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A PRINCESA CELTA / Margo Maguire
A PRINCESA CELTA / Margo Maguire

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PRINCESA CELTA

 

             Sul de Chester, Inglaterra, 1428 Início do inverno

Dois galhos grossos das altas árvores forma­vam uma abóbada agradável sobre o ca­minho. Minúsculas partículas de pó dançavam ao redor dos raios de sol do fim de tarde, que iluminavam os re­cessos escuros da floresta, enquanto os cavaleiros avançavam ansiosos pela chegada ao castelo de Wrexton antes do anoitecer.

Marcus cavalgava ao lado de Eldred de Grant, seu pai, quando fora gentilmente abordado por ele.

— Havia tantas jovens bonitas no castelo Haverston, Marcus — disse, com um leve tom de acusação. — Não posso acreditar que nenhuma o interessou.

— Papai...

— Estou ficando velho, meu filho — continuou ele. — E meu único herdeiro e um dia assumirá o meu lugar. Precisará ter uma esposa. Uma mulher digna, como sua mãe, minha querida Rhianwen.

Aquele também era o desejo de Marcus, mas ainda não conhecera nenhuma mulher capaz de vencer sua grande timidez. Com exceção das esposas de alguns amigos, nun­ca se sentia à vontade perto delas. Sentia-se desajeitado e sem graça.

As moças da corte, a quem seu pai referia-se, eram realmente graciosas, trajavam suntuosos trajes de seda e veludo, eram elegantes e mantinham sempre os bons modos, mas viviam rodeadas por aias e criadas que aten­diam aos caprichos mais irracionais e pareciam-lhe levar uma vida tão fútil e pouco atraente que nunca arriscara uma aproximação.

Eram tão frágeis, delicadas e incompreensíveis!

E ele era um soldado não um namorador. Não sabia cortejar uma mulher. E com sua constituição avantajada e força descomunal, receava ser abrutalhado quando fosse abraçar ou beijar uma futura pretendente.

— Uma esposa, tio Eldred? — o primo de Marcus que até então os acompanhava em silêncio, perguntou surpre­so, cavalgando ao lado dos dois adultos. Adam Fayrchild estava com onze anos. Perdera os pais muito pequeno, e Eldred, um homem bom e generoso, o criara, embora o grau de parentesco entre eles fosse distante. — Por que Marcus precisaria de uma esposa? Tudo parece em ordem em Wrexton, e temos a prima Isolda, as cozinheiras, os lacaios, as criadas... Para que mais?

— Um homem precisa de herdeiros, Adam — o inter­rompeu Eldred. — Um dia irá entender, quando encon­trar sua "Eva".

— Encontrar minha o quê? — O menino franziu o nariz coberto de sardas, sem entender a brincadeira do tio. — Não existe ainda uma mulher em Haverston que eu ima­gine-me agüentando a companhia por mais de um ano, um mês, ou até mesmo um único dia!

Adam suspirou e Marcus sorriu, embora as palavras do primo o deixassem consciente da própria solidão.

Sem dúvida, ele e o pai eram grandes companheiros. Era bastante afeiçoado ao primo, também. Todavia, havia um vazio em seu coração, que se tornara mais evidente durante as festividades nupciais no castelo Haverston. Quase todos os seus amigos já estavam casados, e a maio­ria dos jovens que conhecia, moças e rapazes, tinha um envolvimento, um flerte, uma paixão, emoções que apenas vagamente conseguia imaginar como seriam.

Enquanto não superasse sua timidez com mulheres, teria de encarar a possibilidade de uma vida solitária. Marcus sabia que não era feio, ao contrário, achava-se até charmoso, mas as mulheres gostavam de ser agrada­das, gostavam de...

Um grito alto e furioso ecoou acima deles, despertan­do-o de seus devaneios. Em seguida, uma cacofonia de brados selvagens, fez Marcus sobressaltar-se de imediato.

Estavam sendo atacados, pensou aflito.

Inimigos bárbaros, com longas barbas, saltaram das árvores ao seu redor, armados com lanças e espadas. O cavalo que montava, há muito desabituado ao cheiro de sangue e ao clangor de metal, recuou diante do ataque dos violentos guerreiros.

Pegos de surpresa, os homens de Wrexton a princípio ficaram confusos, e vários deles foram feridos antes de recuperar o controle das montarias ou desembainhar as armas. Em número bem menor, lutavam desesperadamente para combater os inimigos de feições rudes, gro­tescas e estranhas vestimentas.

O som estridente das lanças e espadas retinia no ar, e Marcus viu, horrorizado, o pai ser atingido pelos guerrei­ros selvagens e cair lentamente de seu cavalo.

Não! O coração de Marcus gritou em pânico. Eldred de Grant era forte demais, tinha muita vitalidade para ser derrotado de maneira tão infame. Não conseguia imaginar a vida sem seu pai, um homem bom e justo. Não, Eldred se reergueria do chão barrento para lutar junto com os outros cavaleiros. Era só uma questão de tempo, imaginou com otimismo.

— Marcus! — gritou Adam, que também assistira à terrível cena.

Os atacantes pareciam multiplicar-se, surgindo de to­dos os lados e os cavaleiros de Wrexton estavam cercados.

Ainda hipnotizado pela imagem de seu pai caído, Mar­cus desmontou, agarrou Adam e levou-o para o lugar mais seguro que conseguiu encontrar, uma profunda reentrân­cia no tronco gigantesco de uma velha árvore. Em segui­da, correu até o corpo imóvel de Eldred.

— Milorde, cuidado! — advertiu-o aos berros um de seus homens.

Marcus sequer tivera tempo de abaixar-se próximo ao pai antes de desviar-se rapidamente de um dos homens selvagens que o atacava pelas costas e liquidá-lo com um golpe certeiro. Outro deles, com os cabelos vermelhos co­mo fogo correu em sua direção, impedindo-o de realizar seu maior desejo naquele instante. Socorrer o pai o quan­to antes.

Os homens de Wrexton lutavam brava e incessante­mente, porém todos mantinham seus pensamentos volta­dos para o corpo estendido no chão. Apesar da luta inter­minável, não tinha a intenção de desistir. Lutaria até a morte empunhando sua espada afiada contra os cruéis bárbaros.

— Milorde! Cavaleiros se aproximam! — Alguém bra­dou em voz alta. — E são ingleses!

— Graças a Deus! Marquês Kirkham e seus cavalei­ros... — sussurrou Marcus reconhecendo o amigo.

Conscientes dos reforços ingleses que se aproximavam do local da batalha, os bárbaros lançaram-se sobre seus cavalos e partiram em ansiosa retirada.

Assim que se livrou do último oponente, Marcus alcan­çou o corpo do pai arrastando-o para longe do local da luta.

Um brilho de esperança cobriu seus olhos aflitos ao per­ceber um sutil movimento no rosto do genitor ferido. Aga­chou-se ternamente ao lado do homem desfalecido, levan­do sua mão fria de encontro à destra caída do senhor.

— Meu filho... — suspirou Eldred. Marcus não conse­guiu responder ao doloroso chamado. A garganta seca im­pedia-lhe a voz diante do quadro tenebroso. — Não guarde mágoas... com minha morte, Marcus. — murmurava, com dificuldade. — Partirei... ao encontro de sua mãe. Saiba que... não poderia ter... mais orgulho de um filho do que tenho... de você.

Eldred pontuou suas palavras com um último suspiro e cerrou os olhos para sempre.

Fez-se, em toda a floresta, um silêncio fúnebre. Ne­nhum pássaro atreveu-se a cantar ou folha cair dos galhos no triste instante em que a alma do senhor de Wrexton subiu ao céu, para toda a eternidade.

Os bravos cavaleiros ajoelharam-se, curvando-se dian­te do corpo, num gesto de respeito e dor. Algumas condo­lências foram proferidas naquele instante e Marcus arduamente as ouvia.

Como tudo poderia mudar daquela fornia? Minutos an­tes cavalgavam e discutiam sobre seu futuro, seu casa­mento e agora, o homem que lhe ensinara tudo sobre coragem e bondade, estava morto e nada mais podia ser feito.

— Milorde! — Uma voz distante interrompeu o mo­mento solene. — Rápido!

Marcus virou-se para atender ao chamado aflito do ca­valeiro que gritava em pé, ao lado do esconderijo onde seu primo devia estar abrigado.

Pressentindo nova tragédia, Marcus caminhou titubeante até o local onde abrigara o menino durante a luta e viu, horrorizado, o corpo pequeno e frágil de Adam caído junto à relva. Em suas costas, afiada lança perfurava-lhe a pele.

Marcus curvou-se sobre garoto, que jamais lhe parece­ra tão vulnerável.

— Ainda respira — concluiu.

— Sim, milorde. Todavia, se retirarmos a lança de suas costas, se esvairá em sangue — respondeu sir Robert Barry.

— E estamos a horas de Wrexton! — sir Willian Cole retorquiu. — Morrerá antes que...

— Existe um pequeno chalé próximo daqui, se não me falha a memória. Na encosta da montanha, perto do ria­cho — objetou Marcus, com austeridade. — O carregare­mos até lá — disse, erguendo o corpo franzino do jovem mortalmente ferido. — E levem o corpo de meu pai junto a nós.

 

— Fique calmo, tio — Keelin O'Shea falava suavemente com Tiarnan. — Protegerei a lança e nenhum Mageean jamais colocará suas mãos sobre Ga Buidhe an Lamhaigh .

Um ruim pressentimento fustigava o peito de Keelin enquanto tentava tranqüilizar o tio. Chegara o momento em que teriam que partir. Não poderiam mais esperar pelo ataque dos Mageean.

O tempo, desde que partira da Irlanda fugindo dos ter­ríveis mercenários que mataram seu pai, passara com rapidez e sentia-se exausta em manter-se longe dos assassinos cruéis. Mas, se o antigo talismã escapasse de suas mãos, seria o fim do clã e a ascensão do implacável e cruel Ruairc Mageean.

Jamais decepcionaria seu povo. Esquivara-se, até en­tão, de Ruairc e seus homens, protegendo a Ga Buidhe an Lamhaigh por quatro anos seguidos. Desde que apor­taram na Inglaterra, mudavam-se com freqüência, procurando confundir o inimigo e não poderiam agir de outra forma dessa vez. Não fosse a saúde delicada de seu tio, já teriam saído do pequeno casebre há alguns dias.

— Não fosse sua intuição privilegiada, menina Keelin, não teríamos conseguido escapar da última vez.

— Vamos, tio — disse ela, erguendo a cabeça do velho senhor de encontro à caneca de sopa. — Tome ao menos um pequeno gole.

— Ahh! — o velho fez um ruído estridente entre os dentes. — Beba o resto você — sugeriu Tiarnan voltan­do-se para as chamas de modesta lareira. Havia emagrecido e sua fisionomia andava sempre carregada de preo­cupações. — Vi quando se levantou esta manhã, minha sobrinha. Sei que algo a está perturbando e posso imagi­nar o que seja.

— Devia se alimentar melhor, meu tio — desconversou rapidamente.

Keelin sentia-se fraca e trêmula, depois da visão que tivera naquela manhã. Porém, ocultaria a verdade de seu tio. Caminhou até o simples leito improvisado, passos adiante de onde o tio repousava minutos atrás.

— Deve me dizer o que viu, querida.

Os olhos opacos e sem viço de Tiarnan cruzavam o cômodo, desnorteados. A idade avançada obscurecera para sempre sua visão, mas ainda guardava na mente a lem­brança do belo rosto de Keelin.

Os grandes olhos verdes, iguais aos da mãe, lembra­vam as florestas da Irlanda e os cabelos, muito negros, faziam-no recordar as longas noites do Kerry sem luar. A pele branca, lisa e macia enrubescia com facilidade, mas não tinha uma aparência frágil. Era alta e mantinha uma postura valente, apesar da feminilidade e juventude transbordante.

Keelin não imaginava quais eram as reais intenções de Ruairc Mageean. O líder sanguinolento desejava algo mais que a lança sagrada, pensou o velho tio entristecido, convencido do pouco tempo que ainda lhe restava ao lado da sobrinha.

O cruel chefe dos Mageean pretendia desposá-la a força e tomar-lhe Ga Buidhe an Lamhaigh . O homem demo­níaco cobiçava a herdeira do clã O'Shea desde que a vira crescida, com seus meigos olhos piedosos, caminhando so­bre pernas firmes e decididas. Casando-se com ela, o que lhe seria muito agradável, tornar-se-ia o herdeiro legítimo do Kerry e assim, o chefe mais poderoso de toda a região.

Mageean não era o único homem que cobiçava a mão de Keelin. Seu pai, num gesto brutal e abominável, poucos dias antes de morrer, prometera a filha em casamento a Fen McClancy, o líder de um clã vizinho. Tiarnan dese­java que a alma de seu pobre e infeliz irmão descansasse em paz, apesar de não acreditar que isso fosse possível. Não, em se tratando de Eocaidh O'Shea.

O homem a quem Keelin fora prometida não era so­mente velho, mas bruto e impiedoso. O pai ambicioso cer­tamente procurava facilidades para ampliar seus domínios, mas o tio sabia que havia outras maneiras para que o chefe alcançasse seus objetivos que não fosse casar sua filha com o velho patife.

Eocaidh era seu irmão mais forte e capaz, sempre dis­posto a qualquer sacrifício pelo bem do clã. Porém, entre­gar a mão de sua filha mais nova ao inescrupuloso McClancy sem ao menos um minuto de hesitação, parecia-lhe muito cruel.

Os anciões do clã, após a morte do chefe Eocaidh, acei­taram os apelos do velho Tiarnan, convencendo-se que Keelin deveria fugir, juntamente com a Ga Buidhe an Lamhaigh , ao invés de ficar e casar-se com McClancy.

Tiarnan aguardava com ansiedade o momento em que o velho vizinho inescrupuloso encontrasse com a morte para que Keelin se libertasse do tenebroso compromisso. Era um desejo mórbido, ele sabia disso, mas sua corajosa sobrinha não merecia um destino tão cruel como aquele.

Oh, por quantos sofrimentos ainda teriam que passar! Imaginou Tiarnan comovido com o triste destino de sua adorável Keelin.

Jamais permitiria que as reais intenções de seu pai com aquele sórdido acordo de casamento fossem por ela descobertas. Não suportaria assistir a tamanho golpe pa­ra a sobrinha quando reconhecesse a importância que seu pai realmente dava a ela e sua família.

Keelin era jovem ainda e com certeza descobriria sozi­nha a maldade dos homens.

— Por favor, tio — pediu ela carinhosamente. — Guar­de seu fôlego para depois. Conversaremos mais tarde. Não há nada que...

— É claro que há — interrompeu o ancião preocupado, recostando sua cabeça outra vez no pequeno travesseiro feito por Keelin. — E é importante que eu saiba, querida. O tempo é escasso.

— Nada pode ser mais importante agora que seu des­canso, meu tio — concluiu Keelin, encaminhando-se até a pe­quena pilha de madeira seca, reabastecendo a lareira enfraquecida.

Durante a madrugada, o pequeno cômodo do chalé abandonado permanecia aquecido graças a sua constante vigília sobre as chamas. Preocupada com a reabilitação do tio adoecido, lançava ao fogo pequenos ramos de ervas secas e plantas curativas, fazendo-as exalar um cheiro forte, porém muito agradável no ambiente.

— Os Mageean estão a caminho — disse o senhor preâmbulo. — Apesar de não poder vê-los, como você, pos­so sentir que estamos em perigo.

Keelin franziu as sobrancelhas em desagrado. Tiarnan estava certo, mas como podia adivinhar o que vira naque­la manhã?

A visão fora muito perturbadora. Os brutais mercená­rios celtas entravam em conflito com ingleses pacíficos. Seus ouvidos captaram o relinchar desesperado dos ca­valos e suas narinas sentiram o cheiro do sangue que jorrava, quente, dos homens feridos. Golpes mortais, gran­de tristeza. Ela não conseguia precisar quando, mas sabia que a cena terrível aconteceria, e em breve.

Observou, entristecida, as paredes do humilde chalé e os parcos utensílios que carregavam. Como escapar dos cavaleiros malignos de Ruairc Mageean com Tiarnan, doente e cego e a Ga Buidhe an Lamhaigh ? E para onde iriam dessa vez? Seria o momento sensato para o retorno ao lar?

Da última vez que precisaram fugir, o velho tio ainda conseguia enxergar um pouco mais. Não parecia tão ter­rivelmente abatido pela idade, nem tão fraco como agora. Será que suportaria a longa viagem por Wales e a can­sativa travessia pelo mar?

E aquelas visões inesperadas...

Keelin sentia que algo também acontecia em Carrauntoohil. A urgência que sentia em voltar para casa não era somente saudade. Um terrível pressentimento a assom­brava e nada a livraria dele até que pudesse voltar para o Kerry e revisse, com seus próprios olhos, os parentes e amigos queridos do clã em segurança.

— Ouça-me, querida — o tio retomou o diálogo com calma, percebendo o pânico crescente de Keelin. Ela tinha pouco mais de dezenove anos de idade e, embora muitos considerassem seu dom premonitório uma dádiva divina, tinha consciência que Keelin sofria com as visões cons­tantes, mesmo que tentasse esconder-lhe isso. — Deve levar Ga Buidhe an Lamhaigh com você e partir, o quanto antes.

— Nada disso, tio — ela começou a chorar abrupta­mente. — Jamais o deixarei aqui sozinho.

— Keelin...

— Não partirei sem o senhor, meu tio. No momento certo, dirigirá a carroça para que possamos escapar dos guerreiros Malgeean.

— Minha sobrinha... — Tiarnan falou, fechando os olhos fatigados diante da insistência. Nada do que dis­sesse a faria mudar de opinião, sabia disso melhor do que ninguém. A tosse incessante e o peito dolorido o lembra­vam que não talvez não suportasse uma nova viagem.

Keelin enxugou os verdes olhos úmidos, segurando as mãos trêmulas de seu adorado tio entre as suas.

— O levarei até outro lugar, meu tio, um lugar mais seguro.

— Não consegue entender, meu amor? — Tiarnan mur­murou com o fio de voz que ainda lhe restava. — Estou completamente cego e minha saúde é frágil. Não agüentaria uma nova viagem. Deve partir antes que seja tarde demais.

— Nunca, tio. Ainda temos tempo.

— Mesmo que esteja certa, e que tenhamos tempo o bastante para escapar, não poderá carregar um velho doente e sem esperanças nas costas. Precisará seguir sozinha. Recolha suas coisas e...

Tiarnan, enfraquecido, interrompeu o diálogo, girando a cabeça em torno do pescoço.

— Que foi? — perguntou Keelin alarmada com postura vigilante do tio.

— Um grupo vem em nossa direção — o senhor repli­cou, ansioso. — Cavalos... e muitos homens a pé.

— Oh! Deus nos proteja! — Choramingou ela, levantando-se com rapidez. — Como pude me confundir dessa forma?

— Não acredito que sejam nossos inimigos, querida — o velho tio tentava tranqüilizá-la. — Todavia, nossa única opção é esperar.

Keelin concordou com sofrimento. Suas visões sempre os mantiveram longe dos Mageean e jamais houvera um confronto direto como o que ameaçava acontecer naquela noite. Sentia o sangue correr pelo seu corpo frio e imóvel com dificuldade. Queria correr para fora do chalé e buscar um novo esconderijo para ela e seu tio, mas era incapaz de movimentar-se do chão.

— Pode ouvir as vozes agora, Keelin?

Ela balançou a cabeça em discordância, esquecendo-se por um instante que seu tio não podia vê-la.

Ao menos, os Mageean não encontrariam a lança sa­grada, pensou aliviada. A pequena e velha carroça era o esconderijo perfeito e mesmo que fosse capturada, jamais revelaria o lugar onde guardara a Ga Buidhe an Lamhaigh . A maior calamidade que poderia lhes acontecer naquela noite seria perder o mágico talismã.

 

Apesar do desejo de acompanhar Kirkhan e seus ho­mens em franca perseguição aos bárbaros na grande flo­resta, Marcus preocupava-se com o pequeno Adam.

O infeliz garoto precisava de socorro e a busca por um abrigo era mais imperativa que o instinto de vingança que o abatia.

Com grande cuidado, desceu a montanha levando o me­nino ao colo. O pequeno chalé abandonado não ficava mui­to longe de onde estavam, porém o trajeto parecia maior dessa vez.

Quatro homens do grupo foram mortos e outros dois estavam seriamente feridos.

Enquanto caminhava, Marcus, cercado por seus ho­mens, lembrava do corpo de seu pai e o dos outros valen­tes cavaleiros caídos após a batalha.

Porque foram atacados?, perguntava-se angustiado, sem conseguir imaginar a razão para que os forasteiros estivessem em solo inglês e atacassem um grupo de homens pacíficos. Aquilo não fazia nenhum sentido.

Graças ao fortuito encontro com Nicholas Hawken, o marquês Kirkham, os atacantes fugiram, coagidos. Por mais irreverente que fosse Nicholas, Marcus sabia que podia contar com o bom amigo em lutas. E sem o inespe­rado encontro, ele e seu grupo seriam aniquilados pelos celtas, em número muito maior.

Um dos cavaleiros bateu com suavidade na porta do simples chalé. Keelin recebeu o grupo, titubeante. Mar­cus adentrou a pequena moradia, carregando o corpo des­falecido do primo entre os braços e, com a ajuda de outros homens, deitou o menino em uma cama vazia, desconsi­derando a presença do velho senhor deitado metros adiante.

— Precisamos de água quente — disse Marcus, sacan­do a faca da bainha. Enquanto falava, rasgava o tecido fino do colete que o garoto usava com a lâmina afiada. — E algumas roupas limpas. Edward, segure os braços de Adam e Roger, prenda-lhe os pés. Arrancarei a lança maldita.

Keelin compadeceu-se pelo pobre menino ferido, apesar de sentir a presença forte e marcante dos Mageean muito mais perto deles após a chegada dos visitantes.

Recostou-se junto ao leito do tio e assistiu, em silêncio, aos procedimentos para tentar salvar a vida do protegido.

O homem que liderava o grupo era muito alto, o que o obrigou a se abaixar para atravessar a porta da modesta moradia. Mesmo agachado diante do garoto ferido, o homem de cabelos dourados parecia ocupar metade do re­cinto, pensou Keelin.

Ao ver o pobre garoto de semblante pálido e sem vida, Marcus iniciou uma oração silenciosa. Depois de alguns minutos, dirigiu-se ao primo inconsciente.

— Desculpe-me, Adam, pelo que o farei sofrer — disse, com semblante entristecido. — É nossa única escolha. Se­ja valente, meu bom rapaz.

O coração da jovem Keelin partiu-se ao ver o olhar dis­tante e comovido do rapaz, erguendo as mangas da blusa antes de iniciar a dolorosa tarefa. Suas mãos tremiam, ela podia ver. Aquele era o cavaleiro inglês que lhe apa­recera em sua última visão, lembrou atônita. Apesar de não ter visto o rosto do bravo combatente durante o ter­rível pesadelo, tinha certeza de que era o mesmo homem, assim como os outros cavaleiros do grupo que recebia aquela noite na modesta choupana.

Ainda atordoada, caminhou até o canto do cômodo rús­tico e abriu o velho baú de viagem, onde costumava guar­dar os pertences pessoais. Retirou algumas túnicas de linho e uma velha camisa que, em poucos segundos, havia se transformado em tiras para o curativo.

Em sua pequena algibeira de couro, buscou ervas secas que seriam utilizadas na infusão do ferimento. Seu velho tio Tiarnan, antes de perder a visão, ensinara-lhe a colher plantas e ervas, especificando o uso correto para cada enfermidade. Poterium Sanguisorba para conter a hemor­ragia e Lady's Mantle para prevenir infecções.

Quando voltou-se na direção do enfermo, o filete de metal pontiagudo já havia sido retirado. O líquido ver­melho jorrava abundante pelas costas do menino e Keelin correu até a cama, pressionando o ferimento com o tecido muito alvo de sua túnica, tentando conter a hemorragia.

— Pobre Adam... — disse Marcus ao ouvir os gemidos de dor do primo.

Ajoelhada ao lado da cama, Keelin, num rápido relance, observou o perfil nobre do chefe do grupo, seu nariz aris­tocrático, o queixo anguloso e os grandes olhos azuis cheios de determinação. Keelin imaginou se encontraria alguém em toda a Irlanda que a olhasse com tamanha atenção e carinho como àquele homem olhava para o me­nino ferido.

Era certo que sim, pensou em silêncio. Seu futuro ma­rido, a quem estava prometida, cuidaria dela como jamais ninguém havia feito até então. Apesar da insistência de seu tio em desconversar quando o assunto era seu casa­mento, ela confiava no conselho dos anciãos de seu clã e na escolha de seu pai. O esposo da filha de Eocaidh só poderia ser o mais bondoso homem de todo o Kerry.

— Os gemidos são um bom sinal, milorde — disse ela, em voz baixa.

Marcus olhou a mulher com atenção, pela primeira vez. Sem perceber, seu rosto enrubesceu diante dos enormes olhos verdes que o fitavam com firmeza.

— Edward! — chamou ele, encabulado, desviando a atenção dela propositalmente. — Procure pelo médico na vila e peça...

— Sou curandeira, milorde — disse Keelin, mostran­do-lhe a algibeira repleta de ervas e plantas sobre a cama. — Tenho tudo o que iremos precisar para atender o rapazinho — afirmou, abrindo o saco de couro, despejando sobre um prato raso pequena quantidade de um pó preto misterioso, adicionando água em seguida. A mistura transformou-se em uma pasta grossa que, com gentileza, despejou sobre o ferimento do garoto. — Foi atingido em uma região muito sensível, próximo à espinha e aos rins, mas, se Deus assim quiser, se recuperará.

Se o garoto tivesse bastante sorte, nenhum órgão in­terno havia sido atingido e a hemorragia não tardaria a cessar, pensou Keelin, iniciando suas preces pedindo aju­da para o infeliz menino enquanto terminava o curativo.

Marcus observava o movimento gracioso das delicadas mãos que trabalhavam sobre o corte de seu primo. Em poucas horas sua vida havia se transformado completamente, pensou ele. Seu pai morrera e seu primo adorado agonizava sobre o leito de uma bela e desconhecida jovem camponesa, em um chalé escondido no meio da floresta. Não parecia uma mera lavradora, imaginou, apreensivo. Nem era inglesa, concluía pelo sotaque carregado.

Sua aparência elegante e altiva escondida no pequeno chalé no pé da montanha não fazia o menor sentido. Ocor­reu a ele se não faria parte do bando que os atacara, momentos antes, na floresta. Será que os haviam ataca­do para mantê-la protegida?

Improvável, pensou Marcus. Não estavam longe o bas­tante de Wrexton para que, em sigilo, um grupo de bár­baros assassinos resguardasse o humilde chalé.

Mas quem era ela, então?

Vestia-se com muita simplicidade, o que realçava ainda mais os grandes e profundos olhos verdes e os cabelos negros e longos que desciam-lhe até a cintura. Movimen­tava-se com elegância e graça, e suas mãos delicadas cor­riam pelas costas machucadas do garoto inconsciente com habilidade. Sussurrava junto a Adam doces palavras de encorajamento acentuadas por um sotaque ainda indefi­nido para os ouvidos atentos de Marcus. Tinha a conduta de uma rainha, e era exatamente o que parecia ser, a rainha da minúscula choupana rústica.

Marcus a observava, os olhos fixos em seus movimen­tos, alheio ao tempo que passavam, ele e seus homens, dentro do chalé.

— Milorde — disse o velho senhor sentado à beira do outro colchão ao seu lado. — Confie em minha sobrinha — prosseguiu, com sotaque muito acentuado. — Não existe melhor curandeira em toda a Inglaterra ou Irlanda que Keelin O'Shea.

Virando-se bruscamente, Marcus caminhou até o velho de feições pálidas e barba esbranquiçada, percebendo os olhos perdidos e cegos vagando pelo reduzido espaço em que se encontravam.

— É sua sobrinha?

— Sim. Keelin O'Shea, este é seu nome. Sou Tiaman O'Shea, seu criado, milorde. Somos de Kerry.

— Kerry... Isso deve ser... na província da Irlanda? — ele perguntou, levando as mãos até os cabelos loiros e desarrumados, tentando organizar seus pensamentos.

Nenhum raciocínio parecia lógico desde a morte de seu pai. Sentia-se entorpecido pela raiva e pela mágoa e sua cabeça girava junto com os novos acontecimentos. Como assumiria o lugar do pai, tornando-se o conde de Wrexton de uma hora para outra? Adam suportaria uma longa viagem até o castelo da família naquele estado? Não po­deria deixar o primo sob a custódia de estranhos, todavia, o menino não resistiria ao incômodo regresso.

— Kerry é mais uma região, rapaz — replicou Tiarnan, aproveitando-se da consternação de Marcus. — Munster fica no sudeste da Irlanda e é abundante em campos e montanhas.

Marcus não retrucou, perdido em seus próprios pensa­mentos, e Tiarnan considerou o abrupto silêncio como um temor pelos procedimentos que Keelin realizava no feri­mento do garoto atingido pela lança.

— Rezo para que esteja certo com relação a sua sobri­nha! — exclamou Marcus amuado antes de retirar-se pela porta principal da choupana.

Roger e Edward o acompanharam como seguranças. Ele sabia que podia contar com a força e esperteza dos dois cavaleiros diante de qualquer perigo.

Olhou para o céu e respirou profundamente, tentando precisar em qual momento o dia tão belo e agradável ha­via se transformado em um terrível pesadelo.

Fazia muito tempo que entrara pela última vez em uma batalha. Cinco anos, com exatidão. Desde que retor­nara das Guerras Francesas para rever a mãe doente, não mais abandonara Wrexton ou seu pai.

Seu povo não estava em guerra com nenhum inimigo. Ele e seu pai mantinham um bom relacionamento com seus vizinhos, principalmente os Welsh, em terras adjacentes. Não havia motivos para aguardarem uma embos­cada como aquela. Malditos cavaleiros!

Cavaleiros? Aqueles homens cruéis jamais poderiam ser considerados cavaleiros. Usavam velhas armaduras primitivas? Não estavam banhados ou barbeados e os cabelos desciam em tiras grossas até o meio das costas. A língua, estranha e gutural, era completamente desconhe­cida. Marcus havia pensado que se tratasse de celtas e agora, vendo a bela jovem e seu tio irlandês e todo o mis­tério que os envolvia, imaginou que aquelas pessoas e o grupo de mercenários que encontrara tivessem alguma conexão. Tinha de existir alguma ligação entre eles.

Que Deus os protegesse de tenebroso massacre no­vamente!

Marcus caminhava pelo lado externo do chalé quando viu seus homens terminando de erguer tendas no terreno que contornava a moradia, esperando pela longa noite que passariam no lugarejo. Não conseguia prever quantas noites, o grupo e ele, teriam de esperar pelo restabeleci­mento de Adam, até que pudessem retornar ao castelo de Wrexton.

Todavia, o funeral de seu pai o forçava a planejar ime­diato regresso ao lar.

Existia um riacho de águas muito frescas e limpas bem próximo de onde estavam e Marcus seguiu uma pequena trilha na grama para alcançá-lo. Arrancou a túnica bran­ca que usava e, curvando-se, mergulhou a cabeça no lí­quido muito gelado que escorria pelo córrego. Talvez as­sim seus pensamentos clareassem, imaginou.

 

Keelin encerrou o atendimento ao menino ferido colo­cando de lado suas ervas medicinais e as ataduras que restaram. Lavou as mãos cuidadosamente em uma bacia de água limpa, então caminhou até o tio, conversando em voz muito baixa.

— Durma um pouco, meu tio — disse a jovem, imagi­nando que o aborrecimento e a excitação dos visitantes inesperados o deixavam exausto. — Irei até lá fora por alguns minutos, mas voltarei em breve para vê-lo.

Ela sentia que precisava falar com o líder inglês do grupo. Ao sair da choupana, espantou-se com a grande quantidade de homens alojados no jardim. Assegurou-se, em silêncio, da impossibilidade de algum deles encontrar a lança escondida, porém sentia-se desconfortável com a presença de tantas pessoas estranhas próximo ao lugar onde guardava a relíquia sagrada.

Keelin procurou acalmar-se, aproximando-se de um dos homens acampados, perguntando-lhe sobre o provável local onde estaria o homem que os acompanhava. Seguin­do na direção apontada, desembocaria no riacho, pensou, ao mesmo tempo em que avistava o corpo alto e forte erguer-se à margem do pequeno córrego.

Ela sentiu um estranho tremor, e a velocidade de seus passos diminuiu diante da imagem do homem seminu. Sentia-se profundamente envergonhada e suas faces queimavam feito brasas.

Se, em alguma outra vez, Keelin já havia visto um homem em trajes tão sumários, não conseguia se lembrar. Sua respiração começou a acelerar-se e sua boca ficou seca.

Ele tinha o peito e a cabeça ainda molhados e balan­çava os cabelos de um lado para o outro, espirrando pin­gos de água. Foi então que a viu parada sobre a trilha marcada na grama, imóvel.

Marcus deu um passo desajeitado para trás, mergu­lhando seu pé calçado dentro da água. O susto o fez perder o equilíbrio e, antes que pudesse se segurar, caiu sentado dentro do pequeno riacho.

Keelin correu ao seu encontro, oferecendo-lhe a mão. Foi com admiração que reparou em seu rosto corado.

— Bem, se era um banho que pretendia tomar... — disse ela, sorrindo.

Silencioso, ele ergueu-se com rapidez sobre a grama, fazendo-a imaginar que não estava com bom humor na­quela noite.

Ela podia entendê-lo. Era irlandesa, assim como os ho­mens que os haviam atacado horas atrás. Se o grupo de seu pai fosse atacado por homens ingleses também... Bem, ela sabia que nenhum grupo inglês seria capaz de vencer a fúria de Eocaidh O'Shea.

— O garoto está dormindo agora — prosseguiu Keelin, tensa com o silêncio imposto. Apesar da autoridade que demonstrava com seus cavaleiros, sentia-se coagido por sua presença, ela podia perceber. — Daqui a algum tempo teremos certeza se sua vida foi salva.

Marcus balançou a cabeça, entristecido, retomando a trilha que os conduziria novamente ao chalé, sozinho.

Aquele gesto pareceu a Keelin um pedido. Ele não pa­recia disposto a conversar ou dividir sua companhia com ninguém.

A chegada daqueles cavaleiros parecera uma resposta divina às preces de Keelin. Talvez pudessem escoltá-los enquanto Tiarnan e ela fugissem da floresta. Sem visão e com a saúde prejudicada, seu tio não poderia mais aju­dá-la, e ela não contava com mais ninguém. Existia uma possibilidade de voltar a Kerry sozinha, deixando o tio sob os cuidados dos cavaleiros. Algo lhe dizia que preci­sava voltar o quanto antes a Carrauntoohil.

— Espere! — ordenou ela com determinação, chaman­do a atenção para si. — Sou Keelin O'Shea, filha de Eo­caidh, líder do Clã Ui Sheaghda. — Sem obter nenhuma reação, prosseguiu: — Tenho o direito de saber quem re­cebo esta noite em minha casa.

Marcus, aflito com a ousada interjeição, buscou manter o tom de voz firme antes de responder.

— Ma-Marcus de Grant — falou, tropeçando nas pró­prias palavras. — Com o falecimento de meu pai, esta tarde, so-sou o novo conde de Wrexton.

Como Keelin havia imaginado, não era um inglês como qualquer outro. Marcus de Grant era um homem nobre, porém triste com a perda de seu pai.

— Minhas condolências — disse, caminhando até o lu­gar onde ele estava. Sentia-se, com certeza, abatido pela morte de seu genitor, pensou. — Perder um ente querido é uma grande dor.

Marcus duvidou se, algum dia, se sentira tão embara­çado como naquele momento. Seu peito descoberto o en­vergonhava e tudo o que queria era vestir-se e sair cor­rendo para qualquer lugar longe dos grandes olhos verdes que o hipnotizavam, da responsabilidade que assumiria com a morte de seu pai, de Adam ferido, enfim, de sua nova posição. A postura de rainha que Keelin mantinha diante dele o enfraquecia mais que qualquer um de seus problemas.

Ela dirigia-se a ele com experiência, como se também conhecesse a dor de perder um pai.

— Sim. É-é uma grande dor — Marcus começava a se irritar com o gaguejar de suas palavras, trêmulas e fracas.

— E o garoto, milorde? Quem é Adam? — perguntou Keelin, dando os primeiros passos em direção ao chalé, ao lado de Marcus.

— Meu primo — respondeu, procurando manter dis­tância dela.

Marcus sentiu-se mais tranqüilo com a recém-adquirida eloqüência. O aroma das ervas usadas por Keelin mi­nutos atrás exalavam pelo corpo feminino como exótico perfume. Alta e esbelta, ela mantinha os olhos voltados para frente, para seu alívio.

— Não quero ser impertinente, milorde — continuou ela. — Mas como o menino se feriu?

— Não consegue adivinhar?

— Adivinhar? — Assustou-se com a pergunta, freando os passos imediatamente.

— Guerreiros celtas nos atacaram ao norte da floresta. Para nossa sorte um outro grupo de homens ingleses ca­valgava em nossa direção. Perdemos quatro homens e muitos ficaram feridos, assim como Adam.

Keelin O'Shea levou a ponta dos dedos até os lábios, contendo-se. Por um segundo imaginou que Marcus de Grant sabia que era capaz de ter visões, premonições so­bre o futuro. Murmurou algumas palavras inaudíveis an­tes de prosseguir.

— Sabia que algo dessa natureza aconteceria, mais ce­do ou mais tarde.

— O que sabe sobre eles, os guerreiros? — Ele percebeu a relutância da moça em responder ao vê-la abaixar a cabeça, num claro sinal de desagrado. Segurou com fir­meza o braço delicado. — Quem são os celtas? — O olhar inquisidor tentava intimidá-la. — Irão retornar? Alguns deles nos espreitam agora?

— Não! — replicou irritada, soltando o braço preso en­tre os dedos de Marcus. — É pouco provável que estejam por perto. Os guerreiros Mageean nunca se separam. Via­jam em bando, sempre acompanhados por um...

— Prossiga!

— São os homens de Ruairc Mageean. E estão atrás de mim — revelou, desanimada. — Perseguem meu tio e a mim há quatro anos. Permanecemos escondidos aqui na Inglaterra, nos mudando sempre que se aproximam de nós.

Marcus sentia-se envergonhado por seu julgamento precipitado. Keelin O'Shea respondia a todas as suas per­guntas. Tinha informações sobre os assassinos que mataram seu pai. E pela primeira vez em sua vida, conver­sava com uma bela mulher sem sentir-se um tolo com­pleto. Apesar do desconforto, era capaz de falar com normalidade e até mesmo tocá-la, se assim fosse preciso, sem congelar como um galho durante uma tempestade de gelo.

— Quem é Ruairc Mageean?

— Bem — Keelin suspirou entristecida com a lem­brança —, é uma longa história. Mas posso adiantar-lhe que os Mageean são os piores inimigos de meu povo. Ruairc Mageean quer dominar todo o Munster e para isso precisa...

— Precisa? — incentivou Marcus quando ela hesitou.

— Do poder necessário para isso — desconversou, te­mendo a revelação de seu maior segredo e voltando a an­dar com passos largos e apressados ao encontro do tio.

Marcus a acompanhou com os olhos vendo-a cruzar a trilha por entre as árvores, observando o delicado movi­mento de seus quadris sob o tecido da saia.

Aliviado pela distância que agora se impunha entre eles, Marcus pensou em descansar, sentando-se junto às pedras antes de voltar ao pequeno chalé onde seu primo se recuperava. Todavia, seus planos foram interrompidos pelo grito assustado de Keelin embrenhada no meio da escuridão da floresta.

Vestiu sua túnica e correu em direção ao lugar de onde ouvira escapar o grito.

 

Keelin retornava ao humilde chalé onde seu tio e ela se escondiam, quando foi subi­tamente abordada. O misterioso marginal levou uma das mãos imundas até sua boca e com a outra enlaçou sua cintura, prendendo-a junto a si. Começou a arrastá-la por entre as árvores, na direção oposta a pequena choupana, distanciando-a dos cavaleiros de Marcus que poderiam vir em seu socorro.

Ela lutou com todas suas forças contra o vilão que a carregava para dentro da densa mata escura, todavia, seu esforço parecia inútil. Jamais conseguiria soltar-se das garras do intruso indesejado, mas a força empregada ser­viu para que o homem afastasse a mão, por alguns ins­tantes, de seus lábios, oportunidade que aproveitou para emitir um terrível grito de horror.

O guerreiro celta puxou-lhe os cabelos com força e, fa­lando-lhe em galês, ordenou que mantivesse absoluto si­lêncio. Keelin sentiu uma dor aguda em sua cabeça e acompanhou o homem bruto em sua marcha.

Sem conseguir raciocinar com clareza, Keelin passava de um pensamento a outro, não discernindo a melhor ati­tude a tomar. O celta iria matá-la? Quem cuidaria do pobre tio Tiarnan? O que aconteceria com Ga Buidhe an Lamhaigh ? Será que alguém foi capaz de ouvir seu cha­mado desesperado?

— Solte-a!

O seqüestrador parou de repente e girando a cabeça em busca de Marcus que, subitamente, o interpelara. Se­gurando Keelin a sua frente como um escudo, o celta o viu surgir por entre a folhagem como um gigante salva­dor, desafiante e destemido.

Surpresa com a aparição de Marcus, Keelin congelou ao sentir o metal afiado da arma do marginal junto a sua garganta.

— Entregue-me Ga Buidhe an Lamhaigh e a libertarei.

— Não! — gritou ela.

Marcus sacou sua espada fazendo-a temer por sua vida. O seqüestrador a mantinha presa com uma das mãos pe­los cabelos enquanto a outra segurava a lâmina da faca contra seu pescoço.

Com cuidado, Marcus estudava o mercenário e sua ví­tima, rodeando-os com pequenos passos.

O homem celta, acuado, puxou os cabelos de Keelin mais uma vez, fazendo-a gritar de dor. Temerosa, ouviu a ameaça que Marcus fazia ao irlandês.

— Não abandonará esta floresta com vida, celta! Dei­xe-a partir e...

Um grito dilacerante ensurdeceu o ouvido de Keelin que fora lançada ao chão, sobre seus joelhos.

Vários outros gritos faziam-se ouvir ao seu redor e ela perguntava-se se não experimentava mais uma de suas visões. Seu coração batia acelerado quando tentou erguer-se novamente, porém, voltou a agachar-se com rapidez. Enquanto abraçava seus joelhos, ouvia o zunido das es­padas cruzando o ar, batendo-se umas contra as outras e o gemido de homens lutando por suas vidas. Subita­mente os combatentes emudeceram e Marcus agachou-se junto a ela. Em silêncio, enlaçou-a entre os braços fortes, levando-a pela floresta escura em seu colo.

Trêmula, Keelin cruzou as mãos em volta da nuca de Marcus, abraçando-o, desfrutando da esquecida sensação de proteção e segurança que ele lhe oferecia. Durante qua­tro longos anos lutara por sua sobrevivência sozinha. Sua preocupação a comovia em demasia.

Fitou as feições compenetradas de Marcus, observando os traços fortes de seu queixo, pescoço, os músculos de seus ombros saltados pelo esforço que fazia, admirada. Nunca antes estivera tão próxima a alguém jovem e forte como ele. Nem tão bonito...

Keelin fechou os olhos com força, procurando calar os recentes pensamentos.

Ele a levou até o acampamento onde seus homens des­cansavam. Com facilidade, a pôs sobre a cepa de um gran­de carvalho antes de ser cercado pelos cavaleiros curiosos. Segurou o queixo de Keelin entre os dedos, com delicade­za. Uma ponta de satisfação encheu seu coração valente, ao lembrar-se do marginal morto na floresta.

— Está sangrando — disse, observando a expressão atônita de Keelin com a notícia. Não parecia sentir-se incomodada, pensou, incrédulo, O corte, superficial e pe­queno, devia doer bastante.

— O maldito me feriu? — perguntou, surpresa, sentin­do a pele arder pela primeira vez com o toque gentil.

— Sim.

— Meu Deus! Como tudo aconteceu? — confusa, bus­cava por vagas lembranças.

— Ouvimos seu grito — falou Marcus, recebendo uma peça de roupa limpa de um de seus, companheiros e uma pequena porção de ungüento cicatrizante. — E, assim como eu, o marquês Kirkham foi até seu encontro.

— E de onde surgiu o marquês?

— Tão pouco sei, milady. Vi Kirkham atrás do celta, entre as árvores, assim que cheguei.

— Milorde — um dos cavaleiros interviu. — O lorde Kirkham avizinhava-se do acampamento quando ouvimos grito.

— Nada fiz que não fosse distraí-lo.

Kirkham o açoitou com seu chicote.

— Por isso soltou-me...

— Kirkham tem um afeto especial pelo chicote, embora seja um exímio esgrimista.

Keelin estremeceu com a fisgada que sentiu em seu recente ferimento.

— Espada ou chicote — comentou, levando um pedaço de tecido até o colo sujo do sangue que respingava de seu pescoço. — Só posso agradecer ao marquês por salvar mi­nha vida — ela procurou conter suas palavras antes de prosseguir. — E ao senhor, conde de Wrexton.

A face de Marcus enrubesceu rapidamente com o co­mentário. Sua timidez exacerbada a encantava muito mais que a força, a presença marcante ou a coragem. Ela sentiu vontade de ajeitar-lhe uma mecha revolta que caía sobre a fronte, porém, antes que sua mão o alcançasse, o marquês Kirkham adentrou a clareira.

O homem alto e forte tinha um semblante ameaçador e Keelin imaginou que sozinho teria sido capaz de afu­gentar todo o bando dos celtas.

— O que me diz, Marcus? — O grande homem nobre pronunciava palavras quase indistintas, levando Keelin a concluir que estava bêbado. — Quantos dos seus estra­gos arrumarei ainda hoje, rapaz?

Marcus não respondeu ao sarcasmo do amigo. Ao invés disso, preferiu ajudar Keelin em seu curativo.

— Milorde — interrompeu ela, irritada com a ironia do marquês. — Esqueceu-se da dor que o nobre conde carrega em seu coração? Perdeu seu pai ainda esta tarde e...

— Marcus, isso é verdade? — perguntou. A brincadeira de mau gosto fez o homem descompassado procurar redi­mir-se. — Eldred está morto?

Marcus meneou sua cabeça positivamente e saiu cami­nhando cabisbaixo. O marquês o seguiu e os dois homens desapareceram da vista de Keelin.

Ela sentiu algo terrível no marquês, além da embria­guez, mas não conseguia enxergar o que era com clareza. Talvez, o pobre homem tivesse razões pessoais para be­ber, porém sua intuição nada podia revelar-lhe naquele instante.

Tocou suavemente o corte em seu pescoço e lembrou-se de quão perto estivera da morte. O que aconteceria ao clã se Ga Buidhe an Lamhaigh fosse perdida para sempre? A urgência que sentia em retornar ao lar a alertava para os possíveis perigos que o povo de Carrauntoohil corria.

 

Marcus não sentia o frio do início da noite, dominado como estava pelo calor da cólera.

A sensação dos braços de Keelin envolvendo seu corpo, abraçando-o, não permitiria que desfrutasse breves mo­mentos de descanso conforme planejara. Tudo o que con­seguiria fazer era lembrar-se da suavidade, dos gestos ele­gantes, da pele macia, o brilho dos cabelos negros e o fogo que queimava dentro dos imensos olhos verdes da mulher que o fascinara desde o primeiro instante.

Transpôs o acampamento dos cavaleiros juntamente com Nicholas tentando lhe resumir as informações que obtivera sobre os mercenários celtas.

O marquês, muito mais moderado, ouvia suas palavras com atenção, sem expressar nenhum sentimento.

— Lamento minha gafe, meu caro Marcus — finalizou Nicholas, entediado. — Eldred era um homem bom e jus­to, e muito me entristece sua morte.

Marcus agradeceu as condolências do amigo antes de prosseguir.

— Dois homens seguiram até Chester com a missão de trazerem o bispo. Ao alcançarem nossas terras, iniciarão o réquiem[1].

— E quando partirá?

— Não estou bem certo — replicou. — Adam foi gra­vemente ferido. Lady Keelin saberá nos dizer qual o mo­mento mais seguro para a viagem.

— Quem é esta mulher? — questionou o marquês. — Ela mesma admitiu que é a causa de toda essa aflição, não é mesmo?

Marcus fitava o homem acusador sem saber se concor­dava com suas palavras ou não. Ainda que tivesse moti­vos, não seria capaz de lançar sobre Keelin a responsa­bilidade pela morte de seu pai. Era uma pobre vítima, assim como qualquer um deles.

— É evidente que a moça precisa de proteção — retru­cou irritado. — Quando Adam puder retornar a Wrexton, lady Keelin e seu tio seguirão conosco.

Fez-se profundo silêncio por um instante, então o mar­quês, com grande habilidade sarcástica, riu alto, batendo levemente no ombro de Marcus.

— O mesmo cavalheiro cortês de sempre, não é, conde de Wrexton?

Marcus não se vangloriava de resguardar os mais fra­cos e desprotegidos. O que o marquês chamava de cortesia era, para ele, uma questão de honra. Apesar dos comen­tários irônicos que sempre fora obrigado a ouvir por seus gestos prestativos, preferia ignorar o que acreditava não ser mais que provocação.

 

O jovem Adam tossiu dolorosamente e moveu-se com dificuldade. Keelin, afastando-se por alguns instantes do corpo do rapazinho ferido, voltou suas atenções para o tio.

Ela não tinha a intenção de falar a Tiarnan sobre o episódio com o Mageean na floresta, nem mesmo sobre o estranho sentimento que a dominava desde o primeiro momento que vira Marcus adentrar o minúsculo chalé que dividiam. Seu tio ainda precisava recuperar-se do último abatimento que o afligia para ouvir as últimas novidades.

Ao redor da pequena choupana vários homens ergue­ram tendas simples e acenderam uma fogueira para afas­tar o frio da noite. Um dos cavaleiros cozinhava sobre as chamas, enquanto Marcus, em pé ao seu lado, distraía-se em inúmeros pensamentos.

Keelin os observava da janela, e percebeu quando a voz máscula e agradável de Marcus ecoou pelo alojamento improvisado.

— Sir Henrie, ao primeiro raio de luz, Thomas, Arthur e você retornarão a Wrexton. Comunique a todos a mor­te de meu pai e administre os preparativos para o seu funeral.

Keelin assistia a Marcus vestir o manto do comando entre seus cavaleiros e esconder sob ele toda a dor de sua alma. Enquanto admirava sua determinada competência, ela lembrou-se do dia da morte de seu próprio pai. Ruairc Mageean vencera uma batalha, mas Keelin reunira suas forças para escapar, levando consigo o talismã sagrado, salvando seu clã de um destino muito pior.

Mais uma vez, sentia-se dominada pela saudade de Carrauntoohil e da companhia de seu povo. Estivera fora por longos anos e, durante todo esse tempo, pouco contato tivera com outra pessoa que não seu tio Tiarnan. Viviam escondidos a maior parte do tempo, raramente indo até as cidades ou vilas e somente para comprar o necessário. Apesar de Tiarnan ser um tio adorável e uma companhia agradável, Keelin sentia falta da companhia e da camaradagem dos jovens. Sonhava com o dia em que pudesse ser mais que sobrinha de alguém. Desejava ser esposa e mãe. Dona de um grande lar cheio de crianças.

— Que tipo de homem é ele? — perguntou Tiarnan, interrompendo os devaneios juvenis de Keelin.

— Quem, tio?

— O jovem lorde — replicou. — De Grant.

— Bem, é... — Keelin hesitou. — É um homem alto.

— Oh, isso eu também poderia dizer.

— E muito discreto — acrescentou. — E dá ordens aos seus homens desde que o sol se pôs.

— Um excelente líder...

— Sim, suponho que tenha sido testado antes desta tarde — disse. — Seu pai, o conde de Wrexton, veio a falecer hoje.

— O herdeiro possui as qualidades necessárias. Como é fisicamente?

Keelin sentiu um curto calafrio e cruzou os braços em torno do corpo com rapidez. Marcus a fazia relembrar os príncipes dos velhos contos de fadas que ouvira em sua infância. Era forte, corajoso e as boas maneiras assegu­ravam absoluta confiança em seus atos, apesar de enru­bescer, tímido, com sua presença.

— Acho que pode imaginar, tio Tiarnan.

— Como assim, mocinha? Não posso adivinhar o rosto de Marcus de Grant.

Adam movimentou-se sobre a cama, clamando por aten­ção. Sua voz fraca e fina assemelhava-se a um gemido.

— Marcus...

Keelin caminhou até o encontro do menino ferido, re­costando-se junto ao leito.

— Chamaremos seu primo, Adam — disse. — Precisa de algo? — perguntou, enxugando-lhe pequenas gotas de suor que escorriam na fronte.

— Marcus...

Ela ergueu os olhos na direção de sir Roger, que aden­trava o humilde cômodo naquele instante, fazendo-o com­preender seu pedido.

 

Keelin O'Shea escondia-lhe alguma coisa, pensava Marcus, persuadido por suas suspeitas, tão certo disso como estava de seu próprio nome.

Assim que Adam se recuperasse, deixaria a humilde residência o quanto antes, decidiu. Sua coragem e a recém-adquirida capacidade de dialogar com jovens adoráveis a qualquer momento desapareceria por completo. Du­vidava que seria capaz de juntar novamente duas pala­vras coerentes que fosse na presença de Keelin.

Ela tentava ocultar-lhe o verdadeiro motivo da perse­guição dos Mageean. Sabia que uma rivalidade familiar não levaria os guerreiros até a Inglaterra. Tentavam capturar algo mais valioso. Mas o que seria?

Talvez Ruairc Mageean a desejasse como esposa. Aque­la era uma possibilidade real. Era uma mulher atraente e qualquer homem desviaria seu destino para tê-la ao seu lado, pensou, afastando inusitados pensamentos libidino­sos que o assombraram.

Todavia, sendo essa a razão de sua fuga interminável, Keelin não teria motivos para esconder-lhe a verdade. Qualquer jovem em semelhante situação buscaria por compaixão e clamaria proteção dos predatórios Mageean.

A menos que sua mão estivesse prometida ao líder celta e ela fugisse de...

— Milorde — A voz de sir Roger atravessou a escuridão da noite, rompendo sua corrente de pensamentos. — Milady manda chamá-lo — disse o homem. — O menino Adam acordou e pede para vê-lo.

— Como está ele? — perguntou gravemente.

— Melhor que o previsto, milorde — o cavaleiro respondeu de pronto. — Lady Keelin disse que Adam recla­ma da dor insuportável e chora amargamente a morte de vosso pai.

Marcus abaixou a cabeça, entristecido. Que conforto poderia oferecer ao pobre garoto? Eldred estava morto e nada, nem ninguém, poderia mudar a dura realidade.

Curvando-se sob o batente da estreita porta de entrada do chalé, Marcus viu Keelin enxugando gentilmente a tes­ta de seu primo com uma toalha branca, sentada ao lado da cama, repetindo doces palavras de encorajamento e acariciando-lhe os cabelos. Adam parecia completamente relaxado sob seus cuidados.

As mãos carinhosas de Keelin despertaram em Marcus um profundo desejo de também se deixar atar por tão generosos tratos.

— Marcus?

A voz de Adam o fez acordar subitamente. Caminhou devagar até o leito onde repousava o primo muito pálido. O denso curativo em suas costas chamou-lhe a atenção.

— Descanse — disse Marcus, levando uma das mãos até a cabeça do menino.

— Sente-se, milorde — disse Keelin, levantando-se do assento onde estava acomodada.

Ela segurou o braço de Marcus por alguns instantes antes de virar-se por completo e tomar distância.

Marcus caiu sentado sobre o pequeno banco, ainda em choque pelo contato da pele de Keelin junto a sua.

— Marcus — Adam voltou a chamá-lo. — É verdade que seu pai... o tio Eldred está morto?

— Sim — suspirou.

— Não pode ser — o garoto protestou com firmeza. — Eu o amava!

— Eu também, Adam — retrucou. — Eu também...

— Quando penso nisso — disse o menino. — Sinto von­tade de chorar.

— Então, chore. Irá se sentir melhor depois disso. Adam cerrou os olhos úmidos por alguns instantes an­tes de prosseguir.

— Já chorou alguma vez, Marcus?

 

Keelin aproximou-se de seu tio, buscando oferecer aos visitantes a privacidade que o momento exigia. Mas o reduzido espaço não a impedia de ouvir a conversa entre eles. A pergunta direta do infeliz menino a Marcus des­pertou sua atenção para a resposta.

— Sim, Adam — disse, com a voz abalada pela emoção. Keelin resistiu ao ímpeto de ir até Marcus e envolvê-lo entre seus braços, dando-lhe paz e conforto. Sabia como ninguém a dor que os dois rapazes dividiam naquela noi­te. Algo muito parecido a levara a afastar-se para sempre de sua família e de sua casa.

Tiarnan alcançou sua mão, desviando sua atenção de Marcus que, minutos depois, dirigiu-lhe a palavra com gentileza.

— Lady Keelin, quando Adam estará em condições de viajar? — perguntou, sem desviar os olhos do primo.

Keelin afastou-se do tio, aproximando-se da cama onde repousava o garoto ferido.

— Mais dois dias, milorde — respondeu. — Antes disso não deve ser removido do chalé.

— Como pode ter certeza disso?

Ela ergueu os ombros, sem palavras.

— Dois dias é o tempo que Adam precisa para se re­cuperar. Somente então será capaz de atravessar a flo­resta em uma paleta.

Marcus meneou a cabeça em discordância.

— Dois dias é tempo demais. Se os bárbaros armados retornarem...

— Não virão, milorde. Acredite em mim — Keelin o interrompeu, confiante.

Ele voltou-se em sua direção, fitando mais uma vez seus imensos olhos verdes. Apesar da aparente tranqüilidade, não tinha motivos para acreditar no que ela lhe dizia, especialmente depois de quase ter sido morta mi­nutos atrás pelo celta escondido no meio da floresta.

— Prepare-se para partir dentro de dois dias — orde­nou ele. — Seu tio e você seguirão conosco até Wrexton.

— Estaremos prontos — respondeu Keelin, aliviada. Aquilo era exatamente o que planejara. Deixaria seu tio Tiarnan protegido atrás das muralhas de Wrexton e retornaria a Kerry sozinha. — Qual é a distância daqui até Wrexton, milorde?

— Poucas horas de jornada, mas agora...

Uma batida violenta na porta da choupana assustou a todos os presentes. Sir Edward a abriu rapidamente e entrou no pequeno cômodo junto com outro cavaleiro do grupo.

— Milorde — disse, aflito. — Homens a cavalo estão se aproximando.

Marcus levantou-se imediatamente, desembainhando sua espada com ágil habilidade.

— Estamos a postos? — perguntou com segurança. Sua coragem não hesitava diante do inimigo próximo.

— Sim, milorde — replicou o cavaleiro.

— Serão os mesmos guerreiros bárbaros? — indagou Adam, aterrorizado.

Keelin, após acompanhar os homens armados saírem pela porta, preocupada, agachou-se ao seu lado, respon­dendo-lhe a pergunta.

— Não, rapazinho — disse suavemente. — Não são eles — Ela ainda acreditava em sua capacidade de intuir a presença dos Mageean, apesar do susto próximo ao riacho. Quem seriam, então, os cavaleiros que vinham ao encontro da humilde residência, naquela noite? — Tio? O senhor balançou a cabeça negativamente.

— Não sei quem são, minha sobrinha.

— Então — prosseguiu, sentando-se ao lado do leito de Adam. — Esperaremos por breves notícias.

 

Quem quer que fossem os cavaleiros, amigos ou inimigos, Marcus sentia-se agradecido pelo grande alívio que a inesperada chegada lhe causara. Temia por seu estado emocional se precisasse permanecer mais alguns segundos na frente da bela Keelin. Tivera muita sorte ao ser chamado até o lado de fora do chalé antes que desmaiasse junto aos seus pés. Será que havia dito alguma palavra sem sentido?

Não, ao que tudo indicava.

Os estranhos cavaleiros aproximaram-se, saudando os moradores, num gesto de paz, antes de adentrarem a cla­reira iluminada pelo fogo. Eram os últimos homens de Nicholas Hawken que haviam permanecido em vigília no local da batalha vespertina, aguardando que os guerreiros voltassem para reclamar os corpos dos celtas mortos no combate.

Sem novidades, os homens de Kirkhan dividiram tare­fas com os cavaleiros de Wrexton, antes de abrigarem-se sob as tendas.

Marcus vagava pelo terreno baldio que contornava o casebre abandonado onde Keelin e seu tio escondiam-se, lembrando-se do primo, aconchegado entre os afagos e cuidados amorosos que ela lhe oferecia e desejou estar em seu lugar.

Uma forte coloração avermelhada cobriu suas boche­chas muito quentes juntamente com o pensamento audaz.

Era o novo conde de Wrexton agora, pensou Marcus. Já era tempo de controlar a terrível timidez que o asso­lava cada vez que se aproximava de uma jovem. Aquilo era ridículo!

Precisava ser capaz de conversar calmamente com uma mulher, sem sentir-se tão tolo e tropeçar nas palavras, demonstrando seu desconcerto.

Ouvia as vozes sussurrantes dos homens alojados em suas tendas e o trepidar das chamas na fogueira. O céu, muito escuro, não tinha estrelas naquela noite. Chuva próxima, imaginou, procurando distrair-se. Precisava vol­tar até a humilde residência onde seu primo convalescia.

Finalmente, encheu-se de coragem e caminhou, titubeante, até o chalé, carregado de tristeza e amargura.

Keelin oferecia a Adam um esboço de sua preciosa ca­ridade, sentada ao seu lado, assistindo ao sono agitado e dolorido do garoto. Um clima de serenidade e paz reinava dentro da pequena choupana. Tiarnan ressonava baixi­nho, quebrando o total silêncio. De onde estava, podia ouvir as vozes dos homens acampados na vizinhança e concluir, aliviada, que o temido confronto não acontecera realmente.

Marcus, em breve, retornaria à companhia do primo ferido. Keelin sabia que não havia porque temê-lo, porém, desejava manter distância dele tanto quanto fosse possí­vel. Não o odiava por saber que desmerecia seu povo, afi­nal, os celtas eram os responsáveis pela morte de seu pai. Somente gostaria... bem, imaginava que talvez Marcus pudesse ficar ao seu lado sem demonstrar tamanho des­compasso.

A súbita chegada da comitiva no chalé naquela noite fizera Keelin refletir sobre a absoluta solidão em que vi­vera nos últimos anos. Claro, dividia seus dias com o ama­do tio Tiarnan com prazer, mas não era isso que a inco­modava. Sonhava com a companhia de um homem, um marido. Alguém forte e generoso como Marcus.

Jamais se sentira tão viva antes como quando estivera entrelaçada entre seus braços protetores, pensou.

Na verdade, Marcus a carregara porque era um per­feito cavalheiro, com bons modos e educação esmerada. A vira caída como uma folha seca perdida com os ventos do outono e comoveu-se. Todavia, sua preocupação com seu bem-estar acendera em seu coração sentimentos e emoções nunca antes conhecidos, despertando o desejo secreto de possuir algo que não era possível.

Talvez, quando retornasse à Irlanda e conhecesse o pretendente escolhido por seu pai, sentisse aquela mesma sensação. Talvez...

Sob a luz bruxuleante da lareira, buscou o pente e o xale no velho baú de viagem. Desfez os nós de seus cabe­los, mantendo-os soltos sobre os ombros e recobriu-se com o tecido grosso de lã.

Durante todos aqueles anos de exílio, preferiu esconder de si mesma o peso da solidão. Mas agora todos seus mais profundos sentimentos vinham à tona, incontroláveis. Cuidava de Tiarnan com carinho. Ajudava-o a se levan­tar, oferecia-lhe boa comida, negociava mercadorias nas vilas e os mantinha o mais longe possível dos terríveis Mageean.

