Arredores de Pocona (atualmente, na Bolívia), dezembro de 1526.
Aconchegada à mãe, Anamaya acorda de repente ouvindo a chuva no teto da choça.
Ainda é noite, aquela noite profunda e opaca da selva. Chove forte. Não se ouve mais nada, nem os estalos das vigas, nem os guinchos dos macacos ou dos bichos que habitam a floresta.
Ela se vira na cama de junco procurando a mão da mãe. Não sabe por que perdeu o sono.
Se abre os olhos, a escuridão transforma as vigas do teto em cobras e os jarros em monstros vivos. Se fecha os olhos, o barulho da chuva fica insuportável. As gotas, pesadas como pedras, parecem atravessar a espessa cobertura de folhas de palmeira e bater em seu peito.
Sem motivo real, ela tem medo. Há tristeza em seu coração. Uma aflição violenta e incompreensível, como as que vêm nos sonhos.
Ela dobra os joelhos tremendo. Aninha-se bem contra o ventre da mãe e fica um bom tempo chorando. De sua boca não sai uma queixa, uma palavra. Depois torna a adormecer, sem sequer perceber.
Mal o dia começa a raiar, ela já esqueceu o medo da noite.
Pula da cama e vai se esgueirando por entre as redes para o terreiro deserto.
Aquela é uma pequena aldeia no meio da imensidão da floresta. Uma cerca alta de toras terminando em ponta protege as quatro grandes choças comuns que delimitam o terreiro central. O terreiro está vazio e parou de chover. Mas o ar está quente e pegajoso. O céu, de um cinzento uniforme, espelha-se nas grandes poças lamacentas que brilham entre o capim alto.
Anamaya mata um mosquito no braço. Eles ziguezagueiam em massa no ar úmido. Como nuvenzinhas furtivas e transparentes.
Em alguns passos saltitantes, ela chega à paliçada de chuços e vai ter com a sentinela de vigia junto à entrada. É um jovem guerreiro. Como todas as pessoas da aldeia, como todos os chiriguanos, "aqueles-que- não-temem-o frio", está usando apenas uma tanga de pano em volta da cintura. Tem o queixo e a cara pintados de arabescos pretos e verdes, a cabeça bem-feita raspada até o cocuruto. Sua pele tem o tom ocre luminoso da terra lamacenta da aldeia e, em contraste, as contas de seu longo colar de turquesas cintilam em seu peito com um brilho intenso.
O rapaz está cochilando e acorda sobressaltado quando Anamaya faz espirrar a água de uma poça. Por reflexo, ele aponta a lança, depois começa a rir: - O que você está fazendo fora da choça a esta hora, mosquitão!
- Vim ajudar você a proteger a aldeia- responde Anamaya seriíssima. O guerreiro pára de rir e balança a cabeça com severidade:
- Boa idéia! Se perceberem que você está comigo, os incas nunca ousarão nos atacar!
- Nunca mesmo!... Então, você quer me deixar sair?
O jovem guerreiro ri novamente com aquele seu riso claro e lhe dá um tapinha na nuca.
- Saia logo, mosquito. Mas não vá muito longe, senão sua mãe mergulha minha cabeça naquele jarro de malefícios dela! - brinca ele descerrando o cipó que segura um pesado painel de toras.
Anamaya se esgueira pelo vão e corre até a floresta cerrada.
Ela não tem medo dos chuços que arranham sua tanga. Salta numa clareira, seus pés descalços voando nas flores coloridas.
Chegando ao grande lago, vai logo mergulhando, braços esticados, o jovem corpo fluido e flexível como a própria água. Por um bom tempo, ela se farta com o prazer da natação. Vai até a ramagem baixa de um cissus e dá um pulo para se pendurar ali e se suspender com a desenvoltura de um macaco. Embaixo dela, sua imagem se espalha, depois se reconstrói quando a água volta a ficar parada. É a imagem de uma menina grande para os seus dez anos. Certamente muito maior e de pele muito mais clara do que as outras meninas da aldeia. Sua testa também é mais chata. Seu queixo quase pontiagudo, voluntarioso, alonga-lhe o rosto. O que ela mais detesta é seu nariz demasiado comprido, bem mais fino do que o das indiazinhas chiriguanos. Até sua boca é diferente, mais fina, os lábios bem desenhados mas pouco carnudos.
E sobretudo, há seus olhos.
Cerrando as pálpebras, ela bate com o pé na água, fazendo-a espirrar e apagando seu reflexo.
Por que ela tem essas feições? Contam-se muitas coisas na aldeia, mas sua mãe nunca lhe fala sobre o assunto.
Sua mãe... De repente, sente necessidade de vê-la, tocá-la. Uma necessidade tão grande que lhe doem as entranhas.
Ela grita seu nome rindo e, enquanto o grito ecoa na vegetação cerrada, ela pula do galho de cissus. Vai correndo a toda para a aldeia, o coração palpitando de amor.
No meio da manhã, as nuvens se rasgam violentamente. Um raio de luz desliza sobre a floresta antes de pousar sobre as choças. Ao atingir os ombros de Anamaya, ela dá uma gargalhada.
Ela dança, o rosto inteiro iluminado pela alegria. Braços abertos, os pesados cabelos negros balançando ritmadamente, oferece seu corpo nu ao sol e à chuva misturados.
- Anamaya! - chama sua mãe.
Na aldeia, ela é a única a andar vestida, uma túnica comprida de pano que a cobre até os joelhos. Às cores estão desbotadas. Mal se distingue o padrão de quadrados, cruzes e losangos cuidadosamente distribuídos. Em alguns pontos, os rasgões estão costurados com fio de agave.
- É o sol! - grita a menina rodopiando na luz dourada. - Venha, mamãe, venha!
Anamaya corre para a mãe. Agarra-lhe as mãos e tenta puxá-la. A mãe ri, resiste um pouco antes de sucumbir à alegria da filha.
Elas dançam saltitando. A lama espirra entre seus pés, salpicando-as enquanto elas dão gritos agudos. De repente, Anamaya escorrega. A mãe segura-a pelo braço, levanta-a e abraça-a. Quase cai com a menina. Rindo já com mais calma, as duas recobram o equilíbrio abraçadas.
- Vamos, mamãe, de novo! - murmura Anamaya no pescoço da mãe. Com ternura, a mãe mergulha os olhos brilhantes nos da filha.
- Será que você esqueceu a nossa promessa? - murmura ela, fingindo tom de censura.
Anamaya fecha a cara. Não, ela não esqueceu e isso não tem graça nenhuma.
- Temos mesmo que ajudar a velha bruxa?
- Anamaya! Não é uma velha bruxa, é a avó dos espíritos. - E daí? De qualquer maneira eu não gosto dela!
A mãe sorri e a puxa. Mãos dadas, elas contornam uma das grandes choças comunitárias e atravessam o terreiro central. Agora, o sol brilha nas poças que, ao mesmo tempo, têm a superfície agitada pela chuva fina e constante.
O calor é tanto que a selva está fumegando. Nesgas de bruma, flexíveis e transparentes, sobem dali. Elas vêm se rasgar nos chuços da paliçada alta. No canto de uma das choças, junto a um braseiro, munida de uma longa espátula de madeira de iroco, uma velha mexe um líquido verde e grosso num jarro de boca larga. Anamaya não consegue conter uma careta.
- Eu trouxe o pano, avó dos espíritos...
A bruxa examina desconfiada o pedaço de pano. De tão usado, chega a estar transparente e seus bordados cor-de-rosa desbotaram.
- Vai servir - resmunga ela.
Anamaya fica nas pontas dos pés para olhar o líquido no jarro. - Como sabe que o espírito está aí dentro? - pergunta à velha. - Porque eu botei, bobinha.
- Não sou boba. Não estou vendo nada...
- Cale a boca, Anamaya - ordena a mãe sem convicção. - Por que você vê e eu não? - insiste Anamaya.
- Porque tenho o dom da vidência e você sabe disso! - irrita-se a velha. - E agora, cale a boca. Obedeça à sua mãe, menina!
Anamaya suspira. Elas esticam o pano na boca de uma moringa encardida de fumaça. A velha verte o líquido lentamente. Um resíduo verde se aglutina no tecido. Cheira forte, um odor do fundo da floresta, onde o sol nunca atinge o solo.
Anamaya espreita o espírito, mas só ouve as gotas que caem no fundo da moringa, cada vez mais lentamente.
Ela gostaria de fazer outra pergunta, mas não tem coragem. De repente, sente um frescor deslizar em seus ombros ardidos de sol. Levanta os olhos para a sombra que passa no céu. Larga uma ponta do pano.
O resíduo verde cai na moringa. A velha dá um grito rouco. -Anamaya! - exclama a mãe. - O que está fazendo!
- Mamãe! O pássaro!
O pássaro é imenso, quase do tamanho de uma choça. O ar zune em duas penas negras e brilhantes. Ele voa tão baixo que se poderia pensar que iria pousar. Mas não. Ele vira o pescoço comprido coberto de penugem, empina o bico e recupera altura sem bater asas.
- Mamãe, olhe como ele é lindo!
No terreiro, as crianças nuas pararam de brincar. Os adultos ficaram imóveis. As testas raspadas dos homens se franzem mostrando inquietação. Até os velhos saem das grandes choças e erguem os olhos para o céu, procurando se proteger do sol e da chuva com a mão.
Nas pontas das asas do pássaro, abertas como dedos, as longas penas brancas vibram. Agora que ele volta para cima deles, vêem-se suas garras enormes, maiores que a mão de um homem. Anamaya adivinha o olhar do pássaro. Por um instante, as pupilas redondas e globulosas procuram seus olhos e neles se fixam. Então ela não vê mais o que está à sua volta. Só ouve um rumor cada vez mais violento, um tumulto da noite escura, um tropel, como se houvesse centenas de homens correndo juntos. Ela quer gritar, mas a mão doce de sua mãe pousa em seu ombro. Uma mão que deseja tranqüilizá-la e que no entanto está tremendo.
- O condor - balbucia a mãe apertando seus dedos com mais força. - O mensageiro dos incas - acrescenta a bruxa. Anamaya abraça-se à mãe que murmura baixinho:
- O condor... Mas o condor não vive aqui. Ele nunca desce das montanhas para a savana...
Anamaya olha para a mãe. Vê sua boca desfeita, seu rosto empalidecendo.
- Mamãe! Mamãe, o que você tem?
O pássaro bateu asas e ganhou altura. Ele gira em direção ao leste, sobe ainda mais alto que os bancos de bruma e de repente embica para baixo. Como se quisesse arremessar-se sobre a aldeia. Mas não, sobe cada vez mais alto. As nuvens se rasgam e lhe dão passagem em direção aos flancos das montanhas do oeste, enquanto o azul do céu aparece.
Anamaya treme de emoção e as palavras ficam congeladas em seu peito. Como se mil gritos repentinos ecoassem nela, pesassem em seu ventre e em seus flancos.
No terreiro da aldeia, as caras continuam viradas para cima, e todos estão calados também. Tudo está imóvel. Não há mais um barulho. Até a selva se cala.
Então soa uma trompa.
- Os incas! Os incas!
A sentinela pulou a paliçada e está correndo como um bêbado. - Os incas! Eles estão aqui!
A exclamação lhe escapa dos lábios na hora em que ele cai. Na queda, seu colar de turquesas arrebenta, as pedrinhas azuis rolam pelo chão e se afogam na lama. Um sangue escuro escorre de sua têmpora misturando-se à pintura vermelha e preta de sua cara. A pedra lançada pela funda atingiu-lhe o crânio.
Anamaya percebe o arrepio que percorre sua mãe da cabeça aos pés. A trompa continua rugindo, qual fera selvagem, e o rufar dos tambores faz a floresta estremecer. Urros rasgam o ar. Os homens voam para pegar suas armas nas choças. Outros já correm para a paliçada, empunhando arcos, as flechas de haste dupla ultrapassando a aljava. O alarido é insustentável. Anamaya cola o rosto na barriga da mãe que acaricia febrilmente seus cabelos, seu rosto, suas mãos.
O condor desapareceu da montanha. As nuvens móveis fecham novamente o céu. Os guerreiros chiriguanos estão acocorados ao pé da paliçada de estacas. Por um momento, tudo paralisa.
E, de repente, é como se o ar começasse a zumbir. Anamaya vê o céu ficar arranhado. Uma sombra escura e larga incha como uma nuvem de insetos. E centenas de flechas perdem o impulso e caem no terreiro.
- Mamãe! - grita ainda Anamaya.
Sua mãe já está debruçada sobre ela, protegendo-a com seu corpo. As duas fecham os olhos ouvindo os dardos penetrarem com a mesma facilidade na carne dos guerreiros e nas poças de lama. O sangue escorre com a água, homens choram como crianças.
O jarro com o líquido verde entornou.
O medo e a morte estão em toda parte. Sua mãe cantarola para tranqüilizar a filha encolhida, para lhe dizer que está ali, que a menina não deve ter medo. Mas Anamaya não escuta.
Quando ela torna a abrir os olhos, o terreiro está crivado de flechas de pontas coloridas. Sobre o corpo dos homens caídos, as plumas fulgurantes parecem flores semeadas por magia.
- Venha - suspira a mãe.
Puxando a menina pela mão, ela a conduz no campo das flechas no instante em que o clamor atravessa a paliçada. Homens de capacetes cheios de cores surgem acima dos chuços inúteis. As fundas giram, as tiras de couro dos ayllos zunem no ar. Engolidos pelo número e o armamento dos adversários, os chiriguanos caem, suas maças curtas agora inúteis.
- Depressa, depressa - grita a mãe.
Elas correm para a frente, sem se preocupar com os dardos quebrados que lhes dilaceram os pés. As pedras de funda zunem em seus ouvidos. Um velho de dentes pretos lhes faz sinal na hora em que leva uma pedrada no peito. Ele cai para trás sem uma palavra.
- Mais depressa, Anama...
Anamaya sente o choque em sua mão. O tranco vibra até em seu braço. Sua mão é bruscamente solta. Ela cai para a frente ao mesmo tempo que a mãe. Logo se endireita.
- Mamãe, venha, por favor!...
A mãe não se mexe. Anamaya não olha o rosto dela. Torna a pegar a mão, tão quente, tão forte, que a segurava com firmeza um instante atrás, já há tanto tempo. Ela puxa. O corpo da mãe apenas desliza na terra encharcada.
- Mamãe, rápido, eles estão chegando...
Ela adivinha as túnicas coloridas dos soldados que se aproximam atrás dela. Atrás dos gritos do combate, há apenas gemidos e, já, algumas risadas. Então, finalmente, ela tem coragem de olhar o rosto da mãe.
No meio de sua testa, há uma flor vermelho-sangue. Seus olhos estão fechados, e uma água escura escorre no canto de seus lábios.
Ela sabe.
Ela olha o trapo ainda amarrado na mão de sua mãe, molhado com o líquido verde onde se escondia o espírito. Ela abre os dedos crispados, pega o pano. Não ouve as risadas dos soldados vencedores, os gemidos dos moribundos, os gritos de um bebê abandonado em sua rede, numa choça. Não vê os últimos combatentes que ateiam fogo à paliçada, depois às choças. Nela só há silêncio, como se todas as portas de seu coração se fechassem uma a uma.
No rugido furioso do braseiro que carboniza o ar, ela se ajoelha docemente e se aninha à barriga da mãe.
Já não há mais sopro, não há mais vida, só há um restinho de calor que passa e vai machucar o fundo do seu ser.
É assim que o soldado a encontra.
Quando ele quer levá-la, sem um gemido, ela resiste com todas as forças. Ele tem de fazer seus dedos largarem o corpo da mãe, ao qual eles se aferram, querendo lhe dar vida.
Quando consegue separá-las, o homem precisa arrastá-la pela terra e pela lama, como se ela estivesse inerte.
Viva, mas morta.
O oficial inca tem na mão direita uma chuqui, uma lança com a ponta de bronze e o cabo de madeira de lei guarnecida de plumas de condor. Um colete de couro protege seu peito. Ele ainda está com o capacete de junco finamente tecido e ornado com um penacho vermelho e amarelo.
Um cheiro de fumaça acre paira no ar. Apertando o tecido de seda, Anamaya conserva os olhos obstinadamente baixos. Ela sente o vulto alto e magro do inca.
- Será que finalmente acabamos com esses malditos chiriguanos? - pergunta ele ao soldado que a trouxe.
- Sim, capitão Sikinchara. Alguns conseguiram fugir para a floresta. - Está bem.
Ele se vira para Anamaya, o rosto e o corpo inteiro pretos de terra. - E esta, quem é?
- Não sei, capitão Sikinchara. Ela estava junto de uma mulher morta. Eu a trouxe para o senhor, porque...
- Olhe para mim, menina - interrompe o oficial.
Anamaya não se mexe. Seus dedos apertam mais um pouco o trapo. O soldado se prepara para agarrá-la, mas Sikinchara o detém com uma ordem breve. - Olhe para mim, criança - pede ele com uma doçura inesperada. Ela continua imóvel. Ele entrega a lança e o capacete ao soldado, aproxima-se dela sem rudeza. Ajoelha-se, e seus dedos finos pegam o queixo da menina. Levanta o rosto dela para ele. Seu olhar atento capta o raio luminoso de dois olhos azuis.
Sob o efeito da surpresa, ele quase cai para trás.
Anamaya vê o rosto de um homem de nariz nobre, lábios bem desenhados. Vê sua surpresa.
Vê seu medo.
Quito, outubro de 1527.
Hoje de manhã, Anamaya acorda sobressaltada no salão-dormitório.
A maioria das meninas já saiu das esteiras. Mas há um rosto debruçado sobre ela, examinando-a, o cenho franzido e a boca contraída por um esgar. Uma jovem de maçãs salientes, olhos negros e duros das princesas de Cuzco. Ela se chama Inti Palla. Mais velha que Anamaya, já tem corpo de mulher e gosta de exibi-lo.
Mas, sobretudo, Inti Palla é uma das filhas do Rei Huayna Capac, o único Senhor do Império das Quatro Direções.
Quantos filhos ele tem? Tantos quantas placas de ouro e prata há em seus templos: duzentos, trezentos, ninguém sabe o número exato!
Quando os olhos das meninas se encontram, o esgar de Inti Palla se transforma num sorriso malicioso:
- Anamaya - gargalha ela -, como você pode ser tão feia?
Desde sua chegada à Casa das Virgens de Quito, a grande cidade real do Norte, Inti Palla não parou de querer se aproximar dela enquanto de sua boca, a maior parte do tempo, só sai maldade! Tantos horrores que Anamaya se esforça para não mais prestar atenção.
- Anamaya, sei o que vai lhe acontecer hoje! - zomba de novo Inti Palla.
Anamaya se espreguiça e finge indiferença. Inti Palla sacode as pulseiras que está usando.
- Não quer saber? - Claro que quero. - Daqui a pouco eu conto.
Assim é Inti Palla! Anamaya abafa um muxoxo de raiva, mas a princesa, adivinhando sua contenção, insiste como se procurasse fazê-la perder as estribeiras.
- Vamos, filha sabe-se lá de quem, por que você é tão feia?
Dessa vez, com um movimento brusco, Anamaya se endireita e a empurra. - Eu não sei. Sou ignorante em tantas coisas! Mas você devia saber! A risada de Intipalla crepita como um cesto de conchas.
- Coitadinha de você! Já vai fazer quatro estações que está aqui e ainda não quer admitir que nunca será como a gente?
Anamaya se afasta, dobrando cuidadosamente seu cobertor de fios tecidos para disfarçar a dor. Se há uma coisa que ela sabe, é isso. Além de não ser uma princesa de sangue real, quanto mais seu corpo se desenvolve, mais fica diferente do das jovens incas. Suas pernas e suas coxas espicham enquanto as das princesas se arredondam. Seu rosto se alonga enquanto devia alargar. Sua testa não fica abaulada, seus lábios continuam finos demais, suas sobrancelhas são duas vezes menos grossas... E depois há seus olhos!
Olhos quase tão puxados como deviam ser, mas azuis. De um azul incrível, como o do céu da montanha à tarde, quando se reflete num lago.
Um azul que provoca a repulsa de todos, medo ou às vezes zombaria. Um azul terrível que repele todas as amizades e todas as afeições. Durante esse ano passado na acllahuasi, nenhuma jovem quis com sinceridade ser amiga dela. Às vezes, as Mães ainda se dirigem a ela como a um ser humano de verdade. Só Inti Palla se expõe a essa aversão que ela propaga em volta de si como uma doença ruim. Mas é só para caçoar melhor.
Lágrimas nos olhos, Anamaya aperta o cobertor contra o peito e diz: - Se sou tão feia, por que você está sempre me rondando?
O sorriso da jovem princesa desvela seus dentes pontiagudos como presas: - É porque você é curiosa de ver!
- Pois você já teve todo o tempo para me ver! Agora chega... - Isso é verdade mesmo - diz Inti Palla às gargalhadas.
E como Anamaya se prepara para sair do aposento, Inti Palla chocalha as pulseiras e diz com uma voz doce:
- Anamaya, vou contar o que lhe espera hoje. - Não conte nada, tanto faz para mim!
- Hoje será o grande dia para você. O Único Senhor, meu pai Huayna Capac, vai olhar você...
Anamaya fica imóvel, sem ar. Há luas, ela sabe que essa hora deve chegar. Mas hoje...
Ao virar-se para enfrentar de novo o olhar de Inti Palla, ela descobre aí alegria cheia de ódio.
- E ele vai dizer, filha sabe-se lá de quem, como você deve morrer.
A noite passada, como a cada lua nova, ela sonhou com a aldeia na mata. estava de mão dada com a mãe, e, em volta delas, gritos ecoavam. Um bafo com fogo queimava seu peito. Quando sua mãe caiu, um silêncio de gelo invadiu-a, um pavor cheio de incompreensão.
Pareceu-lhe que algumas palavras se formavam nos lábios de sua mãe, palavras que eram destinadas a ela do outro lado da morte, mas que ela não chegava a compreender. Ela se levantou aos prantos, trêmula de solidão, encolhida contra o corpo ausente, abraçando o vazio. Enquanto os alvores da aurora clareavam os cortinados, ela fechou os olhos para afastar a morte e o medo. Depois, acalmou a respiração devagarinho para não ser ouvida, imaginando que a voz doce de sua mãe ainda ecoava no silencio imenso...
Acordou agarrada ao pedaço de pano que ela guarda como um tesouro. O pano perdeu quase todo o cheiro, conservou só um leve odor de mato que se esvai com o tempo.
Sua dor, ninguém deve conhecer: ela tem de escondê-la no fundo de seu ser. Ela pensa nisso enquanto a preparam.
A Casa das Virgens é só cochichos. Enquanto lavam os cabelos de Anamaya e os penteiam em finas tranças, as Mães lhe lançam olhares de reprovação. Anamaya fica repetindo para si mesma as palavras cruéis de Inti Palla e o medo se localiza na boca de seu estômago: se o único Senhor decidir que ela deve morrer sem ter direito a fugir para o Outro Mundo, será que o puma vai devorá-la? Quando terminam de penteá-la, as Mães a envolvem num grande pano de tela crua que a cobre do peito ao tornozelo. Com uma certa brutalidade, elas amarram um cinturão liso, vermelho, ao redor de seu corpo. Depois colocam uma lliclla em seus ombros, uma longa capa malva só debruada de branco em volta do pescoço, a qual elas prendem no peito com um alfinete de cedro. Finalmente, elas lhe dão sandálias de palha novas em folha, que Anamaya não consegue calçar direito.
As Mães recuam para examiná-la.
É evidente que suas roupas novas em nada atenuaram sua feiúra, e a repulsa das Mães é visível. Elas nem ousam olhá-la nos olhos!
Em seguida, fazem-na aguardar muito tempo, sozinha numa sala minúscula e escura.
Seu medo tem todo o tempo para aumentar ainda mais.
O sol está no zênite quando finalmente ela e levada para fora da Casa das Virgens. Dois soldados a esperam. Há luas ela não saía da acllahuasi. Pelas ruelas estreitas entre os muros altos, os soldados conduzem-na em silêncio até a grande praça do Palácio Real. No caminho, não encontram ninguém e Anamaya se pergunta se é por causa dela que a cidade está tão deserta.
Ao chegarem à praça vazia, eles se dirigem à porta estreita do palácio, encimada por uma verga de pedra onde há uma serpente de vida eterna esculpida. Ali, os soldados batem com as lanças no chão e ficam imóveis enquanto Anamaya prende a respiração.
Ela reconhece imediatamente o oficial em traje de gala que aparece à porta do palácio. Lembra-se de seu nome: Sikinchara. Jamais poderá esquecer seu rosto: era ele quem comandava os soldados que mataram sua mãe.
Hoje, ele a observa sem receio nem surpresa. Só com um pouco de reticência. Ele é bonito e imponente. Um plastrão de ouro lhe cobre o peito e uma faixa de lã amarela com duas plumas verdes, curtas e largas, lhe cinge a cabeça, realçando-lhe os traços. Largos discos de prata lhe cobrem as orelhas, presos por tubos de prata do tamanho de um dedo, enfiados nos lóbulos distendidos. A cada movimento seu, essas enormes jóias balançam e faíscam.
Com um simples gesto, ele ordena que Anamaya se aproxime. Como ela não se mexe, um dos soldados cutuca-a com a lança nas costas. Então ela transpõe o umbral do palácio. Segue Sikinchara que, com um olhar, obriga-a a permanecer a seu lado.
Eles atravessam um primeiro pátio ladeado de grandes casas baixas. De ambos os lados do caminho calçado, orquídeas brancas e cantuas púrpura cobrem maciços retangulares. Mas Anamaya mal vê o esplendor dessas flores.
Em seguida, eles passam embaixo de uma espécie de alpendre e ao longo de um muro de pedras enormes e lisas, com vários nichos onde brilham magníficos objetos de ouro e de madeira pintada. Finalmente, chegam a uma porta estreita, de montantes de pedra duplos perfeitamente talhados. Anamaya só tem tempo para ver um outro pátio, maior, em cujo centro há uma grande fonte de água fumegante. A voz seca de Sikinchara ordena:
- Prosterne-se, menina! Prosterne-se diante do seu único Senhor! Ela cai de joelhos, inclina o busto, põe as mãos no chão e, de soslaio, vê que o capitão avança e passa a porta. Ela o segue como se tivesse medo, esfolando as mãos e os joelhos nas pedras ardentes de sol.
Quase é melhor assim, pois agora ela está sob o olhar do Filho do Sol e como se já começasse a morrer.
Ela ouve ruídos, palavras ditas em voz baixa que ela não entende.. De repente, leva uma paulada no ombro. Fica paralisada. E é ainda a voz de Sikinchara que anuncia:
- Meu Único Senhor, eis a menina de que lhe falei.
Não há resposta, somente o sussurro da agitação da água. Finalmente, uma voz cansada e distante diz:
- Esse banho me cansa. Dêem-me minhas roupas...
Anamaya entrevê as pontas das tangas de dez mulheres que acorrem. Os panos são lindíssimos, com motivos de cores vibrantes. Ela sabe o que está se passando. Explicaram-lhe muitas vezes na Casa das Virgens. As servas entregam ao único Senhor roupas novas que, depois de tecidas, jamais foram tocadas por mão alguma. O Filho do Sol designa pessoalmente as jovens que devem ajudá-lo a vestir sua túnica de vicunha, amarrar o cinto, cobrir-se com a capa, colocar a faixa real na testa...
Anamaya fecha os olhos e tenta acalmar a respiração. Seu coração bate tão forte que ela mal ouve a voz abafada ordenando:
- Capitão Sikinchara, mande essa menina se levantar.
Ela recebe um golpe nas costas e Sikinchara resmunga em voz baixa: - Levante-se diante do seu único Senhor!
Ela se pergunta se terá força suficiente para isso. Levanta-se como se suportasse uma carga com o triplo de seu peso nos ombros. Quando se põe de pé, fita obstinadamente as pedras do pátio, mas a voz do único Senhor torna a ordenar:
- Olhe para mim, menina! Então ela o vê.
Ele, o único Senhor Huayna Capac, o Inca de todos os incas, o Filho do Sol e Rei do Império das Quatro Direções!
Ele lhe parece velho. Muito, muito velho...
Apesar da extraordinária beleza de suas roupas, apesar de suas pulseiras de ouro, apesar do chapelão de plumas coloridas que lhe envolve o pescoço e dos enormes discos de ouro que lhe distendem os lóbulos das orelhas, apesar do requinte de seu plastrão de contas de conchas, ele parece frágil como um homem de ossos de ave. A pele de suas faces é esticada e lustrosa como uma cerâmica muito velha. A de suas mãos de tão enrugada que parece pertencer a outro corpo.
Sentado num trono elevado e coberto de almofadas, ele fita Anamaya nos olhos. Sem muito espanto e sem receio.
Uma voz aguda e imperiosa diz de repente:
- Único Senhor, veja os olhos desta menina. Nenhuma mulher inca jamais tem olhos azuis!
- Cale-se, Villa Orna. Deixe-me vê-la.
Quem acaba de falar, Anamaya nunca viu. É um homem que está direita, a uma boa distância do único Senhor. Ele também possui os brinco dos incas de sangue real. Mas entre seus lábios finos escorre o sumo verde das folhas de coca que ele masca.
Sem desviar o olhar dos olhos de Anamaya, Huayna Capac pergunta: - Ela vem da mata, Sikinchara?
- Sim, meu único Senhor. Destruímos uma aldeia de selvagens chíríguanos. Ela estava ali com outras crianças e a mãe.
- Onde está a mãe dela?
- Morta, meu único Senhor. Foi atingida por uma pedra de funda no ataque da aldeia. Pode-se adivinhar quem ela era porque ainda estava com uma túnica inca.
- Uma mulher de Cuzco? - Sem dúvida.
- Uma criança impura - resmunga Villa Orna, o homem da boca verde - Mas seu pai? - pergunta o único Senhor.
Villa Orna faz uma cara de ignorância e de nojo. Huayna Capac vira-se para Sikinchara.
- Sabe de alguma coisa?
O capitão Sikinchara se cala também e abaixa a cabeça. O Único Senhor continua fitando os olhos de Anamaya, mas há sofrimento em seu olhar. Seu lábios tremem e de repente seus dedos apertam os braços do trono. Ele esta transpirando tanto que gotas de suor brotam sob a franja real e deixam sua testa brilhante.
Além do medo de morrer que lhe aperta as entranhas, Anamaya sente outro que a invade ante a visão da dor que esse homem tão velho suporta, que ela não entende direito. Tem medo por ele, com ele.
Por um instante, o Único Senhor vacila, as pálpebras estremecendo, empertigando-se, ele se endireita. Com uma voz abafada, pergunta:
- Villa Oma, o que dizem os adivinhos a respeito dessa menina? O homem de boca verde resmunga e faz um gesto de desprezo:
- A maioria diz que ela é nefasta. Ela tem olhos azuis, e, como você vê, malfeita. É magra de busto e maior que nossas meninas! Sangue Inca corre suas veias por parte de sua mãe, mas é sangue impuro! Ela é do Mundo de safixo e deve voltar para o Mundo de Baixo!
- Mais um sinal! - murmura o Único Senhor com lassidão, pestanejando.
Ele se cala. Curiosamente, Anamaya tem a impressão de que o velho exausto olha para ela com benevolência. Como que a contragosto, Villa Oma acrescenta:
- Mas evidentemente nem todos os sacerdotes estão de acordo... - O que dizem os outros?
- Que ela é um sinal de fausto para seu reino! Que é enviada por Quilla, nossa Mãe Lua, que lhe promete também a felicidade da viagem no céu, por causa de seus olhos azuis.
O Único Senhor está ofegante. Apesar de seus esforços para disfarçar seu sofrimento, Anamaya de repente compreende.
Ela sabe, como se já o visse deitado e sem respirar, que o Filho do Sol está morrendo. Logo ele tomará o caminho invisível que o conduzirá para junto de seu Pai, no Outro Mundo!
E ela tem de conter as lágrimas que lhe vêm aos olhos.
O Único Senhor ainda não tirou os olhos dela. Pergunta: - Que nome ela tem?
- Anamaya.
Mal Sikinchara responde, o Único Senhor abafa um lamento e comprime o ventre com as mãos. Anamaya adivinha o pavor que gela o capitão. Mas, de novo, o Único Senhor se controla e pergunta, com uma voz apenas audível:
- E você, Villa Oma, o que acha?
- Ela deve desaparecer! - resmunga Villa Oma. - E logo. Oferecendo-a ao puma, se você quiser meu conselho. Que ele se alimente dela e que ela desapareça! Que jamais volte a constrangê-lo, nem neste mundo nem no outro. Inti nosso Pai não quer ver um ser como esse viver!
- E se ela tiver sido enviada por Quilla minha Mãe?
- Então poderíamos tomar seu coração como oferenda, mas...
O Sábio Villa Orna não termina a frase. O Único Senhor de repente emite um gemido rouco. Dobra-se à frente para vomitar uma bílis líquida no rebordo do trono. Seu sofrimento súbito se torna tão intolerável que ele escorrega do trono e cai de joelhos. Homens e mulheres, senhores e servas, todos os que o rodeiam ficam apavorados e imóveis.
Anamaya, por reflexo, esboça um movimento, mas logo se contém. Ninguém tem o direito de tocar no único Senhor!
Sikinchara já a agarra pelos ombros para afastá-la. Mas, com os traços deformados por um esgar de dor, o único Senhor encara-a e a chama:
-Ajude-me! Menina, ajude-me!
O velho estende as mãos encarquilhadas e trêmulas para ela como se quisesse atravessar seu corpo. De sua boca bem aberta sai um suspiro rouco enquanto seu peito se agita sob a túnica. Debruçando-se à frente, ele se arrasta de joelhos e agita as velhas mãos:
- Ajude-me!
Então não há mais nem Senhores, nem proibições, então ela já não tem medo nenhum de morrer. As lágrimas contidas durante tanto tempo lhe turvam a visão e finalmente lhe escorrem pelo rosto.
Quito, novembro de 1527.
Apesar do ouro reluzente que reveste as pedras finamente encaixadas, o aposento permanece escuro, cheio de fumaça dos braseiros onde ardem folhas de coca.
Há três dias, o único Senhor está deitado debaixo de cobertores de vicunha e de lhama. Às vezes, ele treme enquanto dorme. Depois, durante longas vigílias silenciosas, seus olhos procuram no escuro respostas para as perguntas que o perseguem.
Como seu Pai Sol vai recebê-lo no Outro Mundo se ele morrer sem ter designado seu sucessor?
O que será do Império nascido em Cuzco, e que ele, Huayna Capac, tornou tão imenso que se leva várias luas para ir do norte ao sul?
O que significam esses sinais estranhos que vêm surgindo no céu e nas montanhas há uma estação?
Será Inti, seu Pai Sol, declarando sua ira? Será Quilla, sua Mãe Lua, declarando seu medo?
As perguntas sucedem-se numa ladainha exaustiva até que a febre torna a levar sua consciência. A dor lhe devasta a cabeça, o ventre e até os ossos que mantêm um homem em pé! Uma dor desconhecida, vinda não se sabe de onde e que jamais deveria atingir um Filho do Sol!
Então, em seu tormento, ele revê as estranhas pupilas azuis da menina capturada na floresta do Sul. Olhos cor das águas do Titicaca, o grande lago sagrado da origem dos tempos. Olhos que acalmam a dor quando se olha para eles.
Trompas soam à porta do palácio. Depois ruídos de passos e de vozes ecoam no pátio. Mas só aparece um homem à entrada do aposento, ajoelhando-se imediatamente, abaixando bem a cabeça. Sobre sua nuca é colocada uma pedra do tamanho de uma criança. Ele se aproxima assim do leito do doente, carregando a pesada pedra sem tremer.
O Único Senhor semi-ergue-se gemendo. Com a voz transformada pela febre, ele pergunta:
- Atahualpa? É você, meu filho?
No canto mais escuro, Villa Oma diz: - Sim, Único Senhor, é Atahualpa. - Levante-se!
Enquanto o Único Senhor, já sem fôlego, torna a se deitar na cama, um criado retira a pedra da nuca de Atahualpa, que se endireita.
A faixa dos príncipes cinge sua testa perfeita, e ele está usando a túnica e a capa com os motivos do clã que está governando. Tem o nariz forte e adunco, e o crânio alto. O branco de seus olhos às vezes fica injetado de sangue como se ele contivesse a raiva, mas ele jamais deixa transparecer o que pensa. E, embora o lóbulo de sua orelha direita seja distendido demais, ele impressiona todos aqueles que o vêem.
No entanto, hoje, ele é que se impressiona contemplando o rosto de seu velho pai, o Único Senhor.
Huayna Capac está bem mais doente do que ele pensava. Respira mal. Seus olhos estão vidrados como os de um homem embriagado de coca e de chicha. Ele envelheceu de repente. Atahualpa contém um movimento de recuo e se pergunta se deve anunciar ao pai a má notícia da qual é o portador. Como seu silêncio se prolonga, o Único Senhor adivinha o motivo:
- Diga-me o que sabe, Atahualpa meu filho! Não me esconda nada. Atahualpa lança um olhar para Villa Oma, que aprova com um gesto de cabeça.
- Único Senhor - diz Atahualpa com prudência -, não tenho boas novas.
Huayna Capac faz sinal com os dedos para que ele continue.
- Comerciantes da costa encontraram algo. Seres estranhos chegaram pelo oceano, trazidos por uma montanha de madeira que flutuava sobre as ondas...
As pupilas febris de Huayna Capac perscrutam o rosto do filho. - São numerosos?
- Não. Não mais que dez ou vinte. Eles foram embora depois de roubar o carregamento de uma balsa de Tumbez e capturar alguns marinheiros. - Eram humanos?
- Não se sabe, único Senhor... Alguns têm o tronco feito de uma prata especial, outros só usam pêlos por todo o corpo, até no rosto. Eles andam em pé como os humanos, mas fedem e usam uma língua desconhecida.
- Quando foi isso? - Há três estações. - E eles foram logo embora?
- Para o oceano, sim, levados por aquela chegaram, meu único Senhor!
Quase interrompendo, Villa Oma dá um passo à frente: - Viracochas... Já pensou nisso?
- O que você quer dizer? - pergunta duramente Atahualpa.
- Viracocha, nosso Senhor que criou o mundo, saiu do Titicaca para fazer as planícies e as montanhas, a mulher e o homem. Viracocha o Poderoso, aquele que quis que Inti o Sol nos desse a luz e Quilla nos guardasse a noite...
- Villa Oma! Você fala demais. Eu sei quem é Viracocha!
- Então sabe que uma vez cumprida a sua tarefa, ele desapareceu no oceano para ir descansar no horizonte do oeste. E que também prometeu voltar um dia...
- E você concluiu que ele é quem está voltando hoje - interrompe Atahualpa irritado. - Em cima de uma montanha flutuante e sob a aparência de homens malcheirosos, cobertos de prata fosca e de pêlos?
Villa Oma sustenta o olhar de Atahualpa, depois vira-se para Huayna Capac.
- É possível, meu único Senhor. Viracocha sabe assumir a aparência que lhe convém. Ele sabe ser um ou múltiplo, humano ou animal, floresta ou montanha... Ele pode tudo.
Olhos fechados, Huayna Capac respira ruidosamente, a voz apenas audível quando pergunta:
- Você não acredita que Viracocha esteja voltando para nós, meu filho? Atahualpa dá de ombros e responde:
- Não sei, meu único Senhor. Acho que é cedo demais para decidir. Sabemos que humanos impuros podem ter aparências estranhas. Você mesmo, durante as suas guerras, viu todo tipo de humanos nas florestas e nas montanhas do Sul... E por que Viracocha voltaria hoje para a gente? Nosso mundo daqui é grande e poderoso. Executamos a ordem e as leis...
- Mas vou me unir a Inti - suspira o único Senhor. - E não designei aquele que carregará a borla real depois de mim.
Essas palavras atraem um silêncio pesado.
O velho doente se ergue com dificuldade apoiado num cotovelo e diz com uma voz mais forte:
- Por que recusar, Atahualpa meu filho, que eu o designe? Sabe que trago você no coração mais do que todos os meus outros filhos! Sabe que você é o mais sábio e o mais capaz! Por que recusar e me embaraçar na hora em que estou partindo para o Outro Mundo?
- Único Senhor meu pai, nós dois sabemos a resposta à sua pergunta. Os clãs de Cuzco jamais me aceitarão! Você e meu pai, mas minha mãe não é de um clã poderoso. Se eu colocar a Fita real em minha testa, nunca poderei fazer reinar a ordem no Império nem fazer respeitar as Leis! Para quê?
- Único Senhor! - exclama Villa Oma. - Você precisa decidir. Não pode partir sem designar seu sucessor. Isso é um erro e o seu erro recairá sobre todos nós!
- Villa Oma! - censura Atahualpa. - Como ousa?
- Ouso porque a desgraça está diante de nós! Está esquecendo os sinais, Atahualpa? Outra noite, nossa Mãe Lua se dividiu em três círculos ao passar em cima do palácio. O primeiro era cor de sangue. O segundo era ao mesmo tempo negro e verde. O último era só fumaça!
Huayna Capac, exausto, tornou a desabar no leito. Respira com um rugido rouco. Atahualpa só lhe concede um olhar. Secamente, pergunta ao Sábio:
- E, segundo você, o que Quilla quer nos dizer?
- O primeiro círculo significa que, quando nosso único Senhor tiver se unido a seu Pai Sol, o sangue de sua linhagem correrá em abundância. O segundo prevê que massacres e guerras traçarão um fosso intransponível entre o Norte e o Sul. O terceiro círculo é só de fumaça, pois uma vez cometidos os erros, a ira de Inti e de Quilla será tão grande que, de nós, só restará fumaça, poderoso filho do único Senhor!
- Aah! - resmunga Atahualpa com um gesto de fúria. - Quanta bobagem! Villa Oma, pensei que você fosse mais sábio. Você dá ouvidos demais aos adivinhos que não controlam o que dizem. Eles falam e falam!
Você sabe muito bem que outro desses sacos de pulgas nos afirmará exatamente o oposto.
- Quem é o sábio? - pergunta Villa Oma franzindo as pálpebras. - olha os sinais e os compreende? Ou aquele que fecha os olhos para r ignorá-los?
O sábio é também aquele que sabe se calar quando é preciso, irmão Oma!
- Atahualpa... Atahualpa! - murmura Huayna Capac erguendo uma mão trêmula. - Atahualpa meu filho, não se enfureça! Amo suas idéias e sua força. Mas talvez Villa Oma tenha razão. Ele sempre me aconselhou bem, ouça-o quando eu tiver partido...
O ancião estremece quando uma nova onda de dor lhe arranha o peito. Depois, destacando as palavras, acrescenta:
- Acho que Quilla minha Mãe me enviou outro sinal. Villa Oma, traga aqui a menina dos olhos azuis!
As auroras se sucedem e não se parecem na Casa das Virgens.
Quando Inti Palla entra no aposento, esgueirando- se sem fazer ruído sob o cortinado de cores vivas, Anamaya estremece de medo. A angústia dos dias passados não se apagou totalmente. Todavia, Inti Palla se agacha ao seu lado com um sorriso cúmplice.
- Tome! - murmura ela. - Pegue! É para você...
Pasma, Anamaya vê a princesa lhe dar um magnífico bracelete de ouro. Duas serpentes entrelaçadas e tão reais que parecem querer enroscar-se no braço dela.
- Tome - insiste Inti Palia -, é para você! - É tão lindo...
Inti Palia segura o pulso de Anamaya e enfia-lhe habilmente o bracelete.
- Nunca se separe desse bracelete, minha irmã. Ele sempre a protegerá!
Minha irmã? Anamaya não sabe se deve acreditar nas palavras que está ouvindo. Será a mesma Inti Palla que ontem lhe anunciava, sorrindo, que ela ia morrer?...
Mas seu coração não sabe o que é rancor. Ela se inclina timidamente para Inti Palla e murmura, - Obrigada.
Inti Palla abre os braços e a estreita contra si. Anamaya sente o calor desse corpo estrangeiro, o coração batendo sob o jovem peito. Há mais de um ano que ninguém a abraça, nenhuma mão a acaricia... Sem que ela consiga evitar, sua garganta se fecha e suas mãos se crispam nos ombros da princesa. Elas têm um mesmo estremecimento e Anamaya quer ver nisso um sinal. Inti Palla é a primeira a se desvencilhar do abraço. Fita Anamaya no azul intenso de seus olhos e diz em tom muito solene:
- Nunca se esqueça de que sou sua amiga.
O reconhecimento faz os olhos de Anamaya brilharem, mas ela não sabe se pode acreditar no que ouve.
- Ande logo - acrescenta Inti Palla levantando-se. - O capitão Sikinchara veio buscá-la, o único Senhor quer vê-la de novo.
Por trás do medo agora familiar, Anamaya sente nascer um sentimento novo - uma espécie de curiosa excitação, de espera.
E até um certo orgulho.
Antes de se prosternar no chão do aposento cheio de sombras, Anamaya tem justo o tempo de perceber uma silhueta minúscula e curiosa envolta em vermelho, cujo olhar agudo se fixa no seu. É um homem menor que uma criança, cujas mãos fortes estão agarradas ao leito do único Senhor. Sua boca ostenta um curioso ríctus de desespero.
Quando Sikinchara lhe ordena que avance, o ar que ela respira logo lhe irrita a garganta e os olhos. O cheiro das folhas queimadas de coca mistura-se ao da doença. Na penumbra, ela adivinha ainda outras presenças e reconhece a túnica do Sábio de boca verde de coca.
Quando ela chega, engatinhando, perto do leito do único Senhor, o Anão recua para lhe dar lugar, sem se apagar completamente. Ela sente a presença daquele corpo disforme próximo ao seu e, estranhamente, a impressão não é desagradável. Depois ela ouve a voz do único Senhor, rangendo como areia: - Levante-se, minha filha. Olhe para mim. Ela se levanta e o que vê é horrível.
O Único Senhor está tão doente que seu rosto parece estar apodrecendo. Manchas repugnantes deformam sua testa e suas têmporas. Outras aparecem também nas mãos agitadas por violentos tremores. Ele murmura:
- Atahualpa, observe os olhos dela...
Um jovem senhor se aproxima e põe-se à sua frente.
Anamaya contém um movimento de recuo. Sente todo o poder que está homem. Ele fita seu olhar azul sem hesitar enquanto ela se surpreende as linhas de sangue que lhe comem o branco dos olhos. Apesar de tudo, tosto e bonito, sua boca, longa e seus lábios muito bem delineados.
Ela não ousa encará-lo mais e vira para o outro lado. O que vê então a faz estremecer, ela quase dá um grito. No leito do único Senhor, brilha outro Um focinho escuro está à sua frente. Presas brilham!
Num arrepio, ela compreende afinal que o puma não está vivo. É apenas pele esticada sobre os pés do único Senhor. Mas sua cabeça está tão bem conservada que as pupilas do animal a transpassam.
Atahualpa pergunta:
- Quem é ela, de onde vem?
- Villa Oma lhe explicará - murmura o único Senhor. - Venha cá, pequenina, aproxime-se.
Hesitante, Anamaya aproxima-se mais um pouco do leito real. O cheiro arde na garganta. Ela se pergunta se o que lhe está acontecendo não e pior que enfrentar feras. O Anão aproxima a boca de seu ouvido e, quando ela vai repeli-lo assustada, ele lhe segreda:
- Não tenha medo dele.
É um simples segredo que ninguém escutou, mas o palpitar de seu coração se acalma. O Único Senhor, num esforço terrível, estende-lhe a mão agitada por sobressaltos.
- Me dê a mão, menina! Atrás dela, Villa Oma exclama: - Único Senhor! Cuidado!
Anamaya sequer ousa levantar a mão. Fita apavorada os dedos estendidos para ela, escuros como uma raiz apodrecida pela geada. Ninguém, senão as Mulheres Escolhidas, toca o único Senhor!
Contudo, os olhos que a febre faz saltar das órbitas fitam os seus. Huayna Capac torna a ordenar:
- Toque em mim, menina!
Nauseada, ela pousa os dedos pálidos nos dedos do Inca.
Com um movimento apenas controlado, ele se agarra a ela. Arquejando, fecha os olhos, joga a cabeça no tecido molhado de suor, como se caísse para trás, o corpo percorrido por um calafrio.
Todos se calam em volta deles.
Anamaya, tão trêmula agora quanto o único Senhor, não ouve sua respiração aflita.
Finalmente, a boca encarquilhada do Filho do Sol se contrai. E talvez seja um sorriso. Ele pisca, mas seu olhar está tão velado quanto o de um homem ofuscado. Sua voz não passa de um som rouco que vibra através de sua garganta seca:
- As águas azuis do Titicaca estão nos olhos dela, meu filho. As água do céu! Quilla, obrigado, minha Mãe, por havê-la enviado a mim. Sei... - Único Senhor, meu pai...
Deixe, Atahualpa! Está bem. Eles a enviaram a mim para me acompanhar ao limiar do Outro Mundo. Os olhos dela me fazem bem. Você ouve a minha voz, meu filho? já está mais clara. A dor está me deixando. Ah, obrigado, Quilla!
Anamaya treme. Ela não entende o que o único Senhor quer dizer, mas sente como ele aperta sua mão com força. Adivinha contudo que ele diz a verdade, que sente menos dor...
Ela tem vontade de sorrir também.
Depois de um longo silêncio, ela ouve o arrastar de sandálias nas pedras. Percebe que Villa Oma e depois o jovem Senhor Atahualpa saem do aposento. Ela fica sozinha, agachada junto ao leito, de mão dada com o Inca, o Anão escondido atrás dela.
- Meu filho mais velho ainda está ao meu lado? - pergunta o Inca com uma voz entrecortada.
- Estou aqui, amado pai.
A voz do Anão é grave, profunda como um eco saindo do peito de um gigante.
É preciso nos deixar agora, meu filho - murmura o único Senhor. As perguntas se comprimem, sem resposta, na cabeça de Anamaya, enquanto ela ouve os passos do Anão se afastando. Como o único Senhor pode ser o pai de um ser como aquele? E no entanto, ela julgou sentir uma ternura infinita na voz deles...
Então o único Senhor torna a apertar sua mão entre as dele com uma força da qual ela não o julgava capaz. Ela morde os lábios para não gritar. Depois, ele diz baixinho:
- Tenha paciência, filha, tenho muito para lhe contar.
A noite inteira, o único Senhor fica segurando a mão de Anamaya.
A noite inteira, ele conta e conta. Sua voz, tão baixa, não pára de dizer como se ele não tivesse outra força senão essa.
Ele conta o passado, o nascimento do Mundo, a fundação do Reino de pelo primeiro Inca, e a paciente conquista das montanhas, das planíces dos lagos pelo Filho do Sol.
Conta como ele, Huayna Capac, o Décimo Segundo Filho, estendeu o Império das Quatro Direções para o norte, até as montanhas ardentes de Quito, e ao sul, muito além do lago Titicaca, onde a neve e o gelo permanecem em todas as estações.
Conta suas batalhas, as cidades subjugadas e os povos conquistados. Sem fôlego, os lábios dilacerados por tantas palavras pronunciadas, ele diz o que são o poder e a sabedoria, a grandeza e a força dos Filhos do Sol. Com soluços misturados aos arquejos de sua agonia, ele diz o quanto sua Mãe Lua o amou, o quanto ele está feliz de finalmente ir juntar-se a Inti, seu Pai Sol. Mas confessa o quanto tem medo de reencontrar seus Ancestrais no Outro Mundo. Eles vão censurá-lo por não ter garantido o futuro do Império colocando a Fita real na cabeça de um de seus filhos.
Ele diz que contudo espera virar pedra, como os Velhos de sua raça, pousado na relva macia de uma montanha de Cuzco.
E, finalmente, ele lhe conta um segredo. Segreda- lhe o futuro!
Mas então, é como se as palavras não mais passassem pela boca e pelo ouvido, mas sim da mão descarnada do único Senhor para a mão fresca da menina.
E Anamaya está embriagada de palavras e frases. Não ouve mais.
Ela não tem consciência de que todos os Poderosos do Império se comprimem à porta do aposento, enchendo o grande pátio do palácio iluminado por centenas de tochas.
Todos estão ricamente vestidos e adornados. O ouro de seus brincos cintila na noite como se, de repente, estrelas se tivessem reunido. Mas eles permanecem em silêncio absoluto. Só se ouve o murmúrio da voz do único Senhor, como um zumbido de um inseto excitado.
E a noite inteira os Poderosos olham essa coisa inconcebível: o único Senhor, deitado em seu leito de morte, segura a mão de uma menina ajoelhada, cambaleando de exaustão! Uma menina impura de olhos de lago, nem sequer uma criança de grande linhagem. E ele fala sem parar!
A ela, ele confia todos os segredos que só o Filho do Sol conhece!
A ela, ele confia o segredo dos Pais e dos ancestrais!
Muitos gostariam de gritar diante do sacrilégio. Mas ninguém ousa.
Quando o sol volta ao horizonte, Anamaya está exangue como se lhe tivessem esvaziado o coração.
Cem vezes, ela quase dormiu. Cem vezes, com a mão livre, ela se arranhou até tirar sangue das coxas para não deixar seus olhos se fecharem. Cem vezes, as pupilas amarelas do puma penetraram-na e a mantiveram desperta.
Agora, no dia que vem raiando, seu corpo está tão entorpecido que ficou insensível e gelado como se estivesse coberto de neve. Seu espírito está congelado e as frases pronunciadas pelo único Senhor já se apagaram.
Mas, de repente, enquanto as pálpebras dos Poderosos, sempre de pé no pátio, se fecham, enquanto as cabeças caem de cansaço, o murmúrio cessa. Anamaya estremece, a nuca rígida, os olhos arregalados.
Em seus dedos tão entorpecidos, ela sente uma ponta de fogo. O Único Senhor treme de novo respirando alto e depressa.
Seu velho rosto ficou amassado durante a noite, como se os ossos das mandíbulas e das têmporas tivessem derretido.
Mas suas pupilas, opacas como a noite que ele acaba de atravessar, ardem com um fogo tão violento quanto o que funde o ouro, e esse fogo penetra no azul dos olhos de Anamaya como se, juntos, eles pudessem ir para o Outro Mundo.
Ela não tem medo, mas seu coração se dilacera e se abre a todas as dores. Ela vê diante de si sua mãe morta na aldeia e o rosto do velho. Uma onda de tristeza lhe esmaga o peito. As lágrimas rolam em seu pescoço.
O soluço que ela deixa escapar, todos escutam, até o fim do pátio. E todos estremecem de medo.
No entanto, o único Senhor se agarra uma última vez à mão de Anamaya, com tanta força que a faz cair em cima de seu leito, e ele grita:
- Menina Anamaya! Filha do lago, filha de Quilla! Que sua vida seja longa deste lado do mundo! Pois hei de me lembrar de você quando estiver perto de meu Pai Sol!
Ele cai para trás e acabou-se. Está morto. Um imenso gemido se levanta no pátio real. Como uma onda quebrando, Anamaya escorrega no chão.
Quito, dezembro de 1527.
- Será que você é uma menina sem cérebro e sem memória? Ouve e não compreende as palavras? O Único Senhor passa uma noite inteira lhe falando sem que a repercussão disso em você seja maior do que o barulho que faz uma folha de coca entre os seus dedos?
Há horas, o Sábio Villa Oma faz as mesmas perguntas. Ela só tem uma resposta, que repete, cabisbaixa:
- Não sei, Poderoso Senhor, não sei mais. Não entendi... Ele falava, falava! Dizia palavras que não conheço. Eu não queria esquecer. Mas o puma me olhava e tudo se apagou...
- O puma olhava para você e tudo se apagou!
Há tanta ironia amarga e raivosa nesse sarcasmo que Anamaya vira o rosto.
- Acalme-se, Villa Oma! - intervém secamente Atahualpa.
Villa Oma bate com o punho em seu plastrão de ouro e dá dois passos para o lado, como se esse movimento pudesse absorver um pouco de sua raiva.
No quartinho escuro, mobiliado apenas com um leito e um grande jarro vazio, o ar fica irrespirável. Villa Oma puxa a capa e se vira, agitando a mão com veemência:
- Poderoso Senhor Atahualpa, meu irmão de linhagem! - exclama. - Eu o respeito, mas me parece que você não avalia a gravidade da situação. Há uma lua o seu pai Huayna Capac se foi para o Outro Mundo. Ele partiu sem designar um sucessor. Talvez, na confusão da agonia, ele tenha confiado o último desejo a essa menina, mas pronto! Ela olhava para os olhos de uma pele de puma e tudo se apagou!
Villa Oma aproveita um silêncio para fitar Anamaya com nojo. Ela sente os joelhos bambearem e a vergonha lhe gelar o peito.
- Assim - continua o Sábio em tom glacial -, assim o Império vive dias sem luz. Nenhum Inca pode pretender colocar a borla imperial na cabeça. O Império das Quatro Direções está sem centro. Inti não tem mais nenhum Filho para nos governar! Acha que isso pode durar sem que nosso mundo se quebre? Atahualpa! Atahualpa! Você poderia ser o único Senhor... - Você sabe por que recusei, Villa Oma! Inútil tornar a falar nisso. - O que importa o motivo! Sua recusa forçou Huayna Capac a tomar decisões ruins enquanto ele estava doente e já meio no Outro Mundo.
- Villa Oma, meça suas palavras!
- Essa não é a verdade simples? Quem ele designou para o seu lugar? Seu último filho que não tinha uma lua de idade! Um bebê! E os oráculos foram péssimos. Os adivinhos afirmaram que era uma escolha execrável. Infelizmente, devastado pela doença, seu pai se obstinou...
- Você não está me contando nada de novo, Villa Oma. Está se repetindo e sendo desrespeitoso!
- Então vou lhe dar uma notícia, chegada hoje ao amanhecer... - Diga.
- Os sacerdotes foram a Tumebamba para colocar a Fita real na testa desse bebê, já que ele era o designado. E ao chegarem, o bebê já estava tão morto quanto o pai!
O silêncio súbito pesa sobre eles como um vento frio. Anamaya, sem querer, ouve atentamente. Permanece o mais imóvel possível. Adivinha a respiração lenta de Atahualpa e o ranger dos dentes do Sábio, que pergunta:
- O que vai acontecer agora? Diga, Atahualpa, você que sabe!
- Os clãs poderosos de Cuzco colocarão sem hesitar a Fita real na testa de meu irmão Huascar - admite Atahualpa sombrio. - Ele é que foi designado em segundo lugar...
- Sim! Mas os oráculos foram tão negativos quanto com o bebê! E mesmo que tivessem aprovado essa escolha, você conhece Huascar tanto quanto eu. Ele é imprevisível. Por enquanto, submete-se de bom grado aos tios e tias de Cuzco que querem reinar sem divisão e só têm ódio no coração por todos os clãs do Norte. Ninguém pode saber o que ele quer fazer das Quatro Direções, mas uma coisa é certa: vai ser com sangue. Ele gosta de fazer sofrer! E vai nos escolher como inimigo. Eis do que será feito o amanhã. Acha isso sensato? Eu lhe digo. Tenho medo da cólera de Inti nosso Pai. Tenho medo, das lágrimas de Quilla e da ira de Illapa! Atahualpa, só você pode manter o rio unido e poderoso!
Com uma voz controlada, Atahualpa responde simplesmente:
- Não. Huascar usará a borla. Assim quis meu pai Huayna Capac. Furioso, Villa Oma bate o pé com tanta violência que Anamaya se assusta. O Sábio agita na direção dela um dedo seco e duro como uma ponta de lança. Na penumbra, seus lábios e seus dentes esverdeados pela coca parecem pretos e lhe fazem uma boca vazia e terrível de onde as palavras saem troando: - O que sabe sobre isso? Ele confiou a verdade dele a essa garota! Uma noite inteira! Temos de saber o que lhe disse. Basta ela se lembrar!... Ah, Atahualpa! Confie-a a mim, deixe que eu lhe arranque a pele se for preciso. Prometo-lhe que antes desta noite...
- Não, Villa Oma - interrompe Atahualpa com um tom que não permite réplica. - Você não vai fazer nada disso.
Por um breve instante, os dois homens se enfrentam com o olhar. Anamaya está prestes a desabar quando o Sábio finalmente se dirige para a porta estreita do aposento. Com uma ordem seca, Atahualpa o chama.
- Ouça com atenção, irmão Villa Oma! Sei que você fala para o meu bem, e não esquecerei disso. Mas quero respeitar as escolhas de meu pai, mesmo que elas não me agradem. Se ele achou que essa menina lhe foi enviada por nossa Mãe Lua, é porque tinha seus motivos.
Villa Oma suspira. Após uma hesitação, volta para perguntar: - O que quer que eu faça?
- O que deve ser feito. Você ouviu como eu ouvi quando meu pai disse: "Menina Anamaya! Filha do lago, filha de Quilla! Que sua vida seja longa deste lado do mundo... " Ele a designou para que ela fosse a guardiã de seu "Irmão-Duplo". Assim será.
Villa Oma sacode a cabeça, o rosto cansado. Como se estivesse dando uma aula a um aluno insuportável, diz:
- Isso não existe. Os Irmãos-Duplos nunca tiveram Esposa.
- Pois bem, doravante isso vai existir. Você mesmo anunciará aos sacerdotes: essa menina será a Coya Camaquen do Irmão-Duplo.
- Eles não vão querer isso! Deixe-me botá-la no fosso dos pumas e ela vai se lembrar.
- Não! O Único Senhor Huayna Capac a quer perto dele e aqui. Os Senhores presentes na noite da passagem dele para o Outro Mundo viram e ouviram isso tão bem como nós.
- Essa menina não passa de uma selvagem! - protesta ainda Villa Oma. Não sabe o que é uma Coya Camaquen, nunca viu o Irmão-Duplo! Cabe a você fazer o que for preciso para que ela fique sabendo. E logo... - Atahualpa! Ela não é uma verdadeira inca; por que deveríamos lhe confiar nossos segredos? É contra a tradição e contra a lei... Se você estiver enganado, sabe o que acontecerá conosco?
- Não posso me enganar seguindo a vontade de meu pai.
- Quem pode dizer? Se nosso erro for grande demais, o Sol não transporá mais as montanhas do leste! Você quer que na manhã do dia igual à noite ele permaneça no Mundo de Baixo? Que o tempo pare e que a gente acabe?
Cada uma dessas palavras é um golpe no coração de Anamaya. Mas Atahualpa ordena com sua voz calma:
- Pare de gemer, Villa Oma, e faça o que lhe peço.
O Sábio fica um instante de olhos fechados, mas acaba cedendo, vencido. Então, com um movimento rápido, segura o queixo de Anamaya com os dedos duros como pau. Levanta seu rosto e encara-a com seus olhos escuros:
- Menina Anamaya! Você ouviu? Agora vai me obedecer em tudo. É assim que meu irmão Atahualpa quer. E prometo-lhe que se algum dia sua língua e sua memória se soltarem para que você conte a outra pessoa que não eu o que o único Senhor lhe disse antes de morrer, cortarei seu coração em pedacinhos!
Ele larga o rosto da menina com tanta violência que é quase como uma bofetada. Enquanto sai sem um olhar para Atahualpa, os joelhos dela bambeiam e ela desaba no leito estreito. Seu orgulho nada pode, o pavor lhe tira o fôlego, ela soluça, a boca aberta, mal contendo um pequeno grito. O Senhor Atahualpa a observa um instante, hesitando, depois dá um passo e se inclina. Com as pontas dos dedos, toca em seu ombro, esboça uma carícia com as costas da mão.
- Olhe para mim, menina - ordena com doçura.
A discussão com o Sábio deixou o branco de seus olhos mais vermelho que nunca. Mas um ligeiro sorriso paira em seus belos lábios.
- Não chore, menina Anamaya - diz ele baixinho. - Seja forte e digna. Não tenha medo do Sábio. Ele grita muito, mas não é tão mau quanto parece. Ele quer o nosso bem...
Atahualpa perscruta-a como se procurasse ainda alguma coisa no enigma de seus olhos azuis. Não sorri mais. Seu rosto está de novo severo quando ele anuncia:
- Não tenha medo de ninguém. Vou protegê-la tanto quanto meu Pai quiser lá do Outro Mundo.
- Anamaya, minha irmã...
Tendo entrado furtivamente no aposento depois que Atahualpa saiu, lnti Palla se ajoelha ao lado de Anamaya e acaricia sua mão. Seus dedos passam pelo bracelete das serpentes. Seu olhar brilha de curiosidade.
- É verdade o que dizem? murmura ela. Anamaya olha para ela sem entender.
- Que você não se lembra de nada! - acrescenta Inti Palla piscando com irritação. - De nada do que o único Senhor lhe disse...
Anamaya hesita em responder. As ameaças do Sábio Villa Oma ainda ecoam em sua cabeça. Mas ela não queria parecer não confiar na nova amiga. Senhor me falou e suas palavras estão em mim - diz ela - O Único senhor me falou e suas palavras estão em mim - diz ela com precaução. - Mas você não se lembra? - repete a princesa apertando-lhe o pulso com força.
- Quando o único Senhor quiser, vou me lembrar...
Inti Palla suspira, mas o que lê no olhar azul de Anamaya a impede de insistir. Seus dedos se soltam, esboçam uma carícia negligente. Um sorriso que nada tem de amigável lhe entreabre ligeiramente os lábios.
- Pior. Se não quer confiar em mim...
- Inti Palla, não posso! Não tenho o direito!
A jovem princesa dá de ombros, levanta-se arrumando o alfinete de ouro na capa. Numa fração de segundo, recuperou uma arrogância, um desdém que Anamaya não via nela há muito tempo.
- Não tem a menor importância - diz ela. - Eu vinha lhe anunciar uma coisa mais importante. Como não saiu deste quarto desde a morte do único Senhor, você não deve estar a par...
- Eu não tenho o direito de sair - murmura Anamaya lançando um olhar de desprezo para o cortinado da porta.
- É exatamente o que eu dizia! - continua Inti Palla. - E eu também não devo me demorar muito aqui. Mas é melhor você saber. Assim que terminar o jejum pela passagem do único Senhor para o Outro Mundo, eu serei a concubina do Poderoso Atahualpa!
- Oh - Sim... Está espantada?
- Não! Você é bonita! Eu compreendo...
- Sim - ri Inti Palla, cheia de presunção. - Acho que ele me acha; muito bonita. E sabe, não tem importância nenhuma você não querer me contar nada. Eu vou saber de outra maneira. Em pé, os Senhores são cheios', de orgulho e de silêncio, mas, quando estão deitados nos braços das concubinas, é outra história!
Inti Palla sai com um farfalhar da túnica de fina lã e uma boa gargalhada. - Não acredite em nada do que ela conta - diz uma voz grave e profunda que ela reconhece logo.
Inti Palla é mentirosa e cruel!
O Anão sai de dentro do jarro, tirando primeiro os ombros, depois o busto e as pernas. Sua basta cabeleira está salpicada de grãos de milho. Agilmente, ele senta na borda e contempla Anamaya seriíssimo.
- Muito mentirosa e ruim como uma cobra ferida - prossegue ele sacudindo a cabeça para se livrar dos grãos de milho. - A primeira vez que ela me viu, me encheu de pontapés. Ela se submete aos fortes e esmaga os fracos. Só ouvir o que ela diz já é fazer mal a si mesmo.
Não fora a surpresa, Anamaya cairia na gargalhada diante da cena desse aborto da natureza saindo feito um macaco de dentro de um pote, a cabeça como que coberta por uma chuva de ouro da planta sagrada. Mas ela franze o cenho com severidade e quer se mostrar ofendida:
- Em que você está se metendo e o que está fazendo aí? - Eu velo por você, Princesa.
- Não preciso de você para saber quem são meus amigos. - Ah? Tem certeza?
O Anão brinca. Com agilidade, sai completamente do jarro e pula para o chão para se prosternar diante de Anamaya, que mal contém o riso.
- Princesa!
- Pare de bancar o idiota!
- Não estou bancando o idiota, Princesa - protesta o Anão com uma gravidade dolorosa. - Ao contrário. Meu amo morreu, e só quero a honra de servi-la.
- Servir a mim? Eu sou feia e...
- Já olhou bem para mim, Princesa?
A gargalhada que Anamaya contém desde a aparição do Anão finalmente estoura - uma gargalhada que a sacode profundamente e a libera. Há tempo ela não ri, há tanto tempo o sofrimento e o medo estão nela, que ela não consegue mais parar. O Anão se levanta e agora fica impassível diante dela.
- Me desculpe - balbucia ela quando finalmente se acalma. - Eu nem sei quem você é...
- Não ouviu o nosso único Senhor me chamar de filho?
- Ouvi, mas...
- ... mas achava que a doença já estava levando o espírito dele, não é? - Não sei. Eu estava com muito medo e talvez não tenha...
- Não se aflija - corta o Anão sem maldade -, você não ofendeu minha dignidade...
Através do cortinado animado por uma leve brisa, ela vê as sombras da agitação do palácio. O Anão adivinha sua aflição e a varre com um gesto. - Ninguém entrará - murmura ele, cúmplice.
- Como sabe?
- Conheço essas coisas - diz ele com uma segurança cômica.
Eles se calam um momento, um em frente ao outro, Anamaya se acostumando progressivamente à sua estranha presença, sua cabeça desproporcionada que lhe chega à altura do peito, essa longa túnica vermelha cujas franjas arrastam no chão e se sujam de terra e de lama. Ele já a usava no primeiro dia, quando ela o descobriu ao pé do leito do único Senhor.
- Você nunca tira essa túnica?
- Eu a usava no dia em que o Senhor Huayna Capac me capturou e fez de mim seu filho...
- Não estou entendendo.
- Pertenço à tribo dos canaris que sempre fez guerra aos incas. Um dia em que Huayna Capac perseguiu minha gente até o lago Yaguarcocha e fez estragos terríveis em nossas casas, eu me refugiei, tremendo, embaixo de uma pilha de cobertores de lã grossa...
A cara do Anão muda de expressão de uma palavra a outra, como um céu na estação das chuvas. O medo extremo e o divertimento passam sucessivamente em seus olhos.
- Eu ouvia a raiva terrível dele explodir em palavras como nuvens carregadas de tempestade. Enfim, eu tinha medo de morrer, um medo terrível e ignóbil. Quando senti a mão remexendo os cobertores, achei mesmo que havia chegado o meu fim.
- Você deve ter suplicado muito!
- Absolutamente, Princesa. Não sei por que, exclamei absurdamente: "Quem me descobriu? Quero que me deixem dormir!" E repeti isso várias vezes, me levantando bocejando, em cima dos meus cobertores, como se estivesse acordando de um sono profundo. "Me deixem dormir!”
Anamaya ri de novo, o coração leve. - O que disse o único Senhor?
- Fez como você, Princesa. Riu a bandeiras despregadas. E com ele riram todos os que estavam em volta, generais, combatentes, Senhores, todos com aquele brilho feroz no fundo dos olhos, mas estavam rindo porque o amo ria. O único que não ria era seu filho dos olhos vermelhos...
- Atahualpa? Por quê? O Anão se cala.
- Eu sei o motivo e algumas outras pessoas também... Mas creia, é melhor não saber...
- Então você também tem um segredo perigoso.
Ele faz com o lado da mão o movimento de cortar a garganta.
- É isso o que vale minha vida, nada mais. Enfim, se o Rei Huayna Capac não tivesse declarado que eu era seu filho, seu filho mais velho, e que me deviam respeito... É por isso que continuo vivo. Mas agora que ele foi para o Outro Mundo...
O Anão se cala de repente. Anamaya não tem mais vontade de rir. Perdi meu pai - prossegue ele com gravidade, uma tristeza em que não há mais vestígio de brincadeira.
O coração de Anamaya está aos pulos. Com sua voz grave, sem emoção aparente, o Anão acrescenta ainda:
E eles me odeiam tanto quanto a odeiam!
- Você é tão sozinho quanto eu, não é? - murmura Anamaya entendendo finalmente aonde ele quer chegar.
- Parece.
No silêncio que os une, Anamaya não tem mais medo de ser uma menina. Emoções antigas, que ela não procura compreender, fazem-na estremecer. Uma onda de ternura lhe aperta o ventre, turvando seus olhos. As palavras se comprimem no fundo de sua garganta apertada. Ela queria lhe contar, lhe confiar seus terrores e o pouco que ela se lembrava. Mas só consegue balbuciar sons informes. Enquanto lágrimas a sufocam, a mão larga do Anão, falanges bizarramente desproporcionais, segura a sua com extrema doçura. - Não diga nada, Princesa! Não diga nada, está tudo bem.
- Eu queria... Eu queria...
Mas as palavras continuam não vindo. Ela se aconchega ao Anão e, de repente, sente-se minúscula, tão pequena, menor que ele, tão perdida, desamparada! E contudo, pela primeira vez em luas, seu coração se enche de esperança e de reconhecimento.
Finalmente ela encontrou um amigo.
A cada ruído, cada visita, o Anão se esconde.
Quando a noite avança, ele se deita ao lado dela, na esteira, e os dois conversam.
Ela lhe conta sobre o ataque da aldeia, a morte de sua mãe, o capitão Sikinchara, a estranha paixão odiosa que lhe dedica Inti Palla, seu medo agora que o segredo confiado por Huayna Capac está nela e que todo mundo quer possuí-lo.
Ele lhe fala da corte e suas intrigas, dos ódios das concubinas, da crueldade dos Poderosos. Conta- lhe também o segredo que Atahualpa esconde no coração, o verdadeiro motivo por que ele não pode ser o Inca. Diz-lhe para não confiar em ninguém senão na palavra escondida dentro dela, a que o único Senhor depositou e que dorme em seu seio.
Eles não confessam que têm medo de ser separados, agora que se encontraram, mas prometem velar um pelo outro o mais que puderem.
Ele a faz rir baixinho e ela o chama de "meu Senhor" enquanto ele a chama de "Princesa". Na solidão da noite, eles largam a pele de suas solidões terríveis, as camadas de seus medos acumulados.
Quando a aurora se aproxima, o Anão diz a Anamaya que logo vão matá-lo, ele sabe.
E com todas as forças, ela se agarra a ele, como se estivesse se afogando, pedindo-lhe que não morra, que não a deixe.
Quito, janeiro de 1528
- Coya Camaquen! Coya Camaquen! Acorde por favor!
Anamaya levanta-se sobressaltada, apoiando-se no cotovelo, espantada. Seis ou sete jovens mulheres comprimem-se em seu quartinho. E, na hora em que ela faz menção de se levantar, as criadas já se prosternam e recuam até as paredes, com todos os sinais de respeito só concedidos a uma mulher de alta posição.
Cabeça baixa, a mais velha das jovens, que não tem o dobro da idade de Anamaya, ajoelha-se. Coloca as palmas das mãos no tapete que cobre batida e, o rosto inclinado, murmura:
- Coya Camaquen, você deve nos seguir, por favor. "Coya Camaquen”.
Assim, a vontade do Poderoso senhor Atahualpa se realizou, apesar da resistência do Sábio Villa Oma. "Coya Camaquen!”
Se ao menos ela soubesse o papel e quais são os seus deveres! Mas ela não tem muito tempo para se fazer perguntas.
O reposteiro da porta é levantado e o sol brilha lá fora. Afinal, sair desse aposento que mais lhe parecia uma prisão do que um quarto.
Ela não tornou a ver o Anão desde a noite em que ele veio quebrar sua solidão oferecendo-lhe a dele. Às vezes, ela se pergunta se isso não foi um sonho... Ela se levanta, e segue as criadas que não ousam encará-la. Mas mal dá alguns passos ao sol, arrepia-se toda.
Lamentos ecoam pelo imenso Palácio Real. As flores dos jardins foram cortadas e murcham no chão. As Esposas do Único Senhor vão de um lado para o outro, chorosas, o rosto desfeito de tristeza. Todas parecem errantes e perdidas, andando de um lado para o outro, sem objetivo.
As criadas fazem-na entrar num novo pátio. Ali, há homens também soturnos reunidos em pequenos grupos. Pelas roupas e pelos discos de ouro de suas orelhas, vê-se que são Senhores. Quando ela passa, eles olham para o outro lado e permanecem imóveis até ela se afastar.
Finalmente, Anamaya entra numa das grandes casas de pedra. As paredes são revestidas de placas de ouro, e há nichos altos com lhamas de pedra e de cerâmica, e vasos de madeira finamente pintados. Sobre um banco de madeira, há roupas magníficas aguardando. A lliclla, uma capa de um vermelho- escuro, com listras formando um grande V, azul-claro e amarelo-vivo. Quando Anamaya toca no pano, seus dedos estremecem. Ela mal ousa pegar no tecido: parece pele de criança!
Quanto ao acsu, a túnica, é uma maravilha que ela nunca viu igual. Do mesmo vermelho que a lliclla, é decorada com duas largas barras de motivos geométricos, amarelos e brancos, azuis e vermelhos, de tamanha perfeição e fineza que alguns traços de cor são da espessura de um fio de cabelo...
- São os motivos do Único Senhor Huayna Capac! - resmunga uma voz atrás dela que ela logo reconhece.
Na emoção de suas descobertas, ela não ouviu o Sábio Villa Oma entrar no aposento. As criadas recuaram e mantêm o rosto inclinado. O Sábio aponta para a túnica e a capa:
- Acho que devo lhe contar tudo, menina Anamaya! De agora em diante, você pertence ao clã do falecido Único Senhor. Em determinadas cerimônias, sua capa e sua túnica serão brancas. Do contrário, você usará as cores dele, Coya Camaquen...
Como se essas últimas palavras ainda o deixassem incrédulo, o Sábio se interrompe com um suspiro e, com uma expressão triste, mascando suas folhas de coca, examina Anamaya. Sacudindo a cabeça, acrescenta, como se falasse apenas para si mesmo:
- "Coya Camaquen!" Eis o que você é. Atahualpa assim o quis e não consegui dissuadir os sacerdotes. Que Inti nos apóie em nossa loucura!
- Poderoso Sábio...
- Inútil fazer perguntas agora, menina Anamaya, mais tarde lhe explicarei o que deve saber!
Ele se vira para as criadas e diz bruscamente:
- Vistam-na logo! Que ela não me faça esperar!
Quando Anamaya reaparece no pátio central do palácio, os Poderosos de grandes brincos de ouro param de falar, mas não viram para o outro lado. Ao contrário, fitam a menina com seus olhares severos. Mais de um se impressiona, não com a estranheza de suas proporções, sua altura, sua tez, clara, seu nariz muito reto, seus lábios muito finos, mas sim com a extraordinária força da cor azul que brilha em suas íris. Mais de um pensa que esse azul tão estranho é como uma derradeira e extraordinária jóia acrescentada às cores do único Senhor Huayna Capac.
Fazendo o melhor que pode, constrangida com tanta atenção, Anamaya se força a se adiantar com modéstia para o Sábio Villa Oma.
Em pé junto ao pórtico do pátio seguinte, ele está segurando uma pesada lança cerimonial, uma chuqui de ponta de ouro, de onde pendem plumas verdes e vermelhas. Imóvel, ele a espera, obrigando-a a atravessar sozinha todo o imenso pátio, no meio da multidão de Senhores. Mas, com o canto do olho, não perde nenhum dos olhares de estupefação que a acompanham. Quando, afinal, ela chega a alguns passos dele, ele diz entre dentes: - Agora você me segue. Você ouve e só fala quando eu mandar.
Ele se afasta e ruma com passos enérgicos para o pórtico. Soldados estão aí postados de cada lado de um imenso cortinado cor de sangue. Ao chegar ao local onde eles estão, Villa Oma bate no chão com sua chuqui. Os soldados se afastam enquanto o Sábio afasta o cortinado e entra. O coração aos pulos, Anamaya o segue.
Uma vez passado o pórtico, ela fica paralisada, incapaz de dar mais um passo.
O pátio seguinte é imenso e cuidadosamente calçado. Há construções baixas em três de seus lados, as aberturas fechadas por cortinados de plumas azuis e amarelas. Cada um de seus muros, assim como os que cercam o pátio, é revestido de placas de ouro tão finas que estremecem à mais leve aragem.
Esse ligeiro movimento é um deslumbramento puro. Sob a intensidade do sol da tarde, parece que um rio de ouro em fusão cerca o pátio. A luz é de uma violência extrema, hipnótica.
Anamaya pisca ofuscada. Arrepios percorrem seus músculos e deixam sua pele irisada embaixo das roupas macias.
Com alguns passos, ela acaba de penetrar no olho terrestre de Inti, o Sol Pai dos incas. Tudo aqui parece mais pesado e o ar, difícil de respirar.
Villa Oma, sem esperá-la, vai até o centro do pátio. Ali, os cortinados revestidos de uma infinidade de chapinhas de ouro redondas delimitam uma espécie de quarto sem teto.
Quando chega ali, Villa Oma vira-se para Anamaya e faz um gesto imperioso para que ela se aproxime.
A garganta apertada, ela dá um primeiro passo. Os reflexos incandescentes do ouro e do sol misturados iluminam a pele nua de seu rosto. Ela treme de febre e de frio. O suor lhe escorre da nuca até a cintura. Seus pés custam a levantar sobre as lajes ardentes.
Quando ela afinal chega perto do Sábio, ele lhe dá as costas e aponta sua lança para o sol. Joga o rosto para trás e murmura com uma voz surda e profunda: - Inti! Inti, Poderoso Senhor do dia! Eis que a Coya Camaquen de seu filho Huayna Capac vem se curvar à sua frente. Acolha-a e não se choque com a ignorância dela!
Só então, ele levanta o cortinado de ouro com sua lança e, com um olhar, convida Anamaya a segui-lo.
Aquele cuja mão ela segurou a noite inteira enquanto ele morria está ali. Está deitado num espesso colchão de relva e de palha de quinoa colocado sobre esteiras finas. Em volta dele, velam grandes lhamas de ouro. Em grandes bacias de terracota, ardem folhas de coca. E, a alguns passos, numa estela de granito polido, ergue-se uma estátua de ouro com olhos de esmeralda. A carne do cadáver está escura e esticada. Seu ventre está aberto, vazio e coberto por uma pasta preta, brilhante, que cheira a queimado. Anamaya enfia as unhas nas palmas das mãos para não gritar e sair correndo. Nunca, nunca, nem quando a mãe morreu juntinho dela, ela viu uma coisa tão terrível.
Ao seu lado, o Sábio se curva e murmura palavras que ela não entende. Ela se pergunta se deve fazer o mesmo, mas, como ele não a mandou fazer nada, ela fica de pé, petrificada de medo.
Com um esforço, tira os olhos do ventre e do tórax abertos, atraída pelo rosto do Inca, cujas pálpebras estão levantadas sobre órbitas vazias. As maçãs do rosto salientes estão esticadas, os lóbulos das orelhas pendem, distendidos e estranhos agora que não seguram mais os grandes discos de ouro. No entanto, a expressão do Filho do Sol, que ela só viu contraída em esgares de dor, é bela e calma. Depois, sobretudo, atrás dele, a estátua de ouro parece contemplá-lo com um olhar vivo. Do tamanho de uma criança, representa um homem em pé, as mãos abertas pousadas nas coxas. Seu rosto, bem reconhecível, é o rosto do morto.
