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A PRINCESA PLEBÉIA / Barbara Cartland
A PRINCESA PLEBÉIA / Barbara Cartland

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PRINCESA PLEBÉIA

 

             1869

O arquiduque de Wiedenstein estava entretido, lendo o jornal; o resto da família, que tomava o desjejum com ele, estava em silêncio.

Era sempre uma refeição incómoda, pois não sabiam qual seria o estado de espírito do pai.

O príncipe Kendric pegou a última torrada. Passou nela manteiga e geléia, conforme o hábito inglês, comeu depressa e empurrou a cadeira para trás.

Sua mãe, a arquiduquesa, ergueu os olhos da carta que lia e tossia de um modo significativo. Olhou fixamente para o jornal que escondia o rosto do marido, mas este não se manifestou.

‑ Leopold ‑ disse ela, com um tom que pretendia chamar a atenção dele.

O arquiduque, olhando por cima do jornal com uma expressão irritada por ter sido interrompido, apenas respondeu à mulher:

‑ Sim, sim, é claro!

O príncipe Kendric e sua irmã gémea, a princesa Marie‑Thérèse, que em família era chamada de Zena, olharam para o pai com ar apreensivo.

Tinham a impressão de que iriam ouvir um sermão, o que era normal.

O arquiduque colocou o jornal na mesa, lentamente, e tirou os óculos.

Nunca os usava em público, se pudesse evitá‑los, pois achava que estragavam sua imagem.

Tinha sido e ainda era um belo homem. Na realidade, as moedas de Wiedenstein raramente lhe faziam justiça.

Durante toda a sua vida existiram mulheres que o achavam irresistível, e ele tentara sem resultados esconder isso de sua esposa.

‑ Seu pai quer falar com vocês ‑ disse a duquesa, desnecessariamente.

O príncipe Kendric desejou ter saído da sala antes. Mas, mesmo que o tivesse tentado, sabia que sua mãe teria impedido que escapulisse.

O arquiduque limpou a garganta. Lentamente, de um modo ponderado, falou:

‑ Recebi um relatório de seus preceptores, referente ao progresso nos estudos durante os últimos três meses.

Fez uma pausa, pois olhava para a filha e achava que ela estava especialmente atraente naquela manhã, e isso o distraía do assunto.

Depois, olhou para o filho e sua expressão endureceu.

‑ O relatório a seu respeito, Kendric, não é exactamente o que eu esperava. Seus preceptores são unânimes ao dizer que você poderia ir melhor, se o tentasse, e não posso compreender porque não faz isso.

‑ Tento, papai ‑ respondeu o rapaz, em tom de desafio. ‑ Mas, se quer a minha opinião, esse método de educação é antiquado e, sinceramente, muito monótono.

Disse‑o com tal franqueza que a arquiduquesa prendeu a respiração e Zena olhou nervosamente para o irmão.

‑ O artesão que se queixa de suas ferramentas é um mau artesão ‑ respondeu o arquiduque, asperamente.

‑ Se você me tivesse deixado ir para a universidade... ‑ Kendric começou.

Era uma antiga rixa e o pai o interrompeu:

‑ Você vai para o Exército! É essencial que, quando tomar o meu lugar, esteja apto a comandar nossas tropas. E só Deus sabe como a disciplina vai ser uma coisa boa para você!

Houve uma pausa. Não havia dúvida de que o príncipe Kendric se continha para não dizer o que pensava. Pai e filho lançaram um ao outro olhares fulminantes e a arquiduquesa interferiu:

‑ Diga às crianças os seus planos, Leopold. É isso que precisam ouvir.

Como se achasse repreendido, o pai continuou:

‑ Sua mãe e eu discutimos os relatórios, detalhadamente. O seu, Zena, não é melhor que o de Kendric, principalmente no que diz respeito à língua alemã.

‑ Acho a gramática muito difícil, papai ‑ replicou a princesa. ‑ E o sr. Waldshutz é tão enfadonho e lento, que é impossível a gente não dormir nas aulas.

‑ Muito bem. Compreendo o seu ponto de vista ‑ observou o arquiduque. ‑ É por isso que decidimos mandar vocês dois para Ettengen.

‑ Para Ettengen! ‑ exclamou Zena, atónita.

‑ É necessário que o alemão de Kendric melhore, antes de ele ir para Düsseldorf ‑ declarou o arquiduque.

Kendric soltou uma exclamação abafada e depois perguntou, em voz alta:

‑ Por que hei de ir para Düsseldorf? E para fazer o quê?

‑ É o que pretendo dizer ‑ respondeu o arquiduque. ‑ Seu cunhado sugeriu, e acho uma idéia excelente, que você passe um ano no quartel de Düsseldorf. Assim, terá chance de se aproveitar do treinamento intensivo que é dado aos cadetes no exército prussiano.

‑ Um ano com aqueles sanguinários fomentadores de guerra! ‑ exclamou Kendric. ‑ É tão ruim como o inferno!

‑ Vai ser bom para você. E fará o que lhe digo ‑ replicou o pai.

‑ Recuso‑me! Recuso‑me terminantemente ‑ murmurou o príncipe Kendric. Mas, além do tom de desafio, havia um de desespero.

Virando‑se para a filha, o arquiduque continuou:

‑ Quanto a você, Zena, como vocês dois fazem tanto alvoroço para não se separarem um do outro, irá com Kendric a Ettengen para melhorar o seu alemão. Depois, quando seu irmão for para Düsseldorf, sua mãe e eu temos planos para o seu casamento.

Se Kendric tinha ficado atónito, agora chegara a vez de Zena.

‑ Casamento, papai? ‑ perguntou. Não havia dúvida quanto à expressão de horror de seu olhar.

‑ Está com dezoito anos, Zena, e há algum tempo estamos pensando em arranjar‑lhe um marido adequado. Pessoalmente, eu tinha esperança de que houvesse um príncipe reinante num dos estados vizinhos, mas infelizmente todos são casados ou jovens demais.

Zena soltou um suspiro de alívio e o pai continuou:

‑ Então sua mãe sugeriu que você se casasse com um dos compatriotas dela. Afinal de contas, tive muita sorte em me casar com uma parente da rainha da Inglaterra.

A arquiduquesa inclinou a cabeça, em agradecimento. Depois, como se não pudesse deixar de dar sua opinião, disse:

‑ Deve compreender, Zena, que pelo facto de você ser apenas a Segunda filha é impossível lhe arranjarmos um príncipe real para marido, ou, como gostaríamos, um soberano reinante.

‑ Mas não tenho vontade de... me casar com ninguém, mamãe.

A arquiduquesa contraiu as sobrancelhas.

‑ Não seja ridícula ‑ disse, bruscamente. ‑ Claro que precisa casar. Estando Kendric em Düsseldorf, quanto mais cedo melhor, no que me diz respeito. Sei o quanto ficará aborrecida, depois que ele partir.

Como isso era verdade, Zena olhou para o irmão através da mesa. Mas o rapaz olhava, de cara fechada, para o vidro de mostarda à sua frente, obviamente preocupado com seus próprios problemas.

‑ Escrevi à minha irmã Margaret, que é dama de companhia da rainha e goza da sua confiança ‑ continuou a arquiduquesa. ‑ Somos privilegiados de poder ouvir seus conselhos.

‑ E quais são, mamãe? ‑ perguntou Zena, achando difícil pronunciar tais palavras.

‑ Minha irmã Margaret respondeu que, como não há príncipes reais disponíveis no momento, com a idade certa, sugeriu à rainha que você se cassasse com um duque inglês. E a rainha aprovou a idéia.

A arquiduquesa fez uma pausa. Como Zena nada dissesse, continuou:

‑ Há dois, neste momento, cujas famílias pelo lado materno têm parentesco com a família real. Tanto Margaret como a rainha acham que a união com qualquer um deles será vantajosa para ambos os países.

‑ Mas... não quero me casar com um inglês, mamãe.

‑ Que objecção você faz aos ingleses? ‑ perguntou a mãe, zangada.

Ocorreu a Zena que, dissesse ela o que dissesse, seria uma indelicadeza para sua mãe. Então, apenas olhou para o prato.

‑ Vou esquecer essa observação infantil ‑ comentou a arquiduquesa, severamente.

‑ Vá ao que interessa, querida ‑ interveio o arquiduque. ‑ Não podemos ficar nisso o dia inteiro.

‑ É o que estou tentando fazer, Leopold ‑ replicou ela, friamente. ‑ Mas as crianças não param de me interromper.

‑ Agora estão quietas ‑ declarou o pai.

Sem se apressar, a arquiduquesa recomeçou:

‑ Voltando ao assunto, Margaret disse que há dois duques que poderão desposá‑la. Mas acha que o duque de Gatesford é velho demais, embora tenha enviuvado recentemente.

A mãe calou‑se, como se esperasse que Zena perguntasse a idade dele. Como a filha nada dissesse, continuou:

‑ Sua Graça acaba de fazer sessenta anos. Embora seja muito importante e de um carácter admirável, seu pai e eu achamos que minha irmã tem razão e que ele não deve ser sondado.

‑ Eu não poderia me casar com um homem mais velho do que papai! ‑ exclamou Zena.

‑ Vai se casar com quem quisermos ‑ declarou a arquiduquesa, em tom de censura. ‑ Escolhemos, então, o duque de Faverstone, que só tem trinta anos. Sua mãe era prima em segundo grau da rainha e parente distante do tio de Sua Majestade, o duque de Cambridge.

‑ E não há nada de errado nos antecedentes do rapaz ‑ observou o arquiduque.

‑ O que você diz é verdade, Leopold ‑ concordou a mãe. ‑ Mas eu gostaria que Zena se casasse com um homem mais velho, que não só controlaria a frieza do carácter de nossa filha, como também lhe daria senso de responsabilidade em relação à posição de sua família.

‑ Ela aprenderá cedo ou tarde ‑ resmungou o arquiduque.

Gostava muito de sua Segunda filha, achando que se parecia com ele mais do que qualquer outro dos filhos. Assim sendo, estava pronto a defendê‑la das críticas da mãe.

A duquesa favorecia o filho mais velho, mas seu afecto era para o mais moço, que ainda não tinha catorze anos.

Havia qualquer coisa no príncipe Lois que fazia com que parecesse mais inglês do que os irmãos e, portanto, estava muito perto do coração da arquiduquesa.

Era uma mulher fria, educada na Inglaterra com austeridade, em um lar onde era considerado vulgar uma pessoa demonstrar suas emoções.

Devido aos seus vínculos com a realeza, ela se casara com o governante de Wiedenstein. Embora tivesse se apaixonado por ele à primeira vista, sempre achara difícil expressar seu amor ao marido.

Naquele tempo o arquiduque era um romeu romântico, que gostava de mulheres bonitas e tivera muitos casos amorosos, antes de se casar.

Não compreendia a esposa, mas tratava‑a com respeito e chegara mesmo a ter certa afeição por suas qualidades inegáveis.

Teria ficado atónito se soubesse o quanto a arquiduquesa tinha ciúmes das mulheres a quem ele dava atenção e o quanto sofria por saber que ele não admirava sua aparência impotente.

Em todo caso, tinham tido filhos muito bonitos.

A duquesa achava lamentável que suas três filhas tivessem herdado a aparência e o temperamento do pai. E no filho mais velho, o príncipe Kendric, também se observavam mais as características de Wiedenstein do que as inglesas.

Assim sendo, ela esperava que seus filhos mais moços fossem diferentes. Até agora, o príncipe Louis parecia o mais provável a realizar as esperanças da mãe.

Zena reflectia sobre o que a arquiduquesa lhe dissera. Embora achasse que o duque de Faverstone seria um candidato viável, não tinha vontade de se casar com um inglês.

Nunca, nem mesmo quando era pequena, tinha visto no carácter da mãe um traço afectuoso que a fizesse sentir‑se querida e mimada.

Para dizer a verdade, as contínuas repreensões da mãe, os castigos severos que Zena recebera em criança, a maneira com que suas opiniões eram postas de lado, fizeram a jovem acreditar que toda a raça inglesa era arrogante, ditatorial e sem coração.

Quando pensava em se casar, rezava para que seu marido fosse francês.

O pequeno reino de Wiedenstein ficava situado ao oeste da Bavária. Ao norte havia a província de Heidelburg, que pertencia à Prússia, e a oeste, uma pequena fronteira com a região alsaciana francesa.

A maioria da população de Wiedenstein era de origem francesa, casada com bávaros.

Por causa das origens da arquiduquesa, a família sempre se referia aos ingleses, dentro do palácio. Quando estava longe dos ouvidos do pai, Zena dizia que era inevitável que Wiedenstein fosse uma nação de mestiços, já que em sua própria família a avó paterna tinha sido meio húngara.

‑ Todo mundo sabe que é este o motivo de você e eu temos um traço selvagem ‑ dissera Kendric certa vez à irmã.

‑ Não tivemos muita oportunidade de mostrá‑lo ‑ replicou Zena, com ressentimento.

‑ Temos que esperar até crescermos ‑ observou Kendric.

Agora que ele deixara a escola e Zena estava livre da sala de aula, a não ser pela visita dos preceptores, eles iam ficar separados. Zena estava desolada, sabendo que distante do irmão gémeo perdia a metade de si mesma.

Finalmente tiveram licença de sair da sala dos desjejum. Zena teve que ouvir o relatório de Kendric sobre os horrores aos quais seria submetido em um quartel alemão.

‑ Ouvi contar que os cadetes são tratados como se fossem animais ‑ disse ele. ‑ Quando têm um tempo livre, são obrigados a duelar entre si. Quanto maior o número de cicatrizes que têm no rosto, mais orgulhosos ficam.

Zena soltou uma exclamação de horror:

‑ Oh, Kendric, isso não pode acontecer com você

‑ Mas vai acontecer ‑ respondeu ele, sombriamente.

Era um rapaz de um semblante muito bonito. A idéia de vê‑lo desfigurado apavorou a jovem.

Ao se verem livres dos pais, correram para a saleta particular dos dois. Fitaram‑se, desesperados.

Era como se o mundo deles, até então seguro, tivesse ruído sem que houvesse esperança de salvação.

‑ O que vamos fazer? ‑ perguntou Zena. ‑ O que podemos fazer? Não quero ficar longe de você durante um ano inteiro!

‑ Não é só por um ano ‑ corrigiu ele. ‑ É para toda a vida!

Sua irmã soltou uma exclamação:

‑ Terei que casar com aquele duque horrível! Será ainda pior do que tudo o que a pobre Melanie tem que aturar do Georg.

Os gémeos ficaram em silêncio, reflectindo sobre a infelicidade da irmã mais velha. Ela havia se casado com o príncipe herdeiro de Fürstenburgo, que era supostamente um estado independente no norte da Alemanha, mas que estava na realidade sob o domínio da Prússia.

Melanie tinha detestado o príncipe assim que o conhecera, mas o casamento se realizara, conforme o combinado. Quando vinha visitar os pais, Melanie contara aos gémeos o quanto era infeliz.

‑ Abomino Georg ‑ dissera, inúmeras vezes. ‑ É pretensioso, obstinado e tremendamente estúpido!

‑ Oh, Melanie, sinto muito! ‑ exclamava Zena.

‑ Não escuta nada do que os outros dizem. Só ouve a si mesmo, o que faz com que todo mundo, na corte, seja terrivelmente enfadonho e eu tenho a impressão de que estou enterrada viva.

Zena relembrava agora as palavras da irmã, achando que era esse o futuro que a esperava.

Se todos os ingleses fossem como sua mãe, ela ficaria sufocada.

Na realidade, conhecia poucos ingleses, com excepção dos parentes de sua mãe, que de vez em quando se hospedavam no palácio.

A arquiduquesa era a filha mais moça de uma família grande. Seus irmãos e suas irmãs tinham se casado na realeza. Tinham um ar de superioridade, considerou Zena, que nenhum governante da família Wiedenstein jamais teria.

Sensibilizavam‑se apenas quando falavam de cavalos. O que o arquiduque dissera na saleta do desjejum tinha feito a jovem imaginar que o duque de Faverstone seria exactamente igual a eles.

O arquiduque tinha comentado:

‑ Zena, sua mãe sugeriu que eu convidasse o duque de Faverstone no próximo mês, para assistir ao Prix d'Or.

Era a corrida mais importante do ano. Os turistas traziam seus cavalos de todas as partes da Europa para concorrer ao Grande Prémio.

Zena não respondeu e o pai continuou:

‑ Faverstone nos verá em nosso melhor estilo e ficará conhecendo a elite do país. Nós o receberemos de tal modo que ele não terá motivos para nos tratar com condescendência, apesar de ter parentesco com a rainha da Inglaterra.

‑ Você tem motivos para pensar isso, Leopold ‑ comentou a arquiduquesa, na defensiva.

‑ Conheço os ingleses ‑ replicou o marido.

Zena achou que o pai estava dizendo, em voz alta, o que ela também pensava.

‑ O que poderemos fazer para impedir que esses horrores nos aconteçam?.‑ Perguntava a jovem agora ao irmão.

Kendric não respondeu e ela continuou:

‑ É consternador termos que nos separar, além disso, antes, irmos a Ettengen e mastigar aquele horrível idioma alemão.

‑ Também detesto essa língua ‑ observou Kendric. ‑ Pelo que o barão me disse, o professor é ainda mais maçante que ele.

‑ Pode ter certeza disso. ‑ Concordou Zena. ‑ E o professor deve ter uns cento e oitenta anos. Do contrário, não teríamos que ir tomar as lições em casa dele.

O arquiduque dissera que os gémeos deveriam partir dali a três dias para uma aldeiazinha, onde se hospedariam em casa do preceptor, o professor Schwarz, porque ele era velho demais para vir ao palácio.

‑ Vocês serão acompanhados pelo barão Kauflen e pela condessa Beronkasler, que farão com que se comportem e se apliquem nos estudos ‑ ordenara o arquiduque. ‑ Caso contrário, ficarei muito zangado quando voltarem!

Agora, Kendric só considerava os maus momentos que viriam:

‑ Imagine passarmos três semanas com aqueles velhos chatos!

‑ Tenho vontade de fugir ‑ declarou Zena, sombriamente. ‑ O único problema é: para onde?

Houve silêncio. De repente, Kendric disse:

‑ Tenho uma idéia!

Zena fitou‑o, apreensiva.

‑ Se for para termos mais encrencas com mamãe, creio que não aguentarei ‑ disse ela. ‑ Sabe o que aconteceu da última vez em que você teve uma de suas idéias brilhantes.

Disse isto sem severidade, sorrindo.

Os gémeos sempre faziam travessuras, desde pequenos. Kendric, com sua vívida imaginação, era quem planeava as peças. Porém quase sempre eram severamente repreendidos.

Zena obedecia cegamente ao irmão, porque o adorava.

A saleta particular dos gémeos estava sempre em desordem, simplesmente porque os criados tinham desistido de tentar arrumar aquele caos.

As armas de Kendric, as raquetes, os chicotes de montar a cavalo, as bolas de futebol e os tacos de pólo se misturavam com os pincéis, paletas e com os bordados de Zena, que ela considerava um passatempo maçante embora sua mãe fizesse questão disso. Havia ali também os livros que ela apreciava e que aumentavam de número quase diariamente.

As estantes à volta do quarto estavam repletas: viam‑se livros na mesa e até no chão.

Havia flores que a própria Zena tinha apanhado no jardim do palácio e arranjado com uma arte que raramente se via nos outros aposentos.

Viam‑se ali bonecas que ela amara em criança, mas que agora serviam de enfeite, com seus belos vestidos bordados de pedrarias. Isso aliviava a seriedade das paredes de lambris.

Ao observar em volta, Zena achou que quem olhasse a saleta pela primeira vez teria uma visão clara não apenas dos interesses dela e do irmão como da personalidade e do carácter de ambos.

De repente, Kendric soltou uma exclamação, deu um pulo e correu para a porta. Abriu‑a, olhou para o corredor e tornou a fechá‑la.

‑ Só queria ter certeza de que ninguém estava à escuta ‑ disse. ‑ Tenho certeza de que, uma ou duas vezes, uma das criadas ou um lacaio escutaram nossas conversas. Contaram o que ouviram à criada particular de mamãe que, por sua vez, não perdeu tempo em ir dar a informação a ela.

‑ Então, foi assim que ela ficou sabendo da sua bela dançarina, Kendric ‑ comentou Zena.

‑ Não pode ter sido de outra maneira!

Tinha havido um escarcéu, porque a arquiduquesa soubera que Kendric saíra à noite, sozinho.

De um jeito ou de outro, ele enganara as sentinelas ao portão indo ao teatro, onde não somente apreciou a representação de uma bela bailarina russa como a levou para cear, após o espectáculo.

Depois que a casa havia caído por causa desse "comportamento abominável", Kendric achara que a única maneira da mãe ter descoberto suas travessuras era alguém tê‑lo ouvido falar dos encantos da bailarina a Zena, na intimidade da saleta particular.

Por isso quisera certificar‑se agora de que ninguém estava à escuta. Havia também tomado a precaução de falar em voz baixa, sentando‑se ao lado da irmã.

‑ Escute aqui. Tenho uma idéia, mas você precisa me ajudar a cuidar dos detalhes.

‑ Que idéia? ‑ perguntou Zena.

‑ Sabe onde mora o professor?

‑ Sei, se olhar no mapa ‑ respondeu a jovem.

‑ Pois bem, para chegarmos lá temos que fazer uma baldeação na junção de Hoyes.

Zena fitou o irmão, perplexa.

Nos olhos dele, onde houvera desespero, agora brilhava uma expressão animada, como se os planos já o excitassem. Mas Zena ansiava e temia por tais planos.

‑ Você sabe o que acontece em Hoyes ‑ disse o rapaz.

‑ Diga‑me o que é.

‑ Expressos de várias partes da Europa param ali, a caminho de Paris.

O jeito de Kendric falar fez com que a irmã se endireitasse na cadeira e o olhasse, assustada.

‑ O que quer dizer? O que está sugerindo?

Kendric respondeu, lentamente:

‑ Estou imaginando como podemos escapar dos nossos cães de guarda, em Hoyes, e passar uma semana roubado de nossos estudos na cidade mais alegre do mundo.

‑ Está louco! ‑ afirmou Zena. ‑ Se fugirmos eles voltarão para cá imediatamente e dirão a papai, que nos mandará prender.

‑ Não o creio, porque papai nada faria que pudesse causar escândalo ‑ afirmou Kendric. ‑ Por outro lado, podemos fazer algo, Zena, para impedir que aqueles corvos velhos e agourentos lhe contem alguma coisa, com medo de se verem em encrenca.

Havia um brilho nos olhos azuis da jovem.

‑ Está dizendo, Kendric, que acha que podemos ir a Paris, em vez de irmos à casa daquele professor velho e chato?

‑ Não é o que acho que podemos fazer. ‑ Kendric corrigiu. ‑ É o que pretendo fazer!

‑ Creio que papai e mamãe nos matarão.

.‑ Somente se descobrirem.‑ Como é que vamos impedir isso? E suponhamos que alguém nos reconheça?

‑ Depois que chegarmos a Paris ninguém nos reconhecerá, nem saberá quem somos ‑ garantiu Kendric.

‑ Quer dizer que vamos disfarçados?

‑ Claro que vamos? Você não pensa que vou chegar lá como "o príncipe herdeiro, Kendric de Wiedenstein" e permitir que a nossa embaixada não nos deixe fazer nada, além de visitar museus?

‑ Mas, Kendric, é perigoso demais, é abominável!

‑ Só Deus sabe que tenho o direito de fazer alguma coisa abominável, se tiver que passar um ano fazendo continência, batendo calcanhares e obedecendo às ordens ‑ disse Kendric, com amargura.

‑ É crueldade de papai mandá‑lo para tal lugar, Kendric. E garanto que ele foi convencido disso pelo nosso horroroso cunhado!

‑ É o tipo de coisa que Georg acharia divertida.

‑ Mas será que chegaremos a Paris? ‑ perguntou Zena.

Sabia que, se o irmão começasse a falar do cunhado que ambos detestavam, ficariam ainda mais deprimidos.

às vezes Zena ficava acordada, chorando, lembrando‑se do que a irmã estaria sofrendo na companhia de semelhante homem.

Pensando em Georg, imaginou‑se casada com o duque inglês. Como a idéia a horrorizava, disse, vivamente:

‑ Continue com o seu plano de chegarmos a Paris; como faremos isso e quem diremos que somos.

‑ Escaparemos dos corvos velhos em Hoyes ‑ disse Kendric. ‑ Uma vez no expresso, ninguém nos impedirá de chegar a Paris. É verdade que poderão telegrafar nossa descrição, mas sei como evitar isso.

‑ O que vai fazer? ‑ perguntou Zena.

‑ Mais tarde lhe conto ‑ prometeu Kendric. ‑ Ainda não está claro na minha mente.

‑ Então, diga o que faremos quando chegarmos a Paris.

‑ Daí por diante, o príncipe Kendric e a princesa Marie‑Thérèse deixarão de existir.

‑ Então, quem vamos ser?

Kendric fitou‑a, com ar enigmático.

‑ Eu ficaria muito tolhido, se chegasse a Paris com uma irmã que precisasse de um acompanhante...

‑ Seria pior se eu fingisse ser sua esposa ‑ replicou Zena.

‑ Exactamente. E só há uma alternativa.

‑ Qual é?

‑ Você tem que ser a minha chère amie. Levar uma amiguinha a Paris é o mesmo que levar sanduíche a um banquete, mas eu não seria egoísta a ponto de ir a Paris sem você.

Zena soltou uma exclamação:

‑ Como pode pensar numa coisa tão egoísta, tão desleal e tão cruel? Claro que tem que me levar?

Kendric colocou a mão sobre a dela.

‑ Sempre fizemos tudo juntos. Como esta vai ser a mais abominável de nossas travessuras, e nossa última, valerá a pena, mesmo se formos descobertos.

‑ Claro que vai valer ‑ afirmou a jovem, lealmente.

‑ Muito bem. Para falar com franqueza, será um disfarce muito bom.

‑ Que tipo de disfarce?

‑ O papel que você vai representar como minha "amiguinha".

Zena jogou a cabeça para trás e riu.

‑ Oh, Kendric, acha que serei capaz? Pense no que mamãe diria se soubesse!

‑ Rezemos para que jamais venha a saber ‑ replicou Kendric, com firmeza. ‑ Mas você deve compreender que, se passar por uma demi‑mondaine, que é a palavra da moda para esse tipo de mulher, deverá ir comigo a todos os lugares onde as damas não podem ir.

Zena juntou as mãos.

‑ Vai ser emocionante. Mas você terá que me dizer como me comportar. ‑ Fez uma pausa e continuou, em tom provocante: ‑ Tenho certeza de que sabe tudo a esse respeito!

‑ Claro que sei. ‑ Kendric gabou‑se.

‑ E sabe também para onde iremos, em Paris?

‑ Tenho uma idéia mais ou menos certa ‑ respondeu o irmão. ‑ Como você bem sabe, não vou a Paris desde que me tornei adulto. A última vez foi há dois anos, mas meus amigos da escola, muito mais velhos que eu, não falavam de outra coisa. ‑ Sorriu ante as recordações e prosseguiu: ‑ Philippe, cujo pai está na diplomacia, me falou das protegidas de Napoléon, o imperador, e das amiguinhas de todos os estadistas e aristocratas importantes. E elas cobram somas astronómicas por seus serviços.

Zena ficou perplexa.

‑ Que serviços?

Kendric percebeu que se deixara levar por seu entusiasmo e respondeu, vivamente:

‑ Essas mulheres querem ser cumuladas de jóias; da mesma maneira que os homens com os quais elas andam, gostam de exibi‑las aos amigos.

‑ Quer dizer, uma espécie de competição, como quando se quer saber quem possui o melhor cavalo? ‑ perguntou Zena.

‑ Exactamente ‑ respondeu o irmão. ‑ Você bem sabe que mamãe sempre diz que minha aparência é "lamentavelmente teatral"!

Kendric riu.

‑ Ouvi‑a dizer isso, sim, e muitas vezes! É o efeito de seus cabelos e de seus olhos, Zena, mas você nada pode fazer a esse respeito.

‑ Nada mesmo. ‑ Concordou a jovem. ‑ Mas talvez isso seja útil, agora.

Kendric fitou‑a, como se jamais a tivesse visto.

‑ Sabe, Zena, se não fosse minha irmã, acho que ficaria apaixonado por você.

‑ É mesmo, Kendric? ‑ perguntou Zena, vaidosa. ‑ Pois bem, vou procurar não envergonhá‑lo em Paris, meu irmão. Tenho alguns vestidos novos que acho bonitos e suficientemente elegantes.

‑ É melhor enfeitá‑los um pouco mais ‑ aconselhou o rapaz. ‑ Pelo que ouvi dizer, as mulheres de certo padrão se vestem para "abafar". Alguém estava dizendo a papai, um dia desses, que a imperatriz gasta mil e quinhentos francos com um vestido.

‑ Deus do Céu! ‑ exclamou Zena. ‑ Ninguém espera que eu possa competir com isso!

‑ Não, claro que não. ‑ O irmão concordou. ‑ Mas, se levarmos bastante dinheiro, talvez você possa comprar um vestido que não faça feio. Ainda bem que você possui jóias.

‑ Refere‑se às que minha avó me deixou? ‑ perguntou Zena. ‑ Estão no cofre, mas creio que darei um jeito de apanhá‑las.

‑ Não vou parecer um homem generoso, a não ser que você consiga mostrá‑las em Paris. ‑ Depois, olhando‑a atentamente, observou: ‑ Você ficará muito bem, se pintar os cílios e usar pouco ruge e pó. Afinal de contas, nem todos os homens têm um milhão de francos para gastar com uma mulher.

