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Quantos meses, anos, são precisos para fazer de uma criança um adolescente, de um adolescente um homem? Em que momento se pode afirmar que ocorre a mutação?
Ao contrário do que se passa nos estudos, não há aqui proclamação solene, nem distribuição de prémios, nem diploma.
Alain Poitaud, aos trinta e dois anos, não levou mais do que algumas horas, talvez alguns minutos, para deixar de ser o homem que até então fora e se transformar num outro.
18 de Outubro. Estava a chover com força em Paris e as bátegas eram tão violentas que os limpa-vidros não serviam para nada, senão para toldar ainda mais a luz dos candeeiros.
Inclinado para diante, conduzia devagar ao longo do boulevard de Courcelles, com os gradeamentos do Parque Monceau à direita; depois, meteu pela Rua de Prony na direcção da Rua Fortuny, onde morava. A rua é curta, ladeada por prédios sólidos. Teve a sorte de descobrir um lugar para o carro quase diante de casa e, ao fechar a porta do automóvel, ergueu maquinalmente a cabeça para ver se havia luz no último andar.
Era um movimento a tal ponto reflexo que não seria capaz de dizer se havia ou não luz. De resto, mergulhou imediatamente na borrasca que lhe atirava a água fria à cara e lhe encharcava a roupa, empurrando depois o gradeamento a que se sucedia uma vidraça fosca.
......
Estava um homem de pé junto à porta, como se se quisesse proteger da chuva, que entrou atrás dele.
- Monsieur Poitaud?
A luz era discreta no átrio, com as paredes revestidas de madeira trabalhada.
- Sou eu, sim - respondeu ele, surpreendido.
O outro era uma pessoa qualquer, uma silhueta banal, com um sobretudo escuro. Tirou da algibeira um cartão com uma barra tricolor.
- Inspector Noble, da Polícia Judiciária.
Alain olhou para ele com mais atenção, curioso, mas só levemente admirado. Estava habituado a encontrar toda a espécie de pessoas.
- Posso subir consigo, só por um momento?
- Já estava aqui à espera há muito tempo?
- Há uma horazinha.
- Porque é que não foi ter comigo à revista?
O inspector era jovem, um pouco tímido, ou talvez se sentisse somente pouco à vontade. Sorriu sem responder e os dois homens dirigiram-se para o grande elevador de modelo antigo, forrado de veludo vermelho.
Enquanto o aparelho subia lentamente, olharam-se em silêncio à luz suave que se derramava do candeeiro de cristal facetado. Por duas vezes, Alain Poitaud entreabriu a boca para fazer uma pergunta, mas preferiu esperar até chegar a casa.
O elevador parou no quarto andar, o último. Alain meteu a chave à fechadura, impeliu a porta, ficou surpreendido por encontrar o interior às escuras.
- A minha mulher ainda não voltou - notou ele maquinalmente, procurando o interruptor com a mão.
Dos sobretudos dos dois homens caíam gotas de água na passadeira de um azul pálido
- Tire o sobretudo.
- Não vale a pena.
Alain olhou para o outro, admirado. Aquele visitante esperara por ele uma hora, mal abrigado à entrada do prédio, e, apesar disso, previa uma conversa tão breve que achava não valer a pena tirar o sobretudo encharcado.
O dono da casa abriu uma porta de dois batentes, accionou novos interruptores e acenderam-se várias luzes numa grande sala, da qual um dos lados era todo envidraçado, fustigado agora pela chuva que escorria em grossos veios pelo vidro.
- A minha mulher já devia cá estar... Consultou o relógio de pulso, embora tivesse à sua
frente um relógio de parede antigo cujo pêndulo de cobre ia e vinha, fazendo ouvir a cada impulso um ligeiro estalido. Eram oito menos um quarto.
- Temos daqui a um bocadinho um jantar com pessoas amigas e ...
Estava a falar para com os seus botões. O seu plano fora, quando chegasse a casa, despir-se rapidamente, tomar um duche e vestir um fato escuro.
- Não se quer sentar?
Alain não estava inquieto, nem intrigado. Ou só muito levemente. Talvez apenas um pouco maçado com aquela presença inesperada que o impedia de fazer o que tencionara fazer ao chegar. Surpreendia-o também a ausência de Jacqueline.
- Tem uma arma, monsieur Poitaud?
- Quer dizer uma pistola?
- Sim, era numa pistola que eu estava a pensar.
- Tenho uma, na gaveta da minha mesinha-de-cabeceira.
- Importa-se de ma mostrar?
O inspector falava com uma voz suave, hesitante. Alain dirigiu-se para uma porta, a do quarto de dormir, e o seu companheiro seguiu-o.
O quarto estava revestido de seda amarela, a grande cama coberta com uma manta de pele de gato bravo. Os móveis eram de laca branca.
Alain abriu uma gaveta, pareceu espantado, mergulhou mais profundamente a mão entre uma massa de pequenos objectos.
- Não está cá - murmurou por fim.
Depois, olhou à volta, como se quisesse lembrar-se de algum outro sítio onde pudesse ter guardado a arma.
As duas gavetas de cima da cómoda eram as dele; as
de baixo, as de Jacqueline. De resto, ninguém chamava Jacqueline à mulher. Para ele, como para toda a gente, ela era a Gatinha, alcunha que Alain lhe dera vários anos antes porque a achava com um ar de gato pequeno. Lenços, camisas, roupa interior...
- Quando é que a viu pela última vez?
- Deve ter sido esta manhã...
- Não tem a certeza?
Desta vez, ele encarou directamente o interlocutor e observou-o carregando o sobrolho.
- Ouça, inspector... Há cinco anos, desde que aqui moramos, a pistola tem estado sempre na gaveta da mesinha-de-cabeceira... Todas as noites, quando me dispo, costumo utilizar esta gaveta para guardar o que tenho nos bolsos... Ponho lá dentro as chaves, a carteira, a cigarreira, o isqueiro, o livro de cheques, os trocos... Estou tão habituado a ver a pistola no seu lugar que já não lhe presto atenção...
- E se ela desaparecesse não daria por isso? Alain reflectiu.
- Julgo que não. Deve ter acontecido várias vezes, a pistola ser empurrada para o fundo da gaveta...
- Quando é que viu pela última vez a sua mulher?
- Aconteceu-lhe alguma coisa?
- Não no sentido em que está a pensar. Almoçou com ela?
- Não. Estava na tipografia a paginar e comi umas sandes, mesmo ali no mármore.
- Ela não lhe telefonou durante o dia?
- Não.
Tivera de reflectir um momento, porque a Gatinha telefonava-lhe muitas vezes.
- E o senhor também não ligou para ela?
- Ela raramente está em casa durante o dia. Trabalha fora, sabe? É jornalista e... Mas, por favor, qual o motivo de todas estas perguntas?
- Prefiro que seja o meu chefe a explicar-lhe. Quer vir comigo ao Quai des Orfèvres? Lá explicam-lhe tudo.
- Tem a certeza de que a minha mulher...?
- Não morreu nem está ferida.
Delicado, tímido, o polícia encaminhava-se em direcção à porta e Alain ia atrás dele, demasiado estupefacto para conseguir pensar fosse no que fosse.
Sem terem precisado de discutir o problema, não chamaram o elevador solene e lento, mas começaram a descer as escadas, cobertas por uma passadeira espessa. Em cada patamar havia uma janela ornamentada com vitrais coloridos, à maneira de 1900.
- Suponho que a sua mulher tem um carro próprio?
- Sim. Um automóvel pequeno como aquele com que eu ando habitualmente em Paris e que está ali à entrada. Um miniautomóvel.
No limiar do prédio, ambos hesitaram.
- Como é que veio?
- De metro.
- Não vê inconveniente em que vamos no meu carro? Alain conservava uma boa parte da sua ironia. Era
bastante irónico e, por vezes, de uma ironia algo agressiva. Não seria essa a única atitude razoável perante a estupidez da vida e das pessoas?
- Peço desculpa. Nem se podem estender as pernas... Alain conduzia depressa, como era seu hábito. O seu
minúsculo automóvel de marca inglesa era rápido e, de súbito, passou um sinal vermelho.
- Desculpe...
- Não tem importância. Eu não tenho nada a ver com o trânsito.
- Quer que entre no pátio?
- Como quiser.
O inspector debruçou-se da janela do carro para dizer algumas palavras aos dois guardas.
- A minha mulher está cá?
- É provável.
Para que lhe servia fazer perguntas a este homem que nada lhe diria? Dentro de alguns instantes, estaria diante de um comissário, sem dúvida de um comissário seu conhecido, porque os conhecia praticamente a todos.
Por sua própria iniciativa, começou a subir as grandes escadas e deteve-se no primeiro andar.
- Por aqui?
O corredor comprido e mal iluminado estava deserto, com as portas de ambos os lados fechadas. Só o velho bedel estava no seu lugar, com uma corrente de prata ao pescoço, uma medalha pesada no peito, diante de uma mesa coberta de pano verde como o tampo de uma mesa de bilhar.
- Importa-se de ficar um bocadinho na sala de espera?
A sala de espera tinha uma grande vidraça de um dos lados, como o atelier de pintor que Alain transformara em sala de sua casa, e lá dentro estava apenas uma mulher de idade, vestida de preto, que ficou a vê-lo entrar com os seus olhinhos negros e duros.
- Com licença...
O inspector avançara pelo corredor, batera a uma porta e entrara fechando-a atrás de si. Não voltava a sair pela porta por onde entrara. Ninguém aparecia. A velha estava imóvel. E também o ar que os rodeava não se mexia, acinzentado como uma espécie de nevoeiro.
Alain voltou a olhar para o relógio. Oito e vinte. Havia apenas uma hora que saíra da revista na Rua de Marignan, depois de dizer a Maleski:
- Até já...
Iam jantar os dois, na companhia de uma dúzia de amigos e amigas mais, a um restaurante novo, que abrira na Avenida de Suffren.
Na sala de espera, a chuva, a tempestade, não existiam. Ficava-se suspenso no espaço, no tempo. Em qualquer outro dia, Alain só teria de escrever o seu nome numa ficha para que, passados poucos minutos, o bedel o introduzisse no gabinete do director da P. J., que avançaria ao seu encontro, estendendo-lhe a mão.
Havia muito tempo já que não ficava numa sala de espera. Isso era uma coisa por que só nos primeiros tempos lhe acontecera passar.
Lançou uma olhadela à velha cuja imobilidade o impressionava e esteve quase a perguntar-lhe se estava ali há muito tempo já. Talvez horas e horas...
Impacientava-se, começou a sentir-se abafado, acendeu um cigarro, pôs-se a andar de um lado para o outro da sala, enquanto a mulher o observava com uma expressão de censura.
Depois, abriu a porta envidraçada, atravessou parte do corredor e dirigiu-se ao homem da corrente de prata.
- Quem é o comissário que quer falar comigo?
- Não sei, monsieur.
- A estas horas não costumam estar muitos por cá.
- Dois ou três. Às vezes, ficam até muito tarde. Como se chama?
Existiam em Paris centenas de lugares onde não precisava de dizer como se chamava, porque o conheciam.
- Alain Poitaud.
- É casado, não é verdade?
- Sou casado, sim.
- A sua mulher é morena, baixinha, com um impermeável forrado de pele?
- É isso mesmo.
- Nesse caso, deve ser com o comissário-adjunto Roumagne que vai falar.
- Um novo?
- Oh, não! Está na polícia há mais de vinte anos, mas só há pouco tempo passou para a Criminal.
- A minha mulher está no gabinete dele?
- Não sei, monsieur.
- A que horas chegou ela cá?
- Não sei dizer-lhe.
- Viu-a.
- Acho que sim, que a vi.
- Apareceu aqui sozinha?
- Peço-lhe desculpa, mas já falei de mais.