Trêmula com tantas emoções, Anamaya cambaleia. Se, naquele exato momento, a voz de Villa Oma não soasse em seus ouvidos, bruta e distinta, ela desmaiaria. Ele mostra a estátua e diz com aquela voz pesada:
- Menina, você está vendo à sua frente o Irmão- Duplo do seu único Senhor. Enquanto um foi se unir a Inti, o outro permanece aqui, vivo entre nós, para nos proteger. O Único Senhor designou-a para ser sua companheira de sempre. E sempre, enquanto for viva, você deverá permanecer perto do Irmão de ouro. jamais, está me ouvindo, jamais deverá abandoná-lo. É por isso que agora você será chamada de Coya Camaquen: por sua boca, e com a vida de seu Irmão- Duplo, o único Senhor nos dirá o que deseja e nos protegerá...
Anamaya treme mais ainda.
Não tem certeza se entende o sentido dessas palavras... Durante alguns segundos, ela gostaria de fugir e chorar como a criança apavorada que é. No entanto, como se uma mão invisível acalmasse seu coração e distendesse sua nuca dolorida, ela ouve o Sábio. Permanece imóvel e paciente, ao mesmo tempo que, aos poucos, vai se sentindo tranqüilizada pelo rosto calmo do único Senhor.
- Agora - prossegue Villa Oma com uma voz lenta -, repita comigo: Meu único Senhor, sou a esposa de sua alma dupla...
As palavras se formam com dificuldade em sua boca crispada. Todos os seus músculos ensaiam falhar e sua barriga afunda como se se esvaziasse tanto quanto a do cadáver que seca à sua frente.
- Repita! - ruge o Sábio, fitando a estátua de ouro. - Meu único Senhor, sou a esposa de sua alma dupla.
- Meu único Senhor, sou aquela que vela aqui, enquanto você vive no Outro Mundo!
- Meu Único Senhor, sou aquela que vela aqui, enquanto você vive no Outro Mundo!
- Meu único Senhor, eu serei a esposa fiel de seu Irmão-Duplo. - Meu único Senhor, eu serei a esposa fiel de seu Irmão-Duplo... - Agora, Coya Camaquen Anamaya, prosterne-se diante daquele a quem você serve!
Quito, fevereiro de 1528
Mais cinco vezes, nos vinte e cinco dias seguintes, o Sábio Villa Oma leva Anamaya ao pátio do Sol onde ninguém tem o direito de entrar, exceto os sumos sacerdotes.
Mais cinco vezes, ela vê o único Senhor se mumificar. Ora seco pelo sol e por camadas de relva e salitre, ora congelado à noite por blocos de gelo cobertos de palha trazidos da montanha expressamente para isso.
Nas últimas vezes, o corpo não está mais deitado mas sim mantido sentado por escoras de junco. Suas pernas estão dobradas e seus calcanhares, enfiados sob as coxas, tão secas que têm apenas a grossura dos ossos. Afinal, na última de todas, o Corpo seco do único Senhor não está mais nu, mas sim coberto por um magnífico tecido de vicunha. Um diadema de plumas encima seu rosto tranqüilo.
Isso causa uma impressão tão forte que, por um instante, na penumbra, Anamaya julga ver os lábios se moverem e os olhos se fixarem nela.
A cada uma de suas visitas, Villa Oma perde um pouco de seu ar rude. Sua voz torna-se paciente quando ele manda que ela pronuncie sempre as mesmas frases diante da estátua do Irmão-Duplo. Com calma, lembra-lhe que o mundo tem três partes. Uma está debaixo de seus olhos e se chama o Kay Pacha. Contém as montanhas, os lagos, os animais, os homens e as coisas que eles produzem. Contém suas guerras e suas alegrias, os nascimentos e as doenças. Contém a ordem e a Lei dos Incas de Cuzco, os Príncipes do Império das Quatro Direções e os únicos Senhores humanos que o Sol considera seus filhos.
- O Sol vive no Mundo de Cima. Ali, circulam sua Irmã Esposa Lua e seu Irmão Illapa, o Raio. E sob os seus pés, Coya Camaquen, há a mansão dos Ancestrais...
- Mas onde está o único Senhor agora? - espanta-se Anamaya.
- Por toda parte, menina. Perto de seu Pai Sol no Mundo de Cima. Perto dos ancestrais no Mundo de Baixo. E aqui conosco, graças ao seu Irmão-Duplo e a você que o ouve... Se conseguir!
Villa Oma esboça um sorriso. Agora, quando zomba dela, já não o faz com raiva nem desprezo.
- É por isso que dizemos que ele está no Outro Mundo - acrescenta. - Este Outro Mundo é o da felicidade. Mas, para alcançá-lo, é preciso ter vivido aqui sem cometer erros, sem trair a Lei de Cuzco. E morrer.
O sábio masca um instante sua coca em silêncio, depois conclui balançando a cabeça:
- Você não deve morrer sem que o único Senhor lhe peça para fazê-lo! E não deixe o Irmão-Duplo. Está entendido?
Será que ela entende realmente? Ela não tem certeza.
É na manhã desse dia que, pela primeira vez, ela revê o poderoso Senhor Atahualpa. Ele entra em seu quarto enquanto ela está comendo sozinha. Surpresa, quase vira o prato de sopa e batatas.
Imediatamente, ela se inclina e se ajoelha junto ao leito, mas Atahualpa diz com gentileza:
- Pode se levantar e me olhar, Coya Camaquen.
Ela obedece um tanto receosa. Todavia, o olhar de Atahualpa lhe dá confiança. Ela o acha lindo e forte como na primeira vez em que o viu, embora sua boca esteja mais preocupada e severa. Ele diz:
- Anamaya, estou satisfeito com você. O Sábio me diz que você aprende rápido, que obedece e parece forte.
Ela cora, inclina docemente a cabeça para agradecer. E a pergunta imediatamente irrompe:
- Coya Camaquen, você agora se lembra das palavras do único senhor?
Com tristeza, ela balança a cabeça:
- Não, Poderoso Senhor. Eu não me lembro... - Nem uma palavra?
- Não... Mas... - Mas?
Ela se endireita e olha-o nos olhos para que ele avalie sua sinceridade: - Sei que as palavras estão em mim. Só acho que o único Senhor não quer que eu me lembre hoje.
Atahualpa contempla-a em silêncio por um breve instante antes de se aproximar. Lança um olhar na direção do cortinado da porta antes de falar com uma voz tão baixa que mal se ouve:
- Tem certeza?
- Não - responde Anamaya no mesmo tom. - Não, eu não posso certeza. Mas quando estou com o Irmão- Duplo, sinto que não esqueci. Só que as palavras não podem sair da minha boca.
Um raio de alegria brilha nas pupilas escuras e rodeadas de vermelho de Atahualpa. Com um gesto espantosamente doce, ele aproxima a mão e, com as pontas dos dedos, afaga seu braço.
O silêncio que se segue prolonga-se até ele murmurar ainda:
- Seja prudente, Coya Camaquen, seja prudente! Posso protegê-la aqui, mas pessoas que não são do meu clã podem lhe fazer mal.
- Por que, Poderoso Senhor? Por que elas haveriam de querer isso? - Porque essas frases que você guarda em você podem decidir o futuro do Reino. Desconfie, menina Anamaya, seja prudente em suas palavras, sobretudo depois da grande cerimônia.
- A grande cerimônia?
- Você vai ver... Confio em você. Acho que meu Pai fez uma boa escolha, ainda que estranha. Mas seja vigilante, pois os homens do clã de meu irmão Huascar não são bons. Eles também vão querer conhecer as palavras que estão em seu corpo!
Mais tarde, novamente sozinha na noite, Anamaya fica em pânico. O silêncio fechou-se sobre ela como as mandíbulas de um abismo.
O silêncio em volta dela gelando o palácio. O silêncio dentro dela congelando-a.
Será mesmo como disse o Senhor Atahualpa: as palavras que estão seu coração e que dali não saem são tão importantes? E por quê?
E, sobretudo, por que ela?
Ela não estaria mais apavorada se uma pedra lhe esmagasse a nuca e lhe amassasse o peito.
Por que ela?
Ela ainda é apenas uma jovem menina! O que fez para ter de suportar um fardo tão pesado?
E o que acontecerá se ela se enganar? Se as palavras não estiverem nela, se ela simplesmente as esqueceu, cansada demais de ouvir o Único Senhor Huayna Capac falar sem parar?
Seu olhar se embaralha. Ao lado de seu leito, a chama curta da lamparina desagrega-se atrás de suas lágrimas.
Ela tem medo, tanto medo! E ninguém pode vir ajudá-la. Desde que é Coya Camaquen, o Anão não pode mais aproximar-se dela. Talvez até tenha medo dela... Ela está sozinha. Sozinha nos três mundos descritos pelo Sábio De repente ela estremece.
No canto mais escuro do aposento, parece-lhe ter visto, num relance, o olhos amarelos de um puma colados nela. Ela morde os lábios para não gritar Seus dedos arranham o cobertor.
Sim, dois olhos de ouro a contemplam. O puma contempla-a. Ela adivinha suas orelhas redondas, seu focinho palpitante, as pontas de suas presas Ela está sem fôlego. Palavras se formam nela, sem poder sequer transformar se em som:
- Não me mate, puma! Não me mate, preciso viver muito para acompanhar o Irmão-Duplo. Eu lhe suplico, puma, não me devore. Deixe-me viva e saberei me lembrar disso!...
Como veio, o puma se apaga. A sombra é apenas sombra. Anamaya só adormece muito mais tarde, ainda sentada e trêmula.
No dia seguinte de manhãzinha, de repente, ouvem- se gemidos e grita horrorizados por todo o palácio.
Anamaya vai para o pátio, convencida de um novo desastre. O que vê deixa pasma. As criadas e as esposas estão dando voltas no vasto espaço entre os prédios. Seguem uma atrás da outra a alguns passos de distância, o rosto virado para o sol, aos prantos. E de repente, possuídas por um sofrimento incontrolável, jogam os braços para o céu e gritam:
- Viracocha! Viracocha! Apóie-nos!
Outras vezes, o rosto banhado de lágrimas, os olhos arregalados de medo elas berram:
- Ó Inti, apóie nosso Único Senhor! Ó Inti, apóie- o! Que ele tenha paciência, pois logo estaremos perto dele para amá-lo e servi-lo... Anamaya estremece diante desse terrível espetáculo. Seus braços se arrepiam todo. Enquanto recua na sombra do prédio para refugiar-se em seu quartinho, ela ouve um novo clamor ao longe, fora dos muros do palácio Milhares e milhares de gritos explodem no céu e o escurecem, embora não haja nenhuma nuvem.
Trêmula, ela se encolhe na beira do leito, abraçando as pernas. Angustiada, espera durante horas. Ninguém vai a ela. No meio desse imenso tumulto de dor, parece que a esqueceram.
O medo e a dor acabam penetrando tanto nela que, pela primeira vez, sem perceber, de olhos fechados, ela fala com o Irmão-Duplo. Sussurrando, garante-lhe que ele nada deve temer.
- Eu manterei minha palavra! Jamais vou abandoná-lo, Irmão-Duplo. Tudo o que me pedir, eu farei...
Afinal, pouco antes que o sol chegue ao zênite, o Sábio Villa Oma entra em seu quarto. Está mais esplêndido que nunca. Veste uma imensa capa vermelha e azul e um chapéu de plumas coloridas, longas e finas. Um plastrão de ouro finamente trabalhado cobre-lhe o peito até a cintura. Seu rosto está calmo e sereno. Atrás dele, entram duas Mães da Casa das Virgens, olhos baixos. Uma traz uma longa túnica branca e a outra, uma touca de tecido branco encimada por um barrete de ouro em forma de diadema, com duas plumas vermelhas fincadas em pedras verdes.
Sem uma palavra, com uma destreza perfeita, as duas Mães vestem Anamaya com a túnica branca, depois prendem a touca em seus longos cabelos trançados.
Quando terminam a tarefa, elas saem do aposento de costas, a cabeça baixa, olhando para o chão. Villa Oma observa um instante Anamaya, olhos nos olhos. Parece-lhe que, com uma piscadela, o Sábio aprova o que vê, está satisfeito com ela.
- Siga-me - diz ele simplesmente.
No centro do pátio, quatro soldados carregam a estátua de ouro do Irmão-Duplo numa liteira. A estátua refulge com todo o seu brilho, tanto quanto o próprio sol!
Sem se preocupar com as esposas e as criadas que passam em procissão, carpindo a sua dor, Villa Oma, com um olhar, designa-lhe um lugar bem à frente da liteira. Ele é o único a precedê-la, a lança apontada para o céu.
Quando o estranho cortejo se põe em marcha para atravessar os quatro pátios do palácio, Anamaya ouve de novo o enorme clamor vindo de fora. Mas Villa Oma avança como se nada estivesse vendo e ouvindo. Agora, o sol está a pino. As sombras são curtas e negras.
Quando chegam afinal à porta do palácio, os clamores do lado de fora são ensurdecedores. Dois portadores de trompas feitas de fios torcidos de conchas precedem-nos. Villa Oma agita a lança, a porta se abre.
O espanto paralisa Anamaya.
Diante dela, uma multidão imensa comprime-se aos berros na grande praça. Homens, mulheres, meninas e meninos jogam os braços para o céu fazendo súplicas a Inti!
Mas novamente o som grave e vibrante das trompas de concha se estende por um bom tempo e abafa os gritos. Os rostos ficam paralisados. A multidão vira-se para a porta do palácio.
Milhares de olhos vêem o Sábio, a Coya Camaquen e a estátua do Irmão-Duplo. Um gemido percorre a praça, em uníssono. Villa Oma se embrenha no meio da multidão que se afasta qual um pano que se rasga. Como uma onda, uma queixa surda percorre a praça e vem quebrar num gemido cheio de respeito aos pés de Anamaya.
Em sincronia, as pessoas abaixam a cabeça e se curvam.
Então, ela ousa dar um passo. Toda de branco, linda e longilínea, os olhos fixos à frente, ela entra na praça, no espaço aberto por Villa Oma.
A trompa continua soando.
Nem mais um murmúrio sai dos milhares de lábios, nem mais um olhar deixa as pálpebras para pousar na virgem branca. O povo se afasta ainda mais e se curva diante de Anamaya como um campo de quinoa ao vento.
Do outro lado da praça, as portas do templo de Viracocha estão abertas de par em par atrás de uma coluna dupla de soldados. Mais um rugido grave das trompas e Villa Oma entra na frente numa sala perfeitamente redonda, cujas paredes, de alto a baixo, são revestidas de conchas finas e claras. A fumaça de folha de coca turva o ar e escurece a sala.
Os carregadores da liteira depositam o Irmão-Duplo bem no centro, enquanto Villa Oma permanece à esquerda. Instintivamente, Anamaya se coloca à direita da estátua.
O Sábio aguarda os soldados saírem da sala. Depois, levanta os braços e proclama com uma voz clara:
Nada existe em vão, ó Viracocha!
Cada um parte das margens do Titicaca, Cada um vai para o lugar que Viracocha lhe designou! O universo é o seu desejo, Viracocha, Viracocha segura o bastão da origem Ó Viracocha, escute-me...
Ó Verdadeiro de cima, Verdadeiro de baixo.
Escolha o Irmão-Duplo de Huayna Capac
Escolha a Coya Camaquen do único Senhor
Ó Viracocha, seu nome de solteira é Anamaya,
Se lhe disser onde está, ela há de admirá-lo atrás dos cílios, Os olhos voltados para o chão,
Ó Verdadeiro de cima, Verdadeiro de baixo,
Não deixe que ela se esgote, Não deixe que ela morra.
As últimas palavras ecoam no peito de Anamaya. O silêncio é tão absoluto dentro do templo quanto fora.
O sábio pede que Anamaya faça a oração com ele.
Três vezes, eles lançam o apelo e erguem as mãos para o céu. Depois o Sábio vai pegar uma jarra de cerveja sagrada que ele verte no chão em volta de Anamaya e da estátua. Só então, os sacerdotes entram no templo e, um a um, recitam a prece antes de jogar cerveja no chão.
Isso dura muito tempo. Tanto que o sol declina e as sombras ficam longas como lanças.
E finalmente as trompas de conchas tornam a soar. Finalmente o cortejo sai à praça.
Mas, para espanto de Anamaya, a praça está absolutamente vazia.
E quando, acompanhando a estátua de ouro, ela volta ao palácio e atravessa seus pátios, vê que estes também estão vazios. Não há mais mulheres, nem crianças, nem homens.
Vazios como se ninguém jamais os tivesse habitado. O silêncio é terrível e frio.
- Onde eles estão? - pergunta ela sufocada. - Onde estão todos? Villa Oma olha-a intensamente, a boca esverdeada de sumo de coca. Com um sorriso de satisfação tranqüila, responde-lhe:
- Eles se uniram ao único Senhor para servi-lo no Outro Mundo!
Nessa noite, Anamaya não consegue conciliar o sono, tão opressivo e o silêncio do palácio.
Ela chora aos prantos.
Quantos foram até as pedras sagradas, ao redor de Quito, para oferecer o coração e a vida daqui ao único Senhor Huayna Capac? Quantos tomaram o caminho dos ancestrais para ir para o Outro Mundo e ali servir ao único Senhor?
Milhares!
Todas as suas esposas, todas as suas concubinas e suas criadas, todos os seus eunucos conquistados na guerra, seus escravos, seus servos, grandes ou pequenos!
Todos deixaram a vida daqui! O cheiro de sangue e de morte empesteia o ar da cidade. Esse cheiro enjoativo e nauseabundo que ela sentiu pela primeira vez no dia em que os incas atacaram sua aldeia na floresta.
Antes do amanhecer, não agüentando mais, ela se levanta e vai para o pátio. A lua brilha, redonda e tão luminosa que lança sombras nas lajes. Por um instante, Anamaya diz a si mesma que está perdida, esquecida num mundo deserto.
Depois, de repente, milhares de gemidos vibram docemente na noite, como se todas as almas que foram se unir ao único Senhor lhe dessem adeus.
Tumebamba, dezembro de 1528.
Há quase quatro estações, o cortejo escoltando o Corpo seco de Huayna Capac deixou Quito, a capital do Norte, para iniciar seu longo percurso para o templo de Coricancha, em Cuzco. Desde o início do mês de Inti Raymi, está parado na outra grande cidade do norte do Império, Tumebamba. O Único Senhor Huayna Capac gostava de passar temporadas ali para aproveitar o clima com suas Esposas do Norte e suas concubinas.
Tumebamba é apenas uma capital de província, mas sua ordem e suas construções se parecem tanto com Cuzco que os Senhores do Norte às vezes a chamam de "Outra Cuzco".
Cercando a imensa esplanada central do templo do Sol, as paredes das canchas ali formam longas ruas retilíneas, em geral perpendiculares umas às outras, percorridas de canais de irrigação cuidadosamente mantidos. Os palácios dos Senhores dão para a vasta praça sagrada. Têm terrenos de dimensões imponentes e são mais bem construídos do que as casas comuns.
Os muros são altos, de pedras encaixadas à perfeição, e contêm muitas habitações, assim como quartos ao redor dos pátios cuidadosamente mantidos, adornados de jardins floridos, de hortas onde se cultivam as plantas sa gradas. Em magníficas fontes de pedra, há sempre água correndo, trazida por canalizações invisíveis.
Os servos, às dezenas, trabalham e controlam os depósitos de comida, de lã, de algodão tingido, de cerâmica, de tapetes e tecidos, toda a intensa produção dos artesãos e dos camponeses que trabalham a serviço dos incas.
Contudo, desde a chegada do Corpo seco do único Senhor Huayna Capac, a cidade encheu-se de tendas, já que não havia lugar nos palácios para alojar todos os clãs. Diariamente, agora, a cidade se anima com cantos, danças, grandes cerimônias, libações intermináveis e imensas refeições comunitárias onde são festejados os filhos dos Poderosos Senhores cujo huarachiku, a Grande Iniciação do solstício de verão, está sendo celebrado.
Após longas e duras provas, os meninos afinal se tornarão homens. Os mais valorosos serão honrados por todos, tanto os ancestrais do Outro Mundo como os Poderosos daqui. A derradeira prova, a Grande Corrida, designará os grandes guerreiros do futuro ou os sumos sacerdotes, enquanto os outros terão de se contentar em ser bons e leais servos do Império.
Todavia, só aqueles que não abandonarem a prova poderão ter as orelhas perfuradas com uma agulha de ouro para receber o primeiro disco de Senhor. Um modesto disco de madeira que mais tarde poderá tornar-se a insígnia de ouro dos mais poderosos...
Obedecendo às ordens de Villa Oma, Anamaya não deixa mais o Irmão-Duplo de ouro. Muitas coisas mudaram em volta dela.
Ninguém ousa agora zombar dela ou do azul de seus olhos. Os Senhores dos clãs do Norte, como os de Cuzco, consideram com respeito seus mínimos movimentos. Com respeito mas também com inquietação e impaciência. Todos esperam que ela se lembre das palavras do único Senhor, ou que ele se manifeste por seu intermédio, para confirmar ou revogar a nomeação de Huascar.
Nessas condições, a aparência da Coya Camaquen já evoluiu bem em alguns meses. Anamaya ganhou segurança, já não se espanta com os olhares que a observam, as criadas que se curvam diante dela. Acostumou-se às longas esperas das cerimônias, tanto noturnas como diurnas, às discussões intermináveis dos sacerdotes, aos sacrifícios constantes...
Seu corpo também mudou. De manhã, quando veste a túnica finamente tecida, ela percebe que suas pernas se alongam, suas ancas se arredondam. Dia a dia, a silhueta de menina vai deixando-a enquanto, lentamente, o corpo de mulher vai se delineando nela à medida que seu coração e seu espírito endurecem. Ela já tem menos medo da solidão e as lágrimas lhe chegam mais raramente.
O Anão seguiu o cortejo desde Quito, mas eles têm pouquíssimas oportunidades de trocar algumas palavras. Às vezes, com um olhar para a multidão, ela reconhece sua presença e seu coração se aquece...
Ela está habituada às mudanças de humor de Inti Palla, ora afetuosa como uma irmã, ora contundente como uma pedra de funda!
As noites passadas junto ao Senhor Atahualpa acabaram de transformar a princesa numa verdadeira jovem mulher sem abrandar-lhe o gênio, muito pelo contrário. Mas sua beleza é grande. Ela é tão perfeita quanto pode ser uma mulher inca. Suas formas são opulentas, seus traços, suaves e firmes, seu rosto, redondo, sua testa, bastante abaulada no prolongamento do nariz. Sua boca parece o vôo desfraldado de um falcão. E desde que chegou a Tumebamba, os olhares dos jovens a tornam mais resplandecente que nunca.
Às vezes, Anamaya queria ser como ela, tão bela, tão despreocupada, arrogante e versátil... Outras, pede a Inti que a preserve disso!
Mas hoje é um grande dia, o dia da corrida do huarachiku. Por uma vez, Anamaya será como as outras jovens, e ela deve essa transgressão à regra às intrigas de Inti Palla. Foi ela quem forçou Atahualpa a insistir junto aos Anciãos para que Anamaya fizesse parte das virgens que darão assistência a um dos concorrentes. Durante todo o dia da terrível corrida, ela vai apoiá-lo, encorajá-lo.
Na verdade, até essa noite, isso era uma alegria para Anamaya. Mas Inti Palla conseguiu estragar essa felicidade.
Dias atrás, quando, pela manhã, ela lhe explicava a ordem das próximas cerimônias, Inti Palla, os olhos brilhando, de repente apontou o indicador para as encostas íngremes e as gargantas que dominavam a cidade.
- A corrida será a prova mais dura. Só os verdadeiros valentes chegarão ao fim! E os primeiros serão respeitados como Poderosos entre os Poderosos! Eles terão de lutar contra o frio, a chuva, a montanha e o medo. Só comerão um pouco de milho cru, nada mais. Ficarão tão cansados que não se agüentarão em pé, mas assim mesmo será preciso continuar...
- Mas eles já estão jejuando há uma semana - exclamou Anamaya. - Não poderão correr tanto tempo!
- Sim, justamente. Eles terão de atravessar as três gargantas, esquecer a fraqueza e se entregar a Inti...
- E se não conseguirem?
Um brilho feroz passou pelo olho de Inti Palla.
- Eles não serão nada, envergonharão seu clã. Se lhes restar um pouco de coragem, eles se jogarão num abismo ou morrerão sufocados antes da chegada! É o melhor.
Diante da risada cruel de Inti Palla, Anamaya ficou chocada. Mas Inti Palla tem razão, Anamaya bem sabe: assim funcionam a Lei e a ordem do Império das Quatro Direções. É preciso sempre vencer e conquistar. Senão, não há felicidade possível no Outro Mundo.
E a princesa acrescentou após alguma reflexão:
- Este ano, os rapazes dos clãs de Cuzco não devem ganhar. Isso aumentaria o apetite deles pelo poder. Infelizmente, não posso ajudar os nossos rapazes, pois não sou mais virgem. Mas você poderia!
- Você acha?
- Eu perguntarei para você...
- Mas não, é impossível! E o Irmão-Duplo? Villa Oma jamais aceitará que eu o abandone, por um dia sequer!
- Talvez aceite! - insistiu Inti Palla. - Aliás, você não o abandonaria realmente, já que ele controla a corrida do alto do templo. Ele vai vê-la e você vai vê-lo...
Entusiasmada com sua idéia, Inti Palla abraçou Anamaya com uma risada divertida:
- Confie. Atahualpa vai aceitar! Sei como se deve pedir algumas coisas para consegui-las...
E, de fato, ela conseguiu.
No meio da última noite, ela acordou Anamaya para lhe anunciar:
- Anamaya! Anamaya! O Senhor Atahualpa aceitou! Você vai com Guaypar!
- Quem é Guaypar?
- O filho do meu tio. Ele é o mais corajoso do nosso clã... E é bonito você vai ver!
Com alegria, Anamaya a abraça também, colando a testa na dela. Mas depois de muito riso, subitamente séria, Inti acrescenta:
Em troca do que consegui para você, você tem que me prometer uma coisa...
Na ingenuidade de seu entusiasmo, Anamaya responde sem pensar: - O que você quiser.
- Não deixe Manco nem o irmão dele Paullu ganharem a corrida. O sangue de Anamaya congela. Instintivamente, ela recua, evitando contato de Inti Palla.
- Mas por quê? - protesta com uma voz um tanto fraca demais. - Eu não os conheço mais do que conheço Guaypar!
- Ah, Anamaya! Não seja boba! Às vezes você não entende nada de tida! Guaypar é dos nossos, ao passo que Manco e Paullu pertencem ao clã de Huascar, o louco de Cuzco! Se Manco ou o irmão ganharem, os cuzquenhos vão querer ver nisso um sinal...
- Inti Palla! Você sabe muito bem que é o próprio Senhor Atahualpa que recusa...
- Eu sei o que eu sei! E dessas coisas, sei muito mais que você.
- E como vou impedir que Manco ou Paullu ganhem a corrida se eles forem os melhores?
O olho da princesa Inti Palla brilha com toda a dureza:
- Com a ajuda do Irmão-Duplo! Todo mundo, aqui, sabe que você pode muita coisa... Por isso é que você é aceita entre nós, Anamaya, não esqueça! Rubra, Anamaya ainda quer protestar:
- Mas não, é mentira. Eu não posso nada!
- Claro que pode. Você não é a Coya Camaquen? Basta você dizer que o Irmão-Duplo os rejeita como vencedores!
- Você é louca, Inti Palla!
- Não!... Se preferir, você pode dizer também que o Único Senhor Huayna Capac não quer a vitória deles! É com você que ele fala, não? Trêmula de raiva e de vergonha, Anamaya se levanta:
- É o Senhor Atahualpa quem pede essa mentira, ou você? - Que diferença faz para você?
- Eu quero saber, pois se for vontade dele, quero ouvir dele mesmo. O rosto subitamente feio de tanta fúria, Inti está a ponto de esbofeteá-la: - Ah, como você é boba! É um presente que eu quero dar a ele... E você também deve lhe dar esse presente. Você deve muito a ele, se não me engano... Durante um bom momento, elas se enfrentam com o olhar como dois guerreiros. E Inti Palla acaba murmurando:
- Anamaya, não me faça lamentar ser sua amiga e esquecer que você não é uma inca de verdade...
Agora, chegado o grande dia da Iniciação, enquanto os primeiros alvores da aurora desenham as gargantas que os rapazes deverão atravessar, Anamaya estremece, a expressão sombria.
O veneno instilado por Inti Palla surte efeito. O que devia ser um momento de felicidade não é mais que uma sombra sobre o futuro.
- Não grite. Fique de olhos fechados.
Anamaya acorda sobressaltada na noite escura, o coração desnorteado. Uma mão grande, com a palma dura como chifre, pousou em seu ombro. Apesar da ordem dada pela voz grave, ela entreabre os olhos: a sombra do Anão é assustadora como a de um fantasma.
- Está bem difícil chegar até você, princesa...
- Pensei que você tivesse imaginação! Você quase me decepcionou... - Ó divina Coya Camaquen...
- Não estou com vontade de rir, Filho mais velho! E odeio que me acordem assim!
Ela se levantou, os olhos azuis escurecidos pela raiva. Mas o Anão ignora seu mau humor e se senta na esteira, ao lado dela.
- Você tem razão de não estar com vontade de um movimento de cabeça. - A guerra se aproxima. - A guerra?
- Eu sinto. Eu sei. No huarachiku de amanhã, não são os jovens combatentes que se enfrentam, mas sim clãs: Atahualpa e os do Norte contra Huascar e os de Cuzco... Irmão contra irmão, sangue contra sangue...
- Sua amiga Inti Palla me pediu para usar meus poderes para privar da vitória os rapazes de Cuzco. Ela parece ter medo sobretudo de Manco... - Ela age por ordem de Atahualpa.
Anamaya balança a cabeça.
- Ela diz que não. Eu não acredito, Atahualpa é nobre demais para se prestar a baixezas como essa. E lembro a você que ele recusou pessoalmente a borla imperial.
- Outros a querem para ele. O que você respondeu à minha boa amiga? - Que eu não tinha esse poder...
O Anão suspira.
- Eu os conheço, desde que os observo. Ó nobres incas invocadores do Sol, da Lua e do Trovão! Sedentos de sangue e de poder como uma matilha de cães, poderosos, ferozes...
- Cale-se, não blasfeme.
- Não estou blasfemando, Princesa. Só que não quero morrer...
O Anão se cala. Ela ouve a respiração dele junto à sua e a mão que continua pousada em seu ombro é a mão de um amigo. Coya Camaquen... Se ela algum dia sonhou com uma proteção, não resistirá a esse tempo de violência.
Não há nada a fazer, nada a dizer, e o tempo das lágrimas passou. Ela se lembra de sua primeira noite em que, apavorada com a solidão, refugiou-se junto a ele.
Então abraça-o, sente-o tremendo. Embala-o cantando baixinho, como se ele fosse uma criança cujo medo e o frio é preciso aliviar.
Tumebamba, dezembro de 1528
O céu está cinzento e pesado. Embaixo da colina, através de nesgas de bruma e da fumaça dos braseiros de oferenda que sobem na chuva fina, Manco vê os palácios e as casas de Tumebamba. No centro da grande praça, diante do templo do Sol, a multidão variada dos dignitários comprime-se em volta do baldaquim de plumas que protege o Corpo seco do Único Senhor Huayna Capac.
Bem próximo dali, nos altos degraus do templo, refulge o ouro do Irmão-Duplo.
É junto dele que eles deverão chegar, se puderem, após um interminável dia de corrida.
E essa distância parece tão longa, tão longa!
- Mas não, não tão longa assim - sopra Paullu a seu lado, como se tivesse penetrado no espírito do irmão. - Não para você, Manco. Basta querer...
Ele se interrompe com uma risadinha, dá um soco amigável nas costas de Manco zombando:
- Mas é verdade que suas pernas são meio curtas! Ora... Eu espero por você! Manco sorri. Ele corre duas vezes mais depressa que Paullu. Mas é verdade, eles correrão juntos o mais possível. São irmãos da mesma lua e sua amizade é indestrutível.
Ambos filhos do Inca falecido Huayna Capac, nascidos quase no mesmo dia, sua amizade todavia não vem deste nascimento: o Único Senhor teve mais filhos do que há estrelas no céu.
Na verdade, Manco e Paullu jamais conheceram o Único Senhor. Pelo menos eles não se lembram disso. Suas mães foram dessas esposas que pertenciam aos clãs mais nobres de Cuzco, que ele abandonou para ir morar em Quito, engravidando todas as noites suas concubinas do Norte como se sua semente não passasse de um pólen dispersado pelo vento!
Mas suas mães os educaram juntos. Desde sempre, desde que seus olhos enxergam e suas bocas falam, Manco e Paullu andam juntos como os dedos de uma mesma mão.
Apertando o ombro de Manco, Paullu diz com voz firme e segura:
- Você vai ganhar, eu sei. E eu vou ganhar também porque não hei de perdê-lo de vista! Venha agora, está na hora de verter a chicha e fazer as oferendas. Os sacerdotes acenderam um fogo ao pé da huaca Anahuarque, um ancestral transformado em pedra que, como seu original em Cuzco, tem fama de ter sabido correr tão depressa quanto voa o falcão. Tufos de lã de alpaca, folhas de coca e espigas de milho ardem ali lentamente. Depois, vem o sacrifício dos jovens lhamas.
Manco mal olha. Está com fome e a barriga lhe dói. Nos rostos encovados, nos olhos abatidos e febris dos outros meninos, ele sente o mesmo esgotamento, a mesma aflição.
Mas todos se mantêm empertigados, ninguém quer mostrar fraqueza. Através da fumaça de cheiro irritante, eles entrevêem as figuras familiares dos tios. A largada da corrida está próxima, mas, antes, é preciso agüentar o ritual do chicote. Um tio de cada noviço deve fustigar o futuro iniciado para que este saiba o que vale a Lei a que se entrega.
Manco teme mais esse momento do que a própria corrida. Não por causa do sofrimento: por antecipação, a humilhação lhe enche o peito de raiva. Felizmente, seu tio tem pouca força: quando, ao mesmo tempo que todos os primogênitos, ele o chicoteia nos braços e nas pernas, as tiras de couro mal encostam nele.
Ele se levanta com um sorriso constrangido, um sorriso de desculpas. Não tenho quinze anos, pensa, mas sou mais forte que ele. Sou mais forte que todos. Ele precisa acreditar no irmão. Precisa ter a mesma confiança que Paullu. Hoje ele vai ganhar.
Quando é dado o sinal, quando o som das trompas ecoa por todo o vale, até no fundo dos abismos antes de tornar a subir para os picos, toda a energia de Manco é liberada. Ele esquece as dúvidas, o cansaço, esquece a enormidade da prova e a chuva fria, para só pensar na felicidade de correr.
Ele desce a primeira encosta ágil como um puma, poderoso, feliz e livre. Se não tivesse que poupar o fôlego, gritaria de felicidade.
Inicialmente, o caminho segue para o norte: após a brevíssima descida, os corredores devem imediatamente subir num cume escuro, uma elevação de aspecto modesto mas que esconde um terrível amontoado de pedras onde cada passo é desgastante. Só depois, prosseguindo para oeste, virá a longa descida suave que os levará ao sopé do Huanacauri. O apu, o Senhor-Montanha que os vê e os desafia. Se chegarem ao cume e sobreviverem à descida, uma curva fará com que eles não passem longe do platô do templo do Sol, antes de terminar pela penosa subida, ao longo da ravina onde se encontram as virgens, até o morro que eles acabam de deixar.
Paullu se mantém bem atrás dele. Juntos, eles ultrapassam sem dificuldade o grosso dos corredores nas primeiras curvas da descida, mas no terrível monte de pedras, de repente, o cansaço torna seus membros pesados. E a chuva de repente vem em rajadas e fustiga o rosto, muito mais contundente que as tiras dos tios, há pouco.
Logo, logo, Manco sente a respiração se acelerar e encurtar. Seus pulmões ardem e suas pernas enrijecem. Ele ouve a respiração rouca de Paullu se afastar. Ao longe, como um barulho engolido pela imensidão dos vales, os gritos dos primogênitos que os seguem e os impelem também se apagam. Seu corpo vira um inimigo dolorido.
Ele se vira e vê Paullu fazendo caretas, os olhos saltados, abrindo a boca, fazendo-lhe sinal para ir em frente, para não esperá-lo...
Depois, a alguns passos dele, surgem os vultos de alguns rapazes do clã do Norte. Manco adivinha num instante o olhar de desprezo de Guaypar, o mais corajoso deles, que já está ultrapassando todo mundo.
Então a raiva ajuda-o a levantar as pernas mais depressa, sem ligar para as pedras que cedem sob suas solas de corda.
Ele logo sente que torna a ganhar terreno e recobra o fôlego. Mas Guaypar passa ágil nas pedras, levantando bem as sandálias.
Manco esquece as pontas de fogo que cortam seus músculos, as brasas que incendeiam seus pulmões, esquece tudo de seu corpo e só pensa em correr como se seu espírito se tornasse uma força separada.
Em pouco tempo, ele emparelha com Guaypar num caminho que mal dá passagem para dois.
Eles estão lado a lado, lutando na velocidade, os lábios contraídos num mesmo gemido de esforço. Então Guaypar cede. Seu ombro desliza, seu rosto recua. Suas mãos agarram o ar à frente cada vez mais perto...
Quando Manco o ultrapassa, no esforço desesperado para ficar emparelhado com ele, Guaypar se desequilibra e bate com o cotovelo em Manco. Por um instante, o jovem príncipe sente-se agarrado pelo vazio antes de se refazer. Quase involuntariamente, ele dá um grito de vitória que ecoa nas pedras. Guaypar pena para segui-lo.
Sem se virar, Manco adivinha que agora os outros estão muito atrás. Paullu também. Apesar das promessas, o sutil Paullu não conseguirá acompanhá-lo. Mas Manco confia nele: ele não vai ficar entre os últimos, carregando o infame calção negro...
Atingido o cume, pedra no meio das pedras, Manco desce a encosta. Suas passadas ficam cada vez maiores, aumentando sua dianteira.
O olhar fixo no desfiladeiro próximo, a exaltação de ser tão forte no meio de todas as coisas vivas o invade. Ele é homem entre as pedras, os insetos e as almas. "Sou o vento, sou a chuva, sou a luz.”
Parece-lhe que do céu, mas também de detrás de cada rochedo, há um olhar amigo seguindo-o. Olhos que estão em toda parte, um olhar já familiar. Estranhamente, enquanto a corrida parece que não irá terminar nunca, sua respiração se acalma, mas, insensivelmente, ele vai mais devagar antes das primeiras encostas do Huanacauri. Lá em cima, a picada se estreita ao longo de uma falésia a prumo. Não é mais que uma linha vertiginosa esticada sobre o vinco de uma rocha. Manco conhece o poder da vertigem. Sabe que nas encostas muito abruptas o coração lhe falta, ele pode ficar paralisado, incapaz de dar mais um passo. Ele se preparou para isso, se esforçou para vencer esse momento de absoluto pavor que o congela.
Infelizmente, na hora em que o precipício se aproxima, ele faz o que não deve. Corre olhando para o vazio.
E é como se já se visse caindo entre as pedras. Suas pernas tremem. Um arrepio frio lhe eriça a nuca, lhe aperta os rins. O vazio parece aumentar a cada passo, bizarro, quase sorridente, como se o abismo o chamasse.
Então Manco se escora na pedra. Agarra-se a ela.
A alguns passos dali, há apenas um bloco de pedra a ser contornado para que o caminho dê numa larga encosta de relva... Mas para chegar lá, é preciso largar a rocha, enfrentar o vazio. Aceitá-lo.
Ele não consegue.
O suor o inunda. A chuva se mistura às suas lágrimas de fúria. Em volta dele, os ruídos lhe chegam numa bruma: os gritos daqueles que caem e se ferem, os chamados, os encorajamentos.
E a zombaria de Guaypar quando passa por ele a toda, às gargalhadas:
- Manco! Manco! Você vai cair e não vai ter nem o calção negro para segurá-lo! Você não passa de um covarde, filho de Cuzco!
Guaypar tem razão. A covardia o ampara como, há pouco, a coragem. A vergonha o protege como, há pouco, o sentimento de invencibilidade. Ele pode permanecer ali até a noite cair, até suas mãos largarem a pedra. Seu corpo será encontrado no pé da encosta, desarticulado. Tanto se lhe dá. Onde está ela, a voz de seu ancestral? Sua certeza de que ele é o mais forte?
De tudo isso nada resta. O pânico. Seu coração que bate com a velocidade de uma asa de colibri.
- Manco!
É a voz familiar de Paullu. Ele não precisa de explicação para entender. - Me dê a mão...
Manco obedece. Recua, pé ante pé, os membros trêmulos, até a laje onde o irmão o espera.
- Respire devagar. Deixe comigo. Vou passar à sua frente. Vou guiá-lo. Paullu passa à frente do irmão, dá um único passo e contorna a pedra que o detinha.
- Agora venha. - Não consigo. - Se eu consigo, você consegue.
Se eu consigo, você consegue. É a frase que os liga desde a infância, a que faz deles gêmeos de alma.
Manco avança, um dedo de cada vez. Guiado pela voz do irmão que lhe diz palavras que ele não entende. Quando está perpendicular ao vazio, sente-se renunciando, caindo...
A mão de Paullu agarra-lhe o pulso. - Fique comigo, irmão.
Lá em cima, perto do cume, Manco vê que muitos corredores os ultrapassaram. Paullu não lhe dá tempo de lamentar o tempo perdido:
- Corra, meu irmão amado! Corra, você é o melhor e me orgulho de você. - É mentira, sou o mais covarde...
- Você é corajoso e forte, Manco, além do mais, você tem um irmão que o ama e vai ajudá-lo sempre... Vá, ganhe por nós dois!
Seu coração recomeça a bater, ele enxuga a chuva que lhe turva os olhos. "Sou o vento...", pensa ele, levantando os pés mais pesados que granito...
Na subida da longa ravina, ele ultrapassa um a um todos os que, aproveitando sua fraqueza, lhe haviam passado a frente. Ele quer ignorar a dor e congelar a vergonha num canto de sua alma. Corre, dentes cerrados.
Corre e pensa no orgulho de ser o primeiro, o "falcão", e ver chegar os outros, todos os outros, exaustos.
Será um prazer secreto saborear a derrota de Guaypar, que ele acaba de ultrapassar de novo, agora sem lhe conceder sequer um olhar.
Ele corre como se não precisasse mais respirar. Só vê a trilha à sua frente e, mais embaixo, o grupo das virgens de apoio, do outro lado da ravina. O mundo dança em sua corrida, as montanhas dançam, as nuvens, as moitas, o vale dançam em sua respiração. Ele está embriagado com a corrida, mas voa como o vento...
- Atenção!
O grito o imobiliza ao mesmo tempo que o silvo da serpente. Uma serpente comprida cinzenta com uma risca amarela, da grossura de um braço, erguendo-se à sua frente, na trilha.
- Atenção - repete a voz, porém mais baixo, com uma estranha ternura.
Então ele a vê, ela se aproxima da serpente que vem meneando, mostrando as presas de veneno na bocarra cor-de-rosa escancarada.
- Não se mexa! - pede a jovem.
Manco, ofegante, vê seus olhos. Será possível uma cor daquelas?
São olhos azuis, mais azuis que o céu do Sul. Será uma moça de verdade, de carne e osso?
Mas Manco não pensa mais. Ele a vê ajoelhar-se devagarinho, sempre fitando aqueles olhos esquisitos da serpente. A serpente meneia a cabeça, enrosca-se nervosamente como se fosse dar o bote.
Por reflexo, Manco se abaixa, pega uma pedra e fica com ela na mão. - Largue essa pedra diz a menina sem sequer olhar na direção dele. - Deixe comigo.
A voz é calma, segura. Ela comanda com firmeza e ele nem pensa em lhe desobedecer. Ela olha para a serpente, fita as ranhuras dilatadas do réptil, agacha-se devagarinho, devagarinho...
E a serpente se enrosca, desliza em seus anéis.
Ouve-se um barulho de corrida ali atrás, é Guaypar chegando no talude. Mas a serpente não presta nenhuma atenção. De repente se estica e desliza entre as pedras como se a apagassem da face da terra.
A menina dos olhos azuis sorri. Seu estranho olhar ilumina todo o verde e o cinza da montanha.
- O caminho está livre! - diz alegremente.
Manco adivinha que Guaypar parou e olha para eles. Manco hesita. Ela o encoraja com um gesto.
Ele continua, corre até a esplanada de Tumebamba como se seu corpo não tivesse mais nada que pudesse fazê-lo sofrer.
Mas ao terminar a corrida sob as aclamações dos primogênitos amontoados na colina, enquanto desaba, semi-inconsciente, tem a sensação de estar mergulhando com todo o corpo nos olhos azuis da desconhecida, como se ela o tivesse levado até ali.
Tumebamba, dezembro de 1528
A praça está cercada por um longo cordão de ouro sustentado por forquilhas de ouro e prata. No centro, arde o fogo à prova de chuva. Folhas de coca e de milho estão sendo queimadas ali, exalando um cheiro doce e estonteante.
Manco tem a boca pastosa. Sua língua e seu palato conservam o gosto acre e lancinante da chicha. Enquanto a alguns passos dele Villa Oma e os sacerdotes louvam a valentia dos guerreiros, as imagens da corrida passam e repassam em sua mente. Ainda de longe em seus músculos, ele sente sua força, sua terrível vertigem e a embriaguez da vitória.
Impelida por um turbilhão de ar quente, a fumaça da coca envolve o Irmão-Duplo de ouro de Huayna Capac. Esconde um instante o rosto daquela a quem chamam "Coya Camaquen". Depois os olhos azuis, a boca meiga e bem desenhada de Anamaya tornam a aparecer. Numa fração de segundo, seus olhares se encontram.
Ao lado dele, o irmão Paullu viu esse contato. Ele sorri e pergunta em voz baixa:
- Você a acha bonita?
- Não sei... Ela não é realmente como as outras. De onde vem? - Da floresta, parece.
Os sacerdotes aproximam-se dos noviços. Mergulhando uma pena numa tigela de sangue de lhama, eles fazem um risco no rosto dos rapazes. Depois vem a hora dos juramentos.
Para Manco, é como se as palavras de fidelidade ao Sol e de obediência ao Inca fossem pronunciadas por outro que não ele. Ele só tem pressa de uma coisa: ouvir as palavras que o designam finalmente como um auqui, um verdadeiro guerreiro.
Sendo o vencedor da corrida, ele é o primeiro a receber o calção branco. Depois, as sandálias de junco, a túnica vermelha com a faixa branca, a tiara e o diadema de plumas de onde pendem os discos de ouro e prata...
O povo olha para ele. Os pais, os clãs, os nobres de Cuzco e de Quito, todos o contemplam com os olhos cheios de admiração, mas também, às vezes, de ciúme.
Manco se levanta, orgulhoso. Em seguida chega a vez do grupo de frente com Paullu e Guaypar. Se seu irmão lhe lança um olhar afetuoso, os olhos de Guaypar emitem chispas de raiva diante do sorriso um tanto irônico do vencedor. Longe de abaixar a cabeça como os perdedores que agora recebem o vergonhoso calção negro, ele exprime um desafio cheio de orgulho, uma ameaça apenas velada.
As horas passam, as danças sucedem aos cantos. As risadas e os gritos de parabéns enchem a esplanada. Manco vai curvar-se diante dos mais velhos guerreiros que o examinam com um olhar sorridente, pousam a mão em seu ombro...
Mas faça ele o que fizer, seu olhar sempre volta para a jovem Anamaya, a esposa do Irmão-Duplo de ouro.
Quando afinal termina o ritual, as virgens se aproximam dos rapazes com potes de chicha. Elas oferecerão bebida aos jovens guerreiros e ficarão perto deles durante a última noite da prova que os meninos passam ao relento. Embriagados de cerveja, eles vão enfrentar a pureza de Mama Quilla e os espíritos dos Anciãos do Outro Mundo, os bons e os maus.
Pasmo, Manco vê Anamaya encaminhar-se para Guaypar. Manco mostra-a a Paullu e exclama:
- É esse cão que ela apóia?
- Certamente ela não teve escolha, Manco! Ela pertence ao clã de Atahualpa.
- Os clãs, Paullu, sempre esses malditos clãs! Não se falava em clãs quando o grande Manco Capac fundou nossa dinastia. E posso lhe dizer que eu não pensava nos clãs de Cuzco quando corria há pouco!
- O problema não é você pensar nisso, meu irmão; basta eles pensarem. As jovens que lhes foram designadas se aproximam, sorriso nos lábios, olhos baixos. Elas são muito moças, pequenas, lindas como bonecas e cheias de respeito ao entregarem os potes. Manco bebe toda a chicha em longas talagadas. A bebida foi feita naquela manhã. Seu frescor agridoce sacia seu palato, sua garganta e todo o seu corpo fatigado.
As jovens virgens vão imediatamente encher os potes bebidos nas enormes jarras que os criados inclinam com cordas. Anamaya, como as outras, vai encher seu pote na grande macca finamente pintada. A cerveja corre aos borbotões, seu amargor impregna o ar, um tanto nauseante.
A última invocação a Inti termina. Pouco a pouco, a embriaguez sobe e o cansaço de repente fica imenso. Em alguns minutos, entontece os rapazes. Já os fez dobrar os joelhos e fechar os olhos. Vem-lhes o desejo, imenso, de se deitar ali mesmo e dormir. Manco sente ainda os olhares que o vigiam. Fecha os olhos para respirar melhor e se levanta.
- Manco?
Paullu puxa-o pela manga da túnica. Quando ele torna a abrir os olhos, Anamaya está à sua frente.
- Ah, é você! - exclama ele maldizendo a vertigem que o domina. - Eu não lhe agradeci, Anamaya. Talvez você tenha impedido que eu morresse hoje! Ela esboça um gesto de negação:
- Ela só não o deixaria ganhar a corrida! Quando eu mal andava, as serpentes já corriam entre os meus pés... Aprendi a fazer amizade com elas. Ela lhe mostra o bracelete em seu pulso, com duas serpentes entrelaçadas. Ele mal repara. Não se acostuma com seus olhos azuis. Admira a silhueta franzina e ao mesmo tempo sólida.
- A serpente não é símbolo de sabedoria? - É o que dizem.
- Por que você atrai os olhares, Anamaya? Ela dá um sorriso infantil.
- Não tanto quanto você hoje, nobre guerreiro.
Anamaya encontra o olhar severo de Villa Oma fixado nela. Com sinal imperioso, ele ordena que ela se afaste. Ela saúda os dois irmãos com uma mesura:
- Tenho que encontrar o rapaz que estou apoiando. Mas desejo a vocês uma linda noite. Que Mama Quilla lhes seja doce!
Quando ela se afasta, Manco se vira, zombeteiro, para Paullu: - Então, o que acha, irmão? Nós a achamos bonita ou feia?
- Não como as outras, em todo caso... Mas você viu, o Sábio a controla como um velho marido ciumento! E não acho que ele aprova nossa companhia para a protegida dele!
Desde que a noite caiu, Anamaya soube outra vez o que era medo.
No pátio da cancha arde um fogo tranqüilizador, mas que dá aos olhos de Guaypar um brilho cada vez mais demente. Sem parar, desde que escureceu totalmente, ele bebe, afogando na chicha a humilhação sofrida.
Seus goles são pequenos e suas mãos tremem tanto que ele derrama no unku tanta cerveja quanto a que bebe. Mas a embriaguez o leva para longe sem lhe dar sono. O arem volta dele fede. Às vezes, ele se levanta e estende a mão para a Mãe Lua, como se nela pudesse mergulhar os dedos, abre a boca para dar um grito que não vem. Depois, deixa-se cair, tateando para encontrar o pote de álcool.
- Está vazio - gane ele. - Vá buscar para mim, menina dos olhos azuis!
- Você já está bêbado, Guaypar... - tenta Anamaya. - Talvez você deva descansar.
- Vá buscar a chicha! - gesticula Guaypar. - Vá buscar a chicha e não discuta!
Quando Anamaya se levanta, ele tenta agarrar-lhe a coxa. Com um giro que faz sua túnica esvoaçar, ela lhe escapa, mas ele segurou o tecido e o puxa. Com uma joelhada seca, Anamaya se desvencilha dele, e ele se deixa cair de lado fazendo troça:
- Ele lhe agrada, hein, o meu irmão Manco! - Guaypar...
- Vi como você olhava para os dois! Mas você não passa de uma menina do mato. E depois, ele é de Cuzco! Você não vai tê-lo nunca...
- Eu sou a esposa do Irmão-Duplo do seu pai, acima de tudo! Não esqueça!
- Eu sei, eu sei! A Coya Camaquen! Pois sim! Villa Oma teve que encontrar um nome só para você!
Guaypar se deixa cair para trás, o rosto deformado pela paixão.
- Manco é um trapaceiro! - resmunga ele como se se dirigisse ao céu tanto quanto a Anamaya. - Logo todo mundo vai saber que ele trapaceou... Anamaya se lembra das palavras rancorosas de Inti Palla contra Manco. E Manco ganhou!
Nessa noite, que deveria ser a noite da força e da alegria, ela se sente triste por causa das sombras e das ameaças. Sim, há entre os clãs de Cuzco e de Quito ondas de ódio que tudo devastam. Mas Guaypar se levantou cambaleando e aponta o indicador para ela:
- E ele trapaceou com a sua ajuda, Coya... - Minha ajuda?
- Você foi quem o fez ganhar!
- Não seja idiota! Eu simplesmente o salvei de uma serpente...
- Inti tinha posto uma serpente no caminho dele e você fez com que ela fosse embora. Isso não é uma trapaça? Você fez com que esse cão sarnento, que nem mesmo é irmão de Atahualpa como eu, ganhasse! Você nos traiu! - Eu não queria...
Anamaya se cala. Não adianta nada responder. Guaypar está bêbado demais para entender por quê. É preciso simplesmente esperar que ele apague e se deixe levar pela embriaguez.
Mas, cambaleando, Guaypar consegue se pôr de pé. - Venha grunhe ele. - Venha atrás de mim. - Aonde?
Guaypar fita Anamaya com uma intensidade nova. Em vez de responder, ele brinca balançando a cabeça:
- É verdade que você e bem bonita no seu gênero! Você me agrada, menina do mato. Mais até que qualquer outra menina, mas você é má! Anamaya morde os lábios e recua. Com brutalidade, Guaypar lhe agarra o braço e a arrasta sem mais uma palavra. Rude, faz com que ela atravesse o pátio. Ao ver que ele pretende sair da cancha, ela resiste. Ele então, com as forças que lhe restam, torce-lhe o braço e a empurra à frente apesar de seus protestos.
A embriaguez ganhou todas as ruas. Ninguém presta atenção neles. Pelas portas das canchas, ouvem-se cantos, gritos, às vezes ainda sons de flauta ou um breve rufar de tambores. As fogueiras projetam sombras loucas. No cruzamento das ruas, atirados no chão, jazem homens inconscientes, cobertos com o próprio vômito. Em toda parte, o cheiro de chicha empesteia o ar. De repente, Guaypar pára cambaleando diante de um muro de construção esmerada e grita:
- Manco! Paullu!
Sua voz rouca ainda ecoa quando ele empurra Anamaya à sua frente, entrando na cancha dos dois irmãos.
- Guaypar!
Com alívio, Anamaya vê o vulto alto e nobre de Manco se erguer diante do fogo. Ele não parece bêbado, embora tenha os olhos vermelhos e a respiração ruidosa.
- Largue-a! - ruge ainda Manco apontando para Anamaya. - Largue a Coya, você não tem nenhum direito de tratá-la assim!
Paullu também se levantou. No escuro, ele se aproxima com passos lentos:
- Vá para casa, Guaypar - diz com uma voz calma. - Você deve continuar a prova...
- Irmãos! - zomba Guaypar dando um empurrão tão violento em Anamaya que ela tropeça e cai de joelhos. - Eis os irmãos de quem você tanto gosta! Uns trapaceiros, sempre juntos para esconder melhor a covardia deles!
Manco precipitou-se para levantar Anamaya. Paullu brinca:
- Você não vestiu um calção negro, Guaypar? Ficaria muito bem em você, negro como a noite que está no seu coração!
Manco, cerrando os lábios enfurecido, puxou a capa para trás e avança, cerrando o punho.
- Não, Manco... - protesta Anamaya. - Ele não sabe o que está fazendo...
Mas é tarde demais. Com um rugido, Guaypar enfia a mão direita na manga da túnica. Quando a retira, a lâmina em forma de meia-lua de um tumi brilha à luz do fogo. Guaypar corta o ar à sua frente com dois movimentos secos, depois dirige a faca de cobre para o rosto de Manco.
- É agora que você vai correr, Manco! E muito! Tanto quanto eu mandar. Paullu se esgueira para junto de Anamaya, agarra-a pelos ombros e a faz recuar enquanto Manco dá dois passos para o lado, ágil como uma onça do deserto.
- Olhe! - chia Manco, sem nenhuma entonação na voz. - Veja só quem fala de covardia! Ele pega o tumi para lutar com quem está desarmado. - Trapaceiro! Raça de Cuzco! Vocês lá são todos uns trapaceiros! Acham que são os mais nobres, mas vocês trapaceiam...
Um rugido sai da sombra que os cerca. Agora há gente em volta deles, criados e também tios, irmãs, tias... E ninguém diz nada. Quem está bêbado pode dizer loucuras tiradas da embriaguez. Mas Manco é o insultado e cabe a ele responder.
- Está na hora, Guaypar! Há muito tempo que eu esperava esse momento. Venha! Venha me enfiar essa sua faca na garganta... Venha, se conseguir! Os dois rapazes estão rodando agora em volta do fogo. Guaypar parece ter ficado um pouco mais sóbrio. Mas quando quer pular as brasas, Manco se esquiva facilmente. Com um movimento ágil, ele se inclina para o lado, levantando as duas mãos ao mesmo tempo: com uma delas, agarra o braço de Guaypar e o imobiliza contra seu ombro; com a outra, segura a mão que empunha o tumi. Enfurecido, desvencilha-se e gira nos calcanhares. Seu braço direito descreve um círculo em cima do fogo e a lâmina da faca desliza na face de Guaypar, que recua com um grito de dor. O sangue jorra do ferimento. Guaypar passa os dedos no rosto e olha com incredulidade para a mão ensangüentada.
- Volte para casa, Guaypar - repete Paullu. - Ainda é tempo! - Não, meu irmão - exulta Manco. - Não dá mais tempo!
Mas como se o sangue o tivesse despertado, Guaypar atira longe a faca e pula em cima de Manco, segurando-o pela cintura. juntos, os dois rolam para o lado do fogo, espalhando as brasas num jato de fagulhas. Anamaya dá um grito, e Paullu precisa contê-la antes que ela se precipite para apartar os rapazes. - Deixe! Deixe-os: isso precisa acontecer!
Manco e Guaypar lutam no chão, tão atracados que o sangue de um suja o outro. Os arquejos são pontuados de gemidos de dor quando um leva um soco, é esfolado ou sofre uma torção. Depois, de repente, Anamaya vê Guaypar rolar para o lado, o unku se rasgando ruidosamente. Na mesma hora, Manco se levanta e pula em cima dele, caindo de joelhos em sua barriga, os dedos já apertando sua garganta pegajosa de sangue.
- Foi você que jurou ter a valentia do guerreiro? - pergunta Manco com uma voz apenas perceptível. - Respeitar a honra?
Guaypar não responde. Abre a boca e procura sorver o ar num arquejo. Mais alto, Manco pergunta ainda:
- jurou ou não jurou, por nosso Pai Inti e nossa Mãe Lua? Por nossos ancestrais e pelas almas de todos os únicos Senhores?
Anamaya sente que Manco já não controla a raiva ela repele a mão de Paullu e se aproxima:
- Manco, por favor, deixe-o... Mas Manco já não ouve.
- Foi você que insultou a virgem que vela aqui sobre meu pai?
Suas mãos largam a garganta de Guaypar, seus punhos se cerram e golpeiam o rosto do irmão odiado com uma raiva de guerreiro. O lamento que sobe da garganta de Guaypar não o detém mais que os gritos de Anamaya. Ao redor, o círculo dos pais se fechou mas ninguém intervém. Anamaya quer agarrar os braços de Manco quando vê, nos olhos negros do jovem inca, as chamas do fogo dançarem. E é como se todo o ódio que Guaypar carregasse ali se consumisse...
- Basta!
A ordem soou seca na noite. Anamaya ergue os olhos ao mesmo tempo que Manco levanta o braço. Diante do fogo, um homem com vestes de sacerdote estende a mão e ordena ainda:
- Basta, Manco! Não o mate.
Anamaya reconhece um dos tios de Manco. O homem olha rapidamente para ela, com uma expressão carregada de desconfiança, e acrescenta:
- A lição está dada e ninguém vai esquecer. Não se insultam impunemente os clãs de Cuzco.
Manco se afasta de Guaypar e se levanta lentamente. Anamaya encontra o olhar de Paullu, que ficou calado, imóvel, durante todo o combate. Há tristeza em seus olhos enquanto ele observa o irmão recobrar o fôlego.
Cuspindo sangue, resfolegando, Guaypar rola sobre si mesmo para se pôr de joelhos penosamente. Consegue se levantar, procura a ajuda de Anamaya, que não lhe estende a mão. Num último esforço, ele se levanta, as mãos espalmadas na barriga, e encontra força suficiente para dizer:
- Você está amaldiçoado, Manco. Vai arder antes de chegar ao Outro Mundo! A sua alma nunca será livre!
Manco limpa o sangue dos dedos e replica:
- Amaldiçoado está quem fala em amaldiçoar.
Enquanto Guaypar deixa a cancha cambaleando, Anamaya hesita. Por um instante, seu olhar fica colado ao de Manco.
- Preciso segui-lo - diz ela afinal. - Preciso velar sobre ele esta noite, mesmo que ele se engane a seu respeito.
Manco lança um olhar a Paullu antes de responder, a voz estranhamente vibrante de doçura após tanta violência:
- Eu sei, irmã dos olhos azuis...
- Cuide-se, Manco, e não tenha medo de serpentes.
- Infelizmente você não estará sempre à beira do caminho para falar com elas e desviá-las de mim!
Na fumaça que escurece a noite, o vulto de Anamaya já desaparece.
Tumebamba, dezembro de 1528
- Acorde, Anamaya.
Ela tem as pálpebras pesadas. Gostaria de ficar deitada na esteira. Puxa a manta em que está enrolada. Villa Oma olha para ela com dureza.
Ele entrou no quarto sem fazer o menor barulho, os pés calçados com sandálias de palha deslizando em silêncio no chão de pedra. Como acontece freqüentemente, com aquela silhueta alta e aquela boca de cantos esverdeados, sua aparição súbita parece carregada de ameaças.
- Acorde, depressa!
- O que está acontecendo?
- Não discuta. Levante-se e venha atrás de mim!
Anamaya tenta pôr a cabeça no lugar. Há apenas dois dias, a iniciação dos rapazes terminou. Há apenas duas noites, Manco e Guaypar lutavam e se insultavam. Apenas dois dias de paz e um novo drama já se anuncia!
Ela se levanta, olha com pena para aquela sua cama quente e aconchegante. A claridade está começando a entrar pelo cortinado que dá para o pátio. - O que fiz de mal?
- Não sei o que você fez. Mas a sua presença em Tumebamba talvez não seja uma coisa boa!
- Eu não quis a luta entre Guaypar e Manco... - Quem está lhe falando dessas criancices?
O tom de Villa Oma desperta definitivamente Anamaya e a faz estremecer. De um nicho ao lado da janela, o disco de prata de Mama Quilla, Mãe Lua, brilha docemente no escuro, como se chorasse. Os dedos secos de Villa Oma se crispam sobre o cortinado. Sua voz surda ecoa como um trovão:
- O Corpo seco do único Senhor não está mais no templo.
Anamaya abre a boca sem poder respirar, como se tivesse levado um soco no estômago. Com uma voz apenas audível, suspira:
- O que está dizendo?
- Você me ouviu. A múmia de Huayna Capac desapareceu. - Mas como? Como e possível?
Villa Oma ergue os olhos em sinal de impotência. Ele parece mais alto e mais magro ainda no escuro. A raiva e a angústia abriram sulcos profundos em seu rosto.
- Ao nascer do sol, fui com os sacerdotes à sala do templo de Inti - prossegue ele. - O nicho estava vazio. A múmia não está mais no pedestal. - Mas quem... quem ousou fazer isso?
- Quem? Como?... Só uma coisa e certa: você, menina, é que será acusada deste crime!
- Eu? Eu! Por quê? Você não pode me acusar de uma maldade dessas, Villa Oma, você sabe!...
- Eu não a estou acusando, Anamaya! - diz o Sábio com um suspiro de cansaço. - Outros, infelizmente, ficarão bem felizes de se encarregar disso! Você é a Coya Camaquen. Seu papel não é proteger a múmia do Irmão Duplo? Não foi isso que Huayna Capac mandou você fazer na noite da passagem? Dar-lhe apoio neste mundo aqui enquanto ele ia para o outro?
As lágrimas turvam a vista de Anamaya. Mas a injustiça é tão violenta que ela logo as seca com as costas da mão. Ela já não é mais a menina apavorada que era levada ao Inca. A ira vibra em sua voz:
- E por que eu faria uma coisa dessas?
Com um gesto, Villa Oma repele a pergunta:
- Pouco importam os seus motivos! Você é a protegida de Atahualpa. Se necessário, eles inventarão uma mentira!
- Não entendo...
- É mesmo? Você ainda não entendeu que a gente de Cuzco nos odeia e que tudo é motivo para nos afastar...
Villa Oma se interrompe. Gritos ressoam no pátio. Deformado, berrado a plenos pulmões, o nome de Anamaya vibra no ar como um insulto.
- Bem, eles não perderam tempo - diz calmamente Villa Oma. - Prepare-se, minha filha. É a eles que você tem que convencer de sua inocência.
- É ela!
- Ela que fez nosso Senhor Huayna Capac desaparecer!
- Sacrilégio, sacrilégio! O Mundo vai perecer! Inti vai se vingar de nós! - Essa menina de olhos azuis é maléfica! Inti quer que ela vire cinza, Quilla quer que ela seja jogada no rio!
O pátio do palácio de Huayna Capac é imenso. No entanto, está tão repleto agora que os recém chegados, irritados, gesticulando, permanecem diante da porta encimada por uma verga representando uma serpente dupla. Todos são nobres de Cuzco, todos pertencem ao clã de Huascar. Alguns vociferam e brandem suas maças mortíferas de pedras negras finamente polidas. Outros agitam lanças, alguns giram fundas ou os machados de obsidiana...
No centro do pátio, os principais chefes de linhagem formaram um círculo. Eles discutem, murmuram e se encaram; embora as palavras ainda sejam medidas, os olhares não enganam. Todos estão vidrados em Ánamaya, ladeada por Atahualpa e Villa Oma, que permanecem impassíveis e calados. - Os sinais são nefastos desde que essa menina está entre nós! - grita um velho. - Ela é sacrílega!
- Você a protege para nos atrapalhar, Atahualpa! - clama um guerreiro ricamente vestido e apontando sua lança de plumas de seis cores para Anamaya.
Um rugido de aprovação se eleva em volta dele. O homem tem a testa cingida por uma faixa de general, seu unku é tecido de vicunha e decorado com todos os quadrados e triângulos dos mais altos clãs. Ele sorri, com um ríctus de arrogância na boca:
Adivinhamos a sua manobra! Você quer impedir que a múmia de Huayna Capac chegue ao Templo único de Cuzco! Tem medo que ela se instale ao lado dos ancestrais da Origem do Mundo, pois então, Huascar, nosso único Senhor, terá o poder de seu pai para reinar! Eis por que você mandou essa menina dar sumiço na múmia...
- Vamos queimar os pés dela, e ela vai dizer onde a escondeu!
Numa reentrância afastada do pátio, Anamaya percebe o perfil aquilino de Manco e o rosto nobre de Paullu. Ambos mantêm os olhos baixos, cheios de constrangimento. Também pertencem ao clã Huascar. Quisessem eles ajudá-la, seriam impotentes...
Em frente, onde estão reunidos os parentes de Atahualpa e os homens de Quito, ela vê Guaypar. O rosto dele está marcado, a face esquerda coberta por um emplastro de ervas seguro por uma gaze fina. Mas os lábios intumescidos estão repuxados por um sorriso crispado.
De repente, sobrepondo-se à algazarra, a voz forte de Atahualpa vibra como a corda de um arco:
- Vocês ainda têm muitas palavras inúteis para pronunciar?
Ele não deixa transparecer minimamente a cólera que faz as pontas de seus dedos tremerem. Os gritos cessam, de repente. O braço estendido, a mão espalmada para o chão, ele aponta para a gente de Cuzco:
- Nenhum de vocês acredita realmente que a Coya Camaquen, aquela que meu pai escolheu para acompanhar seu Irmão-Duplo, possa ser a autora desse rapto sacrílego. Ninguém pode acreditar que eu me oponha à vontade de Inti e à volta de meu pai a Cuzco.
Virando-se para a direita, Atahualpa designa um velho com a testa cingida com o disco de ouro dos Grandes Poderosos:
- Colla Topac estava presente, com os outros Grandes Poderosos, quando o único Senhor Huayna Capac escolheu a Coya Camaquen antes de partir para o Outro Mundo. Ele é que foi encarregado por meu pai de fazer respeitar suas vontades de acordo com o Costume, antes que meu irmão Huascar se cingisse com a borla. Ele é que deve levar meu pai a Cuzco. Ele é que o fará entrar no templo de Coricancha.
- É verdade - exclama o velho. - Eu sou o Legatário e nenhum de nós, eu sou testemunha disso, tem desejo mais caro do que ver nosso único Senhor voltar à sua cidade querida! E não acho que a Coya Camaquen pudesse fazer isso de que vocês a acusam: o próprio Filho do Sol depositou sua confiança nela.
- Os que gritam mais alto entre vocês - prossegue Atahualpa - deveriam ser mais comedidos... Quem sabe se esses mesmos não são os blasfemadores?
Um curto silêncio parece gelar o ar da cancha. Depois irrompe uma voz estridente:
- Você está nos acusando? Está nos ameaçando, Atahualpa? A nós, o clã do seu irmão Huascar! O filho mais amado do seu pai! Como ousa? Dessa vez, a raiva de Atahualpa explode:
- Eu não ouso mais que vocês, que insultam aquela que meu pai escolheu e cospem nela!
Não podendo mais agüentar, Anamaya se adianta para o centro do círculo. Levanta a mão aberta e diz com voz forte:
- Não briguem por mim!
Todos os olhares voltam-se para ela.
- Conduzam-me ao templo, para perto do meu esposo o Irmão-Duplo. Ele me dirá onde está a Múmia.
Villa Oma e Atahualpa têm um mesmo olhar estupefato.
- Sabe o que está dizendo? - murmura o Sábio de lábios verdes. Anamaya faz que sim com a cabeça. Na verdade, as palavras que ela acaba de pronunciar surpreendem-na tanto quanto ao Sábio! Não foi a sua vontade que as formou em sua boca. Elas saíram de seus lábios por si mesmas, cheias de segurança. Agora, seu coração se aperta, o suor da angústia lhe molha as palmas das mãos. Contudo, o murmúrio que percorre a multidão contém a mesma dose de surpresa que de respeito. Lá embaixo, Manco e Paullu levantaram a cabeça e encaram-na, os olhos brilhantes. Guaypar não está mais sorrindo. Um grito, de novo, rasga o silêncio:
- Atahualpa! Se essa menina não encontrar o Corpo seco de nosso Senhor Huayna Capac, vamos jogar as entranhas dela no lixo!
Um rugido de aprovação percorre a multidão.
Sob o olhar preocupado de Atahualpa, a mão de Villa Oma se fecha com firmeza em volta do braço fino de Anamaya. Ela sente o orgulho que vibra em sua voz quando se volta para a multidão e diz:
- Ameacem! Ameacem! Mas vejam: ela não tem medo de vocês!
O caminho entre o palácio e o templo não é muito longo. O calor é opressivo. Anamaya sente-o pesar na sua nuca e fazê-la respirar mais devagar. A cidade inteira está tomada por um humor doentio. Grupos de homens se comprimem nas ruelas estreitas, a raiva e o medo marcam seus rostos. Alguns resmungam insultos quando ela passa por eles. Mulheres aparecem à porta das canchas e seguem-na com o olhar, fazendo caretas.
Ela caminha empertigada, olhos fixos na capa esvoaçando nos ombros altos de Atahualpa. Está aliviada de sentir a seu lado, caminhando no mesmo passo rápido, Villa Oma e os soldados da escolta.
Eles entram no templo deserto, a sala dos nove nichos, sem outra cobertura senão a imensidão do céu que a domina.
Anamaya percebe o murmúrio vivo da água nas canalizações das fontes. Em cima dos muros de pedras esplendidamente encaixadas, o sol poente traça sombras sutis e desenha animais e deuses. Nichos se alinham ao longo da parede, encimados por um friso de ouro martelado de losangos, trapézios, formas oblongas como ovos de pássaro.
No nicho central, encontra-se o Irmão Duplo em ouro. Mas a seu lado, a base onde a múmia se mantinha a escura dos mundo daqui e de baixo está vazia. Anamaya mal ousa olhar para ela.
Villa Oma rodeia-a como se pudesse enxergar pistas. Finalmente, diz a Atahualpa:
- Tenho certeza que de que os homens do seu irmão é que cometeram essa maldade imbecil!
- È provável. Mas eles perderam a razão. Nunca se viu tamanho insulto feito ao nosso pai.
- É o sinal de que Huascar e a gente dele estão minados pelo medo.
- Medo? E por quê? Eles sabem que meu respeito pelas palavras de meu pai é absoluto! Sabem que não quero colocar o llautu sagrado em minha fronte. Não quero ser o único senhor. Você sabe, Villa Oma! Eles todos sabem: os sinais são contra mim...
- Nem todos... Você tenta demais se convencer disso! E Huascar sente. Ele é como um bicho sente mais do que pensa. Mas, á maneira dele, ele vê mais longe que você: tem medo das forças que cercam você. Tem medo dela...
Villa Oma mostra Anamaya e acrescenta:
- Eles receiam que ela se lembre das palavras do Único Senhor na noite da passagem dele. Receiam que o irmão duplo lhe dite a verdadeira vontade de seu pai!
Atahualpa contempla por um instante o rosto de ouro, calmo mas impenetrável, do Irmão - Duplo. Esboça um gesto como se quisesse tocá-lo, mas se emenda, virá-se para Anamaya e pergunta:
- E você, menina, acha, como o sábio, que eu não sei escutar a vontade de mau pai?
- Acho que você não sabe que é meu poderoso senhor!
Mal essas palavras saem de sua boca, Anamaya abafa um grito e tapa a boca com as mãos.
- Perdão! Perdão... Essas palavras saíram de mim sem que eu as pensasse!
- Ouça-a - murmura Villa Oma. - ouça-a, ela fala com a vontade de Huayna Capac, eu sinto!
Os olhos um tanto vermelho de Atahualpa vão do sábio á menina. Mas o olhar de Anamaya é atraído pelo nicho do Irmão-Duplo. Em seu rosto esculpido, um raio de sol veio pousar com uma precisão de uma ponta de lança...
- Encontre a múmia Anamaya - murmura Atahualpa. - Encontre-a!
Na hora em que ele se vira, o sol desliza por seu capacete e pelos discos de suas orelhas. Anamaya sente os reflexos de ouro penetrarem nela e vibrarem em seu peito como se formassem nela outras palavras, ainda desconhecidas e impossíveis de pronunciar.
Tumebamba, fevereiro de 1529
Anamaya e Villa Oma seguem pela esplanada diante do templo. Na colina de Tumebamba, defronte a eles, os muros das canchas, em volta dos palácios, dos pátios, das casas mais comuns, estendem-se formando quadrados regulares.
O Sábio se cala, Anamaya sabe que não deve lhe fazer perguntas. Do outro lado do vale, divisa o cume negro do Huanacauri. O caminho calçado que eles estão seguindo é uma reta só desde o cume da montanha e do templo.
O calor pesa cada vez mais. Anamaya sente o suor porejar em suas têmporas, sua nuca, escorrer por suas costas embaixo da túnica cerimonial demasiado grossa.
Sem diminuir o passo, o Sábio enfia a mão na chuspa, a bolsa de pano que não o deixa. Tira dali uma pitada de folhas de coca e um frasco com um pó branco, uma cal fina como talco.
- Tome - diz ele somente estendendo-lhe a coca.
Depois, ele coloca na palma de sua mão um pouco de cal. Ànamaya enrola as folhas verdes e grossas para com elas fazer uma espécie de cilindro e começa a mascá-las devagarinho. O gosto doce-amargo a faz salivar.
Pouco a pouco, a cidade desaparece atrás deles e logo o caminho cuidadosamente calçado vira uma trilha de terra ladeada por dois muros de alvenaria grosseira mas regular. Ela caminha sem esforço, sem cansaço. Uma espécie de placidez eufórica a invade.
Na outra vertente do morro, uma encosta suave leva a um platô. Ali, aparece a massa clara de uma enorme rocha de formas tortuosas e gretadas que, como sob o efeito de um caos, ao mesmo tempo brotam do chão e afundam.
Anamaya não precisa que o Sábio lhe diga: trata-se de uma huaca. Uma Pedra Ancestral, uma das milhares de Pedras sagradas que limitam o Império dos Quatro Lados segundo os eixos que só os Sumos Sacerdotes conhecem. Ali, as almas dos Anciãos e dos Deuses respiram e acolhem as preces dos homens e das mulheres que vivem no mundo visível.
Villa Oma fica imóvel diante do muro que marca a entrada. Um trabalho tão fino feito em pedra que às vezes encaixa-se na rocha como uma segunda pele traça o ziguezague coruscante de Illapa, o Senhor do Raio e do Trovão.
Da chuspa cheia, Villa Oma torna a tirar folhas de coca. Agora, ele as dispõe cuidadosamente num nicho do muro, ao pé de uma pequena estatueta de ouro. Depois, tira do alforje um frasco de chicha e pinga algumas gotas da bebida no nicho antes de regar o chão com ela. Feito isso, levanta-se, bem empertigado, a cabeça de lado, oferecendo as mãos espalmadas para o céu. Após um instante de recolhimento, ele se vira para Anamaya, estende-lhe a chicha e faz sinal para que ela beba. Ela obedece, dá dois grandes goles que lhe queimam estranhamente a garganta.
- Agora, vamos esperar - diz o Sábio.
Anamaya senta-se em cima das pernas numa pedra chata e quente. O sol afaga sua pele e lhe fala. Um torpor estranho lhe pesa as pálpebras, torna sua respiração mais lenta. Seus olhos se fecham, seu corpo todo fica pesado, cada parte distinta, braços, pernas, tronco, cabeça. E de repente, ela volta a se sentir inteira, mas tão pesada que é puxada para o fundo da terra, deslizando com uma velocidade tão vertiginosa que lhe é impossível resistir...
Então, talvez ela tenha adormecido.
Quando volta a si, o sol está quase se pondo. Vê algumas luzes já se acendendo nas encostas das montanhas que cercam o platô.
- Villa Oma!
Ela o chama em vão. O efeito da coca e da chicha se atenuou. Resta apenas uma fraqueza penosa e fragmentos de medos que a envolvem com a escuridão crescente.
- Villa Oma!
Sua voz ecoa longe. Os flancos das montanhas devolvem-na a ela. Anamaya se levanta, as coxas rígidas, os joelhos doloridos. Passa ao longo da parede de Illapa, tateando-a com as pontas dós dedos para guiar-se. No fim da parede, começa um caminho estreito, invadido por plantas espinhosas, que parece dar a volta na huaca.
Ela caminha com prudência, esforça-se para não escorregar com as sandálias de palha. Em seu braço, a pulseira das duas serpentes lança chispas douradas ao luar.
Bruscamente, ela tropeça numa moita de espinhos que fecha o caminho melhor que uma porta. O medo a invade. Com a respiração acelerada e rouca, ela volta atrás. Porém, depressa demais. Tropeça, lança as mãos à frente, no escuro... E onde pensava encontrar a firmeza do rochedo, seus braços entram completamente numa brecha onde ela cai, de cabeça, arranhando as coxas na ponta de uma pedra.
Quando se equilibra novamente, sem conseguir respirar, petrificada pelo silêncio da escuridão, ela entende que o rochedo se abriu para acolhê-la. Ali, faz mais frio e a noite é mais negra que a noite.
Ela treme. Contra a sua vontade, suas mãos tremem, seus ombros tremem,seu coração treme. Mas ela sabe, sem entender por que, que agora não pode voltar atrás.
Ela se levanta. Passo a passo, esbarrando com os ombros nas paredes, ela avança.
O caminho desce muito ligeiramente. Ela vai em frente, inexoravelmente, afundando cada vez mais. Tem a boca seca, no peito, a dor das batidas de seu coração. Toda uma parte sua deseja gritar, bradar que ela não quer deixar o Mundo de Cima.
Em seguida, o espaço à sua volta fica imenso. A escuridão torna doce o ar. Ela abre os braços sem encostar em nenhum rochedo. Avança na noite sem esbarrar em nada. Tanto à direita, como à esquerda! Então, embora ali não haja nenhum barulho, nenhuma luz, uma certeza corre em seu corpo, mais acre, mais violenta ainda que a chicha: ela não está só.
- Villa Oma - murmura ela à beira das lágrimas. Diante dela, no escuro, brilham dois olhos amarelos. O puma!
É isso que Villa Oma quer desde o primeiro dia: dar seu coração para o puma devorar, dar sua carne para o Mundo de Baixo, limpar o universo da impureza dos seus olhos azuis, de suas origens misteriosas.
Os olhos amarelos se deslocam à esquerda, como se para melhor observá-la. Então, de repente, a voz de Huayna Capac, aquela voz que ela espera há dias, que lhe vale esses gritos e esses ódios todos, ecoa em sua cabeça. É uma voz clara, não é mais a voz cansada do velho que falava no meio da noite e lhe dizia que estaria com ela. Mas é tão reconhecível!
"Menina Anamaya! Menina pura de olhos de lago, como pode achar que eu não manteria minha promessa? Venha, menina Anamaya, chegue aqui perto de mim! Não tenha medo...”
Anamaya adianta-se para os olhos amarelos do puma. Seu medo se acalma, sim, embora ela esteja certa de que o puma vai devorá-la. Contudo, está feliz de ter encontrado o único Senhor antes de também deixar o mundo.
"Eles quiseram me pegar", diz a voz muito docemente, "mas quero ficar perto de você até a hora em que me sentarão em meu trono de eternidade, em Cuzco, perto de meu Pai Sol. Eles quiseram me pegar, mas agora estou de volta, onde nunca deixei de estar...
"Menina Anamaya, não duvide de mim. Permaneça em meu hálito e confie no puma...”
O eco da voz está em sua cabeça, sobre a pedra.
Anamaya abre os braços e se oferece à boca aberta do puma. Mas os olhos amarelos desapareceram. Em volta dela há apenas a escuridão infinita... Não!
Não: de uma fenda na rocha, no alto, surge a luz intensa da Mãe Lua! Rindo, Anamaya põe as mãos no rosto, arranha as têmporas!
Está viva!
Quando ela surge, esbaforida, perto da parede de Illapa, Villa Oma está ali à sua espera, um vulto branco na noite. Ela pára diante dele, sorrindo. - Ele falou com você, não foi?
Anamaya faz que sim com a cabeça sem saber o quanto seus olhos brilham na noite.
- E você sabe onde ele está? - Venha.