‑ É isso o que costumam gastar? ‑ perguntou Zena, em voz baixa.

‑ Ouvi falar de uma mulher chamada La Paiva, com quem os homens gastam milhões de francos ‑ comentou o rapaz.

‑ Por quê? É assim tão bonita?

Kendric achou que a irmã era tão ingénua que seria difícil responder às perguntas dela sem explicações embaraçosas.

Por outro lado, conforme Zena dissera, não podia ser cruel a ponto de não levá‑la para Paris.

Com seu habitual optimismo, achou que as coisas se ajeitariam, duma maneira ou doutra.

Se a irmã descobrisse o motivo do comportamento e as aparências das cortesãs no meio das circunstancias, não teria importância; mas, se agora lhe contasse o mínimo possível, ela provavelmente não entenderia a realidade da vida daquelas mulheres.

Para dizer a verdade, ele também não sabia grande coisa a esse respeito.

Tivera um ou dois pequenos casos amorosos, um deles com uma bailarina, antes que o proibissem de vê‑la novamente; e um outro que não pudera durar muito, quando ele estava na escola.

Seus pais ficariam horrorizados, se soubessem que seus colegas mais velhos se consideravam homens. E havia algumas jovens mulheres na cidade prontas a lhes dizer que o eram.

Mas Kendric sabia que esses casos eram muito diferentes dos métodos usados pelas cortesãs, rainhas nas suas profissões, com os quais dominavam Paris.

As histórias sobre as extravagâncias delas e a maneira com que eram festejadas nada perdiam com a repetição.

No último ano, Kendric tivera um desejo irresistível de visitar Paris. Inúmeras vezes sugerira isso ao pai. Mas o arquiduque dissera:

‑ Gostaria muito de levá‑lo, meu rapaz, mas sabe o barulho que sua mãe faria se eu fizesse essa viagem por prazer. E, no momento não posso apresentar uma desculpa válida. ‑ Vendo o desapontamento do filho, sorrira, compreensivo. ‑ Escute o que vamos fazer, Kendric. Espere mais um ano. Aí, sua mãe não terá mais jurisdição sobre você e faremos essa viagem, de um jeito ou de outro. Não nego que também eu gostaria de ir. ‑ Soltando um suspiro, continuara: ‑ Muitas vezes fico aqui sentado, imaginando se La Castiglione ainda está bonita como dizem. Sei que agora é amante do imperador.

‑ Ela foi um dos seus "amores", papai?

Por um momento, pensou que o pai não fosse responder. Depois, o arquiduque dissera:

‑ Por muito pouco tempo. Embora quando moça fosse a coisinha mais linda do mundo, na realidade era um pouco maçante. ‑ Rira acrescentando: ‑ Mas a verdade é que les expertes es Sciences galantes foram feitas para serem visitadas e amadas. E o que mais se poderia exigir?

‑ Sim, o que mais? ‑ concordara o rapaz.

"Se formos apanhados, papai compreenderá", Kendric pensou.

Mas sabia que nem o pai nem a mãe jamais o perdoariam por levar Zena a um lugar que a arquiduquesa considerava um "poço de iniquidades".

Kendric sabia, sem que a irmã o dissesse, o quanto Zena abominava o casamento, fosse com quem fosse, e principalmente com um inglês!

Os gémeos lamentavam a sorte de Melanie e o facto de seu marido ser um homem desprovido de sensibilidade ou bondade.

Do ponto de vista social era um casamento brilhante, pois Fürstenburgo era um país maior e mais importante do que Wiedenstein e Melanie um dia seria rainha.

Certa vez, Zena dissera ao irmão gémeo:

‑ Quem, em seu juízo perfeito, quer ser rainha, a não ser no baralho? E, se fosse um homem, seria preferível ser o valete!

Kendric rira e concordara com a irmã. Agora achava que, assim como nenhum rapaz no seu juízo perfeito desejaria ir ao quartel de Düsseldorf, nenhuma jovem com vivacidade e a bondade de Zena gostaria de se casar com um inglês.

‑ Nós dois temos direito, antes de qualquer sacrifício, a uma visita a Paris ‑ disse a si mesmo, com firmeza.

E, se a consciência lhe doía, estava resolvido a não se importar com isso.

 

No trem que os levava para Hoyes, Zena percebeu que seu coração batia acelerado, de nervosismo. Não conseguia ler o livro que a condessa Beronkasler comprara para ela, como leitura edificante.

A viagem da capital a Ettengen era apenas de duas horas e o arquiduque não se dera ao trabalho de providenciar um trem real para os filhos.

Um vagão tinha sido reservado para eles. Na despedida, compareceram um dos oficiais de gabinete do rei, o chefe da estação e vários funcionários da ferrovia.

Na realidade, os gémeos estavam viajando incógnitos. Era uma desculpa para que o arquiduque não mandasse uma escolta militar com eles no trem, nem colocasse sentinelas à porta da casa do professor, em Ettengen.

Assim que deixaram a capital, Kendric passou a ser o conde de Castelnaud e Zena a condessa. Na realeza, esse era um dos títulos menores do arquiduque.

Quando o trem saiu da estação, Kendric olhou para a irmã, de um modo significativo. Ela compreendeu que a fuga dos dois dependia não apenas de seguir as instruções do irmão à risca, como também da sorte.

Se o expresso de Paris se atrasasse, o trem vagaroso no qual os irmãos viajavam talvez saísse de Hoyes antes dele. Os gémeos seriam então levados ao professor, que os esperava para lhes proporcionar três semanas maçantes.

Nos dias anteriores à partida, Zena não tinha falado de outra coisa com o irmão. Sabia também que Kendric procurava muito seu amigo francês, Philippe, que era uma verdadeira mina de informações.

Tanto a condessa como o barão eram idosos. Instalando‑se confortavelmente no vagão, não se esforçaram por conversar. Fecharam os olhos e logo cochilaram.

Zena e Kendric não tinham certeza de que eles dormiam pesado e, portanto, não conversaram. Mas, como se conheciam bem, cada um sabia o que o outro pensava.

Depois de uma hora e um quarto, o trem entrou lentamente na estação de Hoyes.

Tinham parado em três estações para pegar outros passageiros, em geral fazendeiros e suas esposas, ou estudantes. Na última dessas estações, Kendric dissera:

‑ Vou espichar as pernas

O barão Kauflen abrira os olhos.

‑ Deseja que eu acompanhe Vossa Alteza Real?

‑ Não, claro que não ‑ tinha respondido o rapaz. ‑ Vou andar depressa até o fim da plataforma e voltar em seguida. Fique aqui, barão.

O velho soltara um suspiro de alívio e Kendric descera.

Zena sabia que ele tinha ido providenciar para que a bagagem dos dois fosse retirada do vagão bagageiro e colocada no expresso de Paris.

A bagagem tinha sido outro problema. Seguindo as instruções do irmão, Zena achou que se saíra com muita inteligência.

‑ Ninguém espera que você leve seus melhores vestidos de baile e outras roupas finas para Ettengen ‑ dissera Kendric. ‑ Deve pegar outra mala, que você mesma fará. Quando chegarmos à estação anterior a Hoyes, vou tirar a etiqueta e colocar uma outra, que levarei no bolso.

‑ Oh, Kendric, as coisas se complicam cada vez mais. Minha criada vai estranhar que eu mesma faça a mala.

‑ Precisa arranjar uma desculpa ‑ sugeriu o rapaz. ‑ Seja como for, Maria é muito dedicada a Você. Se lhe pedir que guarde segredos, Zena, não creio que ela vá mexericar com os outros criados e, muito menos, com mamãe.

Zena sabia que isso era verdade. Dissera a Maria que queria levar alguns dos seus vestidos bonitos, caso fosse convidada para algum baile.

‑ Por favor, Maria, não comente isto com ninguém, porque, conforme lhe disse, Sua Alteza Real e eu vamos a Ettengen para estudar. Mas três semanas é muita coisa para a gente ficar olhando só para livros!

A criada tinha concordado.

‑ Alteza, minha mãe sempre dizia: "A mocidade é uma só": nada farei que estrague o seu prazer.

‑ Tenho confiança em você, Maria.

A empregada fizera outra mala, com uma prática desconhecida por Zena. Insistira também para que a moça levasse duas chapeleiras, sendo que uma delas continha os chapéus que Zena só usava em solenidades públicas.

Quando voltou para o vagão, após a suposta caminhada. Kendric piscou para Zena. Ela compreendeu que o irmão fora bem‑sucedido, trocando as etiquetas das malas e dando uma gorjeta ao guarda, com a certeza de que a bagagem seria transferida para o expresso de Paris.

Mas, quando o trem em que eles se achavam parou na estação de Hoyes, não havia sinal do expresso.

Várias pessoas desceram, Kendric abriu a janela e espiou para fora, como que para observá‑las.

Zena teve medo que os planos dos dois fossem por água abaixo no último momento.

Depois, viu Kendric virar a cabeça, alerta, e não foi preciso dizer que o expresso estava entrando na estação.

Vários carregadores se aproximaram do trem recém‑chegado, que logo seguira para Paris.

Kendric bocejou, escandalosamente.

‑ Acho maçante ter que esperar ‑ disse ele, a ninguém em particular. ‑ Vou até a banca de jornais, ver se há algum que me interesse.

‑ Quer que eu faça isso, Alteza? ‑ perguntou o barão.

‑ Não, obrigado, eu mesmo quero escolher ‑ respondeu Kendric, num tom indiferente. Depois desceu do trem, deixando a porta aberta.

Zena compreendeu que era aquele o momento, e deveria se preparar.

Dali a um segundo, levantou‑se e foi para a janela, fingindo observar o movimento na plataforma.

Viu que o irmão lhe fazia um sinal e disse à condessa:

‑ Sua Alteza Real está me chamando. Não demoro.

Colocou uma carta que estava na sua mão sobre o assento e desceu para a plataforma.

Ouviu a condessa repreendê‑la, mas correu ao encontro do irmão. Kendric segurou a mão de Zena e os dois dispararam na direcção do expresso de Paris.

Os carregadores estavam fechando as portas do trem e o guarda estava com o apito na boca.

Kendric abriu a porta do primeiro vagão e empurrou Zena para dentro, fechando rapidamente a porta atrás deles.

O trem já se movia.

Os dois se atiraram nos bancos, ofegantes demais para falar.

Depois, quando o trem ganhou velocidade, compreenderam que tinham sido bem‑sucedidos. Haviam conseguido escapar e seus acompanhantes nada poderiam fazer!

Aquele vagão estava vazio. Zena adivinhou que, enquanto esperava para fazer um sinal, Kendric o escolhera com cuidado.

Entreolharam‑se e desataram a rir.

‑ Reconheça que sou um génio ‑ disse ele. ‑ Tudo correu sobre rodinhas! Nossas malas estão no trem. Vi o próprio guarda carregando‑as. E cá estamos, embarcando em uma aventura que irá fascinar nossos netos, quando lhes falarmos sobre isto.

Zena riu.

‑ Não estou preocupada com meus netos e sim com papai e com mamãe ‑ replicou ela.

‑ Não há com o que se preocupar ‑ disse Kendric, num tom tranquilizador. ‑ Quando o barão ler a carta que escrevi, não terá coragem de falar disso com papai. Terá medo de perder o emprego.

‑ O que foi que escreveu? ‑ perguntou a irmã.

‑ Escrevi que resolvemos ficar com um dos meus amigos, durante uma semana, antes de começarmos as lições. Disse que estaremos em absoluta segurança e que não precisarão se preocupar connosco.

‑ Ficarão desnorteados ‑ declarou Zena.

Como se não a tivesse ouvido, o rapaz continuou:

‑ Disse ainda que se contarem a papai ele ficará furioso, não apenas connosco mas com eles também, por serem negligentes deixando‑nos escapar.

‑ Pobrezinhos! Não tiveram a mínima chance ‑ observou a jovem.

‑ Seja como for, papai não aceitaria isso como desculpa. E sei o que mamãe diria! Tenho certeza, portanto, de que eles vão ficar calados.

‑ Espero que sim ‑ respondeu Zena, nervosa.

‑ Mesmo que voltem ao palácio e contem a papai que nos perderam, ele vai ter dificuldades em nos encontrar em Paris. Parafaseando o ditado, seria o mesmo que procurar duas agulhas num palheiro.

‑ Neste momento, só desejo saber quem somos e que nomes vamos usar ‑ pediu Zena.

Ao dizer isso, abriu a bolsa e tirou dali um pontinho.

‑ Acho que está na hora de modificar minha aparência ‑ acrescentou.

‑ Tem razão.

‑ Mamãe ficou admirada de eu usar um vestido tão elegante para ir a Ettengen. ‑ Zena deu uma risadinha e disse, ainda: ‑ Repreendeu‑me pela extravagância e disse que este vestido e a peliça deveriam ser usados quando o duque de Faverstone chegasse.

Estava falando com despreocupação, mas quando pronunciou o nome inglês seu rosto anuviou.

‑ Esqueça‑se dele, durante a próxima semana ‑ recomendou Kendric, vivamente. ‑ Lembre‑se apenas de que é minha chère amie e que não precisa se casar com ninguém.

‑ Como essas amiguinhas têm sorte ‑ disse Zena, baixinho.

Olhou‑se no espelhinho que estava em cima do banco e desamarrou as fitas do chapéu, sob o queixo.

Tinha penteado os cabelos de um modo mais elaborado do que de costume, com cachos caindo na nuca, conforme a última moda.

Wiedenstein se orgulhava de não ficar por baixo de Paris, em matéria de moda. Como muitos dos seus habitantes tinham um gosto francês, as costureiras acompanhavam a última moda da capital da França, ao passo que os cabeleireiros sempre estavam prontos a apresentar novos estilos de penteados às suas freguesas.

A cabeleireira que tinha trabalhado para o palácio durante vinte anos morrera, e seu filho ficara no lugar, decidindo que os penteados feitos na princesa Marie‑Thérèse seriam a sua melhor propaganda.

A arquiduquesa protestara ao ver o penteado que ele tinha feito em Zena para a viagem, pois achava que o cabelo dela já era bastante vistoso, devendo ser penteado de um modo mais convencional.

Mas o arquiduque apoiara a filha, quando Zena dissera:

‑ Não quero parecer caipira, mamãe, e tenho certeza de que você não deseja que a sua sorte seja sem graça e sem vida como a da coitada da Melanie.

Sabia que seus pais tinham achado suas visitas ao palácio de Fürstenburgo extremamente maçantes. Com sua maneira despachada, o arquiduque havia dito:

‑ Meu Deus! Se acabássemos assim, eu abdicaria!

A arquiduquesa ficara contrariada com aquela franqueza, mas calara‑se, e o estilo do penteado de Zena fora esquecido.

Olhando agora para a irmã, Kendric achou que com aquele vestido de seda, que acompanhava a última moda, com a saia arrepanhada atrás cheia de franzido, Zena poderia facilmente passar pela chère amie que pretendia ser.

Como se adivinhasse os pensamentos do irmão, ela virou‑se para ele. Kendric notou que a irmã havia aplicado batom nos lábios, tendo também empoado o rosto alvo e acetinado.

‑ Que tal? ‑ perguntou a moça.

‑ Sensacional ‑ respondeu o irmão. ‑ Para dizer a verdade, você nem parece que está representando, além de ficar muito bonita!

‑ Obrigada! Quando chegarmos a Paris, vou pintar os cílios. Não posso fazer isso no trem, porque a tinta poderia escorrer e entrar nos meus olhos! ‑ Sentou‑se em frente ao irmão e continuou: ‑ Agora me conte para onde vamos e o que pretende fazer.

‑ Em primeiro lugar, permita que me apresente: visconde de Villerny ‑ disse Kendric, com tom dramático.

Zena encarou‑o.

‑ Mas... o visconde existe!

‑ Sim, eu sei. ‑ Kendric concordou. ‑ Por isso será mais inteligente da minha parte tomar a personalidade dele.

‑ Sei que o actual visconde está no Oriente ‑ disse Zena. ‑ Mas suponhamos que alguém o conheça pessoalmente?

‑ Acho pouco provável ‑ replicou Kendric. ‑ E você sabe tão bem quanto eu que os franceses são uns grandes senobes e dormem com o Almanach de Gotha embaixo do travesseiro. Se eu desse um nome falso, como pretendia a princípio, talvez logo descobrissem que eu era um impostor.

O falecido visconde de Villerny havia sido amigo do pai deles.

Tinham se distinguido em seu campo de trabalho, passando a vida coleccionando conchas de diversos tipos e escrevendo livros sobre elas que só eram disputados pelos conquiliologistas.

Devido à fama mundial de suas colecções, as crianças do palácio frequentemente tinham licença de ir visitá‑lo, para ver suas últimas aquisições.

O que as encantavam mais que as conchas era o facto de o visconde ser um gourmet que lhes presenteava com deliciosos doces. E, embora se tratasse de crianças, insistira para que tomassem com ele um copo de vinho.

Quando o visconde havia morrido, dois anos antes, Zena ficara realmente triste.

Seu filho herdou o título e, naturalmente, a colecção de conchas. Mas preferia morar no Oriente, onde tinha estranhos interesses, dos quais se falava em voz baixa, em Wiedenstein.

Ao considerar isso agora, Zena achou que o irmão tinha razão em adoptar um título que não seria discutido. E era pouco provável encontrar alguém que conhecesse o visconde.

‑ E quem sou eu? ‑ perguntou Zena.

‑ Você, minha cara, não tem grande importância ‑ declarou Kendric. ‑ Se bem que muitos homens vão olhar para você, e mais de uma vez! ‑ Viu os lábios vermelhos da irmã sorrirem e acrescentou, vivamente: ‑ Terá que se comportar, Zena! Sabe tão bem quanto eu que não tenho o direito de envolvê‑la nessa aventura. Se você se meter em encrencas, só Deus sabe o que me acontecerá quando papai ficar sabendo de tudo!

‑ Por que haveria eu de me meter em encrencas? ‑ perguntou a jovem. ‑ Claro que me comportarei! Só o que desejo é ver Paris e me divertir.

Ocorreu a Kendric que divertimento é o que não faltava em Paris, mas era tarde demais para se arrepender. E, conforme dissera antes, seria crueldade deixar a irmã gémea para trás e ir se divertir sozinho.

‑ Estive pensando em um nome para você ‑ disse ele. ‑ Deve ser teatral.

‑ Então, posso conservar meu primeiro nome.

‑ Claro que pode! Zena é apropriado. Não quero arriscar‑me a não obter resposta quando me dirigir a você.

‑ Tem razão ‑ a jovem concordou. ‑ E o sobrenome?

‑ Pensei em Beauchamp.

‑ Beauchamp significa "belo campo" ‑ disse Zena. ‑ É interessante, mas acho que Bellefleur seria melhor.

‑ Claro! Tem razão ‑ respondeu Kendric.

Ela deu uma risada.

‑ Mademoiselle Zena Bellefleur às suas ordens, monsieur!

Estava tão bonita que o irmão mais uma vez ficou apreensivo sobre o impacto que ela causaria em Paris.

Lembrou‑se, depois, que era mais uma cidade onde viviam as mulheres mais bonitas, mais notórias e mais escandalosas da Europa.

"No meio delas, Zena passaria despercebida", disse a si mesmo.

Devido à velocidade do expresso, a viagem de Hoyes a Paris demorava apenas duas horas. Quando eles pararam na estação enorme, Zena teve a impressão de entrar num mundo novo. Nunca se sentira tão excitada, na vida.

Pegaram as malas que tinham as etiquetas: "Propriedade do visconde de Villerny.

Um carregador colocou‑as em um carro

Quando o carro seguiu pelas ruas de calçamento de pedra, Zena viu casas altas e cinzentas, de venezianas fechadas e os cafés nos bulevares, com fregueses sentados às mesas nas calçadas. Teve a impressão de que o pano se erguia para que fosse representado um drama fascinante.

Soube que o irmão, tão eficiente, tinha providenciado até acomodações para eles.

‑ Philippe tem um amigo que possui um apartamento muito confortável, na Rue St. Honoré ‑ disse ele. ‑ O amigo está na Itália actualmente e disse a Philippe que, sempre que quisesse vir a Paris, poderia usar o apartamento.

‑ Então Philippe o ofereceu a nós? ‑ perguntou Zena.

‑ Não apenas fez isso, como escreveu para a zeladora, avisando que seríamos seus hóspedes e que ela deveria fazer tudo para o nosso conforto.

‑ Que amável! ‑ exclamou a jovem. ‑ É uma sorte vocês serem amigos.

‑ Sempre achei que um dia esta amizade seria proveitosa ‑ confessou Kendric.

‑ Temos que fazer alguma coisa por ele, quando voltarmos ‑ sugeriu Zena.

Viu, pela expressão do irmão, que ele teria que esperar um ano, antes que pudesse receber seus amigos, ou retribuir a gentileza de Philippe, fosse como fosse.

Não querendo deprimi‑lo, Zena mudou logo de assunto, apontando para o novo edifício da Ópera, que não tinha sido terminado na época da sua última visita a Paris. Logo estavam passando pela Rue de la Paix, onde ficavam os costureiros importantes, inclusive o famoso Frederick Worth.

‑ É aqui que quero comprar um vestido ‑ disse a moça, fascinada.

‑ Primeiro precisamos ver quais serão nossas despesas ‑ lembrou Kendric, em um tom prático. ‑ Trouxe muito dinheiro comigo, mas sei que a vida em Paris é cara.

‑ Pelo menos, não vamos ter que pagar aluguer ‑ lembrou Zena.

‑ Não. Mas, se quisermos nos divertir, vamos ter que receber, também. Philippe já escreveu para alguns amigos.

‑ Disse quem somos? ‑ perguntou Zena.

‑ Não, claro que não! ‑ respondeu Kendric. ‑ Disse apenas que sou o visconde de Villerny, que mora em Wiedenstein e vai visitar Paris em companhia de uma amiguinha.

Zena riu.

‑ Oh, Kendric, você é maravilhoso! Ninguém mais poderia ter planeado tudo de um modo tão inteligente, nem tão excitante!

‑ Isso é o que veremos ‑ respondeu ele, cautelosamente. Mas a irmã percebeu que seus olhos brilhavam.

O apartamento era encantador. Ficava no primeiro andar de uma casa grande que, disse Kendric, estava situada na melhor parte da Rue St. Honoré.

Havia uma sala de visita grande, três dormitórios e, para surpresa de Zena, uma cozinha pequena.

‑ Por que o dono haveria de querer uma cozinha? ‑ perguntou ela. ‑ Com certeza faz as refeições fora!

‑ Creio que às vezes deve achar mais cómodo jantar em casa ‑ respondeu Kendric. ‑ E, se a caseira não quer cozinhar, garanto que ele tem uma chère amie que faz com prazer.

Seus olhos brilharam, ao dizer aquilo, Zena disse:

‑ Sabe muito bem que sou uma óptima cozinheira, mas não tenho a mínima intenção de cozinhar, enquanto estivermos em Paris! Quero ir a todos os bons restaurantes, nem que seja só para contradizer mamãe quando diz que a realeza não deve frequentá‑los!

‑ Iremos aos mais famosos ‑ prometeu Kendric. ‑ Tenho uma lista.

‑ Então, o que estamos esperando? ‑ perguntou a jovem.

‑ Estou esperando que você troque de roupa ‑ respondeu Kendric. ‑ E não há pressa. Ninguém come cedo em Paris, de modo que você pode esquecer os seus hábitos provincianos.

Zena fez uma careta para o irmão e foi para o quarto que escolhera para si, que era o maior e o mais atraente. Encontrou ali uma mocinha que calculou ser filha da zeladora. A moça estava desfazendo a mala e lhe disse:

‑ M'mselle tem vestidos muito bonitos! Vai ao baile dos Artistas?

‑ É esta noite? ‑ perguntou Zena.

‑ Oui, oui, m'mselle. E toda Paris aprecia o baile mais alegre e mais barulhento do ano. Todo mundo estará lá, com excepção, talvez, da imperatriz, que não o aprova. ‑ Fez uma pausa. Notando que Zena a ouvia atentamente, continuou: ‑ O imperador vai, na certa! Gosta de ver as mulheres bonitas que fazem com que cada baile seja melhor do que o anterior.

Zena saiu correndo do quarto e atravessou a saleta. Abriu a porta do quarto do irmão e disse:

‑ Kendric, sabia que o Baile dos Artistas é hoje? Por favor, vamos?

‑ Claro que vamos! Não lhe contei nada, porque queria fazer uma surpresa.

Zena olhou para o irmão, que tinha acabado de tirar o paletó e a gravata. Pondo os braços à volta do pescoço de Kendric, ela falou, alegre:

‑ Oh, você é maravilhoso! Quem poderia ter um irmão mais fabuloso que eu?

Kendric sorriu. Depois, vendo que a porta estava aberta, contraiu as sobrancelhas.

‑ Cuidado! Esqueceu que não sou seu irmão? Mesmo quando estivermos a sós, precisa ter cuidado.

‑ Desculpe. Foi estupidez minha ‑ disse Zena, contrita.

‑ Creio que não houve mal, mas precisamos ter cautela. Não podemos despertar a mínima suspeita. Quando olho para você, tenho certeza de que muitos homens vão ficar curiosos sobre essa minha amiga misteriosa.

A moça beijou‑o na face.

‑ Como você é bonito, garanto que também despertará o interesse de muitas mulheres.

‑ Está aí uma coisa que eu esperava ouvir ‑ respondeu o irmão em tom complacente.

‑ Você é terrivelmente convencido! ‑ Zena brincou.

Desejando aprontar‑se logo, voltou para seu quarto.

Conforme Kendric dissera, não havia pressa. Mas, depois de ter desarrumado as malas, e de ter tomado banho, penteado os cabelos e feito a maquiagem, três horas se tinham passado.

Usou um vestido que a arquiduquesa tinha desaprovado quando Zena o comprara, por achar muito ousado para uma jovem.

Era uma cópia de uma das criações de Frederick Worth que a costureira de Wiedenstein tinha visto quando estivera em Paris, tendo trazido o mesmo tecido usado pelo grande costureiro.

O tom predominante era azul, com enfeites prateado, e acentuava o vermelho‑dourado do cabelo de Zena, fazendo com que seus olhos parecessem mais brilhantes do que o costume.

Não era de se admirar que ela tivesse olhos azuis, já que tanto seu pai como sua mãe tinham olhos dessa cor.

Mas os de Zena eram da cor das gencianas, que ela vira nas montanhas da Suíça. A combinação dessa cor com a pele branca e os cabelos de um ruivo‑dourado era sensacional, ou então, conforme dizia a arquiduquesa, "lamentavelmente teatral".

Zena tinha pintado os cílios para que parecessem mais compridos do que já eram, e colocado batom nos lábios.

Feito isso, sentiu que a princesa Marie‑Thérèse tinha desaparecido e que em seu lugar havia uma demi‑mondaine, expressão que ela sabia que jamais iria manchar os lábios de sua mãe.

Não sabia bem por que as demi‑mondaines de Paris eram consideradas abomináveis.

Acreditava que eram actrizes, lembrando‑se de que sua mãe sempre dizia, em tom firme: "Nenhuma mulher decente se exibe em público, ou permite que qualquer pessoa pague para vê‑la".

Quando Zena e Kendric entraram no Café Anglais, que Kendric disse ser o restaurante mais em moda de Paris, Zena teve a impressão de que entrava em um palco.

Era muito grande, o que ela não esperava. Havia ali inúmeras salas particulares, que ela não compreendeu bem para que serviam.

Le Grand Seize, onde jantaram e que ficava no andar de baixo, não estava cheio quando eles entraram, mas começou a chegar gente cada vez mais, a ponto de não ficar uma única mesa desocupada.

Foi então que Zena compreendeu por que o irmão lhe recomendara que se embonecasse, para ficar o mais bonita possível.

Nunca tinha imaginado que as mulheres pudessem ter vestidos tão sensacionais, nem usar tantas jóias.

Olhava para uma e para outra, quando as via entrar vindo do vestíbulo; as anquinhas dos vestidos sacudindo‑se como as ondas do mar.

Os cabelos caíam em longos cachos, sobre as nucas brancas. Os colos e braços nus cintilavam de jóias.

Kendric tinha encomendado algumas das especialidades da casa; Zena achou que era a comida mais deliciosa que provara. Mas era difícil apreciar o prato, pois só desejava olhar em redor.

‑ Gostaria de saber quem são essas pessoas ‑ disse ao irmão.

‑ Logo saberemos ‑ respondeu ele. ‑ Encontrei vários convites à minha espera, no apartamento. E os amigos de Philippe parecem ter prazer em nos receber para almoçar, jantar e, naturalmente, cear.

O modo com que disse a última palavra fez com que Zena o fitasse, com ar indagador.

‑ Há alguma coisa especial a respeito de ceias?

‑ Claro que há ‑ respondeu o irmão. ‑ É aí que veremos as luzes brilhantes de Paris e visitaremos os lugares aonde nenhuma "moça decente" vai.

‑ Parece emocionante, mas hoje à noite vamos ao baile ‑ disse Zena.

‑ Vamos nos encontrar com alguns amigos de Philippe, em um camarote. Mas previno‑a de que talvez seja turbulento, por isso, não se surpreenda.

Era tudo tão excitante, que a jovem não sabia se queria ficar no Café Anglais, onde havia tanto o que ver, ou se era preferível ir ao baile.

