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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PRINCESA DOS CAJUEIROS / Artur Azevedo
A PRINCESA DOS CAJUEIROS / Artur Azevedo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Artur Azevedo

 

 

 

 

Representada pela primeira vez no Rio de Janeiro. Teatro Fênix Dramática em 6 de março de 1880.
PERSONAGENS DO PRÓLOGO:  EL-REI CAJU  DOUTOR ESCORREGA (médico do paço) NHECO (mestre de cerimônias) MARCOS (pescador) VIRGÍNIA (uma mulher do povo) UM PAJEM UMA ENFERMEIRA Conselheiros, ministros, fidalgos, cortesãos, damas do paço e amas de leite. 
PERSONAGENS DOS DOIS ATOS:  PRINCESA DOS CAJUEIROS  PAULO (pescador) DUQUESA DA GUARDA-VELHA  PETRONILHA E TERESA (mulheres do povo) EL- REI CAJU BARÃO DO BOM SUCESSO (médico do paço) NHECO (mestre de cerimônias) MARCOS (pescador) O ADVOGADO DA DEFESA  O ADVOGADO DA ACUSAÇÃO  PRIMEIRO MINISTRO  SEGUNDO MINISTRO  TERCEIRO MINISTRO  QUARTO MINISTRO  UM LACAIO  Professores, gondoleiros, fidalgos, damas, lacaios, etc. 
A cena passa-se na Ilha (imaginária) dos Cajueiros, os dois últimos atos vinte anos depois do prólogo.

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PRÓLOGO Sala de gosto antigo e esquisito. Duas portas à direita e duas à esquerda. No fundo, um arco em toda a largura da sala. Depois do arco, uma grade, aberta no centro, para dar passagem para um bosque por uma escada que não se vê. À esquerda, um sofá. 
 
CENA I  Cortesãos, depois o Doutor Escorrega, depois um pajem, depois El-Rei Caju e sua comitiva. 
INTRODUÇÃO
 
CORO DE CORTESÃOS  Contentes, contentes  nós vamos ficar!  Ferventes, ferventes,  Sabemos amar  A bela rainha  Que o céu  Nos deu,  E que, coitadinha  ‘Stá pra dar a luz 
 
Um filho que há de ser um príncipe de truz! 
 
O DOUTOR (aparecendo à porta dos aposentos da rainha, à meia voz)  Senhores, não façam tamanho barulho,  Que nada de novo por ora não há... 
 
CORTESÃOS (à meia voz) Pois bem, não façamos tamanho barulho. 
 
Que nada de novo por ora não há... 
 
O DOUTOR Senhores, estamos a quinze de julho;  Há já nove meses que... trá lá rá lá! 
 
CORO  Trá lá rá lá!  Trá lá rá lá!  Há já nove meses que... trá lá rá lá! 
 
O DOUTOR (descendo à cena) 
 
COPLAS
  I  Eis o Doutor Escorrega,  Do paço médico mor,  Que os doentes se encarrega  De mandar para melhor.  Eis o Doutor Escorrega! 
 
CORO  Eis o Doutor Escorrega  No bem da humanidade os dias seus emprega! 
 
II  O DOUTOR Há quatro meses somente  Da Academia sai:  Já matei radicalmente  Cinco ou seis tipos daqui!  Eis o Doutor Escorrega! etc., etc. (Declamando) Viram o médico do paço? Vejam agora o passo do médico! (Dança um burlesco sapateado durante o seguinte Coro:) 
 
CORO 
 
Ah! Ah! Ah!  Quem mais burlesco,  Quem mais grotesco  Será? Será?  Passo indecente!  De rir à gente  Vontade dá!  Ah! Ah! Ah! 
 
(Findo o Coro, entra o pajem a correr) 
 
PAJEM Limpem fatos  E sapatos,  Que aí vem El-Rei! 
 
(Cada um dos cortesãos tira uma escova do bolso: limpam-se uns aos outros) 
 
CORTESÃOS  Zás! Trás! Zás!  Trás! Zás! Trás!  Fatos limpos e sapatos!  Que aí vem El-Rei! 
 
PAJEM Vim prevenir-vos depressa,  Mal que o avistei! 
 
CORTESÃOS (a escovarem-se)  Pressa! pressa! pressa! pressa!  Que aí vem El-Rei! 
 
(Aparece ao fundo numerosa e luzida comitiva, que precede El-Rei que vem acompanhado de coiteiros, trazendo petrechos de caça) 
 
MARCHA e CORO GERAL 
 
Praça! Praça!  Praça! porque aqui está  El-Rei que vem da caça!  Toca trombeta: trá lá rá! 
 
EL-REI (à boca de cena)   
COPLAS
 
I Eu sou o rei mais pândego.  Um rei sou de mão cheia!  Pareço um rei de mágica,  Por ser original  Por isso os meus bons súditos  Não fazem cara feia...  Pra rei de ópera-cômica  Não estou de todo mal!  Tur lu tu tu,  Tur lu tu tu  Ora aqui está El-Rei Caju! 
 
II No meu país esplêndido  É tudo monarquista!  Ninguém fala em república  Ninguém diz mal de mim!  Se acaso algum sacrílego  Quiser meter-me a crista,  Irá para o patíbulo,  Pois... eu cá sou assim!  Tur lu tu tu,  Etc., etc.
 
CORO  Tur lu tu tu,  Etc. etc.
 
EL-REI (aos cortesãos, que desde a sua entrada têm-se inclinado bastante) Levantar cabeças! (Perfilam-se) Doutor, dou-te a honra de dizer que venho da caça. 
 
O DOUTOR A caça é o rei dos prazeres e o prazer dos reis! 
 
EL-REI Foi uma caçada real! 
 
O DOUTOR O que matou? 
 
EL-REI Um veado. 
 
O DOUTOR Teve medo? 
 
EL-REI Não. Estou satisfeitíssimo com os meus coiteiros! (À comitiva) Na próxima fornada, hei de fazer-vos barões, marqueses, conselheiros, Coronéis da Guarda Nacional, etc. Sois ótimos caçadores! (Inclinamse) Levantar cabeças! (Perfilam-se) Que novas me dás do estado de Sua Majestade, a Rainha, ó Doutor? 
 
O DOUTOR O estado de vossa real esposa é o mais satisfatório possível. Há todas as probabilidades de um parto feliz. Conto que dentro de meia hora terá vindo à luz do dia o dono ou dona desta prenda! (Pega na Coroa do rei) 
 
EL-REI (zangado) O dono ou dona? (Naturalmente) Dá cá a Coroa, Doutor... (De mau humor, deitando a Coroa) Pois não tens certeza de que a criança é do sexo feminino? Há nove meses te ordenei que empregasses toda a tua ciência, a fim de que não seja varão, e sim varoa, a primícia do meu feliz matrimônio! 
 
O DOUTOR Supus que fosse gracejo... 
 
EL-REI Gracejo! Pois eu gracejo com os meus vassalos! 
 
O DOUTOR Relevai vos diga que a ciência, por isso mesmo que é a ciência, submete-se aos fenômenos comuns da natureza. 
 
EL-REI Fala claro. 
 
O DOUTOR Se o filho não tiver de ser uma filha, nem Vossa Majestade, nem eu, nem a ciência em peso... 
 
EL-REI Então para que se inventaram as invenções? Para que diabo cursaste dez largos anos a Universidade, donde saíste há quatro meses somente?... 
 
O DOUTOR (cantando sem música)  Há quatro meses somente da Academia sai... 
 
TODOS (idem) Já matou radicalmente  Cinco ou seis tipos daqui ! 
 
EL-REI Silêncio! (Inclinam-se) Levantar cabeças! - Pois nãos podes arranjar uma droga que tenha o desejado efeito? 
 
O DOUTOR Vossa Majestade pede... 
 
EL-REI Não peço: mando! 
 
O DOUTOR Manda um impossível! 
 
EL-REI Quero, mando e posso! 
 
O DOUTOR Mas... 
 
EL-REI Mando, posso e quero! 
 
O DOUTOR Desta vez, Vossa Majestade pode querer, pode mandar, mas não pode poder! 
 
EL-REI Olha que sou teu rei! 
 
O DOUTOR E eu o mais respeitoso dos vossos súditos! 
 
EL-REI Obrigado. 
 
O DOUTOR Não há de quê... O nascimento, real senhor, é questão de mero acaso; nós nascemos homem, porque não nascemos mulheres... 
 
EL-REI Boa dúvida! - Não sei onde estou... 
 
O DOUTOR Estais em vossa casa... 
 
EL-REI Não sei onde estou, que não te esmurro... 
 
O DOUTOR Isso é mais fácil! 
 
EL-REI Senhores, atenção! Vou deitar decreto! Decreto verbal! (Inclinam-se todos. El-Rei sobre ao sofá) Sua Majestade El-Rei Caju há por bem decretar ao médico de seu paço real, Doutor Escorrega, que, empregando os meios postos ao seu alcance por dez anos de Universidade, faça com que sua Majestade, a rainha, dê à luz uma criança do belo sexo. Se suceder que a criança pertença ao sexo barbado, morra por ele o referido Escorrega (Movimento do Doutor) que assim o tenha entendido. Assinado: Eu! (Descendo) Levantar cabeças! 
 
O DOUTOR Refleti, senhor... 
 
EL-REI Já refleti maduramente. - Ah! (Trepando ao sofá e batendo palmas) Postscriptum! Post-scriptum! (Silêncio. Inclinam-se) Se for macho, enforque-se o Doutor; se for fêmea, faço-o barão de qualquer coisa! 
 
O DOUTOR Senhor! 
 
EL-REI Assim o tenhas entendido! E bico! Levantar cabeças! 
 
O DOUTOR Com que então, desejais que o fruto do vosso amor... 
 
EL-REI O fruto não: deve ser a fruta! 
 
O DOUTOR O fruto é proibido: vá Vossa Majestade descansado. 
 
EL-REI Bem. Assim é que gosto que me falem. Toca lá estes ossos. (Apertando-lhe a mão) Vê lá: um título ou cadafalso! (Aos cortesãos) Rua! rua! Fazeis muita algazarra, e convém que minha augusta esposa esteja em completo sossego. - Doutor, uma princesa, ou... 
 
REPETIÇÃO DO ESTRIBILHO
 
Tur lu tu tu Tur lu tu tu Verás quem é El-Rei Caju!
 
(Aos cortesãos)  Marche! - Vou ver a rainha. (Entra no quarto da rainha) 
 
CORO  Tur lu tu tu  Tur lu tu tu  Oh! que é ratão El-Rei Caju! 
 
(Os cortesãos saem pela esquerda alta. A comitiva do rei sai pelo fundo) 
 
 
CENA II 
 
O DOUTOR (só) Bonito. Ou uma princesa ou... tur lu tu tu! Estou metido em boa! Não há o que ver! o meu soberano é soberanamente tolo! Tão tolo, que aí pela ilha, quando alguém faz uma tolice, diz-se: - É uma cajuada! Persuadir-se o enxovedo que é a coisa mais natural do mundo a realização do seu originalíssimo desejo! O que hei de fazer? Isto de morrer enforcado aos trinta anos não lembra ao diabo!
 
E o pior é que a rainha vai dar a luz a um menino! Se fosse menina, a mãe seria acometida de dores de dentes: não foi. Na Academia ensinaram-me que, quando uma senhora de esperanças, ao subir uma escada, deita sempre em primeiro lugar o pé direito, tem uma criança do sexo feminino... Ora, acontece que sua majestade deita sempre no primeiro degrau o pé esquerdo... Estou aqui, estou enforcado! 
 
 
CENA III  O Doutor, Marcos.
 
MARCOS (a parecendo ao fundo) Doutor... 
 
O DOUTOR Hein? 
 
MARCOS Uma palavrinha... 
 
O DOUTOR Ah! és tu, Marcos? O que queres? Como pudeste penetrar aqui? 
 
MARCOS Pelo jardim... Quero... 
 
O DOUTOR Escolheste mau lugar e má ocasião. 
 
MARCOS Mas é tão urgente... 
 
O DOUTOR Fala. 
 
MARCOS O outro dia morreu o Belisário... Nós, os outros pescadores, por espírito de classe, fizemos-lhe o enterro e oferecemos uma quantia à viúva, à boa Teresa, que a despendeu inteiramente com a moléstia do filhinho. 
 
O DOUTOR Um filhinho? De que idade? De que sexo? 
 
MARCOS Um menino de três meses (decepção do Doutor) que acaba de lhe morrer nas mãos! 
 
O DOUTOR (mais despeitado) Ora! Mas, afinal, o que queres? 
 
MARCOS Encarreguei-me de pedir a algumas pessoas que concorressem para o enterro da pobre criança; e como o Doutor é das que conheço... e se acha no caso... não hesitei em introduzir-me no jardim e... 
 
O DOUTOR Fizeste bem. Toma, e deixa-me. (Dá-lhe o dinheiro) 
 
MARCOS Agradeço-lhe por mim e por aquela desgraçada! (Vai saindo pelo fundo) 
 
O DOUTOR Oh, que ideia! Marcos! (Marcos volta) És ainda homem em quem a gente se possa fiar? 
 
MARCOS Conhece-me de criança. 
 
O DOUTOR Trata-se talvez da felicidade desta mulher. 
 
MARCOS De Teresa? Ainda bem, pois bem que o merece, coitada! 
 
O DOUTOR (dando-lhe mais dinheiro) Com o que já lá tens, deve dar para o enterro. Leva-lhe esse dinheiro e volta. (Conduzindo-o ao fundo e apontando para o bosque) Logo que voltares, posta-te junto àquele cajueiro; em te eu chamando, vem cá. Não digas nada à mulher. 
 
MARCOS Está dito! Até logo. (Sai pelo fundo) 
 
  CENA IV  O Doutor, só.
 