Jamais aceitaria outro comportamento que não aquele. Procurava esquecer seus sonhos sobre casamento e filhos. Pensar nos anos perdidos, fugindo de um lugar para outro era algo muito doloroso.

Keelin prometeu não chorar, não agora que tinha tan­tas obrigações e deveres a cumprir. Adam e seu tio pre­cisavam de seu auxílio. Havia muitos planos a serem feitos antes da viagem para Wrexton. Não existia tempo para tolas lamentações e autopiedade.

 

Marcus atravessou a porta do casebre onde seu primo ferido se recuperava. Tudo permanecia do mesmo jeito que antes, quando saiu. A única diferença é que, agora, estava sozinho na companhia de Keelin que ajeitava as roupas no velho baú. Nenhum outro cavaleiro guardava o leito de Adam e o velho tio dormia profundamente.

A essência das ervas aromáticas ao fogo impregnava o ambiente e a temperatura era bastante agradável. Keelin virou-se em sua direção. Tinha os longos cabelos negros soltos sobre os ombros e seus movimentos, muito leves, eram quase mágicos. Existia uma grande tristeza escon­dida no coração de Keelin que não conseguia descobrir qual era.

— Milorde? — sussurrou ela.

— Deite-se próximo ao fogo — disse, desviando a aten­ção dos meigos olhos verdes de Keelin. — Passarei a noite ao lado de Adam.

— Está tudo bem? — perguntou com voz suave. — Quem eram os cavaleiros?

Ele abaixou os olhos timidamente.

— Eram os homens de Kirkham. Caçavam os celtas pela floresta.

— Encontraram algum deles?

— Não, lady Keelin, nenhum de seus compatriotas foi encontrado — comentou com frieza, aproximando-se do menino adormecido. — Como vai o rapaz?

— Eu lhe servi um tônico que o ajudou a dormir. Marcus tocou levemente a testa do garoto.

— Não parece febril.

Keelin concordou em silêncio. Ela sabia que a febre surgiria em breve.

Desanimado, Marcus afastou uma pequena mecha de cabelo da fronte de Adam. A vida era tão frágil, pensou, e a enormidade de sua perda parecia cada vez maior com a chegada da noite. Primeiro seu pai perdera a vida e agora Adam... Será que também morreria?

Não, não suportaria tamanha dor. Preferia não pensar naquela possibilidade. Seu coração amargurado enchia-se de tristeza e solidão ao ver o primo gravemente ferido.

Observou Keelin que estendia um cobertor sobre o rús­tico chão do chalé. Sentou-se graciosamente, cruzando as pernas sobre o corpo e tirou um pente de dentro de seu bolso. Começou a pentear os longos cabelos negros sem notar que Marcus a admirava.

Seduzido pelo quadro inesperado, Marcus sentou-se, hipnotizado, assistindo o deslizar suave do pente por entre os fios compridos e brilhantes dos cabelos de Keelin. Ima­ginou as mechas longas roçando sua pele nua, cobrindo-a como um manto. Com espanto, observou a reação instan­tânea de seu corpo ao visualizar Keelin sem a pesada in­dumentária que usava. Estava completamente coberta aquela noite, porém, ele podia enxergar sob o grosso xale de lã as formas femininas do corpo lânguido e sensual.

Chocado com o rumo de seus pensamentos, tentou men­talizar os planos para o regresso a Wrexton. O futuro o preocupava, apesar da imagem de Keelin, comodamente sentada sobre o cobertor, ainda enfeitiçá-lo.

Dentro de dois dias, Adam estaria em casa, deitado em sua cama, recebendo os cuidados da prima Isolda Colte e das criadas do castelo. O bispo de Chester abençoaria o corpo de seu pai e o primeiro dos Grant seria enterrado nas criptas de Wrexton. Eldred recebera o título de conde de um distante parente, Edmund Sandborn, ainda jovem e preparara Marcus desde criança para sucedê-lo.

Então, a vida seguiria como sempre. O inverno não tardaria sobre os campos ingleses e...

— Milorde — a voz melódica de Keelin quebrou o si­lêncio do quarto. Marcus virou-se e a viu esforçando-se para retirar o curativo do pescoço machucado. — Pode me ajudar, por gentileza? — pediu, erguendo-se do chão.

Marcus levantou-se com rapidez de seu assento, cons­ciente do anseio de fazer muito mais do que ela lhe pedia. Keelin freou seus passos recostando seu corpo ao dele.

As mãos de Marcus queimavam como brasas ao tocar a pele alva no pescoço de Keelin.

Era mais alta que a maioria das mulheres. O alto de sua cabeça roçava-lhe o nariz. Marcus precisou curvar-se para socorrê-la com o curativo. Ele respirou profunda­mente, tentando manter-se concentrado no corte e no te­cido enveredado na pele ferida. Seria preciso puxar o te­cido preso ao ferimento e aquilo a faria sofrer, pensou aflito.

Marcus percebeu um leve tremor de dor no queixo de Keelin quando arrancou com rapidez o tecido sujo de san­gue e o despertar de uma lágrima brilhante como cristal em seu olhar valente.

Ela tentou desviar o rosto, mas Marcus o segurou entre as mãos, impedindo-a de escapar. Com o polegar, enxugou a lágrima que começava a rolar pela face corada. A fra­gilidade que deixava transparecer o fizera sentir-se mais à vontade para tocá-la.

Surpreendida pela lágrima displicente, Keelin, enver­gonhada pela sua fraqueza, corou com o gesto delicado. Podia ver os olhos de Marcus fixos em seus lábios e, sem força para reagir, permitiu o toque mais íntimo.

Como um amante experiente, Marcus encostou a boca entreaberta em seus lábios quentes, sentindo o hálito fresco e doce e os sugou delicadamente antes de afastar-se devagar.

Na imensidão verde dos olhos plácidos de Keelin encontrou coragem para prosseguir, voltando a beijá-la, des­ta vez com mais vigor e audácia.

Beijar parecia algo muito natural, pensou, sentindo as mãos dela enlaçarem sua nuca, tocando-lhe com carinho. O torvelinho de emoções que desabrochavam em seu peito era o quê, na verdade, o assustava. Envolveu Keelin entre seus braços com ternura; O calor de seus seios junto a ele fez seu tímido coração disparar acelerado.

Todos os músculos de seu corpo reagiam àquele contato amoroso. Não existiam obstáculos entre eles, pensou Marcus, sentido o calor do sangue que corria por suas veias com rapidez e a alma ardente de desejo. Jamais experi­mentara nada parecido, nada tão...

Subitamente, afastou os lábios úmidos da boca de Kee­lin. Estava enlouquecendo! Adam convalescia sobre o leito ao seu lado e seu pai, seu pobre pai estava morto para sempre.

Keelin.

Ainda em pé, ela encarava-o, perplexa.

Ambos permaneceram em silêncio durante longos se­gundos, antes de começarem a falar, ao mesmo instante.

— Perdoe-me, milady.

— Milorde, eu...

Então, exceto pelo ronco suave de Tiarnan que dormia profundamente, fez-se novo silêncio em todo o cômodo.

Quando se sentiu confiante e sob controle outra vez, Marcus a questionou.

— Por que chorava?

— Por nada — respondeu ainda trêmula, encenando, uma falsa tranqüilidade, como se vários outros cavaleiros adentrassem pela soleira de sua porta e a beijassem com grande freqüência. — Vivemos um terrível dia, só isso.

Marcus sabia que a mesma tristeza que sombreava a visão de Keelin quando entrou no chalé, minutos antes, voltava a atormentá-la. E alguma coisa mais. Espanto? Também se sentia espantado com sua reação e como im­petuoso beijo. Absolutamente espantado.

Keelin sentia a pele do rosto incandescer e o sangue de seu corpo fervilhar, como se estivesse em chamas. Ten­tava recompor-se e entender os motivos que levaram Mar­cus a retrair-se. Por que se desculpava por beijá-la? Não compreendia porque estava tão arrependido e, a única idéia que lhe ocorria em toda a sua inexperiência, era que havia feito algo que o desagradara.

Não, não parecia desgostoso, concluiu, vendo-o sentar-se outra vez ao lado do primo. Seu peito ofegante a fazia lembrar-se de um corredor após percorrer milhas de distân­cia e seus olhos brilhavam com muita intensidade. Sua atitude fora completamente inesperada. Ela se lembrou do calor de sua pele, agradável como os primeiros raios de sol da manhã.

O grande tórax forte e musculoso de Marcus a fizera sentir-se frágil e delicada em seus braços. Nenhuma de suas visões jamais a fizeram tremer tanto como aquele beijo.

Marcus era, sem dúvida, o homem mais atraente que encontrara em toda sua vida, na Inglaterra ou na Irlanda. Poderia admirar seu belo rosto por toda a eternidade, pensou encantada.

Todavia, a imagem de Marcus sentado ao lado do leito do primo começara a ser ofuscada por espessa nuvem cin­za. Keelin fechou os olhos com força e voltou a abri-los, na esperança de afastar o incômodo, mas sua visão pare­cia ainda mais obscurecida. Em poucos segundos teria mais uma de suas visões, pensou assustada, cerrando os olhos na tentativa de afastar o fantasma da intuição.

Sentiu Marcus aproximar-se do lugar onde estava, mas logo em seguida a imagem de Comarc O'Shea, seu primo, atual chefe do clã Ui Sheaghda envolto pelo céu cinzento do Kerry. Seus pressentimentos não estavam errados. Al­go de muito ruim acontecia em seu antigo lar. E assim iniciou-se a terrível visão...

Testemunhava sangrenta batalha e o clangor de metal contra metal, os gritos dos homens furiosos, o choro de mulheres desesperadas era ensurdecedor. Não conseguia precisar onde estava, no passado ou no futuro.

Comarc lutava ferozmente contra o oponente e seus formidáveis músculos pulsavam a cada estocada de sua espada. Mas o inimigo ganhou forças diante do seu can­saço eminente e, em vantagem, derrubou-o sobre o chão barrento.

Não, balbuciou Keelin, trêmula de pavor. As paredes encardidas do pequeno chalé desviaram sua atenção do tenebroso espetáculo que assistia. Havia um forte cheiro de sangue e uma estranha nuvem encobria os homens que lutavam. Viu os telhados em chamas da pequena vila de Carrauntoohil e tossiu, intoxicada pela fumaça.

Comarc fora violentamente desarmado. Ouviu um riso macabro de satisfação anteceder o golpe final. O metal afiado da espada do inimigo atravessou o peito de seu primo.

Keelin encolheu-se diante do quadro de horror que ex­plodira em sua mente. Comarc estava morto. Era incapaz de calar as imagens, os cheiros e os sons, por mais que quisesse.

Duas mãos fortes seguraram o cabo da espada assas­sina, cravada no peito de Comarc, arrancando-a com um movimento brutal.

Um grito de vitória em galês ecoou por toda a vila des­truída. Keelin pode então enxergar o rosto do mercenário que matara seu primo, erguendo a espada onde ainda escorria o sangue de Comarc, sobre a cabeça.

 

Marcus segurou o corpo desfalecido de Keelin e o levou até o cobertor estendido no chão da humilde choupana. Inconsciente, ela debatia-se com violência, como alguém com febre muito alta.

Ele não conseguia entender o que acontecera. Num mo­mento beijavam-se ardentemente e no outro Keelin tinha os olhos recobertos pelo pavor e murmurava frases sem sentido. Não era tolo a ponto de imaginar que seu beijo a afetara daquela maneira, porém não conseguia enten­der o que havia de errado com ela.

Tentou reanimá-la várias vezes, falando-lhe suave­mente aos ouvidos e esfregando-lhe as mãos, porém seus esforços eram inúteis. Estava profundamente inconscien­te. Temeroso, Marcus não viu outra alternativa que não acordar o velho tio.

Relutante, caminhou até o leito onde Tiarnan repou­sava tranquilamente.

— Levante-se — disse ao senhor deitado, mantendo a voz muito baixa. — Algo de muito grave aconteceu a sua sobrinha. Estava bem num instante e no outro...

— No outro... — insistiu Tiarnan, procurando entender o que acontecera no minúsculo cômodo enquanto dormia.

— Não sei — replicou confuso. — Não conseguia mais me ver. Era como se seus olhos escurecessem aos poucos, encobertos por uma nuvem negra de mistério...

O senhor tossiu algumas vezes antes de emendar o co­mentário de Marcus.

— Falou algo?

— Sim, palavras sem sentido aparente. Treme como se tivesse visto um fantasma — respondeu, agradecendo aos céus por imaginar que o velho tio compreendia o que se passava no chalé aquela noite.

— Oh, minha pobre sobrinha não merecia sofrer tanto assim — resmungou Tiarnan, tentando controlar a tosse que o consumia cada vez mais. — Tivera uma tenebrosa visão. Estava segurando a lança ou só...

— Que lança? — perguntou Marcus, frustrado com os enigmas do velho.

— Oh, bom Deus! Que triste poder tem Keelin! Está ainda desacordada?

— De que poder está falando? Seja mais claro, O'Shea.

— Será difícil entender, meu rapaz — falou o senhor enfraquecido pela doença. — Que noite fria! Gostaria de poder ajudar minha sobrinha, mas sem meus olhos, pouco posso fazer. Deite-se junto a ela, De Grant, e a envolva num dos nossos poucos cobertores. Divida o calor de seu corpo com Keelin enquanto tento explicar-lhe o cruel des­tino da pobre jovem.

Com o coração disparado, Marcus seguiu as instruções do velho cego e sentou-se junto a Keelin no chão frio do casebre. Levou-a de encontro ao seu peito carinhosamente e a cobriu com uma velha manta puída pelo tempo. Seu rosto estava pálido e mantinha a mesma expressão de terror de minutos atrás. Era difícil para ele conceber que aquele era o mesmo corpo vibrante e quente que o abra­çara com tanta ternura.

— Diga, O'Shea. O que assombra sua sobrinha? Após um longo acesso de tosse, Tiarnan sentiu-se capaz de prosseguir. Finalmente, limpou a garganta e iniciou a conversa.

— Keelin recebeu um presente — o velho homem falava com dificuldade. — Embora não o veja dessa forma.

— Fale claramente. Que presente é esse?

— Tem visões — explicou. — Desde muito pequena, consegue enxergar o que nenhum de nós pode ver. Em nosso clã chamavam seu dom de "segunda visão". Talvez aqui na Inglaterra receba outro nome. Porém, qualquer que sejam as palavras usadas para descrever a infalível intuição de minha sobrinha, o poder de prever o futuro continuará assustando a todos nós. Quando toca a Ga Buidhe an Lamhaigh seu poder aumenta várias vezes e isso ninguém pode entender o porquê.

— O que é Ga Buidhe...

— Ga Buidhe an Lamhaigh é a lança sagrada de nosso povo. Há muitos anos atrás o líder do clã, o ancião O'Shea a recebeu das mãos divinas de Diarmaid, esposa do Deus-Sol. Não pense que se trata apenas de rituais pagãos, meu bom rapaz. A lança foi abençoada por Saint Bridget quando Cathair Sheaghda era ainda uma menina.

— Não estou com paciência para seus contos infantis, O'Shea. Como posso ajudar lady Keelin a não padecer dessa forma?

— Infelizmente, não podemos ajudá-la. Por enquanto, o calor de seu corpo servirá de consolo ao coração assom­brado de Keelin. Mantenha-a aquecida e ouça o que cha­ma de "contos infantis" para entender o drama que a persegue.

— Fale mais abertamente, por gentileza — Marcus pediu.

— Keelin nasceu com o dom de prever acontecimentos — continuou Tiarnan. — Assim como sua mãe. Pode "ver" o futuro e as suas fatalidades. E nos comunicar sobre os caminhos que nos levarão ao perigo.

— Está me dizendo que lady Keelin foi enfeitiçada?

— Não, rapaz — interviu Tiarnan austeramente. — Não se trata de um feitiço! A jovem recebeu uma bênção, um raro presente passado de mãe para filha, ao longo de muitas gerações. Minha sobrinha deve ter visto algo de muito ruim esta noite.

Se alguém estava enfeitiçado ali, era ele, pensou Marcus. Num único dia havia falado com ela, a tocado e a beijado, nada comparado com os vinte e seis anos que passara fugindo das jovens da corte e de sua excessiva timidez.

A fria expressão no rosto de Keelin, inconsciente entre seus braços o fazia imaginar que talvez estivesse possuída por um espírito maligno. Sabia que existiam muitos mis­térios no mundo, coisas que jamais experimentaria pes­soalmente.

Marcus a recolheu em afetuoso abraço, a protegendo de todos os perigos. Não parecia tão fria quanto antes, apesar do tremor persistente. Um desejo irracional o do­minava, enquanto sentia o corpo desfalecido de Keelin próximo ao seu.

Seria bruxaria? Ou uma bênção, como o tio insistia? Não conseguia ver nada além de inocência e fragilidade no rosto delicado e belo de Keelin.

— Por que diz isso?

— Bem... não é uma coisa simples de explicar — Tiar­nan esfregava os dedos na barba amarelada. — Durante todos esses anos, Keelin teve visões que a adormeceram somente duas vezes longe da Ga Buidhe an Lamhaigh .

— Adormecer?

— Sim — replicou Tiarnan. — Perder os sentidos, como pode ver agora. A primeira vez foi há muito tempo atrás, quando ainda era uma garotinha e seu irmão afogava-se.

— O que aconteceu? — Marcus perguntou.

— Oh, que triste dia! Nosso pequeno Brian O'Shea nos abandonaria para sempre... — prosseguiu. — Era início da primavera. Um plácido dia como qualquer outro, em qualquer semana. Corajosos raios de sol afastavam o in­verno e um verde esplendoroso voltara sobre nossos cam­pos. Estávamos, Keelin e eu, junto às muralhas de Carrauntoohil. Trabalhava calmamente enquanto observava a garotinha brincar com sua boneca de retalhos. Todos os homens jovens e fortes do clã haviam saído para caçar naquela manhã e as mulheres podiam gastar mais tempo que o comum em suas tarefas rotineiras. Eles deixaram a vila rumo ao rio, esquecendo-se da força das águas com a chegada da primavera. Keelin viu a morte de seu irmão. A visão surgiu sem aviso e muito longe da lança mágica de nosso povo.

— Jamais havia acontecido assim?

— Não — disse o velho homem. — Nem mesmo com sua mãe. O presente de Keelin é poderoso. Ninguém em nosso clã teve as experiências de clarividência tão fortes como minha sobrinha tem. Ela pôde assistir a morte de seu irmão assim como os homens que cruzavam o rio de bote. O infeliz Brian caiu do bote agitado e perdeu-se nas águas violentas para sempre. Não seria esta a última vez que Keelin assistiria a morte de queridos familiares. Seu pai, Eocaidh morreria anos depois, num sangrento com­bate com Ruairc Mageean.

— Acredita que foi isso o que aconteceu? Ela previu alguma morte?

— Sim — replicou Tiarnan. — Minha sobrinha pode prever alguns acontecimentos. Premonições. Agora, quan­do segura a lança entre suas mãos, Keelin pode ter visões, cheias de vida e realismo.

Marcus preferiu não discutir o comentário do velho tio. Observou o rosto adormecido de Keelin em seu colo e bus­cou alguma solução para aquele terrível problema. Po­rém, nenhuma resposta seguiu as suas perguntas.

— Se for generoso como posso imaginar, milorde, aque­ça minha pobre menina até o pior passar.

Marcus tinha muitos motivos para continuar abraçado a Keelin. Olhou de soslaio para Adam que dormia pro­fundamente no outro canto do cômodo e procurou ajeitar-se sobre o chão duro. A aqueceria com o seu calor até quando fosse preciso.

Keelin recuperou total consciência somente ao alvore­cer do novo dia. Durante a noite, tivera poucos momentos de lucidez. Sentira os braços fortes de Marcus contra suas costas, segurando-lhe os ombros contra seu corpo e, sem entender o que acontecia, voltava a embalar-se num sono agitado. Ouvia as palavras de encorajamento que ele lhe dizia junto ao ouvido, mas não conseguiu responder a ne­nhuma delas.

Sua mente ainda estava confusa e ela não conseguia juntar, sozinha, todos os eventos do dia anterior nem co­mo havia adormecido nos braços de Marcus.

Apesar dos braços firmes contornando seu corpo, ao despertar, Keelin imaginou que Marcus estivesse dormin­do. Ela manteve a cabeça colada ao seu peito e sentiu a leve ondulação calma e tranqüila de sua respiração regu­lar, deliciando-se com a sensação de proteção que aquele abraço oferecia-lhe.

A barba de Marcus começava a despontar sobre seu queixo e Keelin não conteve o impulso de roçar a testa contra os fios curtos e levemente ásperos.

— Humm... — resmungou Marcus, ainda adormecido, apertando-a com mais força contra seu corpo.

Keelin estremeceu, mas não de frio. Uma estranha sen­sação a dominara por completo, algo que jamais experi­mentara antes. Sentiu-se compelida a esfregar mais uma vez sua pele contra a dele. Um cheiro doce, de água de rio, emanava da pele muito limpa. Ela lembrou-se de seu corpo seminu na beira do riacho e ergueu a cabeça para ver-lhe o belo rosto aristocrático, o contorno delicado de seus olhos, nariz queixo...

Uma urgência inexplicável a dominou. Precisava sentir o gosto de Marcus, tocar-lhe mais uma vez os lábios quen­tes, sentir seu hálito fresco. Sua boca estava a apenas alguns dedos de distância dele, pensou, sentindo o impulso incontrolável de realizar, naquele instante, seu maior desejo.

Não! Keelin O'Shea, não! Precisava, de alguma forma, conter aquela ânsia descontrolada. Afastou-se lentamen­te do corpo de Marcus, fazendo-o despertar.

— Ah, acordou, então — disse Marcus desconfiado de suas próprias reações enquanto dormia.

Keelin meneou a cabeça afirmativamente. Ainda não conseguia recordar-se de como fora parar junto aos seus braços. Lembrava-se somente das mãos delicadas de Mar­cus arrancando-lhe o curativo preso ao ferimento em seu pescoço, o beijo inesperado, as pernas bambas...

Comarc!

Oh, bondoso Deus! Podia-se lembrar de tudo! Comarc, mortalmente ferido e Ruairc Mageean cravando-lhe a es­pada no peito.

Keelin levantou-se rapidamente sobre o cobertor ainda quente. O movimento brusco causou-lhe leve vertigem, fazendo-a cambalear.

— Calma — disse ele, ajudando-a a sentar-se.

— Menina Keelin? — Tiarnan a chamou de onde estava deitado.

— Sim, meu tio — respondeu ela, abaixando a cabeça. Sentia-se envergonhada. Marcus devia estar atordoado com os últimos acontecimentos. Podia lembrar claramen­te agora. O vulto de Marcus desaparecendo diante de seus olhos, seus passos até ela, a visão... O que poderia estar pensando?

— Como está? — questionou Tiarnan, erguendo a ca­beça sobre o ombro, procurando encontrá-la na escuridão de seus olhos cegos.

— Estou bem — exclamou, virando-se em direção a Adam. — E o menino?

— Ainda adormecido — respondeu Marcus. — Fui vê-lo há pouco.

— Não tem febre? — perguntou ela, encarando-o pela primeira vez desde que o vira acordado. Ele não parecia confuso, como imaginara. Ocultava seus sentimentos, pensou desanimada.

— Não, não tem febre. O que quer que tenha lhe ofe­recido ontem a noite foi o suficiente para que dormisse horas seguidas.

— O pobrezinho foi abençoado por Deus. Não ter febre é um bom sinal. — exclamou Tiarnan enquanto Keelin estudava minuciosamente os movimentos de Marcus.

Lembrou-se do momento em que o percebera acordado. Marcus devia sentir-se exausto. Ao longo de toda noite mantivera-se ao seu lado, abraçando-lhe o corpo trêmulo e frio. Devia achá-la louca, uma aberração da natureza de sanidade questionável. Nenhum outro homem além dos que viveram com ela no longínquo clã Ui Sheaghda poderia entender o "presente" que seguia gerações de mu­lheres de sua família.

Caminhou até a cama onde Adam repousava. Não des­conhecia a ansiedade de seu tio em saber qual havia sido a visão da noite anterior. Todavia, não sabia se teria palavras para descrever tudo o que vira. Falaria com ele depois, quando seu coração e sua mente aquietassem-se.

Acendeu uma longa vela e sentou-se para ouvir melhor. A respiração do garoto parecia leve. Nenhum prenúncio de dor ou desequilíbrio mais sério. Sua fronte estava fres­ca e seca, excelente indício de que logo estaria recuperado.

Afastou o tecido manchado de sangue de cima do corte nas costas de Adam. Nada parecia ter mudado.

Keelin preparou uma nova mistura de ervas e preen­cheu o ferimento com a pasta gordurosa. O barulho dos cavalos e dos homens do lado de fora do chalé chamavam sua atenção. Existiam outros homens feridos entre eles e precisava ajudá-los também.

Depois de observar com atenção o ferimento do primo, Marcus abandonou o humilde cômodo onde passara a noi­te para juntar-se aos homens que acampavam do lado externo da modesta residência.

O ambiente era calmo e tudo corria normalmente. De­cidiu, então, recostar-se à sombra de um velho salgueiro, a beira do riacho.

Um leve tremor tomou-lhe o corpo. A última noite que passara ao lado de Keelin, apertando seu corpo frágil con­tra o seu, não servira de descanso. A mulher mais fascinante que encontrara em sua vida era também a primeira com quem passara toda uma noite.

Sua experiência mais íntima com uma mulher havia sido anos atrás, quando ainda participava das Forças Ar­madas do rei Henrique na França.

Acampavam em Troyes quando o rei Henrique assina­ra o tratado que firmara a paz entre os dois países. Assim como todos os cavaleiros ingleses, sentia-se em júbilo e precisava comemorar a vitória. Henrique se casaria com a filha do rei da França e assumiria o trono logo após o falecimento de Charles.

Havia muito vinho no acampamento e muitos homens saíram a busca de companhia para dividir a alegria. Mar­cus embriagara-se com facilidade, já que quase nunca be­bia mais que um copo de vinho durante as refeições. Dei­xara-se seduzir por uma jovem desconhecida que lhe le­vara embora todas as moedas depois de uma noite de amor onde aprendera tudo o que é esperado de um ex­celente amante. Embora tivesse apreciado o grande pra­zer físico daquele contato, sentira-se solitário e desiludi­do ao despertar na manhã seguinte. Decidira nunca mais tocar uma mulher que não amasse de verdade. Seus pre­ciosos sentimentos valiam muito mais que qualquer ale­gria momentânea.

E até aquela noite jamais se aproximara de nenhuma outra dama. Sua excessiva timidez colaborava com o afas­tamento total das rodas de moças casadoiras da corte e com o surgimento de piadas de outros cavalheiros a seu respeito. Nunca se importara com os comentários maldo­sos e mantivera-se firme em seu propósito de procurar pela mulher de seus sonhos.

 

Marcus sentou-se à beira do riacho. Banhou-se e barbeou-se como de costume. Não fossem as lembranças, diria a si mesmo que nada mudara de fato. Era, agora, o novo conde de Wrexton e Eldred, seu pai, estava morto.

Uma nova onda de angústia abateu-se sobre ele. Seu pai tornara-se um líder forte e capaz e todo o povo de Wrexton depositara nele muita confiança. Eram mais que pai e filho, mas amigos, companheiros sempre unidos ape­sar de Eldred preocupar-se sempre em orientar o filho, educando-o pessoalmente. Reconstruíram o castelo e a vi­la, preocupados com a segurança dos habitantes e após os maravilhosos empreendimentos, Wrexton despontava com grandes promessas de prosperidade.

Mesmo que ficasse como agora, longe do mentor de ta­manhas benfeitorias.

Segurando o rosto entre as mãos, Marcus sentiu a in­felicidade de haver perdido seu pai para sempre. Se ao menos Adam recuperasse-se por completo, admitiria que Deus não o havia desamparado. A sobrevivência de seu primo era incerteza, assim como o retorno para casa e todo seu futuro. Seria capaz de assumir o título de seu pai, honrando sua família e todos os ensinamentos de Eldred?

Seus pensamentos desgostosos foram interrompidos por passos fortes e apressados pela trilha que vinha do chalé. Era Nicholas Hawken que se aproximava, afobado.

— Foi uma noite tranqüila — disse o marquês, contro­lando a aparente ansiedade.

Marcus poderia qualificar a última noite de muitas for­mas, porém jamais tranqüila. Sentia-se confuso com os recentes acontecimentos. Apesar dos sustos e tristezas, seu sangue corria mais rápido com a simples lembrança da voz de Keelin. Algo lhe dizia que deveria estar enlou­quecendo, mas preferiu se calar diante do amigo.

Caminharam juntos, cruzando os arredores à procura de pistas que os levassem aos celtas.

— Não existe sinais de fogo, nem pegadas no chão — comentou Marcus, após longo intervalo.

— Meus homens percorreram toda a vasta floresta e, além do bárbaro que atacou a jovem, nenhum outro foi encontrado.

Marcus levantou os ombros, desconfiado. Possivelmen­te o celta escondido no meio da mata despistara os ho­mens de Hawken muito bem. Aproximara-se do chalé a pé antes que dezenas de homens a cavalo o capturassem.

Um gélido sopro de ar atravessou as árvores alcançan­do Marcus que olhou para o céu a procura de pesadas nuvens. A chuva avizinhava-se com rapidez. Teriam uma longa e fria noite no pequeno chalé.

Wrexton era o lugar ideal para passar por um rigoroso inverno. Por esse motivo, seu pai despedira-se logo cedo dos convidados presentes às bodas do lorde Haverston e seguira, junto com o filho e o sobrinho, para casa. Eldred quase nunca viajava no frio, somente em ocasiões muito especiais, como as festividades no castelo de Haverston.

Observando as enegrecidas nuvens no horizonte, Mar­cus tentou adivinhar por quanto tempo a chuva permaneceria sobre eles e se o acontecimento chegaria a retardar ainda mais o esperado regresso ao lar.

— Marcus — disse o marquês, curvando sua cabeça e levando as mãos entrelaçadas até as costas. — Meus ho­mens e eu retornaremos hoje a Kirkham. Podemos passar por Wrexton e levar o corpo de seu pai e dos outros ho­mens mortos no combate, se assim desejar.

Marcus ficou surpreso com a gentileza do amigo. Ge­ralmente rude e irônico, o marquês mostrava súbita con­sideração, num gesto espontâneo. Sabia que o bom Ni­cholas era atormentado por demônios interiores que o fa­ziam exceder, na bebida e no sarcasmo, mas tinha um coração generoso.

Marcus desejava atravessar os portões de Wrexton jun­to ao corpo de seu pai, acompanhar o réquiem, receber as condolências dos amigos e o amparo dos mais próximos, mas sabia que a saúde delicada de Adam o impediria disso.

Aceitaria valiosa oferta generosa.

— Aprecio sua gentileza, Nicholas. E conveniente sua proposta.

Nicholas levou seus olhos ao céu e Marcus pode ler seus pensamentos. Preocupava-se com a chuva próxima e desejava adiantar-se na longa jornada.

Caminharam de volta ao rio onde Marcus havia deixa­do pequena sacola de couro com pertences pessoais. No caminho avistaram dois homens agachados junto à relva colhendo pequenos tufos de folhas e ervas.

— Que estão fazendo? — perguntou Nicholas, curioso.

— Lady Keelin solicitou nossa ajuda. Curará os ho­mens feridos na batalha, milorde, por isso colhemos ervas e plantas, para o preparo dos ungüentos milagrosos. Disse que o ar está muito úmido e frio para os que sofrem graves padecimentos, então os recolheu entre as paredes de seu lar para melhor atendê-los.

O marquês arqueou as sobrancelhas em desaprovação e seguiu até seu grupo de homens.

— Traga esta cama para cá — ordenou lady Keelin ao rapaz forte que a ajudava a reorganizar o humilde chalé. O clima piorara intensamente e uma forte chuva anunciava-se no céu obscuro daquela manhã. Dois homens fe­ridos no combate da véspera foram recolhidos para dentro da choupana onde dividiriam com os moradores o calor da lareira e a proteção das quatro paredes.

Não falara com seu tio conforme o previsto. Todavia, sabia que não se esquivaria para sempre. Logo seria in­terrogada pelo velho tio sobre a devastadora visão que a fizera perder os sentidos.

Enquanto arrumava o chalé para receber os homens com o máximo de conforto possível, Keelin lembrou-se de Marcus e dos momentos que dividiram embaixo do cober­tor puído e pouco quente. A estranha sensação de acordar envolta em seus braços, sentindo o perfume doce que exa­lava e o peso das mãos fortes contra suas costas ainda a assombrava. Nunca experimentara nada tão agradável e ao mesmo tempo tão aterrorizante.

Estava fortemente atraída por Marcus, porém não se esquecia de que seu destino estava na Irlanda. Não so­mente porque lá se encontrava o homem a quem fora pro­metida. Comarc estava morto agora e alguém precisava fazer algo por Carrauntoohil antes que fosse tarde. Quem quer que fosse nomeado o novo líder do clã precisaria, o mais rápido possível, dos poderes da Ga Buidhe an Lamhaigh, se quisesse fazer prevalecer seu poder.

Keelin renovaria seu solene juramento antes que a ne­ve chegasse no Kerry. Enquanto isso, seu tio Tiarnan des­cansaria no castelo de Wrexton, seguro e protegido. Pre­cisava ignorar aqueles sentimentos confusos que a rodea­vam desde o despertar e fixar-se na salvação de seu clã. Era chegado o momento de voltar para casa.

 

O pequeno cômodo havia transformado-se numa enfer­maria, pensou Marcus antes de atravessar a soleira da porta do humilde casebre.

Ao contrário do que imaginara, um aroma delicado de ervas levemente apimentado transportara sua mente de imediato para lugares distantes e agradáveis. Um líquido fervente chiava sobre as chamas dentro do caldeirão de metal e os homens convalescentes, com exceção de Adam que descansava sobre a cama, repousavam sobre macios cobertores estendidos no chão, aquecidos pelo calor da lareira.

Keelin estava sentada ao lado de Adam, falando-lhe suavemente. Trajava um vestido verde simples, atado na cintura muito fina, destacando-lhe os seios fartos e fir­mes. Pequena parte do colo descobria-se junto ao decote recatado. A pele muito alva reluzia em contraste com a cor forte do tecido. Estava esplêndida, pensou Marcus ao vê-la sorrir para o primo.

— Oh, sim — prosseguiu Keelin em seu diálogo com o menino, acompanhando os movimentos de Marcus com o canto dos olhos. — Restará uma cicatriz, para quando alguém olhar suas costas, curvar-se diante de valente ca­valeiro que participou de uma violenta batalha, lutando com coragem e fé.

— Quem chegou? — perguntou o garoto enfraquecido.

— Lorde Marcus vem para ver-lhe.

Marcus aproximou-se encabulado com a presença de Keelin.

— Como tem passado, rapazinho? — perguntou ele.

— Lady Keelin diz que estou muito bem. Disse que sou o rapaz mais forte e valente que conhecera desde que partiu de Carrauntoohil, na Irlanda.

— Ela tem razão. E um bravo guerreiro, Adam.

— Lady Keelin também me contou que o marquês Kirkhan seguiu na frente, com o corpo de tio Eldred. Conse­guiremos chegar a tempo para o réquiem?

Marcus levou a palma de sua mão até a testa do primo. O garoto estava mais quente que antes. Olhou para Keelin que balançou a cabeça em afirmação aos seus mais secretos pensamentos. Febre.

— É o que tentaremos, Adam. Por agora, concentre-se em sua recuperação.

O garoto aquiesceu, recostando-se outra vez. Keelin afastou-se do leito do enfermo, caminhando até a lareira. Remexeu o pequeno caldeirão onde fervilhava a refeição do dia.

— Quantos são os homens acampados, milorde?

Marcus abafou um inesperado bocejo. As últimas vinte e quatro horas o deixaram exaurido. Depois da partida do marquês e seus homens, juntara seu grupo e vascu­lhara toda a região em busca de sinais dos celtas. Preci­savam ter certeza que nenhum inimigo ou intruso ronda­va o chalé antes de descansar.

— Quatro.

— Deve descansar, milorde — disse Keelin, prestativa. — Não tivemos uma noite fácil. Ainda existe espaço o bastante aqui dentro pra estender-se sobre um cobertor e dormir um pouco.

O rosto abatido de Marcus corou-se com a menção de Keelin sobre a noite anterior. Gostaria de perguntar-lhe o que achava sobre todos aqueles incidentes. Nada havia sido dito sobre a visão que tivera antes do súbito colapso ou sobre o fato de ter adormecido em seus braços. Como se não falar sobre o ocorrido o impedisse de ter acontecido.

Na cabeça de Marcus, entretanto, muito havia aconte­cido entre eles e nada o faria esquecer o que viu e sentiu dentro daquela choupana.

Buscou um par de cobertores que descansavam sobre a mesa e acomodou-se junto à cama onde o primo dormia. Vencido pelo cansaço, dormiu rapidamente.

— Menina Keelin — disse Tiarnan. — Chegou o mo­mento de sentar-se, com seu velho tio para conversarmos alguns minutos.

Ela cruzou os quatro cantos do cômodo para ter certeza que todos os cavaleiros presentes dormiam antes de se­guir até o leito de seu tio. Não poderia evitar mais o relato da terrível visão. Contou ao tio tudo o que vira e as sensa­ções que tivera ao ver Carrauntoohil incendiada e Comarc morto.

Marcus abriu seus olhos com o zunido aterrador do vento cruzando o terreno do chalé. Para sua surpresa, o ambiente dentro do casebre era quente e aprazível. Sentou-se com rapidez, tentando precisar o tempo que pas­sara dormindo. Lembrou-se dos homens em guarda do lado de fora. Precisavam ter a chance de proteger-se do frio o quanto antes.

Assistiu Keelin ajoelhada junto a um dos cavaleiros feridos, trocando-lhe o curativo improvisado de seu om­bro. Falava-lhe mansamente, assegurando-lhe que, com a graça de Deus, não perderia seu braço. Era gentil e dócil, cheia de empatia para com os sofrimentos do ho­mem assustado. Acalentava os espíritos oprimidos pela dor com seu sorriso e suas palavras meigas.

Seguiu até o outro companheiro estendido em frente ao fogo, levando-lhe um pano úmido até a testa muito quente. Marcus podia sentir a delicadeza do toque de seus dedos na pele do cavaleiro ferido.

Com os lábios secos, acompanhava os movimentos de Keelin entre a bacia com água fria e a cabeça do conva­lescente. De repente, o gracioso vai-e-vem foi subitamente interrompido e, mirando ao longe como se enxergasse além das paredes do chalé, Keelin se perdeu em pensamentos distantes, misteriosos. Um instante depois, agi­tava-se outra vez. Levantou de onde estava e começou a reorganizar o espaço entre eles, estendendo outro cobertor junto ao fogo da lareira. Ajudou um dos cavaleiros enfer­mos a erguer-se e mudar de lugar.

— Por que isso, milady? — perguntou ele.

— Oh, nada — desconversou. — Estamos abrindo es­paço para... para...

Marcus, percebendo a intenção de Keelin de criar um novo leito, levantou-se do lugar onde estava sentado.

— Lorde Marcus — disse ela, alcançando-o com passos rápidos. Keelin, sem perceber, o segurou pelo braço. — Receio que recebamos mais notícias ruins — Sua voz era tão baixa que os outros ocupantes do quarto não a pude­ram ouvir. — Um de seus homens caiu do cavalo e está sendo trazido até nós. Está machucado. Não estou muito certa aonde...

No exato instante em que conversavam, vozes mascu­linas próximas à porta puderam ser ouvidas dentro do pequeno cômodo. Marcus adiantou-se em abri-la ainda surpreso pelo relato de Keelin. Sir Edward, com a perna ferida, adentrou o recinto carregado por dois outros ca­valeiros.

Admirado com a premonição que acabara de presen­ciar, Marcus virou-se de encontro aos três homens alar­mados que eram prontamente atendidos.

— Deite-o aqui, perto do fogo — pediu Keelin, apon­tando o cobertor estendido sobre o chão que aguardava o ferido. Procurou desviar os olhos de Marcus, perplexo com sua habilidade de prever os acontecimentos.

O homem injuriado gemeu de dor quando seus dois companheiros o acomodaram no lugar indicado.

— O cavalo tropeçou sobre o chão barrento da estrada, milorde. Fomos pegos pela chuva e o caminho tornou-se mais difícil para nós. Foi assim que Edward quebrou a perna — justificou um dos cavaleiros.

Marcus usou a faca para cortar o tecido grosso da calça que o homem vestia. Observou com atenção a perna in­chada seguindo Keelin, que buscava água quente para combinar novas ervas medicinais, com os olhos.

Como podia saber o que acontecia a Edward? Não exis­tia nenhuma outra explicação que não a oferecida pelo velho tio. Possuía o dom da premonição.

— Beba um pouco desse chá — pediu Keelin, ajudando o homem deitado a segurar a caneca e beber alguns goles do líquido quente. — Aliviará a dor e o ajudará a relaxar — Virando-se para os homens em pé, prosseguiu. — Pre­cisaremos de duas talas de madeira para atar-lhe a perna. Podem encontrar algo que nos sirva atrás do chalé, onde armazenamos madeira. Tem alguma tira de couro, milor­de? — perguntou a Marcus, que finalmente retornava a razão, confirmando sua pergunta.

Com ajuda, Keelin recolocou a perna de sir Edward no lugar. Atendeu-lhe com um prato de sopa quente, sacian­do-lhe a fome. Os outros homens do grupo de Wrexton, que mantinham guarda do lado de fora, juntaram-se a eles, dentro do cômodo cada vez mais apertado.

Marcus precisava distanciar-se de Keelin, sair do cha­lé, apesar do péssimo clima que fazia lá fora. Cobriu-se com sua capa e caminhou na direção da porta.

— Marcus? — perguntou Adam com a voz enfraquecida e cansada.

— Sim — replicou Marcus, envergonhado pela idéia de abandonar o recinto sem despedir-se do primo que fora acordado pelos gemidos de dor de Edward.

— Onde está indo?

Virando-se para o garoto enfermo, ele respondeu gra­vemente:

— Irei... Irei conferir se os cavalos estão em segurança — disse, saindo com rapidez do cômodo temendo qualquer outro questionamento.

Os cavaleiros de Wrexton abrigaram os animais sob grossas lonas, numa espécie de grande tenda. Protegiam-se assim do pior da chuva.

Não havia sinais de intrusos e Marcus concluiu que os celtas não se atreveriam a cavalgar embaixo de chuva, expostos ao frio cortante. Até os animais silvestres recolhem-se durante grandes tempestades no inverno.

Marcus tentava manter seu pensamento em coisas nor­mais. Os cavalos, o tempo, as provisões. Esperava que Nicholas Hawken tivesse escapado da forte chuva. Lembrou-se do bispo que seguia até Wrexton para o velório de seu pai.

Poderia perguntar a lady Keelin sobre o destino desses homens...

Maldição!

Então, era verdade o que Tiarnan dissera sobre os po­deres premonitórios de Keelin. Pudera ver e ouvir um relato preciso sobre o que acontecia com Edward e seus companheiros de viagem.

Que magia era aquela? O dom de prever o futuro seria, realmente, um dom de Deus, como o velho tio afirmava?

Ela não parecia atormentada por um espírito maligno ou praticar bruxarias. Nenhum comportamento que le­vantasse suspeitas sobre sua conduta cristã. A postura caridosa e bondosa era irretocável. Apressara-se em cui­dar dos feridos sem hesitação, mostrando-se virtuosa e sábia. Poderia uma mulher ser instrumento do demônio ainda que praticando o bem?

Marcus não sabia o que pensar.

Uma coisa era certa. Seu corpo reagia ao primeiro sinal da presença de Keelin. De alguma forma, ela absorvia suas forças completamente. Como explicar tamanho poder? Magia, feitiço, era a única explicação plausível. Não recordava nenhuma das jovens que vira no casamento do lorde Haverston e nem as damas elegantes da corte in­glesa. Como mágica, sua memória caíra em desgraça. Co­mo conseguira tocá-la, abraçá-la e beijá-la como jamais fizera com nenhuma outra mulher?

Não gostava de imaginar-se vítima de bruxarias, po­rém nenhum motivo racional o bastante justificava a sú­bita atração que sentia.

Precisava escapar daqueles sedutores olhos verdes co­mo esmeraldas, apagar as marcas da longa noite que pas­sara junto ao seu corpo. O frio do lado de fora do chalé não o abalava mais que sua mente confusa.

— Tem razão — disse Tiarnan. — Não posso seguir com você.

— Acompanhará os cavaleiros até Wrexton, meu tio — afirmou Keelin, enchendo-lhe a caneca vazia com mais sopa. Os homens de Marcus descansavam esticados sobre chão, enrolados em grossos cobertores. Alguns cochilavam enquanto outros dormiam profundamente. Vários sons e entonações diferentes impediam o silêncio total. Roncos, gemidos e suspiros quebravam a ausência de palavras antes de Tiarnan voltar a falar.

— Não, minha sobrinha — prosseguiu o velho tio. — Qualquer lugar é longe demais para um doente infeliz como eu.

— Não pretendo discutir mais esse assunto, tio. Segui­rá com lorde Marcus.

— Menina Keelin, não está sendo inteligente em...

— Não posso permitir que fique aqui, sozinho.

— Oh...

— Tenho tido alguns pressentimentos sobre o senhor também.

— Pressentimentos? — perguntou o velho curioso.

— Sim — disse, perdendo seus olhos sobre a porta de entrada do casebre. — Vejo-o feliz, saudável, sentado num banco de pedras, rodeado por imenso jardim florido sob a luz do sol da primavera. E esse lugar é Wrexton, meu tio,

Tiarnan recostou-se contra a parede e fechou os olhos, buscando inspiração para recriar a cena. A bela visão com que fora presenteado o convencia a seguir com o grupo de homens ingleses.

 

A escuridão da noite esgueirava-se pelas frestas da por­ta e Marcus ainda não havia retornado. Keelin sentou-se ao lado de Adam para ajudá-lo no que fosse preciso. Sen­tia-se exausta depois de um longo dia atendendo os ho­mens feridos, mas não conseguiria dormir.

Marcus adentrou o pequeno cômodo tarde da noite e Keelin preferiu fingir dormir, cerrando os olhos despertos. Temia sua reação depois dos últimos acontecimentos. O viu pendurar a capa úmida no encosto da cadeira ao lado do fogo. A túnica branca que usava também estava mo­lhada, reparou ela, vendo-o se aproximar da cama de Adam.

Satisfeito com a aparência tranqüila do primo, cami­nhou outra vez até o fogo, arrancando a camisa que usava. Buscou na mala uma peça limpa e seca, sentando-se em seguida perto das chamas para aquecer-se.

Keelin o observou procurar por uma caneca e servir-se de generosa porção de sopa quente. Parecia tão cansado quanto ela, imaginou.

Assim seria quando tivesse um marido. Retornaria tar­de para casa, cansado do pesado labor e saborearia a co­mida que havia sido feita horas antes. Comeria, tiraria suas roupas e se deitaria junto a ela. Os leves movimentos sabre a cama e as mãos fortes dele subindo por seu corpo a fariam despertar, então...

Que sentimento era aquele?, pensou Keelin, imaginan­do se outro homem no lugar de Marcus a faria sentir o mesmo. Quando voltasse ao Kerry e casasse com o pretendente escolhido por seu pai iria logo descobrir.

Tiarnan insistia em dizer que não conhecia nada a res­peito de seu noivo, mas ela suspeitava que o tio faltava-lhe com a verdade.

Era estranho saber que se casaria com um homem a quem desconhecia a voz, o toque e o beijo. Confiava na decisão de seu pai. Jamais a entregaria nas mãos de um homem que não fosse digno de seu amor e dedicação. Além do mais, a herdeira de um clã não poderia casar-se so­mente por amor ou atração. A força e a continuidade de seu povo dependia diretamente do seu futuro.

Keelin tentou imaginar como o clã Sheaghda vivia ago­ra, sem a liderança de Comarc. Sua visão não lhe revelara se Carrauntoohil fora rendida pelos Mageean ou não. Qual teria sido o destino dos seguidores de Comarc? Se pudesse voltar ao Kerry naquele instante e devolver a Ga Buidhe an Lamhaigh para seu povo, então, o clã Ui Sheaghda resistiria às intempéries impostas por Ruairc Mageean.

Infelizmente, sabia que seu desejo era irreal. Precisava esforçar-se para ser paciente. Não tinha certeza sobre a data em que abandonariam o chalé rumo a Wrexton e quanto tempo levaria para se convencer de que seu tio ficaria bem junto aos ingleses.

 

Quatro dias se passaram antes que o clima permitisse a Marcus e seu grupo abando­nar o chalé escondido ao pé da montanha.

Por várias razões, Marcus imaginou que sentiria falta do humilde casebre. O abrigo aconchegante os protegera do frio e da chuva e o tempo que dividira junto a seus homens do minúsculo cômodo finalmente chegara ao fim. Em breve, atravessariam os portões de Wrexton, onde descansariam em paz.

Ao menos se manteria distante de Keelin.

Tentara esquivar seus olhos dos dela envolvendo-se com problemas que, em outra ocasião, jamais o preocu­pariam. Todavia, a sensação do corpo trêmulo de Keelin entre seus braços não o abandonava um instante sequer.

Incontáveis vezes, observara seus movimentos gracio­sos enquanto cuidava de Adam e dos cavaleiros feridos. Os imensos olhos verdes, vez ou outra, o encontravam hipnotizado, o que o envergonhava em demasia.

Quando se sentia inflamar pelo desejo, Marcus saía a caminhar, despercebido do frio e da chuva, procurando por privacidade. Ansiava o isolamento que o quarto aper­tado não podia oferecer-lhe.

Subitamente a chuva gélida cessou e, na quarta manhã depois de sua chegada, Marcus decidiu que havia chegado o momento de regressar para casa. O sol surgia fraco per­meando as nuvens espessas quando iniciaram a marcha que duraria, em condições normais, nada além de duas horas. Com um pouco de sorte, em quatro horas chega­riam em Wrexton.

 

Keelin guardou suas ervas juntamente com seus per­tences no velho baú de viagem que a acompanhava desde sua partida do Kerry. Um dos homens a ajudou a carregar a charrete onde ainda mantinha escondia a preciosa lança sagrada.

— Milorde, carregará Adam até a carroça? — pergun­tou Keelin ao ver os preparativos finalizados.

Marcus, em silêncio, levantou o primo do leito onde repousara nos últimos quatro dias e o alojou no piso da carroça puxada por uma mula. Aquela seria uma dura prova para o menino, mas Keelin faria o possível para tornar o percurso menos sofrido para a infeliz criança.

— Chegaremos a tempo para o funeral do tio Eldred? — questionou o garoto ainda consciente.

Keelin dera-lhe uma pequena dose de sonífero antes de deixar o chalé. Ser-lhe-ia de grande valia o sono repa­rador durante o trajeto turbulento.

Marcus levou a cabeça de Adam até seu peito e acari­ciou seus cabelos levemente.

— Não tenho certeza. Sir George seguiu na frente com o propósito de anunciar nossos planos. Se, até então, o funeral não tiver sido realizado, creio que o bispo não criará oposição em nos aguardar — comentou, deitando o menino sobre o chão frio da charrete que dividiria com sir Edward.

Sem espaço para seguir com os convalescentes, Keelin teria que montar um dos cavalos disponíveis. Nunca mon­tara um animal tão grande antes e não sabia se conseguiria guiá-lo com eficácia.

Ainda no chão, observava o cavalo com curiosidade, o que chamou a atenção de Marcus.

— Sabe montar? — questionou.

Sem desviar os olhos do animal, Keelin o respondeu educadamente.

— Sim, mas não pratico há alguns anos.

— Bem, se quiser... — disse Marcus, muito encabula­do. — Ou melhor, se não a incomodar, podemos dividir a montaria.

Nada no mundo seria mais agradável, pensou Keelin, imaginando-se presa novamente aos braços fortes de Mar­cus. Mas não cederia à tentação. Durante os últimos dias, acompanhara todo o seu sofrimento em manter-se distan­te dela.

Apesar de repetir a si mesma diversas vezes que era indiferente a sua repulsa, sabia que seu coração não su­portaria por mais tempo tamanha rejeição.

— Agradeço a preocupação, milorde — exclamou com tranqüilidade. — Mas seguirei sozinha. Pode me ajudar a subir?

Marcus hesitou diante de seu pedido e Keelin percebeu o quanto temia tocá-la.

Conteve, silenciosa, as lágrimas intrusas que lhe ema­ranharam os olhos e segurou as rédeas do cavalo entre as mãos, apoiando os pés firmemente à sela. A tristeza que apoderou sua alma não a abateu e, num único im­pulso, sentou-se com rapidez sobre o animal.

Marcus, temeroso, segurou-lhe a cintura.

— Milady, este selim é... Bem, pode virar-se com as pernas...

— Obrigada pela valiosa ajuda, milorde — disse ela, unindo as pernas ao mesmo lado.

Marcus nunca se sentira tão exposto antes. Viajava com uma comitiva lenta, com vários homens feridos e uma mulher. Somente dois cavaleiros capazes o acompanhavam. Mantinha seus olhos atentos a qualquer sinal estranho. Um novo ataque celta, seria fatal, pensava preocupado.

Roger e ele vasculharam o território momentos antes da partida e não encontraram pistas de recentes viajantes na área, além das por eles deixadas. Imaginou que o mais prudente seria deixar o casebre logo cedo. Tão logo che­gassem a Wrexton, melhor.

Keelin cavalgava a sua frente. Podia contemplar toda sua graça à distância. Acompanhava os movimentos ele­gantes e a autoridade que sua postura nobre deixava transparecer.

Ao contrário de outras mulheres que prendiam sempre os cabelos sobre pesados mantos, Keelin deixava-os es­corregar pelos ombros, livres. As longas mechas negras corriam-lhe pelas costas, provocantes. Marcus nunca ima­ginou como os cabelos de uma mulher eram sensuais ou como o desejo de segurá-los entre os dedos o atormentaria daquela forma.

Precisava conter aqueles impulsos. Os cabelos de Kee­lin, suas mãos suaves ou suas formas femininas não eram o mais importante. Seu objetivo maior era levar todos em segurança até Wrexton. Depois do funeral, iniciaria in­cansável caça aos que mataram seu pai.

Considerava a hipótese de usar Keelin e o velho tio para atrair os mercenários celtas, mas não acreditava que seria realmente necessário. Enquanto acreditassem que ela possuía a lança mágica, a perseguiriam até os confins do mundo.

A encontrariam em Wrexton, tinha certeza disso. Seria a armadilha final para os Mageean, pensou.

Apesar de seus planos, Marcus achava que Keelin não se sentiria ofendida. Atrairia os assassinos de seu pai, em troca seria protegida dos invasores bárbaros. Quando tudo chegasse ao fim, estaria livre para voltar para casa.

Keelin movimentou-se sobre o selim. A jornada era can­sativa, especialmente para os menos acostumados, como ela.

Sir Edward sobre a charrete gemia de dor a cada so­lavanco. Adam dormira todo o tempo, graças ao elixir. Os insistentes lamentos de dor do homem com a perna quebrada acompanhavam as rodas de madeira do rústico veí­culo. Seu rosto pálido retorcia-se com os obstáculos ar­duamente vencidos pela mula.

As torres do castelo de Wrexton demoraram a despon­tar no horizonte dos viajantes exauridos.

Muito maior que o pequeno vilarejo de Carrauntoohil, Wrexton surgiu sólida e forte diante dos olhos de Keelin. Enormes muralhas rodeavam a vasta região, como gigan­tes cortinas de pedras, rodeadas por sereno rio de águas muito límpidas. Um lugar muito agradável, principal­mente depois de horas de viagem sob o frio e a umidade, pensou, deixando-se guiar pelos outros cavaleiros.

Conforme se aproximavam da vila, eram recebidos por inúmeras pessoas que saíam de suas casas, ansiosos com a presença de Marcus que preferiu fazer o resto do per­curso a pé, recebendo dos habitantes locais tristes condo­lências e palavras de encorajamento.

O comportamento de Marcus fez Keelin lembrar-se de seu pai. Forte, robusto, com presença marcante e conduta humilde entre os menos favorecidos. Tinha conhecido seu lado cavalheiro e gentil, o que não podia dizer o mesmo de seu pai.

Durante os instantes finais da jornada até o castelo percorreram diversas ruelas com construções simples de madeira. Estrebarias, celeiros, lojas e diversos prédios comerciais que Keelin não podia identificar a função. No alto de uma pequena colina descansava a catedral que abençoava todos os moradores da vila.

Sir Roger foi o primeiro a aproximar-se da comitiva, logo seguido por outros cavaleiros de Wrexton. Imediata­mente, recolheram os companheiros feridos da carroça e os conduziram à enfermaria do palácio. Adam, ainda adormecido, fora carregado de pronto para o interior da luxuosa residência dos Grant.

Auxiliada por sir Willian, Keelin desmontou do animal que cavalgara horas seguidas, dirigindo-se em seguida ao tio que descia da carroça com dificuldade. Segurou o braço do senhor abatido e cansado, dando-lhe o suporte neces­sário. Manco desde o nascimento, Tiarnan parecia cada dia mais instável sobre as próprias pernas, em decorrên­cia da idade. A visão pouco ajudaria o velho doente a locomover-se com segurança.

— Sir Willian — disse Keelin. — Onde posso guardar nossa carroça?

— Que preocupação, milady! — replicou ele, indignado. — Sua mula irá para o alojamento dos animais, junto com nossos cavalos, obviamente.

— E a carroça? — questionou Keelin, procurando não demonstrar grande ansiedade. Precisava saber onde fica­ria a Ga Buidhe an Lamhaigh para buscá-la, mais tarde.

Preferia manter a existência do talismã em segredo.

— Ficará próximo as estrebarias do castelo, junto com os outros carros — explicou sir Willian. — Providenciarei, pessoalmente para que sua bagagem seja-lhe entregue em seu quarto em pouco tempo.

— Meus sinceros agradecimentos, sir — agradeceu, sa­tisfeita que sua preocupação com a carroça tenha sido interpretada como excessivo zelo com os velhos baús de viagem.

Assim que fosse alojada, procuraria por outro escon­derijo seguro no novo quarto e buscaria Ga Buidhe an Lamhaigh .

— Sinto que estamos em lugar grandioso, minha so­brinha — comentou Tiarnan, ouvindo os passos de sir Willian afastar-se deles.

— Seus sentimentos não o enganam, tio. Wrexton é um lugar grandioso. Jamais estive num lugar como esse.

— Maior que Carrauntoohil, então?

Keelin girou o pescoço mais uma vez, deslumbrando o luxo e o requinte do castelo.

— Sim — respondeu. — O conde de Wrexton precisará de saúde e energia.

A grande porta principal, talhada em madeira maciça, se abriu com lentidão, dando passagem à bela e elegante jovem que se dirigiu até Keelin com passos firmes.

— Lady Keelin — sir William retornava ao jardim do palácio, curvando-se diante da misteriosa mulher. — Con­ceda-me o prazer de apresentá-la a lady Isolda Coule.

A requintada dama a cumprimentou graciosamente. Quem seria a bela jovem?, pensou Keelin, concluindo que não se tratava de uma irmã. Era noiva de Marcus?

— Preparamos quartos para você e seu tio, milady — disse Isolda, adiantando-se a caminho do salão de entra­da. Keelin sentiu um ar autoritário naquele gesto benevolente. — Assim que se acomodarem, nossas criadas ser­virão saborosos refrescos.

— Obrigada.

A hostilidade enrustida nas palavras de Isolda não al­terava os planos de Keelin. Assim que seu tio estivesse cuidadosamente instalado e Adam recuperado, deixaria o castelo de Wrexton e suas preces se voltariam ao clima. Com a ajuda de Deus, o mau tempo não a reteria na costa inglesa por mais um dia sequer.

Os pensamentos sobre seu retorno à Irlanda recuaram enquanto seguia Isolda. Wrexton era um esplendor em todos os detalhes. Keelin jamais estivera em um castelo tão luxuoso antes. As paredes eram pintadas com os mais diversos motivos e o rico mobiliário assombrava os cora­ções mais humildes.

Carrauntoohil parecia gélido e rude comparado com tão magnífico castelo. O grande forte de pedras onde crescera tinha somente camas, cadeiras e mesas e os únicos objetos de decoração eram os tapetes tecidos pelas mulheres da vila. Na verdade, sua casa lembrava muito mais um abri­go militar que um lar, apesar de Keelin nunca ter perce­bido isso antes de entrar em Wrexton.

Isolda parecia alguns anos mais velha que ela. Era uma adorável jovem de cabelos avermelhados com grandes olhos adoçados pela candura de longas pestanas. Sua pele, muito branca, era coberta por pequenas sardas amarronzadas na altura do nariz, como as meninas do Kerry.

Mantinha os cabelos presos com um grosso turbante de seda azul que combinava com a requintada capa tur­quesa que vestia sobre inúmeras outras peças coloridas. Elegantes saias surgiam-lhe na altura dos joelhos e o pes­coço era agraciado com uma jóia chamativa.

Keelin atou as pontas do tecido grosso de sua insípida capa fortemente. Havia muitos anos não se preocupava com a aparência. Esquecera-se por completo de seus ca­belos e de suas roupas.

— Lorde Marcus se demora mais uma vez... — Isolda comentou enquanto subia os degraus da escada que leva­va aos cômodos superiores.

— As pessoas da vila queriam oferecer-lhe suas condo­lências — justificou Keelin.

Isolda não respondeu, mas Keelin podia jurar que vira um sorriso de descaso em seus lábios.

Tiarnan apoiou-se em seu braço e juntos subiram a longa escadaria com lentidão.

— Não acredito que irá demorar-se por muito tempo na vila. Estava preocupado com Adam e ansiava por repouso.

— Ah, sim — disse Isolda. — Adam. Está gravemente ferido?

— Sim — respondeu com gravidade. — Foi atingido por uma lança nas costas, próximo a espinha. Um grave padecimento.

— Irá se recuperar?

— Nossas preces parecem estar sendo ouvidas, milady.

Isolda ignorou o comentário de Keelin que estava cheia de curiosidade sobre a figura elegante que a guiava pelos imensos corredores do castelo. A jovem dama não demons­trara uma única expressão de preocupação diante da afli­ção de Adam.

— Este é o seu quarto, lorde Tiarnan — disse a mulher sardenta abrindo a porta de um cômodo iluminado apenas pelo fogo na lareira. Com o semblante sério, Isolda cami­nhou até as janelas do recinto e afastou as cortinas, de modo a permitir a entrada da luz. — Espero que atenda as suas necessidades.

— Agradecemos a gentileza de oferecer-nos tão luxuoso conforto, lady Isolda — falou Keelin, ajudando o tio a sentar-se sobre a cama macia. O velho Tiarnan parecia fatigado pela árdua viagem. — Descanse um pouco, tio. Voltarei brevemente para revê-lo. Existe algo que queira pedir antes que me retire?

— Não, menina Keelin — retrucou, deitando-se de ime­diato. — Dê-me alguns minutos de descanso e ficarei novo em folha.

Keelin não acreditava no que Tiarnan lhe dizia. Buscou uma vela das mãos de Isolda e a acompanhou até outro quarto próximo ao do tio.

 

— Chamou por nós, milorde?

Marcus soltou a fivela que prendia a capa de chuva junto ao seu corpo cansado pela jornada até Wrexton. Uma tina de água quente o aguardava antes que seguisse pra o réquiem do pai. Mas, primeiro, negócios.

Olhou para os dois cavaleiros convocados para peque­na assembléia e soube que tinha feito uma excelente es­colha. Aqueles homens seriam capazes de concretizar seus planos.

