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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PRINCESA DO SOL / Antoine B. Daniel
A PRINCESA DO SOL / Antoine B. Daniel

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Arredores de Pocona (atualmente, na  Bolívia), dezembro de 1526.

Aconchegada à mãe, Anamaya acorda de repente  ouvindo a chuva no teto da choça.

Ainda é noite, aquela noite profunda e opaca da  selva. Chove forte. Não se ouve mais nada, nem os  estalos das vigas, nem os guinchos dos macacos ou dos bichos que habitam a floresta.

Ela se vira na cama de junco procurando a mão da  mãe. Não sabe por que perdeu o sono.

Se abre os olhos, a escuridão transforma as vigas  do teto em cobras e os jarros em monstros vivos. Se  fecha os olhos, o barulho da chuva fica insuportável. As gotas, pesadas como pedras, parecem  atravessar a espessa cobertura de folhas de palmeira  e bater em seu peito.

Sem motivo real, ela tem medo. Há tristeza em seu  coração. Uma aflição violenta e incompreensível,  como as que vêm nos sonhos.

Ela dobra os joelhos tremendo. Aninha-se bem  contra o ventre da mãe e fica um bom tempo chorando.  De sua boca não sai uma queixa, uma palavra. Depois  torna a adormecer, sem sequer perceber.

Mal o dia começa a raiar, ela já esqueceu o medo  da noite.

Pula da cama e vai se esgueirando por entre as  redes para o terreiro deserto.

 

 

 

 

Aquela é uma pequena aldeia no meio da imensidão  da floresta. Uma cerca alta de toras terminando em ponta protege as quatro grandes choças comuns que  delimitam o terreiro central. O terreiro está vazio  e parou de chover. Mas o ar está quente e pegajoso.  O céu, de um cinzento uniforme, espelha-se nas  grandes poças lamacentas que brilham entre o capim  alto.

Anamaya mata um mosquito no braço. Eles  ziguezagueiam em massa no ar úmido. Como nuvenzinhas  furtivas e transparentes.

Em alguns passos saltitantes, ela chega à paliçada  de chuços e vai ter com a sentinela de vigia junto à  entrada. É um jovem guerreiro. Como todas as pessoas  da aldeia, como todos os chiriguanos, "aqueles-que- não-temem-o frio", está usando apenas uma tanga de  pano em volta da cintura. Tem o queixo e a cara  pintados de arabescos pretos e verdes, a cabeça bem-feita raspada até o cocuruto. Sua pele tem o tom  ocre luminoso da terra lamacenta da aldeia e, em  contraste, as contas de seu longo colar de turquesas  cintilam em seu peito com um brilho intenso.

O rapaz está cochilando e acorda sobressaltado  quando Anamaya faz espirrar a água de uma poça. Por  reflexo, ele aponta a lança, depois começa a rir: -  O que você está fazendo fora da choça a esta hora,  mosquitão!

- Vim ajudar você a proteger a aldeia- responde  Anamaya seriíssima. O guerreiro pára de rir e  balança a cabeça com severidade:

- Boa idéia! Se perceberem que você está comigo,  os incas nunca ousarão nos atacar!

- Nunca mesmo!... Então, você quer me deixar sair?

O jovem guerreiro ri novamente com aquele seu riso  claro e lhe dá um tapinha na nuca.

- Saia logo, mosquito. Mas não vá muito longe,  senão sua mãe mergulha minha cabeça naquele jarro de  malefícios dela! - brinca ele descerrando o cipó que  segura um pesado painel de toras.

Anamaya se esgueira pelo vão e corre até a  floresta cerrada.

Ela não tem medo dos chuços que arranham sua  tanga. Salta numa clareira, seus pés descalços  voando nas flores coloridas.

Chegando ao grande lago, vai logo mergulhando,  braços esticados, o jovem corpo fluido e flexível  como a própria água. Por um bom tempo, ela se farta  com o prazer da natação. Vai até a ramagem baixa de  um cissus e dá um pulo para se pendurar ali e se  suspender com a desenvoltura de um macaco.   Embaixo dela, sua imagem se espalha, depois se  reconstrói quando a água volta a ficar parada. É a  imagem de uma menina grande para os seus dez anos.  Certamente muito maior e de pele muito mais clara do  que as outras meninas da aldeia. Sua testa também é  mais chata. Seu queixo quase pontiagudo, voluntarioso, alonga-lhe o rosto. O que ela mais  detesta é seu nariz demasiado comprido, bem mais  fino do que o das indiazinhas chiriguanos. Até sua  boca é diferente, mais fina, os lábios bem  desenhados mas pouco carnudos.

E sobretudo, há seus olhos.

Cerrando as pálpebras, ela bate com o pé na água,  fazendo-a espirrar e apagando seu reflexo.

Por que ela tem essas feições? Contam-se muitas  coisas na aldeia, mas sua mãe nunca lhe fala sobre o  assunto.

Sua mãe... De repente, sente necessidade de vê-la,  tocá-la. Uma necessidade tão grande que lhe doem as  entranhas.

Ela grita seu nome rindo e, enquanto o grito ecoa  na vegetação cerrada, ela pula do galho de cissus.  Vai correndo a toda para a aldeia, o coração  palpitando de amor.

No meio da manhã, as nuvens se rasgam  violentamente. Um raio de luz desliza sobre a  floresta antes de pousar sobre as choças. Ao atingir  os ombros de Anamaya, ela dá uma gargalhada.

Ela dança, o rosto inteiro iluminado pela alegria.  Braços abertos, os pesados cabelos negros balançando  ritmadamente, oferece seu corpo nu ao sol e à chuva  misturados.

- Anamaya! - chama sua mãe.

Na aldeia, ela é a única a andar vestida, uma  túnica comprida de pano que a cobre até os joelhos.  Às cores estão desbotadas. Mal se distingue o padrão  de quadrados, cruzes e losangos cuidadosamente  distribuídos. Em alguns pontos, os rasgões estão  costurados com fio de agave.

- É o sol! - grita a menina rodopiando na luz  dourada. - Venha, mamãe, venha!

Anamaya corre para a mãe. Agarra-lhe as mãos e  tenta puxá-la. A mãe ri, resiste um pouco antes de  sucumbir à alegria da filha.

Elas dançam saltitando. A lama espirra entre seus  pés, salpicando-as enquanto elas dão gritos agudos.  De repente, Anamaya escorrega. A mãe segura-a pelo  braço, levanta-a e abraça-a. Quase cai com a menina.  Rindo já com mais calma, as duas recobram o  equilíbrio abraçadas.

- Vamos, mamãe, de novo! - murmura Anamaya no  pescoço da mãe.   Com ternura, a mãe mergulha os olhos brilhantes  nos da filha.

- Será que você esqueceu a nossa promessa? - murmura  ela, fingindo tom de censura.

Anamaya fecha a cara. Não, ela não esqueceu e isso  não tem graça nenhuma.

- Temos mesmo que ajudar a velha bruxa?

- Anamaya! Não é uma velha bruxa, é a avó dos  espíritos.   - E daí? De qualquer maneira eu não gosto dela!

A mãe sorri e a puxa. Mãos dadas, elas contornam  uma das grandes choças comunitárias e atravessam o  terreiro central. Agora, o sol brilha nas poças que,  ao mesmo tempo, têm a superfície agitada pela chuva  fina e constante.

O calor é tanto que a selva está fumegando. Nesgas  de bruma, flexíveis e transparentes, sobem dali.    Elas vêm se rasgar nos chuços da paliçada alta. No  canto de uma das choças, junto a um braseiro, munida  de uma longa espátula de madeira de iroco, uma velha  mexe um líquido verde e grosso num jarro de boca  larga. Anamaya não consegue conter uma careta.

- Eu trouxe o pano, avó dos espíritos...

A bruxa examina desconfiada o pedaço de pano. De  tão usado, chega a estar transparente e seus  bordados cor-de-rosa desbotaram.

- Vai servir - resmunga ela.

Anamaya fica nas pontas dos pés para olhar o  líquido no jarro. - Como sabe que o espírito está aí  dentro? - pergunta à velha.   - Porque eu botei, bobinha.

- Não sou boba. Não estou vendo nada...

- Cale a boca, Anamaya - ordena a mãe sem  convicção.   - Por que você vê e eu não? - insiste Anamaya.

- Porque tenho o dom da vidência e você sabe  disso! - irrita-se a velha. - E agora, cale a boca.  Obedeça à sua mãe, menina!

Anamaya suspira. Elas esticam o pano na boca de  uma moringa encardida de fumaça. A velha verte o  líquido lentamente. Um resíduo verde se aglutina no  tecido. Cheira forte, um odor do fundo da floresta,  onde o sol nunca atinge o solo.

Anamaya espreita o espírito, mas só ouve as gotas  que caem no fundo da moringa, cada vez mais  lentamente.

Ela gostaria de fazer outra pergunta, mas não tem  coragem. De repente, sente um frescor deslizar em  seus ombros ardidos de sol. Levanta os olhos para a  sombra que passa no céu. Larga uma ponta do pano.

O resíduo verde cai na moringa. A velha dá um  grito rouco.   -Anamaya! - exclama a mãe. - O que está fazendo!  

- Mamãe! O pássaro!

O pássaro é imenso, quase do tamanho de uma choça.  O ar zune em duas penas negras e brilhantes. Ele voa  tão baixo que se poderia pensar que iria pousar. Mas  não. Ele vira o pescoço comprido coberto de penugem,  empina o bico e recupera altura sem bater asas.

- Mamãe, olhe como ele é lindo!

No terreiro, as crianças nuas pararam de brincar.  Os adultos ficaram imóveis. As testas raspadas dos  homens se franzem mostrando inquietação. Até os  velhos saem das grandes choças e erguem os olhos  para o céu, procurando se proteger do sol e da chuva  com a mão.

Nas pontas das asas do pássaro, abertas como  dedos, as longas penas brancas vibram. Agora que ele  volta para cima deles, vêem-se suas garras enormes,  maiores que a mão de um homem. Anamaya adivinha o  olhar do pássaro. Por um instante, as pupilas  redondas e globulosas procuram seus olhos e neles se  fixam. Então ela não vê mais o que está à sua volta.  Só ouve um rumor cada vez mais violento, um tumulto  da noite escura, um tropel, como se houvesse  centenas de homens correndo juntos. Ela quer gritar,  mas a mão doce de sua mãe pousa em seu ombro. Uma  mão que deseja tranqüilizá-la e que no entanto está  tremendo.

- O condor - balbucia a mãe apertando seus dedos  com mais força.   - O mensageiro dos incas - acrescenta a bruxa.   Anamaya abraça-se à mãe que murmura baixinho:

- O condor... Mas o condor não vive aqui. Ele  nunca desce das montanhas para a savana...

Anamaya olha para a mãe. Vê sua boca desfeita, seu  rosto empalidecendo.  

- Mamãe! Mamãe, o que você tem?

O pássaro bateu asas e ganhou altura. Ele gira em  direção ao leste, sobe ainda mais alto que os bancos  de bruma e de repente embica para baixo. Como se  quisesse arremessar-se sobre a aldeia. Mas não, sobe  cada vez mais alto. As nuvens se rasgam e lhe dão  passagem em direção aos flancos das montanhas do  oeste, enquanto o azul do céu aparece.

Anamaya treme de emoção e as palavras ficam  congeladas em seu peito. Como se mil gritos  repentinos ecoassem nela, pesassem em seu ventre e  em seus flancos.

No terreiro da aldeia, as caras continuam viradas  para cima, e todos estão calados também. Tudo está  imóvel. Não há mais um barulho. Até a selva se cala.

Então soa uma trompa.

- Os incas! Os incas!

A sentinela pulou a paliçada e está correndo como  um bêbado. - Os incas! Eles estão aqui!

A exclamação lhe escapa dos lábios na hora em que  ele cai. Na queda, seu colar de turquesas arrebenta,  as pedrinhas azuis rolam pelo chão e se afogam na  lama. Um sangue escuro escorre de sua têmpora  misturando-se à pintura vermelha e preta de sua  cara. A pedra lançada pela funda atingiu-lhe o  crânio.

Anamaya percebe o arrepio que percorre sua mãe da  cabeça aos pés. A trompa continua rugindo, qual fera  selvagem, e o rufar dos tambores faz a floresta  estremecer. Urros rasgam o ar. Os homens voam para  pegar suas armas nas choças. Outros já correm para a  paliçada, empunhando arcos, as flechas de haste  dupla ultrapassando a aljava. O alarido é  insustentável. Anamaya cola o rosto na barriga da  mãe que acaricia febrilmente seus cabelos, seu  rosto, suas mãos.

O condor desapareceu da montanha. As nuvens móveis  fecham novamente o céu. Os guerreiros chiriguanos  estão acocorados ao pé da paliçada de estacas. Por  um momento, tudo paralisa.

E, de repente, é como se o ar começasse a zumbir.  Anamaya vê o céu ficar arranhado. Uma sombra escura  e larga incha como uma nuvem de insetos. E centenas  de flechas perdem o impulso e caem no terreiro.

- Mamãe! - grita ainda Anamaya.

Sua mãe já está debruçada sobre ela, protegendo-a  com seu corpo. As duas fecham os olhos ouvindo os  dardos penetrarem com a mesma facilidade na carne  dos guerreiros e nas poças de lama. O sangue escorre  com a água, homens choram como crianças.

O jarro com o líquido verde entornou.

O medo e a morte estão em toda parte. Sua mãe  cantarola para tranqüilizar a filha encolhida, para  lhe dizer que está ali, que a menina não deve ter  medo. Mas Anamaya não escuta.

Quando ela torna a abrir os olhos, o terreiro está  crivado de flechas de pontas coloridas. Sobre o  corpo dos homens caídos, as plumas fulgurantes  parecem flores semeadas por magia.

- Venha - suspira a mãe.

Puxando a menina pela mão, ela a conduz no campo  das flechas no instante em que o clamor atravessa a  paliçada. Homens de capacetes cheios de cores surgem  acima dos chuços inúteis. As fundas giram, as tiras  de couro dos ayllos zunem no ar. Engolidos pelo  número e o armamento dos adversários, os chiriguanos  caem, suas maças curtas agora inúteis.

- Depressa, depressa - grita a mãe.

Elas correm para a frente, sem se preocupar com os  dardos quebrados que lhes dilaceram os pés. As  pedras de funda zunem em seus ouvidos. Um velho de  dentes pretos lhes faz sinal na hora em que leva uma  pedrada no peito. Ele cai para trás sem uma palavra.

- Mais depressa, Anama...

Anamaya sente o choque em sua mão. O tranco vibra  até em seu braço. Sua mão é bruscamente solta. Ela  cai para a frente ao mesmo tempo que a mãe. Logo se  endireita.

- Mamãe, venha, por favor!...

A mãe não se mexe. Anamaya não olha o rosto dela.  Torna a pegar a mão, tão quente, tão forte, que a  segurava com firmeza um instante atrás, já há tanto  tempo. Ela puxa. O corpo da mãe apenas desliza na  terra encharcada.

- Mamãe, rápido, eles estão chegando...

Ela adivinha as túnicas coloridas dos soldados que  se aproximam atrás dela. Atrás dos gritos do  combate, há apenas gemidos e, já, algumas risadas.  Então, finalmente, ela tem coragem de olhar o rosto  da mãe.

No meio de sua testa, há uma flor vermelho-sangue.  Seus olhos estão fechados, e uma água escura escorre  no canto de seus lábios.

Ela sabe.

Ela olha o trapo ainda amarrado na mão de sua mãe,  molhado com o líquido verde onde se escondia o  espírito. Ela abre os dedos crispados, pega o pano.  Não ouve as risadas dos soldados vencedores, os  gemidos dos moribundos, os gritos de um bebê  abandonado em sua rede, numa choça. Não vê os  últimos combatentes que ateiam fogo à paliçada,  depois às choças. Nela só há silêncio, como se todas  as portas de seu coração se fechassem uma a uma.

No rugido furioso do braseiro que carboniza o ar,  ela se ajoelha docemente e se aninha à barriga da  mãe.

Já não há mais sopro, não há mais vida, só há um  restinho de calor que passa e vai machucar o fundo  do seu ser.

É assim que o soldado a encontra.

Quando ele quer levá-la, sem um gemido, ela  resiste com todas as forças. Ele tem de fazer seus  dedos largarem o corpo da mãe, ao qual eles se  aferram, querendo lhe dar vida.

Quando consegue separá-las, o homem precisa  arrastá-la pela terra e pela lama, como se ela  estivesse inerte.

Viva, mas morta.

O oficial inca tem na mão direita uma chuqui, uma  lança com a ponta de bronze e o cabo de madeira de  lei guarnecida de plumas de condor. Um colete de  couro protege seu peito. Ele ainda está com o  capacete de junco finamente tecido e ornado com um  penacho vermelho e amarelo.

Um cheiro de fumaça acre paira no ar. Apertando o  tecido de seda, Anamaya conserva os olhos  obstinadamente baixos. Ela sente o vulto alto e  magro do inca.

- Será que finalmente acabamos com esses malditos  chiriguanos? - pergunta ele ao soldado que a trouxe.

- Sim, capitão Sikinchara. Alguns conseguiram  fugir para a floresta.   - Está bem.

Ele se vira para Anamaya, o rosto e o corpo  inteiro pretos de terra.   - E esta, quem é?

- Não sei, capitão Sikinchara. Ela estava junto de  uma mulher morta. Eu a trouxe para o senhor,  porque...

- Olhe para mim, menina - interrompe o oficial.

Anamaya não se mexe. Seus dedos apertam mais um  pouco o trapo. O soldado se prepara para agarrá-la,  mas Sikinchara o detém com uma ordem breve.   - Olhe para mim, criança - pede ele com uma doçura  inesperada.   Ela continua imóvel. Ele entrega a lança e o  capacete ao soldado, aproxima-se dela sem rudeza.  Ajoelha-se, e seus dedos finos pegam o queixo da  menina. Levanta o rosto dela para ele. Seu olhar  atento capta o raio luminoso de dois olhos azuis.

Sob o efeito da surpresa, ele quase cai para trás.

Anamaya vê o rosto de um homem de nariz nobre,  lábios bem desenhados. Vê sua surpresa.

Vê seu medo.

 

                                   Quito, outubro de 1527.

Hoje de manhã, Anamaya acorda sobressaltada no  salão-dormitório.

A maioria das meninas já saiu das esteiras. Mas há  um rosto debruçado sobre ela, examinando-a, o cenho  franzido e a boca contraída por um esgar. Uma jovem  de maçãs salientes, olhos negros e duros das  princesas de Cuzco. Ela se chama Inti Palla. Mais  velha que Anamaya, já tem corpo de mulher e gosta de  exibi-lo.

Mas, sobretudo, Inti Palla é uma das filhas do Rei  Huayna Capac, o único Senhor do Império das Quatro  Direções.

Quantos filhos ele tem? Tantos quantas placas de  ouro e prata há em seus templos: duzentos,  trezentos, ninguém sabe o número exato!

Quando os olhos das meninas se encontram, o esgar  de Inti Palla se transforma num sorriso malicioso:

- Anamaya - gargalha ela -, como você pode ser tão  feia?

Desde sua chegada à Casa das Virgens de Quito, a  grande cidade real do Norte, Inti Palla não parou de  querer se aproximar dela enquanto de sua boca, a  maior parte do tempo, só sai maldade! Tantos  horrores que Anamaya se esforça para não mais  prestar atenção.

- Anamaya, sei o que vai lhe acontecer hoje! -  zomba de novo Inti Palla.

Anamaya se espreguiça e finge indiferença. Inti  Palla sacode as pulseiras que está usando.

- Não quer saber?   - Claro que quero.   - Daqui a pouco eu conto.

Assim é Inti Palla! Anamaya abafa um muxoxo de  raiva, mas a princesa, adivinhando sua contenção,  insiste como se procurasse fazê-la perder as  estribeiras.

- Vamos, filha sabe-se lá de quem, por que você é  tão feia?

Dessa vez, com um movimento brusco, Anamaya se  endireita e a empurra.   - Eu não sei. Sou ignorante em tantas coisas! Mas  você devia saber!   A risada de Intipalla crepita como um cesto de  conchas.

- Coitadinha de você! Já vai fazer quatro estações  que está aqui e ainda não quer admitir que nunca  será como a gente?

Anamaya se afasta, dobrando cuidadosamente seu  cobertor de fios tecidos para disfarçar a dor. Se há  uma coisa que ela sabe, é isso. Além de não ser uma  princesa de sangue real, quanto mais seu corpo se  desenvolve, mais fica diferente do das jovens incas.  Suas pernas e suas coxas espicham enquanto as das  princesas se arredondam. Seu rosto se alonga  enquanto devia alargar. Sua testa não fica abaulada,  seus lábios continuam finos demais, suas  sobrancelhas são duas vezes menos grossas... E  depois há seus olhos!

Olhos quase tão puxados como deviam ser, mas  azuis. De um azul incrível, como o do céu da  montanha à tarde, quando se reflete num lago.

Um azul que provoca a repulsa de todos, medo ou às  vezes zombaria. Um azul terrível que repele todas as  amizades e todas as afeições. Durante esse ano  passado na acllahuasi, nenhuma jovem quis com  sinceridade ser amiga dela. Às vezes, as Mães ainda  se dirigem a ela como a um ser humano de verdade. Só  Inti Palla se expõe a essa aversão que ela propaga  em volta de si como uma doença ruim. Mas é só para  caçoar melhor.

Lágrimas nos olhos, Anamaya aperta o cobertor  contra o peito e diz:   - Se sou tão feia, por que você está sempre me  rondando?

O sorriso da jovem princesa desvela seus dentes  pontiagudos como presas:   - É porque você é curiosa de ver!

- Pois você já teve todo o tempo para me ver!  Agora chega...   - Isso é verdade mesmo - diz Inti Palla às  gargalhadas.

E como Anamaya se prepara para sair do aposento,  Inti Palla chocalha as pulseiras e diz com uma voz  doce:

- Anamaya, vou contar o que lhe espera hoje.   - Não conte nada, tanto faz para mim!

- Hoje será o grande dia para você. O Único  Senhor, meu pai Huayna Capac, vai olhar você...

Anamaya fica imóvel, sem ar. Há luas, ela sabe que  essa hora deve chegar. Mas hoje...

Ao virar-se para enfrentar de novo o olhar de Inti  Palla, ela descobre aí alegria cheia de ódio.

- E ele vai dizer, filha sabe-se lá de quem, como  você deve morrer.

A noite passada, como a cada lua nova, ela sonhou  com a aldeia na mata. estava de mão dada com a mãe,  e, em volta delas, gritos ecoavam. Um bafo com fogo  queimava seu peito. Quando sua mãe caiu, um silêncio  de gelo invadiu-a, um pavor cheio de incompreensão.

Pareceu-lhe que algumas palavras se formavam nos  lábios de sua mãe, palavras que eram destinadas a  ela do outro lado da morte, mas que ela não chegava  a compreender. Ela se levantou aos prantos, trêmula  de solidão, encolhida contra o corpo ausente,  abraçando o vazio. Enquanto os alvores da aurora  clareavam os cortinados, ela fechou os olhos para  afastar a morte e o medo. Depois, acalmou a  respiração devagarinho para não ser ouvida,  imaginando que a voz doce de sua mãe ainda ecoava no  silencio imenso...

Acordou agarrada ao pedaço de pano que ela guarda  como um tesouro. O pano perdeu quase todo o cheiro,  conservou só um leve odor de mato que se esvai com o  tempo.

Sua dor, ninguém deve conhecer: ela tem de  escondê-la no fundo de seu ser. Ela pensa nisso  enquanto a preparam.

A Casa das Virgens é só cochichos. Enquanto lavam  os cabelos de Anamaya e os penteiam em finas  tranças, as Mães lhe lançam olhares de reprovação.    Anamaya fica repetindo para si mesma as palavras  cruéis de Inti Palla e o medo se localiza na boca de  seu estômago: se o único Senhor decidir que ela deve  morrer sem ter direito a fugir para o Outro Mundo,  será que o puma vai devorá-la? Quando terminam de  penteá-la, as Mães a envolvem num grande pano de  tela crua que a cobre do peito ao tornozelo. Com uma  certa brutalidade, elas amarram um cinturão liso,  vermelho, ao redor de seu corpo. Depois colocam uma  lliclla em seus ombros, uma longa capa malva só  debruada de branco em volta do pescoço, a qual elas  prendem no peito com um alfinete de cedro.     Finalmente, elas lhe dão sandálias de palha novas  em folha, que Anamaya não consegue calçar direito.

As Mães recuam para examiná-la.

É evidente que suas roupas novas em nada atenuaram  sua feiúra, e a repulsa das Mães é visível. Elas nem  ousam olhá-la nos olhos!

Em seguida, fazem-na aguardar muito tempo, sozinha  numa sala minúscula e escura.

Seu medo tem todo o tempo para aumentar ainda  mais.

O sol está no zênite quando finalmente ela e  levada para fora da Casa das Virgens. Dois soldados  a esperam. Há luas ela não saía da acllahuasi. Pelas  ruelas estreitas entre os muros altos, os soldados  conduzem-na em silêncio até a grande praça do  Palácio Real. No caminho, não encontram ninguém e  Anamaya se pergunta se é por causa dela que a cidade  está tão deserta.

Ao chegarem à praça vazia, eles se dirigem à porta  estreita do palácio, encimada por uma verga de pedra  onde há uma serpente de vida eterna esculpida. Ali,  os soldados batem com as lanças no chão e ficam  imóveis enquanto Anamaya prende a respiração.

Ela reconhece imediatamente o oficial em traje de  gala que aparece à porta do palácio. Lembra-se de  seu nome: Sikinchara. Jamais poderá esquecer seu  rosto: era ele quem comandava os soldados que  mataram sua mãe.

Hoje, ele a observa sem receio nem surpresa. Só  com um pouco de reticência. Ele é bonito e  imponente. Um plastrão de ouro lhe cobre o peito e  uma faixa de lã amarela com duas plumas verdes,  curtas e largas, lhe cinge a cabeça, realçando-lhe  os traços. Largos discos de prata lhe cobrem as  orelhas, presos por tubos de prata do tamanho de um  dedo, enfiados nos lóbulos distendidos. A cada  movimento seu, essas enormes jóias balançam e  faíscam.

Com um simples gesto, ele ordena que Anamaya se  aproxime. Como ela não se mexe, um dos soldados  cutuca-a com a lança nas costas. Então ela transpõe  o umbral do palácio. Segue Sikinchara que, com um  olhar, obriga-a a permanecer a seu lado.

Eles atravessam um primeiro pátio ladeado de  grandes casas baixas. De ambos os lados do caminho  calçado, orquídeas brancas e cantuas púrpura cobrem  maciços retangulares. Mas Anamaya mal vê o esplendor  dessas flores.

Em seguida, eles passam embaixo de uma espécie de  alpendre e ao longo de um muro de pedras enormes e  lisas, com vários nichos onde brilham magníficos  objetos de ouro e de madeira pintada. Finalmente,  chegam a uma porta estreita, de montantes de pedra  duplos perfeitamente talhados. Anamaya só tem tempo  para ver um outro pátio, maior, em cujo centro há  uma grande fonte de água fumegante. A voz seca de  Sikinchara ordena:

- Prosterne-se, menina! Prosterne-se diante do seu  único Senhor! Ela cai de joelhos, inclina o busto,  põe as mãos no chão e, de soslaio, vê que o capitão  avança e passa a porta. Ela o segue como se tivesse  medo, esfolando as mãos e os joelhos nas pedras  ardentes de sol.

Quase é melhor assim, pois agora ela está sob o  olhar do Filho do Sol e como se já começasse a  morrer.

Ela ouve ruídos, palavras ditas em voz baixa que  ela não entende.. De repente, leva uma paulada no  ombro. Fica paralisada. E é ainda a voz de  Sikinchara que anuncia:

- Meu Único Senhor, eis a menina de que lhe falei.

Não há resposta, somente o sussurro da agitação da  água. Finalmente, uma voz cansada e distante diz:

- Esse banho me cansa. Dêem-me minhas roupas...

Anamaya entrevê as pontas das tangas de dez mulheres  que acorrem. Os panos são lindíssimos, com motivos  de cores vibrantes. Ela sabe o que está se passando.  Explicaram-lhe muitas vezes na Casa das Virgens. As  servas entregam ao único Senhor roupas novas que,  depois de tecidas, jamais foram tocadas por mão  alguma. O Filho do Sol designa pessoalmente as  jovens que devem ajudá-lo a vestir sua túnica de  vicunha, amarrar o cinto, cobrir-se com a capa,  colocar a faixa real na testa...

Anamaya fecha os olhos e tenta acalmar a  respiração. Seu coração bate tão forte que ela mal  ouve a voz abafada ordenando:

- Capitão Sikinchara, mande essa menina se  levantar.

Ela recebe um golpe nas costas e Sikinchara  resmunga em voz baixa: - Levante-se diante do seu  único Senhor!

Ela se pergunta se terá força suficiente para  isso. Levanta-se como se suportasse uma carga com o  triplo de seu peso nos ombros. Quando se põe de pé,  fita obstinadamente as pedras do pátio, mas a voz do  único Senhor torna a ordenar:

- Olhe para mim, menina! Então ela o vê.

Ele, o único Senhor Huayna Capac, o Inca de todos  os incas, o Filho do Sol e Rei do Império das Quatro  Direções!

Ele lhe parece velho. Muito, muito velho...

Apesar da extraordinária beleza de suas roupas,  apesar de suas pulseiras de ouro, apesar do  chapelão de plumas coloridas que lhe envolve o pescoço e dos  enormes discos de ouro que lhe distendem os lóbulos  das orelhas, apesar do requinte de seu plastrão de  contas de conchas, ele parece frágil como um homem  de ossos de ave. A pele de suas faces é esticada e  lustrosa como uma cerâmica muito velha. A de suas  mãos de tão enrugada que parece pertencer a outro  corpo.

Sentado num trono elevado e coberto de almofadas,  ele fita Anamaya nos olhos. Sem muito espanto e sem  receio.

Uma voz aguda e imperiosa diz de repente:

- Único Senhor, veja os olhos desta menina.  Nenhuma mulher inca jamais tem olhos azuis!

- Cale-se, Villa Orna. Deixe-me vê-la.

Quem acaba de falar, Anamaya nunca viu. É um homem  que está direita, a uma boa distância do único  Senhor. Ele também possui os brinco dos incas de  sangue real. Mas entre seus lábios finos escorre o  sumo verde das folhas de coca que ele masca.

Sem desviar o olhar dos olhos de Anamaya, Huayna  Capac pergunta:   - Ela vem da mata, Sikinchara?

- Sim, meu único Senhor. Destruímos uma aldeia de  selvagens chíríguanos. Ela estava ali com outras  crianças e a mãe.

- Onde está a mãe dela?

- Morta, meu único Senhor. Foi atingida por uma  pedra de funda no ataque da aldeia. Pode-se  adivinhar quem ela era porque ainda estava com uma  túnica inca.

- Uma mulher de Cuzco? - Sem dúvida.

- Uma criança impura - resmunga Villa Orna, o  homem da boca verde   - Mas seu pai? - pergunta o único Senhor.

Villa Orna faz uma cara de ignorância e de nojo.  Huayna Capac vira-se para Sikinchara.

- Sabe de alguma coisa?

O capitão Sikinchara se cala também e abaixa a  cabeça. O Único Senhor continua fitando os olhos de  Anamaya, mas há sofrimento em seu olhar. Seu lábios  tremem e de repente seus dedos apertam os braços do  trono. Ele esta transpirando tanto que gotas de suor  brotam sob a franja real e deixam sua testa  brilhante.

Além do medo de morrer que lhe aperta as  entranhas, Anamaya sente outro que a invade ante a  visão da dor que esse homem tão velho suporta, que  ela não entende direito. Tem medo por ele, com ele.

Por um instante, o Único Senhor vacila, as  pálpebras estremecendo, empertigando-se, ele se  endireita. Com uma voz abafada, pergunta:

- Villa Oma, o que dizem os adivinhos a respeito  dessa menina? O homem de boca verde resmunga e faz  um gesto de desprezo:

- A maioria diz que ela é nefasta. Ela tem olhos  azuis, e, como você vê, malfeita. É magra de busto e  maior que nossas meninas! Sangue Inca corre suas  veias por parte de sua mãe, mas é sangue impuro! Ela  é do Mundo de safixo e deve voltar para o Mundo de  Baixo!

- Mais um sinal! - murmura o Único Senhor com  lassidão, pestanejando.

Ele se cala. Curiosamente, Anamaya tem a impressão  de que o velho exausto olha para ela com  benevolência. Como que a contragosto, Villa Oma  acrescenta:

- Mas evidentemente nem todos os sacerdotes estão  de acordo...   - O que dizem os outros?

- Que ela é um sinal de fausto para seu reino! Que  é enviada por Quilla, nossa Mãe Lua, que lhe promete  também a felicidade da viagem no céu, por causa de  seus olhos azuis.

O Único Senhor está ofegante. Apesar de seus  esforços para disfarçar seu sofrimento, Anamaya de  repente compreende.

Ela sabe, como se já o visse deitado e sem  respirar, que o Filho do Sol está morrendo. Logo ele  tomará o caminho invisível que o conduzirá para  junto de seu Pai, no Outro Mundo!

E ela tem de conter as lágrimas que lhe vêm aos  olhos.

O Único Senhor ainda não tirou os olhos dela.  Pergunta:   - Que nome ela tem?

- Anamaya.

Mal Sikinchara responde, o Único Senhor abafa um  lamento e comprime o ventre com as mãos. Anamaya  adivinha o pavor que gela o capitão. Mas, de novo, o  Único Senhor se controla e pergunta, com uma voz  apenas audível:

- E você, Villa Oma, o que acha?

- Ela deve desaparecer! - resmunga Villa Oma. - E  logo. Oferecendo-a ao puma, se você quiser meu  conselho. Que ele se alimente dela e que ela  desapareça! Que jamais volte a constrangê-lo, nem  neste mundo nem no outro. Inti nosso Pai não quer  ver um ser como esse viver!

- E se ela tiver sido enviada por Quilla minha  Mãe?

- Então poderíamos tomar seu coração como  oferenda, mas...

O Sábio Villa Orna não termina a frase. O Único  Senhor de repente emite um gemido rouco. Dobra-se à  frente para vomitar uma bílis líquida no rebordo do  trono. Seu sofrimento súbito se torna tão  intolerável que ele escorrega do trono e cai de  joelhos. Homens e mulheres, senhores e servas, todos  os que o rodeiam ficam apavorados e imóveis.

Anamaya, por reflexo, esboça um movimento, mas logo  se contém. Ninguém tem o direito de tocar no único  Senhor!

Sikinchara já a agarra pelos ombros para afastá-la. Mas, com os traços deformados por um esgar de  dor, o único Senhor encara-a e a chama:

-Ajude-me!  Menina, ajude-me!

O velho estende as mãos encarquilhadas e trêmulas  para ela como se quisesse atravessar seu corpo. De  sua boca bem aberta sai um suspiro rouco enquanto  seu peito se agita sob a túnica. Debruçando-se à  frente, ele se arrasta de joelhos e agita as velhas  mãos:

- Ajude-me!

Então não há mais nem Senhores, nem proibições,  então ela já não tem medo nenhum de morrer. As  lágrimas contidas durante tanto tempo lhe turvam a  visão e finalmente lhe escorrem pelo rosto.

 

                                  Quito, novembro de 1527.

Apesar do ouro reluzente que reveste as pedras  finamente encaixadas, o aposento permanece escuro,  cheio de fumaça dos braseiros onde ardem folhas de  coca.

Há três dias, o único Senhor está deitado debaixo  de cobertores de vicunha e de lhama. Às vezes, ele  treme enquanto dorme. Depois, durante longas  vigílias silenciosas, seus olhos procuram no escuro  respostas para as perguntas que o perseguem.

Como seu Pai Sol vai recebê-lo no Outro Mundo se ele  morrer sem ter designado seu sucessor?

O que será do Império nascido em Cuzco, e que ele,  Huayna Capac, tornou tão imenso que se leva várias  luas para ir do norte ao sul?

O que significam esses sinais estranhos que vêm  surgindo no céu e nas montanhas há uma estação?

Será Inti, seu Pai Sol, declarando sua ira? Será  Quilla, sua Mãe Lua, declarando seu medo?

As perguntas sucedem-se numa ladainha exaustiva  até que a febre torna a levar sua consciência. A dor  lhe devasta a cabeça, o ventre e até os ossos que  mantêm um homem em pé! Uma dor desconhecida, vinda  não se sabe de onde e que jamais deveria atingir um  Filho do Sol!

Então, em seu tormento, ele revê as estranhas  pupilas azuis da menina capturada na floresta do  Sul. Olhos cor das águas do Titicaca, o grande lago  sagrado da origem dos tempos. Olhos que acalmam a  dor quando se olha para eles.

Trompas soam à porta do palácio. Depois ruídos de  passos e de vozes ecoam no pátio. Mas só aparece um  homem à entrada do aposento, ajoelhando-se  imediatamente, abaixando bem a cabeça. Sobre sua  nuca é colocada uma pedra do tamanho de uma criança.    Ele se aproxima assim do leito do doente, carregando  a pesada pedra sem tremer.

O Único Senhor semi-ergue-se gemendo. Com a voz  transformada pela febre, ele pergunta:

- Atahualpa? É você, meu filho?

No canto mais escuro, Villa Oma diz:   - Sim, Único Senhor, é Atahualpa.   - Levante-se!

Enquanto o Único Senhor, já sem fôlego, torna a se  deitar na cama, um criado retira a pedra da nuca de  Atahualpa, que se endireita.

A faixa dos príncipes cinge sua testa perfeita, e  ele está usando a túnica e a capa com os motivos do  clã que está governando. Tem o nariz forte e adunco,  e o crânio alto. O branco de seus olhos às vezes  fica injetado de sangue como se ele contivesse a  raiva, mas ele jamais deixa transparecer o que  pensa. E, embora o lóbulo de sua orelha direita seja  distendido demais, ele impressiona todos aqueles que  o vêem.

No entanto, hoje, ele é que se impressiona  contemplando o rosto de seu velho pai, o Único  Senhor.

Huayna Capac está bem mais doente do que ele  pensava. Respira mal. Seus olhos estão vidrados como  os de um homem embriagado de coca e de chicha. Ele  envelheceu de repente. Atahualpa contém um movimento  de recuo e se pergunta se deve anunciar ao pai a má  notícia da qual é o portador. Como seu silêncio se  prolonga, o Único Senhor adivinha o motivo:

- Diga-me o que sabe, Atahualpa meu filho! Não me  esconda nada. Atahualpa lança um olhar para Villa  Oma, que aprova com um gesto de cabeça.

- Único Senhor - diz Atahualpa com prudência -,  não tenho boas novas.

Huayna Capac faz sinal com os dedos para que ele  continue.

- Comerciantes da costa encontraram algo. Seres  estranhos chegaram pelo oceano, trazidos por uma  montanha de madeira que flutuava sobre as ondas...

As pupilas febris de Huayna Capac perscrutam o  rosto do filho.   - São numerosos?

- Não. Não mais que dez ou vinte. Eles foram  embora depois de roubar o carregamento de uma balsa de  Tumbez e capturar alguns marinheiros.   - Eram humanos?

- Não se sabe, único Senhor... Alguns têm o tronco  feito de uma prata especial, outros só usam pêlos  por todo o corpo, até no rosto. Eles andam em pé  como os humanos, mas fedem e usam uma língua  desconhecida.

- Quando foi isso?   - Há três estações.   - E eles foram logo embora?

- Para o oceano, sim, levados por aquela chegaram,  meu único Senhor!

Quase interrompendo, Villa Oma dá um passo à  frente:   - Viracochas... Já pensou nisso?

- O que você quer dizer? - pergunta duramente  Atahualpa.

- Viracocha, nosso Senhor que criou o mundo, saiu  do Titicaca para fazer as planícies e as montanhas,  a mulher e o homem. Viracocha o Poderoso, aquele que  quis que Inti o Sol nos desse a luz e Quilla nos  guardasse a noite...

- Villa Oma! Você fala demais. Eu sei quem é  Viracocha!

- Então sabe que uma vez cumprida a sua tarefa,  ele desapareceu no oceano para ir descansar no  horizonte do oeste. E que também prometeu voltar um  dia...

- E você concluiu que ele é quem está voltando  hoje - interrompe Atahualpa irritado. - Em cima de  uma montanha flutuante e sob a aparência de homens  malcheirosos, cobertos de prata fosca e de pêlos?

Villa Oma sustenta o olhar de Atahualpa, depois  vira-se para Huayna Capac.

- É possível, meu único Senhor. Viracocha sabe  assumir a aparência que lhe convém. Ele sabe ser um  ou múltiplo, humano ou animal, floresta ou  montanha... Ele pode tudo.

Olhos fechados, Huayna Capac respira ruidosamente,  a voz apenas audível quando pergunta:

- Você não acredita que Viracocha esteja voltando  para nós, meu filho? Atahualpa dá de ombros e  responde:

- Não sei, meu único Senhor. Acho que é cedo  demais para decidir. Sabemos que humanos impuros  podem ter aparências estranhas. Você mesmo, durante  as suas guerras, viu todo tipo de humanos nas florestas e nas montanhas do Sul... E por que  Viracocha voltaria hoje para a gente? Nosso mundo  daqui é grande e poderoso. Executamos a ordem e as  leis...

- Mas vou me unir a Inti - suspira o único Senhor.  - E não designei aquele que carregará a borla real  depois de mim.

Essas palavras atraem um silêncio pesado.

O velho doente se ergue com dificuldade apoiado  num cotovelo e diz com uma voz mais forte:

- Por que recusar, Atahualpa meu filho, que eu o  designe? Sabe que trago você no coração mais do que  todos os meus outros filhos! Sabe que você é o mais  sábio e o mais capaz! Por que recusar e me embaraçar  na hora em que estou partindo para o Outro Mundo?

- Único Senhor meu pai, nós dois sabemos a  resposta à sua pergunta. Os clãs de Cuzco jamais me  aceitarão! Você e meu pai, mas minha mãe não é de um  clã poderoso. Se eu colocar a Fita real em minha  testa, nunca poderei fazer reinar a ordem no Império  nem fazer respeitar as Leis! Para quê?

- Único Senhor! - exclama Villa Oma. - Você  precisa decidir. Não pode partir sem designar seu  sucessor. Isso é um erro e o seu erro recairá sobre  todos nós!

- Villa Oma! - censura Atahualpa. - Como ousa?

- Ouso porque a desgraça está diante de nós! Está  esquecendo os sinais, Atahualpa? Outra noite, nossa  Mãe Lua se dividiu em três círculos ao passar em  cima do palácio. O primeiro era cor de sangue. O  segundo era ao mesmo tempo negro e verde. O último  era só fumaça!

Huayna Capac, exausto, tornou a desabar no leito.  Respira com um rugido rouco. Atahualpa só lhe  concede um olhar. Secamente, pergunta ao Sábio:

- E, segundo você, o que Quilla quer nos dizer?

- O primeiro círculo significa que, quando nosso  único Senhor tiver se unido a seu Pai Sol, o sangue  de sua linhagem correrá em abundância. O segundo  prevê que massacres e guerras traçarão um fosso  intransponível entre o Norte e o Sul. O terceiro  círculo é só de fumaça, pois uma vez cometidos os  erros, a ira de Inti e de Quilla será tão grande  que, de nós, só restará fumaça, poderoso filho do  único Senhor!

- Aah! - resmunga Atahualpa com um gesto de fúria.  - Quanta bobagem! Villa Oma, pensei que você fosse  mais sábio. Você dá ouvidos demais aos adivinhos que  não controlam o que dizem. Eles falam e falam!

Você sabe muito bem que outro desses sacos de  pulgas nos afirmará exatamente o oposto.

- Quem é o sábio? - pergunta Villa Oma franzindo  as pálpebras. - olha os sinais e os compreende? Ou  aquele que fecha os olhos para r ignorá-los?

O sábio é também aquele que sabe se calar quando é  preciso, irmão Oma!

- Atahualpa... Atahualpa! - murmura Huayna Capac  erguendo uma mão trêmula. - Atahualpa meu filho, não  se enfureça! Amo suas idéias e sua força. Mas talvez  Villa Oma tenha razão. Ele sempre me aconselhou bem,  ouça-o quando eu tiver partido...

O ancião estremece quando uma nova onda de dor lhe  arranha o peito. Depois, destacando as palavras,  acrescenta:

- Acho que Quilla minha Mãe me enviou outro sinal.  Villa Oma, traga aqui a menina dos olhos azuis!

As auroras se sucedem e não se parecem na Casa das  Virgens.

Quando Inti Palla entra no aposento, esgueirando- se sem fazer ruído sob o cortinado de cores vivas,  Anamaya estremece de medo. A angústia dos dias  passados não se apagou totalmente. Todavia, Inti  Palla se agacha ao seu lado com um sorriso cúmplice.

- Tome! - murmura ela. - Pegue! É para você...

Pasma, Anamaya vê a princesa lhe dar um magnífico  bracelete de ouro. Duas serpentes entrelaçadas e tão  reais que parecem querer enroscar-se no braço dela.

- Tome - insiste Inti Palia -, é para você!   - É tão lindo...

Inti Palia segura o pulso de Anamaya e enfia-lhe  habilmente o bracelete.  

- Nunca se separe desse bracelete, minha irmã. Ele  sempre a protegerá!

Minha irmã? Anamaya não sabe se deve acreditar nas  palavras que está ouvindo. Será a mesma Inti Palla  que ontem lhe anunciava, sorrindo, que ela ia  morrer?...

Mas seu coração não sabe o que é rancor. Ela se  inclina timidamente para Inti Palla e murmura,   - Obrigada.

Inti Palla abre os braços e a estreita contra si.  Anamaya sente o calor desse corpo estrangeiro, o  coração batendo sob o jovem peito. Há mais de um ano  que ninguém a abraça, nenhuma mão a acaricia... Sem  que ela consiga evitar, sua garganta se fecha e suas  mãos se crispam nos ombros da princesa. Elas têm um  mesmo estremecimento e Anamaya quer ver nisso um  sinal. Inti Palla é a primeira a se desvencilhar do  abraço. Fita Anamaya no azul intenso de seus olhos e  diz em tom muito solene:

- Nunca se esqueça de que sou sua amiga.

O reconhecimento faz os olhos de Anamaya  brilharem, mas ela não sabe se pode acreditar no que  ouve.

- Ande logo - acrescenta Inti Palla levantando-se.  - O capitão Sikinchara veio buscá-la, o único Senhor  quer vê-la de novo.

Por trás do medo agora familiar, Anamaya sente  nascer um sentimento novo - uma espécie de curiosa  excitação, de espera.

E até um certo orgulho.

Antes de se prosternar no chão do aposento cheio  de sombras, Anamaya tem justo o tempo de perceber  uma silhueta minúscula e curiosa envolta em  vermelho, cujo olhar agudo se fixa no seu. É um  homem menor que uma criança, cujas mãos fortes estão  agarradas ao leito do único Senhor. Sua boca ostenta  um curioso ríctus de desespero.

Quando Sikinchara lhe ordena que avance, o ar que  ela respira logo lhe irrita a garganta e os olhos. O  cheiro das folhas queimadas de coca mistura-se ao da  doença. Na penumbra, ela adivinha ainda outras  presenças e reconhece a túnica do Sábio de boca  verde de coca.

Quando ela chega, engatinhando, perto do leito do  único Senhor, o Anão recua para lhe dar lugar, sem  se apagar completamente. Ela sente a presença  daquele corpo disforme próximo ao seu e,  estranhamente, a impressão não é desagradável.     Depois ela ouve a voz do único Senhor, rangendo  como areia:   - Levante-se, minha filha. Olhe para mim. Ela se  levanta e o que vê é horrível.

O Único Senhor está tão doente que seu rosto  parece estar apodrecendo. Manchas repugnantes  deformam sua testa e suas têmporas. Outras aparecem  também nas mãos agitadas por violentos tremores. Ele  murmura:

- Atahualpa, observe os olhos dela...

Um jovem senhor se aproxima e põe-se à sua frente.

Anamaya contém um movimento de recuo. Sente todo o  poder que está homem. Ele fita seu olhar azul sem  hesitar enquanto ela se surpreende as linhas de  sangue que lhe comem o branco dos olhos. Apesar de  tudo, tosto e bonito, sua boca, longa e seus lábios  muito bem delineados.

Ela não ousa encará-lo mais e vira para o outro  lado. O que vê então a faz estremecer, ela quase dá  um grito. No leito do único Senhor, brilha outro Um  focinho escuro está à sua frente. Presas brilham!

Num arrepio, ela compreende afinal que o puma não  está vivo. É apenas pele esticada sobre os pés do  único Senhor. Mas sua cabeça está tão bem conservada  que as pupilas do animal a transpassam.

Atahualpa pergunta:

- Quem é ela, de onde vem?

- Villa Oma lhe explicará - murmura o único  Senhor. - Venha cá, pequenina, aproxime-se.

Hesitante, Anamaya aproxima-se mais um pouco do  leito real. O cheiro arde na garganta. Ela se  pergunta se o que lhe está acontecendo não e pior  que enfrentar feras. O Anão aproxima a boca de seu  ouvido e, quando ela vai repeli-lo assustada, ele  lhe segreda:

- Não tenha medo dele.

É um simples segredo que ninguém escutou, mas o  palpitar de seu coração se acalma. O Único Senhor,  num esforço terrível, estende-lhe a mão agitada por  sobressaltos.

- Me dê a mão, menina! Atrás dela, Villa Oma  exclama:   - Único Senhor! Cuidado!

Anamaya sequer ousa levantar a mão. Fita apavorada  os dedos estendidos para ela, escuros como uma raiz  apodrecida pela geada. Ninguém, senão as Mulheres  Escolhidas, toca o único Senhor!

Contudo, os olhos que a febre faz saltar das  órbitas fitam os seus. Huayna Capac torna a ordenar:

- Toque em mim, menina!

Nauseada, ela pousa os dedos pálidos nos dedos do  Inca.

Com um movimento apenas controlado, ele se agarra  a ela. Arquejando, fecha os olhos, joga a cabeça no  tecido molhado de suor, como se caísse para trás, o  corpo percorrido por um calafrio.

Todos se calam em volta deles.

Anamaya, tão trêmula agora quanto o único Senhor,  não ouve sua respiração aflita.

Finalmente, a boca encarquilhada do Filho do Sol  se contrai. E talvez seja um sorriso. Ele pisca, mas  seu olhar está tão velado quanto o de um homem  ofuscado. Sua voz não passa de um som rouco que  vibra através de sua garganta seca:

- As águas azuis do Titicaca estão nos olhos dela,  meu filho. As água do céu! Quilla, obrigado, minha  Mãe, por havê-la enviado a mim. Sei...   - Único Senhor, meu pai...

Deixe, Atahualpa! Está bem. Eles a enviaram a mim  para me acompanhar ao limiar do Outro Mundo. Os  olhos dela me fazem bem. Você ouve a minha voz, meu  filho? já está mais clara. A dor está me deixando.  Ah, obrigado, Quilla!

Anamaya treme. Ela não entende o que o único  Senhor quer dizer, mas sente como ele aperta sua mão  com força. Adivinha contudo que ele diz a verdade,  que sente menos dor...

Ela tem vontade de sorrir também.

Depois de um longo silêncio, ela ouve o arrastar  de sandálias nas pedras. Percebe que Villa Oma e  depois o jovem Senhor Atahualpa saem do aposento.  Ela fica sozinha, agachada junto ao leito, de mão  dada com o Inca, o Anão escondido atrás dela.

- Meu filho mais velho ainda está ao meu lado? -  pergunta o Inca com uma voz entrecortada.

- Estou aqui, amado pai.

A voz do Anão é grave, profunda como um eco saindo  do peito de um gigante.

É preciso nos deixar agora, meu filho - murmura o  único Senhor. As perguntas se comprimem, sem  resposta, na cabeça de Anamaya, enquanto ela ouve os  passos do Anão se afastando. Como o único Senhor  pode ser o pai de um ser como aquele? E no entanto,  ela julgou sentir uma ternura infinita na voz  deles...

Então o único Senhor torna a apertar sua mão entre  as dele com uma força da qual ela não o julgava  capaz. Ela morde os lábios para não gritar. Depois,  ele diz baixinho:

- Tenha paciência, filha, tenho muito para lhe  contar.

A noite inteira, o único Senhor fica segurando a  mão de Anamaya.

A noite inteira, ele conta e conta. Sua voz, tão  baixa, não pára de dizer como se ele não tivesse  outra força senão essa.

Ele conta o passado, o nascimento do Mundo, a  fundação do Reino de pelo primeiro Inca, e a  paciente conquista das montanhas, das planíces dos  lagos pelo Filho do Sol.

Conta como ele, Huayna Capac, o Décimo Segundo  Filho, estendeu o Império das Quatro Direções para o  norte, até as montanhas ardentes de Quito, e ao sul,  muito além do lago Titicaca, onde a neve e o gelo  permanecem em todas as estações.

Conta suas batalhas, as cidades subjugadas e os  povos conquistados. Sem fôlego, os lábios  dilacerados por tantas palavras pronunciadas, ele  diz o que são o poder e a sabedoria, a grandeza e a  força dos Filhos do Sol. Com soluços misturados aos  arquejos de sua agonia, ele diz o quanto sua Mãe Lua  o amou, o quanto ele está feliz de finalmente ir  juntar-se a Inti, seu Pai Sol. Mas confessa o quanto  tem medo de reencontrar seus Ancestrais no Outro  Mundo. Eles vão censurá-lo por não ter garantido o  futuro do Império colocando a Fita real na cabeça de  um de seus filhos.

Ele diz que contudo espera virar pedra, como os  Velhos de sua raça, pousado na relva macia de uma  montanha de Cuzco.

E, finalmente, ele lhe conta um segredo. Segreda- lhe o futuro!

Mas então, é como se as palavras não mais  passassem pela boca e pelo ouvido, mas sim da mão  descarnada do único Senhor para a mão fresca da  menina.

E Anamaya está embriagada de palavras e frases.  Não ouve mais.

Ela não tem consciência de que todos os Poderosos  do Império se comprimem à porta do aposento,  enchendo o grande pátio do palácio iluminado por  centenas de tochas.

Todos estão ricamente vestidos e adornados. O ouro  de seus brincos cintila na noite como se, de  repente, estrelas se tivessem reunido. Mas eles  permanecem em silêncio absoluto. Só se ouve o  murmúrio da voz do único Senhor, como um zumbido de  um inseto excitado.

E a noite inteira os Poderosos olham essa coisa  inconcebível: o único Senhor, deitado em seu leito  de morte, segura a mão de uma menina ajoelhada,  cambaleando de exaustão! Uma menina impura de olhos  de lago, nem sequer uma criança de grande linhagem.  E ele fala sem parar!

A ela, ele confia todos os segredos que só o Filho  do Sol conhece!

A ela, ele confia o segredo dos Pais e dos  ancestrais!

Muitos gostariam de gritar diante do sacrilégio.  Mas ninguém ousa.

Quando o sol volta ao horizonte, Anamaya está  exangue como se lhe tivessem esvaziado o coração.

Cem vezes, ela quase dormiu. Cem vezes, com a mão  livre, ela se arranhou até tirar sangue das coxas  para não deixar seus olhos se fecharem. Cem vezes,  as pupilas amarelas do puma penetraram-na e a  mantiveram desperta.

Agora, no dia que vem raiando, seu corpo está tão  entorpecido que ficou insensível e gelado como se  estivesse coberto de neve. Seu espírito está  congelado e as frases pronunciadas pelo único Senhor  já se apagaram.

Mas, de repente, enquanto as pálpebras dos  Poderosos, sempre de pé no pátio, se fecham,  enquanto as cabeças caem de cansaço, o murmúrio  cessa. Anamaya estremece, a nuca rígida, os olhos  arregalados.

Em seus dedos tão entorpecidos, ela sente uma  ponta de fogo. O Único Senhor treme de novo  respirando alto e depressa.

Seu velho rosto ficou amassado durante a noite,  como se os ossos das mandíbulas e das têmporas  tivessem derretido.

Mas suas pupilas, opacas como a noite que ele  acaba de atravessar, ardem com um fogo tão violento  quanto o que funde o ouro, e esse fogo penetra no  azul dos olhos de Anamaya como se, juntos, eles  pudessem ir para o Outro Mundo.

Ela não tem medo, mas seu coração se dilacera e se  abre a todas as dores. Ela vê diante de si sua mãe  morta na aldeia e o rosto do velho. Uma onda de  tristeza lhe esmaga o peito. As lágrimas rolam em  seu pescoço.

O soluço que ela deixa escapar, todos escutam, até  o fim do pátio. E todos estremecem de medo.

No entanto, o único Senhor se agarra uma última  vez à mão de Anamaya, com tanta força que a faz cair  em cima de seu leito, e ele grita:

- Menina Anamaya! Filha do lago, filha de Quilla!  Que sua vida seja longa deste lado do mundo! Pois  hei de me lembrar de você quando estiver perto de  meu Pai Sol!

Ele cai para trás e acabou-se. Está morto.   Um imenso gemido se levanta no pátio real.   Como uma onda quebrando, Anamaya escorrega no  chão.

 

                                 Quito, dezembro de 1527.

- Será que você é uma menina sem cérebro e sem  memória? Ouve e não compreende as palavras? O Único  Senhor passa uma noite inteira lhe falando sem que a  repercussão disso em você seja maior do que o  barulho que faz uma folha de coca entre os seus  dedos?

Há horas, o Sábio Villa Oma faz as mesmas  perguntas. Ela só tem uma resposta, que repete,  cabisbaixa:

- Não sei, Poderoso Senhor, não sei mais. Não  entendi... Ele falava, falava! Dizia palavras que  não conheço. Eu não queria esquecer. Mas o puma me  olhava e tudo se apagou...

- O puma olhava para você e tudo se apagou!

Há tanta ironia amarga e raivosa nesse sarcasmo  que Anamaya vira o rosto.

- Acalme-se, Villa Oma! - intervém secamente  Atahualpa.

Villa Oma bate com o punho em seu plastrão de ouro  e dá dois passos para o lado, como se esse movimento  pudesse absorver um pouco de sua raiva.

No quartinho escuro, mobiliado apenas com um leito  e um grande jarro vazio, o ar fica irrespirável.     Villa Oma puxa a capa e se vira, agitando a mão  com veemência:

- Poderoso Senhor Atahualpa, meu irmão de  linhagem! - exclama. - Eu o respeito, mas me parece  que você não avalia a gravidade da situação. Há uma  lua o seu pai Huayna Capac se foi para o Outro  Mundo. Ele partiu sem designar um sucessor. Talvez,  na confusão da agonia, ele tenha confiado o último  desejo a essa menina, mas pronto! Ela olhava para os  olhos de uma pele de puma e tudo se apagou!

Villa Oma aproveita um silêncio para fitar Anamaya  com nojo. Ela sente os joelhos bambearem e a  vergonha lhe gelar o peito.

- Assim - continua o Sábio em tom glacial -, assim  o Império vive dias sem luz. Nenhum Inca pode  pretender colocar a borla imperial na cabeça. O  Império das Quatro Direções está sem centro. Inti  não tem mais nenhum Filho para nos governar! Acha  que isso pode durar sem que nosso mundo se quebre?  Atahualpa! Atahualpa! Você poderia ser o único  Senhor... - Você sabe por que recusei, Villa Oma!  Inútil tornar a falar nisso. - O que importa o  motivo! Sua recusa forçou Huayna Capac a tomar  decisões ruins enquanto ele estava doente e já meio  no Outro Mundo.

- Villa Oma, meça suas palavras!

- Essa não é a verdade simples? Quem ele designou  para o seu lugar? Seu último filho que não tinha uma  lua de idade! Um bebê! E os oráculos foram péssimos.    Os adivinhos afirmaram que era uma escolha  execrável. Infelizmente, devastado pela doença, seu  pai se obstinou...

- Você não está me contando nada de novo, Villa  Oma. Está se repetindo e sendo desrespeitoso!

- Então vou lhe dar uma notícia, chegada hoje ao  amanhecer...   - Diga.

- Os sacerdotes foram a Tumebamba para colocar a  Fita real na testa desse bebê, já que ele era o  designado. E ao chegarem, o bebê já estava tão morto  quanto o pai!

O silêncio súbito pesa sobre eles como um vento  frio. Anamaya, sem querer, ouve atentamente.  Permanece o mais imóvel possível. Adivinha a  respiração lenta de Atahualpa e o ranger dos dentes  do Sábio, que pergunta:

- O que vai acontecer agora? Diga, Atahualpa, você  que sabe!

- Os clãs poderosos de Cuzco colocarão sem hesitar  a Fita real na testa de meu irmão Huascar - admite  Atahualpa sombrio. - Ele é que foi designado em  segundo lugar...

- Sim! Mas os oráculos foram tão negativos quanto  com o bebê! E mesmo que tivessem aprovado essa  escolha, você conhece Huascar tanto quanto eu. Ele é  imprevisível. Por enquanto, submete-se de bom grado  aos tios e tias de Cuzco que querem reinar sem  divisão e só têm ódio no coração por todos os clãs  do Norte. Ninguém pode saber o que ele quer fazer  das Quatro Direções, mas uma coisa é certa: vai ser  com sangue. Ele gosta de fazer sofrer! E vai nos  escolher como inimigo. Eis do que será feito o  amanhã. Acha isso sensato? Eu lhe digo. Tenho medo  da cólera de Inti nosso Pai. Tenho medo, das lágrimas de Quilla e da ira de Illapa! Atahualpa, só  você pode manter o rio unido e poderoso!

Com uma voz controlada, Atahualpa responde  simplesmente:

- Não. Huascar usará a borla. Assim quis meu pai  Huayna Capac.   Furioso, Villa Oma bate o pé com tanta violência  que Anamaya se assusta. O Sábio agita na direção  dela um dedo seco e duro como uma ponta de lança. Na  penumbra, seus lábios e seus dentes esverdeados pela  coca parecem pretos e lhe fazem uma boca vazia e  terrível de onde as palavras saem troando:   - O que sabe sobre isso? Ele confiou a verdade  dele a essa garota! Uma noite inteira! Temos de  saber o que lhe disse. Basta ela se lembrar!... Ah,  Atahualpa! Confie-a a mim, deixe que eu lhe arranque  a pele se for preciso. Prometo-lhe que antes desta  noite...

- Não, Villa Oma - interrompe Atahualpa com um tom  que não permite réplica. - Você não vai fazer nada  disso.

Por um breve instante, os dois homens se enfrentam  com o olhar. Anamaya está prestes a desabar quando o  Sábio finalmente se dirige para a porta estreita do  aposento. Com uma ordem seca, Atahualpa o chama.

- Ouça com atenção, irmão Villa Oma! Sei que você  fala para o meu bem, e não esquecerei disso. Mas  quero respeitar as escolhas de meu pai, mesmo que  elas não me agradem. Se ele achou que essa menina  lhe foi enviada por nossa Mãe Lua, é porque tinha  seus motivos.

Villa Oma suspira. Após uma hesitação, volta para  perguntar: - O que quer que eu faça?

- O que deve ser feito. Você ouviu como eu ouvi  quando meu pai disse: "Menina Anamaya! Filha do  lago, filha de Quilla! Que sua vida seja longa deste  lado do mundo... " Ele a designou para que ela fosse  a guardiã de seu "Irmão-Duplo". Assim será.

Villa Oma sacode a cabeça, o rosto cansado. Como  se estivesse dando uma aula a um aluno insuportável,  diz:

- Isso não existe. Os Irmãos-Duplos nunca tiveram  Esposa.

- Pois bem, doravante isso vai existir. Você mesmo  anunciará aos sacerdotes: essa menina será a Coya  Camaquen do Irmão-Duplo.

- Eles não vão querer isso! Deixe-me botá-la no  fosso dos pumas e ela vai se lembrar.

- Não! O Único Senhor Huayna Capac a quer perto  dele e aqui. Os Senhores presentes na noite da  passagem dele para o Outro Mundo viram e ouviram  isso tão bem como nós.

- Essa menina não passa de uma selvagem! -  protesta ainda Villa Oma. Não sabe o que é uma Coya Camaquen, nunca viu o Irmão-Duplo! Cabe a você fazer  o que for preciso para que ela fique sabendo. E  logo... - Atahualpa! Ela não é uma verdadeira inca;  por que deveríamos lhe confiar nossos segredos? É  contra a tradição e contra a lei... Se você estiver  enganado, sabe o que acontecerá conosco?

- Não posso me enganar seguindo a vontade de meu  pai.

- Quem pode dizer? Se nosso erro for grande  demais, o Sol não transporá mais as montanhas do  leste! Você quer que na manhã do dia igual à noite  ele permaneça no Mundo de Baixo? Que o tempo pare e  que a gente acabe?

Cada uma dessas palavras é um golpe no coração de  Anamaya. Mas Atahualpa ordena com sua voz calma:

- Pare de gemer, Villa Oma, e faça o que lhe peço.

O Sábio fica um instante de olhos fechados, mas  acaba cedendo, vencido. Então, com um movimento  rápido, segura o queixo de Anamaya com os dedos  duros como pau. Levanta seu rosto e encara-a com  seus olhos escuros:

- Menina Anamaya! Você ouviu? Agora vai me  obedecer em tudo. É assim que meu irmão Atahualpa  quer. E prometo-lhe que se algum dia sua língua e  sua memória se soltarem para que você conte a outra  pessoa que não eu o que o único Senhor lhe disse  antes de morrer, cortarei seu coração em pedacinhos!

Ele larga o rosto da menina com tanta violência que  é quase como uma bofetada. Enquanto sai sem um olhar  para Atahualpa, os joelhos dela bambeiam e ela  desaba no leito estreito. Seu orgulho nada pode, o  pavor lhe tira o fôlego, ela soluça, a boca aberta,  mal contendo um pequeno grito. O Senhor Atahualpa a  observa um instante, hesitando, depois dá um passo e  se inclina. Com as pontas dos dedos, toca em seu  ombro, esboça uma carícia com as costas da mão.

- Olhe para mim, menina - ordena com doçura.

A discussão com o Sábio deixou o branco de seus  olhos mais vermelho que nunca. Mas um ligeiro  sorriso paira em seus belos lábios.

- Não chore, menina Anamaya - diz ele baixinho. -  Seja forte e digna. Não tenha medo do Sábio. Ele  grita muito, mas não é tão mau quanto parece. Ele  quer o nosso bem...

Atahualpa perscruta-a como se procurasse ainda  alguma coisa no enigma de seus olhos azuis. Não  sorri mais. Seu rosto está de novo severo quando ele  anuncia:

- Não tenha medo de ninguém. Vou protegê-la tanto  quanto meu Pai quiser lá do Outro Mundo.

- Anamaya, minha irmã...

Tendo entrado furtivamente no aposento depois que  Atahualpa saiu, lnti Palla se ajoelha ao lado de  Anamaya e acaricia sua mão. Seus dedos passam pelo  bracelete das serpentes. Seu olhar brilha de  curiosidade.

- É verdade o que dizem? murmura ela.   Anamaya olha para ela sem entender.

- Que você não se lembra de nada! - acrescenta  Inti Palla piscando com irritação. - De nada do que  o único Senhor lhe disse...

Anamaya hesita em responder. As ameaças do Sábio  Villa Oma ainda ecoam em sua cabeça. Mas ela não  queria parecer não confiar na nova amiga. Senhor me  falou e suas palavras estão em mim - diz ela  - O Único senhor me falou e suas palavras estão em  mim - diz ela com precaução.   - Mas você não se lembra? - repete a princesa  apertando-lhe o pulso com força.

- Quando o único Senhor quiser, vou me lembrar...

Inti Palla suspira, mas o que lê no olhar azul de  Anamaya a impede de insistir. Seus dedos se soltam,  esboçam uma carícia negligente. Um sorriso que nada  tem de amigável lhe entreabre ligeiramente os  lábios.

- Pior. Se não quer confiar em mim...

- Inti Palla, não posso! Não tenho o direito!

A jovem princesa dá de ombros, levanta-se  arrumando o alfinete de ouro na capa. Numa fração de  segundo, recuperou uma arrogância, um desdém que  Anamaya não via nela há muito tempo.

- Não tem a menor importância - diz ela. - Eu  vinha lhe anunciar uma coisa mais importante. Como  não saiu deste quarto desde a morte do único Senhor,  você não deve estar a par...

- Eu não tenho o direito de sair - murmura Anamaya  lançando um olhar de desprezo para o cortinado da  porta.

- É exatamente o que eu dizia! - continua Inti  Palla. - E eu também não devo me demorar muito aqui.  Mas é melhor você saber. Assim que terminar o jejum  pela passagem do único Senhor para o Outro Mundo, eu  serei a concubina do Poderoso Atahualpa!

- Oh  - Sim... Está espantada?

- Não! Você é bonita! Eu compreendo...

- Sim - ri Inti Palla, cheia de presunção. - Acho  que ele me acha; muito bonita. E sabe, não tem  importância nenhuma você não querer me contar nada.  Eu vou saber de outra maneira. Em pé, os Senhores  são cheios', de orgulho e de silêncio, mas, quando  estão deitados nos braços das concubinas, é outra  história!

Inti Palla sai com um farfalhar da túnica de fina  lã e uma boa gargalhada.   - Não acredite em nada do que ela conta - diz uma  voz grave e profunda que ela reconhece logo.

Inti Palla é mentirosa e cruel!

O Anão sai de dentro do jarro, tirando primeiro os  ombros, depois o busto e as pernas. Sua basta  cabeleira está salpicada de grãos de milho.     Agilmente, ele senta na borda e contempla Anamaya  seriíssimo.

- Muito mentirosa e ruim como uma cobra ferida -  prossegue ele sacudindo a cabeça para se livrar dos  grãos de milho. - A primeira vez que ela me viu, me  encheu de pontapés. Ela se submete aos fortes e  esmaga os fracos. Só ouvir o que ela diz já é fazer  mal a si mesmo.

Não fora a surpresa, Anamaya cairia na gargalhada  diante da cena desse aborto da natureza saindo feito  um macaco de dentro de um pote, a cabeça como que  coberta por uma chuva de ouro da planta sagrada. Mas  ela franze o cenho com severidade e quer se mostrar  ofendida:

- Em que você está se metendo e o que está fazendo  aí?   - Eu velo por você, Princesa.

- Não preciso de você para saber quem são meus  amigos.   - Ah? Tem certeza?

O Anão brinca. Com agilidade, sai completamente do  jarro e pula para o chão para se prosternar diante  de Anamaya, que mal contém o riso.

- Princesa!

- Pare de bancar o idiota!

- Não estou bancando o idiota, Princesa - protesta  o Anão com uma gravidade dolorosa. - Ao contrário.  Meu amo morreu, e só quero a honra de servi-la.

- Servir a mim? Eu sou feia e...

- Já olhou bem para mim, Princesa?

A gargalhada que Anamaya contém desde a aparição  do Anão finalmente estoura - uma gargalhada que a  sacode profundamente e a libera. Há tempo ela não  ri, há tanto tempo o sofrimento e o medo estão nela,  que ela não consegue mais parar. O Anão se levanta e  agora fica impassível diante dela.

- Me desculpe - balbucia ela quando finalmente se  acalma. - Eu nem sei quem você é...

- Não ouviu o nosso único Senhor me chamar de  filho?

- Ouvi, mas...

- ... mas achava que a doença já estava levando o  espírito dele, não é?   - Não sei. Eu estava com muito medo e talvez não  tenha...

- Não se aflija - corta o Anão sem maldade -, você  não ofendeu minha dignidade...

Através do cortinado animado por uma leve brisa,  ela vê as sombras da agitação do palácio. O Anão  adivinha sua aflição e a varre com um gesto.   - Ninguém entrará - murmura ele, cúmplice.

- Como sabe?

- Conheço essas coisas - diz ele com uma segurança  cômica.

Eles se calam um momento, um em frente ao outro,  Anamaya se acostumando progressivamente à sua  estranha presença, sua cabeça desproporcionada que  lhe chega à altura do peito, essa longa túnica  vermelha cujas franjas arrastam no chão e se sujam  de terra e de lama. Ele já a usava no primeiro dia,  quando ela o descobriu ao pé do leito do único  Senhor.

- Você nunca tira essa túnica?

- Eu a usava no dia em que o Senhor Huayna Capac  me capturou e fez de mim seu filho...

- Não estou entendendo.

- Pertenço à tribo dos canaris que sempre fez  guerra aos incas. Um dia em que Huayna Capac  perseguiu minha gente até o lago Yaguarcocha e fez  estragos terríveis em nossas casas, eu me refugiei,  tremendo, embaixo de uma pilha de cobertores de lã  grossa...

A cara do Anão muda de expressão de uma palavra a  outra, como um céu na estação das chuvas. O medo  extremo e o divertimento passam sucessivamente em  seus olhos.

- Eu ouvia a raiva terrível dele explodir em  palavras como nuvens carregadas de tempestade.  Enfim, eu tinha medo de morrer, um medo terrível e ignóbil. Quando senti a mão remexendo os cobertores,  achei mesmo que havia chegado o meu fim.

- Você deve ter suplicado muito!

- Absolutamente, Princesa. Não sei por que,  exclamei absurdamente: "Quem me descobriu? Quero que  me deixem dormir!" E repeti isso várias vezes, me  levantando bocejando, em cima dos meus cobertores,  como se estivesse acordando de um sono profundo. "Me  deixem dormir!”

Anamaya ri de novo, o coração leve.   - O que disse o único Senhor?

- Fez como você, Princesa. Riu a bandeiras  despregadas. E com ele riram todos os que estavam em  volta, generais, combatentes, Senhores, todos com  aquele brilho feroz no fundo dos olhos, mas estavam  rindo porque o amo ria. O único que não ria era seu  filho dos olhos vermelhos...

- Atahualpa? Por quê? O Anão se cala.

- Eu sei o motivo e algumas outras pessoas  também... Mas creia, é melhor não saber...

- Então você também tem um segredo perigoso.

Ele faz com o lado da mão o movimento de cortar a  garganta.

- É isso o que vale minha vida, nada mais. Enfim,  se o Rei Huayna Capac não tivesse declarado que eu  era seu filho, seu filho mais velho, e que me deviam  respeito... É por isso que continuo vivo. Mas agora  que ele foi para o Outro Mundo...

O Anão se cala de repente. Anamaya não tem mais  vontade de rir. Perdi meu pai - prossegue ele com  gravidade, uma tristeza em que não há mais vestígio  de brincadeira.

O coração de Anamaya está aos pulos. Com sua voz  grave, sem emoção aparente, o Anão acrescenta ainda:

E eles me odeiam tanto quanto a odeiam!

- Você é tão sozinho quanto eu, não é? - murmura  Anamaya entendendo finalmente aonde ele quer chegar.

- Parece.

No silêncio que os une, Anamaya não tem mais medo  de ser uma menina. Emoções antigas, que ela não  procura compreender, fazem-na estremecer. Uma onda  de ternura lhe aperta o ventre, turvando seus olhos.    As palavras se comprimem no fundo de sua garganta  apertada. Ela queria lhe contar, lhe confiar seus  terrores e o pouco que ela se lembrava. Mas só  consegue balbuciar sons informes. Enquanto lágrimas a  sufocam, a mão larga do Anão, falanges bizarramente  desproporcionais, segura a sua com extrema doçura.   - Não diga nada, Princesa! Não diga nada, está  tudo bem.

- Eu queria... Eu queria...

Mas as palavras continuam não vindo. Ela se  aconchega ao Anão e, de repente, sente-se minúscula,  tão pequena, menor que ele, tão perdida, desamparada!  E contudo, pela primeira vez em luas, seu coração se  enche de esperança e de reconhecimento.

Finalmente ela encontrou um amigo.

A cada ruído, cada visita, o Anão se esconde.

Quando a noite avança, ele se deita ao lado dela, na  esteira, e os dois conversam.

Ela lhe conta sobre o ataque da aldeia, a morte de  sua mãe, o capitão Sikinchara, a estranha paixão  odiosa que lhe dedica Inti Palla, seu medo agora que  o segredo confiado por Huayna Capac está nela e que  todo mundo quer possuí-lo.

Ele lhe fala da corte e suas intrigas, dos ódios  das concubinas, da crueldade dos Poderosos. Conta- lhe também o segredo que Atahualpa esconde no  coração, o verdadeiro motivo por que ele não pode  ser o Inca. Diz-lhe para não confiar em ninguém  senão na palavra escondida dentro dela, a que o  único Senhor depositou e que dorme em seu seio.

Eles não confessam que têm medo de ser separados,  agora que se encontraram, mas prometem velar um pelo  outro o mais que puderem.

Ele a faz rir baixinho e ela o chama de "meu  Senhor" enquanto ele a chama de "Princesa". Na  solidão da noite, eles largam a pele de suas  solidões terríveis, as camadas de seus medos  acumulados.

Quando a aurora se aproxima, o Anão diz a Anamaya  que logo vão matá-lo, ele sabe.

E com todas as forças, ela se agarra a ele, como  se estivesse se afogando, pedindo-lhe que não morra,  que não a deixe.

 

                                     Quito, janeiro de 1528

- Coya Camaquen! Coya Camaquen! Acorde por favor!

Anamaya levanta-se sobressaltada, apoiando-se no  cotovelo, espantada. Seis ou sete jovens mulheres  comprimem-se em seu quartinho. E, na hora em que ela  faz menção de se levantar, as criadas já se  prosternam e recuam até as paredes, com todos os  sinais de respeito só concedidos a uma mulher de  alta posição.

Cabeça baixa, a mais velha das jovens, que não tem  o dobro da idade de Anamaya, ajoelha-se. Coloca as  palmas das mãos no tapete que cobre batida e, o  rosto inclinado, murmura:

- Coya Camaquen, você deve nos seguir, por favor. "Coya Camaquen”.

Assim, a vontade do Poderoso senhor Atahualpa se  realizou, apesar da resistência do Sábio Villa Oma.  "Coya Camaquen!”

Se ao menos ela soubesse o papel e quais são os  seus deveres! Mas ela não tem muito tempo para se  fazer perguntas.

O reposteiro da porta é levantado e o sol brilha  lá fora. Afinal, sair desse aposento que mais lhe  parecia uma prisão do que um quarto.

Ela não tornou a ver o Anão desde a noite em que  ele veio quebrar sua solidão oferecendo-lhe a dele. Às vezes, ela se pergunta se isso não foi um  sonho... Ela se levanta, e segue as criadas que não  ousam encará-la. Mas mal dá alguns passos ao sol,  arrepia-se toda.

Lamentos ecoam pelo imenso Palácio Real. As flores  dos jardins foram cortadas e murcham no chão. As  Esposas do Único Senhor vão de um lado para o outro,  chorosas, o rosto desfeito de tristeza. Todas  parecem errantes e perdidas, andando de um lado para  o outro, sem objetivo.

As criadas fazem-na entrar num novo pátio. Ali, há  homens também soturnos reunidos em pequenos grupos.  Pelas roupas e pelos discos de ouro de suas orelhas,  vê-se que são Senhores. Quando ela passa, eles olham  para o outro lado e permanecem imóveis até ela se  afastar.

Finalmente, Anamaya entra numa das grandes casas  de pedra. As paredes são revestidas de placas de  ouro, e há nichos altos com lhamas de pedra e de  cerâmica, e vasos de madeira finamente pintados.  Sobre um banco de madeira, há roupas magníficas  aguardando. A lliclla, uma capa de um vermelho- escuro, com listras formando um grande V, azul-claro  e amarelo-vivo. Quando Anamaya toca no pano, seus  dedos estremecem. Ela mal ousa pegar no tecido:  parece pele de criança!

Quanto ao acsu, a túnica, é uma maravilha que ela  nunca viu igual. Do mesmo vermelho que a lliclla, é  decorada com duas largas barras de motivos  geométricos, amarelos e brancos, azuis e vermelhos, de tamanha perfeição e fineza que alguns traços de  cor são da espessura de um fio de cabelo...

- São os motivos do Único Senhor Huayna Capac! -  resmunga uma voz atrás dela que ela logo reconhece.

Na emoção de suas descobertas, ela não ouviu o Sábio  Villa Oma entrar no aposento. As criadas recuaram e  mantêm o rosto inclinado. O Sábio aponta para a  túnica e a capa:

- Acho que devo lhe contar tudo, menina Anamaya!  De agora em diante, você pertence ao clã do falecido  Único Senhor. Em determinadas cerimônias, sua capa e  sua túnica serão brancas. Do contrário, você usará  as cores dele, Coya Camaquen...

Como se essas últimas palavras ainda o deixassem  incrédulo, o Sábio se interrompe com um suspiro e,  com uma expressão triste, mascando suas folhas de  coca, examina Anamaya. Sacudindo a cabeça,  acrescenta, como se falasse apenas para si mesmo:

- "Coya Camaquen!" Eis o que você é. Atahualpa  assim o quis e não consegui dissuadir os sacerdotes.  Que Inti nos apóie em nossa loucura!

- Poderoso Sábio...

- Inútil fazer perguntas agora, menina Anamaya,  mais tarde lhe explicarei o que deve saber!

Ele se vira para as criadas e diz bruscamente:

- Vistam-na logo! Que ela não me faça esperar!

Quando Anamaya reaparece no pátio central do  palácio, os Poderosos de grandes brincos de ouro  param de falar, mas não viram para o outro lado. Ao  contrário, fitam a menina com seus olhares severos.  Mais de um se impressiona, não com a estranheza de  suas proporções, sua altura, sua tez, clara, seu  nariz muito reto, seus lábios muito finos, mas sim  com a extraordinária força da cor azul que brilha em  suas íris. Mais de um pensa que esse azul tão  estranho é como uma derradeira e extraordinária jóia  acrescentada às cores do único Senhor Huayna Capac.

Fazendo o melhor que pode, constrangida com tanta  atenção, Anamaya se força a se adiantar com modéstia  para o Sábio Villa Oma.

Em pé junto ao pórtico do pátio seguinte, ele está  segurando uma pesada lança cerimonial, uma chuqui de  ponta de ouro, de onde pendem plumas verdes e  vermelhas. Imóvel, ele a espera, obrigando-a a  atravessar sozinha todo o imenso pátio, no meio da  multidão de Senhores. Mas, com o canto do olho, não  perde nenhum dos olhares de estupefação que a  acompanham.   Quando, afinal, ela chega a alguns passos dele,  ele diz entre dentes:   - Agora você me segue. Você ouve e só fala quando  eu mandar.

Ele se afasta e ruma com passos enérgicos para o  pórtico. Soldados estão aí postados de cada lado de  um imenso cortinado cor de sangue. Ao chegar ao  local onde eles estão, Villa Oma bate no chão com  sua chuqui. Os soldados se afastam enquanto o Sábio  afasta o cortinado e entra. O coração aos pulos,  Anamaya o segue.

Uma vez passado o pórtico, ela fica paralisada,  incapaz de dar mais um passo.

O pátio seguinte é imenso e cuidadosamente  calçado. Há construções baixas em três de seus  lados, as aberturas fechadas por cortinados de  plumas azuis e amarelas. Cada um de seus muros,  assim como os que cercam o pátio, é revestido de  placas de ouro tão finas que estremecem à mais leve  aragem.

Esse ligeiro movimento é um deslumbramento puro.  Sob a intensidade do sol da tarde, parece que um rio  de ouro em fusão cerca o pátio. A luz é de uma  violência extrema, hipnótica.

Anamaya pisca ofuscada. Arrepios percorrem seus  músculos e deixam sua pele irisada embaixo das  roupas macias.

Com alguns passos, ela acaba de penetrar no olho  terrestre de Inti, o Sol Pai dos incas. Tudo aqui  parece mais pesado e o ar, difícil de respirar.

Villa Oma, sem esperá-la, vai até o centro do  pátio. Ali, os cortinados revestidos de uma  infinidade de chapinhas de ouro redondas delimitam  uma espécie de quarto sem teto.

Quando chega ali, Villa Oma vira-se para Anamaya e  faz um gesto imperioso para que ela se aproxime.

A garganta apertada, ela dá um primeiro passo. Os  reflexos incandescentes do ouro e do sol misturados  iluminam a pele nua de seu rosto. Ela treme de febre  e de frio. O suor lhe escorre da nuca até a cintura.  Seus pés custam a levantar sobre as lajes ardentes.

Quando ela afinal chega perto do Sábio, ele lhe dá  as costas e aponta sua lança para o sol. Joga o  rosto para trás e murmura com uma voz surda e  profunda:   - Inti! Inti, Poderoso Senhor do dia! Eis que a  Coya Camaquen de seu filho Huayna Capac vem se  curvar à sua frente. Acolha-a e não se choque com a  ignorância dela!

Só então, ele levanta o cortinado de ouro com sua  lança e, com um olhar, convida Anamaya a segui-lo.

Aquele cuja mão ela segurou a noite inteira  enquanto ele morria está ali. Está deitado num  espesso colchão de relva e de palha de quinoa  colocado sobre esteiras finas. Em volta dele, velam  grandes lhamas de ouro. Em grandes bacias de  terracota, ardem folhas de coca. E, a alguns passos,  numa estela de granito polido, ergue-se uma estátua  de ouro com olhos de esmeralda.   A carne do cadáver está escura e esticada. Seu  ventre está aberto, vazio e coberto por uma pasta  preta, brilhante, que cheira a queimado. Anamaya  enfia as unhas nas palmas das mãos para não gritar e  sair correndo. Nunca, nunca, nem quando a mãe morreu  juntinho dela, ela viu uma coisa tão terrível.  

Ao seu lado, o Sábio se curva e murmura palavras  que ela não entende. Ela se pergunta se deve fazer o  mesmo, mas, como ele não a mandou fazer nada, ela  fica de pé, petrificada de medo.

Com um esforço, tira os olhos do ventre e do tórax  abertos, atraída pelo rosto do Inca, cujas pálpebras  estão levantadas sobre órbitas vazias. As maçãs do  rosto salientes estão esticadas, os lóbulos das  orelhas pendem, distendidos e estranhos agora que  não seguram mais os grandes discos de ouro. No  entanto, a expressão do Filho do Sol, que ela só viu  contraída em esgares de dor, é bela e calma.   Depois, sobretudo, atrás dele, a estátua de ouro  parece contemplá-lo com um olhar vivo. Do tamanho de  uma criança, representa um homem em pé, as mãos  abertas pousadas nas coxas. Seu rosto, bem  reconhecível, é o rosto do morto.