O DOUTOR (só) Trata-se agora de arranjar uma menina, e substituir por ela o príncipe, que será confiado à tal Teresa. É patifaria grossa, mas não o é mais fina mandar-me enforcar! Vamos arranjar uma princesa; não há tempo a perder. (Vai a sair; entra o pajem pela esquerda) 
 
 
CENA V  O Doutor, o Pajem.
 
PAJEM Diversas amas-de-leite esperam ordem para entrar. 
 
O DOUTOR Que contratempo! 
 
PAJEM Inscreveram-se todas para o concurso anunciado. 
 
O DOUTOR E sou que lhes devo examinar a qualidade do leite, e escolher o melhor! Isto leva um tempo! Podia ficar para depois que sua Alteza nascesse! Enfim, mande entrar: esperarão na antecâmara. 
 
PAJEM Tomo a liberdade de observar que cada uma das amas-de-leite traz uma criança... e isto pode perturbar... 
 
O DOUTOR (vivamente) Traz cada uma criança? Mande entrar tudo! Mande entrar tudo! (A um sinal do pajem que sai, entra pela esquerda um Coro de amas-de-leite, cada uma com a sua criança nos braços) 
 
 
CENA VI  O Doutor, as amas-de-leite, depois Virgínia.
 
CORO DAS AMAS As amas-de-leite,  De leite, de leite,  Vêm-se apresentar  A ver qual se aceite,  Ou qual se rejeite  Pra dar de mamar. 
 
O DOUTOR Deleite, deleite,  É ouvi-las cantar!  Quanta criança!  Quanta esperança!  Deixem-me ver se estes pequenos  Gordos estão, pois, se não estão,  Lógico é que não convém-nos  As mães... 
 
AS AMAS Pois não! Pois não! Pois não! 
 
O DOUTOR (examinando as crianças uma por uma, à parte)  Este é rapaz - que o leve a breca!  Este é rapaz! - Rapaz! - Rapaz!  Este também! Também! que seca!  Idem, idem, idem, idem!  ‘Stou danado, não duvidem!  De alguém morder sou capaz! 
 
AS AMAS ‘Stá danado, não duvidem:  De alguém morder, é bem capaz! 
 
VIRGÍNIA (entrando com uma criança nos braços)  Licença para dois! 
 
CORO Ainda uma! 
 
O DOUTOR Quem sois? 
 
VIRGÍNIA Senhor, também desejo,  Sem mais tirte, nem mais guarte  Do concurso fazer parte 
 
CORO No concurso tomar parte. 
 
O DOUTOR Deve inscrever-se...  (Reconhecendo Virgínia, que levanta o véu e encara-o)  Oh! céus! que vejo!  Virgínia! 
 
VIRGÍNIA (fazendo mesura)
 
Para o servir. 
 
O DOUTOR Grande escândalo antevejo  No que daqui vai sair...  (Às amas, apontando-lhes a porta da esquerda baixa)  Senhoras, entrai!  A decisão em pouco vai! 
 
AS AMAS As amas-de-leite,  De leite, de leite  Lá vão esperar,  A ver qual se ajeite,  Se ajeite, se ajeite  Pra dar de mamar.
 
(Saem pela esquerda baixa) 
 
 
CENA VII  O Doutor, Virgínia.
 
(Virgínia, durante o Coro, tem acomodado no sofá, a criança que trazia) 
 
VIRGÍNIA Finalmente! 
 
O DOUTOR Tua presença assusta-me! Será possível que, afrontando tudo, penetrasses no paço real, para dar-me de viva voz novas edições de teus queixumes? 
 
VIRGÍNIA (em tom dramático) Pérfido! Há três anos eras um pobre estudante, que não tinhas onde cair morto. Onde cair morto! Que digo eu? Onde cair vivo! 
 
O DOUTOR Filha, olha que tenha mais que fazer. Adeus! 
 
VIRGÍNIA (agarrando-o pelo fato)  Espera! vais livrar o pai da forca? 
 
O DOUTOR Vou me livrar a mim mesmo, o que é mais sério! 
 
VIRGÍNIA Nesse caso, fica. - Meu país, honrado velho, vendo que tu nem casa tinhas para morar, e dormias ao relento como um cão sem dono, ofereceu-te uma alcova em nossa casa e um talher à nossa mesa. Aceitaste a generosa oferta. Daí por diante, as tuas olheiras, que as levaras fundas como as de um condenado, começaram a desfazerse. As cores rosadas da infância voltaram-te às faces, cuja palidez cadavérica dissiparam. É que às horas que te sobravam de orgias torpes, sucederam as noites bem dormidas no côncavo tépido de um colchão honesto. 
 
O DOUTOR (à parte)  Esta rapariga tem muita leitura; foi o que a perdeu. 
 
VIRGÍNIA Ao cabo de três meses, disseste-me uma dia... 
 
O DOUTOR Disse-te... 
 
VIRGÍNIA Disseste-me: - Amo-te. E o teu amor, mentido num olhar estudado, encontrou uma porta escancarada onde deverá encontrar um baluarte inacessível: amei-te. O resto, tremo de repeti-lo... Meu pai observou-nos e murmurou: - Aqui há coisa... Chamou-me de parte... 
 
O DOUTOR E disse-te... 
 
VIRGÍNIA E disse-me: - Filha, os teus requebros e medeixas pelo Escorrega que, ente parêntesis, é um farroupilha, podem passar despercebidos a outros olhos que não sejam os de teu pai. Lembra-te de que já não tens mãe, e és o único penhor de minha felicidade nesta vida. Esquece-te dele e casa com teu primo Bernardino, para quem te destinei de pequena. 
 
O DOUTOR Estás a perder tempo; sei disso tão bem como tu. 
 
VIRGÍNIA Eu quisera que uma voz misteriosa te repetisse a todo momento essa história de lágrimas. - Quando sai do quarto do meu pai... 
 
O DOUTOR Eu disse-te... 
 
VIRGÍNIA Disseste-me: - Espera-me no jardim. (Com exagerado lirismo) E foi lá, ao ciciar da brisa, ao brilho trêmulo da lua, que te repeti as palavras de meu pai... 
 
O DOUTOR (à parte) Estou aqui, estou enforcado... 
 
VIRGÍNIA Nesse instante, parece que o demônio te inspirou estas palavras: - Amo-te! Virgínia! Lutar contra a vontade de teu pai, será malhar em ferro frio! Fujamos! Arranjarei um emprego qualquer! Casar-nosemos! Uma dia voltaremos à casa de teu e pedir-lhe-emos a sua benção! 
 
O DOUTOR Que noite aquela! 
 
VIRGÍNIA Fugimos!... Não conseguiste... não procuraste o emprego e eu achei quem me desse roupa para lavar e engomar. Era daí que eu tirava a subsistência de nós ambos. Todos os dias eu te falava no nosso casamento, e esta palavra - Veremos - vinha morrer aos meus ouvidos como uma condenação. Um dia, poucos meses antes da tua formatura, saíste de casa e não apareceste mais; mas, ó desgraçado! o que não sabes é que me deixavas no seio o fruto da tua paixão maldita! 
 
O DOUTOR O que ouço!... Essa criança... (Corre para a criança) 
 
VIRGÍNIA (interpondo-se) É tua filha!... 
 
O DOUTOR Minha filha!... (Querendo tomar a criança) A que sexo pertence? É menina? Deixa-a ver! 
 
VIRGÍNIA (interpondo-se ainda) Ouve o resto: há um mês que veio ao mundo essa pobre criança... 
 
O DOUTOR Oh! não calculas o interesse... 
 
VIRGÍNIA Mentes tu! 
 
O DOUTOR E onde estavas tu? 
 
VIRGÍNIA Em casa da Rosa... uma pobre mulher, que se compadeceu do meu estado. - Dois dias depois do nascimento dessa pobre criaturinha, meu pai me apareceu em companhia do meu primo Bernardino... 
 
O DOUTOR E disse-te... 
 
VIRGÍNIA E disse-me: - Minha filha, eu sei o que são as mulheres e sei o que são os homens... O Escorrega seduziu-te, e tu, com a fraqueza própria do teu sexo e da tua índole romanesca, escorregaste... Eu te perdoo... Aqui te trago o primo Bernardino, que já de muito te perdoou também. 
 
O DOUTOR Bravo! Bravo! E o que te disse o primo Bernardino? 
 
VIRGÍNIA Disse-me: - Virgínia, o Escorrega, à vista desta criança, não hesitará em dar-te a mão de esposo. 
 
O DOUTOR Hein? 
 
VIRGÍNIA Nunca! respondi eu... 
 
O DOUTOR Ah! respondeste bem... 
 
VIRGÍNIA Prefiro o seu desprezo, meu primo; a sua maldição, meu pai; prefiro a minha desgraça... Foi nesse instante que o primo Bernardino, iluminado pela auréola sublime da piedade, balbuciou com a voz entrecortada pelos soluços: - Virgínia, eu sou o mesmo que dantes era! Põe-te fina e tens marido. Amanhã vou mandar correr os banhos!... 
 
O DOUTOR Sublime! sublime! 
 
VIRGÍNIA Tu, que tens o coração de pau, não imaginas que cena! Meu pai chorava; eu chorava; Bernardino desviava os olhos para lhe não trairmos o pranto... a criancinha chorava... 
 
O DOUTOR (rindo-se) Só eu é que não choro, porque já não tenho lágrimas... 
 
VIRGÍNIA Hoje, logo ao amanhecer, o primo Bernardino foi ter comigo... 
 
O DOUTOR E disse-te... 
 
VIRGÍNIA E disse-me:- Minha adorada noiva, já podes sair à rua; estás pronta para outra! Pega essa criança e vai levá-la ao pai. Há um bom pretexto para entrares no paço e falares ao Escorrega: o concurso para o lugar de ama-de-leite do príncipe ou princesa que está para nascer. 
 
O DOUTOR Dá-me! dá-me essa criança!... 
 
VIRGÍNIA (vai buscar a criança) Aqui a tens. (Vai entregá-la, como que se arrepende e abraça a filha) 
 
ROMANZA
 
I  Que vás, ó penhor querido,  A sorte o quer, cruel, fatal!  Vai, que me deixas partido  O coração meu maternal...  Adeus, amores meus,  Talvez para sempre adeus...  Adeus!... 
 
II  Crescendo, tu não afagues  Desejos bons de ver-me, oh! não!  Por tu mãe não indagues,  Pois quem fui eu, não te dirão...  Adeus, amores meus,  Talvez pra sempre adeus...  Adeus!... 
 
(Entrega a criança ao Doutor que a examina) 
 
O DOUTOR Uma menina!... Oh! céus! que felicidade!... Virgínia, Virgínia!... Deixe beijar-te os pés! (Ajoelha-se aos pés de Virgínia) 
 
 
CENA VIII  O Doutor, Virgínia, El-Rei.
 
(Terceto)   EL-REI (aparecendo à porta dos aposentos da rainha)  Bravo, Doutor!  Gostei! 
 
O DOUTOR (à parte) Ora bolas, El-Rei!...  (Ergue-se e deita a criancinha no sofá) 
 
VIRGÍNIA (à parte) El-Rei!... 
 
O DOUTOR Vossa Majestade, malícia não deite  Em ver-me ajoelhado desta moça aos pés: Ia examinar-lhe... 
 
EL-REI O quê? 
 
VIRGÍNIA O quê 
 
O DOUTOR O leite... 
 
VIRGÍNIA (à parte) Que diz ele? 
 
EL-REI Serve? 
 
O DOUTOR É a melhor das dez. 
 
EL-REI (a Virgínia)   Já que ser a ama  da pequena vai,  Escute o programa  Que lhe traça o pai:  Três vezes são quantas  De dia dará de mamar,  E à noite são tantas  Quantas a pequena chorar.  Ao ter a pequena  Quatro meses já,  Papas de maisena  Preparar-lhe-á. 
 
O DOUTOR Papa de araruta  Não lhe fará mal,  Sendo bem enxuta,  Tendo pouco sal. 
 
EL-REI (à parte, depois e olhar muito para Virgínia)  Que mulher tão galantinha!  Ai, como olha para mim!  Quem me dera que a rainha  Tivesse uns olhos assim!  JUNTOS)
 
EL-REI Que mulher tão galantinha!  Ai, como olha para mim!  Quem me dera que a rainha  Tivesse uns olhos assim! 
 
VIRGÍNIA Oh! que cara de fuinha!  Como ele olha para mim!  Saberei, por vida minha,  Tudo, tintim por tintim. 
 
O DOUTOR (à parte)  Esta pobre criancinha  Que dorme neste coxim,  Veio salvar a vida minha,  Teve compaixão de mim! 
 
EL-REI (ao Doutor)  As outras Amas já não são  Precisas, não!  Manda-as embora,  Sem mais demora! 
 
VIRGÍNIA (protestando) Então? Então? 
 
O DOUTOR (baixo)  Amor, sossega: 
 
De ti depende a salvação  Do pai da filha do Escorrega! 
 
EL-REI Então, Doutor? 
 
O DOUTOR Lá vou, senhor!  (À porta da esquerda baixa)  Sem mais demora,  Vinde para fora!  Sai  Daí!... 
 
EL-REI Vão já se embora,  Tumultuárias,  Que necessárias  Não são aqui! 
 
 
CENA IX 
 
O Doutor, Virgínia, El-Rei, as amas-de-leite.
 
(As Amas saem a correr uma atrás da outra, passando por entre os três personagens que se acham em cena, e vão alinhar-se ao fundo) 
 
AS AMAS Há muito mais tempo podiam ter dito:  A gente escusava de estar a esperar! 
 
JUNTOS
 
AS AMAS Há muito mais tempo podiam ter dito:  A gente escusava de estar a esperar! 
 
VIRGÍNIA Que caso esquisito!  Que caso inaudito!  Ao príncipe novo vou dar de mamar! 
 
O DOUTOR e EL-REI Meu Deus, quanta bulha! meus Deus! quanto grito!  Tão alto, senhoras, não devem falar! 
 