Agora cabe a ela conduzir o Sábio. Quase correndo, eles voltam para a cidade, passando ao longo dos muros, esgueirando-se pelas ruelas e diante das portas das canchas adormecidas.
Quando eles se aproximam do Templo, dois jovens sacerdotes de traços ainda adolescentes precipitam- se ao seu encontro. Os sacerdotes têm a cabeleira desgrenhada e parecem tomados por uma grande agitação.
- Sábio Villa Oma! Sábio Villa Oma!
O sábio lhes impõe calma com um gesto seco. - Sábio Villa Oma! A Múmia voltou!
- Eu sei - diz o Sábio olhando para Anamaya.
Na sala dos nove nichos, o Corpo seco do único Senhor Huayna Capac está sentado em seu pedestal. Mama Quilla ilumina sua máscara de ouro, a finíssima cobertura de vicunha e de pêlos de morcego que o recobre: Ele está ali, como se dali nunca tivesse sido tirado. Seu rosto de metal luminoso está virado para a estátua do Irmão-Duplo. Villa Oma poderia jurar que nele se desenha uma espécie de sorriso. Ele, o velho Sábio astucioso e sólido, estremece enquanto Anamaya murmura:
- Ele me garantiu que nunca se afastou de mim... Villa Oma levanta os braços numa prece intensa e olhar esgotado pousa com ternura em Anamaya.
- Vamos ter que tomar conta de você, menina. O Único Senhor Huayna Capac vem visitá-la quando quer. Você viaja entre os mortos, vai ao Mundo de Baixo e volta... Sua vida ficou preciosa demais para nós todos!
Em sua voz orgulhosa, Anamaya percebe um estremecimento de medo. - Você já não quer me dar para o puma?
- Quero. Mais do que nunca, pois agora sei que o puma a protege. Por um instante, Anamaya se lembra dos dois olhos amarelos do puma no escuro e do abandono que a invadiu, mais forte que seu medo, mais forte que a morte.
Nela, ecoam sem parar as palavras do único Senhor, seu amo: "Permaneça em meu hálito e confie no puma...”
Segunda parte
Sevilha, Espanha, fevereiro de 1529.
Desde o amanhecer, ele espera.
Vieram tirá-lo de sua enxerga e de seu sono agitado enquanto era noite ainda. Seu primeiro pensamento foi que hoje ele iria morrer.
Essa perspectiva não o assusta tanto quanto deveria. Menos que a tortura da qual o ameaçam há meses. Menos que essa espera interminável que equivale à dor dos instrumentos.
É quase meio-dia, o sol invade o grande vestíbulo do castelo de Triana. Ele se acostumou tanto à escuridão de sua masmorra que precisa manter os olhos fechados.
E depois suportar esse silêncio sem fim.
Nenhum eco na grande escadaria, nenhum canto de pássaro lá fora. Ele afasta os pés. A corrente soldada às tornozeleiras de ferro que rasgam o que resta de suas meias chocalha e bate na madeira encerada do assoalho. O barulho dos elos de metal logo se apaga, engolido pelo imenso silêncio.
É isso, no fundo, a obra da Santa Inquisição: o silêncio. A vontade e a grande força do silêncio. A infinita capacidade de abafar todos os ruídos. Os ruídos da vida como o barulho da morte.
É quase noite quando o inquisidor lhe sorri.
Um sorriso terno e mais insuportável que uma ameaça.
Sem deixar de sorrir, com um pequeno gesto de sua mão rechonchuda, o inquisidor ordena que ele se aproxime.
A sala é familiar. Diante das janelas altas, o veludo dos reposteiros vermelhos esconde a noite assim como o dia. As chamas bruxuleantes das velas lançam sombras móveis nos caixões pintados do teto. Desde a porta, um tapete cor de malva delimita a passagem. No centro do tapete, há uma cadeira de carvalho de espaldar alto e reto, brilhando graças às centenas de acusados que a lustraram à força de sobressaltos de medo.
Em frente à cadeira há um estrado. E ali, atrás de uma mesa comprida, há três homens. O próprio inquisidor, o rosto jovem e redondo, a testa e as faces brancas, envolto numa simples batina preta e o crânio já calvo coberto com um barrete de quatro pontas. À sua direita, vestido de maneira semelhante mas com um capote abotoado justo, o secretário. Um velho de boca triste e olhar circunspecto. O escrivão não passa de um jovem bacharel de olhos fugidios e têmporas cobertas de pequenas pústulas vermelhas.
Mal Gabriel se senta, a primeira pergunta é desferida: - O senhor se chama Gabriel Montelucar y Flores?
A voz do inquisidor é o oposto do seu rosto: fina e seca. Quase tão áspera quanto se saísse da boca de um velho. Gabriel ergue os ombros com impaciência.
- O senhor sabe meu nome melhor do que eu. Há duzentos e cinqüenta e três dias que estou em suas masmorras e a décima segunda vez que essa pergunta me é feita...
- Responda com respeito à Sua Senhoria! - rosna o secretário. Gabriel gostaria de sorrir, mas contenta-se com um suspiro:
- Vossa Eminência não ignora que me chamo como Vossa Eminência diz. Assim como não ignora o nome e o título de meu pai. Ou ainda que minha mãe era apenas uma doméstica...
- Responda somente às perguntas, don Gabriel. É verdade que o senhor entrou para o Collegio Mayores Santa Maria del Jesus no ano da graça de 1525? - Sim. Passei quatro anos ali. Pena que fui obrigado a sair. Aprendi muito ali.
- Algumas divagações vindas do norte?
- Divagações, Eminência? Será que as ciências teológicas, os elementos e as leis da natureza, a filosofia...
- Descreveram-no como um mui fiel admirador de Erasmo?
- Não menos fiel que a metade da cidade que sabe ler, Eminência! - A metade da cidade não é amiga de doña Francesca Hernandez - sorri novamente o inquisidor.
Gabriel marca uma hesitação. Seu olhar desliza até o escrivão e sua voz carece de firmeza quando ele responde:
- Vossa Eminência sabe que fui três vezes á casa de Doña Francesca.
- E o que importa o número! E o que fazia nessa casa?
- Conversávamos.
- Sozinhos - Jamais.
- Sobre o que eram essas... conversas? - Sobre as coisas do espírito.
- E da religião, suponho?
- Como Vossa Eminência não ignora, as coisas do espírito às vezes são intermediárias das coisas da religião.
- Falavam então da doutrina de Lutero? - Raramente. E para condená-la!
- É verdade que doña Francesca professava de bom grado o abandono carnal ao êxtase sob o pretexto de que o amor de Deus é no homem como uma força de alegria?
- Às vezes, sim. Como uma via de recolhimento, pois...
- Ela não considera que o amor de Deus basta para afastar de si o pecado e que não é preciso ter medo de Deus nem do Inferno?
- Se Vossa Senhoria me permite, isso é infinitamente mais complexo! Doña Francesca acha que...
- O senhor ouviu-a afirmar, sim ou não, que não era preciso temer a Deus?
- Só para dizer que era preciso amar com alegria e segurança.
- A ponto de poder cometer o pecado da carne freqüentemente, e até em público, sob o pretexto de que aí estaria um caminho, como o senhor diz, de "recolhimento"?
O rosto do inquisidor é duro e frio como uma máscara de metal. Gabriel se retesa, perde o sorriso irônico.
- Não entendo o sentido dessa pergunta, Eminência.
- Ah sim?
Enquanto o escrivão relaxa os dedos doloridos, o falso sorriso corta o rosto redondo do inquisidor. Ele estende a mão para o secretário, que faz que sim com a cabeça, puxa um bilhete dos papéis empilhados à sua frente, coloca-o na mão do inquisidor:
- Achamos isso numa obra que lhe pertence. O Enchiridion, de Erasmo, para ser preciso...
- Traduzido pelos cônegos de Palencia, e aprovado pelo Santo Padre, como Vossa Eminência não ignora.
- Não é o livro que me preocupa, don Gabriel, mas este bilhete. De próprio punho de doña Francesca...
Gabriel sente as pernas fraquejarem e um vazio no coração antes mesmo que o inquisidor continue.
O senhor não me queira mal se eu ler só um trecho... "Meu terno amigo, como é possível que com você eu me sinta capaz de alcançar o gozo no coração de Deus? E com a confiança mais absoluta? Poderá alguém arder até a medula com um fogo tão divino? Sabe que, a noite passada inteira, depois de nosso breve encontro, sonhei que para mim você era o salvador. Você é, terno amigo, como uma constelação fixa no cristal dos céus, marcado com o selo do felino, da fera, do leão talvez... ou do gato! Mas sei que o animal em você continua calmo, seu ronronar me é caro... "Abster-nos-emos do resto.
O inquisidor pousa o bilhete. Seus olhos cintilam de ódio e de concupiscência quando ele pergunta:
- Esses comentários felinos se seguem a conversas... teológicas? - Trata-se de um sinal de nascença que tenho atrás do ombro, Vossa Senhoria. Parece um gato grande e Doña Francesca...
- Como ela descobriu esse sinal? O senhor então ficou nu diante dela? - Não! - exclama Gabriel rubro. - Falamos sobre isso uma vez em que...
- No bilhete, doña Francesca repete claramente "doce instante de solidão". No entanto, o senhor acaba de afirmar que nunca ficou a sós com ela. Em quem acreditar, don Gabriel?
O arranhar da pluma do escrivão cessa. Gabriel enfrenta os três pares de olhos que investigam o seu próprio olhar. O silêncio é duro como as cadeias que prendem seus calcanhares. O inquisidor coça as bochechas redondas. Sua voz de repente é amável.
- Don Gabriel, seja racional, por favor. Basta nos dizer a verdade! Sabemos que doña Francesca arrastou-o para a blasfêmia muitas vezes. Sabemos que o senhor não é o único e que manteve com ela conversas favoráveis doutrina de Lutero. Sabemos que ela cometeu atos com o senhor que..
Gabriel interrompe com um gesto.
- Eminência!
Ele se levanta, respira fundo:
- Faça o que quiser comigo. Agora eu me calarei. - Acredita?
- Se não conseguir me calar, eu morrerei.
- Há coisa pior que a morte, senhor.
O olhar de Gabriel continua fixo no inquisidor, que acaba franzindo as pálpebras e fazendo um pequeno sinal para os aguazis:
- Nos veremos de novo amanhã, don Gabriel. Com ou sem os instrumentos, à sua escolha...
Sevilha, fevereiro de 1529.
Naquela noite, durante mais de uma hora, os nervos à flor da pele, uma náusea na garganta, Gabriel anda de um lado para o outro no cárcere estreito. Quatro paredes de pedra encardida, tendo como únicas aberturas uma porta de madeira e uma fenda de ventilação onde os ratos se esgueiram. Uma lâmpada de sebo pende em cima de uma tina fétida que serve de latrina. Há enxergas amontoadas ao longo das paredes.
Após ter compartilhado esse antro sórdido com dois mercadores de tecido de Cádiz, depois com um padeiro, há dois meses, ele tem como companheiro um monge estranho de nome Bartolomé.
Embora ainda muito jovem, ele é calvo. Na medida em que se pode vê-lo na eterna penumbra da prisão, seu olhar é tão pálido como uma bruma matinal, ora cinza, ora azul.
O dedo médio e o indicador de sua mão direita são curiosamente colados um ao outro pelo que parece ser um acidente de nascença. Uma mesma carne os une e os recobre como se formassem, num surpreendente gesto de bênção, um dedo só.
É um homem de poucas palavras. Jamais se queixa, ou confessa seu medo. Muitas vezes já vieram buscá-lo para interrogatórios, e, uma noite, os guardas tiveram de levá-lo até sua enxerga. Ele gemeu durante a noite mas, de manhã, não respondeu a nenhuma das perguntas de Gabriel. Ele nem sabe por que foi preso. No entanto, parece ser menos um desejo de dissimulação que o confina ao silêncio do que uma estranha sabedoria.
A menos que este monge seja um ótimo ator e um dos espiões que a Santa Inquisição espalha por suas masmorras para recolher as indiscrições dos prisioneiros. Do momento em que se desce embaixo da terra, tudo é possível!
No entanto, é com uma voz áspera que frei Bartolomé ordena de repente:
- Pare de ficar andando, don Gabriel! Deite-se e acalme-se. O senhor se esgota inutilmente.
Gabriel estremece e obedece. Encolhe-se em sua enxerga e fica imóvel um instante. Depois, adivinhando o olhar claro de frei Bartolomé sempre pousado nele, murmura:
- Estou com medo! Amanhã eles vão me dar os instrumentos. Não posso fazer nada, estou com medo.
O monge balança a cabeça e fica calado. Gabriel lhe é grato por isso. Palavras de consolo só lhe excitariam a raiva e a vergonha.
Por todos os santos, por que ele não destruiu o bilhete de doña Francesca? No próprio dia que o recebeu, adivinhou toda a sua imprudência!
De repente, apesar de sua desconfiança, a vontade de falar lhe devasta o peito. O que importa se o monge foi colocado junto dele por seus carrascos! Ele precisa falar. Dizer a verdade agora, como se pudesse livrar-se dela e esquecê-la! Esquecer o suficiente para ter coragem de se calar, amanhã, quando os ferros dilacerarem seus membros...
- Frei Bartolomé, ouça-me! Eles estão completamente enganados. Imaginam o que não aconteceu. Eram só palavras, entende? Amor, êxtase, divina paixão, liberdade, suavidade, gozo, possessão... Palavras! Só palavras... Mas eles nunca acreditarão em mim.
- Nunca, com efeito.
- Eu poderia no entanto explicar a eles que...
- Não explique nada - diz surdamente o monge tratando-o pela primeira vez com mais intimidade. - Não diga nada! Urre de dor se quiser, mas fique calado.
Gabriel estremece. Ouve os seus próprios dentes batendo. Endireita-se e senta-se para melhor se controlar.
- Ela, sei que já torturaram. Ela teve que confessar sabe Deus o quê... Negação do papa, apostasia, heresias luteranas! Que nos entregamos a bacanais... - Não. Ela não disse nada, senão eles não precisariam de você. - Acha? Eles querem me ouvir dizer que éramos amantes... Que bobagem! - Vocês não eram?
- Palavras, estou lhe dizendo.
- Infelizmente, meu amigo! As palavras lhes bastam amplamente... Um silêncio percorrido por um ruído de fricção indistinto acompanha um instante os terríveis pensamentos que os atravessam.
- Amanhã - prossegue Gabriel -, quando esmagarem meus polegares, quando queimarem meus pés, furarem minhas mãos...
- Não se esqueça do esquartejamento e do piche nas feridas!
Um brilho no olho do monge faz Gabriel sorrir. Por uma fração de segundo ele esquece o terror que o sufoca. Frei Bartolomé lhe devolve o sorriso e pousa a mão fria em seu pulso molhado de suor:
- Não deixe sua imaginação correr, don Gabriel. Sempre haverá tempo para temer os instrumentos amanhã.
- Você conhece isso, não é? - Conheço.
- E...?
A mão de frei Bartolomé larga o pulso de Gabriel. Seu olhar vai se perder nas paredes da masmorra enquanto as veias de seu pescoço se dilatam. Maquinalmente, ele massageia os dedos doentes.
- Você não pode saber nada sobre você enquanto eles não vêm com os ferros ou o fogo - murmura ele afinal. - Sim, o conhecimento que lhe chega então é fulgurante!
- Você falou?
Bartolomé não se mexe. Um sorriso distante ilumina seu rosto juvenil e tão sábio. Ele levanta os dois dedos juntos para Gabriel.
- Guarde silêncio, meu irmão. E agora, descanse.
Ele sonha e a porta de sua cela transforma-se em persiana. Não é nem liberdade nem luz que passa o umbral da masmorra, mas sim uma horda pegajosa de serpentes. Um verdadeiro rio de répteis, que o engole, envolve sua garganta, puxa seus pés!...
Ele desperta aos urros. já não está sonhando e os guardas que tiram os ferros de seus tornozelos são bem reais.
- Ei! Você precisa acordar! - rosna um aguazil de cabeça descoberta. Gabriel olha seus ferros caírem e pergunta ingenuamente:
- Está na hora?
- Parece. Ande, levante! - Aonde está me levando? - Não sabe?
No escuro, o olhar intenso de Bartolomé fixa-o. Mas nem um nem outro tem tempo de fazer um gesto, ou dizer uma palavra. Ele é empurrado na escada, depois nos corredores, e em alguns minutos, sem entender, vê-se no guichê da prisão. Ali, os aguazis de guarda ignoram-no como se ele não existisse! Um guarda escuro destranca as fechaduras, a portinhola de ferro se abre e, do outro lado, na praça, a aurora é pálida.
E a situação, ridícula! Tornam a empurrá-lo. Ele tropeça na soleira, machuca um dedo do pé numa pedra do calçamento. Vira-se a tempo de ver a porta se fechar atrás dele. Ei-lo sozinho do lado de fora, na praça del Rosário. As pernas e os pulsos livres. O céu vasto e puro no alto!
Ele murmura: - Quer dizer?...
Não acredita. Não quer nem pronunciar a palavra! Agora também desconfia das palavras!
Mas um cão passa trotando e mija tranqüilamente na porta da prisão. Depois, o animal atravessa a praça até a Cuesta del Rosario. Acompanhando-o com o olhar, Gabriel ali vê uma carruagem atrelada a uma parelha. Um coche negro e prateado, todo luzidio, tendo na porta um escudo que ele logo reconhece.
Ele fica boquiaberto.
A sege do marquês de Talavera... A sege de seu pai!
A porta se entreabre. Uma mão enluvada acena em sua direção. No banco do cocheiro, um lacaio o observa.
Confuso, Gabriel atravessa a praça. Lentamente, o frio do calçamento enregela seus pés descalços. Quando ele chega suficientemente perto do coche, uma voz bem conhecida ordena:
- Então suba, bugre idiota! Quer que a cidade inteira admire o estado em que você se encontra?
Ele obedece, como sempre fez. Mal se senta, a viatura se põe em marcha. O luxo da carruagem e o suntuoso gibão de Segóvia de seu pai de repente fazem-no tomar consciência de seu estado. Seus calções, antes pretos, estão cinzentos de tão empoeirados e sua camisa aparece através de um enorme rasgo em sua casaca. Suas meias são um buraco só até os joelhos e há muito suas botas foram confiscadas pelos guardas da prisão com a desculpa de que os ferros arranhariam o couro.
O marquês seguiu o mesmo pensamento. Ele desvia os olhinhos negros com um esgar de desgosto enquanto aponta com o dedo enluvado para um pacote no assento:
- Nossa, como você fede!... Aí há roupas limpas. Vai vesti-las daqui a pouco... Ah! Que fedor!
Gabriel esboça uma reverência divertida: - Estou desolado, senhor.
- Com toda a razão! Sua liberação me custou três mil e duzentos ducados! O rendimento anual das minhas terras de Almeria. Tudo isso por suas elucubrações com essa desavergonhada!
- Senhor, eu...
Num solavanco, o chapéu balança, mas as mãos do marquês estalam com firmeza.
- Não, não! Nem uma palavra! Não quero ouvir nem uma palavra sua! Está acabado. Até agora só tomei conta do senhor pela honra do meu nome, paguei o colégio pela honra do meu nome. E desde o início o senhor não parou de arrastar esse nome junto aos loucos e os heréticos! Santo Deus! O marquês de Talavera suspeito de apostasia porque seu bastardo arrasta os colhões junto aos luteranos!... Três mil e duzentos ducados! Genuflexões, súplicas, promessas humilhantes, dois meses de angústia e de idas e vindas na penumbra para tirar meu nome do Santo Oficio, eis o que o senhor me custou! Mas isso acabou e acabou bem. Prometi à Sua Excelência o Inquisidor Geral que o senhor iria desaparecer. Apago-o de minha existência com a mesma simplicidade com que nela o fiz entrar...
O marquês tira do bolso do gibão uma carta com um lacre vermelho que estende à frente como um rato morto.
- Eis os papéis de um emprego que lhe espera em Nápoles com os frades dominicanos. Uma derradeira bondade cristã me impele a lhe oferecer um futuro! Anote bem que, daqui para a frente, o senhor está terminante mente proibido de dizer que me conhece! Um advogado riscou a sua existência de todos os meus registros...
- Repudiado, não é? - resmunga Gabriel. - Como uma puta que se rejeita...
Ele está ofegante, a voz esganiçada de fúria. Grita para que freiem os cavalos e, quando a carruagem pára, pega a carta ainda na mão do pai. Rasga-a e joga os pedaços nos assentos ao mesmo tempo em que atira as palavras como pedras:
- O senhor jamais me conheceu senão como um constrangimento!... Sem nunca ter tido qualquer coisa sua, eu nada quero do senhor. Rejeitado pelo senhor, eu o rejeito. Desprezado, eu o desprezo e o odeio. Que eu não use mais o seu nome? Com o maior prazer: um dia, o senhor ouvirá o meu.
A boca do marquês abre e fecha como a de um peixe fora d'água. Gabriel salta do coche e bate a porta. Segurando as rédeas, o cocheiro hesita. Uma bengalada ecoa no vidro. A viatura se põe em marcha, a porta torna a ser aberta e a trouxa de roupas cai na rua.
Gabriel zomba mas está gelado como um cadáver. Seu coração palpita. Quando o barulho da carruagem se afasta, ele tenta engolir o choro. Dá três passos para se apoiar numa parede, mas os soluços secos explodem aos borbotões em sua garganta.
Ele começa a tremer todo, e as pernas lhe faltam. Cai de joelhos, como um homem morrendo, indiferente ao olhar dos passantes matinais.
Tumebamba, fevereiro de 1529.
- E o puma lhe falou?
Os olhos de Manco brilham de incredulidade e de excitação. - Mais devagar, Manco...
Em voz baixa, Paullu chama o irmão à ordem. Tudo dorme na cancha Anamaya franze os olhos azuis.
- Não vi a fisionomia de quem me falava, Manco. Homem ou puma eu não poderia lhe dizer. Mas a voz era a de seu pai Huayna Capac. Reconheci logo, embora ele tenha falado comigo com mais firmeza do que no dia em que me deu a mão...
- Meu pai a tocou?
- Ele estava velho e doente... Pediu que eu olhasse para ele. - E você olhou?
A estupefação de Manco é tão grande, sua expressão tão cheia de inocência que Anamaya sorri. Manco é pouco mais velho que ela, mas ela é mais, madura, de coração como de espírito, tantas experiências já viveu...
- Sim, olhei para o Inca - murmura ela, divertida -, e não morri Ou então estou morta e voltei para este mundo aqui!
- Mas o Corpo seco? Onde estava?
- Não sei. No templo, talvez. Sinto muito, não sei mais nada...
- Há mistérios que é melhor não procurar desvendar - suspira Paullu - E o que importa - prossegue Anamaya com um sorriso -, o essencial não é que seu pai encontre novamente seu trono no templo e permaneça junto todos os filhos e a todos os Anciãos? Não é esta a única ordem do mundo?
Manco aprova com um gesto de cabeça, mas os dois rapazes ficam um bom tempo pensativos, como se procurassem adivinhar tudo o que tal prodígio poderia significar. Depois, com uma voz suave, Paullu anuncia:
- Partimos amanhã.
- Tão cedo? Mas por quê?
- Depois do que houve - diz Manco -, os homens do nosso clã decidiram apressar a partida para encontrar nosso irmão Huascar, lá em Cuzco... - Seu irmão Huascar me parece um homem apressadíssimo. Sobretudo apressadíssimo para se tornar o Único Senhor!
Paullu esboça um sorriso, mas Manco não demonstra ironia. Ele toca a pele dourada do braço de Anamaya com a gentileza de um irmão.
- Quando ele souber do seu poder - diz baixinho -, vai querê-la junto dele. Fará guerra só por causa disso...
- Por mim? Que loucura!
- Não. Você circula entre os Mundos, nosso pai lhe fala, aconselha-a... É um poder imenso que Atahualpa possui tendo você perto dele... Huascar não suportará isso.
- Sim - acrescenta Paullu em tom sombrio. - Se preciso for, vai preferir vê-la virar pó a vê-la longe dele!
- Villa Oma já me disse isso - concorda Anamaya preocupada. A queda de uma pedra no pátio os assusta.
- Alguém que está nos escutando! - murmura Paullu.
Por um instante, os três olham fixo para a noite escura e vazia que reina lá fora. Depois Manco dá de ombros e põe mais lenha no fogo do braseiro. - Não deveriam nos ver juntos - murmura Anamaya - Agora, tudo passa a ser suspeito! Talvez seja Guaypar!
- Esqueça esse aí! - resmunga Manco, os olhos ardentes como as labaredas que sobem. - Faça ele o que fizer, Paullu e eu haveremos de protegê-la dele.
- Não foi você que prometeu ser sempre nossa amiga? - pergunta Paullu afetuosamente.
- Sim... Sou amiga de vocês.
A voz de Anamaya é apenas audível, tamanha é a emoção que lhe aperta o peito.
- Mas vocês sabem que não somos do mesmo clã. Se agora forem vistos comigo, os homens de Cuzco vão acusá-los de traição.
- Pois bem - retruca Manco pegando-lhe a mão para apertá-la junto ao coração -, diremos assim mesmo que você é nossa amiga, pois é a pessoa a quem nosso pai Huayna Capac se confiou!
Com os olhos distantes mergulhados nos de Anamaya, ele hesita um instante antes de acrescentar:
E porque você é linda e nós a amamos... - Olhem! - exclama Paullu.
As labaredas do braseiro cresceram de repente, ultrapassando as bordas do pote que contém as brasas. Em cima do muro de adobe coberto de cal ocre, agitam-se sombras estranhas, longas e vivas. E de repente, Anamaya compreende para que Paullu está apontando. A sombra assume a forma de um pássaro. O pássaro parece dançar. Vê-se nitidamente seu pescoço comprido, seu bico e sua cabeça, e suas asas curvas e pontudas. Um condor! Sim, a sombra minúscula de um condor que estaria voando muito alto no céu, perto de Mama Quilla!
Vele sobre nós, condor - murmura Anamaya abrindo os braços para ele. - Proteja-nos e que seu vôo não termine.
- Senhor Atahualpa!
O tecido do anaco de Inti Palla é da mais fina lã e deixa adivinhar a curva ampla e firme de seu busto. A excitação brilha em suas pupilas escuras quando ela se adianta, cabeça baixa, sob a porta do quarto do Inca.
Atahualpa faz um sinal ao criado, que quer repeli-la. O yanacona faz uma mesura e desaparece de costas no pátio onde canta um chafariz.
O aposento é decorado com mais opulência que um templo: faixas de ouro e prata, tapeçaria de plumas azul, púrpura e amarelo-vivo, tapetes de cem padrões... Em nichos estreitos e em trapézio, revestidos de folhas, alternam-se estatuetas também de ouro representando homens, mulheres ou lhamas. Outras são em cerâmica, pintadas de cores finas e mostrando guerreiros em combate, empunhando a maça. Pendurada na parede da esquerda, há uma túnica cerimonial rebordada de plaquinhas de ouro, e, em cima de um tamborete, há um keros em forma de cabeça de puma, o focinho fino e a boca aberta, cheio de chicha. Na luz bruxuleante das tochas, as presas de ouro faíscam ferozmente, como se o vaso de madeira pintada pudesse ganhar vida e morder.
Deitado entre duas jovens numa esteira de alpaca, o torso coberto apenas por um unku branco e preto quadriculado, Atahualpa se ergue sobre um cotovelo. Na simplicidade de sua atitude, a cabeça descoberta, a fronte cingi da apenas com a faixa, a força e a nobreza de seus traços são fulgurantes. Mal se nota o lóbulo rasgado de sua orelha, sem o brinco de ouro.
Embora não devesse fazê-lo, Inti Palla não consegue evitar examinar seu rosto alguns segundos antes de abaixar a cabeça. Ela não sabe o que a atrai mais, o esplendor do local ou apenas encontrar-se debaixo dos olhos desse homem, tão lindo, com uma boca tão perfeita... Estar em seus olhos e em seu desejo.
- O que você quer, Inti Palla? - pergunta ele com voz cansada. - Lhe falar, Poderoso Senhor.
- No meio da noite, enquanto eu estava descansando? Estou cansado! Os dias são tão longos quanto pesados para mim. Se estiver me incomodando por nada, vai ser chicoteada, menina orgulhosa.
O sorriso de Inti Palla é ambíguo:
- Só me orgulho de agradá-lo, Poderoso Senhor. E quero lhe provar isso sem esperar a aurora...
Sua voz rouca e o movimento excessivo de suas ancas quando ela se prosterna não enganam. Atahualpa adivinha tudo o que ela quer fazê-lo adivinhar.
Com a mão direita, ele afaga o rosto de uma das moças deitadas perto dele. Seus dedos deslizam sobre um ombro nu e acariciam um seio de menina. Ele sorri e ordena:
- Voltem para as Mães e deixem-me com a concubina. Imediatamente as meninas deixam o leito. Ouvem-se alguns murmúrios quando as criadas se precipitam para cobri-las. Quando volta a calma, Atahualpa senta-se de frente para Inti Palla:
- Aproxime-se, mulher.
Com uma timidez fingida, Inti Palla se ajoelha e aproxima-se para tocá-lo. Mais uma vez, ela abaixa a cabeça até a esteira, pega a mão esquerda de Atahualpa e beija o anel sol em seu anular. Está toda perfumada com cantuta e tem as faces untadas com creme de gardênia, o que a empalidece. Encenação ou verdade, sua respiração está curta, precipitada. Há nela uma avidez que lembra a ferocidade do keros de cabeça de puma.
Agilmente, ele desamarra o cinto que segura o amplo cumbi de Inti Palla. O tecido ocre escorrega. Ela está nua, a cabeça baixa.
Mas como Atahualpa continua imóvel, contentando-se em admirar seu corpo sedoso e perfeito, ela se endireita, vai pegar o keros com ambas as mãos, e estende-o ao seu Senhor.
Depois que ele bebeu uma boa talagada, ela se esgueira na esteira e abraça-o, os dedos passados entre as presas de ouro do puma.
- Você certamente tem razão - suspira Atahualpa esvaziando a jarra de chicha -, isso não podia esperar a aurora.
Inti Palla enfia a mão por baixo do unku quadriculado e afaga o torso glabro de Atahualpa.
- Senhor, estou aqui para o seu prazer... Mas sobretudo para que saiba! - Que eu saiba? O quê?
- Que ela o trai.
Pesadas pelo efeito do álcool, as pálpebras de Atahualpa se franzem e seu olhar fica parado, sem expressão.
- E quem ousa me trair segundo você?
- A menina dos olhos azuis. Eu a flagrei com Manco e Paullu, os filhotes do seu irmão Huascar. Ouvi o que eles falavam... Ela vai contar a Huascar e aos homens de Cuzco o que o único Senhor lhe disse na noite de sua passagem para o Outro Mundo!
Por um breve instante, Atahualpa fica sem reação. Recua o peito só para evitar os dedos de Inti Palla. Depois, com um safanão, joga o keros de encontro ao tamborete. A jarra de madeira se parte com um estalo surdo. As presas de ouro do puma quebram e se espalham pelo chão. Mas foi para o rosto de Atahualpa que agora passaram a fúria e a ferocidade:
- Então é por isso que você estava com tanta pressa de me ver esta noite?
Instintivamente, Inti Palla recuou, cobrindo o busto e se curvando: - Sou-lhe inteiramente devotada, Senhor! Estou dizendo a verdade. Com extrema doçura, Atahualpa segura o rosto fino da concubina e levanta-o. Examina os lábios sensuais, as faces macias, os longos cílios. Com a ponta do polegar, acaricia as pálpebras fechadas:
- Você vai me ajudar, Inti Palla - murmura. - Tudo o que Atahualpa desejar...
- Se mais uma vez se meter com a vontade sagrada de meu pai Huayna Capac, você vai para o Mundo de Baixo antes que meu luto a leve para lá. Está me entendendo?
O sangue foge do rosto de Inti Palla. Um tremor incontrolável toma conta dela. Ela tenta se desvencilhar das mãos fortes do Inca. A pressão doce de Atahualpa fica brutal.
- Senhor, eu só queria servi-lo!
- Você só tem uma maneira de me servir, mulher. Uma só. Os olhos de Inti Palla estão arregalados de pavor.
Atahualpa a larga. Sua mão desliza pelo corpo nu, deslumbrante, da concubina. Ele a levanta com energia e as garras de seu anel sol deixam um fino arranhão no mamilo escuro e rijo. Uma gotícula de sangue ali aflora. Calada, Inti Palla contém uma queixa, sem ousar o menor movimento enquanto Atahualpa se curva e lambe o ferimento.
O silêncio da noite agora enche a cancha toda, discretamente perturbado pela música da água das fontes. Só a luz dançante das tochas corta ligeiramente a escuridão.
Eles não falam mais. Só se ouve o ruído de sua respiração ofegante, às vezes um grito, um gemido.
Atahualpa goza, poderoso, feliz e livre. Não vê as lágrimas escorrendo no rosto de Inti Palla enquanto ela sorri durante seu prazer.
São lágrimas de ódio.
Sevilha, fevereiro de 1529
A estalagem chama-se "Ao Pichel Livre". O proprietário, homenzarrão mal-humorado transformado em filósofo pela proximidade da prisão, não se espanta quando Gabriel lhe pergunta se pode dispor de uma cama e de uma tina de água quente para se lavar e se trocar. Contenta-se em responder:
- São três maravedis.
E como Gabriel concorde com um gesto de cabeça, ele acrescenta: - Pagos adiantado.
Do que lhe resta do calção, Gabriel tira um saquinho lisíssimo. Dali extrai a única moeda, um tristíssimo real, e conta com cuidado os trinta e um maravedis que o estalajadeiro lhe devolve.
Menos de uma hora depois, é um homem novo que aparece na sala da estalagem. As roupas não são nada luxuosas, mas são limpas e do seu tamanho. E pretas, das meias ao gibão, fora a camisa. Só lhe resta encontrar um barbeiro para arrematar seu renascimento. Depois será hora de pensar no enigma de seu futuro.
No momento em que vai sair, é envolvido pelo aroma de sopa de toucinho. Uma fome imensa se abate sobre ele.
Sem uma palavra inútil, o estalajadeiro lhe indica uma mesa no escuro. Gabriel se deixa cair num tamborete e murmura o seu pedido:
- Um prato de gacha, um pichel de vinho de Cádiz e um pedaço de pão com azeitonas.
- São mais quatro maravedis... - ... pagos adiantado, eu sei.
Em menos tempo do que o necessário para dizer isso, o prato é limpo, o pão, devorado, e o copo, esvaziado. A sopa lhe parece maravilhosa, o pão uma obra-prima, e o vinho, um elixir. Se sua cabeça torna a girar, é por um motivo melhor! Desde quando ele não faz uma refeição digna deste nome? Uma doce embriaguez o invade. Ele pede outro pichel.
Enquanto bebe com melancolia o resto do vinho e os maravedis voam como moscas na mão do estalajadeiro, de repente, parece-lhe que a liberdade não esconde tantos encantos.
- Perdoe-nos, Vossa Graça, mas podemos exercer nossa curiosidade? O homem que falou é imenso. Seus ombros são do tamanho dos de um carregador. Mas seu rosto é uma delicadeza só, com a barba limpa e cuidada. Um nariz fino e adunco lhe dá um ar astuto não desmentido pelo brilho malicioso dos olhos. Ele tem a testa sulcada de rugas e a pele curtida de sol. Ao seu lado, ligeiramente mais baixo, está um homem de pele negra. Tem os traços sedutores, com as maçãs salientes e bem delineadas realçando um olhar inteligente, volúvel, seguro, mas sem arrogância. Tem lábios finos, queixo glabro, uma grande argola de ouro na orelha direita, como os marinheiros costumam usar. Um negro como pouco se vê na Espanha, pensa Gabriel.
- Senhores? - responde ele afinal, atento ao que se passa em volta, o queixo erguido.
O colosso branco amplia o sorriso e inclina a cabeça com uma polidez insistente. Puxa um tamborete e senta-se sem mais cerimônia.
- Vossa Graça... Estávamos ali no canto quando chegou há pouco, imundo e esfarrapado. E eis que Vossa Graça aparece novamente limpa como um tostão novo! Pronta a engolir essa sopa rançosa, devorar esse pão de três dias e beber esse vinho horrível como se isso fosse um banquete de Rei. Ei, eu disse a meu compadre Sebastian, sinto cheiro de estada na prisão!
O homem dá uma piscadela, dirige um sorriso ao Negro sempre de pé e acrescenta mais baixo:
- E não é uma estada curta! Sem querer chocá-lo, muito pelo contrário... Gabriel fica alguns segundos sem voz. Levanta-se, ergue uma mão num gesto pretensamente ameaçador; mas, no mesmo instante, um terrível cansaço se abate sobre ele, e ele não consegue evitar cair novamente sentado no tamborete, rindo.
- Não foi uma estada curta, com efeito! Mas prefiro pensar em outra coisa, se não se incomodam. Posso saber a quem tenho a honra?
Antes de responder, com um gesto vigoroso, o colosso chama o estalajadeiro e pede mais um pichel.
- Meu nome é Pedro de Candia, mas meus amigos só me chamam de "Grego". E esse é Sebastian de Ia Cruz, um pouco escravo por causa da cor da pele e muito meu companheiro de aventuras.
O Negro enfatiza essa apresentação com um olhar irônico e fala:
- Criado, Vossa Graça!
Gabriel não contém um pequeno movimento de humor.
- De onde os senhores tiraram essa mania de me chamar de Vossa Graça? O Grego olha de esguelha para Sebastian. Seu espanto é sério.
- Não é que se trata de um caballero? Gabriel estoura numa gargalhada.
Há dez anos que não se usa mais isso!
Ele os examina sorrindo: ambos estão vestidos com calções, camisas e casacas que também não são de ontem. Os tecidos estão desbotados pelo uso e pelas lavagens.
- É que chegamos das índias. No mês passado. - Ah?
- Onde descobrimos um país novo - intervém o negro Sebastian. - Entendi murmura Gabriel, de repente mais curioso do que desejava. O Grego aponta para a porta ensolarada da prisão, do outro lado da pracinha, e acrescenta:
- Nosso Capitão, don Francisco Pizarro, que nos levou até o fim do mundo durante mais de dez anos, está preso ali por uma história muito antiga e vulgar de dívida. Ele foi preso traiçoeiramente pelos aguazis quando nossa nave encostou no cais. Uma vergonha! Mas está mofando na prisão há três semanas, coitado. Estamos aqui esperando por ele.
Uma sombra de desolação vela os olhos dos conquistadores. Gabriel não pode evitar sentir uma certa simpatia.
- Meu nome é Gabriel Montelu... Não. De agora em diante, é simplesmente Gabriel. Chamem-me de don Gabriel, e está bem. Mas vocês só se enganaram em parte. Eu estava mesmo numa masmorra hoje de manhã, mas não essa...
- Qual? - pergunta o Grego. Gabriel olha sorrindo para ele.
- Se me falarem das índias... - diz ele jovial.
O Grego e Sebastian são inesgotáveis.
- O senhor precisa imaginar isso, don Gabriel! A imensidão do mar à nossa frente, a areia ardente embaixo dos nossos pés, a floresta cerrada como um muro de madeira por trás, selvagens trepados nas árvores com flechas envenenadas no alto. E a gente torrando ao sol!
- Muito tempo?
- Meses, don Gabriel! Meses. Chegamos até a comer aranhas. Uma espécie meio gorda, com carne na barriga. Só que era preciso arrancar o ferrão, senão a gente começava a inchar... E também as patas da frente, por causa dos pêlos. Elas se agarravam na garganta e faziam a gente vomitar as tripas! Mas no começo, havia os ovos dos formigueiros... Não era ruim. Ou minhocas bem gordas, marrons e lustrosas. A gente encontrava dessas minhocas nas árvores mortas. Muito comestíveis fritas...
- Mas e os animais de vocês? - pergunta Gabriel, a quem o vinho e os horrores descritos deixam nauseado. - Vocês podiam comer os animais de vocês como se faz às vezes na guerra...
Os dois conquistadores riem às gargalhadas.
- Comidos há muito tempo! Depois de quatro semanas na praia, os cães enlouqueceram de fome. Foram os primeiros que grelhamos. Tínhamos dois cavalos: ficaram no osso. Uma fome terrível, terrível, eu lhe digo. Um dia, um de nós tirou o cinturão e botou para cozinhar. Nossas botas, a gente comeu! E contente!
Com sua voz doce, o negro Sebastian acrescenta:
- Havia lagartos... Não eram ruins. Mas difíceis de pegar. E depois, a mordida deles matava em algumas horas. Alguns escolhiam: morrer de fome ou morrer dos lagartos...
- Doce Jesus!
O Grego agarra o punho de Gabriel.
- Mas o Capitão sempre acreditou que a gente acharia a terra do ouro, mesmo nos piores momentos! Mesmo naquela praia maldita onde quase morremos... Eu já contei, hein, Sebastian?
O Negro faz que sim sorrindo, enquanto Candia se levanta lentamente, afastando o tamborete. Os olhos semicerrados, o gigante mede Gabriel dos pés à cabeça com a nobreza de um caballero.
- Era preciso ouvir o Capitão, todo empertigado e seco, os olhos negros, se dirigindo a cada um dos homens prestes a se revoltar. "Tenham paciência! Paciência, amigos, paciência, companheiros! Ruíz há de voltar. Ele há de ter encontrado a terra do ouro com que vocês sonham à noite, o mar há de se ter aberto diante dele e nossa Santíssima Virgem há de lhe ter indicado a direção certa. Confiem em mim! Já vi coisas piores em minha longa vida. Quando é preciso lutar, a gente luta. Quando é preciso esperar, a gente espera. Olhem para mim: fui o primeiro a atravessar a floresta infestada de selvagens e feras monstruosas para encontrar o mar Pacífico. Fui o primeiro a atravessar o Pacífico para chegar a esse Peru todo coberto de ouro que a Virgem Santíssima me promete toda noite! Paciência, hombres! Eu lhes digo: eles vão voltar. E vão ter encontrado! E se vocês não souberem o que fazer de suas barrigas vazias e seus colhões inúteis, rezem! A oração é um combate!...”
O silêncio parece congelar a sala enquanto o Grego torna a sentar-se. Gabriel sente os pêlos do braço se eriçarem como se de medo. A emoção enrijece seus membros e esvazia seus pulmões. Com uma voz contida, ele pergunta: - E esse Ruiz voltou?
Pedro faz que sim olhando para o fundo de seu copo.
- Três semanas depois, sim. Trouxe a nave do sul com tanta facilidade como se navegasse num lago. Um ótimo piloto!
- E ele encontrou?
- Sim. Encontrou - diz o Grego com um sorriso. - Exatamente como don Francisco tinha dito balançando a cabeça com respeito.
- Esse Piru?
- Piru ou Peru, como quiser, don Gabriel. - E coberto de ouro?
- Todo coberto! De ouro, ouro! E de índios como não se vêem em lugar nenhum, com roupas maravilhosas, animais estranhos, legumes estranhos... - O senhor viu com os próprios olhos?
- Claro! Pergunte a Sebastian! - Eu vi. Posso jurar.
- Então o que estão fazendo aqui?
- Don Francisco veio se encontrar com o Rei para que ele o nomeasse Governador. Como foi feito com o Capitão Cortez!
- Mas era preciso ele sair da prisão para ter o encontro - diz Sebastian irônico.
- Não é hora de caçoar - resmunga o Grego.
Outra vez, cai o silêncio. Afastando o copo de vinho, Gabriel se ouve perguntar:
- E se o Capitão don Francisco virar Governador, ele vai voltar para as índias...
- Ora! O mais rápido possível.
- Para fazer a conquista desse Peru? - Exatamente.
- Então ele vai precisar de homens de boa vontade! O sorriso do Grego parece um fogo.
- Ei, parece que nosso novo amigo don Gabriel gostaria de conhecer a região, Sebastian...
Mas o Negro dá um grito e aponta na direção da prisão. - Pedro! Lá está ele! Olhe...
Os três se levantaram ao mesmo tempo. E ali adiante, ao sol, um homem incrivelmente magro, vestido com um gibão cinza e grená surradíssimo, calções verdes desbotados, dá três passos defronte à porta da prisão que torna a se fechar. Um chapéu de pluma de ganso lhe cobre a comprida cabeleira grisalha. Mas, na sombra da aba larga, Gabriel, trêmulo de emoção, julga ver brilhar um olhar como jamais viu outro.
O descobridor do Peru dá mais um passo, ajusta o cinturão da espada. Ninguém diria jamais que ele acaba de passar três semanas numa masmorra escura. Ele parece capaz de esperar mais cem anos para que venham se curvar diante dele.
E de repente, não é mais a voz de Pedro o Grego que ecoa em seu peito, mas a própria voz do Capitão don Francisco Pizarro. Parece-lhe que naquele exato momento, numa praia imensa e nua, carecendo de tudo, tremendo de febre e de fome, mas desafiando o desconhecido a cada dia que Deus dá, esse homem, fortalecido por uma vontade indômita, palavra por palavra, acaba de incutir em seu coração a loucura de seus sonhos.
Tumebamba, fevereiro de 1529.
Embora seja tardíssimo, aqui e ali há tochas acesas em algumas canchas. No ar parado da noite, ouve-se o barulho dos preparativos. Amanhã, a procissão que acompanha o Corpo seco de Huayna Capac partirá de Tumebamba rumo a Cuzco e tudo deve estar pronto.
Anamaya desaparece da cancha sem ser vista.
Quando quer, ela é assim, serpente a esgueirar-se na noite, cor de pó no pó, viva como a água.
É como se tivesse soado um chamado para ela, no meio da noite. Um chamado que não passou por nenhuma palavra, nenhum sinal visível, nada de palpável. No entanto, de repente, ela sabe: tem que ir ao templo. Tem que passar aquela noite ao lado do Irmão-Duplo.
Agora, ela sabe que precisa ficar atenta. O que a separa da presença do único Senhor Huayna Capac é apenas o seu próprio medo. Ele pode se dirigir a ela de muitas maneiras: pelo movimento de uma sombra ou pelo guincho de um pássaro. Ela não deve ter medo de ir ao encontro dos olhos do puma, não deve se assustar com suas presas...
Na colina de leste, erguem-se os degraus altos do templo, iluminados pelo luar.
Ela atravessa a esplanada caminhando com segurança. Os yanaconas que guardam a entrada a reconhecem quando ela entra na claridade de suas tochas e a deixam passar. Melhor: curvam-se e recuam com respeito.
Ela não é a Coya Camaquen? Os Poderosos do Império, os Legatários, o grande Atahualpa e Villa Oma o Sábio não escutam avidamente suas palavras? Na sala dos nove nichos, está a múmia de Huayna Capac. Um raio prateado da Mãe Lua ilumina o ouro de sua máscara e lhe dá uma expressão tranqüila. No braseiro, ali perto, ardem ervas de perfume estranho, úmido como lama e tão acre que irrita as narinas.
Anamaya se agacha diante do soberano defunto. Inclina a cabeça, cheia de medo e de respeito como no dia em que, ainda menina, foi levada à presença dele.
Por um bom tempo, nada acontece.
Depois, vibra uma onda. Um sopro de ar frio escapa da máscara de ouro e vem bater na testa de Anamaya. O colar de plumas colocado nos ombros do corpo seco estremece. Anamaya segue a ordem dada sem que uma palavra seja dita. Ela ergue lentamente a cabeça e pousa a mão no grosso unku que cobre o único Senhor adormecido por toda a eternidade.
Embaixo do tecido mais macio que pele de criança, ela sente o calor. Levanta mais ainda o rosto. O luar brilha em seus cabelos, branqueia suas mãos e empalidece seu olhar.
Ela fecha os olhos. Não e o sono, não e a vigília. Não é a imobilidade, não é o movimento. Não é o agora, não é o antes nem o depois.
Ela sente um cheiro de selva molhada, um cheiro antigo de felicidade. 0 céu baixo e pesado traz nuvens embaixo das quais ela correu e riu até perder o fôlego.
Há uma voz e um rosto. Ele é bonito e doce, cheio de amor. Ele está longe, tão longe!
Seu coração pára de bater: ela ouve sua mãe chamando!
- Anamaya!
É só um murmúrio em seu ouvido.
- Anamaya!
É a voz cantante de sua mãe, e o mundo não é mais feito de floresta mas fica azul e líquido como um lago. Sua mãe está ali, em toda parte, imensa como o mundo, acolhedora. Tudo é seu ventre, tudo é seu peito. Seu riso vibra como o vento que sustenta os pássaros, seus ombros são arredondados como as montanhas. Seus lábios cantam o amor e as boas- vindas. Suas mãos e seus braços têm a doçura da felicidade. Eles se fecham sobre ela, dedos invisíveis e tão ternos acariciam sua fronte, apertam sua nuca.
Lágrimas que ela não sente escorrem no rosto de Anamaya.
- Não chore - diz a voz. - Estou com você...
Pouco a pouco, ela se acalma. Contínua sentindo o calor e a mão em seus cabelos. Na carícia, passam todos os anos roubados do amor. A carícia leva seus medos e suas lembranças terríveis.
Depois, como um vento repele uma doçura protetora, tudo se apaga. Ela abre os olhos, vê sua mão pousada no unku do Inca.
O halo que vinha envolvendo Mama Quilla nessas últimas noites desapareceu. A luz dela clareia o céu todo. De repente, está tão violenta, que parece acesa por seu encontro - que, no entanto, nunca poderia ocorrer - com o sol.
É então que seu esposo o Irmão-Duplo atrai seu olhar. Seu corpo fica tão refulgente que ela se ofuscou. Levanta as mãos para se proteger. Mas, nesse simples gesto, o extraordinário acontece.
O chão escapa sob suas sandálias. Ela quer se segurar, mas nada a retém. Ela grita e não ouve a própria voz.
Ela voa na noite.
Vê o templo brilhando lá embaixo e se vê a si mesma, ajoelhada junto ao Inca.
Vê a cidade adormecida, os homens descansando. Vê o Senhor Atahualpa, sozinho em sua esteira com mantas de plumas. De repente, ele se levanta. Fica andando de um lado para o outro, como um homem em guerra, como um puma enjaulado.
As constelações estão tão perto que sua mão poderia encostar nelas. O turbilhão de Colca passa por ela, Amaro a Serpente corre embaixo de seus pés. Seus cabelos voam em Chacana, o Senhor do Cinto. Ela mergulha os braços no rio infinito da Via Láctea, o duplo celeste do Rio sagrado!
E afinal ela entende. Ele precisa dela.
Do outro lado do Mundo, o décimo primeiro único Senhor precisa dela.
Então, no horizonte do sudeste, surge uma bola de fogo igual a uma estrela nova. Enorme, deixando na escuridão um rastro mais vasto que montanhas, rasga a noite e vem reto para cima dela.
Mas ao se aproximar, a luz se contrai num globo de fogo incrivelmente concentrado. Quanto mais se reduz, mais insuportável é seu brilho! De repente, muda de rumo, mergulha em direção à terra, como se um vento o derrubasse.
Com a violência de uma pedra de funda, bate na testa de Atahualpa. E se apaga. O Poderoso Senhor cai. Cai sem se levantar. Anamaya urra. Uma mão pousa em seu ombro e a sacode.
- O que está acontecendo, menina? - pergunta aflito o Sábio Villa Oma.
Ela treme.
Olha para o que a cerca sem acreditar, a sala dos nove nichos, o Corpo seco de Huayna Capac, o Irmão- Duplo.
O Sábio de boca verde perscruta seus olhos, faz- lhe perguntas. - Agora não - repete ela apenas -, agora não...
Ela não pode contar. Nada do que se passou pode tornar-se palavra. Ninguém pode compreender, nem mesmo o Sábio.
Ele lhe segura o braço, ajuda-a a levantar-se. Devagar, os dois deixam o Templo.
Durante todo o percurso até a cancha, o coração de Anamaya bate, transtornado. Em seus olhos, volta como um fantasma a imagem do único Senhor caindo sem parar.
Depois, a imagem se apaga e nuvens pesadas toldam seu espírito. As emoções se afastam dela e ela fica com uma insuperável sensação de solidão.
Tumebamba, março de 1529.
- Uma bola de fogo? Uma bola de fogo do tamanho de uma estrela? Colla Topac, o velho Legatário, repete as frases de Anamaya como se não conseguisse acreditar nela.
Villa Oma já havia pedido sua ajuda e suas palavras quando o Corpo seco do único Senhor desapareceu, pois é ele quem vai levar a múmia a Cuzco, quem detém a Lei, até que um Filho do Sol seja reconhecido por todos.
Na luz mortiça de uma lamparina a óleo, ele parece tão velho que é difícil acreditar que esteja vivo. Suas costas são redondas como uma pedra, seu rosto, magro e sulcado de rugas como o de uma múmia. Mas seus olhos têm uma intensidade extraordinária, como se fossem a única coisa viva em seu rosto.
Por um instante, ele perscruta o olhar azul de Anamaya à luz das tochas. Depois, com uma agilidade inesperada, vira as costas e se volta para Villa Oma:
- Tem certeza que Atahualpa está bem de saúde? Villa Oma faz que sim:
- Eu me certifiquei disso, Legatário. Agora, precisamente, ele está dormindo com as concubinas. Parece que fez honra a duas antes de adormecer. - Então o que acha do que a Coya Camaquen disse? Bom sinal ou mau sinal?
- Não sei, Legatário! E é exatamente por isso que eu gostaria que você ouvisse esse relato. Repare que a bola de fogo vem do sudeste. Da direção de Cuzco.
- Mas também do lago de todos os nascimentos - corta o Legatário. - Do Titicaca!
- Então - aprova Villa Oma - isso pode significar duas coisas. O fogo de Illapa Raio destruirá em breve o Senhor Atahualpa. Ou o fogo de Inti o escolherá como sucessor de Huayna Capac!
Essas palavras são tão carregadas de significado que os dois homens se calam para dar ao silêncio tempo para apagá-las. Finalmente, o Legatário segura o braço de Anamaya e o aperta suavemente. Na brasa de seu olhar, Anamaya adivinha tanto atenção quanto ternura:
- Coya Camaquen, você é mocíssima e eu sou velhíssimo. Mas tanto você quanto eu sabemos a importância do que você viu, não é? Impressionada demais para responder, Anamaya apenas balança a cabeça. - Eu lhe pergunto outra vez: a bola de fogo chegou até o coração de Atahualpa?
- Não, Poderoso Senhor. Ela se apagou na testa dele. - E...?
- Não sei - balbucia Anamaya. - Fiquei com medo. - Medo?
- Achei que o Senhor Atahualpa fosse morrer. - E não acha mais?
Anamaya está assustada com as palavras que poderia dizer. Abaixa a cabeça, boca fechada.
- Ela vê, Legatário - intervém Villa Oma. - Mas ainda é uma criança. Não pode entender o que vê. Não importa, nós temos que tomar uma decisão. E sou eu que lhe faço a pergunta com todo o devido respeito. Se o sinal é nefasto, devemos interromper o caminho do Corpo seco de Huayna Capac? Ele deve permanecer aqui?...
- Certamente não! - exclama o velho. - A Lei manda que o Corpo seco volte a Cuzco. Ninguém pode infringir a Lei e velarei para que isso não aconteça. Do contrário, a ira de nosso Pai Sol cairá sobre nós!
- Talvez ela já esteja nos atingindo, Legatário! - insiste Villa Oma. - Talvez isso signifique que Cuzco nas mãos de Huascar o Louco é como uma bola de fogo prestes a nos exterminar! Talvez seja isso o que a Coya Camaquen viu: Quilla nos avisa e quer nos salvar de uma viagem sem volta.
- Talvez seja isso ou o contrário! - protesta com voz firme o Legatário. - Mas só existe uma Lei, Sábio Villa Oma, e você a conhece. Eu iria a Cuzco com o Corpo seco de nosso único Senhor, mesmo se tivessem que me apedrejar. E você vai me acompanhar, você e a Coya Camaquen, pois o dever de vocês é esse.
O Sábio passa a mão cansada no rosto encovado pelo cansaço. Seus dedos tremem.
Anamaya sabe em que ele está pensando. Vinte vezes nos últimos dias, na esperança que Atahualpa recebesse um sinal claro de seu pai Huayna Capac, os adivinhos se reuniram para decifrar sua vontade nas brasas da coca, na contagem das estrelas ou nas vísceras dos lhamas!
E, todas as vezes, o que eles decifram não fala de outra coisa senão da agitação iminente do Império das Quatro Direções. E, todas as vezes, nada indica aquele que será o próximo Filho do Sol.
- Prometa uma coisa, Legatário - pede de repente Villa Oma falando tão baixo que é preciso fazer esforço para escutá-lo.
- Diga.
- Atahualpa não vai acompanhar o Corpo seco a Cuzco. Ele não deve se encontrar cara a cara com Huascar, senão, você sabe, como eu, haverá guerra. Ele se despedirá do pai aqui, em Tumebamba. E, sobretudo, não vai saber de nada que a Coya Camaquen viu. Para que lhe inspirar medo quando os homens de Cuzco já estão fazendo isso? Nós vamos lhe pedir apenas que ele fique no Norte para manter a ordem do Império...
O velho Legatário balança a cabeça com cansaço enquanto Villa Oma pousa aquela mão descarnada no ombro de Anamaya e acrescenta:
- E você, Coya Camaquen, não vai dizer nada a ninguém...
Anamaya não tem tempo de procurar o sono.
Antes dos primeiros alvores da aurora, como se habitado por um pressentimento, Atahualpa mandou chamá-la a seu pátio. Ele a convida a compartilhar de seu pão e das frutas da floresta quente trazidas diariamente para ele.
Esforçando-se ao máximo para esquecer o medo que a atormenta, ela se prosterna diante dele sorrindo.
Na verdade, seu coração está dividido entre o alívio de ver o Poderoso Atahualpa vivo e forte como sempre, e a lembrança lancinante e incompreensível da bola de fogo.
Quando terminam de tomar uma taça de suco de alfarrobeira, Atahualpa pergunta:
- Meu pai não lhe falou?
Anamaya sente o frio da mentira na base da espinha.
- Não, Poderoso Senhor - responde com um fio de voz.
Atahualpa contempla-a um instante, lança um olhar para o céu que empalidece, e suspira.
- O Legatário não quer que eu acompanhe vocês até Cuzco. Suponho que tenha razão. Os oráculos são confusos demais e os clãs de Cuzco, loucos demais. Vou sentir sua falta, menina Anamaya. Gosto que você esteja perto de mim.
Emocionada com o tom de Atahualpa, Anamaya abaixa mais a cabeça para que ele não veja o seu olhar brilhante.
- O silêncio das montanhas é grande e bonito - prossegue Atahualpa suavemente. - O silêncio de meu pai Huayna Capac é pesado, o silêncio de Inti é terrível.
- Ele logo vai falar, Senhor - atreve-se Anamaya. - Acha mesmo, Coya Camaquen?
A voz de Atahualpa de repente está tão esperançosa que Anamaya morde os lábios para conter as palavras. Atahualpa dá uma risadinha rouca, tão rara que ela levanta a cabeça. Seus olhares se encontram. O de Atahualpa está cheio de ansiedade, mas também de afeição. Isso lhe dá uma expressão estranha, menos forte, menos pesada, talvez um tanto envelhecida.
Anamaya contrai os lábios mas não consegue conter as lágrimas que saltam de seus olhos. O sorriso de Atahualpa se amplia. Na palidez do primeiro dia, o branco de seus olhos está menos vermelho, mas o cansaço das noites inchou suas pálpebras.
- Não - diz ele baixinho. - Não, você não tem certeza.
Estende a mão e os dedos pousam no ombro de Anamaya. Tateando, como se receasse não tocar numa carne de verdade e quente, ele acaricia seu rosto.
- Mas fico feliz que me diga isso para me dar prazer. Está certo.
Ele retira a mão, olha as pontas dos dedos como se eles conservassem um vestígio da carícia. E de repente, aponta para o leste cada vez mais claro e exclama:
- Vejo chegar o tempo das guerras, vejo Inti manchado de sangue! Eu queria quebrar o silêncio antes que ele vire sangue. Não quero ser aquele que trouxe a confusão para o Império das Quatro Direções... Não quero ser aquele que joga os clãs uns contra os outros! Mas não posso permanecer no silêncio de meu pai.
Anamaya só tem o tempo de sentir a violência das palavras. O vulto alto e magro de Villa Oma aparece à porta em forma de trapézio e diz:
- Está na hora, Senhor! É preciso que vá para o lugar sagrado. Eles o esperam.
Atahualpa deixa seu olhar pesar um instante em Anamaya.
- Vamos - diz ele levantando-se enquanto ela se prosterna. - Acompanhe-me até o Corpo seco de meu pai.
Na esplanada, na claridade ofuscante do sol, os sacerdotes e as virgens cantam e dançam diante dos Senhores.
No alto da escadaria do ushnu, envolvida numa túnica bordada em duzentos padrões azul-claros e amarelo-vivos lembrando suas vitórias, a múmia de Huayna Capac está sentada numa liteira de ouro. O Irmão-Duplo espera um pouco atrás, também numa liteira. Ambos contemplam, com seus olhos do Outro Mundo, as lágrimas de despedida que banham os olhos dos dançarinos. Os criados, os artesãos, os camponeses e os pastores que moram nas cabanas de junco nas colinas comprimem-se em volta da praça. Cada um quer poder se curvar diante do Corpo seco do único Senhor quando ele começar a longa viagem até Cuzco, sua cidade natal e a cidade natal de todos os seus ancestrais.
No meio do ushnu, Atahualpa permanece impassível. Sua majestade não vem de sua coroa de plumas, do peitoral de milhares de contas vermelhas e azuis em seu peito, nem dos discos de ouro em suas orelhas. Está em sua testa, cingida com a simples faixa dos Senhores, e em seus lábios de vincos firmes. Anamaya ainda sente o som da voz dele, quando ele protestava contra o silêncio, vibrar em seu coração.
Mas ali, agora, diante de todos os Poderosos Senhores presentes, ele recuperou a segurança. Há nele uma força que nem sequer toca nos outros. E quando, de repente, ele ergue os braços para o céu, soam as trompas na praça. Os cânticos se espaçam, a melodia das flautas se cala. O rufar dos tambores é abafado pelos passos dos dançarinos subitamente imóveis.
Faz-se silêncio, o grande silêncio de Atahualpa na esplanada sagrada e logo em toda a cidade de Tumebamba.
O povo prende o fôlego.
Então, a voz do jovem filho do Norte do único Senhor Huayna Capac vibra no ar cristalino dos Andes:
- Eu não queria lhes falar de minha tristeza, mas a tristeza é maior do que eu. O Único Senhor está ali nos vendo e ele está ao lado de Inti, seu Pai. Eu sou seu filho sem pai, estou no silêncio. Vocês estão no silêncio...
"Chegou a hora de ele partir para sua morada eterna, em Cuzco, onde Manco Capac e Mama Occlo, nossos ancestrais primeiros, fincaram sua enxada de ouro na terra fértil oferecida por Viracocha...
"O Único Senhor chegou ao Norte e conquistou o Norte. Com a força de Inti, ele ampliou tanto a terra oferecida por Viracocha que o Império das Quatro Direções agora é vasto como o céu. É tão grande que agora pode quebrar como uma tigela de barro.
"O único Senhor chegou ao Norte e gerou filhos no Norte, com a vontade de Inti e o ventre das mulheres do Norte. O Único Senhor meu pai Huayna Capac fez crescerem filhos em todas as direções do Império, como crescem o milho e a quinoa.
"O Único Senhor não quis a divisão mas sim a paz entre todos os seus filhos. Ele não escolheu entre os de Cuzco e os de Quito, pois desejou que a paz fosse um tapete de vícunha do sul ao norte...
"Mas meu irmão Huascar, sem esperar os oráculos, colocou a Fita real na própria testa. Ele quer que eu me prosterne diante dele. Quer que o Norte se prosterne diante dele...”
Atahualpa cala-se de repente. Todos os rostos estão voltados para ele. Todos os rostos aguardam suas palavras. Só as moscas continuam voando. E Atahualpa diz:
- É a Lei. Todos devem prosternar-se diante do único Senhor. Se Huascar é nosso único Senhor, quando Inti nosso Pai me ordenar, irei prosternar-me diante dele. Mas por ora, minha tristeza é grande demais. Não posso deixar essas terras onde nasci, onde meu pai reinou e onde quero viver e morrer...
Os nobres e os pobres abaixam a cabeça. Sua dor e sua aflição não se manifestam em lágrimas correndo. Os rostos estão impassíveis.
Atahualpa vira-se para o Legatário. Um sinal, e todos os sacerdotes levantam os braços para o sol, olhos fechados, depois os abaixam virados para a liteira da múmia. As trompas soam. Os carregadores levantam a liteira e começam a descer a escada do ushnu.
Fascinada pelo esplendor do momento, Anamaya não se mexe. Villa Oma pega-a pelo braço e murmura:
- Vá para junto do Irmão-Duplo, menina Anamaya? Vá para junto daquele que você nunca deve deixar e cuja sabedoria dorme em você.
Na hora precisa do zênite, o longo cortejo finalmente deixa Tumebamba. À frente, duas dezenas de servos correm de um lado para o outro, munidos de vassouras de penas de arara para limpar as lajes do caminho.
Os músicos vão atrás deles, logo à frente da liteira. A explosão estridente das trombetas alterna-se com os chamados graves dos búzios e o lamento das flautas. À frente e atrás da múmia vão cem mulheres, carregando as jarras de gargalo fino de chicha e cestos de milho, de frutas, de carne, de tecidos, de jóias, todos os alimentos e todas as roupas que não podem faltar ao Corpo seco do único Senhor.
Em seguida, vem a liteira do Irmão-Duplo. Na leve brisa, seu teto de plumas coloridas se agita tanto que ela não parece carregada por homens mas sim por pássaros. Seu interior é de uma riqueza inaudita. Anamaya está senta da diante da estátua de ouro, num tapete feito só de plumas curtas, douradas, verdes e vermelhas, arrancadas da barriga dos pássaros da região quente. Atrás, enfim, vêm as liteiras dos Poderosos Senhores, depois os Senhores que vão a pé e ainda centenas de servos. E de cada lado do cortejo, uma ala dupla de guardas armados de fundas e machados de bronze forma uma parede móvel que avança no mesmo passo da imensa procissão.
A única irregularidade nessa impecável harmonia é o Anão: ele corre em volta da liteira do Corpo seco, fazendo esvoaçar sua eterna túnica vermelha, conferindo a cada instante a regularidade do passo dos carregadores, a limpeza meticulosa do caminho, censurando quem levantar poeira. Anamaya observa-o furtivamente, com ternura. Com alguns pulos, ele está ao lado dela e imita uma espécie de dança grotesca.
- Então, Princesa, você não confia na minha proteção? - Não é você que precisa da minha, de agora em diante?
- Claro. Você sabe que eles querem me dar de presente aos homens de Cuzco?
Anamaya surpreende uma expressão de terror no fundo de seus olhos. - Estou com medo, Princesa, não sinto tanto medo desde que o Ultimo Senhor me achou debaixo daquele monte de mantas...
Ela olha para ele sem nada poder responder, enquanto sua dança desajeitada, debaixo de risadas e gracejos.
Quando chegam aos últimos terrenos fechados da cidade, ela ouve nome. Ao debruçar-se na lateral da liteira, vê Inti Palla do outro lado cordão da escolta.
- Anamaya! Deixe que eu vá!
Anamaya faz um sinal ao oficial mais próximo e o cortejo tem de avançar mais um pouco antes que Inti Palla possa chegar até a liteira do Irmão Duplo.
Ao primeiro olhar, Anamaya vê suas pálpebras vermelhas por causa do pranto, suas faces encovadas por causa de uma péssima noite.
- Está doente? - pergunta aflita.
- Não - ri Inti Pala andando rápido. - Não, só estou triste porque minha amiga vai embora. Talvez nunca mais nos vejamos...
- Quem sabe? Você irá a Cuzco...
- Atahualpa nunca vai querer ir a Cuzco! - resmunga Inti Palla com uma expressão irada. - Eu sei. Ele não irá nunca.
Com um repentino brilho gelado no olhar, ela acrescenta:
- Que pena você não ter conseguido convencê-lo de que foi escolhido pelo pai! E os dois irmãos de Cuzco. Você os deixou ganhar no dia do huarachiku e agora vai encontrá-los!
- Inti Palla!... - protesta Anamaya.
Mas a concubina pega sua mão e diz precipitadamente:
- Não, não, eu não lhe quero mal. Eu é que estava errada, eu sei! Há certas coisas que você não pode fazer... Eu sei...
Em seu tom, como em sua expressão, há algo que desmente suas palavras. Mas Anamaya não quer se deter nisso:
- Vou pensar em você - diz. - Não vou esquecê-la, Inti Palla.
Inti Palla sorri. As lágrimas lhe toldam novamente os olhos sem que se saiba bem o que significam. Ela afaga o braço de Anamaya, roda a pulseira das serpentes de ouro:
- Não esqueça que fui eu quem lhe deu esta pulseira, Anamaya. Eu, a sua irmã. E faça com que Atahualpa se torne o único Senhor!
Caminho de Toledo, março de 1529.
Desde cedo, como em todas as manhãs anteriores, eles marcham num calor espantoso para a estação.
Don Francisco vai à frente, seguido por Pedro o Grego e, mais atrás, por Gabriel e Sebastian emparelhados.
Atrás deles, o cortejo é dos mais estranhos. Dois lhamas, dos seis que atravessaram o Atlântico, vão saracoteando nas pontas das correias amarradas à sela do Negro Sebastian. Eles mascam o nada como se fosse comida, e, arregalando os olhos grandes de corça, parecem contemplar o campo de Castela com um espanto virginal.
Mais atrás, dez alabardeiros do Rei cercam despreocupadamente três carroças desconjuntadas, quase transbordando de objetos inauditos.
No banco de uma carreta, como ícones preciosos, dois índios do país do ouro, vestidos com túnicas coloridas, exercitam-se no castelhano com os almocreves. Muitas palavras lhes escapam, mas a coisa diverte enormemente os espanhóis que não conseguem evitar introduzir alguns horrores no que estão ensinando.
Desde um quarto de légua, com o canto do olho, Sebastian vigia o semblante contraído de Gabriel. Finalmente, pergunta com uma ponta de ironia: - Don Gabriel, me diga, todos os espanhóis da Espanha são tão orgulhosos quanto o senhor?
Gabriel fuzila-o com o olhar.
- Todos os escravos negros das índias são tão impertinentes quanto você?
- Olá, Vossa Graça! - diz Sebastian às gargalhadas, revirando os olhos fingindo-se de apavorado. - Sei quem eu sou... Negro e escravo, não esqueço nunca. Mas nem por isso deixo de ser um dos que descobriram o reino de ouro do Peru!...
- Aonde você quer chegar?
- À cara crispada que o senhor faz toda vez que o Capitão o chama de "aprendiz"!
Gabriel dá de ombros com despeito.
- Há muito tempo que sou bacharel e não aprendiz! Esse marmanjo iletrado certamente não sabe a diferença entre uma coisa e outra! Mas eu queria sobretudo saber de uma vez por todas se ele vai me contratar para acompanhá-lo quando ele partir outra vez para as índias... Há quinze dias eu lhe disse que colocava minha pena, meu saber e minha vida a serviço dele! Ele nem se deu ao trabalho de me responder. Para ele, eu não sou mais que um seixo dessa estrada!
- Quem lhe dá de comer desde Sevilha? Quem pagou sua cama em Elcija, Córdoba, Morena e cada uma das etapas desde que partimos? Quem olha enviesado para o senhor três vezes por dia? Quem lhe pediu para ler uma carta do irmão Hernando quando o Grego poderia muito bem ter-se desincumbido dessa tarefa de confiança?
Gabriel olha para o Negro com uma prudência onde a esperança começa a despertar.
- Está falando sério? - Não se pode mais...
- Mas pelo sangue de Cristo! Por que ele não me diz simplesmente que me contrata para acompanhá-lo na conquista do Peru?
- Porque simplesmente, don Gabriel, enquanto o Rei Carlos não o tiver designado oficialmente para essa empreitada, o Capitão Pizarro não é absolutamente nada. No momento, ele só pode oferecer sonho. E sonho, don Gabriel, é uma mercadoria que ele já vendeu muito. E que lhe trouxe muitos aborrecimentos...
Por um instante, Gabriel cavalga em silêncio na poeira levantada pela caravana e reflete sobre as palavras de Sebastian. É obrigado a convir que são sábias. Há dias, ele vive num sonho que o Capitão Pizarro nem precisou lhe vender. Deixar a Espanha, atravessar os oceanos e colocar a imensidão entre ele e as violências humilhantes da Santa Inquisição. E para sempre longe desse pai que nunca foi seu pai!
Lá, naquele pais desconhecido, ele poderia ser outro homem.
Sim, lá ele encontrará a glória e seu nome terá repercussão. E depois voltará para vingar-se de todos os que o humilharam!
- Diga a verdade - pergunta ele de repente a Sebastian. - Acha que don Francisco convencerá o Rei a nomeá-lo Governador?
O rosto fino e simpático do Negro abre-se com um sorriso largo:
- Até hoje, eu não vi nada, homem, bicho nem mesmo oceano que esteja à altura de resistir ao Capitão. Imite a paciência dele, don Gabriel!
São quase cinco horas quando Pedro o Grego puxa as rédeas de seu meio-sangue. Como um menino maravilhado, ele aponta para o panorama suntuoso que acaba de aparecer na saída de um bosque de pinheiros e cedros. - Toledo? - pergunta ele, os olhos arregalados de surpresa.
Gabriel ri e balança a cabeça.
Enroscada num meandro do Tejo, dominando a água verde, a cidade se ergue sobre seu promontório como se quisesse se plantar no céu. Na atmosfera ardente da tarde, as casas formam uma construção de tijolos única encimada pela massa enorme e soberba do Alcazar.
Toledo. A cidade Rainha do mundo!
No primeiro olhar, mesmo a duas léguas, a cidade diz tudo do poder do grande Imperador Carlos Quinto que amplia o universo ao sabor de sua vontade. Gabriel queria caçoar da estupefação do Grego, mas não tem tempo de abrir a boca. Don Francisco Pizarro puxa as rédeas de sua montaria que dá uma volta violenta. O olhar férreo do velho conquistador solta chispas de fúria. As palavras assobiam entre seus lábios cobertos de barba:
- Então, Grego! Com tudo o que você viu do outro lado do oceano, com tudo o que agüentou ao meu lado, a visão de uma cidade de tijolos ainda o surpreende?
- Me perdoe, don Francisco! É que...
Pizarro corta-o com um gesto da mão espalmada.
- Não gaste a sua saliva! De agora em diante, e em qualquer circunstância, nada mais o espanta, nada mais o deixa admirado! Entendido, Pedro? Você é aquele que viu uma cidade de paredes cobertas de ouro! De ouro! Ousaria esquecer?
Ele gira em direção à cidade vermelha reverberando na luz incandescente de Castela e, com uma voz surda, acrescenta:
- Nós é que vamos fazer esses Grandes de Toledo sonharem!
O olhar duro de don Francisco pula de um homem ao outro. Gabriel, a contragosto, enrubesce.
- Nós é que trazemos o ouro e o poder de que o grande Imperador Carlos precisa! - troveja don Francisco. - Nós somos o espanto e o espetáculo! E daqui a pouco, quando passarmos as portas da cidade, nós é que seremos aclamados! E vocês não se surpreenderão...
A barbicha grisalha do velho conquistador treme de orgulho, seu cavalo escorrega, pateia de lado. Ele o acalma esporeando-o de leve.
O indicador de don Francisco torna a apontar para o Grego, depois passa para o peito do Negro Sebastian:
- Vocês dois, nas próximas semanas, não esqueçam nunca isso! Vocês agüentaram mil mortes e estão vivos. O que fizeram, ninguém fez. O que viram, ninguém viu. Vocês andaram nas ruas de Tumbez, a fortaleza de paredes revestidas de ouro. Enfrentaram animais treinados pelos índios! Por minha vontade, descobriram o reino mais rico das índias! E estamos aqui para receber o que nos é devido: a honra de conquistar isso! Eu vou sair dessa cidade de tijolos como Governador do Peru e do reino de Tumbez... Pela Santíssima com o Menino, digam-me um pouco o que há aqui, nessa região, que possa surpreendê-los.
Ninguém responde. O cricrilar dos grilos e das cigarras de repente parece ensurdecedor.
Pela primeira vez desde que partiram de Sevilha, Gabriel julga adivinhar um sorriso nos vincos das faces do Capitão Pizarro.
Don Francisco estava certo. Eles são o espanto e o espetáculo.
Tão logo sua chegada é anunciada, uma multidão de burgueses, artesãos, mulheres, servos, velhos, ricos e pobres, comprime-se à Puerta San Martin, e ainda ao longo das muralhas e da ruela tortuosa que sobe até a magnífica catedral. Os moleques vão correndo na frente da estrada que vem de Piedrabuena e escoltam a caravana aos gritos.
Uma mão na cabeça da sela e outra no punho da espada, don Francisco abre o cortejo, escoltado três passos atrás pelo Grego Candia, tão majestoso e imenso que seu cavalo parece pequeno. Na multidão, os homens tiram carros e chapéus quando eles passam, enquanto eles, a cada dez passos, concedem um gesto de cabeça e um olhar severo à guisa de agradecimento.
Os dois índios, sorridentes e boquiabertos, sem a mínima aflição, antes orgulhosos, agora seguram a correia dos estranhos lhamas. Os moleques saltitam a seu lado, tentando acariciar a lã dos bichos. Ao ver o belo rosto impassível de Martinillo, suas faces largas, sua tez coriácea e ao mesmo tempo cor de oliva, o arco de seus olhos amendoados e sua boca cuidadosamente desenhada, as mulheres tapam a boca aos gritinhos. Uma delas pega o braço da vizinha e murmura: - Olhe! Quase se poderia dizer que são homens!
- Mas aquele ali tem cara de mau! - diz a comadre apontando para o rosto mais fino, mais seco e os olhos volúveis de Felipillo.
Uma pequena tropa de mercenários alemães, acudindo a meia légua da cidade, cerca os carretos. Sob o sol puro da tarde, o ouro do Peru refulge com todo o brilho.
Movido por um impulso, Sebastian pula na carroça e pega uma estátua de ouro representando um homem nu, com o rosto fino e olhos de lápislazúli. Explode um grito de admiração. Depois o Negro ergue uma máscara enorme, em forma de sol vermelho-sangue crivada de tirinhas coloridas. Ele a põe no rosto e examina os basbaques rugindo. O grito de admiração transforma- se em grito de medo, as vozes das mulheres partindo para os agudos. Ele mostra os vasos finamente martelados, as efígies de animais nunca vistos, lhamas de ouro, placas de prata cinzelada, potes, copos, colares de contas, estandartes de plumas costurados com fio de ouro... E todo esse ouro brilha tanto que ofusca.
O cortejo não pára um segundo, embora a multidão vá ficando cada vez maior. Os que viram querem ver mais! O povo segue as viaturas mendigando, esgueira- se entre as montarias, segura as rédeas das mulas até os soldados ameaçarem.
Tomado pela loucura do momento, Gabriel pula por sua vez no segundo carro contendo as cerâmicas. Exibindo-as, como se ele mesmo as tivesse trazido do outro lado do mundo, brande as jarras em forma de rostos humanos, pinta dos e moldados com tanta precisão e detalhes que parece que vão falar... Depois, são as cerâmicas em forma de pássaro, pés, mãos, peixes com ou sem dentes, recipientes duplos, pintados de ouro, de cinabre ou de púrpura, recipientes em forma de lagarto, de mulher, de cabaça, monstro, ou até de cópula...
Toda a beleza de um povo, todo o saber e a ciência de milhares de anos de trabalho artesanal desfilam diante das centenas de olhos estupefatos e dão o testemunho de que um país de verdade, do outro lado do oceano, foi descoberto!
Eles levam mais de uma hora para chegar afinal ao adro da catedral onde essas maravilhas serão batizadas e purificadas de seu espírito pagão. Mas o coração de Gabriel está em fogo, como se sua longa viagem para o maravilhoso Peru já tivesse começado.
Rimac Tambo, abril de 1529
O caminho real é largo e bem calçado, ladeado por dois muros de altura média, de alvenaria bem-feita. Quando não havia mais pedras, os construtores usaram chuços da mesma altura para continuar a obra. Nas subidas, foram traçados largos degraus, onde o cortejo avança com prudência.
Quando vão se aproximando dos tambos, essas cidadelas imponentes onde são conservados para o Inca muitos alimentos, panos, cerâmicas, todas essas riquezas de uma região, começa a movimentação dos mensageiros para preparar a escala.
Em cada cidade, os curacas, os poderosos do local, aproximam-se da liteira onde está sentado o Corpo seco de Huayna Capac. Com humildade, eles curvam as costas, colocam uma pedra pesada nos ombros.
Em toda parte, os sinais de respeito à múmia são imensos.
No entanto, o cansaço dos dias abate Anamaya. Ela já perdeu a conta de quantos se passaram desde a partida de Tumebamba. Cada etapa lhe parece idêntica à anterior. Há luas, ela renunciou a ficar muito tempo na liteira diante da múmia e do Irmão-Duplo. Prefere caminhar no meio das mulheres e dos velhos e se fazer esquecer.
Às vezes, o Sábio Villa Oma deixa o séquito dos Poderosos Anciãos e vem caminhar ao seu lado. Agora, ele a olha com respeito e, às vezes, quase com temor. Mas sua companhia é severa, preocupada. A longa coluna da procissão fervilha diariamente de rumores. Os semblantes são tensos e aflitos... À medida que o Norte fica para trás, aumenta o medo, sem outro motivo senão a chegada a Cuzco.
O único que sabe romper essa atmosfera carregada é o Anão. Às vezes, ele vai à frente do cortejo. Com sua túnica vermelha demasiado comprida, recolhe a poeira da estrada assim como a centena de servos cuja missão e essa e que, incansavelmente, varrem o caminho à frente das liteiras.
Porém, ele vem se esgueirando cada vez mais para junto de Anamaya e caminha com seus passinhos rápidos ao seu lado.
- Princesa, está sonhando?
- É você, Senhor, quem me faz sonhar...
O Anão sorri. Ele conhece a ternura das brincadeiras deles. E sua amizade silenciosa, tão preciosa desde a primeira noite em que se abriram o coração... Nem um nem outro se parece com aqueles que acompanham a liteira do Inca morto. Os olhares que se voltam para eles às vezes são tão carregados de inveja quanto de repulsa. O amanhã, para eles, é cheio de incertezas.
- O que vai acontecer conosco, Princesa? Como saber?
- Eu achava que você era aquela que vê tudo!
- Pode brincar, Senhor! Mas o que eu vejo, você também vê. Os mensageiros indo e vindo, os rumores de massacres nas aldeias do Senhor Atahualpa. E tudo o que dizem sobre as iras de Huascar...
O Anão ri com tristeza.
- É porque ele está impaciente para me ver! Parece que vou ser dado de presente a ele para lhe dar sorte... Mas dizem também que ele odeia tudo o que não seja um inca bem formado, de cabeça pontuda e pernas compridas! - Pense que ele também está me esperando - murmura Anamaya.
Por uma vez, eles não conseguem brincar.
Lado a lado, eles vão beirando o rio revolto que, engrossado pelas chuvas da estação, tem as águas lamacentas e amarelas e ruge como se a própria terra estivesse sofrendo.
