assustadora.
— Obrigada — disse ela suavemente. — Espere aqui.
Voltou até Demmin Nass, que esperava, como Kahlan havia mandado. Os olhos dele estavam cheios de lágrimas.
— Por favor, senhora, dê-me suas ordens.
Kahlan tirou uma faca do cinto dele, ignorando o pedido. Com a outra mão, soltou a maça de guerra do gancho.
— Tire a calça. — Esperou que ele obedecesse e ficasse de pé na frente dela. — Ajoelhe-se.
Zedd sentiu um arrepio ouvindo a frieza na voz dela e olhou para o homenzarrão. Chase segurou o manto de Zedd.
— Zedd, precisamos detê-la! Ela vai matar o homem! Precisamos de informações. Quando ele disser o que desejamos saber, ela pode fazer o que quiser, mas não antes de o interrogarmos!
Zedd olhou zangado para ele.
— Por mais que concorde com você, não posso fazer nada. Se interferirmos, ela nos matará. Se você der dois passos até ela, Kahlan o matará antes que você dê o terceiro. Não se pode discutir com uma Confessora na Raiva de Sangue. É como discutir com uma tempestade, é ser atingido por um relâmpago.
Chase soltou o manto do mago bufando, frustrado, e cruzou os braços com resignado. Kahlan girou a maça e entregou o cabo a Nass.
— Segure para mim.
Demmin Nass segurou a arma ao lado do corpo. Kahlan ajoelhou-se na frente dele.
— Abra as pernas — ordenou com voz gelada, segurando-o com uma das mãos. Ele se encolheu e fez uma careta — Não se mexa — avisou ela. Nass ficou imóvel — Quantos dos meninos que molestou você matou?
— Não sei, senhora. Não contei. Faço isso há muitos anos, desde que era jovem. Nem sempre eu os mato. A maior parte continua viva.
— Tente calcular.
Ele pensou por um momento.
— Mais de oitenta. Menos de cento e vinte.
Zedd viu o brilho da faca quando Kahlan a pôs debaixo dele. Chase descruzou os braços e empertigou o corpo, com os músculos do rosto tensos quando ouviu o que Demmin Nass tinha feito.
— Vou cortar isto. Quando eu cortar, não quero que faça o menor som — murmurou ela. — Nem um som. Nem se mexa.
— Sim, senhora.
— Olhe nos meus olhos. Quero ver nos seus olhos o que vou fazer.
Moveu o braço e levantou a faca. A lâmina saiu vermelha.
As juntas da mão de Demmin Nass que segurava a maça estavam brancas. A Madre Confessora se levantou na frente dele.
— Abra a mão.
Demmin estendeu a mão trêmula para ela. Kahlan pôs os testículos ensangüentados na palma.
— Coma.
Chase sorriu.
— Muito bem — murmurou ele para ninguém em particular. — Uma mulher que sabe o significado de justiça.
De pé na frente de Demmin, Kahlan esperou que ele terminasse. Jogou a faca para o lado. — Dê-me a maça.
Ele a entregou.
— Senhora, estou perdendo muito sangue. Não sei se posso continuar de pé.
— Eu ficaria muito aborrecida. Agüente. Não vai demorar.
— Sim, senhora.
— O que você me disse sobre Richard, o Seeker, é verdade?
— Sim, senhora.
A voz de Kahlan estava mortalmente calma. —Tudo?
Demmin pensou por um momento, para ter certeza.
— Tudo que eu disse, senhora.
— Há alguma coisa que não me disse?
— Sim, senhora. Eu não disse que a Mord-Sith Denna também o tomou para companheiro. Suponho que para poder machucá-lo mais.
Durante uma eternidade de silêncio, Kahlan ficou imóvel. Zedd mal podia respirar de dor, mal podia fazer o ar passar pelo nó na garganta. Seus joelhos tremeram.
A voz de Kahlan soou com tanta suavidade que Zedd mal conseguiu ouvir.
— E você tem certeza de que ele está morto?
— Eu não vi o Seeker ser morto, senhora, mas tenho certeza.
— Por quê?
— Parecia que Mestre Rahl estava disposto a matá-lo e, mesmo que não estivesse. Denna o mataria. É o que as Mord-Sith fazem. Companheiros das Mord-Sith não duram muito. Fiquei surpreso por ele ainda estar vivo quando deixei o palácio. Parecia muito mal. Nunca vi um homem com um Agiel na nuca por tanto tempo continuar vivo.
“Ele gritava seu nome. Denna só não permitiu que ele morresse antes porque Mestre Rahl queria falar com ele. Embora eu não tenha visto com meus olhos, senhora, tenho certeza. Denna o dominava com a magia da espada, ele não podia escapar. Ela o teve por mais tempo do que é comum, ela o torturou mais do que é comum, ela o manteve entre a vida e a morte mais tempo do que é comum. Nunca vi um homem durar tanto tempo. Por algum motivo, Mestre Rahl queria que o Seeker sofresse por longo tempo, por isso escolheu Denna. Ninguém tem mais prazer em manter vivas suas vitimas. De qualquer modo, ele estaria morto agora, por ter sido companheiro de uma Mord-Sith. Não pode ter sobrevivido até agora.”
Zedd caiu de joelhos, seu coração partido de agonia. Chorava de dor. Era como se seu mundo tivesse acabado. Não queria continuar. Só queria morrer. O que tinha feito? Como podia ter deixado que Richard se envolvesse nisso? Richard especialmente. Agora sabia por que Rahl não o matou quando teve chance: ele queria que Zedd sofresse. Rahl era assim.
Chase agachou ao lado dele e passou o braço em volta dos seus ombros.
— Sinto muito, Zedd — murmurou ele. — Richard era meu amigo também. Sinto muito.
— Olhe para mim — disse Kahlan, segurando a maça com as duas mãos.
Nass ergueu os olhos para ela. Kahlan desferiu o golpe com toda a força. Com um ruído assustador, a arma se enterrou na testa dele, firme, escapando das mãos dela quando Demmin Nass caiu, flácido e fluido, como se não tivesse ossos.
Com esforço, Zedd parou de chorar e se levantou quando Kahlan caminhou para eles, tirando da mochila uma vasilha de lata.
Entregou a vasilha a Chase.
— Encha até a metade com amoras venenosas.
Chase olhou para a vasilha, um pouco confuso.
— Agora?
— Sim.
Ele viu os olhos alarmados de Zedd e ficou rígido.
— Tudo bem. — Ia sair mas se virou para trás, pegou a capa preta pesada e a pôs nos ombros dela, cobrindo sua nudez. — Kahlan... — Olhou para ela, incapaz de falar, e saiu para cumprir sua tarefa.
Kahlan olhou fixo para o nada, com olhos vazios. Zedd passou um braço em volta dela e a levou para um saco de dormir. Pegou o que restava da blusa dela, cortou em tiras e a molhou com água de um odre. Kahlan não protestou quando Zedd limpou todo o sangue do corpo dela, aplicou bálsamo em alguns dos ferimentos e magia em outros. Kahlan suportou em silêncio Quando Zedd terminou, ergueu o queixo dela com um dedo e a fez olhar para ele. Zedd disse, em voz baixa:
— Ele não morreu em vão, minha cara. Ele encontrou a caixa, salvou todos, Lembre-se dele como tendo feito o que ninguém mais poderia fazer.
A garoa fina das nuvens muito baixas começou a molhar seus rostos.
— Lembrarei apenas que eu o amo e que nunca pude dizer isso a ele.
Zedd fechou os olhos procurando aliviar a dor, o peso de ser um mago.
Chase voltou e deu a ela a vasilha com as frutas venenosas. Kahlan pediu alguma coisa para amassá-las. Com a faca, Chase cortou um galho de árvore na forma de pilão e Kahlan começou a trabalhar.
Ela parou como se tivesse se lembrado de alguma coisa e olhou para o mago, os olhos ainda vidrados.
— Darken Rahl é meu. — Era um aviso. Uma ameaça. Zedd concordou.
— Eu sei, minha cara.
Ela voltou a amassar as frutas, enquanto algumas lágrimas lhe desciam no rosto.
— Vou enterrar Brophy — disse Chase a Zedd. — Os outros podem apodrecer.
Kahlan fez uma pasta das frutas e acrescentou um pouco de cinza da fogueira.
Quando terminou, fez Zedd segurar um pequeno espelho enquanto ela aplicava a pasta formando o desenho do Con Dar, dois relâmpagos, a magia guiando sua mão. Começando nas têmporas, os dois lados iguais, a parte superior de cada relâmpago em ziguezague sobre a sobrancelha, o lobo central de cada um passando sobre uma pálpebra, com a parte inferior nos dois lados, terminando em ponta no centro de cada face.
O efeito era assustador, como devia ser. Era um aviso para os inocentes. Uma jura para os culpados.
Depois de desembaraçar o cabelo com a escova, tirou o vestido de Confessora da mochila e a capa e os vestiu. Chase voltou. Kahlan entregou a ele sua capa e agradeceu.
— Fique com ela — disse Chase —, é mais quente do que a sua.
— Eu sou a Madre Confessora. Não vou usar uma capa.
O guarda da fronteira não discutiu.
— Os cavalos se foram. Todos.
Kahlan olhou para ele com indiferença.
— Então iremos a pé. Não vamos parar à noite. Você pode vir se quiser, se não for me atrasar.
Chase ergueu uma sobrancelha, surpreso com o insulto, mas não disse nada. Kahlan começou a andar sem apanhar suas coisas. Chase olhou para Zedd, soltando o ar ruidosamente.
Abaixou para pegar suas coisas.
— Não vou sem minhas armas.
— Acho melhor nos apressarmos antes que ela se adiante muito. Kahlan não vai esperar por nós. — O mago apanhou a mochila de Kahlan e guardou o que estava fora dela. — Acho bom pelo menos levar alguns suprimentos. — Alisou uma dobra da mochila. — Chase, acho que não voltaremos desta caminhada. O Com Dar é uma missão suicida. Você tem família. Não precisa ir.
Chase não ergueu os olhos.
— O que é uma Mord-Sith? — perguntou de em voz baixa.
O mago engoliu em seco, segurando a mochila com tanta força que suas mãos tremiam.
— As Mord-Sith tão treinadas desde pequenas na arte da tortura e no uso de um impiedoso instrumento chamado Agiel para provocar dor. Era aquela coisa vermelha que pendia do pescoço de Darken Rahl. Mord-Siths são usadas contra os que têm magia. Têm o poder de tomar a magia de uma pessoa e usá-la contra ela. — A voz de Zedd ficou entrecortada. — Richard não sabia disso. Não teve a menor chance. O único objetivo na vida de uma Mord-Sith, a única coisa para a qual da vive é torturar até a morte os que têm magia.
Chase guardou um cobertor na mochila.
— Eu vou com vocês.
Zedd balançou a cabeça afirmativamente, compreendendo.
— Ficarei contente com sua companhia.
— Essas Mord-Sith representam perigo para nós?
— Não para você, você não tem magia, e não para magos, eu tenho proteção.
— E para Kahlan?
Zedd balançou a cabeça.
— A magia de uma Confessora é diferente de todas as outras. O toque da magia da Confessora é a morte para uma Mord-Sith. Uma morte nada agradável. Eu vi uma vez. Não quero ver nunca mais. — Zedd olhou para a desordem sangrenta e pensou no que tinham feito a Kahlan e no que quase tinham feito. — Eu acho — murmurou de — que já vi muitas coisas que nunca mais quero ver.