Trêmula com tantas emoções, Anamaya cambaleia. Se,  naquele exato momento, a voz de Villa Oma não soasse  em seus ouvidos, bruta e distinta, ela desmaiaria.  Ele mostra a estátua e diz com aquela voz pesada:

- Menina, você está vendo à sua frente o Irmão- Duplo do seu único Senhor. Enquanto um foi se unir a  Inti, o outro permanece aqui, vivo entre nós, para  nos proteger. O Único Senhor designou-a para ser sua  companheira de sempre. E sempre, enquanto for viva,  você deverá permanecer perto do Irmão de ouro.  jamais, está me ouvindo, jamais deverá abandoná-lo. É  por isso que agora você será chamada de Coya  Camaquen: por sua boca, e com a vida de seu Irmão- Duplo, o único Senhor nos dirá o que deseja e nos  protegerá...

Anamaya treme mais ainda.

Não tem certeza se entende o sentido dessas  palavras... Durante alguns segundos, ela gostaria de  fugir e chorar como a criança apavorada que é. No  entanto, como se uma mão invisível acalmasse seu  coração e distendesse sua nuca dolorida, ela ouve o  Sábio. Permanece imóvel e paciente, ao mesmo tempo  que, aos poucos, vai se sentindo tranqüilizada pelo  rosto calmo do único Senhor.

- Agora - prossegue Villa Oma com uma voz lenta -,  repita comigo: Meu único Senhor, sou a esposa de sua  alma dupla...

As palavras se formam com dificuldade em sua boca  crispada. Todos os seus músculos ensaiam falhar e  sua barriga afunda como se se esvaziasse tanto  quanto a do cadáver que seca à sua frente.

- Repita! - ruge o Sábio, fitando a estátua de  ouro. - Meu único Senhor, sou a esposa de sua alma  dupla.

- Meu único Senhor, sou aquela que vela aqui,  enquanto você vive no Outro Mundo!

- Meu Único Senhor, sou aquela que vela aqui,  enquanto você vive no Outro Mundo!

- Meu único Senhor, eu serei a esposa fiel de seu  Irmão-Duplo. - Meu único Senhor, eu serei a esposa  fiel de seu Irmão-Duplo...   - Agora, Coya Camaquen Anamaya, prosterne-se  diante daquele a quem você serve!

 

                                 Quito, fevereiro de 1528

Mais cinco vezes, nos vinte e cinco dias  seguintes, o Sábio Villa Oma leva Anamaya ao pátio  do Sol onde ninguém tem o direito de entrar, exceto  os sumos sacerdotes.

Mais cinco vezes, ela vê o único Senhor se  mumificar. Ora seco pelo sol e por camadas de relva  e salitre, ora congelado à noite por blocos de gelo  cobertos de palha trazidos da montanha expressamente  para isso.

Nas últimas vezes, o corpo não está mais deitado  mas sim mantido sentado por escoras de junco. Suas  pernas estão dobradas e seus calcanhares, enfiados  sob as coxas, tão secas que têm apenas a grossura  dos ossos. Afinal, na última de todas, o Corpo seco  do único Senhor não está mais nu, mas sim coberto  por um magnífico tecido de vicunha. Um diadema de  plumas encima seu rosto tranqüilo.

Isso causa uma impressão tão forte que, por um  instante, na penumbra, Anamaya julga ver os lábios  se moverem e os olhos se fixarem nela.

A cada uma de suas visitas, Villa Oma perde um  pouco de seu ar rude. Sua voz torna-se paciente  quando ele manda que ela pronuncie sempre as mesmas  frases diante da estátua do Irmão-Duplo. Com calma,  lembra-lhe que o mundo tem três partes. Uma está  debaixo de seus olhos e se chama o Kay Pacha. Contém  as montanhas, os lagos, os animais, os homens e as  coisas que eles produzem. Contém suas guerras e suas  alegrias, os nascimentos e as doenças. Contém a  ordem e a Lei dos Incas de Cuzco, os Príncipes do  Império das Quatro Direções e os únicos Senhores  humanos que o Sol considera seus filhos.

- O Sol vive no Mundo de Cima. Ali, circulam sua  Irmã Esposa Lua e seu Irmão Illapa, o Raio. E sob os  seus pés, Coya Camaquen, há a mansão dos  Ancestrais...

- Mas onde está o único Senhor agora? - espanta-se  Anamaya.

- Por toda parte, menina. Perto de seu Pai Sol no  Mundo de Cima. Perto dos ancestrais no Mundo de  Baixo. E aqui conosco, graças ao seu Irmão-Duplo e a  você que o ouve... Se conseguir!

Villa Oma esboça um sorriso. Agora, quando zomba  dela, já não o faz com raiva nem desprezo.

- É por isso que dizemos que ele está no Outro  Mundo - acrescenta. - Este Outro Mundo é o da  felicidade. Mas, para alcançá-lo, é preciso ter  vivido aqui sem cometer erros, sem trair a Lei de  Cuzco. E morrer.

O sábio masca um instante sua coca em silêncio,  depois conclui balançando a cabeça:

- Você não deve morrer sem que o único Senhor lhe  peça para fazê-lo! E não deixe o Irmão-Duplo. Está  entendido?

Será que ela entende realmente? Ela não tem  certeza.

É na manhã desse dia que, pela primeira vez, ela  revê o poderoso Senhor Atahualpa. Ele entra em seu  quarto enquanto ela está comendo sozinha. Surpresa,  quase vira o prato de sopa e batatas.

Imediatamente, ela se inclina e se ajoelha junto  ao leito, mas Atahualpa diz com gentileza:

- Pode se levantar e me olhar, Coya Camaquen.

Ela obedece um tanto receosa. Todavia, o olhar de  Atahualpa lhe dá confiança. Ela o acha lindo e forte  como na primeira vez em que o viu, embora sua boca  esteja mais preocupada e severa. Ele diz:

- Anamaya, estou satisfeito com você. O Sábio me  diz que você aprende rápido, que obedece e parece  forte.

Ela cora, inclina docemente a cabeça para  agradecer. E a pergunta imediatamente irrompe:

- Coya Camaquen, você agora se lembra das palavras  do único senhor?

Com tristeza, ela balança a cabeça:

- Não, Poderoso Senhor. Eu não me lembro...   - Nem uma palavra?

- Não... Mas...   - Mas?

Ela se endireita e olha-o nos olhos para que ele  avalie sua sinceridade:   - Sei que as palavras estão em mim. Só acho que o  único Senhor não quer que eu me lembre hoje.

Atahualpa contempla-a em silêncio por um breve  instante antes de se aproximar. Lança um olhar na  direção do cortinado da porta antes de falar com  uma voz tão baixa que mal se ouve:

- Tem certeza?

- Não - responde Anamaya no mesmo tom. - Não, eu  não posso certeza. Mas quando estou com o Irmão- Duplo, sinto que não esqueci. Só que as palavras não  podem sair da minha boca.

Um raio de alegria brilha nas pupilas escuras e  rodeadas de vermelho de Atahualpa. Com um gesto  espantosamente doce, ele aproxima a mão e, com as  pontas dos dedos, afaga seu braço.

O silêncio que se segue prolonga-se até ele  murmurar ainda:

- Seja prudente, Coya Camaquen, seja prudente!  Posso protegê-la aqui, mas pessoas que não são do  meu clã podem lhe fazer mal.

- Por que, Poderoso Senhor? Por que elas haveriam  de querer isso?   - Porque essas frases que você guarda em você  podem decidir o futuro do Reino. Desconfie, menina  Anamaya, seja prudente em suas palavras, sobretudo  depois da grande cerimônia.

- A grande cerimônia?

- Você vai ver... Confio em você. Acho que meu Pai  fez uma boa escolha, ainda que estranha. Mas seja  vigilante, pois os homens do clã de meu irmão  Huascar não são bons. Eles também vão querer  conhecer as palavras que estão em seu corpo!

Mais tarde, novamente sozinha na noite, Anamaya  fica em pânico. O silêncio fechou-se sobre ela como  as mandíbulas de um abismo.

O silêncio em volta dela gelando o palácio. O  silêncio dentro dela congelando-a.

Será mesmo como disse o Senhor Atahualpa: as  palavras que estão seu coração e que dali não saem  são tão importantes? E por quê?

E, sobretudo, por que ela?

Ela não estaria mais apavorada se uma pedra lhe  esmagasse a nuca e lhe amassasse o peito.

Por que ela?

Ela ainda é apenas uma jovem menina! O que fez  para ter de suportar um fardo tão pesado?

E o que acontecerá se ela se enganar? Se as  palavras não estiverem nela, se ela simplesmente as  esqueceu, cansada demais de ouvir o Único Senhor  Huayna Capac falar sem parar?

Seu olhar se embaralha. Ao lado de seu leito, a  chama curta da lamparina desagrega-se atrás de suas  lágrimas.

Ela tem medo, tanto medo! E ninguém pode vir  ajudá-la. Desde que é Coya Camaquen, o Anão não pode  mais aproximar-se dela. Talvez até tenha medo  dela... Ela está sozinha. Sozinha nos três mundos  descritos pelo Sábio De repente ela estremece.

No canto mais escuro do aposento, parece-lhe ter  visto, num relance, o olhos amarelos de um puma  colados nela. Ela morde os lábios para não gritar  Seus dedos arranham o cobertor.

Sim, dois olhos de ouro a contemplam. O puma  contempla-a. Ela adivinha suas orelhas redondas, seu  focinho palpitante, as pontas de suas presas Ela  está sem fôlego. Palavras se formam nela, sem poder  sequer transformar se em som:

- Não me mate, puma! Não me mate, preciso viver  muito para acompanhar o Irmão-Duplo. Eu lhe suplico,  puma, não me devore. Deixe-me viva e saberei me  lembrar disso!...

Como veio, o puma se apaga. A sombra é apenas  sombra.   Anamaya só adormece muito mais tarde, ainda  sentada e trêmula.

No dia seguinte de manhãzinha, de repente, ouvem- se gemidos e grita horrorizados por todo o palácio.

Anamaya vai para o pátio, convencida de um novo  desastre. O que vê deixa pasma. As criadas e as  esposas estão dando voltas no vasto espaço entre os  prédios. Seguem uma atrás da outra a alguns passos  de distância, o rosto virado para o sol, aos  prantos. E de repente, possuídas por um sofrimento    incontrolável, jogam os braços para o céu e gritam:

- Viracocha! Viracocha! Apóie-nos!

Outras vezes, o rosto banhado de lágrimas, os  olhos arregalados de medo elas berram:

- Ó Inti, apóie nosso Único Senhor! Ó Inti, apóie- o! Que ele tenha paciência, pois logo estaremos  perto dele para amá-lo e servi-lo... Anamaya  estremece diante desse terrível espetáculo. Seus  braços se arrepiam todo. Enquanto recua na sombra do  prédio para refugiar-se em seu quartinho, ela ouve  um novo clamor ao longe, fora dos muros do palácio  Milhares e milhares de gritos explodem no céu e o  escurecem, embora não haja nenhuma nuvem.

Trêmula, ela se encolhe na beira do leito,  abraçando as pernas. Angustiada, espera durante  horas. Ninguém vai a ela. No meio desse imenso  tumulto de dor, parece que a esqueceram.

O medo e a dor acabam penetrando tanto nela que,  pela primeira vez, sem perceber, de olhos fechados,  ela fala com o Irmão-Duplo. Sussurrando, garante-lhe  que ele nada deve temer.

- Eu manterei minha palavra! Jamais vou abandoná-lo, Irmão-Duplo. Tudo o que me pedir, eu farei...

Afinal, pouco antes que o sol chegue ao zênite, o  Sábio Villa Oma entra em seu quarto. Está mais  esplêndido que nunca. Veste uma imensa capa vermelha  e azul e um chapéu de plumas coloridas, longas e  finas. Um plastrão de ouro finamente trabalhado  cobre-lhe o peito até a cintura. Seu rosto está  calmo e sereno. Atrás dele, entram duas Mães da Casa  das Virgens, olhos baixos. Uma traz uma longa túnica  branca e a outra, uma touca de tecido branco  encimada por um barrete de ouro em forma de diadema,  com duas plumas vermelhas fincadas em pedras verdes.

Sem uma palavra, com uma destreza perfeita, as duas  Mães vestem Anamaya com a túnica branca, depois  prendem a touca em seus longos cabelos trançados.

Quando terminam a tarefa, elas saem do aposento de  costas, a cabeça baixa, olhando para o chão. Villa  Oma observa um instante Anamaya, olhos nos olhos. Parece-lhe que, com uma piscadela, o Sábio aprova  o que vê, está satisfeito com ela.

- Siga-me - diz ele simplesmente.

No centro do pátio, quatro soldados carregam a  estátua de ouro do Irmão-Duplo numa liteira. A  estátua refulge com todo o seu brilho, tanto quanto  o próprio sol!

Sem se preocupar com as esposas e as criadas que  passam em procissão, carpindo a sua dor, Villa Oma,  com um olhar, designa-lhe um lugar bem à frente da  liteira. Ele é o único a precedê-la, a lança  apontada para o céu.

Quando o estranho cortejo se põe em marcha para  atravessar os quatro pátios do palácio, Anamaya ouve  de novo o enorme clamor vindo de fora. Mas Villa Oma  avança como se nada estivesse vendo e ouvindo.     Agora, o sol está a pino. As sombras são curtas e  negras.

Quando chegam afinal à porta do palácio, os  clamores do lado de fora são ensurdecedores. Dois  portadores de trompas feitas de fios torcidos de  conchas precedem-nos. Villa Oma agita a lança, a  porta se abre.

O espanto paralisa Anamaya.

Diante dela, uma multidão imensa comprime-se aos  berros na grande praça. Homens, mulheres, meninas e  meninos jogam os braços para o céu fazendo súplicas  a Inti!

Mas novamente o som grave e vibrante das trompas  de concha se estende por um bom tempo e abafa os  gritos. Os rostos ficam paralisados. A multidão  vira-se para a porta do palácio.

Milhares de olhos vêem o Sábio, a Coya Camaquen e  a estátua do Irmão-Duplo. Um gemido percorre a  praça, em uníssono. Villa Oma se embrenha no meio da  multidão que se afasta qual um pano que se rasga.     Como uma onda, uma queixa surda percorre a praça e  vem quebrar num gemido cheio de respeito aos pés de  Anamaya.

Em sincronia, as pessoas abaixam a cabeça e se  curvam.

Então, ela ousa dar um passo. Toda de branco,  linda e longilínea, os olhos fixos à frente, ela  entra na praça, no espaço aberto por Villa Oma.

A trompa continua soando.

Nem mais um murmúrio sai dos milhares de lábios,  nem mais um olhar deixa as pálpebras para pousar na  virgem branca. O povo se afasta ainda mais e se  curva diante de Anamaya como um campo de quinoa ao  vento.

Do outro lado da praça, as portas do templo de  Viracocha estão abertas de par em par atrás de uma  coluna dupla de soldados. Mais um rugido grave das  trompas e Villa Oma entra na frente numa sala  perfeitamente redonda, cujas paredes, de alto a  baixo, são revestidas de conchas finas e claras. A  fumaça de folha de coca turva o ar e escurece a  sala.

Os carregadores da liteira depositam o Irmão-Duplo  bem no centro, enquanto Villa Oma permanece à  esquerda. Instintivamente, Anamaya se coloca à  direita da estátua.

O Sábio aguarda os soldados saírem da sala.  Depois, levanta os braços e proclama com uma voz  clara:

Nada existe em vão, ó Viracocha!

Cada um parte das margens do Titicaca,  Cada um vai para o lugar que Viracocha lhe  designou! O universo é o seu desejo, Viracocha,  Viracocha segura o bastão da origem Ó Viracocha,  escute-me...

Ó Verdadeiro de cima, Verdadeiro de baixo.

Escolha o Irmão-Duplo de Huayna Capac 

Escolha a Coya Camaquen do único Senhor 

Ó Viracocha, seu nome de solteira é Anamaya, 

Se lhe disser onde está, ela há de admirá-lo atrás  dos cílios,   Os olhos voltados para o chão, 

Ó Verdadeiro de cima, Verdadeiro de baixo,  

Não deixe que ela se esgote,  Não deixe que ela morra.

As últimas palavras ecoam no peito de Anamaya. O  silêncio é tão absoluto dentro do templo quanto  fora.

O sábio pede que Anamaya faça a oração com ele.

Três vezes, eles lançam o apelo e erguem as mãos  para o céu. Depois o Sábio vai pegar uma jarra de  cerveja sagrada que ele verte no chão em volta de  Anamaya e da estátua. Só então, os sacerdotes entram  no templo e, um a um, recitam a prece antes de jogar  cerveja no chão.

Isso dura muito tempo. Tanto que o sol declina e  as sombras ficam longas como lanças.

E finalmente as trompas de conchas tornam a soar.  Finalmente o cortejo sai à praça.

Mas, para espanto de Anamaya, a praça está  absolutamente vazia.

E quando, acompanhando a estátua de ouro, ela  volta ao palácio e atravessa seus pátios, vê que  estes também estão vazios. Não há mais mulheres, nem  crianças, nem homens.

Vazios como se ninguém jamais os tivesse habitado.  O silêncio é terrível e frio.

- Onde eles estão? - pergunta ela sufocada. - Onde  estão todos? Villa Oma olha-a intensamente, a boca  esverdeada de sumo de coca. Com um sorriso de  satisfação tranqüila, responde-lhe:

- Eles se uniram ao único Senhor para servi-lo no  Outro Mundo!

Nessa noite, Anamaya não consegue conciliar o  sono, tão opressivo e o silêncio do palácio.

Ela chora aos prantos.

Quantos foram até as pedras sagradas, ao redor de  Quito, para oferecer o coração e a vida daqui ao  único Senhor Huayna Capac? Quantos tomaram o caminho dos ancestrais para ir para o Outro Mundo  e ali servir ao único Senhor?

Milhares!

Todas as suas esposas, todas as suas concubinas e  suas criadas, todos os seus eunucos conquistados na  guerra, seus escravos, seus servos, grandes ou  pequenos!

Todos deixaram a vida daqui! O cheiro de sangue e  de morte empesteia o ar da cidade. Esse cheiro  enjoativo e nauseabundo que ela sentiu pela primeira  vez no dia em que os incas atacaram sua aldeia na  floresta.

Antes do amanhecer, não agüentando mais, ela se  levanta e vai para o pátio. A lua brilha, redonda e  tão luminosa que lança sombras nas lajes. Por um  instante, Anamaya diz a si mesma que está perdida,  esquecida num mundo deserto.

Depois, de repente, milhares de gemidos vibram  docemente na noite, como se todas as almas que foram  se unir ao único Senhor lhe dessem adeus.

 

                                  Tumebamba, dezembro de 1528.

Há quase quatro estações, o cortejo escoltando o  Corpo seco de Huayna Capac deixou Quito, a capital  do Norte, para iniciar seu longo percurso para o  templo de Coricancha, em Cuzco. Desde o início do  mês de Inti Raymi, está parado na outra grande  cidade do norte do Império, Tumebamba. O Único  Senhor Huayna Capac gostava de passar temporadas ali  para aproveitar o clima com suas Esposas do Norte e  suas concubinas.

Tumebamba é apenas uma capital de província, mas  sua ordem e suas construções se parecem tanto com  Cuzco que os Senhores do Norte às vezes a chamam de  "Outra Cuzco".

Cercando a imensa esplanada central do templo do  Sol, as paredes das canchas ali formam longas ruas  retilíneas, em geral perpendiculares umas às outras,  percorridas de canais de irrigação cuidadosamente  mantidos. Os palácios dos Senhores dão para a vasta  praça sagrada. Têm terrenos de dimensões imponentes  e são mais bem construídos do que as casas comuns.

Os muros são altos, de pedras encaixadas à  perfeição, e contêm muitas habitações, assim como  quartos ao redor dos pátios cuidadosamente mantidos,  adornados de jardins floridos, de hortas onde se  cultivam as plantas sa gradas. Em magníficas fontes  de pedra, há sempre água correndo, trazida por  canalizações invisíveis.

Os servos, às dezenas, trabalham e controlam os  depósitos de comida, de lã, de algodão tingido, de  cerâmica, de tapetes e tecidos, toda a intensa  produção dos artesãos e dos camponeses que trabalham  a serviço dos incas.

Contudo, desde a chegada do Corpo seco do único  Senhor Huayna Capac, a cidade encheu-se de tendas,  já que não havia lugar nos palácios para alojar  todos os clãs. Diariamente, agora, a cidade se anima  com cantos, danças, grandes cerimônias, libações intermináveis e imensas  refeições comunitárias onde são festejados os filhos  dos Poderosos Senhores cujo huarachiku, a Grande  Iniciação do solstício de verão, está sendo  celebrado.

Após longas e duras provas, os meninos afinal se  tornarão homens. Os mais valorosos serão honrados  por todos, tanto os ancestrais do Outro Mundo como  os Poderosos daqui. A derradeira prova, a Grande  Corrida, designará os grandes guerreiros do futuro  ou os sumos sacerdotes, enquanto os outros terão de  se contentar em ser bons e leais servos do Império.

Todavia, só aqueles que não abandonarem a prova  poderão ter as orelhas perfuradas com uma agulha de  ouro para receber o primeiro disco de Senhor. Um  modesto disco de madeira que mais tarde poderá  tornar-se a insígnia de ouro dos mais poderosos...

Obedecendo às ordens de Villa Oma, Anamaya não  deixa mais o Irmão-Duplo de ouro. Muitas coisas  mudaram em volta dela.

Ninguém ousa agora zombar dela ou do azul de seus  olhos. Os Senhores dos clãs do Norte, como os de  Cuzco, consideram com respeito seus mínimos  movimentos. Com respeito mas também com inquietação  e impaciência. Todos esperam que ela se lembre das  palavras do único Senhor, ou que ele se manifeste  por seu intermédio, para confirmar ou revogar a  nomeação de Huascar.

Nessas condições, a aparência da Coya Camaquen já  evoluiu bem em alguns meses. Anamaya ganhou  segurança, já não se espanta com os olhares que a  observam, as criadas que se curvam diante dela.     Acostumou-se às longas esperas das cerimônias,  tanto noturnas como diurnas, às discussões  intermináveis dos sacerdotes, aos sacrifícios  constantes...

Seu corpo também mudou. De manhã, quando veste a  túnica finamente tecida, ela percebe que suas pernas  se alongam, suas ancas se arredondam. Dia a dia, a  silhueta de menina vai deixando-a enquanto,  lentamente, o corpo de mulher vai se delineando nela  à medida que seu coração e seu espírito endurecem.     Ela já tem menos medo da solidão e as lágrimas lhe  chegam mais raramente.

O Anão seguiu o cortejo desde Quito, mas eles têm  pouquíssimas oportunidades de trocar algumas  palavras. Às vezes, com um olhar para a multidão,  ela reconhece sua presença e seu coração se  aquece...

Ela está habituada às mudanças de humor de Inti  Palla, ora afetuosa como uma irmã, ora contundente  como uma pedra de funda!

As noites passadas junto ao Senhor Atahualpa  acabaram de transformar a princesa numa verdadeira  jovem mulher sem abrandar-lhe o gênio, muito pelo  contrário. Mas sua beleza é grande. Ela é tão  perfeita quanto pode ser uma mulher inca. Suas  formas são opulentas, seus traços, suaves e firmes,  seu rosto, redondo, sua testa, bastante abaulada no  prolongamento do nariz. Sua boca parece o vôo  desfraldado de um falcão. E desde que chegou a  Tumebamba, os olhares dos jovens a tornam mais  resplandecente que nunca.

Às vezes, Anamaya queria ser como ela, tão bela,  tão despreocupada, arrogante e versátil... Outras,  pede a Inti que a preserve disso!

Mas hoje é um grande dia, o dia da corrida do  huarachiku. Por uma vez, Anamaya será como as outras  jovens, e ela deve essa transgressão à regra às  intrigas de Inti Palla. Foi ela quem forçou  Atahualpa a insistir junto aos Anciãos para que  Anamaya fizesse parte das virgens que darão  assistência a um dos concorrentes. Durante todo o  dia da terrível corrida, ela vai apoiá-lo, encorajá-lo.

Na verdade, até essa noite, isso era uma alegria  para Anamaya. Mas Inti Palla conseguiu estragar essa  felicidade.

Dias atrás, quando, pela manhã, ela lhe explicava  a ordem das próximas cerimônias, Inti Palla, os  olhos brilhando, de repente apontou o indicador para  as encostas íngremes e as gargantas que dominavam a  cidade.

- A corrida será a prova mais dura. Só os  verdadeiros valentes chegarão ao fim! E os primeiros  serão respeitados como Poderosos entre os Poderosos!  Eles terão de lutar contra o frio, a chuva, a  montanha e o medo. Só comerão um pouco de milho cru,  nada mais. Ficarão tão cansados que não se  agüentarão em pé, mas assim mesmo será preciso  continuar...

- Mas eles já estão jejuando há uma semana -  exclamou Anamaya. - Não poderão correr tanto tempo!

- Sim, justamente. Eles terão de atravessar as  três gargantas, esquecer a fraqueza e se entregar a  Inti...

- E se não conseguirem?

Um brilho feroz passou pelo olho de Inti Palla.

- Eles não serão nada, envergonharão seu clã. Se  lhes restar um pouco de coragem, eles se jogarão num  abismo ou morrerão sufocados antes da chegada! É o  melhor.

Diante da risada cruel de Inti Palla, Anamaya  ficou chocada. Mas Inti Palla tem razão, Anamaya bem  sabe: assim funcionam a Lei e a ordem do Império das Quatro Direções. É preciso sempre vencer  e conquistar. Senão, não há felicidade possível no  Outro Mundo.

E a princesa acrescentou após alguma reflexão:

- Este ano, os rapazes dos clãs de Cuzco não devem  ganhar. Isso aumentaria o apetite deles pelo poder.  Infelizmente, não posso ajudar os nossos rapazes,  pois não sou mais virgem. Mas você poderia!

- Você acha?

- Eu perguntarei para você...

- Mas não, é impossível! E o Irmão-Duplo? Villa  Oma jamais aceitará que eu o abandone, por um dia  sequer!

- Talvez aceite! - insistiu Inti Palla. - Aliás,  você não o abandonaria realmente, já que ele  controla a corrida do alto do templo. Ele vai vê-la  e você vai vê-lo...

Entusiasmada com sua idéia, Inti Palla abraçou  Anamaya com uma risada divertida:

- Confie. Atahualpa vai aceitar! Sei como se deve  pedir algumas coisas para consegui-las...

E, de fato, ela conseguiu.

No meio da última noite, ela acordou Anamaya para  lhe anunciar:

- Anamaya! Anamaya! O Senhor Atahualpa aceitou!  Você vai com Guaypar!

- Quem é Guaypar?

- O filho do meu tio. Ele é o mais corajoso do  nosso clã... E é bonito você vai ver!

Com alegria, Anamaya a abraça também, colando a  testa na dela. Mas depois de muito riso, subitamente  séria, Inti acrescenta:

Em troca do que consegui para você, você tem que  me prometer uma coisa...

Na ingenuidade de seu entusiasmo, Anamaya responde  sem pensar:   - O que você quiser.

- Não deixe Manco nem o irmão dele Paullu ganharem  a corrida.   O sangue de Anamaya congela. Instintivamente, ela  recua, evitando contato de Inti Palla.

- Mas por quê? - protesta com uma voz um tanto  fraca demais. - Eu não os conheço mais do que  conheço Guaypar!

- Ah, Anamaya! Não seja boba! Às vezes você não  entende nada de tida! Guaypar é dos nossos, ao passo  que Manco e Paullu pertencem ao clã de Huascar, o  louco de Cuzco! Se Manco ou o irmão ganharem, os  cuzquenhos vão querer ver nisso um sinal...

- Inti Palla! Você sabe muito bem que é o próprio  Senhor Atahualpa que recusa...

- Eu sei o que eu sei! E dessas coisas, sei muito  mais que você.

- E como vou impedir que Manco ou Paullu ganhem a  corrida se eles forem os melhores?

O olho da princesa Inti Palla brilha com toda a  dureza:

- Com a ajuda do Irmão-Duplo! Todo mundo, aqui,  sabe que você pode muita coisa... Por isso é que  você é aceita entre nós, Anamaya, não esqueça!  Rubra, Anamaya ainda quer protestar:

- Mas não, é mentira. Eu não posso nada!

- Claro que pode. Você não é a Coya Camaquen?  Basta você dizer que o Irmão-Duplo os rejeita como  vencedores!

- Você é louca, Inti Palla!

- Não!... Se preferir, você pode dizer também que  o Único Senhor Huayna Capac não quer a vitória  deles! É com você que ele fala, não? Trêmula de  raiva e de vergonha, Anamaya se levanta:

- É o Senhor Atahualpa quem pede essa mentira, ou  você?   - Que diferença faz para você?

- Eu quero saber, pois se for vontade dele, quero  ouvir dele mesmo. O rosto subitamente feio de tanta  fúria, Inti está a ponto de esbofeteá-la:   - Ah, como você é boba! É um presente que eu quero  dar a ele... E você também deve lhe dar esse  presente. Você deve muito a ele, se não me engano...     Durante um bom momento, elas se enfrentam com o  olhar como dois guerreiros. E Inti Palla acaba  murmurando:

- Anamaya, não me faça lamentar ser sua amiga e  esquecer que você não é uma inca de verdade...

Agora, chegado o grande dia da Iniciação, enquanto  os primeiros alvores da aurora desenham as gargantas  que os rapazes deverão atravessar, Anamaya  estremece, a expressão sombria.

O veneno instilado por Inti Palla surte efeito. O  que devia ser um momento de felicidade não é mais  que uma sombra sobre o futuro.

- Não grite. Fique de olhos fechados.

Anamaya acorda sobressaltada na noite escura, o  coração desnorteado. Uma mão grande, com a palma  dura como chifre, pousou em seu ombro. Apesar da  ordem dada pela voz grave, ela entreabre os olhos: a  sombra do Anão é assustadora como a de um fantasma.

- Está bem difícil chegar até você, princesa...

- Pensei que você tivesse imaginação! Você quase  me decepcionou...   - Ó divina Coya Camaquen...

- Não estou com vontade de rir, Filho mais velho!  E odeio que me acordem assim!

Ela se levantou, os olhos azuis escurecidos pela  raiva. Mas o Anão ignora seu mau humor e se senta na  esteira, ao lado dela.

- Você tem razão de não estar com vontade de um  movimento de cabeça. - A guerra se aproxima.   - A guerra?

- Eu sinto. Eu sei. No huarachiku de amanhã, não  são os jovens combatentes que se enfrentam, mas sim  clãs: Atahualpa e os do Norte contra Huascar e os de  Cuzco... Irmão contra irmão, sangue contra sangue...

- Sua amiga Inti Palla me pediu para usar meus  poderes para privar da vitória os rapazes de Cuzco.     Ela parece ter medo sobretudo de Manco... - Ela  age por ordem de Atahualpa.

Anamaya balança a cabeça.

- Ela diz que não. Eu não acredito, Atahualpa é  nobre demais para se prestar a baixezas como essa. E  lembro a você que ele recusou pessoalmente a borla  imperial.

- Outros a querem para ele. O que você respondeu à  minha boa amiga?   - Que eu não tinha esse poder...

O Anão suspira.

- Eu os conheço, desde que os observo. Ó nobres  incas invocadores do Sol, da Lua e do Trovão!  Sedentos de sangue e de poder como uma matilha de  cães, poderosos, ferozes...

- Cale-se, não blasfeme.

- Não estou blasfemando, Princesa. Só que não  quero morrer...

O Anão se cala. Ela ouve a respiração dele junto à  sua e a mão que continua pousada em seu ombro é a  mão de um amigo. Coya Camaquen... Se ela algum dia  sonhou com uma proteção, não resistirá a esse tempo  de violência.

Não há nada a fazer, nada a dizer, e o tempo das  lágrimas passou. Ela se lembra de sua primeira noite  em que, apavorada com a solidão, refugiou-se junto a  ele.

Então abraça-o, sente-o tremendo. Embala-o  cantando baixinho, como se ele fosse uma criança  cujo medo e o frio é preciso aliviar.

 

                                           Tumebamba, dezembro de 1528

O céu está cinzento e pesado. Embaixo da colina,  através de nesgas de bruma e da fumaça dos braseiros  de oferenda que sobem na chuva fina, Manco vê os  palácios e as casas de Tumebamba. No centro da  grande praça, diante do templo do Sol, a multidão  variada dos dignitários comprime-se em volta do  baldaquim de plumas que protege o Corpo seco do  Único Senhor Huayna Capac.

Bem próximo dali, nos altos degraus do templo,  refulge o ouro do Irmão-Duplo.

É junto dele que eles deverão chegar, se puderem,  após um interminável dia de corrida.

E essa distância parece tão longa, tão longa!

- Mas não, não tão longa assim - sopra Paullu a  seu lado, como se tivesse penetrado no espírito do  irmão. - Não para você, Manco. Basta querer...

Ele se interrompe com uma risadinha, dá um soco  amigável nas costas de Manco zombando:

- Mas é verdade que suas pernas são meio curtas!  Ora... Eu espero por você!   Manco sorri. Ele corre duas vezes mais depressa  que Paullu. Mas é verdade, eles correrão juntos o  mais possível. São irmãos da mesma lua e sua amizade  é indestrutível.

Ambos filhos do Inca falecido Huayna Capac,  nascidos quase no mesmo dia, sua amizade todavia não  vem deste nascimento: o Único Senhor teve mais  filhos do que há estrelas no céu.

Na verdade, Manco e Paullu jamais conheceram o  Único Senhor. Pelo menos eles não se lembram disso.  Suas mães foram dessas esposas que pertenciam aos  clãs mais nobres de Cuzco, que ele abandonou para ir  morar em Quito, engravidando todas as noites suas  concubinas do Norte como se sua semente não passasse  de um pólen dispersado pelo vento!

Mas suas mães os educaram juntos. Desde sempre,  desde que seus olhos enxergam e suas bocas falam,  Manco e Paullu andam juntos como os dedos de uma  mesma mão.

Apertando o ombro de Manco, Paullu diz com voz  firme e segura:

- Você vai ganhar, eu sei. E eu vou ganhar também  porque não hei de perdê-lo de vista! Venha agora,  está na hora de verter a chicha e fazer as  oferendas.   Os sacerdotes acenderam um fogo ao pé da huaca  Anahuarque, um ancestral transformado em pedra que,  como seu original em Cuzco, tem fama de ter sabido  correr tão depressa quanto voa o falcão. Tufos de lã  de alpaca, folhas de coca e espigas de milho ardem  ali lentamente. Depois, vem o sacrifício dos jovens  lhamas.

Manco mal olha. Está com fome e a barriga lhe dói.  Nos rostos encovados, nos olhos abatidos e febris  dos outros meninos, ele sente o mesmo esgotamento, a  mesma aflição.

Mas todos se mantêm empertigados, ninguém quer  mostrar fraqueza. Através da fumaça de cheiro  irritante, eles entrevêem as figuras familiares dos  tios. A largada da corrida está próxima, mas, antes,  é preciso agüentar o ritual do chicote. Um tio de  cada noviço deve fustigar o futuro iniciado para que  este saiba o que vale a Lei a que se entrega.

Manco teme mais esse momento do que a própria  corrida. Não por causa do sofrimento: por  antecipação, a humilhação lhe enche o peito de  raiva. Felizmente, seu tio tem pouca força: quando,  ao mesmo tempo que todos os primogênitos, ele o  chicoteia nos braços e nas pernas, as tiras de couro  mal encostam nele.

Ele se levanta com um sorriso constrangido, um  sorriso de desculpas. Não tenho quinze anos, pensa,  mas sou mais forte que ele. Sou mais forte que  todos. Ele precisa acreditar no irmão. Precisa ter a  mesma confiança que Paullu. Hoje ele vai ganhar.

Quando é dado o sinal, quando o som das trompas  ecoa por todo o vale, até no fundo dos abismos antes  de tornar a subir para os picos, toda a energia de  Manco é liberada. Ele esquece as dúvidas, o cansaço,  esquece a enormidade da prova e a chuva fria, para  só pensar na felicidade de correr.

Ele desce a primeira encosta ágil como um puma,  poderoso, feliz e livre. Se não tivesse que poupar o  fôlego, gritaria de felicidade.

  Inicialmente, o caminho segue para o norte: após a  brevíssima descida, os corredores devem  imediatamente subir num cume escuro, uma elevação de  aspecto modesto mas que esconde um terrível  amontoado de pedras onde cada passo é desgastante.  Só depois, prosseguindo para oeste, virá a longa  descida suave que os levará ao sopé do Huanacauri. O  apu, o Senhor-Montanha que os vê e os desafia. Se  chegarem ao cume e sobreviverem à descida, uma curva  fará com que eles não passem longe do platô do  templo do Sol, antes de terminar pela penosa subida,  ao longo da ravina onde se encontram as virgens, até  o morro que eles acabam de deixar.

Paullu se mantém bem atrás dele. Juntos, eles  ultrapassam sem dificuldade o grosso dos corredores  nas primeiras curvas da descida, mas no terrível  monte de pedras, de repente, o cansaço torna seus  membros pesados. E a chuva de repente vem em rajadas  e fustiga o rosto, muito mais contundente que as  tiras dos tios, há pouco.

Logo, logo, Manco sente a respiração se acelerar e  encurtar. Seus pulmões ardem e suas pernas  enrijecem. Ele ouve a respiração rouca de Paullu se  afastar. Ao longe, como um barulho engolido pela  imensidão dos vales, os gritos dos primogênitos que  os seguem e os impelem também se apagam. Seu corpo  vira um inimigo dolorido.

Ele se vira e vê Paullu fazendo caretas, os olhos  saltados, abrindo a boca, fazendo-lhe sinal para ir  em frente, para não esperá-lo...

Depois, a alguns passos dele, surgem os vultos de  alguns rapazes do clã do Norte. Manco adivinha num  instante o olhar de desprezo de Guaypar, o mais  corajoso deles, que já está ultrapassando todo  mundo.

Então a raiva ajuda-o a levantar as pernas mais  depressa, sem ligar para as pedras que cedem sob  suas solas de corda.

Ele logo sente que torna a ganhar terreno e  recobra o fôlego. Mas Guaypar passa ágil nas pedras,  levantando bem as sandálias.

Manco esquece as pontas de fogo que cortam seus  músculos, as brasas que incendeiam seus pulmões,  esquece tudo de seu corpo e só pensa em correr como  se seu espírito se tornasse uma força separada.

Em pouco tempo, ele emparelha com Guaypar num  caminho que mal dá passagem para dois.

Eles estão lado a lado, lutando na velocidade, os  lábios contraídos num mesmo gemido de esforço. Então  Guaypar cede. Seu ombro desliza, seu rosto recua.  Suas mãos agarram o ar à frente cada vez mais  perto...

Quando Manco o ultrapassa, no esforço desesperado  para ficar emparelhado com ele, Guaypar se  desequilibra e bate com o cotovelo em Manco. Por um  instante, o jovem príncipe sente-se agarrado pelo  vazio antes de se refazer. Quase involuntariamente,  ele dá um grito de vitória que ecoa nas pedras.  Guaypar pena para segui-lo.

Sem se virar, Manco adivinha que agora os outros  estão muito atrás. Paullu também. Apesar das  promessas, o sutil Paullu não conseguirá acompanhá-lo. Mas Manco confia nele: ele não vai ficar entre  os últimos, carregando o infame calção negro...

Atingido o cume, pedra no meio das pedras, Manco  desce a encosta. Suas passadas ficam cada vez  maiores, aumentando sua dianteira.

O olhar fixo no desfiladeiro próximo, a exaltação  de ser tão forte no meio de todas as coisas vivas o  invade. Ele é homem entre as pedras, os insetos e as  almas. "Sou o vento, sou a chuva, sou a luz.”

Parece-lhe que do céu, mas também de detrás de cada  rochedo, há um olhar amigo seguindo-o. Olhos que  estão em toda parte, um olhar já familiar.     Estranhamente, enquanto a corrida parece que não  irá terminar nunca, sua respiração se acalma, mas,  insensivelmente, ele vai mais devagar antes das  primeiras encostas do Huanacauri. Lá em cima, a  picada se estreita ao longo de uma falésia a prumo.  Não é mais que uma linha vertiginosa esticada sobre  o vinco de uma rocha. Manco conhece o poder da  vertigem. Sabe que nas encostas muito abruptas o  coração lhe falta, ele pode ficar paralisado,  incapaz de dar mais um passo. Ele se preparou para  isso, se esforçou para vencer esse momento de  absoluto pavor que o congela.

Infelizmente, na hora em que o precipício se  aproxima, ele faz o que não deve. Corre olhando para  o vazio.

E é como se já se visse caindo entre as pedras.  Suas pernas tremem. Um arrepio frio lhe eriça a  nuca, lhe aperta os rins. O vazio parece aumentar a  cada passo, bizarro, quase sorridente, como se o  abismo o chamasse.

Então Manco se escora na pedra. Agarra-se a ela.

A alguns passos dali, há apenas um bloco de pedra a  ser contornado para que o caminho dê numa larga  encosta de relva... Mas para chegar lá, é preciso  largar a rocha, enfrentar o vazio. Aceitá-lo.

Ele não consegue.

O suor o inunda. A chuva se mistura às suas  lágrimas de fúria. Em volta dele, os ruídos lhe  chegam numa bruma: os gritos daqueles que caem e se  ferem, os chamados, os encorajamentos.

E a zombaria de Guaypar quando passa por ele a  toda, às gargalhadas:

- Manco! Manco! Você vai cair e não vai ter nem o  calção negro para segurá-lo! Você não passa de um  covarde, filho de Cuzco!

Guaypar tem razão. A covardia o ampara como, há  pouco, a coragem. A vergonha o protege como, há  pouco, o sentimento de invencibilidade. Ele pode  permanecer ali até a noite cair, até suas mãos  largarem a pedra. Seu corpo será encontrado no pé da  encosta, desarticulado. Tanto se lhe dá. Onde está  ela, a voz de seu ancestral? Sua certeza de que ele  é o mais forte?

De tudo isso nada resta. O pânico. Seu coração que  bate com a velocidade de uma asa de colibri.

- Manco!

É a voz familiar de Paullu. Ele não precisa de  explicação para entender. - Me dê a mão...

Manco obedece. Recua, pé ante pé, os membros  trêmulos, até a laje onde o irmão o espera.

- Respire devagar. Deixe comigo. Vou passar à sua  frente. Vou guiá-lo. Paullu passa à frente do irmão,  dá um único passo e contorna a pedra que o detinha.

- Agora venha. - Não consigo. - Se eu consigo,  você consegue.

Se eu consigo, você consegue. É a frase que os  liga desde a infância, a que faz deles gêmeos de  alma.

Manco avança, um dedo de cada vez. Guiado pela voz  do irmão que lhe diz palavras que ele não entende.  Quando está perpendicular ao vazio, sente-se  renunciando, caindo...

A mão de Paullu agarra-lhe o pulso.   - Fique comigo, irmão.

Lá em cima, perto do cume, Manco vê que muitos  corredores os ultrapassaram. Paullu não lhe dá tempo  de lamentar o tempo perdido:

- Corra, meu irmão amado! Corra, você é o melhor e  me orgulho de você.   - É mentira, sou o mais covarde...

- Você é corajoso e forte, Manco, além do mais,  você tem um irmão que o ama e vai ajudá-lo sempre...  Vá, ganhe por nós dois!

Seu coração recomeça a bater, ele enxuga a chuva  que lhe turva os olhos. "Sou o vento...", pensa ele,  levantando os pés mais pesados que granito...

Na subida da longa ravina, ele ultrapassa um a um  todos os que, aproveitando sua fraqueza, lhe haviam  passado a frente. Ele quer ignorar a dor e congelar  a vergonha num canto de sua alma. Corre, dentes  cerrados.

Corre e pensa no orgulho de ser o primeiro, o  "falcão", e ver chegar os outros, todos os outros,  exaustos.

Será um prazer secreto saborear a derrota de  Guaypar, que ele acaba de ultrapassar de novo, agora  sem lhe conceder sequer um olhar.

Ele corre como se não precisasse mais respirar. Só  vê a trilha à sua frente e, mais embaixo, o grupo  das virgens de apoio, do outro lado da ravina. O  mundo dança em sua corrida, as montanhas dançam, as  nuvens, as moitas, o vale dançam em sua respiração.  Ele está embriagado com a corrida, mas voa como o  vento...

- Atenção!

O grito o imobiliza ao mesmo tempo que o silvo da  serpente. Uma serpente comprida cinzenta com uma  risca amarela, da grossura de um braço, erguendo-se  à sua frente, na trilha.

- Atenção - repete a voz, porém mais baixo, com  uma estranha ternura.

Então ele a vê, ela se aproxima da serpente que  vem meneando, mostrando as presas de veneno na  bocarra cor-de-rosa escancarada.

- Não se mexa! - pede a jovem.

Manco, ofegante, vê seus olhos. Será possível uma  cor daquelas?

São olhos azuis, mais azuis que o céu do Sul. Será  uma moça de verdade, de carne e osso?

Mas Manco não pensa mais. Ele a vê ajoelhar-se  devagarinho, sempre fitando aqueles olhos esquisitos  da serpente. A serpente meneia a cabeça, enrosca-se  nervosamente como se fosse dar o bote.

Por reflexo, Manco se abaixa, pega uma pedra e  fica com ela na mão. - Largue essa pedra diz a  menina sem sequer olhar na direção dele. - Deixe  comigo.

A voz é calma, segura. Ela comanda com firmeza e  ele nem pensa em lhe desobedecer. Ela olha para a  serpente, fita as ranhuras dilatadas do réptil,  agacha-se devagarinho, devagarinho...

E a serpente se enrosca, desliza em seus anéis.

Ouve-se um barulho de corrida ali atrás, é Guaypar  chegando no talude. Mas a serpente não presta  nenhuma atenção. De repente se estica e desliza  entre as pedras como se a apagassem da face da  terra.

A menina dos olhos azuis sorri. Seu estranho olhar  ilumina todo o verde e o cinza da montanha.

- O caminho está livre! - diz alegremente.

Manco adivinha que Guaypar parou e olha para eles.  Manco hesita. Ela o encoraja com um gesto.

Ele continua, corre até a esplanada de Tumebamba  como se seu corpo não tivesse mais nada que pudesse  fazê-lo sofrer.

Mas ao terminar a corrida sob as aclamações dos  primogênitos amontoados na colina, enquanto desaba,  semi-inconsciente, tem a sensação de estar  mergulhando com todo o corpo nos olhos azuis da  desconhecida, como se ela o tivesse levado até ali.

 

                               Tumebamba, dezembro de 1528

A praça está cercada por um longo cordão de ouro  sustentado por forquilhas de ouro e prata. No  centro, arde o fogo à prova de chuva. Folhas de coca  e de milho estão sendo queimadas ali, exalando um  cheiro doce e estonteante.

Manco tem a boca pastosa. Sua língua e seu palato  conservam o gosto acre e lancinante da chicha.     Enquanto a alguns passos dele Villa Oma e os  sacerdotes louvam a valentia dos guerreiros, as  imagens da corrida passam e repassam em sua mente.   Ainda de longe em seus músculos, ele sente sua  força, sua terrível vertigem e a embriaguez da  vitória.

Impelida por um turbilhão de ar quente, a fumaça  da coca envolve o Irmão-Duplo de ouro de Huayna  Capac. Esconde um instante o rosto daquela a quem  chamam "Coya Camaquen". Depois os olhos azuis, a  boca meiga e bem desenhada de Anamaya tornam a  aparecer. Numa fração de segundo, seus olhares se  encontram.

Ao lado dele, o irmão Paullu viu esse contato. Ele  sorri e pergunta em voz baixa:

- Você a acha bonita?

- Não sei... Ela não é realmente como as outras.  De onde vem?   - Da floresta, parece.

Os sacerdotes aproximam-se dos noviços. Mergulhando uma pena numa tigela de sangue de  lhama, eles fazem um risco no rosto dos rapazes.  Depois vem a hora dos juramentos.

Para Manco, é como se as palavras de fidelidade ao  Sol e de obediência ao Inca fossem pronunciadas por  outro que não ele. Ele só tem pressa de uma coisa:  ouvir as palavras que o designam finalmente como um  auqui, um verdadeiro guerreiro.

Sendo o vencedor da corrida, ele é o primeiro a  receber o calção branco. Depois, as sandálias de  junco, a túnica vermelha com a faixa branca, a tiara  e o diadema de plumas de onde pendem os discos de  ouro e prata...

O povo olha para ele. Os pais, os clãs, os nobres  de Cuzco e de Quito, todos o contemplam com os olhos  cheios de admiração, mas também, às vezes, de ciúme.

Manco se levanta, orgulhoso. Em seguida chega a vez  do grupo de frente com Paullu e Guaypar. Se seu  irmão lhe lança um olhar afetuoso, os olhos de  Guaypar emitem chispas de raiva diante do sorriso um  tanto irônico do vencedor. Longe de abaixar a cabeça  como os perdedores que agora recebem o vergonhoso  calção negro, ele exprime um desafio cheio de  orgulho, uma ameaça apenas velada.

As horas passam, as danças sucedem aos cantos. As  risadas e os gritos de parabéns enchem a esplanada.  Manco vai curvar-se diante dos mais velhos  guerreiros que o examinam com um olhar sorridente,  pousam a mão em seu ombro...

Mas faça ele o que fizer, seu olhar sempre volta  para a jovem Anamaya, a esposa do Irmão-Duplo de  ouro.

Quando afinal termina o ritual, as virgens se  aproximam dos rapazes com potes de chicha. Elas  oferecerão bebida aos jovens guerreiros e ficarão  perto deles durante a última noite da prova que os  meninos passam ao relento. Embriagados de cerveja,  eles vão enfrentar a pureza de Mama Quilla e os  espíritos dos Anciãos do Outro Mundo, os bons e os  maus.

Pasmo, Manco vê Anamaya encaminhar-se para  Guaypar. Manco mostra-a a Paullu e exclama:

- É esse cão que ela apóia?

- Certamente ela não teve escolha, Manco! Ela  pertence ao clã de Atahualpa.

- Os clãs, Paullu, sempre esses malditos clãs! Não  se falava em clãs quando o grande Manco Capac fundou  nossa dinastia. E posso lhe dizer que eu não pensava  nos clãs de Cuzco quando corria há pouco!

- O problema não é você pensar nisso, meu irmão;  basta eles pensarem. As jovens que lhes foram  designadas se aproximam, sorriso nos lábios, olhos  baixos. Elas são muito moças, pequenas, lindas como  bonecas e cheias de respeito ao entregarem os potes.  Manco bebe toda a chicha em longas talagadas. A  bebida foi feita naquela manhã. Seu frescor agridoce  sacia seu palato, sua garganta e todo o seu corpo  fatigado.

As jovens virgens vão imediatamente encher os  potes bebidos nas enormes jarras que os criados  inclinam com cordas. Anamaya, como as outras, vai  encher seu pote na grande macca finamente pintada. A  cerveja corre aos borbotões, seu amargor impregna o  ar, um tanto nauseante.

A última invocação a Inti termina. Pouco a pouco,  a embriaguez sobe e o cansaço de repente fica  imenso. Em alguns minutos, entontece os rapazes. Já  os fez dobrar os joelhos e fechar os olhos. Vem-lhes  o desejo, imenso, de se deitar ali mesmo e dormir.  Manco sente ainda os olhares que o vigiam. Fecha os  olhos para respirar melhor e se levanta.

- Manco?

Paullu puxa-o pela manga da túnica. Quando ele  torna a abrir os olhos, Anamaya está à sua frente.

- Ah, é você! - exclama ele maldizendo a vertigem  que o domina. - Eu não lhe agradeci, Anamaya. Talvez  você tenha impedido que eu morresse hoje! Ela esboça  um gesto de negação:

- Ela só não o deixaria ganhar a corrida! Quando  eu mal andava, as serpentes já corriam entre os meus  pés... Aprendi a fazer amizade com elas. Ela lhe  mostra o bracelete em seu pulso, com duas serpentes  entrelaçadas. Ele mal repara. Não se acostuma com  seus olhos azuis. Admira a silhueta franzina e ao  mesmo tempo sólida.

- A serpente não é símbolo de sabedoria?   - É o que dizem.

- Por que você atrai os olhares, Anamaya? Ela dá  um sorriso infantil.

- Não tanto quanto você hoje, nobre guerreiro.

Anamaya encontra o olhar severo de Villa Oma fixado  nela. Com sinal imperioso, ele ordena que ela se  afaste. Ela saúda os dois irmãos com uma mesura:

- Tenho que encontrar o rapaz que estou apoiando.  Mas desejo a vocês uma linda noite. Que Mama Quilla  lhes seja doce!

Quando ela se afasta, Manco se vira, zombeteiro,  para Paullu: - Então, o que acha, irmão? Nós a  achamos bonita ou feia?

- Não como as outras, em todo caso... Mas você  viu, o Sábio a controla como um velho marido  ciumento! E não acho que ele aprova nossa companhia  para a protegida dele!

Desde que a noite caiu, Anamaya soube outra vez o  que era medo.

No pátio da cancha arde um fogo tranqüilizador,  mas que dá aos olhos de Guaypar um brilho cada vez  mais demente. Sem parar, desde que escureceu  totalmente, ele bebe, afogando na chicha a  humilhação sofrida.

Seus goles são pequenos e suas mãos tremem tanto  que ele derrama no unku tanta cerveja quanto a que  bebe. Mas a embriaguez o leva para longe sem lhe dar  sono. O arem volta dele fede. Às vezes, ele se  levanta e estende a mão para a Mãe Lua, como se nela  pudesse mergulhar os dedos, abre a boca para dar um  grito que não vem. Depois, deixa-se cair, tateando  para encontrar o pote de álcool.

- Está vazio - gane ele. - Vá buscar para mim,  menina dos olhos azuis!

- Você já está bêbado, Guaypar... - tenta Anamaya.  - Talvez você deva descansar.

- Vá buscar a chicha! - gesticula Guaypar. - Vá  buscar a chicha e não discuta!

Quando Anamaya se levanta, ele tenta agarrar-lhe a  coxa. Com um giro que faz sua túnica esvoaçar, ela  lhe escapa, mas ele segurou o tecido e o puxa. Com  uma joelhada seca, Anamaya se desvencilha dele, e  ele se deixa cair de lado fazendo troça:

- Ele lhe agrada, hein, o meu irmão Manco!   - Guaypar...

- Vi como você olhava para os dois! Mas você não  passa de uma menina do mato. E depois, ele é de  Cuzco! Você não vai tê-lo nunca...

- Eu sou a esposa do Irmão-Duplo do seu pai, acima  de tudo! Não esqueça!

- Eu sei, eu sei! A Coya Camaquen! Pois sim! Villa  Oma teve que encontrar um nome só para você!

Guaypar se deixa cair para trás, o rosto deformado  pela paixão.

- Manco é um trapaceiro! - resmunga ele como se se  dirigisse ao céu tanto quanto a Anamaya. - Logo todo  mundo vai saber que ele trapaceou... Anamaya se  lembra das palavras rancorosas de Inti Palla contra  Manco. E Manco ganhou!

Nessa noite, que deveria ser a noite da força e da  alegria, ela se sente triste por causa das sombras e  das ameaças. Sim, há entre os clãs de Cuzco e de  Quito ondas de ódio que tudo devastam. Mas Guaypar  se levantou cambaleando e aponta o indicador para  ela:

- E ele trapaceou com a sua ajuda, Coya...   - Minha ajuda?

- Você foi quem o fez ganhar!

- Não seja idiota! Eu simplesmente o salvei de uma  serpente...

- Inti tinha posto uma serpente no caminho dele e  você fez com que ela fosse embora. Isso não é uma  trapaça? Você fez com que esse cão sarnento, que nem  mesmo é irmão de Atahualpa como eu, ganhasse! Você  nos traiu!   - Eu não queria...

Anamaya se cala. Não adianta nada responder.  Guaypar está bêbado demais para entender por quê. É  preciso simplesmente esperar que ele apague e se  deixe levar pela embriaguez.

Mas, cambaleando, Guaypar consegue se pôr de pé. -  Venha grunhe ele.   - Venha atrás de mim.   - Aonde?

Guaypar fita Anamaya com uma intensidade nova. Em  vez de responder, ele brinca balançando a cabeça:

- É verdade que você e bem bonita no seu gênero!  Você me agrada, menina do mato. Mais até que  qualquer outra menina, mas você é má! Anamaya morde  os lábios e recua. Com brutalidade, Guaypar lhe  agarra o braço e a arrasta sem mais uma palavra.  Rude, faz com que ela atravesse o pátio. Ao ver que  ele pretende sair da cancha, ela resiste. Ele então,  com as forças que lhe restam, torce-lhe o braço e a  empurra à frente apesar de seus protestos.

A embriaguez ganhou todas as ruas. Ninguém presta  atenção neles. Pelas portas das canchas, ouvem-se  cantos, gritos, às vezes ainda sons de flauta ou um  breve rufar de tambores. As fogueiras projetam  sombras loucas. No cruzamento das ruas, atirados no  chão, jazem homens inconscientes, cobertos com o  próprio vômito. Em toda parte, o cheiro de chicha  empesteia o ar.   De repente, Guaypar pára cambaleando diante de um  muro de construção esmerada e grita:

- Manco! Paullu!

Sua voz rouca ainda ecoa quando ele empurra  Anamaya à sua frente, entrando na cancha dos dois  irmãos.

- Guaypar!

Com alívio, Anamaya vê o vulto alto e nobre de  Manco se erguer diante do fogo. Ele não parece  bêbado, embora tenha os olhos vermelhos e a  respiração ruidosa.

- Largue-a! - ruge ainda Manco apontando para  Anamaya. - Largue a Coya, você não tem nenhum  direito de tratá-la assim!

Paullu também se levantou. No escuro, ele se  aproxima com passos lentos:

- Vá para casa, Guaypar - diz com uma voz calma. -  Você deve continuar a prova...

- Irmãos! - zomba Guaypar dando um empurrão tão  violento em Anamaya que ela tropeça e cai de  joelhos. - Eis os irmãos de quem você tanto gosta!  Uns trapaceiros, sempre juntos para esconder melhor  a covardia deles!

Manco precipitou-se para levantar Anamaya. Paullu  brinca:

- Você não vestiu um calção negro, Guaypar?  Ficaria muito bem em você, negro como a noite que  está no seu coração!

Manco, cerrando os lábios enfurecido, puxou a capa  para trás e avança, cerrando o punho.

- Não, Manco... - protesta Anamaya. - Ele não sabe  o que está fazendo...

Mas é tarde demais. Com um rugido, Guaypar enfia a  mão direita na manga da túnica. Quando a retira, a  lâmina em forma de meia-lua de um tumi brilha à luz  do fogo. Guaypar corta o ar à sua frente com dois  movimentos secos, depois dirige a faca de cobre para  o rosto de Manco.

- É agora que você vai correr, Manco! E muito!  Tanto quanto eu mandar. Paullu se esgueira para  junto de Anamaya, agarra-a pelos ombros e a faz  recuar enquanto Manco dá dois passos para o lado,  ágil como uma onça do deserto.

- Olhe! - chia Manco, sem nenhuma entonação na  voz. - Veja só quem fala de covardia! Ele pega o  tumi para lutar com quem está desarmado.   - Trapaceiro! Raça de Cuzco! Vocês lá são todos  uns trapaceiros! Acham que são os mais nobres, mas  vocês trapaceiam...

Um rugido sai da sombra que os cerca. Agora há  gente em volta deles, criados e também tios, irmãs,  tias... E ninguém diz nada. Quem está bêbado pode  dizer loucuras tiradas da embriaguez. Mas Manco é o  insultado e cabe a ele responder.

- Está na hora, Guaypar! Há muito tempo que eu  esperava esse momento. Venha! Venha me enfiar essa  sua faca na garganta... Venha, se conseguir! Os dois  rapazes estão rodando agora em volta do fogo.  Guaypar parece ter ficado um pouco mais sóbrio. Mas  quando quer pular as brasas, Manco se  esquiva facilmente. Com um movimento ágil, ele se  inclina para o lado, levantando as duas mãos ao  mesmo tempo: com uma delas, agarra o braço de  Guaypar e o imobiliza contra seu ombro; com a outra,  segura a mão que empunha o tumi. Enfurecido,  desvencilha-se e gira nos calcanhares. Seu braço  direito descreve um círculo em cima do fogo e a  lâmina da faca desliza na face de Guaypar, que recua  com um grito de dor. O sangue jorra do ferimento.  Guaypar passa os dedos no rosto e olha com  incredulidade para a mão ensangüentada.

- Volte para casa, Guaypar - repete Paullu. -  Ainda é tempo!   - Não, meu irmão - exulta Manco. - Não dá mais  tempo!

Mas como se o sangue o tivesse despertado, Guaypar  atira longe a faca e pula em cima de Manco,  segurando-o pela cintura. juntos, os dois rolam para  o lado do fogo, espalhando as brasas num jato de  fagulhas. Anamaya dá um grito, e Paullu precisa  contê-la antes que ela se precipite para apartar os  rapazes.   - Deixe! Deixe-os: isso precisa acontecer!

Manco e Guaypar lutam no chão, tão atracados que o  sangue de um suja o outro. Os arquejos são pontuados  de gemidos de dor quando um leva um soco, é esfolado  ou sofre uma torção. Depois, de repente, Anamaya vê  Guaypar rolar para o lado, o unku se rasgando  ruidosamente. Na mesma hora, Manco se levanta e pula  em cima dele, caindo de joelhos em sua barriga, os  dedos já apertando sua garganta pegajosa de sangue.

- Foi você que jurou ter a valentia do guerreiro?  - pergunta Manco com uma voz apenas perceptível. -  Respeitar a honra?

Guaypar não responde. Abre a boca e procura sorver  o ar num arquejo. Mais alto, Manco pergunta ainda:

- jurou ou não jurou, por nosso Pai Inti e nossa  Mãe Lua? Por nossos ancestrais e pelas almas de  todos os únicos Senhores?

Anamaya sente que Manco já não controla a raiva  ela repele a mão de Paullu e se aproxima:

- Manco, por favor, deixe-o... Mas Manco já não  ouve.

- Foi você que insultou a virgem que vela aqui  sobre meu pai?

Suas mãos largam a garganta de Guaypar, seus  punhos se cerram e golpeiam o rosto do irmão odiado  com uma raiva de guerreiro. O lamento que sobe da  garganta de Guaypar não o detém mais que os gritos  de Anamaya. Ao redor, o círculo dos pais se fechou  mas ninguém intervém. Anamaya quer agarrar os braços  de Manco quando vê, nos olhos negros do jovem inca,  as chamas do fogo dançarem. E é como se todo o ódio que  Guaypar carregasse ali se consumisse...

- Basta!

A ordem soou seca na noite. Anamaya ergue os olhos  ao mesmo tempo que Manco levanta o braço. Diante do  fogo, um homem com vestes de sacerdote estende a mão  e ordena ainda:

- Basta, Manco! Não o mate.

Anamaya reconhece um dos tios de Manco. O homem  olha rapidamente para ela, com uma expressão  carregada de desconfiança, e acrescenta:

- A lição está dada e ninguém vai esquecer. Não se  insultam impunemente os clãs de Cuzco.

Manco se afasta de Guaypar e se levanta  lentamente. Anamaya encontra o olhar de Paullu, que  ficou calado, imóvel, durante todo o combate. Há  tristeza em seus olhos enquanto ele observa o irmão  recobrar o fôlego.

Cuspindo sangue, resfolegando, Guaypar rola sobre  si mesmo para se pôr de joelhos penosamente.  Consegue se levantar, procura a ajuda de Anamaya,  que não lhe estende a mão. Num último esforço, ele  se levanta, as mãos espalmadas na barriga, e  encontra força suficiente para dizer:

- Você está amaldiçoado, Manco. Vai arder antes de  chegar ao Outro Mundo! A sua alma nunca será livre!

Manco limpa o sangue dos dedos e replica:

- Amaldiçoado está quem fala em amaldiçoar.

Enquanto Guaypar deixa a cancha cambaleando,  Anamaya hesita. Por um instante, seu olhar fica  colado ao de Manco.

- Preciso segui-lo - diz ela afinal. - Preciso  velar sobre ele esta noite, mesmo que ele se engane  a seu respeito.

Manco lança um olhar a Paullu antes de responder,  a voz estranhamente vibrante de doçura após tanta  violência:

- Eu sei, irmã dos olhos azuis...

- Cuide-se, Manco, e não tenha medo de serpentes.

- Infelizmente você não estará sempre à beira do  caminho para falar com elas e desviá-las de mim!

Na fumaça que escurece a noite, o vulto de Anamaya  já desaparece.

 

                         Tumebamba, dezembro de 1528

- Acorde, Anamaya.

Ela tem as pálpebras pesadas. Gostaria de ficar  deitada na esteira. Puxa a manta em que está  enrolada. Villa Oma olha para ela com dureza.

Ele entrou no quarto sem fazer o menor barulho, os  pés calçados com sandálias de palha deslizando em  silêncio no chão de pedra. Como acontece  freqüentemente, com aquela silhueta alta e aquela  boca de cantos esverdeados, sua aparição súbita  parece carregada de ameaças.

- Acorde, depressa!

- O que está acontecendo?

- Não discuta. Levante-se e venha atrás de mim!

Anamaya tenta pôr a cabeça no lugar. Há apenas  dois dias, a iniciação dos rapazes terminou. Há  apenas duas noites, Manco e Guaypar lutavam e se  insultavam. Apenas dois dias de paz e um novo drama  já se anuncia!

Ela se levanta, olha com pena para aquela sua cama  quente e aconchegante. A claridade está começando a  entrar pelo cortinado que dá para o pátio.   - O que fiz de mal?

- Não sei o que você fez. Mas a sua presença em  Tumebamba talvez não seja uma coisa boa!

- Eu não quis a luta entre Guaypar e Manco...   - Quem está lhe falando dessas criancices?

O tom de Villa Oma desperta definitivamente  Anamaya e a faz estremecer. De um nicho ao lado da  janela, o disco de prata de Mama Quilla, Mãe Lua,  brilha docemente no escuro, como se chorasse. Os  dedos secos de Villa Oma se crispam sobre o  cortinado. Sua voz surda ecoa como um trovão:

- O Corpo seco do único Senhor não está mais no  templo.

Anamaya abre a boca sem poder respirar, como se  tivesse levado um soco no estômago. Com uma voz  apenas audível, suspira:

- O que está dizendo?

- Você me ouviu. A múmia de Huayna Capac  desapareceu.   - Mas como? Como e possível?

Villa Oma ergue os olhos em sinal de impotência.  Ele parece mais alto e mais magro ainda no escuro. A  raiva e a angústia abriram sulcos profundos em seu  rosto.

- Ao nascer do sol, fui com os sacerdotes à sala  do templo de Inti - prossegue ele. - O nicho estava  vazio. A múmia não está mais no pedestal.   - Mas quem... quem ousou fazer isso?

- Quem? Como?... Só uma coisa e certa: você,  menina, é que será acusada deste crime!

- Eu? Eu! Por quê? Você não pode me acusar de uma  maldade dessas, Villa Oma, você sabe!...

- Eu não a estou acusando, Anamaya! - diz o Sábio  com um suspiro de cansaço. - Outros, infelizmente,  ficarão bem felizes de se encarregar disso! Você é a  Coya Camaquen. Seu papel não é proteger a múmia do  Irmão Duplo? Não foi isso que Huayna Capac mandou  você fazer na noite da passagem? Dar-lhe apoio neste  mundo aqui enquanto ele ia para o outro?

As lágrimas turvam a vista de Anamaya. Mas a  injustiça é tão violenta que ela logo as seca com as  costas da mão. Ela já não é mais a menina apavorada  que era levada ao Inca. A ira vibra em sua voz:

- E por que eu faria uma coisa dessas?

Com um gesto, Villa Oma repele a pergunta:

- Pouco importam os seus motivos! Você é a  protegida de Atahualpa. Se necessário, eles  inventarão uma mentira!

- Não entendo...

- É mesmo? Você ainda não entendeu que a gente de  Cuzco nos odeia e que tudo é motivo para nos  afastar...

Villa Oma se interrompe. Gritos ressoam no pátio.  Deformado, berrado a plenos pulmões, o nome de  Anamaya vibra no ar como um insulto.

- Bem, eles não perderam tempo - diz calmamente  Villa Oma. - Prepare-se, minha filha. É a eles que  você tem que convencer de sua inocência.

- É ela!

- Ela que fez nosso Senhor Huayna Capac  desaparecer!

- Sacrilégio, sacrilégio! O Mundo vai perecer!  Inti vai se vingar de nós!   - Essa menina de olhos azuis é maléfica! Inti quer  que ela vire cinza, Quilla quer que ela seja jogada  no rio!

O pátio do palácio de Huayna Capac é imenso. No  entanto, está tão repleto agora que os recém  chegados, irritados, gesticulando, permanecem diante  da porta encimada por uma verga representando uma  serpente dupla. Todos são nobres de Cuzco, todos  pertencem ao clã de Huascar. Alguns vociferam e  brandem suas maças mortíferas de pedras negras  finamente polidas. Outros agitam lanças, alguns  giram fundas ou os machados de obsidiana...

No centro do pátio, os principais chefes de  linhagem formaram um círculo. Eles discutem,  murmuram e se encaram; embora as palavras ainda  sejam medidas, os olhares não enganam. Todos estão  vidrados em Ánamaya, ladeada por Atahualpa e Villa  Oma, que permanecem impassíveis e calados.   - Os sinais são nefastos desde que essa menina  está entre nós! - grita um velho. - Ela é sacrílega!

- Você a protege para nos atrapalhar, Atahualpa! -  clama um guerreiro ricamente vestido e apontando sua  lança de plumas de seis cores para Anamaya.

Um rugido de aprovação se eleva em volta dele. O  homem tem a testa cingida por uma faixa de general,  seu unku é tecido de vicunha e decorado com todos os  quadrados e triângulos dos mais altos clãs. Ele  sorri, com um ríctus de arrogância na boca:

Adivinhamos a sua manobra! Você quer impedir que a  múmia de Huayna Capac chegue ao Templo único de  Cuzco! Tem medo que ela se instale ao lado dos  ancestrais da Origem do Mundo, pois então, Huascar,  nosso único Senhor, terá o poder de seu pai para  reinar! Eis por que você mandou essa menina dar  sumiço na múmia...

- Vamos queimar os pés dela, e ela vai dizer onde  a escondeu!

Numa reentrância afastada do pátio, Anamaya  percebe o perfil aquilino de Manco e o rosto nobre  de Paullu. Ambos mantêm os olhos baixos, cheios de  constrangimento. Também pertencem ao clã Huascar.  Quisessem eles ajudá-la, seriam impotentes...

Em frente, onde estão reunidos os parentes de  Atahualpa e os homens de Quito, ela vê Guaypar. O  rosto dele está marcado, a face esquerda coberta por  um emplastro de ervas seguro por uma gaze fina. Mas  os lábios intumescidos estão repuxados por um  sorriso crispado.

De repente, sobrepondo-se à algazarra, a voz forte  de Atahualpa vibra como a corda de um arco:

- Vocês ainda têm muitas palavras inúteis para  pronunciar?

Ele não deixa transparecer minimamente a cólera  que faz as pontas de seus dedos tremerem. Os gritos  cessam, de repente. O braço estendido, a mão  espalmada para o chão, ele aponta para a gente de  Cuzco:

- Nenhum de vocês acredita realmente que a Coya  Camaquen, aquela que meu pai escolheu para  acompanhar seu Irmão-Duplo, possa ser a autora desse  rapto sacrílego. Ninguém pode acreditar que eu me  oponha à vontade de Inti e à volta de meu pai a  Cuzco.

Virando-se para a direita, Atahualpa designa um  velho com a testa cingida com o disco de ouro dos  Grandes Poderosos:

- Colla Topac estava presente, com os outros  Grandes Poderosos, quando o único Senhor Huayna  Capac escolheu a Coya Camaquen antes de partir para  o Outro Mundo. Ele é que foi encarregado por meu pai  de fazer respeitar suas vontades de acordo com o  Costume, antes que meu irmão Huascar se cingisse com  a borla. Ele é que deve levar meu pai a Cuzco. Ele é  que o fará entrar no templo de Coricancha.

- É verdade - exclama o velho. - Eu sou o  Legatário e nenhum de nós, eu sou testemunha disso,  tem desejo mais caro do que ver nosso único Senhor  voltar à sua cidade querida! E não acho que a Coya  Camaquen pudesse fazer isso de que vocês a acusam: o  próprio Filho do Sol depositou sua confiança nela.

- Os que gritam mais alto entre vocês - prossegue  Atahualpa - deveriam ser mais comedidos... Quem sabe  se esses mesmos não são os blasfemadores?

Um curto silêncio parece gelar o ar da cancha.     Depois irrompe uma voz estridente:

- Você está nos acusando? Está nos ameaçando,  Atahualpa? A nós, o clã do seu irmão Huascar! O  filho mais amado do seu pai! Como ousa? Dessa vez, a  raiva de Atahualpa explode:

- Eu não ouso mais que vocês, que insultam aquela  que meu pai escolheu e cospem nela!

Não podendo mais agüentar, Anamaya se adianta para  o centro do círculo. Levanta a mão aberta e diz com  voz forte:

- Não briguem por mim!

Todos os olhares voltam-se para ela.

- Conduzam-me ao templo, para perto do meu esposo  o Irmão-Duplo. Ele me dirá onde está a Múmia.

Villa Oma e Atahualpa têm um mesmo olhar  estupefato.

- Sabe o que está dizendo? - murmura o Sábio de  lábios verdes. Anamaya faz que sim com a cabeça. Na  verdade, as palavras que ela acaba de pronunciar  surpreendem-na tanto quanto ao Sábio! Não foi a sua  vontade que as formou em sua boca. Elas saíram de  seus lábios por si mesmas, cheias de segurança.  Agora, seu coração se aperta, o suor da angústia lhe  molha as palmas das mãos. Contudo, o murmúrio que  percorre a multidão contém a mesma dose de surpresa  que de respeito. Lá embaixo, Manco e Paullu  levantaram a cabeça e encaram-na, os olhos  brilhantes. Guaypar não está mais sorrindo. Um  grito, de novo, rasga o silêncio:

- Atahualpa! Se essa menina não encontrar o Corpo  seco de nosso Senhor Huayna Capac, vamos jogar as  entranhas dela no lixo!

Um rugido de aprovação percorre a multidão.

Sob o olhar preocupado de Atahualpa, a mão de  Villa Oma se fecha com firmeza em volta do braço  fino de Anamaya. Ela sente o orgulho que vibra em  sua voz quando se volta para a multidão e diz:

- Ameacem! Ameacem! Mas vejam: ela não tem medo de  vocês!

O caminho entre o palácio e o templo não é muito  longo. O calor é opressivo. Anamaya sente-o pesar na  sua nuca e fazê-la respirar mais devagar. A cidade  inteira está tomada por um humor doentio. Grupos de  homens se comprimem nas ruelas estreitas, a raiva e  o medo marcam seus rostos. Alguns resmungam insultos  quando ela passa por eles. Mulheres aparecem à porta  das canchas e seguem-na com o olhar, fazendo  caretas.

Ela caminha empertigada, olhos fixos na capa  esvoaçando nos ombros altos de Atahualpa. Está  aliviada de sentir a seu lado, caminhando no mesmo  passo rápido, Villa Oma e os soldados da escolta.

Eles entram no templo deserto, a sala dos nove  nichos, sem outra cobertura senão a imensidão do céu  que a domina.

Anamaya percebe o murmúrio vivo da água nas  canalizações das fontes. Em cima dos muros de pedras  esplendidamente encaixadas, o sol poente traça  sombras sutis e desenha animais e deuses. Nichos se  alinham ao longo da parede, encimados por um friso  de ouro martelado de losangos, trapézios, formas  oblongas como ovos de pássaro.

No nicho central, encontra-se o Irmão Duplo em  ouro. Mas a seu lado, a base onde a múmia se  mantinha a escura dos mundo daqui e de baixo está  vazia. Anamaya mal ousa olhar para ela.

Villa Oma rodeia-a como se pudesse enxergar  pistas. Finalmente, diz a Atahualpa:

- Tenho certeza que de que os homens do seu irmão  é que cometeram essa maldade imbecil!

- È provável. Mas eles perderam a razão. Nunca se  viu tamanho insulto feito ao nosso pai.

- É o sinal de que Huascar e a gente dele estão  minados pelo medo.

- Medo? E por quê? Eles sabem que meu respeito  pelas palavras de meu pai é absoluto! Sabem que não  quero colocar o llautu sagrado em minha fronte. Não  quero ser o único senhor. Você sabe, Villa Oma! Eles  todos sabem: os sinais são contra mim...

- Nem todos... Você tenta demais se convencer  disso! E Huascar sente. Ele é como um bicho sente  mais do que pensa. Mas, á maneira dele, ele vê mais  longe que você: tem medo das forças que cercam você.  Tem medo dela...

Villa Oma mostra Anamaya e acrescenta:

- Eles receiam que ela se lembre das palavras do  Único Senhor na noite da passagem dele. Receiam que  o irmão duplo lhe dite a verdadeira vontade de seu  pai!

Atahualpa contempla por um instante o rosto de  ouro, calmo mas impenetrável, do Irmão - Duplo.  Esboça um gesto como se quisesse tocá-lo, mas se  emenda, virá-se para Anamaya e pergunta:

- E você, menina, acha, como o sábio, que eu não  sei escutar a vontade de mau pai?

- Acho que você não sabe que é meu poderoso  senhor!

Mal essas palavras saem de sua boca, Anamaya abafa  um grito e tapa a boca com as mãos.

- Perdão! Perdão... Essas palavras saíram de mim  sem que eu as pensasse!

- Ouça-a - murmura Villa Oma. - ouça-a, ela fala  com a vontade de Huayna Capac, eu sinto!

Os olhos um tanto vermelho de Atahualpa vão do  sábio á menina. Mas o olhar de Anamaya é atraído  pelo nicho do Irmão-Duplo. Em seu rosto esculpido,  um raio de sol veio pousar com uma precisão de uma  ponta de lança...

- Encontre a múmia Anamaya - murmura Atahualpa. -  Encontre-a!

Na hora em que ele se vira, o sol desliza por seu  capacete e pelos discos de suas orelhas. Anamaya  sente os reflexos de ouro penetrarem nela e vibrarem  em seu peito como se formassem nela outras palavras,  ainda desconhecidas e impossíveis de pronunciar.

 

                               Tumebamba, fevereiro de 1529

Anamaya e Villa Oma seguem pela esplanada diante  do templo. Na colina de Tumebamba, defronte a eles,  os muros das canchas, em volta dos palácios, dos  pátios, das casas mais comuns, estendem-se formando  quadrados regulares.

O Sábio se cala, Anamaya sabe que não deve lhe  fazer perguntas. Do outro lado do vale, divisa o  cume negro do Huanacauri. O caminho calçado que eles  estão seguindo é uma reta só desde o cume da  montanha e do templo.

O calor pesa cada vez mais. Anamaya sente o suor  porejar em suas têmporas, sua nuca, escorrer por  suas costas embaixo da túnica cerimonial demasiado  grossa.

Sem diminuir o passo, o Sábio enfia a mão na  chuspa, a bolsa de pano que não o deixa. Tira dali  uma pitada de folhas de coca e um frasco com um pó  branco, uma cal fina como talco.

- Tome - diz ele somente estendendo-lhe a coca.

Depois, ele coloca na palma de sua mão um pouco de  cal. Ànamaya enrola as folhas verdes e grossas para  com elas fazer uma espécie de cilindro e começa a  mascá-las devagarinho. O gosto doce-amargo a faz  salivar.

Pouco a pouco, a cidade desaparece atrás deles e  logo o caminho cuidadosamente calçado vira uma  trilha de terra ladeada por dois muros de alvenaria  grosseira mas regular. Ela caminha sem esforço, sem  cansaço. Uma espécie de placidez eufórica a invade.

Na outra vertente do morro, uma encosta suave leva a  um platô. Ali, aparece a massa clara de uma enorme  rocha de formas tortuosas e gretadas que, como sob o  efeito de um caos, ao mesmo tempo brotam do chão e  afundam.

Anamaya não precisa que o Sábio lhe diga: trata-se  de uma huaca. Uma Pedra Ancestral, uma das milhares  de Pedras sagradas que limitam o Império dos Quatro  Lados segundo os eixos que só os Sumos Sacerdotes  conhecem. Ali, as almas dos Anciãos e dos Deuses  respiram e acolhem as preces dos homens e das  mulheres que vivem no mundo visível.

Villa Oma fica imóvel diante do muro que marca a  entrada. Um trabalho tão fino feito em pedra que às  vezes encaixa-se na rocha como uma segunda pele  traça o ziguezague coruscante de Illapa, o Senhor do  Raio e do Trovão.

Da chuspa cheia, Villa Oma torna a tirar folhas de  coca. Agora, ele as dispõe cuidadosamente num nicho  do muro, ao pé de uma pequena estatueta de ouro.  Depois, tira do alforje um frasco de chicha e pinga  algumas gotas da bebida no nicho antes de regar o  chão com ela. Feito isso, levanta-se, bem  empertigado, a cabeça de lado, oferecendo as mãos  espalmadas para o céu.   Após um instante de recolhimento, ele se vira para  Anamaya, estende-lhe a chicha e faz sinal para que  ela beba. Ela obedece, dá dois grandes goles que lhe  queimam estranhamente a garganta.

- Agora, vamos esperar - diz o Sábio.

Anamaya senta-se em cima das pernas numa pedra  chata e quente. O sol afaga sua pele e lhe fala. Um  torpor estranho lhe pesa as pálpebras, torna sua  respiração mais lenta. Seus olhos se fecham, seu  corpo todo fica pesado, cada parte distinta, braços,  pernas, tronco, cabeça. E de repente, ela volta a se  sentir inteira, mas tão pesada que é puxada para o  fundo da terra, deslizando com uma velocidade tão  vertiginosa que lhe é impossível resistir...

Então, talvez ela tenha adormecido.

Quando volta a si, o sol está quase se pondo. Vê  algumas luzes já se acendendo nas encostas das  montanhas que cercam o platô.

- Villa Oma!

Ela o chama em vão. O efeito da coca e da chicha  se atenuou. Resta apenas uma fraqueza penosa e  fragmentos de medos que a envolvem com a escuridão  crescente.

- Villa Oma!

Sua voz ecoa longe. Os flancos das montanhas  devolvem-na a ela. Anamaya se levanta, as coxas  rígidas, os joelhos doloridos. Passa ao longo da  parede de Illapa, tateando-a com as pontas dós dedos  para guiar-se. No fim da parede, começa um caminho  estreito, invadido por plantas espinhosas, que  parece dar a volta na huaca.

Ela caminha com prudência, esforça-se para não  escorregar com as sandálias de palha. Em seu braço,  a pulseira das duas serpentes lança chispas douradas  ao luar.

Bruscamente, ela tropeça numa moita de espinhos  que fecha o caminho melhor que uma porta. O medo a  invade. Com a respiração acelerada e rouca, ela  volta atrás. Porém, depressa demais. Tropeça, lança  as mãos à frente, no escuro... E onde pensava  encontrar a firmeza do rochedo, seus braços entram  completamente numa brecha onde ela cai, de cabeça,  arranhando as coxas na ponta de uma pedra.

Quando se equilibra novamente, sem conseguir  respirar, petrificada pelo silêncio da escuridão,  ela entende que o rochedo se abriu para acolhê-la.  Ali, faz mais frio e a noite é mais negra que a  noite.

Ela treme. Contra a sua vontade, suas mãos tremem,  seus ombros tremem,seu coração treme. Mas ela sabe,  sem entender por que, que agora não pode voltar  atrás.

Ela se levanta. Passo a passo, esbarrando com os  ombros nas paredes, ela avança.

O caminho desce muito ligeiramente. Ela vai em  frente, inexoravelmente, afundando cada vez mais.  Tem a boca seca, no peito, a dor das batidas de seu  coração. Toda uma parte sua deseja gritar, bradar  que ela não quer deixar o Mundo de Cima.

Em seguida, o espaço à sua volta fica imenso. A  escuridão torna doce o ar. Ela abre os braços sem  encostar em nenhum rochedo. Avança na noite sem  esbarrar em nada. Tanto à direita, como à esquerda!  Então, embora ali não haja nenhum barulho, nenhuma  luz, uma certeza corre em seu corpo, mais acre, mais  violenta ainda que a chicha: ela não está só.

- Villa Oma - murmura ela à beira das lágrimas. Diante dela, no escuro, brilham dois olhos  amarelos. O puma!

É isso que Villa Oma quer desde o primeiro dia:  dar seu coração para o puma devorar, dar sua carne  para o Mundo de Baixo, limpar o universo da impureza  dos seus olhos azuis, de suas origens misteriosas.

Os olhos amarelos se deslocam à esquerda, como se  para melhor observá-la. Então, de repente, a voz de  Huayna Capac, aquela voz que ela espera há dias, que  lhe vale esses gritos e esses ódios todos, ecoa em  sua cabeça. É uma voz clara, não é mais a voz  cansada do velho que falava no meio da noite e lhe  dizia que estaria com ela. Mas é tão reconhecível!

"Menina Anamaya! Menina pura de olhos de lago,  como pode achar que eu não manteria minha promessa?  Venha, menina Anamaya, chegue aqui perto de mim! Não  tenha medo...”

Anamaya adianta-se para os olhos amarelos do puma.  Seu medo se acalma, sim, embora ela esteja certa de  que o puma vai devorá-la. Contudo, está feliz de ter  encontrado o único Senhor antes de também deixar o  mundo.

"Eles quiseram me pegar", diz a voz muito  docemente, "mas quero ficar perto de você até a hora  em que me sentarão em meu trono de eternidade, em  Cuzco, perto de meu Pai Sol. Eles quiseram me pegar,  mas agora estou de volta, onde nunca deixei de  estar...

"Menina Anamaya, não duvide de mim. Permaneça em  meu hálito e confie no puma...”

O eco da voz está em sua cabeça, sobre a pedra.

Anamaya abre os braços e se oferece à boca aberta do  puma. Mas os olhos amarelos desapareceram. Em volta  dela há apenas a escuridão infinita...   Não!

Não: de uma fenda na rocha, no alto, surge a luz  intensa da Mãe Lua!   Rindo, Anamaya põe as mãos no rosto, arranha as  têmporas!

Está viva!

Quando ela surge, esbaforida, perto da parede de  Illapa, Villa Oma está ali à sua espera, um vulto  branco na noite. Ela pára diante dele, sorrindo.   - Ele falou com você, não foi?

Anamaya faz que sim com a cabeça sem saber o  quanto seus olhos brilham na noite.