À tarde, um caminho bastante íngreme, mas cuidadosamente mantido e cada vez mais largo, os conduz ao planalto de Rimac Tambo. Para o Norte, Anamaya avista uma montanha cujo pico se enquadra exatamente como uma flecha entre as duas vertentes do vale.
Como sempre, o povo da aldeia acorreu ao encontro deles, prosternando-se diante das liteiras enquanto as trompas e as flautas ecoam em todo o vale.
O tamanho do tambo é modesto, mas o muro que sustenta a esplanada sagrada tem uma construção perfeita. As proporções do templo são harmoniosas, suas pedras polidas e encaixadas com grande técnica colhem o último raio de sol antes que ele desapareça atrás das cristas das montanhas.
O curaca é um homem de olhos negros, lacrimosos, que visivelmente bebe mais chicha do que pedem as cerimônias. Com ênfase, manifesta sua submissão diante dos Poderosos Anciãos. Prosterna-se tanto tempo diante dos Legatários que o velho Colla Topac, exausto da viagem, acaba se irritando.
Afinal, após as oferendas da noite, eles são levados a uma das canchas, no meio da ladeira acima da praça sagrada. Os aposentos foram cuidadosamente limpos e mobiliados com belas esteiras, cerâmicas finas, mantas novas recém saídas dos entrepostos.
Mas naquela noite, Anamaya fica muito tempo no pátio. O ronco do rio sobe agora como um sopro tranqüilizador. No crepúsculo, as encostas das montanhas, em volta da cidade, parecem pétalas protetoras. E bem em frente à cancha, abre-se a leste um vale estreito e profundo. Na noite que chega, impregnada ainda de bruma translúcida, ela fica estranhamente pálida. Quando Villa Oma vem ter com ela, aflito com sua ausência, ela pergunta: - Aonde vai dar o vale?
O Sábio franze o cenho, lança-lhe um olhar desconfiado. Anamaya volta-se para ele, espantada com sua hesitação.
- Não sei - ele acaba resmungando.
Seu tom não é suficientemente seguro para esconder a mentira. Anamaya sente a raiva acelerar seu coração.
- Sábio! Você ainda vai custar muito a confiar em mim? Eu já não passei por provas suficientes?
- Eu sei quem você é, menina - sorri Villa Oma constrangido. - Já conheço seu coração. Não é isso...
- Então, por que me mentir? - irrita-se Anamaya. - Esse vale certamente tem um caminho... Um caminho é só um caminho, e por que não... - Moça! - interrompe Villa Oma segurando-lhe o braço. - Você sabe muita coisa, mas também desconhece muita coisa ainda. E há saberes que é melhor não aprender.
Ele falou com tanta doçura que ela ficou desarmada. Queria ainda se alimentar de sua raiva, cultivar a discussão, quase por prazer, mas, de repente, ela se cala. E, ao seu lado, o Sábio também ficou parado.
Ali, à frente deles, no eixo desse vale de mistério que a noite agora conquista por completo, no horizonte negro, entre as primeiras estrelas, surge uma bola de fogo.
Uma bola de fogo amarelo-clara, como um sol da noite, pouco menor que a lua. Atrás dela, há uma longa cauda, como uma cabeleira levantada pelo vento. Mas o mais estranho é que essa bola parece correr mais depressa que um bicho a galope e ao mesmo tempo estar imóvel.
Lentamente, muito lentamente, ergue-se acima das sombras mais opacas das montanhas.
Anamaya estremece tanto que deixa escapar um gemido. Com voz trêmula, murmura:
Sábio Villa Oma! Diga-me o que estamos vendo...
Ele se volta para ela, vê sua boca trêmula, seus olhos claros de medo.
- Foi isso o que você viu na noite da véspera de nossa partida de Tumebamba? - pergunta ele à guisa de resposta. - Foi isso o que a assustou? Anamaya balança a cabeça, braços cruzados no peito, com um aperto tão grande na barriga que se dobra em duas:
- Sim! Sim, era ela... Mas andava depressa! Muito depressa... Villa Oma agarra suas mãos e as aperta entre seus dedos ossudos.
- Largue seu medo, Coya Camaquen - murmura ele. - Deixe seu espírito conduzi-la. Lembre-se de sua viagem na pedra dos ancestrais. Largue o medo...
Ela olha tão intensamente para o cometa que os olhos lhe doem. Mas talvez seja o contato com o Sábio, seu coração se acalma, seu pavor reflui. E, de repente, compreende, e dá um grito.
O cometa e sua cauda têm exatamente a forma da pluma de curiguingue da Faixa real. O que ela viu na testa de Atahualpa não foi a morte, o fogo destruidor. Não! Ela viu, ao contrário, o emblema do único Senhor. O que ela está vendo no céu essa noite é o sinal de Inti brandido para o filho, o Inca Atahualpa!
- O que há? - pergunta o Sábio aflito. - O que está vendo? Anamaya olha para ele. Ela não ousa falar. Abaixa a cabeça e fecha os olhos doloridos.
- O que está vendo? insiste o Sábio. - Nada.
Toledo, abril de 1529.
- Então, naquele dia, o mar era um chão, só tinha uma brisa soprando de leve, mas estava tudo cinza. Não vi quando apareceram no horizonte - explica Sebastian. - Eu estava na despensa do castelo de popa do San Cristobal. Ruiz, o piloto, tinha me posto a ferros porque fui infeliz em alguma coisa que eu disse e eu estava encarregado da sopa...
O Grego emite um grunhido de nojo.
- Sopa! Você já fez sopa? Não devia ter mais nada sobrando além de farinha de grão-de-bico, cabeças de peixe e salmoura de repolho! Pelo que conheço você, você deve ter usado carunchos para engrossar a sopa!
O Negrão só esboça um sorriso e prossegue:
- Fazia três semanas que a gente navegava para o sul sem saber aonde estava indo e sem poder atracar, de tão ruim que era a costa... Cada vez que alguém reclamava, Ruiz respondia: "Estou sentindo! Estou sentindo, eles estão pertinho!”
O sol da manhã penetra fundo no salão de armas da casa colocada à disposição de don Francisco pelo duque de Bejar, um de seus novíssimos e mui fervorosos admiradores. A poeira dança nos raios de luz.
Pingando de suor, de camisa e calções, segurando o punho de uma espada nova em folha, Gabriel bebê as palavras dos companheiros. Camisa aberta em cima do torso atlético, Candia o Grego coça o rosto com a luva. Lembranças deslizam em seu olhar e lhe entristecem o semblante. Mas Sebastian já prosseguiu com seu relato:
- Então, eu estava mexendo a sopa. De repente, ouço o Niceño, o que estava de vigia, começar a gritar: "Vela! Vela! Vela a bombordo à frente! Uma vela, estou dizendo!”
- Ah! - diz o Grego, a voz toda emocionada, pousando a mão no ombro de Gabriel. - Eu daria de bom grado os quatorze dentes que me restam para ter estado lá. Pronto, está vendo, só de imaginar, fico todo arrepiado! - Eram eles então? - murmura Gabriel.
- Por Deus! - continua Sebastian com impaciência. - Numa grande balsa muito bem-feita, parecendo uma mão gigante, com uma vela e um leme. Eram vinte pessoas, homens e mulheres. A maioria pulou n'água quando nos viu! Imagine, don Gabriel: do nível da água onde eles estavam, o San Cristobal devia fazer para eles o efeito de uma montanha de madeira flutuante! - Mas na mesma hora viram que não eram selvagens comuns - insiste o Grego. - Eles usavam essas túnicas que você mostrou outro dia pelas ruas. Parece que ali tinha um... Ah! Nada a ver com nossos intérpretes, hein, o Martinillo e o Felipillo...
- Esse aí estava duro que nem um pau - corta Sebastian irritado. - Eu vi! Quase tão teso como o próprio don Francisco! Olhando para a frente, enrolado numa capa. Depois, com essas espécies de rolhas de ouro que eles enfiam nas orelhas...
Os olhos brilhantes de excitação, morrendo de vontade de acrescentar alguma coisa, o Grego brande em silêncio a manzorra aberta diante de Gabriel. E Sebastian acrescenta:
- Sim, exatamente assim! Os discos de ouro são do tamanho dessa mão! E enfiados no lóbulo das orelhas deles por um tubo também de ouro. O furo por onde passa o tubo é tão grande que dá para enfiar dois dedos meus! Por Deus, não estou mentindo!
Candia continua imóvel, fitando o vazio.
- Não tinha só o ouro das orelhas! - insiste Sebastian. - Quando o San Cristobal chegou pertinho da balsa, Ruiz fez sinais para o índio subir a bordo. Então ele abriu a capa. Virgem Santa! Estava coberto de ouro do queixo até o umbigo! E ainda nos punhos... Não é verdade, Pedro?
- Foi o que disseram, o Ruiz e os outros... - murmura ele. Nervosamente, Gabriel limpa o suor da têmpora e abaixa as pálpebras. Um silêncio se apossa dos três homens, como num mesmo recolhimento. - Um senhor índio - murmura Gabriel.
Os dois outros só balançam a cabeça.
- Um dos que vai ser preciso enfrentar se don Francisco vier a ser mesmo Governador do Peru! - ruge o Grego sacudindo-se.
Com um movimento seco, ele corta o ar quente da sala, fazendo as partículas de poeira rodopiarem.
- Chega! Está na hora de continuar essa aula. De pé e em guarda! Se um dia você quiser continuar inteiro diante desses índios, ô aprendiz, vai precisar segurar a espada de outra maneira! Que diabo, isso não é uma colher de sopa! A sua passagem da terça à sétima é um verdadeiro massacre! Vamos, ao trabalho!
O Grego dá alguns passinhos para trás enquanto Gabriel levanta do banco suspirando.
Coloca-se em posição, os joelhos ligeiramente dobrados, o tronco aprumado. Mas sua mão, prolongada pela espada, é bem menos ágil e firme do que ele gostaria. O Grego gira rapidamente o ferro que ele bate contra o dele com uma brutalidade pouco pedagógica.
- Em terça, posição alta e você anda com a panturrilha esquerda, assim!...
As lâminas tinem. O Grego se afasta e se esquiva à esquerda. Volta, golpeando de través. E a lâmina de Gabriel ricocheteia como um graveto. Levado por seu ímpeto, ele se dobra tanto que, não fosse o copo de proteção, cortaria a mão na espada do Grego.
- Não! Não! - grita Pedro. - A sétima é um passe de linha baixa, para dentro! Parece que você já está com as orelhas tapadas pelo ouro de lá! Levante o braço. Vire o punho para o alto e mergulhe... Assim! Simples como um bom dia, caramba!
Simples não é! Mas Gabriel prossegue com coragem e alguma raiva. Tanto que, durante alguns minutos, a aula de esgrima dá várias reviravoltas. Um sorriso nos lábios, Sebastian vê os dois fazerem suas armas dançarem. Gabriel começa a gostar do jogo e, logo, ofegante e com um olhar duro, mostra mais segurança, seus golpes são certeiros, seus movimentos menos forçados. O Grego entra em seu campo e dele se esquiva com a agilidade de um gato. Seus golpes têm a amplidão da experiência, sua lâmina vibra, sobe impetuosamente. De repente, Gabriel dá um grito.
- Ah, imbecil! - exclama o Grego, o semblante contraído, dando um pulo para trás.
- Não foi nada - resmunga Gabriel levando a mão ao ombro. - Está sangrando - observa Sebastian aproximando- se.
- Por que você se jogou em cima de mim?
- Pensei que estivesse me esquivando - diz Gabriel em tom digno de pena, o rosto pálido. - Mas não foi nada...
- Tire essa camisa e mostre - ordena o Grego. - Nunca se sabe!
No entanto, o que eles vêem no ombro de Gabriel, uma vez despida a camisa, não é só um belo talho, felizmente pouco profundo.
- Ei... O que você tem aí? - pergunta o Grego franzindo o cenho. - Nada de extraordinário: um sinal de nascença! - explica Gabriel limpando o ferimento com a camisa.
Com um movimento sem delicadeza, o Grego o faz girar e lhe chapa aquela pata pesada nas costas.
- Um sinal de nascença talvez... Sebastian! Isso não lhe lembra nada? - Como não: o gatão que quis nos devorar na frente de Tumbez! Gabriel se esquiva de seus comentários cobrindo o ombro com irritação. Mas quando espera mais uma dose de zombaria, depara com olhares pensativos.
- Muito bem, meu amigo - diz o Grego enxugando a testa -, aí está uma coincidência esquisita!
- Do que estão falando?
- De um felino estranho que vagueia lá no Peru - sorri o Grego. - Os intérpretes dizem que os senhores índios dão grande importância a esses bichos.
- Isso é só uma mancha e vocês podem dar a ela a forma e os nomes que quiserem! - irrita-se Gabriel.
O Grego balança a cabeça olhando para ele sem falar mais nada.
Mas, enquanto se deixa tratar, e sem abandonar aquela expressão contraída, Gabriel sente a espera lhe enfunar o coração como uma vela, como uma promessa.
Toledo, abril de 1529.
E noite escura. Uma tempestade de fim de verão ronca ao norte de Toledo.
Afundado numa poltrona, Gabriel dorme profundamente. As folhas cobertas pela letra grande do Grego escorregaram-lhe da mão para se espalharem pelos ladrilhos vermelhos do chão.
Um ranger de dobradiça, como aqueles que ecoam no escuro das prisões, entra em seu pesadelo. Ele acorda sobressaltado. De um pulo, a boca aberta, o peito queimando, ele está de pé.
Olhos arregalados, perscruta sem entender aposento.
Mais um instante, ele se vê naquele pesadelo, estendendo os braços para o inquisidor corpulento, suplicando-lhe que poupe doña Francesca que jaz, desfeita, o vestido rasgado, os ombros nus, a seus pés!...
Mas não, ele está acordado! A seus pés jazem apenas folhas escritas que ele pisa com sapatos de fivelas.
Resmunga contra sua ansiedade e essas alucinações idiotas que assombram seus sonhos. Ajoelha-se para recolher os papéis. É então que ouve um barulho. O sinal bem real de uma presença.
Um corpo entra no foco da luz da vela exatamente quando ele se levanta. Duas pupilas, mais negras que a noite, brilham num rosto liso e violento como uma máscara.
- Ei - exclama ele, espantadíssimo ao reconhecer o índio Felipillo. - O que você está fazendo aqui?
O índio entrou de mansinho como um gato. Um calção remendado deixa livres suas panturrilhas rijas e secas de andarilho e uma espécie de manta marrom lhe cobre os ombros. Sua boca, muito delineada, é de uma nobreza formidável. Ele sorri.
Gabriel esconde a emoção recolhendo negligentemente as folhas. Finalmente, espanando as mangas do gibão, pergunta:
- O que você quer?
Felipillo apaga o sorriso. Com uma voz que não consegue bem adquirir dureza cantante do castelhano, anuncia:
- O senhor Capitão quer ver você. - Agora, no meio da noite?
- O senhor Capitão falou: você vem agora!
O tom é tão peremptório quanto a gramática é confusa. Mas é o olhar do índio, demasiado pesado e impenetrável, que deixa Gabriel vontade.
- E por que ele quer me ver? O índio torna a sorrir:
- Ele não cantou o pensamento dele para o Felipillo. Gabriel não consegue evitar corrigi-lo:
- Não. Você deve dizer: "Don Francisco não me confiou nada...”
O índio balança a cabeça sem responder. Há tamanha indiferença em sua atitude que Gabriel se sente obrigado a acrescentar num tom arrogante: - Você deve aprender a falar castelhano direito, Felipillo. Senão, não vai poder ser um bom intérprete!
Felipillo fica calado. Gabriel dá de ombros, enrola os papéis do Grego e decide guardá-los para a eventualidade de don Francisco querer conhecer seu conteúdo. Depois, abotoa o gibão e encaminha-se para a porta:
- Bom, vamos! - suspira.
O índio só o larga diante dos aposentos de don Francisco. Gabriel bate uma vez e empurra a porta sem esperar. Entra, já pronto para cumprimentar. Mas a cena que o aguarda deixa-o sem fala.
O aposento está iluminado por cinqüenta candelabros. Está mais claro do que se fosse dia. Em frente a uma vasta cama de baldaquim, Francisco Pizarro está ajoelhado, a cabeça inclinada diante de um pequeno quadro da Virgem com o Menino e a Rosa. E, para rezar, ele vestiu seu uniforme de guerra!
À luz das velas, o plastrão de aço, as dragonas, as placas das abas do gibão brilham, salpicadas de ferrugem e deformadas por toda uma recordação de golpes. No chão, perto de seus joelhos, ele colocou o chapéu e a espada de punho finamente incrustado e cujo virote da guarda tem a forma de um trevo.
Petrificado, em meio ao ronco dos trovões cada vez mais próximos, Gabriel ouve a prece que don Francisco murmura com um fervor veemente: - Santa Mãe de Deus, vós nunca me faltastes: sempre pousastes a mão em meu ombro. Conduzistes meus navios nas tempestades e poupastes minha vida em todas as emboscadas. Virgem Santa, eu vos digo, sois a voz que me conduz. E sei que quereis mais de mim. Quereis que vossa força e vossa luz brilhem sobre as paredes de ouro do Peru. Ah! Minha santíssima Santa, sei que haveis de me conduzir até lá! Fazei com que o Rei Carlos me receba e me ouça! É por vós que me levanto pela manhã e aguardo com toda a paciência! Doce Mãe, não me abandoneis, e colocarei o Peru em vosso colo como uma criancinha recém-nascida. Farei isso, eu que, a cada instante, sou vosso filho amantíssimo... Amém!
Don Francisco Pizarro se persigna e beija com os lábios tanto quanto com a barba o ícone da Virgem. Depois se levanta, ágil como um rapaz. Cinge a espada e vira-se para Gabriel.
Em outra ocasião, quem o visse exibir-se assim em seu quarto, as faces encovadas como duas tigelas e a tez cerosa, poderia achá-lo ridículo. Um velho maluco, burlesco e mentiroso! Será sequer imaginável que um velho possa conquistar um país do outro lado do mundo?
No entanto, Gabriel só consegue admirá-lo.
- Você reza às vezes, rapaz? - pergunta don Francisco franzindo os olhos. Ama a Virgem?
- Anh... Acho que sim balbucia Gabriel.
- Acha! Ah!... Eu rezo todos os dias. Ela me salvou a vida cem vezes. Sem a vontade dela, há muito tempo eu não teria mais sangue nas veias... Ela quer o Peru mais ainda do que eu!...
Sua voz é áspera, mas seu olhar, faiscando como um tição, não. Ele atravessa o aposento, abre a janela e olha um raio riscar a noite. O relâmpago, por um instante, banha com uma luz azul o aço de seu plastrão e o grisalho de sua barba. No estrondo do trovão, ele se vira, olha Gabriel de alto a baixo e diz, franzindo o cenho:
- Pedro o Grego me disse que você está progredindo nas armas. Muito bem. A leitura e a escrita não bastam quando queremos fazer o papel de conquistador! Ele disse também que você tem uma mancha de predestinação nas costas...
- É só uma mancha de nascença, senhor!
- Hum.
Pizarro fica calado enquanto corisca um raio e ronca uma depois acrescenta abruptamente:
- Meu irmão Hernando não gosta de você, aprendiz. Ele quer que eu o mande embora.
- Mas por quê? Mal trocamos algumas palavras... - Ele desconfia de rapazes que saem da prisão.
Gabriel sente-se empalidecer. Então, foi por isso que don Francisco mandou chamá-lo no meio da noite! Para mandá-lo embora de forma tão sumária como o seu pai?
No entanto, o olhar de don Francisco fica quase sorridente.
- Nada de melancolia, aprendiz - repreende ele. - Eu também estou saindo da prisão! Hernando diz o que quer e eu decido, entende? Talvez o meu irmão só tenha medo de ir para a prisão também...
Don Francisco faz um esgar e Gabriel julga ouvir uma risada.
- Por ora, você fica comigo - anuncia o Capitão tornando a fechar a janela.
- Por ora... - arrisca Gabriel. - Mas quando o senhor vai partir? - Vamos ver. Quem sabe como será o dia de amanhã? Essa insuportável audiência não chega!... O que é essa papelada na sua mão?
Ele se aproximou de Gabriel o bastante para segurá-lo duramente pelo ombro.
- O relatório de Pedro o Grego sobre as suas descobertas, senhor. - Ah! Ele diz muita coisa?
- Diz... Eu acho... Tem tanta coisa!
O rosto de don Francisco, sulcado de rugas, marcado por intempéries e combates, transmite uma força tão extraordinária que Gabriel não ousa mais respirar.
- Aprendiz, o Grego me disse que você já viu o Rei de perto. - É verdade.
- Como ele é?
- Bom, anh... Não é muito alto. É menor que Vossa Graça. Mas tampouco é baixo, e...
- Não! Isso eu já sei! As pessoas zombam dele, sabe por quê? - Por causa do queixo.
- Do queixo?
- É grande demais. Os dentes de baixo são mais para fora que os da frente, de modo que ele não pode fechar completamente a boca!
- Coitado.
- Vossa Senhoria terá que prestar atenção, pois, por causa disso, não se entende bem o que ele diz. E depois, o castelhano não é a língua materna dele. Ele balbucia como se comesse as palavras...
Don Francisco bate furioso no plastrão: - Eis aí uma coisa que não me disseram! - Diriam, meu irmão, se você tivesse perguntado! - Hernando!
Don Hernando Pizarro abriu a porta como um índio e seu olhar se fixa no de Gabriel, cheio de animosidade.
- Por que você dá ouvidos às asneiras desse garoto? - interpela ele com um gesto de despeito.
Ele se adianta na área clara e, de repente, um largo sorriso brota em seus lábios. Ele é tão elegante, cuidado e bem-apessoado quanto don Francisco não o é. Seu gibão púrpura, seus calções forrados de damasco recendem a perfume. Mas seu nariz é vermelho e seus olhinhos miúdos, volúveis demais. Ignorando Gabriel, ele subitamente estoura numa gargalhada e abre os braços como se quisesse acolher don Francisco:
- Está resolvido, Francisco! Está resolvido, meu irmão! Acabo de jantar com o conselheiro Los Cobos. Você receberá a carta para a audiência amanhã de manhã!
Don Francisco se persigna gemendo. De um salto, corre até o ícone da Virgem e o leva violentamente aos lábios.
Depois, voltando-se, o rosto iluminado e remoçado, brande o ícone para Gabriel e Hernando:
- Ela quis! Ela quis! Vamos, venham beijar a imagem da Virgem e se ajoelhar diante dela!
Rimac Tambo, abril de 1529.
Toda noite, o cometa passa no alto do vale misterioso.
Toda noite, ao crepúsculo, Anamaya atravessa as canchas, contorna o templo, desce os degraus que levam à esplanada que se estende até a torrente. Toda noite, ela "vê" o coroamento de Atahualpa e seu coração é acometido por uma aflição secreta sobre a qual ela não falou nem com o Anão, nem com o Sábio.
Receando que o sono leve seu espírito, ela passa muito tempo sentada num muro, envolvida pela noite, pelas estrelas e pela inquietação. A insônia causada pela idade avançada, ou então uma afeição impulsiva pela jovem Coya Camaquen cuja angústia ele adivinha, leva Colla Topac o Legatário a juntar-se a ela.
Noite após noite, como um velho soldado rude que conheceu todas as campanhas e todas as rebeliões do Norte como do Sul, ele lhe conta o passado. Sob a luz leitosa de Quilla, seu rosto é crestado como a terra do deserto.
- Depois de amanhã, vamos deixar Rimac Tambo - anuncia-lhe ele naquela noite. - Já é hora de o Corpo seco do único Senhor terminar a viagem.
O velho Legatário estende o dedo deformado pelo reumatismo e aponta para a encosta abrupta a sudeste da aldeia. Um caminho real corta ali a vegetação como um lance de funda e passa a garganta sem uma curva.
- Logo - prossegue o Legatário com sua voz quebrada mas firme - você verá o puma...
- O puma?
- A cidade do puma, sim. Cuzco, nossa capital, a cidade onde o sol se reflete em mil fogos no Coricancha, o nosso templo... A cidade que, nos tempos idos, Manco Capac e Mama Occlo fundaram pela vontade de Viracocha. Eles chegaram um dia na crista das montanhas circundantes. Viram a planície e, na planície, em volta de um rio, viram a forma de um puma...
E ele torna a contar.
Anamaya se deixa embalar pela música de suas palavras, onde caminham os deuses e os homens que fizeram a força do Império das Quatro Direções.
Por alguns instantes, ele se cala, a boca seca. Então pousa a velha mão acabada na mão fina de Anamaya. Acaricia-a sorrindo como se dela extraísse um pouco de força e continua sua história.
Os enviados de Huascar chegaram ao raiar do dia, debaixo de uma chuva violenta.
Ao amanhecer, como sempre, os sacerdotes sacrificam um lhama branco e todos os Poderosos que acompanham a múmia se reúnem para as oferendas. O sangue escorre na pedra sagrada, a chicha escorre no solo sagrado, o milho arde ao pé do Corpo seco do único Senhor. O lamento fúnebre das trompas e dos búzios ecoa na montanha.
Mas é levantando os olhos para o céu muito cinza e muito baixo que Anamaya os vê transpor a garganta norte. Doze soldados com mantas ensopadas de chuva, vermelho-vivas, na imensidão verde.
Quando eles chegam à aldeia, ela descobre que estão armados com fundas, lanças, e sobretudo os terríveis cassetetes estrelados. Não, eles nada têm de pacífico. Param ao pé da esplanada, como estrangeiros, e se mantêm à parte, sem um gesto, indiferentes à cerimônia.
Com um esforço de polidez que não está muito entre seus hábitos, Villa Oma se aproxima deles. É o primeiro a cumprimentar.
- Sejam bem-vindos, enviados de nosso Poderoso Huascar! - O Único Senhor Huascar! - corrige o oficial.
É um homem jovem e rude. Seus olhos são tão fundos que seu olhar parece permanecer na sombra, inapreensível.
- Viemos buscá-los - prossegue ele mostrando grosseiramente os Legatários prosternados diante da múmia.
Villa logo perde a calma:
- O que quer dizer, capitão?
- Nosso Único Senhor ordena que os Poderosos Anciãos venham a ele antes da chegada do Corpo seco de seu pai a Cuzco...
- Antes? E por quê? - espanta-se Villa Oma. - Isso não está na Lei... - Eles rejeitariam a ordem do único Senhor Huascar? - replica o oficial esboçando um sorriso.
- Bem, não sei - resmunga Villa Oma. - É preciso perguntar a eles. Eles é que são a Lei e sabem. - Enquanto isso, você pode vir compartilhar da nossa refeição...
Mas o soldado recusa.
Ele também se recusa a esperar.
Desde a chegada dos soldados, a tensão aumentou no cortejo. As mulheres se entreolham e guardam os comentários. O Anão aproxima-se de Anamaya:
- Eles vieram nos buscar? - pergunta aflito. Ela faz que não com a cabeça.
- Não... Vieram buscar os Legatários. - São loucos? - murmura o Anão.
Mas Colla Topac, digno e impassível, aproxima-se pergunta:
- Por que o Poderoso Senhor Huascar quer nos ver, se a Lei determina que permaneçamos ao lado do pai dele?
- O Único Senhor, Legatário - torna a corrigir o oficial com um respeito frio. - O motivo dele, ele não me deu. A ordem é que vocês devem me seguir, você e todos os outros Poderosos Anciãos.
Colla Topac volta-se para Villa Oma e os outros Legatários. O que lê nos olhos deles é temor e perplexidade.
- Você está armado, oficial - observa o Legatário. - Huascar teme por nós?
- O Único Senhor está impaciente para tê-los ao lado dele - responde o oficial com um tom mais suave. - Acho que ele só está com pressa de saber notícias do pai.
- Ah... E ele viu o cometa que tem passado no céu, nessas últimas noites? Dessa vez, o oficial se cala e abaixa os olhos.
- O desejo de Huascar é contra a Lei - prossegue o Legatário falando alto para todos ouvirem. - Mas não quero amargurar seu coração. Ele sabe que vamos em paz e eu quero provar isso a ele. Se precisar ser tranqüilizado, talvez eu possa lhe lembrar a coragem do pai dele, Huayna Capac.
O oficial se endireita como se sob o efeito de uma bofetada. Examina o rosto do Legatário cuja voz continuou calma e firme, apesar da ironia das palavras. Ele não replica, não deixa transparecer nenhum sentimento. Só dá ordens para se aproximarem das liteiras dos Poderosos Anciãos.
A assembléia está paralisada debaixo da chuva que não parou de cair. As encostas das montanhas sumiram embaixo de um véu cinzento e os vales estão cheios de névoa.
Anamaya vê a apreensão nos olhos que a cercam. Com os olhos semicerrados, Villa Oma masca suas folhas de coca. Quando sente os olhos azuis da menina fixos nele, vira a cabeça.
Então Anamaya se adianta para Colla Topac e se prosterna diante dele antes que ele tome seu lugar na liteira.
- Legatário, quero lhe agradecer por tudo o que me ensinou. Colla Topac toma suas mãos e a levanta. Sorri.
- É bom não dormir à noite quando se pode estar perto de você, Coya Camaquen!
Anamaya sente as velhas mãos apertarem as suas com ardor.
- Cuide-se, Senhor Legatário - diz ela baixinho. - Seja prudente. Colla Topac estala a língua com um olhar na direção do oficial que os observa:
- O medo não pertence mais a meu estado. Estou numa idade, menina Anamaya, em que a viagem ao Outro Mundo é a última esperada...
Mas quando ela quer se curvar outra vez, ele a puxa, como se quisesse se apoiar em seu ombro para se instalar em sua liteira.
- Observe o cometa esta noite, Coya Camaquen! murmura ele. - Sei em que pensou todas essas últimas noites e não ousou dizer. Observe o cometa e apóie Atahualpa como fez até agora. Apóie-o. Ele precisa disso. Aquele que detém a Lei está lhe pedindo.
Quando a noite se aproxima, começa uma ventania terrível, fazendo todos os vales ressoarem como trompas e enviando os ecos da ira de Illapa, o deus da tempestade e do raio, de montanha em montanha.
Só há paz no templo. Com gestos lentos, dominando o medo que lhe corrói o peito desde a partida dos Legatários e as últimas palavras de Colla Topac, Anamaya deposita o milho e a quinoa diante da estela que sustenta o Irmão-Duplo. Depois, verte chicha em volta dele.
Em seguida, como faz freqüentemente, ela se ajoelha. Passa um bom tempo diante da mascara de ouro do único Senhor.
Está tão úmido dentro do templo que as brasas das oferendas custam a arder.
Anamaya ouve um barulho atrás dela e reconhece o passo discreto de Villa Oma. Ele também sente necessidade de se recolher diante da máscara de ouro do único Senhor. Seu perfil está mais seco do que nunca, seus traços abatidos mostram suas noites insones, as longas horas passadas na leitura dos oráculos com os adivinhos para compreender o sinal do cometa. No canto de seus lábios, como sempre, a coca deixa sua marca verde.
Mas hoje, pela primeira vez, Anamaya sente sua impotência. E a raiva que paralisa seu rosto é a raiva da humilhação.
- O que dizem os oráculos? - pergunta ela. - Que Atahualpa deve tomar a Faixa real - Responde secamente o Sábio.
- Eu sabia! - exclama Anamaya. - E não me disse nada...
- Achei que não acreditaria em mim. Villa Oma faz um gesto de desânimo.
- Pouco importa, no fundo. Agora, a guerra é inevitável entre o Norte e o Sul! Huascar já nem respeita a Lei. Quer os Legatários perto dele quando ainda não está na hora! Quer obrigá-los a reconhecê-lo como sucessor do pai... - Colla Topac não aceitará - protesta Anamaya.
- Então Huascar vai humilhá-lo mais ainda! E vai dispensar a aprovação dele!
- O Poderoso Atahualpa deve saber que o cometa o designa como nosso único Senhor - insiste Anamaya. - Ele deve saber, Sábio Villa Oma. - E isso desencadeará a guerra! - exclama o Sábio. - Você não sabe o que é guerra, Coya Camaquen! E a guerra quebrará o Império, eu sinto!
- Eu sei o que é a guerra, Sábio Villa Oma - replica Anamaya com doçura. - Você esquece que o capitão Sikinchara chegou à aldeia onde eu morava quando era criança e incendiou tudo. Todo mundo que eu amava morreu naquele dia. E quando a pedra de funda atingiu minha mãe, ela estava segurando minha mão...
Por uma vez, o Sábio se cala.
Anamaya olha o reflexo da claridade fraca das brasas no corpo de ouro do Irmão-Duplo e acrescenta, a voz sempre calma:
- Eu sei o que é a guerra. Compreendo que você tenha medo de uma. Mas foi você quem me ensinou: Inti só tem uma vontade. Estou contente, do fundo do coração, que ele designe o Poderoso Atahualpa. Mas agora, preciso ir ter com ele. Ele tem que saber que o pai dele me falou e me mostrou a bola de fogo. Tem que saber que não está mais no silêncio e que os do Outro Mundo depositam esperança nele. Ele deve saber que tudo o designa para ser nosso único Senhor, que essa é a vontade de Inti... Sábio Villa Oma, se eu tenho que voltar sozinha para junto de Atahualpa para lhe dar apoio, então vou sozinha.
Dessa vez, a surpresa é que fecha a boca de Villa Oma.
- Você não pode - murmura ele afinal. - Tem que acompanhar o Irmão-Duplo a Cuzco. É a Lei.
- Nada do que acontece agora em Cuzco é a Lei, Sábio - replica Anamaya levantando-se. - O próprio Legatário disse isso.
Villa Oma olha-a saindo do templo como se estivesse vendo uma desconhecida.
Do lado de fora, ela deixa a chuva que continua caindo forte lhe fustigar o rosto. Estranhamente, apesar da incerteza do futuro, ela se sente aliviada e calma. Feliz até. Sabe afinal que fala certo.
Atravessa tiritando a esplanada deserta, pois sua llicla leve não a defende do frio. Como por reflexo, a mão levantada para se proteger da chuva e do vento, lança um olhar para o vale onde o cometa continua passando.
Infelizmente, o céu está encoberto e o cometa fica invisível atrás das nuvens. E está igualmente escuro para o sul, para onde foram os Legatários... Mal ela acabou de lembrar-se com afeição do velho Colla Topac, um barulho de passos na relva molhada faz com que ela se vire. Mas ela não vê nada.
Uma mão grande e forte lhe fecha a boca antes que ela tenha tempo de gritar. Um corpo pressiona o dela e a levanta como se ela fosse uma boneca.
Rimac Tambo, abril de 1529.
Nem uma palavra.
O velho Colla Topac passa a mão enrugada nos cabelos brancos, depois no queixo quadrado, forte, do qual, antigamente, bastava um único movimento para comandar. Ele está irritado e impaciente e, tem que admitir para si mesmo, com medo.
Por que, desde que deixaram o tambo, os soldados de Huascar não disseram uma palavra? Por que desviam os olhos, constrangidos apesar de sua impassibilidade de fachada, quando encontram seu olhar?
Como a estrada subia, ele mandou chamar o chefe da escolta, o homem dos olhos fundos humilhado por ele naquela manhã. Em vão: o homem não se dignou a vir. Sentiu a perturbação dos velhos que o acompanham.
A trilha beira uma torrente que ruge e se estreita. As copas das árvores de um lado e de outro se encontram fechando um arco e, no chão, é escuro em plena luz do dia. A chuva cai, pára, recomeça. Topac está gelado até os ossos.
A noite, no meio de uma ladeira íngreme e escorregadia, eles param na frente de algumas miseráveis cabanas de taipa. O chefe dos soldados afinal desce em direção a ele. Desta vez, ele não desvia o olhar.
Colla Topac sabe que eles todos vão morrer. Ali.
Esta noite.
- Você não encontrou uma maneira melhor? - Eu não queria que você gritasse!
Ánamaya olha para Manco na noite açoitada pela chuva. Apesar da escuridão, ela adivinha seus traços endurecidos. Estão separados há poucas semanas apenas, mas parece-lhe que o nariz aquilino do amigo sobressai ainda mais naquele rosto que lembra um rochedo arrancado da montanha.
- Vi os soldados e tive de me esconder esperando que você viesse... - Você poderia esperar muito!
- Eu disse a mim mesmo que meu pai lhe falaria. - O que está acontecendo, Manco?
- Está acontecendo que Huascar enlouqueceu. - Enlouqueceu?
- Não sei se são os sinais do céu ou os rumores da rebelião de Atahualpa, mas todo mundo em Cuzco sabe que ele se embriaga cada vez com mais freqüência, fica inconsciente nas orgias, insulta a própria mãe tratando-a de puta de Atahualpa... Encontraram-no uivando como um lobo entre as torres do templo de Sacsayhuaman, convencido de que os chancas estavam atacando, e xingando as pedras, exigindo que elas se transformassem em combatentes... - Mas e você? E Paullu?
- Até agora, ele não se interessou por nós. Mas, se bater o olho na gente, vai nos considerar suspeitos de uma traição qualquer...
- Foi ele quem mandou buscar os velhos? O olhar de Manco é de estupefação.
- Os velhos? Não estou entendendo.
- Ainda agora, um capitão veio buscá-los. Huascar quer que eles preparem a chegada da múmia.
Manco levanta-se de um pulo. Anamaya o acompanha. - Venha, vamos logo.
- Primeiro devíamos procurar Villa Oma. - O Sábio de boca verde? Tem certeza?
Diante deles, a luz das tochas ilumina o templo. Alagada com a chuva, a esplanada virou um lamaçal. Anamaya corre, esforçando-se para arrancar da lama as sandálias de palha.
O Sábio vai saber - diz ela com convicção.
Mas enquanto corre, pensa que talvez o Sábio não saiba.
- Quais são as suas ordens?
- Não temos nenhuma ordem, mas temos um dever: o de escoltar a múmia do falecido Inca Huayna Capac até o templo de Coricancha de Cuzco, onde será confirmada a subida ao trono do próximo Filho do Sol.
- Que ordens receberam de Atahualpa?
- Nenhuma. Mas embaixadores dele estão no cortejo. Vêm os presentes e a fidelidade do irmão ao Inca Huascar.
- Quais são as verdadeiras intenções de Atahualpa?
- Se acha que cometemos o crime de traição, por que não nos leva a Cuzco para sermos julgados e punidos, se formos culpados? Por que nos guarda nessas cabanas, no meio dessas montanhas, como se esses crimes devessem permanecer secretos, desconhecidos dos deuses?
Colla Topac sente-se fraco, mas mantém a voz tão firme quanto ainda pode. Está amarrado a um poste por um sólido fio de agave, numa cabana de chão de terra batida. Um a um, seus companheiros foram mortos - uma pedrada na testa, uma flechada no coração -, e o sangue deles corre no rio que ele ouve roncar.
Só sobra ele.
O capitão de olhos tristes mandou todos os soldados da escolta saírem para que eles fiquem a sós.
- Você é o chefe deles - diz lentamente.
- Não! Sou apenas o primeiro Legatário. E então?
- Você foi enviado por Atahualpa, o traidor, para espionar as tropas do Sapay Inca, o Poderoso Huascar, e levar para ele informações relevantes para a guerra de rebelião que ele quer fazer.
- Isso é absurdo... Dez velhos miseráveis, escondendo-se atrás da liteira da múmia para espionar...
Uma dúvida atravessa os olhos do capitão. Ele se aproxima Topac e se agacha diante dele, o olhar mergulhado no do velho. - Foi o que nos disseram em Cuzco.
- Olhe para mim, olhe os cadáveres dos meus companheiros que você torturou e de quem só conseguiu tirar olhares de pavor na hora da morte... Não acha que teria conseguido saber pelo menos alguma coisa? Você não tem nada, a não ser sangue nas mãos.
- Você também vai morrer. Fale, se não quiser ser torturado e que sua alma seja dada ao puma...
- Você não terá nada de mim, filho. Nem sequer um gemido.
O capitão não responde. Levanta-se de um salto silencioso. Desamarra as mãos do velho e o empurra para fora da cabana.
A noite está linda, o rio de estrelas corre calmamente, eterno. Colla Topac enche os pulmões com o ar da vida. É verdade que esse homem de olhar duro poderia ser seu filho. É verdade que, em sua rude vida de combatente, ele não poupou os inimigos... Mas como não vê que essas ordens, atrás das quais se abriga como um miserável, são fruto de um espírito transtornado? Como não compreende que está preparando a confusão no Império das Quatro Direções? Nenhuma palavra conseguiria convencê-lo.
Vai ser preciso morrer.
Os soldados se aproximam dele e agarram-no, dois em cada membro. Ele arregala os olhos ao máximo para que o universo o absorva e lhe dê a sua paz. Exatamente nesse momento, acima das montanhas, o halo das últimas nuvens se ilumina com a luz do cometa.
Mãos, dezenas de mãos o puxam e ele ouve grunhidos de esforço, gemidos. Um lamento terrível rasga o ar e ele só tem tempo de saber que é de seu peito que está saindo.
A última sensação que ele tem é a de seu velho corpo ser arremessado como uma pedra, bater num rochedo e explodir em mil pedaços.
O Anão corre à frente.
Ele nasceu na floresta e sabe ler as pistas que os homens e os animais deixam ao passar: as pedras deslocadas, os galhos quebrados, as moitas amassadas.
Villa Oma, Manco e Ánamaya seguem em silêncio, o coração apertado. Na noite escura, ainda abafada de umidade, as estrelas se acendem sucessivamente.
De repente, eles escutam um grito.
Eles encontram os corpos, um a um.
Alguns foram mortos à beira do caminho e estão deitados, como crianças esperando o sono.
Outros assumiram formas estranhas, atrozes fantasmas que viram todos os demônios.
Um foi esmagado por pedras tão pesadas que teve as costas quebradas. Um osso de seu ombro aponta para o céu.
Na boca de outro, aberta para sempre, eles encontraram grãos de uma pimenta vermelha terrivelmente violenta: antes de morrer ele sofreu a tortura daquele fogo que rasga o ventre e o corpo todo.
Em toda parte se encontram vestígios de sangue, pedaços de carne; em toda parte eles ouvem os gemidos e os gritos de agonia que ecoaram em vão. Eles vêem Colla Topac por último, o corpo desfeito, a boca retorcida num ríctus.
Ainda há um pouco de vida em seus olhos, um último orgulho para além dos sofrimentos que ele teve de suportar.
Anamaya ajoelha-se perto dele e lhe dá a mão, como fez ao meio-dia, quando chovia e o homem de olhos tristes e afundados nas órbitas dava suas ordens com voz firme.
- Fique viva, menina - diz o velho cuja vida se esvai. - Guarde a luz de seus olhos azuis...
- Por quê? Por quê?
O velho ergue os olhos num último esforço. Parece mostrar um ponto mais longe, no céu, em direção ao cometa cujo brilho turvo os ilumina.
Ela se levanta, os olhos cheios de lágrimas, virando-se para Manco. - Por que chegou tão tarde?
Manco não responde. Não há o que responder, pensa ela. É preciso fazer como o Anão, com aquela roupa vermelha recolhendo a terra e a lama, e dançar, dançar até cair.
- Tenho que ir embora - diz afinal Manco. Anamaya se volta para Villa Oma.
- E nós, o que devemos fazer? Voltar para o tambo e esperar que outra tropa nos massacre?
- Vocês devem partir também - diz Manco. - Foi a mensagem que vim lhes transmitir.
- O que diz, Sábio?
Villa Oma parece ter envelhecido terrivelmente. Seu rosto está ainda mais fino, e sombras passam por seus olhos.
- Eu digo que o jovem Manco tem razão: agora você precisa ser protegida. - Paullu e eu - prossegue Manco, pressionando - devemos ficar em Cuzco, mas você deve fugir, avisar Atahualpa.
- E a múmia? E o Duplo?
- Huascar, por mais louco que esteja, não pode destruí-los. Você deve ficar viva: as palavras estão dentro de você.
O céu está completamente claro agora; parece que não choveu, não esteve nublado. O cometa está ainda mais brilhante, e Anamaya mergulha nele o seu olhar azul para ali encontrar a clareza.
Manco e o Sábio se calam. Anamaya respira e se lembra do momento em que a força de seu destino penetrou nela e em que ela sentiu, fundo de seu corpo, que aceitava tudo o que acontecesse. O Anão sentou-se numa pedra do seu tamanho.
- Será preciso que eu também lhe peça isso, Princesa? Ela sorri para ele, despenteia seus cabelos.
- Você sabe que sempre lhe obedeço, Senhor. - Vamos - diz Villa Oma - vamos logo. - Aonde?
- Você vem atrás de mim.
Manco desaparece na noite, rumo ao cume da montanha e ao platô que dará acesso a Cuzco.
O Anão, o Sábio e a jovem se apressam.
Toledo, abril de 1529.
- Olhe, olhe! Ah, que lindos! Ah, Majestade, meu Rei, são mansos como cordeiros! E grandes! Mira, mira! É lã de verdade, tão macia que não fica atrás da de nenhuma ovelha. Aaaah! Que gracinha!
O bufão se esganiça, grita, gargalha. Tem uma voz espantosamente forte para seu tamanho minúsculo. Enfeitado com rendas, roupas de boneca e um chapelão enorme, joga os bracinhos para o alto, corre de um lhama ao outro, passa por baixo deles, afaga-os, agarra-os, pula-lhes no pescoço, esfrega o rosto em seu pêlo, antes de fazer mais uma cabriola!
Forçando as rédeas, os animais irritados arrastam os dois índios, Martinillo e Felipillo, em volteios incoerentes. Já perdidos e apavorados com a imensidão e o luxo dos locais, os olhos arregalados, eles trocam frases incompreensíveis.
- Ai, mas como esses tontinhos tagarelam, meu Rei!...
O anão começa a imitar os índios com barulhos grotescos, puxa-lhes a manta, saltita entre suas pernas fazendo caretas. E, de repente, fingindo um escorregão, cai em cima de Felipillo, que acaba indo ao chão junto com ele no espesso tapete. O lhama solto imediatamente aproveita o ensejo para galopar direto para o trono. Pedro o Grego pula e captura o animal, que dá um zurro rouco e cospe.
- Mas o que esse aí está fazendo! - exclama o bufão com um horror fingido diante do lhama. - Não está vendo que está faltando ao respeito com o meu Rei?
- Quando lhama zangado, señor, faz sempre assim ele - articula penosamente Felipillo.
- Quando lhama zangado... - repete comicamente o anão cuspindo em Felipillo.
O povo cai na gargalhada e até aplaude. Estimulado às palhaçadas, ele bate com o chapéu em Felipillo:
- Meu Rei: esse aí só tem duas pernas, mas não sabe usá-las... E olhe: mesmo sem ter lã nas panturrilhas, ele pastaria de bom grado os seus tapetes! Gabriel, apavorado, vê don Francisco ficar lívido de fúria com a afronta. Sua mão enluvada de couro aperta violentamente o punho da espada. As narinas vibrando, ele se volta para o estrado real. Mas, se a jovem Rainha esboça um sorriso, o rosto de Carlos V permanece impassível. Seu queixo largo e forte lhe dá uma aparência grosseira que seu olhar luminoso contradiz completamente. E, por menos atento que se seja, adivinha-se em seu breve movimento de cabeça e no franzir de suas pálpebras um cumprimento sem ironia. O peito de don Francisco logo se acalma. Com toda a elegância de que é capaz, ele enverga aquela silhueta magra e toca o chão com a pluma verde de seu chapéu.
Pedro o Grego segura a rédea do lhama, Felipillo está em pé, sossegado por um gesto do Negro Sebastian. Gabriel, por sua vez, se descontrai com um suspiro discreto.
Os homens estavam de prontidão há vinte horas. Don Francisco, não agüentando mais, mandou que eles se levantassem no meio da noite. Cem vezes mandou que lhe repetissem as mesmas recomendações, cem vezes, pe diu que lhe espanassem o gibão negro novo em folha, que trocassem a pluma de seu chapéu por uma amarela, depois uma branca, depois uma vermelha, decidindo-se por uma verde só quando o dia raiou. Cem vezes ele havia ordenado que todos os cinco, Pedro o Grego, Sebastian, Gabriel ou seu irmão Hernando e os dois índios, se ajoelhassem diante da miniatura da Virgem!
De manhãzinha, a espera se prolongara no Alcazar, mãos molhadas, olhar vazio, barriga roncando de fome, a andar pelos jardins magníficos sem ver nada enquanto o sol esquentava cada vez mais. Ao meio- dia, eles foram conduzidos aos salões onde as damas de anquinhas e grandes golas de pérolas, rendas de Bruges e jóias os perscrutavam de perto como animais prestes a serem devorados na arena!
Agora, o crepúsculo não tarda. Eles acabaram de ser introduzidos na sala de audiências. Todos os objetos de ouro, as cerâmicas e os tecidos do Peru estão expostos numa mesa comprida. Infelizmente, o aposento é tão grande, sobrecarregado de objetos, móveis, tapeçarias, cortinas, quadros, que, apesar do esplendor estranho daquelas coisas peruanas, sua quantidade parece bastante modesta!
Tudo o que conta na Espanha está ali. Cem nomes e títulos sonoros, vestidos, como se fosse inverno, de seda e brocado, cobertos de enfeites da moda, a barba lustrada ou as faces empoadas de ruge, conforme o sexo. Os olhares estão cheios de arrogância e as bocas, por ora, abertas dando gargalhadas.
Gabriel está aflito e envergonhado como se ele fosse don Francisco, esse descobridor do Peru que está sendo ridicularizado pelas palhaçadas de um bufão... Mas, com o esboço de um gesto, o Rei corta as risadas e chama o anão assobiando como se ele fosse um cão.
- Pare, Estebanillo!
A voz é calma, bem compreensível, quando ele acrescenta: - Apalavra é sua, Capitão Pizarro.
Segue-se um silêncio pesado.
Don Francisco parece de repente incapaz de articular uma palavra. Seu irmão Hernando já vem se adiantando e se inclinando com um sorriso nos lábios mas, bruscamente, don Francisco o segura.
- Deixe. Eu é que devo falar! - ruge ele baixinho. Empurrando Hernando para o lado, ele diz, com um tom rude:
- Alteza, descobri um país que é uma mina de ouro e fará a riqueza da Espanha por todos os séculos vindouros.
O Rei não se mexe. O anão, em pé perto dele, brinca:
- Ouro! Ouro! Ouro! Uau, ouro por toda parte, meu Rei!... Ele está dizendo! Porque esses carneirões aí, eu juro, são de lã!
Ouvem-se algumas risadas, mas, inesperada, é a voz clara da Rainha que as interrompe:
- Capitão Pizarro, gostaríamos de ouvir da sua boca a história dessa descoberta.
- É uma história longa, Alteza! Mais de dez anos! - Então, conte-a sucintamente, don Francisco.
Sucintamente, Alteza, é difícil... Pois isso começou quando descobrimos o mar do Sul, como chamamos, do outro lado do golfo de Darién. E só isso já foi muito difícil! Sou um dos que fundaram a cidade de Panamá com o Governador da época que se chamava... ahn...
De novo dominado pela emoção, don Francisco fica sem voz. Seu grande corpo magro treme, tamanha é sua tensão.
- Balboa... - sopra Gabriel sem pensar.
Hernando Pizarro o fulmina com o olhar. Mas don Francisco faz que sim com a cabeça:
- Sim. O Governador Balboa...
Com alívio, Gabriel ouve a voz de don Francisco se descontrair.
Frase após frase, ele esquenta, fala com mais desenvoltura e vivacidade. E assim, por quase uma hora, é toda uma epopéia que mantém os ouvintes interessados. Como foi preciso desmontar uma caravela inteira e transportá-la, peça por peça, pela floresta, do Oceano Atlântico ao mar do Sul! Como, sem trégua, foi preciso vencer os insetos, as serpentes, as feras, os índios, a sede, a fome e a doença! Como só os mais obstinados sobreviveram, e com agressividade e coragem suficientes para partir novamente ao ouvir falar de um país todo coberto de ouro, para lá das florestas. Como foi preciso vencer os céticos, as incertezas, os desesperos, a falta de dinheiro, a gangrena da dúvida. Como sempre, durante esses anos longos e intermináveis, foi preciso vencer o próprio mar e todas as misérias imagináveis que a adversidade do desconhecido pode infligir aos filhos de Deus!...
- E depois um dia, Alteza, pronto! Do nosso navio, vimos aparecer uma cidade na costa! Uma cidade enorme... A floresta tinha se aberto em volta e exalava perfumes como só há lá. Ah, acreditem em mim, uma cidade de pelo menos duas mil casas! E essa cidade inteira cintilava, como uma cidade celeste, Alteza! Só quando chegamos perto é que vimos que o sol se refletia num ouro brilhante como ele! Pela graça da Santa Virgem, muros de ouro! Assim é a cidade de Tumbez! Ah, eu juro!...
Levado pelo ímpeto de seu fervor, don Francisco bruscamente se ajoelha e se persigna. E todos, em volta dele, automaticamente, impregnados pelo fervor do relato, Sebastian e Hernando, os índios, o Grego e Gabriel, todos eles se ajoelham e fazem o sinal-da-cruz!
Um murmúrio de admiração vibra na platéia conquistada da sala de audiências. Mas, outra vez, é a voz fresca e límpida da Rainha que se levanta: - Don Francisco, é um belo relato este que acaba de fazer. Mas ouvi dizer que muitos homens pereceram durante essas terríveis aventuras...
Esquentado como é, don Francisco se levanta com uma rabanada. Negligenciando o olhar da Rainha, os olhos incandescentes fixos nos do Rei, sem nenhuma das cortesias exigidas, ele esbraveja:
- Que Vossa Alteza me perdoe, mas essa recriminação não passa de um monte de asneiras! Se fosse fácil encontrar um país coberto de ouro como o Peru, há muito tempo Vossa Alteza estaria antes ceando do que me ouvindo! - Bem falado! - ri o bufão aplaudindo.
- Mas não é verdade, Capitão Pizarro? - pergunta o Rei em seu castelhano canhestro.
- Mortos, houve, infelizmente! Nas índias, morre- se mais, se ouso dizer. Mas me recriminar por essa adversidade! Sempre deixei aos que me acompanhavam a opção de voltar...
- Dizem, señor Pizarro, que o senhor manteve cem homens seqüestrados numa ilha durante um ano e que metade deles morreu...
- Não! Não, Alteza! Eu mesmo me seqüestrei, pois queriam me impedir de prosseguir. E vinte não sobreviveram, não mais. E sabe o que fiz quando afinal chegou um navio para nos resgatar?... Estávamos numa praia, as chalupas esperavam, cada um precisava decidir, continuar para o sul ou voltar para a cidade do Panamá.
Don Francisco se interrompe, dá um passo à frente e, desencadeando um grito na platéia, desembainha a espada para brandi-la para o alto:
- Eis o que fiz, Alteza! Levantei assim minha espada. E mergulhei-a na areia...
Aliando o gesto à palavra, don Francisco espeta a lâmina no espesso tapete. Com um rugido de fúria, faz um risco...
- Senhor don Francisco! - exclama a jovem Rainha agitando as mãos. - Por favor! Tenha cuidado com esse tapete, ele foi confiscado dos otomanos!
Don Francisco se sobressalta. Observa-a franzindo o cenho, faz um vago sinal-da-cruz, depois, sem se preocupar mais, dirige-se ao Rei:
- Na praia da ilha de Gallo, fiz um risco como este, Alteza, embora mais fundo... E disse: "Companheiros, meus amigos! Não volto para a cidade do Panamá. Vou mais longe, para o desconhecido Sul. Quem quiser me acompanhar que cruze esta linha. Os que o fizerem, escolherão certamente a fome, a sede, as doenças e a morte talvez... Os outros voltarão para a cidade de Panamá e os dias normais. Eu lhes agradecerei, pois eles compartilharam conosco sofrimentos nunca vistos, um calvário que merece que eu os ame como amo aqueles... A quem, no entanto, eu prometo o Peru e seus rios de ouro. Não quero forçar ninguém. Mas um dia, a coragem receberá o fruto de sua semente! Eu sei!" Eis o que eu disse, Alteza. E a verdade é que muitos voltaram para o Panamá sem que eu movesse um dedo para os impedir! Mas treze cruzaram a linha que eu havia traçado e se colocaram ao meu lado: esses treze, Alteza, são os heróis de uma lenda que será contada durante séculos!
Na platéia perfumada, mãos de mulheres começam a aplaudir, cabeças severas de duques, marqueses, camareiros e conselheiros balançam afirmativamente e emitem sons de aprovação.
É então que Gabriel, pasmo, vê o Rei Carlos, o quinto Imperador da Europa e seu mais rico soberano, levantar-se. Um sorriso maravilhado abre sua boca estranha. Ele se levanta do trono e desce do estrado. Como um homem quase comum, faz um só gesto designando os índios e os lhamas:
- Fale-me um pouco desses animais estranhos, Capitão Pizarro.
Salcantay, maio de 1529.
- Aonde vamos? pergunta Anamaya.
Desde que deixaram as luzes de Rimac Tambo para se embrenhar na noite, ela fez essa pergunta diversas vezes a Villa Oma. Ele não responde, fechado num silêncio quase hostil. Eles só levaram consigo dois criados, dois guardas e, por insistência de Anamaya, o Anão que se ofereceu para carregar, lutar ou aquilo que quisessem. Resmungando, Villa Oma aquiesceu.
As luzes do tambo rapidamente desapareceram. A única coisa que os liga ao vale que eles estão deixando é o barulho da torrente que não parece diminuir, embora eles estejam ganhando altura rapidamente por uma trilha estreita, no meio de uma vegetação cerrada.
A água que corre a faz pensar no sangue que corre, e ela não pára de visualizar a imagem do velho Colla Topac, os cabelos brancos molhados de suor, os olhos revirados partindo para o nada, com a velha mão enrugada segurando a sua. Ela cerra os dentes para não chorar.
Mesmo no escuro, ela sente que estão atravessando trechos de bruma que dissimulam as sombras da noite para eles. Os barulhos dos bichos esquilos, cabritos monteses tranqüilizam-na quando ela os reconhece. Mas um farfalhar nas moitas e ela fica atenta: pode ser uma doninha assim como a vanguarda de uma tropa enviada para prendê-los e torturá-los, como foi feito com o grupo dos velhos.
A ladeira se acentua de repente e ela calca a terra solta para encontrar as arestas das pedras e se equilibrar. Instintivamente, sabe que estão se aproximando de uma garganta. A vegetação fica esparsa e eles afinal vão dar numa plataforma bastante larga. Villa Oma os leva para fora da trilha, atrás de um bosque ralo de tocacho, para uma casa cujos muros de adobe já estão
deteriorados. O teto de palha está furado em alguns pontos. A casa é cercada por um muro baixo de pedras grosseiramente encaixadas. Pela primeira vez em muitas horas, Anamaya sente um pouco de paz nesse lugar fora do mundo.
Depois das oferendas, o Sábio pronuncia suas primeiras palavras desde a partida:
- Vamos descansar.
- Vai me dizer daqui a pouco aonde vamos?
- O que importa o nome, menina! Eu a levo para lá. É a minha decisão e, talvez, meu erro.
Um dos criados vai acender o fogo, e o Sábio o detém com um sinal. Está frio, mas o escuro os protege.
Quando eles entram no único aposento onde as esteiras já foram instaladas, Anamaya coloca todo o cansaço na nuca, como uma pedra. Ela se deita, enrolada em sua manta.
- Princesa?
Ela abre os olhos já pesados. O Anão levou sua esteira para junto da dela. E quando estende a mão para pegar a da amiga, esta não oferece resistência e adormece.
O céu está de um azul profundo, o sol já vai alto. Em alguns instantes, vai se pôr à direita do cume e expulsar a sombra da montanha que envolve o valezinho. Anamaya acompanha a queda de uma onda de neve arrancada do cume por rajadas de um vento violento.
A mancha de luz de um marrom-dourado desceu a encosta atrás dela, e agora os primeiros raios beijam seus tornozelos. Ela fecha os olhos sob a carícia quente.
- Um dia de beleza após um dia de morte.
Anamaya não se vira. Sabe que Villa Oma está atrás dela.
- Se não é para lá que vamos - diz ela apontando para o talvez você esteja autorizado a me dizer como se chama.
- Você tem o conhecimento que não temos, mas isso não basta para... - O que está querendo dizer?
- Nada, menina, nada... Você já sabe tanto! Essa montanha se chama Salcantay.
Anamaya vira-se para o Sábio. Seus olhos estão brilhantes, quase selvagens. Venha agora - diz ele num suspiro -, precisamos partir.
Eles passam três dias atravessando gargantas, e a massa do Salcantay com seus gelos eternos fica acima deles. A cada noite, dormem num casebre simples como o primeiro. Com os movimentos da luz, a chegada das nuvens, o jogo do sol e da sombra, a geleira muda. já quase acabaram de contorná-la quando Anamaya se vira. A geleira lhe parece um lago branco, quase cinzento, com estrias azuis e as riscas escuras das gretas.
O Sábio tem razão: esse lugar não é para o homem.
Na última garganta, a paisagem bruscamente se amplia. Vales profundos mergulham no horizonte azulado da floresta. Na descida, os arbustos aos poucos começam a predominar sobre a vegetação rasteira. Anamaya tem consciência de estar mudando de mundo.
Eles chegaram a um trecho mais largo do caminho, talhado na rocha abrupta, sustentado por uma parede de pedras cuidadosamente ajustadas. As lajes são tão planas quanto possível, e ela pode se entregar à fantasia sem ter medo do vazio. Luz e sombra se alternam: às vezes é um corredor cortado no coração da rocha no qual se ouvem os pingos de uma nascente, ou um túnel de vegetação embaixo de bambus gigantescos.
Eles caminharam depressa, durante muito tempo. Ao pôr-do-sol, o sono já os derrubou.
Ainda é noite fechada quando o Sábio toca o ombro de Anamaya para acordá-la. Um simples sinal, e ela o segue.
A senda é abrupta. O topo do pão de açúcar foi cortado em plataforma da qual só foi deixada uma pedra.
- Para entrar aonde vamos, é preciso pedir a autorização dos Apus - murmura Villa Oma.
Anamaya fica calada: ela renunciou a saber, e sente um mal-estar por isso. As estrelas se apagaram na aurora tímida, uma gigantesca montanha sai da noite, majestosa, maciça e terrível. A distância parece torná-la ainda maior.
- O Salcantay é um dos Apus mais poderosos da região. Ele não deixa ninguém se aproximar de seus lhamas. Os raros inconscientes que voltaram de lá falaram de uma dama vermelha antes de enlouquecer totalmente. Mas se você o respeitar, menina, ele lhe dará sua proteção.
Anamaya fica em silêncio, subjugada pela força do espetáculo. O pico se acendeu de repente, brasa incandescente atiçada pelo vento. No momento seguinte, é toda a geleira que se inflama num turbilhão de vermelho-alaranjados.
- Olhe, Villa Oma: Inti está abraçando Apu Salcantay.
Devagarinho, nesgas de névoa emergiram da floresta, correram ao fundo das encostas e formaram uma nuvem densa ao pé do maciço.
Villa Oma está agachado diante do rochedo. Coloca ali seis frascos de barro que ele enche com uma água clara, depois estende no chão um pedaço de pano. Anamaya não dá muita atenção ao imutável ritual: há medo, mas também alegria em seu mal-estar.
O Sábio levou a chuspa de coca à boca e sopra-a, concentrado, olhos fechados. Murmurando, escolhe três folhas, entre as mais perfeitas e mais verdes, e as coloca delicadamente num canto do tapete; e recomeça com mais três folhas no próximo canto. Depois, sem pressa, coloca no centro bonecos em forma de lhama, pequenos novelos de lã colorida e grãos de milho roxos e pretos.
Insensivelmente, a nuvem começou sua ascensão, escondendo um a um os primeiros blocos de gelo da geleira. O Apu é ouro. Suas linhas ora doces, ora cáusticas retêm uma aura de luz.
A um olhar do sacerdote, Anamaya sentou-se defronte ao rochedo: de onde ela está, a rocha reproduz na perfeição a forma do Salcantay.
Na superfície dos frascos, há grãos ou pós em suspensão que aos poucos desaparecem embaixo de espumas coloridas: a fermentação funcionou. O Apu aceita as oferendas.
Então, Villa Oma as pega, uma de cada vez. Anamaya sente que ele pousa uma a uma em sua cabeça enquanto murmura palavras das quais ela só distingue seu nome e o da montanha. E todas as vezes, o conteúdo é derramado no rochedo.
- A você.
Anamaya dobra cada um dos cantos do tapete, prestando atenção para não desarrumar a ordem das oferendas, e, formado o pacote, sopra-lhe três vezes em cima, debruçada para a montanha.
Villa Oma pega de novo a oferenda e pousa a mão nos cabelos de Anamaya. Ela sente seu calor. No início, é apenas um suspiro:
- Hamp ú Apu Salcantay, Hamp ú! Hamp ú Apu Salcantay, Hamp ú! Hamp ú Apu Salcantay, Hamp ú!...
O chamado torna-se murmúrio, depois cresce. E quando a voz do Sábio alcança os paredões vizinhos, dir-se-ia que todos os picos reclamavam a vinda do Apu num imenso clamor. Ondas quentes irradiam seu corpo.
O último eco foge no fundo do vale e se apaga. No silêncio, o pico luminescente do Salcantay desaparece atrás da vela pudica da nuvem. Anamaya sabe que está no coração da montanha. A paz está nela.
Ao pé do cume, o Anão os espera. Com os guardas do santuário do Apu, ele observa em silêncio os criados terminarem de carregar os lhamas com os fardos. No último terraço, uma grande escada mergulha a pique no meio da vegetação logo absorvida pelo mar de nuvens. Fora alguns picos próximos, esse mar cobriu tudo.
- Estamos no teto do mundo - diz o Anão, com um brilho de prazer nos olhos.
Villa Oma não deixa a Anamaya a possibilidade de responder: - Vamos. O tempo urge.
E, tirando uma mão-cheia de chuño da manta que um criado lhe estende, ele começa a longa descida.
As pedras estão molhadas e escorregadias. O pequeno grupo logo se fundiu no nevoeiro cerrado. Um calor úmido se instala à medida que a floresta se adensa, invadida pelas samambaias e por flores de cores vivas. Os troncos das árvores estão cobertos por um tapete espesso de musgo verde. A água escorre pelos rochedos em meio a trepadeiras e tufos de bambu. A terra está sempre produzindo.
Anamaya não tornou a ver a floresta desde a morte da mãe. Suas narinas se abrem para aromas esquecidos, que ela julgou perdidos, e ela reconhece nas folhas encharcadas, na terra molhada, nas corolas muito abertas das flores vermelhas, cor-de- rosa, amarelas, toda uma massa de insetos, de moscas, toda uma vida a fervilhar. É como se seu corpo atado pela luta e pelo exílio começasse a reviver.
Até o horror associado à morte de Colla Topac parece pertencer a um lugar e um passado distantes.
Ela olha para o Anão: ele vai pulando de pedra em pedra, borboleteando. Como ela, ele vem da floresta, como ela, ele faz parte de uma vida secreta, estranha aos seres das planícies e dos vales de montanha.
Às vezes, a vegetação é tão cerrada que eles têm a sensação de estar andando dentro de um túnel escuro cavado pela natureza em plena luz do dia. O suor escorre quase em fio pela nuca dos servos. Um deles canta sozinho - tão baixinho que mal se ouve, numa voz triste que lhes aperta o coração.
Os intermináveis degraus acabaram. As lajes não são menos escorregadias, cobertas com um musgo escuro. Às vezes, o caminho se estreita, dando passagem apenas para uma pessoa. A cada passo, Anamaya tem de respirar devagar para não cair na tentação de escorregar. Um movimento em falso e ela voaria com os pássaros.
Quando eles finalmente furam a camada de nuvens, o vazio revela-se um precipício insondável. Eles avançam por uma ladeira íngreme. Acima deles, elevam-se paredões quase a prumo, cobertos de vegetação.
O Anão é que encabeça a fila. Ele agora já não dança: faz atenção a cada um de seus passos, prendendo o fôlego, as pernas duras de apreensão. De repente, dá um grito.
A fila pára.
Anamaya logo vê o que os espera.
A trilha é interrompida abruptamente. Sob seus pés, o paredão liso do rochedo se perde nas profundezas.
Calmamente, com a desenvoltura de um cabrito, o Sábio alcançou o Anão, obriga-o a voltar atrás na trilha, o que ele fez gemendo e murmurando que não podia se mexer porque iria morrer. O Anão aproximou- se de Anamaya.
- Achei que ia morrer nessa montanha horrível, Princesa, e esse Sábio louco estava me mandando para a morte brincando!
Do outro lado, há um movimento. Através da moita de samambaias arborescentes, Anamaya distingue o início de uma construção. Dois guerreiros se aproximam lentamente.
Villa Oma se apresenta e declina para a escolta, ruge:
- Só ela!
Ouve-se o grito do Anão, cômico e comovente:
- Princesa, não me abandone!
Anamaya, o coração apertado, não pode se impedir de sorrir.
- Se não quiser que eu mesmo jogue você no abismo, volte para Rimac Tambo com os yanaconas e os guardas - continua Villa Oma só com um pouquinho mais de paciência. - Só a Coya Camaquen está autorizada a prosseguir. Vá!
Os dois guerreiros tiraram dez galhos da grossura de um braço e os jogaram no abismo.
O Anão olha desesperado para Anamaya, mas não resiste à ordem. Ela lhe pousa a mão no ombro com afeição. Ele desaparece com os criados e os guardas no primeiro desvio do caminho.
Seu coração palpita. Ela está sozinha com Villa Oma. Além da ponte, o caminho, muito mais largo, continua em aclive bem suave sob a vegetação, depois é interrompido de novo, agora contra a própria montanha. À esquerda de Anamaya, há uma escada talhada na montanha, com degraus altos e largos de pedra. Olhando para cima, ela vê dois pilares maciços que marcam o fim da subida, como uma porta aberta no céu azul. Apesar do medo que a invade, ela sente uma exaltação nova.
- É aqui, não é?
- Sempre saber, sempre conhecer...
- Responda, Sábio.
- Estamos entrando no território dos deuses, onde só alguns homens são admitidos..
Anamaya permanece imóvel, olhando para o céu. - Assim como você deve jurar jamais transpor esta porta com um estranho, o nome que vou pronunciar não deve jamais transpor seus lábios.
- Esse segredo me pertence, e eu sou dele.
- Esse lugar se chama Picchu.
Anamaya entra na luz.
Capítulo 26
Toledo, outubro de 1529.
- Ho! Ho!...
Don Francisco surge de um bosquezinho cerrado de azinheiras e juníperos. A mão erguida, esporeando a montaria, ele intercepta Gabriel e grita:
- Aonde vai nesse passo, meu filho?
Vindo num trote longo, o cavalo de Gabriel se assusta com essa aparição. Numa guinada violenta, quase derruba o cavaleiro antes de saltar para uma picada estreita e disparar num galope desenfreado arranhando os jarretes nos espinhos dos juníperos.
Deitado no pescoço do cavalo, Gabriel deixa o animal dar vazão ao medo. Com uma voz doce, ele o acalma, afagando-o sem frear abruptamente seu galope.
Quando, afinal, torna a alcançar don Francisco, o meio-sangue andaluz do velho Capitão continua no mesmo lugar. Rijo como sempre, mas hoje vestido com seu gibão antigo de veludo desbotado, o mesmo que usava na saída das masmorras de Sevilha, don Francisco observa-o, com um sorriso irônico.
- Aí está um rapaz que sabe se segurar na sela e não só fazer palavras com uma pena!
- Monto desde criança! Mas o senhor quase me fez ir ao chão, don Francisco...
- E por que você me seguia? Está na minha cola desde que saímos da cidade!
- Me perdoe, don Francisco, mas... todos os dias, vejo-o saindo para passear bem cedinho...
- Passear? Tolice. Há trinta anos que medito galopando! Um dia sem galope é como um dia sem oração!
Com um muxoxo de mau humor, Pizarro bate na garupa de seu cavalo. Num trote curto, toma a direção do rio.
O dia está cinzento. As nuvens estão baixas, e a umidade forma moles arabescos de bruma que pairam ao longo do Tejo. Aqui e ali nos campos recém-arados, vêem-se mulheres e crianças catando os rabanetes remanescentes. As pontas vermelhas dos telhados de Toledo desapareceram no entrançado dos morros e dos bosques.
Por sua vez, Gabriel faz seu cavalo andar. Ao alcançar don Francisco, diz num tom um tanto rude:
- Senhor, por favor! Conceda-me um instante... - E para quê?
- Preciso saber. Vai me levar para a conquista do país do ouro? Logo chegará a carta nomeando-o Governador do Peru e...
- O que sabe a esse respeito?
- O senhor será Governador, eu sei. Vi o olhar do Rei enquanto o senhor falava da conquista!
- O olhar do Rei? Grande coisa! Não sabe que os reis vivem representando desde que abrem os olhos?
- Não, meu capitão! O senhor lhe agradou. Vai sair da Espanha Governador, tenho certeza...
Estalando as rédeas, Gabriel impele o cavalo, e dessa vez é ele quem intercepta o caminho de don Francisco, obrigando-o a parar.
- Senhor, não me deixe mais na expectativa inutilmente! Ontem, seu irmão don Hernando garantiu- me que o senhor não queria saber de mim e que em hipótese alguma eu embarcaria para as índias em seus navios... Logo de pois, Pedro o Grego me garantiu o contrário. Segundo ele, o senhor tem um pouco de amizade por mim... Don Francisco! Estou numa situação que... Gabriel não ousa terminar a frase. Com um toque da bota, don Francisco desvia o meio-sangue para colocá-lo no caminho certo e diz, num tom muito áspero:
- Está numa situação que não deve ser fácil, senhor filho do Marquês de Talavera!
- Não sou filho de ninguém, senhor!
Gabriel falou alto o suficiente para que don Francisco se voltasse, o olhar fixo e intrigado.
- Não é o que me disseram.
- Então o senhor está sendo enganado! Doravante, não sou filho de ninguém, e se lhe afirmam o contrário é só para me prejudicar. Eu sou apenas eu, corpo e alma. Minha hereditariedade só vai até as pontas das minhas botas.
O que aparece nos lábios do velho conquistador é um sorriso estranho e muito pouco usual.
- Eis uma frase que eu poderia ter dito há muitos anos!
Ele encara Gabriel como se o estivesse vendo realmente pela primeira vez, e o "aprendiz" afinal se apagasse para dar lugar a um homem de verdade. - Foi uma besteira muito grande que o mandou para os braços da Inquisição?
- Bastante grande... se até folha de árvore é suspeita de ter maus pensamentos! Ridícula, se nos atemos à realidade.
- E foi absolvido?
- Melhor que isso, senhor. Agora, da maneira mais oficial do mundo, eu não passo de uma sombra!
Don Francisco sorri de novo. Mas seu olhar fica mais duro e mais incisivo: - É capaz de me jurar fidelidade? Uma fidelidade absoluta. Uma abnegação que o levará a obedecer a mim, exclusivamente a mim, em qualquer circunstância? Isso deve ter um custo para o senhor, e alto...
- Sim, senhor.
- Por algum motivo que desconheço, meu irmão don Hernando o odeia. O senhor precisará agüentar o temperamento dele. E, sem dúvida, às vezes ceder ao orgulho dele, que é grande...
- Vou me esforçar para isso, senhor. Meu único desejo é que confie em mim como confio no senhor!... Don Francisco, eu não tenho pai. Mas admiro o senhor como admiraria meu genitor! Juro pela santa Virgem que é sua santa guardiã: eu lhe serei fiel até o sangue se for preciso!
Don Francisco balança a cabeça devagar, a expressão altiva. Mas sua boca treme. Ele mastiga em seco, cofia a barbicha com os dedos crispados. Depois, com um gesto brusco, retira do gibão um envelope grosso, fechado com um lacre que Gabriel reconhece logo.
- Senhor! Mas isso é a carta real!
- Chegada ontem. Entregue por dois pajens e tudo o que manda o figurino. Por sorte, Hernando não estava presente. Eu queria rezar um pouco antes de lê-Ia e finalmente ficar sabendo. Talvez seja uma recusa... Leia isso para mim, don Gabriel.
Febrilmente, com o polegar, Gabriel rompe o lacre. Não precisa de muito tempo para dar uma risada clara, cheia de alívio.
- Eu não lhe disse? O senhor foi nomeado Governador e Capitão geral de Nova Castela, chamado nas índias "Peru"... E... uma pensão real de setecentos e vinte e cinco mil maravedis... Tem muita coisa, senhor, mas está assinado pela própria Rainha, com data de julho último.
Fala de meus companheiros do Panamá? Que título para Almagro? Um instante... Ah! Está aqui: Don Diego Almagro, que participou pessoalmente dos trabalhos de descoberta de Nova Castela e em cujo financiamento empregou seus próprios bens e... “
- O título!
- AI guacil Mayor de Tumbez" senhor! O posto e os privilégios de capitão da fortaleza de Tumbez e cem mil maravedis por ano.
- Leia tudo em detalhes, don Gabriel. Desde a primeira linha e sem omitir uma palavra... E não muito depressa, por favor.
Gabriel lê, como Pizarro lhe pediu, lentamente, destacando bem as sílabas. E é como se cada palavra entrasse no seu sangue e o aquecesse no mais fundo de sua alma - como se ele já estivesse atravessando aquelas selvas, subindo aquelas encostas escarpadas para descobrir aquelas cidades cujos muros são de ouro.
Quando termina, fica um instante fitando a carta antes de ousar olhar de novo para o Capitão.
Pizarro chora - não de maneira tímida, envergonhada, como um homem que tivesse medo de ser confundido com uma mulher... Lágrimas belas e quentes que lhe sulcam as faces e vão se afogar em sua barba.
Gabriel se cala. Pizarro finalmente volta para ele uns olhos brilhantes: - Tudo é nosso, filho, tudo!
E Gabriel não pensa apenas, maravilhado, que encontrou um país - fantasia, com um espanto que o perturba, que encontrou um pai.
Machu Picchu, janeiro de 1530.
Num estirão só, eles sobem os degraus íngremes que levam às duas colunas de pedra que dão para toda a luz do céu.
Villa Oma vai à frente. Há no ar uma espécie de ternura, como se a transparência do céu, o azul do Outro Mundo de Cima ou os verdes inumeráveis das encostas possuíssem um hausto único, uma respiração contida e calma.
Mas quando chegam entre as colunas, Anamaya só vê um caminho largo, calçado com tanto cuidado que não há nenhum mato entre as pedras. O caminho sobe ainda suavemente entre dois pequenos bambuzais onde vicejam grandes orquídeas. Depois, duzentos passos à frente deles, torna a formar um corte aberto no vazio.
O coração de Anamaya bate tanto que ela tem dificuldade de respirar. Sua nuca, suas mãos estão molhadas de suor. Não é do esforço. Hoje a marcha não foi longa nem difícil.
De repente, diante dela, enquanto aparecem as encostas das montanhas distantes, o Sábio fica imóvel. Seus braços se abrem, os dedos voltados para o chão. Anamaya chega até ele.
A cidade proibida está ali embaixo.
Jamais seus olhos se depararam com semelhante esplendor. Jamais seu coração recebeu tanta beleza.
Incrustados no entrançado de picos e vales, como uma imensa e perfeita escultura, seus flancos mergulham, de terraço em terraço, nas encostas vertiginosas que encontram o rio roncador.
Casas, ruas, templos, pátios, muros e culturas sagrados desenham um tecido estampado de marrom, ocre e tons suaves ou ácidos de verde, fino e sutil como um unku real.
Em torno da cidade e até onde a vista alcança, longe no mundo que os homens não conhecem e erguidas no azul opaco do céu agora carregado de nuvens, as montanhas envolvem Picchu como guerreiros atentos. As escarpas vertiginosas se embaralham na claridade vespertina, cortantes como a crista de um Cumbi e cobertas de um verde infinito até o pico mais alto. Muito longe, no estreito vale onde corre o rio amarelo semelhante à serpente eterna, já estão nascendo as brumas da noite.
- Picchu - murmura Villa Oma. - Picchu! Ánamaya estremece, a garganta seca.
Do alinhamento esmerado de tetos de Picchu, amarelo- vivo ou cinza, sobem aqui e ali espirais de fumaça. Um grupo de homens e mulheres atravessa a longa praça central coberta com um tapete de relva. As cores vivas de suas túnicas e das capas brilham à luz do poente, ornamentos de ouro faíscam, enquanto as sombras já estão longas e compactas nos vales.
- Venha cinco passos atrás de mim - ordena Villa Oma prosseguindo. Mas Anamaya entende o que vê e fica paralisada. Pelo jogo de luz e sombra do entardecer, a forma do pico que domina a cidade sagrada do oeste fica evidente. O puma está diante dela.
Como uma fera satisfeita pela longa corrida de uma caçada vitoriosa, a montanha adormeceu. Focinho nobre para o alto, ela encerra em suas patas poderosas os templos, as ruas, as casas, os terraços de linhas macias como as dobras de uma peliça!
- A montanha está viva - murmura Anamaya sem se dar conta de que está falando sozinha. - A montanha está viva!
Mas ali embaixo, Villa Oma se volta e, com um gesto imperioso, faz sinal para que ela vá em frente.
Quando chegam perto dos primeiros muros da cidade, ele torna a parar. Aponta para uma casinha de portas largas num dos terraços sobrelevados. - Vá me esperar lá - ordena. - O tempo que for preciso. Sobretudo não saia dali.
As perguntas se acotovelam na cabeça de Anamaya, mas o olhar do Sábio não admite réplica. Secamente, sem um adeus, como se estivesse demasiado intimidado por aquele local para mostrar sua afeição, ele continua seu caminho.
Ànamaya o acompanha com os olhos enquanto ele desce uma longa escada que, de repente, faz uma curva abrupta de noventa graus e, mais íngreme, vai beirando um muro alto. Mas na curva, há uma entrada fechada por um portão de bambu. Villa Oma pára diante do portão e, sem conseguir entender o que ele diz, Anamaya o ouve gritar algumas palavras.
Nada acontece por um bom tempo, como se o Sábio tivesse o acesso proibido.
Depois, de repente, o portão basculante se abre lentamente e revela uma rua estreita entre casas baixas. Surgem três homens, lança em punho mas com a capa passada no ombro direito à maneira dos sacerdotes. As saudações são longas. Villa Oma fala muito, curvando-se diversas vezes em sinal de respeito. Finalmente, ele entra e desaparece atrás dos sacerdotes enquanto o portão de bambu está aberto.
Até tarde da noite, Anamaya fica sentada diante da casinha vazia que domina Picchu.
Acima dela, e enquanto ainda está claro, centenas de camponeses trabalham nos terraços. Alguns amanham a terra em volta dos brotos jovens de milho que servirão para fazer a chicha das cerimônias, outros plantam favas sagradas ou, nos terraços mais baixos, colhem folhas de coca que jovens levam para a cidade em enormes fardos. Estes vão tão carregados que, quando sobem as escadas íngremes, só se vêem seus pés.
Há pouco barulho, não se ouvem gritos. Sacerdotes também vão nos terraços, reconhecíveis por seus unkus sedosos e os brincos enfiados em suas orelhas. Eles supervisionam o curso da água nos canais de irrigação, controlam as plantações, às vezes salmodiam diante dos regos ou simplesmente contabilizam os carregamentos de coca...