Quando Zedd pôs a mochila de Kahlan no ombro, houve um impacto no ar, um trovão sem ruído. Os dois correram para a trilha, para Kahlan. Encontraram o último homem, deitado de costas onde estava à espreita, com a própria espada enfiada no peito. Com as duas mãos segurava o punho da arma.
Continuaram a correr até alcançar Kahlan. Ela caminhava decidida, olhando para a frente, sem se interessar por mais nada. O vestido de Confessora flutuava e adejava atrás dela como uma chama ao vento. Zedd sempre achara as Confessoras belas com seus vestidos, especialmente com o vestido branco da Madre Confessora.
Mas agora ele o via como o que era realmente. Uma armadura de guerra.
A água da chuva leve, acumulada no rosto de Richard, escorreu-lhe pelo nariz, deixando uma gota na ponta, que provocava coceira. Ele a enxugou, zangado. Estava tão cansado que nem sabia mais o que fazia. A única coisa de que tinha certeza era de não poder encontrar Kahlan, Zedd e Chase. Ele os tinha procurado incansavelmente, em infindáveis trilhas e estradas, indo e voltando, ziguezagueando, a caminho do Palácio do Povo, sem encontrar nem sinal deles. Havia trilhas e caminhos por toda parte e Richard sabia que tinha procurado somente em alguns deles. Parava por poucas horas à noite, mais para descansar o cavalo, e às vezes procurava a pé. Desde que deixara o irmão, nuvens baixas tinham se acumulado, limitando a visibilidade. Estava furioso por elas terem aparecido agora, quando mais precisava de Scarlet.
Tinha a impressão de que tudo conspirava contra ele, que a sorte estava realmente do lado de Darken Rahl. Rahl devia estar com Kahlan agora. Era tarde demais, ela devia estar no Palácio do Povo.
Esporeou o cavalo na subida da montanha, passando entre grandes abetos que cresciam na encosta íngreme. Musgo esponjoso abafava o som das patas do cavalo. A escuridão escondia quase tudo. À medida que subia, no escuro e no meio da névoa, as árvores escasseavam, expondo-o ao vento frio. Fazia tatalar sua capa e o ruído gemia nos seus ouvidos. Manchas negras de nuvens e névoa eram levadas para a trilha pelo vento. Richard pôs o capuz. Mesmo sem enxergar nada, sabia que tinha chegado ao topo da montanha e virado de frente para o lado oposto.
Era tarde da noite. O amanhecer traria o primeiro dia do inverno. O último dia de liberdade.
Encontrando um pequeno abrigo numa saliência da rocha, Richard resolveu dormir algumas horas antes da madrugada que seria sua última. Exausto, apeou das costas molhadas do cavalo e o amarrou num pinheiro que crescia entre a relva alta. Nem tirou a mochila das costas, mas simplesmente fechou bem a capa, deitou-se debaixo da rocha e tentou dormir, pensando em Kahlan, pensando no que teria de fazer para evitar que ela caísse nas mãos de uma Mord-Sith. Depois de ajudar Darken Rahl a abrir a caixa que daria a ele o poder que tanto queria, Rahl o mataria. Apesar de Darken Rahl ter garantido que Richard seria livre para continuar sua vida, que vida podia ter depois de ser tocado pelo poder de Kahlan?
Além disso, sabia que Rahl estava mentindo. Rahl pretendia matá-lo. Só esperava que fosse uma morte rápida. Sabia que sua decisão de ajudar Darken Rahl significava que Zedd também ia morrer, mas significava que muitos outros viveriam. Viveriam sob o governo brutal de Darken Rabi, mas estariam vivos. Richard não suportava a idéia de ser responsável pela morte de tanta gente e tantas coisas. Rahl dissera a verdade sobre Richard ter sido traído e provavelmente era também verdade que sabia qual a caixa que o mataria. Mesmo que estivesse mentindo, Richard não podia arriscar a vida de tantas pessoas baseado naquela única chance. Richard não tinha mais qualquer opção. Não tinha escolha senão ajudar Darken Rahl.
Suas costelas doíam ainda por causa do que Denna tinha feito. Ainda era difícil deitar-se e ainda doía quando respirava. O sono trouxe os pesadelos que o atormentavam desde que deixara o Palácio do Povo. Sonhava que estava dependurado enquanto Denna o torturava, indefeso, sem nenhuma esperança de fuga. Sonhava com Michael assistindo à tortura. Sonhava com Kahlan sendo torturada e Michael assistindo a isso também.
Acordou encharcado de suor, tremendo de medo, ouviu os próprios gemidos com o terror do sonho. A luz do sol batia de lado na saliência da rocha. O sol cor de laranja começou a aparecer no horizonte.
Richard se levantou, espreguiçou-se para se livrar das cãibras nos músculos e contemplou o nascer do primeiro dia do inverno. Estava no alto da montanha. Os picos em volta se erguiam acima do lençol de nuvens que se estendia à sua frente, até o horizonte do leste como um mar cinzento tingido de alaranjado.
O mar de nuvens só era quebrado pelo Palácio do Povo. Ao longe, tocado pela luz do sol, erguia-se orgulhoso no planalto, acima das nuvens, à sua espera. Richard sentiu um frio no estômago. Estava muito longe ainda. Tinha calculado mal a distância. Não podia perder tempo. Quando o sol estivesse no zênite, as caixas poderiam ser abertas.
Quando se virou para trás, viu um movimento. O cavalo relinchou apavorado. Uivos cortaram o silêncio da manhã. Sabujos do coração.
Richard desembainhou a espada quando eles apareceram em cima da rocha. Antes que Richard tivesse tempo de alcançar o cavalo, os sabujos derrubaram o animal. Mais corriam para ele. Por um momento paralisado pelo choque, saltou para cima da rocha debaixo da qual tinha dormido. Os sabujos, dentes arreganhados, saltaram para a rocha também. Ele cortou a primeira leva com a espada, depois recuou mais para cima, quando outros correram para atacá-lo. Richard brandiu a espada, cortando os sabujos que avançavam, rosnando é uivando.
Era como um mar de pêlo bege, atacando-o em ondas. Freneticamente ele os atacava e cortava, tentando recuar ao mesmo tempo. Os sabujos subiram na rocha atrás dele. Richard saltou para o lado e os dois grupos se chocaram, dilacerando uns aos outros, disputando o coração de Richard.
Richard subiu mais, lutando sempre, matando os que chegavam perto. Era um esforço inútil, ele sabia, os sabujos eram em maior número do que ele podia deter. Entregou-se totalmente à raiva da magia da espada, lutando com fúria, avançando para as fileiras do inimigo. Não podia falhar com Kahlan, não agora. O ar parecia cheio de dentes amarelos, todos indo para cima dele. Sangue dos sabujos mortos estava por toda parte. O mundo era vermelho.
E então se transformou em chamas.
O fogo explodiu em volta dele. Sabujos uivaram de dor mortal. O dragão rugiu furioso. A sombra de Scarlet pairou sobre ele. A espada de Richard cortou os sabujos que chegavam perto. O ar cheirava a sangue e a pêlo queimado.
A garra de Scarlet o segurou pela cintura, tirando-o do meio dos animais que saltavam arreganhados. Ofegante e exausto, Richard voou na garra do dragão até una clareira em outra montanha. Ela o pôs gentilmente no chão e pousou.
Richard, quase chorando, abraçou as escamas vermelhas, acariciando-as com a cabeça encostada nelas.
— Obrigado, minha amiga. Você salvou a minha vida. Você salvou muitas vidas. Você é um dragão honrado.
— Eu fiz um trato, só isso — bufou com desdém uma tira de fumaça. — Além disso, alguém precisa ajudar você. Parece que está sempre se metendo em encrencas quando fica sozinho.
Richard sorriu.
— Você é o animal mais bonito que já vi. — Ainda respirando com dificuldade, apontou para o planalto. — Scarlet, preciso chegar ao Palácio do Povo. Você me leva, por favor?
— Não encontrou seus amigos? Seu irmão? Richard sentiu um nó na garganta.
— Meu irmão me traiu. A mim e a todos, para Darken Rahl. Eu gostaria de que as pessoas tivessem a metade da honra que têm os dragões.
Scarlet rosnou, fazendo vibrar as escamas do seu pescoço.
— Sinto muito, Richard Cypher. Suba. Eu levo você.
Com batidas lentas e firmes das asas o dragão subiu acima do mar de nuvens que cobriam a Planície Azrith, levando Richard ao último lugar do mundo para onde ele queria ir, se pudesse escolher. A jornada que a cavalo teria levado boa parte do dia, durou menos de uma hora nas costas do dragão, que fechou as asas para trás e voou para a planície. O vento lhe açoitou a roupa quando Scarlet mergulhou. Do ar, Richard viu o quanto era grande o Palácio do Povo. Era difícil acreditar que fora construído por homens. Parecia um sonho. Era como as maiores cidades juntas num único complexo.
Scarlet sobrevoou uma vez o planalto, passando pelas torres, muros e telhados. Passaram rapidamente por uma infindável variedade, que deixou Richard atordoado. Ela passou por cima do muro externo e pousou num pátio imenso, tatalando as asas para diminuir a velocidade da descida. Não viram guardas, povo, ninguém.
Richard deslizou pelas escamas vermelhas, caindo de pé com um baque surdo. Scarlet virou a cabeça e o olhou. Suas orelhas se inclinaram para a frente.
— Tem certeza de que quer que o deixe aqui? — Richard balançou a cabeça, assentindo, olhando para o chão. Scarlet bufou. — Então terminaram os seis dias. Nosso trato terminou. Da próxima vez em que eu o vir, será jogo limpo.
Richard sorriu para ela.
— É justo, minha amiga. Mas não terá essa oportunidade. Hoje eu vou morrer.
Scarlet virou o olho amarelo para ele.
— Tente não deixar que isso aconteça, Richard Cvpher. Eu ainda gostaria de devorar você.
Com um largo sorriso, Richard passou a mão numa escama brilhante.
— Tome conta do seu pequeno dragão quando ele nascer. Eu gostaria de poder ver. Vai ser uma beleza também, eu sei. Sei que você não gosta de levar homens nas costas e só o faz contra sua vontade, mas obrigado por me fazer conhecer a alegria de voar. Considero um privilégio.
— Eu também gosto de levar você. — Soltou um pouco de fumaça, — Você é um homem raro, Richard Cypher. Nunca vi ninguém igual.
— Eu sou o Seeker. O último Seeker.
Ela balançou a cabeça outra vez.
— Cuide-se, Seeker. Você tem o dom. Use. Use tudo que tem para lutar. Não se entregue. Não deixe que ele mande em você. Se tiver de morrer, morra lutando com tudo que tem, tudo que sabe. Como fazem os dragões.
— Se ao menos fosse assim tão fácil... — — Richard ergueu os olhos para o dragão. — Scarlet, antes de a fronteira ruir, você levou Darken Rahl a Westland?
— Muitas vezes.
— Aonde você o levou?
— A uma casa maior do que as outras. Era de pedra branca. Com telhados de ardósia. Uma vez eu o levei a outra casa. Uma casa simples. Ele matou um homem lá. Ouvi os gritos. E, uma outra vez, a outra casa simples.
A casa de Michael. A de seu pai e a sua.
Richard olhou tristemente para os pés.
— Obrigado, Scarlet. — Sentiu um nó na garganta. — Se Darken Rahl tentar dominar você outra vez, espero que seu pequeno dragão esteja seguro e que você possa lutar até a morte. Você é muito nobre para ser dominada.