Alain afastou-se de novo, quase tão humilhado como inquieto. Estavam a fazê-lo esperar. Estavam a tratá-lo como um cliente vulgar. O que é que a Gatinha teria ido fazer ao Quai des Orfèvres O que significaria aquela história da arma?
Porque é que a pistola não estava na gaveta? Era uma arma de tipo banal, que faria qualquer bandido largar a rir, uma pequena 6.35, fabricada em Herstal
Não a comprara. Fora um dos seus colaboradores, Bob Demarie, quem lha dera.
- Agora que o meu miúdo já anda sozinho de um lado para o outro por toda a casa, prefiro não ter lá uma coisa destas.
Quatro ou cinco anos antes, pelo menos. Desde então, Demarie tivera mais dois filhos. O que é que a Gatinha...?
- Monsieur Poitaud!
Era o inspector, do outro lado do corredor. Estava a chamá-lo com um sinal de mão. Alain avançou a grandes passadas.
- Se quiser entrar...
Não havia ninguém no gabinete do comissário-adjunto a não ser o próprio comissário-ad junto - um homem com cerca de quarenta anos, com um ar fatigado, que estendeu a mão a Alain antes de voltar a sentar-se.
- Tire o sobretudo. Sente-se, monsieur Poitaud. O inspector não voltara a entrar.
- Dizem-me que a sua pistola desapareceu.
- Não a descobri no sítio do costume.
- Será esta?
E estendeu-lhe uma browning negra, azulada, que Poitaud agarrou com um gesto maquinal.
- Parece-me que sim. É possível.
- A sua não tinha nenhum sinal particular?
- Para lhe dizer a verdade, nunca a examinei com cuidado. Também nunca me servi dela, nem mesmo no campo, para a experimentar.
- A sua mulher sabia que a tinha, claro?
- Claro.
Alain perguntava de repente a si próprio se era de facto ele quem ali estava sentado, a responder humildemente àquelas perguntas ridículas. Ele era Alain Poitaud, caramba! Conhecido em toda a cidade de Paris. Dirigia um dos semanários mais lidos de França e estava a preparar-se para fazer sair um outro. Além disso, há seis meses que editava discos de que a rádio falava todos os dias.
Não só não era pessoa que se deixasse numa sala de espera, como tratava por tu pelo menos quatro ministros, jantando de vez em quando em casa deles, quando não eram eles que se deslocavam para irem almoçar com ele, na sua casa de campo.
Tinha de se revoltar, de se arrancar de vez àquela espécie de neutralidade estúpida.
- Quer dizer-me o porquê de tudo isto?
O comissário fitou-o com uma expressão aborrecida, fatigada.
- Já lá vamos, monsieur Poitaud. Não pense que estou a achar mais graça do que o senhor a esta embrulhada. Tive um dia esgotante. Tinha pressa de voltar para casa, de ir ter com a minha mulher e com os meus filhos.
Olhou para o relógio de mármore negro poisado no rebordo da chaminé do fogão.
- É casado há bastante tempo, não é verdade?
- Vai fazer seis anos. Não, sete anos. Sem contar com mais dois anos em que não éramos casados, mas era como se fôssemos.
- Tem filhos?
- Um rapaz.
O polícia baixou os olhos e consultou um dossier.
- Com cinco anos...
- Exactamente.
- E ele não vive consigo...
- Isso já não é bem assim.
- Que quer dizer?
- Temos um apartamento, uma espécie de poiso em Paris, porque costumamos sair muitas vezes à noite. Às sextas-feiras à tarde, voltamos sempre para a nossa verdadeira casa, em Saint-Illiers-la-Ville, na floresta de Rosny. No Verão, voltamos para lá quase todas as noites.
- Estou a ver. Naturalmente, gosta da sua mulher.
- Naturalmente.
Alain não dizia aquilo com paixão ou fervor, mas como se de uma circunstância óbvia se tratasse.
- Está ao corrente da vida privada dela?
A vida privada dela passa-se comigo. Quanto à vida profissional...
- Era isso que eu queria dizer...
- A minha mulher é jornalista.
- Mas não trabalha para a sua revista?
- Não. Seria fácil de mais. Além disso, não é o género dela.
- Como é que a sua mulher se dá com a irmã?
- Com Adrienne? Muito bem. Vieram para Paris uma a seguir à outra; primeiro a Gatinha...
- A Gatinha?
- É uma alcunha afectuosa que eu pus à minha mulher. Os meus amigos, os meus colaboradores, acabaram todos por a tratar também assim. E quando ela quis arranjar um pseudónimo para os artigos que escrevia, eu aconselhei-a a que usasse o de Jacqueline Chaton. (1)
* (1) A palavra "chaton" significa "gatinho" (N.T.). *
A irmã e ela viveram muito tempo as duas no mesmo quarto, em Saint-Germain-des-Prés.
- Conheceu-as ao mesmo tempo?
- Da primeira vez?
- Sim.
- Não. Da primeira vez foi só a Gatinha.
- Não lhe apresentou a irmã?
- Mais tarde, sim. Alguns meses depois. Se está ao corrente de tudo, porque é que me faz essas perguntas? Talvez fosse altura de me dizer o que aconteceu à minha mulher.
- À sua mulher, nada.
O comissário-adjunto dizia aquilo com voz triste, cansada.
- A quem, então?
- À sua cunhada.
- Um acidente?
Ao mesmo tempo que fazia a pergunta, o olhar de Alain caiu na pistola automática que ficara em cima da mesa.
- Foi...?
- Foi morta, sim.
Alain já não se atrevia a perguntar por quem. Nunca conhecera um estado de estupor semelhante - uma espécie de vício interior. O seu cérebro deixara de funcionar ou, em todo o caso, não funcionava como de costume. Sentia-se enterrado num mundo que se fizera incoerente, onde as palavras já não tinham o mesmo sentido nem os objectos o mesmo rosto.
- Foi abatida, esta tarde, pouco antes das cinco horas, pela sua mulher.
- Isso não tem pés nem cabeça.
- Mas é verdade.
- O que é que o faz crer que seja verdade?
- A sua mulher. E também a nurse que estava lá em casa.
- E o meu cunhado?
- Está agora a ditar o seu depoimento no gabinete aqui ao lado.
- Onde está a minha mulher?
- Lá em cima, com os funcionários dos Serviços de Identificação.
- Mas porquê? Ela disse-lhe porquê?
Alain de súbito corou e evitou o olhar do comissário-adjunto.
- Isso esperava eu que fosse o senhor a dizer-mo.
Não estava triste, nem acabrunhado, nem comovido. Indignado, também não. Era antes uma espécie de despersonalização e quase se sentia tentado a beliscar-se para se certificar de que era bem ele, Alain Poitaud, quem ali estava, sentado diante de um sofá verde, diante de uma secretária de madeira de acaju, coroada pelo rosto cansado do comissário. Como podia ter aquilo a ver com a Gatinha e Adrienne, cujo rosto era tão regular e doce, com grandes olhos claros por cima dos quais as longas pestanas estremeciam?
- Não percebo - confessou ele, sacudindo a cabeça e tentando acordar.
- O que é que não percebe?
- Que a minha mulher tenha disparado contra a irmã. Disse mesmo que Adrienne morreu, não foi?
- Quase imediatamente.
A palavra "quase" feriu-o e Alain olhou para a browning poisada em cima da mesa. Aquilo queria dizer que Adrienne, depois do tiro, sobrevivera durante alguns minutos, alguns segundos. E a Gatinha, entretanto? Que ficara a fazer com a arma na mão? Deixara-se estar a ver a irmã morrer? Teria tentado auxiliá-la?
- Não tentou fugir?
- Não. Encontrámo-la no apartamento, com a cara encostada à vidraça. Contra a vidraça por onde a chuva escorria...
- O que é que ela disse?
- Suspirou e murmurou: "Até que enfim!"
- E Bobo?
- Quem é Bobo?
- O rapazinho da minha cunhada. Ela tem dois filhos, um rapaz e uma rapariga.
A rapariga era Nelle, e parecia-se muitíssimo com a mãe.
- A nurse levou as crianças para a cozinha onde uma criada ficou a tomar conta delas enquanto ela tentava socorrer a moribunda.
Havia ali alguma coisa que não batia certo. O comissário dissera de início que Adrienne morrera quase imediatamente. Agora referia-se à nurse a tentar socorrer a moribunda. Ele conhecia bem o apartamento, na Rua de l'Université, no primeiro andar de um antigo prédio particular, com as janelas muito altas e o tecto pintado por um discípulo de Poussin.
- Diga-me, monsieur Poitaud, como eram as suas relações com a sua cunhada?
- Eram boas.
- O que lhe estou a perguntar é de que natureza exacta eram?
- Que importância tem isso?
- Não estamos perante um drama motivado pelo interesse, não é verdade? Não havia problemas de dinheiro entre as duas irmãs, pois não?
- Claro que não.
- Suponho também que não se tratou de um desses ódios velhos e longamente alimentados que surgem em certas famílias...
- Não.
- Não se esqueça de que os jurados raramente se mostram muito severos perante o crime passional...
Olharam-se os dois. O comissário, cujo nome Alain esquecera já, não estava a tentar armar em esperto e colocava as suas perguntas com um tédio evidente.
- Era amante dela?
- Não. Sim. Quero dizer que não pode ter sido isso. Essa história era uma coisa já muito antiga, está a perceber?
Alain continuava a desenrolar o fio do seu pensamento, embora se desse conta de que as suas palavras ficavam sempre muito aquém do que estava a pensar. Precisaria de muito tempo, de entrar em pormenores, de explicar que...
- Há pelo menos um ano... ou melhor, quase um ano... Desde o Natal passado...
- Foi nessa altura que essas relações começaram?
- O contrário! Foi nessa altura que acabaram.
- De todo?
- Sim.
- Foi o senhor quem rompeu?
Ele fez que não com a cabeça e teve vontade de a mergulhar entre as mãos. Pela primeira vez, dava-se conta da dificuldade, se não da impossibilidade, de exprimir as coisas mais reais.
- Não era uma ligação.
- Então como é que chamaria ao que aconteceu entre os dois?
- Não sei... Aconteceu...
- Conte-me como é que aconteceu...
- Estupidamente... Ainda não éramos casados, mas já vivíamos juntos, a Gatinha e eu...
- Há quanto tempo?
- Oito anos? Talvez... Eu ainda não lançara a minha revista e vivia dos artigos que escrevia para os jornais... Também escrevia canções... Vivíamos num hotel, em Saint-Germain-des-Prés... A Gatinha, pelo seu lado, também trabalhava...
- Ela não foi estudante?
O comissário-adjunto olhara de novo para o dossier, refrescando a memória, e Alain perguntou-se que mais haveria naqueles papéis.
- Sim. Fez dois anos de Filosofia...
- Continue.
- Um dia...
Estava a chover, como agora. Alain entrara ao fim da tarde e, em vez da Gatinha, encontrara Adrienne no quarto.
- Jacqueline não vem jantar. Está a entrevistar um escritor americano no George-V.
- E tu o que é que estás aqui a fazer?
- Nada. Vim para estar um bocadinho com ela. Ela foi-se embora e eu pensei que podia ficar à tua espera.
Adrienne não tinha ainda completado os vinte anos na altura. Era, na aparência, tão calma e tão passiva, como a Gatinha, exuberante.
O comissário esperava pela continuação, não sem uma certa impaciência. Acendia um cigarro, oferecia o maço a Alain que, por sua vez, acendia o seu cigarro também.
- Passou-se tudo tão simplesmente que me seria difícil contá-lo melhor.
- Ela gostava de si?
- Talvez. Há duas horas, responder-lhe-ia, sem dúvida, que sim. Agora, já não me atrevo...
Tornara-se tudo completamente diferente a partir da altura em que o inspector tímido e bem-educado o abordara à entrada de casa e lhe pedira autorização para o acompanhar lá acima.