Nem uma vez sequer alguém se aproxima dela. Um grupo de crianças, no entanto, conduzindo uma tropa de lhamas a uns terraços afastados, sobe as escadas ali perto. Mas nenhuma delas olha para ela.
É como se ela não existisse. Como se não passasse de uma sombra do Outro Mundo!
De repente, os blocos de névoa da noite escapam do rio. Sobem a toda entre as escarpas como pássaros loucos. Uma umidade fresca transforma-se em brisa, vergando os pés de milho.
É então que se ouve pela cidade o canto das mulheres. Anamaya as vê surgindo de um bairro mais abaixo. Elas atravessam a esplanada em direção a casinhas aninhadas no muro de cinta. São muito numerosas, vestidas de branco, vermelho e amarelo, com toucados de ouro na cabeça. Em fila tripla, elas caminham no mesmo passo, sobem as escadas.
Depois o canto cessa, bruscamente substituído pelo som de uma trompa que vem do ponto culminante da cidade, onde surge a pedra que segura Inti, o Pai Sol.
Agora são homens que surgem na esplanada. Mas eles não estão em fila, cada qual vai para um lado. Anamaya reconhece Villa Oma. Ao lado de um sacerdote com um pesado cocar de plumas cujas cores agora no escuro são indiscerníveis, Villa Oma se dirige para uma ampla escada. Após tê-la subido lentamente, ele desaparece numa comprida construção retangular. Minutos depois, o breu é absoluto.
As montanhas não são mais que massas indistintas que parecem vibrar no escuro como monstros adormecidos. O céu está carregado de nuvens, sem lua nem estrelas.
Começa uma chuva fina, molhando tudo em alguns segundos. Anamaya refugia-se na casa. No chão de terra batida, não há sequer um banco de pedra, de Picchu ou de adobe para se deitar.
Ela se agacha encostada a uma parede, de frente para uma das portas. Ouve o silêncio, a chuva. Sente o cheiro da fumaça das lareiras que se espalha no ar impregnado de umidade. Às vezes, sente-se um cheiro de sopa.
Ela está com fome. Mas entendeu que naquela noite não vai comer. Fica o máximo possível de olhos abertos para a escuridão como se ainda pudesse ver surgir uma tocha ou ouvir a voz de Villa Oma chamando.
Mas só se ouve o silêncio da montanha.
Ela adormece sem sequer perceber, esgotada de emoção.
E acorda sobressaltada, julgando ter ouvido o berro de uma onça. Acha que só dormiu um instante. Mas não. Já não chove e as estrelas brilham intensamente no céu.
Ela se levanta, sai da casa. Sim, o céu está limpo e faz um calor abafado, como se o ar fosse grosso o bastante para ser espremido entre as mãos. A cidade sagrada dorme no escuro, entre as patas do puma. Isolados, sob o brilho das estrelas, ao longo de uma escada onde ela viu na véspera uma sucessão de chafarizes, brilham bonecos de ouro do tamanho de uma criança. Para ver melhor as estrelas e as sombras da Cidade sagrada, Anamaya se afasta da casa. O sono abandonou-a definitivamente. Sentada nos degraus de uma escada, envolvida em sua manta que mal a protege da umidade, ela vela como se estivesse sozinha no mundo.
Totalmente só.
Gostaria de ouvir o chamado de Huayna Capac, o velho Inca. Gostaria de ouvir sua voz misteriosa e reconfortante. Mas só há silêncio.
Sem saber por que, ela tem medo de entrar na Cidade sagrada. O maravilhamento da descoberta passou e ela de repente se sente como antes, quando era pequena, impotente e sem forças. Quando nada sabia do mundo invisível, quando ria e nada temia. Quando não sentia o puma escondido numa montanha...
Mal o dia começou a raiar, enquanto todo o seu corpo está insensível por causa da umidade, a porta da cidade se abre.
Os três sacerdotes que acolheram Villa Oma na véspera vêm até ela e, mais por gestos do que por palavras, ordenam-lhe que os siga.
- Prometa a Mama Quilla manter a boca fechada para sempre, não revelar a ninguém o caminho que a trouxe aqui nem o que você vê!
De pé entre duas muretas que lhe batem na cintura, Anamaya está na ponta de uma plataforma. Ela domina um despenhadeiro tão vertiginoso que parece que o fundo do vale lá embaixo pode caber na palma de sua mão.
Atrás dela, o Sumo Sacerdote Huilloc Topac esbraveja sua ordem. Sua boca é fina como a de Villa Oma, esverdeada de coca. Mas seus olhos têm um tom cinza estranho. Segundo Villa Oma, são as centenas de noites de observação das estrelas que branquearam assim suas íris.
- Olhe para Mama Quilla e faça-lhe sua promessa! - ruge mais uma vez o Sumo Sacerdote.
Anamaya fita as cristas denteadas da montanha mais alta barrando o horizonte do oeste. As nuvens se rasgam aí, desvelando as dobras das encostas que a vegetação cobre como um pelego. E, como se o céu, o vento e a chuva obedecessem a Huilloc Topac, de repente surge uma faixa azul. No centro dela, a lua brilha branca e pura, quase cheia.
- Prometo, Mama Quilla - diz Anamaya em voz alta - , prometo nunca revelar nada sobre a Cidade sagrada! Ficarei calada sobre os caminhos que levam a ela e guardarei no coração o que vir ali. Que me arranquem a boca se eu quebrar essa promessa...
Mal ela se cala, sente pesar-lhe no ombro a mão bruta de Huilloc Topac. Ele a obriga a se debruçar no muro de pedra, projetando o corpo para a frente e agarrando-se à pedra como pode.
- Olhe o vazio lá embaixo, menina. Olhe com atenção, pois é onde você será jogada se violar sua promessa! Ninguém jamais deve ouvir falar de Picchu! Ninguém deve saber que ela existe. E mesmo se o seu Senhor Atahualpa lhe perguntar, você deverá responder com o silêncio. Entendeu bem?
Huilloc Topac solta-a para que ela possa se voltar e lhe responder fitando-o nos olhos:
- Entendi, Poderoso Sacerdote.
Afastado, Villa Oma conserva os olhos fechados. Tudo em sua postura fala de sua humildade e de quão humilde ele quer ser aqui.
- Agora, acompanhe-me, menina prodígio!
Há na voz de Huilloc Topac tanto ironia quanto desprezo.
Ele gira nos calcanhares, no caminho de pedra flanqueando o precipício, e toma a direita na primeira escada que sobe ao posto sagrado das observações. Anamaya o acompanha e ouve às suas costas o leve ruído das sandálias de Villa Oma.
Há quatro dias, ela está dentro das muralhas de Picchu. Há quatro dias, é mantida num aposento minúsculo, com um reboco ocre nas paredes mas sem nenhuma decoração, sem nichos para efígie alguma. Há quatro dias ninguém, homem, mulher ou criança, dirigiu-se a ela. Nem mesmo Villa Oma que ela entreviu uma vez apenas, bebendo a chicha sagrada com os sacerdotes em volta da Intihuatana, a pedra onde o Sol se sustenta.
Às vezes, quando ela queria se aproximar do bairro dos templos, das fontes de ouro, da huaca do Condor, erguiam-se mãos e, com gritos furiosos, ordenavam- lhe que recuasse. Ela passou uma tarde inteira agachada na soleira das oficinas dos joalheiros, vendo-os martelar os lhamas de ouro, os brincos, incrustar as esmeraldas e as plumas nos chapéus e peitorais. Mas nenhum ourives lhe concedeu um olhar.
As crianças esbarravam nela quando corriam, como se não a vissem, as mulheres sentadas de dez em dez diante dos teares desviavam os olhos quando ela se aproximava como se, com um olhar, ela pudesse sujar a maravilhosa obra delas... E quando finalmente voltava para seu aposento solitário, ela encontrava no chão uma tigela de chuño, uma mistura de favas. Mas sem nunca ver a mão que lha trazia!
- Você precisava poder jurar diante de Mama Quilla murmura VilIa Oma, alcançando-a no alto da escada. - E todos esses dias, o céu esteve encoberto.
- Mas por que não veio me ver? - exclama Anamaya, surpresa de finalmente estar ouvindo sua voz.
- Fale mais baixo! Na presença do Sumo Sacerdote só podemos falar baixinho!... E eu não podia vir visitá-la porque, antes da sua promessa, ninguém tinha o direito de vê-la nem de se dirigir a você. Era como se a sua aparência física ainda não estivesse em Picchu.
Diante deles, Huilloc Topac vem vindo depressa pela ruela que leva à esplanada. Bruscamente, ele dobra à esquerda, embrenha-se numa viela estreita, uma das que haviam sido vedadas até agora a Anamaya. Como ela hesita, Villa Oma Ihe dá um empurrãozinho.
- Você tem direito! E não se aflija. Huilloc Topac é um homem severo e taciturno, mas é justo. E conhece a realidade do céu como ninguém. Há vinte anos que ele vive aqui e passa as noites falando com as estrelas. Além do mais, ele é irmão de Colla Topac. Só ele pode ainda ter o poder e a vontade de restabelecer a ordem...
A sala onde Anamaya entra acompanhando o Sumo Sacerdote é muito estranha. As paredes são de pedras encaixadas à perfeição e de textura regular, cujo volume vai diminuindo para o alto. Este é o sinal de um local de grande importância. Duas janelas em trapézio dão para o vale de Wilcamayo e delas se podem avistar os picos de oeste assim como a serpente amarela do rio fervilhante. Mas a sala não tem teto. E, no chão, duas grandes bacias de granito, pouco fundas, contêm uma água muito límpida. Sentados a um canto, diante de um bambu com uma quantidade de quipus pendurados, jovens sacerdotes contam diligentemente os nós dessas espécies de rede de cordames. Às vezes, com grande agilidade e rapidez, eles acrescentam um nó, outras, desmancham um fio inteiro. É assim que, através das luas e das eras, conserva-se a memória do Império e dos altos feitos dos Incas.
Huilloc Topac faz sinal para que os sacerdotes saiam do aposento e, quando ficam a sós, volta-se para Anamaya e pergunta secamente:
- Então, você viu o cometa e achou que o sinal estava lá. Atahualpa deve ser o Inca?
Anamaya fica tão surpresa com a brutalidade da pergunta que não responde logo:
- Huayna Capac, quando passou para o Outro Mundo, passou a noite inteira conversando com ela - murmura Villa Oma constrangido. - E ela encontrou o puma na...
- Eu sei! - corta Huilloc Topac. - É ela que eu estou interrogando. Responda, menina dos olhos azuis!
- Sim, Poderoso Sacerdote. Eu vi o cometa e sei que meu Senhor Atahualpa deve ser o Inca.
- Você sabe! - Sei.
- Sabe também o que aconteceu ao poderoso Colla Topac.
- Quando ele morreu, eu estava segurando as mãos dele. Ele também sabia. Por isso foi torturado e morto de maneira tão atroz.
- Ah!
Com um gesto de dor, Huilloc Topac vai até as bacias de granito e se curva diante delas. A água, naquele momento, reflete apenas a passagem das nuvens.
- Vi sombras na noite - murmura ele. Vi escuridão na escuridão. Estrelas se ausentaram e há vazios no céu... eu nunca havia feito observações como essa!
Seu tom recolhido e preocupado encoraja Villa Oma, que desta vez diz com vigor:
- Se não fizermos nada, o Império dos Quatro Lados vai se desmembrar! A guerra entre Atahualpa e os clãs de Cuzco vai devastar tudo. E se a força for igual dos dois lados, o Império vai se esboroar.
- Você pede que eu tome um partido, Villa Oma! Eu sou um sacerdote das estrelas. Não sirvo nem a Cuzco nem a Atahualpa. Sirvo a Inti, Quilla e todos aqueles que nos criaram e nos protegem!
- Precisamente, Huilloc Topac! Não estou pedindo que escolha um clã, mas que salve a nós todos, os Filhos do Sol. Estamos quebrando o equilíbrio! Estamos tomando a força dos Ancestrais sem lhes fazer nenhuma oferenda. E vim com esta menina pois os Anciãos do Outro Mundo confiam nela. Dê-lhe a pureza e a energia de ouvir a voz deles. Que Huayna Capac ordene sua vontade por ela antes que seja tarde demais! Aqui, só ela pode receber este dom! E nós também rezamos aqui. Não há lugar mais sagrado...
- Pureza e energia! - resmunga Huilloc Topac olhando para Anamaya. - Se ela conseguir agüentar, faremos uma oferenda amanhã de manhã! Enquanto isso, que ela vá se banhar nas Vinte Fontes. Avise as mulheres para prepará-la...
Cádiz, janeiro de 1530.
O dia no porto de Cádiz foi muito barulhento.
Há três dias, desde o amanhecer, uma ladainha de carroças e mulas de carga desfila ao longo do San Antonio. Cerca de vinte ou trinta homens, num balé persistente, descarregam sacos de farinha, grão-de-bico, carne-seca, lenha, jarras de azeite ou de vinho, caixas de suarda ou engradados de laranjas... Apesar do frio de janeiro, a maioria está de torso nu, com as espáduas brilhando de suor. Em pé no castelo de popa, Gabriel supervisiona essas idas e vindas. Ele mandou instalar uma espécie de escrivaninha no convés. Num livro com capa de couro, anota a natureza e o volume dos carretos. De vez em quando, vê o Negro Sebastian ir escorregando com agilidade do casco até o cais, levantar uma gamela, abrir um saco, sopesar e até contar, acompanhado pelo olhar irritado do capitão da nave. Quando está tudo bem, a mão comprida de Sebastian levanta-se na direção de Gabriel, que registra.
Porém, por duas vezes, o que ele ergue é o punho, o polegar voltado para baixo. Então o balé dos carregadores pára. Um quintal de farinha mostra-se excessivamente cortado com centeio. Pouco depois, verifica-se que alguns potes da pólvora para carregar as colubrinas estão tão mal conservados que a umidade deixou o material coagulado!
- Pólvora úmida é pólvora morta - diz Sebastian sorrindo. - E uma pólvora morta são muitos homens do lado errado da colubrína!
O capitão do San Antonio, homem seco, grisalho, com a pele curtida como a de um mouro, irrita-se e toma o partido dos comerciantes. Faz ecoar sua voz estentorea:
- Ei, Negro! Quem você acha que é? Não é um preto que vai me ditar os seus caprichos! Quem manda no navio sou eu!
- Com as minhas desculpas, capitão - replica Sebastian sem perder aquela calma que aumenta a fúria do marujo. - A bordo do navio, sem dúvida, mas no cais, negativo. Aqui, quem manda é ele!
Ele aponta para Gabriel que, pressentindo a discussão, já chegou lá. Com gestos tão secos quanto a palavra e o olhar, abre por sua vez os sacos de farinha e os potes de pólvora.
Os olhares pesam em suas costas, ainda mais escuros que a pele de Sebastian. É com uma severidade glacial que ele confirma o diagnóstico:
- O señor Sebastian está coberto de razão, senhores. Imaginem se vou aceitar esses restos! Essa pólvora não explodiria nem dentro de um forno. já essa farinha só pode agradar aos gorgulhos!...
Os comerciantes protestam, o capitão fica indignado. Gabriel, após olhar para Sebastian cujo sorriso irônico está mais rasgado, diz palavras cortantes como vidro:
- Eu falei não, senhores. E é não. Estamos perdendo tempo. Levem de volta os seus sacos antes que o señor Sebastian mande jogar tudo no mar.
O carregamento recomeça sem outro incidente. Finalmente, uma hora antes de anoitecer, o cais fica vazio diante do San Antonio.
Um derradeiro carreto se afasta. O silêncio volta, entrecortado pelo ranger dos cascos ou dos mastros, pelo guincho das gaivotas ou pelas risadas dos marujos remendando velas.
Gabriel está secando sua escrita com um pouco de areia quando é surpreendido por uma voz forte:
- Suponho que esteja satisfeito, senhor conselheiro do Governador! Os porões estão cheios e como lhe convém...
O capitão do navio chegou no castelo de popa, de mansinho como um gato. Mostrando o livro aberto e a pluma que Gabriel ainda está segurando, acrescenta:
- É a primeira vez que controlam assim meu carregamento... Se quiser saber o que penso no fundo, isso é uma atitude da Santa Inquisição! Gabriel não consegue deixar de rir:
O que pensa no fundo, capitão, é tão fantasioso quanto errado. A verdade é que o Governador Pizarro me confiou uma tarefa para que eu a execute da melhor maneira possível. E estou me esforçando para isso. Vamos! Não faça essa cara. Adeus comissão sobre a farinha e a pólvora... Mas a bolsa cheia de ducados que me extorquiu para não demorar deveria compensar esse dissabor.
O capitão enrubesce. Seu tom fica acre como uma barrica de salmoura. - O senhor é muito jovem para se permitir esse tipo de observação. Ainda mais que, se compreendi bem, essa é sua primeira travessia!... Deixe que eu lhe diga que, novatos do seu tipo, eu já vi partir vários. Eles vão para as índias todos cheios de si. Mas veja bem, é raro fazerem a viagem de volta!... Muito boa noite, senhor. Vamos levantar âncora, como previsto, uma hora antes do amanhecer.
Mal ele girou os calcanhares para desaparecer no camarote de popa, ouve-se a risada de Sebastian.
- Esse é um que não vai rir para nós nos próximos dois meses!
- Contanto que ele leve o barco até o outro lado do oceano – diverte-se Gabriel -, dispenso os favores dele...
Enquanto ele fecha o livro e arruma suas penas, o sorriso do Negro corpulento se desfaz para dar lugar a um embaraço não habitual...
- Eu lhe devo um agradecimento, don Gabriel. - A mim?
- Normalmente, chamam-me de negro, noz de ébano, preto ou outros nomes doces; não é muita gente que me chama de "señor Sebastian"! A não ser Pedro o Grego, é verdade...
Gabriel hesita por um momento, sob o olhar intenso do Negro. Depois dá uma risada fingindo desenvoltura:
- Puxa, señor Sebastian, não vejo nada de espantoso nisso. Vamos conquistar o Peru, o mundo se amplia: é normal que agora sejamos dois a apreciar a sua companhia!
Eles riem juntos, mas o embaraço os força a desviar logo o olhar para a floresta de mastros e vergas balançando docemente à luz avermelhada do entardecer.
"Em alguns minutos", pensa Gabriel, "o astro de fogo deslizará no oceano com essa falsa aparência chata. Enquanto aqui é noite, ele estará brilhando lá, no país do ouro! Lá onde logo estaremos e finalmente eu poderei ser eu sem entrave... E quem sabe se o Grego não tem razão, se a marca em meu ombro não é uma predestinação de verdade?”
- É difícil saber o que nos espera lá, don Gabriel - murmura Sebastian como se tivesse penetrado em seus pensamentos. - Às vezes, sonho que tem tanto ouro nesse Peru que eu até poderia ser um homem livre, tão livre como se minha pele clareasse! Mas isso aí é história para criança. Don Francisco talvez seja o Governador do Peru, mas, por enquanto, só governa sonhos.
O Peru é do outro lado do mundo e esses incas de quem o índio Felipillo vive falando é que mandam lá! Eles não se deixarão vencer só porque aparecemos. E don Francisco nem sequer arranjou um número suficiente de homens...
- Eu sei - corta Gabriel. - Assim como o capitão deste navio, que me pediu cinqüenta ducados suplementares para zarparmos no meio da noite, antes que os Oficiais do Conselho das índias nos dêem a autorização para isso! Mas vamos consegui-la na cidade do Panamá.
- Se ainda houver bastantes loucos que queiram nos seguir! Estou lhe dizendo isso por amizade, don Gabriel: o senhor fez tudo para ser dos nossos. - Há dias em que me pergunto se eles me consideram mesmo dos deles...
- Está querendo falar de Hernando?
- Os irmãos mais moços do Capitão não são melhores, se vi direito: aquele Juan e aquele Gonzalo têm sangue quente e espero que sejam nobres combatentes. Fora isso... Mas esta noite, no fundo, pouco me importa. Só mesmo don Francisco para acreditar no sonho dele. Esta tarde, esta noite, está começando minha verdadeira vida. Eu sei, eu sinto! Sim, como se o céu todo vermelho ali na nossa frente estivesse me chamando, como se o próprio sol, desaparecendo do outro lado do horizonte, estivesse procurando me levar!
Machu Picchu, janeiro de 1530.
A noite inteira, ela sentiu a umidade encostar em sua pele e penetrá-la, apesar da proteção das paredes e das cobertas. Antes de adormecer, no poente, ela ficou muito tempo debruçada numa janela, o olhar caindo como uma pedra no vale em cujo fundo o Wilcamayo rugia. Está ali, pertinho, esse vazio magnífico, e na umidade do ar, cada vez que abre os olhos, ela se vê voando ali leve como um pássaro.
As palavras de Villa Oma e as dos sacerdotes passam por sua cabeça como mariposas: a guerra parece muito distante neste local onde os deuses convidaram os homens contanto que estes se fechassem em segredo. E no entanto Villa Oma disse e repetiu - a guerra está próxima, a guerra já está aí.
- Amanhã, quando o dia raiar... - murmurou ele antes de deixá-la para a noite.
Então, a noite toda, exasperada pelas emoções dos últimos dias, ela espera o alvorecer tiritando. Amanhã, quando o dia raiar? Ela ouve os cânticos abafados que atravessam a noite e mais evocam lamento do que festa: as vozes rodeiam-na, chamando- a para juntar-se a elas. Ela se agita em vão. Amanhã, quando o dia raiar? Ela procura um claro na abertura sobre o vale, chama silenciosamente o Inca Huayna Capac. Mas não aparece nenhuma luz no vale, nenhuma voz vem ajudá-la.
Quando os primeiros raios do sol atingem os picos nevados de uma cordilheira distante, ela está dormindo profundamente e Villa Oma vem sacudi-la para despertá-la. Ela abre os olhos sobressaltada: seu coração está aos pulos. A claridade que penetra em sua pequena cela ainda é cinzenta. Ela se levanta e arruma o tupu, o alfinete que segura sua manta.
- Está na hora - diz simplesmente Villa Oma.
Eles atravessam as ruelas estreitas da cidade, subindo para o templo do Sol cuja cúpula ela vê. Sem que ela queira, seu olhar é incessantemente atraído para as montanhas, o vale e o rio roncador. Quando ela vira para trás, a luz invade o Huayna Picchu e faz brilhar o ouro em seu rochedo ocre.
Na frente do templo, o sacerdote Huilloc Topac os espera. Sua roupa branca é de fina lã de vicunha, e ele está com seu barrete sagrado. Um sol dourado cobre-lhe a testa.
Villa Oma curva-se diante dele.
O olhar de Anamaya é atraído pelo grupinho de yanaconas, os que saem do templo carregando uma rampa, uma liteira decorada bem menos ricamente do que a da múmia, mas coberta como esta com um cumbi de textura finíssima.
Ela treme.
Embora o sol já se tenha levantado, o ar continua úmido. Em cima da Porta do Sol, concentram-se algumas nuvens.
O grupinho sobe devagar para a casa do guarda, ao longo da espetacular superposição de terraços das culturas sagradas - do malva da quinoa até o ouro fulgurante do milho. Ninguém diz uma palavra.
À frente, caminham o Sumo Sacerdote e o Sábio, depois os yanaconas com a liteira, outros servos com seis lhamas brancos. Anamaya fecha o cortejo. Quando eles se afastam dos prédios, ela vê que estão tomando o rumo da Porta do Sol, o Inti Punku por onde ela primeiro avistou a cidade. O caminho é perfeitamente calçado e, apesar da ladeira, avança- se sem esforço. Eles sobem mais alto que os terraços de milho. Ela ergue os olhos para a montanha cujo pico se destaca acima deles como uma asa de pássaro no céu azul ainda pálido.
Machu Picchu. O velho pico. Murmurando essas palavras para si mesma, Anamaya sente a apreensão lhe apertar o estômago e o peito.
De repente, o sacerdote deixa o caminho do Inti Punku e vira à direita para subir uma escada que vai dar direto na encosta, para o Machu Picchu. Anamaya corre para alcançar o sacerdote e Villa Oma. Ao passar, olha para dentro da rampa. Em vão.
- Aonde vamos?
Villa Oma esboça um gesto apontando para o cume. - O que vamos fazer?
O tom ansioso em sua voz irrita o Sumo Sacerdote, que se volta severamente para ela, depois para Villa Oma.
- Como essa menina ousa se dirigir a nós desta maneira? - Só estou perguntando o que vamos fazer.
- Uma oferenda a Inti - diz a voz cansada de Villa Oma.
- Os lhamas?
Villa Oma não responde. O olhar de Anamaya volta- se para a liteira. Villa Oma desvia os olhos.
O caminho fica mais estreito e mais íngreme; sobretudo, eles entraram numa zona de floresta onde a vegetação é tão cerrada que esconde o céu. Touceiras de orquídeas amarelas, vermelhas e cor-de- rosa despontam aqui e ali naquele mar de folhagem. Em toda parte - à beira do caminho, descendo os rochedos - vê-se água correndo.
Quando eles emergem acima da floresta, ela se vira, e o choque da cidade lá embaixo lhe tira o fôlego. É como se ela tivesse batido asas e estivesse voando no alto, podendo ver a ordem perfeita dos terraços, das casas e dos templos, com a mancha verde da esplanada central.
Depois, ela ergue os olhos e avista o cume do Machu Picchu, que se destaca negro no céu de um azul mais intenso a cada instante.
- Eu não lhe ensinei, desde o primeiro dia, não a trouxe para conhecer? A voz de Villa Oma a surpreende: é quase queixosa.
- Eu não lhe contei o nosso longo caminho para a luz e não a iniciei na compreensão da guerra cujo fogo já nos devora?
- Você queria me dar ao puma e foi por ordem de Huayna Capac que me deixou viver.
- Eu lhe contei tudo, trouxe-a aqui, a nosso lugar mais sagrado, e agora...
- Não estou entendendo, Villa Oma.
De cada lado do caminho erguem-se dois panos de muro. O coração de Anamaya bate mais depressa: neste lugar, a montanha revela seu mistério. Os yanaconas pousam a liteira. A tela fina do cumbi tremula como se soprada por uma leve brisa. Uma menina desce. Não tem mais que dez anos. Há um fio de coca escorrendo na comissura de seus lábios. Está vestindo um simples anaco branco, tingido de vermelho na cintura. Mergulha os olhos negros e intensos nos de Anamaya, que neles não vê sorriso nem medo. Nada. Anamaya entende e a revolta a emociona.
- É isso que queria me contar? Que ia sacrificar essa criança?
- Cale-se!
A voz de Villa Oma recuperou a qualidade imperiosa. Os servos abaixam a cabeça e os lhamas se agitam nas pontas das rédeas.
- O universo vai ser sacudido, a guerra já está incendiando o céu, Viracocha agita o oceano, uma grande virada se prepara... E você me fala da vida dessa criança? Capacocha, nossos pais praticavam esse sacrifício, bem como os pais deles, e foi assim que os incas se tornaram os senhores. E você, a menina dos olhos azuis, quer interromper a ordem do universo, impedir que o sangue volte à terra?
Cada palavra do Sábio acerta Anamaya no coração. Sim, ela seguiu seu ensinamento, e sua estada na cidade secreta permitiu-lhe o acesso ao mais profundo da alma inca. Sim, ela sabe que é preciso dar vidas para que a Vida continue. Sim, ela está infelicíssima diante das perturbações que se anunciam. E no entanto, diante do olhar sem expressão daquela menina, algo profundo nela, algo recalcado há luas e luas, volta à flor de seus lábios.
Ela abaixa os olhos, fecha-os um instante para fugir da luz. Villa Oma se cala. Ele sabe que ela está se submetendo. - Vamos - diz simplesmente.
Anamaya dá alguns passos em direção à menina. Acaricia seus cabelos, lhe dá a mão.
- Venha - diz baixinho -, vou ficar com você.
- E enquanto avançam na trilha, ela sente a mão da menina na sua, quente como um bichinho que se entrega a ela.
Machu Picchu, janeiro de 1530.
O caminho é ladeado por uma barreira de -rochedos, alta como uma muralha de fortaleza.
Anamaya caminha sem tremer para não assustar a criança agarrada à sua mão.
Quando se abre uma falha no rochedo, ela não se detém, esgueira-se pela brecha levando a menina no colo. Ela só se vira depois de estar do outro lado, na trilha estreita que agora só domina um abismo imenso, assustador, no fundo do qual a cidade parece minúscula.
Só há céu e, no meio do céu, um pássaro planando, mancha negra no horizonte das nuvens e montanhas, um raio no céu.
O próprio pico da montanha, bem acima de sua cabeça, é uma pluma de pássaro perdida no céu, à mercê dos ventos.
Vazio embaixo, vazio em cima - quase não há mais terra, só há céu e ar, não há nada mais a segurá-la no mundo senão esta mãozinha na sua.
Justo antes do cume, na estreita faixa de terra que as separa do céu, há uma mesa de oferenda escavada na huaca. Ao longe, para além das nuvens, ergue-se o Salcantay em sua eternidade nevada. Um manto de bruma faz-se e desfaz-se, como se tiras de uma fina lã de vicunha flutuassem no céu ao sabor do vento. Num piscar de olhos, clareia e depois escurece.
Anamaya senta-se com a menina nos joelhos. Pega suas mãos e entra com ela numa espécie de embalo, de embriaguez. A criança também mascou coca, também bebeu chicha e está indiferente à idéia de ser sacrificada. Às vezes, Anamaya sente seus dedos pegando a cabeça de uma das serpentes de seu bracelete de ouro e enganchando-se aí.
Se se levantarem e derem alguns passos, elas voarão sobre as asas do condor antes de mergulhar no rio cujo ronco, lá no fundo do vale, não passa de um vago rumor.
Diante da buaca, os criados preparam uma fogueira para as primeiras oferendas: milho, quinoa, coca...
Depois virão os lhamas. Depois a menina. Anamaya não tem mais medo. Não está mais revoltada.
Não foi a Villa Oma que se submeteu: foi ao universo inteiro, às montanhas, às nuvens, ao sol e à sombra.
Seu olhar paira em volta da paisagem, do pássaro também, sobe com as nuvens que agitam o céu e desce até as casas da cidade secreta que, daqui, parecem seixos, grãos de areia. Ela murmura no ouvido da menina uma espécie de cantiga, embala-a.
A bruma formou uma massa cada vez mais compacta que desce no vale e aos poucos esconde a cidade. O céu azul-pálido ficou quase branco. O pássaro se afastou e só há os uivos do vento.
Ela vê o puma.
Sua sombra gigantesca invade o Huayna Picchu, a montanha que domina a cidade e a protege com toda a sua jovem força. Seus olhos são dois rochedos e sua boca, a sombra de uma greta; suas orelhas estão em pé como se ele fosse dar um bote, e suas patas mergulham no oceano de bruma.
Anamaya sorri: o puma é seu amigo.
- Não tenha medo - murmura ela no vento para a menina -, não tenha medo e olhe o puma...
O sangue dos lhamas foi recolhido nos vasos de ouro. Os sacerdotes e o Sábio estão em frente a elas.
Elas se levantam. Anamaya com as mãos pousadas nos ombros da criança, cujo corpo agora faz parte do seu.
- Agora - diz Villa Oma.
Na hora em que Anamaya abre os braços, ouve-se uma trovoada roncar no horizonte e atravessar o céu.
O condor. O pássaro da força e da morte enche o céu inteiro com seu estrondo e vem trazer sua sombra bem em cima de suas cabeças.
O ar está negro.
O sacerdote suspende a mão onde brilha o tumi de prata.
- Sou Huayna Capac - diz Anamaya com uma voz firme que domina o vento e as primeiras gotas de chuva - ,sou o Inca cujo reino viu a força do Império das Quatro Direções.
"Vejo tudo o que vocês vêem, mas vocês não me vêem. Vejo o Sol se escondendo e a Lua se deitando, vejo os turbilhões sacudindo a terra e o céu. "Vejo o caos, vejo o sangue correndo em vão, vejo o universo revirado, vejo exércitos rolando ao longo das torrentes como pedras, vejo o irmão batendo no irmão, o filho matando o filho, ouço o grito das mulheres que são mortas e estupradas.
"Choro lágrimas de verdade.”
O peito de Anamaya sobe suavemente e sua respiração está curta. Ela não ousa erguer os olhos para o condor e uma bruma dança diante de seus olhos escondendo o sacerdote, o Sábio, a própria menina, que, para ela, não são mais que sombras. É ela quem fala, mas não é ela quem fala.
- Vejo homens se dilacerarem por cupidez, vejo a fome lhes devorar o ventre e o espírito, vejo secas as fontes, e fechados os caminhos de luz e sombra pelos quais conhecemos os universos.
"Vejo somente a dor descendo as escadas que vão ao coração da terra. "E depois, vejo meu Irmão-Duplo, meu irmão de Sol tendo de fugir, de se esconder na sombra antes de ressurgirem plena luz, depois de muitas luas, para anunciar o próximo pachacuti.”
Ela se cala.
Não vê a faca voltar à mão do sacerdote, não vê o olhar negro de Villa Oma e o pânico dos servos.
Não ouve o condor se afastando.
Quando o sol que voltou bate em sua nuca, ela sacode a cabeça, desperta do sonho.
- Menina Anamaya - diz o Sábio -, menina dos olhos de lago, não sei o que nos anuncia, mas acredito em você...
- Eu mesma não sei.
- Por isso acredito em você. Entendeu agora por que a sua revolta era inútil?
Anamaya faz que sim com a cabeça, murmurar:
- Vocês não sacrificaram a criança...
- Não seja arrogante. Não ache que foi por sua causa. Chegou o sinal... - Isso eu sei, Villa Oma.
Os criados levaram às costas as carcaças ainda quentes dos lhamas. A bruma dissipa-se lentamente e pode-se ver a cidade brilhando no meio de seu estojo de esmeralda.
Com passos lentos, ela desce pelo cume estreito, e volta ao rochedo pelos degraus íngremes...
Esse tempo todo, ela vê a cidade cujos muros e tetos de palha ficam mais nítidos a cada passo.
Esse tempo todo, ela pensa que o universo inteiro será destruído pela guerra. As palavras de Villa Oma e as de Huayna Capac, as visões e as vozes: tudo fala de sangue, de morte, de destruição.
Esse tempo todo, ela se pergunta o que o puma, diante dela, preso à montanha, queria lhe confiar.
E esse tempo todo, ela sente a mão da menina na sua e uma felicidade silenciosa, impossível de expressar ou compartilhar, bate em seu peito como um segundo coração.
Ilha de la Puna, março de 1532.
- O senhor mandou me chamar?
Instintivamente, e apesar do barulho violento da arrebentação, Gabriel fala baixo.
A noite está um breu absoluto. Um fino crescente de lua aparece de vez em quando entre as nuvens. Seu reflexo quebra sem brilho no mar bravio. As lanternas do barco balançam e rangem como se um diabo as agitasse por capricho. Toda a mastreação range enquanto o vento assobia nas vergas com as velas recolhidas e o navio força as âncoras cujas correntes não param de tinir.
Embora ali ao lado, a ilha de la Puna não está visível.
As mãos agarradas à curva de um turco de proa, as pernas bem afastadas e a espada pendendo-lhe como uma cauda, don Francisco Pizarro fita a noite à sua frente. No escuro, sua barba encanecida parece fosforescente como a espuma do mar revolto. Ele mal vira os olhos para responder a Gabriel.
- Doze léguas! Doze léguas e três dias de mar, eis o que nos separa do Peru, Gabriel! Tumbez está ali, à nossa frente, a primeira cidade onde desembarcamos, há cinco anos, o lugar onde foi selada a promessa do Reino do Ouro...
Ele fica um instante calado, as pálpebras franzidas, como se pudesse discernir os templos e o brilho das riquezas.
- Tudo começa amanhã, meu rapaz! - murmura ele de repente, tão baixo que Gabriel precisa quase encostar nele para escutar. - Sejam quais forem os obstáculos, a Santa Virgem sempre protege a nossa conquista...
- Desde que saímos de Cádiz, senhor - replica Gabriel no mesmo tom -, eu nunca duvidei. Embora os meses tenham virado anos. Embora o caminho até aqui tenha sido muito difícil e fatal... Embora tivéssemos de esperar uma eternidade no Panamá, em meio a intrigas e incredulidade... - Distribuí ali mais promessas do que ouro e esmeraldas - diz Pizarro com uma ponta de ironia que não lhe é habitual.
Don Francisco torna a apertar o boldrié com aqueles dedos secos e deixa passar um longo silêncio em que só se ouve o estrondo das ondas. De supetão, pergunta:
- O que acha do capitão de Soto? Gabriel escolhe as palavras:
- Bem, ele me parece um capitão muito valente, corajoso e com muita experiência de guerra....
Pizarro agita a barba com um safanão nervoso e resmunga:
- Ele é tudo isso que você diz, é verdade. Mas infelizmente...
Pizarro se interrompe. Desequilibrado por uma onda de refluxo, o navio balança. Gabriel escorrega na ponte molhada e se agarra à liça para parar. Quando se equilibra novamente, torna a interpelar Pizarro:
- Se eu puder me permitir lhe dizer a verdade, Excelência, estou muito contente que ele tenha se juntado a nós na Nicarágua! Veja só: dois barcos, cem homens, vinte e cinco cavalos! Isso dobra a força de nossa expedição!
- Benalcazar também juntou-se a nós... E dele, não desconfio. - Mas Benalcazar só tem trinta homens.
Pizarro descarta o argumento com um gesto irritado. - Não é com números que vamos vencer, meu rapaz.
Por um instante, Gabriel pensa o quanto Pizarro pode ser exasperante, com sua convicção de que a proteção da Virgem lhes faz as vezes de certeza em qualquer circunstância.
- Eu lhe disse - continua Gabriel com mais calma - que quanto a mim, eu não desconfiei e continuo não desconfiando. No entanto, já estou dois anos mais velho desde que saímos da Espanha, e não fiz outra coisa senão esperar e me meter em brigas de mau humor e doenças!...
- E fez muito bem!
- Afinal, já podemos avistar a costa do seu Peru - prossegue Gabriel sem se deixar interromper - e as chuvas nos obrigam a ficar seis meses nessa ilha. E os índios que nos festejaram quando chegamos, agora não têm outra preocupação senão nos matar por qualquer coisa. Ontem esses bugres que o senhor tomou como soldados violavam as meninas índias como se nada fosse. Hoje, só de ver a cara de um índio, eles devem correr para pegar uma arma!...
Seu irmão Hernando, que não se comportou melhor que um soldado alemão, diga-se de passagem, só poderá montar a cavalo daqui a duas semanas por causa da flecha que tem na coxa! E os seus irmãos mais moços, Juan como Gonzalo, só pensam em se divertir e pilhar antes de ter conquistado sequer uma cabana de junco... Desculpe a franqueza, don Francisco, mas, sem o capitão de Soto, o senhor nunca será Governador do Peru!
Estranhamente, em vez de se perturbar com a diatribe, Pizarro dá uma risada que parece uma tosse.
- O que importa? Já sou Governador. A Virgem quer, o Rei quer e eu quero! Mas Soto quer um território para ele e tenho medo que ele nos abandone na primeira oportunidade...
- Pode ser, don Francisco! - resmunga Gabriel. - Pode ser! Mas por enquanto, o perigo está em outro lugar. Os homens estão esgotados antes mesmo de ter posto os pés na costa do País do Ouro. Não agüentam mais estar tão perto. Estão doentes e famintos! Como dizem que aquela doença horrível das verrugas, que todos os dias mata violentamente, se pega dormindo, eles não ousam mais pregar o olho. Outros contam que a verruga vem do peixe ou dos siris! Então eles não comem mais, tanto isso é verdade que não há mais nada para se comer...
- A coisa é nova para você, meu rapaz! - diverte- se don Francisco. - É a sua primeira campanha e você está aprendendo a canção. Para mim, ela já está sendo cantada há quarenta anos!
Os olhos tão impassíveis quanto a barba, Pizarro se cala um instante, todo empertigado apesar do balanço. Depois, de repente, agarra o braço de Gabriel, quase o quebrando de tanto apertar e, novamente com uma cortesia muito cerimoniosa, pergunta:
- Lembra-se, don Gabriel, do dia em que foi atrás de mim no campo, em Toledo, me suplicar para conquistar o Peru ao meu lado?
- Esta hora ficou gravada em minha memória para o resto dos meus dias, senhor!
- E o que lhe respondi?
- O senhor exigiu de mim "uma abnegação absoluta para que eu obedecesse ao senhor, exclusivamente ao senhor, em qualquer circunstância! Isso devia ter um custo para mim, e alto...”
- Bem, chegou a hora de cumprir uma parte da sua promessa. Amanhã de madrugada nossos barcos partem para a costa de Tumbez. Mas os porões não comportam todos os homens e todos os cavalos. Tratei com o chefe índio de Tumbez para que nos envie balsas feitas à maneira deles...
- Vi as balsas há pouco - confirma Gabriel entusiasmado. - Bem construídas. Maiores e mais robustas do que se poderia esperar! Seus baús e os do seu irmão Hernando já estão carregados numa delas...
- A questão não é a solidez das balsas, mas a de minha confiança em Soro - interrompe don Francisco com humor. - Pretextando que essas balsas são mais velozes que nossos navios, Soro propôs partir com os índios para preparar o nosso desembarque... Naturalmente, eu apreciaria ser bem recebido. Mas não gostaria de perder de repente metade de meus homens... De novo, uma onda mais forte que as outras os separa um momento. Atrás, do lado invisível da ilha, ouvem-se relinchos e gritos. Pizarro segura Gabriel pelo cotovelo e o aperta tanto que o punho de sua espada machuca as costelas do jovem andaluz:
- Vigie as futricas do capitão de Soto quando ele estiver diante dos índios de Tumbez.
- Dizem que as balsas viram facilmente...
- Você sabe nadar, filho! - resmunga don Francisco recuperando a familiaridade rude. - Que isso lhe adiante. Mas sobretudo, use os seus olhos e o seu cérebro. E, por uma vez, guardando a língua na boca.
- Preciso de um companheiro de confiança. Deixe Sebastian vir comigo. - Se você confia num escravo negro, bom proveito...
Sólidas, as balsas são.
Projetadas na forma de uma enorme mão, com uma estaca servindo de mastro e uma vela que lembra a dos faluchos do Mediterrâneo, elas deslizam rente à água. Tanto que a cada onda mais violenta são varridas pela água. As toras, da grossura de uma coxa de boi, correm na amarração de fibra de agave. Poucos centímetros acima do piso, os baús de don Hernando Pizarro já estão pretos de mofo uma hora após a saída da ilha de Ia Puna.
- Por todos os santos - geme Bocanegra -, nesse ritmo, os gibões de don Hernando vão apodrecer. E aquelas camisas lindas de linho! E as botas de reserva!... Mais um dia assim e vão ficar todas moles feito lenha. Ele vai pegar uma doença!
- Se eu fosse você, não me preocuparia tanto com as doenças que Sua Excelência o Irmão pode pegar - brinca Sebastian. - Parece que você já tem bastante com que se preocupar...
Com um ríctus de dor, Ándrès de Bocanegra vira a cara disforme e se encolhe. O pobre homem é um dos que a verruga transformou em monstro. Em sua face direita, há um apêndice horrível do tamanho de um figo. Há outro, só um pouco menor e de um púrpura sinistro, pendurado na ponta de seu nariz e mais dez verrugas do tamanho de um grão-de-bico cobrindo-lhe o pescoço e os ombros qual um enxame de filhotes atrás de uma mãe gorda.
Naquela manhã mesmo, uma hora antes de partirem da ilha, a dor era tanta que Bocanegra cortou com seu próprio estilete a que tinha no queixo. Sangrando muito, envolveu o rosto com um pano. Mas desde o meio-dia, apareceram outros tumores atrozes em sua têmpora direita, dilatando-lhe o olhar e transformando-o definitivamente numa daquelas gárgulas de pedra que adornam as catedrais da cristandade!
O efeito é tão repulsivo que Gabriel mal consegue olhar para ele. Mas por ora, sua aflição vem de outra coisa.
Em pé em cima dos baús, agarrado ao mastro da balsa, há um bom tempo ele está observando as vagas.
- Nada - grita ele para Sebastian. - Absolutamente nada. Descendo de seu poleiro, ele vem se agachar com cuidado na popa da balsa.
- Só uma vela - prossegue franzindo o cenho. - Éramos oito balsas hoje de manhã...
- São as correntes - resmunga Bocanegra sem se virar. - já vi isso. Esses engenhos não têm quilha, não obedecem bem.
- As correntes ou a vontade do capitão Soro! - retruca Gabriel. - O intérprete Martinillo está com ele. Ele pode ter dado ordens para que fizessem com que nos perdêssemos! Don Francisco teve razão de desconfiar...
- Receio que não seja uma coisa nem outra - diz Sebastian baixinho. Apontando com o queixo, ele mostra os quatro índios que estão manobrando com facilidade os grandes remos do leme.
- Eles não me agradam. Riem toda vez que se olha para eles. - E daí?
- Essa é uma coisa que vocês precisarão aprender, don Gabriel. Quando um índio sorri para nós, é que está pensando no golpe que vai nos aplicar. Gabriel está prestes a replicar quando justamente um dos índios grita palavras incompreensíveis e mostra algo à frente.
Bem próximo, como que boiando no oceano, surge na crista das ondas uma faixa de terra coberta por uma mata de um verde quase preto.
- É a ilhota - exclama Sebastian já de pé.
- Bem - diz Gabriel com um sorriso. - Nossos companheiros tão têm intenções tão más assim. Sabem aonde vão e pelo menos poderemos passar a noite em terra. E amanhã à tardinha, como previsto, chegaremos a Tumbez.
- Eu não saio da balsa! - diz Bocanegra em tom de lamúria. - Prometi a mim mesmo que nunca mais na vida dormiria debaixo de uma árvore nem na areia.
No banco de areia, ao cair da tarde, os olhos perdidos nas cristas alaranjadas das montanhas ao longe, Sebastian e Gabriel ficam em silêncio. A tagarelice dos índios é como um murmúrio misturando- se ao som da arrebentação.
Gabriel tirou a camisa e examina a pele ressecada de seu torso e de seus braços, sulcada pelas carências e as privações.
Sebastian faz desenhos na areia. O que é?
- Olhe bem... Foi lá, na praia de Tumbez, que o Grego e eu o vimos pela primeira vez...
Gabriel começa a rir.
- O gato grande! Aquele que eu tenho no ombro, não é? - Não acha que já era hora de você encontrá-lo?
Com um simples risco, Sebastian deu vida à força e à selvageria do animal. O olhar de Gabriel desliza sobre o felino, atravessa o oceano, a praia invisível ao longe, a floresta e as montanhas; a certeza de sua promessa o embriaga.
Foi talvez à meia-noite que ele escutou o primeiro uivo.
No segundo, definitivamente desperto, Gabriel desvencilha-se das cobertas e se levanta, adivinhando Sebastian já de pé a seu lado.
- Bocanegra! - exclama Gabriel. - O coitado está padecendo um martírio! Talvez esteja arrancando outra verruga...
Outro grito, mais violento, rasga a noite e vibra, sobrepondo-se ao estrondo contínuo da arrebentação.
- Não! - diz Sebastian. - Bocanegra não põe a boca no mundo por causa de uma verruga. Mas por trinta dessas porcarias! É outra coisa.
Ambos pensam a mesma coisa.
Na mesma hora, levantam-se de um pulo e saem de debaixo das árvores retorcidas onde encontraram refúgio e correm pela duna de areia.
Está mais escuro do que dentro de um forno, mas os uivos repetidos de Bocanegra os guiam tão bem como um farol. Quando a proximidade da água torna a areia dura, Gabriel desembainha a espada com tanta violência que a lâmina assobia no ar.
Os gritos de Bocanegra se transformam, viram chamados bem claros: - Socorro, companheiros! Eles estão nos roubando. E estão me matando!... No escuro, Gabriel adivinha a vela da balsa retesada pela brisa. A embarcação, já afastada da praia, empina de través ao passar uma onda, enquanto os gritos redobram.
- Índios traidores desgraçados! - berra Sebastian. - Estão nos abandonando...
Dominado pela raiva, Gabriel corre ao encontro das vagas cuja espuma risca a escuridão. Empunhando a espada acima da cabeça, por um instante, parece-lhe que pode chegar até a popa da balsa se continuar correndo. Ele vê distintamente Bocanegra, imobilizado contra as toras por dois índios, levar uma cacetada de um terceiro. Os gritos cessam. Só se ouve o movimento lancinante do oceano. Depois a voz de Sebastian:
- Don Gabriel, nada de loucura! Volte, volte. Vai se afogar...
Mas a fúria é forte demais. Ela o impele tanto quanto a correnteza. Ele corta uma primeira onda, quebrando com o punho a parede d'água. A popa da balsa está apenas uma espada à frente, e o brilho dos olhos do índio que segura o leme é aflitíssimo!
Depois, de repente, quando a água se ergue como uma fera rugindo, Gabriel sente-se pesado como chumbo. Suas botas, seus calções, até as mangas de sua camisa estão encharcados.
A onda quebra em cima dele, enrola-o, amassa-o como uma bolacha de barro.
A lâmina de sua espada bate em seu rosto, ele está de pernas para o ar, só há água por todo lado, e um rugido que anuncia a morte o ensurdece enquanto seus membros parecem querer se separar dele.
Ao bater com a cabeça na areia do fundo do mar e engolir água salgada, ele sente o fogo da asfixia explodir em seu peito. Por uma fração de segundo, tem lucidez suficiente para ter consciência da ironia de morrer afogado às portas de um mundo novo.
Depois, seu pé encontra a firmeza do fundo e, num esforço desesperado, impele-o para a superfície. Engasgado com a água que bebeu, ele dá braçadas furiosas e alcança a balsa. Com um pontapé, os índios poderiam empurrá-lo para a água; com uma cacetada, poderiam abatê-lo como fizeram com Bocanegra. Mas parecem pasmos de vê-lo surgir, como um fantasma, do fundo das águas.
- Agüente, don Gabriel - grita a voz de Sebastian bem perto dali.
O Negro alcançou-o e isso é demais para os três índios que pulam n'água e tentam fugir a nado. Gabriel, exaurido, só tem força para subir na balsa. Mas Sebastian mergulha para pegar o índio menos rápido; joga-o na balsa como se ele fosse um embrulho e sobe também, bufando e cuspindo.
- Se tentar fugir - diz Sebastian pegando o índio pelo pescoço -, eu como você.
O rapaz, ainda adolescente, treme de medo. Sebastian e Gabriel recobram o fôlego.
- O que fazemos com ele, don Gabriel? - Se quiser comê-lo, por mim, pode.
Para ser sincero, minha cabeça confusa antes concebeu o plano de incitá-lo a nos guiar até Tumbez. Se o senhor não vir nenhum inconveniente nisso, naturalmente.
- Sebastian? - Don Gabriel? - Pensei que você não soubesse nadar.
- Infelizmente tenho que confirmar isso; a não ser que chame de nadar os movimentos desordenados que meus membros fazem para sobreviver a esse horror - diz ele apontando para a massa escura do oceano.
O mar acalma um pouco. Sebastian mostra o remo de leme ao rapaz índio que o pega, após uma breve hesitação. Gabriel deixa a felicidade de estar vivo e a chuva de estrelas que ilumina o céu encherem seu coração. - Sebastian?
- Don Gabriel?
- Eu lhe devo a vida. E para dizer tudo, ainda por cima, vou lhe pedir um favor... Você teria a bondade de me chamar só de Gabriel?
Sebastian não responde. Parece mergulhado na contemplação do mar. Depois, vira-se para Gabriel e lhe dá a mão. Gabriel o puxa para si e os dois se abraçam, como irmãos.
Huamachuco, março de 1532.
Uma chuva fina e constante cai na planície de Huamachuco. Bancos de bruma se rasgam nas encostas circundantes e encobrem o pico das montanhas. A fumaça que sai dos tetos não sobe e espalha pelo ar o cheiro picante da alfarrobeira.
O cortejo do Inca Atahualpa chegou na véspera, enchendo de repente o tambo, trazendo gritos, risadas, música de flauta e danças para a paz e a rotina do campo.
- Gosto desta planície - diz Anamaya num tom sonhador. - Se pudéssemos nos instalar numa aldeia como esta para passar a estação seca, seria maravilhoso. Parar finalmente de correr as estradas, de atravessar pontes e montanhas! Começo a detestar liteiras...
Atrás dela, entregue como ela às mãos ágeis das criadas que lhes lavam os cabelos com uma lama fina e cinzenta, Inti Palla emite um grunhido de reprovação:
- É melhor ninguém ouvi-la dizer esse tipo de coisa! Você que adivinha as coisas antes, não sente que Huascar está perdendo a guerra?
- Você sabe que não vejo nem ouço nada há meses - suspira Anamaya fechando os olhos para melhor se entregar à carícia da criada.
- Ah, isso, eu sei! - exclama Inti Palla. Meu Quase Esposo já está ficando com raiva do seu silêncio... Nunca vi Atahualpa tão aflito e atormentado. Quando está pertinho da vitória, depois de tantas batalhas! É incompreensível...
- O que posso fazer se não sou mais a que vê? - murmura Anamaya com uma voz quase inaudível.
Elas se calam um instante enquanto as criadas banham seus cabelos com uma água fresca e transparente. Na esquina da cancha, sem parar de fiar a lã de alpaca de um enorme fardo colocado à frente delas, garotas as observam com uma expressão maravilhada.
Do outro lado da praça, quinze moças tecem embaixo de um toldo. Estão agachadas, cercadas de dezenas de novelos de cores vivas qual flores opulentas. Debruçadas em cima de seus teares cuja base é presa a suas cinturas por uma espécie de cinto, seus gestos são de uma regularidade perfeita. A parte de cima do tear é presa a uma coluna enquanto entre suas mãos, com uma destreza inaudita, os fios coloridos se unem, se separam, brincam e serpeiam no ritmo sereno das lançadeiras. Certos tecidos estão quase prontos. Anamaya conhece seu esplendor e sua delicadeza: serão daqueles que só o único Senhor tocará.
Enquanto as criadas lhe secam o cabelo com um ungüento misturado com lantejoulas de ouro, Anamaya não pode se impedir de se emocionar com essas "virgens da tecelagem" que mostram tanta serenidade no que fazem. Nunca será uma delas. Nunca conhecerá a paz, a calma delas...
Tantas coisas aconteceram desde sua curta estada na Cidade-cujo-nome-não-se-diz!
Hoje, ela está o mais próximo possível do único Senhor Atahualpa, não sendo sua esposa nem sua concubina. Está cercada de criadas e de respeito. Seus caprichos, se os tivesse, seriam satisfeitos imediatamente. Mesmo os velhos generais desconfiados que, antes, só se dignariam a olhar para ela para condená-la à fogueira, respeitam o que ela diz! A própria Inti Palla, que finalmente conquistou o título de Primeira Concubina, tornou-se sua amiga e confidente mais íntima...
E no entanto, essa vida de corte é pesada, terrivelmente cheia de obrigações! É verdade que você mudou muito, nessas últimas luas - continua de repente Inti Palla como se tivesse acompanhado seus pensamentos. Com um gesto imperioso, a princesa repele as criadas debruçadas em cima de sua maravilhosa cabeleira e se aproxima de Anamaya.
- Só os seus olhos não mudaram - diz ainda.
- Você acha? - diverte-se Anamaya. - Meu rosto está mais cheio e estou séria como uma velha, é o que você quer dizer!
Inti Palla ri e senta-se perto dela pegando-lhe as mãos com ternura.
- Sim, e as suas nádegas, sobretudo, estão mais cheias! zomba ela. E eles também...
Através do fino tecido do anato, Inti Palla toca no busto de Anamaya, que repele suas mãos num reflexo de pudor.
- Quase seios de verdade! - continua Inti Palla apertando-lhe as coxas. - Quando a conheci, você era só uma criança esquisita e orgulhosa! Não me agradava nada.
- Você estava louca de ciúmes, sobretudo...
- É verdade. Mas entendi quem você era. Como os outros. E agora é que eu deveria ter ciúmes mesmo. Você agora é realmente uma mulher! Digamos, quase tão bonita quanto eu...
- Só quase? - ri Anamaya.
- Só. Mais não - garante seriamente Inti Palla. - Ainda lhe falta alguma coisa...
- Ah é?
- Inti Palla recua com uma expressão provocadora, empina o traseiro e puxa o tocapu que lhe aperta a cintura para deixar seus seios mais protuberantes debaixo dos panos. Em volta delas, as criadas riem, tapando a boca com as mãos. - Os meus são mais bonitos, não?
- Talvez! - admite Anamaya, as faces repentinamente rubras. - Talvez, não. Com certeza. E sabe por quê?
- Porque Mama Quilla decidiu lhe dar mais seios que idéias - zomba Anamaya.
Um ataque de riso sacode as criadas mas, com um olhar hostil, Inti Palla as reduz ao silêncio.
- Mama Quilla me deu uma coisa bem diferente: nosso único Senhor no meio das minhas coxas! Eis o que dá a verdadeira beleza às mulheres... - Idiota!
Mas Anamaya não diz mais nada e assume novamente sua atitude séria. Um vulto apareceu do outro lado do pátio, escoltado por quatro soldados. Inti Palla acompanha seu olhar e solta uma exclamação gulosa:
- Ah! Não é o lindo capitão Guaypar? - suspira ela. O herói da batalha de Angoyacu em pessoa! Bem, aí está um que gostaria muito de iniciar você nas brincadeiras de cama, Esposa do Irmão-Duplo!...
Guaypar havia falado com um dos eunucos de guarda que imediatamente se dirige a elas com um passo apressado pela chuva. Embaixo do toldo e na esquina da cancha, ao ouvir o barulho das lanças, as tecelãs e as fiandeiras ficaram paralisadas, cheias de curiosidade.
- Chame-o! diz ela com um sorriso nos lábios.
Mal elas acabaram de se enrolar numa manta e cobrir os cabelos ainda molhados, Guaymar já se apresenta à entrada do aposento. O guerreiro abre as mãos espalmadas para o céu, numa saudação cheia de deferência. Mas seu olhar evita Anamaya:
- Princesas!
- Que Inti o proteja, capitão Guaypar - responde Inti Palla com uma voz doce. - Estou feliz de vê-lo andando. Isso quer dizer que seu ferimento ficou bom. Franzindo as pálpebras de orgulho, Guaypar comprime o ombro esquerdo com as pontas dos dedos.
- Sim. Eu poderei lutar de novo quando o nosso único Senhor decidir a próxima batalha...
- Estou impressionada com a sua coragem - diverte- se ainda Inti Palla. Mas o jovem capitão aparentemente não ouve. Seu olhar agora procura o de Anamaya.
- Esposa do Irmão-Duplo, o Inca a quer ao lado dele. - Agora?
Ele a espera e estou aqui para levá-la a ele.
Mal essas palavras acabam de ser pronunciadas, Inti Palla está em pé, reunindo novamente as criadas para prepararem Anamaya.
Cercada por Guaypar e sua escolta, protegida da chuva por uma barraca levada pelas criadas, Anamaya atrai todos os olhares quando vai da cancha das Esposas ao palácio do curaca onde reside Atahualpa.
No entanto, uma vez transposto o muro que cerca o palácio, quando a escolta se dispersa no primeiro pátio e as criadas voltam para onde vieram, Guaypar esboça um gesto para segurá-la. Recusando o contato por reflexo, Anamaya se afasta bruscamente, fazendo tilintar as tirinhas de ouro e prata entrelaçadas em sua touca.
- Me dê um instante! - exclama Guaypar, a voz alterada. - Anamaya, não tenha medo de mim!
Anamaya está prestes a replicar energicamente quando vê no olhar de Guaypar tanto confusão quanto medo.
- O que quer de mim? - Que você me perdoe! - Guaypar, eu...
- Não, deixe-me falar! As palavras vêm inchando na minha garganta há anos e hoje estão me sufocando! Anamaya, eu era só um garoto louco, cheio de vaidade!...
- Já esqueci, e o único Senhor...
- Anamaya, me ouça! Sei que você se lembra daquela noite em Tumebamba, a noite do huarachicu. Eu estava humilhado pela minha derrota, embriagado de chicha, estava tomado pelas sombras ruins. Os demônios bebiam meu sangue, mas... mas isso foi há muito tempo, muito mesmo. Há quatro solstícios de inverno! Quatro vezes o ciclo das estações se passaram desde então! Eu era uma criança e você também. Hoje sou um soldado, e o nosso único Senhor me nomeou capitão depois da batalha da ponte de Angoyacu...
- Sim, eu sei que você foi muito corajoso. Dizem que você capturou dois generais de Huascar - aprova Anamaya com doçura.
- Sim - exclama Guaypar levando a mão ao ferimento, os olhos brilhando de orgulho. Sim! Não sou mais aquele fraco vaidoso que Manco, o falso irmão do nosso Inca, humilhou na sua frente!
Anamaya deixa passar essa lufada de orgulho. Guaypar prossegue, num tom mais baixo, mas com o mesmo ardor.
- Você também mudou. É... É a mulher mais bonita do Império das Quatro Direções! Nenhuma outra tem a metade da sua beleza. Nenhuma tem o poder do seu olhar, nenhuma tem a força e a doçura da sua boca... - Por favor, Guaypar...
- Anamaya, me ouça! Desde aquela maldita noite, não se passou uma lua sem que eu pense em você. Até durante a batalha de Àngoyacu, você estava na minha cabeça! Fui o primeiro a ver a sua beleza, Anamaya! O primeiro... E durante esse tempo todo, fiquei calado. Evitei-a. Agora, estou junto do nosso único Senhor e me preparei para...
- O que espera de mim, capitão Guaypar? - Que seja minha esposa!
- Está louco! Sabe que pertenço ao Irmão-Duplo!
- Ah! - protesta Guaypar com um gesto de cólera. - Isso é só um título que Atahualpa lhe deu quando nem sequer era o Inca! Hoje ele é, e em grande parte graças a você. Ele pode anular o que fez...
Sufocada, Anamaya procura as palavras que poderiam fazer Guaypar ouvir a voz da razão. Mas vê no olhar do jovem capitão uma imensa e sincera angústia que a perturba. É certo que ele não é mais aquele adolescente embriagado de chicha de Tumebamba. No entanto, a embriaguez que o domina hoje não é menos violenta. E a causa é ela própria.
- Minha alma daqui só respira por você, Anamaya! - geme Guaypar. - Seu Esposo o Irmão-Duplo é feito de ouro e não sabe o que é o sofrimento do amor. Ao passo que eu estou sangrando e ardendo. Minhas entranhas queimam só de pensarem você. Eu lhe digo: as torturas que o pérfido Huascar inventa não são nada em comparação...
O tremor de seus lábios, o estremecimento que percorre todo o seu corpo apagando a sua voz só comprovam a veracidade de suas palavras. Com a garganta apertada pela emoção, Anamaya recua.
Jamais alguém te fez uma declaração semelhante. Ela sente a dor do rapaz como se seus dedos tocassem uma chaga aberta. No entanto, no entanto tudo nela sabe que deve se fechar a essa súplica.
Com a maior doçura possível, diz:
- Não me lembro de nada daquela noite de Tumebamba, capitão Guaypar. E vou esquecer esse instante também. Pois não posso nem quero ouvir as suas palavras. Mas agradeço a sua coragem. E espero que Inti o torne o maior e o mais feliz dos generais de nosso Senhor Atahualpa. E agora, você deve me levar a ele antes que ele fique muito impaciente.
Um esgar de dor e de raiva impotente desfigura Guaypar, quando Anamaya vira as costas e vai indo para o pátio.
Mas ela não vê.
Há algum tempo, cada vez que encontra o Único Senhor, Anamaya fica impressionada com sua mudança física.
Atahualpa não é mais o homem esbelto e vivo que a encorajava, protegia e impressionava com um único olhar.
Ele não perdeu nada de sua força, ao contrário. Desde que, em Quito, durante uma imensa cerimônia, colocou a borla real na cabeça, desde que é o Inca, tudo nele só exprime poder e dominação. Mas de tanto beber jarros de chicha durante cerimônias intermináveis, de tanto mergulhar desesperadamente na embriaguez sagrada para procurar ouvir os ancestrais, seu corpo ficou mais pesado. Hoje, ele tem o rosto inchado e o queixo pesado. Também engordou na cintura. E depois, o branco de seus olhos está mais vermelho de sangue do que nunca, como se seu coração extraísse daí um excesso de energia. Isso lhe dá um olhar estranho, negro e púrpura, em que é difícil adivinhar os pensamentos e que sempre parece portador de tempestades assim como de uma insaciável tristeza.
Quando Anamaya se prosterna diante dele, joelhos e mãos no chão, a cabeça inclinada, sua pergunta é mais direta que impaciente:
- Meu pai Huayna Capac não lhe falou mais? - Não, meu Único Senhor.
- Ah!... E por quê?
- Porque ele não tem nenhum motivo para fazer isso... - Nenhum motivo? Está maluca?
Anamaya percebe toda a amargura e a fúria que fazem vibrar a voz de Atahualpa. Sempre prosternada, pergunta:
- Posso lhe falar com toda a sinceridade, meu único Senhor? - Você sempre falou, não vejo por que se calaria hoje!
- Bem-amado Senhor, não entendo o seu receio nem a sua impaciência. Você travou nove batalhas contra o seu irmão louco de Cuzco. Huascar só ganhou duas. Você foi a Quito e, conforme a vontade de Inti, os Poderosos do Norte, os Sábios e os Ancestrais colocaram em sua cabeça a mascapaicha e a pluma do curiguingue. Você é nosso Inca, o único Senhor do Império das Quatro Direções. Amanhã, você vai travar uma última batalha contra os soldados de Huascar. Vai entrar como vencedor na cidade sagrada de Cuzco. Então poderá fazer reinar uma era de paz depois de uma era de guerra. E não haverá mais ninguém no Império que não lhe deverá a vida, a comida e a bebida...
Anamaya se cala. Mas como Atahualpa nada diz, ela prossegue num tom mais insistente:
- Meu único Senhor, você não tem nenhum motivo para desconfiar ou ter medo. É verdade que seu pai Huayna Capac já não me fala há muito tempo. Mas isso é porque agora você é forte e poderoso. Inti e Mama Quilla estão a seu lado. Você combate com a violência do puma e anda à sombra do condor... Isso basta.
Com um tom surdo, Atahualpa ordena:
- Levante-se, Coya Camaquen, e olhe para mim...
Anamaya vê quase um sorriso nos lábios de Atahualpa. Há muito tempo não via isso.
- Sei que acha que estou mudado diz ele. - Mas você ficou séria como um sacerdote! Sim, Villa Oma formou-a bem: você está na idade em que as outras mulheres procuram um esposo, mas você é severa e gosta de discutir, como as mães delas!
- Só com você, meu único Senhor. Pois lhe devo a vida.
- Não sei quem deve mais ao outro, menina dos olhos azuis! Depois de passar pela Cidade-cujo-nome-não-se-diz, você veio a mim. Eu estava envergonhado por ter perdido uma batalha. Estava preso num buraco na terra e foi você quem adivinhou como me tirar dali. Fazendo de conta que eu tinha virado uma serpente!
Ao se lembrar disso, Atahualpa não pode evitar um sorrisinho.
- Às vezes, penso nisso, e vejo-a colocando a pele da serpente na mureta de tijolos enquanto os soldados roncavam! Foi um dos momentos mais divertidos da minha vida!
Mas logo o semblante de Atahualpa recupera toda a ansiedade. Ele deixa o trono bruscamente, aproxima- se tanto de Anamaya que ela sente sua respiração:
- Sim, você me garantiu que eu podia ir a Quito e vencer os generais de Huascar. Mas meu pai tinha vindo vê-Ia. Como quando você viu a bola de fogo, ou na Cidade-cujo-nome-não-se-diz e como em Tumebamba, quando o corpo dele desapareceu. Sempre que foi preciso, meu pai Huayna Capac lhe mostrou o caminho! Sempre o Outro Mundo se abriu para você. E agora há silêncio! Por quê?
- Quem sabe isso não muda quando eu chegar à cidade sagrada e encontrar o meu esposo o Irmão- Duplo?
- Ainda falta entrar ali!
- Você vencerá Huascar, meu único Senhor! Eu sei...
- Não! - explode Atahualpa, o olhar vermelho de sangue de repente a soltar chispas. - Não é de Huascar nem dos soldados dele que tenho medo. Eles estão nas últimas. É de Cuzco! Os clãs de Cuzco é que parecem um poço negro na minha frente! Eles nunca me aceitaram, como se eu fosse somente o filho de uma mulher do Norte. Mas nas veias da minha mãe corria o sangue do pai do meu pai. Pouco se lhes dá que eu seja também o filho do Inca deles! Somos tantos filhos! Eles dizem que sou impuro. Para eles, eu não passo de um bastardo! Anamaya! Só há uma pessoa, uma só, que poderia aplacar meu sofrimento, é meu pai. Se ele finalmente viesse a você... Se me dissesse por sua boca que está comigo contra os homens de Cuzco. Mas ele está calado... Ou se ao menos você se lembrasse do que ele lhe disse na noite da passagem. Se ao menos isso lhe voltasse.
Anamaya se prosterna, sacudindo a cabeça com desolação e compreendendo afinal a dor que corrói o Inca há tantos dias:
- Não, meu único Senhor. Isso nunca me voltou.
Atahualpa olha para ela um instante. Faz menção de tocá-la e acaba se aproximando da entrada do aposento. Do lado de fora, os guardas logo se curvam. Ele espera um pouco, depois acrescenta, mostrando a névoa que envolve os picos em volta de Huamachuco:
- Lá em cima há um oráculo poderoso. Catequil sabe ler o tempo que vem. Amanhã vamos vê-lo.
Tumbez, março de 1532.
- A esquerda, por todos os Santos! À esquerda, Grego, senão vamos afogar os cavalos.
Os gritos de don Francisco se sobrepõem ao estrondo da arrebentação. A balsa, embora carregada com alguns cavalos desnorteados e meia dúzia de homens, empina na onda. A vela está arriada e as rédeas dos cavalos, amarradas ao mastro. Da praia de Tumbez onde desembarcaram como foi possível, Gabriel reconhece atrás a silhueta alta e o gorro vermelho de algodão de Pedro o Grego.
O Grego põe todo o peso no pesado remo do leme. Infelizmente, seja qual for a direção que procurem imprimir, a balsa sobe a onda de través. É arrastada para a direita onde a arrebentação é mais forte, empurrada por uma força invisível.
Por um instante, corre tanto que até parece estar fora d'água, como se, apesar do tamanho e do peso, não passasse de uma tasquinha na mão do diabo.
Aí é que a parede de água começa a rugir embaixo das toras. Os homens percebem isso praticamente todos ao mesmo tempo e se põem a gritar. Seu medo passa para os cavalos, que, olhos arregalados, retesam as rédeas, batem com as patas dianteiras e arregaçam os beiços como dragões a relinchar.
Tudo acontece tão rápido que o próprio tempo parece parar. Invadido pela aflição, Gabriel ouve a exclamação de pasmo de Sebastian ao seu lado. A balsa, no turbilhão de água levantada, gira. Os cavalos, num único movimento de pânico, se amontoam na abertura da borda enquanto os homens escorregam na madeira lambida de espuma. Embaixo deles, o túnel da onda infla e sobe num repuxo gigantesco antes de quebrar com um estrondo inaudito. Tendo conseguido chegar à crista desse orbe furioso, a balsa por um instante recupera um equilíbrio inesperado...
Depois a cabeça da onda, com aquela fúria branca de espuma, precipita-se nas toras, aprisionando os homens até a cintura. O mastro da balsa se inclina, a traseira se levanta com a facilidade de uma folha virada pela brisa. Então, don Francisco ergue a espada. De um só golpe, corta as rédeas dos cavalos exatamente no instante em que a mandíbula do mar se fecha sobre ele, estourando a amarração de agave, espalhando negligentemente as toras como se fossem gravetos!
- Eles morreram! - grita Gabriel a contragosto.
- Ainda não! - berra Sebastian.
E ele é quem tem razão.
Enquanto a vaga acaba de quebrar, e a espuma se dispersa na ondulação verde e lenta da praia, um a um, os cavalos vão emergindo. Depois, naquele incessante fervilhar de espuma, surgem cabelos e barbas, bocas abertas e olhares apavorados...
- Lá! Pedro! - berra Sebastian apontando para uma cabeça que nem sequer perdeu o gorro vermelho.
Perto do Grego, aparece a cabeleira branca de don Francisco já exortando todo mundo a nadar até a praia.
Arrastando o pé, Gabriel tenta acompanhar Sebastian que se precipita ao encontro deles, com água pela cintura. Mas quando uma primeira onda quebra em suas coxas, ele recua.
- Em todo caso - murmura ele -, por hoje, essa é a última viagem: o mar está ficando muito forte.
A lembrança de seu quase afogamento da véspera está muito próxima e sua garganta ainda arde muito da água do mar que ele vomitou nos braços de Sebastian!
Além do mais, ninguém está precisando muito dele. Todos conseguem se agarrar aos cavalos que correm para encontrar de novo aquela areia sob os cascos.
Don Francisco faz questão de surgir das águas empertigado em sua sela, as rédeas na mão, todo encharcado, qual Netuno criando os continentes sob os passos fortes!
- Eu sabia que não se podia contar com ele!
Recostado num monte de areia, Hernando Pizarro espuma de raiva tanto quanto as ondas e aponta um dedo ameaçador para Gabriel.
Entre a praia e os navios que finalmente ancoraram no início da tarde ao largo da costa, o desembarque foi interrompido por ser demasiado perigoso. Só aquele punhado de homens e cavalos conseguiu chegar em terra firme e agora está isolado dos barcos e das balsas.
Apesar da aflição, don Francisco não deixou a sela desde aquela chegada heróica. Seu olhar corre sem cessar para além da imensa praia, procurando uma passagem no verde cerrado do manguezal, como se já pudesse ver Tumbez no meio.
- São apenas objetos de uso pessoal, meu irmão - diz ele. - Mandaremos vir outros...
- Doze camisas de linho, um par de botas e três gibões que valem o preço de um cavalo, uma cota de malhas sobressalente... É isso que você varre com um gesto bem displicente, meu irmão!
- Eles quase morreram por isso, meu irmão. E eu preciso de cada um desses homens.
- Desses! - murmura Hernando enojado.
Don Francisco contrai os lábios de irritação e, ainda todo molhado, dá um toque com o calcanhar no cavalo para afastá-lo do mau humor do irmão. É o momento que Sebastian escolhe para subir a praia com presteza, mostrando um ponto na entrada do rio que corta em dois o mangue e desemboca, amarelo de lama, no mar do Sul.
- Outras balsas! Cinco ou seis... Estão vindo para cá... - Índios? - pergunta don Francisco.
- Estão muito longe para que eu possa ver.
Mas a dúvida dura pouco, pois o Grego, que já fora fazer o reconhecimento na foz do rio, volta correndo, levantando uma esteira de areia escura e espantando nuvens de caranguejinhos vermelhos que infestam a praia.
- Soro, Governador! É Soro que finalmente está de volta! - grita ele quando chega perto.
- Ele nos ouviu! Ele entendeu. Com essas outras balsas vamos poder desembarcar mais rápido amanhã! - exclama Gabriel.
- E o que Soro entendeu? - reclama Hernando massageando a coxa dolorida. - Ter um ferro na perna não me tampa as orelhas, que eu saiba! Eu também gostaria de entender...
Gabriel procura o olhar de don Francisco. O Governador balança a cabeça sinalizando uma aprovação severa antes de impelir o cavalo para um grupo de fidalgos que tenta se secar.
- Conseguimos avisar o capitão Soto da traição dos índios antes que ele pisasse em terra - diz apenas Gabriel apontando para Sebastian. Hernando faz uma expressão de quem não entendeu nada, esperando a seqüência que não vem. Após um silêncio desagradável, emite um "Ah" cheio de azedume.
A camisa e os calções colados no corpo, o Grego apeia do cavalo, afaga-o com ternura antes de dar uma olhadela diplomática para Gabriel:
- Conte-nos a sua noite! Parece que ela foi cheia de prazeres, e eu também não entendi direito em que zona nós nos embrenhamos...
Em algumas frases, sem floreios inúteis, Gabriel conta o triste fim de Bocanegra, raptado e massacrado no meio da noite pelos índios.
- Quanto a mim conclui ele apontando para o mar -, sem o Sebastian aqui presente, os caranguejos estariam se divertindo com as minhas tripas a essa hora.
Enquanto o Grego contempla com amizade seu companheiro negro, don Hernando lança aos três a mesma expressão de cansaço que aos caranguejos obstinados que já estão saindo da areia e vindo, como que para provocar, correr pertinho de suas botas.
- E foi assim que você deixou minhas coisas afundarem - reclama ele. Com o devido respeito, don Hernando, eu estava muito ocupado tratando de salvar a pele para me ocupar com as suas preciosas coisas. Sei que o que você mais queria agora era mandar que eu fosse resgatá-las a vinte braças de profundidade. Se não se incomodar, isso ficará para uma outra vida...
Alguns fidalgos riem disfarçadamente. - Nada mau, aprendiz - diz o Grego.
- Esse pânico todo por alguns macacos... - resmunga Hernando, impressionado.
- Esses macacos, como vocês dizem, mataram Bocanegra e queriam nos deixar morrer em cima da areia. Como se tivessem intenção de massacrar o capitão de Soto e os soldados dele que seriam abordados no rio lá embaixo, perto do manguezal...
- E você frustrou sozinho esse plano? - pergunta Hernando com ironia. - E como?
Gabriel olha-o de alto a baixo calado, mas Sebastian vira-se para o Grego com uma risadinha.
- Mostramos muita convicção a um guia para que ele nos trouxesse aqui.
Ele aponta para o outro lado do rio, ao norte, onde surgem mais velas das balsas de Soto.
- A praia é mais estreita e o mangue mais fechado. E o que descobrimos? Dezenas de índios! Dezenas de sorrisos! Que a Santa Virgem esteja conosco, eu disse a don Gabriel. Aqueles ali vão querer nos cozinhar mesmo sem pimenta! Ao que ele me respondeu: "Basta lhes mandar uma mensagem!”
- Nós cortamos a garganta do nosso guia... - prossegue Gabriel, o semblante duro.
- Eles compreenderam - diverte-se Sebastian. - E graças ao vento e à sorte, conseguimos vir dar aqui. As ondas nos viraram de ponta cabeça também, mas nos cuspiram de volta sãos e salvos aqui mesmo! E sobretudo, fora do alcance dos índios, que não conseguem atravessar o rio por causa da violência da correnteza ali... Quanto à nossa balsa, ela estava intacta até a delicada chegada de vocês...
- Nós nos escondemos no manguezal esperando as balsas do capitão - prossegue Gabriel. - E quando ele se aproximou, gritamos e gesticulamos tanto que ele se afastou da costa...
Ele se prepara para continuar, mas Hernando Pizarro fica em pé mancando e vira para o outro lado, já sem ouvir.
- Meu irmão! - grita ele para don Francisco. - Daqui a uma hora será noite. O que decide?
Com seu cavalo andando a passo, don Francisco aproxima-se sem pressa. Quando está suficientemente perto, desembainha a espada e faz a lâmina brilhar sob os olhos de Hernando. Todos podem ver as gotículas que ali cintilam, juntam-se e formam um rego estreito ao longo do fio antes de cair, como que cortadas pelo gume da lâmina.
- Ao que me parece - diz ele percorrendo com o olhar os homens que o rodeiam -, ainda não estamos preparados para entrar numa cidade de ouro. Sobretudo se os indígenas forem propensos à traição. Esse desembarque derreou os cavalos e a nós também. Não é prudente atravessar o mangue agora... Olhando para o cinza do oceano e as balsas que agora estão bem perto da barra, don Francisco acrescenta:
- Soto ainda não está aqui conosco. É melhor esperá-lo... Não teremos tempo de desembarcar muitos outros cavalos. Sugiro passarmos a noite aqui. E dormirmos montados, por medida de prudência...
- Você não está imaginando que eu vá me agüentar uma noite em cima de um rocim se não consigo cavalgar meia légua! - exclama Hernando.
- Não, eu não estava pensando em você, meu irmão - responde suavemente don Francisco com uma chispa no olhar. - Você pode descansar na areia... Já vi o seu amigo ali montar de maneira muito honrosa. Você poderia lhe confiar o seu rocinante. Ele não será demais para preservar a tranqüilidade do seu sono. Afinal, mereceu-o bem. Devemos a ele ter trocado nossas coisas por nossa vida Apontado pelo Governador, Gabriel sente-se corar de prazer.
O capitão Hernando de Soto não sabe viver sem seu cavalo. Em vez de ir ter com o grupinho na praia, zarpou para o Santiago fundeado a seiscentos metros da costa e conseguiu embarcar na balsa seu inseparável tordilho anda luz. Também provou as alegrias de um banho nas águas tropicais, mas ei-lo agora subindo a praia, soberbo, a pingar.
Cumprimenta o Governador e depois faz um sinal de cabeça para Gabriel. - Prazer em vê-los, meus amigos - diz simplesmente esse homem de poucas palavras.
A noite inteira, eles se agarram às selas, apertando entre as panturrilhas enregeladas uns cavalos exaustos.
Às vezes, adormecem. Mas o arranhar de um caranguejo na areia desperta-os sobressaltados. Eles imaginam uivos, bandos de índios vindo do manguezal. No entanto, ouvem o cacarejar das galinholas e o barulho do oceano de espuma fosforescente.
No crepúsculo, o mar estava ainda tão violento que só seis fidalgos conseguiram chegar até a praia com suas montarias. Agora, num total de apenas doze contando com os soldados de infantaria, isolados dos navios e das balsas que ficaram ao largo, eles formam uma flor de pétalas hirsutas, cada um diante da noite e da sua vontade. Alguns têm a espada à mostra, pousada na cabeça da sela, cintilando sob as estrelas.
As pálpebras pesadas de tanto lutar contra o sono e o medo dos selvagens, eles sonham tanto com os montes de ouro a esperá-los que o céu lhes parece infestado de lantejoulas douradas. Com o esgotamento, até os buracos tenebrosos da noite se transformam em lâmpadas de ouro!
E quando a aurora clareia as brumas do leste, eles não agüentam mais. O Governador Pizarro à frente, eles transpõem um braço de mar que a maré descobriu, deixando à vista um lodo grosso, escuro e de cheiro forte. Depois se embrenham finalmente no mangue.
Um caminho estreito, seco e até bem calçado em alguns pontos esgueira-se entre os troncos loucos das figueiras. No alto, animais indescritíveis agitam a folhagem das árvores. Por duas vezes, serpentes da grossura de um braço fazem os cavalos relincharem. Depois ainda um desses monstros de escamas, parecidíssimos com um tronco podre, mas com uma mandíbula suficientemente violenta para cortar em dois um bezerro.
No mais cerrado dessa selva opressiva, resta apenas um pouco de céu no alto, como se a espada de um gigante tivesse cortado as árvores.
Mas índios, eles não vêem nenhum.
Nem nos campos que sucedem aos manguezais quando aparecem ao longe os muros mais altos de Tumbez.
Agitados, eles fazem os cavalos trotarem.
Quando estão a menos de um tiro de besta, o Grego franze o cenho e lança um olhar para don Francisco, que o retribui, impassível.
Gabriel espera ver os primeiros reflexos do ouro no sol que afinal ultrapassa as colinas distantes. Mas nada.