- E você sabe onde ele está? - Venha.

Agora cabe a ela conduzir o Sábio. Quase correndo,  eles voltam para a cidade, passando ao longo dos  muros, esgueirando-se pelas ruelas e diante das  portas das canchas adormecidas.

Quando eles se aproximam do Templo, dois jovens  sacerdotes de traços ainda adolescentes precipitam- se ao seu encontro. Os sacerdotes têm a cabeleira  desgrenhada e parecem tomados por uma grande  agitação.

- Sábio Villa Oma! Sábio Villa Oma!

O sábio lhes impõe calma com um gesto seco.   - Sábio Villa Oma! A Múmia voltou!

- Eu sei - diz o Sábio olhando para Anamaya.

Na sala dos nove nichos, o Corpo seco do único  Senhor Huayna Capac está sentado em seu pedestal.  Mama Quilla ilumina sua máscara de ouro, a finíssima  cobertura de vicunha e de pêlos de morcego que o  recobre: Ele está ali, como se dali nunca tivesse  sido tirado. Seu rosto de metal luminoso está virado  para a estátua do Irmão-Duplo. Villa Oma poderia  jurar que nele se desenha uma espécie de sorriso.  Ele, o velho Sábio astucioso e sólido, estremece  enquanto Anamaya murmura:

- Ele me garantiu que nunca se afastou de mim...       Villa Oma levanta os braços numa prece intensa e  olhar esgotado pousa com ternura em Anamaya.

- Vamos ter que tomar conta de você, menina. O  Único Senhor Huayna Capac vem visitá-la quando quer.  Você viaja entre os mortos, vai ao Mundo de Baixo e  volta... Sua vida ficou preciosa demais para nós  todos!

Em sua voz orgulhosa, Anamaya percebe um  estremecimento de medo.   - Você já não quer me dar para o puma?

- Quero. Mais do que nunca, pois agora sei que o  puma a protege. Por um instante, Anamaya se lembra  dos dois olhos amarelos do puma no escuro e do  abandono que a invadiu, mais forte que seu medo,  mais forte que a morte.

Nela, ecoam sem parar as palavras do único Senhor,  seu amo: "Permaneça em meu hálito e confie no  puma...”

Segunda parte

 

                         Sevilha, Espanha, fevereiro de 1529.

Desde o amanhecer, ele espera.

Vieram tirá-lo de sua enxerga e de seu sono  agitado enquanto era noite ainda. Seu primeiro  pensamento foi que hoje ele iria morrer.

Essa perspectiva não o assusta tanto quanto  deveria. Menos que a tortura da qual o ameaçam há  meses. Menos que essa espera interminável que  equivale à dor dos instrumentos.

É quase meio-dia, o sol invade o grande vestíbulo  do castelo de Triana. Ele se acostumou tanto à  escuridão de sua masmorra que precisa manter os  olhos fechados.

E depois suportar esse silêncio sem fim.

Nenhum eco na grande escadaria, nenhum canto de  pássaro lá fora. Ele afasta os pés. A corrente  soldada às tornozeleiras de ferro que rasgam o que  resta de suas meias chocalha e bate na madeira  encerada do assoalho. O barulho dos elos de metal  logo se apaga, engolido pelo imenso silêncio.

É isso, no fundo, a obra da Santa Inquisição: o  silêncio. A vontade e a grande força do silêncio. A  infinita capacidade de abafar todos os ruídos. Os  ruídos da vida como o barulho da morte.

É quase noite quando o inquisidor lhe sorri.

Um sorriso terno e mais insuportável que uma  ameaça.

Sem deixar de sorrir, com um pequeno gesto de sua  mão rechonchuda,  o inquisidor ordena que ele se aproxime.

A sala é familiar. Diante das janelas altas, o  veludo dos reposteiros vermelhos esconde a noite  assim como o dia. As chamas bruxuleantes das velas lançam sombras móveis nos caixões pintados do teto.  Desde a porta, um tapete cor de malva delimita a  passagem. No centro do tapete, há uma cadeira de  carvalho de espaldar alto e reto, brilhando graças  às centenas de acusados que a lustraram à força de  sobressaltos de medo.

Em frente à cadeira há um estrado. E ali, atrás de  uma mesa comprida, há três homens. O próprio  inquisidor, o rosto jovem e redondo, a testa e as  faces brancas, envolto numa simples batina preta e o  crânio já calvo coberto com um barrete de quatro  pontas. À sua direita, vestido de maneira semelhante  mas com um capote abotoado justo, o secretário. Um  velho de boca triste e olhar circunspecto. O  escrivão não passa de um jovem bacharel de olhos  fugidios e têmporas cobertas de pequenas pústulas  vermelhas.

Mal Gabriel se senta, a primeira pergunta é  desferida: - O senhor se chama Gabriel Montelucar y  Flores?

A voz do inquisidor é o oposto do seu rosto: fina  e seca. Quase tão áspera quanto se saísse da boca de  um velho. Gabriel ergue os ombros com impaciência.

- O senhor sabe meu nome melhor do que eu. Há  duzentos e cinqüenta e três dias que estou em suas  masmorras e a décima segunda vez que essa pergunta  me é feita...

- Responda com respeito à Sua Senhoria! - rosna o  secretário. Gabriel gostaria de sorrir, mas  contenta-se com um suspiro:

- Vossa Eminência não ignora que me chamo como  Vossa Eminência diz. Assim como não ignora o nome e  o título de meu pai. Ou ainda que minha mãe era  apenas uma doméstica...

- Responda somente às perguntas, don Gabriel. É  verdade que o senhor entrou para o Collegio Mayores  Santa Maria del Jesus no ano da graça de 1525?   - Sim. Passei quatro anos ali. Pena que fui  obrigado a sair. Aprendi muito ali.

- Algumas divagações vindas do norte?

- Divagações, Eminência? Será que as ciências  teológicas, os elementos e as leis da natureza, a  filosofia...

- Descreveram-no como um mui fiel admirador de  Erasmo?

- Não menos fiel que a metade da cidade que sabe  ler, Eminência!   - A metade da cidade não é amiga de doña Francesca  Hernandez - sorri novamente o inquisidor.

Gabriel marca uma hesitação. Seu olhar desliza até  o escrivão e sua voz carece de firmeza quando ele  responde:

- Vossa Eminência sabe que fui três vezes á casa  de Doña Francesca.

- E o que importa o número! E o que fazia nessa  casa?

- Conversávamos.

- Sozinhos  - Jamais.

- Sobre o que eram essas... conversas?   - Sobre as coisas do espírito.

- E da religião, suponho?

- Como Vossa Eminência não ignora, as coisas do  espírito às vezes são intermediárias das coisas da  religião.

- Falavam então da doutrina de Lutero?   - Raramente. E para condená-la!

- É verdade que doña Francesca professava de bom  grado o abandono carnal ao êxtase sob o pretexto de  que o amor de Deus é no homem como uma força de  alegria?

- Às vezes, sim. Como uma via de recolhimento,  pois...

- Ela não considera que o amor de Deus basta para  afastar de si o pecado e que não é preciso ter medo  de Deus nem do Inferno?

- Se Vossa Senhoria me permite, isso é  infinitamente mais complexo! Doña Francesca acha  que...

- O senhor ouviu-a afirmar, sim ou não, que não  era preciso temer a Deus?

- Só para dizer que era preciso amar com alegria e  segurança.

- A ponto de poder cometer o pecado da carne  freqüentemente, e até em público, sob o pretexto de  que aí estaria um caminho, como o senhor diz, de  "recolhimento"?

O rosto do inquisidor é duro e frio como uma  máscara de metal. Gabriel se retesa, perde o sorriso  irônico.

- Não entendo o sentido dessa pergunta, Eminência.

- Ah sim?

Enquanto o escrivão relaxa os dedos doloridos, o  falso sorriso corta o rosto redondo do inquisidor.  Ele estende a mão para o secretário, que faz que sim  com a cabeça, puxa um bilhete dos papéis empilhados  à sua frente, coloca-o na mão do inquisidor:

- Achamos isso numa obra que lhe pertence. O  Enchiridion, de Erasmo, para ser preciso...

- Traduzido pelos cônegos de Palencia, e aprovado  pelo Santo Padre, como Vossa Eminência não ignora.

- Não é o livro que me preocupa, don Gabriel, mas  este bilhete. De próprio punho de doña Francesca...

Gabriel sente as pernas fraquejarem e um vazio no  coração antes mesmo que o inquisidor continue.

O senhor não me queira mal se eu ler só um  trecho... "Meu terno amigo, como é possível que com  você eu me sinta capaz de alcançar o gozo no coração  de Deus? E com a confiança mais absoluta? Poderá  alguém arder até a medula com um fogo tão divino?  Sabe que, a noite passada inteira, depois de nosso  breve encontro, sonhei que para mim você era o  salvador. Você é, terno amigo, como uma constelação  fixa no cristal dos céus, marcado com o selo do  felino, da fera, do leão talvez... ou do gato! Mas  sei que o animal em você continua calmo, seu  ronronar me é caro... "Abster-nos-emos do resto.

O inquisidor pousa o bilhete. Seus olhos cintilam  de ódio e de concupiscência quando ele pergunta:

- Esses comentários felinos se seguem a  conversas... teológicas?   - Trata-se de um sinal de nascença que tenho atrás  do ombro, Vossa Senhoria. Parece um gato grande e  Doña Francesca...

- Como ela descobriu esse sinal? O senhor então  ficou nu diante dela?   - Não! - exclama Gabriel rubro. - Falamos sobre  isso uma vez em que...

- No bilhete, doña Francesca repete claramente  "doce instante de solidão". No entanto, o senhor  acaba de afirmar que nunca ficou a sós com ela. Em  quem acreditar, don Gabriel?

O arranhar da pluma do escrivão cessa. Gabriel  enfrenta os três pares de olhos que investigam o seu  próprio olhar. O silêncio é duro como as cadeias que  prendem seus calcanhares. O inquisidor coça as  bochechas redondas. Sua voz de repente é amável.

- Don Gabriel, seja racional, por favor. Basta nos  dizer a verdade! Sabemos que doña Francesca  arrastou-o para a blasfêmia muitas vezes. Sabemos  que o senhor não é o único e que manteve com ela  conversas favoráveis doutrina de Lutero. Sabemos que  ela cometeu atos com o senhor que..

Gabriel interrompe com um gesto.

- Eminência!

Ele se levanta, respira fundo:

- Faça o que quiser comigo. Agora eu me calarei.   - Acredita?

- Se não conseguir me calar, eu morrerei.

- Há coisa pior que a morte, senhor.

O olhar de Gabriel continua fixo no inquisidor,  que acaba franzindo as pálpebras e fazendo um  pequeno sinal para os aguazis:

- Nos veremos de novo amanhã, don Gabriel. Com ou  sem os instrumentos, à sua escolha...

 

                                          Sevilha, fevereiro de 1529.

Naquela noite, durante mais de uma hora, os nervos  à flor da pele, uma náusea na garganta, Gabriel anda  de um lado para o outro no cárcere estreito. Quatro  paredes de pedra encardida, tendo como únicas  aberturas uma porta de madeira e uma fenda de  ventilação onde os ratos se esgueiram. Uma lâmpada  de sebo pende em cima de uma tina fétida que serve  de latrina. Há enxergas amontoadas ao longo das  paredes.

Após ter compartilhado esse antro sórdido com dois  mercadores de tecido de Cádiz, depois com um  padeiro, há dois meses, ele tem como companheiro um  monge estranho de nome Bartolomé.

Embora ainda muito jovem, ele é calvo. Na medida  em que se pode vê-lo na eterna penumbra da prisão,  seu olhar é tão pálido como uma bruma matinal, ora  cinza, ora azul.

O dedo médio e o indicador de sua mão direita são  curiosamente colados um ao outro pelo que parece ser  um acidente de nascença. Uma mesma carne os une e os  recobre como se formassem, num surpreendente gesto  de bênção, um dedo só.

É um homem de poucas palavras. Jamais se queixa,  ou confessa seu medo. Muitas vezes já vieram buscá-lo para interrogatórios, e, uma noite, os guardas  tiveram de levá-lo até sua enxerga. Ele gemeu  durante a noite mas, de manhã, não respondeu a  nenhuma das perguntas de Gabriel. Ele nem sabe por  que foi preso. No entanto, parece ser menos um  desejo de dissimulação que o confina ao silêncio do  que uma estranha sabedoria.

A menos que este monge seja um ótimo ator e um dos  espiões que a Santa Inquisição espalha por suas  masmorras para recolher as indiscrições dos  prisioneiros. Do momento em que se desce embaixo da  terra, tudo é possível!

No entanto, é com uma voz áspera que frei  Bartolomé ordena de repente:

- Pare de ficar  andando, don Gabriel! Deite-se e acalme-se. O senhor  se esgota inutilmente.

Gabriel estremece e obedece. Encolhe-se em sua  enxerga e fica imóvel um instante. Depois,  adivinhando o olhar claro de frei Bartolomé sempre  pousado nele, murmura:

- Estou com medo! Amanhã eles vão me dar os  instrumentos. Não posso fazer nada, estou com medo.

O monge balança a cabeça e fica calado. Gabriel  lhe é grato por isso. Palavras de consolo só lhe  excitariam a raiva e a vergonha.

Por todos os santos, por que ele não destruiu o  bilhete de doña Francesca? No próprio dia que o  recebeu, adivinhou toda a sua imprudência!

De repente, apesar de sua desconfiança, a vontade  de falar lhe devasta o peito. O que importa se o  monge foi colocado junto dele por seus carrascos!  Ele precisa falar. Dizer a verdade agora, como se  pudesse livrar-se dela e esquecê-la! Esquecer o  suficiente para ter coragem de se calar, amanhã,  quando os ferros dilacerarem seus membros...

- Frei Bartolomé, ouça-me! Eles estão  completamente enganados. Imaginam o que não  aconteceu. Eram só palavras, entende? Amor, êxtase,  divina paixão, liberdade, suavidade, gozo,  possessão... Palavras! Só palavras... Mas eles nunca  acreditarão em mim.

- Nunca, com efeito.

- Eu poderia no entanto explicar a eles que...

- Não explique nada - diz surdamente o monge  tratando-o pela primeira vez com mais intimidade. -  Não diga nada! Urre de dor se quiser, mas fique  calado.

Gabriel estremece. Ouve os seus próprios dentes  batendo. Endireita-se e senta-se para melhor se  controlar.

- Ela, sei que já torturaram. Ela teve que  confessar sabe Deus o quê... Negação do papa,  apostasia, heresias luteranas! Que nos entregamos a  bacanais...   - Não. Ela não disse nada, senão eles não  precisariam de você.   - Acha? Eles querem me ouvir dizer que éramos  amantes... Que bobagem!   - Vocês não eram?

- Palavras, estou lhe dizendo.

- Infelizmente, meu amigo! As palavras lhes bastam  amplamente... Um silêncio percorrido por um ruído de  fricção indistinto acompanha um instante os  terríveis pensamentos que os atravessam.

- Amanhã - prossegue Gabriel -, quando esmagarem  meus polegares, quando queimarem meus pés, furarem  minhas mãos...

- Não se esqueça do esquartejamento e do piche nas  feridas!

Um brilho no olho do monge faz Gabriel sorrir. Por  uma fração de segundo ele esquece o terror que o  sufoca. Frei Bartolomé lhe devolve o sorriso e pousa  a mão fria em seu pulso molhado de suor:

- Não deixe sua imaginação correr, don Gabriel.  Sempre haverá tempo para temer os instrumentos  amanhã.

- Você conhece isso, não é?   - Conheço.

- E...?

A mão de frei Bartolomé larga o pulso de Gabriel.  Seu olhar vai se perder nas paredes da masmorra  enquanto as veias de seu pescoço se dilatam. Maquinalmente, ele massageia os dedos doentes.

- Você não pode saber nada sobre você enquanto  eles não vêm com os ferros ou o fogo - murmura ele  afinal. - Sim, o conhecimento que lhe chega então é  fulgurante!

- Você falou?

Bartolomé não se mexe. Um sorriso distante ilumina  seu rosto juvenil e tão sábio. Ele levanta os dois  dedos juntos para Gabriel.

- Guarde silêncio, meu irmão. E agora, descanse.

Ele sonha e a porta de sua cela transforma-se em  persiana. Não é nem liberdade nem luz que passa o  umbral da masmorra, mas sim uma horda pegajosa de  serpentes. Um verdadeiro rio de répteis, que o  engole, envolve sua garganta, puxa seus pés!...

Ele desperta aos urros. já não está sonhando e os  guardas que tiram os ferros de seus tornozelos são  bem reais.

- Ei! Você precisa acordar! - rosna um aguazil de  cabeça descoberta. Gabriel olha seus ferros caírem e  pergunta ingenuamente:

- Está na hora?

- Parece. Ande, levante!   - Aonde está me levando?   - Não sabe?

No escuro, o olhar intenso de Bartolomé fixa-o.  Mas nem um nem outro tem tempo de fazer um gesto, ou  dizer uma palavra. Ele é empurrado na escada, depois nos corredores, e em alguns  minutos, sem entender, vê-se no guichê da prisão.     Ali, os aguazis de guarda ignoram-no como se ele  não existisse! Um guarda escuro destranca as  fechaduras, a portinhola de ferro se abre e, do  outro lado, na praça, a aurora é pálida.

E a situação, ridícula! Tornam a empurrá-lo. Ele  tropeça na soleira, machuca um dedo do pé numa pedra  do calçamento. Vira-se a tempo de ver a porta se  fechar atrás dele. Ei-lo sozinho do lado de fora, na  praça del Rosário. As pernas e os pulsos livres. O  céu vasto e puro no alto!

Ele murmura:   - Quer dizer?...

Não acredita. Não quer nem pronunciar a palavra!  Agora também desconfia das palavras!

Mas um cão passa trotando e mija tranqüilamente na  porta da prisão. Depois, o animal atravessa a praça  até a Cuesta del Rosario. Acompanhando-o com o  olhar, Gabriel ali vê uma carruagem atrelada a uma  parelha. Um coche negro e prateado, todo luzidio,  tendo na porta um escudo que ele logo reconhece.

Ele fica boquiaberto.

A sege do marquês de Talavera... A sege de seu  pai!

A porta se entreabre. Uma mão enluvada acena em  sua direção. No banco do cocheiro, um lacaio o  observa.

Confuso, Gabriel atravessa a praça. Lentamente, o  frio do calçamento enregela seus pés descalços.  Quando ele chega suficientemente perto do coche, uma  voz bem conhecida ordena:

- Então suba, bugre idiota! Quer que a cidade  inteira admire o estado em que você se encontra?

Ele obedece, como sempre fez. Mal se senta, a  viatura se põe em marcha. O luxo da carruagem e o  suntuoso gibão de Segóvia de seu pai de repente  fazem-no tomar consciência de seu estado. Seus  calções, antes pretos, estão cinzentos de tão  empoeirados e sua camisa aparece através de um  enorme rasgo em sua casaca. Suas meias são um buraco  só até os joelhos e há muito suas botas foram  confiscadas pelos guardas da prisão com a desculpa  de que os ferros arranhariam o couro.

O marquês seguiu o mesmo pensamento. Ele desvia os  olhinhos negros com um esgar de desgosto enquanto  aponta com o dedo enluvado para um pacote no  assento:

- Nossa, como você fede!... Aí há roupas limpas.  Vai vesti-las daqui a pouco... Ah! Que fedor!

Gabriel esboça uma reverência divertida:   - Estou desolado, senhor.

- Com toda a razão! Sua liberação me custou três  mil e duzentos ducados! O rendimento anual das  minhas terras de Almeria. Tudo isso por suas  elucubrações com essa desavergonhada!

- Senhor, eu...

Num solavanco, o chapéu balança, mas as mãos do  marquês estalam com firmeza.

- Não, não! Nem uma palavra! Não quero ouvir nem  uma palavra sua! Está acabado. Até agora só tomei  conta do senhor pela honra do meu nome, paguei o  colégio pela honra do meu nome. E desde o início o  senhor não parou de arrastar esse nome junto aos  loucos e os heréticos! Santo Deus! O marquês de  Talavera suspeito de apostasia porque seu bastardo  arrasta os colhões junto aos luteranos!... Três mil  e duzentos ducados! Genuflexões, súplicas, promessas  humilhantes, dois meses de angústia e de idas e  vindas na penumbra para tirar meu nome do Santo  Oficio, eis o que o senhor me custou! Mas isso  acabou e acabou bem. Prometi à Sua Excelência o  Inquisidor Geral que o senhor iria desaparecer.  Apago-o de minha existência com a mesma simplicidade  com que nela o fiz entrar...

O marquês tira do bolso do gibão uma carta com um  lacre vermelho que estende à frente como um rato  morto.

- Eis os papéis de um emprego que lhe espera em  Nápoles com os frades dominicanos. Uma derradeira  bondade cristã me impele a lhe oferecer um futuro!  Anote bem que, daqui para a frente, o senhor está  terminante mente proibido de dizer que me conhece!     Um advogado riscou a sua existência de todos os  meus registros...

- Repudiado, não é? - resmunga Gabriel. - Como uma  puta que se rejeita...

Ele está ofegante, a voz esganiçada de fúria.  Grita para que freiem os cavalos e, quando a  carruagem pára, pega a carta ainda na mão do pai.  Rasga-a e joga os pedaços nos assentos ao mesmo tempo  em que atira as palavras como pedras:

- O senhor jamais me conheceu senão como um  constrangimento!... Sem nunca ter tido qualquer  coisa sua, eu nada quero do senhor. Rejeitado pelo  senhor, eu o rejeito. Desprezado, eu o desprezo e o  odeio. Que eu não use mais o seu nome? Com o maior  prazer: um dia, o senhor ouvirá o meu.

A boca do marquês abre e fecha como a de um peixe  fora d'água. Gabriel salta do coche e bate a porta.  Segurando as rédeas, o cocheiro hesita. Uma  bengalada ecoa no vidro. A viatura se põe em marcha,  a porta torna a ser aberta e a trouxa de roupas cai  na rua.

Gabriel zomba mas está gelado como um cadáver. Seu  coração palpita. Quando o barulho da carruagem se  afasta, ele tenta engolir o choro. Dá três passos  para se apoiar numa parede, mas os soluços secos  explodem aos borbotões em sua garganta.

Ele começa a tremer todo, e as pernas lhe faltam.  Cai de joelhos, como um homem morrendo, indiferente  ao olhar dos passantes matinais.

 

                             Tumebamba, fevereiro de 1529.

- E o puma lhe falou?

Os olhos de Manco brilham de incredulidade e de  excitação. - Mais devagar, Manco...

Em voz baixa, Paullu chama o irmão à ordem. Tudo  dorme na cancha Anamaya franze os olhos azuis.

- Não vi a fisionomia de quem me falava, Manco.  Homem ou puma eu não poderia lhe dizer. Mas a voz  era a de seu pai Huayna Capac. Reconheci logo,  embora ele tenha falado comigo com mais firmeza do  que no dia em que me deu a mão...

- Meu pai a tocou?

- Ele estava velho e doente... Pediu que eu  olhasse para ele.   - E você olhou?

A estupefação de Manco é tão grande, sua expressão  tão cheia de inocência que Anamaya sorri. Manco é  pouco mais velho que ela, mas ela é mais, madura, de  coração como de espírito, tantas experiências já  viveu...

- Sim, olhei para o Inca - murmura ela, divertida  -, e não morri Ou então estou morta e voltei para  este mundo aqui!

- Mas o Corpo seco? Onde estava?

- Não sei. No templo, talvez. Sinto muito, não sei  mais nada...

- Há mistérios que é melhor não procurar desvendar    - suspira Paullu   - E o que importa - prossegue Anamaya com um  sorriso -, o essencial não é que seu pai encontre  novamente seu trono no templo e permaneça junto  todos os filhos e a todos os Anciãos? Não é esta a  única ordem do mundo?

Manco aprova com um gesto de cabeça, mas os dois  rapazes ficam um bom tempo pensativos, como se  procurassem adivinhar tudo o que tal prodígio  poderia significar. Depois, com uma voz suave,  Paullu anuncia:

- Partimos amanhã.

- Tão cedo? Mas por quê?

- Depois do que houve - diz Manco -, os homens do  nosso clã decidiram apressar a partida para  encontrar nosso irmão Huascar, lá em Cuzco...   - Seu irmão Huascar me parece um homem  apressadíssimo. Sobretudo apressadíssimo para se  tornar o Único Senhor!

Paullu esboça um sorriso, mas Manco não demonstra  ironia. Ele toca a pele dourada do braço de Anamaya  com a gentileza de um irmão.

- Quando ele souber do seu poder - diz baixinho -,  vai querê-la junto dele. Fará guerra só por causa  disso...

- Por mim? Que loucura!

- Não. Você circula entre os Mundos, nosso pai lhe  fala, aconselha-a... É um poder imenso que Atahualpa  possui tendo você perto dele... Huascar não  suportará isso.

- Sim - acrescenta Paullu em tom sombrio. - Se  preciso for, vai preferir vê-la virar pó a vê-la  longe dele!

- Villa Oma já me disse isso - concorda Anamaya  preocupada. A queda de uma pedra no pátio os  assusta.

- Alguém que está nos escutando! - murmura Paullu.

Por um instante, os três olham fixo para a noite  escura e vazia que reina lá fora. Depois Manco dá de  ombros e põe mais lenha no fogo do braseiro. - Não  deveriam nos ver juntos - murmura Anamaya - Agora,  tudo passa a ser suspeito! Talvez seja Guaypar!

- Esqueça esse aí! - resmunga Manco, os olhos  ardentes como as labaredas que sobem. - Faça ele o  que fizer, Paullu e eu haveremos de protegê-la dele.

- Não foi você que prometeu ser sempre nossa  amiga? - pergunta Paullu afetuosamente.

- Sim... Sou amiga de vocês.

A voz de Anamaya é apenas audível, tamanha é a  emoção que lhe aperta o peito.

- Mas vocês sabem que não somos do mesmo clã. Se  agora forem vistos comigo, os homens de Cuzco vão  acusá-los de traição.

- Pois bem - retruca Manco pegando-lhe a mão para  apertá-la junto ao coração -, diremos assim mesmo  que você é nossa amiga, pois é a pessoa a quem nosso  pai Huayna Capac se confiou!

Com os olhos distantes mergulhados nos de Anamaya,  ele hesita um instante antes de acrescentar:

E porque você é linda e nós a amamos...   - Olhem! - exclama Paullu.

As labaredas do braseiro cresceram de repente,  ultrapassando as bordas do pote que contém as  brasas. Em cima do muro de adobe coberto de cal  ocre, agitam-se sombras estranhas, longas e vivas. E  de repente, Anamaya compreende para que Paullu está  apontando. A sombra assume a forma de um pássaro. O  pássaro parece dançar. Vê-se nitidamente seu pescoço  comprido, seu bico e sua cabeça, e suas asas curvas  e pontudas. Um condor! Sim, a sombra minúscula de um  condor que estaria voando muito alto no céu, perto  de Mama Quilla!

Vele sobre nós, condor - murmura Anamaya abrindo  os braços para ele. - Proteja-nos e que seu vôo não  termine.

- Senhor Atahualpa!

O tecido do anaco de Inti Palla é da mais fina lã  e deixa adivinhar a curva ampla e firme de seu  busto. A excitação brilha em suas pupilas escuras  quando ela se adianta, cabeça baixa, sob a porta do  quarto do Inca.

Atahualpa faz um sinal ao criado, que quer repeli-la. O yanacona faz uma mesura e desaparece de costas  no pátio onde canta um chafariz.

O aposento é decorado com mais opulência que um  templo: faixas de ouro e prata, tapeçaria de plumas  azul, púrpura e amarelo-vivo, tapetes de cem  padrões... Em nichos estreitos e em trapézio,  revestidos de folhas, alternam-se estatuetas também  de ouro representando homens, mulheres ou lhamas.  Outras são em cerâmica, pintadas de cores finas e  mostrando guerreiros em combate, empunhando a maça.  Pendurada na parede da esquerda, há uma túnica  cerimonial rebordada de plaquinhas de ouro, e, em  cima de um tamborete, há um keros em forma de cabeça  de puma, o focinho fino e a boca aberta, cheio de  chicha. Na luz bruxuleante das tochas, as presas de  ouro faíscam ferozmente, como se o vaso de madeira  pintada pudesse ganhar vida e morder.

Deitado entre duas jovens numa esteira de alpaca,  o torso coberto apenas por um unku branco e preto  quadriculado, Atahualpa se ergue sobre um cotovelo.  Na simplicidade de sua atitude, a cabeça descoberta,  a fronte cingi da apenas com a faixa, a força e a  nobreza de seus traços são fulgurantes. Mal se nota  o lóbulo rasgado de sua orelha, sem o brinco de  ouro.

Embora não devesse fazê-lo, Inti Palla não  consegue evitar examinar seu rosto alguns segundos  antes de abaixar a cabeça. Ela não sabe o que a  atrai mais, o esplendor do local ou apenas  encontrar-se debaixo dos olhos desse homem, tão  lindo, com uma boca tão perfeita... Estar em seus  olhos e em seu desejo.

- O que você quer, Inti Palla? - pergunta ele com  voz cansada. - Lhe falar, Poderoso Senhor.

- No meio da noite, enquanto eu estava  descansando? Estou cansado! Os dias são tão longos  quanto pesados para mim. Se estiver me incomodando  por nada, vai ser chicoteada, menina orgulhosa.

O sorriso de Inti Palla é ambíguo:

- Só me orgulho de agradá-lo, Poderoso Senhor. E  quero lhe provar isso sem esperar a aurora...

Sua voz rouca e o movimento excessivo de suas  ancas quando ela se prosterna não enganam. Atahualpa  adivinha tudo o que ela quer fazê-lo adivinhar.

Com a mão direita, ele afaga o rosto de uma das  moças deitadas perto dele. Seus dedos deslizam sobre  um ombro nu e acariciam um seio de menina. Ele sorri  e ordena:

- Voltem para as Mães e deixem-me com a concubina.  Imediatamente as meninas deixam o leito. Ouvem-se  alguns murmúrios quando as criadas se precipitam  para cobri-las. Quando volta a calma, Atahualpa  senta-se de frente para Inti Palla:

- Aproxime-se, mulher.

Com uma timidez fingida, Inti Palla se ajoelha e  aproxima-se para tocá-lo. Mais uma vez, ela abaixa a  cabeça até a esteira, pega a mão esquerda de  Atahualpa e beija o anel sol em seu anular. Está  toda perfumada com cantuta e tem as faces untadas  com creme de gardênia, o que a empalidece. Encenação  ou verdade, sua respiração está curta, precipitada.  Há nela uma avidez que lembra a ferocidade do keros  de cabeça de puma.

Agilmente, ele desamarra o cinto que segura o  amplo cumbi de Inti Palla. O tecido ocre escorrega.  Ela está nua, a cabeça baixa.

Mas como Atahualpa continua imóvel, contentando-se  em admirar seu corpo sedoso e perfeito, ela se  endireita, vai pegar o keros com ambas as mãos, e  estende-o ao seu Senhor.

Depois que ele bebeu uma boa talagada, ela se  esgueira na esteira e abraça-o, os dedos passados  entre as presas de ouro do puma.

- Você certamente tem razão - suspira Atahualpa  esvaziando a jarra de chicha -, isso não podia  esperar a aurora.

Inti Palla enfia a mão por baixo do unku  quadriculado e afaga o torso glabro de Atahualpa.

- Senhor, estou aqui para o seu prazer... Mas  sobretudo para que saiba!   - Que eu saiba? O quê?

- Que ela o trai.

Pesadas pelo efeito do álcool, as pálpebras de  Atahualpa se franzem e seu olhar fica parado, sem  expressão.

- E quem ousa me trair segundo você?

- A menina dos olhos azuis. Eu a flagrei com Manco  e Paullu, os filhotes do seu irmão Huascar. Ouvi o  que eles falavam... Ela vai contar a Huascar e aos  homens de Cuzco o que o único Senhor lhe disse na  noite de sua passagem para o Outro Mundo!

Por um breve instante, Atahualpa fica sem reação.  Recua o peito só para evitar os dedos de Inti Palla.  Depois, com um safanão, joga o keros de encontro ao  tamborete. A jarra de madeira se parte com um estalo  surdo. As presas de ouro do puma quebram e se  espalham pelo chão. Mas foi para o rosto de  Atahualpa que agora passaram a fúria e a ferocidade:

- Então é por isso que você estava com tanta  pressa de me ver esta noite?

Instintivamente, Inti Palla recuou, cobrindo o  busto e se curvando:   - Sou-lhe inteiramente devotada, Senhor! Estou  dizendo a verdade. Com extrema doçura, Atahualpa  segura o rosto fino da concubina e levanta-o.  Examina os lábios sensuais, as faces macias, os  longos cílios. Com a ponta do polegar, acaricia as  pálpebras fechadas:

- Você vai me ajudar, Inti Palla - murmura.   - Tudo o que Atahualpa desejar...

- Se mais uma vez se meter com a vontade sagrada  de meu pai Huayna Capac, você vai para o Mundo de  Baixo antes que meu luto a leve para lá. Está me  entendendo?

O sangue foge do rosto de Inti Palla. Um tremor  incontrolável toma conta dela. Ela tenta se  desvencilhar das mãos fortes do Inca. A pressão doce  de Atahualpa fica brutal.

- Senhor, eu só queria servi-lo!

- Você só tem uma maneira de me servir, mulher.  Uma só. Os olhos de Inti Palla estão arregalados de  pavor.

Atahualpa a larga. Sua mão desliza pelo corpo nu,  deslumbrante, da concubina. Ele a levanta com  energia e as garras de seu anel sol deixam um fino  arranhão no mamilo escuro e rijo. Uma gotícula de  sangue ali aflora. Calada, Inti Palla contém uma  queixa, sem ousar o menor movimento enquanto  Atahualpa se curva e lambe o ferimento.

O silêncio da noite agora enche a cancha toda,  discretamente perturbado pela música da água das  fontes. Só a luz dançante das tochas corta  ligeiramente a escuridão.

Eles não falam mais. Só se ouve o ruído de sua  respiração ofegante, às vezes um grito, um gemido.

Atahualpa goza, poderoso, feliz e livre. Não vê as  lágrimas escorrendo no rosto de Inti Palla enquanto  ela sorri durante seu prazer.

São lágrimas de ódio.

 

                               Sevilha, fevereiro de 1529

A estalagem chama-se "Ao Pichel Livre". O  proprietário, homenzarrão mal-humorado transformado  em filósofo pela proximidade da prisão, não se  espanta quando Gabriel lhe pergunta se pode dispor  de uma cama e de uma tina de água quente para se  lavar e se trocar. Contenta-se em responder:

- São três maravedis.

E como Gabriel concorde com um gesto de cabeça,  ele acrescenta:   - Pagos adiantado.

Do que lhe resta do calção, Gabriel tira um  saquinho lisíssimo. Dali extrai a única moeda, um  tristíssimo real, e conta com cuidado os trinta e um  maravedis que o estalajadeiro lhe devolve.

Menos de uma hora depois, é um homem novo que  aparece na sala da estalagem. As roupas não são nada  luxuosas, mas são limpas e do seu tamanho. E pretas,  das meias ao gibão, fora a camisa. Só lhe resta  encontrar um barbeiro para arrematar seu  renascimento. Depois será hora de pensar no enigma  de seu futuro.

No momento em que vai sair, é envolvido pelo aroma  de sopa de toucinho. Uma fome imensa se abate sobre  ele.

Sem uma palavra inútil, o estalajadeiro lhe indica  uma mesa no escuro. Gabriel se deixa cair num  tamborete e murmura o seu pedido:

- Um prato de gacha, um pichel de vinho de Cádiz e  um pedaço de pão com azeitonas.

- São mais quatro maravedis...   - ... pagos adiantado, eu sei.

Em menos tempo do que o necessário para dizer  isso, o prato é limpo, o pão, devorado, e o copo,  esvaziado. A sopa lhe parece maravilhosa, o pão uma obra-prima, e o vinho, um elixir. Se sua cabeça  torna a girar, é por um motivo melhor! Desde quando  ele não faz uma refeição digna deste nome? Uma doce  embriaguez o invade. Ele pede outro pichel.

Enquanto bebe com melancolia o resto do vinho e os  maravedis voam como moscas na mão do estalajadeiro,  de repente, parece-lhe que a liberdade não esconde  tantos encantos.

- Perdoe-nos, Vossa Graça, mas podemos exercer  nossa curiosidade? O homem que falou é imenso. Seus  ombros são do tamanho dos de um carregador. Mas seu  rosto é uma delicadeza só, com a barba limpa e  cuidada. Um nariz fino e adunco lhe dá um ar astuto  não desmentido pelo brilho malicioso dos olhos. Ele  tem a testa sulcada de rugas e a pele curtida de  sol. Ao seu lado, ligeiramente mais baixo, está um  homem de pele negra. Tem os traços sedutores, com as  maçãs salientes e bem delineadas realçando um olhar  inteligente, volúvel, seguro, mas sem arrogância.     Tem lábios finos, queixo glabro, uma grande argola  de ouro na orelha direita, como os marinheiros  costumam usar. Um negro como pouco se vê na Espanha,  pensa Gabriel.

- Senhores? - responde ele afinal, atento ao que  se passa em volta, o queixo erguido.

O colosso branco amplia o sorriso e inclina a  cabeça com uma polidez insistente. Puxa um tamborete  e senta-se sem mais cerimônia.

- Vossa Graça... Estávamos ali no canto quando  chegou há pouco, imundo e esfarrapado. E eis que  Vossa Graça aparece novamente limpa como um tostão  novo! Pronta a engolir essa sopa rançosa, devorar  esse pão de três dias e beber esse vinho horrível  como se isso fosse um banquete de Rei. Ei, eu disse  a meu compadre Sebastian, sinto cheiro de estada na  prisão!

O homem dá uma piscadela, dirige um sorriso ao  Negro sempre de pé e acrescenta mais baixo:

- E não é uma estada curta! Sem querer chocá-lo,  muito pelo contrário... Gabriel fica alguns segundos  sem voz. Levanta-se, ergue uma mão num gesto  pretensamente ameaçador; mas, no mesmo instante, um  terrível cansaço se abate sobre ele, e ele não  consegue evitar cair novamente sentado no tamborete,  rindo.

- Não foi uma estada curta, com efeito! Mas  prefiro pensar em outra coisa, se não se incomodam.  Posso saber a quem tenho a honra?

Antes de responder, com um gesto vigoroso, o  colosso chama o estalajadeiro e pede mais um pichel.

- Meu nome é Pedro de Candia, mas meus amigos só me  chamam de "Grego". E esse é Sebastian de Ia Cruz, um  pouco escravo por causa da cor da pele e muito meu  companheiro de aventuras.

O Negro enfatiza essa apresentação com um olhar  irônico e fala:

- Criado, Vossa Graça!

Gabriel não contém um pequeno movimento de humor.

- De onde os senhores tiraram essa mania de me  chamar de Vossa Graça? O Grego olha de esguelha para  Sebastian. Seu espanto é sério.

- Não é que se trata de um caballero?   Gabriel estoura numa gargalhada.

Há dez anos que não se usa mais isso!

Ele os examina sorrindo: ambos estão vestidos com  calções, camisas e casacas que também não são de  ontem. Os tecidos estão desbotados pelo uso e pelas  lavagens.

- É que chegamos das índias. No mês passado.   - Ah?

- Onde descobrimos um país novo - intervém o negro  Sebastian.   - Entendi        murmura Gabriel, de repente mais  curioso do que desejava. O Grego aponta para a porta  ensolarada da prisão, do outro lado da pracinha, e  acrescenta:

- Nosso Capitão, don Francisco Pizarro, que nos  levou até o fim do mundo durante mais de dez anos,  está preso ali por uma história muito antiga e  vulgar de dívida. Ele foi preso traiçoeiramente  pelos aguazis quando nossa nave encostou no cais.  Uma vergonha! Mas está mofando na prisão há três  semanas, coitado. Estamos aqui esperando por ele.

Uma sombra de desolação vela os olhos dos  conquistadores. Gabriel não pode evitar sentir uma  certa simpatia.

- Meu nome é Gabriel Montelu... Não. De agora em  diante, é simplesmente Gabriel. Chamem-me de don  Gabriel, e está bem. Mas vocês só se enganaram em  parte. Eu estava mesmo numa masmorra hoje de manhã,  mas não essa...

- Qual? - pergunta o Grego.   Gabriel olha sorrindo para ele.

- Se me falarem das índias... - diz ele jovial.

O Grego e Sebastian são inesgotáveis.

- O senhor precisa imaginar isso, don Gabriel! A  imensidão do mar à nossa frente, a areia ardente  embaixo dos nossos pés, a floresta cerrada como um  muro de madeira por trás, selvagens trepados nas  árvores com flechas envenenadas no alto. E a gente  torrando ao sol!

- Muito tempo?

- Meses, don Gabriel! Meses. Chegamos até a comer  aranhas. Uma espécie meio gorda, com carne na  barriga. Só que era preciso arrancar o ferrão, senão  a gente começava a inchar... E também as patas da  frente, por causa dos pêlos. Elas se agarravam na  garganta e faziam a gente vomitar as tripas! Mas no  começo, havia os ovos dos formigueiros... Não era  ruim. Ou minhocas bem gordas, marrons e lustrosas. A  gente encontrava dessas minhocas nas árvores mortas.  Muito comestíveis fritas...

- Mas e os animais de vocês? - pergunta Gabriel, a  quem o vinho e os horrores descritos deixam  nauseado. - Vocês podiam comer os animais de vocês  como se faz às vezes na guerra...

Os dois conquistadores riem às gargalhadas.

- Comidos há muito tempo! Depois de quatro semanas  na praia, os cães enlouqueceram de fome. Foram os  primeiros que grelhamos. Tínhamos dois cavalos:  ficaram no osso. Uma fome terrível, terrível, eu lhe  digo. Um dia, um de nós tirou o cinturão e botou  para cozinhar. Nossas botas, a gente comeu! E  contente!

Com sua voz doce, o negro Sebastian acrescenta:

- Havia lagartos... Não eram ruins. Mas difíceis  de pegar. E depois, a mordida deles matava em  algumas horas. Alguns escolhiam: morrer de fome ou  morrer dos lagartos...

- Doce Jesus!

O Grego agarra o punho de Gabriel.

- Mas o Capitão sempre acreditou que a gente  acharia a terra do ouro, mesmo nos piores momentos!  Mesmo naquela praia maldita onde quase morremos...  Eu já contei, hein, Sebastian?

O Negro faz que sim sorrindo, enquanto Candia se  levanta lentamente, afastando o tamborete. Os olhos  semicerrados, o gigante mede Gabriel dos pés à  cabeça com a nobreza de um caballero.

- Era preciso ouvir o Capitão, todo empertigado e  seco, os olhos negros, se dirigindo a cada um dos  homens prestes a se revoltar. "Tenham paciência!  Paciência, amigos, paciência, companheiros! Ruíz há  de voltar. Ele há de ter encontrado a terra do ouro com que vocês  sonham à noite, o mar há de se ter aberto diante  dele e nossa Santíssima Virgem há de lhe ter  indicado a direção certa. Confiem em mim! Já vi  coisas piores em minha longa vida. Quando é preciso  lutar, a gente luta. Quando é preciso esperar, a  gente espera. Olhem para mim: fui o primeiro a  atravessar a floresta infestada de selvagens e feras  monstruosas para encontrar o mar Pacífico. Fui o  primeiro a atravessar o Pacífico para chegar a esse  Peru todo coberto de ouro que a Virgem Santíssima me  promete toda noite! Paciência, hombres! Eu lhes  digo: eles vão voltar. E vão ter encontrado! E se  vocês não souberem o que fazer de suas barrigas  vazias e seus colhões inúteis, rezem! A oração é um  combate!...”

O silêncio parece congelar a sala enquanto o Grego  torna a sentar-se. Gabriel sente os pêlos do braço  se eriçarem como se de medo. A emoção enrijece seus  membros e esvazia seus pulmões. Com uma voz contida,  ele pergunta: - E esse Ruiz voltou?

Pedro faz que sim olhando para o fundo de seu  copo.

- Três semanas depois, sim. Trouxe a nave do sul  com tanta facilidade como se navegasse num lago. Um  ótimo piloto!

- E ele encontrou?

- Sim. Encontrou - diz o Grego com um sorriso. -  Exatamente como don Francisco tinha dito balançando  a cabeça com respeito.

- Esse Piru?

- Piru ou Peru, como quiser, don Gabriel.   - E coberto de ouro?

- Todo coberto! De ouro, ouro! E de índios como  não se vêem em lugar nenhum, com roupas  maravilhosas, animais estranhos, legumes  estranhos...   - O senhor viu com os próprios olhos?

- Claro! Pergunte a Sebastian!   - Eu vi. Posso jurar.

- Então o que estão fazendo aqui?

- Don Francisco veio se encontrar com o Rei para  que ele o nomeasse Governador. Como foi feito com o  Capitão Cortez!

- Mas era preciso ele sair da prisão para ter o  encontro - diz Sebastian irônico.

- Não é hora de caçoar - resmunga o Grego.

Outra vez, cai o silêncio. Afastando o copo de  vinho, Gabriel se ouve perguntar:

- E se o Capitão don Francisco virar Governador,  ele vai voltar para as índias...

- Ora! O mais rápido possível.

- Para fazer a conquista desse Peru? - Exatamente.

- Então ele vai precisar de homens de boa vontade!  O sorriso do Grego parece um fogo.

- Ei, parece que nosso novo amigo don Gabriel  gostaria de conhecer a região, Sebastian...

Mas o Negro dá um grito e aponta na direção da  prisão.   - Pedro! Lá está ele! Olhe...

Os três se levantaram ao mesmo tempo. E ali  adiante, ao sol, um homem incrivelmente magro,  vestido com um gibão cinza e grená surradíssimo,  calções verdes desbotados, dá três passos defronte à  porta da prisão que torna a se fechar. Um chapéu de  pluma de ganso lhe cobre a comprida cabeleira  grisalha. Mas, na sombra da aba larga, Gabriel,  trêmulo de emoção, julga ver brilhar um olhar como  jamais viu outro.

O descobridor do Peru dá mais um passo, ajusta o  cinturão da espada. Ninguém diria jamais que ele  acaba de passar três semanas numa masmorra escura.  Ele parece capaz de esperar mais cem anos para que  venham se curvar diante dele.

E de repente, não é mais a voz de Pedro o Grego  que ecoa em seu peito, mas a própria voz do Capitão  don Francisco Pizarro. Parece-lhe que naquele exato  momento, numa praia imensa e nua, carecendo de tudo,  tremendo de febre e de fome, mas desafiando o  desconhecido a cada dia que Deus dá, esse homem,  fortalecido por uma vontade indômita, palavra por  palavra, acaba de incutir em seu coração a loucura  de seus sonhos.

 

                              Tumebamba, fevereiro de 1529.

Embora seja tardíssimo, aqui e ali há tochas  acesas em algumas canchas. No ar parado da noite,  ouve-se o barulho dos preparativos. Amanhã, a  procissão que acompanha o Corpo seco de Huayna Capac  partirá de Tumebamba rumo a Cuzco e tudo deve estar  pronto.

Anamaya desaparece da cancha sem ser vista.

Quando quer, ela é assim, serpente a esgueirar-se  na noite, cor de pó no pó, viva como a água.

É como se tivesse soado um chamado para ela, no  meio da noite. Um chamado que não passou por nenhuma  palavra, nenhum sinal visível, nada de palpável. No  entanto, de repente, ela sabe: tem que ir ao templo.  Tem que passar aquela noite ao lado do Irmão-Duplo.

Agora, ela sabe que precisa ficar atenta. O que a  separa da presença do único Senhor Huayna Capac é  apenas o seu próprio medo. Ele pode se dirigir a ela  de muitas maneiras: pelo movimento de uma sombra ou  pelo guincho de um pássaro. Ela não deve ter medo de  ir ao encontro dos olhos do puma, não deve se  assustar com suas presas...

Na colina de leste, erguem-se os degraus altos do  templo, iluminados pelo luar.

Ela atravessa a esplanada caminhando com  segurança. Os yanaconas que guardam a entrada a  reconhecem quando ela entra na claridade de suas  tochas e a deixam passar. Melhor: curvam-se e recuam  com respeito.

Ela não é a Coya Camaquen? Os Poderosos do  Império, os Legatários, o grande Atahualpa e Villa  Oma o Sábio não escutam avidamente suas palavras? Na  sala dos nove nichos, está a múmia de Huayna Capac.  Um raio prateado da Mãe Lua ilumina o ouro de sua  máscara e lhe dá uma expressão tranqüila. No braseiro, ali perto, ardem ervas de  perfume estranho, úmido como lama e tão acre que  irrita as narinas.

Anamaya se agacha diante do soberano defunto.  Inclina a cabeça, cheia de medo e de respeito como  no dia em que, ainda menina, foi levada à presença  dele.

Por um bom tempo, nada acontece.

Depois, vibra uma onda. Um sopro de ar frio escapa  da máscara de ouro e vem bater na testa de Anamaya.  O colar de plumas colocado nos ombros do corpo seco  estremece. Anamaya segue a ordem dada sem que uma  palavra seja dita. Ela ergue lentamente a cabeça e  pousa a mão no grosso unku que cobre o único Senhor  adormecido por toda a eternidade.

Embaixo do tecido mais macio que pele de criança,  ela sente o calor.   Levanta mais ainda o rosto. O luar brilha em seus  cabelos, branqueia suas mãos e empalidece seu olhar.

Ela fecha os olhos. Não e o sono, não e a vigília.  Não é a imobilidade, não é o movimento. Não é o  agora, não é o antes nem o depois.

Ela sente um cheiro de selva molhada, um cheiro  antigo de felicidade. 0 céu baixo e pesado traz  nuvens embaixo das quais ela correu e riu até perder  o fôlego.

Há uma voz e um rosto. Ele é bonito e doce, cheio  de amor. Ele está longe, tão longe!

Seu coração pára de bater: ela ouve sua mãe  chamando!  

- Anamaya!

É só um murmúrio em seu ouvido.  

- Anamaya!

É a voz cantante de sua mãe, e o mundo não é mais  feito de floresta mas fica azul e líquido como um  lago. Sua mãe está ali, em toda parte, imensa como o  mundo, acolhedora. Tudo é seu ventre, tudo é seu  peito. Seu riso vibra como o vento que sustenta os  pássaros, seus ombros são arredondados como as  montanhas. Seus lábios cantam o amor e as boas- vindas. Suas mãos e seus braços têm a doçura da  felicidade. Eles se fecham sobre ela, dedos  invisíveis e tão ternos acariciam sua fronte,  apertam sua nuca.

Lágrimas que ela não sente escorrem no rosto de  Anamaya.  

- Não chore - diz a voz. - Estou com você...

Pouco a pouco, ela se acalma. Contínua sentindo o  calor e a mão em seus cabelos. Na carícia, passam  todos os anos roubados do amor. A carícia leva seus  medos e suas lembranças terríveis.

Depois, como um vento repele uma doçura protetora,  tudo se apaga. Ela abre os olhos, vê sua mão pousada  no unku do Inca.

O halo que vinha envolvendo Mama Quilla nessas  últimas noites desapareceu. A luz dela clareia o céu  todo. De repente, está tão violenta, que parece  acesa por seu encontro - que, no entanto, nunca  poderia ocorrer - com o sol.

É então que seu esposo o Irmão-Duplo atrai seu  olhar. Seu corpo fica tão refulgente que ela se  ofuscou. Levanta as mãos para se proteger. Mas,  nesse simples gesto, o extraordinário acontece.

O chão escapa sob suas sandálias. Ela quer se  segurar, mas nada a retém. Ela grita e não ouve a  própria voz.

Ela voa na noite.

Vê o templo brilhando lá embaixo e se vê a si mesma,  ajoelhada junto ao Inca.

Vê a cidade adormecida, os homens descansando. Vê  o Senhor Atahualpa, sozinho em sua esteira com  mantas de plumas. De repente, ele se levanta. Fica  andando de um lado para o outro, como um homem em  guerra, como um puma enjaulado.

As constelações estão tão perto que sua mão  poderia encostar nelas. O turbilhão de Colca passa  por ela, Amaro a Serpente corre embaixo de seus pés.  Seus cabelos voam em Chacana, o Senhor do Cinto. Ela  mergulha os braços no rio infinito da Via Láctea, o  duplo celeste do Rio sagrado!

E afinal ela entende. Ele precisa dela.

Do outro lado do Mundo, o décimo primeiro único  Senhor precisa dela.

Então, no horizonte do sudeste, surge uma bola de  fogo igual a uma estrela nova. Enorme, deixando na  escuridão um rastro mais vasto que montanhas, rasga  a noite e vem reto para cima dela.

Mas ao se aproximar, a luz se contrai num globo de  fogo incrivelmente concentrado. Quanto mais se  reduz, mais insuportável é seu brilho! De repente,  muda de rumo, mergulha em direção à terra, como se  um vento o derrubasse.

Com a violência de uma pedra de funda, bate na  testa de Atahualpa. E se apaga. O Poderoso Senhor cai. Cai sem se levantar. Anamaya urra. Uma mão pousa em seu ombro e a sacode.

- O que está acontecendo, menina? - pergunta  aflito o Sábio Villa Oma.

Ela treme.

Olha para o que a cerca sem acreditar, a sala dos  nove nichos, o Corpo seco de Huayna Capac, o Irmão- Duplo.

O Sábio de boca verde perscruta seus olhos, faz- lhe perguntas.   - Agora não - repete ela apenas -, agora não...

Ela não pode contar. Nada do que se passou pode  tornar-se palavra. Ninguém pode compreender, nem  mesmo o Sábio.

Ele lhe segura o braço, ajuda-a a levantar-se.  Devagar, os dois deixam o Templo.

Durante todo o percurso até a cancha, o coração de  Anamaya bate, transtornado. Em seus olhos, volta  como um fantasma a imagem do único Senhor caindo sem  parar.

Depois, a imagem se apaga e nuvens pesadas toldam  seu espírito. As emoções se afastam dela e ela fica  com uma insuperável sensação de solidão.

 

                                       Tumebamba, março de 1529.

- Uma bola de fogo? Uma bola de fogo do tamanho de  uma estrela? Colla Topac, o velho Legatário, repete  as frases de Anamaya como se não conseguisse  acreditar nela.

Villa Oma já havia pedido sua ajuda e suas  palavras quando o Corpo seco do único Senhor  desapareceu, pois é ele quem vai levar a múmia a  Cuzco, quem detém a Lei, até que um Filho do Sol  seja reconhecido por todos.

Na luz mortiça de uma lamparina a óleo, ele parece  tão velho que é difícil acreditar que esteja vivo.  Suas costas são redondas como uma pedra, seu rosto,  magro e sulcado de rugas como o de uma múmia. Mas  seus olhos têm uma intensidade extraordinária, como  se fossem a única coisa viva em seu rosto.

Por um instante, ele perscruta o olhar azul de  Anamaya à luz das tochas. Depois, com uma agilidade  inesperada, vira as costas e se volta para Villa  Oma:

- Tem certeza que Atahualpa está bem de saúde?  Villa Oma faz que sim:

- Eu me certifiquei disso, Legatário. Agora,  precisamente, ele está dormindo com as concubinas.  Parece que fez honra a duas antes de adormecer.   - Então o que acha do que a Coya Camaquen disse?  Bom sinal ou mau sinal?

- Não sei, Legatário! E é exatamente por isso que  eu gostaria que você ouvisse esse relato. Repare que  a bola de fogo vem do sudeste. Da direção de Cuzco.

- Mas também do lago de todos os nascimentos -  corta o Legatário. - Do Titicaca!

- Então - aprova Villa Oma - isso pode significar  duas coisas. O fogo de Illapa Raio destruirá em  breve o Senhor Atahualpa. Ou o fogo de Inti o  escolherá como sucessor de Huayna Capac!

Essas palavras são tão carregadas de significado  que os dois homens se calam para dar ao silêncio  tempo para apagá-las. Finalmente, o Legatário segura  o braço de Anamaya e o aperta suavemente. Na brasa  de seu olhar, Anamaya adivinha tanto atenção quanto  ternura:

- Coya Camaquen, você é mocíssima e eu sou  velhíssimo. Mas tanto você quanto eu sabemos a  importância do que você viu, não é? Impressionada  demais para responder, Anamaya apenas balança a  cabeça.   - Eu lhe pergunto outra vez: a bola de fogo chegou  até o coração de Atahualpa?

- Não, Poderoso Senhor. Ela se apagou na testa  dele.   - E...?

- Não sei - balbucia Anamaya. - Fiquei com medo.   - Medo?

- Achei que o Senhor Atahualpa fosse morrer.   - E não acha mais?

Anamaya está assustada com as palavras que poderia  dizer. Abaixa a cabeça, boca fechada.

- Ela vê, Legatário - intervém Villa Oma. - Mas  ainda é uma criança. Não pode entender o que vê. Não  importa, nós temos que tomar uma decisão. E sou eu  que lhe faço a pergunta com todo o devido respeito.  Se o sinal é nefasto, devemos interromper o caminho  do Corpo seco de Huayna Capac? Ele deve permanecer  aqui?...

- Certamente não! - exclama o velho. - A Lei manda  que o Corpo seco volte a Cuzco. Ninguém pode  infringir a Lei e velarei para que isso não  aconteça. Do contrário, a ira de nosso Pai Sol cairá  sobre nós!

- Talvez ela já esteja nos atingindo, Legatário! -  insiste Villa Oma. - Talvez isso signifique que  Cuzco nas mãos de Huascar o Louco é como uma bola de  fogo prestes a nos exterminar! Talvez seja isso o  que a Coya Camaquen viu: Quilla nos avisa e quer nos  salvar de uma viagem sem volta.

- Talvez seja isso ou o contrário! - protesta com  voz firme o Legatário. - Mas só existe uma Lei,  Sábio Villa Oma, e você a conhece. Eu iria a Cuzco  com o Corpo seco de nosso único Senhor, mesmo se  tivessem que me apedrejar. E você vai me acompanhar,  você e a Coya Camaquen, pois o dever de vocês é  esse.

O Sábio passa a mão cansada no rosto encovado pelo  cansaço. Seus dedos tremem.

Anamaya sabe em que ele está pensando. Vinte vezes  nos últimos dias, na esperança que Atahualpa  recebesse um sinal claro de seu pai Huayna Capac, os  adivinhos se reuniram para decifrar sua vontade nas  brasas da coca, na contagem das estrelas ou nas  vísceras dos lhamas!

E, todas as vezes, o que eles decifram não fala de  outra coisa senão da agitação iminente do Império  das Quatro Direções. E, todas as vezes, nada indica  aquele que será o próximo Filho do Sol.

- Prometa uma coisa, Legatário - pede de repente  Villa Oma falando tão baixo que é preciso fazer  esforço para escutá-lo.

- Diga.

- Atahualpa não vai acompanhar o Corpo seco a  Cuzco. Ele não deve se encontrar cara a cara com  Huascar, senão, você sabe, como eu, haverá guerra.  Ele se despedirá do pai aqui, em Tumebamba. E,  sobretudo, não vai saber de nada que a Coya Camaquen  viu. Para que lhe inspirar medo quando os homens de  Cuzco já estão fazendo isso? Nós vamos lhe pedir  apenas que ele fique no Norte para manter a ordem do  Império...

O velho Legatário balança a cabeça com cansaço  enquanto Villa Oma pousa aquela mão descarnada no  ombro de Anamaya e acrescenta:

- E você, Coya Camaquen, não vai dizer nada a  ninguém...

Anamaya não tem tempo de procurar o sono.

Antes dos primeiros alvores da aurora, como se  habitado por um pressentimento, Atahualpa mandou  chamá-la a seu pátio. Ele a convida a compartilhar  de seu pão e das frutas da floresta quente trazidas  diariamente para ele.

Esforçando-se ao máximo para esquecer o medo que a  atormenta, ela se prosterna diante dele sorrindo.

Na verdade, seu coração está dividido entre o  alívio de ver o Poderoso Atahualpa vivo e forte como  sempre, e a lembrança lancinante e incompreensível  da bola de fogo.

Quando terminam de tomar uma taça de suco de  alfarrobeira, Atahualpa pergunta:

- Meu pai não lhe falou?

Anamaya sente o frio da mentira na base da  espinha.

- Não, Poderoso Senhor - responde com um fio de voz.

Atahualpa contempla-a um instante, lança um olhar  para o céu que empalidece, e suspira.

- O Legatário não quer que eu acompanhe vocês até  Cuzco. Suponho que tenha razão. Os oráculos são  confusos demais e os clãs de Cuzco, loucos demais.  Vou sentir sua falta, menina Anamaya. Gosto que você  esteja perto de mim.

Emocionada com o tom de Atahualpa, Anamaya abaixa  mais a cabeça para que ele não veja o seu olhar  brilhante.

- O silêncio das montanhas é grande e bonito -  prossegue Atahualpa suavemente. - O silêncio de meu  pai Huayna Capac é pesado, o silêncio de Inti é  terrível.

- Ele logo vai falar, Senhor - atreve-se Anamaya.   - Acha mesmo, Coya Camaquen?

A voz de Atahualpa de repente está tão esperançosa  que Anamaya morde os lábios para conter as palavras.  Atahualpa dá uma risadinha rouca, tão rara que ela  levanta a cabeça. Seus olhares se encontram. O de  Atahualpa está cheio de ansiedade, mas também de  afeição. Isso lhe dá uma expressão estranha, menos  forte, menos pesada, talvez um tanto envelhecida.

Anamaya contrai os lábios mas não consegue conter as  lágrimas que saltam de seus olhos. O sorriso de  Atahualpa se amplia. Na palidez do primeiro dia, o  branco de seus olhos está menos vermelho, mas o  cansaço das noites inchou suas pálpebras.

- Não - diz ele baixinho. - Não, você não tem  certeza.

Estende a mão e os dedos pousam no ombro de  Anamaya. Tateando, como se receasse não tocar numa  carne de verdade e quente, ele acaricia seu rosto.

- Mas fico feliz que me diga isso para me dar  prazer. Está certo.

Ele retira a mão, olha as pontas dos dedos como se  eles conservassem um vestígio da carícia. E de  repente, aponta para o leste cada vez mais claro e  exclama:

- Vejo chegar o tempo das guerras, vejo Inti  manchado de sangue! Eu queria quebrar o silêncio  antes que ele vire sangue. Não quero ser aquele que  trouxe a confusão para o Império das Quatro  Direções... Não quero ser aquele que joga os clãs  uns contra os outros! Mas não posso permanecer no  silêncio de meu pai.

Anamaya só tem o tempo de sentir a violência das  palavras. O vulto alto e magro de Villa Oma aparece  à porta em forma de trapézio e diz:

- Está na hora, Senhor! É preciso que vá para o  lugar sagrado. Eles o esperam.

Atahualpa deixa seu olhar pesar um instante em  Anamaya.

- Vamos - diz ele levantando-se enquanto ela se  prosterna. - Acompanhe-me até o Corpo seco de meu  pai.

Na esplanada, na claridade ofuscante do sol, os  sacerdotes e as virgens cantam e dançam diante dos  Senhores.

No alto da escadaria do ushnu, envolvida numa  túnica bordada em duzentos padrões azul-claros e  amarelo-vivos lembrando suas vitórias, a múmia de  Huayna Capac está sentada numa liteira de ouro. O  Irmão-Duplo espera um pouco atrás, também numa  liteira. Ambos contemplam, com seus olhos do Outro  Mundo, as lágrimas de despedida que banham os olhos  dos dançarinos. Os criados, os artesãos, os  camponeses e os pastores que moram nas cabanas de  junco nas colinas comprimem-se em volta da praça.  Cada um quer poder se curvar diante do Corpo seco do  único Senhor quando ele começar a longa viagem até  Cuzco, sua cidade natal e a cidade natal de todos os  seus ancestrais.

No meio do ushnu, Atahualpa permanece impassível.  Sua majestade não vem de sua coroa de plumas, do  peitoral de milhares de contas vermelhas e azuis em  seu peito, nem dos discos de ouro em suas orelhas.     Está em sua testa, cingida com a simples faixa dos  Senhores, e em seus lábios de vincos firmes. Anamaya  ainda sente o som da voz dele, quando ele protestava  contra o silêncio, vibrar em seu coração.

Mas ali, agora, diante de todos os Poderosos  Senhores presentes, ele recuperou a segurança. Há  nele uma força que nem sequer toca nos outros. E  quando, de repente, ele ergue os braços para o céu,  soam as trompas na praça. Os cânticos se espaçam, a  melodia das flautas se cala. O rufar dos tambores é  abafado pelos passos dos dançarinos subitamente  imóveis.

Faz-se silêncio, o grande silêncio de Atahualpa na  esplanada sagrada e logo em toda a cidade de  Tumebamba.

O povo prende o fôlego.

Então, a voz do jovem filho do Norte do único  Senhor Huayna Capac vibra no ar cristalino dos  Andes:

- Eu não queria lhes falar de minha tristeza, mas  a tristeza é maior do que eu. O Único Senhor está  ali nos vendo e ele está ao lado de Inti, seu Pai.  Eu sou seu filho sem pai, estou no silêncio. Vocês  estão no silêncio...

"Chegou a hora de ele partir para sua morada  eterna, em Cuzco, onde Manco Capac e Mama Occlo,  nossos ancestrais primeiros, fincaram sua enxada de  ouro na terra fértil oferecida por Viracocha...

"O Único Senhor chegou ao Norte e conquistou o  Norte. Com a força de Inti, ele ampliou tanto a  terra oferecida por Viracocha que o Império das  Quatro Direções agora é vasto como o céu. É tão  grande que agora pode quebrar como uma tigela de  barro.

"O único Senhor chegou ao Norte e gerou filhos no  Norte, com a vontade de Inti e o ventre das mulheres  do Norte. O Único Senhor meu pai Huayna Capac fez  crescerem filhos em todas as direções do Império,  como crescem o milho e a quinoa.

"O Único Senhor não quis a divisão mas sim a paz  entre todos os seus filhos. Ele não escolheu entre  os de Cuzco e os de Quito, pois desejou que a paz  fosse um tapete de vícunha do sul ao norte...

"Mas meu irmão Huascar, sem esperar os oráculos,  colocou a Fita real na própria testa. Ele quer que  eu me prosterne diante dele. Quer que o Norte se  prosterne diante dele...”

Atahualpa cala-se de repente. Todos os rostos  estão voltados para ele. Todos os rostos aguardam  suas palavras. Só as moscas continuam voando. E  Atahualpa diz:

- É a Lei. Todos devem prosternar-se diante do  único Senhor. Se Huascar é nosso único Senhor,  quando Inti nosso Pai me ordenar, irei prosternar-me  diante dele. Mas por ora, minha tristeza é grande  demais. Não posso deixar essas terras onde nasci,  onde meu pai reinou e onde quero viver e morrer...

Os nobres e os pobres abaixam a cabeça. Sua dor e  sua aflição não se manifestam em lágrimas correndo.  Os rostos estão impassíveis.

Atahualpa vira-se para o Legatário. Um sinal, e  todos os sacerdotes levantam os braços para o sol,  olhos fechados, depois os abaixam virados para a  liteira da múmia. As trompas soam. Os carregadores  levantam a liteira e começam a descer a escada do  ushnu.

Fascinada pelo esplendor do momento, Anamaya não  se mexe. Villa Oma pega-a pelo braço e murmura:

- Vá para junto do Irmão-Duplo, menina Anamaya? Vá  para junto daquele que você nunca deve deixar e cuja  sabedoria dorme em você.

Na hora precisa do zênite, o longo cortejo  finalmente deixa Tumebamba. À frente, duas dezenas  de servos correm de um lado para o outro, munidos de  vassouras de penas de arara para limpar as lajes do  caminho.

Os músicos vão atrás deles, logo à frente da  liteira. A explosão estridente das trombetas  alterna-se com os chamados graves dos búzios e o  lamento das flautas. À frente e atrás da múmia vão  cem mulheres, carregando as jarras de gargalo fino  de chicha e cestos de milho, de frutas, de carne, de  tecidos, de jóias, todos os alimentos e todas as  roupas que não podem faltar ao Corpo seco do único  Senhor.

Em seguida, vem a liteira do Irmão-Duplo. Na leve  brisa, seu teto de plumas coloridas se agita tanto  que ela não parece carregada por homens mas sim por  pássaros. Seu interior é de uma riqueza inaudita.     Anamaya está senta da diante da estátua de ouro,  num tapete feito só de plumas curtas, douradas,  verdes e vermelhas, arrancadas da barriga dos  pássaros da região quente. Atrás, enfim, vêm as  liteiras dos Poderosos Senhores, depois os Senhores  que vão a pé e ainda centenas de servos. E de cada  lado do cortejo, uma ala dupla de guardas armados de  fundas e machados de bronze forma uma parede móvel  que avança no mesmo passo da imensa procissão.

A única irregularidade nessa impecável harmonia é  o Anão: ele corre em volta da liteira do Corpo seco,  fazendo esvoaçar sua eterna túnica vermelha,  conferindo a cada instante a regularidade do passo  dos carregadores, a limpeza meticulosa do caminho,  censurando quem levantar poeira. Anamaya observa-o  furtivamente, com ternura. Com alguns pulos, ele  está ao lado dela e imita uma espécie de dança  grotesca.

- Então, Princesa, você não confia na minha  proteção?   - Não é você que precisa da minha, de agora em  diante?

- Claro. Você sabe que eles querem me dar de  presente aos homens de Cuzco?

Anamaya surpreende uma expressão de terror no  fundo de seus olhos.   - Estou com medo, Princesa, não sinto tanto medo  desde que o Ultimo Senhor me achou debaixo daquele  monte de mantas...

Ela olha para ele sem nada poder responder,  enquanto sua dança desajeitada, debaixo de risadas e  gracejos.

Quando chegam aos últimos terrenos fechados da  cidade, ela ouve nome. Ao debruçar-se na lateral da  liteira, vê Inti Palla do outro lado cordão da  escolta.

- Anamaya! Deixe que eu vá!

Anamaya faz um sinal ao oficial mais próximo e o  cortejo tem de avançar mais um pouco antes que Inti  Palla possa chegar até a liteira do Irmão Duplo.

Ao primeiro olhar, Anamaya vê suas pálpebras  vermelhas por causa do pranto, suas faces encovadas  por causa de uma péssima noite.

- Está doente? - pergunta aflita.

- Não - ri Inti Pala andando rápido. - Não, só  estou triste porque minha amiga vai embora. Talvez  nunca mais nos vejamos...

- Quem sabe? Você irá a Cuzco...

- Atahualpa nunca vai querer ir a Cuzco! -  resmunga Inti Palla com uma expressão irada. - Eu  sei. Ele não irá nunca.

Com um repentino brilho gelado no olhar, ela  acrescenta:

- Que pena você não ter conseguido convencê-lo de  que foi escolhido pelo pai! E os dois irmãos de  Cuzco. Você os deixou ganhar no dia do huarachiku e  agora vai encontrá-los!

- Inti Palla!... - protesta Anamaya.

Mas a concubina pega sua mão e diz  precipitadamente:

- Não, não, eu não lhe quero mal. Eu é que estava  errada, eu sei! Há certas coisas que você não pode  fazer... Eu sei...

Em seu tom, como em sua expressão, há algo que  desmente suas palavras. Mas Anamaya não quer se  deter nisso:

- Vou pensar em você - diz. - Não vou esquecê-la,  Inti Palla.

Inti Palla sorri. As lágrimas lhe toldam novamente  os olhos sem que se saiba bem o que significam. Ela  afaga o braço de Anamaya, roda a pulseira das  serpentes de ouro:

- Não esqueça que fui eu quem lhe deu esta  pulseira, Anamaya. Eu, a sua irmã. E faça com que  Atahualpa se torne o único Senhor!

 

                                   Caminho de Toledo, março de 1529.

Desde cedo, como em todas as manhãs anteriores,  eles marcham num calor espantoso para a estação.

Don Francisco vai à frente, seguido por Pedro o  Grego e, mais atrás, por Gabriel e Sebastian  emparelhados.

Atrás deles, o cortejo é dos mais estranhos. Dois  lhamas, dos seis que atravessaram o Atlântico, vão  saracoteando nas pontas das correias amarradas à  sela do Negro Sebastian. Eles mascam o nada como se  fosse comida, e, arregalando os olhos grandes de  corça, parecem contemplar o campo de Castela com um  espanto virginal.

Mais atrás, dez alabardeiros do Rei cercam  despreocupadamente três carroças desconjuntadas,  quase transbordando de objetos inauditos.

No banco de uma carreta, como ícones preciosos,  dois índios do país do ouro, vestidos com túnicas  coloridas, exercitam-se no castelhano com os  almocreves. Muitas palavras lhes escapam, mas a  coisa diverte enormemente os espanhóis que não  conseguem evitar introduzir alguns horrores no que  estão ensinando.

Desde um quarto de légua, com o canto do olho,  Sebastian vigia o semblante contraído de Gabriel.  Finalmente, pergunta com uma ponta de ironia:   - Don Gabriel, me diga, todos os espanhóis da  Espanha são tão orgulhosos quanto o senhor?

Gabriel fuzila-o com o olhar.

- Todos os escravos negros das índias são tão  impertinentes quanto você?

- Olá, Vossa Graça! - diz Sebastian às  gargalhadas, revirando os olhos fingindo-se de  apavorado. - Sei quem eu sou... Negro e escravo, não  esqueço nunca. Mas nem por isso deixo de ser um dos que  descobriram o reino de ouro do Peru!...

- Aonde você quer chegar?

- À cara crispada que o senhor faz toda vez que o  Capitão o chama de "aprendiz"!

Gabriel dá de ombros com despeito.

- Há muito tempo que sou bacharel e não aprendiz!  Esse marmanjo iletrado certamente não sabe a  diferença entre uma coisa e outra! Mas eu queria  sobretudo saber de uma vez por todas se ele vai me  contratar para acompanhá-lo quando ele partir outra  vez para as índias... Há quinze dias eu lhe disse  que colocava minha pena, meu saber e minha vida a  serviço dele! Ele nem se deu ao trabalho de me  responder. Para ele, eu não sou mais que um seixo  dessa estrada!

- Quem lhe dá de comer desde Sevilha? Quem pagou  sua cama em Elcija, Córdoba, Morena e cada uma das  etapas desde que partimos? Quem olha enviesado para  o senhor três vezes por dia? Quem lhe pediu para ler  uma carta do irmão Hernando quando o Grego poderia  muito bem ter-se desincumbido dessa tarefa de  confiança?

Gabriel olha para o Negro com uma prudência onde a  esperança começa a despertar.

- Está falando sério? - Não se pode mais...

- Mas pelo sangue de Cristo! Por que ele não me  diz simplesmente que me contrata para acompanhá-lo  na conquista do Peru?

- Porque simplesmente, don Gabriel, enquanto o Rei  Carlos não o tiver designado oficialmente para essa  empreitada, o Capitão Pizarro não é absolutamente  nada. No momento, ele só pode oferecer sonho. E  sonho, don Gabriel, é uma mercadoria que ele já  vendeu muito. E que lhe trouxe muitos  aborrecimentos...

Por um instante, Gabriel cavalga em silêncio na  poeira levantada pela caravana e reflete sobre as  palavras de Sebastian. É obrigado a convir que são  sábias. Há dias, ele vive num sonho que o Capitão  Pizarro nem precisou lhe vender. Deixar a Espanha,  atravessar os oceanos e colocar a imensidão entre  ele e as violências humilhantes da Santa Inquisição.  E para sempre longe desse pai que nunca foi seu pai!

Lá, naquele pais desconhecido, ele poderia ser outro  homem.

Sim, lá ele encontrará a glória e seu nome terá  repercussão. E depois voltará para vingar-se de  todos os que o humilharam!

- Diga a verdade - pergunta ele de repente a  Sebastian. - Acha que don Francisco convencerá o Rei  a nomeá-lo Governador?

O rosto fino e simpático do Negro abre-se com um  sorriso largo:

- Até hoje, eu não vi nada, homem, bicho nem mesmo  oceano que esteja à altura de resistir ao Capitão.  Imite a paciência dele, don Gabriel!

São quase cinco horas quando Pedro o Grego puxa as  rédeas de seu meio-sangue. Como um menino  maravilhado, ele aponta para o panorama suntuoso que  acaba de aparecer na saída de um bosque de pinheiros  e cedros. - Toledo? - pergunta ele, os olhos  arregalados de surpresa.

Gabriel ri e balança a cabeça.

Enroscada num meandro do Tejo, dominando a água  verde, a cidade se ergue sobre seu promontório como  se quisesse se plantar no céu. Na atmosfera ardente  da tarde, as casas formam uma construção de tijolos  única encimada pela massa enorme e soberba do  Alcazar.

Toledo. A cidade Rainha do mundo!

No primeiro olhar, mesmo a duas léguas, a cidade  diz tudo do poder do grande Imperador Carlos Quinto  que amplia o universo ao sabor de sua vontade.     Gabriel queria caçoar da estupefação do Grego, mas  não tem tempo de abrir a boca. Don Francisco Pizarro  puxa as rédeas de sua montaria que dá uma volta  violenta. O olhar férreo do velho conquistador solta  chispas de fúria. As palavras assobiam entre seus  lábios cobertos de barba:

- Então, Grego! Com tudo o que você viu do outro  lado do oceano, com tudo o que agüentou ao meu lado,  a visão de uma cidade de tijolos ainda o surpreende?

- Me perdoe, don Francisco! É que...

Pizarro corta-o com um gesto da mão espalmada.

- Não gaste a sua saliva! De agora em diante, e em  qualquer circunstância, nada mais o espanta, nada  mais o deixa admirado! Entendido, Pedro? Você é  aquele que viu uma cidade de paredes cobertas de  ouro! De ouro! Ousaria esquecer?

Ele gira em direção à cidade vermelha reverberando  na luz incandescente de Castela e, com uma voz  surda, acrescenta:

- Nós é que vamos fazer esses Grandes de Toledo  sonharem!

O olhar duro de don Francisco pula de um homem ao  outro. Gabriel, a contragosto, enrubesce.

  - Nós é que trazemos o ouro e o poder de que o  grande Imperador Carlos precisa! - troveja don  Francisco. - Nós somos o espanto e o espetáculo! E  daqui a pouco, quando passarmos as portas da cidade,  nós é que seremos aclamados! E vocês não se  surpreenderão...

A barbicha grisalha do velho conquistador treme de  orgulho, seu cavalo escorrega, pateia de lado. Ele o  acalma esporeando-o de leve.

O indicador de don Francisco torna a apontar para  o Grego, depois passa para o peito do Negro  Sebastian:

- Vocês dois, nas próximas semanas, não esqueçam  nunca isso! Vocês agüentaram mil mortes e estão  vivos. O que fizeram, ninguém fez. O que viram,  ninguém viu. Vocês andaram nas ruas de Tumbez, a  fortaleza de paredes revestidas de ouro.     Enfrentaram animais treinados pelos índios! Por  minha vontade, descobriram o reino mais rico das  índias! E estamos aqui para receber o que nos é  devido: a honra de conquistar isso! Eu vou sair  dessa cidade de tijolos como Governador do Peru e do  reino de Tumbez... Pela Santíssima com o Menino,  digam-me um pouco o que há aqui, nessa região, que  possa surpreendê-los.

Ninguém responde. O cricrilar dos grilos e das  cigarras de repente parece ensurdecedor.

Pela primeira vez desde que partiram de Sevilha,  Gabriel julga adivinhar um sorriso nos vincos das  faces do Capitão Pizarro.

Don Francisco estava certo. Eles são o espanto e o  espetáculo.

Tão logo sua chegada é anunciada, uma multidão de  burgueses, artesãos, mulheres, servos, velhos, ricos  e pobres, comprime-se à Puerta San Martin, e ainda  ao longo das muralhas e da ruela tortuosa que sobe  até a magnífica catedral. Os moleques vão correndo  na frente da estrada que vem de Piedrabuena e  escoltam a caravana aos gritos.

Uma mão na cabeça da sela e outra no punho da  espada, don Francisco abre o cortejo, escoltado três  passos atrás pelo Grego Candia, tão majestoso e  imenso que seu cavalo parece pequeno. Na multidão,  os homens tiram carros e chapéus quando eles  passam, enquanto eles, a cada dez passos, concedem  um gesto de cabeça e um olhar severo à guisa de  agradecimento.

Os dois índios, sorridentes e boquiabertos, sem a  mínima aflição, antes orgulhosos, agora seguram a  correia dos estranhos lhamas. Os moleques saltitam a  seu lado, tentando acariciar a lã dos bichos. Ao ver  o belo rosto impassível de Martinillo, suas faces largas, sua tez coriácea e ao  mesmo tempo cor de oliva, o arco de seus olhos  amendoados e sua boca cuidadosamente desenhada, as  mulheres tapam a boca aos gritinhos. Uma delas pega  o braço da vizinha e murmura:   - Olhe! Quase se poderia dizer que são homens!

- Mas aquele ali tem cara de mau! - diz a comadre  apontando para o rosto mais fino, mais seco e os  olhos volúveis de Felipillo.

Uma pequena tropa de mercenários alemães, acudindo  a meia légua da cidade, cerca os carretos. Sob o sol  puro da tarde, o ouro do Peru refulge com todo o  brilho.

Movido por um impulso, Sebastian pula na carroça e  pega uma estátua de ouro representando um homem nu,  com o rosto fino e olhos de lápislazúli. Explode um  grito de admiração. Depois o Negro ergue uma máscara  enorme, em forma de sol vermelho-sangue crivada de  tirinhas coloridas. Ele a põe no rosto e examina os  basbaques rugindo. O grito de admiração transforma- se em grito de medo, as vozes das mulheres partindo  para os agudos. Ele mostra os vasos finamente  martelados, as efígies de animais nunca vistos,  lhamas de ouro, placas de prata cinzelada, potes,  copos, colares de contas, estandartes de plumas  costurados com fio de ouro... E todo esse ouro  brilha tanto que ofusca.

O cortejo não pára um segundo, embora a multidão  vá ficando cada vez maior. Os que viram querem ver  mais! O povo segue as viaturas mendigando, esgueira- se entre as montarias, segura as rédeas das mulas  até os soldados ameaçarem.

Tomado pela loucura do momento, Gabriel pula por  sua vez no segundo carro contendo as cerâmicas.     Exibindo-as, como se ele mesmo as tivesse trazido  do outro lado do mundo, brande as jarras em forma de  rostos humanos, pinta dos e moldados com tanta  precisão e detalhes que parece que vão falar...  Depois, são as cerâmicas em forma de pássaro, pés,  mãos, peixes com ou sem dentes, recipientes duplos,  pintados de ouro, de cinabre ou de púrpura,  recipientes em forma de lagarto, de mulher, de  cabaça, monstro, ou até de cópula...

Toda a beleza de um povo, todo o saber e a ciência  de milhares de anos de trabalho artesanal desfilam  diante das centenas de olhos estupefatos e dão o  testemunho de que um país de verdade, do outro lado  do oceano, foi descoberto!

Eles levam mais de uma hora para chegar afinal ao  adro da catedral onde essas maravilhas serão  batizadas e purificadas de seu espírito pagão. Mas o  coração de Gabriel está em fogo, como se sua longa  viagem para o maravilhoso Peru já tivesse começado.

 

                                   Rimac Tambo, abril de 1529

O caminho real é largo e bem calçado, ladeado por  dois muros de altura média, de alvenaria bem-feita.  Quando não havia mais pedras, os construtores usaram  chuços da mesma altura para continuar a obra. Nas  subidas, foram traçados largos degraus, onde o  cortejo avança com prudência.

Quando vão se aproximando dos tambos, essas  cidadelas imponentes onde são conservados para o  Inca muitos alimentos, panos, cerâmicas, todas essas  riquezas de uma região, começa a movimentação dos  mensageiros para preparar a escala.

Em cada cidade, os curacas, os poderosos do local,  aproximam-se da liteira onde está sentado o Corpo  seco de Huayna Capac. Com humildade, eles curvam as  costas, colocam uma pedra pesada nos ombros.

Em toda parte, os sinais de respeito à múmia são  imensos.

No entanto, o cansaço dos dias abate Anamaya. Ela  já perdeu a conta de quantos se passaram desde a  partida de Tumebamba. Cada etapa lhe parece idêntica  à anterior. Há luas, ela renunciou a ficar muito  tempo na liteira diante da múmia e do Irmão-Duplo.  Prefere caminhar no meio das mulheres e dos velhos e  se fazer esquecer.

Às vezes, o Sábio Villa Oma deixa o séquito dos  Poderosos Anciãos e vem caminhar ao seu lado. Agora,  ele a olha com respeito e, às vezes, quase com  temor. Mas sua companhia é severa, preocupada. A  longa coluna da procissão fervilha diariamente de  rumores. Os semblantes são tensos e aflitos... À  medida que o Norte fica para trás, aumenta o medo,  sem outro motivo senão a chegada a Cuzco.

O único que sabe romper essa atmosfera carregada é  o Anão. Às vezes, ele vai à frente do cortejo. Com  sua túnica vermelha demasiado comprida, recolhe a poeira da estrada assim como a centena de  servos cuja missão e essa e que, incansavelmente,  varrem o caminho à frente das liteiras.

Porém, ele vem se esgueirando cada vez mais para  junto de Anamaya e caminha com seus passinhos  rápidos ao seu lado.

- Princesa, está sonhando?

- É você, Senhor, quem me faz sonhar...

O Anão sorri. Ele conhece a ternura das  brincadeiras deles. E sua amizade silenciosa, tão  preciosa desde a primeira noite em que se abriram o  coração... Nem um nem outro se parece com aqueles  que acompanham a liteira do Inca morto. Os olhares  que se voltam para eles às vezes são tão carregados  de inveja quanto de repulsa. O amanhã, para eles, é  cheio de incertezas.

- O que vai acontecer conosco, Princesa? Como  saber?

- Eu achava que você era aquela que vê tudo!

- Pode brincar, Senhor! Mas o que eu vejo, você  também vê. Os mensageiros indo e vindo, os rumores  de massacres nas aldeias do Senhor Atahualpa. E tudo  o que dizem sobre as iras de Huascar...

O Anão ri com tristeza.

- É porque ele está impaciente para me ver! Parece  que vou ser dado de presente a ele para lhe dar  sorte... Mas dizem também que ele odeia tudo o que  não seja um inca bem formado, de cabeça pontuda e  pernas compridas! - Pense que ele também está me  esperando - murmura Anamaya.

Por uma vez, eles não conseguem brincar.

Lado a lado, eles vão beirando o rio revolto que,  engrossado pelas chuvas da estação, tem as águas  lamacentas e amarelas e ruge como se a própria terra  estivesse sofrendo.