EL-REI Leva de rumor!  Isto para quem doente  Se sente,  É maçador! 
 
VIRGÍNIA Aqui anda algum mistério! 
 
EL-REI O Doutor pálido está! 
 
O DOUTOR El-Rei parece-me sério! 
 
OS TRÊS  Hei de ver o que será!... 
 
(As amas-de-leite descem em linha, à boca de cena e cantam à meia voz) 
 
AS AMAS As amas-de-leite  Ao príncipe novo não dão de mamar...  Estavam preparadas com estes brinquedos...  (Tira cada uma a sua gaita de sopro)  Que o príncipe novo devia estimar. 
 
(Cada uma tira um acorde da gaita, e saem todas) 
 
 
CENA X  O Doutor, Virgínia, El-Rei.
 
EL-REI Como sabes, Doutor, não sou homem de ciência. Mas deixa dizer-te: Sua Majestade, a rainha, parece-me que vai dar-me um rapaz! 
 
O DOUTOR Por quê, real Senhor? 
 
EL-REI Aquele volume... 
 
O DOUTOR Não quer dizer nada, senhor: o que pode acontecer é que Sua Majestade dê à luz uma pequena grande! 
 
EL-REI Pequena grande! 
 
O DOUTOR Vossa Majestade é um homem robusto... Sua Majestade, a rainha, é uma mulheraça... 
 
EL-REI Mulheraça? 
 
O DOUTOR A menina, quando de nascer, há de parecer que já tem para mais de um mês! 
 
EL-REI Olha que a minha ameaça está de pé! Não revogo o decreto! Se nascer uma princesa serás comendador... 
 
O DOUTOR Perdão, mas vossa excelência havia me prometido um baronato. 
 
EL-REI Vá pelo baronato. - E se for um príncipe, será queimado vivo. 
 
VIRGÍNIA Ai! 
 
O DOUTOR Vossa majestade havia dito que mandava enforcar. 
 
EL-REI Bem, bem: não havemos de brigar por isso. Escolherás a morte. Que morte preferes? 
 
O DOUTOR Prefiro morrer de velhice. 
 
EL-REI Escolhe outra, não faça cerimônias. - A falar em cerimônias, é bom prevenir o mestre delas. Desejo que a augusta cara metade tenha o seu bom sucesso com todas as formalidades prescritas. Vou dar uma volta pelo jardim. Adeus, ó Doutor. (À Virgínia) Até logo ó... Como te chamas? 
 
VIRGÍNIA Virgínia, uma sua criada. 
 
EL-REI Minha ama... quero dizer: de minha filha. Ai, gentes! (À parte) Que olhos (Alto) Adeus, Virgíninha! (Ao Doutor, que se inclina) Levantar cabeça! (Desce a escada do fundo, cantarolando) Tur, tu, tu, tu (Desaparece)   
 
CENA XI  Virgínia, o Doutor.
 
VIRGÍNIA Vamos! ergue a ponta do véu... Tu sabes que a curiosidade sempre foi o meu fraco... Estás envolvido em alguma conspiração? E a minha filha, minha pobre filha, arriscada a ficar sem pai?! Olha que não é por ti, miserável; não é por ti que temo: é por ela, ouviste? É só por ela! 
 
O DOUTOR Reveste-te de todo o sangue frio e escuta. 
 
VIRGÍNIA Fala. 
 
O DOUTOR Sou um miserável, dizes tu. Pois bem: não receias que esse miserável não possa dar uma boa educação à tua filha? 
 
VIRGÍNIA Tanto receio, que só as exigência do primo Bernardino me obrigam a confiar-te em depósito sagrado. 
 
O DOUTOR (tomando-lhe o pulso) E o que dirias tu... 
 
VIRGÍNIA Olha que não tenho febre! 
 
O DOUTOR Não! Tomo-te o pulso para fazer mais efeito... E o que dirias tu, se, em vez de ser a pobre rapariga, filha do acaso e da ocasião, ela se tornasse a moça mais prendada e a mais rica de toda a ilha dos Cajueiros? (Inflamando-se) Crescesse coberta de ouro e prata, de sedas e veludos, rodeadas de inúmeros vassalos, a disputar entre si a honra de lhe beijar os pés?! 
 
VIRGÍNIA Enlouqueceste! Fora mister que a minha filha houvesse nascido princesa! 
 
O DOUTOR O nascimento não quer dizer nada, aqui estou eu, que não nasci Doutor. 
 
VIRGÍNIA Explica-te. 
 
O DOUTOR Em duas palavras: como sabes, sua Majestade El-Rei Caju é estúpido como uma porta... 
 
VIRGÍNIA Como duas portas... 
 
O DOUTOR Como três, e não falemos mais nisso. - Imaginou que a Medicina pudesse fazer com que a criança que está para vir pertencesse... 
 
VIRGÍNIA Já sei: ou é uma menina, ou morres... 
 
O DOUTOR Morro, não: matam-me. - O meu plano é este: tu és a ama escolhida para amamentar o real pimpolho; eu sou o médico parteiro. Combinamos, e na ocasião do parto, trocamos as bolas! 
 
VIRGÍNIA Que bolas? 
 
O DOUTOR As crianças. 
 
VIRGÍNIA Ah! 
 
O DOUTOR Que te parece? 
 
VIRGÍNIA Mas El-Rei não tem que assistir ao parto? 
 
O DOUTOR El-Rei é míope: grau cinco; não vê nada sem luneta; farei com que a perca. 
 
VIRGÍNIA Mas o primo Bernardino reclama-me. 
 
O DOUTOR Logo que houver nascido o menino... 
 
VIRGÍNIA Como sabes que é um menino? 
 
O DOUTOR (gravemente) Eu sou médico, senhora. 
 
VIRGÍNIA Bem sei. 
 
O DOUTOR Logo que houver nascido, darás parte de doente e serás substituída... 
 
VIRGÍNIA Mas... 
 
O DOUTOR Tu vais casar-te; se nossa filha ficasse em meu poder, a sociedade obrigar-te-ia a esqueceres dela. Reflete bem: assim como assim, não seria melhor que a tua filha fosse antes a filha do Rei Caju? Em vez da pobre moça sem mãe, a poderosa princesa dos Cajueiros?... 
 
VIRGÍNIA Mas... é um esbulho! 
 
O DOUTOR Esbulho é enforcarem-me! 
 
VIRGÍNIA O que se há de fazer do príncipe real? Quando digo o príncipe real, quero dizer: o que na realidade é príncipe. 
 
O DOUTOR Queres ver? (Vai à grade do fundo e acena para o jardim) 
 
VIRGÍNIA O que fazes? 
 
O DOUTOR Vais ver.   
 
CENA XII  O Doutor, Marcos, Virgínia.
 
MARCOS (ao fundo) Cá estou. (Dirigindo-se ao Doutor) Teresa ignora... (Cala-se, vendo Virgínia) 
 
O DOUTOR Podes falar... esta senhora não é demais. 
 
MARCOS Teresa ignora de onde lhe veio o dinheiro... Eu disse-lhe que era produto de uma subscrição. 
 
O DOUTOR Bem (Tirando um lápis e uma folha da carteiras) Espera (Escreve. Música na orquestra) “Teresa. Faze de conta que esse menino é o filho que perdeste; circunstâncias de força maior me obrigam a ocultar-lhe o nascimento. Dá-lhe o nome que quiseres: Paulo, Sancho ou Martinho. Mando-te uma bolsa: é para as primeiras despesas. Todos os meses ser-te-á remetida uma quantia com que possam, tu e teu filho adotivo, viver ao abrigo de toda e qualquer necessidade. Educa-o bem.” (Declamando ) É quanto basta. (Escrevendo) Misture e mande. (Riscando) Ora esta! julguei que estivesse fazendo uma receita. (Ergue-se; cessa a música) Toma este bilhete, ó Marcos. (Leva Marcos até a grade do fundo; desce alguns degraus da escada com ele e aponta para a direita) Vai colocar-te junto à segunda janelinha azul que se vê daqui e espera. Tenho de entregar-te uma criança, que depositarás com este bilhete e esta bolsa na porta de Teresa. 
 
MARCOS Um enjeitado! 
 
O DOUTOR Cuidado! Trata-se de um grande segredo. O teu silêncio será largamente remunerado. 
 
MARCOS É quanto manda? 
 
O DOUTOR Todos os meses virás ter comigo; dar-te-ei uma quantia que farás chegar misteriosamente às mãos de Teresa. 
 
MARCOS Sim, senhor. 
 
O DOUTOR De forma alguma deve ela saber a origem... 
 
MARCOS Fique sossegado. (Querendo descer) É quanto manda? 
 
O DOUTOR É. (Marcos desce um degrau) Ah! (Detém-se) Sabes quem vem ali? (Aponta para baixo) 
 
MARCOS El-Rei... 
 
O DOUTOR Aproxima-te dele sem que te pressinta e arrebata-lhe a luneta! (Movimento de Marcos) Não te assustes: sem luneta El-Rei não vê coisa alguma: é míope: grau cinco. 
 
MARCOS Nesse caso, é facílimo. (Desce um degrau e para, para perguntar) Assegura-me que posso fazer tudo isto sem correr perigo? 
 
O DOUTOR (que já tem voltado à cena) Asseguro. (À meia voz) Trata-se de salvar a honra de uma donzela de honor. 
 
MARCOS Bem, (à parte, referindo-se à Virgínia) deve ser aquela: tem cara de resguardo. (Desaparece)   
 
CENA XIII  O Doutor, Virgínia, a enfermeira.
 
ENFERMEIRA (saindo dos aposentos da rainha) Senhor Doutor! Senhor Doutor! 
 
O DOUTOR Já?! 
 
ENFERMEIRA  Já. 
 
O DOUTOR Bem, Vá prevenir o mestre de cerimônias. Os seus serviços são desnecessários ali. (A enfermeira sai) 
 
VIRGÍNIA São horas? 
 
O DOUTOR São. Vamos, entra. Vou apresentar-te à rainha; traze a menina... Vou pô-la à mão... (Virgínia pega a criança e entra para o quarto da rainha) Decididamente sou um homem feliz! Sem arredar pé desta sala, arranjei tudo! (Acompanha Virgínia) 
 
 
CENA XIV  Nheco, cortesãos, damas do paço, depois o Doutor, depois El-Rei.
 
 (Entram pela esquerda, segundo plano, precedidos por Nheco) 
 
CORO  Cautos, cautos,  E precautos,  Vamos todos esperar  Que a rainha,  Coitadinha!  Dê a luz a criancinha  Que um dia há de governar. 
 
NHECO Eu cá de cerimônias mestre  da corte sou!  Do São Fulgêncio ao São Silvestre 
 
Suado estou!  Entra semestre e sai semestre.  E eu sempre a pé!  Mestre encontrar que não palestre  Difícil é!  Quando eu morrer, estátua equestre  Terei, olé! 
 
O DOUTOR (aparecendo)  Nheco, nesses aposentos  A ninguém conceda ingresso! 
 
NHECO Isso está já por momentos? 
 
O DOUTOR Vai-se dar o bom sucesso... 
 
CORO  Bom sucesso!  Vai-se dar o bom sucesso! 
 
NHECO Já lá está de leite a ama? 
 
O DOUTOR Já lá está! 
 
NHECO Tudo que manda o programa? 
 
O DOUTOR Lá está já! 
 
NHECO E a madama? 
 
O DOUTOR Que madama? 
 
NHECO A parteira, meu amigo! 
 
O DOUTOR Este seu criado é. 
 
NHECO Isso agora é brincadeira!  Doutor, quer mangar comigo?! 
 
O DOUTOR Do riscado entendo, olé! 
 
CORO  Olaré!  Olaré!  Do riscado entende, olé? 
 
O DOUTOR Onde está El-Rei Caju? 
 
NHECO É verdade: El-Rei Caju? 
 
CORO  Onde está tu,  El-Rei Caju? 
 
EL-REI (vindo do fundo, a tatear, sem luneta)  Cá estou! cá estou! Por Belzebu!  Estava eu lá - parece incrível!  A passear pelo jardim,  Quando uma sombra horrenda, horrível,  Cai do ar por cima de mim! 
 
Era um fantasma  Deste tamanho!...  Oh! se te apanho,  Faço-te assim... 
 
CORO  Era um fantasma  É caso estranho,  Que a todos pasma! 
 
EL-REI Quero apanhá-lo,  Vou segurá-lo,  Mas o ratão  Pisa-me um calo!  Eis que resvalo...  Bumba! no chão...  Perco a luneta  E o sangue-frio!  Parece peta!  Que corrupio!  Caio aqui, caio acolá!  Acho-me cego!  Negro qual prego  Tudo em meu redor está!...  Era um fantasma  Deste tamanho!...  Oh! se te apanho,  Faço-te assim... 
 
CORO  Era um fantasma  É caso estranho,  Que a todos pasma! 
 
O DOUTOR Real senhor, não há um momento a perder! 
 
EL-REI Quem vai ao meu quarto buscar outra luneta! (Sai um cortesão à direita, segundo plano) 
 
O DOUTOR Senhor, senhor! Vede o que prescreve a Constituição! 
 
EL-REI (zangado) Ora! a Constituição! 
 
O DOUTOR Venha, venha, real senhor! (Fá-lo entrar à força para os aposentos da rainha e entra também. Fecha a porta por dentro) 
 
NHECO (aos cortesãos) Que vida trabalhosa a minha! Hão de crer que, desde que estou ao real serviço de sua Majestade, ainda não tive tempo e tomar um banho! 
 
TODOS Oh! 
 
NHECO É o que lhes digo... Ainda agora ia descendo para o banheiro, quando a Enfermeira veio prevenir-me... Vamos a isto. 
 