Índios uivando, amedrontados ou vociferando, também não há ainda. E eles não precisam entrar na cidade para ver as casas sem teto, as paredes escurecidas pelos incêndios, às vezes rasgadas. Ruelas inteiras de escombros, tijolos de adobe reduzidos a lama, furnas vazias...
O silêncio que os envolve é o da guerra, da pilhagem realizada. Da desolação.
Uma cidade inteira abandonada e devastada! Eis o que é Tumbez.
- Pela Santa Cruz - exclama Soro, fazendo seu cavalo dar uma volta diante do cavalo de don Francisco Pizarro. - O que nos disse? Aí está a sua cidade maravilhosa?
Gabriel olha para Pizarro, espreitando a raiva, ou mesmo a dúvida, em seu semblante orgulhoso. Só vê um vago enfado.
Tumbez, abril de 1532.
Ao voar, a primeira pedra resvala no ombro de Gabriel e descasca a quina de um muro atrás dele. A segunda faz um barulho abafado: Pedro o Grego aparou-a com a coxa. Ele xinga como um carreteiro aos pulos.
Mas Gabriel não tem tempo de fazer a pergunta. Vinte homens andrajosos, morrião na cabeça, cota de algodão desamarrada e barba desgrenhada, aparecem em todas as esquinas da ruela e começam a gritar...
- Ladrões, ladrões! Mentirosos! Grego veado!
Seus punhos erguidos atiram outras pedras. Três caem com certa brandura entre Gabriel e Pedro.
- Acho que esses imbecis estão querendo me pegar - resmunga o Grego cuja estrutura alta delineia um alvo ideal.
No mesmo instante, outra pedra, menor, porém mais bem lançada, atinge-o na cabeça.
Não fosse aquele eterno gorro vermelho, ele teria ficado com a cabeça aberta. Mesmo assim, ele cambaleia. Gabriel estica o braço para segurá-lo. Mas a chuva de pedras de repente engrossa tanto quanto os insultos e os berros. Atingido na orelha, Pedro enrubesce de dor e de fúria. O sangue espirra e gruda em sua barba.
Gabriel sente uma dor cortante nos rins. A espada já desembainhada, ele desvia para evitar uma nova saraivada enquanto Pedro ergue os braços para proteger o rosto.
- Na fortaleza! - grita Gabriel. - Vá logo! Eu trato deles. - Eles vão estripá-lo - murmura o Grego.
- A mim não, mas a você, se ficar teimando!
Mancando debaixo das saraivadas de pedras, o Grego retrocede ingloriamente até a porta do recinto onde eles acabam de entrar.
- Vocês ficaram loucos? - grita Gabriel apontando a espada para caras embriagadas de fúria.
- Nossa loucura foi ter escutado as mentiras desse Satã! - Não há nada aqui! Nunca houve ouro.
- Supostamente, as paredes seriam cobertas de ouro! Aqui nem tem o que comer, nem sequer titica de índio!
- Pedro não mentiu. Ele veio aqui, ele viu!
- Ah, é? Se lhe faz bem, pode ficar achando que nesta poeira...
A cidade foi destruída pela guerra que os índios estão travando entre si - tenta argumentar Gabriel. Como o Governador podia saber?
- Ele não sabe nada! Nem mesmo aonde está indo!
- E o que você sabe, garoto? Não sabe nem se ele já veio aqui mesmo! - Sei, sim, vi as coisas que ele levou para o Rei. Vi com meus próprios olhos! Tinha uma carroça cheia...
- Umas bobagens! Por que quer que a gente acredite em você?
- Você é como eles, garoto! Lambe as botas e as bundas deles todos os dias que Deus dá!
- Você não tem nada a perder, nem família, nem casa, seu filho da mãe! Não passa de um doido como o pretenso Governador!
- O Rei não é doido! - berra Gabriel fora de si. - O Conselho das índias não é doido! Foram eles que o nomearam, e não sem motivo. Doidos são vocês! Têm o cérebro tão furado quanto a camisa! Os índios estão em guerra, estou dizendo...
- E então?
- Então é preciso ter paciência. Vocês acham que vão conquistar um país num dia, cercando uma cidade só?
- Paciência é isso! Você fala como Pizarro, garoto, e a sua palavra não vale mais que a dele...
- Vocês preferem tomar novamente as balsas?
Os homens se calam, mas Gabriel sabe que seus muxoxos e seus olhares furiosos não prometem nada de bom.
- Eles não agüentam mais! - declara secamente Soto tirando os olhos do rosto ensangüentado do Grego para enfrentar don Francisco. - Não agüentam mais sofrer tanto por tão pouco. Semanas sem comer, doenças, a traição permanente dos índios, tudo isso por uma cidade destruída e por promessas... Governador, eles têm razão. Peço que me diga o que pretende fazer. O que esperamos?
Don Francisco não responde logo. Sua barba treme como quando a raiva lhe ferve nas veias, porém nada mais transparece.
- Olhe em volta do senhor, capitão de Soro - diz ele afinal com uma voz estranhamente contida.
De fato, em volta é um esplendor. Aquilo parece um forte, protegido por cinco muros altos de proteção a toda a volta, com cem passos de distância entre um e outro. Muros tão bem construídos que resistiram incólumes ao ataque que destruiu metade da cidade. No centro, exatamente onde eles se encontram, ergue- se uma espécie de palácio. Aí os muros têm um acabamento finíssimo, pintados de cores vivas e motivos extraordinários onde se superpõem animais, astros e motivos rigorosamente geométricos...
- Isso não é indício de um país grande e poderoso? - recomeça don Francisco.
- Não vejo ouro aí.
- Ouro, ouro... Capitão de Soro, sei que gostaria de estar em meu lugar. Mas eu sonho antes de mais nada em oferecer esse país inteiro à Santa Virgem e ao Rei. Depois, teremos ouro também. Dado pela própria Santa!
Soto, muito elegante apesar da perda de seus pertences, recém-barbeado, o olho vivo daquele que há muito sabe comandar, faz um gracejo cheio de desprezo: - Para cima de mim não, Pizarro! Deixe a Santa Virgem em casa, por favor!
- Soto - ruge Hernando dando um passo à frente, já com a mão no punho da espada. - Fale com respeito com o Governador, senão vai se haver comigo...
Soro contempla-o calmamente. Seu olhar, franzido com um sorriso negligente, passeia ainda por Gabriel e Pedro, mas logo volta para Hernando. - Os irmãos Pizarro! E parece que tem até um sobrinho de vocês na tropa. Todos irmãos de um mesmo pai, mas não...
A espada de Hernando vibra nua no ar, mas a de Soro é logo, erguida. - Devagar, Hernando - contemporiza don Francisco.
- Ouça o Governador, Hernando. E pense um pouco, se a sua cabeça permitir. Se eu me retirar com os meus soldados, vocês perdem o ouro que já me forneceram... E o Peru! Sem mim, quantos vocês são? Cinqüenta? Sessenta? Com uns vinte cavalos que mal ficam em pé.
- Com você, não somos muito mais - ruge Hernando.
- Não muito mais, mas o dobro! Já que don Francisco quer conquistar o país antes do ouro, isso pode ser útil, não é? Bem útil! Sem mim...
- Excelência! Excelência!
Frei Vicente Valverde, um dos dois dominicanos que chegaram até ali vindos da cidade do Panamá, pára na entrada do aposento ao ver as espadas desembainhadas. Instintivamente, afasta as mãos num gesto de súplica:
- Meus Senhores! Não podem ter um pouco de sensatez? Não acham que a situação merece mais sabedoria?
- O senhor felizmente acaba com nossas infantilidades, Frei Vicente - ri Soto guardando a espada. - Mas não com nosso mau humor...
- O que sabe?
Virando-se para don Francisco, Frei Vicente se persigna e diz baixinho, como se estivesse contando um segredo:
- Um índio velho chegou aqui hoje de manhã. Está contando coisas absolutamente espantosas a Martinillo, nosso intérprete. Precisa ouvir, Excelência. E os senhores também...
O homem é bastante baixo. Seu olhar é cheio de profundidade e franqueza. Estranhamente, sua admiração pelos estrangeiros que o cercam parece grande. Com um dedo respeitoso, ele toca seus panos, suas barbas, o metal de seus estiletes e das bainhas de suas espadas, sorrindo constantemente. Como se constatasse aí uma esperança.
Veste apenas uma simples túnica de algodão vermelha e amarelo-viva. Sua pele é curtida, acabada, enrugada, mas suas mãos são tão vivas quanto leve é a sua voz. Ele fala com agilidade, numa língua líquida e chiada que parece a Gabriel mais próxima de um canto do que de um discurso.
E Martinillo, o índio vestido como os espanhóis, traduz com grande seriedade, num castelhano agora muito claro:
- Ele diz que fez a guerra para o único Senhor desse país, o Inca Filho do Sol. Diz que foi o único que ficou aqui para esperar os Grandes Senhores do Além, pois gosta da maneira como eles fazem a guerra. Diz que antes de Tumbez ser incendiada pelos inimigos dele da ilha de Ia Puna que não respeitam o Inca, a cidade tinha cerca de mil casas. Mas houve muitas mortes e o resto do povo fugiu quando soube que os homens com barba e animais saíram do mar. Ele não quis fugir, pois sabe o que é a guerra. Diz que esteve em Cuzco, a cidade sagrada do Único Senhor. É uma cidade como não há em nenhum lugar. As ruas são feitas de ouro, as casas, os animais e até as plantas são de ouro. Ele diz que os homens com barba e animais são muito fortes para a guerra e podem muito. Ele acha que eles deviam conquistar tudo. Por isso não quis fugir como os outros e pede que a casa dele não seja pilhada...
E como o índio se cala, o silêncio é absoluto de tanto que todos ainda querem ouvi-lo falar. Até o capitão de Soto esqueceu seu sorriso orgulhoso. De repente, don Francisco, num gesto que lembra a Gabriel aquele que ele o viu fazer uma noite em Toledo, cai de joelhos e se persigna diante do índio. E quando se levanta, tem estampado nos lábios um sorriso cheio de orgulho.
- Capitão de Soto - murmura ele apontando para o índio -,eis aí um homem que acredita em nós mais que o senhor. E eu já não lhe tinha dito? Paciência!
- Acredita no que ele conta? - chia Soto. - Paredes de ouro, animais, plantas de ouro? Acredita mesmo nisso?
- Neste país, acredito em muita coisa, capitão. E primeiro na minha boa estrela. E depois, vamos lá conferir, não é?
Virando-se para Martinillo, ordena:
- Diga-lhe que não vamos pilhar a casa dele. Vamos botar uma cruz na parede dele. E que ele nos fale mais dessa cidade de Cuzco e do caminho que leva até lá. É longe?
Huarnachuco, abril de 1532
Ao longe, os três rochedos encarapitados no topo da colina de Porcon ainda parecem sombras no céu escuro onde, imperceptível, ergue-se um clarão azul.
Anamaya olha para Villa Oma.
A preocupação constante dos combates endureceu e encovou seus traços. Os olhos fundos nas órbitas brilham como pedras sobre as quais houvesse uma brasa. Desde que a guerra começou, ele aparece em todos os campos de batalha, interpreta os sinais ao lado dos adivinhos, manipula as inventivas e os estímulos. Na corte, diz-se que ele não precisa de comida para seu corpo magro e seco, que o sumo das folhas de coca lhe basta. Embora os primeiros alvores da aurora ainda não tenham atravessado a noite, ele conduz num passo firme a pequena tropa que se dirige para a colina. Anamaya caminha bem atrás dele, ao lado de Guaypar, calado, absorto em seus pensamentos. Eles precedem a escolta das servas que transportam as jarras de chicha, os vasos de ouro e prata, os panos nos quais estão conservadas as oferendas destinadas à huaca. Dois rapazes guiam os dez lhamas destinados ao sacrifício.
Anamaya está perturbada com a presença de Guaypar. Não consegue esquecer seu estranho pedido e sua confusão, e não sabe como lhe explicar que não é sua inimiga. Gostaria de tranqüilizá-lo com um olhar, mas cada vez que olha para ele, parece que ele fita intensamente o céu que mal começa a clarear.
As casas da aldeia se aglomeram ao pé da colina. Todos os habitantes estão no culto da huaca; todos ficaram sabendo que o Sapay Inca Atahualpa enviava dois de seus Senhores para consultar a huaca. Eles saíram de casa e assistem em silêncio à passagem de Villa Oma, Guaypar e dos outros. Anamaya nada lê em seus olhares sem expressão, quase ausentes.
O primeiro raio de sol bate no cume da colina: no rochedo mais alto, erguem-se os muros de pedra negra que abrigam o ídolo.
Anamaya vira-se para Villa Oma enquanto eles se aproximam da ladeira. - O que quer nosso Senhor Atahualpa?
- Conhecer o que o pai já não diz a você - responde Villa Oma, a voz apagada.
- Você ainda vai dizer que é minha culpa...
- Não digo nada disso, menina - murmura o Sábio. - Não preciso de oráculo para saber que um herói com medo não é bom sinal.
Anamaya se cala. Em seu coração, sabe que o Sábio tem razão.
O sacerdote que guarda a huaca é de uma magreza de dar medo. Seu pescoço tem três dedos de grossura e ele é tão idoso que sua barba tem alguns fios brancos. Seu olhar não tem mais cor e ele fica em pé com dificuldade, apoiado num bastão cujo punho tem a forma de uma serpente enroscada sobre si mesma. A sujeira de seus pés descalços é repugnante e ele está vestido com uma túnica que lhe bate nos tornozelos. É uma túnica de pêlos longos - sem dúvida de guanaco com uma profusão de minúsculas conchinhas róseas penduradas.
Atrás dele, há um grupo de sacerdotes apenas ligeiramente mais jovens e menos sujos que ele.
Quando Villa Oma está diante dele, o Guardião abre a boca e Anamaya tem um movimento de recuo: é uma boca totalmente desdentada e o som que dela sai tem a profundidade de uma espécie de trompa - é a voz dos deuses que passa por essa casca.
Sei por que você está aqui.
Enquanto o sol sobe suavemente para o seu zênite, Villa Oma dirige a distribuição das oferendas ao ídolo uma estátua de pedra em forma de homem, e de tamanho natural. O templo que a abriga é uma sala única, sem teto, cuja janela dá para o nascente e a porta, para o poente. Os nichos colocados nas paredes contêm muitos objetos de ouro e são revestidos de ricos cortinados.
Antes de mais nada, os sacerdotes espalham as folhas de coca aos pés do ídolo. Depois, Villa Oma e Guaypar, de pé em frente à imagem, arrancam um cílio e o sopram em sua direção. Em seguida, derramam as jarras de chicha murmurando as palavras propícias.
Eles entregam ao Guardião o resto das oferendas. Este sopra em cima de cada uma antes de depositá-la no pano de lã: coca, espigas de milho, plumas coloridas... Depois, os panos são amarrados e queimados no fogo aceso do lado de fora da huaca bem junto à entrada.
Quando o fogo se apaga, Villa Oma deposita diante do ídolo dois vasos de ouro e dois de prata. Faz sinal aos rapazes responsáveis pelos lhamas: cada um dos animais é amarrado a uma pesada pedra e gira em volta dela. Na quarta ou na quinta volta, o Guardião crava-lhe a faca no peito, arranca o coração e o leva à boca enquanto os sacerdotes recolhem o sangue.
Um zumbido escapa do peito das servas.
Anamaya desvia a vista: iniciada nos mistérios, tendo feito o caminho da Cidade-cujo-nome-não-se- diz, ligada por seu juramento, ela sempre recua diante da necessidade do sacrifício.
O sangue escorre pela comissura dos lábios do Guardião, por seu pescoço, até sua túnica onde os fios se perdem nas conchinhas róseas, entre os longos pêlos. Sem uma palavra, ele transpõe a porta do templo, e só Villa Oma o segue.
Anamaya fica com Guaypar, as servas, os pastores e os sacerdotes da huaca. O vento se levanta e refresca-lhes a nuca. No entanto, o céu está cheio de nuvens negras e o ar, pesado.
O Guardião foi se colocar atrás do ídolo e seu vulto descarnado desapareceu. Pelo vão da porta, só se vêem as costas de Villa Oma, curvado como um suplicante, e a cara terrível do ídolo Catequil, deus da guerra.
- Faça a sua pergunta - diz o ídolo.
- Meu Senhor, o Sapay Inca Atahualpa gostaria de saber que futuro ele tem.
Não há um instante de hesitação. A voz do ídolo ecoa como um trovão no céu de tempestade.
- Atahualpa derramou muito sangue e os deuses estão zangados. O fim dele é funesto e está próximo.
Por um momento, as costas de Villa Oma não se mexem e o inteiro prende o fôlego. Anamaya ouve as batidas de seu coração.
- O fim dele é funesto e está próximo - repete a voz de trovão quando as nuvens se rompem e as primeiras gotas de chuva começam a cair. Villa Oma se levanta, vira-se e sai pela porta da huaca. Seu rosto está cor de cinza.
Eles descem a colina sem falar, encurvados sob a chuva grossa que cai. Embaixo, a aldeia está deserta, como se todos os servos da huaca tivessem entendido a terrível predição e se escondessem em casa.
Ao ver os muros do tambo de Huamachuco, Villa Orna pára para pegar Guaypar pelo braço.
- Não venha comigo.
- Por quê?
- Podíamos ser dois quando Atahualpa esperava um oráculo favorável Mas devo estar sozinho para lhe anunciar que não foi.
Guaypar treme de impaciência e frustração. Anamaya pousa com delicadeza a sua mão na dele. Depois, aponta para as pedras bem alinhadas do palácio do curaca onde Atahualpa aguarda a resposta do oráculo.
- Sabemos que você não tem medo - diz ela. Guaypar vira para ela seu olhar inexpressivo.
- Sou o único que sabe do que tenho medo.
- Isso basta, Guaypar - diz o Sábio. - Volte para a sua cancha e aguarde as ordens do seu Único Senhor.
O olhar de Guaypar não deixou Anamaya; é de uma intensidade assustadora e Anamaya lê aí sentimentos tão violentos que tem medo de entendê-los. As palavras de consolo e de amizade ficam entaladas em sua garganta.
- Eu vou também - diz finalmente Guaypar.
- Está ouvindo, Villa Orna?
Os olhos de Atahualpa brilham com um misto de fúria e alegria.
- Huascar foi vencido!
- Estou ouvindo.
- Repita para ele, Sikinchara, palavra por palavra, como acaba de me dizer.
Anamaya reconhece o capitão Sikinchara, o mesmo que a prendeu na floresta há muitos anos. Cada vez que o vê, não consegue evitar o movimento de medo da menina que foi e que, em seu coração, continua sendo.
- Nossas tropas infligiram às de Huascar uma derrota cujo fragor ecoa por todas as montanhas. Seu exército está em fuga, ou destruído, ou do lado de nosso Único Senhor.
No pátio da cancha, do outro lado dos muros grossos, ouvem-se os gritos de alegria.
- Você parece taciturno, Villa Orna. Não está alegre com a nossa vitória?
- Fui enviado para consultar o oráculo de Catequil, Senhor.
- Sem dúvida ele previu o meu triunfo.
- Não exatamente.
- Não exatamente?
A voz de Atahualpa vibra com uma raiva contida.
- Repita para mim o que o oráculo lhe disse.
Não tenho certeza se está com vontade de ouvir.
Deixe que eu julgue o que tenho vontade de ouvir.
Villa Orna respira fundo.
- Essas foram as palavras do oráculo: "Atahualpa derramou muito sangue e os deuses estão zangados. O fim dele é funesto e está próximo.”
O silêncio cai no aposento do palácio. Atahualpa está sentado num tripé sobrelevado por uma base. Está usando os atributos reais - a borla, a coroa de plumas e o sunturpaukar, o cetro do poder. Sikinchara está a seu lado. Villa Orna e Guaypar estão à sua frente, cabeça baixa, enquanto Anamaya está ligeiramente afastada. Quando se encontra em sua presença, ela sente a força sombria que emana do Inca, portador dos raios e do trovão. No entanto, é com uma doçura inesperada que ele pronuncia aquelas primeiras palavras.
- Fale-me desse oráculo.
Villa Orna obedece: conta da marcha noturna, da cidade, das oferendas, do velho sacerdote com a túnica de conchinhas rosadas. Depois, repete as palavras: "fim funesto e próximo".
Atahualpa dá uma risada.
- E você acredita nesse oráculo? - Villa Orna não diz nada.
- Responda, você que chamam de Sábio e que com efeito só diz palavras sábias. Acredita?
- Não quero lhe responder, Senhor.
- E você, Anamaya? Ela permanece calada.
- Vocês têm medo - diz Atahualpa -, medo dessa huaca que é minha inimiga como meu irmão Huascar.
Sua voz esforça-se para ficar calma, mas Anamaya detecta nela um tom de descontrole, de inquietação profunda.
- E você, Guaypar? - pergunta ele afinal. - O que diz?
- Digo que é preciso destruir o que se opõe a você, Senhor.
- Eis aí o meu irmão - diz Atahualpa.
Porcon, junho de 1532.
O exército de Atahualpa entrou na cidade de Catequil no pôr-do-sol. Guaypar e os outros capitães vestiram, por cima do unku, o colete de couro e o peitoral de metal. Eles usam capacetes de junco trançado, tão sólidos que resistem incólumes a pedradas ou cacetadas. À frente, tremulam os unanchas, os estandartes de cores fortes. Logo atrás, em fileiras cerradas, vêm os lanceiros, depois os arqueiros.
Já não há, na rua bem pavimentada que atravessa a aldeia, homem nem mulher algum. Só um garoto com seu cachorro preto de pêlo curto que ficou no meio da rua, paralisado de medo.
Guaypar aproxima-se dele. - Sabe quem somos?
O garoto balança a cabeça, incapaz de articular qualquer palavra. Guaypar o afasta sem rudeza.
Nesse instante, ouvem-se as trompas e os tambores, cujo eco bate nas colinas.
Vinda do poente, encimada por um sol, a liteira de Atahualpa aproxima-se no passo lento de seus carregadores, rampa suntuosamente decorada de ouro e prata, com suas plumas coloridas tremulando ao vento, como se não avançasse carregada por homens mas sim por um exército de pássaros.
A liteira pára. As cortinas de fino cumbi apenas tremulam com a brisa. - Estão prontos? - pergunta a voz do Inca.
- Estamos, Senhor - responde Guaypar. -Aguardamos as suas ordens. Faça o exército cercar a colina para que o ídolo maldito, meu inimigo, não escape.
Após algumas ordens precisas e secas, o exército está em marcha.
De manhãzinha, Atahualpa vai sozinho até o alto da colina. Só o acompanham os dois senhores que foram consultar o oráculo: Villa Oma e Guaypar. O Guardião os espera, mais sujo e repugnante que nunca naquela túnica de conchinhas rosadas.
Atahualpa desce da liteira empunhando um machado de bronze coberto de ouro. O Guardião não abaixa os olhos, não se curva diante do Inca. Permanece de pé, apoiado em seu bastão, cuja empunhadura tem a forma de uma serpente.
- Você sabe quem eu sou - diz Atahualpa. Ele balança a cabeça.
- Eu o conheço. É o Senhor Atahualpa.
- Se me reconhece, por que não se curvou diante de mim?
- Porque outros homens vieram interrogar o oráculo de Catequil e foi respondido a eles, pela minha voz, que só há um Sapay Inca, cujo nome é Huascar.
- Mentira.
- Não tenho o poder de ser nem a mentira nem a verdade. Sou a voz do deus Catequil. Ele já existia antes de mim e existirá depois.
- Mentira. Repita todas as mentiras que me dizem respeito, que eu as escute de sua boca.
- Você é o Senhor Atahualpa. Derramou sangue demais. O seu fim é funesto e está próximo.
- Mentira. Você é amigo do meu inimigo, portanto, meu inimigo. Não sabe que eu não sou um homem de quem se possa zombar. Nem homem, nem huaca, nem ídolo...
- Você não é o Inca. Não foi escolhido regularmente. É filho do grande Huayna Capac, mas de uma mãe de linhagem modesta...
O machado assobiou no ar num movimento tão rápido que ninguém pôde perceber antes que atingisse o Guardião. Sua cabeça se separa do corpo de onde jorra sangue aos borbotões. Durante alguns instantes, suas velhas mãos continuam apoiadas no bastão, depois se abrem e deslizam por ele ao mesmo tempo que o corpo decapitado.
Guaypar se obriga a olhar a cabeça que rolou no chão com um sorriso de desprezo congelado nos lábios.
Uma gota de sangue do Guardião cai no motivo de ouro único que decora o unku do Inca - a figura geométrica do kapak, o chefe. Atahualpa ignora-a e se encaminha para o pequeno templo onde o ídolo ainda reina.
- Ninguém pode zombar de mim - repete antes de entrar, voltando-se para Villa Oma e Guaypar.
Torna a erguer o machado e golpeia o ídolo Catequil em forma de homem, no mesmo ponto em que golpeou o Guardião, no pescoço. O movimento é tão violento que derruba a estátua no chão, com a cabeça destacada do corpo. Uma poeira cinzenta vem depositar-se na barra da túnica do Inca. À porta do templo, ele está ofegante, os olhos injetados de sangue, selvagem e sem alegria.
- Não está contente, Villa Oma?
- Não tenho por que estar contente, único Senhor. Nem descontente. Eu o escuto e escuto os Ancestrais do Outro Mundo. Eu o escuto e escuto Inti, seu Pai.
Do sopé da colina, vem correndo um chaski. Ele chega esbaforido junto a Guaypar, a testa brilhando de suor, os músculos longilíneos e fortes de suas pernas ainda tensos devido ao esforço. O jovem capitão se volta para ele. O chaskí lhe segreda algo no ouvido durante um bom tempo. A expressão de Guaypar se ilumina.
- Único Senhor! exclama ele. - Meu irmão?
- Huascar, o usurpador, foi feito prisioneiro pelo seu general Chalcuchima. Ele está acorrentado. Está derrotado, Único Senhor! Quando quiser, poderá arrancar-lhe a pele!
- Levante os olhos para mim, Villa Oma, olhe para o seu Senhor sem esse medo descabido dos deuses.
Villa Oma continua fitando o chão.
- Está se preparando uma reviravolta, ó Sábio, como o Império das Quatro Direções não vê desde Pachacutec, o Transformador! Eu sou o novo transformador do mundo! Sou aquele que destrói os deuses antigos, os deuses maus, sou aquele que transforma os homens em pedras e as pedras em homens...
- Não pode afirmar isso, único Senhor - diz Villa Oma em voz baixa. - Só quem pode é Viracocha, o Deus que criou todas as coisas!
- Posso afirmar isso e tudo o que eu quiser, Sábio sem sabedoria. Guaypar?
- Sim, Senhor.
- Quero que mande trazer aqui em cima toda a lenha de sacrifício que encontrar nas construções dessa aldeia maldita, serva de uma huaca e de um ídolo maldito; quero que cerque esse cadáver - ele indica com desprezo o corpo sem cabeça do Guardião -, esse ídolo e essa colina como o meu exército cercou e que faça uma fogueira que alcance o meu pai Sol!
Guaypar tenta conter o sorriso que invade seu semblante. - Como queira, Senhor.
- Quando isso acabar, quero que venham buscar o que restou da cabeça do ídolo, e que isso seja reduzido a pó assim como os outros pedaços e jogado ao vento!
O chaski continua, respeitosamente, mãos atrás das costas, cabeça baixa, atrás de Guaypar. O capitão vira-se para ele.
- O que mais?
O rapaz torna a falar baixinho durante um bom tempo. O sorriso se apaga do semblante de Guaypar.
- Há outras notícias - diz Guaypar.
- Mais tarde, irmão - diz Atahualpa -, as notícias de hoje me bastam e não quero esperar mais.
Ele sobe na liteira.
Anamaya contempla o fogo.
O incêndio queimou as casas da aldeia, alastrou-se pelo mato, aproxima-se dos três rochedos no alto da colina.
A noite parece dia, e o calor é insuportável. Ela se volta para Guaypar. - Foi você quem fez isso?
- Obedeci às ordens do Sapay Inca.
Não há o que responder. Ela observa os aldeões que vêem, impassíveis, suas casas, sua colina e seu deus arderem.
- Você parece preocupado - diz Anamaya. - Chegou uma mensagem estranha...
- A detenção de Huascar?
- Não. índios tallanes, originários da costa, dizem que uns homens brancos com a cara coberta de pêlos chegaram do mar...
O coração de Anamaya começa a bater violentamente.
- Na cintura, eles usam um cinturão ao qual se prende uma coisa de prata parecida com o bastão que as mulheres usam para tecer... Eles andam montados em lhamas maiores que os nossos. Os tallanes os chamaram de viracochakuna.
Anamaya treme apesar do calor, tanto que Guaypar repara. Ele tenta passar o braço em volta de seu ombro, mas ela o repele com delicadeza.
- Eu me lembro - diz ela -, eu me lembro... Eu era criança e o Grande Rei Huayna Capac pediu que eu o esquentasse quando os mensageiros chegaram... Eles falavam de estrangeiros vindos do mar, diziam o nome de Viracocha... Desde então, nada mais é igual no Império das Quatro Direções.
- Somos poderosos! - exclama Guaypar. - Dominamos todas as tribos!
- Não sei por que Huayna Capac não me fala mais desde o Mundo de Baixo. Tenho medo do silêncio dele. Passei muito tempo achando que eu é que estava me comportando mal. Agora me pergunto se não é ele que está se escondendo para não ver o fim do mundo... Funesto e próximo, disse o oráculo.
- Não há mais oráculo, Anamaya. - Olhe!
Anamaya aponta para a colina. Tudo está em chamas, mas o rochedo no qual se encontram os restos quebrados do ídolo Catequil e sua construção já não arde. As labaredas o envolvem, correm em volta dele, fazendo-o brilhar na noite como se fosse um templo de ouro fulvo.
Anamaya pensa nas palavras de Huayna Capac, aquelas que ela já ouviu, aquelas que continuam escondidas em seu coração.
Nem o fogo, nem a água, nem o vento podem destruir o que diz a verdade, Guaypar. Nem fúria nenhuma.
Cajas, outubro de 1532
- Acha que eles estão nos vendo? - pergunta Gabriel. Sebastian balança a cabeça.
- Eu acredito no que eu vejo. O resto...
Desde que deixaram o leito do rio para se embrenhar nas montanhas, Gabriel não consegue deixar de virar a cabeça, de procurar atrás das árvores e das moitas, na sombra dos rochedos incendiados: eles estão ali.
O destacamento de cinqüenta homens e dez cavalos, comandado por Soto, há dois dias recebeu ordem de se dirigir com guias a uma cidade onde, segundo informações, estaria uma importante guarnição do Rei dos índios.
As semanas passadas em Tumbez, nesse mundo estranho de mar e rio, areia, manguezais e florestas, tiveram um efeito na força de seu sonho: quanto mais ele se aproximava do que havia procurado, mais isso lhe parecia inatingível. Os dias começavam, insensivelmente, a se parecer com dias comuns. A pessoa se acostuma facilmente a não ter sede nem fome, a se curar de seus males. Habitua-se a olhar o mar e, ao longe, os pontos pretos a dançar sobre as ondas, os pescadores montados naqueles estranhos cavalos do mar que eles montam e que, entre si, os espanhóis apelidaram de caballitos. Habitua-se a encontrar o sorriso furtivo de uma mulher e o olhar triste, impenetrável, hostil de um menino. A rotina dos guardas e a espera criam uma espécie de torpor do qual é difícil sair.
Quando Pizarro deu ordem a Soro para assumir o comando de um destacamento para se dirigir em embaixada - finalmente! - através das montanhas a essa cidade situada, segundo os guias, a três dias de marcha, e quando chamou Gabriel num canto para lhe confiar sua missão, seu coração voltou a bater.
- Quero que fique com Soto - disse o Governador. - Quero que seja a sombra dele, que me garanta contra qualquer golpe que ele esteja reservando...
- Golpe? - espantou-se Gabriel.
- Não tente compreender. Eu o conheço e conheço os homens. Sei o que vale a obediência deles. Vá aonde ele vai, veja o que ele faz. E me conte tudo. Entendido?
- E se não der certo?
O Governador deu um sorriso estranho.
- Somos menos de duzentos, Gabriel. Apesar dos conselhos de meu querido irmão Hernando, que está pronto a tudo para se livrar de Soto, não vou enviar um quarto dos meus homens para ser massacrado. Não seria uma atitude cristã nem, sobretudo, inteligente. Isso vai dar certo. Eu rezo por você.
Gabriel pensa novamente na cara do Governador, naquele corpo miúdo e seco de onde emana uma energia indômita, naquele olhar no qual ele nunca consegue ler nada, naquela barba que parece sempre impecavelmente apara da. O que ele quer de fato? Oficialmente, entrar em contato com o Rei - Altabaliba ou um nome assim - e lhe propor amizade. Gabriel suspira: mais vale para sua tranqüilidade interior não lhe atribuir outros projetos. Seria de enlouquecer.
Eles partiram há dois dias, avançando sempre morro acima. Após deixarem o caminho do fundo do vale na altura de dois enormes rochedos brancos, que pareciam colocados de cada lado como duas sentinelas, eles se embrenharam através de uma mata fechada, por trilhas cada vez mais estreitas, e, no entanto, com uma cobertura regular de pedra. Cada vez que emergem da mata, nas proximidades de cada garganta, sob o céu de um azul inalterável, Gabriel espera ver o espetáculo repousante de uma planície. Mas só há montanhas atrás de montanhas, parecendo engolir aquele pequeno pelotão.
Ele se volta pela centésima vez para Sebastian, que caminha a seu lado. - Quantos acha que eles são?
Sebastian ri.
- Já respondi a essa pergunta, don Gabriel!
- Eu sei: você acredita no que vê. Mas assim mesmo?
- Mais obstinado que esse fidalgo... Se eles foram capazes de construir cidades como a que vimos destruída... Se a beleza da capital deles for metade do que o velho nos descreveu...
Gabriel olha as costas fortes de Soto, colado ao cavalo, como se os dois fossem uma coisa só.
- E ele, acha que ele sabe mais que nós?
- Ele é como o Governador. Finge... Mas pode crer, tem um coração que bate igual e um olho igualmente rápido.
O olho... O dia, a noite... Acontece de Gabriel acordar sobressaltado, certo de que está sendo observado e de que há olhos engastados no escuro, procurando obstinadamente adivinhá-lo, vê-lo com detalhes. É uma impressão curiosa - ele tem e ao mesmo tempo não tem medo de morrer. Se o seu espírito se separasse dele, sem dúvida veria a loucura completa daquela empreitada, visualizaria as dezenas de milhares de soldados armados de lanças, flechas, estacas, que os aguardam e vão, na boca de uma garganta, cercá-los e massacrá-los horrivelmente, sorrindo. Mas os olhos que o observam têm algo de triste, quase melancólico, e é bom mergulhar em seu azul-noite.
Na manhã do terceiro dia, dois espias são capturados. Apesar da intermediação de Felipillo, foi difícil saber se a missão deles era hostil e o que os esperava exatamente. Os rumores percorrem a escolta, e Soro pôs novamente ordem na coluna. Plastrões de couro foram trocados por finas cotas de malha e, de vez em quando, Gabriel leva maquinalmente a mão à espada. Certamente será preciso lutar.
Mas contra quê?
O caminho desapareceu bruscamente e transformou-se numa espantosa pedreira na qual homens e cavalos lutam para não cair. Ouvem-se gritos, relinchos, arquejos, o suor inunda as têmporas, empapa as camisas. Pedras caem na velocidade do vento, como se atiradas por uma mão invisível.
Soto, sozinho, avança sem esforço. À frente do cavalo - estranha impressão, pois realmente aqueles dois são uma coisa só, até o cinza da cota de malhas confundindo-se com a pelagem da montaria -, ele vai marchando num passo constante, sem escorregar nunca, os pés como que grudados no chão.
Gabriel o segue de perto e o alcança na garganta, o peito em fogo e arfando como uma forja.
- Chegamos - diz calmamente Soro.
Gabriel não responde. Soro o observa com uma afeição rude.
- Não falar comigo faz parte das suas ordens? - pergunta sem brutalidade. - Pensei que sua missão se limitasse a vigiar meus atos e meus gestos...
Gabriel evita o olhar dele e desvia a vista, dando de ombros de forma exagerada:
- Não entendo o que o senhor quer dizer, capitão de Soro.
- Vamos - sorri Soto -, não minta, não fica bem para você. Gosto de você, rapaz. E não só porque você me salvou a vida.
Gabriel enrubesce, sem saber o que responder.
- Mas lhe garanto - conclui Soto em tom antes alegre -, isso não envolve nenhuma obrigação de sua parte...
O estojo das montanhas finalmente se alargou para dar lugar a uma planície. O ar está penetrante, um pouco mais frio, e uma leve brisa balança as flores das acácias. Um rebanho daqueles carneiros que agora eles sabem que se chamam lhamas não se assusta com a chegada deles e continua pastando.
Um pouco adiante, a relva da planície está salpicada de manchas amareladas que traem a presença recente de várias centenas de tendas. No meio de fogueiras abandonadas, alguns tições continuam acesos. O coração de Gabriel se descompassa.
- Não há ninguém - diz Soto. - Foram todos embora. - Para onde?
Soro não responde. Enquanto o resto do pelotão os alcança e depara, por sua vez, com a cena, eles avançam pela campina. Os lhamas erguem seus pescoços compridos e os observam, sentinelas de olhos lacrimosos, femininos. Gabriel escuta o vento, perscruta o céu, os sentidos em alerta. A cada instante, ele acha que um bando aos berros vai pular em cima deles. Mas reina tamanha paz, o silêncio quebrado apenas pelo vento, que isso parece impossível.
Eles atravessam o acampamento: nas cinzas das fogueiras ainda quentes, Gabriel recolhe uma bola preta que ele leva às narinas.
Papa - diz uma voz gutural, característica, atrás dele.
Ele se vira. É Felipillo, um dos dois intérpretes, aquele de quem ele não gosta.
- O que é?
- Um desses pomos que crescem dentro da terra e que são assados no fogo...
- É bom?
- Claro! Por quê?
Gabriel não responde. Decididamente, ele não consegue se sentir à vontade com Felipillo. A cara do intérprete é, por assim dizer, dividida em dois: a parte de baixo dominada por uma boca sensual, de lábios gulosos, e a de cima, animada por olhinhos de fuinha, nunca parados. Felipillo tem aquela mania de olhar para todos os lados, como se estivesse sendo perseguido. A menos que, ao contrário, ele pare de espreitar, é impossível segurar seu olhar por mais que um instante. E com isso, nunca se tem muita certeza do que ele está traduzindo...
Gabriel acompanha Soro. Em volta das fogueiras, há vestígios de uma partida recente e precipitada. Ficaram alguns utensílios, vasos de madeira ou terracota, jarras e até reservas de comida. Soro vira-se para ele.
- O que acha disso?
- Capturamos os espias deles, mas nem todos...
O semblante de Soro se ilumina. Gabriel não pode se impedir de simpatizar com esse homem a quem está encarregado de espionar, que sabe disso e nem tem raiva dele.
- E, na sua opinião, quem tem mais medo? Eles ou nós? - Nós não temos medo, capitão.
- É o que eu achava.
Enquanto passam pelas últimas tendas, os dois avistam o pássaro no céu. É maior que uma águia, maior que um albatroz - e preto como uma nuvem de tempestade, assobiando através do céu azul perfeito. Voa bem alto, em círculos que, pouco a pouco, se aproximam. Eles o admiram. O olhar de Soto o deixa um instante e se fixa em três árvores erguendo-se no meio da campina, em frente a eles.
- Meu Deus - diz.
E Gabriel custa a conter um grito.
No fim da planície, a encosta torna a subir para uma espécie de esplanada natural que domina o vale. Ali é que se erguem as primeiras casas da cidade, com suas paredes de barro e seus tetos de palha.
Os homens estão calados, temendo uma cilada.
Todos têm a imagem daqueles três índios pendurados pelos pés e balançando ao vento. As órbitas estavam vazias, e é difícil fugir daquelas perguntas idiotas: quem arrancou seus olhos assim - homens ou pássaros? E depois, eles estavam vivos ou mortos quando aquilo aconteceu?
Todos os cavaleiros apertam instintivamente as pernas nas montarias. Há no ar um tinir de armas, um rumor de dúvida e medo. E também - Gabriel descobre para sua surpresa - uma espécie de excitação alegre.
Sem estar tão devastado quanto Tumbez, o local visivelmente foi palco de lutas. Algumas paredes ruíram, casas também, tetos arderam. Mas vê-se que aqui a vida continuou, que nunca desapareceu. Na entrada, uma construção mais importante que as outras impressiona-os pela altura. Soro faz sinal de avançar.
Eles passam ao longo de um sólido muro de limite, no qual se enquadram aquelas portas cuja forma típica Gabriel já reconhece - mais largas na base, mais estreitas no alto, encimadas às vezes por uma verga com entalhes representando algum bicho, guepardo ou serpente.
Os ruídos que escapam dos pátios nada têm de ameaçador: são os gritos familiares das crianças, as repreensões das mães. Eles às vezes vêem o vulto de um homem despontar num canto e logo desaparecer, apavorado.
Felipillo marcha orgulhosamente ao lado de Soto, como um chefe de expedição. Mais do que nunca, seu olhar corre de um lado para o outro.
A rua termina num muro grosso, de uma alvenaria regular e forte, no meio do qual há uma grande abertura. Eles vão dar numa vasta praça no fundo da qual ergue-se uma espécie de pirâmide cujo topo teria sido cortado: isso forma uma plataforma aonde se chega por degraus altos. Soto ergue a mão para dar a seus homens a ordem de parar. No alto da plataforma há um pequeno grupo de homens cujas silhuetas escuras se destacam contra a luz do poente. Eles não se mexem.
- Gabriel! - chama Soto. Gabriel vem ter com o capitão.
- Vá lá a pé, sozinho com Felipillo, e traga-me o chefe dessa cidade... Lembre-se: somos amigos deles.
- Acha que eles estão armados? - A honra de descobrir é sua. Gabriel prepara-se para apear do cavalo.
- Devagar, vamos, bem devagar... Você não quer me perder, e nem eu quero perdê-lo. À menor ameaça, grite: "Santiago!”
Gabriel entrega seu cavalo a Sebastian. Sente-se pesado e constrangido, sem firmeza alguma nas pernas. Felipillo tenta acompanhá-lo de perto. Gabriel estica o braço e bate no peito do índio que recua, surpreso, subitamente assustado.
- Atrás - sibila Gabriel -, fique atrás!
O local é coberto por uma terra que parece areia. Sob seus passos, rangem milhares de conchinhas minúsculas. No meio, um simples filete de água corre de uma fonte cuja forma é exatamente a da pirâmide do fundo da praça: a água desce por um rego cortado ao longo dos degraus delicadamente cinzelados. "Uns selvagens, uns macacos, como diz Hernando", pensa fugazmente Gabriel, "mas, puxa vida, sabem trabalhar a pedra!”
Quando chegam à pirâmide, Felipillo mantém-se prudentemente longe de Gabriel. Sem sequer se voltar, ele avalia o espaço que o separa da proteção tranqüilizadora de Soro, dos cavalos, das espadas. Sobe cada degrau muito devagar, para não se cansar.
No alto, Gabriel fica ofuscado pela luz do sol que estava escondido dele durante a subida. Curiosamente, sente no coração uma imensa liberdade. Num átimo, lembra-se das palavras do jovem monge na masmorra, em Sevilha - como se chamava ele? Bartolomé.
"Você não pode saber nada sobre você enquanto eles não vêm com os ferros ou o fogo...”
Sim, há momentos em que finalmente a pessoa conhece sua própria verdade!
Ele não tem medo.
O homem à sua frente está vestido de maneira estranha e magnífica. Usa uma espécie de cordão colorido em volta da cabeça, de onde saem algumas plumas de cor. Veste uma túnica vermelha e preta até os joelhos: a parte de cima representa dois felinos, como dois gatos grandes com o rabo enroscado, observando-se de boca aberta com uma expressão ameaçadora. Nos pés, o homem usa sandálias de couro finamente trançadas.
Somos os enviados do Imperador Carlos V - começa orgulhosamente Gabriel -, vindos do outro lado do mar para trazer a amizade do nosso Rei, a palavra de Cristo e sua mensagem de paz e amor...
A voz de Felipillo ecoa atrás dele, vagamente desagradável, com suas sonoridades roucas. O que ele pode estar traduzindo?, pergunta-se Gabriel. Depois, um longo silêncio.
Finalmente, o homem pronuncia algumas palavras rápidas, com uma voz grave que Gabriel adivinha assustada.
- O que ele está dizendo? - Que esperava pelo senhor.
O homem com os gatos no peito - Felipillo explicou a eles que era chamado de curaca, quer dizer, chefe - multiplicou os sinais de amizade e deferência. Deu ordens para que os espanhóis fossem maravilhosamente instalados em seu palácio, que criados lhes trouxessem comida - milho, carne-seca, bolachas. Os limites de sua impassibilidade são traídos por seu medo diante dos cavalos - ele fez de tudo para não precisar se aproximar dos animais.
Apesar dos protestos - pois a promessa sempre adiada do País do Ouro esquenta o sangue de muitos - , Soro ordenou que os homens explorassem, em grupos de seis, cada casa da cidade. Prometeu os mais severos castigos para os atos de pilhagem ou qualquer espécie de roubo ou assassinato.
O palácio constitui-se de um pátio interno com salas únicas dispostas em quadrilátero à sua volta. À noite, as tochas foram acesas, iluminando as paredes de onde pendem tapeçarias da mesma lã que a túnica do chefe - algumas delas com motivos geométricos, outras representando flores ou bichos.
A noite caiu e com ela veio um frio intenso. Servos de olhos baixos trouxeram-lhes mantas de uma lã fina mas que os aquece maravilhosamente. Soto, Gabriel e Felipillo estão sozinhos com o curaca.
O rosto deste não se mexe. Ele abre a boca como se fosse falar e torna a fechá-la.
Depois seus olhos se franzem até formarem apenas uma fenda e todos os seus traços se alteram.
Ele chora.
Tajas, noite de 10 de outubro de 1532.
Na noite escura, Sebastian se deitou ao lado de Gabriel, numa esteira cuja maciez os repousa das agruras do caminho.
Ainda há uma tocha acesa na parede e as brasas canto do aposento. Gabriel está semi-adormecido. - Tem mulher aqui - diz Sebastian. Gabriel se levanta.
- O que você está dizendo?
- Lembra-se daquele grande prédio pelo qual passamos quando entramos na cidade? Pois bem, é uma espécie de convento com mulheres, estou lhe dizendo, dezenas, centenas de mulheres: velhas, moças, algumas feias, mas também...
Gabriel sente-se completamente desperto. - E o que...
- Nada, o que está pensando! Nós não desobedeceríamos às ordens do Governador, nem às do capitão Hernando de Soro!
Tenho algumas dúvidas, amigo.
Nós nos contentamos em beber algumas taças de uma estranha bebida fermentada que eles produzem em quantidades sobrenaturais. O gosto de milho é bastante desagradável, mas, diabos, essa bebida aquece o coração! Um brilho nos olhos negros de Sebastian faz Gabriel sorrir. - E além de esvaziar algumas taças amigáveis?
- Nada, eu garanto, eu juro! Há uma maneira de falar com as mulheres que vocês brancos nunca vão compreender, com essa brutalidade bestial de vocês! Nós temos uma delicadeza que escapa a vocês e nos permite...
- Paz, Negro.
- Conte-me antes a que atividades sérias vocês se dedicaram enquanto eu executava importantes missões diplomáticas.
Gabriel suspira. - Ouvimos o chefe deles nos contar suas desgraças.
- Desgraças enormes, garanto!
- Até Soto, que já viu muita coisa, ficou emocionado. - Conte.
- Chegamos aqui neste país no meio de uma guerra que dois irmãos estão travando entre si para ver quem é o chefe único. E nosso curaca não pagou o tributo ao lado certo.
- Os enforcados?
- Aqueles e muitos outros. Ele diz que a cidade foi pilhada, parcialmente destruída, que os habitantes foram massacrados, muitos se refugiaram nas montanhas... Diz que o exército do Rei vencedor seqüestra os filhos e as filhas dele, deixa os depósitos de provisões vazios... O acampamento que vimos é o dos vencedores: a notícia da nossa chegada fez com que eles se retirassem para algum lugar a dois dias de marcha. Mas o curaca treme só de pensar que eles podem voltar e praticar outros atos de vingança. Pelas lágrimas dele passam lembranças de torturas e crueldades que nós nem imaginamos...
Sebastian se cala. Depois:
- O que diz Soto? Ele diz que é uma boa notícia.
O monte de ouro é miserável. Alguns lingotes, alguns objetos, vasos... O curaca parece sinceramente desolado por não poder fazer melhor. Ele está sentado num tripé, perto do centro da esplanada, à sombra de uma acácia; Soto está a seu lado e procura assumir uma expressão realmente satisfeita. Os homens em desordem na praça reclamam; foram colocados espias no alto dessa plataforma chamada de ushnu. Felipillo traduz mais do que lhe é pedido, agita-se, pergunta, depois se volta para o capitão espanhol.
- Ele diz que pode lhe oferecer algo...
- O quê?
- Mulheres, para cozinhar para vocês na viagem. Ele quer ser agradável e aprender os costumes dos cristãos. Pede a amizade e a proteção de vocês.
- Diga a ele que, se ele continuar, não vamos lhe fazer mal nenhum, nem ao povo da cidade dele.
Felipillo traduz. O semblante do curaca recuperou toda a nobreza de seu porte. Sua entonação é aquela de um homem habituado a comandar. - Ele propõe que um dos seus vá à acllahuasi, a casa das moças, com seus criados. Eles voltarão trazendo as mulheres à praça para que vocês possam escolher.
Soto faz sinal a Gabriel. Alguns espanhóis se aproximam, procurando compreender o que está acontecendo, o que está sendo dito.
- Vá logo - murmura Soto -, traga-as antes que os nossos rapazes vão lá buscá-las pessoalmente...
Gabriel não ousa lhe dizer que os "rapazes" já visitaram o local... para Deus sabe que estrago. Ele encontra o olhar irônico de Sebastian.
Quando chega com os criados à casa das mulheres, depara-se com uma agitação incrível. No vasto pátio, todas estão reunidas: as mais velhas, que parecem comandar, e as mais jovens, às vezes meras crianças. Elas vestem túnicas longas, brancas ou vermelhas, que acompanham com graça seus movimentos quando elas andam. As mais idosas usam nos ombros uma espécie de manta, fechada por alfinetes de ouro ou prata, finamente cinzelados. Pela abertura de um aposento, ele vê alguns teares. Reina um barulho de terreiro de fazenda, com explosões de soluços e gargalhadas nervosas. Os servos do curaca esbravejam as ordens e faz-se um silêncio relativo.
Quando eles voltam à praça, os espanhóis começam a gritar e assobiar; alguns não hesitam em tentar agarrar as moças, outros lhes arrancam os alfinetes de ouro das mantas. A confusão é indescritível.
De repente, um grito atravessa a algazarra - grito de cólera vindo do alto da pirâmide. Um índio alto, ladeado pelos dois espias espanhóis, está na plataforma. É quase uma cabeça mais alto do que os dois soldados e sua nobreza é visível. Fios de ouro e prata correm em sua túnica de motivos geométricos de uma incrível sutileza, e ele tem nas orelhas aqueles brincos de ouro que eles já viram - mas de uma grossura impressionante.
- Parem! - grita Soto.
A calma volta num piscar de olhos.
- E larguem-no - ordena Soro para as sentinelas.
O índio desce os degraus altos da pirâmide com uma agilidade de felino. Atravessa a praça com passo enérgico. Depois, vem se pôr diante do curaca, ignorando totalmente Soto, e lhe dirige algumas palavras, visivelmente dominado por uma raiva intensa. O curaca se levanta precipitadamente, murmura algumas palavras de desculpas.
Soro faz sinal aos espanhóis para que não se mexam e ao curaca para que sente a seu lado. Vira-se para Felipillo, com ar interrogativo.
Mas o intérprete parece também paralisado pelo recém-chegado. Durante a confusão, Sebastian veio se colocar ao lado de Gabriel. - O Orelhudo não parece à vontade - diz ele baixinho.
O índio agora se dirige a Felipillo, com uma voz indignada.
- Ele diz - começa o intérprete - que vamos todos morrer porque vocês tocaram nas mulheres que são propriedade do amo dele. Diz que se algum de vocês tornar a encostar a mão nelas, as tropas dele virão nos massacrar.
- Eu não duvido do poder dele - responde calmamente Soro -, mas ele não vai nos fazer morrer duas vezes. Quem é o amo dele?
- O Rei. O Inca.
- Como ele se chama? Onde está o amo dele?
Felipillo fala nervosamente com o nobre, sem ousar olhar para ele. O outro responde, mais calmamente.
- Ele se chama Sikinchara. É o embaixador do Rei deles, Atahualpa, que está a vinte léguas daqui.
Vinte léguas... Gabriel sente o coração se transtornar. Relances da viagem lhe passam pela cabeça - as vagas da altura de palácios, as tempestades, a fome... E agora ele está a vinte léguas da fortuna ou da morte.
- Diga a ele que nosso amo, o Governador don Francisco Pizarro, enviado de nosso Rei, Carlos V, que reina sobre a terra, deseja convidá-lo como amigo e que ele nos conceda a graça de vir conosco, de aceitar nossos presentes e nossa amizade. Diga a ele que o respeitamos, que não tínhamos intenção de ofendê-lo e que tememos o amo dele, que nós sabemos ser um senhor poderoso, que viemos ajudar num combate justo.
Felipillo fica um bom tempo traduzindo. Seus lábios carnudos se agitam e o suor lhe escorre pela testa. Sikinchara escuta-o com atenção - olhando, como que furtivamente, para a estranha indumentária dos soldados, os cavalos, as espadas penduradas, as couraças. Enquanto fala, Felipillo sorri várias vezes, visivelmente satisfeito com o que ouve. Por sua vez, responde:
- Ele quer ver o amo de vocês, tem uma mensagem importante para ele e presentes também.
- Diga a ele que ele está a três dias de marcha daqui, em Serran, e que vou escoltá-lo até lá como um irmão e garantir a segurança dele.
Gabriel observa Sikinchara. Nunca viu uma cara como aquela: se é familiar, com a pele cor de mel e as maçãs salientes dos índios, falta-lhe aquele olhar no qual brilha a brasa dos olhos. Rapidamente, ele avalia seus próprios companheiros: caras, roupas, porte... Eles fazem uma figura triste comparados àquele ali.
- A capital do Inca é lá onde ele está agora, a vinte léguas?
Sikinchara parece achar a pergunta engraçadíssima. Olha para os espanhóis, um a um, como para saber se todos são tão ignorantes quanto aquele que se diz chefe deles. Depois, explica-se demoradamente.
- A capital dele - diz com prudência Felipillo - fica nas montanhas longínquas, a mais de uma lua de marcha. Demora-se um dia para se dar a volta nela. Muitos povos de todas as regiões da terra moram lá. Lá estão os palácios dos Incas falecidos, e também muitos templos com um número imenso de sacerdotes. Os mais importantes contêm inúmeras oferendas em metais preciosos...
À evocação daqueles prédios com chão de prata, teto e paredes revestidos de placas de ouro e prata entrelaçados, voltou à sala um silêncio absoluto. Gabriel não está mais ouvindo.
Seu olhar subiu para o alto da esplanada, acima do topo da pirâmide, acima mesmo das montanhas que dominam a cidade. Paira nessas montanhas longínquas, atravessa as neves eternas que o sol faz refulgir como placas de ouro, está naqueles palácios onde brilham o ouro e a prata, está naqueles territórios do sonho, e, nessa visão, ele é o primeiro a vê-los, abre os braços e o mundo é dele. Ele não se sente mais um homem preso à terra, mas sim um animal - o pássaro que corta os ares, o felino que salta, poderoso - ou uma nuvem, uma torrente que desce pelas encostas e, num jato, transpõe as ravinas...
Ele é livre.
E mal ouve Soro dar a ordem da partida.
Ybocan, novembro de 1532.
Sikinchara coloca diante de Atahualpa a camisa da Holanda, os borzeguins, os colares. Pousa com precaução as duas taças de vidro perto do Inca. - O chefe deles, que às vezes eles chamam de capito, às vezes de governo, disse estas palavras antes de me entregar estes presentes: "Diga a seu amo que não vou pararem nenhuma cidade no caminho, para poder encontrá-lo mais depressa." O Único Senhor Atahualpa está sentado num banquinho e Anamaya, apesar da curiosidade, permanece à sombra como se ela mesma fosse a sombra. Guaypar e Villa Oma contemplam os objetos mas não ousam tocá-los. Os copos transparentes são as cerâmicas mais espantosas que ele já viu. Atahualpa estica o braço, toca-as com as pontas dos dedos antes de erguer um deles e olhar a luz através daquela matéria estranha.
- E você entregou-lhe os nossos presentes? - indaga ele.
- Sim, Único Senhor. Eles olharam as maquetes de pedra dos fortes sem dizer nada. E me perguntaram sobre os patos cheios de lã. Eu respondi que, reduzidos a pó, eles produzem uma fumaça agradável às narinas... Mas sobre as túnicas de ouro e prata, eles não perguntaram nada.
- De onde eles dizem que vêm?
- Do outro lado do mar. Eles obedecem a dois Reis: um que dirige o Mundo de Baixo, e outro que é o senhor do Mundo de Cima.
- Os tallanes afirmam que eles são seres ao mesmo tempo terrestres e marinhos, com a parte de cima como a de homem e a de baixo como a de lhama. Eles disseram o nome viracochas...
Sikinchara cai na gargalhada.
- Seres do Outro Mundo! Mas eu também ouvi essa lenda... Pode crer que são homens, único Senhor! São diferentes de nós porque têm pele clara e pêlos na cara. É verdade que alguns andam montados nuns carneiros, o que, na planície, permite que eles andem num bom passo. Mas pode imaginar esses animais nos caminhos do Inca? Meus espiões os viram e eles devem ter acabado de chegar a Cajas!
- Dizem também que eles têm uns paus que cospem fogo.
- É uma das diversões deles: eles acendem uma espécie de pó dentro desse pau e isso faz um barulho ensurdecedor. Da primeira vez, a gente se surpreende.
- E esses cintos que eles usam do lado...
- Umas armas como as nossas, um pouco mais leves. Pelo medo que eles manifestam quando me vêem, elas não devem ser muito eficazes. Quantos eles são?
Menos de duzentos. Muitos deles parecem fracos, doentes. - Fale do chefe deles.
- É um homem alto mas muito magro e muito velho. Tem um pêlo que parece neve. Um olhar duro como pedra de funda, mas ri muito. Os capitães lhe obedecem, menos um que é irmão dele e que está sempre que rendo parecer ter a mesma importância que ele. Mas apesar do pêlo e dos olhos, ele não passa de um velho. Uma cacetada só basta para quebrar a cabeça dele. E acho que ele tem medo de você. Demonstra um grande respeito por você e garante estar aqui só para ajudá-lo.
De repente, ouve-se a voz de Guaypar.
Eu também vi esses seres estranhos e, apesar de não ter a experiência dele, nem ter podido observá-los tão de perto quanto ele, não concordo com o embaixador Sikinchara.
Atahualpa se volta para Guaypar.
- É verdade que você não tem uma experiência condizente com a sua coragem, Guaypar.
- Esses homens são perigosos, único Senhor. Na nossa frente, eles sorriem e afirmam ser nossos amigos. Mas, nas aldeias por onde passam, fazem grandes massacres com essas armas que Sikinchara considera inofensivas. Eles dizem que querem ajudá-lo, mas prometeram a outros ajudar Huascar o maldito! - Agora é que ele precisaria da ajuda deles - brinca Sikinchara.
- O que sugere, Sikinchara?
- Sugiro deixar que venham a nós.
- Loucura! - intervém Guaypar. - Eles deveriam ser destruídos imediatamente. Quando saí de Cajas com minhas tropas, eu os tinha cercado.
Eles estavam à minha mercê. Eu estava louco para obedecer a essa ordem, único Senhor, mas a ordem não veio.
Sikinchara dá um sorriso de desprezo.
- Vamos destruí-los na hora em que nosso único Senhor mandar. - Você tem dúvida, Guaypar?
Guaypar não tem tempo de responder. Villa Oma, calado desde o início da conversa, intervém de repente:
- Eu tenho.
Atahualpa ergue a mão para impor silêncio. Fica mergulhado em seus pensamentos, e Anamaya, olhando furtivamente para ele, surpreende a incerteza no fundo de seus olhos.
Uma nuvem de chuva passa pelo tambo e vai embora. Enquanto Atahualpa ficou só no palácio, Villa Oma e Anamaya saíram da cancha.
Em todos os lugares do Império das Quatro Direções, Anamaya não pode evitar admirar a harmonia reinante, a perfeita organização - aqui ela vê a kallanka, a sucessão de celeiros onde se guardam as reservas, à beira dos primeiros terraços onde o trigo e a quinoa são cultivados, num nível mais baixo, a huaca que se ergue bem no alinhamento da montanha que domina Ybocan. Mais alguns dias de marcha e eles estarão em Cajamarca, uma das principais cidades de Chinchaysuyu, para celebrar a vitória de Atahualpa e a consolidação definitiva do Império.
Mas Anamaya vê essa nuvem que passa e volta, sem deixar o tempo firmar.
- O que acha disso, Villa Oma?
- Estou indo para Cuzco com o coração apertado, menina. - O que quer dizer?
- Não gostei do que ouvi hoje de manhã. Sikinchara é um soldado fiel, mas tenho dúvidas quanto à inteligência dele... E Guaypar e corajoso, mas impulsivo...
Anamaya não diz nada.
- Atahualpa acha que ele está preparando um pachacuti, uma reviravolta, uma transformação do mundo do qual ele será o dono... Mas ele não vê os sinais, não ouve os homens...
- Não é culpa dele se os homens lhe mentem ou se não enxergam...
Villa Oma sacode a cabeça em sinal de negação. - Além do mais, temo pelo destino de Cuzco... - Por quê? Chalkuchima não é quem manda na cidade? Villa Oma esboça um sorriso amargo:
- Parece que só quem manda na cidade é a loucura. Eu mesmo fui o primeiro a encorajar Atahualpa a se revoltar contra Huascar e as loucuras dele...
- E isso era necessário - aprova Anamaya.
- Sem dúvida... Mas agora, o ódio virou uma planta louca! Atahualpa projeta uma vingança tão desmedida quanto a demência do irmão. Ele me encarregou de assumir as rédeas do clero de Cuzco que Huascar quis reformar. Mas eu não estou indo só. O general Cuxi Yupanqui vai comigo, e ele tem instruções precisas: nenhum partidário do usurpador deve permanecer vivo, nem suas mulheres, nem o mais moço de seus filhos. Só as jovens que ainda não tiverem conhecido homem serão poupadas para vir engrossar as fileiras das concubinas do único Senhor. Ele deixou bem claro que nem seus próprios irmãos e irmãs deviam escapar do castigo. São clãs inteiros que vão desaparecer, como o do pai do próprio Huayna Capac. Não estou gostando disso, Anamaya, isso não condiz com a tradição do Império, não condiz com a nobreza dos Incas nem com a religião do Sol... Um chefe vulgar de tribo é que se vinga pelo sangue e pela matança...
- Atahualpa não pode ter ordenado uma coisa dessas!
Villa Oma olha para Anamaya com uma ternura raríssima nele.
- Você mesma viu o que aconteceu com o ídolo de Catequil! O ódio que ele tem de Huascar é cego. E medos antigos o assaltam...
- Há várias luas, os olhares se voltam para mim buscando uma verdade que eu não tenho, Villa Oma.
- Eu sei, menina, e no entanto a confiança que deposito em você (lembra-se como ela demorou a se desenhar) é integral e sólida. Eu a levei à cidade secreta e hoje lhe abro o segredo do meu coração: Atahualpa não é o homem que salvará o Império das Quatro Direções...
- Então quem é?
O grito escapou da boca de Anamaya, assustando um jovem pastor que subia de volta para a esplanada com seu rebanho de lhamas castanhos, transpondo com elegância os amplos terraços. Ela prossegue com mais calma:
- Então quem, Sábio, pode salvar o Império?
- Não sei, menina. Enquanto isso, você pode ajudar Atahualpa.
- Como?
- Ele se fia em você como em ninguém. Você é aquela que "viu" o triunfo dele, aquela que o salvou da prisão... Se você pudesse ver o futuro dele, dizer-lhe que esse futuro passa pela paz do Império e o perdão dos clãs de Cuzco...
Ela o interrompe com vivacidade, mas sem levantar a voz. - Está pedindo que eu "veja" o que não vejo?
Villa Oma fita-a intensamente.
- Peço que detenha um desastre...
- Não posso mentir, Sábio. Acho que se eu fizesse isso, o próprio Huayna Capac voltaria do Mundo de Baixo para me censurar...
Villa Oma suspira.
- Você tem que nos ajudar, Coya Camaquen!
A voz de Villa Oma treme. Seu olhar brilha com uma inquietude que ela nunca viu nele desde a morte dos Poderosos Anciãos na estrada de Cuzco. - Então me ajude, Sábio - murmura ela.
- O que quer dizer?
- Mande trazerem de volta meu esposo o Irmão-Duplo para junto de mim.
- Impossível! Ele está onde deve estar: no templo das origens, perto do Corpo seco do único Senhor Huayna Capac...
- Se quiser minha ajuda, Sábio, mande que o tragam para perto de mim. - Sabe o que está me pedindo? Jamais um Irmão- Duplo foi separado do seu Senhor! O que seria de nós se lhe acontecesse alguma desgraça?
- Tenho de estar junto dele, Villa Oma! Não posso mentir. Mas o poder do Irmão-Duplo talvez ajude o único Senhor Huayna Capac a me visitar, a me falar, a me levar ao Outro Mundo. É a única solução para que eu volte a ser como antes. Não me pergunte por que, mas eu sei...
O sol agora está forte, e nada, no frescor do ar, parece poder perturbar a paz. - Mando-o para você assim que chegar a Cuzco, bem escoltado.
- Não devemos contar a Atahualpa?
- Não! É melhor isso ficar entre nós, menina!
Anamaya aquiesce. No entanto, na subida para o palácio, suas pernas fraquejam: crescer, pensa ela, é guardar segredos pesados demais para a gente, é sentir emoções que não podem ser compartilhadas com ninguém.
A noite invade lentamente a cancha. Anamaya descansa sozinha, tapando os ouvidos para não ouvir os gritos de alegria que vêm das ruas. A chicha já está correndo: todos os soldados sabem que as festas da vitória, que esse ano vão se confundir com as de Capac Raymi, serão inesquecíveis.
Um vulto assoma no vão da porta. Anamaya pula da esteira, refugia-se no canto, quase derrubando uma jarra.
- Não tenha medo!
É Guaypar. Ele está vestido com um unku branco simples, onde só o cinto revela uma geometria de formas e cor, em tons de amarelo, vermelho e laranja. Há uma selvageria contida em seu porte, e ela sente isso.
- Não tenha medo - continua ele sem se mexer -, não vim nem ameaçá-la nem lhe falar de amor...
A tristeza em sua voz comove-a e paralisa-a. Nunca soube dizer que o compreende, que se sente lisonjeada. Talvez mais? A idéia a percorre numa fração de segundo, ela a expulsa: no coração, ela é a Coya Camaquen, a esposa do Inca morto.
- Eles dizem que sou impulsivo e ajo sem pensar, mas penso mais que Sikinchara. Quando digo que os estrangeiros são perigosos, eu sei. Mas eles não querem me ouvir...
- já estão celebrando a vitória...
- Estão errados. Pode acreditar, para muitas tribos, em muitas aldeias, a passagem dos estrangeiros despertou raivas... Eles são duzentos, talvez: mas quem lhes serve, quem os alimenta, quem carrega suas bagagens? Quem, inclusive, pegou em armas para lutar do lado deles? Índios... Eu sei, nós os submetemos, pelo medo ou pela diplomacia. Mas entre eles reina um espírito de vingança. Por isso não se pode dar ouvidos às palavras mentirosas deles, por isso é preciso acabar com eles sem deixá-los dar mais um passo sequer.
- Você disse isso ao nosso único Senhor, mas ele não lhe deu ouvidos. - Vai dar ouvidos a você.
- Deixe-me, Guaypar.
Ele chega a um palmo dela e ergue uma mão. Ela prende a respiração. - Não me toque - diz ela baixinho.
- Não estou tocando.
Ele passa a mão perto de seu corpo, tão perto que ela escuta a respiração que lhe infla o peito, o tremor em sua mão. Ele acompanha suas formas, ajoelhando-se à medida que desce ao longo de seu corpo, como se a acaricias se com uma infinita ternura. Ela sente sua respiração se acelerar e gostaria de evitar isso, mas não consegue.
Quando chega em seu pé nu na sandália de palha, ele simplesmente encosta um dedo, e ela pensa que vai cair, sente a respiração dele na pele... - Guaypar!
Ele se levanta bruscamente.
- Nem que quisesse, eu poderia esquecê-la.
Ele disse essas palavras muito depressa, entre dentes, com uma violência que lhe desmentia a ternura. Depois sai, esbarrando em Inti Palla que, perturbada, olha para Anamaya.
- O que ele estava fazendo no seu quarto? - Ele...
Anamaya recobra o fôlego.
- Ele queria que eu falasse com Atahualpa... - A seus pés?
- Estava me suplicando.
Inti Palla faz uma cara de desaprovação. Anamaya não pode evitar admirá-la. O anaco que envolve as outras mulheres como um saco está colado em seu corpo e deixa adivinhar suas formas generosas. Seus longos cabelos estão divididos em duas massas grossas, presas por dois finos alfinetes de ouro, um em forma de serpente, outro, de colibri.
- Talvez ele ouça você... Por quê?
Anamaya está aliviada. Inti Palla não insiste no assunto Guaypar. Vê-se que ela veio lhe falar de outra coisa.
- Ele mal olha para mim, não me toca mais... - Os problemas do Império são difíceis...
- Então, por que ele passa as noites com Cori Chimpu? Ou com Cusi Micay?
Ele vai voltar para você, Inti Palla, você é mais bonita que todas as outras...
As palavras brotaram com sinceridade da boca de Anamaya. Inti Palla faz com que ela sente na esteira, em cima das pernas.
- Você passou a ser minha única amiga - diz. - E eu era tão má com você...
- Você, má? Não me lembro.
Inti Palla começa a rir e abraça-a pelo pescoço.
- Eu era má, sim, porque tinha ciúme e achava que você queria tomá-lo de mim...
- Eu!
Anamaya está estupefata. Como uma menina franzina saída da floresta poderia ser uma ameaça para uma jovem perfeita, tão sensual como Inti Palla? - Encoste aqui - murmura a concubina.
Anamaya está perturbada, mas obedece. As jovens se deitam; uma brisa entra pela janela da cancha e a cortina de plumas que fecha a porta treme ao vento.
Ela está com um braço em volta do ombro arredondado de Inti Palla e, pela primeira vez em muitos dias, esquece a tensão permanente dos conflitos e das aflições da guerra.
Toca o rosto de sua amiga e pega uma lágrima. No escuro, lambe a lágrima em seu dedo e lhe coerentes, para consolá-la.
Huagayoc, 11 de novembro de 1532.
Um atrás do outro, dois raios rasgam o céu de aço no fundo do vale. A trovoada rola entre as encostas abruptas como se lhes martelasse os flancos. Quando o barulho se afasta, o cão de Pedro Martin de Moguer late para o céu como se ali estivesse vendo um índio para morder. Os raios e a trovoada acabaram de excitar o animal, um mastim de Nápoles, do tamanho de um bezerro, branco como leite, mas de olhos tão negros e loucos como os de seu dono, um marujo corpulento de queixo quadrado que se juntou à expedição com Benalcazar. Por um motivo que Gabriel ignora, Moguer sempre se oferece como voluntário para as missões de reconhecimento. Será que espera ser o primeiro a pôr a mão nos tesouros prometidos?
Gabriel olha para os dois, o homem e seu canzarrão, com um nojo que ele custa a reprimir.
Eles vão como batedores e só estão um quarto de légua à frente do grosso da tropa conduzida pelo Governador. Mas em algumas curvas, ganharam altura suficiente para dominar a névoa concentrada em cima do rio e perder de vista a longa coluna embaralhada que avança para Cajamarca.
"Cento e oitenta homens e cinqüenta e sete cavalos", Pizarro gosta de repetir, não para lembrar-lhes o número ridículo daqueles que partiram para a conquista desse vasto e poderoso Império, mas antes para distingui-los de todos os que se juntam a eles, dia após dia, durante seu avanço rumo ao centro do Império: as centenas de escravos mestiços ou negros, vindos do istmo, e sobretudo os milhares de índios, os tallanes, os chimus, aqueles cuja aldeia foi incendiada porque eles não pagaram o tributo, todos os que têm um motivo ou outro para detestar os incas ou para querer vingar-se deles.
O caminho agora é estreito. Sobe no flanco da encosta, às vezes junto a falésias verticais, com largura apenas suficiente para a passagem de um homem ao lado de um animal.
Há muito tempo, a pequena tropa de vanguarda segue a pé. Os homens avançam de cabeça baixa, o morrião inclinado sobre a testa para evitar que a chuva os cegue, puxando as montarias por uma rédea passada sobre a espádua.
Os cavalos estão nervosos e esgotados. Pessimamente alimentados há semanas, estão com as costelas de fora, e as cilhas das selas lhes raspam tanto o pêlo que lustram o couro. Em alguns dias, eles transpuseram gargantas suficientemente elevadas para conhecer a geada da madrugada, resfriando-se no esforço da subida. Em outros, no fundo dos vales abafados, morcegos carnívoros, quase do tamanho de falcões, atacaram-nos dilacerando-lhes a garupa ou a espinha...
E, agora, a tempestade transforma numa torrente de lama amarela a picada que costeia uma escarpa coberta de moitas ralas. Placas de rocha, talhadas em forma de degraus, drenam pequenas cascatas furiosas que tornam a marcha escorregadia e perigosa. A terra à beira do caminho é escavada pela água e desmorona com baques surdos sob o casco dos cavalos.
O ronco da trovoada mal se acalmou e mais um raio corisca nas nuvens. Como uma serpente de fogo, percorre montanhas na horizontal, como se procurasse reuni-las.
Os cavalos escorregam, o passo mais seco, as narinas palpitantes. Suas orelhas em pé não param de mexer. Com a mão enluvada, Gabriel puxa a rédea enquanto, com a outra, afaga o focinho da montaria numa carícia tranqüilizadora.
Mas no mesmo instante, alucinado pelo fragor da tempestade, o cão de Moguer começa a uivar desesperadamente. Em alguns pulos furiosos, precipita-se diante de Pedro, que abre a marcha. Pára atravessado no caminho, o peitoral arfando, o traseiro arqueado. E torna a uivar para o fundo distante do vale escondido sob a chuva, os olhos saltados mais alucinados do que nunca. - Cão idiota, cale a boca! - grita Pedro o Grego voltando-se para Sebastian, Gabriel e Moguer. - Segurem os cavalos, essa besta vai assustá-los.
A bocarra aberta para o dilúvio, as presas brilhando de ferocidade, o mastim hesita, trota no rio de lama sujando o pêlo claro. Depois, esgueira-se entre os homens e os animais rosnando. Passa tão encostado nos jarretes do cavalo de Pedro que o andaluz abre as pernas e desloca uma pedra com um coice.
Depois de quicar três vezes, a pedra cai na ravina, leve como as gotas de chuva.
- Santo Deus, Moguer! - explode o Grego, a barba pingando como uma esponja. - Segure esse seu pangaré horroroso! Estou lhe dizendo que ele vai jogar todos nós lá embaixo!
Fechando a marcha, o gordo Moguer, suando em sua cota de algodão encharcada apesar do capote de couro que o cobre dos ombros às coxas, puxa penosamente um cavalo. O pobre animal foi extorquido de um doente de verruga agonizante, numa pseudo-doação. Hoje, o animal semi-roubado mostra-se em péssimo estado. Feias mordidas de vampiros tornaram a abrir e purgam um pus amarelado que a chuva não dilui. Sua respiração é ruidosa. Ele avança arregaçando os beiços por causa da febre e com os olhos muito esbugalhados.
Quando, chamado por Moguer, o mastim se precipita para ele com os dentes à mostra, o cavalo se apavora. Com um relincho agudo, o animal balança a cabeça procurando morder e empina diante do cão aos uivos. A rédea foge das mãos dormentes de Moguer, enquanto o cavalo quase o derruba com um coice. Mas aí, a terra contida por alguns tufos de capim desmorona sob suas patas traseiras com um barulho surdo.
Com o peso, o cavalo cai, enquanto Moguer grita. O pobre animal, jogando as patas à frente, tomba de lado, batendo numa rocha com a barriga magra. Dá um último coice com as patas dianteiras, o que o afasta da falésia. Então, relinchando de pavor, cai no abismo.
Sob o olhar petrificado dos conquistadores, por um instante, ele parece flutuar. Bate com a garupa num arbusto, gira de pernas para o ar. Ventas à frente, bate primeiro num monte de pedras que desmorona ruidosamente sob o seu peso. Já de pescoço quebrado, o bicho rola para dentro de um poço cheio d'água, umas trinta toesas mais abaixo.
- Pela Santa Virgem - assobia o Grego sacudindo a cabeça.
Todos olham para o animal como se, apesar de tudo, esperassem que ele se levantasse.
- Eu lhe avisei! - protesta ainda Pedro.
O olhar ainda assustado, Moguer ergue pesadamente os ombros.
- Ora - responde ele fingindo calma. - Ele estava doente. Não duraria muito...
Todos vêem a falsa desenvoltura contida nessas palavras. Sebastian diz devagarinho em tom de brincadeira:
- Cavalo que se ganha rápido se perde rápido! Moguer levanta a cabeça, a boca cheia de raiva: - Você aí, seu preto, você...
Mas não tem tempo de terminar o insulto; Gabriel mostra o fundo do vale: - Olhem! Olhem!
De debaixo dos arbustos pingando de chuva, do meio do mato, de detrás dos rochedos, surgem cerca de vinte índios. Toda a prudência arrulada pela curiosidade, eles se aproximam do cadáver do cavalo e o cercam.
Ao vê-los, o cão que estava calado começa a latir novamente. Os índios ficam imóveis e erguem o rosto acobreado para os espanhóis. Mas estão longe demais para temer o que quer que seja. Quando o primeiro deles ousa esticar a mão para o cadáver do cavalo, o Grego estala a língua e continua a marcha: - Claro que eles nos vigiam! O que acham? Noite e dia. Quando vocês estão roncando, eles estão contando os pêlos das suas narinas. São como moscas. E nós caímos no pote de mel!
No meio do dia, estafados, os nervos à flor da pele por causa da invisível presença dos índios, eles passam a garganta.
A chuva, finalmente, pára enquanto eles descem rumo a um vale estreito. Os verdes-claros das plantações, superpostos em longos terraços em curva e sustentados por muros cuidados, formam uma espécie de leque ao longo do rio. A tempestade deu lugar a um céu de um azul tão profundo que fica pesado como um oceano.
Em duas horas, eles chegam a uma aldeia com uma disposição agora familiar. A aldeia reúne sessenta casas em volta de uma vasta esplanada. Esse terraço, também sobrelevado, é dominado por uma espécie de pirâmide atarracada, semelhante a degraus de um trono concebido para um gigante. Os muros são alinhados à perfeição e as pedras, tão bem encaixadas que nem a mais fina lâmina de um estilete poderia ser enfiada entre elas.
No último degrau, ergue-se um desses templos onde os índios se entregam àqueles estranhos rituais pagãos. Ali, eles queimam folhas e até seus mais belos tecidos, esganiçam-se em sua língua incompreensível, erguem os braços para o céu e se entregam a todo tipo de bobagens ímpias, venerando o sol, a lua ou sabe-se lá o quê.
Mas se na aldeia há ouro, prata, cerâmica fina ou mesmo esmeraldas, é lá que estão!
Como todas as vezes, as crianças acorrem ao encontro dos estrangeiros barbudos. Escondem-se atrás das moitas, dos troncos de árvore para espiar os cavalos e o ferro das espadas que sempre impressionam muito. Já os adultos se mostram em geral circunspectos. Só saem das casas ou dos terreiros com a maior prudência e sempre atrás do curaca.
Dessa vez, no entanto, enquanto Gabriel e o Grego, cavalgando lado a lado, a espada cuidadosamente à mostra, a lâmina pousada na cabeça da sela, chegam à beira da praça em terraço, encontram ali a população aglomerada. Ao pé dos degraus do templo, há duas liteiras cobertas com dossel, ornadas de lamê dourado e quadrados de plumas azuis e amarelas.
Gabriel ouve a exclamação de Moguer atrás dele:
- Ei! Não é o macacão do nosso embaixador que está ali?
De fato, Sikinchara, o emissário do Rei índio, o nobre e desdenhoso Orelhudo que veio ao encontro do Governador em Cajas, aguarda-os diante dos aldeões, cercado por um pequeno pelotão de soldados índios, de lhamas e servos.
Seu traje é mais esplêndido do que no primeiro encontro. Uma grande capa de um vermelho-vivo, percorrida por motivos geométricos sutis, cai-lhe até as panturrilhas. Por baixo, ele veste uma túnica comprida de uma seda estranha e brilhante, quadriculada de verde, amarelo e azul. Um plastrão de prata e de ouro martelado lhe cobre o peito. Sua testa e sua cabeleira grossa estão cobertas por um capacete de couro com uma carreira de plumas curtas e finíssimas amarelas e azuis. Há um escudo revestido de um tecido parecido com o de sua túnica em sua mão esquerda. Na direita, ele segura uma lança com uma ponta de bronze maciça.
O emissário lhes sorri quando eles se aproximam, circunspectos e segurando o passo dos cavalos.
- Surpresa boa ou má? - murmura o Grego na direção de Gabriel. - É melhor continuar montado enquanto o Governador não tiver chegado responde o outro.
- Ele está rindo - reclama Sebastian pousando ostensivamente o cano do arcabuz no antebraço. - Não gosto quando eles riem...
- Bom, sorria também - brinca Moguer. - Com esses seus dentes de preto branquíssimos, talvez eles achem que você é um canibal!
Em volta do Senhor índio, a cara dos aldeões está crispada de medo e respeito. No entanto, chegando mais perto, Gabriel percebe que os índios não estão com medo deles mas antes do embaixador Sikinchara. Quanto a ele, seu sorriso orgulhoso é muito menos um sorriso de anfitrião que de amo!
Quando eles param as montarias ao pé da esplanada, o Senhor índio se aproxima. Com ele, vem apenas um homem, que eles ainda não haviam visto. É mais jovem que o embaixador, mais magro, o rosto fino, com algo de febril no olhar. Como Sikinchara, está usando a insígnia dos nobres: aqueles brincos esquisitos que transpassam os lóbulos distendidos de suas orelhas. No entanto, os seus têm uma cápsula de ouro mais fina que os do embaixador. Aliás, seu traje não é tão esplêndido, seu capacete é menos ornado de plumas, seu plastrão, mais modesto. Em sua atitude, contudo, há a mesma dose de nobreza e de brio e, em seu porte, há uma violência contida que chama atenção.