Com um sorriso de dragão, Scarlet levantou vôo. Richard a viu sobrevoar em círculo, olhando para ele. Então, ela virou a cabeça para o leste. Richard olhou por alguns minutos enquanto Scarlet diminuía de tamanho na distância. Então ele seguiu para o palácio.
Richard olhou para os guardas na entrada, preparado para lutar, mas eles apenas o cumprimentaram com uma inclinação delicada da cabeça. Um convidado voltando. Os vastos salões o acolheram.
Richard sabia a direção geral para o jardim onde Rahl guardava as caixas. Por um longo tempo, não reconheceu os salões, mas logo alguns começaram a parecer familiares. Reconheceu os arcos e as colunas, as praças de oração. Passou pelo corredor onde ficavam os alojamentos de Denna. Não olhou para aquele lado.
Sua mente estava confusa, assoberbada pela decisão que havia tomado. A idéia de que seria ele quem ia entregar a Darken Rahl o poder da Orden era avassaladora. Sabia que com isso salvaria Kahlan de um destino pior e muitos outros da morte, mas mesmo assim se sentia um traidor. Desejava que fosse qualquer outra pessoa, não ele a ajudar Rahl. Contudo ninguém mais podia. Só ele tinha as respostas de que Rahl precisava.
Parou numa praça de orações com um pequeno lago e olhou para os peixes que deslizavam formando círculos na superfície. Lute com tudo que sabe. Scarlet tinha dito. O que ganharia com isso? O que outras pessoas ganhariam? O mesmo fim ou pior. Podia jogar com a própria vida, mas não com a vida de todos. Não com a vida de Kahlan. Estava ali para ajudar Darken Rahl e era isso que devia fazer. Estava decidido.
O sino tocou para a prece. Richard viu as pessoas chegando, inclinando-se com a testa no chão e começando a cantar. Duas Mord-Siths vestidas de couro se aproximaram e olharam para ele ali parado de pé. Não era hora de criar problemas. Richard se ajoelhou, encostou a testa no ladrilho e começou a cantar a oração. Uma vez que tinha resolvido, não precisava mais pensar e Richard esvaziou sua mente.
Mestre Rahl, seja nosso guia. Mestre Rahl, nos ensine. Mestre Rahl, nos proteja. Em sua luz, prosperamos. Em sua misericórdia, nos abrigamos. Em sua sabedoria, nos humilhamos. Vivemos só para servir. Nossas vidas são suas.
Richard cantou sem parar, soltando-se, livrando-se das preocupações. Sua mente se acalmou quando de procurou a paz interior e se fundiu com ela.
Uma idéia o fez parar.
Se ia proclamar sua devoção, devia ser uma que significasse alguma coisa para ele. Mudou as palavras.
— Kahlan, seja minha guia. Kahlan, me ensine. Na sua luz, eu prospero. Na sua misericórdia, eu me abrigo. Na sua sabedoria, me humilho. Vivo só para amá-la. Minha vida é sua.
O choque da compreensão o fez sentar-se nos calcanhares bruscamente, com os olhos arregalados.
Richard soube o que devia fazer.
Zedd tinha dito que a maioria das coisas em que o povo acreditava estava errada. Primeira Regra do Mago. Fora tolo por muito tempo. Por muito tempo ouvira o que os outros diziam. Não mais evitaria a verdade. Um sorriso se espalhou no rosto dele.
Levantou-se. Acreditava de todo o coração. Richard se virou e passou entre as pessoas ajoelhadas, cantando a devoção.
As duas Mord-Siths se levantaram. Uma ao lado da outra, ombro a ombro, puseram-se na frente dele.
— Ninguém pode perder uma devoção. Ninguém.
Richard devolveu os olhares furiosos.
— Eu sou o Seeker — ergueu a mão com o Agiel de Denna —, companheiro de Denna. Eu a matei. Matei com a magia que ela usou para me prender. Acabo de dizer minha última devoção ao Pai Rahl. Seu próximo movimento vai determinar se vão viver ou morrer. Escolham.
Uma sobrancelha se ergueu sobre um frio olho azul. As duas Mord-Siths se entreolharam e saíram da frente dele. Richard seguiu para o Jardim da Vida, para Darken Rahl.
Zedd olhou cautelosamente para os lados da estrada quando subiram a encosta do planalto, tudo ficando mais claro à medida que subiam. Os três saíram da névoa para o sol da manhã. Na frente, uma ponte pênsil começou a ser baixada, as engrenagens rangendo quando a ponte desceu sobre o abismo. Chase soltou na bainha a adaga que trazia no ombro quando viu uma dúzia de soldados esperando no outro lado da ponte. Nenhum deles empunhava arma nem procurou bloquear o caminho, mas os soldados continuaram em posição de descanso, sem demonstrar nenhum interesse.
Kahlan passou por eles ignorando-os. Chase, não, Ele parecia um homem presto a presidir uma carnificina. Os guardas inclinaram a cabeça e sorriram amavelmente.
O guarda da fronteira chegou mais perto de Zedd, sem tirar os olhos dos homens armados.
— Não gosto disso. Está fácil demais.
Zedd sorriu.
— Se Darken Rahl vai nos matar, precisa antes nos levar ao lugar do sacrifício.
Chase olhou para o mago com a testa franzida.
— Isso não faz com que eu me sinta melhor.
Zedd pôs a mão no ombro de Chase.
— Não perde nada de sua honra com isso, meu amigo. Vá para casa, antes que a porta se feche atrás de nós para sempre.
Chase empertigou o corpo.
— Não antes de tudo terminar.
Zedd inclinou a cabeça, assentindo, e apressou o passo para alcançar Kahlan. Quando chegaram ao alto do planalto, encontraram um muro enorme que ia de um lado ao outro. As ameias na parte de cima estavam repletas de homens. Kahlan, sem parar nem diminuir o passo, caminhou para o portão. Com esforço, dois guardas abriram o portão enorme quando ela se aproximou. Kahlan passou pelo portão.
Chase olhou zangado para o capitão da guarda.
— Você deixa qualquer pessoa entrar?
O capitão, surpreso, respondeu: — Ela é esperada. Por Mestre Rahl.
Chase resmungou e entrou atrás dela.
— E nós querendo chegar de surpresa.
— Ninguém pega de surpresa um mago com as habilidades de Darken Rahl.
Chase segurou o braço de Zedd.
— Mago! Darken Rahl é um mago?
Zedd olhou para ele.
— Claro. Como acha que ele pode comandar a magia desse modo? Ele descende de uma longa linhagem de magos.
Chase ficou aborrecido.
— Pensei que os magos só ajudavam as pessoas, não que as dominavam.
Zedd respirou fundo.
— Antes de alguns de nós resolvermos não mais interferir nos assuntos do homem, os magos costumavam governar. Houve uma cisão, a guerra dos magos, como foi chamada. Poucos sobreviveram do outro lado e continuaram com os velhos costumes, tomando o poder, governando o povo. Darken Rahl descende diretamente dessa linhagem — a casa de Rahl. Ele nasceu com o dom. Nem todos nascem. Mas usou só para si mesmo. Darken Rahl é uma pessoa que não suporta o peso da consciência.
Subiram os degraus, Chase em silêncio, passando entre colunas caneladas e por uma abertura circundada por pedras entalhadas com desenhos de trepadeiras e folhas. Entraram nos salões. Chase virava a cabeça para todo lado, atônito com o tamanho, a beleza, o volume soberbo de pedras polidas. Kahlan passou pelo centro do enorme salão sem ver nada, o vestido flutuando fluido atrás dela, o ruído leve dos passos murmurando na cavernosa distância.
Pessoas vestidas de branco passavam pelos corredores. Alguns estavam sentados nos bancos de mármore, outros, ajoelhados nas praças com uma pedra e um sino, meditavam. Todos com o mesmo sorriso perpétuo dos divinamente iludidos, a expressão de paz dos que têm certeza da sua fantasia de compreensão. A verdade era apenas uma névoa móvel para eles, para ser queimada pela luz do raciocínio distorcido. Seguidores, discípulos de Darken Rahl todos eles. A maioria não prestava atenção aos três, limitando-se a um vago inclinar da cabeça.
Zedd viu duas Mord-Siths, ostentando com orgulho sua roupa de couro vermelho, caminhando para eles. Quando viram Kahlan e os desenhos iguais aos dos relâmpagos do Con Dar no rosto dela, empalideceram, viraram rapidamente e desapareceram.
O caminho que seguiram os levou a um cruzamento de corredores enormes, formando um círculo. Janelas com vitrais no centro do teto alto deixavam entrar a luz do sol em faixas coloridas que desciam para a área cavernosa.
Kahlan parou e seus olhos verdes se voltaram para o mago.
— Por onde?
Zedd apontou para um corredor à direita. Kahlan seguiu sem hesitar.
— Como você sabe para onde devemos ir? — Chase perguntou.
— De dois modos. Primeiro, o Palácio do Povo é construído com um padrão que eu conheço, o padrão do encantamento da magia. Todo o palácio é um encantamento gigantesco destinado a proteger e manter Darken Rahl seguro, amplificando seu poder. Um encantamento feito para protegê-lo contra outros magos. Eu quase não tenho poder algum aqui. O centro da magia é chamado Jardim da Vida. Darken Rahl deve estar lá.
Chase pareceu preocupado.
— Qual é o segundo modo?
Zedd hesitou.
— As caixas. Elas estão sem as coberturas protetoras. Eu posso senti-las. Elas estão também no Jardim da Vida. — Alguma coisa estava errada. Zedd sabia como era sentir uma das caixas e a sensação de duas era duas vezes mais forte. Contudo, o que ele sentia agora era três vezes mais forte.
O mago conduziu a Madre Confessora pelos corredores e pelas escadas. Cada corredor, cada nível tinha pedra de cor ou tipo diferente. Em alguns lugares, as colunas se erguiam por vários níveis. Balcões entre elas davam para o salão. As escadarias eram de mármore de cores diferentes. Passaram por estátuas enormes como sentinelas junto das paredes, dos dois lados. Os três andaram por várias horas, dirigindo-se ao centro do Palácio do Povo. Era impossível seguir numa linha reta, não havia nenhuma.
Finalmente chegaram a portas fechadas, com entalhes que representavam uma cena rural toda de ouro. Kahlan parou e olhou para o mago.
— Este é o lugar, minha cara. O Jardim da Vida. As caixas estão ai. Darken Rahl também deve estar.
Kahlan olhou atentamente para ele.
— Obrigada, Zedd, e a você também, Chase.
Kahlan se virou para a porta, mas Zedd pôs a mão no ombro dela e a fez olhar para ele.
— Darken Rahl tem só duas caixas. Ele logo estará morto. Sem a sua ajuda.
Os olhos dela eram fogo gelado entre os relâmpagos no rosto decidido.
— Então não posso perder tempo.
Ela empurrou a porta e entrou no Jardim da Vida.
O perfume das flores os envolveu quando entraram no Jardim da Vida. Zedd percebeu imediatamente que alguma coisa estava errada. Não havia duvida, as três caixas estavam ali. Ele tinha se enganado. Rahl tinha as três. Sentiu outra coisa também, algo fora de lugar, mas, com seu poder diminuído, não podia confiar na sensação. Com Chase logo atrás dele, Zedd caminhou perto de Kahlan pela passagem entre as árvores, passando pelas paredes cobertas de trepadeiras e de flores coloridas. Chegaram ao gramado. Kahlan parou.