Despiu-se da túnica de linho branco que trajava, dei­xando-a sobre a cama.

— Terão uma missão especial — disse aos cavaleiros enquanto descalçava as grandes botas de couro. — Segui­rão para o reino de Kerry, na ilha da Irlanda. Quero que descubram tudo a respeito de Keelin O'Shea, seu velho tio e sobre um chefe guerreiro chamado Ruairc Mageean.

Se os dois cavaleiros ficaram surpresos ou desaponta­dos com as ordens de Marcus, não demonstraram. Cur­varam-se em sinal de obediência, concordando com o tra­balho solicitado. Um deles finalmente o questionou.

— É uma missão sigilosa, milorde?

Marcus hesitou. Não desejava que a população de Wrexton soubesse da busca por informações sobre os cel­tas, ainda que as questões mais discretas tratadas na Irlanda não permanecessem em segredo por longo tempo. Não existiam informações precisas sobre a localização do Kerry. Os homens precisariam procurar por informantes na ilha e por conhecidos de Keelin, também.

Despediu-se dos cavaleiros dando-lhes últimas instru­ções sobre o serviço e seguiu para a sala de banho. Antes que imergisse completamente na banheira de água mor­na, Isolda rompia recinto adentro acompanhada de duas criadas que carregavam toalhas e artigos para higiene pessoal.

— Não me reprima, Marcus — disse a jovem ao per­ceber seu olhar de censura. — Vim para servir-lhe.

— Isolda! — disse Marcus, raivoso com a inoportuna interrupção. Em outras circunstâncias teria ficado em pé e conduzido a prima para fora do quarto. Todavia, estava nu e sentia-se muito desconfortável com a presença das mulheres ali. Com a face enrubescida, voltou-se para Isol­da, descompassado. — Não preciso de sua assistência.

— Mas...

— Deixe-me sozinho! — exclamou com força. Isolda, incrédula, ficou alguns segundos ainda dentro da sala umedecida pelo vapor da água quente. Seus gran­des olhos castanhos corriam pelo corpo descoberto de Marcus, que cheio de pudor, cobria com uma toalha.

Cinco anos atrás, Isolda tentara o mesmo jogo amoroso, logo que Eldred assumiu o título como legítimo herdeiro de Wrexton. Desde o princípio, Marcus revelou seu desin­teresse pela prima distante e sua intenção de permanecer solteiro. Mas nada mudara.

Sabia das intenções de Isolda em tornar-se a condessa de Wrexton. Suas alusões chegaram aos ouvidos de El­dred que levara a questão até Marcus. Ele preferiu des­conversar o delicado assunto com o genitor preocupado com seus descendentes. Ainda não se sentia preparado para o casamento e nem nutria afeto especial pela paren­te dedicada. Na verdade, irritava-se com os gestos pres­tativos e a gentileza desmedida de Isolda. Não passava de uma fria encenação para manipular as pessoas- para que agissem conforme sua vontade, pensava.

Tudo o que a insistente mulher conseguira nesses anos fora o nítido desconforto de Marcus com sua presença. Sempre que a ocasião permitia, procurava distância da ladainha arrogante e descabida de prima prepotente.

Eldred, percebendo o desinteresse, procurou outros pretendentes à altura da jovem. Como seu tutor, tinha a responsabilidade de cuidar dos interesses da sobrinha, oferecendo-lhe um futuro seguro como esposa e mãe. Po­rém, Isolda recusou a todos eles. Desejava mais que a paz da vida familiar, almejava o título de condessa e nada menos que isso.

Com a morte de seu pai, pensou Marcus ao vê-la sair do cômodo com passos pesados, as falsas esperanças da prima voltavam a se renovar.

 

Uma suave penumbra de fumaça espalha­va um cheiro sagrado de incenso que rapidamente preencheu os quatro cantos da capela.

O corpo de Eldred de Grant, décimo primeiro herdeiro de Wrexton, descansava sobre uma paleta do lado externo da sacristia, onde o bispo de Chester celebrava o réquiem.

Keelin lembrou-se da grande misericórdia divina em conceder rara beleza mesmo aos momentos mais tristes enquanto observava os belos raios de sol que atravessa­vam os vidrilhos coloridos do santuário criando um má­gico efeito de luzes e sombras. As sacras figuras esculpi­das no majestoso mosaico refletiam sobre o piso de ma­deira, movimentando-se lentamente com o correr do tem­po e o caminhar do sol.

Como que por encanto, ganhavam vida, alimentadas pelo brilho do sol, pensou Keelin emocionando-se mais uma vez. Na galeria superior, vozes harmônicas embala­vam suave melodia que ecoava pela capela, tocando a al­ma dos presentes com um sopro de paz e esperança.

Lembrou-se da Ga Buidhe na Laimhaigh durante toda a liturgia. A lança sagrada deveria estar ali, ao seu lado, fazendo parte daquele ritual fúnebre, como era o costume de seu povo.

Marcus sentou-se virado de costas para ela. Mantinha uma postura rígida, firme, apesar da emoção. O marquês que escoltara o corpo até o Wrexton tomava-lhe um dos lados e Isolda, o outro.

Dezenas de pessoas apinhavam-se dentro da capela. Keelin podia ouvir alguns lamentos chorosos, provavel­mente mulheres da vila ou servos pessoais do falecido conde. Eldred de Grant era adorado por todos aqueles que protegia, imaginou.

Os funerais irlandeses eram menos solenes. O funeral de seu próprio pai devia ter sido muito diferente de tudo que assistia naquela manhã. Antes mesmo que pudessem ver o corpo de Eocaidh, Tiarnan e ela partiam em cruel exílio. Não tiveram outra escolha. Ruairc Mageean bus­cava o poderoso talismã e antes que o corpo de seu pai fosse velado, precisaram esquivar-se do rude guerreiro. O clã Ui Sheaaghda não havia se recuperado do choque da morte de seu líder e Ga Buidhe na Laimhaigh já não estava mais entre eles.

Com a ajuda da sorte, despistavam os Mageean desde então. Quatro longos anos se passaram até a noite que vira a morte de Comarc, cruelmente assassinado por Ruairc. Era imperativo o retorno da Ga Buidhe na Laim­haigh para Carrauntoohil, o quanto antes. A lança sagra­da traria a força que seu povo necessitava para vencer o inimigo. Infelizmente, ainda teria que esperar alguns dias antes de partir.

A condição de Adam agravara-se com a viagem e Keelin sabia que sua presença seria importante no castelo nos próximos dias, talvez semanas. Não se ausentaria en­quanto não tivesse certeza da recuperação do menino.

Tiarnan também precisaria de sua ajuda nos primeiros dias no castelo, embora sua melhora, após longo repouso, tenha sido visível.

Keelin voltou as atenções à missa, afastando os planos que o breve regresso ao Kerry exigia. Elevou os pensa­mentos em sublimes orações dedicadas ao homem que jazia diante do altar. As lembranças de seu pai, de quem sequer pôde acompanhar o cortejo final, assaltavam-lhe a mente.

Mesmo depois de tanto tempo, pensou Keelin, o aba­timento e a tristeza ainda a rondavam, juntamente com a saudade de Eocaidh. A angústia tomou-lhe o peito, apertando-lhe a garganta. A dor dilacerava seu coração como no dia que vira Ruairc Mageean aniquilar seu pai violentamente.

Não tivera oportunidade de lamentar a morte do pai. Tiarnan e os anciãos reuniram-se minutos depois do in­cidente e decidiram o futuro por ela. Em questão de horas, seu tio e ela cavalgavam animais velozes rumo à costa da ilha, onde um barco os esperava. Quando aportaram em terras inglesas, traziam somente uma preocupação: manter-se o mais longe possível dos Mageean.

Algumas lágrimas cheias de emoção driblaram os lon­gos cílios negros de Keelin, para cruzar a face corada. Ela ergueu o rosto, afastando-as com rapidez.

A lúgubre missa fora encerrada, apesar das orações con­tínuas do bispo sobre o morto envolto por espessa nuvem de fumaça. O forte cheiro de incenso queimado conferia ao coral e às intermináveis salmódias, um toque sinistro.

Nobres cavaleiros, trajando suntuosa indumentária, er­gueram o caixão e o levaram para fora da capela, seguidos de perto por dignos membros da igreja presentes. Os fa­miliares acompanharam o cortejo e Keelin estava perto o bastante para presenciar lady Isolda segurar o braço de Marcus com intimidade.

A visão daquele contato não deveria causar-lhe nenhum distúrbio, pensou. Suas relações com Marcus eram ínfi­mas, comparadas com os laços entre ele e Isolda. Era uma residente temporária no castelo de Wrexton e deixaria de ser tão logo os acontecimentos se mostrassem favoráveis.

Além do mais, um noivo esperava por ela em Kerry. O inusitado beijo que trocaram deveria-ser relembrado ape­nas como uma brincadeira, uma fuga da cruel realidade que os assombrava. A forte ligação que sentia entre eles não era nada mais que imaginação.

Keelin resignada voltou os olhos para o chão. Não su­portaria mais ver Isolda segurando o braço de Marcus um instante sequer.

 

Passava da meia-noite e Marcus sentia-se feliz pelas horas de sono que desfrutara antes de ser acordado por seu criado. A lembrança dos dias que dividira com seu grupo no rústico chalé na floresta, o fazia apreciar ainda mais os minutos de descanso reconfortante no amplo quarto arejado e na cama macia.

Vestiu-se com rapidez e seguiu até o quarto de Adam para averiguar os motivos que levaram lady Keelin a ser intimada com urgência a comparecer no cômodo do enfer­mo. Ao entrar, encontrou o recinto devidamente iluminado por grandes candelabros. Seu primo jazia inconsciente so­bre o leito desfeito das cobertas quentes. De bruços, o fe­rimento que ameaçava lhe tirar a vida voltava-se para o alto e Marcus recuou diante do horripilante quadro.

— Oremos a Deus e a todos os santos — sugeriu Keelin, sentada junto ao menino. — A chaga está inflamada, milorde. Precisarei de sua ajuda para drenar a úlcera.

Ela vestia o mesmo traje verde que a vira usar logo cedo, no velório do pai. A enorme cortina negra e sedosa que seus cabelos sobre seu corpo formavam provocavam os dedos de Marcus, desejosos por tocá-los.

Meu Deus! Tinha acabado de sepultar seu pai, o infeliz Adam padecia, a beira da morte e tudo o que conseguia pensar era em envolver os cabelos de Keelin entre os dedos! Que urgência absurda era aquela?

A visão do rosto contrariado de Keelin refreou seus mais íntimos impulsos. A expressão fria e distante era ressaltada pela pele muito pálida.

Marcus imaginou que talvez não tivesse ainda tido ne­nhum momento de descanso desde que chegara a Wrexton e se culpou por negligenciá-la dessa forma.

Como bom anfitrião, convidara o bispo para leve refeição após o sepultamento. A tarde, envolvera-se com al­guns assuntos administrativos pendentes de Wrexton e depois isolou-se na torre para alimentar os falcões. En­quanto isso, Keelin tratava carinhosamente de seu primo ferido, como nenhum dos familiares dispunha-se a fazer. Ao término da solene cerimônia de sepultamento de Eldred, Keelin preferiu refugiar-se de todos. Marcus a vira acompanhar todo o réquiem e derramar dolorosas lágrimas de comoção durante a missa. Porém, algo lhe dizia que uma grande mágoa a afligia muito mais que a tristeza do velório. Claramente, fazia-se sua própria con­fidente e conselheira nessas horas. Jamais conhecera al­guém tão forte e corajosa como ela, jamais.

— Milorde — Keelin chamou-lhe a atenção novamente. — Talvez seja conveniente para esta tarefa chamarmos um...

— Não, não — disse Marcus, voltando seu corpo na direção do primo. — O que preciso fazer?

— Segure-lhe a cabeça e console-o com mensagens de coragem, Lamentavelmente, esta não será uma experiên­cia nada agradável para o rapazinho.

O melodioso sotaque celta seduzia os ouvidos de Mar­cus. Talvez Keelin não fosse nada além de uma jovem irlandesa fugitiva com misterioso talento em prever o fu­turo. Era o que seu coração mais desejava.

Ajoelhou-se diante do garoto, segurando-lhe os ombros com suavidade.

— Adam — chamou.

Sem encará-lo, Keelin esclareceu:

— Bebeu um chá para aliviar a dor. Ficará entorpecido por algum tempo, mas fale com ele mesmo assim.

Marcus levou a mão até a testa de Adam.

— Está queimando!

— Sim. A febre alta é causada pela ulceração grave. É por isso que devemos drenar o pus venenoso.

O garoto dizia palavras incoerentes e gemia muito bai­xo. Marcus tentava acalmar o primo da mesma forma que Keelin fizera no chalé escondido ao pé da montanha.

Com agilidade, Keelin realizou a intervenção no fe­rimento de Adam. Preocupada com a higiene, besuntou o corte com grossa pasta verde preparada com ervas medicinais.

— Ainda agitado? — perguntou ela.

— Não. Pressinto que tenha desmaiado.

— E melhor assim — comentou Keelin, lavando as mãos com cuidado. Buscou tecidos limpos, para atar o corte exposto, num móvel ao lado da cama. — Pode ajudar-me a erguê-lo para o curativo, milorde?

Marcus movimentou-se até o lado oposto do leito e le­vantou o corpo desfalecido de cima do colchão. Keelin aproximou-se com as longas tiras de pano, enrolando-as em volta do dorso do menino. Sem esperar, suas mãos cruzaram-se com as dela, tocando-a com sutileza.

Keelin ignorou o fato, afastando-se em seguida.

Era o melhor que tinham a fazer, pensou Marcus, aju­dando-a a encher uma bacia com água fria.

Com delicadeza, Keelin molhou um pedaço de tecido limpo no líquido e levou o pano úmido até as pernas de Adam, depois os braços e o rosto, esfregando com leveza na pele febril do menino.

— No que mais posso ser útil? — perguntou Marcus.

— Fique tranqüilo, milorde — replicou ela. — Perma­neça junto a seu primo. Sua presença o reconfortará.

— Deixe-me banhá-lo. Deve deitar-se o quanto antes. Quero dizer, deve estar precisando repousar, milady.

Marcus corou diante do olhar de reprovação de Keelin.

— Sim, estou cansada. Mas ficarei ao lado do menino até que melhore.

— Não tenho como lhe agradecer o incansável carinho que tem por meu primo — a excessiva formalidade de suas palavras denotava um tom de pouca sinceridade. Não parecia estar falando com o coração, mas respeitando normas da boa educação que recebera.

— Adam é um garoto adorável — replicou Keelin amargurada com a frieza de Marcus. — Além do quê, meu povo foi o responsável pela tragédia que o jogou nessa cama e...

— Lady Keelin, quero que saiba que não a culpo pela morte de meu pai nem pelo destino cruel de meu primo.

Não acreditava no que Marcus lhe dizia. Como podia não culpá-la sabendo que sua presença na Inglaterra trouxera os guerreiros Mageean para a vizinhança? Tentava ser generoso, mas não a enganava.

Marcus tomou o tecido de sua mão e repetiu os movi­mentos que a vira praticar momentos antes.

Adam permanecia dormindo e Keelin apagou algumas das muitas velas que iluminavam o cômodo. Exaurida, recostou o corpo extenuado sobre uma grande poltrona próxima a lareira.

Parecia tão frágil e vulnerável que o maior desejo de Marcus naquele instante era trazê-la para perto dele e abraçá-la até que adormecesse. Ao invés disso, correu o pano úmido pelas pernas de Adam mais uma vez e buscou concentrar seus pensamentos na recuperação do primo.

— Tem mãos suaves, milorde — a voz adocicada de Keelin despertou-lhe a mente distante.

Um tremor percorreu Marcus ao ouvir tão agradáveis palavras.

— Humm — era tudo o que conseguia dizer. Percorreu a outra perna do menino inconsciente com a faixa molha­da. Keelin afundou-se na almofada da poltrona e prosse­guiu: — Quem poderia dizer que um homem com seu ta­manho e sua força teria paciência para lidar com doentes?

Não se sentiu de todo desconfortável com a inesperada leitura atenciosa. O tom de admiração que usou ao des­crevê-lo encheu-o de prazer.

— No campo de batalha, ajudávamos uns aos outros, quando necessário.

— Campo de batalha? — perguntou ela.

— Lutei ao lado do rei Henrique, na França.

— O rei Henrique faleceu há mais de seis anos — re­torquiu. — Era ainda muito jovem para uma guerra.

— Tinha vinte anos quando morreu. Keelin arqueou as sobrancelhas, curiosa.

— E como tudo aconteceu? Como se sentiu num país estranho, lutando por sua vida?

Marcus nunca pensara em como se sentira lutando na França. Não recordava qual tinham sido seus pensamen­tos dentro das barrentas trincheiras ou quando era obri­gado a vestir pesada armadura muito abafada. Sabia so­mente que nada fora fácil.

— Deve imaginar o que senti. Não se refugiou na In­glaterra para salvar sua vida?

— Sim, mas não num campo de batalha — comentou ela. — Não há homens armados ou o zunido de espadas ao meu redor.

— Eles ainda podem estar por perto — insinuou Marcus. Os olhos verdes de Keelin abriram-se assustados diante da possibilidade levantada. — Acalme-se, milady. Está protegida em Wrexton.

Ele a assistiu disfarçar o medo num leve movimentar dos ombros. Era orgulhosa o bastante para não aceitar a segurança que lhe era oferecida.

Na verdade, Marcus não estava certo se era realmente preciso protegê-la.

Todavia, sua presença em Wrexton traria os mercená­rios guerreiros até ele.

— Como se tornou curandeira? — perguntou, afastando a discussão de sua pessoa. Preferia ouvi-la falar do quê ser o assunto da conversa.

— Meu tio Tiarnan me ensinou seus segredos. Seria o chefe do clã no lugar de meu pai, se não tivesse nascido coxo.

— Jamais conduziria seu povo à guerra.

Ela meneou a cabeça afirmativamente.

— Era o mais confiável dos conselheiros de meu pai. Após a morte de minha mãe, tio Tiarnan acolheu-me sob sua responsabilidade. Devo a ele tudo que sei.

— Então, Tiarnan também é curandeiro?

— Sim. Sou somente sua pupila.

Fez-se profundo silêncio durante longos minutos até Marcus voltar a falar.

— Adam parece mais fresco agora.

Keelin levantou-se da confortável poltrona, erguendo a mão sobre a fronte do menino.

— Tem razão, milorde — disse ela, com um delicado sorriso nos lábios. — O banho parece ter funcionado.

Marcus precisou esforçar-se para ouvi-la. Sua atenção voltava-se para a boca de Keelin e os dentes brancos per­feitamente alinhados expostos por seu sorriso.

Estavam tão próximos que ele podia sentir o frescor da menta em seu hálito, sua respiração acelerada e o seu calor.

Abaixou a cabeça buscando novamente o controle de suas emoções. Os lábios de Keelin aproximaram-se dos seus, provocando um desejo ardente de beijá-la.

O que estava acontecendo?, Marcus questionava-se em pensamento, sentindo as mãos molhadas pelo suor. Aonde se escondia o pânico que sentia na presença de mulheres? Ainda tinha vontade de fugir as pressas, mas suas pala­vras saíam firmes e conseguia conversar com normalida­de, sem gaguejar.

Bruxaria. Não poderia ser outra coisa.

— Agora posso me deitar, milorde — balbuciou Keelin em voz baixa, afastando-se de onde estava. — Estarei a disposição para eventuais complicações no estado de saú­de do menino. Mande avisar-me imediatamente caso pio­re e verei o que pode ser feito.

 

Tão logo se recostou no leito, Keelin mergu­lhou num sono profundo e reparador. Ao despertar, sentia-se disposta como fazia anos que não fi­cava. Durante sua infância, antes de os Mageean inicia­rem os ferozes ataques, sentia-se muito segura. E era assim que se sentia atrás das fortes muralhas protetoras do castelo de Wrexton.

Por que Marcus não a beijara? Keelin ainda podia sen­tir sua respiração ofegante próximo a ela, seu perfume masculino já tão familiar e o desejo vibrante em seu olhar, fitando-a com muita intensidade.

Rolou pela cama macia tentando esvaziar o coração cheio de dúvidas. Marcus tinha muitas razões para querer afastar-se dela. Primeiramente, era o novo conde de Wrexton. E a aparência grandiosa do castelo dizia a Kee­lin que aquele era um título poderoso. Procuraria por uma esposa que acrescentasse prosperidade e poder ao seu go­verno. Não perderia seu valioso tempo num enredado ro­mance com uma irlandesa qualquer.

Ainda mais sendo ela a responsável pela morte de Eldred de Grant. Marcus tentara convencê-la do contrário. Porém, era óbvio que associaria sua presença na Ingla­terra com o assassinato do pai para sempre. Eocaidh faria o mesmo, assim como outros justos cavaleiros.

Depois, existia o seu dom. Mesmo as pessoas que cres­ceram ao seu lado no clã tinham dificuldades em aceitar sua "segunda visão". A ancestral Tuatha De Danaan entregara um presente precioso para as mulheres de sua família, um presente muitas vezes entendido como pos­sessão demoníaca.

E, se os olhos que a viram nascer e tornar-se mulher duvidavam de sua capacidade, o que poderia esperar de Marcus?

Era muito cedo. Pássaros gorjeavam no pátio sob fracos raios de sol no dia frio. Mais chuva a caminho, concluiu Keelin, levantando os olhos para o horizonte nublado.

Sentia-se pronta para começar o dia. Abandonou o calor agradável do coberto ainda quente, atravessando o cômodo friorento. Banhou-se e vestiu-se antes de seguir até o quarto de Tiarnan,

 

Uma criada dedicada vinha sentar-se ao lado de Adam logo cedo, dando a Marcus a oportunidade para afastar-se do quarto do menino convalescente para esticar as pernas depois da longa noite de vigília. Ao invés de sair para uma caminhada relaxante, conforme o imaginado, pros­trou-se junto à escadaria, ansioso.

Não esperaria por muito tempo. O objeto de seu inte­resse logo apareceria no corredor sombrio.

Keelin fechou a porta atrás de si e dirigiu-se ao quarto de seu tio, tranqüilamente.

Marcus não tinha a intenção de falar com ela. Aliás, não sabia o que fazia recostado aos degraus. Talvez de­sejasse vê-la, somente. Ou então, buscá-la para conversar sobre amenidades, como tinham feito na noite anterior e nos dias que passaram juntos no humilde chalé.

Continuou imóvel no corredor, esperando pelo momen­to que Keelin retornaria e que se envergonharia do rubor em sua face com o reencontro. Não, não sentiria mais a incomoda timidez com sua presença. Não dessa vez, nem nunca mais. Keelin despertara-lhe a segurança que ja­mais acreditou possuir.

Após dar algumas instruções aos criados, Marcus re­fugiou-se mais uma vez na torre solitária do castelo onde diversas aves disputavam suculentos grãos de milho.

O odor marcante dos falcões assaltou suas narinas no instante que adentrou o recinto. Acendeu algumas velas e atravessou o chão de cascalho até onde duas grandes aves de rapina estavam empoleiradas.

— Bom dia, ladies! — disse carinhosamente. — Bela Guinevere, como tem passado? E você, Cléo, cresceu ainda mais durante minha ausência?

Alcançou os pássaros e falou com eles durante longo tempo. Assegurou-se da condição das asas e das garras. Gerard, o adestrador, zelava pelas aves e pela saúde de­las. Excelente e reconhecido treinador, dedicava seus dias ao cansativo labor de domesticar os pássaros selvagens. Muitas outras aves peregrinas estavam ali. Pombos e águias dividiam a ração que restava nos refeitórios dos falcões de estimação. Num outro poleiro, mais alto e pro­tegido, dois gaviões ainda pequenos estavam aninhados. Foram recolhidos na floresta próxima a Wrexton e Mar­cus sabia que, assim que crescessem e tornassem-se fortes e hábeis, interessados compradores apareceriam.

Deixara o trabalho de adestramento das aves nas mãos de Gerard. Assuntos mais urgentes demandavam todo seu tempo e agora, como o novo conde, os treinamentos se tornariam ainda mais intensos. Precisava preparar-se para a chegada dos violentos mercenários celtas.

Marcus não podia prever quantos dias os guerreiros levariam até descobrirem o novo esconderijo de Keelin. Com sorte, o péssimo clima os deteria por um tempo. Importantes providências deveriam ser tomadas antes que os bárbaros forçassem os portões de Wrexton.

A febre de Adam voltara a subir. O garoto encharcado de suor gemia e murmurava frases incoerentes.

Para o alívio de Keelin, Tiarnan parecia ter se recupe­rado muito bem da jornada do dia anterior. Agradava-lhe, o conforto do requintado alojamento e as novas companhias. A satisfação do tio permitiu a Keelin dedicar-se completamente ao menino febril.

Lady Isolda fora chamada diversas vezes no aposento do enfermo, mas sempre respondia estar muito ocupada com suas obrigações. Marcus envolvia-se com seus deve­res junto aos cavaleiros no salão de esgrima.

Keelin estava sozinha e sem ajuda. Encarando a criada sentada ao lado do leito, sorriu.

— Somos só nós duas, Kate — disse. — Converse com Adam e prenda seus braços com força. Limparei a chaga enquanto isso.

Com cuidado, desenrolou o tecido que cobria o corte e iniciou processo idêntico ao da noite anterior. Perfurou a pele inflamada e drenou o pus, preocupando-se principal­mente com a assepsia do local. Adam rendeu-se ao sofri­mento, desmaiando durante o procedimento, o que facili­tou o término da intervenção.

Com a ajuda de Kate, Keelin banhou o menino com água fria, na esperança de diminuir-lhe a temperatura. Trocou os lençóis de linhos por outros, limpos.

— Permaneça ao seu lado, Kate — ordenou. — Levarei os linhos sujos de sangue até a lavanderia.

— Oh, não, milady! — a criada protestou. A área dos serviçais não era lugar para uma nobre dama. — Deixe-me fazer isso, por favor.

Keelin buscou os lençóis amontoados no chão, determi­nada a terminar sua tarefa.

— Fique com o garoto. Passarei pela cozinha para bus­car algumas ervas que me faltam na algibeira. Irei também até o quarto de meu tio, todavia, não me demorarei por lá.

Terminada as explicações, saiu do quarto com rapidez, levando consigo a roupa de cama suja e desceu a longa escadaria.

— Lady Keelin — Isolda gritou seu nome, sentada em confortável poltrona ao lado da grande lareira. — Não sei como são as coisas na Irlanda — comentou indignada. — Mas aqui, as criadas nos servem.

— Sim. Ia até a cozinha e aproveitei para trazer os lençóis.

— Perdeu a razão! — Isolda retrucou furiosa. — Bill! Venha, imediatamente! Leves esses, esses... — A jovem torcia o nariz sardento, enojada com as manchas de san­gue e outras secreções no tecido, e gritava com histeria. — Ajude-a, rápido!

O criado correu até Keelin, afastando-lhe a carga das mãos.

— Obrigada, Bill — disse ao rapaz aflito antes de vol­tar-se para Isolda. — Poderia, por gentileza, me indicar o caminho para a cozinha?

Isolda a encarou com olhar dúbio, então, apontou a pe­sada porta de madeira à sua frente.

— É por ali.

Keelin agradeceu a informação e abandonou a anfitriã sozinha no recinto, embaraçada com a atitude arrogante da mulher. Não conseguia entender por que um simples gesto prestativo a ofendera tanto.

Os olhos de Keelin encantaram-se com o alvoroço de atividades que decorriam dentro da grande cozinha. Di­versos pratos eram preparados para as mais diferentes refeições. Wrexton alimentava um grande batalhão de pes­soas, pensou, receando atrapalhar o cozinheiro-chefe.

— Bom dia! — disse.

— Bom dia, milady! — replicou o senhor baixo e muito gordo não demonstrando qualquer acanhamento com a presença de Keelin entre eles. — Existe algo em que posso ajudá-la?

— Sim.

Passaram-se longos minutos enquanto Keelin desfru­tava o ambiente acolhedor da cozinha do castelo de Wrex­ton. Além de encher a sacola de couro onde carregava suas plantas medicinais com ervas frescas, preparou uma refeição leve para Tiarnan e um caldo quente reforçado para Adam.

Conquistara o respeito e a admiração de todos os ser­ventes, principalmente do cozinheiro-chefe.

— Permita que um dos rapazes lhe ajude a subir, mi­lady — disse o homem ao vê-la atravessar a porta com a bandeja carregada.

— Não é preciso. Seus auxiliares têm muito trabalho a fazer.

O cozinheiro a observou sair fixamente. Keelin não era como as outras damas que conhecera, pensou, descuidan­do-se de suas panelas. Era doce, gentil e sua beleza aflo­rava-lhe como encanto. O cheiro de queimado, antes mes­mo que a porta se fechasse por completo, espalhou-se pela ampla cozinha, despertando o homem para seu trabalho.

Marcus atravessava o grande salão principal junta­mente com sir Willian e sir Robert quando Keelin fazia o caminho de volta ao andar superior. Ela sorriu com gentileza, mas recusou a boa vontade de Bill em ajudá-la com as refeições.

Isolda, acompanhada de uma de suas aias, repousava ao lado da lareira. Ao vê-la surgir no salão com a bandeja, a jovem arrogante disparou uma gargalhada que ecoou pelos quatro cantos.

Keelin ergueu os olhos até o lugar onde estavam as duas mulheres e surpreendeu-se com a presença de Marcus. A aia, propositalmente levou a vassoura com que lim­pava as cinzas da lareira até os pés de Keelin que trope­çou, deixando a bandeja flutuar pelos ares, esparramando tudo o que cozinhara com esmero para seu tio e Adam. Caiu sentada, ao lado das travessas e talheres jogados ao chão.

Marcus agilizou os passos para ajudá-la a levantar-se enquanto ouvia a prima Isolda xingar sua criada.

— Machucou-se? — perguntou ele.

Trêmula e embaraçada com a queda, Keelin reuniu for­ças para menear a cabeça, em discordância.

— Que desastre! Perdoe-me, milorde, não costumo atrapalhar-me assim. Lamento pelo...

— Não é nada — replicou, chamando um serviçal para limpar a sujeira. Bill surgiu outra vez no salão. — Vá a cozinha e peça ao chefe para refazer os pratos arruinados.

Apoiou os passos titubeantes de Keelin até a cadeira próxima ao fogo, obrigando-a a sentar.

— Estou bem — informou. — Devo retornar aos apo­sentos de Adam. O veneno voltou a perturbá-lo e a febre parece não ceder.

Linhas de preocupação surgiram na testa de Marcus. Olhou para a escadaria que dava acesso ao andar superior da nobre residência.

— Se não está mesmo machucada...

— Criada estúpida! — Isolda voltava à sala depois de escorraçar a aia para a área de serviço. — Deixe-me ver suas mãos — disse, dirigindo-se para Keelin que erguia as mãos ainda bambas.

A anfitriã virou as palmas das mãos para cima e pairou os olhos minuciosos sobre os pequenos arranhões. Queria saber como estavam os joelhos, as pernas, os pés e Keelin levantou-se, perturbada com o interrogatório.

— Agradeço pela preocupação, lady Isolda, mas estou bem. Por favor, não desperdice seu tempo com minha falta de sorte.

Keelin disparou a andar em direção aos degraus da longa escada antes que Isolda a impedisse. Marcus a se­guira logo atrás.

— Adam está acordado? — perguntou ele.

— Não, milorde — respondeu, observando Isolda im­paciente e sozinha no salão, segurando a cintura com as mãos. — Estava, logo cedo, mas a febre e a dor...

Marcus segurou o braço de Keelin enquanto subiam as escadas, a surpreendendo tanto quanto no momento em que o vira junto com a prima no salão, ao sair da cozinha. Ela abaixou os olhos e caminhou com passos miúdos, te­mendo tropeçar mais uma vez.

Nunca entenderia como não percebeu a vassoura em seus pés. Podia jurar que ela não estava lá segundos antes de cair.

— Fiz tudo que está ao meu alcance por Adam — disse. — Mas as ervas medicinais não parecem conter a ul­ceração.

Atravessaram a porta do cômodo do garoto ao mesmo instante.

— Ah, milady... — resmungou Kate ao vê-los entrar. Keelin levou a mão até a fronte do menino deitado e franziu as sobrancelhas, preocupada. Revirou sua sacola de couro e separou pequenos punhados de ervas com di­ferentes tonalidades de verde. Em seguida, despejou água pura e fria em uma bacia prateada e a ofereceu a Marcus.

— Gostaria de banhá-lo outra vez, milorde? — per­guntou.

— Sim — aceitou ele.

Em uma caneca Keelin misturou água quente e um misterioso pó cinza muito fino. Aproximou da cabeceira da cama devagar e levou os lábios bem perto do ouvido do garoto.

— Adam, pode me ouvir?

Um grunhido doloroso foi ouvido no lugar da resposta.

— Beba um pouco — disse ela, enquanto derramava um pouco do líquido quente na boca entreaberta do en­fermo.

Adam engoliu o preparado de uma única vez.

Uma hora depois a febre ainda era alta. Se aquela si­tuação não se revertesse, e logo, o menino poderia morrer, pensou Keelin, aflita.

— Chamarei meu tio — disse.

Marcus pode sentir o desespero em sua voz, porém ele buscava manter a calma.

— Devo chamar o padre, milorde? — perguntou Kate.

Irritado com a sugestão da criada em adiantar a extrema-unção do primo, Marcus descontrolou-se com a pobre mulher.

— Não! Vá e busque Tiarnan de uma vez.

— Sim, milorde — replicou Kate, desconcertada com inesperada explosão de fúria.

— A presença do padre não nos atrapalharia — comen­tou Keelin, levando a mão até o ombro de Marcus.

A voz firme não escondeu os olhos lacrimosos de Keelin e Marcus entendeu que quase nada podia ser feito por Adam.

Permaneceu em pé ao lado da cama, desferido pela enormidade do que tinha que admitir para si mesmo. Em nenhum momento, desde o ataque dos celtas, tinha permitido-se considerar a hipótese de seu primo não sobre­viver. Agora, porém, não tinha outra escolha que não en­carar a terrível possibilidade.

Impulsivamente, Marcus puxou Keelin para perto de seu corpo e a envolveu num terno abraço. Sentia que ela precisava de conforto tanto quanto ele. A apertava entre os braços com força quando a ouviu deixar escapar um soluço de tristeza e dor.

 

Fora um longo e tenebroso dia. Adam ainda permane­cia inconsciente ao anoitecer, mas a febre baixara e o ferimento parecia começar a cicatrizar. Drásticas medi­das foram tomadas por sugestão de Tiarnan. Nunca antes Keelin sentira, tão preso em suas mãos, o tênue fio que separa a vida e a morte. Nem tanta vontade de fugir. O mau presságio que assombrava o coração de todos na câ­mara crescia com o decorrer das horas. Por mais que ten­tasse manter as esperanças acesas, Keelin sentia-se vul­nerável com os novos pressentimentos que a atormenta­vam. Não conseguia precisar quando, nem onde, mais um fato desagradável aconteceria e Adam não estava diretamente envolvido com isso.

Keelin considerou buscar Ga Buidhe an Lamhaigh no estábulo. Com um simples toque na lança, a visão da fa­talidade eminente surgiria. Sabia, entretanto, que a experiência esgotaria com todas as suas forças, impedindo-a de prosseguir os cuidados com o menino convalescente.

Talvez, o melhor por agora fosse esperar. Tiarnan e ela estavam a salvo em Wrexton. Não existia um único guer­reiro Mageean capaz de penetrar os muros do castelo sem criar alarde. E mesmo que todo o bando dos mercenários celtas conseguisse atravessar os portões, Marcus e seus homens lutariam heroicamente, flecha com flecha, espada com espada.

Keelin buscava por ar fresco e isolamento no jardim do castelo no início da noite. A presença constante de Marcus junto ao leito de Adam, ao seu lado, tornara-se sufocante para ela.

Sempre que tinha a oportunidade de sair do quarto do enfermo, reportava aos criados detalhes dos procedimen­tos adotados com o enfermo e a evolução lenta e imprecisa da condição do menino. Todos os serviçais tinham um carinho especial pelo garoto órfão.

O chefe da cozinha a interrogou sobre Adam e muitos outros ajudantes a cercaram para ouvir seu relato. Agra­deceram a dedicação de Keelin em salvar sua vida com abraços e gestos de amizade.

Um sentimento de exasperação apoderou-se de seu co­ração aflito ao perceber a confiança que depositavam nela. Tinha medo. Fazia tudo o que podia pelo garoto, mas sa­bia que talvez aquilo não fosse o suficiente.

Cobriu-se com sua capa e caminhou para fora do castelo em busca dos verdes jardins que o contornavam. Desejava alguns momentos de solidão e paz para apurar seus sen­timentos e recompor-se.

Keelin não gostaria de criar vínculos com os ingleses de Wrexton. Lutaria contra possíveis laços afetivos com todos eles e evitaria maiores envolvimentos para facilitar o momento de sua partida. Mas seus esforços eram inú­teis. Perdia mais uma batalha.

Desvanecia-se com as lembranças do antigo lar. Ten­tava comparar o homem que sequer conhecia, seu noivo irlandês, com Marcus. Naquela manhã, diante do inespe­rado abraço, sentira todo seu corpo queimar, em chamas. Envolvida por seus braços fortes, percebera o quanto es­tava fragilizada e frustrada.

Mais tarde, quando Tiarnan veio para auxiliá-la com os cuidados do enfermo, Marcus trabalhara ao seu lado, como velho parceiro, antecipando-se nas necessidades an­tes que pedisse. Seus movimentos delicados e eficientes contrariavam a impressão que sua constituição forte e grande causava. Falava-lhe com respeito e consideração, afastando as suspeitas que poderia responsabilizá-la pelo ataque celta em segredo.

Observara todos os pequenos gestos, com viva fascina­ção. Notificava diversos detalhes. Os longos cílios, a cica­triz sobre o lábio superior, a pele aveludada de suas ore­lhas, coisas que jamais tinha reparado em qualquer outro homem. As mãos, grandes e bem formadas, eram recober­tas por uma curta penugem muito clara. As imaginou...

— Lady Keelin.

Keelin virou-se ao chamado da voz que lhe era muito familiar. Envergonhada, levou as mãos até o rosto, na tentativa de esconder as maçãs, coradas e quentes. Marcus descobriria seus pensamentos facilmente. Ele apareceu-lhe com os cabelos despenteados pelo vento, vestindo uma capa de couro com uma grande gola que protegia seu pes­coço grosso e definia ainda mais as linhas aristocráticas de seu queixo e mandíbula.

— Sim, milorde — Keelin murmurou com voz baixa.

Marcus pousava os olhos azuis sobre ela, encabulando-a.

— Eu, bem... — Marcus cruzou as mãos em suas costas antes de prosseguir. — Saiu do quarto tão abruptamente que imaginei que alguma coisa estava errada.

— Não, milorde — replicou ela. — Estou bem. Procu­rava por ar fresco, nada mais.

Marcus diminuiu o espaço entre eles.

— Teremos uma noite muito fria — disse, elevando os olhos para o céu. — A neve aproxima-se.

— Sim.

— Algo me diz que esse será um difícil inverno. Não está pensando em viajar para a Irlanda sozinha, está? — perguntou ele depois de alguns momentos de hesitação.

— E... estou, milorde — respondeu titubeante. — Tão logo Adam recupere-se.

— E seu tio? — questionou Marcus, tirando as mãos de baixo da pesada capa e unindo-as diante do peito másculo.

— Imaginei que pudesse ficar em Wrexton, milorde.

 

Os olhos de Marcus permaneceram pousa­dos sobre Keelin durante longo segundos. Atraída por seu olhar penetrante, ela inclinou-se em sua direção, magnetizada. Desejava seu toque ardente­mente, mais que o ar que respirava com inconstância.

— Não estamos numa boa época do ano para viajar — disse ele.

— Sim, milorde. Sei disso, mas...

Antes que pudesse concluir seus pensamentos e suas palavras, Keelin sentiu os lábios doces e macios de Mar­cus junto aos dela e fechou os olhos diante do toque gentil em sua boca.

O coração de Keelin batia acelerado quando Marcus levou suas mãos lisas até os seus ombros e deslizou-as suavemente, acariciando-lhe cada pequeno pedaço de sua pele que transparecia pelo decote do vestido. Os dedos ágeis desceram pelo peito ofegante até os seios, tocando-os com delicadeza. Ela jamais havia sentido nada parecido, em toda sua vida. O calor das mãos carinhosas sobre seus seios a fez desejá-lo como nunca.

Keelin surpresa com as novas sensações, deu alguns passos para trás e suas costas recostaram-se ao tronco centenário de um carvalho. O corpo másculo, rígido e ten­so contra o seu a deixavam inconsciente. Sentia o calor da pele de Marcus junto a sua e a força de cada músculo nos movimentos delicados de suas mãos.

Ela levou os braços até a nuca quente e úmida dele e o puxou para junto de seu corpo vigorosamente. Não podia descrever seus pensamentos naquele instante, somente sentia a explosão de novas sensações aflorando por todos os poros, inebriando-a por completo. Seu corpo pedia por mais e ela sentiu a necessidade de desnudar-se, despir-se para desfrutar o toque audaz de Marcus mais intensa­mente. Imaginou os lábios que a beijavam com ternura percorrendo os mesmos caminhos traçados pelas mãos e suspirou.

Marcus afastou a boca dos lábios úmidos de Keelin e beijou-lhe o lóbulo da orelha com lentidão, descendo logo em seguida para o pescoço com os lábios entreabertos, sentindo na ponta da língua o sabor da pele quente e salgada. Ele desatou o nó rente aos ombros que mantinha a capa de Keelin presa ao corpo e acompanhou o suave deslizar do tecido pelas suas costas até cair ao chão. Num movimento rápido, soltou o laço que atava o vestido a cintura e levou a mão por dentro de uma pequena aber­tura que surgira na altura do ventre. Ele percorreu os dedos suaves pela sua virilha, acariciando-a com leveza.

Keelin não conseguia entender o que lhe acontecia, mas procurou manter os lábios atados para não fazer barulho. Nunca imaginara que um toque íntimo como aquele a faria perder o controle sobre seu próprio corpo. Incapaz de um único pensamento consciente, ela deixou guiar pe­los seus instintos e desejou tocá-lo também. Deslizou a mão pelas costas de Marcus até alcançar suas nádegas, firmes e musculosas, sentido o tremor que seu carinho despertava no corpo dele.

O barulho de um soluço contido no meio do jardim des­pertou-a do intenso delírio, chamando a sua atenção e a fazendo recuar imediatamente. As mãos de Keelin posta­ram-se rígidas ao lado de seu corpo quando avistou no meio dos arbustos um rosto sombrio os encarando-o com horror. Marcus afastou-se a procura da figura misteriosa que os examinava, todavia o vulto esgueirou-se pela es­curidão e sumiu sem deixar rastros.

Amuado, retornou até o tronco da árvore onde Keelin recostara-se, buscando a capa caída no chão e a cobriu novamente com cuidado.

Keelin sentia-se encabulada como uma criança que é pega fazendo algo que não devia. Apesar daquela terrível sensação ainda podia sentir o sangue correr agitado pelas veias após a carícia tão íntima de Marcus.

Sabia que era uma mulher que os observava. Lem­brou-se da expressão hostil e dos grandes olhos cravados no meio da vegetação densa do jardim e um leve tremor percorreu-lhe a espinha. A sombra indefinida balbuciou um xingamento qualquer e esquivou-se do flagrante com rapidez.

O laço do vestido de Keelin parecia não querer voltar para o mesmo lugar de antes. Observava Marcus enquan­to remexia discretamente no vestido assentando-lhe no­vamente ao corpo. Ele já não conseguia ocultar o descon­tentamento, pensou.

Marcus mantinha-se em total silêncio e vez ou outra fitava-a envergonhado. Claramente um turbilhão de pen­samentos estranhos o assombrava. Keelin não podia ima­ginar o que o entristecia daquela forma, mas sua infeli­cidade era gritante.

Seria ela a causa de tamanho desgosto?, Keelin pensa­va em silêncio. Não, isso não era possível, não dessa vez. Cedera a todos os impulsos, sem lutar, sem resistir. E tudo correra bem, ao menos era assim que imaginava, até a velha mulher denunciar sua presença no jardim. Só podia concluir que a causa do desconforto de Marcus era a mulher que os observava em surdina.

Marcus pousou a palma da mão sobre sua cabeça, des­viando-lhe a atenção do vestido. Mantinha o silêncio, va­lorizando as insistentes reticências com que Keelin já co­meçava a acostumar-se. Ele correu o polegar pelo rosto corado e o apertou delicadamente. O gesto gentil foi o bastante para fazê-la sentir-se menos desamparada.

Com naturalidade, Marcus buscou seu braço e iniciou o caminho de volta ao castelo, levando-a ao seu lado.

— Quem era a mulher que nos observava? — questio­nou Keelin ao alcançar a porta dos fundos da cozinha.

— Beatrice, a dama de companhia de Isolda — respon­deu ele carrancudo.

— Permita-me a pergunta, Marcus — disse tímida. — Isolda é sua parente ou...

Marcus a interrompeu com firmeza.

— Não. Não é minha parente nem... Bem, é uma prima distante do homem que entregou Wrexton nas mãos de meu pai — replicou. — Veio visitar o castelo muitos anos atrás e nunca mais partiu. Beatrice veio com ela.

— Seu pai devia ser um homem muito generoso — ela comentou.

Marcus permaneceu mudo diante do comentário de Keelin, mas a expressão em seu rosto revelava o quanto se sentia comovido com sua aguçada percepção. Eldred de Grant era um homem muito generoso. Sua misericór­dia para com todos os desprovidos de sorte era infinita. Ele sentiu um aperto em seu peito ao lembrar-se do novo título que recebera e sua inexperiência. Não sabia se seria bondoso e justo como Eldred tinha sido.

E, particularmente, bondoso não era o melhor adjetivo para descrevê-lo naquele instante. Se encontrasse com Beatrice pelos corredores do castelo seria capaz de torcer o seu pescoço, pensou assustado com sua reação. Suspei­tava que Isolda o tivesse visto sair para o jardim atrás de Keelin e tenha enviado a dama de companhia para espioná-los. E interrompê-los, é claro.

Jamais pudera entender por que Eldred não exigira que Isolda aceitasse um dos inúmeros pretendentes que lhe foram apresentados. Sabia que o pai também desejava que a prima distante partisse de Wrexton, mas nunca a obrigou a aceitar um dos pedidos de casamentos, mos­trando-se sempre paciente e caridoso. E Marcus não sabia se conseguiria agir da mesma forma que seu pai.

Pensou em procurar por alguns dos antigos pretenden­tes e abordá-los com novas propostas. Isolda precisava afastar-se de Wrexton o quanto antes, imaginou aflito.

— Marcus — chamou Keelin freando os passos antes de adentraram a suntuosa residência. Os seus grandes olhos verdes brilhavam assustados. — Sente um cheiro forte de fumaça?

Marcus ficou paralisado por alguns instantes até con­seguir distinguir o odor desagradável que contornava o castelo.

— O estábulo!

Keelin correu junto com Marcus até os fundos do cas­telo, contornando o vasto e bem-cuidado jardim onde ha­viam se beijado momentos atrás. Logo foram envolvidos pela espessa fumaça escura da madeira e palha que quei­mavam no estábulo. Muitos homens carregavam enormes baldes de água até as gigantescas pilhas de feno que cercavam o estábulo em chamas. Adiantando-se à necessi­dade, Keelin buscou um balde vazio e correu até o poço mais próximo em busca de água.

— Milorde! — Boswell, o serviçal responsável pelo alo­jamento exclamou surpreso ao avistar Marcus no local do incêndio. — O garanhão e as fêmeas grávidas foram retiradas. Estão num lugar seguro à espera dos outros ani­mais que estão sendo salvos neste instante.

Agradecido pela preocupação extremosa do serviçal com as éguas e seu cavalo, Marcus voltou-se para os ou­tros rapazes, coordenando a distribuição dos baldes. Infelizmente, os trabalhos para conter o fogo iniciaram-se tarde demais.

As chamas devoravam o teto e as paredes do alojamen­to dos animais com rapidez e antes que pudessem con­trolar o fogo, o estábulo parecia completamente tomado pelo incêndio.

Boswell tinha a expressão séria e preocupada e Keelin preferiu manter-se distante do homem ainda inconforma­do com o incidente, voltando-se para os rapazes que sal­vavam os cavalos ainda presos dentro do estábulo. A fúria de alguns dos animais em pânico que resistiam em seguir as ordens do empregados a impressionava. Ela cobriu o rosto com a capa e entrou no alojamento em chamas. Avis­tou uma grande porta nos fundos que ainda permanecia fechada e imaginou que talvez os animais preferissem fugir por lá. Atravessou o calor infernal das chamas até o outro lado e abriu a porta com um movimento brusco. Imediatamente os animais guiaram-se para a saída im­provisada, seguindo a voz doce e gentil de Keelin. Os em­pregados admiravam surpresos os animais a acom­panhando como se compreendesse suas palavras.

No mesmo instante, gritos desesperados de homens e mulheres ecoaram por todos os lados. O teto do alojamen­to começava a ruir e o chão estava tomado pelo fogo. O terreno que contornava o lugar estava encharcado com a água que escorria dos baldes e repleto de lama. Todos tentavam ajudar de alguma forma, mas os esforços pare­ciam inúteis.

Keelin, ainda dentro do estábulo procurava por sua mula. O animal estava acuado entre duas colunas em chamas e de onde estava ela podia ouvir seu lamento de terror. Pulando pequenos montes de feno encharcados Keelin conseguiu alcançar a mula e começou a conversar com o bicho calmamente.

— Milady! — a voz de um homem a interrompeu. — Não há mais tempo!

— Apenas mais um instante. — Sem alternativa, Kee­lin pousou os olhos sobre o velho animal que acompanha­ra ela e Tiarnan em sua jornada na Inglaterra nos últimos anos. Não tinha mais tempo a perder ali dentro, pensou ouvindo o teto estalar sobre sua cabeça. Antes que pu­desse alcançar o enorme portão ouviu um grande estrondo em suas costas e tudo de repente escureceu.

Durante o inverno a grande construção de madeira an­tiga ficava repleta de troncos de árvores secos. A lenha armazenada agilizou o trabalho do fogo que consumiu o alojamento em poucos minutos.

O prejuízo fora pequeno, pensava Marcus, observando os serviçais recolherem os caros animais de montaria em outro curral próximo ao portão do castelo. Frieda e Isabella, as duas fêmeas recém-adquiridas, passavam bem. Gregor, seu companheiro inseparável nas batalhas, pare­cia ainda mais valente depois do incidente.

Estava admirado com o comportamento de Keelin dian­te do estábulo em chamas. Agrupara-se aos homens com coragem, sem hesitar um único instante. Atravessara o fogo no alojamento para salvar os cavalos ariscos e des­pertara a admiração de todos.

Keelin havia feito o mesmo com Adam e o grupo de cavaleiros quando bateram na porta do chalé onde ela e seu tio se escondiam. E ali no castelo, diante do terrível quadro de saúde do menino ferido. Era uma dama valen­te, pensou Marcus lembrando-se de Isolda e suas eternas obrigações fúteis.

Um batalhão de homens procurava conter o fogo que ainda queimava as últimas paredes do estábulo. Marcus ordenara aos seus cavaleiros que ajudassem os serviçais a diminuir a área do incêndio e não perdessem mais tem­po tentando apagar as chamas no abrigo. O alojamento de madeira poderia ser reconstruído facilmente e todos os animais já estavam em segurança. Graças a Deus ne­nhum dos empregados havia se ferido na difícil emprei­tada de conter as chamas, pensou aliviado.

Para a sorte dos trabalhadores, um chuvisco fino e frio os ajudava na árdua tarefa. O fogo ainda consumiria a madeira por algumas horas, pensou Marcus interrogan­do-se sobre a presença do cavaleiro aflito que vinha em sua direção.

— Lorde Marcus! — o tom alarmista do rapaz o assus­tou. — A dama que o acompanhava, milorde — prosse­guiu afoito segurando no braço de Marcus e puxando com força.

— A dama Keelin O'Shea? O que tem ela?

— Milorde — disse o rapaz agitado. — ela foi atingida durante o incêndio. Um de nossos homens a encontrou nos destroços, inconsciente.

Marcus abandonou os trabalhadores que extermina­vam com as últimas chamas e acompanhou o rapaz de imediato. Um barracão havia sido improvisado pelos ser­viçais logo depois do incêndio para guardarem os utensí­lios desalojados e o corpo desfalecido de Keelin estava estirado sobre o chão.

Seu coração disparou ao vê-la estendida no piso bar­rento. Pôs-se de joelhos diante dela sentindo o terror per­correr seu corpo. Ela estava com os olhos abertos, porém nada parecia enxergar. Seus longos cabelos negros esta­vam molhados com sangue.

— Keelin — disse Marcus buscando a mão dela para junto da sua.

— Marcus... — a voz muito baixa de Keelin quase não podia ser ouvida. Um acesso violento de tosse a impediu de continuar a falar.

— Acalme-se — sugeriu ele aliviado ao vê-la responder ao seu chamado.

— O que aconteceu? — perguntou Keelin tão logo sua respiração voltou ao normal. — Oh, o fogo... Minha mula estava lá dentro e...

— Um dos nossos rapazes conseguiu salvá-la — asse­gurou ele, erguendo-a do chão com seus braços fortes. O fogo estava sob controle e nada mais poderia ser tão im­portante como a saúde de Keelin, pensou Marcus cami­nhando para a porta do castelo. O ferimento em sua ca­beça ainda sangrava e ela precisava ser atendida o quanto antes.

— Posso andar, milorde — disse ela, envergonhada por deixá-lo aflito outra vez. Keelin enlaçou o pescoço de Marcus com as mãos trêmulas e fechou os olhos diante do abrupto silêncio.

Sentir os braços delicados de Keelin em volta de seu pescoço era tudo o que Marcus queria naquele momento. Gostaria de prolongar a agradável sensação de proximi­dade por mais tempo, todavia o vestido úmido e a apa­rência cansada de Keelin o lembravam de que ela mere­cia descansar. Antes, porém, ela mesma teria que cuidar de seu ferimento. Tiarnan era o único homem em Wrexton capaz de curá-la, mas sua cegueira o impediria de ajudá-la.

Ele atravessou a sala de estar rapidamente, mas antes que pudesse alcançar a escadaria, Isolda os encontrou no caminho.

— Marcus! — ela gritou. — O que aconteceu?

— Lady Keelin se feriu no incêndio do estábulo — re­plicou ele sem conter seus passos. —Adiante-se em nossa frente, Isolda, e abra a porta do quarto, por favor.

Aborrecida com a sugestão de Marcus, Isolda precipi­tou-se no cômodo onde Keelin estava hospedada e ergueu as cortinas do leito com a expressão endurecida. Ele dei­tou Keelin sobre a cama com cuidado.

— O bispo Delford o aguarda no solar, Marcus — disse Isolda. —Aliás, todas as tardes ele o tem aguardado para uma conversa, mas você está...

— Relate ao bispo o incidente no alojamento dos ani­mais. Tenho certeza que ele compreenderá minha situa­ção e aguardará um pouco mais pelo nosso encontro — interrompeu Marcus com visível impaciência. — Agora, busque roupas limpas e uma bacia com água morna para lady Keelin.

Isolda fitou Keelin com profundo desprezo e saiu do cômodo, enraivecida.

— Marcus, eu posso fazer isso sozinha — protestou Keelin sentando-se sobre o colchão macio. Um leve ver­tigem a fez recostar-se mais uma vez na cabeceira do leito.

— Permaneça deitada — disse ele sentando-se próxi­mo a ela. Um desejo incontrolável de proteção o domina­va ao vê-la ferida novamente. Queria poder afastar aque­le sentimento incontrolável, mas sua vontade não era o bastante.

Sentia-se perdidamente enfeitiçado por Keelin. Que bruxaria ela havia usado para atraí-lo daquela maneira? E por que se sentia tão completo quando a tinha entre os braços?

Keelin estava esgotada. Precisava tentar dormir, toda­via os últimos eventos do dia tinham-na excitado profun­damente. Envolvida pelo tumulto de seus pensamentos, levantou-se da cama e caminhou até a lareira. Antes de partir, Marcus preocupara-se em alimentar as chamas para manter o cômodo agradavelmente aquecido em sua ausência. Ela abandonou o corpo sobre a poltrona e dei­xou-se afundar no encosto macio lembrando-se dos cari­nhosos e da atenção que recebera.

Marcus estava decidido a protegê-la, pensou Keelin e talvez mais... Um sentimento forte a fazia reconsiderar sua viagem para a Irlanda. Seria aquele o melhor mo­mento para partir?

Ela precisava retornar ao antigo lar. A cabeça de Keelin parecia um turbilhão onde giravam pensamentos confu­sos e disparates intermináveis. Ga Buidhe an Lamhaigh precisava voltar para o clã, imediatamente.

Keelin levou os joelhos até o peito e apoiou o queixo sobre eles. Seu cabelo recém-lavado ainda estava úmido e exalava um agradável perfume de ervas. A longa cortina de mechas negras envolveu suas pernas como um manto.

A lembrança do beijo de Marcus a fazia tremer. Mas aquele romance era impossível, pensava recordando a úl­tima de suas visões. O clã Ui Sheaghda precisava da lança mágica e só ela seria capaz de levá-la até a Irlanda. Além do mais, um homem a esperava em Kerry. O pretendente que seu pai escolhera para desposá-la devia assumir o comando do clã o quanto antes. Ela não tinha o que de­cidir. Tudo já havia sido decidido muitos anos antes, por Eocaidh.

Um lágrima impertinente escorreu-lhe pela face corada e Keelin afastou os cabelos do rosto prendendo-os atrás da orelha. Não tinha mais como evitar os sentimentos que Marcus despertara. Mas, um dia talvez, poderia con­seguir esquecê-los. Quem sabe depois que se casasse e tivesse filhos... Ela sabia que o noivo que a aguardava na Irlanda não deveria ser tão especial como Marcus, mas nada a impediria de criar vínculos com o homem desco­nhecido. Ou impediria?

Não tinha tempo a perder, pensou Keelin. Precisaria abandonar Wrexton o quanto antes. Tiarnan ficaria em boas mãos, sob a proteção de Marcus. Na primavera, or­denaria a alguns homens do clã que viessem buscar o tio e então, passariam o resto de seus dias na terra que lhes pertencia, em paz.

No presente instante, tudo o que precisava fazer era buscar a lança mágica escondida na carroça. O incêndio no estábulo a fizera perceber quão inapropriado era o es­conderijo improvisado. O alojamento onde a carroça es­tava poderia ter sido destruído e como justificaria ao seu povo semelhante fim para a Ga Buidhe an Lamhaight.

Sua única alternativa naquele momento era buscar o talismã sagrado e trazê-lo para o cômodo onde suas coisas estavam acomodadas. Mesmo óbvio, o novo esconderijo seria o mais apropriado. Ali dentro, nenhum acidente ou fatalidade a afastaria de Ga Buidhe an Lamhaigh. Era o melhor lugar para esconder a lança.

Infelizmente o suntuoso cômodo não podia esconder os sentimentos incessantes que a perturbavam.

 

A destruição no estábulo fora completa. O teto havia desaparecido e somente algu­mas colunas ainda resistiam onde antes descansavam grossas paredes. O forte de cheiro de fumaça ainda inco­modava e Marcus levou o braço até o rosto, protegendo-se. Tudo seria, reconstruído, pensou ele, atravessando as an­tigas instalações.

Admirado com a potência das chamas, Marcus vagou pelo terreno do enorme galpão de madeira, agora deserto. Muito longe do lugar onde estava, dentro do curral, al­guns homens alimentavam os animais ainda agitados pe­la confusão sob a luz de poucas, mas bem-posicionadas tochas. Acidentes como aquele deviam ser evitados, pen­sava Marcus preocupado com a vida de seus serviçais e dos animais. Assim que a primavera começasse, recruta­ria homens na vila para a reconstrução do alojamento, dessa vez com menos madeira.

O empregado responsável pelo estábulo caminhou até ele e cabisbaixo, tentou justificar a tragédia.

— Por tudo o que é mais sagrado, milorde — disse o homem abatido. — Não posso imaginar como isso acon­teceu. Éramos muito cuidadosos até com as lamparinas aqui dentro...

Marcus prosseguiu sua caminhada com passos largos em volta das ruínas do alojamento acompanhado de perto pelo empregado amuado.

— Não tenho idéia de como o fogo começou, milorde — Estava do outro lado quando senti o cheiro da fumaça e corri até o estábulo, mas já era tarde demais.

O empregado parecia estar sendo sincero, imaginou Marcus ouvindo-o falar com pesar. Apenas uma faísca dentro da antiga construção de madeira seria o bastante para despertar o monstro das chamas que devorou todo o alojamento em minutos. Havia sido uma fatalidade, sem dúvida, mas algumas precauções deviam ser tomadas e com urgência.

— Boswell — perguntou ele, — Onde exatamente lady Keelin foi encontrada?

— Aqui atrás, milorde — replicou o homem guiando-o através da lama remanescente. — Cuidado onde pisa. O chão está ainda muito escorregadio.

— Sim — respondeu Marcus observando detalhadamente os escombros. No lugar apontado pelo rapaz ainda era possível ver as ruínas do teto caídas ao chão e as marcas de sangue seco.

— Encontramos a viga que a atingiu, milorde — anun­ciou o rapaz erguendo a mão em direção a um pedaço de madeira compacto estendido poucos passos adiante.

Marcus analisou a trave com detalhes. No exato lugar onde Keelin caiu nenhuma viga sustentava o teto. A mais próxima ainda estava em pé e não demonstrava sinais de destruição.

— Foi um milagre — disse Boswell. — Como está lady Keelin?

— Bem — respondeu Marcus intrigado.

— Vigiará a reconstrução, milorde? — perguntou o em­pregado solícito. — Posso fazê-lo, se me permitir.

— Deixarei o assunto em suas mãos, Boswell — afirmou ele. — Estipularei, porém, uma única regra para a re­construção do prédio. Ele deverá ser erguido com pedras.

— Sim, milorde — concordou o homem.

 

Marcus caminhou novamente em direção ao castelo on­de uma banheira de água quente o aguardava em seu quarto. Antes de recolher-se passou pelo quarto de Adam buscando notícias do garoto. Tiarnan estava sentado ao lado do menino e ambos dormiam tranqüilamente. A testa de Adam estava fresca e a febre parecia estar sob controle.

— Ah, é você... — Tiarnan ergueu-se da cadeira onde cochilava em busca de outra poltrona mais próxima do fogo. — Descobriu alguma novidade? — perguntou ele, sentindo o forte cheiro de fumaça nas roupas de Marcus.

— Não — replicou. — O fogo iniciou-se nos fundos do estábulo e alastrou-se com rapidez. É muito provável que alguém tenha se descuidado com uma tocha e não tenha coragem de admiti-lo agora.

Em silêncio, o velho senhor virou o rosto na direção das chamas como se as pudesse ver. A situação de Adam era muito boa, pensou Tiarnan feliz por poder abandonar o posto de vigilância por alguns minutos. Em breve, es­taria totalmente curado.

— Preciso agradecer-lhe, meu rapaz — falou Tiarnan. — Minha sobrinha falou que tem sido atencioso com ela.

— Eu só queria mantê-la longe de tudo isso — respon­deu. — Ela não teria se machucado se...

— Ah, mas deter a menina Keelin é uma tarefa prati­camente impossível, milorde — observou o velho tio, — Quando se decide por algo não volta atrás, assim como Eocaidh, seu pai.

A voz entristecida de Tiarnan levou Marcus a imaginar que o velho senhor falava sobre os planos de Keelin em voltar à Irlanda.