Mas quando o embaixador lhes diz algo incompreensível, prorrompem gritos de crianças acorrendo desde a entrada da aldeia.
E tudo acontece rápido demais.
O cão rosna e rodopia. Moguer dá um assobio sem convicção para chamá-lo. Em dez pulos ágeis, o bicho parte para cima das crianças que estacam, paralisadas de medo.
Mal ecoa um grito partindo dos índios, Gabriel já esporeou violentamente os flancos de seu cavalo.
Empunhando a espada de lado, ele berra uma ordem a que o bicho não obedece. Pedro, por sua vez, vocifera atrás dele. O cão, arreganhando as presas, dá um pulo da esplanada e cai em cima de uma das crianças enquanto as outras fogem aos gritos.
O sangue esguicha da perna do menino quando Gabriel, abaixado no pescoço do cavalo, faz um torniquete com a ajuda da espada. Mas, no final, ele levanta o braço. O cão sacode o menino. Vira-o facilmente como se ele fosse um pano e o oferece de costas para a lâmina.
Enquanto Gabriel faz seu cavalo girar, o cão embriagado larga a presa por uma fração de segundo para abocanhá-la melhor na garganta. Súbito, cessa o grito insuportável, afogado numa torrente de sangue.
Só se ouvem os rosnados dementes do cão até Gabriel se jogar em cima dele. A espada rasga o peitoral do bicho de um lado a outro e se crava na terra. Tão logo se endireita, com uma fúria alucinada, Gabriel desencrava a espada. Ainda com um joelho no chão, com um golpe fortíssimo, corta a cabeça do cão, que rola para o lado numa torrente de sangue escuro.
Só então, a boca do mastim de Nápoles se abre e larga o menino desmembrado.
- O Senhor Guaypar diz que don Gabriel é um homem e um guerreiro corajoso. Está escuro, e há fogueiras acesas em volta da aldeia. Elas cercam Huagayoc com a claridade e os ruídos de uma cidade efervescente.
A tropa conduzida por don Francisco instalou-se ali em menos de uma hora, erguendo suas tendas de algodão ou apenas se reunindo em volta do fogo enquanto o Governador, seus irmãos e os capitães eram convidados para uma refeição no palácio do curaca pelo embaixador Sikinchara.
E agora, a barriga cheia de assado de lhama, bolachas de milho cozidas nas pedras e guarnecidas com uma estranha raiz redonda, de polpa clara, é; doce e firme, e de uma quantidade de cerveja além da conta, as conversações prosseguem.
Foi o jovem Senhor que acompanhava o embaixador Sikinchara quem falou primeiro. Depois a voz de Martinillo, o segundo intérprete, se levanta, num castelhano meio ciciante e dançante como as labaredas do fogo que volteiam em cima das brasas.
- O Senhor Guaypar agradece a don Gabriel por ter abatido o animal selvagem que mata as crianças...
À tarde, quando Sebastian levantava Gabriel que estava prostrado diante do cadáver impressionante do menino degolado, quando Pedro o Grego segurava Moguer, desatinado por ter perdido no mesmo dia o cavalo e o cão, seus olhares já haviam se cruzado com uma certa simpatia.
Os aldeões acorreram para a criança morta, chorando e gemendo. Os Senhores índios não se mexeram, contentando-se em observar a disputa entre Gabriel e Moguer com uma curiosidade fria.
Mas aquele jovem Guaypar de repente dera um passo à frente. Espalmando as mãos e fitando Gabriel nos olhos, ele dissera algo incompreensível. E eis que agora o jovem se levanta de novo e, com muita seriedade, recomeça na sua manobra, espalma as mãos e fala.
- O Senhor Guaypar diz que don Gabriel e ele talvez se tornem irmãos o quando entrarem no Outro Mundo...
Embaraçadíssimo, após um olhar do Governador, Gabriel, por sua vez, se levanta. Curvando-se numa reverência como se faz em Toledo, ele saúda o índio com um respeito genuíno. Atrás dele, irrompe uma risada:
- Puxa, irmão - diz Hernando Pizarro às gargalhadas apontando a luva para Gabriel -, aí está um que não é mais bastardo de todo. Esse nosso caro Gabriel arranjou uma família...
Risadas percorrem as fileiras dos espanhóis e os dois senhores índios franzem o cenho.
- Calma, Hernando - replica secamente don Francisco cortando as risadas. - Estão olhando para nós! Martinillo, peça então a esses príncipes notícias do Rei Atahualpa...
Enquanto o índio fala, Gabriel torna a sentar-se, rubro por causa da afronta e se contendo a custo para não esbofetear Hernando. O capitão de Soto puxa-o pela manga e sopra-lhe:
- Não ligue para o idiota desse Hernando, amigo Gabriel. Ignore-o, ele é só um fanfarrão e o seu silêncio será um martírio para ele... Mas nos próximos dias, vigie sua retaguarda. Moguer continua furioso e tem tanto juízo quanto o cão que você matou. Pode ter certeza de que ele vai querer se vingar.
Um olhar de don Francisco os reduz ao silêncio enquanto Martinillo se curva diversas vezes diante do Senhor índio cuja arrogância esmaga a assembléia toda:
- Ele diz: o Filho do Sol terminou a guerra que fazia ao irmão Huascar que queria dividir o Império das Quatro Direções. Com milhares e milhares de soldados, ele venceu. Huascar, o mau filho e o mau irmão, não é mais nada senão um prisioneiro. Em breve, ele será como uma cinza diante do único Senhor Atahualpa.
- Fico feliz com essa notícia - replica don Francisco, o semblante impassível. - Fico feliz de ouvir que o seu Rei é um grande guerreiro.
- O Senhor Sikinchara diz: não existe maior guerreiro do que o único Senhor Atahualpa, pois ele é o Filho do Sol. Ele venceu Huascar o louco cercando todo o exército dele numa linha de fogo que ardeu durante três dias de uma montanha a outra. Huascar e seus guerreiros não conseguiam mais respirar nem lutar. Eles suplicaram para que os salvassem, mas os capitães do único Senhor deixaram que eles morressem queimados como a vegetação da planície onde eles estavam. Nosso único Senhor Atahualpa é bom com quem o respeita e implacável com quem lhe faz a guerra. Ficará feliz de encontrar os estrangeiros na planície de Cajamarca. Fica só a dois dias de marcha daqui. Espera que venham logo e lhes providencia alimentação e alojamento.
Após essas palavras, um silêncio pesado toma conta dos espanhóis. Se isso fosse preciso, toda a postura do embaixador Sikinchara, o ríctus de desprezo em seus lábios, confirmaria a ameaça contida nelas.
Gabriel procura o olhar do jovem índio nobre. Mas o rosto magro de Guaypar permanece impassível e fechado.
- Muito me alegra realmente a vitória de seu Rei - prossegue o governador com uma voz estranhamente doce. - Não duvido que ele seja um grande príncipe cheio de coragem. Mas e bom que ele saiba que o meu Senhor é ainda mais poderoso, que ele governa um mundo muito maior do que esse. Seus servos e seus guerreiros são tantos que não dá para contar. Eu mesmo, com os poucos guerreiros que me cercam, já venci príncipes tão poderosos quanto o Rei Atahualpa... E depois ainda temos um Senhor maior, o Reino dele e na terra como no céu, ele reina sobre o Sol, a Lua e as estrelas assim como sobre os homens, as plantas e os animais. É ele quem nos dá nossa força. E é por isso que somos tão poucos. Graças a nosso Senhor Deus, cada um de nós pode lutar como vinte ou trinta homens comuns... Mas pode dizer a seu Rei que estaremos em Cajamarca nos próximos dias. Se ele quiser me receber, serei amigo dele. Mas se quiser a guerra, faço-lhe a guerra como fiz a todos os que se opuseram a mim, a meu Imperador e a meu Deus.
O semblante de Sikinchara já não exprime nenhum desprezo. Está apenas contraído e pesado de ódio. O jovem Guaypar levanta-se e murmura uma frase curta que Martinillo não traduz. Depois, seu olhar procura novamente o de Gabriel.
já não tem mais nada de amigável. É apenas o olhar de um homem pronto para lutar até a morte sem jamais sentir o menor receio do adversário. Gabriel não tira os olhos dele. Esforça-se para dar um sorriso que talvez não passe de um esgar crispado. Em seus lábios, formam-se palavras que o outro não vai entender:
"Não tenho medo." Mas ele não tem certeza.
Cajamarca, termas do Inca, 14 de novembro de 1532.
As termas do Inca ficam perto da cidade, numa planície onde a terra e a água estão sempre se misturando. Saindo da estrada real, o estrangeiro se perderia nos pântanos ou - pior - nas fontes de água escaldante que encontram rios frescos.
É aí que o único Senhor se estabeleceu, que montou o acampamento de seu exército cujas tendas brancas invadiram a planície e sobem as encostas suaves das colinas que circundam a cidade.
A noite vem chegando no pátio da residência do Inca que descansa, ao entardecer de seu terceiro dia de jejum.
De quando em quando, Anamaya dá uma olhada para o desfiladeiro por onde os estrangeiros logo vão chegar, lá, acima das casas e dos palácios de Cajamarca, pela estrada cujos degraus regulares são visíveis mesmo daquela distância. Como serão eles?
Há dias e luas, ela ouviu o que os espiões disseram, as palavras de desprezo de Sikinchara, a desconfiança e o ódio de Guaypar; ouviu as descrições sobre a feiúra daqueles homens e as perversidades de que eram capazes, sua avidez, suas mentiras...
No entanto, ela quer vê-los, encará-los, compreendê-los, talvez - e é mais que uma simples curiosidade que a anima.
- Anamaya?
Inti Palla atravessa o pátio e lhe faz sinal, do outro lado da fonte de águas misturadas que fica no centro. Anamaya vai ao seu encontro. A concubina continua com aquele ar triste que assumiu desde que perdeu os favores do único Senhor.
- Ele quer vê-la - diz ela com voz neutra.
Ele está descansando à sombra, em meio à fumaça dos perfumes que ardem, impregnando o ar úmido com seus odores pesados. Anamaya adianta-se de cabeça baixa, encurvada.
- Endireite-se - diz ele com uma voz cansada - e olhe para mim... Ela hesita. Há tanto tempo ela não escuta essa ordem amigável que a intimidade que os ligava antes parece apenas uma lembrança...
- Endireite-se - repete Atahualpa beirando a violência. - Estamos sozinhos!
- Como quiser, único Senhor.
- Eu quero, sim! E venha cá - acrescenta ele com mais delicadeza -, como você não hesitava em fazer.
Ela se aproxima com passos medidos, evitando encontrar seu olhar vermelho.
- Você não era o único Senhor, então... - Sem você...
- Você já me agradeceu, mas Inti, Quilla e todos os Poderosos do Outro Mundo é que fazem o que acontece, único Senhor, e não uma criança que saiu da floresta...
Seu sorriso lança uma faísca.
- Olhe essa pena, menina, e pegue-a...
Ele tem nas mãos a pena do curiguingue, que displicentemente tirou da tiara real. Anamaya não consegue evitar um estremecimento.
- Não tenha medo. Faça o que eu digo...
Ela pega a pena nas pontas dos dedos, tomando cuidado para não tocar na mão do soberano.
- É leve, não?
Anamaya balança a cabeça. Em sua mão, o peso da pena de cores maravilhosas é imperceptível.
- Tão leve, menina, e no entanto tão pesada em minha testa que eu perco o sono...
Ela se cala, comovida com o tremor e a sinceridade de sua voz.
- Foi legitimamente que a tirei de meu irmão, não? No entanto, jamais esqueço o que falam nas minhas costas, o que até as pedras clamam, em Cuzco: não fui eu quem foi escolhido regularmente...
- Mas foi você quem conquistou esse direito, por sua coragem...
- E porque confiei nas suas visões, e também porque você me transformou em serpente, não?
Ele ri, com um pouco de amargura.
- Eu já lhe disse por que meu pai não me escolheu? - A sua mãe...
- ... Não pertencia a um clã poderoso, continuam repetindo isso. Mas eu sei. Eu sei...
Ele se interrompe, suspira antes de prosseguir.
- Quatro estações depois de eu ter passado com sucesso no huarachiku, meu pai, o Inca Huayna Capac, enviou-me à frente de um exército para combater uma tribo revoltada e submetê-la à autoridade dele. Fui derrotado, e, se meu pai não tivesse vindo ao meu encontro, quem sabe se a derrota não teria sido uma ruína...
- Foi contra os índios canaris, perto do lago de Yaguarcocha? Ele olha para ela, pasmo.
- Você sabia disso também?
Ela não responde. Lembra-se da primeira noite em que o Anão entrou em seu quarto, desse segredo que ele trazia... Por um instante, ela pensa naquele que era seu único amigo, nas piores épocas de sua solidão... Será que ele havia morrido ou estaria vivo?
Atahualpa continuou fitando-a, procurando adivinhar o mistério de seu silêncio. Depois, fez um gesto de cansaço.
- Pouco importa, afinal. Lembro-me da minha imprudência, menina, do orgulho insensato que inflava meu peito... Lembro-me do torpor que me invadiu na derrota, quando, por minha culpa, caíam milhares de combatentes valorosos. E sobretudo, lembro-me da minha vergonha diante do olhar de meu pai...
Ouve-se uma agitação atrás da cortina que os protege dos guardas, dos criados e das mulheres.
- Esse olhar está sempre pousado em mim, assombrar - diz Atahualpa num tom sonhador. - Único Senhor! - chama um yanacona.
- O que está havendo?
- É o curaca de Cajamarca. - Não quero vê-lo agora.
- Nós lhe dissemos, Senhor, mas ele insiste.
Atahualpa olha para Anamaya com uma lassidão infinita.
- Esta pluma do poder - diz ele - tão leve, e tão pesada...
O curaca adianta-se, uma pedra às costas, e pede perdão a seu único Senhor por perturbá-lo em seu repouso.
Atahualpa interrompe-o com um gesto.
- Fale - ordena ele.
- Único Senhor, os estrangeiros não estão a mais que um dia de marcha da cidade.
- Quero - diz Atahualpa com firmeza - que eles se sintam acachapados pelo meu esplendor...
- Dê-me suas ordens...
- Quero que eles entrem numa cidade deserta, sem nenhum homem e nenhuma mulher, e que sintam o coração apertado de aflição, que tenham o espírito invadido por perguntas sem resposta...
- Quando isso deve ser feito?
O grito de cólera escapa dos lábios do Inca.
- Quando disse que eles chegariam, curaca sem cérebro? Amanhã? Então isso deve ser feito hoje à noite.
- Hoje à noite - repete o curaca.
Tarde da noite, Atahualpa pede que ela fique deitada ao lado dele. Ela primeiro tem medo que ele a confunda com uma concubina. Mas ele lhe fala com abandono e confiança, com uma voz que murmura como um regato, e ela custa a acreditar tratar-se do mesmo homem que esbravejava de raiva, ainda há pouco, do mesmo que dava a ordem dos massacres de Cuzco... Por três vezes, ele se cala por alguns instantes, sendo a sua respiração o único som audível no escuro, e por três vezes ela pensa que ele adormeceu. Ao fazer menção de levantar, ela ouve a voz dele dizendo calmamente: "Fique, não me abandone", com uma aflição tão profunda, tão triste, que ela sente o coração apertado.
Ela lhe diz que lamenta já não lhe ser útil como antes, já não saber dizer as palavras e ver os sinais do Outro Mundo. Ele interrompe com delicadeza. - Eu não espero nada - diz - além da sua presença, menina dos olhos azuis de lago, só gosto de você pelo que você é.
Quando o dia começa a raiar, ele a deixa sozinha no leito e se ajoelha diante dela, para sua confusão. Sem encostar nela, passeia o rosto por todo o seu corpo, dos pés à cabeça, com uma espécie de devoção animal, como se procurasse um segredo escondido em seu anato branco, em sua pulseira de serpentes, em suas pernas compridas ou em suas ancas finas...
Ela se obriga a uma imobilidade perturbada apenas por sua respiração. Quando termina o passeio, o Inca aproxima bem o rosto do seu.
- Seus olhos - murmura ele -, seus olhos...
Ela fecha as pálpebras e sente a carícia leve como uma asa de borboleta, de seus lábios em suas pálpebras.
Quando abre os olhos, ele desapareceu.
Cajamarca, sexta-feira, 15 de novembro de 1532.
É meio-dia, mas o céu está negro.
Eles chegam no platô que domina o vale com alguns minutos de diferença do resto da tropa. Os cavalos percebem a excitação dos cavaleiros. Apesar do cansaço e da altitude, por si mesmos, eles se afastam da via calçada e prosseguem a trote pela relva rasteira. Como Pedro o Grego, Diego de Molina ou Juan, o jovem irmão do Governador, Gabriel não pensa em segurar sua montaria. Ele sorve a plenos pulmões o ar frio dos Andes que o deixa um pouco embriagado. Bruscamente, sem que nesse gesto haja o menor espírito de orgulho ou de competição, atiça o cavalo com um toque seco de calcanhar. O animal estremece da garupa ao pescoço. Num saracoteio imperceptível, passa ao galope, abaixando um pouco as orelhas e abrindo a boca para pegar o freio. Gabriel ouve uma risada e um chamado atrás dele, mas não se volta, apenas se levanta da sela para acompanhar o galope com mais agilidade.
Os cascos percutem na terra compacta e o andamento do animal mistura-se às batidas violentas do coração de Gabriel. Ele passa por uma cerca de agaves antes que a estrada pavimentada se estreite entre dois muros que for mam uma espécie de porta. Do outro lado, não há mais que um campo em declive acentuado, ponteado de grandes rochedos entre os quais pasta um punhado de lhamas que fogem atordoados quando o cavalo relincha.
A alguns passos da descida vertiginosa, invadido por um medo quase religioso, ele puxa as rédeas para parar a montaria e apeia do cavalo. Aproxima-se de uma pedra maior que uma casa e ali, agarrado à rocha, de uma vez só, descortina um espetáculo inaudito.
A seus pés, o vale é comprido como um mar, enroscado entre as encostas abruptas de montanhas superpostas que parecem sustentar a massa difícil das nuvens. Mas tem apenas uma ou duas léguas de largura, E, de um lado ao outro, está coberto de tendas!
Milhares de tendas brancas, juntas como as penas de uma asa imensa e que, em alguns pontos, cintilam com um brilho dourado. Estandartes encimam a ponta dos capitéis, salpicando de cores violentas essa imensidão clara. Das tendas, sai uma fumaça que fica estagnada, amarela e densa sob as nuvens. Barulhos sobem, rugidos de trompas, gritos, chamados...
Uma monstruosa cidade de tendas, cheia de vida! - Pelo Sangue de Cristo! Gabriel nem sequer ouviu chegarem seus companheiros quando se assusta com a exclamação de Pedro.
De novo, em frente ao vale, ao pé da montanha defronte a eles e ao longo do que parece um pântano, aparecem faíscas cintilantes no dia escuro. O jovem Juan Pizarro é o primeiro a reagir.
- É ouro? É ouro que vemos brilhar assim? - pergunta com sua voz aguda.
Nenhum dos três companheiros lhe responde. Eles só têm energia para respirar. Apesar do suor que escorre por baixo de suas cotas acolchoadas, um mesmo estremecimento retesa seus músculos.
Olhando melhor, eles vêem que as tendas não estão dispostas ao acaso de um acampamento militar, mas sim reunidas formando espécies de quadrados e retângulos alinhados com muito cuidado. Formam verdadeiros quarteirões, com ruas, praças e terreiros. E essa cidade efêmera que se ergue diante deles, mais que uma muralha, constitui uma barreira intransponível para o sul! Quantos milhares de homens, de soldados, esperam ali?
Vinte, trinta, quarenta mil? O dobro?
"Senhor Deus", pensa Gabriel, cerrando os dentes. "E nós que só somos um punhado!”
- O bugre desse inca escolheu bem o local - resmunga Pedro como se tivesse seguido o pensamento de Gabriel. - Sabia o que estava fazendo ao nos convidar para vir cá!
- Olhem a cidade! A cidade de verdade! - exclama Diego de Molina, que acaba de contornar a pedra.
A cidade está bem embaixo deles, mas à direita, incrustada no flanco de uma encosta e estendendo-se até a margem esquerda do pântano. Suas construções de barro tanto quanto de pedra estão em ótimo estado, os tetos novos e bem mantidos. Todavia, comparada à planície coberta de tendas, parece uma cidade minúscula... Ali não se distinguem muito mais de dez canchas estreitamente superpostas. Voltado para o leste, para a planície, um longo muro de adobe delimita uma praça.
Uma praça muito ampla e muito deserta.
- É lá que devemos ir - murmura Gabriel maquinalmente. - Mas não parece que nos esperam...
A respiração rápida, o peito dolorido, ele se senta na mesa da pedra. Da melhor maneira possível, tenta apreender de uma vez a enormidade da cena que se oferece a ele.
Finalmente, ele chegou lá!
Lá, diante desse vale que parece um mar, ameaçador como um monstro desconhecido e no entanto magnífico.
Enquanto Pedro e Alonso, febrilmente, já estão tornando a montar para ir avisar o Governador do que lhe espera, as nuvens atrás dele se rasgam violentamente. Ao mesmo tempo que banha de luz a brancura das tendas, o sol lhe bate na nuca.
No fundo do vale, nas encostas entre os picos e os abismos, surge uma rede de sombras estranhas. Elas ondulam, abrem sulcos nas florestas, serpeiam entre as tendas, se apagam e renascem, animadas, ao que parece, por uma vida própria.
O raio de sol encolhe, diminui para tomar a forma de uma lança. No sopé da encosta que leva à cidade, no local em que, segundos antes, Gabriel só havia visto um quadrado de relva onde despontavam tantas pedrinhas quantos brotos de batata, nasce uma forma luminosa, pairando acima dos sulcos e do verde tenro das plantas. Uma forma de contornos familiares! Uma forma igual àquela que Sebastian desenhou na areia diante de Tumbez. Igual à marca em seu ombro.
Lentamente, a sombra se mexe. Ele julga ver as presas se arreganharem, as orelhas se afastarem ao vento. Duas pedrinhas amarelas fazem as vezes de olhos.
Parece-lhe então que todo o peso do céu pressiona suas pálpebras e lhe fecha os olhos. Como uma criança que se entrega ao transe de sua imaginação, ele fecha os olhos e o animal salta em seus sonhos.
Com uma sacudidela, a mão de Pizarro o tira do sonho.
Ele se levanta sobressaltado.
- Não é esplêndido? - exclama o Governador.
Seu olhar brilha de orgulho. Gabriel não lê ali nem uma gota de medo ou de dúvida. Os dedos de Pizarro apertam seu ombro com tanta força quanto se quisessem lhe triturar os ossos.
- Não lhe prometi que o traria aqui? Não lhe prometi! - diz ele ainda num sopro, a barba vibrando de excitação. - Cá estamos, meu filho! Cá estamos finalmente! Eles estão todos aí para nós e vão ficar sabendo quem somos!
Ouve-se um alarido enquanto os homens vão chegando um a um - cavaleiros à frente, com os irmãos Pizarro, Soto, Benalcazar, depois os soldados de infantaria, seguidos dos feridos, dos carregadores, dos escravos, dos índios da costa... Quantos são ao todo? Talvez dez mil. E em combate? Dois ou três mil, no máximo. À frente, dez, vinte, cem vezes isso.
Os homens recobram o fôlego e avistam o espetáculo em silêncio. Alguns sentam-se nos rochedos e seguram a cabeça com as mãos; outros ficam simplesmente contemplando e enchendo os pulmões, barba ao vento. Todos se calam. Ao longe, sobe, como que para os acolher, o alarido sinistro das trompas.
O primeiro a falar confessaria que o medo lhe aperta as entranhas. Ninguém quer ser o primeiro a fazer essa confissão.
O embaixador Sikinchara aproxima-se do governador e fita-o com seus olhos negros. Ele queria se saciar com o medo do grande capito espanhol. Queria vê-lo pestanejar diante do esplendor da onipotência de seu senhor. Mas don Francisco Pizarro vira-se para Sikinchara com um sorriso amável:
- Vamos ao nosso encontro - diz ele calmamente.
Mal eles saíram do desfiladeiro, a chuva voltou, fina e constante. O declive da estrada real é tão acentuado que as lajes tornam-se um perigo para os cavalos. Todavia, os cavaleiros não precisam de nenhuma ordem para apear e segurar os animais pelas rédeas.
Todos evitam olhar para o fundo do vale. Da imensa cidade de tendas dos índios, os sons de trompa sobem de quando em quando. Mas o alarido que os próprios homens fazem basta para não se ouvir mais nada.
O grosso da tropa indígena ficou no alto do desfiladeiro, só os servos e os carregadores acompanham os espanhóis. Don Hernando reivindicou o privilégio de ir à frente, juntamente com o embaixador dos incas, Sikinchara, dez homens a pé e cinco cavaleiros de confiança. Pedro o Grego faz parte desta vanguarda com Sebastian. E também o gordo Moguer, a pé e sem cachorro. Gabriel não precisou declinar do convite para lá estar: este não lhe foi feito. Não importa, ele está feliz de ir ao lado do Governador, duzentos ou trezentos passos atrás da vanguarda.
A beira da estrada real, as cabanas de junco e de barro amassado com palha dos pastores estão desertas. Os campos estão desertos. Não se ouve mulher nem criança chamando. Ás hastes malva de um canteiro de quinoa estão envergadas com o peso da chuva.
Mais embaixo, a estrada real se estreita e fica tão íngreme que nela foram construídos degraus. Ali, as choças dão lugar a casas de muro de adobe e às vezes de pedra. Mas estas também estão vazias.
O ronco do rio torna-se obsedante. Dos pântanos que beiram a colina do norte e se estendem até os prédios das termas do Inca, sobe de repente uma bruma espessa qual fumaça. Todos viram a cabeça com desconfiança antes de compreender que se trata apenas da condensação formada quando o vapor que sai das águas quentes entra em contato com o ar frio.
Gabriel percebe que o Governador não tirou os olhos da cidade indígena. A cidade é ainda maior do que parecia do desfiladeiro. E numa reentrância do vale, atrás das ruas e das casas que se comprimem na imensa praça, de repente, eles avistam uma fortaleza.
Como a tropa instintivamente diminui o passo, don Francisco vira-se para Gabriel e diz num tom alto o bastante para que possa ser ouvido de longe: - É só um rochedo!
E é verdade. Uma pedra cônica, perfeitamente circular, amarelo-escura e preta sob a chuva, na qual foi talhado um caminho em espiral! Afinal de contas, aquilo parece a concha de um caracol! O topo é encimado por uma construção estreita. Don Francisco aponta para ela com o dedo enluvado e diz ainda:
- É aí que plantaremos a Cruz de Cristo e um campo de rosas para a Santíssima!
Ouvem-se risadas, mas elas são breves. Frei Vicente Valverde se persigna e murmura:
- Que o Senhor o ouça!
- Ele me ouve - sorri don Francisco.
Quando eles entram na primeira rua, quando os cascos dos cavalos batem nas lajes de pedra assentadas com tanta perfeição, a chuva, de repente, transforma-se em granizo. Milhares de pedras finas e brancas tamborilando no ferro dos morriões, gelando caras e narizes e cobrindo o chão todo de branco.
A praça onde eles finalmente entram também está branca, imaculada, sem nenhuma pegada.
É uma praça imensa, maior do que todas as praças sagradas dos incas em que eles já entraram. Maior até, pensa Gabriel com um arrepio que não vem do frio, que qualquer Plaza Real da Espanha!
Sua forma é irregular, como um retângulo truncado que se transforma em trapézio e depois em triângulo.
Um muro de adobe mais alto que um homem e de, no mínimo, quinhentos passos beira-a pelo lado sul e a isola dos pântanos. Os outros lados são ocupados por esplêndidos prédios cheios de portas. São todos muito compridos, com mais de duzentos passos, que é também a largura da praça. E como sempre, há, deslocada para a esquerda, essa pirâmide com degraus gigantescos onde os índios vão adorar seus deuses e se entregar aos ritos pagãos.
A chuva de granizo pára tão subitamente como começou. Todos ficam imóveis. Don Hernando e sua vanguarda não foram mais longe. No silêncio, ouve-se a oração que Frei Vicente Valverde murmura mecanicamente só para si.
Do outro lado da praça, perto de uma grande porta em forma de trapézio que dá para o imenso vale, um cão late. Um cão indígena, miúdo e fino como uma cruza de lebréu mas de pêlo tão curto que parece inexistente. Os mastins de Nápoles lhe respondem e imediatamente recebem ordens de calar.
É hora das vésperas. Mas o céu está tão carregado que está escuro como ao entardecer.
Os semblantes estão fechados e severos. Não é só medo. Gabriel agora conhece bem as caras do medo. O que vê em volta dele está mais para espanto. Naturalmente, ninguém esquece a presença das dezenas de milhares de índios do outro lado do muro, no vale para onde foge o cão que continua a latir. Mas, do fundo das entranhas, no sangue que lateja até as pontas dos dedos, todos sabem que aquele dia não será como os outros.
Sim, aquele dia de novembro - e que é um dia estranho de verão nessa latitude - será um dia de verdade. Um dia depois do qual nada mais será igual na vida dos homens como no mundo de Deus.
Só o Governador não muda de cara.
Após ter contemplado a praça, ele se vira para o embaixador Sikinchara como se estivesse aguardando uma palavra, um sinal dele. Mas nada vem. Os lábios orgulhosos do nobre índio não tremem. Seus olhos não pestanejam.
No meio dos cento e setenta espanhóis presentes, ele é o único, com seus criados, a estar vestido com cores vivas. Naquela estranha luminosidade invernal que o tapete de granizo oferece, seus brincos de ouro brilham como o sol desaparecido.
Ele marcha num passo constante e forte, a expressão hermética porém serena. Como pode o irmão do governador, por mais nobre fidalgo que seja, achá-lo arrogante ou ridículo?, pergunta-se Gabriel impressionado. E perigoso, sem dúvida, tanto quanto o jovem Senhor de rosto magro que já deve ter seguido para o acampamento do Rei índio para lhe dar conta da entrevista da véspera.
Então, com uma leve esporeada, don Francisco faz sua montaria trotar até o pé da pirâmide. Os cascos do cavalo rangem ligeiramente no granizo, ali deixando suas pegadas.
Ao chegar ao pe da escada, ele puxa a rédea. Dando uma volta ampla, coloca-se de frente para a tropa, que continua imóvel, e grita:
- Embaixadores, mandem avisar ao príncipe Atahualpa que o enviado de Sua Majestade Carlos V o aguarda aqui. Que ele nos diga onde vai nos alojar!
O Único Senhor Atahualpa ainda tem a pele vermelha do banho quentíssimo que tomou enquanto chovia granizo. Agora, está descansando numa rede de tela fina esticada entre duas colunas de madeira entalhada no aposento que dá para o pátio. Olhos entreabertos, ele vê o granizo derreter e a água fervente da fonte fumegar.
Inti Palla abana-o para protegê-lo do calor pesado que voltou logo após a tempestade de granizo. O ar está impregnado dos vapores sulfurosos das águas.
Afastada, sentada entre as Esposas, Anamaya se pergunta se ele está cochilando, tonto por causa do banho, ou se está pensando, como ela, no que acabam de ver do outro lado do vale.
A luz era péssima e a distância, grande demais para que distinguissem bem os estrangeiros. No entanto, no flanco abrupto da montanha adivinhava-se o cortejo deles descendo a estrada real entre os campos de batata e de quinoa.
Não um cortejo muito longo, não uma grande tropa, como anunciaram Sikinchara e Guaypar. Mas sim um cordão negro e cinzento nos verdes suaves da natureza. Uma procissão sem nenhuma das cores apreciadas pelos Filhos do Sol. Só um cortejo negro, cinzento e descorado, como uma comprida minhoca rastejando até o leito do vale.
Mas talvez o único Senhor esteja dormindo, pois não move um cílio enquanto se ouvem barulhos fora do pátio e Guaypar vem se prosternar sob a rede. Guaypar permanece prosternado um instante, aguardando a pergunta do único Senhor. Como esta não vem, sempre de cabeça baixa, ele anuncia respeitosamente:
- Único Senhor, o mensageiro de Sikinchara chegou. Os estrangeiros entraram na praça...
Atahualpa espera um pouco antes de perguntar: - O que eles estão fazendo?
- Estão no pé do ushnu, em volta do capito deles. Alguns andam de um lado para o outro nas ruas e entram nas casas como se estivessem procurando soldados escondidos.
Atahualpa dessa vez abre os olhos e ri para Guaypar.
- O medo nem sempre tem aparência de medo, irmão Guaypar! Ruminahui fez o que deve?
Desde que amanheceu, único Senhor. Vinte mil soldados cercam a cidade. Eles estão invisíveis, escondidos atrás dos morros, das árvores, do capim alto. Os estrangeiros caíram na cilada. Basta você decidir que os queimaremos vivos hoje à noite, como porquinhos-da-índia!
- Você tem sede de guerra, Guaypar! Mas sabe o que decidimos. A Mãe Lua não gosta de nos ver lutar de noite e Inti quer que eu acabe o meu jejum. Faremos isso tudo amanhã. Será uma grande festa e um grande dia para os filhos de Inti.
- Faremos como diz, único Senhor - admite Guaypar com pesar. - Que Sikinchara ordene aos estrangeiros que fiquem na praça esta noite. Que anuncie que eles poderão talvez se prosternar diante de mim amanhã. Enquanto Guaypar se retira, uma pluma do abanador que Inti Palla agita encosta no rosto de Atahualpa. Com um muxoxo irado, ele se ergue apoiado num cotovelo, os olhos soltando chispas. Inti Palla dá um grito, cai de joelhos e recua precipitadamente.
Enquanto uma outra concubina corre para lhe tomar o lugar, os olhos demasiado vermelhos de Atahualpa encontram o olhar de Anamaya, que não baixou as pálpebras.
- São apenas homens, não é, Coya Camaquen? Viracocha não envia ninguém para me apoiar agora que em breve eu devo ir saudar meus ancestrais em Cuzco... Sua voz está tão amargurada que Anamaya não encontra palavras para lhe responder. Ela pensa com espanto na noite que passou a seu lado; com certeza ela deve ter sonhado...
Com a ponta da espada, Gabriel afasta uma tapeçaria. Um pouco de luz entra no aposento grande e quente, impregnado de odores de terra e relva. Parece vazio.
Quando se prepara para largar o tapete que serve de porta, ouve um grunhido. Um porquinho-da-índia de pelagem fulva corre entre as tigelas de cerâmica. Depois outro, e mais dez que de repente proliferam como ratos aos guinchos. Só então, Gabriel vê, no canto oposto, semi- escondido por um feixe de galhos, um par de olhos brilhando. Depois um pé, pequenino. E uma mão minúscula. Uma criança! Gabriel sorri de alívio tanto quanto de prazer. Passa a espada para a mão esquerda e se abaixa, murmurando: - Bom dia, menino.
O menino está petrificado, os olhos arregalados. É bonito, tem as faces sedosas, boca delineada como boca de mulher. Seus pesados cabelos negros enquadram seu rosto de feições finas e regulares. Gabriel se agacha, fazendo as botas estalarem e a espada tinir ao bater nas esporas. Ele descalça a luva direita e estica a mão ampliando o sorriso.
- Não tenha medo - diz, com toda a delicadeza possível. Não tenha medo, menino... Sua voz soa estranha a seus próprios ouvidos. Ele não tem tempo de pensar na visão que oferece ao menino, com sua cota acolchoada, suja e ainda úmida, com seu capacete, sua espada, sua barba que lhe esconde o rosto até os olhos.
Os porquinhos-da-índia guincham cada vez mais e correm para todos os lados.
- Não tenha medo, menino - repete Gabriel. - Sou seu amigo... Como o menino continua parado, Gabriel se levanta, e, estendendo a mão, faz menção de se adiantar.
Então o menino dá um pulo e atravessa o aposento como um gato.
- Menino!
Porém, pasmo demais para fazer um gesto, Gabriel vê o menino franzir os olhos, cerrar os punhos diminutos extraindo o que lhe resta de coragem e investir para ele, evitá-lo por pouco e sair correndo porta afora. Quando ele se volta, o menino já está atravessando o pátio. Sobe num monte de madeira e pula o muro antes de desaparecer.
No vão da porta do pátio, Sebastian deixa escapar uma risadinha.
- Eu não queria lhe fazer mal - protesta Gabriel calçando novamente luva.
Sebastian pára de rir. Eles se fitam, olhos nos olhos.
- Eu também, quando era pequeno, corria dos espanhóis - diz o Negro Sebastian. - E quase sempre, amigo Gabriel, era com razão!
- Então? - pergunta o Governador quando eles chegam à praça.
- Não há nenhum soldado - anuncia Gabriel. - Algumas crianças, mulheres, velhos.
- Nenhum homem, nenhum guerreiro, só alguns guardas na frente dos depósitos abarrotados de uma miscelânea de coisas - insiste Sebastian. - Eles são tranqüilos - prossegue Gabriel. - As mulheres continuam tecendo como se não estivéssemos ali.
- Quantos? - pergunta o Governador.
- Quatrocentos ou quinhentos, no máximo.
Sebastian mostra um muro alto e bonito defronte a eles, à esquerda. - É o palácio - explica. - Ali há criadagem e o pátio não é como os outros, as paredes são pintadas e há serpentes gravadas nas pedras.
- Ninguém está interessado em serpente chia dom Hernando cujo cavalo está nervosíssimo. - Será que o "Senhor" Gabriel descobriu alguns locais de defesa?
- Lá em cima, don Hernando - replica Gabriel sem reparar no sarcasmo. - Do topo da rocha, a vista é perfeita, vê-se a cidade e a planície, e até a estrada que leva até as tendas e os alojamentos do Inca. É uma estrada larga, calçada e inclusive arborizada até o pântano. Eles não podem fazer nenhum movimento em nossa direção sem que percebamos...
- É óbvio que lá de cima dá para ver bem - resmunga Moguer -, não precisa subir para se dar conta.
- Don Francisco - intervém o capitão Soto -,isso tudo me entristece.
- Ah?
Soto indica com o olhar o embaixador Sikinchara que mensageiros índios acabam de alcançar.
- Para meu gosto, isso está parecendo demais uma cilada - murmura Soto. - Nenhum guerreiro no local! Uma cidade inteira para nós. Deixam-nos um posto de observação magnífico para não ver nada, muros para nos encerrar e dezenas de milhares de soldados em volta. Não, Governador, não estou gostando disso. Os índios são o que são, mas esses sabem fazer batalhas e estão habituados a vencê-las... não os subestime.
- Soto tem razão - diz don Hernando a contragosto. - Sabemos o que vale o canto desses pássaros. Eles só têm mentira e astúcia na boca.
- Podemos botar o falconete lá em cima, senhor - diz Pedro o Grego mostrando a plataforma da pirâmide. - Isso nos dará um bom alcance. Todos olham juntos para o topo do ushnu e o lance de degraus íngremes que leva até lá.
- Sim - diz finalmente don Francisco. - Você arranjará o número de homens que for preciso para escalá-la antes do anoitecer...
- Mas isso não basta - reclama ainda don Hernando olhando atravessado para Gabriel. - Esse cretino não sabe ver o que há para ver. Olhe a feição da cidade, encostada no morro. Eles podem nos surpreender lá embaixo, pela retaguarda, atacar as ruas sem a gente sequer perceber.
- Bem, meu irmão - diz don Francisco calmamente, enquanto mais uma vez Gabriel permanece mudo diante do insulto -, se isso o tranqüiliza, por que não vai lá se certificar pessoalmente?
Don Hernando hesita, puxa um pouco as rédeas de sua montaria, que começa a andar de lado arregaçando os beiços. Gabriel fita-o nos olhos, um sorriso irônico no meio da barba. Don Hernando faz um sinal para dois ou três outros cavaleiros. Os cascos dos cavalos percutindo alto nas lajes, eles atravessam a praça com um trote exagerado.
Ao redor, os homens conservam uma expressão tensa. O nervosismo dos capitães é como uma areia lhes rangendo entre os dentes. Só Frei Vicente se aproximou do grupo de carregadores para conferir os baús que contêm o grande crucifixo, a água benta e seus paramentos para celebrar a missa.
Mal don Hernando e seus companheiros saíram por uma das portas da praça, Martinillo, o intérprete, se aproxima do cavalo de don Francisco e se curva respeitosamente.
- O Senhor Sikinchara recebeu uma mensagem do único Senhor Atahualpa - anuncia.
- Ah? E qual é?
- O Único Senhor Atahualpa participa ao Senhor Governador que pode pernoitar na praça e que ele virá amanhã de manhã...
Gabriel adivinha a hesitação de Martinillo. Mas o jovem intérprete conclui, baixando os olhos:
- O Único Senhor Atahualpa diz que está jejuando para agradecer ao Pai Sol as suas vitórias e que não pode deixar os banhos sagrados. Ele diz que virá amanhã para... para ter um encontro educado com o Senhor Governador.
A cólera de don Francisco talvez seja apenas fingida, quando ele se vira para o embaixador Sikinchara. No brilho de seus olhos, Gabriel parece adivinhar a mesma dose de diversão que de fúria:
Pernoitar na praça! Lá, debaixo desse céu nublado e chuvoso? Essa não, embaixador! O enviado de Sua Majestade não dorme ao relento quando há belos prédios para ele. E também não gosta de esperar em vão!
Mas, enquanto Martinillo traduz suas palavras, o capitão de Soto declara: - Don Francisco, deixe-me ir até o acampamento do Inca, e saber o que ele quer conosco.
- Isso é arriscado, Soro. Vocês estarão à mercê dele.
- Não é mais arriscado do que estar aqui como novilhos numa arena. E depois, saberemos finalmente como é esse acampamento. E esse Atahualpa! Eu pego vinte cavaleiros e eles ficarão com medo de nós...
- Sobretudo, não apeiem para falar com ele. Mas sejam respeitosos. Não se deve ser brusco com ele, Soto, mas sim firme. Levem o embaixador com vocês. Não me agrada tê-lo aqui permanentemente. E o intérprete Felipillo também; ele é mais desonesto, mas é mais esperto que Martinillo. O Inca precisa ser tão bajulado quanto impressionado, precisa que lhe façam compreender que tudo pode acontecer pacificamente!
Soto concorda com um gesto de cabeça, sorrindo de novo, já liberado pela ação.
Quando indica aqueles que vão acompanhá-lo, Gabriel encosta seu cavalo no do Governador:
- Senhor, o cretino que eu sou pede-lhe a graça de sê-lo. Talvez haja coisas que eu saiba ver...
Don Francisco avalia-o franzindo o cenho.
- Não me faça perder um cavalo - responde ele apenas. E, virando-se para Soto, acrescenta, resmungando:
- E não se esqueça de dizer ao Inca que não durmo ao relento. Faço questão...
- Não é a primeira vez, Governador! - replica-lhe Soto rindo. - Eu saberei me arranjar...
Os olhos colados nos do capitão, a barba abafando suas palavras, don Francisco pega as rédeas de seu cavalo:
- É a primeira vez, capitão de Soto, que estará sozinho e tão desprevenido no meio de trinta mil índios... Deus o proteja, meu amigo!
- Eu sei - diz Soro sorrindo -, o senhor sempre quer que eu volte, don Francisco!
Gabriel guarda o sorriso para si mesmo.
Cajamarca, 15 de novembro de 1532.
No meio da tarde, o céu limpou a oeste. O vale, rutilante de chuva, resplandece sob a carícia de Inti. A crista das montanhas tinge-se de uma luz suave e ágil que inunda até as sombras. As andorinhas e os francelhos volteiam sobre os juncos dos pântanos fartando-se de insetos.
Em toda parte nas cidade das tendas, as mulheres acendem as fogueiras para aquecer as sopas e cozinhar as bolachas de milho.
Atahualpa bebeu muita chicha na última cerimônia do dia. Só as mulheres permanecem em volta dele. O curaca de Cajamarca e os Poderosos Senhores deixaram o pátio onde as servas se azafamam. Tudo está calmo.
Mas outro chaski chega correndo e Guaypar anuncia que um oficial estrangeiro e toda uma tropa de guerreiros a cavalo vêm saudar o único Senhor Atahualpa. Sikinchara está com eles.
Dessa vez, Atahualpa sai do recinto das termas, afasta-se até o outeiro dos grandes tanques e olha na direção da cidade.
Custa a encontrá-los. De repente, estalando a língua, mostra os pontos escuros que avançam na estrada, à beira do pântano.
Ele se volta para Anamaya:
- Olhe - diz com uma doçura inesperada -, parecem cabanas avançando na planície.
Seu sorriso é cheio de paz e de ternura. pai feliz de estar a sós com a filha.
Depois, volta-se para Guaypar:
- Irmão Guaypar, mande chamar minha guarda no pátio. E todos os Poderosos e os sacerdotes. Diga a todos que o Filho do Sol não quer sentir o menor frêmito de medo.
A estrada tem largura suficiente para dar passagem para cinco pessoas lado a lado. Cruza a planície em linha reta, atravessando os pântanos, até as incontáveis tendas. Mas antes deste acampamento, em alguns pontos, alguns índios já se aglomeram à beira do caminho para os ver passar. Dessa vez, não fazem esforço nenhum para se esconder.
Todos têm o olhar parado, o semblante inexpressivo, como que desprovido de emoção ou curiosidade.
Soto vira-se para Gabriel e, com um esgar, exprime exatamente o que pensa:
- Parece que eles sempre sabem mais que nós, não?
Apesar do nervosismo, eles vão a passo, a haste da lança na ponta da bota, retardados pelo embaixador. Após meia légua nesse andar, de repente a estrada mergulha num lamaçal, transformando-se numa picada estreita entre os juncos. Gabriel arremete com seu cavalo, mas logo o segura:
- Tem lama demais - explica ele a Soto. - Estamos arriscados a atolar os cavalos e chegar imundos.
- Ou a quebrar as patas das nossas montarias... - replica Soro.
- O Poderoso Embaixador sugere que passemos por aquele caminho ali - intervém Felipillo.
O embaixador Sikinchara sorri para eles e aponta para um vau pedregoso entre os caniços.
- O bugre deixou de propósito que atolássemos! - reclama Soto dando ordem para que o seguissem.
"E agora", pensa Gabriel, "ele conhece nosso ponto vulnerável. Se tivermos que fugir ou se eles assustarem nossos cavalos, não escaparemos de um banho do qual não sairemos!”
Ele é o último a passar o vau onde a água é tão transparente que as pedras brilham como se salpicadas de lantejoulas.
Soto volta ao encontro dele. Sem uma palavra, seus olhares se cruzam. Ambos pensam a mesma coisa.
As mulheres acabam de vestir o único Senhor. No pátio, burburinho dos soldados que se colocam em volta do tanque de água quente. O burburinho das ordens do único Senhor ressoa por todo o acampamento.
Os oficiais pressionam os homens para se posicionarem como na guerra, em fileiras cerradas, as maças e as fundas em punho. Os que se encontram à beira da estrada real, na orla do rio escaldante e dos pântanos, olham furtivamente para o norte. Além das cercas moventes dos juncos, eles adivinham homens com a cabeça coberta com uma taça de prata, o rosto oculto sob os pêlos como se fossem enormes o bastante para avançarem sentados acima dos caniços...
As mulheres largaram o cozimento das bolachas e da sopa. À custa de gritos, cachações e carinhos, seguram as crianças perto das tendas para que elas não vão correr pelas ruas. As crianças choram. Elas também querem vê-los.
Atahualpa pede que a camisa a ele oferecida pelos estrangeiros seja amarrada a uma vara comprida e erguida como um estandarte de inimigo vencido no alto dos muros da cancha.
Depois, vê Anamaya que estava calada há muito tempo. Ele diz:
Fique junto de mim, Coya Camaquen, e seja meus olhos. Olhe bem o rosto dos estrangeiros. Talvez baste eles verem a cor de seus olhos para entender que eles não são nada.
Anamaya sente que não há ironia alguma nessas palavras. Somente cansaço e solidão.
Atravessado outro rio, eles estão perto o bastante para divisar bem os prédios onde o Inca mora. E como as barracas dos índios formam uma espécie de muro branco a perder de vista, de um lado ao outro da planície, da cidade de Cajamarca, de visível, só há o estranho cone de pedra.
- Capitão - grita um dos homens da escolta. Olhe! Olhe o estandarte no alto do prédio onde o Inca mora!
Gabriel, como os outros, segue na direção indicada. Na ponta de uma vara, ligeiramente enfunada pela brisa leve, ele vê a camisa de seda oferecida ao Rei índio pelo Governador!
Soto solta um impropério. Erguendo a lança, ordena que se faça alto. Chama Felipillo e manda que o embaixador Sikinchara vá na frente, sozinho, até seu amo para avisá-lo dos senhores estrangeiros.
Felipillo hesita.
- Bem, traduza, animal! - irrita-se Soto levantando o tom. Como de hábito, Sikinchara ouve o intérprete, sempre de olho no capitão.
Quando Felipillo se cala, Sikinchara dá um largo sorriso, mostrando os dentes claros. Sem mais cerimônia, ergue a mão num gesto de despedida e dá uma ordem aos carregadores.
Quando ele está um pouco afastado, Soro pergunta a Felipillo: - Por que ele estava sorrindo assim?
O mesmo sorriso arregaça os lábios do intérprete:
- Ah... Porque está muito orgulhoso de anunciar a chegada de vocês ao único Senhor!
Outra vez, o olhar de Soto encontra o de Gabriel.
- Logo saberemos quem, de nossa parte ou da dele, mente melhor - suspira Gabriel.
Ao transpor a porta do pátio, Sikinchara se prosterna. É com a cabeça baixa e as costas curvas que atravessa o jardim, contorna o tanque, passa diante dos soldados e dos Poderosos Senhores para ir se prosternar novamente atrás do único Senhor Atahualpa sentado num tripé dentro da galeria.
Mesmo com a testa quase no chão, ele sente todos os olhares pousados nele e é percorrido por um frêmito de orgulho.
- Venha à minha frente, Sikinchara - ordena Atahualpa. - Quem são os estrangeiros que vêm até aqui?
- É um capitão do capito, com trinta homens - responde Sikinchara com voz neutra. - Estão todos montados em seus animais, com lanças em punho e escudos pendurados na sela. Esse é o sinal de que estão em guarda, único Senhor, e que têm medo de você.
- O que eles querem?
- Convidá-lo da parte do grande capito que ficou na praça de Cajamarca. Vão lhe dizer isso pela voz do índio que fala a língua deles.
Atahualpa não faz mais perguntas. Cala-se. O vermelho de seus olhos parece mais violento essa noite, mais irritado ainda pelos vapores de enxofre e o excesso de banhos.
Anamaya sente o único Senhor um pouco inquieto, e essa inquietude passa para os Poderosos. O céu no alto do pátio tingiu-se de vermelho, também. É a hora em que o ouro de Inti começa a se transformar em sangue.
Mas na verdade, não é o único Senhor Atahualpa que está aflito. É ela. Ela é que sente o frio lhe apertar a cintura e lhe pesar no peito. Ela é que está tremendo como se o granizo da tarde tivesse penetrado nela e não mais se fundisse.
Por quê?
Ah! Se ao menos o Irmão-Duplo estivesse a seu lado...
Por que ela sente um aperto na garganta com a chegada dos estrangeiros? Eles são poucos, ao passo que, no pátio, há mais de cem soldados a postos e, no acampamento, há milhares!
A voz de Sikinchara, ágil e orgulhosa, pergunta: - Quais são as suas ordens, único Senhor?
- Vamos ouvi-los. E amanhã, vamos matá-los. Assim!
Atahualpa ergue a mão e gira-a no ar, fechando-a como se capturasse inseto.
Esse gesto lhe agrada. Ele o repete, de modo mais vivo, sorrindo. - Assim - torna a dizer.
No pátio, irrompe uma primeira risada. Depois outra. E mais outra. E outras. O Único Senhor ri. Então uma gargalhada sacode o peito dos Poderosos e agita seus brincos de ouro. Os soldados, as concubinas e os criados dão gargalhadas, abrindo muito a boca e jogando a cabeça para trás para que a risada suba ao céu avermelhado, como o vapor das águas escaldantes. Chorando de rir, o único Senhor repete outra vez o gesto.
- Assim! - diz.
O caminho termina abruptamente diante deles. É prolongado apenas por uma estreita ponte de bambus que atravessa o rio. Mas a água desse rio é tão escaldante que fervilha em alguns pontos.
Do outro lado, a uns dez passos, começa o acampamento das tendas brancas. Formando quadrados de cinqüenta homens, em traje de guerra e perfeitamente alinhados, lanças à frente com a ponta no chão, índios os observam.
Como sempre, o semblante deles não deixa transparecer nenhuma emoção, a mínima surpresa e, certamente, nenhum medo.
Gabriel debruça-se no pescoço de sua montaria e corta duas cabeças de taboa. Joga-as na água fumegante. As plantas encolhem e afundam, bolinhas escuras levadas pela correnteza num piscar de olhos.
Soro, que o viu fazer isso, assobia entre os dentes.
Um homem da escolta aponta para uma ponte de galhos coberta de terra e diz:
- Impossível passar por ali. Essa ponte não vai agüentar o peso dos cavalos e ficaremos cozidos mesmo!
Um Senhor índio, idoso, as orelhas e o pescoço escondidos por enormes brincos de ouro, aproxima-se da margem oposta. Gabriel, como todos os outros, disfarça um movimento de surpresa. Além das plumas extraordinárias que lhe enfeitam a cabeça, o velho tem o peito coberto de ouro, os pulsos cobertos de ouro, e as mãos, quando ele aponta para o sentido da correnteza do rio, estão pesadas de anéis de ouro!
Felipillo traduz suas palavras sucintas:
- O Poderoso Senhor diz que podem atravessar o rio mais embaixo. Dá para atravessar a pé.
Soro faz sinal para Gabriel e mais três cavaleiros:
- Sigam-me!... E vocês aí - acrescenta ele para o resto dos companheiros -, não se deixem distrair pelo ouro. Vigiem os soldados na frente das tendas. Se eles se mexerem, gritem e venham ter conosco...
A vau fica na confluência de um rio frio. Se aí as águas não são mais escaldantes, continuam quentes o bastante para fumegar.
Na margem oposta, alguns grandes degraus de pedra levam aos prédios do Inca. Dois quadrados de soldados, em ordem perfeita, protegem a entrada. Perturbados pela mistura das águas e o odor de enxofre, os cavalos recuam e batem com os cascos no chão. Alguns Senhores índios, tão cobertos de ouro como o primeiro, aparecem e olham para eles.
Como Soro quer obrigá-lo a atravessar, seu cavalo bufa e acaba empinando, com um relincho de fúria.
Gabriel apóia novamente a lança na bota e acalma sua montaria. Pensa em don Francisco: em tais circunstâncias, o Governador arremessaria seu cavalo sem hesitar. Com três esporeadas, estaria do outro lado!
Mas no instante em que se prepara para fazer isso, irrompe uma gargalhada lá embaixo, no prédio do Rei índio.
Uma gargalhada que sobe no ar como um insulto.
Então, fazendo com que Felipillo equilibrado na garupa de seu cavalo dê um grito, Gabriel esporeia o animal até tirar sangue. Num mesmo reflexo, Soro também arremeteu com seu cavalo para o rio. Os outros acompanham.
Ao contato com a água quente, os animais pulam como se estivessem saltando muros. Saracoteiam, escoiceiam, mas atravessam. E quando saem do rio, as ferraduras percutem nos degraus de pedra, lançando faíscas.
Pela primeira vez, Gabriel vê o choque estampado no rosto de alguns dos guerreiros que estão diante deles. Bocas se entreabrem, pálpebras piscam. Ele olha para Soto. O capitão, que também viu, balança a cabeça e começa a rir.
É a trote curto que eles entram no pátio do Inca.
Deitam-se sobre a crina dos cavalos para passar pelo pórtico. Mas endireitam-se tão logo chegam ao outro lado, a lança firme na mão direita, as rédeas curtas na esquerda, a espada batendo nas bolsas da sela.
E os próprios cavalos, ao atravessar o jardim entre as fileiras de soldados imóveis, de repente parecem captar o sentido da cerimônia. Erguem as orelhas e mordem o freio revirando os olhos. Com um resto de cólera, ao passar por um tanque cheio de água fumegante, bufam pelas ventas e batem no chão pavimentado como se imagina que dragões vindos do céu pudessem fazer. Mas nenhum dos índios, aqui, parece impressionado.
O Rei dos Incas é facilmente reconhecível. É o único sentado. Há, no mínimo, dez mulheres em volta dele, de pé e de olhos baixos. Ele veste uma túnica de chapas de ouro, sem mangas. Seus antebraços, até os cotovelos, estão cobertos de ouro. Mas seu rosto não está visível.
Duas mulheres seguram diante dele um tecido largo, entremeado de fios de prata, que lhe esconde o rosto como uma gaze. Não se vêem seus traços nem seus olhos, mas ele pode observar.
Pelo que Gabriel pode ver, há uma faixa cingindo- lhe a cabeça. Em sua testa, uma borla de uma sedosa lã carmesim segura uma franja de finos cordões de ouro e uma pluma extraordinária, qual um diamante, curta e larga, tão colorida como um arco-íris.
Ele está imóvel como se fosse de cera.
Nem um estremecimento. Nada. Pode-se perguntar se ele esta vivo ou morto. Mas diante de sua boca, a gaze balança no ritmo de sua respiração. Nada ainda, nem um movimento, enquanto os cavalos agora estão pertíssimo, cruzam à frente dele, arregaçam os beiços machucados pelo freio e mostram os dentes.
E dessa imobilidade vem uma dignidade extraordinária, um poder que arrepia. Gabriel sente o medo, que até agora ele conseguiu manter afastado, roer-lhe a base da espinha.
Ele se endireita na sela, deixa o olhar pairar sobre os rostos em volta do Inca e encontra os olhos cheios de arrogância do embaixador Sikinchara. Ao lado dele, Gabriel reconhece o jovem combatente de porte altivo que lhe agradeceu por ter matado o cão de Moguer.
Gabriel inclina a cabeça numa saudação, mas o outro se contenta em fitá-lo, sem pestanejar.
Quando Soro faz seu cavalo dar mais um passo à frente, Felipillo protesta com um grito.
- Não tão perto! - geme ele. - Não tão perto!
Ele está ajoelhado entre os cavalos, as mãos espalmadas no chão, cabeça inclinada.
Soro olha para Gabriel. Parece um pouco pálido, mas sua voz está firme quando diz:
- Sou um capitão do Governador don Francisco Pizarro, enviado pelo Senhor Deus e Sua Majestade o Imperador Carlos V da Espanha para conhecer essas terras onde estamos e ensinar a fé em Jesus Cristo...
Quando se cala, o silêncio é tão grande que se ouve a água borbulhando no tanque.
Sentindo uma opressão no peito, com um gesto que ele mal controla, Gabriel bate com tanta força nas costas de Felipillo com a haste da lança que este quase cai.
- Traduza! Traduza logo, bugre burro!
A voz abafada, ainda de cabeça baixa, Felipillo traduz. E Gabriel não consegue evitar se perguntar o que ele está dizendo de fato!
Mas Soto já recuperou a segurança. Com um movimento do punho, coloca o cavalo de lado, faz uma saudação à espanhola e diz ainda.
- Nosso Senhor o Governador convida-o a compartilhar sua refeição, amanhã, para selar a sua amizade e lhe propor ajuda, pois sabe que lhe agradam as conquistas...
Só a gaze na frente do rosto do Inca se mexe.
Depois, quando o silêncio se torna insuportável, o velho coberto de ouro que os acolheu no rio profere algumas palavras.
- Está bem - diz Felipillo.
- "Está bem" o quê? - rosna Soro.
- O Poderoso Senhor que fala pelo único Senhor disse: "Está bem." Então, após uma olhada rápida para Gabriel, lentamente, com sua nobreza natural, o capitão Soto descalça a luva da mão direita. Tira do anular um anel de ouro fino e segura-o entre os dedos da mão direita. Inclina-se para o Inca e lhe oferece o anel.
Dessa vez, a gaze balança sob o efeito de um som. O velho nobre se afasta das costas do Inca para aproximar-se da mão de Soto que logo a fecha. - Não - exclama irritado. - Você, não! Quero que quem pegue esse anel seja o seu senhor.
Felipillo não traduz mais, contorcendo-se todo. Mas o sentido das palavras é tão evidente quanto o mau humor do capitão.
E, em silêncio, Soro faz seu cavalo chegar tão perto do Inca que o sopro das ventas levanta a gaze e agita a borla real. Ele torna a estender o braço, com a mão aberta, oferecendo o anel.
Então, como se seus gestos devessem ser mais lentos que os do resto dos homens, o Inca finalmente se mexe.
Por sua vez, estica o braço, com a mão aberta. O anel cai aí. O Inca recolhe o braço, mas, com o mesmo movimento lento, vira a mão e abre-a totalmente.
O anel quica nas lajes e sai rolando com um tamborilar de granizo. Mas Gabriel já não ouve.
Por que o único Senhor quis que ela fosse os seus olhos? O que ela vê congela seu sangue.
O que ela vê lhe queima os olhos.
Os estrangeiros entram no pátio furiosos. Os animais que prolongam seus corpos como pernas monstruosas têm olhos enormes, patas com a ponta de madeira e prata, com as quais batem nas lajes do chão como se quisessem quebrá-las.
E os estrangeiros usam roupas que lhes colam no corpo como se estivessem nus. Uma pele dupla envolve-lhes os pés e as panturrilhas. Uma pele dupla cobre-lhes as mãos. Mas é visível a força de suas coxas, a estreiteza de suas ancas, e sua compleição é maior do que a de um índio.
E os rostos...
O rosto deles é coberto de pêlos, em geral pretos, às vezes salpicados de branco. Um deles, contudo, tem os cabelos dourados como a primeira luz da manhã. Seus lábios são rasgados e móveis. E embaixo dos capacetes de prata, seus olhos são vivos e cintilantes. Vão de rosto em rosto, olhando sem polidez, encarando até o único Senhor, olhando as mulheres. Esses homens procuram olhos como se pudessem penetrar em todas as almas com um único movimento.
E não são feios.
Não, não têm aquela feiúra descrita por Sikinchara e Guaypar! São apenas homens brancos.
O do rosto coberto de pêlos de ouro tem algo de terno e frágil, até no medo que faz suas narinas palpitarem. Seu nariz é fino, seus lábios são muito vermelhos, rasgados e finos, sua pele, muito clara, branca como leite de alpaca...
Mas aqueles rostos, Anamaya está apavorada com eles. O que ela vê e pior do que enfrentar os dentes do puma.
O que ela vê nesses seres e nesses rostos pertence ao seu passado, à sua memória.
Ela se lembra da criança Anamaya. Daquela que já era bem grande para seus dez anos. Daquela que era considerada alta demais e com a pele branca demais e que provocava risadas nas meninas da aldeia chiriguana na floresta quente.
Aquela de quem zombavam por causa da testa chata e dos lábios muito finos e muito rasgados.
Aquela que, depois em Quito, era repulsiva às mães e às meninas do acllahuasi por causa dos olhos...
Então, no momento em que o único Senhor deixa cair o anel, em que o tinido da jóia nas lajes enche o silêncio pesado do pátio, Anamaya ergue o rosto para o estrangeiro de barba dourada, olha para ele como jamais olhou para ninguém.
E sabe.
Quando o anel de ouro oferecido por Soro cai da mão cheia de desprezo do Inca, Gabriel nem ouve o ruído que ele faz.
Ele vê e sente uma vertigem. Olhos azuis.
Incríveis olhos azuis.
Entre as jovens índias suntuosamente vestidas, com capas de ouro e túnicas de cores ricas, há uma, um pouco maior e toda de branco, com uma simples faixa vermelha cingindo-lhe a cintura. Ela não tem, ao contrário das outras, cabelos pesados de azeviche cuidadosamente divididos por uma risca. Os dela são fluidos, caindo-lhe em finas espirais sobre os ombros, as mechas presas por fios de ouro, e ela tem uma espécie de diadema, ornado com uma esmeralda e três penas curtas, uma vermelha, uma azul e uma amarela, pousado na testa.
Tem esses olhos azuis... E é linda.
Mas não é sua beleza estranha e ímpar que faz Gabriel cair no incêndio de seu coração. E sua presença.
Como se ele tivesse feito essa longa viagem de Sevilha até aquele vale de um mundo desconhecido para estar diante dela!
Como se Deus, o destino ou o acaso, acumulando as provas em seu caminho, não tivesse tido outra vontade. Como se a vergonha de sua bastardia, a humilhação do Santo Ofício e a loucura inabalável de don Francisco Pizarro não tivessem tido outra razão de ser senão gerar esse instante! Estar ali, agora, diante dessa desconhecida. Diante dessa mulher de outro universo, de olhos de céu bem abertos, de olhar de lago.
A vertigem é tamanha que ele precisa agarrar-se à crina do cavalo para não cair. Precisa cerrar os dentes para não gemer como uma criança apavorada. Tudo que o envolve não passa de um vazio a separá-lo dela.
A separá-lo da esperança e já do desejo dessa mulher.
Ele não ouve nem vê mais nada. Só ouve o coração e os olhos dela. Será possível alguém ter saudades de um rosto desde a primeira vez que o vê? Será possível alguém saber, com um único olhar, que não poderá respirar sem o ar desse rosto e o calor de seus lábios?
Ele sente frio. E parece que só poderá se aquecer se a tocar.
E depois, quando cessa o barulho do anel, irrompe um alarido, ouvem-se chamados, bater de cascos. A voz de don Hernando Pizarro, num tom alto e violento, pergunta, exige:
- O que está acontecendo, Soro?
- Esse inca infernal recusa-se a falar comigo. Só quer se dirigir ao Governador! E o senhor, o que faz aqui?
Gabriel não se vira. Ele não pode nem quer. Quando don Hernando entrou no pátio, a jovem baixou os olhos. Gabriel continua olhando fixo para sua cabeleira farta e para as peninhas de seu diadema. Como se esta obstinação pudesse lhe fazer reconstruir o rosto. "Ela sabe, ela sabe! Ela deve saber também! Não é possível que não saiba...”
- Vim socorrê-lo - diz don Hernando ainda aos berros. - Receava que estivesse em apuros. Se ele não lhe fala, talvez fale comigo...
Gabriel mal ouve as palavras, a voz de Felipillo traduzindo não se sabe o quê. Depois, faz-se silêncio. O silêncio e o vazio, pois ela não levanta o rosto. Permanece como prostrada, trêmula talvez, pois seus dedos vibram, crispam-se e se contorcem como se ela estivesse apavorada. "Não, ela sabe! Ela não deve ter medo! Ela não precisa ter medo de mim! Não pode ter medo de mim como uma criança!", repete Gabriel para si mesmo.
Ele está prestes a fazer um gesto, talvez a gritar, quando ouve a zombaria de don Hernando:
- Diga a esse cachorro para levantar essa cabeça de cachorro e responder quando se fala com ele!
Felipillo não traduz. Mas a frase e seu tom não precisam de tradução. O Inca não estremeceu, mas, em volta dele, os Nobres se empertigaram com o insulto, fitando os espanhóis como se contempla um formigueiro antes do massacre.
Sem se dar conta, Gabriel puxou a rédea, fazendo seu cavalo girar e se colocando ao lado de don Hernando, bota com bota. Sua mão já aperta o punho da espada, e a expressão de seu rosto está tão carregada de raiva que o irmão do Governador esboça um ríctus zombeteiro e murmura:
- Era só uma brincadeira para despertá-lo, parece que você está paralisado de medo, aprendiz!... É preciso mostrar a eles quem é mais forte! Felipillo, diga ao Rei Atahualpa que eu não sou um simples capitão mas sim o irmão do Governador don Francisco Pizarro. O Governador é amigo dele. Convida-o para jantar. Aguarda-o em Cajamarca e não vai arredar pé, para comer ou dormir, antes de ter a resposta dele.
Quando Gabriel se vira para o Inca, a jovem ergueu o rosto e está olhando de novo para ele.
O azul de seus olhos transmite sua surpresa.
Ela olha para ele como mulher nenhuma jamais olhou. Nem mesmo doña Francesca, há tanto tempo, em Sevilha.
Ela olha para ele, e ele gostaria de acariciar sua cabeça, tocar em seus lábios.
Ele poderia se debruçar, esticar o braço e trazê-la para seu cavalo, pular o rio fervente abraçado a ela...
Como se estivesse delirando, seus músculos se contraem, uma onda de dor quebra-lhe a base da espinha.
Uma onda de doçura inunda-lhe o peito.
Por um instante, para repelir a vertigem do desejo, a loucura que o invade, por um instante, ele fecha os olhos.
Ao abri-los, percebe que as duas mulheres que seguravam a gaze de ouro diante do rosto do Inca suspendem-na com uma prudência infinita. O rosto do rei Inca aparece, com uma beleza estranha, largo e poderoso.
Seu nariz tem algo de ave de rapina. Sua boca, um pouco arqueada pelo desdém, tem o desenho perfeito de uma estátua. Mas seu olhar é chocante. Entre as pálpebras puxadas, as duas pupilas escuras estão rodeadas de sangue! E é como se o rosto do Inca fosse a máscara esplêndida da crueldade e, ao mesmo tempo, da dor.
Gabriel sente, ao seu lado, a surpresa de don Hernando e Soro.
Mas quando o Inca começa a falar, com uma voz lenta e clara, a mulher de olhos azuis desapareceu.
O Inca não fala para os estrangeiros. Dirige-se somente a um dos Anciãos que o cercam e este transmite suas palavras ao intérprete Felipillo. E ele diz: Por todos os lugares por onde passaram, vocês maltrataram meus Poderosos Senhores. Nas aldeias, maltrataram os curacas, acorrentaram-nos, bateram neles sem nenhum respeito por mim, o Filho do Sol, o único Senhor desta terra que não é a sua. Sem respeito, vocês entraram na casa das Virgens e tomaram mulheres. Pegaram ouro e prata nos templos. Entraram num palácio onde dormia meu pai Huayna Capac durante sua vida de cá e roubaram as esteiras preciosas. Ao longo de todo o seu caminho desde o mar, vocês comeram o que não lhes foi oferecido e seus cães mataram crianças para se alimentar...
O Inca fala muito tempo da crueldade dos estrangeiros. Manifesta toda a sua ira por virem perturbar a paz do Império das Quatro Direções.
Mas quando ele se cala, don Hernando responde que tudo aquilo é mentira. Em sua voz há o tom corajoso da arrogância.
- O Governador é um bom cristão. Não deseja fazer mal a ninguém e só combateu quem se opunha a ele. Quando vieram a nós em paz, com sorrisos e presentes, nós também respondemos com sorrisos e presentes. Quando nos atacaram, então sim, fizemos a guerra e vencemos todos os que não se submetiam. Fizemos isso e voltaremos a fazer tanto quanto for necessário. Sem medo nenhum, pois um único de nós, montado em seu cavalo, é forte o bastante para combater um exército inteiro do povo daqui!
O Inca ri como se vomitasse todo o seu desprezo. Diz:
- Apeiem de seus animais para descansar e se refazerem.
- Estamos de jejum - responde don Hernando com firmeza - e fizemos voto de não apear antes de voltarmos ao nosso alojamento... Já vai anoitecer e precisamos levar uma resposta a meu irmão, o Governador. Gostaria de vir partilhar o pão com ele?
Naquelas rodas de sangue, parece que os olhos do Inca continuam rindo. Ele diz:
- Hoje, agradeço ao Sol meu Pai, a Quilla minha Mãe e ao trovão Illapa por me terem dado a força para vencer meu irmão Huascar, que não quis respeitar a Lei. Hoje, estou jejuando também porque meus guerreiros, que andam aos milhares e milhares, e que só se mexem se eu ordenar, venceram grandes batalhas... Amanhã, termina meu jejum. Então irei a Cajamarca com alguns de meus Poderosos Senhores. Esta noite, vocês podem pernoitar nos grandes prédios da praça. No que tem uma decoração de serpentes, não entrem: é o meu.
Por um momento, o Inca se cala, examina com curiosidade os cavalos. Depois, acrescenta:
- Antes de tornar a partir, é preciso que bebam da cerveja sagrada, pois é assim que manifesto minha amizade àqueles que não são meus inimigos. Mal ele proferiu essas palavras, duas jovens se aproximam, trazendo cada uma um grande copo de ouro, maravilhosamente trabalhado. O Inca bebe de cada um deles antes que uma das mulheres ofereça um a don Hernando. Depois, repete-se o mesmo ritual, com copos de prata, para Soro. Mas é então que a jovem de olhos azuis aproxima-se do Inca.
Ela também lhe oferece dois copos de ouro. O Rei do Peru olha para ela franzindo o cenho. Os velhos, ali em volta, manifestam sua surpresa. Contudo, o Inca, sem uma palavra, toma um dos copos. A jovem se prosterna enquanto os lábios do Inca tocam a espuma branca e acre. Depois, ela se vira e se aproxima do cavalo de Gabriel e, mergulhando os olhos nos dele, oferece-lhe o copo de ouro.
Anamaya viu o olhar de nojo de Inti Palla para os estrangeiros quando lhes ofereceu o copo de ouro.
Viu também o desprezo de Sikinchara, o ódio selvagem de Guaypar e seu desejo de sangue e de guerra. Adivinhou a curiosidade do único Senhor pelos grandes animais e o prazer que lhe daria possuir alguns semelhantes.
Ela ouviu na voz de Atahualpa tanto raiva quanto astúcia e, finalmente, desdém. Sente o quanto o único Senhor está convencido de que causa medo aos estrangeiros, o quanto tem certeza de sua força, da força de seus milhares de guerreiros e do apoio de seu Pai Sol.
No entanto, eles se enganam. Anamaya sabe.
Essa idéia não vem das palavras violentas do chefe dos estrangeiros que falou. Em sua voz, detectava-se facilmente fanfarronice e mentira.
Essa idéia vem do silêncio e do olhar do homem de barba dourada. Da segurança que ele demonstrou ao levar a mão à sua arma quando o chefe estrangeiro proferia insultos que o intérprete nem ousava traduzir.
Há nele uma ousadia que os outros estrangeiros fingem ignorar. Há nele uma grandeza que Atahualpa não sabe enxergar. Há nele toda a força de um mundo desconhecido.
Ela o sente como se ele a tocasse. Como se ele a estreitasse até sufocá-la e a levasse em seu animal estranho.
Mas todos aqui parecem ignorá-lo.
E essa ignorância cega o único Senhor!
Então, quando ela compreendeu que nenhum dos copos de chicha era destinado a ele, sem temer a ira do único Senhor que não deu essa ordem, ela tomou a iniciativa de encher um.
E ao oferecê-lo a ele, constatou sua surpresa.
Ele tirou a pele dupla das mãos, e seus dedos, longos e brancos, tremiam. Inclinou-se para ela, e, por uma fração de segundo, pareceu que ele poderia cair nos braços dela.
Com cuidado, eles evitaram que seus dedos se tocassem. Como ele estava pálido!
Sim, ele também disse a si mesmo que poderia cair nos braços dela.
E, se detestou o gosto acre da bebida, Gabriel não se permitiu demonstrá-lo. Enquanto bebeu, como se estivesse bebendo seu olhar e sua alma, não conseguiu deixar os olhos azuis da jovem índia. E acabou gostando do agridoce da cerveja. Ela estava bem perto do cavalo, imóvel e sem medo. Seu busto estava na altura do joelho dele, e bastaria que ele fizesse um leve movimento, que o animal desviasse, para que ele encostasse nela.
Seu coração estraçalhou seu peito.
A cerveja aqueceu-lhe o estômago apertado. Todos os olhos estavam grudados nele. Gabriel sentiu o peso do olhar sanguinolento do Inca.
Finalmente, devolveu-lhe o copo vazio. Ela ergueu o braço, jogou o rosto para trás como se lhe oferecesse toda a sua inocência de uma vez só, como se quisesse que ele pudesse interpretar nela toda a sua pureza.
Mas então, atrás dele, don Hernando anunciou:
- Agora vamos nos despedir, e os estamos aguardando amanhã. O Inca inclinou um pouco a cabeça, com uma espécie de sorriso:
- Que um de vocês fique conosco esta noite, que seja meu convidado - respondeu ele.
E, com sua machadinha de ouro, apontou para Gabriel.
- Não - protestou precipitadamente don Hernando. - O Governador não permite! Temos que voltar a Cajamarca, onde ele nos aguarda. Ele ficaria furioso se segurassem um de nós...
O Único Senhor sorriu. Todos os Poderosos Senhores sorriram. Todos os soldados amontoados no pátio sorriram.
Todos perceberam o medo dos estrangeiros.
A ironia iluminou seus semblantes, como se eles dissessem: "Olhem só esses grandes guerreiros. Eles estão com tanto medo que fogem de nós como porquinhos-da-índia!”
Todavia, enquanto don Hernando já fazia sua montaria girar, o capitão de Soto exclamou:
- Esperem! Será que não devemos agradecer ao índio pela hospitalidade? Acho que os cavalos o interessam. E depois, eles não devem ficar pensando que somos uns covardes...
E esporeando o animal dos dois lados, começou a dar voltas no pátio. Ele possui um cavalo bastante bem adestrado. Usando as esporas e o punho, faz com que ele ande para a frente e para trás a passo antes de arremeter com ele num galope curto. Os cascos martelaram as lajes ruidosamente. Cada vez mais rápido, ele girou sobre si mesmo tão junto que os servos e os guardas se afastaram. O animal bufou e reclamou, espumando no freio. Afinal, com um grito, Soto fez o cavalo empinar. Então, alguns índios recuaram, apavorados, e caíram sentados, enquanto outros, aterrorizados, fugiram.
Don Hernando riu e levou a montaria para fora do pátio. Quando Gabriel virou-se uma última vez, não encontrou o olhar azul da índia, mas só o sorriso divertido do Inca.
Cheio de raiva, o único Senhor ordenou que as Esposas, os criados e os guardas deixassem o pátio imediatamente.
Sikinchara, que queria conservar o bom humor, disse:
- Vamos matar todos eles, mas vamos ficar com os animais. E com o estrangeiro que coloca na pata deles esse metal que tira fogo da pedra.
- já devíamos ter matado todos há muito tempo - replicou Guaypar tristemente. - Inclusive os cavalos.
O Único Senhor os fez calar com um olhar. Virou-se para Ánamaya: - Por que deu esse copo de ouro ao estrangeiro calado, Coya Camaquen? Eu não dei essa ordem.
Anamaya dobrou os joelhos e prosternou-se. - Perdoe-me, único Senhor.
Atahualpa franziu o cenho.
Guaypar disse, como que a contragosto:
- Foi ele, único Senhor, quem matou o cão enorme que estava devorando a criança em Huagayoc.
Sikinchara conservou a expressão de desprezo, mas Atahualpa balançou lentamente a cabeça.
- Gosto dos animais deles - disse devagar. - Mas eles são pessoas incompreensíveis.
Depois, levantou-se e acrescentou, tendo em mente Sikinchara:
- Encontre todos os que tiveram medo dos animais deles. Leve-os diante dos soldados e mande decapitá-los. Ninguém aqui deve ter medo dos estrangeiros.
Cajamarca, noite de 15 de novembro de 1532.
Quando os que se encontraram com o Inca Atahualpa chegam de volta a galope na imensa praça de Cajamarca, já é quase noite. O Governador don Francisco Pizarro não se mexeu. Está empertigado em seu cavalo, como se a chuva de granizo da tarde o tivesse congelado.
Ao ouvir os cavalos, os homens que já se instalavam nos prédios acorrem, tochas na mão. À luz bruxuleante das chamas, as caras parecem encovadas.
- O Inca não quis vir conosco, Francisco - vai logo anunciando don Hernando -, mas aceitou o seu convite para amanhã.
O Governador aprova com um aceno de cabeça e pergunta: - Ele parece com quê?
- Um grande príncipe - intervém Soto.
- Um tipo de mouro - tempera don Hernando. - Fica sentado num tamborete, os outros ficam de pé. Tem os olhos injetados de sangue como se tivesse comido os inimigos crus. E é cheio de arrogância, como todos os índios. - E de dignidade... - acrescenta Soto. - Ele sabe a posição que tem. Don Hernando protesta com um ar entendido:
- Soto vê dignidade ali. A verdade é que o Inca não lhe dirigiu a palavra antes que eu chegasse. Só começou a falar depois que soube que eu era irmão do Governador...
Soto não faz caso do comentário, e don Francisco pergunta de chofre: - Quantos eles são?
- Muitos - suspira don Hernando com um gesto vago. - E razoavelmente equipados: lanças, fundas, maças. Nada de muito perigoso!
O olhar do Governador demora-se em Soto, que acaba dizendo:
- Quarenta mil, acho eu. E bem aguerridos. As maças estreladas e pontiagudas devem poder fazer alguns estragos.
Um murmúrio percorre as fileiras dos espanhóis. O número é repetido de boca em boca. Quarenta mil! Nenhum daqueles homens jamais viu semelhante exército.
Frei Vicente aproxima-se do cavalo de Gabriel, pega as rédeas e pergunta: - Disse ao Rei dos índios que Deus estava nos conduzindo até ele? Uma risada irônica irrompe nos lábios de don Hernando:
- Eu disse, Frei Vicente, e até repeti. Mas foi o mesmo que falar de Cristo com porcos se espojando na pocilga. O Inca nos declarou que o pai dele era o sol e a mãe, a lua...
Frei Vicente se persigna balançando a cabeça.
- É uma raça de pagãos - prossegue don Hernando -, e não pense que vai convertê-los com boas palavras.
- São homens e mulheres como todos os outros - diz Gabriel com uma voz firme, procurando no escuro o olhar de don Francisco. - Seres humanos como nós, senhor. E que estão na terra deles.
- O aprendiz bebeu da bebida deles... como homem! riu-se don Hernando. - Não está com a cabeça no lugar!
Mas sua brincadeira não encontrou eco. O silêncio a cobre como o frio que congela as nucas. Um vento cortante chegou com a noite. Abaixa as chamas das tochas e as faz rugir.
O Governador finalmente se mexe e, dirigindo seu cavalo ao prédio maior, diz em tom demasiado baixo para ser ouvido por todos:
- Não se iluda, meu irmão. Gabriel tem razão: eles são como nós. Têm coragem e cabeça e vamos precisar levar isso em conta.
O vento noturno leva o som das trompas e dos tambores até bem longe. Em voz baixa, encolhidas debaixo das tendas, sem sono, excitadas e apavoradas, as crianças contam umas às outras como os estrangeiros vão e vêm, meio homens, meio animais, maiores que os lhamas, dando saltos prodigiosos por cima de muros e soltando faíscas com seus pés de prata.
Na cancha, o único Senhor recolheu-se em seu quarto e pediu para não ser incomodado. As termas estão vazias. Tudo está estranhamente calmo. Como as outras mulheres que não passam a noite perto do leito dele, Anamaya prosternou-se antes de sair de costas na penumbra do pátio. Atahualpa não lhe concedeu um olhar. Os muitos copos de chicha absorvidos, o jejum e a tensão do encontro com os estrangeiros parecem tê-lo exaurido. Seus olhos estão tão vermelhos que não se distinguem mais as pupilas.
Anamaya decide ir ao pequeno templo erguido próximo à fonte fervente. Mas, ao entrar no pátio, Inti Palla põe-se à sua frente.
No escuro, seus olhos faíscam, seus dentes brilham como presas. Sua mão, bruta, prende o pulso de Anamaya.
