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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PRIMEIRA VISTA / Nicholas Sparks
A PRIMEIRA VISTA / Nicholas Sparks

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PRIMEIRA VISTA

 

Até que ponto nos conhecemos a nós próprios e àqueles que amamos? Jeremy Marsh nunca teria imaginado que alguma vez viesse a deixar Nova Iorque, a sua família e os seus amigos para mudar-se para Boone Creek, uma pequena vila do Sul dos Estados Unidos com a qual o leitor estará familiarizado se percorreu avidamente as páginas do último romance de Nicholas Sparks, Quem Ama Acredita. Mas se Jeremy aprendeu algo durante o curto espaço de tempo passado nesta localidade do estado da Carolina do Norte é que há coisas para as quais não é possível encontrar uma explicação lógica e racional. Como estar a alguns meses de se tornar pai, quando a própria ciência inviabilizava esta opção. Ou como estar a ainda menos meses de casar com Lexie, apesar de a ter conhecido há tão pouco tempo. Para estas duas pessoas que ainda lutam para se adaptarem uma à outra, tamanhas mudanças vão constituir uma fonte de crescentes tensões, às quais se vai juntar o bloqueio de escrita que Jeremy começa a sofrer e que o impedirá de trabalhar, capazes de pôr à prova os sentimentos que ambos nutrem pelo outro. Quando simultaneamente Jeremy recebe uns misteriosos e-mails que sugerem que ele não conhece Lexie tão bem como deveria e que ela lhe anda a ocultar aspectos da sua vida, sente-se vacilar como um barco à deriva. Será ela aquilo que parece à primeira vista? Mas o verdadeiro desafio à fé no amor de ambos ainda está para vir... Um livro de grande impacto emocional sobre confiança, novos começos e um amor infinito que constantemente redefine o nosso modo de encarar a vida e de ultrapassar os obstáculos que esta nos reserva.

 

Fevereiro de 2005

O amor à primeira vista será realmente possível?

Sentado na sala de estar, deu consigo a pensar na resposta pela centésima vez, segundo lhe pareceu. Lá fora, o sol de Inverno há muito tinha desaparecido. A cortina de nevoeiro acinzentado era visível através da janela e, para além do toque suave de um ramo na vidraça, o silêncio era absoluto. Não estava só e resolveu levantar-se do sofá e percorreu o corredor para a espreitar. Ao olhá-la, pensou deitar-se a seu lado, mesmo que fosse apenas uma desculpa para poder fechar os olhos. O descanso seria bem-vindo, mas ainda não podia arriscar-se a adormecer. Em vez disso, enquanto deixava a mente deslizar para o passado, ficou a vê-la mudar ligeiramente de posição. Pensou uma vez mais no caminho que os tinha juntado. Quem era ele nessa altura? E quem era ele agora? Aparentemente, as respostas eram fáceis. Chamava-se Jeremy, tinha quarenta e dois anos de idade, era filho de pai irlandês e mãe italiana, e vivia dos trabalhos que publicava numa revista. Quando interrogado, eram aquelas as respostas que poderia fornecer. Embora fossem verdadeiras, era frequente perguntar a si próprio se não haveria mais nada a acrescentar. Deveria, por exemplo, mencionar o facto de, cinco anos antes, se ter deslocado ao estado de Carolina do Norte para investigar um mistério? E que se tinha apaixonado graças a essa viagem, não uma mas duas vezes no mesmo ano? Ou que a beleza daquelas recordações estava entrelaçada em tristeza e que, ainda agora, se interrogava sobre quais as memórias que perdurariam?

Afastou-se da porta do quarto e regressou à sala. Embora não se preocupasse com aqueles acontecimentos há muito tempo, também não podia esquecê-los. Tentar erradicar aquele capítulo da sua vida era como querer mudar a sua data de nascimento. Mesmo que houvesse alturas em que desejava poder fazer o tempo andar para trás para se desfazer de toda a tristeza, pressentia que, se o fizesse, a alegria também diminuiria na mesma proporção. E isso era uma hipótese que ele não conseguia contemplar.

Muitas vezes, nas horas de maior negrume da noite, acontecia-lhe recordar aquela noite passada com Lexie no cemitério, a noite em que tinha avistado as luzes fantasmagóricas, cuja investigação o trouxera de Nova Iorque até ali. Mas aquela fora também a noite em que se apercebera, pela primeira vez, daquilo que Lexie significava para ele. Enquanto esperavam, imersos na escuridão do cemitério, Lexie contara-lhe parte da sua vida. Explicara-lhe as circunstâncias em que, ainda de tenra idade, tinha ficado órfã. Jeremy já ouvira a história, mas desconhecia que ela começara a ter pesadelos alguns anos depois de os pais terem morrido. Pesadelos terríveis e repetidos, em que assistia à morte dos pais. Não sabendo o que fazer, Doris, a avó, resolvera finalmente levá-la ao cemitério, para que ela visse as luzes misteriosas. Para uma menina pequena as luzes eram miraculosas, celestiais, e Lexie logo viu nelas os espíritos dos pais. Era, de certo modo, algo em que ela precisava acreditar, mas os pesadelos não voltaram a incomodá-la.

Jeremy sentira-se afectado pela história, comovido pela perda que ela sofrera e com a força da sua fé inocente. Porém, na mesma noite mas mais tarde, perguntara a Lexie o que pensava que as luzes poderiam ser. Ela inclinara-se para a frente e sussurrara: "Foram os meus pais. É provável que quisessem conhecê-lo. "

Fora a primeira vez que sentira o desejo de a abraçar. Desde há muito que pensava ter sido naquele instante que se apaixonou, pois a partir dali nunca mais deixou de a amar.

No exterior, estava novamente a levantar-se um vento próprio de Fevereiro, não se enxergava nada para lá da janela; Jeremy voltou a deitar-se no sofá, sentindo a força dos acontecimentos daquele ano a puxarem-no para o passado. Podia fazer um esforço para afastar as imagens, mas deixou-se ficar de olhos postos no tecto e permitiu-lhes avançar. Como sempre acontecia.

A história, tal como ele costumava recordá-la, é narrada nas páginas que se seguem.

 

Cinco anos antes Nova Iorque, 2000

- Simples, como vês - explicava Alvin. - Primeiro, conheces uma rapariga simpática e namoras durante algum tempo, o suficiente para ambos se convencerem de que aceitam os mesmos valores, para ver se ambos são compatíveis e estão prontos para tomarem a grande decisão: "a vida é nossa e queremos vivê-la juntos". Para decidir, por exemplo, qual das famílias irão visitar nas férias, se querem viver numa vivenda ou num apartamento, se preferem um cão ou um gato, quem, pela manhã, toma duche em primeiro lugar, quando ainda há água quente em abundância. Depois disto, se ainda estiverem basicamente de acordo, casam-se. Concordas comigo, até aqui?

- Sim, concordo contigo.

Era uma tarde de sábado, em Fevereiro; Jeremy Marsh e Alvin Bernstein estavam de pé, no apartamento de Upper West Side onde o primeiro morava. Afadigavam-se há horas a embalar coisas em caixas espalhadas por todos os cantos. Algumas, já cheias, tinham sido empilhadas junto à porta, prontas a serem levadas para o furgão de transporte; havia outras em diversas fases de enchimento. No conjunto, parecia que um urso-formigueiro da Tasmânia entrara pela porta dentro e fizera uma festa, para depois sair, quando já não havia mais nada para destruir. Jeremy nem queria acreditar que tivesse juntado tantas inutilidades ao longo dos anos, um pormenor para que a namorada, Lexie Darnell, passara toda a manhã a chamar-lhe a atenção. Havia vinte minutos, depois de a frustração a fazer baixar os braços, Lexie tinha saído para ir almoçar com a mãe de Jeremy, deixando os dois amigos sozinhos pela primeira vez naquele dia.

- Então, que raio é que pensas que estás a fazer? - insistiu Alvin.

- Apenas aquilo que tu disseste.

- Não, isso é que não estás. Estás a baralhar a ordem das coisas. Estás a caminhar direitinho para o "Sim" definitivo, ainda antes de perceberes se cada um foi feito para o outro. Mal conheces a Lexie.

Jeremy enfiou as roupas que enchiam uma gaveta numa caixa, a desejar que Alvin mudasse de assunto. - Eu conheço-a.

Alvin começou a juntar uns papéis que estavam sobre a secretária do amigo, fez um molho com eles e enfiou-os na mesma caixa que Jeremy estava a encher. Sendo o melhor amigo dele, sentia-se à vontade para dizer tudo o que pensava.

- Só estou a tentar ser franco e deverias saber que só digo o que toda a tua família tem andado a pensar nas últimas semanas. Na minha opinião, não a conheces o suficiente para te mudares para lá e muito menos para te casares com ela. Só passaste uma semana com ela. Não é igual ao que se passou contigo e com a Maria - acrescentou, referindo-se à ex-mulher do amigo. - Se bem te recordas, eu conhecia a Maria bastante melhor do que tu conheces a Lexie, mas nunca pensei que a conhecia suficientemente bem para casar com ela.

Jeremy retirou os papéis da caixa e voltou a pô-los em cima da secretária, a recordar-se de que Alvin conhecera Maria antes dele e continuava a ser amigo dela. - E então?

- E então? O que aconteceria se trocássemos os papéis? Se eu viesse ter contigo a dizer que tinha conhecido uma mulher fantástica, que ia abandonar a minha carreira para ir morar no Sul e casar com ela? Se ela fosse aquela rapariga... como é que se chama... a Rachel?

Rachel trabalhava no restaurante da avó de Lexie. Alvin tinha-a conhecido durante uma curta visita a Boone Creek e chegara a convidá-la para ir visitá-lo a Nova Iorque.

- Eu diria que estava muito satisfeito por ti.

- Por amor de Deus. Já te esqueceste do que me disseste quando pensei em casar com a Eva?

- Lembro-me. Mas esta situação é diferente.

- Ai é? Estou a perceber. Julgas-te mais ponderado que eu.

- Isso e o facto de a Eva não ser exactamente o tipo de mulher com quem se casa.

Alvin teve de admitir que era verdade. Lexie era bibliotecária numa terra pequena do Sul rural, alguém que esperava assentar, enquanto Eva fazia tatuagens artísticas em Jersey City. Fora ela quem desenhara a maior parte das tatuagens que ele ostentava nos braços, para não falar da maioria dos piercings que trazia nas orelhas, um conjunto que dava a Alvin o aspecto de quem acabara de cumprir pena de prisão. Nada disso incomodara Alvin; quem ditara o fim da relação fora o namorado que Eva tinha em casa e cuja existência ela se esquecera de mencionar.

- Até a Maria pensa que isto é uma loucura.

- Contaste-lhe?

- É claro que lhe contei. Falamos de tudo.

- Fico satisfeito por te saber tão amigo da minha ex-mulher. Mas ela não tem nada a ver com isto. Nem tu.

- Só pretendo que demonstres algum bom senso. Tudo está a acontecer com demasiada rapidez. Tu não conheces a Lexie.

- Por que continuas a insistir nessa ideia?

- Vou continuar a insistir até que acabes por admitir que, no fundo, tu e ela são dois estranhos.

Alvin, tal como acontecia com os cinco irmãos mais velhos de Jeremy, nunca aprendera a deixar cair um assunto. O homem parecia um cão às voltas com um osso, pensou Jeremy.

- Ela não é uma estranha.

- Não? Qual é o segundo nome dela?

- O quê?

- Tu ouviste. Diz-me qual é o segundo nome da Lexie. Jeremy vacilou. - Mas o que é que isso tem a ver com o resto?

- Nada. Todavia, se estás pronto para casar com ela, não achas que devias saber responder à pergunta?

Jeremy abriu a boca para responder, mas apercebeu-se de que Lexie nunca lhe dissera o nome completo, nem ele alguma vez lho perguntara. Alvin, a julgar que finalmente conseguira abalar as certezas do amigo, acentuou a pressão.

- Muito bem, o que me dizes de uns quantos pormenores básicos? Qual é a licenciatura dela? Quem foram os seus amigos na faculdade? Qual é a cor que prefere? Gosta de pão branco ou de pão de mistura? Qual é o seu filme preferido, ou o programa de televisão que mais lhe agrada? Qual o seu escritor favorito? Sabes a idade exacta dela?

- Está na casa dos trinta - alvitrou Jeremy.

- Na casa dos trinta? Isso até eu te podia ter dito.

- Estou quase certo de que tem trinta e um.

- Estás quase certo? Não consegues perceber o ridículo das tuas próprias respostas? Não podes casar com uma mulher de quem nem sabes a idade.

Jeremy abriu outra gaveta e despejou o conteúdo numa caixa vazia, pois reconheceu que Alvin tinha razão, mas sem querer admitir tal coisa. Em vez de responder, soltou um longo suspiro.

- Julguei que tinhas ficado satisfeito por eu ter finalmente encontrado alguém - comentou.

- Fiquei satisfeito por ti. Mas nunca me passou pela cabeça que decidisses deixar Nova Iorque para casar com ela. Pensei que tinhas dito isso por brincadeira. Sabes que a considero uma mulher fantástica. Sem dúvida que é; e se dentro de um ou dois anos continuares a alimentar esses sentimentos sérios acerca dela, eu próprio te arrastarei até ao altar. Mas estás a apressar as coisas, sem qualquer razão.

Jeremy voltou-se para a janela; para lá do vidro viu os tijolos cinzentos cobertos de fuligem que emolduravam as janelas rectangulares, funcionais, de um prédio vizinho. Algumas imagens vagas passaram-lhe de relance: uma senhora que falava ao telefone; um homem, com uma toalha à volta do tronco, a dirigir-se para a casa de banho; outra mulher a passar a ferro, ao mesmo tempo que via televisão. Durante todo o tempo que ali vivera, nunca dissera mais do que um simples "bom dia" a qualquer daquelas pessoas.

- A Lexie está grávida - acabou por informar.

Por momentos, Alvin pareceu não ter percebido bem. Só depois de ver a expressão séria do amigo é que se convenceu de que Jeremy não estava a brincar.

- Está grávida?

- É uma menina.

Alvin deixou-se cair na cama, como se, subitamente, tivesse ficado sem força nas pernas. - Por que é que não me disseste?

Jeremy encolheu os ombros. - Ela pediu-me que não falasse do assunto, por enquanto. Vais manter o segredo, não vais?

Alvin parecia atarantado. - Sim. Claro.

- E há ainda outra coisa.

Ergueu os olhos quando Jeremy lhe apertou os ombros, para ouvir o amigo dizer: - Gostava que fosses meu padrinho.

Como é que tinha acontecido?

No dia seguinte, enquanto percorria o centro comercial FAO Schwarz na companhia de Lexie, continuava sem resposta para aquela pergunta. Não era a gravidez que estava em causa; essa era a consequência de uma noite que provavelmente recordaria para sempre. Apesar da atitude de valentia que exibira perante Alvin, por vezes parecia-lhe que estava prestes a entrar numa comédia romântica, tão do agrado das multidões, em que tudo era possível e nada estava

assegurado até ao cair do pano.

Afinal, tinha passado por situações pouco habituais. De facto, quase se poderia dizer que eram praticamente inéditas. Quem é que resolve dar-se ao trabalho de se deslocar a uma povoação rural a fim de escrever um artigo para a revista Sáentific American, em seguida conhece a bibliotecária da terra e, em poucos dias, apaixona-se por ela? Quem é que decide pôr para trás das costas a oportunidade de ter um programa da manhã na televisão e a vida em Nova Iorque para ir morar em Boone Creek, Carolina do Norte, uma terra que é apenas um ponto quase invisível no mapa? Ultimamente tinha muitas perguntas.

Não que pessoalmente tivesse muitas dúvidas sobre o que se preparava para fazer. Na verdade, enquanto observava Lexie a remexer em montes de GI Joes e Barbies - queria fazer surpresas aos numerosos sobrinhos e sobrinhas dele, na esperança de causar boa impressão -, sentiu que a sua determinação era mais forte do que nunca. Sorriu, já a visualizar o género de vida que o esperava. Os jantares sossegados, os passeios românticos, os sorrisos e as carícias em frente do televisor. Nada mau, coisas que davam sabor à vida. Não era tão ingénuo que acreditasse que não haveria discussões e zangas, mas não tinha dúvidas de que poderia navegar com êxito esses mares encapelados, acabando por se convencer de que ele e Lexie formariam um casal perfeito. A visão geral era a de uma vida maravilhosa.

Porém, depois de Lexie lhe dar uma ligeira cotovelada, Jeremy deu consigo a observar outro casal que estava em frente de uma pilha de animais de peluche. Na realidade, aquele casal nunca conseguiria passar despercebido. Ambos no início da casa dos trinta e muito bem vestidos; ele tinha aspecto de ser especialista em investimentos bancários ou advogado, enquanto a mulher parecia uma daquelas pessoas capazes de passar a tarde inteira no Bloomingdale's. Carregavam meia dúzia de sacos provenientes de meia dúzia de lojas diferentes. O diamante que a senhora tinha no dedo era do tamanho de um dado, muito maior que o anel de noivado que ele tinha acabado de comprar para oferecer a Lexie. Ao observá-los, Jeremy não teve dúvidas de que aquele casal costumava vir às compras acompanhado de uma ama, pois ambos pareciam completamente desnorteados e sem ideia do que deveriam fazer.

O bebé que levavam no carrinho chorava, soltava aquele género de gritos lancinantes capazes de fazer descolar o papel de parede e de obrigar os presentes no centro comercial a imobilizarem-se. Ao mesmo tempo, o irmão mais velho, que teria uns quatro anos, gritava ainda mais alto e, subitamente, atirou-se para o chão. Os pais entraram em pânico, com aquelas expressões de espanto dos soldados debaixo de fogo e era impossível não reparar nos papos das pálpebras inferiores e na palidez translúcida das faces deles. Apesar da fachada impecável, era evidente que haviam atingido o limite da resistência. Finalmente, a mãe libertou o bebé do carrinho e apertou-o contra o peito, ao mesmo tempo que o marido se debruçava para ela e dava palmadinhas no rabo da filha.

- Não vês que estou a tentar acalmá-la? - rosnou a mãe. - Ocupa-te do Elliot!

Penalizado, o homem debruçou-se na direcção do filho, que dava pontapés e punhadas no chão, provocando esgares de cólera na mãe.

- Pára imediatamente com os gritos! - ordenou o pai com voz severa e a apontar-lhe o indicador.

"Pois, pois", pensou Jeremy. "É isso mesmo que ele vai fazer."

Entretanto, a retorcer-se no chão, Elliot começava a ficar congestionado.

Nesta altura, até Lexie abandonara a busca de brinquedos e voltara a atenção para o casal. Para Jeremy, era como observar uma mulher de biquini a aparar o relvado em frente à casa, o género de espectáculo que ninguém consegue ignorar. O bebé chorava, Elliot berrava, a mulher gritava ao marido que fizesse qualquer coisa, o pai respondia-lhe também aos gritos, a dizer que estava a tentar.

Juntara-se uma pequena multidão à volta da família infeliz. As mulheres pareciam observá-la com uma mistura de alívio e compaixão: alívio por não estarem naquela situação, mas sabendo - na maioria dos casos por experiência própria - aquilo que o jovem casal estava a sofrer. Os homens, por sua vez, pareciam não desejar mais do que afastarem-se para o mais longe possível da cena.

Elliot batia com a cabeça no chão e berrava ainda com mais força.

- Vamos embora! - acabou a mãe por ordenar.

- O que é que pensas que estou a tentar fazer? - rosnou o pai.

- Levanta-o.

- Estou a tentar! - retorquiu o pai, desesperado.

Elliot não queria que o pai lhe tocasse. Quando este conseguiu finalmente agarrá-lo, o miúdo debateu-se como uma serpente enfurecida, agitando a cabeça para um lado e para o outro, sem dar descanso às pernas. A testa do pai do Elliot começou a ficar perlada de suor; o homem fazia caretas devido ao esforço. Por outro lado, o filho parecia ficar maior, um pequeno monstro a expandir-se de raiva.

Fosse como fosse, os pais conseguiram pôr-se a caminho, ajoujados pelos sacos de compras, a empurrar o carrinho e conseguindo carregar os dois filhos. A pequena multidão apartou-se, como o Mar Vermelho ante a aproximação de Moisés, e finalmente a família desapareceu de vista, deixando como única prova de que havia estado ali os queixumes cada vez mais distantes das crianças.

A multidão começou a dispersar, mas Jeremy e Lexie não arredaram pé.

- Pobres criaturas - lamentou Jeremy, subitamente a pensar se, dentro de um par de anos, a sua vida seria assim.

- São de lamentar - anuiu Lexie, como se tivesse o mesmo receio.

Jeremy continuou de olhar fixo, à escuta, até os gritos daquela gente terem deixado de se ouvir. A família devia ter saído do centro comercial.

- A nossa filha nunca se entregará a um berreiro como aquele anunciou Jeremy.

- Nunca -. asseverou Lexie que, consciente ou inconscientemente, levou a mão à barriga. - Foi uma cena verdadeiramente anormal.

- E os pais não pareciam ter a mais pequena ideia do que estavam a fazer - prosseguiu Jeremy. - Reparaste na forma como ele tentou falar com o filho? Como se estivesse no conselho de administração?

- Ridículo - assentiu Lexie. - E a forma como o casal se agredia? Os filhos conseguem aperceber-se da tensão. Não admira que os pais não consigam controlá-los.

- Pareciam não ter qualquer ideia do que deviam fazer.

- Também penso que não tinham.

- Mas como é que isso pode acontecer?

- Talvez tenham vidas demasiado ocupadas e não lhes sobre tempo suficiente para estarem com os filhos.

Jeremy, ainda petrificado no mesmo sítio, via as restantes pessoas a afastarem-se dali. - Uma cena verdadeiramente anormal - voltou a dizer.

- Estava a pensar exactamente a mesma coisa.

Pois bem, estavam a iludir-se a si próprios. No fundo, Jeremy sabia-o e Lexie também, mas era mais fácil pensar que nunca veriam necessidade de enfrentar uma situação como aquela a que acabavam de assistir. Porque estariam mais bem preparados. Seriam mais dedicados. Mais humanos e mais pacientes. Mostrariam mais amor.

E quanto à filha... bem, teria de medrar no ambiente que ele e Lexie criassem para ela. Quanto a isso não havia dúvidas. Enquanto bebé, dormiria durante toda a noite; mais crescidinha, deliciaria os pais com o vocabulário precoce e capacidades motoras acima da média. Movimentar-se-ia com autoconfiança por entre os campos minados da adolescência, manter-se-ia afastada das drogas e não veria filmes impróprios. Chegada a altura de sair de casa, seria uma mulher polida e de boas maneiras, teria obtido notas suficientes para ser admitida em Harvard, seria uma campeã nacional de natação e, mesmo assim, nas férias de Verão ainda lhe sobraria tempo para fazer trabalho voluntário a favor da comunidade.

Jeremy agarrou-se à fantasia até que sentiu os ombros descaírem. Apesar de a sua experiência na área da paternidade ser nula, sentia que a realidade não poderia ser tão fácil. Além disso, estava a antecipar-se.

Uma hora mais tarde estavam sentados num táxi, parados no trânsito, a caminho de Queens. Lexie folheava um livro recentemente adquirido, What to Expect When you're Expecting [O Que Esperar Quando Está de Esperanças), enquanto Jeremy observava o mundo através das janelas do carro. Era a última noite que passavam em Nova Iorque tinha trazido Lexie à cidade para conhecer a família dele -, e os pais tinham preparado uma pequena reunião na sua casa de Queens. Casa pequena, em termos relativos, está bem de ver; com os cinco irmãos de Jeremy, mais as respectivas mulheres e dezanove sobrinhas e sobrinhos, a casa estaria à cunha, como era frequente. Embora Jeremy desejasse muito aquela reunião, não conseguia deixar de pensar no casal que acabavam de ver. Tinham um aspecto tão... normal. Se exceptuarmos o ar exausto, diga-se. Perguntava a si mesmo se ele e Lexie acabariam por ter uma vida assim ou se, sem ele descortinar como, conseguiriam evitá-la.

Talvez Alvin tivesse razão. Pelo menos em parte. Embora adorasse a Lexie, e tinha a certeza de que a adorava, pois de contrário não teria proposto o casamento, não podia verdadeiramente afirmar que a conhecia. Era óbvio que ainda não tinham tido tempo para isso e, quanto mais reflectia sobre o assunto, mais se convencia de que seria bom que ele e Lexie pudessem ter passado algum tempo a viver como um casal comum. Já tinha sido casado e sabia que é necessário algum tempo para uma pessoa aprender a viver com outra, para cada um se habituar às, como dizer, "manias" que tendem a ser escondidas. Por exemplo, dar-se-ia o caso de ela dormir com uma daquelas máscaras verdes, supostamente destinadas a evitar as rugas? Ficaria feliz ao acordar todas as manhãs e deparar com a cena?

- Em que é que estás a pensar? - indagou Lexie.

- Hum?

- Perguntei em que é que estás a pensar. Tens uma expressão gira.

- Não é nada.

Lexie encarou-o: - Nada importante, ou nada de nada? Jeremy voltou-se para ela, de testa franzida: - Qual é o teu nome do meio?

Durante os minutos seguintes, passou em revistas a série de interrogações que Alvin lhe propusera e ficou a saber o seguinte sobre Lexie: o nome do meio era Marin; tinha-se licenciado em Inglês, a sua melhor amiga da faculdade chamava-se Susan; púrpura era a cor que mais lhe agradava; preferia pão integral; gostava de ver Trading Spaces; achava Jane Austen fabulosa; quanto à idade, a 13 de Setembro faria 32 anos.

E pronto.

Satisfeito, Jeremy recostou-se no assento, enquanto Lexie continuou a folhear o livro. Não estava verdadeiramente a ler, pensou ele, limitava-se a ir passando as páginas, na esperança de encontrar qualquer ideia que lhe prendesse a atenção. Jeremy gostaria de saber se ela costumava fazer o mesmo na universidade sempre que tinha de estudar.

Como Alvin tinha demonstrado, a verdade é que havia muitos pormenores acerca de Lexie que ele desconhecia. Contudo, também havia muitas coisas que sabia. Filha única, tinha sido criada em Boone Creek, Carolina do Norte. Os pais haviam morrido num acidente de automóvel quando ela era pequena, fora criada pelos avós maternos, Doris e... e... Decidiu que tinha de procurar saber o nome do avô. De qualquer forma, tinha estudado na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, tinha-se apaixonado por um tipo chamado Avery e até vivera um ano em Nova Iorque, onde fora estagiária na biblioteca da Universidade de Nova Iorque. Avery acabara por lhe ser infiel e ela regressara a casa e fora nomeada bibliotecária de Boone Creek, o mesmo cargo que a mãe tinha ocupado. Algum tempo depois, apaixonara-se por alguém, a quem se referia vagamente como Mr. Renaissance, mas ele tinha deixado a vila sem se dignar olhar para trás. Depois disso, tinha levado uma vida tranquila, saindo uma vez por outra com um ajudante do xerife, até que Jeremy apareceu. Ah, havia também Doris, dona de um restaurante em Boone Creek, que se afirmava detentora de poderes psíquicos, incluindo a capacidade de prever o sexo dos bebés; era graças a esses poderes que Lexie sabia que teria uma menina.

Factos que, tinha de admitir, eram do conhecimento de todos os habitantes de Boone Creek. Mas saberiam eles que, sempre que se sentia nervosa, Lexie ajeitava o cabelo por detrás da orelha? Ou que ela era uma cozinheira maravilhosa? Ou que, quando precisava de um escape, gostava de se refugiar numa vivenda perto do farol do cabo Hatteras, onde os seus pais se tinham casado? Ou que, para além de ser simultaneamente inteligente e bonita, ter olhos violeta, um rosto oval e algo exótico, além de cabelo preto, tinha percebido as suas frustres tentativas para a levar para a cama? Apreciava o facto de Lexie não lhe conceder liberdades, de lhe dizer o que pensava e de o enfrentar quando achava que ele estava errado. De qualquer maneira, Lexie conseguia fazer tudo aquilo sem deixar de projectar uma imagem de encanto e feminilidade ainda acentuados pelo sensual sotaque sulista. Acrescente-se o pormenor de ela ficar maravilhosa dentro de umas calças de ganga justas e temos Jeremy sem saber onde tinha a cabeça.

E quanto a ele? O que é que Lexie podia dizer acerca de Jeremy? Apenas o fundamental, pensou. Que tinha sido criado em Queens, era o mais novo de seis filhos de um casal ítalo-irlandês e escolhera ser professor de Matemática, antes de descobrir que tinha jeito para escrever e acabar por ser jornalista da Scientific American, onde por vezes desmascarava acontecimentos alegadamente sobrenaturais. Que tinha sido casado com uma mulher chamada Maria, que acabou por deixá-lo depois de várias consultas numa clínica de fertilidade, em que um médico acabou por declarar que Jeremy era, em termos médicos, incapaz de gerar filhos. Que nos anos seguintes perdera demasiado tempo em bares e a namorar inúmeras mulheres, a tentar fugir a relações estáveis, como se o subconsciente nunca deixasse de lhe recordar que não conseguiria ser um bom marido. Que, com 37 anos de idade, tinha ido a Boone Creek para investigar a aparição regular de luzes fantasmagóricas no cemitério local, o que lhe poderia proporcionar uma oportunidade de se tornar comentador convidado do programa Good Morning America, mas gastara a maior parte do seu tempo a pensar em Lexie. Tinham passado quatro dias maravilhosos, a que se seguiu uma discussão acalorada em que ele, apesar de ter regressado a Nova Iorque, se apercebera de que não conseguia imaginar a vida sem ela, acabando por voltar a Boone Creek para lho provar. Por sua vez, Lexie pegara na mão de Jeremy e pusera-a sobre a barriga dela, o que finalmente fizera dele um verdadeiro crente, pelo menos no que dizia respeito ao milagre da gravidez e às possibilidades de ser pai, algo que nunca considerara possível.

Sorriu, pensando que era uma história bem interessante. Talvez com suficiente interesse para enredo de um romance.

O importante era que, por mais que tivesse tentado resistir aos encantos dele, Lexie acabara por também se apaixonar. Olhando-a de relance, Jeremy perguntou-se porquê. Não que se considerasse repulsivo, mas gostaria de saber o que é que juntava duas pessoas. No passado, escrevera numerosos artigos sobre o princípio da atracção e sentia-se capaz de discutir os papéis das feromonas, da dopamina e dos instintos biológicos, mas nada disso podia explicar minimamente o que ele sentia por Lexie. Ou, possivelmente, o que ela sentia em relação a ele. Nem ele conseguiria explicar este sentimento dela. Só sabia que, fosse como fosse, eram compatíveis e que tinha a sensação de ter passado a maior parte da vida a percorrer um caminho que o conduzia inexoravelmente para ela.

Era uma visão romântica, ou mesmo poética, e Jeremy nunca fora muito dado a pensar em termos poéticos. Talvez essa fosse mais uma razão para o convencer de que ela era a mulher ideal, por lhe ter aberto o coração e o espírito a novas ideias e novos sentimentos. Porém, qualquer que fosse a razão, ali sentado no táxi com a sua futura noiva, encarava com confiança tudo o que o futuro pudesse reservar-lhe.

Procurou a mão dela.

Afinal, seria assim tão relevante que estivesse a deixar a casa de Nova Iorque, e a hipotecar os seus planos de carreira, para se mudar para uma terra no meio de coisa nenhuma? Não seria melhor pensar que estava a iniciar um ano em que teria de planear um casamento, criar um lar e preparar-se para receber uma filha?

Quais as dificuldades que teria de ultrapassar?

 

Propôs-lhe casamento no dia de São Valentim, no terraço do Empire State Building.

Tinha consciência de que se tratava de um cliché, mas não era isso que acontecia com todos os pedidos de casamento? Afinal, havia um sem-número de formas de fazer aquilo. Podia fazer-se sentado, de pé, de joelhos ou deitado. Podia incluir jantar, ou não, ser feito em casa ou em qualquer outro lugar, com ou sem velas acesas, com vinho, ao nascer do sol ou ao crepúsculo, acrescentando qualquer pormenor que pudesse ser considerado vagamente romântico. Jeremy sabia que algures, numa data que desconhecia, um outro homem já a fizera passar por tudo aquilo, pelo que não fazia muito sentido estar preocupado com um eventual desapontamento dela. Sabia, sem dúvida, que alguns homens usam o catálogo completo - mensagens escritas com fumo lançado de aviões, cartazes, o anel encontrado durante uma romântica caça ao tesouro. Mas quase podia jurar que Lexie não era pessoa que exigisse originalidade absoluta. Além disso, a visão da Manhattan era de cortar a respiração e, desde que focasse os pontos essenciais - a vontade de passar o resto da vida na companhia dela, a oferta do anel, a pergunta sacramental -, Jeremy calculou que teria a questão praticamente resolvida.

Afinal, nada daquilo poderia ser encarado como uma total surpresa. Não tinham discutido formalmente a questão, mas o facto de ele ir mudar-se para Boone Creek, a que se poderiam juntar uns pedaços de conversas em que entrava o "nós", não teria deixado dúvidas sobre o que estava para acontecer. Como em "devíamos ir comprar um berço para colocarmos ao lado da nossa cama", ou "devíamos visitar os teus pais". Como Jeremy não se tinha oposto a qualquer destas afirmações, de certa maneira podia dizer-se que Lexie fora a primeira a declarar-se.

No entanto, mesmo que não tivesse sido apanhada totalmente de surpresa, a excitação de Lexie foi evidente. A sua primeira reacção, depois de o ter rodeado com os braços e de o beijar, foi telefonar a Doris para lhe dar a notícia, uma conversa que se prolongou por vinte minutos. Jeremy achou que era de esperar; não que se importasse. Apesar da calma aparente, não deixou de se impressionar com o facto de Lexie ter aceitado realmente a ideia de passar o resto da vida com ele.

Agora, quase uma semana depois, seguiam num táxi a caminho da casa dos pais de Jeremy, e ele não deixou de reparar que ela levava o anel de noivado. Depois do namoro, o noivado era o "grande passo seguinte", uma etapa bastante do agrado da maioria dos homens, Jeremy incluído. Podia agora fazer com Lexie certas coisas que estavam vedadas a qualquer outra pessoa. Como beijá-la. Podia, por exemplo, inclinar-se no banco traseiro do táxi neste preciso momento e beijá-la. Não era de imaginar que Lexie se sentisse ofendida. O mais provável era sentir-se feliz. "Tenta o mesmo com uma estranha e vê o que pode suceder-te", pensou Jeremy. Toda a situação era de molde a deixá-lo bastante satisfeito com a decisão que tomara.

Lexie, por sua vez, não deixava de olhar pela janela e parecia perturbada.

- O que é que se passa? - perguntou Jeremy.

- E se eles não gostarem de mim?

- Vão adorar-te. Que motivos poderiam ter para não gostarem de ti? Além disso, o teu almoço com a minha mãe correu bem, não é verdade? Disseste que ambas se tinham entendido bem.

- Eu sei - anuiu Lexie, sem parecer convencida.

- Então, qual é o problema?

- E se eles pensarem que estou a querer levar-te daqui? perguntou ela. - Se a tua mãe quisesse apenas mostrar-se simpática e, lá no fundo, estivesse ressentida comigo?

- Não está - garantiu ele. - Não estejas tão preocupada. Por uma razão: não és tu que estás a querer levar-me daqui. Deixo Nova Iorque porque prefiro ir viver contigo, eles sabem que é assim. Há anos que sou perseguido pela minha mãe, que quer ver-me casado de novo.

Lexie ficou pensativa, de lábios franzidos. - Está bem. Mas continuo a não querer que saibam da gravidez.

- Por que não?

- Ficarão com uma ideia errada.

- Sabes que, seja como for, vão acabar por descobrir.

- Pois sei, mas não tem de ser esta noite, pois não? Deixa que me conheçam primeiro. Deixa que assimilem a ideia de que vamos casar-nos. É comoção suficiente para uma noite. Deixaremos o resto para mais tarde.

- Certo. Como queiras - assentiu Jeremy, recostando-se no banco. - Mas será bom saberes que, mesmo no caso de se verificar qualquer deslize, isso não será razão para te preocupares.

Lexie franziu a testa. - Como é que pode haver um deslize? Não me digas que já os informaste.

Jeremy negou com a cabeça. - Não, certamente que não. Poderei ter feito menção disso ao Alvin.

Ela interpelou-o, muito pálida: - Disseste ao Alvin?

- Desculpa. Disse-o sem querer. Mas não te preocupes, ele é capaz de guardar o segredo.

- Está bem - concordou Lexie, depois de muito hesitar.

- Não voltará a acontecer - prometeu Jeremy ao pegar-lhe na mão. - E não há motivos para estares nervosa.

Ela forçou um sorriso. - Para ti é fácil de dizer.

Lexie voltou-se de novo para a janela. Como se já não estivesse suficientemente nervosa, ainda tinha de enfrentar mais aquele contratempo. Seria realmente tão difícil guardar um segredo?

Sabia que Jeremy não o fizera por mal e que Alvin se mostraria discreto, mas isso não era o mais importante. Grave era que Jeremy não parecesse compreender a forma como a família poderia interpretar uma notícia daquele género. Tinha a certeza de que eram pessoas razoáveis - a mãe parecera-lhe muito simpática - e duvidava que viessem a acusá-la de ser uma prostituta, mas, mesmo assim, bastava o facto de irem casar-se tão à pressa para originar reparos. Quanto a isso não tinha dúvidas. Tudo se resumia a ver a situação segundo a perspectiva da família. Até há seis semanas, ela e Jeremy não se conheciam e, depois de um torvelinho de acontecimentos, estavam oficialmente noivos. Era suficientemente perturbador.

E se descobrissem que ela estava grávida?

Pois bem, então compreenderiam. Partiriam do princípio de que esse era o único motivo que levava Jeremy a casar com ela. Em vez de acreditarem quando este dizia que a amava, fariam um gesto de assentimento, dizendo: "É bonito." Porém, logo que Jeremy e Lexie saíssem, juntar-se-iam para discutirem o assunto. Formavam um grupo unido, uma família tradicional que se reunia um par de vezes por mês. Não tinha ele insistido nesse pormenor? Lexie não era ingénua. E do que é que uma família fala? Da família! Alegrias, tragédias, desapontamentos, êxitos... são pertença do colectivo familiar. Mas, a haver um novo deslize da parte de Jeremy, ela sabia o que ia acontecer. Em vez de falarem do noivado, passariam a referir-se apenas à gravidez, nem que fosse apenas para, dizendo-o de viva voz, se convencerem de que Jeremy sabia realmente o que estava a fazer. Ou, pior ainda, pensariam que ela arranjara uma maneira de o prender.

Lexie podia obviamente estar enganada. Talvez ficassem todos deliciados. Talvez achassem razoável toda aquela situação. Talvez acreditassem não haver um elo de causa e efeito entre o noivado e a gravidez, pois essa era a verdade. E talvez ela batesse as asas e voasse para a sua terra.

Não queria problemas com a família do futuro marido. Era sabido que, em regra, ninguém consegue evitá-los, mas ela estava disposta a fazer tudo para não pôr o pé em ramo verde.

Além do mais, por muito que lhe custasse admiti-lo, se fizesse parte da família de Jeremy, também ela veria a situação com cepticismo. O casamento era um passo marcante para qualquer casal, em especial quando as duas pessoas mal se conheciam. Embora a mãe de Jeremy não a tivesse feito sentar-se na cadeira eléctrica, Lexie não pôde deixar de sentir-se avaliada à medida que iam conversando, uma análise que qualquer boa mãe nunca deixaria de fazer. Portara-se o melhor possível e, no final, a mãe de Jeremy tinha-se despedido dela com um beijo.

Lexie admitia que fora um bom sinal. Um bom início de relação, pelo menos. A família levaria o seu tempo a admiti-la como membro pleno do clã. Ao contrário das restantes noras, Lexie não estaria presente nos fins-de-semana; o mais provável era que tivesse de aguentar uma espécie de período de experiência, até o tempo provar que Jeremy não tinha cometido um erro. Um período de um ou dois anos, provavelmente mais. Supunha poder apressar o processo com cartas e telefonemas regulares...

"Toma nota", ordenou a si própria. "Compra papel de carta. "

Se quisesse ser totalmente franca, até ela se sentia um tanto chocada com o rápido desenrolar dos acontecimentos. Estaria Jeremy verdadeiramente apaixonado? E ela? Durante as duas últimas semanas, dia após dia, fizera as perguntas a si própria pelo menos uma dúzia de vezes e obtinha sempre as mesmas respostas. Sim, estava grávida; sim, a filha era dele, mas nunca teria aceitado casar-se com ele se não acreditasse que poderiam viver felizes.

E seriam felizes. Ou não seriam?

Gostaria de saber se Jeremy já teria reflectido sobre a celeridade com que tudo parecia estar a acontecer. Admitiu que era provável. Era impossível não o fazer. Mas ele parecia aceitar a ideia com muito maior descontracção e Lexie gostaria de saber por quê. Talvez fosse por já ter sido casado, ou talvez por ter sido ele o conquistador durante a semana que passara em Boone Creek. Contudo, qualquer que fosse o motivo, Jeremy sempre mostrara mais confiança na relação do que ela, o que era estranho, dado ser ele próprio quem se considerava um céptico.

Observou-o de perfil, notando a covinha do rosto e o cabelo escuro, satisfeita com o que via. Recordou-se de o ter considerado atraente logo na primeira vez que o viu. O que é que a Doris tinha dito acerca dele, pouco depois de o ter conhecido? "Ele não é aquilo que tu imaginas. "

"bom", pensou, "agora vou descobrir, não é verdade? "

Foram os últimos a chegar. Lexie estava tão nervosa que parou em frente da porta, nos primeiros degraus.

- Vão adorar-te - garantiu Jeremy. - Confia em mim.

- Ficas por perto, está bem?

- Onde é que eu havia de ficar?

Não foi, nem de longe, tão mau como Lexie receara. De facto, ela parecia estar a sair-se perfeitamente, pelo que, a despeito da promessa inicial de ficar perto dela, Jeremy deu consigo no alpendre traseiro, a bater os pés e de braços cruzados na tentativa de se defender do ar frio, a observar o pai, que estava encarregado dos grelhados. O homem adorava o grelhador; o tempo que fazia nunca o preocupava. Jeremy recordava-se de em criança o ver limpar a neve que cobria o grelhador, enquanto noutras ocasiões o via desaparecer por entre a neve que caía, para reaparecer passada meia hora com uma travessa de bifes e duas camadas de neve nos sítios onde deviam estar as sobrancelhas.

Embora Jeremy preferisse ter ficado dentro de casa, a mãe pedira-lhe que fizesse companhia ao pai, o que era uma maneira de lhe dizer que fosse reparando se o pai se sentia bem. Tinha tido um enfarte alguns anos antes e, mesmo que ele afiançasse que nunca se constipava, a mulher preocupava-se com ele. Noutra altura, seria ela mesma a fazer companhia ao marido mas, com trinta e cinco pessoas apertadas dentro de uma casa pequena, o lugar parecia um manicómio. Tinha quatro panelas ao lume, os irmãos dele tinham ocupado todas as cadeiras da sala, enquanto os sobrinhos e sobrinhas eram continuamente enxotados da sala e obrigados a regressar à cave. Olhando através da janela, assegurou-se de que a noiva continuava a sair-se bem.

Noiva. Reconheceu que havia algo de estranho naquela palavra. Não que achasse estranha a ideia de ter uma, a diferença estava na maneira como a palavra soava quando dita pelas várias cunhadas, que já a teriam pronunciado pelo menos uma centena de vezes. Logo depois de eles terem entrado, antes ainda de Lexie ter tirado o casaco, Sophia e Anna correram para eles, incluindo o termo em qualquer frase que pronunciassem.

- Já era tempo de conhecermos pessoalmente a tua noiva.

- Então, o que é que tens andado a fazer com a tua noiva?

- Não achas que deves trazer alguma coisa para a tua noiva beber?

Por outro lado, os irmãos hesitaram e evitaram por completo a palavra.

- Então, tu e a Lexie, hein?

- A Lexie tem apreciado a viagem?

- Conta-me como é que tu e a Lexie se conheceram.

Jeremy resolveu que devia ser conversa de mulheres, pois a palavra ainda não fora pronunciada por ele ou pelos irmãos. Ficou a imaginar que poderia escrever um artigo sobre o assunto, mas também pensou que o chefe da redacção não consideraria o assunto suficientemente sério para uma revista como a Scientific American, apesar de adorar trabalhos sobre discos voadores e o "abominável homem das neves". Embora o chefe o tivesse autorizado a continuar a escrever os seus artigos a partir de Boone Creek, Jeremy não ia sentir saudades dele.

Jeremy esfregava os braços enquanto o pai se entregava à tarefa de ir virando os nacos de carne. Já tinha o nariz e as orelhas vermelhos de frio. - Passa-me aquela travessa, se fazes favor. A que a tua mãe deixou acolá, em cima do corrimão. Os cachorros estão quase prontos.

Jeremy pegou na travessa e voltou para junto do pai. - Não acha que está muito frio aqui fora?

- Isto? Não tem importância. Além disso, o braseiro mantém-me quente.

O pai, um dos últimos seres de uma espécie em extinção, ainda usava carvão. Num Natal, Jeremy comprara-lhe um grelhador a gás, mas o aparelho ficou na garagem a encher-se de pó, até que um irmão, tom, perguntou se podia ficar com ele.

O pai começou a empilhar cachorros na travessa.

- Ainda não tive ocasião de falar muito com ela, mas a Lexie parece-me uma jovem muito simpática.

- E é, papá.

- Ah, bom, tu mereces. Nunca gostei muito da Maria - confessou. - Mesmo desde o início, sempre achei nela qualquer coisa de errado.

- Devia ter-me avisado.

- Não. Não me terias dado ouvidos. Tu eras quem sabia sempre tudo, recordas-te?

- O que é que a mamã achou da Lexie? Estou a falar do almoço de ontem.

- Gostou dela. Achou que era mulher para te manter na linha.

- E isso é bom?

- Dito pela tua mãe? É a melhor opinião que alguma vez lhe conseguirás arrancar.

Jeremy sorriu. - Tem algum conselho a dar-me?

O pai pousou a travessa e levou o seu tempo a responder. - Não. Não precisas de conselhos. Já és crescido. Agora és tu quem toma as decisões. Estou casado há quase cinquenta anos e ainda há alturas em que não sei como é que a tua mãe funciona.

- Isso é confortante.

- Habituas-te - sentenciou. Aclarou a voz: - Olha, talvez haja uma coisa que posso recomendar-te.

- O que é?

- Realmente são duas coisas. Número um: quando ela se zangar, não consideres isso um ataque pessoal. Todos nos zangamos; portanto, não deixes que a situação te afecte.

- E a número dois?

- Telefona à tua mãe. Muitas vezes. Desde que soube que ias mudar-te, passa os dias a chorar. E também não arranjes um daqueles sotaques do Sul. Ela nunca te diria tal coisa, mas por vezes tem dificuldades em perceber o que a Lexie diz.

Jeremy soltou uma gargalhada. - Prometo.

- Não correu mal de todo, pois não? - indagou Jeremy.

Horas mais tarde, estavam a caminho do Plaza. com o apartamento em desalinho, Jeremy decidira armar-se em rico e dormir num quarto de hotel a última noite que passava na cidade.

- Foi maravilhoso. Tens uma família muito especial. Agora percebo a razão de não quereres sair de cá.

- Continuarei a vê-los bastante, sempre que tiver encontros no jornal.

Lexie assentiu. Enquanto percorria a cidade, olhava os arranha-céus e o trânsito, maravilhada por tudo lhe parecer enorme e apressado. Embora já tivesse vivido em Nova Iorque, esquecera-se das multidões, da enorme altura dos prédios, do barulho. Tão diferente da terra onde agora vivia, um mundo inteiramente distinto. Era provável que a totalidade da população de Boone Creek fosse inferior à de um único quarteirão da cidade.

- Vais sentir a falta da cidade?

Antes de responder, Jeremy olhou pela janela. - Um pouco - admitiu. - Mas tudo o que alguma vez desejei encontra-se no Sul.

E, passada uma última noite maravilhosa no Plaza, começou uma nova vida para os dois.

 

Na manhã seguinte, Jeremy piscou os olhos e acordou logo que os raios de luz começaram a espreitar por entre as cortinas. Lexie dormia de costas, com os cabelos escuros derramados pela almofada. Filtrados pela janela, conseguia ouvir os sons abafados do trânsito matinal de Nova Iorque: toques de buzinas e o aumento e diminuição do som dos motores dos camiões que percorriam a Quinta Avenida.

Na sua opinião não deveria conseguir ouvir qualquer som. Deus sabia quanto lhe tinha custado, uma pequena fortuna, a estada naquela suíte especial, que ele julgara dotada de janelas à prova de som. Não estava, porém, a queixar-se. Lexie tinha adorado todo o quarto: os tectos altos e as decorações de gosto clássico, o formalismo do empregado que lhes servira morangos cobertos de chocolate e a cidra, que eles substituíram por champanhe, o pesado roupão e os chinelos confortáveis, a macieza da cama. Tudo.

Ao acariciar-lhe o cabelo com suavidade, achou-a bonita, ali deitada a seu lado, e não conseguiu evitar um suspiro de alívio ao verificar que ela não usava a máscara verde que ele chegara a imaginar na véspera. Melhor ainda, também não punha rolos no cabelo nem usava um pijama feio; também não se arrastava pela casa de banho durante meia hora como muitas mulheres gostam de fazer. Antes de saltar para a cama só tinha lavado a cara e passado a escova pelo cabelo, para logo vir aninhar-se ao lado dele, como ele gostava.

Portanto, conhecia-a, a despeito de tudo o que Alvin dissera. Era evidente que ainda não sabia tudo, mas havia tempo. Descobriria pormenores acerca dela e ela descobriria pormenores acerca dele e, pouco a pouco, cada um retomaria os seus hábitos. Sabia, claro, que haveria surpresas - há sempre - mas elas são inevitáveis na vida de um casal. com o tempo, Lexie aprenderia a conhecer o verdadeiro Jeremy, o Jeremy liberto da constante necessidade de causar boa impressão. Junto dela poderia ser ele mesmo, uma pessoa que uma vez por outra vagueava pela casa em fato de treino ou que comia Doritos em frente do televisor.

Juntou as mãos atrás da cabeça, a sentir um súbito contentamento. Ela iria gostar do verdadeiro Jeremy.

Ou não?

Franziu o sobrolho, subitamente a perguntar a si mesmo se ela saberia no que estava a meter-se. Apercebeu-se de que conhecer o verdadeiro Jeremy talvez não fosse uma boa ideia. Não que ele se considerasse mau ou pouco digno, mas, como toda a gente, tinha... mantas que ela poderia levar algum tempo a entender. Lexie tinha de aprender, por exemplo, que ele deixava sempre o assento da sanita levantado. Sempre fizera assim e nunca deixaria de fazer o mesmo. Mas... e se isso lhe desagradasse? Recordou-se de que aquele fora um grande problema para uma das suas namoradas. E o que é que Lexie pensaria do facto de ele, regra geral, se preocupar mais com a carreira dos New York Knicks do que com qualquer coisa que estivesse relacionada com a mais recente seca em África? Ou que por vezes se tornava notado por meter na boca comida que tinha caído no chão, desde que lhe parecesse em bom estado? Esse era o verdadeiro Jeremy, mas o que aconteceria se ela não apreciasse tais características? Se não as visse como manias, mas como verdadeiras falhas de carácter? E se...

A voz de Lexie interrompeu-lhe as reflexões: - Em que é que estás a pensar? Parece que engoliste um besouro.

Reparou que ela estava a observá-lo.

- Quero que saibas que não sou perfeito.

- Que conversa é essa?

- Só estou a dizer-te francamente que tenho defeitos.

Lexie pareceu divertida. - Deveras? Pensei que podias caminhar sobre a água.

- Estou a falar a sério. Antes de casares, penso que deves saber no que te metes.

- Para o caso de querer voltar atrás?

- Exactamente. Tenho umas manias.

- Tais como?

Reflectiu um pouco, decidindo que seria melhor começar pelas menos importantes.

- Deixo a água a correr enquanto escovo os dentes. Não sei porquê, mas faço-o. Não sei se conseguirei modificar-me.

Ela assentiu, a tentar manter uma expressão séria. - Acho que consigo lidar com isso.

- E às vezes, só para saberes, fico parado em frente ao frigorífico, com a porta aberta, enquanto tento perceber o que me apetece comer. Sei que estou a permitir a saída do ar frio, mas não há nada a fazer. Sou assim.

Ainda divertida, Lexie voltou a acenar com a cabeça. - Compreendo. Há mais alguma mania?

Jeremy encolheu os ombros. - Não como bolachas partidas. Se apenas restarem bocados de bolachas, deito fora o saco. Sei que é um desperdício, mas sempre fui assim. O sabor é diferente.

- Hum! Vai ser difícil, mas suponho que consigo viver com isso. Ele franziu os lábios, sem saber se deveria mencionar o assento da

sanita. Sabendo que se tratava de uma questão difícil com algumas mulheres, decidiu não a mencionar por enquanto.

- Aceitas todas estas coisas?

- Suponho que tem de ser.

- De verdade?

- com certeza.

- E se te disser que me sento na cama para cortar as unhas dos pés?

- Não abuses, exterminador.

Jeremy sorriu, chegando-a mais para si. - Amas-me mesmo que eu não seja perfeito?

- Pois é claro.

Ele achou espantoso.

À medida que se aproximavam de Boone Creek, quando as primeiras estrelas já começavam a mostrar-se no céu, o primeiro pensamento de Jeremy foi que o lugar não mudara absolutamente nada. Não que ele esperasse alterações; dava para perceber que nas redondezas nada devia ter mudado durante os últimos cem anos. Ou talvez se pudesse falar em trezentos. Depois de saírem do aeroporto de Raleigh, a paisagem de ambos os lados da estrada não passara de uma enfadonha versão do filme O Feitiço do Tempo (Groundhog Day). Herdades decadentes, terrenos bravios, secadores de tabaco a desmoronarem-se, fileiras de árvores... quilómetro após quilómetro. É certo que passaram por algumas povoações, mas até essas se mostravam todas iguais, a não ser para quem conseguisse notar a diferença entre a galinha frita de dois estabelecimentos à beira da estrada.

Mas, atenção, com Lexie a seu lado a viagem era mais suportável. Tinha-se mostrado bem-disposta durante todo o dia e, à medida que se aproximavam de casa dela, ou melhor, pensou subitamente, da casa deles, tinha ficado ainda mais alegre. Tinham passado as últimas duas horas a reviver a viagem a Nova Iorque, mas Jeremy não deixou de reparar na expressão de contentamento dela logo que atravessaram o rio Pamlico e entraram na parte final da jornada.

Jeremy recordou-se das dificuldades que tivera para dar com a terra na primeira vez que lá foi. O único caminho que conduzia ao centro da povoação não se via da estrada, perdeu a saída certa e teve de encostar à berma para consultar o mapa. Contudo, feita a curva para Main Street, sentira-se encantado.

Agora abanava a cabeça, a reconsiderar a sua opinião. Estava a pensar em Lexie, não na terra. A vila, embora curiosa como são todas as terras pequenas, não tinha nada de encantador. À primeira vista, pelo menos. Recordava-se de na primeira vez ter pensado que a localidade parecia estar a enferrujar lentamente. O centro era formado por alguns blocos de prédios em que havia demasiadas lojas; as fachadas decadentes iam perdendo lentamente a pintura, um processo sem dúvida acelerado pelos fumos dos escapes dos camiões a caminho da saída da povoação. Boone Creek, que já fora uma terra próspera, lutava pela vida desde que a mina de fósforo e a fábrica de têxteis tinham sido encerradas, levando muitas vezes Jeremy a ponderar se a vila poderia sobreviver.

O júri ainda não se pronunciara quanto a isso, concluiu. Contudo, se era aqui que Lexie queria viver, para ele era suficiente. Além disso, uma vez ultrapassada a sensação de se estar perante a "próxima cidade fantasma", a vila era pitoresca, à sua maneira sulista de parecer que fora construída à sombra das tilândsias. Na confluência de Boone Creek com o rio Pamlico havia uma esplanada de onde se podia observar o movimento de barcos no rio e, segundo a Câmara de Comércio, chegada a Primavera, as azáleas e os arbustos "explodiam numa cacofonia de cores que só tinha rival no crepúsculo do oceano de folhas secas que cobria tudo no Outono", qualquer que fosse o significado da metáfora. No entanto, o que tornava o lugar especial eram as pessoas, ou pelo menos era isso que Lexie afirmava com toda a convicção. Como acontece em muitas terras pequenas, ela via as pessoas que ali viviam como membros da família. Jeremy guardava para si a observação de que a "família" costumava incluir uns quantos pares de tias e tios malucos; e aquela terra não era diferente. As pessoas dali davam ao termo personalidade um significado inteiramente distinto.

Jeremy passou pela Lookilu Tavern, o ponto de encontro da terra após o dia de trabalho, pela loja das pizas e pela barbearia; sabia que depois do cruzamento havia uma construção maciça, antiga, que albergava a biblioteca local, onde Lexie trabalhava. Enquanto percorriam a rua, a caminho do Herbs, o restaurante de Doris, sua avó, Lexie endireitou-se no assento. Por ironia, Doris começara por ser a causa da primeira visita de Jeremy àquele lugar. Como especialista local em fenómenos paranormais, era sem dúvida uma daquelas "personalidades" já referidas.

Mesmo de longe, Jeremy reconheceu as luzes que brilhavam no interior do Herbs. A que fora uma vivenda da época vitoriana, dominava o final do quarteirão. Era estranho, mas havia carros arrumados antes e depois do restaurante.

- Pensei que o Herbs só servia pequenos-almoços e almoços.

- É verdade.

Ao lembrar-se do pequeno "encontro" que o presidente da Câmara preparara em sua honra na visita precedente, que incluiu, segundo lhe parecera, a quase totalidade da população do concelho, Jeremy inteiriçou-se e agarrou o volante com mais força. - Não me digas que estão à nossa espera.

Lexie soltou uma gargalhada. - Não, acredites ou não, o mundo não gira à nossa volta. Trata-se da terceira segunda-feira do mês.

- E isso significa?

- Que é o dia da reunião do Conselho Municipal. E, terminados os trabalhos, joga-se bingo.

Jeremy esbugalhou os olhos: - Bingo?

Ela assentiu. - É a maneira de trazer as pessoas à reunião do Conselho.

- Ah! - exclamou Jeremy. Nada de juízos de valor. Estava num mundo diferente, nada mais. Quem é que se preocupava com o facto de nenhum dos seus conhecidos jogar bingo?

Ao notar a expressão dele, Lexie sorriu. - Não censures. Estás a ver todos estes carros? Ninguém cá vinha antes de ter começado o jogo do bingo. Dão prémios e tudo.

- Deixa-me adivinhar. A ideia partiu do presidente Gherkin? Lexie riu-se. - De quem havia de ser?

O presidente da Câmara estava sentado perto do fundo da sala, por detrás de duas mesas que tinham sido juntas. De cada lado, Jeremy reconheceu dois outros membros do Conselho Municipal; um era um advogado escanzelado, o outro era um médico avantajado. Ao canto da mesa sentava-se Jed, de braços cruzados e expressão de mau humor. O homem mais alto que Jeremy alguma vez encontrara, Jed tinha o rosto parcialmente encoberto pela barba e uma juba selvagem que lhe lembrava um mamute lanudo. Esta comparação assentava-lhe bem, não só por Jed ser o proprietário das vivendas Greenleaf, os únicos alojamentos disponíveis na terra, mas também por ele exercer as funções de taxidermista local. Apesar das ventoinhas que giravam junto ao tecto, a nuvem de fumo de cigarro pairava como nevoeiro. Na sua maioria, os presentes vestiam jardineiras, camisas de tecido aos quadrados e bonés com publicidade da NASCAR. A Jeremy parecia que todos deviam ter tirado as roupas da mesma caixa, na loja dos 300 local. Vestido de preto da cabeça aos pés, o guarda-roupa preferido dos nova-iorquinos, Jeremy teve a estranha sensação de que, de repente, descobrira o que Johnny Cash devia sentir quando subia aos palcos das feiras rurais para cantar a sua música country.

Acima do burburinho, Jeremy mal ouvia a voz do presidente ampliada pelo microfone: - N-26... com cada número anunciado, a multidão agitava-se ainda mais. Os que não tinham tido a sorte de conseguir sentar-se a uma mesa preenchiam os cartões nos peitoris das janelas e de encontro às paredes; os cestos com filhos de farinha de milho eram passados de mão em mão, como se os presentes necessitassem de lubrificante para acalmar os nervos naquela fanática busca da vitória. Lexie e Jeremy abriram caminho por entre a multidão e viram Doris de relance a encher mais cestos de filhos e a colocá-los numa bandeja. Desviada do tumulto, Rachel, a namoradeira empregada de mesa do restaurante, agitava a mão na tentativa de dispersar o fumo do tabaco. Ao contrário de Nova Iorque, Boone Creek não fazia má cara aos fumadores; de facto, o fumo parecia quase tão bem aceite como o próprio bingo.

- Será que estou a ouvir a marcha nupcial? - indagou o presidente da Câmara. De súbito, o anúncio dos números do bingo cessara e apenas se ouvia o zunir das ventoinhas. Os rostos de todos os presentes no restaurante voltaram-se para onde estavam Lexie e Jeremy. Este, em toda a sua vida, nunca vira tantos cigarros pendentes de lábios. Depois, recordando-se da saudação das pessoas da terra, cumprimentou com acenos de cabeça e de mãos.

As pessoas retribuíram os cumprimentos.

- Abram alas... vou passar... - ouviu Jeremy. Era a voz de Doris. Notou-se uma restolhada quando as pessoas se apertaram umas contra as outras para abrirem caminho e Doris apareceu à frente deles. Não perdeu tempo e logo apertou a neta nos braços.

Quando Doris a libertou, Lexie olhou para Jeremy e depois novamente para a avó. Pelo canto do olho viu que a multidão fazia o mesmo, como se o encontro também dissesse respeito a todas aquelas pessoas, o que, dada a proximidade das moradas, bem podia ser verdade.

- Bem, que diabo - começou Doris. - Esperava que chegassem um pouco mais tarde.

Lexie acenou na direcção de Jeremy. - Pode agradecer a este pé de chumbo. Encara os limites de velocidade mais como indicações do que como verdadeiras normas.

- Ainda bem, Jeremy - disse Doris, piscando-lhe o olho. Oh, temos tanto que conversar! Quero saber tudo sobre a semana que passaste em Nova Iorque. Quero ouvir a história completa. E onde é que está o anel de que me falaste?

Os olhos de todos faiscaram na direcção do anel. Os pescoços ergueram-se quando Lexie mostrou a mão. Vindos da multidão, ouviram-se umas quantas interjeições de espanto. A malta começou a aproximar-se para poder ver melhor e Jeremy sentiu no pescoço o bafo quente de alguém próximo.

Jeremy ouviu alguém exclamar: - Ora bem, isso é que é um anel!

- Espera um pouco, Lexie - pediu outra voz.

- Parece um daqueles diamantes falsos da Home Shopping Newtork - sugeriu uma mulher.

Pela primeira vez, Lexie e Doris pareceram aperceber-se de que se tinham tornado o centro de todas as atenções.

- Pronto, pronto... acabou o espectáculo - comandou Doris. Deixem-me falar com a minha neta, a sós. Temos de pôr a escrita em dia. Precisamos de um pouco mais de espaço.

Por entre murmúrios de reprovação, o público tentou recuar, mas não havia espaço. Praticamente, as pessoas limitaram-se a arrastar um pouco os pés.

- Vamos lá para trás - acabou Doris por sugerir. - Venham comigo...

Doris agarrou a neta pela mão e saíram; Jeremy lutou para conseguir acompanhá-las, enquanto elas se encaminhavam para o escritório da Doris, logo a seguir à cozinha.

Uma vez ali chegados, Doris bombardeou a neta com uma salva de perguntas em rápida sucessão. Lexie falou-lhe da visita à Estátua da Liberdade, a Times Square e, como não podia deixar de ser, ao Empire State Building. Quanto mais depressa falavam, mais sobressaía o sotaque sulista e, a despeito dos esforços a que se entregou, Jeremy não foi capaz de perceber tudo o que elas diziam. Conseguiu decifrar o facto de Lexie ter gostado da família dele, mas mostrou-se bem menos entusiasmado quando ela disse que o serão lhe recordou coisas que "deves ter visto na série Everybody Loves Raymond, mas ampliadas seis vezes, com as cunhadas loucas, embora de maneira diferente".

- Deve ser um espectáculo - concordou Doris. - Agora, deixa-me olhar melhor para esse anel.

Lexie ergueu a mão mais uma vez, orgulhosa como uma menina de escola. Doris olhou para Jeremy.

- Foi você que o escolheu?

Jeremy encolheu os ombros. - Fui ajudado.

- Pois bem, é uma maravilha.

Naquele momento, Rachel enfiou a cabeça no escritório. - Olá, Lex. Olá, Jeremy. Desculpem a interrupção, mas, Doris, as filhos de milho estão a desaparecer. Quer que faça mais uma amassadura?

- É provável. Mas, espera; antes de te ires embora vem ver o anel da Lexie.

O anel. As mulheres de todo o mundo idolatram os anéis, ainda mais do que adoram ouvir pronunciar a palavra noiva.

Rachel aproximou-se. com o cabelo castanho-avermelhado, direita como uma cana, estava atraente, como sempre, embora para Jeremy ela parecesse um pouco mais cansada do que era habitual. Rachel e Lexie tinham sido as melhores amigas na escola secundária e, embora ainda fossem íntimas, seria difícil não serem íntimas numa terra daquele tamanho, tinham-se afastado um pouco quando Lexie foi para a universidade. Também admirou o anel.

- É uma maravilha! - exclamou. - Parabéns, Lex. E para ti também, Jeremy. Desde que soube, toda a gente da terra ficou excitada.

Lexie agradeceu. - Obrigada, Rachel. Como é que estão as coisas com o Rodney?

Rodney, um ajudante do xerife local com queda para o halterofilismo, tivera um fraquinho por Lexie desde os tempos de criança e não se mostrara muito feliz quando ela e Jeremy se tornaram tema de conversas. Se não tivesse começado a namorar Rachel logo a seguir, Jeremy tinha quase a certeza de que Rodney teria preferido que ele se deixasse ficar lá por Nova Iorque.

O olhar de Rachel traiu-a.

Lexie olhou para a amiga, sabendo que não devia forçar. Rachel afastou uma madeixa da cara. - Ouçam, gostaria de ficar aqui a conversar, mas aquilo lá fora parece o jardim zoológico. Não faço ideia do motivo que a leva a deixar que o presidente da Câmara utilize o restaurante para estas reuniões. As pessoas ficam malucas quando se trata de filhos de milho e de bingo. Até logo. Talvez ainda tenhamos tempo para conversar um bocado.

Logo que ela saiu, Lexie dirigiu-se à avó. - Ela está bem?