O simples pensamento da partida causava em Marcus um terrível incômodo. Uma dor angustiante, como a que sentira no dia em que seu pai morrera na floresta. Ainda não sabia descrever os sentimentos que guardava por Keelin, mas adiantava-se em deduzir que nunca, em toda sua vida, sentira-se assim por mulher alguma.

Se permitisse que Keelin voltasse à Irlanda corria o risco de jamais vê-la novamente.

— Diga-me, milorde — Tiarnan desviou o curso de seus pensamentos. — Minha sobrinha está muito ferida? Ela sempre me esconde a verdade e imagino que esta noite não tenha sido muito diferente. Keelin estava rouca como se seus pulmões tivessem aspirado fumaça e fuligem em demasia.

— Tem razão — disse ele. — Ela terá que conviver com uma tosse impertinente nos dias que virão.

— E o corte em sua cabeça?

— Ela perdeu muito sangue, mas o corte foi superficial. Keelin não quis criar estardalhaço sobre o acidente.

— Era o que eu imaginava... Ela mesma fez o curativo e receitou as soluções, não é mesmo?

O que Marcus teria achado melhor era que Keelin não tivesse se ferido. O incêndio no estábulo não era uma atividade corriqueira para uma jovem. Ainda que não con­seguisse entender como a viga tinha caído sobre sua ca­beça. Uma terrível suspeita rodeava sua mente, mas ele recusava-se a acreditar no que sua intuição lhe dizia. Isolda nunca colocaria os pés no estábulo, pelo motivo que fosse.

— Como Adam tem passado? — questionou.

— Bem melhor — replicou Tiarnan. — O ferimento começou a secar e a febre cedeu. Aconselhei a jovem Kate quanto às ervas e as misturas corretas e ela se saiu muito bem. O menino costuma dormir longas horas, o que será providencial para sua total recuperação.

— A cor voltou em seu rosto — disse Marcus acarician­do a bochecha levemente corada de Adam.

— Vá descansar, rapaz — sugeriu Tiarnan. — Kate e eu cuidaremos do menino esta noite. Fique tranqüilo, se precisarmos de sua ajuda, o chamaremos.

A lembrança da água quente e algumas horas de sono quase fizeram com que Marcus aceitasse a sugestão de Tiarnan, mas a saúde do velho senhor era delicada e ele não parecia em condições de vigiar um convalescente du­rante toda a noite. Kate, sentada em uma cadeira no can­to do cômodo parecia exaurida. A garota passara todo o dia obedecendo às ordens de Tiarnan e também merecia descansar.

— Kate — chamou Marcus. — Vá descansar.

— Mas...

— Outro criado virá substituí-la durante a noite.

— Sim, milorde — disse a jovem visivelmente cansada. Kate levantou-se da cadeira e caminhou até a porta do quarto, hesitante. Depois de uma última olhada em Adam partiu para o alojamento dos serviçais.

— O criado vai avisá-lo quando Adam acordar, Tiar­nan. Recolha-se para recuperar as forças — Marcus su­geriu ao velho senhor, despedindo-se em seguida.

Assim que fechou a porta atrás de si, Marcus foi abor­dado por lady Isolda no corredor.

— Marcus — ela disse, — Precisava mesmo falar-lhe.

— O que é, Isolda? — ele perguntou sem preocupar-se em disfarçar o cansaço.

— Como bem sabe, o bispo pretende partir amanhã — replicou ela. — Firmei-me no propósito de convencê-lo a adiar sua partida por mais um dia. Gostaria de preparar um jantar em agradecimento a generosidade do bispo Delfort em ter vindo a Wrexton para o réquiem de nosso querido Eldred. Conto com sua presença, Marcus. Ela se­rá de suma importância para todos nós.

— Minha presença dependerá do estado de saúde de Adam, Isolda — disse Marcus friamente. — E do quanto serei útil ao lado daqueles que cuidam dele.

— Marcus — Isolda mostrava-se impaciente. — Esta­mos nos reunindo para recepcionar o bispo, não um ho­mem qualquer! Depois do funeral de seu pai, não se dignou a trocar com ele mais que meia dúzia de palavras desinteressadas. Sua Eminência não perdoará seus mo­dos grosseiros e muito menos...

— Se o bispo não for generoso o bastante para com­preender a gravidade de minhas incumbências, então, é melhor que volte para Chester o quanto antes.

— Marcus!

Isolda surpreendera-se com as palavras e o tom de voz agressivo de Marcus. Nunca antes ele a havia tratado de maneira tão descortês.

Deveria estar fatigado com os últimos acontecimentos, pensou a jovem desconcertada. Era agora o conde de Wrexton e suas novas responsabilidades deviam amedron­tá-lo. O poder e a autoridade nunca a assustariam, mas sabia que Marcus devia estar preocupado com sua con­duta dali por diante.

— Envie um dos criados para passar a noite no quarto de Adam — ordenou ele. — Não esqueça de pedir a ele que oriente Tiarnan até o seu quarto. Se a situação de Adam alterar-se, quero ser comunicado imediatamente.

— Mas...

— A menos que prefira passar a noite ao lado de Adam, Isolda. Nesse caso... — Antes que terminasse de falar, ela ergueu a barra de sua longa saia e partiu. Marcus sentiu uma ponta de amargura ao vê-la afastar-se irritada. Isolda sempre tivera o estômago fraco para doenças e ele sabia que ela evitava o quarto de Adam intencionalmente.

Marcus seguiu até o seu quarto e arrancou as peças de roupas manchadas e impregnadas pelo cheiro de fumaça. O vestido de Keelin também fora completamente perdido e ele duvidava de que ela tivesse vários outros modelos para substituí-lo.

Deitado na água quente da banheira sentia-se tão exaus­to que não conseguia se relaxar. Keelin planejava deixar Wrexton e ele não podia imaginar a vida sem ela por perto. Mesmo a alguns passos de onde estava, Marcus já a achava longe demais. Nunca conhecera ninguém tão fascinante em toda sua vida, em nenhuma parte da In­glaterra, de Londres e da França.

Até aquele dia, no jardim, não tinha reparado no ta­manho de Keelin. Ela não era uma daquelas damas pe­queninas e delicadas que pareciam desmontar no primei­ro toque das mãos fortes e grandes de Marcus. Ela lem­brava-lhe Cléo, seu falcão de estimação. Doce e insinuan­te por fora, feroz e corajosa por dentro.

Era mais alta que a grande maioria das mulheres. Mar­cus sequer precisou curvar-se para beijá-la. Ele lembrou-se do corpo esguio e bem torneado de Keelin junto ao seu, o toque macio de sua pele, seus seios...

Marcus afundou a cabeça na água na tentativa de afas­tar os pensamentos libidinosos que o atormentaram com a lembrança de Keelin, todavia seu corpo já havia respondido ao apelo de seu desejo ardente.

Keelin voltaria para a Irlanda tão logo se sentisse livre para isso. Seu coração e sua dedicação estavam fortemen­te ligados ao clã e nada, nem ninguém a faria voltar atrás, pensou ele entristecido. Se houvesse uma maneira, uma única possibilidade de fazê-la ficar, Marcus não hesitaria em agarrar essa chance com todas as suas forças. Mas parecia impossível detê-la.

Existia a lança que Tiarnan falara-lhe, o talismã má­gico... Era óbvio que Keelin a havia trazido consigo até o castelo. Mas onde escondera a lança que ele não vira em nenhum momento? Nenhum embrulho diferente chamou sua atenção na charrete ou no lombo dos animais. Onde Keelin guardava o seu precioso segredo? Será que tudo não passara de imaginação do velho Tiarnan?

Se realmente existisse, a lança devia ter grande im­portância para os O'Shea, pensou Marcus baseando-se nas palavras do senhor que a descrevera. Keelin sabia que os Mageean estavam por perto e não arriscaria deixar o talismã escondido no chalé.

Não, a lança devia estar em algum lugar de Wrexton. Mas, onde?

 

Aos primeiros sinais do nascer do sol, Keelin despertou. Não queria chamar a atenção e levantou-se antes que os empregados começassem a agitar-se para o trabalho. Ves­tiu-se adequadamente, cobriu-se com sua capa e desceu a escadaria até o térreo seguindo com rapidez para fora do castelo. O dia ainda não havia clareado por completo, mas seus olhos adaptaram-se com rapidez as sombras do início do amanhecer.

O caminho para o armazém já era conhecido de Keelin. Durante aqueles dias, seu pensamento correra a trilha no jardim até a carroça parada no alojamento várias vezes, e seus pés não tardaram em seguir os passos que a levariam até a lança escondida.

Keelin deixou-se guiar por seus instintos dentro do bar­racão imerso na escuridão. A atração que a lança exercia sobre ela a levaria de encontro ao que procurava. Diversos equipamentos estavam amontoados pelos cantos do ar­mazém onde sua carroça permanecia guardada.

O cheiro de fumaça havia alcançado o galpão fechado e os pulmões de Keelin ressentiram-se mais uma vez com a fuligem que levantava do chão com o movimento de seus pés. Assim que encontrou a humilde charrete de madeira ela sentiu que algo de muito estranho acontecia.

A força imperiosa da lança não arrastara sua atenção e seus passos para o local onde estava, como sempre acontecia.

Keelin levou a mão até a armação de madeira a procura da reentrância onde escondera o talismã. Seus dedos es­corregaram até a abertura, mas para sua surpresa tudo o que encontrou foi uma farpa afiada que perfurou a ponta de seu dedo. A dor não a incomodou tanto quanto o sen­timento desesperador que tomou conta de todo seu corpo estremecido.

O esconderijo estava vazio. Ga Buidhe an Lamhaigh havia desaparecido!

Não, aquilo não podia ser verdade, pensou Keelin afli­ta, percorrendo novamente a madeira oca com as mãos. Talvez estivesse vasculhando a carroça errada. Sim, existiam tantas outras ali dentro que facilmente poderia ter se enganado.

Ela abriu uma das janelas do armazém e o lugar ilu­minou-se com os primeiros brilhos do sol. Os olhos ansio­sos vasculharam todo o alojamento com rapidez. Não, ela sabia que não havia se enganado. Aquela era sua carroça e nunca se confundiria. Seu coração sempre a guiara com precisão até. Ga Buidhe an Lamhaigh, mas daquela vez havia sido diferente e só havia uma explicação para isso. A lança fora roubada.

Keelin sentiu seu coração apertar-se com medo. Havia falhado, traindo a confiança de seu povo ao deixar que o talismã sumisse. O que faria, agora? Como voltar a Carrauntoohil sem a lança que ajudaria o novo líder do clã a vencer os Mageean? Não poderia continuar em Wrexton enquanto seu povo era massacrado por Ruairc Mageean, desamparados como estavam após a morte de Comarc.

Sem esperanças de reencontrar a lança no velho aloja­mento, Keelin vagou até o jardim, desorientada. Talvez alguém tivesse encontrado o talismã sem querer e sem saber o que fazer com ele, o guardara em outro lugar. Mas quem? Onde?

 

Marcus preocupou-se em recepcionar o bispo no solar logo cedo. Conversaram até a hora do almoço quando fora servida farta refeição ali mesmo. Ele não havia visto Keelin durante as primeiras horas do dia e concluiu que ela prestava a costumeira atenção a Adam. Aquilo não era nenhuma surpresa, pen­sou tentando ignorar sua ausência.

Isolda sentou-se entre eles durante o almoço e descon­traiu o convidado como se fosse, ela própria, a princesa de Wrexton. Sua atitude irritou Marcus profundamente.

Não existia nenhuma razão que a impedisse de se sen­tir a dona do castelo, mas ele não gostava de vê-la tão determinada em ocupar uma posição que pertenceria somente a sua futura esposa. Na realidade Eldred, depois de sua prematura viuvez, nunca a encorajara a tomar outra posição que não fosse substituir a condessa nas tarefas domésticas.

Naquele dia, entretanto, Marcus resolvera falar-lhe so­bre a incômoda situação. Chegara o momento de Isolda decidir-se por um marido e partir de Wrexton de uma vez.

Até o início da tarde, nenhuma oportunidade parecera suficientemente boa para Marcus abordar Isolda com as­sunto tão delicado. Logo após o almoço, o bispo iniciara uma longa e cansativa discussão sobre temas religiosos e Marcus deixou-o na companhia dos dois padres que cui­davam da capela.

— Estou ao seu dispor, Marcus — sussurrou Isolda ao vê-lo sair do solar.

Mantendo uma postura séria e o semblante distante, Marcus a levou até a sala de estar. Incerto sobre quais seriam as melhores palavras, procurou apenas tentar con­vencê-la de seus reais interesses. Nunca havia feito nada parecido antes e a reação de Isolda o afligia.

Porém, agora era o conde de Wrexton e aquela parecia ser primeira de suas obrigações na nova posição.

— Sente-se, Isolda — disse o mais tranqüilo que pode. A jovem apoderou-se de uma das cadeiras do enorme salão e sentou-se aparentemente nervosa.

— Desculpe-me pela intromissão, Isolda, mas onde mo­rava antes de vir para Wrexton?

A mulher ergueu as sobrancelhas, demonstrando pro­funda indignação.

— É lamentável que depois de morarmos tanto tempo sob o mesmo teto ainda desconheçamos um ao outro, Mar­cus. Nasci em Lancashire. Meu pai, Geoffrey Coule, foi barão de Ellingham.

— Então, sua família possui propriedades?

Ao ouvir a pergunta de Marcus, Isolda re-aumentou suas esperanças. Talvez estivesse interessado em algo mais que o seu passado, pensou a moça ambiciosa imaginando que houvesse chegado o momento tão esperado.

— Sim, terras e uma produtiva criação de carneiros — disse ela. — A melhor lã de toda a Inglaterra.

Marcus não estava interessado em lã ou em carneiros. Seu maior desejo naquele momento era ver Isolda partir para longe.

— E quem cuidou de seus interesses depois da morte de seu pai?

— Marcus, posso imaginar os motivos que o levam a preocupar-se comigo dessa forma — disse a jovem con­vencida. — Nos conhecemos há cinco anos e desde então só tenho vivido para atender as inúmeras solicitações pa­ra a organização do lar. Não tenho mais nenhum contato com Ellingham. Edmund Sandborn me trouxe para cá dez anos atrás e Wrexton é para mim a minha casa.

— Nunca duvidei disso — disse ressabiado. — E Sand­born o que era seu? Primo?

— Nossas mães eram primas e Edmund quis honrar a enorme afeição das duas trazendo-me para viver com ele.

Marcus lembrava-se do falecido herdeiro muito bem. Não conseguia imaginá-lo dobrando-se às afeições de sua mãe. Era um homem rancoroso e vingativo e Marcus tinha boas razões para duvidar do que Isolda lhe falava.

— Um primo distante cuida dos negócios de meu pai — prosseguiu ela. — Tem uma adorável esposa e sete filhos pequenos. Minha presença em Ellingham é completamente desnecessária.

Bastou um olhar para as faces pálidas para Marcus desconfiar das explicações de Isolda. A moça deveria ter entre dezessete e dezoito anos quando o pai faleceu e mu­dou-se para Wrexton. Tinha idade o bastante para casar-se e formar a própria família. Por que seu pai não se preocupou em arrumar um pretendente para a filha solteira? Por que um parente distante ergueria a mão para uma herdeira estranha e solitária sem maiores interes­ses? E por que Edmund não se encarregou de providenciar um bom casamento, para Isolda?

— E... — Marcus pigarreou antes de continuar — ...nun­ca se interessou por nenhum rapaz?

Os olhos de Isolda brilharam contentes.

— Não, nunca. Desde a morte de meu pai, vivo completamente sozinha. — A voz embaraçada dela não es­condia a alegria contida. — Agradeço a Deus todos os dias por ter sido acolhida por generosos corações como o de Edmund e de Eldred.

Preocupado em poupar a moça de maiores ressentimen­tos, Marcus adiava o comentário definitivo.

— Isolda — disse ele voltando-se de costas para a jo­vem. — Imagino que esteja ansiosa para casar-se, ter sua própria casa e filhos. Irei providenciar um excelente dote para o seu futuro esposo e...

— Nunca desejei viver em nenhum outro lugar que não Wrexton — interrompeu ela sem disfarçar a decepção.

— Não estou sugerindo que vá embora — mentiu Mar­cus ao vê-la com os olhos rasos d'água. Não era nada bom em conversas daquele tipo. — Quero que saiba que terá sempre em Wrexton um lar amigo. Mas precisa ter uma família, novos interesses...

— Agradeço sua preocupação, Marcus. É muito recon­fortante saber que alguém zela tanto por nosso bem-estar — disse a jovem com um tom de voz furioso, erguendo-se da cadeira e caminhando em direção a porta.

— Sente-se novamente, Isolda! — A voz autoritária de Marcus a fez tremer e soltar a maçaneta da porta antes de girá-la por completo. — Não terminei de dizer-lhe o que pretendia.

Isolda caminhou outra vez até a cadeira que acabara de desocupar e sentou-se. Tinha os olhos úmidos e o co­ração cheio de rancor.

Marcus não se sentia confortável em constranger Isol­da daquela maneira, todavia sabia que aquela seria a primeira e última vez que teria coragem de abordá-la com tão delicado assunto.

— Acredito ter chegado o momento de providenciar-lhe um novo pretendente — disse finalmente.

A expressão raivosa de Isolda começou a transformar-se aos poucos. Atônita, observava o desfecho da conversa proposta por Marcus.

— Tem cuidado dos interesses de Wrexton muito bem — prosseguiu ele. —Mas aproxima-se o momento em que devo escolher uma esposa, a futura condessa de Wrexton. E ela será, após o casamento, a dona desta casa, Isolda.

Um pequeno soluço contido pode ser ouvido no salão. A mulher ofendida ergueu-se e saiu do cômodo em silêncio.

Não havia muito a fazer, pensou Marcus. Nunca ali­mentara as esperanças de Isolda em tornar-se condessa de Wrexton. Desconfiava que era esse o motivo que levou seu pai a mantê-la por tantos anos junto a eles. Isolda deveria parecer aos olhos do genitor preocupado o melhor partido para o filho tímido e sem jeito com mulheres.

Marcus não queria magoar a moça, mas a força das circunstâncias o obrigava a casar-se o quanto antes e Isol­da poderia tornar-se um terrível empecilho para a futura relação. O bispo Delford poderia anunciar em Chester e em toda a redondeza a disposição da jovem em casar-se e o valor do generoso dote. Em breve, pensou ele, este problema estaria resolvido.

— Onde está Keelin? — perguntou Marcus assim que adentrou o recinto onde o primo repousava, alguns minu­tos depois da conversa com Isolda.

Adam estava consciente, mas tão fraco que era incapaz de permanecer sentado ou alimentar-se sozinho.

— Deixou o quarto a uma hora — replicou Tiarnan, erguendo as sobrancelhas. — Não disse aonde ia, mas percebi que algo a estava perturbando, milorde.

— Sabe me dizer o quê?

Tiarnan meneou a cabeça em discordância.

— Keelin não quis me dizer o motivo de sua angústia. Disse que não era nada, mas eu sei que estava mentindo.

— O que acha que pode ser, Tiarnan? — perguntou Marcus curioso. — Teria ela intuído algum incidente e ocultado-lhe a verdade?

— Talvez, rapaz — comentou Tiarnan. — Talvez...

O desejo de Keelin de voltar a Irlanda já era conhecido. Talvez ela tivesse decidido fugir naquele dia e por isso estava tão ansiosa, pensou Marcus.

Uma grave agitação apoderou-se de seu coração ao ima­ginar Keelin partindo para sempre, embora procurasse distrair-se com outros pensamentos.

Agachou-se ao lado do leito do menino enfermo e co­meçou a falar-lhe calmamente. Adam respondia com di­ficuldade e todo o seu interesse voltava-se para o funeral de Eldred.

 

Keelin vagou durante longos minutos pelo jardim do castelo procurando encontrar alguma pista do paradeiro de Ga Buidhe an Lamhaigh. Não sentia vontade de voltar para o quarto de Adam e encarar Tiarnan com a triste notícia até ter certeza de que todos os lugares imagináveis no castelo haviam sido minuciosamente revistados.

O dia já estava ao fim quando Keelin alcançou o alto da torre do castelo. O pequeno esconderijo das aves estava escuro e Keelin precisou acender algumas lâmpadas para vasculhar o local. Sentia-se mal, como uma ladra sorra­teira espreitando nas sombras, agindo em surdina.

O barulho dos falcões chamou sua atenção.

Eocaidh nunca permitiu a ninguém que não fosse ele e os amestradores adentrar o aposento das aves de rapina que criavam em Carrauntoohil.

Keelin aprendera com seu pai a amar aqueles animais ferozes. Observava, boquiaberta, o sobrevoar majestoso das aves que atravessavam o céu com agilidade. Todavia, sabia que um estranho pode ser considerado inimigo e um ataque seria fatal.

— Boa noite, milady.

A voz de Gerard a assustou. Distraída com as aves, não o tinha visto escondido no fundo do cômodo. A luva de metal em sua mão indicava que o homem alto e forte era o amestrador dos animais.

Sem graça, Keelin o cumprimentou imaginando estar atrapalhando o trabalho do rapaz ao invadir a torre sem antes ser convidada.

O cativeiro não era muito maior que os que estava acos­tumada a ver em Kerry, mas as aves tinham porte muito maior que as de Carrauntoohil.

Tudo parecia na mais perfeita ordem. As ferramentas, o piso de cascalho, as bacias com alimentos, tudo. As aves pareciam estar sonolentas o que tranqüilizou Keelin quan­to a um possível ataque dos animais.

O recinto era todo contornado por janelas e ela pôde ver inúmeros ninhos e pássaros das mais variadas espé­cies abrigando-se do vento e do frio por ali. A paisagem também era encantadora. Toda a vila e os arredores po­diam ser avistados de onde Keelin estava e por alguns segundos até mesmo se esquecera do que a levara até a torre.

— Acredita que lorde Marcus se irritará quando souber que estive aqui? — perguntou ela.

Gerard deu de ombros.

— Duvido — disse. — As aves são bem treinadas e raramente nos causam problemas.

Keelin caminhou até a maior delas e começou a con­versar com o falcão empoleirado carinhosamente. O animal a olhou intrigado, mas pareceu gostar da suave me­lodia de sua voz agradável.

O pequeno casal de filhotes de gaviões chamou sua aten­ção do outro lado da sala.

— Oh, meu Deus... — disse com um tom maternal ao ver os animaizinhos desprotegidos. — Como são bonitos!

— Prefiro que sejam valentes em vez de bonitos quando crescerem. — A voz grave de Marcus no recinto fez as aves que cochilavam abrir os olhos, assustadas.

Keelin sorriu com o comentário de Marcus.

— Serão valentes, milorde. Olhe para eles!

Apesar do pedido, Marcus não desviou os olhos de Kee­lin por um segundo sequer.

Ela tinha as mãos e as roupas sujas como se houvesse se arrastado pelo chão durante todo o dia. As bochechas estavam mais coradas que o normal e Marcus imaginou que talvez, estivesse envergonhada com a presença de Gerard entre eles.

Os longos cabelos negros estavam soltos como de cos­tume e brilhavam intensamente sob a luz das lamparinas. Marcus precisou controlar o impulso de tocá-los tão forte era a atração que as mechas sedosas exerciam nele.

— Com licença, milorde — o amestrador das aves di­rigiu-se a Marcus com educação. — Precisa ainda de meus serviços?

Marcus meneou a cabeça negativamente, ainda hipno­tizado pelo olhar atento de Keelin.

— Então, irei para casa. Nos encontramos amanhã pa­ra caçar? — perguntou o homem buscando a capa no fun­do do cômodo.

— Si... sim — Marcus sentiu-se embaraço diante do antigo empregado. — Logo ao primeiro raio de sol, se o tempo permitir, é claro.

— A neve parece ainda estar longe, milorde.

Marcus balançou a cabeça, concordando com o rapaz, mas permaneceu em silêncio. Gerard abandonou o recinto com rapidez e sem chamar a atenção.

Era agradável ver Keelin ali, junto aos falcões, pensou Marcus sem reparar no serviçal que partia. Ela parecia estar muito à vontade perto dos animais ferozes, o que não o surpreendeu.

Seus grandes olhos verdes contrastavam com a cor par­da das aves empoleiradas bem próximo a sua cabeça. Marcus não conseguia pensar em nada que não fosse tocá-la, trazê-la para perto de seu corpo.

— O ferimento na cabeça... — disse ele. — Não está mais a incomodando?

— Não — replicou ela. — Não muito. Acho que ainda não tive a oportunidade de agradecê-lo por tudo que fez ontem...

Marcus sorriu encantado com a voz melodiosa de Kee­lin. Assim como as aves, estava completamente envolvido pelas palavras gentis, pelo cheiro excêntrico de ervas que exalava do corpo de Keelin, idêntico ao perfume da peque­na algibeira de couro onde costumava guardar as plantas medicinais. A cada palavra pronunciada seus lábios fartos e úmidos moviam-se sensualmente, provocando-o.

— Meu pai também criava falcões em Carrauntoohil — disse ela, virando-se para os animais quase ador­mecidos.

— Já o acompanhou alguma vez nas caçadas? — ques­tionou Marcus somente pelo prazer de ouvi-la falar mais uma vez.

— Não, nunca — Keelin sorriu ao respondê-lo. — Meu pai sempre achou que eu devia ficar longe das aves, mas não conseguiu. Desde muito pequena, costumava entrar no cativeiro dos falcões sorrateiramente e ficava horas escondida lá dentro, conversando com eles. Antes de sair tomava o cuidado de apagar as pegadas no chão de areia. Por que usam cascalho aqui em Wrexton?

Marcus estava completamente enfeitiçado com a ima­gem de Keelin junto aos falcões. Aquilo parecia um sonho.

— Não sei — disse ele. Não estava interessado no piso recoberto com cascalhos. Queria pedir a Keelin que ficasse, que não o deixasse sozinho. Talvez conseguisse adiar seu plano de viagem para a Irlanda por algumas horas, pensou antes de voltar a falar. — Por que não nos acompanha amanhã em nossa caçada? Acho que irá se divertir...

— Uma caçada? Com os falcões? — Os olhos verdes de Keelin brilharam como os de uma criança feliz. — Oh, nada poderia ser tão agradável, milorde!

— Então, fica decidido. O que foi? Não gostou da idéia? — perguntou Marcus ao vê-la baixar os olhos entristecidos.

— Não, não é isso — replicou ela, franzindo as sobran­celhas, preocupada. — Por um momento, a alegria de acompanhá-los na caçada me fez esquecer algo muito importante.

— Posso saber o que lhe aflige, milady? — perguntou Marcus ansioso com a resposta.

— Perdi um objeto muito valioso para o meu clã.

— Ah, sim! A lança mágica...

— Como sabe da Ga Buidhe an Lamhaigh!

— Seu tio me contou toda a história.

Surpresa, Keelin prosseguiu, desconcertada:

— Estou desesperada, Marcus. Já procurei por todos os cantos do castelo e não encontrei nenhum sinal da lan­ça. Achei que a havia escondido muito bem, mas parece que alguém foi mais esperto que eu...

— Por sorte, lady Keelin, esse alguém fui eu.

Keelin encarou Marcus, assombrada. Em silêncio, agra­deceu a Deus pela chance de reencontrar a preciosa lança.

— Tinha certeza de que trouxera o talismã para Wrexton. Vasculhei a charrete e qual não foi minha surpresa quando encontrei a lança escondida no fundo falso — co­mentou ele, relembrando os pensamentos que o levaram até a carroça. — O formato do objeto sagrado é peculiar. Seria facilmente reconhecido junto à bagagem. Não foi uma idéia muito criativa esconder a lança na carroça, Keelin...

— Descobri isso tarde demais — disse ela, levando a palma de uma das mãos até o coração. Sentia-se aliviada e feliz mais uma vez. — Imaginei que um bandido tivesse encontrado a lança e a levado embora de Wrexton para sempre. Não conseguia nem pensar em como falaria a meu tio que a lança havia sumido. Onde ela está, agora?

— No meu quarto, em segurança. Podemos deixá-la onde está ou podemos procurar outro lugar, que não a carroça, para guardá-la.

— Deus o abençoe, milorde. Não tenho palavras para agradecer tudo o que tem feito por mim e por Tiarnan. Se não se importar, prefiro manter a Ga Buidhe an Lamhaigh comigo daqui por diante.

Sim, Marcus se importava com isso. Ele sabia que, de posse da lança, Keelin poderia partir a qualquer momen­to. A idéia de vê-la partir o aterrorizava.

Marcus caminhou até as outras lâmpadas e as acen­deu, uma a uma. A escuridão aumentava paulatinamente e ele desejou observá-la com mais nitidez. Os filhotes de gavião chamaram sua atenção.

— Irá domesticá-los? — perguntou Keelin.

— Sim — respondeu caminhando em direção ao ninho. O treinamento dos filhotes começaria em breve e Marcus estava muito satisfeito com o trabalho de Gerard junto às aves. — O adestrador se encarregará dessa tarefa por mim. Alguns homens da vila encontraram os animais abandonados na floresta e os trouxeram até nós. Eles já estão bem acostumados conosco e o treinamento poderá ser iniciado a qualquer momento. Veja como são mansos! .

O pássaro piou ao vê-lo aproximar-se e saltou para um tronco de madeira mais baixo. Marcus buscou o filhote com a mão e o acariciou vagarosamente.

— Fêmea ou macho? — perguntou Keelin.

— Somente as fêmeas saem à caça — Marcus respon­deu, em voz baixa.

— Eu não sabia disso...

— As fêmeas são maiores e muito mais agressivas que os machos — complementou.

Keelin voltou seus olhos para Marcus rapidamente.

— Estaria tentando me provocar? — retrucou de pron­to. O comentário dele fazia sentido. Na natureza, as fê­meas costumavam ser sempre mais fortes e ferozes que os machos. Afinal ficava a cargo delas ter os filhotes, ali­mentá-los e protegê-los do perigo.

— Não — respondeu Marcus sorrindo. —Abra sua mão. O calor do filhote em sua mão fez Keelin arrepiar-se.

A penugem ainda fina e delicada era lisa como seda e ela teve medo de deixá-lo cair ao chão.

— Que amor! Melhor dizendo, que valente! — exclamou sorrindo.

Ao ver Marcus em silêncio, Keelin ergueu os olhos de encontro aos dele. Estava sentado tão perto dela que Kee­lin sentiu a temperatura de seu corpo subir. A luz incons­tante das velas no quarto parecia assustar o pequeno fi­lhote trêmulo em sua mão.

A respiração agitada de Marcus denunciava o seu em­baraço diante da súbita intimidade criada entre eles.

Keelin sentiu vontade de beijá-lo mais uma vez. Seu coração ardia de desejo num turbilhão de novas emoções.

Ela observou as mãos fortes de Marcus e ansiou pelo seu toque, por seus carinhos desesperadamente. Mas não podia se deixar seduzir daquela maneira. Seu pai havia lhe prometido em casamento a outro homem, por isso pre­cisava voltar a Irlanda o quanto antes. Carrauntoohil não suportaria um novo ataque dos Mageean sem Ga Buidhe an Lamhaigh.

— Por que ainda não as prendeu com coleiras como as outras? — disse Keelin forçando-se a desviar sua atenção.

— Não voariam para longe. As asas ainda são pequenas — respondeu ele, aproximando-se ainda mais de Keelin.

— E os sinos? Não teme que elas se percam no caste­lo? — Ela perguntou a primeira coisa que veio a sua mente. Estava em pânico com a proximidade imposta por Marcus.

— A porta fica fechada a maior parte do tempo. Não há o que temer.

As palavras de Marcus tinham um duplo sentido e Kee­lin sabia disso.

Ele levou os lábios carinhosamente até a sua testa e a beijou. Keelin quase deixou o filhote cair com a inusitada carícia. Ela deu um passo para trás e continuou a falar:

— Cobrirá os olhos deles? — questionou, protegendo o pássaro bem perto dos seios.

— E possível — respondeu Marcus distraído em seus pensamentos.

— O quê? — Keelin reclamou. — Manterá os olhos dos indefesos animais fechados para que obedeçam cegamen­te a sua vontade? Que crueldade terrível!

Desapontado, Marcus percebeu que dissera algo de er­rado. Era óbvio que uma dama delicada como Keelin fi­caria horrorizada ao saber que os olhos dos animais seriam costurados, mesmo que temporariamente. Ele levou as mãos até seus ombros antes que ela abandonasse o recinto, revoltada.

— Gerard não costuma ser cruel com os animais. Em muito poucas vezes foi necessário tomar uma atitude co­mo essa.

Envergonhada, Keelin desviou o olhar até o filhote qua­se adormecido em seu colo. Marcus não parecia divertir-se com o sofrimento de quem quer que fosse, muito menos o de animais desprotegidos.

— Perdão, milorde. Eu...

Marcus não a deixou terminar. Beijou-a vigorosamen­te sem pedir-lhe permissão, interrompendo suas justifi­cativas.

Keelin, tomada de surpresa, respondeu imediatamente e com paixão. Inclinou-se contra o corpo forte de Marcus, roçando, sem perceber, os seios contra o tórax másculo. O resultado de extraordinária reação, Keelin comparou a força de atração que Ga Buidhe an Lamhaigh exercia sobre ela, porém mais prazerosa e intensa.

Ela desejou que suas mãos estivessem livres para tocá-lo também. Imaginou correr os dedos por seus cabelos dourados, pelos contornos de seu rosto. Cobiçou sentir o calor do corpo de Marcus junto ao seu. Sabia, porém que desse um passo que fosse para guardar o filhote num lugar mais adequado o clima seria quebrado.

Contentou-se com os lábios de Marcus junto aos seus e a pressão das mãos dele em seus ombros. Aspirou o perfume que Marcus exalava com ansiedade, como se quisesse guardar a essência máscula e fresca para sempre. Ouvia sua respiração tão agitada quanto a dela e procu­rou imaginar a textura de sua pele. Estava completamente rendida ao poder de sedução de Marcus, disso não tinha dúvidas.

Marcus acariciou-lhe os cabelos com ternura. Uma on­da de surpreendentes sensações alvoroçou o coração de Keelin. Um fogo intenso percorreu sua espinha até a nuca. Ele a beijava profundamente e tudo o que conseguia fazer era beijá-lo também.

Estava apaixonada e nunca antes se sentira dominada por um sentimento irracional como aquele. Em nenhum momento, durante os longos anos de exílio, imaginou ser paixão o que faltava em sua vida. Achava que vivia iso­lada, solitária e que um marido e as responsabilidades do lar apaziguariam suas ânsias. Mas suas reações diante dos afagos de Marcus lhe diziam o contrário e a força que seu corpo exercia sobre o dela a faziam estremecer.

Precisava voltar rapidamente para Carrauntoohil, pensou ela. Seu casamento com o pretendente arranjado por seu pai corria sérios riscos enquanto estivesse em Wrexton.

Abruptamente, Keelin afastou-se de Marcus. Não, não estava certo desejá-lo, pensou aflita, entregando-lhe o fi­lhote e fugindo do quarto. Estava enlouquecendo, só podia ser isso. Como permitia que os sentimentos entre ela e Marcus crescessem daquela forma? Deveria partir o quanto antes e não gostaria de deixar o seu coração para trás.

A lembrança dos dias vividos em Wrexton devia aca­lentá-la como saudosas recordações e nada mais. Não po­deria descumprir a promessa de seu pai, desonrando o nome de sua família por sentimentos, para ela, até então, incompreensíveis.

 

Marcus continuou na torre por mais algumas horas de­pois que Keelin partiu. Acariciou o filhote que ela acalen­tara nas mãos e o colocou mais uma vez no ninho. Sen­tia-se satisfeito por não estar trêmulo e angustiado como nas outras ocasiões em que expusera sua alma vulnerável de maneira tão direta.

Que tipo de feitiço era aquele? Como Keelin era capaz de manejar seus sentimentos daquela forma?

Ele sabia exatamente o que teria acontecido entre eles se Keelin tivesse permanecido no cativeiro das aves por mais tempo. Sentia-se pronto para consumar aquela atração, mas onde estava sua honra, seu cavalheirismo?

Só podia ser bruxaria, concluiu atônito.

Bruxaria ou não, Marcus não tinha ninguém para con­fiar seus receios e temores. Ao contrário de todos os ou­tros problemas que tivera até então, aquele era um assunto que não poderia discutir com o sacerdote. O sacer­dote responsável pela capela de Wrexton também não parecia ser um homem muito tolerante. Pygoot interpre­tava as leis eclesiásticas literalmente e, na opinião de Marcus, isso muitas vezes o deixava distante da realida­de. Se lhe confessasse sua atração por Keelin e as sus­peitas de bruxaria, o romance seria condenado de ime­diato. Além do mais o padre nunca se mostrara muito simpático com estrangeiros. Marcus temia pela seguran­ça de Keelin se o sacerdote desconfiasse de seus poderes e da lança mágica.

Algumas horas depois, ele desceu até o salão principal. Isolda e Beatrice estavam sentadas ao lado da lareira onde as chamas ardiam com força e a criada parecia des­crever-lhe algo tenebroso, pelos gestos exagerados e ex­pressões de horror.

Ao perceber a chegada de Marcus, Isolda mudou as feições do rosto até então atento ao monólogo da aia e a interrompeu com veemência. Começou a criticá-la ferozmente, erguendo-lhe o dedo em haste na face desolada da serviçal. O tom de voz alto e as palavras duras deixaram evidentes as intenções de Isolda. Ela queria chamar a atenção de Marcus para sua inocência no incidente do jardim em que a criada fora pega espionando escondida no meio da folhagem. Tudo o que conseguiu foi fazer Marcus ter ainda mais vontade de encontrar logo um excelente pretendente para a jovem. Isolda precisava partir de Wrexton o quanto antes, pensou ele ao vê-la sorrir cinicamente em sua direção.

Com passos largos, Marcus alcançou a escadaria prin­cipal desejando que o dia do casamento da mulher intro­metida chegasse o mais rápido possível.

 

Pela primeira vez Keelin sentia-se contente por Tiarnan não poder vê-la. O velho tio muito esperto perceberia seus lábios túrgidos e suas maçãs enrubescidas com o tom da paixão. Duvidava que seu tio aprovasse o tipo de ligação que mantinha com Marcus. Seu futuro em Wrexton estava ameaçado, ela sabia dis­so. Pousou uma mão sobre o peito ofegante tentando con­trolar a respiração acelerada. Em pouco tempo, pensou, estaria longe. Tudo o que guardaria com ela seriam as doces lembranças dos carinhos de Marcus e nada mais.

— Menina Keelin? — chamou Tiarnan.

— Sim, meu tio — replicou ela. — Sou eu — Com di­ficuldade conseguiu controlar as lágrimas quentes que afloraram em seus olhos ao ouvir a voz melodiosa e gentil do senhor. Estava abalada com os últimos acontecimentos e Tiarnan perceberia isso facilmente.

— O que a incomoda, meu amor? — perguntou ele.

— Oh, nada — ela respondeu. Agora que sabia o pa­radeiro de Ga Buidhe an Lamhaigh sentia-se muito mais aliviada. Todavia, ainda sentia o perfume de Marcus em seu corpo e seus lábios ainda estavam úmidos pelo beijo que trocaram pouco tempo antes.

Voltou sua atenção para o menino pálido e sem vida estendido no leito e lutou com todas suas forças para afas­tar as lembranças que a atormentavam.

— Como tem passado, Adam? — perguntou.

— Melhor — disse o menino com um fio de voz fraca. — Tiarnan tem me contado algumas histórias sobre o Kerry e Carrauntoohil. Deve ser um lugar mágico, não é mesmo?

— Sim, é um lugar mágico — respondeu Keelin não mais contendo as lágrimas. Ela buscou a cadeira mais próxima e deixou-se afundar, entristecida.

— Gostaria muito de conhecer a Irlanda algum dia, Keelin. Será que conseguirei?

— E uma longa e árdua jornada, Adam — disse ela, — Não é um tipo de viagem que fazemos por capricho.

— E você, quando voltará para casa? — perguntou o menino.

— Em breve — Keelin murmurou. — Preciso partir o quanto antes. Meu povo precisa que eu volte.

— Por quê? — questionou Adam. — Esteve fora por tanto tempo. O que poderia fazer que até agora nenhum deles foi capaz de fazer?

Keelin sentiu vontade de contar ao menino sobre a lança e o seu poder mágico. Seu povo precisava da relíquia sagrada para continuar a sobreviver. E sua partida era algo inevitável.

Com a morte de Comarc, deviam estar sentindo-se vul­neráveis, perdidos principalmente por não ter Ga Buidhe an Lamhaigh por perto.

A lança estivera sempre ao lado dos líderes do clã nos piores momentos e todos acreditavam que Ui Sheaghda só continuaria prosperando com a ajuda divina do talismã.

Ela sorriu carinhosamente a Adam.

— Sou a filha de Eocaidh O'Shea e meu lugar é lá, ao lado de meu povo, Adam. Mas fique tranqüilo, não regres­sarei para casa antes que esteja completamente curado. Prometi que só voltaria a sonhar com a Irlanda quando ficasse bom, o que acho que não deve demorar muito.

As palavras encorajadoras de Keelin relaxaram o ga­roto que em poucos segundos voltou a cochilar.

Uma semana, talvez um pouco mais, pensou ela. Não deveria permanecer em Wrexton por mais tempo que isso. Seriam longos dias em que tentaria evitar a companhia de Marcus. Apesar de seu coração pedir-lhe o contrário.

Keelin ficou sentada ao lado da cama de Adam pen­sando em Carrauntoohil e na lança. Por que não sentira sua presença dentro do castelo? A energia que a ligava ao talismã era forte e ela não conseguia entender por que não sentira Ga Buidhe an Lamhaigh tão próxima. Se Marcus não tivesse revelado o paradeiro da relíquia sa­grada jamais a teria encontrado, jamais. Aquela conclu­são a assustava em demasia.

Leves batidas na porta chamaram sua atenção e a fi­zeram erguer-se mais uma vez. Um dos serviçais trazia uma mensagem de Marcus para ela e seu tio.

Eram requisitados para um jantar em despedida ao bispo Delfort. O criado não deixou dúvidas que a presença deles era fundamental e muito aguardada.

Assim que o homem partiu, Keelin caminhou até a pol­trona onde o velho tio recostava-se tranqüilamente.

— Oh, sem dúvida é um gesto muito gentil! — disse ele sorrindo. — Lamento, minha sobrinha, mas acho que não poderei acompanhá-la. Não sinto que minha saúde permita esse tipo de extravagância, querida.

Keelin não gostou de imaginar encontrando-se com Marcus novamente. Não queria voltar a vê-lo e estava determinada a evitar sua presença a qualquer custo. Não tinha certeza, assim como seu tio, se suportaria um novo reencontro.

A aglomeração de pessoas com expressões tristes e som­brias no grande salão de festas ocorria conforme o espe­rado. A ausência de Eldred ainda era sentida por todos.

Somente dois músicos estavam presentes tocando harpa e melodioso violão. Marcus sentia-se muito agradecido pe­la simplicidade na recepção no salão naquela noite. Tão logo terminasse a refeição esperava recolher-se para des­cansar. Receava que o bispo iniciasse longas orações de­pois do último prato saboreado.

Ele também lamentava a morte de Eldred, mas as lon­gas ladainhas religiosas e as inúmeras condolências que as seguiriam com certeza o deixariam mais exausto. Sen­tia grande falta do pai, principalmente nos últimos dias. Temia não ser tão generoso e sensato quanto seu pai tinha sido.

Keelin e seu tio ainda não haviam chegado ao salão. O convite para a recepção fora inesperado, mas Marcus não acreditava que se ofenderiam com isso. Keelin não era como as damas que conhecia e sua etiqueta, muito menos exigente.

Todos os maiores cavalheiros de Wrexton e suas espo­sas estavam presentes no salão. Conforme o número de convidados aumentava, Marcus procurava posicionar-se de melhor maneira a ver a escadaria por onde Keelin desceria.

Almejava a sua presença acima de todas as coisas.

Keelin era a única pessoa capaz de fazê-lo se sentir confiante e, somente ao seu lado, suportaria enfrentar sua primeira recepção como conde de Wrexton.

O padre Pygoot e o bispo discutiam assuntos relativos à igreja local muito perto a ele, mas tudo o que conseguia fazer era observar a escadaria com atenção. Seus pensa­mentos pareciam sempre os mesmo nos últimos dias: manter Keelin o maior tempo possível em Wrexton. E naquela noite não poderia ser diferente.

Ela não parecia indiferente ao seu desejo. Pelo contrá­rio. Horas atrás, no cativeiro das aves, Keelin demonstrará estar tão faminta pelo seu toque como ele. Havia uma troca de sensações intensa entre eles e ela parecia completamente envolvida também.

Se não estivesse determinada a retornar para a Irlanda em poucos dias, Marcus teria tempo para cortejá-la como os bons modos exigiam. Iria presenteá-la, preparar recep­ções em sua homenagem onde exaltaria na frente de todos sua bondade e beleza. A convenceria a passar o resto de seus dias junto a ele em Wrexton.

Mesmo sem ter certeza que era isso o que realmente desejava, Marcus a faria ficar para sempre. Porém, os com­promissos de Keelin com o seu povo a impediriam de viver longe de Kerry. Ao menos era assim que ela pensava.

Isolda o rodeava insistentemente. Marcus tivera a im­pressão que a jovem magoada queria demonstrar-lhe todo o seu desprezo. Todavia, seus pensamentos estavam vol­tados unicamente para Keelin e para a escadaria.

Mesmo distraído, pôde perceber que Isolda estava es­pecialmente mais agressiva naquela noite com os serviçais que de costume. Marcus vira uma das moças que os aten­dia com gentilezas fugir pela área de serviço em lágrimas.

Seu desejo de vê-la longe de Wrexton aumentava na­queles momentos. Não poderia permitir que a jovem ar­rogante continuasse a ofender os empregados daquela for­ma. Era evidente que ela descontava sua raiva dele abu­sando das pobres infelizes que a cercavam realizando to­dos os seus caprichos.

Marcus já caminhava até Isolda para repreendê-la quando Keelin apontou no alto da escada.

Imobilizado pela visão de Keelin, excessivamente bela em sua simplicidade, Marcus freou os passos de imediato.

Ela pareceu hesitar descer os degraus até o salão lota­do, mas de repente, uma força a empurrou graciosamente na direção dos convidados. Ela desceu a escadaria devagar. Rainha, ela só podia ser uma rainha. Pensou Marcus ao vê-la se misturar com as outras pessoas. Ela mantinha a postura nobre e o olhar altivo diante dos comentários curiosos dos presentes.

Trajava um longo vestido azul-turquesa de veludo, com corte reto sem maiores detalhes. Era a mais fascinante de todas as mulheres, imaginou Marcus, boquiaberto. Pe­la primeira vez Keelin usava os cabelos negros presos na altura da nuca, enfeitados com graciosos grampos com pedras azuis reluzentes. Um bordado delicado corria o tecido do pescoço até a cintura, contornando seu corpo esbelto com delicadeza.

As luzes das velas valorizavam ainda mais a cor clara de sua pele e as maçãs rosadas de seu rosto. Os grandes olhos verdes cintilavam como duas pedras preciosas e a boca muito vermelha estava sempre ocupada por um sor­riso simpático.

Marcus aproximou-se do pé da escada esperando-a des­cer os intermináveis degraus até o seu encontro. Antes que pudesse impedir, porém, Isolda tomou o braço de Kee­lin e a levou até o bispo. A jovem fez as devidas apresen­tações e deu um passo para trás fitando Keelin embara­çada com satisfação.

Sem graça com a inesperada atitude de Isolda, Keelin buscou a mão do bispo e a beijou, curvando-se educada­mente diante do eclesiástico.

Marcus não conseguiu entender quais eram as inten­ções de Isolda, mas ficou feliz ao ver Keelin portar-se co­mo uma dama refinada, para o descontentamento da mo­ça mal-intencionada.

Keelin dirigiu-se ao bispo Delfort com voz doce e olhar meigo elogiando-lhe o réquiem de Eldred de Grant dias atrás.

— Deus o inspirou com tão belas palavras, Eminência — disse Keelin, apesar da insistente intromissão de Isol­da em interromper o diálogo.

A expressão de Delford ao elogio honesto de Keelin foi de alegria. Ele prosseguiu a conversa animadamente, para o desgosto de Isolda que assistiu, furiosa, o bispo conduzir Keelin até a mesa de refeições segurando pelo braço com ternura. Marcus assistiu a tudo de longe, observando o comportamento da mulher invejosa com atenção.

A música foi interrompida para a bênção dos alimentos e tão logo Delford cessou suas palavras, os músicos vol­taram a tocar seus instrumentos. Os criados andavam de um lado a outro da enorme mesa de madeira maciça, car­regando grandes bandejas com a comida.

Marcus sentou-se ao lado de Delford e viu quando Isol­da serviu seus cálices com o melhor vinho da adega de Wrexton. Keelin estava sentada bem perto deles e a jovem fez questão de servi-la também.

Apesar das más atitudes, Marcus dava a Isolda os de­vidos créditos por sua educação refinada e os bons modos. Tinha sido durante os últimos anos a anfitriã de Wrexton e sempre cumpriu seu papel com eficiência.

Keelin respirou profundamente ao ver Isolda servir-lhe com vinho. Tiarnan a tinha aconselhado a ser natural, gentil e tentar manter-se calma durante todo o tempo. O velho tio sabia que tudo correria bem se ela conseguisse ficar relaxada diante dos inúmeros convidados.

Horas antes do jantar, Isolda foi até os seus aposentos pessoalmente conferir se as criadas faziam um bom tra­balho. A jovem arrogante instruiu Keelin a manter os bons modos durante as festividades da noite e sugeriu que não iniciasse um diálogo com o bispo ou com Marcus antes que eles falassem com ela.

Observou o vestido azul de veludo sobre a cama e ques­tionou-a indelicadamente.

— Não tem nada melhor para vestir?

Keelin meneou a cabeça negativamente consciente do esforço que a mulher cruel fazia para ofendê-la. Isolda deixou claro que nenhuma dama poderia aparecer no salão com a cabeça descoberta e os cabelos à mostra. Avisou que sua aia iria trazer-lhe um turbante que combinasse com o seu traje e partiu sem despedir-se.

Minutos depois Beatrice batia a porta com um pedaço de pano amarelo com forte cheiro de cebola entre as mãos. Até a criada torcia o nariz ao cheiro insuportável do turbante.

A hostilidade de Isolda fez Keelin estremecer. Não ti­nha feito nada de errado para despertar tamanha ira. Não conseguia entender a raiva da jovem e nem seus gestos grosseiros. Após agradecer a criada cúmplice das maldades de Isolda, Keelin caminhou até seu tio. Revelou-lhe estar temerosa com a recepção ao bispo e receava não conseguir comportar-se como as outras damas elegantes.

O bondoso senhor explicou-lhe como uma princesa ir­landesa se comportaria numa situação daquelas e confir­mou os conselhos de Isolda quanto ao bispo e a Marcus.

— E por que não posso dirigir-me ao bispo, meu tio?

— Seria uma terrível ofensa a Sua Eminência, menina Keelin — retorquiu o tio. — E lembre-se: não exagere nas bebidas. Não está acostumada a beber vinho e não quer passar mal durante o jantar, não é mesmo?

Keelin duvidou de que o vinho fosse capaz de fazê-la sentir-se pior do que já se sentia. Isolda já havia tratado de convencer-lhe de sua incompetência.

Ela não conseguia enxergar uma razão para a raiva da anfitriã de Wrexton. Keelin ainda não conhecia suficien­temente as maldades do mundo para imaginar o motivo que levava a jovem a odiá-la e desejar feri-la com tanta crueldade.

Alcançou o salão naquela noite com o coração acelerado. Depois dos longos anos de exílio e solidão, Keelin não se sentia confortável na presença de estranhos.

Assim que atingiu o alto da escadaria, achou que não conseguiria descer os intermináveis degraus de pedra até o salão.

Foi quando um forte e ruim pressentimento invadiu sua mente brutalmente. Algo aconteceria de errado e as conseqüências seriam terríveis. Tudo o que queria era fugir dali. Procurou manter a postura ereta e o sorriso nos lábios, todavia o sinistro sentimento não deixou de perturbá-la e persistiu, crescendo a cada passo que dava em direção ao salão.

A princípio, Keelin imaginou que podia ser com relação a Adam, afinal sua condição ainda era delicada e exigia cuidado. A febre mantinha-se baixa e o garoto não parecia reagir contra a fraqueza apesar do ferimento cicatrizar com rapidez.

Não, não parecia ser nada com Adam, pensou Keelin. O que quer que fosse, ela não conseguiria evitar. Nunca con­seguiu e não seria agora durante a recepção no castelo de Wrexton que seus poderes se aperfeiçoariam a tal ponto.

Isolda sentou-se a mesa ao lado de Marcus e serviu o cálice de todos com vinho. A comida descansava sobre a mesa farta e o bispo a convidou para sentar-se ao seu lado. Os músicos voltavam a tocar após a bênção de Delford. Ele pronunciou poucas palavras e então os convida­dos sentiram-se à vontade para iniciar a refeição erguen­do antes, porém, um brinde a Sua Eminência.

Keelin acompanhou o brinde segurando o copo entre os dedos ainda trêmulos. O cálice deslizou pela sua mão caindo sobre a mesa, molhando o bispo e o seu vestido de vinho. A toalha branca que recobria a mesa cobriu-se com o líquido vermelho e em questão de segundos grande cír­culo rubro podia ser visto por todos.

Procurando manter sua dignidade, Keelin sussurrou um breve pedido de desculpa e sorriu diante do inespe­rado incidente. Inúmeros criados prontificaram a troca das toalhas e uma pequena bacia com água quente para os convidados lavarem as mãos sujas de vinhos.

— Não se preocupe, meu anjo — disse Deford ao ver Keelin embaraçada. — Não tivemos grandes prejuízos. Estaria mais zangado se a comida estivesse perdida — replicou o eclesiástico dando boas gargalhadas.

Os convidados fitavam Keelin desconfiados. Em ques­tão de segundos, atraíra a atenção de todos os presentes com seu gesto descuidado. Tudo o que tinha a fazer era deixar-se afundar na cadeira e procurar fingir que nada de estranho havia acontecido, pensou ela aflita.

— Lady Keelin e seu tio decidiram permanecer em Wrexton até a total recuperação de Adam — disse Marcus tentando desviar as atenções dos convidados do desastre causado por Keelin. — Sofremos a ausência de um curan­deiro na vila e lady Keelin nos presta um grande favor cuidando de meu jovem primo ferido. Sua generosidade jamais será esquecida por todos os que amam Adam.

As doces palavras de Marcus fizeram com que Keelin esquecesse por alguns instantes do terrível incidente que provocara. Era óbvio que ele tentava amenizar seu deses­pero diante dos convidados e Keelin nunca conseguiria agradecê-lo por isso.

— Ah, sim — disse Delford. — O menino foi gravemen­te ferido. É um milagre que ainda esteja vivo.

— Graças a Deus! — retrucou Isolda.

— Sem dúvida, minha jovem — murmurou o bispo.

Keelin sentia-se muito mal. Levou as mãos até a toalha branca que havia sido colocada em sua frente e buscou a comida nas grandes tigelas. Seus movimentos eram titubeantes. Estava com medo de cometer outro deslize e sucumbir de vergonha diante de todos. Seria o fim, imagi­nou sentindo os olhos maldosos de Isolda sobre ela.

Jamais poderia imaginar o aconteceria em seguida.

Depois da refeição, Marcus não tinha outra opção que não travar uma longa conversa com o bispo mesmo que lamentasse cada um dos momentos que passava longe de Keelin.

Isolda permanecia entre eles, mas atenta a cada mo­vimento de Keelin no salão e Marcus temia que ela re­solvesse vingar-se de sua proposta durante a festividade. A jovem conversava com Delford excessivamente entu­siasmada o que o fez imaginar que planejava algo às es­condidas.

Marcus não estava certo sobre isso e preferiu perma­necer vigilante com os passos da prima distante.

Com a intenção de despedir-se do bispo antes de reco­lher-se, Keelin aproximou-se do grupo com discrição. De­sejou a Delford uma viagem tranqüila, uma boa noite de sono a Marcus e virou-se disposta a subir para seus apo­sentos. Sua atitude formal e educada agradou a todos, principalmente ao bispo que não poupou elogios à graça e beleza de Keelin, mas não enganou Marcus que perce­beu que algo a incomodava e entristecia.

Sem entender a súbita mudança de comportamento atribuiu ao incidente com o vinho a tristeza de Keelin ao partir.

A noite pareceu interminável depois que Marcus a viu despedir-se de todos e subir a escadaria. Nada estava ao seu agrado. Nem a comida, nem a bebida, e muito menos a companhia. A sombra da morte de Eldred assolava o salão criando uma atmosfera fúnebre que o incomodava profundamente.

Os convidados partiram cedo conforme a boa educação ordenava num caso como aquele e tão logo o salão esvaziou os criados começaram a organizar a louça e os restos de comidas nos pratos. O desfile de bandejas pelo salão distraiu Marcus por alguns minutos antes de finalmente decidir-se por recolher-se.

Não havia atingido o segundo degrau da enorme esca­daria que o levaria até os seus aposentos quando um dos cavaleiros, Sir Willian o interrompeu com tom de voz grave.

— Milorde, se não se importa, gostaria de dizer uma palavra antes de retirar-se — disse o homem com expres­são séria.

 

— O que há de errado, Will? — per­guntou Marcus impressionado cora o tom de voz do cavaleiro. Ele estava cansado, mas a seriedade do homem o alarmou. E também não tinha certeza se conseguiria dormir de imediato.

— Perdoe-me pela intromissão, milorde. Nem sei como abordá-lo em tão delicado assunto, mas faz-se necessária essa conversa — disse Willian.

— Fale, então — ordenou Marcus angustiado com o mistério do rapaz.

— Temo que as travessuras de Isolda terminem ferindo alguém.

Willian mantinha o tom de voz baixo e grave o que impediu que os outros presentes ouvissem suas palavras, mas Marcus achou mais prudente guiar o homem para outro lugar onde pudessem conversar tranqüilamente.

— Siga-me até meu quarto — disse ele.

O cavaleiro acompanhou Marcus pelo corredor ilumi­nado com velas, em silêncio até que adentraram o vasto e suntuoso cômodo. As chamas da lareira haviam se extinguido por completo e o quarto estava na mais completa escuridão, o que o obrigou a acender algumas velas cra­vadas num luxuoso castiçal dourado.

— Milorde, recorda-se daquela manhã em que cruzávamos o saguão principal juntamente com sir Robert? No mesmo instante que lady Keelin tropeçou e caiu diante de nós.

Marcus meneou a cabeça em concordância.

Jamais se esqueceria da manhã em que seus olhos cru­zaram com os de Keelin que saía da cozinha com uma bandeja nas mãos e para, logo em seguida tropeçar no cabo da vassoura abandonada no chão por descuido da criada.

— Vi quando Isolda pediu a aia que deixasse a vassou­ra no caminho de sua hóspede — revelou o rapaz descon­certado.

Enquanto ouvia-o falar com atenção, Marcus franzia as sobrancelhas, preocupado e aparentemente tenso.

— Está certo do que diz, Will?

— Não faz parte de minha personalidade inventar his­tórias para prejudicar outras pessoas, milorde — disse Willian com firmeza. — A maldade de Isolda não se limi­tou àquele incidente. Esta noite, antes do jantar, untou o cálice de Keelin com óleo para que ela o deixasse cair diante de todos.

Marcus recusava-se a acreditar no que lhe dizia Wil­lian, embora não desconfiasse de suas palavras. Diversas evidências o levavam a crer que Isolda tramava contra Keelin. A tirania da jovem autoritária ultrapassara todos os limites! Sua ira voltara-se contra Keelin no instante em que percebera o envolvimento entre eles.

Sem dúvida, planejara envergonhar Keelin diante de todos os convidados engordurando o cálice com antece­dência para que o deixasse cair na hora do brinde. Enge­nhosamente, permitiu que ela se sentasse ao lado do bis­po, para sujá-lo com vinho, aumentando assim o seu de­sespero. Premeditara sua maldade com rigorosos detalhes de crueldade, concluiu Marcus cheio de rancor.

Era fácil imaginar o motivo da ira de Isolda. Ela sabia que Keelin ameaçava seus planos de tornar-se a condessa de Wrexton e faria tudo o que estivesse ao seu alcance para impedi-la. Como pudera ser tão ingênuo, indagava-se com culpa. Estivera sempre tão ocupado depois da mor­te do pai e do retorno ao castelo que Isolda teve tempo suficiente para planejar sua vingança à vontade.

Com certeza ela odiava Keelin com todas as suas for­ças. Invejava sua beleza, sua generosidade e a simpatia que despertava em todos sem sequer esforçar-se para isso. E, ao que tudo indicava, sua crueldade acentuara-se de­pois da conversa que tiveram, quando propôs arrumasse logo um pretendente e deixasse o castelo.

— Achava que não passavam de brincadeiras inocen­tes, infantis — completou Willian ainda sem graça. — Mas receei pelo agravamento da situação e achei conveniente alertá-lo.

— Fez muito bem, Will. Isolda perdeu todo o bom senso...

— Lady Keelin fez muito por Adam e por Edward, quan­do aparecemos em seu chalé aquela noite. Jamais me ca­laria diante de tamanha injustiça, milorde.

— Nem eu consentirei com isso, nem eu — respondeu Marcus perdendo-se em inúmeros pensamentos de revol­ta e raiva. — Permaneça atento, Will. Posso adiantar-lhe que interrogarei Isolda em breve e tomarei sérias provi­dências. Mas ainda preciso de sua ajuda. Vigie-a durante todo o tempo e descreva-me todos os seus passos. Agora vá, preciso refletir sobre os últimos acontecimentos.

O cavaleiro inclinou a cabeça num gesto de respeito e abandonou o recinto imediatamente, deixando Marcus sob a luz forte dois castiçais dispostos sobre a mesa principal.

 

Keelin atravessou a noite agitando-se sobre o leito, sem conseguir dormir direito. Um forte sentimento a domina­va, mas tudo o que poderia fazer naquele instante era tentar descansar. Algo acontecia de errado no castelo de Wrexton, ela sabia disso. Se ao menos pudesse tocar Ga Buidhe an Lamhaigh... Talvez fosse abençoada com uma visão esclarecedora sobre o que tanto a incomodada.

Com muita dificuldade conseguiu adormecer poucos minutos antes que o sol despertasse no horizonte. Toda­via, foram poucos os minutos de descanso. Alguém bateu na porta do cômodo logo em seguida, acordando-a instan­taneamente. Hesitante, Keelin caminhou até a porta e a abriu devagar. No corredor escuro, Marcus segurava uma tocha incandescente que iluminava parcialmente o cami­nho. Quase todas as lamparinas do castelo já estavam apagadas e o fogo da lareira desfazia-se aos poucos no cômodo onde Keelin permanecera durante a noite. A tem­peratura do lado de fora era pouco agradável e não fosse a expressão sedutora de Marcus, Keelin preferiria ter vol­tado para a cama.

Em silêncio sobre a soleira da porta, Marcus hesitou por alguns segundos antes de começar a falar, escolhendo as melhores palavras para abordá-la. Os trajes íntimos que Keelin usava eram demasiadamente atraentes e pro­vocantes, pensou ele atônito com a inesperada visão. O contorno delicado dos quadris femininos e arredondados despontava sob o tecido fluido, transparente, e os seios empinados despertaram seus instintos com uma força até então desconhecida por ele. Com dificuldade, algu­mas poucas palavras titubeantes despontaram de sua garganta.

— Esqueceu-se da nossa caçada? — perguntou ansioso.

Mesmo sonolenta, Keelin percebeu os olhos atentos de Marcus sobre suas vestimentas. Tinha consciência que os trajes de dormir não eram nem de longe a melhor opção para receber visitas em seu quarto, mas sentia-se à von­tade o bastante para recebê-lo naquela manhã.

— Oh! — respondeu ela relembrando o convite. — Sim, a caçada... Como pude me esquecer?