Finalmente, quando achou que estava ficando tarde, embora Kendric risse dela quando a ouviu dizer isso, saíram para ir ao baile. Zena achou que não havia ninguém mais feliz que ela. Mesmo que seu futuro estivesse reservado ao duque, que devia ser um homem maçante, ela teria estas recordações fabulosas.

Chegaram ao baile dos Artistas. As luzes, a música, as danças aloucadas de centenas de convidados eram estonteantes.

Foram levados para a Segunda fileira de camarotes. Kendric logo encontrou aquele onde se achavam os amigos de Philippe.

Obviamente, eles estavam esperando Zena e Kendric e os receberam com tal exuberância que Zena achou exagerada, até perceber que os homens tinham consumido uma grande quantidade de bebidas, a julgar pelo número de garrafas vazias que estavam em uma mesinha junto à porta.

‑ Entrem! Entrem! ‑ gritaram. ‑ Philippe nos recomendou tomar conta de vocês, o que nos dá imenso prazer.

Kendric apertou a mão dos homens e foi apresentado a quatro mulheres que ali estavam. Depois, ele apresentou a irmã.

Zena percebeu que as mulheres estavam demasiadamente pintadas e muito pouco vestidas. Na realidade, ficou embaraçada com o tamanho dos decotes. E o jeito de sentar‑se, expunham as pernas com meias de seda.

Duas delas beijavam Kendric efusivamente. Ao sentar‑se, uma colocou o braço à volta do pescoço dele.

‑ É muito bonito, mon cher, e adoro homens bonitos ‑ disse ela.

"É um comportamento estranho, mas não devo ser crítica", Zena disse a si mesma. Era aquele o mundo que ela queria conhecer. O que quer que acontecesse, não deveria deixá‑la constrangida.

Um dos homens entregou‑lhe uma taça de champanhe. Depois serviu os outros, enchendo as taças até à borda.

Lá embaixo, no salão de dança, Zena viu que muitas pessoas estavam usando fantasias. Calculou que fosse estudantes, que mais tarde apresentariam quadros e carros alegóricos feitos nos diferentes centros culturais aos quais pertenciam.

Zena tinha lido sobre o baile, em jornais e revistas. Embora tivesse tentado fazer uma idéia do que era, a realidade agora a deslumbrava.

Era de facto muito alegre. A banda tocava cada vez mais alto e mais depressa. Todo mundo rodopiava numa valsa e Zena quase ficou tonta, só de observar.

Um dos homens do camarote, que Zena ouviu ser chamado de Paul, embora não tivesse a mínima idéia do sobrenome, disse que queria dançar. Seus amigos concordaram em descer e juntar‑se aos outros pares.

Kendric teria ficado ali, mas a mulher que o beijara fez muchocho provocante e disse que queria dançar com ele.

‑ Quero sentir seus braços à minha volta ‑ disse ela. ‑ E que melhor desculpa pode haver.

‑ Garanto que não precisa de desculpas ‑ respondeu Kendric.

Saíram do camarote com os outros. Zena se viu sozinha, com um rapaz que estava com cara de doente.

‑ Está bem? ‑ perguntou ela, quando o viu sentar‑se com cuidado na cadeira.

‑ Logo vou ficar... ‑ respondeu ele, com a voz enrolada. ‑ Vou... tomar um pouco de ar fresco. Está muito quente... aqui.

Saiu do camarote e ela ficou só.

Zena estava plenamente satisfeita de poder debruçar‑se e ficar observando os dançarinos. Viu Kendric. Seu par estava com seus braços à volta do pescoço dele.

Havia homens de armadura, ou usando apenas uma pele de animal, mulheres em traje grego indecentemente transparentes, inúmeros pierrôs e algumas freiras não muito convincentes.

Era fascinante. Zena não queria perder nada, nem mesmo as brigas que pareciam acontecer em vários pontos do salão, quando um homem queria dançar com uma mulher que já tinha par e este não estava interessado em largá‑la.

Um homem que foi mais importuno do que os outros recebeu um soco no queixo e esparramou‑se no chão. Zena deu uma risadinha.

Nisto, uma voz a seu lado disse:

‑ Vejo que está achando graça, mademoiselle, e isto não me surpreende. Sempre achei que não há espectáculo mais extraordinário do que este aqui.

Zena virou a cabeça, admirada. Percebeu que quem lhe dirigia a palavra era um cavalheiro, sentado no camarote pegado.

Havia apenas uma divisão fina entre os dois camarotes e a borda de veludo vermelho formava uma só peça.

O cavalheiro era moreno e Zena percebeu que tinha ombros largos e parecia alto. Era muito bonito, mas de um modo diferente do arquiduque e de Kendric.

Dirigira‑se a Zena em francês, mas era diferente dos três homens que eram amigos de Philippe.

A moça achou que era pelo facto de ser mais velho e mais distinto.

Percebendo que ele esperava uma resposta, Zena disse:

‑ É a primeira vez que venho a este baile e acho‑o fascinante.

‑ E é a sua primeira visita a Paris?

Ela ia responder que fazia muitos anos que não vinha à capital, mas achou estranha a pergunta que ele lhe fizera.

Afinal de contas. Se ela havia falado em francês, por que haveria ele de achar que não era francesa?

Depois, lembrou‑se da recomendação de Kendric:

‑ Quando uma pessoa está disfarçada é sempre mais sensato dizer a verdade, na medida do possível.

‑ O que quer dizer com isso? ‑ perguntara Zena.

‑ Você não parece francesa ‑ respondeu ele, simplesmente.

‑ Tem muita coisa de papai. Por outro lado, não parece bávara. Mas, em Wiedenstein, há vários tipos de mulheres, francesas ou bávaras.

A jovem rira.

‑ Sim, é claro. Estou apenas nervosa, com medo de ser acusada de impostora, e prefiro dizer que sou de Wiedenstein.

‑ Neste ponto estamos de acordo ‑ replicou Kendric. Ambos riram.

Agora, ali no camarote, Zena disse, após uma longa pausa:

‑ Creio que deveria me ofender por você não julgar que sou bastante elegante para ser francesa!

O cavalheiro riu.

‑ Garanto que não tive a intenção de insultá‑la. Na realidade, se está querendo elogios, digo‑lhe que é muito bonita. A mulher mais bonita deste baile.

‑ Obrigada.

"Não devo parecer constrangida e sim comportar‑me como se estivesse habituada a receber elogios todos os dias", Zena disse a si mesma.

‑ Deixe‑me ainda dizer que seus cabelos têm a cor mais incomum e mais fascinante que se possa imaginar. Como é que você pode ser tão original na cidade da originalidade?

Zena riu.

‑ Não sei se isso é um outro insulto. Talvez você esteja sugerindo que a cor de meus cabelos não seja natural.

‑ Não. Isso é impossível ‑ replicou o cavalheiro. ‑ Somente um grande artista poderia conseguir esse tom e não há maior artista que Deus.

Zena fitou‑o de olhos arregalados.

‑ Adoro os seus cabelos, seu narizinho recto e seus maravilhosos olhos azuis. ‑ O rapaz continuou.

De repente, Zena se lembrou de que, como chérie amie, não poderia esperar que os homens a tratassem com o respeito e a formalidade com os quais estava habituada.

Olhou então para o rosto do homem e de repente ficou encabulada de um modo incompreensível. Queria afastar‑se e, ao mesmo tempo ficar perto dele.

‑ Vamos nos apresentar? ‑ sugeriu o rapaz. ‑ Talvez a melhor maneira de fazer isso, em vez de falarmos com esta barreira entre nós, seria eu ir para o seu camarote, ou você vir para o meu.

Zena achou o convite um tanto estranho. Ao mesmo tempo indicava bom senso.

Afinal de contas, tinha ouvido dizer que o Baile dos Artistas era um lugar de liberdade, alegria e camaradagem. Sem ter um acompanhante, não havia ninguém para apresentá‑la ao cavalheiro.

‑ Talvez você devesse vir para cá... ‑ disse, dali a um momento. ‑ Mas meu amigo e eu somos convidados... e não tenho autoridade para... convidar outra pessoa.

‑ Então, como estou só e o camarote é exclusivamente meu, sugiro que venha para cá, onde ficará mais confortável.

Isso também era sensato. Além do mais, Zena achou que, se o rapaz que se sentira mal voltasse para o camarote, teria que conversar com você, ou, pior ainda, dançar.

Não era tola a ponto de não ter percebido que ele se sentia mal por ter bebido demais. E não tinha a mínima vontade de revê‑lo.

‑ Quando seu amigo voltar, você poderá vê‑lo facilmente, por cima da divisão ‑ disse o cavalheiro. ‑ E nem ele terá que ir muito longe para encontrá‑la.

‑ Sim, é claro.

Zena levantou‑se e dirigiu‑se para a porta do camarote, precisando ter cuidado para não esbarrar nas cadeiras e nem nas garrafas de champanhe vazias que tinham sido postas no chão.

Antes de chegar à porta, esta se abriu e surgiu o cavalheiro.

Zena tivera razão ao achar que era alto e de ombros largos. Os olhos, que pareciam mais escuros, de longe, fitaram‑na de um modo que a moça achou constrangedor.

Ao mesmo tempo, como era um olhar de admiração, não pôde deixar de ficar satisfeita.

O outro camarote ficava a apenas alguns passos. Zena entrou e achou que era infinitamente preferível ao dela, porque estava vazio e em ordem, sem aquela confusão de cadeiras e garrafas.

O cavalheiro puxou uma poltrona para ela sentar‑se. A jovem achou que ele havia demonstrado tacto, oferecendo‑lhe a cadeira onde estivera sentado e que ficava junto à divisão com o outro camarote.

‑ Obrigado.

Ele puxou uma cadeira para perto e disse:

‑ Agora, fale‑me de você. Eu estava me sentindo solitário e um tanto entediado, até vê‑la. Mas agora a noite começou a brilhar e posso sentir o encanto da música de Offenbach, que antes estava faltando.

‑ Ouvi dizer que ela é típica do espírito de Paris ‑ disse Zena.

‑ Eu diria que você também, excepto por estar convencido de que não é francesa, embora sua pronúncia seja perfeita.

Com um sorriso, Zena achou que pelo menos isso agradaria a seu pai, que sempre insistira para que ela falasse com uma pronúncia parisiense.

‑ Está disposto a adivinhar a que país pertenço? ‑ perguntou ela.

O cavalheiro sacudiu a cabeça.

‑ Não, porque tentei fazer isso desde que a vi e não consegui encontrar uma resposta.

‑ Talvez eu devesse deixar que continuasse na ignorância. Um quebra‑cabeça deixa de ser interessante, depois de resolvido.

Zena achou que era uma observação bastante inteligente. Seu companheiro inclinou‑se e disse:

‑ Este quebra‑cabeça ainda não está resolvido, mesmo que você me diga onde nasceu. Há muita coisa que desejo saber. Muita coisa em você que me intriga e que, para ser sincero, é muito excitante.

Havia na voz dele uma nota que a deixou encabulada. Achou que devia ser exactamente aquela a maneira de os cavalheiros se dirigirem às mulheres bonitas, de quem tinha ouvido falar e que vira à noite no Café Anglais.

Era como se estivesse participando de uma representação no palco. Achou que seria muita ingenuidade se não soubesse continuar o diálogo e se comportasse como uma tola colegial.

‑ Acho que, antes, como foi quem primeiro dirigiu a palavra, monsieur, deveria se apresentar, já que não há aqui ninguém, para fazê‑lo.

‑ Muito bem. Meu nome é Jean. Se tiver que me apresentar formalmente, sou o conde de Graumont.

‑ Muito prazer em conhecê‑lo, monsieur ‑ disse Zena formalmente. ‑ Sou Zena Bellefleur.

‑ Enchanté, mademoiselle. E nenhum nome poderia ser mais apropriado.

Pegou a mão da moça e levou‑a aos lábios.

Zena tinha tirado as luvas, enquanto observava as danças. Quando o cavalheiro lhe beijou a mão, ela pensou que ele o faria de um modo ligeiro, como os homens o faziam com sua mãe e, às vezes, com ela.

Em vez disso, o conde apoiou os lábios na mão dela e Zena achou isso estranho. Ao mesmo tempo, era excitante.

Sentindo‑se constrangida, retirou a mão e olhou de novo para os pares, lá embaixo.

‑ Estou esperando ‑ disse ele..

‑ Esperando o quê?

‑ Que me diga de onde vem. A não ser, é claro, que tenha vindo de Vénus, ou de algum outro planeta que, suponho, seja habitado por deusas tão belas quanto você.

Zena deu uma risadinha.

‑ Gostaria de poder dizer que voei para cá nas asas da via‑láctea. Seria muito mais fascinante do que um mero Estado europeu.

‑ Seja qual for, é excepcional, se for seu ‑ respondeu o conde.

De novo Zena sentiu que estavam dizendo as frases de uma peça teatral.

No palácio do arquiduque havia um teatro. A arquiduquesa só permitia que fossem levadas peças clássicas. Qualquer coisa que fosse ligeiramente imprópria era proibida. Apesar disso, Zena achava o mundo fictício do teatro tão maravilhoso, que jamais se cansava de assistir às representações.

‑ Porque está sorrindo? ‑ perguntou o conde.

Zena disse a verdade.

‑ Estava pensando que estamos agindo como se estivéssemos representando uma peça de teatro. E hoje, como tudo aqui é muito emocionante, sinto‑me como a estrela da peça.

‑ Claro que é. E muito bonita ‑ declarou o cavalheiro. ‑ Sinto‑me honrado por estar representando a seu lado.

De novo houve na voz dele uma nota que Zena achou um tanto íntima. Talvez fosse pela expressão dos olhos dele, ou porque, ao dizer isso, o conde chegara mais perto dela.

Finalmente, decidida a não mentir, ela disse:

‑ Sou de Wiedenstein.

O conde ergueu as sobrancelhas.

‑ Tem certeza?

‑ Claro que tenho. Devo saber de onde sou.

‑ Estou apenas surpreso, pois não achei que os habitantes de Wiedenstein tivessem características francesas. As mulheres francesas em geral são morenas e de pele um tanto pálida. Embora sejam muito vivas e divertidas, não se parecem com você.

‑ Nem todo mundo em Wiedenstein se parece comigo ‑ replicou Zena, sorrindo.

‑ Acredito piamente ‑ declarou o conde. ‑ Caso contrário todos os homens que conheço estariam visitando Wiedenstein e o país ficaria superlotado de Dom‑juans.

Zena riu.

‑ Que bela idéia!

‑ Mas creio que você é única. Nesse caso, embora minha idéia sobre o seu país tenha mudado, não posso esperar que haja lá milhares de mulheres iguais a você. ‑ Em tom mais baixo e mais grave, ele continuou: ‑ Como milhares de homens já lhe devem ter dito, você é muito, muito linda!

O elogio pegou Zena de surpresa. As palavras do conde fizeram com que ela vibrasse e por um momento esquecesse o papel que estava representando.

Fitou‑o nos olhos, depois desviou vivamente o olhar e disse:

‑ Creio que... não deveria falar comigo desse jeito.

‑ Por que não, se é verdade? ‑ Zena não respondeu. Dali a um momento, ele continuou: ‑ O que você quer dizer é que o amigo que a trouxe aqui não iria gostar e talvez me desafiasse para um duelo.

‑ Não! ‑ Protestou a moça. ‑ Claro que ele não faria isso!

‑ O que não entendo é como ele a deixou sozinha ‑ disso o conde. ‑ Deveria compreender que, quando um homem deixa um tesouro de grande valor sem guarda, corre o risco de ser roubado.

Zena sorriu.

‑ Não creio que Kendric se preocupe com isso, embora eu ache agradável pensar que sou um tesouro de grande valor.

‑ Há muitas outras maneiras de eu descrevê‑la, mas acho difícil dizê‑lo em um lugar destes.

Nisto, houve um ruído de vozes e de risos no camarote pegado. Zena olhou por cima da divisão e viu que Kendric tinha voltado.

Os outros cavalheiros também entraram com seus pares, além de vários homens que ela não conhecia.

Estavam todos interessados em servir‑se de champanhe. Nisto, Kendric viu a irmã e dirigiu‑se para o camarote vizinho ao seu.

‑ Está bem, Zena? ‑ perguntou ele.

‑ Sim, é claro. Quer que eu volte?

De repente, Kendric percebeu que ela não estava onde ele a deixara. Olhou‑a, surpreso, mas, antes que dissesse alguma coisa, o conde se dirigiu a ele:

‑ Permita que eu me apresente? Sou Jean de Graumont e convidei mademoiselle para vir ao meu camarote, porque ela estava sozinha.

Kendric ficou um tanto envergonhado e disse à irmã:

‑ Pensei que alguém tivesse ficado com você.

‑ Havia alguém, mas ele saiu para tomar um pouco de ar.

‑ Achei que eu poderia cuidar de mademoiselle, na sua ausência ‑ disse o conde.

‑ Foi muita gentileza sua ‑ respondeu Kendric. ‑ Meu nome é Villerny.

O conde soltou uma exclamação.

‑ Quer dizer, o visconde? Ouvi dizer que seu pai morreu.

‑ Conheceu‑o? ‑ perguntou e percebeu que estava nervoso.

‑ Meu pai se interessava muito por conchas ‑ disse o conde. ‑ E falava muito da colecção que Villerny possuía, que tenho a impressão de que a conheço, embora jamais eu tenha estado em Wiedenstein.

‑ Então, espero poder mostrá‑la um dia a você ‑ disse Kendric. Zena achou que o irmão estava sendo muito esperto, falando com tanta calma.

‑ Obrigado ‑ respondeu o conde. ‑ Talvez um dia eu tenha a oportunidade de aceitar o seu convite.

Houve uma pausa. Então Kendric disse, como se achasse necessário:

‑ Quer dançar comigo, Zena?

‑ Creio que prefiro ficar observando daqui ‑ respondeu a moça. ‑ Parece que há muita turbulência lá embaixo.

‑ Há mesmo ‑ respondeu Kendric.

Ia dizer mais alguma coisa, mas a moça com quem tinha dançado pôs os braços à volta do pescoço dele, dizendo;

‑ Você está me negligenciando e isso não é gentil. Dê‑me uma taça de champanhe. Vamos, venha comigo ver o show que está começando e depois iremos a outro lugar qualquer.

‑ Não posso fazer isso ‑ replicou Kendric. ‑ Tenho uma amiguinha comigo.

‑ Então, ela terá que nos acompanhar, embora se diga que "um é pouco, dois é bom e três é demais" ‑ observou a mulher.

Kendric ficou contrafeito. Mas o conde, percebendo a situação, sugeriu imediatamente:

‑ Como estou sozinho, talvez permitam que eu complete o grupo.

Antes que Kendric respondesse, a mulher, que agora estava com o braço à volta do pescoço dele, disse:

‑ É perfeito! Venha connosco. Vai ser divertido. Quero dançar em um lugar menos cheio. ‑ Virou‑se para Kendric. ‑ E com você, mon cher.

Beijou Kendric no rosto, agarrando‑se a ele de um modo que não permitiu que o rapaz se libertasse.

Zena surpreendeu‑se, encarando os dois. Não querendo constranger o irmão, desviou o olhar.

Percebeu que o conde a observava. A expressão do olhar dele a fez corar. Deliberadamente, olhou para o salão de dança.

‑ O show vai começar ‑ dissera ela, compreendendo que apesar de tudo parecer estranho e constrangedor era muito excitante.

Ao mesmo tempo, ocorreu‑lhe que, se sua mãe descobrisse o que ela estava fazendo, certamente teria um ataque do coração.

 

"Deve ser muito tarde, ou antes, de manhã muito cedo", pensou Zena.

Estranhamente, não estava cansada e sim ainda excitada e alegre devido à noite anterior.

O show apresentado pelos estudantes, no baile, tinha sido longo, mas muito divertido.

Eles mostraram estranhas criações, feitas em seus estúdios. Quando um animal pré‑histórico caiu, com inúmeros estudantes em cima dele, todo mundo riu, gritou e bateu palmas. Zena achou divertidíssimo.

Estava ainda rindo do caos, lá embaixo, quando percebeu que o conde a observava, em vez de observar o espectáculo.

‑ Olhe ‑ disse ela. ‑ Você nunca viu tanta desordem!

‑ Prefiro olhar para você ‑ respondeu ele, em voz baixa. Zena desejou que ninguém o tivesse ouvido.

Na realidade, não poderiam ouvi‑lo, pois havia agora muitas pessoas animadíssimas e ruidosas pelo consumo de bebidas no camarote.

Kendric não percebeu. Ficou surpreso por encontrar Zena com o conde. Estava muito entretido com Nanette, a mulher efusiva que o acompanhava e Zena ficou satisfeita por ter com quem conversar.

Quando seu irmão voltou ao camarote com seus novos amigos, Zena achou que também deveria ir para lá, mas logo se arrependeu.

Todos se empurravam, procurando chegar à parte da frente, para observar o espectáculo, lá em baixo. às vezes pareciam correr o risco de cair no salão de dança.

Zena ficou contente quando o irmão decidiu sair. Esperava que eles fossem só quatro, mas, ao chegarem no Chat Noir, em Montmartre, o grupo estava acrescido de vários estranhos, que eram amigos de Philippe.

O Chat Noir era interessante, porém muito barulhento. Eles não ficaram muito tempo ali, pois estava cheio demais para se dançar.

No lugar seguinte aonde foram havia mais espaço, mas certas mulheres se comportavam de maneira muito inconveniente, dançando sozinhas e exibindo pernas e saias de baixo franzidas.

‑ Tenho a impressão de que você está escandalizada com o que vê ‑ observou o conde.

Zena ia dizer que sim, mas lembrou‑se de que, como chère ami e demi‑mondaine, deveria aceitar o comportamento daquelas mulheres.

‑ Não, claro que não ‑ respondeu. ‑ Mas há muito barulho aqui.

O conde sugeriu que fossem para outro lugar. Era o que a jovem desejava mas, como vários homens a tinham convidado para dançar, não sabia o que decidir.

Não tinha vontade de dançar com nenhum deles, porque não estava com as pernas muito firmes. Gritavam uns para os outros na pista de dança, ou tentavam mudar de par, mesmo quando isso não parecia ser bem recebido.

Quando um homem a tirou para dançar, Zena recusou. Ele insistiu e o conde interveio:

‑ Mademoiselle é meu par ‑ avisou, em tom significativo.

‑ Perdão ‑ disse o homem, imediatamente. ‑ Não percebi que ela era sua petite poulé.

Afastou‑se e Zena procurou lembrar o que petite poulé significava.

Era uma expressão que não fazia parte do seu vocabulário.

Obviamente, aquilo foi eficaz, porque depois disso os homens do grupo a deixaram em paz, dançando com outras mulheres.

Quando finalmente saíam dali, Zena ficou surpresa por ver que Kendric não estava mais com Nanette e sim com uma outra francesa muito mais atraente, chamada Yvonne.

Desta vez, talvez por sugestão do conde, foram a um salão de dança nos Champs Elysées, onde a banda estava tocando uma polca alegre e viva no jardim, e os dançarinos eram uma grande mistura.

Havia homens de traje a rigor, como o conde e os novos amigos de Kendric, mas havia outros com casaco de veludo e gravatas esvoaçantes, que pareciam artistas, assim como funcionários de escritório com ternos limpos, midinettes bonitas com chapéus enfeitados de flores e saias rodadas, que se balançavam enquanto elas dançavam.

Era tudo muito alegre e a música era envolvente. Pela primeira vez, na noite, o conde disse a Zena:

‑ Quer dançar?

Ela percebeu que o conde não a convidara antes porque todos os lugares aonde tinham ido estavam muito cheios. Ninguém dançava, havendo só um empurre‑empurra.

Aceitou, sorrindo, e ele a levou para o tablado. A polca tinha terminado e a banda começou uma valsa romântica de Offenbach.

Zena sabia que dançava bem. Mas dançar no salão de baile do palácio, com os cortesãos que tinham obrigação de dançar com ela, era menos excitante que ser par do conde.

Quando ele colocou a mão na cintura de Zena, ela achou que o fazia com um jeito de proprietário, talvez próximo demais. Mas lembrou‑se que não devia se queixar.

Percebeu que ele dançava muito bem e que era fácil segui‑lo.

Dançaram sem conversar. A jovem achou que o céu estrelado e o brilho das lâmpadas de gás tornavam o salão de baile uma amostra perfeita da cidade que desejava encontrar.

"Preciso aproveitar cada momento, para depois me lembrar disto em minha casa ou na Inglaterra, onde tudo é formal e cerimonioso", disse a si mesma.

Estremeceu involuntariamente, ao imaginar aquele país frio e reservado. O conde perguntou:

‑ Alguma coisa a perturba? Quero que seja feliz, hoje à noite...

‑ Estou feliz.

‑ Mas há pouco você estava pensando alguma coisa desagradável.

‑ Como é que pode saber?

‑ Seus olhos são reveladores, ou, mais surpreendente ainda, talvez eu possa ler seus pensamentos.

‑ Não deve fazer isso.

‑ Por que não?

‑ Porque é uma intromissão e não quero que pessoa alguma saiba o que estou pensando ‑ declarou Zena

‑ Então, diga o que estou pensando ‑ sugeriu o conde.

Zena fitou‑o, viu a expressão dos olhos dele e sentiu que, se expressasse seus pensamentos, iriam parecer imodestos e ousados demais.

Como se ela tivesse falado, o conde disse:

‑ Exactamente! E não há necessidade de dizer o que ambos sabemos.

Surpresa com aquelas palavras, Zena ficou encabulada.

‑ Está me constrangendo ‑ ela disse.

‑ Não desejo fazer isso. Na realidade, estou sendo muito reservado. Mas é inútil dizer que, a cada momento que passa, sinto maior curiosidade a seu respeito.

‑ Isso é ridículo! Esta noite deve ser de divertimento.

‑ Estou me divertindo, mais do que achei possível e mais do que esperava ‑ disse o conde. Sorriu e continuou: ‑ Cheguei hoje a Paris sentindo‑me entediado. Embora tivesse tempo de entrar em contacto com meus amigos, achei que era melhor ir para a cama e procurá‑los amanhã. ‑ O braço dele apertou a cintura de Zena. ‑ Seguindo um impulso, fui ao Baile dos Artistas e, desde então, tudo mudou.

Não havia necessidade de Zena perguntar o que isso significava, mas ela achou que devia dizer alguma coisa:

‑ Estou contente de ver que está se divertindo. Amanhã poderá cuidar de suas obrigações sociais.

‑ Amanhã vou vê‑la. Podemos almoçar juntos?

Ocorreu de repente a Zena que aquilo seria muito excitante; mas teve que dizer:

‑ Preciso perguntar a Kendric quais são nossos planos. Não faço a mínima idéia sobre eles.

‑ Talvez você não esteja incluída nos planos do visconde ‑ disse o cavalheiro.

Zena seguiu a direcção do olhar dele. Levou um choque ao ver que o irmão, sentado na mesa de onde ela e seu par tinham saído, tinha os braços à volta de Yvonne e a beijava apaixonadamente.

Na realidade, era o que os componentes do grupo tinham feito a noite toda. Zena achou aquilo uma maneira inadequada de se comportarem e não pensou que o irmão fizesse o mesmo.

Desviou o olhar e ouviu o conde dizer:

‑ Estou fazendo planos para mostrar‑lhe Paris, pois sei que há muitas coisas para vermos juntos e garanto que você vai apreciá‑las.

A jovem nada disse. Ao voltarem para a mesa, Zena se admirou de ver que o conde a deixara e fora falar com Kendric.

Falou durante vários minutos e depois voltou.

‑ O visconde concordou em que eu a leve para casa. Creio que está cansada, mas ele deseja continuar aqui.

‑ Tem certeza de que Kendric não quer que eu fique, até ele resolver sair? ‑ perguntou Zena.

O conde sorriu de um modo enigmático.

‑ Tenho. Para dizer a verdade, ficou agradecido por eu ter sugerido tomar conta de você.

A moça se viu obrigada a concordar. Estava encantada com a gentileza do conde, mas a verdade era que estava começando a ficar cansada, porque tinha dormido pouco na noite anterior.

Estivera excitada e ao mesmo tempo apreensiva, caso os planos do irmão não dessem certo.

Mais ainda, não queria estar cansada no dia seguinte e poder, dormindo pela manhã, algumas horas preciosas.

O conde colocou o agasalho à volta dos ombros dela. Zena ia dirigir‑se para o lado do irmão, para lhe dizer boa‑noite, quando viu, atónita, que ele se levantara da mesa e ia saindo do salão de baile por um dos portões que dava para o Champs Elysées.

Viu Kendric e Yvonne entrarem em um fiacre que estava à espera de fregueses. Ela e o conde os tinham seguido e viram o fiacre afastar‑se.

‑ Não sei porque Kendric vai a um outro lugar ‑ comentou Zena. ‑ Aqui estava muito agradável, bem mais que nos outros lugares onde estivemos.

Teve a impressão de que o conde a olhava estranhamente, mas ele disse apenas:

‑ O visconde me pediu que lhe desse boa‑noite.

A jovem não precisou responder, porque o conde tinha chamado outro fiacre, ajudando‑a a subir.

A capota estava arriada. Zena olhou para as estrelas e disse:

‑ Sempre achei que deveria haver uma certa magia em Paris. E tudo é mais bonito e mais excitante do que pensei.

‑ Eu lhe perguntei se era esta a sua primeira visita a Paris ‑ disse o conde.

Desta vez, Zena respondeu, vivamente:

‑ A primeira, depois que cresci.

‑ O que não deve fazer muito tempo ‑ observou ele.