(O cortesão que tinha ido buscar a luneta do quarto do Rei, volta com ela) 
 
 
CENA XV  Nheco, fidalgos, fidalgas, os ministros, depois os conselheiros de estado, depois a bailadeira da paço, depois El-Rei.   FINAL
 
NHECO Agora é já, sem mais tardar,  A porta selar. 
 
(Um pajem tem trazido lacre, luzes e carimbos em uma bandeja de ouro. Dois cortesãos lacram e selam as portas do aposento da rainha) 
 
NHECO Agora é já, sem mais tardar,  Lacrar, selar  Selar, lacrar!...  Nesta sala esperar deve  Segundo a Constituição  Prescreve,  Todo o Conselho de Estado,  E o ministério - pois não!  Fardado. 
 
CORO  Eis o Conselho de Estado  Respeitável, respeitado! 
 
(Entrada de meia dúzia de conselheiros muito velhos, a dançar de mãos dadas uns aos outros) 
 
Tur lu tu tu,  Tur lu tu tu!  Tem bom Conselho El-Rei Caju!  Eis que chega o ministério,  Muito sério, muito sério... 
 
(Entrada de meia dúzia de ministros com suas respectivas pastas, a marchar uns atrás do outros) 
 
Tur lu tu tu  Tur lu tu tu!...  Ministros são del-Rei Caju!... 
 
CORO GERAL Cautos, cautos,  E precautos,  Vamos todos esperar  Que a rainha,  Coitadinha!  Dê a luz a criancinha  Que um dia há de governar. 
 
NHECO Agora exijo  Que dance um passo  Em sinal de regozijo  A bailadeira do paço! 
 
(Entra uma bailadeira) 
 
Passo de dança. (Findo o passo de dança, abre-se violentamente a porta lacrada, e entre El-Rei Caju, trazendo nos braços uma criança, envolvida num rico manto bordado a ouro) 
 
EL-REI A luneta! a luneta!  Quero ver a principeta!...  (Colocam-lhe a luneta no nariz)  Que linda está! 
 
CORO  Que linda está 
 
A CRIANÇA (chorando) Ah! Ah! Ah!... 
 
EL-REI Que linda é! 
 
CORO  Que linda é! 
 
A CRIANÇA   Eh! Eh! eh! eh! 
 
EL-REI Mais nunca vi! 
 
CORO  Mais nunca vi! 
 
A CRIANÇA  Ih! ih! ih! ih! 
 
EL-REI Linda ela só! 
 
CORO  Linda ela só! 
 
A CRIANÇA  Oh! oh! oh! oh! 
 
EL-REI Que linda és tu! 
 
TODOS (imitando a criança) Uh! uh! uh! uh! 
 
EL-REI Nheco, vê que já se ri...  Dez minutos tem de idade! 
 
NHECO Não admira,  Pois é filho de Vossa Majestade! 
 
(Espalha-se pela sala dos espectadores um cheiro de alfazema) 
 
EL-REI Que cheiro de alfazema! 
 
NHECO Oh! que cheiro de alfazema! 
 
TODOS (aspirando)  Um! um! um! um!  Que boníssimo sistema  O de queimar alfazema,  Se ao mundo vem  Gentil nenen!... 
 
EL-REI Estou louco de amor  E de prazer possesso!  Nomeio o meu Doutor,  Barão do Bom Sucesso!...  (À boca de cena)  Tur lu tu tu,  tur lu tu tu!  ‘Stá satisfeito El-Rei Caju!
 
TODOS Tur lu tu tu!  ‘Stá satisfeito El-Rei Caju! 
 
 
 
ATO I Praia. Ao fundo, o mar. À esquerda, uma cabana. À direita uma grande árvore, cujas ramagens, prolongando-se, formam as bambolinas. 
 
CENA I  Marcos, pescadores, depois criadas.
 
(Ao erguer-se o pano, a cena está vazia) 
 
 
INTRODUÇÃO
 
CORO (ao longe)  Do mar ao remanso  Lá vou,  Que a vez do descanso  Chegou! 
 
(Chegam à praia duas canoas tripuladas por Marcos e pescadores, que saltam para terra, trazendo cestos de peixe) 
 
CORO  Que viver folgado,  Pesar de arriscado,  Viver a pescar!  Não há quem se queixe  De haver pouco peixe  No fundo do mar. 
 
MARCOS Tocai as buzinas,  E venham, meninas,  O peixe comprar! 
 
(Toque de buzina pelos pescadores) 
 
TODOS Ao som das buzinas  Vão vir meninas  O peixe comprar! 
 
(Entra um grupo de criadas, munidas de cabazes) 
 
CRIADAS  A noite começa,  Começa a cair,  Por isso, depressa  Nos devem servir. 
 
PESCADORES  A noite começa,  Começa a cair,  Por isso, é depressa  Que as vamos servir. 
 
(Durante este Coro as criadas enchem os seus cabazes de peixe que compram e pagam aos pescadores) 
 
AS CRIADAS  Adeus! Adeus! 
 
MARCOS Um momento!  Que minha voz vou soar ao vento! 
 
BARCAROLA
 
I Minha barquinha ligeira,  Feiticeira,  Leva-me longe daqui!  Singra esse mar docemente,  Suavemente...  Eu todo me entrego a ti!  Ai, ló, lé!  Ai, ló, lé!  Ao largo, que enche a maré! 
 
TODOS Ai, ló, lé!  Ai, ló, lé!  Ao largo, que enche a maré! 
 
MARCOS A lua triste e formosa  Surge airosa,  Surge airosa lá nos céus!  E a brisa que ajuda o leme  Chora e geme  Passando nos mastaréus  Ai, ló, lé!  Ai, ló, lé!  Ao largo, que enche a maré!  (Às criadas) Estou satisfeito. Podem ir embora. 
 
AS CRIADAS  Adeus, adeus! (Saem por diversos lados, como entraram) 
 
MARCOS Bem. Desta vez os cestos ficaram vazios. - Rapazes, a noite parece que é boa... Vão tratar da vida, que a morte é certa. 
 
Os PESCADORES  Até amanhã, Marcos! (Entram para as canoas) 
 
MARCOS Até amanhã. 
 
CORO DE PESCADORES  Do mar ao remanso  Lá vou  Que a vez do descanso  Chegou! 
 
(As canoas afastam-se e as vozes perdem-se ao longe) 
 
 
CENA II 
 
MARCOS (só) A ocasião é excelente. A tia Teresa esta sozinha em casa e Paulo erra nos mares, a pescar sardinhas e a entoar barcarolas. Vamos lá deixar a mesada. (Tirando uma bolsa e vai deitá-la por baixo da porta de Teresa) Pronto! E dizer que faço isso há vinte anos! Toca a safar! (Vai saindo. Teresa abre sua porta) 
 
 
CENA III  Marcos, Teresa.
 
TERESA (vendo-o) Adeus, ó Marcos! (Dando com a bolsa) Ah! cá está... cá está... 
 
MARCOS (voltando) Olá Tia Teresa!... (À parte) Se me viu... 
 
TERESA Que novas me dá de Paulo? Viste-o por aí? 
 
MARCOS Vi-o a pescar. 
 
TERESA Sai de casa pela madrugada... vai cair a noite, e nem sinal! É incorrigível! Só a minha paciência! 
 
MARCOS (que tem deitado fumo no cachimbo) Na verdade, dão muito que falar os modos misteriosos de seu filho. 
 
TERESA Meu filho... Antes o fosse! 
 
MARCOS Mas é como se o fosse: vive em sua companhia desde a tenra idade. 
 
TERESA Quando veio para minha companhia, há vinte anos, poderia ter poucas horas de nascido. Foi uma época terrível para mim... Meu marido e meu único filho haviam morrido... e eu estava reduzida à mais negra miséria... 
 
MARCOS Mas Paulo foi seu anjo bom; não é assim? 
 
TERESA Dizes bem: foi o meu bom anjo. Enjeitaram-no à minha porta, é verdade; mas, ao mesmo passo que me sobrecarregavam com a pensão de educá-lo, substituíram meu filho e garantiram-me a subsistência honrada. 
 
MARCOS (à parte) A quem ela o diz... 
 
TERESA Entre os panos que o envolveram, achei uma bolsa recheada e uma carta que assim dizia: (Recita a carta escrita pelo Doutor no Prólogo. A mesma música na orquestra) 
 
MARCOS E a tia Teresa, justiça se lhe faça, cumpriu religiosamente a misteriosa incumbência. 
 
TERESA Cumpri. Dei ao menino o nome de Paulo, que, dos três apóstolos, foi o que melhor me pareceu. Recebeu uma educação de príncipe. 
 
MARCOS De príncipe? 
 
TERESA Isto é um modo de falar. 
 
MARCOS E todos os meses é infalível o dinheiro? 
 
TERESA (mostrando-lhe a bolsa) Vês? Agora mesmo acabo de encontrar, metida por baixo da porta, a mesada correspondente ao mês que hoje principiou. Graças a esse dinheiro a nossa existência tem sido descansada e feliz. O que me dá a pensar é a negação absoluta que Paulo, desde os mais verdes anos, revelou pelo trabalho. Quando soube do mistério em que se acha envolvido o seu nascimento, e da mesada certa que eu percebia, disse: - Bem! esse dinheiro chega-nos: não é preciso trabalhar. 
 
MARCOS Nasceu para fidalgo... 
 
TERESA Nasceu fidalgo, deves dizer. O seu prazer é andar pelos bosques ou pelo mar: quem lhe tirar a caça ou a pesca, tira-lhe tudo. 
 
MARCOS E, segundo me consta, é outro esquisitão a respeito de mulheres... 
 
TERESA Não fazes ideia, Marcos! Nunca ninguém lhe conheceu namorada! A Petronilha... sabes? 
 
MARCOS Sei, tia Teresa... 
 
TERESA Pois bem: a Petronilha gosta dele... Estou mesmo convencida que o ama deveras... e... não há meio! 
 
MARCOS Deixe lá, tia Teresa. Paulo não é nenhum santo; aquilo é que as faz pela calada. - Olhe, se não me engano, é ele que ali passa ao largo. 
 
TERESA É ele... é... 
 
MARCOS Deixa-se levar pela correnteza... 
 
(Paulo passa pelo fundo, sentado à proa de uma canoa, que desliza suavemente nas águas, e canta o seguinte) 
 
BARCAROLA
 
PAULO O mar que ruge raivoso  Medo nunca me causou!  As minhas velas às brisas!  Às brisas soltar vou.  Meu Deus, como se parecem,  Quando a noite é de luar,  Os pirilampos da terra  Co’as ardentias do mar.  (Desaparece no lado oposto) 
 
MARCOS Bom. Vai longo o palanfrório. Adeus, tia Teresa. 
 
TERESA Vou contigo. Tenho que dar uma voltas. Deixa-me dar uma à chave. 
 
MARCOS Uma! o quê? 
 
TERESA Uma volta. (Tira a chave e mete-a por baixo da porta) Cá fica por baixo da porta. Paulo já sabe onde a deve encontrar. 
 
MARCOS Vamos, tia Teresa. 
 
(Saem)   
 
CENA IV  Petronilha, só.
 
(Entra arrebatadamente pelo lado oposto àquele por onde saíram Marcos e Teresa) 
 
COPLAS
  I  PETRONILHA Eu sou Petronilha,  Moça original.  Que não tem rival  Em toda esta ilha;  Ninguém pelos campos  Me apanha a saltar;  E lá recuar  Nem chuva, relampos  Coriscos  E riscos  Que sempre formigam,  Me obrigam!  Eu sou Petronilha,  Moça original.  Que não tem rival  Em toda esta ilha; 
 
II 
 
Como eu quem maneja  Qualquer varapau?  De faca e calhau  Não sei quem mais seja!  ‘Stou doida de amores:  Meu fraco aqui está;  Mas olhem que lá  Cabelos e flores,  E cousas,  E lousas  Que as outras empregam,  Não pegam!  Eu sou Petronilha,  Moça original.  Que não tem rival  Em toda esta ilha; 
 
Paulo já deve estar de volta. (Batendo à porta) Paulo! Paulo! Dar-se-á caso que não voltasse ainda?... (Bate) A tia Teresa, essa não está que a vi ir daquele lado em companhia de Marcos. (Batendo) Paulo! Paulo! Aposto que não quer abrir, porque já me reconheceu a voz! E não é outra coisa! Pirracento! (Bate) Qual! (Desce à cena) E dizer que me entrou este amor, no coração como uma praga! Amo-o, adoro-o, e ele despreza-me, como se eu não fosse digna de seus cuidados! - Ah! mas agora resolvi mudar de tática, e exigir o seu amor, como os salteadores exigem a bolsa ou a vida dos viandantes na estrada. A mulher está no seu direito, deixando de corresponder a este ou àquele afeto, mas o homem... Faça-me o favor! Nada! há de ir por aqui, se por aqui o mandarmos. Era o que faltava: estar eu agora à mercê dos caprichos do Senhor Paulo! Ou ele ama-me, ou deito-me a perder! (Vai bater à porta) Paulo! Paulo! Abre, ou deito ombros à porta! Ah! não ouves? não queres abrir? Lá vai! (Tenta arrombar a porta. Durante a última parte deste monólogo, Paulo tem entrado pelo fundo e observado) 
 
 
CENA V 
 
Petronilha, Paulo.
 
PAULO (do fundo) Ó mulher, não me escangalhes a porta! 
 
PETRONILHA (puxando-o pelo braço, à boca de cena) Há duas horas que estou a bater! 
 
PAULO E que culpa tenho eu disso? 
 
PETRONILHA Não podias ter dito que não estavas em casa? 
 
PAULO Vamos saber: o que deseja a senhora? Se ainda vem oferecer o seu amor, o melhor é calar-se, porque a esse respeito, resolvi pôr em prática o adágio: orelhas moucas a palavras ocas! 
 
PETRONILHA Sim, senhor: trata-se de amor, mas note bem: não lho venho oferecer: venho impor-lho; entende? Arrebatá-lo, arrancá-lo à força desse coração de pedra. 
 