- Oh, é entre ela e o Rodney - explicou Doris. Acenou com a mão como se fosse uma história antiga. - Tiveram uma discussão qualquer, há uns dois dias.

- Espero que não tenha sido por minha causa.

- Não, não, claro que não - garantiu Doris, mas Jeremy não ficou convencido. Apesar de Rodney namorar Rachel, Jeremy não tinha dúvidas de que ele ainda tinha um fraco por Lexie. Os desgostos de amor, mesmo na idade adulta, não se esquecem com facilidade, e a altercação parecia coincidir com a data em que ele e Lexie tinham anunciado o noivado.

- Ora viva, cá estão eles! - saudou o presidente Gherkin interrompendo os pensamentos de Jeremy. com excesso de peso e a ficar calvo, o presidente da Câmara era daltónico quando se tratava de roupas. Naquela noite usava calças roxas de poliéster, camisa amarela e gravata com ramagens. Político consumado, parecia não precisar de tomar fôlego enquanto falava. E falou. O homem era um verdadeiro tufão de palavras.

Sem surpresa, falou sem parar:

- a esconderem-se nas traseiras... porquê? Se não vos conhecesse, diria que estão aqui a congeminar planos secretos para irem casar longe e privarem esta terra da cerimónia a que ela tem direito. A deslocar-se pesadamente, apoderou-se da mão de Jeremy, apertou-a efusivamente e sacudiu-a para cima e para baixo. - Muito gosto em vê-lo. Muito gosto em vê-lo - foi dizendo, como se fosse uma ideia que lhe ocorrera naquele momento, antes de prosseguir: - Estou a pensar na praça principal, toda iluminada, ou talvez na própria escadaria da biblioteca. com um pouco de propaganda e algum planeamento, até poderemos trazer o governador até cá. É meu amigo e, se coincidir com a campanha eleitoral, bem, nunca se sabe - concluiu, a olhar para Jeremy, de sobrancelhas arqueadas.

Jeremy pigarreou. - Ainda não discutimos a cerimónia do casamento mas, na verdade, estávamos a pensar em algo mais modesto.

- Modesto? Disparate. Não é todos os dias que uma das mais proeminentes cidadãs da nossa povoação se casa com uma verdadeira celebridade, como sabe.

- Sou apenas um jornalista, não uma celebridade. Pensei termos ultrapassado...

- Não há necessidade de ser modesto, Jeremy. Já estou a ver... Aqui semicerrou os olhos como se efectivamente houvesse alguma coisa para ver. - Hoje, crónicas na revista Scientific American; amanhã, um programa próprio na televisão, transmitido para todo o mundo daqui, de Boone Creek, Carolina do Norte...

- Duvido muito...

- Temos de pensar em grande, meu rapaz. Em grande. Porque, sem os sonhos, Colombo nunca teria navegado para o Novo Mundo e Rembrandt nunca teria pegado num pincel.

Deu uma palmada nas costas de Jeremy, depois inclinou-se e beijou Lexie nas faces. - Está ainda mais bonita do que é habitual, Miss Lexie. Não há dúvida de que o noivado lhe assenta bem, minha querida.

- Obrigada, tom.

Doris revirou os olhos e estava prestes a enxotá-lo do escritório, mas o presidente voltou-se de novo para Jeremy.

- Importa-se que falemos um pouco de coisas sérias? - indagou, mas não esperou pela resposta. - Ora bem, eu seria um servidor público bem negligente se me esquecesse de lhe perguntar se tenciona escrever algum artigo especial sobre Boone Creek, agora que vive aqui, quero eu dizer. Seria uma boa ideia, como sabe. E também útil para a terra. Sabe, por exemplo, que três das quatro maiores lampreias alguma vez pescadas foram apanhadas em Boone Creek? Pense nisso... três das quatro maiores. Poderá existir alguma característica mágica na água.

Jeremy não sabia o que dizer. Claro, o seu editor adoraria aquela história, não era verdade? Em especial o título: "Águas Mágicas Alimentam Lampreia Gigante". Nem pensar. Já tinha o lugar preso por um fio devido à decisão de deixar Nova Iorque; se houvesse cortes de pessoal no magazine, tinha a estranha sensação de que seria o primeiro a ser despedido. Não que ele precisasse daquele rendimento; os seus ganhos principais eram provenientes de artigos escritos como independente, que vendia a outros jornais e revistas; além disso, tinha feito alguns bons investimentos. Dispunha de meios mais do que suficientes para sobreviver durante algum tempo, mas não tinha dúvidas de que a coluna na Scientific American lhe dava uma reputação superior.

- Na verdade, as minhas próximas seis crónicas já estão escritas. E ainda me falta decidir qual será o tema da seguinte, mas não me esquecerei da lampreia gigante.

O presidente da Câmara mostrou-se satisfeito. - Óptimo, meu rapaz. E, ouçam, quero dar-vos oficialmente as boas-vindas neste vosso regresso à nossa terra. Nem consigo demonstrar o quanto estou excitado por terem decidido que o vosso lar permanente será entre esta nossa excelente comunidade. Mas tenho de regressar ao jogo do bingo. O Rhett tem estado a anunciar os números, mas como ele mal sabe ler, receio que cometa algum erro e provoque um motim. Só Deus sabe aquilo de que as irmãs Garrison são capazes se sentirem que estão a ser enganadas.

- As pessoas levam o seu bingo a sério - anuiu Doris.

- Nunca foram ditas palavras mais verdadeiras. Agora, se me dão licença, o dever chama-me.

com uma rápida rotação de calcanhares, notável considerando a largura da cintura do homem, saiu do escritório e Jeremy apenas conseguiu reagir com acenos de cabeça. Doris foi espreitar à porta para se assegurar de que não haveria novas interrupções. Apontou para a barriga da neta.

- Como é que te sentes?

Ao ouvir os murmúrios de Doris e Lexie acerca da gravidez, Jeremy deu consigo a reflectir sobre a ironia envolvida nas decisões de ter filhos e de os criar.

Sabia que as pessoas, pelo menos a maioria delas, tinham consciência das responsabilidades que isso acarretava. Tendo observado os irmãos e as cunhadas, sabia as grandes mudanças que o nascimento de um filho implicava; deixavam de poder dormir até mais tarde nos fins-de-semana, por exemplo, ou de poder decidir, de um momento para o outro, ir jantar fora. Mas afirmavam não se importar, pois viam que a decisão de ter filhos exigia uma certa abnegação, impunha sacrifícios indispensáveis para o bem-estar dos pequenos. Não eram casos raros. Em Manhattan, Jeremy chegara a crer que esta ideia era muitas vezes levada aos limites. Cada pai que conhecia assegurava-se de que o seu filho frequentava a melhor escola, tinha o melhor professor de piano, frequentava o melhor centro desportivo; fazia tudo para que o filho pudesse um dia frequentar uma universidade da Ivy League*.

Mas será que esta abnegação não envolve uma certa dose de egoísmo?

* Conjunto de universidades de grande prestígio, todas no Noroeste dos EUA: Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Princeton, Pensilvânia e Yale. (NT)

Jeremy pensava que era aí que estava a ironia. Afinal, não parecia que as pessoas precisassem de ter filhos. Não, ele sabia que ter um filho tinha essencialmente que ver com duas coisas: constituía a evolução lógica de uma relação, mas secretamente não deixava de ser o produto de um desejo profundamente enraizado de criar uma versão em miniatura de "alguém". Como quando dizemos "tu és especial", seria simplesmente inconcebível que houvesse apenas um "tu" à nossa volta. E quanto ao resto? Aos sacrifícios para se chegar à Ivy League? Jeremy tinha a certeza de que a única razão para uma criança de cinco anos saber da existência da Ivy League era esta ser importante para os pais. Por outras palavras, Jeremy chegara à conclusão de que, na sua maioria, os pais não querem apenas uma "imagem" de si mesmos, pretendem uma "imagem melhor", pois nenhum progenitor alimenta sonhos de estar numa festa a fazer afirmações como: "Oh, o Jimmie está muito bem! Encontra-se em liberdade condicional e quase liberto das drogas." Não, querem poder dizer: "O Emmett, para além de se ter tornado multimilionário, concluiu o doutoramento em Microbiologia e o New York Times acaba de publicar um artigo sobre a investigação em que ele tem andado empenhado e que pode levar à cura do cancro. "

É certo que nenhuma destas questões dizia respeito a Lexie ou a Jeremy, e este sentiu que estava a abusar das conjecturas. Eles não se enquadravam na categoria dos futuros progenitores típicos pela simples razão de que a gravidez não fora planeada. Na altura em que aconteceu, ainda nenhum deles tivera tempo para pensar em imagens em miniatura deles mesmos, nem a gravidez era então considerada a sequência normal da sua relação, pois, em termos técnicos, ainda nem sequer existia uma relação. Não, a filha deles fora concebida num ambiente de beleza e de ternura, sem qualquer das manifestações de egoísmo dos outros pais. O que significava que tanto ele como Lexie eram melhores, menos egoístas, e que, a longo prazo, segundo as reflexões de Jeremy, tal ausência de sentimentos egoístas daria àquela criança ainda mais possibilidades de vir a ser aceite em Harvard.

- Estás bem? - indagou Lexie. - Tens estado um bocado murcho desde que saímos do Herbs.

Eram quase dez horas e estavam em casa dela, uma pequena vivenda marcada pelas intempéries, que se acostava a uma mata de pinheiros antigos. Jeremy olhava através da janela, para as pontas das árvores que balouçavam ao sabor da brisa; vistas ao luar, as agulhas dos pinheiros quase pareciam feitas de prata. Estavam sentados no sofá, com Lexie aninhada debaixo do braço dele. Uma pequena vela tremeluzia na ponta da mesa, derramando luz num prato com restos da refeição que Doris lhes preparara.

- Estou a pensar na bebé - respondeu Jeremy.

- A sério? - indagou Lexie, de cabeça inclinada para um lado.

- Sim, a sério. Porquê? Pensas que não me preocupo com a bebé?

- Não, não se trata disso. Acontece apenas que fiquei com a impressão de que desligaste mal eu e a Doris começámos a falar dela. Nessa altura, estavas a pensar em quê?

Ele apertou-a um pouco mais, julgando melhor não mencionar os egoísmos. - Estava a pensar que a bebé tem muita sorte por seres a mãe dela.

Lexie sorriu, antes de se virar para o observar. - Espero que a nossa filha tenha a tua covinha do queixo.

- Gostas da minha covinha?

- Adoro a tua covinha. Mas espero que os olhos sejam como os meus.

- O que é que os meus olhos têm de mal?

- Os teus olhos não têm nada de mal.

- Mas os teus são muito mais bonitos? Fica a saber que a minha mãe adora os meus olhos.

- Eu também. Em ti, são sedutores. Só não desejo que a nossa filha tenha olhos sedutores. É apenas uma bebé.

Ele riu-se. - E que mais?

Concentrada, Lexie ficou a olhar para ele. - Quero que ela tenha o cabelo como o meu. E o meu nariz e o queixo - prosseguiu, a ajeitar uma madeixa atrás da orelha. - E também a minha testa.

- A tua testa?

Lexie assentiu. - Tens uma ruga entre as sobrancelhas.

Quase sem notar, Jeremy levou um dedo ao sítio, como se nunca tivesse reparado. - É por franzir a testa - esclareceu, a demonstrar como era. - Estás a ver? É devida à concentração. Ao pensamento. Não desejas que a tua filha pense?

- E tu, queres que a tua filha tenha rugas?

- Bem... não, mas queres que de mim ela herde apenas uma covinha?

- E se herdar também as tuas orelhas?

- Orelhas? Quem é que repara em orelhas?

- Acho que tens umas orelhas encantadoras.

- De verdade?

- São perfeitas. Talvez as mais perfeitas orelhas do mundo. Já ouvi pessoas a dizer maravilhas acerca das tuas orelhas.

Jeremy riu-se. - Muito bem, as minhas orelhas e a covinha, os teus olhos, nariz, queixo e testa. Mais alguma coisa?

- E se parássemos com isto? Detesto pensar no que dirias se eu também dissesse que queria que ela tivesse umas pernas como as minhas. Pareces ter ficado susceptibilizado.

- Não estou nada susceptibilizado. Apenas penso dispor de mais qualquer coisa para oferecer do que orelhas e uma covinha. E quanto às minhas pernas... bem, já fizeram virar algumas cabeças, se queres mesmo saber.

Lexie mostrou um sorriso amarelo. - Pronto, tudo bem - protestou -, estou esclarecida. O que é que pensas da cerimónia do casamento?

- A mudar de assunto?

- Temos de falar disso. Acho que quererás analisar algumas ideias.

- Acho que vou deixar a maioria dos pormenores para ti.

- Estava a pensar que deveria ter lugar nas proximidades do farol. Que achas do exterior da casa de praia?

- Estou a lembrar-me - respondeu Jeremy, certo de que ela estava a referir-se ao farol do cabo Hatteras, onde os pais dela se tinham casado.

- Fica num parque natural, seria necessária uma autorização. Estava a pensar que poderia ser no final da Primavera, princípio do Verão. Não quero que se note a barriga nas fotografias.

- Para mim faz sentido. Afinal, não queres que alguém pense que estás grávida. O que diriam as pessoas?

Ela soltou uma gargalhada. - Portanto, não tens quaisquer ideias sobre o casamento, pois não? Nada de especial com que sempre tenhas sonhado?

- Não, realmente não há nada. Quanto à despedida de solteiro, bem, isso é diferente...

Isto custou-lhe um murro de brincadeira na barriga. - Põe-te a pau - troçou Lexie. Depois, aquietando-se, acrescentou: - Sinto-me feliz por estares aqui.

- Também me sinto feliz por cá estar.

- Quando é que queres começar a ver casas?

Estas mudanças bruscas de assunto serviam para lembrar continuamente a Jeremy que, de súbito, a sua vida tinha sofrido uma alteração radical.

- O quê? Desculpa!

- Ver casas. Vamos ter de comprar uma casa, como sabes.

- Pensei que íamos viver aqui.

- Aqui? A casa é minúscula. Onde é que instalavas o teu escritório?

- No quarto vago. Há espaço suficiente.

- E a bebé? Onde é que vai dormir?

Ah, pois, a bebé. Espantoso como se esquecera dela durante um segundo.

- Tens alguma preferência?

- Acho que preferia qualquer coisa perto da água, se estiveres de acordo.

- Perto da água parece-me bem.

Quando Lexie prosseguiu, o seu rosto revelava uma expressão quase sonhadora. - Uma casa com uma grande varanda a toda a volta. Um lugar confortável, com divisões espaçosas e janelas que deixem entrar o sol. E telhado de zinco. Quem nunca ouviu a chuva a cair num telhado de zinco não pode dizer que viveu. É o som mais romântico do mundo.

- Consigo suportar sons românticos.

Ela franziu a testa, a avaliar as respostas dele. - Estás a aceitar tudo isto com um grande desprendimento.

- Estás a esquecer-te de que vivi num apartamento durante os últimos quinze anos. Preocupamo-nos com coisas diferentes, como saber se o elevador funciona.

- Se bem me lembro, o do teu prédio não funcionava.

- O que deveria demonstrar-te que não sou exigente.

Lexie sorriu. - Pois bem, não podemos começar esta semana. Na biblioteca, terei certamente uma montanha de papéis à minha espera; vou levar tempo a pôr tudo em ordem. Mas talvez possamos procurar durante o fim-de-semana.

- Acho bem.

- O que é que pensas fazer enquanto eu estiver a trabalhar?

- Enquanto espero por ti é provável que me entretenha a arrancar pétalas às flores.

- Falo a sério.

- vou tentar adaptar-me e criar uma espécie de horário. Instalar o computador e a impressora, ver até que ponto é possível arranjar uma ligação de banda larga que me permita fazer buscas na Internet. Gosto de ter pelo menos quatro ou cinco crónicas adiantadas, de forma a que, se me surgir um tema, possa dispor de tempo para me dedicar a ele. Assim, o meu chefe de redacção também poderá dormir melhor.

Lexie ficou calada, enquanto ia reflectindo sobre o assunto. - Não julgo que consigas acesso em banda larga no Greenleaf. Ainda nem têm televisão por cabo.

- Quem é que está a falar do Greenleaf? Pensava fazer a ligação daqui.

- Também podes usar a biblioteca. Mas como vais morar no Greenleaf...

- Quem é que diz que vou morar no Greenleaf?

Ela deixou-se escorregar do sofá e olhou-o de frente. - Onde é que havias de morar?

- Julguei que ia morar aqui.

- Comigo?

Jeremy deu a única resposta que lhe pareceu óbvia: - Contigo, claro.

- Mas nós ainda não somos casados.

- E então?

- Sei que são ideias antiquadas, mas por aqui os casais não vivem juntos antes de casados. A gente da terra reprovaria. Partiriam do princípio de que andamos a dormir juntos.

Jeremy ficou a olhar para ela, não se dando ao incómodo de esconder a sua confusão. - Mas nós dormimos juntos. Estás grávida, recordas-te?

Lexie sorriu. - Serei a primeira pessoa a admitir que não faz muito sentido e, se dependesse de mim, ficarias cá. E sei que as pessoas vão acabar por descobrir que estou grávida, mas há um pormenor de loucos: a gente de cá compreende que as pessoas cometam erros. Estão totalmente dispostas a perdoar os erros, mas isso não significa que devamos viver juntos. Falarão nas nossas costas, farão mexericos e levarão muito tempo a esquecer-se de que "vivemos em pecado". E, durante anos, é isso que vão dizer de nós - acrescentou, antes de lhe pegar na mão.

- Sei que é pedir muito, mas vais fazer isso por mim?

Recostando-se, lembrou-se de como era o Greenleaf: uma série de barracas decrépitas, erguidas no meio de um pântano conhecido por albergar serpentes mocassim; Jed, o medonho proprietário que não falava a ninguém; os animais embalsamados que decoravam cada um dos quartos. O Greenleaf. Valha-nos Deus!

- Pois, está bem. Mas... o Greenleaf?

- O que é que há mais? Quero dizer, se quiseres, há um anexo nas traseiras da casa da Doris; penso que tem casa de banho, mas não se compara com o Greenleaf.

Jeremy engoliu em seco, a pensar no assunto. - O Jed mete-me medo - admitiu.

- Eu sei. Disse-me isso quando fiz a reserva, mas prometeu-me que agora seria melhor, pois passaste a ser um vizinho. E a boa notícia é que, como vais lá ficar um tempo, não te cobra de acordo com a tabela regular. Tens desconto.

- Sou um felizardo - respondeu, contrafeito.

Lexie percorreu-lhe o braço com a ponta do indicador. - vou compensar-te. Por exemplo, se agires com discrição, podes vir visitar-me aqui a casa sempre que queiras. Até poderei preparar-te o jantar.

- Se agir com discrição?

Ela assentiu. - O que poderá impedir-te de deixares o carro em frente da minha porta, ou, se o fizeres, deverás provavelmente sair antes do nascer do sol, de modo a que ninguém te veja.

- Por que diabo é que de repente me sinto recuar até aos meus dezasseis anos, quando tinha de me esgueirar pelas traseiras da casa dos meus pais?

- Porque é exactamente isso que terás de fazer. com uma nova objecção: as pessoas daqui não vão mostrar-se tão compreensivas como os teus pais. São muito piores.

- Nesse caso, por que é que vamos morar aqui?

- Porque tu me amas - concluiu Lexie.

 

No decurso do mês seguinte, Jeremy começou a adaptar-se à vida em Boone Creek. Em Nova Iorque os primeiros sinais da Primavera apareciam em Abril, mas em Boone Creek surgiram semanas antes, nos princípios de Março. As árvores começaram a florescer, as manhãs frias passaram a ser suportáveis e, quando não chovia, as tardes de temperaturas amenas não exigiam mais do que uma camisa de mangas compridas. Os relvados, castanhos durante o Inverno, com as centopeias em hibernação, começaram lentamente, de forma quase imperceptível, a tornar-se verde-esmeralda, atingindo a cor normal logo que os arbustos e as azáleas floresceram. O ar era perfumado com odores a pinheiro e a névoa salgada, e o céu, apenas coberto por nuvens ocasionais, avistava-se até ao horizonte. Em meados de Março a vila dava a ideia de ser mais clara e mais brilhante; parecia que a lembrança do seu aspecto durante o Inverno não passava de um sonho melancólico.

As coisas dele, que finalmente chegaram, estavam guardadas no anexo das traseiras da casa de Doris e, enquanto permanecia no Greenleaf, havia momentos em que pensava como se sentiria melhor se vivesse entre as suas mobílias. Não que não se tivesse adaptado àquela vida, em que tinha Jed por único vizinho; Jed ainda não lhe dirigira uma única palavra, mas era bastante eficiente a tomar nota de qualquer mensagem que chegasse. As notas eram difíceis de ler e por vezes pareciam manchadas com... qualquer produto, talvez fluido para embalsamar, ou lá o que era que ele usava para conservar os animais; porém, fosse o que fosse, ajudava a colar os papéis directamente na porta; nem Jed nem Jeremy se preocupavam com a mancha que a substância deixava na madeira.

Jeremy também tinha criado uma espécie de rotina. Lexie tivera razão, no Greenleaf não havia a mais remota possibilidade de obter acesso em banda larga à Internet, mas conseguiu improvisar uma maneira de estabelecer a ligação para receber e-mails e fazer pesquisas em movimento lento, em que por vezes tinha de esperar cinco minutos para obter uma página. A situação tinha um aspecto positivo: a lentidão glaciária das ligações proporcionava-lhe um motivo para ir à biblioteca quase todos os dias. Por vezes conseguia conversar com Lexie no gabinete dela, noutras ocasiões iam almoçar juntos, mas, uma ou duas horas passadas, ela concluía com uma afirmação do género: "Sabes que adoraria ficar todo o dia a conversar contigo, mas também tenho de trabalhar um pouco." Ele entendia a sugestão e dirigia-se para um dos terminais de computador, onde praticamente assentara arraiais, para prosseguir as suas pesquisas. Nate, o seu agente, ligava-lhe constantemente, a deixar mensagens e a indagar com insistência se Jeremy já tinha algumas ideias brilhantes que lhe servissem para escrever futuros artigos, "pois o acordo com a televisão ainda não está morto! ". Como muitos agentes, Nate era, acima de tudo, um optimista. Raramente conseguia uma resposta que fosse além da garantia de que "ele seria sempre o primeiro a saber"; Jeremy não desencantara qualquer história, nem escrevera qualquer crónica desde que viera para o Sul. com tantas coisas a acontecerem, era fácil distrair-se.

Ou era disso que procurava convencer-se. O facto é que tivera umas ideias, mas não tinham conduzido a nada. Sempre que se sentava para escrever parecia-lhe que o cérebro se transformara numa papa e que os dedos haviam sido atacados pela artrite. Tinha escrito uma ou duas frases e em seguida gastara quinze ou vinte minutos a apreciar o seu trabalho, para, finalmente, o apagar. Passou dias a escrever e a apagar, sem nada para mostrar no final. Por vezes imaginava que passara subitamente a ser odiado pelo teclado, mas logo reconhecia que tinha coisas mais importantes em que pensar.

Como Lexie. E o casamento. E a bebé. Sem esquecer, claro, a festa de despedida de solteiro. Desde a partida de Jeremy que Alvin andava a tentar ajustar uma data com ele, mas a marcação do dia do casamento dependia do ministério responsável pelos parques naturais. Apesar de Lexie lhe lembrar constantemente o assunto, Jeremy ainda não conseguira entrar em contacto com alguém que o pudesse ajudar. Acabou por pedir a Alvin que marcasse a festa de despedida de solteiro para o último fim-de-semana de Abril; "quanto mais depressa melhor", pensou. Alvin desligou no meio de um cacarejar excitado com a promessa de fazer da festa uma noite inesquecível.

Não era preciso muito. Por melhor que começasse a habituar-se... Boone Creek não era Nova Iorque e começava a aperceber-se de que tinha saudades da cidade. Soubera de antemão que a mudança para o Sul o obrigaria a grandes ajustamentos, mas continuava a impressionar-se com a absoluta falta de coisas para fazer. Em Nova Iorque podia sair do apartamento, percorrer dois quarteirões em qualquer direcção e encontrar uma enorme variedade de filmes para ver, desde a última fita de acção e aventura a algo mais esteticamente conseguido, até em francês. Boone Creek nem tinha uma sala de espectáculos. A mais próxima, em Washington, só dispunha de três salas de projecção, uma das quais parecia permanentemente ocupada com a última película de desenhos animados da Disney. Em Nova Iorque havia sempre um novo restaurante para experimentar e comida para todas as ocasiões e estados de espírito, desde a cozinha vietnamita à italiana, grega ou etíope; quanto a Boone Creek, jantar fora significava optar por piza dura como cartão ou pela comida caseira do restaurante do Ned, uma casa onde tudo era frito e havia demasiado óleo a pairar na sala, o que obrigava os clientes a limparem a testa com o guardanapo antes de saírem. Ao balcão, já ouvira pessoas a discutirem o método mais eficaz de filtragem da banha de bacon, de modo a obter-se o máximo de sabor, além da quantidade de carne de porco salgada, qualquer que fosse, que devia juntar-se ao repolho, antes de cobrir toda aquela salgalhada com manteiga. O melhor era deixar que fossem os sulistas a descobrir o melhor método de tornar os pratos com vegetais em venenos para a saúde.

Supunha que estava a ser cruel mas, sem lugares onde comer ou sem filmes para ver, o que é que os jovens casais haviam de fazer? Mesmo que se decidisse dar um passeio agradável pela vila, passados poucos minutos a caminhar em cada direcção era necessário voltar para trás. E claro que Lexie não via nada de anormal na situação e parecia gozar da máxima felicidade em sentar-se no alpendre depois de regressar do trabalho, a beberricar chá ou limonada, ou a acenar a um vizinho que ocasionalmente andasse a passear à volta do quarteirão. Para que ele não se sentisse totalmente desalentado com a ideia de ficar sentado no alpendre, Lexie assegurava-lhe que, chegado o Verão, os pirilampos seriam tantos que lhe fariam lembrar as luzes de Natal.

- Nem sei como é que vou aguentar a espera - respondera Jeremy, soltando um suspiro.

Do lado das coisas agradáveis, nas semanas mais recentes Jeremy havia finalmente conseguido realizar um dos seus sonhos: a compra do seu primeiro carro. Podia ser considerado um desejo machista; porém, logo que se apercebera de que ia mudar-se para Boone Creek, era uma das experiências que aguardava com maior entusiasmo. Não tinha andado a poupar e a investir dinheiro todos aqueles anos para nada. Tivera a sorte de comprar acções da Yahoo! e da AOL, depois de ter escrito um artigo sobre o futuro da Internet, e tinha visto as acções atingirem altas cotações, até que vendeu parte da carteira quando se mudou para Boone Creek, sempre a idealizar o momento da compra do carro: a consulta de várias revistas sobre automóveis e as visitas aos concessionários, onde podia sentar-se ao volante e inalar o famigerado "cheiro de carro novo". Em inúmeras ocasiões lamentara verdadeiramente morar em Nova Iorque, pela simples razão de que a vida na cidade tornava a posse de carro um luxo quase supérfluo. Ardia em desejos de se enfiar num carro desportivo, ou num descapotável de duas portas, para fazer um teste de condução pelas pacatas estradas rurais. Na manhã em que tinham decidido ir, ele e Lexie, a um salão de exposição, não conseguia deixar de sorrir ao imaginar o gozo de se sentar ao volante do seu carro de sonho.

Só não contara com a resposta de Lexie quando ele olhou gulosamente para o descapotável de duas portas e lhe seguiu as curvas elegantes com o indicador. - O que é que achas? - perguntou.

Tanto quanto sabia, também ela não conseguiria resistir.

Lexie encarou o automóvel com um ar confuso. - Onde é que pomos a cadeira da bebé?

- Para isso podemos usar o teu carro - sugeriu Jeremy. - Este carro é só para nós. Para passeios rápidos à praia ou às montanhas, para fíns-de-semana em Washington.

- Não creio que o meu carro vá durar muito mais; por isso, não achas melhor comprar um carro para toda a família?

- Tens alguma ideia?

- Por que não um minivan?

Ele resistiu. - Não, de maneira nenhuma. Não esperei trinta e sete anos para comprar um minivan.

- E se for um belo familiar de quatro portas?

- Um familiar de quatro portas? O meu pai conduz um familiar de quatro portas. Sou demasiado jovem para comprar um carro desses.

- E um jipe? São desportivos e velozes. E podem circular pelas montanhas.

Jeremy tentou imaginar qual seria o seu aspecto sentado ao volante de um jipe; abanou a cabeça. - Esses são os veículos preferidos pelas mães que vivem nos subúrbios. Já vi mais carros desses nos parques de estacionamento dos supermercados do que nas montanhas. Além disso, são mais poluentes que os carros normais e eu preocupo-me com o ambiente - sentenciou, a tocar o peito com um dedo para dar mais ênfase às palavras.

Lexie ficou a ponderar a resposta. - Onde é que isso nos leva?

- À minha primeira escolha - respondeu Jeremy. - Imagina que vida maravilhosa... a acelerar pelas estradas, com o vento a agitar-te o cabelo...

Ela riu-se. - Pareces um vendedor. E, acredita, também julgo que seria fantástico. Bem gostaria de ter uma coisinha brilhante como esta. Mas tens de admitir que não tem nada de prático.

Jeremy ficou a olhar para ela, com a boca ligeiramente seca, a sentir o seu sonho começar a morrer. Era evidente que Lexie tinha razão, e ele ficou a mudar o peso de um pé para outro, até que finalmente respirou fundo.

- De qual é que gostas?

- Penso que aquele ali seria bom para a família - respondeu, a apontar para um familiar de quatro portas colocado a meio do parque. - Foi considerado a "Melhor Compra" pela Consumer Reports, é de confiança e podemos conseguir uma garantia de 115 mil quilómetros.

Económica. Inteligente. Responsável. Tinha todas as qualidades basilares, pensou Jeremy, mas, mesmo assim, sentiu um baque no coração quando viu o carro escolhido por ela. Na sua opinião, com toda aquela "sensualidade" que se desprendia dele, poderia ter também painéis laterais de madeira e pneus com faixas brancas.

Reparando na expressão dele, Lexie aproximou-se e pôs-lhe um braço à volta do pescoço. - Provavelmente não é o carro dos teus sonhos, mas o que é que achas se encomendássemos um vermelho, da cor dos carros dos bombeiros?

Jeremy ergueu uma sobrancelha. - E com chamas pintadas no capo?

Ela voltou a rir-se. - Se é isso que realmente desejas.

- Não é. Só pretendia saber até onde poderia ir.

Lexie deu-lhe um beijo. - Obrigada. E, só para que saibas, penso que vais parecer muito atraente sempre que o conduzires.

- vou parecer-me com o meu pai.

- Não - contrapôs Lexie -, vais parecer o pai da tua filha e nenhum homem poderá negar-te isso.

Sorriu, sabendo que Lexie estava a tentar que ele se sentisse melhor. Mesmo assim, quando, uma hora mais tarde, assinou os documentos de compra, deixou descair os ombros ao pensar como tudo poderia ter sido diferente.

Tirando a sensação de desapontamento que tinha sempre que se sentava ao volante, a vida não lhe corria mal. Como não estava a escrever, tinha muito tempo de sobra, muito mais do que era habitual. Durante anos percorrera o mundo à procura de material para os artigos, tinha investigado um pouco de tudo, desde o Abominável Homem das Neves, nos Himalaias, ao Santo Sudário de Turim, em Itália, tinha revelado fraudes, lendas e vigarices. Nos intervalos, compusera artigos onde denunciava trapaceiros, médiuns e curandeiros, conseguindo sempre encontrar tempo para alimentar a sua coluna regular: doze crónicas por ano. Fora uma vida de pressões constantes, por vezes consumidoras de toda a sua energia, mas, mais frequentemente, apenas enfadonhas. No seu casamento anterior, com Maria, as viagens constantes haviam-se tornado uma fonte de tensão, pelo que ela lhe pedira que deixasse de trabalhar como independente e arranjasse emprego num dos jornais importantes de Nova Iorque, de onde pudesse obter um ordenado regular. Nunca levara a questão a sério, mas, ao reflectir na sua vida actual, tinha dúvidas, pensava se não teria sido melhor que tivesse aceitado a sugestão da mulher. Apercebia-se de que a busca e a entrega constantes também tinham deixado marcas em outras áreas da sua vida. Durante anos, tivera necessidade de estar ocupado com alguma coisa, qualquer coisa, em cada momento que passava acordado. Não conseguia estar parado mais do que uns poucos minutos de cada vez; havia sempre algo para ler ou para estudar, a necessidade de escrever era constante. Apercebia-se de que, pouco a pouco, tinha perdido a capacidade de se descontrair, de que tinha resultado um longo período da sua vida em que os meses se dissolviam numa massa, sem nada que diferenciasse um ano do outro.

Aquele mês passado em Boone Creek, por mais monótono que o tivesse achado, fora na realidade... reparador. Não houvera, pura e simplesmente, nada para fazer e, considerando o ritmo frenético da sua vida nos quinze anos mais recentes, o que é que havia a lamentar na nova situação? Era como se estivesse de férias, umas férias não planeadas que o levavam a sentir-se repousado como não se sentia há muitos anos. Pela primeira vez, e parecia que para sempre, estava a escolher o seu próprio ritmo de vida, em vez de ser a vida a determiná-lo. Uma existência melancólica, decidiu, era uma forma de arte subvalorizada.

Gostava especialmente de sentir-se melancólico quando estava na companhia de Lexie. Não era bem o ficar sentado no alpendre, mas gostava de a sentir sob o seu braço enquanto assistiam a um jogo de basquetebol. Estar com Lexie era confortável; apreciava a conversa tranquila durante o jantar e o calor do corpo dela quando se sentavam juntos no topo de Riker's Hill. Ambicionava aqueles momentos simples com um entusiasmo que o surpreendia, mas o que mais apreciava eram as noites em que podia dormir em casa dela e o lento despertar. Era um prazer pecaminoso, que Lexie só autorizava quando ia buscá-lo ao Greenleaf depois de sair da biblioteca, não fosse algum vizinho metediço avistar o carro de Jeremy no caminho de acesso à casa; contudo, qualquer que fosse o motivo, o acto de se esconderem tornava tudo muito mais excitante. Depois de se levantarem, liam o jornal na mesa da pequena cozinha, ao mesmo tempo que tomavam o pequeno-almoço. O mais frequente era ela vestir apenas o pijama e calçar chinelos de pêlo, ter o cabelo desgrenhado e os olhos ligeiramente papudos do sono. Contudo, logo que o sol da manhã se projectava janela adentro, ele não tinha dúvidas de que Lexie era a mulher mais bonita que alguma vez vira.

Por vezes, Lexie reparava que ele estava a olhar e pegava-lhe na mão. Jeremy recomeçava a leitura e assim, sentados juntos e de mãos dadas, cada um perdido nos seus pensamentos, ele perguntava a si próprio se haveria maior prazer na vida.

Também andavam à procura de casa; como Lexie tinha uma ideia muito precisa acerca do que queria, e partindo do princípio de que em Boone Creek a quantidade de casas para venda não seria muito grande, Jeremy pensara que em poucos dias encontrariam uma que lhes interessasse. com alguma sorte talvez bastasse uma tarde.

Estava enganado. Por isto e por aquilo, passaram três longos fins-de-semana a examinar, pelo menos duas vezes, todas as casas que estavam à venda na povoação. Jeremy descobriu que, no seu conjunto, a situação era mais desencorajadora que excitante. Havia qualquer coisa de estranho no acto de devassar as casas das pessoas que o fazia sentir-se mal quando emitia juízos de valor, e nem sempre os mais amáveis, sobre elas. Mas era o que acontecia. Embora a vila pudesse ter história e as casas se mostrassem encantadoras por fora, entrar nelas conduzia a desapontamentos inevitáveis. Em metade das ocasiões era como entrar numa cápsula do tempo, num caminho que o levasse à década de 1970. Desde o filme The Braãy Buncb que não via tanta alcatifa bege e felpuda, tanto papel de parede cor de laranja e tantas cozinhas com lava-loiças de cor verde. Por vezes, notavam-se estranhos odores e uns quantos faziam-no torcer o nariz: talvez bolas de naftalina e dejectos de gatos, ou fraldas sujas e pão com bolor; o mais frequente era ser obrigado a abanar a cabeça mal via as mobílias. Em toda a sua existência de 37 anos, nunca se interessara por cadeiras de balouço, quer na sala de estar quer no alpendre da frente. Mas, agora, estava a aprender a viver com elas.

Havia inúmeros motivos para dizer não, mas, mesmo quando reparavam em qualquer coisa que lhes despertava interesse e os levava a querer dizer sim, o mais provável era depararem com outro pormenor igualmente ridículo.

- Repara - exclamou Jeremy um dia -, esta casa tem uma câmara escura!

- Mas tu não és fotógrafo. Não precisas de uma câmara escura.

- Pois não. Mas, um dia, poderia começar a fotografar. Ou:

- Adoro tectos altos - dizia a encantada Lexie. - Sempre sonhei com um quarto de tecto alto.

- Mas o quarto é minúsculo. Mal conseguiríamos meter aqui uma cama de casal.

- Eu sei. Mas já viste como o tecto é alto?

Acabaram por encontrar uma casa. Ou melhor, um lugar que Lexie adorou; ele, por seu lado, continuava sem ter a certeza. Uma casa de estilo georgiano, em tijolo, com dois pisos e uma varanda descoberta de onde se via toda Boone Creek, além da configuração interior também ser do agrado dela. À venda havia dois anos, o preço era uma pechincha, ou um roubo, segundo os padrões de Nova Iorque, mas estava a precisar de grandes reparações. No entanto, quando Lexie insistiu numa terceira visita, até Mrs. Reynolds, a agente imobiliária, sabia que o isco estava armado e que havia um peixe esfomeado a nadar nas proximidades. Uma senhora magra, de cabelo grisalho, ostentava um sorriso de auto-satisfação naquela sua carinha de rato ao assegurar a Jeremy que a reparação "não custaria mais do que o preço de compra da casa".

- Fantástico! - exclamou ele, a calcular mentalmente se a conta bancária daria para cobrir tudo.

- Não se preocupe - acrescentou Mrs. Reynolds. - É perfeita para um casal jovem, especialmente se têm planos para aumentar a família. Casas como esta não aparecem todos os dias.

Na realidade, aparecem, pensou Jeremy. Qualquer pessoa poderia ter comprado aquela casa durante os últimos dois anos.

Estava prestes a fazer um comentário acerca disso quando reparou que Lexie vinha a afastar-se da escada.

- Posso dar mais uma volta pelo andar de cima? - indagou.

Mrs. Reynolds voltou-se, a esboçar um sorriso, sem dúvida a pensar na comissão. - É claro que pode, minha querida, até vou consigo. A propósito, não estará a pensar em aumentar a família? Porque, se estiver, tem de ver o sótão. Serve para uma fantástica sala de brinquedos.

Ao ver Mrs. Reynolds a acompanhar Lexie pela escada acima, ficou a magicar se ela, por qualquer razão, não se teria apercebido de que Lexie e ele já haviam passado a fase da reflexão no que respeitava ao aumento da família.

Tinha dúvidas. Lexie continuava a desejar manter a gravidez encoberta, pelo menos até ao casamento. Só Doris sabia, uma ideia que não o afectava minimamente, se excluísse o facto de nos últimos tempos se ter visto envolvido em conversas que preferia que ela tivesse com as amigas. Acontecia-lhe, por exemplo, Lexie estar sentada no sofá, voltar-se de súbito para ele e disparar: "depois do parto, vou continuar com o útero inchado durante semanas", ou, "acreditas que o colo do útero vai dilatar-se dez centímetros? ".

Desde que ela começara a ler livros sobre a gravidez, Jeremy tinha de ouvir com demasiada frequência palavras como placenta, umbilical e hemorróidas, se ela resolvesse dizer que os mamilos iam ficar em ferida durante a amamentação, "a ponto de sangrarem!", não tinha dúvidas de que se veria obrigado a sair da sala. Como sucede com a maioria dos homens, tinha apenas conhecimentos bastante vagos, e interesse ainda menor, sobre como se desenrolava aquele processo da "criança que está a crescer dentro de ti"; regra geral, Jeremy estava bastante mais preocupado com o acto específico que, antes de tudo, desencadeia o processo. Ora, sobre isso não se importava de conversar, especialmente no caso de ela estar a olhá-lo por cima de um copo de vinho, numa sala iluminada com velas, a fazer uso daquela sua voz sensual.

O problema era que ela lançava aquelas palavras pela boca fora como se estivesse a ler a lista de ingredientes numa caixa de cereais, o que, em vez de o deixar mais excitado com o que estava a acontecer, o fazia quase sempre sentir-se agoniado.

Apesar daquelas conversas, sentia-se entusiasmado. Havia algo de excitante no facto de Lexie trazer dentro dela a filha dele. Para ele, era um motivo de orgulho pensar que dera o seu contributo para a preservação da espécie, que cumprira o seu papel de criador de vida; um sentimento tão importante que, de facto, passava metade do tempo a desejar que Lexie não o tivesse obrigado a manter o segredo.

Perdido em cogitações, levou um segundo a aperceber-se de que Lexie e Mrs. Reynolds vinham a descer a escada.

- E esta! - exclamou Lexie, radiante ao pegar-lhe na mão. - Podemos comprá-la?

Jeremy sentiu o peito inchar um pouco, mesmo que já se tivesse apercebido de que a operação o obrigaria a dispor de uma parte substancial da sua carteira de investimentos. - Se é o que queres concedeu, alimentando a esperança de que ela reparasse no tom magnânimo que utilizou.

Assinaram os documentos nessa mesma tarde; a oferta deles foi aceite na manhã seguinte. Por ironia, poderiam usar a casa a partir de

28 de Abril, o mesmo dia que ele destinara para estar em Nova Iorque para a sua festa de despedida de solteiro. Só mais tarde tomou consciência do facto de, durante o último mês, se ter tornado uma pessoa totalmente diferente.

 

- Ainda não reservaste uma data no farol? - perguntou Lexie. Estavam na última semana de Março e, acabado o dia de trabalho,

ia a dirigir-se para o carro na companhia de Jeremy.

- Já tentei - explicou ele. - Mas não imaginas o que é tratar com aquela gente. Metade das pessoas só fala comigo depois de me obrigar a preencher formulários, a outra metade parece estar de férias. Nem sequer consegui perceber o que é necessário fazer.

Lexie acenou com a cabeça. - Quando conseguires ter tudo pronto estaremos em Junho.

- Hei-de arranjar uma solução - prometeu Jeremy.

- Sei que sim. Mas preferia que não se notasse e estamos quase em Abril. Não penso que consiga aguentar até Julho. As calças estão a ficar-me apertadas e acho que já tenho o rabo a ficar maior.

Jeremy vacilou, sabendo que estava à beira de um campo minado onde não desejava pôr os pés. Era um assunto que nos últimos dias tinha vindo a emergir com maior frequência. Falar verdade ("bom, é claro que tens o rabo a ficar maior... estás grávida!") significaria uma semana inteira a dormir no Greenleaf.

- Para mim, estás exactamente como dantes - arriscou. Lexie assentiu, ainda perdida em reflexões. - Fala com o presidente da Câmara - sugeriu.

Jeremy olhou para ela, mantendo o ar sério. - Ele pensa que o teu rabo está a ficar maior?

- Não! Sobre o farol! Tenho a certeza de que poderá ajudar-nos.

- Está bem - anuiu Jeremy, a fazer o possível para não se rir.

- É o que vou fazer.

Deram mais alguns passos e ela acabou por lhe dar um toque com o ombro, por brincadeira. - E o meu rabo não está a crescer.

- Não, é claro que não.

Como era habitual, a primeira paragem no caminho para casa era para irem verificar o andamento dos trabalhos de remodelação da casa.

Embora oficialmente só tomassem posse dela em finais de Abril, o proprietário, que a tinha recebido por herança mas vivia noutro estado, deixara que iniciassem os trabalhos, uma tarefa a que Lexie se entregara com entusiasmo. Como praticamente conhecia toda a gente da terra, incluindo carpinteiros, canalizadores, ladrilhadores, instaladores de telhados, pintores e electricistas, além de ter gravada na mente a imagem da casa acabada, foi ela quem tomou à sua conta a execução do projecto. Jeremy limitava-se a passar os cheques, o que, tendo em conta que não quisera encarregar-se pessoalmente das obras, lhe parecia uma justa divisão de tarefas.

Embora não soubesse muito bem o que queria, não era certamente aquilo. Uma equipa completa tinha estado a trabalhar durante toda a semana anterior e lembrava-se de ter ficado espantado com o que haviam conseguido fazer logo no primeiro dia. A cozinha tinha sido destruída, havia telhas empilhadas no relvado da frente, as alcatifas e algumas janelas tinham sido removidas. De uma ponta à outra da casa havia enormes montes de entulho, mas, depois disso, começara a acreditar que a única coisa que os operários faziam era mudar o entulho de um lugar para outro. Mesmo quando passava por lá durante o dia para verificar o andamento dos trabalhos, não lhe parecia que houvesse alguém a trabalhar. Sentados em círculos a beber café, talvez, ou a fumar no alpendre das traseiras, pois com certeza, mas a trabalhar! Pelo que conseguia entender, pareciam estar sempre à espera de uma entrega de materiais ou do regresso do empreiteiro, ou apenas a "descansar um pouco". Não é necessário dizer que a maioria dos trabalhadores era paga à hora, pelo que Jeremy, no seu caminho de regresso ao Geenleaf, nunca deixava de sentir um certo pânico de natureza financeira.

Lexie, pelo contrário, parecia bastante contente com os progressos e reparava em pormenores que a ele escapavam por completo. - Notaste que já começaram a electrificar o primeiro andar? - ou - Vi que instalaram a nova canalização por dentro das paredes, o que nos permitirá colocar o lava-louça por baixo da janela.

- Pois, também reparei - era a resposta habitual de Jeremy.

Para além dos cheques para o empreiteiro, continuava a não escrever, mas, para não ser tudo mau, estava praticamente convencido de que o facto de não escrever não se devia a qualquer bloqueio mental; tratava-se, isso sim, de uma sobrecarga mental. As mudanças sucediam-se, não apenas as mais óbvias, pois havia outras pequenas coisas. Por exemplo, sempre acreditara que tinha um bom gosto inato quanto a vestuário, embora sem disfarçar o estilo nova-iorquino; muitas das suas ex-namoradas elogiavam com frequência o aspecto dele. Era desde há muito assinante da revista GQ, preferia calçado Bruno Magli e camisas de confecção italiana. Porém, aparentemente Lexie tinha opiniões diferentes e parecia apostada em modificar tudo. Duas noites antes, tinha-o surpreendido com uma caixa embrulhada em papel próprio para ofertas e ele sentira-se comovido com a preocupação dela... pelo menos até desembrulhar a prenda.

Dentro da caixa havia uma camisa aos quadrados. Aos quadrados. Como as que os lenhadores usam. E umas calças de ganga Levi's. Obrigado - agradeceu, contrafeito.

Lexie ficou a olhar para ele. - Não te agradam.

- Não, não... é claro que me agradam - mentiu, não queria ferir-lhe os sentimentos.

- Não pareces dizer isso com convicção.

- Gosto, de verdade.

- Achei que devias ter qualquer coisa no teu guarda-roupa que te permitisse não destoar dos rapazes.

- Que rapazes?

- Os rapazes da vila. Os teus amigos. Em caso de... sei lá, quereres jogar póquer, ir à caça ou à pesca.

- Não jogo póquer. Não sou caçador nem pescador - contrapôs, mas, de repente, apercebeu-se de que também não tinha amigos. Por estranho que fosse, nunca tinha reparado.

- Eu sei. Mas, um dia, poderás querer fazer qualquer dessas coisas. É o que os rapazes daqui fazem com os amigos. Sei, por exemplo, que o Rodney se junta uma vez por semana com os amigos e jogam póquer; e o Jed é talvez o mais bem-sucedido caçador de todo o concelho.

- O Rodney ou o Jed? - perguntou, tentando, sem conseguir, adivinhar o que seria passar uma ou duas horas com qualquer deles.

- O que é que o Rodney ou o Jed têm de mal?

- O Jed não gosta de mim. E penso que com o Rodney acontece

o mesmo.

- Isso é ridículo. Como é que poderiam não gostar de ti? Mas dou-te uma sugestão: por que não vais amanhã falar com a Doris? Ela pode ter ideias melhores.

- Póquer com o Rodney? Ou caçadas com o Jed? Podes crer que pagava para ver! - gritou Alvin para o telefone. Como Alvin tinha filmado as luzes misteriosas do cemitério, sabia perfeitamente de quem Jeremy estava a falar, tinha bem viva a lembrança de ambos. Rodney tinha-o metido na cadeia com uma acusação sem sentido depois de ele ter estado a namoriscar Rachel no Lookilu; e Jed assustava-o tanto quanto assustava Jeremy. - Estou a ver... tu a deslizares pela floresta com os teus sapatos Gucci e camisa de lenhador...

- Bruno Magli - corrigiu Jeremy. Era noite, encontrava-se no Greenleaf, mas ainda não deixara de reflectir no facto de ainda não ter feito amigos.

- Ou isso - anuiu Alvin, com nova gargalhada. - Que coisa fantástica... o rato da cidade torna-se rural, tudo porque a sua querida a isso o obrigou. Tens de me informar do dia em que vai acontecer. vou aí de propósito e levo a máquina fotográfica para registar o momento para a posteridade.

- Deixa estar - resmungou Jeremy. - Dispenso!

- Mas ela tem razão num aspecto. Precisas de ter aí alguns amigos. O que me faz recordar... lembras-te daquela rapariga que conheci?

- A Rachel?

- Sim, essa mesmo. Costumas vê-la?

- Às vezes. De facto, como é uma das damas de honor, também a verás.

- Como é que ela está?

- Acredites ou não, agora namora o Rodney.

- O ajudante com a mania dos músculos? Merecia melhor. Mas, olha lá, tenho uma ideia. Talvez pudéssemos sair todos, os dois casais. Almoço no Herbs, talvez uma pequena conversa na varanda...

Jeremy soltou uma gargalhada. - Pelo modo como falas, devias adaptar-te bem aqui. Conheces todas as coisas interessantes que há para fazer.

- Eu sou assim. O "Senhor Adaptado". Mas se vires a Rachel dá-lhe cumprimentos meus e diz que estou ansioso por voltar a vê-la.

- Está bem.

- E a escrita, como é que vai? Não sentes ânsias de procurar uma nova história?

Jeremy remexeu-se na cadeira - Bem gostaria.

- Não tens escrito?

- Nem uma palavra desde que vim para aqui - confessou. com o casamento, a casa e a Lexie não me sobra um minuto.

Houve uma pausa. - Vamos lá esclarecer isto. Não tens escrito nada, nem para a tua coluna regular?

- Não.

- Tu adoras escrever.

- Eu sei. E voltarei a escrever logo que a poeira assente. Jeremy conseguia sentir o cepticismo com que o amigo encarava a

resposta. - bom - acabou Alvin por dizer, - quanto à festa de despedida de solteiro... vai ser impressionante. Toda a gente daqui vai alinhar e, como prometi, vai ser uma noite que nunca esquecerás.

- Só quero que te lembres... nada de dançarinas. Também não quero uma mulher em trajes menores a sair de dentro de um bolo.

- Deixa-te disso. É uma tradição!

- Estou a falar a sério. Estou apaixonado, recordas-te?

- A Lexie preocupa-se contigo - garantiu Doris. - Quer o melhor para ti.

Doris e Jeremy estavam a almoçar no Herbs, no dia seguinte. Como quase todos os clientes habituais já tinham almoçado, o restaurante estava a ficar vazio. Como era costume, Doris tinha insistido que comessem juntos; sempre que se encontravam, afiançava que Jeremy era apenas "pele e osso", pelo que hoje ele estava a saborear uma sanduíche de galinha com molho pesto em pão de centeio.

- Não há motivos de preocupação - protestou. - Há apenas muitas coisas a suceder ao mesmo tempo, mais nada.

- Ela sabe isso. Mas também deseja que te sintas bem, como se fosses de cá. Que te sintas feliz aqui.

- Sou feliz aqui.

- Sentes-te feliz por estares com a Lexie; e ela sabe isso. Mas tens de perceber que, lá no fundo, ela deseja que sintas por Boone Creek o mesmo que ela sente. Não quer que vivas aqui por causa dela, quer que vivas cá por ser aqui que estão os teus amigos. Por sentires que pertences a esta terra. Ela reconhece que fizeste um sacrifício ao deixares Nova Iorque, mas não quer que penses assim.

- Não penso. Acredite, seria o primeiro a dizer-lhe se sentisse isso. Mas... por amor de Deus... o Rodney ou o Jed?

- Acredites ou não, passarás a considerá-los bons tipos desde que os conheças, além de Jed ser o melhor contador de anedotas que eu já ouvi. Mas, se não te divertes da mesma maneira que eles, tudo bem, talvez eles não sejam os amigos mais adequados para ti - admitiu, a levar um dedo aos lábios, a pensar. - O que é que fazias com os teus amigos de Nova Iorque?

"Andava pelos bares na companhia do Alvin, namoriscava as mulheres", pensou Jeremy. - Ora... coisas de homens - confessou. íamos ao futebol, jogávamos bilhar uma vez por outra. Fazíamos companhia uns aos outros. Tenho a certeza de que poderei fazer amigos, mas, como disse, por agora estou demasiado ocupado.

Doris avaliou a resposta. - A Lexie diz que não tens escrito.

- Pois não.

- E por causa da...

- Não, não - negou, enquanto abanava a cabeça. - Não tem nada a ver com a sensação de estar deslocado, ou algo do género. Escrever não é um trabalho como os outros. Não se trata apenas de ir para o escritório e fazer umas coisas. É uma questão de criatividade, de ter ideias e por vezes... bom, acontece que a pessoa não se sente inspirada. Contudo, se aprendi alguma coisa na minha actividade de quinze anos de escrita, é que a inspiração acabará por voltar.

- Não te surgiu uma ideia qualquer?

- Nada de original. Imprimi centenas de páginas do computador da biblioteca, mas sempre que parece surgir uma ideia, apercebo-me de que já escrevi sobre aquele tema. Quase sempre mais de uma vez.

Doris reflectiu sobre o assunto. - Gostarias de utilizar o meu diário? - perguntou. - Sei que não acreditas no que lá está, por isso talvez pudesses... Sei lá, escrever um artigo sobre a investigação que fizeres do caso.

Estava a falar do diário que compilara, em que afirmava ser capaz de prever o sexo dos bebés. Naquelas páginas havia registos de centenas de nomes e datas, incluindo aquele em que previa que Lexie seria uma rapariga.

Para ser franco consigo, Jeremy tinha de reconhecer que já pensara em usar o diário; Doris já lhe fizera a oferta, mas embora inicialmente a tivesse rejeitado por saber que os dons dela não podiam ser verdadeiros, nos últimos tempos a rejeição devia-se ao facto de não querer que as suas ideias entrassem em choque com os sentimentos de Doris. Ela ia fazer parte da sua família.

- Não sei...

- Não há pressa. Podes tomar a decisão mais tarde, depois de o teres estudado. E não te preocupes, prometo que sou capaz de lidar com a fama, caso venhas a decidir escrever um artigo sobre o diário.

Não tens de estar preocupado com isso. Serei a mesma mulher sedutora que sempre fui. Tenho-o no escritório. Espera um pouco.

Antes de Jeremy poder contrariá-la, levantou-se e caminhou na direcção da cozinha. Entretanto, a porta da frente rangeu ao ser aberta para dar passagem ao presidente da Câmara.

- Jeremy, meu rapaz! - exclamou Gherkin ao aproximar-se da mesa. Deu uma palmada nas costas de Jeremy. - Não esperava vê-lo por aqui. Pensei que andasse a colher amostras de água, à procura de indícios para solucionar o nosso mistério mais recente.

As lampreias.

- Lamento desapontá-lo, senhor Presidente. Como é que tem passado?

- Bem, bem. Mas atarefado. Há sempre novos problemas na autarquia. Há sempre muito que fazer. Nestes dias, mal tenho tempo para dormir, mas não quero preocupá-lo com a minha saúde. Desde que fui quase electrocutado pelo desumidificador, já lá vão uns doze anos, nunca mais consegui dormir bem. A água e a electricidade não se misturam.

- Ouvi falar disso - comentou Jeremy. - Ouça, ainda bem que o encontro. A Lexie achou que eu devia falar consigo por causa do casamento.

Gherkin ergueu as sobrancelhas. - Reconsideraram a minha oferta de o transformar numa festa da cidade inteira, de tentar trazer cá o governador?

- Não, nada disso. A Lexie pretende que a cerimónia se realize no farol do cabo Hatteras e ainda não consegui descobrir qualquer elemento do parque natural a quem possa entregar o pedido de autorização. Acha que nos podia dar uma ajuda nesse sentido?

O presidente Gherkin assobiou baixinho, depois de reflectir uns momentos. - É difícil - concluiu, a abanar a cabeça. - Lidar com as autoridades estaduais pode dar um trabalho dos diabos. É como percorrer um campo minado. Tem de se conhecer alguém que nos ensine o caminho.

- É para isso que precisamos da sua ajuda...

- Adoraria poder ajudar, mas tenho andado demasiado ocupado com os preparativos para o Festival das Garças do próximo Verão. É a maior festa das redondezas, pode crer que é ainda mais importante que o Circuito das Mansões Históricas. Teremos carrosséis para os mais pequenos, barracas alugadas ao longo de Main Street, paradas, toda a espécie de concursos. De qualquer forma, a rainha dos festejos deveria ser Myrna Jackson, de Savannah, mas telefonou a informar de que não pode vir, por causa do marido. Conhece a Myrna Jackson?

Jeremy tentou localizar o nome. - Acho que não conheço.

- A notável fotógrafa?

- Lamento.

- Uma mulher famosa, a Myrna - acrescentou Gherkin, ignorando as desculpas de Jeremy. - Provavelmente a melhor profissional da actualidade em todo o Sul. Maravilhoso trabalho. Na realidade, ainda rapariga, passou um Verão em Boone Creek; estávamos muito satisfeitos com a perspectiva de a termos cá. Porém, de um momento para o outro, o marido apareceu doente, com um cancro. Um desastre terrível, terrível, e fique a saber que estamos todos a rezar pelas melhoras dele, mas temos de reconhecer que nos deixou num aperto. Estávamos tão bem servidos e agora vamos levar algum tempo a encontrar um novo rei da parada. Alguém famoso... É uma pena não termos quaisquer ligações com o mundo das celebridades. com excepção de si, como é óbvio.

Jeremy olhou o presidente da Câmara de frente. - Está a pedir-me que seja o rei da festa?

- Não, não, é claro que não. Você já recebeu a chave da cidade. Outra pessoa... alguém com um nome que as pessoas conheçam esclareceu. - Apesar da espantosa beleza da nossa terra e de os nossos cidadãos serem pessoas maravilhosas, não é fácil vender Boone Creek a alguém vindo de uma grande metrópole. Francamente, com todos os preparativos que tenho de fazer para o festival, não é tarefa que se deseje. E depois, ter de lidar com todos esses tipos da administração estadual... - ia continuar, mas hesitou, como se acabasse de reconhecer que o pedido seria difícil de entender.

Jeremy via perfeitamente aonde o presidente da Câmara estava a querer chegar. Gherkin tinha jeito para levar as pessoas a fazerem o que ele pretendia, mas levando-as a pensar que a ideia partira delas. Era óbvio que, em troca de lhe conseguir a autorização de uso do farol, pretendia ver resolvido aquele seu problema do rei da festa; a única dúvida era saber se Jeremy estava disposto a alinhar. Não queria, francamente, mas ele e Lexie precisavam de marcar o casamento.

Respirou fundo. - Talvez eu possa ajudar. O que é que pretende?

Gherkin levou a mão ao queixo, a dar a entender que o destino do mundo estava dependente da solução daquele dilema muito especial.

- bom, podia ser qualquer coisa, suponho. Só estou à procura de um nome conhecido, de alguém que faça as pessoas abrir a boca de espanto e que traga até cá as multidões de fora.

- E se eu conseguisse encontrar alguém? Em troca, como é evidente, da sua ajuda para obter a autorização?

- bom, é uma boa ideia. Nem sei como não me ocorreu. Dê-me um bocadinho para pensar - pediu Gherkin, a bater com um dedo no queixo durante uns momentos. - Pois bem, acho que pode resultar. Quero dizer, partindo do princípio de que consegue arranjar a pessoa certa. Em que género de pessoa é que está a pensar?

- Ao longo de anos entrevistei muita gente. Cientistas, professores, vencedores do Prémio Nobel...

O presidente da Câmara não parava de acenar com a cabeça, mas Jeremy continuou.

- Físicos, químicos, matemáticos, exploradores, astronautas... Gherkin arregalou os olhos. - Você disse astronautas? Jeremy assentiu. - Os tipos que tripulam o vaivém espacial. Há

alguns anos publiquei um grande artigo acerca da NASA e fiquei amigo de uns quantos. Podia telefonar-lhes...

- Estamos de acordo! - exclamou Gherkin, estalando os dedos.

- Já estou a ver os cartazes: "Festival das Garças: Onde o Espaço Vem até à Sua Porta! ". Um tema desses dá para todo o fim-de-semana. Não um concurso de tartes, mas um concurso de tartes lunares; podemos arranjar os carros alegóricos de forma a parecerem foguetões e satélites...

- tom, estás outra vez a maçar o Jeremy com aquela história ridícula das lampreias? - indagou Doris ao regressar à sala, com o diário debaixo do braço.

- Não, senhora - respondeu Gherkin. - Aqui o Jeremy mostrou-se muito simpático e ofereceu-se para encontrar um rei para a parada deste ano; até me prometeu um astronauta a sério... Como tema para a festa, o que é que pensas do espaço?

- Uma inspiração - respondeu Doris. - Um golpe de génio.

- O presidente da Câmara pareceu inchar um bocadinho. - Pois é, tens toda a razão. Gosto da tua maneira de ver as coisas. Ora bem, Jeremy, em que fim-de-semana é que pensa celebrar o casamento? No Verão é muito difícil, com aqueles turistas todos.

- E se for em Maio?

- No início ou no fim?

- Não importa - respondeu Jeremy. - Desde que tenhamos uma data, estará tudo bem. Contudo, se puder ser, preferimos no início do mês.

- Cheios de pressa, não é? Bem, considere o problema resolvido. E fico ansiosamente à espera de notícias desse astronauta; informe-me logo que falar com ele.

com um rápido rodar sobre os calcanhares, Gherkin caminhou para a saída e Doris vinha a sorrir quando voltou a sentar-se. Derrotado outra vez, hein?

- Não, percebi o que ele pretendia, mas a Lexie tem andado ansiosa acerca da autorização.

- Mas, fora isso, os preparativos estão a decorrer como previsto?

- Julgo que sim. Temos as nossas diferenças, ela pretende uma cerimónia pequena e íntima, eu digo-lhe que, se toda a minha família resolver vir até cá, não haverá hotéis suficientes para a acomodar toda. Quero que venha o meu agente, o Nate; ela replica que se convidamos um amigo temos de convidar todos os outros. Questões desse género. Mas vamos ultrapassá-las. Seja o que for que acabemos por decidir, a minha família compreenderá; já falei com os meus irmãos. Não lhes agrada a ideia, mas compreendem.

Doris ia dizer qualquer coisa, mas Rachel irrompeu pela porta da frente, de olhos vermelhos e inchados. Respirou fundo, pelo nariz, ao ver Doris e Jeremy, parou um instante e encaminhou-se para o fundo da casa. Jeremy notou sinais de verdadeira preocupação no rosto de Doris.

- Julgo que ela precisa de uma pessoa com quem possa desabafar

- observou. - Se não te importas...

- Não, falaremos dos preparativos do casamento noutra altura.

- Muito bem... obrigada - agradeceu Doris, ao empurrar o diário na direcção dele. - E leva isto. É uma grande história. Não conseguirás encontrar quaisquer truques porque não os há.

Jeremy aceitou o diário com um aceno de compreensão, ainda sem saber se iria ou não utilizá-lo.

Dez minutos depois, Jeremy gozava o sol da tarde e, quando se dirigia para a vivenda que ocupava no Greenleaf, reparou no escritório. Depois de hesitar um pouco, caminhou naquela direcção e empurrou a porta. Não havia sinais de Jed, o que significava que ele poderia estar na barraca erguida numa ponta da propriedade, o lugar onde fazia os seus trabalhos de taxidermista. Jeremy hesitou uma vez mais, a pensar. Por que não? Bem poderia tentar quebrar o gelo, pois Lexie afirmara que o homem falava. Encaminhou-se para a barraca através do caminho cheio de sulcos. O cheiro a morte e a putrefacção atingiu-o ainda antes de empurrar a porta.

No centro da divisão havia uma comprida mesa de trabalho; era de madeira e estava coberta de nódoas que, pensou Jeremy, deveriam ser de sangue; espalhadas por ali, viu dezenas de facas e ferramentas diversas: grampos, furadores e alguns dos mais medonhos alicates e bisturis que alguma vez vira. Encostados às paredes, alinhados em prateleiras e amontoados nos cantos viam-se inúmeros exemplares do trabalho de Jed; havia de tudo, desde peixes a pequenos marsupiais e veados, todos com a sua marca: estavam montados de maneira a parecerem prestes a atacar o que quer que fosse. À esquerda de Jeremy havia uma espécie de balcão onde se procedia às transacções. O balcão também se encontrava coberto de nódoas; começou a sentir-se agoniado.

Envergando um avental de carniceiro, enquanto trabalhava num porco selvagem, Jed ergueu os olhos quando Jeremy entrou. Imobilizou-se.

- Olá, Jed, como está? Jed manteve-se calado.

- Pensei passar por aqui para ver o seu local de trabalho. Não me lembro de ter manifestado o meu interesse, mas acho o seu trabalho muito curioso.

Esperou para ver se Jed se dignaria a dizer alguma coisa. Mas o outro limitou-se a olhá-lo, como se o considerasse um simples insecto que se tivesse esmagado contra o pára-brisas.

Jeremy tentou de novo, procurando ignorar que Jed era um ser enorme e peludo, que empunhava uma faca e não parecia muito bem-disposto. Prosseguiu: - É que você consegue que eles pareçam zangados, de dentes à mostra, prontos a atacar. Nunca tinha visto nada de semelhante. No Museu de História Natural, em Nova Iorque, a maioria dos animais tem um ar amigável. Os seus parecem raivosos, ou algo parecido.

Jed enrugou a testa, em sinal de desagrado. Jeremy teve a sensação de que aquela tentativa de estabelecer conversa não estava a resultar.