À tarde, um caminho bastante íngreme, mas  cuidadosamente mantido e cada vez mais largo, os  conduz ao planalto de Rimac Tambo. Para o Norte,  Anamaya avista uma montanha cujo pico se enquadra  exatamente como uma flecha entre as duas vertentes  do vale.

Como sempre, o povo da aldeia acorreu ao encontro  deles, prosternando-se diante das liteiras enquanto  as trompas e as flautas ecoam em todo o vale.

O tamanho do tambo é modesto, mas o muro que  sustenta a esplanada sagrada tem uma construção  perfeita. As proporções do templo são harmoniosas, suas pedras polidas e encaixadas com grande técnica  colhem o último raio de sol antes que ele desapareça  atrás das cristas das montanhas.

O curaca é um homem de olhos negros, lacrimosos,  que visivelmente bebe mais chicha do que pedem as  cerimônias. Com ênfase, manifesta sua submissão  diante dos Poderosos Anciãos. Prosterna-se tanto  tempo diante dos Legatários que o velho Colla Topac,  exausto da viagem, acaba se irritando.

Afinal, após as oferendas da noite, eles são  levados a uma das canchas, no meio da ladeira acima  da praça sagrada. Os aposentos foram cuidadosamente  limpos e mobiliados com belas esteiras, cerâmicas  finas, mantas novas recém saídas dos entrepostos.

Mas naquela noite, Anamaya fica muito tempo no  pátio. O ronco do rio sobe agora como um sopro  tranqüilizador. No crepúsculo, as encostas das  montanhas, em volta da cidade, parecem pétalas  protetoras. E bem em frente à cancha, abre-se a  leste um vale estreito e profundo. Na noite que  chega, impregnada ainda de bruma translúcida, ela  fica estranhamente pálida. Quando Villa Oma vem ter  com ela, aflito com sua ausência, ela pergunta: -  Aonde vai dar o vale?

O Sábio franze o cenho, lança-lhe um olhar  desconfiado. Anamaya volta-se para ele, espantada  com sua hesitação.

- Não sei - ele acaba resmungando.

Seu tom não é suficientemente seguro para esconder  a mentira. Anamaya sente a raiva acelerar seu  coração.

- Sábio! Você ainda vai custar muito a confiar em  mim? Eu já não passei por provas suficientes?

- Eu sei quem você é, menina - sorri Villa Oma  constrangido. - Já conheço seu coração. Não é  isso...

- Então, por que me mentir? - irrita-se Anamaya. -  Esse vale certamente tem um caminho... Um caminho é  só um caminho, e por que não...   - Moça! - interrompe Villa Oma segurando-lhe o  braço. - Você sabe muita coisa, mas também  desconhece muita coisa ainda. E há saberes que é  melhor não aprender.

Ele falou com tanta doçura que ela ficou  desarmada. Queria ainda se alimentar de sua raiva,  cultivar a discussão, quase por prazer, mas, de  repente, ela se cala. E, ao seu lado, o Sábio também  ficou parado.

Ali, à frente deles, no eixo desse vale de  mistério que a noite agora conquista por completo,  no horizonte negro, entre as primeiras estrelas,  surge uma bola de fogo.

Uma bola de fogo amarelo-clara, como um sol da  noite, pouco menor que a lua. Atrás dela, há uma  longa cauda, como uma cabeleira levantada pelo  vento. Mas o mais estranho é que essa bola parece  correr mais depressa que um bicho a galope e ao  mesmo tempo estar imóvel.

Lentamente, muito lentamente, ergue-se acima das  sombras mais opacas das montanhas.

Anamaya estremece tanto que deixa escapar um  gemido. Com voz trêmula, murmura:

Sábio Villa Oma! Diga-me o que estamos vendo...

Ele se volta para ela, vê sua boca trêmula, seus  olhos claros de medo.

- Foi isso o que você viu na noite da véspera de  nossa partida de Tumebamba? - pergunta ele à guisa  de resposta. - Foi isso o que a assustou? Anamaya  balança a cabeça, braços cruzados no peito, com um  aperto tão grande na barriga que se dobra em duas:

- Sim! Sim, era ela... Mas andava depressa! Muito  depressa... Villa Oma agarra suas mãos e as aperta  entre seus dedos ossudos.

- Largue seu medo, Coya Camaquen - murmura ele. -  Deixe seu espírito conduzi-la. Lembre-se de sua  viagem na pedra dos ancestrais. Largue o medo...

Ela olha tão intensamente para o cometa que os  olhos lhe doem. Mas talvez seja o contato com o  Sábio, seu coração se acalma, seu pavor reflui. E,  de repente, compreende, e dá um grito.

O cometa e sua cauda têm exatamente a forma da  pluma de curiguingue da Faixa real. O que ela viu na  testa de Atahualpa não foi a morte, o fogo  destruidor. Não! Ela viu, ao contrário, o emblema do  único Senhor. O que ela está vendo no céu essa noite  é o sinal de Inti brandido para o filho, o Inca  Atahualpa!

- O que há? - pergunta o Sábio aflito. - O que  está vendo?   Anamaya olha para ele. Ela não ousa falar. Abaixa  a cabeça e fecha os olhos doloridos.

- O que está vendo? insiste o Sábio.   - Nada.

 

                                         Toledo, abril de 1529.

- Então, naquele dia, o mar era um chão, só tinha  uma brisa soprando de leve, mas estava tudo cinza.    Não vi quando apareceram no horizonte - explica  Sebastian. - Eu estava na despensa do castelo de  popa do San Cristobal. Ruiz, o piloto, tinha me  posto a ferros porque fui infeliz em alguma coisa  que eu disse e eu estava encarregado da sopa...

O Grego emite um grunhido de nojo.

- Sopa! Você já fez sopa? Não devia ter mais nada  sobrando além de farinha de grão-de-bico, cabeças de  peixe e salmoura de repolho! Pelo que conheço você,  você deve ter usado carunchos para engrossar a sopa!

O Negrão só esboça um sorriso e prossegue:

- Fazia três semanas que a gente navegava para o  sul sem saber aonde estava indo e sem poder atracar,  de tão ruim que era a costa... Cada vez que alguém  reclamava, Ruiz respondia: "Estou sentindo! Estou  sentindo, eles estão pertinho!”

O sol da manhã penetra fundo no salão de armas da  casa colocada à disposição de don Francisco pelo  duque de Bejar, um de seus novíssimos e mui  fervorosos admiradores. A poeira dança nos raios de  luz.

Pingando de suor, de camisa e calções, segurando o  punho de uma espada nova em folha, Gabriel bebê as  palavras dos companheiros. Camisa aberta em cima do  torso atlético, Candia o Grego coça o rosto com a  luva. Lembranças deslizam em seu olhar e lhe  entristecem o semblante. Mas Sebastian já prosseguiu  com seu relato:

- Então, eu estava mexendo a sopa. De repente,  ouço o Niceño, o que estava de vigia, começar a  gritar: "Vela! Vela! Vela a bombordo à frente! Uma  vela, estou dizendo!”

- Ah! - diz o Grego, a voz toda emocionada,  pousando a mão no ombro de Gabriel. - Eu daria de  bom grado os quatorze dentes que me restam para ter  estado lá. Pronto, está vendo, só de imaginar, fico  todo arrepiado! - Eram eles então? - murmura  Gabriel.

- Por Deus! - continua Sebastian com impaciência.  - Numa grande balsa muito bem-feita, parecendo uma  mão gigante, com uma vela e um leme. Eram vinte  pessoas, homens e mulheres. A maioria pulou n'água  quando nos viu! Imagine, don Gabriel: do nível da  água onde eles estavam, o San Cristobal devia fazer  para eles o efeito de uma montanha de madeira  flutuante! - Mas na mesma hora viram que não eram  selvagens comuns - insiste o Grego. - Eles usavam  essas túnicas que você mostrou outro dia pelas ruas.  Parece que ali tinha um... Ah! Nada a ver com nossos  intérpretes, hein, o Martinillo e o Felipillo...

- Esse aí estava duro que nem um pau - corta  Sebastian irritado. - Eu vi! Quase tão teso como o  próprio don Francisco! Olhando para a frente,  enrolado numa capa. Depois, com essas espécies de  rolhas de ouro que eles enfiam nas orelhas...

Os olhos brilhantes de excitação, morrendo de  vontade de acrescentar alguma coisa, o Grego brande  em silêncio a manzorra aberta diante de Gabriel. E  Sebastian acrescenta:

- Sim, exatamente assim! Os discos de ouro são do  tamanho dessa mão! E enfiados no lóbulo das orelhas  deles por um tubo também de ouro. O furo por onde  passa o tubo é tão grande que dá para enfiar dois  dedos meus! Por Deus, não estou mentindo!

Candia continua imóvel, fitando o vazio.

- Não tinha só o ouro das orelhas! - insiste  Sebastian. - Quando o San Cristobal chegou pertinho  da balsa, Ruiz fez sinais para o índio subir a  bordo. Então ele abriu a capa. Virgem Santa! Estava  coberto de ouro do queixo até o umbigo! E ainda nos  punhos... Não é verdade, Pedro?

- Foi o que disseram, o Ruiz e os outros... -  murmura ele. Nervosamente, Gabriel limpa o suor da  têmpora e abaixa as pálpebras. Um silêncio se apossa  dos três homens, como num mesmo recolhimento. - Um  senhor índio - murmura Gabriel.

Os dois outros só balançam a cabeça.

- Um dos que vai ser preciso enfrentar se don  Francisco vier a ser mesmo Governador do Peru! -  ruge o Grego sacudindo-se.

Com um movimento seco, ele corta o ar quente da  sala, fazendo as partículas de poeira rodopiarem.

- Chega! Está na hora de continuar essa aula. De  pé e em guarda! Se um dia você quiser continuar  inteiro diante desses índios, ô aprendiz, vai  precisar segurar a espada de outra maneira! Que  diabo, isso não é uma colher de sopa! A sua passagem  da terça à sétima é um verdadeiro massacre! Vamos,  ao trabalho!

O Grego dá alguns passinhos para trás enquanto  Gabriel levanta do banco suspirando.

Coloca-se em posição, os joelhos ligeiramente  dobrados, o tronco aprumado. Mas sua mão, prolongada  pela espada, é bem menos ágil e firme do que ele  gostaria. O Grego gira rapidamente o ferro que ele  bate contra o dele com uma brutalidade pouco  pedagógica.

- Em terça, posição alta e você anda com a  panturrilha esquerda, assim!...

As lâminas tinem. O Grego se afasta e se esquiva à  esquerda. Volta, golpeando de través. E a lâmina de  Gabriel ricocheteia como um graveto. Levado por seu  ímpeto, ele se dobra tanto que, não fosse o copo de  proteção, cortaria a mão na espada do Grego.

- Não! Não! - grita Pedro. - A sétima é um passe  de linha baixa, para dentro! Parece que você já está  com as orelhas tapadas pelo ouro de lá! Levante o  braço. Vire o punho para o alto e mergulhe... Assim!  Simples como um bom dia, caramba!

Simples não é! Mas Gabriel prossegue com coragem e  alguma raiva. Tanto que, durante alguns minutos, a  aula de esgrima dá várias reviravoltas. Um sorriso  nos lábios, Sebastian vê os dois fazerem suas armas  dançarem. Gabriel começa a gostar do jogo e, logo,  ofegante e com um olhar duro, mostra mais segurança,  seus golpes são certeiros, seus movimentos menos  forçados. O Grego entra em seu campo e dele se  esquiva com a agilidade de um gato. Seus golpes têm  a amplidão da experiência, sua lâmina vibra, sobe  impetuosamente. De repente, Gabriel dá um grito.

- Ah, imbecil! - exclama o Grego, o semblante  contraído, dando um pulo para trás.

- Não foi nada - resmunga Gabriel levando a mão ao  ombro.   - Está sangrando - observa Sebastian aproximando- se.

- Por que você se jogou em cima de mim?

- Pensei que estivesse me esquivando - diz Gabriel  em tom digno de pena, o rosto pálido. - Mas não foi  nada...

- Tire essa camisa e mostre - ordena o Grego. -  Nunca se sabe!

No entanto, o que eles vêem no ombro de Gabriel,  uma vez despida a camisa, não é só um belo talho,  felizmente pouco profundo.

- Ei... O que você tem aí? - pergunta o Grego  franzindo o cenho. - Nada de extraordinário: um  sinal de nascença! - explica Gabriel limpando o  ferimento com a camisa.

Com um movimento sem delicadeza, o Grego o faz  girar e lhe chapa aquela pata pesada nas costas.

- Um sinal de nascença talvez... Sebastian! Isso  não lhe lembra nada? - Como não: o gatão que quis  nos devorar na frente de Tumbez! Gabriel se esquiva  de seus comentários cobrindo o ombro com irritação.  Mas quando espera mais uma dose de zombaria, depara  com olhares pensativos.

- Muito bem, meu amigo - diz o Grego enxugando a  testa -, aí está uma coincidência esquisita!

- Do que estão falando?

- De um felino estranho que vagueia lá no Peru -  sorri o Grego. - Os intérpretes dizem que os  senhores índios dão grande importância a esses  bichos.

- Isso é só uma mancha e vocês podem dar a ela a  forma e os nomes que quiserem! - irrita-se Gabriel.

O Grego balança a cabeça olhando para ele sem falar  mais nada.

Mas, enquanto se deixa tratar, e sem abandonar  aquela expressão contraída, Gabriel sente a espera  lhe enfunar o coração como uma vela, como uma  promessa.

 

                                               Toledo, abril de 1529.

E noite escura. Uma tempestade de fim de verão  ronca ao norte de Toledo.

Afundado numa poltrona, Gabriel dorme  profundamente. As folhas cobertas pela letra grande  do Grego escorregaram-lhe da mão para se espalharem  pelos ladrilhos vermelhos do chão.

Um ranger de dobradiça, como aqueles que ecoam no  escuro das prisões, entra em seu pesadelo. Ele  acorda sobressaltado. De um pulo, a boca aberta, o  peito queimando, ele está de pé.

Olhos arregalados, perscruta sem entender  aposento.

Mais um instante, ele se vê naquele pesadelo,  estendendo os braços para o inquisidor corpulento,  suplicando-lhe que poupe doña Francesca que jaz,  desfeita, o vestido rasgado, os ombros nus, a seus  pés!...

Mas não, ele está acordado! A seus pés jazem  apenas folhas escritas que ele pisa com sapatos de  fivelas.

Resmunga contra sua ansiedade e essas alucinações  idiotas que assombram seus sonhos. Ajoelha-se para  recolher os papéis. É então que ouve um barulho. O  sinal bem real de uma presença.

Um corpo entra no foco da luz da vela exatamente  quando ele se levanta. Duas pupilas, mais negras que  a noite, brilham num rosto liso e violento como uma  máscara.

- Ei - exclama ele, espantadíssimo ao reconhecer o  índio Felipillo. - O que você está fazendo aqui?

O índio entrou de mansinho como um gato. Um calção  remendado deixa livres suas panturrilhas rijas e  secas de andarilho e uma espécie de manta marrom lhe cobre os ombros. Sua boca, muito  delineada, é de uma nobreza formidável. Ele sorri.

Gabriel esconde a emoção recolhendo negligentemente  as folhas. Finalmente, espanando as mangas do gibão,  pergunta:

- O que você quer?

Felipillo apaga o sorriso. Com uma voz que não  consegue bem adquirir dureza cantante do castelhano,  anuncia:

- O senhor Capitão quer ver você.   - Agora, no meio da noite?

- O senhor Capitão falou: você vem agora!

O tom é tão peremptório quanto a gramática é  confusa. Mas é o olhar do índio, demasiado pesado e  impenetrável, que deixa Gabriel vontade.

- E por que ele quer me ver? O índio torna a  sorrir:

- Ele não cantou o pensamento dele para o  Felipillo.   Gabriel não consegue evitar corrigi-lo:

- Não. Você deve dizer: "Don Francisco não me  confiou nada...”

O índio balança a cabeça sem responder. Há tamanha  indiferença em sua atitude que Gabriel se sente  obrigado a acrescentar num tom arrogante:   - Você deve aprender a falar castelhano direito,  Felipillo. Senão, não vai poder ser um bom  intérprete!

Felipillo fica calado. Gabriel dá de ombros,  enrola os papéis do Grego e decide guardá-los para a  eventualidade de don Francisco querer conhecer seu  conteúdo. Depois, abotoa o gibão e encaminha-se para  a porta:

- Bom, vamos! - suspira.

O índio só o larga diante dos aposentos de don  Francisco. Gabriel bate uma vez e empurra a porta  sem esperar. Entra, já pronto para cumprimentar. Mas  a cena que o aguarda deixa-o sem fala.

O aposento está iluminado por cinqüenta  candelabros. Está mais claro do que se fosse dia. Em  frente a uma vasta cama de baldaquim, Francisco  Pizarro está ajoelhado, a cabeça inclinada diante de  um pequeno quadro da Virgem com o Menino e a Rosa.  E, para rezar, ele vestiu seu uniforme de guerra!

À luz das velas, o plastrão de aço, as dragonas,  as placas das abas do gibão brilham, salpicadas de  ferrugem e deformadas por toda uma recordação de  golpes. No chão, perto de seus joelhos, ele colocou  o chapéu e a espada de punho finamente incrustado e cujo virote da guarda  tem a forma de um trevo.

Petrificado, em meio ao ronco dos trovões cada vez  mais próximos, Gabriel ouve a prece que don  Francisco murmura com um fervor veemente:   - Santa Mãe de Deus, vós nunca me faltastes:  sempre pousastes a mão em meu ombro. Conduzistes  meus navios nas tempestades e poupastes minha vida  em todas as emboscadas. Virgem Santa, eu vos digo,  sois a voz que me conduz. E sei que quereis mais de  mim. Quereis que vossa força e vossa luz brilhem  sobre as paredes de ouro do Peru. Ah! Minha  santíssima Santa, sei que haveis de me conduzir até  lá! Fazei com que o Rei Carlos me receba e me ouça!  É por vós que me levanto pela manhã e aguardo com  toda a paciência! Doce Mãe, não me abandoneis, e  colocarei o Peru em vosso colo como uma criancinha  recém-nascida. Farei isso, eu que, a cada instante,  sou vosso filho amantíssimo... Amém!

Don Francisco Pizarro se persigna e beija com os  lábios tanto quanto com a barba o ícone da Virgem.  Depois se levanta, ágil como um rapaz. Cinge a  espada e vira-se para Gabriel.

Em outra ocasião, quem o visse exibir-se assim em  seu quarto, as faces encovadas como duas tigelas e a  tez cerosa, poderia achá-lo ridículo. Um velho  maluco, burlesco e mentiroso! Será sequer imaginável  que um velho possa conquistar um país do outro lado  do mundo?

No entanto, Gabriel só consegue admirá-lo.

- Você reza às vezes, rapaz? - pergunta don Francisco  franzindo os olhos. Ama a Virgem?

- Anh... Acho que sim   balbucia Gabriel.

- Acha! Ah!... Eu rezo todos os dias. Ela me  salvou a vida cem vezes. Sem a vontade dela, há  muito tempo eu não teria mais sangue nas veias...  Ela quer o Peru mais ainda do que eu!...

Sua voz é áspera, mas seu olhar, faiscando como um  tição, não. Ele atravessa o aposento, abre a janela  e olha um raio riscar a noite. O relâmpago, por um  instante, banha com uma luz azul o aço de seu  plastrão e o grisalho de sua barba. No estrondo do  trovão, ele se vira, olha Gabriel de alto a baixo e  diz, franzindo o cenho:

- Pedro o Grego me disse que você está progredindo  nas armas. Muito bem. A leitura e a escrita não  bastam quando queremos fazer o papel de  conquistador! Ele disse também que você tem uma  mancha de predestinação nas costas...

- É só uma mancha de nascença, senhor!  

- Hum.

Pizarro fica calado enquanto corisca um raio e  ronca uma depois acrescenta abruptamente:

- Meu irmão Hernando não gosta de você, aprendiz.  Ele quer que eu o mande embora.

- Mas por quê? Mal trocamos algumas palavras...   - Ele desconfia de rapazes que saem da prisão.

Gabriel sente-se empalidecer. Então, foi por isso  que don Francisco mandou chamá-lo no meio da noite!  Para mandá-lo embora de forma tão sumária como o seu  pai?

No entanto, o olhar de don Francisco fica quase  sorridente.

- Nada de melancolia, aprendiz - repreende ele. -  Eu também estou saindo da prisão! Hernando diz o que  quer e eu decido, entende? Talvez o meu irmão só  tenha medo de ir para a prisão também...

Don Francisco faz um esgar e Gabriel julga ouvir  uma risada.

- Por ora, você fica comigo - anuncia o Capitão  tornando a fechar a janela.

- Por ora... - arrisca Gabriel. - Mas quando o  senhor vai partir? - Vamos ver. Quem sabe como será  o dia de amanhã? Essa insuportável audiência não  chega!... O que é essa papelada na sua mão?

Ele se aproximou de Gabriel o bastante para  segurá-lo duramente pelo ombro.

- O relatório de Pedro o Grego sobre as suas  descobertas, senhor.   - Ah! Ele diz muita coisa?

- Diz... Eu acho... Tem tanta coisa!

O rosto de don Francisco, sulcado de rugas,  marcado por intempéries e combates, transmite uma  força tão extraordinária que Gabriel não ousa mais  respirar.

- Aprendiz, o Grego me disse que você já viu o Rei  de perto.   - É verdade.

- Como ele é?

- Bom, anh... Não é muito alto. É menor que Vossa  Graça. Mas tampouco é baixo, e...

- Não! Isso eu já sei! As pessoas zombam dele,  sabe por quê?   - Por causa do queixo.

- Do queixo?

- É grande demais. Os dentes de baixo são mais  para fora que os da frente, de modo que ele não pode  fechar completamente a boca!

- Coitado.

- Vossa Senhoria terá que prestar atenção, pois,  por causa disso, não se entende bem o que ele diz. E  depois, o castelhano não é a língua materna dele.  Ele balbucia como se comesse as palavras...

Don Francisco bate furioso no plastrão:   - Eis aí uma coisa que não me disseram!   - Diriam, meu irmão, se você tivesse perguntado!   - Hernando!

Don Hernando Pizarro abriu a porta como um índio e  seu olhar se fixa no de Gabriel, cheio de  animosidade.

- Por que você dá ouvidos às asneiras desse  garoto? - interpela ele com um gesto de despeito.

Ele se adianta na área clara e, de repente, um  largo sorriso brota em seus lábios. Ele é tão  elegante, cuidado e bem-apessoado quanto don  Francisco não o é. Seu gibão púrpura, seus calções  forrados de damasco recendem a perfume. Mas seu  nariz é vermelho e seus olhinhos miúdos, volúveis  demais. Ignorando Gabriel, ele subitamente estoura  numa gargalhada e abre os braços como se quisesse  acolher don Francisco:

- Está resolvido, Francisco! Está resolvido, meu  irmão! Acabo de jantar com o conselheiro Los Cobos.  Você receberá a carta para a audiência amanhã de  manhã!

Don Francisco se persigna gemendo. De um salto,  corre até o ícone da Virgem e o leva violentamente  aos lábios.

Depois, voltando-se, o rosto iluminado e remoçado,  brande o ícone para Gabriel e Hernando:

- Ela quis! Ela quis! Vamos, venham beijar a  imagem da Virgem e se ajoelhar diante dela!

 

                                         Rimac Tambo, abril de 1529.

Toda noite, o cometa passa no alto do vale  misterioso.

Toda noite, ao crepúsculo, Anamaya atravessa as  canchas, contorna o templo, desce os degraus que  levam à esplanada que se estende até a torrente.    Toda noite, ela "vê" o coroamento de Atahualpa e seu  coração é acometido por uma aflição secreta sobre a  qual ela não falou nem com o Anão, nem com o Sábio.

Receando que o sono leve seu espírito, ela passa  muito tempo sentada num muro, envolvida pela noite,  pelas estrelas e pela inquietação. A insônia causada  pela idade avançada, ou então uma afeição impulsiva  pela jovem Coya Camaquen cuja angústia ele adivinha,  leva Colla Topac o Legatário a juntar-se a ela.

Noite após noite, como um velho soldado rude que  conheceu todas as campanhas e todas as rebeliões do  Norte como do Sul, ele lhe conta o passado. Sob a  luz leitosa de Quilla, seu rosto é crestado como a  terra do deserto.

- Depois de amanhã, vamos deixar Rimac Tambo -  anuncia-lhe ele naquela noite. - Já é hora de o  Corpo seco do único Senhor terminar a viagem.

O velho Legatário estende o dedo deformado pelo  reumatismo e aponta para a encosta abrupta a sudeste  da aldeia. Um caminho real corta ali a vegetação  como um lance de funda e passa a garganta sem uma  curva.

- Logo - prossegue o Legatário com sua voz  quebrada mas firme - você verá o puma...

- O puma?

- A cidade do puma, sim. Cuzco, nossa capital, a  cidade onde o sol se reflete em mil fogos no  Coricancha, o nosso templo... A cidade que, nos tempos idos, Manco Capac e Mama Occlo fundaram pela  vontade de Viracocha. Eles chegaram um dia na crista  das montanhas circundantes. Viram a planície e, na  planície, em volta de um rio, viram a forma de um  puma...

E ele torna a contar.

Anamaya se deixa embalar pela música de suas  palavras, onde caminham os deuses e os homens que  fizeram a força do Império das Quatro Direções.

Por alguns instantes, ele se cala, a boca seca.  Então pousa a velha mão acabada na mão fina de  Anamaya. Acaricia-a sorrindo como se dela extraísse  um pouco de força e continua sua história.

Os enviados de Huascar chegaram ao raiar do dia,  debaixo de uma chuva violenta.

Ao amanhecer, como sempre, os sacerdotes  sacrificam um lhama branco e todos os Poderosos que  acompanham a múmia se reúnem para as oferendas. O  sangue escorre na pedra sagrada, a chicha escorre no  solo sagrado, o milho arde ao pé do Corpo seco do  único Senhor. O lamento fúnebre das trompas e dos  búzios ecoa na montanha.

Mas é levantando os olhos para o céu muito cinza e  muito baixo que Anamaya os vê transpor a garganta  norte. Doze soldados com mantas ensopadas de chuva,  vermelho-vivas, na imensidão verde.

Quando eles chegam à aldeia, ela descobre que  estão armados com fundas, lanças, e sobretudo os  terríveis cassetetes estrelados. Não, eles nada têm  de pacífico. Param ao pé da esplanada, como  estrangeiros, e se mantêm à parte, sem um gesto,  indiferentes à cerimônia.

Com um esforço de polidez que não está muito entre  seus hábitos, Villa Oma se aproxima deles. É o  primeiro a cumprimentar.

- Sejam bem-vindos, enviados de nosso Poderoso  Huascar!   - O Único Senhor Huascar! - corrige o oficial.

É um homem jovem e rude. Seus olhos são tão fundos  que seu olhar parece permanecer na sombra,  inapreensível.

- Viemos buscá-los - prossegue ele mostrando  grosseiramente os Legatários prosternados diante da  múmia.

Villa logo perde a calma:

- O que quer dizer, capitão?

- Nosso Único Senhor ordena que os Poderosos  Anciãos venham a ele antes da chegada do Corpo seco  de seu pai a Cuzco...

- Antes? E por quê? - espanta-se Villa Oma. - Isso  não está na Lei...   - Eles rejeitariam a ordem do único Senhor  Huascar? - replica o oficial esboçando um sorriso.

- Bem, não sei - resmunga Villa Oma. - É preciso  perguntar a eles. Eles é que são a Lei e sabem.     - Enquanto isso, você pode vir compartilhar da  nossa refeição...

Mas o soldado recusa.

Ele também se recusa a esperar.

Desde a chegada dos soldados, a tensão aumentou no  cortejo. As mulheres se entreolham e guardam os  comentários. O Anão aproxima-se de Anamaya:

- Eles vieram nos buscar? - pergunta aflito. Ela  faz que não com a cabeça.

- Não... Vieram buscar os Legatários.   - São loucos? - murmura o Anão.

Mas Colla Topac, digno e impassível, aproxima-se  pergunta:

- Por que o Poderoso Senhor Huascar quer nos ver,  se a Lei determina que permaneçamos ao lado do pai  dele?

- O Único Senhor, Legatário - torna a corrigir o  oficial com um respeito frio. - O motivo dele, ele  não me deu. A ordem é que vocês devem me seguir,  você e todos os outros Poderosos Anciãos.

Colla Topac volta-se para Villa Oma e os outros  Legatários. O que lê nos olhos deles é temor e  perplexidade.

- Você está armado, oficial - observa o Legatário.  - Huascar teme por nós?

- O Único Senhor está impaciente para tê-los ao  lado dele - responde o oficial com um tom mais  suave. - Acho que ele só está com pressa de saber  notícias do pai.

- Ah... E ele viu o cometa que tem passado no céu,  nessas últimas noites? Dessa vez, o oficial se cala  e abaixa os olhos.

- O desejo de Huascar é contra a Lei - prossegue o  Legatário falando alto para todos ouvirem. - Mas não  quero amargurar seu coração. Ele sabe que vamos em  paz e eu quero provar isso a ele. Se precisar ser  tranqüilizado, talvez eu possa lhe lembrar a coragem  do pai dele, Huayna Capac.

O oficial se endireita como se sob o efeito de uma  bofetada. Examina o rosto do Legatário cuja voz  continuou calma e firme, apesar da ironia das  palavras. Ele não replica, não deixa transparecer  nenhum sentimento. Só dá ordens para se aproximarem  das liteiras dos Poderosos Anciãos.

A assembléia está paralisada debaixo da chuva que  não parou de cair. As encostas das montanhas sumiram  embaixo de um véu cinzento e os vales estão cheios  de névoa.

Anamaya vê a apreensão nos olhos que a cercam. Com  os olhos semicerrados, Villa Oma masca suas folhas  de coca. Quando sente os olhos azuis da menina fixos  nele, vira a cabeça.

Então Anamaya se adianta para Colla Topac e se  prosterna diante dele antes que ele tome seu lugar  na liteira.

- Legatário, quero lhe agradecer por tudo o que me  ensinou. Colla Topac toma suas mãos e a levanta.  Sorri.

- É bom não dormir à noite quando se pode estar  perto de você, Coya Camaquen!

Anamaya sente as velhas mãos apertarem as suas com  ardor.

- Cuide-se, Senhor Legatário - diz ela baixinho. -  Seja prudente. Colla Topac estala a língua com um  olhar na direção do oficial que os observa:

- O medo não pertence mais a meu estado. Estou  numa idade, menina Anamaya, em que a viagem ao Outro  Mundo é a última esperada...

Mas quando ela quer se curvar outra vez, ele a  puxa, como se quisesse se apoiar em seu ombro para  se instalar em sua liteira.

- Observe o cometa esta noite, Coya Camaquen!  murmura ele. - Sei em que pensou todas essas últimas  noites e não ousou dizer. Observe o cometa e apóie  Atahualpa como fez até agora. Apóie-o. Ele precisa  disso. Aquele que detém a Lei está lhe pedindo.

Quando a noite se aproxima, começa uma ventania  terrível, fazendo todos os vales ressoarem como  trompas e enviando os ecos da ira de Illapa, o deus  da tempestade e do raio, de montanha em montanha.

Só há paz no templo. Com gestos lentos, dominando o  medo que lhe corrói o peito desde a partida dos  Legatários e as últimas palavras de Colla Topac,  Anamaya deposita o milho e a quinoa diante da estela  que sustenta o Irmão-Duplo. Depois, verte chicha em  volta dele.

Em seguida, como faz freqüentemente, ela se  ajoelha. Passa um bom tempo diante da mascara de  ouro do único Senhor.

Está tão úmido dentro do templo que as brasas das  oferendas custam a arder.

Anamaya ouve um barulho atrás dela e reconhece o  passo discreto de Villa Oma. Ele também sente  necessidade de se recolher diante da máscara de ouro  do único Senhor. Seu perfil está mais seco do que  nunca, seus traços abatidos mostram suas noites  insones, as longas horas passadas na leitura dos  oráculos com os adivinhos para compreender o sinal  do cometa. No canto de seus lábios, como sempre, a  coca deixa sua marca verde.

Mas hoje, pela primeira vez, Anamaya sente sua  impotência. E a raiva que paralisa seu rosto é a  raiva da humilhação.

- O que dizem os oráculos? - pergunta ela.   - Que Atahualpa deve tomar a Faixa real - Responde  secamente o Sábio.

- Eu sabia! - exclama Anamaya.   - E não me disse nada...

- Achei que não acreditaria em mim.   Villa Oma faz um gesto de desânimo.

- Pouco importa, no fundo. Agora, a guerra é  inevitável entre o Norte e o Sul! Huascar já nem  respeita a Lei. Quer os Legatários perto dele quando  ainda não está na hora! Quer obrigá-los a reconhecê-lo como sucessor do pai...   - Colla Topac não aceitará - protesta Anamaya.

- Então Huascar vai humilhá-lo mais ainda! E vai  dispensar a aprovação dele!

- O Poderoso Atahualpa deve saber que o cometa o  designa como nosso único Senhor - insiste Anamaya. -  Ele deve saber, Sábio Villa Oma.   - E isso desencadeará a guerra! - exclama o Sábio.  - Você não sabe o que é guerra, Coya Camaquen! E a  guerra quebrará o Império, eu sinto!

- Eu sei o que é a guerra, Sábio Villa Oma -  replica Anamaya com doçura. - Você esquece que o  capitão Sikinchara chegou à aldeia onde eu morava  quando era criança e incendiou tudo. Todo mundo que  eu amava morreu naquele dia. E quando a pedra de  funda atingiu minha mãe, ela estava segurando minha  mão...

Por uma vez, o Sábio se cala.

Anamaya olha o reflexo da claridade fraca das  brasas no corpo de ouro do Irmão-Duplo e acrescenta,  a voz sempre calma:

- Eu sei o que é a guerra. Compreendo que você  tenha medo de uma. Mas foi você quem me ensinou:  Inti só tem uma vontade. Estou contente, do fundo do  coração, que ele designe o Poderoso Atahualpa. Mas  agora, preciso ir ter com ele. Ele tem que saber que  o pai dele me falou e me mostrou a bola de fogo. Tem  que saber que não está mais no silêncio e que os do  Outro Mundo depositam esperança nele. Ele deve saber  que tudo o designa para ser nosso único Senhor, que  essa é a vontade de Inti... Sábio Villa Oma, se eu  tenho que voltar sozinha para junto de Atahualpa  para lhe dar apoio, então vou sozinha.

Dessa vez, a surpresa é que fecha a boca de Villa  Oma.

- Você não pode - murmura ele afinal. - Tem que  acompanhar o Irmão-Duplo a Cuzco. É a Lei.

- Nada do que acontece agora em Cuzco é a Lei,  Sábio - replica Anamaya levantando-se. - O próprio  Legatário disse isso.

Villa Oma olha-a saindo do templo como se  estivesse vendo uma desconhecida.

Do lado de fora, ela deixa a chuva que continua  caindo forte lhe fustigar o rosto. Estranhamente,  apesar da incerteza do futuro, ela se sente aliviada  e calma. Feliz até. Sabe afinal que fala certo.

Atravessa tiritando a esplanada deserta, pois sua  llicla leve não a defende do frio. Como por reflexo,  a mão levantada para se proteger da chuva e do  vento, lança um olhar para o vale onde o cometa  continua passando.

Infelizmente, o céu está encoberto e o cometa fica  invisível atrás das nuvens. E está igualmente escuro  para o sul, para onde foram os Legatários... Mal ela  acabou de lembrar-se com afeição do velho Colla  Topac, um barulho de passos na relva molhada faz com  que ela se vire. Mas ela não vê nada.

Uma mão grande e forte lhe fecha a boca antes que  ela tenha tempo de gritar. Um corpo pressiona o dela  e a levanta como se ela fosse uma boneca.

 

                                       Rimac Tambo, abril de 1529.

Nem uma palavra.

O velho Colla Topac passa a mão enrugada nos  cabelos brancos, depois no queixo quadrado, forte,  do qual, antigamente, bastava um único movimento  para comandar. Ele está irritado e impaciente e, tem  que admitir para si mesmo, com medo.

Por que, desde que deixaram o tambo, os soldados  de Huascar não disseram uma palavra? Por que desviam  os olhos, constrangidos apesar de sua  impassibilidade de fachada, quando encontram seu  olhar?

Como a estrada subia, ele mandou chamar o chefe da  escolta, o homem dos olhos fundos humilhado por ele  naquela manhã. Em vão: o homem não se dignou a vir.  Sentiu a perturbação dos velhos que o acompanham.

A trilha beira uma torrente que ruge e se estreita.  As copas das árvores de um lado e de outro se  encontram fechando um arco e, no chão, é escuro em  plena luz do dia. A chuva cai, pára, recomeça. Topac  está gelado até os ossos.

A noite, no meio de uma ladeira íngreme e  escorregadia, eles param na frente de algumas  miseráveis cabanas de taipa. O chefe dos soldados  afinal desce em direção a ele. Desta vez, ele não  desvia o olhar.

Colla Topac sabe que eles todos vão morrer. Ali.

Esta noite.

- Você não encontrou uma maneira melhor?   - Eu não queria que você gritasse!

Ánamaya olha para Manco na noite açoitada pela  chuva. Apesar da escuridão, ela adivinha seus traços  endurecidos. Estão separados há poucas semanas apenas, mas parece-lhe que o nariz aquilino do amigo  sobressai ainda mais naquele rosto que lembra um  rochedo arrancado da montanha.

- Vi os soldados e tive de me esconder esperando  que você viesse...   - Você poderia esperar muito!

- Eu disse a mim mesmo que meu pai lhe falaria.   - O que está acontecendo, Manco?

- Está acontecendo que Huascar enlouqueceu.   - Enlouqueceu?

- Não sei se são os sinais do céu ou os rumores da  rebelião de Atahualpa, mas todo mundo em Cuzco sabe  que ele se embriaga cada vez com mais freqüência,  fica inconsciente nas orgias, insulta a própria mãe  tratando-a de puta de Atahualpa... Encontraram-no  uivando como um lobo entre as torres do templo de  Sacsayhuaman, convencido de que os chancas estavam  atacando, e xingando as pedras, exigindo que elas se  transformassem em combatentes...   - Mas e você? E Paullu?

- Até agora, ele não se interessou por nós. Mas,  se bater o olho na gente, vai nos considerar  suspeitos de uma traição qualquer...

- Foi ele quem mandou buscar os velhos?   O olhar de Manco é de estupefação.

- Os velhos? Não estou entendendo.

- Ainda agora, um capitão veio buscá-los. Huascar  quer que eles preparem a chegada da múmia.

Manco levanta-se de um pulo.   Anamaya o acompanha. - Venha, vamos logo.

- Primeiro devíamos procurar Villa Oma.   - O Sábio de boca verde? Tem certeza?

Diante deles, a luz das tochas ilumina o templo.  Alagada com a chuva, a esplanada virou um lamaçal.  Anamaya corre, esforçando-se para arrancar da lama  as sandálias de palha.

O Sábio vai saber - diz ela com convicção.

Mas enquanto corre, pensa que talvez o Sábio não  saiba.

- Quais são as suas ordens?

- Não temos nenhuma ordem, mas temos um dever: o  de escoltar a múmia do falecido Inca Huayna Capac  até o templo de Coricancha de Cuzco, onde será  confirmada a subida ao trono do próximo Filho do  Sol.

- Que ordens receberam de Atahualpa?

- Nenhuma. Mas embaixadores dele estão no cortejo.  Vêm os presentes e a fidelidade do irmão ao Inca  Huascar.

- Quais são as verdadeiras intenções de Atahualpa?

- Se acha que cometemos o crime de traição, por  que não nos leva a Cuzco para sermos julgados e  punidos, se formos culpados? Por que nos guarda  nessas cabanas, no meio dessas montanhas, como se  esses crimes devessem permanecer secretos,  desconhecidos dos deuses?

Colla Topac sente-se fraco, mas mantém a voz tão  firme quanto ainda pode. Está amarrado a um poste  por um sólido fio de agave, numa cabana de chão de  terra batida. Um a um, seus companheiros foram  mortos - uma pedrada na testa, uma flechada no  coração -, e o sangue deles corre no rio que ele  ouve roncar.

Só sobra ele.

O capitão de olhos tristes mandou todos os  soldados da escolta saírem para que eles fiquem a  sós.

- Você é o chefe deles - diz lentamente.

- Não! Sou apenas o primeiro Legatário. E então?

- Você foi enviado por Atahualpa, o traidor, para  espionar as tropas do Sapay Inca, o Poderoso  Huascar, e levar para ele informações relevantes  para a guerra de rebelião que ele quer fazer.

- Isso é absurdo... Dez velhos miseráveis,  escondendo-se atrás da liteira da múmia para  espionar...

Uma dúvida atravessa os olhos do capitão. Ele se  aproxima Topac e se agacha diante dele, o olhar  mergulhado no do velho.   - Foi o que nos disseram em Cuzco.

- Olhe para mim, olhe os cadáveres dos meus  companheiros que você torturou e de quem só  conseguiu tirar olhares de pavor na hora da morte...  Não acha que teria conseguido saber pelo menos  alguma coisa? Você não tem nada, a não ser sangue  nas mãos.

- Você também vai morrer. Fale, se não quiser ser  torturado e que sua alma seja dada ao puma...

- Você não terá nada de mim, filho. Nem sequer um  gemido.

O capitão não responde. Levanta-se de um salto  silencioso. Desamarra as mãos do velho e o empurra  para fora da cabana.

A noite está linda, o rio de estrelas corre  calmamente, eterno. Colla Topac enche os pulmões com  o ar da vida. É verdade que esse homem de olhar duro poderia ser seu filho. É verdade que, em  sua rude vida de combatente, ele não poupou os  inimigos... Mas como não vê que essas ordens, atrás  das quais se abriga como um miserável, são fruto de  um espírito transtornado? Como não compreende que  está preparando a confusão no Império das Quatro  Direções? Nenhuma palavra conseguiria convencê-lo.

Vai ser preciso morrer.

Os soldados se aproximam dele e agarram-no, dois  em cada membro. Ele arregala os olhos ao máximo para  que o universo o absorva e lhe dê a sua paz.     Exatamente nesse momento, acima das montanhas, o  halo das últimas nuvens se ilumina com a luz do  cometa.

Mãos, dezenas de mãos o puxam e ele ouve grunhidos  de esforço, gemidos. Um lamento terrível rasga o ar  e ele só tem tempo de saber que é de seu peito que  está saindo.

A última sensação que ele tem é a de seu velho  corpo ser arremessado como uma pedra, bater num  rochedo e explodir em mil pedaços.

O Anão corre à frente.

Ele nasceu na floresta e sabe ler as pistas que os  homens e os animais deixam ao passar: as pedras  deslocadas, os galhos quebrados, as moitas  amassadas.

Villa Oma, Manco e Ánamaya seguem em silêncio, o  coração apertado. Na noite escura, ainda abafada de  umidade, as estrelas se acendem sucessivamente.

De repente, eles escutam um grito.

Eles encontram os corpos, um a um.

Alguns foram mortos à beira do caminho e estão  deitados, como crianças esperando o sono.

Outros assumiram formas estranhas, atrozes  fantasmas que viram todos os demônios.

Um foi esmagado por pedras tão pesadas que teve as  costas quebradas. Um osso de seu ombro aponta para o  céu.

Na boca de outro, aberta para sempre, eles  encontraram grãos de uma pimenta vermelha  terrivelmente violenta: antes de morrer ele sofreu a  tortura daquele fogo que rasga o ventre e o corpo  todo.

Em toda parte se encontram vestígios de sangue,  pedaços de carne; em toda parte eles ouvem os  gemidos e os gritos de agonia que ecoaram em vão.     Eles vêem Colla Topac por último, o corpo  desfeito, a boca retorcida num ríctus.

Ainda há um pouco de vida em seus olhos, um último  orgulho para além dos sofrimentos que ele teve de  suportar.

Anamaya ajoelha-se perto dele e lhe dá a mão, como  fez ao meio-dia, quando chovia e o homem de olhos  tristes e afundados nas órbitas dava suas ordens com  voz firme.

- Fique viva, menina - diz o velho cuja vida se  esvai. - Guarde a luz de seus olhos azuis...

- Por quê? Por quê?

O velho ergue os olhos num último esforço. Parece  mostrar um ponto mais longe, no céu, em direção ao  cometa cujo brilho turvo os ilumina.

Ela se levanta, os olhos cheios de lágrimas,  virando-se para Manco.   - Por que chegou tão tarde?

Manco não responde. Não há o que responder, pensa  ela. É preciso fazer como o Anão, com aquela roupa  vermelha recolhendo a terra e a lama, e dançar,  dançar até cair.

- Tenho que ir embora - diz afinal Manco.   Anamaya se volta para Villa Oma.

- E nós, o que devemos fazer? Voltar para o tambo  e esperar que outra tropa nos massacre?

- Vocês devem partir também - diz Manco. - Foi a  mensagem que vim lhes transmitir.

- O que diz, Sábio?

Villa Oma parece ter envelhecido terrivelmente.  Seu rosto está ainda mais fino, e sombras passam por  seus olhos.

- Eu digo que o jovem Manco tem razão: agora você  precisa ser protegida.   - Paullu e eu - prossegue Manco, pressionando -  devemos ficar em Cuzco, mas você deve fugir, avisar  Atahualpa.

- E a múmia? E o Duplo?

- Huascar, por mais louco que esteja, não pode  destruí-los. Você deve ficar viva: as palavras estão  dentro de você.

O céu está completamente claro agora; parece que  não choveu, não esteve nublado. O cometa está ainda  mais brilhante, e Anamaya mergulha nele o seu olhar  azul para ali encontrar a clareza.

Manco e o Sábio se calam. Anamaya respira e se  lembra do momento em que a força de seu destino  penetrou nela e em que ela sentiu, fundo de seu  corpo, que aceitava tudo o que acontecesse. O Anão  sentou-se numa pedra do seu tamanho.

- Será preciso que eu também lhe peça isso,  Princesa? Ela sorri para ele, despenteia seus  cabelos.

- Você sabe que sempre lhe obedeço, Senhor.   - Vamos - diz Villa Oma - vamos logo.   - Aonde?

- Você vem atrás de mim.

Manco desaparece na noite, rumo ao cume da  montanha e ao platô que dará acesso a Cuzco.

O Anão, o Sábio e a jovem se apressam.

 

                                         Toledo, abril de 1529.

- Olhe, olhe! Ah, que lindos! Ah, Majestade, meu  Rei, são mansos como cordeiros! E grandes! Mira,  mira! É lã de verdade, tão macia que não fica atrás  da de nenhuma ovelha. Aaaah! Que gracinha!

O bufão se esganiça, grita, gargalha. Tem uma voz  espantosamente forte para seu tamanho minúsculo.  Enfeitado com rendas, roupas de boneca e um chapelão  enorme, joga os bracinhos para o alto, corre de um  lhama ao outro, passa por baixo deles, afaga-os,  agarra-os, pula-lhes no pescoço, esfrega o rosto em  seu pêlo, antes de fazer mais uma cabriola!

Forçando as rédeas, os animais irritados arrastam  os dois índios, Martinillo e Felipillo, em volteios  incoerentes. Já perdidos e apavorados com a  imensidão e o luxo dos locais, os olhos arregalados,  eles trocam frases incompreensíveis.

- Ai, mas como esses tontinhos tagarelam, meu  Rei!...

O anão começa a imitar os índios com barulhos  grotescos, puxa-lhes a manta, saltita entre suas  pernas fazendo caretas. E, de repente, fingindo um  escorregão, cai em cima de Felipillo, que acaba indo  ao chão junto com ele no espesso tapete. O lhama  solto imediatamente aproveita o ensejo para galopar  direto para o trono. Pedro o Grego pula e captura o  animal, que dá um zurro rouco e cospe.

- Mas o que esse aí está fazendo! - exclama o  bufão com um horror fingido diante do lhama. - Não  está vendo que está faltando ao respeito com o meu  Rei?

- Quando lhama zangado, señor, faz sempre assim  ele - articula penosamente Felipillo.

- Quando lhama zangado... - repete comicamente o  anão cuspindo em Felipillo.

O povo cai na gargalhada e até aplaude. Estimulado  às palhaçadas, ele bate com o chapéu em Felipillo:

- Meu Rei: esse aí só tem duas pernas, mas não  sabe usá-las... E olhe: mesmo sem ter lã nas  panturrilhas, ele pastaria de bom grado os seus  tapetes! Gabriel, apavorado, vê don Francisco ficar  lívido de fúria com a afronta. Sua mão enluvada de  couro aperta violentamente o punho da espada. As  narinas vibrando, ele se volta para o estrado real.     Mas, se a jovem Rainha esboça um sorriso, o rosto  de Carlos V permanece impassível. Seu queixo largo e  forte lhe dá uma aparência grosseira que seu olhar  luminoso contradiz completamente. E, por menos  atento que se seja, adivinha-se em seu breve  movimento de cabeça e no franzir de suas pálpebras  um cumprimento sem ironia. O peito de don Francisco  logo se acalma. Com toda a elegância de que é capaz,  ele enverga aquela silhueta magra e toca o chão com  a pluma verde de seu chapéu.

Pedro o Grego segura a rédea do lhama, Felipillo  está em pé, sossegado por um gesto do Negro  Sebastian. Gabriel, por sua vez, se descontrai com  um suspiro discreto.

Os homens estavam de prontidão há vinte horas. Don  Francisco, não agüentando mais, mandou que eles se  levantassem no meio da noite. Cem vezes mandou que  lhe repetissem as mesmas recomendações, cem vezes,  pe diu que lhe espanassem o gibão negro novo em  folha, que trocassem a pluma de seu chapéu por uma  amarela, depois uma branca, depois uma vermelha,  decidindo-se por uma verde só quando o dia raiou.     Cem vezes ele havia ordenado que todos os cinco,  Pedro o Grego, Sebastian, Gabriel ou seu irmão  Hernando e os dois índios, se ajoelhassem diante da  miniatura da Virgem!

De manhãzinha, a espera se prolongara no Alcazar,  mãos molhadas, olhar vazio, barriga roncando de  fome, a andar pelos jardins magníficos sem ver nada  enquanto o sol esquentava cada vez mais. Ao meio- dia, eles foram conduzidos aos salões onde as damas  de anquinhas e grandes golas de pérolas, rendas de  Bruges e jóias os perscrutavam de perto como animais  prestes a serem devorados na arena!

Agora, o crepúsculo não tarda. Eles acabaram de  ser introduzidos na sala de audiências. Todos os  objetos de ouro, as cerâmicas e os tecidos do Peru  estão expostos numa mesa comprida. Infelizmente, o  aposento é tão grande, sobrecarregado de objetos,  móveis, tapeçarias, cortinas, quadros, que, apesar do esplendor estranho daquelas coisas peruanas, sua  quantidade parece bastante modesta!

Tudo o que conta na Espanha está ali. Cem nomes e  títulos sonoros, vestidos, como se fosse inverno, de  seda e brocado, cobertos de enfeites da moda, a  barba lustrada ou as faces empoadas de ruge,  conforme o sexo. Os olhares estão cheios de  arrogância e as bocas, por ora, abertas dando  gargalhadas.

Gabriel está aflito e envergonhado como se ele  fosse don Francisco, esse descobridor do Peru que  está sendo ridicularizado pelas palhaçadas de um  bufão... Mas, com o esboço de um gesto, o Rei corta  as risadas e chama o anão assobiando como se ele  fosse um cão.

- Pare, Estebanillo!

A voz é calma, bem compreensível, quando ele  acrescenta: - Apalavra é sua, Capitão Pizarro.

Segue-se um silêncio pesado.

Don Francisco parece de repente incapaz de  articular uma palavra. Seu irmão Hernando já vem se  adiantando e se inclinando com um sorriso nos lábios  mas, bruscamente, don Francisco o segura.

- Deixe. Eu é que devo falar! - ruge ele baixinho.  Empurrando Hernando para o lado, ele diz, com um tom  rude:

- Alteza, descobri um país que é uma mina de ouro  e fará a riqueza da Espanha por todos os séculos  vindouros.

O Rei não se mexe. O anão, em pé perto dele,  brinca:

- Ouro! Ouro! Ouro! Uau, ouro por toda parte, meu  Rei!... Ele está dizendo! Porque esses carneirões  aí, eu juro, são de lã!

Ouvem-se algumas risadas, mas, inesperada, é a voz  clara da Rainha que as interrompe:

- Capitão Pizarro, gostaríamos de ouvir da sua  boca a história dessa descoberta.

- É uma história longa, Alteza! Mais de dez anos!   - Então, conte-a sucintamente, don Francisco.

Sucintamente, Alteza, é difícil... Pois isso  começou quando descobrimos o mar do Sul, como  chamamos, do outro lado do golfo de Darién. E só  isso já foi muito difícil! Sou um dos que fundaram a  cidade de Panamá com o Governador da época que se  chamava... ahn...

De novo dominado pela emoção, don Francisco fica  sem voz. Seu grande corpo magro treme, tamanha é sua  tensão.

- Balboa... - sopra Gabriel sem pensar.

Hernando Pizarro o fulmina com o olhar. Mas don  Francisco faz que sim com a cabeça:

- Sim. O Governador Balboa...

Com alívio, Gabriel ouve a voz de don Francisco se  descontrair.

Frase após frase, ele esquenta, fala com mais  desenvoltura e vivacidade. E assim, por quase uma  hora, é toda uma epopéia que mantém os ouvintes  interessados. Como foi preciso desmontar uma  caravela inteira e transportá-la, peça por peça,  pela floresta, do Oceano Atlântico ao mar do Sul!  Como, sem trégua, foi preciso vencer os insetos, as  serpentes, as feras, os índios, a sede, a fome e a  doença! Como só os mais obstinados sobreviveram, e  com agressividade e coragem suficientes para partir  novamente ao ouvir falar de um país todo coberto de  ouro, para lá das florestas. Como foi preciso vencer  os céticos, as incertezas, os desesperos, a falta de  dinheiro, a gangrena da dúvida. Como sempre, durante  esses anos longos e intermináveis, foi preciso  vencer o próprio mar e todas as misérias imagináveis  que a adversidade do desconhecido pode infligir aos  filhos de Deus!...

- E depois um dia, Alteza, pronto! Do nosso navio,  vimos aparecer uma cidade na costa! Uma cidade  enorme... A floresta tinha se aberto em volta e  exalava perfumes como só há lá. Ah, acreditem em  mim, uma cidade de pelo menos duas mil casas! E essa  cidade inteira cintilava, como uma cidade celeste,  Alteza! Só quando chegamos perto é que vimos que o  sol se refletia num ouro brilhante como ele! Pela  graça da Santa Virgem, muros de ouro! Assim é a  cidade de Tumbez! Ah, eu juro!...

Levado pelo ímpeto de seu fervor, don Francisco  bruscamente se ajoelha e se persigna. E todos, em  volta dele, automaticamente, impregnados pelo fervor  do relato, Sebastian e Hernando, os índios, o Grego  e Gabriel, todos eles se ajoelham e fazem o sinal-da-cruz!

Um murmúrio de admiração vibra na platéia  conquistada da sala de audiências. Mas, outra vez, é  a voz fresca e límpida da Rainha que se levanta: -  Don Francisco, é um belo relato este que acaba de  fazer. Mas ouvi dizer que muitos homens pereceram  durante essas terríveis aventuras...

Esquentado como é, don Francisco se levanta com  uma rabanada. Negligenciando o olhar da Rainha, os  olhos incandescentes fixos nos do Rei, sem nenhuma  das cortesias exigidas, ele esbraveja:

- Que Vossa Alteza me perdoe, mas essa  recriminação não passa de um monte de asneiras! Se  fosse fácil encontrar um país coberto de ouro como o  Peru, há muito tempo Vossa Alteza estaria antes  ceando do que me ouvindo! - Bem falado! - ri o bufão  aplaudindo.

- Mas não é verdade, Capitão Pizarro? - pergunta o  Rei em seu castelhano canhestro.

- Mortos, houve, infelizmente! Nas índias, morre- se mais, se ouso dizer. Mas me recriminar por essa  adversidade! Sempre deixei aos que me acompanhavam a  opção de voltar...

- Dizem, señor Pizarro, que o senhor manteve cem  homens seqüestrados numa ilha durante um ano e que  metade deles morreu...

- Não! Não, Alteza! Eu mesmo me seqüestrei, pois  queriam me impedir de prosseguir. E vinte não  sobreviveram, não mais. E sabe o que fiz quando  afinal chegou um navio para nos resgatar?...   Estávamos numa praia, as chalupas esperavam, cada  um precisava decidir, continuar para o sul ou voltar  para a cidade do Panamá.

Don Francisco se interrompe, dá um passo à frente  e, desencadeando um grito na platéia, desembainha a  espada para brandi-la para o alto:

- Eis o que fiz, Alteza! Levantei assim minha  espada. E mergulhei-a na areia...

Aliando o gesto à palavra, don Francisco espeta a  lâmina no espesso tapete. Com um rugido de fúria,  faz um risco...

- Senhor don Francisco! - exclama a jovem Rainha  agitando as mãos. - Por favor! Tenha cuidado com  esse tapete, ele foi confiscado dos otomanos!

Don Francisco se sobressalta. Observa-a franzindo  o cenho, faz um vago sinal-da-cruz, depois, sem se  preocupar mais, dirige-se ao Rei:

- Na praia da ilha de Gallo, fiz um risco como  este, Alteza, embora mais fundo... E disse:  "Companheiros, meus amigos! Não volto para a cidade  do Panamá. Vou mais longe, para o desconhecido Sul.  Quem quiser me acompanhar que cruze esta linha. Os  que o fizerem, escolherão certamente a fome, a sede,  as doenças e a morte talvez... Os outros voltarão  para a cidade de Panamá e os dias normais. Eu lhes  agradecerei, pois eles compartilharam conosco  sofrimentos nunca vistos, um calvário que merece que  eu os ame como amo aqueles... A quem, no entanto, eu  prometo o Peru e seus rios de ouro. Não quero forçar  ninguém. Mas um dia, a coragem receberá o fruto de  sua semente! Eu sei!" Eis o que eu disse, Alteza. E  a verdade é que muitos voltaram para o Panamá sem  que eu movesse um dedo para os impedir! Mas treze  cruzaram a linha que eu havia traçado e se colocaram  ao meu lado: esses treze, Alteza, são os heróis de  uma lenda que será contada durante séculos!

Na platéia perfumada, mãos de mulheres começam a  aplaudir, cabeças severas de duques, marqueses,  camareiros e conselheiros balançam afirmativamente e  emitem sons de aprovação.

É então que Gabriel, pasmo, vê o Rei Carlos, o  quinto Imperador da Europa e seu mais rico soberano,  levantar-se. Um sorriso maravilhado abre sua boca  estranha. Ele se levanta do trono e desce do  estrado. Como um homem quase comum, faz um só gesto  designando os índios e os lhamas:

- Fale-me um pouco desses animais estranhos,  Capitão Pizarro.

 

                                   Salcantay, maio de 1529.

- Aonde vamos? pergunta Anamaya.

Desde que deixaram as luzes de Rimac Tambo para se  embrenhar na noite, ela fez essa pergunta diversas  vezes a Villa Oma. Ele não responde, fechado num  silêncio quase hostil. Eles só levaram consigo dois  criados, dois guardas e, por insistência de Anamaya,  o Anão que se ofereceu para carregar, lutar ou  aquilo que quisessem. Resmungando, Villa Oma  aquiesceu.

As luzes do tambo rapidamente desapareceram. A  única coisa que os liga ao vale que eles estão  deixando é o barulho da torrente que não parece  diminuir, embora eles estejam ganhando altura  rapidamente por uma trilha estreita, no meio de uma  vegetação cerrada.

A água que corre a faz pensar no sangue que corre,  e ela não pára de visualizar a imagem do velho Colla  Topac, os cabelos brancos molhados de suor, os olhos  revirados partindo para o nada, com a velha mão  enrugada segurando a sua. Ela cerra os dentes para  não chorar.

Mesmo no escuro, ela sente que estão atravessando  trechos de bruma que dissimulam as sombras da noite  para eles. Os barulhos dos bichos esquilos, cabritos  monteses tranqüilizam-na quando ela os reconhece. Mas um farfalhar nas moitas e ela fica atenta: pode ser  uma doninha assim como a vanguarda de uma tropa  enviada para prendê-los e torturá-los, como foi  feito com o grupo dos velhos.

A ladeira se acentua de repente e ela calca a  terra solta para encontrar as arestas das pedras e  se equilibrar. Instintivamente, sabe que estão se  aproximando de uma garganta. A vegetação fica  esparsa e eles afinal vão dar numa plataforma  bastante larga. Villa Oma os leva para fora da  trilha, atrás de um bosque ralo de tocacho, para uma  casa cujos muros de adobe já estão

deteriorados. O teto de palha está furado em alguns  pontos. A casa é cercada por um muro baixo de pedras  grosseiramente encaixadas. Pela primeira vez em  muitas horas, Anamaya sente um pouco de paz nesse  lugar fora do mundo.

Depois das oferendas, o Sábio pronuncia suas  primeiras palavras desde a partida:

- Vamos descansar.

- Vai me dizer daqui a pouco aonde vamos?

- O que importa o nome, menina! Eu a levo para lá.  É a minha decisão e, talvez, meu erro.

Um dos criados vai acender o fogo, e o Sábio o  detém com um sinal. Está frio, mas o escuro os  protege.

Quando eles entram no único aposento onde as  esteiras já foram instaladas, Anamaya coloca todo o  cansaço na nuca, como uma pedra. Ela se deita,  enrolada em sua manta.

- Princesa?

Ela abre os olhos já pesados. O Anão levou sua  esteira para junto da dela. E quando estende a mão  para pegar a da amiga, esta não oferece resistência  e adormece.

O céu está de um azul profundo, o sol já vai alto.  Em alguns instantes, vai se pôr à direita do cume e  expulsar a sombra da montanha que envolve o  valezinho. Anamaya acompanha a queda de uma onda de  neve arrancada do cume por rajadas de um vento  violento.

A mancha de luz de um marrom-dourado desceu a  encosta atrás dela, e agora os primeiros raios  beijam seus tornozelos. Ela fecha os olhos sob a  carícia quente.

- Um dia de beleza após um dia de morte.

Anamaya não se vira. Sabe que Villa Oma está atrás  dela.

- Se não é para lá que vamos - diz ela apontando  para o talvez você esteja autorizado a me dizer como  se chama.

- Você tem o conhecimento que não temos, mas isso  não basta para...   - O que está querendo dizer?

- Nada, menina, nada... Você já sabe tanto! Essa  montanha se chama Salcantay.

Anamaya vira-se para o Sábio. Seus olhos estão  brilhantes, quase selvagens. Venha agora - diz ele  num suspiro -, precisamos partir.

Eles passam três dias atravessando gargantas, e a  massa do Salcantay com seus gelos eternos fica acima  deles. A cada noite, dormem num casebre simples como  o primeiro. Com os movimentos da luz, a chegada das  nuvens, o jogo do sol e da sombra, a geleira muda.  já quase acabaram de contorná-la quando Anamaya se  vira. A geleira lhe parece um lago branco, quase  cinzento, com estrias azuis e as riscas escuras das  gretas.

O Sábio tem razão: esse lugar não é para o homem.

Na última garganta, a paisagem bruscamente se  amplia. Vales profundos mergulham no horizonte  azulado da floresta. Na descida, os arbustos aos  poucos começam a predominar sobre a vegetação  rasteira. Anamaya tem consciência de estar mudando  de mundo.

Eles chegaram a um trecho mais largo do caminho,  talhado na rocha abrupta, sustentado por uma parede  de pedras cuidadosamente ajustadas. As lajes são tão  planas quanto possível, e ela pode se entregar à  fantasia sem ter medo do vazio. Luz e sombra se  alternam: às vezes é um corredor cortado no coração  da rocha no qual se ouvem os pingos de uma nascente,  ou um túnel de vegetação embaixo de bambus  gigantescos.

Eles caminharam depressa, durante muito tempo. Ao  pôr-do-sol, o sono já os derrubou.

Ainda é noite fechada quando o Sábio toca o ombro  de Anamaya para acordá-la. Um simples sinal, e ela o  segue.

A senda é abrupta. O topo do pão de açúcar foi  cortado em plataforma da qual só foi deixada uma  pedra.

- Para entrar aonde vamos, é preciso pedir a  autorização dos Apus - murmura Villa Oma.

Anamaya fica calada: ela renunciou a saber, e  sente um mal-estar por isso. As estrelas se apagaram  na aurora tímida, uma gigantesca montanha sai da  noite, majestosa, maciça e terrível. A distância  parece torná-la ainda maior.

- O Salcantay é um dos Apus mais poderosos da  região. Ele não deixa ninguém se aproximar de seus  lhamas. Os raros inconscientes que voltaram de lá  falaram de uma dama vermelha antes de enlouquecer  totalmente. Mas se você o respeitar, menina, ele lhe  dará sua proteção.

Anamaya fica em silêncio, subjugada pela força do  espetáculo. O pico se acendeu de repente, brasa  incandescente atiçada pelo vento. No momento  seguinte, é toda a geleira que se inflama num  turbilhão de vermelho-alaranjados.

- Olhe, Villa Oma: Inti está abraçando Apu  Salcantay.

Devagarinho, nesgas de névoa emergiram da  floresta, correram ao fundo das encostas e formaram  uma nuvem densa ao pé do maciço.

Villa Oma está agachado diante do rochedo. Coloca  ali seis frascos de barro que ele enche com uma água  clara, depois estende no chão um pedaço de pano.  Anamaya não dá muita atenção ao imutável ritual: há  medo, mas também alegria em seu mal-estar.

O Sábio levou a chuspa de coca à boca e sopra-a,  concentrado, olhos fechados. Murmurando, escolhe  três folhas, entre as mais perfeitas e mais verdes,  e as coloca delicadamente num canto do tapete; e  recomeça com mais três folhas no próximo canto.   Depois, sem pressa, coloca no centro bonecos em  forma de lhama, pequenos novelos de lã colorida e  grãos de milho roxos e pretos.

Insensivelmente, a nuvem começou sua ascensão,  escondendo um a um os primeiros blocos de gelo da  geleira. O Apu é ouro. Suas linhas ora doces, ora  cáusticas retêm uma aura de luz.

A um olhar do sacerdote, Anamaya sentou-se  defronte ao rochedo: de onde ela está, a rocha  reproduz na perfeição a forma do Salcantay.

Na superfície dos frascos, há grãos ou pós em  suspensão que aos poucos desaparecem embaixo de  espumas coloridas: a fermentação funcionou. O Apu  aceita as oferendas.

Então, Villa Oma as pega, uma de cada vez. Anamaya  sente que ele pousa uma a uma em sua cabeça enquanto  murmura palavras das quais ela só distingue seu nome  e o da montanha. E todas as vezes, o conteúdo é  derramado no rochedo.

- A você.

Anamaya dobra cada um dos cantos do tapete,  prestando atenção para não desarrumar a ordem das  oferendas, e, formado o pacote, sopra-lhe três vezes  em cima, debruçada para a montanha.

Villa Oma pega de novo a oferenda e pousa a mão  nos cabelos de Anamaya. Ela sente seu calor. No  início, é apenas um suspiro:

- Hamp ú Apu Salcantay, Hamp ú! Hamp ú Apu  Salcantay, Hamp ú! Hamp ú Apu Salcantay, Hamp ú!...

O chamado torna-se murmúrio, depois cresce. E  quando a voz do Sábio alcança os paredões vizinhos,  dir-se-ia que todos os picos reclamavam a vinda do  Apu num imenso clamor. Ondas quentes irradiam seu  corpo.

O último eco foge no fundo do vale e se apaga. No  silêncio, o pico luminescente do Salcantay  desaparece atrás da vela pudica da nuvem. Anamaya  sabe que está no coração da montanha. A paz está  nela.

Ao pé do cume, o Anão os espera. Com os guardas do  santuário do Apu, ele observa em silêncio os criados  terminarem de carregar os lhamas com os fardos. No  último terraço, uma grande escada mergulha a pique  no meio da vegetação logo absorvida pelo mar de  nuvens. Fora alguns picos próximos, esse mar cobriu  tudo.

- Estamos no teto do mundo - diz o Anão, com um  brilho de prazer nos olhos.

Villa Oma não deixa a Anamaya a possibilidade de  responder:   - Vamos. O tempo urge.

E, tirando uma mão-cheia de chuño da manta que um  criado lhe estende, ele começa a longa descida.

As pedras estão molhadas e escorregadias. O  pequeno grupo logo se fundiu no nevoeiro cerrado. Um  calor úmido se instala à medida que a floresta se  adensa, invadida pelas samambaias e por flores de  cores vivas. Os troncos das árvores estão cobertos  por um tapete espesso de musgo verde. A água escorre  pelos rochedos em meio a trepadeiras e tufos de  bambu. A terra está sempre produzindo.

Anamaya não tornou a ver a floresta desde a morte  da mãe. Suas narinas se abrem para aromas  esquecidos, que ela julgou perdidos, e ela reconhece  nas folhas encharcadas, na terra molhada, nas  corolas muito abertas das flores vermelhas, cor-de- rosa, amarelas, toda uma massa de insetos, de  moscas, toda uma vida a fervilhar. É como se seu  corpo atado pela luta e pelo exílio começasse a  reviver.

Até o horror associado à morte de Colla Topac  parece pertencer a um lugar e um passado distantes.

Ela olha para o Anão: ele vai pulando de pedra em  pedra, borboleteando. Como ela, ele vem da floresta,  como ela, ele faz parte de uma vida secreta,  estranha aos seres das planícies e dos vales de  montanha.

Às vezes, a vegetação é tão cerrada que eles têm a  sensação de estar andando dentro de um túnel escuro  cavado pela natureza em plena luz do dia. O suor  escorre quase em fio pela nuca dos servos. Um deles  canta sozinho - tão baixinho que mal se ouve, numa  voz triste que lhes aperta o coração.

Os intermináveis degraus acabaram. As lajes não  são menos escorregadias, cobertas com um musgo  escuro. Às vezes, o caminho se estreita, dando  passagem apenas para uma pessoa. A cada passo,  Anamaya tem de respirar devagar para não cair na  tentação de escorregar. Um movimento em falso e ela  voaria com os pássaros.

Quando eles finalmente furam a camada de nuvens, o  vazio revela-se um precipício insondável. Eles  avançam por uma ladeira íngreme. Acima deles,  elevam-se paredões quase a prumo, cobertos de  vegetação.

O Anão é que encabeça a fila. Ele agora já não  dança: faz atenção a cada um de seus passos,  prendendo o fôlego, as pernas duras de apreensão. De  repente, dá um grito.

A fila pára.

Anamaya logo vê o que os espera.

A trilha é interrompida abruptamente. Sob seus  pés, o paredão liso do rochedo se perde nas  profundezas.

Calmamente, com a desenvoltura de um cabrito, o  Sábio alcançou o Anão, obriga-o a voltar atrás na  trilha, o que ele fez gemendo e murmurando que não  podia se mexer porque iria morrer. O Anão aproximou- se de Anamaya.

- Achei que ia morrer nessa montanha horrível,  Princesa, e esse Sábio louco estava me mandando para  a morte brincando!

Do outro lado, há um movimento. Através da moita  de samambaias arborescentes, Anamaya distingue o  início de uma construção. Dois guerreiros se  aproximam lentamente.

Villa Oma se apresenta e declina para a escolta,  ruge:

- Só ela!

Ouve-se o grito do Anão, cômico e comovente:  

- Princesa, não me abandone!

Anamaya, o coração apertado, não pode se impedir  de sorrir.

- Se não quiser que eu mesmo jogue você no abismo,  volte para Rimac Tambo com os yanaconas e os guardas  - continua Villa Oma só com um pouquinho mais de  paciência. - Só a Coya Camaquen está autorizada a  prosseguir. Vá!

Os dois guerreiros tiraram dez galhos da grossura  de um braço e os jogaram no abismo.

O Anão olha desesperado para Anamaya, mas não  resiste à ordem. Ela lhe pousa a mão no ombro com  afeição. Ele desaparece com os criados e os guardas  no primeiro desvio do caminho.

Seu coração palpita. Ela está sozinha com Villa  Oma. Além da ponte, o caminho, muito mais largo,  continua em aclive bem suave sob a vegetação, depois  é interrompido de novo, agora contra a própria  montanha. À esquerda de Anamaya, há uma escada  talhada na montanha,   com degraus altos e largos de  pedra. Olhando para cima, ela vê dois pilares  maciços que marcam o fim da subida, como uma porta  aberta no céu azul.      Apesar do medo que a invade, ela sente uma  exaltação nova.     

- É aqui, não é?       

- Sempre saber, sempre conhecer...       

- Responda, Sábio.  

- Estamos entrando no território dos deuses, onde  só alguns homens       são admitidos..

Anamaya permanece imóvel, olhando para o céu.               - Assim como você deve jurar jamais transpor  esta porta com um estranho, o nome que vou  pronunciar não deve jamais transpor seus lábios.

- Esse segredo me pertence, e eu sou dele.

- Esse lugar se chama Picchu.

Anamaya entra na luz.  

Capítulo 26

 

                                 Toledo, outubro de 1529.

  - Ho! Ho!...

Don Francisco surge de um bosquezinho cerrado de  azinheiras e juníperos. A mão erguida, esporeando a  montaria, ele intercepta Gabriel e grita:  

- Aonde vai nesse passo, meu filho?

Vindo num trote longo, o cavalo de Gabriel se  assusta com essa aparição. Numa guinada violenta,  quase derruba o cavaleiro antes de saltar para uma  picada estreita e disparar num galope desenfreado  arranhando os jarretes nos espinhos dos juníperos.

Deitado no pescoço do cavalo, Gabriel deixa o  animal dar vazão ao medo. Com uma voz doce, ele o  acalma, afagando-o sem frear abruptamente seu  galope.

Quando, afinal, torna a alcançar don Francisco, o  meio-sangue andaluz do velho Capitão continua no  mesmo lugar. Rijo como sempre, mas hoje vestido com  seu gibão antigo de veludo desbotado, o mesmo que  usava na saída das masmorras de Sevilha, don  Francisco observa-o, com um sorriso irônico.

- Aí está um rapaz que sabe se segurar na sela e  não só fazer palavras com uma pena!

- Monto desde criança! Mas o senhor quase me fez  ir ao chão, don Francisco...

- E por que você me seguia? Está na minha cola  desde que saímos da cidade!

- Me perdoe, don Francisco, mas... todos os dias,  vejo-o saindo para passear bem cedinho...

- Passear? Tolice. Há trinta anos que medito  galopando! Um dia sem galope é como um dia sem  oração!

Com um muxoxo de mau humor, Pizarro bate na garupa  de seu cavalo. Num trote curto, toma a direção do  rio.

O dia está cinzento. As nuvens estão baixas, e a  umidade forma moles arabescos de bruma que pairam ao  longo do Tejo. Aqui e ali nos campos recém-arados,  vêem-se mulheres e crianças catando os rabanetes  remanescentes. As pontas vermelhas dos telhados de  Toledo desapareceram no entrançado dos morros e dos  bosques.

Por sua vez, Gabriel faz seu cavalo andar. Ao  alcançar don Francisco, diz num tom um tanto rude:

- Senhor, por favor! Conceda-me um instante...   - E para quê?

- Preciso saber. Vai me levar para a conquista do  país do ouro? Logo chegará a carta nomeando-o  Governador do Peru e...

- O que sabe a esse respeito?

- O senhor será Governador, eu sei. Vi o olhar do  Rei enquanto o senhor falava da conquista!

- O olhar do Rei? Grande coisa! Não sabe que os  reis vivem representando desde que abrem os olhos?

- Não, meu capitão! O senhor lhe agradou. Vai sair  da Espanha Governador, tenho certeza...

Estalando as rédeas, Gabriel impele o cavalo, e  dessa vez é ele quem intercepta o caminho de don  Francisco, obrigando-o a parar.

- Senhor, não me deixe mais na expectativa  inutilmente! Ontem, seu irmão don Hernando garantiu- me que o senhor não queria saber de mim e que em  hipótese alguma eu embarcaria para as índias em seus  navios... Logo de pois, Pedro o Grego me garantiu o  contrário. Segundo ele, o senhor tem um pouco de  amizade por mim... Don Francisco! Estou numa  situação que...   Gabriel não ousa terminar a frase. Com um toque da  bota, don Francisco desvia o meio-sangue para  colocá-lo no caminho certo e diz, num tom muito  áspero:

- Está numa situação que não deve ser fácil,  senhor filho do Marquês de Talavera!

- Não sou filho de ninguém, senhor!

Gabriel falou alto o suficiente para que don  Francisco se voltasse, o olhar fixo e intrigado.

- Não é o que me disseram.

- Então o senhor está sendo enganado! Doravante,  não sou filho de ninguém, e se lhe afirmam o  contrário é só para me prejudicar. Eu sou apenas eu,  corpo e alma. Minha hereditariedade só vai até as  pontas das minhas botas.

O que aparece nos lábios do velho conquistador é  um sorriso estranho e muito pouco usual.

- Eis uma frase que eu poderia ter dito há muitos  anos!

Ele encara Gabriel como se o estivesse vendo  realmente pela primeira vez, e o "aprendiz" afinal  se apagasse para dar lugar a um homem de verdade.   - Foi uma besteira muito grande que o mandou para  os braços da Inquisição?

- Bastante grande... se até folha de árvore é  suspeita de ter maus pensamentos! Ridícula, se nos  atemos à realidade.

- E foi absolvido?

- Melhor que isso, senhor. Agora, da maneira mais  oficial do mundo, eu não passo de uma sombra!

Don Francisco sorri de novo. Mas seu olhar fica  mais duro e mais incisivo:   - É capaz de me jurar fidelidade? Uma fidelidade  absoluta. Uma abnegação que o levará a obedecer a  mim, exclusivamente a mim, em qualquer  circunstância? Isso deve ter um custo para o senhor,  e alto...

- Sim, senhor.

- Por algum motivo que desconheço, meu irmão don  Hernando o odeia. O senhor precisará agüentar o  temperamento dele. E, sem dúvida, às vezes ceder ao  orgulho dele, que é grande...

- Vou me esforçar para isso, senhor. Meu único  desejo é que confie em mim como confio no senhor!...     Don Francisco, eu não tenho pai. Mas admiro o  senhor como admiraria meu genitor! Juro pela santa  Virgem que é sua santa guardiã: eu lhe serei fiel  até o sangue se for preciso!

Don Francisco balança a cabeça devagar, a  expressão altiva. Mas sua boca treme. Ele mastiga em  seco, cofia a barbicha com os dedos crispados.     Depois, com um gesto brusco, retira do gibão um  envelope grosso, fechado com um lacre que Gabriel  reconhece logo.

- Senhor! Mas isso é a carta real!

- Chegada ontem. Entregue por dois pajens e tudo o  que manda o figurino. Por sorte, Hernando não estava  presente. Eu queria rezar um pouco antes de lê-Ia e  finalmente ficar sabendo. Talvez seja uma recusa...  Leia isso para mim, don Gabriel.

Febrilmente, com o polegar, Gabriel rompe o lacre.  Não precisa de muito tempo para dar uma risada  clara, cheia de alívio.

- Eu não lhe disse? O senhor foi nomeado  Governador e Capitão geral de Nova Castela, chamado  nas índias "Peru"... E... uma pensão real de  setecentos e vinte e cinco mil maravedis... Tem  muita coisa, senhor, mas está assinado pela própria  Rainha, com data de julho último.

Fala de meus companheiros do Panamá? Que título  para Almagro? Um instante... Ah! Está aqui: Don  Diego Almagro, que participou pessoalmente dos  trabalhos de descoberta de Nova Castela e em cujo  financiamento empregou seus próprios bens e... “

- O título!

- AI guacil Mayor de Tumbez" senhor! O posto e os  privilégios de capitão da fortaleza de Tumbez e cem  mil maravedis por ano.

- Leia tudo em detalhes, don Gabriel. Desde a  primeira linha e sem omitir uma palavra... E não  muito depressa, por favor.

Gabriel lê, como Pizarro lhe pediu, lentamente,  destacando bem as sílabas. E é como se cada palavra  entrasse no seu sangue e o aquecesse no mais fundo  de sua alma - como se ele já estivesse atravessando  aquelas selvas, subindo aquelas encostas escarpadas  para descobrir aquelas cidades cujos muros são de  ouro.

Quando termina, fica um instante fitando a carta  antes de ousar olhar de novo para o Capitão.

Pizarro chora - não de maneira tímida, envergonhada,  como um homem que tivesse medo de ser confundido com  uma mulher... Lágrimas belas e quentes que lhe  sulcam as faces e vão se afogar em sua barba.

Gabriel se cala. Pizarro finalmente volta para ele  uns olhos brilhantes: - Tudo é nosso, filho, tudo!

E Gabriel não pensa apenas, maravilhado, que  encontrou um país - fantasia, com um espanto que o  perturba, que encontrou um pai.

 

                                Machu Picchu, janeiro de 1530.

Num estirão só, eles sobem os degraus íngremes que  levam às duas colunas de pedra que dão para toda a  luz do céu.

Villa Oma vai à frente. Há no ar uma espécie de  ternura, como se a transparência do céu, o azul do  Outro Mundo de Cima ou os verdes inumeráveis das  encostas possuíssem um hausto único, uma respiração  contida e calma.

Mas quando chegam entre as colunas, Anamaya só vê  um caminho largo, calçado com tanto cuidado que não  há nenhum mato entre as pedras. O caminho sobe ainda  suavemente entre dois pequenos bambuzais onde vicejam grandes orquídeas. Depois, duzentos passos à  frente deles, torna a formar um corte aberto no  vazio.

O coração de Anamaya bate tanto que ela tem  dificuldade de respirar. Sua nuca, suas mãos estão  molhadas de suor. Não é do esforço. Hoje a marcha  não foi longa nem difícil.

De repente, diante dela, enquanto aparecem as  encostas das montanhas distantes, o Sábio fica  imóvel. Seus braços se abrem, os dedos voltados para  o chão. Anamaya chega até ele.

A cidade proibida está ali embaixo.

Jamais seus olhos se depararam com semelhante  esplendor. Jamais seu coração recebeu tanta beleza.

Incrustados no entrançado de picos e vales, como uma  imensa e perfeita escultura, seus flancos mergulham,  de terraço em terraço, nas encostas vertiginosas que  encontram o rio roncador.

Casas, ruas, templos, pátios, muros e culturas  sagrados desenham um tecido estampado de marrom,  ocre e tons suaves ou ácidos de verde, fino e sutil  como um unku real.

Em torno da cidade e até onde a vista alcança,  longe no mundo que os homens não conhecem e erguidas  no azul opaco do céu agora carregado de nuvens, as  montanhas envolvem Picchu como guerreiros atentos.   As escarpas vertiginosas se embaralham na  claridade vespertina, cortantes como a crista de um  Cumbi e cobertas de um verde infinito até o pico  mais alto. Muito longe, no estreito vale onde corre  o rio amarelo semelhante à serpente eterna, já estão  nascendo as brumas da noite.

- Picchu - murmura Villa Oma. - Picchu! Ánamaya  estremece, a garganta seca.

Do alinhamento esmerado de tetos de Picchu, amarelo- vivo ou cinza, sobem aqui e ali espirais de fumaça.     Um grupo de homens e mulheres atravessa a longa  praça central coberta com um tapete de relva. As  cores vivas de suas túnicas e das capas brilham à  luz do poente, ornamentos de ouro faíscam, enquanto  as sombras já estão longas e compactas nos vales.

- Venha cinco passos atrás de mim - ordena Villa  Oma prosseguindo. Mas Anamaya entende o que vê e  fica paralisada. Pelo jogo de luz e sombra do  entardecer, a forma do pico que domina a cidade  sagrada do oeste fica evidente. O puma está diante  dela.

Como uma fera satisfeita pela longa corrida de uma  caçada vitoriosa, a montanha adormeceu. Focinho  nobre para o alto, ela encerra em suas patas  poderosas os templos, as ruas, as casas, os terraços  de linhas macias como as dobras de uma peliça!

- A montanha está viva - murmura Anamaya sem se  dar conta de que está falando sozinha. - A montanha  está viva!

Mas ali embaixo, Villa Oma se volta e, com um  gesto imperioso, faz sinal para que ela vá em  frente.

Quando chegam perto dos primeiros muros da cidade,  ele torna a parar. Aponta para uma casinha de portas  largas num dos terraços sobrelevados. - Vá me  esperar lá - ordena. - O tempo que for preciso.  Sobretudo não saia dali.

As perguntas se acotovelam na cabeça de Anamaya,  mas o olhar do Sábio não admite réplica. Secamente,  sem um adeus, como se estivesse demasiado intimidado  por aquele local para mostrar sua afeição, ele  continua seu caminho.

Ànamaya o acompanha com os olhos enquanto ele  desce uma longa escada que, de repente, faz uma  curva abrupta de noventa graus e, mais íngreme, vai  beirando um muro alto. Mas na curva, há uma entrada  fechada por um portão de bambu. Villa Oma pára diante do portão  e, sem conseguir entender o que ele diz, Anamaya o  ouve gritar algumas palavras.

Nada acontece por um bom tempo, como se o Sábio  tivesse o acesso proibido.

Depois, de repente, o portão basculante se abre  lentamente e revela uma rua estreita entre casas  baixas. Surgem três homens, lança em punho mas com a  capa passada no ombro direito à maneira dos  sacerdotes. As saudações são longas. Villa Oma fala  muito, curvando-se diversas vezes em sinal de  respeito. Finalmente, ele entra e desaparece atrás  dos sacerdotes enquanto o portão de bambu está  aberto.

Até tarde da noite, Anamaya fica sentada diante da  casinha vazia que domina Picchu.

Acima dela, e enquanto ainda está claro, centenas  de camponeses trabalham nos terraços. Alguns amanham  a terra em volta dos brotos jovens de milho que  servirão para fazer a chicha das cerimônias, outros  plantam favas sagradas ou, nos terraços mais baixos,  colhem folhas de coca que jovens levam para a cidade  em enormes fardos. Estes vão tão carregados que,  quando sobem as escadas íngremes, só se vêem seus  pés.

Há pouco barulho, não se ouvem gritos. Sacerdotes  também vão nos terraços, reconhecíveis por seus  unkus sedosos e os brincos enfiados em suas orelhas.  Eles supervisionam o curso da água nos canais de  irrigação, controlam as plantações, às vezes  salmodiam diante dos regos ou simplesmente  contabilizam os carregamentos de coca...