Os olhos famintos de Marcus descobriam seu corpo com rapidez, deixando-a envergonhada e com aparente timi­dez, levou os braços até os seios, cruzando-os sobre o cor­po, sentindo a temperatura de sua pele elevar-se e um suave tremor percorrer-lhe da espinha até a nuca.

Ele adentrou o cômodo e fechou a porta atrás de si com determinação, tão logo Keelin pôs-se a caminhar para trás, receosa com a íntima proximidade criada entre eles.

Marcus trazia na outra mão um grande embrulho. Ga Buidhe an Lamhaigh, pensou Keelin com enorme alívio. Finalmente a maior herança de seu povo voltava para suas mãos e ela não poderia desejar nenhuma surpresa melhor naquele dia.

— Obrigada — disse com os olhos rasos d'água e voz embargada.

Keelin avançou sobre o pacote e rapidamente desfez-se da capa de couro que protegia a lança, tocando-a com prazer. Sentia-se novamente com forças para lutar pela liberdade de seu povo e por seu próprio destino. A pre­sença de Marcus a tranqüilizava, mas ela sabia qual era a sua verdadeira missão.

Marcus caminhou até a cama ainda desarrumada e er­gueu o colchão, afastando com as mãos os lençóis alvos que repousavam sobre o leito. Imaginou Keelin, poucos minutos antes, envolvida pelos tecidos macios, roçando sua pele macia contra eles, a camisola de dormir enro­lando-se em sua coxas e os cabelos perfumados esparra­mados pelos travesseiros. Uma onda de excitação percor­reu todo seu corpo, incontrolável, avassaladora. Sentiu um desejo repentino de tomá-la nos braços e devolvê-la para o colchão ainda quente, deixando-a misturar-se no­vamente com os lençóis, agora junto a ele.

— Guarde-a aqui dentro — disse, tentando disfarçar o sentimento forte que o dominava, postando um tom de voz mais grave que o normal e apontando para a armação de madeira escondida embaixo do colchão. — É um lugar mais seguro e próximo.

— Sim — respondeu ela, guardando a lança outra vez dentro da capa de couro. Seguiria o bom conselho de Marcus e guardaria o talismã embaixo do colchão, dentro da cavidade da armação que sustentava a cama. Tinha sido muito inocente em acreditar que ninguém jamais descon­fiaria da velha carroça que tanto servira para ela e seu tio nos últimos anos, pensou encaixando o embrulho no pequeno vão, confiante.

Marcus acomodou o colchão mais uma vez no lugar e caminhou para longe da cama, procurando afastar os pen­samentos libidinosos o quanto antes.

Quando voltou os olhos para Keelin, a encarou com tamanha firmeza que a fez pensar se a verdadeira e im­portante preocupação que tinham naquela manhã era realmente a caçada ou a segurança da lança.

Os pequenos olhos azuis de Marcus brilhavam em sua direção com assustadora intensidade, sem ocultar o de­sejo que o possuía completamente.

Embora estivesse coberta da cabeça aos pés, Keelin sentia-se totalmente nua. Percebia que cada parte de seu corpo era analisada com cuidado e o pesado silêncio que se fazia entre passou a incomodá-la cada vez mais. Era como se a ausência de palavras falasse por eles, como se o silêncio clamasse pela consumação daquele sentimento poderoso que, tinha certeza, dominava a ambos.

Envergonhada, levou as mãos até o fitilho da camisola desamarrado sobre o peito e tentou cobrir o pedaço de pele que a roupa de dormir expunha maliciosamente.

Com o movimento, um pedaço de seu seio insinuou-se pela fenda do tecido e ela imaginou qual seria a reação de Marcus se terminasse de soltar os laços e descobrisse-se por completo.

Ansiava pelo toque das mãos másculas de Marcus mais que nunca e pensou que, na solidão de sua alcova, àquela hora da manhã, jamais seriam atrapalhados por ninguém.

Não, não poderia entregar-se assim a um sentimento inesperado e perigoso como aquele. Seu clã a esperava com ansiedade e agora que tinha Ga Buidhe an Lamhaigh nas mãos, nada mais a impediria de partir tão logo fosse possível. Como entregar-se a uma paixão inconseqüente enquanto seu povo sofria sob o domínio do inimigo? O que seu pai pensaria, se tomasse uma atitude impulsiva e irracional entregando-se a Marcus, abrindo mão do casa­mento planejado para ela por causa de um desejo passa­geiro?

Tinha que permanecer afastada de Marcus a qualquer preço, mas, naquele instante aquilo lhe parecia um enor­me sacrifício.

O sofrimento logo terminaria, pensou Keelin tentando buscar algum tipo de conforto. Em uma semana, no má­ximo duas, estaria longe de Wrexton e nunca mais reen­contraria Marcus outra vez. Estava decidida a partir. As­sim que Adam estivesse totalmente recuperado tomaria o caminho rumo a Carrauntoohil imediatamente,

— Deixe-me sozinha, milorde — pediu decidida. — Mu­darei meus trajes e em poucos minutos o encontrarei no salão principal.

Marcus ouviu-a com atenção e virou-se lentamente. Precisava juntar forças para atravessar a porta, acatando o pedido de Keelin. Carregaria consigo a enorme frustração de perder a oportunidade de tocá-la como sempre ima­ginara. Será que voltaria a ter uma nova oportunidade?, questionou-se, enquanto ouvia o barulho da fechadura da porta do quarto de Keelin atrás de si.

Tão logo percebeu-se sozinho no corredor, Marcus res­pirou fundo procurando acalmar-se.

Na escuridão do castelo ainda silencioso, não conseguia deixar de relembrar a delicadeza dos contornos do corpo de Keelin escondidos sobre o tecido transparente da ca­misola, dos longos cabelos escuros e encaracolados que caíam soltos, selvagens pelos ombros macios, contornan­do-lhe o rosto e formando uma protetora cortina sobre os seios volumosos.

A imagem da pele alva e acetinada que se deixava vis­lumbrar pelo decote da vestimenta de dormir, com seus laços parcialmente desfeitos durante a noite, noite esta que parecera não ter sido tão repousante, concluiu, lem­brando-se dos círculos escuros que contornavam os mei­gos olhos verdes de Keelin naquela manhã, o perseguia.

Ele também passara grande parte da noite acordado, rolando na cama, insone, e levantara-se antes do ama­nhecer, disposto a ignorar as conveniências e bater na porta do quarto de Keelin o quanto antes. Poderia devol­ver a lança mágica de seu povo a qualquer instante, po­rém não pôde conter o desejo de revê-la.

Sua educação e boas maneiras lhe diziam para jamais importunar uma dama antes de ter certeza que a mesma tivesse se levantado e se vestido adequadamente para recebê-lo. Mas foi incapaz de controlar a ansiedade e tão logo arrumou-se para a caçada, caminhou até os seus apo­sentos, antes mesmo de o dia clarear por completo.

Não tinha a intenção de deixá-la escapar novamente. Keelin conseguira despistá-lo duas vezes no dia anterior, no poleiro das aves e depois do jantar em homenagem ao bispo Delford. Todavia, escapulira mais uma vez, pensou desanimado.

Marcus começou a caminhar pelo corredor com lentidão procurando restabelecer-se antes de cruzar com algum empregado do castelo. Desceu a escada rumo ao salão principal e ouviu o barulho de vários serviçais que começavam a cumprir com suas tarefas. Pôde ver pelas janelas da grande sala principal os homens de Delford carrega­rem os carros e prepararem os animais para a partida do bispo.

Adentrou a cozinha onde diversos homens terminavam de preparar as refeições que Marcus e Gerard levariam para a caçada. Ele os informou que Keelin os acompanha­ria, mas que gostaria de ser avisada imediatamente sobre qualquer alteração no estado de saúde de Adam e depois subiu até a torre a procura do amestrador das aves.

Gerard terminava de preparar as aves para a aventura quando avistou Marcus ainda subindo os degraus da lon­ga escadaria. O homem, bastante animado para o horário, o cumprimentou com simpatia.

— Prepare-se para partir, Gerard — ordenou Marcus logo após cumprimentar o empregado. — E antes que me esqueça, teremos uma convidada esta manhã. Lady Keelin irá conosco — completou sem conseguir disfarçar o olhar encabulado.

Acariciando a cabeça de Cléo, Gerard encarou-o sem esconder a surpresa.

— Teremos momentos muito agradáveis em companhia de lady Keelin — comentou Gerard polidamente. — É visível o carinho e o respeito que vossa convidada alimen­ta por nossos animais, milorde.

— Tem razão — respondeu ele buscando algumas peles dentro do armário. Talvez o frio os obrigasse a usá-las, pensou Marcus, lembrando-se da fragilidade do corpo de­licado de Keelin. Estariam longe do castelo e não supor­taria vê-la sofrer com o frio das colinas. Jamais se per­doaria se ela ficasse doente por sua culpa. — O que falta providenciar?

— Quase nada — replicou o amestrador. — Os rapazes levantaram muito cedo para selar os animais e preparar o necessário. Aguardamos somente suas ordens, milorde.

— Muito bem. Tão logo lady Keelin termine seu toalete matinal, partiremos imediatamente.

Marcus desceu até o alojamento dos animais e confir­mou o que Gerard havia lhe dito. Todos os empregados estavam ocupados com os animais e os preparativos estavam quase terminados. De volta ao salão, acomodou-se ansioso em uma das elegantes poltronas e esperou por Keelin longos e intermináveis minutos antes de vê-la apontar no alto da escadaria.

A esguia e elegante sombra feminina tomava forma com lentidão o que aumentou ainda mais a inquietação de Marcus que, incapaz de aguardar um segundo sequer, caminhou até o pé da longa escadaria de mármore.

As delicadas formas do rosto de Keelin escondiam-se por de trás da pesada capa negra de veludo, porém, Mar­cus pode ver os grandes olhos verdes brilhando como duas preciosas esmeraldas. O olhar sereno e límpido não es­condia sua excitação e contentamento.

Num movimento rápido, segurou a mão delicada de Keelin e a conduziu para o lado de fora do castelo, igno­rando o incontrolável nervosismo. Os cavalos e dezenas de homens já os aguardavam e tão logo a carruagem prin­cipal foi avistada, Marcus a guiou até ela.

— Está pronta? — perguntou delicadamente. Keelin concordou meneando a cabeça devagar.

— Tem certeza de que não atrapalharei? — indagou ela tímida.

Marcus segurou a pequenina mão feminina entre as suas, que agora pareciam muito maiores, e encarou-a com firmeza. Com um olhar de grande aprovação, abriu a por­ta da suntuosa carruagem e a acomodou gentilmente no banco de passageiros.

Para todos os presentes o rosto pálido e atormentado que os observava furtivamente por detrás de uma rocha próxima ao local passara despercebido.

 

— Mantenha seu braço nessa posição — Marcus expli­cou com paciência —, e ela regressará para você.

Keelin seguiu as instruções de Marcus e reposicionou as grossas e pesadas luvas antes de erguer o braço para o alto. O belo círculo traçado no céu pelo falcão impressionou-a pela elegância, rasgando o vento frio, destemida.

Guinevere planou receosa sobre o grupo de homens e carruagens antes de alcançar o local onde a aguardavam. Averiguou a região com cuidado, desconfiada com a pre­sença de Keelin entre eles. A surpreendente cautela era esperada e demonstrava o bom resultado dos treinos de Gerard.

Marcus buscou acalmá-la, falando alto, usando expres­sões familiares e algumas palavras carinhosas. Mais se­gura, a ave ensaiou um movimento brusco, porém corretamente controlado e pousou no antebraço de Keelin ra­pidamente. Gerard aproximou-se e prendeu a ave com uma pequena corrente na luva de metal e, em seguida, a premiou com uma generosa porção de carne fresca.

Keelin sentiu o coração bater mais forte ao observar as garras do falcão cravadas sobre a luva. Não poderia imaginar nenhum outro animal tão majestoso, com porte aristocrático e modos graciosos, ao mesmo tempo tão assustador.

E a delicadeza e paciência de Marcus com a ave ames­trada a fizeram imaginar se ele também seria tão agra­dável com crianças, se desfrutaria da companhia de seus filhos como apreciava as caçadas com os falcões...

Ela ergueu seus olhos em direção aos dele e pôde ver todo o orgulho que sentia por seus animais de estimação. Mas havia algo mais naquele olhar que a fez tremer da cabeça aos pés. Seu coração disparou mais uma vez e desviou os olhos rapidamente, antes que fosse forçada a concluir o que tinha visto.

Certamente se permitisse a si mesma descobrir os mais profundos sentimentos de Marcus, todo o seu plano de deixar Wrexton tão logo Adam estivesse recuperado fa­lharia. Deus era testemunha de que estava esforçando-se para ser prudente e racional. Não sabia como e nem quan­do, mas deveria partir e deixar o castelo, seu tio e, como aquilo parecia difícil agora!, Marcus também.

Inesperadamente seus olhos encheram-se de lágrimas. Procurou desviar seus pensamentos para o falcão empo­leirado em seu punho e em Gerard que continuava a re­tribuir o bom comportamento do animal oferecendo-lhe mais ração. Sentiu um intenso desejo de fugir, atravessar as colinas e regressar para a escuridão e solidão de seu quarto e esconder-se atrás das pesadas portas de madeira para sempre. Ou, quem sabe, atender aos impulsos de seu coração e lançar-se nos braços de Marcus e desistir de tudo.

— A jornada de Guinevere já chegou ao fim? — per­guntou ela a Gerard, buscando distanciar-se da imperti­nente obsessão que não a abandonava.

— Ainda é cedo, milady — replicou o homem gentil­mente. — Nossa adorável Guinevere ainda não cumpriu com sua tarefa. Não nos trouxe ainda nenhuma presa... — Gerard sorria com tranqüilidade enquanto acariciava o dorso do belo animal. — É a sua vez, milady, de enviá-la para o cumprimento de sua missão.

Marcus caminhou até Keelin e falou-lhe bem junto ao ouvido:

— Pode carregá-la por mais tempo ou seu braço já dá sinais de cansaço?

Keelin respirou com dificuldade. A proximidade afas­tava toda a possibilidade de manter-se sob controle e nada do que dissesse disfarçaria o aparente transtorno.

— Na-não... Sinto-me bem — respondeu com a voz trêmula. Sentia-se vulnerável e frágil com tamanha proxi­midade. O rosto másculo e a expressão firme de Marcus parado ao seu lado despertaram sua atenção e tudo em volta pareceu sumir.

O profundo e cintilante azul celeste dos olhos de Marcus a envolvia em um poderoso e enigmático feitiço e tudo o que podia ver era o movimento lento e suave das enormes pestanas, a languidez do sorriso despretensioso e as me­chas de cabelo douradas como o sol, caídas sobre a fronte bem-delineada. Todo o resto desaparecera como num pas­se de mágica. Ele a admirava, sabia disso. Estava claro e límpido como os olhos cor de mar que a hipnotizavam...

Não, não poderia permitir que aquele sentimento cres­cesse entre eles. Jamais voltaria atrás em seus planos. Prometera vingar a morte de seu pai e libertar seu povo e seguiria sua trajetória até o fim.

Marcus meneou a cabeça na direção de Gerard, que se afastou com discrição. O amestrador voltou a caminhar para o lago onde Guinevere e Cléo possivelmente encontrariam suas vítimas e as trariam, gloriosas, de encontro aos seus mestres.

Keelin afastou seus olhos de Marcus e caminhou até ao encontro de Gerard com passos firmes, desacreditando em sua capacidade de cumprir com o planejado. Sentia as pernas bambas e os joelhos tremerem sob o longo ves­tido. Marcus a seguiu e, antes que alcançassem as pláci­das águas que contornavam a propriedade de sua família, lhe dirigiu a palavra com voz terna e melodiosa.

— Uma enorme família de grous vive nessa região. Muito maior do que gostaríamos. Por isso permitimos que as aves os persigam durante as caçadas. Gerard é um profundo estudioso da natureza e nos garantiu que esta­mos longe dos períodos de reprodução.

— Períodos de reprodução?

Marcus sorriu com a pergunta.

— Os caçadores devem se preocupar em não caçar ani­mais indiscriminadamente. Algumas populações, por maior que sejam, podem desaparecer em poucos anos se não forem respeitados os intervalos para reprodução e um limite de vítimas.

— Então os procedimentos deveriam ser os mesmos para com o veado e o porco-do-mato?

Marcus concordou com a cabeça e sorriu mais uma vez.

— Nunca vi nenhum, caçador preocupado em preservar suas presas até hoje... — afirmou ela. — Ou voltando para a floresta para contar suas vítimas.

— Tenho sorte de ser proprietário de toda essa área, incluindo a floresta e o lago. Nada aqui acontece sem a nossa aprovação. Mas Wrexton é uma exceção. Nossas florestas pertencem à Coroa.

— E quem cuida de tudo? — perguntou interessada,

— Com a morte do rei, seu natural sucessor, apesar da pouca idade, é o herdeiro.

— Mas ele é ainda um menino...

— Sim, tem razão. Mas já possui um grande exército de conselheiros para cuidar de seus interesses.

— E posso apostar que muitos se aproveitam da situa­ção para tirar vantagens pessoais. Estou certa?

Marcus inclinou a cabeça para trás e emitiu uma so­nora gargalhada. Keelin encantou-se com sua naturali­dade e sorriu de volta.

— Uma excelente observação! Principalmente para uma jovem que nunca viveu na corte. Ou será que estou enganado?

— Eu? — Keelin estava com as maçãs do rosto coradas e parecia muito encabulada com a pergunta. — Viver na corte? O que está querendo dizer com isso?

— Perdoe-me, milady — retrucou Marcus tentando con­trolar o riso. — Estava apenas brincando.

Sentia-se profundamente excitado naquela manhã. Era um grande prazer desfrutar de tão agradável companhia e poder apresentar pessoalmente todas as belezas daque­las terras que tanto amava. Atravessavam os grossos tron­cos de árvores seculares, envolvidos por uma brisa leve porém gelada, e Marcus sentia-se ainda mais vivo com o toque suave do vento gelado em sua face. Observava Kee­lin com atenção e sentia sua admiração por ela aumentar a cada instante. Ela era alta e mantinha sempre o porte elegante e altivo. Carregava a ave sobre o braço como se tivesse nascido e crescido envolvida por aqueles animais.

Todavia, algo parecia diferente naquela manhã. Keelin mantinha-se silenciosa e, aparentemente, mais descon­fiada. Percebera a súbita mudança assim que a avistou na escadaria do castelo, antes de partirem para a caçada, porém imaginou vê-la relaxar quando percebesse que era bem-vista junto aos outros integrantes da caravana.

Fazia tempo que o sol nascera e mais de uma hora que estavam em atividade, e Keelin ainda parecia estranha­mente reservada e tímida.

— Tem certeza de que não está cansada de carregar Guinevere? — insistiu Marcus tentando investigar suas suspeitas.

— Estou muito bem — respondeu ela deixando momen­taneamente transparecer seu natural entusiasmo. — É uma ave adorável e pretendo continuar carregando-a enquanto tiver permissão para isso.

— Estamos bem perto do lago. Assim que chegarmos, libertaremos Guinevere mais uma vez.

— Isso será ótimo — comentou Keelin baixando os olhos para o chão recoberto pela relva úmida.

Dificilmente esqueceria aquela manhã e a lembrança da agradável passeio ao lado de Marcus iria acompanhá-la até a Irlanda e, quem sabe, até o fim de seus dias...

 

Passava do meio-dia quando os membros da comitiva de caçadores pararam para se ali­mentar. Gerard preocupou-se em acomodar os animais no alto de uma árvore, amarrando-os junto aos troncos. Os cães descansavam a uma segura distância do grupo, permitindo que os homens relaxassem servindo-se com bebidas e comidas preparadas com antecedência.

Os cozinheiros de Wrexton haviam preenchido o con­teúdo das cestas com deliciosas guloseimas e os homens, cansados da jornada e famintos, não viam a hora de poder atacar as tortas, carnes, queijos e pães, agora dispostos ocasionalmente sobre a traseira das carroças.

— Milady — disse Gerard estendendo um prato em direção Keelin. — Não se acanhe...

— Oh... — respondeu Keelin voltando sua atenção para o amestrador. — Obrigada — replicou sorrindo, desvian­do seus olhos de Marcus que enchia seu prato com rapi­dez, preocupado com os outros homens famintos, sabendo que jamais um deles servir-se-ia antes de seu lorde.

O ar já não parecia tão frio e cortante como no início da manhã e, com uma rápida passada de olhos pelo céu, todos podiam ver as pesadas nuvens movimentando-se.

— Ofereceria meu primeiro filho numa aposta, milorde, como seremos abençoados por uma tempestade de neve em breve.

Marcus olhou para o empregado que lhe dirigia a pa­lavra e sorriu em retribuição, ajudando Keelin a sentar-se sobre um tapete de pele de urso estendido sobre o chão.

— Pior seria se milorde ganhasse a aposta — retrucou Gerard. — Não posso imaginar nenhuma utilidade para seu filho preguiçoso e sonolento — prosseguiu o homem risonho.

— Jamais me esquecerei de seu comentário afiado — disse o rapaz erguendo-se do cobertor onde cochilava tranqüilamente, provocando uma explosão de risos entre os homens.

Keelin ouviu com satisfação a gargalhada de Marcus e riu junto com ele. Apreciava a agradável sensação de estar ao seu lado e vê-lo distrair-se novamente fazia-lhe muito bem. Nunca antes vivera uma experiência como aquela. Seu pai jamais lhe dera liberdade para acompa­nhá-lo durante suas caçadas e, com certeza, se o tivesse feito, não teria se divertido tanto como naquela manhã. O patriarca O'Shea nunca parecia disposto a brincadeiras ou descontrações de nenhum tipo.

Marcus recostou-se ao seu lado, cruzando as pernas uma sobre a outra e acomodando o prato sobre o colo. Seu joelho tocou-a levemente e Keelin percebeu a proximidade entre eles.

Embora uma onda de novas sensações percorresse seu corpo, ela forçou-se em concentrar- se em seu prato e man­ter os talheres firmes entre os dedos. Respirou profunda­mente e tentou se lembrar de todos os detalhes da aven­tura que vivia desde o início da manhã. Guinevere parecia dormir sobre o tronco de árvore próximo a eles e, de al­guma forma, aquilo a tranqüilizou outra vez.

— Sente muito frio? — Marcus a interrogou com ter­nura. — Pode desistir por aqui, se quiser.

— Não seria esta a minha vontade, milorde — replicou com firmeza, imaginando que seu súbito tremor fora por ele notado. O efeito que Marcus tinha sobre ela começava a tornar-se cada vez mais evidente e Keelin temia não poder mais disfarçar seus sentimentos. — Mas devo con­fessar-lhe que anseio pelo retorno ao castelo, o quanto antes...

— E por quê? — perguntou ele encarando os olhos tris­tonhos de Keelin e tentando descobrir o que se passava no fundo de sua alma.

— Preocupo-me com o estado de saúde de Adam. Ainda não tenho certeza se fiz bem em afastar-me de Wrexton esta manhã.

— Seremos avisados se Adam precisar de nós, fique tranqüila.

— Lorde Marcus — um rapazote com aparentemente pouco mais de treze anos aproximou-se, curvando-se em sinal de respeito. — Acompanho meu pai há algum tempo em suas caçadas e gostaria muito de aprender a atirar. Porém, bem sei que a única pessoa capaz de ensinar-me com competência essa arte seria vossa majestade, milorde.

— Tem razão — um dos homens sentado próximo a eles ouvia a conversa e intrometeu-se. — Não existe nin­guém melhor que lorde Marcus no arco e flecha.

Várias vozes vieram confirmar o que o homem afirmou com tamanha convicção que Marcus, encabulado, prome­teu iniciar as aulas com o pequeno aprendiz tão logo a refeição fosse encerrada.

— Posso acompanhá-los? — questionou Keelin insegu­ra ainda de sua capacidade de passar mais tempo ao lado de Marcus.

Ele franziu o cenho antes de encará-la mais uma vez. Era evidente que nunca tinha ouvido um pedido mais excêntrico que aquele. Jamais vira nenhuma mulher carregar um arco, nem por necessidade, muito menos por prazer.

— Suas lições serão, para mim, de grande valia quando retornar para casa —justificou ela sem conseguir disfar­çar o acanhamento. Por mais estranho que pudesse pa­recer para Marcus, Keelin sabia que seria uma grande vantagem se pudesse manejar corretamente o arco e dis­parar flechas com precisão. Em terras irlandesas não conseguiria comida com tanta facilidade como naquela ma­nhã e se soubesse caçar, atenderia suas necessidades com rapidez. Não poderia precisar como seria recebida em Kerry, todavia, podia imaginar como novas habilidades a ajudariam diante de qualquer dificuldade.

O semblante pensativo de Marcus a fez enrubescer. Observou o rosto rosado por causa do frio excessivo con­trair-se de repente, e seus olhos, muito azuis, reluzirem indignados. Lembrou-se do céu ensolarado do Kerry e sen­tiu seu peito apertar-se de saudade. Estava ansiosa, aguardando alguma resposta. Fora longe demais com seu pedido e envergonhava-se de sua audácia, porém preci­sava saber o que Marcus achava de sua idéia.

Pequenas mechas douradas do cabelo de Marcus pen­diam-lhe na testa e Keelin sentiu um forte impulso em afastá-las com os dedos, acariciando-lhe a fronte tensa e envolvê-lo com os braços, tranqüilizando-o.

Marcus meditava diante do súbito desejo de Keelin. Seria correto ensiná-la a defender-se lançando flechas mortais de arcos muitas vezes pesados demais para bra­ços delicados e mãos tão pequenas? Por que Keelin se sujeitaria àquele serviço tão impróprio para mulheres?, pensava ele tentando descobrir os motivos que levavam-na a desejar aprender como manejar uma arma. Keelin iria embora tão logo se sentisse segura sobre o estado de saúde de Adam, pensou aflito. E nada poderia fazer para detê-la. Estava determinada a socorrer seu povo das gar­ras do inimigo, e quanto mais habilidade tivesse para se defender melhor, imaginou Marcus afastando a dor de seu coração partido e tentando agir com a razão.

Ensiná-la seria um prazer, imaginou ele, afastando a idéia da inconveniência de sua atitude e meneando a ca­beça quase que instintivamente concordando com o pedi­do de Keelin.

— Irá partir de Wrexton, lady Keelin? — um dos ho­mens perguntou com aparente interesse.

— Sim — replicou ela com os olhos baixos, sem ver os olhos de Marcus entristecerem bruscamente e perderem o brilho que tanto a fascinara minutos atrás. — Mas não antes de Adam mostrar-se disposto novamente — finali­zou, bebendo o restante de vinho que Gerard lhe servira em bela taça dourada.

Postou-se com rapidez ao lado do tapete aconchegante, furtando-se da fascinante, porém arriscada, proximidade com Marcus. Não podia prever quanto tempo mais supor­taria controlar o impulso de jogar-se nos braços fortes e másculos de Marcus e entregar-se de corpo e alma àquele sentimento ameaçador.

— Dê-me seu arco, Felipe — ordenou Marcus a um de seus cavaleiros. — Parece ser o mais adequado em altura e peso para lady Keelin realizar seus exercícios.

O homem de baixa estatura mostrou-se rapidamente solícito, apanhando também um cesto repleto de flechas afiadas.

Keelin e o garoto já estavam no lugar determinado por Marcus para iniciar o aprendizado e acompanharam apreensivos seus posteriores movimentos.

—Amarre este pano naquele galho mais alto — Marcus ergueu um pedaço de tecido colorido para o pequeno rapazote. — Ele será o nosso alvo.

O garoto obedeceu a ordem de Marcus com prontidão deixando-o a sós com Keelin na clareira formada pelas árvores seculares.

— Já usou o arco alguma vez, Keelin? — indagou Mar­cus enquanto apanhava uma flecha no cesto.

— Não, nunca — replicou ela nervosa, sentindo seus joelhos baterem-se um contra o outro. A cadência sempre firme e intensa de sua voz dera lugar a um som rouco, quase como um sussurro.

— Segure o arco com sua mão esquerda e a flecha com a direita — disse Marcus, aproximando o instrumento de Keelin que o segurou desajeitadamente. — Mantenha a postura ereta — completou ele, caminhando em sua direção. Marcus colocou seu braço esquerdo em volta do corpo trêmulo de Keelin, segurando o arco com maestria. Com a mão direita, pegou a flecha que pendia ao lado do corpo de Keelin e a posicionou corretamente com a ponta virada para frente.

Marcus não pôde deixar de perceber o perfume doce que emanava do corpo de Keelin. O frescor de ervas selvagens o entorpecia e o fazia imaginar se algum dia poderia associar aquele cheiro agradável com algo mais que não fosse Keelin... Algumas mechas indomadas do longo cabelo perfumado de Keelin afagaram-lhe o rosto e Marcus aspirou a essência com avidez.

Estava tão próximo a ela que podia sentir o corpo femininamente delineado tremulo da cabeça aos pés, mas as mãos permaneciam firmes junto às dele, grudadas ao arco e a flecha com determinação.

— Como estou agora? — questionou ela ainda hesitante.

— Melhor — Marcus sussurrou em seu ouvido, fazen­do-a sentir seu hálito fresco junto ao lóbulo da orelha.

— E agora? — Keelin sentia-se enfraquecida com a proximidade de seus corpos e o calor do corpo de Marcus a provocava.

— Segure a flecha nesta direção — disse ele mantendo seu corpo junto ao dela, girando lentamente os pés até avistar o garoto que descia da árvore onde estava pendu­rado o tecido que serviria de alvo para os inexperientes alunos. — Pode dispará-la para o centro daquela racha­dura na árvore, Keelin?

— Sim... — replicou ela sentindo suas pernas tremerem.

— Aponte a lança e dispare, então — disse Marcus sen­tindo seu coração disparar. A atração que existia entre eles era imensa e fazia com que toda a floresta desapa­recesse, assim como os ruídos dos pequenos animais e o piado dos pássaros distantes. Tudo desaparecera como mágica. O único som que era capaz de ouvir era o da respiração tensa e acelerada de Keelin, tão próxima a ele que podia aquecer-se com o calor de seu corpo.

Keelin movimentou-se com dificuldade buscando abra­çar o arco com a lâmina da flecha. Seus músculos estavam rígidos e tensos, assim como ela.

— Relaxe, Keelin — disse ele aproximando-se mais uma vez de seu ouvido com os lábios. — Não precisa fazer tanta força. Dobre os joelhos, meu amor e gire os ombros. Assim... — Se Keelin dessa a devida atenção ao chamado carinhoso de Marcus, não conseguiria prosseguir. Ao in­vés disso, seguiu com precisão as instruções dadas por ele. Curvou-se lentamente para frente e girou o corpo, sentindo o corpo de Marcus colar ao seu cada vez mais. Sentindo um calafrio de excitação percorrer-lhe o corpo, ele conteve o ímpeto de arrancar o arco de suas mãos, jogá-lo para longe e abraçá-la com força, beijando-a até esgotarem-se suas forças. Estavam cercados por estra­nhos, e o garoto que os acompanhava não tardaria em alardear o acontecimento para todos os outros homens da comitiva, ponderou com o pouco de racionalidade que ain­da lhe restava. — Mire com cuidado — continuou a falar com a voz rouca e abafada. — E atire.

Keelin puxou a lança para trás e soltou-a de uma única vez, acompanhando-a atravessar o ar, rasgando o espaço que a separava do tronco de madeira maciça. Ficara imo­bilizada pelo zunido do arco que tremia incontrolavelmente depois do impacto antes de preocupar-se com o para­deiro da flecha. Não poderia exigir demais de si mesma, afinal, aquela era sua primeira experiência com o arco e, além do mais, a presença de Marcus tão próximo a ela diminuíra sua capacidade de concentração.

Com dificuldade, abaixou os braços e virou-se, enca­rando Marcus, agora mais perto que antes. Seus lábios tremeram e a respiração faltou-lhe por alguns segundos. Tudo o que pode fazer foi fechar os olhos, disfarçando a timidez.

— Belo lance, milady — interrompeu o jovem acompa­nhante, indiferente à atração que uniam Keelin e Marcus naquele instante.

— Obrigada... — Keelin respondeu abrindo os olhos len­tamente para encarar a expressão meiga e feliz de Marcus junto a ela. — Sua vez, agora — concluiu sorrindo.

Marcus sorriu de volta, finalmente enchendo os pul­mões de ar.

O grupo rodou pelos arredores de Wrexton até alcançar as colinas que oficialmente dividiam as terras da família de Grant das terras da família real inglesa. O dia já es­tava quase terminando e os caçadores arrebanhavam os cães no caminho de volta ao castelo. Gerard, tão logo adentrou pelos limites da propriedade, afirmou a neces­sidade de encaminhar-se, juntamente com as aves, para a torre o mais breve possível. Marcus e Keelin o acompa­nharam até o portão principal do suntuoso castelo de Wrexton.

Keelin tinha tido um dia extraordinário. Aprendera a caçar com os temíveis falcões, manejara um arco e, com um pouco mais de treino, em pouco se tornaria uma digna amazona. Não conseguia lembrar-se de ter vivido momen­tos tão excitantes nos últimos... Bem, jamais tinha vivido nada tão excitante como vivera naquela dia.

— No que mais posso ajudá-los, Marcus? — perguntou Keelin antes de ouvir Gerard se despedir de todos, na expectativa de não ver o maravilhoso dia terminar tão cedo. Estava exausta, mas ainda conseguiria reunir for­ças para mais alguma atividade, desde que permanecesse ao lado de Marcus um pouco mais.

— Já nos ajudou muito por hoje, Keelin — replicou ele, sem conseguir disfarçar a felicidade. — A esta altura Gerard deve estar examinando as aves para ter certeza de que nenhuma delas se feriu enquanto saíam à caça e, tão logo confirme que tudo está realmente bem com elas, permitirá que durmam empoleiradas até o próximo amanhecer.

— Que pena! — Keelin estava aparentemente desapon­tada e não fazia nenhuma questão de ocultar sua tristeza. — Não é todo dia que saio à caça com falcões e tenho de confessar que, se pudesse, eu mesma as colocaria para dormir.

Tão logo finalizou suas palavras, Keelin não acreditou que tinha sido capaz de dizer o que havia acabado de ouvir. O olhar indiscreto de Marcus a fez corar de vergo­nha. Era óbvio o que ele estava pensando, imaginou sen­tindo as maçãs do rosto esquentarem rapidamente. Ima­ginou-se sozinho com ela, no alto do castelo e tão logo os falcões adormecessem, o que, pelo cansaço das aves não demoraria muito, estariam finalmente a sós, sem a menor chance de serem incomodados por nenhum empregado desavisado. Não, não poderia deixar-se seduzir mais uma vez por aquele olhar lânguido e cheio de péssimas intenções. Estava determinada a não sucumbir a nenhum pensamento mais ardente e deveria controlar seus impulsos de alguma forma. Tinha se cansado demais durante a tarde e temia não ser capaz de resistir ao poder de persuasão de Marcus.

— Irá alimentá-los novamente, Gerard? — perguntou Keelin tentando desviar o rumo da conversa.

— Infelizmente não, milady — disse o amestrador gen­tilmente. — Elas já estão saciadas por hoje. — Mas, se quiser, pode libertar Guinevere da corrente e assentá-la no poleiro.

— Oh, sim! Será um prazer — respondeu Keelin com aparente alegria. Aquela seria a desculpa perfeita para afastar-se de Marcus. Acompanharia Gerard até a torre e depois se recolheria em seus aposentos, não sem antes abraçar seu tio e averiguar o estado de saúde de Adam, pensou muito mais tranqüila que antes.

Para o seu descontentamento, Marcus os acompanhou segurando um lampião para iluminar os degraus até o alto do castelo. A claridade ajudou Keelin a desatar o nó da coleira que prendia o animal e afrouxar a fivela de metal. Com a desculpa de aumentar sua visibilidade, Marcus aproximou-se ainda mais de seu corpo, agora trêmulo novamente. Estavam como horas atrás, na clareira da floresta onde tivera sua primeira aula de arco e flecha.

Pôde sentir novamente a respiração quente e agitada de Marcus no lóbulo de sua orelha, seus braços fortes envolvendo-a totalmente e a pulsação do sangue acelera­do nas veias.

— Está livre outra vez, Guinevere — sussurrou ela tentando desviar sua atenção para algo além da presença marcante de Marcus ao seu lado.

A ave deu um passo rápido em direção ao canto mais aconchegante do poleiro e então baixou as penas lenta­mente, num gesto de relaxamento completo.

Keelin desejou relaxar tanto quanto Guinevere aquela noite, mas aquilo, naquele momento, parecia para ela impossível.

 

Isolda caminhou ao encontro de Marcus e Keelin tão logo desceram as escadas da torre e adentraram o salão principal, assim como os lacaios preocupados em guardar as pesadas capas de peles dos que chegavam e oferecer-lhes uma taça de vinho para afastar o frio. O calor vindo da lareira era convidativo e transformava o suntuoso sa­lão num cômodo extremamente aconchegante.

Tudo o que Marcus mais queria era descansar por al­guns momentos ao lado das chamas, desfrutando um pou­co mais da agradável companhia de Keelin, porém Isolda vinha arruinar seus planos, impondo-lhes sua presença antipática e a uma situação desconfortável.

Marcus imaginou se algum dia entenderia realmente as mulheres. Graças a Keelin, não se sentia mais tão in­diferente e distante do universo feminino. A furtiva rela­ção que travavam já o deixava mais seguro com relação aos assuntos que envolviam sentimentos, mas sabia que muito ainda havia para ser descoberto.

As vozes de homens encaminhando-se para o salão o distraíram de seus pensamentos e a figura dos três cava­leiros dirigindo-se até eles o despertou completamente.

Willian e mais dois homens tinham passado o dia vigiando as fronteiras de Wrexton e pareciam tão cansados quanto eles.

Depois de cumprimentar as senhoras os homens pos­taram-se diante de Marcus que lhes dirigiu a palavra tão logo terminaram os cumprimentos.

— Novidades, Will? — perguntou ansioso, observando o cavaleiro menear a cabeça negativamente.

— Nenhuma, milorde — replicou. — Nenhum sinal de invasores nos perímetros de Wrexton. Cavalgamos por toda a fronteira e nenhum sinal de intrusos.

Apesar do desejo de vingar a morte de seu pai, Marcus sentiu-se aliviado com as notícias trazidas por seus ho­mens de confiança. Desejava preparar seus homens antes de colocá-los frente a frente com os violentos celtas e tra­çar um plano de ataque e defesa sólido que garantisse a vitória de suas tropas.

— Que alívio! — comentou Isolda do fundo da sala cha­mando a atenção dos homens para ela. Seus olhos brilha­vam como se, pretensiosamente, houvesse exagerado na dose de vinho. Ela esfregava as mãos, sem controle, sobre o vestido amarrotado, demonstrando todo o seu nervosis­mo, quando se virou para Keelin e sorriu com malícia.

— Imagino que queira trocar suas vestimentas antes do jantar, lady Keelin. Aqui em Wrexton não costumamos nos sentar a mesa trajando farrapos tão emporcalhados como o que usa esta noite.

Keelin abaixou os olhos e a expressão em sua face mu­dou com rapidez. Todos se calaram diante do insulto de Isolda, inclusive Marcus, emudecido após o golpe baixo de sua parente distante.

Em silêncio, Keelin abaixou a taça de vinho que man­tinha nas mãos. Era evidente que não sabia o que dizer diante de tamanha crueldade, ou como reagir às palavras amargas de Isolda. Marcus caminhou até ela, tentando ajudá-la a manter-se sob controle e antes que a visse fugir mais uma vez do salão. Então, mirou Isolda desafiando sua insolente expressão de vitória e falou-lhe num tom de voz autoritário.

— Não vejo necessidade de lady Keelin mudar suas vestimentas antes do jantar, Isolda — disse mantendo o semblante sério e o cenho franzido. — E tenho certeza que todos os meus convidados também não se sentirão ofendidos com isso. Quanto a você, já que se mostra tão incomodada, solicitarei aos empregados que sirvam seu jantar no quarto de Adam, onde imagino passará a noite inteira sentada ao lado do leito.

— Milorde, eu... — Isolda parecia furiosa com a decisão inesperada de Marcus.

— E no futuro, procure engolir o próprio veneno na presença de meus convidados — acrescentou ele seguran­do Keelin pelo braço. — Não tolerarei mais suas descor­tesias, Isolda, não enquanto residir em Wrexton.

Nenhuma palavra foi dita antes de Marcus conduzir Keelin até a escadaria. Ele não conseguia imaginar de onde havia tirado tamanha coragem para falar com Isolda daquela forma, porém sabia que a jovem audaz merecia bem mais que um sermão. A insolência de Isolda estava intolerável e se estava imaginando poder usar Keelin para puni-lo por querer mandá-la para longe de Wrexton, seria melhor que ela repensasse seus planos dali em diante.

Keelin o acompanhou em silêncio e escalou os degraus da longa escada em direção ao andar superior do castelo mantendo sua postura ereta, portando-se como uma legí­tima princesa, mas, tão logo adentrou o quarto de Adam, o brilho de seus olhos esmoreceu, não deixando sequer rastro da segurança apresentada anteriormente.

— Pedirei à camareira que me traga algo para comer aqui mesmo — disse ela. — Não quero criar mais proble­mas para você, Marcus, e...

— Não diga isso, meu amor... Irá jantar ao meu lado, se assim quiser — interrompeu-a gentilmente, levando a ponta de seu dedo indicador até o contorno delicado do queixo de Keelin, acariciando-a com lentidão. Logo em seguida, acolheu uma mecha de cabelo entre os dedos e tocou-a com carinho. — Seus trajes não são importantes para mim, pois o que me interessa são os preciosos momentos em que estou ao seu lado. E tudo o que mais gostaria é que desfrutasse desses momentos assim como eu.

— Marcus — disse ela, dando pequenos passos para trás buscando aumentar a distância entre eles. — Não gostaria de ser a causa de brigas entre você e Isolda. Em breve, partirei de Wrexton e Isolda...

Antes que pudesse concluir seu pensamento, Marcus segurou seu ombro com delicadeza, fazendo-a caminhar para trás até parede fria do cômodo.

Sem afastar-se dela, Marcus ergueu a mão livre contra a parede de pedras, aproximando sua face do rosto corado de Keelin e os corpos ansiosos por maior intimidade. An­tes de beijá-la, porém, hesitou alguns segundos, enchen­do-se de coragem para realizar o que mais desejou du­rante o longo dia de caçada na floresta. Beijá-la ardente­mente, sem que ninguém pudesse interrompê-los.

Keelin gemeu baixinho, enchendo-o de ímpetos incontroláveis. Ele queria mais e podia sentir que ela também o desejava, o que só aumentava ainda mais sua ânsia louca. Com ternura, sugou-lhe os lábios doces e delicados diversas vezes, antes de invadir a boca entreaberta com a língua sedenta, movimentando-a com rapidez, procu­rando saciar seus mais libidinosos desejos. Seu peito mus­culoso roçava os seios graciosos de Keelin e suas mãos ágeis percorriam as curvas femininas do corpo escultural sem cessar, aproximando-os cada vez mais. Ela corres­pondia aos seus carinhos, beijando-o, acariciando-o e, apa­rentemente, também desfrutando da maravilhosa sensa­ção que os envolvia com gigantesca força.

Marcus, ao longo de sua vida, jamais experimentara nada parecido e, instintivamente, tinha certeza de que jamais voltaria a viver algo semelhante com outra mulher que não fosse Keelin.

Abruptamente e sem nenhum alarde, Keelin afastou-se dele, empurrando com um leve toque nos ombros, girando o rosto em direção contrária.

— Não, Marcus, por favor... — sussurrou ela, tentando se recompor. — O que sinto quando estou ao seu lado não deve ser tão importante assim. Temos que cumprir com nossas obrigações e... — Uma pequena lágrima, brilhante como um raro cristal, brotou no canto externo de seus olhos e por mais que tentasse contê-la, seria uma tarefa impossível. Então, com passos rápidos e determinados, caminhou para fora do quarto, encaminhando-se para os seus aposentos, permitindo que as lágrimas escorressem livremente por seu rosto ainda corado pelo beijo ardente.

Marcus ficou sozinho e imóvel no corredor, após assistir Keelin escapar de seus braços e esconder-se por detrás das pesadas portas de madeira do quarto de dormir. Nun­ca tivera a intenção de magoá-la, somente demonstrar as profundezas de seu sentimento, mas parecia não ter sido muito eficiente.

Ela seria dele, pensou determinado e cheio de esperan­ças. Precisava apenas convencê-la a entregar-se àquele amor de corpo e alma. Se existisse uma mulher feita es­pecialmente para ele, aquela mulher era Keelin O'Shea. Todavia, seus planos os distanciavam. Ela partiria de Wrexton tão logo Adam estivesse recuperado e fora de perigo.

Marcus correu os dedos por sobre os lábios sentindo o coração descompassar com a desventura de perder Keelin para sempre. Perdera seu pai dias antes e, para sua sur­presa, apaixonara-se e pensava em casar-se com a mulher de seus sonhos em um momento tão complicado e triste de sua vida. O corpo de seu falecido pai mal havia encon­trado o repouso na eternidade e seu filho não conseguia afastar de seus pensamentos uma jovem que ganhara seu coração desde o primeiro instante em que seus olhos se cruzaram naquele humilde chalé no meio da floresta. Eldred jamais iria se ressentir com o filho, Marcus sabia disso. Seu genitor era a pessoa que mais o incentivava a procurar um amor e anunciar suas bodas, o quanto antes.

Deveria existir uma jovem em todo o reino capaz de derreter o gelo que tomara conta de seu coração, costu­mava dizer Eldred de Grant, tentando atiçar o desejo de seu filho em flertar com as damas fúteis e cheias de ca­pricho da Corte. Infelizmente, no momento que encontra­ra o verdadeiro amor de sua vida, seu pai não estava mais entre eles.

Como impedir a partida de Keelin? Como convencê-la a ficar em Wrexton e tornar-se não somente a rainha, mas também a herdeira de seu coração?

 

Keelin afastou as lágrimas com o dorso das mãos e parou diante de um enorme espe­lho que refletia sua imagem sem nenhuma generosidade. Vestia o mesmo modesto vestido marrom que escolhera naquela manhã antes de sair para a caçada. Apesar de não ser luxuosa, a roupa ainda estava em perfeito estado, pensou ela amargurada com as acusações maldosas de Isolda. O tecido resistente fora bem cortado e cuidadosamente alinhavado, o que lhe conferia um caimento exce­lente e não havia manchas ou sujeiras aparentes.

Era bem verdade que o modelo já estava ultrapassado, mas em nenhum momento Keelin cogitou a idéia de despontar na sala de jantar com traje tão pouco adequado. Todavia, para caçar não lhe parecera ser necessário nada além de uma vestimenta confortável e muito discreta. Se­ria ridículo aparecer diante dos homens envolvidos com os cães e carroças trajando seu melhor traje, imaginou convencida que agira da melhor maneira.

Ela assoou o nariz num pequeno lenço bordado que trazia em seu bolso, lutando contra uma nova onda de lágrimas que teimavam em escorrer-lhe pela face rubra. O velho e feio vestido era a última de suas preocupações naquele momento.

Os crescentes sentimentos em relação a Marcus eram aparentemente incontroláveis e tudo o que lhe causariam seria dor e ressentimento.

Seu retorno a Kerry era certo. Não havia outra escolha que não partir. O clã precisava de sua ajuda, nunca tanto como agora, com a morte de Comarc.

E havia um homem na Irlanda aguardando-a para des­posá-la, como sonhara seu pai Com certeza um homem fino, poderoso, provavelmente o líder de algum clã vizi­nho. Ele seria seu futuro esposo e deveria estar ansioso pelo seu retorno. Seu povo iria precisar contar com todas as alianças possíveis naquele momento delicado em que precisavam vencer a crueldade de Mageean e derrotar seus planos de dominar Ui Sheaghda.

De nada adiantaria manter seu coração profundamen­te atrelado em Wrexton. Deveria evitar Marcus a qual­quer custo e convencê-lo de nunca sentira nada além de gratidão por ele. E teria que enganá-lo dizendo que seus beijos e seus carinhos somente lhe causavam repúdio e horror. Teria de desencorajá-lo, mesmo que para isso pre­cisasse destruir seu coração.

O fogo já estava quase que completamente apagado quando Keelin abasteceu-o com mais turfa. Não tinha dú­vidas que Isolda mandara os empregados afastarem-se de seu dormitório, impedindo-lhe de desfrutar qualquer tipo de conforto.

Depois de todas as tentativas de Isolda para envergo­nhá-la, e precisava admitir que ela era muito boa no que fazia, finalmente entendera o que sua presença significava para a jovem mesquinha. A maldosa mulher tinha uma posição segura em Wrexton, já que lorde Eldred era viúvo e o mais óbvio seria que seu filho solteiro pedisse-a em casamento, selando ainda mais os laços familiares.

Keelin secou mais uma vez as lágrimas, imaginando que Isolda a deixaria em paz tão logo descobrisse que sua posição não estava ameaçada.

 

— Não me diga, meu bom rapaz! — Tiarnan replicou quando Marcus expôs-lhe as façanhas de Keelin durante a caçada. O velho senhor mantinha o tom de voz muito baixo, temendo acordar Adam, mas não conseguia conter a alegria de descobrir as incríveis aventuras que os jovens viveram naquela manhã. — Ela realmente aprendeu a manejar um arco?

Marcus sorriu com a admiração do tio orgulhoso.

— Sim — respondeu ele. — E com mais algumas aulas, irá tornar-se uma excelente atiradora.

— É verdade... A menina tem boa altura — Tiarnan afirmou muito feliz.

Uma grande verdade, pensou Marcus calado, imaginan­do Keelin em pé ao seu lado, a fragrância marcante de sua pele, os cabelos negros e longos, a tez clara, os olhos amendoados, as mãos macias e infinitamente femininas, apesar de fortes e muito competentes, e todo o resto.

— Conte-me mais sobre os falcões — sugeriu Tiarnan. — Meu irmão jamais permitiu que Keelin se aproximasse deles, mas não pôde impedir que minha sobrinha se apai­xonasse pelos animais desde muito pequena. Sempre que escapava dos olhos vigilantes do pai, a pequena levada corria até o esconderijo dos falcões e, se ninguém a visse por lá, passava horas a fio com as aves.

— Ela se saiu muito bem com os falcões, Tiarnan — respondeu Marcus. — Como se conhecesse as aves há anos.

— Se meu irmão não tivesse sido tão tolo poderia ter descoberto Keelin e a preparado para sucedê-lo — comen­tou o velho senhor abatido, sem disfarçar sua amargura.

— Keelin e seu pai não eram próximos, quero dizer, apegados um ao outro? — questionou Marcus sem jeito, mas ansioso por descobrir algo mais sobre Keelin.

Tiarnan balançou sua cabeça e seus olhos sem vida voltaram-se para o chão.

— Nada é tão simples como imagina, meu jovem. Pre­cisava conhecer Eocaidh. Era um líder nato, devoto das tradições e cultivava sua autoridade entre os membros do clã desde a mocidade.

Agora, pelo menos, Marcus podia entender com quem Keelin se parecia. Mas ainda não conseguia compreender a indiferença que assolara aquela família.

— Para Eocaidh — prosseguiu Tiarnan —, o bem de seu povo era mais importante que tudo, até mesmo mais importante que a felicidade de sua única filha.

Tiarnan permaneceu em silêncio por longos segundos, amadurecendo seus pensamentos e calculando as pala­vras que usaria dali por diante. Porém, pela expressão amargurada do bom e velho homem, Marcus pôde ver a profundeza de seus ressentimentos com o irmão. E aquele mistério o intrigou ainda mais.

— Já o ouvi falar uma vez sobre o irmão de Keelin...

— Oh, sim, Brian — completou Tiarnan. — Todas as esperanças de Eocaidh caíram sobre a criança quando a mãe de Keelin dera à luz um menino. No terrível dia em que ele caiu... Naquele dia meu irmão perdeu tudo o que tinha no mundo e seus sonhos morreram junto com seu filho.

— Mas, e Keelin?

— Demorou um ano, talvez um pouco mais, para Eo­caidh lembrar-se novamente de sua filha, todavia jamais depositou nela confiança alguma. Não a acreditava capaz de liderar o clã e iniciou então a busca pelo marido ideal, o homem que o substituiria tão logo sua alma deixasse seu corpo para sempre.

Um longo intervalo decorreu antes de Marcus encher-se de coragem para ouvir a verdade do velho tio.

— E ele encontrou um pretendente para Keelin?

— Sim — replicou Tiarnan entristecido. — E a esta altura, esse homem deve estar esperando-a voltar para casa para celebrar o casamento entre eles.

A saúde de Tiarnan teve uma melhora significativa nos dias que decorreram desde sua chegada no castelo de Wrexton. O eficiente aquecimento dos cômodos assim como o fim das preocupações com a sobrevivência dele e de sua sobrinha não poderiam ter-lhe feito bem maior. A tosse ainda persistia, mas não mais com a mesma freqüência ou intensidade anterior e o chiado em seus pulmões pra­ticamente desaparecera.

Ele começava a acreditar que teria um pouco mais de tempo e, apesar de amaldiçoar a perda de visão, sentia-se obrigado a concentrar-se ainda mais nas pessoas, em seus tons de voz, no significado das pausas durante os diálogos, enfim, captar sinais que antes passavam despercebidos, o que lhe vinha causando muita admiração. Ressentia-se um pouco mais apenas na hora de vestir-se, o que certa­mente não fazia tão bem quanto antes.

Marcus, depois da conversa que tiveram, não perma­necera nenhum tempo além do necessário dentro do cômodo agradavelmente aquecido pelas chamas potentes da lareira. Verificou as condições de saúde de Adam e aban­donou o recinto em direção aos aposentos pessoais em busca de paz e silêncio para meditar sobre o que Tiarnan acabara de revelar-lhe.

Acompanhando os passos pesados de Marcus quando o mesmo deixara o leito do convalescente, Tiarnan con­firmou suas suspeitas. A notícia de um pretendente aguardando o retorno de Keelin na Irlanda perturbara Marcus e o velho adoentado sentiu seu peito encher-se de esperança novamente. Alguém mais desejava a felicidade de sua sobrinha e talvez aquela fosse a sua única chance de livrar Keelin das garras de um marido que a fizesse infeliz.

 

Nos dias que sucederam a chegada dos cavaleiros no humilde chalé escondido no meio da floresta, Tiarnan ob­servara Marcus com cuidado, acompanhando-lhe as palavras e gestos com atenção. A vida em Wrexton era mui­tíssimo confortável e ele começava a não ter dúvidas que Keelin poderia ser muito feliz ali. Mesmo sem possuir dons extraordinários, podia prever que nada além de de­silusões e dor esperavam por Keelin em Carrauntoohil. Se Fen McClancy ainda estivesse vivo, ela seria forçada a se casar com um velho inescrupuloso e gerar um her­deiro que ligaria os dois clãs para sempre. E o povo a transformaria em um oráculo vivo, obrigando-a a prever o futuro do clã diante de qualquer dificuldade, afastan­do-a de seus sonhos e de tudo que poderia realmente fazê-la feliz. Seria usada como um instrumento de guerra, um talismã barato para um grupo de homens liderados por uma mente doentia como a de McClancy. Jamais seus desejos seriam realizados e todos os seus sonhos sobre o futuro estariam perdidos.

Era lógico que sabia o quanto o clã precisava da lança mágica e como a salvação de todos dependia do retorno de Keelin para Kerry, mas ainda não estava tão certo que arriscar a felicidade de sua sobrinha seria o único cami­nho para alcançar a paz em Carrauntoohil.

Talvez outra pessoa fosse capaz de usar Ga Buidhe an Lamhaigh com tanta eficiência quanto Keelin.

Apesar de não acreditar que fosse capaz de dormir aque­la noite um minuto sequer, Tiarnan despertou um dos empregados que cochilavam junto ao leito de Adam e pe­diu-lhe para acompanhá-lo até os seus aposentos.

 

A manhã chegara trazendo uma leve nevasca, recobrin­do os campos com uma camada branca de gelo e embele­zando a paisagem que Keelin desfrutava da janela de seu quarto. Ela estava preocupada com o mau tempo. Uma viagem seria impossível enquanto houvesse sinais de ne­ve e frio intenso.

Um estranho e forte pressentimento a acompanhava desde muito cedo, muito mais potente que todos os an­teriores.

Um frio arrepio de medo escalava sua coluna a todo instante, retesando os músculos de suas costas e nuca. Era como se amedrontadores dedos gélidos arranhassem sua pele, trazendo a certeza de que o perigo aproximava-se, com velocidade. Mas o que queria dizer aqueles sinais assustadores? Talvez os homens de Mageean planejassem um ataque ao castelo de Wrexton, imaginou ela aflita. Não, eles não seriam tolos a ponto de desafiar homens muito bem-armados e protegidos atrás de fortes muralhas de pedra.

O que então poderia estar acontecendo para sentir-se tão aterrorizada?

Keelin sabia o que devia ser feito. Tocar Ga Buidhe an Lamhaigh seria a única forma de decifrar seus misterio­sos pressentimentos. Porém, após a visão, ficaria enfra­quecida e sem condições de ajudar Adam no que fosse preciso. Todavia, não poderia permitir que uma nova tra­gédia se abatesse sobre eles.

Caminhou de volta para a cama e ergueu o colchão, apavorada com o que o destino lhe reservava naquele dia. O contato com o talismã sagrado a aterrorizava. Sua força e seu poder a dominavam tão logo suas mãos tocavam o metal frio e cortante. Ela hesitou por um momento, olhan­do fixamente para o artefato embrulhado em grossas tiras de couro. Tinha certeza de onde o objeto fora escondido, no buraco vazio e oco, debaixo de seu colchão.

Leves batidas na porta a fizeram recuar e abaixar o colchão novamente sobre o leito.

— Com a sua licença, milady — disse uma jovem criada antes de adentrar o recinto. — Sei que jamais deveria vir importuná-la a esta hora. Perdoe-me por incomodá-la, lady Keelin. — A garota voltou os olhos para trás, verifi­cando que não havia mais ninguém junto a elas. Suas mãos tremiam e era evidente que algo a perturbava em demasia.

— Não me incomoda, Liza — disse Keelin gentilmente. — Mas o que a traz aqui?

— O bebê de minha irmã — a criada começou a falar com dificuldade. — A maldita febre o atacou há dias e seu estado está cada vez pior. Estamos com medo que...

— Quer que eu veja o bebe, Liza?

— Oh, por favor! — replicou a garota, agradecida. — Poderia a senhora fazer tamanha caridade?

— Eu irei ver a criança — disse Keelin, abandonando a idéia de tocar a lança e prever a catástrofe que, sabia, eminente. — Onde ela está?

— Escondida na despensa, junto com a mãe — disse a jovem aflita. — Se a senhora puder me acompanhar...

A despensa do castelo era um lugar pequeno e com pouco ar, mas cuidadosamente organizado e limpo, bem ao lado da cozinha. O calor das fornalhas aquecia o cômodo e, apesar da pouca luz, podia-se ver as prateleiras espalhadas pelas paredes de pedras, do teto até o chão. Alimentos dos mais diversos gêneros, óleos, temperos, er­vas, sacos de farinha de trigo, milho e cevada dividiam o espaço com potes, jarros e caldeirões.

Keelin pode ouvir o choramingo sofrido do bebê assim que adentrou o local.

— Graças a Deus! Milady está aqui — agradeceu a mãe atordoada com o agravamento da doença do filho. — Temo pelo destino de meu filho, senhora. Oh, meu pobre garotinho...

A jovem mulher chorava abraçada à criança e não con­seguiu conter o pranto quando Keelin aproximou-se deles.

— Respira com dificuldade? — perguntou Keelin to­cando as costas do bebê com a palma da mão.

— Sim. Nos últimos dias sofria com a tosse e a febre. Mas, esta noite, o ar pareceu faltar-lhe e a febre aumen­tou muito. Nem abrir os olhos meu filho consegue mais, senhora.

Lágrimas de dor rolavam pela face da mãe angustiada e Keelin não podia negar que o estado de saúde da criança era bastante grave. A aparente inconsciência do garoto não era um bom sinal e o chiado alto que provinha de seu peito indicava que havia pouco tempo para tomar qual­quer atitude.

Mesmo sem ter certeza que poderia ajudá-lo, Keelin achou sensato usar todos os seus conhecimentos para ten­tar salvá-lo.

— Importa-se de entregá-lo alguns minutos para que eu possa examiná-lo? — questionou Keelin, acariciando os finos cabelos loiros da criança ainda no colo da mãe. — Por favor...

 

Com a morte de Eldred de Grant, todas as responsabilidades caíram imediatamente sobre Marcus. Ele tinha vivido em Wrexton durante os últimos cinco anos, apren­dendo, junto com o pai, a cumprir todas as tarefas que cabiam ao herdeiro do trono e o que se deve cobrar de seus empregados.

Marcus sabia que, em breve, deveria começar a visitar outras aldeias que permaneciam sobre o domínio do con­dado, mas os últimos acontecimentos em Wrexton o im­pediriam de sair do castelo nos próximos dias.

Questões inadiáveis o mantiveram ocupado durante to­da a manhã, levando-o a sair de casa juntamente com o primeiro sinal de claridade do dia e retornar somente pró­ximo a hora do almoço, para encontrar com o Oficial de Diligências que o aguardava em seu gabinete. A neve pa­rara de cair àquela altura do dia e um sol tímido amea­çava despontar por entre as nuvens pesadas de inverno. A vista de sua sala era esplêndida, pensou Marcus, observando os raios de sol reluzindo nos flocos de neve muito alvos que ainda cobriam a vegetação. Lembrou-se de Isolda e imaginou-a junto aos empregados na cozinha, afligindo-os com suas reclamações infinitas e com o seu mau humor característico. Aproximava-se o momento de mandá-la para longe de Wrexton e, por mais difícil que lhe parecesse, deveria fazê-lo pessoalmente.

Estava determinado a travar com Isolda a conversa definitiva e por isso caminhou até a cozinha com passos firmes. Precisava evitar que novos e desagradáveis inci­dentes, sejam eles com os empregados ou com Keelin. No período em que Isolda permanecesse no castelo até a sua partida, não permitiria que ela incomodasse ninguém com seus insultos e hostilidade gratuita. Resolveria tudo diretamente com a jovem maldosa, assim como seu pai faria se estivesse vivo e como deveria ter feito logo na primeira conversa que tiveram.

Aprendera diversas lições naqueles dias. Tudo e todos pareciam querer testar os seus limites. Os problemas na vila, as cobranças do Oficial de Diligências, Isolda, tudo parecia lembrá-lo de como era tranqüila e razoável sua vida antes da morte de Eldred.

Marcus atravessou a porta da cozinha e encontrou uma grande movimentação de empregados que mantinham a ordem e cumpriam cada qual com a sua tarefa, preparando pratos dos mais variados, mesclando temperos com verduras, legumes e carnes, remexendo enormes caldei­rões repletos de molhos e caldos que emanavam um cheiro forte, mas ao mesmo tempo agradável. Vários serventes pararam, imóveis, surpresos com a presença de Marcus.

O chefe da cozinha girou os olhos em direção a porta e tentou conter um sussurro abafado de aflição.

Algo de estranho acontecia ali, Marcus podia perceber. Com expressões aterrorizadas, os empregados voltaram a circular, simulando uma falsa tranqüilidade, procurando despistá-lo.

— O que estão me escondendo? — perguntou Marcus para o cozinheiro-chefe imaginando qual travessura Isolda poderia ter praticado para deixá-los tão aflitos como pareciam naquela manhã.

— O bebê de Annie, senhor — replicou o homem. — Ele está muito doente e...