Percebendo que o conde estava sendo curioso de novo, ela deixou de olhar para o céu e disse:

‑ Está tentando adivinhar a minha idade. Sempre ouvi dizer que é indelicado e indiscreto.

‑ Somente quando uma mulher deseja escondê‑la, por não ser muito jovem ‑ declarou o conde. ‑ Mas sei, sem que ma digam isso, que você é muito moça, tanto na idade como em experiência.

‑ Agora está adivinhando ‑ disse Zena, achando que precisava responder alguma coisa.

‑ Creio que estou lendo os seus pensamentos e usando o meu instinto ‑ disse o conde.

‑ Não quero que faça nenhuma dessas coisas.

Embora ela não tivesse feito nenhum movimento para se aproximar dela, Zena achou que estava ficando muito íntimo e possessivo.

Infelizmente a distância dali até a casa onde ela e Kendric estavam hospedados era curta. Quando a carruagem parou diante da mansão alta, no fim da Rue St. Honoré, o conde disse:

‑ Como esses apartamentos são particulares, suponho que você e Kendric estejam hospedados com amigos.

‑ Estamos em um apartamento emprestado ‑ contou Zena.

O conde não fez menção de abrir a porta da carruagem. Virou‑se para ela e disse:

‑ Acho que você precisa ir logo para a cama; por isso não vou sugerir acompanhá‑la até à porta de seu apartamento. Temos muito sobre o que conversar, não havendo tempo para isso hoje. Poderei vir buscá‑la amanhã, ao meio‑dia e meia. Almoçaremos num restaurante quieto, onde não seremos perturbados.

Zena estava mais do que disposta a concordar, mas lembrou‑se de Kendric.

‑ Preciso perguntar a...

‑ O visconde, é claro, está incluído no convite, se desejar vir connosco. Mas tenho a impressão de que ele terá outros planos.

Em vista do comportamento do irmão com Yvonne, Zena achou que aquilo era bem provável. Não tinha vontade de ficar sozinha no apartamento, sem ter aonde ir. Respondeu, vivamente:

‑ Então, terei prazer em almoçar com você. Obrigada pelo convite.

Estendeu a mão e o conde tomou‑a entre as suas.

Ele nada disse, ficando apenas a olhar para a moça. Ela teve dúvidas se deveria fazer ou dizer alguma coisa. Depois, como se tomasse uma decisão, ergueu a mão de Zena e beijou‑a como já fizera antes.

‑ Boa noite, Zena. Agradou‑me participar de sua primeira noite em Paris. Gostaria que fosse a primeira de muitas outras.

Beijou de novo a mão de Zena e seus lábios acariciaram‑lhe levemente a pele.

Depois abriu a porta da carruagem, ajudou‑a a descer e acordou o guarda nocturno, que dormia no escritório da zeladora.

Sonolento, o homem entregou à jovem a chave do apartamento, voltou para sua cadeira e fechou os olhos.

Zena ficou no hall escuro. A única luz a gás que havia ali reflectiu‑se em seus cabelos, fazendo com que brilhassem intensamente como chispas de fogo.

O conde fitou‑a por um longo momento.

‑ Boa noite ‑ disse, em voz grave.

‑ Boa noite e... obrigada ‑ respondeu Zena.

Subiu a escada correndo, sem olhar para trás, tendo a sensação de que ele a observava, e desejando que a noite não tivesse acabado.

 

Zena acordou com o sol brilhando no quarto. Quando olhou para o relógio sobre a lareira, mal pôde acreditar que já eram onze horas. Não se lembrava de ter dormido tanto.

Quando tinha chegado ao apartamento, a zeladora lhe dissera que, quando quisesse o desjejum, tocasse a campainha e ela ou a sua filha o levaria para cima.

Zena ia tocar, quando se lembrou de que talvez Kendric já tivesse pedido o desjejum. Abriu a porta da saleta e foi para o quarto do irmão.

Ficou imaginando a que horas teria ele voltado e achou bom que não a tivesse acordado.

Atravessou a saleta e bateu à porta do quarto dele. Não havendo resposta, abriu‑a.

A primeira coisa que viu foram as roupas de Kendric, em desordem, atiradas numa cadeira, tendo algumas escorregado para o chão.

Viu, então, que ele estava na cama, num sono profundo.

Por um momento pensou em acordá‑lo; depois achou que seria um erro.

Saiu do quarto e fechou a porta. Chegando a seu quarto, tocou a campainha para pedir o seu desjejum. Ficou imaginando, caso trouxessem o café da manhã para dois, como poderia ela conservar o café quente para o irmão, até ele acordar.

Renée, a filha da zeladora, levou tempo para aparecer com uma bandeja.

Havia um café escaldante em uma cafeteira aberta, croissants recém‑saídos do forno, manteiga e geléia de morango.

‑ Bonjourm m'mselle ‑ disse Renée. ‑ Divertiu‑se, ontem a noite?

‑ Foi maravilhoso. Obrigada.

‑ Ouvi‑a chegar às quatro horas ‑ disse Renée, colocando a bandeja em uma mesinha perto da janela. ‑ Mas monsieur entrou muito, muito tarde. Só chegou às sete da manhã e calculo que ainda esteja dormindo.

‑ Sete horas! ‑ exclamou Zena. ‑ Eu não sabia que, mesmo em Paris, se dançasse tanto!

Achou que Renée a olhou de maneira estranha. Depois, com uma risadinha, ela disse:

‑ Não acredito que monsieur estivesse dançando, m'mselle!

Saiu do quarto e Zena ficou matutando sobre o que ela dissera.

Se Kendric não estivera dançando, então onde poderia ter ido?

Provavelmente Kendric tinha acompanhado aquela francesinha atraente até sua casa, tendo ficado conversando ou talvez bebendo até de manhã.

Zena, naturalmente, não soubera das minúcias do caso de Kendric com a bailarina. Imaginando que seus pais tinham ficado zangados com ele pelo facto de ter saído do palácio às escondidas. Além do mais, uma bailarina seria considerada uma companhia muito imprópria para o herdeiro da coroa.

Se Kendric se comportara com a bailarina como com Yvonne na noite anterior, então Zena achava compreensível que sua mãe tivesse ficado escandalizada.

"Se mamãe um dia chegar a saber como Kendric se comporta em Paris, vai ficar furiosa", disse a si mesma.

Depois, percebeu que aquilo se aplicava também a ela. Tinha dançado com um homem ao qual não fora apresentada formalmente e, pior ainda, pretendia almoçar com ele sozinha, a não ser que Kendric quisesse acompanhá‑los.

A idéia da cólera da mãe era assustadora. Depois, Zena considerou que não havia motivo para que a aventura deles fosse descoberta, a não ser que o barão e a condessa tivessem ido ao palácio para falar do desaparecimento dos dois e chorar suas mágoas.

"Tenho certeza de que Kendric tem razão. Eles não vão querer perder o cargo, reconhecendo sua incompetência" ela pensou.

Isso a consolou um pouco, mas, por outro lado, a situação continuava assustadora.

Terminou o desjejum e entrou no quarto, para se vestir.

Era difícil, sem uma criada para arrumar seu colete atrás. E tinha certeza de que não conseguiria abotoar o vestido sozinha.

Deixou então para o último momento, achando que Kendric logo acordaria.

Se dormisse até o meio‑dia, ele teria apenas cinco horas de sono e certamente precisava de mais.

Penteou os cabelos da melhor maneira possível, imaginando que, se fosse sair à noite, precisaria pedir à zeladora que lhe arranjasse um cabeleireiro que viesse ao apartamento.

Escolheu um de seus vestidos mais bonitos para usar no almoço com o conde, achando divertido pensar que fora feito para ser usado nas recepções ao ar livre do palácio real, que se realizavam todos os anos, no verão.

A arquiduquesa havia dito que também era apropriado para o dia do Prix d'Or, quando o cavalo do duque de Faverstone iria correr.

"Ele certamente ficaria surpreso, se soubesse que usei antes, em Paris, para almoçar sozinha com um conde francês que conheci no Baile dos Artistas, sem lhe ser apresentada formalmente", pensou Zena.

Seria esta uma maneira de se livrar dele. Por outro lado, se não fosse o duque, poderia ser algum horrível príncipe alemão como Georg, o que seria pior.

"Não vou preocupar‑me com isso. Durante alguns dias, serei simplesmente Zena Bellefleur. Como não tenho importância social, posso me comportar como bem entender", disse a si mesma.

Ficou imaginando se, como demi‑mondaine, deveria comportar‑se como Yvonne. No que lhe dizia respeito, isso era impossível.

Como poderia colocar os braços à volta do pescoço de um homem e dançar de um jeito tão íntimo?

Poderia ela flertar com modos tão provocantes, como vira as mulheres de seu grupo fazerem com todos os homens que lhes dirigiam a palavra?

Pensou nas mulheres que tinha visto no Café Anglais, achando que deviam ser de uma classe muito superior às do Baile dos Artistas.

"Tenho certeza de que elas se contentam em ser bonitas enquanto os homens lhe fazem elogios e lhes dão jóias, porque são como belos quadros que penduramos nas paredes a fim de apreciá‑los", disse Zena, a si mesma.

Tinha uma idéia de que faziam alguma coisa, mas não sabia o quê.

O relógio da lareira bateu meio‑dia. Lembrou‑se que teria de acordar Kendric e perguntar‑lhe se queria almoçar com ela e com o conde. Inesperadamente, a porta se abriu.

Zena levantou‑se de um salto e saltou uma exclamação de alegria.

‑ Você acordou, Kendric! Estou tão feliz! Pensei que fosse dormir eternamente.

Kendric esfregou os olhos.

‑ É o que eu gostaria de fazer ‑ respondeu, bocejando. ‑ Que horas são?

‑ Já é mais de meio‑dia. Quer que peça seu desjejum, ou prefere esperar o almoço?

‑ É melhor eu tomar um pouco de café. Bebi tanto a noite passada, que minha cabeça está estourando.

‑ Oh, Kendric, sinto muito ‑ disse Zena. ‑ Tenho água‑de‑colónia. Vou pôr um pouco em um lenço e isso talvez faça com que se sinta melhor.

Kendric gemeu e sentou‑se em uma cadeira, perto da janela.

Com seus cabelos loiros em desalinho, parecia muito moço e recém‑saído da escola.

Zena tocou a campainha, pedindo o desjejum do irmão, e foi ao quarto buscar um vidro de água‑de‑colónia.

Colocou o lenço úmido na testa de Kendric. Ele reclinou‑se na cadeira e fechou os olhos.

‑ Escute, Kendric ‑ disse Zena. ‑ O conde nos convidou para almoçar e vai chegar logo, mas, se você não quiser ir, iremos só ele e eu.

Kendric abriu os olhos.

‑ Acabo de me lembrar de que prometi levar Yvonne para almoçar.

‑ Então, não vai precisar de mim.

Kendric deu um sorriso malicioso.

‑ Para dizer a verdade, eu estava pensando o que fazer com você.

‑ Oh, está certo ‑ disse Zena. ‑ Vou almoçar com o conde. Estou contente por ele ter‑me convidado, pois não quero atrapalhar seus divertimentos, Kendric.

‑ "Divertimento" é a palavra certa, Zena ‑ declarou Kendric, sentado e parecendo ter voltado ao seu normal. ‑ Confesso que estou fascinado por ela.

‑ Achei que era muito mais atraente que Nanette.

- Claro! E é também muito mais distinta do que aquela turma barulhenta que estava ontem connosco, no camarote.

Zena achava a mesma coisa. Hesitante, não querendo parecer intrometida, disse:

‑ Yvonne é... actriz.

Houve uma pausa, antes de Kendric responder:

‑ Creio que foi actriz durante algum tempo.

‑ E o que está fazendo agora?

Houve nova pausa. Depois, o irmão respondeu:

‑ Não tive muito tempo de lhe fazer perguntas.

‑ Não, claro que não. E era difícil conversar, ontem. As bandas eram muito barulhentas, principalmente aquela Montmartre.

‑ Não era um lugar onde eu devesse levá‑la ‑ declarou Kendric. ‑ Mas eu não tinha a mínima idéia do que era, até chegarmos lá.

‑ Achei o último lugar, nos Champs Elysées, encantador ‑ disse Zena. ‑ Mas fiquei surpresa de você não me dizer boa‑noite.

Kendric fitou‑a envergonhado.

‑ Para dizer a verdade, esqueci! ‑ Tirou o lenço da testa e continuou: ‑ A verdade é que eu não devia tê‑la trazido para cá, Zena. Mas agora é tarde.

‑ Claro que é! Não se preocupe comigo. Estou aproveitando cada momento e o conde foi gentil comigo.

Achou que o irmão a olhava, desconfiado.

‑ Ele se comportou direito com você? ‑ perguntou Kendric, severamente. ‑ Não tentou beijá‑la... ou coisa parecida?

‑ Claro que não! ‑ Exclamou Zena. ‑ Beijou minha mão, mas não há nada de mal nisso.

‑ Não ‑ disse Kendric, sem grande convicção. ‑ Mas conserve‑o de longe. Sabe como são os franceses.

A jovem sorriu.

- Na realidade não sei como são, mas é divertido descobrir!

Kendric gemeu.

‑ Não, Zena! Fique prevenida! Se fizer alguma coisa errada levo‑a de volta para Ettengen.

‑ Oh, não, Kendric! Imagine se eu iria deixar que fizesse isso! Prometo que não farei nada que você desaprove. E tem sorte de eu não lhe pedir que faça a mesma promessa.

‑ Touché ‑ disse o irmão, rindo. ‑ Mas estou pensando no quartel horrível e armazenando algumas recordações agradáveis

‑ Estou fazendo o mesmo!

Sorriram um para o outro. Como gémeos, em geral pensavam da mesma forma.

O desjejum de Kendric chegou e Renée colocou‑o diante dele.

Zena disse:

‑ Por favor, Renée, quer abotoar o meu vestido?

‑ Claro, m'mselle. Qual deles pretende usar?

Renée dirigiu‑se para o quarto. Zena ia segui‑la, quando o irmão disse, baixinho:

‑ Precisa dar‑lhe uma gorjeta.

Zena pareceu surpresa. Depois, compreendeu que já deveria ter feito isso antes.

‑ Sim, é claro. Quanto?

Kendric encolheu os ombros.

‑ Dois ou três francos.

Zena inclinou a cabeça e entrou no quarto.

Depois que Renée a ajudou, abotoando o vestido nas costas, Zena remexeu na bolsa e tirou dali três francos.

‑ Obrigada por me ajudar ‑ disse.

Ficou encabulada por gratificar a moça, pois nunca fizera isso antes. Sempre que viajava ou iam a algum lugar, havia a condessa ou outra dama da corte que se encarregavam disso.

Renée quase agarrou o dinheiro, dizendo:

‑ Merci beaucoup, m'mselle!

Depois que a moça saiu, Zena pôs a cabeça na abertura da porta e disse ao irmão:

‑ Você precisa me dizer as coisas que devo fazer como... plebéia. É a primeira vez na vida que dou uma gorjeta.

‑ Pois bem, lembre‑se de que deve gratificar qualquer serviço, por menor que seja. E, caso se esqueça disso, os franceses não farão cerimónia em fazer com que você se lembre.

As palavras do irmão fizeram com que Zena perguntasse:

‑ Quanto você gastou, ontem à noite?

‑ Tive de pagar a minha parte, em todos os lugares aonde fomos, e saiu mais caro do que eu pensava ‑ respondeu Kendric. ‑ Acho pouco provável que você possa comprar um vestido de Frederick Worth.

‑ Prefiro ir aos restaurantes e aos salões de dança ‑ declarou Zena. ‑ E não se esqueça que tenho um pouco de dinheiro comigo. E naturalmente, as minhas jóias.

‑ Você seria louca se vendesse algumas delas! ‑ Kendric protestou. ‑ Se faltar alguma, notariam assim que você voltasse para casa e haveria uma averiguação. Você acabaria confessando tudo o que fizemos.

Zena soltou uma exclamação de horror e tornou a entrar no quarto.

Colocou na cabeça o chapéu, que combinava com o vestido. Quando se olhou no espelho, achou que, com lábios vermelhos e os cílios pintados, ninguém de Wiedenstein a reconheceria.

"Ninguém saberá", disse a si mesma, consolando‑se.

Nisto, ouviu abrir‑se a porta da saleta e Renée dizer:

‑ Um cavalheiro deseja vê‑lo, monsieur.

O coração de Zena deu um pulo porque soube quem era, antes mesmo de ouvir a voz grave do conde dizer:

‑ Bom dia, Villerny. Vejo que dormiu até tarde.

‑ Sim. Muito tarde. E obrigado por ter acompanhado minha... ‑ Interrompeu‑se, Quase se traindo, e Zena ficou de respiração suspensa.

Sabia que, sem pensar, ou talvez porque ainda estivesse com sono Kendric estivera a ponto de dizer "minha irmã".

Substituiu a última palavra por "Zena". Ela entrou na saleta.

Mais imponente ainda que na véspera, o conde estava perto da janela, ao lado de Kendric.

Como o sol estava atrás dele, Zena viu que estava envolto em luz.

‑ Bonjour, monsieur ‑ disse ela, timidamente.

O conde virou‑se. Pela expressão de seu rosto, Zena achou que ele aprovava seu vestido, o chapéu e o rosto pintado.

‑ Bom dia, Zena. Não há necessidade de eu perguntar se dormiu bem. Você parece a própria primavera.

‑ É assim que me sinto, mas o pobre Kendric está com dor de cabeça e não irá connosco.

‑ Lamento muito ‑ disse o conde a Kendric. ‑ Mas não é de admirar. Se tomou champanhe naquele lugar em Montmartre, é um milagre estar vivo.

‑ Fui bastante tolo em tomar duas taças ‑ confessou Kendric. ‑ Mas estava com sede.

O conde sorriu de um modo que Zena achou ligeiramente superior. Ela disse, vivamente:

‑ Kendric estava justamente dizendo que não deveríamos ter ido àquele lugar.

‑ Você certamente não deveria ‑ respondeu o conde, acentuando a primeira palavra.

‑ Está me pregando um sermão um tanto obscuro ‑ disse Kendric. ‑ Preciso deixá‑los, ou ficarei atrasado para o meu almoço. ‑ Levantou‑se e dirigiu‑se para o seu quarto.

Zena perguntou:

‑ A que horas pretende voltar?

‑ Estarei aqui para o jantar ‑ respondeu Kendric, em tom despreocupado. ‑ Ainda não resolvi onde vamos jantar. Tivemos vários convites, mas não respondi a nenhum deles.

‑ Eu estava com esperança de que você e Zena jantassem comigo ‑ disse o conde.

Kendric pôs a mão na maçaneta de seu quarto e perguntou:

‑ Posso resolver mais tarde?

Não esperou resposta. Sorriu para a irmã e entrou no quarto. Quando Zena virou‑se para o conde, viu que ele estava surpreso.

Achando que talvez ele fosse fazer perguntas às quais ela não queria responder, disse:

‑ Vamos? É uma pena ficar dentro de casa com um dia tão bonito.

Pegou sua bolsa, e começou a calçar as luvas compridas de pelica. Dirigiu‑se para a porta, na frente do conde.

Ele apressou‑se a abri‑la, dizendo:

‑ Permita que lhe diga que está muito bonita. Ou devo esperar até estarmos no lugar que escolhi para o nosso almoço?

‑ Estou disposta a esperar ‑ declarou Zena. ‑ Mas acho os elogios embaraçosos e preferia que você não os fizesse.

Depois que saíram do apartamento e fecharam a porta, ele observou:

‑ Se falou a verdade, então você é muito diferente de todas as mulheres de Paris!

‑ Sempre ouvi dizer que os elogios dos franceses são muito constantes, para serem sinceros. E estou começando a achar que isso é verdade.

O conde não respondeu. Quando chegaram à rua, Zena ficou surpresa porque não era um carro comum que os esperava e sim uma carruagem particular, muito elegante, com um cocheiro e um lacaio para abrir a porta.

A jovem subiu e sentou‑se no banco estofado.

‑ É muito elegante! ‑ exclamou.

‑ É um meio de transporte muito mais apropriado para você do que aquele no qual viajamos ontem ‑ replicou o conde.

Zena teve vontade de perguntar se lhe pertencia, ou se o alugara, mas achou que talvez fosse impertinente. Como se lesse novamente os pensamentos da moça, ele disse:

‑ Pedi‑o emprestado a um amigo e estou satisfeito por ver que você o aprecia.

Zena achou que, por considerar que ela não tinha importância social, o conde acreditava que ela só andava em veículos usados por cavalos inferiores. Teve vontade de dizer que estava habituada com carruagens reais e que as cocheiras de seu pai eram famosas em Wiedenstein.

Depois, achou que, se o conde desconfiasse quem era ela, toda a excitação de estar com aquele homem, que a tratava como uma mulher comum, desapareceria.

Considerando toda a formalidade da corte e a maneira com que era tratada pela condessa, pelos cortesãos, estava fascinada pela forma como o conde a tratava. Provavelmente Kendric tratava Yvonne e outras mulheres daquele tipo do mesmo modo.

Como estava longe das restrições da corte, ela sorriu para o conde e disse:

‑ É muito excitante estar em Paris e em sua companhia. Por favor, diga‑me onde vamos.

‑ A um restaurante no Bois, que foi inaugurado recentemente e ainda não está na moda. Os grandes, onde iríamos encontrar todo o mundo, não nos interessam. Pelo menos, não hoje. ‑ Zena fitou‑o com ar indagador. O conde continuou: ‑ Gostaria de ir a um desses para exibi‑la, Zena, mas poderia encontrar amigos que quisessem falar connosco. E hoje quero ficar em particular com você, sem interrupções, a não ser por parte dos pássaros.

‑ Parece muito romântico! ‑ exclamou Zena, sem reflectir.

‑ É isso exactamente o que pretendo ser! ‑ Concordou o conde, com sua voz grave.

 

Mais tarde, Zena se lembraria que as horas passadas com o conde no restaurante do Bois tinham sido as mais encantadoras de sua vida.

O restaurante era pequeno, numa casa dum só andar, cercada por árvores frondosas.

Havia apenas uma dúzia de mesas no meio das flores. O proprietário, que era também o chef, tomou o pedido pessoalmente e levou tempo explicando quais as especialidades recomendadas para os seus clientes naquele dia.

Sua mulher, gorduchinha, com avental florido, tomava conta da caixa. Os dois filhos do casal eram os garçons.

Era um ambiente feliz e, para Zena, uma experiência nova. Ela imaginou, entristecida, que nunca mais viria ali.

Feito o pedido, depois chegou o vinho num balde, o conde virou‑se para ela sorrindo e disse:

‑ Agora, só temos que apreciar a comida, que certamente será muito boa, e desfrutar o prazer de estarmos juntos.

Zena ficou excitada com a maneira de ele dizer aquelas palavras.

‑ Estou apreciando cada momento de minha visita a Paris e agradeço por ter tomado conta de mim, ontem à noite.

‑ Estou decidido a não deixá‑la ir novamente a esses lugares e conhecer a escória de Paris ‑ respondeu o conde, com uma nota severa na voz. ‑ A moça nada disse e ele continuou: ‑ Pretendo falar sobre isso ao visconde e espero que você não me impeça.

Zena deu um gritinho e pediu, súplice:

‑ Por favor, não fale nisso com Kendric! Creio que ele estava um pouco envergonhado hoje de manhã, além de sentir‑se mal por ter bebido vinho ordinário. Como eu estava com você, não me importei com o comportamento daquelas mulheres.

‑ Mesmo assim, você é inexperiente demais para este tipo de coisa ‑ replicou o conde.

‑ Fico contente por você pensar assim.

‑ O que não compreendo é por que Villerny a trouxe para Paris, se não pretendia passar seu tempo com você.

Zena desviou-o para o jardim.

Tivera medo de que o conde lhe perguntasse isso.

Sabia que, sendo ela a chère amie de Kendric, deveria parecer estranho tê‑la deixado no salão de dança, sem nem mesmo lhe dizer boa‑noite.

Se tentasse agora explicar os factos, certamente iriam parecer ainda mais estranhos. Disse vivamente:

‑ Por favor, não podemos falar de coisas mais interessantes? É maravilhoso estar aqui com você, e sempre me lembrarei disto quando estiver em casa.

O conde contraiu‑se.

‑ Está pensando em ir embora?

‑ Temos que ir, dentro dum ou dois dias.

‑ Quer dizer, o visconde tem que ir. Mas você não é obrigada a acompanhá‑lo.

‑ Se ele for, terei de ir ‑ respondeu Zena, com firmeza. ‑ Mas não quero falar nisso. Desejo que me fale sobre você. Já reparou que não sei onde mora e nem mesmo onde está hospedado em Paris?

O conde sorriu.

‑ Agrada‑me o seu interesse. Estou numa casa muito bonita nos Champs Elysées, que pertence ao duque de Soissons. Desejaria lhe mostrar os quadros dele. Tem a mais famosa colecção da França.

‑ Gostaria de vê‑los ‑ disse Zena. ‑ E, enquanto estiver aqui, preciso visitar o Louvre. Sempre achei que Fragonard e Boucher pintam os quadros mais românticos que possamos imaginar.

‑ Obviamente, você já conhece algumas das obras deles.

Zena fitou o conde, quase com desafio.

‑ Não somos totalmente desenformados em Wiedenstein.

Ele riu, brincalhão.

‑ Você é patriota! Gosto de ver pessoas patriotas e orgulhosas de seu país.

‑ Tenho muito orgulho do meu, embora seja pequeno e não uma grande nação como a França ou a Prússia.

‑ Apesar disso, é de grande importância para a Europa, neste momento ‑ declarou o conde. ‑ Sabe por quê?

‑ Claro que sei. Se a Prússia invadir a França, o que muitos temem, então Wiedenstein, assim como a Suíça, deve ficar neutro, o que me parece difícil ‑ Zena falou com convicção, pois tinha ouvido seu pai e outros estadistas, em Wiedenstein, discutirem o assunto várias vezes. Como o conde nada dissesse, continuou: ‑ Não suporto a idéia de os prussianos marcharem sobre a França. Suponhamos que tentassem destruir esta linda cidade...

‑ Sinto exactamente a mesma coisa ‑ replicou o conde. ‑ E gostaria que você falasse com o imperador como está falando comigo.

‑ Papai diz que ele é dominado pela imperatriz, que é uma grande amiga do ministro do Exterior. E este odeia tanto Bismark, que está ansioso para lutar contra ele. ‑ Falou sem pensar. Depois, soltou uma exclamação: ‑ Acabo de me lembrar que o ministro do Exterior é o duque de Graumont. E é este o seu nome!

‑ Sim, é o meu nome ‑ disse o conde. ‑ Mas a família Graumont é muito grande e sou apenas um primo distante do duque.

Houve uma pausa. Depois, Zena disse:

‑ Talvez eu tenha sido... indiscreta. Peço desculpas. Por favor, esqueça o que eu disse.

Ao falar isso, percebeu que o pedido de desculpas era desnecessário.

Teria sido repreensível, se a princesa Marie‑Thérèse fizesse estas observações, mas o que Zena Bellefleur dizia ou pensava não tinha a mínima importância. E agora, a princesa Marie‑Thérèse estava representando o papel de Zena Bellefleur.

‑ Espero que sempre haja franqueza entre nós ‑ disse o conde. ‑ Penso, também que é um exagero você ser tão inteligente quanto bonita.

Zena deu uma risadinha.

‑ Quer dizer que prefere mulheres que são bonecas bonitas..., brinquedos que podem ser descartados, quando você não precisa mais deles?

Lembrou‑se de que Kendric achava que a única coisa importante numa mulher era ser bonita.

Certa vez, Zena lhe perguntara o que ele conversava com a sua bailarina e ele respondera em tom de desprezo:

‑ Conversar? Por que haveria eu de querer conversar com uma pessoa dessas? O que interessa é ela ser bonita o suficiente para ser beijada.

Agora, como se percebesse que Zena pensava em Kendric, o conde perguntou:

‑ Sobre o que vocês conversam, quando não estão fazendo amor?

Zena contraiu‑se. Instintivamente, sentiu‑se insultada por ele perguntar uma coisa tão pessoal, ou acreditar que ela deixasse um homem qualquer lhe falar de amor, como acontecera com o conde, na véspera.

Depois, mais uma vez lembrou‑se do papel que estava representando.

Após o que lhe pareceu um longo silêncio, disse:

‑ Não estávamos falando de Kendric e sim de você!

‑ Mas prefiro falar de você ‑ replicou o conde. ‑ E, antes que me interrompa de novo, permita que lhe diga que jamais encontrei uma criatura tão linda, tão encantadora.

Zena achou que encantador era tudo o que eles diziam ou faziam.

Ficaram no restaurante até que todo mundo saiu. Depois, sentados na confortável carruagem aberta que Zena supôs ser do duque de Soissons, seguiram pela margem esquerda do Sena, até Notre Dame.

Voltaram pelas ruazinhas estreitas da velha Paris, até chegarem aos bulevares impressionantes que haviam sido construídos pelo barão Haussmann.

Era tudo tão belo e tão excitante, que nada mais natural do que o conde segurar a mão de Zena, enquanto ela olhava para tudo.

A jovem achou que talvez não devesse permitir isso, mas, por outro lado, seria infantilidade protestar, de modo que continuaram de mãos dadas até a carruagem parar diante do apartamento.

‑ Posso entrar? Perguntou o conde. ‑ Se Villerny já tiver voltado, quero perguntar‑lhe o que ele resolveu sobre vocês jantarem ou não comigo, hoje à noite.