No outro lado do gramado havia um círculo de areia branca. Areia de bruxo. Em toda a sua vida, Zedd jamais tinha visto tanta num único lugar. Aquela quantidade de areia valia dez reinos. Pontinhos de luz prismática se refletiram nele. Com temor crescente, Zedd tentou imaginar para que Rahl precisava de tanta areia de feiticeiro, o que ele fazia com ela. Era difícil para Zedd desviar os olhos da atração da areia.
Além da areia, havia um altar de sacrifícios. Sobre ele, as três caixas de Orden. Zedd sentiu como se seu coração tivesse perdido uma batida. As três caixas estavam sem a cobertura protetora. As três eram negras como a meia-noite.
À frente das caixas, de costas para eles, estava Darken Rahl. Zedd ficou furioso quando viu o homem que matara Richard. A luz do sol que entrava pela clarabóia de vitrais destacava a brancura do manto e o ouro do cabelo louro, fazendo-os cintilar. Rahl olhava para as caixas, seu prêmio.
Zedd sentiu o rosto em fogo. Como Rahl tinha encontrado a última caixa? Como a tinha conseguido? Descartou as perguntas, eram irrelevantes. A questão era o que fazer agora. Com as três, Rahl podia abrir uma. Zedd viu Kahlan olhando para Darken Rahl. Se ela pudesse realmente tocá-lo com seu poder, estariam salvos, mas Zedd duvidava de que ela tivesse o poder necessário. Naquele lugar, especialmente naquela sala, Zedd sentiu que seu poder era praticamente inútil. O lugar todo era uma magia gigantesca contra qualquer mago que não fosse Rahl. Se Darken Rahl tinha de ser detido, Kahlan era a única que podia fazer isso. Ele sentiu a Raiva de Sangue emanando dela, a fúria escaldante.
Kahlan atravessou o gramado. Zedd e Chase a seguiram, mas, quando tinham quase alcançado a areia no outro lado, Rahl se virou para eles e pôs a mão no peito do mago.
— Vocês dois esperem aqui.
Zedd sentiu a fúria nos olhos dela e compreendeu, porque também a sentia. Ele também sentia a dor de ter perdido Richard.
Quando Zedd ergueu a cabeça, estava olhando nos olhos azuis de Darken Rahl. Ficaram assim por um momento. Rahl olhou então para Kahlan, que dava a volta no círculo de areia, perfeitamente calma.
Chase murmurou para Zedd:
— O que vamos fazer se não der certo?
— Vamos morrer.
As esperanças de Zedd renasceram quando viu o alarme no rosto de Darken Rahl. Alarme e medo quando viu Kahlan pintada com o Con Dar. Zedd sorriu. Darken Rahl não esperava por isso e pareceu assustado.
O alarme se transformou em ação. Quando Kahlan se aproximou, Darken Rahl rapidamente desembainhou a Espada da Verdade. A lâmina sibilou no ar e ficou branca. Ele a segurou com o braço estendido, detendo Kahlan com a ponta.
Estavam muito perto, não podiam mais ser detidos. Zedd teve de ajudá-la a usar a única coisa que podia salvá-los. Reunindo rodas as suas forças, que não eram tantas quanto queria, Zedd lançou um relâmpago por cima do círculo de areia. Usou todo o seu poder nisso. O relâmpago azul se chocou contra a espada e a tirou das mãos de Darken Rahl. A espada voou no ar e caiu longe de todos. Darken Rahl gritou alguma coisa para Zedd, depois se voltou para Kahlan, falando com ela, mas nenhum dos dois pôde entender o que ele dizia.
Darken Rahl recuou quando Kahlan avançou para ele. Bateu com as costas no altar e não era mais possível recuar. Passou os dedos no cabelo quando Kahlan parou à frente dele.
O sorriso de Zedd desapareceu. Alguma coisa estava errada. O modo com que Rahl passou a mão no cabelo despertou sua memória.
A Madre Confessora estendeu o braço e segurou o pescoço de Darken Rahl.
— Isto é por Richard.
Zedd arregalou os olhos. Sentiu o sangue gelar. Compreendeu o que estava errado.
Aquele não era Darken Rahl.
Zedd gritou.
— Kahlan, não! Pare! Esse é...
Ouviram o impacto no ar, o trovão sem som. As folhas das árvores estremeceram. A relva ondulou, voltando-se para fora.
— ...Richard. — Tarde demais, o mago percebeu. A dor tomou conta dele.
— Senhora — murmurou ele, caindo de joelhos na frente dela.
Zedd ficou paralisado. O desespero esmagou a alegria de ver Richard vivo. Uma porta coberta por trepadeiras se abriu. O verdadeiro Darken Rahl apareceu, acompanhado por Michael e dois guardas enormes. Kahlan piscou os olhos, confusa.
A teia inimiga estremeceu e, no brilho da luz fraca, o que era Darken Rahl voltou a ser quem era realmente: Richard.
Horrorizada, Kahlan recuou. O poder do Con Dar vacilou e desapareceu. Kahlan gritou, angustiada com o que acabava de fazer.
Os dois guardas ficaram atrás dela. Chase estendeu a mão para a espada. Foi imobilizado antes que sua mão a alcançasse, Zedd ergueu as mãos mas não havia mais poder algum. Nada aconteceu. Ele correu para eles, mas antes que pudesse dar dois passos, colidiu contra a parede invisível. Estava preso nela, como numa cela de pedra. Ficou furioso com a própria estupidez.
Vendo o que tinha feito, Kahlan tirou a faca do cinto de um dos guardas. Com um grito de angústia, ela a segurou com as duas mãos, para se matar.
Michael a segurou por trás, tirou a faca a encostou no pescoço dela. Richard se lançou com fúria contra o irmão, mas chocou-se contra uma parede invisível. Kahlan tinha gasto roda a energia no Con Dar e escava fraca demais para resistir. Tudo que podia fazer era chorar. Um dos guardas a amordaçou para evitar que sequer murmurasse o nome de Richard.
Richard, de joelhos, caiu contra Darken Rahl, segurando o manto dele, e implorou:
— Não faça mal a ela! Por favor! Não a machuque!
Darken Rahl pôs a mão no ombro dele.
— Estou contente por você ter voltado, Richard. Achei que voltaria. Estou feliz por ter decidido me ajudar. Admiro sua dedicação aos seus amigos.
Zedd ficou perplexo. Que ajuda Richard podia dar a Darken Rahl?
— Por favor — pediu Richard, chorando —, não faça mal a ela.
— Muito bem, isso agora depende inteiramente de você. — Tirou as mãos de Richard do seu manto.
— Qualquer coisa. Eu faço qualquer coisa. Mas não a machuque.
Darken Rahl sorriu. Molhou com a língua as pontas dos dedos. Passou a outra mão na cabeça de Richard.
— Sinto que tenha de ser deste modo, Richard. Sinto de verdade. Seria um prazer ter você por perto como era antes. Embora você não perceba, nós dois somos muito parecidos. Mas temo que você tenha sido vítima da Primeira Regra do Mago.
— Não faça mal à Senhora Kahlan — exclamou Richard —, por favor!
— Se você fizer o que eu mandar, cumprirei o que prometi e ela será bem tratada. Talvez eu até o transforme em alguma coisa agradável, alguma coisa que você queira ser, talvez um cãozinho de colo. Posso até deixar que durma no nosso quarto para ver que cumpri minha palavra. Talvez até dê seu nome ao meu filho, por você ter me ajudado. Gostaria disso? Richard Rahl. Um tanto irônico, não acha?
— Faça o que quiser comigo mas, por favor, não machuque a Senhora Kahlan. Diga o que quer que eu faça, por favor.
Darken Rahl bateu de leve na cabeça de Richard.
— Logo, meu filho, logo. Espere aqui.
Darken Rahl deixou Richard de joelhos e deu a volta no círculo de areia, aproximando-se de Zedd. Os olhos azuis fixaram-se nos do velho homem. Zedd se sentiu completamente vazio.
Rahl parou à frente dele e molhou os dedos com a língua, passando-os na sobrancelha.
— Qual o seu nome, velho?
Zedd olhou para ele, sem mais nenhuma esperança.
— Zeddicus Zu’l Zorander. — Levantou o queixo. — Fui eu quem matou seu pai.
Darken Rahl inclinou a cabeça, assentindo.
— E sabe que seu fogo de mago também me queimou? Sabe que quase me matou quando eu era ainda criança? E que passei meses em agonia? E que até hoje tenho cicatrizes por causa do que você fez, tanto externas quanto internas?
— Lamento ter ferido uma criança, não importa qual. Mas, nesse caso, eu diria que foi uma punição prematura.
A expressão de Rahl continuou agradável, com a sugestão de um sorriso.
— Vamos passar um longo tempo juntos, você e eu. Vou lhe ensinar a dor que passei e muito mais. Você saberá como é.
Havia amargura nos olhos de Zedd.
— Nenhuma dor pode se igualar a que já me fez sentir.
Darken Rahl molhou as pontas dos dedos e deu as costas a Zedd.
— Veremos.
Zedd indefeso e frustrado, viu Darken Rahl parar outra vez na frente de Richard.
— Richard! — gritou ele. — Não o ajude! Kahlan prefere morrer a ver você ajudar Darken Rahl!
Richard olhou inexpressivamente para o mago antes de erguer os olhos para Darken Rahl.
— Faço qualquer coisa, se você não a machucar.
Darken Rahl fez sinal para Richard se levantar.
— Tem minha palavra, meu filho. Se fizer o que eu quero. — Richard assentiu com a cabeça. — Recite o Livro das Sombras Contadas.
Zedd estremeceu, Richard se voltou para Kahlan.
— O que devo fazer, senhora?
Kahlan lutava contra Michael, contra a faca no seu pescoço, seus gritos abafados pela mordaça.
A voz de Rahl era calma e suave.
— Recite o Livro das Sombras Contadas, Richard, ou Michael começará a cortar os dedos dela, um a um. Quanto mais tempo você ficar em silêncio, mais dedos ele cortará.
Richard em pânico, olhou para Rahl.
— A verificação da verdade das palavras do Livro das Sombras Contadas, quando ditas por outra pessoa e não lidas por aquele que comanda as caixas, só pode ser garantida pelo uso de uma Confessora.
Zedd desabou no chão. Não podia acreditar no que estava acontecendo. Ouvindo Richard recitar o livro, sabia que era verdade, reconheceu a sintaxe exclusiva de um livro de magia. Richard não podia estar inventando. Era o Livro das Sombras Contadas. Zedd não tinha forças para sequer imaginar como Richard sabia.
O mundo que eles conheciam estava no fim. Era o primeiro dia do governo de Rahl. Tudo estava perdido. Darken Rahl era vitorioso. O mundo lhe pertencia.
Zedd ouvia, atordoado. Algumas das palavras eram mágicas e só quem tivesse o dom podia guardá-las na memória, a magia apagaria todo o resto quando certas palavras fossem pronunciadas. Proteção contra circunstâncias inesperadas. Proteção contra qualquer pessoa que conseguisse se apossar da magia do livro. O fato de Richard poder citar era prova de que ele nascera com o dom. Nascera da e para a magia. Por mais que Richard detestasse magia, ele era mágico, como as profecias prediziam.