Nem uma vez sequer alguém se aproxima dela. Um  grupo de crianças, no entanto, conduzindo uma tropa  de lhamas a uns terraços afastados, sobe as escadas  ali perto. Mas nenhuma delas olha para ela.

É como se ela não existisse. Como se não passasse  de uma sombra do Outro Mundo!

De repente, os blocos de névoa da noite escapam do  rio. Sobem a toda entre as escarpas como pássaros  loucos. Uma umidade fresca transforma-se em brisa,  vergando os pés de milho.

É então que se ouve pela cidade o canto das  mulheres. Anamaya as vê surgindo de um bairro mais  abaixo. Elas atravessam a esplanada em direção a  casinhas aninhadas no muro de cinta. São muito  numerosas, vestidas de branco, vermelho e amarelo,  com toucados de ouro na cabeça. Em fila tripla, elas  caminham no mesmo passo, sobem as escadas.

Depois o canto cessa, bruscamente substituído pelo  som de uma trompa que vem do ponto culminante da  cidade, onde surge a pedra que segura Inti, o Pai  Sol.

Agora são homens que surgem na esplanada. Mas eles  não estão em fila, cada qual vai para um lado.  Anamaya reconhece Villa Oma. Ao lado de um sacerdote  com um pesado cocar de plumas cujas cores agora no  escuro são indiscerníveis, Villa Oma se dirige para  uma ampla escada. Após tê-la subido lentamente, ele  desaparece numa comprida construção retangular.     Minutos depois, o breu é absoluto.

As montanhas não são mais que massas indistintas  que parecem vibrar no escuro como monstros  adormecidos. O céu está carregado de nuvens, sem lua  nem estrelas.

Começa uma chuva fina, molhando tudo em alguns  segundos. Anamaya refugia-se na casa. No chão de  terra batida, não há sequer um banco de pedra, de  Picchu ou de adobe para se deitar.

Ela se agacha encostada a uma parede, de frente  para uma das portas. Ouve o silêncio, a chuva. Sente  o cheiro da fumaça das lareiras que se espalha no ar  impregnado de umidade. Às vezes, sente-se um cheiro  de sopa.

Ela está com fome. Mas entendeu que naquela noite  não vai comer. Fica o máximo possível de olhos  abertos para a escuridão como se ainda pudesse ver  surgir uma tocha ou ouvir a voz de Villa Oma  chamando.

Mas só se ouve o silêncio da montanha.

Ela adormece sem sequer perceber, esgotada de  emoção.

E acorda sobressaltada, julgando ter ouvido o  berro de uma onça. Acha que só dormiu um instante.  Mas não. Já não chove e as estrelas brilham  intensamente no céu.

Ela se levanta, sai da casa. Sim, o céu está limpo  e faz um calor abafado, como se o ar fosse grosso o  bastante para ser espremido entre as mãos. A cidade  sagrada dorme no escuro, entre as patas do puma.  Isolados, sob o brilho das estrelas, ao longo de uma  escada onde ela viu na véspera uma sucessão de  chafarizes, brilham bonecos de ouro do tamanho de  uma criança. Para ver melhor as estrelas e as  sombras da Cidade sagrada, Anamaya se afasta da  casa. O sono abandonou-a definitivamente. Sentada  nos degraus de uma escada, envolvida em sua manta  que mal a protege da umidade, ela vela como se  estivesse sozinha no mundo.

Totalmente só.

Gostaria de ouvir o chamado de Huayna Capac, o  velho Inca. Gostaria de ouvir sua voz misteriosa e  reconfortante. Mas só há silêncio.

Sem saber por que, ela tem medo de entrar na  Cidade sagrada. O maravilhamento da descoberta  passou e ela de repente se sente como antes, quando  era pequena, impotente e sem forças. Quando nada  sabia do mundo invisível, quando ria e nada temia.  Quando não sentia o puma escondido numa montanha...

Mal o dia começou a raiar, enquanto todo o seu  corpo está insensível por causa da umidade, a porta  da cidade se abre.

Os três sacerdotes que acolheram Villa Oma na  véspera vêm até ela e, mais por gestos do que por  palavras, ordenam-lhe que os siga.

- Prometa a Mama Quilla manter a boca fechada para  sempre, não revelar a ninguém o caminho que a trouxe  aqui nem o que você vê!

De pé entre duas muretas que lhe batem na cintura,  Anamaya está na ponta de uma plataforma. Ela domina  um despenhadeiro tão vertiginoso que parece que o  fundo do vale lá embaixo pode caber na palma de sua  mão.

Atrás dela, o Sumo Sacerdote Huilloc Topac  esbraveja sua ordem. Sua boca é fina como a de Villa  Oma, esverdeada de coca. Mas seus olhos têm um tom  cinza estranho. Segundo Villa Oma, são as centenas  de noites de observação das estrelas que branquearam  assim suas íris.

- Olhe para Mama Quilla e faça-lhe sua promessa! -  ruge mais uma vez o Sumo Sacerdote.

Anamaya fita as cristas denteadas da montanha mais  alta barrando o horizonte do oeste. As nuvens se  rasgam aí, desvelando as dobras das encostas que a  vegetação cobre como um pelego. E, como se o céu, o  vento e a chuva obedecessem a Huilloc Topac, de  repente surge uma faixa azul. No centro dela, a lua  brilha branca e pura, quase cheia.

- Prometo, Mama Quilla - diz Anamaya em voz alta - , prometo nunca revelar nada sobre a Cidade sagrada!  Ficarei calada sobre os caminhos que levam a ela e  guardarei no coração o que vir ali. Que me arranquem  a boca se eu quebrar essa promessa...

Mal ela se cala, sente pesar-lhe no ombro a mão  bruta de Huilloc Topac. Ele a obriga a se debruçar  no muro de pedra, projetando o corpo para a frente e  agarrando-se à pedra como pode.

- Olhe o vazio lá embaixo, menina. Olhe com  atenção, pois é onde você será jogada se violar sua  promessa! Ninguém jamais deve ouvir falar de Picchu!    Ninguém deve saber que ela existe. E mesmo se o seu  Senhor Atahualpa lhe perguntar, você deverá  responder com o silêncio. Entendeu bem?

Huilloc Topac solta-a para que ela possa se voltar  e lhe responder fitando-o nos olhos:

- Entendi, Poderoso Sacerdote.

Afastado, Villa Oma conserva os olhos fechados.  Tudo em sua postura fala de sua humildade e de quão  humilde ele quer ser aqui.

- Agora, acompanhe-me, menina prodígio!

Há na voz de Huilloc Topac tanto ironia quanto  desprezo.

Ele gira nos calcanhares, no caminho de pedra  flanqueando o precipício, e toma a direita na  primeira escada que sobe ao posto sagrado das  observações. Anamaya o acompanha e ouve às suas  costas o leve ruído das sandálias de Villa Oma.

Há quatro dias, ela está dentro das muralhas de  Picchu. Há quatro dias, é mantida num aposento  minúsculo, com um reboco ocre nas paredes mas sem  nenhuma decoração, sem nichos para efígie alguma. Há  quatro dias ninguém, homem, mulher ou criança,  dirigiu-se a ela. Nem mesmo Villa Oma que ela  entreviu uma vez apenas, bebendo a chicha sagrada  com os sacerdotes em volta da Intihuatana, a pedra  onde o Sol se sustenta.

Às vezes, quando ela queria se aproximar do bairro  dos templos, das fontes de ouro, da huaca do Condor,  erguiam-se mãos e, com gritos furiosos, ordenavam- lhe que recuasse. Ela passou uma tarde inteira  agachada na soleira das oficinas dos joalheiros,  vendo-os martelar os lhamas de ouro, os brincos,  incrustar as esmeraldas e as plumas nos chapéus e  peitorais. Mas nenhum ourives lhe concedeu um olhar.

As crianças esbarravam nela quando corriam, como  se não a vissem, as mulheres sentadas de dez em dez  diante dos teares desviavam os olhos quando ela se  aproximava como se, com um olhar, ela pudesse sujar  a maravilhosa obra delas... E quando finalmente  voltava para seu aposento solitário, ela encontrava  no chão uma tigela de chuño, uma mistura de favas.  Mas sem nunca ver a mão que lha trazia!

- Você precisava poder jurar diante de Mama Quilla  murmura VilIa Oma, alcançando-a no alto da escada. -  E todos esses dias, o céu esteve encoberto.

- Mas por que não veio me ver? - exclama Anamaya,  surpresa de finalmente estar ouvindo sua voz.

- Fale mais baixo! Na presença do Sumo Sacerdote  só podemos falar baixinho!... E eu não podia vir  visitá-la porque, antes da sua promessa, ninguém  tinha o direito de vê-la nem de se dirigir a você.  Era como se a sua aparência física ainda não  estivesse em Picchu.

Diante deles, Huilloc Topac vem vindo depressa  pela ruela que leva à esplanada. Bruscamente, ele  dobra à esquerda, embrenha-se numa viela estreita,  uma das que haviam sido vedadas até agora a Anamaya.  Como ela hesita, Villa Oma Ihe dá um empurrãozinho.

- Você tem direito! E não se aflija. Huilloc Topac  é um homem severo e taciturno, mas é justo. E  conhece a realidade do céu como ninguém. Há vinte  anos que ele vive aqui e passa as noites falando com  as estrelas. Além do mais, ele é irmão de Colla  Topac. Só ele pode ainda ter o poder e a vontade de  restabelecer a ordem...

A sala onde Anamaya entra acompanhando o Sumo  Sacerdote é muito estranha. As paredes são de pedras  encaixadas à perfeição e de textura regular, cujo  volume vai diminuindo para o alto. Este é o sinal de  um local de grande importância. Duas janelas em  trapézio dão para o vale de Wilcamayo e delas se  podem avistar os picos de oeste assim como a  serpente amarela do rio fervilhante. Mas a sala não  tem teto. E, no chão, duas grandes bacias de  granito, pouco fundas, contêm uma água muito  límpida. Sentados a um canto, diante de um bambu com  uma quantidade de quipus pendurados, jovens  sacerdotes contam diligentemente os nós dessas  espécies de rede de cordames. Às vezes, com grande  agilidade e rapidez, eles acrescentam um nó, outras,  desmancham um fio inteiro. É assim que, através das  luas e das eras, conserva-se a memória do Império e  dos altos feitos dos Incas.

Huilloc Topac faz sinal para que os sacerdotes  saiam do aposento e, quando ficam a sós, volta-se  para Anamaya e pergunta secamente:

- Então, você viu o cometa e achou que o sinal  estava lá. Atahualpa deve ser o Inca?

Anamaya fica tão surpresa com a brutalidade da  pergunta que não responde logo:

- Huayna Capac, quando passou para o Outro Mundo,  passou a noite inteira conversando com ela - murmura  Villa Oma constrangido.   - E ela encontrou o puma na...

- Eu sei! - corta Huilloc Topac. - É ela que eu  estou interrogando. Responda, menina dos olhos  azuis!

- Sim, Poderoso Sacerdote. Eu vi o cometa e sei  que meu Senhor Atahualpa deve ser o Inca.

- Você sabe! - Sei.

- Sabe também o que aconteceu ao poderoso Colla  Topac.

- Quando ele morreu, eu estava segurando as mãos  dele. Ele também sabia. Por isso foi torturado e  morto de maneira tão atroz.

- Ah!

Com um gesto de dor, Huilloc Topac vai até as  bacias de granito e se curva diante delas. A água,  naquele momento, reflete apenas a passagem das  nuvens.

- Vi sombras na noite - murmura ele.   Vi  escuridão na escuridão. Estrelas se ausentaram e há  vazios no céu... eu nunca havia feito observações  como essa!

Seu tom recolhido e preocupado encoraja Villa Oma,  que desta vez diz com vigor:

- Se não fizermos nada, o Império dos Quatro Lados  vai se desmembrar! A guerra entre Atahualpa e os  clãs de Cuzco vai devastar tudo. E se a força for  igual dos dois lados, o Império vai se esboroar.

- Você pede que eu tome um partido, Villa Oma! Eu  sou um sacerdote das estrelas. Não sirvo nem a Cuzco  nem a Atahualpa. Sirvo a Inti, Quilla e todos  aqueles que nos criaram e nos protegem!

- Precisamente, Huilloc Topac! Não estou pedindo  que escolha um clã, mas que salve a nós todos, os  Filhos do Sol. Estamos quebrando o equilíbrio!  Estamos tomando a força dos Ancestrais sem lhes  fazer nenhuma oferenda. E vim com esta menina pois  os Anciãos do Outro Mundo confiam nela. Dê-lhe a  pureza e a energia de ouvir a voz deles. Que Huayna  Capac ordene sua vontade por ela antes que seja  tarde demais! Aqui, só ela pode receber este dom! E  nós também rezamos aqui. Não há lugar mais  sagrado...

- Pureza e energia! - resmunga Huilloc Topac  olhando para Anamaya. - Se ela conseguir agüentar,  faremos uma oferenda amanhã de manhã! Enquanto isso,  que ela vá se banhar nas Vinte Fontes. Avise as  mulheres para prepará-la...

 

                                   Cádiz, janeiro de 1530.

O dia no porto de Cádiz foi muito barulhento.

Há três dias, desde o amanhecer, uma ladainha de  carroças e mulas de carga desfila ao longo do San  Antonio. Cerca de vinte ou trinta homens, num balé  persistente, descarregam sacos de farinha, grão-de-bico, carne-seca, lenha, jarras de azeite ou de  vinho, caixas de suarda ou engradados de laranjas...     Apesar do frio de janeiro, a maioria está de torso  nu, com as espáduas brilhando de suor. Em pé no  castelo de popa, Gabriel supervisiona essas idas e  vindas. Ele mandou instalar uma espécie de  escrivaninha no convés. Num livro com capa de couro,  anota a natureza e o volume dos carretos. De vez em  quando, vê o Negro Sebastian ir escorregando com  agilidade do casco até o cais, levantar uma gamela,  abrir um saco, sopesar e até contar, acompanhado  pelo olhar irritado do capitão da nave. Quando está  tudo bem, a mão comprida de Sebastian levanta-se na  direção de Gabriel, que registra.

Porém, por duas vezes, o que ele ergue é o punho,  o polegar voltado para baixo. Então o balé dos  carregadores pára. Um quintal de farinha mostra-se  excessivamente cortado com centeio. Pouco depois,  verifica-se que alguns potes da pólvora para  carregar as colubrinas estão tão mal conservados que  a umidade deixou o material coagulado!

- Pólvora úmida é pólvora morta - diz Sebastian  sorrindo. - E uma pólvora morta são muitos homens do  lado errado da colubrína!

O capitão do San Antonio, homem seco, grisalho,  com a pele curtida como a de um mouro, irrita-se e  toma o partido dos comerciantes. Faz ecoar sua voz  estentorea:

- Ei, Negro! Quem você acha que é? Não é um preto  que vai me ditar os seus caprichos! Quem manda no  navio sou eu!

- Com as minhas desculpas, capitão - replica  Sebastian sem perder aquela calma que aumenta a  fúria do marujo.   - A bordo do navio, sem dúvida, mas no cais,  negativo. Aqui, quem manda é ele!

Ele aponta para Gabriel que, pressentindo a  discussão, já chegou lá. Com gestos tão secos quanto  a palavra e o olhar, abre por sua vez os sacos de  farinha e os potes de pólvora.

Os olhares pesam em suas costas, ainda mais  escuros que a pele de Sebastian. É com uma  severidade glacial que ele confirma o diagnóstico:

- O señor Sebastian está coberto de razão,  senhores. Imaginem se vou aceitar esses restos! Essa  pólvora não explodiria nem dentro de um forno. já  essa farinha só pode agradar aos gorgulhos!...

Os comerciantes protestam, o capitão fica  indignado. Gabriel, após olhar para Sebastian cujo  sorriso irônico está mais rasgado, diz palavras  cortantes como vidro:

- Eu falei não, senhores. E é não. Estamos  perdendo tempo. Levem de volta os seus sacos antes  que o señor Sebastian mande jogar tudo no mar.

O carregamento recomeça sem outro incidente.  Finalmente, uma hora antes de anoitecer, o cais fica  vazio diante do San Antonio.

Um derradeiro carreto se afasta. O silêncio volta,  entrecortado pelo ranger dos cascos ou dos mastros,  pelo guincho das gaivotas ou pelas risadas dos  marujos remendando velas.

Gabriel está secando sua escrita com um pouco de  areia quando é surpreendido por uma voz forte:

- Suponho que esteja satisfeito, senhor  conselheiro do Governador! Os porões estão cheios e  como lhe convém...

O capitão do navio chegou no castelo de popa, de  mansinho como um gato. Mostrando o livro aberto e a  pluma que Gabriel ainda está segurando, acrescenta:

- É a primeira vez que controlam assim meu  carregamento... Se quiser saber o que penso no  fundo, isso é uma atitude da Santa Inquisição!  Gabriel não consegue deixar de rir:

O que pensa no fundo, capitão, é tão fantasioso  quanto errado. A verdade é que o Governador Pizarro  me confiou uma tarefa para que eu a execute da  melhor maneira possível. E estou me esforçando para  isso. Vamos! Não faça essa cara. Adeus comissão  sobre a farinha e a pólvora... Mas a bolsa cheia de  ducados que me extorquiu para não demorar deveria  compensar esse dissabor.

O capitão enrubesce. Seu tom fica acre como uma  barrica de salmoura. - O senhor é muito jovem para  se permitir esse tipo de observação. Ainda mais que,  se compreendi bem, essa é sua primeira travessia!...  Deixe que eu lhe diga que, novatos do seu tipo, eu  já vi partir vários. Eles vão para as índias todos  cheios de si. Mas veja bem, é raro fazerem a viagem  de volta!... Muito boa noite, senhor. Vamos levantar  âncora, como previsto, uma hora antes do amanhecer.

Mal ele girou os calcanhares para desaparecer no  camarote de popa, ouve-se a risada de Sebastian.

- Esse é um que não vai rir para nós nos próximos  dois meses!

- Contanto que ele leve o barco até o outro lado  do oceano – diverte-se Gabriel -, dispenso os favores  dele...

Enquanto ele fecha o livro e arruma suas penas, o  sorriso do Negro corpulento se desfaz para dar lugar  a um embaraço não habitual...

- Eu lhe devo um agradecimento, don Gabriel. - A  mim?

- Normalmente, chamam-me de negro, noz de ébano,  preto ou outros nomes doces; não é muita gente que  me chama de "señor Sebastian"! A não ser Pedro o  Grego, é verdade...

Gabriel hesita por um momento, sob o olhar intenso  do Negro. Depois dá uma risada fingindo  desenvoltura:

- Puxa, señor Sebastian, não vejo nada de espantoso  nisso. Vamos conquistar o Peru, o mundo se amplia: é  normal que agora sejamos dois a apreciar a sua  companhia!

Eles riem juntos, mas o embaraço os força a  desviar logo o olhar para a floresta de mastros e  vergas balançando docemente à luz avermelhada do  entardecer.

"Em alguns minutos", pensa Gabriel, "o astro de  fogo deslizará no oceano com essa falsa aparência  chata. Enquanto aqui é noite, ele estará brilhando  lá, no país do ouro! Lá onde logo estaremos e  finalmente eu poderei ser eu sem entrave... E quem  sabe se o Grego não tem razão, se a marca em meu  ombro não é uma predestinação de verdade?”

- É difícil saber o que nos espera lá, don Gabriel  - murmura Sebastian como se tivesse penetrado em  seus pensamentos. - Às vezes, sonho que tem tanto  ouro nesse Peru que eu até poderia ser um homem  livre, tão livre como se minha pele clareasse! Mas  isso aí é história para criança. Don Francisco  talvez seja o Governador do Peru, mas, por enquanto,  só governa sonhos.

O Peru é do outro lado do mundo e esses incas de  quem o índio Felipillo vive falando é que mandam lá!  Eles não se deixarão vencer só porque aparecemos. E  don Francisco nem sequer arranjou um número  suficiente de homens...

- Eu sei - corta Gabriel. - Assim como o capitão  deste navio, que me pediu cinqüenta ducados  suplementares para zarparmos no meio da noite, antes  que os Oficiais do Conselho das índias nos dêem a  autorização para isso! Mas vamos consegui-la na  cidade do Panamá.

- Se ainda houver bastantes loucos que queiram nos  seguir! Estou lhe dizendo isso por amizade, don  Gabriel: o senhor fez tudo para ser dos nossos. - Há  dias em que me pergunto se eles me consideram mesmo  dos deles...

- Está querendo falar de Hernando?

- Os irmãos mais moços do Capitão não são  melhores, se vi direito: aquele Juan e aquele  Gonzalo têm sangue quente e espero que sejam nobres  combatentes. Fora isso... Mas esta noite, no fundo,  pouco me importa. Só mesmo don Francisco para  acreditar no sonho dele. Esta tarde, esta noite,  está começando minha verdadeira vida. Eu sei, eu  sinto! Sim, como se o céu todo vermelho ali na nossa  frente estivesse me chamando, como se o próprio sol,  desaparecendo do outro lado do horizonte, estivesse  procurando me levar!

 

                                     Machu Picchu, janeiro de 1530.

A noite inteira, ela sentiu a umidade encostar em  sua pele e penetrá-la, apesar da proteção das  paredes e das cobertas. Antes de adormecer, no  poente, ela ficou muito tempo debruçada numa janela,  o olhar caindo como uma pedra no vale em cujo fundo  o Wilcamayo rugia. Está ali, pertinho, esse vazio  magnífico, e na umidade do ar, cada vez que abre os  olhos, ela se vê voando ali leve como um pássaro.

As palavras de Villa Oma e as dos sacerdotes  passam por sua cabeça como mariposas: a guerra  parece muito distante neste local onde os deuses  convidaram os homens contanto que estes se fechassem  em segredo. E no entanto Villa Oma disse e repetiu -  a guerra está próxima, a guerra já está aí.

- Amanhã, quando o dia raiar... - murmurou ele  antes de deixá-la para a noite.

Então, a noite toda, exasperada pelas emoções dos  últimos dias, ela espera o alvorecer tiritando.  Amanhã, quando o dia raiar? Ela ouve os cânticos  abafados que atravessam a noite e mais evocam  lamento do que festa: as vozes rodeiam-na, chamando- a para juntar-se a elas. Ela se agita em vão.  Amanhã, quando o dia raiar? Ela procura um claro na  abertura sobre o vale, chama silenciosamente o Inca  Huayna Capac. Mas não aparece nenhuma luz no vale,  nenhuma voz vem ajudá-la.

Quando os primeiros raios do sol atingem os picos  nevados de uma cordilheira distante, ela está  dormindo profundamente e Villa Oma vem sacudi-la  para despertá-la. Ela abre os olhos sobressaltada:  seu coração está aos pulos. A claridade que penetra  em sua pequena cela ainda é cinzenta. Ela se levanta  e arruma o tupu, o alfinete que segura sua manta.

- Está na hora - diz simplesmente Villa Oma.

Eles atravessam as ruelas estreitas da cidade,  subindo para o templo do Sol cuja cúpula ela vê. Sem  que ela queira, seu olhar é incessantemente atraído  para as montanhas, o vale e o rio roncador. Quando  ela vira para trás, a luz invade o Huayna Picchu e  faz brilhar o ouro em seu rochedo ocre.

Na frente do templo, o sacerdote Huilloc Topac os  espera. Sua roupa branca é de fina lã de vicunha, e  ele está com seu barrete sagrado. Um sol dourado  cobre-lhe a testa.

Villa Oma curva-se diante dele.

O olhar de Anamaya é atraído pelo grupinho de  yanaconas, os que saem do templo carregando uma  rampa, uma liteira decorada bem menos ricamente do  que a da múmia, mas coberta como esta com um cumbi  de textura finíssima.

Ela treme.

Embora o sol já se tenha levantado, o ar continua  úmido. Em cima da Porta do Sol, concentram-se  algumas nuvens.

O grupinho sobe devagar para a casa do guarda, ao  longo da espetacular superposição de terraços das  culturas sagradas - do malva da quinoa até o ouro  fulgurante do milho. Ninguém diz uma palavra.

À frente, caminham o Sumo Sacerdote e o Sábio,  depois os yanaconas com a liteira, outros servos com  seis lhamas brancos. Anamaya fecha o cortejo. Quando  eles se afastam dos prédios, ela vê que estão  tomando o rumo da Porta do Sol, o Inti Punku por  onde ela primeiro avistou a cidade. O caminho é  perfeitamente calçado e, apesar da ladeira, avança- se sem esforço. Eles sobem mais alto que os terraços  de milho. Ela ergue os olhos para a montanha cujo  pico se destaca acima deles como uma asa de pássaro  no céu azul ainda pálido.

Machu Picchu. O velho pico. Murmurando essas  palavras para si mesma, Anamaya sente a apreensão  lhe apertar o estômago e o peito.

De repente, o sacerdote deixa o caminho do Inti  Punku e vira à direita para subir uma escada que vai  dar direto na encosta, para o Machu Picchu. Anamaya  corre para alcançar o sacerdote e Villa Oma. Ao  passar, olha para dentro da rampa. Em vão.

- Aonde vamos?

Villa Oma esboça um gesto apontando para o cume.   - O que vamos fazer?

O tom ansioso em sua voz irrita o Sumo Sacerdote,  que se volta severamente para ela, depois para Villa  Oma.

- Como essa menina ousa se dirigir a nós desta  maneira?   - Só estou perguntando o que vamos fazer.

- Uma oferenda a Inti - diz a voz cansada de Villa  Oma.  

- Os lhamas?

Villa Oma não responde. O olhar de Anamaya volta- se para a liteira. Villa Oma desvia os olhos.

O caminho fica mais estreito e mais íngreme;  sobretudo, eles entraram numa zona de floresta onde  a vegetação é tão cerrada que esconde o céu.  Touceiras de orquídeas amarelas, vermelhas e cor-de- rosa despontam aqui e ali naquele mar de folhagem.  Em toda parte - à beira do caminho, descendo os  rochedos - vê-se água correndo.

Quando eles emergem acima da floresta, ela se  vira, e o choque da cidade lá embaixo lhe tira o  fôlego. É como se ela tivesse batido asas e  estivesse voando no alto, podendo ver a ordem  perfeita dos terraços, das casas e dos templos, com  a mancha verde da esplanada central.

Depois, ela ergue os olhos e avista o cume do  Machu Picchu, que se destaca negro no céu de um azul  mais intenso a cada instante.

- Eu não lhe ensinei, desde o primeiro dia, não a  trouxe para conhecer? A voz de Villa Oma a  surpreende: é quase queixosa.

- Eu não lhe contei o nosso longo caminho para a  luz e não a iniciei na compreensão da guerra cujo  fogo já nos devora?

- Você queria me dar ao puma e foi por ordem de  Huayna Capac que me deixou viver.

- Eu lhe contei tudo, trouxe-a aqui, a nosso lugar  mais sagrado, e agora...

- Não estou entendendo, Villa Oma.

De cada lado do caminho erguem-se dois panos de  muro. O coração de Anamaya bate mais depressa: neste  lugar, a montanha revela seu mistério. Os yanaconas  pousam a liteira. A tela fina do cumbi tremula como  se soprada por uma leve brisa. Uma menina desce. Não  tem mais que dez anos. Há um fio de coca escorrendo  na comissura de seus lábios. Está vestindo um  simples anaco branco, tingido de vermelho na  cintura. Mergulha os olhos negros e intensos nos de  Anamaya, que neles não vê sorriso nem medo. Nada.  Anamaya entende e a revolta a emociona.

- É isso que queria me contar? Que ia sacrificar  essa criança?

- Cale-se!

A voz de Villa Oma recuperou a qualidade  imperiosa. Os servos abaixam a cabeça e os lhamas se  agitam nas pontas das rédeas.

- O universo vai ser sacudido, a guerra já está  incendiando o céu, Viracocha agita o oceano, uma  grande virada se prepara... E você me fala da vida  dessa criança? Capacocha, nossos pais praticavam  esse sacrifício, bem como os pais deles, e foi assim  que os incas se tornaram os senhores. E você, a  menina dos olhos azuis, quer interromper a ordem do  universo, impedir que o sangue volte à terra?

Cada palavra do Sábio acerta Anamaya no coração.  Sim, ela seguiu seu ensinamento, e sua estada na  cidade secreta permitiu-lhe o acesso ao mais  profundo da alma inca. Sim, ela sabe que é preciso  dar vidas para que a Vida continue. Sim, ela está  infelicíssima diante das perturbações que se  anunciam. E no entanto, diante do olhar sem  expressão daquela menina, algo profundo nela, algo  recalcado há luas e luas, volta à flor de seus  lábios.

Ela abaixa os olhos, fecha-os um instante para  fugir da luz. Villa Oma se cala. Ele sabe que ela  está se submetendo. - Vamos - diz simplesmente.

Anamaya dá alguns passos em direção à menina.  Acaricia seus cabelos, lhe dá a mão.

- Venha - diz baixinho -, vou ficar com você.

- E enquanto avançam na trilha, ela sente a mão da  menina na sua, quente como um bichinho que se  entrega a ela.

 

                               Machu Picchu, janeiro de 1530.

O caminho é ladeado por uma barreira de -rochedos,  alta como uma muralha de fortaleza.

Anamaya caminha sem tremer para não assustar a  criança agarrada à sua mão.

Quando se abre uma falha no rochedo, ela não se  detém, esgueira-se pela brecha levando a menina no  colo. Ela só se vira depois de estar do outro lado,  na trilha estreita que agora só domina um abismo  imenso, assustador, no fundo do qual a cidade parece  minúscula.

Só há céu e, no meio do céu, um pássaro planando,  mancha negra no horizonte das nuvens e montanhas, um  raio no céu.

O próprio pico da montanha, bem acima de sua  cabeça, é uma pluma de pássaro perdida no céu, à  mercê dos ventos.

Vazio embaixo, vazio em cima - quase não há mais  terra, só há céu e ar, não há nada mais a segurá-la  no mundo senão esta mãozinha na sua.

Justo antes do cume, na estreita faixa de terra  que as separa do céu, há uma mesa de oferenda  escavada na huaca. Ao longe, para além das nuvens,  ergue-se o Salcantay em sua eternidade nevada. Um  manto de bruma faz-se e desfaz-se, como se tiras de  uma fina lã de vicunha flutuassem no céu ao sabor do  vento. Num piscar de olhos, clareia e depois  escurece.

Anamaya senta-se com a menina nos joelhos. Pega  suas mãos e entra com ela numa espécie de embalo, de  embriaguez. A criança também mascou coca, também  bebeu chicha e está indiferente à idéia de ser  sacrificada. Às vezes, Anamaya sente seus dedos  pegando a cabeça de uma das serpentes de seu  bracelete de ouro e enganchando-se aí.

Se se levantarem e derem alguns passos, elas  voarão sobre as asas do condor antes de mergulhar no  rio cujo ronco, lá no fundo do vale, não passa de um  vago rumor.

Diante da buaca, os criados preparam uma fogueira  para as primeiras oferendas: milho, quinoa, coca...

Depois virão os lhamas. Depois a menina. Anamaya não  tem mais medo. Não está mais revoltada.

Não foi a Villa Oma que se submeteu: foi ao  universo inteiro, às montanhas, às nuvens, ao sol e  à sombra.

Seu olhar paira em volta da paisagem, do pássaro  também, sobe com as nuvens que agitam o céu e desce  até as casas da cidade secreta que, daqui, parecem  seixos, grãos de areia. Ela murmura no ouvido da  menina uma espécie de cantiga, embala-a.

A bruma formou uma massa cada vez mais compacta  que desce no vale e aos poucos esconde a cidade. O  céu azul-pálido ficou quase branco. O pássaro se  afastou e só há os uivos do vento.

Ela vê o puma.

Sua sombra gigantesca invade o Huayna Picchu, a  montanha que domina a cidade e a protege com toda a  sua jovem força. Seus olhos são dois rochedos e sua  boca, a sombra de uma greta; suas orelhas estão em  pé como se ele fosse dar um bote, e suas patas  mergulham no oceano de bruma.

Anamaya sorri: o puma é seu amigo.

- Não tenha medo - murmura ela no vento para a  menina -, não tenha medo e olhe o puma...

O sangue dos lhamas foi recolhido nos vasos de  ouro. Os sacerdotes e o Sábio estão em frente a  elas.

Elas se levantam. Anamaya com as mãos pousadas nos  ombros da criança, cujo corpo agora faz parte do  seu.

- Agora - diz Villa Oma.

Na hora em que Anamaya abre os braços, ouve-se uma  trovoada roncar no horizonte e atravessar o céu.

O condor. O pássaro da força e da morte enche o  céu inteiro com seu estrondo e vem trazer sua sombra  bem em cima de suas cabeças.

O ar está negro.

O sacerdote suspende a mão onde brilha o tumi de  prata.

- Sou Huayna Capac - diz Anamaya com uma voz firme  que domina o vento e as primeiras gotas de chuva - ,sou o Inca cujo reino viu a força do Império das  Quatro Direções.

"Vejo tudo o que vocês vêem, mas vocês não me  vêem. Vejo o Sol se escondendo e a Lua se deitando,  vejo os turbilhões sacudindo a terra e o céu. "Vejo  o caos, vejo o sangue correndo em vão, vejo o  universo revirado, vejo exércitos rolando ao longo  das torrentes como pedras, vejo o irmão batendo no  irmão, o filho matando o filho, ouço o grito das  mulheres que são mortas e estupradas.

"Choro lágrimas de verdade.”

O peito de Anamaya sobe suavemente e sua  respiração está curta. Ela não ousa erguer os olhos  para o condor e uma bruma dança diante de seus olhos  escondendo o sacerdote, o Sábio, a própria menina,  que, para ela, não são mais que sombras. É ela quem  fala, mas não é ela quem fala.

- Vejo homens se dilacerarem por cupidez, vejo a  fome lhes devorar o ventre e o espírito, vejo secas  as fontes, e fechados os caminhos de luz e sombra  pelos quais conhecemos os universos.

"Vejo somente a dor descendo as escadas que vão ao  coração da terra. "E depois, vejo meu Irmão-Duplo,  meu irmão de Sol tendo de fugir, de se esconder na  sombra antes de ressurgirem plena luz, depois de  muitas luas, para anunciar o próximo pachacuti.”

Ela se cala.

Não vê a faca voltar à mão do sacerdote, não vê o  olhar negro de Villa Oma e o pânico dos servos.

Não ouve o condor se afastando.

Quando o sol que voltou bate em sua nuca, ela  sacode a cabeça, desperta do sonho.

- Menina Anamaya - diz o Sábio -, menina dos olhos  de lago, não sei o que nos anuncia, mas acredito em  você...

- Eu mesma não sei.

- Por isso acredito em você. Entendeu agora por  que a sua revolta era inútil?

Anamaya faz que sim com a cabeça, murmurar:

- Vocês não sacrificaram a criança...

- Não seja arrogante. Não ache que foi por sua  causa. Chegou o sinal...   - Isso eu sei, Villa Oma.

Os criados levaram às costas as carcaças ainda  quentes dos lhamas. A bruma dissipa-se lentamente e  pode-se ver a cidade brilhando no meio de seu estojo  de esmeralda.

Com passos lentos, ela desce pelo cume estreito, e  volta ao rochedo pelos degraus íngremes...

Esse tempo todo, ela vê a cidade cujos muros e  tetos de palha ficam mais nítidos a cada passo.

Esse tempo todo, ela pensa que o universo inteiro  será destruído pela guerra. As palavras de Villa Oma  e as de Huayna Capac, as visões e as vozes: tudo  fala de sangue, de morte, de destruição.

Esse tempo todo, ela se pergunta o que o puma,  diante dela, preso à montanha, queria lhe confiar.

E esse tempo todo, ela sente a mão da menina na  sua e uma felicidade silenciosa, impossível de  expressar ou compartilhar, bate em seu peito como um  segundo coração.

 

                                 Ilha de la Puna, março de 1532. 

- O senhor mandou me chamar?

Instintivamente, e apesar do barulho violento da  arrebentação, Gabriel fala baixo.

A noite está um breu absoluto. Um fino crescente  de lua aparece de vez em quando entre as nuvens. Seu  reflexo quebra sem brilho no mar bravio. As  lanternas do barco balançam e rangem como se um  diabo as agitasse por capricho. Toda a mastreação  range enquanto o vento assobia nas vergas com as  velas recolhidas e o navio força as âncoras cujas  correntes não param de tinir.

Embora ali ao lado, a ilha de la Puna não está  visível.

As mãos agarradas à curva de um turco de proa, as  pernas bem afastadas e a espada pendendo-lhe como  uma cauda, don Francisco Pizarro fita a noite à sua  frente. No escuro, sua barba encanecida parece  fosforescente como a espuma do mar revolto. Ele mal  vira os olhos para responder a Gabriel.

- Doze léguas! Doze léguas e três dias de mar, eis  o que nos separa do Peru, Gabriel! Tumbez está ali,  à nossa frente, a primeira cidade onde  desembarcamos, há cinco anos, o lugar onde foi  selada a promessa do Reino do Ouro...

Ele fica um instante calado, as pálpebras  franzidas, como se pudesse discernir os templos e o  brilho das riquezas.

- Tudo começa amanhã, meu rapaz! - murmura ele de  repente, tão baixo que Gabriel precisa quase  encostar nele para escutar. - Sejam quais forem os  obstáculos, a Santa Virgem sempre protege a nossa  conquista...

- Desde que saímos de Cádiz, senhor - replica  Gabriel no mesmo tom -, eu nunca duvidei. Embora os  meses tenham virado anos. Embora o caminho até aqui tenha sido muito difícil e fatal...  Embora tivéssemos de esperar uma eternidade no  Panamá, em meio a intrigas e incredulidade...   - Distribuí ali mais promessas do que ouro e  esmeraldas - diz Pizarro com uma ponta de ironia que  não lhe é habitual.

Don Francisco torna a apertar o boldrié com  aqueles dedos secos e deixa passar um longo silêncio  em que só se ouve o estrondo das ondas. De supetão,  pergunta:

- O que acha do capitão de Soto? Gabriel escolhe  as palavras:

- Bem, ele me parece um capitão muito valente,  corajoso e com muita experiência de guerra....

Pizarro agita a barba com um safanão nervoso e  resmunga:

- Ele é tudo isso que você diz, é verdade. Mas  infelizmente...

Pizarro se interrompe. Desequilibrado por uma onda  de refluxo, o navio balança. Gabriel escorrega na  ponte molhada e se agarra à liça para parar. Quando  se equilibra novamente, torna a interpelar Pizarro:

- Se eu puder me permitir lhe dizer a verdade,  Excelência, estou muito contente que ele tenha se  juntado a nós na Nicarágua! Veja só: dois barcos,  cem homens, vinte e cinco cavalos! Isso dobra a  força de nossa expedição!

- Benalcazar também juntou-se a nós... E dele, não  desconfio. - Mas Benalcazar só tem trinta homens.

Pizarro descarta o argumento com um gesto  irritado. - Não é com números que vamos vencer, meu  rapaz.

Por um instante, Gabriel pensa o quanto Pizarro  pode ser exasperante, com sua convicção de que a  proteção da Virgem lhes faz as vezes de certeza em  qualquer circunstância.

- Eu lhe disse - continua Gabriel com mais calma -  que quanto a mim, eu não desconfiei e continuo não  desconfiando. No entanto, já estou dois anos mais  velho desde que saímos da Espanha, e não fiz outra  coisa senão esperar e me meter em brigas de mau  humor e doenças!...

- E fez muito bem!

- Afinal, já podemos avistar a costa do seu Peru -  prossegue Gabriel sem se deixar interromper - e as  chuvas nos obrigam a ficar seis meses nessa ilha. E  os índios que nos festejaram quando chegamos, agora  não têm outra preocupação senão nos matar por  qualquer coisa. Ontem esses bugres que o senhor  tomou como soldados violavam as meninas índias como  se nada fosse. Hoje, só de ver a cara de um índio,  eles devem correr para pegar uma arma!...

Seu irmão Hernando, que não se comportou melhor que  um soldado alemão, diga-se de passagem, só poderá  montar a cavalo daqui a duas semanas por causa da  flecha que tem na coxa! E os seus irmãos mais moços,  Juan como Gonzalo, só pensam em se divertir e pilhar  antes de ter conquistado sequer uma cabana de  junco... Desculpe a franqueza, don Francisco, mas,  sem o capitão de Soto, o senhor nunca será  Governador do Peru!

Estranhamente, em vez de se perturbar com a  diatribe, Pizarro dá uma risada que parece uma  tosse.

- O que importa? Já sou Governador. A Virgem quer,  o Rei quer e eu quero! Mas Soto quer um território  para ele e tenho medo que ele nos abandone na  primeira oportunidade...

- Pode ser, don Francisco! - resmunga Gabriel. -  Pode ser! Mas por enquanto, o perigo está em outro  lugar. Os homens estão esgotados antes mesmo de ter  posto os pés na costa do País do Ouro. Não agüentam  mais estar tão perto. Estão doentes e famintos! Como  dizem que aquela doença horrível das verrugas, que  todos os dias mata violentamente, se pega dormindo,  eles não ousam mais pregar o olho. Outros contam que  a verruga vem do peixe ou dos siris! Então eles não  comem mais, tanto isso é verdade que não há mais  nada para se comer...

- A coisa é nova para você, meu rapaz! - diverte- se don Francisco. - É a sua primeira campanha e você  está aprendendo a canção. Para mim, ela já está  sendo cantada há quarenta anos!

Os olhos tão impassíveis quanto a barba, Pizarro  se cala um instante, todo empertigado apesar do  balanço. Depois, de repente, agarra o braço de  Gabriel, quase o quebrando de tanto apertar e,  novamente com uma cortesia muito cerimoniosa,  pergunta:

- Lembra-se, don Gabriel, do dia em que foi atrás  de mim no campo, em Toledo, me suplicar para  conquistar o Peru ao meu lado?

- Esta hora ficou gravada em minha memória para o  resto dos meus dias, senhor!

- E o que lhe respondi?

- O senhor exigiu de mim "uma abnegação absoluta  para que eu obedecesse ao senhor, exclusivamente ao  senhor, em qualquer circunstância! Isso devia ter um  custo para mim, e alto...”

- Bem, chegou a hora de cumprir uma parte da sua  promessa. Amanhã de madrugada nossos barcos partem  para a costa de Tumbez. Mas os porões não comportam  todos os homens e todos os cavalos. Tratei com o  chefe índio de Tumbez para que nos envie balsas  feitas à maneira deles...

- Vi as balsas há pouco - confirma Gabriel  entusiasmado. - Bem construídas. Maiores e mais  robustas do que se poderia esperar! Seus baús e os  do seu irmão Hernando já estão carregados numa  delas...

- A questão não é a solidez das balsas, mas a de  minha confiança em Soro - interrompe don Francisco  com humor. - Pretextando que essas balsas são mais  velozes que nossos navios, Soro propôs partir com os  índios para preparar o nosso desembarque...     Naturalmente, eu apreciaria ser bem recebido. Mas  não gostaria de perder de repente metade de meus  homens... De novo, uma onda mais forte que as outras  os separa um momento. Atrás, do lado invisível da  ilha, ouvem-se relinchos e gritos. Pizarro segura  Gabriel pelo cotovelo e o aperta tanto que o punho  de sua espada machuca as costelas do jovem andaluz:

- Vigie as futricas do capitão de Soto quando ele  estiver diante dos índios de Tumbez.

- Dizem que as balsas viram facilmente...

- Você sabe nadar, filho! - resmunga don Francisco  recuperando a familiaridade rude. - Que isso lhe  adiante. Mas sobretudo, use os seus olhos e o seu  cérebro. E, por uma vez, guardando a língua na boca.

- Preciso de um companheiro de confiança. Deixe  Sebastian vir comigo. - Se você confia num escravo  negro, bom proveito...

Sólidas, as balsas são.

Projetadas na forma de uma enorme mão, com uma  estaca servindo de mastro e uma vela que lembra a  dos faluchos do Mediterrâneo, elas deslizam rente à  água. Tanto que a cada onda mais violenta são  varridas pela água. As toras, da grossura de uma  coxa de boi, correm na amarração de fibra de agave.   Poucos centímetros acima do piso, os baús de don  Hernando Pizarro já estão pretos de mofo uma hora  após a saída da ilha de Ia Puna.

- Por todos os santos - geme Bocanegra -, nesse  ritmo, os gibões de don Hernando vão apodrecer. E  aquelas camisas lindas de linho! E as botas de  reserva!... Mais um dia assim e vão ficar todas  moles feito lenha. Ele vai pegar uma doença!

- Se eu fosse você, não me preocuparia tanto com  as doenças que Sua Excelência o Irmão pode pegar -  brinca Sebastian. - Parece que você já tem bastante  com que se preocupar...

Com um ríctus de dor, Ándrès de Bocanegra vira a  cara disforme e se encolhe. O pobre homem é um dos  que a verruga transformou em monstro. Em sua face  direita, há um apêndice horrível do tamanho de um  figo. Há outro, só um pouco menor e de um púrpura  sinistro, pendurado na ponta de seu nariz e mais dez  verrugas do tamanho de um grão-de-bico cobrindo-lhe  o pescoço e os ombros qual um enxame de filhotes  atrás de uma mãe gorda.

Naquela manhã mesmo, uma hora antes de partirem da  ilha, a dor era tanta que Bocanegra cortou com seu  próprio estilete a que tinha no queixo. Sangrando  muito, envolveu o rosto com um pano. Mas desde o  meio-dia, apareceram outros tumores atrozes em sua  têmpora direita, dilatando-lhe o olhar e  transformando-o definitivamente numa daquelas  gárgulas de pedra que adornam as catedrais da  cristandade!

O efeito é tão repulsivo que Gabriel mal consegue  olhar para ele. Mas por ora, sua aflição vem de  outra coisa.

Em pé em cima dos baús, agarrado ao mastro da  balsa, há um bom tempo ele está observando as vagas.

- Nada - grita ele para Sebastian. - Absolutamente  nada. Descendo de seu poleiro, ele vem se agachar  com cuidado na popa da balsa.

- Só uma vela - prossegue franzindo o cenho. -  Éramos oito balsas hoje de manhã...

- São as correntes - resmunga Bocanegra sem se  virar. - já vi isso. Esses engenhos não têm quilha,  não obedecem bem.

- As correntes ou a vontade do capitão Soro! -  retruca Gabriel.   - O intérprete Martinillo está com ele. Ele pode  ter dado ordens para que fizessem com que nos  perdêssemos! Don Francisco teve razão de  desconfiar...

- Receio que não seja uma coisa nem outra - diz  Sebastian baixinho. Apontando com o queixo, ele  mostra os quatro índios que estão manobrando com  facilidade os grandes remos do leme.

- Eles não me agradam. Riem toda vez que se olha  para eles.   - E daí?

- Essa é uma coisa que vocês precisarão aprender,  don Gabriel. Quando um índio sorri para nós, é que  está pensando no golpe que vai nos aplicar. Gabriel  está prestes a replicar quando justamente um dos  índios grita palavras incompreensíveis e mostra algo  à frente.

Bem próximo, como que boiando no oceano, surge na  crista das ondas uma faixa de terra coberta por uma  mata de um verde quase preto.

- É a ilhota - exclama Sebastian já de pé.

- Bem - diz Gabriel com um sorriso. - Nossos  companheiros tão têm intenções tão más assim. Sabem  aonde vão e pelo menos poderemos passar a noite em  terra. E amanhã à tardinha, como previsto,  chegaremos a Tumbez.

- Eu não saio da balsa! - diz Bocanegra em tom de  lamúria. - Prometi a mim mesmo que nunca mais na  vida dormiria debaixo de uma árvore nem na areia.

No banco de areia, ao cair da tarde, os olhos  perdidos nas cristas alaranjadas das montanhas ao  longe, Sebastian e Gabriel ficam em silêncio. A  tagarelice dos índios é como um murmúrio misturando- se ao som da arrebentação.

Gabriel tirou a camisa e examina a pele ressecada  de seu torso e de seus braços, sulcada pelas  carências e as privações.

Sebastian faz desenhos na areia. O que é?

- Olhe bem... Foi lá, na praia de Tumbez, que o  Grego e eu o vimos pela primeira vez...

Gabriel começa a rir.

- O gato grande! Aquele que eu tenho no ombro, não  é?   - Não acha que já era hora de você encontrá-lo?

Com um simples risco, Sebastian deu vida à força e  à selvageria do animal. O olhar de Gabriel desliza  sobre o felino, atravessa o oceano, a praia  invisível ao longe, a floresta e as montanhas; a  certeza de sua promessa o embriaga.

Foi talvez à meia-noite que ele escutou o primeiro  uivo.

No segundo, definitivamente desperto, Gabriel  desvencilha-se das cobertas e se levanta,  adivinhando Sebastian já de pé a seu lado.

- Bocanegra! - exclama Gabriel. - O coitado está  padecendo um martírio! Talvez esteja arrancando  outra verruga...

Outro grito, mais violento, rasga a noite e vibra,  sobrepondo-se ao estrondo contínuo da arrebentação.

- Não! - diz Sebastian. - Bocanegra não põe a boca  no mundo por causa de uma verruga. Mas por trinta  dessas porcarias! É outra coisa.

Ambos pensam a mesma coisa.

Na mesma hora, levantam-se de um pulo e saem de  debaixo das árvores retorcidas onde encontraram  refúgio e correm pela duna de areia.

Está mais escuro do que dentro de um forno, mas os  uivos repetidos de Bocanegra os guiam tão bem como  um farol. Quando a proximidade da água torna a areia  dura, Gabriel desembainha a espada com tanta  violência que a lâmina assobia no ar.

Os gritos de Bocanegra se transformam, viram  chamados bem claros: - Socorro, companheiros! Eles  estão nos roubando. E estão me matando!... No  escuro, Gabriel adivinha a vela da balsa retesada  pela brisa. A embarcação, já afastada da praia,  empina de través ao passar uma onda, enquanto os  gritos redobram.

- Índios traidores desgraçados! - berra Sebastian.  - Estão nos abandonando...

Dominado pela raiva, Gabriel corre ao encontro das  vagas cuja espuma risca a escuridão. Empunhando a  espada acima da cabeça, por um instante, parece-lhe  que pode chegar até a popa da balsa se continuar  correndo. Ele vê distintamente Bocanegra,  imobilizado contra as toras por dois índios, levar  uma cacetada de um terceiro. Os gritos cessam. Só se  ouve o movimento lancinante do oceano. Depois a voz  de Sebastian:

- Don Gabriel, nada de loucura! Volte, volte. Vai  se afogar...

Mas a fúria é forte demais. Ela o impele tanto  quanto a correnteza. Ele corta uma primeira onda,  quebrando com o punho a parede d'água. A popa da  balsa está apenas uma espada à frente, e o brilho  dos olhos do índio que segura o leme é aflitíssimo!

Depois, de repente, quando a água se ergue como  uma fera rugindo, Gabriel sente-se pesado como  chumbo. Suas botas, seus calções, até as mangas de  sua camisa estão encharcados.

A onda quebra em cima dele, enrola-o, amassa-o  como uma bolacha de barro.

A lâmina de sua espada bate em seu rosto, ele está  de pernas para o ar, só há água por todo lado, e um  rugido que anuncia a morte o ensurdece enquanto seus  membros parecem querer se separar dele.

Ao bater com a cabeça na areia do fundo do mar e  engolir água salgada, ele sente o fogo da asfixia  explodir em seu peito. Por uma fração de segundo,  tem lucidez suficiente para ter consciência da  ironia de morrer afogado às portas de um mundo novo.

Depois, seu pé encontra a firmeza do fundo e, num  esforço desesperado, impele-o para a superfície.  Engasgado com a água que bebeu, ele dá braçadas  furiosas e alcança a balsa. Com um pontapé, os  índios poderiam empurrá-lo para a água; com uma  cacetada, poderiam abatê-lo como fizeram com  Bocanegra. Mas parecem pasmos de vê-lo surgir, como  um fantasma, do fundo das águas.

- Agüente, don Gabriel - grita a voz de Sebastian  bem perto dali.

O Negro alcançou-o e isso é demais para os três  índios que pulam n'água e tentam fugir a nado.     Gabriel, exaurido, só tem força para subir na  balsa. Mas Sebastian mergulha para pegar o índio  menos rápido; joga-o na balsa como se ele fosse um  embrulho e sobe também, bufando e cuspindo.

- Se tentar fugir - diz Sebastian pegando o índio  pelo pescoço -, eu como você.

O rapaz, ainda adolescente, treme de medo.  Sebastian e Gabriel recobram o fôlego.

- O que fazemos com ele, don Gabriel? - Se quiser  comê-lo, por mim, pode.

Para ser sincero, minha cabeça confusa antes  concebeu o plano de incitá-lo a nos guiar até  Tumbez. Se o senhor não vir nenhum inconveniente  nisso, naturalmente.

- Sebastian? - Don Gabriel? - Pensei que você não  soubesse nadar.

- Infelizmente tenho que confirmar isso; a não ser  que chame de nadar os movimentos desordenados que  meus membros fazem para sobreviver a esse horror -  diz ele apontando para a massa escura do oceano.

O mar acalma um pouco. Sebastian mostra o remo de  leme ao rapaz índio que o pega, após uma breve  hesitação. Gabriel deixa a felicidade de estar vivo  e a chuva de estrelas que ilumina o céu encherem seu  coração.   - Sebastian?

- Don Gabriel?

- Eu lhe devo a vida. E para dizer tudo, ainda por  cima, vou lhe pedir um favor... Você teria a bondade  de me chamar só de Gabriel?

Sebastian não responde. Parece mergulhado na  contemplação do mar. Depois, vira-se para Gabriel e  lhe dá a mão. Gabriel o puxa para si e os dois se  abraçam, como irmãos.

 

                                       Huamachuco, março de 1532.

Uma chuva fina e constante cai na planície de  Huamachuco. Bancos de bruma se rasgam nas encostas  circundantes e encobrem o pico das montanhas. A  fumaça que sai dos tetos não sobe e espalha pelo ar  o cheiro picante da alfarrobeira.

O cortejo do Inca Atahualpa chegou na véspera,  enchendo de repente o tambo, trazendo gritos,  risadas, música de flauta e danças para a paz e a  rotina do campo.

- Gosto desta planície - diz Anamaya num tom  sonhador. - Se pudéssemos nos instalar numa aldeia  como esta para passar a estação seca, seria  maravilhoso. Parar finalmente de correr as estradas,  de atravessar pontes e montanhas! Começo a detestar  liteiras...

Atrás dela, entregue como ela às mãos ágeis das  criadas que lhes lavam os cabelos com uma lama fina  e cinzenta, Inti Palla emite um grunhido de  reprovação:

- É melhor ninguém ouvi-la dizer esse tipo de  coisa! Você que adivinha as coisas antes, não sente  que Huascar está perdendo a guerra?

- Você sabe que não vejo nem ouço nada há meses -  suspira Anamaya fechando os olhos para melhor se  entregar à carícia da criada.

- Ah, isso, eu sei! - exclama Inti Palla. Meu  Quase Esposo já está ficando com raiva do seu  silêncio... Nunca vi Atahualpa tão aflito e  atormentado. Quando está pertinho da vitória, depois  de tantas batalhas! É incompreensível...

- O que posso fazer se não sou mais a que vê? -  murmura Anamaya com uma voz quase inaudível.

Elas se calam um instante enquanto as criadas  banham seus cabelos com uma água fresca e  transparente. Na esquina da cancha, sem parar de  fiar a lã de alpaca de um enorme fardo colocado à frente  delas, garotas as observam com uma expressão  maravilhada.

Do outro lado da praça, quinze moças tecem embaixo  de um toldo. Estão agachadas, cercadas de dezenas de  novelos de cores vivas qual flores opulentas.     Debruçadas em cima de seus teares cuja base é  presa a suas cinturas por uma espécie de cinto, seus  gestos são de uma regularidade perfeita. A parte de  cima do tear é presa a uma coluna enquanto entre  suas mãos, com uma destreza inaudita, os fios  coloridos se unem, se separam, brincam e serpeiam no  ritmo sereno das lançadeiras. Certos tecidos estão  quase prontos. Anamaya conhece seu esplendor e sua  delicadeza: serão daqueles que só o único Senhor  tocará.

Enquanto as criadas lhe secam o cabelo com um  ungüento misturado com lantejoulas de ouro, Anamaya  não pode se impedir de se emocionar com essas  "virgens da tecelagem" que mostram tanta serenidade  no que fazem. Nunca será uma delas. Nunca conhecerá  a paz, a calma delas...

Tantas coisas aconteceram desde sua curta estada  na Cidade-cujo-nome-não-se-diz!

Hoje, ela está o mais próximo possível do único  Senhor Atahualpa, não sendo sua esposa nem sua  concubina. Está cercada de criadas e de respeito.  Seus caprichos, se os tivesse, seriam satisfeitos  imediatamente. Mesmo os velhos generais  desconfiados que, antes, só se dignariam a olhar  para ela para condená-la à fogueira, respeitam o que  ela diz! A própria Inti Palla, que finalmente  conquistou o título de Primeira Concubina, tornou-se  sua amiga e confidente mais íntima...

E no entanto, essa vida de corte é pesada,  terrivelmente cheia de obrigações! É verdade que  você mudou muito, nessas últimas luas - continua de  repente Inti Palla como se tivesse acompanhado seus  pensamentos. Com um gesto imperioso, a princesa  repele as criadas debruçadas em cima de sua  maravilhosa cabeleira e se aproxima de Anamaya.

- Só os seus olhos não mudaram - diz ainda.

- Você acha? - diverte-se Anamaya. - Meu rosto  está mais cheio e estou séria como uma velha, é o  que você quer dizer!

Inti Palla ri e senta-se perto dela pegando-lhe as  mãos com ternura.

- Sim, e as suas nádegas, sobretudo, estão mais  cheias! zomba ela. E eles também...

Através do fino tecido do anato, Inti Palla toca  no busto de Anamaya, que repele suas mãos num  reflexo de pudor.

- Quase seios de verdade! - continua Inti Palla  apertando-lhe as coxas. - Quando a conheci, você era  só uma criança esquisita e orgulhosa! Não me  agradava nada.

- Você estava louca de ciúmes, sobretudo...

- É verdade. Mas entendi quem você era. Como os  outros. E agora é que eu deveria ter ciúmes mesmo.  Você agora é realmente uma mulher! Digamos, quase  tão bonita quanto eu...

- Só quase? - ri Anamaya.

- Só. Mais não - garante seriamente Inti Palla. -  Ainda lhe falta alguma coisa...

- Ah é?

- Inti Palla recua com uma expressão provocadora,  empina o traseiro e puxa o tocapu que lhe aperta a  cintura para deixar seus seios mais protuberantes  debaixo dos panos. Em volta delas, as criadas riem,  tapando a boca com as mãos. - Os meus são mais  bonitos, não?

- Talvez! - admite Anamaya, as faces  repentinamente rubras. - Talvez, não. Com certeza. E  sabe por quê?

- Porque Mama Quilla decidiu lhe dar mais seios  que idéias - zomba Anamaya.

Um ataque de riso sacode as criadas mas, com um  olhar hostil, Inti Palla as reduz ao silêncio.

- Mama Quilla me deu uma coisa bem diferente:  nosso único Senhor no meio das minhas coxas! Eis o  que dá a verdadeira beleza às mulheres...   - Idiota!

Mas Anamaya não diz mais nada e assume novamente  sua atitude séria. Um vulto apareceu do outro lado  do pátio, escoltado por quatro soldados. Inti Palla  acompanha seu olhar e solta uma exclamação gulosa:

- Ah! Não é o lindo capitão Guaypar? - suspira  ela.   O herói da batalha de Angoyacu em pessoa! Bem,  aí está um que gostaria muito de iniciar você nas  brincadeiras de cama, Esposa do Irmão-Duplo!...

Guaypar havia falado com um dos eunucos de guarda  que imediatamente se dirige a elas com um passo  apressado pela chuva. Embaixo do toldo e na esquina  da cancha, ao ouvir o barulho das lanças, as tecelãs  e as fiandeiras ficaram paralisadas, cheias de  curiosidade.

- Chame-o! diz ela com um sorriso nos lábios.

Mal elas acabaram de se enrolar numa manta e  cobrir os cabelos ainda molhados, Guaymar já se  apresenta à entrada do aposento. O guerreiro abre as mãos espalmadas para o céu, numa saudação cheia  de deferência. Mas seu olhar evita Anamaya:

- Princesas!

- Que Inti o proteja, capitão Guaypar - responde  Inti Palla com uma voz doce. - Estou feliz de vê-lo  andando. Isso quer dizer que seu ferimento ficou  bom. Franzindo as pálpebras de orgulho, Guaypar  comprime o ombro esquerdo com as pontas dos dedos.

- Sim. Eu poderei lutar de novo quando o nosso  único Senhor decidir a próxima batalha...

- Estou impressionada com a sua coragem - diverte- se ainda Inti Palla. Mas o jovem capitão  aparentemente não ouve. Seu olhar agora procura o de  Anamaya.

- Esposa do Irmão-Duplo, o Inca a quer ao lado  dele.   - Agora?

Ele a espera e estou aqui para levá-la a ele.

Mal essas palavras acabam de ser pronunciadas,  Inti Palla está em pé, reunindo novamente as criadas  para prepararem Anamaya.

Cercada por Guaypar e sua escolta, protegida da  chuva por uma barraca levada pelas criadas, Anamaya  atrai todos os olhares quando vai da cancha das  Esposas ao palácio do curaca onde reside Atahualpa.

No entanto, uma vez transposto o muro que cerca o  palácio, quando a escolta se dispersa no primeiro  pátio e as criadas voltam para onde vieram, Guaypar  esboça um gesto para segurá-la. Recusando o contato  por reflexo, Anamaya se afasta bruscamente, fazendo  tilintar as tirinhas de ouro e prata entrelaçadas em  sua touca.

- Me dê um instante! - exclama Guaypar, a voz  alterada. - Anamaya, não tenha medo de mim!

Anamaya está prestes a replicar energicamente  quando vê no olhar de Guaypar tanto confusão quanto  medo.

- O que quer de mim?   - Que você me perdoe!   - Guaypar, eu...

- Não, deixe-me falar! As palavras vêm inchando na  minha garganta há anos e hoje estão me sufocando!  Anamaya, eu era só um garoto louco, cheio de  vaidade!...

- Já esqueci, e o único Senhor...

- Anamaya, me ouça! Sei que você se lembra daquela  noite em Tumebamba, a noite do huarachicu. Eu estava  humilhado pela minha derrota, embriagado de chicha,  estava tomado pelas sombras ruins. Os demônios  bebiam meu sangue, mas... mas isso foi há muito  tempo, muito mesmo. Há quatro solstícios de inverno!  Quatro vezes o ciclo das estações se passaram desde  então! Eu era uma criança e você também. Hoje sou um  soldado, e o nosso único Senhor me nomeou capitão  depois da batalha da ponte de Angoyacu...

- Sim, eu sei que você foi muito corajoso. Dizem  que você capturou dois generais de Huascar - aprova  Anamaya com doçura.

- Sim - exclama Guaypar levando a mão ao  ferimento, os olhos brilhando de orgulho. Sim! Não  sou mais aquele fraco vaidoso que Manco, o falso  irmão do nosso Inca, humilhou na sua frente!

Anamaya deixa passar essa lufada de orgulho.  Guaypar prossegue, num tom mais baixo, mas com o  mesmo ardor.

- Você também mudou. É... É a mulher mais bonita  do Império das Quatro Direções! Nenhuma outra tem a  metade da sua beleza. Nenhuma tem o poder do seu  olhar, nenhuma tem a força e a doçura da sua boca...     - Por favor, Guaypar...

- Anamaya, me ouça! Desde aquela maldita noite,  não se passou uma lua sem que eu pense em você. Até  durante a batalha de Àngoyacu, você estava na minha  cabeça! Fui o primeiro a ver a sua beleza, Anamaya!  O primeiro... E durante esse tempo todo, fiquei  calado. Evitei-a. Agora, estou junto do nosso único  Senhor e me preparei para...

- O que espera de mim, capitão Guaypar? - Que seja  minha esposa!

- Está louco! Sabe que pertenço ao Irmão-Duplo!

- Ah! - protesta Guaypar com um gesto de cólera. -  Isso é só um título que Atahualpa lhe deu quando nem  sequer era o Inca! Hoje ele é, e em grande parte  graças a você. Ele pode anular o que fez...

Sufocada, Anamaya procura as palavras que poderiam  fazer Guaypar ouvir a voz da razão. Mas vê no olhar  do jovem capitão uma imensa e sincera angústia que a  perturba. É certo que ele não é mais aquele  adolescente embriagado de chicha de Tumebamba. No  entanto, a embriaguez que o domina hoje não é menos  violenta. E a causa é ela própria.

- Minha alma daqui só respira por você, Anamaya! -  geme Guaypar. - Seu Esposo o Irmão-Duplo é feito de  ouro e não sabe o que é o sofrimento do amor. Ao passo que eu estou sangrando e ardendo.  Minhas entranhas queimam só de pensarem você. Eu lhe  digo: as torturas que o pérfido Huascar inventa não  são nada em comparação...

O tremor de seus lábios, o estremecimento que  percorre todo o seu corpo apagando a sua voz só  comprovam a veracidade de suas palavras. Com a  garganta apertada pela emoção, Anamaya recua.

Jamais alguém te fez uma declaração semelhante.  Ela sente a dor do rapaz como se seus dedos tocassem  uma chaga aberta. No entanto, no entanto tudo nela  sabe que deve se fechar a essa súplica.

Com a maior doçura possível, diz:

- Não me lembro de nada daquela noite de  Tumebamba, capitão Guaypar. E vou esquecer esse  instante também. Pois não posso nem quero ouvir as  suas palavras. Mas agradeço a sua coragem. E espero  que Inti o torne o maior e o mais feliz dos generais  de nosso Senhor Atahualpa. E agora, você deve me  levar a ele antes que ele fique muito impaciente.

Um esgar de dor e de raiva impotente desfigura  Guaypar, quando Anamaya vira as costas e vai indo  para o pátio.

Mas ela não vê.

Há algum tempo, cada vez que encontra o Único  Senhor, Anamaya fica impressionada com sua mudança  física.

Atahualpa não é mais o homem esbelto e vivo que a  encorajava, protegia e impressionava com um único  olhar.

Ele não perdeu nada de sua força, ao contrário.  Desde que, em Quito, durante uma imensa cerimônia,  colocou a borla real na cabeça, desde que é o Inca,  tudo nele só exprime poder e dominação. Mas de tanto  beber jarros de chicha durante cerimônias  intermináveis, de tanto mergulhar desesperadamente  na embriaguez sagrada para procurar ouvir os  ancestrais, seu corpo ficou mais pesado. Hoje, ele  tem o rosto inchado e o queixo pesado. Também  engordou na cintura. E depois, o branco de seus  olhos está mais vermelho de sangue do que nunca,  como se seu coração extraísse daí um excesso de  energia. Isso lhe dá um olhar estranho, negro e  púrpura, em que é difícil adivinhar os pensamentos e  que sempre parece portador de tempestades assim como  de uma insaciável tristeza.

Quando Anamaya se prosterna diante dele, joelhos e  mãos no chão, a cabeça inclinada, sua pergunta é  mais direta que impaciente:

- Meu pai Huayna Capac não lhe falou mais? - Não,  meu Único Senhor.

- Ah!... E por quê?

- Porque ele não tem nenhum motivo para fazer  isso...   - Nenhum motivo? Está maluca?

Anamaya percebe toda a amargura e a fúria que  fazem vibrar a voz de Atahualpa. Sempre prosternada,  pergunta:

- Posso lhe falar com toda a sinceridade, meu  único Senhor?   - Você sempre falou, não vejo por que se calaria  hoje!

- Bem-amado Senhor, não entendo o seu receio nem a  sua impaciência. Você travou nove batalhas contra o  seu irmão louco de Cuzco. Huascar só ganhou duas.  Você foi a Quito e, conforme a vontade de Inti, os  Poderosos do Norte, os Sábios e os Ancestrais  colocaram em sua cabeça a mascapaicha e a pluma do  curiguingue. Você é nosso Inca, o único Senhor do  Império das Quatro Direções. Amanhã, você vai travar  uma última batalha contra os soldados de Huascar.  Vai entrar como vencedor na cidade sagrada de Cuzco.  Então poderá fazer reinar uma era de paz depois de  uma era de guerra. E não haverá mais ninguém no  Império que não lhe deverá a vida, a comida e a  bebida...

Anamaya se cala. Mas como Atahualpa nada diz, ela  prossegue num tom mais insistente:

- Meu único Senhor, você não tem nenhum motivo  para desconfiar ou ter medo. É verdade que seu pai  Huayna Capac já não me fala há muito tempo. Mas isso  é porque agora você é forte e poderoso. Inti e Mama  Quilla estão a seu lado. Você combate com a  violência do puma e anda à sombra do condor... Isso  basta.

Com um tom surdo, Atahualpa ordena:

- Levante-se, Coya Camaquen, e olhe para mim...

Anamaya vê quase um sorriso nos lábios de  Atahualpa. Há muito tempo não via isso.

- Sei que acha que estou mudado       diz ele. - Mas  você ficou séria como um sacerdote! Sim, Villa Oma  formou-a bem: você está na idade em que as outras  mulheres procuram um esposo, mas você é severa e  gosta de discutir, como as mães delas!

- Só com você, meu único Senhor. Pois lhe devo a  vida.

- Não sei quem deve mais ao outro, menina dos  olhos azuis! Depois de passar pela Cidade-cujo-nome-não-se-diz, você veio a mim. Eu estava envergonhado  por ter perdido uma batalha. Estava preso num buraco  na terra e foi você quem adivinhou como me tirar  dali. Fazendo de conta que eu tinha virado uma  serpente!

Ao se lembrar disso, Atahualpa não pode evitar um  sorrisinho.

- Às vezes, penso nisso, e vejo-a colocando a pele  da serpente na mureta de tijolos enquanto os  soldados roncavam! Foi um dos momentos mais  divertidos da minha vida!

Mas logo o semblante de Atahualpa recupera toda a  ansiedade. Ele deixa o trono bruscamente, aproxima- se tanto de Anamaya que ela sente sua respiração:

- Sim, você me garantiu que eu podia ir a Quito e  vencer os generais de Huascar. Mas meu pai tinha  vindo vê-Ia. Como quando você viu a bola de fogo, ou  na Cidade-cujo-nome-não-se-diz e como em Tumebamba,  quando o corpo dele desapareceu. Sempre que foi  preciso, meu pai Huayna Capac lhe mostrou o caminho!  Sempre o Outro Mundo se abriu para você. E agora há  silêncio! Por quê?

- Quem sabe isso não muda quando eu chegar à  cidade sagrada e encontrar o meu esposo o Irmão- Duplo?

- Ainda falta entrar ali!

- Você vencerá Huascar, meu único Senhor! Eu  sei...

- Não! - explode Atahualpa, o olhar vermelho de  sangue de repente a soltar chispas. - Não é de  Huascar nem dos soldados dele que tenho medo. Eles  estão nas últimas. É de Cuzco! Os clãs de Cuzco é  que parecem um poço negro na minha frente! Eles  nunca me aceitaram, como se eu fosse somente o filho  de uma mulher do Norte. Mas nas veias da minha mãe  corria o sangue do pai do meu pai. Pouco se lhes dá  que eu seja também o filho do Inca deles! Somos  tantos filhos! Eles dizem que sou impuro. Para eles,  eu não passo de um bastardo! Anamaya! Só há uma  pessoa, uma só, que poderia aplacar meu sofrimento,  é meu pai. Se ele finalmente viesse a você... Se me  dissesse por sua boca que está comigo contra os  homens de Cuzco. Mas ele está calado... Ou se ao  menos você se lembrasse do que ele lhe disse na  noite da passagem. Se ao menos isso lhe voltasse.

Anamaya se prosterna, sacudindo a cabeça com  desolação e compreendendo afinal a dor que corrói o  Inca há tantos dias:

- Não, meu único Senhor. Isso nunca me voltou.

Atahualpa olha para ela um instante. Faz menção de  tocá-la e acaba se aproximando da entrada do  aposento. Do lado de fora, os guardas logo se  curvam. Ele espera um pouco, depois acrescenta,  mostrando a névoa que envolve os picos em volta de  Huamachuco:

- Lá em cima há um oráculo poderoso. Catequil sabe  ler o tempo que vem. Amanhã vamos vê-lo.

 

                                                    Tumbez, março de 1532.

- A esquerda, por todos os Santos! À esquerda,  Grego, senão vamos afogar os cavalos.

Os gritos de don Francisco se sobrepõem ao  estrondo da arrebentação. A balsa, embora carregada  com alguns cavalos desnorteados e meia dúzia de  homens, empina na onda. A vela está arriada e as  rédeas dos cavalos, amarradas ao mastro. Da praia de  Tumbez onde desembarcaram como foi possível, Gabriel  reconhece atrás a silhueta alta e o gorro vermelho  de algodão de Pedro o Grego.

O Grego põe todo o peso no pesado remo do leme.  Infelizmente, seja qual for a direção que procurem  imprimir, a balsa sobe a onda de través. É arrastada  para a direita onde a arrebentação é mais forte,  empurrada por uma força invisível.

Por um instante, corre tanto que até parece estar  fora d'água, como se, apesar do tamanho e do peso,  não passasse de uma tasquinha na mão do diabo.

Aí é que a parede de água começa a rugir embaixo  das toras. Os homens percebem isso praticamente  todos ao mesmo tempo e se põem a gritar. Seu medo  passa para os cavalos, que, olhos arregalados,  retesam as rédeas, batem com as patas dianteiras e  arregaçam os beiços como dragões a relinchar.

Tudo acontece tão rápido que o próprio tempo  parece parar. Invadido pela aflição, Gabriel ouve a  exclamação de pasmo de Sebastian ao seu lado. A  balsa, no turbilhão de água levantada, gira. Os  cavalos, num único movimento de pânico, se amontoam  na abertura da borda enquanto os homens escorregam  na madeira lambida de espuma. Embaixo deles, o túnel  da onda infla e sobe num repuxo gigantesco antes de  quebrar com um estrondo inaudito. Tendo conseguido chegar à crista desse  orbe furioso, a balsa por um instante recupera um  equilíbrio inesperado...

Depois a cabeça da onda, com aquela fúria branca  de espuma, precipita-se nas toras, aprisionando os  homens até a cintura. O mastro da balsa se inclina,  a traseira se levanta com a facilidade de uma folha  virada pela brisa. Então, don Francisco ergue a  espada. De um só golpe, corta as rédeas dos cavalos  exatamente no instante em que a mandíbula do mar se  fecha sobre ele, estourando a amarração de agave,  espalhando negligentemente as toras como se fossem  gravetos!

- Eles morreram! - grita Gabriel a contragosto.  

- Ainda não! - berra Sebastian.

E ele é quem tem razão.

Enquanto a vaga acaba de quebrar, e a espuma se  dispersa na ondulação verde e lenta da praia, um a  um, os cavalos vão emergindo. Depois, naquele  incessante fervilhar de espuma, surgem cabelos e  barbas, bocas abertas e olhares apavorados...

- Lá! Pedro! - berra Sebastian apontando para uma  cabeça que nem sequer perdeu o gorro vermelho.

Perto do Grego, aparece a cabeleira branca de don  Francisco já exortando todo mundo a nadar até a  praia.

Arrastando o pé, Gabriel tenta acompanhar  Sebastian que se precipita ao encontro deles, com  água pela cintura. Mas quando uma primeira onda  quebra em suas coxas, ele recua.

- Em todo caso - murmura ele -, por hoje, essa é a  última viagem: o mar está ficando muito forte.

A lembrança de seu quase afogamento da véspera  está muito próxima e sua garganta ainda arde muito  da água do mar que ele vomitou nos braços de  Sebastian!

Além do mais, ninguém está precisando muito dele.  Todos conseguem se agarrar aos cavalos que correm  para encontrar de novo aquela areia sob os cascos.

Don Francisco faz questão de surgir das águas  empertigado em sua sela, as rédeas na mão, todo  encharcado, qual Netuno criando os continentes sob  os passos fortes!

- Eu sabia que não se podia contar com ele!

Recostado num monte de areia, Hernando Pizarro  espuma de raiva tanto quanto as ondas e aponta um  dedo ameaçador para Gabriel.

Entre a praia e os navios que finalmente ancoraram  no início da tarde ao largo da costa, o desembarque  foi interrompido por ser demasiado perigoso. Só  aquele punhado de homens e cavalos conseguiu chegar  em terra firme e agora está isolado dos barcos e das  balsas.

Apesar da aflição, don Francisco não deixou a sela  desde aquela chegada heróica. Seu olhar corre sem  cessar para além da imensa praia, procurando uma  passagem no verde cerrado do manguezal, como se já  pudesse ver Tumbez no meio.

- São apenas objetos de uso pessoal, meu irmão -  diz ele.   - Mandaremos vir outros...

- Doze camisas de linho, um par de botas e três  gibões que valem o preço de um cavalo, uma cota de  malhas sobressalente... É isso que você varre com um  gesto bem displicente, meu irmão!

- Eles quase morreram por isso, meu irmão. E eu  preciso de cada um desses homens.

- Desses! - murmura Hernando enojado.

Don Francisco contrai os lábios de irritação e,  ainda todo molhado, dá um toque com o calcanhar no  cavalo para afastá-lo do mau humor do irmão. É o  momento que Sebastian escolhe para subir a praia com  presteza, mostrando um ponto na entrada do rio que  corta em dois o mangue e desemboca, amarelo de lama,  no mar do Sul.

- Outras balsas! Cinco ou seis... Estão vindo para  cá... - Índios? - pergunta don Francisco.

- Estão muito longe para que eu possa ver.

Mas a dúvida dura pouco, pois o Grego, que já fora  fazer o reconhecimento na foz do rio, volta  correndo, levantando uma esteira de areia escura e  espantando nuvens de caranguejinhos vermelhos que  infestam a praia.

- Soro, Governador! É Soro que finalmente está de  volta! - grita ele quando chega perto.

- Ele nos ouviu! Ele entendeu. Com essas outras  balsas vamos poder desembarcar mais rápido amanhã! -  exclama Gabriel.

- E o que Soro entendeu? - reclama Hernando  massageando a coxa dolorida. - Ter um ferro na perna  não me tampa as orelhas, que eu saiba! Eu também  gostaria de entender...

Gabriel procura o olhar de don Francisco. O  Governador balança a cabeça sinalizando uma  aprovação severa antes de impelir o cavalo para um  grupo de fidalgos que tenta se secar.

- Conseguimos avisar o capitão Soto da traição dos  índios antes que ele pisasse em terra - diz apenas  Gabriel apontando para Sebastian. Hernando faz uma  expressão de quem não entendeu nada, esperando a  seqüência que não vem. Após um silêncio  desagradável, emite um "Ah" cheio de azedume.

A camisa e os calções colados no corpo, o Grego  apeia do cavalo, afaga-o com ternura antes de dar uma  olhadela diplomática para Gabriel:

- Conte-nos a sua noite! Parece que ela foi cheia  de prazeres, e eu também não entendi direito em que  zona nós nos embrenhamos...

Em algumas frases, sem floreios inúteis, Gabriel  conta o triste fim de Bocanegra, raptado e  massacrado no meio da noite pelos índios.

- Quanto a mim     conclui ele apontando para o mar -,  sem o Sebastian aqui presente, os caranguejos  estariam se divertindo com as minhas tripas a essa  hora.

Enquanto o Grego contempla com amizade seu  companheiro negro, don Hernando lança aos três a  mesma expressão de cansaço que aos caranguejos  obstinados que já estão saindo da areia e vindo,  como que para provocar, correr pertinho de suas  botas.

- E foi assim que você deixou minhas coisas  afundarem - reclama ele. Com o devido respeito, don  Hernando, eu estava muito ocupado tratando de salvar  a pele para me ocupar com as suas preciosas coisas.  Sei que o que você mais queria agora era mandar que  eu fosse resgatá-las a vinte braças de profundidade.  Se não se incomodar, isso ficará para uma outra  vida...

Alguns fidalgos riem disfarçadamente. - Nada mau,  aprendiz - diz o Grego.

- Esse pânico todo por alguns macacos... -  resmunga Hernando, impressionado.

- Esses macacos, como vocês dizem, mataram  Bocanegra e queriam nos deixar morrer em cima da  areia. Como se tivessem intenção de massacrar o  capitão de Soto e os soldados dele que seriam  abordados no rio lá embaixo, perto do manguezal...

- E você frustrou sozinho esse plano? - pergunta  Hernando com ironia. - E como?

Gabriel olha-o de alto a baixo calado, mas  Sebastian vira-se para o Grego com uma risadinha.

- Mostramos muita convicção a um guia para que ele  nos trouxesse aqui.

Ele aponta para o outro lado do rio, ao norte,  onde surgem mais velas das balsas de Soto.

- A praia é mais estreita e o mangue mais fechado.  E o que descobrimos? Dezenas de índios! Dezenas de  sorrisos! Que a Santa Virgem esteja conosco, eu  disse a don Gabriel. Aqueles ali vão querer nos  cozinhar mesmo sem pimenta! Ao que ele me respondeu:  "Basta lhes mandar uma mensagem!”

- Nós cortamos a garganta do nosso guia... -  prossegue Gabriel, o semblante duro.

- Eles compreenderam - diverte-se Sebastian. - E  graças ao vento e à sorte, conseguimos vir dar aqui.  As ondas nos viraram de ponta cabeça também, mas nos  cuspiram de volta sãos e salvos aqui mesmo! E  sobretudo, fora do alcance dos índios, que não  conseguem atravessar o rio por causa da violência da  correnteza ali... Quanto à nossa balsa, ela estava  intacta até a delicada chegada de vocês...

- Nós nos escondemos no manguezal esperando as  balsas do capitão - prossegue Gabriel. - E quando  ele se aproximou, gritamos e gesticulamos tanto que  ele se afastou da costa...

Ele se prepara para continuar, mas Hernando  Pizarro fica em pé mancando e vira para o outro  lado, já sem ouvir.

- Meu irmão! - grita ele para don Francisco. -  Daqui a uma hora será noite. O que decide?

Com seu cavalo andando a passo, don Francisco  aproxima-se sem pressa. Quando está suficientemente  perto, desembainha a espada e faz a lâmina brilhar  sob os olhos de Hernando. Todos podem ver as  gotículas que ali cintilam, juntam-se e formam um  rego estreito ao longo do fio antes de cair, como  que cortadas pelo gume da lâmina.

- Ao que me parece - diz ele percorrendo com o  olhar os homens que o rodeiam -, ainda não estamos  preparados para entrar numa cidade de ouro.    Sobretudo se os indígenas forem propensos à traição.  Esse desembarque derreou os cavalos e a nós também.  Não é prudente atravessar o mangue agora... Olhando  para o cinza do oceano e as balsas que agora estão  bem perto da barra, don Francisco acrescenta:

- Soto ainda não está aqui conosco. É melhor  esperá-lo... Não teremos tempo de desembarcar muitos  outros cavalos. Sugiro passarmos a noite aqui. E  dormirmos montados, por medida de prudência...

- Você não está imaginando que eu vá me agüentar  uma noite em cima de um rocim se não consigo  cavalgar meia légua! - exclama Hernando.

- Não, eu não estava pensando em você, meu irmão -  responde suavemente don Francisco com uma chispa no  olhar. - Você pode descansar na areia... Já vi o seu  amigo ali montar de maneira muito honrosa. Você  poderia lhe confiar o seu rocinante. Ele não será  demais para preservar a tranqüilidade do seu sono.  Afinal, mereceu-o bem. Devemos a ele ter trocado  nossas coisas por nossa vida Apontado pelo  Governador, Gabriel sente-se corar de prazer.

O capitão Hernando de Soto não sabe viver sem seu  cavalo. Em vez de ir ter com o grupinho na praia,  zarpou para o Santiago fundeado a seiscentos metros  da costa e conseguiu embarcar na balsa seu  inseparável tordilho anda luz. Também provou as  alegrias de um banho nas águas tropicais, mas ei-lo  agora subindo a praia, soberbo, a pingar.

Cumprimenta o Governador e depois faz um sinal de  cabeça para Gabriel. - Prazer em vê-los, meus amigos  - diz simplesmente esse homem de poucas palavras.

A noite inteira, eles se agarram às selas,  apertando entre as panturrilhas enregeladas uns  cavalos exaustos.

Às vezes, adormecem. Mas o arranhar de um  caranguejo na areia desperta-os sobressaltados. Eles  imaginam uivos, bandos de índios vindo do manguezal.  No entanto, ouvem o cacarejar das galinholas e o  barulho do oceano de espuma fosforescente.

No crepúsculo, o mar estava ainda tão violento que  só seis fidalgos conseguiram chegar até a praia com  suas montarias. Agora, num total de apenas doze  contando com os soldados de infantaria, isolados dos  navios e das balsas que ficaram ao largo, eles  formam uma flor de pétalas hirsutas, cada um diante  da noite e da sua vontade. Alguns têm a espada à  mostra, pousada na cabeça da sela, cintilando sob as  estrelas.

As pálpebras pesadas de tanto lutar contra o sono  e o medo dos selvagens, eles sonham tanto com os  montes de ouro a esperá-los que o céu lhes parece  infestado de lantejoulas douradas. Com o  esgotamento, até os buracos tenebrosos da noite se  transformam em lâmpadas de ouro!

E quando a aurora clareia as brumas do leste, eles  não agüentam mais.   O Governador Pizarro à frente, eles transpõem um  braço de mar que a maré descobriu, deixando à vista  um lodo grosso, escuro e de cheiro forte. Depois se  embrenham finalmente no mangue.

Um caminho estreito, seco e até bem calçado em  alguns pontos esgueira-se entre os troncos loucos  das figueiras. No alto, animais indescritíveis  agitam a folhagem das árvores. Por duas vezes,  serpentes da grossura de um braço fazem os cavalos  relincharem. Depois ainda um desses monstros de  escamas, parecidíssimos com um tronco podre, mas com  uma mandíbula suficientemente violenta para cortar  em dois um bezerro.

No mais cerrado dessa selva opressiva, resta  apenas um pouco de céu no alto, como se a espada de  um gigante tivesse cortado as árvores.

Mas índios, eles não vêem nenhum.

Nem nos campos que sucedem aos manguezais quando  aparecem ao longe os muros mais altos de Tumbez.

Agitados, eles fazem os cavalos trotarem.

Quando estão a menos de um tiro de besta, o Grego  franze o cenho e lança um olhar para don Francisco,  que o retribui, impassível.