- Julgo que todas as irmãs... Ou talvez não deva dizer todas, mas muitas delas... Conheço pessoalmente vários casos, entre gente que me é chegada...
-A vossa ligação, portanto, durou cerca de sete anos.
- Não era uma ligação... Gostava de lhe explicar... Nunca fizemos grandes declarações um ao outro... Eu continuava a gostar da Gatinha, com quem me casei uns meses mais tarde...
- Porquê?
__Porque é que casei com ela?... Mas...
Sim, porquê? A verdade é que, na noite em que lhe falara de casamento, estava bêbado.
- Viviam juntos... Não tinham filhos...
Alain anunciara à mesa de uma cervejaria, rodeado de companheiros tão tocados como ele:
- Dentro de três semanas, casamos, a Gatinha e eu.
- Porquê três semanas?
- Por causa dos banhos.
Houvera uma discussão, alguns dos presentes na cervejaria diziam que os banhos demoravam duas semanas, outros afirmavam que eram três.
- Logo se vê, não é? E tu o que é que achas, Gatinha?
Ela apertara-se contra ele sem nada responder.
- Depois de se casar, continuou a ver a sua cunhada...
- A maior parte das vezes, a minha mulher estava também presente.
- Mas havia outras ocasiões?
- De tempos a tempos. Durante uma certa fase, encontrávamo-nos uma vez por semana...
- Onde?
- Em casa dela... No quarto onde Adrienne ficara a viver sozinha depois de a irmã sair.
- Ela também estava a trabalhar?
- Estava a tirar o curso de História de Arte.
- E quando se casou?
- Fez uma viagem com o marido, um mês... Quando voltou, telefonou-me para combinarmos um encontro...
Levei-a para um estúdio mobilado, na Rua de Long-champ...
- O seu cunhado não desconfiou de nada?
- Com certeza que não...
Sentia-se estupefacto com aquela pergunta. Roland Blanchet era excessivamente inspector de finanças e excessivamente seguro da sua pessoa para conseguir imaginar por um momento que a mulher pudesse ter relações com outro homem.
- Espero que não lhe tenha perguntado isso?
- Um drama já basta, não? - retorquiu com acentuada secura o polícia. - E a sua mulher desconfiava?
- Também não... Achava que a irmã e eu éramos bons amigos... Nos primeiros tempos, antes de Adrienne se casar, disse-me uma vez:
"- É pena um homem não poder casar com duas mulheres..." - e eu compreendi que ela estava a pensar na irmã...
- E mais tarde? Não mudou de opinião?
- Como é que quer que eu lhe responda, depois do que acabo de saber? Adrienne e eu chegávamos a estar dois ou três meses sem nos vermos... Ela teve dois filhos... Nós, pelo nosso lado, tivemos um... A casa de campo deles é para o outro lado, na floresta de Orléans...
- O que é que se passou no Natal?
- Foi dois dias antes do Natal... Encontrámo-nos...
- No mesmo estúdio mobilado?
- Sim... Ficámos fiéis a esse sítio... Como íamos passar as Festas cada um para seu lado, tínhamos decidido beber uma garrafa de champagne juntos antes de voltarmos a encontrar-nos em Janeiro...
__Quem é que decidiu romper?
Alain teve de ponderar.
__Suponho que foi ela... Aquilo tinha-se transformado num hábito, está a perceber?... Eu andava cada vez mais ocupado... Ela disse qualquer coisa como:
- "O coração já não tem nada a ver com isto, pois não, Alain?"
- E o senhor também tinha vontade de acabar com a ligação?
- Talvez... Está a perguntar-me coisas que eu nunca perguntei a mim próprio.
- Veja se se convence de que, há duas horas, eu não sabia da sua existência nem da sua mulher nem da sua cunhada, e que, se o seu nome não me era estranho, por causa da revista...
- Estou a esforçar-me por responder.
Alain parecia estar a desculpar-se, coisa que não condizia com o seu carácter. Nada do que se passara desde que entrara na P. J. condizia com o seu carácter.
- Lembro-me de lhe ter proposto que fizéssemos amor pela última vez.
- E ela aceitou?
- Preferiu que nos separássemos como bons amigos...
- E depois?
- Nada... De vez em quando, jantávamos em casa dela, a Gatinha e eu... Víamo-la, acompanhada pelo marido, no teatro ou no restaurante...
- A sua mulher não mudou?
Alain procurou com toda a honestidade algum início, ainda que mínimo, e acabou por abanar a cabeça.
- Não... Não sei... Peço desculpa de dizer isto tantas vezes, mas não posso fazer outra coisa...
- O senhor e a sua mulher jantavam sempre juntos?
- Quase sempre...
- Sozinhos?
Raramente... Temos muitos amigos e somos obrigados a aparecer numa quantidade de cocktails, de ceias...
- E nos fins-de-semana?
Aos sábados, costumamos ter bastante sossego, mas a Gatinha tem quase sempre um artigo para escrever... às vezes, fica em Paris mais um dia, sem mim... Especializou-se em entrevistar personalidades de passagem. .. Mas, vamos lá, não poderá dizer-me porque é que ela mataria a irmã?
Sentia-se revoltado, descobrindo-se a esmiuçar a sua vida conjugal na companhia de um polícia fatigado.
- é isso que estamos a tentar descobrir os dois, não é verdade?
- Não é possível...
- O que é que não é possível?
- Ela de repente ter tido tantos ciúmes de Adrienne que...
- Gostavam muito um do outro, a sua mulher e o senhor?
- Já lhe disse...
Falou-me dos primeiros tempos, em Saint-Germain-des-Prés... Mas depois...?
- Gostávamos um do outro, sim...
A prova não seria o facto de ele estar agora tão desfeito que não conseguia reconhecer-se? Havia meia hora, uma hora, a Gatinha estivera ali sentada, na mesma poltrona, com o mesmo candeeiro de abat-jour opala a ilu-minar-lhe o rosto.
- Perguntou-lhe a mesma coisa, a ela?
- Ela recusou-se a responder às minhas perguntas...
- Não confessou?
Um clarão de esperança voltava a acender-se.
- Confessou que disparara contra a irmã, mais nada.
- Não disse porquê?
- Não. Propus-lhe que chamasse um advogado à sua escolha.
- E o que é que ela respondeu?
- Que isso era consigo e que, pelo seu lado, não se preocupava com o caso.
Aquele "não se preocupava" não era da Gatinha. Não fazia parte do vocabulário dela. Devia ter utilizado outra expressão.
- Como é que ela estava?
- Aparentemente calma. Foi ela que me disse, depois de ver as horas:
- "Ficámos de nos encontrar em casa, Alain e eu, às sete e meia. Ele vai ficar em cuidado."
- E parecia abalada?
- Para lhe dizer a verdade, não. Vi, neste gabinete, muitos homens e mulheres que acabavam de cometer um crime. E não me lembro de ter visto em ninguém a ostentação de tanto autocontrolo ou tanta indiferença..
- Porque não conhece a Gatinha...
- Se bem entendi, não estavam lá assim muitas vezes os dois sozinhos um com o outro. Estou a referir-me a estes últimos anos.
- Andávamos os dois juntos, muitas vezes, sim... Mas os dois sozinhos, não... Não se esqueça da minha profissão, que me obriga a ver gente de manhã à noite, muitas vezes até de madrugada...
- Tem uma amante, monsieur Poitaud?
Mais uma palavra que não queria dizer coisa nenhuma, que Alain achava terrivelmente fora de moda!
- Se me está a perguntar se vou para a cama com outras mulheres além da minha, respondo-lhe já que sim... Não com uma, com dúzias delas... Sempre que a ocasião se proporciona e que vale a pena...
- Dadas as características de revista que dirige, essas ocasiões não devem faltar.
Havia uma nota de inveja na voz do comissário.
- Resumindo e concluindo, o senhor não sabe de nada. Teve uma ligação com a sua cunhada, ligação que terminou em Dezembro do ano passado, e, tanto quanto sabe, a sua mulher não teve conhecimento de nada. Apesar disso, teremos de conseguir compreender o que se passou...
Alain olhou para o comissário com curiosidade, chocado. O que é que aquele homem, que nada sabia da vida deles, poderia querer compreender, quando ele próprio nada compreendia?
- Para que jornal ao certo trabalhava a sua mulher?
- Para todos e para nenhum... Ela era o que nós chamamos uma free lance, ou seja, trabalhava por conta própria... Quando escrevia um artigo ou uma série de artigos, sabia a que jornal ou a que revista propor a respectiva publicação... Trabalhava muito para revistas inglesas e americanas...
- Para a sua, não? __Já me perguntou isso. Não. Não é o género dela...
- Tem um advogado, monsieur Poitaud?
- Claro.
- Quer fazer o favor de lhe pedir que esta noite ainda ou então amanhã entre em contacto comigo?
O comissário levantou-se com um suspiro de alívio.
- Vou pedir-lhe o favor de passar para a sala ao lado. Terá de repetir os pontos principais das suas declarações e um estenógrafo tomará nota do que lhe ditar...
Como acontecera com Blanchet um pouco antes. O que é que Blanchet teria dito? Como é que ele, que ocupava um lugar de destaque no Banco de França, aceitara a humilhação de ser interrogado por um polícia?
O comissário abrira uma porta.
- Julien! Monsieur Poitaud vai resumir as suas declarações para você as transcrever agora e ele as poder assinar amanhã. Para mim, são mais do que horas de ir andando.
Virou-se para Alain.
- Desculpe tê-lo demorado tanto, monsieur Poitaud. Até amanhã.
- Quando é que poderei ver a minha mulher?
- Isso caberá ao juiz de instrução decidir.
- Onde é que ela fica esta noite?
- Lá em baixo, num calabouço provisório.
- Não é preciso mandar-lhe nada, roupa de dentro, artigos de toilette?...
- Se quiser. Habitualmente a primeira noite... - mas não terminou a frase. - Basta entregar a mala com as coisas dela no Quai de VHorloge.
- Bem sei...
As celas, os pátios, a sala onde um médico examinava as mulheres... Escrevera uma reportagem sobre tudo isso havia uns dez anos...
- Telefono-lhe quando voltar a precisar de si.
O comissário-adjunto enfiava o chapéu na cabeça e começava a vestir o sobretudo.
- Talvez, daqui até lá, tenha alguma ideia. Boa-noite, Julien.
O gabinete onde Alain agora se encontrava era mais pequeno, com móveis não de acaju, mas de madeira clara, contrastando com os das instalações do comissário'.
- Nome, idade, ocupação...
- Alain Poitaud, nascido em Paris, Praça Clichy, trinta e dois anos, director da revista Tu...
- Casado?
- Casado, sim. Chefe de família. Endereço em Paris: 17 bis, Rua Fortuny. Endereço principal: Les Nonnettes, Saint-Illiers-la-Ville...
- E declara...
- Não declaro coisa nenhuma. Houve um inspector que entrou comigo em minha casa e me perguntou se tinha uma arma... Respondi que sim e pus-me à procura da browning na gaveta onde ela costuma estar... Já lá não estava... O inspector trouxe-me para aqui e um comissário que já não me lembro como se chama...
- O comissário-adjunto Roumagne...
- Bom! O comissário-adjunto Roumagne, então, comunicou-me que a minha mulher tinha morto a irmã... Mostrou-me uma browning que me pareceu reconhecer, embora a minha arma não tenha nenhuma marca especial e eu nunca me tenha servido dela... O comissário perguntou-me se eu conhecia a razão do gesto da minha mulher e eu disse-lhe que não via nenhum...
Alain andava de um lado para o outro, como costumava fazer no seu gabinete, fumando nervosamente um cigarro.
- É tudo?
- Falou-se ainda de outra coisa, mas suponho que isso não terá de aparecer no processo verbal...
- O que foi?
- As minhas relações com a minha cunhada...
- íntimas?
- Já o foram...
- Há muito tempo?