- A Lexie diz que é também um grande caçador - prosseguiu, sem conseguir perceber o motivo de, subitamente, o interior da barraca lhe parecer tão quente. - Confesso que nunca cacei. Em Queens, os únicos bichos que havia para caçar eram os ratos - acrescentou, a rir-se, mas Jed não o acompanhou. No silêncio que se seguiu, Jeremy achou que estava a sentir-se cada vez mais nervoso. - Quero dizer, não tínhamos veados a correr pelas ruas ou coisa que o valha. Contudo, mesmo que tivéssemos, é provável que eu não conseguisse atirar contra eles. Compreende, depois de ver o Bambi e isso tudo.

Sem tirar os olhos da faca que Jed empunhava, Jeremy apercebeu-se de que começava a dizer coisas sem nexo, mas não parecia ser capaz de parar.

- É que eu sou assim. Não que eu pense haver algo de errado na caça, é claro... Há a NRA [National Rifle Association], a Declaração dos Direitos, a Segunda Emenda, apoio tudo isso. Isto é, a caça é uma tradição americana, não é verdade? Alinhar o veado com a mira e pum! O pobre diabo tomba.

Jed passou a faca de uma mão para a outra. Jeremy engoliu em seco; já só desejava pôr-se a andar dali para fora.

- bom, só passei por aqui para o cumprimentar. E boa sorte com... bem, com o trabalho que tiver entre mãos. Mal posso esperar para ver o resultado. Tem algumas mensagens? - indagou, a mudar o peso do corpo de um pé para o outro. - Não? Então, obrigado. Tive muito gosto em falar consigo.

Jeremy sentou-se à mesa do quarto e ficou a olhar um ecrã em branco, a tentar esquecer-se do que acabara de acontecer com Jed. Desejava desesperadamente pensar em qualquer assunto sobre o qual pudesse escrever mas, pouco a pouco, chegou à conclusão de que a fonte tinha secado.

Acontecia a todos os escritores, em certas alturas; sabia disso e também sabia que não existia qualquer cura mágica, pois todos os escritores tinham uma forma pessoal, algo diferente, de encarar a sua arte. Uns escreviam pela manhã, outros faziam-no durante a tarde, outros, ainda, só trabalhavam de noite. Alguns escreviam com música de fundo, outros necessitavam de silêncio absoluto. Sabia de um escritor que, segundo constava, escrevia despido, fechado à chave no escritório, e dava instruções à assistente para não lhe devolver a roupa enquanto ele não lhe tivesse passado cinco folhas por debaixo da porta. Sabia de outros que viam o mesmo filme vezes sem conta e havia quem só conseguisse escrever depois de ter bebido ou fumado em excesso. Jeremy não era tão excêntrico; no passado, escrevia a qualquer hora, em qualquer lugar, sempre que havia necessidade de o fazer; não podia, portanto, normalizar a situação com uma simples mudança de hábitos.

Embora ainda não sentisse verdadeiro pânico, começava a ficar preocupado. Andava há mais de dois meses sem escrever uma linha mas, graças ao programa de publicação da revista, era habitual dispor de um avanço de seis semanas e tinha crónicas já escritas, que dariam até Julho. Eram uma garantia de que ainda dispunha de algum espaço de manobra antes de ter de enfrentar graves problemas na Scientific American. Porém, como o trabalho em regime independente pagava a maior parte dos gastos e tivera de liquidar a quase totalidade da sua conta de investimentos para pagar o carro, as despesas correntes, a primeira prestação da casa e os gastos com a hipoteca, sem falar da renovação interminável da casa, não lhe davam garantias de dispor de tanto tempo. Parecia que um vampiro dopado lhe estava a sugar o dinheiro das contas bancárias.

E começava a pensar estar bloqueado. Não se tratava da mudança de ambiente ou do facto de andar muito ocupado, como sugeriam Alvin e Doris. Afinal, conseguira escrever depois de se ter divorciado de Maria. Na verdade, sentira a necessidade de escrever para enfrentar a situação. Na altura, a escrita fora um escape, mas e agora? E se nunca mais conseguisse sair do impasse?

Perderia o emprego. Perderia o rendimento. Como diabo é que ia sustentar a Lexie e a filha? Ver-se-ia forçado a ser um "Senhor Mamã", com a Lexie a trabalhar para sustentar a família? Visões desconcertantes.

Pelo canto do olho, avistou o diário de Doris. Podia, supunha, aceitar a oferta dela. Talvez só precisasse daquilo para pôr os neurónios novamente a funcionar: elementos sobrenaturais, interessantes, originais. Se, claro está, fosse verdade. Seria verdade que ela previa o sexo dos bebés?

Não, concluiu de novo. O problema era esse. Não podia ser verdade. Podia tratar-se da maior coincidência da história, mas não era verdade. Não havia maneira de verificar o sexo de uma criança com o simples assentar da mão na barriga da mãe. Ponto final.

Nesse caso, como é que ele pudera acreditar com tanta facilidade que Lexie ia dar à luz uma menina? Quando se imaginava no futuro, a segurar a bebé, via-a sempre envolta num xale cor-de-rosa. Ficou sentado, a pensar, acabando por decidir que, na realidade, não estava absolutamente convencido. Lexie era quem tinha a certeza, não era ele, que se limitava a reflectir a certeza dela. E o facto de ela se referir sempre ao futuro filho como "a menina" mais reforçava a ideia.

Em vez de se preocupar mais com o tema, ou de tentar escrever, Jeremy decidiu-se por uma busca dos seus sítios preferidos da Internet, aqueles em que havia novidades, na esperança de que saltasse qualquer ideia. Sem acesso em banda larga, a progressão era lenta, a ponto de o fazer cabecear, mas continuou. Encontrou quatro sítios onde se falava de discos voadores, um com as últimas novidades relativas a casas assombradas e o sítio mantido por James Randi que, tal como ele, se dedicava a desmascarar fraudes. Há anos que Randi oferecia o prémio de um milhão de dólares a qualquer médium, homem ou mulher, que conseguisse provar o seu dom em condições de rigoroso controlo científico. Até à data, ninguém, nem mesmo os mais conhecidos médiuns que apareciam com regularidade na televisão ou publicavam livros, se dispusera a aceitar o desafio. Uma vez, num dos seus artigos, Jeremy fizera a mesma oferta (em escala bem mais reduzida, é claro) mas os resultados foram exactamente os mesmos. As pessoas que se intitulavam médiuns eram especialistas em publicidade pessoal, não em fenómenos paranormais. Jeremy ainda se recordava da forma como desmascarara Timothy Clausen, um homem que garantia ser capaz de falar com os espíritos dos defuntos. Fora a última grande história em que trabalhara antes de vir a Boone Creek para procurar fantasmas mas, em vez deles, conhecera Lexie.

No sítio de Randi havia a colecção habitual de histórias, de acontecimentos supostamente mágicos, tudo apimentado pela descrença do autor, mas passadas umas horas desligou, percebendo que não prosseguiria o estudo de casos que não tivesse começado a investigar.

Consultou o relógio, viu que eram quase cinco da tarde e ficou a pensar se ainda poderia passar pela casa para avaliar o progresso das obras. Talvez tivessem movido algum monte de entulho ou algo do género, qualquer coisa que pudesse dar uma indicação de que o projecto seria completado durante o ano em curso. A despeito do fluxo interminável de facturas, Jeremy começava a duvidar de que alguma vez pudessem habitar a casa. O que antes parecera controlável mostrava-se agora uma tarefa medonha, pelo que decidiu não passar por lá. Não havia motivo para piorar um dia triste, para o tornar ainda mais lúgubre.

Em vez disso, decidiu ir à biblioteca para ver como é que Lexie estava. Vestiu uma camisa lavada, passou a escova pelo cabelo e pôs um pouco de água de colónia; minutos mais tarde, estava a passar pelo Herbs, a caminho da biblioteca. com o avançar da Primavera, os arbustos e as azáleas começavam a ficar fracos e cansados, mas junto às paredes dos prédios e na base dos troncos das árvores, os narcisos e as túlipas começavam a abrir, com cores ainda mais garridas. A brisa morna do sul tornava o tempo mais parecido com o do começo do Verão do que com o do final de Março, um daqueles dias que levava multidões até ao Central Park.

Pensou se não deveria parar e comprar flores para Lexie, acabando por decidir que seria melhor. Havia apenas uma florista na terra, numa loja onde também se vendia isco e instrumentos de pesca; apesar de a escolha não ser abundante, saiu da loja minutos depois trazendo um ramo de flores primaveris que certamente Lexie ia adorar.

Chegou à biblioteca poucos minutos mais tarde, mas ficou de ar carrancudo ao verificar que o carro de Lexie não estava no lugar habitual. Erguendo o olhar para a janela do gabinete dela, verificou que as luzes estavam apagadas. Pensou que a encontraria no Herbs e voltou para trás. Procurou, não encontrou o carro e resolveu passar por casa dela; talvez tivesse saído mais cedo. Era provável que tivesse qualquer coisa a tratar ou de ir às compras.

Fez inversão de marcha e voltou para o centro, pelo mesmo caminho, sempre a baixa velocidade. Quando reparou no carro de Lexie, arrumado perto de um Dumpster, nas traseiras da loja das pizas, travou a fundo e arrumou o carro ao lado do dela, calculando que Lexie teria aproveitado aquele dia maravilhoso para um passeio pela esplanada.

Pegou nas flores e caminhou por entre os prédios, com a ideia de a surpreender, mas ao virar a esquina parou abruptamente.

Lexie estava lá, como ele esperava. Estava sentada no banco de onde se via o rio, mas o que o fizera parar fora o facto de ela não estar sozinha.

Estava sentada ao lado de Rodney, quase aninhada de encontro a ele. De trás, era difícil ver mais do que isso. Jeremy recordou a si próprio que eles eram apenas amigos. Conheciam-se desde a infância e, por momentos, isso bastou para o sossegar.

Até que eles se mexeram no banco. E Jeremy apercebeu-se de que estavam de mãos dadas.

 

Jeremy sabia que não devia preocupar-se com o que vira. Lá no fundo, sabia que Lexie não estava interessada em Rodney, mas na semana seguinte, já em Abril, deu consigo a matutar sem descanso na cena a que tinha assistido. Mesmo depois de ter perguntado a Lexie se tinha acontecido algo de anormal naquele dia, a resposta que obteve dela foi um não, que tinha passado a tarde na biblioteca. Embora pudesse questioná-la um pouco mais por causa da mentira, não vira necessidade de o fazer. Ela tinha ficado encantada com as flores e beijara-o logo que ele lhas passou para a mão. Procurou encontrar qualquer diferença naquele beijo - se havia alguma hesitação ou um prolongamento menos habitual, como que para compensá-lo - mas não sentiu nada de anormal. Nem houve nada de estranho na conversa que mantiveram durante o jantar, ou no encantamento posterior, no alpendre.

Mesmo assim, não conseguia esquecer-se da imagem de Lexie de mãos dadas com Rodney. Quanto mais pensava no assunto mais se convencia de que eles pareciam um casal, embora também recordasse a si mesmo que a ideia não fazia sentido. Lexie e Rodney não podiam andar a encontrar-se em segredo. Ele passava a maior parte dos dias na biblioteca, entregue às suas buscas, e passava os serões com Lexie. Portanto, não conseguia acreditar que Lexie alguma vez sonhasse com o que poderia ter existido entre ela e Rodney, se Jeremy não tivesse aparecido. Ela contara-lhe que, desde os tempos de crianças, Rodney sempre tivera uma paixão por ela, que uma vez por outra tinham ido juntos a algumas festas oficiais, mas que isso pertencia ao passado. Lexie sempre resistira ao aprofundamento da relação e Jeremy nem sequer imaginava que ela mudasse agora de ideias. Lexie pegara-lhe na mão, sem dúvida, mas isso não significava que os seus sentimentos em relação a Rodney se tivessem modificado. Por amor de Deus, quantas vezes ele tinha pegado na mão da sua mãe! Podia tratar-se de um sinal de afeição ou de apoio, uma maneira de lhe demonstrar que estava a ouvi-lo falar das suas mágoas. Numa relação como a de Lexie e Rodney, poderia ter sido um gesto de consolo, pois ambos se conheciam há muitos anos.

Não era de esperar que Lexie começasse a ignorar as pessoas que tinha conhecido durante toda a sua vida, pois não? Ou que deixasse de se preocupar com os outros? Para começar, não tinham sido aquelas qualidades que o tinham feito apaixonar-se por ela? Era evidente que sim. Lexie tinha uma maneira de levar as pessoas com quem falava a pensar que eram o centro do mundo e, embora uma dessas pessoas fosse o Rodney, tal não significava que ela estivesse apaixonada por ele. O que, em resumo, significava que não tinha motivos para estar preocupado.

Então, por que carga de água continuava a pensar naquilo? E por que, quando os viu, sentiu aquela pontada de ciúme?

Porque ela lhe mentiu acerca do caso. Talvez uma mentira por omissão; mas não deixava de ser uma mentira. Finalmente, incapaz de ficar quieto mais um segundo, levantou-se da mesa, pegou nas chaves do carro e dirigiu-se para a biblioteca.

Abrandou ao aproximar-se, viu o carro de Lexie arrumado no local próprio e ergueu os olhos na direcção do gabinete dela. Ficou a observar durante uns minutos, retomando a marcha logo que a viu de relance. Apesar de qualificar de parvoíce aquela nova obsessão, não deixou de suspirar de alívio. Repetiu a si mesmo, uma vez mais, que não havia motivos para estar preocupado, que fora ridículo ao ter posto a hipótese de Lexie estar noutro sítio qualquer. O sentimento de que estava a ser parvo durou todo o caminho até ao Greenleaf.

Enquanto se instalava outra vez em frente do ecrã, pensava que ele e Lexie estavam muitíssimo bem e censurou o seu próprio comportamento, a suspeita, prometendo que arranjaria uma forma de a compensar. Pensou que podia fazê-lo, que devia fazê-lo, mesmo que nunca admitisse os motivos. Talvez naquela noite a convidasse para jantar numa terra próxima.

Para além de ficarem sentados no alpendre, não havia mais nada no programa habitual, por isso decidiu que uma pequena mudança de ritmo poderia ser benéfica para ambos. Mais do que isso, Lexie ficaria surpreendida com a atenção. Se alguma coisa aprendera no mundo do namoro, era que as mulheres adoram surpresas e, tanto melhor, se o jantar fora o aliviasse do sentimento de culpa por ter andado a espiá-la.

Sentiu-se satisfeito consigo mesmo. Ambos estavam a precisar de uma noite especial. Até lhe comprara outro ramo de flores, além de ter passado os vinte minutos seguintes a navegar pela Internet, à procura de um bom lugar onde pudesse levá-la. Encontrou um e telefonou a Doris a perguntar-lhe se já ouvira falar nele. A avó de Lexie recomendou vivamente o restaurante; assim, depois de fazer a marcação, meteu-se outra vez debaixo do chuveiro.

Como ainda faltavam umas duas horas para ela sair do emprego, Jeremy voltou a sentar-se em frente ao computador, de dedos pousados no teclado. Contudo, mesmo depois de ter passado quase todo o dia sentado à secretária, apercebeu-se de que não estava mais capaz de escrever do que estivera pela manhã, ao saltar da cama.

- Eu vi-te, hoje à tarde - disse Lexie, a espreitá-lo por cima da ementa.

- Quando?

- Vi o carro a passar à frente da biblioteca. Onde é que ias?

- Ah! - exclamou Jeremy, contente por ela não o ter visto a olhar na direcção da janela. - Na verdade, ia sem destino. Andava por ali, a tentar desanuviar a cabeça, antes de ir sentar-me novamente em frente do computador.

Surpreendida com o ramo de narcisos e a reserva para jantar fora, Lexie mostrara-se excitada, como ele esperava. Mas, como não podia deixar de ser, a excitação implicava uma ida a casa, para mudar de roupa e preparar-se, o que significou um atraso de três quartos de hora na partida. Quando chegaram ao restaurante Carriage House, nos arredores de Greenville, a mesa tinha sido ocupada e tiveram de ficar vinte minutos no bar à espera de vaga.

Lexie parecia relutante em fazer a pergunta que parecia óbvia, o que fazia todo o sentido. Todos os dias lhe perguntava como é que estava a decorrer o trabalho de escrita; e todos os dias recebia a mesma resposta: não houvera qualquer alteração. Possivelmente, a situação começava a incomodá-la, da mesma maneira que o afectava.

- Tiveste alguma ideia? - arriscou.

- Na verdade, tive algumas - mentiu Jeremy. Tecnicamente não era uma mentira, tivera aquela ideia esquisita acerca da relação de Lexie e Rodney, mas sabia que ela não estava a referir-se a esse género de ideias.

- De verdade?

- Continuo às voltas com elas, a ver onde me levam.

Lexie ficou ainda mais bem-disposta. - Isso é fantástico, meu querido. Nesse caso, temos de celebrar - decidiu, olhando em volta para a sala fracamente iluminada, para os empregados vestidos de branco e preto, para as mesas com velas acesas, um ambiente de surpreendente elegância. - A propósito, como é que descobriste um lugar como este? Nunca aqui estive, mas sempre quis cá vir.

- Bastou uma pequena busca - explicou Jeremy. - E a seguir telefonei à Doris.

- Ela adora este lugar - esclareceu Lexie. - Se tivesse tido possibilidades, julgo que hoje dirigiria um restaurante como este, em vez do Herbs.

- Mas é necessário pagar as facturas, não é verdade?

- Exactamente. O que é que vais comer?

- Estava a pensar no bife porterhouse - respondeu ele, a percorrer a ementa com os olhos. - Não como um bom bife desde que saí de Nova Iorque. E batatas gratinadas.

- Olha lá, o porterhouse não são dois bifes? O entrecosto e o lombo?

- É por isso que me soa bem - declarou Jeremy, fechando a ementa, já a sentir água na boca. Ao olhar para ela, reparou que estava de nariz torcido. - O que é que se passa?

- Quantas calorias é que calculas que tem?

- Não faço ideia. E também não me interessa.

Ela forçou um sorriso e voltou a estudar a ementa. - Tens razão. Se não comermos assim todos os dias, qual é o problema? Mesmo tratando-se de... o quê? Uma libra, uma libra e meia de carne vermelha? *

Jeremy sentiu a testa a enrugar-se. - Eu não disse que ia comer tudo.

- Não interessa, podes comer tudo. Não estou em situação de poder dizer seja o que for. Come o que quiseres.

- É isso que vou fazer - respondeu Jeremy, com ares de provocador. No silêncio que se instalou, ela continuou a estudar a ementa e ele a pensar no bife porterhouse. Era uma grande quantidade de carne vermelha, saturada de colesterol e gordura. Os especialistas não recomendavam que se comesse apenas uma dose de 90 gramas de cada

* 1 libra - 453, 6 gramas. (NT)

vez? E este bife... quanto é que tinha? Cinco vezes mais? Oito vezes? Dezasseis vezes mais. Chegava para uma família inteira.

E depois, o que é que isso interessava? Era jovem e já decidira fazer exercício no dia seguinte. Uma corrida, uma dose extra de flexões. Em que é que estás a pensar?

- Ainda não me decidi. Não tenho a certeza do que me apetece, mas ou vou no atum cozido ou no peito de galinha estufado, com o molho à parte. E vegetais cozidos a vapor.

Jeremy já imaginava que ela escolheria um daqueles pratos. Qualquer coisa ligeira e saudável. Manter-se-ia em forma e magra, embora se encontrasse grávida, enquanto ele sairia do restaurante a caminhar como um pato.

Voltou a consultar a ementa e reparou como ela se esforçava por fingir não notar a indecisão dele. Uma prova de que estivera realmente atenta aos gestos dele. Percorreu novamente a ementa e passou para as secções de frutos do mar e de aves. Tudo lhe parecia maravilhoso. Mas nada comparável ao porterhouse. Voltou a fechar a ementa, a pensar que estava a sentir-se culpado sem motivo.

Desde quando é que a comida se tornara um reflexo do carácter? Se encomendasse comida saudável, era boa pessoa; se pretendesse um prato não considerado saudável, passava a ser um malvado? Não tinha um problema de excesso de peso, pois não? Resolveu encomendar o bife porterhouse, mas voltou a pensar que comeria apenas metade, talvez ainda menos. Também não se tratava de desperdício. Levaria as sobras para casa. Sorriu interiormente, satisfeito com a decisão. Que viesse o porterhouse!

Quando o empregado de mesa se aproximou, Lexie mandou vir sumo de amoras e peito de vitela estufado. Jeremy também se decidiu pelo sumo de amoras.

- E para jantar?

Sentiu os olhos de Lexie pousados nele. - O... atum - decidiu.

- Cozedura média.

Depois de o empregado se afastar, Lexie sorriu. - O atum?

- Pois. Depois de o mencionares pareceu-me boa ideia. Insondável, Lexie limitou-se a encolher os ombros.

- O que é agora?

- É que este lugar é famoso precisamente pelos bifes. Tinha uma certa esperança de que me deixasses provar um bocado do teu.

Jeremy sentiu que os ombros lhe pesavam. - Na próxima vez - prometeu.

Por mais que tivesse tentado, Jeremy ainda não descobrira a maneira de conhecer as mulheres. Quando namorava, houve alturas em que lhe parecia estar a aproximar-se desse conhecimento, em que parecia prestes a conseguir prever as mais subtis expressões e os maneirismos delas, para se aproveitar disso. Porém, como o jantar com Lexie demonstrara, ainda tinha muito que aprender.

O problema não residia no pormenor de ter mandado vir atum em vez do bife porterhouse. Era mais grave que isso. O verdadeiro problema residia na necessidade que os homens, ou a maioria deles, têm de ser admirados por uma mulher; por conseguinte, os homens estão dispostos a fazer quase tudo para o conseguir. E suspeitava de que as mulheres ainda não tinham entendido totalmente este facto tão simples. Por exemplo, as mulheres podem partir do princípio de que os homens que passam muito tempo no emprego agem assim por considerarem o trabalho a coisa mais importante das suas vidas, uma ideia totalmente errada. Não é a questão do poder pelo poder - pois bem, para alguns homens talvez seja, mas estes serão a minoria -, é o facto de as mulheres serem atraídas pelo poder pelas mesmas razões que levam os homens a interessar-se pelas mulheres jovens. São traços definidos pela evolução, características que passaram de geração em geração, desde o homem das cavernas. Uns anos antes, escrevera uma crónica sobre as bases evolucionistas do comportamento, apontando, entre outras coisas, que os homens eram atraídos pelas mulheres jovens, bem feitas e sedutoras, pois estas tendiam a ser férteis e a gozar de boa saúde; por outras palavras, o macho procurava criar uma descendência forte; quanto às mulheres, também se sentiam atraídas por homens suficientemente fortes para poderem ser capazes de proteger e sustentar a mulher e a sua prole.

Lembrava-se de ter recebido muitas cartas por causa desse artigo, mas o mais estranho residia nas reacções que suscitara. Enquanto os homens tendiam a concordar com a forma como representara a evolução, as mulheres mostraram desagrado, por vezes veemente. Uns meses depois escreveu outro artigo, desta vez sobre as diferenças, utilizando excertos das cartas como exemplos.

Contudo, mesmo que conseguisse objectivamente perceber que pedira o atum por necessitar da admiração de Lexie, o que lhe daria, a ele, maior poder, isso não o ajudava a decifrar o que ela pretendia, além de a gravidez estar a complicar ainda mais a situação. Admitia não saber muito acerca de gravidezes, mas tinha uma certeza, que residia no facto de as mulheres grávidas revelarem por vezes apetências esquisitas. Lexie podia ter-se revelado uma excepção em tudo o resto, mas Jeremy estava preparado para qualquer problema que pudesse surgir nessa área. Os irmãos haviam-no prevenido para que esperasse tudo; a uma das cunhadas tinha apetecido salada de espinafres, outra quisera pastrami com azeitonas e uma terceira acordava a meio da noite para ir comer sopa de tomate e queijo cheddar. Por conseguinte, quando não estava a tentar escrever, era bastante frequente pôr-se a caminho do supermercado, onde enchia o carro com tudo o que lhe vinha à cabeça, qualquer coisa capaz de satisfazer os desejos gastronómicos de Lexie, por mais disparatados que parecessem.

Contudo, do que não estava à espera era das mudanças irracionais de humor. Uma noite, cerca de uma semana depois do jantar na Carriage House, acordou com Lexie a fungar. Quando se virou, deu com ela sentada e encostada à cabeceira da cama. Mal lhe via as feições devido à luz fraca, mas reparou no monte de lenços de papel que ela acumulara no colo.

- Lex? Estás bem? O que é que se passa?

- Desculpa - pediu, com a voz de quem está muito constipada.

- Não queria acordar-te.

- Não faz mal... não há problema. O que é?

- Nada.

Pelo som, parecia ter dito "noda". Ficou a observá-la, ainda sem saber o que se estava a passar. Não deixava de chorar pelo facto de ele estar a olhar e voltou a fungar. - Só me sinto triste - explicou.

- Posso trazer-te alguma coisa? Pastrami? Sopa de tomate? Lexie pestanejou por entre as lágrimas, como se tentasse perceber

se tinha ouvido bem. - Por que diabo é que pensas que eu quero pastrami?

- Por nada - respondeu. Deslizou na direcção dela e pôs-lhe um braço à volta da cintura. - Portanto, não tens fome? Nenhum desejo esquisito?

Ela abanou a cabeça. - Não. Estou apenas triste.

- E não sabes porquê?

De súbito, recomeçou a chorar, soltando grandes soluços que lhe faziam tremer os ombros. Jeremy sentiu um aperto na garganta. Não havia nada pior que o som do choro de uma mulher e quis confortá-la. - Pronto, pronto - murmurou. - Vai tudo resolver-se, seja o que for.

O choro aumentou de intensidade. - Não vai nada. Já não há solução.

- Para quê?

Passou muito tempo até que ela parecesse ter retomado um certo

autodomínio. Finalmente, virou-se para ele; tinha os olhos vermelhos e inchados.

- Matei o meu gato - anunciou.

Estava preparado para ouvir muitas respostas. Era provável que ela se sentisse perturbada pelas mudanças que estavam a acontecer na sua vida, por exemplo. Ou, talvez, a carga de hormonas a fizesse lembrar os falecidos pais. Não tinha dúvidas de que aquela explosão emocional estava relacionada com a gravidez, mas aquela não era uma explicação para que estivesse preparado. Não conseguiu mais do que esbugalhar os olhos.

- O teu gato? - acabou por perguntar.

Lexie assentiu e pegou noutro lenço de papel, a falar por entre soluços. - Pois... matei-o.

- Ah! - conseguiu ele exclamar. Não sabia, francamente, o que dizer. Nunca vira um gato ali em casa, nunca a ouvira falar num gato. Nem sabia se ela gostava de gatos.

Entretanto, ela prosseguiu, com a voz ainda rouca. Pela linguagem corporal, percebeu que Lexie ficara magoada com o comentário dele.

- É tudo... o que... consegues dizer?

Jeremy estava em desvantagem. Deveria concordar com ela? Na verdade, não deverias ter matado o gato. Deveria mostrar empatia? Pronto. O gato é que teve a culpa. Deveria dar-lhe apoio? Mesmo tendo matado o gato, continuo a considerar-te uma excelente pessoa. Simultaneamente, estava a passar em revista as suas recordações, a tentar perceber se alguma vez houvera um gato na casa e, em caso afirmativo, qual seria o seu nome. Ou como é que, passado tanto tempo, nunca o tinha visto. Porém, num rasgo de inspiração, encontrou a resposta perfeita.

- Por que é que não me contas o que aconteceu? - sugeriu, tentando que a voz lhe saísse tranquilizadora.

Graças a Deus, aquilo parecia ser exactamente o que ela desejava ouvir, pois os soluços começaram a ser mais espaçados. Voltou a assoar-se.

- Estava a lavar a roupa e despejei o secador para o encher de novo - recordou. - Sabia que ele gostava de sítios quentes, mas não me lembrei de olhar lá para dentro e fechei a porta. Matei o Boots.

Jeremy fixou o nome, Boots. Percebido. O gato chamava-se Boots. No entanto, o nome não lhe tornava mais compreensível o resto da narrativa.

Fez uma nova tentativa: - Quando é que isso aconteceu? Lexie suspirou: - No Verão. Na altura em que estava a preparar-me para ir para Chapei Hill.

- Ah, estamos a falar da altura em que foste para a universidade!

- exclamou Jeremy com ar triunfante.

Ela examinou-o, obviamente confusa e irritada. - E claro que estou. Pensaste que eu estava a falar do quê?

Jeremy sabia que o melhor era não responder. - Desculpa a interrupção. Continua - pediu, a fazer o possível para falar com voz amável.

- O Boots era. o meu bebé - prosseguiu, em voz baixa. - Fora abandonado e encontrei-o ainda pequenino. Enquanto frequentei a escola secundária dormiu sempre na minha cama. Era tão bonito: pêlo castanho-avermelhado e patas brancas; sabia que Deus mo tinha dado para que eu o protegesse. E foi o que fiz... até o fechar dentro do secador.

Pegou noutro lenço de papel. -Julgo que rastejou para dentro do secador enquanto eu estava distraída. Como já acontecera antes, costumava inspeccionar o interior do secador, mas, por qualquer motivo, naquele dia não o fiz. Limitei-me a enchê-lo com roupa molhada, fechei a porta e carreguei no botão - explicou. Recomeçou a chorar e prosseguiu, por entre soluços: - Eu estava no rés-do-chão... meia hora depois... ouvi o... o... motor parar... e quando abri o secador... encontrei-o...

Em seguida, encostou-se a Jeremy e entregou-se a um choro descontrolado. Ele chegou-a mais para si, onde murmura palavras de apoio.

- Não mataste o teu gato - garantiu-lhe. - Foi um acidente. O choro aumentou de intensidade. - Mas... tu não... estás a perceber?

- A perceber o quê?

- Que... vou ser... uma péssima mãe. Eu... que... fechei o meu pobre gato... no secador...

- Limitei-me a abraçá-la e ela continuou a chorar - contou Jeremy durante o almoço do dia seguinte. - Por mais que lhe assegurasse que seria uma excelente mãe, não me deu ouvidos. Passou horas a chorar. Não descobri nada que pudesse fazer para a consolar, até que adormeceu. E, quando acordou, pareceu-me óptima.

- É da gravidez - explicou Doris. - Actua como um enorme amplificador. Tudo se torna maior: o tronco, a barriga, os braços. E também as emoções e as memórias. Uma vez por outra, a mulher parece estar maluca e por vezes faz as coisas mais extravagantes. Coisas que nunca faria noutras circunstâncias.

A explicação de Doris fê-lo rever a imagem de Lexie e Rodney de mãos dadas e, por instantes, perguntou a si próprio se deveria mencionar o facto. Mas a ideia desapareceu tão depressa quanto tinha aparecido.

Doris pareceu notar qualquer coisa na expressão dele: - Jeremy? Sentes-te bem?

Disse que sim com movimentos de cabeça. - Estou bem. Tenho muitas coisas em que pensar.

- Acerca da bebé?

- Acerca de tudo. O casamento, a casa. Tudo. Há muito a fazer. Podemos ocupar a casa no final do mês e o Gherkin só conseguiu autorização para o primeiro fim-de-semana de Maio. Estamos a passar por um período esgotante - esclareceu, olhando para Doris, sentada do outro lado da mesa. - A propósito, obrigado pela ajuda que prestou a Lexie nos preparativos do casamento.

- Não precisas de me agradecer. Depois da nossa última conversa, achei que era o mínimo que podia fazer. E, na verdade, não há assim tanto que fazer. Farei o bolo e toda a comida para a recepção no exterior mas, para além disso, não fica muita coisa, uma vez que consigas a autorização. As mesas do piquenique ficam por minha conta, a florista encarrega-se das flores, o fotógrafo está contratado.

- A Lexie contou-me que finalmente escolheu o vestido.

- Escolheu. E também para a Rachel, que é a dama de honor.

- Consegue disfarçar a barriga da Lexie?

Doris soltou uma gargalhada. - Essa foi a única condição que ela impôs. Mas não te preocupes, vai muito bonita, mal conseguirás notar que está grávida. No entanto, penso que as pessoas já começam a suspeitar - sugeriu, indicando a Rachel, que estava a limpar uma outra mesa. - Julgo que ela sabe.

- Como é que pode saber? Não lhe contou, pois não?

- Não, é evidente que não. Mas uma mulher consegue descobrir quando outra está grávida. E, durante o almoço, tenho escutado os murmúrios dos clientes. Como é óbvio, o facto de a Lexie ir procurar roupas de bebé na loja que o Gherkin tem na baixa não ajuda muito. As pessoas reparam nesse género de coisas.

- A Lexie não vai ficar nada satisfeita ao ouvir isso...

- Não se vai importar. Pelo menos, a longo prazo. E, além disso, não acredita que possa realmente manter o segredo durante muito tempo.

- Isso significa que já posso informar a minha família?

Doris hesitou e respondeu lentamente: - Quanto a isso, acho melhor falares com a Lexie. Continua preocupada com a possibilidade de não gostarem dela, especialmente por vocês se terem decidido por um casamento tão simples. Sente-se mal por não poder convidar todo o clã - explicou. Sorriu: - As palavras são dela, não são minhas.

- Não haverá problemas - garantiu Jeremy. - Formam um clã. Mas um clã que poderá ser controlado.

Quando Doris pegou na chávena, Rachel veio até à mesa deles com um bule de chá doce. - Querem que encha as chávenas? Jeremy aceitou: - Obrigado, Rach. Ela encheu-lhe a chávena. - Andas entusiasmado com o casamento?

- Bastante. Como é que correu a ida às compras com a Lexie?

- Foi giro. Foi agradável sair daqui durante algum tempo. Mas acho que compreendes isso.

"Não tenhas dúvidas de que compreendo", pensou Jeremy. Oh, a propósito, falei com o Alvin e ele mandou-te cumprimentos.

- Ai mandou?

- Disse que gostará de voltar a ver-te.

Rachel ajeitou o avental. - Dá-lhe também cumprimentos meus. Alguém quer mais um bocado de bolo de nozes? Julgo que ainda há.

- Não, obrigado - agradeceu Jeremy. - Estou cheio. Doris também recusou. - Eu não quero.

Quando Rachel os deixou para se dirigir à cozinha, Doris pousou o guardanapo e voltou a dar atenção a Jeremy. - Ontem passei pela casa. Parece que as obras estão a andar bem.

- Parece-lhe? Ainda não notei.

- Vai estar pronta - afirmou Doris, reparando no tom com que ele falou. - Por estas bandas, as pessoas podem trabalhar a ritmo mais lento mas, no final, as coisas aparecem feitas.

- Só espero que a casa esteja pronta antes de a bebé entrar para a universidade. Acabámos de descobrir que as térmitas têm provocado alguns estragos.

- Estavas à espera de quê? A casa é velha.

- É como a casa do filme Um Dia a Casa Vem Abaixo. Aparece sempre mais qualquer coisa que tem de ser reparada.

- Podia ter-te avisado. Por que é que pensas que esteve tanto tempo à venda? E deixa que te diga: por mais cara que te fique, continuará a ser mais barata do que qualquer outra que esteja para venda em Manhattan, não é verdade?

- Mas é mais frustrante.

Doris observou-o. - Presumo que continuas a não escrever.

- Desculpe?

- Ouviste perfeitamente - respondeu Doris com voz suave. Não estás a escrever. És um escritor; é como te defines. E, se não o podes fazer... bem, crias uma situação semelhante à gravidez da Lexie, em que tudo o resto aumenta de volume.

Jeremy concordou que Doris tinha razão. Não se tratava dos encargos com a casa, dos planos do casamento, da bebé, ou do facto de ambos continuarem a ajustar-se à situação de viverem como um casal. Toda a angústia que sentia era em grande parte consequência de não conseguir escrever.

No dia anterior tinha enviado a crónica seguinte, ficando apenas com mais quatro crónicas prontas; o editor da Scentific American já começara a deixar mensagens no telemóvel de Jeremy, a querer saber as razões de ele nem se dar ao trabalho de manter o contacto. Até Nate começava a ficar preocupado; antes deixava mensagens a sondar a possibilidade de ele escrever uma história que pudesse interessar aos produtores da televisão, mas agora a dúvida era se Jeremy estaria a escrever alguma coisa, fosse o que fosse.

A princípio, fora fácil arranjar desculpas; o editor e Nate compreendiam que a vida dele tinha passado recentemente por uma grande transformação. Porém, quando se habituou a recitar uma litania sempre igual de desculpas, o próprio Jeremy apercebeu-se do que elas queriam realmente dizer: eram apenas desculpas. Por que razão os seus pensamentos se confundiam logo que ligava o computador? Por que é que os dedos se tornavam inúteis? E por que é que isso só acontecia quando se tratava de escrever algo que lhe servisse para pagar as contas?

Pois, esse era o problema. Alvin enviava e-mails com regularidade; Jeremy conseguia compor uma longa resposta em poucos minutos. O mesmo acontecia sempre que os irmãos ou o pai lhe escreviam, ou quando tinha de redigir uma carta, ou quando decidia tomar notas acerca de qualquer assunto interessante que lhe aparecia na Internet. Conseguia escrever sobre os programas de televisão, conseguia escrever acerca de economia ou de política; sabia que conseguia porque já tinha tentado. Era fácil, de facto, escrever sobre qualquer coisa... desde que não tivesse nada a ver com os temas em que era especialista. Nesses casos, ficava de cabeça vazia. Ou, pior, sentia que talvez não conseguisse voltar a escrever sobre tais assuntos.

Suspeitava que era uma questão de falta de confiança. Um sentimento estranho, que nunca experimentara antes de se mudar para Boone Creek.

Bem gostaria de saber se era esse o motivo. A própria mudança. Fora então que o problema surgira; não tinha nada a ver com planos de casamento ou qualquer outro pormenor. Ficara bloqueado desde o momento em que entrara naquela terra, como se a decisão de ter vindo viver ali tivesse um preço oculto. O que sugeria que conseguiria escrever se estivesse em Nova Iorque. Mas... conseguiria mesmo? Matutou na ideia, mas acabou por negar com acenos de cabeça. Agora isso já não interessava, pois não? Estava ali. Em menos de três semanas, a 28 de Abril, mudava-se para a casa nova e depois voava para a sua festa de despedida de solteiro; uma semana mais tarde, a 6 de Maio, casava-se. Para o melhor e para o pior, aquele era agora o seu lar.

Olhou o diário de Doris. Como poderia iniciar um artigo com base nele? Não que tivesse a intenção de o fazer, mas apenas a título de experiência...

Abriu um novo documento no computador e começou a pensar, de mãos pousadas no teclado. Porém, nos cinco minutos seguintes, os dedos não se moveram. Não havia ali nada, nada de nada. Nem conseguia arranjar uma frase para começar.

Passou a mão pelos cabelos, frustrado, a desejar outro intervalo, a reflectir sobre o que havia de fazer. Não servia de nada ir ver a casa em obras, o que apenas serviria para o irritar ainda mais. Em vez disso, decidiu passar algum tempo na Internet. Sentiu o Modem a estabelecer a ligação, ficou a ver o ecrã encher-se e observou a página de abertura. Ao notar que tinha uma dúzia de mensagens novas, carregou no botão de acesso à caixa de correio.

Na sua maioria, eram lixo e apagou-as sem as abrir; Nate também enviara uma mensagem, a indagar se ele reparara em qualquer dos artigos onde se falava de uma queda massiva de meteoritos, na Austrália. Jeremy respondeu que já escrevera quatro artigos acerca de meteoritos, um deles no ano anterior, mas agradecia a ideia.

Quase apagava a última mensagem, que não trazia indicação do assunto, mas pensou melhor e, logo que a mensagem apareceu, ficou espantado, de olhos pregados ao ecrã. Sentia a garganta seca e não conseguia desviar o olhar. E, subitamente, também mal conseguia respirar. Era uma mensagem simples e o piscar do cursor parecia zombar dele: "COMO É QUE SABES QUE O FILHO E TEU? "

 

COMO É QUE SABES QUE O FILHO É TEU?

Jeremy deitou a cadeira abaixo quando se levantou, sem tirar os olhos da mensagem. É claro que o filho é meu!, queria gritar. Sei porque sei!

Pois, a mensagem parecia perguntar, dizes que sabes. Mas como é que sabes?

Entregou-se a uma busca febril de respostas. Porque ele e Lexie tinham passado uma maravilhosa noite juntos. Porque ela lhe dissera que a bebé era dele e não tinha motivos para mentir. Porque iam casar-se. Porque não poderia ser de mais ninguém. Porque era a sua filha...

Não era?

Se ele fosse qualquer outro, se a sua história tivesse sido diferente, se conhecesse Lexie há anos, a resposta seria óbvia; mas...

Sabia que aquele era um dos problemas da vida. Havia sempre

um mas.

Afastou aquele pensamento, concentrou-se na mensagem, a tentar controlar as emoções. Não havia motivo para se descontrolar, disse para si mesmo, considerando que a mensagem não era apenas ofensiva, mas estava mais próxima da... maldade. Era assim que a via. Um produto do mal. Que espécie de pessoa escreveria uma coisa daquelas? E que razões teria? Por se julgar engraçado? Por querer iniciar uma desavença entre ele e Lexie? Porque...

Durante uns momentos sentiu-se bloqueado, sem saber o que fazer, com a cabeça a funcionar a toda a força, conhecendo a resposta mas sem querer admiti-la.

Porque...

Porque, a vozinha dentro da sua cabeça respondeu por fim, quem enviou a mensagem sabe que, no fundo, houve um momento em que também tiveste dúvidas.

Não, pensou subitamente, isso era mentira. Sabia que o filho era dele.

Tirando, como é óbvio, o facto de que não consegues engravidar uma mulher, recordou-lhe a vozinha.

Como um relâmpago, tudo lhe veio de súbito à mente: o primeiro casamento, com Maria, a impossibilidade de ela engravidar, as consultas na clínica de fertilidade, os exames a que fora sujeito, tudo culminando nas palavras do médico: - É altamente improvável que o senhor alguma vez consiga gerar um filho.

Tratava-se de uma escolha ponderada de palavras: Jeremy soubera durante a consulta que, para todos os efeitos, era estéril, uma realidade que acabaria por levar Maria a pedir o divórcio.

Recordou-se de ter ouvido o médico informá-lo de que os seus índices de produção de espermatozóides eram baixos, quase irrelevantes, de facto; e os que produzia revelavam uma mobilidade muito baixa. Jeremy recordava-se de estar sentado no consultório, em estado de choque, à procura de uma solução. "E se usasse boxers? Ouvi dizer que ajudam", ou "E os tratamentos?", mas o médico explicara que a medicina não poderia realmente fazer o que quer que fosse para o ajudar. Nada que pudesse revelar-se eficaz.

Fora um dos dias mais devastadores de toda a sua vida; até então, sempre partira do princípio de que viria a ter filhos e, após o divórcio, reagira de forma a tornar-se uma pessoa inteiramente nova. Teve tantas aventuras de uma noite só que mal conseguia recordá-las e decidira levar uma eterna vida de solteiro. Até ter conhecido Lexie. E acontecer o milagre daquela gravidez, um filho gerado com paixão e amor, que o fizera ver a inutilidade da sua vida durante todos aqueles anos.

A menos que...

"Não, esquece-te disso", pensou Jeremy. Não havia dúvidas. Era evidente que o filho era dele. Tudo desde o momento em si até ao comportamento de Lexie ao longo do tempo e à forma como Doris o tratava agora lhe assegurava que, de facto, era ele o pai da bebé. Repetia estes pensamentos como quem recita um sermão religioso, na esperança de negar a realidade das palavras ditas, há tantos anos, pelo médico.

A mensagem continuava a zombar dele. Quem a mandara? E, tentava uma vez mais perceber, com que finalidade?

Anos de trabalho de investigação tinham-lhe ensinado muito acerca da Internet e embora o remetente usasse um endereço que lhe era desconhecido, sabia que a proveniência de qualquer e-mail poderia eventualmente, ser descoberta. com uma certa dose de persistência e fazendo as chamadas telefónicas certas para uns quantos contactos estabelecera ao longo dos anos, podia seguir o e-mail até ao servidor utilizado e, partindo daí até ao computador de onde fora enviado Notou que a mensagem chegara menos de vinte minutos antes, precisamente na altura em que estava de regresso ao Greenleaf.

Mesmo assim, permaneceria a outra pergunta: O que levaria alguém a enviar uma mensagem daquelas?

Lexie era a única pessoa a quem falara do seu problema de infertilidade; não contara a mais ninguém, nem aos pais nem aos amigos- e embora tivesse havido um momento em que ele próprio se perguntara o que Poderia ter acontecido, contra todas as probabilidades, logo tirara as dúvidas da cabeça. Contudo se apenas Maria e Lexie sabiam e nenhuma delas, disso tinha a certeza, mandara a mensagem, punha-se de novo a questão do motivo. Seria uma piada de mau gosto?

Doris referira o facto de algumas pessoas terem começado a suspeitar de que Lexie estava grávida; a Rachel, por exemplo. Mas não conseguia imaginar Rachel como autora do e-mail. Ela e Lexie eram amigas há muitos anos, e aquele não era o género de partida que se faça entre amigos.

Ora não sendo uma partida, o único motivo concebível para o

envio daquele e-mail era o propósito de criar

  problemas entre Jeremy

e Lexie. Porém, e mais uma vez, quem faria isso?

O verdadeiro facto, perguntava a vozinha interior, obrigando-o a recordar-se de ter visto Lexie e Rodney de mãos dadas.

Jeremy abanou a cabeça. Rodney e Lexie? Já pensara na cena um milhar de vezes; não era possível, pura e simplesmente. Sentia-se ridículo só de pensar naquilo.

No entanto, é uma boa explicação para o e-mail, sussurrava de novo a voz.

Não pensou, desta vez de forma mais resoluta. Lexie não era dessas. Naquela semana Lexie não dormira com mais ninguém- Lexie nem sequer tinha namorado. E Rodney não era o género de homem que escrevesse um e-mail; teria enfrentado Jeremy pessoalmente.

Jeremy carregou na tecla para apagar a mensagem. Porém, quando a máquina lhe pediu a confirmação, o dedo pareceu recusar-se. Será que quereria apagar o e-mail agora, sem descobrir quem o tinha enviado?

Decidiu que não, que tinha de saber. Levaria algum tempo, mas descobriria quem fora e iria confrontar a pessoa, demonstrar-lhe que era pobre de espírito. E se tivesse sido Rodney... bom, não seria apenas Jeremy a confrontá-lo, pois não tinha dúvidas de que Lexie também lhe diria o que pensava dele.

Acenou que sim. Sem dúvida que descobriria o culpado. Arquivou a mensagem, com a intenção de começar imediatamente a investigar. E, quando soubesse de alguma coisa, Lexie seria a primeira a saber.

Passar o serão com Lexie afastou quaisquer dúvidas que ele pudesse ter acerca da paternidade. Durante o jantar, Lexie conversou como era habitual; na verdade, durante a semana seguinte, Lexie agiu como se nada a preocupasse. O que, muito honestamente, Jeremy achava estranho, tendo em conta que o casamento sucederia dali a pouco mais de duas semanas, que iriam tomar posse da casa na semana de sexta-feira a uma semana, embora esta estivesse longe de poder ser habitada; Jeremy começara até a discorrer em voz alta sobre o local onde poderia trabalhar em Boone Creek, pois, como era óbvio, tinha-se esquecido de como é que se escrevia um artigo. Tinha enviado outra crónica escrita de antemão, ficando apenas com três de reserva. Ainda não conseguira identificar a fonte do e-mail, quem o enviara fizera um bom trabalho na destruição de pistas. Para além do endereço anónimo, o e-mail tinha sido enviado através de uma série de servidores diferentes, um deles off-shore e outro que não estava disposto a dar informações sem uma intimação judicial. Por sorte, conhecia uma pessoa em Nova Iorque que poderia entregar-se a um pouco de pirataria, mas ia levar tempo. O homem trabalhava para o FBI como independente e a agência policial bastava para o manter ocupado.

A parte positiva era que, para além de outro episódio de lágrimas a meio da noite, Lexie parecia bem mais descontraída do que ele. Tal não significava, como era evidente, que ela fosse exactamente a mulher que ele julgara. Acabou por se aperceber de que Lexie se sentia totalmente responsável pela gravidez. Era ela a portadora da bebé, era ela quem tinha as mais malucas alterações de humor e era ela quem lia todos os livros; o que não significava que Jeremy fosse um completo ignorante da questão. Ou que se aborrecesse com os pormenores que ela achava tão intrigantes. Na manhã do sábado seguinte, um dia quente e de sol brilhante, Lexie fez tilintar as chaves quando estavam a preparar-se para irem às compras, como se quisesse proporcionar-lhe uma última oportunidade de se eximir aos seus deveres de paternidade.

- Tens a certeza de que hoje me queres fazer companhia? perguntou.

- Absoluta.

- Não querias assistir a um desafio de basquetebol que a televisão vai transmitir? Vais perder o jogo.

Jeremy sorriu. - Não faz mal. Amanhã transmitirão outros jogos.

- Como sabes, isto vai levar algum tempo.

- E então?

- Só não quero que te sintas aborrecido.

- Não vou aborrecer-me. Adoro compras - prometeu Jeremy.

- Desde quando? E, além disso, são artigos de bebé.

- Adoro comprar artigos de bebé.

Lexie assentiu. - Que te faça bom proveito!

Uma hora depois, chegados a Greenville, Jeremy entrou num daqueles armazéns de artigos para crianças e subitamente começou a pensar se não teria sido preferível dar ouvidos a Lexie. O lugar era diferente de tudo aquilo que ele tinha visto em Nova Iorque. Não era apenas o facto de ser muito comprido e ter tectos altíssimos, mas a profusão de artigos à venda era de provocar vertigens. Se comprar coisas servia de prova de amor pelos filhos, aquele era obviamente o lugar onde se devia ir. Jeremy passou os primeiros minutos a andar por ali, sem querer acreditar no que via, a magicar quem teria sido capaz de reunir tudo aquilo.

Quem sabia, por exemplo, que os pais podiam escolher entre literalmente milhares de brinquedos móveis para pendurar nos berços? Alguns com animais, outros com cores, com figuras geométricas a preto e branco, uns tocavam música e outros giravam em círculos lentos. Não era preciso dizer que cada brinquedo fora estudado de forma a estimular o desenvolvimento intelectual do bebé, pelo que ele e Lexie devem ter ficado no corredor respectivo a examinar os brinquedos durante uns bons vinte minutos, durante os quais Jeremy ficou a saber que, por norma, a sua opinião não tinha qualquer ponta de interesse.

- Li que os bebés respondem principalmente ao preto e ao branco

- afirmou Lexie.

- Então, podemos levar este - propôs Jeremy, a apontar para um brinquedo com desenhos a preto e branco.

- Mas eu estava a pensar em enquadrá-lo num tema de animais, não acho que este sirva.

- É apenas um brinquedo. Ninguém vai reparar.

- Eu reparo.

- Nesse caso, fiquemos com este. com os hipopótamos e as girafas.

- Mas não é a preto e branco.

- Julgas que isso tem mesmo importância? Que, se a nossa filha não tiver um brinquedo a preto e branco em bebé, vai ser expulsa do jardim infantil?

- Não, é claro que não - condescendeu Lexie. Contudo, mantinha-se em frente da prateleira, não parecendo capaz de tomar qualquer decisão.

- E se fosse este? - acabou por sugerir Jeremy. - Tem painéis que podem mostrar alternadamente preto e branco e animais e ainda roda e toca música.

Lexie olhou-o com uma expressão quase de pena. - Não achas que ela ficaria demasiado excitada com um brinquedo deste género?

Por fim, conseguiram escolher o brinquedo (preto e branco, com animais, capaz de rodar, mas sem música) e, sem saber bem porquê, Jeremy partiu do princípio de que a partir dali as escolhas seriam mais fáceis. E, nas duas horas seguintes, algumas escolhas foram fáceis: cobertores, chupetas e, para surpresa dele, o próprio berço; porém, ao chegarem à secção onde estavam expostas as cadeirinhas de viagem, sentiram-se de novo desconcertados. Jeremy nunca imaginara que não fosse possível resolver o problema com uma única cadeira; em vez disso, havia uma "para bebés de menos de seis meses, de costas para a frente", outra "leve e fácil de remover", que "pode adaptar-se ao carrinho do bebé", aquela em que o "bebé viaja de frente", para além da de "grande resistência em caso de acidente". Havia ainda a acrescentar a variedade infindável de desenhos e de cores, a facilidade com que podia ser instalada no automóvel e removida, os mecanismos de segurança, pelo que, no final, Jeremy se sentiu feliz por terem comprado apenas duas, ambas classificadas de "Melhor Compra" na Comumer Reports. Tendo em conta o preço exorbitante e o facto de, poucos meses depois do nascimento da bebé, o destino mais provável da cadeirinha ser o sótão, aquele estatuto de melhor compra soava a ironia.

Contudo, a segurança estava em primeiro lugar. Como Lexie lhe recordou: - Não queres que a nossa bebé corra riscos, pois não?

Como se ele pudesse discordar, não era?

- Tens razão - anuiu, colocando as duas caixas em cima da montanha de compras que tinham acumulado. Já havia dois carrinhos cheios e estavam a tratar de encher o terceiro. - A propósito, que horas são?

- Três e dez. Fizeste a mesma pergunta há cerca de dez minutos.

- De verdade? Pareceu-me que era mais tarde.

- Foi isso que disseste há dez minutos.

- Desculpa.

- Tentei avisar-te de que ias aborrecer-te.

- Não estou aborrecido - mentiu. - Ao contrário da maioria dos pais, preocupo-me com a minha filha.

Lexie parecia estar a divertir-se. - Óptimo. De qualquer forma, estamos quase despachados.

- A sério?

- Só quero dar uma rápida vista de olhos pelas roupas.

- Estupendo - aplaudiu, com esforço, a pensar que a rapidez não entrava nos cenários possíveis.

- É apenas um minuto.

- Leva o tempo que quiseres - concedeu, como se quisesse provar a sua valentia.

Foi o que ela fez. No final, ele calculou que, naquela tarde, teriam passado o tempo correspondente a uns seis anos a escolher roupas. De pernas doridas e a sentir-se algo parecido com um burro de carga, Jeremy encontrou um banco onde pôde sentar-se, enquanto Lexie parecia ter a intenção de examinar cada peça de vestuário para bebés que o estabelecimento tinha para vender. Uma por uma, seleccionava a peça, erguia-a, torcia o nariz ou sorria deliciada a imaginar a sua menina metida ali dentro. O que, era evidente, não tinha qualquer sentido para Jeremy, pois não fazia ideia de como seria a sua filha.

- E quanto a Savannah? - indagou Lexie examinando mais um fatinho. Aquele, notou Jeremy, era cor-de-rosa com coelhinhos púrpura.

- Só lá estive uma vez - respondeu.

Lexie pousou o fatinho. - Estou a falar de um nome para a bebé. E se fosse Savannah?

Jeremy reflectiu. - Não, tem um som demasiado sulista.

- E qual é o mal? Ela é uma sulista.

- Mas o pai é ianque, recordas-te?

- Óptimo. De que nomes é que gostas?

- E se fosse Anna?

- É o nome de metade das mulheres da tua família, não é? Jeremy pensou que ela tinha razão. - É, mas pensa como toda a

família se sentiria lisonjeada.

Lexie acenou que não. - Não podemos aceitar Anna. Quero que ela tenha o seu próprio nome.

- Que me dizes a Olivia?

Novo movimento de negação. - Não, não lhe podemos fazer isso.

- O que é que Olivia tem de mal?

- Havia uma rapariga que andou comigo na escola, chamava-se Olivia e sofreu terrivelmente com acne.

- E então?

- Traz-me más recordações.

Jeremy assentiu, a pensar que fazia sentido. Não poria à sua filha o nome de Maria, por exemplo. - Que outras ideias é que tens?

- Também pensei em Bonnie. O que é que pensas do nome?

- Não, namorei uma mulher chamada Bonnie. Tinha um hálito fedorento.

- Sharon?

Ele encolheu os ombros. - Penso o mesmo, só que a Sharon que namorei era uma cleptomaníaca.

- Linda?

Nova negativa. - Desculpa. Essa atirou-me com um sapato. Lexie ficou a estudá-lo com cuidado. - Quantas mulheres é que tiveste nos últimos dez anos?

- Não faço ideia. Porquê?

- Porque estou a começar a pensar que namoraste praticamente todos os nomes que há por aí.

- Não, isso não é verdade.

- Nesse caso, dá-me um nome.

Ele pensou um pouco. - Gertrude. Posso dizer com toda a franqueza que nunca namorei uma Gertrude.

Depois de revirar os olhos, Lexie pegou novamente no fatinho, examinou-o uma vez mais e pô-lo de lado, para pegar num outro. "Já só restam uns milhões de peças para ela ver", pensou Jeremy. com aquele ritmo, deveriam estar a sair do estabelecimento por altura do nascimento da bebé.

Ela examinou mais uma peça e olhou para ele de lado. - Hum...

- Hum, o quê?

- Gertrude, é? Tive uma tia chamada Gertrude, a mais carinhosa senhora que conheci - recordou. - Agora que penso nisso, talvez haja aí uma possibilidade.

- Espera lá - interrompeu Jeremy, a tentar imaginar-se, sem o conseguir, a chamar Gertrude a qualquer criança. - Não estás a falar a sério.

- Podíamos abreviar o nome, chamar-lhe Gertie. Ou Trudy. Jeremy protestou. - Não. Posso suportar muitas coisas, mas não

vamos pôr o nome de Gertrude à nossa filha. Nada me fará ceder nesse ponto. Penso que, como pai, tenho direito a exprimir uma opinião, a nossa filha não vai chamar-se Gertrude. Só me pediste um nome de mulher com quem eu não tivesse namorado.

- Óptimo. De qualquer forma, só estava a meter-me contigo. Nunca gostei do nome - contemporizou Lexie pondo o fatinho de criança de lado. Caminhou para ele e pôs-lhe os braços à volta do pescoço. - Diz-me uma coisa: por que não me deixas compensar-te por hoje te ter arrastado até aqui? Talvez um belo jantar romântico em minha casa? com velas e vinho... bem, para ti, pelo menos. Talvez, após o jantar, decidamos fazer mais qualquer coisa.

Jeremy pensou que só Lexie podia, de um momento para o outro, tornar agradável um dia daqueles. - Acho que se poderá pensar num programa.

- Não sei como vou aguentar a espera.

- Talvez tenha de te demonstrar.

- Ainda melhor! - replicou Lexie, com ares provocantes. Porém, quando se chegou a ele para o beijar, o telemóvel dela começou a tocar. Quebrada a magia do momento, afastou-se dele e remexeu na bolsa, conseguiu encontrar o aparelho e atendeu ao terceiro toque. - Estou!

E, embora ela não dissesse mais nada, Jeremy teve o súbito pressentimento de que se passara algo de grave.

Uma hora mais tarde, depois de terem pago as compras e carregado o carro à pressa, estavam ambos sentados a uma mesa do Herbs, em frente a Doris. Apesar de já terem discutido a questão, Doris estava a falar tão depressa que Jeremy sentia dificuldades em perceber.

- Vamos começar pelo princípio - propôs, erguendo a mão. Doris respirou fundo. - Não sei como explicar isto. Sei que a

Rachel tem comportamentos levianos, mas nada de semelhante ao que se está a passar. Hoje era dia de ela vir trabalhar. E ninguém sabe onde se meteu.

- E o Rodney? - indagou Jeremy.

- Está tão perturbado como eu. Passou o dia à procura dela. Os pais dela fizeram o mesmo. Desaparecer sem dizer a ninguém para onde vai não é próprio da Rachel. E se lhe aconteceu alguma coisa?

Doris parecia prestes a chorar. Rachel trabalhava no restaurante há uma dúzia de anos e antes disso fora amiga de Lexie; Jeremy sabia que Doris a considerava mais um membro da família.

- Estou certo de que não há motivos de preocupação. Talvez tenha sentido necessidade de espairecer e tenha saído da vila.

- Sem avisar ninguém? Sem se dignar telefonar-me para informar que não vinha trabalhar? Sem falar com o Rodney?

- O que é que o Rodney diz, exactamente? Tiveram alguma zanga ou... - inquiriu Jeremy.

Doris acenou que não. - Não me falou em nada. Chegou aqui, pela manhã, e perguntou se a Rachel cá estava; quando o informei de que ainda não chegara, sentou-se e ficou à espera dela. Como não aparecesse, decidiu ir procurá-la a casa. Depois, só sei que voltou aqui, a perguntar se a Rachel tinha chegado entretanto, pois também não a encontrara em casa.

Lexie decidiu finalmente entrar na conversa, e perguntou: - Estava zangado?

A avó abanou a cabeça, mas manteve-se calada. Jeremy mexeu-se na cadeira, incomodado pelo silêncio que se instalara. - Não foi a qualquer outro sítio? A casa dos pais, por exemplo?

Doris entretinha-se com o guardanapo, a dobrá-lo como se fosse um pano da louça. - O Rodney não me disse, mas sabes como ele é. Sei que não deixou de a procurar depois de ver que não estava em casa. É provável que a tenha procurado por todos os cantos.

- E o carro dela também desapareceu? - insistiu Jeremy. Doris confirmou. - É por isso que estou tão preocupada. E se teve

algum acidente? Se alguém a levou?

- Está a sugerir que alguém a raptou?

- O que é que hei-de pensar? Mesmo que quisesse ir-se embora, para onde é que poderia ir? Cresceu aqui, a família vive cá, é aqui que tem os seus amigos. Nunca a ouvi falar de quem quer que fosse, de Raleigh ou de Norfolk, ou de qualquer outro lugar. Não é do género de se pôr a andar, sem se dignar dizer a alguém para onde vai.

Jeremy ficou calado. Olhou de relance para Lexie, que, embora parecesse estar a ouvir, fitava o vazio, como quem tem a cabeça ocupada com outros pensamentos.

- Como é que a Rachel e o Rodney têm estado a dar-se? indagou Jeremy. - Falou de uns problemas que estavam a ter.

Doris respondeu com outra pergunta: - O que é que isso tem a ver com o que aconteceu? O Rodney está ainda mais preocupado do que eu. Ele não tem nada a ver com isto.

- Não disse que tinha. Só estava a tentar perceber se haveria motivos para ela querer ir-se embora.

Doris encarou-o, de olhar firme. - Sei o que estás a pensar, Jeremy. É fácil atribuir as culpas ao Rodney, pensar que ele fez ou disse algo que obrigasse a Rachel a fugir. Mas não é verdade. O Rodney não teve nada a ver com isto. Seja o que for que tenha acontecido, só teve a ver com a Rachel. Ou com uma outra pessoa. Não envolvas o Rodney no caso. Algo aconteceu à Rachel. É tão simples quanto isso.

Falou de maneira a terminar a discussão. - Só estou a tentar perceber o que se está a passar - desculpou-se Jeremy.

Ao ouvi-lo, o rosto de Doris suavizou-se. - Eu sei que sim; e se calhar não há nada a recear, mas... há qualquer coisa que não me soa bem. A menos que esteja algo a escapar-me, a Rachel não faria isto.

- O Rodney lançou o alarme geral? - perguntou Jeremy.

- Não sei - respondeu Doris. - Só sei que ele anda por aí à procura dela. Prometeu manter-me informada, mas tenho um mau pressentimento. Prevejo que está para acontecer algo de terrível, se não aconteceu já - acrescentou. - E julgo que a questão se relaciona com vocês os dois.

Quando Doris se calou, Jeremy sabia que ela falava menos dos seus sentimentos e mais do que lhe dizia o instinto. Embora se dissesse possuidora de dons de adivinhação e de ser capaz de prever o sexo dos bebés que estavam para nascer, nunca afirmara ter poderes extra-sensoriais noutras matérias. Mesmo assim, a forma como falou deixou Jeremy convicto de que Doris acreditava ter razão. O desaparecimento ia afectar a vida de todos eles.

Mostrou ter dúvidas: - Não percebo o que está a tentar dizer-nos.

Doris suspirou, pôs-se de pé e lançou o guardanapo amarrotado para cima da mesa. - Eu também não - sussurrou ao virar-se para a janela. - Não consigo entender. A Rachel desapareceu, sei que devia estar preocupada com isso, e estou... mas há aqui mais um pormenor qualquer... um pormenor que me escapa. Tudo o que sei é que nada disto deveria ter sucedido e que...

- Está para acontecer algo de terrível - acrescentou Lexie, a terminar a frase da avó.

Tanto Doris como Jeremy se voltaram para ela. Lexie parecia tão convencida quanto Doris, mas, mais do que isso, havia uma certa nota de compreensão no que dizia, como se soubesse exactamente aquilo que a avó tinha dificuldade em exprimir. Uma vez mais, Jeremy sentiu-se um estranho, achou que estava ali a mais.

Doris não disse nada, nem precisava de dizer. Qualquer que fosse a onda que partilhavam, qualquer que fosse a informação que circulava entre elas, era incompreensível para ele. De repente, Jeremy teve a certeza de que qualquer delas podia ser mais específica, desde que o quisesse, mas que, por qualquer razão, ambas haviam decidido mantê-lo na ignorância. Da mesma maneira que Lexie o tinha mantido na ignorância acerca da tarde em que ele a vira sentada no banco, de mãos dadas com Rodney.

Como por coincidência, Lexie estendeu o braço e acariciou a mão de Jeremy. - Talvez eu devesse ficar algum tempo com a Doris.

Jeremy retirou a mão. Doris manteve-se em silêncio.

Ele assentiu e levantou-se da mesa, uma vez mais a sentir-se um estranho. Tentou convencer-se de que Lexie só pretendia ficar para confortar a avó e forçou-se a sorrir. - Pois, acho que é uma boa ideia.

- Tenho a certeza de que a Rachel está óptima - rugia a voz de Alvin do outro lado do telemóvel. - É uma rapariga crescida, estou certo de que sabe o que está a fazer.

Depois de sair do Herbs, Jeremy passara por casa de Lexie para descarregar as compras. Reflectiu se deveria esperar por ela ali, mas decidiu seguir para o Greenleaf. Não para escrever, mas para falar com Alvin. Pensando bem, começava a perguntar a si mesmo se conheceria bem Lexie. Parecia-lhe que ela estava mais preocupada com Rodney do que com o que poderia ter acontecido a Rachel e voltou a tentar perceber o significado daquele desaparecimento súbito da rapariga.

- Eu sei, mas é esquisito, não achas? Tu conhece-la, falaste com ela. Pareceu-te do género de largar tudo e partir sem informar ninguém para onde vai?

- Quem é que pode saber? Mas o mais provável é que o desaparecimento esteja relacionado com o Rodney.

- O que é que te faz pensar assim?

- A Rachel namora com ele, não é verdade? Não sei, mas talvez tenham tido uma zaragata. Talvez pense que ele continua a suspirar pela Lexie ou coisa do género, talvez quisesse apenas afastar-se durante uns dias para clarificar as ideias. Tal como a Lexie fez quando fugiu para a casa da praia.

Jeremy deu-lhe razão ao recordar-se da sua experiência com Lexie, a pensar se aquela seria uma característica das mulheres do Sul.

- Pode ser - anuiu. - Mas o Rodney não contou nada à Doris.