Gabriel espera ver os primeiros reflexos do ouro  no sol que afinal ultrapassa as colinas distantes.  Mas nada.

Índios uivando, amedrontados ou vociferando,  também não há ainda. E eles não precisam entrar na  cidade para ver as casas sem teto, as paredes  escurecidas pelos incêndios, às vezes rasgadas.  Ruelas inteiras de escombros, tijolos de adobe  reduzidos a lama, furnas vazias...

O silêncio que os envolve é o da guerra, da  pilhagem realizada. Da desolação.

Uma cidade inteira abandonada e devastada! Eis o  que é Tumbez.

- Pela Santa Cruz - exclama Soro, fazendo seu  cavalo dar uma volta diante do cavalo de don  Francisco Pizarro. - O que nos disse? Aí está a sua  cidade maravilhosa?

Gabriel olha para Pizarro, espreitando a raiva, ou  mesmo a dúvida, em seu semblante orgulhoso. Só vê um  vago enfado.

                      

                                               Tumbez, abril de 1532.

Ao voar, a primeira pedra resvala no ombro de  Gabriel e descasca a quina de um muro atrás dele. A  segunda faz um barulho abafado: Pedro o Grego  aparou-a com a coxa. Ele xinga como um carreteiro  aos pulos.

Mas Gabriel não tem tempo de fazer a pergunta.  Vinte homens andrajosos, morrião na cabeça, cota de  algodão desamarrada e barba desgrenhada, aparecem em  todas as esquinas da ruela e começam a gritar...

- Ladrões, ladrões! Mentirosos! Grego veado!

Seus punhos erguidos atiram outras pedras. Três  caem com certa brandura entre Gabriel e Pedro.

- Acho que esses imbecis estão querendo me pegar -  resmunga o Grego cuja estrutura alta delineia um  alvo ideal.

No mesmo instante, outra pedra, menor, porém mais  bem lançada, atinge-o na cabeça.

Não fosse aquele eterno gorro vermelho, ele teria  ficado com a cabeça aberta. Mesmo assim, ele  cambaleia. Gabriel estica o braço para segurá-lo.  Mas a chuva de pedras de repente engrossa tanto  quanto os insultos e os berros. Atingido na orelha,  Pedro enrubesce de dor e de fúria. O sangue espirra  e gruda em sua barba.

Gabriel sente uma dor cortante nos rins. A espada  já desembainhada, ele desvia para evitar uma nova  saraivada enquanto Pedro ergue os braços para  proteger o rosto.

- Na fortaleza! - grita Gabriel. - Vá logo! Eu  trato deles.   - Eles vão estripá-lo - murmura o Grego.

- A mim não, mas a você, se ficar teimando!

Mancando debaixo das saraivadas de pedras, o Grego  retrocede ingloriamente até a porta do recinto onde  eles acabam de entrar.

- Vocês ficaram loucos? - grita Gabriel apontando  a espada para caras embriagadas de fúria.

- Nossa loucura foi ter escutado as mentiras desse  Satã! - Não há nada aqui! Nunca houve ouro.

- Supostamente, as paredes seriam cobertas de  ouro! Aqui nem tem o que comer, nem sequer titica de  índio!

- Pedro não mentiu. Ele veio aqui, ele viu!

- Ah, é? Se lhe faz bem, pode ficar achando que  nesta poeira...

A cidade foi destruída pela guerra que os índios  estão travando entre si - tenta argumentar Gabriel.  Como o Governador podia saber?

- Ele não sabe nada! Nem mesmo aonde está indo!

- E o que você sabe, garoto? Não sabe nem se ele  já veio aqui mesmo!   - Sei, sim, vi as coisas que ele levou para o Rei.  Vi com meus próprios olhos! Tinha uma carroça  cheia...

- Umas bobagens! Por que quer que a gente acredite  em você?

- Você é como eles, garoto! Lambe as botas e as  bundas deles todos os dias que Deus dá!

- Você não tem nada a perder, nem família, nem  casa, seu filho da mãe! Não passa de um doido como o  pretenso Governador!

- O Rei não é doido! - berra Gabriel fora de si. -  O Conselho das índias não é doido! Foram eles que o  nomearam, e não sem motivo. Doidos são vocês! Têm o  cérebro tão furado quanto a camisa! Os índios estão  em guerra, estou dizendo...

- E então?

- Então é preciso ter paciência. Vocês acham que  vão conquistar um país num dia, cercando uma cidade  só?

- Paciência é isso! Você fala como Pizarro,  garoto, e a sua palavra não vale mais que a dele...

- Vocês preferem tomar novamente as balsas?

Os homens se calam, mas Gabriel sabe que seus  muxoxos e seus olhares furiosos não prometem nada de  bom.

- Eles não agüentam mais! - declara secamente Soto  tirando os olhos do rosto ensangüentado do Grego  para enfrentar don Francisco. - Não agüentam mais  sofrer tanto por tão pouco. Semanas sem comer,  doenças, a traição permanente dos índios, tudo isso por uma cidade  destruída e por promessas... Governador, eles têm  razão. Peço que me diga o que pretende fazer. O que  esperamos?

Don Francisco não responde logo. Sua barba treme  como quando a raiva lhe ferve nas veias, porém nada  mais transparece.

- Olhe em volta do senhor, capitão de Soro - diz  ele afinal com uma voz estranhamente contida.

De fato, em volta é um esplendor. Aquilo parece um  forte, protegido por cinco muros altos de proteção a  toda a volta, com cem passos de distância entre um e  outro. Muros tão bem construídos que resistiram  incólumes ao ataque que destruiu metade da cidade.  No centro, exatamente onde eles se encontram, ergue- se uma espécie de palácio. Aí os muros têm um  acabamento finíssimo, pintados de cores vivas e  motivos extraordinários onde se superpõem animais,  astros e motivos rigorosamente geométricos...

- Isso não é indício de um país grande e poderoso?  - recomeça don Francisco.

- Não vejo ouro aí.

- Ouro, ouro... Capitão de Soro, sei que gostaria  de estar em meu lugar. Mas eu sonho antes de mais  nada em oferecer esse país inteiro à Santa Virgem e  ao Rei. Depois, teremos ouro também. Dado pela  própria Santa!

Soto, muito elegante apesar da perda de seus  pertences, recém-barbeado, o olho vivo daquele que  há muito sabe comandar, faz um gracejo cheio de  desprezo:   - Para cima de mim não, Pizarro! Deixe a Santa  Virgem em casa, por favor!

- Soto - ruge Hernando dando um passo à frente, já  com a mão no punho da espada. - Fale com respeito  com o Governador, senão vai se haver comigo...

Soro contempla-o calmamente. Seu olhar, franzido  com um sorriso negligente, passeia ainda por Gabriel  e Pedro, mas logo volta para Hernando. - Os irmãos  Pizarro! E parece que tem até um sobrinho de vocês  na tropa. Todos irmãos de um mesmo pai, mas não...

A espada de Hernando vibra nua no ar, mas a de  Soro é logo, erguida. - Devagar, Hernando -  contemporiza don Francisco.

- Ouça o Governador, Hernando. E pense um pouco,  se a sua cabeça permitir. Se eu me retirar com os  meus soldados, vocês perdem o ouro que já me  forneceram... E o Peru! Sem mim, quantos vocês são?  Cinqüenta? Sessenta? Com uns vinte cavalos que mal  ficam em pé.

- Com você, não somos muito mais - ruge Hernando.

- Não muito mais, mas o dobro! Já que don  Francisco quer conquistar o país antes do ouro, isso  pode ser útil, não é? Bem útil! Sem mim...

- Excelência! Excelência!

Frei Vicente Valverde, um dos dois dominicanos que  chegaram até ali vindos da cidade do Panamá, pára na  entrada do aposento ao ver as espadas  desembainhadas. Instintivamente, afasta as mãos num  gesto de súplica:

- Meus Senhores! Não podem ter um pouco de  sensatez? Não acham que a situação merece mais  sabedoria?

- O senhor felizmente acaba com nossas  infantilidades, Frei Vicente - ri Soto guardando a  espada. - Mas não com nosso mau humor...

- O que sabe?

Virando-se para don Francisco, Frei Vicente se  persigna e diz baixinho, como se estivesse contando  um segredo:

- Um índio velho chegou aqui hoje de manhã. Está  contando coisas absolutamente espantosas a  Martinillo, nosso intérprete. Precisa ouvir,  Excelência. E os senhores também...

O homem é bastante baixo. Seu olhar é cheio de  profundidade e franqueza. Estranhamente, sua  admiração pelos estrangeiros que o cercam parece  grande. Com um dedo respeitoso, ele toca seus panos,  suas barbas, o metal de seus estiletes e das bainhas  de suas espadas, sorrindo constantemente. Como se  constatasse aí uma esperança.

Veste apenas uma simples túnica de algodão  vermelha e amarelo-viva. Sua pele é curtida,  acabada, enrugada, mas suas mãos são tão vivas  quanto leve é a sua voz. Ele fala com agilidade,  numa língua líquida e chiada que parece a Gabriel  mais próxima de um canto do que de um discurso.

E Martinillo, o índio vestido como os espanhóis,  traduz com grande seriedade, num castelhano agora  muito claro:

- Ele diz que fez a guerra para o único Senhor  desse país, o Inca Filho do Sol. Diz que foi o único  que ficou aqui para esperar os Grandes Senhores do  Além, pois gosta da maneira como eles fazem a  guerra. Diz que antes de Tumbez ser incendiada pelos  inimigos dele da ilha de Ia Puna que não respeitam o  Inca, a cidade tinha cerca de mil casas. Mas houve  muitas mortes e o resto do povo fugiu quando soube  que os homens com barba e animais saíram do mar. Ele  não quis fugir, pois sabe o que é a guerra. Diz que  esteve em Cuzco, a cidade sagrada do Único Senhor. É uma  cidade como não há em nenhum lugar. As ruas são  feitas de ouro, as casas, os animais e até as  plantas são de ouro. Ele diz que os homens com barba  e animais são muito fortes para a guerra e podem  muito. Ele acha que eles deviam conquistar tudo. Por  isso não quis fugir como os outros e pede que a casa  dele não seja pilhada...

E como o índio se cala, o silêncio é absoluto de  tanto que todos ainda querem ouvi-lo falar. Até o  capitão de Soto esqueceu seu sorriso orgulhoso. De  repente, don Francisco, num gesto que lembra a  Gabriel aquele que ele o viu fazer uma noite em  Toledo, cai de joelhos e se persigna diante do  índio. E quando se levanta, tem estampado nos lábios  um sorriso cheio de orgulho.

- Capitão de Soto - murmura ele apontando para o  índio -,eis aí um homem que acredita em nós mais que  o senhor. E eu já não lhe tinha dito? Paciência!

- Acredita no que ele conta? - chia Soto. -  Paredes de ouro, animais, plantas de ouro? Acredita  mesmo nisso?

- Neste país, acredito em muita coisa, capitão. E  primeiro na minha boa estrela. E depois, vamos lá  conferir, não é?

Virando-se para Martinillo, ordena:

- Diga-lhe que não vamos pilhar a casa dele. Vamos  botar uma cruz na parede dele. E que ele nos fale  mais dessa cidade de Cuzco e do caminho que leva até  lá. É longe?

 

                                       Huarnachuco, abril de 1532

Ao longe, os três rochedos encarapitados no topo  da colina de Porcon ainda parecem sombras no céu  escuro onde, imperceptível, ergue-se um clarão azul.

Anamaya olha para Villa Oma.

A preocupação constante dos combates endureceu e  encovou seus traços. Os olhos fundos nas órbitas  brilham como pedras sobre as quais houvesse uma  brasa. Desde que a guerra começou, ele aparece em  todos os campos de batalha, interpreta os sinais ao  lado dos adivinhos, manipula as inventivas e os  estímulos. Na corte, diz-se que ele não precisa de  comida para seu corpo magro e seco, que o sumo das  folhas de coca lhe basta. Embora os primeiros  alvores da aurora ainda não tenham atravessado a  noite, ele conduz num passo firme a pequena tropa  que se dirige para a colina. Anamaya caminha bem  atrás dele, ao lado de Guaypar, calado, absorto em  seus pensamentos. Eles precedem a escolta das servas  que transportam as jarras de chicha, os vasos de  ouro e prata, os panos nos quais estão conservadas  as oferendas destinadas à huaca. Dois rapazes guiam  os dez lhamas destinados ao sacrifício.

Anamaya está perturbada com a presença de Guaypar.  Não consegue esquecer seu estranho pedido e sua  confusão, e não sabe como lhe explicar que não é sua  inimiga. Gostaria de tranqüilizá-lo com um olhar,  mas cada vez que olha para ele, parece que ele fita  intensamente o céu que mal começa a clarear.

As casas da aldeia se aglomeram ao pé da colina.  Todos os habitantes estão no culto da huaca; todos  ficaram sabendo que o Sapay Inca Atahualpa enviava  dois de seus Senhores para consultar a huaca. Eles  saíram de casa e assistem em silêncio à passagem de  Villa Oma, Guaypar e dos outros. Anamaya nada lê em  seus olhares sem expressão, quase ausentes.

O primeiro raio de sol bate no cume da colina: no  rochedo mais alto, erguem-se os muros de pedra negra  que abrigam o ídolo.

Anamaya vira-se para Villa Oma enquanto eles se  aproximam da ladeira.   - O que quer nosso Senhor Atahualpa?

- Conhecer o que o pai já não diz a você -  responde Villa Oma, a voz apagada.

- Você ainda vai dizer que é minha culpa...

- Não digo nada disso, menina - murmura o Sábio. -  Não preciso de oráculo para saber que um herói com  medo não é bom sinal.

Anamaya se cala. Em seu coração, sabe que o Sábio  tem razão.

O sacerdote que guarda a huaca é de uma magreza de  dar medo. Seu pescoço tem três dedos de grossura e  ele é tão idoso que sua barba tem alguns fios  brancos. Seu olhar não tem mais cor e ele fica em pé  com dificuldade, apoiado num bastão cujo punho tem a  forma de uma serpente enroscada sobre si mesma. A  sujeira de seus pés descalços é repugnante e ele  está vestido com uma túnica que lhe bate nos  tornozelos. É uma túnica de pêlos longos - sem  dúvida de guanaco com uma profusão de minúsculas  conchinhas róseas penduradas.

Atrás dele, há um grupo de sacerdotes apenas  ligeiramente mais jovens e menos sujos que ele.

Quando Villa Oma está diante dele, o Guardião abre  a boca e Anamaya tem um movimento de recuo: é uma  boca totalmente desdentada e o som que dela sai tem  a profundidade de uma espécie de trompa - é a voz  dos deuses que passa por essa casca.

Sei por que você está aqui.

Enquanto o sol sobe suavemente para o seu zênite,  Villa Oma dirige a distribuição das oferendas ao  ídolo uma estátua de pedra em forma de homem, e de  tamanho natural. O templo que a abriga é uma sala  única, sem teto, cuja janela dá para o nascente e a  porta, para o poente. Os nichos colocados nas  paredes contêm muitos objetos de ouro e são  revestidos de ricos cortinados.

Antes de mais nada, os sacerdotes espalham as  folhas de coca aos pés do ídolo. Depois, Villa Oma e  Guaypar, de pé em frente à imagem, arrancam um cílio  e o sopram em sua direção. Em seguida, derramam as  jarras de chicha murmurando as palavras propícias.

Eles entregam ao Guardião o resto das oferendas.  Este sopra em cima de cada uma antes de depositá-la  no pano de lã: coca, espigas de milho, plumas  coloridas... Depois, os panos são amarrados e  queimados no fogo aceso do lado de fora da huaca bem  junto à entrada.

Quando o fogo se apaga, Villa Oma deposita diante  do ídolo dois vasos de ouro e dois de prata. Faz  sinal aos rapazes responsáveis pelos lhamas: cada um  dos animais é amarrado a uma pesada pedra e gira em  volta dela. Na quarta ou na quinta volta, o Guardião  crava-lhe a faca no peito, arranca o coração e o  leva à boca enquanto os sacerdotes recolhem o  sangue.

Um zumbido escapa do peito das servas.

Anamaya desvia a vista: iniciada nos mistérios,  tendo feito o caminho da Cidade-cujo-nome-não-se- diz, ligada por seu juramento, ela sempre recua  diante da necessidade do sacrifício.

O sangue escorre pela comissura dos lábios do  Guardião, por seu pescoço, até sua túnica onde os  fios se perdem nas conchinhas róseas, entre os  longos pêlos. Sem uma palavra, ele transpõe a porta  do templo, e só Villa Oma o segue.

Anamaya fica com Guaypar, as servas, os pastores e  os sacerdotes da huaca. O vento se levanta e  refresca-lhes a nuca. No entanto, o céu está cheio  de nuvens negras e o ar, pesado.

O Guardião foi se colocar atrás do ídolo e seu  vulto descarnado desapareceu. Pelo vão da porta, só  se vêem as costas de Villa Oma, curvado como um  suplicante, e a cara terrível do ídolo Catequil,  deus da guerra.

- Faça a sua pergunta - diz o ídolo.

- Meu Senhor, o Sapay Inca Atahualpa gostaria de  saber que futuro ele tem.

Não há um instante de hesitação. A voz do ídolo  ecoa como um trovão no céu de tempestade.

- Atahualpa derramou muito sangue e os deuses  estão zangados. O fim dele é funesto e está próximo.

Por um momento, as costas de Villa Oma não se  mexem e o inteiro prende o fôlego. Anamaya ouve as  batidas de seu coração.

- O fim dele é funesto e está próximo - repete a  voz de trovão quando as nuvens se rompem e as  primeiras gotas de chuva começam a cair. Villa Oma  se levanta, vira-se e sai pela porta da huaca. Seu  rosto está cor de cinza.

Eles descem a colina sem falar, encurvados sob a  chuva grossa que cai. Embaixo, a aldeia está  deserta, como se todos os servos da huaca tivessem  entendido a terrível predição e se escondessem em  casa.

Ao ver os muros do tambo de Huamachuco, Villa Orna  pára para pegar Guaypar pelo braço.

- Não venha comigo.

- Por quê?

- Podíamos ser dois quando Atahualpa esperava um  oráculo favorável Mas devo estar sozinho para lhe  anunciar que não foi.

Guaypar treme de impaciência e frustração. Anamaya  pousa com delicadeza a sua mão na dele. Depois,  aponta para as pedras bem alinhadas do palácio do  curaca onde Atahualpa aguarda a resposta do oráculo.

- Sabemos que você não tem medo - diz ela. Guaypar  vira para ela seu olhar inexpressivo.

- Sou o único que sabe do que tenho medo.

- Isso basta, Guaypar - diz o Sábio. - Volte para  a sua cancha e aguarde as ordens do seu Único  Senhor.

O olhar de Guaypar não deixou Anamaya; é de uma  intensidade assustadora e Anamaya lê aí sentimentos  tão violentos que tem medo de entendê-los. As  palavras de consolo e de amizade ficam entaladas em  sua garganta.

- Eu vou também - diz finalmente Guaypar.

- Está ouvindo, Villa Orna?

Os olhos de Atahualpa brilham com um misto de  fúria e alegria.

- Huascar foi vencido!

- Estou ouvindo.

- Repita para ele, Sikinchara, palavra por  palavra, como acaba de me dizer.

Anamaya reconhece o capitão Sikinchara, o mesmo  que a prendeu na floresta há muitos anos. Cada vez  que o vê, não consegue evitar o movimento de medo da  menina que foi e que, em seu coração, continua  sendo.

- Nossas tropas infligiram às de Huascar uma  derrota cujo fragor ecoa por todas as montanhas. Seu  exército está em fuga, ou destruído, ou do lado de  nosso Único Senhor.

No pátio da cancha, do outro lado dos muros  grossos, ouvem-se os gritos de alegria.

- Você parece taciturno, Villa Orna. Não está  alegre com a nossa vitória?

- Fui enviado para consultar o oráculo de  Catequil, Senhor.

- Sem dúvida ele previu o meu triunfo.

- Não exatamente.

- Não exatamente?

A voz de Atahualpa vibra com uma raiva contida.

- Repita para mim o que o oráculo lhe disse.

Não tenho certeza se está com vontade de ouvir.

Deixe que eu julgue o que tenho vontade de ouvir.

Villa Orna respira fundo.

- Essas foram as palavras do oráculo: "Atahualpa  derramou muito sangue e os deuses estão zangados. O  fim dele é funesto e está próximo.”

O silêncio cai no aposento do palácio. Atahualpa  está sentado num tripé sobrelevado por uma base.  Está usando os atributos reais - a borla, a coroa de  plumas e o sunturpaukar, o cetro do poder.  Sikinchara está a seu lado. Villa Orna e Guaypar  estão à sua frente, cabeça baixa, enquanto Anamaya  está ligeiramente afastada. Quando se encontra em  sua presença, ela sente a força sombria que emana do  Inca, portador dos raios e do trovão. No entanto, é  com uma doçura inesperada que ele pronuncia aquelas  primeiras palavras.

   - Fale-me desse oráculo.

Villa Orna obedece: conta da marcha noturna, da  cidade, das oferendas, do velho sacerdote com a  túnica de conchinhas rosadas. Depois, repete as  palavras: "fim funesto e próximo".

Atahualpa dá uma risada.

- E você acredita nesse oráculo?   - Villa Orna não diz nada.

- Responda, você que chamam de Sábio e que com  efeito só diz palavras sábias. Acredita?

- Não quero lhe responder, Senhor.

- E você, Anamaya? Ela permanece calada.

- Vocês têm medo - diz Atahualpa -, medo dessa  huaca que é minha inimiga como meu irmão Huascar.

Sua voz esforça-se para ficar calma, mas Anamaya  detecta nela um tom de descontrole, de inquietação  profunda.

- E você, Guaypar? - pergunta ele afinal. - O que  diz?

- Digo que é preciso destruir o que se opõe a  você, Senhor.

- Eis aí o meu irmão - diz Atahualpa.

 

                                                   Porcon, junho de 1532.

O exército de Atahualpa entrou na cidade de  Catequil no pôr-do-sol. Guaypar e os outros capitães  vestiram, por cima do unku, o colete de couro e o  peitoral de metal. Eles usam capacetes de junco  trançado, tão sólidos que resistem incólumes a  pedradas ou cacetadas. À frente, tremulam os  unanchas, os estandartes de cores fortes. Logo  atrás, em fileiras cerradas, vêm os lanceiros,  depois os arqueiros.

Já não há, na rua bem pavimentada que atravessa a  aldeia, homem nem mulher algum. Só um garoto com seu  cachorro preto de pêlo curto que ficou no meio da  rua, paralisado de medo.

Guaypar aproxima-se dele. - Sabe quem somos?

O garoto balança a cabeça, incapaz de articular  qualquer palavra. Guaypar o afasta sem rudeza.

Nesse instante, ouvem-se as trompas e os tambores,  cujo eco bate nas colinas.

Vinda do poente, encimada por um sol, a liteira de  Atahualpa aproxima-se no passo lento de seus  carregadores, rampa suntuosamente decorada de ouro e  prata, com suas plumas coloridas tremulando ao  vento, como se não avançasse carregada por homens  mas sim por um exército de pássaros.

A liteira pára. As cortinas de fino cumbi apenas  tremulam com a brisa. - Estão prontos? - pergunta a  voz do Inca.

- Estamos, Senhor - responde Guaypar. -Aguardamos  as suas ordens. Faça o exército cercar a colina para  que o ídolo maldito, meu inimigo, não escape.

Após algumas ordens precisas e secas, o exército  está em marcha.

De manhãzinha, Atahualpa vai sozinho até o alto da  colina. Só o acompanham os dois senhores que foram  consultar o oráculo: Villa Oma e Guaypar. O Guardião  os espera, mais sujo e repugnante que nunca naquela  túnica de conchinhas rosadas.

Atahualpa desce da liteira empunhando um machado  de bronze coberto de ouro. O Guardião não abaixa os  olhos, não se curva diante do Inca. Permanece de pé,  apoiado em seu bastão, cuja empunhadura tem a forma  de uma serpente.

- Você sabe quem eu sou - diz Atahualpa. Ele  balança a cabeça.

- Eu o conheço. É o Senhor Atahualpa.

- Se me reconhece, por que não se curvou diante de  mim?

- Porque outros homens vieram interrogar o oráculo  de Catequil e foi respondido a eles, pela minha voz,  que só há um Sapay Inca, cujo nome é Huascar.

- Mentira.

- Não tenho o poder de ser nem a mentira nem a  verdade. Sou a voz do deus Catequil. Ele já existia  antes de mim e existirá depois.

- Mentira. Repita todas as mentiras que me dizem  respeito, que eu as escute de sua boca.

- Você é o Senhor Atahualpa. Derramou sangue  demais. O seu fim é funesto e está próximo.

- Mentira. Você é amigo do meu inimigo, portanto,  meu inimigo. Não sabe que eu não sou um homem de  quem se possa zombar. Nem homem, nem huaca, nem  ídolo...

- Você não é o Inca. Não foi escolhido  regularmente. É filho do grande Huayna Capac, mas de  uma mãe de linhagem modesta...

O machado assobiou no ar num movimento tão rápido  que ninguém pôde perceber antes que atingisse o  Guardião. Sua cabeça se separa do corpo de onde  jorra sangue aos borbotões. Durante alguns  instantes, suas velhas mãos continuam apoiadas no  bastão, depois se abrem e deslizam por ele ao mesmo  tempo que o corpo decapitado.

Guaypar se obriga a olhar a cabeça que rolou no  chão com um sorriso de desprezo congelado nos  lábios.

Uma gota de sangue do Guardião cai no motivo de  ouro único que decora o unku do Inca - a figura  geométrica do kapak, o chefe. Atahualpa ignora-a e  se encaminha para o pequeno templo onde o ídolo  ainda reina.

- Ninguém pode zombar de mim - repete antes de  entrar, voltando-se para Villa Oma e Guaypar.

Torna a erguer o machado e golpeia o ídolo  Catequil em forma de homem, no mesmo ponto em que  golpeou o Guardião, no pescoço. O movimento é tão  violento que derruba a estátua no chão, com a cabeça  destacada do corpo. Uma poeira cinzenta vem  depositar-se na barra da túnica do Inca. À porta do  templo, ele está ofegante, os olhos injetados de  sangue, selvagem e sem alegria.

- Não está contente, Villa Oma?

- Não tenho por que estar contente, único Senhor.  Nem descontente. Eu o escuto e escuto os Ancestrais  do Outro Mundo. Eu o escuto e escuto Inti, seu Pai.

Do sopé da colina, vem correndo um chaski. Ele chega  esbaforido junto a Guaypar, a testa brilhando de  suor, os músculos longilíneos e fortes de suas  pernas ainda tensos devido ao esforço. O jovem  capitão se volta para ele. O chaskí lhe segreda algo  no ouvido durante um bom tempo. A expressão de  Guaypar se ilumina.

- Único Senhor! exclama ele.   - Meu irmão?

- Huascar, o usurpador, foi feito prisioneiro pelo  seu general Chalcuchima. Ele está acorrentado. Está  derrotado, Único Senhor! Quando quiser, poderá  arrancar-lhe a pele!

- Levante os olhos para mim, Villa Oma, olhe para  o seu Senhor sem esse medo descabido dos deuses.

Villa Oma continua fitando o chão.

- Está se preparando uma reviravolta, ó Sábio,  como o Império das Quatro Direções não vê desde  Pachacutec, o Transformador! Eu sou o novo  transformador do mundo! Sou aquele que destrói os  deuses antigos, os deuses maus, sou aquele que  transforma os homens em pedras e as pedras em  homens...

- Não pode afirmar isso, único Senhor - diz Villa  Oma em voz baixa. - Só quem pode é Viracocha, o Deus  que criou todas as coisas!

- Posso afirmar isso e tudo o que eu quiser, Sábio  sem sabedoria. Guaypar?

- Sim, Senhor.

- Quero que mande trazer aqui em cima toda a lenha  de sacrifício que encontrar nas construções dessa  aldeia maldita, serva de uma huaca e de um ídolo  maldito; quero que cerque esse cadáver - ele indica  com desprezo o corpo sem cabeça do Guardião -, esse  ídolo e essa colina como o meu exército cercou e que  faça uma fogueira que alcance o meu pai Sol!

Guaypar tenta conter o sorriso que invade seu  semblante.   - Como queira, Senhor.

- Quando isso acabar, quero que venham buscar o  que restou da cabeça do ídolo, e que isso seja  reduzido a pó assim como os outros pedaços e jogado  ao vento!

O chaski continua, respeitosamente, mãos atrás das  costas, cabeça baixa, atrás de Guaypar. O capitão  vira-se para ele.

- O que mais?

O rapaz torna a falar baixinho durante um bom  tempo. O sorriso se apaga do semblante de Guaypar.

- Há outras notícias - diz Guaypar.

- Mais tarde, irmão - diz Atahualpa -, as notícias  de hoje me bastam e não quero esperar mais.

Ele sobe na liteira.

Anamaya contempla o fogo.

O incêndio queimou as casas da aldeia, alastrou-se  pelo mato, aproxima-se dos três rochedos no alto da  colina.

A noite parece dia, e o calor é insuportável. Ela  se volta para Guaypar. - Foi você quem fez isso?

- Obedeci às ordens do Sapay Inca.

Não há o que responder. Ela observa os aldeões que  vêem, impassíveis, suas casas, sua colina e seu deus  arderem.

- Você parece preocupado - diz Anamaya. - Chegou  uma mensagem estranha...

- A detenção de Huascar?

- Não. índios tallanes, originários da costa,  dizem que uns homens brancos com a cara coberta de  pêlos chegaram do mar...

O coração de Anamaya começa a bater violentamente.

- Na cintura, eles usam um cinturão ao qual se  prende uma coisa de prata parecida com o bastão que  as mulheres usam para tecer... Eles andam montados em lhamas maiores que os nossos. Os  tallanes os chamaram de viracochakuna.

Anamaya treme apesar do calor, tanto que Guaypar  repara. Ele tenta passar o braço em volta de seu  ombro, mas ela o repele com delicadeza.

- Eu me lembro - diz ela -, eu me lembro... Eu era  criança e o Grande Rei Huayna Capac pediu que eu o  esquentasse quando os mensageiros chegaram... Eles  falavam de estrangeiros vindos do mar, diziam o nome  de Viracocha... Desde então, nada mais é igual no  Império das Quatro Direções.

- Somos poderosos! - exclama Guaypar. - Dominamos  todas as tribos!

- Não sei por que Huayna Capac não me fala mais  desde o Mundo de Baixo. Tenho medo do silêncio dele.  Passei muito tempo achando que eu é que estava me  comportando mal. Agora me pergunto se não é ele que  está se escondendo para não ver o fim do mundo...  Funesto e próximo, disse o oráculo.

- Não há mais oráculo, Anamaya.   - Olhe!

Anamaya aponta para a colina. Tudo está em chamas,  mas o rochedo no qual se encontram os restos  quebrados do ídolo Catequil e sua construção já não  arde. As labaredas o envolvem, correm em volta dele,  fazendo-o brilhar na noite como se fosse um templo  de ouro fulvo.

Anamaya pensa nas palavras de Huayna Capac,  aquelas que ela já ouviu, aquelas que continuam  escondidas em seu coração.

Nem o fogo, nem a água, nem o vento podem destruir  o que diz a verdade, Guaypar. Nem fúria nenhuma.

 

                                       Cajas, outubro de 1532

- Acha que eles estão nos vendo? - pergunta  Gabriel.   Sebastian balança a cabeça.

- Eu acredito no que eu vejo. O resto...

Desde que deixaram o leito do rio para se  embrenhar nas montanhas, Gabriel não consegue deixar  de virar a cabeça, de procurar atrás das árvores e  das moitas, na sombra dos rochedos incendiados: eles  estão ali.

O destacamento de cinqüenta homens e dez cavalos,  comandado por Soto, há dois dias recebeu ordem de se  dirigir com guias a uma cidade onde, segundo  informações, estaria uma importante guarnição do Rei  dos índios.

As semanas passadas em Tumbez, nesse mundo  estranho de mar e rio, areia, manguezais e  florestas, tiveram um efeito na força de seu sonho:  quanto mais ele se aproximava do que havia  procurado, mais isso lhe parecia inatingível. Os  dias começavam, insensivelmente, a se parecer com  dias comuns. A pessoa se acostuma facilmente a não  ter sede nem fome, a se curar de seus males.  Habitua-se a olhar o mar e, ao longe, os pontos  pretos a dançar sobre as ondas, os pescadores  montados naqueles estranhos cavalos do mar que eles  montam e que, entre si, os espanhóis apelidaram de  caballitos. Habitua-se a encontrar o sorriso furtivo  de uma mulher e o olhar triste, impenetrável, hostil  de um menino. A rotina dos guardas e a espera criam  uma espécie de torpor do qual é difícil sair.

Quando Pizarro deu ordem a Soro para assumir o  comando de um destacamento para se dirigir em  embaixada - finalmente! - através das montanhas a  essa cidade situada, segundo os guias, a três dias  de marcha, e quando chamou Gabriel num canto para  lhe confiar sua missão, seu coração voltou a bater.

- Quero que fique com Soto - disse o Governador. -  Quero que seja a sombra dele, que me garanta contra  qualquer golpe que ele esteja reservando...

- Golpe? - espantou-se Gabriel.

- Não tente compreender. Eu o conheço e conheço os  homens. Sei o que vale a obediência deles. Vá aonde  ele vai, veja o que ele faz. E me conte tudo.  Entendido?

- E se não der certo?

O Governador deu um sorriso estranho.

- Somos menos de duzentos, Gabriel. Apesar dos  conselhos de meu querido irmão Hernando, que está  pronto a tudo para se livrar de Soto, não vou enviar  um quarto dos meus homens para ser massacrado. Não  seria uma atitude cristã nem, sobretudo,  inteligente. Isso vai dar certo. Eu rezo por você.

Gabriel pensa novamente na cara do Governador,  naquele corpo miúdo e seco de onde emana uma energia  indômita, naquele olhar no qual ele nunca consegue  ler nada, naquela barba que parece sempre  impecavelmente apara da. O que ele quer de fato?  Oficialmente, entrar em contato com o Rei -  Altabaliba ou um nome assim - e lhe propor amizade.  Gabriel suspira: mais vale para sua tranqüilidade  interior não lhe atribuir outros projetos. Seria de  enlouquecer.

Eles partiram há dois dias, avançando sempre morro  acima. Após deixarem o caminho do fundo do vale na  altura de dois enormes rochedos brancos, que  pareciam colocados de cada lado como duas  sentinelas, eles se embrenharam através de uma mata  fechada, por trilhas cada vez mais estreitas, e, no  entanto, com uma cobertura regular de pedra. Cada  vez que emergem da mata, nas proximidades de cada  garganta, sob o céu de um azul inalterável, Gabriel  espera ver o espetáculo repousante de uma planície.  Mas só há montanhas atrás de montanhas, parecendo  engolir aquele pequeno pelotão.

Ele se volta pela centésima vez para Sebastian,  que caminha a seu lado. - Quantos acha que eles são?

Sebastian ri.

- Já respondi a essa pergunta, don Gabriel!

- Eu sei: você acredita no que vê. Mas assim  mesmo?

- Mais obstinado que esse fidalgo... Se eles foram  capazes de construir cidades como a que vimos  destruída... Se a beleza da capital deles for metade  do que o velho nos descreveu...

Gabriel olha as costas fortes de Soto, colado ao  cavalo, como se os dois fossem uma coisa só.

- E ele, acha que ele sabe mais que nós?

- Ele é como o Governador. Finge... Mas pode crer,  tem um coração que bate igual e um olho igualmente  rápido.

O olho... O dia, a noite... Acontece de Gabriel  acordar sobressaltado, certo de que está sendo  observado e de que há olhos engastados no escuro,  procurando obstinadamente adivinhá-lo, vê-lo com  detalhes. É uma impressão curiosa - ele tem e ao  mesmo tempo não tem medo de morrer. Se o seu  espírito se separasse dele, sem dúvida veria a  loucura completa daquela empreitada, visualizaria as  dezenas de milhares de soldados armados de lanças,  flechas, estacas, que os aguardam e vão, na boca de  uma garganta, cercá-los e massacrá-los  horrivelmente, sorrindo. Mas os olhos que o observam  têm algo de triste, quase melancólico, e é bom  mergulhar em seu azul-noite.

Na manhã do terceiro dia, dois espias são  capturados. Apesar da intermediação de Felipillo,  foi difícil saber se a missão deles era hostil e o  que os esperava exatamente. Os rumores percorrem a  escolta, e Soro pôs novamente ordem na coluna.  Plastrões de couro foram trocados por finas cotas de  malha e, de vez em quando, Gabriel leva  maquinalmente a mão à espada.   Certamente será preciso lutar.

Mas contra quê?

O caminho desapareceu bruscamente e transformou-se  numa espantosa pedreira na qual homens e cavalos  lutam para não cair. Ouvem-se gritos, relinchos,  arquejos, o suor inunda as têmporas, empapa as  camisas. Pedras caem na velocidade do vento, como se  atiradas por uma mão invisível.

Soto, sozinho, avança sem esforço. À frente do  cavalo - estranha impressão, pois realmente aqueles  dois são uma coisa só, até o cinza da cota de malhas  confundindo-se com a pelagem da montaria -, ele vai  marchando num passo constante, sem escorregar nunca,  os pés como que grudados no chão.

Gabriel o segue de perto e o alcança na garganta,  o peito em fogo e arfando como uma forja.

- Chegamos - diz calmamente Soro.

Gabriel não responde. Soro o observa com uma  afeição rude.

- Não falar comigo faz parte das suas ordens? -  pergunta sem brutalidade. - Pensei que sua missão se  limitasse a vigiar meus atos e meus gestos...

Gabriel evita o olhar dele e desvia a vista, dando  de ombros de forma exagerada:

- Não entendo o que o senhor quer dizer, capitão  de Soro.

- Vamos - sorri Soto -, não minta, não fica bem  para você. Gosto de você, rapaz. E não só porque  você me salvou a vida.

Gabriel enrubesce, sem saber o que responder.

- Mas lhe garanto - conclui Soto em tom antes  alegre -, isso não envolve nenhuma obrigação de sua  parte...

O estojo das montanhas finalmente se alargou para  dar lugar a uma planície. O ar está penetrante, um  pouco mais frio, e uma leve brisa balança as flores  das acácias. Um rebanho daqueles carneiros que agora  eles sabem que se chamam lhamas não se assusta com a  chegada deles e continua pastando.

Um pouco adiante, a relva da planície está  salpicada de manchas amareladas que traem a presença  recente de várias centenas de tendas. No meio de  fogueiras abandonadas, alguns tições continuam  acesos. O coração de Gabriel se descompassa.

- Não há ninguém - diz Soto. - Foram todos embora.     - Para onde?

Soro não responde. Enquanto o resto do pelotão os  alcança e depara, por sua vez, com a cena, eles  avançam pela campina. Os lhamas erguem seus pescoços  compridos e os observam, sentinelas de olhos  lacrimosos, femininos. Gabriel escuta o vento,  perscruta o céu, os sentidos em alerta. A cada  instante, ele acha que um bando aos berros vai pular  em cima deles. Mas reina tamanha paz, o silêncio  quebrado apenas pelo vento, que isso parece  impossível.

Eles atravessam o acampamento: nas cinzas das  fogueiras ainda quentes, Gabriel recolhe uma bola  preta que ele leva às narinas.

Papa - diz uma voz gutural, característica, atrás  dele.

Ele se vira. É Felipillo, um dos dois intérpretes,  aquele de quem ele não gosta.

- O que é?

- Um desses pomos que crescem dentro da terra e  que são assados no fogo...

- É bom?

- Claro! Por quê?

Gabriel não responde. Decididamente, ele não  consegue se sentir à vontade com Felipillo. A cara  do intérprete é, por assim dizer, dividida em dois:  a parte de baixo dominada por uma boca sensual, de  lábios gulosos, e a de  cima, animada por olhinhos de fuinha, nunca parados.  Felipillo tem aquela mania de olhar para todos os  lados, como se estivesse sendo perseguido. A menos  que, ao contrário, ele pare de espreitar, é  impossível segurar seu olhar por mais que um  instante. E com isso, nunca se tem muita certeza do  que ele está traduzindo...

Gabriel acompanha Soro. Em volta das fogueiras, há  vestígios de uma partida recente e precipitada.  Ficaram alguns utensílios, vasos de madeira ou  terracota, jarras e até reservas de comida. Soro  vira-se para ele.

- O que acha disso?

- Capturamos os espias deles, mas nem todos...

O semblante de Soro se ilumina. Gabriel não pode se  impedir de simpatizar com esse homem a quem está  encarregado de espionar, que sabe disso e nem tem  raiva dele.

- E, na sua opinião, quem tem mais medo? Eles ou  nós? - Nós não temos medo, capitão.

- É o que eu achava.

Enquanto passam pelas últimas tendas, os dois  avistam o pássaro no céu. É maior que uma águia,  maior que um albatroz - e preto como uma nuvem de  tempestade, assobiando através do céu azul perfeito.  Voa bem alto, em círculos que, pouco a pouco, se  aproximam. Eles o admiram. O olhar de Soto o deixa  um instante e se fixa em três árvores erguendo-se no  meio da campina, em frente a eles.

- Meu Deus - diz.

E Gabriel custa a conter um grito.

No fim da planície, a encosta torna a subir para  uma espécie de esplanada natural que domina o vale.  Ali é que se erguem as primeiras casas da cidade,  com suas paredes de barro e seus tetos de palha.

Os homens estão calados, temendo uma cilada.

Todos têm a imagem daqueles três índios pendurados  pelos pés e balançando ao vento. As órbitas estavam  vazias, e é difícil fugir daquelas perguntas  idiotas: quem arrancou seus olhos assim - homens ou  pássaros? E depois, eles estavam vivos ou mortos  quando aquilo aconteceu?

Todos os cavaleiros apertam instintivamente as  pernas nas montarias. Há no ar um tinir de armas, um  rumor de dúvida e medo. E também - Gabriel descobre  para sua surpresa - uma espécie de excitação alegre.

Sem estar tão devastado quanto Tumbez, o local  visivelmente foi palco de lutas. Algumas paredes  ruíram, casas também, tetos arderam. Mas vê-se que  aqui a vida continuou, que nunca desapareceu. Na  entrada, uma construção mais importante que as  outras impressiona-os pela altura. Soro faz sinal de  avançar.

Eles passam ao longo de um sólido muro de limite,  no qual se enquadram aquelas portas cuja forma  típica Gabriel já reconhece - mais largas na base,  mais estreitas no alto, encimadas às vezes por uma  verga com entalhes representando algum bicho,  guepardo ou serpente.

Os ruídos que escapam dos pátios nada têm de  ameaçador: são os gritos familiares das crianças, as  repreensões das mães. Eles às vezes vêem o vulto de  um homem despontar num canto e logo desaparecer,  apavorado.

Felipillo marcha orgulhosamente ao lado de Soto,  como um chefe de expedição. Mais do que nunca, seu  olhar corre de um lado para o outro.

A rua termina num muro grosso, de uma alvenaria  regular e forte, no meio do qual há uma grande  abertura. Eles vão dar numa vasta praça no fundo da  qual ergue-se uma espécie de pirâmide cujo topo  teria sido cortado: isso forma uma plataforma aonde  se chega por degraus altos. Soto ergue a mão para  dar a seus homens a ordem de parar. No alto da  plataforma há um pequeno grupo de homens cujas  silhuetas escuras se destacam contra a luz do  poente. Eles não se mexem.

- Gabriel! - chama Soto. Gabriel vem ter com o  capitão.

- Vá lá a pé, sozinho com Felipillo, e traga-me o  chefe dessa cidade... Lembre-se: somos amigos deles.

- Acha que eles estão armados? - A honra de  descobrir é sua. Gabriel prepara-se para apear do  cavalo.

- Devagar, vamos, bem devagar... Você não quer me  perder, e nem eu quero perdê-lo. À menor ameaça,  grite: "Santiago!”

Gabriel entrega seu cavalo a Sebastian. Sente-se  pesado e constrangido, sem firmeza alguma nas  pernas. Felipillo tenta acompanhá-lo de perto.  Gabriel estica o braço e bate no peito do índio que  recua, surpreso, subitamente assustado.

- Atrás - sibila Gabriel -, fique atrás!

O local é coberto por uma terra que parece areia.  Sob seus passos, rangem milhares de conchinhas  minúsculas. No meio, um simples filete de água corre de uma fonte cuja forma é exatamente a da  pirâmide do fundo da praça: a água desce por um rego  cortado ao longo dos degraus delicadamente  cinzelados. "Uns selvagens, uns macacos, como diz  Hernando", pensa fugazmente Gabriel, "mas, puxa  vida, sabem trabalhar a pedra!”

Quando chegam à pirâmide, Felipillo mantém-se  prudentemente longe de Gabriel. Sem sequer se  voltar, ele avalia o espaço que o separa da proteção  tranqüilizadora de Soro, dos cavalos, das espadas.  Sobe cada degrau muito devagar, para não se cansar.

No alto, Gabriel fica ofuscado pela luz do sol que  estava escondido dele durante a subida.  Curiosamente, sente no coração uma imensa liberdade.  Num átimo, lembra-se das palavras do jovem monge na  masmorra, em Sevilha - como se chamava ele?  Bartolomé.

"Você não pode saber nada sobre você enquanto eles  não vêm com os ferros ou o fogo...”

Sim, há momentos em que finalmente a pessoa  conhece sua própria verdade!

Ele não tem medo.

O homem à sua frente está vestido de maneira  estranha e magnífica. Usa uma espécie de cordão  colorido em volta da cabeça, de onde saem algumas  plumas de cor. Veste uma túnica vermelha e preta até  os joelhos: a parte de cima representa dois felinos,  como dois gatos grandes com o rabo enroscado,  observando-se de boca aberta com uma expressão  ameaçadora. Nos pés, o homem usa sandálias de couro  finamente trançadas.

Somos os enviados do Imperador Carlos V - começa  orgulhosamente Gabriel -, vindos do outro lado do  mar para trazer a amizade do nosso Rei, a palavra de  Cristo e sua mensagem de paz e amor...

A voz de Felipillo ecoa atrás dele, vagamente  desagradável, com suas sonoridades roucas. O que ele  pode estar traduzindo?, pergunta-se Gabriel. Depois,  um longo silêncio.

Finalmente, o homem pronuncia algumas palavras  rápidas, com uma voz grave que Gabriel adivinha  assustada.

- O que ele está dizendo? - Que esperava pelo  senhor.

O homem com os gatos no peito - Felipillo explicou  a eles que era chamado de curaca, quer dizer, chefe  - multiplicou os sinais de amizade e deferência. Deu ordens para que os espanhóis fossem  maravilhosamente instalados em seu palácio, que  criados lhes trouxessem comida - milho, carne-seca,  bolachas. Os limites de sua impassibilidade são  traídos por seu medo diante dos cavalos - ele fez de  tudo para não precisar se aproximar dos animais.

Apesar dos protestos - pois a promessa sempre  adiada do País do Ouro esquenta o sangue de muitos - , Soro ordenou que os homens explorassem, em grupos  de seis, cada casa da cidade. Prometeu os mais  severos castigos para os atos de pilhagem ou  qualquer espécie de roubo ou assassinato.

O palácio constitui-se de um pátio interno com  salas únicas dispostas em quadrilátero à sua volta.  À noite, as tochas foram acesas, iluminando as  paredes de onde pendem tapeçarias da mesma lã que a  túnica do chefe - algumas delas com motivos  geométricos, outras representando flores ou bichos.

A noite caiu e com ela veio um frio intenso.  Servos de olhos baixos trouxeram-lhes mantas de uma  lã fina mas que os aquece maravilhosamente. Soto,  Gabriel e Felipillo estão sozinhos com o curaca.

O rosto deste não se mexe. Ele abre a boca como se  fosse falar e torna a fechá-la.

Depois seus olhos se franzem até formarem apenas  uma fenda e todos os seus traços se alteram.

Ele chora.

 

                                     Tajas, noite de 10 de outubro de 1532.

Na noite escura, Sebastian se deitou ao lado de  Gabriel, numa esteira cuja maciez os repousa das  agruras do caminho.

Ainda há uma tocha acesa na parede e as brasas  canto do aposento. Gabriel está semi-adormecido.   - Tem mulher aqui - diz Sebastian.   Gabriel se levanta.

- O que você está dizendo?

- Lembra-se daquele grande prédio pelo qual  passamos quando entramos na cidade? Pois bem, é uma  espécie de convento com mulheres, estou lhe dizendo,  dezenas, centenas de mulheres: velhas, moças,  algumas feias, mas também...

Gabriel sente-se completamente desperto. - E o  que...

- Nada, o que está pensando! Nós não  desobedeceríamos às ordens do Governador, nem às do  capitão Hernando de Soro!

Tenho algumas dúvidas, amigo.

Nós nos contentamos em beber algumas taças de uma  estranha bebida fermentada que eles produzem em  quantidades sobrenaturais. O gosto de milho é  bastante desagradável, mas, diabos, essa bebida  aquece o coração! Um brilho nos olhos negros de  Sebastian faz Gabriel sorrir. - E além de esvaziar  algumas taças amigáveis?

- Nada, eu garanto, eu juro! Há uma maneira de  falar com as mulheres que vocês brancos nunca vão  compreender, com essa brutalidade bestial de vocês!  Nós temos uma delicadeza que escapa a vocês e nos  permite...

- Paz, Negro.

- Conte-me antes a que atividades sérias vocês se  dedicaram enquanto eu executava importantes missões  diplomáticas.

Gabriel suspira.      - Ouvimos o chefe deles nos contar suas desgraças.

- Desgraças enormes, garanto!

- Até Soto, que já viu muita coisa, ficou  emocionado.         - Conte.

- Chegamos aqui neste país no meio de uma guerra  que dois irmãos estão travando entre si para ver  quem é o chefe único. E nosso curaca não pagou o  tributo ao lado certo.

- Os enforcados?

- Aqueles e muitos outros. Ele diz que a cidade  foi pilhada, parcialmente destruída, que os  habitantes foram massacrados, muitos se refugiaram  nas montanhas... Diz que o exército do Rei vencedor  seqüestra os filhos e as filhas dele, deixa os  depósitos de provisões vazios... O acampamento que  vimos é o dos vencedores: a notícia da nossa chegada  fez com que eles se retirassem para algum lugar a  dois dias de marcha. Mas o curaca treme só de pensar  que eles podem voltar e praticar outros atos de  vingança. Pelas lágrimas dele passam lembranças de  torturas e crueldades que nós nem imaginamos...

Sebastian se cala. Depois:

- O que diz Soto?    Ele diz que é uma boa notícia.

O monte de ouro é miserável. Alguns lingotes,  alguns objetos, vasos... O curaca parece  sinceramente desolado por não poder fazer melhor.  Ele está sentado num tripé, perto do centro da  esplanada, à sombra de uma acácia; Soto está a seu  lado e procura assumir uma expressão realmente  satisfeita. Os homens em desordem na praça reclamam;  foram colocados espias no alto dessa plataforma  chamada de ushnu. Felipillo traduz mais do que lhe é  pedido, agita-se, pergunta, depois se volta para o  capitão espanhol.

- Ele diz que pode lhe oferecer algo...    

- O quê?   

- Mulheres, para cozinhar para vocês na viagem.  Ele quer ser agradável e aprender os costumes dos  cristãos. Pede a amizade e a proteção de vocês.

- Diga a ele que, se ele continuar, não vamos lhe  fazer mal nenhum, nem ao povo da cidade dele.       

Felipillo traduz. O semblante do curaca recuperou  toda a nobreza de seu porte. Sua entonação é aquela  de um homem habituado a comandar. - Ele propõe que  um dos seus vá à acllahuasi, a casa das moças, com  seus criados. Eles voltarão trazendo as mulheres à  praça para que vocês possam escolher.

Soto faz sinal a Gabriel. Alguns espanhóis se  aproximam, procurando compreender o que está  acontecendo, o que está sendo dito.

- Vá logo - murmura Soto -, traga-as antes que os  nossos rapazes vão lá buscá-las pessoalmente...

Gabriel não ousa lhe dizer que os "rapazes" já  visitaram o local... para Deus sabe que estrago. Ele  encontra o olhar irônico de Sebastian.

Quando chega com os criados à casa das mulheres,  depara-se com uma agitação incrível. No vasto pátio,  todas estão reunidas: as mais velhas, que parecem  comandar, e as mais jovens, às vezes meras crianças.  Elas vestem túnicas longas, brancas ou vermelhas,  que acompanham com graça seus movimentos quando elas  andam. As mais idosas usam nos ombros uma espécie de  manta, fechada por alfinetes de ouro ou prata,  finamente cinzelados. Pela abertura de um aposento,  ele vê alguns teares. Reina um barulho de terreiro  de fazenda, com explosões de soluços e gargalhadas  nervosas. Os servos do curaca esbravejam as ordens e  faz-se um silêncio relativo.

Quando eles voltam à praça, os espanhóis começam a  gritar e assobiar; alguns não hesitam em tentar  agarrar as moças, outros lhes arrancam os alfinetes  de ouro das mantas. A confusão é indescritível.

De repente, um grito atravessa a algazarra - grito  de cólera vindo do alto da pirâmide. Um índio alto,  ladeado pelos dois espias espanhóis, está na  plataforma. É quase uma cabeça mais alto do que os  dois soldados e sua nobreza é visível. Fios de ouro  e prata correm em sua túnica de motivos geométricos  de uma incrível sutileza, e ele tem nas orelhas  aqueles brincos de ouro que eles já viram - mas de  uma grossura impressionante.

- Parem! - grita Soto.

A calma volta num piscar de olhos.

- E larguem-no - ordena Soro para as sentinelas.

O índio desce os degraus altos da pirâmide com uma  agilidade de felino. Atravessa a praça com passo  enérgico. Depois, vem se pôr diante do curaca,  ignorando totalmente Soto, e lhe dirige algumas  palavras, visivelmente dominado por uma raiva  intensa. O curaca se levanta precipitadamente,  murmura algumas palavras de desculpas.

Soro faz sinal aos espanhóis para que não se mexam e  ao curaca para que sente a seu lado. Vira-se para  Felipillo, com ar interrogativo.

Mas o intérprete parece também paralisado pelo  recém-chegado. Durante a confusão, Sebastian veio se  colocar ao lado de Gabriel.   - O Orelhudo não parece à vontade - diz ele  baixinho.

O índio agora se dirige a Felipillo, com uma voz  indignada.

- Ele diz - começa o intérprete - que vamos todos  morrer porque vocês tocaram nas mulheres que são  propriedade do amo dele. Diz que se algum de vocês  tornar a encostar a mão nelas, as tropas dele virão  nos massacrar.

- Eu não duvido do poder dele - responde  calmamente Soro -, mas ele não vai nos fazer morrer  duas vezes. Quem é o amo dele?

- O Rei. O Inca.

- Como ele se chama? Onde está o amo dele?

Felipillo fala nervosamente com o nobre, sem ousar  olhar para ele. O outro responde, mais calmamente.

- Ele se chama Sikinchara. É o embaixador do Rei  deles, Atahualpa, que está a vinte léguas daqui.

Vinte léguas... Gabriel sente o coração se  transtornar. Relances da viagem lhe passam pela  cabeça - as vagas da altura de palácios, as  tempestades, a fome... E agora ele está a vinte  léguas da fortuna ou da morte.

- Diga a ele que nosso amo, o Governador don  Francisco Pizarro, enviado de nosso Rei, Carlos V,  que reina sobre a terra, deseja convidá-lo como  amigo e que ele nos conceda a graça de vir conosco,  de aceitar nossos presentes e nossa amizade. Diga a  ele que o respeitamos, que não tínhamos intenção de  ofendê-lo e que tememos o amo dele, que nós sabemos  ser um senhor poderoso, que viemos ajudar num  combate justo.

Felipillo fica um bom tempo traduzindo. Seus  lábios carnudos se agitam e o suor lhe escorre pela  testa. Sikinchara escuta-o com atenção - olhando,  como que furtivamente, para a estranha indumentária  dos soldados, os cavalos, as espadas penduradas, as  couraças. Enquanto fala, Felipillo sorri várias  vezes, visivelmente satisfeito com o que ouve. Por  sua vez, responde:

- Ele quer ver o amo de vocês, tem uma mensagem  importante para ele e presentes também.

- Diga a ele que ele está a três dias de marcha  daqui, em Serran, e que vou escoltá-lo até lá como  um irmão e garantir a segurança dele.

Gabriel observa Sikinchara. Nunca viu uma cara  como aquela: se é familiar, com a pele cor de mel e  as maçãs salientes dos índios, falta-lhe aquele olhar no qual brilha a brasa dos olhos. Rapidamente,  ele avalia seus próprios companheiros: caras,  roupas, porte... Eles fazem uma figura triste  comparados àquele ali.

- A capital do Inca é lá onde ele está agora, a  vinte léguas?

Sikinchara parece achar a pergunta engraçadíssima.  Olha para os espanhóis, um a um, como para saber se  todos são tão ignorantes quanto aquele que se diz  chefe deles. Depois, explica-se demoradamente.

- A capital dele - diz com prudência Felipillo -  fica nas montanhas longínquas, a mais de uma lua de  marcha. Demora-se um dia para se dar a volta nela.  Muitos povos de todas as regiões da terra moram lá.  Lá estão os palácios dos Incas falecidos, e também  muitos templos com um número imenso de sacerdotes.  Os mais importantes contêm inúmeras oferendas em  metais preciosos...

À evocação daqueles prédios com chão de prata,  teto e paredes revestidos de placas de ouro e prata  entrelaçados, voltou à sala um silêncio absoluto.  Gabriel não está mais ouvindo.

Seu olhar subiu para o alto da esplanada, acima do  topo da pirâmide, acima mesmo das montanhas que  dominam a cidade. Paira nessas montanhas longínquas,  atravessa as neves eternas que o sol faz refulgir  como placas de ouro, está naqueles palácios onde  brilham o ouro e a prata, está naqueles territórios  do sonho, e, nessa visão, ele é o primeiro a vê-los,  abre os braços e o mundo é dele. Ele não se sente  mais um homem preso à terra, mas sim um animal - o  pássaro que corta os ares, o felino que salta,  poderoso - ou uma nuvem, uma torrente que desce  pelas encostas e, num jato, transpõe as ravinas...

Ele é livre.

E mal ouve Soro dar a ordem da partida.

 

                                       Ybocan, novembro de 1532.

Sikinchara coloca diante de Atahualpa a camisa da  Holanda, os borzeguins, os colares. Pousa com  precaução as duas taças de vidro perto do Inca.   - O chefe deles, que às vezes eles chamam de  capito, às vezes de governo, disse estas palavras  antes de me entregar estes presentes: "Diga a seu  amo que não vou pararem nenhuma cidade no caminho,  para poder encontrá-lo mais depressa."   O Único Senhor Atahualpa está sentado num  banquinho e Anamaya, apesar da curiosidade,  permanece à sombra como se ela mesma fosse a sombra.  Guaypar e Villa Oma contemplam os objetos mas não  ousam tocá-los. Os copos transparentes são as  cerâmicas mais espantosas que ele já viu. Atahualpa  estica o braço, toca-as com as pontas dos dedos  antes de erguer um deles e olhar a luz através  daquela matéria estranha.

- E você entregou-lhe os nossos presentes? -  indaga ele.

- Sim, Único Senhor. Eles olharam as maquetes de  pedra dos fortes sem dizer nada. E me perguntaram  sobre os patos cheios de lã. Eu respondi que,  reduzidos a pó, eles produzem uma fumaça agradável  às narinas... Mas sobre as túnicas de ouro e prata,  eles não perguntaram nada.

- De onde eles dizem que vêm?

- Do outro lado do mar. Eles obedecem a dois Reis:  um que dirige o Mundo de Baixo, e outro que é o  senhor do Mundo de Cima.

- Os tallanes afirmam que eles são seres ao mesmo  tempo terrestres e marinhos, com a parte de cima  como a de homem e a de baixo como a de lhama. Eles  disseram o nome viracochas...

Sikinchara cai na gargalhada.

- Seres do Outro Mundo! Mas eu também ouvi essa  lenda... Pode crer que são homens, único Senhor! São  diferentes de nós porque têm pele clara e pêlos na cara. É verdade que alguns andam montados  nuns carneiros, o que, na planície, permite que eles  andem num bom passo. Mas pode imaginar esses animais  nos caminhos do Inca? Meus espiões os viram e eles  devem ter acabado de chegar a Cajas!

- Dizem também que eles têm uns paus que cospem  fogo.

- É uma das diversões deles: eles acendem uma  espécie de pó dentro desse pau e isso faz um barulho  ensurdecedor. Da primeira vez, a gente se  surpreende.

- E esses cintos que eles usam do lado...

- Umas armas como as nossas, um pouco mais leves.  Pelo medo que eles manifestam quando me vêem, elas  não devem ser muito eficazes. Quantos eles são?

Menos de duzentos. Muitos deles parecem fracos,  doentes. - Fale do chefe deles.

- É um homem alto mas muito magro e muito velho.  Tem um pêlo que parece neve. Um olhar duro como  pedra de funda, mas ri muito. Os capitães lhe  obedecem, menos um que é irmão dele e que está  sempre que rendo parecer ter a mesma importância que  ele. Mas apesar do pêlo e dos olhos, ele não passa  de um velho. Uma cacetada só basta para quebrar a  cabeça dele. E acho que ele tem medo de você.  Demonstra um grande respeito por você e garante  estar aqui só para ajudá-lo.

De repente, ouve-se a voz de Guaypar.

Eu também vi esses seres estranhos e, apesar de  não ter a experiência dele, nem ter podido observá-los tão de perto quanto ele, não concordo com o  embaixador Sikinchara.

Atahualpa se volta para Guaypar.

- É verdade que você não tem uma experiência  condizente com a sua coragem, Guaypar.

- Esses homens são perigosos, único Senhor. Na  nossa frente, eles sorriem e afirmam ser nossos  amigos. Mas, nas aldeias por onde passam, fazem  grandes massacres com essas armas que Sikinchara  considera inofensivas. Eles dizem que querem ajudá-lo, mas prometeram a outros ajudar Huascar o  maldito! - Agora é que ele precisaria da ajuda deles  - brinca Sikinchara.

- O que sugere, Sikinchara?

- Sugiro deixar que venham a nós.

- Loucura! - intervém Guaypar. - Eles deveriam ser  destruídos imediatamente. Quando saí de Cajas com  minhas tropas, eu os tinha cercado.

Eles estavam à minha mercê. Eu estava louco para  obedecer a essa ordem, único Senhor, mas a ordem não  veio.

Sikinchara dá um sorriso de desprezo.

- Vamos destruí-los na hora em que nosso único  Senhor mandar.   - Você tem dúvida, Guaypar?

Guaypar não tem tempo de responder. Villa Oma,  calado desde o início da conversa, intervém de  repente:

- Eu tenho.

Atahualpa ergue a mão para impor silêncio. Fica  mergulhado em seus pensamentos, e Anamaya, olhando  furtivamente para ele, surpreende a incerteza no  fundo de seus olhos.

Uma nuvem de chuva passa pelo tambo e vai embora.  Enquanto Atahualpa ficou só no palácio, Villa Oma e  Anamaya saíram da cancha.

Em todos os lugares do Império das Quatro  Direções, Anamaya não pode evitar admirar a harmonia  reinante, a perfeita organização - aqui ela vê a  kallanka, a sucessão de celeiros onde se guardam as  reservas, à beira dos primeiros terraços onde o  trigo e a quinoa são cultivados, num nível mais  baixo, a huaca que se ergue bem no alinhamento da  montanha que domina Ybocan. Mais alguns dias de  marcha e eles estarão em Cajamarca, uma das  principais cidades de Chinchaysuyu, para celebrar a  vitória de Atahualpa e a consolidação definitiva do  Império.

Mas Anamaya vê essa nuvem que passa e volta, sem  deixar o tempo firmar.

- O que acha disso, Villa Oma?

- Estou indo para Cuzco com o coração apertado,  menina.   - O que quer dizer?

- Não gostei do que ouvi hoje de manhã. Sikinchara  é um soldado fiel, mas tenho dúvidas quanto à  inteligência dele... E Guaypar e corajoso, mas  impulsivo...

Anamaya não diz nada.

- Atahualpa acha que ele está preparando um  pachacuti, uma reviravolta, uma transformação do  mundo do qual ele será o dono... Mas ele não vê os  sinais, não ouve os homens...

- Não é culpa dele se os homens lhe mentem ou se  não enxergam...

Villa Oma sacode a cabeça em sinal de negação.   - Além do mais, temo pelo destino de Cuzco...   - Por quê? Chalkuchima não é quem manda na cidade?   Villa Oma esboça um sorriso amargo:

- Parece que só quem manda na cidade é a loucura.  Eu mesmo fui o primeiro a encorajar Atahualpa a se  revoltar contra Huascar e as loucuras dele...

- E isso era necessário - aprova Anamaya.

- Sem dúvida... Mas agora, o ódio virou uma planta  louca! Atahualpa projeta uma vingança tão desmedida  quanto a demência do irmão. Ele me encarregou de  assumir as rédeas do clero de Cuzco que Huascar quis  reformar. Mas eu não estou indo só. O general Cuxi  Yupanqui vai comigo, e ele tem instruções precisas:  nenhum partidário do usurpador deve permanecer vivo,  nem suas mulheres, nem o mais moço de seus filhos.  Só as jovens que ainda não tiverem conhecido homem  serão poupadas para vir engrossar as fileiras das  concubinas do único Senhor. Ele deixou bem claro que  nem seus próprios irmãos e irmãs deviam escapar do  castigo. São clãs inteiros que vão desaparecer, como  o do pai do próprio Huayna Capac. Não estou gostando  disso, Anamaya, isso não condiz com a tradição do  Império, não condiz com a nobreza dos Incas nem com  a religião do Sol... Um chefe vulgar de tribo é que  se vinga pelo sangue e pela matança...

- Atahualpa não pode ter ordenado uma coisa  dessas!

Villa Oma olha para Anamaya com uma ternura  raríssima nele.

- Você mesma viu o que aconteceu com o ídolo de  Catequil! O ódio que ele tem de Huascar é cego. E  medos antigos o assaltam...

- Há várias luas, os olhares se voltam para mim  buscando uma verdade que eu não tenho, Villa Oma.

- Eu sei, menina, e no entanto a confiança que  deposito em você (lembra-se como ela demorou a se  desenhar) é integral e sólida. Eu a levei à cidade  secreta e hoje lhe abro o segredo do meu coração:  Atahualpa não é o homem que salvará o Império das  Quatro Direções...

- Então quem é?

O grito escapou da boca de Anamaya, assustando um  jovem pastor que subia de volta para a esplanada com  seu rebanho de lhamas castanhos, transpondo com  elegância os amplos terraços. Ela prossegue com mais  calma:

- Então quem, Sábio, pode salvar o Império?

- Não sei, menina. Enquanto isso, você pode ajudar  Atahualpa.

- Como?

- Ele se fia em você como em ninguém. Você é  aquela que "viu" o triunfo dele, aquela que o salvou  da prisão... Se você pudesse ver o futuro dele,  dizer-lhe que esse futuro passa pela paz do Império  e o perdão dos clãs de Cuzco...

Ela o interrompe com vivacidade, mas sem levantar  a voz.   - Está pedindo que eu "veja" o que não vejo?

Villa Oma fita-a intensamente.

- Peço que detenha um desastre...

- Não posso mentir, Sábio. Acho que se eu fizesse  isso, o próprio Huayna Capac voltaria do Mundo de  Baixo para me censurar...

Villa Oma suspira.

- Você tem que nos ajudar, Coya Camaquen!

A voz de Villa Oma treme. Seu olhar brilha com uma  inquietude que ela nunca viu nele desde a morte dos  Poderosos Anciãos na estrada de Cuzco.   - Então me ajude, Sábio - murmura ela.

- O que quer dizer?

- Mande trazerem de volta meu esposo o Irmão-Duplo  para junto de mim.

- Impossível! Ele está onde deve estar: no templo  das origens, perto do Corpo seco do único Senhor  Huayna Capac...

- Se quiser minha ajuda, Sábio, mande que o tragam  para perto de mim.   - Sabe o que está me pedindo? Jamais um Irmão- Duplo foi separado do seu Senhor! O que seria de nós  se lhe acontecesse alguma desgraça?

- Tenho de estar junto dele, Villa Oma! Não posso  mentir. Mas o poder do Irmão-Duplo talvez ajude o  único Senhor Huayna Capac a me visitar, a me falar,  a me levar ao Outro Mundo. É a única solução para  que eu volte a ser como antes. Não me pergunte por  que, mas eu sei...

O sol agora está forte, e nada, no frescor do ar,  parece poder perturbar a paz.   - Mando-o para você assim que chegar a Cuzco, bem  escoltado.

- Não devemos contar a Atahualpa?

- Não! É melhor isso ficar entre nós, menina!

Anamaya aquiesce. No entanto, na subida para o  palácio, suas pernas fraquejam: crescer, pensa ela,  é guardar segredos pesados demais para a gente, é  sentir emoções que não podem ser compartilhadas com  ninguém.

A noite invade lentamente a cancha. Anamaya  descansa sozinha, tapando os ouvidos para não ouvir  os gritos de alegria que vêm das ruas. A chicha já  está correndo: todos os soldados sabem que as festas  da vitória, que esse ano vão se confundir com as de  Capac Raymi, serão inesquecíveis.

Um vulto assoma no vão da porta. Anamaya pula da  esteira, refugia-se no canto, quase derrubando uma  jarra.

- Não tenha medo!

É Guaypar. Ele está vestido com um unku branco  simples, onde só o cinto revela uma geometria de  formas e cor, em tons de amarelo, vermelho e  laranja. Há uma selvageria contida em seu porte, e  ela sente isso.

- Não tenha medo - continua ele sem se mexer -,  não vim nem ameaçá-la nem lhe falar de amor...

A tristeza em sua voz comove-a e paralisa-a. Nunca  soube dizer que o compreende, que se sente  lisonjeada. Talvez mais? A idéia a percorre numa  fração de segundo, ela a expulsa: no coração, ela é  a Coya Camaquen, a esposa do Inca morto.

- Eles dizem que sou impulsivo e ajo sem pensar,  mas penso mais que Sikinchara. Quando digo que os  estrangeiros são perigosos, eu sei. Mas eles não  querem me ouvir...

- já estão celebrando a vitória...

- Estão errados. Pode acreditar, para muitas  tribos, em muitas aldeias, a passagem dos  estrangeiros despertou raivas... Eles são duzentos,  talvez: mas quem lhes serve, quem os alimenta, quem  carrega suas bagagens? Quem, inclusive, pegou em  armas para lutar do lado deles? Índios... Eu sei,  nós os submetemos, pelo medo ou pela diplomacia. Mas  entre eles reina um espírito de vingança. Por isso  não se pode dar ouvidos às palavras mentirosas  deles, por isso é preciso acabar com eles sem deixá-los dar mais um passo sequer.

- Você disse isso ao nosso único Senhor, mas ele  não lhe deu ouvidos.   - Vai dar ouvidos a você.

- Deixe-me, Guaypar.

Ele chega a um palmo dela e ergue uma mão. Ela  prende a respiração.   - Não me toque - diz ela baixinho.

- Não estou tocando.

Ele passa a mão perto de seu corpo, tão perto que  ela escuta a respiração que lhe infla o peito, o  tremor em sua mão. Ele acompanha suas formas,  ajoelhando-se à medida que desce ao longo de seu  corpo, como se a acaricias se com uma infinita  ternura. Ela sente sua respiração se acelerar e  gostaria de evitar isso, mas não consegue.

Quando chega em seu pé nu na sandália de palha,  ele simplesmente encosta um dedo, e ela pensa que  vai cair, sente a respiração dele na pele...   - Guaypar!

Ele se levanta bruscamente.

- Nem que quisesse, eu poderia esquecê-la.

Ele disse essas palavras muito depressa, entre  dentes, com uma violência que lhe desmentia a  ternura. Depois sai, esbarrando em Inti Palla que,  perturbada, olha para Anamaya.

- O que ele estava fazendo no seu quarto? - Ele...

Anamaya recobra o fôlego.

- Ele queria que eu falasse com Atahualpa... - A  seus pés?

- Estava me suplicando.

Inti Palla faz uma cara de desaprovação. Anamaya  não pode evitar admirá-la. O anaco que envolve as  outras mulheres como um saco está colado em seu  corpo e deixa adivinhar suas formas generosas. Seus  longos cabelos estão divididos em duas massas  grossas, presas por dois finos alfinetes de ouro, um  em forma de serpente, outro, de colibri.

- Talvez ele ouça você... Por quê?

Anamaya está aliviada. Inti Palla não insiste no  assunto Guaypar. Vê-se que ela veio lhe falar de  outra coisa.

- Ele mal olha para mim, não me toca mais... - Os  problemas do Império são difíceis...

- Então, por que ele passa as noites com Cori  Chimpu? Ou com Cusi Micay?

Ele vai voltar para você, Inti Palla, você é mais  bonita que todas as outras...

As palavras brotaram com sinceridade da boca de  Anamaya. Inti Palla faz com que ela sente na  esteira, em cima das pernas.

- Você passou a ser minha única amiga - diz. - E  eu era tão má com você...

- Você, má? Não me lembro.

Inti Palla começa a rir e abraça-a pelo pescoço.

- Eu era má, sim, porque tinha ciúme e achava que  você queria tomá-lo de mim...

- Eu!

Anamaya está estupefata. Como uma menina franzina  saída da floresta poderia ser uma ameaça para uma  jovem perfeita, tão sensual como Inti Palla?   - Encoste aqui - murmura a concubina.

Anamaya está perturbada, mas obedece. As jovens se  deitam; uma brisa entra pela janela da cancha e a  cortina de plumas que fecha a porta treme ao vento.

Ela está com um braço em volta do ombro  arredondado de Inti Palla e, pela primeira vez em  muitos dias, esquece a tensão permanente dos  conflitos e das aflições da guerra.

Toca o rosto de sua amiga e pega uma lágrima. No  escuro, lambe a lágrima em seu dedo e lhe coerentes,  para consolá-la.

 

                                             Huagayoc, 11 de novembro de 1532.

Um atrás do outro, dois raios rasgam o céu de aço  no fundo do vale. A trovoada rola entre as encostas  abruptas como se lhes martelasse os flancos.   Quando o barulho se afasta, o cão de Pedro Martin  de Moguer late para o céu como se ali estivesse  vendo um índio para morder. Os raios e a trovoada  acabaram de excitar o animal, um mastim de Nápoles,  do tamanho de um bezerro, branco como leite, mas de  olhos tão negros e loucos como os de seu dono, um  marujo corpulento de queixo quadrado que se juntou à  expedição com Benalcazar. Por um motivo que Gabriel  ignora, Moguer sempre se oferece como voluntário  para as missões de reconhecimento. Será que espera  ser o primeiro a pôr a mão nos tesouros prometidos?

Gabriel olha para os dois, o homem e seu  canzarrão, com um nojo que ele custa a reprimir.

Eles vão como batedores e só estão um quarto de  légua à frente do grosso da tropa conduzida pelo  Governador. Mas em algumas curvas, ganharam altura  suficiente para dominar a névoa concentrada em cima  do rio e perder de vista a longa coluna embaralhada  que avança para Cajamarca.

"Cento e oitenta homens e cinqüenta e sete  cavalos", Pizarro gosta de repetir, não para  lembrar-lhes o número ridículo daqueles que partiram  para a conquista desse vasto e poderoso Império, mas  antes para distingui-los de todos os que se juntam a  eles, dia após dia, durante seu avanço rumo ao  centro do Império: as centenas de escravos mestiços  ou negros, vindos do istmo, e sobretudo os milhares  de índios, os tallanes, os chimus, aqueles cuja  aldeia foi incendiada porque eles não pagaram o  tributo, todos os que têm um motivo ou outro para  detestar os incas ou para querer vingar-se deles.

O caminho agora é estreito. Sobe no flanco da  encosta, às vezes junto a falésias verticais, com  largura apenas suficiente para a passagem de um  homem ao lado de um animal.

Há muito tempo, a pequena tropa de vanguarda segue  a pé. Os homens avançam de cabeça baixa, o morrião  inclinado sobre a testa para evitar que a chuva os  cegue, puxando as montarias por uma rédea passada  sobre a espádua.

Os cavalos estão nervosos e esgotados.  Pessimamente alimentados há semanas, estão com as  costelas de fora, e as cilhas das selas lhes raspam  tanto o pêlo que lustram o couro. Em alguns dias,  eles transpuseram gargantas suficientemente elevadas  para conhecer a geada da madrugada, resfriando-se no  esforço da subida. Em outros, no fundo dos vales  abafados, morcegos carnívoros, quase do tamanho de  falcões, atacaram-nos dilacerando-lhes a garupa ou a  espinha...

E, agora, a tempestade transforma numa torrente de  lama amarela a picada que costeia uma escarpa  coberta de moitas ralas. Placas de rocha, talhadas  em forma de degraus, drenam pequenas cascatas  furiosas que tornam a marcha escorregadia e  perigosa. A terra à beira do caminho é escavada pela  água e desmorona com baques surdos sob o casco dos  cavalos.

O ronco da trovoada mal se acalmou e mais um raio  corisca nas nuvens. Como uma serpente de fogo,  percorre montanhas na horizontal, como se procurasse  reuni-las.

Os cavalos escorregam, o passo mais seco, as  narinas palpitantes. Suas orelhas em pé não param de  mexer. Com a mão enluvada, Gabriel puxa a rédea  enquanto, com a outra, afaga o focinho da montaria  numa carícia tranqüilizadora.

Mas no mesmo instante, alucinado pelo fragor da  tempestade, o cão de Moguer começa a uivar  desesperadamente. Em alguns pulos furiosos,  precipita-se diante de Pedro, que abre a marcha.  Pára atravessado no caminho, o peitoral arfando, o  traseiro arqueado. E torna a uivar para o fundo  distante do vale escondido sob a chuva, os olhos  saltados mais alucinados do que nunca. - Cão idiota,  cale a boca! - grita Pedro o Grego voltando-se para  Sebastian, Gabriel e Moguer. - Segurem os cavalos,  essa besta vai assustá-los.

A bocarra aberta para o dilúvio, as presas  brilhando de ferocidade, o mastim hesita, trota no  rio de lama sujando o pêlo claro. Depois, esgueira-se  entre os homens e os animais rosnando. Passa tão  encostado nos jarretes do cavalo de Pedro que o  andaluz abre as pernas e desloca uma pedra com um  coice.

Depois de quicar três vezes, a pedra cai na  ravina, leve como as gotas de chuva.

- Santo Deus, Moguer! - explode o Grego, a barba  pingando como uma esponja. - Segure esse seu pangaré  horroroso! Estou lhe dizendo que ele vai jogar todos  nós lá embaixo!

Fechando a marcha, o gordo Moguer, suando em sua  cota de algodão encharcada apesar do capote de couro  que o cobre dos ombros às coxas, puxa penosamente um  cavalo. O pobre animal foi extorquido de um doente  de verruga agonizante, numa pseudo-doação. Hoje, o  animal semi-roubado mostra-se em péssimo estado.  Feias mordidas de vampiros tornaram a abrir e purgam  um pus amarelado que a chuva não dilui. Sua  respiração é ruidosa. Ele avança arregaçando os  beiços por causa da febre e com os olhos muito  esbugalhados.

Quando, chamado por Moguer, o mastim se precipita  para ele com os dentes à mostra, o cavalo se  apavora. Com um relincho agudo, o animal balança a  cabeça procurando morder e empina diante do cão aos  uivos. A rédea foge das mãos dormentes de Moguer,  enquanto o cavalo quase o derruba com um coice. Mas  aí, a terra contida por alguns tufos de capim  desmorona sob suas patas traseiras com um barulho  surdo.

Com o peso, o cavalo cai, enquanto Moguer grita. O  pobre animal, jogando as patas à frente, tomba de  lado, batendo numa rocha com a barriga magra. Dá um  último coice com as patas dianteiras, o que o afasta  da falésia. Então, relinchando de pavor, cai no  abismo.

Sob o olhar petrificado dos conquistadores, por um  instante, ele parece flutuar. Bate com a garupa num  arbusto, gira de pernas para o ar. Ventas à frente,  bate primeiro num monte de pedras que desmorona  ruidosamente sob o seu peso. Já de pescoço quebrado,  o bicho rola para dentro de um poço cheio d'água,  umas trinta toesas mais abaixo.

- Pela Santa Virgem - assobia o Grego sacudindo a  cabeça.

Todos olham para o animal como se, apesar de tudo,  esperassem que ele se levantasse.

- Eu lhe avisei! - protesta ainda Pedro.

O olhar ainda assustado, Moguer ergue pesadamente  os ombros.

- Ora - responde ele fingindo calma. - Ele estava  doente. Não duraria muito...

Todos vêem a falsa desenvoltura contida nessas  palavras. Sebastian diz devagarinho em tom de  brincadeira:

- Cavalo que se ganha rápido se perde rápido!   Moguer levanta a cabeça, a boca cheia de raiva:   - Você aí, seu preto, você...

Mas não tem tempo de terminar o insulto; Gabriel  mostra o fundo do vale:   - Olhem! Olhem!

De debaixo dos arbustos pingando de chuva, do meio  do mato, de detrás dos rochedos, surgem cerca de  vinte índios. Toda a prudência arrulada pela  curiosidade, eles se aproximam do cadáver do cavalo  e o cercam.

Ao vê-los, o cão que estava calado começa a latir  novamente. Os índios ficam imóveis e erguem o rosto  acobreado para os espanhóis. Mas estão longe demais  para temer o que quer que seja. Quando o primeiro  deles ousa esticar a mão para o cadáver do cavalo, o  Grego estala a língua e continua a marcha:   - Claro que eles nos vigiam! O que acham? Noite e  dia. Quando vocês estão roncando, eles estão  contando os pêlos das suas narinas. São como moscas.  E nós caímos no pote de mel!

No meio do dia, estafados, os nervos à flor da  pele por causa da invisível presença dos índios,  eles passam a garganta.

A chuva, finalmente, pára enquanto eles descem  rumo a um vale estreito. Os verdes-claros das  plantações, superpostos em longos terraços em curva  e sustentados por muros cuidados, formam uma espécie  de leque ao longo do rio. A tempestade deu lugar a  um céu de um azul tão profundo que fica pesado como  um oceano.

Em duas horas, eles chegam a uma aldeia com uma  disposição agora familiar. A aldeia reúne sessenta  casas em volta de uma vasta esplanada. Esse terraço,  também sobrelevado, é dominado por uma espécie de  pirâmide atarracada, semelhante a degraus de um  trono concebido para um gigante. Os muros são  alinhados à perfeição e as pedras, tão bem  encaixadas que nem a mais fina lâmina de um estilete  poderia ser enfiada entre elas.

No último degrau, ergue-se um desses templos onde  os índios se entregam àqueles estranhos rituais  pagãos. Ali, eles queimam folhas e até seus mais  belos tecidos, esganiçam-se em sua língua  incompreensível, erguem os braços para o céu e se  entregam a todo tipo de bobagens ímpias, venerando o  sol, a lua ou sabe-se lá o quê.

Mas se na aldeia há ouro, prata, cerâmica fina ou  mesmo esmeraldas, é lá que estão!

Como todas as vezes, as crianças acorrem ao  encontro dos estrangeiros barbudos. Escondem-se  atrás das moitas, dos troncos de árvore para espiar  os cavalos e o ferro das espadas que sempre  impressionam muito. Já os adultos se mostram em  geral circunspectos. Só saem das casas ou dos  terreiros com a maior prudência e sempre atrás do  curaca.

Dessa vez, no entanto, enquanto Gabriel e o Grego,  cavalgando lado a lado, a espada cuidadosamente à  mostra, a lâmina pousada na cabeça da sela, chegam à  beira da praça em terraço, encontram ali a população  aglomerada. Ao pé dos degraus do templo, há duas  liteiras cobertas com dossel, ornadas de lamê  dourado e quadrados de plumas azuis e amarelas.

Gabriel ouve a exclamação de Moguer atrás dele:

- Ei! Não é o macacão do nosso embaixador que está  ali?

De fato, Sikinchara, o emissário do Rei índio, o  nobre e desdenhoso Orelhudo que veio ao encontro do  Governador em Cajas, aguarda-os diante dos aldeões,  cercado por um pequeno pelotão de soldados índios,  de lhamas e servos.

Seu traje é mais esplêndido do que no primeiro  encontro. Uma grande capa de um vermelho-vivo,  percorrida por motivos geométricos sutis, cai-lhe  até as panturrilhas. Por baixo, ele veste uma túnica  comprida de uma seda estranha e brilhante,  quadriculada de verde, amarelo e azul. Um plastrão  de prata e de ouro martelado lhe cobre o peito. Sua  testa e sua cabeleira grossa estão cobertas por um  capacete de couro com uma carreira de plumas curtas  e finíssimas amarelas e azuis. Há um escudo  revestido de um tecido parecido com o de sua túnica  em sua mão esquerda. Na direita, ele segura uma  lança com uma ponta de bronze maciça.

O emissário lhes sorri quando eles se aproximam, circunspectos e segurando o passo dos cavalos.

- Surpresa boa ou má? - murmura o Grego na direção  de Gabriel. - É melhor continuar montado enquanto o  Governador não tiver chegado   responde o outro.

- Ele está rindo - reclama Sebastian pousando ostensivamente o cano do arcabuz no antebraço.   - Não gosto quando eles riem...

- Bom, sorria também - brinca Moguer. - Com esses  seus dentes de preto branquíssimos, talvez eles  achem que você é um canibal!

Em volta do Senhor índio, a cara dos aldeões está  crispada de medo e respeito. No entanto, chegando  mais perto, Gabriel percebe que os índios não estão  com medo deles mas antes do embaixador Sikinchara.  Quanto a ele, seu sorriso orgulhoso é muito menos um  sorriso de anfitrião que de amo!

Quando eles param as montarias ao pé da esplanada,  o Senhor índio se aproxima. Com ele, vem apenas um  homem, que eles ainda não haviam visto. É mais jovem  que o embaixador, mais magro, o rosto fino, com algo  de febril no olhar. Como Sikinchara, está usando a  insígnia dos nobres: aqueles brincos esquisitos que  transpassam os lóbulos distendidos de suas orelhas.     No entanto, os seus têm uma cápsula de ouro mais  fina que os do embaixador. Aliás, seu traje não é  tão esplêndido, seu capacete é menos ornado de  plumas, seu plastrão, mais modesto. Em sua atitude,  contudo, há a mesma dose de nobreza e de brio e, em  seu porte, há uma violência contida que chama  atenção.