Zedd lamentou as coisas que tinha feito. Lamentou tentar proteger Richard das forças que procurariam usá-lo se soubessem quem ele era. Os que nasciam com o dom eram sempre vulneráveis quando jovens. Darken Rahl era prova disso. Zedd deliberadamente tinha resolvido não ensinar a Richard, para evitar que aquelas forças soubessem quem ele era. Zedd sempre teve medo de que Richard tivesse o dom, mas esperava que ele crescesse antes que o dom se manifestasse e então Zedd teria tempo de lhe ensinar, quando tivesse idade suficiente. E antes que as forças pudessem matá-lo. Um esforço inútil, que não tinha levado a um bom fim. Zedd sempre soube que Richard tinha o dom, que era uma pessoa especial. Todos que conheciam Richard sabiam que ele era especial. Raro. A marca da magia.
Zedd chorou, lembrando o tempo passado com Richard. Foram bons anos. Os melhores da sua vida. Os anos longe da magia. Ter alguém que o amava sem medo e só por ele mesmo. Ter um amigo.
Richard recitou o livro sem hesitar, sem nenhum erro. Zedd se admirou por ele lembrar com tanta perfeição e surpreendeu-se sentindo orgulho, mas logo desejou que Richard não fosse tão talentoso. Grande parte do que ele recitou foi sobre coisas já feitas, como remover a cobertura das caixas, mas Darken Rahl não o deteve nem apressou, com medo de perder alguma coisa. Deixou Richard recitar no próprio tempo, ouvindo atentamente, em silêncio. Ocasionalmente Rahl o fazia repetir uma parte, para ter certeza, e ouvia absorto a descrição dos ângulos do sol, das nuvens, dos padrões dos ventos.
A tarde passou e Richard continuou recitando, Rahl à frente dele, ouvindo, Michael com a faca no pescoço de Kahlan, os dois guardas segurando os braços dela. Chase paralisado, a mão erguida para a espada e Zedd sentado no chão, condenado, na sua prisão invisível. Zedd percebeu que a abertura das caixas ia demorar mais do que tinha pensado. Levaria a noite toda. Encantamentos precisavam ser desenhados. Por isso Darken Rahl precisava de tanta areia de feiticeiro. As caixas deviam ser dispostas de modo que o primeiro raio de sol do inverno as tocasse, determinando sua posição de acordo com a sombra que desenhavam.
Cada caixa, embora as três parecessem iguais, desenhava uma sombra diferente. À medida que o sol descia no céu, os dedos das sombras se estendiam de cada caixa. Uma delas lançava um único dedo de sombra, outra lançava dois e a terceira três. Agora ele sabia por que se chamava o Livro das sombras contadas.
Em determinadas partes do livro, Darken Rahl fazia Richard parar enquanto encantamentos eram desenhados na areia de feiticeiro. Alguns deles tinham nomes que Zedd nunca tinha ouvido. Mas Rahl, sim. Ele desenhava sem hesitar. Quando a noite chegou, ele acendeu archotes em volta da areia. A luz dos archotes, desenhava os encantamentos à medida que eram citados. Todos ficaram em silêncio, vendo Rahl desenhar cuidadosamente na areia. Zedd ficou impressionado com a habilidade dele para desenhar os encantamentos e mais do que um pouco preocupado vendo runas do mundo subterrâneo.
Os desenhos geométricos eram complexos e Zedd sabia que deviam ser feitos sem erro e na ordem certa, cada linha desenhada no momento exato, na seqüência exata. Não podiam ser corrigidos nem apagados ou recomeçados, se houvesse erro. Um engano significava morte.
Zedd conhecia magos que passavam anos estudando um encantamento antes de tentar desenhá-lo na areia do feiticeiro, temendo cometer um erro fatal Darken Rahl não parecia ter o menor problema. Sua mão firme movia-se com precisão. Zedd jamais rinha visto um mago com tanto talento. Pelo menos, pensou amargamente, seriam mortos pelo melhor. Não pôde deixar de admirar o nível de domínio do assunto. Era o maior nível de proficiência que jamais tinha visto.
Tudo aquilo tinha como único fim dizer qual a caixa que Rahl queria. Ele podia abrir uma de cada vez, o livro dizia. Zedd sabia, por outros livros de instruções, que todo aquele esforço era uma precaução contra o uso fácil da magia. Ninguém ia simplesmente decidir que era mestre do mundo e aprender isso num livro de magia. Por mais que soubesse, Zedd não tinha o conhecimento necessário para seguir as instruções. Darken Rahl tinha estudado para aquele momento durante quase toda a vida. Provavelmente o pai começara a instruí-lo quando ele era jovem. Zedd desejou que Darken Rahl tivesse morrido também no fogo do mago que matou seu pai. Pensou nisso por um momento e depois descartou o pensamento.
De madrugada, os encantamentos já desenhados, as caixas foram postas sobre eles. Cada caixa, identificada pelo número de sombras que lançava, era posta sobre determinado desenho. Encantamentos eram lançados. Quando os raios do sol do segundo dia de inverno iluminaram a pedra, as caixas foram levadas para o altar outra vez. Admirado, Zedd viu que a caixa que na véspera lançara certo número de sombras, agora lançava um número diferente — outra precaução. Conforme mandava o livro, as caixas foram dispostas outra vez, a que lançava só uma sombra à esquerda, a que lançava duas no centro e a que lançava três à direita.
Darken Rahl olhou atentamente para as três caixas.
— Continue.
Sem hesitar, Richard continuou:
— Uma vez dispostas desse modo, Orden está pronta para ser comandada. Enquanto uma sombra é insuficiente para adquirir o poder de manter a vida do jogador e três mais do que pode ser tolerado por qualquer tipo de vida, alcança-se o equilíbrio abrindo a caixa das duas sombras; uma sombra para você e uma para o mundo que será seu para comandar pelo poder de Orden. Um mundo sob um comando é marcado pela caixa com as duas sombras. Abra essa caixa para ganhar sua recompensa.
Darken Rahl virou lentamente o rosto para Richard.
— Continue.
Richard piscou os olhos.
— Faça sua escolha. Este é o fim.
— Deve haver mais.
— Não. Mestre Rahl. Faça sua escolha. É o fim, são as últimas palavras.
Rahl agarrou Richard pelo pescoço.
— Você decorou tudo? O livro todo?
— Sim, Mestre Rahl.
Rahl ficou rubro.
— Não pode estar certo! Não é a caixa certa! A caixa com as duas sombras é a que me matará! Eu já disse, isso eu sei! Aprendi qual delas me matará.
— Eu disse cada palavra verdadeira. Cada palavra.
Darken Rahl largou o pescoço dele.
— Não acredito. — Olhou para Michael. — Corte a garganta dela.
Richard gritou e caiu de joelhos.
— Por favor! O senhor me deu sua palavra! Disse que se eu recitasse o livro não faria mal a ela! Por favor! Eu disse a verdade!
Rahl levantou a mão detendo Michael, sem tirar os olhos de Richard.
— Não acredito em você. Se não me disser a verdade agora mesmo, eu a corto pelo meio. Mato sua senhora!
— Não! — gritou Richard. — Eu disse a verdade! Não posso dizer nada diferente. Seria uma mentira!
— Ultima chance, Richard. Diga a verdade ou ela morre.
— Não posso dizer nada diferente — exclamou Richard. — Qualquer coisa diferente seria uma mentira. Tudo que eu disse é verdade.
Zedd se levantou. Olhou para a faca no pescoço de Kahlan, para os grandes olhos verdes; olhou para Darken Rahl. Evidentemente Rahl tinha, conseguido uma parte das informações de outra fonte que não o Livro das sombras contadas e essas informações eram diferentes das contidas no livro, o que não era incomum. Certamente Darken Rahl devia saber disso. Quando havia um conflito, as informações no livro de instruções para aquela magia específica devia sempre ter precedência. Fazer o contrário era sempre fatal. Era uma salvaguarda para proteger a magia. Zedd esperava, sem esperança, que a arrogância de Rahl o fizesse agir contra o livro.
O sorriso voltou aos lábios de Darken Rahl. Molhou as pontas dos dedos com a língua e passou nas sobrancelhas.
— Muito bem, Richard. Eu precisava ter certeza de que você estava dizendo a verdade.
— Eu estava mesmo, juro pela vida da Senhora Kahlan. Cada palavra que eu disse é a verdade.
Rahl fez um sinal para Michael, que desencostou a faca do pescoço de Kahlan. Ela fechou os olhos e as lagrimas lhe desceram no rosto. Rahl se voltou para as caixas, com um longo suspiro.
— Finalmente — murmurou ele. — A magia de Orden é minha.
Zedd não conseguiu ver, mas sabia que Darken Rahl acabava de levantar a tampa da caixa do meio com as duas sombras, por causa da luz que saiu dela. Luz dourada subiu no ar e, como se fosse um grande peso, pousou sobre Mestre Rahl, envolvendo-o no brilho dourado. Ele se virou para os outros, sorrindo. A luz acompanhou seu movimento. Ele se ergueu no ar, o bastante para tirar os pés do chão, e flutuou para o centro da areia do feiticeiro, com os braços estendidos, a luz começando a girar lentamente em volta dele. Voltou-se para Richard.
— Muito obrigado, meu filho, por ter voltado, por ajudar o Pai Rahl. Você será recompensado, como prometi. Você me entregou o que me pertence. Eu posso sentir. É maravilhoso. Posso sentir o poder.
Richard, de pé, com o rosto inexpressivo, olhou para ele. Zedd se sentou no chão outra vez. O que Richard tinha feito? Como pôde? Como pôde dar a Rahl a magia de Orden? Permitir que ele governasse o mundo? Fora tocado por uma Confessora, foi isso, não era culpa dele, não podia controlar. Tudo estava acabado. Zedd o perdoava,
Se tivesse o poder, Zedd teria criado o Fogo da Vida do Mago e posto sua vida nele. Mas ali não tinha poder, nenhum poder na presença de Mestre Rahl. Sentiu-se muito cansado, muito velho. Sabia que não teria chance de ficar muito mais velho. Darken Rahl se encarregaria disso. Mas não era por si mesmo que lamentava — era por todos os outros.
Banhado pela luz dourada, Darken Rahl se ergueu a alguns centímetros do solo, acima da areia do feiticeiro, com um sorriso satisfeito, os olhos azuis cintilando. Sua cabeça se inclinou para trás extasiada, fechou os olhos, o cabelo louro se afastando do rosto. Centelhas de luz giraram em volta dele.
A areia branca ficou dourada, cada vez mais escura, até ficar marrom. A luz que envolvia Darken Rahl ficou ambarina. Ele abaixou a cabeça, abriu os olhos e o sorriso desapareceu.
A areia de feiticeiro ficou negra. O chão tremeu.
Richard sorriu. Ele se adiantou e apanhou a Espada da Verdade; a ira da magia inundou seus olhos cinzentos. Zedd ficou de pé. A luz em volta de Darken Rahl era agora marrom-escura. Ele arregalou os olhos azuis.
Um rugido lamentoso subiu do solo. A areia negra sob os pés de Rahl se abriu. Luz violeta subiu da abertura, envolvendo-o. Darken Rahl se contorceu dentro dela. Gritando.
Richard arfava, imóvel, observando.
A prisão invisível em volta de Zedd se partiu. A mão de Chase bruscamente completou o gesto de pegar a espada e a desembainhou, correndo para Kahlan. Os dois guardas soltaram os braços dela e foram ao encontro dele.
Michael empalideceu. Chocado, viu Chase derrubar um dos homens com um golpe da espada. Kahlan deu uma cotovelada na barriga de Michael e lhe arrancou a faca da mão. Desarmado, Michael olhou em volta virando a cabeça rapidamente, os olhos apavorados, e correu para uma passagem entre as árvores.