‑ Por favor, faça isso e espero que Kendric diga "sim".

‑ Você não pode querer isso mais que eu ‑ declarou o conde, sorrindo.

A zeladora entregou‑lhe a chave do apartamento, o que significava que Kendric ainda não voltara, e os dois subiram a escada para o primeiro andar.

O conde abriu a porta. Entraram na atraente saleta, onde o sol penetrava pelas janelas.

‑ Kendric ainda não voltou ‑ disse Zena, desnecessariamente. ‑ Gostaria que você esperasse aqui comigo.

‑ Tenho a firme intenção de ficar.

Zena colocou as luvas e a bolsa numa cadeira e depois tirou o chapéu elegante e moderno.

Ao se virar, percebeu que o conde estava muito próximo dela. De costas para a janela, parecia, como de manhã, envolto em luz.

Olharam um para o outro. Zena não soube quem fez o primeiro movimento, mas uma força estranha os atraio um para o outro.

O conde tomou‑a nos braços e quando ela ergueu a cabeça, beijou‑a nos lábios.

Zena nunca fora beijada, mas sempre achava que, se isso acontecesse com o homem amado, seria maravilhoso. E o beijo do conde foi mais do que maravilhoso!

Tinha magia, encanto, intensificando as estranhas sensações que ela tivera desde que o conhecera. dum modo que não sabia explicar, isso fizera parte de seus sonhos.

Ele apertou‑a mais ainda, Seus beijos se tornaram insistentes. Zena soube, então, que era o que ela sempre desejara na vida e, embora tivesse medo de confessá‑lo, era amor.

Era um amor que nada tinha a ver com posição social ou dinheiro, era o encontro dum homem e duma mulher que se sentiam atraídos um pelo outro.

O conde apertou‑a com mais força e Zena sentiu que todo o seu corpo vibrava com um êxtase indescritível, que acabou por tomar conta de todo o seu ser.

A sala pareceu girar e ela teve a impressão de que seus pés não mais tocavam no chão e que o conde a levava para o céu.

Somente quando Zena sentiu que não mais pertencia a si e sim a ele, não podendo mais pensar mas apenas sentir, foi que o conde ergueu a cabeça.

Por um momento, ficou olhando para os olhos da moça, que brilhavam de felicidade. Viu a brancura da pele, as faces rosadas e os olhos entreabertos.

Não havia necessidade de palavras. O conde sabia que o coração de Zena pulsava desordenadamente.

Sabia também que aquele beijo era muito diferente de qualquer outro que ele conhecera na vida.

Depois, recomeçou a beijá‑la, com beijos longos, lentos e apaixonados, que os deixaram trémulos e ao mesmo tempo extasiados, como que envoltos em luz...

 

Muito tempo depois, quando sentiu que não podiam ficar mais nos braços um do outro, o conde levou Zena para o sofá.

A moça ergueu os olhos e o conde disse:

‑ Será que existe uma criatura mais perfeita, mais fascinante? Mas, minha querida, preciso falar com você.

Nisto, ouviram passos no corredor. A porta se abriu e Kendric entrou. O conde afastou‑se ligeiramente de Zena.

‑ Desculpem o atraso ‑ disse Kendric, jogando o chapéu numa cadeira. ‑ Mas fui visitar os amigos de Philippe e recebi um maravilhoso convite para esta noite.

‑ Convite?! ‑ perguntou Zena, com uma voz que não parecia a sua.

O conde levantou‑se, lentamente.

‑ Isso significa que não pretende aceitar o meu... ‑ disse.

‑ Sinto muito, Graumont. Talvez possamos jantar amanhã, mas Zena e eu fomos convidados para jantar com o príncipe Napoléon. Como você sabe, isso é uma ordem. Depois iremos a uma festa na casa La Paiva, nos Champs Elysées, que também não podemos perder!

O conde ficou sério.

‑ Não sabia que você conhecia o príncipe Napoléon.

Kendric riu.

‑ Encontrei‑o hoje, pela primeira vez, em companhia dum dos amigos de Philippe. Disse‑me que daria um jantar em sua casa e, como soubera que estou acompanhado por uma linda amiguinha, desejava muito conhecê‑la. ‑ Kendric olhou para Zena e acrescentou: ‑ Eu não poderia dizer ao príncipe que você prefere jantar com outra pessoa.

‑ Não... claro que não ‑ respondeu a irmã.

‑ Por acaso você conhece a reputação do príncipe, em relação às mulheres? ‑ perguntou o conde. ‑ Não creio que seja uma companhia desejável para Zena.

Kendric encolheu os ombros.

‑ Tomarei conta dela. E, agora que aceitei o convite de Sua Alteza, não é possível voltar atrás.

A moça percebeu que o conde estava apreensivo e que foi com dificuldade que não continuou protestando contra os planos de Kendric.

Achando que seria desagradável, caso ele fizesse isso, Zena lhe estendeu a mão.

‑ Sinto não poder jantar com você, hoje. Mas, se for possível, gostaria de fazer isso amanhã.

‑ Pretendo vê‑la antes disso ‑ declarou o conde. ‑ Você me prometeu que deixaria que a levasse ao Louvre, amanhã de manhã.

Os olhos de Zena se iluminaram.

‑ Sim, é claro. Sei que Kendric não gosta de museus, nem de galerias de arte, de modo que podemos ir cedo.

‑ Virei buscá‑la às onze horas ‑ prometeu o conde. ‑ E obrigado por um dia tão feliz.

Beijou a mão de Zena. Ela percebeu que ele desejava dizer, sem palavras, o quanto sentia ter que deixá‑la e como aquele dia fora maravilhoso.

O conde nada mais podia fazer, a não ser partir. Quando os dois irmãos se viram a sós, Kendric disse:

‑ Zena, tenho tanta coisa para lhe contar! A noite de hoje vai ser muito interessante, mesmo que seu amigo Graumont não a aprove.

Não esperou que a irmã fizesse um comentário e falou das festas do príncipe Napoléon, às quais ele sempre desejara comparecer e que eram as mais procuradas em Paris.

‑ Ele só pode dar essas festas quando a mulher está fora, no campo ‑ explicou Kendric. ‑ E, então, convida as mulheres mais famosas de Paris.

‑ Mulheres como as que vimos no Café Anglais?

‑ Exactamente ‑ respondeu Kendric. ‑ E, embora eu não ache apropriado, você vai conhecer as mais famosas cortesãs que fizeram de Paris o El Dorado de todos os homens da Europa, apesar das esposas e das mães darem a isso um nome muito diferente!

‑ E nelas está incluída a mamãe ‑ observou Zena.

Kendric abriu as mãos.

‑ Ela ficaria furiosa, se soubesse aonde a levei, Zena! Mas o que você vai ver hoje à noite será certamente uma coisa instrutiva, embora tenha que esquecer tudo assim que chegar em casa.

Quando se vestia para o jantar, Zena percebeu que não apenas teria preferido jantar com o conde, como o amava.

Aquilo a assustava, embora soubesse que ele tinha roubado seu coração; que jamais tornaria a lhe pertencer ou pertenceria a qualquer outro homem.

‑ Eu o amo! ‑ murmurou, sabendo que seu amor não tinha esperança e que só lhe traria sofrimento.

Apesar disso, era maravilhoso saber que ele podia despertar tal paixão e que no dia seguinte iria tornar a vê‑lo.

No dia seguinte e nos outros cinco!

Depois, para o resto da vida, Zena nada mais teria além duma bela recordação e a tristeza de saber que, entre eles, havia um abismo tão profundo quanto o canal da Mancha e intransponível.

"Talvez um dia, quando eu estiver solitária e infeliz na Inglaterra, possa tornar a vê‑lo. Mas, se visse, isso de nada adiantaria, a não ser para me tornar mais infeliz ainda", disse a si mesma.

Decidiu que, após aquela noite, daria um jeito de passar todos os momentos de sua visita a Paris com o conde. Diria a Kendric que não aceitasse nenhum convite para ela.

Depois de pronta, usando um vestido que a arquiduquesa tinha comprado para a filha usar num baile que se realizaria durante a semana das corridas, achou que, com os cílios e os lábios com batom, não iria parecer muito insignificante entre as convidadas do príncipe Napoléon.

Não tinha o mínimo desejo de despertar admiração dele, ou a de qualquer homem presente, mas não queria envergonhar Kendric, nem permitir que os que tinham arranjado convite para eles achassem que o gosto do novo amigo era inferior aos deles.

Quando foi à saleta, viu que Kendric estava nervoso e com medo de que ela parecesse distinta demais.

Os olhos dele primeiro examinaram a cabeça da irmã. O cabeleireiro felizmente tinha chegado quando Zena estava quase pronta e fez com que os cabelos dum ruivo‑dourado parecessem mais sensacionais do que de costume.

Tinha colocado neles três broches de brilhante em forma de estrela, que brilhavam a cada movimento da cabeça.

Zena colocara à volta do pescoço um colar de brilhantes, que sua mãe lhe dera recomendando que só o usasse depois de casada, pois era imponente demais para uma jovem.

Kendric notou o colar e disse sorrindo:

‑ Se alguém lhe perguntar sobre o colar, não se esqueça de dizer que foi um presente meu! Isso certamente aumentará o meu prestígio. Se bem que, se alguém me conhecesse, iria ficar imaginando como é que consegui comprá‑lo!

Zena esteve a ponto de perguntar se ele havia dado algum presente a Yvonne. Depois achou que o irmão poderia pensar que estava criticando a sua generosidade. Além do mais, não havia necessidade disso, já que Kendric conhecera Yvonne apenas na véspera.

Nada disse. Temendo chegarem atrasados, Kendric convidou‑a para descerem.

Zena viu, com surpresa, que o irmão tinha alugado uma carruagem para levá‑los à casa do príncipe Napoléon.

‑ Você está muito imponente ‑ ela comentou.

‑ É caro mas vale a pena. Detesto parecer o "primo pobre". E fique sabendo que, pelo facto de eu ser de Wiedenstein, vários dos amigos de Philippe assumem comigo um ar superior.

Zena riu.

‑ Não fariam isso, se soubessem quem você é realmente!

Kendric também riu.,

‑ Tenho até vontade de lhes dizer a verdade.

‑ Cuidado ‑ pediu a jovem.

‑ Não se preocupe. Bêbado, ou sóbrio, está aí um segredo que não pretendo revelar ‑ declarou Kendric. ‑ E você também com o que disser a Graumont. Tenho a impressão que está gostando de você.

‑ Por que pensa isso? ‑ perguntou Zena

‑ Achei que ficou com ciúme, porque vou levá‑la ao jantar do príncipe. O modo com que a olha, Zena, pode ser admiração, ou talvez seja outra coisa.

A moça disse, vivamente:

‑ Ele tem sido muito amável e tivemos uma conversa bastante interessante.

Ao dizer isso, compreendeu que era a primeira vez na vida que guardava um segredo em relação ao irmão.

Não queria que Kendric soubesse que o conde a beijara, ou mais ainda, que ela o amava.

 

Zena jamais pensara que as mulheres pudessem ser tão bonitas, ou tão elegantes, nem que usassem tantas jóias caras como as convidadas do baile.

Mas, ficou atónita como elas eram vulgares na maneira de falar.

Os homens eram todos distintos, com títulos retumbantes, Zena não precisou ouvi‑los falar, para saber que representavam a elite da aristocracia francesa, e que vários tinham cargos importantes no governo.

Mas nem todas as mulheres eram de origem francesa, havendo duas inglesas e uma russa.

Pelo modo da russa falar, Zena não soube se ela era culta, ou não; mas as francesas, além de não falarem com pronúncia parisiense, usavam uma gíria que ela não compreendia. E as duas inglesas falavam dum modo que impediriam a arquiduquesa de tomá‑las até mesmo como ajudante de cozinha!

Pela primeira vez, Zena compreendeu por que Kendric havia dito que, quando se achara na companhia da bailarina, não conversara com ela.

O que aqueles homens distintos e obviamente inteligentes teriam em comum com tais mulheres, que pronunciavam errado as palavras mais corriqueiras e que pareciam vulgares só ao abrir a boca?

Zena estava tão perplexa e ao mesmo tempo tão curiosa que ficou olhando em volta da mesa de jantar, esquecendo‑se por um momento de ser educada e de conversar com o cavalheiro à sua direita.

Kendric estava à sua esquerda. Zena compreendeu que os homens e as mulheres que tinham sido anunciados depois que ela e o irmão chegaram também estavam sentados aos pares, à mesa.

A parceira do príncipe obviamente estava disposta a agir como anfitriã. Estava sensacional e tão cheia de jóias, que Zena a comparou a uma prima‑dona num palco, decidida a receber só para si todos os aplausos.

Zena ouviu a frase:

‑ Quer dizer o seu nome, belezinha?

Virou‑se para o homem idoso a seu lado, que tinha um rosto interessante, na opinião da jovem, mas um tanto debochado.

Havia rugas de dissipação sob os olhos, que eram escuros e penetrantes. A testa era larga, inteligente, mas também tinha rugas; os cabelos eram levemente grisalhos.

‑ Meu nome é Zena, monsieur.

‑ Por que não nos encontramos antes? ‑ perguntou ele.

‑ Acabo de chegar a Paris.

‑ Então é isso. Quero dizer‑lhe que minhas festas, e sou o marquês de Sade, são tão famosas quanto as de nosso anfitrião e espero ter a honra de recebê‑la como convidada.

‑ É muita gentileza sua, monsieur.

Ao dizer isso, a moça teve certeza de que já ouvira falar do marquês de Sade, mas não se lembrava bem a que respeito.

O homem inclinou‑se para ela e Zena percebeu que não gostava dele.

Não sabia explicar o motivo, mas sentia que era um homem em quem não poderia confiar.

‑ Devo acreditar que é protegida de Villerny? ‑ perguntou o marquês.

Zena evitou responder à pergunta, tomando um gole de vinho no copo onde estava gravado o brasão do príncipe Napoléon.

‑ É moço demais para você. ‑ Continuou o marquês. ‑ Sei que, quando um homem incendiar estes seus cabelos, o fogo do amor será devastador, e é pouco provável que Villerny seja o homem certo para isso.

‑ O que desejo é que o senhor me diga os nomes das pessoas à mesa ‑ disse Zena. ‑ Sendo uma estranha aqui, gostaria de saber quem são.

Achou que tinha sido muito inteligente em mudar de assunto, mas o marquês apenas sorriu e disse:

‑ Quero falar de você e, naturalmente, também de mim. Diga‑me: há quanto tempo conhece Villerny?

‑ Há muito tempo ‑ respondeu Zena, em tom de desafio. ‑ E somos muito felizes juntos.

Ambas as coisas eram verdadeiras, de modo que a voz da jovem tinha uma nota de sinceridade.

‑ Tenho uma casa, perto do Boris, que está vaga actualmente ‑ contou o marquês. ‑ Quero mostrá‑la a você. ‑ Zena nada disse e ele continuou: ‑ Amanhã, iremos juntos à Joalheria Oscar Massin e você poderá escolher um dos broches em formato de flor, que são as jóias mais belas do mundo.

Ele falou com tanta segurança que Zena ficou constrangida e um tanto amedrontada.

‑ Não compreendo... o que quer dizer, monsieur. E se eu tentar compreender... talvez fique zangada.

O marquês riu:

‑ Você é muito moça, mas é inteligente o bastante para saber que estou sugerindo que troque o seu actual protector por outro que a fará uma das mulheres mais famosas da França. Na verdade será rainha na sua profissão.

Zena achou que não havia entendido direito.

Depois lembrou‑se que Kendric lhe dissera que as mulheres de Paris recebiam jóias e vestidos dos homens, para que eles as exibissem como cavalos de corrida para despertar a inveja dos amigos. Essas mulheres estavam dispostas a aceitar presentes do homem que desse por elas o lance mais alto.

"Não devo ficar zangada. Devo recusar a oferta dum modo firme, mas cortês", pensou Zena.

Mas era mais fácil dizer do que fazer, porque Zena compreendeu que o marquês decidira que a queria, desde o momento em que a conhecera. E era um homem que parecia sempre obter o que desejava, fosse como fosse.

Não deu ouvidos aos protestos de Zena. Quando finalmente saíram da sala de jantar, ela achou que o comportamento dele era incompreensível, o mesmo acontecendo com os outros convidados.

à medida que a refeição continuava, Zena percebeu que todos os homens se comportavam cada vez com maior intimidade em relação às suas vizinhas de mesa. O único diferente era Kendric, que parecia interessado em sua vizinha da esquerda.

Isto era possível porque o príncipe Napoléon tinha duas mulheres para diverti‑lo; não apenas a que estava disposta a agir como anfitriã, mas também uma actriz célebre, cujas observações espirituosas faziam o príncipe rir, prendendo também a atenção do outro cavalheiro ao lado.

Isto deixou a parceira deste homem livre para Kendric, que certamente estava tirando partido da situação, ao máximo.

Conforme o costume francês, homens e mulheres saíram da mesa ao mesmo tempo. Zena procurou ficar perto das outras mulheres que subiram a escada para buscar seus agasalhos, já que todos iam à festa dada por La Paiva.

Quando desceu, Zena viu com alívio que Kendric estava sozinho e chegou perto dele, antes que outra mulher o fizesse

‑ Não me deixe sozinha com o marquês de Sade ‑ pediu. ‑ Está sendo inconveniente.

‑ Já ouvi falar nele ‑ respondeu Kendric. ‑ Trate de ficar longe desse homem. Se continuar a importuná‑la, Zena, levo‑a para casa.

A irmã ia dizer que talvez fosse uma boa idéia, quando as outras mulheres apareceram.

Antes de poder dizer mais alguma coisa ao irmão, eles se viram metidos numa carruagem com mais duas pessoas e não puderam conversar em particular.

Felizmente os outros estavam entretidos um com o outro; o homem beijando e acariciando a mulher dum jeito que Zena achou constrangedor. Mas, pelo menos, ela estava livre do marquês de Sade.

Quando se recusou a deixar que ele segurasse sua mão, à mesa, sentiu que ele comprimia o joelho no dela e teve que se torcer para evitar aquele contacto.

A distância até a casa de La Paiva não era grande. Kendric disse a Zena que era a mansão mais luxuosa de Paris e que levara anos para ser construída.

Ao entrarem, ouviram vozes altas e sentiram o perfume de flores caras, fazendo com que parecesse uma casa diferente de todas as que Zena conhecia.

Havia um vasto salão com cinco janelas altas, com um tecto magnífico onde estava pintado "Noite" perseguindo o "Dia". As paredes eram cobertas de brocado vermelho e aquilo mais parecia um templo dedicado ao prazer.

Antes de entrar no salão, Zena foi para cima com as outras mulheres, subindo uma escada iluminada por um grande lustre de bronze esculpido. Viu, com espanto, que os degraus e o corrimão eram de ónix.

Deixaram os agasalhos num quarto, onde a cama tinha belas incrustações de madeira e de marfim, parecendo um altar duma alcova.

Ouviu uma das mulheres dizer, em tom invejoso:

‑ Custou cem mil francos!

Havia muitas outras coisas que Zena gostaria de examinar, mas teve medo de que, se demorasse a descer, a vizinha da mesa de Kendric de novo o monopolizasse.

Desceu depressa a escada. Quando entrou no salão, viu consternada, que Kendric e o marquês de Sade falavam um com o outro em tom encolerizado.

Correu para junto do irmão e ouviu‑o dizer:

‑ Já lhe disse, monsieur, que Zena é minha e não tenho a mínima intenção de cedê‑la a você ou a quem quer que seja!

O coração de Zena parou por um segundo, porque o marquês não apenas parecia zangado, mas agressivo. Ela deu a mão a Kendric e disse, em voz baixa:

‑ Já disse a ele que pertencemos um ao outro e que jamais o abandonarei, Kendric.

‑ Então, esta é uma resposta definitiva para você ‑ disse Kendric ao marquês..

Falou em voz alta e Zena percebeu que ele havia bebido muito e estava aborrecido e ofendido com o comportamento do marquês

A banda estava tocando e Zena puxou o irmão.

‑ Vamos dançar, Kendric.

‑ Não tão depressa! ‑ protestou Sade. ‑ Já ofereci uma jóia para essa belezinha e suponho que você, meu rapaz, esteja esperando que eu aumente a soma que lhe sugeri. Muito bem, ofereço o dobro!

O marquês sorriu; foi um sorriso muito desagradável.

‑ Se o tiver insultado, será muito fácil você exibir uma satisfação na maneira do costume.

Zena soube exactamente o que ele queria dizer e saltou um grito horrorizada.

Ao fazer isso, percebeu que alguém se aproximara e estava a seu lado. Sem se virar, soube quem era e experimentou uma sensação de alívio e de indescritível alegria.

]Sem pensar, chegou bem perto do conde e disse, em murmúrio pensando ser ouvida apenas por ele.

‑ Impeça‑os! Por favor... Kendric não pode duelar com ele.

Havia em sua voz uma nota aterrorizada, porque compreendia o que poderia significar se Kendric se metesse num duelo e saísse ferido. Então, todo mundo ficaria sabendo quem ele era.

Sendo muito viva, percebeu que o sorriso do marquês significava que, se ferisse Kendric, seria mais fácil tomá‑la para si.

Como se compreendesse o que Zena estava pensando, o conde se aproximou do marquês e disse:

‑ Sou obrigado a lhe pedir, Sade, que deixe de ser inconveniente com estes jovens, que são meus amigos.

‑ Como é que ousa intrometer‑se?! ‑ exclamou Sade, esquecendo Kendric por um momento. ‑ O que isto tem a ver com você?

‑ Tem muito a ver comigo, porque pretendo proteger mademoiselle Zena de homens como você, que a tratam como se fosse uma mercadoria que pode ser negociada, dum modo tão degradante, que nenhum homem decente o faria.

A maneira de falar foi ainda mais impressionante do que as palavras. O marquês ficou rubro de cólera e rosnou:

‑ Como ousa me insultar e mete‑se em coisas que não lhe dizem respeito?

‑ Já lhe disse que isto me diz respeito ‑ declarou o conde. ‑ E, se está querendo lutar, então será mais desportivo escolher alguém do seu tamanho e lutar comigo!

‑ Lutarei com ambos, se é o que deseja! ‑ gritou o marquês. ‑ E, depois que eu terminar, esta moça será minha, sem que haja mais discussões.

‑ Ela nunca será sua ‑ disse Kendric, furioso.

Zena achou que era um erro o irmão dizer alguma coisa. Apertou o braço do conde e sentiu que ele a compreendia.

‑ Creio que a melhor coisa que eu poderia fazer seria levar Zena para casa ‑ disse a Kendric. ‑ Não há razão para ela ficar aqui e ouvir as palavras dum homem que não se comporta como um cavalheiro.

‑ Obrigado ‑ respondeu Kendric.

O marquês soltou um rugido de cólera.

‑ Não ouse me tratar dessa forma ‑ disse ele ao conde. ‑ Mademoiselle Zena prometeu aceitar minha protecção e eu é que vou levá‑la para casa.

Estendeu a mão, ao dizer isso. Zena recusou, encostando‑se ao conde.

‑ Venha ‑ disse ele, virando‑se para a porta e puxando‑a.

Mas o marquês a impediu.

Agarrou o pulso de Zena e passou o braço pela cintura dela.

‑ Sabe de que lado do pão está a manteiga, belezinha. Agora diga a estes imbecis, duma vez por todas que já fez sua escolha.

‑ Não! Não! ‑ gritou Zena, procurando libertar‑se.

Estava apavorada, não apenas por si mesma, como por Kendric, que se adiantara, encolerizado, para afastar o marquês.

‑ Como ousa tocar em Zena! ‑ exclamou ele. ‑ Certamente percebe que ela não o quer. Se não a deixar em paz, ponho‑o para fora a pontapés!

O marquês virou‑se, furioso, e levantou o braço, como se fosse atingir Kendric.

Então, quando pela mente de Zena passou rapidamente a idéia de que um duelo entre os dois era inevitável, o conde agiu.

‑ Aprenda a se comportar, monsieur ‑ disse ele, dando um tapa na cara do outro.

O marquês agora estava pálido de raiva.

‑ Vou encontrar‑me com você de madrugada, no lugar do costume ‑ disse ele. ‑ E, depois que tiver dado conta de você, serei perfeitamente capaz de desafiar esse rapazinho pretensioso!

‑ Aceito o desafio ‑ declarou o conde. ‑ E veremos o que acontecerá depois.

O marquês empertigou‑se dum jeito que fez Zena achar que estava seguro da vitória.

‑ às cinco horas, então ‑ disse. E afastou‑se.

Zena soltou um murmúrio horrorizado. Nada pôde dizer, porque o conde a levava do salão para o hall.

Lá chegando, ele disse a um lacaio:

‑ Vá buscar o agasalho desta senhora.

O homem inclinou‑se e esperou Zena explicar como era o agasalho.

Depois que ele saiu, Zena virou‑se para o conde, segurando‑o com ambas as mãos.

‑ Está tudo certo ‑ disse ele, suavemente. ‑ Não diga nada, até sairmos daqui.

Zena ficou em silêncio até o lacaio voltar com sua capa. Depois entrou na carruagem do conde, que estava à porta.

Quando se afastavam dali, ela se atirou sobre ele. O conde abraçou‑a e ela escondeu o rosto no ombro dele.

‑ O que posso... dizer? Como posso agradecer? Seria impossível para Kendric... duelar. E, de qualquer jeito, tenho certeza de que o marquês seria... bom demais para ele.

‑ O marquês é considerado um dos melhores atiradores do país ‑ declarou o conde.

‑ Oh, não! ‑ exclamou Zena. ‑ Nesse caso, você não deve... lutar com ele!

‑ É uma coisa que preciso fazer.

‑ Mas... ele pode feri‑lo...

‑ É um risco que tenho que correr, mas saiba que não tenho medo.

‑ Não, claro que não. Eu não deveria tê‑lo envolvido nisso. Mas estava desesperada... por causa de Kendric.

Ao dizer aquilo sentiu que gostaria de poder explicar que Kendric era o herdeiro da Coroa de Wiedenstein, e que isso tornaria tudo mais fácil.

‑ Ele é moço demais para se envolver com um homem como Sade ‑ disse o conde. ‑ O marquês é rápido no gatilho e é por isso que sempre sai vencedor nos duelos.

‑ Mas... você...

‑ Posso apenas esperar ser mais rápido do que ele.

‑ O que posso dizer a você? Foi errado da minha parte... muito errado pedir sua ajuda. Mas, quando você apareceu, pensei que tivesse sido mandado por... Deus.

‑ Talvez tenha mesmo ‑ respondeu o conde, com um sorriso. ‑ Quando fiquei sabendo que vinha à casa de La Paiva, arranjei um convite e, aconteça o que acontecer, estou contente por ter feito isso.

‑ É verdade? ‑ perguntou Zena.

‑ Talvez seja outra maneira de provar o quanto você significa para mim.

‑ Se ele o ferir... nunca me perdoarei.

‑ Não pense nisso. Pense que, como ele agiu errado, sendo prepotente e insultuoso, o bem triunfará sobre o mal e eu serei o vencedor.

‑ Vou rezar. Vou rezar com minha alma e o meu coração.

O conde abraçou‑a com mais força, mas não a beijou. Seguiram em silêncio para a Rue St. Honoré.

Quando chegaram à casa, o conde pediu a chave à zeladora e acompanhou Zena até a escada.

Ela esperava que ele subisse até o apartamento, mas ouviu‑o dizer:

‑ Vá dormir, minha querida. Não pense em mais nada, a não ser na felicidade que teremos amanhã, quando eu lhe mostrar os quadros do Louvre. ‑ Zena nada disse e ele continuou: ‑ Agora eu vou voltar, para fazer com que Villerny não se meta mais em encrencas e para arranjar meus padrinhos para o duelo. Depois, irei descansar.

‑ Como poderei dizer como você é... maravilhoso para mim?

‑ Espero que possa fazer isso amanhã.

O conde pegou as mãos de Zena e levou‑as aos lábios, uma após a outra. Depois, disse, serenamente:

‑ Boa noite, minha querida. Durma bem, mas lembre‑se de mim em suas orações.

Isso fez com que os olhos de Zena ficassem marejados de lágrimas. Mas, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, o conde se dirigiu para a porta da rua e saiu.

Zena subiu a escada lentamente, como se o tecto tivesse desabado em ruínas, a seus pés.

 

Zena tirou o vestido de baile e as sandálias, mas não terminou de se despir.

Ficou deitada na cama, de porta aberta, à espera de que o irmão voltasse.

Mal podia acreditar que vivesse tal situação.

Parecia cruel e indesculpável que ela tivesse envolvido o conde a ponto de ele ter que duelar com o marquês para salvar Kendric.

Por outro lado, a idéia de Kendric ser ferido e talvez morto num duelo em Paris era tão horripilante, que Zena não podia raciocinar direito.

Tinha certeza de que, se o irmão tomasse parte num duelo, mesmo que saísse vencedor, alguém descobriria quem era ele. E teriam então que explicar ao pai e à corte o que tinha ido fazer em Paris.

Zena não suportava nem imaginar o que sua mãe diria, se soubesse o papel que a filha estava representando. Ficou ali, tensa, rezando com fervor para que tudo desse certo, para que Kendric escapasse sem ser reconhecido e o conde não fosse ferido.

Saber que ele duelaria com um dos maiores atiradores da França era uma verdadeira agonia.

Suponhamos que fosse morto? Suponhamos que sobrevivesse, mas nunca a perdoasse por tê‑lo envolvido em semelhante situação?