- Isso é o que a Doris diz. Não tens a certeza. Talvez seja disso que a Lexie e a Doris estão a falar neste momento, talvez fosse por isso que quisessem ficar sozinhas. Talvez as preocupações de Doris com o Rodney e a Rachel sejam iguais.

Jeremy bem gostaria de saber se o amigo teria razão e manteve-se calado. Como ele não disse mais nada, Alvin acrescentou: - Repito, é provável que nada disso esteja relacionado. Tenho a certeza de que tudo se resolverá.

- Pois - concordou Jeremy. - É provável que tenhas razão. A linha trazia até ele o ruído da respiração de Alvin.

- Mas, no fundo, o que é que se passa? - perguntou o amigo.

- Estás a falar de quê?

- De ti... de tudo isto. De cada vez que falo contigo, pareces-me mais deprimido.

- Apenas ocupado - mentiu Jeremy, a refugiar-se na sua resposta favorita. - Estão a acontecer muitas coisas.

- Pois estão, já me contaste. As obras da casa estão a levar-te as economias, estás prestes a casar, vais ser pai. Mas não é a primeira vez que te vês sujeito a pressões, além de teres de admitir que a tua vida actual não é tão esgotante como na altura em que tu e a Maria estavam a divorciar-se. Contudo, ao contrário do que está a suceder agora, da outra vez conseguiste manter o sentido de humor.

- Continuo a ter sentido de humor. Se não conseguisse rir-me da situação era bem possível que me enroscasse num novelo e passasse todo o dia a murmurar disparates.

- Ainda não recomeçaste a escrever?

- Não.

- Tens ideias?

- Nenhuma.

- Talvez devesses trabalhar e pedir ao Jed para guardar as roupas enquanto escreves.

Pela primeira vez, Jeremy soltou uma gargalhada. - Oh, isso funcionaria na perfeição. Tenho a certeza de que o Jed iria adorar.

- E com mais uma vantagem: sabias que ele não iria espalhar a novidade. Pois, se não fala.

- Não, ele fala.

- Ai fala?

- Sim, segundo a Lexie. Só não fala comigo ou contigo.

Alvin riu-se. - Já começas a habituar-te a esses animais malucos que tens no quarto?

Jeremy apercebeu-se de que já não reparava neles. - Acredites ou não, habituei-me.

- Não sei se isso é bom ou mau.

- Para ser franco, eu também não sei.

- Ora bem, escuta, tenho aqui uma pessoa e não estou a ser um bom anfitrião, por isso tenho de desligar. Telefona-me no fim-de-semana. Ou telefono-te eu.

- Muito bem - concluiu Jeremy, para logo de seguida pousar o auscultador. Abanou a cabeça enquanto olhava o computador. Pensou que talvez no dia seguinte conseguisse. Quando se preparava para se pôr de pé, o telefone tocou novamente. Calculando que Alvin se tivesse esquecido de dizer qualquer coisa, atendeu: - Diz!

- Olá, Jeremy - saudou Lexie. - Que maneira esquisita de atenderes o telefone.

- Desculpa. Acabei de falar com o Alvin e pensei que era ele outra vez. O que é que se passa?

- Detesto fazer-te isto, mas tenho de cancelar o nosso jantar desta noite. Fica para amanhã, está bem?

- Porquê?

- Oh, é a Doris. Vamos a caminho de casa dela, mas continua preocupada e talvez seja melhor fazer-lhe um pouco de companhia.

- Queres que apareça por lá? Posso levar o jantar.

- Não, não é preciso. A Doris tem bastante comida em casa e, para te ser franca, nem sei se ela está em condições de comer. Contudo, por causa dos problemas de coração, achei melhor ter a certeza de que ela fica bem.

- Está bem - anuiu Jeremy. - Compreendo.

- Tens a certeza? Sinto-me mal por fazer-te isto.

- Tudo bem, asseguro-te.

- Mas prometo que terás a tua recompensa. Amanhã. Talvez eu use um vestuário reduzido enquanto preparo o jantar.

Apesar do desapontamento, Jeremy conseguiu manter a voz firme.

- Acho bem.

- Ligo-te mais tarde, de acordo?

- Pois claro.

- Amo-te. Sabes disso, não sabes?

- Sim, eu sei.

Lexie ficou calada na outra ponta da linha, mas só depois de pousar o telefone é que ele se apercebeu de que não tinha dito que também a amava.

A confiança tem de ser merecida? Ou é apenas uma questão de fé?

Horas mais tarde, Jeremy continuava sem ter a certeza. Por mais voltas que desse às questões, não sabia o que fazer. Devia ficar no Greenleaf Ir para casa de Lexie e ficar à espera dela? Ou ir verificar se ela estava mesmo em casa da Doris?

Não gostou do caminho que os seus pensamentos estavam a percorrer. Ela estaria lá? Supôs que podia arranjar uma desculpa plausível e telefonar a Doris para se certificar, mas o telefonema não mostraria falta de confiança na Lexie? E, se assim fosse, por que razão iriam casar-se?

Porque a amas, respondeu-lhe a vozinha interior.

E tinha de admitir que era verdade; contudo, sozinho naquele quarto do Greenleaf, travava uma luta interior para tentar saber se aquele era, ou não, um amor cego. Nos anos em que estivera casado com Maria, nunca procurara saber onde a mulher se encontrava em dado momento, mesmo quando a relação estava a aproximar-se do fim. Nunca ligara para casa dos pais de Maria para indagar se ela se encontrava lá, foram poucas as vezes em que lhe telefonou para o emprego e raramente aparecia sem ser esperado. Maria nunca lhe dera motivos para que pudesse ter quaisquer dúvidas, e estava pronto a jurar pela própria vida que nunca pensara no assunto. Porém, como usar o mesmo critério quando se tratava da relação dele com Lexie?

Parecia-lhe ter duas visões distintas dela. Uma, do tempo que passavam juntos, em que ele reprovava a sua própria paranóia; outra, quando se encontravam longe um do outro e ele deixava a imaginação à solta.

Mas não se tratava apenas de imaginação à solta, pois não? Tinha visto Lexie e Rodney de mãos dadas. Quando lhe perguntara directamente o que fizera naquele dia, ela nem dissera que o tinha visto. Recebera um e-mail estranho, de alguém que tomara todas as precauções para não ser identificado. E, quando Doris estava a falar de Rachel, Lexie só abriu a boca para perguntar se Rodney lhe parecera zangado.

Por outro lado, se ela ainda gostava de Rodney, por que é que não admitia isso abertamente? Por que motivo se mostrara de acordo em casar com ele? Para quê comprar uma casa, fazer compras para a bebé e passar quase todos os serões com ele? Por causa da filha? Ele sabia que Lexie era conservadora, mas não tinha a mentalidade de uma mulher dos anos 50. Tinha vivido em Nova Iorque com um namorado e tivera uma paixão passageira por Mr. Renaissance... e, por causa da filha, não era do género de não aproveitar a hipótese de viver com o homem que amasse verdadeiramente, partindo do princípio de que esse homem fosse Rodney. O que, sem dúvida, queria dizer que o amava a ele, como acabara de lhe dizer pelo telefone. Tal como lhe dizia em todas as ocasiões em que estavam juntos. Como lhe sussurrava quando estavam nos braços um do outro.

Decidiu que não havia motivos para duvidar dela. Nenhuns. Era a sua noiva e, se dissera que ia para casa de Doris, era ali mesmo que estava. Ponto final. Mas havia mais qualquer coisa: sem saber porquê, duvidava que ela lá estivesse.

Lá fora, o céu tornara-se negro e, da cadeira onde estava, via os ramos das árvores serem suavemente agitados pela brisa. Os ramos, antes nus, estavam a ser cobertos pelas novas folhas da Primavera e brilhavam como lâminas de prata à luz da claridade do quarto crescente.

Pensou que devia ficar por ali, esperar pelo telefonema dela. Iam casar-se e tinha confiança nela. Quantas vezes, depois de a ter visto de mãos dadas com Rodney, é que tinha ido espiá-la, apenas para se sentir a fazer figura de parvo quando avistava o carro dela parado à porta da biblioteca? Meia dúzia? Uma dúzia? E se aquela noite fosse diferente?

Disse para si mesmo que iria ser igual, mesmo quando estendeu a mão para agarrar nas chaves do carro. Como uma borboleta encandeada pela luz, parecia não ter opção, embora continuasse a reprovar o próprio comportamento enquanto saía e se instalava ao volante.

A noite estava calma e escura; o centro encontrava-se deserto e, a emergir das sombras, o Herbs parecia estranhamente ameaçador. Passou sem abrandar e dirigiu-se para casa de Doris, com a certeza de que ia lá encontrar Lexie. Quando viu o carro de Doris parado no desvio de acesso à casa, suspirou, sentindo uma estranha mistura de alívio e remorso. Até chegar ali não se tinha lembrado de que deixara Lexie no Herbs sem um meio de transporte; quase soltou uma gargalhada.

Ora bem, questão arrumada; continuou o caminho para casa de Lexie, pensando esperar lá por ela. Quando ela chegasse, mostrar-se-ia calmo e solícito, ouviria as suas queixas e, se ela quisesse, preparar-lhe-ia uma chávena de chocolate quente. Fizera uma tempestade num copo de água.

Porém, quando virou para a rua onde Lexie morava e viu a casa dela ao fim do quarteirão, levou, por instinto, o pé ao pedal do travão. Em marcha lenta e de olhos colados à janela, pestanejou para ter a certeza de que estava a ver bem; então, de súbito, apertou o volante com força.

O carro dela não estava no caminho de acesso. Travou a fundo e fez o carro rodar, sem se preocupar com a chiadeira dos pneus. Depois de castigar o motor e de fazer o carro dobrar a esquina, acelerou através da vila, pois sabia exactamente onde ela estava. Se não estava na biblioteca ou no Greenleaf, nem em casa de Doris ou no Herbs, só havia um lugar onde poderia encontrá-la.

E tinha razão, pois, quando parou na rua onde morava Rodney Harper, viu o carro de Lexie parado no desvio para casa dele.

 

Jeremy esperou no alpendre da casa de Lexie.

Tinha chave, podia ter entrado, mas não quis. Preferiu ficar fora de casa, a ferver de raiva. Uma coisa era conversar com Rodney, outra, completamente diferente, era mentir acerca disso. E ela tinha mentido. Tinha anulado o jantar íntimo e tinha-lhe telefonado a mentir acerca do sítio onde se encontrava. Uma mentira directa.

De queixo contraído, ficou à espera de ver o carro aparecer. Não havia desculpas para um comportamento daqueles. Tudo o que Lexie tinha a fazer era dizer-lhe que queria conversar com Rodney, que estava preocupada com ele; teria aceitado perfeitamente. Não que a ideia o entusiasmasse, há que admitir, mas tê-la-ia aceitado bem. Então, qual seria a razão para todo aquele segredo?

Não era assim que a relação devia evoluir. Não era assim que ela devia tratá-lo... ou, para ser justa, qualquer pessoa de quem gostasse. E se aquele género de comportamento se mantivesse depois do casamento? Quereria realmente passar os dias a imaginar onde é que ela poderia estar?

Não, de maneira nenhuma. Estava fora de questão. Não era assim que um casamento devia funcionar, nem ele se mudara para aquela terra, não desistira de tudo, para ser enganado. Ou ela o amava, ou não; tão simples quanto isso. E a anulação do jantar com ele, a fim de poder passar tempo com Rodney, parecia indicar claramente quais os sentimentos dela.

Não se ralava nada que eles fossem amigos e, francamente, também não se ralava se ela pensasse que ele não estava a ajudar nada. Tudo o que Lexie tinha a fazer era dizer a verdade. Tudo se resumia a isso.

Por mais furioso que estivesse, não deixava de admitir que também se sentia magoado. Tinha-se mudado para aquela terra para partilhar a vida com Lexie, tinha deixado Nova Iorque por causa dela. Não fora por causa da filha, ou por sonhar com uma vida delimitada por uma sebe branca, nem por alimentar qualquer crença secreta no romantismo do Sul. Tinha vindo para ali por desejar viver com ela. E agora ela mentira-lhe. Não uma, mas duas vezes; a sentir aquele nó no estômago a apertar-se ainda mais, não tinha a certeza do que queria: esmurrar a parede furiosamente ou esconder o rosto nas mãos, para chorar.

Uma hora mais tarde, quando ela chegou, continuava sentado na escada. Pareceu surpreendida ao sair do carro, mas depois caminhou para ele como se a situação não tivesse nada de estranho.

- Olá - saudou ao pôr a mala a tiracolo. - O que é que estás aqui a fazer?

Jeremy pôs-se de pé. - Estava só à espera - respondeu, ao consultar o relógio, notando que faltavam poucos minutos para as nove horas. Era tarde, mas não demasiado tarde...

Embora parecesse ter reparado que Jeremy não se mexera para ir ao encontro dela, Lexie não deixou de o beijar. Se notou uma certa relutância da parte dele, não o demonstrou.

- Estou satisfeita por te ver.

Jeremy olhou para ela; a despeito da raiva que sentia (ou do medo, se quisesse continuar a ser honesto consigo), continuava a achá-la bonita. Que outro homem pudesse apertá-la nos braços era uma ideia devastadora.

A sentir o tumulto das emoções dele, Lexie puxou-lhe uma manga. - Estás a sentir-te bem?

- Óptimo - foi a resposta.

- Pareces perturbado.

Era a oportunidade perfeita para dizer o que lhe ia na cabeça, mas Jeremy sentiu-se vacilar. - Estou apenas cansado. Como é que estava a Doris?

Lexie prendeu uma madeixa atrás da orelha. - Preocupada. A Rachel continua sem aparecer e sem dar notícias.

- E continua a pensar que lhe pode ter sucedido alguma coisa?

- Não tenho a certeza. Sabes como é a Doris. Se mete uma coisa na cabeça, tende a agarrar-se a ela sem que haja qualquer explicação lógica. Tenho a sensação de que ela sente que a Rachel está... bem, à falta de uma palavra mais conveniente, acha que a razão da partida dela... - interrompeu-se e abanou de novo a cabeça. - Na verdade, não sei o que é que a Doris está a pensar. Apenas lhe parece que a Rachel não devia ter-se ido embora e sente-se verdadeiramente preocupada.

Mesmo sem a compreender inteiramente, Jeremy assentiu. - Se ela está bem, então está tudo certo, não está?

Lexie encolheu os ombros. - Não sei. Já desisti de saber como funciona a mente da Doris. Só tenho uma certeza: ela costuma ter razão. Tenho verificado isso repetidamente.

Jeremy ficou a observá-la, sentindo que ela dizia a verdade... quanto ao tempo passado com a avó. Não se dispusera a dizer o que quer que fosse sobre o que fizera a seguir.

Inteiriçou-se. - Segundo entendi, passaste todo o serão com a Doris, não foi?

- Praticamente - foi a resposta.

- Praticamente?

Jeremy sentiu que Lexie estava a tentar descobrir o que ele sabia.

- Sim - acabou por concluir.

- E isso quer dizer o quê? Lexie não respondeu.

Ele resolveu desafiá-la: - Esta noite passei pela casa da Doris, mas não estavas lá.

- Foste a casa da Doris?

- E também vim aqui - acrescentou Jeremy.

Dando um curto passo atrás, Lexie encarou-o, de braços cruzados.

- Tu andaste a espiar-me?

- Chama-lhe o que quiseres - replicou Jeremy, a tentar manter-se calmo. - Mas, seja como for, não me contaste a verdade.

- De que é que estás a falar?

- Onde é que estiveste esta noite? Depois de saíres de casa da Doris?

- Voltei para aqui - respondeu Lexie.

Jeremy resolveu pressioná-la, na esperança de que ela desse a informação, e rezou para que ela fosse sincera, sentindo o nó do estômago a apertar-se mais: - E antes disso?

- Andaste a espiar-me, não andaste?

Talvez fosse o ar moralista com que ela falou que lhe provocou a explosão de fúria, levando-o a gritar: - Não estamos a falar de mim! Responde à pergunta!

- Estás a gritar para quê? Já te disse onde estive.

- Não, não disseste! - berrou Jeremy. - Disseste-me onde estiveste antes de ires a um outro sítio. Depois de saíres de casa da Doris, foste a um outro sítio, não foste?

- Por que é que estás a gritar comigo? - replicou Lexie, também ela a levantar a voz. - O que é que te deu?

- Foste a casa do Rodney! - gritou Jeremy.

- O quê?

- Tu ouviste! Foste para casa do Rodney! Eu vi que estavas lá! Lexie recuou mais um passo. - Andaste a seguir-me?

- Não - contrapôs ele -, não andei a seguir-te. Fui a casa da Doris, depois vim aqui e continuei à tua procura. E adivinha o que descobri?

Ela fez uma pausa, como se procurasse a melhor resposta. - Não é nada do que pensas - protestou, em voz mais suave do que ele esperara.

- E o que é que eu penso? - inquiriu Jeremy. - Que a minha noiva não deveria estar em casa de outro homem? Que ela talvez devesse ter-me dito aonde ia? Que, se ela tivesse confiança em mim, me teria posto ao corrente do que se passava? Que, se ela se preocupasse comigo, não teria cancelado o nosso jantar para passar tempo com outro homem?

- Não tem a ver contigo! - contrapôs Lexie. - E não cancelei o nosso jantar. Perguntei se podíamos deixá-lo para amanhã e tu concordaste!

Jeremy aproximou-se um pouco mais. - Lexie, não se trata apenas de um jantar. O problema é teres ido esta noite a casa de outro homem.

Lexie defendeu-se: - E depois? Pensas que fui para a cama com o Rodney? Pensas que passámos a última hora a fornicar em cima do sofá? Conversámos, Jeremy. Foi só o que fizemos. Apenas conversámos! A Doris estava a sentir-se cansada e, antes de vir para casa, quis saber se o Rodney me podia esclarecer sobre o que se estava a passar. Por isso, passei por lá; tudo o que fizemos foi falar da Rachel.

- Devias ter-me contado.

- E teria dito! E tu nem sequer terias de perguntar! Ter-te-ia dito onde fui. Não tenho segredos contigo.

Jeremy ergueu as sobrancelhas. - Ai não? E aquele dia na esplanada?

- Qual dia na esplanada?

- No mês passado, quando te vi de mãos dadas com o Rodney. Lexie encarou-o de frente, como se nunca o tivesse visto. - Desde

quando é que andas a espiar-me?

- Não tenho andado a espiar-te! Mas vi-te de mãos dadas com ele.

Ela continuou a olhá-lo. - Quem és tu? - acabou por inquirir.

- O teu noivo - respondeu Jeremy, em voz cada vez mais alterada. - E julgo que mereço uma explicação. Primeiro, encontro-os de mãos dadas, depois descubro que anulas os nossos encontros para passares o tempo com ele...

- Cala-te! - gritou Lexie. - Fica aí quieto e escuta.

- Tenho estado a tentar ouvir! - replicou ele, também a gritar. Mas não estás a dizer-me a verdade! Tens andado a mentir-me!

- Não, não tenho!

- Não? Então, fala-me da vossa pequena aventura, das mãos dadas!

- Estou a tentar dizer-te que vês coisas onde elas não existem... Ele interrompeu-a, a resmungar: - Ai vejo? E se me encontrasses

de mãos dadas com uma ex-namorada e descobrisses que me escapulia furtivamente para ir para casa dela?

- Não estava a escapulir-me furtivamente! - negou Lexie, a erguer as mãos. -Já te disse... passei quase todo o serão com a Doris, mas continuava sem ter a certeza do que se estava a passar. Estava preocupada com a Rachel e, por isso, passei por casa do Rodney, para tentar saber se ele descobrira mais alguma coisa.

- Depois de lhe pegares na mão, evidentemente.

Os olhos de Lexie faiscaram, mas Jeremy reparou que a voz dela começava a fraquejar. - Não, não fiz nada disso. Sentámo-nos no alpendre das traseiras e conversámos. Quantas vezes terei de te dizer isto?

- Talvez as necessárias para reconheceres que estavas a mentir!

- Não estava a mentir!

Jeremy encarou-a e falou com voz dura. - Mentiste, sabes que mentiste! - exclamou apontando-lhe um dedo acusador. - Já é suficientemente mau, mas não é só isso que me magoa. O que me magoa mais é continuares a negar.

Dito isto, desceu do alpendre e caminhou para o carro, sem se dignar olhar para trás.

Não sabendo o que fazer, Jeremy acelerou às cegas pelas ruas. Sabia que não lhe apetecia voltar ao Greenleaf, tão-pouco conseguia imaginar-se na Lookilu Tavern, o único bar ainda aberto àquela hora. Embora tivesse lá ido uma ou duas vezes, não tinha vontade de passar o resto do serão sentado no bar, pois nem sabia o escândalo que isso podia provocar. Tinha aprendido uma coisa acerca das vilas e cidades pequenas: eram as terras onde as novidades corriam mais depressa, em especial as más notícias, e não desejava que as gentes da terra começassem a especular sobre ele e Lexie. Em vez disso, limitou-se a circular pelas ruas, fazendo um longo circuito, sem destino aparente. Boone Creek não era Nova Iorque; se alguém pretendesse perder-se no meio da multidão não encontrava para onde ir. Ali não havia multidões.

Por vezes, odiava aquela terra.

Lexie podia discorrer o tempo que lhe apetecesse sobre os magníficos cenários e sobre os habitantes, que ela quase considerava pessoas da família, mas parecia-lhe que era de esperar que assim sucedesse. Como filha única e órfã desde tenra idade, nunca fizera parte de uma família numerosa, como acontecera com Jeremy; este, por vezes, sentia vontade de lhe demonstrar que ela não fazia ideia daquilo que estava a dizer. Na sua maioria, os habitantes com quem já travara conhecimento eram pessoas simpáticas e de trato agradável, mas começava a pensar se não agiam assim só para tentarem manter as aparências. Por detrás da fachada, havia segredos e tramóias, como em todos os lugares, que as pessoas da terra faziam o possível para esconder. Como Doris, por exemplo. Enquanto ele fazia perguntas, Doris e Lexie trocavam sinais secretos, com a única intenção de o manterem na ignorância. Ou Gherkin, o presidente da Câmara. Não se limitara a ajudá-lo a conseguir as autorizações, procurava defender os seus próprios interesses. Jeremy pensava que haveria muito a dizer dos nova-iorquinos. Quando se zangavam não deixavam que alguém ficasse com dúvidas, em especial quando se tratava de questões de família. As pessoas diziam o que lhes ia na alma.

Bem desejava que o comportamento de Lexie fosse desse género. Continuou às voltas, mas não conseguia decidir se a sua fúria estava a aumentar ou a regredir; não sabia se deveria voltar a casa dela para tentar esclarecer tudo, ou se seria melhor decidir sozinho. Suspeitava que Lexie lhe estava a esconder qualquer coisa, mas, por mais que reflectisse, não fazia ideia do que poderia ser. Apesar da cólera e das provas, não conseguia convencer-se de que ela tinha um caso secreto com Rodney. A ideia era ridícula, a menos que tivesse sido completamente ludibriado, do que duvidava. Contudo, havia qualquer coisa entre eles, qualquer coisa sobre a qual Lexie não se sentia à vontade para falar. Além de que também existia o e-mail...

Abanou a cabeça, como se assim pudesse clarificar as ideias. Depois de dar três voltas completas à povoação, dirigiu-se para o campo. Conduziu em silêncio durante alguns minutos; então, virou de novo e, passado algum tempo, parou em frente do cemitério de Cedar Creek, onde apareciam luzes misteriosas que o tinham trazido até àquela terra.

Fora ali que vira Lexie pela primeira vez. Depois de chegar à vila, tinha vindo até ali para tirar umas fotografias, antes de iniciar as pesquisas para o artigo que tencionava escrever. Ainda se recordava de como ela lhe aparecera subitamente, apanhando-o desprevenido. Ainda conseguia visualizar a maneira como ela caminhava e como a brisa lhe agitava o cabelo. Também fora no cemitério que ela lhe falara dos pesadelos que tinha tido em criança.

Ao sair do carro, Jeremy ficou perplexo por o lugar ser tão diferente sem o nevoeiro. Na noite em que vira as misteriosas luzes pela primeira vez, o cemitério, coberto por um manto de nevoeiro, tinha-lhe parecido irreal, como que perdido no tempo. Agora, numa noite de Abril de céu claro e luar brilhante, conseguia ver a forma de cada uma das pedras tumulares e até podia seguir o mesmo caminho que percorrera quando procurara registar as luzes em filme.

Passou pelos portões de ferro forjado e ouviu o ligeiro ranger da gravilha sob as solas dos sapatos. Ainda não viera ali depois do regresso a Boone Creek e, enquanto passava pelas pedras tumulares desgastadas, voltou a pensar em Lexie.

Ela ter-lhe-ia dito a verdade? Em parte. Acabaria por lhe revelar onde tinha ido? Talvez. E, quanto a ele, tinha o direito de estar furioso? Pensando uma vez mais no caso, tinha.

Contudo, não lhe agradara a discussão entre ambos. E não gostara da maneira como ela o olhou, quando se apercebeu de que andava a ser seguida. Não, admitiu, nem ele gostara da figura que tinha andado a fazer. Em primeiro lugar, e para falar verdade, gostaria de não ter surpreendido Lexie e Rodney de mãos dadas. O único efeito fora criar-lhe suspeitas, e voltava a recordar a si mesmo que não havia motivos de suspeita. Era verdade que fora visitar Rodney, mas Rachel tinha desaparecido; Rodney era, sem dúvida, a pessoa com quem Lexie deveria falar do assunto.

Pois, mas o e-mail...

Também não queria pensar nele.

Envolvido em silêncio, parecia que o cemitério ficava mais claro. Claro que não era possível, as luzes fantasmagóricas só apareciam em noites de nevoeiro, mas, ao pestanejar, apercebeu-se de que não estava com alucinações. O cemitério estava a ficar mais iluminado. De testa franzida e confuso, ouviu o som inconfundível de um motor de automóvel. Olhando por cima do ombro, viu os faróis de um carro a descrever uma curva. Ficou a tentar imaginar quem andaria a passear de carro por ali e ainda mais surpreendido ao reparar que o carro abrandava e parava atrás do dele.

Apesar da escuridão, reconheceu tratar-se do carro do presidente Gherkin e momentos depois viu aparecer a figura dele.

O presidente da Câmara chamou-o em voz alta: -Jeremy Marsh? Está aí?

Jeremy pigarreou, surpreendido pela segunda vez. Pensou se haveria ou não de responder, mas compreendeu que o carro o denunciava.

- Sim, estou aqui, senhor Presidente.

- Onde? Não consigo vê-lo.

- Aqui - bradou Jeremy. - Perto da árvore grande.

O presidente começou a andar na direcção dele. Mais próximo, Jeremy conseguia ouvir o seu monólogo.

- Jeremy, deixe que lhe diga que vem passear pelos locais mais estranhos. Fiz tudo para conseguir encontrá-lo. Contudo, sabendo o que sei sobre a sua ligação a este lugar, suponho que não deveria surpreender-me. Mesmo assim, para um homem que queira estar só, posso pensar numa dúzia de lugares melhores do que este. Acho que um homem sente a necessidade de voltar ao local do crime, não é isso?

Quando acabou de falar já estava na frente de Jeremy. Mesmo no escuro, este conseguiu ver o que o presidente trazia vestido: calças vermelhas de fazenda sintética, camisa cor de púrpura e um casaco amarelo de desporto. Parecia uma espécie de ovo de Páscoa.

- O que é que faz aqui, senhor Presidente?

- bom, vim falar consigo, como é óbvio.

- É sobre o astronauta. Deixei um recado no seu gabinete...

- Não, não, é claro que não. Recebi o seu recado, por isso não se preocupe mais com isso. Não tenho dúvidas, sendo uma celebridade e isso tudo, de que conseguirá resolver o assunto. Aconteceu apenas isto: estava a trabalhar no meu escritório, só a acabar de despachar uns papéis na minha loja do centro, quando vi passar o seu carro. Acenei-lhe, mas julgo que não me viu e, falando com os meus botões, fiquei a perguntar onde é que Jeremy Marsh iria a uma velocidade daquelas.

Jeremy ergueu as mãos, como a pedir-lhe que parasse. - Senhor Presidente, na verdade não estou com disposição...

O homem continuou como se não o tivesse ouvido. - Mas é claro que não tirei quaisquer ilações do facto. A princípio, pelo menos. Contudo, talvez nem tenha reparado, mas passou por lá uma segunda vez, e uma terceira, pelo que comecei a pensar que talvez precisasse de conversar com alguém. Por conseguinte, perguntei a mim mesmo: "Onde é que o Jeremy Marsh iria, e..." - interrompeu-se para conseguir o maior efeito dramático e depois bateu na perna para dar mais ênfase ao que diria em seguida: - A resposta atingiu-me como se fosse uma descarga eléctrica. Não sei porquê, mas ele vai para o cemitério!

Jeremy ficou a olhar para ele, antes de perguntar: - O que é que o levou a pensar que eu viria para o cemitério?

O presidente exibiu um sorriso de satisfação, mas, em vez de responder directamente, apontou para a soberba magnólia existente no centro do cemitério.

- Está a ver aquela árvore, Jeremy?

Jeremy seguiu-lhe o olhar. com as suas raízes entrelaçadas e extensos ramos, a árvore deveria ter mais de uma centena de anos de idade.

- Alguma vez lhe contei a história daquela árvore?

- Não, mas...

- Aquela árvore foi plantada por Coleman Tolles, um dos nossos mais proeminentes conterrâneos, muito antes da Guerra de Agressão do Norte*. Era dono do armazém de alimentos para o gado e das mercearias, e era casado com uma das mulheres mais bonitas que se poderiam encontrar num raio de muitos quilómetros. A mulher chamava-se Patricia e, embora o único retrato dela tenha sido destruído no incêndio da biblioteca, o meu pai costumava garantir que muitas vezes ia lá só para dar uma olhadela ao retrato.

Jeremy mostrou-se impaciente: - Senhor Presidente...

- Ora, deixe-me terminar. Julgo que o final da história pode derramar alguma luz sobre o seu pequeno problema.

- Qual problema?

- O problema que tem com Miss Lexie. Se estivesse no seu lugar, suponho que não ficaria encantado por descobrir que ela se encontrava com outro homem.

Jeremy esbugalhou os olhos e ficou sem palavras.

- No entanto, como estava a contar-lhe, esta Patricia era uma bonita senhora que, antes de ser casada com Coleman, fora cortejada durante anos. Pode dizer-se que todos os homens da terra a cortejavam,

* É assim que muitos sulistas continuam a referir-se à Guerra Civil Americana (1861-1865). (NT)

e ela adorava as atenções, mas o velho Coleman acabou por lhe conquistar o coração e o casamento foi o mais importante a que a região alguma vez assistira. Casados, suponho que poderiam ter vivido felizes para sempre, mas não ia ser assim. Coleman era um tipo ciumento, percebe, e Patrícia não era mulher capaz de cortar relações com os jovens que a tinham cortejado. Mas Coleman não conseguia suportar isso.

O presidente da Câmara abanou a cabeça. - Acabaram por se envolver numa violenta discussão e Patrícia não conseguiu suportar o stress. Adoeceu e passou duas semanas de cama, antes que o bom Deus a chamasse para junto de si. Coleman ficou com o coração despedaçado e, depois de a mulher ter sido sepultada neste cemitério, plantou a árvore para honrar a memória dela. E ela aí está, uma versão viva do nosso pequeno Taj Mahal.

Jeremy não tirava os olhos do presidente da Câmara. - A história é verdadeira? - acabou por perguntar.

O presidente ergueu a mão direita, como se estivesse a prestar um juramento. - Que eu morra, se não é.

Jeremy não sabia o que responder; nem fazia ideia de como o presidente da Câmara conseguira descobrir a causa dos problemas que o afligiam.

Gherkin enfiou as mãos nas algibeiras. - Além disso, como compreenderá, é bastante apropriada, se considerarmos a vossa situação. Tal como a luz atrai as borboletas, também esta árvore deve tê-lo atraído para o cemitério.

- Senhor Presidente...

- Sei o que você está a pensar, Jeremy. Está a tentar perceber o motivo de eu não lhe ter falado desta história quando estava a planear escrever o artigo.

- Não é bem isso.

- Na altura, você estava a tentar compreender por que haveria tantas histórias fascinantes acerca desta nossa esplêndida terra. Tudo o que posso dizer-lhe é que habitamos um baluarte da História. Poderia contar-lhe histórias, capazes de o deixarem fascinado, sobre uma boa metade dos edifícios do centro.

- Também não se trata disso - interrompeu Jeremy, ainda a tentar perceber o que estava a acontecer.

- Nesse caso, suponho que estará a tentar compreender como é que sei o que se passa com Miss Lexie e o Rodney?

Jeremy olhou Gherkin nos olhos, mas o presidente limitou-se a encolher os ombros. - Nas terras pequenas, as novidades circulam.

- Está a querer dizer-me que toda a gente sabe?

- Não, é evidente que não. Pelo menos quanto a este assunto. Suponho que seremos apenas uns quantos a saber, mas não somos pessoas para irmos espalhar mexericos que possam prejudicar alguém. O facto é que estou tão preocupado quanto os outros com o misterioso desaparecimento da Rachel. Antes de você falar com a Doris, esta noite, passei algum tempo com ela: estava devastada. Adora aquela rapariga, como você sabe. Na verdade, estava lá quando o Rodney apareceu e voltei a passar por lá depois de você ter ido para o Greenleaf.

- Mas, quanto ao resto?

- Oh, simples dedução - esclareceu Gherkin. - O Rodney e a Rachel namoram mas estão a enfrentar problemas. O Rodney e a Lexie são amigos; depois, vejo-o a circular pela vila a toda a velocidade, como se atrás do volante fosse sentado um cego. Não me foi difícil saber que a Lexie tinha ido a casa do Rodney, para conversar com ele, e que você estava perturbado, devido a todas as outras pressões a que está submetido.

- Pressões?

- Sim. com o casamento, com a casa e com a gravidez da Lexie.

- Também sabe disso?

- Jeremy, meu rapaz, como agora é um habitante da nossa esplêndida terra, tem de começar a perceber que por estes sítios as pessoas são muito espertas. Para além de tentar saber a vida dos outros, não há muito que fazer por aqui. Mas não se preocupe; os meus lábios vão manter-se cerrados até ao anúncio oficial. Como funcionário eleito, tenho de permanecer alheio a todos os mexericos que correm pela vila.

Mentalmente, Jeremy registou a necessidade de se manter encerrado no Greenleaf sempre que lhe fosse possível.

- Contudo, o principal motivo de ter vindo procurá-lo foi querer contar-lhe uma história sobre mulheres.

- Mais uma história?

Gherkin ergueu as mãos. - Bem, mais do que uma história, é uma lição. É acerca de minha mulher, Gladys. Ora bem, é a mais admirável das mulheres que alguém pode encontrar, mas houve alturas, no decurso da nossa vida de casados, em que ela se revelou menos verdadeira. O assunto perturbou-me durante muito tempo e houve ocasiões em que levantámos a voz um ao outro, mas o que acabei por compreender foi o seguinte: se uma mulher nos ama genuinamente, não podemos esperar que ela nos diga sempre a verdade. É que as mulheres dão mais importância aos sentimentos que os homens e, se por vezes não nos dizem a verdade, agem desse modo para não ferirem os nossos sentimentos. Não significa que nos

amem menos.

- Está a pretender dizer-me que não faz mal que mintam?

- Não, estou a dizer que se mentem é, muitas vezes, por se preocuparem connosco.

- E se eu preferir que me digam a verdade?

- Bem, então, meu rapaz, será melhor estar preparado para aceitar a verdade de acordo com a consciência com que ela lhe foi contada.

Jeremy ficou a pensar na resposta, mas manteve-se calado. No silêncio que se seguiu, ouviu o presidente Gherkin protestar: - Está a ficar frio cá fora, não está? Por isso, antes de me ir embora, dou-lhe um conselho. No fundo do seu coração, sabe que ama a Lexie. A Doris sabe, eu sei, toda a gente da terra o sabe. Porque, quando as pessoas os vêem juntos, é como se esperassem vê-los começar a cantar; sendo assim, não existe qualquer motivo para se preocupar com o facto de ela ter ido visitar o Rodney numa altura em que ele estava deprimido.

Jeremy olhou para longe. Embora o presidente da Câmara continuasse a seu lado, de súbito, sentiu uma solidão total.

De volta ao Grenleaf, Jeremy estava indeciso quanto a voltar, ou não, a telefonar a Alvin. Sabia que, se voltasse a telefonar ao amigo, teria de rever todo o serão, mas não queria nada disso. Nem se sentia preparado para aceitar o conselho de Gherkin. As mentiras ocasionais podiam não ter importância no casamento do presidente da Câmara, mas não era assim que via a sua vida com Lexie.

Abanou a cabeça, farto dos problemas com a noiva, farto dos planos do casamento e da remodelação da casa, farto de não ser capaz de escrever. Desde que viera viver para aquela terra, a sua vida tornara-se uma sucessão de desgostos, um após outro. E porquê? Por amar Lexie? Então, por que tinha de ser ele a sofrer todos os desgostos, enquanto ela parecia passar perfeitamente? Por que tinha de ser sempre ele a vítima?

Tinha de admitir que não estava a ser totalmente razoável. Ela também tinha problemas. Não só com os planos do casamento e com a casa, pois quem estava grávida era ela, era ela quem acordava a chorar a meio da noite, era ela quem tinha de ter cuidado com tudo o que comia ou bebia. Só parecia ser melhor que ele a lidar com a situação.

Sem conseguir chegar a qualquer conclusão, Jeremy dirigiu-se para o computador, sabendo que não ia escrever mas que poderia, pelo menos, ler o correio. Contudo, ao deparar com a primeira mensagem,

Lê O DIÁRio dA DOriS. ENCONTRARÁS LÁ A RESPOSTA.

 

- Não sei o que hei-de dizer-te - confessou Alvin, parecendo embaraçado. - O que é que pensas que significa?

Depois de ler a mensagem uma dúzia de vezes, Jeremy acabara por pegar no telefone.

- Não sei.

- Já procuraste no diário da Doris?

- Não, acabei de ler a mensagem. Ainda não tive tempo para nada. Só estou a tentar encontrar um sentido para ela.

- Talvez devesses fazer o que a mensagem diz - sugeriu Alvin.

- Procura no diário da Doris.

- Para quê? Se nem sei aquilo que devo procurar! E posso garantir que nada do que tem acontecido ultimamente tem a ver com o diário.

Jeremy recostou-se na cadeira, pôs-se de pé e caminhou pelo quarto, até se deixar cair de novo na cadeira. Entretanto foi narrando o que acontecera nas últimas horas. Quando acabou, Alvin manteve-se calado.

Finalmente, despertou: - Só quero que me confirmes se ouvi bem. Ela esteve em casa do Rodney?

- Esteve - confirmou Jeremy.

- E não te disse?

Jeremy inclinou-se para diante, à procura da melhor maneira de responder. - Não, mas disse que tencionava contar-me.

- E acreditaste nela?

Era ali que estava o busílis, não era? Será que ela ia mesmo contar-lhe?

- Não sei - confessou Jeremy.

Depois de uma pequena pausa, Alvin afirmou: - Uma vez mais, não sei o que hei-de dizer-te.

- Pensas que isto significa o quê? Que motivo terá alguém para me mandar um e-mail como este?

- Talvez saiba pormenores que desconheces - observou Alvin.

- Ou talvez queira apenas ver-nos separados - contrapôs Jeremy. Alvin não lhe respondeu directamente. Em vez disso, perguntou:

- Amas a Lexie?

Jeremy passou a mão pelo cabelo. - Mais do que a própria vida.

Como a tentar que o amigo se sentisse melhor, Alvin mostrou-se jovial. - bom, pelo menos vais entrar na próxima fase da tua vida depois de uma festa de arromba, no próximo fim-de-semana. Já só faltam seis dias, a contagem decrescente continua.

Pela primeira vez, depois de passadas várias horas, segundo lhe pareceu, Jeremy sorriu. - Vai ser giro!

- Sem dúvida. Não é todos os dias que o meu melhor amigo se casa. Desejo ver-te. E, além disso, uma pequena viagem à cidade vai fazer-te bem. Já estive aí, recordas-te? Sei, por experiência própria, que não há nada para fazer, para além de se ficar a ver crescer as unhas dos pés.

"E a estudar as pessoas", pensou Jeremy. Mas calou-se.

- Mas, não te esqueças, telefona-me se descobrires qualquer coisa no diário da Doris. Por mais que deteste admiti-lo, começo a viver as tuas aventuras indirectamente.

- Não chamaria aventuras a receber mensagens destas.

- Chama-lhes o que quiseres. Mas, tens de admiti-lo, têm-te obrigado a pensar, não têm?

- Oh, com certeza - admitiu Jeremy. - Têm-me feito pensar.

- Afinal de contas, se vais casar-te com a Lexie, tens de confiar nela, como sabes.

- Pois sei - anuiu Jeremy. - Acredita que sei.

Pela segunda vez naquela noite, Jeremy deu consigo a reflectir sobre o que significava confiar em alguém. Tudo se resumia a isso. Quase sempre era assim, mas ultimamente não estava a ser fácil.

E havia os e-mails. Não apenas um, mas dois. E o segundo...

Supondo que lesse o diário, poderia ficar a saber qualquer coisa sobre Lexie, algo que não soubesse ou não pretendesse saber? E de que maneira esse conhecimento poderia vir a afectar o que sentia por ela? Seria possível que a descoberta o fizesse desistir e desaparecer dali, sem sequer olhar para trás?

Tentou juntar as peças do quebra-cabeças. Quem enviara as mensagens, além de saber que Lexie estava grávida, também sabia que ele tinha em seu poder o diário da avó dela. E mais, era suficientemente ousado para sugerir que sabia algo que Lexie estava a tentar esconder. O que significava, uma vez mais, que havia quem estivesse interessado no fim da ligação deles.

Mas quem? Como era óbvio, qualquer habitante da vila poderia saber que Lexie estava grávida; contudo, haveria poucos que soubessem que o diário estava em seu poder e, para além de Lexie, só se lembrava de uma pessoa que conhecia o diário de Doris.

Doris.

Contudo, não faria sentido. Para começar, fora ela quem empurrara a neta para os braços de Jeremy; fora ela quem lhe explicara a maneira de ser de Lexie, para que ele a pudesse conhecer melhor. Doris era ainda a pessoa a quem ele mencionara o facto de se sentir bloqueado, de não ser capaz de escrever.

Perdido em reflexões, levou algum tempo a aperceber-se de que alguém estava a bater à porta. Atravessou o quarto e abriu-a.

Lexie forçou-se a sorrir. A despeito do ar destemido, tinha os olhos vermelhos e inchados, via-se que tinha estado a chorar.

- Olá! - saudou.

- Olá, Lex - respondeu Jeremy, sem dar um passo para ela, obrigando-a a ficar a olhar para os pés.

- Acho que deves estar intrigado por me veres aqui, não estás? Alimentei alguma esperança de que voltasses, mas não aconteceu.

Sem obter resposta de Jeremy, ajeitou uma madeixa atrás da orelha. - Só quero pedir-te desculpa. Tiveste razão em tudo. Deveria ter-te contado e tudo o que fiz foi errado.

Jeremy observou-a, mas acabou por recuar um passo. com a permissão tácita dele, Lexie entrou no quarto e sentou-se na cama. Jeremy puxou a cadeira que estava junto da secretária.

- Por que motivo não me disseste?

- A ida a casa do Rodney não foi planeada - explicou Lexie. Sei que podes não acreditar, mas, quando saí de casa da Doris a minha intenção era ir para casa e... não sei... de repente ocorreu-me que provavelmente devia falar com o Rodney. Calculei que ele pudesse esclarecer-me sobre o paradeiro da Rachel.

- E antes disso? - inquiriu Jeremy. - Na esplanada. Por que é que não me falaste disso?

- O Rodney é apenas um amigo e está a viver tempos difíceis. Sei que para ti deve ter parecido outra coisa, mas conhecemo-nos desde há muito, eu estava apenas a tentar ajudá-lo.

Jeremy reparou na forma cuidadosa como ela evitou responder à pergunta. Inclinou-se para diante. - Lexie, vamos acabar com as jogadas, concordas? - perguntou com voz firme e grave. - Não estou com disposição para isso. Só quero saber o motivo por que me escondeste a situação.

Lexie virou-se para a janela, mas Jeremy via o reflexo da luz do candeeiro nos olhos dela. - Em primeiro lugar... por ser difícil. E também não queria envolver-te - explicou, no meio de um riso nervoso. - Mas acho que te envolvi mesmo, não foi? - acrescentou.

- O problema é que ultimamente o Rodney e a Rachel têm zangas frequentes por minha causa.

A voz dela baixou de tom. - A Rachel tem tido dificuldade em aceitar o facto de o Rodney e eu termos andado juntos. E, além disso, sabe o que ele sentia por mim. A questão é essa. A Rachel pensa que o Rodney continua a gostar de mim e, pelo menos segundo ela diz, ele continua a invocar o meu nome uma vez por outra, quase sempre nas alturas erradas. Contudo, se falares com o Rodney, ele protesta, diz que a Rachel está a exagerar. Era sobre isso que conversávamos na esplanada.

Jeremy juntou as mãos. - Ele continua a gostar de ti?

- Não sei.

Ao ver a expressão de incredulidade de Jeremy, apressou-se a esclarecer. - Sei que estou a fugir ao problema, mas não sei o que mais posso dizer. O Rodney continua a preocupar-se comigo? Pois, acho que sim, mas conhecemo-nos desde muito pequenos. A pergunta que queres ver respondida é se ele namoraria a Rachel se nós não estivéssemos noivos; e eu respondo que julgo que sim. Já te tinha dito que sempre pensei que eles tinham sido feitos um para o outro. Mas...

Aqui teve de se interromper e ficou de testa franzida pela perturbação.

Jeremy acabou a frase que ela iniciara: - Não tens a certeza.

Se estivesse no lugar dela era provável que acabasse por dar a mesma resposta.

- Pois não - confessou Lexie. - Mas compreende que estou comprometida com outro homem, sei que julga que o nosso casamento não vai resultar e sei que gosta da Rachel. Só que ela é sensível a tudo o que me diz respeito e acho que, sem querer, o Rodney agrava a situação. Contou-me que a Rachel ficou furiosa só porque, numa tarde em que andavam a passear de carro, ele olhou de relance para a biblioteca. Acusou-o de andar à minha procura e acabaram por passar horas a discutir. Ele afirmava que se tratava apenas de um hábito, de um gesto sem qualquer significado, mas a Rachel continuava a afirmar que ele nunca ia esquecer-me e que estava apenas a procurar desculpas. No dia seguinte, o Rodney continuava perturbado e passou pela biblioteca para me pedir um conselho; por isso, fomos conversar para a esplanada.

Lexie endireitou-se e suspirou. - E esta noite, como te disse, aconteceu. Como conheço os dois, como gosto de ambos e gostaria que as coisas se compusessem entre eles, achei que devia tentar que fizessem as pazes. Ou, pelo menos, mostrar-me disponível para ouvir quando algum deles pretendesse conversar comigo. Sinto-me paralisada, em terreno desconhecido, não sei como fugir nem o que se espera que eu faça.

- Talvez tivesses feito bem em não me contares. Essas telenovelas sulistas não são a minha especialidade.

Pela primeira vez desde que chegara, Lexie pareceu descontrair-se.

- Também não as aprecio. Há alturas em que preferia estar de volta a Nova Iorque, onde toda a gente se ignora. Estas histórias começam a cansar-me, e o pior é que por causa delas ficaste zangado comigo. Provoquei as tuas suspeitas e depois piorei tudo ao tentar encobrir a situação. Não fazes ideia de quanto lamento tudo. Não voltará a acontecer.

A voz fora ficando mais fraca e agora estava a falhar; quando ela limpou uma lágrima do canto do olho, Jeremy pôs-se de pé e foi sentar-se ao lado dela na cama. Pegou-lhe na mão. Os ombros de Lexie começaram a tremer e ela soluçou ruidosamente.

- Então - sussurrou Jeremy -, está tudo bem. Não chores. Palavras que pareceram libertar-lhe as emoções e a fizeram baixar

a cabeça e cobrir o rosto com as mãos. Soluços profundos e pesados, como se estivessem a ser reprimidos há muitas horas; o gesto dele ao pôr-lhe um braço à volta da cintura fê-la chorar ainda mais.

- Pronto, já está tudo bem - sussurrava Jeremy.

- Não... não... está - ia Lexie dizendo em voz sufocada, com o rosto ainda escondido nas mãos.

- Está tudo bem, estás perdoada.

- Não... não... estou. Bem vi... a maneira como olhaste para mim... ali à porta... quando cheguei.

- Nessa altura estava zangado. Agora já não estou.

Lexie estremeceu e continuou a cobrir a cara com as mãos. - Estás sim... Tu... detestas-me... Vamos ter um filho e tudo o que fazemos... é zaragatear...

Aquilo não estava a correr bem. Sem saber o que fazer, Jeremy voltou a lembrar-se das alterações das hormonas dela. Como a maioria dos homens, admitia que as hormonas explicavam todas as explosões emocionais, o que naquela situação lhe parecia realmente verdade.

- Não te detesto. Estava zangado contigo, mas isso já está esquecido.

- Eu não amo o Rodney... Amo-te a ti...

- Eu sei.

- Nunca mais falo com o Rodney...

- Podes falar com ele. Mas não em casa dele, está bem? E também não precisas de lhe pegar na mão.

Se possível, estes comentários fizeram redobrar o choro.

- Sabia que... continuavas zangado comigo...

Passou quase meia hora até que Lexie deixasse de chorar; a partir de certa altura, pareceu a Jeremy que o melhor era continuar a dizer que já não estava zangado, sem acrescentar qualquer comentário. Tudo o que dizia parecia piorar a situação. Como uma criança pequena depois de uma repreensão severa, a cada trinta segundos, mais ou menos, soltava um grito lancinante e ficava com o rosto descomposto, como se fosse recomeçar a chorar. Sem querer provocar outro ataque de choro, Jeremy deixou-se ficar em silêncio enquanto Lexie tentava recompor-se.

- Bolas! - exclamou com voz rouca.

- Pois - anuiu Jeremy. - Bolas!

Parecendo tão confusa quanto ele, Lexie tentou desculpar-se. Desculpa. Nem sei o que se passou aqui.

- Choraste - explicou Jeremy.

Lexie abriu os olhos para ele; porém, com as pálpebras inchadas, o efeito não foi o habitual.

- Soubeste alguma coisa da Rachel? - perguntou Jeremy.

- Não soube grande coisa, se exceptuarmos o facto de o Rodney estar perfeitamente convencido de que ela não se foi embora hoje. Acha que ela partiu ontem, depois de largar o trabalho. Tiveram uma discussão na noite de quinta-feira e, segundo a versão do Rodney, ela disse que estava tudo acabado e que não queria voltar a vê-lo. Mais tarde, quando passou à porta de casa dela, o carro já lá não estava.

- Ele andava a espiá-la? - inquiriu Jeremy de imediato, satisfeito por não ser o único.

- Não, queria fazer as pazes. Mas, de qualquer forma, se ela partiu na sexta-feira, depois de sair do restaurante... não sei, talvez tenha planos para passar todo o fim-de-semana fora. No entanto, isso não explica que não tenha telefonado à Doris a informar que não iria trabalhar pela manhã, nem nos dá qualquer pista sobre o lugar para onde foi.

Jeremy reflectiu sobre o assunto, a recordar-se de que Doris e Lexie nunca tinham dito que Rachel tivesse amigos de fora da terra. - Não teria ido apenas para a praia, ou para um sítio do género? Talvez quisesse estar só. Ou, pelo menos, afastar-se do Rodney durante algum tempo.

Lexie encolheu os ombros. - Quem sabe? Mas, ainda antes disto... não sei - começou, no que parecia uma tentativa de escolher cuidadosamente as palavras. - Nos últimos tempos, andava a tratar-me de um modo estranho. Como se estivesse a passar pela crise da meia-idade.

- É demasiado jovem para isso - salientou Jeremy. - Como disseste, é provável que tenha a ver com a relação dela com o Rodney.

- Eu sei... mas há mais qualquer coisa. Como se ela estivesse na posse de um segredo. Normalmente, a Rachel fala pelos cotovelos, mas, quando fomos à procura do vestido para ela levar ao casamento, falou muito pouco. Como se estivesse a esconder qualquer coisa.

- Talvez andasse a planear este fim-de-semana há algum tempo.

- É possível. Não sei.

Durante uns momentos nenhum deles quebrou o silêncio. Lexie tentou abafar um bocejo, parecendo encabulada quando terminou, desculpando-se. - Perdão. Estou a sentir-me cansada.

- Passar uma hora a chorar provoca essa sensação nas pessoas.

- E a gravidez também - replicou Lexie. - Ultimamente ando a sentir-me muito cansada. Chego a fechar a porta do gabinete, na biblioteca, para poder descansar a cabeça em cima da secretária.

- bom, tens de abrandar o ritmo. Como sabes, trazes aí a minha filha. E talvez fosse melhor ires para casa, para veres se descansas.

Olhou-o com uma sobrancelha erguida. - Não queres vir até lá? Jeremy levou algum tempo para responder. - É melhor não ir. Sabes o que acontece quando durmo lá.

- Queres dizer que levamos algum tempo a adormecer?

- Não consigo conter-me.

Lexie assentiu, subitamente séria. - Tens a certeza de que não queres ficar aqui por causa de...

- Não - disse ele, interrompendo-a com um sorriso. - Não estou zangado. Agora que percebo o que tem estado a suceder sinto-me muito melhor.

Ela beijou-o e levantou-se da cama. - Muito bem - foi dizendo enquanto se espreguiçava. Jeremy reparou que a barriga dela não se achatava tanto quanto era costume e fixou aquele ponto com talvez demasiada demora.

A insistência foi reprovada por Lexie, consciente do seu aspecto físico. - Não repares nas minhas banhas.

- Tu não tens banhas - replicou Jeremy automaticamente, com evidente boa disposição. - Estás grávida e bonita.

Lexie estava a observá-lo quando ele respondeu, como se quisesse saber a verdade sobre a recusa dele em acompanhá-la a casa, mas, pensando melhor, não viu conveniência em retomar a conversa anterior. Jeremy pôs-se de pé e conduziu-a até à porta. Depois de se despedir dela com um beijo, ficou a vê-la caminhar para o carro e a rever mentalmente todo o serão.

- Eh! Lexie!

Ela virou-se para trás. - O que é?

- Esqueci-me de te perguntar. Sabes se a Doris tem computador?

- A Doris? Não.

- Nem mesmo no restaurante?

- Não. Quanto a isso é muito antiquada. Até duvido que saiba como se liga. Porquê?

- Por nada de especial - concluiu Jeremy.

Notou a confusão na expressão dela, mas não quis falar mais do assunto. - Dorme bem. Amo-te.

- Também te amo - respondeu Lexie, com voz cansada. Abriu a porta do carro e sentou-se ao volante.

Jeremy ficou a vê-la ligar o motor, a recuar e a rodar por cima da gravilha do caminho de acesso, até as luzes traseiras começarem a enfraquecer, quando o carro estava quase a desaparecer da vista dele. Minutos depois estava sentado, recostado na cadeira e com os pés assentes no tampo da secretária.

Fora um serão rico em explicações; e todas faziam sentido. A suspeita em relação a Rodney tinha sido atirada para trás das costas; isto partindo do princípio de que alguma vez a tivesse julgado fundamentada; só persistiam as mensagens arquivadas no computador.

Se Lexie dizia a verdade, não haviam sido enviadas por Doris. Nesse caso, quem é que as enviou?

O diário de Doris estava em cima da secretária e Jeremy deu consigo a olhá-lo uma vez mais. Quantas vezes tinha reflectido se devia ou não ler o diário, na esperança de encontrar nele o tema para um artigo? Por qualquer razão, tinha evitado a leitura, mas voltou a pensar no último e-mail recebido.

ELA JÁ TE CONTOU A VERDADE? LÊ O DIÁRIO DA DORIS. ENCONTRARÁS LÁ A RESPOSTA.

Qual verdade? E o que é que poderia encontrar no diário de Doris? Qual era a resposta que deveria encontrar?

Não sabia. Nem nunca tivera a certeza de pretender saber. Porém, com a mensagem a martelar-lhe na cabeça, estendeu a mão para o livro.

Jeremy passou a maior parte da semana seguinte a estudar o diário.

Na maioria dos casos, Doris procedera a anotações meticulosas. No total, havia 232 nomes no livro, todos escritos por extenso; 28 outras mulheres estavam identificadas apenas por iniciais, embora não fosse dada qualquer explicação quanto à ausência dos nomes completos.

Habitualmente, mas nem sempre, também eram identificados os pais. Em quase todos os casos, Doris havia incluído a data da visita e uma estimativa do tempo decorrido desde que começara a gravidez, bem como a indicação do sexo do bebé. As mães assinavam a seguir à previsão. Havia três casos de mulheres que nem sabiam que estavam grávidas.

Por baixo de cada previsão, Doris deixava um espaço em branco, onde mais tarde, depois do nascimento, escrevia o nome e o sexo do bebé, por vezes utilizando uma caneta de cor diferente. Uma vez por outra, era incluído um recorte de jornal onde fora noticiado o nascimento da criança e, tal como Lexie lhe contara, as previsões de Doris tinham-se confirmado na totalidade. Houvera casos em que não fora previsto o sexo do bebé, um facto não referido por Lexie, nem por Doris. Nesses casos, baseado em notas subsequentes de Doris, Jeremy percebeu que a mãe teria abortado.

19 de Fevereiro de 1995, Ashley Bennett, 23 anos, gravidez de f; doze semanas.

Pai: tom Harker. MENINO, a) Ashley Bennett Toby Roy Bennett, nascido a 31 de Agosto de 1995.

 

12 de Julho de 1995, Terry Miller, 27 anos, gravidez de nove semanas. Muitos enjoos matinais. Segundo filho. MENINA, a) Terry Miller Sophie Mary Miller, nascida a 11 de Fevereiro de 1996.

Continuou a ler, à procura de um padrão, a tentar detectar algum desvio. Leu todo o diário, entrada por entrada, meia dúzia de vezes. A meio da semana começou a sentir-se atormentado, com a sensação de lhe estar a escapar um pormenor qualquer; iniciou nova leitura, desta vez a começar pelo fim. E voltou a ler tudo.

Finalmente, na manhã de sexta-feira, encontrou o que procurava. Estava combinado que, dentro de meia hora, iria buscar Lexie para lhes ser feita a entrega da casa nova. Ainda não fizera as malas para a viagem a Nova Iorque, mas não conseguia desviar os olhos da entrada que Doris rabiscara com mão pouco segura.

28 de Setembro de 1996: L. M. D. 28 anos, gravidez de sete semanas. Possível pai: Trevor Newland. Gravidez descoberta acidentalmente.

A entrada acabava ali, o que significava que a mãe abortara.

Jeremy agarrou o diário com mãos trémulas; de súbito, sentira dificuldades respiratórias.

L. M. D. Lexie Marin Darnell.

Grávida, com um filho de outro. Mais uma mentira por omissão.

Outra mentira...

Ao perceber a entrada, a cabeça de Jeremy entrara em erupção. Lexie mentira acerca da gravidez, como tinha mentido sobre o tempo que passara com Rodney. Como certa vez tinha mentido sobre o sítio onde fora, depois de sair de casa de Doris... e, ainda antes, tinha mentido ao dizer que não sabia a verdade sobre as luzes misteriosas do cemitério.

Mentiras e verdades escondidas...

Um padrão?

O desgosto fê-lo cerrar os lábios com força. Quem era ela? Por que estaria a agir assim? E por que diabo não lhe teria falado do caso? Ele teria compreendido.

Não sabia se deveria estar furioso ou magoado. Ou ambas as coisas. Precisava de tempo para avaliar a situação, mas o problema era esse: não havia tempo. Não tardava que ele e Lexie fossem proprietários de uma casa; dentro de uma semana estariam casados. Mas Alvin nunca deixara de ter razão. Não a conhecia, nunca a tinha conhecido. Nem,

como percebeu de repente, confiava nela inteiramente. Ela explicara as suas mentiras, sem dúvida. E, pensando numa de cada vez, todas tinham explicações plausíveis. Contudo, aquele iria ser o comportamento regular dela? Teria ele de viver com aqueles desvios da verdade? E conseguiria viver assim?

Além disso, continuava sem saber quem enviara o e-mail. Tudo

voltava, uma vez mais, ao princípio, não era? O seu conhecido, o

homem a quem pedira que seguisse a pista da anterior mensagem misteriosa, telefonara no início da semana para lhe contar que o e-mail fora quase de certeza enviado de fora da vila, mas esperava ter uma resposta definitiva dentro de pouco tempo. O que quereria dizer... o quê?

Não sabia, nem dispunha de tempo para pensar no assunto. A reunião com o notário, para fechar o negócio da casa, começaria dentro de vinte minutos. Deveria adiar a escritura? Conseguiria, mesmo que quisesse?

Demasiado em que pensar; demasiadas coisas para fazer. Movendo-se como um autómato, saiu do quarto do Greenleaf. Dez minutos depois, com a cabeça numa perfeita confusão, parou em frente da casa de Lexie. Notou movimento através da janela e viu-a aparecer no alpendre.

Reparou, sem se manifestar, que ela se vestira formalmente para a ocasião. Trazia calças cor de canela e casaco a condizer, bem como uma blusa branca. Sorriu e acenou-lhe ao descer os degraus do alpendre. Por instantes, foi-lhe fácil esquecer-se de que ela estava grávida.

Grávida...

Tal como já estivera antes. A recordação trouxe de novo à superfície

toda a cólera que sentia, mas ela não pareceu reparar quando deslizou para dentro do carro.

- Viva, amor, como estás? Por momentos, pensei que não iríamos chegar a tempo.

Não conseguiu responder-lhe. Não foi capaz de olhar para ela. Nem tinha a certeza de querer confrontá-la agora ou esperar até ter entendido toda aquela situação.

Lexie colocou-lhe a mão no ombro e arriscou a pergunta: - Estás bem? Pareces distraído.

 Jeremy apertou o volante, a tentar manter o autodomínio. - Estou

apenas a pensar.

Ela observou-o. - Queres falar disso?

- Não - foi a resposta.

Continuou a olhá-lo, sem saber se havia motivo para se preocupar. Passados instantes, recostou-se e apertou o cinto de segurança.

- Não é excitante? - indagou, a tentar simultaneamente mudar de assunto e aliviar a tensão. - A nossa primeira casa. Depois de assinarmos a escritura, deveríamos celebrar. Talvez devêssemos ir almoçar, antes de seguires para o aeroporto. Além disso, não vou ver-te durante uns dias.

Jeremy meteu a quinta velocidade e o carro saltou para diante. Como quiseres.

- A ideia não parece entusiasmar-te.

Ele fingiu-se absorvido pela condução e acelerou, a apertar o volante com as mãos rígidas. - Eu disse que ia.

Lexie abanou a cabeça e olhou para fora. - Muito obrigada resmungou.

- O quê? Agora, estás zangada?

- Só não compreendo a razão do teu mau humor. Isto deveria ser excitante. Vamos comprar uma casa; estás prestes a partir para a tua festa de despedida de solteiro. Devias mostrar-te feliz. Entretanto, ages como se fôssemos assistir a um funeral.

Jeremy abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas reconsiderou. Se iniciassem agora uma discussão, não haveria maneira de chegarem a horas ao escritório do notário. Estava consciente disso. Não queria que a querela se tornasse conhecida; nem sabia, aliás, como começar a discussão. Teriam, porém, de discutir o assunto; mais tarde. Sobre isso não tinha dúvidas.

Portanto, percorreram o resto do caminho em silêncio, com o ambiente no interior do carro a ficar mais pesado a cada minuto que passava. Quando chegaram ao cartório do notário, onde eram aguardados por Mrs. Reynolds, Lexie já nem olhava para ele. Abriu a porta e saiu, caminhando na direcção de Mrs. Reynolds, sem esperar por Jeremy.

Jeremy não mostrou vontade de a alcançar e foi reflectindo: "Estás zangada? Óptimo. Bem-vinda ao clube, minha querida. "

- Hoje é o grande dia - exultou uma sorridente Mrs. Reynolds, quando Lexie se aproximou. - Estão prontos?

Lexie assentiu; Jeremy manteve-se calado. Mrs. Reynolds desviou os olhos de Lexie para Jeremy; depois repetiu, ao contrário. O sorriso da agente imobiliária desvaneceu-se. Tinha idade suficiente para reconhecer um arrufo. A compra de uma casa era um processo propiciador de tensões, cada pessoa podia reagir de maneira diferente. Todavia, não eram contas do seu rosário. Ela só tinha de levar o casal até ao escritório para que assinassem os documentos, antes que o arrufo entre eles evoluísse para algo mais grave que os levasse a cancelar o negócio.

- Sei que já estão à nossa espera - anunciou, a fingir que não notava as expressões de mau humor do casal. - Iremos para a sala de reuniões - esclareceu, dando um passo para a porta. - É por aqui. Fizeram um excelente negócio. Uma vez terminadas as obras, serão proprietários de uma verdadeira casa modelo.

Segurou a porta e ficou à espera de uma resposta.

- Ao fundo do corredor - voltou a informar. - Segunda porta à esquerda.

Uma vez dentro do escritório, apressou-se a ultrapassá-los, quase a forçá-los a seguirem-na. Foi o que fizeram, mas, nem a propósito, o notário não se encontrava na sala.

- Sentem-se. Deve ter saído por um minuto. Permitam-me que vá à procura dele, está bem?

Quando Mrs. Reynolds saiu da sala, Lexie e Jeremy mantiveram-se sentados, sem olharem um para o outro, até que ele pegou num lápis e, com ar ausente, começou a batucar no tampo da mesa.

Foi Lexie quem rompeu o silêncio, para perguntar: - O que é que tens hoje?

Jeremy notou o desafio na voz dela, mas não respondeu.

- Não queres falar comigo?

Lentamente, ele ergueu a vista para ela e pediu-lhe, com voz calma: - Conta-me o que aconteceu com o Trevor Newland. Ou deverei chamar-lhe Mr. Renaissance?

Lexie abriu apenas um pouco mais os olhos e parecia prestes a responder quando Mrs. Reynolds reapareceu, trazendo o notário a reboque. Sentaram-se à mesa e o notário abriu o processo na frente deles.

Começou por explicar os procedimentos, mas Jeremy mal o ouvia. Em vez de prestar atenção, regressou mentalmente ao passado, ao acto final do divórcio de Maria. Tudo lhe parecia semelhante, desde a comprida mesa de nogueira, rodeada de cadeiras estofadas, às prateleiras cheias de livros de leis e à grande janela que deixava entrar a luz do sol.