Chase e o segundo guarda caíram no chão, os dois rosnando com fúria letal, cada um procurando ganhar vantagem. O guarda gritou. Chase ficou de pé. O guarda continuo no chão. Olhou para Darken Rahl e correu atrás de Michael. Zedd viu rapidamente o vestido de Kahlan quando ela desapareceu em outra direção.
Zedd e Richard ficaram parados, como que enfeitiçados, olhando para Darken Rahl que lutava, preso nas garras da magia de Orden. Luz violeta e sombras escuras o seguravam no ar, acima do buraco negro.
— Richard! — gritou Rahl. — O que você fez?
O Seeker se aproximou do círculo de areia negra.
— Ora, só o que você pediu, Mestre Rahl — disse ele inocentemente.—Eu disse o que você queria ouvir.
— Mas era verdade! Você disse as palavras verdadeiras!
Richard inclinou a cabeça, assentindo.
— Sim, eu disse, só não disse todas. Deixei de dizer quase todo o parágrafo no fim. Tenha cuidado. O efeito das caixas é fluido. Muda de acordo com a intenção. Para ser Mestre de tudo, para poder ajudar os outros, mude uma caixa para a direita. Para ser Mestre de tudo, para que todos lhe obedeçam, mude uma caixa para a esquerda. Faça sua escolha. Sua informação estava certa: a caixa com duas sombras era a que o mataria.
— Mas você tinha de fazer o que eu mandei! Você foi tocado pelo poder de uma Confessora!
Richard sorriu.
— Fui mesmo? Primeira Regra do Mago. É a primeira porque é a mais importante. Você devia estar mais bem protegido contra ela. Esse é o preço da arrogância. Eu aceito minha vulnerabilidade, você não.
“Não gostei das escolhas que você me apresentou. Eu não poderia ganhar com suas regras, por isso fiz outras. O livro dizia que você tinha de conferir a verdade usando uma Confessora. Você só pensou que tinha feito isso. Primeira Regra do Mago. Você acreditou porque queria acreditar. Eu o venci.”
— Não pode ser! Não é possível! Como você podia saber como fazer isso?
— Você me ensinou: nada, incluindo a magia, é unidimensional. Veja o todo, você disse; nada que existe tem só um lado. Olhe para o todo. — Richard balançou a cabeça lentamente. — Você nunca devia ter me ensinado uma coisa que não queria que eu soubesse. Quando me ensinam uma coisa, ela é minha, para ser usada. Obrigado, Pai Rahl, por me ensinar a coisa mais importante que jamais vou aprender — como amar Kahlan.
O rosto de Darken Rahl se contraiu de dor. Ele riu e gritou.
Richard olhou em volta.
— Onde está Kahlan?
Zedd apontou um dedo comprido.
— Eu a vi sair por ali.
Richard embainhou a espada e olhou para a figura presa nas sombras e na luz.
— Adeus, Pai Rahl. Espero que morra sem que eu precise ver.
— Richard! — berrou Rahl, vendo o Seeker se afastar. — Richard!
Zedd ficou sozinho com Darken Rahl. Olhou para os dedos transparentes de fumaça entrelaçados em volta do manto branco, prendendo os braços de Rahl dos dois lados do corpo. Zedd chegou mais perto, os olhos azuis se voltaram para o velho mago.
— Zeddicus Zul Zorander, você venceu grande parte, mas não todo.
— Você continua arrogante até o fim?
Rahl sorriu.
— Diga-me quem é ele.
Zedd deu de ombros.
— O Seeker.
Rahl riu, lutando contra a dor. Os olhos azuis se voltaram outra vez para Zedd.
— Ele é seu filho, não é? Pelo menos fui vencido pelo sangue de um mago. Você é o pai dele.
Zedd balançou a cabeça, com um sorriso triste.
— Ele é meu neto.
— Está mentindo! Por que pôr uma teia em volta dele, para esconder a identidade do pai, se não é você?
— Teci a teia porque não queria que ele soubesse quem foi o desgraçado de olhos azuis que violentou sua mãe e lhe deu a vida.
Darken Rahl arregalou os olhos.
— Sua filha foi morta. Meu pai me disse.
— Um pequeno truque, para que ela ficasse a salvo. — O rosto de Zedd se anuviou. — Embora sem saber quem ela era, você a magoou. Sem intenção, também deu felicidade a ela. Você deu Richard a ela.
— Sou o pai dele? — murmurou Rahl.
— Quando você violentou minha filha, eu sabia que não podia fazer nada contra você e meu primeiro pensamento foi consolá-la e protegê-la, por isso a levei para Westland. Ela conheceu um jovem viúvo com um filho pequeno. George Cypher era um ho-mem bondoso. Fiquei orgulhoso de ter George como marido de minha filha. Ele amava Richard como se fosse seu filho, mas sabia a verdade, exceto a meu respeito, sobre quem eu era. Isso foi ocultado pela teia.
“Eu podia odiar Richard pelos crimes do pai, mas preferi amá-lo por ele mesmo. Ele cresceu como um homem e tanto, você não acha? Você foi derrotado pelo herdeiro que tanto queria. Um herdeiro nascido com o dom. Isso é raro. Richard é o verdadeiro Seeker. Do sangue dos Rahl, ele tem a raiva, a capacidade para a violência. Mas isso é compensado pelo sangue dos Zorander, com a capacidade de amar, compreender e perdoar.”
Darken Rahl estremeceu nas sombras da magia de Orden. Contorceu-se de dor quando ficou transparente como fumaça.
— Imagine as linhagens Zorander e Rahl unidas. Mas ele ainda é meu herdeiro. De certo modo — falou de com esforço —, eu venci.
Zedd balançou a cabeça.
— Você perdeu, de muitos modos.
Vapor, fumaça, sombras e luz giravam, rugindo. O solo tremeu violentamente. A areia do feiticeiro, agora negra como carvão, foi sugada pelo vórtice. Rodou sobre o abismo; os som do mundo da vida e do mundo subterrâneo confundiram-se com um uivo terrível.
A voz de Darken Rahl chegou oca, vazia, morta.
— Leia as profecias, velho. As coisas podem não ser ainda tão definitivas como você pensa. Eu sou um agente.
Um ponto de luz cegante se acendeu no centro da massa que girava. Zedd protegeu os olhos. Raios de luz branca, quente, subiram no ar, saíram pelas janelas lá no alto, para o céu e para baixo, para a escuridão do abismo. Ouviu-se um grito estridente. O ar estremeceu com o calor, com a luz e com o som. Um flash circundou tudo de luz branca e então se fez silêncio.
Cautelosamente, Zedd tirou as mãos dos olhos. Tudo tinha desaparecido. O sol de inverno aquecia o chão onde momentos antes estava o abismo negro. A areia do feiticeiro desapareceu. O circulo de terra que ela cobria estava fechado. A ruptura entre os dois mundos se fechou. Pelo menos, Zedd esperava que tivesse se fechado.
O mago sentiu o poder voltar ao seu corpo. Os que tinham desenhado o feitiço, contra ele tinham desaparecido. O efeito se foi com eles.
De pé, na frente do altar, estendeu os braços para a luz do sol e fechou os olhos. — Eu retiro as teias. Sou quem eu era antes, Zeddicus Zu’l Zorander, Mago da Primeira Ordem. Que todos saibam mais uma vez. E o resto também.
O povo de D’Hara era ligado à casa de Rahl, uma ligação forjada em magia havia muito tempo por aqueles que governariam, uma ligação que acorrentava o povo de D’Hara à casa de Rahl e a casa de Rahl ao povo. Com as teias removidas, essa ligação com o dom seria sentida por muitos e isso faria com que todos soubessem que Richard era agora Mestre Rahl.
Zedd teria de contar a Richard que Darken Rahl era seu pai, mas não nesse dia. Primeiro precisava encontrar as palavras certas. Havia muita coisa para contar, mas não nesse dia.
Richard a encontrou ajoelhada na frente de um lago, na praça deserta de orações. A mordaça estava ainda em volta do seu pescoço. Kahlan chorava, o cabelo longo cascateando sobre os ombros, o corpo inclinado para a frente, a faca nas mãos, a ponta encostada no peito. Seus ombros estremeciam com os soluços. Richard parou perto das pregas do vestido branco.
— Não faça isso — murmurou ele.
— Devo fazer. Eu amo você — gemeu Kahlan, desolada. — Eu toquei você com meu poder. Prefiro morrer a ser sua dona. E o único modo de libertá-lo. — Ela estremeceu com um soluço. — Quero que você me beije e depois me deixe sozinha. Não quero que veja.
— Não.
Kahlan ergueu os olhos para ele.
— O que você disse? — murmurou ela.
Richard pôs as mãos na cintura.
— Eu disse não. Não vou beijar você com essa coisa idiota pintada no seu rosto. Quase me matou de medo.
Os olhos verdes estavam incrédulos.
— Você não pode me negar coisa alguma, depois de ter sido tocado com meu poder.
Richard se agachou perto dela. Desamarrou a mordaça. — Bem, você me mandou beijá-la — molhou a mordaça na água do lago—e eu disse que não vou fazer isso com essa coisa pintada no seu rosto. — Ele começou a limpar os relâmpagos. — Então, acho que a única solução é nos livrarmos dela.
Kahlan ficou imóvel enquanto ele limpava seu rosto. Richard terminou e olhou para os grandes olhos verdes. Jogou fora a mordaça e se ajoelhou na frente dela, abraçando sua cintura.
— Richard, toquei você com a magia. Eu senti. Eu ouvi. Eu vi. Como o poder não o dominou?
— Porque estou protegido.
— Protegido? Como?
— Por meu amor por você. Compreendi que amo você mais do que a própria vida e que preferia me entregar ao seu poder a viver sem você. Nada que a magia pudesse fazer comigo podia ser pior do que viver sem você. Eu estava disposto a dar tudo a você. Ofereci ao poder tudo que tenho. Todo o meu amor por você. Quando percebi o quanto a amava, estava disposto a ser seu de qualquer modo e compreendi que a magia não podia fazer mal a coisa alguma. Já sou devotado a você, não preciso da magia para isso. Eu estava protegido porque já tinha sido tocado por seu amor. Tinha certeza absoluta de que você sentia o mesmo e não temia o que podia acontecer. Se eu tivesse dúvida, a magia teria entrado por essa fenda e me dominado, mas eu não tinha dúvidas. Meu amor por você é harmonioso e definitivo. Meu amor por você me protegeu da magia.
Com seu sorriso especial, Kahlan disse: — Você se sentia assim? Não rinha dúvida?
Richard sorriu também.
— Bem, por um momento, quando vi aqueles relâmpagos no seu rosto, tenho de admitir que fiquei preocupado. Eu não sabia o que eram, o que significavam. Desembainhei a espada, tentando ganhar tempo para pensar. Mas então percebi que não importava, você era Kahlan e eu a amava. Eu queria que você me tocasse mais do que tudo, para provar meu amor e minha devoção, mas tive de fingir para Darken Rahl.
— Esses símbolos significam que eu também dei tudo a você — murmurou ela.
Kahlan passou os braços em volta do pescoço dele e o beijou, os dois ajoelhados no chão de ladrilhos, à frente do pequeno lago da devoção, muito junto um do outro. Richard a beijou suavemente nos lábios, como tinha sonhado milhares de vezes. Ele a beijou até ficar tonto e então beijou mais ainda, sem se importar com o espanto das pessoas que passavam.