PAULO Ora ouve, e deixa-te e desatinos! 
 
PETRONILHA Vamos lá! 
 
COPLAS
 
I  PAULO Mal empregas esse afeto:  Vê se o empregas melhor;  Vai procurar outro objeto 
 
Para o teu férvido amor.  Se te causo algum desgosto,  Bem mereço o teu perdão,  Pois amor não é imposto,  Lançado no coração 
 
PETRONILHA Se eu fosse de faniquitos,  Tremiliques, tremilaques,  Dava agora quatro gritos,  Tinha agora três ataques!... 
 
II  PAULO A correnteza de um rio  Se alguma pedra topar,  Há de tomar um desvio,  Há de outro rumo tomar;  Faze tu como o regato,  Essa pedra, ei-la aqui está...  Tão bom conselho e sensato  Ninguém te deu nem te dá. 
 
PETRONILHA Se eu fosse de faniquitos,  Tremiliques, tremilaques,  Dava agora quatro gritos,  Tinha agora três ataques!... 
 
PAULO Que queres que eu te faça? Reconheço que és uma excelente rapariga, que nada deixa a desejar: bonita, virtuosa, trabalhadeira... 
 
PETRONILHA E apatacada. 
 
PAULO Isso é o menos; mas enfim... és uma mulher como se quer. Feliz do homem que se fizer teu marido! 
 
PETRONILHA Então? O que mais queres tu? Amo-te, porque te distingui de todos os pintalegretes da ilha, e tu desprezas tão generoso afeto! 
 
PAULO O meu coração não foi feito para o amor. Adeus, minha amiga, não me queiras mal; ofereço-te uma amizade de irmão, como nos romances. Aceitas? Se aceitas, muito bem; se não, viva! 
 
PETRONILHA Nada! não quero assim! Desejo que me ames para casar. 
 
PAULO Isto é o que se chama a faca aos peitos! 
 
PETRONILHA Vamos: faze-me a vontade. 
 
PAULO Não está em minhas mãos. 
 
PETRONILHA Mas está em teu coração; procura bem, que acharás. 
 
PAULO Não tenho coração. 
 
PETRONILHA Anda, dá cá um beijo, e eu te mostro se tens ou não tens coração... 
 
PAULO Estás doida! Eu dou lá beijos no meio da rua! 
 
(A cena vai ficando escura pouco a pouco) 
 
PETRONILHA Então entremos... Onde está a chave? 
 
PAULO Tu enlouqueceste, mulher! 
 
PETRONILHA Vai, pedaço de asno! A culpada sou eu, que me não devia apaixonar por um enjeitado! 
 
PAULO Se sou o enjeitado da família, tu és a enjeitada do amor. Ela por ela! 
 
PETRONILHA Olha que te esmurro! 
 
PAULO Pois esmurra! (Procurando a chave) Nem assim conseguirás que eu te ame! (Abre a porta, entra e fecha-se) 
 
PETRONILHA Paulo! Paulo! 
 
PAULO Adeus! Adeus!   
 
CENA VI  Petronilha, só.
 
PETRONILHA Aqui anda coisa... Quem não come é porque já comeu, dizia meu avô. Mas digo eu: quem não come está para comer. Deixa estar, que não te perco de vista. (Olhando para dentro) Quem vem ali?! Uma mulher com o rosto inteiramente encoberto por um véu! Quem sabe se... Escondendo-se atrás da árvore) Observemos. 
 
CENA VII  Petronilha, escondida, a Princesa, ao fundo, Paulo, que sai da cabana cautelosamente. 
 
PAULO São horas de chegar a minha misteriosa amante. Custei a ver-me livre daquela maldita Petronilha! 
 
PETRONILHA (à parte) Obrigada. 
 
PAULO (vendo a princesa) Ah! Era tempo! Ei-la! (Corre para a princesa, e trá-la à boca de cena) 
 
PETRONILHA (à parte) Então? Sempre há palpites... 
 
DUETO
  PRINCESA Paulo 
 
PAULO Meu anjo! 
 
PRINCESA Aqui me tens!  a tremer venho... 
 
PAULO A tremer vens... 
 
PRINCESA Será saudade ou ciúme  O abalo que sinto aqui? 
58
 
A pobre rolinha implume,  Ao verde ninho arrancada,  Não fica tão magoada  Como eu, se longe de ti! 
 
PAULO Será ciúme ou saudade  A causa desta emoção?  Tristeza cruel me invade,  Pungente dor me quebranta,  Se tardas, ó minha santa,  Se tardas, meu coração! 
 
JUNTOS  Ó meu amante, Ó minha amante,  Caro penhor,  Que doce instante  Do nosso amor!  Amo-te muito:  Ama-me assim!  Amo-te muito,  Meu querubim! 
 
PAULO Mas quero enfim saber quem és, ó doce amada! 
 
PETRONILHA (à parte) Ah! se ela o diz, estou vingada! 
 
PRINCESA Saber não desejes,  Meu Paulo, quem sou! 
 
PAULO Amor, não gracejes,  Que sôfrego estou... 
 
PRINCESA Saber tu não deves  Quem sou, donde vim. 
 
PAULO Por que não te atreves  A dizer-mo a mim? 
 
PRINCESA Segredos eu tenho... 
 
PAULO Convenho, convenho;  Mas diz-mos! 
 
PETRONILHA (à parte) Enfim! 
 
PRINCESA (com mistério) Eu a princesa sou dos Cajueiros! 
 
PAULO A princesa!... Tu?! 
 
PETRONILHA (à parte)  Tur lu tu tu  Tur lu tu tu  A filha! ó céus! del-Rei Caju!...  (Saindo, com gestos ameaçadores)  Vou me vingar destes brejeiros! 
 
PAULO És a princesa! 
 
PRINCESA E no entanto, 
 
Amo-te tanto, amo-te tanto... 
 
JUNTOS  Ó meu amante, Ó minha amante,  Caro penhor,  Que doce instante  Do nosso amor!  Amo-te muito:  Ama-me assim!  Amo-te muito,  Meu querubim!   
 
CENA VIII  Paulo, a Princesa.
 
PAULO Mas tu... Vossa Alteza... 
 
PRINCESA Qual Vossa Alteza! Trata-me por tu... Ora aí está! Por essas e outras e que eu queria guardar o incógnito. 
 
PAULO Princesa! Filha do Rei! É impossível então que nos unamos! Nada pode haver de comum ente nós, senão o esquecimento mútuo. 
 
PRINCESA Por quê? 
 
PAULO Sou um pobre enjeitado... 
 
PRINCESA Que importa! Fugiremos! 
 
PAULO Fugir! pois há de Vossa Alteza... 
 
PRINCESA Trata-me por tu, sim? 
 
PAULO Desprezarás as honras que te cercam, o cetro de ouro que te aguarda, para seguir um miserável, sem passado, sem presente e sem futuro?! 
 
PRINCESA Deixa dizer-te, e acredita: o viver da corte me enfastia, faz-me mal aos nervos. Depois que morreu minha mãe, e já lá vão tantos anos, apoderou-se de mim um desapego tal pela corte... O que deu motivo a tanto azedume? Não sei... Não sei... O que é certo é que não me sinto princesa... Os meus instintos são todos burgueses e triviais. Quisera viver tranquila, ao lado de uma maridinho como tu... a pontear meias, marcar lenços... 
 
PAULO Eu, o inverso, senhora! Por isso mesmo que nasci sem pai nem mãe; por isso mesmo que sou o ínfimo dos homens, sinto-me talhado para as regiões supremas do poder! Ah! que se eu pudesse mandar cortar uma cabeça... ou duas... ou todas, como Calígula! Por ser o menor, desejava tornar-me o maior... Para quê? Para vingar-me talvez! Para ter ocasião de desprezar os que me desprezam! 
 
PRINCESA Admiras-te de me ver aqui! O amor tinha para mim irresistível encanto. Eu não o conhecera nunca, mas adivinhava-o. 
 
PAULO Não o conhecias? 
 
PRINCESA Não ligava o nome... Quem se atreve na corte a levantar os olhos para a infanta? O amor é-lhe interdito. Um dia, mandam o meu retrato a um príncipe de outro reino, e dizem-lhe, ao príncipe: - Aí vai a amostra, vede se vos agrada. Se assim for, mandai buscá-la. É sacrificando as princesas que se apertam os laços entre as nações. Não nos casamos por amor: casamo-nos por diplomacia. Ah! política! política! 
 
PAULO Meu anjo! 
 
PRINCESA Anteontem, descobri no meu aposento uma porta secreta que dá para o jardim. Descobri no jardim outra porta secreta que dá para a rua. É hoje! disse eu comigo. E saí! Vi-te, e amei-te. Daí é que principiei a ligar o nome... 
 
PAULO Mas... se dão pela tua ausência? 
 
PRINCESA Não dão. Tenho por costume fechar-me por dentro. O único que poderia interromper minha solidão é meu pai; mas esse anda todo entretido com a duquesa da Guarda Velha! 
 
PAULO A duquesa da Guarda Velha? 
 
PRINCESA Uma fidalga estrangeira, que foi há dias apresentada à corte... Uma excelente senhora. Ama-me como se me conhecesse de velha data. Diz-se no paço que meu pai casa com ela. É uma felicidade! Eu não escolheria outra madrasta. (Música. Aparece no mar uma suntuosa gôndola, distinguem-se a duquesa da Guarda Velha e o barão do Bonsucesso) Oh! É ela!... 
 
PAULO Ela quem? 
 
PRINCESA A duquesa da Guarda Velha! O que virá fazer aqui? Ai! O barão vem com ela! Não há mais tempo! Viram-me! Estou perdida! Condenam-me à morte! 
 
PAULO Cala-te. (Leva-a para a cabana) 
 
PRINCESA Ah! (Entram ambos na cabana)   
 
CENA IX  Barão, duquesa, gondoleiros e damas de companhia. Noite completa. Luar.
 
CANTO
 
CORO GERAL  Dá Guarda Velha eis a duquesa!  Cá ‘stá! Cá ‘stá!  Melhor senhora com certeza  Não há! Não há! 
 
BARÃO (saindo da gôndola e oferecendo a mão à duquesa para sair também) Eis-vos, enfim, chegada  À praia desejada.  (À parte)  Não sei por quê,  Nem para quê. 
 
DUQUESA Muito obrigada. 
 
BARÃO Não há de quê. 
 
DUQUESA (a uma dama)  Manda embora os gondoleiros:  Volto a pé. 
 
TODOS Volta a pé! 
 
AS DAMAS  Ide embora, gondoleiros,  Ide ligeiros,  Que a duquesa volta a pé!  Um de seus caprichos é.  Gondoleiros - Dá Guarda Velha eis a duquesa!  Cá ‘stá! Cá ‘stá!  Melhor senhora com certeza  Não há! Não há! 
 
(As gôndolas desaparecem com os gondoleiros, e as damas ficam ao fundo) 
 
COPLAS
  I  DUQUESA Não me foi a sorte avara,  Eu não me devo queixa. 
 
BARÃO (sempre à parte)  Não me é estranha aquela cara,  Mas não me posso lembrar. 
 
DUQUESA A ventura bem se esconde;  Mas, no entanto, a descobri. 
 
BARÃO Não sei quando, nem onde  Aqueles olhos já vi. 
 
AS DAMAS  Com é bela esta paragem!  Fresca aragem  Corre aqui! 
 
II  DUQUESA Da pobreza que vitória!  Pois duquesa hoje sou! 
 
BARÃO Dou mil tratos à memória,  E contudo, em branco estou... 
 
DUQUESA ‘Spero em breve ser rainha,  Pois El-Rei morre por mim! 
 
BARÃO Ai, que cabeça esta minha!  Nunca vi cabeça assim! 
 
AS DAMAS (descendo à cena)  Que lugar! que formosura!  Que frescura!  Que jardim! 
 
DUQUESA (às damas) Afastai-vos! Ide admirar os prodígios desta natureza privilegiada. Preciso conversar a sós com sua senhoria, o Senhor barão do Bonsucesso. (À parte) A casinha deve ser esta. 
 
(As damas afastam-se para o fundo, onde se dividem em grupos) 
 
REPETIÇÃO
 
AS DAMAS (descendo à cena) Que lugar! que formosura!  Que frescura!  Que jardim! 
 
DUQUESA Afinal! Chegou enfim o momento! (Dirigindo-se ao barão e fitando-o) Olhe bem para mim! Não me conheces? 
 
BARÃO Duquesa! 
 
DUQUESA Desconhece-me! Não assombra! Há vinte anos que não nos vemos... as fisionomias transformam-se... 
 
BARÃO Ah! Virgínia!! 
 
DUQUESA Mas ouve: eu reconheci-te à primeira vista. Assim deveria ser: conservava de ti a mais dolorosa impressão. Era impossível que se me varressem da memória estes olhos, que me mentiram... esses lábios, que me mentiram... esse nariz... 
 
BARÃO Nada! o nariz é que não te mentiu... E folgo de ver que ainda não deste de mão ao teu romantismo. 
 
DUQUESA (em outro tom) Dê-me excelência, barão. 
 
BARÃO Dê-me senhoria, duquesa... e expliquem-nos. Desde que vossa excelência chegou, que tenho buscado a adivinhar em suas feições a fisionomia de outra pessoa. Vossa excelência é a Virgínia, minha pobre Virgínia, emendada e consideravelmente aumentada. Vossa excelência dignar-se-á, se tanto mereço, explicar-me o modo pelo qual se operou tão estranha metamorfose. 
 
DUQUESA Muito simplesmente, barão: vossa senhoria lembra-se de que, logo depois de casada com primo Bernardino, fomos, eu e ele, a correr o mundo? Depois de andarmos por seca e meca, resolvemos firmar a nossa residência na Ilha da Guarda Velha. 
 