Durante os minutos seguintes, o notário explicou os termos do contrato, página por página. Citou-lhes os números, mostrou-lhes os totais do empréstimo bancário e da avaliação da casa, os valores aprovados e as taxas de juro acordadas. De súbito, Jeremy achou o custo total esmagador, tão esmagador como o facto de ir passar os trinta anos seguintes a pagar a casa. com uma sensação de peso no estômago, foi assinando nos sítios que lhe indicaram e, quando acabou, empurrou o contrato na direcção de Lexie. Nenhum deles fez perguntas, nenhum pegou no processo. A determinada altura, Jeremy surpreendeu o notário a trocar olhares com Mrs. Reynolds, que se limitara a encolher os ombros.

Tudo assinado, o notário juntou as três cópias do processo e distribuiu-as: uma para o vendedor, outra para os arquivos do cartório e a última para os novos proprietários. Estendeu a cópia do processo e Jeremy pegou-lhe e pôs-se de pé.

- Parabéns - concluiu o notário. Resposta seca de Jeremy: - Obrigado.

Não houve conversa de circunstância enquanto Mrs. Reynolds conduzia Jeremy e Lexie para a saída. A agente imobiliária também lhes deu os parabéns e encaminhou-se sem demora para o seu carro.

Ali fora, à luz do sol, nenhum deles parecia saber o que dizer, até que ela resolveu quebrar o silêncio.

- Agora podemos ir ver a casa?

Antes de responder, Jeremy observou-a por instantes. - Não achas que, antes disso, devíamos conversar?

- Falamos quando chegarmos lá.

O primeiro pormenor em que Jeremy reparou ao chegarem junto da casa foi o dos balões presos ao poste junto à entrada; por baixo deles estava uma faixa a dizer "BEM-VINDOS AO LAR". Olhou de revés para Lexie, que explicou:

- Esta manhã vim colocar os balões e a faixa. Pensei que fosse uma surpresa para ti.

- Pois é - limitou-se a responder. Sabia que deveria acrescentar mais qualquer coisa, mas não o fez.

Lexie abanou a cabeça, um movimento subtil, quase imperceptível, que dizia tudo. Sem falar, abriu a porta do carro e saiu. Jeremy ficou a vê-la caminhar na direcção da casa, notando que não esperara por ele, nem olhara para trás.

Sentiu que ela estava tão desapontada com ele quanto ele estava desapontado com ela; que a cólera dela era o espelho da sua. Sabia o que tinha acontecido com Trevor Newland; ela sabia que ele sabia.

Contudo, Lexie parecia querer evitar falar do assunto.

Jeremy saiu do carro. Lexie já estava no alpendre da frente, de braços cruzados, a olhar por cima da cabeça dele, na direcção de uma mata de ciprestes antigos. Jeremy caminhou na direcção dela, a sentir o som dos próprios passos ao caminhar para o alpendre. Parou quando estava perto.

A voz dela era quase um sussurro.

- Sabes, tinha tudo planeado. Refiro-me ao dia de hoje. Estava tão excitada quando saí da loja com os balões e a faixa, tinha o plano inteiro na minha cabeça. Pensava que, depois de terminarmos no notário, te proporia um piquenique; traria umas sanduíches e uns refrigerantes do Herbs e far-te-ia a surpresa ao encaminhar-te até aqui. À nossa casa, no próprio dia em que passou a ser nossa. Pensei que nos sentaríamos no alpendre das traseiras... nem sei, só para gozarmos o momento, pois tanto tu como eu sabemos que um dia como este jamais se repetirá.

Depois de uma pausa, Lexie acrescentou: - Não vai ser assim, pois não?

Pelo menos por uns instantes, aquelas palavras fizeram-no lamentar a maneira como se comportara. Mas não tinha culpa de nada do que estava a passar-se; acontecera apenas que soubera algo acerca de Lexie, um facto que ela não mencionara por não ter suficiente confiança nele. E chamara-lhe a atenção para essa falha.

Sentiu-a respirar fundo, antes de o enfrentar. - Por que motivo queres saber o que se passou com o Trevor Newland? Já te falei nele. Apareceu por aqui num Verão, há alguns anos, tivemos um caso, ele foi-se embora. É tudo.

- Não foi isso que te perguntei. Perguntei-te o que aconteceu.

- Não vejo qual é o interesse - replicou Lexie. - Gostei dele, partiu e nunca mais voltei a vê-lo. Não voltei a ouvir falar dele.

- Mas aconteceu qualquer coisa - insistiu ele.

- Por que é que estás a fazer-me isto? - protestou ela. Quando nos conhecemos eu tinha 31 anos. Não te apareci vinda de debaixo de uma pedra e não tinha passado toda a vida no sótão. Então, namorei outros antes de teres aparecido? É claro que sim, até gostei de alguns deles. Mas tu fizeste o mesmo e não me ouves perguntar-te o que se passou com a Maria ou com as tuas antigas namoradas. Não sei o que te deu ultimamente. Parece que tenho de andar em bicos de pés, de evitar todos os assuntos, para não te desgostar. Está bem, talvez devesse ter-te contado tudo sobre o Trevor, mas, dado o teu comportamento dos últimos tempos, acabaríamos sempre por brigar.

- O meu comportamento?

- Sim! - exclamou Lexie, já em voz alterada. - Um pouco de ciúme é normal, mas isto é ridículo. Primeiro o Rodney, agora é o Trevor? Aonde é que vamos parar? Vais querer saber o nome de cada um dos tipos com quem saí quando andava na universidade? Ou do primeiro rapaz que beijei? Queres saber todos os pormenores? Como já disse, será que isto vai ter fim?

- Não se trata de ciúme! - contrapôs Jeremy.

- Ai não? Então é o quê?

- É um problema de confiança.

Lexie mostrou-se incrédula. - Confiança? Como é que vou conseguir ter confiança em ti se tu não tiveres confiança em mim? Durante toda esta semana até tenho tido medo de dar os bons-dias ao Rodney, especialmente depois do regresso da Rachel, com receio do que tu possas pensar. Continuo sem saber onde é que ela esteve ou o que se passa com ela, mas, como tenho andado entretida a fazer tudo para que te sintas feliz, ainda não tive tempo para perguntar. E, quando julgo que as coisas entre nós estão a voltar à normalidade, começas a interrogar-me acerca do Trevor. Parece que andas à procura de pretextos para te zangares, e eu estou cansada de zaragatas.

- Não me atribuas as culpas desta situação - contrapôs Jeremy.

- Não sou eu quem continua a esconder coisas.

- Não estou a esconder nada.

- Li o diário da Doris - revelou ele. - Encontrei lá as tuas iniciais.

- Estás a falar de quê?

- Do diário dela! - voltou a exclamar. - Está lá, escrito com todas as letras... que LMD estava grávida, mas a Doris não indica o sexo do bebé, o que, para ela, significava que a grávida faria um aborto. L-M-D. Lexie Marin Darnell És tu, não és?

Lexie engoliu em seco, sem esconder a confusão. - Está escrito no diário?

- Pois está; e também lá está o nome Trevor Newland.

- Espera - começou Lexie, cada vez mais estupefacta.

- Só quero que me digas uma coisa - exigiu Jeremy. - Vi as tuas iniciais, vi o nome dele e tirei as minhas conclusões. Estavas grávida, ou não estavas?

- E depois? - gritou Lexie. - Que importância é que isso tem?

- Magoa que não acredites em mim o suficiente para poderes contar-me. Estou cansado destes segredos entre nós...

Ela interrompeu-o, não o deixando concluir. - Magoa? Quando viste o nome no diário não paraste um pouco para reflectires sobre os meus sentimentos? Que eu posso ter sido magoada? Que provavelmente não te contei por não sentir vontade de recordar o que aconteceu? Que se tratou de um período terrível da minha vida, que nunca mais quero reviver? Não tem nada a ver com a confiança em ti. Até nem tem nada a ver connosco. Fiquei grávida. Abortei. E então? As pessoas cometem erros, Jeremy.

- Não estás a perceber a minha intenção.

- Qual intenção? A vontade de quereres iniciar uma nova discussão esta manhã e de teres andado à procura de um pretexto? Pois bem, encontraste um; por isso, dou-te os parabéns. Mas começo a ficar cansada desta situação. Sei que andas sob pressão, mas isso não te dá o direito de continuares a implicar comigo.

- O que queres dizer com isso?

- O teu trabalho! - explodiu Lexie, erguendo as mãos. - A questão é apenas essa e tu sabes isso! Não consegues escrever e implicas comigo, como se a culpa fosse minha. Para ti tudo tem uma importância desproporcionada e quem paga sou eu. Um amigo está preocupado, converso com ele e, de repente, deixei de ter confiança em ti. Não te disse que fiz um aborto, há quatro anos, tudo por não ter confiança em ti. Estou cansada de ser considerada a má da fita, só porque tu não consegues alinhavar um artigo.

- Não me atribuas as culpas. Eu é que fiz o sacrifício de me mudar para cá...

- Ora aí está! É precisamente isso que pretendo dizer! Tu fizeste o sacrifício - interrompeu Lexie, praticamente a cuspir a última palavra. - É exactamente assim que tens agido! Como se tivesses arruinado toda a tua vida por teres vindo viver para aqui!

- Não disse isso.

- Pois não, mas foi o que pretendeste dizer! Andas sob tensão por não conseguires trabalhar e atribuis-me a culpa! Mas a culpa não é minha! Por acaso já paraste um instante para te perguntares se eu também ando sob tensão? Tomei a meu cargo toda a preparação do casamento! Encarreguei-me de dirigir a renovação da casa! Sou eu quem teve de fazer tudo isto, além de suportar o fardo da gravidez! E consegui o quê? "Não me contaste a verdade." Mesmo que tivesse contado, mesmo que te tivesse dito tudo, arranjarias sempre maneira de estares zangado comigo! Já não consigo fazer nada de jeito. É como se tivesses conseguido fazer de mim uma pessoa que já nem conheço.

Jeremy sentiu a cólera a aumentar novamente. - Porque tu não me julgas capaz de fazer nada de jeito! O meu vestuário não é adequado, não sei escolher comida saudável, o género de carro que quero comprar não interessa, nem mesmo pude escolher a casa onde vou morar. Tu tens tomado todas as decisões, as minhas ideias não contam para nada!

Os olhos dela faiscaram. - É por estar a pensar na nossa família. Enquanto tu só pensas em ti mesmo!

- E tu? - gritou ele. - Eu é que tive de abandonar a minha família, porque tu não o farias. Tive de arriscar a minha carreira, porque tu não o farias. Estou a viver num motel que é um monte de porcaria, rodeado de animais mortos, porque não queres que os habitantes da terra fiquem com uma impressão errada! E tenho pago tudo o que tu queres, não o contrário!

- Dinheiro? Também estás furioso por causa do dinheiro?

- Aqui, vou ficar falido e tu nem te apercebes da situação! Podíamos ter adiado algumas das obras da casa! Não precisamos de um berço de 500 dólares! Não precisamos de um armário atafulhado de roupas! E a bebé ainda nem nasceu! - exclamou Jeremy, de mãos erguidas para o alto. - Agora já podes perceber os motivos da pressão da escrita. Trata-se de arranjar maneira de pagar todas estas coisas que tu queres, e não consigo fazê-lo aqui. Nesta terra não há notícias que possa aproveitar, não há energia, não há nada!

Quando ele acabou ficaram muito tempo calados, a olhar um para

o outro.

- É isso que pensas realmente? Que não há nada aqui? O que sou eu e a bebé? Não significamos nada?

- Tu sabes perfeitamente o que eu quero dizer.

Lexie cruzou os braços. - Não, não sei. Por que é que não me esclareces?

Subitamente exausto, Jeremy limitou-se a abanar a cabeça. Só pretendia que ela percebesse. Sem uma palavra, saiu do alpendre.

Caminhou em direcção ao carro, mas decidiu deixá-lo. Lexie precisaria de transporte; quanto a ele, decidiria mais tarde. Tirou as chaves da algibeira e atirou com elas para junto da roda. Ao sair do desvio de acesso à casa nem se preocupou em olhar para trás.

 

Horas depois, sentado na cadeira de descanso da casa de alvenaria dos pais, em Queens, Jeremy tinha os olhos postos na janela. Acabara por pedir a Doris que lhe emprestasse o carro para ir ao Greenleaf mudar de roupa e seguir para o aeroporto. Ao reparar na expressão dele, Doris não fizera perguntas e, durante o caminho, Jeremy tinha revivido a discussão uma centena de vezes.

De início, fora-lhe fácil continuar zangado pela maneira como Lexie tinha dado a volta aos factos em seu benefício; no entanto, à medida que se afastava e sentia que estava a recuperar a calma, começou a duvidar se ela não teria razão. Não toda a razão, pois havia que assacar-lhe a sua parte de responsabilidade na escalada da discussão, mas também ele teria certamente de assumir uma parte da culpa. A sua cólera dever-se-ia realmente à falta de confiança demonstrada por Lexie, ou estaria apenas a reagir às pressões a que estava submetido e a atribuir a culpa a Lexie? Para ser totalmente honesto consigo próprio, tinha de admitir que o stress fazia parte do problema, mas não se tratava apenas do stress relacionado com o seu trabalho de jornalista. A questão dos e-mails continuava por resolver.

As mensagens não se destinavam a fazê-lo duvidar de que era o pai da bebé. A finalidade era levá-lo a suspeitar de Lexie. E pareciam ter cumprido bem a missão. Mas quem os enviara? E porquê?

Quem é que sabia da gravidez de Lexie? A Doris, sem dúvida, o que a tornava a candidata aparente. Só que Jeremy não conseguia imaginá-la a fazer nada de semelhante e, segundo Lexie, a avó nem sabia usar um computador. E aquela correspondência era obra de um especialista.

Restava, então, Lexie. Recordou-se da expressão da noiva quando a informou de que tinha visto o nome dela no diário. A menos que a confusão tivesse sido fingida, ela não sabia que o seu nome constava do diário. Doris ter-lhe-ia dito que sabia? Conforme a data em que o aborto tinha sido executado, qualquer delas podia não ter informado a outra.

A ser assim, quem é que sabia?

Fez um telefonema para o pirata informático seu amigo e deixou-lhe uma mensagem, a dizer-lhe que precisava da informação pedida com verdadeira urgência. Antes de desligar, pediu-lhe para lhe ligar para o telemóvel logo que descobrisse alguma coisa.

Dentro de uma hora seguiria para a festa de despedida de solteiro, mas não se sentia com disposição. Embora aspirasse a passar algum tempo junto de Alvin, não queria rever toda a questão com ele. Aquela deveria ser uma noite de divertimento, o que para já não lhe parecia possível.

- Não devias estar a preparar-te?

Jeremy viu o pai a aproximar-se, vindo da cozinha. - Estou pronto.

- com essa camisa? Pareces um lenhador!

com a pressa de fazer a mala para sair de Boone Creek, e ao aperceber-se de que tinha transpirado a roupa que vestira para ir assinar a escritura da casa, Jeremy tirara a camisa de flanela do armário. Ao olhar para a barriga, ficou a magicar se aquele não seria um esforço subconsciente para admitir que Lexie tinha razão. - Não gosta dela?

- É diferente, disso não tenho dúvidas - observou o pai. Compraste isso lá em baixo?

- Foi-me oferecida pela Lexie.

- Talvez devesses falar com ela sobre vestuário. Ora, eu talvez ficasse bem dentro de uma coisa dessas, mas não me parece nada própria para ti. Especialmente para hoje, se fores sair.

- Veremos - respondeu Jeremy.

- Estás à vontade - concluiu o pai ao sentar-se no sofá. - Então, o que é que se passa? Tiveste uma discussão com a Lexie antes de vires para cá?

Jeremy ergueu uma sobrancelha. Primeiro o presidente da Câmara, agora o pai. O seu rosto poderia ser lido como um livro aberto?

- O que é que o leva a fazer essa pergunta? - decidiu indagar.

- A maneira como tens estado a agir. Ela não achou bem que fizesses uma festa de despedida de solteiro?

- Não, não foi nada disso.

- É que algumas mulheres ficam furiosas com essas festas. Como é evidente, todas dizem que está muito bem, mas, lá por dentro, não gostam de encarar a ideia de que os noivos vão deitar olhares gulosos a algumas mulheres bonitas.

- Não vamos fazer uma festa desse género. Disse ao Alvin que não queria nada disso.

O pai instalou-se mais confortavelmente. - Nesse caso, qual foi o motivo da zaragata? Queres falar do assunto?

Depois de um debate interior, Jeremy decidiu que não queria falar do assunto com o pai. - Realmente não. É pessoal.

O pai assentiu. - É sempre uma boa solução, deixa que te diga. Acredita no que te digo. O que o casal discute nunca deveria deixar de ser pessoal. Se isso não acontecer, há que pagar um preço dos diabos. Mas não significa que eu não possa dar-te alguns conselhos, pois não?

- Nunca consegui evitá-los.

- Todos os casais têm zangas. É disso que tens de recordar-te.

- Eu sei disso.

- Pois é, mas acontece julgares que tu e a Lexie discutem mais do que deviam. Ora, eu não posso avaliar se é ou não verdade, mas falei com essa jovem quando ela veio até cá e digo-te na cara que ela é boa para ti e que és parvo se não tentares resolver todos os problemas que possam existir. É uma mulher única; a tua mãe acha que tiveste muita sorte. O mesmo pensa toda a gente daqui, já que estamos a falar disso.

- O pai nem a conhece. Só falou com ela uma vez.

- Sabias que ela tem escrito à tua mãe desde que foste viver para lá todas as semanas? E para as tuas cunhadas?

Jeremy não conseguiu esconder a surpresa.

- Era o que eu pensava - acrescentou o pai. - Também tem telefonado. E mandado fotografias. A tua mãe já sabe como lhe assenta o vestido de casamento, qual o aspecto do bolo, o estado em que estão as obras da casa. Até mandou alguns postais com a fotografia do farol, de modo a que saibamos qual o seu aspecto. Tudo isso para que a tua mãe, e todos nós, pudéssemos saber o que estava a suceder. A tua mãe anseia pelo dia em que descerá até lá para passarem mais algum tempo juntas.

Jeremy manteve-se calado. - Como é possível que eu não saiba essas coisas? - acabou por indagar.

- Não sei. É provável que quisessem fazer-te uma surpresa no dia do casamento; desculpa se desvendei o segredo. O que quero sublinhar é que a maioria das pessoas não se daria a esses cuidados. Ela percebeu que a tua mãe não ficou satisfeita com a ideia de partires, mas não tomou isso como uma questão pessoal. Em vez disso, deu-se ao trabalho de tornar a situação mais agradável. Para proceder assim é preciso ser uma pessoa especial.

- Não posso acreditar - murmurou Jeremy, a pensar que Lexie era uma caixinha de surpresas. Algumas boas, como aquela.

- Ora bem, sei que já foste casado, mas vais começar tudo do princípio. Só tens de recordar constantemente a necessidade de considerares os problemas na sua totalidade. Quando a situação se tornar difícil, recorda os motivos que te levaram a apaixonar-te por ela. É uma mulher especial, tiveste a sorte de a conhecer, tal como ela teve a sorte de te encontrar. Tem um coração de ouro, uma característica que não se pode fingir.

- Por que será que me parece estar do lado dela e me considera responsável pela discussão?

O pai piscou-lhe o olho e replicou: - Porque te conheço desde sempre. Toda a vida foste bom a arranjar discussões. Não é isso que tens andado a fazer ao escreveres aqueles artigos?

Apesar de tudo, Jeremy soltou uma gargalhada. - E se estivesse errado a meu respeito? E se a culpa fosse dela?

O pai encolheu os ombros. - Nesse caso, eu diria que são precisas duas pessoas para dançar o tango. Quer-me parecer que ambos têm razão e que ambos estão errados. Aliás, é assim que a maioria das discussões começa. As pessoas são como são e ninguém é perfeito, mas o casamento implica a formação de uma equipa. Vão passar o resto da vida a aprender a conhecerem-se um ao outro; uma vez por outra, dá-se uma explosão. Contudo, a beleza do casamento está nisso: se escolhermos a pessoa certa, e se existir amor entre o casal, arranjaremos sempre maneira de ultrapassar as dificuldades.

Passadas umas horas, Jeremy estava encostado a uma das paredes do apartamento de Alvin, empunhando uma cerveja e a observar o grupo de homens, muitos dos quais estavam a ver televisão. Principalmente por ambos partilharem o gosto das tatuagens, Alvin era um grande admirador de Allen Iverson, e quisera o destino que os Philadelphia 76ers estivessem a defrontar os Hornets nosptay-offs. Embora a maioria dos presentes preferisse provavelmente ver o jogo dos New York Knicks, estes só jogavam na quarta-feira. Mesmo assim, as pessoas amontoavam-se à volta do televisor, usando a desculpa da festa de despedida de solteiro, numa desordem que certamente não lhes seria permitida pelas mulheres que tinham em casa. Se fossem casados, claro. Jeremy tinha dúvidas quanto a alguns deles, que rivalizavam com o Alvin na densidade das tatuagens e no número de piercings. Contudo, pareciam estar a divertir-se; uns quantos tinham começado a beber logo que entraram e já falavam com vozes pastosas. Uma vez por outra, alguém parecia lembrar-se subitamente do motivo por que estava no apartamento de Alvin e caminhava, inseguro, em direcção a Jeremy.

- Estás a divertir-te? - poderia dizer, ou: - E se bebêssemos mais uma cerveja?

- Estou bem, obrigado - respondia Jeremy.

Embora não tivesse visto aquela gente durante uns dois meses, poucos sentiam a necessidade de actualizarem a conversa, o que fazia sentido, pois, na sua maioria, eram mais amigos de Alvin do que dele próprio. Na realidade, depois de percorrer a sala com o olhar, chegou à conclusão de que não conhecia metade das pessoas presentes, o que não deixava de ter a sua graça, na medida em que aquela deveria ser a sua festa. Teria ficado igualmente satisfeito se tivesse passado o serão com Alvin, Nate e os irmãos, mas Alvin era conhecido por aproveitar todas as oportunidades para se divertir à grande, em especial quando os 76ers estavam a ganhar por dois pontos a meio do terceiro período de jogo. Só Nate, que nunca se interessara muito por desportos, parecia alheio ao jogo; de momento, concentrava-se na tarefa de guarnecer o prato com mais uma fatia de piza.

A festa tinha começado da melhor maneira; quando entrou na sala, foi saudado como se estivesse a regressar da guerra. Os irmãos tinham-se juntado à sua volta e bombardearam-no com perguntas acerca de Lexie, de Boone Creek e da casa; Nate tinha tido a amabilidade de lhe trazer uma lista de ideias que talvez ele pudesse aproveitar para os artigos, uma das quais se referia ao crescente uso da astrologia na análise de investimentos. Jeremy ouviu, tomou notas mentais e admitiu para si mesmo que a ideia era original e poderia ser aproveitada, tanto para a crónica habitual como para um artigo independente; agradeceu a Nate, com a promessa de não se esquecer. Como se a promessa servisse para alguma coisa!

No entanto, para já fora-lhe fácil esquecer os problemas. A distância tinha uma estranha forma de fazer com que as irritações provocadas pela vida em Boone Creek lhe parecessem humorísticas; ao descrever as obras aos irmãos, eles não conseguiram conter as gargalhadas com a descrição que fez dos operários, o que também provocou o riso do próprio Jeremy. Riram até às lágrimas com o facto de Lexie o ter obrigado a ficar no Greenleaf e pediram-lhe que lhes mandasse fotografias, de maneira que eles pudessem ver com os próprios olhos os animais embalsamados. Também queriam uma fotografia de Jed, o qual, no decurso da conversa, atingira proporções quase míticas para eles. E imploraram-lhe, tal como Alvin já fizera, que lhes anunciasse a sua primeira caçada, de modo a poderem divertir-se.

com o tempo, arrastaram-se para junto do televisor, tal como todos os outros, acomodando-se ao espírito do serão. Jeremy sentiu-se contente por poder assistir de longe.

- Bonita camisa - comentou Alvin ao chegar junto dele.

- Eu sei. Já me disseste isso duas vezes.

- E vou continuar a dizer. Não me interessa se foi comprada pela Lexie ou não. Pareces um turista.

- E então?

- E então? Esta noite vamos sair. Vamos tomar a cidade de assalto, pô-la em festa por ser a tua última noite de homem solteiro, e tu apareces-me com a roupa de quem passou a tarde a ordenhar vacas. Esse não és tu.

- É o meu novo eu.

Alvin riu-se. - Espera, não foste tu quem começou a protestar por causa da camisa?

- Acho que me habituei.

- Parece que não restam dúvidas acerca disso. Contudo, deixa-me dizer-te que os meus amigos estão a divertir-se à tua custa.

Jeremy ergueu a cerveja e bebeu mais um gole. Estava a segurá-la há uma hora e começava a ficar quente. - Não posso dizer que isso me incomode. Metade deles veste T-shirts compradas em concertos rock, a outra metade está coberta de couro. Pareceria sempre um estranho, qualquer que fosse a camisa.

- Talvez tenhas razão - anuiu Alvin, a sorrir -, mas repara na energia que eles trouxeram para a tua festa. Não me conseguia imaginar a passar todo o serão com o Nate a reboque.

Jeremy olhou para o seu agente, sentado do outro lado da sala. Nate vestia um fato de três peças e exibia um brilho intenso no alto da cabeça por causa da transpiração, bem como uma mancha de molho de piza no queixo. Parecia mais deslocado que Jeremy. Ao ver que Jeremy olhava para ele, acenou com uma fatia de piza.

- Pois, isso faz-me recordar... obrigado por teres convidado os teus amigos para a minha festa de despedida de solteiro.

- Quem é que havia de convidar? Tentei os tipos da Scientific American, mas não se mostraram minimamente interessados. Para além deles, os únicos nomes de que me lembrei, tirando os teus irmãos, eram de mulheres. Não me tinha apercebido de que levavas uma vida de eremita. E, além do mais, isto é apenas o aquecimento, para nos deixar com a disposição certa para o resto da noite.

- Receio perguntar quais são os planos para o resto da noite.

- Não te preocupes. É uma surpresa.

Os que estavam a assistir ao jogo soltaram um rugido e cumprimentaram-se entre si. Houve cerveja entornada aqui e ali e a repetição da jogada mostrou Iverson a encestar da linha de três pontos.

- Escuta, o Nate já falou contigo?

- Já. Porquê?

- Porque não pretendo que ele nos estrague a noite, sempre a falar de trabalho. Sei que, para já, é um assunto doloroso para ti, mas vais ter de o deitar para trás das costas mal entremos na limusina.

- Não há problema - mentiu Jeremy.

- Pois não. É por isso que ficaste aqui encostado à parede em vez de estares a ver o jogo, não é?

- Estou a preparar-me para a noite.

- Mais parece que estás a controlar-te para não te meteres em sarilhos. Se eu não te conhecesse, diria que ainda estás na primeira cerveja.

- E então?

- E então? É a tua festa de despedida de solteiro. Estás autorizado a perder a cabeça. De facto, espera-se que o faças. Que me dizes se eu for buscar outra cerveja e dermos início à festa?

- Estou óptimo - insistiu Jeremy. - Estou a divertir-me. Alvin observou-o. - Estás mudado.

Jeremy estava de acordo. Mas não respondeu. O outro abanou a cabeça. - Sei que estás para casar, mas... Como deixasse a frase a meio, Jeremy ficou a olhar para ele. Mas, o quê?

- Isto - respondeu Alvin. - Tudo isto. A maneira como estás vestido, a maneira como te comportas. É como se eu já não conseguisse saber quem tu és.

Jeremy encolheu os ombros. - Talvez esteja a crescer. Alvin começou a descolar o rótulo da garrafa de cerveja. - Pois, talvez seja isso.

Na sua maioria, os amigos de Alvin aproximaram-se da comida logo que o jogo terminou, fazendo tudo o que podiam para acabar com a última fatia de piza, até que, finalmente, Alvin lhes indicou a porta do apartamento. Quando os outros saíram, Jeremy seguiu Alvin, Nate e os irmãos pela escada abaixo, para se amontoarem dentro da limusina que já os esperava. Dentro do automóvel, havia outra caixa de cervejas misturadas com gelo e até Nate estava a integrar-se no ambiente festivo. Um fracalhote quanto a bebidas alcoólicas, à terceira cerveja já começava a perder o equilíbrio e tinha as pálpebras a meia haste.

- Clausen - repetia. - Precisas de outra história como a do Clausen. É isso que tens de encontrar. Tens de conseguir caçar outro elefante. Estás a ouvir-me?

- Caçar um elefante - repetiu Jeremy, a tentar não ficar enjoado com o bafo alcoólico. - Entendido.

- Isso mesmo. É exactamente o que tens de fazer.

- Eu sei.

- Mas tem de ser um elefante.

- Claro.

- Um elefante. Estás a ouvir?

- Orelhas gigantes, tromba comprida, come amendoins. Elefante. Entendido.

Nate assentiu. - Já estás a raciocinar.

Viu Alvin, do outro lado do automóvel, a adiantar-se para dar instruções ao motorista. Pararam poucos minutos depois; os irmãos de Jeremy acabaram as cervejas antes de deslizarem para fora.

Jeremy foi o último a sair e apercebeu-se de que estavam no mesmo bar onde tinham ido celebrar o seu aparecimento no programa Primetime Live, em Janeiro. com o seu grande balcão de granito e iluminação para impressionar, o lugar estava tão polido e apinhado como nessa altura. Para lá das janelas de vidro, via-se apenas espaço para beber em pé.

- Achei que gostarias de começar por aqui - esclareceu Alvin.

- Por que não?

- Eh! - exclamou Nate. - Estou a conhecer este lugar acrescentou, a olhar à sua volta. - Já aqui estive.

Jeremy sentiu-se empurrado por um dos irmãos. - Anda lá, calmeirão. Vamos entrar.

- Mas aonde é que estão as dançarinas?

- Mais tarde - acrescentou outro dos irmãos. - A noite ainda é uma criança. Só estamos a aquecer.

Quando Jeremy se voltou para Alvin, este limitou-se a encolher os ombros. - Não fiz planos para isso, mas sabes como são alguns destes tipos quando se fala de festas de despedida de solteiro. Não podes responsabilizar-me por tudo o que venha a acontecer esta

noite.

- É óbvio que posso.

- Caramba, esta noite és um verdadeiro fartote de rir, não és? Jeremy seguiu o amigo em direcção à porta da frente; Nate e os

irmãos já estavam lá dentro, a tentarem abrir caminho por entre os grupos. Depois de entrar, Jeremy sentiu-se a respirar naquela atmosfera que já considerara o seu lar. As pessoas, na sua maioria, estavam vestidas com estilo; algumas, metidas em fatos, pareciam ter vindo directamente do escritório para ali. Não tardou a fixar os holofotes numa bonita moreninha, que estava na ponta do balcão e parecia beber um qualquer líquido tropical; na sua vida anterior teria começado por lhe oferecer uma bebida. Naquela noite, a visão dela fê-lo recordar Lexie; acariciou o telemóvel, sem saber se deveria telefonar-lhe, só para a informar de que tinha chegado bem. Talvez até para lhe pedir desculpa.

- O que é que bebes? - perguntou Alvin, de longe. Já conseguira abrir caminho até ao balcão e estava inclinado sobre o tampo, a tentar chamar a atenção do empregado.

- Para já, estou bem - gritou Jeremy para se sobrepor ao barulho. Por entre as ondas de pessoas, conseguiu ver os irmãos juntos, numa ponta do balcão. Ao dar passagem a outro grupo, Nate parecia balançar como um barco.

Alvin abanou a cabeça e pediu dois gins com água tónica; depois de pagar, entregou um a Jeremy.

- Assim não vale - censurou, ao passar-lhe a bebida. - É a tua festa de despedida de solteiro. Como padrinho, acho que posso bater o pé e insistir para que te animes.

- Estou a divertir-me - voltou a insistir Jeremy.

- Não, não estás. O que foi? Tu e a Lexie tiveram mais uma zanga?

Jeremy passeou o olhar pelo bar; num dos cantos pareceu-lhe reconhecer alguém com quem namorara. Jane qualquer coisa. Ou seria Jean?

Não interessava, pareceu-lhe apenas uma maneira expedita de fugir à pergunta do amigo. Endireitou-se. - Quase - admitiu.

- Vocês passam a vida a zangar-se? - indagou Alvin. - Já alguma vez pensaste que isso pode querer dizer qualquer coisa?

- Não passamos o tempo a zangar-nos.

- Qual foi o motivo desta última zanga? - perguntou Alvin, ignorando o comentário do amigo. - Antes de partires para o aeroporto esqueceste-te de a beijar como deve ser?

Jeremy enrugou a testa. - Ela não é dessas!

- bom, alguma coisa se passou - persistiu Alvin. - Queres falar disso?

- Não. Neste momento, não.

Alvin arqueou uma sobrancelha. - Deve ser grave, hum? Depois de beber um gole e de sentir o ardor na garganta, Jeremy limitou-se a dizer: - Não.

- Tu é que sabes - prosseguiu Alvin, a abanar a cabeça. Óptimo, se não queres falar comigo talvez devesses conversar com os teus irmãos. Mas há uma coisa que posso garantir-te: desde que foste viver para lá, não tens sido feliz - acrescentou. Fez uma pausa para lhe dar tempo para pensar. - E provável que seja essa a razão de não estares a conseguir escrever.

- Não sei qual o motivo que me impede de trabalhar, mas posso garantir-te que não tem nada a ver com a Lexie. E não sou infeliz. ".

- As árvores não te deixam ver a floresta.

- O que é que te deu? - inquiriu Jeremy.

- Só estou a tentar que vejas tudo isto com clareza.

- Tudo o quê? - exigiu Jeremy. - Quem te ouvir dirá que não queres que eu case com ela.

- Acho que não deves casar com ela - ripostou Alvin. - Foi o que tentei fazer-te perceber quando foste morar para lá. Tu nem a conheces e penso que boa parte do teu problema é estares, finalmente, a aperceber-te disso. Ainda não é tarde...

- Eu adoro-a! - replicou Jeremy, numa voz que revelava crescente exasperação. - Como é que podes fazer uma afirmação dessas?

- Porque não desejo que faças uma asneira! - contrapôs Alvin.

- Estou preocupado contigo, entendes? Não és capaz de escrever, estás praticamente falido, não pareces confiar na Lexie e ela não mostra suficiente confiança em ti para te informar de que houve uma gravidez anterior. E agora dizes-me que se zangaram pela enésima vez...

Jeremy pestanejou. - O que é que disseste?

- Disse que não desejava que faças uma asneira.

- Depois disso! - bradou Jeremy.

- O quê?

- Disseste que a Lexie já esteve grávida. Alvin abanou a cabeça. - Na minha opinião...

- Como é que soubeste disso? - exigiu Jeremy.

- Não sei... Julgo que deves ter mencionado isso numa conversa anterior.

- Não! - negou Jeremy. - Não mencionei. Só tive conhecimento disso esta manhã. E não te contei. Portanto, pergunto-te uma vez mais: como é que soubeste?

Foi naquele preciso momento, ao olhar para o amigo, que sentiu as peças a ajustarem-se nos seus devidos lugares: e-mails impossíveis de identificar... o breve namoro com Rachel e a sugestão para que ela viesse visitá-lo... o facto de Alvin ter feito questão de falar nela, o que significava que continuava a pensar nela... a recente ausência não explicada de Rachel, a que se juntou a necessidade de Alvin desligar o telefone, alegando estar acompanhado...

Jeremy susteve a respiração, pois tudo se ajustava como no mais perfeito dos quebra-cabeças, uma situação demasiado absurda para se aceitar, demasiado óbvia para ser ignorada...

Rachel, amiga de Lexie há muitos anos... tinha acesso ao diário de Doris e sabia o que continha... devia saber que Doris o tinha emprestado a Jeremy... tinha problemas com Rodney por causa de Lexie...

E Alvin, o seu amigo, continuava a dar-se com a ex-mulher de Jeremy, eram velhos amigos que partilhavam tudo...

- A Rachel esteve cá, não esteve? - indagou por fim Jeremy, com a voz a tremer de cólera. - A Rachel veio visitar-te a Nova Iorque, não veio?

- Não.

- As mensagens foram mandadas por ti - prosseguiu, finalmente a perceber toda a traição do amigo. Olhou para Alvin como se ele fosse um estranho. - Tu mentiste-me.

Os presentes voltaram-se para observar a cena; Jeremy mal reparou neles. Mesmo sem querer, Alvin deu um passo atrás.

- Posso explicar...

- Por que é que fizeste isso? Considerava-te meu amigo.

- Eu sou teu amigo - reiterou Alvin.

Jeremy não pareceu ouvi-lo. - Sabias a pressão a que tenho estado sujeito...

Abanou a cabeça, a tentar abarcar toda a realidade da situação. Alvin agarrou-o por um braço. - Pronto, a Rachel esteve em Nova Iorque e fui eu que mandei as mensagens - confessou. - Não soube da vinda dela até à véspera, até ela me telefonar; surpreendeu-me tanto quanto a ti. Tens de acreditar em mim quanto a isso. Quanto às mensagens, só as enviei por me preocupar contigo. Nunca mais foste o mesmo desde que foste lá para baixo e não queria que cometesses um erro.

Jeremy manteve-se calado. Aproveitando o silêncio dele, Alvin apertou-lhe o braço e prosseguiu: - Não digo que não deves casar com ela. Parece-me boa rapariga, de verdade. Mas atiraste-te de cabeça e não estavas a ouvir a voz da razão. Ela até pode ser a mulher mais excepcional de todos os tempos, e espero que seja, mas tu tinhas de saber onde é que estavas a meter-te.

- A Maria contou-te, não foi? - perguntou Jeremy, depois de respirar fundo, ainda incapaz de olhar Alvin de frente. - Disse-te qual foi o verdadeiro motivo do nosso divórcio?

- Pois disse - confessou Alvin, parecendo aliviado por Jeremy começar a perceber. - Ela contou-me. Disse que não poderia acontecer, de maneira nenhuma. As suspeitas dela foram superiores às minhas, se queres saber a verdade, e fizeram-me pensar; por isso, mandei o e-mail - prosseguiu, a respirar fundo. - Um erro, provavelmente, e, para te ser franco, pensei que nem ligasses; foi então que me telefonaste, parecias perturbado, e de súbito apercebi-me de que tu alimentavas as mesmas dúvidas que eu quanto à gravidez dela.

Parou, a tomar alento para continuar. - É então que a Rachel aparece, bebemos uns copos e ela começa a contar-me que o Rodney continua apaixonado pela Lexie; enquanto eu me recordava de que a Lexie tinha confessado o facto de ter passado o serão na companhia dele. Entretanto, quanto mais a Rachel falava, mais pormenores eu ficava a conhecer acerca do passado da Lexie, sobre o tipo com quem ela namorou e de quem ficou grávida pela primeira vez, o que veio confirmar, uma vez mais, que a conheces muito mal.

- O que é que estás a tentar dizer-me?

Alvin inspirou profundamente e escolheu as palavras com todo o cuidado. - Estou apenas a dizer que se trata de uma decisão importante e que deverias saber naquilo em que estás a meter-te.

- Estás a dizer que pensas que o bebé é do Rodney? - inquiriu Jeremy.

- Não sei o que hei-de pensar sobre isso - respondeu Alvin -, mas esse não é o ponto importante...

- Não? - indagou Jeremy, a levantar a voz. - Então qual é o ponto importante? Pretendes que abandone a minha noiva, que está grávida, para regressar a Nova Iorque e poder andar na pândega contigo?

Alvin ergueu as mãos. - Não estou a dizer isso.

- Pois a mim parece-me que é justamente isso que estás a dizer!

- berrou Jeremy, sem querer ouvir mais nada. As pessoas que estavam à volta voltaram-se de novo para eles; continuou a ignorá-las.

- E sabes que mais? - prosseguiu -, não me interessa aquilo que julgas que eu devo fazer. O filho é meu! vou casar com a Lexie! E vou viver em Boone Creek porque é lá que me sinto bem!

- Não precisas de gritar...

- Tu mentiste-me!

- Estava a tentar ajudar-te...

- Traíste-me...

Alvin reagiu, a gritar tão alto quanto o amigo. - Não! Limitei-me a fazer perguntas, aquelas que tu deverias ter feito desde o início.

- Não tinhas nada a ver com isso!

- Não o fiz para te magoar! - gritou Alvin em resposta. - Não sou a única pessoa a julgar que estavas a avançar com demasiada pressa em todo este processo! Os teus irmãos pensam o mesmo!

O comentário fez com que Jeremy ficasse paralisado por instantes; Alvin aproveitou a oportunidade para defender as suas ideias.

- Jeremy, o casamento é um acto importante! Não estamos a falar de a convidares para jantar; estamos a falar de passares a acordar com ela ao teu lado para o resto da tua vida. As pessoas não se apaixonam em dois dias. E, pensa como quiseres, mas também não aconteceu contigo. Achaste-a fantástica, consideraste-a inteligente, ou bonita, seja o que for... mas decidires subitamente que vais passar o resto dos teus dias com ela? Desistires da tua casa e da tua carreira por um capricho?

Falava com a voz de quem implorava, que lembrava a Jeremy o tom de um professor a tentar convencer um aluno inteligente a abandonar a sua obstinação. Podia ter invocado quantas respostas quisesse. Poderia ter dito a Alvin que o bebé era dele, Jeremy; podia ter dito a Alvin que mandar o e-mail não fora apenas um erro, fora um gesto sinistro; podia ter dito a Alvin que amava Lexie, que sempre a amara desde o início e que a amaria sempre. Porém, tinham passado essa fase e, mesmo que Alvin estivesse enganado, nunca seria capaz de admitir tal coisa.

E Alvin estava enganado. Redondamente enganado.

Em vez disso, Jeremy ficou a olhar a bebida, a fazer o líquido girar, antes de olhar Alvin nos olhos. com um gesto rápido do braço, atirou com o resto da bebida à cara do outro e depois agarrou-o pelo colarinho. Empurrando-o, obrigou um Alvin desprevenido a recuar alguns passos, até ficar encostado a uma coluna.

Esteve prestes a bater-lhe. Quase encostou a cara à dele, tão perto que conseguiu notar-lhe o hálito.

- Nunca mais quero ver-te nem falar-te.

Dito isto, girou sobre os calcanhares e caminhou para a saída.

 

- Não sei nada dele - confessou Lexie na tarde seguinte, sentada em frente à avó a uma mesa do Herbs.

Doris tentou sossegá-la. - Vai tudo correr bem.

Lexie hesitou, a reflectir se a avó estava a falar verdade ou apenas a dizer-lhe o que a neta gostaria de ouvir. - Não viste a expressão dele, ontem, na casa nova. A maneira como olhou para mim... como se me odiasse.

- Achas que a culpa é dele?

- O que é que pretendes dizer? - perguntou Lexie, erguendo os olhos para ela.

- Exactamente o que disse - replicou Doris. - Gostavas de saber algo sobre o Jeremy que te levasse a pensar que não confias nele?

Lexie ficou rígida e protestou. - Não vim aqui para ouvir isto.

- Pois bem, já que estás cá, vais ter de ouvir. Vieste aqui à procura de compaixão mas, enquanto ouvia a tua história, não deixei de pensar sobre como o Jeremy poderia avaliar toda a situação. Viu-te de mãos dadas com o Rodney, anulas um compromisso com ele e vais passar o serão com o Rodney e, para terminar, descobre que já estiveste grávida de outro homem. Não admira que ficasse furioso.

Lexie abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas Doris ergueu a mão para não lhe permitir comentários.

- Sei que não era isto que gostarias de ouvir, mas, neste caso, não é ele o único que está em falta.

- Eu pedi desculpa. Expliquei tudo.

- Sei que o fizeste, só que por vezes isso não é suficiente. Escondeste-lhe factos, não uma ou duas vezes, mas três. Se queres merecer a confiança dele não podes agir assim. Devias ter-lhe contado o que aconteceu com o Trevor. Julguei que já o tinhas posto ao corrente; de contrário, nunca lhe teria entregado o diário.

- Por que é que havia de lhe dizer? Há anos que não pensava em tal coisa. Aconteceu há muito tempo.

- Não para ele. Para ele, aconteceu na sexta-feira. Se fosse comigo, é provável que me sentisse furiosa.

- Pareces estar do lado dele.

- Quanto a isto, estou.

- Doris!

- Estás noiva, Lexie. Sei que o Rodney é um amigo de há muitos anos, mas estás para casar com o Jeremy, um facto que alterou as regras. Não haveria problemas se lhe tivesses contado francamente o que andavas a fazer, mas resolveste agir sorrateiramente, nas costas dele.

- Foi por saber como ele ia reagir.

- Ai foi? Como é que sabias? - inquiriu Doris, a fixar a neta com um olhar firme. - Só tinhas de lhe telefonar a informar que precisavas de falar com o Rodney, que ias tentar saber para onde a Rachel tinha ido, que pretendias saber se terias alguma responsabilidade no desaparecimento dela. Tenho a certeza de que o Jeremy teria compreendido isso. Mas não lhe contaste a história toda; e não era a primeira vez. E, por fim, ele descobre que já tinhas estado grávida?

- Queres dizer que tenho de lhe contar tudo?

- Não é isso que estou a dizer. Mas isto? Sim, provavelmente devias ter-lhe contado. Mesmo que não se tratasse de um grande segredo da terra, e mesmo que desejasses esquecer, tinhas de calcular que, mais cedo ou mais tarde, ele acabaria por descobrir. Para ti, teria sido melhor que ele não tivesse descoberto o caso da forma que o fez. Ou, o que ainda seria pior, se tivesse sabido do caso por intermédio de outra pessoa?

Lexie virou-se para a janela, de boca teimosamente fechada, e Doris pensou que ela talvez se fosse embora. Mas manteve-se sentada e a avó estendeu o braço por cima da mesa para lhe acariciar a mão.

- Eu conheço-te, Lexie. Podes ser teimosa, mas não és uma vítima. E o Jeremy também não é. O que está a passar-se com ambos, toda essa tensão a que estão submetidos... chama-se vida. E a vida tem propensão a criar-nos dificuldades onde menos as esperamos. Todos os casais passam por altos e baixos, todos os casais se zangam e o problema é esse: vocês são um casal, mas os casais não conseguem funcionar sem confiança. Tens de confiar nele, ele tem de confiar em ti.

No silêncio que se seguiu, Lexie ficou a reflectir sobre os comentários da avó. Viu um pássaro pousar no peitoril da janela, dar pequenos saltos, como se caminhasse sobre brasas, e levantar voo. Já vira pássaros pousarem naquele peitoril, talvez um milhar de vezes, mas, ao observá-lo, teve a convicção absurda de que aquele pássaro estava a querer dizer-lhe qualquer coisa. Esperou, a ver se ele reaparecia, alimentando a esperança de que voltasse. Mas não voltou, obrigando-a a reconhecer o quanto a ideia era disparatada. Por cima da cabeça dela, as ventoinhas do tecto giravam, agitando o ar em largos círculos.

- Julgas que ele vai voltar? - acabou por perguntar, com voz que revelava o medo que sentia.

- Ele vai voltar - garantiu Doris, apertando-lhe a mão com convicção.

Lexie queria acreditar, mesmo que tivesse dúvidas. - Não sei nada dele desde que partiu - sussurrou. - Não ligou uma única vez.

- Vai ligar - assegurou Doris. - Dá-lhe tempo. Está a tentar encontrar o caminho e passa o fim-de-semana entre amigos. Não te esqueças de que é a sua festa de despedida de solteiro.

- Eu sei...

- Não faças disso um bicho-de-sete-cabeças. Quando é que ele regressa?

- Deveria ser no domingo, à noite. No entanto...

- Então é quando chegará - garantiu Doris. - E, quando ele aparecer, mostra-te contente por vê-lo. Pergunta-lhe como correu o fim-de-semana e mostra interesse quando ele te contar o que aconteceu. E, mais tarde, não te esqueças de lhe demonstrar que ele é uma pessoa especial. Crê em mim, fui casada durante muito tempo.

Apesar do tumulto que sentia na cabeça, Lexie sorriu. - Até pareces uma conselheira matrimonial.

Doris encolheu os ombros. - Conheço os homens. Podem fazer uma birra dos diabos, sentirem-se frustrados ou preocupados com o trabalho ou com a vida, mas, no final, se souberes o que os faz correr, são bastante fáceis de entender. E uma das coisas que os faz correr é uma necessidade quase desesperada de se sentirem apreciados e admirados. Se os fizeres sentir assim, nem sabes o que são capazes de fazer por ti.

Lexie limitava-se a olhar para a avó. Ao prosseguir, Doris mostrava um sorriso melífluo. - Desejam, como é óbvio, fantásticas relações sexuais e esperam que as mulheres mantenham a casa limpa e arrumada, sem deixarem de parecer bonitas e de arranjarem energia suficiente para se divertirem juntos, mas a admiração e o apreço estão sempre presentes.

Espantada e boquiaberta, Lexie perguntou: - Meu Deus, isso tudo? Talvez devesse andar descalça e manter-me grávida, excepto quando visto apenas roupas íntimas.

- Não te mostres tão revoltada - repreendeu Doris, que retomara o ar sério. - Não és a única pessoa a ter de fazer sacrifícios quando a finalidade é o casamento. Pensas que te cabe a parte mais difícil? Mas os homens também têm de fazer sacrifícios. Corrige-me se estiver equivocada, mas, quando estão a ver um filme, desejas aninhar-te ao lado dele e que ele te acaricie a mão, pretendes que ele diga o que sente e que te ouça, queres que ele tenha tempo para a tua filha e que ganhe o suficiente, não só para comprar a casa mas também para a remodelar. Pois bem, digo-te sem rodeios que não existe nenhum homem capaz de percorrer o caminho até ao altar, enquanto pensa: "Meu Deus, vou trabalhar no duro e sacrificar-me para proporcionar uma boa vida à minha família, vou passar horas com os meus filhos, mesmo quando estiver cansado, enquanto vou abraçando e beijando a minha mulher, a contar-lhe todas as dificuldades que tenho de ultrapassar e, entretanto, farei tudo isto sem esperar absolutamente nada em troca-" - sentenciou. A seguir, sem esperar pela resposta, prosseguiu: - Um homem compromete-se a fazer coisas para manter a mulher feliz na esperança de que, também ela, faça o que tem a fazer para o manter feliz.

Pegou na mão de Lexie. - Como te disse, estão ambos comprometidos nisto. Os homens têm certas necessidades, as mulheres têm outras, diferentes; era assim há centenas de anos e será assim daqui a outras centenas de anos. Se ambos se convencerem desta verdade, e se cada um trabalhar para satisfazer as necessidades do outro, terão um casamento feliz. E parte disso, para ambos, depende da confiança. No fim, é muito simples.

- Não sei por que me diz tudo isto.

Doris esboçou um sorriso astucioso. - Sabes, sim. Mas a minha esperança é que recordes isto quando já estiveres casada. Se pensas que agora é difícil, espera até lá. Mesmo quando julgares que já não poderá piorar, verificarás que pode. E quando já não pensares em qualquer melhoria, as coisas poderão melhorar. Contudo, desde que continues a pensar que ele te ama e que tu o amas, e desde que ambos se lembrem de agir de acordo com esse sentimento, tudo se resolverá pelo melhor.

Lexie ficou a reflectir nos conselhos da avó. - Suponho que esta é a conversa pré-matrimonial, ou não? A que tens reservada para mim desde há muitos anos?

Doris soltou a mão da neta. - Olha, não sei. Suponho que acabaríamos por falar destas coisas, mas não, esta conversa não foi planeada. Aconteceu espontaneamente.

- Então, tens a certeza de que ele vai voltar? - indagou Lexie, depois de ponderar as possibilidades.

- Vai, com certeza. Tenho observado a maneira como olha para ti e sei o que isso significa. Acredita ou não, mas já cá ando há muitos anos.

- E se estiveres enganada?

- Não estou. Já te esqueceste? Eu sou médium.

- És adivinha, não és médium.

Doris encolheu os ombros. - Por vezes, a percepção faz-se sentir exactamente da mesma maneira.

Lexie parou à porta do Herbs, semicerrando os olhos ante o brilho daquela tarde soalheira. Enquanto procurava as chaves, deu consigo a admirar a sabedoria das palavras de Doris. Não lhe fora fácil ouvir a avaliação que a avó fazia da situação; porém, desde quando era fácil ouvir dizer que podemos estar equivocados? Desde que Jeremy a deixara sozinha no alpendre, encolerizara-se em autojustificações, como se a cólera pudesse afastar os problemas, mas agora não conseguia fugir à sensação de que eram problemas triviais. Não queria zaragatas com Jeremy; tal como ele, estava cansada de discussões. Não era maneira de se iniciar um casamento e decidiu, logo ali, que as discussões tinham acabado. Ao abrir a porta do carro e ao sentar-se ao volante, acenou que sim, determinada. Mudaria, se tivesse de mudar; e também por ser a decisão mais sensata.

Saiu do parque de estacionamento sem ter decidido aonde ia. Contudo, levada pelo instinto, deu consigo no cemitério, em frente às pedras tumulares dos pais. Ao ver os nomes gravados no granito, pensou no casal de que não tinha recordações e tentou imaginar como seriam os pais. A mãe rir-se-ia muito ou era uma pessoa reservada? E o pai, gostaria de futebol ou de basebol? Pensamentos sem sentido, mas, mesmo assim, começou a imaginar até que ponto a mãe seria parecida com Doris, e se lhe teria feito o mesmo sermão que a avó acabara de fazer. Achou que seria o mais provável. Afinal, eram mãe e filha. Por qualquer razão que não conseguia explicar, a ideia fê-la sorrir. Decidiu que telefonaria a Jeremy, logo que chegasse a casa. Voltaria a pedir-lhe desculpa e dir-lhe-ia que sentia saudades dele.

E, como se a mãe estivesse a ouvir, o ar agitou-se com uma ligeira brisa que fez oscilar as folhas da magnólia numa espécie de concordância silenciosa.

Lexie passou perto de uma hora no cemitério a invocar imagens de Jeremy e daquilo que ele poderia estar a fazer. Via-o sentado na cadeira de repouso, já muito usada, da sala de estar dos pais, a falar com o pai; quase lhe dava a ideia de estar numa divisão adjacente, a ouvi-los. Deu consigo a recordar a primeira vez que entrara na casa onde ele passou a infância, rodeado por pessoas que o conheciam há muito mais tempo que ela. Recordou-se da forma sedutora como ele a observou durante essa tarde e da maneira gentil como, na noite passada no Plaza, lhe percorrera a barriga com um dedo.

A suspirar enquanto consultava o relógio, apercebeu-se de que tinha muito que fazer: ir às compras à mercearia, trabalho administrativo na biblioteca, procurar prendas para os aniversários de alguns empregados... Contudo, ao pegar nas chaves, sentiu um desejo súbito e irrecusável de ir para casa, uma vontade tão poderosa que lhe deixava poucas hipóteses de escolha. Deixou as pedras tumulares dos pais e dirigiu-se para o carro, perturbada por aquele desejo imperioso.

Conduziu devagar, com cuidado, para evitar os coelhos e as seriguéias que tinham o hábito de correr por aquele troço de estrada. Porém, ao aproximar-se de casa, foi tomada por uma sensação inexplicável, por uma expectativa, que a obrigou a carregar com mais força no pedal. Fez a curva para a sua rua, arregalando os olhos ao ver o carro de Doris arrumado perto da casa, antes de avistar a figura sentada nos degraus da frente, de cotovelos apoiados nos joelhos.

A lutar contra o desejo de saltar do carro, saiu lentamente e começou a percorrer o desvio de acesso à casa, como se aquela cena não tivesse nada de anormal.

Jeremy levantara-se ainda antes de ela ter posto a mala a tiracolo.

- Olá - saudou.

Fez um esforço para que a voz não lhe tremesse e sorriu ao aproximar-se. - Por aqui, as pessoas dizem "ói", não é "olá".

Ele ficou a estudar os próprios pés, parecendo ignorar a normalidade com que ela falava.

- Estou contente por te ver, estrangeiro - acrescentou Lexie, com voz amável. - Não é todos os dias que chego a casa e encontro um homem bonito à minha espera no alpendre.

Quando Jeremy ergueu a cabeça, ela não deixou de notar a exaustão daquele rosto.

- Já estava a imaginar onde poderias andar.

Lexie parou em frente dele, a recordar memórias antigas do contacto das mãos dele com a sua pele. Por instantes pensou lançar-se nos braços dele, mas notou-lhe uma certa fragilidade e hesitação de comportamento que a fez refrear-se.

- Estou contente por te ver - repetiu.

Jeremy respondeu com um sorriso fugidio mas manteve-se calado.

- Continuas zangado comigo?

Em vez de responder, Jeremy ficou a observá-la. Quando se apercebeu de que ele procurava a maneira como lhe responder, medindo o que pretendia dizer e o que, pensava, ela desejaria ouvir, Lexie agarrou-lhe um braço e continuou a falar com uma pressa de cortar a respiração, ansiosa por não deixar nada de importante por dizer. Porque tens toda a razão para estares. Tiveste razão. Devia ter-te contado tudo e prometo não voltar a esconder-te aquele género de questões. Desculpa.

Ele pareceu divertido. - Assim, sem mais nem menos?

- Tive tempo para reflectir sobre o assunto.

- Também peço desculpa - confessou Jeremy. - Não devia ter reagido com aquela violência.

No silêncio que se seguiu, Lexie percebeu a fadiga e a consternação que se desprendiam da figura dele. Instintivamente, aproximou-se. Jeremy hesitou por um breve instante, antes de lhe abrir os braços. Lexie deixou-se enlaçar, beijou-o ao de leve nos lábios e descansou a cabeça no peito dele. Deixaram-se ficar abraçados durante muito tempo, mas Lexie não deixou de notar a falta de paixão do abraço dele.

- Estás bem? - sussurrou.

- Não, realmente não estou - respondeu Jeremy. Pegou-lhe pela mão, conduziu-o para dentro de casa e parou na

sala de estar, sem saber se deveria tentar que ele se sentasse no sofá ou na cadeira que estava ao lado. Jeremy contornou-a e deixou-se cair no sofá. Então, inclinado para diante, passou a mão pelo cabelo.

- Senta-te aqui - pediu. - Tenho uma coisa para te dizer.

Ao ouvi-lo, Lexie pareceu sentir o coração dar um pulo. Aproximou-se, a sentir o calor da perna dele contra a dela. Ficou rígida ao ouvi-lo suspirar.

- É sobre nós? - perguntou.

Ele ficou a olhar na direcção da cozinha, mas como se não focasse nada em especial. - Acho que sim.

- Vamo-nos casar?

Quando ele assentiu, Lexie preparou-se para o pior. - Vais voltar para Nova Iorque? - sussurrou.

Jeremy levou algum tempo a perceber o sentido da pergunta mas, quando a encarou, Lexie percebeu o estado de confusão em que ele se encontrava.

- Como é que podes fazer uma pergunta dessas? Queres que eu volte para lá?

- É claro que não. No entanto, dado o modo como te comportas, já não sei o que pensar.

Jeremy abanou a cabeça. - Desculpa. Não tinha a intenção de ser tão ambíguo. Acho que eu próprio estou ainda a tentar ser racional. Mas não estou zangado contigo nem pretendo anular o casamento. Talvez devesse ter começado por esta explicação.

Lexie sentiu-se acalmar. - O que é que se passa? Aconteceu alguma coisa na festa de despedida de solteiro?

- Aconteceu - respondeu Jeremy. - Mas por detrás do que aconteceu na festa há uma história mais complicada.

Começou pelo princípio, por lhe revelar, finalmente, as suas profundas lutas com a escrita, as preocupações com o custo da casa, o sentimento de frustração que muitas vezes o assaltava no horizonte limitado de Boone Creek. Ela já conhecia alguns pormenores, embora tivesse de repreender-se a si própria por não se ter apercebido de como a situação estava a ser difícil para ele. Falou de modo a não culpar ninguém, como a dirigir-se tanto a ela como a si próprio.

Lexie não sabia onde é que ele quereria chegar, mas decidiu que o melhor era manter-se calada até ele terminar. Jeremy inteiriçou-se um pouco.

- E foi então - prosseguiu - que te vi de mão dada com o Rodney. No momento em que observei a cena sabia que não havia motivos para ficar preocupado. Disse isso repetidamente a mim próprio, mas acho que as outras pressões a que estava sujeito me levaram a pensar que poderia haver mais qualquer coisa. Avaliava bem o ridículo da ideia, mas talvez estivesse à procura de uma forma de te atribuir as culpas - acrescentou, com um sorriso contrafeito. - Que foi exactamente o que me disseste no outro dia. Só reagi quando voltaste a encontrar-te com o Rodney. Mas havia um outro pormenor de que não te falei. Algo que se passou entre esses dois acontecimentos.

Lexie acariciou-lhe a mão, sentindo-se aliviada quando ele aceitou o carinho.

Falou-lhe dos e-mails que tinha recebido, descreveu a cólera e a ansiedade que lhe tinham provocado. De início, ela teve alguma dificuldade em perceber o que tinha acontecido. Tentou manter a voz calma, e desejou abafar a comoção crescente que estava a apoderar-se dela.

- Foi assim que descobriste aquela entrada no diário? - perguntou.

- Pois foi - respondeu Jeremy. - De contrário, acho que nunca repararia nela.

- Mas... quem é que poderia ter feito uma coisa dessas? Antes de responder, Jeremy respirou fundo. - O Alvin.

- O Alvin? Foram enviados pelo Alvin? Mas... isso não faz sentido. Ele não poderia saber, de maneira nenhuma...

- A Rachel deu-lhe a informação - esclareceu Jeremy. - Quando desapareceu? Foi a Nova Iorque, fez-lhe uma visita.

Lexie acenou que não podia ser. - Não. Conheço-a desde sempre. Não faria uma coisa dessas.

Jeremy contou-lhe o resto da história, a narrativa mais coerente que conseguiu compor. - Quando saí a correr do bar, não sabia o que fazer. Limitei-me a caminhar até ouvir pessoas a correr atrás de mim. Os meus irmãos... - esclareceu, com um encolher de ombros. Notaram a fúria que me consumia e foi o suficiente para pô-los em alerta. Dêem-lhes uns copos e ficam prontos para começar uma refrega. Não se cansavam de me perguntar o que é que o Alvin fizera e se deveriam ter "uma conversa" com ele. Pedi-lhes que não fizessem nada.

Agora que analisava a situação em retrospectiva, Jeremy parecia achar mais fácil continuar a falar; quanto a Lexie, estava ainda a tentar assimilar o que acabara de ouvir.

- Conseguiram levar-me de volta a casa dos meus pais, mas eu não conseguia dormir. Nem podia revelar às outras pessoas o que tinha acontecido; por isso, alterei a hora de regresso, vim no primeiro voo da manhã.

Quando ele terminou, Lexie mal conseguia respirar.

- Pensei que ele era teu amigo.

- Também eu.

- Por que é que faria uma coisa destas?

- Não sei - confessou Jeremy.

- Por minha causa? O que é que eu lhe fiz? Nem me conhece. Não nos conhece. Isto foi...

- Pura maldade - acrescentou Jeremy, a terminar a frase por ela.

Lexie afastou uma lágrima inesperada. - Contudo... ele... não  sei...

- Também não sei o que dizer - admitiu Jeremy. - Desde que  descobri, não tenho parado de tentar compreender, mas só me ocorreu que, naquela mente retorcida do Alvin, nasceu a ideia de que estava a ajudar-me a evitar um desastre. Reconheço que é doentio. De qualquer maneira, não quero saber mais dele.

Lexie confrontou-o com uma súbita agressividade. - Por que não me falaste nas mensagens?

- Como te contei, não saberia o que dizer. Não sabia quem as tinha enviado. Não conhecia o motivo. E depois, com tudo o resto... - A tua família sabe?

- Das mensagens? Não, não lhes falei disso... - Não - interrompeu Lexie a tremer. - Que estavas perturbado pela dúvida de a filha ser tua. - Sei que é minha filha.

- É tua filha. Nunca fui para a cama com o Rodney. Há anos que  não vou para a cama com outro homem. - Eu sei...

- Mas quero que me oiças dizê-lo. A filha é nossa, tua e minha. Juro.

- Eu sei.

- Mas tiveste dúvidas, não foi? - indagou Lexie. A voz começava a atraiçoá-la. - Mesmo que fosse por um simples instante, tiveste dúvidas. Primeiro encontraste-me em casa do Rodney e a seguir ficaste a saber que eu já tinha estado grávida uma vez, tudo a juntar às outras pressões... - Já passou.

- Não, não passou. Devias ter-me contado. Se tivesse sabido  qualquer destes pormenores... podíamos ter-nos unido para resolvermos a questão - acrescentou, lutando para se dominar. - Acabou-se, está bem? Agora, não há nada que possamos fazer,  vamos esquecer o assunto e passar adiante. - Deves ter-me odiado.

- Nunca te odiei - protestou Jeremy, a chegá-la mais para si. - Amo-te. Lembras-te de que vamos casar-nos, que é já na próxima semana?

Lexie voltou o rosto para o peito dele e sentiu conforto ao ser apertada por aqueles braços. Passado algum tempo suspirou: - Não quero ver o Alvin no nosso casamento.

- Nem eu. Mas tenho outra coisa para te dizer.

- Não, não quero ouvir. Fica para outra altura. Já chega de emoções para um só dia.

- Esta é boa - prometeu Jeremy. - Vais gostar de ouvi-la. Lexie ergueu os olhos para ele, como se esperasse que ele não estivesse a mentir.

Ele disse apenas: - Obrigado.

- Por quê?

Beijou-a nos lábios, a sorrir com doçura. - Pelas cartas que escreveste à minha família. Em especial à minha mãe. São esses pormenores que me recordam que casar contigo é a melhor coisa que alguma vez farei.

 

Uma chuva fria e arrasadora, imprópria da estação, esmagava-se em catadupa contra as vidraças das janelas. As nuvens acinzentadas, que se haviam acumulado lentamente durante a noite anterior, trouxeram consigo a humidade da manhã e um vento que arrancou as últimas flores dos arbustos. Era final de Maio e faltavam apenas três dias para o casamento. Jeremy tinha combinado ir buscar os pais ao aeroporto de Norfolk, de onde eles o seguiriam, num carro alugado, até ao farol do cabo Hatteras, em Buxton. Enquanto esperava a chegada deles, entreteve-se a ajudar Lexie a fazer as últimas chamadas para verificarem se estava tudo preparado.

O tempo tristonho não conseguia obscurecer a renovada paixão que Lexie e Jeremy sentiam um pelo outro. No dia do regresso dele, tinham feito amor com uma intensidade que surpreendeu a ambos e Jeremy recordava-se de um modo especial da sensação de choque eléctrico da pele de Lexie contra a dele. Era como se através daquele acto de amor tentassem varrer todas as dores e equívocos, segredos e cóleras dos meses mais recentes.

Uma vez removido o fardo dos seus respectivos segredos, Jeremy sentiu-se alegre, como não se sentia havia meses. Dada a proximidade do casamento, tinha uma desculpa válida para evitar pensar no trabalho e não se preocupava com ele. Foi fazer corrida duas vezes e tomou a decisão de começar a fazer desporto logo que o casamento se realizasse. Embora a remodelação da casa não estivesse terminada, o empreiteiro prometera que poderiam mudar-se para lá bem antes do nascimento da filha. Seria provavelmente em finais de Agosto, mas Lexie sentiu-se suficientemente confiante para pôr a sua casa à venda, uma maneira de amparar as finanças periclitantes do casal.