Richard não tinha idéia de quanto tempo ficaram ali ajoelhados, abraçados, mas finalmente resolveu que era melhor procurar Zedd. Com o braço dela em volta da sua cintura, a cabeça encostada nele, voltaram para o Jardim da Vida, beijando-se outra vez antes de entrar.
Zedd estava com uma das mãos na cintura, passando a outra no queixo, examinando o altar e o que havia atrás dele. Kahlan ajoelhou-se na frente dele, segurou as mãos do mago e as beijou.
— Zedd, ele me ama! Ele descobriu um modo de fazer com que dê certo com a magia. Havia um modo e ele descobriu.
Zedd olhou para ela com a testa franzida.
— Bem, demorou um bocado...
Kahlan se levantou.
— Você também sabia?
Zedd ficou indignado com a pergunta.
— Sou um Mago da Primeira Ordem. É claro que sabia.
— E nunca nos disse?
Zedd sorriu.
— Se eu tivesse contado, minha cara, não teria funcionado. O conhecimento prévio teria provocado alguma dúvida. Isso significaria fracasso. Para ser o verdadeiro amor de uma Confessora, o compromisso deve ser total, deve ir além da magia. Sem a disposição de se entregar completamente a você, a despeito de conhecer as conseqüências, não funcionaria.
— Você parece conhecer muito o assunto — disse Kahlan, intrigada. — Nunca ouvi falar nisso. Com que freqüência acontece?
Zedd coçou o queixo pensando, olhando para a janela no alto.
— Bem, só aconteceu uma vez antes, que eu saiba. — Olhou para os dois. — Mas não podem contar a ninguém, como eu não podia contar a vocês. Por maior que seja o sofrimento que pode causar, quaisquer que sejam as conseqüências, nunca podem dizer nada. Se uma só pessoa souber, isso pode ser passado adiante, destruindo para sempre as chances de outras pessoas. É uma das ironias da magia. Você tem de aceitar o fracasso antes de ter sucesso. É também um dos ônus da magia; você precisa aceitar os resultados, mesmo a morte de outros, para proteger a esperança do futuro. Egoísmo custa as vidas, as chances dos que ainda não nasceram.
— Eu prometo — disse Kahlan.
— Eu também — confirmou Richard. — Zedd, acabou? Quero dizer, Darken Rahl está morto?
Zedd olhou Richard com uma expressão inesperadamente embaraçada.
— Darken Rahl está morto. — Zedd pôs a mão magra no ombro de Richard e o apertou com força. — Você entendeu tudo muito bem, Richard. Quase me matou de medo. Nunca vi um desempenho igual.
Richard sorriu orgulhoso.
— Só um pequeno truque.
Zedd inclinou a cabeça assentindo, o cabelo voando para todos os lados.
— Foi mais do que um truque, meu rapaz. E mais do que pequeno.
Todos se voltaram quando ouviram que alguém se aproximava. Chase entrou arrastando Michael pela nuca. A sujeira na camisa e na calça brancas diziam que ele não estava ali voluntariamente. Chase o empurrou para a frente de Richard.
Richard ficou muito sério quando viu o irmão. Os olhos desafiadores de Michael se ergueram para ele.
— Não vou ser tratado deste modo, irmãozinho. — Seu tom era mais condescendente do que nunca. — Você não sabe com o que interferiu, o que eu tentava fazer, como eu teria ajudado a todos, unindo Westland a D’Hara. Você condenou o povo a um sofrimento desnecessário, que Darken Rahl podia ter evitado. Você é um tolo.
Richard pensou em tudo que tinha passado, em tudo que Zedd, Chase e Kahlan tinham passado. Pensou em todos que tinham morrido nas mãos de Rahl e no número incontável de mortos dos quais jamais saberia. No sofrimento, na crueldade, na brutalidade. Pensou em todos os tiranos aos quais fora permitido prosperar sob Darken Rahl, desde o próprio Darken Rahl até a princesa Violeta. Pensou naqueles que matara. Sentiu e lamentou todas as coisas que tivera de fazer.
O canto metálico da Espada da Verdade encheu o ar. Michael arregalou os olhos quando a ponta da lâmina lhe tocou o pescoço.
Richard se inclinou para o irmão.
— Faça a saudação do perdedor, Michael.
O rosto de Michael ficou rubro.
— Prefiro morrer.
Richard endireitou o corpo. Olhou para os olhos do irmão e afastou a espada. Controlou a raiva, tentou fazer a espada ficar branca. Não aconteceu. Ele a embainhou.
— Fico satisfeito por ver que temos uma coisa em comum, Michael. Nós dois estamos dispostos a morrer por aquilo em que acreditamos. — Olhou para a machadinha de guerra que pendia do cinto de Chase. Depois olhou para o rosto carrancudo do guar-da da fronteira. — Execute-o — murmurou ele. — Leve a cabeça dele para sua guarda pessoal. Diga que ele foi executado por minha ordem, por trair Westland. Westland terá de encontrar outro Primeiro Conselheiro.
Chase agarrou Michael pelos cabelos. Michael gritou e caiu de joelhos, fazendo a saudação do perdedor.
— Richard! Por favor! Eu sou seu irmão! Não faça isso! Não deixe que ele me mate! Peço desculpas, peço perdão. Eu estava errado. Por favor, Richard, perdoe-me.
Richard olhou para o irmão de joelhos na sua frente, de mãos postas, implorando. Segurou o Agiel, sentindo a dor que ele provocava, suportando, lembrando, visualizando mentalmente a tortura.
— Darken Rahl contou a você o que ia fazer comigo. Você sabia. Sabia o que ia acontecer comigo e não se importou, porque significava vantagem para você. Michael, perdôo tudo que você fez contra mim.
Michael respirou, aliviado. O Seeker se empertigou.
— Mas não posso perdoar o que você fez aos outros. Outros tiveram soas vidas arruinadas por causa das coisas que você fez. É por esses crimes que será executado, não pelos que cometeu contra mim.
Michael gritou e chorou quando Chase o arrastou pata fora da sala. Sofrendo, trêmulo, Richard viu o irmão ser levado para a execução.
Zedd pôs a mão sobre a de Richard, que segurava o Agiel.
— Largue isso, Richard.
Os pensamentos de Richard disfarçaram a dor do Agiel. Olhou para Zedd de pé à sua frente com a mão magra e nodosa sobre a sua, viu nos olhos do amigo coisas que jamais tinha visto, uma compreensão compartilhada da dor. Ele soltou o Agiel.
Kahlan olhou para o instrumento de tortura quando de caiu no peito dele.
— Richard, você precisa guardar isto?
— Por enquanto preciso. Prometi a alguém que eu matei. Alguém que me ajudou a aprender o quanto eu amo você. Darken Rahl pensou que isso me derrotaria. Em vez disso, ensinou-me a derrotá-lo. Se eu me desfizer disto agora, estarei negando o que há dentro de mim, o que eu sou.
Kahlan pôs a mão no braço dele.
— Neste momento, eu não compreendo, mas espero compreender algum dia.
Richard olhou para o Jardim da Vida, pensando na morte de Darken Rahl e na morte do seu pai. Tinha feito justiça. Lamentou por um momento quando se lembrou do pai, mas a dor se desfez quando compreendeu que tinha executado a tarefa que seu pai determinara. Seu pai podia descansar em paz. Zedd ajeitou o manto e bufou.
— Maldição! Um lugar como este deve ter alguma coisa para comer, não acha?
Richard sorriu e, com um braço em volta do ombro de Zedd e outro no ombro de Kahlan, levou-os para fora do Jardim da Vida, para um refeitório do qual se lembrava. As pessoas se sentaram às mesas como se nada tivesse mudado. Os três encontraram uma mesa no canto. Criados serviram pratos de arroz, legumes, pão preto, queijo e sopa. Surpresos, mas sorridentes vendo a rapidez com que Zedd esvaziou os pratos, eles serviram mais.
Richard experimentou o queijo e, surpreso, achou o sabor enjoativo. Jogou-o na mesa, com uma careta.
— Qual é o problema? — perguntou Zedd.
— Este deve ser o pior queijo que já comi!
Zedd cheirou e deu uma mordida no queijo.
— Nada de errado com o queijo, meu rapaz.
— Ótimo, então coma.
Zedd concordou, satisfeito. Sorrindo, Richard e Kahlan tomaram sopa com pão preto, vendo o amigo comer. Quando finalmente ele terminou, continuaram a jornada para fora do Palácio do Povo.
Quando passaram pelos corredores, os sinos, com uma longa badalada, chamaram para a oração. Intrigada, Kahlan viu todos reunidos nas praças, ajoelhados com a testa no chão, cantando. Desde que mudara as palavras da sua prece, Richard não sentia mais a necessidade de se juntar ao povo. Passaram por várias praças, todas repletas de gente que cantava. Richard se perguntou se devia fazer alguma coisa, parar com a prece, mas resolveu que já tinha feito a parte mais importante.
Saíram dos corredores cavernosos para a luz do sol de inverno, para os degraus da encosta, para o vasto pátio. Pararam e Richard ficou surpreso ao ver tanta gente reunida.
Milhares de homens se enfileiravam. À frente, na base dos degraus, estava a guarda pessoal de Michael, conhecida como Guarda Doméstica, antes de Michael mudar o nome. As cotas de malha, os escudos e as flâmulas amarelas cintilavam á luz do sol. Arras deles, estavam quase mil homens do exército de Westland. Chase estava à frente, com os braços cruzados, olhando para os degraus. Ao lado dele, enfiada no chão, estava uma vara longa com a cabeça de Michael espetada. Richard ficou perplexo com o silêncio. Se um homem lá atrás, a mais de meio quilômetro de distância, tivesse um acesso de tosse, ele ouviria.
Com a mão nas suas costas, Zedd o fez começar a descer os degraus. A impressão de Richard foi estar sendo empurrado. Kahlan segurou seu braço, apertou-o de leve e os dois desceram. Chase olhou nos olhos de Richard quando ele se aproximou. Richard viu Rachel segurando numa perna dele com uma das mãos, com a outra segurando Sara. Siddin compartilhava a mão que segurava Sara. Quando viu Kahlan, ele soltou a mão de Rachel e correu para ela. Kahlan, rindo, tomou-o nos braços. Ele sorriu para Richard e falou alguma coisa que ele não entendeu, antes de abraçar o pescoço de Kahlan. Depois de murmurar no ouvido dele, ela o pôs no chão e segurou sua mão.
O capitão da Guarda Doméstica se adiantou.
— A Guarda Doméstica está pronta para empenhar sua lealdade a você, Richard. O comandante do exército de Westland deu um passo à frente e ficou ao lado do capitão.
— Assim como o exército de Westland.
Foi a vez de um oficial de D’Hara se adiantar.
— Bem como as forças de D’Hara.
Richard olhou para eles inexpressivamente e sentiu a raiva crescer dentro dele.
— Ninguém vai jurar lealdade a ninguém, muito menos a mim! Sou um guia florestal. Nada mais. Ponham isso na cabeça desde agora. Um guia florestal!
Richard olhou para o oceano de cabeças. Todos os olhos estavam nele. Olhou para a cabeça decepada de Michael, espetada na vara. Fechou os olhos por um momento, depois se voltou para alguns homens da Guarda Doméstica e apontou para a cabeça do irmão.
— Enterrem isso com o resto dele. — Ninguém se moveu. — Agora!
Os homens correram para a cabeça. Richard olhou para o oficial de D’Hara à sua frente. Todos esperaram.