— Annie? — indagou Marcus. — A esposa de John? — Ele relembrou a ocasião do casamento da jovem serviçal com um dos lacaios de seu pai um ano antes. Eldred apro­veitou-se da oportunidade, usando de suas boas maneiras e modos gentis para lembrá-lo de sua condição de solteiro e de seu total desinteresse pelas mulheres da corte.

Annie afastou-se dos afazeres domésticos meses depois, quando sua barriga proeminente não pôde mais ser es­condida e Eldred a proibiu de prosseguir com suas habi­tuais tarefas de limpeza e arrumação.

Marcus recordou-se da pequena lembrança que seu pai enviou a família tão logo fora comunicado o nascimento do bebe. Aquela gentileza significava muito para os aldeões e Marcus admirara seu pai ainda mais depois desse dia.

— Ela mesma, milorde — afirmou o cozinheiro. — Lady Keelin veio ajudá-la, usando sua sabedoria para tentar salvar a vida da pequena criança.

A presença de Keelin ali na cozinha não causou surpresa em Marcus. Já havia percebido o grande carinho com que os empregados a tratavam e sua recíproca simpatia com eles.

Os serventes a respeitavam não porque a temessem, mas por sentirem natural carinho pela figura doce e amá­vel de Keelin. Bem ao contrário de Isolda, que só incitou revolta e mágoas entre todos os empregados do castelo.

— Onde estão eles?

O homem, mais aliviado, fez um gesto com a cabeça, sinalizando o fundo do enorme cômodo.

— Na despensa, milorde — completou.

Quando Marcus alcançou a soleira da porta que ligava a cozinha com a despensa, viu Keelin agachada ao chão, de costas para a entrada. Seus longos cabelos escuros estavam trançados e as pontas, atadas com uma delicada fita colorida que roçava seus quadris graciosamente. A grande trança feita com os fios deslizava pelas costas de Keelin, atravessando a linha de sua cintura. Ela usava o mesmo vestido verde-musgo que usava no primeiro dia em que Marcus a viu. O tecido delineava seu corpo com delicadeza, insinuando os contornos precisos de seu corpo escultural. Da nuca até os quadris, uma fileira de peque­nos botões descia-lhe pela coluna, até onde o vestido abria-se em uma longa e rodada saia.

De onde estava, Marcus não podia ver o que Keelin estava fazendo, mas um excêntrico odor de ervas encheu-lhe os pulmões e a fumaça dos incensários dispostos nos quatro cantos da sala espalhava-se por todos os lados.

— Segure-o agora, Annie — pediu Keelin com doçura. — E aproxime-o o máximo possível da panela com água quente. O vapor e as ervas lhe farão bem e descongestionarão seus pulmões — Terminada a orientação, virou-se e deu de cara com Marcus encostado junto ao batente da porta, admirando-a. Keelin, sem graça, sentiu as maçãs do rosto corando imediatamente.

A reação de Keelin encheu o coração de Marcus de es­perança. Sim, ela também o desejava, pensou alegre e confiante. Por um instante imaginou que o mundo se resumisse somente no forte sentimento que os unia. Quis abraçá-la, correr seus dedos pelo rosto delicado e, com as mãos, percorrer o caminho traçado pelos botões do vesti­do, apertando-a contra o seu corpo, segurando-lhe firme pela cintura e aspirar a essência doce dos longos cabelos negros até sentir-se completamente embriagado. Ela cor­responderia aos seus carinhos, beijando-o com ternura, demonstrando-lhe toda a sua ânsia em entregar-se àquele louco sentimento.

Por uma vez, nos jardins do castelo, já haviam ido mui­to longe, mas o lugar, pouco oportuno, não permitira que o gemido rouco preso na garganta de Keelin escapasse de seus lábios tão desejosos de amor quanto os dele, mesmo que não fossem inconvenientemente interrompidos pela bisbilhoteira Beatrice. Porém, talvez, houvessem procu­rado por um lugar mais seguro e reservado, onde pudes­sem explorar cada carícia, cada toque, e cada parte de seus corpos.

Quando despertou de seu devaneio, Marcus encarou os olhos verdes de Keelin. Ela parecia confusa e pequenos gestos, como o balançar frenético das mãos, delatavam sua inquietação interior. Era evidente que estava abalada com a situação da pobre criança, aflita como se o pequeno bebê fosse seu. Quando vira Adam ferido pela flecha, agi­ra da mesma forma maternal e atenciosa que revelava agora junto ao bebê de Annie, dedicando-se com afinco para tentar salvar a vida que escorria por entre os dedos de seus enfermos pacientes.

Hesitante, Keelin caminhou até Marcus e dirigiu-lhe um fio de voz rouca e cansada.

— Importar-se-ia se pedisse a um de seus empregados para buscar minha sacola de ervas no quarto de Adam? — perguntou, cobrindo os lábios com as mãos para que não pudesse ser ouvida por Annie. — O que trouxe comigo não será o bastante para ajudar a criança enferma, se é que conseguirei ajudá-la realmente.

Marcus não se sentia mais tão incomodado com a idéia de ter uma conversa final com Isolda. Os deveres que herdara de seu pai começava a pesar-lhe menos com o passar do tempo. Era bem verdade que ainda não passara por importantes testes como a conferência com o Conselho Regente em Londres ou um ataque inimigo, mas percebia-se muito mais confiante com o novo título. Podia as­segurar que sua competência aumentaria com o desenro­lar dos fatos e dos dias.

Deixou Keelin junto aos empregados na cozinha e atra­vessou o grande salão principal, admirado por ainda não ter encontrado Isolda. Chamou por uma de suas criadas, solicitando à moça que encontrasse sua patroa e a avi­sasse que ele a aguardava na sala de meditação.

Marcus caminhou, então, em direção a capela, onde subiu os pequenos e estreitos degraus da grande escada­ria que levavam à sala de meditação bem acima das fortes muralhas de pedra. A decoração sóbria e requintada era intimidadora e, apesar de minúscula, a sala oferecia uma deslumbrante vista das terras que circundavam o castelo. Ali, no passado, gerações de herdeiros do trono de Wrexton sozinhos ou acompanhados por seus conselheiros, refletiram sobre o futuro de seu povo e tomaram importan­tes decisões, por isso o pequeno cômodo ficou conhecido como um recanto para meditações.

A mobília resumia-se em uma vistosa escrivaninha de mogno que descansava ao lado da lareira, acompanhada por convidativas poltronas e uma grande mesa de reuniões. Os inúmeros vitrais abasteciam o ambiente com luz natural, sendo desnecessário preocupar-se com a iluminação durante o dia. Todavia, diversas lâmpadas a óleo recobriam os beirais da sala, denunciando que antigos moradores usavam-na também para leituras e estudos noturnos.

Alguns poucos livros trazidos por Eldred quando da mudança para Wrexton, juntavam-se a outros exemplares guardados em baús cuidadosamente lacrados por pesados cadeados. Existiam ali verdadeiras raridades, exemplares originais, misturados com volumes recentes, ilustrados com gravuras coloridas e protegidos por ornamentais ca­pas de couro. Marcus orgulhava-se de haver lido todos os títulos que a valiosa biblioteca de seu lar guardava.

Enquanto aguardava a chegada de Isolda, cuidadosa­mente folheava um grande volume que fora esquecido so­bre a escrivaninha. O tomo religioso era um dos últimos trabalhos adquiridos por seu pai e, pela sua localização, deveria ser o livro que Eldred, sem imaginar o que o des­tino lhe reservava, planejava começar a estudar em breve. Uma caricatura vil e infame, porém belamente ilustra­da de Satanás despertou sua atenção de imediato. Retratado em pose obscena, com um sorriso sardônico estam­pado no rosto demoníaco, a infernal criatura surgia de uma cova, com os olhos repletos de ódio e ironia para assistir a uma bruxa ser lançada nas labaredas de uma gigantesca fogueira.

Com um pouco característico desprezo pelo valor da obra, Marcus fechou o livro num impulso de raiva. Não lhe comovia a imagem de uma louca mulher de cabelos escuros sendo levada para o encontro das chamas purifi­cadoras da Inquisição. Nunca antes refletira sobre o des­tino de bruxas ou demônios. E aquilo não o divertira, pelo contrário. Caso encontrasse novo exemplar com semelhan­tes ilustrações, trancaria o volume no fundo de um baú, para nunca mais ser visto, por quem quer que seja.

Ainda perturbado pela imagem que tinha visto no livro, Marcus caminhou até a janela, procurando tranqüilizar-se com a bela paisagem do vale. Nuvens negras viajavam de um canto ao outro do céu escurecido e triste. Novas tempestades de neve aproximavam-se.

Onde estaria Isolda?, pensou impaciente.

Sabia exatamente o que diria para a jovem maliciosa, portanto não perderia mais tempo incrementando seu dis­curso. Desejava apenas ter uma honorável proposta de casamento na manga para mandá-la embora de Wrexton o quanto antes.

Casamento... Lembrou-se do que Tiarnan lhe dissera sobre o pretendente de Keelin que a aguardava em sua terra natal. Será que o tio doente sabia das intenções de Keelin em partir e deixá-lo no castelo, sob os cuidados de estranhos?

Não que o considerasse um estranho, de maneira al­guma. Haviam passado tantas horas juntos no humilde e apertado chalé onde os encontrara que surgira uma conveniente familiaridade entre eles e podia considerar que criara uma verdadeira afeição pelo bondoso senhor. O que mais o assustava, porém, eram seus sentimentos por Keelin.

Teria sido tão tolo a ponto de descartar a possibilidade de ter sido enfeitiçado por ela? Aquilo parecia completamente possível, afinal, antes mesmo que chegassem na velha choupana, Keelin previra o acidente com Edward. Curara Adam milagrosamente, quando as chances do ga­roto sobreviver pareciam mínimas.

Que tipo de força a usava naquelas situações?

Marcus voltou a mesa e abriu o ofensivo livro nova­mente. Virou as páginas com afobação, até encontrar a ilustração que, momentos antes, o deixara em estado de choque. Leu, em silêncio, o texto em latim da página seguinte e acomodou-se na confortável poltrona que per­manecia ao lado da escrivaninha, preparando-se para avaliar tudo o que o volume relatava sobre as bruxas e seus hábitos.

Quando terminou a leitura estava aterrorizado com o conteúdo do livro. Só tinha uma certeza, Keelin não era uma bruxa.

Não conseguia imaginá-la matando uma criança ou sa­crificando um animal, não depois de acompanhar sua de­dicação para salvar a vida de Adam ou a preocupação afetuosa com o bebê de Annie. Keelin rezava com devoção, invocando a ajuda divina dos santos, jamais dando sinais de profanação, desrespeito com a Eucaristia ou ligação com qualquer proposta demoníaca.

Não recordava de ter visto alguma marca suspeita no corpo de Keelin, mas não perderia uma nova oportunida­de de conferir com os próprios olhos que as suspeitas era, realmente, infundadas.

— Lorde Marcus?

— Entre! — replicou o chamado.

Um dos serviçais caminhou até o centro da sala e co­municou Marcus que lady Isolda não fora encontrada em parte alguma da propriedade.

— A tempestade de neve aproxima-se, milorde, e o ba­rão Selby e seus familiares procuram por refúgio em nos­sos portões.

Marcus recordou o último encontro com o barão, alguns anos atrás e não se lembrava de ter surgido nenhum laço de amizade entre eles. Todavia, Wrexton era conhecida por sua hospitalidade e nada mudaria com a morte de seu pai.

— Ofereçam-lhes aposentos adequados e uma farta re­feição. E confiram se tudo corre ao agrado de nossos hós­pedes.

— Sim, milorde — concordou o empregado, já indo em direção à porta. — Ah, com sua permissão, milorde — o homem voltou a dirigir a palavra a Marcus. — Outros também pedem abrigo... cavaleiros, vendedores, deso­cupados...

— Veja se há espaço no alojamento dos serviçais para recebê-los e sirva algo para saciar a fome desses pobres homens.

Marcus ergueu-se da poltrona antes que o servente abandonasse o recinto. Não gostava da idéia de receber estranhos em Wrexton àquela altura. Não poderia abrir as portas do castelo sem antes descobrir a procedência dos visitantes inesperados. Iria pessoalmente conferir os hóspedes recém-chegados.

— Mande um dos garotos encontrar sir Robert — disse ao empregado —, e pedir-lhe que compareça ao salão prin­cipal, o quanto antes.

Preferia acreditar que nenhum dos visitantes causar-lhe-ia problemas, porém, achara conveniente avisar ao cavaleiro de sua decisão de alojá-los até o término da tem­pestade. Seus homens também se recolheriam e temia pelo momento em que, cheios de tédio e cerveja, resolves­sem arrumar confusões e brigas para distrair-se. E aler­taria Robert para que acompanhasse de perto a movimen­tação dos estranhos.

Não esquecera seu problema com Isolda, embora lhe parecesse óbvio que, a partir daquele instante, sua con­versa com ela seria adiada, para sua infelicidade. Mas haveria nova oportunidade, em breve, para colocá-la em seu devido lugar.

 

O mau tempo acentuou-se com o decorrer do dia. O vento feroz açoitava as paredes do alojamento dos empregados e as janelas das torres, entalhando jardins e canteiros com sua fúria cortante. Os frágeis galhos dos carvalhos centenários rangiam frene­ticamente e podiam ser ouvidos estalidos por toda parte, galhos quebrando-se com a ventania, que empurrava a sujeira pelo gramado congelado. A implacável chuva de gelo começou a cair, atingindo indiscriminadamente a to­dos que não haviam ainda conseguido proteger-se sob al­gum teto.

O rio que fluía pelas redondezas do castelo de Wrexton estava completamente congelado como, por mais de uma década, os moradores da região não o viam. Apesar dos sinais rigorosos do inverno, os moradores não pareciam surpreender-se com a implacável tormenta. Desde a co­lheita de outono, os presságios para a estação mais fria do ano não eram dos melhores.

No final da tarde, com temperatura mais amena, mais cavaleiros alcançaram os portões, procurando pelo refúgio das enormes muralhas de pedra de Wrexton. Marcus re­cebeu a todos, consciente que, se passassem mais tempo expostos ao mau tempo, corriam sério risco de vida.

Nenhum dos empregados reclamou do trabalho extra e Marcus suspeitou que isso se devia a preocupação de todos com o estado de saúde do bebê de Annie.

Keelin também se sentia satisfeita por ter algo para fazer durante a violenta nevasca, mesmo que sua atividade se limitasse a embalar a criança vez ou outra.

Encorajara Annie a descansar por algumas horas e pro­curar confortar marido, enquanto ela cuidava pessoal­mente do bebê. O jovem casal não tivera o merecido descanso nos últimos dias e ela suspeitava que, os dias se­guintes, até a completa recuperação da criança, não se­riam muito diferentes.

Enquanto isso, mantivera o bebê na única posição em que lhe era possível encher os pulmões de ar. O chiado angustiante de sua respiração diminuíra, graças ao vapor da mistura de água fervente com ervas especiais que Kee­lin a obrigara respirar durante toda a tarde. E, como ga­rantia, lambuzara o peito do bebê com manteiga fresca e repetia, três vezes seguidas sobre ele, o sinal da cruz. Agora, tudo o que tinha a fazer era esperar.

— Como está o menino? — questionou Marcus, sur­preendendo Keelin que não o ouvira adentrar a minúscula e abafada despensa.

— Um pouco melhor, acredito eu — replicou.

— Deve estar cansada, imagino — disse, aproximan­do-se do local onde ela estava.

— Sim — Keelin respondeu. — É fatigante cuidar de um bebê doente por horas a fio. Exaustivo, se é que me entende. Sempre acreditamos que não fizemos o bastante ou que poderíamos ter feito melhor...

— Não importa o que venha a acontecer, Keelin...

— Não continue, Marcus, por favor — interrompeu ela. Marcus ergueu a mão, tocando-a suavemente.

— Tenho certeza que fez tudo o que podia para salvar a criança — disse acariciando uma das maçãs coradas do rosto de Keelin. — Deixe-me segurar o bebê e poderá des­cansar um pouco.

— Gostaria mesmo de... — duvidou Keelin, surpresa com a oferta que recebia.

— É claro que sim — insistiu Marcus, levantando os braços e oferecendo seu colo para o pequeno bebê enfermo, — Confie em mim e entregue-me a criança.

As grandes mãos, inicialmente desajeitadas, logo ad­quiriram segurança para erguer o corpo frágil da criança e apoiar a pequenina cabeça sobre seu ombro musculoso, levando Keelin a imaginar Marcus um dia a ninar um filho seu, um belo e forte bebê de cabelos muito claros, assim como o filho de Annie.

Afastando os inoportunos pensamentos, Keelin voltou-se para a porta, ocupando-se com o grande caldeirão de água fervente de onde se erguia perfumada e terapêutica nuvem de vapor. Conteria a onda de emoções perturba­doras que a agitaram como forte rajada de vento ao ver Marcus embalando o bebê em seu colo tão gentilmente, determinada a não perder mais tempo com nada que não fosse seu retorno ao lar.

Durante aquele longo dia, evitara pensar em sua par­tida. E em Marcus. Preferira imaginar sua viagem de volta a Kerry e o encontro com o seu povo. Porém, vê-lo segurar o filho de Annie nos braços a encheu de confli­tantes pensamentos outra vez.

Suas obrigações com o clã nunca haviam sido tão ár­duas como pareciam agora, pensou Keelin tentando controlar a dor de seu coração dilacerado. Mesmo quando fora obrigada a abandonar o conforto de sua casa, nunca questionara tanto sua missão como naqueles dias em Wrexton. De alguma maneira, sua vida mudara. Pela primeira vez em sua vida seu coração afastava-se do clã Ui Sheaghda e ela não gostava de pensar em para onde ele a estava levando.

— Keelin?

Ela passou os dedos pelos olhos, afastando as lágrimas que começavam a formar-se e virou-se para Marcus.

— Estou somente...

— Algo de estranho está acontecendo e quero saber o que é — falou Marcus encarando com firmeza. — O que a perturba tanto?

— Nada — mentiu Keelin, erguendo uma bacia cheia de água. — Abriria a porta para mim?

— Somente depois que me disser o que a entristece dessa forma — insistiu ele.

— O bebê... Estou aflita com o seu estado, só isso.

— Largue essas coisas, Keelin. Não há pressa em ar­rumá-las — disse ele. — Descanse, pois não poderei aju­dá-la por muito tempo. A tempestade trouxe dezenas de homens e vagabundos desprotegidos ao relento para nos­sas portas e preocupa-me a confusão que podem armar em nossas dependências.

Keelin engoliu o nó que se formou em sua garganta enquanto devolvia a panela para a pequena lareira im­provisada na despensa de alimentos. Inúmeras nuvens carregadas de imagens flutuavam em sua mente e ela desejou afastá-los antes que a dominassem por completo e causasse-lhe ainda mais sofrimento. Não queria ante­cipar o futuro, jamais desejou o estranho poder de prever acontecimentos. O "grande presente" somente servia para aterrorizá-la, assombrá-la e jogar sobre ela o título de repositório dos sonhos e esperanças de seu povo.

Aquilo era mais do que podia suportar.

E os seus sonhos e esperanças, os secretos desejos que sempre nutrira em relação ao futuro, onde ficariam? Não significavam nada? Deveria continuar negando sua cres­cente ternura e admiração por Marcus e de todo amor e segurança que ele lhe proveria?

— Tenho muito o que fazer antes de descansar — re­plicou Keelin. — Devo subir até o quarto de Adam para tranqüilizar-me totalmente.

 

Na hora em que Isolda fez sua primeira aparição do dia no hall principal, os visitantes já haviam se alimentado e recolhiam-se para o repouso necessário durante a noite. A família Selby, o barão Albin, sua esposa e dois filhos, retirara-se tão logo terminara o jantar, indo em direção a ala sul do castelo, onde ficavam seus aposentos temporários.

Marcus encaminhou-se até o quarto de Adam, na es­perança de reencontrar Keelin mais uma vez.

Considerou a hipótese de chamar por Isolda e ter com ela, ainda naquela noite, a conversa que adiara durante todo o dia. Porém, decidiu esperar pela manhã seguinte, o que não tardaria muito a chegar.

Encontrou Tiarnan sentado ao lado do leito de Adam que dormia profundamente. Era claro para Marcus que o velho senhor tinha ficado por longo tempo distraindo o garoto com longas histórias sobre sua juventude, sobre os feitos mágicos dos heróis irlandeses, enfim, encantando o passado para fazer o tempo passar mais rápido para todos. Keelin não estava mais no aposento.

— O rapaz já está curado — comentou Tiarnan, falando com a voz bem baixa. — Mas deve levar alguns dias mais para que sente e ande por aí sem sentir nenhum desconforto.

Marcus podia perceber que o que o velho tio lhe dizia era a mais pura verdade. A coloração saudável de Adam animava-lhe sobremaneira. O quarto estava envolvido por uma leve fragrância que muito lhe lembrava Keelin, e seu coração encheu-se de paz e encantamento.

Sentou-se ao lado da cama e acariciou os cabelos do garoto adormecido.

— O menino atravessou péssimas experiências nos úl­timos tempos, mas com muita coragem — disse Tiarnan.

— Sim, tem razão — disse Marcus, lembrando-se do incidente que levou seu primo a ferir-se com tamanha gravidade. — Graças ao senhor e Keelin. Não sei como recompensá-los por tudo o que fizeram por Adam...

— Esqueça isso — replicou Tiarnan. — Era nossa obri­gação, como cristãos que somos, ajudá-lo. De qualquer forma, também fiquei muito agradecido com os últimos acontecimentos.

— O que quer dizer?

— Keelin está segura em Wrexton e isso me tranqüiliza — prosseguiu o velho senhor abatido. — Os mercenários Mageeans não podem fazer nenhum mal a minha sobri­nha enquanto ela estiver aqui.

Mais uma vez, o que Tiarnan dizia era verdade. O mau tempo os afastava da possibilidade de um ataque, pelo menos por algum tempo. Todavia, os homens de Marcus estavam preparados para enfrentar o inimigo e ele tinha plena confiança na vitória de seus cavaleiros sobre os san­guinários homens.

— Conhece os planos de Keelin de voltar para Kerry, Tiarnan — disse Marcus.

O velho senhor juntou seus lábios com força enquanto refletia sobre o assunto.

— Suspeitei que minha sobrinha tinha a pretensão de voltar para o seu povo depois da visão da morte de Comarc. Ela tem certeza de que o clã precisa de sua ajuda agora.

— Mas o inverno a manterá aqui por mais algum tempo.

— Sim — respondeu Tiarnan. — Mas somente por um tempo.

Aquilo era o que Marcus mais temia. Sabia que não conseguiria contê-la para sempre. Um forte sentimento de obrigação a ligava com o seu povo e nada a faria desistir de seu plano de partida.

Perdido em seus pensamentos, Marcus não percebera que Tiarnan também se aprofundava, em silêncio, com suas conclusões.

Ficaram sentados, próximos um ao outro, por longos e silenciosos minutos até que Tiarnan voltou a falar.

— Eu espero que nada de grave aconteça a Keelin quan­do ela tocar a lança pela próxima vez.

Marcus virou-se com um solavanco e encarou fixamen­te o velho tio.

— Por que está dizendo isso? — perguntou ele curioso.

— Quando Keelin tocar a lança, seus poderes se mul­tiplicarão e ela ficará mais fraca, assim como ocorreu na noite da visão sobre Comarc.

— O que mais poderia acontecer?

— É verdade, meu bom rapaz — replicou Tiarnan. O velho homem percebia o tom de voz aflito e incomodado de Marcus. — Tão logo encostar suas mãos na Ga Buidhe an Lamhaigh, Keelin enfraquecerá e seus sentidos desa­parecerão por algumas horas. Não gostaria que minha sobrinha passasse por tudo isso sozinha, é isso...

Marcus ergueu-se da cadeira onde estava e caminhou para fora do quarto antes que Tiarnan concluísse seus pensamentos. O velho cansado acomodou-se outra vez na mesma cadeira onde passara todo o dia sentado ao lado do leito de Adam e desejou ter feito o melhor por Keelin. Marcus saberia como protegê-la de todos os perigos, ele tinha certeza disso.

E de qualquer forma, o tempo estava passando, pensou Tiarnan. Nada além de sofrimento e dor esperava por Keelin no Kerry e não poderia perder mais tempo com dúvidas.

Os serviçais praticamente disputavam a responsabili­dade pela água quente do banho de Keelin.

Ela tinha trabalhado tão arduamente, de manhã até a noite, tentando salvar o bebê de Annie, que merecia al­gum descanso. Enfim, a criança parecia respirar melhor e agora regia aos estímulos externos com mais facilidade.

Metade dos empregados do castelo acreditavam que Keelin era abençoada com mágicos poderes de cura, assim como os pais do pequeno bebê, que não se cansavam de agradecer pela sua devoção.

Tudo o que Keelin mais desejava naquela noite era meramente tomar um banho e ir para cama o quanto antes. Os pensamentos que tinha pela manhã sobre tocar a lança e prever o mal que se anunciava, desaparecera por completo depois de um dia exaustivo. Sabia que de­veria estar forte e descansada quando se entregasse ao poder de Ga Buidhe an Lamhaigh, mas tudo o que sentia agora era um grande cansaço. Ainda que sua intuição avisasse-lhe incansavelmente que algo de ruim iria acon­tecer em breve, algo desastroso e arriscado.

A lareira estava acesa em seu aposento de dormir e o ar quente e agradável da sala de banho espalhava-se por todo o cômodo. Keelin despiu-se devagar e entrou na ba­nheira de água quente que a cobria até a cintura. Deu um longo suspiro e reclinou sua cabeça para trás, mer­gulhando o corpo inteiro na água convidativa preparada para o banho.

Fazia muito tempo que não desfrutava do luxo de dei­tar-se em uma banheira de água quente. Buscou a barra de sabonete perfumado e começou a esfregá-la levemente sobre o corpo molhado. Sentia como se o cansaço come­çasse a ceder, abandonando seu corpo tenso e deixando-lhe uma sensação de bem-estar e relaxamento profundo.

Quando ouviu o barulho da porta de seu quarto abrin­do-se, Keelin despertou da agradável sensação. Sentou-se rapidamente e tentou cobrir com as mãos seus seios desnudos, protegendo sua intimidade, se é que isso fosse pos­sível naquelas condições.

Marcus surgiu por detrás da porta da sala de banho e cravou os olhos primeiramente para a banheira cheia de água e logo depois para Keelin, aflita e com olhar assustado.

A porta fechou-se atrás dele, batendo contra a parede com força.

Keelin, de repente, retomou a consciência e atentou-se ao fato de estar nua na frente de Marcus. Ele não deveria ter entrado daquela forma em seus aposentos, pensou, procurando esconder-se dentro da água. Nenhum homem jamais a havia visto nua antes e ela sabia que aquilo era um tipo de intimidade reservada somente àquele que iria se tornar seu marido.

Sem jeito, Marcus deu um passo para trás, sem conse­guir afastar os olhos de Keelin.

— Marcus... — ela suspirou, incapaz de dizer algo que não sentia de fato.

Perdia totalmente o controle sobre si mesma quando ele a olhava daquela maneira e, naquela situação sentia-se ainda mais desprotegida. Keelin abaixou as mãos en­costando-as no fundo da banheira, pegando impulso para levantar-se e buscar uma toalha.

— Você é tão bonita — murmurou Marcus, ajudando-a a erguer-se.

Nada do que vivera até ali se comparava ao que vivia naquele instante, pensou Keelin envergonhada de seu cor­po exposto e dos olhos gulosos de Marcus sobre ela. Nada do que tinha aprendido até aquele momento servir-lhe-ia para defender-se da enorme onda de sentimentos que lhe invadia completamente. Sentiu a temperatura de seu cor­po subir, embora se ressentisse com o frio ao levantar-se da água quente. O sangue percorria suas veias numa velocidade surpreendente e ela sentia seu coração saltar forte no peito.

Sabia que num leve gesto de suas mãos, alcançaria a delicada toalha de linho branca disposta ao lado da ba­nheira, mas não conseguia fazer com que seus braços a obedecessem. Seu olhar encontrava-se com o de Marcus, alimentando-o com o ardor de seu desejo.

— Keelin... — sussurrou ele, levando suas mãos más­culas até os ombros descobertos de Keelin.

Quando a cabeça de Marcus curvou-se ligeiramente e os lábios dele tocaram os seus com suavidade, uma ava­lanche de novas sensações percorrera o corpo dela com rapidez. Estava envolvida pela delicada fragrância mas­culina que ele usava e nada parecia ter tanta importância quanto antes.

Keelin inclinou seu corpo na direção de Marcus e sentiu o toque áspero do tecido grosso da roupa que ele usava em sua pele nua.

Ainda assim, aquilo lhe parecia mais prodigioso que qualquer outra situação que vivera até ali.

Marcus soltou os cabelos de Keelin presos num coque por um gracioso pente de marfim, permitindo que as lon­gas madeixas caíssem livres pelas costas.

Delicadamente, escorregou as mãos pela cintura femi­nina, maravilhado com a textura macia da pele e a trêmula resposta do corpo de Keelin ao seu toque.

Como uma ligeira súplica, ela abriu seus lábios para receber a língua ávida de Marcus num beijo ardente.

Ele ouviu um som murmurante e admirou-se quando percebeu ser a própria voz. Sua mente estava distante e nada tinha tanto valor naquele instante que Keelin, bei­já-la, tocá-la e amá-la... Sentia-se forte, poderoso e essa sensação o fazia aproximar o corpo de Keelin ainda mais do seu. Queria abraçá-la, protegê-la, para sempre...

Ela começou a desatar lentamente o nó da túnica branca que Marcus usava e, de repente, ele a arrancou de uma única vez, passando-a pela cabeça, com pressa.

Marcus suspirou ao sentir os mamilos intumescidos ro­çarem seu peito musculoso.

— Você é um homem muito bonito, Marcus — murmu­rou ela, beijando-o no pescoço. — Quando o vi pela pri­meira vez no pequeno riacho próximo ao chalé onde meu tio e eu estávamos — prosseguiu, movimentando os lábios devagar —, eu descobri que jamais tinha visto alguém como você antes. Tão forte e musculoso, mas ao mesmo tempo delicado e gentil.

Marcus acreditou não ser capaz de ouvir mais nada quando sentiu a língua de Keelin sugando-lhe o mamilo, porém, as palavras doces dela continuaram.

— Desejei tocá-lo imediatamente, mas...

— Keelin, você não pode imaginar o que suas palavras fazem comigo. — A voz custava-lhe a sair da garganta, mas Marcus tentou expressar todo o seu sentimento. — Seu toque, seu corpo... tão macio, tão...

Beijaram-se novamente e Marcus moveu-se com lenti­dão, somente para abrir um espaço suficiente entre eles, para que pudesse levar suas mãos até os seios volumosos de Keelin, e acariciá-los com a ponta dos dedos, apertan­do-lhe os mamilos com delicadeza, até ouvi-la gemer em sensual deleite. Ele sentiu um leve tremor percorrer-lhe a espinha e imaginou estar no limite de seu controle.

Não fora exatamente aquela a sua intenção quando su­bira ao quarto de Keelin momentos antes. Passara-se tan­to tempo em seu solitário voto de celibato que, desde seu retorno da Guerra na França, jamais pensou em entre­gar-se ao primeiro capricho ou fantasia sem sentido. Era um homem honrado, um guerreiro fiel ao Código da Cavalaria. Desejava realmente tomar Keelin como sua es­posa e não somente conquistá-la como um troféu. A situação ideal não seria aquela, imaginou, afastando-se de­la com rapidez.

Marcus ergueu sua mão em direção a toalha e a agar­rou com força entre os dedos com medo de desistir de suas nobres intenções. Enrolou o delicado tecido em volta do corpo de Keelin com cuidado, evitando seu olhar de in­terrogação. Pequenas lamparinas a óleo iluminavam o cômodo, irradiando uma luz discreta sobre tudo ali presen­te. O silêncio dentro da graciosa sala de banho, assim como o vento do lado de fora do castelo, era cortante e implacável.

Quando Keelin mostrou-se parcialmente coberta, Mar­cus ofereceu-lhe a mão para ajudá-la a sair de dentro da banheira, e a conduziu até uma cadeira próxima ao fogo. A esperou acomodar-se totalmente antes de ajoelhar-se em sua frente e começar a falar.

— Keelin — disse ele, finalmente encarando seus gran­des olhos verdes assustados. — Você é para mim muito mais que qualquer outra mulher que eu já tenha conhe­cido. Jamais a desonraria somente pelo desejo de seduzi-la aqui em seu quarto, onde recolhe-se para descansar. — Marcus respirou brevemente antes de continuar: — Ao invés disso, pretendo pedir sua mão em casamento, e re­zar para que, um dia, torne-se minha esposa — finalizou, medindo a expressão do rosto de Keelin.

Ela parecia ainda mais assombrada, pensou aflito. Não poderia culpá-la por sentir-se confusa. Num minuto, a estava devorando como um homem faminto e, no minuto seguinte, depois de cobri-la dos pés à cabeça, pedia-lhe em casamento.

Uma pequena ruga formou-se entre as sobrancelhas de Keelin e a dor transpareceu em seus olhos amendoados. Ele desejou falar tudo o que tinha se passado por sua mente conflitante, desde o primeiro instante em que o vira, mas, no final, achou mais prudente calar-se. Ao invés de responder diretamente, acariciou-lhe o rosto com o dorso da mão ainda trêmulo, enviando-lhe sinais de seu desejo contido.

Tentando manter-se sob controle para cumprir com o que sua posição lhe exigia, Marcus forçou-se a conter seu verdadeiro impulso.

— Viveremos bem, Keelin — continuou Marcus. — Se concordar com meu pedido, irei falar com seu tio e...

Keelin deixou sua mão cair sobre o colo e deu uma meneou sua cabeça negativamente.

— Marcus, eu não posso — disse ela, inconsciente das lágrimas que começavam a brotar de seus olhos. A ponta de seu queixo tremeu levemente, mas estava decidida a não permitir que suas emoções falassem mais alto outra vez. — Sabe que preciso voltar ao Kerry em breve.

— Nós podemos...

— Tenho obrigações com meu povo — disse, secando as lágrimas que rolavam pela face enrubescida. — Não posso abandonar o clã agora, no momento em que mais precisam de Ga Buidhe an Lamhaigh.

— Não haveria outra pessoa capaz de guiar o clã, Kee­lin? — perguntou Marcus em busca de alternativas. — Nenhum outro caminho que não fosse pelo uso mágico da lança?

— Não para os O'Shea — suspirou ela tristemente.

— Irá mesmo sacrificar o que sentimos um pelo outro e o nosso futuro juntos por causa de seu povo?

— Não consegue ver, Marcus? — replicou Keelin, cho­rando alto e erguendo-se da cadeira com rapidez. — Não foi uma escolha minha. O clã Ui Sheaghda sempre acre­ditou que o lugar de Ga Buidhe an Lamhaigh era ao lado dos adivinhos. Foi assim com minha avó, com minha mãe e será assim comigo também.

Marcus permaneceu ajoelhado como estava, em silêncio e com a cabeça baixa. Sentia-se terrivelmente frustra­do, pois sabia que nada do que dissesse faria Keelin mu­dar de opinião, não por enquanto.

Todavia, idéias começavam a surgir em sua mente.

Recolheu a túnica branca caída no chão e voltou a ves­ti-la. Considerou a idéia de abraçar Keelin mais uma vez, antes de deixá-la sozinha em seus aposentos, porém, pre­feriu não fazê-lo. Na próxima vez que a tocasse, não mais conteria seus desejos, ele sabia disso. Mas, primeiro, teria que convencê-la a aceitar o seu pedido de casamento e então, fazê-la sua esposa, para sempre.

Perdido em seus mais profundos pensamentos, Marcus deixou o quarto sem despedir-se, temendo não conseguir partir se encarasse os meigos olhos de Keelin pela última vez. Bateu a porta atrás de si e caminhou pelo corredor até alcançar a entrada de seus aposentos, incapaz de ima­ginar que olhos intrometidos o acompanhavam pela es­curidão, escondidos na galeria mergulhada na escuridão da noite.

Somente de uma coisa Marcus tinha certeza. Não exis­tia nenhuma marca do demônio no belo e sedutor corpo de Keelin.

Assim que ouviu a porta bater em seu quarto, Keelin desistiu de manter a compostura e desmoronou sobre o chão duro e permitiu que as lágrimas rolassem livremente.

As emoções, tumultuadas e confusas, atormentavam seu coração ferido e assustado. Jamais poderia dar a Mar­cus o que ambos queriam, não enquanto o que mais de­sejasse fosse partir de volta a sua terra natal, ao encontro de seu povo para ajudá-los a enfrentar os inimigos cruéis. A lança mágica traria segurança e esperança novamente ao clã, sabia disso.

Ainda que soubesse qual era o seu verdadeiro dever, não tinha como não lamentar não poder aceitar a oferta de Marcus. Casar-se com o homem que amava e tornar-se uma esposa e mãe dedicada era tudo o que mais sonhara em toda a sua vida. Não via razões para continuar acre­ditando que o marido escolhido por seu pai poderia, algum dia fazê-la feliz como esperava ser. Eocaidh não parecia preocupar-se muito com gentilezas e seu critério deveria basear-se na força, na capacidade de liderança e no ódio que sentia por Ruairc Mageean. A perspectiva de seu ca­samento arranjado começava a tornar-se uma idéia desa­gradável, principalmente agora, depois de ser pedida em casamento por Marcus.

Imaginou como seria sua vida em Wrexton, ao lado de Marcus como sua esposa e companheira. Com certeza, ele cuidaria de seu bem-estar como ninguém jamais o fizera até então. Teria com quem dividir seus sonhos e fanta­sias, teriam seus filhos em paz e envelheceriam juntos.

Seria sua esposa e não um bem adquirido numa troca de interesses.

A linha de pensamentos que mantinha começou, de re­pente, a parecer-lhe infrutífera. Nunca seria uma dama de Wrexton e nem se casaria com Marcus. Secou seus olhos e levantou-se do chão, caminhando em seguida até a cama onde delicados lençóis de linho branco haviam sido cuidadosamente esticados por um competente empregado do castelo, para recebê-la naquela noite.

Arrastou o travesseiro de penas muito macias para de­baixo de sua cabeça, tentando afastar os maus presságios que, tinha certeza, não a abandonariam tão cedo.

Aquela fora a primeira de suas batalhas, pensou Keelin entristecida. Não conseguiria descansar seu corpo naque­la noite, não depois do doce sedução de Marcus e da ten­tação de entregar-se de uma vez por todas àquele amor impossível.

 

— Quem acha que se tornará o chefe do clã no lugar de Comarc, meu tio? — questionou Keelin, caminhando na frente da la­reira no quarto de Tiarnan. Era muito cedo, embora os empregados agitavam-se de um lado para o outro do cas­telo. O pior da tempestade passara durante a noite e os homens estavam agora limpando o alojamento e retirando parte da camada gelo que recobria os jardins.

— No momento, não posso lhe dizer, minha menina — replicou Tiarnan sentado em sua cama. — Mas acredito que a escolha ficará entre Eirc e Laoghaire, os melhores e mais fortes rapazes do clã.

— Mas tio, Eirc e Laoghaire são ainda crianças! O clã precisa de...

— Eram crianças quando deixamos o Kerry, Keelin — retrucou o velho homem. — Agora, já são homens.

Ela permaneceu em silêncio considerando as palavras do tio. Tiarnan tinha razão. Quatro anos eram um longo tempo. Uma eternidade, Keelin pensou, longe dos amigos e da família. E em quatro anos, era provável que os dois primos, conforme mencionou Tiarnan, tivessem transfor­mado-se em homens. Principalmente se continuassem a acontecer os ataques inesperados e a expectativa de uma grande guerra.

Tempos terríveis aqueles para os jovens, pensou ela com o coração apertado.

— E como imagina que o clã sobrevive sem Ga Buidhe an Lamhaigh, meu tio? — perguntou na intenção de es­pecular mais sobre o assunto.

— Mais ou menos como todos os outros clãs, que nunca contaram com a ajuda de um talismã mágico — respon­deu Tiarnan. — Devem estar tentando tomar decisões, baseados na razão e na natural intuição que todos nós temos.

Keelin arrastou um pedaço de madeira carbonizado den­tro da lareira com um aparador, inconsciente da expres­são de satisfação no rosto de Tiarnan.

— E quanto tempo mais acha que eles agüentariam sem a lança?

Tiarnan ergueu os ombros levemente.

— Quanto tempo for necessário, imagino eu.

— E quanto a mim? — perguntou ela caminhando de volta à cama para sentar-se ao lado do velho homem. — Quanto tempo ainda o clã suportaria ficar sem a sua vidente, meu tio?

— Minha adorável menina — disse Tiarnan. — Acon­tece algo que seu velho tio não saiba? Tem mostrado-se sempre tão ansiosa quando fala sobre seu retorno ao Kerry que...

—Não! — interrompeu Keelin abruptamente. — Quero dizer... Oh, meu tio, perdoe-me. Nem eu sei mais o que quero dizer...

— Keelin...

— Tudo antes parecia tão mais simples que agora...

— Antes? Antes de quê?

— Antes de conhecer Marcus — respondeu baixinho.

— Gosta dele, minha menina?

— Oh, sim — respondeu Keelin, afastando com as mãos estúpidas lágrimas que escorriam por seu rosto. — Eu gosto. Mas o meu destino não poderia estar mais claro para mim. Não posso ficar em Wrexton.

— E Marcus quer que fique?

— Ele me pediu em casamento, meu tio.

Tiarnan suspirou com a novidade. Durante quatro anos, ele tinha insistido para que Keelin retornasse para o Carrauntoohil com Ga Buidhe an Lamhaigh o quanto antes. Contudo, sua atual perspectiva mudara dramaticamente.

Nos quatro anos que passara viajando, tinha visto e experimentado tantas coisas que não se surpreenderia se seu povo aprendesse a viver sem o seu talismã mágico e sem a sua vidente também.

Mesmo agora, totalmente cego, podia perceber o quanto Keelin encaixava-se com a vida em Wrexton. Marcus preo­cupava-se com o seu bem-estar, algo que Fen McClancy jamais faria. E o velho e tirano McClancy nunca poderia oferecer o luxo e conforto que Keelin teria em Wrexton.

Tiarnan preferia não pensar no que aconteceria com Keelin caso Ruairc Mageean colocasse suas mãos sobre ela. Atrás das fortes muralhas de pedra de Wrexton, ela ficaria protegida para sempre, ao contrário das frágeis fronteiras de Kerry.

O que deveria dizer? Sabia que ela era a única mulher em todo o clã com poderes para prever o futuro. Deveria julgar a situação sobre outro ponto de vista que não fosse seu coração sentimental e desejoso por melhores dias para Keelin.

Além do que, por mais que almejasse a felicidade e o bem-estar dela, não desconhecia o forte comprometimento de Keelin com o futuro de seu povo. A prosperidade e bem-aventurança do clã Ui Sheaghda teria que vir sem­pre era primeiro lugar.

— Keelin — começou a falar finalmente —, Deus sabe como desejaria ter a resposta para todos os seus proble­mas, minha adorável menina, mas, eu não a tenho no momento. Quando tudo parecer confuso e sem solução, ouça a voz de seu coração.

— Isso é impossível, meu tio — choramingou Keelin. — Não posso confiar em meu coração.

O barulho de uma porta se abrindo e batendo contra a parede despertou a atenção de Keelin e de seu tio. Ela ergueu-se da cama, decidida a averiguar de onde provinha o estrondo. Poucos metros adiante no corredor, encontrou Annie com o bebê adoentado em seu colo. Os olhos da jovem serviçal estavam caídos e a criança gemia baixinho. Isolda estava ao seu lado, com as mãos apoiadas na cin­tura e os olhos cheios de ódio.

— Sempre imaginei que o alojamento dos empregados fosse lá embaixo — a mulher raivosa pronunciava as pa­lavras com um tom ríspido.

— Sim, milady, mas... — Annie tentava justificar sua presença em frente à porta dos quartos.

— Lady Isolda, por favor! — exclamou Keelin, vindo ao encontro de Annie. Ela tomou o bebê das mãos da em­pregada e voltou-se para encarar Isolda novamente. — Não vejo problema nenhuma em recebê-la em meus apo­sentos, além do mais...

— Não permitirei que essa criança pestilenta contami­ne nossos importantes convidados — resmungou Isolda, não conseguindo conter sua ira. — Esquece-se de que o barão e sua família descansam aqui perto?

— Oh, perdoe-me, milady — Annie desculpou-se hu­mildemente.

— Que serviçal mais insolente! Como ousa dirigir-se a mim...

— Prefiro ser contaminada por este inocente bebê do que modificar o protocolo original para aproximar-me do bispo — Keelin interrompeu, irritada com o comportamento de Isolda.

Ela abriu a boca, surpresa com o que acabara de ouvir. Ergueu o rosto, empinando o queixo desafiadoramente pa­ra disfarçar o grande abalo que sofrera sua confiança.

Seus olhos vagaram pelo corredor indiscriminadamen­te até avistar Marcus que apontava no final da galeria. Em pânico, recolheu-se em seus aposentos com rapidez, evitando assim um confronto direto. Sabia que Marcus a chamara no dia anterior e imaginava o teor da conversa que teriam.

— Procurava por mim, Annie? — questionou Keelin, voltando-se para a jovem mãe, sem ainda ter percebido a presença de Marcus entre elas.

— Sim, minha senhora — a mulher suspirou aliviada.

— Como passa o bebê esta manhã? — Keelin ergueu as sobrancelhas, aguardando notícias sobre o estado de saúde da criança. O pequeno bebê parecia agora mais tranqüilo e o choro cessara completamente. — Percebo que a febre cedeu e o chiado da respiração sumiu — comentou.

— Sim, milady, ele está muito melhor — disse Annie. — Mas, gostaria de pedir à senhora que nos ensinasse a combinação de ervas certas para que pudéssemos repeti-la hoje.

— É claro — disse Keelin entregando a criança para a mãe. Sentia-se levemente indisposta, e sabia por quê. O confronto com Isolda a irritara sobremaneira. Abriu a porta do seu quarto e voltou a falar com a serviçal. — Tenho bastante delas comigo. Será um prazer ensiná-la a utilizá-las bem.

— Oh, milady... — a mulher falou enquanto a seguia pelo cômodo. — Tem sido tão boa para nós! Se tiver algo que possamos...

— Não se preocupe — Keelin a interrompeu com fir­meza. — Tudo o que quero é que cuide de seu filho com carinho e atenção nos próximos dias. Vê-lo bem será a minha melhor recompensa.

 

Negócios relacionados às propriedades da família man­tiveram Marcus ocupado por grande parte do dia. Ele re­cebeu as atividades com grande alegria, pois assim conseguiria manter-se distante de Keelin e pensaria friamen­te sobre os próximos passos que tomaria.

Preferiu desconsiderar o mau comportamento de Isolda. O melhor que tinha a fazer naquele caso era falar logo com ela, e o quanto antes. Iria alertá-la sobre como deveria se comportar dali em diante com todos no castelo, principalmente com Keelin, já que ainda não poderia pre­ver quanto tempo seria preciso para arrumar-lhe um bom pretendente, planejar o casamento e mandá-la para bem longe de Wrexton. Não se importava mais com o assus­tador diálogo que travaria com Isolda. Cumpriria seu de­ver, como seu pai faria em seu lugar.

Ao contrário de chamar serviçais para encontrar a pri­ma, Marcus preferiu procurá-la pessoalmente. Subiu as escadas que o levaria ao solário, lugar onde a jovem cos­tumava passar grande parte de sua vida, Alcançou a pe­sada porta de madeira e, antes que pudesse abri-la, ouviu vozes e palavras que lhe chamaram a atenção. Eram vo­zes femininas, cheias de raiva e irritação. Sua mão hesi­tou em virar a maçaneta, mas preferiu encher-se de co­ragem e adentrar o recinto.

Um repentino silêncio fez-se no interior do solário.

Isolda estava sentada em uma confortável poltrona próxima ao fogo da lareira e apressou em secar algumas lágrimas que lhe escorriam pela face. Sua companheira, Beatrice, ergueu-se do chão e ficou parada ao lado de sua patroa, de costas para Marcus que, de onde estava, era incapaz de ver a expressão de seu rosto.

Isolda levantou-se de repente, jogando ao chão uma moldura para bordados e o grande vestido de noiva que estava parcialmente concluído.

— Marcus! Eu... Precisa de alguma coisa? — perguntou ela sem conseguir disfarçar o tremor na voz. Era claro que se esforçava para manter a costumeira postura aris­tocrática.

Marcus caminhou até onde a jovem mulher estava, ob­servando com cuidado o vestido que ela estava terminan­do de bordar. Não sabia o que Isolda e Beatrice falavam quando chegou à sala, nem sequer preocupou-se em ima­ginar o que não era de sua conta. Mas antes que a aia saísse do cômodo para deixá-los a sós, Marcus chamou-a para ouvir também o que tinha a dizer.

— Isso também diz respeito a você, Beatrice — ele dis­se. — Por favor, permaneça aqui e ouça-me com atenção.

A velha mulher curvou a cabeça e dobrou seus braços, enfiando-os por entre as mangas do vestido que usava.

Marcus ainda não conseguia ver seu rosto, embora isso não fizesse a menor importância para ele. Tudo o que mais a preocupava era fazer-se o mais claro possível para que as duas mulheres o entendessem completamente. A presença de Beatrice somente facilitaria as coisas para todos no futuro e não o faria mudar em nada o que pre­tendia comunicar a Isolda.

— Isolda, o tratamento que ofereceu a lady Keelin foi abominável — começou a falar. — Tem sido maldosa e desagradável. Não! — bradou Marcus ao perceber a intenção da mulher em interrompê-lo. — Não tente negar suas más atitudes. Eu tenho acompanhado todas as suas insignificantes mesquinharias, com meus próprios olhos — e também o confronto entre vocês hoje pela manhã, pen­sou em dizer, sem imaginar que Isolda pudesse tê-lo visto apontar no corredor antes de retirar-se estrategicamente,

Marcus sabia que talvez outros pequenos incidentes com Keelin poderiam ter sido ocasionados por Isolda, mas isso não fazia muita diferença naquele momento.

— Milorde, lady Isolda tem...

— Eu a ouvirei, Beatrice, em outro momento — inter­rompeu Marcus quando a aia inconformada tentou come­çar a falar. — Se não parar imediatamente de esforçar-se em desacreditar lady Keelin diante de todos, Isolda, serei obrigado a mandá-la para longe de Wrexton antes que seja possível encontrar um pretendente a sua altura.

— Mas Marcus...

— Não sinto nenhum prazer quando sou rude, Isolda — disse ele com firmeza. — Porém, não me deixou muitas escolhas. Eu não posso, ou melhor, não irei permitir que ofenda meus convidados, de maneira alguma.

— Eu suplico por seu perdão, Marcus — disse Isolda, mantendo os olhos abaixados e, a não ser pela palidez do rosto, a expressão calma e tranqüila. — Não tinha a in­tenção... isto é, eu...

— Por favor, não se preocupe com desculpas. É tarde para isso — falou Marcus demonstrando pouca paciência. — Somente quero avisá-la que não tolerarei qualquer ofensa, por menor que seja, contra lady Keelin e seu tio, e não mais quero vê-la tiranizar os empregados como tem feito desde a morte de meu pai — ele respirou profunda­mente antes de prosseguir. — Encontraremos um preten­dente adequado para você. Como havia lhe dito anterior­mente, providenciarei um generoso dote e uma grandiosa festa, se assim desejar. Portanto, não se preocupe com gastos. — As duas mulheres permaneciam em silêncio e com os olhos baixos durante o pronunciamento de Mar­cus. — Talvez demore algumas semanas para que tudo esteja resolvido, mas, enquanto isso, espero que se com­porte com mais classe e benevolência para com todos.

Antes de sair do solário, Marcus considerou todos os aspectos abordados e decidiu que nada mais havia para ser dito a Isolda e sua criada. Saiu tão exasperado que não teve tempo de observar a expressão insolente de Bea­trice, inflamada de ódio e com um forte desejo de vingança.

 

— Tem certeza de que não está muito frio para prosseguirmos com nos­sas aulas? — Marcus questionou Keelin enquanto cami­nhavam pelo jardim. Apesar de sua relutância, Keelin preferiu sair do castelo para praticar com o arco e flecha ao ar livre, no mesmo local onde os cavaleiros recebiam seu treinamento.

Muitas das trilhas que conduziam à floresta foram lim­pas naquele dia e, sem gelo ou neve em excesso, era pos­sível passear tranqüilamente pelos caminhos que levavam a uma área remota onde ninguém correria o risco de ferir-se com uma flecha perdida.

— Sim, Marcus — Keelin respondeu honestamente. — É bom sair um pouco do castelo para variar a paisagem.

Na verdade, os últimos dois dias de confinamento ti­nham entristecido Keelin, embora a companhia dos em­pregados lhe tivesse sido bastante agradável.

Entre os vários viajantes que se esconderam da tem­pestade nos alojamentos de Wrexton, estava um grupo de mímicos. Os artistas, acompanhados de alguns de seus familiares, rodavam pelas redondezas, parando de vila em vila, anunciando seu mais novo espetáculo da tempo­rada de Natal. Apesar de Wrexton estar em seu roteiro de viagem, a trupe não imaginava defrontar-se com a tempestade e preferiu, assim como os outros, a segurança do castelo durante a tormenta.

Desde o primeiro dia de estadia, o grupo se apresentara duas vezes para a pequena platéia de residentes e visi­tantes, o que proporcionara a todos alegria e diversão. Em nenhuma dessas vezes Marcus estivera presente.

Preferira manter distância de Keelin e, desde o último encontro nos aposentos dela, Marcus não mais se aproximara, embora suas emoções estivessem tão tumultuadas quanto antes.

Keelin sentia sua falta.

Apesar de tentar manter-se ocupada a maior parte do tempo, dando atenção a Adam, que ainda necessitava de pequenos cuidados e acompanhando a recuperação lenta, porém visível, do bebê de Annie, Keelin não conseguia deixar de pensar em Marcus e em seu pedido de casa­mento. Indiferente ao volume de trabalho a que se entre­gava, seus pensamentos sempre retornavam para os mo­mentos íntimos que viveram em seu quarto e para o de­sejo de lançar-se, mais uma vez, em seus braços, como fizera naquele dia.

— Vê o tecido vermelho amarrado no tronco do grande carvalho? — perguntou Marcus apontando para a árvore centenária.

— Sim — Keelin meneou a cabeça afirmativamente, fechando os olhos e procurando concentrar-se em sua tarefa.

— Aquele será o seu primeiro alvo — disse ele. — De­pois que se acostumar com ele, devemos procurar por no­vos desafios.

Keelin umedeceu seus lábios, nervosa. Jogou seus ca­belos displicentemente para trás, então, ergueu o arco e prendeu a lança como Marcus já havia ensinado-lhe antes.

— Não, Keelin — corrigiu ele, vindo em sua direção.

— Está muito tensa. Lembra-se como ensinei da última vez? Dobre seus joelhos e cotovelos — prosseguiu Marcus colocando as mãos sobre os ombros contraídos de Keelin, fazendo-a sentir um calafrio percorrer a espinha.

Ela precisava manter as atenções voltadas para a lição que recebia. Concentrar-se no arco, na flecha, no alvo, mas tudo no que conseguia pensar era em Marcus. Seu toque, seu gosto, a textura de sua pele...

— Assim está melhor — disse ele, embora Keelin não tivesse percebido nenhuma mudança em sua postura. Ao contrário, sentia-se mais tensa ainda. — Agora, acostume seus olhos a enxergar o alvo e erga o arco um pouco mais.

Marcus inclinou-se sobre o corpo de Keelin e apoiou a mão sobre o seu cotovelo, levantando o arco até mirar o alvo perfeitamente.

Ela sentiu o leve roçar da maçã de seu rosto com o queixo bem delineado de Marcus. Fechou os olhos e tentou aspirar o perfume masculino que o corpo colado ao seu exalava, apreciando a essência com prazer. Seu coração disparou e estava certa de que ele podia perceber os ba­timentos acelerados, tamanha era a proximidade entre eles.

Assim como ela, Marcus não estava completamente in­diferente ao contato entre eles, mas estava determinado a não se deixar envolver pelos encantos de Keelin, como acontecera dias atrás, quando quase perdera o controle. Todavia, controlar seus instintos e manter-se longe de Keelin era, na realidade, uma grande tortura.

Passar longos minutos conversando com o barão Selby, trocando anedotas e, embora as histórias fossem diverti­das, Marcus sabia que preferiria estar gastando seu tem­po livre em algum lugar onde pudesse ficar a sós com Keelin. Não conseguia pensar em nada mais que não fosse arrancar os pesados trajes que ela usava naquela manhã e beijar cada polegada de sua pele macia e perfumada.

Se concluíra que cada minuto longe de Keelin parecia-lhe uma tortura, não podia imaginar que cada minuto com ela seria ainda pior. Não sabia como sustentar sua decisão e manter-se convicto de seu plano quando estava tão próximo a ela como estavam agora.

— Lance a flecha — sussurrou Marcus, quase sem con­seguir controlar suas emoções.

A flecha atravessou o ar com rapidez, antes de encon­trar o alvo alguns segundos depois. Não exatamente no centro, mas bem próximo do local desejado.

Marcus continuou abraçado a Keelin, sem demonstrar nenhuma intenção de soltá-la de seus braços. A intensi­dade de seu desejo aumentava cada vez mais e parecia-lhe impossível conter seus impulsos.

— Não acertei o alvo — resmungou Keelin, voltando-se para Marcus. Seus lábios estavam muito próximos e ele podia sentir sua respiração curta e acelerada.

— Nada mau — ele disse abaixando-se para pegar ou­tra flecha na cesta e aproveitando a oportunidade para afastar-se também — para uma novata.

Keelin não respondeu ao seu comentário. Virou-se em direção ao alvo novamente e procurou concentrar-se mais uma vez no arco e na flecha. Pegou a flecha que estava nas mãos de Marcus e repetiu todo o processo mais uma vez. Mesmo sem haver real necessidade, ele abraçou-a como antes, só que desta vez a apertou com mais vontade contra o seu corpo. Começou a sussurrar as instruções em seu ouvido, trocando, sempre que possível, seu nome por um chamado carinhoso e íntimo.

Mais uma vez, Keelin errou o alvo.

Frustrada, curvou-se para pegar outra flecha, desta vez sem esperar a ajuda. Keelin tinha a expressão furiosa, o que afastou Marcus completamente. Ela posicionou-se e mirou o alvo, procurando concentrar-se mais que nunca.

Marcus sorriu e Keelin disparou a flecha. Quando a lança cravou o centro do tecido, Keelin soltou um grito de alegria.

— Ah! Eu consegui! — bradou ela, abraçando Marcus com entusiasmo.

— Sim, meu amor, você conseguiu — replicou ele, bei­jando levemente a ponta de seu nariz. Aquilo era o má­ximo que podia fazer, pensou ele procurando afastar-se dela de imediato. — Vamos tentar mais uma vez?

— É claro.

A neve começou a cair exatamente uma hora depois que Marcus e Keelin resolveram praticar tiro ao alvo nos jardins do castelo. A visão fora prejudicada pela chuva fina e decidiram então abandonar a prática naquele dia.

Nenhuma urgente resolução aguardava Marcus no cas­telo. Mantivera-se tão ocupado em afastar-se de Keelin nos últimos dias que todo o trabalho da próxima semana estava adiantado e garantido. Porém, passar mais tempo ao lado dela parecia-lhe árdua tarefa.

Keelin tinha um jeito próprio de atirar as flechas. Res­mungava algumas palavras irreconhecíveis e disparava, sem pestanejar. Marcus ria de seu método pouco comum, mas tinha sido prudente o bastante para não deixá-la perceber isso, principalmente agora que ela já dominava a técnica e ele poderia tornar-se um novo alvo a qualquer instante.

Marcus continuou sorrindo sozinho enquanto recolhia as flechas e as guardava no cesto. Seu plano de manter-se longe de Keelin estava funcionando, por pior que aquilo pudesse parecer para os dois. Sentia-se mais tranqüilo agora que a aula terminara.

Consciente de que vencera apenas uma das longas ba­talhas que teria pela frente, Marcus caminhou ao lado de Keelin de volta para os portões do palácio, abraçando seus ombros com delicadeza e apreciando a sensação de poder que aquele simples gesto lhe causava.

Um suave tremor percorria-lhe o corpo toda vez que a tocava, observou Marcus atento aos batimentos agitados de seu coração, pensando na alegria que lhe assaltaria a alma no dia em que pudesse entregar-se totalmente àque­la emoção.

— Importar-se-ia se eu pedisse aos empregados para buscar um pinheiro na floresta, Marcus? — perguntou Keelin parando ao lado de uma pequenina árvore reco­berta com minúsculos flocos de neve. — Sei o quanto sofre pela morte de seu pai, mas estamos na época do Natal e... Bem, gostaria de lembrar-me da data enfeitando ao menos um pequeno pinheiro.

— Havia me esquecido do Natal — replicou Marcus entristecido com a lembrança de seu pai. — Assim que chegar ao castelo, eu mesmo pedirei aos serviçais para buscar um grande e belo para enfeitar o salão principal.

Keelin sorriu com prazer.

— Temos um outro costume aqui na Inglaterra — disse Marcus. — Colhemos viscos e os penduramos sobre as portas.

— Oh, sim! — interrompeu Keelin com aparente entu­siasmo. — Em Kerry também os colhemos. É um poderoso amuleto para crianças.

— Como assim?

— Bem, nós penduramos os viscos sobre os berços dos bebês recém-nascidos, impedindo assim que os maus es­píritos venham no meio da noite e levem as crianças.

Marcus desconfiado ergueu a sobrancelhas.

— E também é comum que pessoas que estejam longe de casa, tarde da noite — prosseguiu Keelin. — Usem a planta como amuleto para proteger-se de... Oh, lorde Marcus, se fosse você não riria desta forma. Não tem idéia de quantas vidas já foram salvas graças aos viscos mági­cos. Muito viajantes escaparam de terríveis criaturas da noite usando o amuleto.

Marcus abafou o sorriso e balançou sua cabeça.

— Em Wrexton usamos outro tipo de magia.

Keelin, mantendo o ar cético, o encarou.

— Não estou mentindo — replicou Marcus. — Venha comigo.

Ele segurou a mão de Keelin enquanto caminhavam pela longa trilha no meio da mata coberta de neve até encontrarem uma pequena macieira. A árvore desfolhada estava quase irreconhecível naquela época do ano.

— Consegue ver algum visco aqui? — perguntou ele.

— Sim — respondeu Keelin olhando para os galhos da espécie que sempre lhe fora muito familiar. — Logo ali.

Marcus colocou o arco e o cesto de flechas no chão e então subiu em alguns galhos mais firmes, até alcançar e arrancar um ramo de visco.

— Já ouvi dizer que deliramos ao tomar o chá dessa planta — sugeriu Marcus, arrependendo-se logo em se­guida.

Keelin observou o ramo da planta e abaixou os olhos, envergonhada. Percebia que Marcus notara sua falta de jeito. Não gostava de falar sobre mágicas e muito menos sobre delírios. Imaginou que, talvez, estivesse sugerindo que ela fazia uso de chás mágicos antes de ter as visões, mas preferiu não se justificar. Não gostava de falar sobre Ga Buidhe an Lamhaigh e nem sobre seus poderes.

Com um toque suave, Marcus ergueu o queixo de Kee­lin com a ponta dos dedos, que, imediatamente reconhe­ceu o brilho do desejo em seus amendoados olhos azuis. Ela podia ouvir as batidas do próprio coração e um arrepio correu das costas até a raiz de sua alma. O tempo parecia ter parado para os dois no meio da mata.