Mas quando o embaixador lhes diz algo  incompreensível, prorrompem gritos de crianças  acorrendo desde a entrada da aldeia.

E tudo acontece rápido demais.

O cão rosna e rodopia. Moguer dá um assobio sem  convicção para chamá-lo. Em dez pulos ágeis, o bicho  parte para cima das crianças que estacam,  paralisadas de medo.

Mal ecoa um grito partindo dos índios, Gabriel já  esporeou violentamente os flancos de seu cavalo.

Empunhando a espada de lado, ele berra uma ordem a  que o bicho não obedece. Pedro, por sua vez,  vocifera atrás dele. O cão, arreganhando as presas,  dá um pulo da esplanada e cai em cima de uma das  crianças enquanto as outras fogem aos gritos.

O sangue esguicha da perna do menino quando  Gabriel, abaixado no pescoço do cavalo, faz um  torniquete com a ajuda da espada. Mas, no final, ele  levanta o braço. O cão sacode o menino. Vira-o  facilmente como se ele fosse um pano e o oferece de  costas para a lâmina.

Enquanto Gabriel faz seu cavalo girar, o cão  embriagado larga a presa por uma fração de segundo  para abocanhá-la melhor na garganta. Súbito, cessa o  grito insuportável, afogado numa torrente de sangue.

Só se ouvem os rosnados dementes do cão até  Gabriel se jogar em cima dele. A espada rasga o  peitoral do bicho de um lado a outro e se crava na  terra. Tão logo se endireita, com uma fúria  alucinada, Gabriel desencrava a espada. Ainda com um  joelho no chão, com um golpe fortíssimo, corta a  cabeça do cão, que rola para o lado numa torrente de  sangue escuro.

Só então, a boca do mastim de Nápoles se abre e  larga o menino desmembrado.

- O Senhor Guaypar diz que don Gabriel é um homem e  um guerreiro corajoso.   Está escuro, e há fogueiras acesas em volta da  aldeia. Elas cercam Huagayoc com a claridade e os  ruídos de uma cidade efervescente.

A tropa conduzida por don Francisco instalou-se  ali em menos de uma hora, erguendo suas tendas de  algodão ou apenas se reunindo em volta do fogo  enquanto o Governador, seus irmãos e os capitães  eram convidados para uma refeição no palácio do  curaca pelo embaixador Sikinchara.

E agora, a barriga cheia de assado de lhama,  bolachas de milho cozidas        nas pedras e guarnecidas  com uma estranha raiz redonda, de polpa clara,       é;  doce e firme, e de uma quantidade de cerveja além da conta, as conversações prosseguem.

Foi o jovem Senhor que acompanhava o embaixador Sikinchara quem falou primeiro. Depois a voz de  Martinillo, o segundo intérprete, se levanta, num  castelhano meio ciciante e dançante como as  labaredas do fogo que volteiam em cima das brasas.         

- O Senhor Guaypar agradece a don Gabriel por ter  abatido o animal selvagem que mata as crianças...  

À tarde, quando Sebastian levantava Gabriel que  estava prostrado diante do cadáver impressionante do  menino degolado, quando Pedro o Grego        segurava  Moguer, desatinado por ter perdido no mesmo dia o  cavalo e o cão, seus olhares já haviam se cruzado  com uma certa simpatia.

Os aldeões acorreram para a criança morta,  chorando e gemendo. Os Senhores índios não se  mexeram, contentando-se em observar a disputa entre  Gabriel e Moguer com uma curiosidade fria.

Mas aquele jovem Guaypar de repente dera um passo  à frente. Espalmando as mãos e fitando Gabriel nos  olhos, ele dissera algo incompreensível. E eis que  agora o jovem se levanta de novo e, com muita  seriedade, recomeça na sua manobra, espalma as mãos  e fala.         

- O Senhor Guaypar diz que don Gabriel e ele  talvez se tornem irmãos     o quando entrarem no Outro  Mundo...      

Embaraçadíssimo, após um olhar do Governador,  Gabriel, por sua vez,   se levanta. Curvando-se numa  reverência como se faz em Toledo, ele saúda o índio  com um respeito genuíno. Atrás dele, irrompe uma  risada:        

- Puxa, irmão - diz Hernando Pizarro às  gargalhadas apontando a luva para Gabriel -, aí está  um que não é mais bastardo de todo. Esse nosso caro  Gabriel arranjou uma família...       

Risadas percorrem as fileiras dos espanhóis e os  dois senhores índios franzem o cenho.

- Calma, Hernando - replica secamente don  Francisco cortando as risadas. - Estão olhando para  nós! Martinillo, peça então a esses príncipes  notícias do Rei Atahualpa...

Enquanto o índio fala, Gabriel torna a sentar-se,  rubro por causa da afronta e se contendo a custo  para não esbofetear Hernando. O capitão de Soto  puxa-o pela manga e sopra-lhe:

- Não ligue para o idiota desse Hernando, amigo  Gabriel. Ignore-o, ele é só um fanfarrão e o seu  silêncio será um martírio para ele... Mas nos  próximos dias, vigie sua retaguarda. Moguer continua  furioso e tem tanto juízo quanto o cão que você  matou. Pode ter certeza de que ele vai querer se  vingar.

Um olhar de don Francisco os reduz ao silêncio  enquanto Martinillo se curva diversas vezes diante  do Senhor índio cuja arrogância esmaga a assembléia  toda:

- Ele diz: o Filho do Sol terminou a guerra que  fazia ao irmão Huascar que queria dividir o Império  das Quatro Direções. Com milhares e milhares de  soldados, ele venceu. Huascar, o mau filho e o mau  irmão, não é mais nada senão um prisioneiro. Em  breve, ele será como uma cinza diante do único  Senhor Atahualpa.

- Fico feliz com essa notícia - replica don  Francisco, o semblante impassível. - Fico feliz de  ouvir que o seu Rei é um grande guerreiro.

- O Senhor Sikinchara diz: não existe maior  guerreiro do que o único Senhor Atahualpa, pois ele  é o Filho do Sol. Ele venceu Huascar o louco  cercando todo o exército dele numa linha de fogo que  ardeu durante três dias de uma montanha a outra.  Huascar e seus guerreiros não conseguiam mais  respirar nem lutar. Eles suplicaram para que os  salvassem, mas os capitães do único Senhor deixaram  que eles morressem queimados como a vegetação da  planície onde eles estavam. Nosso único Senhor  Atahualpa é bom com quem o respeita e implacável com  quem lhe faz a guerra. Ficará feliz de encontrar os  estrangeiros na planície de Cajamarca. Fica só a  dois dias de marcha daqui. Espera que venham logo e  lhes providencia alimentação e alojamento.

Após essas palavras, um silêncio pesado toma conta  dos espanhóis. Se isso fosse preciso, toda a postura  do embaixador Sikinchara, o ríctus de desprezo em  seus lábios, confirmaria a ameaça contida nelas.

Gabriel procura o olhar do jovem índio nobre. Mas  o rosto magro de Guaypar permanece impassível e  fechado.

- Muito me alegra realmente a vitória de seu Rei -  prossegue o governador com uma voz estranhamente  doce. - Não duvido que ele seja um grande príncipe  cheio de coragem. Mas e bom que ele saiba que o meu  Senhor é ainda mais poderoso, que ele governa um  mundo muito maior do que esse. Seus servos e seus  guerreiros são tantos que não dá para contar. Eu  mesmo, com os poucos guerreiros que me cercam, já  venci príncipes tão poderosos quanto o Rei  Atahualpa... E depois ainda temos um Senhor maior, o  Reino dele e na terra como no céu, ele reina sobre o  Sol, a Lua e as estrelas assim como sobre os homens,  as plantas e os animais. É ele quem nos dá nossa  força. E é por isso que somos tão poucos. Graças a  nosso Senhor Deus, cada um de nós pode lutar como  vinte ou trinta homens comuns... Mas pode dizer a  seu Rei que estaremos em Cajamarca nos próximos  dias. Se ele quiser me receber, serei amigo dele.  Mas se quiser a guerra, faço-lhe a guerra como fiz a  todos os que se opuseram a mim, a meu Imperador e a  meu Deus.

O semblante de Sikinchara já não exprime nenhum  desprezo. Está apenas contraído e pesado de ódio. O  jovem Guaypar levanta-se e murmura uma frase curta  que Martinillo não traduz. Depois, seu olhar procura  novamente o de Gabriel.

já não tem mais nada de amigável. É apenas o olhar  de um homem pronto para lutar até a morte sem jamais  sentir o menor receio do adversário. Gabriel não  tira os olhos dele. Esforça-se para dar um sorriso  que talvez não passe de um esgar crispado. Em seus  lábios, formam-se palavras que o outro não vai  entender:

"Não tenho medo." Mas ele não tem certeza.

 

                                   Cajamarca, termas do Inca, 14 de  novembro de 1532.

As termas do Inca ficam perto da cidade, numa  planície onde a terra e a água estão sempre se  misturando. Saindo da estrada real, o estrangeiro se  perderia nos pântanos ou - pior - nas fontes de água  escaldante que encontram rios frescos.

É aí que o único Senhor se estabeleceu, que montou  o acampamento de seu exército cujas tendas brancas  invadiram a planície e sobem as encostas suaves das  colinas que circundam a cidade.

A noite vem chegando no pátio da residência do  Inca que descansa, ao entardecer de seu terceiro dia  de jejum.

De quando em quando, Anamaya dá uma olhada para o  desfiladeiro por onde os estrangeiros logo vão  chegar, lá, acima das casas e dos palácios de  Cajamarca, pela estrada cujos degraus regulares são  visíveis mesmo daquela distância. Como serão eles?

Há dias e luas, ela ouviu o que os espiões  disseram, as palavras de desprezo de Sikinchara, a  desconfiança e o ódio de Guaypar; ouviu as  descrições sobre a feiúra daqueles homens e as  perversidades de que eram capazes, sua avidez, suas  mentiras...

No entanto, ela quer vê-los, encará-los,  compreendê-los, talvez - e é mais que uma simples  curiosidade que a anima.

- Anamaya?

Inti Palla atravessa o pátio e lhe faz sinal, do  outro lado da fonte de águas misturadas que fica no  centro. Anamaya vai ao seu encontro. A concubina  continua com aquele ar triste que assumiu desde que  perdeu os favores do único Senhor.

- Ele quer vê-la - diz ela com voz neutra.

Ele está descansando à sombra, em meio à fumaça  dos perfumes que ardem, impregnando o ar úmido com  seus odores pesados. Anamaya adianta-se de cabeça  baixa, encurvada.

- Endireite-se - diz ele com uma voz cansada - e  olhe para mim...   Ela hesita. Há tanto tempo ela não escuta essa  ordem amigável que a intimidade que os ligava antes  parece apenas uma lembrança...

- Endireite-se - repete Atahualpa beirando a  violência. - Estamos sozinhos!

- Como quiser, único Senhor.

- Eu quero, sim! E venha cá - acrescenta ele com  mais delicadeza -, como você não hesitava em fazer.

Ela se aproxima com passos medidos, evitando  encontrar seu olhar vermelho.

- Você não era o único Senhor, então...   - Sem você...

- Você já me agradeceu, mas Inti, Quilla e todos  os Poderosos do Outro Mundo é que fazem o que  acontece, único Senhor, e não uma criança que saiu  da floresta...

Seu sorriso lança uma faísca.

- Olhe essa pena, menina, e pegue-a...

Ele tem nas mãos a pena do curiguingue, que displicentemente tirou da tiara real. Anamaya não  consegue evitar um estremecimento.

- Não tenha medo. Faça o que eu digo...

Ela pega a pena nas pontas dos dedos, tomando  cuidado para não tocar na mão do soberano.

- É leve, não?

Anamaya balança a cabeça. Em sua mão, o peso da  pena de cores maravilhosas é imperceptível.

- Tão leve, menina, e no entanto tão pesada em  minha testa que eu perco o sono...

Ela se cala, comovida com o tremor e a sinceridade  de sua voz.

- Foi legitimamente que a tirei de meu irmão, não?  No entanto, jamais esqueço o que falam nas minhas  costas, o que até as pedras clamam, em Cuzco: não  fui eu quem foi escolhido regularmente...

- Mas foi você quem conquistou esse direito, por  sua coragem...

- E porque confiei nas suas visões, e também  porque você me transformou em serpente, não?

Ele ri, com um pouco de amargura.

- Eu já lhe disse por que meu pai não me escolheu? - A sua mãe...

- ... Não pertencia a um clã poderoso, continuam  repetindo isso. Mas eu sei. Eu sei...

Ele se interrompe, suspira antes de prosseguir.

- Quatro estações depois de eu ter passado com  sucesso no huarachiku, meu pai, o Inca Huayna Capac,  enviou-me à frente de um exército para combater uma  tribo revoltada e submetê-la à autoridade dele. Fui  derrotado, e, se meu pai não tivesse vindo ao meu  encontro, quem sabe se a derrota não teria sido uma  ruína...

- Foi contra os índios canaris, perto do lago de  Yaguarcocha? Ele olha para ela, pasmo.

- Você sabia disso também?

Ela não responde. Lembra-se da primeira noite em  que o Anão entrou em seu quarto, desse segredo que  ele trazia... Por um instante, ela pensa naquele que  era seu único amigo, nas piores épocas de sua  solidão... Será que ele havia morrido ou estaria  vivo?

Atahualpa continuou fitando-a, procurando  adivinhar o mistério de seu silêncio. Depois, fez um  gesto de cansaço.

- Pouco importa, afinal. Lembro-me da minha  imprudência, menina, do orgulho insensato que  inflava meu peito... Lembro-me do torpor que me  invadiu na derrota, quando, por minha culpa, caíam  milhares de combatentes valorosos. E sobretudo,  lembro-me da minha vergonha diante do olhar de meu  pai...

   Ouve-se uma agitação atrás da cortina que os  protege dos guardas, dos criados e das mulheres.

- Esse olhar está sempre pousado em mim, assombrar  - diz Atahualpa num tom sonhador.   - Único Senhor! - chama um yanacona.  

- O que está havendo?

- É o curaca de Cajamarca.   - Não quero vê-lo agora.

- Nós lhe dissemos, Senhor, mas ele insiste.

Atahualpa olha para Anamaya com uma lassidão  infinita.

- Esta pluma do poder - diz ele - tão leve, e tão  pesada...

O curaca adianta-se, uma pedra às costas, e pede  perdão a seu único Senhor por perturbá-lo em seu  repouso.

Atahualpa interrompe-o com um gesto.

- Fale - ordena ele.

- Único Senhor, os estrangeiros não estão a mais  que um dia de marcha da cidade.

- Quero - diz Atahualpa com firmeza - que eles se  sintam acachapados pelo meu esplendor...

- Dê-me suas ordens...

- Quero que eles entrem numa cidade deserta, sem  nenhum homem e nenhuma mulher, e que sintam o  coração apertado de aflição, que tenham o espírito  invadido por perguntas sem resposta...

- Quando isso deve ser feito?

O grito de cólera escapa dos lábios do Inca.

- Quando disse que eles chegariam, curaca sem  cérebro? Amanhã? Então isso deve ser feito hoje à  noite.

- Hoje à noite - repete o curaca.

Tarde da noite, Atahualpa pede que ela fique  deitada ao lado dele. Ela primeiro tem medo que ele  a confunda com uma concubina. Mas ele lhe fala com  abandono e confiança, com uma voz que murmura como  um regato, e ela custa a acreditar tratar-se do  mesmo homem que esbravejava de raiva, ainda há  pouco, do mesmo que dava a ordem dos massacres de  Cuzco... Por três vezes, ele se cala por alguns  instantes, sendo a sua respiração o único som  audível no escuro, e por três vezes ela pensa que  ele adormeceu. Ao fazer menção de levantar, ela ouve  a voz dele dizendo calmamente: "Fique, não me  abandone", com uma aflição tão profunda, tão triste,  que ela sente o coração apertado.

Ela lhe diz que lamenta já não lhe ser útil como  antes, já não saber dizer as palavras e ver os  sinais do Outro Mundo. Ele interrompe com  delicadeza. - Eu não espero nada - diz - além da sua  presença, menina dos olhos azuis de lago, só gosto  de você pelo que você é.

Quando o dia começa a raiar, ele a deixa sozinha  no leito e se ajoelha diante dela, para sua  confusão. Sem encostar nela, passeia o rosto por  todo o seu corpo, dos pés à cabeça, com uma espécie  de devoção animal, como se procurasse um segredo  escondido em seu anato branco, em sua pulseira de  serpentes, em suas pernas compridas ou em suas ancas  finas...

Ela se obriga a uma imobilidade perturbada apenas  por sua respiração. Quando termina o passeio, o Inca  aproxima bem o rosto do seu.

- Seus olhos - murmura ele -, seus olhos...

Ela fecha as pálpebras e sente a carícia leve como  uma asa de borboleta, de seus lábios em suas  pálpebras.

Quando abre os olhos, ele desapareceu.

 

                                   Cajamarca, sexta-feira, 15 de novembro  de 1532.

É meio-dia, mas o céu está negro.

Eles chegam no platô que domina o vale com alguns  minutos de diferença do resto da tropa. Os cavalos  percebem a excitação dos cavaleiros. Apesar do  cansaço e da altitude, por si mesmos, eles se  afastam da via calçada e prosseguem a trote pela  relva rasteira. Como Pedro o Grego, Diego de Molina  ou Juan, o jovem irmão do Governador, Gabriel não  pensa em segurar sua montaria. Ele sorve a plenos  pulmões o ar frio dos Andes que o deixa um pouco  embriagado. Bruscamente, sem que nesse gesto haja o  menor espírito de orgulho ou de competição, atiça o  cavalo com um toque seco de calcanhar. O animal  estremece da garupa ao pescoço. Num saracoteio  imperceptível, passa ao galope, abaixando um pouco  as orelhas e abrindo a boca para pegar o freio. Gabriel ouve uma risada e um chamado atrás dele,  mas não se volta, apenas se levanta da sela para  acompanhar o galope com mais agilidade.

Os cascos percutem na terra compacta e o andamento  do animal mistura-se às batidas violentas do coração  de Gabriel. Ele passa por uma cerca de agaves antes  que a estrada pavimentada se estreite entre dois  muros que for mam uma espécie de porta. Do outro  lado, não há mais que um campo em declive acentuado,  ponteado de grandes rochedos entre os quais pasta um  punhado de lhamas que fogem atordoados quando o  cavalo relincha.

A alguns passos da descida vertiginosa, invadido  por um medo quase religioso, ele puxa as rédeas para  parar a montaria e apeia do cavalo. Aproxima-se de  uma pedra maior que uma casa e ali, agarrado à  rocha, de uma vez só, descortina um espetáculo  inaudito.

A seus pés, o vale é comprido como um mar,  enroscado entre as encostas abruptas de montanhas  superpostas que parecem sustentar a massa difícil das nuvens. Mas tem apenas uma ou duas léguas de  largura, E, de um lado ao outro, está coberto de  tendas!

Milhares de tendas brancas, juntas como as penas  de uma asa imensa e que, em alguns pontos, cintilam  com um brilho dourado. Estandartes encimam a ponta  dos capitéis, salpicando de cores violentas essa  imensidão clara. Das tendas, sai uma fumaça que fica  estagnada, amarela e densa sob as nuvens. Barulhos  sobem, rugidos de trompas, gritos, chamados...

Uma monstruosa cidade de tendas, cheia de vida! -  Pelo Sangue de Cristo!   Gabriel nem sequer ouviu chegarem seus  companheiros quando se assusta com a exclamação de  Pedro.

De novo, em frente ao vale, ao pé da montanha  defronte a eles e ao longo do que parece um pântano,  aparecem faíscas cintilantes no dia escuro. O jovem  Juan Pizarro é o primeiro a reagir.

- É ouro? É ouro que vemos brilhar assim? -  pergunta com sua voz aguda.

Nenhum dos três companheiros lhe responde. Eles só  têm energia para respirar. Apesar do suor que  escorre por baixo de suas cotas acolchoadas, um  mesmo estremecimento retesa seus músculos.

Olhando melhor, eles vêem que as tendas não estão  dispostas ao acaso de um acampamento militar, mas  sim reunidas formando espécies de quadrados e  retângulos alinhados com muito cuidado. Formam  verdadeiros quarteirões, com ruas, praças e  terreiros. E essa cidade efêmera que se ergue diante  deles, mais que uma muralha, constitui uma barreira  intransponível para o sul! Quantos milhares de  homens, de soldados, esperam ali?

Vinte, trinta, quarenta mil? O dobro?

"Senhor Deus", pensa Gabriel, cerrando os dentes.  "E nós que só somos um punhado!”

- O bugre desse inca escolheu bem o local -  resmunga Pedro como se tivesse seguido o pensamento  de Gabriel. - Sabia o que estava fazendo ao nos  convidar para vir cá!

- Olhem a cidade! A cidade de verdade! - exclama  Diego de Molina, que acaba de contornar a pedra.

A cidade está bem embaixo deles, mas à direita,  incrustada no flanco de uma encosta e estendendo-se  até a margem esquerda do pântano. Suas construções  de barro tanto quanto de pedra estão em ótimo  estado, os tetos novos e bem mantidos. Todavia, comparada à planície  coberta de tendas, parece uma cidade minúscula...  Ali não se distinguem muito mais de dez canchas  estreitamente superpostas. Voltado para o leste,  para a planície, um longo muro de adobe delimita uma  praça.

Uma praça muito ampla e muito deserta.

- É lá que devemos ir - murmura Gabriel  maquinalmente. - Mas não parece que nos esperam...

A respiração rápida, o peito dolorido, ele se  senta na mesa da pedra. Da melhor maneira possível,  tenta apreender de uma vez a enormidade da cena que  se oferece a ele.

Finalmente, ele chegou lá!

Lá, diante desse vale que parece um mar, ameaçador  como um monstro desconhecido e no entanto magnífico.

Enquanto Pedro e Alonso, febrilmente, já estão  tornando a montar para ir avisar o Governador do que  lhe espera, as nuvens atrás dele se rasgam  violentamente. Ao mesmo tempo que banha de luz a  brancura das tendas, o sol lhe bate na nuca.

No fundo do vale, nas encostas entre os picos e os  abismos, surge uma rede de sombras estranhas. Elas  ondulam, abrem sulcos nas florestas, serpeiam entre  as tendas, se apagam e renascem, animadas, ao que  parece, por uma vida própria.

O raio de sol encolhe, diminui para tomar a forma  de uma lança. No sopé da encosta que leva à cidade,  no local em que, segundos antes, Gabriel só havia  visto um quadrado de relva onde despontavam tantas  pedrinhas quantos brotos de batata, nasce uma forma  luminosa, pairando acima dos sulcos e do verde tenro  das plantas. Uma forma de contornos familiares! Uma  forma igual àquela que Sebastian desenhou na areia  diante de Tumbez. Igual à marca em seu ombro.

Lentamente, a sombra se mexe. Ele julga ver as  presas se arreganharem, as orelhas se afastarem ao  vento. Duas pedrinhas amarelas fazem as vezes de  olhos.

Parece-lhe então que todo o peso do céu pressiona  suas pálpebras e lhe fecha os olhos. Como uma  criança que se entrega ao transe de sua imaginação,  ele fecha os olhos e o animal salta em seus sonhos.

Com uma sacudidela, a mão de Pizarro o tira do  sonho.

Ele se levanta sobressaltado.

- Não é esplêndido? - exclama o Governador.

Seu olhar brilha de orgulho. Gabriel não lê ali nem  uma gota de medo ou de dúvida. Os dedos de Pizarro  apertam seu ombro com tanta força quanto se  quisessem lhe triturar os ossos.

- Não lhe prometi que o traria aqui? Não lhe  prometi! - diz ele ainda num sopro, a barba vibrando  de excitação. - Cá estamos, meu filho! Cá estamos  finalmente! Eles estão todos aí para nós e vão ficar  sabendo quem somos!

Ouve-se um alarido enquanto os homens vão chegando  um a um - cavaleiros à frente, com os irmãos  Pizarro, Soto, Benalcazar, depois os soldados de  infantaria, seguidos dos feridos, dos carregadores,  dos escravos, dos índios da costa... Quantos são ao  todo? Talvez dez mil. E em combate? Dois ou três  mil, no máximo. À frente, dez, vinte, cem vezes  isso.

Os homens recobram o fôlego e avistam o espetáculo  em silêncio. Alguns sentam-se nos rochedos e seguram  a cabeça com as mãos; outros ficam simplesmente  contemplando e enchendo os pulmões, barba ao vento.  Todos se calam. Ao longe, sobe, como que para os  acolher, o alarido sinistro das trompas.

O primeiro a falar confessaria que o medo lhe  aperta as entranhas. Ninguém quer ser o primeiro a  fazer essa confissão.

O embaixador Sikinchara aproxima-se do governador  e fita-o com seus olhos negros. Ele queria se saciar  com o medo do grande capito espanhol. Queria vê-lo  pestanejar diante do esplendor da onipotência de seu  senhor. Mas don Francisco Pizarro vira-se para  Sikinchara com um sorriso amável:

- Vamos ao nosso encontro - diz ele calmamente.

Mal eles saíram do desfiladeiro, a chuva voltou,  fina e constante. O declive da estrada real é tão  acentuado que as lajes tornam-se um perigo para os  cavalos. Todavia, os cavaleiros não precisam de  nenhuma ordem para apear e segurar os animais pelas  rédeas.

Todos evitam olhar para o fundo do vale. Da imensa  cidade de tendas dos índios, os sons de trompa sobem  de quando em quando. Mas o alarido que os próprios  homens fazem basta para não se ouvir mais nada.

O grosso da tropa indígena ficou no alto do  desfiladeiro, só os servos e os carregadores  acompanham os espanhóis. Don Hernando reivindicou o  privilégio de ir à frente, juntamente com o embaixador dos  incas, Sikinchara, dez homens a pé e cinco  cavaleiros de confiança. Pedro o Grego faz parte  desta vanguarda com Sebastian. E também o gordo  Moguer, a pé e sem cachorro. Gabriel não precisou  declinar do convite para lá estar: este não lhe foi  feito. Não importa, ele está feliz de ir ao lado do  Governador, duzentos ou trezentos passos atrás da  vanguarda.

A beira da estrada real, as cabanas de junco e de  barro amassado com palha dos pastores estão  desertas. Os campos estão desertos. Não se ouve  mulher nem criança chamando. Ás hastes malva de um  canteiro de quinoa estão envergadas com o peso da  chuva.

Mais embaixo, a estrada real se estreita e fica  tão íngreme que nela foram construídos degraus. Ali,  as choças dão lugar a casas de muro de adobe e às  vezes de pedra. Mas estas também estão vazias.

O ronco do rio torna-se obsedante. Dos pântanos  que beiram a colina do norte e se estendem até os  prédios das termas do Inca, sobe de repente uma  bruma espessa qual fumaça. Todos viram a cabeça com  desconfiança antes de compreender que se trata  apenas da condensação formada quando o vapor que sai  das águas quentes entra em contato com o ar frio.

Gabriel percebe que o Governador não tirou os  olhos da cidade indígena. A cidade é ainda maior do  que parecia do desfiladeiro. E numa reentrância do  vale, atrás das ruas e das casas que se comprimem na  imensa praça, de repente, eles avistam uma  fortaleza.

Como a tropa instintivamente diminui o passo, don  Francisco vira-se para Gabriel e diz num tom alto o  bastante para que possa ser ouvido de longe:   - É só um rochedo!

E é verdade. Uma pedra cônica, perfeitamente  circular, amarelo-escura e preta sob a chuva, na  qual foi talhado um caminho em espiral! Afinal de  contas, aquilo parece a concha de um caracol! O topo  é encimado por uma construção estreita. Don  Francisco aponta para ela com o dedo enluvado e diz  ainda:

- É aí que plantaremos a Cruz de Cristo e um campo  de rosas para a Santíssima!

Ouvem-se risadas, mas elas são breves. Frei  Vicente Valverde se persigna e murmura:

- Que o Senhor o ouça!

- Ele me ouve - sorri don Francisco.

Quando eles entram na primeira rua, quando os  cascos dos cavalos batem nas lajes de pedra  assentadas com tanta perfeição, a chuva, de repente,  transforma-se em granizo. Milhares de pedras finas e  brancas tamborilando no ferro dos morriões, gelando  caras e narizes e cobrindo o chão todo de branco.

A praça onde eles finalmente entram também está  branca, imaculada, sem nenhuma pegada.

É uma praça imensa, maior do que todas as praças  sagradas dos incas em que eles já entraram. Maior  até, pensa Gabriel com um arrepio que não vem do  frio, que qualquer Plaza Real da Espanha!

Sua forma é irregular, como um retângulo truncado  que se transforma em trapézio e depois em triângulo.

Um muro de adobe mais alto que um homem e de, no  mínimo, quinhentos passos beira-a pelo lado sul e a  isola dos pântanos. Os outros lados são ocupados por  esplêndidos prédios cheios de portas. São todos  muito compridos, com mais de duzentos passos, que é  também a largura da praça. E como sempre, há,  deslocada para a esquerda, essa pirâmide com degraus  gigantescos onde os índios vão adorar seus deuses e  se entregar aos ritos pagãos.

A chuva de granizo pára tão subitamente como  começou. Todos ficam imóveis. Don Hernando e sua  vanguarda não foram mais longe. No silêncio, ouve-se  a oração que Frei Vicente Valverde murmura  mecanicamente só para si.

Do outro lado da praça, perto de uma grande porta  em forma de trapézio que dá para o imenso vale, um  cão late. Um cão indígena, miúdo e fino como uma  cruza de lebréu mas de pêlo tão curto que parece  inexistente. Os mastins de Nápoles lhe respondem e  imediatamente recebem ordens de calar.

É hora das vésperas. Mas o céu está tão carregado  que está escuro como ao entardecer.

Os semblantes estão fechados e severos. Não é só  medo. Gabriel agora conhece bem as caras do medo. O  que vê em volta dele está mais para espanto.  Naturalmente, ninguém esquece a presença das dezenas  de milhares de índios do outro lado do muro, no vale  para onde foge o cão que continua a latir. Mas, do  fundo das entranhas, no sangue que lateja até as  pontas dos dedos, todos sabem que aquele dia não  será como os outros.

Sim, aquele dia de novembro - e que é um dia  estranho de verão nessa latitude - será um dia de  verdade. Um dia depois do qual nada mais será igual  na vida dos homens como no mundo de Deus.

Só o Governador não muda de cara.

Após ter contemplado a praça, ele se vira para o  embaixador Sikinchara como se estivesse aguardando  uma palavra, um sinal dele. Mas nada vem. Os lábios  orgulhosos do nobre índio não tremem. Seus olhos não  pestanejam.

No meio dos cento e setenta espanhóis presentes,  ele é o único, com seus criados, a estar vestido com  cores vivas. Naquela estranha luminosidade invernal  que o tapete de granizo oferece, seus brincos de  ouro brilham como o sol desaparecido.

Ele marcha num passo constante e forte, a  expressão hermética porém serena. Como pode o irmão  do governador, por mais nobre fidalgo que seja,  achá-lo arrogante ou ridículo?, pergunta-se Gabriel  impressionado. E perigoso, sem dúvida, tanto quanto  o jovem Senhor de rosto magro que já deve ter  seguido para o acampamento do Rei índio para lhe dar  conta da entrevista da véspera.

Então, com uma leve esporeada, don Francisco faz  sua montaria trotar até o pé da pirâmide. Os cascos  do cavalo rangem ligeiramente no granizo, ali  deixando suas pegadas.

Ao chegar ao pe da escada, ele puxa a rédea. Dando  uma volta ampla, coloca-se de frente para a tropa,  que continua imóvel, e grita:

- Embaixadores, mandem avisar ao príncipe  Atahualpa que o enviado de Sua Majestade Carlos V o  aguarda aqui. Que ele nos diga onde vai nos alojar!

O Único Senhor Atahualpa ainda tem a pele vermelha  do banho quentíssimo que tomou enquanto chovia  granizo. Agora, está descansando numa rede de tela  fina esticada entre duas colunas de madeira  entalhada no aposento que dá para o pátio. Olhos  entreabertos, ele vê o granizo derreter e a água  fervente da fonte fumegar.

Inti Palla abana-o para protegê-lo do calor pesado  que voltou logo após a tempestade de granizo. O ar  está impregnado dos vapores sulfurosos das águas.

Afastada, sentada entre as Esposas, Anamaya se  pergunta se ele está cochilando, tonto por causa do  banho, ou se está pensando, como ela, no que acabam  de ver do outro lado do vale.

A luz era péssima e a distância, grande demais  para que distinguissem bem os estrangeiros. No  entanto, no flanco abrupto da montanha adivinhava-se o cortejo deles descendo a estrada  real entre os campos de batata e de quinoa.

Não um cortejo muito longo, não uma grande tropa,  como anunciaram Sikinchara e Guaypar. Mas sim um  cordão negro e cinzento nos verdes suaves da  natureza. Uma procissão sem nenhuma das cores  apreciadas pelos Filhos do Sol. Só um cortejo  negro, cinzento e descorado, como uma comprida  minhoca rastejando até o leito do vale.

Mas talvez o único Senhor esteja dormindo, pois  não move um cílio enquanto se ouvem barulhos fora do  pátio e Guaypar vem se prosternar sob a rede.  Guaypar permanece prosternado um instante,  aguardando a pergunta do único Senhor. Como esta não  vem, sempre de cabeça baixa, ele anuncia  respeitosamente:

- Único Senhor, o mensageiro de Sikinchara chegou.  Os estrangeiros entraram na praça...

Atahualpa espera um pouco antes de perguntar: - O  que eles estão fazendo?

- Estão no pé do ushnu, em volta do capito deles.  Alguns andam de um lado para o outro nas ruas e  entram nas casas como se estivessem procurando  soldados escondidos.

Atahualpa dessa vez abre os olhos e ri para  Guaypar.

- O medo nem sempre tem aparência de medo, irmão  Guaypar! Ruminahui fez o que deve?

Desde que amanheceu, único Senhor. Vinte mil  soldados cercam a cidade. Eles estão invisíveis,  escondidos atrás dos morros, das árvores, do capim  alto. Os estrangeiros caíram na cilada. Basta você  decidir que os queimaremos vivos hoje à noite, como  porquinhos-da-índia!

- Você tem sede de guerra, Guaypar! Mas sabe o que  decidimos. A Mãe Lua não gosta de nos ver lutar de  noite e Inti quer que eu acabe o meu jejum. Faremos  isso tudo amanhã. Será uma grande festa e um grande  dia para os filhos de Inti.

- Faremos como diz, único Senhor - admite Guaypar  com pesar.   - Que Sikinchara ordene aos estrangeiros que  fiquem na praça esta noite. Que anuncie que eles  poderão talvez se prosternar diante de mim amanhã.     Enquanto Guaypar se retira, uma pluma do abanador  que Inti Palla agita encosta no rosto de Atahualpa.  Com um muxoxo irado, ele se ergue apoiado num  cotovelo, os olhos soltando chispas. Inti Palla dá  um grito, cai de joelhos e recua precipitadamente.

Enquanto uma outra concubina corre para lhe tomar o  lugar, os olhos demasiado vermelhos de Atahualpa  encontram o olhar de Anamaya, que não baixou as  pálpebras.

- São apenas homens, não é, Coya Camaquen?  Viracocha não envia ninguém para me apoiar agora que  em breve eu devo ir saudar meus ancestrais em  Cuzco...    Sua voz está tão amargurada que Anamaya não  encontra palavras para lhe responder. Ela pensa com  espanto na noite que passou a seu lado; com certeza  ela deve ter sonhado...

Com a ponta da espada, Gabriel afasta uma  tapeçaria. Um pouco de luz entra no aposento grande  e quente, impregnado de odores de terra e relva.  Parece vazio.

Quando se prepara para largar o tapete que serve  de porta, ouve um grunhido. Um porquinho-da-índia de  pelagem fulva corre entre as tigelas de cerâmica.  Depois outro, e mais dez que de repente proliferam  como ratos aos guinchos. Só então, Gabriel vê, no canto oposto, semi- escondido por um feixe de   galhos, um par de olhos  brilhando. Depois um pé, pequenino. E uma mão minúscula. Uma  criança! Gabriel sorri de alívio tanto quanto de  prazer. Passa a espada para a mão esquerda e se  abaixa, murmurando:        - Bom dia, menino.

O menino está petrificado, os olhos arregalados. É  bonito, tem as faces        sedosas, boca delineada como  boca de mulher. Seus pesados cabelos negros  enquadram seu rosto de feições finas e regulares.   Gabriel se agacha, fazendo as botas estalarem e a  espada tinir ao bater   nas esporas. Ele descalça a  luva direita e estica a mão ampliando o sorriso.

- Não tenha medo - diz, com toda a delicadeza  possível. Não tenha medo, menino... Sua voz soa estranha a seus próprios ouvidos.  Ele não tem tempo de pensar na visão que oferece ao  menino, com sua cota acolchoada, suja e ainda úmida,  com seu capacete, sua espada, sua barba que lhe  esconde o rosto até os olhos.

Os porquinhos-da-índia guincham cada vez mais e  correm para todos os lados.

- Não tenha medo, menino - repete Gabriel. - Sou  seu amigo... Como o menino continua parado, Gabriel  se levanta, e, estendendo a mão, faz menção de se  adiantar.

Então o menino dá um pulo e atravessa o aposento  como um gato.

- Menino!

Porém, pasmo demais para fazer um gesto, Gabriel  vê o menino franzir os olhos, cerrar os punhos  diminutos extraindo o que lhe resta de coragem e  investir para ele, evitá-lo por pouco e sair  correndo porta afora. Quando ele se volta, o menino  já está atravessando o pátio. Sobe num monte de  madeira e pula o muro antes de desaparecer.

No vão da porta do pátio, Sebastian deixa escapar  uma risadinha.

- Eu não queria lhe fazer mal - protesta Gabriel  calçando novamente luva.

Sebastian pára de rir. Eles se fitam, olhos nos  olhos.

- Eu também, quando era pequeno, corria dos  espanhóis - diz o Negro Sebastian. - E quase sempre,  amigo Gabriel, era com razão!

- Então? - pergunta o Governador quando eles  chegam à praça.

- Não há nenhum soldado - anuncia Gabriel.   - Algumas crianças, mulheres, velhos.

- Nenhum homem, nenhum guerreiro, só alguns  guardas na frente dos depósitos abarrotados de uma  miscelânea de coisas - insiste Sebastian.   - Eles são tranqüilos - prossegue Gabriel. - As  mulheres continuam tecendo como se não estivéssemos  ali.

- Quantos? - pergunta o Governador.

- Quatrocentos ou quinhentos, no máximo.

Sebastian mostra um muro alto e bonito defronte a  eles, à esquerda. - É o palácio - explica. - Ali há  criadagem e o pátio não é como os outros, as paredes  são pintadas e há serpentes gravadas nas pedras.

- Ninguém está interessado em serpente    chia dom  Hernando cujo cavalo está nervosíssimo. - Será que o  "Senhor" Gabriel descobriu alguns locais de defesa?

- Lá em cima, don Hernando - replica Gabriel sem  reparar no sarcasmo. - Do topo da rocha, a vista é  perfeita, vê-se a cidade e a planície, e até a  estrada que leva até as tendas e os alojamentos do  Inca. É uma estrada larga, calçada e inclusive  arborizada até o pântano. Eles não podem fazer  nenhum movimento em nossa direção sem que  percebamos...

- É óbvio que lá de cima dá para ver bem -  resmunga Moguer -, não precisa subir para se dar  conta.

- Don Francisco - intervém o capitão Soto -,isso  tudo me entristece.  

- Ah?

Soto indica com o olhar o embaixador Sikinchara  que mensageiros índios acabam de alcançar.

- Para meu gosto, isso está parecendo demais uma  cilada - murmura Soto. - Nenhum guerreiro no local!  Uma cidade inteira para nós. Deixam-nos um posto de  observação magnífico para não ver nada, muros para  nos encerrar e dezenas de milhares de soldados em  volta. Não, Governador, não estou gostando disso. Os  índios são o que são, mas esses sabem fazer batalhas  e estão habituados a vencê-las... não os subestime.

- Soto tem razão - diz don Hernando a contragosto.  - Sabemos o que vale o canto desses pássaros. Eles  só têm mentira e astúcia na boca.

- Podemos botar o falconete lá em cima, senhor -  diz Pedro o Grego mostrando a plataforma da  pirâmide. - Isso nos dará um bom alcance. Todos  olham juntos para o topo do ushnu e o lance de  degraus íngremes que leva até lá.

- Sim - diz finalmente don Francisco. - Você  arranjará o número de homens que for preciso para  escalá-la antes do anoitecer...

- Mas isso não basta - reclama ainda don Hernando  olhando atravessado para Gabriel. - Esse cretino não  sabe ver o que há para ver. Olhe a feição da cidade,  encostada no morro. Eles podem nos surpreender lá  embaixo, pela retaguarda, atacar as ruas sem a gente  sequer perceber.

- Bem, meu irmão - diz don Francisco calmamente,  enquanto mais uma vez Gabriel permanece mudo diante  do insulto -, se isso o tranqüiliza, por que não vai  lá se certificar pessoalmente?

Don Hernando hesita, puxa um pouco as rédeas de  sua montaria, que começa a andar de lado arregaçando  os beiços. Gabriel fita-o nos olhos, um sorriso  irônico no meio da barba. Don Hernando faz um sinal  para dois ou três outros cavaleiros. Os cascos dos  cavalos percutindo alto nas lajes, eles atravessam a  praça com um trote exagerado.

Ao redor, os homens conservam uma expressão tensa.  O nervosismo dos capitães é como uma areia lhes  rangendo entre os dentes. Só Frei Vicente se  aproximou do grupo de carregadores para conferir os  baús que contêm o grande crucifixo, a água benta e  seus paramentos para celebrar a missa.

Mal don Hernando e seus companheiros saíram por  uma das portas da praça, Martinillo, o intérprete,  se aproxima do cavalo de don Francisco e se curva  respeitosamente.

- O Senhor Sikinchara recebeu uma mensagem do  único Senhor Atahualpa - anuncia.

- Ah? E qual é?

- O Único Senhor Atahualpa participa ao Senhor  Governador que pode pernoitar na praça e que ele  virá amanhã de manhã...

Gabriel adivinha a hesitação de Martinillo. Mas o  jovem intérprete conclui, baixando os olhos:

- O Único Senhor Atahualpa diz que está jejuando  para agradecer ao Pai Sol as suas vitórias e que não  pode deixar os banhos sagrados. Ele diz que virá  amanhã para... para ter um encontro educado com o  Senhor Governador.

A cólera de don Francisco talvez seja apenas  fingida, quando ele se vira para o embaixador  Sikinchara. No brilho de seus olhos, Gabriel parece  adivinhar a mesma dose de diversão que de fúria:

Pernoitar na praça! Lá, debaixo desse céu nublado  e chuvoso? Essa não, embaixador! O enviado de Sua  Majestade não dorme ao relento quando há belos  prédios para ele. E também não gosta de esperar em  vão!

Mas, enquanto Martinillo traduz suas palavras, o  capitão de Soto declara: - Don Francisco, deixe-me  ir até o acampamento do Inca, e saber o que ele quer  conosco.

- Isso é arriscado, Soro. Vocês estarão à mercê  dele.

- Não é mais arriscado do que estar aqui como  novilhos numa arena. E depois, saberemos finalmente  como é esse acampamento. E esse Atahualpa! Eu pego  vinte cavaleiros e eles ficarão com medo de nós...

- Sobretudo, não apeiem para falar com ele. Mas  sejam respeitosos. Não se deve ser brusco com ele,  Soto, mas sim firme. Levem o embaixador com vocês.  Não me agrada tê-lo aqui permanentemente. E o  intérprete Felipillo também; ele é mais desonesto,  mas é mais esperto que Martinillo. O Inca precisa  ser tão bajulado quanto impressionado, precisa que  lhe façam compreender que tudo pode acontecer  pacificamente!

Soto concorda com um gesto de cabeça, sorrindo de  novo, já liberado pela ação.

Quando indica aqueles que vão acompanhá-lo,  Gabriel encosta seu cavalo no do Governador:

- Senhor, o cretino que eu sou pede-lhe a graça de  sê-lo. Talvez haja coisas que eu saiba ver...

Don Francisco avalia-o franzindo o cenho.

- Não me faça perder um cavalo - responde ele  apenas. E, virando-se para Soto, acrescenta,  resmungando:

- E não se esqueça de dizer ao Inca que não durmo  ao relento. Faço questão...

- Não é a primeira vez, Governador! - replica-lhe  Soto rindo. - Eu saberei me arranjar...

Os olhos colados nos do capitão, a barba abafando  suas palavras, don Francisco pega as rédeas de seu  cavalo:

- É a primeira vez, capitão de Soto, que estará  sozinho e tão desprevenido no meio de trinta mil  índios... Deus o proteja, meu amigo!

- Eu sei - diz Soro sorrindo -, o senhor sempre  quer que eu volte, don Francisco!

Gabriel guarda o sorriso para si mesmo.

 

                                         Cajamarca, 15 de novembro de 1532.

No meio da tarde, o céu limpou a oeste. O vale,  rutilante de chuva, resplandece sob a carícia de  Inti. A crista das montanhas tinge-se de uma luz  suave e ágil que inunda até as sombras. As  andorinhas e os francelhos volteiam sobre os juncos  dos pântanos fartando-se de insetos.

Em toda parte nas cidade das tendas, as mulheres  acendem as fogueiras para aquecer as sopas e  cozinhar as bolachas de milho.

Atahualpa bebeu muita chicha na última cerimônia  do dia. Só as mulheres permanecem em volta dele. O  curaca de Cajamarca e os Poderosos Senhores deixaram  o pátio onde as servas se azafamam. Tudo está calmo.

Mas outro chaski chega correndo e Guaypar anuncia  que um oficial estrangeiro e toda uma tropa de  guerreiros a cavalo vêm saudar o único Senhor  Atahualpa. Sikinchara está com eles.

Dessa vez, Atahualpa sai do recinto das termas,  afasta-se até o outeiro dos grandes tanques e olha  na direção da cidade.

Custa a encontrá-los. De repente, estalando a  língua, mostra os pontos escuros que avançam na  estrada, à beira do pântano.

Ele se volta para Anamaya:

- Olhe - diz com uma doçura inesperada -, parecem  cabanas avançando na planície.

Seu sorriso é cheio de paz e de ternura. pai feliz  de estar a sós com a filha.

Depois, volta-se para Guaypar:

- Irmão Guaypar, mande chamar minha guarda no  pátio. E todos os Poderosos e os sacerdotes. Diga a  todos que o Filho do Sol não quer sentir o menor  frêmito de medo.

A estrada tem largura suficiente para dar passagem  para cinco pessoas lado a lado. Cruza a planície em  linha reta, atravessando os pântanos, até as  incontáveis tendas. Mas antes deste acampamento, em  alguns pontos, alguns índios já se aglomeram à beira  do caminho para os ver passar. Dessa vez, não fazem  esforço nenhum para se esconder.

Todos têm o olhar parado, o semblante  inexpressivo, como que desprovido de emoção ou  curiosidade.

Soto vira-se para Gabriel e, com um esgar, exprime  exatamente o que pensa:

- Parece que eles sempre sabem mais que nós, não?

Apesar do nervosismo, eles vão a passo, a haste da  lança na ponta da bota, retardados pelo embaixador.  Após meia légua nesse andar, de repente a estrada  mergulha num lamaçal, transformando-se numa picada  estreita entre os juncos. Gabriel arremete com seu  cavalo, mas logo o segura:

- Tem lama demais - explica ele a Soto. - Estamos  arriscados a atolar os cavalos e chegar imundos.

- Ou a quebrar as patas das nossas montarias... -  replica Soro.

- O Poderoso Embaixador sugere que passemos por  aquele caminho ali - intervém Felipillo.

O embaixador Sikinchara sorri para eles e aponta  para um vau pedregoso entre os caniços.

- O bugre deixou de propósito que atolássemos! -  reclama Soto dando ordem para que o seguissem.

"E agora", pensa Gabriel, "ele conhece nosso ponto  vulnerável. Se tivermos que fugir ou se eles  assustarem nossos cavalos, não escaparemos de um  banho do qual não sairemos!”

Ele é o último a passar o vau onde a água é tão  transparente que as pedras brilham como se  salpicadas de lantejoulas.

Soto volta ao encontro dele. Sem uma palavra, seus  olhares se cruzam.   Ambos pensam a mesma coisa.

As mulheres acabam de vestir o único Senhor. No  pátio, burburinho dos soldados que se colocam em  volta do tanque de água quente. O burburinho das  ordens do único Senhor ressoa por todo o  acampamento.

Os oficiais pressionam os homens para se  posicionarem como na guerra, em fileiras cerradas,  as maças e as fundas em punho. Os que se encontram à  beira da estrada real, na orla do rio escaldante e  dos pântanos, olham furtivamente para o norte. Além  das cercas moventes dos juncos, eles adivinham  homens com a cabeça coberta com uma taça de prata, o  rosto oculto sob os pêlos como se fossem enormes o  bastante para avançarem sentados acima dos  caniços...

As mulheres largaram o cozimento das bolachas e da  sopa. À custa de gritos, cachações e carinhos,  seguram as crianças perto das tendas para que elas  não vão correr pelas ruas. As crianças choram. Elas  também querem vê-los.

Atahualpa pede que a camisa a ele oferecida pelos  estrangeiros seja amarrada a uma vara comprida e  erguida como um estandarte de inimigo vencido no  alto dos muros da cancha.

Depois, vê Anamaya que estava calada há muito  tempo. Ele diz:

Fique junto de mim, Coya Camaquen, e seja meus  olhos. Olhe bem o rosto dos estrangeiros. Talvez  baste eles verem a cor de seus olhos para entender  que eles não são nada.

Anamaya sente que não há ironia alguma nessas  palavras. Somente cansaço e solidão.

Atravessado outro rio, eles estão perto o bastante  para divisar bem os prédios onde o Inca mora. E como  as barracas dos índios formam uma espécie de muro  branco a perder de vista, de um lado ao outro da  planície, da cidade de Cajamarca, de visível, só há  o estranho cone de pedra.

- Capitão - grita um dos homens da escolta.       Olhe!  Olhe o estandarte no alto do prédio onde o Inca  mora!

Gabriel, como os outros, segue na direção  indicada. Na ponta de uma vara, ligeiramente  enfunada pela brisa leve, ele vê a camisa de seda  oferecida ao Rei índio pelo Governador!

Soto solta um impropério. Erguendo a lança, ordena  que se faça alto. Chama Felipillo e manda que o  embaixador Sikinchara vá na frente, sozinho, até seu  amo para avisá-lo dos senhores estrangeiros.

Felipillo hesita.

- Bem, traduza, animal! - irrita-se Soto  levantando o tom. Como de hábito, Sikinchara ouve o  intérprete, sempre de olho no capitão.

Quando Felipillo se cala, Sikinchara dá um largo  sorriso, mostrando os dentes claros. Sem mais  cerimônia, ergue a mão num gesto de despedida e dá  uma ordem aos carregadores.

Quando ele está um pouco afastado, Soro pergunta a  Felipillo:   - Por que ele estava sorrindo assim?

O mesmo sorriso arregaça os lábios do intérprete:

- Ah... Porque está muito orgulhoso de anunciar a  chegada de vocês ao único Senhor!

Outra vez, o olhar de Soto encontra o de Gabriel.

- Logo saberemos quem, de nossa parte ou da dele,  mente melhor - suspira Gabriel.

Ao transpor a porta do pátio, Sikinchara se  prosterna. É com a cabeça baixa e as costas curvas  que atravessa o jardim, contorna o tanque, passa  diante dos soldados e dos Poderosos Senhores para ir  se prosternar novamente atrás do único Senhor  Atahualpa sentado num tripé dentro da galeria.

Mesmo com a testa quase no chão, ele sente todos  os olhares pousados nele e é percorrido por um  frêmito de orgulho.

- Venha à minha frente, Sikinchara - ordena  Atahualpa. - Quem são os estrangeiros que vêm até  aqui?

- É um capitão do capito, com trinta homens -  responde Sikinchara com voz neutra. - Estão todos  montados em seus animais, com lanças em punho e  escudos pendurados na sela. Esse é o sinal de que  estão em guarda, único Senhor, e que têm medo de  você.

- O que eles querem?

- Convidá-lo da parte do grande capito que ficou  na praça de Cajamarca. Vão lhe dizer isso pela voz  do índio que fala a língua deles.

Atahualpa não faz mais perguntas. Cala-se. O  vermelho de seus olhos parece mais violento essa  noite, mais irritado ainda pelos vapores de enxofre  e o excesso de banhos.

Anamaya sente o único Senhor um pouco inquieto, e  essa inquietude passa para os Poderosos. O céu no  alto do pátio tingiu-se de vermelho, também. É a  hora em que o ouro de Inti começa a se transformar  em sangue.

Mas na verdade, não é o único Senhor Atahualpa que  está aflito. É ela. Ela é que sente o frio lhe  apertar a cintura e lhe pesar no peito. Ela é que  está tremendo como se o granizo da tarde tivesse  penetrado nela e não mais se fundisse.

Por quê?

Ah! Se ao menos o Irmão-Duplo estivesse a seu  lado...

Por que ela sente um aperto na garganta com a  chegada dos estrangeiros? Eles são poucos, ao passo  que, no pátio, há mais de cem soldados a postos e,  no acampamento, há milhares!

A voz de Sikinchara, ágil e orgulhosa, pergunta:   - Quais são as suas ordens, único Senhor?

- Vamos ouvi-los. E amanhã, vamos matá-los. Assim!

Atahualpa ergue a mão e gira-a no ar, fechando-a  como se capturasse inseto.

Esse gesto lhe agrada. Ele o repete, de modo mais  vivo, sorrindo.   - Assim - torna a dizer.

No pátio, irrompe uma primeira risada. Depois  outra. E mais outra. E outras. O Único Senhor ri.  Então uma gargalhada sacode o peito dos Poderosos e  agita seus brincos de ouro. Os soldados, as  concubinas e os criados dão gargalhadas, abrindo  muito a boca e jogando a cabeça para trás para que a  risada suba ao céu avermelhado, como o vapor das  águas escaldantes. Chorando de rir, o único Senhor  repete outra vez o gesto.

- Assim! - diz.

O caminho termina abruptamente diante deles. É  prolongado apenas por uma estreita ponte de bambus  que atravessa o rio. Mas a água desse rio é tão  escaldante que fervilha em alguns pontos.

Do outro lado, a uns dez passos, começa o  acampamento das tendas brancas. Formando quadrados  de cinqüenta homens, em traje de guerra e  perfeitamente alinhados, lanças à frente com a ponta  no chão, índios os observam.

Como sempre, o semblante deles não deixa  transparecer nenhuma emoção, a mínima surpresa e,  certamente, nenhum medo.

Gabriel debruça-se no pescoço de sua montaria e  corta duas cabeças de taboa. Joga-as na água  fumegante. As plantas encolhem e afundam, bolinhas  escuras levadas pela correnteza num piscar de olhos.

Soro, que o viu fazer isso, assobia entre os dentes.

Um homem da escolta aponta para uma ponte de galhos  coberta de terra e diz:

- Impossível passar por ali. Essa ponte não vai  agüentar o peso dos cavalos e ficaremos cozidos  mesmo!

Um Senhor índio, idoso, as orelhas e o pescoço  escondidos por enormes brincos de ouro, aproxima-se  da margem oposta. Gabriel, como todos os outros,  disfarça um movimento de surpresa. Além das plumas  extraordinárias que lhe enfeitam a cabeça, o velho  tem o peito coberto de ouro, os pulsos cobertos de  ouro, e as mãos, quando ele aponta para o sentido da  correnteza do rio, estão pesadas de anéis de ouro!

Felipillo traduz suas palavras sucintas:

- O Poderoso Senhor diz que podem atravessar o rio  mais embaixo. Dá para atravessar a pé.

Soro faz sinal para Gabriel e mais três  cavaleiros:

- Sigam-me!... E vocês aí - acrescenta ele para o  resto dos companheiros -, não se deixem distrair  pelo ouro. Vigiem os soldados na frente das tendas.  Se eles se mexerem, gritem e venham ter conosco...

A vau fica na confluência de um rio frio. Se aí as  águas não são mais escaldantes, continuam quentes o  bastante para fumegar.

Na margem oposta, alguns grandes degraus de pedra  levam aos prédios do Inca. Dois quadrados de  soldados, em ordem perfeita, protegem a entrada.  Perturbados pela mistura das águas e o odor de  enxofre, os cavalos recuam e batem com os cascos no  chão. Alguns Senhores índios, tão cobertos de ouro  como o primeiro, aparecem e olham para eles.

Como Soro quer obrigá-lo a atravessar, seu cavalo  bufa e acaba empinando, com um relincho de fúria.

Gabriel apóia novamente a lança na bota e acalma sua  montaria. Pensa em don Francisco: em tais  circunstâncias, o Governador arremessaria seu cavalo  sem hesitar. Com três esporeadas, estaria do outro  lado!

Mas no instante em que se prepara para fazer isso,  irrompe uma gargalhada lá embaixo, no prédio do Rei  índio.

Uma gargalhada que sobe no ar como um insulto.

Então, fazendo com que Felipillo equilibrado na  garupa de seu cavalo dê um grito, Gabriel esporeia o  animal até tirar sangue. Num mesmo reflexo, Soro  também arremeteu com seu cavalo para o rio. Os  outros acompanham.

Ao contato com a água quente, os animais pulam  como se estivessem saltando muros. Saracoteiam,  escoiceiam, mas atravessam. E quando saem do rio, as  ferraduras percutem nos degraus de pedra, lançando  faíscas.

Pela primeira vez, Gabriel vê o choque estampado  no rosto de alguns dos guerreiros que estão diante  deles. Bocas se entreabrem, pálpebras piscam. Ele  olha para Soto. O capitão, que também viu, balança a  cabeça e começa a rir.

É a trote curto que eles entram no pátio do Inca.

Deitam-se sobre a crina dos cavalos para passar  pelo pórtico. Mas endireitam-se tão logo chegam ao  outro lado, a lança firme na mão direita, as rédeas  curtas na esquerda, a espada batendo nas bolsas da  sela.

E os próprios cavalos, ao atravessar o jardim  entre as fileiras de soldados imóveis, de repente  parecem captar o sentido da cerimônia. Erguem as  orelhas e mordem o freio revirando os olhos. Com um  resto de cólera, ao passar por um tanque cheio de  água fumegante, bufam pelas ventas e batem no chão  pavimentado como se imagina que dragões vindos do  céu pudessem fazer. Mas nenhum dos índios, aqui,  parece impressionado.

O Rei dos Incas é facilmente reconhecível. É o  único sentado. Há, no mínimo, dez mulheres em volta  dele, de pé e de olhos baixos. Ele veste uma túnica  de chapas de ouro, sem mangas. Seus antebraços, até  os cotovelos, estão cobertos de ouro. Mas seu rosto  não está visível.

Duas mulheres seguram diante dele um tecido largo,  entremeado de fios de prata, que lhe esconde o rosto  como uma gaze. Não se vêem seus traços nem seus  olhos, mas ele pode observar.

Pelo que Gabriel pode ver, há uma faixa cingindo- lhe a cabeça. Em sua testa, uma borla de uma sedosa  lã carmesim segura uma franja de finos cordões de  ouro e uma pluma extraordinária, qual um diamante,  curta e larga, tão colorida como um arco-íris.

Ele está imóvel como se fosse de cera.

Nem um estremecimento. Nada. Pode-se perguntar se  ele esta vivo ou morto. Mas diante de sua boca, a  gaze balança no ritmo de sua respiração. Nada ainda,  nem um movimento, enquanto os cavalos agora estão  pertíssimo, cruzam à frente dele, arregaçam os  beiços machucados pelo freio e mostram os dentes.

E dessa imobilidade vem uma dignidade  extraordinária, um poder que arrepia. Gabriel sente  o medo, que até agora ele conseguiu manter afastado,  roer-lhe a base da espinha.

Ele se endireita na sela, deixa o olhar pairar  sobre os rostos em volta do Inca e encontra os olhos  cheios de arrogância do embaixador Sikinchara. Ao  lado dele, Gabriel reconhece o jovem combatente de  porte altivo que lhe agradeceu por ter matado o cão  de Moguer.

Gabriel inclina a cabeça numa saudação, mas o  outro se contenta em fitá-lo, sem pestanejar.

Quando Soro faz seu cavalo dar mais um passo à  frente, Felipillo protesta com um grito.

- Não tão perto! - geme ele. - Não tão perto!

Ele está ajoelhado entre os cavalos, as mãos  espalmadas no chão, cabeça inclinada.

Soro olha para Gabriel. Parece um pouco pálido,  mas sua voz está firme quando diz:

- Sou um capitão do Governador don Francisco  Pizarro, enviado pelo Senhor Deus e Sua Majestade o  Imperador Carlos V da Espanha para conhecer essas  terras onde estamos e ensinar a fé em Jesus  Cristo...

Quando se cala, o silêncio é tão grande que se  ouve a água borbulhando no tanque.

Sentindo uma opressão no peito, com um gesto que  ele mal controla, Gabriel bate com tanta força nas  costas de Felipillo com a haste da lança que este  quase cai.

- Traduza! Traduza logo, bugre burro!

A voz abafada, ainda de cabeça baixa, Felipillo  traduz. E Gabriel não consegue evitar se perguntar o  que ele está dizendo de fato!

Mas Soto já recuperou a segurança. Com um  movimento do punho, coloca o cavalo de lado, faz uma  saudação à espanhola e diz ainda.

- Nosso Senhor o Governador convida-o a  compartilhar sua refeição, amanhã, para selar a sua  amizade e lhe propor ajuda, pois sabe que lhe  agradam as conquistas...

Só a gaze na frente do rosto do Inca se mexe.

Depois, quando o silêncio se torna insuportável, o  velho coberto de ouro que os acolheu no rio profere  algumas palavras.

- Está bem - diz Felipillo.

- "Está bem" o quê? - rosna Soro.

- O Poderoso Senhor que fala pelo único Senhor  disse: "Está bem." Então, após uma olhada rápida  para Gabriel, lentamente, com sua nobreza natural, o  capitão Soto descalça a luva da mão direita. Tira do anular um anel de ouro fino e segura-o entre os dedos da  mão direita. Inclina-se para o Inca e lhe oferece o  anel.

Dessa vez, a gaze balança sob o efeito de um som.  O velho nobre se afasta das costas do Inca para  aproximar-se da mão de Soto que logo a fecha.   - Não - exclama irritado. - Você, não! Quero que  quem pegue esse anel seja o seu senhor.

Felipillo não traduz mais, contorcendo-se todo. Mas o sentido das palavras é tão evidente quanto o  mau humor do capitão.

E, em silêncio, Soro faz seu cavalo chegar tão  perto do Inca que o sopro das ventas levanta a gaze  e agita a borla real. Ele torna a estender o braço,  com a mão aberta, oferecendo o anel.

Então, como se seus gestos devessem ser mais  lentos que os do resto dos homens, o Inca finalmente  se mexe.

Por sua vez, estica o braço, com a mão aberta. O  anel cai aí. O Inca recolhe o braço, mas, com o  mesmo movimento lento, vira a mão e abre-a  totalmente.

O anel quica nas lajes e sai rolando com um  tamborilar de granizo.   Mas Gabriel já não ouve.

   Por que o único Senhor quis que ela fosse os seus  olhos? O que ela vê congela seu sangue.

O que ela vê lhe queima os olhos.

Os estrangeiros entram no pátio furiosos. Os  animais que prolongam seus corpos como pernas  monstruosas têm olhos enormes, patas com a ponta de  madeira e prata, com as quais batem nas lajes do  chão como se quisessem quebrá-las.

E os estrangeiros usam roupas que lhes colam no  corpo como se estivessem nus. Uma pele dupla  envolve-lhes os pés e as panturrilhas. Uma pele  dupla cobre-lhes as mãos. Mas é visível a força de  suas coxas, a estreiteza de suas ancas, e sua  compleição é maior do que a de um índio.

E os rostos...

O rosto deles é coberto de pêlos, em geral pretos,  às vezes salpicados de branco. Um deles, contudo,  tem os cabelos dourados como a primeira luz da  manhã. Seus lábios são rasgados e móveis. E embaixo  dos capacetes de prata, seus olhos são vivos e  cintilantes. Vão de rosto em rosto, olhando sem  polidez, encarando até o único Senhor, olhando as  mulheres. Esses homens procuram olhos como se pudessem penetrar em todas as almas  com um único movimento.

E não são feios.

Não, não têm aquela feiúra descrita por Sikinchara  e Guaypar! São apenas homens brancos.

O do rosto coberto de pêlos de ouro tem algo de  terno e frágil, até no medo que faz suas narinas  palpitarem. Seu nariz é fino, seus lábios são muito  vermelhos, rasgados e finos, sua pele, muito clara,  branca como leite de alpaca...

Mas aqueles rostos, Anamaya está apavorada com  eles. O que ela vê e pior do que enfrentar os dentes  do puma.

O que ela vê nesses seres e nesses rostos pertence  ao seu passado, à sua memória.

Ela se lembra da criança Anamaya. Daquela que já  era bem grande para seus dez anos. Daquela que era  considerada alta demais e com a pele branca demais e  que provocava risadas nas meninas da aldeia  chiriguana na floresta quente.

Aquela de quem zombavam por causa da testa chata e  dos lábios muito finos e muito rasgados.

Aquela que, depois em Quito, era repulsiva às mães  e às meninas do acllahuasi por causa dos olhos...

Então, no momento em que o único Senhor deixa cair  o anel, em que o tinido da jóia nas lajes enche o  silêncio pesado do pátio, Anamaya ergue o rosto para  o estrangeiro de barba dourada, olha para ele como  jamais olhou para ninguém.

E sabe.

Quando o anel de ouro oferecido por Soro cai da  mão cheia de desprezo do Inca, Gabriel nem ouve o  ruído que ele faz.

Ele vê e sente uma vertigem. Olhos azuis.

Incríveis olhos azuis.

Entre as jovens índias suntuosamente vestidas, com  capas de ouro e túnicas de cores ricas, há uma, um  pouco maior e toda de branco, com uma simples faixa  vermelha cingindo-lhe a cintura. Ela não tem, ao  contrário das outras, cabelos pesados de azeviche  cuidadosamente divididos por uma risca. Os dela são  fluidos, caindo-lhe em finas espirais sobre os  ombros, as mechas presas por fios de ouro, e ela tem  uma espécie de diadema, ornado com uma esmeralda e três penas curtas, uma vermelha, uma  azul e uma amarela, pousado na testa.

Tem esses olhos azuis...   E é linda.

Mas não é sua beleza estranha e ímpar que faz  Gabriel cair no incêndio de seu coração. E sua  presença.

Como se ele tivesse feito essa longa viagem de  Sevilha até aquele vale de um mundo desconhecido  para estar diante dela!

Como se Deus, o destino ou o acaso, acumulando as  provas em seu caminho, não tivesse tido outra  vontade. Como se a vergonha de sua bastardia, a  humilhação do Santo Ofício e a loucura inabalável de  don Francisco Pizarro não tivessem tido outra razão  de ser senão gerar esse instante! Estar ali, agora,  diante dessa desconhecida. Diante dessa mulher de  outro universo, de olhos de céu bem abertos, de  olhar de lago.

A vertigem é tamanha que ele precisa agarrar-se à  crina do cavalo para não cair. Precisa cerrar os  dentes para não gemer como uma criança apavorada.  Tudo que o envolve não passa de um vazio a separá-lo  dela.

A separá-lo da esperança e já do desejo dessa  mulher.

Ele não ouve nem vê mais nada. Só ouve o coração e  os olhos dela. Será possível alguém ter saudades de  um rosto desde a primeira vez que o vê? Será  possível alguém saber, com um único olhar, que não  poderá respirar sem o ar desse rosto e o calor de  seus lábios?

Ele sente frio. E parece que só poderá se aquecer  se a tocar.

E depois, quando cessa o barulho do anel, irrompe  um alarido, ouvem-se chamados, bater de cascos. A voz  de don Hernando Pizarro, num tom alto e violento,  pergunta, exige:

- O que está acontecendo, Soro?

- Esse inca infernal recusa-se a falar comigo. Só  quer se dirigir ao Governador! E o senhor, o que faz  aqui?

Gabriel não se vira. Ele não pode nem quer. Quando  don Hernando entrou no pátio, a jovem baixou os  olhos. Gabriel continua olhando fixo para sua  cabeleira farta e para as peninhas de seu diadema.  Como se esta obstinação pudesse lhe fazer  reconstruir o rosto. "Ela sabe, ela sabe! Ela deve  saber também! Não é possível que não saiba...”

- Vim socorrê-lo - diz don Hernando ainda aos  berros. - Receava que estivesse em apuros. Se ele  não lhe fala, talvez fale comigo...

Gabriel mal ouve as palavras, a voz de Felipillo  traduzindo não se sabe o quê. Depois, faz-se  silêncio. O silêncio e o vazio, pois ela não levanta  o rosto. Permanece como prostrada, trêmula talvez,  pois seus dedos vibram, crispam-se e se contorcem  como se ela estivesse apavorada. "Não, ela sabe! Ela  não deve ter medo! Ela não precisa ter medo de mim!  Não pode ter medo de mim como uma criança!", repete  Gabriel para si mesmo.

Ele está prestes a fazer um gesto, talvez a  gritar, quando ouve a zombaria de don Hernando:

- Diga a esse cachorro para levantar essa cabeça  de cachorro e responder quando se fala com ele!

Felipillo não traduz. Mas a frase e seu tom não  precisam de tradução. O Inca não estremeceu, mas, em  volta dele, os Nobres se empertigaram com o insulto,  fitando os espanhóis como se contempla um  formigueiro antes do massacre.

Sem se dar conta, Gabriel puxou a rédea, fazendo  seu cavalo girar e se colocando ao lado de don  Hernando, bota com bota. Sua mão já aperta o punho  da espada, e a expressão de seu rosto está tão  carregada de raiva que o irmão do Governador esboça  um ríctus zombeteiro e murmura:

- Era só uma brincadeira para despertá-lo, parece  que você está paralisado de medo, aprendiz!... É  preciso mostrar a eles quem é mais forte! Felipillo,  diga ao Rei Atahualpa que eu não sou um simples  capitão mas sim o irmão do Governador don Francisco  Pizarro. O Governador é amigo dele. Convida-o para  jantar. Aguarda-o em Cajamarca e não vai arredar pé,  para comer ou dormir, antes de ter a resposta dele.

Quando Gabriel se vira para o Inca, a jovem ergueu  o rosto e está olhando de novo para ele.

O azul de seus olhos transmite sua surpresa.

Ela olha para ele como mulher nenhuma jamais  olhou. Nem mesmo doña Francesca, há tanto tempo, em  Sevilha.

Ela olha para ele, e ele gostaria de acariciar sua  cabeça, tocar em seus lábios.

Ele poderia se debruçar, esticar o braço e trazê-la para seu cavalo, pular o rio fervente abraçado a  ela...

   Como se estivesse delirando, seus músculos se  contraem, uma onda de dor quebra-lhe a base da  espinha.

Uma onda de doçura inunda-lhe o peito.

Por um instante, para repelir a vertigem do  desejo, a loucura que o invade, por um instante, ele  fecha os olhos.

Ao abri-los, percebe que as duas mulheres que  seguravam a gaze de ouro diante do rosto do Inca  suspendem-na com uma prudência infinita. O rosto do  rei Inca aparece, com uma beleza estranha, largo e  poderoso.

Seu nariz tem algo de ave de rapina. Sua boca, um  pouco arqueada pelo desdém, tem o desenho perfeito  de uma estátua. Mas seu olhar é chocante. Entre as  pálpebras puxadas, as duas pupilas escuras estão  rodeadas de sangue! E é como se o rosto do Inca  fosse a máscara esplêndida da crueldade e, ao mesmo  tempo, da dor.

Gabriel sente, ao seu lado, a surpresa de don  Hernando e Soro.

Mas quando o Inca começa a falar, com uma voz  lenta e clara, a mulher de olhos azuis desapareceu.

O Inca não fala para os estrangeiros. Dirige-se  somente a um dos Anciãos que o cercam e este  transmite suas palavras ao intérprete Felipillo. E  ele diz: Por todos os lugares por onde passaram,  vocês maltrataram meus Poderosos Senhores. Nas  aldeias, maltrataram os curacas, acorrentaram-nos,  bateram neles sem nenhum respeito por mim, o Filho  do Sol, o único Senhor desta terra que não é a sua. Sem respeito, vocês entraram na casa das Virgens e  tomaram mulheres. Pegaram ouro e prata nos templos.  Entraram num palácio onde dormia meu pai Huayna  Capac durante sua vida de cá e roubaram as esteiras  preciosas. Ao longo de todo o seu caminho desde o  mar, vocês comeram o que não lhes foi oferecido e  seus cães mataram crianças para se alimentar...

O Inca fala muito tempo da crueldade dos  estrangeiros. Manifesta toda a sua ira por virem  perturbar a paz do Império das Quatro Direções.

Mas quando ele se cala, don Hernando responde que  tudo aquilo é mentira. Em sua voz há o tom corajoso  da arrogância.

- O Governador é um bom cristão. Não deseja fazer  mal a ninguém e só combateu quem se opunha a ele.     Quando vieram a nós em paz, com sorrisos e  presentes, nós também respondemos com sorrisos e  presentes. Quando nos atacaram, então sim, fizemos a  guerra e vencemos todos os que não se submetiam.  Fizemos isso e voltaremos a fazer tanto quanto for  necessário. Sem medo nenhum, pois um único de nós,  montado em seu cavalo, é forte o bastante para  combater um exército inteiro do povo daqui!

O Inca ri como se vomitasse todo o seu desprezo.  Diz:

- Apeiem de seus animais para descansar e se  refazerem.

- Estamos de jejum - responde don Hernando com  firmeza - e fizemos voto de não apear antes de  voltarmos ao nosso alojamento... Já vai anoitecer e  precisamos levar uma resposta a meu irmão, o  Governador. Gostaria de vir partilhar o pão com ele?

Naquelas rodas de sangue, parece que os olhos do  Inca continuam rindo. Ele diz:

- Hoje, agradeço ao Sol meu Pai, a Quilla minha  Mãe e ao trovão Illapa por me terem dado a força  para vencer meu irmão Huascar, que não quis  respeitar a Lei. Hoje, estou jejuando também porque  meus guerreiros, que andam aos milhares e milhares,  e que só se mexem se eu ordenar, venceram grandes  batalhas... Amanhã, termina meu jejum. Então irei a  Cajamarca com alguns de meus Poderosos Senhores.  Esta noite, vocês podem pernoitar nos grandes  prédios da praça. No que tem uma decoração de  serpentes, não entrem: é o meu.

Por um momento, o Inca se cala, examina com  curiosidade os cavalos. Depois, acrescenta:

- Antes de tornar a partir, é preciso que bebam da  cerveja sagrada, pois é assim que manifesto minha  amizade àqueles que não são meus inimigos. Mal ele  proferiu essas palavras, duas jovens se aproximam,  trazendo cada uma um grande copo de ouro,  maravilhosamente trabalhado. O Inca bebe de cada um  deles antes que uma das mulheres ofereça um a don  Hernando. Depois, repete-se o mesmo ritual, com  copos de prata, para Soro. Mas é então que a jovem  de olhos azuis aproxima-se do Inca.

Ela também lhe oferece dois copos de ouro. O Rei  do Peru olha para ela franzindo o cenho. Os velhos,  ali em volta, manifestam sua surpresa. Contudo, o  Inca, sem uma palavra, toma um dos copos. A jovem se  prosterna enquanto os lábios do Inca tocam a espuma  branca e acre. Depois, ela se vira e se aproxima do  cavalo de Gabriel e, mergulhando os olhos nos dele,  oferece-lhe o copo de ouro.

Anamaya viu o olhar de nojo de Inti Palla para os  estrangeiros quando lhes ofereceu o copo de ouro.

Viu também o desprezo de Sikinchara, o ódio  selvagem de Guaypar e seu desejo de sangue e de  guerra. Adivinhou a curiosidade do único Senhor  pelos grandes animais e o prazer que lhe daria  possuir alguns semelhantes.

Ela ouviu na voz de Atahualpa tanto raiva quanto  astúcia e, finalmente, desdém. Sente o quanto o  único Senhor está convencido de que causa medo aos  estrangeiros, o quanto tem certeza de sua força, da  força de seus milhares de guerreiros e do apoio de  seu Pai Sol.

No entanto, eles se enganam. Anamaya sabe.

Essa idéia não vem das palavras violentas do chefe  dos estrangeiros que falou. Em sua voz, detectava-se  facilmente fanfarronice e mentira.

Essa idéia vem do silêncio e do olhar do homem de  barba dourada. Da segurança que ele demonstrou ao  levar a mão à sua arma quando o chefe estrangeiro  proferia insultos que o intérprete nem ousava  traduzir.

Há nele uma ousadia que os outros estrangeiros  fingem ignorar. Há nele uma grandeza que Atahualpa  não sabe enxergar. Há nele toda a força de um mundo  desconhecido.

Ela o sente como se ele a tocasse. Como se ele a  estreitasse até sufocá-la e a levasse em seu animal  estranho.

Mas todos aqui parecem ignorá-lo.

E essa ignorância cega o único Senhor!

Então, quando ela compreendeu que nenhum dos copos  de chicha era destinado a ele, sem temer a ira do  único Senhor que não deu essa ordem, ela tomou a  iniciativa de encher um.

E ao oferecê-lo a ele, constatou sua surpresa.

Ele tirou a pele dupla das mãos, e seus dedos,  longos e brancos, tremiam. Inclinou-se para ela, e,  por uma fração de segundo, pareceu que ele poderia  cair nos braços dela.

Com cuidado, eles evitaram que seus dedos se  tocassem. Como ele estava pálido!

Sim, ele também disse a si mesmo que poderia cair  nos braços dela.

E, se detestou o gosto acre da bebida, Gabriel não  se permitiu demonstrá-lo. Enquanto bebeu, como se  estivesse bebendo seu olhar e sua alma, não  conseguiu deixar os olhos azuis da jovem índia. E  acabou gostando do agridoce da cerveja. Ela estava  bem perto do cavalo, imóvel e sem medo. Seu busto  estava na altura do joelho dele, e bastaria que ele  fizesse um leve movimento, que o animal desviasse,  para que ele encostasse nela.

Seu coração estraçalhou seu peito.

A cerveja aqueceu-lhe o estômago apertado. Todos  os olhos estavam grudados nele. Gabriel sentiu o  peso do olhar sanguinolento do Inca.

Finalmente, devolveu-lhe o copo vazio. Ela ergueu  o braço, jogou o rosto para trás como se lhe  oferecesse toda a sua inocência de uma vez só, como  se quisesse que ele pudesse interpretar nela toda a  sua pureza.

Mas então, atrás dele, don Hernando anunciou:

- Agora vamos nos despedir, e os estamos  aguardando amanhã. O Inca inclinou um pouco a  cabeça, com uma espécie de sorriso:

- Que um de vocês fique conosco esta noite, que  seja meu convidado - respondeu ele.

E, com sua machadinha de ouro, apontou para  Gabriel.

- Não - protestou precipitadamente don Hernando. -  O Governador não permite! Temos que voltar a  Cajamarca, onde ele nos aguarda. Ele ficaria furioso  se segurassem um de nós...

O Único Senhor sorriu. Todos os Poderosos Senhores  sorriram. Todos os soldados amontoados no pátio  sorriram.

Todos perceberam o medo dos estrangeiros.

A ironia iluminou seus semblantes, como se eles  dissessem: "Olhem só esses grandes guerreiros. Eles  estão com tanto medo que fogem de nós como  porquinhos-da-índia!”

Todavia, enquanto don Hernando já fazia sua  montaria girar, o capitão de Soto exclamou:

- Esperem! Será que não devemos agradecer ao índio  pela hospitalidade? Acho que os cavalos o  interessam. E depois, eles não devem ficar pensando  que somos uns covardes...

E esporeando o animal dos dois lados, começou a  dar voltas no pátio. Ele possui um cavalo bastante  bem adestrado. Usando as esporas e o punho, faz com  que ele ande para a frente e para trás a passo antes  de arremeter com ele num galope curto. Os cascos  martelaram as lajes ruidosamente. Cada vez mais  rápido, ele girou sobre si mesmo tão junto que os  servos e os guardas se afastaram. O animal bufou e  reclamou, espumando no freio. Afinal, com um grito,  Soto fez o cavalo empinar. Então, alguns índios  recuaram, apavorados, e caíram sentados, enquanto  outros, aterrorizados, fugiram.

Don Hernando riu e levou a montaria para fora do  pátio. Quando Gabriel virou-se uma última vez, não  encontrou o olhar azul da índia, mas só o sorriso  divertido do Inca.

Cheio de raiva, o único Senhor ordenou que as  Esposas, os criados e os guardas deixassem o pátio  imediatamente.

Sikinchara, que queria conservar o bom humor,  disse:

- Vamos matar todos eles, mas vamos ficar com os  animais. E com o estrangeiro que coloca na pata  deles esse metal que tira fogo da pedra.

- já devíamos ter matado todos há muito tempo -  replicou Guaypar tristemente. - Inclusive os  cavalos.

O Único Senhor os fez calar com um olhar. Virou-se  para Ánamaya:   - Por que deu esse copo de ouro ao estrangeiro  calado, Coya Camaquen? Eu não dei essa ordem.

Anamaya dobrou os joelhos e prosternou-se.   - Perdoe-me, único Senhor.

Atahualpa franziu o cenho.

Guaypar disse, como que a contragosto:

- Foi ele, único Senhor, quem matou o cão enorme  que estava devorando a criança em Huagayoc.

Sikinchara conservou a expressão de desprezo, mas  Atahualpa balançou lentamente a cabeça.

- Gosto dos animais deles - disse devagar. - Mas  eles são pessoas incompreensíveis.

Depois, levantou-se e acrescentou, tendo em mente  Sikinchara:

- Encontre todos os que tiveram medo dos animais  deles. Leve-os diante dos soldados e mande decapitá-los. Ninguém aqui deve ter medo dos estrangeiros.

 

                                         Cajamarca, noite de 15 de novembro de  1532.

Quando os que se encontraram com o Inca Atahualpa  chegam de volta a galope na imensa praça de  Cajamarca, já é quase noite. O Governador don  Francisco Pizarro não se mexeu. Está empertigado em  seu cavalo, como se a chuva de granizo da tarde o  tivesse congelado.

Ao ouvir os cavalos, os homens que já se  instalavam nos prédios acorrem, tochas na mão. À luz  bruxuleante das chamas, as caras parecem encovadas.

- O Inca não quis vir conosco, Francisco - vai  logo anunciando don Hernando -, mas aceitou o seu  convite para amanhã.

O Governador aprova com um aceno de cabeça e  pergunta: - Ele parece com quê?

- Um grande príncipe - intervém Soto.

- Um tipo de mouro - tempera don Hernando. - Fica  sentado num tamborete, os outros ficam de pé. Tem os  olhos injetados de sangue como se tivesse comido os  inimigos crus. E é cheio de arrogância, como todos  os índios. - E de dignidade... - acrescenta Soto.   - Ele sabe a posição que tem. Don Hernando  protesta com um ar entendido:

- Soto vê dignidade ali. A verdade é que o Inca  não lhe dirigiu a palavra antes que eu chegasse. Só  começou a falar depois que soube que eu era irmão do  Governador...

Soto não faz caso do comentário, e don Francisco  pergunta de chofre: - Quantos eles são?

- Muitos - suspira don Hernando com um gesto vago.  - E razoavelmente equipados: lanças, fundas, maças.  Nada de muito perigoso!

O olhar do Governador demora-se em Soto, que acaba  dizendo:

- Quarenta mil, acho eu. E bem aguerridos. As  maças estreladas e pontiagudas devem poder fazer  alguns estragos.

Um murmúrio percorre as fileiras dos espanhóis. O  número é repetido de boca em boca. Quarenta mil!  Nenhum daqueles homens jamais viu semelhante  exército.

Frei Vicente aproxima-se do cavalo de Gabriel,  pega as rédeas e pergunta: - Disse ao Rei dos índios  que Deus estava nos conduzindo até ele? Uma risada  irônica irrompe nos lábios de don Hernando:

- Eu disse, Frei Vicente, e até repeti. Mas foi o  mesmo que falar de Cristo com porcos se espojando na  pocilga. O Inca nos declarou que o pai dele era o  sol e a mãe, a lua...

Frei Vicente se persigna balançando a cabeça.

- É uma raça de pagãos - prossegue don Hernando -,  e não pense que vai convertê-los com boas palavras.

- São homens e mulheres como todos os outros - diz  Gabriel com uma voz firme, procurando no escuro o  olhar de don Francisco. - Seres humanos como nós,  senhor. E que estão na terra deles.

- O aprendiz bebeu da bebida deles... como homem!  riu-se don Hernando.        - Não está com a cabeça no  lugar!

Mas sua brincadeira não encontrou eco. O silêncio  a cobre como o frio que congela as nucas. Um vento  cortante chegou com a noite. Abaixa as chamas das  tochas e as faz rugir.

O Governador finalmente se mexe e, dirigindo seu  cavalo ao prédio maior, diz em tom demasiado baixo  para ser ouvido por todos:

- Não se iluda, meu irmão. Gabriel tem razão: eles  são como nós. Têm coragem e cabeça e vamos precisar  levar isso em conta.

O vento noturno leva o som das trompas e dos  tambores até bem longe. Em voz baixa, encolhidas  debaixo das tendas, sem sono, excitadas e  apavoradas, as crianças contam umas às outras como  os estrangeiros vão e vêm, meio homens, meio  animais, maiores que os lhamas, dando saltos  prodigiosos por cima de muros e soltando faíscas com  seus pés de prata.

Na cancha, o único Senhor recolheu-se em seu  quarto e pediu para não ser incomodado. As termas  estão vazias. Tudo está estranhamente calmo. Como as  outras mulheres que não passam a noite perto do  leito dele, Anamaya prosternou-se antes de sair de  costas na penumbra do pátio. Atahualpa não lhe  concedeu um olhar. Os muitos copos de chicha  absorvidos, o jejum e a tensão do encontro com os  estrangeiros parecem tê-lo exaurido. Seus olhos  estão tão vermelhos que não se distinguem mais as  pupilas.

Anamaya decide ir ao pequeno templo erguido  próximo à fonte fervente. Mas, ao entrar no pátio,  Inti Palla põe-se à sua frente.