- Acabou tudo há um ano... Julien coçava a testa com o lápis.
- Temos tempo para acrescentar isso amanhã, se o comissário achar que é preciso.
- É tudo?
- No que me diz respeito, sim, e como já acabou de tratar do que tinha a tratar aí ao lado...
Alain voltou ao grande corredor húmido. A mulher de idade já não estava na sala de espera envidraçada e era um outro bedel que exibia agora a sua corrente de prata e a sua medalha. Quando acabou de descer as escadas, voltou a encontrar-se com a chuva e com as rajadas de vento, mas não se dignou a estugar o passo para chegar ao carro para dentro do qual entrou completamente a escorrer.
2
Mantendo-se curvado para a frente, a tentar descortinar alguma coisa através do pára-brisas, voltou a subir os Champs-Elysées, sem cuidar de momento de pôr as ideias em ordem. Estava ressentido com o polícia tímido, com o comissário Roumagne, com Julien, o estenógrafo indiferente, por o terem humilhado ou, melhor, por o terem desorientado com as suas perguntas a tal ponto que já nem sabia onde estava.
Ao descobrir um lugar livre para o automóvel diante de um bar, parou bruscamente, sendo quase abalroado pelo carro que vinha atrás e cujo condutor gesticulou, insultando-o, aos gritos. Precisava de uma bebida. Não conhecia aquele bar e o barman não o conhecia a ele.
- Um scotch... Duplo...
Alain bebia muito. A Gatinha também. E, em geral, todos os amigos de ambos, todos os colaboradores dele. Pelo seu lado, tinha a vantagem de nunca ficar propriamente bêbado nem de ressaca na manhã seguinte.
Não era concebível que a sua mulher, ao fim de um ano...
Esboçou o movimento de se voltar no banco como que para falar com ela, como se ela estivesse realmente no assento ao lado do seu. Costumava estar...
O que é que o comissário-adjunto quisera ao certo saber das relações de ambos? Como teria Alain podido explicar-lhe? Tinham-lhe perguntado se ainda gostavam um do outro. Que queriam essas palavras dizer?
As coisas não se passavam como o polícia as imaginava. Ele estava no seu gabinete, na Rua de Marignan, ou na tipografia. Ela telefonava-lhe.
- Tens projectos para esta noite?
Ele não lhe perguntava de onde lhe estava a falar. Ela não lhe perguntava o que estava ele a fazer.
- Ainda não.
- Vou ter contigo?
-Sim, digamos que às oito horas, no Clocheton.
Era um bar diante das instalações da revista. Havia assim em Paris um certo número de bares onde costumavam encontrar-se. Ela chegava a ficar por vezes uma hora à espera dele, sem se impacientar. Ele sentava-se ao lado dela.
- Um scotch. Duplo.
Não se beijavam, não faziam perguntas um ao outro, ou só a seguinte:
- Onde é que jantamos?
Era quase sempre num bistrot mais ou menos em voga. Quando iam os dois sozinhos, acabavam por encontrar amigos e o jantar era sempre numa mesa de oito ou dez pessoas.
Ela estava ao lado dele. Ele não prestava atenção a esse facto. Limitava-se a ter consciência da presença dela. Ela não o impedia de beber nem de, a altas horas da noite, inventar brincadeiras idiotas, como a de se pôr no caminho de um carro que viesse depressa para medir os reflexos do condutor. Centenas de vezes, Alain ia-se fazendo matar com aquilo. Os amigos dele também.
- Vamos escaqueirar tudo à Hortense.
Era uma boite que costumavam frequentar. Hortense gostava muito deles, embora os receasse um pouco.
- A gente aqui chateia-se, minha velha amiga. Quem é este velho imbecil que está à minha frente...
- Cala-te, Alain. É um homem importante que...
- Não gosto da gravata dele.
Hortense resignava-se. Alain levantava-se, dirigia-se ao senhor que tinha diante de si e cumprimentava-o com toda a delicadeza.
- Sabe que não gosto da sua gravata? Não gosto mesmo nada...
O homem, o mais das vezes acompanhado, não sabia que dizer.
- Dá licença?
E com um gesto expedito, arrancava-lhe a gravata, tirava uma tesoura da algibeira e cortava-a às tiras.
- Pode guardar isto como recordação.
Algumas das vítimas não diziam nada. Outras, zangando-se embora, acabavam quase sempre por bater em retirada.
- A mesma coisa.
Alain esvaziou o copo de um trago, limpou a boca, pagou e voltou a atravessar a cortina de chuva, metendo-se no carro.
Em casa, acendeu todas as luzes, perguntando a si próprio o que fora ali fazer. Era uma sensação estranha estar naquela sala sem a Gatinha.
Àquelas horas, devia estar na Avenida de Suffren, no restaurante novo que Peter descobrira e onde uma dúzia de amigos dele tinham marcado o jantar. E se lhes telefonasse a pedir desculpa por não poder aparecer?
Encolheu os ombros, dirigiu-se para o bar, instalado num canto do atelier. Outrora trabalhara ali um pintor célebre, um retratista cujo nome já toda a gente esquecera. Por volta de 1910.
Não gostava de beber sozinho.
- À tua saúde, minha velha!
Estendia o copo para o vazio, na direcção de uma Gatinha imaginária. Depois, pôs-se a olhar fixamente para o telefone.
Para quem havia de ligar? Parecia-lhe que devia ligar para alguém, mas não sabia para quem havia de ser. Não tinha comido nada. Pouco importava. Não sentia fome.
Se tivesse um amigo íntimo...
Tinha colegas, dúzias de colegas, os que trabalhavam com ele na revista, actores, encenadores, cantores, sem contar com os barmen nem com os chefes de mesa.
- Ouve, meu coelhinho...
Tratava toda a gente por meu coelhinho. Era assim - "minha coelhinha" - que chamava também a Adrienne. Desde o dia em que a conhecera. Não fora ele que começara. Achava-a demasiado calma, demasiado baça para o seu gosto. Coisa em que se enganara. Ela nada tinha de baça, e ele precisara de três meses para o descobrir.
Que pensaria o idiota do marido dela? Não gostava de Blanchet. Detestava aquele tipo de pessoas, seguras de si, dignas e empertigadas, sem o menor grão de fantasia.
E se telefonasse para o cunhado? Só para saber como é que ele reagira àquilo...
Os olhos poisaram-se-lhe na cómoda e Alain lembrou-se de que tinha de levar roupa de dentro e artigos de toilette à mulher. As malas estavam nos armários que guarneciam o corredor. Escolheu uma com as dimensões apropriadas.
O que é que uma mulher veste numa cela dos calabouços da P. J.? A gaveta estava cheia de peças de roupa interior fina e ele admirou-se de ver tantas peças. Escolheu algumas combinações de nylon, calças, três pijamas e depois certificou-se de que havia uma escova de dentes e sabonete no nécessaire de pele de crocodilo.
Sentiu-se tentado a beber mais um copo, e acabou por encolher os ombros, saiu e fechou a porta à chave, deixando as luzes acesas. Atravessou uma boa parte de Paris, sempre debaixo de chuva, embora esta fosse já menos violenta. O vento amainara. A chuva era agora uma chuva de Outono, fina, lenta e fria, ameaçando prolongar-se por dias e dias. Os transeuntes andavam depressa, curvados para a frente, saltando para fugir aos jactos de água com que os automóveis, passando por eles, os molhavam.
Quai de VHorloge. Uma luz coada por baixo do portal de pedra. Um corredor muito largo, muito comprido, como um subterrâneo, ao fundo do qual estava sentado um agente fardado, sentado a uma mesa. O agente via-o avançar com a mala na mão e parecia intrigado.
- Está cá uma madame Jacqueline Poitaud?
- Um momento.
O homem consultou o livro de registo.
- Exactamente.
- Importa-se de lhe levar esta mala?
- Primeiro, preciso de perguntar ao meu chefe se poderei fazer isso.
Levantou-se, bateu a uma porta, desapareceu, voltou alguns minutos depois, acompanhado por um homem corpulento que afrouxara a gravata, abrira o colarinho da camisa e tirara o cinto das calças.
- É o marido dela?
- Sou.
- Tem os seus documentos?
Alain mostrou os documentos que o homem se demorou a estudar.
- É o senhor que dirige aquele jornal cheio de fotografias tão esquisitas? Bom, tenho de ver o que vem dentro da mala.
- Abra-a.
- Em termos regulamentares, é a si que compete abri-la.
Estavam os três como no interior de um túnel mal iluminado. Alain abriu a mala, depois o nécessaire de toilette. O funcionário remexeu com os dedos grossos na roupa de dentro, tirou do estojo de toilette a tesoura das unhas, a lima, a pinça de depilação, deixando ficar somente a escova de dentes e o sabonete.
Ia passando os objectos que tirava a Alain, que os metia maquinalmente no bolso, um a um.
- Vai levar-lha já?
O homem viu as horas num grande relógio de bolso.
- São dez e meia. Segundo o regulamento...
- Como é que ela está?
- Não a vi.
Era evidente que nem toda a gente sentia grande curiosidade pelo comportamento da Gatinha.
- Ela tem uma cela só para ela?
- Com certeza que não. Neste momento, estamos mais do que cheios.
- Não sabe com quem é que ela está? O outro encolheu os ombros.
- O mais provável é que seja com prostitutas. Não param de chegar, essas. Olhe! Mais um carregamento...
Uma carrinha prisional parara junto ao passeio, deixando sair alguns inspectores à paisana que conduziam um rebanho de mulheres, encaminhando-as para a entrada coberta. Alain cruzou-se com elas ao sair. Algumas das mulheres sorriram-lhe. Via-se que a maior parte eram frequentadoras habituais, mas havia três ou quatro, mais jovens, com um olhar ansioso.
Que ia ele fazer? Nunca voltava para casa tão cedo, nem mesmo quando estava com a Gatinha. A menos que bebesse sem conta, não conseguiria adormecer, e não lhe estavam a agradar nada as ideias que lhe passavam pela cabeça.
Era uma coisa nova para ele sentir-se, de súbito, isolado. Estava para ali, no cais sombrio e deserto, sentado no carro, a acender um cigarro e a ouvir as águas cheias do rio a correr - não conseguia pensar em sítio nenhum para onde pudesse ir.
Em vinte, em cinquenta bares ou cabarés, tinha a certeza de encontrar pessoas que tratava por "meu coelhinho" havia anos e que, depois de lhe estenderem dois dedos, perguntariam:
- Um scotch?
Entre essas pessoas, havia também mulheres, é claro, todo o género de mulheres, aquelas com quem Alain fora para a cama e aquelas com quem ainda não fora ou não tivera vontade de ir.
O assento do automóvel, ao lado do seu, estava vazio e frio.
Rua de l'Université? A casa do cunhado? Que cara teria feito o seu digno e importante cunhado ao saber que a mulher acabava de ser morta com uma bala na...
A verdade é que não lhe tinham dito se a Gatinha visara a cabeça ou o peito. Tudo o que sabia era que, depois de disparar, fora pôr-se de rosto encostado à vidraça, o que era mesmo dela. Fazia-o muitas vezes. Se ele lhe dirigia a palavra, não respondia nem se mexia e só passado muito tempo se virava para perguntar com uma expressão de candura:
- Disseste alguma coisa?
- Em que é que estavas a pensar?
- Em nada. Bem sabes que nunca penso em nada... Uma rapariga estranha. E Adrienne também, Adrienne cujos grandes olhos de pestanas desmesuradas não exprimiam, durante a maior parte do tempo, qualquer sentimento. Todas as raparigas eram estranhas. E os rapazes também. Fala-se dessas coisas sem nada se saber. Escrevem-se sobre elas ou sobre eles coisas que não têm a ver com a realidade. Não era ele próprio um tipo estranho?
Um agente que viera apanhar ar, apertando o cinturão, avançou dois passos para o observar melhor. Alain preferiu pôr o carro em andamento.