Só não foram ao Herbs. Depois de saber o que Rachel tinha dito a Alvin, Lexie não conseguia enfrentar a ideia de a ver, pelo menos por enquanto. Doris telefonara na noite anterior, a querer saber o motivo por que nem Jeremy nem Lexie se dignavam a passar por lá, nem que fosse só para a cumprimentar. Ao telefone, Lexie garantiu à avó que não estava zangada com ela e admitiu que, na última vez em que tinham conversado, Doris tinha feito bem ao puxar-lhe as orelhas. Como Lexie continuasse a não ir visitá-la, Doris voltou a ligar.

- Começo a pensar que estás a esconder-me qualquer coisa começou Doris - e, se não me dizes o que se passa, estou pronta a marchar para tua casa e a assentar arraiais no alpendre até que me esclareças.

- Estamos apenas ocupados, queremos ter a certeza de que tudo estará pronto para o fim-de-semana - desculpou-se Lexie, a tentar apaziguá-la.

- Pois, mas acontece que não sou completamente estúpida replicou a avó. - Sei reconhecer quando estão a querer evitar-me e, na realidade, tu andas a evitar-me.

- Não estou a fugir de ti.

- Então, por que é que não tens passado ultimamente pelo restaurante? - insistiu Doris. Lexie hesitou, a intuição da avó tinha funcionado. - Será que tem alguma coisa a ver com a Rachel?

Doris suspirou, quando se convenceu de que Lexie não respondia.

- É isso, não é? Devia ter calculado. Na segunda-feira, também ela pareceu evitar-me. E hoje aconteceu o mesmo. O que é que ela fez agora?

Lexie ponderava o que poderia dizer à avó quando ouviu Jeremy na cozinha, por detrás de si. Distraída, a pensar que ele viera beber água ou comer qualquer coisa, sorriu-lhe, mas logo de seguida notou-lhe a expressão fechada, quando anunciou:

- A Rachel está cá. Quer falar contigo.

Rachel esboçou um sorriso nervoso quando Lexie entrou na sala, mas depressa desviou o olhar. Lexie encarou-a, sem falar. Jeremy ficara no limiar da porta, a mudar o peso do corpo de um pé para o outro, até que decidiu sair pela porta das traseiras, para que as duas mulheres ficassem sozinhas.

Lexie esperou até ouvir a porta fechar-se e sentou-se em frente a Rachel. Sem qualquer maquilhagem, Rachel parecia ansiosa e exausta. Apertava um lenço de papel nas mãos e torcia-o compulsivamente.

- Desculpa - pediu, sem qualquer preâmbulo. - Nunca desejei que tais coisas acontecessem e nem sequer consigo calcular quanto deves estar furiosa comigo. Só quero dizer que não quis causar-te qualquer problema. Não fazia ideia de que o Alvin tivesse feito o que fez.

Como não recebesse qualquer resposta de Lexie, Rachel levou as mãos à cabeça e começou a massajar as têmporas. - Telefonou-me para casa no fim-de-semana e tentou explicar-se, mas eu estava demasiado horrorizada. Se eu soubesse, mesmo que tivesse apenas uma vaga ideia do que ele andava a tramar, a nossa conversa nunca teria existido. Mas ele fez de mim uma pateta...

Interrompeu-se, ainda incapaz de olhar Lexie de frente.

- Não foste a única. Fez o mesmo com o Jeremy - afirmou Lexie.

- Mas a culpa foi minha.

- Pois - anuiu Lexie -, certamente que foi.

O comentário de Lexie pareceu interromper a linha de pensamento de Rachel. No silêncio que se seguiu, Lexie ficou a observá-la, a tentar avaliar se ela estaria a sentir-se arrependida do que fizera ou se estava apenas deprimida por ter sido apanhada. Era uma amiga, uma pessoa em quem confiara, mas recordou uma vez mais que Jeremy teria dito o mesmo acerca de Alvin.

- Conta-me como é que aconteceu - acabou por pedir. Rachel endireitou-se na cadeira; quando falou, deu a ideia de ter

passado dias a ensaiar a narrativa.

- Sabes que o Rodney e eu temos tido problemas, certo? Lexie assentiu.

- Foi aí que começou. Sei que tu e o Rodney sempre encararam o vosso relacionamento de maneiras diferentes. Para ti, ele era apenas um amigo, mas para o Rodney... bem, tu eras uma espécie de fantasia e, mesmo agora, continuo sem saber se ele alguma vez conseguirá ultrapassar os sentimentos que nutre por ti. Por vezes, ao olhar para mim, é como se estivesse a ver-te. Sei que parece uma loucura, mas sentia isso todas as vezes que lhe abria a porta de minha casa. Parecia que eu nunca estava suficientemente bem, fosse o que fosse que tivesse vestido, qualquer que fosse o plano que tínhamos em mente. E, então, num dia em que entrei no escritório da Doris, à procura de qualquer coisa, encontrei o número do telefone do Alvin e... nem sei... sentia-me deprimida e só, pelo que decidi ligar-lhe. Não sabia o que esperar, na realidade não esperava o que quer que fosse, mas começámos a conversar, contei-lhe os problemas que estava a ter na minha relação com o Rodney e que ele não parecia ser capaz de te esquecer. O Alvin ficou muito calado e em seguida informou-me de que estavas grávida. Da maneira como o disse, sugeria que não tinha a certeza de que o Jeremy pudesse ser o pai. Que talvez o pai fosse o Rodney. Lexie sentiu um vazio no estômago.

- Desejo que saibas que nunca pensei que o bebé fosse do Rodney. Nunca, nem uma só vez. Sabia que tu e o Rodney nunca tinham dormido juntos e dei-lhe a entender isso mesmo. Não foi preciso pensar duas vezes. Para te falar com franqueza, depois de desligar, não julguei que voltássemos a falar, mas o Alvin ligou-me algum tempo depois e, bem, só posso dizer que senti prazer em falar com ele. E depois eu e o Rodney envolvemo-nos noutra zaragata, só me apeteceu acabar com tudo... Assim, por capricho, decidi ir passar uns dias a Nova Iorque. Não posso explicar porquê, mas digo-te que tinha de sair daqui e Nova Iorque era uma cidade onde sempre desejara ir. Portanto, telefonei ao Alvin logo que lá cheguei e passámos a maior parte da noite a conversar. Sentia-me perturbada e talvez tenha bebido demasiado, mas, sem saber como, voltámos a falar em ti e eu descaí-me e disse que já tinhas estado grávida antes de conheceres o Jeremy e que isso até estava apontado no diário da Doris.

Ao ver Lexie erguer uma sobrancelha, Rachel hesitou, mas acabou por prosseguir.

- A Doris guardava o diário no escritório; um dia, estava a folheá-lo e dei com as tuas iniciais e o nome do Trevor. Reconhecia que não tinha nada a ver com o assunto e sabia que nunca deveria falar do que vira, mas calhou em conversa. Não fazia ideia de que ele andava a enviar e-mails ao Jeremy e a tentar separar-te dele. Só soube de tudo durante o último fim-de-semana, já depois do regresso do Jeremy. No sábado, o Alvin telefonou-me; estava em pânico, revelou-me tudo e eu fiquei com esta sensação de agonia - lamentou, com tremuras na voz e a olhar para o lenço de papel esfrangalhado. - Lexie, juro que não queria magoar-te. Pensei que estávamos apenas a conversar.

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. - Tens todo o direito de estar furiosa comigo e não ficaria surpreendida se nunca mais quisesses ver-me. Levei este tempo todo a reunir coragem para vir aqui. Há dois dias que nem sequer consigo comer. E provável que não tenha qualquer importância, mas quis que soubesses a verdade. Tens sido, desde há muitos anos, uma irmã para mim e sinto-me mais ligada à Doris do que à minha própria mãe... Parte-se-me o coração pensar que te magoei, ou ver que colaborei naquilo que o Alvin andava a tramar. Peço-te mil perdões. Nunca poderás imaginar quanto me sinto desolada pelo que aconteceu.

Depois de ela acabar, fez-se silêncio na sala. Rachel falara sem parar e o esforço parecia tê-la deixado exausta. O lenço de papel estava em tiras, havia pedaços dele pelo chão e Rachel debruçou-se para os apanhar. Enquanto ela procedia à recolha dos pedaços de papel, Lexie tentava determinar se a narrativa diminuía a responsabilidade de Rachel, além de que reflectia sobre a resposta a dar-lhe. Debatia-se entre sentimentos contraditórios. Sentia que tinha razões para dizer a Rachel que não queria voltar a vê-la, mas a sobrepor-se à cólera havia uma sensação de crescente simpatia. Sabia que Rachel era imprevisível e ciumenta, insegura e ocasionalmente irresponsável, mas também sabia que a traição não fazia parte da sua natureza. Lexie sentia que ela lhe contara a verdade ao dizer que não fazia ideia de quais eram as intenções de Alvin.

- Eh! - chamou. Rachel ergueu a cabeça.

- Continuo furiosa - anunciou Lexie. - Mas sei que não querias fazer-me mal.

- Lamento muito - retorquiu Rachel, depois de engolir em seco.

- Sei que lamentas.

- O que é que vais dizer ao Jeremy? - perguntou Rachel.

- A verdade. Que tu não sabias.

- E à Doris?

- Sobre isso ainda terei de pensar. Ainda não contei nada à Doris. Para te ser franca, nem sei se o farei.

com evidente alívio, Rachel suspirou.

- E o mesmo se aplica também ao Rodney - acrescentou Lexie.

- E quanto a nós? Poderemos continuar a ser amigas?

Lexie encolheu os ombros. - Julgo que não teremos outro remédio, sendo tu a minha dama de honor.

Os olhos de Rachel brilharam. - De verdade? Lexie sorriu. - De verdade.

 

No dia do casamento, o sol levantou-se sobre um tranquilo Oceano Atlântico, formando prismas de luz sobre a água. Uma neblina ligeira ainda cobria a praia quando Doris e Lexie começaram a preparar o pequeno-almoço dos convidados na casa da praia. Foi lá que Doris conheceu os pais de Jeremy; deu-se especialmente bem com o pai dele; os irmãos e cunhadas de Jeremy formavam o habitual grupo ruidoso e passaram a maior parte da manhã debruçados sobre o corrimão do alpendre, extasiados com os pelicanos castanhos que pareciam cavalgar os golfinhos, pouco para lá da rebentação.

Como Lexie se mostrara tão insistente quanto ao limite de convidados, a presença dos irmãos constituía uma surpresa. Em Norfolk, quando Jeremy os viu começarem a sair do avião, perguntou-se se eles teriam sido convidados à pressa, nos últimos dois dias, por causa da situação criada por Alvin. Mas as dúvidas dissiparam-se logo que as cunhadas se lhe lançaram nos braços, todas a tagarelar sobre o modo como Lexie convidara pessoalmente cada uma delas e sobre os desejos que tinham de a conhecer melhor.

No total, havia dezasseis convidados: a família de Jeremy, a que se juntavam Doris, Rachel e Rodney; o último convidado era uma solução de última hora para substituir Alvin. Algumas horas mais tarde, quando Jeremy se encontrava na praia à espera que Lexie aparecesse, sentiu o presidente Gherkin aplicar-lhe uma palmada

nas costas.

- Sei que já lhe disse isto antes - sentenciou Gherkin -, mas sinto que é uma verdadeira honra ter sido escolhido para seu padrinho nesta maravilhosa ocasião.

Metido numas calças azuis de poliéster, camisa amarela e casaco desportivo de xadrez, o presidente da Câmara era digno de se ver e Jeremy já tinha concluído que a cerimónia não seria a mesma sem a presença dele. E também de Jed.

Ficara a saber que, para além de ser o taxidermista da região, Jed era também um clérigo da Igreja. Trazia o cabelo penteado, vestia aquele que era provavelmente o seu melhor fato e, pela primeira vez, encontrava-se perto de Jeremy sem mostrar a habitual carranca ameaçadora.

Como Lexie pretendera, a cerimónia foi uma mistura de intimidade extrema com romantismo. O pai e a mãe de Jeremy eram as pessoas mais próximas, os irmãos e as cunhadas formavam um pequeno círculo à volta deles. Sentado de um lado, um guitarrista da terra dedilhava música suave, e tinha sido desenhado um carreiro limitado por conchas, uma tarefa a que se entregaram os irmãos logo a seguir ao almoço. com o Sol já a descer para o horizonte, os dourados do firmamento eram avivados pelas chamas de uma dúzia de tochas havaianas. Rachel já estava a lacrimejar e a agarrar o ramo de flores como se nunca mais tencionasse largá-lo.

Lexie estava descalça, tal como Jeremy; ela levava na cabeça uma pequena coroa de flores. Doris irradiava alegria a caminhar ao lado da neta; Lexie não deixaria que qualquer outra pessoa a levasse ao altar, tinha de ser a avó. Quando finalmente Lexie parou, Doris beijou-a na face e ocupou o seu lugar à frente. Pelo canto do olho, Jeremy viu a sua mãe a rodear os ombros de Doris com um braço e a chegá-la para si.

Lexie parecia deslizar enquanto caminhava lentamente na direcção dele. Na mão trazia um ramo de flores silvestres. Quando chegou junto de Jeremy, ele sentiu o ligeiríssimo odor de perfume que se desprendia do cabelo dela.

Voltaram-se para Jed quando ele abriu a Bíblia e começou a falar.

Jeremy ficou espantado com o timbre suave e melódico da voz dele, extasiado ao ouvi-lo dar as boas-vindas aos convidados e ler algumas passagens da Bíblia. A fitá-los com expressão grave e cenho carregado, dissertou sobre amor e compromisso, paciência e honestidade, bem como sobre a importância de manterem Deus presente nas suas vidas. Disse-lhes que a vida nem sempre seria fácil, mas que, se mantivessem a fé em Deus e um no outro, encontrariam sempre a maneira de ultrapassar qualquer obstáculo, para em seguida, como um professor que desfrutava desde há muito do respeito dos alunos, os conduzir com destreza nos votos.

O presidente Gherkin entregou a aliança a Jeremy e Lexie também lhe deu uma. Ao enfiarem-nas no dedo um do outro, Jeremy sentiu as mãos tremerem. Nesse momento, Jed declarou-os marido e mulher. Jeremy beijou Lexie ao de leve e pegou-lhe na mão. Perante Deus e a sua família, prometera amor e dedicação para toda a eternidade e nunca julgara que tal lhe pudesse parecer tão acertado e natural.

Terminada a cerimónia, os convidados deixaram-se ficar na praia. Doris havia preparado um pequeno bufete e a comida fora espalhada por uma mesa de piquenique. Um a um, os familiares de Jeremy deram-lhes os parabéns e beijaram-nos, tal como o presidente Gherkin. Jed desapareceu logo que terminou a cerimónia, ainda antes de Jeremy ter oportunidade de lhe agradecer, mas reapareceu minutos depois, a transportar uma caixa de cartão do tamanho de um pequeno frigorífico. No intervalo, voltara a vestir as jardineiras e a cabeleira voltara ao desgrenhado habitual.

Lexie e Jeremy caminharam para ele logo que Jed pousou a caixa no chão.

- O que é isto? - indagou Lexie. - Não estávamos à espera de presentes.

Jed não falou. Limitou-se a encolher os ombros, como que a mostrar que se sentiria magoado se a prenda não fosse aceite. Lexie inclinou-se para o abraçar e perguntou se podia abrir a caixa. Como ele voltasse a encolher os ombros, Lexie sentiu-se autorizada.

Lá dentro, devidamente embalsamado, estava o porco selvagem que Jeremy o tinha visto a preparar; ao seu estilo, embalsamara o animal de forma a mostrá-lo no acto de morder alguém que se encontrasse por perto.

- Obrigada - agradeceu Lexie, na sua voz amável; embora Jeremy acreditasse que era a primeira vez que tal sucedia, jurou que tinha visto Jed corar.

Mais tarde, com o bufete quase vazio e a festa a esmorecer, Jeremy afastou-se dos convidados e caminhou em direcção ao mar. Lexie foi ter com ele.

- Estás bem?

Jeremy beijou-a. - Estou óptimo. Verdadeiramente maravilhado. Mas estou a pensar em passear um pouco.

- Sozinho?

- Quero deixar que isto, tudo isto, assente.

- Muito bem - concordou Lexie com um beijo rápido. - Mas não te demores. Dentro de poucos minutos vamos para dentro de casa.

Esperou até que Lexie se afastasse para junto dos pais dele, virou-se e caminhou lentamente pelo areal, a ouvir o som das ondas a desfazerem-se contra as areias. Enquanto caminhava ia revendo mentalmente o casamento: o aspecto de Lexie ao dirigir-se para ele; a força tranquila da oratória de Jed; a sensação estonteante que sentira, apenas umas horas antes, ao jurar-lhe amor eterno. A cada passada era assaltado pela sensação cada vez mais nítida de que tudo era possível e até o céu, com as suas cores fantásticas, parecia desfraldar uma bandeira de celebração. Quando atingiu a sombra comprida do farol do cabo Hatteras, reparou numa manada de cavalos selvagens que estavam a juntar-se na duna, um pouco mais à frente. Embora a maioria dos poldros estivesse a pastar, um deles parou e ficou a observá-lo. Jeremy avançou, reparando na robustez dos músculos do animal e no movimento flexível e rítmico da cauda, e acreditou, só por um instante, que se avançasse o suficiente poderia realmente tocar o cavalo. Uma ideia absurda, que nunca conseguiria pôr em prática, embora parasse subitamente e desse consigo a erguer a mão num gesto de amizade. Curioso, o cavalo arrebitou as orelhas, como se tentasse perceber; depois, também subitamente, moveu a cabeça para baixo e para cima, num gesto que parecia também uma saudação. Jeremy ficou a olhá-lo em silêncio, maravilhado com a ideia de que, de certa forma, ele e o animal estavam a comunicar. E quando, ao voltar a cabeça, viu a mãe e Lexie ternamente abraçadas, só conseguiu pensar que estava a viver o dia mais maravilhoso da sua vida.

 

As semanas seguintes passaram-se numa espécie de sonho. Um prematuro calor estival cobriu Boone Creek e a vila entrara num ritmo lento e suave. Em meados de Junho, Lexie e Jeremy também tinham entrado numa rotina confortável, deixando para trás os traumas das semanas precedentes. Até a remodelação da casa parecia correr um pouco melhor, embora continuasse lenta e cara. A facilidade com que ambos se haviam adaptado à nova vida não os surpreendera especialmente; o que não esperavam eram as muitas situações que tornavam a vida matrimonial tão diferente do noivado.

Depois de uma breve lua-de-mel passada na casa da praia, com manhãs de preguiça estirados na cama e tardes gastas em longos passeios pelo areal, voltaram a Boone Creek, despejaram o quarto de Jeremy no Greenleaf e foram morar para a vivenda de Lexie. Jeremy passou a usar, provisoriamente, o quarto de hóspedes como escritório, mas, em vez de tentar escrever, passava a maior parte das tardes a preparar a casa, de modo a poder mostrá-la a possíveis compradores. Aparou a relva, arranjou os canteiros do jardim, plantou flores à volta das árvores, aparou as sebes e pintou a parte exterior da varanda; dentro de casa, também pintou e retirou algumas coisas que levou para a arrecadação nas traseiras da casa de Doris. com apenas uma ou duas pessoas a passar por ali em cada quinzena e por terem necessidade de vender a casa para financiarem as despesas e as obras da nova morada, tanto ele como Lexie procuravam que a vivenda tivesse o melhor aspecto possível. Tirando estas actividades, a vida em Boone Creek decorria como era habitual. O presidente Gherkin preocupava-se com o festival de Verão, Jed voltara ao seu mutismo, enquanto Rodney e Rachel estavam outra vez a namorar oficialmente e pareciam mais felizes.

No entanto, havia pormenores que exigiam adaptação. Por exemplo: agora que a convivência entre eles era permanente, Jeremy não sabia muito bem como gerir as carícias. Embora Lexie parecesse contente com as carícias constantes, ele poderia pensar em formas mais gratificantes de intimidade. Contudo, desejava mantê-la feliz. O que significava... o quê? Como saber o que seria suficiente? Teriam de se acariciar todas as noites? Durante quanto tempo? Em que posição? Deveria também aninhar-se a ela? Fazia o possível para descobrir todas as particularidades dos desejos de Lexie, mas ficava confuso.

Depois, havia a temperatura do quarto onde dormiam. Embora ele preferisse o ar condicionado a funcionar e a ventoinha colocada no tecto a girar, Lexie sentia sempre frio. Quando a temperatura exterior atingia os 32 graus, com humidade alta, ele regulava o termostato para 20 graus, atirava-se para cima da cama com uma fina camada de transpiração na testa, só com a roupa interior e deixava-se ficar deitado, sem se tapar. Momentos depois, Lexie, acabada de sair da casa de banho, deslocava o ponteiro do termostato para 25, deslizava para debaixo do lençol e de dois cobertores, cobria-se até às orelhas e ficava a tremer de frio, como se acabasse de atravessar a tundra do Árctico.

- Tão frio porquê? - perguntava, a começar a sentir-se mais confortável.

- Porque estou a transpirar - respondia Jeremy.

- Como é que consegues transpirar? O quarto está gelado. Jeremy pensava que, pelo menos quando se tratava de fazer amor,

liam pela mesma cartilha. Durante as semanas que se seguiram à cerimónia, Lexie parecia sempre pronta, o que, pelo menos na opinião dele, dava sentido à expressão lua-de-mel. A negativa não existia no vocabulário de Lexie e Jeremy dizia para si que as inibições dela haviam desaparecido não só por se terem tornado oficialmente um casal, mas também por ele ser, de facto, irresistível. Não podia cometer erros e estava tão intoxicado por essa ideia que sonhava com ela durante o dia, enquanto trabalhava à volta da casa. Recordava os contornos suaves, lembrava-se do que sentia quando aquele corpo se encostava à sua pele nua; respirava fundo ao recordar a doçura da respiração dela ou o toque sensual do seu cabelo quando ele o passava entre os dedos. Quando Lexie regressava do trabalho, nunca deixava de a receber com um beijo caloroso e passava o jantar a admirar-lhe os lábios enquanto ela comia, à espera da oportunidade para avançar. Nunca era rejeitado. Podia estar malcheiroso e sujo por ter estado a trabalhar no quintal e, no entanto, quando entravam no quarto, pareciam não conseguir despir-se com a velocidade desejada.

Então, sem se saber como, a situação mudou. Foi como se, numa dada manhã, o Sol tivesse nascido para um dia normal e, quando se pôs, a Lexie que ele conhecia tivesse sido substituída por uma gémea insensível. Recordava-se do dia exacto, pois fora a primeira vez que fora rejeitado: 17 de Junho; passara o resto da manhã a tentar convencer-se de que não havia nada de mal ou, em alternativa, a ver se descobria onde cometera um erro qualquer. A situação repetiu-se à noite e, durante os oito dias seguintes, aquela foi a história da sua relação. Ele avançava, ela dizia-se cansada ou apenas que não tinha vontade, deixando o marido deitado a seu lado, ressentido, a tentar descobrir os motivos pelos quais passara a ser considerado um simples companheiro de quarto, a quem continuava a exigir-se aconchego antes de adormecer, num quarto que mais parecia uma fornalha.

- Esta manhã acordaste do lado oposto da cama - observou Lexie, na manhã que se seguiu à primeira rejeição.

- Não dormi bem.

- Tiveste pesadelos? - perguntou a mulher, a mostrar-se preocupada.

Apesar de despenteada e do pijama largo, estava estranhamente sedutora, deixando-o na dúvida se devia mostrar-se zangado ou sentir vergonha por pensar em sexo todas as vezes que olhava para ela. Chegava à conclusão que aquele era o perigo de adquirir hábitos; se ele julgava que as semanas precedentes tinham estabelecido um padrão apetecido, era agora evidente que Lexie não era da mesma opinião. Porém, se alguma coisa aprendera no primeiro casamento, era que nunca deveria queixar-se da frequência do sexo. Nesse domínio, homens e mulheres eram diferentes. As mulheres desejavam-no às vezes; os homens sentiam sempre necessidade. Grande diferença, que nas melhores circunstâncias permitia a obtenção de um compromisso razoável, uma situação que, sem satisfazer totalmente qualquer deles, fosse de certo modo aceitável para ambos. Mas sabia que pareceria estar a queixar-se se tornasse conhecido o seu desejo de prolongar um pouco mais a lua-de-mel. Digamos, durante os cinquenta anos seguintes.

- Não tenho a certeza - acabou por responder.

A confusão em que viveu durante as semanas seguintes era realçada pelo facto de, durante o dia, Lexie parecer a mesma de sempre. Liam o jornal, comentavam algumas notícias; ela pedia-lhe que a seguisse para a casa de banho, enquanto se aprontava para sair, de modo a que não tivessem de interromper a conversa.

Jeremy passava os dias a lutar para perceber a situação. Contudo, noite após noite, ao meter-se na cama preparava-se para uma nova rejeição, embora fizesse o possível por se convencer de que aquilo não o incomodava. É claro que não se deitava antes de efectuar o movimento passivoagressivo de baixar o ponteiro do termostato para os 20 graus. com a passagem das semanas, Jeremy sentia-se cada vez mais frustrado e confuso. Numa noite viram um

pouco de televisão, apagaram as luzes e acariciaram-se durante algum tempo, até que ele se deslocou para o outro lado da cama para

tentar arrefecer um pouco. Dali a pouco, sentiu a mão de Lexie a agarrar a sua.

Lexie desejou-lhe boa noite e fez correr o polegar pela pele dele.

Não procurou corresponder mas, ao acordar pela manhã, Lexie

parecia perturbada enquanto se dirigia para a casa de banho. Seguiu-a, escovaram os dentes e gargarejaram, até que finalmente Lexie se

voltou para ele.

- Então, o que é que aconteceu na noite passada? - perguntou.

- O que é que queres dizer?

- Eu estava com desejo e tu resolveste dormir.

- Como é que eu poderia saber isso?

- Peguei-te na mão, não foi?

Jeremy arregalou os olhos. Seria aquela a forma de ela o convidar?

- Desculpa, não me apercebi.

- Não tem importância - respondeu, a abanar a cabeça, como quem diz que tinha até muita importância.

Ao vê-la dirigir-se para a cozinha, Jeremy tomou mentalmente uma nota sobre aquela situação de contactos de mãos para quando estivessem na cama.

Duas noites depois, estavam deitados e ela pegou-lhe de novo na mão, fazendo com que Jeremy se voltasse tão rapidamente que ficou com as pernas enredadas nos lençóis ao tentar beijá-la.

- O que é que estás a fazer? - inquiriu Lexie ao retirar a mão.

- Estavas a pegar-me na mão.

- E então?

- Bem, na última vez em que aconteceu, queria dizer que estavas com desejo.

- Estava, dessa vez - replicou Lexie -, mas tratou-se de uma espécie de tamborilar com o indicador na palma da tua mão, recordas-te? Desta vez não foi assim.

Jeremy estava a tentar perceber. - Portanto, não estás com vontade?

- Acontece que não estou com disposição. Não te importas que vá dormir, pois não?

Ele fez o que podia para evitar um suspiro de enfado. - Não, não tem importância.

- Podemos abraçar-nos, antes?

Jeremy hesitou antes de responder: - Por que não?

Só na manhã seguinte é que tudo acabou por ser esclarecido. Quando acordou viu-a sentada no sofá, ou melhor, parecia tentar deitar-se e sentar-se ao mesmo tempo, com o pijama levantado até aos mamilos. Inclinara o candeeiro, de modo a fazer incidir a luz na barriga.

- O que é que estás a fazer? - perguntou Jeremy, a espreguiçar-se com as mãos erguidas acima da cabeça.

- Chega aqui, depressa - pediu ela. - Senta-te ao meu lado. Jeremy sentou-se ao lado dela, no sofá, a vê-la a apontar para a

barriga.

- Repara. Não te mexas, para poderes ver.

Fez o que lhe era pedido e, de súbito, um pequeno ponto da barriga dela pareceu pulsar involuntariamente. Contudo, aconteceu muito rapidamente, não teve a certeza do que viu.

- Viste? - exultou Lexie.

- Julguei ver qualquer coisa. O que é?

- É a bebé. Está a dar pontapés. Nas últimas semanas pareceu-me que ela estava a mexer-se um pouco, mas esta manhã foi a primeira vez em que tive a certeza.

Viu-se novo pulsar.

- Ali! Agora vi! - exclamou Jeremy. - É a bebé?

Lexie assentiu, com uma expressão de enlevo. - Tem estado muito activa desde a madrugada, mas não queria acordar-te; por isso vim para aqui, onde posso observar melhor. Não é incrível?

- Espantoso - concordou Jeremy, continuando a observar.

- Dá-me a tua mão - pediu Lexie.

Quando Jeremy estendeu o braço, ela pegou-lhe na mão e colocou-a em cima da barriga. Passados uns segundos, sentiu o pulsar e sorriu.

- Faz doer?

- Não, é mais uma espécie de pressão, ou algo assim. É difícil de descrever, só posso dizer que é maravilhoso.

Vista à luz suave e amarelada do candeeiro, Jeremy achou que ela estava bonita. Os olhos de Lexie brilhavam quando ergueu a cabeça para lhe perguntar. - Não achas que valeu a pena?

- Vale sempre a pena.

Lexie pôs as mãos sobre as dele. - Lamento que não tenhamos brincado ultimamente, mas desde há duas semanas ando outra vez a sentir náuseas. O que me surpreendeu foi a total ausência de enjoos matinais. Não me tenho sentido bem do estômago, parecia que se fizéssemos amor poderia ter vómitos, mas pelo menos agora sei o motivo.

- Não tem importância, mal reparei nisso.

O trabalho de Jeremy parecia representar o único factor negativo dos dois primeiros meses de casados. Tal como fizera em Maio e Junho, em finais de Julho, enviou ao editor de Nova Iorque uma crónica, escrita de antemão, para a coluna regular. Era a última. Sabia que, a partir dali, o relógio continuaria a avançar. Só lhe restavam quatro semanas para conseguir esboçar um novo texto.

Contudo, ao sentar-se em frente ao computador, deparou com o vazio.

com o mês de Agosto chegou um género de calor de que ouvira falar, mas cuja inclemência ainda não experimentara. Embora Nova Iorque fosse húmida durante o Verão e tivesse o seu quinhão de dias deprimentes em que nada se fazia sem transpiração, apercebia-se de que sobrevivia bem a isso; bastava não andar na rua e manter o ar condicionado a funcionar. Por outro lado, Boone Creek era um lugar para se andar ao ar livre, com um rio e um festival de Verão que faziam as pessoas sair de casa.

Como Gherkin previra, o festival atraiu milhares de pessoas vindas de toda a parte oriental do estado. Sempre cheias de gente, as ruas eram limitadas de ambos os lados por dezenas de quiosques que vendiam de tudo, desde sanduíches de carne acabada de grelhar a camarões espetados em palitos. Perto da margem do rio, o circo itinerante tinha instalado um carrossel e os miúdos esperavam em fila para cavalgar uma minúscula montanha-russa e uma roda a ranger de ferrugem. A fábrica de papel instalada do outro lado do rio oferecera centenas de peças de madeira: rectângulos, quadrados, círculos, triângulos, blocos de diversos tamanhos, e as crianças passavam horas a construir os seus prédios imaginários.

O astronauta obteve um êxito enorme junto da multidão e acabou por passar horas a assinar autógrafos. Gherkin, por seu lado, revelara um inesperado talento na utilização do tema do espaço. Para além das caras pintadas, em vez de animais optou pelos vaivéns espaciais, meteoros, planetas e satélites, conseguindo até convencer a Lego Company a doar um milhar de jogos, para que os miúdos pudessem construir os seus próprios vaivéns espaciais. Esta actividade, levada a efeito à sombra de um toldo gigante, teve um enorme sucesso, mesmo entre os pais, pois era a única sombra que podia encontrar-se nas redondezas.

Jeremy ensopou a camisa em poucos minutos, mas Lexie, então com pouco mais de seis meses de gravidez, ainda se sentia mais incomodada com o festival do que ele; embora a barriga ainda não estivesse volumosa, definitivamente já se notava, e algumas das senhoras mais idosas da vila que não sabiam da gravidez não se incomodaram em esconder a sua surpresa. Mesmo assim, a reacção geral, após o obrigatório erguer da sobrancelha, foi a de ficarem contentes por eles.

Lexie fingia sentir-se melhor no festival do que na realidade se sentia e ofereceu-se para ficar enquanto ele quisesse. Mas, ao ver-lhe as faces ruborizadas, Jeremy abanou a cabeça, decidiu que ela já vira o suficiente e sugeriu que passassem o resto do fím-de-semana afastados das multidões. Depois de meterem o essencial numa mala, foram para a vivenda da praia, em Buxton. Embora não se sentisse grande diferença quanto ao calor, a brisa constante do oceano e a temperatura da água ofereciam uma pausa apetecida. Quando regressaram a Boone Creek souberam que Rodney e Rachel estavam noivos. Fosse como fosse, tinham conseguido resolver os seus problemas e, dois dias mais tarde, Rachel pediu a Lexie que fosse a sua dama de honor.

Até a casa estava quase pronta; as remodelações mais importantes estavam concluídas, a cozinha e a casa de banho estavam como novas; só faltavam uns acabamentos que transformariam aquele estaleiro de obras num lar. A mudança estava prevista para o final do mês. Na altura exacta, como se viu, pois acabavam de receber uma proposta de compra da vivenda feita por um simpático casal de reformados, da Virgínia, que desejava habitar a casa o mais depressa possível.

Sem falar no bloqueio que continuava a não o deixar trabalhar, Jeremy tinha uma boa vida. Embora por vezes ainda reflectisse sobre as dificuldades que ele e Lexie tiveram de enfrentar antes do casamento, sabia que as tinham ultrapassado e que delas saíra um casal mais forte. Quando olhava para Lexie, sabia que nunca estivera tão profundamente ligado a qualquer outro ser humano. O que não sabia, o que não poderia saber, é que os dias mais difíceis ainda estavam para vir.

 

- Ainda não escolhemos um nome para a bebé - constatou Lexie. Era o final de uma tarde de Agosto; Lexie e Jeremy encontravam-se sentados no alpendre da sua nova casa. Embora ainda não tivessem feito a mudança, os trabalhadores já tinham ido para casa e eles entretinham-se a olhar para o rio. Sem qualquer brisa, a água estava lisa e parada, um espelho tão perfeito que os ciprestes da margem mais afastada pareciam erguer-se em direcções opostas.

- Decidi deixar a escolha por tua conta - anunciou Jeremy. Estava a abanar-se com um exemplar da revista Sports Illustrated que tencionara ler antes de lhe descobrir uma finalidade mais útil numa abafada noite de calor.

- Não podes pôr-te de lado. A bebé é nossa. Quero saber o que pensas.

- Já te disse o que penso - replicou Jeremy. - Mas tu não gostaste.

- Recuso-me a dar o nome Misty [Névoa] a uma filha minha.

- Misty Marsh? Como é que podes dizer que não gostas?

Sugerira o nome na semana anterior, como uma piada. Lexie mostrara um tal desprezo que ele não mais deixara de a pressionar com o nome, só para a provocar.

- Pois bem, não gosto.

De calções e T-shirt larga, estava corada devido ao calor. Como os pés lhe estavam a começar a inchar, Jeremy trouxera um velho balde para ela os ter elevados.

- Não achas que o nome tem uma certa musicalidade?

- Não mais do que outros conjuntos de nomes com o teu apelido. Também poderias chamar-lhe Smelly [Malcheirosa] Marsh ou Creepy [Repugnante] Marsh.

- Estou a guardar esses para os irmãos dela.

Ela riu-se. - Tenho a certeza de que te ficarão eternamente agradecidos. Mas, a falar a sério, não te ocorre um nome?

- Não. Como te disse, a tua escolha será sempre óptima.

- A questão é essa. Ainda não decidi.

- Sabes qual é o problema, não é verdade? Compraste todos os livros com nomes que encontraste. Aumentaste demasiado o leque de escolhas.

- Só pretendo um nome que tenha a ver com ela.

- Mas o problema é esse. De imediato, nunca terá a ver com ela, qualquer que seja o nome que escolhermos. Nenhuma bebé tem cara de Cindy ou de Jennifer; todos os bebés se parecem com o Elmer Fudd*.

- Não, não é verdade. Os bebés são encantadores.

- Mas parecem todos iguais.

- Disparate, não parecem nada. E aviso-te já que ficarei extremamente desapontada se não conseguires identificar a tua filha quando a fores ver ao berçário.

- Não há motivo para preocupações. Põem-lhes cartões com o nome.

- Pois, pois. Vais conseguir descobri-la pelo aspecto.

- É claro que sim. Será a mais bonita bebé da história do estado de Carolina do Norte, com fotógrafos de todo o mundo a tirarem-lhe retratos e a darem opiniões do género: "Teve tanta sorte que herdou as orelhas do pai. "

Lexie riu-se de novo. - E a covinha.

- Certo. Ainda bem que me lembraste.

Ela pegou-lhe na mão. - E a respeito de amanhã? Não estás excitado?

- Quem dera que fosse já. Quer dizer, a primeira ecografia foi interessante, mas esta... bem, na realidade só agora é que vamos vê-la.

- Estou satisfeita por me acompanhares.

- Estás a brincar? Nunca perderia o espectáculo. As ecografias são a parte melhor. Espero que imprimam uma imagem para eu poder gabar-me junto dos meus amigos.

- Quais amigos?

- Não te contei? O Jed? Caramba, não me deixa um momento sozinho, telefona constantemente, sempre a matar-me o bichinho do ouvido, a falar sem descanso.

* Personagem de banda desenhada, criado em 1939. (NT)

- Julgo que o calor está a afectar-te o cérebro. Tanto quanto sei, o Jed ainda não te dirigiu uma única palavra.

- Ah, é verdade. Mas isso não tem importância. Continuo a querer uma imagem para mim, para poder avaliar quanto é bonita.

Lexie ergueu uma sobrancelha. - Então, já estás convencido de que é uma rapariga?

- Acho que me convenceste.

- E quanto à opinião da Doris?

- Significa que em cada caso tem cinquenta por cento de possibilidades de acertar.

- Continuas incrédulo, não é?

- Prefiro a palavra céptico.

- O homem dos meus sonhos.

- Exacto - assentiu Jeremy. - Continua a recordar-te disso, para eu não ter de estar sempre a prová-lo.

Lexie remexeu-se na cadeira, a sentir-se subitamente desconfortável. Encolheu-se, antes de se acomodar. - O que é que pensas do casamento do Rodney e da Rachel?

- Sou partidário do casamento. Julgo que se trata de uma óptima instituição.

- Sabes o que eu quero dizer. Julgas que estão a apressar-se?

- Quem somos nós para fazermos essa pergunta? Propus-te o casamento passadas umas semanas; ele conhece-a desde miúda. Seria normal que fizessem essa pergunta a nosso respeito, não o contrário.

- Tenho a certeza de que continuam a fazê-la, mas a questão não é essa...

- Espera lá - interrompeu Jeremy -, pensas que eles falam de nós?

- Tenho a certeza. Muita gente fala de nós.

- De verdade?

- É claro - respondeu Lexie, como se achasse a pergunta descabida. - A terra é pequena. E o que fazemos por estas bandas. Sentamo-nos em círculo e falamos das outras pessoas. Ficamos a saber como correm as suas vidas, trocamos impressões, avaliamos se os outros estão certos ou errados e, se pudermos, resolvemos os problemas deles na privacidade da nossa própria casa. Na verdade, ninguém admite tal coisa, mas todos fazemos o mesmo. No fundo, é quase um modo de vida.

Jeremy ficou a reflectir sobre o que acabara de ouvir. -Julgas que as pessoas estão a falar de nós neste momento?

Lexie encolheu os ombros. - Certamente. Algumas pessoas estarão a dizer que nos casámos por eu estar grávida, outras dirão que não vais permanecer nesta terra, outras, ainda, estarão a magicar se teremos meios para comprar uma casa como esta, suspeitando de que devemos estar mergulhados em dívidas até às orelhas, ao contrário deles, que são pessoas frugais. Oh, não tenho dúvidas de que estão a falar de nós e, provavelmente, a divertir-se à grande.

- E isso não te preocupa?

- É claro que não. Para quê preocupar-me? Nem pensam em fazer-nos saber que falam de nós e, na próxima vez que os encontrarmos, serão doces como um ponche; portanto, nunca chegaremos a ter a certeza. E, além disso, nós estamos a fazer o mesmo. O que me traz de volta ao casamento do Rodney e da Rachel. Não achas que eles estão a ir um bocadinho depressa?

Naquela noite, na cama, estavam ambos a ler. Jeremy abrira finalmente a Sports Illustrated e ia a meio de um artigo sobre jogadoras de voleibol, quando Lexie pôs o seu livro de lado.

- Costumas pensar no futuro? - perguntou.

- É óbvio que penso - respondeu Jeremy, a baixar a revista. Não é o que faz toda a gente?

- Como é que julgas que vai ser?

- Para nós? Ou para o mundo?

- Estou a falar a sério.

- Também eu. São duas perguntas totalmente distintas, capazes de dar origem a questões diferentes. Quanto ao destino da humanidade, podemos falar do aquecimento global, ou da falta disto ou daquilo. Ou procurarmos a certeza da existência de Deus, discutirmos se os seres humanos serão julgados quando chegar a hora de serem admitidos no Paraíso, o que torna a vida terrena algo destituída de sentido. Podemos querer referir-nos à economia e à forma como ela afectará o nosso futuro pessoal, ou até à política, perguntando-nos se o próximo presidente será a pessoa indicada para nos conduzir, ou se nos vai levar ao desastre. Ou...

Lexie pôs-lhe a mão num braço, interrompendo-o. - Vais ser sempre assim?

- Assim como?

- Assim. A fazer o que fazes. A ser o Sr. Meticuloso. Ou o Sr. Factual. Não fiz a pergunta para nos envolvermos numa profunda discussão filosófica. Fiz uma pergunta simples.

- Penso que seremos felizes - arriscou Jeremy. - Não consigo imaginar-me a viver o resto da minha vida sem ti.

Ela apertou-lhe o braço, como que satisfeita. - Também penso o

mesmo. Mas, por vezes... Jeremy olhou para ela. - O quê?

- Fico a imaginar o que iremos fazer como pais. Às vezes preocupo-me com isso.

- Seremos uns pais fantásticos! - exclamou Jeremy. - Serás uma mãe fantástica!

- Dizes isso, mas como é que podemos saber? E se ela acabar por ser uma dessas adolescentes rebeldes que se vestem de preto, consomem drogas e dormem por aí?

- Ela não vai ser assim.

- Não podes ter a certeza.

- Posso - replicou Jeremy. - Vai ser uma rapariga maravilhosa. Como pode deixar de o ser, com uma mãe como tu?

- Pensas que é simples, mas não é. Os miúdos são também pessoas e quando começam a crescer tomam as suas próprias decisões. O nosso poder de decisão tem limites.

- É sempre um problema de educação...

- Pois é, mas por vezes não interessa o que fazes. Podemos pô-la a aprender piano e a jogar futebol, podemos levá-la à igreja todos os domingos, podemos mandá-la para uma escola de boas maneiras, e podemos mergulhá-la em ondas de amor. No entanto, quando chega a adolescência... bem, por vezes não há muito que possamos fazer. No final, contigo ou sem ti, as crianças acabam por crescer como tem de ser.

Jeremy reflectiu sobre o que acabara de ouvir e chegou-a mais para si. - Estás realmente preocupada com isso?

- Não. Mas penso no assunto. E tu, não pensas?

- Na realidade, não penso. Os miúdos acabam por se tornar o que devem ser. Tudo o que os pais podem fazer é ensinar-lhes os caminhos certos.

- Pois, mas se isso não for suficiente? Não te preocupa a hipótese? - Não. Ela vai ser óptima.

- Como é que podes ter a certeza?

- Porque ela será óptima - repetiu Jeremy. - Conheço-te,

acredito em ti e vais ser uma mãe fantástica. Além disso, não te esqueças de que escrevi artigos sobre as qualidades naturais e as qualidades adquiridas através da educação. Ambas são importantes, mas, na grande maioria dos casos, quando está em causa o comportamento futuro, o ambiente em que se é criado é mais importante do que a genética.

- Mas...

- Faremos o melhor que pudermos. E tenho a certeza de que tudo correrá bem.

Lexie pensou no que ele dissera. - É verdade que escreveste artigos sobre o assunto?

- Mais do que isso, escrevi-os depois de proceder a investigações profundas. Sei do que estou a falar.

Ela sorriu. - És bastante esperto - comentou.

- Bem...

- Não falo das conclusões, mas do que acabaste de dizer. Não me interessa se é ou não verdade, mas era exactamente o que eu queria ouvir.

- Aqui é o coração do bebé - explicava o médico, no dia seguinte, a apontar para a imagem desfocada no monitor do computador. Estes são os pulmões, aqui a coluna vertebral.

Jeremy estendeu o braço e acariciou a mão de Lexie, deitada na mesa de exames. Estavam na sede da OB-GYN, em Washington, que, Jeremy tinha de admiti-lo, não era um lugar de que gostasse especialmente. Estava, sem dúvida, ansioso por voltar a ver a bebé, cujas primeiras fotografias granulosas, as da primeira ecografia, continuavam coladas na porta do frigorífico; porém, a visão de Lexie deitada na mesa, de pernas apoiadas nos suportes elevados... bom, fazia-o pensar que estava a interromper qualquer coisa que deveria ser feita em privado.

É certo que o Dr. Andrew Sommers, um homem alto e magro, de cabelo escuro ondulado, fazia o que podia para que Lexie e Jeremy se sentissem à vontade, para parecer que não ia fazer nada de mais complicado do que medir-lhe a pulsação, pelo que Lexie colaborou da melhor vontade. Enquanto o Dr. Sommers ia observando e apalpando, falaram da recente vaga de calor, dos noticiários que relatavam os incêndios florestais no Wyoming e da vontade que o médico continuava a mostrar de se deslocar a Boone Creek para almoçar no Herbs, um local de que vários clientes diziam maravilhas. De vez em quando, trazia para a conversa questões mais específicas, fazendo perguntas, se sentia contracções de Braxton-Hicks, por exemplo, ou se já sentira tonturas, se ficava atordoada. Lexie respondia com facilidade, como se estivessem a tratar do problema à mesa do almoço.

Para Jeremy, sentado junto da cabeça de Lexie, a cena parecia irreal. Claro que o homem era médico e Jeremy não duvidava de que teria de receber dezenas de pacientes todos os dias, mas, mesmo assim, quando o médico tentou que ele entrasse na conversa, fez o possível para o olhar de frente ao responder, ao mesmo tempo que ignorava o que estava a ser feito à sua mulher. Supunha que Lexie se teria acostumado àquilo, mas era o género de situação que o deixava satisfeito por ser homem.

Depois de o médico sair, ficaram sozinhos por momentos, à espera da técnica que faria a ecografia; quando esta entrou, pediu que Lexie levantasse a camisa. Espalhou gel a toda a volta da inchada barriga da grávida, provocando um ligeiro arrepio da parte dela.

- Desculpe, devia tê-la avisado de que isto é frio. Mas vamos lá ver como está o seu bebé, está bem?

A técnica foi explicando o que estava a fazer, deslocava a sonda manual, pressionava mais ou menos a barriga, enquanto referia o que

estava a ver.

- Tem a certeza de que é uma rapariga? - inquiriu Jeremy. Embora lhe tivessem dado a certeza na última vez que ali estivera, sentira dificuldades em interpretar o que estava a ver. No entanto, também se sentira demasiado embaraçado para perguntar.

- Tenho a certeza - respondeu a técnica, voltando a deslocar a sonda. Quando parou, apontou para o ecrã. - Oh, assim vê-se bem... Certifique-se.

Jeremy semicerrou os olhos. - Não sei muito bem o que estou a ver.

- Isto é a nádega - esclareceu a técnica, sempre a apontar para o ecrã - e aqui estão as pernas. Como se ela estivesse sentada em cima da câmara de filmar...

- Não consigo ver aí nada.

- Exactamente. É por isso que sabemos que é uma rapariga. Lexie riu-se e Jeremy debruçou-se para ela. - Cumprimenta a

Misty - sussurrou.

- Silêncio! Estou a tentar gozar o espectáculo - replicou ela, a apertar-lhe um pouco a mão.

- Muito bem, vamos tirar umas medidas, para termos a certeza de que a bebé está a desenvolver-se dentro dos prazos, de acordo?

A técnica voltou a deslocar a sonda manual, premiu um botão e depois outro. Jeremy recordou-se de que a vira fazer o mesmo durante a última ecografia. - Está mesmo dentro do prazo - acrescentou a especialista. - Aqui diz que vai nascer a 19 de Outubro.

- Está a crescer normalmente? - indagou o pai.

- Parece que sim - respondeu a técnica. Moveu de novo a sonda para poder medir o coração e o fémur, mas imobilizou-se de repente.

Em vez de premir o botão, afastou a sonda da perna, apontando para o que parecia uma linha branca esticada na direcção da bebé, algo parecido com um risco provocado por electricidade estática ou por um defeito no ecrã. Franziu um pouco a testa ao deter-se naquilo. Logo de seguida começou a deslocar a sonda mais rapidamente, mas parando várias vezes para examinar a nova imagem. Parecia estar a examinar a bebé de todos os ângulos.

- O que está a fazer? - indagou Jeremy.

De tão concentrada, a técnica nem pareceu ouvi-lo. - Estou apenas a examinar tudo - murmurou. Continuou a tentar focar a imagem e acabou por abanar a cabeça. Completou rapidamente as medições e voltou ao movimento anterior. As imagens da bebé, de todos os ângulos, apareciam e desapareciam. A técnica voltou a focar a linha ondulada.

- Está tudo bem? - insistiu Jeremy.

Os olhos da técnica não se desviaram do ecrã quando ela respirou fundo. Falou com uma voz surpreendentemente calma.

- Há aqui uma coisa que o médico deve querer ver.

- O que é que isso significa?

- Deixe-me ir chamar o médico - pediu, pondo-se de pé. - Ele poderá certamente esclarecê-los melhor do que eu. Fiquem aqui. Não me demoro.

Talvez fosse o tom comedido da voz que fez o sangue desaparecer das faces de Lexie. De súbito, Jeremy sentiu que ela lhe apertava a mão com mais força. Passaram-lhe pela cabeça imagens em catadupa, pois sabia exactamente o que significava aquela saída da técnica. Ela vira algo de anormal, qualquer coisa diferente... qualquer coisa má. As paredes pareceram avançar para ele, enquanto procurava encontrar um sentido para aquela linha incerta que vira no ecrã.

- O que é que se passa? - sussurrou Lexie. - O que é que aconteceu?

- Não sei.

- Há algum problema com a bebé?

- Ela não disse isso - respondeu Jeremy, tanto para se acalmar como para deixar a mulher descansada. Sentiu um súbito nó na garganta, engoliu em seco: - Tenho a certeza de que não há problemas.

Lexie parecia prestes a chorar. - Então por que é que ela foi buscar o médico?

- É provável que tenha de lhe mostrar um pormenor qualquer.

- O que é que ela viu? - perguntou Lexie, quase a implorar. Ele reflectiu de novo. - Não sei.

- Então o que é?

Sem saber a resposta, nem mesmo o que dizer, Jeremy chegou a cadeira para mais perto da mulher. - Não sei bem. Mas o ritmo cardíaco está óptimo, ela está a crescer. Se houvesse algum problema com a bebé, já teriam falado no assunto.

- Reparaste na cara dela? Pareceu-me... assustada.

Desta vez, Jeremy não conseguiu responder-lhe. Em vez disso, ficou a olhar para a parede mais distante. Apesar de ele e Lexie se encontrarem juntos, de repente sentiu-se muito só.

Momentos depois, a sorrirem de modo forçado, o médico e a técnica entraram na sala. A técnica sentou-se no seu lugar e o médico ficou de pé, atrás dela. Nem Lexie nem Jeremy conseguiram pensar em algo para dizer. No silêncio que se seguiu, ele conseguia ouvir as batidas do próprio coração.

- Vamos dar uma vista de olhos - decidiu o Dr. Sommers.

A técnica espalhou um pouco mais de gel; logo que ela colocou a sonda em cima da barriga de Lexie, a bebé voltou a aparecer no ecrã. Porém, quando dirigiu o olhar para o ecrã, não apontou a sonda na direcção da bebé.

- Consegue ver? - indagou.

O médico inclinou-se para diante; Jeremy fez o mesmo. Viu uma vez mais a linha branca ondulada. Desta vez, notou que a linha parecia partir da parede da bolsa que rodeava a bebé, parecia nascer do espaço escuro à volta.

- Ali mesmo.

O médico assentiu. - Já está ligada?

A técnica deslocou a sonda e apareceram diversas imagens da bebé. Enquanto falava, a técnica ia abanando a cabeça. - Quando a observei pela primeira vez, não vi qualquer ligação. Julgo que procurei em todos os sítios possíveis.

- Vamos certificar-nos - decidiu o médico. - Dê-me um minuto para procurar - pediu. A técnica levantou-se e o médico tomou o lugar dela.

Manteve-se calado enquanto deslocava uma vez mais a sonda; parecia menos familiarizado com a máquina e as imagens apareciam com maior lentidão. Tal como a técnica fizera, inclinou-se para o ecrã. Durante muito tempo nenhum falou.

- O que é? - indagou Lexie com voz trémula. - O que é que procuram?

O médico olhou de esguelha para a técnica, que saiu da sala sem fazer ruído. Quando ficaram sós, o médico fez aparecer a linha branca.

- Estão a ver esta linha? É aquilo a que damos o nome de banda amniótica - esclareceu. - Estive a verificar se está ligada a qualquer parte do corpo da bebé. Habitualmente, quando se liga, é pelas extremidades, como pernas ou braços. Contudo, até agora não parece ter-se ligado, o que é bom.

Jeremy interrompeu-o. - Porquê? Não compreendo. O que quer dizer com banda? O que é que isso pode fazer?

O médico expirou o ar lentamente. - Pois bem, esta banda é composta do mesmo tecido fibroso que constitui o âmnio, o saco que contém a bebé. Estão a ver, aqui? - indagou, a desenhar círculos irregulares com um dedo, primeiro à volta do saco e a seguir da banda. - Como vêem, uma das pontas da banda está ligada aqui à parede do saco, a outra ponta flutua, continua solta. A ponta solta pode colar-se a qualquer parte do feto. Se isso acontecer, a criança nascerá com a síndrome da banda amniótica.

Quando voltou a falar, o médico escolheu um tom neutro de voz.

- vou ser absolutamente franco: se isso acontecer, as hipóteses de se verificarem anomalias congénitas aumenta muitíssimo. Sei quanto lhes deve custar ouvir tal coisa, mas foi por isso que passámos tanto tempo a observar as imagens. Queríamos ter a certeza de que a banda não se tinha ligado.

Jeremy mal conseguia respirar. Pelo canto do olho, viu Lexie a morder o lábio.

- Mas vai ligar-se? - perguntou.

- Não temos maneira de saber. De momento, a outra ponta da banda flutua no fluido amniótico. O feto ainda é pequeno. Ao crescer, faz aumentar a possibilidade da ligação, mas a verdadeira síndrome da banda amniótica é rara.

- Que género de anomalias? - perguntou Lexie.

Não era uma pergunta a que o médico gostasse de responder; e mostrou-o. - Uma vez mais, depende do ponto onde se ligar, e quando. Mas se for uma verdadeira síndrome pode ser grave.

- Grave até que ponto?

O médico suspirou. - Se a ligação se desse nas extremidades, a criança poderia nascer sem uma perna, ou com um pé deformado, ou a sofrer de sindactilia, isto é, com os dedos ligados por uma membrana. Pode ainda ser pior, se a colagem for noutro ponto.

Jeremy sentia-se mais estonteado à medida que o médico ia elaborando a resposta. Fez um esforço para perguntar: - O que é que vamos fazer? A Lexie vai ficar bem?

- A Lexie ficará óptima - acrescentou o médico. - A síndrome não tem quaisquer efeitos sobre a mãe. Quanto ao que podemos fazer, bem, para além de esperar, não podemos fazer nada. Não existem motivos para ter de repousar ou medidas do género. Recomendarei que façamos uma ecografia de nível dois, que nos proporcionará imagens mais nítidas, mas, repito, estaremos apenas a tentar descobrir se a banda se ligou ao feto. E, esclareço uma vez mais, julgo que não está ligada. Depois disso, faremos ecografias em série, provavelmente uma em cada duas ou três semanas, mas é tudo o que podemos fazer por agora.

- Como é que aconteceu?

- Não se trata de nada que fizessem ou deixassem de fazer. E não se esqueçam de que, até agora, não há sinais de que esteja ligada. Sei que já disse isto, mas é importante que compreendam. Para já, não há absolutamente nada de mal com a vossa filha. O crescimento é óptimo, o batimento cardíaco é forte e o cérebro está a desenvolver-se normalmente. Até agora, tudo bem.

No silêncio que se seguiu, Jeremy notou o som uniforme, mecânico, da máquina de ultra-sons.

- Disse que seria ainda pior se a banda se colasse noutra parte do corpo - observou Jeremy.

O médico mexeu-se na cadeira. - Sim - admitiu. - Mas não é provável que aconteça.

- Pior, até que ponto?

O Dr. Sommers afastou o processo para um lado, como se tentasse decidir até onde deveria ir. - Se se ligar ao cordão umbilical acabou por dizer -, perderão a criança.

 

Podiam perder a bebé.

Logo que o médico saiu, Lexie desatou a chorar e Jeremy, fazendo todos os esforços para a confortar, conseguiu conter as próprias lágrimas. Sentia-se vazio e falava automaticamente, recordando-lhe, uma e outra vez, que até ao momento a bebé estava óptima e que iria provavelmente manter-se assim. Em vez de a acalmarem, as palavras dele pareceram fazê-la sentir-se pior. Aninhada nos braços dele, os ombros e as mãos tremiam-lhe; quando se afastou, a camisa de Jeremy estava ensopada nas lágrimas dela.

Não falou enquanto se vestia, o único som que se ouvia na sala era a inspiração ruidosa dela, como se tentasse conter o choro. A sala parecia aflitivamente acanhada, como se todo o ar tivesse sido sugado para fora. Jeremy mal se equilibrava nas pernas. Ao ver Lexie a abotoar a blusa sobre a saliência redonda que lhe deformava a barriga, teve de fazer força nos joelhos para se manter de pé.

O medo era sufocante e esmagador; o ambiente esterilizado da sala parecia-lhe irreal. Aquilo não podia estar a acontecer. Nada daquilo fazia sentido. Nas primeiras ecografias não se detectara qualquer anormalidade. Desde que soubera que estava grávida, Lexie nem uma chávena de café bebia. Era forte e saudável, dormia o suficiente. Mas havia algo de errado. Ao olhar o vazio, imaginava a banda a flutuar no fluido amniótico, como os tentáculos de uma medusa venenosa. À espera, a deslizar, pronta para o ataque.

Desejava que Lexie se deitasse, que não fizesse qualquer movimento, de forma a que o tentáculo não encontrasse forma de se agarrar à bebé. Ao mesmo tempo, desejava que ela caminhasse, que continuasse entregue às suas actividades habituais, pois o tentáculo continuaria solto, a flutuar. Pretendia saber como deveria proceder para aumentar as possibilidades de a bebé continuar a crescer bem. O ar da sala parecia já ter-se esgotado, o medo era tanto que sentia a cabeça oca.

A filha deles podia morrer. A sua menina pequenina podia morrer. A sua menina, talvez a única que pudessem vir a ter.

Queria sair daquele lugar e nunca mais lá voltar; queria permanecer ali e conversar com o médico, para se certificar de que compreendera tudo o que estava a acontecer. Queria informar a mãe, os irmãos, o pai, para poder chorar nos ombros deles; não queria abrir a boca, queria carregar aquele fardo com estoicismo. Desejava que a filha estivesse bem. Repetia mentalmente as palavras, uma e outra vez, como se assim pudesse mantê-la afastada do tentáculo. Ao ver Lexie pegar na mala, notou-lhe os olhos vermelhos, uma visão de partir o coração. Não se previra que acontecessem percalços como aquele. Tinham previsto um dia agradável, um dia feliz. Porém, as previsões alegres pertenciam ao passado e o futuro poderia ser pior. A bebé seria maior e o tentáculo chegar-se-ia mais a ela. E cada dia faria aumentar o perigo.

Ao passarem no corredor, a caminho do gabinete do médico, repararam que a técnica baixou os olhos e concentrou-se nos papéis. com eles sentados do outro lado da secretária, o médico mostrou-lhes as imagens obtidas na ecografia. Fez-lhes a mesma descrição, disse-lhes as mesmas coisas acerca da banda amniótica. Referiu que preferia descrever-lhes tudo uma segunda vez. Devido ao choque, a maioria das pessoas não ouvia bem a primeira explicação. Voltou a salientar que a bebé estava a passar bem e não pensava que a banda se tivesse ligado ao feto. Boas notícias, na opinião dele. Contudo, Jeremy não conseguia deixar de pensar no tentáculo que flutuava dentro da barriga de Lexie, a deslizar, a aproximar-se da bebé, para, em seguida, mudar de rumo. A filha a crescer, a ficar mais volumosa, a encher o saco. Poderia a banda continuar a flutuar livremente?

- Sei quanto é penoso ouvir estas notícias - voltou a afirmar o médico.

Não, pensou Jeremy, não sabe. A bebé não era dele, não era a sua menina pequenina. A menina dele, de rabo de cavalo e ajoelhada junto a uma bola de futebol, sorria de dentro de uma moldura colocada em cima da secretária do médico. A filha dele estava óptima. Não, ele não sabia. Não poderia saber.

Fora do gabinete, Lexie começou novamente a chorar e Jeremy teve de a abraçar com força. Praticamente não falaram durante o caminho de regresso a casa e, mais tarde, Jeremy mal se lembrava da viagem. Logo que entrou em casa, ligou o computador, acedeu à Internet e procurou informações sobre a síndrome da banda amniótica. Viu imagens de dedos ligados por membranas, de membros atrofiados, de pernas sem pés. Estava pronto a aceitá-las mas não se sentia preparado para as deformidades faciais, para as anormalidades que dão às crianças certas expressões com muito pouco de humano. Leu acerca das deformidades da coluna e dos intestinos nos casos em que o tentáculo se agarrava ao tronco. Desligou o monitor, foi à casa de banho e passou água fria pelo rosto. Decidiu não falar a Lexie do que tinha visto.

Lexie tinha ligado à avó logo que chegaram a casa e agora estavam as duas sentadas na sala. Lexie começou a chorar quando Doris entrou e voltou a chorar depois de se encontrarem ambas sentadas. A avó também começou a chorar, embora assegurasse à neta que a bebé continuaria bem, que havia uma razão para Deus os ter abençoado com uma filha, que devia continuar a ter fé. Lexie pediu-lhe que não contasse a quem quer que fosse e Doris prometeu manter o segredo. Jeremy também não informou a família. Sabia como a mãe ia reagir, como seria a voz dela ao telefone, as chamadas telefónicas que se sucederiam. Mesmo que a mãe julgasse estar a ajudá-lo, para ele seria o contrário. Não conseguiria lidar com a situação, de momento não se sentia capaz de dar apoio a outra pessoa, mesmo que fosse a mãe. Especialmente a mãe. Já lhe chegava ter de ajudar a Lexie e manter o domínio das suas próprias emoções. Tinha, porém, de ser forte, por ambos.

Durante a noite, deitado ao lado de Lexie, tentou pensar em qualquer outro assunto, esquecer-se do tentáculo que estava à espera de se agarrar à bebé.

Três dias depois, deslocaram-se a Greenville para fazerem a ecografia de nível dois, no East Carolina University Medical Center. Não se notou qualquer excitação quando se apresentaram ao balcão e enquanto preencheram os formulários. Na sala de espera, Lexie tirou a mala da ponta da mesa e colocou-a no colo, para a seguir fazer o contrário. Foi até à mesa das revistas e pegou numa, mas não a abriu e voltou a sentar-se. Ajeitou uma madeixa de cabelo atrás da orelha e olhou à volta. Mais uma madeixa arrumada atrás da orelha e nova consulta ao mostrador do relógio.

Nos dias precedentes, Jeremy tinha lido tudo o que encontrara acerca da síndrome da banda amniótica, com a esperança de que, se percebesse o que era, deixaria de a temer. No entanto, quanto mais lia mais angustiado ia ficando. Passava as noites às voltas na cama, a sentir náuseas não só por pensar que a bebé corria perigo, mas também por reconhecer que o mais provável era aquela ser a única gravidez de Lexie. Em princípio, aquela gravidez não deveria ter acontecido e, por vezes, nos momentos de maior depressão, dava consigo a pensar se aquela não seria uma maneira de o universo o castigar por ele ter desrespeitado as suas normas. Não estava destinado a ter filhos. Nunca estivera destinado a ser pai.

Não comunicou a Lexie nenhuma daquelas angústias. Nem lhe contou toda a verdade acerca da síndrome.

- O que é que descobriste no computador? - tinha perguntado Lexie na noite anterior.

- Pouco mais do que o médico nos disse - mentiu Jeremy. Ela assentiu. Ao contrário do marido, não alimentava ilusões de que os conhecimentos lhe minorassem os temores.

- A cada movimento, ponho-me a pensar se estarei a fazer algo que não devo.

- Estou certo de que não é assim que funciona.

Lexie voltou a acenar que sim. - Tenho medo - sussurrou. Jeremy abraçou-a pela cintura. - Eu também.

Foram levados para o gabinete de ecografia e Lexie levantou a camisa logo que a técnica entrou. Embora a sorrir, esta sentiu a tensão na sala e não perdeu tempo.

A bebé apareceu no ecrã, desta vez com uma imagem muito mais nítida. Conseguiam distinguir-lhe as feições: o nariz e o queixo, as pálpebras e os dedos. Quando Jeremy olhou para ela, Lexie apertou-lhe a mão com força.

A banda amniótica, o tentáculo, ainda continuava à solta. Faltavam dez semanas.

- Odeio esta espera - queixou-se Lexie. - Aguardar e manter a esperança de não saber o que vai acontecer.

Pôs por palavras aquilo em que ele estava a pensar, as palavras que ele recusava pronunciar na presença da mulher. Passara uma semana desde que tinham recebido a notícia e, embora tivessem sobrevivido, parecia não haver mais nada que pudessem fazer. Sobreviver, manter a esperança e aguardar. Havia outra ecografia marcada para dali a duas semanas.

- Vai correr tudo bem - assegurava Jeremy. - O facto de a banda lá estar não significa que vá ligar-se à bebé.

- Mas porquê eu? Porquê nós?

- Isso não sei. Mas vai correr bem. Vai tudo correr da melhor maneira.

- Como é que podes garantir isso? Não sabes. Não podes prometer tal coisa.