BARÃO O quê? Pois foram a seca e meca e não deram um pulo até a olivais de Santarém, que é tão perto?... 
 
DUQUESA Oito anos depois, meu marido morreu, deixando-me uma avultada riqueza. Dois anos depois da morte do meu marido, comecei a ser requestada pelo fidalgo mais poderoso da ilha, o Duque da Guarda Velha, senhor feudal em dez léguas de terreno e homem de senso prático. Casei com o Duque da Guarda Velha. Seis anos depois, enviuvei pela segunda vez. Há quatro anos que me sucedeu esta catástrofe. 
 
BARÃO Vejam de que escapei! Se me tivesse casado com vossa senhoria, estava a estas horas no outro mundo! 
 
DUQUESA Deixei passar no feudo a minha lua de mel... 
 
BARÃO Outra? 
 
DUQUESA A lua de mel da viuvez. E aqui estou. Vamos ajustar contas, Senhor barão: vossa senhoria sabe onde quero bater? 
 
BARÃO Perfeitamente. Vossa excelência quer bater àquela porta... Agora percebo por que a duquesa me pediu que a acompanhasse a este sítio... 
 
DUQUESA Ainda bem que o percebe. Sem querer, fui informada que é ali que vive aquele cujos direitos extorquimos por amor da cabeça de vossa senhoria e por amor de minha filha. 
 
BARÃO Da nossa filha, duquesa. 
 
DUQUESA De nossa filha, barão. - Pedi então a vossa senhoria que me acompanhasse a esta praia, para, de viva voz e em sua presença, informar-me se foram cumpridas as suas obrigações. Se assim não sucedeu, trema: vossa senhoria não deve ignorar que foi hoje tratado o meu casamento com El-Rei Caju. 
 
BARÃO Não, Senhora duquesa, e esse casamento é uma grande honra para mim... porque, enfim, eu... mas lembre-se vossa excelência de que mesmo porque eu... in illi tempore... compreende? não pode lançarme no abismo, sem ser arrastada na queda pelo meu corpo... 
 
DUQUESA Enfim, viveremos como anjos, se o barão cumpriu o que prometeu há vinte anos. Serei feliz ao lado da minha filha... 
 
BARÃO De nossa filha, barão. - Hei de habituá-la a dar-me o tratamento de mãe. 
 
DUQUESA Eu é que não posso obrigá-la a chamar-me de pai... e no entanto, amo-a... 
 
DUQUESA Sei que a ama, e agradeço-lhe... Mas... vamos... 
 
BARÃO Não é preciso: aí vem a mulher a cujos cuidados está entregue o príncipe. Ela nos dirá... 
 
DUQUESA Silêncio... 
 
 
CENA X  Os mesmos, Teresa, que vai atravessando a cena para entrar em casa, depois El-Rei.
 
BARÃO (embargando-lhe a passagem) Senhora Teresa... 
 
TERESA Quem é? 
 
BARÃO Um momento de atenção. Conhece-nos? 
 
TERESA Ah! o médico do paço! 
 
BARÃO Então já vê que não somos para aí quaisquer notívagos. - Esta senhora deseja tomar certas informações... 
 
TERESA Estou às suas ordens, minha senhora. Não quer entrar? 
 
DUQUESA Por ora não. Diga-me cá... (Toma-a de parte, e fala-lhe baixo. El-Rei entra, embuçado dos pés à cabeça, sem ser pressentido pela duquesa, e bate levemente no ombro do barão) 
 
BARÃO El-Rei! 
 
EL-REI O que vieste fazer aqui em companhia da duquesa? 
 
BARÃO Sua excelência quis admirar esta praia... Faz um luar esplêndido... Pediu-me que a acompanhasse... 
 
EL-REI É singular! No momento em que firmamos nosso contrato de matrimônio, abandona-me, para vir admirar uma praia! Ah! barão! quem me viu e quem me vê! Quem diria que aquele El-Rei Caju, o enérgico, havia de tornar-se um babão por esta mulher! Julguei que não devia contrair segundas núpcias; mas o amor, barão, o amor... 
 
COPLAS
 
I  Para ser livre, tinha resolvido  Não mais casar-me. Que dirás, ó povo?  Mas, ai! de amores, ó barão, perdido,  Caio na asneira de casar de novo.  O amor de nós dá cabo!  É o diabo! 
 
AMBOS  É o diabo! 
 
II 
 
EL-REI A ninguém poupa de Cupido a seta;  Ninguém se isenta de ser alvo dela:  Se o mais altivo coração espeta,  O mais altivo coração debela!  O amor de nós dá cabo!  É o diabo! 
 
AMBOS  É o diabo! 
 
EL-REI E sabes o que aqui me trouxe. Barão? O ciúme... Ora aqui tens tu: teu rei tem ciúmes! - Quem é aquela mulher com quem conversa a duquesa? 
 
BARÃO Uma pobre criatura... A duquesa, sempre que lhe apresenta ensejo, da expansão ao sentimento da caridade, que é o apanágio de seu boníssimo caráter. 
 
EL-REI Ah! 
 
DUQUESA Muito bem. Aprecio suas virtudes, e hei de premiá-las. (Voltando-se) Estou satisfeita, barão. (Vendo o Rei) Quem é? 
 
EL-REI (desembuçando-se) Eu, duquesa! 
 
TERESA (à parte) El-Rei! Que quer isto dizer?! (Entra em casa) 
 
DUQUESA (perturbada) Vossa Majestade! Que agradável surpresa! 
 
EL-REI Por que não me ordenou que a acompanhasse? 
 
DUQUESA Oh! senhor... não me atrevia... 
 
EL-REI Nada de cerimônias... Não sei estar um instante longe da duquesa... Estou caído, estou derreado... Oh! como a amo! 
 
BARÃO (que tem olhado para os bastidores) O que é aquilo? Um grupo. 
 
EL-REI Vamos para ali. Não convém que nos reconheçam. (Reúnem-se os três às damas, que se conservaram ao fundo)  
 
CENA XI  Os mesmos, os ministros, Nheco, Petrolina.
 
(Os ministros e Nheco trazem cada um a sua lanterna furta fogo na mão. Petronilha condu-los) 
 
(Final)
 
PETRONILHA Já cá não estão!  (Apontando para a cabana)  Entrem; ali os acharão! 
 
NHECO Isto parece estranho!  Há já vinte anos que não tomo banho! 
 
PETRONILHA Não há tempo a perder! 
 
Os melros podem as asas bater! 
 
(Dirigem-se todos com muito mistério para a cabana) 
 
NHECO Vamos lá! vamos lá! 
 
NHECO e MINISTROS Cautela!  Cautela!  Baixai a voz!  Que a bela,  Que a bela,  Não dê por nós...
 
OS OUTROS  O que quer dizer aquilo?  Que quer aquilo dizer? 
 
BARÃO Eu não estou nada tranquilo! 
 
DUQUESA ‘Stou a tremer! 
 
DAMAS  ‘Stou a tremer! 
 
NHECO (batendo à porta) Em nome del-Rei Caju! 
 
EL-REI Del-Rei Caju! 
 
TODOS Em nome del-Rei Caju!... 
 
(Abre-se a porta e entram na cabana Petronilha, Nheco e o ministros, repetindo o Coro)
 
Cautela!  Cautela!  Baixai a voz!  Que a bela,  Que a bela,  Não dê por nós...  
 
CENA XII  El-Rei, barão, duquesa, damas, cortesãos, depois Nheco, Petronilha, Paulo, Princesa, ministros.
 
CORO DE CORTESÃOS (entrando em confusão)  Será possível!  Não pode ser  Que suceder  Possa este fato;  Mas, se assim for,  Que espalhafato!  Que horror! Que horror! 
 
OS QUE ESTÃO AO FUNDO o que será?  O que haverá?  Do paço a gente toda aqui está!... 
 
(Saem da cabana os ministros e Nheco, segurando em Paulo e na princesa. Acompanha-os Teresa e Petronilha. Assombro geral. Perturbação do barão e da duquesa) 
 
NHECO e OS MINISTROS  Cá ‘stão!  Precisam de uma boa lição! 
 
EL-REI Exijo disto explicação! 
 
NHECO Quem és tu? 
 
EL-REI (deixando cair a capa) El-Rei Caju!... 
 
TODOS El-Rei caju!... 
 
NHECO Somente vos direi  Que vossa filha está perdida. ó Senhor Rei! 
 
EL-REI Perdida! 
 
DUQUESA Perdida! 
 
BARÃO Perdida! 
 
TODOS Perdida! 
 
EL-REI Por minha vida!  Vais-me explicar no mesmo instante! 
 
PRINCESA Pois não! Pois não! Eis meu amante! 
 
PAULO Sou seu amante! 
 
PAULO e PRINCESA Estamos perdidos!  Fatal situação!  E em breve metidos  Em negra prisão!...   
CONCERTANTES
 
BARÃO e DUQUESA Não posso salvar-me!  Fatal situação!  Vai prejudicar-me  Tal complicação! 
 
EL-REI Eu caio!  Desmaio!  Tombar vou no chão!  Foi como que um raio!  Foi um furacão! 
 
TODOS Imóveis de pasmo  Todos aqui estão!  Que enorme sarcasmo!  Que insulto à nação! 
 
PAULO e PRINCESA Que desgraça infinda!  Que negro sofrer!  Tão novos ainda,  Nós vamos morrer! 
 
REPETIÇÃO DO CONCERTANTE
 
EL-REI Tudo esqueceste, tudo, princesa!... 
 
PRINCESA Meu pai, atenda! 
 
EL-REI Não sou teu pai!  E tremam todos! A Vossa Alteza  Castigo horrendo ser dado vai! 
 
TODOS Ser dado vai! 
 
I  EL-REI Quer como pai, quer como rei,  Abuso tal castigarei!  Mas conheço,  Reconheço  Que o amor de nós dá cabo...  É o diabo!... 
 
TODOS É o diabo! 
 
II  EL-REI (a Paulo)  E a ti, plebeu, vilão ruim,  Mandarei dar na forca fim!  Mas, no entanto,  Não é santo!  E o amor de nós dá cabo...  É o diabo!... 
 
TODOS É o diabo!... 
 
EL-REI Senhores meus ministros,  Tomai ares sinistros,  E os dois heróis levai!  (Encarando Paulo)  Mas agora reparo!  Caso realmente raro!  Este insensato  Da minha mulher é o retrato!... 
 
TODOS Justiça! Justiça!  Justiça fatal!  Não haja preguiça  Para um caso tal! 
 
PAULO e A PRINCESA Cruel castigo  Não nos importe!  É doce a morte  Ao lado teu!  Viver na terra  Não nos é dado!  Vem ao meu lado  Viver no céu! 
 
CORO GERAL  Mas na verdade  Na realidade,  O amor de nós dá cabo...  É o diabo!...  É o diabo!... 
 
 
 
ATO II
 
Sala do conselho no palácio del-Rei Caju. A cena está armada para um julgamento. No centro, uma mesa coberta com veludo. Bancos em volta. 
 
CENA I  Cortesãos, depois Nheco, depois os ministros, depois El-Rei.
  (Ao levantar o pano, cada um dos cortesãos está a arranjar os bancos, e a espaná-los. De vez em quando param o seu serviço e impõem-se mutuamente silêncio) 
 
CORO  Psiu! Psiu! Psiu!...  Ninguém levante a voz neste salão!  Haja silêncio e discrição!  Psiu! Psiu! Psiu!... 
 
(Entra Nheco. Todos se curvam) 
 
NHECO Oh! não façais cerimônia  Com quem delas mestre está! 
 
(Recomendam-lhe silêncio, e, por gestos, pedem que lhes diga o que se tem passado) 
 
Vós sois pessoas idôneas:  Vou dizer-vos o que há.  Atenção! 
 
TODOS Psiu! 
 
NHECO (baixo)  Atenção!  Psiu! 
 
TODOS Haja silêncio e discrição! 
 
I NHECO (com mistério)  Caso esquisito  Que é de pasmar,  Fato inaudito  De embasbacar,  Ontem, contrito,  Presenciar  Fui muito aflito,  Quase a chorar! 
 
CORO  Psiu!... 
 
II NHECO Digo e repito  Que é de assombrar!  Nomes não cito  Que se os citar,  Desacredito  Quem devo amar!  Nomes evito  Pronunciar... 
 
CORO  Psiu... 
 
III NHECO Eu me limito  Tal nova a dar;  Nomes omito,  Que é mau palrar...  Não facilito... 
 
Sei me guardar!  Tudo hei vos dito...  Vou me banhar! 
 
(Vai fugindo. Os outros impedem-lhe a passagem) 
 
OS CORTESÃOS  Não se vá!  Venha cá!  Do que há  Nos fará  Narração,  Confissão!  Far-nos-á  Descrição! 
 
NHECO (volta, e depois de muito mistério, irrompe alto)  Trá lá lá lá!  Metida em maus lençóis nossa princesa está! 
 
TODOS Trá lá lá lá!  Metida em maus lençóis nossa princesa está!  Ai, que o caso é muito sério! 
 
NHECO Eis que chega o ministério! 
 
(Arranjam-se todos a um lado da cena) 
 
Entrada dos ministros  Ministros somos  Do rei melhor;  Chamados fomos  Para compor  O conselho feroz que vai julgar  A princesa que deu pra namorar! 
 
NHECO (aproximando-se)  Na qualidade de mestre  De cerimônias, que sou,  Fazer discurso que preste  Neste instante tentar vou 
 
EL-REI (entrando)  Silêncio! o teu discurso é natural, dispense-o  Quem está como estou eu! 
 
TODOS El-Rei Caju! 
 
EL-REI Silêncio!  (Descendo à cena, sombrio)  Tor ló tó tó!  Tor ló tó tó!  El-Rei Caju quer ficar só... 
 
TODOS (saindo misteriosamente)  Tor ló tó tó!  Tor ló tó tó!  El-Rei Caju quer ficar só... 
 