Os seios de Keelin subiam e desciam, acompanhando a movimentação agitada da respiração que se resumia a um fio de ar que sumia na garganta. Ela fechou os olhos ao perceber a intenção de Marcus. Ele aproximava-se e iria beijá-la. Já podia sentir o hálito fresco e quente ro­çando seus lábios ansiosos, a embriagante essência mas­culina que exalava de seu corpo possuindo-a por completo. Esperou pelo contato intempestivo da boca ávida de Mar­cus, mas, ao contrário do que imaginava, isso não acon­teceu.

Marcus não a tocou, nem a beijou.

Ela abriu os olhos lentamente, a tempo de ver Marcus agachar-se e recolher seus pertences caídos ao lado do tronco da macieira.

Com aparência exaurida, ele assemelhava-se a um guerreiro que acabava de travar intensa batalha. Sua voz mal conseguia atravessar os lábios quase sem cor.

— No momento certo, Keelin, lhe mostrarei toda a má­gica dos viscos de Wrexton.

A cabeça de Keelin rodopiava freneticamente. Se exis­tisse alguma mágica em Wrexton que ainda não tivesse experimentado, pensou ela, poderia jurar que não seria forte o bastante para sobreviver a ela.

Marcus segurou em seu braço com delicadeza antes de começarem a caminhar novamente.

— Precisamos nos preocupar com as comemorações de Natal, e logo — comentou ele, ignorando os minutos an­teriores. — Tenho certeza de que meu pai gostaria de ver uma grande festa, cheia de alegria e esperança no futuro.

Após alguns segundos, Keelin começou a recobrar sua consciência novamente. Aquele seria o primeiro ano que Marcus comemoraria o Natal sem a presença de seu pai. Seria uma data muito difícil para ele e para todos de Wrexton. Eldred de Grant era amado por seu povo e sua companhia faria falta para todos.

Porém, antes que Keelin tivesse a oportunidade de co­mentar seus pensamentos, ouviram-se os gritos alarma­dos de uma das criadas do castelo que corria na direção deles.

— Lorde Marcus! — berrou a mulher aflita.

— O que acontece, Mary? — perguntou Marcus preo­cupado.

— Frieda, milorde! Boswell mandou-me chamá-lo, com urgência.

Marcus empurrou o arco e o cesto para o colo da mulher com rapidez.

— Faça companhia para lady Keelin e só a deixe quan­do estiver segura dentro do castelo — disse antes de co­meçar a correr.

— Sim, milorde — concordou a serviçal.

Assistiram Marcus desaparecer pelo caminho curvilí­neo com impressionante agilidade e então, Keelin virou-se para a jovem garota, questionando-a com curiosidade.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — Quem é Frieda?

— A égua de estimação de lorde Marcus — replicou a moça encabulada. — Tentava parir um grande potro, mas parece que teve problemas durante o parto...

Keelin lembrou-se de ter visto duas belas éguas no alo­jamento dos animais no dia do incêndio. Uma cinza-escura e a outra castanho-avermelhada, ambas prenhas. Pensou em seguir Marcus e acompanhar de perto o final do parto de Frieda. A preocupação de Marcus com o ani­mal a afligira e talvez pudesse ajudar os homens de al­guma forma. Pensou melhor, porém, e lembrou do costu­meiro sermão de seu pai quando desobedecia a sua ordem e aparecia onde não era chamada. Todavia, conhecendo Marcus como imaginava conhecer, sabia que ele jamais se importaria com sua presença ao seu lado.

— E como imagina que lorde Marcus ajudará Boswell? — questionou Keelin.

— Bem... — a empregada tentava explicar-se de algu­ma forma. — Lorde Marcus sabe tudo o já foi descoberto a respeito de cavalos, milady. E espero que um dia ensine-me tudo...

— Tomara — respondeu Keelin sem prestar muita atenção no que dizia. Seus nervos estavam tensos e só conseguia pensar em Marcus. Quando quase a beijara, momentos antes, sentiu que seu corpo podia explodir de tanto desejo. Estava frustrada, preocupada e aflita.

Quando quase alcançavam a porta principal do castelo, Keelin imaginou encontrando com Isolda no grande salão de entrada e quis voltar atrás. Com tantos viajantes ilus­tres hospedados, era provável que Isolda estivesse preo­cupada em atendê-los pessoalmente, fazendo as honras da casa como uma verdadeira anfitriã. Preferiria evitar um novo confronto com a jovem megera e, por isso, vol­tou-se mais uma vez para a serviçal que a acompanhava.

— Existe alguma outra escadaria, que não a do salão principal, para o andar superior do castelo?

— Sim, milady — respondeu a garota sorridente. — Se quiser, posso mostrar-lhe o caminho.

Keelin acompanhou a jovem garota que se dirigiu para a lateral do castelo e rodeou as paredes da cozinha, guian­do-a pela área de serviço dos criados.

Enquanto caminhava pelo jardim, Keelin observava os detalhes das gigantescas construções do castelo. Vistos assim, tão de perto, os alojamentos e a forte muralha de pedra davam-lhe uma excelente impressão. Wrexton era uma segura fortaleza, pensava ela, e Marcus era o homem ideal para comandar a todos ali. Tudo tão diferente de Carrauntoohil imaginou, lembrando-se dos toscos case­bres de pedras em que ela e seu povo viviam, visando unicamente a proteção contra o frio e ataques inimigos.

Arrastada pela curiosidade, Keelin dobrou o pescoço para ver as pequenas janelas que levavam luz para o po­rão do castelo. Apesar da negra escuridão que dominava o cômodo subterrâneo, ela imaginou ver um vulto sombrio arrastando-se pelo lugar. Um terrível arrepio de medo tomou-lhe o corpo com rapidez. Virou o rosto e acelerou o passo até alcançar a criada que a acompanhava.

— O rio corre logo ali atrás — disse a garota apontando para o final da muralha de pedra. — E aqui embaixo ficam as masmorras de Wrexton. Lorde Marcus já esteve preso aqui uma vez por ordem do antigo herdeiro.

— Lorde Eldred ordenou a prisão de seu próprio filho? — questionou ela assustada.

— Oh, não, milady! — replicou a mulher. — Isso acon­teceu antes de lorde Eldred vir para cá. É uma longa história, minha senhora...

Keelin tinha certeza de que aquela seria uma história interessante, mas estava muito preocupada agora para insistir com a jovem criada que lhe contasse o ocorrido. Algo estava prestes a acontecer, algum desastre abater-se-ia sobre sua cabeça, e breve, imaginou ela aflita sem saber exatamente o que tanto temia. Sentiu urgência em proteger-se dentro das grossas e pesadas paredes do cas­telo e correr até o quarto de seu tio Tiarnan.

— Vamos deixar a história para outro dia, Mary — disse ela. — Mais tarde, se assim quiser, gostaria de ouvir essa história com toda a atenção que merece.

A criada sorriu e ergueu o dedo indicador para uma pequena porta bem junto à muralha.

— A escada fica logo atrás daquela porta, milady — A empregada apontou para uma estreita escada particular que conduzia secretamente os empregados ao andar su­perior. Nenhum deles, a não ser por pedido dos morado­res, eram vistos atravessando o salão principal. Sempre os serviços eram realizados às escondidas naquela área reservada única e exclusivamente para os empregados, evitando assim incômodos desnecessários. — Se quiser... Oh! Cuidado! — gritou a mulher empurrando Keelin de encontro à grande muralha de pedra, afastando-a do lu­gar onde estava.

Uma grande pedra fora lançada das janelas superiores do castelo e Keelin ainda pôde vê-la estilhaçar-lhe no chão de terra, num impacto mortal, com o canto dos olhos.

Mary lançou-se ao chão coberto de neve temendo novo ataque.

— Milady! Como está, lady Keelin? Foi atingida?

Keelin recostou-se na muralha e deixou suas costas escorregarem pelas pedras frias até alcançar o chão úmido, sentando-se assustada. Sua expressão de terror e me­do não escondia a confusão de seus pensamentos.

— O que aconteceu aqui? Aquele barulho... — Keelin ergueu seus olhos em direção ao topo do castelo e logo depois para o grande pedaço de pedra caído sobre o gelo. — Se não tivesse me empurrado, Mary, aquela pedra te­ria acertado a minha cabeça e, a essa altura, eu estaria...

A criada balançou a cabeça, aparentemente confusa com o incidente.

— Não consigo imaginar como uma pedra como aquela possa ter caído de lá de cima, milady — disse a mulher atônita. — Sente-se bem?

— Sim — respondeu Keelin deslizando a mão por sobre o ombro dolorido. —- Talvez tenha sofrido uma pequena contusão no ombro, mas não foi nada grave.

— Deixe-me ajudá-la a levantar do chão, milady — sugeriu a serviçal, erguendo sua mão fria para ajudar Keelin a ficar em pé novamente.

Daquela vez escapara por pouco, pensou Keelin aflita. Uma polegada a mais e o pesado pedaço de pedra poderia ter causado danos muito maiores, até, quem sabe, a sua morte.

Teria sido somente um acidente?, Keelin interrogou-se com apreensão. Sua intuição dizia-lhe para ficar atenta, pois algo muito pior ainda estava por vir.

— A deixarei segura dentro do castelo, milady — co­mentou a garota com aparência pálida. — Então, irei ao encontro de lorde Marcus para...

— Não — interrompeu Keelin com firmeza. Podia per­ceber que a criada estava apavorada com a terrível expe­riência e que se sentia, de alguma forma, responsável pela sua segurança. Mas tudo o que mais queria naquele momento era alcançar os aposentos de Tiarnan, onde sa­bia que ficaria bem e protegida. Junto ao seu querido tio sentia-se carinhosamente acolhida e confiante que ne­nhum mal poderia suceder-lhe. — Não vejo necessidade de incomodar lorde Marcus com um assunto tão insignificante, Mary. Nada de mal nos aconteceu, como você mes­ma pode ver. Acompanhe-me até os aposentos de meu tio e ficarei bastante agradecida por isso.

— Mas, milady, eu... — prosseguiu a moça, indecisa sobre qual seria a melhor atitude a ser tomada naquele momento.

— Confie em mim, Mary — disse Keelin segurando no braço da serviçal, e caminhando para dentro do castelo com passos vacilantes. — Venha. Acompanhe-me até o encontro de meu tio e posso lhe garantir que tudo ficará bem.

Keelin encontrou Tiarnan sentado ao lado do leito de Adam e não em seu quarto, como imaginara anteriormen­te. Antes, preferira trocar suas vestes por outras, mais limpas e secas. Sentia-se muito melhor agora, longe da pesada capa de frio e do vestido verde que cuidadosamen­te escolhera para usar naquela manhã.

Assim que adentrara o cômodo agradavelmente aquecido de Adam, Keelin decidira não chatear seu tio com o relato do triste incidente que lhe ocorrera minutos antes. Desfrutaria em silêncio de sua companhia e da agradável sensação de proteção que lhe causava.

Adam estava sorridente e bem-disposto, e Keelin ima­ginou se o garoto seria sempre assim.

— Oh, lady Keelin — disse Adam mantendo o sorriso ingênuo nos lábios corados. — Lorde Tiarnan acabou de me contar sobre a vez em que vocês decidiram dar nós nos cadarços das botas dos homens de seu pai, enquanto eles dormiam profundamente.

— Muito bonito, lorde Tiarnan! — sussurrou Keelin, aproximando-se de seu tio, tentando afastar o aterrorizante incidente de sua mente por alguns instantes. — Mas que belas histórias escolheu contar para o nosso que­rido convalescente, meu tio. Não tinha nenhuma outra boa lembrança da Irlanda?

— Não vejo nenhum problema em fazer o garoto rir um pouco, minha sobrinha. E, além do mais, suas traves­suras são, até hoje, as melhores histórias de nosso clã.

— Que bela imagem de sua sobrinha para os nossos amigos, meu tio! — retrucou ela sorrindo.

— Apesar de muitos ainda desconfiarem, principal­mente aqueles homens que até hoje tentam desfazer os nós de suas botas, não acredito que continue a perder seu tempo com peraltices.

Adam riu juntamente com Keelin do comentário de Tiarnan.

Indiferente aos maus-tratos que Keelin vinha sofrendo em Wrexton, Tiarnan recuperava-se a olhos vistos. Sua aparência, mais saudável e bem-tratada, remoçara-o al­guns anos. A segurança da fortaleza e a presença de Mar­cus deram-lhe condições de recuperar a alegria e Keelin animava-se ao vê-lo novamente tão bem-humorado e disposto.

Ele ficaria bem em Wrexton, pensou ela. Poderia partir para Kerry e deixar seu tio sob os cuidados de Marcus e a proteção do castelo tranqüilamente. Seu velho tio ficaria em segurança e com bastante conforto.

O ferimento de Adam estava em avançado processo de cicatrização. O garoto ganhava novas forças a cada dia e logo seria capaz de levantar-se da cama sem necessitar de assistência. Poderia voltar a ingerir alimentos sólidos e sua recuperação seria completa.

Tudo aquilo era, para Keelin, sinal de que chegava o momento de deixar Wrexton, embora sua intuição sobre o retorno a Carrauntoohil não fosse positiva. Sabia que encontraria somente o medo, a tristeza e a miséria em sua próxima jornada, porém, precisaria encontrar forças para seguir adiante e cumprir com sua missão.

— Preciso lembrá-lo, Adam — observou Keelin sorrin­do —, de que sou filha de Eocaidh O'Shea, o grande chefe de todo o Kerry. Lorde Tiarnan será punido por ridicula­rizar um membro da família e não gostaria de levar o seu nome também para o conselho do clã, se é que me enten­de... — comentou ela, brincando com o jovem que ria sem parar.

— Keelin!

Seu breve momento de relaxamento fora interrompido pela presença de Marcus que adentrava o quarto de ma­neira abrupta.

Quando Keelin imaginara encontrar o equilíbrio de no­vo, Marcus arremessou-se pela porta e só parou quando estava bem próximo a ela.

Com as roupas amassadas e sujas de uma mistura de barro e sangue, Marcus tinha a expressão carregada de preocupação. Era evidente que tinha ouvido falar sobre o incidente no pátio.

Keelin sentiu vontade de lançar-se de encontro aos seus fortes braços e deixar-se envolver por um abraço protetor.

— Ah, Marcus — murmurou ela, controlando seu im­pulso inicial e permanecendo em pé ao lado da cama de Adam. Juntou as mãos com força na frente do corpo e tentou manter a expressão séria. Não gostaria que a tranqüilidade de seu tio e de Adam fosse abalada, mas duvi­dava que seria capaz de controlar a ansiedade de Marcus. — Como está Frieda? — perguntou ela rapidamente. — E o pequeno potro?

O rosto de Marcus ficou visivelmente corado com a per­gunta de Keelin. Percebera a intenção dela em desviar o assunto que o trazia ali. A égua passava bem. O final do complicado parto tinha sido melhor que o previsto e o animal descansava agora. Ainda não era certo o estado de saúde da fêmea e do seu filhote, mas, afastando maio­res infelicidades de seu destino, Marcus imaginava que sua égua de estimação em breve estaria em plena forma física e talvez, até pudesse voltar a arriscar novos partos.

— Frieda, vai morrer? — indagou Adam, com a voz trêmula e triste. Não ocorrera a Marcus que seu primo convalescente pudesse sensibilizar-se com a situação da égua.

Keelin sentou-se ao lado da cama de Adam e voltou seus olhos para Marcus, com esperança que eles não retratassem sua ansiedade. Sabia que ele também a dese­java e, apesar do desejo de tranqüilizar Adam e acalmar seu pobre coração aflito, nutria uma secreta vontade de sair dali ao lado de Marcus e consolar-se em seus braços fortes, protegida de todos os perigos que sua intuição vi­nha lhe avisando.

Entretanto, naquele instante tudo o que desejou foi que Marcus se preocupasse somente com a recuperação de seu primo e não percebesse a intensidade de seu olhar.

— Não, Adam — disse Marcus, aproximando-se tam­bém do leito do garoto. — Nossos homens fizeram um bom serviço e Frieda recupera-se bem. Espere só o momento que puder sair dessa cama para ver que belo potro ela trouxe ao mundo, meu rapaz.

Adam respirou aliviado com o comentário de Marcus.

— Mas como está Frieda? — prosseguiu o menino man­tendo as sobrancelhas arqueadas. — Ela ficará bem?

— Não temos condições de prever nada agora, Adam — respondeu Marcus. — Porém, ao que tudo indica, não corre mais risco de vida. O nascimento foi difícil, mas os rapazes estão atentos ao estado de saúde de nossa que­rida Frieda.

— Quando poderei vê-la novamente?

— Não tão cedo, meu rapaz — replicou com firmeza.

— Precisa de mais algum tempo para recuperar-se por completo e, por enquanto, não terá a minha permissão para deixar seu quarto e...

— Mas, Marcus, eu...

— Não aceito discussões sobre esse assunto. — concluiu Marcus erguendo-se com rapidez. — Trarei notícias dos animais sempre que eu receber novas informações do alo­jamento. É preciso que se fortaleça e esteja curado, Adam, para visitar Frieda e seu potro — Ele ergueu os olhos em direção a Keelin e continuou, abaixando o tom de voz: — Lady Keelin, por favor — disse sinalizando a porta que levava ao corredor. — Gostaria de trocar umas palavras em particular, se possível.

Marcus apoiou a palma de sua mão sobre o ombro de Keelin e a guiou para fora do quarto. Completamente en­volvidos pela presença um do outro, não perceberam a expressão enigmática de Tiarnan ou o sorriso tímido de Adam ao vê-los saírem juntos.

Após conduzi-la pela galeria vazia, Marcus deixou sua mão escorregar pelo braço delicado de Keelin até segurar seu cotovelo com delicadeza.

Sem conseguir mais controlar as emoções, Keelin recostou-se no corpo forte de Marcus e sentiu o coração ba­ter mais rápido quando um dos lados de sua face roçou levemente o peito másculo e musculoso. A túnica branca de linho que ele usava naquele dia era macia e o calor de sua pele atravessava o tecido fino, aquecendo-lhe o rosto.

Sem hesitar, Marcus contornou a cintura de Keelin com os braços, acolhendo-a num terno abraço.

E os dois permaneceram assim, juntos e em silêncio por longos minutos.

Era a primeira vez que Keelin sentia-se tão frágil ao lado de Marcus. Depois de tantos anos lutando pela pró­pria sobrevivência, havia se esquecido que, antes de tudo, era uma mulher, e como todas as mulheres, gostava de sentir-se protegida e amada.

Marcus não conseguia se livrar da culpa que sentia pelo incidente no pátio. Era a segunda vez que colocava a vida de Keelin em risco. A primeira, durante o incêndio no estábulo. E agora, uma pedra quase a atingira mor­talmente. Não estava conseguindo mantê-la em seguran­ça e isso o entristecia sobremaneira.

Não permitiria que nada acontecesse a ela novamente, jurou para si mesmo em silêncio.

— Keelin — disse ele. — Onde se machucou? Mary comentou que se feriu ao cair no chão.

— Oh, Marcus, não se preocupe — replicou ela com a voz chorosa. Sentiu um leve tremor percorrer sua coluna novamente, como no momento do acidente e tudo o que conseguia pensar era na proximidade intimidadora entre ela e Marcus, nos dois corpos entrelaçados e na profunda paz que aquele contato lhe oferecia... — Graças a Mary nada de mais grave me aconteceu. Somente um leve fe­rimento no ombro, mas nada sério.

— Graças a Deus...

— E a Mary.

— Sim — replicou ele percebendo-se mais tenso que o normal. — Ela será recompensada por isso. — A serviçal merecia um grande premio por sua rapidez. Se não fosse sua agilidade, Keelin poderia estar morta, pensou Marcus sentindo um calafrio de terror.

Ele afastou-se lentamente de Keelin, procurando com­provar com seus próprios olhos que ela estava bem e inteira.

Sem questionar, Keelin permitiu-se ser vista dos pés a cabeça, pois sabia que Marcus só se tranqüilizaria quan­do tivesse certeza que nada de mau lhe ocorrera.

— Qual deles está ferido? — perguntou ele apoiando as mãos sobre os ombros eretos de Keelin. Um pedaço de pele muito alva insinuava-se no decote discreto da blusa que ela usava agora e Marcus não pôde deixar de imagi­nar como seria maravilhoso poder tocá-la, acariciá-la, bei­já-la... Os grandes olhos verdes que tanto o fascinavam estavam embaçados por uma cortina de medo e tristeza. Ela parecia muito mais vulnerável, desprotegida.

— O esquerdo — respondeu ela, inclinando-se leve­mente.

Com gentileza, Marcus abaixou a alça do tecido, pro­curando ver mais do que o recorte da roupa deixava.

Keelin, cada vez mais tensa, sentia o ar escassear. Per­manecia quieta e imóvel, sentindo o sangue fluir cada vez mais rápido pelas veias comprimidas.

Apesar da promessa de Marcus em manter-se distante, não conseguia conter o desejo de, ao menos, tocá-la. A visão do gracioso pescoço e a maciez da tez muito branca eram, para ele, puro deleite. Porém, seus instintos mais primitivos não se contentariam com tão pouco. Presumia que em pouco tempo seu corpo se inflamaria num ardente e incontrolável impulso de possuí-la imediatamente e na­da do que pensasse o impediria de prosseguir. Não daquela vez. Ele corria a ponta dos dedos pelo colo ofegante de Keelin quando o ferimento arroxeado despontou atra­vés da fenda do tecido.

Um leve arrepio de terror o fez parar de imediato. A contusão, apesar de pequena, estava cercada por manchas avermelhadas, que lembravam arranhões e parecia im­provável que ela conseguisse movimentar-se sem sentir dores. Nenhum osso havia se quebrado, mas o machucado devia incomodá-la bastante, pensou Marcus comovido com a discrição de Keelin que fizera questão de esconder de todos o seu sofrimento.

O laçarote que atava a blusa junto ao peito de Keelin se desfez por completo e um pedaço maior de pele reve­lou-se sensualmente por detrás do pesado tecido.

Ergueu, então, os olhos e observou a expressão tranqüila de Keelin, com os lábios entreabertos e as maçãs do rosto saudavelmente coradas. Ela parecia consentir com os seus mais secretos pensamentos libidinosos e a silenciosa batalha que Marcus travava consigo mesmo pa­recia perdida para sempre.

Com um movimento rápido, Marcus puxou a fita da blusa e viu o tecido macio escorregar devagar.

Tudo que queria era vê-la, talvez, até mesmo tocá-la, pensava ele tentando controlar suas emoções. Nada além disso, imaginou aflito, percebendo que já havia ido longe demais...

— Marcus... — disse Keelin num sus­surro abafado.

Teria sido aquilo uma pergunta?, questionou-se Mar­cus desconfiado. Ou quem sabe, um apelo, um pedido, uma súplica.

— Deixe-me tocá-la um pouco mais... — murmurou, levando os lábios úmidos em direção ao ombro ferido de Keelin, tocando-a de leve com a boca e beijando a pele ferida com carinho. Ela deixou escapar um suave gemido de prazer e aquela reação inflamou ainda mais os seus instintos. Marcus a segurou com firmeza pela cintura, puxando-a para si, e deixou as mãos ágeis escorregarem até os seios parcialmente descobertos, envolvendo-os com delicadeza entre os dedos.

O tecido leve do vestido escorreu ombro abaixo, reve­lando o colo perfeito e Marcus acariciou os mamilos rígi­dos com os polegares, sentindo o calor e a maciez do res­tante da pele alva dos seios com a palma da mão.

Os breves sussurros que escapuliam dos lábios de Kee­lin o enlouqueciam. Nunca antes se imaginara tocando alguém com tanto cuidado e zelo. Sentiu uma vontade irresistível de provar os mamilos intumescidos, saboreá-los e, sem hesitar, curvou a cabeça para alcançá-los com a boca ávida. A língua úmida deslizou pela pele rosada de um dos seios e Marcus fechou os olhos antes de movi­mentar os lábios e sugá-lo com desejo.

— Oh, não! Por favor... — disse Keelin escorregando os dedos por entre os cabelos claros de Marcus, tentando afastá-lo com o pouco de forças que ainda lhe restava.

Ele soltou-a devagar e cobriu-a novamente com a blusa do vestido. Não poderia levar aquilo adiante, pensou en­tristecido.

— Preciso ir, antes que faça algo de que nós dois nos arrependamos depois.

— Tem razão — retrucou Keelin cabisbaixa, reatando o nó da blusa.

— Vou deixá-la agora, mas espero desfrutar de sua companhia durante o jantar.

— Marcus, eu...

Ele a interrompeu com um rápido e delicado beijo sobre os lábios.

— Nos encontramos no salão principal. À noite.

A expressão de frustração no rosto de Keelin deveria ter deixado Marcus radiante de alegria, porém, seu sen­timento de derrota era grande demais para isso. Ainda assim, não se arrependia do que tinha feito. A honra de sua família e de Keelin valiam o preço que estava pagando.

 

A confortável banheira de água quente estava pronta quando Marcus adentrou os seus aposentos pessoais. Nada no mundo lhe parecia mais convidativo naquele instante que um relaxante banho quente, pensou aliviado. Nada que lhe fosse permitido, claro, corrigiu-se, recordan­do o toque macio da pele branca de Keelin e sentindo a tensão em seu corpo aumentar outra vez.

Até quando conseguiria viver daquela forma?, pensou Marcus, procurando alívio na plácida água da banheira para os músculos exaustos.

Jamais desejara mulher alguma daquela forma. Con­cluiu ele atônito com a capacidade que Keelin tinha de afastá-lo de seus objetivos. Planejara não mais tocá-la, não antes de oficializar a união entre eles, o que lhe pa­recia um sonho cada vez mais distante.

Todavia, sentia-se muito orgulhoso pelo fato de mantê-la relativamente ilesa. A força do desejo de tocá-la, aca­riciá-la, beijá-la, sentir seu corpo junto ao dele parecia cada dia maior e ele gostava de imaginar que o mesmo acontecia com ela. Keelin também o desejava, tinha cer­teza disso.

Com um suspiro de frustração, Marcus forçou seus pen­samentos a tomarem outro rumo. De nada adiantaria pa­ra nenhum dos dois alimentar sentimentos ou sonhos im­possíveis de se realizar. Pelo menos não naquele momen­to, concluiu, otimista.

Depois de alguns minutos, Marcus enxaguou o sabão do corpo e caminhou para fora da banheira. Não conse­guia deixar de pensar em Keelin um único segundo. De­cidiu descer para o salão antes do jantar. Muitos assuntos importantes aguardavam urgente resolução e estava mui­to intrigado e inquieto para relaxar.

Marcus vestiu-se e cobriu os ombros com uma pesada capa de inverno. A noite tomara forma rapidamente e a escuridão era completa do lado de fora, obrigando-o a car­regar consigo uma lamparina para iluminar o caminho. Não encontrou com ninguém no corredor sombrio e muito menos na escada isolada que levava a cobertura do castelo. Um grande parapeito cercava o local pouco iluminado.

A princípio, tudo parecia em ordem. Com cuidado, Mar­cus começou a caminhar a procura do local de onde pos­sivelmente caíra a pesada pedra sobre Keelin e Mary. Queria conferir todos os detalhes pessoalmente antes que algum de seus homens reparasse a falha na muralha com outra pedra, do mesmo tamanho e forma que a anterior. Nenhuma outra pedra apresentava sinais de deteriora­ção, apesar das intensas chuvas que vinham ocorrendo nos últimos dias. Aquela parecia ser a única explicação para o incidente que ocorrera horas atrás. Graças ao mau tempo, a pedra soltara-se da muralha e, com a força do vento, caíra em direção ao pátio, justamente no local onde, por acaso, Keelin atravessava.

O véu negro da noite dificultava sua busca pelo suposto vão no parapeito feito com pesadas pedras. Para sua sur­presa, próximo à muralha, pegadas marcavam o chão re­coberto por fina camada de neve. Ele as acompanhou com o coração disparado, prevendo o que iria encontrar logo adiante.

O vento incessante fazia a pequena chama da lampa­rina dançar de um lado para o outro prejudicando uma visão mais apurada, todavia era possível seguir os passos curtos marcados no chão com precisão. Alguns metros adiante, porém, a leve chuva que caíra no final da tarde cobrira as marcas quase que por completo.

Era somente um pequeno trecho com pegadas, mas pa­ra Marcus já significava muito. Alguém estivera naquele dia sobre o telhado do castelo, caminhara próximo ao pa­rapeito e talvez, essa mesma pessoa tivesse jogado a pe­dra intencionalmente sobre Keelin.

Não. Marcus não conseguia imaginar algo tão terrível. Recusava-se a acreditar que alguém fosse capaz de pla­nejar um acidente como aquele.

Era possível que um dos empregados tivesse tido, horas antes, a mesma idéia que a dele e então, subira até o parapeito para procurar pistas de outras pedras soltas no parapeito, temendo novos incidentes.

Naquela noite, chamaria por todos os homens que tra­balhavam no castelo e descobriria qual deles subira até ali.

Recostou-se no parapeito e imaginou o trajeto da pedra até o solo. Não havia nenhuma árvore ou obstáculo que a impedisse de atingir o pátio com grande velocidade. Pro­curou mais uma vez por algum vão nas pesadas linhas de pedras coladas, uma a uma, formando o muro de proteção. Avistou uma falha na grossa parede, provavelmen­te, do mesmo tamanho da pedra que tombou sobre o chão do pátio naquela tarde, estilhaçando-se com violência.

Mas o vão estava muito distante do local onde Keelin e Mary passavam no momento do acidente.

 

Keelin sentia-se perdida em meio a inúmeros senti­mentos contraditórios na hora do jantar. Sentada do lado direito de Marcus na longa mesa de madeira luxuosamen­te decorada para a refeição, acompanhava com pouca aten­ção o desfile dos saborosos e sofisticados quitutes prepa­rados com antecedência pelos empregados. Sem sucesso, procurava disfarçar sua impaciência e nervosismo depois dos últimos acontecimentos.

Não conseguia esquecer as carícias que trocara com Marcus naquela tarde e, toda vez que as lembranças agi­tavam-lhe a mente, sentia seu coração bater descompas­sado, acelerado.

Olhando para trás, o longo e agitado dia parecia inter­minável.

Marcus, durante as aulas de arco e flecha, ao envolvê-la com braços fortes e sussurrar-lhe instruções carinhosas próximo aos ouvidos, despertara-lhe novas e incontroláveis sensações. Mesmo agora, sentados próximos um ao outro, ela podia sentir um leve tremor percorrendo-lhe a espinha toda vez que o encarava diretamente nos olhos.

Tentava não prestar atenção nos movimentos de Mar­cus, na maneira como ele, com habilidade, cortava a carne em seu prato ou como segurava a taça com vinho entre os dedos, mas a imagem forte de seus gestos seguros a hipnotizavam. Não queria embriagar-se com a fragrância forte e marcante de seu perfume, nem se acostumar com a incrível sensação de segurança que desfrutava quando estava ao seu lado.

Desejou ardentemente não precisar partir de Wrexton, não precisar cumprir a árdua missão junto ao seu povo. Bebeu um longo gole de vinho e sentiu o líquido escorrer-lhe pela garganta junto com um desagradável incômodo. Nada do que fizesse a afastaria de sua obrigação, nem mesmo o excelente vinho servido em abundância.

O barão Selby, sua esposa e filhas ocupavam os outros assentos da mesa naquela noite. Com porte jovial e ex­pressão animada, parecia pouco incomodado com a inter­rupção inesperada de sua viagem rumo a casa dos sogros.

— Como poderia prever essa tenebrosa tempestade se ainda nem sequer atravessamos o período das festas na­talinas? — observou o homem de meia-idade tentando justificar-se. — Jamais deixaria o palácio se fosse capaz de adivinhar o que me aguardava pelo caminho.

A jovem esposa virava os olhos enquanto ouvia o ma­rido falar.

— Papai — retrucou a filha mais nova. — Vovô nos pediu para partirmos o quanto antes. Há duas semanas, eu mesma o vi avisando o senhor que...

— Elba, minha filha querida — replicou o homem com tom irônico. — Não tem idade o bastante para entender os mais velhos. Eles sempre tentam nos contradizer de alguma forma. Duvido que seu avô soubesse exatamente o que estava falando.

A conversa trivial entre os visitantes ajudou Keelin a relaxar durante o jantar, apesar de notar, com descon­fiança, a estranha ausência de Isolda aquela noite entre eles, já que sempre fazia questão de fazer, ela mesma, as honras da casa junto ao convidados.

Apesar de sentir-se mais confiante e segura longe dos olhos inquisidores da jovem maquiavélica, não podia dei­xar de temer os próximos passos de Isolda.

Os acrobatas alojados no castelo, refugiados da grande tempestade, dispuseram-se a realizar uma breve apresen­tação logo após o término da refeição, como forma de agra­decimento pela hospitalidade de Marcus. Vestidos com trajes coloridos e pouco convencionais, os artistas aden­traram o salão principal dando cambalhotas arriscadas e saltos ornamentais que surpreenderam a todos. O grupo de mímicos organizou-se no centro da grande sala e ini­ciou o esperado espetáculo tão logo os convidados mostra­ram-se acomodados e os músicos com seus instrumentos afinados. O repertório da simplória orquestra estava cui­dadosamente ensaiado e as cantigas que narravam cora­josas aventuras e belas histórias de amor emocionaram a todos.

— E como anda as aulas de tiro ao alvo, milady? — perguntou sir Robert a Keelin num dos breves intervalos entre as canções.

Ela sorriu em resposta ao gentil cavaleiro.

— Estou longe de dominar o arco, senhor — concluiu ela. — Mas acho que estou fazendo grandes progressos.

— Lorde Marcus é um excelente instrutor — lembrou sir Willian aproximando-se do local onde estavam. — E como bom atirador, nunca erra o alvo.

Keelin identificou naquele comentário uma insinuação maliciosa e convenceu-se de sua desconfiança ao notar um brilho estranho nos olhos do cavaleiro.

— Com certeza lorde Marcus é um grande atirador — replicou ela. — Mas será que ele é tão bom com alvos que se movimentam?

— Bem, isso é o que veremos — sugeriu sir Robert, esboçando um leve sorriso no rosto. — Não é verdade, milorde? — perguntou ele dirigindo-se para Marcus acompanhava em silêncio a conversa entre eles.

— Já fui testado de ambos os modos, cavalheiro — res­pondeu Marcus secamente. — E até hoje, nunca descobri falhas.

— Lady Keelin — uma voz feminina os interrompeu de súbito. Era Isolda que se aproximava sorrateiramente de Keelin, chamando-a em voz baixa. Mantinha uma expressão angustiada e as mãos trêmulas em frente ao cor­po curvado. — Posso falar-lhe por um instante?

Hesitante, Keelin desconfiou da postura entristecida da mulher maldosa. Sem dúvida, algo estava errado e ela receou pelo bebê de Annie ou, quem sabe, outra criança adoentada na aldeia. Começou a afastar-se do grupo de­vagar; estranhando a atitude amigável e educada de Isol­da, mas antes que pudesse dar outro passo, Marcus a segurou pelo braço com firmeza.

— Aonde pensa que vai, Keelin? — perguntou arquean­do a sobrancelhas em protesto.

Ela movimentou os ombros, esquecendo-se da contu­são, e sentiu uma forte agulhada do lado ferido durante o dia no pátio.

— Não se preocupe, Marcus. Não irei longe — replicou. — Continue a se divertir junto aos rapazes. Logo estarei de volta.

Marcus balançou a cabeça negativamente, reprovando a decisão de Keelin.

— Se não se importa, irei com você.

Para Keelin, apesar da voz doce e do olhar lânguido de Marcus, parecia evidente a relutância em deixá-la encon­trar-se sozinha com Isolda, o que, de alguma forma, era bastante compreensível. Estava disposto a acompanhá-la e ela precisava admitir para si mesma que a presença forte e sólida de Marcus ao seu lado era reconfortante e tranqüilizadora.

Ela consentiu encabulada e deu alguns passos em direção a Isolda que a aguardava aflita ao lado da longa escadaria. Marcus a seguiu logo atrás e observou os tre­jeitos da parenta distante com atenção.

— Lady Keelin — falou Isolda, evitando encarar Marcus muito próximo a elas. — Eu gostaria de revelar-lhe o quan­to estou envergonhada por tê-la tratado de maneira tão... indelicada desde o momento de sua chegada em Wrexton.

— A jovem mostrava maneiras polidas e indisfarçável timidez.

A atitude inesperada de Isolda deixou Keelin sem pa­lavras por alguns instantes, o que permitiu a jovem pros­seguir com seu pedido de desculpas.

— Comportei-me muito mal... Como uma criança mi­mada e egoísta — continuou Isolda agora cabisbaixa. — Não sei dizer o que aconteceu comigo, mas gostaria que me perdoasse por tudo o que fiz de errado e, se assim me permitir, desejar-lhe boas-vindas, mesmo que tardias. Pretendo fazer o que estiver a meu alcance para vê-la feliz e confortável enquanto estiver hospedada entre nós — concluiu a jovem erguendo os olhos com lentidão.

— Obrigada, Isolda — disse Keelin estendendo a mão num gesto cordial.

Isolda segurou-a com rapidez, aceitando a demonstra­ção de amizade, então, se virou e partiu sem olhar para trás.

Keelin permaneceu parada observando Isolda deixar o recinto em silêncio. As vozes de Robert e William desper­taram sua atenção novamente. Os dois cavaleiros acom­panharam o pedido de desculpa de Isolda e, enquanto Robert sorria feliz com o resultado da conversa, o olhar de Willian encheu-se de desconfiança e medo. Não acre­ditava que a jovem cruel pudesse estar sendo sincera.

— Que bela atitude de Isolda! — falou Keelin a Marcus, indiferente a expressão tensa de sir Willian, descontente ao vê-la acreditar no remorso desonesto de Isolda.

Marcus, ainda sem entender direito o que acontecia, não conseguia prever com exatidão, quais eram as inten­ções de Isolda com aquele gesto. Dividia com Willian um profundo ceticismo quanto à mudança radical da jovem inescrupulosa, ainda que houvesse percebido uma ponta de sinceridade em seu olhar. Nada levantava a suspeita de uma nova fraude no comportamento de Isolda, e isso o assustava.

Questões haviam sido levantadas depois do incidente com a pedra arremessada do parapeito do castelo. Isolda parecia-lhe a primeira suspeita, apesar de ter confirmado que a jovem não se ausentara do salão principal em ne­nhum momento durante o dia. E nada além de seu res­sentimento natural por Keelin o levava a crer que as pe­gadas marcadas na neve fossem dela.

Todavia, quem mais em Wrexton poderia desejar a dor de Keelin, ou até mesmo sua morte? Os empregados do castelo a adoravam e respeitavam, especialmente depois da cura do bebê de Annie e nenhum deles perdia uma oportunidade de exaltar sua generosidade para com os mais necessitados, assim como Adam e a pequena crian­ça adoentada. E Marcus já havia visto diversos serviçais recorrerem a sua ajuda diante de alguma doença mais séria. Todos pareciam incapazes de desejar-lhe mal, menos Isolda.

Talvez, a queda abrupta e mortal da pedra tivesse sido realmente um acidente ocasional, mas Marcus sabia que não se daria por satisfeito enquanto não averiguasse de perto todos os detalhes do ocorrido. E faria isso tão logo amanhecesse o dia, já que a escuridão da noite prejudi­caria suas conclusões.

Keelin observava o vaivém dos convidados no grande hall e ouvia os inúmeros comentários com atenção. Ima­ginou como Marcus sentia a falta de seu pai naqueles momentos e como deveria lhe incomodar a frivolidade dos visitantes com relação aos seus sentimentos durante o jantar. Por mais que tentassem manter uma aparente normalidade, eram visíveis a tristeza e desolação de todos os funcionários e amigos.

Vendo-os ali, alimentando-se instintivamente e trocan­do conversas superficiais, Keelin imaginou se haveria mesmo condições de comemorar o Natal ou alguma outra data festiva nos próximos meses. Sua idéia de enfeitar o pequeno pinheiro para as festas de final de ano parecia-lhe agora absurda.

Entretanto, era necessário manter a todos entretidos e, principalmente em paz nos dias que se seguiriam, pen­sou ela, concordando com a idéia de Marcus em manter as comemorações em Wrexton, embora fosse claro para todos que ele não participaria delas.

De todos os convidados para o jantar naquela noite, dois despertaram a atenção de Keelin sobremaneira. Eram cavaleiros e aparentemente irmãos, ao julgar pela grande semelhança física entre eles. E, ao contrário da primeira impressão que tivera, não pareciam tão velhos quanto a aparência cansada revelara no início.

Andavam mau-vestidos, tinham os cabelos escuros e compridos e os traços marcantes dos queixos, longos e pontiagudos, eram idênticos, descontando uma cova pro­funda que um deles trazia no centro do queixo. Este mes­mo irmão tinha olhos de cores diferentes, um castanho e outro azul o que muito intrigou Keelin e a fazia intimidar-se diante de cada olhar que o homem lançava em sua direção.

Tudo o que revelaram sobre eles era que levavam uma mensagem de seu lorde, um visconde de Lincolnshire, quando apanhados pela violenta tempestade. Keelin ima­ginou que o nobre deveria estar em grandes dificuldades financeiras para permitir que seus homens andassem com vestimentas tão velhas, armas embaçadas e fardas rasgadas como os dois homens que se refugiaram em Wrexton. Ela percebia que todas as mulheres do castelo evitavam qualquer contato com os dois péssimos elementos e decidiu fazer o mesmo.

O mau tempo parecia ter definitivamente chegado em Wrexton, o que manteve todos cerrados por trás das pe­sadas portas do castelo durante alguns dias seguidos, em­brulhados em pesados trajes de lã e casacos de pele?

O mau humor ocasionado pelo frio fez com que Marcus e seus homens tivessem muito trabalho em manter a paz desejada entre os visitantes.

Os criados, severamente cobrados pelo excesso de tra­balho, sentiram-se mais aliviados quando Marcus obrigou aos alojados que cuidassem pessoalmente da limpeza dos dormitórios e que se ocupassem preparando suas próprias refeições, com exceção do barão e sua família.

Marcus sentia-se dividido, pois sabia que tão logo o clima melhorasse, assim como seus inoportunos hóspedes, Keelin também poria em ação seus planos de partir. Afi­nal, sua promessa de permanecer em Wrexton até a com­pleta recuperação de Adam havia sido cumprida. Em pou­cos dias, o menino já seria capaz de erguer-se da cama sem a ajuda de ninguém e nada mais a deteria ali, pensou ele aflito.

Não a havia pressionado nos últimos dias, conforme o prometido, apesar de manter-se sempre consciente de seus passos e movimentos pelo castelo. Sentia o peso de suas mãos, ansiosas por tocá-la cada vez que se aproximavam um pouco mais que o normal. Todavia, Marcus preferiu deixá-la sozinha com os sentimentos que, tinha certeza, ela também nutria por ele. Se, por um único instante tivesse parado para encarar profundamente seus grandes olhos verdes sabia que os veria repletos de frustração e angústia, assim como os seus.

Mas julgava chegar o tempo de voltar a agir. Tudo parecia silencioso e tranqüilo e Marcus confiou que seus homens sozinhos dariam conta de acalmar os homens alojados.

Conhecendo a profunda afeição que Keelin tinha pelos falcões e sabendo que ela não se recusaria a acompanhá-lo numa visita aos animais na torre, Marcus decidiu convi­dá-la a subir, junto com ele, ao encontro de Gerard e as aves com a titubeante desculpa de verificar a quantas andava o treinamento imposto a elas.

— Oh, milorde — sorriu Gerard ao ver Marcus apontar na escadaria da torre ao lado de Keelin. — Que grata surpresa recebê-los aqui nesta tarde! — O homem ergueu-se rapidamente e fitou o casal encabulado. — Em que posso ajudá-los?

Marcus torceu para que o homem não ficasse muito tempo junto a eles na torre. Contava com a descrição do velho e bom amigo Gerard naquele dia, mais do que nunca.

— Não queremos atrapalhá-lo. Sei que se aproxima o seu horário de partir. Mostre-nos as aves e poderá partir em seguida — ordenou ele, dando uma cúmplice piscadela para o empregado.

— Muito bem, milorde — respondeu Gerard sorrindo com o canto dos lábios. Entendera o propósito de Marcus ao levar Keelin para a torre junto com ele e, tão logo fosse possível, se ausentaria do cativeiro e os deixaria a sós. — Não me canso de admirar as belas espécies que temos aqui — disse, apontando para os dois pequenos filhotes de gaviões. — Em breve, poderemos iniciá-los.

— Então, assim que o tempo melhorar, eles também serão levados para a floresta juntamente com os outros animais? — perguntou Keelin curiosa sobre a jornada de aprendizado das aves.

Marcus acompanhou Gerard até o fundo do cativeiro, enquanto ouvia o amestrador relatar seus planos para Keelin que prestava dedicada atenção aos comentários do empregado. Era evidente o quanto a domesticação das aves eram, para ela, muito atraentes, pensou ele vendo seus olhos brilharem de emoção. Talvez pudesse conven­cê-la a ficar um pouco mais em Wrexton se a convidasse para acompanhá-los na iniciação dos pequenos animais, ajudando-os a orientar as aves em sua primeira caçada.

Tudo o que precisava era convencê-la a ficar.

Eles alcançaram o poleiro onde as duas aves estavam tranqüilamente sentadas, uma ao lado da outra, e Keelin pôde observar a corrente de aço e os guizos amarrados junto aos pés dos animais.

— Elas não gostam de estranhos — disse Gerard man­tendo seu tom de voz baixo e sereno, aproximando-se de um dos gaviões. — Mantenha o silêncio, milady, por favor — completou o homem, erguendo o animal com lentidão do lugar onde estava e apoiando-o sobre a pesada luva de aço que vestira em uma das mãos.

Gerard acolheu a ave bem perto ao peito e afagou sua cabeça com carinho. O gavião arregalou os olhos com sur­presa e girou-os pela penumbra do recinto, encarando-os com admiração e curiosidade. O amestrador sussurrava doces palavras bem próximas ao ouvido da ave, tranqüi­lizando-a aos poucos.

Marcus segurou uma das mãos de Keelin, deslizando-a uma pesada luva de aço por cima da pele macia e fina. Então, Gerard transferiu a ave lentamente de seu braço para o de Keelin, fazendo com que seus olhos brilhassem ainda mais de contentamento e excitação.

— Sussurre-lhe doces palavras junto ao ouvido e veja como ela reagirá — sugeriu Gerard.

— Oh, que bela menina é você... — murmurou Keelin sentindo o peso da ave que se aninhava em seu braço com satisfação. Quanto mais suavemente conversava com o gavião, mais o animal relaxava e reconfortava-se junto a ela, o que lhe garantia um enorme prazer,

Marcus também se deliciava com a cena, porém, por razões muito diferentes. Ele aproximava-se de Keelin com lentidão, encostando primeiramente em seu casaco e logo depois em suas costas, fingindo ouvir as palavras sussur­radas à ave de estimação com atenção.

Gerard, percebendo que sua participação terminara, anunciou sua saída com discrição.

— Já estou de saída, milorde — disse o homem apon­tando para as correntes dos animais. — Não se esqueça de prendê-las ao poleiro — comentou ele percebendo a inutilidade de seu comentário naquele instante.

Nada poderia chamar mais a atenção de Marcus que a respiração lenta e profunda de Keelin. Conforme ela falava com a ave, Marcus não conseguia compreender o significado de nenhuma de suas palavras. A única coisa que o fascinava era a cadência sensual de sua voz, o ritmo envolvente de seus sussurros.

A porta cerrou-se por completo com a saída de Gerard do recinto e ninguém mais poderia atrapalhá-los, pensou Marcus, cada vez mais excitado com a presença de Keelin tão próxima a ele.

Roçou suavemente algumas mechas do longo cabelo perfumado de Keelin em seu rosto, tomando cuidado para que ela não percebesse sua ousadia. Aspirou profundamente o cheiro adocicado e inebriante que exalava por todo o ambiente.

Apenas uma única tocha iluminava o cômodo abando­nado na quase completa penumbra. Isso tranqüilizava as aves que se mantinham empoleiradas serenamente em seus pequenos nichos acomodados ao redor das paredes. O centro permanecia vazio, livre para as manobras de treinamento que Gerard mantinha com os animais.

— Adoro o barulho de seus guizos, minha doce menina — murmurou Keelin voltando seu rosto para Marcus que procurou disfarçar seus pensamentos o máximo que pode.

— Por que elas usam guizos amarrados aos tornozelos, Marcus?

— Para alertar o treinador de seus movimentos — re­plicou ele. — Gerard ou um de seus homens sempre per­manecem junto às aves.

— Eu não podia imaginar... — disse Keelin. — Não sabia o quanto elas eram valiosas.

— Irá nos acompanhar durante a iniciação dos filhotes?

Keelin hesitou ao responder. Marcus voltou seus olhos de encontro aos dela e guiou a ave de volta ao poleiro onde descansava no momento em que chegaram na torre.

— Assim que o clima melhorar, pretendo levá-los até a floresta por algumas horas e ver de perto o que eles já podem fazer — concluiu Marcus segurando o queixo de Keelin entre os dedos com gentileza.

Ela parecia hipnotizada pelo seu olhar penetrante.

A chama ardente e amarelada da tocha dançava no canto do cômodo e reluzia em seus grandes olhos verdes até o momento em que ela os fechou, buscando coragem para responder a pergunta que Marcus lhe fazia.

— Sim, Marcus — respondeu ela, enchendo os pulmões de ar pela primeira vez desde que ele tocara em seu rosto. — Irei acompanhá-lo.

Agradecido com a resposta, Marcus sentiu vontade de erguê-la do chão e rodopiá-la junto ao seu corpo de alegria.

— Keelin... — murmurou, levando os dedos até a nuca de Keelin e possuindo seus lábios com pressa.

Apesar de saber desde o início da possibilidade de que algo como aquilo pudesse ocorrer enquanto estivessem sozinhos na torre, Keelin deixou-se envolver pela sensação de perigo que a situação lhe infligia. Vinha, nos últi­mos dias, fazendo o possível para mantê-lo numa distân­cia segura o bastante, impedindo, até mesmo, seus olhos de cruzarem-se. Mas, daquela vez, fora fraca o bastante para sucumbir mais uma vez à potente atração que os unia desde o primeiro momento que haviam se cruzado. Sentia seu coração preso a Marcus e a Wrexton para sem­pre e nada parecia fazer valer a promessa que fizera ao seu clã de retornar com a lança mágica para libertá-los do cruel inimigo.

Porém, que outra alternativa teria ela? Não consegui­ria viver com a culpa de abandonar seu povo no momento em que mais precisavam dela.

Ela sentiu seu corpo aconchegado ao dele e desejou nun­ca mais se separar de Marcus. Deliciava-se com a sutil sensação de prazer que a união dos dois corpos lhe pro­porcionava e tremeu ao sentir um frio arrepio percorrer-lhe a espinha. Permitia que ele a abraçasse com força, imaginando ser aqueles os últimos momentos que viveriam juntos. Estava certa de que, em poucos dias, o tempo melhoraria e ela seria compelida a cumprir sua missão.

— Keelin... — repetiu Marcus alcançando-lhe o lóbulo da orelha com os lábios. Com as mãos, afastou o pesado casaco que Keelin usava naquela tarde e acariciou seus seios com firmeza enquanto beijava-lhe o pescoço e o colo rubro. — Tem idéia do quanto eu a desejo?

Sim, eu tenho, Keelin pensou responder, deixando que uma lágrima quente rolasse por sua face enrubescida de paixão. Porque também o desejo mais que tudo em minha vida, Marcus, mais que tudo.

Ela deslizou os dedos por entre os cabelos sedosos de Marcus que tanto admirava e o aproximou ainda mais de seu corpo. Ela não conseguia refletir com a mesma clareza enquanto ela a estivesse tocando daquela forma, pensou angustiada. Precisava fazê-lo parar, o quanto antes.

— Marcus... — murmurou ela numa primeira tentativa.

Ao contrário do que imaginava, seu apelo somente ser­viu para fazê-lo abraçá-la ainda com mais força e sugar seus seios com maior intensidade que antes. Inúmeras novas sensações a faziam estremecer. Por um momento achou que pudesse desmaiar de tanto prazer. Nunca ima­ginou sentir tanto desejo por um homem como sentia por Marcus. Parecia incapaz de escapar de seus carinhos amorosos, de fugir dos braços fortes que a enlaçavam com habilidade.

Aquilo lhe parecia um tormento sem-fim. Precisava fu­gir de Wrexton e de Marcus o quanto antes.

Abruptamente, afastou-se de Marcus e permitiu que outras lágrimas rolassem por seu rosto corado, tentando aliviar a dor que lhe dominava a alma.

Sem entender, Marcus manteve seus braços erguidos em sua direção tentando convencê-la a não abandoná-lo para sempre.

— Marcus, perdoe-me... — disse Keelin abaixando o rosto para que ele não a visse chorando. — Não podemos... Você sabe, eu e você, nós...

— Keelin, eu não...

— Por favor, Marcus — suplicou ela cobrindo o rosto com as mãos. — Não dificulte ainda mais a minha situa­ção. Eu preciso voltar para casa o quanto antes.

— Não permitirei que saia de Wrexton — replicou Mar­cus com a voz firme e decidida.

— Não posso ficar — justificou ela enquanto caminha­va para perto da porta. — Por mais que eu queira, eu não posso...

Keelin buscou seu casaco no chão e cobriu-se com o pesado tecido que a protegia do frio. Nada lhe parecia mais difícil que abandoná-lo ali, mas deveria fazê-lo, e antes que tivesse tempo para voltar atrás. Se permitisse a si mesma meio segundo de dúvida, sabia que não con­seguiria deixá-lo. Ergueu sua saia e correu escadaria abaixo, procurando fugir de seu próprio coração.

 

— Não pode partir com esse tempo lá fora — replicou Tiarnan ao ouvir as explicações de sua sobrinha para sua súbita decisão de iniciar sua viagem de volta para casa. O velho senhor permanecia sentado em sua cadeira ouvindo com atenção os passos decididos de Keelin de um lado para o outro do quarto.

— Em breve o clima começará a melhorar, meu tio — retrucou ela enquanto juntava seus pertences pessoais em uma pequena mochila de couro. Deixaria o velho baú para seu tio guardar suas coisas e levaria consigo somente o extremamente necessário para sua sobrevivência.

— E quanto a Ga Buidhe an Lamhaigh? — perguntou o velho homem com aparência preocupada. — Como pen­sa em defender a você e a lança durante a longa jornada até Kerry?

— Descobrirei uma maneira de escapar, tio Tiarnan — replicou Keelin, resolvida como estava em partir o mais rápido possível, antes que seu coração sofresse danos ir­reparáveis. Antes que causasse um mal maior para Marcus. — Estive pensando em pagar pela proteção de alguns homens de Wrexton. Eles poderiam me acompanhar uma boa parte do caminho.

— Já falou com Marcus sobre isso? — Tiarnan perguntou com a raiva e a frustração visíveis em sua voz. Jamais levantara a voz com Keelin antes, mas sentia que ela o entenderia se o fizesse agora.

— Não — respondeu Keelin secamente. Por que era tão difícil para seu tio entendê-la? Por que não conseguia aceitar que chegara o momento de partir e levar Ga Bui­dhe an Lamhaigh de volta para Carrauntoohil?

Tiarnan bateu com a palma da mão violentamente so­bre a coxa.

— Se tudo está tão bem, como você mesma diz, se tem tanta certeza do que está fazendo, por que está chorando, então?

Keelin levou os dedos com rapidez até o rosto e enxugou as lágrimas que teimavam em escorregar-lhe pela face como se seu tio pudesse vê-las. Respirou profundamente tentando limpar a voz antes de voltar a falar.

— Não estou chorando, meu tio. Somente...

— Somente o quê, Keelin? — retrucou o velho impa­ciente. Não poderia culpar Keelin por seu senso de obri­gação para com seu povo, mas estava convencido que retornar ao Kerry naquele momento, não parecia a melhor coisa a se fazer. Era uma péssima época para longas via­gens e aquela seria uma perigosa travessia, principalmente para uma jovem solitária e desprotegida. A presa perfeita para Ruarc Mageean, pensou Tiarnan aflito com a decisão de Keelin.

Ga Buidhe an Lamhaigh logo despertaria os cruéis desejos do chefe Mageean. Não conseguia pensar na hi­pótese de a jovem e delicada Keelin ver-se cercada pelos homens de Ruarc. Seria o seu fim, imaginou Tiarnan assustado.

Marcus. Marcus a impediria de partir de Wrexton, con­cluiu o velho tio mais confiante. Era evidente que o rapaz nutria doces sentimentos pela sua bela sobrinha e Keelin parecia retribuí-lo à altura... Nenhum dos pretendentes que imaginara para Keelin chegava a altura de Marcus e aquela poderia ser a única oportunidade de livrá-la defi­nitivamente do fatídico compromisso com Fen McClancy.

Talvez tudo não passasse de devaneios de um velho homem solitário e sem companhia que ainda acreditava na força do amor. Havia escolhido passar toda sua vida sozinho, e levar os dias como bem entendesse, lutando por seus ideais e princípios, mas sabia que, se ganhasse uma nova oportunidade, optaria agora por dividir a vida com alguém. Alguém com quem compartilhar as dores, as preocupações, as alegrias e as glórias. Alguém com quem se preocupar e a quem amar.

Sabia que Marcus era um homem de princípios, e apa­rentemente tímido com mulheres.

Mas sabia que algo tinha acontecido entre eles. Não exatamente o que imaginara. Não somente a descoberta do sentimento recíproco, as juras de amor eterno... Talvez ele tivesse partido o coração de Keelin e por isso sua so­brinha desejava fugir de Wrexton o quanto antes, con­cluiu pensativo.

— Meu tio... — disse Keelin erguendo o colchão e le­vantando a capa de couro que protegia a lança mágica, como se nenhuma sensação diferente se abatesse sobre ela. — Preciso partir. Tenho o pressentimento que algo terrível está para acontecer. Devo levar Ga Buidhe an Lamhaigh de volta para Kerry antes que alguma grande tragédia se abata mais uma vez sobre nosso povo.

— Mas Marcus...

— Não posso dar importância ao que sinto por Marcus, mesmo que jamais venha a sentir o mesmo por outro ho­mem em toda a minha vida — comentou Keelin deixando as lágrimas escorrerem livremente, afastando-se de seu tio. Ela sabia que o velho senhor podia perceber seu sofrimento e a dor que sentia ao tomar aquela decisão a metros de distância. — Não tenho outra escolha! E minha obrigação levar a lança de volta ao clã Ui Sheaghda. O senhor sabe o quanto ela é importante para o nosso povo. Eles dependem dela para vencer os terríveis Mageean. E não existe ninguém mais que possa fazer isso além de mim.

— Menina Keelin...

— Silêncio! — sussurrou Keelin abaixando-se ao lado da cadeira onde o velho tio descansava. — Alguém está...

— O que está acontecendo, minha sobrinha? — Ques­tionou o velho senhor abatido.

— Eu não sei, meu tio. Tive a impressão que alguém nos ouvia em segredo.

— Quem?

— Também não sei — replicou ela assustada com a possibilidade de estar sendo vigiada. — Mas tenho quase certeza que alguém ouviu claramente tudo o que conversamos aqui, sobre a lança, meus planos de partir... E pos­so sentir que essa pessoa não me quer nenhum bem, meu tio.

— Isolda? — suspeitou Tiarnan.

Keelin respirou profundamente e fechou os olhos, ten­tando adivinhar o que planejavam contra ela.

— E possível.

Tiarnan imaginou qual seria a primeira atitude de Kee­lin depois de tão preocupante premonição espontânea. Ela seguraria a lança entre as mãos e teria a visão completa, ainda que a experiência a enfraquecesse sobremaneira.

Se o inimigo estivesse tão próximo como previra, Keelin deveria usar todo seu poder e força para proteger-se do mal que recairia sobre ela.

— Qual foi a sua premonição, minha sobrinha? — Tiar­nan perguntou docemente, tentando acalmá-la com seu tom de voz tranqüilo. — Não poderia ser outro lugar que não Wrexton? Seu coração deve estar muito cansado de vagar de um lado para o outro, sem descanso e todos os lugares devem lhe parecer ameaçadores a esta altura.

Keelin meneou sua cabeça sem entender o que lhe ocorria.

— Ainda não posso ter certeza disso, meu tio. Ainda não...

Keelin não desceu para jantar junto aos outros convi­dados naquela noite, fazendo Marcus concluir aborrecido que se precipitara mais uma vez. Sentara-se entre o barão de Selby e sua família, e vez ou outra pedia a algum empregado que enchesse novamente sua caneca de cer­veja.

Nada parecia mais infeliz que a ausência de Keelin entre eles, pensou Marcus sentindo o peso do álcool em sua cabeça e a tristeza em seu coração.

Um dos artistas da trupe de circenses que estavam abrigados em Wrexton sugeriu representar uma curta pe­ça cômica para os presentes. Todos adoraram a idéia e Marcus aceitou a proposta do ator, permitindo que outros membros do grupo viessem junto a eles. O texto interpre­tado naquela noite descrevia a história de um ridículo e atrapalhado cavaleiro que decidira conquistar a mulher mais cobiçada de todo o Reino. O progresso da conquista irônica fez Marcus sentir-se tão tolo como o personagem principal.

Durante todos os anos em que sofrera de forte timidez e uma angustiante falta de jeito com mulheres aquilo pa­recia o pior que poderia abater-se sobre ele. Mas estava enganado, concluiu recordando o rosto delicado e belo de Keelin iluminado pela tocha flamejante na torre durante a tarde. Era a mais bela mulher que já havia visto em toda a sua vida e, pela primeira vez, finalmente acredi­tava que encontrara alguém com quem compartilhar o resto de seus dias.

E justamente agora que a encontrara teria que deixá-la partir.

Marcus bebeu um grande gole de cerveja e sentiu o líquido descer-lhe pela garganta com dificuldade. Os ar­tistas continuavam a encenar diante dos convidados, mas nada do que dissessem o faria sentir-se melhor. Ergueu-se da cadeira e rapidamente afastou-se do grupo, deixan­do a caneca de bebida sobre a mesa. Temia que seu con­denável humor pudesse afetar a todos os presentes e es­tragasse a apresentação dos artistas circenses.

Sentia-se tão furioso quanto o tempo do lado de fora do castelo. Atravessou o corredor e buscou seu casaco de peles escondido atrás da porta de entrada, decidido a sair. Não sabia exatamente para onde iria, mas não gostaria que ninguém o cruzasse daquela forma. Nem homens, nem bestas selvagens mereciam suportá-lo com tamanho mau humor, pensou raivoso. Não se sentia em condições de manter a postura civilizada de sempre. Queria a soli­dão e o frio da noite de inverno como companhia, e nada mais.

O frio enregelante e a ventania ensurdecedora logo o fizeram desistir de sua intenção de caminhar pelas re­dondezas do castelo. Não conseguiria atravessar o portão da fortaleza, mesmo sentindo o calor da bebida correndo-lhe pelas veias. Preferiu esconder-se na torre, junto às aves amestradas. Lá nada o importunaria e não seria na­da difícil de encontrar algum tipo de atividade. Polir co­leiras, reabastecer os cestos de ração, enfim, algo que fi­zesse o tempo passar mais rápido e menos dolorido. Tal­vez pudesse divertir-se um pouco mais com os filhotes de gaviões.

Qualquer coisa, pensou enquanto subia os degraus da longa escadaria, para manter sua mente ocupada e dis­tante das lembranças de Keelin e do sentimento que nu­triam um pelo outro.

Uma terrível corrente de vento fazia com que a porta principal batesse incontrolavelmente contra o batente e Marcus estranhou o fato de ela estar, àquela altura da noite, ainda destrancada.

Assim que adentrou o recinto, abandonado na total es­curidão da noite, Marcus foi tomado por maus pressenti­mentos. Caminhou até o local onde ficavam guardadas as lamparinas e acendeu uma pequena chama que o ajuda­ria a locomover-se pelo cômodo na última tocha que ilu­minava a escadaria.