— Avise a todos que as hostilidades cessaram. A guerra acabou. Providencie para que todas as forças sejam mandadas para casa, todos os exércitos de ocupação retirados. Espero que todos aqueles que cometeram crimes contra pessoas indefesas, seja soldado de infantaria ou general, sejam levados a julgamento e, se declarados culpados, punidos de acordo com a lei. As forças de D’Hara devem ajudar a providenciar comida para que o povo não morra de fome durante o inverno. O fogo não é mais ilegal. Se alguma das forças se recusar a obedecer a essas ordens, vocês devem resolver a questão. — Richard apontou para o comandante do exército de Westland. — Reúna suas forcas e o ajude. Juntos, será mais difícil serem ignorados. — Os dois oficiais olharam para ele, espantados. Richard se inclinou para eles. — Nada será feito se não começarem agora.
Os dois homens o saudaram, levando a mão fechada ao peito e curvando-se.
O oficial de D’Hara olhou para Richard ainda com a mão fechada no peito.
— Suas ordens serão cumpridas, Mestre Rahl.
Richard olhou para ele surpreso, depois deixou passar. O homem, pensou ele, estava acostumado a dizer Mestre Rahl.
Richard reconheceu um guarda. Era o capitão que estava no portão quando ele saiu do Palácio do Povo. O que lhe tinha oferecido um cavalo e avisado sobre o dragão. Richard fez sinal para ele se adiantar. O homem obedeceu e ficou na posição de sentido, parecendo um pouco preocupado.
— Tenho um trabalho para você. — O homem esperou em silêncio. — Acho que você é bom nisso. Quero que reúna todas as Mord-Siths. Todas.
— Sim, senhor. — Ele empalideceu. — Serão executadas antes do pôr-do-sol.
— Não! Não quero que sejam executadas!
O homem ficou confuso.
— Então, o que devo fazer?
— Deve destruir todos os Agiéis. Todos eles. Nunca mais quero ver um Agiel. — Segurou o que tinha pendurado no pescoço. — Exceto este. Depois vai arranjar novas roupas para elas. Queime todas as que elas usam agora. Elas devem ser tratadas com res-peito e bondade.
O homem arregalou os olhos.
— Bondade — murmurou ele — e respeito?
— Foi o que eu disse. Providencie para elas empregos em que possam ajudar o povo. Devem aprender a tratar as pessoas do mesmo modo com que são tratadas: com bondade e respeito. Não sei como você vai fazer isso. Terá de inventar um meio. Você parece um homem inteligente. Está bem?
O homem franziu a testa.
— E se elas se recusarem a mudar?
Richard olhou carrancudo para o homem.
— Diga que, se preferirem continuar nesse caminho, em vez de tomar outro, então vão encontrar o Seeker com a espada branca.
O guarda sorriu, saudou-o com a mão sobre o coração e se curvou elegantemente. Zedd se aproximou de Richard.
— Richard, o Agiel é mágico, não pode ser simplesmente destruído.
— Então ajude-o, Zedd. Ajude o comandante a destruí-los, trancá-los em algum lugar ou coisa assim. Está bem? Não quero nunca mais ser torturado por um Agiel.
Zedd sorriu e inclinou a cabeça, assentindo.
— Será um prazer ajudar nisso, meu rapaz. — Hesitou, passando o dedo no queixo — Richard, você acha que isso vai dar cerco, enviar as forças para casa e mandar o exercito de Westland ajudá-los?
— Provavelmente não. Mas não se pode prever nada com sua Primeira Regra; isso servirá para ganhar tempo até que todos estejam em casa e você possa levantar a fronteira outra vez. Então estaremos a salvo novamente. E terminaremos com a magia.
Um rugido soou no céu. Richard olhou para cima e viu Scarlet voando em círculos. O dragão vermelho mergulhou numa espiral no ar frio. Homens recuaram, gritando e espalharam quando viram que ela ia pousar na base dos degraus. Scarlet desceu na frente de Richard, Kahlan, Zedd, Chase e das duas crianças.
— Richard! Richard! — chamou Scarlet, pulando de um pé para o outro, as asas abertas, estremecendo de satisfação. A cabeça vermelha enorme virou para ele. — Meu ovo chocou! É um belo dragãozinho, como você disse que seria! Quero que você o veja! Ele é muito forte. Aposto que em um mês estará voando. — Scarlet de repente notou todos aqueles homens. Olhou em volta, examinando-os. Os olhos grandes e amarelos piscaram e ela se virou outra vez para Richard. — Algum problema por aqui? Precisamos de um pouco de fogo de dragão?
— Não — disse Richard. — Tudo está ótimo.
— Muito bem, então suba que eu o levo para ver meu pequenino.
Richard passou o braço pela cintura de Kahlan.
— Se você levar Kahlan também, terei prazer em ir.
Scarlet olhou Kahlan de cima a baixo.
— Se ela está com você, é bem-vinda.
— Richard — disse Kahlan —, e Siddin? Weselan e Savidlin devem estar preocupados. — Olhou nos olhos dele e murmurou. — E temos um assunto inacabado na casa dos espíritos. Acredito que lá deve haver certa maçã que precisamos terminar de comer. — Sorriu e apertou a cintura dele com o braço. O sorriso o fez prender a respiração.
Com dificuldade, Richard desviou os olhos para Scarlet.
— Este pequenino foi roubado do Povo da Lama quando você levou Darken Rahl ao povoado deles. Sua mãe deve estar tão ansiosa para vê-lo quanto você estava ansiosa para recuperar o ovo. Depois de vermos o dragãozinho, pode nos levar até lá?
O grande olho amarelo se voltou para Siddin.
— Bem, creio que posso compreender a preocupação da mãe dele. Subam.
Zedd se adiantou com as mãos na cintura e disse, incrédulo:
— Você vai deixar um homem subir nas suas costas? Um dragão vermelho? Vai levá-lo aonde ele quer ir?
Scarlet bufou fumaça no mago, obrigando-o a recuar.
— Um homem qualquer, não. Este é o Seeker. Ele manda em mim. Eu o levaria ao mundo subterrâneo e o traria de volta, se ele quisesse.
Richard segurou nos esporões e subiu nos ombros de Scarlet quando da abaixou o corpo. Kahlan deu Siddin a ele. Richard o pôs no colo e segurou a mão de Kahlan quando ela passou a perna para cima de Scarlet, atrás dele. Segurou na cintura de Richard, as mãos no peito dele, a cabeça no ombro, apertando de leve.
Richard se inclinou um pouco para Zedd.
— Tenha cuidado, meu amigo — sorriu. — O Homem Pássaro ficará feliz em saber que finalmente resolvi tomar por esposa uma mulher do seu povo. Onde posso encontrar você?
Zedd levantou o braço fino e bateu de leve no tornozelo de Richard.
— Estarei em Aydindril. Venha me ver quando estiver pronto.
Richard olhou para ele quase ameaçadoramente.
— E então teremos uma conversa. Uma longa conversa.
Zedd sorriu.
— Sim, espero que sim.
Richard sorriu para Rachel, acenou para Chase e bateu numa escama de Scarlet.
— Para o céu, minha amiga vermelha!
Scarlet soltou um rugido de fogo quando levantou vôo. Os sonhos e a alegria de Richard alçaram vôo com ela.
Zedd ficou olhando o dragão diminuir de tamanho no céu e guardou suas preocupações para si mesmo. Chase passou a mão na cabeça de Rachel, depois cruzou os braços e ergueu uma sobrancelha para Zedd.
— Para um guia florestal, ele dá um montão de ordens...
Zedd riu.
— Tem razão.
Um homenzinho calvo desceu correndo os degraus da encosta, com a mão levantada.
— Mago Zorander! Mago Zorander! — Finalmente parou ofegante na frente deles. — Mago Zorander!
— O que é? — perguntou Zedd, intrigado.
O homem procurou retomar o fôlego.
— Mago Zorander, temos problemas.
— Que problemas? E quem é você?
Ele se aproximou conspiratoriamente e disse em voz baixa: — Sou o chefe do pessoal da cripta. Temos problemas. — Olhou em volta. — Problemas na cripta.
— Que cripta?
O homem ficou surpreso com a pergunta.
— Ora, a cripta de Panis Rahl, o avô do Mestre Rahl, é claro. Zedd franziu a testa.
— E qual é o problema?
O chefe do pessoal encostou nervosamente um dedo nos lábios.
— Eu não vi pessoalmente, Mago Zorander, mas meu pessoal nunca mente. Nunca. Eles me contaram e jamais mentiriam.
— Mas o que é? — gritou Zedd. — Qual é o problema?
Ele olhou em volta outra vez e disse em voz muito baixa: — As paredes, Mago Zorander. As paredes.
Zedd rilhou os dentes.
— O que há com elas?
Ele olhou arregalado para o mago.
— Estão derretendo, Mago Zorander. As paredes da cripta estão derretendo. Zedd olhou zangado para o homem.
— Maldição! Você tem a pedra branca à mão? Pedra branca da pedreira dos profetas?
O homem balançou vigorosamente a cabeça.
— É claro.
Zedd tirou do manto uma pequena bolsa.
— Feche a entrada da tumba com a pedra branca da pedreira dos profetas.
— Fechar a cripta? — perguntou ele, surpreso.
— Sim. Sele a entrada. Do contrário todo o palácio derreterá. — Entregou a pequena bolsa ao homem, — Misture este pó mágico na argamassa. Isso deve ser feito antes do pôr-do-sol, compreendeu? Vedada antes do pôr-do-sol.
O homem tirou a bolsa das mãos de Zedd e voltou correndo, subindo os degraus o mais depressa que lhe permitiam suas pernas curtas. Outro homem mais alto, com as mãos enfiadas nos punhos do manto branco, desceu os degraus e passou por ele. Chase olhou para Zedd e cutucou o peito dele com um dedo.
— Panis Rahl, avô do Mestre Rahl?
Zedd pigarreou.
— Sim, bem, precisamos conversar.
O homem de manto branco se aproximou.
— Mago Zorander, Mestre Rahl está por aqui? Precisamos discutir um assunto.
Zedd olhou para o dragão que desaparecia no céu.
— Mestre Rahl estará ausente por alguns dias.
— Mas vai voltar?
— Sim. — Zedd olhou para o homem. — Sim, ele vai voltar. Você terá de se arranjar até sua volta.
O homem deu de ombros.
— Estamos acostumados com isso aqui no Palácio do Povo, esperar a volta de Mestre Rahl. — Deu alguns passos, mas Zedd o chamou:
— Estou com fome. Há algum lugar por aqui onde possa encontrar algo para comer?
O homem sorriu e estendeu o braço para a entrada do Palácio.
— É claro, Mago Zorander. Permita-me levá-lo a um refeitório,
— E você, Chase, não quer almoçar antes da minha viagem?
O guarda da fronteira olhou para Rachel.
— Almoço? — Ela sorriu e balançou a cabeça afirmativamente. — Está bem, Zedd. E para onde você vai?
Zedd ajeitou o manto.
— Vou ver Adie.
Chase ergueu uma sobrancelha.
— Para um pouco de descanso e lazer? — sorriu ele.
Zedd sorriu também.
— Isso mesmo, e também porque preciso levá-la a Aydindril, para a Fortaleza do Mago. Temos muita coisa para ler.
— Por que quer levar Adie para Aydindril para ler na Fortaleza do Mago?
Zedd olhou de soslaio para o guarda da fronteira.
— Porque ela sabe mais sobre o mundo subterrâneo do que qualquer outra pessoa viva.
Terry Goodkind
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