Amanhã de manhã, os jornais... Espantou-se por não ter ainda encontrado repórteres e fotógrafos. Deviam estar a tentar sufocar o caso durante todo o tempo que fosse possível. Por deferência para com ele ou para com o cunhado, que era um alto funcionário?
Eram todos altos funcionários na família Blanchet, o pai, os três filhos. Quando nascia um primeiro filho, os outros da família deviam ter logo decidido:
- Escola Politécnica!
Para o segundo filho, Escola Normal Superior. Para o terceiro, Inspecção das Finanças.
A coisa resultara. Eram todos eles importantes, todos eles estavam instalados em grandes gabinetes oficiais, com um porteiro fardado à porta.
Tresandavam!
- Merda! Merda! E mais merda!
Estava farto. Gostava de conseguir fazer alguma coisa, falar com uma pessoa, embora continuasse sem saber com quem. Na Rua de Rivoli, entrou num bar conhecido.
- Viva, Gaston.
- Vem sozinho, monsieur Alain?
- Bem vês que tudo pode acontecer.
- Um scotch duplo?
Ele encolheu os ombros. Para que havia de se pôr de repente a mudar de bebida?
- A senhora está bem, não é verdade?
- Muito bem mesmo, suponho eu.
- Não está em Paris?
Alain sentiu uma vez mais o seu desejo de escandalizar.
- O mais possível em Paris. Mesmo no meio, no coração de Paris.
Gaston olhou-o sem perceber. Um parzinho, sentado ao balcão, ouvia-o e espreitava-o pelo espelho que ficava por trás das prateleiras das garrafas.
- A minha mulher está no Quai de FHorloge. Aquelas palavras pareceram não evocar qualquer imagem no espírito do barman.
- Não sabes o que é a grelha da P. J. no Quai de UHorloge!
Sem razão precisa, o outro tentou esboçar um sorriso.
- Matou a irmã.
- Um acidente?
- É pouco provável, uma vez que tinha uma pistola na mão.
- Está a brincar, não está, monsieur Alain?
- Lês nos jornais a história amanhã de manhã. Aqui tens.
Poisou no balcão uma nota de cem francos, desceu do banco sem nada ter decidido e, um quarto de hora mais tarde, estava de novo na sua rua. No passeio, diante da porta, havia um ajuntamento de mais de vinte pessoas, entre as quais lhe foi fácil, graças às máquinas que traziam, reconhecer os fotógrafos.
Pensou em carregar no acelerador e afastar-se. Mas para quê? Parou o carro, enquanto os flashes começavam a disparar. Os jornalistas começaram a precipitar-se para a porta do carro, enquanto ele saía com toda a dignidade possível.
- Um momento, Alain...
- Vamos lá, meus meninos...
Deixou-se fotografar junto do carro com a porta aberta, junto ao passeio, depois a acender um cigarro. Os repórteres estavam prontos, blocos na mão.
- Diga-me uma coisa, monsieur Poitaud... Aquele era um novato que ainda não sabia que toda a
gente o tratava por Alain.
- Não acham que está um bocadinho húmido cá fora, meus filhos? Porque é que não vamos até minha casa?
Seria preciso conhecê-lo bem, como a Gatinha o conhecia, para notar que a voz dele não soava com o timbre habitual. Não era uma voz desolada, como no Quai des Orfèvres. Pelo contrário, tinha agora uma vibração metálica.
- Entrem lá... Já que aqui estamos...
Oito pessoas encheram a abarrotar o elevador, enquanto os outros se precipitavam escadas acima. Reuniram-se todos no patamar da entrada do apartamento, e Alain pôs-se à procura da chave, acabando por descobri-la numa algibeira onde não costumava guardá-la.
- Têm sede? - perguntou ele, dirigindo-se para o bar e atirando o sobretudo para cima de uma poltrona.
Os fotógrafos hesitavam, depois acabaram por se decidir, e Alain não pestanejou sequer ao ouvir os estalidos das máquinas.
- Toda a gente quer whisky!
Só um dos homens pediu um sumo. Os pés molhados deixavam manchas na alcatifa azul-pálido. Um tipo jovem e enorme, ossudo, envergando um impermeável encharcado, sentara-se numa poltrona de cetim branco.
O telefone estava a tocar. Alain encaminhou-se lentamente para o aparelho. Tinha o copo numa das mãos e bebeu metade do seu conteúdo antes de atender.
- Sim, sou eu... Claro que estou em casa, senão não atendia... Claro que reconheci a tua voz... Espero que não te sintas chocado por continuar a tratar-te por tu... Virando-se para os jornalistas, explicou:
- É o meu cunhado... O marido... - Depois, de novo para o telefone: - Vieste cá?... Quando?... Não me apanhaste... Fui levar uma mala de roupa à Gatinha. .. Por pouco não nos encontrávamos na P. J... Estavas num gabinete e eu noutro...
O que é que estás a dizer?... Julgas que estou a brincar?... Lamento ter que to repetir nesta ocasião, mas tu não passas nem nunca passarás de um soleníssimo imbecil... Estou tão afectado como tu, ou mais... Afectado, não é o termo apropriado... Esmagado...
O quê?... O que é que me perguntaram?... O que é que eu sabia, é claro... Respondi que não sabia nada de nada... É a verdade... E tu, sabes alguma coisa, tu?... Tens alguma ideia?...
Os repórteres iam tomando algumas notas à pressa, os fotógrafos continuavam a disparar, o cheiro do whisky começava a invadir o estúdio.
- Sirvam-se, meus coelhinhos...
- O que é que estás a dizer? - inquietou-se o cunhado. - Não estás aí sozinho?
- Somos... Espera, deixa-me contá-los... Somos dezanove, contando comigo... Não tenhas medo, não é nenhuma orgia... Oito são fotógrafos... O resto, jornalistas... Olha, está agora a entrar uma rapariga mais, é também jornalista... Serve-te, minha coelhinha...
- Quanto tempo vão eles ficar aí em tua casa?
- Queres que eu lhes pergunte? Quanto tempo vão vocês ficar aqui em casa, meus meninos? - Depois, respondeu: - Uma meia horazita... É só o tempo de me fazerem algumas perguntas...
- O que é que lhes vais dizer?
- E tu o que é que lhes disseste?
- Eu pu-los a andar.
- Fizeste mal.
- Queria falar contigo primeiro.
- Agora é tarde.
- Não podes passar por minha casa a seguir?
- Receio não estar em estado de guiar o carro.
- Estiveste a beber?
- Normalmente.
- Não achas que num momento destes...?
- É justamente num momento assim que uma pessoa precisa de sacudir um bocado as ideias.
- Vou eu aí.
- Aqui? Esta noite?
- Preciso de falar contigo. É indispensável.
- Indispensável para quem?
- Para toda a gente.
- Sobretudo para ti, é claro!
- Estarei aí dentro de uma hora. Tenta, até lá, conservar algum sangue-frio, alguma dignidade.
- Tu tens dignidade que chegue para dois.
Não havia a menor emoção na voz do cunhado. Não dissera uma palavra acerca de Adrienne, que devia estar a ser feita em postas no Instituto de Medicina Legal, nem se referira à triste sorte da Gatinha.
- Estou a ouvir-vos, meus coelhinhos... Depois do que ouviram, não tenho grande coisa a acrescentar... Voltei a casa para mudar de roupa, antes de ir ter com uns amigos, para jantar fora... Contava encontrar aqui a minha mulher... Estava um inspector da polícia à porta, à minha espera...
- Foi ele que lhe deu a notícia? Aqui em casa?
- Não... Ele queria saber se eu tinha uma pistola... Respondi-lhe que sim... Fui à procura dela à gaveta e já lá não estava... O rapaz levou-me ao gabinete do chefe, à P. J...
- Ao comissário Roumagne?
- Sim, é esse o nome dele...
- Quanto tempo durou o interrogatório?
- Menos de uma hora... Não sei ao certo...
- Como é que reagiu quando soube que a sua mulher tinha morto a irmã?
- Ainda estou varado... Não percebo nada...
- Elas davam-se bem?
- Como irmãs...
- Acha que foi um crime passional?
- Num crime passional, há habitualmente uma terceira figura...
- Justamente...
- Estarão a dar-se conta do que isso, neste caso, implicaria?
Os jornalistas calaram-se.
- Se há um terceiro, eu não o conheço. Alguns trocaram um olhar entendido.
- Estou a ver só copos; vazios...
Alain encheu o seu e pôs depois a garrafa na mão de um dos fotógrafos.
- Serve os teus colegas, meu coelhinho...
- Costumava ajudar a sua mulher no trabalho dela?
- Nem sequer lia os artigos que ela escrevia.
- Porquê? Não os achava interessantes?
- Pelo contrário! Queria que ela se sentisse livre de escrever o que tinha vontade de escrever.
- E ela nunca teve vontade de trabalhar para a Tu?
- Nunca me falou nisso.
- Estavam os dois muito ligados um ao outro.
- Sim. Muito.
- Acha que ela premeditou o crime?
- Sei tanto disso como vocês... Não há mais perguntas?... Talvez, amanhã, eu já tenha algumas ideias e esteja outra vez no meu estado de homem normal... De momento, tenho a cabeça em água e estou à espera do meu cunhado que não ficaria contente de vos ver cá...
- Ele trabalha no Banco de França, não é?
- Exactamente... É um senhor muito importante e os vossos chefes de redacção vão dizer-vos que o poupem...
- Mas você não o poupou, há bocadinho, pelo telefone...
- Velhos hábitos. Sempre fui mal-educado. Acabaram por sair todos e Alain fechou a porta com
pena, olhou à sua volta os copos vazios e as garrafas, as poltronas e as cadeiras fora do lugar, as embalagens dos rolos de filmes espalhadas pelo chão. Ainda pensou em arrumar tudo antes da chegada de Blanchet e inclinou-se para apanhar qualquer coisa, depois desistiu, encolhendo os ombros.
Ouvira o elevador parar lá fora, mas esperou que Blanchet se desse ao trabalho de tocar à campainha como toda a gente. Este, porém, não se decidiu logo, demorando-se uns momentos no patamar, talvez hesitante, talvez tentando compor uma atitude de autodomínio.
Finalmente, ouviu-se a campainha, e Alain dirigiu-se com vagar para a porta, abrindo-a. Não estendeu a mão ao cunhado, que também lha não estendeu a ele e cujo sobretudo estava cheio de gotículas de água, tal como o chapéu ensopado.
- Estás sozinho?
Parecia desconfiado e por pouco, dir-se-ia, não foi ver ao quarto, à casa de banho, à cozinha minúscula se não estaria alguém escondido a ouvi-los.
- O mais sozinho possível.
Blanchet não tirara ainda o sobretudo nem poisara o chapéu, olhando para os copos e para as garrafas.
- O que é que lhes disseste?
- Nada.
- De qualquer maneira, tiveste de responder às perguntas deles. Quando se aceita receber jornalistas...
- E tu, ter-lhes-ias dito o quê?
Os Blanchet, o pai e os três filhos, eram altos, largos de ombros e de peito, com uma corpulência comedida, que servia apenas para lhes dar um ar mais digno. O pai fora duas vezes ministro. Um ou outro dos filhos sê-lo-ia igualmente, mais dia menos dia. Olhavam para as outras pessoas de cima para baixo, com condescendência, e deviam ir todos ao mesmo alfaiate.
O marido de Adrienne acabou por se desembaraçar do sobretudo, que deixou em cima de uma cadeira e, ao ver que Alain estava a encher o copo, apressou-se a protestar:
- Eu não tomo nada, obrigado.
- Este é para mim.