Tão logo a luz se fez presente no pequeno recinto, Mar­cus chocou-se com a cena que vira e, atônito, começou a buscar uma explicação para a devastação que ocorrera no lugar.

Guinevere e Cléo não estavam em seus respectivos po­leiros, nem os dois filhotes ainda em treinamento.

E onde estava Gerard?

Marcus ergueu o braço para propagar a iluminação pre­cária e deu alguns passos receosos pelo chão do cômodo. Tudo fora propositalmente remexido e nada parecia estar em seus devidos lugares. Pedaços de coleiras partidas, ferramentas, velas, lâmpadas quebradas. A escrivaninha de trabalho fora parcialmente quebrada e suas gavetas estavam caídas ao chão assim como os seus conteúdos.

— Gerard? — chamou Marcus enquanto caminhava de um lado para outro da construção antiga, procurando en­xergar um pouco mais do que a parca luz lhe permitia.

Não ouve resposta ao seu chamado, o que fez Marcus continuar em sua busca frenética por uma razão para tamanha desordem. Outros dois pássaros haviam também desaparecido.

Para onde haviam sido levadas as aves?, pensou Mar­cus aflito diante da enorme perda.

Seguindo pelas sombras, Marcus tropeçou no que lhe parecera um corpo estendido no chão. Um abafado gemido de dor comprovou sua intuição. Já imaginando o que iria enxergar, aproximou a lamparina fraca e virou o homem de barriga para cima.

— Gerard! — gritou Marcus ao ver a face ensangüentada do amestrador de aves. Ele ainda respirava, pensou Marcus, tentando controlar o nervosismo e buscando uma saída para salvar o velho e bom amigo.

O homem ferido gemeu mais uma vez, apesar de man­ter os olhos cerrados e a expressão estática.

Marcus tentou despertá-lo balançando sua cabeça gen­tilmente. Após algumas tentativas Gerard finalmente abriu os olhos e tentou pronunciar algumas poucas e incompreensíveis palavras.

— Lorde Marcus...

— O que aconteceu aqui, Gerard? — Marcus pergun­tou. — Alguém o agrediu com violência. Sua cabeça foi atingida...

— Eu estou bem — sussurrou o homem recobrando a consciência perdida. — Golpearam-me covardemente en­quanto estava de costas.

— Conte-me o que aconteceu. Quem fez isso? — ques­tionou Marcus voltando a vasculhar o cômodo abandona­do na mais completa bagunça.

— Dois homens — replicou Gerard recostando-se num móvel caído e levando as mãos até o crânio ferido.

— E quem eram esses dois homens?

— Não sei lhe dizer, milorde — comentou o amestrador com a expressão cheia de dor. — Não eram rostos conhe­cidos. Não me pareciam da vila, muito menos do castelo. Talvez sejam uns dos homens que estão alojados do frio esperando para seguir viagem. Desculpe não poder aju­dá-lo mais. Minha cabeça está parecendo um tambor...

— Não se aflija, Gerard — disse Marcus com firmeza.

— Fique aqui enquanto desço em busca de ajuda. Marcus atravessou a porta e desceu a escadaria sen­tindo o sangue ferver-lhe por todo o corpo. O efeito ine­briante da bebida desaparecera por completo e ele buscou pelos homens armados que protegiam a frente do castelo. Logo outros ajudantes surgiram no meio da noite. Uns se encarregaram de arrumar o cômodo destruído e outros em ajudar Gerard com o seu ferimento.

O encarregado pelos animais de carga olhou os poleiros vazios e, apoiando as mãos no quadril, interrogou os ou­tros homens presentes.

— Onde estão as aves?

— Eles as levaram — retrucou Marcus, chegando à única conclusão possível para o sumiço dos seus animais de estimação. Apesar da grande bagunça no local, ele sen­tiu falta das gaiolas de transporte dos falcões. Parecia-lhe óbvio que os intrusos haviam carregado as aves com eles.

— Se estiverem longe o bastante a esta altura para não serem pegos por meus homens, tentarão negociá-las por um valor exorbitante.

— Devemos então organizar uma caçada aos bandidos, milorde? — perguntou o empregado curioso com o desfe­cho do grande mistério.

— Ainda não — disse Marcus mantendo o olhar perdido na escuridão do cômodo. — Confirme com nossos homens se algum dos alojados partiu esta noite. Em caso contrá­rio, quero que comecem a procurar por pistas em todos os cantos de Wrexton. Não quero que nenhum aposento deixe de ser revistado, ainda esta noite.

 

— Tem certeza que isso é mesmo necessário? — perguntou o jovem e choroso Adam, sem esconder sua tris­teza diante da notícia da partida de Keelin.

— Sim, Adam — replicou ela sem conseguir disfarçar a profunda angústia que lhe atormentava a alma. — Tão logo o tempo melhore, partirei para casa. Tenho certeza de que meu querido tio Tiarnan deva ter lhe contado todas as histórias de nosso clã. E como eu mesma lhe contei, eles precisam de minha presença agora, mais que nunca.

— Mas eu também preciso de você aqui! — Não fazia parte da personalidade de Adam implorar por coisa algu­ma, porém, cansado de tentar argumentar suas razões, achou conveniente ir ao extremo. Tudo para evitar que Keelin partisse para sempre, pensou o menino entriste­cido. — E Marcus? — prosseguiu ele. — Como acha que ele ficará depois que for embora?

— Estou certa de que nada de ruim acontecerá nem a ele nem a você, meu jovem rapaz — retorquiu Keelin, fazendo grande esforço para manter-se calma e decidida diante da insistência do garoto. — Um homem corajoso como Marcus não permanecerá sozinho por muito tempo. Isolda poderá continuar...

— Está errada, Keelin! E sabe disso — interrompeu Adam, aparentemente desesperado. O menino tentava enxugar as dolorosas lágrimas de tristeza que lhe escor­riam pela face. — Ele nunca viu Isolda da mesma forma que a vê. Várias vezes meu tio Eldred sugeriu que Marcus a desposasse, mas ele sempre recusou a proposta. Não será diferente agora. Já reparei como também olha para ele. E sei o que isso quer dizer...

Keelin abaixou os olhos em direção ao chão encerado do cômodo claro e agradavelmente aquecido pelas chamas da lareira. Sentia-se embaraçada diante da argumenta­ção sólida e convincente de Adam e não gostava de pensar o que mais o jovem garoto tinha observado enquanto todos o imaginavam inconsciente sobre a cama.

— Escute-me, Adam. É muito jovem ainda — Keelin voltou a falar lentamente. — Não pode entender o peso da responsabilidade e da obrigação. Mas sei que um dia conseguirá compreender-me. E aí...

De súbito, a respiração de Keelin foi interrompida como se alguém a golpeasse violentamente e de maneira ines­perada. Enquanto procurava por ar, pressentiu a aproxi­mação de mais uma de suas assustadoras visões.

Num velho celeiro caindo aos pedaços, no vale congelado pelo terrível inverno, a nevasca aproximava-se lentamente na forma de grandes e ameaçadores redemoinhos que con­tornavam a pesada estrutura de pedras abandonadas, e fazia com que das pontas dos galhos das árvores pendes­sem grossas e afiadas adagas de gelo, alertando sobre o perigo iminente. Na entrada, o sangue vermelho maculava a neve alva dispersa pelo chão do casebre e Ga Buidhe an Lamhaigh corria o risco de perder-se para sempre...

Uma apavorante sensação de terror acompanhou a vi­são que Keelin sentia aproximar-se nos últimos dias. Além da terrível intuição de que um grande mal a seguia por todos os lados, dia e noite. Todavia, ela ainda não conse­guia dizer com certeza que mal era aquele. Se ao menos...

— Keelin? — gritou Adam assustado com a expressão aterrorizante de Keelin. — O que está acontecendo? Você está bem?

Keelin chacoalhou a cabeça e retomou seus sentidos dispersos pela rápida visão. Não pretendia alarmar Adam com suas misteriosas previsões.

— Sim, estou bem — disse ela retomando a linha de pensamento e recuperando o equilíbrio físico após o cho­que. — Pensava em como aproveitar melhor o meu tempo. Bem, já é tarde — comentou Keelin sorrindo para o jovem rapaz. — Está na hora de voltar a descansar, Adam. Boa noite.

Apesar de não ter planejado tocar na lança antes de voltar ao Kerry, Keelin sabia que precisava de maiores detalhes sobre a última visão que tivera. E parecia-lhe imperativo descobrir a verdade o quanto antes. Era ne­cessário preservar Ga Buidhe an Lamhaigh de qualquer risco.

Somente tocando o talismã sagrado e sofrendo resig­nada as desconfortáveis conseqüências que isso lhe traria, conseguiria prever com exatidão o que o destino reservava para todos.

Os sons da festança no andar de baixo podiam ser cla­ramente ouvidos por Keelin do corredor onde atravessava em direção aos seus aposentos. Mesmo com todos os pe­quenos distúrbios que Marcus vinha sofrendo nos últimos dias, Keelin sabia que ele não poderia deixar os convida­dos até o último deles retirar-se do salão principal. E aqui­lo a tranqüilizava sobremaneira. Marcus estava envolvido com seus convidados bem ali, no andar de baixo. E aquela proximidade acalentava seu ferido coração.

Decidira não dividir com o tio sua intenção de usar dos poderes de Ga Buidhe an Lamhaigh ainda naquela noite, porque sabia que o velho Tiarnan não ficaria nada contente com a impulsiva decisão que tomara. Ao invés disso, procurou adentrar silenciosamente em seu quarto, ilumi­nar o cômodo com a ajuda de velas e erguer o colchão na mais profunda solidão.

Mas, para sua surpresa, Ga Buidhe an Lamhaigh não estava lá e nem o pequeno saco de moedas de ouro que guardara junto com a lança.

Keelin preferiu acender a lamparina antes de começar a vasculhar o quarto finamente decorado com cuidado. Lembrava-se muito bem do momento em que voltara a lança para debaixo do colchão, no esconderijo secreto que Marcus a revelara, tão logo Tiarnan decidira recolher-se em seu quarto para descansar. Seu tio era o único que conhecia o esconderijo, além de Marcus, é claro. Porém, parecia-lhe pouco provável que o velho tio tenha decidido voltar ao dormitório depois de recolher-se com a intenção de levar a lança e o saco de moedas para junto dele. Di­ficilmente as limitações de visão e de saúde de Tiarnan lhe permitiriam isso. Erguer o pesado colchão e pegar os preciosos itens parecia tarefa impossível para o senhor adoentado.

A lança devia estar escondida ali mesmo, em algum lugar, pensou Keelin voltando a vasculhar o cômodo apa­rentemente intocado desde a última vez de que estivera ali. Apesar de não poder sentir sua presença, Keelin se­guia mais uma vez sua intuição reveladora.

E passara assim, vasculhando cada canto do aposento, durante longos e intermináveis minutos. A lança, ao que tudo indicava, não estava escondida no quarto, muito me­nos o pequeno saco de moedas. Era lá que guardava o velho broche de ouro que herdara de sua mãe, um artefato simples, mas que possuía um grande valor familiar. Lem­brou-se do cuidado que seu pai tivera guardando a jóia por longos anos junto a ele.

O intruso que invadira seu aposento provavelmente le­vara tudo o que tinha de mais valioso ali. Ainda que a explicação lhe parecesse razoável, sua intuição a alertava para novos perigos. Mas, apesar de tudo o que pudesse ter acontecido em seu quarto durante sua ausência, nada poderia ser mais relevante que o desaparecimento de Ga Buidhe an Lamhaigh. E algo precisava ser feito imedia­tamente.

Ela tinha que encontrar Marcus.

Estava decidida a não mais procurá-lo até o momento de sua partida. Gostaria de evitar sua presença e a pro­ximidade entre eles, o que sabia, seria para ambos uma enorme tortura. E Marcus devia estar muito zangado com ela, principalmente depois do desfecho que dera para o encontro na torre durante a tarde. Todavia, tinha poucas opções naquele instante e tudo o que queria era salvar o talismã mágico de seu povo das mãos dos mercenários ladrões.

Ao sair de seu quarto, colidiu com a figura arisca e assustadora de Beatrice, aia de Isolda no sombrio corre­dor deserto. Nunca trocara uma única palavra com a misteriosa mulher, mas, mesmo assim podia sentir nela uma inexplicável hostilidade desde o dia em que Beatrice fla­grou Marcus e ela nos jardins do castelo.

A mulher carrancuda surtia-lhe um efeito paralisante. Como uma aranha pronta para atacar sua presa, Beatrice cravava-lhe os olhos hipnotizantes com sádico prazer.

— Perdeu algo, minha senhora? — perguntou malicio­samente a aia.

Imediatamente as suspeitas de Keelin caíram sobre a empregada, apesar de duvidar que Beatrice pudesse ser tão ingênua a ponto de acreditar que não levantaria sus­peita com o comentário oportuno. Mas, como poderia ter descoberto Ga Buidhe an Lamhaigh escondida debaixo do colchão? A não ser que tivesse ouvido alguma de suas conversas com Tiarnan por detrás da porta... Sim, sua intuição havia lhe alertado sobre o risco que corria quan­do revelava a seu tio seu plano de partir de Wrexton o quanto antes, lembrou Keelin desconfiando da índole maquiavélica da criada.

— Sim — reclamou Keelin encarando a aia de Isolda com firmeza. — E exijo uma explicação sua, Beatrice, agora.

A mulher assustada disparou seus grandes olhos ne­gros para um canto do corredor, tentando disfarçar seus verdadeiros pensamentos. Por várias vezes Keelin sentira o peso daquele olhar sobre ela, embora nunca os tivesse encarado frente a frente, como naquele momento.

— Um homem... — Beatrice começou a falar lentamen­te. — Um dos cavaleiros alojados em Wrexton... — pros­seguiu a mulher titubeante. — Um olho escuro e outro claro. Procurava por objetos de valor. Coisas caras como os livros raros de lorde Marcus, mas eles lhe pareceram muito pesados, eu acho. Acho que o vi saindo de seu quar­to e comentando que agora era finalmente um homem rico, muito rico...

— Quero saber de tudo, Beatrice. Tudo, entendeu? — Keelin questionava a mulher furiosamente.

— E por que lhe esconderia algo, milady? — replicou a mulher com um tom de voz meloso, ao mesmo tempo antipático. — Acho que o ouvi resmungar sobre um esconderijo, um lugar ermo onde pudesse se esconder do frio e da neve até que os cavaleiros de lorde Marcus de­sistissem de procurá-lo.

— O delinqüente revelou-lhe muitos segredos... Ou ti­nha a língua solta ou algum tipo de predileção especial por você.

Beatrice sorriu sarcasticamente.

— Talvez...

— Então, o que mais o homem lhe revelou?

— Acho que já sabe o bastante, milady — murmurou a mulher voltando-se de costas para Keelin pretensiosamente. — Temos suportado sua presença em Wrexton nos últimos dias para evitar problemas com lorde Marcus, mas quero deixar claro que lady Isolda e eu não deixare­mos que arruíne nossos planos.

— O que esta dizendo?

— Lorde Marcus está enfeitiçado — Beatrice resmun­gou com ódio. — mas não permitiremos que esse casa­mento aconteça. Jamais...

Keelin meneou a cabeça sem entender o comentário da criada insolente. Todos sabiam de seus planos de voltar ao Kerry o quanto antes. Além do que, distanciou-se da conversa central que travavam, o homem que furtara Ga Buidhe an Lamhaigh de seu quarto. A aquela altura, já não se importava com as poucas moedas valiosas que perdera, nem mesmo com o broche que guardava como uma única lembrança de sua mãe. Tudo o que mais lhe impor­tava era a lança mágica. Para onde o inescrupuloso homem a levara?

— Fale mais sobre o homem que entrou em meu quarto e roubou minhas coisas — ordenou Keelin com bastante raiva.

— Há um pequeno vale, depois da colina coberta de gelo, ao leste do castelo. Lá, existe um celeiro abandonado há muitos anos. Talvez ele tenha decidido por esconder-se por ali...

A visão. A última premonição de Keelin revelara-lhe o local escolhido pelo bandido para refugiar-se do frio e do vento. Uma velha construção, paredes de pedras parcial­mente destruídas pelo tempo... Keelin sabia que poderia encontrar o celeiro escondido no vale.

Beatrice caminhou com passos curtos para longe de Keelin, fazendo-a sentir-se muito melhor com a distância entre elas. A maliciosa aia estava tentando manipulá-la com um velho jogo, pensou ela recostando-se na parede fria do corredor silencioso.

Aspirou o ar cortante da noite com dificuldade e decidiu descer até o salão principal a procura de Marcus. Não pode testemunhar o brilho gélido e maldoso do olhar de Beatrice escondida na penumbra da galeria.

Os artistas haviam acabado de se retirar da sala, mas os músicos continuavam a alegrar os convidados com pe­ças doces e suaves, relembrando belas cantigas de amor. Alguns dos visitantes dançavam pelo salão alegremente, enquanto outros se sentavam à beira do fogo da lareira para travar conversas das mais diferentes. O barão Selby e sua esposa levavam as crianças para seus aposentos e Keelin imaginou que o destino do casal também seria o mesmo.

Para sua surpresa nem Marcus, nem nenhum de seus cavaleiros estavam no salão principal naquela noite.

Sem supor o acontecido, Keelin interrogou os serviçais sobre o paradeiro de Marcus, mas as respostas eram sem­pre evasivas e muito semelhantes. Não conseguia imagi­nar onde ele e seus cavaleiros de confiança poderiam ter se metido a aquela altura da noite.

Finalmente um dos empregados que serviam no está­bulo alertou-a sobre o incidente na torre. Preocupada com as dimensões do incidente e ansiosa por notícias sobre a saúde de Gerard, Keelin subiu até seus aposentos para buscar o casaco e caminhar com passos decididos até a torre onde os animais ficavam instalados.

Tão logo devidamente protegida do frio, subiu as esca­darias do castelo com rapidez pensando encontrar Marcus sentado, com aparência desolada e abatido num dos can­tos do cômodo. No cativeiro das aves apenas alguns ho­mens terminavam a arrumação do local.

Onde mais poderia procurar por Marcus?, concluiu afli­ta após interrogar inutilmente os homens na torre sobre o atual paradeiro dele e dos outros.

Naquele momento viu o vulto curvado de Gerard, ainda combalido pela forte pancada na cabeça.

— Oh, meu Deus! O que aconteceu aqui, Gerard?

— Ladrões, milady — respondeu o amestrador ferido. — Levaram Guinevere, Cléo e os pequenos filhotes de gaviões...

— E você? O que fizeram com você, Gerard? — Keelin sabia o quanto eram preciosas para Marcus as aves que mantinha sob o restrito contato de Gerard e alguns poucos empregados, mas preocupava-se ainda mais com a vida do pobre amestrador vítima dos violentos bandidos.

— Um golpe certeiro — respondeu o homem mostran­do-lhe o corte no alto da testa.

Mas, afinal, quantos ladrões passaram por Wrexton na­quela noite?, perguntou-se Keelin lembrando-se do roubo de Ga Buidhe an Lamhaigh.

Ela fechou os olhos, perturbada com a perspectiva de perder o poderoso talismã para sempre.

Ao que tudo indicava fora o mesmo homem que aden­trara seu quarto na calada da noite, o responsável pelo ataque a Gerard e o roubo das aves. E parecia evidente que seu método de abordagem tinha mudado radicalmen­te de um cômodo para outro, concluiu, observando os objetos quebrados e jogados de um lado para o outro na torre.

Tudo parecia muito estranho para Keelin. Porém, tinha certeza de uma coisa. Se quisesse salvar Ga Buidhe an Lamhaigh precisava agir, e rápido.

Ela, Keelin O'Shea, fora encarregada de ser a guardiã da lança, relíquia sagrada de seu povo. Parecia-lhe lógico responsabilizar-se também pelo seu resgate. Acreditava que o poder mágico do talismã a atrairia para o esconde­rijo do bandido. Tinha certeza que, mais dia ou menos dia, ficaria de frente para com o criminoso que levara seus pertences e as aves preciosas de Marcus.

 

Nada impedira a passagem de Keelin pelos portões do castelo. Nenhum dos homens de Marcus questionou sua jornada noturna. Provavel­mente, concluiu ela, imaginaram tratar-se de uma das convidadas para o jantar.

Ela atravessou as ruas do vilarejo, seguindo as pegadas deixadas na neve pelos animais que Marcus disponibilizara para a caçada ao criminoso. O vento cortante atravessava os pesados tecidos de seus trajes, mas Keelin es­tava decidida a prosseguir adiante, apesar do frio intenso. Não tinha outra opção que não perseguir Ga Buidhe an Lamhaigh e o ladrão que a levara. Não poderia contar com que Marcus ou ninguém a buscasse por ela. Sabia que o homem que invadira seu quarto era auspicioso o bastante para escapar de todo o forte exército de Wrexton, mas ela poderia encontrar a lança, buscando por ela em pensamento. Sabia que o talismã deixaria rastros de sua presença e ela parecia ser a única pessoa capaz de reco­nhecer essas pistas, muito mais sutis que as pegadas dei­xadas na neve.

Continuou caminhando até alcançar uma pequena pon­te de madeira que interligava as margens de um rio con­gelado. O vento, naquela região, parecia ainda mais vio­lento, pensou Keelin esforçando-se em sua caminhada.

Marcus deveria estar alguns quilômetros adiante, con­cluiu facilmente, avistando as marcas ainda profundas deixadas pelos animais na neve. Era possível que ele e seus homens seguissem o rastro do bandido. Então, tam­bém seguia no caminho certo, imaginou contente enquan­to atravessava a ponte.

Foi quando sentiu o primeiro sinal da lança mágica. Ga Buidhe an Lamhaigh não estava na direção em que Marcus a buscava. O sinal que recebia vinha a oeste de onde estava a caravana dos homens de Wrexton, logo de­pois de um pequeno vilarejo que rodeava as imediações do castelo.

Keelin voltou seus olhos em direção as montanhas e imaginou que o sagrado talismã de seu povo devia estar sendo levado naquela direção. E era para lá que ela deveria se encaminhar também, apesar de saber-se cada vez mais distante da caravana de Marcus, que seguia na direção contrária.

Não havia muitas opções, pensou ela, convencida de sua missão de resgatar Ga Buidhe an Lamhaigh. Teria de segui-la, mesmo sozinha. Se não o fizesse, e logo, poderia perder a chance de recuperar a lança para sempre.

Ou os ladrões haviam saído de Wrexton muito antes do que imaginara ou cavalgavam incrivelmente rápido, pen­sou Marcus. Não acreditava na capacidade dos dois crimi­nosos de enganá-los, despistando-os daquela maneira.

Continuou em sua caçada aos bandidos seguindo sem­pre para o sul, acompanhado de perto por Willian e Robert que o ajudavam a desvendar as supostas pistas deixadas pelo caminho.

Marcus sentia o ódio transbordar por todo o seu corpo. Fora gentil com os dois homens, dando-lhes guarida e proteção do frio e havia sido recompensado daquela forma. Além das aves da torre, os homens haviam roubado o ouro que guardava na sala de estudos e alguns casacos de pele de seu falecido pai que ainda estavam no armário de roupa no antigo quarto de Eldred de Grant.

Os dois cavaleiros passaram de todos os limites, ima­ginou ele, lembrando-se de suas queridas aves de estima­ção. Alcançaria os dois bastardos e os faria pagar por todos os seus crimes.

— Lorde Marcus! — chamou sir Willian. — Os animais estão esgotados. Precisamos deixá-los descansar ou não conseguirão terminar a jornada.

O mau tempo parecia não querer ajudá-los. A chuva fina e fria começava a transformar-se numa forte tem­pestade de neve e o vento castigava mesmo os homens mais agasalhados. Marcus imaginou que os dois bandidos não deveriam estar ao relento, mas escondidos em algum rancho abandonado, esperando a melhora do clima para seguir viagem. Haviam levados dois cavalos fracos e pou­co acostumados com longas travessias. Além disso, car­regavam as aves junto a eles, o que dificultava ainda mais a fuga almejada.

— Não pararemos agora — objetou Marcus, apertando o cachecol contra a garganta tentando proteger-se do frio. Sentia-se confortado por saber que Keelin estava prote­gida, provavelmente dormindo, atrás das muralhas do castelo.

— Milorde! — Um grito rouco despertou-lhe a atenção outra vez. Haviam atingido o ponto mais alto da região e de lá puderam ver os dois homens fugindo pelo vale, guiando seus cavalos a oeste de onde estavam.

Rapidamente, Marcus orientou seus homens que, for­çando o passo dos cavalos, logo se aproximaram dos dois criminosos sem deixarem-se ver por eles.

— Parecem que discutem um com o outro, aos berros — comentou sir Robert, abaixando o tom da voz para não ser percebido por detrás das rochas congeladas.

— Vamos atacar! — ordenou Marcus.

Tão logo se viram perseguidos por uma escolta de ca­valeiros de Wrexton, os dois homens tentaram, em vão, agilizar os passos dos animais que montavam. Os cavalos, exaustos com a maratona, não responderam as ordens dos bandidos que logo decidiram mudar de tática. Um deles saltou do animal e, carregando um grande embrulho nas mãos, correu pelo descampado congelado o mais rá­pido que pode. O outro, vendo-se cercado, ergueu as mãos para o alto e caiu da sela, temendo represálias dos ho­mens armados de Marcus.

Sir Willian saltou do animal que montava e segurou o homem pela gola do casaco. A figura horrorizada pelo ter­ror da punição ergueu os olhos com cuidado, buscando identificar o inimigo à distância. Marcus, observando o cavaleiro marginal desesperado de medo imaginou que não seria difícil descobrir o paradeiro do irmão que con­seguira escapar pelos corredores rochosos do vale.

— Clemência, senhor, clemência! — gritou o homem ao ver Marcus aproximar-se do lugar onde estava caído. — Eu só queria levar as aves, nada mais. Meu irmão foi o único culpado pelo roubo da lança...

— Lança? De que está falando, miserável gatuno? — questionou Marcus sem entender a razão daquele comen­tário.

— A criada convenceu meu irmão que a jóia era pre­ciosa, que havia pessoas interessadas nela. Não nos mate, senhor. Tenha misericórdia...

Impaciente, Marcus levantou o rosto do bandido segu­rando-lhe pelos cabelos. Algo lhe dizia que a situação era pior do que imaginara.

— Conte-me tudo e não o matarei, bastardo. De que lança falava e quem é a criada que trocou segredos com seu irmão?

— Eu não sei o seu nome. Não a conheci pessoalmente. Pouco antes do jantar meu irmão fora chamado até a co­zinha e ela estava lá, esperando por ele. Já a tinha visto no salão principal junto com sua prima, lady Isolda.

— Beatrice... — sussurrou Willian afrouxando os pu­nhos fechados junto à garganta do bandido rendido.

— Ela comentou que havia um tesouro muito valioso escondido em um dos quartos. Uma lança...

— E por que pediria a vocês que roubassem a lança? Por que ela mesma não a pegou, então? — perguntou Marcus desconfiando que as coisas talvez não estivessem tão bem com Keelin como concluíra, momentos antes.

— A criada era esperta, sabia que estávamos rondando a torre e a sala de estudos em busca de coisas valiosas. E a que ela pediu em troca foi muito pouco.

— O que Beatrice pediu a vocês? Fale logo — ordenou Marcus sacolejando o marginal com força.

— Há uma cabana, logo ali embaixo, junto ao vale. Ela nos pediu para nos escondermos lá por algumas horas. Parecia ter certeza que a dona da lança iria ao nosso encontro, de alguma forma.

— Diga de uma vez! — bradou Willian procurando os olhos de Marcus em pânico.

— Ela pediu para que a matássemos e depois podería­mos partir para sempre.

— E acha que seu irmão está a caminho da cabana neste momento?

O bandido retorcido no chão coberto pela neve fez um movimento tímido com a cabeça, respondendo afirmati­vamente a pergunta de Marcus.

Uma aguda pontada de terror atravessou o peito de Marcus. Keelin estaria também a caminho da cabana, caindo na cilada macabra de Beatrice? Até onde iriam os impulsos maquiavélicos da criada maldita?, pensou ele voltando os olhos para as montanhas que recostavam o vale.

 

O ombro ferido de Keelin doía-lhe ao menor movimen­to. Suas vestes encharcadas pela chuva pesavam sobre seu corpo cansado e o frio começava a congelar a ponta de seus dedos, assim como seu nariz e orelhas, apesar do grosso capuz de peles.

O vento congelante atravessava o couro dos animais com extrema facilidade, pensou ela, sentindo a espinha entrecortada por uma rajada. Porém nada lhe parecia pior que a simples idéia de nunca mais reencontrar Ga Buidhe an Lamhaigh.

Um sinistro raio de luar iluminava o vale naquela noi­te. A única coisa que guiava Keelin pelos caminhos des­conhecidos era uma intuição forte sobre a proximidade da lança. Fazia muito tempo que as pegadas do bandido haviam desaparecido por completo.

Além do peso das roupas e o incômodo do frio cortante, Keelin sentia-se incomodada pelo peso da obrigação que carregava sozinha nos últimos anos. A lança mágica, tão importante para seu povo, estava sob sua exclusiva res­ponsabilidade e carregar um fardo tão pesado como aque­le lhe parecia tarefa das mais duras. Não se lembrava de ter vivido momentos de felicidade ou alegria desde que fora decidido o seu destino pelos anciãos do clã. Ga Buidhe an Lamhaigh transformara-se num terrível pesadelo em sua vida e a cada dia sentia-se mais e mais enfraquecida.

Ela não conseguia entender por que seu povo acredi­tava que o poder sobrenatural da lança era o que os man­tinham fortes e unidos. Todavia, crescera ouvindo histó­rias sobre a superioridade do clã O'Shea graças ao presente divino e não poderia pensar diferente que toda a sua família, diferente de seu pai.

Marcus... Era Marcus que a fazia ter idéias tão tolas e pouco dignas como aquela, concluiu Keelin sentindo o corpo cansado da jornada que se impunha com rigor. Co­mo podia pensar em abandonar o talismã sagrado junto a um bandido sem caráter somente para ficar ao lado de Marcus? Por que, de uma hora para outra, toda sua vida parecia virar de cabeça para baixo?

Seu destino já estava traçado. Voltaria ao Kerry e ca­sar-se-ia com o homem predestinado por seu pai. O amor surgiria com o passar do tempo. Um casamento não po­deria realizar-se baseado somente em sensações devasta­doras e emoções descontroladas. Um homem e uma mu­lher também deveriam unir-se pelo bem de seu povo em uma grande aliança estratégica.

Não, aquela idéia parecia-lhe terrível. Keelin sentiu seus dedos mexerem-se com grande dificuldade e conse­guia perceber que suas pernas não agüentariam muito mais.

Odiava pensar aquilo, mas talvez o mais sensato a fazer fosse voltar para Wrexton e esperar pelo retorno de Mar­cus. Olhou para trás e surpreendeu-se com o desapareci­mento rápido de suas pegadas. Mesmo que quisesse agora parecia tarde demais para voltar atrás. Estava perdida.

Só um sentimento a guiava e ele a levava de encontro a Ga Buidhe an Lamhaigh, agora mais que nunca.

 

Marcus pediu para trocar o animal que montava por outro, mais ágil e veloz. Ergueu o pano que recobria as gaiolas penduradas sobre o lombo do cavalo roubado pela dupla de ladrões, Guinevere e Cléo pareciam bem e, apa­rentemente nada havia acontecido com os filhotes.

— Levem as aves rapidamente ao encontro de Gerard — ordenou a um dos cavaleiros que o acompanhava na­quela noite. — Sir Willian e sir Robert seguirão comigo ao encontro do outro homem. Deixem-nos mantas e co­bertores extras.

Sentindo seu coração apertado, Marcus temia pela vida de Keelin. Tinha de alcançar a cabana antes que uma tragédia ocorresse por lá.

O frio talvez a tivesse impedido de sair em busca da lança. Ou talvez estivesse perdida pelo vale, congelando lentamente, já sem esperanças de recuperar o talismã sagrado de seu povo, pensou ele aflito pela possibilidade de perder Keelin para sempre.

Mas tudo o que ela mais desejava era reencontrar a lança e partir de Wrexton, de volta a sua terra natal, onde um homem completamente estranho esperava des­posá-la, pensou Marcus montando no animal e preparan­do-se para voltar a cavalgar.

Uma idéia absurda começou a tomar forma em sua mente. Ajudaria Keelin recuperar a lança e a deixaria partir de volta para o Kerry, mas, com uma única condição. Ele iria acompanhá-la até Carrauntoohil e lutaria por seu amor, desafiando o pretendente escolhido por Eocaidh O'Shea para um combate. O vencedor casar-se-ia com Keelin.

Apesar de arriscada, a idéia encheu Marcus de espe­ranças de poder, enfim, lutar pelo seu amor. Não poderia assisti-la partir para os braços de outro homem sem ao menos competir pelo coração da mulher de sua vida.

Todavia, para isso, precisava salvá-la do ladrão que a esperava na cabana perdida no meio do vale e do frio congelante.

 

Keelin percebeu o tremendo erro que havia cometido ao sair pela noite, sozinha e sem proteção alguma. Nem mesmo as orações que aprendera no Kerry a salvariam de morrer congelada, longe de Wrexton e de todos a quem queria tanto bem.

No meio da neve, nada parecia fazer muito sentido. Queria chorar, mas sabia que suas lágrimas de nada ser­viriam naquela situação. A única possibilidade que ainda lhe restava era seguir adiante, atendendo a direção im­posta por sua intuição.

Alguns passos adiante avistou uma sombra negra e alta cravada no meio do vale muito branco. Não era a sombra de um homem, nem um rochedo, mas, provavel­mente, a cabana que vira em sua última premonição.

Ela caminhou titubeante, apoiando-se como podia aos montes de gelo amontoados pela trilha que a levaria até o local. A curiosidade substituiu o terror da morte que a pouco lhe assolava a alma.

Tudo parecia deserto. Nenhum barulho, além do vento e da chuva, denunciava a presença de alguém que não ela por ali.

O velho celeiro abandonado parecia ainda mais assus­tador que em sua visão. Rodeou a casa com passos rápi­dos, procurando por sinais do bandido ou da lança mágica. Tudo era exatamente como havia previsto. As paredes, a madeira velha e apodrecida, o chão coberto de gelo, ape­nas a mancha de sangue no chão não estava ali.

Keelin desejou ardentemente estar em outro lugar, mais aquecido e seguro. Sentia como se a morte rondasse o velho casebre e ela parecia perseguir-lhe de perto.

Alcançou a porta e para sua surpresa, ela estava em­perrada. Ninguém, então, estivera ali antes dela, pensou aliviada. Imaginou não poder empurrar a porta com a força necessária para abri-la. Suas mãos estavam duras e seus dedos quase não se mexiam mais.

Ela sabia que aquela era a única chance que tinha de sobreviver. Tinha de arrombar a porta e proteger-se do vento. Acenderia uma pequena fogueira e recuperaria sua temperatura.

Unindo todas as forças de seu ser, Keelin jogou contra a porta e caiu, surpresa, dentro da sala. O lugar cheirava mal e o chão muito sujo. Não existia absolutamente nada de valor no lugar abandonado. Somente pequenas toras velhas de madeira que poderiam servir para o fogo, ima­ginou Keelin, cheia de esperança.

Precisava retirar a roupa úmida do corpo, mas não po­deria fazê-lo enquanto não conseguisse aquecer o salão. Aquilo lhe parecia uma tarefa impossível, pensou enquanto observava os grandes vãos entre as paredes.

Não poderia ficar ali por muito tempo, concluiu. Tão logo o dia amanhecesse tomaria o caminho de volta para Wrexton, isto é, se ainda pudesse reconhecê-lo.

Naquele instante, ouviu o barulho da porta abrindo-se atrás dela. Seu coração disparou, sobressaltado. Uma mão masculina segurou o batente e empurrou a porta com força.

O bandido chegara.

— Muito bem, mocinha... — sua voz grossa ecoou pelo casebre fantasmagórico. Keelin imediatamente o reconhe­ceu. Era um dos cavaleiros mal-encarados de quem fugira no salão, dias antes. Os olhos incomuns não lhe deixavam dúvidas. Um castanho e o outro azul. — Graças às pistas que deixou pelo caminho pude encontrar o casebre.

Keelin cruzou o cômodo com os olhos procurando algo que pudesse usar como arma, mas nada parecia ter sido esquecido por ali. Estava nas mãos do marginal.

O homem apoiou o grande embrulho que trazia nas costas junto ao chão e aproximou-se das chamas da fo­gueira improvisada.

Imóvel, Keelin viu a lança junto aos pertences do cavaleiro. Pensou em pegar Ga Buidhe an Lamhaigh e fu­gir, mas quanto tempo sobreviveria no frio congelante do lado de fora do casebre?

Sentia-se fraca e cansada. O mau tempo era talvez o seu pior inimigo. Seu único consolo era que o clima era o mesmo, para ela e para o ladrão.

— Muito gentil de sua parte acender o fogo antes de minha chegada. — O sujeito malicioso ergueu o canto dos lábios enquanto falava, esboçando um sorriso maldoso. — E impressão minha ou queria criar um ambiente mais agradável para nós dois? — Em pânico, Keelin começou a perceber quais eram as intenções do marginal. Estava per­dida, pensou aterrorizada. De nada adiantaria lutar. — Bem que a criada me disse que eu não iria me arrepender.

— Criada? De quem está falando? — perguntou Keelin desconfiada da armadilha em que acabara de cair.

— Beatrice não gosta nem um pouco da senhora.

— E foi ela que pediu para que viesse aqui?

— Sim. E não pediu somente isso, não. Ela quis que eu jurasse que lhe faria um outro favor...

Keelin olhou para o fogo e culpou-se por cair, tão tola­mente, no plano ardiloso de Beatrice.

— E... o que mais ela lhe pediu? — questionou-o, mes­mo supondo já saber a resposta.

O homem abriu a sacola que carregava e tirou de den­tro dela a pequena mochila de couro onde Keelin guarda­va suas moedas e o broche de sua mãe. Depois, desembrulhou a lança e arrumou os objetos um ao lado do outro pelo chão.

— São seus?

Keelin balançou a cabeça afirmativamente.

— Pode ficar com tudo — sussurrou ela com a voz baixa e temerosa. — Apenas me devolva a lança...

O homem de péssima aparência disparou uma sonora gargalhada.

— Eu ficarei com tudo, mocinha. E quanto à lança, sei quem pode se interessar por ela.

— Lorde Marcus virá ao seu encontro!

— Oh, pobre menina sonhadora... — o sujeito sorriu, irônico. — Lorde Marcus já encontrou o que queria. O idiota do meu irmão não conseguiu escapar dos cavalei­ros e, a esta altura, as aves de estimação já devem estar de volta a torre. Agora chega de conversa! — gritou ele erguendo-se com rapidez e caminhando em direção a Keelin. — Essa história só serviu para afastar o frio aqui de dentro.

 

A fina chuva de gelo diminuiu exatamente o necessário para que Marcus e os outros homens conseguissem acelerar o passo dos animais, au­mentando a marcha. O caminho que os levaria ao vale onde ficava o rancho abandonado contornava a propriedade de Wrexton aproximando-os muito da fronteira de terras vizinhas.

Marcus seguia em silêncio tentando imaginar o que havia ocorria a Keelin durante aquela noite. Era bastante provável que ela houvesse encontrado com o bandido e a idéia desse encontro assombrava seu coração duramente.

Temia pela segurança de Keelin e rezava baixinho, co­mo jamais havia feito em toda a sua vida. Somente um milagre poderia reter o marginal pelo caminho ou afas­tá-la do casebre.

O tempo passou vagaroso para os três homens monta­dos em seus cavalos que percorriam o caminho com gran­de dificuldade. Quando avistaram o desolado vale e o ce­leiro perdido, Marcus encheu-se de vigor, reavivando seus mais fortes instintos de batalha. Salvaria Keelin a qual­quer preço.

Saltou do animal e correu em direção à entrada do bar­raco abandonado, aparentemente, por muitos anos. Uma pequena chama iluminava o interior do celeiro e Marcus desembainhou a espada, preparando-se para lutar com o inimigo.

Preparava o ataque, juntamente com sir Willian e sir Robert que o acompanhavam em silêncio, quando um gri­to cheio de terror pegou-os de surpresa.

Keelin! Sim, era Keelin que gritava, pensou Marcus não mais contendo seus impulsos e abrindo a porta com um golpe certeiro.

A cena que presenciou encheu seu coração de ódio. Kee­lin estava caída ao chão, com a roupa em frangalhos, lu­tando bravamente contra o marginal inescrupuloso que estava sentado sobre seu corpo frágil e indefeso.

Tão logo percebera a presença dos três cavaleiros, o bandido levantou-se do chão, levando Keelin próximo ao corpo, mantendo-a como escudo. Rapidamente sacou uma faca de sua cintura e levou a lâmina afiada e fria até o pescoço de Keelin.

— Marcus... — murmurou ela, cobrindo o corpo com os pedaços rasgados das vestes que usava naquela noite.

Marcus sentiu seu sangue ferver. Como o homem sem caráter ousava pousar suas mãos grossas e indelicadas sobre Keelin! Ele pagaria muito caro por isso, prometeu enquanto arquitetava um plano para libertá-la das garras do bandido.

— Deixe-a partir — Marcus ordenou mantendo a es­pada em posição de ataque, girando os olhos pelo cômodo estranho buscando uma alternativa segura de afastar Keelin do perigo.

O marginal sabia que não tinha muitas chances de es­capar do cerco dos três homens fortemente armados. Em algum momento teria que ceder e libertar a moça, talvez em troca de sua própria vida. Mas antes teria que tentar escapar do celeiro e era o que pensava em fazer.

O homem caminhou lentamente em direção a porta, arrastando Keelin junto a ele e quando alcançou a porta, lançou-a ao chão e empunhou a arma em direção a Marcus, que com rapidez avançou sobre o bandido.

A faca afiada perfurou o braço de Marcus que, mesmo ferido, continuou lutando com o marginal, tentando im­pedi-lo de fugir do casebre. Mais uma vez o homem ameaçou feri-lo mortalmente e então, Marcus num golpe rápido e certeiro, atravessou o peito do inimigo com sua espada. Os outros cavaleiros aproximaram-se, mas o desfecho da luta já havia se consolidado. O bandido que tentara de­sonrar Keelin e roubar a lança sagrada de seu povo estava morto, caído junto ao batente da porta.

Marcus largou a arma e correu de encontro a Keelin envolvendo-a em seus braços e secando suas lágrimas com a ponta de sua capa.

— Oh, Marcus... — suspirou Keelin, mergulhada num choro convulsivo e apavorado. — Nunca senti tanto medo, em toda a minha vida.

— Nem eu — comentou Marcus respirando aliviado ao vê-la bem e fora de perigo. — Achei que não conseguiria chegar a tempo, mas, graças a Deus, está a salvo agora.

— E você... Oh, está ferido! — disse Keelin levando as mãos até o ferimento de Marcus.

— Isso não é nada.

— E a lança? Onde está Ga Buidhe an Lamhaigh?

— Aqui, milady — respondeu Robert mostrando-lhe a lança juntamente com os outros pertences pessoais que haviam sido roubados de seus aposentos.

Marcus baixou seus olhos em direção ao chão sujo do casebre e lembrou que nada, de fato, havia mudado entre eles. Keelin ainda desejava partir de Wrexton e retornar para sua terra natal e nada agora a impediria de cumprir sua missão.

Ergueu-se lentamente e buscou dentro da mochila do marginal um dos casacos de seu pai que havia sido roubado.

— Vista isso — disse ele cobrindo os ombros desnudos de Keelin com a pele macia e pesada do grosso manto. — Era de meu pai.

— Mas... — interrompeu Keelin receosa.

— Eldred de Grant faria o mesmo em meu lugar — concluiu Marcus lembrando-se da figura amorosa e soli­dária de seu pai.

Sir Willian alimentou o fogo novamente e todos se cur­varam diante das chamas procurando alívio para o frio.

— Traga os cavalos para dentro. É a única chance de os mantermos vivos — disse Marcus sentando ao lado de Keelin e envolvendo-a entre seus braços.

— Será que um dia me perdoará por ter sido tão tola como fui esta noite?

— O importante é que está bem e em segurança agora.

— Jamais devia ter deixado e castelo e ter vindo atrás do bandido que levara Ga Buidhe an Lamhaigh. Tive me­do de perder a lança para sempre e coloquei minha vida em perigo. Mas, graças a você tudo terminou bem.

Os outros dois homens arrastaram o corpo para o lado de fora do celeiro, deixando, atrás de si, um rastro de sangue sob a neve muito alva que recobria a entrada do casebre.

Aquela era a mancha de sangue que tinha visto em sua visão, pensou Keelin, contente por estar viva e ao lado de Marcus.

 

A manhã trouxe com ela um sol tímido que despertou a todos dentro do casebre perdido no vale.

Keelin passara a noite recostada no peito de Marcus que percebera quase não conseguira dormir. E ela sabia o porquê.

Marcus a amava, mais que qualquer outro homem que conhecera ao longo de toda a sua vida. E ela também não poderia mais negar seus profundos sentimentos por ele.

Estava decidida a entregar a lança ao novo líder de seu povo e voltar para os braços de Marcus, tornando-se sua esposa e companheira para o resto de seus dias. Isto é, se ele ainda a quisesse mesmo depois de ter colocado sua vida em risco de uma maneira tão boba.

Em poucos minutos os cavalos já estavam do lado de fora e a melhora no tempo animou a todos. A chuva ces­sara por completo e o retorno a Wrexton seria rápido e a viagem, com certeza muito mais agradável que a jornada da noite anterior.

Tão logo aportaram nas grades do pesado portão prin­cipal do castelo, inúmeros aldeões vieram, felizes, recep­cioná-los. A notícia do desaparecimento de Keelin espalhara-se rapidamente e todos queriam saber sobre seu estado de saúde.

O salão principal estava vazio naquela hora da tarde e Marcus imaginou que Isolda devia estar trancada em seus aposentos, juntamente com Beatrice. Assim que tro­casse suas vestimentas preocupar-se-ia com o destino das duas malvadas mulheres.

Keelin correu ao encontro de seu tio Tiarnan e de Adam que a esperavam com grande ansiedade. Depois de relatar o ocorrido e tranqüilizá-los, decidiu recolher-se em seu aposento, a procura de descanso e serenidade para pensar sobre o seu futuro.

O quarto aquecido e aconchegante encheu-a de felici­dade. A noite caía do lado de fora e ela preparava-se para o banho quando ouviu batidas na porta. Cobriu-se nova­mente com um leve roupão de linho branco para atender ao chamado.

Abriu a porta pesada de madeira e viu Marcus parado no corredor sombrio.

— Posso falar-lhe por um instante?

— Claro, entre.

Marcus havia trocado de roupa e pelo perfume de água de colônia era provável que tivesse banhado-se enquanto Keelin estivera contando as novidades para seu tio e Adam. Estava mais bonito que nunca, pensou ela, sen­tindo uma forte atração pelo homem que salvara sua vida.

— Estive pensando e cheguei a conclusão que disponibilizarei dois dos meus melhores cavaleiros para acom­panhá-la em sua viagem de volta ao Kerry. Seria muito arriscado fazer uma viagem tão longa sozinha e sem proteção.

Keelin emocionou-se com a preocupação de Marcus. Sa­bia o quanto ele estava sofrendo com sua decisão de par­tir. Precisava confessar-lhe seu amor e dizer o quanto desejava tornar-se sua esposa.

— Eu estava errada — disse Keelin encarando os olhos muito claros de Marcus. Com a ponta dos dedos, começou a acariciar os cabelos claros e lisos, afastando-os da fronte carinhosamente. — Não posso voltar a Carrauntoohil — prosseguiu sem afastar a mão de seu rosto. — Ao menos, não sem você.

— Keelin... O que está me dizendo? — perguntou ele descrente do que ouvia.

— Que o amo com toda força de minha alma, com cada gota de meu sangue e cada vez mais em cada batida de meu coração. Que não posso suportar mais a idéia de viver longe de você e de seu amar. Que não irei embora...

Os lábios de Marcus interromperam o fluxo de suas palavras com um longo beijo. Num movimento rápido, ele envolveu a cintura delicada de Keelin e a aproximou de seu corpo delicadamente.

O roçar suave da barba de Marcus em seu rosto fez os joelhos de Keelin amolecerem e suas pernas bambearem.

Seu perfume a embriagava e o corpo forte e musculoso junto ao seu a fazia sentir-se protegida e segura.

Keelin levou as mãos de encontro aos seus ombros e o puxou para junto de si, apertando-o com todas as suas forças.

— Keelin... — murmurou ele descendo seus lábios pelo pescoço quente de Keelin.

— Sim, milorde — brincou ela maliciosamente.

— Não sabe o quanto esperei para ouvi-la dizer isso... — comentou, abrindo o laço frouxo das vestes íntimas que Keelin usava, deslizando o tecido pelas costas macias e sinuosas até que estivesse totalmente despida.

Uma nova tempestade ameaçava cair do lado de fora das fortes muralhas de Wrexton, mas nada parecia ser mais violento que o efeito dos carinhos de Marcus sobre ela. Uma torrente de emoções e sensações percorria todo o seu corpo, despertando-a para novos sentimentos. Ela o ajudou a arrancar a fina camisa que lhe cobria o tórax avantajado e recostou-se nele com prazer.

— Diga novamente... — sussurrou Marcus. — Diga no­vamente que não irá mais partir...

— Eu ficarei aqui, meu amor, para sempre.

— Aceita ser minha esposa, Keelin O'Shea, e viver ao meu lado até que a morte nos separe? — perguntou Mar­cus seriamente, encarando-a, ao mesmo tempo, com ternura e alegria.

— Sim, Marcus.

— Eu a amo, Keelin — concluiu Marcus deitando-a sobre a cama.

— Então, me ame, Marcus — murmurou Keelin sen­tindo o peso do corpo musculoso de Marcus sobre o seu. — Faça-me sua esposa.

Keelin moveu seus quadris de encontro ao corpo viril de Marcus e surpreendeu-se com a rápida resposta aos seus carinhos. Queria sentir todo o seu amor, entrelaçar seus corpos e deixar-se possuir por aquele a quem dese­java com ânsia e desespero.

Marcus acomodou seus joelhos entre as pernas de Kee­lin, abrindo-as delicadamente para recebê-lo por comple­to, como tanto havia sonhado desde o dia que a conhecera. Dizia palavras irreconhecíveis, indecifráveis, sons que brotavam de sua garganta aleatoriamente. Cada movi­mento que ela fazia despertava nele sensações explosivas, incontroláveis e por mais que ele quisesse prolongar aque­le delírio por horas, sabia que não seria capaz de contro­lar-se por muito mais tempo.

Os belos e provocantes olhos verdes de Keelin brilha­vam ainda mais agora, recobertos por uma nuvem de pai­xão e prazer e Marcus podia ver o quanto ela também o queria. Com cuidado, penetrou-a suavemente, ouvindo-a gemer baixinho e sorrir.

— Oh, Marcus... — murmurou Keelin, sentido o calor da paixão em suas entranhas.

Marcus preocupava-se em não machucá-la, mas se seus movimentos estivessem causando algum desconforto a Keelin, ela não demonstrava. E ele mantinha um ritmo suave, lento e agradável que, sabia, resultaria em uma grande explosão de prazer para os dois.

De repente, Keelin ergueu os ombros do colchão e ele pode sentir as ondas de prazer percorrerem todo o seu corpo esgotado. Sem precisar mais conter-se, Marcus per­mitiu-se dominar pelas mais deliciosas sensações e en­tregar-se totalmente ao prazer que crescia assustadora­mente dentro dele.

Sentindo como se tivesse encontrado a outra metade de seu ser, Marcus repousou a cabeça ao lado de Keelin e passou o resto da noite admirando-a ao seu lado.

O vaivém agitado dos serviçais no corredor despertou Keelin que observou Marcus dormindo ao seu lado cheia de prazer. Nada lhe trazia mais alegria que o amor que sentia por ele, pensou feliz.

Instintivamente, sentiu que algo de errado acontecia no castelo. O barulho incomum dos criados a levou a erguer-se da cama, o que também acabou despertando Marcus.

— Aonde pensa que vai? — perguntou ele carinho­samente.

— Oh, perdão... Não queria despertá-lo — desculpou-se Keelin voltando-se para beijá-lo com ternura.

— Está preocupada com alguma coisa? — questionou Marcus percebendo a expressão tensa no rosto de Keelin.

— Algo aconteceu essa noite enquanto dormíamos. Não sei ainda o que pode ter sido, mas acho que logo desco­briremos.

— Não se preocupe antes do tempo. Irei procurar por sir Willian e ele logo me dirá como estão as coisas em Wrexton esta manhã. E você, como se sente? — perguntou Marcus levantando-se da cama e abraçando-a ternamente.

— Maravilhosamente bem... — sussurrou Keelin ofe­recendo-lhe os lábios com sensualidade.

— Teremos muito trabalho pela frente com os prepa­rativos do casamento. Quero fazer a mais bela festa já vista em Wrexton! — Marcus sorriu sem disfarçar a gran­de felicidade.

Naquele instante, homens bateram na porta do quarto chamando por ele que rapidamente colocou os trajes que usava na noite anterior e deixou o aposento.

Algo acontecia em Wrexton e Keelin sentiu seu coração apertar-se junto ao peito.

Marcus desceu a escadaria com passos decididos e avis­tou sir Robert e outros homens agitados e impacientes.

— A criada, lorde Marcus — murmurou seu cavaleiro de confiança ao vê-lo se aproximar. — Beatrice jogou-se da ponte durante a noite, milorde. Os empregados encon­traram seu corpo esta manhã — Marcus lembrou-se de Isolda e antes que pudesse perguntar por ela, seu cava­leiro adiantou-se. — Isolda está inconsolável. Ela não sa­bia sobre o plano arquitetado por Beatrice e, assim que as notícias chegaram ao castelo, expulsou a criada de Wrexton, indignada com o terrível desfecho que a mulher planejara para lady Keelin. Foi então que Beatrice cami­nhou até a ponte e...

Keelin descia a escadaria naquele momento e pôde ou­vir o final da história descrita por sir Robert.

— Isolda revelou que descobriu que foi Beatrice quem colocou fogo no alojamento dos animais naquela noite e elas discutiram. O corpo da mulher está sendo velado pe­los aldeões neste momento.

Keelin emocionou-se com a notícia. Por mais que o com­portamento da criada tivesse lhe prejudicado, jamais de­sejaria sua morte. Era um trágico destino para uma pobre mulher, pensou ela comovida.

Marcus providenciou o sepultamento da criada e cha­mou Isolda à sala de estudos. Aproveitaria a conversa para adiantar-lhe sobre seu casamento com Keelin e rea­firmar seus planos de desposá-la o quanto antes.

A jovem, muito abatida, atendeu prontamente o seu chamado e para a surpresa de todos, sir Robert a acom­panhava.

— O que faz aqui, Robert? — perguntou Marcus curioso.

— Imaginei qual seria o conteúdo da conversa, milorde, e tomei a liberdade de aproveitar a oportunidade para pedir a mão de Isolda em casamento. Sei que buscava pretendentes para desposá-la e adiantei-me aos outros candidatos, com grande prazer.

Isolda encarou Marcus com aparente ar de felicidade. Ao que tudo indicava, estava satisfeita com a proposta de sir Robert.

— Seria feliz ao lado de Robert, Isolda? — questionou Marcus ainda surpreso com a inesperada união.

— Sim, milorde — murmurou ela erguendo o canto dos lábios num sorriso tímido. — Sir Robert tem se mostrado um amigo leal nos últimos dias e conquistou meu coração com seus gestos amorosos e sua paciência. Muito me ale­gre seu pedido e se não se opor à idéia, milorde, gostaria de iniciar os preparativos o quanto antes.

A aparência da jovem mulher melhorou visivelmente e Marcus imaginou o quanto se sentir amada fizera bem ao coração solitário de Isolda.

— Pois bem, chamem o bispo Pygott e avisem a ele que terá muito trabalho em Wrexton nos próximos dias — comentou Marcus sorrindo deixando o salão para encontrar com Keelin.

Chegara o momento de revelar a intenção comum a Tiarnan. Como tutor de Keelin, era a ele que Marcus de­via satisfações.

Keelin e Marcus entraram no quarto de Adam e o en­contraram cochichando intimamente com Tiarnan. Os dois pareciam não se surpreender com a visita do casal apaixonado.

— Marcus! Keelin! — gritou Adam ao avistá-los.

Keelin caminhou até ao lado do tio e beijou sua face com carinho. Em seguida, fez o mesmo com o menino já bem-disposto e totalmente recuperado.

— Bem, ao que parece tudo correu na mais perfeita ordem durante minha ausência — comentou Keelin feliz.

— Sim, o jovem Adam comportou-se muito bem — disse Tiarnan voltando seus olhos cegos em direção à sobrinha amada. — A pergunta que nos fazíamos era se vocês também andaram na mais perfeita ordem durante esses dias...

O silêncio de Marcus e Keelin respondeu a pergunta de Tiarnan que começou a sorrir.

— E então, lorde Marcus? Não tem nada a me dizer?

— Sim, Tiarnan. Keelin aceitou tornar-se minha espo­sa — O tom de voz de Marcus era formal e respeitoso. — A não ser que tenha algo contra nossa união, iremos nos casar o mais breve possível.

— E por que teria algo contra essa abençoada união? — Tiarnan lembrou-se do velho Fen McClancy e come­morou a derrota do grotesco pretendente.

— Muito bem. Dentro em breve, o bispo virá falar com o senhor e...

— Mande-me o bispo e o convencerei que nada poderá impedir esse casamento.

 

Em três dias Keelin tornar-se-ia, finalmente, esposa de Marcus. A cerimônia seria simples, em respeito à mor­te de Eldred de Grant, mas muitos amigos queridos foram chamados para o evento especial.

Os enfeites de Natal foram espalhados pelo castelo, dando-lhe uma aparência festiva e alegre.

— Lady Keelin!

Ela estava sentada no solar conversando com Isolda e algumas criadas quando um dos homens da guarda do castelo a chamou.

— Alguns homens estão no salão principal — o homem falava com dificuldade, pois, ao que tudo indicava, havia subido os degraus correndo. — São irlandeses e procuram por seu tio e pela senhora.

Ao invés de uma terrível sensação de pavor, Keelin sentiu, dessa vez, que ventos novos lhe traziam boas no­tícias de Carrauntoohil.

— Vá e peça a lorde Marcus que me encontre no salão.

— Ele já está lá, milady — respondeu o homem ainda sem ar. — E me pediu para chamá-la.

Keelin desceu a escadaria acompanhada por uma cria­da e reviu, cheia de satisfação, dois amigos de infância de Kerry sentados junto ao fogo e ao lado de Marcus.

— Connor? Donncha?

— Oh, Keelin! — replicou o mais velho deles, abrindo os braços para recebê-la com um fraternal abraço. — Re­cebemos dois cavaleiros de Wrexton no Kerry e muito nos surpreenderam as novidades. Tínhamos de vir parabeni­zá-la pelo casamento.

Keelin encarou Marcus que sorriu ingenuamente. Ha­via mandado, em segredo, dois homens a Carrauntoohil. Queria fazer uma surpresa para ela, dando-lhe as boas-novas. O clã O'Shea estava finalmente livre e preparava-se para comemorar as festas natalinas como há muitos anos não fazia.

Ainda buscando recuperar-se do choque do reencontro, Keelin sentou-se ao lado dos amigos e quis saber sobre todos os detalhes da grande e terrível batalha contra Ruarc Mageean.

— Os homens de Ruarc foram derrotados — revelou-lhe Connor com prazer.

— Isso quer dizer que... — questionou Keelin ainda sem acreditar no que ouvia.

— Ruarc Mageean está morto. Todos sofremos muito com a morte de Comarc, mas Eirc O'Shea tem se mostrado um grande líder e, o mais importante, nos libertou para sempre da ameaça dos Mageean.

— Estamos reconstruindo nossa aldeia. A vila, a igre­ja, enfim, tudo o que a guerra nos levou. Agora só nos falta recuperar Ga Buidhe an Lamhaigh — comentou Donncha.

— Ainda tem a lança, Keelin? — perguntou Connor.

— Sim, ela está comigo.

— A irmã de Eirc também possui o dom, e terá muito prazer em proteger a lança, daqui por diante. Os anciãos decidiram que já arriscou muito sua vida em nome da lança. Nem acreditávamos que você e seu tio ainda esti­vessem vivos. É hora de descansar, Keelin O'Shea. Vie­mos buscar Ga Buidhe an Lamhaigh para reavê-la ao nosso clã.

O rosto de Keelin encheu-se de emoção. Conforme pla­nejara, devolvia a lança mágica intacta para seu povo. Durante quatro anos lutara bravamente para resguardar Ga Buidhe an Lamhaigh e agora estava sendo recom­pensada.

Tiarnan aproximou-se do grupo, guiado por um dos la­caios do castelo. Enquanto os homens do Kerry contavam-lhe as novidades, Marcus puxou Keelin para longe do gru­po e a interrogou.

— Importa-se de entregar-lhes a lança?

— Oh, não, Marcus, é claro que não! Será a realização do maior sonho de minha vida e o fim do maior pesadelo, também.

— Do maior sonho de sua vida? — perguntou Marcus erguendo as sobrancelhas em dúvida.

— Do segundo maior sonho de minha vida.

— E pode me dizer qual seria o primeiro?

— Acho que podemos conversar sobre isso mais tarde, em nossos aposentos, milorde...

 

— Adam está muito contente que Tiarnan tenha deci­dido ficar em Wrexton conosco — comentou Marcus acen­dendo mais algumas velas que haviam sido colocadas ao lado da cama.

— Sim — disse Keelin enquanto olhava atentamente seu marido. Seus movimentos eram controlados e ele­gantes. Poucos minutos antes, ainda estava com seu traje cerimonial, mas agora desfilava em sua frente sem a luxuosa túnica que usara durante a cerimônia de ca­samento. O movimento das chamas o iluminavam com graça, fazendo seus cabelos dourados brilharem ainda mais.

Keelin tremia com prazer aos mínimos movimentos de seu marido.

— O que você acha?

— Acho que ainda está com muita roupa, Marcus — replicou ela sorrindo.

Ele retribuiu o seu comentário com um olhar lascivo e caminhou ao seu encontro, desatando o nó que atava sua calça junto ao corpo.

— E o que me diz a seu respeito? — perguntou ele. — Ainda está com seu vestido de noiva.

— Eu preciso de sua ajuda para me desvencilhar dele.

— Bem, deixe-me então auxiliá-la nesta terrível tare­fa... — murmurou ele colando seus lábios aos dela.

Keelin sentiu as batidas de seu coração acelerarem com a proximidade do corpo másculo de Marcus. Não havia mais nada que pudesse fazer que não fosse beijá-lo de volta e entregar-se àquela paixão enlouquecedora.

Aos poucos, Marcus foi desatando os laços que pren­diam o tecido ao corpo de Keelin, descobrindo-a por com­pleto. Seus lábios desceram pelo pescoço, ombros e colo feminino até alcançarem os seios.

Keelin soltou um breve gemido de prazer. Ondas sua­ves de excitação percorriam todo o seu corpo. Era a pri­meira vez que se tocavam depois de finalizada a cerimônia de casamento. Eram, finalmente, marido e mulher.

— Você sabia que um dia cheguei imaginar que era uma feiticeira, meu amor? — Marcus sussurrou próximo ao ouvido de Keelin terminando de arrancar-lhe o vestido.

— Não — suspirou Keelin, abraçando-o com força. — Nunca disse isso antes. E o que o fez mudar de idéia?

— E quem disse que eu mudei de idéia? — murmurou Marcus sorrindo.

 

[1] Parte do ofício dos mortos, na liturgia católica, que principia com as palavras latinas requiem aeternam dona eis, 'dai-lhes o repouso eterno'.

 

                                                                                Margo Maguire  

 

                      

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