Lembrou‑se então de que, pelo menos, o conde teria que esquecê‑la. Embora Zena não pudesse mais esquecê‑lo, sabia que depois de sua partida de Paris nunca mais iria vê‑lo.

Tudo era assustador, horrível e opressivo, a ponto de achar que ficaria louca por não encontrar uma saída para os seus problemas.

As horas passavam devagar. Finalmente, mais ou menos às quatro horas, ouviu a porta da saleta abrir‑se. Logo depois, Kendric entrou no quarto da irmã.

‑ Por que demorou tanto? O que aconteceu? ‑ perguntou Zena.

Kendric atirou o chapéu e a capa para cima duma cadeira, abraçou a irmã e disse:

‑ Está tudo certo. Não se preocupe. Mas confesso que estou muito contente por não ter que duelar com o marquês.

‑ O conde vai fazer isso por você.

‑ Sei disso e sou muito grato a ele.

‑ Pedi‑lhe para que o salvasse, Kendric, e foi o que ele fez ‑ disse Zena.

‑ Obviamente gosta muito de você. E acho que estou me comportando muito mal, deixando que tome o meu lugar. Mas que mais eu poderia fazer?

Fez a pergunta dum modo patético, como um menino.

‑ Estive pensando nisso. Tenho certeza de que de modo algum você poderia duelar com o marquês. Quer você o ferisse, ou ele a você, inevitavelmente haveria um escândalo. E papai ficaria sabendo de tudo.

‑ Acredita que não pensei nisso? ‑ perguntou Kendric. ‑ Mas, para dizer a verdade, estou com vergonha de mim mesmo.

‑ Vou rezar, rezar fervorosamente, para que o duelo não tenha consequências sérias e tudo possa ser logo esquecido.

Kendric nada disse e Zena percebeu que ele não estava nada optimista.

Tirou o braço do ombro da irmã e dirigiu‑se para a porta.

‑ Preciso trocar de roupa ‑ disse. ‑ Vou ser padrinho do conde, porque ele não quis que nenhum de seus amigos soubesse do duelo. Pedi a um dos amigos de Philippe, um sujeito chamado Anton, que seja a outra testemunha.

‑ Você vai encontrar‑se com o conde? ‑ perguntou Zena, quase sem fôlego. ‑ Então, também vou.

‑ Não vai nada! ‑ Kendric protestou. ‑ As senhoras nunca assistem aos duelos.

‑ Vou assistir a esse ‑ disse a irmã, com firmeza. ‑ Como é que você vai até lá?

‑ numa carruagem que aluguei desde ontem à noite para nos trazer para casa depois da festa.

‑ Vou com você e fico na carruagem ‑ disse Zena. ‑ Poderei assistir ao duelo e depois partirei imediatamente, sem que saibam que estive lá.

‑ Já lhe disse que não vai. ‑ Ao dizer isso, Kendric olhou para a irmã. Depois, lentamente, continuou: ‑ Creio que o pior aconteceu... Você está apaixonada pelo conde.

Sendo os dois tão unidos, era inevitável que Kendric logo descobrisse os sentimentos da irmã.

‑ Eu o amo ‑ disse ela, simplesmente.

‑ Oh, meu Deus! ‑ exclamou Kendric. ‑ Só faltava isso para tornar a situação ainda pior.

‑ Não é minha culpa.

‑ E ele está apaixonado por você?

‑ Diz que está.

‑ Então, jure por tudo o que é sagrado que não lhe contará quem somos ‑ pediu Kendric. ‑ Sei que ele é um cavalheiro e que certamente se comportará como um. Mas, se ele contar o nosso segredo a um amigo, ou um criado de quarto, ou seja a quem for, poderíamos ser chantageados de maneira desagradável.

Zena ficou em silêncio. Depois, disse:

‑ Não há razão para eu contar ao conde. Sei que, quando formos embora, nunca mais o verei.

Ao dizer as últimas palavras, sua voz quebrou‑se num soluço. Como se tivesse medo de chorar, ela correu para seu quarto.

Escolheu o vestido mais simples que possuía e cobriu‑o com uma capa de veludo verde‑escuro, para não chamar a atenção.

Tirou as estrelas de brilhante do cabelo. Percebendo que ainda estava com vontade de chorar, lavou o rosto em água fria e depois foi para a saleta.

Kendric ficou pronto quase ao mesmo tempo. Quando viu a expressão de Zena, estendeu‑lhe a mão, num gesto afectuoso.

Ela segurou‑a. O irmão levou Zena para a porta, dizendo:

‑ Anime‑se, querida, as coisas talvez não sejam tão más como parecem. A gente às vezes tem que pagar pelas travessuras que faz, dum jeito ou de outro.

Desceram a escada de mãos dadas. Quando entraram na carruagem, Kendric disse ao cocheiro para que ponto do Boris queriam ir.

Pareceu que o homem conhecia o lugar exacto. Zena teve a desagradável sensação de que era impossível, em Paris, fazer com que um duelo permanecesse secreto.

Não disse nada ao irmão para não deixá‑lo mais apreensivo. Antes, segurou a mão dele, confortando‑o.

‑ Nada acontecerá ao conde ‑ disse ele, como se adivinhasse os pensamentos de Zena.

‑ O que faremos se... for ferido? ‑ perguntou a moça.

‑ Ele providenciou para que um médico esteja presente. Provavelmente o marquês fará o mesmo. Aconteça o que acontecer, os dois poderão contar com assistência médica.

‑ O que não adiantará muito, se o conde for morto ‑ observou Zena.

Sabia, porque muitas vezes seu pai discutia esse assunto, o que geralmente acontecia nos duelos, que eram mais um ritual de honra do que qualquer outra coisa. Um ferimento leve era considerado satisfação suficiente para o insulto, na maioria dos casos. No que dizia respeito aos aristocratas, era considerado pouco desportivo e falta de educação ferir um rival seriamente.

Mas Zena não confiava no marquês, sabendo que era mau e perigoso.

"Se o conde perder o duelo, Kendric e eu teremos de voltar para casa para... evitá‑lo", disse a si mesma.

Era um agonia pensar que talvez tivesse que deixar o conde mais cedo do que esperava. Quando a carruagem se dirigia para o Bois, procurou não pensar nisso.

Chegaram ao lugar do duelo, que era uma pequena clareira no meio do bosque. à luz dúbia da madrugada, Zena viu que já havia ali alguns homens.

O dia começava a amanhecer e os primeiros raios de sol surgiam no céu.

‑ Agora, jure que não deixará que ninguém a veja, Zena ‑ disse Kendric. ‑ Ficaremos ainda em maiores apuros, se souberem que eu a trouxe comigo.

‑ Você não me impediria de vir ‑ declarou Zena.

O irmão tocou de leve no ombro dela. Depois desceu da carruagem, fechando a porta com cuidado.

Zena viu‑o afastar‑se. Seu coração deu um salto quando o conde surgiu por entre as árvores, no outro lado da clareira, indo ao encontro de Kendric.

Havia com ele um outro homem, que Zena julgou ser Anton. Dali a pouco apareceu um senhor idoso, que devia ser o médico, pois carregava uma maleta.

Era difícil para ela deixar de observar o conde, mas olhou para o outro lado da clareira e viu o marquês conversando com seus dois padrinhos e com seu próprio médico.

O céu tinha clareado e agora ela podia distingui‑los bem. Achou que o marquês tinha uma aparência desagradável e ainda mais debochada do que na casa de La Paiva.

Seus olhos pareciam mais escuros e sinistros, os lábios tinham uma expressão cruel que expressava sua vontade de ferir o conde.

‑ Por favor, meu Deus, salvai‑o! Por favor, fazei com que vença! Por favor... ajudai‑nos...

Repetiu estas frases inúmeras vezes achando que subiam ao céu, e que Deus, que dera a ela aquele amor, os ajudaria.

Nada estava acontecendo. Zena ficou imaginando por que não começavam o duelo.

Depois apareceu mais um homem e ela compreendeu que os outros tinham estado à espera do Juiz.

Era bem mais velho do que qualquer dos dois rivais e muito distinto. Chamou os dois contendores e conversou com eles durante segundos. Zena teve certeza de que estava fazendo recomendações sobre o comportamento dos duelistas.

Então, a caixa contendo as pistolas foi aberta. Como o marquês se considerava insultado, teve a escolha da arma.

Provavelmente seguindo as instruções do juiz, os duelistas foram para o centro da clareira e pararam de costas um para o outro, esperando o sinal para começarem.

Os dois homens usavam fraques elegantes e cartolas.

Zena notou que, como na véspera quando almoçaram juntos, o conde usava a sua meio de lado, num ângulo petulante.

Sentindo muito medo, ela rezou com maior fervor, sentindo que isso lhe dava coragem e talvez a aumentar a habilidade do conde no manejar da pistola.

Não podendo suportar a tensão de ver sem ouvir, Zena desceu o vidro da carruagem. Nisto, ouviu o juiz contar:

‑ Um... dois... três...

A cada número, os rivais andavam um passo, afastando‑se um do outro.

‑ Quatro... cinco... seis... sete... oito... nove... dez!

Quando foi dita a última palavra, o marquês e o conde se viraram e Zena fechou os olhos, sem coragem de olhar.

Dois tiros soaram simultaneamente. Depois, olhou apenas para o conde. Viu a fumaça que saía da sua pistola e percebeu que ele cambaleava.

Não podendo mais controlar o medo, abriu a porta da carruagem, e correu para ele, sabendo que ninguém poderia impedi‑la de chegar perto do homem a quem amava e que estava ferido.

O conde ainda estava de pé. Zena pôs os braços à volta do pescoço dele, dizendo, desesperada:

‑ Está ferido! Oh, querido... querido... Não aguento isto...

Achou que o conde a fitava com surpresa. Depois, ele passou o braço à volta de Zena.

‑ O que está fazendo aqui? ‑ perguntou.

Antes que ela respondesse, uma voz disse:

‑ Monsieur, deixe‑me ver a bala que penetrou em seu braço.

Zena soltou um grito horrorizado e afastou‑se um pouco, enquanto o médico examinava o braço do conde.

‑ O tiro passou de raspão ‑ disse o conde.

‑ Foi o senhor quem atingiu o marquês ‑ disse o médico.

Pela primeira vez, Zena desviou o olhar do conde.

Viu três homens debruçados sobre alguma coisa no chão e depois percebeu que era o marquês.

Ficou de respiração suspensa. Mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, Kendric apareceu a seu lado.

‑ Eu disse que ficasse na carruagem!

‑ Pensei que o conde tivesse sido... ferido ‑ Murmurou Zena. Mas o irmão não a ouviu.

‑ Você foi fantástico ‑ disse ele ao conde. ‑ Nunca vi um tiro mais rápido.

‑ Tenho muita prática ‑ declarou o conde. ‑ Não com homens, mas com aves.

O médico tirou o paletó do conde. Zena viu que o tiro tinha furado a manga, atingindo‑o de raspão. Via‑se uma mancha vermelha no braço.

Estava sangrando, mas não muito.. O médico enfaixou‑o, ajudado por Zena.

‑ Creio que seria bom você indagar das condições do marquês ‑ disse o conde a Kendric.

‑ Espero que você tenha feito com que ele não incomode mais os outros ‑ observou Kendric.

‑ Vamos indagar ‑ disse Anton.

Kendric olhou para Zena.

Antes que ele dissesse qualquer coisa, o conde avisou:

‑ Vou levar Zena para casa. Talvez você possa ir na sua carruagem.

Falou dum modo tão firme, que Kendric, após um momento de hesitação, se afastou com Anton.

O conde agradeceu ao médico e deu‑lhe o que pareceu a Zena uma quantia enorme, em francos. Depois, com o paletó jogado no ombro, disse:

‑ Vamos? Como você deve saber, não deveria estar aqui.

‑ Sinto muito... ‑ respondeu Zena, contrita. ‑ Prometi a Kendric que não sairia da carruagem... Mas, quando vi que você cambaleava... não pude controlar‑me...

‑ Estou contente por não ter sabido que você me observava ‑ disse o conde. ‑ Foi muito corajoso e muito comovente da sua parte.

A carruagem do conde esperava do outro lado da clareira. Zena entrou, escolhendo o lugar com cuidado, para não ficar do lado do braço ferido do conde.

A carruagem partiu. Ela olhou‑o com ar súplice e ele disse:

‑ Minha querida, você parece cansada.

‑ Como é que eu poderia dormir, sabendo que você se achava em perigo?

‑ Creio que rezava por mim.

‑ Fervorosamente... E minhas preces foram ouvidas. Estou grata... mais do que possa dizer. ‑ Deu um suspiro e depois perguntou, ansiosa: ‑ Você vai ter febre?

‑ Foi apenas um arranhão ‑ respondeu o conde. ‑ Para dizer a verdade, agora que tudo passou, estou envaidecido por ter derrotado um homem com uma reputação formidável de duelista.

‑ Você esteve maravilhoso!

‑ Talvez eu tivesse uma vantagem injusta, com suas orações e meu amor por você a me sustentarem ‑ disse ele, suavemente.

Zena murmurou uma coisa ininteligível e colocou a cabeça no ombro dele.

‑ Olhe para mim, querida ‑ disse o conde.

Ela ergueu a cabeça, obediente. O conde fitou‑a, à luz pálida do sol matutino que estava pelas janelas da carruagem.

‑ Você está mais bonita do que nunca, sem pintura no rosto ‑ disse ele.

Zena teve um sobressalto.

Lembrou‑se de que tinha lavado o rosto com água fria, antes de sair do apartamento. Como não estava habituada com cosméticos, não pintara os cílios e nem os lábios, como havia feito desde que tinha chegado a Paris.

‑ Assim como está, parece muito, muito moça, inocente e intocada ‑ o conde continuou.

Parecia que estava falando consigo mesmo e não com ela.

Então, quando Zena reflectia sobre o que dizer, os lábios do conde buscaram os dela. Beijou‑a suave e carinhosamente.

Continuou beijando‑a, até a carruagem entrar na Rue St. Honoré. Ele ergueu a cabeça. Zena disse, como se não pudesse conter‑se.

‑ Amo... você! Amo‑o tanto que é difícil pensar em qualquer outra coisa.

‑ É o que sinto por você ‑ disse o conde. ‑ E, minha querida, quando eu for buscá‑la para o almoço, temos de falar de nosso futuro juntos, porque sei que não posso viver sem você.

‑ Nosso... futuro... ‑ balbuciou Zena.

Foi como se uma mão gelada agarrasse seu coração.

‑ Temos que ficar juntos. Embora nos conheçamos há muito pouco tempo, você enche minha vida. Sei que nada tem importância, a não ser você. ‑ Beijou‑a de novo. Nisto, a carruagem parou. O lacaio pulou para fora e abriu a porta. O conde disse: ‑ Não se preocupe, querida. Deixe tudo por minha conta. Vá dormir. É o que também pretendo fazer. Virei buscá‑la à uma hora e depois discutiremos tudo o que nos diz respeito.

Zena sorriu. Percebendo que ele ia descer, disse:

‑ Fique onde está. Sabe muito bem que deve mexer o braço o mínimo possível.

‑ Está cuidando de mim? ‑ perguntou o conde, sorrindo.

‑ É o que eu... gostaria de fazer.

Os olhos de ambos se encontraram.

Depois Zena desceu rapidamente e, para que ele não a seguisse, entrou correndo em casa, sem olhar para trás.

 

Zena dormia profundamente, quando ouviu a voz de Kendric chamando‑a.

Achou difícil acordar e desejou que ele fosse embora, para poder continuar dormindo.

Sentiu a mão de Kendric em seu ombro.

‑ Acorde, Zena! Acorde!

‑ O que aconteceu?

Estava tão sonolenta que por um momento foi difícil focalizar a vista. Depois viu o irmão ao pé da cama, vestido como quando tinha ido para o duelo.

‑ Acorde, Zena! ‑ ele insistiu. ‑ Temos que partir imediatamente!

‑ Partir... para onde?

‑ Para casa!

Como se tivesse levado um jacto de água fria no rosto, Zena sentou‑se vivamente na cama e abriu os olhos.

‑ O que há de errado? O que aconteceu?

‑ Temos que sair de Paris imediatamente ‑ disse o irmão. ‑ Se você andar depressa, poderemos pegar o trem para Hoyes, que parte às onze horas.

‑ Mas... não podemos ir... Por que temos de ir?

Kendric sentou‑se na beira da cama e tirou a cartola.

‑ A imprensa está fazendo perguntas. Você sabe como são esses repórteres quando farejam uma história que poderá causar sensação.

‑ Quer dizer que eles pretendem escrever sobre o duelo?

‑ Não como um duelo comum pois há muitos; um por dia, creio eu ‑ respondeu o irmão. ‑ Mas este, para a imprensa, é excepcional.

‑ Por quê?

‑ Porque o facto do marquês ser vencido num duelo é notícia. E ele teve um ferimento sério no braço.

‑ A que ponto? ‑ perguntou Zena.

‑ Talvez tenha que ser amputado ‑ respondeu Kendric. ‑ Mas o facto de ter sido ferido num duelo por causa duma mulher, e de ter sido derrotado, é o tipo de história que Paris vai apreciar, principalmente quando souberem o nome da mulher.

Zena soltou uma exclamação de horror.

‑ Então... é isto o que estão tentando descobrir!

‑ Exactamente ‑ respondeu Kendric. ‑ Já sabem que você veio para Paris comigo e que eu sou, supostamente o visconde de Villerny.

‑ Mas, Kendric, como podem ter descoberto isso?

‑ Sei lá! Com certeza o marquês de Sade falou. Continuou bebendo muito, depois que você saiu do baile. E ouvi‑o dizer em voz alta que, além de lutar com o conde, lutaria comigo, para ter certeza de ficar com você.

Zena soltou um gemido.

‑ A culpa é minha.

‑ Não tem culpa de ser como é ‑ respondeu Kendric. ‑ Creio que deveríamos ter previsto isso, antes de virmos para cá.

‑ O que podemos fazer para evitar que esses repórteres descubram... quem somos? ‑ perguntou Zena, assustada.

‑ Só há uma coisa a fazer ‑ respondeu o irmão. ‑ Desaparecermos. ‑ Fez uma pausa e continuou: ‑ Se ficarmos, certamente descobrirão que eu não sou Villerny. E, se começarem a indagar em Wiedenstein, sempre há chance de sua extraordinária semelhança com a princesa Marie‑Thérèse ser notada. ‑ Zena soltou um grito horrorizado. Kendric levantou‑se, dizendo: ‑ Já pedi a Renée que subisse para arrumar a sua mala e encomendei também uma carruagem. Você tem apenas uma hora, antes de irmos para a estação.

‑ Mas, Kendric... o que vou fazer a respeito do conde?

‑ Esqueça‑se dele!

Zena começou a vestir‑se. Depressa, mas sem grande habilidade, Renée começou a guardar as roupas de Zena na mala.

‑ É uma pena ter que ir embora, m'mselle. Foi um prazer tê‑los aqui.

‑ Obrigada ‑ respondeu Zena, distraída. Depois, acrescentou: ‑ Renée, pode me fazer um favor?

‑ Naturalmente, m'mselle.

‑ Quando o conde vier me buscar, pode lhe entregar uma carta?

‑ Sim, m'mselle.

Zena a princípio achou que seria mais sensato partir sem dar explicações. Depois compreendeu que não poderia fazer aquilo.

Amava o conde e era amada por ele.

Antes de pegar no sono, tinha pensado que seria muito difícil ouvi‑lo fazer planos para o futuro de ambos, sem lhe confessar a verdade.

Achou que talvez o destino tivesse interferido e que partir sem explicação seria melhor do que mentir.

Ao mesmo tempo, todos os seus instintos lhe diziam que estava sendo tola.

Mas o que poderia dizer?

Como poderia confessar que não havia possibilidade dum futuro para eles, juntos, e que o amor dos dois era uma coisa maravilhosa que surgira em suas vidas, mas apenas por um momento fugaz?

Depois de vestida, enquanto Renée terminava de arrumar a mala, Zena correu para a saleta. Pegou uma folha de papel e um envelope na escrivaninha, e o levou para o quarto.

Tinha a impressão de que, se Kendric a visse, procuraria dissuadi‑la. Mas já estava determinada.

Sentou‑se à escrivaninha do quarto e escreveu as primeiras palavras. Ouviu então a voz do irmão falando com o pai de Renée, que o ajudara a fazer a mala.

Depressa, porque não havia tempo, escreveu:

Eu o amo! Eu o amo! Porém tenho de partir. Mas quero lhe dizer novamente o quanto você foi bom e maravilhoso e que jamais o esquecerei. Prometo lhe escrever depois que chegar a casa.

Para você, meu amor e minhas orações.

Zena.

 

Quando terminou de colocar a carta no envelope, Kendric apareceu à porta.

‑ Está pronta, Zena! Precisamos ir embora!

‑ A mala está pronta, monsieur ‑ avisou Renée.

As palavras da empregada desviaram a atenção de Kendric. Quando ele se virou para dar instruções à zeladora. Zena deu um jeito de entregar a carta a Renée, junto com uma nota de dez francos.

A moça enfiou‑as no bolso do avental.

‑ Merci, m'mselle ‑ disse, num tom que Kendric pôde ouvir. Depois, em voz baixa: ‑ Não esquecerei o que me pediu para fazer, m'mselle.

A bagagem foi empilhada sobre a carruagem. Enquanto se afastavam da Rue St. Honoré, Zena olhou para as janelas da saleta.

Estava pensando nos beijos do conde, que ela não imaginara serem tão perfeitos, e tão maravilhosos. Sabia que jamais esqueceria o êxtase e a felicidade que a fizeram sentir‑se no céu.

"Como poderei viver, sem conhecer de novo essa felicidade?", perguntou a si mesma, achando que o mundo inteiro estava envolvido em sombras.

 

Levaram quase duas horas para chegar a Hoyes. Depois, tiveram que esperar por um combóio lento que os levaria a Ettengen.

Quando saíram de Paris, pegaram uma cabina só para eles. Zena pouco falou, pois sabia que o irmão estava cansado por não ter dormido à noite. Logo ele pegou no sono.

Também ela estava cansada, mas só pensava no conde, imaginando se Renée lhe teria dado a carta e se ele já saberia que eles tinham deixado Paris.

Lembrou‑se de todas as palavras de amor que ele lhe havia dito, sabendo que as repetiria para si mesma inúmeras vezes, durante toda a vida. Seria seu único conforto nos anos de infelicidade que se estenderiam à sua frente.

Em Hoyes, Kendric começou a andar dum lado para outro na plataforma, como se precisasse de exercícios.

Zena sentou‑se no banco duro de madeira da estação, não tendo vontade de continuar a viagem e sim sentindo um desinteresse por tudo que conhecia.

Finalmente o trem lento da capital chegou. Kendric encontrou um vagão de primeira classe vazio e Zena entrou ali.

Quando recebeu a gorjeta de Kendric, o carregador perguntou:

‑ Desculpe, monsieur, mas nunca lhe disseram que é o retracto do príncipe herdeiro?

Kendric sorriu:

‑ Creio que já o disseram antes.

‑ É inacreditável. Parece seu sósia.

‑ Vou aceitar isso como um elogio ‑ disse Kendric.

‑ É um belo rapaz e temos muito orgulho dele ‑ declarou o carregador. ‑ Quando a hora chegar, vai ser um bom governante.

‑ Espero que ele não o decepcione. ‑ Quando o combóio partiu, Kendric disse à irmã: ‑ É sempre agradável receber um elogio sincero e espontâneo. Acha que serei um bom arquiduque?

‑ Não, se você se comportar da mesma forma que em Paris!

Kendric riu.

‑ Creio que deveria pedir‑lhe desculpas, Zena. Por outro lado, diverti‑me a valer e é uma coisa de que me lembrarei, quando estiver em Düsseldorf.

O modo de falar do irmão fez com que Zena compreendesse o quanto ele abominava a idéia de passar um ano sob o regime militar prussiano.

Estendeu a mão para ele e disse:

‑ Não devemos lamentar o que fizemos, e sim ficar agradecidos por termos conhecido tanta felicidade.

Kendric percebeu o quanto ela sofria.

‑ Se eu estivesse no trono, Zena, juro que daria um jeito para que você se casasse com o conde e fosse feliz para sempre.

‑ Obrigada, Kendric. Embora seja uma agonia saber que nunca mais o verei... sempre ficarei contente por ter conhecido um homem tão maravilhoso... que me amou.

Kendric suspirou, mas não podia fazer nada para consolá‑la.

Depois de viajarem em silêncio durante algum tempo, Kendric disse:

‑ Não se esqueça de que agora somos o conde e a condessa de Castelnaud.

‑ Não esqueci ‑ respondeu ela, desejando poder continuar sendo Zena Bellefleur.

 

Quando chegaram à casa do professor na aldeia de Ettengen, um prédio alto, feio e de tijolinhos vermelhos que na opinião de Zena parecia uma escola, os dois irmãos imaginando o que a condessa e o barão tinham pensado da fuga deles.

Na carruagem de aluguel que os levara para lá, Kendric comentou:

‑ Uma coisa lhe digo: se nossos cães de guarda não tiverem corrido para contar nossa aventura a papai, estarão à espera, prontos para nos morder. Prepare‑se, então, para uma recepção desagradável.

Aquilo não era exagero. A única coisa que diminuiu a cólera dos que esperavam por eles foi de facto de terem chegado mais cedo do que haviam prometido.

Quando entraram em casa e foram levados para a sala onde estavam a condessa, o barão e o professor, as exclamações e as recriminações impediram de dar qualquer explicação.

Finalmente, com uma autoridade que Zena nunca tinha visto no irmão, Kendric disse:

‑ Basta! Minha irmã e eu não voltamos para ser repreendidos como colegiais! ‑ Olhou para o professor e continuou: ‑ Em primeiro lugar, meu senhor, peço desculpas por não termos chegado quando éramos esperados. Mas a princesa e eu perdemos apenas alguns dias de aulas. Poderemos recuperar o tempo perdido, se nos aplicarmos nos estudos como pretendemos.

Zena percebeu que o professor amolecera. Achando que Kendric tinha começado com o pé direito, disse:

‑ Como estou cansada devido à viagem, senhor professor, gostaria de ir para meu quarto. E, se possível, desejo um refresco. Fazia muito calor no combóio.

O professor apressou‑se a dar suas ordens. Com uma dignidade ofendida, que se manifestava em todos os seus gestos e em todas as palavras, a condessa levou Zena para cima, para um quarto muito agradável nos fundos da casa, dando para o jardim.

‑ Suas roupas foram tiradas da mala, mademoiselle, mas, antes de chamar a criada, gostaria de lhe dizer...

‑ Estou cansada ‑ declarou Zena. ‑ E, como não estou disposta a participar dum jantar longo, peço‑lhe que mande subir uma bandeja com alguma coisa para eu comer.

A condessa ficou atónita.

‑ Vossa Alteza Real.. Quero dizer mademoiselle... deve estar doente!

‑ Não tenho nada. Por favor, deixe‑me sozinha. Quero descansar um pouco.

Considerou que, se Paris tinha dado a Kendric uma nova autoridade, também ela não se sentia mais uma criança, e sim adulta.

"Tenho idade bastante para ser amada. E isto faz de mim uma mulher. Não vou mais receber ordens de pessoas que deveriam obedecer‑me, em vez de eu obedecer‑lhes", pensou.

Na realidade, estava cansada demais para discutir, desejando apenas descansar.

Havia uma única coisa que precisava fazer antes, pois do contrário não conseguiria dormir, escrever ao conde.

Esperou até estar deitada. Com um lápis, em vez de pena e tinta, escreveu três páginas, onde expressou o seu amor.

No fim, escreveu:

 

"Você me deu uma coisa tão preciosa, tão perfeita, que brilhará como uma luz que me guiará durante toda a vida.

Embora eu jamais torne a vê‑lo, e escrever isto me corta o coração, sei que o seu amor me tornou uma pessoa muito melhor.

Creio que o amor, o verdadeiro amor, faz com que as pessoas queiram ficar melhores e desejem inspirar os outros. E é isso que vou tentar fazer, porque você me inspirou, e seu amor é como uma estrela a me guiar.

Este amor ficará sempre fora de meu alcance, mas estará ali, brilhando no céu, sobre a minha cabeça, e eu o seguirei como os Reis Magos seguiram a Estrela de Belém.

"Sei também que sempre estarei perto de você, e meu amor o alcançará para protegê‑lo, meu querido, como o protegeu quando você duelou com o marquês.

"Nada mais posso dizer, a não ser que agora e por toda a eternidade meu coração e minha alma serão seus

Zena".

 

Não releu a carta, colocando‑a dentro dum envelope.

Sabia que, se a endereçasse: "Conde Jean de Graumont, aos cuidados do duque de Soissons. Champs Elysées, Paris", a carta chegaria às mãos dele.

Tocou a campainha. Quando a criada apareceu, Zena lhe pediu que levasse a carta ao correio, imediatamente.

A criada, que era alemã como o professor, ficou hesitante.

Zena disse:

‑ Como é muito importante, quero que vá imediatamente. É claro que pagarei por seu trabalho. Por favor, dê‑me a minha bolsa. ‑ Percebeu que os olhos da mulher brilharam, gananciosos. Quando Zena lhe entregou uma nota de dez francos e mais o dinheiro para o selo, a mulher fez uma reverência.

‑ Irei imediatamente, senhorita ‑ disse, com voz gutural. Acrescentou, como se achasse que era isto que Zena desejava ouvir. ‑ Ninguém saberá que saí de casa.

‑ Obrigada ‑ disse Zena.

Finalmente pôde descansar. Deitou‑se na cama e fechou os olhos.