Jeremy também reconhecia que não. - Estás a fazer tudo como deve ser, não estás? - perguntou, dando novo rumo à conversa. - Estás bem de saúde, alimentas-te bem e tens cuidado contigo. Não posso deixar de pensar que, enquanto fizeres tudo como deve ser, a bebé continuará óptima.

- Não é justo - gemeu Lexie. - Sei que estou a ser mesquinha, mas ao ler os jornais estou sempre a deparar com notícias de raparigas que dão à luz filhos não desejados, além de casos em que nem tinham conhecimento da gravidez. De mulheres que fumam e bebem, mas não lhes acontece nada de mal. Não é justo. E a partir de agora nem posso apreciar o resto da gravidez. Acordo todos os dias e, mesmo sem pensar especificamente no assunto, não consigo evitar que esta ansiedade me acompanhe para onde for e, de repente, pum Sou subitamente atingida e volto a recordar que trago comigo qualquer coisa capaz de matar a bebé. Eu mesma! Sou eu quem o faz. Não consigo deixar de pensar nisso, por mais que tente; e não há nada que eu possa fazer.

Ele tentou consolá-la: - A culpa não é tua.

- Então é de quem? Da bebé? - retorquiu Lexie. - Onde é que eu errei?

Jeremy verificava, pela primeira vez, que, além de estar aterrorizada, Lexie também se considerava culpada. Uma constatação que lhe fez doer.

- Não fizeste nada de mal.

- Mas esta coisa dentro de mim...

- Ainda não provocou estragos - contrapôs Jeremy com delicadeza. - E tenho a certeza que isso se deve, em parte, ao facto de teres feito tudo como devia ser. A menina está bem. Por agora, é tudo o que sabemos. A bebé está fantástica.

Lexie sussurrou tão baixinho que ele mal a ouviu. - Julgas que ela nascerá perfeita?

- Sei que sim.

Mentia, uma vez mais, mas não podia dizer-lhe a verdade. Pensava que, por vezes, mentir era o melhor que se podia fazer.

Jeremy tinha pouca experiência em lidar com a morte. Mas a morte acompanhara Lexie ao longo da vida. Não só tinha perdido os pais, também ficara sem o avô havia poucos anos. Embora Jeremy lhe demonstrasse compreensão, sabia que era incapaz de compreender inteiramente o quanto fora duro para ela. Na altura ainda não a conhecia e não fazia ideia da forma como ela reagira, mas não tinha dúvidas de qual seria a reacção dela se a filha viesse a morrer.

E se a nova ecografia mostrasse que estava tudo bem? Sabia que as preocupações iam manter-se, pois a banda amniótica poderia ainda enredar-se à volta do cordão umbilical. O que sucederia quando Lexie entrasse em trabalho de parto? Se houvesse uns minutos de atraso? Sim, podiam perder a filha, seria de partir o coração. E Lexie, como ficaria? Atribuir-se-ia a culpa? Acharia que ele era o culpado, pois as probabilidades de uma nova gravidez eram praticamente nulas? O que sucederia quando ela entrasse no quarto da bebé na casa nova? Conservaria a mobília da bebé ou resolveria vendê-la? Decidiriam adoptar uma criança?

Não sabia, nem conseguia imaginar as respostas.

Porém, o que mais lhe doía era outra coisa. A síndrome da banda amniótica raramente era fatal. Porém, as deformidades eram a regra, não a excepção. Por acordo tácito, nem Lexie nem ele desejavam discutir o assunto. Quando falavam das preocupações que sentiam em relação à filha, mencionavam sempre a possibilidade da morte, em vez de discutirem o cenário mais realista. Que a sua bebé poderia parecer diferente; que a sua filha poderia ser portadora de anomalias graves; que a sua filha poderia ter de suportar inúmeras operações cirúrgicas; que a sua filha poderia vir a sofrer...

Odiava-se por pensar que a possibilidade o afectava, pois, se tal viesse a acontecer, sabia que amaria a filha, fosse ela como fosse. Não ligava a faltas de membros ou a membranas entre os dedos; iria criá-la e tratar dela tão bem como qualquer pai faria. Contudo, quando pensava na bebé, não conseguia negar que a via em fotografias quase banais: com um vestido bonito e rodeada de túlipas, ou a chapinhar por entre os bicos de rega do quintal, ou sentada na cadeira alta, a ostentar um enorme sorriso no rosto sujo de chocolate. Nunca a imaginava com deformidades; nunca a via com uma fissura no palato ou sem nariz, ou com uma orelha do tamanho de uma moeda. Na imaginação dele a filha era sempre perfeita, de olhos brilhantes. E sabia que Lexie a imaginava exactamente como ele.

Sabia que todas as pessoas tinham de carregar o seu fardo, que a vida não era perfeita. No entanto, alguns fardos eram mais pesados que outros e, apesar do terrível efeito que a ideia da morte exercia sobre si, punha-se a imaginar o que seria pior, se não seria preferível que a filha morresse para não ter de suportar qualquer deficiência grave - não apenas a falta de um membro, mas algo muito pior,  uma anormalidade que a faria sofrer durante toda a vida, por mais longa que pudesse ser. Não conseguia imaginar-se com uma filha cuja dor e sofrimento fossem tão constantes como o acto de respirar ou o batimento cardíaco. E se fosse essa a vida que o destino reservara à sua filha? Uma sorte demasiado terrível para ele conseguir contemplar, pelo que tentava afastar tais ideias da cabeça.

No entanto, a questão não o deixava sossegado.

As horas passaram lentamente durante a semana seguinte. Lexie foi trabalhar, mas Jeremy não fez qualquer tentativa para escrever. Como não conseguia arranjar energia suficiente para se concentrar, passava a maior parte do tempo em casa. As obras tinham entrado na fase final e ele resolveu encarregar-se do início das limpezas. Lavou as janelas por dentro e por fora, aspirou os cantos e as escadas, raspou pingos de tinta que sujavam a bancada da cozinha. Um trabalho monótono, anestésico, que servia para afastar os medos. Os pintores andavam a acabar as divisões do primeiro piso e o papel de parede do quarto da bebé já fora colocado. Lexie encarregara-se de escolher as peças maiores da mobília dos aposentos da bebé e, quando elas chegaram, Jeremy gastou duas tardes a juntar tudo e a arrumar a divisão. Quando Lexie saiu do trabalho, levou-a à casa. No cimo da escada, pediu-lhe que fechasse os olhos e fê-la entrar.

- Muito bem! - exclamou. -Já podes abrir os olhos.

Durante alguns instantes não houve preocupações acerca do futuro, nem medos em relação à filha. Em vez disso, viu-se a Lexie de outros tempos, a mulher que ansiava ser mãe e dava importância a tudo o que se relacionasse com essa experiência.

- Fizeste tudo isto? - perguntou, com voz doce.

- A maior parte. Tive de pedir ajuda aos pintores por causa dos estores e das cortinas, mas fiz tudo o resto.

- Está bonito - murmurou Lexie ao entrar.

Sobre a alcatifa havia um tapete decorado com patos; a um canto, estava o berço coberto com um lençol de algodão macio e já com protecções coloridas instaladas, sob o brinquedo móvel que tinham comprado, parecia, numa outra vida. Os cortinados tinham os mesmos desenhos do tapete e das pequenas toalhas colocadas em cima da cómoda. A mesa para vestir a bebé encontrava-se fornecida de fraldas, cremes e toalhetes de limpeza. Um pequeno carrossel tocava música aprazível e brilhava com uma suave luz amarela derramada por um candeeiro decorativo.

- Pensei que, como vamos mudar-nos dentro de pouco tempo, devia avançar com este quarto.

Lexie foi até junto da cómoda e pegou num pequeno pato de porcelana. - Escolheste isto?

- Foi para fazer conjunto com o tapete e as cortinas. Se não gostas...

- Gosto. Estou apenas surpreendida.

- Porquê?

- Quando fomos às compras não me pareceu que apreciasses a experiência.

- Julgo que estou finalmente a habituar-me à ideia. E, além do mais, não queria que fosses a única pessoa a divertir-se. Achas que ela vai gostar?

Ela aproximou-se da janela e passou um dedo pela cortina. - Vai adorar. Eu adoro.

- Ainda bem.

Lexie deixou cair a cortina e foi para junto do berço. Sorriu ao ver os animais de peluche, embora o sorriso desvanecesse logo de seguida. Jeremy viu-a cruzar os braços e soube que as preocupações tinham regressado.

- Devemos poder fazer a mudança durante o fím-de-semana sugeriu, a lamentar não encontrar mais nada para dizer. - Na verdade, os pintores disseram que podíamos começar a trazer os móveis quando quiséssemos. Talvez tenhamos de guardar alguns no quarto durante algum tempo, enquanto eles pintam a sala, mas as outras divisões estão prontas. Pensei começar pelo escritório, a que se seguirá provavelmente o quarto principal. Seja como for, estás a trabalhar

e eu encarrego-me disto. - Pois - anuiu Lexie. - Acho bem.

Jeremy enfiou as mãos nas algibeiras. - Tenho andado a pensar

no nome da menina. Mas não te apoquentes, não é Misty. Ela olhou-o de esguelha, de sobrancelhas arqueadas.

- Nem sei como ainda não me tinha ocorrido.

- Qual é o nome?

Ele hesitou, imaginando como ficaria numa página do diário de Doris, e recordou-se de como lhe parecera quando o vira na pedra tumular ao lado da do pai de Lexie. Respirou fundo, estranhamente nervoso.

- Claire.

Não conseguiu perceber a expressão de Lexie e, por momentos, pensou que talvez tivesse cometido um erro. Contudo, ao começar a dirigir-se para ele, Lexie mostrava a sombra de um sorriso. Mais perto, rodeou-o com os braços e descansou a cabeça no peito dele.

Jeremy abraçou-a e deixaram-se ficar enlaçados, ali no quarto da filha; o medo persistia, mas já não se sentiam sós.

- A minha mãe - sussurrou Lexie.

- Sim, a tua mãe. Não consigo imaginar a nossa filha com qualquer outro nome.

Naquela noite, e pela primeira vez em muitos anos, Jeremy rezou.

Embora tivesse sido educado como católico e continuasse a acompanhar a família à missa no Natal e na Páscoa, raramente sentira qualquer ligação com as cerimónias religiosas ou com a fé. Não que duvidasse da existência de Deus; a despeito do cepticismo que tinha marcado a sua carreira, sentia que a crença em Deus não era apenas natural, era também racional. De outra forma, como poderia existir uma tal harmonia no universo? Há anos, havia escrito um artigo em que expressava as suas dúvidas sobre a existência de vida noutras partes do universo, recorrendo às matemáticas para reforçar a opinião e defendendo que, apesar da existência de milhões de galáxias e de triliões de estrelas, as possibilidades de existir qualquer outra forma de vida avançada no universo eram quase nulas.

Fora um dos seus trabalhos mais lidos, pois originara um grande volume de correspondência. Embora as pessoas, pelo menos a maioria, sustentassem a crença de que o Criador do universo foi Deus, houve quem discordasse e apresentasse a teoria do "big bang" como alternativa. Num trabalho subsequente, Jeremy escreveu acerca do "big bang" em termos próprios de um leigo, discorrendo essencialmente sobre o aspecto da teoria que diz que, num dado momento, toda a matéria que forma o universo estivera comprimida numa esfera densa, de dimensões não superiores às de uma bola de ténis. Foi a explosão dessa bola que criou o universo tal como o conhecemos. O artigo terminava com uma pergunta: "Numa primeira análise, qual das ideias parece mais verosímil? A crença em Deus ou a ideia de que, num dado momento, toda a matéria do universo - cada um dos átomos e cada uma das moléculas de que é composto - esteve condensada dentro de uma bola minúscula? "

Todavia, a crença em Deus continuava a ser uma questão de fé. Mesmo para aqueles que, como Jeremy, acreditavam na teoria do "big bang", nada era dito acerca da criação da esfera primitiva. Os ateus diriam que sempre existira, os religiosos poderiam argumentar que fora criada por Deus, não havendo qualquer forma de provar qual o grupo que estava certo. Era essa a razão por que os crentes tinham fé.

No entanto, ainda não estava preparado para aceitar a ideia de que Deus desempenhava um papel activo nas ocorrências da vida humana. Apesar da educação católica, não acreditava em milagres, além de ter acreditado que mais do que um curandeiro da fé não passava de um mero vigarista. Não cria num Deus que analisasse as orações, atendendo a umas e rejeitando outras, por mais decente ou mais indigno que fosse o requerente. Preferia, pelo contrário, crer num Deus que concedesse dons e capacidades a todas as pessoas, para depois as colocar num mundo imperfeito, onde seriam postas à prova e onde a sua fé teria sentido.

As crenças dele não se enquadravam nos ensinamentos da religião organizada; quando ia à missa, sabia que o fazia para contentar a mãe. Por vezes, a mãe sentia-o e sugeria que ele criasse o hábito de rezar; na maioria dos casos, dizia que sim, mas nunca o fazia. Até àquele momento.

Naquela noite, depois de ter decorado o quarto da bebé, Jeremy deu consigo de joelhos, a pedir a Deus que proporcionasse segurança à filha, que o abençoasse ao dar-lhe uma filha saudável. De mãos juntas, orou em silêncio, prometendo ser o melhor dos pais que pudesse. Prometeu voltar a assistir à missa, prometeu tornar a oração um elemento da sua vida diária, prometeu ler a Bíblia de uma ponta à outra.

- Por vezes, não sei o que hei-de fazer ou dizer - admitiu Jeremy.

Doris estava sentada do outro lado de uma mesa do Herbs, no dia seguinte; como não tinha informado a família, ela era a única pessoa com quem podia desabafar.

- Sei que ela precisa que eu seja forte e tento sê-lo. Tento mostrar-me optimista, assegurar-lhe que tudo vai correr bem e faço o melhor que posso para ela não se sentir ainda mais nervosa do que já está. Mas...

Quando ele hesitou, Doris terminou a frase por ele. - Mas é difícil porque estás tão assustado quanto ela.

- Pois, estou. Desculpe, a minha intenção não era metê-la no assunto.

- Já estou metida nele - replicou Doris. - E apenas posso concordar que é duro, mas estás a agir bem. De momento, ela precisa do teu apoio. Essa é uma das razões que a levou a casar contigo. Sabia que podia contar contigo e, quando falamos, ela confirma que lhe tens dado uma excelente ajuda.

Para lá das janelas, Jeremy observou as pessoas que almoçavam na esplanada, entregues a conversas normais, como se não tivessem quaisquer preocupações. A vida dele, porém, já não tinha nada de normal.

- Não consigo deixar de pensar no assunto. Amanhã ela vai fazer outra ecografia, uma ideia que detesto. Não consigo deixar de imaginar que amanhã vamos saber que a banda se ligou. Parece que estou a ver a expressão da técnica, a notar como ela fica séria de repente; e, ao notar isso, sei que ela nos vai dizer que temos de falar novamente com o médico. Só de pensar nisso sinto o estômago às voltas. Sei que a Lexie pensa o mesmo. Nos últimos dois dias tem andado realmente serena. Parece que nos preocupamos cada vez mais com a aproximação do dia do exame.

- É normal - sentenciou Doris.

- Até tenho rezado - confessou Jeremy.

Doris suspirou e olhou para o tecto, para voltar a fixar-se em Jeremy. E ainda faltavam oito semanas.

Dois dias depois mudaram de casa. O presidente Gherkin, Jed, Rodney e Jeremy carregaram os móveis no camião, enquanto Rachel e Doris, dirigidas por Lexie, se encarregavam das caixas. Como a vivenda era pequena, a nova casa pareceu-lhes vazia, mesmo depois de a mobília ter sido colocada nos devidos lugares.

Lexie mostrou-lhes todas as divisões: o presidente Gherkin logo sugeriu que a casa fosse incluída no Roteiro das Casas Históricas, enquanto Jed resolvia colocar o porco selvagem embalsamado em posição de maior destaque, mudando-o para junto da janela da sala de estar.

Ao observar Lexie e Rachel a dirigirem-se para a cozinha, Jeremy notou que Rodney se deixava ficar para trás e o olhava de lado.

- Quero pedir desculpa.

- Por quê? - inquiriu Jeremy.

- Sabe por quê - respondeu, a arrastar os pés. - Mas também quero agradecer-lhes por terem mantido o convite da Rachel para o casamento. Há muito que queria agradecer-lhes. Significou muito para ela.

- A presença dela também teve um significado profundo para a Lexie.

Rodney esboçou um sorriso rápido, mas pôs-se logo sério. -Têm aqui uma bela casa. Nunca imaginei que ficasse tão bonita. Vocês os dois fizeram um excelente trabalho.

- É tudo obra da Lexie. Não tenho o direito de reivindicar qualquer crédito para mim.

- É claro que tem. A casa está de acordo convosco. Um lugar estupendo para criarem os vossos filhos.

Jeremy engoliu em seco. - Espero que sim.

- Parabéns pelo bebé. Ouvi dizer que é uma menina. A Rachel já arranjou um conjunto de roupinhas para ela. Não diga nada à Lexie, mas julgo que ela está a preparar uma surpresa, que vai oferecer um, conjunto de banho para a bebé.

- Tenho a certeza de que ela vai adorar. Oh, e parabéns pelo vosso noivado. A Rachel é um prémio valioso.

Rodney olhou na direcção da cozinha no momento em que Rachel desapareceu de vista. - Ambos temos muita sorte, não é verdade?

Não conseguindo, pela primeira vez, encontrar as palavras certas, Jeremy não lhe deu resposta.

Finalmente, Jeremy fez o telefonema para o editor, uma chamada que temia e andara a evitar durante semanas. Informou que não poderia apresentar uma crónica para aquele mês, a primeira vez que tal acontecia. Enquanto a voz do editor revelava surpresa e desapontamento, Jeremy informou-o das complicações surgidas na gravidez de Lexie. O tom de voz do editor suavizou-se de imediato; perguntou se a vida de Lexie corria perigo, se estava acamada. Em vez de lhe responder directamente, Jeremy disse-lhe que não gostaria de revelar os pormenores e, pela pausa que se verificou do outro lado do fio, soube que o editor adivinhava o pior.

- Não há qualquer problema. Vamos reciclar uma das suas crónicas anteriores, algo que tenha escrito há vários anos. Vamos apostar que os leitores não se recordem ou que nunca tenham chegado a lê-la. Tem alguma sugestão, ou quer deixar isso por minha conta?

Ao notar a hesitação de Jeremy, o editor respondeu à sua própria pergunta. - Não há problema. Eu encarrego-me disso. Cuide bem da sua mulher. Para já, é o que mais interessa.

- Obrigado - agradeceu Jeremy. A despeito das lutas ocasionais que travara com o seu editor, não havia dúvidas de que o homem tinha sentimentos. - Fico-lhe muito agradecido.

- Posso fazer mais alguma coisa?

- Não. Só pretendia informá-lo.

Ouviu um ranger e soube que o editor estava a recostar-se na cadeira. - Informe-me se também não puder enviar a crónica seguinte. Se tal acontecer, podemos publicar outra das antigas, concorda?

- Não deixarei de o informar - prometeu Jeremy -, mas espero ter qualquer coisa pronta dentro de pouco tempo.

- Não se deixe ir abaixo. Está a passar um período difícil, mas tenho a certeza de que vai correr tudo bem.

- Obrigado.

- Oh, a propósito, espero ansiosamente pelo seu próximo trabalho de fundo. Quando o tiver preparado. Não há pressa.

- De que é que está a falar? - indagou Jeremy.

- Da sua próxima história. Não tenho tido notícias suas; por isso, calculo que esteja a trabalhar em algo de importante. Sempre que se esconde é porque tem uma história espantosa para contar. Sei que estará a pensar noutros temas, mas, se quer saber a minha opinião, o que fez com o Clausen deixou muita gente impressionada e gostaríamos de ser nós a publicar o seu próximo artigo de fundo, em vez de o mandar para os jornais diários ou para qualquer outro meio. Há muito que queria falar-lhe acerca disto e assegurar-lhe de que nos mostraremos competitivos quando se tratar de discutir os seus honorários. Seria também bastante bom para a revista. Quem sabe, poderemos até chegar a um acordo sobre a capa. Desculpe falar no assunto num momento destes; não há pressa. Informe-me quando estiver preparado.

Jeremy olhou para o computador e respirou fundo. - Não me esquecerei.

Embora, tecnicamente, não tivesse mentido ao editor, tinha omitido a verdade; depois de pousar o auscultador, sentiu remorsos. Não se apercebera durante a chamada, mas, inconscientemente, esperara que ele lhe mandasse fazer a mala, dissesse que encontraria alguém que lhe escrevesse a coluna ou cancelasse o contrato sem mais delongas. Tinha-se preparado para isso, mas não lhe passara pela cabeça que o editor viesse a revelar tanta simpatia. O que o fazia sentir-se ainda mais culpado.

Em parte, desejava telefonar de novo ao homem para lhe contar tudo, mas o bom senso prevaleceu. O editor mostrara-se compreensivo, bom, porque tivera de ser. O que é que ele poderia ter dito: Oh, lamento muito o que se passa com a sua mulher e com o bebé, mas tem de compreender que os prazos têm de ser cumpridos; despeço-o se não receber qualquer coisa nos próximos cinco minutos? Não, não diria nada disso - não o poderia ter dito -, especialmente se fosse levado em conta o que tinha dito depois: que a revista queria ser consultada quando ele estivesse pronto para publicar o seu próximo trabalho de fundo.

Não queria pensar no assunto. Não conseguia pensar nele; não conseguir escrever uma simples crónica já era suficientemente grave. Mas tinha conseguido o objectivo. Tinha ganho quatro semanas, possivelmente oito. Se até lá não conseguisse escrever nada, contaria toda a verdade ao editor. Teria de o fazer. Não poderia ser jornalista se não conseguisse escrever, não haveria maneira de continuar a fingir.

Então, iria fazer o quê? Como conseguiria pagar as contas? Como sustentaria a família?

Não sabia. Nem queria pensar nisso. De momento, Lexie e Claire eram suficientes para lhe manter a cabeça ocupada. Na grande ordem das coisas, elas eram bem mais importantes do que as preocupações com a carreira, além de Jeremy saber que poria sempre os cuidados a ter com elas à frente de tudo, mesmo se estivesse a escrever. No entanto, a questão era, por agora, muito mais simples: não tinha escolha.

 

Como é que viria a descrever as seis semanas seguintes? Como é que as recordaria quando se pusesse a reflectir sobre o passado? Recordar-se-ia de passar os fins-de-semana na companhia de Lexie, à procura de objectos em vendas particulares ou em lojas de antiguidades, para acabarem por encontrar as peças mais convenientes e para terminarem a decoração da casa? Que Lexie não só tinha um excelente gosto como também a capacidade de antever como as peças se enquadrariam no seu esquema de decoração? Que o excelente instinto da mulher para regatear o preço das compras lhes tinha permitido gastar muito menos do que seria de esperar? Que, afinal, até a prenda de Jed parecia ter sido feita de propósito para aquela casa?

Ou recordaria a necessidade de fazer um telefonema para os pais a informá-los da gravidez, uma chamada em que ele acabaria num choro incontrolável, como se tivesse reprimido os seus medos por demasiado tempo e só então tivesse a possibilidade de deixar as emoções fluírem livremente, sem receio de afligir Lexie?

Também era provável que recordasse as noites sem fim passadas em frente ao computador, a tentar escrever sem o conseguir, alternadamente desesperado e furioso por sentir que os ponteiros do relógio não paravam de marcar o tempo que faltava para o fim da sua carreira de jornalista.

Pensou que não; que, no final, recordaria aquele tempo como uma transição angustiada, dividida em períodos de duas semanas, entre duas ecografias.

Embora os temores permanecessem iguais, o choque começara a desvanecer-se; aquela preocupação deixara de lhes dominar as ideias a todas as horas do dia ou da noite. Era como se dispusessem de um mecanismo de sobrevivência capaz de contrabalançar o peso e o tormento insustentáveis das suas emoções. Era um processo gradual, quase imperceptível, pelo que, depois de feita a mais recente ecografia, só passados alguns dias se aperceberam de que tinham passado todo um serão sem serem assaltados pelas preocupações que os paralisavam. Durante aquele período de seis semanas tiveram mais de um jantar romântico, riram-se no cinema com um par de filmes cómicos e deixaram-se conquistar pelos livros que leram antes de dormir. Embora os terrores pudessem regressar de repente e sem aviso: quando iam à igreja e viam lá um bebé, por exemplo, ou quando se verificava uma contracção de Braxton-Hicks mais dolorosa; mas era como se ambos aceitassem o facto de não poderem fazer nada.

Além do mais, havia alturas em que Jeremy se perguntava se haveria motivos para estarem preocupados. Onde antes imaginara as piores consequências, agora pensava com certa frequência que ainda poderiam vir a olhar para trás com um suspiro de alívio. Até imaginava a cena em que contavam a história, sem deixarem de pôr em relevo as agruras daquele período, mas expressando a felicidade sentida por tudo ter acabado por correr bem.

Contudo, com a aproximação da data de nova ecografia, ambos ficavam um pouco mais silenciosos; no percurso para o consultório do médico era provável que não abrissem a boca para falar. Lexie descansaria a mão na dele e ficava a olhar para a janela do lado do passageiro, em silêncio.

A nova ecografia, a 8 de Setembro, não mostrou qualquer evolução da banda amniótica. Faltavam seis semanas.

Nessa noite celebraram com sumo de maçã gelado. Sentados no sofá, Jeremy surpreendeu Lexie ao dar-lhe um pequeno embrulho com uma prenda. Era um creme. Enquanto ela o olhava com curiosidade, Jeremy pediu-lhe que se recostasse no sofá, de maneira a sentir-se confortável. Depois de tirar o creme da mão dela, descalçou-lhe as meias e começou a massajar-lhe os pés. Tinha reparado que os pés dela estavam de novo a inchar, embora, quando Lexie se referiu a isso, tivesse respondido que não se notava qualquer inchaço.

- Pensei que irias sentir-te bem - observou Jeremy.

Ela sorriu, com ar céptico. - Ainda consegues dizer que não estão inchados?

- Nem por isso - mentiu ele, a esfregar entre os dedos.

- E a minha barriga? Não se vê bem que está maior?

- Agora que falas nisso. Mas, acredita, tens muito melhor aspecto que muitas grávidas.

- Estou enorme. Parece que estou a tentar esconder uma bola de basquetebol.

Ele riu-se. - Estás fantástica. Vista de costas, nem se nota a gravidez. Embora quando te viras de lado, eu receie que possas derrubar acidentalmente o candeeiro.

Lexie soltou uma gargalhada. - Cuidado - provocou -, sou uma mulher grávida, e nervosa.

- É por isso que estou a massajar-te os pés. Sei que posso fugir rapidamente. O mesmo não se passa com a pessoa que tem de carregar a Claire.

Ela inclinou-se para trás, para reduzir a intensidade da luz do candeeiro. - Ora bem, assim está melhor - disse, a ajeitar-se de novo no sofá. - É mais relaxante.

Jeremy continuou a massajar-lhe os pés em silêncio, de ouvido atento aos ocasionais murmúrios de prazer da mulher. Ao passar-lhe a mão pelos pés sentiu-os mais quentes.

- Ainda temos algumas daquelas cerejas com cobertura de chocolate? - perguntou Lexie num sussurro.

- Julgo que não. Compraste mais, ontem?

- Não, mas tinha a esperança de que te tivesses lembrado disso.

- Por que motivo haveria eu de comprá-las?

- Nenhum. Acontece apenas que sinto um certo desejo delas. Não as achas saborosas?

Ele interrompeu a massagem. - Queres que vá comprá-las? Não custa nada.

- Não, é claro que não - replicou Lexie. - Foi um dia cansativo. E, além disso, estamos a celebrar. Por que haverias de ir a correr à loja? Só por eu ter um desejo idiota?

- Está bem - concordou ele ao pegar de novo na embalagem de creme.

- Contudo, não achas que neste momento nos iam saber bem? Jeremy riu-se. - Está bem. vou buscá-las.

Lexie olhou para ele. - Não te importas? Detesto obrigar-te a sair.

- Não tem importância, minha querida.

- Quando regressares vais continuar a massajar-me os pés?

- vou massajá-los até me dizeres que basta.

Ela sorriu. - Alguma vez te confessei que estou contente por nos termos casado? E quanto me sinto feliz por tu fazeres parte da minha vida?

Ele beijou-a levemente na testa. - Todos os dias.

No dia do seu aniversário, Jeremy surpreendeu Lexie com um elegante vestido para grávidas e bilhetes para o teatro, em Raleigh. Alugara uma limusina e, antes do espectáculo, partilharam um jantar romântico; para mais tarde, tinha reservado quarto num hotel de luxo.

Decidira que ela necessitava exactamente de um esquema daqueles: de uma oportunidade para mudar de ares, de espaço para se libertar das preocupações, de tempo para poder comportar-se como uma mulher casada. Porém, à medida que a noite avançava, apercebeu-se de que talvez ele próprio necessitasse do mesmo. Durante a representação, notou em Lexie a satisfação de seguir as peripécias da peça, a vontade de não perder nada daquele momento. Inclinou-se para ele mais de uma vez; noutras alturas, olhavam um para o outro ao mesmo tempo, como se existisse entre eles um acordo subentendido. A caminho da saída, reparou que havia mais quem a olhasse. A despeito da gravidez bem visível era bonita, e mais do que um homem virava a cabeça quando ela passava. O facto de ela parecer não notar a maneira como os outros homens a olhavam enchia-o de orgulho; apesar de estarem casados, ainda se sentia a viver um sonho e quase estremeceu quando, ao saírem do teatro, ela lhe deu o braço. O motorista abriu-lhes a porta com uma expressão que não enganou Jeremy: apercebeu-se de que ele o considerava um homem de sorte.

Já foi dito que é impossível fazer amor nas últimas fases da gravidez, mas Jeremy descobriu que a afirmação não era verdadeira. Embora Lexie tivesse atingido uma fase da gravidez em que o acto do amor se tornava desconfortável, deixaram-se ficar deitados, muito juntos, a desfiar recordações da infância de cada um. Falaram durante horas, rindo-se com as memórias de algumas das coisas que tinham feito e lamentando outras. Quando acabaram por apagar as luzes, Jeremy deu consigo a desejar que a noite nunca mais acabasse. No escuro, enlaçou-a com os braços, continuando impressionado com o facto de poder fazer aquilo para sempre; e, quando se encontrava prestes a adormecer, sentiu que Lexie lhe pegava na mão e a pousava suavemente na barriga. Na quietude da noite, a bebé continuava acordada, mexia-se e dava pontapés, em cada movimento a fazê-lo crer que tudo estava a correr bem. Antes de finalmente adormecer, não pretendia mais do que passar dez milhares de serões como aquele que acabavam de viver juntos.

Na manhã seguinte, comeram o pequeno-almoço na cama, oferecendo fruta um ao outro e sentindo-se outra vez um casal em lua-de-mel. Jeremy deve tê-la beijado pelo menos uma dúzia de vezes.

Contudo, no caminho de regresso a casa, permaneceram calados; quebrado o encanto das últimas horas, ambos encaravam com temor muito do que o futuro poderia reservar-lhes.

No dia seguinte, por saber que mais uma semana não resolveria o problema, Jeremy voltou a contactar o editor; este afirmou uma vez mais que não havia problema, que compreendia as pressões a que Jeremy estava sujeito. Porém, uma pontinha quase imperceptível de impaciência na voz do chefe recordava-lhe que não poderia adiar indefinidamente a inevitável explicação. Mais um factor a aumentar a pressão, que o manteve acordado durante duas noites, mas que lhe parecia irrelevante quando comparado com a ansiedade sentida por ele e por Lexie enquanto aguardavam a ecografia seguinte.

A sala era a mesma, a máquina era a mesma e a técnica também, mas, sem perceberem como, tudo lhes parecia diferente. Não se encontravam ali para saber se a criança estava bem, estavam ali para saber se a filha iria nascer deformada ou morrer.

O gel foi colocado na barriga de Lexie e a sonda assente sobre ela. De imediato, ambos ouviram o batimento cardíaco, rápido e rítmico. Lexie e Jeremy respiraram fundo simultaneamente.

Agora já sabiam o que deviam procurar e Jeremy logo fixou os olhos na banda amniótica e na sua proximidade em relação à bebé. Ficou a ver se entretanto se tinha ligado, sabendo de antemão para onde a técnica ia mover a sonda em seguida, sabendo exactamente aquilo em que ela estava a pensar. Viu as sombras, forçando-se a manter-se calado, quando queria era pedir-lhe que movesse a sonda, mas a técnica fez exactamente como ele desejava. Olhava ao mesmo tempo que a técnica, sabia o que ela estava a ver, sabia o mesmo que ela.

A bebé estava a aumentar de volume, observou a técnica, como se não se dirigisse a quem quer que fosse, e prosseguiu, para dizer que o tamanho da criança dificultava uma observação correcta. Continuou, sem pressas, revelando uma sucessão de imagens. Jeremy sabia o que ela ia dizer, sabia que diria que a bebé se encontrava bem, mas ela fez uma observação inesperada. Explicou que o médico a mandara prosseguir, informando-o depois se tudo estivesse a correr bem, e sentia-se à vontade para dizer que a banda não se tinha ligado. Mesmo assim, preferia que o médico viesse ver, para ter a certeza. Pôs-se de pé e saiu para ir chamá-lo. Jeremy e Lexie esperaram na sala o que lhes pareceu uma eternidade. Finalmente, apareceu o médico; parecia tenso e cansado, talvez por ter assistido a um parto na noite anterior. Mas mostrou-se paciente e metódico. Depois de observar a técnica, e antes de aceitar a conclusão dela, procedeu ele próprio a um exame.

- A bebé está óptima - concluiu. - Está a passar bem melhor do que eu esperava. No entanto, tenho a certeza de que a banda está a ficar ligeiramente maior. Parece acompanhar o crescimento da criança, mas não posso ter a certeza.

- E quanto a uma cesariana? - indagou Jeremy.

O médico assentiu, como se esperasse a pergunta. - Podíamos ir por aí, mas a cesariana também apresenta os seus próprios riscos. Trata-se de uma grande cirurgia e, embora a hipótese já seja viável, arriscaríamos outros problemas. Considerando que a banda não está ligada e que a criança está óptima, acho que a operação envolve mais riscos tanto para a Lexie como para a bebé. Vamos, contudo, manter essa possibilidade em aberto, de acordo? Vamos continuar a agir como até aqui.

Incapaz de falar, Jeremy anuiu. Faltavam quatro semanas.

Jeremy trouxe Lexie pela mão até ao carro; depois de sentados, notou nela a expressão angustiada que, tanto quanto sentia, seria a mesma que ele próprio mostrava. Tinham sabido que a bebé estava óptima, mas a informação não passava de um sussurro quando comparada com o anúncio ensurdecedor de que, no futuro imediato, uma cesariana estava fora de questão, além de também terem ficado a saber que a banda parecia estar a crescer, mesmo que o médico obstetra não tivesse a certeza disso.

Lexie voltou-se para ele, de lábios cerrados, a parecer subitamente exausta. - Vamos para casa - pediu. Instintivamente, levou as duas mãos à barriga e as faces tingiram-se-lhe de vermelho.

- Tens a certeza?

- Tenho.

Estava prestes a ligar o motor quando a viu baixar a cabeça e esconder a cara nas mãos. - Odeio isto! Odeio descobrir que, quando nos permitimos pensar que tudo está a correr pelo melhor, no mesmo instante ficamos a saber que nos pode suceder algo de pior. Estou tão farta desta situação!

Jeremy gostaria de lhe responder que também ele estava farto. Sei que estás - foi dizendo, para a acalmar. Nada mais poderia dizer; queria saber de uma maneira de resolver a situação, de lhe tornar a vida mais fácil. Contudo, também reconheceu que Lexie precisava, antes de mais, de alguém com capacidade para a ouvir.

Lexie tentou justificar-se. - Desculpa. Sei que tudo isto é tão difícil para ti como para mim. E sei que estás igualmente preocupado. Apenas me pareces muito mais capaz de lidar com a situação.

Mesmo sem vontade, ele não pôde deixar de se rir. - Duvido. Senti o estômago começar às cambalhotas no preciso momento em que o médico entrou na sala. Estou a criar aversão aos médicos. Fazem-me sentir arrepios na espinha. Aconteça o que acontecer, a Claire nunca poderá ser médica. Terei de me impor quando chegar a altura.

- Como é que consegues brincar numa altura destas?

- É a melhor maneira de lidar com a angústia. Ela sorriu. - Podias armar uma barafunda.

- Julgo que não. Isso é mais o teu estilo.

- É o que tenho andado a fazer por ambos. Desculpa.

- Não tens de te desculpar. Além disso, as notícias nem foram más. Está tudo bem, até agora. Era o que desejávamos saber.

Ela acariciou-lhe a mão. - Estás pronto para seguir para casa?

- Claro. E, deixa que te diga, estou mesmo ansioso por um sumo de maçã com gelo, só para acalmar os nervos.

- Não, tu bebes uma cerveja. Eu bebo o sumo enquanto olho para ti com inveja.

Passou-se uma semana. - Eh! - chamou Lexie.

Tinham acabado de jantar e Jeremy fora para o escritório. Encontrava-se sentado à secretária, a fitar o ecrã do monitor. Ao ouvir a voz da mulher, virou-se e viu-a à porta; pensou uma vez mais que, apesar da barriga proeminente, Lexie continuava a ser a mulher mais bela que ele alguma vez vira.

- Como é que estás?

- Óptima. Mas pensei vir espreitar como estão a correr as coisas. Desde o casamento, ele mantinha-a informada da situação em que

estava o trabalho, mas só quando ela perguntava. Quando Lexie chegava a casa, não valia a pena incomodá-la com as suas lutas diárias com o trabalho. Quantas vezes poderia uma mulher ouvir a história dos fracassos do marido, até se convencer de que ele era mesmo um falhado? Em vez disso, tinha-se habituado a refugiar-se no escritório, à espera de uma qualquer intervenção divina e a tentar viabilizar o impossível.

- Estão na mesma - confessou, uma resposta simultaneamente evasiva e descritiva. Esperava que Lexie, ao ouvir aquela resposta, rodasse sobre os calcanhares para ir-se embora; essa tinha sido a maneira de proceder durante o último par de meses. Em vez disso, Lexie entrou no escritório.

- Apetece-te companhia?

- Sempre gostei de estar acompanhado. Em especial quando nada parece resultar.

- Um dia difícil?

- Igual aos outros, como já te disse.

Lexie entrou no escritório mas, em lugar de ir sentar-se na cadeira que estava ao canto, caminhou direita a ele e pôs a mão no apoio dos braços da cadeira dele. Jeremy percebeu a sugestão: arrastou a cadeira para trás e ela sentou-se no colo dele. Pôs-lhe um braço à volta do pescoço, ignorando a surpresa dele.

- Desculpa estar a esmagar-te. Sei que estou a ficar pesada.

- Não há problema. Senta-te no meu colo sempre que te apetecer.

Lexie fitou-o, antes de soltar um profundo suspiro. - Não tenho andado a ser justa para ti - confessou.

- Estás a falar de quê?

- Tudo - explicou Lexie, fazendo desenhos invisíveis no ombro dele. - Nunca fui justa, desde o início.

- Não percebo patavina do que estás a dizer - replicou Jeremy, ignorando a carícia.

- De tudo - repetiu. - Tenho estado a pensar em tudo o que fizeste nestes últimos nove meses e quero que saibas que desejo passar o resto da vida junto de ti, quaisquer que sejam as dificuldades que a vida nos reserve - prosseguiu. Depois de uma pausa, acrescentou: - O que estou a dizer não faz muito sentido; por isso, vou direita ao que interessa. Casei com um escritor. Logo, pretendo que escrevas.

- Estou a tentar - replicou ele. - É o que tenho tentado fazer desde que vim para aqui...

- Era aí que eu queria chegar - interrompeu Lexie. - Sabes que te amo, não sabes? Adoro-te pela maneira como tens agido desde que descobrimos o que se passava com a Claire. Por falares sempre de maneira a dar a entender que vai correr tudo bem, porque sempre que me deixo ir abaixo tu pareces saber o que deves fazer e dizer. Mas, acima de tudo, amo-te por seres quem és e quero que saibas que eu faria tudo para te ajudar.

Rodeou o pescoço do marido com os braços. - Ultimamente, tenho reflectido muito sobre aquilo que tens passado. Não sei... talvez tenha sido demasiado. Bastam as transformações que a tua vida sofreu desde Janeiro. O casamento, a casa, a gravidez... e, para cúmulo, vieste morar para aqui. O teu trabalho é diferente do meu. Na generalidade dos casos, sei o que tenho a fazer em cada dia. É certo que, em determinadas alturas, se torna monótono e frustrante, mas a biblioteca não fecha se eu não desempenhar a minha função... Ao passo que o teu trabalho... é criativo. Eu não o conseguiria fazer. Não poderia produzir uma crónica em cada mês, ou escrever artigos como tu escreves. São espantosos.

Jeremy nem tentou esconder a surpresa ao notar que ela lhe passava os dedos por entre o cabelo.

- Na biblioteca, quando disponho de alguns minutos, vou procurá-los. Julgo que já li tudo o que escreveste e, não sei como dizer-te, mas acho que não deves querer parar. Porém, se é o facto de viveres aqui que está a bloquear-te, não posso pedir-te um sacrifício desses.

- Não se trata de um sacrifício - protestou Jeremy. - Vim de minha livre vontade. Não me obrigaste.

- Não, mas tu sabias qual era a minha posição. Sabias que nunca quis sair de cá. E continuo a não querer, mas sairei - afirmou, a olhá-lo bem de frente. - És o meu marido e seguir-te-ei para onde fores, mesmo que isso implique ir viver para Nova Iorque, se pensares que a mudança pode ajudar-te.

Ele não sabia o que dizer. - Deixarias Boone Creek?

- Se é isso que pensas ser necessário fazer para voltares a escrever.

- E quanto à Doris?

- Nunca disse que não viria visitá-la. Mas a Doris compreenderia. Até já conversámos sobre isso.

Sorriu, à espera da resposta dele e, por instantes, Jeremy considerou a proposta. Imaginou a energia da cidade, as luzes de Times Square, o perfil iluminado de Manhattan à noite. Pensou nas corridas diárias em Central Park e nos seus cafés preferidos, nas possibilidades infindas de novos restaurantes, peças de teatro, lojas e pessoas...

Contudo, foi apenas um momento. Ao olhar pela janela, ao ver a casca caiada dos ciprestes que bordejavam as margens do rio, com a água tão lisa que até reflectia o céu, sabia que não sairia dali. Nem, percebeu com uma intensidade que o deixou surpreendido, o desejava.

- Sou feliz aqui - contrapôs. - E não penso que mudar-me para Nova Iorque seja necessário para conseguir voltar a escrever.

- Assim, sem mais nem menos? Não pretendes algum tempo para pensares no assunto?

- Não. Tenho aqui tudo aquilo de que preciso.

Mal ela saiu, começou a arrumar a secretária; porém, no preciso momento em que ia desligar o computador, reparou no diário de Doris, pousado junto do correio. Estava ali, em cima da secretária, desde que se tinham mudado; achou que estava na altura de o devolver. Abriu-o e leu alguns nomes nas primeiras páginas. Quantas daquelas pessoas ainda viveriam na zona? O que teria sucedido às crianças? Teriam ido para a universidade? Estariam casadas? Saberiam que, antes de nascerem, as suas mães tinham ido consultar Doris?

Ficou a tentar avaliar quantas pessoas acreditariam em Doris se ela aparecesse na televisão com o diário e contasse a sua história. Talvez metade dos telespectadores, provavelmente mais. Mas porquê? O que levaria uma pessoa a acreditar numa coisa tão ridícula?

Sentando-se ao computador, escreveu a pergunta e foi sugerindo respostas à medida que elas lhe vinham à cabeça. Tomou notas sobre a forma como a teoria influencia a observação, sugeriu que contar histórias não é o mesmo que apresentar provas, reconheceu que uma afirmação ousada é muitas vezes interpretada intuitivamente como verdadeira, que os rumores raramente correspondem a realidades, que as pessoas, pelo menos a maioria, raramente exigem provas. Acabou por conseguir quinze observações e começou a citar exemplos para defender as suas ideias. Enquanto escrevia não conseguia evitar uma certa sensação de vertigem, de espanto por as palavras fluírem. Tinha medo de parar, medo de apagar o candeeiro, medo de ir buscar uma chávena de café, medo de que a inspiração fugisse. A princípio, até tinha medo de apagar fosse o que fosse, mesmo os erros, pela mesma razão; então, o instinto tomou as rédeas, forçou a sorte e as palavras continuaram a fluir. Uma hora depois, encontrava-se a olhar com satisfação para aquela que sabia ser a sua próxima crónica: "O que leva as pessoas a acreditar".

Imprimiu e leu a crónica uma vez mais. Não estava pronta. Era um esboço, o texto precisava de ser trabalhado. Mas a ossatura estava lá, sentia que brotavam novas ideias e soube, uma certeza surgida de repente, que o bloqueio já pertencia ao passado. Contudo, acrescentou várias notas à página que tinha diante dos olhos. Para quando fossem necessárias.

Saiu do escritório e encontrou Lexie na sala, a ler.

- Olá! - saudou Lexie. - Pensei que vinhas para junto de mim.

- Também eu pensava que vinha.

- O que é que tens estado a fazer?

Jeremy estendeu-lhe as folhas, sem tentar esconder o sorriso. Queres ler a minha próxima crónica?

Lexie levou uns instantes a perceber o que acabara, de ouvir e a levantar-se do sofá. com uma expressão de espanto, e também de alegria, pegou nas folhas. Deu-lhes uma rápida vista de olhos e, a sorrir, fitou-o. - Escreveste isto, agora mesmo?

Ele acenou que sim.

- Que maravilha! É claro que quero ler. E para já!

Voltou para o sofá e, durante algum tempo, enquanto ela percorria as páginas com os olhos, Jeremy manteve-se calado. Totalmente concentrada, Lexie ia lendo e enrolando uma madeixa de cabelo entre os dedos. Foi enquanto a observava que lhe ocorreu a razão do bloqueio que o tinha vindo a afectar. Talvez não fosse o facto de viver em Boone Creek; era ter a impressão, pelo menos inconscientemente, de que nunca mais poderia sair dali.

Uma noção ridícula, que não teria dúvidas em desmentir se alguém a mencionasse, mas sabia que o seu raciocínio estava correcto; e não conseguia parar de sorrir. Queria celebrar, tomar Lexie nos braços e ficar abraçado a ela para sempre. Queria criar a filha numa terra onde podiam caçar borboletas durante o Verão e assistir ao desenrolar das tempestades, abrigados numa varanda segura. Agora era aquele o seu lar, o lar da sua família, uma constatação que o levou a crer que não haveria qualquer problema com o nascimento da filha. Tinham sofrido tanto nos últimos tempos, ela tinha de estar bem; quando fizessem a nova ecografia, a 6 de Outubro, a última antes do parto, Jeremy teria a certeza de que estava tudo a correr bem. Até àquele momento, a Claire estava a portar-se optimamente.

Até àquele momento.

 

Quando, finalmente, Jeremy se apercebeu do que estava a acontecer, tudo lhe pareceu confuso e desfocado mas, como estava a meio de um sonho, achou que tinha desculpa. Só tinha uma certeza: a sua primeira palavra naquela manhã seria "Ai!".

- Acorda - pediu Lexie, a tentar mais uma vez chamar-lhe a atenção.

Ainda tonto, Jeremy levantou um pouco mais o lençol. - Por que estás a dar-me cotoveladas? Estamos a meio da noite.

- Não estamos a meio da noite, são quase cinco horas. Mas julgo que chegou a altura.

- A altura de quê?

- De ir para o hospital.

Uma vez processadas as palavras, levantou-se de um salto e atirou o lençol para trás. - Tens contracções? Por que é que não me disseste? Tens a certeza?

- Parece-me que sim. As contracções já não são novas para mim, mas acho estas diferentes. E são mais regulares.

Ele engoliu em seco. - Então é agora.

- Não tenho a certeza. Mas julgo que sim.

- Muito bem! - exclamou Jeremy, a respirar fundo. - Não entremos em pânico.

- Não estou em pânico.

- bom, porque não há motivos para entrarmos em pânico.

- Eu sei.

Durante alguns momentos, limitaram-se a olhar um para o outro.

- Preciso de um duche - acabou por decidir Jeremy.

- Um duche?

- Pois - anuiu ele ao saltar da cama. - Serei rápido e seguiremos logo em seguida.

Não se apressou. Demorou-se no duche o tempo suficiente para embaciar o espelho, que teve de limpar por duas vezes para conseguir barbear-se. Escovou os dentes e limpou-os com fio dental, a seguir aplicou loção para depois de barbear. Gargarejou por duas vezes. Levou o seu tempo a abrir uma nova embalagem de desodorizante, ligou o secador de cabelo e regulou-o para uma temperatura baixa, além de aplicar gel e mousse no cabelo, antes de se pentear. Verificou que tinha as unhas das mãos um pouco crescidas; estava a cortá-las e a limá-las quando ouviu a porta abrir-se atrás de si.

- Que diabo estás tu a fazer? - perguntou uma Lexie ofegante. Estava inclinada para diante, a segurar a barriga. - Como podes demorar-te tanto?

- Estou quase pronto - protestou Jeremy.

- Estás aqui metido há quase meia hora!

- A sério?

- Pois, a sério! - ripostou, semicerrando os olhos por causa das dores, para depois ficar boquiaberta ao ver o que ele estava a fazer.

- Tu estás a aparar as unhas?

Antes que ele conseguisse responder, Lexie rodou e desapareceu.

Quando se preparara para aquele dia, nunca se imaginara a agir daquela maneira. Pelo contrário, nos ensaios agira sempre como um modelo de calma e autodomínio. Aprontar-se-ia com uma eficiência mecânica, não perderia a mulher de vista, confortá-la-ia nas suas preocupações e pegaria nos sacos que Lexie já tinha preparado, correndo para o hospital a segurar o volante com mãos bem firmes.

Só não previra que deixasse aquele terror apoderar-se dele. Não estava preparado para enfrentar a situação. Como poderia ser pai? Não fazia ideia do que tinha de fazer. Fraldas? Biberão? Como pegar na bebé? Não dispunha de conhecimentos. Precisava de mais um ou dois dias, tinha de ler alguns daqueles livros que Lexie andava há meses a estudar. Porém, agora era demasiado tarde. A sua tentativa subconsciente para atrasar o inevitável tinha fracassado.

- Não, ainda não saímos! - dizia Lexie para o bocal do telefone.

- Ele ainda está a aprontar-se!

Sabia que a mulher estava a falar com a avó. E não parecia muito contente.

Jeremy começou a vestir a roupa e estava a enfiar uma camisa pela cabeça quando Lexie desligou. Viu-a arquear as costas, aguentar outra contracção em silêncio e esperar que a dor passasse. Então, ajudou-a a endireitar-se e começou a conduzi-la para o carro, conseguindo finalmente controlar-se um pouco.

- Não te esqueças do saco - lembrou Lexie.

- vou buscá-lo.

Acomodaram-se no carro num abrir e fechar de olhos. Na altura, tinha começado outra contracção e ele iniciou uma rápida manobra de marcha atrás.

- O saco! - gritou ela, mal-humorada.

Jeremy deu uma sapatada no travão e correu de regresso a casa. Não havia dúvidas: não estava preparado para enfrentar uma situação daquelas.

Encontraram as estradas desimpedidas e negras, sob um céu escuro, e Jeremy carregou no pedal, a acelerar em direcção a Greenville. Para prevenir possíveis complicações, tinham resolvido que a bebé nasceria em Greenville, e Jeremy ligou para o serviço de atendimento a informar o médico de que iam a caminho.

Passou outra contracção; pálida, Lexie recostou-se no banco. Ele carregou ainda mais no acelerador.

Percorriam rapidamente as estradas desertas; pelo retrovisor, Jeremy via o horizonte a tornar-se acinzentado. Lexie ia estranhamente calada mas, uma vez mais, o mesmo acontecia com ele. Nenhum dissera uma palavra desde que entraram no carro.

- Estás a sentir-te bem?

- Estou - respondeu Lexie, com a voz de quem não se sentia nada bem. - Mas talvez seja melhor ires mais depressa.

Sentia o coração acelerado dentro do peito. "Mantém-te calmo", dizia, para si próprio. "Seja o que for que tenhas de fazer, mantém-te calmo." Sentiu o carro derrapar quando descreveram uma curva apertada a grande velocidade.

- Não tão depressa - protestou Lexie. - Não desejo morrer antes de chegar ao hospital.

Jeremy abrandou mas, sempre que a mulher tinha nova contracção, dava consigo a acelerar de novo. Pareciam chegar com cerca de oito minutos de intervalo. Só não sabia responder a uma pergunta: seria tempo mais do que suficiente ou seria demasiado escasso? Na verdade, deveria ter lido o livro, qualquer livro. Agora, já não interessava.

Uma vez em Greenville, o trânsito aumentou. Não havia muitos automóveis, mas eram suficientes para o obrigarem a parar em alguns dos semáforos. No segundo, olhou para Lexie. Se havia alguma diferença, era parecer agora ainda mais grávida do que quando tinham iniciado o trajecto para o hospital.

- Estás a sentir-te bem? - voltou a indagar.

- Pára com as perguntas - pediu ela. - Podes ficar descansado, eu digo-te quando não me sentir bem.

- Estamos quase a chegar.

- Óptimo - rematou Lexie.

Jeremy continuava a olhar para o semáforo, perguntando-se por que diabo não apareceria o verde. Não era óbvio que havia ali um caso de emergência? Olhou de relance para a mulher, a lutar contra o desejo de voltar a perguntar se ela se sentia bem.

Parou junto da entrada das urgências. O olhar de desespero e o anúncio em voz alta de que a mulher entrara em trabalho de parto levaram um auxiliar a aparecer junto do carro com uma cadeira de rodas. Jeremy ajudou a mulher a sair do carro e ela instalou-se na cadeira. Depois, apanhou o saco e seguiu atrás deles pela porta dentro. Apesar da hora, o lugar estava a abarrotar e havia três pessoas junto do balcão de admissão.

Pensara que, dadas as circunstâncias especiais, Lexie seria encaminhada directamente para a maternidade mas, em vez disso, a cadeira de rodas foi levada para a frente do balcão, para aguardar a sua vez. Para lá do balcão ninguém parecia ter pressa; as enfermeiras pareciam mais interessadas em beberricar café e em conversar. Jeremy mal conseguia conter a impaciência, especialmente enquanto aguardava a inscrição das pessoas que estavam à frente deles. Nenhuma delas parecia às portas da morte; na sua maioria, pareciam querer apenas uma nova receita. Um até parecia procurar namorico. Finalmente, finalmente, chegou a vez deles. Antes de ele abrir a boca para falar, uma enfermeira, que lhe pareceu totalmente desinteressada da situação de Lexie, pôs-lhe um formulário à frente do nariz.

- Preencha as primeiras três páginas, assine a quarta e precisamos de ver o seu cartão de seguro de doença.

- É absolutamente necessário, num momento destes? A minha mulher entrou em trabalho de parto. Não deveria conduzi-la primeiro à maternidade?

A enfermeira desviou a atenção para Lexie. - Qual é o intervalo entre cada contracção?

- Cerca de oito minutos.

- Há quanto tempo está em trabalho de parto?

- Não sei. Talvez há três horas.

A enfermeira acenou que sim. - Primeiras três páginas, assinar na quarta. E não se esqueça do cartão de seguro.

Jeremy pegou no formulário e procurou uma cadeira, a sentir-se quase escorraçado. Burocracia? Precisavam de papéis numa altura daquelas? Numa emergência? Na sua opinião, o mundo já estava afogado em papéis. O hospital usava resmas de papelada, e ele estava quase a pôr o formulário de lado, de modo a chegar-se ao balcão para explicar calmamente a situação. A enfermeira parecia não estar a perceber.

- Eh!

Sobressaltou-se ao ouvir a voz de Lexie. A cadeira de rodas continuava estacionada junto do balcão das admissões, na outra metade da sala. - Vais deixar-me aqui?

Jeremy viu os olhos dos estranhos cravados nele. Algumas mulheres mostravam desagrado.

- Perdão - desculpou-se, ao levantar-se rapidamente. Apressou-se a chegar junto dela. Depois de rodar a cadeira, começou a fazê-la rolar para o ponto onde se tinha sentado.

- Não te esqueças do saco.

- Certo - anuiu. Ignorando os olhares dos outros, voltou atrás para ir buscar o saco e sentou-se junto da mulher. - Estás a sentir-te bem? - perguntou.

- Se voltas a perguntar-me isso, dou-te um murro. Estou a falar a sério.

- Sim, claro. Desculpa.

- Vê se preenches o formulário, está bem?

Ele assentiu e voltou a dar atenção ao formulário, novamente a pensar que estava a perder o seu tempo. O preenchimento da papelada poderia ficar para mais tarde.

Levou alguns minutos; quando acabou dirigiu-se para o balcão das admissões. No entanto, o destino pregou-lhe uma partida, pois alguém pareceu ter pensado o mesmo e conseguiu lá chegar primeiro, forçando-o a uma nova espera. Quando chegou a vez dele, sentia-se a arder e limitou-se a entregar o formulário.

A enfermeira voltou a agir com calma. Analisou cada uma das páginas, fez fotocópias, abriu uma gaveta e pegou numas quantas pulseiras, onde começou a escrever o nome e o número de identificação de Lexie. Lentamente. Num ritmo glacial. Jeremy batia com o pé enquanto esperava. Não deixaria de enviar uma carta a reclamar. Aquilo era ridículo.

- Está em ordem - acabou por dizer a enfermeira. - Sente-se que nós chamamos logo que estejamos preparados.

- Vamos ter de esperar novamente? - indignou-se Jeremy.

- Ora, diga-me cá. É o seu primeiro filho? - perguntou a enfermeira, a olhá-lo por cima dos óculos.

- Por acaso, é.

A enfermeira acenou com a cabeça. - Sente-se. Como lhe disse, nós chamamos. E coloquem as pulseiras.

Uns "anos" mais tarde, chamaram finalmente pelo nome de Lexie.

Bem, não tiveram de esperar muito, mas parecera muito tempo. Lexie tinha iniciado uma nova contracção e comprimiu os lábios, com as duas mãos na barriga.

- Lexie Marsh?

Jeremy pôs-se de pé como se tivesse fogo no rabo e saltou para trás da cadeira de rodas. Bastaram-lhe poucas passadas para chegar junto da porta de vaivém.

- Sim, é ela! - exclamou. - Vamos direitos à sala, não é?

- Vamos - respondeu a enfermeira em voz neutra, sem ligar ao tom de Jeremy. - Por aqui. Vamos para a maternidade. Fica no terceiro piso. Sente-se bem, minha querida?

- Estou óptima - respondeu Lexie. - Acabo de ter outra contracção. Continuam com oito minutos de intervalo.

- Acho que devemos ir - sugeriu Jeremy, e tanto a enfermeira como Lexie se voltaram para ele. O seu tom de voz fora, sem dúvida, petulante, mas aquela não era uma boa altura para conversas de salão.

- Aquele saco é seu? - indagou a enfermeira.

- vou já buscá-lo - disse Jeremy, a socar-se mentalmente.

- Nós esperamos - volveu a enfermeira.

Jeremy gostaria de ter respondido "obrigadinho", no tom de voz mais sarcástico que conseguisse, mas pensou melhor. Antes de mais, sabia que aquela mulher ia ajudar no parto; o seu último desejo era pô-la contra ele.

Correu e pegou no saco e, juntos, embrenharam-se pelo labirinto de corredores. Foi questão de subir no elevador, percorrer o corredor e chegar ao quarto. Finalmente!

Entraram num quarto vazio, esterilizado e funcional como são todos os quartos de hospital. Lexie ergueu-se da cadeira de rodas e enfiou-se num roupão, para depois se içar com todos os cuidados para a cama. Durante os vinte minutos seguintes houve um corrupio de enfermeiras a entrar e a sair. Mediram a pulsação e a tensão arterial de Lexie, mediram-lhe o colo do útero, fizeram as mesmas perguntas e ouviram as mesmas respostas quanto à duração do trabalho de parto e ao intervalo entre as contracções, sobre a hora da última refeição e as complicações surgidas durante a gravidez. Mais adiante, ligaram-na a um monitor; Lexie e Jeremy ficaram a olhar para o monitor, que registava o ritmo rápido do coração da bebé.

- Costuma ser assim tão rápido? - perguntou Jeremy.

- Está normal - assegurou-lhe a enfermeira. A seguir, voltou-se para Lexie e suspendeu o registo da paciente na barra da cama. - Sou a Joanie e vou acompanhá-la ao longo da manhã. Como as suas contracções continuam com intervalos grandes, talvez ainda tenha de passar aqui algum tempo. Não temos maneira de saber quanto tempo vai durar o trabalho de parto. Por vezes, é como se carregássemos num botão e acontece rapidamente; mas há casos em que o processo é mais lento e firme. Contudo, não pense que tem de manter-se deitada. Algumas mulheres sentem que caminhar ajuda, outras preferem estar sentadas, e há quem julgue que gatinhar é o melhor método. Ainda não está pronta para a epidural que pediu; por isso, faça aquilo que lhe dê a sensação de lhe aumentar o conforto.

- Muito bem - respondeu Lexie.

- E... o Senhor...

- Marsh - completou Jeremy. - Chamo-me Jeremy Marsh. Esta é a Lexie, a minha mulher. Vamos ter uma filha.

A enfermeira pareceu divertir-se com a resposta. -Já percebi. No entanto, por agora, o seu papel consiste em ajudá-la. Há uma máquina de gelo no fim do corredor, pode ir lá buscar quantos pedaços de gelo ela quiser. Junto do lavatório há uns toalhetes que pode utilizar para lhe refrescar a testa. Se a sua mulher quiser caminhar, mantenha-se ao lado dela para a ajudar. Por vezes, as contracções são súbitas e as pernas fraquejam; não quer que ela caia, pois não?

- Encarrego-me de tudo isso - prometeu Jeremy, a registar mentalmente a lista.

- Se precisar de uma enfermeira, basta carregar no botão. Há-de aparecer alguma, logo que possível.

A enfermeira encaminhou-se para a porta.

- Espere lá... Vai-se embora? - inquiriu Jeremy.

- Tenho de ir ver outra paciente. E por agora não tenho nada a fazer aqui, excepto notificar o médico anestesista. Volto cá daqui a pouco.

- E o que é que vamos fazer entre as suas visitas?

A enfermeira pareceu reflectir sobre o assunto. - Acho que podem ver televisão, se quiserem. O controlo remoto está na mesa-de-cabeceira.

- A minha mulher está em trabalho de parto. Não me parece que queira ver televisão.

- Então, não vejam - contrapôs a enfermeira. - Mas, como eu disse, podem ter de passar aqui algum tempo. Uma vez, tive uma mulher em trabalho de parto durante quase trinta horas.

Jeremy empalideceu, tal como Lexie. Trinta horas? Antes que pudessem reflectir sobre o assunto, começou outra contracção e a atenção dele foi desviada não só pelo desconforto aparente de Lexie, mas também pela dor provocada pelas unhas dela na palma da sua mão.

Ligaram a televisão cerca de uma hora mais tarde.

Parecia-lhes errado, mas não conseguiam pensar no que fazer no intervalo entre as contracções, que continuava a ser de oito minutos. Jeremy foi repentinamente assaltado pela suspeita de que a filha iria escolher a altura que mais lhe conviesse. Ainda não tinha nascido e já começava a dominar a arte de chegar atrasada. Mesmo que ainda não tivesse sido informado, naquele momento teria a certeza de que a mulher ia dar à luz uma rapariga.

Lexie estava bem. Ele teve a certeza, até porque, depois de perguntar, levou um murro num braço.

Doris apareceu cerca de uma hora depois, vestida com o seu traje de domingo, que parecia mais que apropriado para aquele dia especial. Olhando para trás, sentia-se satisfeito por ter tomado duche. Como não se registava qualquer aceleração das contracções, continuavam a dispor de muito tempo.

A avó pareceu encher o quarto, a agitar os braços como se voasse para a cama. Tivera uma filha, afirmava, por isso sabia exactamente o que os esperava; e, além disso, Jeremy verificou que Lexie ficara contente com a chegada da avó. Não levou nenhum murro quando perguntou se ela se sentia bem. A neta limitou-se a responder à pergunta.

O que, tinha de admiti-lo, o deixou algo aborrecido. Na realidade, desagradava-lhe a própria ideia de ter Doris a cirandar por ali. Sentia que estava a ser mesquinho, pois ela criara Lexie e queria estar presente naquele dia especial, mas também pensava que a situação era para ser vivida pelo casal. Mais tarde, haveria muito tempo para as manifestações familiares, para os sentimentos filiais e as frivolidades. Contudo, ao sentar-se numa cadeira ao canto do quarto, nem sequer pensou em dizer uma palavra sobre o que sentia. Era uma daquelas, situações em que o mais delicado gesto diplomático poderia parecer uma ofensa.

Passou os três quartos de hora seguintes com um ouvido na conversa das duas mulheres e os olhos postos no televisor, a ver o programa Good Morning America. Boa parte deste era dedicado à luta eleitoral entre Al Gore e George W. Bush, pelo que Jeremy desligava da conversa sempre que algum deles abria a boca para falar. Mas ver o programa era mais fácil do que ouvir até que ponto, depois de Lexie o ter acordado naquela manhã, ele se tinha revelado egoísta.

- Encontraste-o a cortar as unhas? - indagava Doris, contemplando-o com horror fingido.

- Estavam a ficar um pouco compridas - confessou.

- Para depois conduzir como um louco - acrescentou Lexie. com uma chiadeira de pneus.

Doris abanou a cabeça, desapontada.

Jeremy procurou defender-se. - Pensei que a bebé estava para nascer. Como é que eu poderia saber que tínhamos tempo de sobra?

- Pois bem, ouçam - interrompeu Doris. - Já passei por esta situação, por isso parei no supermercado e comprei umas revistas. Coisas sem pés nem cabeça, mas ajudam a passar o tempo.

- Obrigada, Doris - agradeceu Lexie. - Sinto-me contente por estares aqui.

- Também eu. Há muito que espero este momento. Lexie sorriu.

- vou até lá abaixo para beber um café, está bem? - prosseguiu Doris. - Não se importam?

- Não, estás à vontade.

- Jeremy, queres que te traga alguma coisa?

- Não, estou bem - assegurou, a tentar esquecer os protestos do estômago. Se Lexie não podia comer, ele também não comeria. Parecia-lhe ser a atitude mais correcta.

- Não me demoro - gorjeou Doris. No caminho para a porta tocou no ombro de Jeremy e inclinou-se para ele. - Não te preocupes com o que sucedeu esta manhã. O meu marido fez o mesmo. Encontrei-o a arrumar o escritório. É normal.

Jeremy assentiu.

O intervalo entre as contracções encurtou. Primeiro, para sete minutos, depois para seis. Uma hora mais tarde, parecia ter estabilizado de novo nos cinco minutos. Joanie e íris, outra enfermeira, pareciam alternar as visitas ao quarto.