NHECO (saindo por último, ao som dos derradeiros compassos)  Este momento apanho  Para tomar um banho... 
 
 
CENA II  El-Rei, só.
 
EL-REI CAJU El-Rei Caju quer ficar só... E para que quer ficar só El-Rei Caju? Apenas para retardar este julgamento, porque afinal de contas, sou rei, mas também sou pai! Sou pai! e hei de passar pela sensaboria de ver subir ao cadafalso minha querida filha? Sim, que a Constituição é clara neste ponto, apesar de escura em todos os outros. (Tirando um livrinho do bolso e lendo) “Artigo duzentos. Toda pessoa real que, esquecendo o decoro que deve a si própria e ao povo, der escândalo público, será julgada por um Conselho composto de quatro ministros de estado, e, averiguado o delito, condenada a pena última”. Se se pudesse sofismar este maldito artigo duzentos! Vejamos por partes: “Toda pessoa real...” Minha filha é ou não é pessoa real? É. É real. É realmente real! Mas também quem se lembra de fazer um artigo contra as pessoas reais? Vejam se, nas partes descobertas do universo, os príncipes vão ao cadafalso por causa destas ninharias!... “que esquecendo o de Coro que deve a si própria e ao povo...” Disto se esqueceu ela... Comeu queijo... !der escândalo público...” Escândalo foi! Lá ser, foi!... É o diabo! Não há meio de sofismar! E o Conselho não pode estar à espera! (Vai chamar o Conselho e para) Mas, afinal de contas, qual é o crime da minha filha? A pobre pequena passava aqui uma vida levada de todos os diabos. Um dia deu-lhe a mosca... e... psit! Isso acontece à mais pintada! E não é que o rapaz é um rapagão? Simpatizo com ele... é uma coisa esquisita! Que bonitos olhos! Parecem-se tanto com os de sua Majestade a falecida minha mulher... Que olhos! vamos lá ver essa gente... Enquanto julgam vou pensar... Hei de achar furo. (Vai à porta por onde saíram os ministros) Olha esse Conselho que saia! (Sai pelo lado oposto) 
 
 
CENA III  Nheco, os ministros.
 
OS MINISTROS  Não pode ser! não há tempo! 
 
PRIMEIRO MINISTRO  Com mil raios! Pois o senhor mestre de cerimônias quer abandonarnos no momento do Conselho! 
 
SEGUNDO MINISTRO  Era o que faltava! 
 
TERCEIRO MINISTRO  Tomar banho quando serviço do Estado reclama-o! 
 
QUARTO MINISTRO  Incúria! 
 
NHECO Mas, senhores ministros... 
 
PRIMEIRO MINISTRO  Com mil bombardas! 
 
NHECO Há vinte e tantos anos que não tomo banho! 
 
QUARTO MINISTRO  Quem esperou tanto tempo, pode esperar mais duas horas! 
 
PRIMEIRO MINISTRO  Vamos! Mande entrar os réus, ou fuzilo-o, com mil canhões!... 
 
NHECO Este ferrabraz bem mostra ser Ministro da Guerra! (A um gesto seu, entram Paulo e a princesa, escoltados por guardas, e cortesãos de ambos o sexos, ao som de uma marcha triste. Sentam-se todos. Os ministros em volta da mesa. Os cortesãos em bancos. Os réus em bancos especiais)   
 
CENA IV  Os ministros, cortesãos, guardas, Paulo, Princesa, depois os advogados.
 
NHECO (aproximando-se)
 
Como mestre de cerimônias que sou, vou proceder à leitura do artigo da Constituição, que tem relação com o cargo vertente. (Tira a Constituição do bolso) 
 
OS MINISTROS (tirando cada um a sua Constituição) Nós todos sabemos. (Abrem os livros) 
 
TODOS (menos os réus) E nós! (Estão todos de livro na mão; leitura geral do artigo duzentos. Lendo) “Artigo duzentos. Toda pessoa real que esquecendo o decoro que deve a si própria e ao povo, der escândalo público, será julgada por um Conselho composto de quatro ministros de Estado e, averiguado o delito, condenada à pena última.” 
 
PRIMEIRO MINISTRO  Manda entrar os advogados. (A um gesto de Nheco, entram os dois advogados) 
 
PRIMEIRO ADVOGADO (muito alegre) Meus senhores, minhas senhoras, bom dia. 
 
SEGUNDO ADVOGADO (sorumbático) Bom dia. 
 
QUARTO MINISTRO  Diabo! este aposto que é o da acusação! 
 
SEGUNDO ADVOGADO  Está enganado: sou da defesa. 
 
QUARTO MINISTRO  Ah! 
 
SEGUNDO ADVOGADO  Mas acredite que é contra a vontade... O meu desejo era vê-la morta... 
 
TODOS Oh!... 
 
PRIMEIRO ADVOGADO (sempre muito alegre) Pois eu, apesar de vir acusá-la, queria vê-la livre de culpa e pena. Que diabo! Amar nunca foi crime! 
 
TODOS Oh! 
 
PRIMEIRO ADVOGADO (ao colega) Uma proposta? vá o senhor acusá-la; eu irei defendê-la. 
 
SEGUNDO ADVOGADO (vivamente) Aceito. 
 
PRIMEIRO MINISTRO  A seus lugares, com mil duzentas e trinta e quatro espingardas! (Os advogados tomam seus lugares. Erguendo-se) Estão em presença deste Tribunal... porque, não sei se sabem, isto é um Tribunal, dois réus. 
 
TERCEIRO MINISTRO  Não apoiado! 
 
SEGUNDO MINISTRO  Como não apoiado? 
 
TERCEIRO MINISTRO  Não são dois réus: é um réu e uma ré. (Todos riem) 
 
PRIMEIRO MINISTRO Silêncio! com cem cartuchos! Cumpre-me fazer uma observação... (Ao quarto Ministro, que ainda se ri às gargalhadas) Esteja quieto, menino! (O quarto Ministro ri-se cada vez mais) O culpado é Sua Majestade, que fez Ministro um fedelho, que ainda cheira a cueiros. (O quarto Ministro fica sério) Cumpre-me fazer uma observação. O julgamento do réu Paulo aqui presente, era da competência do júri popular; mas como o povo tem mostrado de algum tempo para cá certas tendências democráticas, julgamo-lo nós, para que não no-lo absolvam por lá. - O Conselho... o Conselho conhece a história deste processo sumário: por denúncia de uma mulher do povo, o Ministério, que se achava reunido por amor do tratado de casamento de sua Majestade, o Ministério foi encontrar a herdeira presuntiva da Coroa em casa do pescador Paulo. Enquanto o rei tratava de dar uma mãe à princesa, esta comprazia-se talvez em dar um neto ao rei. - Vossa Alteza tem que alegar alguma coisa em sua defesa. 
 
PRINCESA Em minha defesa, não; mas na de Paulo: ele não sabia quem eu era. 
 
TERCEIRO MINISTRO  Vossa Alteza namorava incógnita? 
 
PAULO Nego! Eu sabia perfeitamente quem era Sua Alteza! 
 
PRIMEIRO MINISTRO  Tem a palavra o advogado de acusação! 
 
COPLAS E CONCERTANTE
 
II SEGUNDO ADVOGADO (erguendo-se)  Há muito tempo eu não acuso  Delito assim tão desmarcado! 
 
JUNTOS
 
UNS  Muito apoiado! 
OUTROS  Não apoiado! 
 
SEGUNDO ADVOGADO Senhores meus, tão grande abuso  Deve de ser bem castigado! 
 
JUNTOS
 
UNS  Muito apoiado! 
OUTROS  Não apoiado! 
 
SEGUNDO ADVOGADO   Está na vossa consciência  Que a tal indecência  Exemplo bom deve ser dado! 
 
JUNTOS
 
UNS  Muito apoiado! 
OUTROS  Não apoiado! 
 
SEGUNDO ADVOGADO  Mais não digo,  Não prossigo!  O que foi vós bem sabeis!  Eu sé quero,  Só espero  Que se cumpram nossas leis! (Senta-se) 
 
JUNTOS
 
UNS  Muito apoiado! 
OUTROS  Não apoiado! 
 
PRIMEIRO MINISTRO  A palavra agora tem  Da defesa o advogado 
 
PRIMEIRO ADVOGADO (erguendo-se)  O deus de amor tem uma venda;  Cupido é muito endiabrado! 
 
JUNTOS
 
UNS  Muito apoiado! 
OUTROS  Não apoiado! 
 
PRIMEIRO ADVOGADO  Eu não sei mesmo o que defenda:  Não é crime amar e ser amado! 
 
JUNTOS
 
UNS  Muito apoiado! 
OUTROS  Não apoiado! 
 
PRIMEIRO ADVOGADO  Está na vossa consciência  Não ser indecência  Ter a princesa um namorado! 
 
JUNTOS
 
UNS  Muito apoiado! 
OUTROS  Não apoiado! 
 
PRIMEIRO ADVOGADO  Mais não digo,  Não prossigo!  Não é crime tal!  Um namoro  Sem decoro,  Nessa idade era fatal! (Senta-se) 
 
(A princesa levantando-se vivamente do lugar em que está, e vindo à boca da cena) 
 
TANGO
 
Amor tem fogo,  Tem fogo amor;  Tem fogo intenso,  Devorador!  Põe-nos em jogo  O coração,  Nosso bom senso,  Nossa razão!  E lavra,  Palavra!  Sem descansar;  Começa  Depressa,  Custa a acabar... 
 
TODOS (erguendo-se maquinalmente e acompanhando o canto com um ligeiro movimento de corpo)  Amor tem corpo, Etc. etc.
 
PAULO Todos amam: japoneses,  Chineses, ingleses,  Franceses, malteses,  Portugueses, cordoveses,  Genoveses, irlandeses,  Hamburgueses, lubequeses,  Islandeses, holandeses,  Genebreses, escoceces!  Aragoneses,  Piemonteses,  Dinamarqueses  Cartagineses! 
 
PRIMEIRO ADVOGADO  Em vez de matá-los,  Casá-los pra bem! 
 
SEGUNDO ADVOGADO  Em vez de casá-los,  Matá-los convém!  Matá-los! 
 
PRIMEIRO ADVOGADO  Casá-los! 
 
CORO  Muito apoiado!  Não apoiado! 
 
(Disputa geral, animada e calorosa) 
 
CORO GERAL  Amor tem fogo,  Tem fogo amor;  Tem fogo intenso,  Devorador!  Põe-nos em jogo  O coração,  Nosso bom senso,  Nossa razão!  E lavra,  Palavra!  Sem descansar;  Começa  Depressa,  Custa a acabar... 
 
PRIMEIRO MINISTRO  Toca a safar! O Conselho, porque saibam que isto é um Conselho, tem que deliberar. (Os fidalgos retiram-se. Aos guardas) Direita volver! Marche! 
 
(Os guardas saem) 
 
SEGUNDO MINISTRO  Mas havemos de deliberar em presença dos réus? 
 
TERCEIRO MINISTRO  Passemos à sala das deliberações. Senhor Mestre de Cerimônias, fica-lhe confiada a guarda destes dois pombinhos. - Vamos! (Ao terceiro Ministro) Mexa-se. 
 
SEGUNDO MINISTRO  Também é tão gordo! Vejam que barriga! 
 
QUARTO MINISTRO  Pudera! É Ministro das Finanças! 
 
(Saem)   
 
CENA V  Paulo, Princesa, Nheco.
 
NHECO Vossa Alteza provavelmente vai morrer... Ao menos morre limpa... Eu parece que decididamente morro sem tomar banho! Faça ideia Vossa Alteza de que hoje, logo pela manhã, introdução de vossa futura madrasta, augusta noiva de vosso augusto pai. Ao meio dia, preparação da sala do Conselho. Eu pretendia tomar banho enquanto deliberavam: mas eis que me ordenam que vos guarde. E todos os dias são assim! 
 
PRINCESA Nheco, és meu amigo? 
 
NHECO Quem pode ver-vos sem querer amar-vos? 
 
PRINCESA Pois bem, se te mereço piedade, deixa-nos a sós um momento. 
 
NHECO Deixar-vos a sós. Sereníssima princesa? Vossa Alteza não viu que me confiaram a vossa guarda? Não, isso não faço eu! O mais que posso fazer é fechar os olhos... (Cantarolando)  Oh! não façais cerimônias  Com quem delas mestre está... 
 
PRINCESA Nheco, tu nunca amaste? 
 
NHECO Nunca tive tempo de tomar banho, quanto mais de amar... 
 
PAULO Descanse, pois não fugimos... Amamo-nos... Precisamos da solidão e do silêncio para desafogar... 
 
NHECO Ainda se eu tivesse tempo de meter-me na água... 
 
PRINCESA Anda... faze-nos a vontade... Antes de morrer, pedirei a meu pai que te aposente... 
 
NHECO Com o ordenado por inteiro? 
 
PRINCESA Sim. 
 
NHECO Então, vá lá! Se apanho a aposentação, hei de passar os restos dos meus dias metido num tanque! - Até logo. (À parte) Não irei para muito longe... Nada, que se fugissem... (Sai) 
 
 
CENA VI  Paulo, Princesa.
 
(Correm um para o outro, abraçam-se e beijam-se ardentemente)    AMBOS  Enfim!...
 
PAULO Que sorte nos aguardará?... 
 
PRINCESA E fui eu que te perdi... 
 
PAULO Tu?! Oh! não! Não falemos nisso... 
 
PRINCESA Vivias feliz e despreocupado, em companhia dessa excelente mulher a quem tanto deves, e que a estas horas teme pelo seu destino... A caça... a pesca... era essa a tua existência descuidada! Que fatalidade nos atirou nos braços um do outro! 
 
PAULO Foi uma fatalidade, foi; mas não te recrimines, porque me considero feliz na minha desgraça! Morro contigo! Estava-me reservada essa ventura suprema! 
 