Por um momento, desejou chorar por seu amor perdido, ficando a pensar, desesperada, como tivera coragem de deixá‑lo.

Depois, pensou nos braços dele enlaçando‑a. A felicidade que o conde lhe dera envolveu‑a novamente como uma nuvem de luz, e Zena acabou por adormecer.

 

Zena desceu a escada lentamente e foi para a biblioteca.

Fazia quatro dias que estavam em Ettengen e ela sentia como se quatro séculos se tivessem passado. Cada dia, sua saudade do conde era mais intensa, mais agonizante.

A princípio, ficou entorpecida pelo choque do duelo, por ter deixado Paris tão depressa, e cair na monótona companhia da condessa e do barão.

Todas as noites adormecia chorando, acreditando que tinha perdido a luz da sua vida e que nunca mais veria outra coisa a não ser escuridão e infelicidade.

Na véspera, achando que não poderia mais suportar aquilo, depois que todos se retiraram foi ao quarto de Kendric para lhe dizer que tinha que fugir dali.

‑ Não adianta, Kendric. Não concebo a vida sem o conde. Para dizer a verdade, prefiro estar morta!

‑ As coisas vão melhorar com o tempo ‑ respondeu Kendric, consolando‑a.

Estava reclinado sobre os travesseiros, lendo um livro. Olhou para a irmã, sentada na beira da cama, e percebeu o quanto ela sofria.

Achou que estava começando a ficar parecida com Melanie, embora houvesse pouca semelhança entre ambas.

‑ Sinto muito, Zena ‑ disse, impulsivamente. ‑ Eu nunca deveria tê‑la levado a Paris.

‑ Jamais me arrependerei ‑ replicou ela, com firmeza. ‑ Não queria perder o conde por nada deste mundo. Mas, por que

hei-de sofrer assim? Por que hei de me casar com um homem que... não conheço? ‑ Fez uma pausa. Depois, disse, lenta e distintamente: ‑ Vou voltar a Paris e procurar o conde. E, no que diz respeito a Wiedenstein, é como se eu tivesse morrido!

Kendric segurou a mão de Zena.

‑ Escute aqui, querida. Você não morrerá, e sim o conde.

Zena ficou perplexa.

‑ Que quer dizer com isso?

‑ Quero dizer que papai descobrirá o seu paradeiro e o conde irá para a prisão, sob uma acusação falsa. Ou então, se for importante demais, sofrerá "um lamentável acidente".

‑ Não acredito! Você está apenas querendo me assustar, para que eu não volte a Paris.

Kendric apertou a mão dela.

‑ Sabe que desejo que seja feliz, Zena. Lembra‑se de nossa prima Gertrudes?

Zena reflectiu por um momento.

‑ Quer dizer, a que agora é rainha da Albânia?

Kendric assentiu com a cabeça.

‑ Ela mesma. Assim como você, rebelou‑se quando lhe disseram que tinha que se casar com um rei grosseiro e pouco refinado.

‑ E o que aconteceu? ‑ perguntou Zena, em voz baixa.

‑ Gertrudes tinha se apaixonado por um dos diplomatas da corte de seu pai. Era um francês. Amavam‑se loucamente e achavam que só isso importava na vida.

‑ É o que sinto ‑ murmurou Zena.

‑ Combinaram fugir juntos. Gertrudes fez planos para sair do palácio às escondidas e ir ao encontro dele. Acharam que poderiam sair do país, antes que percebessem a ausência deles.

‑ Por que não puderam fazer isso?

Ela falava baixinho e seu olhar estava apreensivo.

‑ Na véspera da fuga, quando estavam certos de que ninguém desconfiava de nada, o diplomata saiu para galopar, como fazia todas as manhãs, e caiu do cavalo quebrando o pescoço.

Houve um longo silêncio. Depois, Zena perguntou:

‑ Não foi acidente?

‑ Ele era um hábil cavaleiro ‑ respondeu Kendric. ‑ E é estranho que um homem desses caia assim.

Houve um silêncio. Zena perguntou:

‑ E você acha que o mesmo poderia acontecer com o conde?

‑ Tenho a certeza que sim ‑ respondeu o irmão. ‑ Desse modo, não haveria escândalo e ninguém saberia de nada, a não ser papai e mamãe. Você seria trazida de volta e o conde estaria morto. ‑ Zena escondeu o rosto nas mãos e começou a chorar. Kendric abraçou‑a e disse: ‑ É esta a pena que pagamos por sermos quem somos. E pensa que, quando chegar a hora, terei o direito de escolher minha noiva? Casarei com uma princesa qualquer, escolhida para mim, e ainda terei que fazer o possível para viver bem com ela, seja lá quem for.

‑ Pelo menos, você poderá... escapulir, de vez em quando ‑ disse Zena, baixinho.

‑ Espero que sim.

Lembrou‑se que seu pai havia dito que gostaria de ir a Paris, mas que isso não é possível.

Zena tirou as mãos do rosto e enxugou as lágrimas.

‑ Tentarei ser corajosa, mas será pior depois que você não estiver mais aqui.

‑ Será também muito pior para mim ‑ replicou Kendric, com ar sombrio.

Conversaram ainda durante um longo tempo, mas não encontraram saída para aquele triste futuro. No momento, o único consolo era sofrerem juntos.

Quando voltou para a cama, Zena chorou não apenas por ter perdido o conde, como também porque ia perder a companhia do irmão querido.

 

Como que para combinar com os sentimentos de Zena, o dia amanheceu enevoado. Mas enquanto os irmãos estudavam com o professor, o sol apareceu. Isso fez com que as aulas, que eram profundamente monótonas, parecessem ainda bem mais cansativas.

O professor era um perfeccionista. Corrigia todas as palavras mal pronunciadas, todas as entonações, todos os erros gramaticais, a ponto de Zena ter vontade de gritar.

O que tornava as lições ainda mais insuportáveis era o facto de a condessa e o barão permanecerem no escritório onde eram dadas as aulas, para que os dois não escapassem de suas vistas.

Eles também acompanhavam os irmãos aonde quer que fossem receando que tornassem a fugir.

‑ A culpa é nossa ‑ disse Zena a Kendric. - Agora só poderia escapar em pensamento.

Terminando o almoço, uma refeição alemã pesada, muito diferente da cozinha francesa do palácio, o professor se retirou para descansar.

Como as aulas começavam muito cedo, o barão e a condessa achavam isso uma óptima idéia e também faziam a sesta, recomendando aos gémeos que fizessem o mesmo.

Temendo que os dois tornassem a escapulir, fizeram com que dessem a palavra de honra de que nenhum dos dois sairia da casa, ou do jardim.

‑ Fico tão contente por me ver livre daqueles urubus velhos, que prometeria qualquer coisa ‑ disse Kendric, quando se viu a sós com Zena.

‑ Creio que estão apenas cumprindo o seu dever. E não há dúvida de que lhes pregamos um susto.

Kendric pegou os jornais.

‑ Está quente demais para ficar dentro de casa. Vou ler no jardim, embaixo duma árvore. Venha também.

‑ Irei daqui a pouco ‑ prometeu Zena. ‑ Mas, primeiro, preciso arranjar alguma coisa para ler.

‑ Duvido que encontre alguma coisa na biblioteca do professor, a não ser livros de História. ‑ Kendric zombou.

Zena achou que até aquilo era preferível a ficar pensando no conde, o que inevitavelmente provocava suas lágrimas.

Kendric pegou os jornais e foi para o jardim, enquanto Zena se dirigia para a biblioteca, onde as estantes estavam repletas de livros.

Encontrou alguns em francês. Estava tirando‑os da estante um a um, para ver se havia algum que lhe interessasse, quando a porta se abriu de repente e ela pensou que Kendric tivesse voltado.

‑ Você tinha razão ‑ disse ela. ‑ Tudo o que há aqui é terrivelmente cacete.

‑ Talvez prefira conversar comigo ‑ disse uma voz de homem.

Zena levou tamanho susto, que quase deixou cair no chão o livro que segurava.

Virou‑se e, atónita, viu que era o conde.

Estava tão bonito, tão elegante, que por um momento ela pensou que estivesse sonhando e tendo a visão do homem que a levara para almoçar no Bois.

Ele fechou a porta e adiantou‑se.

Zena foi incapaz de fazer um movimento.

Queria correr para ele, tocá‑lo, ter certeza de que estava realmente ali, mas não o conseguiu. Perguntou, em voz trémula:

‑ O que aconteceu? Por que está... aqui?

‑ Estou aqui porque me informaram, na delegacia, que a única mulher bonita, em Ettengen, de cabelos dum ruivo‑dourado e de olhos azuis era a condessa de Castelnaud.

‑ Estava à minha... procura? ‑ perguntou Zena, com uma voz que não parecia sua.

O conde aproximou‑se e disse:

‑ Você quase me deixou louco, desaparecendo daquele jeito cruel, sem deixar endereço e sem que eu tivesse a mínima idéia de onde poderia encontrá‑la.

‑ Eu lhe disse que nunca mais poderia... vê‑lo.

‑ Fiquei desesperado, completamente desesperado ‑ disse o conde. ‑ Para ser sincero, nunca fui tão infeliz na vida.

‑ Mas... está aqui.

‑ Sim, estou, graças à Segunda carta que você me escreveu.

‑ Não mandei o endereço ‑ disse Zena, vivamente.

‑ O correio se encarregou disso ‑ declarou o conde. ‑ Quando vi o carimbo "Ettengen", tomei o primeiro combóio em Paris e vim para Wiedenstein.

Zena largou o livro, como se fosse pesado demais.

‑ Então... foi assim que me achou.

Não pôde impedir que sua voz tremesse, mas seus olhos brilhavam no rosto pálido.

‑ Foi assim que a encontrei ‑ disse ele.

Colocou os braços à volta de Zena e puxou‑a para mais perto.

Zena sentiu o coração bater descompassado e ergueu o rosto para o conde.

Ele não a beijou. Fitou‑a durante um longo momento. Depois, disse:

‑ Encontrei‑a, e agora quero saber se pode casar‑se comigo, o mais depressa possível, porque descobri, minha querida, que não posso viver sem você.

Puxou‑a quase com rudeza e então a beijou.

Beijou‑a de modo diferente. Seus lábios eram apaixonados, exigentes. Havia neles um fogo que fez Zena compreender que, por ter sofrido muito, o conde não era capaz de dominar‑se.

Ocorreu a Zena que, se o primeiro beijo que o conde lhe dera tivesse sido assim, ela teria ficado assustada. Mas, agora, qualquer coisa incontrolável e maravilhosa dentro dela fez com que correspondesse ao fogo daquela paixão.

De novo ele a levou para o céu. Zena compreendeu que esta era outra faceta do amor, fabulosa, excitante e exigente. Achou aquilo maravilhoso.

Ele a beijou ainda tantas vezes que Zena esqueceu sua infelicidade. Todo o seu corpo vibrava com uma força que jamais sentira.

Zena soube então que estava viva. Nenhuma sensação que tivera no passado se assemelhava àquilo, nada fora tão belo, tão extasiante como o que experimentava.

O coração do conde batia acelerado contra o dela. Zena soube que ele estava tendo as mesmas sensações que despertava nela, fazendo com que se tornasse uma só pessoa, como se realmente estivessem casados e nada pudesse separá‑los.

Quando finalmente o conde ergueu a cabeça, Zena achou que, se ele não a estivesse segurando, ela não se manteria de pé.

Escondeu o rosto no ombro dele e disse, ofegante:

‑ Eu o amo... eu o amo... e pensei que nunca mais fosse tornar a vê‑lo.

‑ E eu a amo ‑ declarou o conde. ‑ Nunca mais a perderei, minha querida. Nada impedirá que seja minha.

Falou quase com violência. Com um esforço tremendo. Zena lembrou‑se que esse desejo dele era impossível.

‑ Preciso... conversar com você ‑ disse ela.

O conde beijou‑lhe a testa.

‑ O que há para conversar? Fiquei sabendo que você não é quem fingia ser e que o visconde é, na realidade, o conde de Castelnaud.

Zena ergueu o rosto e fitou‑o.

‑ Sabe quem é... Kendric?

‑ Na delegacia me disseram que ele é seu irmão gémeo. ‑ O conde sorriu e continuou: ‑ Fiquei tão contente com a notícia, que tive vontade de dar ao homem que me disse isso alguns milhares de francos. Só não o fiz por medo de ser preso por suborno. ‑ Ele parecia tão feliz, que Zena não teve coragem de lhe contar a verdade sobre o seu nascimento. O conde apertou‑a mais fortemente. ‑ Como é que você pôde fazer uma coisa tão terrível, indo a Paris disfarçada daquele jeito? ‑ perguntou ele. ‑ Creio que eu deveria ficar zangado com seu irmão por levá‑la a lugares aonde nenhuma mulher deveria ir, deixando que conhecesse pessoas que a teriam envolvido em grandes complicações, caso eu não estivesse presente.

‑ Mas você estava. E... me salvou do marquês.

‑ Se eu não tivesse conseguido fazer isso, nem quero pensar no que teria me acontecido ‑ disse ele, em tom sombrio.

‑ Sempre achei que eu poderia... fugir ‑ murmurou Zena, acreditando que precisava dar uma explicação.

‑ Talvez não pudesse escapar do marquês tão facilmente como fugiu de mim.

‑ Não queria fugir de você ‑ disse Zena, baixinho. ‑ Mas Kendric disse que a imprensa estava fazendo indagações a nosso respeito.

‑ Não posso deixar de pensar que seus pais, se estiverem vivos vão ficar muito contrariados quando souberem de sua encenação extremamente censurável ‑ observou o conde.

O modo do conde falar fez com que Zena achasse que tinha obrigação de lhe contar quem ela realmente era.

Por um momento, brincou com a idéia de pedir‑lhe que a levasse embora, já, naquele momento.

Talvez encontrassem um lugar no mundo onde pudessem esconder‑se, onde ninguém os encontraria, onde poderiam ficar juntos. E, se o amor fosse tão grande quanto o dela, nada mais teria importância.

Depois, lembrou‑se do que Kendric lhe dissera na noite anterior. E amava demais aquele homem para permitir que ele corresse perigo.

O conde pôs a mão no queixo de Zena e ergueu‑o.

‑ Você é linda, adoravelmente linda. Como é que pôde acreditar que, representando aquele ridículo papel de demi‑mondaine, houvesse um homem que não desejasse possuí‑la?

Houve agora uma nota de censura na voz dele e Zena compreendeu que o conde temera por ela.

‑ Pode parecer imodesto da minha parte... Mas, se eu não tivesse ido a Paris, não teria conhecido você.

Ele sorriu.

‑ É uma desculpa plausível, querida. Ao mesmo tempo, é uma coisa que pode ter consequências desagradáveis no futuro. ‑ Vendo que ela não entendia, explicou: ‑ Não poderei levá‑la a Paris, minha querida, pelo menos até que o príncipe Napoléon tenha esquecido a sua aparência, como também o marquês de Sade.

‑ Isso não importa, contanto que eu esteja com... você ‑ disse Zena. ‑ Mas há uma coisa que preciso contar‑lhe.

Sua voz tremeu. O conde fitou‑a, com ar indagador.

‑ O que há de errado? Amo‑a, Zena, e sei que você me ama. Só o que desejo, minha adorável, é casar‑me com você o mais depressa possível.

‑ Mas... o que tenho a dizer é que... não posso me casar com você ‑ balbuciou Zena.

‑ Por que não?

Não suportando ver desaparecer a felicidade do rosto dele, Zena exclamou:

‑ Antes que lhe conte... quero que me beije mais uma vez, como agora há pouco.

‑ Está me deixando nervoso. ‑ O conde queixou‑se. ‑ Agora que a encontrei, nada tem importância, a não ser que a amo e que vou tomar conta de você. E, principalmente que torne a fazer coisas perigosas e imprevisíveis. ‑ Ela tornou a sorrir e ele disse ainda: ‑ Creio que, desde o primeiro momento em que a vi, soube que os cílios pintados e a boca vermelha estavam errados. Quando conversei com você percebi imediatamente o quanto era inocente, a não ser, é claro, que fosse a maior actriz do mundo.

‑ Pensou mesmo? ‑ perguntou Zena. ‑ E não ficou escandalizado?

‑ Fiquei profundamente escandalizado de ver você naquele salão de dança em Montmartre e de concordar em almoçar com um estranho, no Boris.

Fez uma pausa. Zena disse então, tão baixo que ele mal a ouviu:

‑ Não pretendia deixar que você me beijasse... Mas foi maravilhoso, tão perfeito... que não posso acreditar que tenha sido errado.

‑ Foi a primeira vez que um homem a beijou? ‑ perguntou o conde.

‑ Foi.

‑ Eu sabia! ‑ exclamou ele. ‑ Quando meus lábios tocaram os seus, tive a confirmação do que já achava, isto é, que você era inexperiente e pura. ‑ Zena abaixou os olhos encabulada. Como nada dissesse, o conde continuou: ‑ Por outro lado, é uma coisa que nunca mais deve acontecer ‑ disse ele. ‑ E não acontecerá, depois que estivermos casados. ‑ Estas palavras fizeram com que Zena se lembrasse do que queria dizer ao conde. Estava com tanto medo, que ficou trémula. ‑ Por que está perturbada? Diga-me o que a incomoda, querida. Depois, poderemos planear nosso futuro.

Temendo que lágrimas rolassem por seu rosto, Zena fechou os olhos.

‑ Beije‑me, por favor. Depois direi o que você precisa... saber.

O conde abraçou‑a com tanta força que ela mal pôde respirar. Beijou‑a, a princípio meigamente e depois dum modo dominador e possessivo.

Beijou depois os olhos de Zena, o nariz, o pescoço, atrás da orelha. Isto surpreendeu Zena, que sentiu uma estranha excitação, diferente de tudo o que sentira antes. Fez com que ficasse fora de si, mal podendo respirar.

De novo o conde beijou‑lhe os lábios. Zena desejou morrer, antes de contar‑lhe quem era ela, sabendo que depois teriam que se separar novamente.

Quando ele finalmente a soltou, Zena estava corada, com os lábios vermelhos devido à força dos beijos, e seus olhos brilhavam.

‑ Eu o amo Jean...

Era a primeira vez que usava o primeiro nome do conde e, de certo modo, isto a fez sentir que pertencia a ele tão completamente, que não havia título ou posição social que pudessem separá‑los.

Eram apenas um homem e uma mulher que se amavam: Zena e Jean.

Ele fitou‑a e havia em seus lábios um sorriso triunfante, como se tivesse ganho uma batalha e o inimigo se rendido.

‑ Agora, diga o que tem a dizer.

Como se não pudesse fazer isso enquanto ele a tocava, Zena afastou‑se, indo até a janela e olhou para o jardim.

Não viu Kendric, ao longe, deitado na grama e lendo um livro.

Só viu a grandiosidade do palácio de seu pai, a sala do trono onde seu pai e sua mãe sentavam‑se em solenidades oficiais, assim como as cadeiras mais baixas, os pequenos tronos, onde ela e Kendric sentavam‑se.

Zena devia ter ficado em silêncio durante alguns segundos, porque o conde disse:

‑ Estou esperando!

‑ Eu... eu... Não sou quem você pensa que... sou. ‑ A voz de Zena parecia vir de longe.

‑ Não é a condessa de Castelnaud?

‑ Não...

‑ Outro disfarce?

Zena inclinou a cabeça.

‑ Então, quem é você? Mas, antes que me responda, deixe que lhe diga que, seja quem for, Zena Bellefleur ou a condessa de Castelnaud, ou qualquer outra pessoa, para mim você é a mulher que amo e com quem vou me casar.

‑ Se eu pudesse me casar com você... seria a mulher mais feliz do mundo.

Falou dum jeito tão agoniado que o conde se sobressaltou.

‑ Por que não pode casar comigo? ‑ perguntou ele ‑ Não me diga que é casada!

‑ Não... não exactamente.

‑ Então, se está noiva, esqueça‑se disso? Suponho que, como acontece nas famílias francesas, seus pais a prometeram em casamento a algum rapaz adequado e você não teve o direito de opinião. Então, antes que diga mais alguma coisa, quero deixar bem claro que vai se casar comigo!

De novo Zena cogitou se deveria concordar com ele, contanto que a levasse imediatamente.

Tinha certeza de que poderia convencer Kendric a ajudá‑los e seria fácil fugir de casa à noite, pular o muro do jardim e atravessar a fronteira para a França antes do amanhecer.

Sua família levaria uma semana ou mais para descobrir que fora o conde quem a levara, mas até lá já estariam casados. Zena seria sua legítima esposa.

"É o que faremos. Vou deixá‑lo acreditar que sou noiva", pensou ela.

Enquanto isso lhe passava pela mente, lembrou‑se da prima Gertrudes e do que tinha acontecido com o homem que ela amava.

"Comigo seria diferente?, perguntou Zena a si mesmo, sabendo que não poderia correr esse risco e que teria que contar a verdade ao conde.

Como se novamente adivinhasse os pensamentos dela, o conde disse:

‑ Precisa me contar a verdade, Zena, por mais difícil que seja. Termos segredos um com o outro enfraqueceria o nosso amor e ergueria uma barreira entre nós.

Zena sabia que ele tinha razão.

Por mais duro que fosse para ela, precisava contar a verdade. Sacrificaria por ele o seu amor, por maior que fosse.

Respirou fundo. Depois, disse, em voz trémula:

‑ Sou... a princesa de Wiedenstein.

Houve um longo silêncio.

Zena sentia que seus olhos se enchiam de lágrimas e contraiu as mãos com força.

‑ É verdade? ‑ perguntou o conde finalmente. Zena não conseguiu responder, mas inclinou a cabeça. ‑ E, como filha do chefe desta nação, você ousou ir a Paris, fingindo ser uma mulher da vida, um tipo que você nem sabe o que é?

‑ Kendric estava infeliz... e perturbado... porque papai lhe disse que tem que ir para Düsseldorf, treinar com os cadetes prussianos durante um ano.

‑ Compreendo que isto o contrarie. ‑ O conde concordou. ‑ Mas, se ele queria ir para Paris, como se atreveu a levá‑la, Zena?

‑ Sempre fizemos tudo... juntos ‑ respondeu a moça. ‑ Teria sido uma crueldade não me levar.

‑ Poderia levá‑la como sua irmã.

‑ Se fizesse isso, Kendric não poderia divertir‑se, porque eu iria precisar duma acompanhante. Então fui com sua chère amie.

‑ Percebo o raciocínio dele. Mas foi uma idéia louca desde o princípio, e não compreendo o que fizeram as pessoas que acompanhavam vocês dois, ao perceberem que tinham fugido.

‑ Conseguimos isso porque vínhamos para cá ‑ explicou Zena. ‑ O expresso de Paris parou em Hoyes, enquanto nosso combóio estava na estação. Pulamos para ele... deixando uma carta para os dois velhos que nos acompanhavam... dizendo que, se nos denunciassem papai iria ficar muito zangado com eles.

‑ Reconheço que foi engenhoso; mas agora que chegou a hora da prestação de contas, o que pretende fazer sobre nós dois, Zena?

Ela virou-se de costas para a janela.

‑ Quero me casar com você... Desistiria de qualquer esperança de ir para o céu para ser sua esposa, viver com você... e amá‑lo. Mas é uma coisa que não posso fazer.

‑ Por que não? ‑ perguntou o conde. ‑ A pompa da corte e o facto de ser uma princesa são coisas mais importantes do que o nosso amor?

Zena aproximou‑se do conde e colocou as mãos no peito dele.

O conde não a abraçou e Zena achou que a expressão de seu rosto era fria e crítica.

‑ Eu o amo... mais do que a própria vida ‑ disse ela. ‑ Se me casasse com você... o acompanharia a qualquer lugar do mundo. Se, para nos escondermos, tivéssemos que morar numa cabana... eu o serviria e o amaria e nada mais teria importância.

‑ Mesmo assim, pretende me mandar embora?

‑ Sou... obrigada a isso.

Sua voz quebrou‑se num soluço.

‑ Por quê? ‑ perguntou o conde.

Zena achou que os olhos dele tinham uma expressão dura.

Querendo obrigá‑lo a compreender, fitou‑o com ar de súplica.

‑ A noite passada eu disse a Kendric que não suportava perder você... e que pretendia fugir e voltar a Paris a fim de procurá‑lo.

‑ Mas Kendric, sensatamente, a dissuadiu.

‑ Disse que, se eu fizesse isso, você... morreria.

Sentiu que o corpo do conde se contraía.

‑ Por que eu haveria de morrer?

‑ Por que foi o que aconteceu com uma de nossas primas ‑ respondeu Zena. ‑ Estava apaixonada por um diplomata, mas teve que se casar com o rei da Albânia.

‑ Por que fez isso? ‑ perguntou o conde.

‑ Ia fugir com o diplomata e pensava que ninguém soubesse disso. Mas ele teve o que se chama de "lamentável acidente", quando estava andando a cavalo. Foi encontrado... com o pescoço quebrado.

‑ E você acha que esse tipo de coisa poderia acontecer comigo?

‑ Kendric está quase certo. Ou, então, se você não for muito importante, será preso com uma acusação forjada... Talvez de espionagem.

‑ Nesse caso, eu seria fuzilado ‑ observou o conde, pensativo.

Zena soltou um grito rouco.

‑ Como é que eu poderia permitir... Como poderia ser responsável por uma coisa dessas? ‑ Teve a impressão de que ele não estava convencido. Disse, ainda: ‑ Eu o amo... eu o amo tanto que se não houvesse perigo para você, arrumaria a mala agora mesmo e o seguiria. Mas, se fizéssemos isso e você morresse... eu morreria! ‑ As últimas palavras foram ditas em voz baixa, mas o conde as ouviu. Só então ele a tomou nos braços. Zena desabou em choro. ‑ Eu o amo... Ficar longe de você é o mesmo que ter um punhal cravado no coração. Mas... o que posso fazer? Não posso viver sem você... mas não posso permitir que morra por minha causa.

Agora ela soluçava, com a cabeça apoiada no ombro do conde.

Ele abraçou‑a com mais força e beijou‑lhe os cabelos.

‑ Não chore, minha querida. Nosso amor deveria ser feliz. Embora nos tenhamos conhecido em circunstâncias extremamente censuráveis, não quero que se arrependa.

‑ Não me arrependo. Foi a coisa mais maravilhosa que me podia acontecer ‑ soluçou Zena. ‑ Mas você poderia ter sido ferido ou morto pelo marquês. E agora temos que nos despedir... De certo modo, a culpa é... minha.

‑ Creio que devemos culpar o destino ‑ disse o conde. ‑ O destino fez com que você e seu irmão fossem bastante corajosos para fugir para Paris, o destino nos colocou lado a lado no Baile dos Artistas e permitiu que eu a encontrasse, querida, depois de pensar que a tinha perdido para sempre.

‑ Mesmo assim... você precisa me deixar.

Olhou para o conde e ele achou que, mesmo com lágrimas nas faces e lábios trémulos, Zena era a criatura mais bela que ele já vira.

‑ Eu a amo, Zena. Céus, como a amo. Mas você precisa ser corajosa.

‑ Não vai ser fácil. E há outra coisa que não lhe contei.

‑ Diga o que é.

‑ Papai e mamãe arranjaram um casamento para mim.

O conde ficou imóvel. Depois, perguntou:

‑ Você vai se casar... com quem?

‑ Com um inglês.

‑ E isto a deixa horrorizada?

‑ Claro que sim. Os ingleses são... frios, arrogantes e insensíveis. Terei que viver no meio de pessoas fechadas, que nunca riem... viver sem amor, sem você.

‑ E quem é esse inglês?

‑ É o duque de Faverstone e vem nos visitar por ocasião do Prix d'Or. ‑ Achou que o conde não tinha entendido e explicou. ‑ É a nossa corrida de cavalos mais importante.

‑ Já ouvi falar ‑ respondeu ele. ‑ Mas por que haveria você de se casar com um duque inglês?

‑ Porque não há príncipes reais disponíveis e ele é parente da rainha Vitória.

‑ E você acha que seria infeliz com ele?

‑ Como poderia ser outra coisa? ‑ perguntou Zena. ‑ Principalmente agora, que conheci você.

Soltou um profundo suspiro.

‑ Minha irmã Melanie é muito infeliz com o príncipe herdeiro de Fürstenburgo e o mesmo sucederá comigo.

O conde ficou em silêncio. Depois disse, secamente:

‑ Como eu não suporto vê‑la infeliz, querida, então terei que salvá‑la.

‑ Salvar‑me? ‑ perguntou Zena. Por um momento, seus olhos brilharam. Depois, disse, com tristeza: ‑ Não há nada que você possa fazer. Kendric tinha razão, ao dizer que papai jamais permitiria o escândalo de eu fugir. E eu teria sempre medo de que alguma coisa acontecesse a você.

‑ Está realmente pensando em mim? Ou acha que sua vida com o duque, na Inglaterra, seria preferível? ‑ Não esperando pela resposta de Zena, continuou: ‑ Conforme você mesma disse, se tivéssemos que viver escondidos, você e eu seríamos muito pobres. Será que o amor pode significar tanto para uma mulher, a ponto de ela desistir voluntariamente de vestidos bonitos, de Jóias e duma porção de criados só por causa dum homem?

‑ Eu andaria em andrajos, esfregaria o chão, pediria esmolas... se pudesse ficar com você.

O conde fitou‑a por um longo momento. Depois, apertou‑a contra o peito e beijou‑a.

Zena vibrou de novo com o calor dos beijos dele. O conde disse:

‑ Vou encontrar um jeito de resolver o problema, que talvez não seja insolúvel como você pensa.