Doris continuava ausente e Jeremy deu consigo a perguntar se ela conseguira ler-lhe na mente o desejo de estar só com a mulher. O televisor continuava ligado, embora ninguém lhe prestasse grande atenção. com as contracções cada vez mais frequentes, Jeremy não deixava de refrescar a testa de Lexie e de lhe dar cubos de gelo. A mulher ainda não mostrara desejos de caminhar; parecia ter os olhos colados ao monitor, onde continuava a seguir o ritmo cardíaco da filha.

- Estás com medo? - acabou por perguntar.

Jeremy viu-lhe o rosto preocupado. com a aproximação do momento, os temores não o surpreendiam.

- Não - mentiu -, na verdade não estou. Ainda não passaram duas semanas desde a última ecografia e na altura a bebé estava óptima. Se a banda tivesse de ligar-se, penso que isso já teria acontecido nessa altura. E, mesmo que acabasse por ligar-se, o médico afirmou que estava demasiado afastada, pelo que qualquer problema seria pouco grave.

- Mas e se à última hora se enrola no cordão umbilical? E se interrompe a circulação sanguínea?

- Não vai acontecer - assegurou-lhe Jeremy. - Estou convencido de que vai tudo correr bem. Se o médico estivesse preocupado, estou certo de que já te teria ligado a mais máquinas e convocado diversos colegas de outras especialidades.

Ela acenou que sim, alimentando a esperança de que o marido tivesse razão, embora não conseguisse convencer-se até ver resultados concretos. Até poder pegar na filha e verificar por si própria.

- Acho que lhe devemos dar um irmão ou uma irmã - propôs.

- Não desejo que seja filha única, como eu.

- bom, não te saíste mal.

- Eu sei, mas, mesmo assim, recordo-me de crescer a desejar ter o mesmo que a maioria das minhas amigas. Alguém com quem brincar num dia de chuva, alguém com quem conversar à mesa. Foste criado com cinco irmãos. Não achas que foi maravilhoso?

- Às vezes - admitiu Jeremy. - Mas houve alturas em que não achava a situação tão fantástica. Sendo o mais novo, era preterido em algumas situações, especialmente pela manhã. Costumava dizer às pessoas que ser o mais novo de seis significava muitos duches frios e limpar-me com toalhas molhadas.

Ela sorriu. - Mesmo assim, continuo a preferir mais do que um.

- Eu também. Mas, antes de mais, vamos pôr esta cá fora. Depois, veremos o que acontece.

- Podemos adoptar? - perguntou Lexie. - Quer dizer... bem, tu sabes...

- Se não conseguir engravidar-te outra vez? Lexie assentiu.

- Pois. Podemos adoptar. Já ouvi dizer que o processo é muito demorado.

- Nesse caso, talvez devêssemos iniciá-lo quanto antes.

- De momento, não julgo que estejas em condições de iniciar seja o que for.

- Pois não, estava apenas a pensar que podemos fazê-lo quando a bebé já tiver uns meses. Podemos continuar a tentar ter mais um filho pelo método normal, mas, se nada acontecer entretanto, poderemos ir em frente com a adopção. Não quero que tenham grande diferença de idade.

Jeremy voltou a refrescar-lhe a testa. - Tens pensado muito no assunto.

- Comecei a pensar nisso logo que soubemos da banda amniótica. Quando soube que havia uma possibilidade de perdermos a criança, apercebi-me do meu profundo desejo de ser mãe. E, aconteça o que acontecer, o desejo mantém-se.

- Não vai acontecer nada - tranquilizou Jeremy. - Mas compreendo o que sentes.

Ela pegou-lhe na mão e beijou-lhe os dedos. - Sabes que te adoro, não sabes?

- Sim, eu sei.

- E tu? Não me amas?

- O meu amor por ti é maior que o número de peixes que há no mar, é mais alto que a Lua.

Lexie olhou-o com curiosidade e viu-o encolher os ombros. - Era assim que a minha mãe costumava dizer quando éramos pequenos explicou Jeremy.

Ela voltou a beijar-lhe os dedos. - Vais dizer o mesmo à Claire?

- Todos os dias.

Doris regressou um pouco mais tarde e, com a passagem das horas, o intervalo de tempo entre as contracções foi diminuindo gradualmente. Cinco minutos, depois quatro e meio. Quando atingiram os quatro minutos voltaram a medir o colo do útero, uma visão que, segundo Jeremy, tinha muito pouco de agradável; contudo, depois de acabar, Joanie pôs-se de pé e olhou-os com ares de conhecedora.

- Julgo que chegou a hora de chamar o anestesista - concluiu.

- Já está com seis centímetros de dilatação.

Jeremy ficou a imaginar como é que a dilatação poderia ter sido medida, mas decidiu não ser aquela a melhor altura para pedir esclarecimentos.

- As contracções são mais intensas? - perguntou Joanie ao atirar a luva para o lixo.

Quando Lexie respondeu que sim, a enfermeira apontou para o monitor. - Até agora, a bebé está a portar-se bem. E não se preocupe, logo que fizer a epidural acabaram-se as dores.

- Óptimo - comentou Lexie.

- Se pretender prosseguir de forma natural, ainda está a tempo de mudar de ideias - sugeriu Joanie.

- Não quero mudar - decidiu Lexie. - Quanto tempo é que julga que ainda vai demorar?

- A previsão continua a ser difícil mas, se mantiver este ritmo, talvez seja durante a próxima hora, mais minuto menos minuto.

Jeremy sentiu o coração bater com mais força. Embora admitisse que fosse imaginação sua, pensou que o coração da filha fizera o mesmo. Procurou controlar a respiração.

O anestesista chegou momentos depois e Joanie pediu a Jeremy que saísse do quarto. Embora consentisse, ficou no corredor com Doris e considerou perfeitamente ridícula aquela noção de privacidade. Não fazia sentido encarar a epidural mais invasiva da privacidade do que a observação do colo do útero.

- A Lexie disse-me que voltaste a trabalhar - observou Doris.

- É verdade. De facto, na semana passada escrevi mais umas crónicas.

- Ainda não tens ideias para qualquer trabalho de fundo?

- Tenho algumas. Resta saber se poderei avançar com elas. com o nascimento da bebé, não sei se a Lexie apreciaria muito a minha ausência durante umas semanas. Contudo, tenho uma história que talvez consiga escrever a partir de casa. Nada de semelhante ao artigo sobre o Clausen, mas bastante forte.

- Parabéns. Fico contente por ti.

- Eu também - anuiu Jeremy, fazendo-a rir.

- Ouvi dizer que a menina vai chamar-se Claire.

- É verdade.

- Sempre adorei esse nome - confessou Doris, a falar com voz calma. No silêncio que se seguiu, Jeremy sabia que ela estava a recordar a filha. - Devias tê-la visto quando nasceu. Trazia muitocabelo, a cabeleira mais negra que eu alguma vez vira, e berrava com força. Soube desde logo que tinha de lhe dar rédea curta. Uma coisinha bravia, mesmo quando era muito pequena.

- Era bravia? - indagou Jeremy. - Das conversas com a Lexie fiquei com a impressão de que era uma perfeita bela do Sul.

Doris riu-se. - Estás a brincar? Era uma boa menina, isso posso garantir-te, mas gostava mesmo de ir até aos limites. Quando andava na terceira classe, mandaram-na para casa porque, durante o recreio, tinha beijado todos os rapazes da escola. Até conseguiu pôr alguns deles a chorar. Por isso, meteu-se num sarilho. Ficou de castigo durante o resto do dia, obrigámo-la a limpar o quarto e teve de ouvir das boas; explicámos-lhe que aquele não fora um comportamento apropriado. Depois de tudo, no dia seguinte foi para a escola e fez o mesmo. Quando fomos buscá-la, tínhamos esgotado a paciência, mas ela limitou-se a afirmar que gostava de beijar os rapazes, mesmo que em seguida fosse castigada.

Jeremy soltou uma gargalhada. - A Lexie sabe disso?

- Não tenho a certeza. Nem sei por que fui lembrar-me disto neste momento. Mas ter filhos muda a nossa vida mais do que qualquer outra coisa. Terá sido a mais difícil, mas também a melhor coisa que poderiam ter feito.

- Estou ansioso - confessou Jeremy. - Estou pronto.

- Estás mesmo? Posso pegar-te na mão enquanto dizes isso? Da última vez em que ela o fizera, Jeremy ficou com a estranha

sensação de que Doris lhe lera o pensamento. Mesmo sem acreditar que isso tivesse realmente acontecido, porque... bem, apenas por não ser possível.

- Não, por acaso não pode - replicou.

Doris sorriu. - Estar um pouco nervoso não tem nada de mal. O medo também é normal. Trata-se de uma grande responsabilidade. Mas vais sair-te muito bem.

Jeremy concordou, a pensar que, dentro de menos de quarenta minutos, poderia ter a certeza.

Realizada a epidural, Lexie deixara de sentir dores e tinha de olhar para o monitor para se aperceber de que estava a ter uma contracção. Passados mais vinte minutos, o colo do útero tinha dilatado oito centímetros. Quando a dilatação atingisse os dez centímetros, teria início o parto. O batimento cardíaco da criança continuava perfeitamente normal.

Sem dores, a disposição dela melhorou consideravelmente.

- Sinto-me bem - afirmou, dando a impressão de cantar a última palavra.

- Pareces alguém que bebeu um par de cervejas.

- Também acho - concordou Lexie. - Agora sinto-me muito melhor. Fiquei a apreciar a epidural. Como é que alguma mulher pode querer fazer isto pelo método natural? As dores do parto magoam.

- Já ouvi dizer. Precisas de mais cubos de gelo?

- Não. Agora sinto-me óptima.

- Até estás com melhor aspecto.

- Tu também não me pareces nada mal.

- bom, tomei duche esta manhã.

- Como se eu não soubesse - exclamou ela, novamente a cantar a última palavra. - Não posso crer que o tenhas feito.

- Quis ficar bem nas fotografias.

- vou contar a todos os meus amigos.

- Limita-te a mostrar-lhes as fotografias.

- Não, estou a falar do teu ripanço, enquanto eu estava à espera, a lutar contra a angústia.

- Estavas ao telefone com a Doris, não te sentias dilacerada pelas dores.

- Sentia-me dilacerada por dentro - replicou Lexie. - Sou forte, consigo esconder as dores.

- Além de seres bonita, não te esqueças.

- Pois, isso também - anuiu, pegando na mão dele. - És um homem de sorte.

- Pois sou - concordou Jeremy pegando também na mão dela.

- Amo-te.

- Também te amo.

Chegara a altura.

As enfermeiras entregaram-se a uma azáfama de preparativos na sala de partos. Apareceu o obstetra, que repetiu o exame do colo do útero já feito pelas enfermeiras. Depois, sentado num banco alto com rodas, inclinou-se para a frente e explicou o que iria acontecer. Como lhe pediria que fizesse força no início de cada contracção, como teria de proceder a dois ou três puxões para fazer sair a bebé e que, no intervalo entre as contracções, ela deveria descansar e conservar as forças. Lexie e Jeremy estavam suspensos das palavras dele.

- Ora bem, há ainda o problema da banda amniótica - prosseguiu o médico. - O batimento cardíaco tem-se mantido em bom ritmo e não espero nada de anormal durante o parto. Não penso que a banda se tenha ligado ao cordão umbilical e a bebé não parece correr qualquer perigo. Contudo, até ao último momento, existe a possibilidade de a ligação acontecer e, nessa altura, a única coisa a fazer é tirar a bebé o mais rapidamente possível; estou preparado para isso. Teremos uma pediatra na sala e ela examinará a criança, à procura de marcas da síndrome da banda amniótica; no entanto, afirmo uma vez mais que estamos com sorte.

Lexie e Jeremy acenaram que sim, mostrando-se ambos nervosos.

- Vai tudo correr muito bem - garantiu o obstetra. - Só tem de fazer o que eu mandar e, dentro de alguns minutos, serão pai e mãe.

Lexie respirou fundo. - Muito bem - assentiu, procurando a mão do marido.

- E eu, vou para onde? - indagou ele.

- Fique aí mesmo, está muito bem.

Enquanto o obstetra acabava os seus preparativos, entrou outra enfermeira acompanhada da pediatra, que se apresentou como Dr. a Ryan. Um carrinho com instrumentos cirúrgicos esterilizados foi empurrado para junto da mesa e destapado. O médico parecia completamente à vontade; a Dr. a Ryan mantinha uma conversa animada com a enfermeira.

Quando começou a contracção seguinte o médico pediu que Lexie encolhesse as pernas e fizesse força. Ela mostrou uma careta de esforço e ele verificou uma vez mais o batimento cardíaco da criança. Lexie contraiu-se, apertando a mão do marido com quanta força tinha.

- Isso mesmo, bom - elogiou o pediatra ao mudar de posição. Instalou-se confortavelmente no banco alto com rodas. - Agora descanse durante um minuto. Respire normalmente para tentarmos outra vez. Se puder, empurre com um pouco mais de força.

Lexie acenou que sim. Jeremy duvidava da possibilidade de ela fazer mais força, mas ela parecia óptima e começou a empurrar de novo.

O obstetra mantinha-se concentrado. - bom, bom - encorajou.

- Continue.

E Lexie continuou a empurrar; Jeremy sentiu a dor na mão. A contracção terminou.

- Descanse outra vez. Está a ir muito bem - continuou o médico. Ela respirou normalmente e Jeremy limpou-lhe a transpiração da

testa. Quando a contracção seguinte começou, Lexie repetiu uma vez mais o processo. Tinha os olhos fechados, os dentes cerrados, as faces vermelhas devido ao esforço. As enfermeiras estavam prontas. Jeremy continuava a segurar a mão da mulher, espantado com a velocidade com que o processo agora se desenrolava.

- bom, bom - encorajou novamente o obstetra. - Só mais um esforço e chegamos lá...

Depois foi a confusão total e Jeremy não sabia explicar o que tinha acontecido. Mais tarde, verificou que só se lembrava de factos soltos e às vezes sentia que a culpa fora dele. A sua última recordação nítida era a visão de Lexie a levantar as pernas logo que a contracção seguinte começou. Tinha o rosto brilhante de transpiração e a respiração pesada, enquanto o médico lhe pedia um último esforço, que empurrasse com toda a força que conseguisse reunir. Julgou vê-la sorrir.

E depois? Não tinha certezas, pois concentrara a atenção nas pernas da mulher, nos movimentos rápidos e ágeis do médico. Embora se considerasse um homem instruído e mundano, foi subitamente assaltado pela ideia de que aquela era a primeira vez, e provavelmente seria a única, em que podia assistir ao nascimento de um filho seu; a sala pareceu encolher. De repente, mal se apercebia de que Doris ainda se encontrava na sala; mas ouvia Lexie gemer e viu Claire começar a aparecer. Primeiro a cabeça e em seguida, graças a um movimento rápido das mãos do obstetra, os ombros foram libertados, seguidos quase imediatamente do resto do corpo. Jeremy tornara-se pai de um instante para o outro, a olhar, espantado, para a nova vida que tinha diante de si.

Coberta pelo fluido amniótico e ainda ligada à mãe pelo cordão umbilical, Claire era uma massa escorregadia de cinzento, vermelho e castanho, que parecia lutar por um pouco de ar; a Dr. a Ryan não perdeu tempo, colocou-a sobre uma mesa, inseriu-lhe um tubo de sucção na boca e desobstruiu-lhe a garganta. Só então se ouviu o choro de Claire. A pediatra começou a examiná-la. Do ponto onde estava, Jeremy não conseguia ver se a filha estava bem. O mundo ainda parecia querer fechar-se sobre ele. Ouviu, vagamente, Lexie ofegar.

- Não vejo quaisquer sinais de ligação da banda amniótica afirmou a Dr. a Ryan. - Tem os dedos todos, das mãos e dos pés, é uma coisinha linda. Tem boa cor e está a respirar bem. Um oito, no índice de Apgar.

Claire continuava a chorar e finalmente Jeremy voltou-se para a mulher. A partir daquele ponto, tudo sucedeu com uma tal rapidez que não lhe deu tempo para compreender muito bem.

- Ouviste aquilo? - perguntou.

Foi só então, ao olhá-la, que ouviu o som contínuo do monitor que estava por detrás dela. Lexie tinha os olhos fechados e a cabeça na almofada, como se estivesse a dormir.

O seu primeiro pensamento foi de estranheza por ela não estar de pescoço esticado a tentar ver a filha. Então, o obstetra levantou-se do banco com tal rapidez que o atirou contra a parede do fundo. A enfermeira emitiu uma instrução qualquer e, em seguida, gritou para a colega, a ordenar-lhe que levasse Jeremy e Doris para fora da sala imediatamente.

Jeremy sentiu uma súbita contracção no peito. - O que é que se passa? - gritou.

A enfermeira agarrou-o por um braço e começou a arrastá-lo para fora da sala.

- O que é que se passa? O que é que está a acontecer com ela? Espere...

- Por favor! - bradou a enfermeira. - Tem de sair imediatamente!

De olhos esbugalhados pelo medo, não conseguia deixar de olhar para a mulher. E com Doris sucedia o mesmo. Como se a voz viesse de muito longe, ouviu a enfermeira pedir a ajuda do pessoal auxiliar. O médico estava agora debruçado sobre Lexie, a pressionar-lhe o peito...

Parecia em pânico. O pânico apoderara-se de todos.

- Nãããooo! - gritou Jeremy, a tentar libertar-se da enfermeira.

- Levem-no daqui - berrou o obstetra.

Jeremy sentiu-se agarrado por um braço. Estava a ser arrastado para fora da sala. Aquilo não podia estar a acontecer! O que é que tinha corrido mal? Por que é que ela não se mexia? Ela vai pôr-se boa, se Deus quiser. Não podia estar a acontecer. Acorda, Lexie... oh, meu Deus, por favor, acorda...

- O que é que se passa? - gritou de novo. Estava a ser levado pelo corredor, mal ouvindo as vozes que lhe pediam calma. Viu, pelo canto do olho, uma maca a ser empurrada corredor fora por dois auxiliares que desapareceram no interior da sala.

Estava a ser encostado contra a parede por outros dois auxiliares. Sentia falta de ar, o corpo tenso e frio como um fio de aço. Ouvia os soluços de Doris mas mal conseguia compreender o som. Encontrava-se rodeado de pessoas agitadas mas simultaneamente sentia-se só, verdadeiramente aterrorizado. Um minuto depois, Lexie foi retirada da sala numa maca. O médico continuava debruçado sobre ela, a tentar reanimá-la. A cara ia coberta por um ventilador.

Depois, de súbito, o tempo pareceu abrandar. Sentiu o corpo flácido logo que Lexie desapareceu para lá das portas de vaivém do fundo do corredor. De repente, sentiu-se fraco, mal se aguentava nas pernas. Estava tonto.

- O que é que se passa? - voltou a indagar. - Para onde é que a levam? Por que não se mexe?

Nem os auxiliares nem a enfermeira conseguiram olhá-lo de frente.

Juntamente com Doris, foi levado para uma divisão especial. Não era uma sala de espera, nem um quarto de hospital, era algo de diferente. Havia cadeiras forradas de vinil azul encostadas às duas paredes da sala alcatifada. Uma mesa baixa encontrava-se coberta de revistas, uma confusão de cores berrantes iluminada pela luz fria das lâmpadas fluorescentes. Na parede do fundo via-se um crucifixo. Uma sala vazia, só para eles os dois.

Doris sentou-se, pálida e trémula, sem parecer reparar onde estava. Jeremy sentou-se ao lado dela, depois levantou-se e andou pela sala, para logo voltar a sentar-se. Perguntou-lhe o que tinha acontecido, mas ela não sabia mais do que ele. Doris escondeu o rosto nas mãos e começou a soluçar.

Jeremy não conseguia engolir. Não conseguia pensar. Tentava recordar-se do sucedido, juntar todos os fragmentos de memória, mas não conseguia concentrar-se. O tempo andava mais devagar.

Segundos, minutos, horas... Não sabia quanto tempo tinha passado, não sabia o que estava a acontecer, não sabia se a mulher estava bem, não sabia o que fazer. Tinha vontade de desatar a correr pelo corredor, de ir à procura das respostas. Mais do que isso, precisava de ver Lexie para saber se ela estava bem. Doris continuava a chorar ao lado dele, de mãos trémulas, juntas, numa prece desesperada.

Pormenor estranho: nunca deixaria de se recordar de tudo acerca da sala de espera mas, por mais que tentasse, não conseguia recordar a cara da assistente social que veio ter com ele e até o obstetra parecia não ser o mesmo que estivera na sala de partos, nem o mesmo que os atendera nas consultas anteriores. Tudo o que verdadeiramente recordava era o terror gélido que subitamente sentira quando eles apareceram. Pôs-se de pé, tal como Doris, e, embora pensasse que pretendia respostas, de súbito, preferia que aquelas pessoas não tivessem nada para lhe dizer. Doris agarrou-se-lhe a um braço, como se esperasse que ele fosse suficientemente forte para suportar os dois.

- Como é que ela está? - indagou Jeremy.

O médico parecia exausto. - Lamento ter de lhe dizer isto começou -, mas penso que a sua mulher sofreu aquilo a que chamamos embolia do fluido amniótico...

Jeremy sentiu-se novamente tonto. A tentar recuperar o equilíbrio, reparou nos espirros de sangue e fluido amniótico que tinham sujado a bata do obstetra durante o parto. Quando ele prosseguiu, as palavras pareciam estar a ser ditas a uma grande distância.

- Pensamos que a embolia não teve nada a ver com a banda amniótica... duas ocorrências perfeitamente distintas... Não que saibamos como, mas o fluido amniótico deve ter penetrado num vaso sanguíneo do útero. Não tínhamos maneira de prever tal coisa... Nada poderíamos ter feito...

As paredes da sala fecharam-se à volta de Jeremy e Doris encostou-se a ele, e murmurou com voz rouca: - Oh... não. Não... não...

Jeremy inteiriçou-se para conseguir respirar. Entorpecido, ouviu o obstetra prosseguir.

- É muito raro, mas, fosse como fosse, uma vez na circulação sanguínea, o fluido atingiu-lhe o coração. Lamento, mas a sua mulher não resistiu. Contudo, a criança está óptima...

Doris cambaleou mas Jeremy conseguiu segurá-la. Não sabia muito bem como. Nada daquilo fazia sentido. Lexie não podia ter morrido. Estava óptima. Era saudável. Tinham estado a falar uns minutos antes. Dera à luz uma filha. Tinha colaborado.

Aquilo não podia estar a acontecer. Não podia ser verdade.

Mas era.

Enquanto tentava prosseguir com a explicação, o próprio médico parecia em estado de choque. Jeremy, de cabeça vazia e nauseado, via-o através de uma cortina de lágrimas.

- Posso vê-la? - perguntou com voz rouca, subitamente.

- Está no berçário, num berço aquecido - explicou o médico, como que a sentir-se satisfeito por finalmente lhe fazerem uma pergunta para a qual tinha resposta. Era um bom homem e o que acontecera também era difícil para ele. - Como lhe disse, está óptima.

- Não - esclareceu Jeremy com voz estrangulada. Lutou para encontrar as palavras. - A minha mulher. Posso ver a minha mulher?

 

Jeremy sentia-se dormente ao percorrer o corredor. O médico seguia um pouco atrás dele, em silêncio.

Não queria acreditar, não conseguia forçar-se a entender as palavras do obstetra. Pensou que o homem estava enganado; não era verdade que Lexie tivesse morrido. Enquanto o médico estava a falar, alguém notara qualquer coisa, actividade cerebral ou um leve batimento cardíaco, o que desencadeara toda aquela actividade. De momento, estavam a tratá-la e ela estava a melhorar. Seria um caso nunca visto, uma espécie de milagre, mas Jeremy sabia que ela ia resistir. Era jovem e forte. Acabava de fazer trinta e dois anos, era impossível que tivesse morrido. Não poderia estar morta.

O médico parou à porta de uma sala próxima da unidade de cuidados intensivos. Pensando que poderia estar a viver um sonho, Jeremy sentiu um baque no coração.

- Mandei trazê-la para aqui, para que disponha de alguma privacidade - informou o médico. Tinha o desgosto estampado na cara ao colocar a mão no ombro de Jeremy. - Fique o tempo que quiser. Lamento muito.

Jeremy ignorou as palavras dele. Agarrou o puxador da porta com uma mão trémula. A porta pesava uma tonelada, dez, cem toneladas, mas acabou por conseguir abri-la. Os olhos foram atraídos pela figura deitada na cama. Jazia imóvel, sem estar ligada a qualquer equipamento, sem monitores, sem a agulha de soro. Lembrava-se de a ter visto assim, logo pela manhã, mais de uma centena de vezes. Encontrava-se a dormir, com os cabelos derramados sobre a almofada... mas, pormenor estranho, os braços estavam estendidos ao longo do corpo. Direitos, como se tivessem sido postos naquela posição por alguém que não a conhecesse.

Sentiu um aperto na garganta, parecia olhar através de um túnel, via tudo negro, excepto ela. Era só o que conseguia ver, mas não queria vê-la assim. Não naquela posição. Não com os braços assim estendidos. Tinha de estar bem, só tinha trinta e dois anos. Era jovem e forte, uma lutadora. Amava-o. Era a luz da vida dele.

Contudo, aqueles braços... os braços não estavam bem... deviam ter sido dobrados pelos cotovelos, com uma mão colocada sobre a cabeça ou em cima da barriga...

Respirava com dificuldade.

A mulher dele tinha morrido...

A sua mulher.

Não era um sonho. Agora sabia-o e deixou as lágrimas correrem livremente, convencido de que jamais parariam.

Algum tempo depois, Doris veio também despedir-se e Jeremy deixou-a sozinha com a neta. Percorreu o corredor em transe, e reparou muito vagamente nas enfermeiras que passaram por ele e no voluntário que empurrava um carrinho. Pareceram ignorá-lo por completo e Jeremy não saberia dizer se evitavam o olhar dele por saberem o que tinha acabado de acontecer, ou por não saberem.

A sentir-se vazio e fraco, regressou à sala onde se encontrara com o médico obstetra. Já não conseguia chorar. As lágrimas tinham secado e até para chorar lhe faltava energia. Tinha de conservar a que restava, só para não cair. Reviu vezes sem conta as imagens da sala de partos, tentou perceber o momento exacto em que a embolia ocorrera, a pensar que deveria ter visto qualquer coisa que o avisasse do que estava para acontecer. Teria sido quando ela ofegou? Ocorrera um pouco mais tarde? Não conseguia afastar o sentimento de culpa, como se devesse tê-la convencido a aceitar a cesariana ou, pelo menos, a não se esforçar tanto, como se os esforços de Lexie tivessem provocado a embolia. Estava zangado consigo próprio, zangado com Deus, zangado com o obstetra. E estava também zangado com a filha.

Nem queria ver a bebé, pois acreditava que, de certo modo, no acto de nascer, ela tinha trocado uma vida por outra. Se não fosse a filha, Lexie continuaria com ele. Se não fosse a bebé o stress teria estado ausente dos últimos meses que passaram juntos. Se não fosse a bebé, teria podido fazer amor com a sua mulher. Porém, agora estava tudo acabado. A filha apoderara-se de tudo. Por causa dela, a sua mulher estava morta. E Jeremy sentia-se igualmente morto.

Como poderia vir a amar a filha? Como poderia alguma vez perdoar-lhe? Como poderia olhá-la e pegar-lhe, sem se recordar que a filha tinha trocado a vida de Lexie pela sua própria vida? Como se poderia sugerir que não a odiasse pelo que ela tinha feito à mulher que ele adorava?

Reconheceu a irracionalidade daqueles sentimentos e o seu carácter pérfido, maligno. Estava errado, ia contra tudo o que se esperava que um pai sentisse em relação aos filhos, mas como poderia ele silenciar o seu coração? Como poderia despedir-se de Lexie num momento e louvar a vida da filha no minuto seguinte? E como deveria agir? Deveria acolhê-la nos braços e arrulhar-lhe palavras de amor, como outros pais fariam? Como se nada tivesse acontecido a Lexie?

E depois? Depois de ela sair da maternidade, quando fosse para casa? De momento, nem conseguia imaginar-se a ter de cuidar de alguém; o máximo que conseguia fazer era manter-se de pé, sem se enroscar de imediato a um canto. Não sabia fosse o que fosse sobre bebés, só tinha a certeza de que deveriam estar junto das mães. Lexie é que lera os livros todos; era ela quem deveria tratar da bebé. Durante todo o tempo da gravidez de Lexie tinha-se sentido bem com a sua própria ignorância, sabia que a mulher o ensinaria a fazer o necessário. No entanto, a filha concebera outros planos...

A bebé que matara a sua mulher.

Em vez de se dirigir ao berçário, deixou-se cair novamente numa das cadeiras da sala de espera. Não queria alimentar tais sentimentos acerca da bebé, sabia que não devia sentir-se assim, mas... Lexie tinha morrido ao dar à luz. No mundo actual, num hospital, não podia ser. Onde estavam as curas miraculosas? Os momentos que faziam a felicidade das televisões? Onde é que, Deus nos valha, estava qualquer semelhança com a realidade? Fechou os olhos e tentou convencer-se de que, se o desejasse com força suficiente, podia acordar daquele pesadelo em que a sua vida se transformara de um momento para o outro.

Doris veio ter com ele. Não a ouvira entrar na sala mas abriu os olhos mal ela lhe tocou no ombro; viu diante de si uma cara devastada pelo pranto. Tal como Jeremy, parecia prestes a desconjuntar-se.

- Já informaste os teus pais? - perguntou Doris, com voz rouca.

Jeremy negou com um aceno de cabeça. - Não consigo. Sei que o devia fazer mas neste momento não consigo.

Os ombros dela começaram a tremer: - Oh, Jeremy! - soluçou.

Jeremy pôs-se de pé e abraçou-a. Choraram juntos, bem abraçados, como se tentassem proteger-se mutuamente. Passado algum tempo, Doris separou-se dele e limpou as lágrimas.

- Já viste a Claire? - sussurrou.

O nome provocou o regresso de todos os sentimentos.

- Não. Só a vi na sala de partos. Doris esboçou um sorriso triste, que lhe esgotou toda a força que

restava. - É exactamente como a Lexie.

Jeremy virou-lhe as costas. Não queria ouvir nada daquilo, não queria ouvir falar da bebé. Deveria mostrar-se feliz? Alguma vez voltaria a ser feliz?

Não imaginava uma vida feliz. Aquele que deveria ter sido o dia mais feliz da sua vida tornara-se, num instante, o pior; e nada na sua vida anterior o preparara para aquele choque. E agora? Não só devia ultrapassar o inimaginável, ainda lhe propunham que tomasse conta de alguém? Da criança que lhe matara a mulher?

Doris quebrou o silêncio: - É linda. Devias ir vê-la.

- Eu... acho... não consigo - tartamudeou Jeremy. - Ainda não. Não quero vê-la.

Sentiu-se observado por Doris, como se tentasse percebê-lo, apesar da dor que ela própria sentia. Repreendeu-o: - É tua filha.

- Eu sei - respondeu Jeremy, mas apenas conseguia sentir a raiva surda a pulsar-lhe debaixo da pele.

- A Lexie gostaria que tomasses conta dela - prosseguiu Doris ao pegar-lhe na mão. - Se não és capaz de fazer isso por ti, então fá-lo pela tua mulher. Ela gostaria que fosses ver a tua filha, que lhe pegasses ao colo. Pois, sei que é difícil, mas não podes negar-te. Não podes recusar isso à Lexie, nem a mim, nem à Claire. Anda, vem comigo.

Jeremy nunca conseguiria saber como é que Doris conseguiu arranjar força e autodomínio para o arrastar com ela mas, logo que se calou, agarrou-o por um braço e arrastou-o pelo corredor até ao berçário. Seguiu-a automaticamente, mas, a cada passada, sentia a angústia a aumentar. Assustava-se com a ideia de ir conhecer a filha. Embora soubesse que a cólera contra a criança era um erro, receava que, chegado o momento, não pudesse mostrar a mesma cólera, o que seria outro erro, como se estivesse a perdoar-lhe aquilo que tinha feito a Lexie. Só tinha uma certeza: não estava preparado para enfrentar qualquer das possibilidades.

Mas Doris não era pessoa para desistir. Obrigou-o a passar por uma série de portas de vaivém. Nos quartos por onde iam passando, de um lado e do outro, viam-se mulheres grávidas e mães recentes, todas rodeadas pelas famílias. O hospital zumbia de actividade.

Passou pela sala onde ocorrera a embolia e para não cair teve de se amparar à parede.

Passaram o posto das enfermeiras e viraram uma esquina, a caminho do berçário. O pavimento salpicado de cinzento desorientava-o, sentia-se tonto. Gostaria de libertar-se da mão de Doris e fugir; queria ir telefonar à mãe, contar-lhe o que tinha acontecido. Queria chorar agarrado ao telefone, ter uma desculpa para não estar ali, ser libertado daquele dever...

Mais à frente, havia um grupo de pessoas a espreitarem pela janela do berçário. Apontavam e sorriam, ele ouvia-as murmurar: "Tem o teu nariz" ou "Acho que tem olhos azuis". Não conhecia aquelas pessoas mas, subitamente, odiou-as, pois estavam a experimentar uma alegria e uma excitação que deveriam ser suas. Não podia imaginar-se junto delas, não podia imaginar que lhe perguntassem qual o bebé que desejava ver, ouvir os inevitáveis elogios à doçura e à beleza da filha. Atrás deles, dirigindo-se para a administração, a tratar da sua vida como se aquele fosse um dia igual a qualquer outro, viu a enfermeira que estava na sala quando Lexie morreu.

Sentiu-se chocado com a presença dela e, como se soubesse o que ele estava a sentir, Doris apertou-lhe o braço e parou.

- É aqui que tens de ir - informou, a apontar para a porta.

- Não vem comigo?

- Não, fico aqui à tua espera.

- Por favor - implorou Jeremy -, venha comigo.

Doris negou-se. - Não, esta é uma das coisas que tens de fazer sozinho.

Jeremy fitou-a e pediu, num sussurro: - Por favor.

- Vais adorá-la - encorajou Doris, já com uma expressão menos grave. - Vais amá-la logo que a vires.

O amor à primeira vista será realmente possível?

Não conseguia encarar a possibilidade. Entrou no berçário com passos hesitantes. A expressão da enfermeira alterou-se logo que o viu; embora não tivesse estado na sala de partos, a história já era conhecida. Já se sabia que Lexie, uma mulher jovem e enérgica, tinha morrido subitamente, deixando para trás um marido em estado de choque e uma órfã recém-nascida. Ter-lhe-ia sido fácil mostrar-se simpática, ou até virar as costas, mas a enfermeira não tomou qualquer dessas atitudes. Em vez disso, forçou-se a sorrir e indicou um dos berços colocados junto da janela.

- A sua filha está do lado esquerdo - informou. Depois hesitou em continuar, o que foi suficiente para recordar a Jeremy que aquela não era uma cena normal. Lexie também deveria estar ali. Lexiea. Engoliu em seco. De súbito sentiu falta de ar. Vindo de algures, de muito longe, ouviu o murmúrio da enfermeira: - É muito bonita.

Jeremy caminhou automaticamente para o berço, simultaneamente a querer sair dali e a desejar vê-la. Parecia-lhe que estava a ver a cena pelos olhos de outra pessoa. Não era ele quem estava ali. Não era ele, em carne e osso. Aquela não era a sua filha.

Hesitou ao ver o nome Claire escrito na pulseira de plástico colocada à volta do tornozelo da bebé; sentiu novo aperto na garganta ao reparar também no nome de Lexie. Pestanejou para afastar as lágrimas e olhou para a filha. Por debaixo das lâmpadas de aquecimento, pequenina e vulnerável, de tez de um rosado saudável, estava embrulhada num cobertor e envergava uma touca. Reparou na pomada que lhe fora aplicada nos olhos e viu que a filha se entregava aos movimentos típicos de todos os recém-nascidos: os movimentos dos braços eram por vezes desajeitados, como se estivesse a esforçar-se muito para inspirar o ar, em vez de receber o oxigénio fornecido pela mãe. O peito da bebé subia e descia num ritmo elevado e Jeremy debruçou-se sobre ela, fascinado por aqueles movimentos que pareciam totalmente descontrolados. No entanto, mesmo recém-nascida, parecia-se com Lexie, na forma das orelhas, no queixo ligeiramente em bico. A enfermeira veio espreitar por cima do ombro dele.

- É uma bebé maravilhosa - contou. - Tem passado a maior parte do tempo a dormir mas, quando acorda, quase não chora.

Jeremy não falou. Não sentia nada.

- Amanhã deve poder levá-la para casa - prosseguiu a enfermeira. - Não houve quaisquer complicações e já consegue sugar. Por vezes, é um problema com estas crianças, mas ela aceitou bem o biberão. Olhe, repare, está a acordar.

- Óptimo - murmurou Jeremy, mal a ouvindo. Fitava a filha sem pestanejar.

A enfermeira pousou uma das mãos sobre o peito da criança. Olá, querida. O papá está aqui.

A criança agitou novamente os braços.

- O que significa isso?

- É normal - esclareceu a enfermeira ao ajustar o cobertor. Voltou a falar à bebé: - Olá, querida.

Jeremy notou que Doris o olhava do outro lado da janela do berçário.

- Não quer pegar-lhe?

Ele engoliu novamente em seco. Parecia-lhe tão frágil que podia partir-se com qualquer movimento. Não queria tocar-lhe, mas as palavras saíram antes que ele pudesse reprimi-las. - Posso?

- É claro que pode - replicou a enfermeira. Pegou em Claire, deixando-o espantado com a tranquila eficiência com que uma recém-nascida podia ser deslocada.

- Não sei como é que se faz... - sussurrou. - Nunca fiz isto.

- É fácil - respondeu a enfermeira com voz suave. Era mais velha que Jeremy mas mais nova que Doris. Deixou-o a pensar se ela própria teria filhos. - Sente-se na cadeira de balouço e eu ponho-a no seu colo. Só precisa de a segurar com uma das mãos nas costas e nunca lhe deixar cair a cabeça. E depois o mais importante de tudo, amá-la durante toda a vida.

Jeremy sentou-se, aterrorizado e a debater-se com a vontade de desatar a chorar. Não estava preparado para aquilo. Precisava de Lexie, precisava de ir velar a mulher, precisava de tempo. Reparou de novo no rosto de Doris, do outro lado do vidro; pensou vê-la sorrir, ainda que muito ligeiramente. A enfermeira aproximou-se, e pegou na bebé com a facilidade e o gosto de alguém que fizera mil vezes aquele gesto.

Jeremy estendeu as mãos e sentiu a leveza do corpo de Claire. Segundos depois, tinha-a aninhada entre os braços.

Naquele momento sentiu-se açoitado por mil emoções diferentes: a sensação de fracasso suportada na companhia de Maria, no consultório do médico, o choque e o horror que experimentara na sala de partos, o vazio sentido ao percorrer o corredor, a ansiedade vivida apenas um minuto antes.

Ali, nos seus braços, Claire olhava para ele, parecendo focar os olhos cinzentos no rosto do pai. Só conseguiu pensar que ela era tudo o que restava de Lexie. Claire era a filha de Lexie, nas feições e no espírito; Jeremy reteve a respiração. Imagens de Lexie irromperam-lhe pela mente: da Lexie que confiara o suficiente para ter um filho dele; da Lexie que casara com ele, embora reconhecesse que ele não era perfeito, mas sabendo ser ele o género de pai de que Claire precisava. Lexie sacrificara a vida para lhe dar aquela filha e, de súbito, foi assaltado pela certeza de que, se tivesse podido escolher, ela lhe daria mais filhos. Doris tivera razão: Lexie queria que ela amasse Claire tanto quanto ela a amaria e agora Lexie precisava que ele fosse forte. Claire precisava que ele fosse forte. Apesar das perturbações emocionais surgidas durante a última hora, ficou a olhar a filha com a súbita convicção de que aquela criança era a única razão da vinda dele a este mundo. Para amar os outros. Para velar por alguém, para ajudar outra pessoa, para suportar as dores de outra pessoa até ela ser suficientemente forte para continuar por si própria. Para velar por alguém incondicionalmente, pois, no fim, só isso dava significado à vida. E Lexie dera a vida, com a certeza de que Jeremy podia encarregar-se da tarefa.

E naquele instante, ao fitar a filha através de uma cortina de lágrimas, sentia-se cheio de amor e não desejava mais do que ficar abraçado a Claire para sempre.

 

Fevereiro de 2005

As pálpebras de Jeremy sacudiram-se quando o telefone começou a tocar. A casa ainda estava silenciosa, escondida por uma densa cortina de nevoeiro, e ele teve de fazer um esforço para se sentar na cama, ainda espantado pelo simples facto de ter dormido. Não dormira na noite anterior e, nas duas últimas semanas, apenas conseguira dormir umas horas em cada noite. Sentia os olhos inchados e inflamados, a cabeça a latejar, e sabia que devia parecer tão exausto quanto se sentia. O telefone tocou de novo; pegou no auscultador e carregou na tecla de recepção.

- Jeremy! - bradou o irmão -, o que é que se passa?

- Nada - grunhiu Jeremy.

- Estavas a dormir?

Olhou instintivamente para o relógio. - Só há vinte minutos. Nada que faça diferença.

- Não devia ter-te incomodado.

Ao ver o casaco e as chaves do carro em cima da cadeira, voltou a pensar no que decidira fazer naquela noite. Seria mais uma noite a dormir pouco e, de súbito, sentiu-se agradecido por aquela soneca inesperada.

- Não. Já não volto a adormecer. Ainda bem que telefonaste. Como é que estás? - perguntou, enquanto perscrutava o corredor, sempre à espera de ouvir Claire.

- Estou a telefonar porque vi a tua mensagem - confessou o irmão, a mostrar-se culpado. - A que me mandaste há uns dois dias. Parecias realmente fora de ti. Como se fosses um espectro ou algo assim.

- Desculpa. Passei a noite toda levantado.

- Outra vez?

- O que hei-de fazer? - ripostou Jeremy. - Acontece.

- Não achas que nos últimos tempos está a acontecer com demasiada frequência? Até a mamã está preocupada contigo. Acha que vais adoecer gravemente se continuares sem dormir.

- Estou óptimo - mentiu, enquanto se espreguiçava.

- Não pareces nada óptimo. Pareces é meio-morto.

- Mas estou com um excelente aspecto.

- Pois, acredito. Ouve, a mamã instruiu-me no sentido de te recomendar mais horas de sono e eu estou pronto a apoiar essa moção. Isto é, agora que te acordei, mete-te na cama outra vez.

Apesar de exausto, Jeremy não conseguiu conter o riso. - Não consigo. Pelo menos agora.

- Por que não?

- Não serviria de nada. Acabaria por passar a noite toda deitado.

- A noite toda, não.

- Sim - corrigiu Jeremy -, a noite toda. A insónia é isso. Notou que o irmão hesitava. - Continuo sem perceber - confessou, desnorteado. - Qual é o motivo que te impede de dormir?

Jeremy olhou pela janela. O céu estava impenetrável, o nevoeiro cinzento cobria tudo e começou a pensar em Lexie.

- Pesadelos - respondeu.

Os pesadelos haviam começado um mês antes, logo a seguir ao Natal, sem motivo aparente.

De início, aquele dia não trouxera nada de especial; Claire ajudara o pai a cozinhar ovos mexidos e sentara-se à mesa com ele para os comerem. Depois, Jeremy levara a filha à mercearia e deixara-a com Doris, para passarem juntas uma parte da tarde. Viu A Bela e o Monstro, um filme que já vira dezenas de vezes. Ao jantar comeram peru com macarrão e queijo; depois do banho dela, leram as mesmas histórias de todos os dias. Não estava febril nem triste quando foi para a cama; vinte minutos depois, quando o pai foi ver como estava, encontrou-a a dormir profundamente.

Contudo, logo depois da meia-noite, Claire acordou aos gritos.

Jeremy correu para o quarto dela, confortou-a e deixou-a chorar um pouco. Acalmou-se passado algum tempo, o pai tapou-a e deu-lhe um beijo na testa.

Uma hora depois, voltou a acordar aos gritos.

E repetiu.

Assim se passou a maior parte da noite mas, de manhã, Claire não parecia recordar-se do que acontecera. Jeremy, de olhos vidrados e exausto, apenas se sentia grato por a noite ter acabado. Porém, na noite seguinte, voltou a acontecer o mesmo. E na seguinte. E ainda na que se seguiu.

Passada uma semana, levou a filha ao médico e foi-lhe garantido que não havia qualquer problema de ordem física e que os pesadelos eram normais naquela idade, senão mesmo comuns. O médico dissera que passariam com o tempo.

Mas não passaram. A notar-se qualquer alteração, foi para pior. Se antes acordava duas ou três vezes, passara a acordar quatro ou cinco, como se um pesadelo a aguardasse em cada ciclo de sonhos; só parecia acalmar-se com as palavras amorosas que Jeremy lhe sussurrava ao ouvido enquanto a embalava. Tentou deitá-la na cama dele, bem como ir dormir na cama dela, a abraçá-la durante horas, enquanto ela dormia no colo dele. Tentou a música, acrescentou e removeu luzes nocturnas, mudou-lhe a dieta e passou a dar-lhe mais leite morno ao deitar. Telefonara à mãe, pedira a ajuda de Doris; quando passou uma noite em casa da bisavó também acordou aos gritos. Parecia não haver remédio.

Se a falta de descanso o tornava tenso e ansioso, Claire também se mostrava tensa e ansiosa. Havia mais acessos de mau génio do que era habitual, mais choros inesperados, mais impertinências. com quatro anos, a menina era incapaz de controlar as suas explosões temperamentais, mas, quando Jeremy começou a agir da mesma forma, não podia usar o argumento da imaturidade como desculpa. A exaustão deixava-o frustrado, sempre sobre brasas. Mas o que o fazia sentir-se verdadeiramente derrotado era a ansiedade. O medo de que houvesse algo de errado, de que, se a menina não voltasse a dormir com regularidade, pudesse acontecer uma tragédia. Ele conseguiria sobreviver, era capaz de tomar conta de si próprio, mas e Claire? Era responsável pela filha e, sem saber em quê, estava a falhar.

Recordou-se de como o pai ficara no dia em que o filho mais velho, David, sofrera um acidente de automóvel. Nessa noite, Jeremy, então com oito anos, encontrou o pai sentado na cadeira de repouso, a olhar vagamente para diante. Recordava-se de nem o ter reconhecido. Até lhe parecera mais baixo e, por momentos, pensou não ter percebido bem a explicação dos pais quando lhe tinham assegurado que David estava bem. Talvez o irmão tivesse morrido e os pais estivessem a esconder-lhe a verdade. Lembrava-se de, subitamente, ter experimentado uma súbita falta de ar e de que, quando ele estava prestes a chorar, o pai saíra daquela espécie de encantamento. Jeremy saltou para o colo do pai, queria sentir o arranhar da barba dele. Quando lhe perguntou pelo irmão, o pai acenou com a cabeça.

- Vai ficar bom - garantiu -, mas isso não significa que não estejamos preocupados. Um pai preocupa-se sempre.

- O pai preocupa-se comigo?

O pai puxou-o mais para si. - Preocupo-me com todos, sempre. As preocupações não têm fim. Pensamos que terminarão um dia, que quando os filhos chegarem a uma certa idade podemos deixar de ter cuidados. Mas não é verdade.

Jeremy recordava aquele episódio com o pai enquanto espreitava a filha, ardendo com o desejo de a abraçar, se mais não fosse para manter os pesadelos afastados. Estava deitada havia uma hora, mas ele sabia que era apenas uma questão de tempo, que voltaria a acordar aos gritos. Ficou a observar o suave sobe e desce do peito da filha.

Como sempre, começou a pensar nos pesadelos, a tentar imaginar quais as imagens que a mente da filha procurava invocar. Como é próprio das crianças, Claire estava a desenvolver-se a um ritmo extraordinário, a dominar a linguagem e a comunicação não verbal, a aumentar os níveis de coordenação e a testar os limites de comportamento, aprendendo as regras da vida em sociedade. Embora Claire não dispusesse de suficiente entendimento da vida para se sentir obcecada com os medos que mantinham os adultos acordados durante a noite, o pai partia do princípio de que os pesadelos se deviam a uma imaginação superactiva ou a uma tentativa de perceber as complexidades do mundo. Mas de que forma se manifestaria isso nos sonhos da filha? Veria monstros? Seria perseguida por algo assustador? Não sabia, nem podia avançar qualquer hipótese. A mente das crianças era um mistério.

No entanto, por vezes perguntava-se se teria cometido algum erro. Ter-se-ia Claire apercebido de que não era como as outras crianças? Ter-se-ia apercebido de que quando iam para o parque ele era muitas vezes o único pai presente? Interrogar-se-ia sobre as razões por que toda a gente parecia ter uma mãe, que ela não tinha? Sabia que não era culpado daquela situação. Como se recordava frequentemente, a situação resultara de uma tragédia de que ninguém fora culpado; um dia, contaria à filha a natureza exacta dos pesadelos que o atormentavam.

Os seus pesadelos desenrolavam-se sempre num hospital, mas para ele nunca eram apenas sonhos.

Saiu de junto da cama da filha, foi em bicos de pés até ao guarda-fatos e abriu a porta sem ruído. Tirou um blusão do cabide e olhou à sua volta, a recordar a surpresa de Lexie quando viu que ele tinha decorado o quarto da filha.

Tal como Claire, o quarto tinha mudado depois disso. Agora estava pintado em tons de amarelo e vermelho-escuro; a partir do meio, e até ao tecto, as paredes estavam forradas de papel com figuras angélicas de meninas vestidas para a comunhão. Fora ajudado na escolha por Claire, que se deixara ficar sentada no centro do quarto, de pernas cruzadas, enquanto ele próprio se encarregava de forrar as paredes.

Por cima da cama dela, estavam pendurados os primeiros bens que ele tentaria salvar em caso de fogo. Quando Claire era bebé, contratou um fotógrafo que lhe fez dezenas de grandes planos a preto e branco. Havia fotografias dos pés de Claire, das mãos, dos olhos, dos ouvidos e do nariz. A seguir montara as fotografias de maneira a formar grandes painéis, de forma a que, sempre que as visse, se recordasse de como ela era pequenina quando a trazia ao colo.

Nas semanas que se seguiram ao nascimento da menina, Doris e a mãe dele trabalharam em equipa para os ajudarem, a ele e à filha. A mãe dele, que mudara de planos e lhes fizera uma visita prolongada, ensinou-lhe os rudimentos da função de pai: como mudar uma fralda, a temperatura ideal do biberão, a melhor maneira de dar um remédio à menina, de forma a que ela não o cuspisse. Quanto a Doris, alimentar a bebé era uma função terapêutica e depois de lhe dar o biberão passava horas a embalar a bisneta. A mãe de Jeremy também se sentia na obrigação de ajudar Doris, não sendo raro ouvi-las no final do serão a conversar calmamente na cozinha. Uma vez por outra, Jeremy ouvia os soluços de Doris, enquanto a mãe dele tentava confortá-la.

Tornaram-se amigas e, embora isso custasse a qualquer delas, recusavam-se a permitir que ele tivesse pena de si próprio. Concediam-lhe tempo para estar só e assumiam algumas das responsabilidades de cuidar de Claire, mas nunca deixavam de insistir com ele para que fizesse a sua parte, por mais difícil que lhe parecesse. E ambas lhe recordavam continuamente quem era o pai e que o bem-estar da menina era da responsabilidade dele, não da avó ou da bisavó. Nesse aspecto, agiam em uníssono.

Pouco a pouco, Jeremy teve de aprender a cuidar da filha e, com o passar do tempo, o desgosto começara lentamente a diminuir. Se antes se sentia derrotado desde que acordava até voltar a deixar-se cair na cama, agora, simplesmente por estar absorvido a cuidar da filha, verificava que por vezes lhe era possível esquecer a angústia. Contudo, tinha andado a agir como um autómato e, quando chegou a altura de a mãe regressar a Nova Iorque, a ideia de ficar entregue a si próprio foi suficiente para o fazer entrar em pânico. A mãe repetira tudo uma dúzia de vezes; assegurara-lhe que lhe bastava fazer um telefonema sempre que tivesse dúvidas. Recordara-lhe o facto de Doris morar ao virar da esquina, além de poder sempre falar com o pediatra se estivesse preocupado com a filha.

Recordava-se da maneira calma como a mãe lhe explicara tudo mas, mesmo assim, implorara-lhe que ficasse um pouco mais.

- Não posso - replicara a mãe. - Além disso, penso que precisas de te ocupar disto. A Claire depende de ti.

Na primeira noite que passara sozinho com a filha fora mais de uma dúzia de vezes ver como ela estava. A menina dormia no berço, mesmo ao lado da cama dele; na mesa-de-cabeceira deixara uma lanterna que usava para verificar se a filha estava a respirar bem. Sempre que ela acordara a chorar, dera-lhe o biberão e embalara-a; chegada a manhã, dera-lhe banho e voltara a entrar em pânico quando a vira ter arrepios. Vesti-la levara bastante mais tempo do que ele tinha calculado. Deitara-a na sala, em cima de um cobertor, e ficara a olhar para ela enquanto tomava o café. Julgara poder trabalhar enquanto ela dormia, mas não fizera nada; pensara o mesmo quando ela dormiu um segundo sono, mas voltara a ignorar o trabalho. No primeiro mês apenas conseguira manter o correio em ordem.

com o passar das semanas, e depois dos meses, acabou por se habituar ao esquema. O seu dia de trabalho acabou por ser organizado à volta das mudanças de fraldas, preparação de biberões, banhos e visitas ao médico. Levou Claire às vacinas e telefonou ao médico quando, horas mais tarde, a menina continuava com a perna inchada e vermelha. Prendia-a com o cinto de segurança do carro e levava-a assim quando tinha de fazer compras na mercearia ou de ir à igreja. Sem ele dar por isso, Claire tinha começado a sorrir e a rir-se; era frequente estender os dedos para a cara do pai e Jeremy descobriu que podia passar horas a olhar para ela, da mesma maneira que a filha passava horas a olhar para ele. Tirou centenas de fotografias à filha; com a câmara de vídeo conseguiu registar o momento em que ela se soltou da beira da mesa e deu os primeiros passos.

Lentamente, sempre muito lentamente, aconteceram os aniversários e as datas festivas. Enquanto crescia, Claire começava a afirmar a sua própria personalidade. Enquanto bebé usava apenas cor-de-rosa, depois azul e agora, chegada aos quatro anos, vermelho-púrpura. Adorava as cores mas detestava a pintura. Preferia o casaco impermeável que tinha um emblema com a Dora the Explorer cosido na manga; usava-o mesmo nos dias de sol. Escolhia as roupas que queria e vestia-se sozinha, embora não atasse os sapatos, e já conhecia a maior parte das letras do alfabeto. A sua colecção de DVD da Disney ocupava a maior parte da prateleira que havia junto do televisor; após o banho, o pai lia-lhe três ou quatro histórias, antes de se ajoelharem ambos para as orações da noite.

Havia alegria na vida de Jeremy, tédio também, e o próprio tempo lhe pregava partidas engraçadas. Parecia escoar-se sempre que decidia sair de casa, chegava sempre atrasado uns dez minutos, mas conseguia ficar sentado no chão a brincar com a Barbie ou a colorir estampas juntamente com Claire; parecia-lhe passar horas naquilo, embora depois viesse a verificar que, na realidade, haviam decorrido apenas oito ou nove minutos. Havia alturas em que achava que devia estar a fazer qualquer outra coisa com a sua vida; porém, sempre que reflectia sobre o assunto, acabava por se aperceber de que não pretendia introduzir qualquer modificação.

Como Lexie previra, Boone Creek era o lugar ideal para Claire crescer. Levava a filha a fazer visitas frequentes ao Herbs. Embora Doris já se mexesse com maior lentidão, deliciava-a o tempo passado com Claire, e Jeremy não conseguia esconder um sorriso sempre que via uma grávida a entrar no restaurante e a perguntar por Doris. Seria de esperar. Três anos antes, Jeremy decidira-se finalmente a aceitar a oferta de Doris sobre o uso do diário. Fora preparada uma experiência num ambiente controlado. No total, Doris entrevistou noventa e três mulheres e fez as suas previsões; passado um ano, quando os envelopes foram deslacrados, verificou-se que Doris tinha acertado em todos os casos.

Um ano depois, o livro que Jeremy tinha escrito sobre Doris conseguira manter-se durante cinco meses na lista do mais vendidos; nas suas conclusões, Jeremy admitia que não fora encontrada qualquer explicação científica para o fenómeno.

Jeremy regressou à sala de estar. Depois de deixar o casaco de Claire em cima da cadeira ao lado da sua, foi até à janela e arredou as cortinas. Lá fora, de um dos lados, ficava o jardim que ele e Lexie tinham começado quando se mudaram para a casa.

Pensava muito em Lexie, especialmente em noites sossegadas, como aquela. Nos anos passados desde a morte dela nunca namorara, nem sentira qualquer desejo de o fazer. Sabia que as pessoas se preocupavam com ele. Um a um, amigos e familiares tinham vindo falar-lhe de outras mulheres, mas a resposta dele era sempre a mesma: estava demasiado ocupado a tomar conta de Claire, não tinha tempo para pensar numa nova relação. Embora a resposta fosse, em parte, verdadeira, o que ele não dizia era que uma parte dele mesmo tinha partido juntamente com Lexie. Ela estaria sempre presente. Quando pensava nela, nunca a via deitada na cama do hospital. Em vez disso, via o sorriso com que, do alto de Riker's Hill, ela olhava a povoação, ou a expressão dela quando sentiram pela primeira vez os pontapés da bebé. Ouvia a alegria contagiante do riso dela ou via o ar concentrado com que lia um livro. Lexie continuava viva, sempre viva, e Jeremy nem conseguia imaginar como seria a sua vida se não a tivesse conhecido. Ter-se-ia casado? Continuaria a viver na cidade? Não sabia, nunca chegaria a saber mas, quando olhava o passado, parecia-lhe que a sua vida tinha começado cinco anos antes. Gostaria de saber se, passados mais cinco anos, ainda manteria recordações sobre a vida em Nova Iorque ou sobre a pessoa que costumava ser.

Não se sentia, contudo, infeliz. Estava satisfeito com o homem em que se transformara, com o pai que era. Ao dizer que só o amor dava sentido à vida, Lexie tivera toda a razão. Considerava verdadeiros tesouros aqueles momentos em que Claire descia a escada pela manhã, enquanto ele lia o jornal e beberricava café. Em metade das ocasiões, a filha tinha o pijama mal vestido, uma manga subida, a barriga à mostra, as calças ligeiramente torcidas, enquanto o cabelo escuro formava uma auréola desordenada. Chegada à cozinha bem iluminada, parava por momentos, semicerrava os olhos e esfregava-os com as costas da mão.

- bom dia, papá - saudava, numa voz que mal se ouvia.

- bom dia, meu amor - respondia, a ajeitar-se para que a filha lhe saltasse para o colo. Erguia-a e recostava-se, enquanto ela descansava a cabeça no ombro dele e lhe abraçava o pescoço com os bracinhos.

- Adoro-te tanto - dizia Jeremy, a sentir o movimento suave da respiração da filha.

- Também te adoro, papá.

Era naqueles momentos que sentia a dor de ela nunca vir a conhecer a mãe.

Estava na hora. Jeremy vestiu o blusão e cerrou o fecho de correr. Depois, seguiu pelo corredor com a roupa da filha: casaco, gorro e luvas. Entrou no quarto de Claire. Pousou-lhe a mão nas costas e sentiu-lhe o ritmo rápido do batimento cardíaco.

- Claire, meu amor? - sussurrou. - Tenho de te acordar. Abanou-a suavemente e a menina rolou a cabeça de um lado para

o outro.

- Vamos lá, amor - foi dizendo Jeremy, ao mesmo tempo que a erguia, a pensar como parecia leve. Dentro de poucos anos já não conseguiria levantá-la com aquela facilidade.

Claire gemeu baixinho. - Papá? - sussurrou.

Ele sorriu e achou que era pai da criança mais bonita do mundo.

- Temos de ir.

- Está bem, papá - respondeu, sem abrir os olhos. Sentou-a na cama, enfiou-lhe as botas de borracha por cima do

pijama de tecido espesso que ela usava para dormir e estendeu-lhe o blusão por cima dos ombros, ficando a vê-la enfiar os braços pelas mangas. Pôs-lhe as luvas, depois o gorro e voltou a levantá-la.

- Papá?

- O que é?

Ela bocejou. - Aonde é que vamos?

- Vamos dar um passeio - respondeu Jeremy, a carregá-la através da sala. Depois de a ajustar nos braços, apalpou o bolso para se assegurar de que levava as chaves.

- De carro?

- Sim, de carro.

Claire olhou à volta e mostrou aquele ar de confusão infantil que ele se habituara a adorar, enquanto apontava para a janela.

- Mas está escuro.

- Pois está. E também há nevoeiro.

Fora de casa, o ar estava frio e húmido. O trecho solitário de estrada que passava junto da casa parecia encoberto no meio de uma nuvem. Não se via a Lua nem estrelas no céu, como se as luzes do universo tivessem sido apagadas. Mudou a filha de um braço para o outro, de forma a pegar nas chaves, e sentou-a no banco.

- Aqui fora mete medo - protestou Claire. - É como no Scooby-Doo.

- Parece - admitiu Jeremy, enquanto lhe apertava o cinto. Mas estaremos em segurança.

- Eu sei.

- Adoro-te - acrescentou o pai. - Sabes o tamanho do meu amor por ti?

Claire revirou os olhos, como uma actriz em palco. - É maior do que o número de peixes que há no mar e mais alto do que a Lua. Eu sei.

- Ah!

- Está frio - acrescentou Claire.

- Já ligo o aquecimento, logo depois de pôr o carro a trabalhar.

- Vamos a casa da avó?

- Não. A avó está a dormir. Vamos a um lugar especial.

Da janela do carro viam-se as ruas silenciosas de Boone Creek, a povoação parecia toda a dormir. A maioria das casas estava às escuras, com excepção das luzes dos alpendres. Jeremy conduziu com cuidado, a tentar orientar-se por entre os montes cobertos de nevoeiro.

Parou em frente do cemitério de Cedar Creek, abriu o porta-luvas e pegou na lanterna. Desapertou o cinto de Claire e dirigiu-se para o portão, com a mão da filha apertada na sua.

Ao consultar o relógio, verificou que passava da meia-noite, mas sabia que ainda dispunha de alguns minutos. Claire segurava a lanterna e o pai caminhava ao lado dela, sentindo as folhas a estalar debaixo das solas. O nevoeiro limitava a visão a uns metros em qualquer direcção, mas Claire não precisou de muito tempo para se aperceber do local onde estava.

- Vamos ver a mamã? - perguntou. - Mas não trouxeste flores.

Era costume comprar flores quando a trazia ali. Há mais de quatro anos que Lexie tinha sido sepultada junto dos pais. Para poder ser sepultada ali fora necessária uma autorização especial das autoridades distritais, mas o presidente Gherkin tinha usado da sua influência a pedido de Doris e de Jeremy.

Jeremy fez uma pausa. - Já vais ver - prometeu.

- Então, o que estamos a fazer aqui?

O pai apertou-lhe um pouco mais a mão. -Já vais ver - repetiu.

Andaram uns passos em silêncio. - Podemos ver se as flores ainda lá estão?

Ele sorriu, contente por ela se preocupar e também por não mostrar medo de vir ao cemitério àquela hora da noite. - É claro que podemos, meu amor. - Desde o funeral, Jeremy visitava a sepultura pelo menos de duas em duas semanas e habitualmente levava Claire consigo. Fora aqui que ela soubera da existência da mãe; Jeremy falou-lhe dos passeios que costumavam fazer até ao alto de Riker's Hill, contou-lhe que fora no cimo do monte que percebera, pela primeira vez, que amava Lexie, disse-lhe que se tinha mudado por não conseguir imaginar a vida sem ser ao lado dela. Aquelas conversas tinham como principal motivo manter viva a memória de Lexie e até duvidava que Claire lhes prestasse atenção. No entanto, embora ainda não tivesse feito cinco anos, a menina conseguia narrar aquelas histórias como se as tivesse vivido. Na última vez que a trouxera ali, Claire ouvira em silêncio e mostrara um ar ausente quando se dirigiam para a saída. - Gostava que não tivesse morrido - concluíra quando caminhavam para o carro. Fora um pouco antes do Dia de Acção de Graças e Jeremy não deixara de pensar se a visita teria algo a ver com os pesadelos. Não podia ter a certeza, pois os pesadelos só tinham começado um mês depois dessa visita.

Finalmente, depois de uma caminhada dificultada pelo frio e pela humidade da noite, chegaram junto das sepulturas. Claire apontou o foco da lanterna na direcção delas. Jeremy leu uma vez mais os nomes de James e Claire; ao lado deles, o nome de Lexie Marsh e as flores que ali tinham colocado na véspera de Natal.

Depois de conduzir a filha até ao lugar onde ele e Lexie tinham visto as luzes pela primeira vez, sentou-se e puxou-a para o colo. Lembrou-se da história que Lexie lhe contara acerca dos pais e dos pesadelos que a tinham atormentado em criança, enquanto Claire, sentindo que estaria para acontecer algo de especial, mal se mexia.

Claire era filha de Lexie em mais aspectos do que ele poderia ter imaginado, pois, logo que as luzes iniciaram a sua dança no céu, sentiu-a apertar-se contra ele. Claire, cuja bisavó assegurava que os espíritos existem, olhava pasmada para o espectáculo que se desenrolava ante os seus olhos. Não passava de uma sensação mas, ao apertá-la contra si, Jeremy pressentiu que Claire não voltaria a ter pesadelos. Teriam acabado naquela própria noite e a filha passaria a dormir tranquilamente. Era óbvio que não tinha uma explicação, e mais tarde provou-se que a intuição não o havia enganado, mas, nos anos mais recentes, aprendera que a ciência não dispõe de todas as respostas.

As luzes revelaram-se, como sempre, uma maravilha celestial, ergueram-se e desceram de forma espectacular, deixando Jeremy e a filha verdadeiramente fascinados. Naquela noite as luzes pareceram demorar-se uns segundos mais do que era normal e a claridade que provocaram permitiu-lhe observar a expressão de admiração no rosto da filha.

- É a mamã? - ouviu-a perguntar. A voz não era mais audível do que o som do vento nas folhas das árvores que tinham acima da cabeça.

Ele sorriu, de garganta apertada. Na quietude da noite, parecia-lhe que eram as duas únicas pessoas existentes neste mundo. Respirou fundo, recordou-se de Lexie, acreditou que ela estava ali com eles e que, se fosse possível vê-la naquele momento, ela estaria a sorrir de alegria, satisfeita, com a certeza de que a filha e o marido estavam bem.

- É - respondeu, a apertá-la ainda mais. - Julgo que a mamã gostou de te conhecer.

 

 

                                                                                            Nicholas Sparks

 

 

                      

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