PRINCESA Meu pobre Paulo! 
 
DUETO
 
PAULO Que sorte funesta! 
 
PRINCESA Que funesta sorte! 
 
PAULO Nada mais no resta... 
 
PRINCESA Resta-nos a morte... 
 
AMBOS  Abrem-se os céus! Nas asas de ouro,  A morte vai nos conduzir!  Juntos, ó meu casto tesouro,  À eterna luz vamos subir! 
 
PRINCESA Castigo não se afigura,  Mas divinal, supremo bem,  A doce paz da sepultura  Que o fado meu trazer-me vem! 
 
PAULO Eu morro satisfeito!  Acaba a minha dor!  Gelado, negro leito  Encontra o meu amor! 
 
JUNTOS
 
PAULO Eu morro satisfeito!
PRINCESA Serenas; ó meu peito, 
Acaba a minha dor! Gelado, negro leito Encontra o meu amor!
Acabas, minha dor!  Gelado, negro leito  Encontra o meu amor!
 
NHECO (voltando) Então? Vossa Alteza já desafogou? era tempo! Aí volta o Conselho!... 
 
(A música prolonga-se em surdina até o final da seguinte cena. 
 
 
CENA VII  Paulo, Princesa, Nheco, ministros, advogados, cortesãos, guardas.
 
PRIMEIRO MINISTRO  Sereníssima Senhora, o Tribunal, porque, afinal de contas, por mais que me digam, isto é um Tribunal... O Tribunal, dizia eu, usando da faculdade que lhe faculta o artigo duzentos da Constituição do reino, acaba de proferir a sentença que tem de ser cumprida tanto por Vossa Alteza como pelo indivíduo Paulo: estão ambos condenados à pena última. 
 
SEGUNDO ADVOGADO  Apelo! 
 
PRIMEIRO MINISTRO Não há apelação nem agravo! - Guardas, sentido, com três mil buchas! Meia volta à direita, e prendam! prendam! 
 
(Três guardas levam Paulo e três a princesa. Saem todos graves e silenciosos, como entraram. A cena fica só por alguns momentos. Cessa a música) 
 
 
CENA VIII  Barão, duquesa, depois El-Rei.
 
(A duquesa entra aflita; o barão acompanha-a no mesmo estado de agitação) 
 
DUQUESA Não há remédio senão confessar tudo a El-Rei! 
 
BARÃO Eu perco a cabeça! E perco mesmo: isto não é figura de retórica. Vê vossa excelência como o demo as arma, duquesa... 
 
DUQUESA Estou resolvida a tudo, contanto que salve a minha filha! 
 
BARÃO Nossa filha, duquesa... 
 
DUQUESA (de mau humor) Nossa filha, barão! 
 
COPLAS
 
I  Por minha filha salvar  Do cadafalso  Mil passos pretendo dar  Embora em falso...  Sofrerei negra aflição  Eterna mágoa  Se der minha pretensão  Cos burros n’água!  Sou muito forte,  Mas desvelada;  Desesperada,  Nervosa estou!  Quem já viu sorte  Que mais capriche?  Madre infelice 
 
Mísera sou! 
 
II  Para salvá-la verá  Que me rebaixo,  Embora o trono se vá  Por água abaixo!  Se não lhe alcanço o perdão...  Que escaramuça!  Hei de pintar o Simão  De carapuça!  Sou muito forte,  Mas desvelada;  Desesperada,  Nervosa estou!  Quem já viu sorte  Que mais capriche?  Madre infelice  Mísera sou! 
 
BARÃO Aí vem Sua Majestade. Fale-lhe, que não tenho ânimo para isso. Uf! Não me posso ter nas pernas! 
 
EL-REI (entrando, angustiado) Barão, barão! andava à tua procura meu velho amigo! Tenho te buscado por toda a parte! Onde te meteste? 
 
BARÃO Estava receitando: Vossa Majestade sofreu um violento abalo moral: precisa medicar-se. A receita cuja confecção levou-me três horas, já foi enviada para a botica. 
 
EL-REI Quem te fala aqui em despesa... quero dizer: em receita? O que eu quero é salvar minha filha! Põe-te em meu lugar: faze de que conta que és seu pai! Faça de conta que é sua mãe, duquesa. - Tu, que tanto a estimas, barão, não te lembras de algum meio? Não se pode sofismar aquele maldito artigo duzentos? 
 
DUQUESA (irresoluta, ao barão) Vai? 
 
BARÃO Vá! Um, dois, e... três! 
 
DUQUESA (resoluta) Saiba Vossa Majestade que a princesa, se ama o pescador Paulo, não lesa a majestade, nem ofende o povo que a venera. 
 
EL-REI Por quê? 
 
BARÃO (consigo) Um, dois, e... três! (Alto) Real Senhor, o príncipe Paulo é vosso filho! 
 
EL-REI Meu filho... 
 
BARÃO Vossa Majestade lembra-se do que me disse há vinte anos quando vossa real esposa estava para dar à luz? - Doutor, há de ser uma menina ou... Tur, lu, tu, tu, tur, tu, tu... verás quem é El-Rei Caju! Ora, como a criança que estava para nascer era um menino, levei o menino para fora, eduquei-o longe das vistas de Vossa Majestade, e a menina tem até hoje passado por vossa filha. Acontece que vinte anos depois esta trapalhada, a menina apaixona-se pelo menino, o menino pela menina, e... 
 
EL-REI (interrompendo-o tragicamente) Horror! Horror! três vezes horror! As abóbadas deste palácio repercutam ainda uma vez esta palavra: Horror! e outra: Horror! 
 
BARÃO
 
É a mesma. 
 
EL-REI Afinal de contas, tiveste razão. O teu dever era salvar a própria vida. Isso não impede, porém, que houvesse feito uma grandíssima maroteira! 
 
BARÃO Foi por instinto de conservação. 
 
EL-REI Por isso é que o rapaz parece-se tanto com minha mulher! Por isso é que simpatizo tanto com ele... 
 
DUQUESA A natureza! a natureza! 
 
EL-REI Mas quem é o pai de minha filha? quero dizer - da suposta princesa? Não lhe entrego nem a cacete! (Terrível) De quem é a filha?... Responde!... 
 
TERCETO
 
BARÃO É minha filha!  Seu papai sou! 
 
DUQUESA É sua filha!  Quem tal pensou? 
 
EL-REI É sua filha!  Seu pai não sou!  Cruel partilha,  Desgraça pura, 
 
A sorte escura  Me reservou! 
 
I  BARÃO Sob este corpo cansado  Que o tempo quase vergou,  Sob este corpo, coitado!  Um coração já pulsou...  Na flor da minha existência  Todo aos estudos me dei;  Namorado da ciência,  Em vez de amar, estudei  Por isso,  Ah! Ah!  Por isso,  Ah! Ah!  Tive somente um derriço  Olá! 
 
II  Cataplasmas e calmantes,  Unguentos e fricções;  Laxantes e mais laxantes;  Cerotos, basilicões,  Sulfatos, plantas, alteias,  Tudo o mais, que não direi,  Foi com estas panaceias  Que a mocidade passei!  Por isso,  Ah! Ah!  Por isso,  Ah! Ah!  Tive somente um derriço  Olá! 
 
EL-REI E esse derriço foi, barão, que te valeu  A filha que passou por ser trabalho meu? 
 
(A um gesto afirmativo do barão) 
 
Passei por pai de quem não era!  Passo por pai de quem não sou!  Punido hás de ser tu, pudera!  Um juramento aqui te dou!  Ah! 
 
(Dá uma grande volta pela cena, parodiando os artigos líricos italianos, e vem requebrar-se perto da duquesa) 
 
Oh! je t’aime! je t’aime! je t’aime!  Deixa, ó bela, dizer-to em francês!  Vê, meu anjo, vê que a voz me treme!  Oh! je t’aime! je t’aime! je t’aime! 
 
JUNTOS
 
EL-REI  Oh! je t’aime! je t’aime! je t’aime!  Deixa, ó bela, dizer-to em francês!  Vê, meu anjo, vê que a voz me treme!  Oh! je t’aime! je t’aime! je t’aime! 
 
BARÃO Que ela o ama, que o ama, que o ama,  Caso é certo, mesmo sem francês!  Ora, faça a vontade à madama!  Ora faça, que o peço por três! 
 
DUQUESA Oh! je t’aime, je t’aime, je t’aime,  Oh! je t’aime, meu bem, como vês!  Vê, meu anjo, vê que a voz me treme... 
 
Oh! je t’aime, je t’aime em francês! 
 
(O barão e El-Rei dão juntos outra volta por toda a cena, prolongando a última nota, que a duquesa corta de súbito, tapando-lhes as bocas quando descem à cena, cantando) 
 
DUQUESA Pois se me adoras,  Como protestas  E como atestas,  Meu coração,  Oh! tu, que uma alma  Tens, e tão boa,  Meu bem, perdoa  Dá-lhe o perdão! 
 
JUNTOS
 
DUQUESA Pois se me adoras,  Como protestas  E como atestas,  Meu coração,  Oh! tu, que uma alma  Tens, e tão boa,  Meu bem, perdoa  Dá-lhe o perdão! 
 
EL-REI Eu, que te adoro,  Oh! pura! honesta!  Mulher modesta,  Meu coração,  Hei de, que o pedes,  Hei de lançar-lhe,  Hei de atirar-lhe  O meu perdão! 
 
BARÃO Se és bom soberano,  Como protesta  E como atesta  Teu coração,  Oh! tu, que uma alma  Tens, e tão boa,  Ó Rei, perdoa,  Dá-me o teu perdão! 
 
EL-REI Mas sem castigo não desejo eu que fique este mariola!... 
 
BARÃO É melhor que as coisas fiquem no pé em que estavam. - Vossa Majestade tem amor de pai à princesa, não tem? 
 
EL-REI Por força. 
 
DUQUESA O príncipe Paulo passará por filho de Sua Majestade, o rei da Ilha da Guarda Velha. 
 
EL-REI O meu augusto vizinho? 
 
DUQUESA Depois de entender-me com ele, anuirá ao meu pedido, e perfilhálo-á. 
 
BARÃO (à parte) Hum... 
 
EL-REI Sim, podemos contar com o assentimento do colega, que nada te recusa, como já disseste. Demais, sabendo que Paulo é meu filho... 
 
BARÃO (timidamente) É verdade. 
 
EL-REI Bico, Senhor barão. - Senhor barão! Nada! De hoje em diante não é mais Barão! Se está feito barão por ter nascido uma menina, estás elevado a Visconde, maroto! É o teu castigo! - Vai chamar esta súcia! (O barão sai) Vou anular o julgamento... e, para segurança de minhas netas, convocar uma Constituinte para revogar o tal artigo duzentos. 
 
 
CENA IX  El-Rei, barão, duquesa, Nheco, ministros, advogados, fidalgos, fidalgas, guardas, depois Paulo, Princesa.
 
EL-REI Trazei minha filha e Sua Alteza o príncipe Paulo para esta sala! 
 
TODOS O príncipe Paulo! 
 
DUQUESA Esse que supondes um simples pescador! 
 
BARÃO O réu. 
 
EL-REI É um príncipe disfarçado. Tudo isto foi uma comédia. Queria experimentar-vos. Sois íntegros. 
 
PRIMEIRO MINISTRO (aos guardas)
 
Direita volver! Ide buscar os réus, com trinta mil carabinas! (Saem os guardas, e voltam com Paulo e a princesa) Está portanto anulada a sentença proferida pelo Conselho, que, aquilo, digam o que quiserem, foi um Conselho. 
 
EL-REI (a Paulo, que entra com a princesa e os guardas) Príncipe Paulo, dê cá um abraço! 
 
PAULO Príncipe!!... 
 
BARÃO (a Paulo) Tudo será mais tarde explicado a Vossa Alteza. 
 
EL-REI (depois de abraçar e beijar o príncipe) Dê a mão à princesa: é sua! 
 
PRINCESA Paulo! 
 
PAULO E Teresa? Um vez que sou príncipe... 
 
BARÃO Não vos dê cuidado. 
 
EL-REI O barão não deve ficar impune. Mas... qual deve ser o castigo. 
 
UM LACAIO (entrando, acompanhado de dois homens que trazem grandes caixas) Aqui estão os remédios de Vossa Majestade, receitados pelo Senhor barão. A botica ficou vazia. 
 
EL-REI Leva-os para fora. (Saem o lacaio e os homens. Ao barão) Querias que eu ingerisse aquela farmácia? Por causa do meu abalo moral, não é assim? mas como a filha era tua e não minha, tu é que hás de tomar aquelas drogas. (À parte) Achei um castigo. 
 
BARÃO (à parte) Morri. 
 
EL-REI (tomando a mão da duquesa) Apresento minha noiva à corte. (À princesa e a Paulo) Casar-nosemos no mesmo dia... 
 
(Grandes mesuras dos cortesãos) 
 
FINAL
 
CORO GERAL  Viva El rei Caju!  Viva o  Rei Caju!... 
 
PRINCESA É papai, do meu agrado,  Seja Nheco aposentado! 
 
NHECO Se aposentação apanho,  Oh! que permanente banho! 
 
PAULO O meu pedido é mais sério:  Deito abaixo o Ministério! 
 
EL-REI Caia, pois, o Ministério!  (A um gesto seu, os ministros caem no chão) 
 
COPLAS AO PÚBLICO
 
Sei que o desejo, e único 
 
Dos míseros autores,  É de fazer-te rir;  Assim, pois a comédia  Dispensa os teus favores,  E seja o Ministério  O único a cair.  Tur lu tu tu  Tur lu tu tu  Eis o que quer El-Rei Caju! 
 
CORO GERAL  Tur lu tu tu  Tur lu tu tu  Eis o que quer El-Rei Caju!...

 

 

                                                                  Artur Azevedo

 

 

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