‑ Quer dizer que poderemos... ficar juntos?

‑ Quero dizer que pretendo me casar com você ‑ declarou o conde. ‑ É a primeira vez, Zena, e isto é a pura verdade, que peço uma mulher em casamento e a primeira vez que encontro uma que me fará sempre feliz, tenho certeza.

‑ Assim como serei feliz com você.

‑ Farei com que me ame tanto, que nenhum homem jamais significará coisa alguma para você.

‑ Nenhum... significará... ‑ Ao dizer isto, Zena pensou no duque inglês e estremeceu. Depois, em tom desesperado, perguntou: ‑ O que podemos fazer? O que podemos fazer?

‑ Peço-lhe que deixe isso comigo ‑ disse o conde. ‑ E como quero ter certeza de ser bem‑sucedido, prefiro não falar agora.

‑ Suponhamos que... fracasse?

‑ Será pretensão dizer que sempre consigo o que quero na vida?

‑ Vou rezar, vou rezar fervorosamente... como rezei antes do duelo. Mesmo assim... tenho medo.

‑ Também tenho medo de perdê‑la, meu amor. E agora que sei quem você é, acho melhor ir embora.

Zena passou os braços à volta do pescoço dele.

‑ Como é que posso deixar que vá embora? Suponhamos que jamais o veja? Nem posso imaginar o que eu faria! Oh, meu querido Jean, não posso perdê‑lo!

‑ Nem eu posso perdê‑la, meu amor ‑ disse o conde. ‑ É por isso que precisa de confiar em mim.

‑ Sei que é o homem mais maravilhoso do mundo ‑ declarou Zena. ‑ Mesmo assim, trata‑se de papai e dos poderosos do reino. Como espera... vencer todos eles?

‑ O amor vence tudo ‑ disse o conde, suavemente. ‑ Precisamos acreditar que nosso amor é suficientemente forte para vencer todos os obstáculos.

‑ O meu é, juro que é ‑ afirmou Zena. ‑ Amo‑o tanto, meu bem, que você preenche o mundo inteiro. Não há céu, mar, lua, nem sol ou estrelas. Há apenas você.

O conde encostou a face na dela.

‑ E eu a adoro, Zena! Um dia, poderei dizer‑lhe o quanto a adoro. Então, estaremos casados.

‑ Se eu pudesse acreditar...

‑ Acreditar na vitória já é meia batalha ganha ‑ declarou o conde. ‑ Peço‑lhe, Zena, que acredite em mim.

A moça respirou fundo.

‑ Acredito... e continuarei acreditando.

‑ Então, venceremos, minha adorada.

Zena não pôde responder, porque o conde recomeçou a beijá‑la. De novo ela sentiu um êxtase indescritível. Não havia necessidade de palavras para dizer que acreditava nele.

Se o lado racional de Zena ainda não estava convencido, ela acreditava com o coração e com a sua fé em Deus.

Fora Deus quem lhe trouxera o amor e Zena sabia que, dum jeito ou de outro, Ele faria com que os sonhos dela e do conde se tornassem realidade.

 

O combóio que saiu de Hoyes, em direcção à capital, começou a ganhar velocidade.

Zena olhou para o irmão e viu que estava tão apreensivo quanto ela.

Na véspera, chegara um mensageiro dizendo que eles deveriam voltar para o palácio imediatamente. Os dois irmãos adivinhavam a razão da ordem do pai e estavam alarmados.

Assim que se viu a sós com Kendric, Zena perguntou:

‑ Acha que papai descobriu que fomos a Paris? Quem poderia ter‑lhe contado?

‑ Só Deus sabe. Mas talvez não seja esse o motivo de ele nos chamar.

‑ Então, por que haveria de querer que voltássemos com tanta pressa?

‑ Não posso imaginar ‑ respondeu o irmão.

Zena lhe contou, então, o segredo que tinha guardado durante dois dias, isto é, que o conde viera procurá‑la.

‑ Ele veio aqui? ‑ perguntou Kendric, incrédulo.

Zena inclinou a cabeça.

Disse que contara ao conde a verdade sobre sua identidade e que ele respondera que, fossem quais fossem os obstáculos, pretendia casar‑se com ela.

‑ Você devia estar louca, se acreditou nisso ‑ disse Kendric secamente.

‑ Pediu‑me que acreditasse nele ‑ respondeu Zena, infeliz.

Kendric pôs o braço à volta dos ombros da irmã.

‑ Escuta, Zena, sei o que está sentindo, sei que está infeliz, mas não quero dar‑lhe falsas esperanças. Elas apenas fariam com que você sofresse mais.

‑ Eu amo o conde! Oh, Kendric, eu o amo desesperadamente.

‑ Sei disso ‑ respondeu o irmão, dum modo consolador. ‑ Mas acredite em mim, quando lhe digo que não há nada que possa fazer. Se o conde procurar papai para pedir sua mão, certamente vai se meter em encrencas.

‑ Eu o preveni disso...

‑ Então, se ele tiver juízo, voltará a Paris. Eu gostaria de poder fazer a mesma coisa!

‑ E eu também... ‑ murmurou Zena.

O combóio chegou à capital no fim da tarde. Quando viu os funcionários do palácio na estação, e também os criados que iam cuidar da bagagem, Zena sentiu que os portões da prisão cheia de protocolo e de pompa se fechavam atrás dela.

Agora, não era mais a condessa de Castelnaud e, sim, Sua Alteza Real, princesa Marie‑Thérèse.

Foram levados para a carruagem por vários funcionários da estrada de ferro. Ao partirem, observou uma pequena multidão que se formava ao ver as carruagens reais.

Assim que teve oportunidade, Zena perguntou ao oficial de gabinete do arquiduque.

‑ Por que papai nos mandou chamar? Esperávamos ficar lá mais dez dias.

‑ Creio que Sua Alteza Real deseja explicar‑lhe isso pessoalmente ‑ disse o homem. ‑ Mas incumbiram‑me de lhe dizer, princesa, que, assim como o príncipe Kendric, deverá ir directamente para seu quarto e mudar de roupa. ‑ Zena pareceu admirada e o homem explicou: ‑ Sua Alteza Real está com alguns convidados e espera a princesa no salão vermelho.

Ao ouvir isso, Zena soube que os visitantes eram importantes. Ficou imaginando quais dos governantes vizinhos estavam sendo recebidos e se havia algum significado especial nessas visitas.

Sabendo que seria inútil fazer perguntas, ficou em silêncio, acenando para as pessoas que a saudavam de ambos os lados da rua.

Quando subia a escada do palácio, ao lado do irmão, perguntou‑lhe em voz baixa:

‑ O que está acontecendo?

‑ Não tenho a mínima idéia. Mas estou grato por qualquer coisa que adie a tempestade que, provavelmente, logo desabará sobre nós.

Como estava assustada, Zena trocou de roupa o mais depressa possível, dando pouca atenção ao vestido que a criada tinha escolhido para ela.

Era muito bonito, não tão enfeitado como os que ela levara a Paris. Mas, sendo mais simples, fazia com que Zena parecesse mais moça e primaveril.

Kendric entrou no quarto, avisando que estava pronto. Desceram a escada, como dois colegiais apanhados em falta. Um lacaio abriu a porta do salão vermelho para eles entrarem.

Viram ali várias pessoas em companhia do arquiduque e da arquiduquesa.

O pai adiantou‑se para eles. Zena ergueu o rosto para ser beijada.

‑ Chegamos, papai.

‑ Estou muito satisfeito por revê‑la, querida.

O tom de voz e a expressão dos olhos fizeram com que Zena percebesse que os seus receios eram infundados. Fosse qual fosse o motivo de terem sido chamados de volta ao palácio, não era por o arquiduque estar zangado.

‑ Como vai, meu rapaz? ‑ perguntou ele a Kendric.

‑ Muito satisfeito por estar de volta, sir.

O arquiduque sorriu, como se compreendesse que o filho tivesse achado o professor profundamente maçante.

Depois pegou a mão de Zena.

‑ Chamei‑os de volta porque o duque de Faverstone chegou mais cedo do que esperávamos. Ele está conversando com sua mãe. Vou apresentá‑lo a vocês.

Zena contraiu‑se, mas nada poderia fazer, além de seguir o pai, passando por entre estadistas e políticos, até chegarem à lareira, onde sua mãe conversava animadamente com alguém.

Foi aí que compreendeu que Kendric tinha razão e que o conde se iludia ao dizer que daria um jeito de casar‑se com ela.

A pequena chama de esperança que Zena tivera em Ettengen se apagou.

Ela estava perdida e nem mesmo o conde poderia salvá‑la do duque inglês.

Em um momento de desespero, teve vontade de fugir e recusar‑se a ser apresentada ao duque.

Pareceu‑lhe que seus pés queriam levá‑la para a porta, mas compreendeu, consternada, qual a impressão que tal acto causaria.

Todos os anos de disciplina obrigaram‑na a caminhar ao lado do pai. Quando ele parou, Zena compreendeu que era esse o momento em que sua sorte seria selada.

Desejou que o chão se abrisse a seus pés e a tragasse.

Ficou firme, tesa, mas não conseguiu erguer os olhos para o homem que seria seu marido.

‑ Então, cá está você, Zena ‑ disse a arquiduquesa.

Não foi necessário Zena responder, porque o pai se adiantou e disse:

‑ Zena, deixe que lhe apresente o duque de Faverstone, que é um hóspede inesperado, mas bem‑vindo.

Maquinalmente, Zena estendeu‑lhe a mão.

Sentiu que a apertavam fortemente e ouviu uma voz grave dizer:

‑ Estou encantado por Sua Alteza Real!

Havia qualquer coisa de familiar naquela voz e nos dedos que apertaram os dela.

Curiosamente, Zena ergueu os olhos.

Então, achou que estava sonhando, ou que enlouquecera.

Era Jean que a fitava, alto, moreno, bonito, sorrindo levemente. Nos olhos, tinha uma expressão de amor que somente ela poderia compreender.

Por um momento, a moça teve dificuldade em respirar.

Depois, como era inacreditável, sentiu que a sala rodava e que ela ia desmaiar.

Mas Jean segurava com força sua mão, e falou, num murmúrio que só ela conseguiu ouvir.

‑ Eu disse que acreditasse em mim.

A plataforma estava coberta por um tapete vermelho e o combóio real brilhava com os tons vermelhos e brancos da pintura nova.

Os aplausos da multidão, que tinham sido ensurdecedores desde o palácio até a estação, ainda podiam ser ouvidos quando a comitiva real acompanhou os noivos até o combóio.

Do lado de fora da porta que dava para a plataforma, a princesa Marie‑Thérèse, duquesa de Faverstone, e seu marido começaram a despedir‑se dos parentes e de outros convidados que tinham vindo para vê‑los partir para a lua‑de‑mel.

Os noivos estavam saindo mais tarde do que deveriam, pois tinham ficado para o banquete real que se seguira à cerimónia do casamento.

O banquete, segundo o costume, deveria ter‑se realizado na véspera. Mas o cavalo do duque ganhara o Prix d'Or à tarde e, como era tradição, o dono do vencedor seria o hóspede de honra do jantar no Jóquei Clube, que sempre se realizava depois das corridas.

A previsão era de que o cavalo do duque vencesse. Assim sendo, o banquete que deveria realizar‑se enquanto os visitantes reais estavam presentes tinha sido adiado para a noite seguinte.

Foi uma cerimónia longa, mas Zena não ficou cansada.

Estava tão feliz, tão excitada, que tinha a impressão de estar sonhando.

Mal tivera tempo de ficar a sós com o conde, depois que descobrira que ele era o duque de Faverstone.

Tinha milhares de perguntas a lhe fazer quando se vissem a sós, sem se sentirem vigiados, de modo que era difícil falar de outras coisas a não ser as mais comuns, com medo de serem ouvidos.

O duque passou duas noites hospedado no palácio, antes de voltar para a Inglaterra e informar a rainha e seus parentes que estava noivo.

Os dois haviam tido licença de ficar apenas cinco minutos a sós, quando ele deveria pedir formalmente a mão de Zena.

Como poderiam desperdiçar esses minutos preciosos conversando se ele queria apenas beijá‑la?

‑ É verdade... é mesmo verdade que você é o duque de Faverstone? ‑ Zena conseguiu perguntar, quando ele parou de beijá‑la por alguns segundos.

‑ Fiz a mim mesmo uma pergunta semelhante, quando Zena Castelnaud me disse que era a princesa Marie‑Thérèse ‑ replicou ele.

Beijou‑a de novo e as explicações se tornaram desnecessárias.

Quando se despedira da irmã, Kendric dissera, com uma expressão maliciosa, uma coisa que somente ela havia ouvido:

‑ Garanto que está agradecendo à sua boa sorte por ter ido comigo a Paris!

‑ Sempre serei muito, muito grata a você por ter pensado nessa aventura censurável ‑ replicou Zena.

Os gémeos sorriram um para o outro e Zena ficou satisfeita por ver que Kendric também estava feliz.

Na tarde em que chegaram de Ettengen, quando os hóspedes subiram a escada a fim de vestir‑se para o jantar, o arquiduque dissera ao filho.

‑ Tenho novidades para você, Kendric, nossos planos mudaram. Você não vai mais para Düsseldorf. ‑ O rapaz havia olhado para o pai, esperançoso. ‑ O ministro de defesa acha que a Alemanha está decidida a invadir a França, mais cedo ou mais tarde, e é essencial não darmos a impressão de que apoiamos Bismarck.

‑ Concordo plenamente com isso. Papai.

Como se não tivesse ouvido tais palavras, o pai continuou:

‑ Resolvemos, então, mandar uma missão militar, sob as ordens do general Nieheims, visitar a Inglaterra e vários outros países da Europa. E você deverá acompanhar o general. ‑ Notara a excitação do olhar do filho e havia dito, com um sorriso: ‑ Creio que ficará satisfeito por saber que a primeira visita do general será a Paris.

‑ É uma notícia maravilhosa, papai.

O arquiduque colocara a mão no ombro do filho.

‑ Sabia que isso lhe agradaria e eu gostaria de ir também.

‑ Talvez seja uma boa idéia, sir, se fosse ao meu encontro lá para ver como me comporto em missão tão importante.

O arquiduque havia rido.

‑ Percebo que você tem o estofo dum diplomata, Kendric. Certamente levarei isso em consideração.

Pai e filho sorriram um para o outro, com expressão de conspiradores. Depois, Kendric subira a escada correndo, indo ao quarto de Zena lhe dar a boa notícia.

Sentindo‑se ambos muito felizes, abraçaram‑se, como costumavam fazer quando crianças.

‑ Vai procurar Yvonne, em Paris? ‑ perguntou Zena.

‑ Talvez eu olhe para mais alto ‑ respondeu Kendric.

‑ Mas garanto que você não poderá comprar jóias do Massin's ‑ disse Zena.

Agora, na estação, depois de dizer adeus a Kendric, Zena beijou a mãe e depois o pai.

‑ Desejo‑lhe toda a felicidade, querida ‑ disse o arquiduque.

‑ Sou mais feliz do que jamais o fui na vida, papai.

O arquiduque olhou‑a, surpreso, mas ficou contente.

Achava que não adiantava dizer isto, mas sempre lamentara que sua filha mais velha tivesse sido obrigada a casar‑se com um homem de quem não gostava e que a tinha tornado tão infeliz.

Mas não havia dúvida de que os olhos de Zena brilhavam. E havia nela uma felicidade que parecia transmitir‑se a seu marido.

O combóio partiu e Zena acenou da janela do vagão.

Quando a comitiva desapareceu de vista, ela virou‑se para o duque.

Os olhos de ambos se encontraram e Zena teve a sensação de que já se encontrava nos braços dele.

Sem tocá‑la, o marido disse:

‑ Foi um longo dia, querida. Sugiro que vá se deitar, enquanto me livro destas roupas elegantes.

Zena deu uma risadinha.

‑ Você está magnífico.

O duque estava usando o uniforme de coronel da Cavalaria Real, com o peito cheio de condecorações. Zena resolveu que, quando tivesse oportunidade, iria pedir ao marido que lhe explicasse o que elas significavam.

Achou que não poderia haver homem mais belo, mais distinto e nem mais digno de ser amado.

‑ Não vou dizer como você está, a não ser mais tarde ‑ avisou o duque. ‑ Mas estou aflito para dizer isso, de modo que rogo que se apresse.

Ela deu‑lhe um sorriso e dirigiu‑se para o carro‑dormitório, pegado àquele onde estavam.

Zena conhecia bem o combóio, porque seu pai sempre viajava nele, não apenas em Wiedenstein, mas também quando ia a países vizinhos ou a outras partes do império.

Mas naturalmente, Zena nunca tinha dormido no quarto principal, que havia sido redecorado para receber os noivos.

Fora o duque quem pensara na desculpa plausível de se casarem com tanta pressa porque a duquesa, sua mãe, estava muito doente. Se morresse, ele teria de ficar de luto e não poderia casar‑se, a não ser depois dum ano.

Quando chegasse a Inglaterra Zena iria saber que, embora estivesse sob cuidados médicos, sua sogra não corria perigo de vida. Para dizer a verdade, era provável que ainda tivesse muitos anos de vida à sua frente.

Todo o mundo, em Wiedenstein, se empenhou em ajudar, devido à insistência do duque.

Zena viu o cavalo do duque ganhar o Prix d'Or. O casamento se realizou no dia seguinte e o país inteiro ficou alegre e excitado com a pressa e a emoção que aquilo despertou.

A princípio o pai de Zena e, principalmente, sua mãe desaprovaram o que chamaram de "pressa indecorosa". Mas, quando seguia para a catedral na carruagem real, Zena ouviu o pai dizer:

‑ Se quer saber a verdade, foi muito bom o país ser sacudido de sua letargia habitual por esse casamento.

Zena virou a cabeça e encarou o arquiduque.

‑ Acha isso mesmo, papai?

‑ Sim, acho ‑ respondeu ele. ‑ E, como todos tiveram que trabalhar sob pressão para fazer as decorações e acomodar as inúmeras pessoas que vieram para a capital, creio que nosso país iniciou uma nova era de produtividade.

Zena respirou fundo. Teve vontade de dizer:

"Tudo isto por causa de Jean".

Ou, antes, de "John", que era como Zena deveria chamar ao marido.

Depois, achou que o crédito não era todo dele; somente o amor poderia conseguir aquilo.

Agora, ao entrar no vagão‑dormitório, decorado em dourado e branco com cortinas de seda azul dum tom que combinava com seus olhos, ela percebeu que corava.

A cama parecia encher o compartimento pequeno. Quando a criada lhe tirou a tiara e a ajudou a tirar o vestido branco enfeitado de prateado e de lantejoulas brancas, ela não pôde deixar de olhar para os travesseiros de fronha com borda de renda, onde havia a insígnia real.

Zena estava satisfeita por passarem a primeira noite no combóio, em vez de irem para o castelo do duque de Soissons, na França, que lhes havia emprestado para a lua‑de‑mel.

No castelo, embora eles estivessem a sós, havia inúmeros criados para servi‑los. E, inevitavelmente, quando eles chegassem, teriam de ser apresentados a uma longa fileira de empregados e de funcionários.

Mas, naquela noite, havia apenas uma criada de quarto para ela e um criado para o duque. Depois que estes se retirassem para o vagão onde dormiam os outros criados, ela e o marido ficariam a sós.

Zena sabia também que o combóio viajaria apenas durante pouco tempo, até parar num desvio onde ficariam durante a noite.

Aí, então, não haveria ruído de rodas para impedir que ouvisse as palavras de amor que o duque estava ansioso por lhe dizer, assim como também as que Zena queria dizer a ele.

Usando uma camisola diáfana de gaze enfeitada com renda, que tinha vindo de Paris, Zena deitou‑se na cama.

Esta era macia e confortável. Os lençóis tinham uma frescura agradável, após o calor do dia.

A criada pegou o vestido e olhou à volta, para ver se tudo estava em ordem. Depois, fez uma reverência e disse:

‑ Bom soir, Alteza Real!

‑ Bom soir, Louise ‑ respondeu Zena.

Depois ficou só. Havia ali uma luzinha de cabeceira.

Zena esperou, com o coração aos trancos, até a porta se abrir e o duque aparecer.

Ao vê‑la com seus cabelos dum ruivo dourado caindo‑lhe até os ombros, com os olhos azuis brilhando no rosto delicado, o duque achou que não poderia haver criatura mais linda e, ao mesmo tempo, mais pura.

Podia ver o contorno dos seios sob a camisola de gaze, mas sabia que, neste momento, seus sentimentos eram mais espirituais do que físicos, embora ele a desejasse loucamente como mulher.

Zena tinha despertado nele respeito e inspiração, o que jamais acontecera com outra mulher.

Era uma coisa que não podia ser expressa por palavras, algo que eles sabiam que vibrava dum para outro.

Zena esperou que ele falasse. Dali a um momento, o duque disse:

‑ Você tem uma noção do quanto é bonita?

‑ Era o que eu queria... que você dissesse ‑ balbuciou Zena. ‑ E quero dizer que estou muito feliz por ser... sua mulher.

‑ Deixe que eu tente expressar isso, querida ‑ disse o duque. ‑ Tenho a impressão de que remexi céu e terra para torná‑la minha, Zena, mas na realidade nada fiz. O destino agiu por nós.

‑ O destino que me levou a Paris... para encontrar você... ‑ estendeu a mão para segurar a dele e continuou: ‑ Você compreende que, se não nos tivéssemos conhecido em circunstâncias tão estranhas e que o escandalizaram, querido... talvez neste momento eu o odiasse por ser inglês... E talvez levasse muito tempo para perceber que era uma pessoa muito diferente do que eu imaginava.

O duque sorriu.

‑ Pois tenho certeza de que, assim que eu visse a princesa Marie‑Thérèse, me apaixonaria por ela como me apaixonei pela linda Bellefleur de lábios pintados.

‑ Se formos sinceros, teremos que reconhecer que o amor que você sentiu pela moça que estava no camarote pegado ao seu não é o amor que agora sentimos um pelo outro.

‑ Talvez não ‑ o duque concordou. ‑ Ao mesmo tempo, assim que olhei para você e ouvi sua voz, algo de estranho aconteceu no meu coração.

‑ É... verdade?

‑ Sim, é verdade ‑ respondeu ele, com firmeza. ‑ Mas você não me perguntou o que eu estava fazendo em Paris, não usando o meu nome.

‑ Nunca tive oportunidade para perguntar.

O duque riu.

‑ Quando penso no jeito com que você era vigiada, em casa, com acompanhantes, damas de honra, compreendo que tenha querido fugir.

‑ Nunca pensei que um inglês compreendesse isso ‑ brincou ‑ Mas a questão é por que um inglês se fingia de francês?

‑ Não tive tempo de lhe contar que a mãe de meu pai, minha avó, portanto, era francesa. Conforme você pode perceber, era da família Graumont. ‑ Sorriu e continuou: ‑ Sempre que eu queria sair da Inglaterra, ficava em casa de algum de meus inúmeros parentes Graumont, na França, como fazia quando era criança. E, aí, eu me chamava conde de Graumont.

‑ Para poder se divertir! ‑ observou.

‑ Isso fazia com que me livrasse de horas de tédio no Palácio das Tulheiras, em companhia do imperador e da imperatriz. Um duque inglês sofre quase tanto quanto uma princesa real!

‑ Então, assim como eu, você estava fugindo quando foi ao Baile dos Artistas?

‑ Exactamente! E quer saber de quem estava fugindo, naquela ocasião?

‑ De quem?

‑ duma princesa chamada Marie‑Thérèse de Wiedenstein ‑ respondeu o duque. fitou‑o, atónita. Ele explicou: ‑ Quando eu soube que era desejo da rainha que me casasse com uma obscura princesa europeia, fiquei horrorizado!

‑ Não queria se casar?

‑ Claro que não ‑ replicou o duque. ‑ Estava muito feliz como solteiro. Embora não pretenda negar que não apreciei muitas de minhas aventuras amorosas, jamais tinha encontrado uma mulher com quem desejasse me casar!

‑ Mas... você não podia dizer que não queria casar comigo? ‑ perguntou.

Os olhos do duque brilharam.

‑ Confesso que só o que eu queria era divertir‑me.

‑ O tipo de divertimento que encontraria com uma... demi mondaine? ‑ perguntou Zena.

‑ Exactamente!

Zena soltou uma exclamação.

‑ Suponhamos que eu o encontrasse tarde demais... e você conhecesse uma mulher que o divertisse como as mulheres que jantaram com o príncipe Napoléon... Então, talvez nunca viesse a Wiedenstein!

‑ Depois que a conheci, Zena, resolvi que o jeito de evitar o casamento com a princesa Marie‑Thérèse era aceitar o convite de seu pai, mas perguntar se podia trazer minha esposa para assistir ao Prix d'Or.

Zena riu.

‑ Estou muito... muito contente... por você ter se apaixonado por mim!

‑ Como é que eu poderia evitá‑lo? Você não é apenas a criatura mais linda que conheci na vida, como também existe algo mais. Talvez tenhamos vivido juntos em outra vida, ou talvez você seja a minha outra metade e eu a sua!

Ele disse isto em tom grave, inclinando‑se para beijá‑la.

Os lábios de Zena esperavam os dele. Quando sentiu a maciez do corpo jovem da esposa, o duque puxou‑a para mais perto.

Para ela foi como se as portas do paraíso se abrissem.

Sentiu uma estranha emoção, tão vivida, tão intensa, que quase se transformou em dor.

O duque largou‑a e ela deu um gritinho por separar‑se dele. Nisto percebeu que o marido tirara o roupão e erguia o lençol, para deitar‑se ao seu lado.

Sem que os dois o percebessem, o combóio tinha parado. Estava tudo muito silencioso. O duque abraçou Zena e puxou‑a para bem perto.

‑ Tenho a impressão de que estamos... na cabana... onde acho que poderíamos viver se fugíssemos juntos... e onde eu poderia cuidar de você e amá‑lo, meu querido ‑ disse ela.

‑ Não importa o lugar... ‑ respondeu o duque. ‑ Quero o seu amor, minha adorada, e cuidarei de você, agora e para toda a vida. ‑ Apertou‑a mais ainda e continuou: ‑ Nunca mais, minha esposa linda e querida, nunca mais você fará uma coisa tão censurável como a que fez, não apenas porque cuidarei de você, como porque sou um marido muito ciumento.

‑ E serei uma esposa ciumenta ‑ disse Zena. ‑ Suponhamos que, depois que estivermos casados durante algum tempo, você vá a Paris e encontre uma mulher bonita e a encha de jóias... porque ela o divertirá...

‑ Se eu for a Paris, você irá comigo. E aí, querida, não sofrerei a tortura de ter que deixá‑la à porta de seu apartamento.

‑ Foi uma... tortura?

‑ Eu a queria, Zena, e você me excita ‑ respondeu o duque. ‑ Mas havia qualquer coisa de muito puro em você, querida, apesar de seus lábios vermelhos, qualquer coisa que me fez sentir que havia uma armadura a protegê‑la.

‑ Oh, Jean, você diz coisas maravilhosas! ‑ exclamou Zena. ‑ E estou contente por ter feito com que se sentisse assim.

‑ Ainda sinto. E, minha adorada, agora que você é minha esposa, procurarei ser delicado e farei tudo para não machucá‑la, nem escandalizá‑la.

‑ Como é que você poderia fazer isso? Quando o amo tanto e lhe pertenço. ‑ Fez uma pausa, escondeu o rosto no ombro dele e murmurou: ‑ Sei que sou inexperiente... e você terá que me dizer o que um homem e uma mulher fazem quando se amam. Mas, seja o que for, sei que será maravilhoso... como quando você me beijou e senti que faríamos parte da divindade.

Ela percebeu que o duque ficou de respiração suspensa.

Depois, suavemente, ele beijou os olhos de Zena, o nariz e as faces.

Os lábios dela estavam prontos para receber os dele, mas o duque lhe beijou o pescoço. Quando percebeu que Zena estremecia com as sensações que aquilo lhe despertava, o duque afastou a camisola e beijou o ombro da esposa.

Seus lábios foram descendo, suavemente, até chegarem aos seios.

Zena ficou tão excitada, que todo o seu corpo estremeceu.

O duque ergueu a cabeça e fitou‑a.

‑ Sou arrogante e insensível? ‑ perguntou em tom grave, apaixonado.

‑ Não... não...

‑ Sou frio com você?

Ela deu um gritinho e colocou os braços à volta do pescoço do marido.

‑ Oh, não... você é maravilhoso e muito, muito carinhoso.

O duque beijou‑a de modo possessivo, exigente, apaixonado.

Apesar disso, havia nele uma ternura que Zena não sabia explicar, mas que era ainda melhor que a paixão de antes.

Zena sentiu que as mãos do marido a acariciavam, despertando‑lhe sensações nunca antes sentidas, que eram luz e calor ao mesmo tempo.

Depois, ao sentir o fogo dos beijos do duque, teve uma sensação maravilhosa, de êxtase e de paixão, que a fez abraçá‑lo mais fortemente.

Não sabia bem o que queria, mas sabia que, sem aquilo ela estaria incompleta e não seria totalmente dele.

‑ Ame‑me, quero que me ame ‑ murmurou ela. ‑ Por favor... ensine‑me a amar...

As palavras fizeram com que o ardor do duque aumentasse, e também ele conheceu o fogo da paixão.

Sentiram um êxtase indescritível, vivido apenas pelas pessoas que se amam verdadeiramente.

 

                                                                                 Barbara Cartland  

 

                      

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