Houve um longo e penoso silêncio. Depois de poisar o copo junto de uma poltrona, Alain dirigira-se maquinalmente para a parede envidraçada, ainda coberta de milhares de gotas de água e através da qual se viam cintilar as luzes de Paris. A certa altura, deu por si a encostar a testa ao vidro, como que para a refrescar, e recuou com brusquidão. Não fora aquele o gesto da Gatinha, na Rua de l'Université, junto ao corpo de Adrienne caído por terra?
Blanchet acabara por se sentar.
- Porque é que quiseste, então, vir cá esta noite?
- Precisamos de nos entender, não achas?
- Entender sobre quê?
- Sobre o que vamos dizer.
- Já fomos interrogados.
- Superficialmente, pelo menos no que me diz respeito. Era um comissário-adjunto que parecia não querer meter-se em complicações. Amanhã ou depois de amanhã, seremos ouvidos por um juiz de instrução.
- É o costume.
- E o que é que tu lhes vais dizer?
- Que não percebo.
Blanchet deixava pesar sobre o cunhado um olhar insistente no qual havia ao mesmo tempo medo, desprezo e cólera.
- Só isso?
- Que mais hei-de dizer?
- Jacqueline já escolheu um advogado?
- Ao que parece, deixou isso ao meu critério.
- Quem é que chamaste?
- Ainda não pensei em ninguém.
- O advogado terá o encargo de defender a sua cliente.
- Espero que o faça, sim.
- Por todos os meios.
- É claro.
Alain estava a fazer de propósito. Nunca suportara o cunhado cuja presente atitude o enojava.
- Que defesa vai ele apresentar?
- Isso é lá com ele. Mas acho que não irá dizer que a Gatinha agiu em legítima defesa.
- E então?
- Então, o que é que tu sugeres? Chocado, Blanchet disse com certa ênfase:
- Pareces estar esquecido de que eu sou o marido da vítima.
- E eu sou o marido de uma mulher que, sem dúvida, irá passar uma boa parte da sua vida na prisão.
- Por culpa de quem?
- Sabes isso, tu? De quem é a culpa?
Novo silêncio. Alain acendeu um cigarro e estendeu a cigarreira a Blanchet, que recusou com um pequeno gesto. Como é que se arranjaria para tocar no assunto sem perder a compostura? Porque era visível que tinha uma ideia fixa ou, mais exactamente, uma pergunta que procurava ocasião para fazer.
- O comissário perguntou-me se éramos um casal unido.
Alain não pôde impedir-se de o fitar com um olhar de ironia.
- Eu disse-lhe que sim.
Alain sentia-se incomodado por deixar aquele simplório flácido atolar-se sem lhe estender a ponta de uma vara. Ao mesmo tempo, dava-se conta do esforço que o cunhado tinha de fazer para falar calmamente.
- Afirmei-lhe que gostávamos um do outro como no primeiro dia, Adrienne e eu.
A voz tornara-se-lhe surda.
- Tens a certeza de que não queres beber nada?
- Não. Nada. Ele insistiu muito nas tardes, não sei porquê.
- As tardes de quem?
- De Adrienne, evidentemente. Queria saber se ela costumava sair depois do almoço, se se encontrava com amigas...
- E encontrava-se? Blanchet hesitou.
- Não sei. Tínhamos muitas vezes jantares lá em casa. Também jantávamos fora com frequência. Acontecia irmos ter um com o outro a um cocktail, a uma recepção oficial. Outras vezes, Adrienne levava os miúdos a passear. Ia com eles e com a nurse ao Jardim Zoológico, por exemplo.
- Contaste isso ao comissário?
- Contei.
- E ele não pareceu satisfeito?
- Não completamente.
- Etu?
Surgiu então, de forma indirecta, a primeira confissão.
- Eu também não...
- Porquê?
- Porque esta noite falei com a nurse... Era a segunda ou terceira nurse que tinham em casa desde o nascimento do primeiro filho, e tratavam-nas todas por Nana, para simplificar.
- Ela começou por resistir, depois acabou por me confessar em lágrimas que a minha mulher nem sempre ficava com ela e com os miúdos no Zoológico. Algumas vezes ia-se embora sozinha, deixando-os lá, e voltando a encontrar-se no mesmo sítio com eles, à tarde, ao fim da tarde.
- As mulheres estão sempre a ter de ir às compras. Blanchet engoliu visivelmente uma dose de saliva,
olhando o cunhado nos olhos e, por fim, descendo as pálpebras.
- Dizes-me a verdade?
- Que verdade?
- Bem vês que tem de ser, que vão descobrir tudo de uma maneira ou de outra. Foi cometido um assassínio, e a nossa vida privada será exposta aos olhares do público.
Alain ainda não se decidira.
- Além disso, confesso-te que não posso...
Não terminou a frase e teve de levar o lenço ao rosto. Aguentara enquanto lhe fora possível. Agora, estava a ir-se abaixo. Alain, por pudor, desviou os olhos, deixando que o cunhado se recompusesse.
Em seguida, teriam de chegar ao ponto capital e Alain esvaziou o copo. Não gostava de Blanchet. Nunca gostaria dele. Mas nem por isso deixava de sentir dó.
- Que queres tu saber, Roland?
Era a primeira vez, naquela noite, que o tratava pelo nome próprio.
- Não adivinhas? Tu e Adrienne... Tu e Adrienne...
- Bom! Mete o lenço no bolso. Experimenta, por uma vez, não misturar os sentimentos com o teu sentido da respeitabilidade. Vamos falar de homem para homem. De acordo?
Blanchet respirou fundo e murmurou:
- De acordo.
- Antes de mais, mete na cabeça que não estou aqui para te agradar. O que vou dizer-te é a verdade, mesmo que algumas vezes eu tenha pensado de modo diferente. Quando nos conhecemos, a Gatinha e eu, levei meses a descobrir que gostava dela. Ela andava atrás de mim como um cachorrinho. Eu ia-me habituando a tê-la ao meu lado. Quando nos separávamos por algumas horas, por causa do trabalho dela ou do meu, ela arranjava sempre maneira de me telefonar. Dormíamos juntos e, quando eu acordava durante a noite, tacteava na cama, até a minha mão encontrar o corpo dela.
- Não vim cá para falar da Gatinha.
- Espera. Esta noite, estou perfeitamente lúcido. Parece-me estar a ver pela primeira vez as coisas como elas são. Depois, as férias chegaram. Ela foi obrigada a ir passá-las com os pais.
- Adrienne, nessa altura, já estava em Paris?
- Já, mas eu ligava-lhe menos do que a um canário numa gaiola. A Gatinha foi-se embora para ficar um mês longe e, ao fim de uma semana, eu sentia-me já completamente desorientado. A minha mão, à noite, tacteava, mas não encontrava nada a não ser os lençóis. No restaurante, nos bares, eu virava-me para o lado direito, sem dar por isso, como se fosse dizer-lhe alguma coisa...
Foi o mês mais comprido da minha vida. Estive quase a telefonar-lhe a dizer-lhe que voltasse, que voltasse de qualquer maneira e fossem quais fossem as consequências.
O pai da Gatinha era professor na Faculdade de Letras de Aix-en-Provence. A família tinha uma casa de campo em Bandol, onde passava as férias de Verão.
Alain não se atrevera a ir a Bandol, porque seria dar demasiado nas vistas.
- Quando ela voltou, eu ainda não me decidira. Depois, de repente, certa noite, numa boite da rive gaúche, onde tínhamos ido com um grupo de amigos, perguntei-lhe se queria casar comigo. Foi assim.
- Mas isso não me explica como é...
- Explica tudo, explica. Não sei se é o que se chama amor, mas foi assim que as coisas se passaram. Passámos dificuldades grandes durante algum tempo. Não era todos os dias, apesar de tudo. Havia os dias gordos e os dias magros. A Gatinha não conseguia publicar o que escrevia. Eu ainda não tivera a ideia de fazer a revista. Quanto a Adrienne, essa ficava, com muito juízo, fechada no quarto, a estudar.
- Não saía com vocês?
- Lá de tempos a tempos. Não tínhamos grande vontade de a levar. E ela talvez também não tivesse muita vontade de sair connosco. Gostava de ficar no cantinho dela, sem olhar para os lados.
- Foi então que...?
- Exactamente. Foi então que aconteceu. Uma estupidez.
Por acaso. Nem sequer te sei dizer se foi ela ou eu quem deu o primeiro passo. Eu era amante da irmã. Ou, por outras palavras, a irmã tinha um homem só para ela.
- Gostavas dela?
- Não.
- És um cínico - cuspiu-lhe raivosamente Blanchet.
- Não. Preveni-te de que íamos falar de homem para homem. Ela tinha vontade. Talvez eu tivesse também, que mais não fosse por curiosidade, para saber o que haveria por trás daquele rosto fechado.
- E agora sabes?
- Não... Sim... Acho que ela se aborrecia...
- De maneira que, há sete anos...
- Não. Continuámos a ver-nos, de vez em quando, assim...
- O que é que tu queres dizer com "de vez em quando"?
- Mais ou menos uma vez por semana.
- Onde?
- Pouco importa.
- A mim, importa-me.
- Se queres agarrar-te a imagens vivas, o pior é para ti. Era num estúdio mobilado da Rua de Longchamp.
- Isso é sórdido.
- Apesar de tudo, não podia levá-la para a Rua de La Vrillière.
A Rua de La Vrillière era onde Blanchet trabalhava, no palácio sumptuoso do Banco de França.
- A ti, ela conheceu-te em casa de uma amiga. Fizeste-lhe a corte?
- Contava-te tudo?
- Acho que sim.
- Não te pediu conselho? Nunca te pediu conselho quando estava contigo?
- Talvez.
- És um tipo ignóbil.
- Bem sei, mas, pelos teus critérios, deve haver mais alguns milhões de tipos ignóbeis no mundo. Ela casou contigo.
- E vocês continuaram a encontrar-se?
- Mais raramente.
- Porquê?
- Porque ela se transformou numa dona de casa. Depois, porque engravidou.
- De quem?
- De ti, não tenhas medo. Tomei sempre todo o cuidado.
- Que sorte a minha!
- Deixa-me acabar. Nunca falei disto à Gatinha. E a verdade é que muitas vezes lhe conto as minhas outras aventuras.
- Porque tinhas outras aventuras ao mesmo tempo?
- Eu não sou um funcionário e não preciso de ter cuidado com a minha reputação. Quando uma miúda me agrada...
- Atiras-te a ela e depois vais a correr contar à tua mulher.
- Porque não?
- E dizes que vocês se amavam!
- Não disse nada disso. Disse que sentia a falta dela quando não a tinha ao meu lado.
- E também sentias a falta da minha mulher?
- Não. Isso era um hábito. Talvez cada um de nós tivesse simplesmente medo de desgostar o outro se rompesse. Mas, mesmo assim, acabámos por romper, há cerca de um ano, dois dias antes do Natal, a 23 de Dezembro.
- Obrigado pela tua precisão.
- Deixa-me dizer-te já que, entre nós, nada se passou nesse dia. Limitámo-nos a beber uma garrafa de champagne.
- Não voltaram a encontrar-se?
- Em tua casa, em minha casa, no teatro...
- Mas os dois, a sós?
- Não.
- Podes jurá-lo?
- Se fazes questão, embora não perceba bem o que é que jurar quer dizer.
Pouco a pouco, Blanchet ia ficando corado, cada vez mais vermelho e parecia mais gordo, mais flácido. No fundo, todos os Blanchets eram assim, e escondiam a sua moleza por baixo de fatos de bom corte.
- Como é que explicas...
- Não queres mesmo beber nada? Tens a certeza?
- Dá-me um álcool, sim
Blanchet levantou-se e ficou de pé no meio do atelier, como um fantasma enorme.
- Aqui tens!
- Tudo isto vai ser divulgado, não é?
- Receio que sim.
- Vais contar tudo ao juiz de instrução?
- Sou obrigado a responder ao que ele me perguntar, não sou?
- Os jornalistas desconfiam de alguma coisa?
- Não fizeram a menor alusão directa ao caso.