- Aonde vai correndo? Encontrá-los? - Encontrá-los? O que está dizendo? - Não minta! Eu entendi tudo - sibila Inti Palla.
Anamaya tenta desvencilhar-se, mas os dedos de Inti Palla apertam com mais força, incrustando o bracelete de ouro na pele.
- Vi como você olhava para eles...
- Me largue - é só o que responde Anamaya, sentindo a raiva lhe subir.
Mas Inti Palla, com esgares de ódio, agarra-lhe o outro braço e junta as forças para imprensá-la na parede.
- Eu sempre soube que você era nefasta! - zomba ela. - O Único Senhor nunca quis me escutar. Agora, vai me ouvir!
- Não sei do que você está falando - murmura Anamaya.
Inti Palla empurra-a no pátio. Sob a violência da princesa, Anamaya se retesa, mas não tenta lutar. Seu peito está em fogo, suas entranhas queimam, como se ela estivesse bebendo a água fervente do tanque. E ela já sabe o que vai ouvir.
- Ah, não banque a grande e nobre Coya Camaquen! - exulta Inti Palla. - Vi como você olhou para o estrangeiro. Uma mulher sabe o que isso significa. Você olhava para ele como se olha para um homem que a gente quer ter entre as pernas!
- Cale a boca! - grita Anamaya.
- Durante anos, fingi ser sua amiga porque o único Senhor a protegia. Mas desde a primeira vez que a vi, você me causou repugnância. E eu sempre soube que você quer nos trair...
- É mentira - geme Anamaya repelindo-a.
Rodando o braço, Inti Palla a esbofeteia. Anamaya se desequilibra e cai no chão, a cabeça a menos de um palmo do tanque. Respira a plenos pulmões o vapor fervente que emana dali.
- E eu sei por quê! - ruge a princesa fora de si.
Enquanto Anamaya se levanta, uma enxurrada de imagens e emoções é liberada: num turbilhão, vêm o sorriso de sua mãe e seus lábios declarando o seu amor, a pele crestada do velho Inca, o rosto e os cabelos dourados de um homem que mergulha os olhos nos seus...
- Eu também sei! - grita ela finalmente.
Estupefata, Inti Palla larga-a com um tranco assustado. Um sorriso estranho nasce nos lábios de Anamaya, uma calma estranha envolve-a e alguma coisa em seu olhar azul assusta Inti Palla, que dá um passo atrás.
Pela primeira vez, Anamaya olha para sua falsa amiga sem medo nem admiração. Ela a vê deformada de ciúme e de ódio, vê-a pelo que ela é.
- Eu sei - repete - e não tenho medo de saber. Sei de onde venho e sei o percurso que fiz. Sei que um estrangeiro, um homem parecido com esses homens, é meu pai.
Ela ouve as próprias palavras ecoarem na noite.
- São apenas algumas imagens diante de meus olhos, uma sensação na minha pele, coisas que as crianças falavam na aldeia: um estrangeiro vindo da floresta, a cara coberta de pêlos, que desapareceu na floresta...
- Você é como eles. É repulsiva como eles!
- Mas eu também sei - prossegue Anamaya ignorando a interrupção - que, a vida inteira, segui as ordens que o único Senhor, Huayna Capac, colocou em meu coração na noite em que morreu, quando prometeu que velaria por mim...
Ela se cala, olha com desprezo para o rosto desfeito de Inti Palla.
- Lembra-se que me perguntava em Quito por que eu era tão feia? Eu não faria essa pergunta. Sei por que você é tão feia. Sei por que o único Senhor não quer mais tocá-la, por que detesta sentir o cheiro da sua pele e por que a sua barriga lhe dá nojo...
- Você é louca! - grita Inti Palla com os olhos cheios de lágrimas. - É o mais profundo da alma que vejo em sua boca, Inti Palla. Por baixo da pele lisa do seu rosto, só há ódio e maldade vil. É toda a podridão do seu coração que brilha em seus olhos...
- Você é uma bruxa, que veio do Mundo de Baixo para nos destruir - exclama Inti Palla entre dois soluços, brandindo as mãos à frente como para se proteger de um incêndio. - Você é uma estrangeira e quer nos dar a eles como já se deu a eles... Quer que eles venham cá, com aqueles animais, e nos pisoteiem! Enquanto Inti Palla uiva, Anamaya dá um passo à frente procurando afastar as mãos dela. A princesa recua em direção ao tanque fervente.
- Ódio - murmura Anamaya -, torrentes de ódio, mentiras miseráveis... - Você não e como nós! Você quer a nossa morte!
Anamaya não hesita. Com um gesto decidido, segura os punhos que Inti Palla brande e aperta-os com uma violência tão grande que poderia quebrá-los.
Inti Palla arregala os olhos e geme. Há apenas medo no fundo de seus olhos e, em seu rosto, o suor, a umidade do ar e as lágrimas se misturam. Num movimento de dança estranho, Anamaya atrai-a para o tanque como se quisesse mergulhá-la ali. A princesa resiste com todas as forças. Deixa-se cair de joelhos, cortando a pele fina e tão resplandecente de sensualidade de suas coxas. O sangue se mistura à terra e ao suor. A água fervente está tão perto que elas sentem o calor no rosto e a irritação do enxofre na garganta. Fazendo mais pressão nos braços de Inti Palla cujo rosto se contrai de dor, Anamaya se agacha perto dela e a empurra contra a parede do tanque. - É isso que você queria? - diz baixinho Anamaya. Me mergulhar na água fervendo? Se livrar de mim?
Inti Palla chora convulsivamente. - Responda.
Inti Palla abaixa a cabeça.
- Olhe bem - diz Anamaya.
Ela larga os braços de Inti Palla e, com um movimento tão violento que chega a arranhar-se, arranca o bracelete de ouro, o bracelete das serpentes que ganhara da princesa, há muitas estações. Brande-o diante dela.
- Lembra-se? Eu era só uma menina apavorada, uma criatura da floresta, tão feia e disforme que só merecia zombarias... Eu achava que você era como as outras... Depois, você entrou no meu quarto, um dia, com palavras doces e esse seu sorriso, e me deu este bracelete, dizendo-se minha amiga... Você era tão linda e eu queria tanto acreditar em você... É, eu também queria ser sua amiga...
Quando o joga no tanque, o bracelete cai apenas com um leve ruído, como um seixo ou uma gota de chuva. Afunda cintilando, levado um instante pelo fervilhar da água, depois desaparece entre as flores-de-enxofre vermelhas e marrons que cobrem o fundo do tanque.
Anamaya se levanta com agilidade. A amizade que morre em seu coração não faz mais barulho que essa jóia desaparecida.
Sem um olhar para Inti Palla a se contorcer e sempre a soluçar, ela ajeita a túnica e se afasta na noite.
- Mestre Francisco!!
Como todos os espanhóis, o cirurgião-barbeiro Francisco Lopez, vulgo Pancho, instala seu material num dos prédios da praça. Suas tigelas de estanho, seus bisturis para sangrias, suas pinças e seus martelos para dentes, suas navalhas, seus potes de pomadas e ervas medicinais são arrumados em cima do baú de couro.
Ao ouvir Gabriel chamando, ele se vira e esboça um sorriso. - Em que posso servi-lo, Gabriel?
- Eu gostaria que pudesse me fazer a barba.
O barbeiro perscruta o semblante de Gabriel, depois o ar divertido de Sebastian que o acompanha.
A visita ao Inca o deixou maluco - conclui.
Ele também quer que você corte o cabelo dele - diz Sebastian rindo, com uma piscadela.
O barbeiro balança a cabeça.
Gabriel! É tarde e o Governador nos convocou para daqui a menos de uma hora...
Então dá tempo.
- Não! E depois, ora, amanhã você vai ter todas as oportunidades para cortar e aparar o que quiser!
- Eis aí uma observação de homem corajoso - zomba Sebastian.
E por que você quer tirar a barba? recomeça o cirurgião, muito sério. - Ela lhe assenta como uma luva.
- Para sentir o ar desse dia na cara. Ficou louco mesmo ou está fingindo?
- Pancho, amanhã, quero estar tinindo. Quero que você me faça a barba e me corte o cabelo. Depois vou deixar o resto da sujeira no rio. - Madre de Dios! No meio da noite? Com os quarenta mil selvagens gritando em volta da gente?
Pancho se precipita sobre um de seus frascos e brande-o como o santo sacramento:
- Gabriel, você vai tomar três gotas desse elixir que vai acalmá-lo e fazê-lo dormir, é isso o que vai fazer!
Sebastian cai na gargalhada:
- Você não entendeu, barbeiro! O señor Gabriel tem um encontro amanhã com uma mulher.
Gabriel olha desconfiado para o Negro.
Sei quem ela é, essa sua senhora - diz o barbeiro imitando o movimento do ceifeiro. Nós todos temos um encontro com ela. Mas posso lhe garantir, don Gabriel: ela pouco se importa se usamos barba e cheiramos a azedo!
- Deixem de asneiras vocês dois - diz Gabriel pegando uma navalha em cima do baú.
Ele a abre, sente seu gume na palma da mão, depois aponta-a para a barriga de Francisco e ordena, num tom tão baixo e grave que os sorrisos se apagam:
- Faça a minha barba, por favor, Pancho, ou você nunca vai saber como é todo esse ouro do Peru.
Anamaya foi correndo descalça até a fonte. Precisava lavar-se de toda impureza, de todas as palavras que a sujaram, de toda a violência que passou por ela.
Precisava nascer de novo.
Agora ela sai da água quase fervente. Naquele luar prateado e naquele ar frio da noite, seu corpo nu está fumegando. O banho não apagou as lágrimas que correm em seu rosto. Ela veste o anaco branco, mas sem enriquecê-lo com nenhuma de suas jóias. Jogou fora o bracelete das serpentes dado por Inti Palla, mas seu braço ainda ostenta o arranhão que ele deixou.
Do outro lado do vale, na encosta, no caminho real que leva a Cajamarca e onde serpeava pela manhã a estranha minhoca preta e cinza formada pela coluna de estrangeiros, agora há um interminável cordão de fogo. São as tochas dos milhares de índios rebeldes que acompanham os homens barbados. Todos aqueles que Atahualpa conquistou e perdeu. Todos aqueles que prestaram vassalagem a Huascar e que, hoje, não têm outro meio de se vingar do Único Senhor senão oferecendo o seu rancor e suas armas ao poder dos estrangeiros.
E o cordão de fogo, como uma corrente de ouro fundido na opacidade da noite, desliza até a cidade cujos muros ela ilumina.
Cajamarca está tão perto e tão longe!
- Eles vão todos morrer - diz uma voz no escuro. - Guaypar!
O jovem combatente sai da escuridão, torso e pernas nus, vestido apenas com a huara. Anamaya não pode evitar admirar seu corpo forte, onde os másculos parecem torrentes numa montanha.
- Ouvi tudo - diz ele. - Sei a maldade que essa mulher tem no coração. E sei que você não nos traiu. Nunca...
- Obrigada, Guaypar.
- Mas também sei que você não olhava para o estrangeiro como se olha para um pai...
Ela percebe a amargura em sua voz. - E quero lhe dizer que ele morrerá. Anamaya fecha os olhos. A dor lhe retesa os membros e lhe punciona os rins.
A lembrança do rosto do estrangeiro está dentro dela. Seu olhar e sua vertigem quando ele quase caiu em seus braços ainda estão dentro dela, como uma pedrinha de fogo a dilacerar-lhe as entranhas.
A atração pelo estrangeiro está dentro dela, onda de esperança e de doçura a lhe dilacerar o peito.
E agora, o medo de que ele morra está dentro dela. - Deixe-me, Guaypar - murmura.
- Ele morrerá - repete calmamente o guerreiro. - Ele e os outros. Ele se afasta na noite.
Anamaya se levanta e dá as costas para Cajamarca. Esquadrinha as colinas escuras a oeste por onde chegará o Irmão-Duplo, se Villa Oma não o esqueceu.
- Venha - balbucia ela. - Venha Irmão-Duplo, venha, eu suplico, e me ajude!
Frei Vicente ordenou que fossem retiradas as cerâmicas, as bonecas, todas as imagens pagãs entronizadas nos nichos dos muros. Agora ali há velas acesas, dando àquele salão de vigas de ouro a atmosfera de uma caverna onde estivesse reunida uma assembléia de fantasmas.
Na parte da frente, dez portas dão diretamente na praça. Os que não cabem dentro do recinto amontoam- se ali. Na cidade deserta, ficaram apenas algumas sentinelas, munidas de buzinas para dar o alarme. Elas vigiam o caminho da fortaleza e o topo da pirâmide.
Faz-se silêncio quando o Governador sobe num pequeno estrado improvisado com alguns baús. Don Hernando e os capitães permanecem ao lado dele.
Frei Vicente ergue a cruz de ouro que ele fixou numa vara. Inclina-a três vezes na direção da assembléia onde todos tiraram o chapéu, o capacete ou o gorro. Depois, volta-se para don Francisco, inclina de novo a cruz, dessa vez, perto o bastante do rosto do Governador para poder encostá-la em sua barba. E todos se persignam.
- Deus dispõe conforme a Sua vontade do que acontece embaixo e acima do firmamento - diz don Francisco em voz alta e clara. - Que ele possa nos ter em Sua santa glória e que a Mãe bendita de Cristo nos proteja também...
Os semblantes se contraem, os olhos não piscam mais. Don Francisco parece capaz de ver cada rosto. Suas pupilas, tão cinzentas quanto sua barba, são mais luminosas que as tochas enfiadas nos jarros. Jogando a mão enluvada à frente, ele grita:
- Acham que os índios que nos cercam de um lado ao outro da planície somam quarenta mil. De jeito nenhum!
Ele se cala de novo.
- Somam mais que isso. Sem dúvida, o dobro. Oitenta mil! Ele se cala como se quisesse ouvir uma reclamação que não veio.
- Oitenta mil! Um contra quatrocentos! Um espanhol contra quatrocentos índios. Quantos eram em Ia Puna? Algumas centenas! E em Tumbez? Não mais que isso. O Rei Atahualpa nos garantiu sua amizade e nos ofereceu belos presentes. Ele nos acolheu nesta praça magnífica. Mas tudo isso não passa de uma armadilha. Ele nos quer aqui para melhor nos massacrar. E vocês estão com medo. Estão com medo como crianças que olham para o escuro e deixam a imaginação à solta! Têm medo porque a fé que têm em Deus não é suficiente! Um contra quatrocentos! Sim, porque e Deus quem quer... E Deus quer, meus rapazes, porque deseja mostrar seu poder àqueles que ainda não o conhecem. Deus quer que os índios desta terra rutilante de ouro venham para o Seu seio como todos os homens do mundo! Deus disse: "Um contra quatrocentos, eis o que há de enfrentar, você, Pedro o Grego, você, Alonso, você, Juan, e Benalcazar e Mena e vocês todos...”
O dedo em riste de don Francisco indica os homens como se os pegasse no gasganete. E ele grita mais alto ainda:
- Todos!... Deus quer provar nossa fé, companheiros! Deus permitiu que chegássemos até cá, apesar de tudo o que suportamos, porque quer que sejamos o instrumento magnífico de Sua força e de Sua grandeza! Compañeros, meus irmãos! Deus nos escolheu e nos abençoou porque quer que dentro de nós não haja medo algum, só haja a alegria de ampliar o Seu Reino com a nossa coragem!... Compañeros, abram os olhos, abram o cérebro! Os índios vieram aqui nesta planície, num total de oitenta mil, porque têm medo de vocês! Medo para fazer essa algazarra toda que nos ensurdece e não nos deixa dormir...
Ele se cala, e, dessa vez, alguns sorrisos rasgam as barbas. Gargalhadas arranham duas ou três gargantas. Então, o Governador don Francisco Pizarro balança a cabeça e ri também. Depois, calmamente, acrescenta:
- O Rei deles vem aqui, amanhã de manhã. Entrará nesta praça com um séquito pesado de servos, mulheres e trastes. Vou pegá-lo pela mão e não vou mais largá-lo. E vocês vão ver, os oitenta mil índios não ousarão sequer levantar um dedo. É isso que vai acontecer...
A terra, as montanhas e as nuvens vibram com o alarido ininterrupto das trompas e dos tambores. A planície está salpicada de braseiros permanentemente cuidados. Assim iluminado, o acampamento de tendas parece ainda mais imenso à noite do que durante o dia. O vento cessou para dar lugar a uma garoa fina que não impede que as fagulhas subam em sarabanda acima das chamas.
Mas Ánamaya nada ouve, nada vê.
Desde a meia-noite, ela está agachada no odor das ervas, preparadas exclusivamente por ela, sem ajuda de nenhum sacerdote. Ela trouxe a coca e a chicha às escondidas e instalou-se atrás do muro do templo, onde ninguém a vê.
Ela bebeu e respirou.
E agora, aguarda, balançando lentamente o tronco, sem sequer perceber. Está sozinha. Nunca, desde que foi capturada por Sikinchara, sentiu-se tão sozinha e perdida na imensidão do mundo. Nunca, desde que o único Senhor Huayna Capac lhe estendeu a mão, sentiu-se tão vulnerável e abandonada.
No entanto, ainda tem esperança. Está aguardando que ele venha a ela, que a ajude nessa noite terrível e sem igual. Que ele a ajude, a ela cujo apoio ele reivindicou e obteve durante todos os seus anos!
- Oh, ajude-me, ajude-me!
Mas a chuva cai, semeando milhares de minúsculas perolazinhas em seus cabelos, molhando as folhas de coca e tornando a fumaça mais pesada e mais acre. E, do Outro Mundo, só vem o sopro gélido do silêncio.
Sombras armadas caminham pelas ruas desertas murmurando.
Em toda parte entre os muros de Cajamarca ecoa o alarido infernal feito pelos índios na planície. Eles não param um minuto sequer, a noite inteira. Nem os cavalos conseguem dormir.
Eles acenderam milhares de fogueiras, e dir-se-ia que todas as estrelas do céu pousaram na planície.
Mas os homens não voltam mais os olhos para a planície. Don Francisco ordenou:
- Não olhem para eles, não os escutem! Isso é só afetação. Se for preciso, tampem as orelhas com o pano da camisa para não escutarem nada.
O próprio Governador vai de grupo em grupo. Pousa a mão nos ombros que a garoa molhou.
- Protejam suas espadas - aconselha -, engraxem as botas e os capacetes. Isso tanto ocupa o cérebro quanto os dedos.
Ele tanto vai falar com os soldados de infantaria quanto com os cavaleiros e os capitães. Pergunta como estavam as tortillas de milho servidas pelas índias que chegaram no fim do dia com o grosso das tropas tallanes. Ri e pergunta se os corações estão tão quentes quanto a sopa de favas! Ri quase sem afastar os lábios finos sob a barba e, como sua bonomia é recebida com espanto, diz ainda:
- Esta noite, meus rapazes, não há mais pequenos nem grandes, infantes nem cavaleiros. É que estamos aquecidos na mão de Deus, companeros, e todos os que vêm comigo são Senhores!
Batendo com a espada comprida na quina dos degraus, ele sobe ao topo da grande pirâmide para inspecionar o falconete sustentado pelo Grego, por Sebastian e Gabriel. Confere o eixo de tiro, apontado para a estrada. Pensa e ordena:
- Depois que o dia clarear, é inútil mirar na estrada. Isso vai acontecer aqui, dentro da praça. Desloquem o falconete para poder atingir o portão no fim do muro que dá para a planície... Gabriel, preciso de você lá embaixo...
À luz bruxuleante da tocha, ele repara no rosto glabro e limpo de Gabriel. Ri e acrescenta:
- Bom, aí está uma boa idéia! Limpar-se para o grande dia.
Um lampejo de ternura franze-lhe as pálpebras, e ele diz, batendo no ombro de Gabriel e fazendo o Grego e Sebastian darem gargalhadas:
- Vamos mostrar você aos índios assim, amanhã. Você vai impressioná-los: eles vão pensar que estão vendo um anjo!
Tudo ficou branco de repente e uma voz de criança chamou: - Anamaya!
Não se vê nada. Só há um vazio sem fim. Tudo é branco e doce, sem nenhum relevo nem aspereza, como se nenhuma parte do mundo tivesse escapado de uma nevasca que teria surgido do nada.
A voz da criança torna a chamar: - Anamaya!
Ela acha que responde, mas não escuta a própria voz.
- Não seja medrosa, não fique triste - diz a voz da criança. Ela acha que pede que fale, e a voz da criança responde:
- Sou aquele que está com você e não a deixa. Sou aquele que você apóia no Mundo dos homens.
Ela acha que isso não é possível, pois aquele que ela apóia é um homem muito velho que já partiu para além da morte. Então a criança ri e diz:
- Eu sou aquele. E estou na idade da infância, pois o mundo está voltando a ser jovem. Chegou a hora de um grande pachacuti. O que foi não será mais. O que está para vir ainda é como a criança no ventre da mãe.
Anamaya treme pensando na guerra que acontecerá amanhã. A criança diz: - O que é velho se quebra, o que é grande demais se quebra, o que é forte demais não tem mais força... É isso o grande pachacuti. Os nós apertados dos cordões do quipu levam a um nó único. Do outro lado, os cordões seguem para os horizontes, livres e longos, sem nó nenhum. O mundo se comprime e recomeça. Tudo mudou.
Anamaya pensa: então vamos todos morrer. Os estrangeiros vão nos matar. A criança fala com uma voz muito doce, dizendo:
- Alguns morrem e outros crescem. Não tenha medo nenhum por você. Mas cuide de meu filho que você transformou em serpente, pois ele é o último nó do tempo presente. E cuide de meu filho que você salvou da serpente, pois ele é o primeiro nó dos cordões do futuro.
Anamaya pensa: como posso fazer isso, eu que nem sequer sou uma inca de verdade? Ela sente a carícia que a criança faz ao murmurar:
- Você é quem deve ser. Não tema, o puma vai acompanhá-la no tempo futuro.
- Foi um belo discurso que o Governador fez ontem à noite - diz o Grego. - Gosto quando don Francisco fala assim. Mas foi só um discurso. E agora é que as coisas sérias vão começar.
Ele aponta para as montanhas do leste onde, apesar das nuvens, o céu clareia.
Os três continuam sentados ao pé do falconete, no topo da pirâmide, molhados e enregelados de frio. O alarido do imenso acampamento índio cessou há apenas uma hora, como por milagre, e de uma vez só. Como eles souberam que já ia amanhecer? A quantidade de fumaça produzida por milhares de fogueiras foi tão grande que se estagnou em cima do vale, de uma serra à outra, numa camada marrom pestilenta, espessa como as nuvens e irritando os olhos e a garganta.
- Um contra quatrocentos - recomeça o Grego com um sorrisinho. - Vamos saber como é isso.
- Se você tiver tempo - brinca Sebastian. - É pena que esses bugres nunca ataquem à noite, pelo menos eu teria a minha chance!
Depois, eles ficam calados um bom tempo, procurando adivinhar menor movimento na direção das termas.
- Por que está há horas sem dizer nada? - pergunta finalmente Grego a Gabriel. - O medo, em geral, faz falar.
Gabriel olha para ele e sorri.
- Estou com medo, mas não do que você pensa - diz com uma voz completamente rouca.
- Então de quê?
Mas Gabriel fica calado, o enigma de seu sorriso nos lábios. Quando o Grego e Sebastian param de lhe dar atenção, ele ergue os olhos para as estrelas. "Havia um sonho por trás do meu sonho", murmura de si para si, "mas eu não sabia.”
Cajamarca, 16 de novembro de 1532.
Com o dia, a espera começa.
Há medo no fundo dos corações, mas ninguém ousa confessar. O sangue ainda não terminou de secar no fio dos machados de bronze. É o preço pago por aqueles que recuaram diante do cavalo do estrangeiro.
Quem são eles realmente, sob os pêlos que lhes cobrem o rosto, sob a pele que os envolve, atrás daquela sujeira repugnante? Não, certamente não são deuses, menos que homens, pior que animais... Por que suas palavras são doces como leite, depois violentas como a pedra de funda? O que querem?
Essas perguntas nem chegam aos lábios: elas valem a morte. Então, escondem-se e envenenam o sangue dos servos e dos senhores, paralisam os covardes e afligem os corajosos - na hora em que eles vestem suas túnicas quadriculadas, seus plastrões de ouro e prata, na hora em que ecoam as primeiras risadas, promessa de festa por um dia que será lembrado.
Guaypar olha para eles com desprezo, mas a impotência de sua raiva cresce em suas veias.
Com o dia, a espera começa.
Anamaya abriu os olhos, o coração batendo.
Ela não dormiu e seu corpo todo dói. A voz da criança que lhe falava, esta noite, vem de um sonho antigo e cujo sentido se perdeu. Há muito tempo, ela julgou saber. Já não sabe mais nada...
Ela tem medo.
Não é mais o medo de Inti Palla e suas ameaças. É um medo mais profundo e doloroso.
Medo que o sol desapareça e não volte. Medo do mundo novo que se anuncia, de seu fragor.
Medo das palavras da criança, da evidência de seu mistério... Cuide de meu filho que você transformou em serpente, pois ele é o último nó do tempo presente. É Atahualpa, claro... Como esquecer aquele dia em que ela o libertou dos soldados de Huascar fazendo crer que ele se havia transformado em serpente? Cuide de meu filho que você salvou da serpente...
Para culminar, ela tem medo do estrangeiro de olhar triste e cabelos de ouro que lhe fala uma língua que seus ouvidos não entendem mas que seus olhos e seu corpo inteiro compreendem, como se a esperassem desde sempre.
Com o dia, a espera começa.
O Único Senhor Atahualpa pára de jejuar.
Ele acorda e pede comida e bebida, e come e bebe ouvindo o rumor do acampamento em polvorosa para acompanhá-lo até os estrangeiros que o aguardam em Cajamarca.
Sikinchara, Guaypar e os generais vêm se prosternar junto à sua rede e garantem-lhe que tudo já está no lugar para a "caçada", como eles dizem. - Os estrangeiros não podem fugir, único Senhor. Estão tão bem cercados dentro daquela praça quanto o seu irmão Huascar dentro do cordão de fogo. Não podem pegar estrada nenhuma, nem eles nem os traidores que estão com eles.
- O que eles estão fazendo agora?
- Nada. Estão escondidos num prédio da praça, e, em volta deles, dá para sentir o cheiro do medo.
O Único Senhor pede que sirvam mais bebida a ele Senhores. Então anuncia:
- Vamos desarmados.
Vê a surpresa de Guaypar e repete:
- Vamos sem mais armas do que o necessário para a caçada.
Os Poderosos Senhores balançam a cabeça. Do outro lado dos juncos que circundam as termas e os prédios do Inca, seus olhares correm para os muros de Cajamarca. E todos, bebendo chicha, riem desses homens arrogantes que ainda não sabem que serão facilmente capturados como cabritos apavorados num chaco!
Com o dia, a espera começa.
Na maior sala do palácio, eles assistem à missa celebrada por Frei Vicente. Espremem-se uns contra os outros para esquecer o frio, o medo, essa noite em que dormiram tão pouco e fizeram orações há muito esquecidas.
No momento em que ouvem Frei Vicente dizer as palavras "Santa Maria, Mãe de Deus...", seus olhares se voltam para Pizarro cujos olhos se ergueram para o céu, cheios de confiança e exaltação. Por uma vez, não há entre eles um homem sequer cogitando em fazer um gracejo.
Mas o fervor não impede que eles se mijem nas calças.
Com o dia, a espera começa.
No topo do ushnu, Pedro o Grego manda dispor toda a artilharia com que os espanhóis podem contar: três colubrinas além do falconete instalado na véspera. Meia dúzia de arcabuzeiros também subiram quando o dia começou a raiar e estão pondo para secar a pólvora que o sereno molhou durante a noite. Em volta da praça, lá embaixo, don Francisco determinou pessoalmente a posição de cada um, cavaleiros e soldados de infantaria, nos prédios. E agora, não há nada melhor a fazer do que esperar a boa vontade do Inca.
Gabriel sentou-se no parapeito que circunda o elevado terraço da pirâmide. Desde que amanheceu, ele tenta evocar o rosto da mulher de olhos azuis. Quer imaginá-la como se devessem ir tranqüilamente ao encontro um do outro num caminho orlado de sombra e de sol. Como se pudessem se aproximar um do outro sorrindo, numa tarde de paz despreocupada... Bastaria ele lhe dar o braço para ela se apoiar e o passeio deles não teria outro fim senão as carícias do amor.
Mas o ar que cola em seu rosto barbeado é úmido e frio. Seus olhos fixos e doloridos vêem apenas a enorme agitação do acampamento inca. A fumaça das fogueiras continua estagnada sob as nuvens que, no entanto, se desfazem. E como Sebastian e Pedro vêm sentar-se a seu lado no parapeito, ele murmura:
- Vi uma estrela caída do céu na terra. Deram-lhe a chave do poço do abismo. Ela abriu o poço do abismo e dali subiu algo como a fumaça de uma fornalha, e o sol e o ar ficaram encobertos pela fumaça do poço...
- O que você está falando aí? - pergunta o Grego com uma careta.
- Nada. Uma velha lembrança! Palavras da Bíblia...
- Então guarde-as para você! - resmunga o Grego. - Para a Bíblia, basta Frei Vicente. E para a grande fornalha do inferno, já temos tudo de que precisamos aí na frente.
- Ei, olhem! - diz Sebastian apontando para os prédios do Inca. - Eles estão se mexendo! Mas olhem, eles estão vindo!
Em toda parte, as crianças e os homens estão em polvorosa. Juntaram correndo trouxas de roupa e os últimos feixes de lenha. Nas tendas, as criadas pegaram os quartos secos de lhama e os patos esfolados que pendiam nas vigas... Os rapazes correm no meio dos soldados e dos senhores que estão acabando de se vestir, ajudando a prender os plastrões de ouro ou a ajeitar os chapéus de penas luminosas.
Depois, formaram-se as alas. As dezenas tornaram- se centenas e as centenas, milhares e milhares. Enquanto o sol começa finalmente a rasgar as nuvens e aquecer os rostos, a poeira sobe da planície pisoteada que não parece grande o bastante para conter semelhante tropa.
Quando afinal o chamado grave das trompas ordena o alinhamento dos batalhões em volta dos prédios das termas, a grande liteira do único Senhor entra no pátio.
São oitenta homens, inteiramente vestidos de azul, a ter a honra de sustentar nos ombros o enorme peso do trono de ouro do Inca. Atrás deles, vêm duas outras liteiras, ocupadas pelo Governador da província e o curaca de Cajamarca, depois duas redes para os tios conselheiros de Atahualpa.
Mas de todo esse movimento, Ànamaya nada vê, nada sente.
Naquela manhã, seus olhos estão quase tão vermelhos quanto os do único Senhor, ela está mais pálida do que nunca, seu rosto está encovado e seus lábios, transparentes. A fumaça das ervas irritou- lhe as pálpebras e a chicha lhe deixa um gosto amargo na boca.
As palavras da criança giram em sua cabeça como um vento inebriante. Apesar de sua voz tranqüilizadora, o medo de compreender continua igualmente intenso.
Desde o amanhecer, Ánamaya não sabe se deve falar com o único Senhor, dizer-lhe que seu pai finalmente veio ter com ela sob a forma de uma voz de criança. Como lhe dizer então que ele é o último nó do tempo presente? Como lhe dizer, quando ele imagina que vai capturar os estrangeiros como se eles fossem simples lhamas selvagens, que esse dia talvez seja aquele em que termina o presente e começa o futuro do Império das Quatro Direções? Como lhe dizer também que a cara do estrangeiro a quem ela ofereceu de beber a persegue tanto quanto as palavras da criança do Outro Mundo? Como lhe dizer que ela sente-se inexplicavelmente transportada para ele, mesmo se a vergonha de semelhante sentimento é imensa? Sim, apesar de todo o seu terror, ela pressente no dia que chega uma promessa que lhe queima o coração!
Mas como esperar então que a criança do Outro Mundo lhe tenha previsto que o presente acabava hoje?
Quando o único Senhor se instala no assento da liteira, ela se mantém afastada. E a coluna parte num passo lento e cadenciado enquanto ela não abriu a boca a respeito de seu segredo.
De relance, ela viu Guaypar do lado e Inti Palla que já está colocada em seu lugar entre as concubinas. Ambos evitaram cuidadosamente o seu olhar.
Sebastian vira-se para Gabriel. - Está ouvindo? - pergunta.
O som que sobe do cortejo é sinistro, como se uma cidade inteira chorasse seus mortos. É um rugido que vem das profundezas da terra, onde as vozes dos homens e a sonoridade soturna das trompas formam uma nota só, tocada indefinidamente, triste de morrer.
- No entanto - murmura Gabriel -, eles estão dançando... - Eu gostaria tanto que parassem.
Gabriel se volta para o rosto negro, tão freqüentemente iluminado por uma expressão zombeteira. Desta, não há vestígio.
- Você não vai começar a se mijar como os outros?
Sebastian exibe o alinhamento perfeito de seus dentes brancos.
- Continue sonhando, Vossa Graça. Você vai se atolar todo na merda e eu vou rir tanto que vai dar para ouvir até nos vales mais escondidos deste maldito país.
Mas o riso não saiu de sua boca.
Pizarro e os principais capitães subiram na pirâmide para se inteirar pessoalmente da situação.
Estendendo a mão para se proteger do sol que apareceu de repente, limpando num instante o céu de suas brumas e suas fumaças, eles levam um susto.
A planície inteira se pôs em marcha para a cidade. Ali à frente, na estrada, centenas de silhuetas vestidas de túnicas quadriculadas de vermelho e branco agitam-se e varrem o chão que já foi varrido duas vezes pela manhã. A poeira sobe na estrada como um vapor hesitante antes de ser dispersada por uma brisa caprichosa.
Através dela, cintila o ouro que cobre o peito dos soldados, o ouro que cobre a testa e o punho dos Senhores, o ouro das lanças, dos machados e das maças para ocasiões especiais, o ouro dos diademas das mulheres, o ouro, enfim, da liteira do Inca...
E agora que o cortejo avança com uma lentidão insuportável, como uma imensa borboleta que saísse do casulo no calor do meio-dia, duas asas de cores cambiantes se abrem de um lado e de outro da liteira real. Às dezenas de milhares, os batalhões do Inca Atahualpa cobrem toda a planície de norte a sul. Com o mesmo passo lento que os oitenta carregadores da liteira, numa ordem perfeita e disciplinada, avançam inexoravelmente rumo aos muros da cidade.
Gabriel prende a respiração. Ele não se cansa daquela beleza assustadora. E depois, irrompe o grito de Candia:
- Eles estão vindo de armadura!
O medo os invade de novo. Mas don Hernando e o capitão de Soro garantem que os peitorais de ouro e mesmo de prata não são couraças, são apenas enfeites.
Mal don Francisco acaba de dar suas ordens, Pedro o Grego, em pé na base do falconete, começa a gritar:
- Eles estão parando! Santo Deus, senhor: eles não estão mais avançando. A liteira parou e até parece que eles estão montando um acampamento! - Merda - diz Pizarro.
É a primeira vez que o ouvem dizer uma grosseria.
Uma tenda é armada para o único Senhor poder ficar à sombra. Como se faz tranqüilamente numa caçada, ele pede a chicha sagrada para agradecer ao Pai Sol o prazer e o jogo que este lhe ofereceu.
Ele bebe, demoradamente, e os sacerdotes, a cada copo que ele esvazia, derramam a chicha na terra que a bebe com a mesma avidez.
E por um bom tempo durante a tarde, Anamaya tem a impressão de que está reinando a maior confusão.
Espiões são enviados aos estrangeiros e voltam às gargalhadas, contando como os homens barbados e seus animais se escondem como porquinhos-da-índia nos prédios em volta da praça.
Por diversão, o único Senhor pede que um estrangeiro venha se apresentar diante dele. Então Anamaya fica esperando que venha o estrangeiro da barba de ouro.
- Quem aceita ir sozinho?
Os intérpretes se recusaram violentamente a voltar ao acampamento do Inca. Seu terror é mais forte que tudo. O olhar de Pizarro, negro como carvão, vai de um homem a outro. Os olhos dos combatentes procuram evitá-lo.
- Não quero que ele pare. Ele precisa vir. Se não o pegarmos esta noite, estamos mortos. Então, quem?
Um zumbido enche o ar, impregnado de repente de todos os medos e de pouquíssimas esperanças. Santo Deus, como o céu está escuro, como as montanhas são altas, Santo Deus, como ele dá medo...
- Eu - diz Gabriel.
- Você fala a língua deles? , - Eu vou com ele.
Quem está falando é Aldana, outro homem da Estremadura. Seu lábio superior é fendido e ele, tão sovina de palavras em espanhol, passou algum tempo com os intérpretes, os curacas, o próprio Sikinchara, aprendendo a áspera língua dos índios.
Pizarro se volta para Gabriel. - Por que deseja ir?
- Porque sim, don Francisco.
Os olhos negros de Pizarro mergulham no fundo de sua alma. - Cuide-se, irmãozinho.
Enquanto Gabriel e Aldana montam a cavalo, depois atravessam a praça sob os olhares de seus companheiros, a palavra hermanito ecoa na cabeça de Gabriel.
Ele escuta através da bruma o murmúrio desdenhoso de don Hernando: "Dois cadáveres ambulantes...”
Mas sorri, um sorriso tranqüilo que ninguém entende, porque ele está rumando alegremente para o mais estranho dos destinos.
Anamaya vê o primeiro estrangeiro - um homem pequeno e magro, com uma cerrada barba preta, que não disfarça completamente a fenda do lábio superior. E depois o vê. Num lampejo, adivinha a delicadeza e a regularidade dos traços, a nobreza, a doçura do olhar, a curva do pescoço que não está mais coberto pela barba...
Então ela fecha os olhos para escapar da vertigem. Quando torna a abri-los, obriga-se a conservá-los fixos no chão.
- O Senhor Governador deseja cear com o senhor - diz o estrangeiro inclinando-se desajeitadamente e hesitando nas palavras. - Ele não comerá nada sem o senhor, e diz que o ama muito. Que está em paz com o senhor... Ela escuta Atahualpa responder com uma voz pesada:
- Volte para junto dos seus. Diga-lhes que irei antes do anoitecer, desarmado. Por que iria armado? Estou em minha casa...
Ouvem-se risadas.
- E o homem dos cabelos de ouro - recomeça Atahualpa, desdenhoso - que, de pânico, perdeu os pêlos da cara durante a noite, o que faz com você? Ele vem sempre com vocês para ser o guardião do silêncio enquanto vocês dissipam as palavras?
Anamaya tem a impressão de que o sangue lhe foge do rosto, que é com ela que o único Senhor está falando e que uma mão forte vai agarrá-la e arrancar-lhe o coração.
- Você não entende - resmunga Atahualpa -, mas estou vendo medo em seus olhos... Não se aflija; não lhe farão mal nenhum... por enquanto! Anamaya finalmente ergue os olhos. O Único Senhor se levantou. Com um passo pesado, aproxima-se do homem de cabelos claros e tenta pegar seu bastão de prata. Mas o estrangeiro resiste e se desvencilha com um movimento ágil. Ela sente o frêmito da assembléia, imediatamente acalmada por um gesto de Atahualpa que vai tornar a sentar-se, um sorriso nos lábios, fingindo indiferença diante do jogo que já não o está divertindo.
O pequeno estrangeiro magro voltou para a cidade, em meio a brincadeiras desdenhosas. Mas o homem de cabelos claros permaneceu imóvel diante do Inca; pronuncia algumas palavras com voz firme, quase doce. Depois olha para ela.
Ele sorri.
E quando também vai embora, tranqüilamente, como um visitante amigo, ela sabe que é impossível viver sem esse sorriso que lhe aquece o coração.
Gabriel está com as pernas bambas.
- Pensei que fôssemos ficar lá - diz Aldana com voz inexpressiva. Ele tem vontade de responder: "Eu também pensei.”
Fica calado.
Percebe que, no fundo, continua lá. Com ela, no meio daqueles seres estranhos que desejam a sua morte.
Ele articula as palavras, sem pronunciá-las, para guardá-las no segredo de seu coração.
Eu a amo.
Ele repete, para as nuvens, para o vento, para o espírito das montanhas: eu a amo. E todos entendem, menos os homens, felizmente.
- Acabaremos com eles hoje à noite mesmo - diz Atahualpa, a voz pastosa.
O Único Senhor bebeu chicha demais. Seus gestos estão tão pesados e lentos quanto sua voz, seus olhos já não têm aquela força habitual. Ele parece entorpecido, embriagado por todos os banhos escaldantes tomados durante o jejum assim como pelos jarros de cerveja sagrada engolidos desde a manhã. Porém, mais do que embriaguez, enquanto irrompem risadas em volta dele, há em seu rosto, no canto de sua boca, uma imensa lassidão, uma tristeza infinita.
Anamaya sente um nó na garganta. É levada por uma onda de ternura pelo único Senhor e está a ponto de atirar-se a seus pés quando alguém lhe aperta o braço.
Ela se vira sobressaltada. Bem junto a ela, o rosto de Guaypar é grave e severo.
- Eu a vi - diz ele com falsa doçura. - Não entendo.
- Eu a vi - repete ele. - Não preciso lhe dizer mais nada. Lembra-se do que lhe disse ontem à noite?
Anamaya sente-se corar. Baixa os olhos.
- Agora vou encontrar Ruminahui na estrada real - prossegue Guaypar. - O Único Senhor parece não levar as coisas a sério, mas é só impressão. Daqui a pouco, vocês vão tornar a pegar o caminho de Cajamarca e entrar na praça. Os estrangeiros ficarão com tanto medo que fugirão e nós estaremos esperando. Vamos eliminar essa raça para que ela nunca mais volte para fazer seu trabalho de destruição, nem neste mundo aqui nem em outro... Seja prudente, Coya Camaquen! Seja prudente. E que seus olhos azuis não digam aos estrangeiros o que eles devem ignorar.
- Alguns levam arcos, outros lanças de cinco pés de comprimento cuja ponta foi temperada no fogo.
- Já sabemos - diz Pizarro.
- Eles escondem algumas armas e algumas cotas por baixo da túnica - acrescenta Aldana.
- Quais?
- Sem dúvida, fundas, maças...
Pizarro dá um sorriso de desprezo. Varre o receio com um gesto. - O Rei deles vem? É só o que me interessa.
- Ele me disse que sim - responde Aldana com uma voz ainda hesitante. Para maior segurança, o Governador dá novas ordens: que os cavalos e os cavaleiros sejam trancados nos prédios em volta da praça, que colares de guizos sejam presos às selas. Que a tropa de infantaria se esconda em outros prédios para poder surgir de todos os lados e que todos os soldados estejam vestidos com a cota de algodão acolchoada, e tenham a arma à mão...
- Mas sobretudo - grita ele para se fazer ouvir - precisamos capturá-lo vivo. A praça deve permanecer nua como um dorso de mão. É preciso deixá-los entrar sem que desconfiem de nada. E vocês aí em cima da pirâmide, escondam-se bem atrás do parapeito. Quando eles estiverem aqui, nenhum tiro de arcabuz nem de besta será disparado antes de eu dar a ordem. E minha ordem será "Santiago"...
Da estrada das termas, para se ter acesso à praça, só há uma porta cuja largura é a conta para a liteira. Por ali, o cortejo não acaba mais de passar. Os servos vêm à frente, depois os senhores que carregam o Inca, depois as duas outras liteiras onde vão os curacas, depois as redes, as mulheres.
Os guerreiros ficaram do outro lado do muro, com suas lanças, suas alabardas, seus machados.
Quando o cortejo desemboca na praça, os tambores e as trompas que não pararam de tocar calam-se de repente.
O Único Senhor ergue o braço e, só com esse sinal, faz calar também as vozes, os murmúrios e até o vento.
Não há um só estrangeiro na praça.
- Onde estão eles? - pergunta Atahualpa.
Não temos medo. Foi isso o que disse o estrangeiro dos cabelos de ouro, ela tem certeza. Anamaya quer aproximar-se da liteira, dizer ao Inca que as palavras de Sikinchara são mentirosas, desde o início. Mas a multidão é tão densa que ela não consegue passar.
Ela abre a boca, mas seu grito é abafado pela cantoria que sobe de novo da multidão.
Vocês precisam - diz Pizarro em voz baixa, mas todos o escutam - fazer do seu coração uma fortaleza, pois não têm outra...
Aqui, no palácio, ele faz o mesmo discurso que fez pouco antes em cada um dos prédios da praça onde, espremidos uns contra os outros, os cavaleiros e os soldados de infantaria se dão encontrões, riem nervosamente ou ficam calados, os olhos perdidos, pensando com uma nostalgia súbita e violenta no torrão da Espanha que os viu nascer.
- Vocês não têm outro socorro a esperar senão o de Deus, que sabe prodigalizar Sua ajuda nos momentos mais graves àqueles que estão a Seu serviço. Vocês encontrarão a coragem de que necessitam: Deus lutará por vocês!
Há lágrimas nos olhos de alguns, mas os punhos se cerram nas luvas. - Cuidado - diz ele sempre com suavidade - quando chegar a hora, partam para cima do inimigo com raiva e segurança. Vocês, cavaleiros, sigam direto para a liteira e tomem cuidado para que os cavalos não tropecem uns nos outros. Eu irei a pé com a infantaria... Que ninguém ponha a mão no Inca antes de mim.
O olhar de Gabriel deixou o olhar hipnótico do Governador. Por um vão, eles vêem o brilho da procissão parada, a liteira do Inca flutuando, como se carregada por um mar de homens. E sempre essa cantoria soando como rumores vindos das profundezas da terra.
"Onde está ela, para que eu a tome nos braços?", pensa ele...
- Irmãozinho?
É a voz severa do Governador. - Don Francisco?
- Não é hora de sonhar.
Gabriel leva a mão ao punho da espada e aperta-o furiosamente. - Não estou sonhando, don Francisco.
- Não fique longe de mim.
O Governador falou tão baixo e tão depressa que Gabriel não tem certeza se entendeu. No entanto, não é possível que ele se tenha enganado: seu coração bate mais depressa, de orgulho.
- Onde estão eles? - repete Atahualpa enquanto os batalhões continuam invadindo a praça.
Sikinchara aproxima-se dele, de cabeça baixa.
- Eles estão escondidos nos kallankas, Senhor, onde morrem uma primeira vez de medo antes de morrerem da morte que você ordenar.
- Quero que eles se mostrem - repete Atahualpa.
- Agora - diz Pizarro a Frei Vicente.
Felipillo lança um olhar assustado para Gabriel. Ele não tem outra escolha: deve acompanhar o dominicano que segura sua cruz e seu livro dos Evangelhos. O frade está usando a estola salpicada de estrelas de ouro por cima da casula malva. Seu olhar está fixo, mas sua boca não pára de murmurar as palavras de uma prece.
Quando ele se aventura na praça, Gabriel, como todos os outros, fica impressionado com suas costas fortes. E todos eles prendem o fôlego.
Anamaya vê o estrangeiro vestido com uma fantasia espantosa sair do palácio, acompanhado pelo intérprete que estava com eles na véspera.
O estrangeiro usa uma espécie de unku, como os índios, porém mais longo, com um quipu como cinto. Ao contrário dos outros, ele quase não tem pêlos, nem no rosto, nem na cabeça. Leva nas mãos uma caixa e um bastão o qual, de quando em quando, ele leva aos lábios.
A sensação da ameaça que pesa sobre o único Senhor faz seu coração bater mais depressa, mas seus lábios permanecem fechados e, apesar da distância insignificante, a massa de guerreiros que separa Anamaya da liteira e demasiado compacta para chegar até ele.
A cantoria cessa.
A multidão se afasta à sua frente, e ele vai direto para a liteira do único Senhor.
Quando se ouve a sua voz, o tom é estridente, desagradável, e Anamaya queria tapar os ouvidos para não ouvir.
Ele diz palavras estranhas.
É como se o caminho que Frei Vicente fez até o Inca fosse um rastilho de fogo na praça: nenhum dos índios ousa pisar ali.
Gabriel vê o dominicano parar diante da liteira e ouve com clareza as palavras que saem de sua boca.
- Sou um sacerdote de Deus e ensino aos cristãos as coisas de Deus. Deus ordena que, entre os seus, não haja guerra nem discórdia, mas sim a paz. Em Seu nome, rogo-lhe que seja amigo dos cristãos, como eles são seus amigos, pois é o que Deus quer e o que é bom para você. Estávamos de acordo quanto a nos encontrarmos pacificamente: por que vir com tantos guerreiros?
O Inca não responde, nem sequer se mexe. Uma imagem passa diante dos olhos de Gabriel: Frei Vicente afastou as águas para chegar à barca do mestre. Um gesto seu e ele será engolido - e todos com ele.
- O Senhor Governador - prossegue Frei Vicente - o ama muito, ele o espera em seu alojamento e deseja vê-lo. Vá falar com ele, eu lhe peço, pois ele não vai cear sem você.
Dessa vez, mal Felipillo acaba de traduzir, o Inca responde com sua voz inexpressiva, apenas audível.
São palavras de raiva.
Um murmúrio sobe da multidão de índios na praça: a raiva do Inca é a deles. É como se as palavras que ele diz lhe saíssem do peito: as censuras de pilhagem e de assassinato, os roubos, os estupros - não, já não é mais hora da brincadeira sutil da caçada.
É hora da vingança.
- Não sairei daqui antes que me devolvam tudo. Eu mesmo decidirei o que farei e de que maneira vocês vão morrer. Quem teria a ousadia de me ordenar o que quer que seja?
O estrangeiro responde, pela boca do intérprete, palavras inteligíveis sobre seu Deus e um outro homem que é seu Filho e mais outro que é seu Senhor. Que confusão no espírito doente desses estrangeiros!
- Quem é esse Deus que é o seu único Senhor? - vocifera Atahualpa. - Quais são as ordens dele?
- Eis aqui Deus - diz o estrangeiro erguendo o bastão de quatro braços. - Suas ordens estão escritas aqui.
E oferece um objeto estranho ao único Senhor.
O Inca não chega a abrir o livro. Vira-o de todos os lados como se fosse uma caixa.
Gabriel vê Frei Vicente fazer um gesto para ajudá-lo, e o Inca lhe dá um tapa.
Ele acaba abrindo o evangelho, começa a folheá-lo com impaciência antes de dar um grito em que se nota raiva e desprezo.
Um murmúrio, logo um rugido, começa a crescer na multidão.
- Senhores, preparem-se - diz a voz calma de Pizarro -, agora chegou a hora.
- Eu também sou filho de um Deus - gritou Atahualpa. - Do Sol! E a multidão responde, exaltada:
- É isso, único Senhor.
As nuvens se afastaram definitivamente, e Inti se mostra em seu esplendor. Como poderia haver alguma dúvida quanto àquele que tem o domínio de todo o universo?
Anamaya percebe o brilho de fogo no fundo do olhar de Atahualpa. Ela sabe agora que deveria precipitar- se para ele, seus olhos ficaram de repente tão cheios de lágrimas que lhe doem. Todas essas certezas nascidas na noite e que ela não ousou confessar, porque tinha medo, porque o olhar do estrangeiro de cabelos de ouro pousou nela, engasgam-na como um pedaço de pano que fosse sufocá-la.
Quando o Inca joga fora a caixa, é como se centenas de asas brancas dali saíssem e voassem ao vento. Atahualpa se endireita na liteira, cheio de majestade e fúria, e repete, o rosto intumescido pela raiva das infâmias dos estrangeiros:
- Eu também sou filho de um Deus: sou Filho do Sol!
- É isso, único Senhor - torna a gritar a multidão se oferecendo ao sol. Anamaya saiu daquela paralisia e foi se esgueirando até ficar a uns cinco ou seis passos da liteira; apenas alguns guardas e os Senhores a separam do Inca. Nesse instante, ouvem-se duas trovoadas.
Mas elas não vêm do céu.
Quando o Inca jogou a Bíblia no chão, todos viram Felipillo precipitar-se para pegá-la. Um silêncio explodiu na cabeça do povo como um raio e o grito de Frei Vicente ressoou dentro do peito de cada um.
- Saiam, saiam, cristãos! Para cima desses cães incréus que não querem as coisas de Deus: esse aí jogou no chão o livro da nossa Sagrada Lei!
E agora, Frei Vicente corre para o palácio e continua vociferando enquanto corta a multidão de índios. Estranhamente, os índios não fazem um gesto para retê-lo e o deixam passar como se ele fosse intocável.
- Não é mais hora de esperar! - berra Frei Vicente, que chegou a dez passos do Governador. - Não vêem que os campos estão ficando cheios desses selvagens? Ataque esse cão, Governador! Eu lhe dou uma absolvição prévia! Don Francisco olha-o esbravejar sem pestanejar.
Momentos antes, com a maior calma, ele havia amarrado seu colete de aço lustroso de suarda por cima da cota de algodão. Seu capacete esconde-lhe todo o rosto exceto o olhar escuro. Ele ergue uma mão enluvada de couro grosso para Frei Vicente cujo peito parece prestes a explodir:
- Agora acalme-se, don Valverde. Tem o seu bispado. Gabriel foi o último a montar. Don Francisco vira-se para ele.
- Vou a pé. Quando eu estiver com o Inca - murmura ele -, quero que fique perto de mim.
Todos juntos, eles saem do palácio e dos prédios da praça. O estandarte do Governador tremula ao vento e um grito sai em uníssono da boca de todos: "Santiago!" Então, dos prédios vizinhos surgem os infantes aos gritos, a espada nua apontada para o céu.
Nos segundos que se seguem, duas detonações ensurdecedoras envolvem o topo da pirâmide numa fumaça branca. Não quatro como se convencionou, mas Gabriel não tem muito tempo de pensar na pólvora molhada que os traiu de novo. Um imenso grito de estupor vem da multidão de índios. Eles têm tempo de ver a trajetória dos projéteis, quase lenta, atingir a entrada da praça, onde explodem cabeças, esmagam peitos e semeiam um terror sem nome na multidão. A brecha que abrem é vermelha de sangue e uiva de dor. Estranhamente, súbito, o céu escurece.
Ensurdecido pelo alarido dos guizos amarrados às patas dos cavalos, Gabriel não precisa bater. A multidão compacta das caras que o cerca se afasta por si mesma diante dos animais. O Governador caminha com passadas largas, como numa parada, a mão direita no punho da espada, sem sequer fingir que vai desembainhá-la.
À frente, contudo, Juan Pizarro não domina bem o nervosismo de sua montaria, segurando as rédeas com uma só mão, a outra agarrada à haste da lança como ao corrimão de uma escada vertiginosa.
Quando estão prestes a chegar à liteira do Inca, Gabriel entrevê os outros cavaleiros, embaixo da pirâmide, se abaterem sobre a massa de índios. Atrás, as espadas da tropa de infantaria já estão pingando de sangue, e os homens berram de novo "Santiago! Santiago!" enquanto os cavaleiros atacam, lanças à frente.
Então, qual o movimento de um mar quebrado, uma onda atinge os milhares de índios aglomerados em volta da liteira de seu Rei. Eles desabam uns contra os outros, se empurram para fugir dos golpes aos quais, incompreensivelmente, não respondem.
Gabriel, do alto da sela, vê os corpos e as cabeças se amontoarem formando uma espuma negra. A lembrança da menina de olhos azuis lhe embaralha a vista por alguns segundos. Ele reza, a contragosto, para que ela não esteja entre aquelas mulheres que ele adivinha lá embaixo, atrás da liteira do Inca, o rosto desfeito de medo, jogando as mãos para o alto como se pudessem ser tragadas pelo céu.
Depois, quando estão suficientemente próximos ao Inca para ver bem seus olhos vermelhíssimos e sua boca denotando um impassível desprezo, empurrados pela onda, dez guerreiros índios caem diante dos cavalos de Juan e Cristobal, que nada podem fazer senão pisoteá-los. Enquanto os cascos dilaceram ventres e peitos, eles erguem olhares pasmos, a boca articulando gritos mudos. "Eles não acreditavam!", pensa Gabriel com uma fúria amarga e quase cruel. "Esses imbecis não quiseram acreditar em nós!... Logo não haverá mais nenhum em pé e eles nem sequer lutam! Por quê? Por que esta loucura?”
Como para lhe responder, uma salva de arcabuz ordenada por Pedro estoura miolos a esmo. Os mortos já atravancam os vivos, a confusão aumenta. O caminho da liteira se fecha atrás deles como uma areia movediça. Diego de Molina e Juan Pizarro estão de pé nos estribos, berrando e desferindo golpes de espada à esquerda e à direita, conseguindo abrir novamente uma brecha para passar.
Gabriel, a cabeça zumbindo, contenta-se em bater com a haste de sua lança. Mas uma nova salva de arcabuz aumenta ainda mais o pânico. Começa a fuga. Corpos se levantam acima das cabeças antes de serem engolidos e pisoteados.
A pressão é tão forte que Gabriel sente sua montaria vibrar de pavor entre suas coxas. O cavalo empina com um relincho desesperado e seus cascos dianteiros caem em cima das caras que estão por perto, transformando-as numa pasta. Um índio de orelhas enfeitadas com enormes brincos de ouro agarra sua lança e tenta derrubá-lo.
Num reflexo, Gabriel larga o chuço, puxa as rédeas para fazer o cavalo dar uma guinada para a esquerda. O animal entende instintivamente. Babando, escoiceando e girando como pião, cava um vazio em volta de si. Quando pára, Gabriel saca a espada e, em três saltos, alcança o Governador que já está ao lado da enorme liteira do Inca, abrindo caminho só com a ajuda do escudo. Quase subindo na liteira, don Francisco consegue agarrar o braço esquerdo do Inca a fim de puxá-lo. Mas, após um instante de estupefação, o índio se agarra com todas as forças ao braço do trono enquanto, sob o piso de balsa, cem índios o carregam sem fraquejar acima desse mar de loucura.
- Aqui - ruge don Francisco. - Droga! Ajudem-me a descê-lo daí! Dobrados em suas selas, berrando furiosamente, Diego, Juan e Cristobal começam então a cortar as mãos dos carregadores.
O que Gabriel vê o enregela apesar do suor que lhe escorre pelo rosto. As espadas cortam mãos, braços, dedos, mas os carregadores, sem um grito, abaixam a cabeça e sustentam a liteira com os ombros enquanto se esvaem em sangue pelos membros amputados.
Juan, louco de fúria diante dessa obstinação, uiva como um lobo e começa a cortar gargantas. Mas, como num círculo do inferno onde nada mais tem fim, outros índios logo vêm substituir os mortos e, por sua vez, se oferecem ao ferro das espadas!
Na liteira prestes a virar, o Inca luta e resiste. Suas roupas suntuosas viram trapos. O embaixador Sikinchara vem para junto dele para repelir o Governador, mas a lança de Molina perfura seu plastrão de ouro. A ponta de ferro em forma de flor- de-lis sai entre seus ombros e fica cravada na liteira quando ele cai para trás.
Outros Senhores índios finalmente brandem machados de bronze. Com um silvo indistinto, a espada de Gabriel corta o ar já recendendo a sangue e decepa um braço. O tranco do osso quebrado ecoa até dentro de sua cabeça e ele tem a impressão de estar acordando no meio de um pesadelo inominável. Um índio agarra sua perna e nela se engancha com todo o peso. Quando Gabriel torna a erguer o braço para golpeá-lo, engasga-se com um soluço de raiva.
Em pé nos estribos, ele baixa a espada gritando como os outros.
Mas no alarido assustador da praça, seu grito não passa de um sopro de silêncio.
O sol desapareceu.
Lá embaixo, por cima das cabeças das mulheres aos gritos, Anamaya vê os estrangeiros deceparem os braços dos servos e dos Senhores como se ceifassem pés de milho.
Ela vê os valorosos Senhores se precipitarem para Atahualpa, oferecendo-lhe suas mãos, suas cabeças, seu sangue e suas vidas sem pestanejar. Mas eles caem sem parar, seu sangue corre inutilmente enquanto os estrangeiros atacam com fúria. Como parecem brinquedos infantis, as fundas que estavam escondidas, armas de fracos, as maças e os arcos!
- Eu sou o Filho do Sol! - gritou Atahualpa, voltado para o sol. Mas não deu a ordem de ataque aos milhares de guerreiros!
Não deu a ordem, e todos, obedientes, obstinadamente obedientes até a morte, se fazem massacrar e dilacerar em vão!
Estará embriagado demais de chicha, atordoado demais com a fúria dos estrangeiros para fazer isso?
O sol já desapareceu. E aquele que foi o seu único Senhor, Anamaya agora vê lutando, como um simples mortal, para não ser levado pelos estrangeiros que semeiam a morte.
Em volta, só se ouvem berros e gemidos. Ela é empurrada de um lado para o outro. É agarrada, tem a túnica rasgada, leva trancos. É um rio de corpos a levá-la, levantá-la, esmagá-la. É o vento do Outro Mundo que parece soprar uma tempestade inaudita.
Então ela se lembra das palavras da criança: "O que foi não será mais!" Por que ela não teve coragem de avisar Atahualpa? Ela não ousa mais olhar para a liteira porque seria como se já o estivesse vendo sucumbir.
Não é ela, mais que os estrangeiros, quem está na origem da derrota dele?
Terá ela se calado por causa do estrangeiro?
Embora o único Senhor Huayna Capac tenha desejado esse instante atroz, ela não pode suportá-lo.
Está a ponto de se entregar à loucura que a cerca e a sufoca, prestes a se deixar cair embaixo dos milhares de pés que pisoteiam o pátio quando, a oeste, do outro lado da planície e na sombra tenebrosa das colinas, cintila um raio de ouro.
Sim, lá embaixo, entre as nuvens, um raio de sol varre a floresta e nela se reflete.
Lá, a oeste, no caminho de Cuzco.
Uma mancha de ouro qual uma estrela de paz caída na loucura do massacre. E ela sabe, ela adivinha.
Ela sente: o Irmão-Duplo! Aquele que ela esperava.
Cercando o Governador, investindo com seus animais contra a liteira, Molina, Juan e Cristobal continuam tentando virá-la, mas em vão. E ela até está mais alta agora, os carregadores subindo em cima dos cadáveres acumulados a seus pés!
- Que ele não seja ferido! - ordena don Francisco ainda tentando derrubar Atahualpa do trono.
Chegam cavaleiros do outro lado da praça, e isso parece um toque de rendição. Com as pontas das lanças ou com a mão, eles despojam o Inca de seus atavios, arrancam-lhe a coroa de plumas, a capa de ouro, o colar...
Furando a multidão no sentido contrário, Moguer se aproxima da liteira, cortando à sua volta com berros violentos. Com uma das mãos, ele agarra o plastrão de ouro do Inca e arranca-o com um puxão seco e brande-o com um riso demente. Um senhor índio armado com uma maça tenta recuperá-lo, mas a espada de Moguer lhe abre a barriga de cima a baixo, deixando as tripas à mostra.
- Que o índio não seja ferido... - repete o Governador.
Gabriel, no entanto, capta a loucura a dançar na cara de Moguer, abrindo a boca e ladrando como uma fera.
Por sua vez, ele se desvencilha da massa de servos do Inca que o cercou, investe com seu cavalo entre os mortos e os vivos enquanto Moguer ergue sua espada. Este primeiro golpe desliza pelo montante do trono. No impulso, a ponta da espada corta a luva que protege a mão de Pizarro agarrada ao braço de Atahualpa. O Governador berra um impropério, mas sua mão não se mexe. Gabriel encosta o cavalo na liteira e, inclinando-se para o lado, bate com a espada nos ombros de Moguer que cai para a frente e larga a arma.
- Não toque no índio! - berra Gabriel fora de si apontando a espada para o peito de Moguer espantado. - Não ouviu o Governador, seu saco de merda? Não toque nele!
Sua fúria é tão grande, seus berros são tão violentos que por uma fração de segundo parece que todos em volta suspendem o que estão fazendo.
O ódio deforma a cara bruta de Moguer. Gabriel tem tempo de interpretar ali todo o desejo de matar que o mundo pode conter.
Pizarro, aproveitando o ensejo, vem enfim tirar o Inca do trono. Com força, enquanto a liteira tomba de lado, ele o puxa para si, passando o braço esquerdo em volta de seu pescoço e já o protegendo com o escudo.
- Você acaba de salvar o dia, meu filho! - exulta ele dirigindo-se a Gabriel. - Não me largue, vamos levar esse bugre para os prédios!
Mas é então, afastando sua montaria dos criados índios atordoados, que ele a vê.
Ela está imóvel na tormenta, os grandes olhos azuis parados. E não é para o Inca que ela olha, é para ele.
Ela o viu chegar, viu-o a ele, o estrangeiro de cabelos dourados, no meio do massacre.
O raio de esperança do Irmão-Duplo já desapareceu atrás da colina. As mulheres em volta dela fogem, suplicam, escorregam no sangue e nas postas de carne. Algumas agarram-na, alucinadas. Ela as empurra. Não consegue dar mais nenhum passo.
Estejam montados em seus animais ou a pé, os estrangeiros são apenas fúria. A morte vibra até as pontas de seus membros e faz dançarem chamas em seus olhos.
Ela vê os estrangeiros arrotando insultos, arrancando uma a uma as roupas do Inca, se bem que ele já esteja seminu.
Ela vê a espada que se ergue acima de Atahualpa.
Ela o vê, a ele, dando um salto e empurrando o assassino.
Embora sua espada esteja rubra de sangue, ele não bate como os outros. Ela o ouve aos berros, enfurecido com a morte.
E agora, ele está erguendo os olhos para ela.
Uma porta se abre nela e a leva para o lado de lá do caos. O que ela pensa não tem sentido.
Mas é quase em voz alta que ela diz:
- Me leve! Não me deixe neste sangue e neste horror.
Gabriel, a cabeça febril, incapaz de apagar o olhar azul que continua lhe queimando o cérebro, precede o Governador e o Inca, abrindo caminho com seu cavalo na multidão embriagada de combates. Don Francisco não pára de berrar: - A vida dele pela sua se lhe acontecer qualquer coisa!
Finalmente, empurram o Inca para uma casa e Pizarro repete mais uma vez aos guardas:
- A vida dele pela sua se lhe acontecer qualquer coisa!
Ele tira a luva e olha sua mão que está sangrando um pouco. Olha para Gabriel, as pupilas brilhando de alegria e ferocidade:
- A batalha está ganha, filho! A batalha?
O olhar de Gabriel se perde no espanto que continua reinando na praça e, ao longe, na planície.
Trata-se de uma batalha que nunca começou: é preciso haver dois para lutar. Aquilo é apenas um massacre, uma carnificina e, agora para os índios que podem, uma fuga enlouquecida.
Ele abre a boca para responder ao Governador. Mas uma certeza - a primeira e a única naquela confusão - lhe sela os lábios. É a ela que ele deve salvar agora. A batalha, a verdadeira, é que ela continue viva esta noite e amanhã e sempre. A única batalha, bem além das ordens de Deus e do Rei e, custe o que custar, de don Francisco que tem a ternura infinita de chamá-lo por esse doce nome de "filho".
Sem uma palavra, ele volta atrás e, batendo na garupa do cavalo exausto, torna a lançá-lo na tormenta.
Lá embaixo, sob a pressão de milhares de corpos, o muro do pátio cede e desmorona numa nuvem de poeira. Levados por este pânico novo, cadáveres pisoteados já se amontoam nos escombros.
Mas ela não se mexeu. Ela o espera.
Ele diminui o passo do cavalo e iça-a pelos ombros sem hesitação. Com uma confiança inesperada, ela se agarra ao seu pescoço e se deixa suspender. É leve e, quando ele a suspende por sobre o pescoço do animal, na frente da sela, ela se ajusta imediatamente a ele tanto quanto ao movimento do animal. Há apenas cinqüenta passos até a brecha do muro por onde a multidão vai fugindo dispersa.
Em volta dele, os espanhóis prosseguem com sua obra de morte, dando gargalhadas escancaradas e obscenas, embriagados de violência, indo catar no fundo de si mesmos os tesouros de crueldade que o medo ali escondeu.
Gabriel vê Sebastian no topo da pirâmide parecendo gritar-lhe algo que ele não ouve. A jovem está abraçada a ele, o corpo estreitamente unido ao seu. Nos saltos do cavalo, os dois são como folhas de relva enlaçadas pelo vento.
Ele sente o perfume da pele da moça, o calor do pescoço dela junto à sua boca. Apesar de sua cota de algodão imunda, a vida do jovem corpo aquece sua barriga.
Sebastian continua gritando lá de cima, mas Gabriel continua sem entender, tentando ao máximo abrir caminho entre os fugitivos.
Ela murmura ou geme em sua língua desconhecida e ele sente seu corpo vibrar. Num saracoteio do cavalo que transpõe o monte de escombros salpicado de cadáveres, sua boca bate na têmpora dela. O sabor da pele dela permanece em seus lábios e, ao senti-lo, ele também fica como que embriagado. Mas é então que sente uma queimação na base da espinha. Com um toque de calcanhar, faz sua montaria desviar. Ao se virar, vê a figura satisfeita de Moguer brandindo uma lança:
- Vou matar você! Vou lhe arrancar as tripas, seu imbecil!
Balança o chuço, só que já sem força, e a arma ricocheteia nos tijolos. Gabriel sente o sangue quente escorrendo por sua anca. Os olhos azuis da desconhecida procuram seu olhar com aflição. Ele se contenta em sorrir e, sem sequer se dar conta, em estreitá-la tanto que a machuca.
Crianças estão correndo para o pântano, levando uma coroa imunda de plumas coloridas. Em volta delas, correm também homens, Senhores ou servos, lhamas ou cães, os plastrões de ouro e as túnicas brancas maculados de pó, de lama e de sangue. E a mesma perplexidade lhes deforma o rosto.
Finalmente os cascos do cavalo pisam na relva rasteira da planície. Gabriel se inclina para colher ainda o raio luminoso e desamparado dos olhos azuis, mas eles estão cheios de lágrimas.
Gabriel começa a tremer. Ela também está tremendo.
Enlaça suas finas mãos morenas às dele, e os dois ficam tremendo, enquanto o cavalo volta por si só a passo.
O ar está empesteado de morte e desastre. Mas os dois vibram com um amor tão puro como o primeiro dia da vida.
Cajamarca, 16 de novembro de 1532.
Uma simples cabana de junco no meio do pântano, na confluência de um rio com uma nascente de água fervente cuja fumaça penetra através dos caniços.
No chão há apenas uma esteira. Num canto do aposento, duas tigelas de madeira e uma jarra de cerâmica empoeirada com o gargalo quebrado. As cinzas cobriram o fogo há muito tempo.
Gabriel está aliviado: ninguém dormiu ali naquela noite - nenhuma alma do outro mundo com o propósito de assombrá-lo.
Pouco a pouco, vai escurecendo.
Ele passa a mão na cabeça para espantar uma mosca: há sangue em sua mão.
Ele era tão forte: ei-lo tão fraco... Uma idéia passageira: morrer agora? Não, claro, mas ele está tão cansado, sente os membros dormentes...
Ela sai correndo da cabana, volta com algumas folhas que ela rasga e masca durante um bom tempo. Seus dedos tocam o crânio dele, no local onde o sangue lateja.
Ele fecha os olhos entrega-se a ela, a essa doçura.
Ao abri-los, ela sorri para ele. Sua mão toca seu rosto e escapa quando ele quer segurá-la.
Ela diz duas palavras que, naturalmente, ele não entende, e ela foge.
Ela foge para a escuridão em meio aos gemidos e às lágrimas que sobem da terra como fumaça. Seu passo é seguro, apesar da lama e dos charcos, apesar das águas escaldantes: o sol desapareceu mas a lua ainda está com ela.
No pátio da residência do Inca, reina uma desolação nunca vista: os cavaleiros foram até ali e devastaram, pilharam, violaram tudo - tudo o que é de ouro é levado, tudo o que é vivo é conspurcado. Às vezes, ouvem-se ainda gritos na noite: eles rondam, a morte em punho.
A rede onde o Inca repousava, naquela manhã, entre dois pilares de ouro, está boiando na banheira como um pano velho largado.
- Você não morreu... É a voz de Inti Palla. Anamaya volta-se para ela: o rosto vermelho, as roupas rasgadas - a mulher é somente a sombra de seu orgulho. Quando Anamaya pensa que sentiu tanto medo dela...
- Não morri, Inti Palla. E voltei para fazer o que deve ser feito.
- Você é a mãe de todas essas destruições.
- Cale-se, você não passa de uma idiota. É por causa de gente como você, que não pensa, nem vale nada, que o único Senhor foi capturado...
Inti Palla se cala, sem ter mais maldade para responder: chora copiosamente. Agita os braços como um pássaro tocado por uma flecha.
- Não há mais sol - soluça ela -, não há mais nada...
- Há um mundo ainda - murmura Anamaya para si mesma, afastando -se - e uma criança para fazê-lo nascer...
- É preciso fugir - geme Inti Palla.
- É preciso viver.
- Tem razão, irmãzinha, é preciso viver - diz uma voz familiar.
E braços fortes abraçam-na, sufocando-a.
Meu Deus, como está quente esta noite, meu Deus, como a solidão e o medo chegam depressa, e como as mínimas sombras são uma ameaça...
De quando em quando, Gabriel leva a mão à cabeça para certificar-se de que existe. A dor está ali, lancinante, com esse curioso emplastro que ela fez para cuidar dele antes de desaparecer...
Ela vai voltar.
Ele repete isso para si mesmo diversas vezes mas, agora que perdeu a conta das horas que passam, já não tem tanta certeza.
Ainda há pouco, havia o calor de sua pele, a maciez de suas mãos, a vertigem de seu olhar. Mas agora?
Só resta uma esteira em cima da qual ele tem uma dor nas costas terrível, a consciência que lhe foge...
Chegam os fantasmas - a censura que ele viu nos lábios de Sebastian e a cólera de Pizarro por tê-lo abandonado, talvez traído, no momento crucial. O que vale isso? A morte.
Ele se dá conta de que pensa nela sem temor. A morte, bem, ela não estava lá em Sevilha, nas masmorras da Inquisição? Meu pai não me jurou de morte? E a morte não se arrastava ao meu lado agora mesmo?
É curioso, não me vejo morrer numa cabana de junco, num pantanal, a uma légua de Cajamarca.
Ele torna a ouvir a entonação de sua voz cujo eco continua cantando em seus ouvidos. Espere-me: foi isso o que ela disse. A espera semeia a paz em seu coração.
- Quando Villa Oma me disse que você pedia o Irmão-Duplo - explica Manco -, foi como se você me tivesse chamado...
Eles estão encolhidos um contra o outro no que, até aquela manhã, era o quarto de Atahualpa. Agora só há um caos - os sinais de uma partida precipitada, os vestígios de uma pilhagem.
- Ele me falou de você - murmura Anamaya.
- Quem?
- Eu implorava noite após noite para ele falar comigo, e ele ficava calado. Ainda me chamavam de Coya Camaquen, por força do hábito, imagino, pois eu não via nada e nenhuma sabedoria me era dada por seu pai, Huayna Capac. Eu quase nem lembrava que ele tinha prometido velar por mim do Outro Mundo... - Estávamos na longa estrada vindo de Cuzco, nos escondendo quando uma tropa se aproximava, pois meu irmão Atahualpa havia jurado vingança, e vingança atroz, a todos os clãs de Cuzco. Eu vi...
E ele se cala de repente. Ela lhe aperta a mão com ternura.
- Vi o que um homem não pode ver, Anamaya: mulheres degoladas ainda com os filhos no ventre...
- E Villa Oma?
- Ele foi escondido pelos sacerdotes. - O Anão?
O grito saiu do coração. Manco contempla-a com espanto. - O Anão? Por que me fala dele?
- Essa é uma longa história que não é para esta noite. Peço que me diga só o que sabe.
- Eu o vi entrar acorrentado em Cuzco. - E depois?
- Não sei o que foi feito dele. Os palácios dos mais antigos panacas foram profanados, os templos, revirados, meu irmão Paullu escapou de morrer por milagre... Vi toda a crueldade do mundo, Anamaya, e isso é que me tornou homem, mais do que o huarachiku... Então o Anão, nesse caos...
- Atahualpa estava cercado de mentiras, de falsos adivinhos, de covardes... - Ele é quem os ouvia... Não há mais clãs, de agora em diante... Pouco importa: é tudo igual. Você diz que botaram a mão nele? Tocaram nele? - Tocaram nele, agarraram-no com duas mãos...
- Quem são esses estrangeiros? Deuses? Ela sente a boca seca quando responde: - Apenas homens.
Manco torna a se calar. Ela sente nele uma seriedade nova - mas a raiva continua ali, escondida.
- Na hora em que você vinha chegando com o Irmão- Duplo, ontem à noite, ele finalmente falou comigo pela voz de uma criança. "Cuide de meu filho que você salvou da serpente", disse ele, "pois ele é o primeiro nó dos cordões do futuro...”
- Isso foi pouco antes do amanhecer diz Manco. - Eu havia ficado com ele, sozinho, na tenda. Acordei sobressaltado e uma serpente estava passando pelo punho de ouro dele, parecida com aquela que você afastou de mim, há muitos anos, durante a corrida... Saí para olhar o dia raiar nas colinas. Havia guerra por todo lado. No entanto, me veio uma grande força e uma luz se acendeu diante dos meus olhos, uma luz de ouro que enchia todo o horizonte. - É você, Manco. Só resta você...
Ele não responde. Abraça-a e murmura:
- Lembro-me do dia em que você disse que nunca nos deixaria... Lembro-me que, de manhã, meu irmão Paullu e eu nos perguntamos se você era feia ou bonita...
Instintivamente, o corpo de Anamaya se retesou dentro do abraço. - O que há? - pergunta Manco.
É a vez dela de ficar calada. No escuro, ela vê os olhos dele tentando adivinhar os seus. Ela adivinha sua força de jovem felino...
- É preciso partir outra vez, Manco, para Cuzco, com o Irmão-Duplo... - Eu sei - diz ele. - Mas por que acha que vim, fugindo do círculo das tropas de Ruminahui, evitando os estrangeiros?...
- Por quê?
- Para procurá-la.
Ela respira fundo antes de responder.
- Estarei com você, Manco, mas não irei com você.
Não entendo.
- Aconteceu...
Ela quer lhe contar a verdade pois, no tumulto novo em que seu coração se transformou, a mentira não cabe mais do que antes, mas uma lassidão imensa a invade. E depois, seria preciso encontrar palavras onde há apenas suspiros, olhares, uma certeza tão incerta. Então ela não diz nada.
Escuta a respiração pesada dele, e aqueles olhos pousados nela poderiam brilhar de fúria... Mas Manco se cala. Ele espera, depois não espera mais nada. Levanta-se.
- Eu lhe disse que me tornei um homem - declara. - Aceito o que você me dá e respeito o que não me dá. Meu futuro se desenha sobre uma aurora de sangue e quando o mistério me é revelado, vem outro mistério... Amanhã, estarei nas montanhas e acompanharei o Irmão-Duplo absorvendo a força que vem dele. Mas não vou esquecer que é por você...
- Eu também não vou esquecer, Manco. - Cuide-se, irmãzinha.
Ele desapareceu na noite depois de tocar seu rosto. Ela treme sem conseguir parar.
Depois, ela também parte na noite, o coração violento, atrás do homem que ela escolheu como destino.
Por estar com calor, ele tirou primeiro a cota acolchoada, depois a camisa. O suor secou em seu corpo, misturado à poeira e ao sangue. Quando leva o braço aos lábios, sente um gosto salgado, acre; pelo corpo inteiro, sente os golpes que recebeu. Uma sonolência toma conta dele, um torpor do qual ele não consegue sair.
Ela entrou na cabana quase sem fazer ruído e ele não se mexeu. Mantém os olhos fechados para prolongar este momento em que ela está presente e ele ainda não a vê.
Os gritos, os lamentos se afastam na noite que vai se aquietando.
Não se ouve senão a respiração deles e essa tranqüila e eterna fragilidade que os reúne.
"Há um momento", pensa ele, "em que por uma noite quer dizer para sempre, uma hora ardente e escura onde não há amanhã..." Ele abre os olhos. Ela debruçou-se sobre ele com uma ternura inquieta. Sua mão pousa nos lábios, no rosto dele, e ali traça pequenos desenhos, leves arranhões. Ele se obriga a permanecer imóvel, violentando-se para conter o impulso que o impele a torná-la nos braços.
Agora, ela está com a mão no peito dele, brincando com seus músculos, com a penugem em volta de seus mamilos.
Agora, ela volta a seu ombro e toca-o como se estivesse descobrindo essa curva pela primeira vez.
Agora, ela lhe dá pequenos empurrões: ele entende que ela quer que ele se vire e ele deita de bruços com um suspiro que mistura as dores de seu corpo e o bem-estar de sua carícia.
Agora ela dá um grito.
"Homens, certamente": foi o que ela respondeu a Manco, mas, o que ela disse com palavras, suas mãos é que descobrem - a força, a doçura, os ferimentos desse homem e o arrepio que percorre sua pele quando ela o toca.
Ela se lembra, naturalmente, e todas as portas de suas emoções se abrem como que sopradas por um vendaval, tudo o que ela procurou esconder no fundo do coração, todos os seus medos, suas lágrimas, todas essas luas - tudo se esvai e tudo é simples.
Isso não é uma visão, pois não vem do Irmão-Duplo, do Outro Mundo, isso não lhe é ensinado por um sacerdote nem por um Sábio.
Está dentro dela. É mais forte e mais terrível que tudo o que ela conheceu. Se é um medo, vai além do medo. Se é um deus, é o mais misterioso e o mais exigente dos deuses. Isso dá vontade de rir e de chorar, de correr e de se transformar em pedra, de gritar e de se calar. Ele obedeceu às suas mãos e lhe oferece a planície ferida de suas costas. Então ela vê a mancha escura do puma, escondido em seu ombro, encolhido, prestes a dar o bote. O grito lhe escapa.
Ela se lembra das palavras do Inca Huayna Capac, à há muitos anos. Confie no puma... Ela se lembra da pedra dos ancestrais onde os olhos amarelos do puma esperavam por ela. E ela se lembra da criança que, na noite anterior, lhe disse: "Você é quem deve ser. Não tenha medo: o puma há de acompanhá-la no futuro.”
Seus dedos acompanham a forma do felino, poderoso, atarracado, livre, no ombro do homem cuja pele se arrepia.
Devagarinho, ela se inclina para ele. E só lhe resta pousar os lábios sobre a doçura palpitante daquele que, desde sempre, lhe estava prometido.
Cajamarca, amanhecer de 17 de novembro de 1532.
Ao amanhecer, os dois saem na planície toda enfumaçada: é a bruma que desce das colinas e fica pairando como filamentos de gaze; é o vapor que sai das nascentes de água fervente; são as almas dos cadáveres que juncam o caminho, os charcos, as poças, e que fogem para outros mundos com um último suspiro.
Eles estão sós.
Gabriel ajuda Anamaya a montar e monta atrás dela. Pousa a cabeça em seu pescoço, olhos abertos para a cidade lá embaixo, onde a morte e a vida os esperam.
Logo será preciso falar, explicar suas lealdades e suas traições, sobreviver nesse mundo estranho que vem depois do tumulto.
Logo será preciso aceitar que o mundo não seja sempre esta gaiola sombria, onde se ver, se tocar e se amar sem dizer nada é só o que se tem a fazer. Logo, mas não já.
Antoine B. Daniel
O melhor da literatura para todos os gostos e idades