No escuro, seus olhos faíscam, seus dentes brilham  como presas. Sua mão, bruta, prende o pulso de  Anamaya.

- Aonde vai correndo? Encontrá-los? - Encontrá-los? O que está dizendo? - Não minta! Eu entendi  tudo - sibila Inti Palla.

Anamaya tenta desvencilhar-se, mas os dedos de  Inti Palla apertam com mais força, incrustando o  bracelete de ouro na pele.

- Vi como você olhava para eles...

- Me largue - é só o que responde Anamaya,  sentindo a raiva lhe subir.

Mas Inti Palla, com esgares de ódio, agarra-lhe o  outro braço e junta as forças para imprensá-la na  parede.

- Eu sempre soube que você era nefasta! - zomba  ela. - O Único Senhor nunca quis me escutar. Agora,  vai me ouvir!

- Não sei do que você está falando - murmura  Anamaya.

Inti Palla empurra-a no pátio. Sob a violência da  princesa, Anamaya se retesa, mas não tenta lutar.  Seu peito está em fogo, suas entranhas queimam, como  se ela estivesse bebendo a água fervente do tanque.  E ela já sabe o que vai ouvir.

- Ah, não banque a grande e nobre Coya Camaquen! -  exulta Inti Palla. - Vi como você olhou para o  estrangeiro. Uma mulher sabe o que isso significa.  Você olhava para ele como se olha para um homem que  a gente quer ter entre as pernas!

- Cale a boca! - grita Anamaya.

- Durante anos, fingi ser sua amiga porque o único  Senhor a protegia. Mas desde a primeira vez que a  vi, você me causou repugnância. E eu sempre soube  que você quer nos trair...

- É mentira - geme Anamaya repelindo-a.

Rodando o braço, Inti Palla a esbofeteia. Anamaya  se desequilibra e cai no chão, a cabeça a menos de  um palmo do tanque. Respira a plenos pulmões o vapor  fervente que emana dali.

- E eu sei por quê! - ruge a princesa fora de si.

Enquanto Anamaya se levanta, uma enxurrada de  imagens e emoções é liberada: num turbilhão, vêm o  sorriso de sua mãe e seus lábios declarando o seu  amor, a pele crestada do velho Inca, o rosto e os  cabelos dourados de um homem que mergulha os olhos  nos seus...

- Eu também sei! - grita ela finalmente.

Estupefata, Inti Palla larga-a com um tranco  assustado. Um sorriso estranho nasce nos lábios de  Anamaya, uma calma estranha envolve-a e alguma coisa  em seu olhar azul assusta Inti Palla, que dá um  passo atrás.

Pela primeira vez, Anamaya olha para sua falsa  amiga sem medo nem admiração. Ela a vê deformada de  ciúme e de ódio, vê-a pelo que ela é.

- Eu sei - repete - e não tenho medo de saber. Sei  de onde venho e sei o percurso que fiz. Sei que um  estrangeiro, um homem parecido com esses homens, é  meu pai.

Ela ouve as próprias palavras ecoarem na noite.

- São apenas algumas imagens diante de meus olhos,  uma sensação na minha pele, coisas que as crianças  falavam na aldeia: um estrangeiro vindo da floresta,  a cara coberta de pêlos, que desapareceu na  floresta...

- Você é como eles. É repulsiva como eles!

- Mas eu também sei - prossegue Anamaya ignorando  a interrupção - que, a vida inteira, segui as ordens  que o único Senhor, Huayna Capac, colocou em meu  coração na noite em que morreu, quando prometeu que  velaria por mim...

Ela se cala, olha com desprezo para o rosto  desfeito de Inti Palla.

- Lembra-se que me perguntava em Quito por que eu  era tão feia? Eu não faria essa pergunta. Sei por  que você é tão feia. Sei por que o único Senhor não  quer mais tocá-la, por que detesta sentir o cheiro  da sua pele e por que a sua barriga lhe dá nojo...

- Você é louca! - grita Inti Palla com os olhos  cheios de lágrimas. - É o mais profundo da alma que  vejo em sua boca, Inti Palla. Por baixo da pele lisa  do seu rosto, só há ódio e maldade vil. É toda a  podridão do seu coração que brilha em seus olhos...

- Você é uma bruxa, que veio do Mundo de Baixo  para nos destruir - exclama Inti Palla entre dois  soluços, brandindo as mãos à frente como para se  proteger de um incêndio. - Você é uma estrangeira e  quer nos dar a eles como já se deu a eles... Quer  que eles venham cá, com aqueles animais, e nos  pisoteiem! Enquanto Inti Palla uiva, Anamaya dá um  passo à frente procurando afastar as mãos dela. A  princesa recua em direção ao tanque fervente.

- Ódio - murmura Anamaya -, torrentes de ódio,  mentiras miseráveis...   - Você não e como nós! Você quer a nossa morte!

Anamaya não hesita. Com um gesto decidido, segura  os punhos que Inti Palla brande e aperta-os com uma  violência tão grande que poderia quebrá-los.

Inti Palla arregala os olhos e geme. Há apenas  medo no fundo de seus olhos e, em seu rosto, o suor,  a umidade do ar e as lágrimas se misturam. Num  movimento de dança estranho, Anamaya atrai-a para o  tanque como se quisesse mergulhá-la ali. A princesa  resiste com todas as forças. Deixa-se cair de  joelhos, cortando a pele fina e tão resplandecente  de sensualidade de suas coxas. O sangue se mistura à  terra e ao suor. A água fervente está tão perto que  elas sentem o calor no rosto e a irritação do  enxofre na garganta. Fazendo mais pressão nos braços  de Inti Palla cujo rosto se contrai de dor, Anamaya  se agacha perto dela e a empurra contra a parede do  tanque.   - É isso que você queria? - diz baixinho Anamaya.  Me mergulhar na água fervendo? Se livrar de mim?

Inti Palla chora convulsivamente.  - Responda.

Inti Palla abaixa a cabeça.

- Olhe bem - diz Anamaya.

Ela larga os braços de Inti Palla e, com um  movimento tão violento que chega a arranhar-se,  arranca o bracelete de ouro, o bracelete das  serpentes que ganhara da princesa, há muitas  estações. Brande-o diante dela.

- Lembra-se? Eu era só uma menina apavorada, uma  criatura da floresta, tão feia e disforme que só  merecia zombarias... Eu achava que você era como as  outras... Depois, você entrou no meu quarto, um dia,  com palavras doces e esse seu sorriso, e me deu este  bracelete, dizendo-se minha amiga... Você era tão  linda e eu queria tanto acreditar em você... É, eu  também queria ser sua amiga...

Quando o joga no tanque, o bracelete cai apenas  com um leve ruído, como um seixo ou uma gota de  chuva. Afunda cintilando, levado um instante pelo  fervilhar da água, depois desaparece entre as  flores-de-enxofre vermelhas e marrons que cobrem o  fundo do tanque.

Anamaya se levanta com agilidade. A amizade que  morre em seu coração não faz mais barulho que essa  jóia desaparecida.

Sem um olhar para Inti Palla a se contorcer e  sempre a soluçar, ela ajeita a túnica e se afasta na  noite.

- Mestre Francisco!!

Como todos os espanhóis, o cirurgião-barbeiro  Francisco Lopez, vulgo Pancho, instala seu material  num dos prédios da praça. Suas tigelas de estanho, seus bisturis para sangrias, suas pinças e  seus martelos para dentes, suas navalhas, seus potes  de pomadas e ervas medicinais são arrumados em cima  do baú de couro.

Ao ouvir Gabriel chamando, ele se vira e esboça um  sorriso.   - Em que posso servi-lo, Gabriel?

- Eu gostaria que pudesse me fazer a barba.

O barbeiro perscruta o semblante de Gabriel,  depois o ar divertido de Sebastian que o acompanha.

A visita ao Inca o deixou maluco - conclui.

Ele também quer que você corte o cabelo dele - diz  Sebastian rindo, com uma piscadela.

O barbeiro balança a cabeça.

Gabriel! É tarde e o Governador nos convocou para  daqui a menos de uma hora...

Então dá tempo.

- Não! E depois, ora, amanhã você vai ter todas as  oportunidades para cortar e aparar o que quiser!

- Eis aí uma observação de homem corajoso - zomba  Sebastian.

E por que você quer tirar a barba?      recomeça o  cirurgião, muito sério. - Ela lhe assenta como uma  luva.

- Para sentir o ar desse dia na cara. Ficou louco  mesmo ou está fingindo?

- Pancho, amanhã, quero estar tinindo. Quero que  você me faça a barba e me corte o cabelo. Depois vou  deixar o resto da sujeira no rio.   - Madre de Dios! No meio da noite? Com os quarenta  mil selvagens gritando em volta da gente?

Pancho se precipita sobre um de seus frascos e  brande-o como o santo sacramento:

- Gabriel, você vai tomar três gotas desse elixir  que vai acalmá-lo e fazê-lo dormir, é isso o que vai  fazer!

Sebastian cai na gargalhada:

- Você não entendeu, barbeiro! O señor Gabriel tem  um encontro amanhã com uma mulher.

Gabriel olha desconfiado para o Negro.

Sei quem ela é, essa sua senhora - diz o barbeiro  imitando o movimento do ceifeiro. Nós todos temos um  encontro com ela. Mas posso lhe garantir, don  Gabriel: ela pouco se importa se usamos barba e  cheiramos a azedo!

- Deixem de asneiras vocês dois - diz Gabriel  pegando uma navalha em cima do baú.

Ele a abre, sente seu gume na palma da mão, depois  aponta-a para a barriga de Francisco e ordena, num  tom tão baixo e grave que os sorrisos se apagam:

- Faça a minha barba, por favor, Pancho, ou você  nunca vai saber como é todo esse ouro do Peru.

Anamaya foi correndo descalça até a fonte.  Precisava lavar-se de toda impureza, de todas as  palavras que a sujaram, de toda a violência que  passou por ela.

Precisava nascer de novo.

Agora ela sai da água quase fervente. Naquele luar  prateado e naquele ar frio da noite, seu corpo nu  está fumegando. O banho não apagou as lágrimas que  correm em seu rosto. Ela veste o anaco branco, mas  sem enriquecê-lo com nenhuma de suas jóias. Jogou  fora o bracelete das serpentes dado por Inti Palla,  mas seu braço ainda ostenta o arranhão que ele  deixou.

Do outro lado do vale, na encosta, no caminho real  que leva a Cajamarca e onde serpeava pela manhã a  estranha minhoca preta e cinza formada pela coluna  de estrangeiros, agora há um interminável cordão de  fogo. São as tochas dos milhares de índios rebeldes  que acompanham os homens barbados. Todos aqueles que  Atahualpa conquistou e perdeu. Todos aqueles que  prestaram vassalagem a Huascar e que, hoje, não têm  outro meio de se vingar do Único Senhor senão  oferecendo o seu rancor e suas armas ao poder dos  estrangeiros.

E o cordão de fogo, como uma corrente de ouro  fundido na opacidade da noite, desliza até a cidade  cujos muros ela ilumina.

Cajamarca está tão perto e tão longe!

- Eles vão todos morrer - diz uma voz no escuro. -  Guaypar!

O jovem combatente sai da escuridão, torso e  pernas nus, vestido apenas com a huara. Anamaya não  pode evitar admirar seu corpo forte, onde os  másculos parecem torrentes numa montanha.

- Ouvi tudo - diz ele. - Sei a maldade que essa  mulher tem no coração. E sei que você não nos traiu.  Nunca...

- Obrigada, Guaypar.

- Mas também sei que você não olhava para o  estrangeiro como se olha para um pai...

Ela percebe a amargura em sua voz. - E quero lhe  dizer que ele morrerá. Anamaya fecha os olhos. A dor  lhe retesa os membros e lhe punciona os rins.

A lembrança do rosto do estrangeiro está dentro  dela. Seu olhar e sua vertigem quando ele quase caiu  em seus braços ainda estão dentro dela, como uma  pedrinha de fogo a dilacerar-lhe as entranhas.

A atração pelo estrangeiro está dentro dela, onda  de esperança e de doçura a lhe dilacerar o peito.

E agora, o medo de que ele morra está dentro dela.   - Deixe-me, Guaypar - murmura.

- Ele morrerá - repete calmamente o guerreiro.   - Ele e os outros. Ele se afasta na noite.

Anamaya se levanta e dá as costas para Cajamarca.  Esquadrinha as colinas escuras a oeste por onde  chegará o Irmão-Duplo, se Villa Oma não o esqueceu.    

- Venha - balbucia ela. - Venha Irmão-Duplo,  venha, eu suplico, e me ajude!

Frei Vicente ordenou que fossem retiradas as  cerâmicas, as bonecas, todas as imagens pagãs  entronizadas nos nichos dos muros. Agora ali há  velas acesas, dando àquele salão de vigas de ouro a  atmosfera de uma caverna onde estivesse reunida uma  assembléia de fantasmas.

Na parte da frente, dez portas dão diretamente na  praça. Os que não cabem dentro do recinto amontoam- se ali. Na cidade deserta, ficaram apenas algumas  sentinelas, munidas de buzinas para dar o alarme.    Elas vigiam o caminho da fortaleza e o topo da  pirâmide.

Faz-se silêncio quando o Governador sobe num  pequeno estrado improvisado com alguns baús. Don  Hernando e os capitães permanecem ao lado dele.

Frei Vicente ergue a cruz de ouro que ele fixou numa  vara. Inclina-a três vezes na direção da assembléia  onde todos tiraram o chapéu, o capacete ou o gorro.  Depois, volta-se para don Francisco, inclina de novo  a cruz, dessa vez, perto o bastante do rosto do  Governador para poder encostá-la em sua barba. E  todos se persignam.

- Deus dispõe conforme a Sua vontade do que  acontece embaixo e acima do firmamento - diz don  Francisco em voz alta e clara. - Que ele possa nos ter em Sua santa glória e que a Mãe  bendita de Cristo nos proteja também...

Os semblantes se contraem, os olhos não piscam  mais. Don Francisco parece capaz de ver cada rosto.  Suas pupilas, tão cinzentas quanto sua barba, são  mais luminosas que as tochas enfiadas nos jarros.  Jogando a mão enluvada à frente, ele grita:

- Acham que os índios que nos cercam de um lado ao  outro da planície somam quarenta mil. De jeito  nenhum!

Ele se cala de novo.

- Somam mais que isso. Sem dúvida, o dobro.  Oitenta mil! Ele se cala como se quisesse ouvir uma  reclamação que não veio.

- Oitenta mil! Um contra quatrocentos! Um espanhol  contra quatrocentos índios. Quantos eram em Ia Puna?  Algumas centenas! E em Tumbez? Não mais que isso. O  Rei Atahualpa nos garantiu sua amizade e nos  ofereceu belos presentes. Ele nos acolheu nesta  praça magnífica. Mas tudo isso não passa de uma  armadilha. Ele nos quer aqui para melhor nos  massacrar. E vocês estão com medo. Estão com medo  como crianças que olham para o escuro e deixam a  imaginação à solta! Têm medo porque a fé que têm em  Deus não é suficiente! Um contra quatrocentos! Sim,  porque e Deus quem quer... E Deus quer, meus  rapazes, porque deseja mostrar seu poder àqueles que  ainda não o conhecem. Deus quer que os índios desta  terra rutilante de ouro venham para o Seu seio como  todos os homens do mundo! Deus disse: "Um contra  quatrocentos, eis o que há de enfrentar, você, Pedro  o Grego, você, Alonso, você, Juan, e Benalcazar e  Mena e vocês todos...”

O dedo em riste de don Francisco indica os homens  como se os pegasse no gasganete. E ele grita mais  alto ainda:

- Todos!... Deus quer provar nossa fé,  companheiros! Deus permitiu que chegássemos até cá,  apesar de tudo o que suportamos, porque quer que  sejamos o instrumento magnífico de Sua força e de  Sua grandeza! Compañeros, meus irmãos! Deus nos  escolheu e nos abençoou porque quer que dentro de  nós não haja medo algum, só haja a alegria de  ampliar o Seu Reino com a nossa coragem!...  Compañeros, abram os olhos, abram o cérebro! Os  índios vieram aqui nesta planície, num total de  oitenta mil, porque têm medo de vocês! Medo para  fazer essa algazarra toda que nos ensurdece e não  nos deixa dormir...

Ele se cala, e, dessa vez, alguns sorrisos rasgam  as barbas. Gargalhadas arranham duas ou três  gargantas. Então, o Governador don Francisco Pizarro  balança a cabeça e ri também. Depois, calmamente,  acrescenta:

- O Rei deles vem aqui, amanhã de manhã. Entrará  nesta praça com um séquito pesado de servos,  mulheres e trastes. Vou pegá-lo pela mão e não vou  mais largá-lo. E vocês vão ver, os oitenta mil  índios não ousarão sequer levantar um dedo. É isso  que vai acontecer...

A terra, as montanhas e as nuvens vibram com o  alarido ininterrupto das trompas e dos tambores. A  planície está salpicada de braseiros permanentemente  cuidados. Assim iluminado, o acampamento de tendas  parece ainda mais imenso à noite do que durante o  dia. O vento cessou para dar lugar a uma garoa fina  que não impede que as fagulhas subam em sarabanda  acima das chamas.

Mas Ánamaya nada ouve, nada vê.

Desde a meia-noite, ela está agachada no odor das  ervas, preparadas exclusivamente por ela, sem ajuda  de nenhum sacerdote. Ela trouxe a coca e a chicha às  escondidas e instalou-se atrás do muro do templo,  onde ninguém a vê.

Ela bebeu e respirou.

E agora, aguarda, balançando lentamente o tronco,  sem sequer perceber. Está sozinha. Nunca, desde que  foi capturada por Sikinchara, sentiu-se tão sozinha  e perdida na imensidão do mundo. Nunca, desde que o  único Senhor Huayna Capac lhe estendeu a mão,  sentiu-se tão vulnerável e abandonada.

No entanto, ainda tem esperança. Está aguardando  que ele venha a ela, que a ajude nessa noite  terrível e sem igual. Que ele a ajude, a ela cujo  apoio ele reivindicou e obteve durante todos os seus  anos!

- Oh, ajude-me, ajude-me!

Mas a chuva cai, semeando milhares de minúsculas  perolazinhas em seus cabelos, molhando as folhas de  coca e tornando a fumaça mais pesada e mais acre. E,  do Outro Mundo, só vem o sopro gélido do silêncio.

Sombras armadas caminham pelas ruas desertas  murmurando.

Em toda parte entre os muros de Cajamarca ecoa o  alarido infernal feito pelos índios na planície.    Eles não param um minuto sequer, a noite inteira.  Nem os cavalos conseguem dormir.

Eles acenderam milhares de fogueiras, e dir-se-ia  que todas as estrelas do céu pousaram na planície.

Mas os homens não voltam mais os olhos para a  planície. Don Francisco ordenou:

- Não olhem para eles, não os escutem! Isso é só  afetação. Se for preciso, tampem as orelhas com o  pano da camisa para não escutarem nada.

O próprio Governador vai de grupo em grupo. Pousa  a mão nos ombros que a garoa molhou.

- Protejam suas espadas - aconselha -, engraxem as  botas e os capacetes. Isso tanto ocupa o cérebro  quanto os dedos.

Ele tanto vai falar com os soldados de infantaria  quanto com os cavaleiros e os capitães. Pergunta  como estavam as tortillas de milho servidas pelas  índias que chegaram no fim do dia com o grosso das  tropas tallanes. Ri e pergunta se os corações estão  tão quentes quanto a sopa de favas! Ri quase sem  afastar os lábios finos sob a barba e, como sua  bonomia é recebida com espanto, diz ainda:

- Esta noite, meus rapazes, não há mais pequenos  nem grandes, infantes nem cavaleiros. É que estamos  aquecidos na mão de Deus, companeros, e todos os que  vêm comigo são Senhores!

Batendo com a espada comprida na quina dos  degraus, ele sobe ao topo da grande pirâmide para  inspecionar o falconete sustentado pelo Grego, por  Sebastian e Gabriel. Confere o eixo de tiro,  apontado para a estrada. Pensa e ordena:

- Depois que o dia clarear, é inútil mirar na  estrada. Isso vai acontecer aqui, dentro da praça.  Desloquem o falconete para poder atingir o portão no  fim do muro que dá para a planície... Gabriel,  preciso de você lá embaixo...

À luz bruxuleante da tocha, ele repara no rosto  glabro e limpo de Gabriel. Ri e acrescenta:

- Bom, aí está uma boa idéia! Limpar-se para o  grande dia.

Um lampejo de ternura franze-lhe as pálpebras, e  ele diz, batendo no ombro de Gabriel e fazendo o  Grego e Sebastian darem gargalhadas:

- Vamos mostrar você aos índios assim, amanhã.  Você vai impressioná-los: eles vão pensar que estão  vendo um anjo!

Tudo ficou branco de repente e uma voz de criança  chamou:   - Anamaya!

Não se vê nada. Só há um vazio sem fim. Tudo é  branco e doce, sem nenhum relevo nem aspereza, como  se nenhuma parte do mundo tivesse escapado de uma  nevasca que teria surgido do nada.

A voz da criança torna a chamar: - Anamaya!

Ela acha que responde, mas não escuta a própria  voz.

- Não seja medrosa, não fique triste - diz a voz  da criança. Ela acha que pede que fale, e a voz da  criança responde:

- Sou aquele que está com você e não a deixa. Sou  aquele que você apóia no Mundo dos homens.

Ela acha que isso não é possível, pois aquele que  ela apóia é um homem muito velho que já partiu para  além da morte. Então a criança ri e diz:

- Eu sou aquele. E estou na idade da infância,  pois o mundo está voltando a ser jovem. Chegou a  hora de um grande pachacuti. O que foi não será  mais. O que está para vir ainda é como a criança no  ventre da mãe.

Anamaya treme pensando na guerra que acontecerá  amanhã. A criança diz:   - O que é velho se quebra, o que é grande demais  se quebra, o que é forte demais não tem mais  força... É isso o grande pachacuti. Os nós apertados  dos cordões do quipu levam a um nó único. Do outro  lado, os cordões seguem para os horizontes, livres e  longos, sem nó nenhum. O mundo se comprime e  recomeça. Tudo mudou.

Anamaya pensa: então vamos todos morrer. Os  estrangeiros vão nos matar. A criança fala com uma  voz muito doce, dizendo:

- Alguns morrem e outros crescem. Não tenha medo  nenhum por você. Mas cuide de meu filho que você  transformou em serpente, pois ele é o último nó do  tempo presente. E cuide de meu filho que você salvou  da serpente, pois ele é o primeiro nó dos cordões do  futuro.

Anamaya pensa: como posso fazer isso, eu que nem  sequer sou uma inca de verdade? Ela sente a carícia  que a criança faz ao murmurar:

- Você é quem deve ser. Não tema, o puma vai  acompanhá-la no tempo futuro.

- Foi um belo discurso que o Governador fez ontem  à noite - diz o Grego. - Gosto quando don Francisco  fala assim. Mas foi só um discurso. E agora é que as  coisas sérias vão começar.

Ele aponta para as montanhas do leste onde, apesar  das nuvens, o céu clareia.

Os três continuam sentados ao pé do falconete, no  topo da pirâmide, molhados e enregelados de frio. O  alarido do imenso acampamento índio cessou há apenas uma hora, como por milagre, e de  uma vez só. Como eles souberam que já ia amanhecer?  A quantidade de fumaça produzida por milhares de  fogueiras foi tão grande que se estagnou em cima do  vale, de uma serra à outra, numa camada marrom  pestilenta, espessa como as nuvens e irritando os  olhos e a garganta.

- Um contra quatrocentos - recomeça o Grego com um  sorrisinho. - Vamos saber como é isso.

- Se você tiver tempo - brinca Sebastian. - É pena  que esses bugres nunca ataquem à noite, pelo menos  eu teria a minha chance!

Depois, eles ficam calados um bom tempo,  procurando adivinhar menor movimento na direção das  termas.

- Por que está há horas sem dizer nada? - pergunta  finalmente Grego a Gabriel. - O medo, em geral, faz  falar.

Gabriel olha para ele e sorri.

- Estou com medo, mas não do que você pensa - diz  com uma voz completamente rouca.

- Então de quê?

Mas Gabriel fica calado, o enigma de seu sorriso  nos lábios. Quando o Grego e Sebastian param de lhe  dar atenção, ele ergue os olhos para as estrelas.  "Havia um sonho por trás do meu sonho", murmura de  si para si, "mas eu não sabia.”

 

                                        Cajamarca, 16 de novembro de 1532.

Com o dia, a espera começa.

Há medo no fundo dos corações, mas ninguém ousa  confessar. O sangue ainda não terminou de secar no  fio dos machados de bronze. É o preço pago por  aqueles que recuaram diante do cavalo do  estrangeiro.

Quem são eles realmente, sob os pêlos que lhes  cobrem o rosto, sob a pele que os envolve, atrás  daquela sujeira repugnante? Não, certamente não são  deuses, menos que homens, pior que animais... Por  que suas palavras são doces como leite, depois  violentas como a pedra de funda? O que querem?

Essas perguntas nem chegam aos lábios: elas valem  a morte. Então, escondem-se e envenenam o sangue dos  servos e dos senhores, paralisam os covardes e  afligem os corajosos - na hora em que eles vestem  suas túnicas quadriculadas, seus plastrões de ouro e  prata, na hora em que ecoam as primeiras risadas,  promessa de festa por um dia que será lembrado.

Guaypar olha para eles com desprezo, mas a  impotência de sua raiva cresce em suas veias.

Com o dia, a espera começa.

Anamaya abriu os olhos, o coração batendo.

Ela não dormiu e seu corpo todo dói. A voz da  criança que lhe falava, esta noite, vem de um sonho  antigo e cujo sentido se perdeu. Há muito tempo, ela  julgou saber. Já não sabe mais nada...

   Ela tem medo.

Não é mais o medo de Inti Palla e suas ameaças. É  um medo mais profundo e doloroso.

Medo que o sol desapareça e não volte. Medo do  mundo novo que se anuncia, de seu fragor.

Medo das palavras da criança, da evidência de seu  mistério... Cuide de meu filho que você transformou  em serpente, pois ele é o último nó do tempo  presente. É Atahualpa, claro... Como esquecer aquele  dia em que ela o libertou dos soldados de Huascar  fazendo crer que ele se havia transformado em  serpente? Cuide de meu filho que você salvou da  serpente...

Para culminar, ela tem medo do estrangeiro de  olhar triste e cabelos de ouro que lhe fala uma  língua que seus ouvidos não entendem mas que seus  olhos e seu corpo inteiro compreendem, como se a  esperassem desde sempre.

Com o dia, a espera começa.

O Único Senhor Atahualpa pára de jejuar.

Ele acorda e pede comida e bebida, e come e bebe  ouvindo o rumor do acampamento em polvorosa para  acompanhá-lo até os estrangeiros que o aguardam em  Cajamarca.

Sikinchara, Guaypar e os generais vêm se  prosternar junto à sua rede e garantem-lhe que tudo  já está no lugar para a "caçada", como eles dizem.   - Os estrangeiros não podem fugir, único Senhor.  Estão tão bem cercados dentro daquela praça quanto o  seu irmão Huascar dentro do cordão de fogo. Não  podem pegar estrada nenhuma, nem eles nem os  traidores que estão com eles.

- O que eles estão fazendo agora?

- Nada. Estão escondidos num prédio da praça, e,  em volta deles, dá para sentir o cheiro do medo.

O Único Senhor pede que sirvam mais bebida a ele  Senhores. Então anuncia:

- Vamos desarmados.

Vê a surpresa de Guaypar e repete:

- Vamos sem mais armas do que o necessário para a  caçada.

Os Poderosos Senhores balançam a cabeça. Do outro  lado dos juncos que circundam as termas e os prédios  do Inca, seus olhares correm para os muros de  Cajamarca. E todos, bebendo chicha, riem desses  homens arrogantes que ainda não sabem que serão  facilmente capturados como cabritos apavorados num  chaco!

Com o dia, a espera começa.

Na maior sala do palácio, eles assistem à missa  celebrada por Frei Vicente. Espremem-se uns contra  os outros para esquecer o frio, o medo, essa noite  em que dormiram tão pouco e fizeram orações há muito  esquecidas.

No momento em que ouvem Frei Vicente dizer as  palavras "Santa Maria, Mãe de Deus...", seus olhares  se voltam para Pizarro cujos olhos se ergueram para  o céu, cheios de confiança e exaltação. Por uma vez,  não há entre eles um homem sequer cogitando em fazer  um gracejo.

Mas o fervor não impede que eles se mijem nas  calças.

Com o dia, a espera começa.

No topo do ushnu, Pedro o Grego manda dispor toda  a artilharia com que os espanhóis podem contar: três  colubrinas além do falconete instalado na véspera.  Meia dúzia de arcabuzeiros também subiram quando o  dia começou a raiar e estão pondo para secar a  pólvora que o sereno molhou durante a noite. Em  volta da praça, lá embaixo, don Francisco determinou  pessoalmente a posição de cada um, cavaleiros e  soldados de infantaria, nos prédios. E agora, não há  nada melhor a fazer do que esperar a boa vontade do  Inca.

Gabriel sentou-se no parapeito que circunda o  elevado terraço da pirâmide. Desde que amanheceu,  ele tenta evocar o rosto da mulher de olhos azuis.  Quer imaginá-la como se devessem ir tranqüilamente  ao encontro um do outro num caminho orlado de sombra  e de sol. Como se pudessem se aproximar um do outro  sorrindo, numa tarde de paz despreocupada...  Bastaria ele lhe dar o braço para ela se apoiar e o  passeio deles não teria outro fim senão as carícias  do amor.

Mas o ar que cola em seu rosto barbeado é úmido e  frio. Seus olhos fixos e doloridos vêem apenas a  enorme agitação do acampamento inca. A fumaça das  fogueiras continua estagnada sob as nuvens que, no  entanto, se desfazem. E como Sebastian e Pedro vêm  sentar-se a seu lado no parapeito, ele murmura:

- Vi uma estrela caída do céu na terra. Deram-lhe  a chave do poço do abismo. Ela abriu o poço do  abismo e dali subiu algo como a fumaça de uma  fornalha, e o sol e o ar ficaram encobertos pela  fumaça do poço...

- O que você está falando aí? - pergunta o Grego  com uma careta.

- Nada. Uma velha lembrança! Palavras da Bíblia...

- Então guarde-as para você! - resmunga o Grego. -  Para a Bíblia, basta Frei Vicente. E para a grande  fornalha do inferno, já temos tudo de que precisamos  aí na frente.

- Ei, olhem! - diz Sebastian apontando para os  prédios do Inca. - Eles estão se mexendo! Mas olhem,  eles estão vindo!

Em toda parte, as crianças e os homens estão em  polvorosa. Juntaram correndo trouxas de roupa e os  últimos feixes de lenha. Nas tendas, as criadas  pegaram os quartos secos de lhama e os patos  esfolados que pendiam nas vigas... Os rapazes correm  no meio dos soldados e dos senhores que estão  acabando de se vestir, ajudando a prender os  plastrões de ouro ou a ajeitar os chapéus de penas  luminosas.

Depois, formaram-se as alas. As dezenas tornaram- se centenas e as centenas, milhares e milhares.  Enquanto o sol começa finalmente a rasgar as nuvens  e aquecer os rostos, a poeira sobe da planície  pisoteada que não parece grande o bastante para  conter semelhante tropa.

Quando afinal o chamado grave das trompas ordena o  alinhamento dos batalhões em volta dos prédios das  termas, a grande liteira do único Senhor entra no  pátio.

São oitenta homens, inteiramente vestidos de azul,  a ter a honra de sustentar nos ombros o enorme peso  do trono de ouro do Inca. Atrás deles, vêm duas  outras liteiras, ocupadas pelo Governador da  província e o curaca de Cajamarca, depois duas redes  para os tios conselheiros de Atahualpa.

Mas de todo esse movimento, Ànamaya nada vê, nada  sente.

Naquela manhã, seus olhos estão quase tão  vermelhos quanto os do único Senhor, ela está mais  pálida do que nunca, seu rosto está encovado e seus  lábios, transparentes. A fumaça das ervas irritou- lhe as pálpebras e a chicha lhe deixa um gosto  amargo na boca.

As palavras da criança giram em sua cabeça como um  vento inebriante. Apesar de sua voz tranqüilizadora,  o medo de compreender continua igualmente intenso.

Desde o amanhecer, Ánamaya não sabe se deve falar  com o único Senhor, dizer-lhe que seu pai finalmente  veio ter com ela sob a forma de uma voz de criança.  Como lhe dizer então que ele é o último nó do tempo  presente? Como lhe dizer, quando ele imagina que  vai capturar os estrangeiros como se eles fossem simples lhamas selvagens, que esse  dia talvez seja aquele em que termina o presente e  começa o futuro do Império das Quatro Direções?   Como lhe dizer também que a cara do estrangeiro a  quem ela ofereceu de beber a persegue tanto quanto  as palavras da criança do Outro Mundo? Como lhe  dizer que ela sente-se inexplicavelmente  transportada para ele, mesmo se a vergonha de  semelhante sentimento é imensa? Sim, apesar de todo  o seu terror, ela pressente no dia que chega uma  promessa que lhe queima o coração!

Mas como esperar então que a criança do Outro  Mundo lhe tenha previsto que o presente acabava  hoje?

Quando o único Senhor se instala no assento da  liteira, ela se mantém afastada. E a coluna parte  num passo lento e cadenciado enquanto ela não abriu  a boca a respeito de seu segredo.

De relance, ela viu Guaypar do lado e Inti Palla  que já está colocada em seu lugar entre as  concubinas. Ambos evitaram cuidadosamente o seu  olhar.

Sebastian vira-se para Gabriel.   - Está ouvindo? - pergunta.

O som que sobe do cortejo é sinistro, como se uma  cidade inteira chorasse seus mortos. É um rugido que  vem das profundezas da terra, onde as vozes dos  homens e a sonoridade soturna das trompas formam uma  nota só, tocada indefinidamente, triste de morrer.

- No entanto - murmura Gabriel -, eles estão  dançando... - Eu gostaria tanto que parassem.

Gabriel se volta para o rosto negro, tão  freqüentemente iluminado por uma expressão  zombeteira. Desta, não há vestígio.

- Você não vai começar a se mijar como os outros?

Sebastian exibe o alinhamento perfeito de seus  dentes brancos.

- Continue sonhando, Vossa Graça. Você vai se  atolar todo na merda e eu vou rir tanto que vai dar  para ouvir até nos vales mais escondidos deste  maldito país.

Mas o riso não saiu de sua boca.

Pizarro e os principais capitães subiram na  pirâmide para se inteirar pessoalmente da situação.

Estendendo a mão para se proteger do sol que  apareceu de repente, limpando num instante o céu de  suas brumas e suas fumaças, eles levam um susto.

A planície inteira se pôs em marcha para a cidade.  Ali à frente, na estrada, centenas de silhuetas  vestidas de túnicas quadriculadas de vermelho e  branco agitam-se e varrem o chão que já foi varrido  duas vezes pela manhã. A poeira sobe na estrada como  um vapor hesitante antes de ser dispersada por uma  brisa caprichosa.

Através dela, cintila o ouro que cobre o peito dos  soldados, o ouro que cobre a testa e o punho dos  Senhores, o ouro das lanças, dos machados e das  maças para ocasiões especiais, o ouro dos diademas  das mulheres, o ouro, enfim, da liteira do Inca...

E agora que o cortejo avança com uma lentidão  insuportável, como uma imensa borboleta que saísse  do casulo no calor do meio-dia, duas asas de cores  cambiantes se abrem de um lado e de outro da liteira  real. Às dezenas de milhares, os batalhões do  Inca Atahualpa cobrem toda a planície de norte a sul.  Com o mesmo passo lento que os oitenta carregadores  da liteira, numa ordem perfeita e disciplinada,  avançam inexoravelmente rumo aos muros da cidade.

Gabriel prende a respiração. Ele não se cansa  daquela beleza assustadora. E depois, irrompe o  grito de Candia:

- Eles estão vindo de armadura!

O medo os invade de novo. Mas don Hernando e o  capitão de Soro garantem que os peitorais de ouro e  mesmo de prata não são couraças, são apenas  enfeites.

Mal don Francisco acaba de dar suas ordens, Pedro  o Grego, em pé na base do falconete, começa a  gritar:

- Eles estão parando! Santo Deus, senhor: eles não  estão mais avançando. A liteira parou e até parece  que eles estão montando um acampamento! - Merda -  diz Pizarro.

É a primeira vez que o ouvem dizer uma grosseria.

Uma tenda é armada para o único Senhor poder ficar  à sombra. Como se faz tranqüilamente numa caçada,  ele pede a chicha sagrada para agradecer ao Pai Sol  o prazer e o jogo que este lhe ofereceu.

Ele bebe, demoradamente, e os sacerdotes, a cada  copo que ele esvazia, derramam a chicha na terra que  a bebe com a mesma avidez.

E por um bom tempo durante a tarde, Anamaya tem a  impressão de que está reinando a maior confusão.

Espiões são enviados aos estrangeiros e voltam às  gargalhadas, contando como os homens barbados e seus  animais se escondem como porquinhos-da-índia nos  prédios em volta da praça.

Por diversão, o único Senhor pede que um  estrangeiro venha se apresentar diante dele. Então  Anamaya fica esperando que venha o estrangeiro da  barba de ouro.

- Quem aceita ir sozinho?

Os intérpretes se recusaram violentamente a voltar  ao acampamento do Inca. Seu terror é mais forte que  tudo. O olhar de Pizarro, negro como carvão, vai de  um homem a outro. Os olhos dos combatentes procuram  evitá-lo.

- Não quero que ele pare. Ele precisa vir. Se não  o pegarmos esta noite, estamos mortos. Então, quem?

Um zumbido enche o ar, impregnado de repente de  todos os medos e de pouquíssimas esperanças. Santo  Deus, como o céu está escuro, como as montanhas são  altas, Santo Deus, como ele dá medo...

- Eu - diz Gabriel.

- Você fala a língua deles? ,  - Eu vou com ele.

Quem está falando é Aldana, outro homem da  Estremadura. Seu lábio superior é fendido e ele, tão  sovina de palavras em espanhol, passou algum tempo  com os intérpretes, os curacas, o próprio  Sikinchara, aprendendo a áspera língua dos índios.

Pizarro se volta para Gabriel.   - Por que deseja ir?

- Porque sim, don Francisco.

Os olhos negros de Pizarro mergulham no fundo de  sua alma.   - Cuide-se, irmãozinho.

Enquanto Gabriel e Aldana montam a cavalo, depois  atravessam a praça sob os olhares de seus  companheiros, a palavra hermanito ecoa na cabeça de  Gabriel.

Ele escuta através da bruma o murmúrio desdenhoso  de don Hernando: "Dois cadáveres ambulantes...”

Mas sorri, um sorriso tranqüilo que ninguém  entende, porque ele está rumando alegremente para o  mais estranho dos destinos.

Anamaya vê o primeiro estrangeiro - um homem  pequeno e magro, com uma cerrada barba preta, que  não disfarça completamente a fenda do lábio  superior. E depois o vê. Num lampejo, adivinha a  delicadeza e a regularidade dos traços, a nobreza,  a doçura do olhar, a curva do pescoço que não está  mais coberto pela barba...

Então ela fecha os olhos para escapar da vertigem.  Quando torna a abri-los, obriga-se a conservá-los  fixos no chão.

- O Senhor Governador deseja cear com o senhor -  diz o estrangeiro inclinando-se desajeitadamente e  hesitando nas palavras. - Ele não comerá nada sem o  senhor, e diz que o ama muito. Que está em paz com o  senhor...   Ela escuta Atahualpa responder com uma voz pesada:

- Volte para junto dos seus. Diga-lhes que irei  antes do anoitecer, desarmado. Por que iria armado?  Estou em minha casa...

Ouvem-se risadas.

- E o homem dos cabelos de ouro - recomeça  Atahualpa, desdenhoso - que, de pânico, perdeu os  pêlos da cara durante a noite, o que faz com você?  Ele vem sempre com vocês para ser o guardião do  silêncio enquanto vocês dissipam as palavras?

Anamaya tem a impressão de que o sangue lhe foge  do rosto, que é com ela que o único Senhor está  falando e que uma mão forte vai agarrá-la e  arrancar-lhe o coração.

- Você não entende - resmunga Atahualpa -, mas  estou vendo medo em seus olhos... Não se aflija; não  lhe farão mal nenhum... por enquanto! Anamaya  finalmente ergue os olhos. O Único Senhor se  levantou. Com um passo pesado, aproxima-se do homem  de cabelos claros e tenta pegar seu bastão de prata.  Mas o estrangeiro resiste e se desvencilha com um  movimento ágil. Ela sente o frêmito da assembléia,  imediatamente acalmada por um gesto de Atahualpa que  vai tornar a sentar-se, um sorriso nos lábios,  fingindo indiferença diante do jogo que já não o  está divertindo.

O pequeno estrangeiro magro voltou para a cidade,  em meio a brincadeiras desdenhosas. Mas o homem de  cabelos claros permaneceu imóvel diante do Inca;  pronuncia algumas palavras com voz firme, quase  doce. Depois olha para ela.

Ele sorri.

E quando também vai embora, tranqüilamente, como  um visitante amigo, ela sabe que é impossível viver  sem esse sorriso que lhe aquece o coração.

Gabriel está com as pernas bambas.

- Pensei que fôssemos ficar lá - diz Aldana com  voz inexpressiva. Ele tem vontade de responder: "Eu  também pensei.”

Fica calado.

Percebe que, no fundo, continua lá. Com ela, no  meio daqueles seres estranhos que desejam a sua  morte.

Ele articula as palavras, sem pronunciá-las, para  guardá-las no segredo de seu coração.

Eu a amo.

Ele repete, para as nuvens, para o vento, para o  espírito das montanhas: eu a amo. E todos entendem,  menos os homens, felizmente.

- Acabaremos com eles hoje à noite mesmo - diz  Atahualpa, a voz pastosa.

O Único Senhor bebeu chicha demais. Seus gestos  estão tão pesados e lentos quanto sua voz, seus  olhos já não têm aquela força habitual. Ele parece  entorpecido, embriagado por todos os banhos  escaldantes tomados durante o jejum assim como pelos  jarros de cerveja sagrada engolidos desde a manhã.  Porém, mais do que embriaguez, enquanto irrompem  risadas em volta dele, há em seu rosto, no canto de  sua boca, uma imensa lassidão, uma tristeza  infinita.

Anamaya sente um nó na garganta. É levada por uma  onda de ternura pelo único Senhor e está a ponto de  atirar-se a seus pés quando alguém lhe aperta o  braço.

Ela se vira sobressaltada. Bem junto a ela, o  rosto de Guaypar é grave e severo.

- Eu a vi - diz ele com falsa doçura. - Não  entendo.

- Eu a vi - repete ele. - Não preciso lhe dizer  mais nada. Lembra-se do que lhe disse ontem à noite?

Anamaya sente-se corar. Baixa os olhos.

- Agora vou encontrar Ruminahui na estrada real -  prossegue Guaypar. - O Único Senhor parece não levar  as coisas a sério, mas é só impressão. Daqui a  pouco, vocês vão tornar a pegar o caminho de  Cajamarca e entrar na praça. Os estrangeiros ficarão  com tanto medo que fugirão e nós estaremos  esperando. Vamos eliminar essa raça para que ela  nunca mais volte para fazer seu trabalho de  destruição, nem neste mundo aqui nem em outro...  Seja prudente, Coya Camaquen! Seja prudente. E que  seus olhos azuis não digam aos estrangeiros o que  eles devem ignorar.

- Alguns levam arcos, outros lanças de cinco pés  de comprimento cuja ponta foi temperada no fogo.

- Já sabemos - diz Pizarro.

- Eles escondem algumas armas e algumas cotas por  baixo da túnica - acrescenta Aldana.

- Quais?

- Sem dúvida, fundas, maças...

Pizarro dá um sorriso de desprezo. Varre o receio  com um gesto. - O Rei deles vem? É só o que me  interessa.

- Ele me disse que sim - responde Aldana com uma  voz ainda hesitante. Para maior segurança, o  Governador dá novas ordens: que os cavalos e os  cavaleiros sejam trancados nos prédios em volta da  praça, que colares de guizos sejam presos às selas.  Que a tropa de infantaria se esconda em outros  prédios para poder surgir de todos os lados e que  todos os soldados estejam vestidos com a cota de  algodão acolchoada, e tenham a arma à mão...

- Mas sobretudo - grita ele para se fazer ouvir -  precisamos capturá-lo vivo. A praça deve permanecer  nua como um dorso de mão. É preciso deixá-los entrar  sem que desconfiem de nada. E vocês aí em cima da  pirâmide, escondam-se bem atrás do parapeito.    Quando eles estiverem aqui, nenhum tiro de arcabuz  nem de besta será disparado antes de eu dar a ordem.  E minha ordem será "Santiago"...

Da estrada das termas, para se ter acesso à praça,  só há uma porta cuja largura é a conta para a  liteira. Por ali, o cortejo não acaba mais de  passar. Os servos vêm à frente, depois os senhores  que carregam o Inca, depois as duas outras liteiras  onde vão os curacas, depois as redes, as mulheres.

Os guerreiros ficaram do outro lado do muro, com  suas lanças, suas alabardas, seus machados.

Quando o cortejo desemboca na praça, os tambores e  as trompas que não pararam de tocar calam-se de  repente.

O Único Senhor ergue o braço e, só com esse sinal,  faz calar também as vozes, os murmúrios e até o  vento.

Não há um só estrangeiro na praça.

- Onde estão eles? - pergunta Atahualpa.

Não temos medo. Foi isso o que disse o estrangeiro  dos cabelos de ouro, ela tem certeza. Anamaya quer  aproximar-se da liteira, dizer ao Inca que as  palavras de Sikinchara são mentirosas, desde o  início. Mas a multidão é tão densa que ela não  consegue passar.

Ela abre a boca, mas seu grito é abafado pela  cantoria que sobe de novo da multidão.

Vocês precisam - diz Pizarro em voz baixa, mas  todos o escutam - fazer do seu coração uma  fortaleza, pois não têm outra...

Aqui, no palácio, ele faz o mesmo discurso que fez  pouco antes em cada um dos prédios da praça onde,  espremidos uns contra os outros, os cavaleiros e os  soldados de infantaria se dão encontrões, riem  nervosamente ou ficam calados, os olhos perdidos,  pensando com uma nostalgia súbita e violenta no  torrão da Espanha que os viu nascer.

- Vocês não têm outro socorro a esperar senão o de  Deus, que sabe prodigalizar Sua ajuda nos momentos  mais graves àqueles que estão a Seu serviço. Vocês  encontrarão a coragem de que necessitam: Deus lutará  por vocês!

Há lágrimas nos olhos de alguns, mas os punhos se  cerram nas luvas.   -        Cuidado - diz ele sempre com suavidade - quando  chegar a hora, partam para cima do inimigo com raiva  e segurança. Vocês, cavaleiros, sigam direto para a  liteira e tomem cuidado para que os cavalos não  tropecem uns nos outros. Eu irei a pé com a  infantaria... Que ninguém ponha a mão no Inca antes  de mim.

O olhar de Gabriel deixou o olhar hipnótico do  Governador. Por um vão, eles vêem o brilho da  procissão parada, a liteira do Inca flutuando, como  se carregada por um mar de homens. E sempre essa  cantoria soando como rumores vindos das profundezas  da terra.

"Onde está ela, para que eu a tome nos braços?",  pensa ele...

- Irmãozinho?

É a voz severa do Governador.   - Don Francisco?

- Não é hora de sonhar.

Gabriel leva a mão ao punho da espada e aperta-o  furiosamente.   - Não estou sonhando, don Francisco.

- Não fique longe de mim.

O Governador falou tão baixo e tão depressa que  Gabriel não tem certeza se entendeu. No entanto, não  é possível que ele se tenha enganado: seu coração  bate mais depressa, de orgulho.

- Onde estão eles? - repete Atahualpa enquanto os  batalhões continuam invadindo a praça.

Sikinchara aproxima-se dele, de cabeça baixa.

- Eles estão escondidos nos kallankas, Senhor,  onde morrem uma primeira vez de medo antes de  morrerem da morte que você ordenar.

- Quero que eles se mostrem - repete Atahualpa.

- Agora - diz Pizarro a Frei Vicente.

Felipillo lança um olhar assustado para Gabriel.  Ele não tem outra escolha: deve acompanhar o  dominicano que segura sua cruz e seu livro dos  Evangelhos. O frade está usando a estola salpicada  de estrelas de ouro por cima da casula malva. Seu  olhar está fixo, mas sua boca não pára de murmurar  as palavras de uma prece.

Quando ele se aventura na praça, Gabriel, como  todos os outros, fica impressionado com suas costas  fortes. E todos eles prendem o fôlego.

Anamaya vê o estrangeiro vestido com uma fantasia  espantosa sair do palácio, acompanhado pelo  intérprete que estava com eles na véspera.

O estrangeiro usa uma espécie de unku, como os  índios, porém mais longo, com um quipu como cinto.  Ao contrário dos outros, ele quase não tem pêlos,  nem no rosto, nem na cabeça. Leva nas mãos uma caixa  e um bastão o qual, de quando em quando, ele leva  aos lábios.

A sensação da ameaça que pesa sobre o único Senhor  faz seu coração bater mais depressa, mas seus lábios  permanecem fechados e, apesar da distância  insignificante, a massa de guerreiros que separa  Anamaya da liteira e demasiado compacta para chegar  até ele.

A cantoria cessa.

A multidão se afasta à sua frente, e ele vai  direto para a liteira do único Senhor.

Quando se ouve a sua voz, o tom é estridente,  desagradável, e Anamaya queria tapar os ouvidos para  não ouvir.

Ele diz palavras estranhas.

É como se o caminho que Frei Vicente fez até o  Inca fosse um rastilho de fogo na praça: nenhum dos  índios ousa pisar ali.

Gabriel vê o dominicano parar diante da liteira e  ouve com clareza as palavras que saem de sua boca.

- Sou um sacerdote de Deus e ensino aos cristãos  as coisas de Deus. Deus ordena que, entre os seus,  não haja guerra nem discórdia, mas sim a paz. Em Seu  nome, rogo-lhe que seja amigo dos cristãos, como  eles são seus amigos, pois é o que Deus quer e o que  é bom para você. Estávamos de acordo quanto a nos  encontrarmos pacificamente: por que vir com tantos  guerreiros?

O Inca não responde, nem sequer se mexe. Uma  imagem passa diante dos olhos de Gabriel: Frei  Vicente afastou as águas para chegar à barca do  mestre. Um gesto seu e ele será engolido - e todos  com ele.

- O Senhor Governador - prossegue Frei Vicente - o  ama muito, ele o espera em seu alojamento e deseja  vê-lo. Vá falar com ele, eu lhe peço, pois ele não  vai cear sem você.

Dessa vez, mal Felipillo acaba de traduzir, o Inca  responde com sua voz inexpressiva, apenas audível.

São palavras de raiva.

Um murmúrio sobe da multidão de índios na praça: a  raiva do Inca é a deles. É como se as palavras que  ele diz lhe saíssem do peito: as censuras de  pilhagem e de assassinato, os roubos, os estupros -  não, já não é mais hora da brincadeira sutil da  caçada.

É hora da vingança.

- Não sairei daqui antes que me devolvam tudo. Eu  mesmo decidirei o que farei e de que maneira vocês  vão morrer. Quem teria a ousadia de me ordenar o que  quer que seja?

O estrangeiro responde, pela boca do intérprete,  palavras inteligíveis sobre seu Deus e um outro  homem que é seu Filho e mais outro que é seu Senhor.  Que confusão no espírito doente desses estrangeiros!

- Quem é esse Deus que é o seu único Senhor? -  vocifera Atahualpa. - Quais são as ordens dele?

- Eis aqui Deus - diz o estrangeiro erguendo o  bastão de quatro braços. - Suas ordens estão  escritas aqui.

E oferece um objeto estranho ao único Senhor.

O Inca não chega a abrir o livro. Vira-o de todos  os lados como se fosse uma caixa.

Gabriel vê Frei Vicente fazer um gesto para ajudá-lo, e o Inca lhe dá um tapa.

Ele acaba abrindo o evangelho, começa a folheá-lo com impaciência antes de dar um grito em que se  nota raiva e desprezo.

Um murmúrio, logo um rugido, começa a crescer na  multidão.

- Senhores, preparem-se - diz a voz calma de  Pizarro -, agora chegou a hora.

- Eu também sou filho de um Deus - gritou  Atahualpa. - Do Sol!   E a multidão responde, exaltada:

- É isso, único Senhor.

As nuvens se afastaram definitivamente, e Inti se  mostra em seu esplendor. Como poderia haver alguma  dúvida quanto àquele que tem o domínio de todo o  universo?

Anamaya percebe o brilho de fogo no fundo do olhar  de Atahualpa. Ela sabe agora que deveria precipitar- se para ele, seus olhos ficaram de repente tão  cheios de lágrimas que lhe doem. Todas essas  certezas nascidas na noite e que ela não ousou  confessar, porque tinha medo, porque o olhar do  estrangeiro de cabelos de ouro pousou nela,  engasgam-na como um pedaço de pano que fosse sufocá-la.

Quando o Inca joga fora a caixa, é como se  centenas de asas brancas dali saíssem e voassem ao  vento. Atahualpa se endireita na liteira, cheio de  majestade e fúria, e repete, o rosto intumescido  pela raiva das infâmias dos estrangeiros:  

- Eu também sou filho de um Deus: sou Filho do  Sol!

- É isso, único Senhor - torna a gritar a multidão  se oferecendo ao sol. Anamaya saiu daquela paralisia  e foi se esgueirando até ficar a uns cinco ou seis  passos da liteira; apenas alguns guardas e os  Senhores a separam do Inca. Nesse instante, ouvem-se  duas trovoadas.

Mas elas não vêm do céu.

Quando o Inca jogou a Bíblia no chão, todos viram  Felipillo precipitar-se para pegá-la. Um silêncio  explodiu na cabeça do povo como um raio e o grito de  Frei Vicente ressoou dentro do peito de cada um.

- Saiam, saiam, cristãos! Para cima desses cães  incréus que não querem as coisas de Deus: esse aí  jogou no chão o livro da nossa Sagrada Lei!

E agora, Frei Vicente corre para o palácio e  continua vociferando enquanto corta a multidão de  índios. Estranhamente, os índios não fazem um gesto  para retê-lo e o deixam passar como se ele fosse  intocável.

- Não é mais hora de esperar! - berra Frei  Vicente, que chegou a dez passos do Governador. -  Não vêem que os campos estão ficando cheios desses  selvagens? Ataque esse cão, Governador! Eu lhe dou  uma absolvição prévia! Don Francisco olha-o  esbravejar sem pestanejar.

Momentos antes, com a maior calma, ele havia  amarrado seu colete de aço lustroso de suarda por  cima da cota de algodão. Seu capacete esconde-lhe  todo o rosto exceto o olhar escuro. Ele ergue uma  mão enluvada de couro grosso para Frei Vicente cujo  peito parece prestes a explodir:

- Agora acalme-se, don Valverde. Tem o seu  bispado. Gabriel foi o último a montar. Don  Francisco vira-se para ele.

- Vou a pé. Quando eu estiver com o Inca - murmura  ele -, quero que fique perto de mim.

Todos juntos, eles saem do palácio e dos prédios  da praça. O estandarte do Governador tremula ao  vento e um grito sai em uníssono da boca de todos:  "Santiago!" Então, dos prédios vizinhos surgem os  infantes aos gritos, a espada nua apontada para o  céu.

Nos segundos que se seguem, duas detonações  ensurdecedoras envolvem o topo da pirâmide numa  fumaça branca. Não quatro como se convencionou, mas Gabriel não tem muito tempo de pensar na pólvora  molhada que os traiu de novo. Um imenso grito de  estupor vem da multidão de índios. Eles têm tempo de  ver a trajetória dos projéteis, quase lenta, atingir  a entrada da praça, onde explodem cabeças, esmagam  peitos e semeiam um terror sem nome na multidão. A  brecha que abrem é vermelha de sangue e uiva de dor.  Estranhamente, súbito, o céu escurece.

Ensurdecido pelo alarido dos guizos amarrados às  patas dos cavalos, Gabriel não precisa bater. A  multidão compacta das caras que o cerca se afasta  por si mesma diante dos animais. O Governador  caminha com passadas largas, como numa parada, a  mão direita no punho da espada, sem sequer fingir  que vai desembainhá-la.

À frente, contudo, Juan Pizarro não domina bem o  nervosismo de sua montaria, segurando as rédeas com  uma só mão, a outra agarrada à haste da lança como  ao corrimão de uma escada vertiginosa.

Quando estão prestes a chegar à liteira do Inca,  Gabriel entrevê os outros cavaleiros, embaixo da  pirâmide, se abaterem sobre a massa de índios.  Atrás, as espadas da tropa de infantaria já estão  pingando de sangue, e os homens berram de novo  "Santiago! Santiago!" enquanto os cavaleiros atacam,  lanças à frente.

Então, qual o movimento de um mar quebrado, uma  onda atinge os milhares de índios aglomerados em  volta da liteira de seu Rei. Eles desabam uns contra  os outros, se empurram para fugir dos golpes aos  quais, incompreensivelmente, não respondem.

Gabriel, do alto da sela, vê os corpos e as  cabeças se amontoarem formando uma espuma negra. A  lembrança da menina de olhos azuis lhe embaralha a  vista por alguns segundos. Ele reza, a contragosto,  para que ela não esteja entre aquelas mulheres que  ele adivinha lá embaixo, atrás da liteira do Inca, o  rosto desfeito de medo, jogando as mãos para o alto  como se pudessem ser tragadas pelo céu.

Depois, quando estão suficientemente próximos ao  Inca para ver bem seus olhos vermelhíssimos e sua  boca denotando um impassível desprezo, empurrados  pela onda, dez guerreiros índios caem diante dos  cavalos de Juan e Cristobal, que nada podem fazer  senão pisoteá-los. Enquanto os cascos dilaceram  ventres e peitos, eles erguem olhares pasmos, a boca  articulando gritos mudos. "Eles não acreditavam!",  pensa Gabriel com uma fúria amarga e quase cruel.  "Esses imbecis não quiseram acreditar em nós!...  Logo não haverá mais nenhum em pé e eles nem sequer  lutam! Por quê? Por que esta loucura?”

Como para lhe responder, uma salva de arcabuz  ordenada por Pedro estoura miolos a esmo. Os mortos  já atravancam os vivos, a confusão aumenta. O  caminho da liteira se fecha atrás deles como uma  areia movediça. Diego de Molina e Juan Pizarro estão  de pé nos estribos, berrando e desferindo golpes de  espada à esquerda e à direita, conseguindo abrir  novamente uma brecha para passar.

Gabriel, a cabeça zumbindo, contenta-se em bater  com a haste de sua lança. Mas uma nova salva de  arcabuz aumenta ainda mais o pânico. Começa a fuga.  Corpos se levantam acima das cabeças antes de serem  engolidos e pisoteados.

A pressão é tão forte que Gabriel sente sua  montaria vibrar de pavor entre suas coxas. O cavalo  empina com um relincho desesperado e seus cascos  dianteiros caem em cima das caras que estão por  perto, transformando-as numa pasta. Um índio de  orelhas enfeitadas com enormes brincos de ouro  agarra sua lança e tenta derrubá-lo.

Num reflexo, Gabriel larga o chuço, puxa as rédeas  para fazer o cavalo dar uma guinada para a esquerda.  O animal entende instintivamente. Babando,  escoiceando e girando como pião, cava um vazio em  volta de si. Quando pára, Gabriel saca a espada e,  em três saltos, alcança o Governador que já está ao  lado da enorme liteira do Inca, abrindo caminho só  com a ajuda do escudo. Quase subindo na liteira, don  Francisco consegue agarrar o braço esquerdo do Inca  a fim de puxá-lo. Mas, após um instante de  estupefação, o índio se agarra com todas as forças  ao braço do trono enquanto, sob o piso de balsa, cem  índios o carregam sem fraquejar acima desse mar de  loucura.

- Aqui - ruge don Francisco. - Droga! Ajudem-me a  descê-lo daí!   Dobrados em suas selas, berrando furiosamente,  Diego, Juan e Cristobal começam então a cortar as  mãos dos carregadores.

O que Gabriel vê o enregela apesar do suor que lhe  escorre pelo rosto. As espadas cortam mãos, braços,  dedos, mas os carregadores, sem um grito, abaixam a  cabeça e sustentam a liteira com os ombros enquanto  se esvaem em sangue pelos membros amputados.

Juan, louco de fúria diante dessa obstinação, uiva  como um lobo e começa a cortar gargantas. Mas, como  num círculo do inferno onde nada mais tem fim,  outros índios logo vêm substituir os mortos e, por  sua vez, se oferecem ao ferro das espadas!

Na liteira prestes a virar, o Inca luta e resiste.  Suas roupas suntuosas viram trapos. O embaixador  Sikinchara vem para junto dele para repelir o Governador, mas a lança de Molina perfura seu  plastrão de ouro. A ponta de ferro em forma de flor- de-lis sai entre seus ombros e fica cravada na  liteira quando ele cai para trás.

Outros Senhores índios finalmente brandem machados  de bronze. Com um silvo indistinto, a espada de  Gabriel corta o ar já recendendo a sangue e decepa  um braço. O tranco do osso quebrado ecoa até dentro  de sua cabeça e ele tem a impressão de estar  acordando no meio de um pesadelo inominável. Um  índio agarra sua perna e nela se engancha com todo o  peso. Quando Gabriel torna a erguer o braço para  golpeá-lo, engasga-se com um soluço de raiva.

Em pé nos estribos, ele baixa a espada gritando  como os outros.

Mas no alarido assustador da praça, seu grito não  passa de um sopro de silêncio.

O sol desapareceu.

Lá embaixo, por cima das cabeças das mulheres aos  gritos, Anamaya vê os estrangeiros deceparem os  braços dos servos e dos Senhores como se ceifassem  pés de milho.

Ela vê os valorosos Senhores se precipitarem para  Atahualpa, oferecendo-lhe suas mãos, suas cabeças,  seu sangue e suas vidas sem pestanejar. Mas eles  caem sem parar, seu sangue corre inutilmente  enquanto os estrangeiros atacam com fúria. Como  parecem brinquedos infantis, as fundas que estavam  escondidas, armas de fracos, as maças e os arcos!

- Eu sou o Filho do Sol! - gritou Atahualpa,  voltado para o sol. Mas não deu a ordem de ataque  aos milhares de guerreiros!

Não deu a ordem, e todos, obedientes,  obstinadamente obedientes até a morte, se fazem  massacrar e dilacerar em vão!

Estará embriagado demais de chicha, atordoado  demais com a fúria dos estrangeiros para fazer isso?

O sol já desapareceu. E aquele que foi o seu único  Senhor, Anamaya agora vê lutando, como um simples  mortal, para não ser levado pelos estrangeiros que  semeiam a morte.

Em volta, só se ouvem berros e gemidos. Ela é  empurrada de um lado para o outro. É agarrada, tem a  túnica rasgada, leva trancos. É um rio de corpos a  levá-la, levantá-la, esmagá-la. É o vento do Outro  Mundo que parece soprar uma tempestade inaudita.

Então ela se lembra das palavras da criança: "O  que foi não será mais!" Por que ela não teve coragem  de avisar Atahualpa? Ela não ousa mais olhar para a  liteira porque seria como se já o estivesse vendo  sucumbir.

Não é ela, mais que os estrangeiros, quem está na  origem da derrota dele?

Terá ela se calado por causa do estrangeiro?

Embora o único Senhor Huayna Capac tenha desejado  esse instante atroz, ela não pode suportá-lo.

Está a ponto de se entregar à loucura que a cerca  e a sufoca, prestes a se deixar cair embaixo dos  milhares de pés que pisoteiam o pátio quando, a  oeste, do outro lado da planície e na sombra  tenebrosa das colinas, cintila um raio de ouro.

Sim, lá embaixo, entre as nuvens, um raio de sol  varre a floresta e nela se reflete.

Lá, a oeste, no caminho de Cuzco.

Uma mancha de ouro qual uma estrela de paz caída  na loucura do massacre.   E ela sabe, ela adivinha.

Ela sente: o Irmão-Duplo!   Aquele que ela esperava.

Cercando o Governador, investindo com seus animais  contra a liteira, Molina, Juan e Cristobal continuam  tentando virá-la, mas em vão. E ela até está mais  alta agora, os carregadores subindo em cima dos  cadáveres acumulados a seus pés!

- Que ele não seja ferido! - ordena don Francisco  ainda tentando derrubar Atahualpa do trono.

Chegam cavaleiros do outro lado da praça, e isso  parece um toque de rendição. Com as pontas das  lanças ou com a mão, eles despojam o Inca de seus  atavios, arrancam-lhe a coroa de plumas, a capa de  ouro, o colar...

Furando a multidão no sentido contrário, Moguer se  aproxima da liteira, cortando à sua volta com berros  violentos. Com uma das mãos, ele agarra o plastrão  de ouro do Inca e arranca-o com um puxão seco e  brande-o com um riso demente. Um senhor índio armado  com uma maça tenta recuperá-lo, mas a espada de  Moguer lhe abre a barriga de cima a baixo, deixando  as tripas à mostra.

- Que o índio não seja ferido... - repete o  Governador.

Gabriel, no entanto, capta a loucura a dançar na  cara de Moguer, abrindo a boca e ladrando como uma  fera.

Por sua vez, ele se desvencilha da massa de servos  do Inca que o cercou, investe com seu cavalo entre  os mortos e os vivos enquanto Moguer ergue sua  espada. Este primeiro golpe desliza pelo montante do  trono. No impulso, a ponta da espada corta a luva  que protege a mão de Pizarro agarrada ao braço de  Atahualpa. O Governador berra um impropério, mas sua  mão não se mexe. Gabriel encosta o cavalo na liteira  e, inclinando-se para o lado, bate com a espada nos  ombros de Moguer que cai para a frente e larga a  arma.

- Não toque no índio! - berra Gabriel fora de si  apontando a espada para o peito de Moguer espantado.  - Não ouviu o Governador, seu saco de merda? Não  toque nele!

Sua fúria é tão grande, seus berros são tão  violentos que por uma fração de segundo parece que  todos em volta suspendem o que estão fazendo.

O ódio deforma a cara bruta de Moguer. Gabriel tem  tempo de interpretar ali todo o desejo de matar que  o mundo pode conter.

Pizarro, aproveitando o ensejo, vem enfim tirar o  Inca do trono. Com força, enquanto a liteira tomba  de lado, ele o puxa para si, passando o braço  esquerdo em volta de seu pescoço e já o protegendo  com o escudo.

- Você acaba de salvar o dia, meu filho! - exulta  ele dirigindo-se a Gabriel. - Não me largue, vamos  levar esse bugre para os prédios!

Mas é então, afastando sua montaria dos criados  índios atordoados, que ele a vê.

Ela está imóvel na tormenta, os grandes olhos  azuis parados. E não é para o Inca que ela olha, é  para ele.

Ela o viu chegar, viu-o a ele, o estrangeiro de  cabelos dourados, no meio do massacre.

O raio de esperança do Irmão-Duplo já desapareceu  atrás da colina. As mulheres em volta dela fogem,  suplicam, escorregam no sangue e nas postas de  carne. Algumas agarram-na, alucinadas. Ela as  empurra. Não consegue dar mais nenhum passo.

Estejam montados em seus animais ou a pé, os  estrangeiros são apenas fúria. A morte vibra até as  pontas de seus membros e faz dançarem chamas em seus  olhos.

Ela vê os estrangeiros arrotando insultos,  arrancando uma a uma as roupas do Inca, se bem que  ele já esteja seminu.

Ela vê a espada que se ergue acima de Atahualpa.

Ela o vê, a ele, dando um salto e empurrando o  assassino.

Embora sua espada esteja rubra de sangue, ele não  bate como os outros.   Ela o ouve aos berros, enfurecido com a morte.

E agora, ele está erguendo os olhos para ela.

Uma porta se abre nela e a leva para o lado de lá  do caos.   O que ela pensa não tem sentido.

Mas é quase em voz alta que ela diz:

- Me leve! Não me deixe neste sangue e neste  horror.

Gabriel, a cabeça febril, incapaz de apagar o  olhar azul que continua lhe queimando o cérebro,  precede o Governador e o Inca, abrindo caminho com  seu cavalo na multidão embriagada de combates. Don  Francisco não pára de berrar:   - A vida dele pela sua se lhe acontecer qualquer  coisa!

Finalmente, empurram o Inca para uma casa e  Pizarro repete mais uma vez aos guardas:

- A vida dele pela sua se lhe acontecer qualquer  coisa!

Ele tira a luva e olha sua mão que está sangrando  um pouco. Olha para Gabriel, as pupilas brilhando de  alegria e ferocidade:

- A batalha está ganha, filho!   A batalha?

O olhar de Gabriel se perde no espanto que  continua reinando na praça e, ao longe, na planície.

Trata-se de uma batalha que nunca começou: é  preciso haver dois para lutar. Aquilo é apenas um  massacre, uma carnificina e, agora para os índios  que podem, uma fuga enlouquecida.

Ele abre a boca para responder ao Governador. Mas  uma certeza - a primeira e a única naquela confusão  - lhe sela os lábios. É a ela que ele deve salvar  agora. A batalha, a verdadeira, é que ela continue  viva esta noite e amanhã e sempre. A única batalha,  bem além das ordens de Deus e do Rei e, custe o que  custar, de don Francisco que tem a ternura infinita  de chamá-lo por esse doce nome de "filho".

Sem uma palavra, ele volta atrás e, batendo na  garupa do cavalo exausto, torna a lançá-lo na  tormenta.

Lá embaixo, sob a pressão de milhares de corpos, o  muro do pátio cede e desmorona numa nuvem de poeira.  Levados por este pânico novo, cadáveres pisoteados  já se amontoam nos escombros.

Mas ela não se mexeu. Ela o espera.

Ele diminui o passo do cavalo e iça-a pelos ombros  sem hesitação. Com uma confiança inesperada, ela se  agarra ao seu pescoço e se deixa suspender. É leve  e, quando ele a suspende por sobre o pescoço do  animal, na frente da sela, ela se ajusta  imediatamente a ele tanto quanto ao movimento do  animal. Há apenas cinqüenta passos até a brecha do  muro por onde a multidão vai fugindo dispersa.

Em volta dele, os espanhóis prosseguem com sua  obra de morte, dando gargalhadas escancaradas e  obscenas, embriagados de violência, indo catar no  fundo de si mesmos os tesouros de crueldade que o  medo ali escondeu.

Gabriel vê Sebastian no topo da pirâmide parecendo  gritar-lhe algo que ele não ouve. A jovem está  abraçada a ele, o corpo estreitamente unido ao seu.  Nos saltos do cavalo, os dois são como folhas de  relva enlaçadas pelo vento.

Ele sente o perfume da pele da moça, o calor do  pescoço dela junto à sua boca. Apesar de sua cota de  algodão imunda, a vida do jovem corpo aquece sua  barriga.

Sebastian continua gritando lá de cima, mas  Gabriel continua sem entender, tentando ao máximo  abrir caminho entre os fugitivos.

Ela murmura ou geme em sua língua desconhecida e  ele sente seu corpo vibrar. Num saracoteio do cavalo  que transpõe o monte de escombros salpicado de  cadáveres, sua boca bate na têmpora dela. O sabor da  pele dela permanece em seus lábios e, ao senti-lo,  ele também fica como que embriagado. Mas é então que  sente uma queimação na base da espinha. Com um toque  de calcanhar, faz sua montaria desviar. Ao se virar,  vê a figura satisfeita de Moguer brandindo uma  lança:

- Vou matar você! Vou lhe arrancar as tripas, seu  imbecil!

Balança o chuço, só que já sem força, e a arma  ricocheteia nos tijolos. Gabriel sente o sangue  quente escorrendo por sua anca. Os olhos azuis da  desconhecida procuram seu olhar com aflição. Ele se  contenta em sorrir e, sem sequer se dar conta, em  estreitá-la tanto que a machuca.

Crianças estão correndo para o pântano, levando  uma coroa imunda de plumas coloridas. Em volta  delas, correm também homens, Senhores ou servos,  lhamas ou cães, os plastrões de ouro e as túnicas  brancas maculados de pó, de lama e de sangue. E a  mesma perplexidade lhes deforma o rosto.

Finalmente os cascos do cavalo pisam na relva  rasteira da planície. Gabriel se inclina para colher  ainda o raio luminoso e desamparado dos olhos azuis,  mas eles estão cheios de lágrimas.

Gabriel começa a tremer. Ela também está tremendo.

Enlaça suas finas mãos morenas às dele, e os dois  ficam tremendo, enquanto o cavalo volta por si só a  passo.

O ar está empesteado de morte e desastre. Mas os  dois vibram com um amor tão puro como o primeiro dia  da vida.

 

                                             Cajamarca, 16 de novembro de 1532.

Uma simples cabana de junco no meio do pântano, na  confluência de um rio com uma nascente de água  fervente cuja fumaça penetra através dos caniços.

No chão há apenas uma esteira. Num canto do  aposento, duas tigelas de madeira e uma jarra de  cerâmica empoeirada com o gargalo quebrado. As  cinzas cobriram o fogo há muito tempo.

Gabriel está aliviado: ninguém dormiu ali naquela  noite - nenhuma alma do outro mundo com o propósito  de assombrá-lo.

Pouco a pouco, vai escurecendo.

Ele passa a mão na cabeça para espantar uma mosca:  há sangue em sua mão.

Ele era tão forte: ei-lo tão fraco... Uma idéia  passageira: morrer agora? Não, claro, mas ele está  tão cansado, sente os membros dormentes...

Ela sai correndo da cabana, volta com algumas  folhas que ela rasga e masca durante um bom tempo.  Seus dedos tocam o crânio dele, no local onde o  sangue lateja.

Ele fecha os olhos entrega-se a ela, a essa  doçura.

Ao abri-los, ela sorri para ele. Sua mão toca seu  rosto e escapa quando ele quer segurá-la.

Ela diz duas palavras que, naturalmente, ele não  entende, e ela foge.

Ela foge para a escuridão em meio aos gemidos e às  lágrimas que sobem da terra como fumaça. Seu passo é  seguro, apesar da lama e dos charcos, apesar das  águas escaldantes: o sol desapareceu mas a lua ainda  está com ela.

No pátio da residência do Inca, reina uma  desolação nunca vista: os cavaleiros foram até ali e  devastaram, pilharam, violaram tudo - tudo o que é  de ouro é levado, tudo o que é vivo é conspurcado.  Às vezes, ouvem-se ainda gritos na noite: eles  rondam, a morte em punho.

A rede onde o Inca repousava, naquela manhã, entre  dois pilares de ouro, está boiando na banheira como  um pano velho largado.

- Você não morreu...   É a voz de Inti Palla. Anamaya volta-se para ela: o rosto vermelho, as  roupas rasgadas - a mulher é  somente a sombra de seu orgulho. Quando Anamaya  pensa que sentiu tanto medo dela...

- Não morri, Inti Palla. E voltei para fazer o que  deve ser feito.

- Você é a mãe de todas essas destruições.

- Cale-se, você não passa de uma idiota. É por  causa de gente como você, que não pensa, nem vale  nada, que o único Senhor foi capturado...

Inti Palla se cala, sem ter mais maldade para  responder: chora copiosamente. Agita os braços como  um pássaro tocado por uma flecha.

- Não há mais sol - soluça ela -, não há mais  nada...

- Há um mundo ainda - murmura Anamaya para si  mesma, afastando -se - e uma criança para fazê-lo  nascer...

- É preciso fugir - geme Inti Palla.

- É preciso viver.

- Tem razão, irmãzinha, é preciso viver - diz uma  voz familiar.

E braços fortes abraçam-na, sufocando-a.

Meu Deus, como está quente esta noite, meu Deus,  como a solidão e o medo chegam depressa, e como as  mínimas sombras são uma ameaça...

De quando em quando, Gabriel leva a mão à cabeça  para certificar-se de que existe. A dor está ali,  lancinante, com esse curioso emplastro que ela fez  para cuidar dele antes de desaparecer...

Ela vai voltar.

Ele repete isso para si mesmo diversas vezes mas,  agora que perdeu a conta das horas que passam, já  não tem tanta certeza.

Ainda há pouco, havia o calor de sua pele, a  maciez de suas mãos, a vertigem de seu olhar. Mas  agora?

Só resta uma esteira em cima da qual ele tem uma  dor nas costas terrível, a consciência que lhe  foge...

Chegam os fantasmas - a censura que ele viu nos  lábios de Sebastian e a cólera de Pizarro por tê-lo  abandonado, talvez traído, no momento crucial. O que  vale isso? A morte.

Ele se dá conta de que pensa nela sem temor. A  morte, bem, ela não estava lá em Sevilha, nas  masmorras da Inquisição? Meu pai não me jurou de  morte? E a morte não se arrastava ao meu lado agora  mesmo?

É curioso, não me vejo morrer numa cabana de  junco, num pantanal, a uma légua de Cajamarca.

Ele torna a ouvir a entonação de sua voz cujo eco  continua cantando em seus ouvidos. Espere-me: foi  isso o que ela disse.   A espera semeia a paz em seu coração.

- Quando Villa Oma me disse que você pedia o  Irmão-Duplo - explica Manco -, foi como se você me  tivesse chamado...

Eles estão encolhidos um contra o outro no que,  até aquela manhã, era o quarto de Atahualpa. Agora  só há um caos - os sinais de uma partida  precipitada, os vestígios de uma pilhagem.

- Ele me falou de você - murmura Anamaya.  

- Quem?

- Eu implorava noite após noite para ele falar  comigo, e ele ficava calado. Ainda me chamavam de  Coya Camaquen, por força do hábito, imagino, pois eu  não via nada e nenhuma sabedoria me era dada por seu  pai, Huayna Capac. Eu quase nem lembrava que ele  tinha prometido velar por mim do Outro Mundo...   - Estávamos na longa estrada vindo de Cuzco, nos  escondendo quando uma tropa se aproximava, pois meu  irmão Atahualpa havia jurado vingança, e vingança  atroz, a todos os clãs de Cuzco. Eu vi...

E ele se cala de repente. Ela lhe aperta a mão com  ternura.

- Vi o que um homem não pode ver, Anamaya:  mulheres degoladas ainda com os filhos no ventre...

- E Villa Oma?

- Ele foi escondido pelos sacerdotes.   - O Anão?

O grito saiu do coração. Manco contempla-a com  espanto.   - O Anão?   Por que me fala dele?

- Essa é uma longa história que não é para esta  noite. Peço que me diga só o que sabe.

- Eu o vi entrar acorrentado em Cuzco.   - E depois?

- Não sei o que foi feito dele. Os palácios dos  mais antigos panacas foram profanados, os templos,  revirados, meu irmão Paullu escapou de morrer por  milagre... Vi toda a crueldade do mundo, Anamaya, e  isso é que me tornou homem, mais do que o  huarachiku... Então o Anão, nesse caos...

- Atahualpa estava cercado de mentiras, de falsos  adivinhos, de covardes...   - Ele é quem os ouvia... Não há mais clãs, de  agora em diante... Pouco importa: é tudo igual. Você  diz que botaram a mão nele? Tocaram nele?   - Tocaram nele, agarraram-no com duas mãos...

- Quem são esses estrangeiros? Deuses? Ela sente a  boca seca quando responde:   - Apenas homens.

Manco torna a se calar. Ela sente nele uma  seriedade nova - mas a raiva continua ali,  escondida.

- Na hora em que você vinha chegando com o Irmão- Duplo, ontem à noite, ele finalmente falou comigo  pela voz de uma criança. "Cuide de meu filho que  você salvou da serpente", disse ele, "pois ele é o  primeiro nó dos cordões do futuro...”

- Isso foi pouco antes do amanhecer   diz Manco. -  Eu havia ficado com ele, sozinho, na tenda. Acordei  sobressaltado e uma serpente estava passando pelo  punho de ouro dele, parecida com aquela que você  afastou de mim, há muitos anos, durante a corrida...  Saí para olhar o dia raiar nas colinas. Havia guerra  por todo lado. No entanto, me veio uma grande força  e uma luz se acendeu diante dos meus olhos, uma luz  de ouro que enchia todo o horizonte.   - É você, Manco. Só resta você...

Ele não responde. Abraça-a e murmura:

- Lembro-me do dia em que você disse que nunca nos  deixaria... Lembro-me que, de manhã, meu irmão  Paullu e eu nos perguntamos se você era feia ou  bonita...

Instintivamente, o corpo de Anamaya se retesou  dentro do abraço.   - O que há? - pergunta Manco.

É a vez dela de ficar calada. No escuro, ela vê os  olhos dele tentando adivinhar os seus. Ela adivinha  sua força de jovem felino...

- É preciso partir outra vez, Manco, para Cuzco,  com o Irmão-Duplo...   - Eu sei - diz ele. - Mas por que acha que vim,  fugindo do círculo das tropas de Ruminahui, evitando  os estrangeiros?...

- Por quê?

- Para procurá-la.

Ela respira fundo antes de responder.

- Estarei com você, Manco, mas não irei com você.

Não entendo.

- Aconteceu...

Ela quer lhe contar a verdade pois, no tumulto  novo em que seu coração se transformou, a mentira  não cabe mais do que antes, mas uma lassidão imensa  a invade. E depois, seria preciso encontrar palavras  onde há apenas suspiros, olhares, uma certeza tão  incerta. Então ela não diz nada.

Escuta a respiração pesada dele, e aqueles olhos  pousados nela poderiam brilhar de fúria... Mas Manco  se cala. Ele espera, depois não espera mais nada.  Levanta-se.

- Eu lhe disse que me tornei um homem - declara. -  Aceito o que você me dá e respeito o que não me dá.  Meu futuro se desenha sobre uma aurora de sangue e  quando o mistério me é revelado, vem outro  mistério... Amanhã, estarei nas montanhas e  acompanharei o Irmão-Duplo absorvendo a força que  vem dele. Mas não vou esquecer que é por você...

- Eu também não vou esquecer, Manco. - Cuide-se,  irmãzinha.

Ele desapareceu na noite depois de tocar seu  rosto. Ela treme sem conseguir parar.

Depois, ela também parte na noite, o coração  violento, atrás do homem que ela escolheu como  destino.

Por estar com calor, ele tirou primeiro a cota  acolchoada, depois a camisa. O suor secou em seu  corpo, misturado à poeira e ao sangue. Quando leva o  braço aos lábios, sente um gosto salgado, acre; pelo  corpo inteiro, sente os golpes que recebeu. Uma  sonolência toma conta dele, um torpor do qual ele  não consegue sair.

Ela entrou na cabana quase sem fazer ruído e ele  não se mexeu. Mantém os olhos fechados para  prolongar este momento em que ela está presente e  ele ainda não a vê.

Os gritos, os lamentos se afastam na noite que vai  se aquietando.

Não se ouve senão a respiração deles e essa  tranqüila e eterna fragilidade que os reúne.

"Há um momento", pensa ele, "em que por uma noite  quer dizer para sempre, uma hora ardente e escura  onde não há amanhã..." Ele abre os olhos. Ela  debruçou-se sobre ele com uma ternura inquieta. Sua  mão pousa nos lábios, no rosto dele, e ali traça  pequenos desenhos, leves arranhões. Ele se obriga a  permanecer imóvel, violentando-se para conter o  impulso que o impele a torná-la nos braços.

Agora, ela está com a mão no peito dele, brincando  com seus músculos, com a penugem em volta de seus  mamilos.

Agora, ela volta a seu ombro e toca-o como se  estivesse descobrindo essa curva pela primeira vez.

Agora, ela lhe dá pequenos empurrões: ele entende  que ela quer que ele se vire e ele deita de bruços  com um suspiro que mistura as dores de seu corpo e o  bem-estar de sua carícia.

Agora ela dá um grito.

"Homens, certamente": foi o que ela respondeu a  Manco, mas, o que ela disse com palavras, suas mãos  é que descobrem - a força, a doçura, os ferimentos  desse homem e o arrepio que percorre sua pele quando  ela o toca.

Ela se lembra, naturalmente, e todas as portas de  suas emoções se abrem como que sopradas por um  vendaval, tudo o que ela procurou esconder no fundo  do coração, todos os seus medos, suas lágrimas,  todas essas luas - tudo se esvai e tudo é simples.

Isso não é uma visão, pois não vem do Irmão-Duplo,  do Outro Mundo, isso não lhe é ensinado por um  sacerdote nem por um Sábio.

Está dentro dela. É mais forte e mais terrível que tudo o que ela  conheceu. Se é um medo, vai além do medo. Se é um deus, é o mais misterioso e o mais  exigente dos deuses. Isso dá vontade de rir e de chorar, de correr e de  se transformar em pedra, de gritar e de se calar. Ele obedeceu às suas mãos e lhe oferece a planície  ferida de suas costas. Então ela vê a mancha escura  do puma, escondido em seu ombro, encolhido, prestes  a dar o bote. O grito lhe escapa.

Ela se lembra das palavras do Inca Huayna Capac, à  há muitos anos. Confie no puma... Ela se lembra da  pedra dos ancestrais onde os olhos amarelos do puma esperavam por ela. E ela se lembra da  criança que, na noite anterior, lhe disse: "Você é  quem deve ser. Não tenha medo: o puma há de  acompanhá-la no futuro.”

Seus dedos acompanham a forma do felino, poderoso,  atarracado, livre, no ombro do homem cuja pele se  arrepia.

Devagarinho, ela se inclina para ele. E só lhe resta pousar os lábios sobre a doçura  palpitante daquele que, desde sempre, lhe estava  prometido.

 

                                 Cajamarca, amanhecer de 17 de novembro  de 1532.

Ao amanhecer, os dois saem na planície toda  enfumaçada: é a bruma que desce das colinas e fica  pairando como filamentos de gaze; é o vapor que sai  das nascentes de água fervente; são as almas dos  cadáveres que juncam o caminho, os charcos, as  poças, e que fogem para outros mundos com um último  suspiro.

Eles estão sós.

Gabriel ajuda Anamaya a montar e monta atrás dela.  Pousa a cabeça em seu pescoço, olhos abertos para a  cidade lá embaixo, onde a morte e a vida os esperam.

Logo será preciso falar, explicar suas lealdades e  suas traições, sobreviver nesse mundo estranho que  vem depois do tumulto.

Logo será preciso aceitar que o mundo não seja  sempre esta gaiola sombria, onde se ver, se tocar e  se amar sem dizer nada é só o que se tem a fazer.   Logo, mas não já.  

 

                                                                                                    Antoine B. Daniel

 

 

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