- Estou a pensar nas crianças.
- Não. Se tu fosses ao menos capaz de te habituares a ser sincero para contigo próprio e a olhar para a verdade de frente!
- Há cerca de um ano...
- Juro-te pela segunda vez, se fazes questão.
- Estou a perguntar a mim próprio como é que a Gatinha decidiu de repente...
- Matar a irmã. Falemos claro. Também eu me estou a perguntar a mesma coisa. Ora, ela sabia, ao sair hoje cá de casa, o que tencionava fazer. De outra maneira, não tinha levado a minha pistola. Nunca a vi mexer-lhe...
Blanchet, após um silêncio, murmurou:
- A menos que haja mais alguém.
E lançou a Alain um olhar de revés, no qual perpassava certa satisfação.
- Pensaste nisso? - insistiu ele.
- Na medida em que me sinto capaz de pensar.
- Se Adrienne tivesse outro e...
Alain fez que não com a cabeça. Ao contrário do que se passara com Blanchet, as linhas do seu rosto tinham-se tornado mais precisas, mais duras.
- Enganas-te. Estás a ver as coisas às avessas. Não te esqueças de que a tua mulher foi comigo para a cama porque, na ideia dela, eu pertencia à irmã dela.
- De maneira que?
Dir-se-ia que o imponente cunhado de Alain começava a regozijar-se. Até a sua silhueta se tornara mais firme.
- Foi fatalmente a Gatinha quem começou. Adrienne voltou a fazer-lhe a mesma coisa. Só que desta vez a Gatinha achou de mais e afastou-a definitivamente do seu caminho.
- Isso não parece perturbar-te lá muito...
Alain olhou para ele, imóvel, e Blanchet sentiu que fora longe de mais. Teve medo, por um momento, um medo físico, medo que o outro lhe batesse, de que lhe fizessem mal...
- Desculpa.
Alain ficou ainda por um instante no seu lugar, imóvel, com o copo na mão.
- Aí está - acabou por dizer.
E depois, encaminhando-se para o bar:
- Temos cada um a nossa conta.
- Vais também dizer isso ao juiz de instrução?
- Não.
- Mas há bocadinho disseste...
- Conto-lhe tudo o que sei. O resto são suposições e ele lá chegará por si próprio.
- Não tens a mínima ideia...
- De quem possa ser? Não.
- Mas sempre vias mais a tua mulher do que eu a minha.
Alain encolheu os ombros. Como se ele prestasse atenção a tudo o que a Gatinha fazia ou deixava de fazer! Tudo o que lhe pedia era que estivesse ao pé dele, do seu lado direito, ao alcance da sua voz e da sua mão.
- E achas que ela falará?
- Recusou-se a responder às perguntas do comissário.
- Mas amanhã?
- Não faço ideia. Pessoalmente estou-me nas tintas para quem possa ser.
Nada mais tinham a dizer-se. Ficaram os dois, deambulando pela sala enorme. Alain, apesar de tudo o que bebera, não se sentia embriagado.
- Não voltas para casa?
- Sim. Claro. Mas acho que não vou ser capaz de dormir.
- Eu, pelo meu lado, vou afogar-me em sono.
O outro vestiu o sobretudo, procurou o chapéu, hesitou sem saber se devia ou não estender a mão a Alain que se mantinha a uma certa distância.
- Até um dia destes. Ou até amanhã. Talvez o juiz queira acarear-nos.
Alain encolheu os ombros.
- Vê se consegues... que não se fale de mais de Adri-enne... que ela não seja julgada com demasiada dureza...
- Boa-noite.
- Obrigado.
Blanchet saiu desajeitadamente, lamentável, fechando a porta atrás de si e, depois cá fora, começou a descer as escadas em vez de chamar o elevador.
Alain pôde, finalmente, permitir-se soltar um grito selvagem.
3
Teve uma noite agitada. Por várias vezes, deu por si semiacordado, e uma delas não do seu lado da cama, o esquerdo, mas do lado direito, o da Gatinha. Tinha o estômago em fogo e acabou por se levantar, semiconsciente, para ir tomar uma dose de bicarbonato de sódio à casa de banho.
Quando ouviu uma voz à cabeceira, o dia mal nascera ainda, e a mulher-a-dias vira-se obrigada a sacudi-lo pelos ombros para o acordar. Ela chamava-se madame Martin. Entrava todos os dias ao serviço às sete horas e ia-se embora ao meio-dia.
Com o rosto severo e um olhar duro, num tom de voz seco, disse-lhe:
- Tem o café à espera.
Alain nunca aceitara a piedade das outras pessoas. Detestava as atitudes sentimentais. Queria ver-se a si próprio como um cínico, e, no entanto, naquela manhã precisaria talvez de um pouco de doçura nas suas relações com os outros.
Sem vestir o roupão, entrou na sala onde as luzes acesas lutavam contra a claridade acinzentada do exterior.
Do outro lado da grande abertura envidraçada da parede, o mundo estava glauco: os telhados molhados, o céu, já não invadido de nuvens dramáticas como na véspera, mas de um pardo uniforme, escuro, imóvel.
Habitualmente, via-se dali um panorama imenso, de Notre-Dame à Torre Eiffel. Hoje, porém, a vista reduzia-se a meia dúzia de telhados, a algumas janelas iluminadas - e eram já oito horas da manhã.
Alain pôs-se a beber avidamente o café, olhando à sua volta a sala onde as cadeiras e sofás tinham retomado os lugares de sempre e de onde as garrafas e os copos tinham desaparecido.
Madame Martin andava de um lado para o outro, a arrumar a casa, com os lábios sempre a mexerem-se como se falasse sozinha. Tinha cerca de cinquenta anos. Os jornais, que a mulher-a-dias costumava trazer quando subia, estavam em cima de uma mesinha baixa, mas Alain não sentiu curiosidade de ver o que diziam.
Embora não estivesse de ressaca, sentia-se muito cansado, tanto moral como fisicamente, e com a cabeça vazia.
- Acho melhor preveni-lo já...
Desta vez, os lábios da mulher-a-dias moviam-se, sim, mas já não em silêncio. Estava a falar com ele:
- ... que é a última vez que venho cá a casa...
Não se explicou melhor do que isto. De resto, ele também não lhe pediu mais explicações; serviu-se de uma nova chávena de café e começou a mordiscar um croissant que se lhe pegava à boca.
Acabou por se sentar junto do telefone e pediu uma chamada para Saint-Illiers-la-Ville.
- Está?... Loulou?...
Era a cozinheira, Louise Biran, a mulher do jardineiro.
- Já viu o jornal?
- Ainda não, mas passaram umas pessoas que...
A mulher estava com uma voz diferente da habitual.
- Não acredite em tudo o que lhe disserem nem em tudo o que vier nos jornais. Ainda nada se sabe ao certo. Como é que está Patrick?
O miúdo tinha cinco anos.
- Bem.
- Tente mantê-lo longe desta história.
- Vou fazer o melhor que for capaz.
- Mais alguma coisa?... - achou Alain dever acrescentar.
- Mais nada.
- Posso pedir-lhe o favor de me fazer mais café, madame Martin?
- Parece precisado.
- Deitei-me tarde.
- Foi o que pensei logo, assim que vi o estado em que a sala ficou.
Alain foi lavar os dentes, pôs água a correr para o banho, mas acabou por decidir-se a tomar antes um duche frio. Não sabia o que havia de fazer nem onde se meter. Habitualmente, de manhã, os seus movimentos desenrolavam-se segundo um ritmo preciso. Esquecera-se de ligar, como todos os dias fazia, a rádio. Receava ouvir falar da Gatinha e da sua pessoa.
Lembrou-se do corredor comprido, em forma de túnel, onde entregara a um agente a mala destinada à Gatinha. Ela devia estar já acordada, também ela. Acordavam-nos provavelmente muito cedo, talvez às seis da manhã.
- Tem o café pronto.
- Obrigado.
Bebeu-o, com o roupão de banho vestido, e acabou por ir buscar os jornais. Leu o primeiro título: Jovem jornalista assassina a irmã.
Depois, em caracteres mais pequenos:
Parece tratar-se de uma tragédia causada pelo ciúme.
Seguia-se uma má fotografia da Gatinha, a atravessar o pátio da P. J., escondendo a cara entre as mãos.
Não teve coragem de ler o artigo nem de ver o que diziam os outros jornais da manhã. Levantara-se cedo de mais. Nos outros dias, seguia directamente para a Rua de Marignan, onde gostava de ser dos primeiros a chegar, para se ocupar a ver o correio.
Não tinha vontade de ir para a revista. Não tinha vontade de coisa nenhuma. Por pouco não voltou a deitar-se e a adormecer de novo. Apesar da hostilidade dela, tranquilizava-o ouvir madame Martin a andar de um lado para o outro à sua volta.
De que é que se esquecera, entretanto? Sabia que tinha um dia sobrecarregado à sua frente, mas continuava indeciso, com o espírito nebuloso.
Ah, sim! Um advogado! O que conhecia melhor era o que costumava aconselhá-lo a propósito da revista e do seu negócio de discos. Chamava-se Helbig, Victor Helbig, e era difícil adivinhar-lhe a origem. Tinha um sotaque que tanto podia ser checo como húngaro ou polaco.
Era um homenzinho baixo, de meia-idade, gordo, luzidio, com óculos de lentes grossas como lupas, e cabelos de um ruivo flamejante.
Vivia sozinho na Rua des Écoles, rodeado por uma confusão indescritível, o que não o impedia de ser um civilista temível.
- Está? Victor? Não te acordei?
- Estás a esquecer-te de que começo o dia às seis da manhã. Já sei porque é que queres falar comigo.
- Já viste os jornais?
- Tenho dados suficientes para te aconselhar Rabut. Philippe Rabut era o advogado que interviera nos casos mais célebres dos últimos anos.
- Não achas que isso é confessar que o caso é difícil?
- A tua mulher matou a irmã, não matou?
- Sem dúvida.
- E não nega tê-lo feito?
- Não. Confessou-o.
- Que explicação apresentou ela para o que fez?
- Nenhuma.
- É melhor assim.
- Porquê?
- Porque Rabut poderá dizer-lhe o que é que ela há-de dizer depois. E para ti como é que estão as coisas?
- Que queres dizer com isso?
- Os leitores da tua revista talvez não gostem lá muito do papel que tu desempenhaste na história.
- Mas eu não desempenhei papel nenhum!
- Isso é mesmo verdade?
- Devia ser, pelo menos. Há mais de um ano que eu não tocava em Adrienne.
- Telefona para Rabut. Conhece-lo?
- Bastante bem.
- Boa sorte.
Teve de procurar o número de telefone de Philippe Rabut, que residia no boulevard Saint-Germain. Encontrara-o muitas vezes em estreias, cocktails, ceias...
Uma voz de mulher, nítida, quase cortante.
- Escritório de maitre Rabut.
- Daqui, Alain Poitaud - disse ele.
- Um instante, por favor.
Teve de esperar algum tempo. O apartamento do boulevard Saint-Germain era muito grande. Alain estivera lá uma vez, numa recepção. O advogado não devia estar ainda no gabinete de trabalho.
- Fala Rabut. Já estava à espera do seu telefonema.
- Pensei logo em si. Estive para lhe ligar ontem à noite, mas não quis incomodá-lo.
- Cheguei muito tarde de Bordeaux, onde fui defender um cliente. Diga-me lá, então. O caso parece-me bastante simples. O que pergunto a mim próprio é como é que um homem como você pôde meter-se numa situação destas. Não podemos impedir que se fale no assunto. Já sabe se a sua mulher disse alguma coisa?
- Segundo me contou o comissário Roumagne, contentou-se com declarar que tinha disparado a arma, recusando-se a responder a qualquer outra pergunta.
- É isso. E o marido da outra?
- Conhece-o?
- Já o tenho visto.
- Diz que não sabia de nada. Esteve ontem à noite em minha casa.
- Está zangado consigo?
- Não sabe o que há-de pensar. E eu também não.
- Olhe, meu velho, não vai ser nada fácil arranjar-lhe um papel simpático.
- Não foi por minha causa que a coisa aconteceu.
- Não era amante da irmã?
- Já não.
- Desde quando?
- Desde há cerca de um ano.
- Contou isso ao comissário?
- Sim.
- E ele acreditou?
- É a verdade.
- Verdade ou não, as pessoas não vão engolir facilmente essa história.
- Não é de mim que se trata, mas da minha mulher. Hoje, ela vai ser outra vez interrogada.
- É claro...
- Queria que falasse com ela.
- Estou cheio de trabalho, mas é um caso que não posso recusar. Quem é o juiz de instrução?
- Não sei.
- Está em casa? Fique aí até eu lhe telefonar. Vou tentar ver o que se passa no Palácio da Justiça.
Alain ligou para a revista.
- É você, Maud?
Uma das telefonistas com quem, de vez em quando, ele ia para a cama.
- Como está o chefe?
- Como deve calcular... meu coelhinho. Boris já chegou?
- Está a ver o correio. Vou passar-lhe a chamada.
- Está? Boris?
- Sim, Alain. Pensei que não virias cá esta manhã e estou a ver o correio...
Alain dera a Boris Maleski o lugar de chefe de redacção. Maleski vivia nos arredores, para os lados de Villeneuve-Saint-Georges, com a mulher e quatro ou cinco filhos. Era um dos raros da Tu que não fazia parte do grupo e costumava voltar para casa quando acabava o trabalho.
- A revista já saiu?
- Começou agora a distribuição.
- Não houve muitas chamadas esta manhã?
- Não param de ligar para aqui. As linhas estão todas ocupadas. Tiveste sorte em conseguir a ligação.
- O que é que as pessoas dizem?
- São sobretudo mulheres a telefonar para cá. Querem saber se é verdade.
- Se é verdade o quê?
- Que tu eras amante da irmã da Gatinha, como os jornais dão a entender.
- Eu não disse nada de parecido aos jornalistas.
- Isso não os impediu de tirarem as suas conclusões.
- E o que é que vocês respondem?
- Que as investigações mal começaram ainda e que nada se sabe ao certo.
Alain, na pergunta seguinte, exibiu o seu desnorteamento:
- O que é que vamos fazer no próximo número?
- Nada. Bom, uma vez que queres saber a minha opinião, vou dar-ta. Nada de falar no caso. Fazemos o que tínhamos previsto e mais nada.
- Sim. É claro que tens razão.
- Não estás muito abalado?
- Depende dos momentos. É possível que passe por aí ao fim do dia. Não me sinto com coragem de ficar aqui sozinho.
Alain continuava a tentar lembrar-se das coisas que se propusera fazer. Na véspera, parecia-lhe que o seu dia seria tão sobrecarregado que nem tempo teria para pensar, e agora, pelo contrário, sentia-se tão isolado no estúdio envidraçado que lhe servia de sala, como se estivesse num farol.
Havia ainda os pais. Prometera a si próprio ir vê-los. Não moravam longe. Viviam na Praça Clichy havia perto de cinquenta anos, mas só raramente os visitava.
Estava já a preparar-se para sair, quando se lembrou de que Rabut ficara de lhe telefonar. Depois, ligou para casa dos pais. Pouco lhe importava que madame Martin ouvisse as conversas. Doravante, já nada poderia guardar de secreto, de íntimo, porque certos jornais não hesitariam em espiolhar toda a sua vida.
- Está lá, mamã? Sou eu, sim. Queria ir aí ver-te, mas ainda não sei quando terei tempo. Estou em casa. Não. A mulher-a-dias também cá está. Acaba de se despedir. Porquê? Já leste os jornais? E o papá? Não disse nada? Nem uma palavra? Onde é que ele está? No consultório?
O pai era dentista e começava a trabalhar às oito da manhã, recebendo clientes até às oito da noite, quando não até mais tarde.
Era um homem cheio de vigor, com o cabelo grisalho cortado em escova, os olhos cinzentos, e emanava dele tal serenidade, a sua pessoa dava tal impressão de paciência e de compreensão que os doentes tinham vergonha das suas aflições.
- O que é que estás a dizer?... Não, há coisas verdadeiras e outras que são falsidades. Nos próximos dias, haverá mais falsidades, com certeza. Vou passar por aí para te dar um beijo, assim que me for possível. Diz ao papá que me lembro muito dele.
Com um esfregão nas mãos, madame Martin estava a olhar para ele, surpreendida, como se um monstro daquela laia não devesse ter nem pai nem mãe.
Que mais poderia fazer enquanto esperava? Fumava cigarro atrás de cigarro. Pensava no Palácio da Justiça, no Quai des Orfèvres, nos calabouços da P. J., em toda a grande máquina que se ia pôr em movimento, mas que, de momento, o deixava de lado.
O que é que as mulheres fariam, lá na P. J., durante as horas e horas vazias que passavam entre os interrogatórios?
Eram dez da manhã. Alain precipitou-se para o telefone que estava a tocar.
- Está, sim? Sou eu...
- Vou passar-lhe maitre Rabut.
- Está? Está, sim? Rabut?
- Bom. Já foi nomeado o juiz de instrução. É Bénitet, um homem bastante novo ainda, trinta e cinco ou trinta e seis anos, que não pretende dar nas vistas e é um juiz consciencioso. Vai ouvir a sua mulher às onze horas comigo presente.
- E com a polícia, já acabou?
- Dado que confessou e que não há mistério no caso...
- E eu?
- Não sei quando será a sua vez. Hei-de sabê-lo ao fim da manhã e logo lhe digo. Agora tenho de ir para o Palácio. Onde o poderei apanhar?
- Na revista. Se eu lá não estiver, deixe recado à telefonista.
Teria feito tudo o que tinha que fazer? Ainda não.
- Quanto lhe devo, madame Martin?
Ela tirou do avental um papelinho, onde estava uma série de números escritos a lápis. O total era de cento e cinquenta e três francos. Alain entregou-lhe duas notas de cem francos e ela nem sequer fez menção de lhe querer dar troco.
- Deixe a chave na porteira.
- No caso de o senhor não arranjar mais ninguém... Alain desceu as escadas a pé. A escada era larga, com
os seus patamares, e era pena terem-na estragado com aqueles vitrais, que lhe davam um ar velho ou pretensioso. Havia apenas um apartamento por andar. O terceiro estava misteriosamente vazio. No segundo, vivia uma família sul-americana, riquíssima, com três ou quatro filhos, Rolls-Royce e chauffeur. O marido, depois de ter estudado em França, estivera durante vários anos à frente dos destinos do seu país, até que fora derrubado Por um golpe de Estado militar.
No primeiro andar, ficavam os escritórios de uma companhia petrolífera. No rés-do-chão, um consulado.
A loja da porteira era quase um salão, e ela, madame Jeanne, uma senhora de ar extremamente composto, cujo marido trabalhava num ministério.
Evitou o olhar de Alain e procurou manter uma atitude reservada.
- Pobre senhora! - acabou, no entanto, por sussurrar.
- Sim.
- Deus sabe quando voltará ela aqui.
- Espero que seja em breve!
Alain ia-se habituando, apesar do seu horror, a estas atitudes equívocas.
- Diga-me, madame Jeanne, não saberá por acaso de uma mulher-a-dias?
- Porquê? Madame Martin vai-se embora?
- Acabou de mo comunicar.
- Bom, até certo ponto compreendo-a, embora não tenha a certeza de a aprovar. As pessoas nem sempre pensam nas consequências dos seus actos, não é verdade? Sobretudo os homens...
Ele não protestou. Não seria, sem dúvida, a única a acusá-lo, a considerá-lo como o autêntico culpado. De que servia protestar?
- Há aí uma rapariga nova que não tem trabalho e que anda à procura de alguma coisa. Vou tentar falar com ela hoje mesmo. Só precisa das manhãs, não é verdade?
- Tanto me faz.
- Está a querer referir-se ao preço?...
- O preço será o que ela disser.
Uma chuva fininha continuava a cair e a maior parte dos transeuntes traziam guarda-chuva. Ao fundo da rua, os gradeamentos do Parque Monceau pareciam de um negro mais carregado e as flechas doiradas sem brilho.
Ao aproximar-se maquinalmente do automovelzinho vermelho, pensou no carro da Gatinha. Onde é que ela o deixara? Estaria ainda à porta dos Blanchet, na Rua de l'Université?
Sem motivo preciso, incomodou-o pensar que o automóvel ficasse assim na rua, abandonado. Na margem esquerda, meteu pela Rua de l'Université. A cinquenta metros do palácio em cujo primeiro andar Blanchet morava, viu o carro reluzente de chuva. Diante do portão do pátio havia dois ou três pequenos grupos parados - curiosos e talvez alguns jornalistas.
Dirigiu-se, em seguida, para a Rua de Marignan e penetrou naquele prédio que as instalações da revista tinham ocupado quase por inteiro, a pouco e pouco, desde o momento inicial quando se limitavam ao último andar.
No rés-do-chão, ficavam as salas e os guichets. Alain entrou no elevador, saiu no quarto piso, e atravessou os corredores onde, pelas portas abertas, se ouvia o bater das máquinas de escrever.
O prédio fora concebido para habitação e fora necessário, por isso, ao instalar a revista, montar algumas divisórias e deitar paredes abaixo. Subiam-se e desciam-se degraus, circulava-se num labirinto de corredores.
De tempos a tempos, Alain fazia um cumprimento com a mão e, por fim, abriu a porta do seu gabinete, onde descobriu Maleski instalado no lugar que habitualmente era ele a ocupar.
Acenou-lhe também com a mão. Depois pegou no telefone.
- Ligue-me para a minha garagem, meu coelhinho. Para a da Rua Cardinet, sim. Não tem linha? Então, logo que tenha...
Havia, como sempre, um monte de cartas, e ele pôs-se a percorrer rapidamente algumas delas sem saber muito bem o que estava a ler.
- Está, sim? Sim, é da Garagem Cardinet? Benoit? Daqui, Poitaud. Sim. Obrigado, meu velho. O carro da minha mulher está estacionado na Rua de l'Université. Não. Um bocadinho depois do ministério. Não sei se ela lá deixou a chave. Diga ao mecânico para levar tudo o que possa ser preciso. Depois queria que levassem o carro aí para a garagem. Arrumem-no. Sim. Lavem-no, se acharem preferível.
Maleski estava a olhar para ele com curiosidade. Toda a gente o olharia doravante com curiosidade, fizesse ele o que fizesse, e Alain perguntava-se como deveria por-tar-se um homem na sua situação.
Na primeira página de um jornal deixado em cima da mesa, viu uma fotografia sua, com um copo na mão, cabelos despenteados.
O copo não era para ali chamado. Não era coisa que se fizesse, disso não havia dúvida.
Forçou-se a andar de um lado para o outro nas instalações da revista, apertando algumas mãos e repetindo o seu costumado:
- Viva, meu coelhinho.
Aparentemente, estava mais à vontade do que os outros, que não sabiam que dizer-lhe, nem como olhar para ele. Subiu até lá acima, às mansardas cujas paredes tinham sido deitadas abaixo e onde fora montada a sala dos maquetistas. Julien Bour, um dos fotógrafos, estava debruçado sobre o estirador ao lado de Agnard, o maquetista.
- Vivam, meus filhos.
Começou a ver as fotografias de um maço - nus, na grande maioria, com o estilo particular que a Tu adoptara. Nus ou seminus castos.
- Isto tem de se dirigir a toda a gente - costumava ele explicar outrora aos seus colaboradores.
Nos textos era a mesma coisa. Histórias da vida de todos os dias. Os dramas das pessoas comuns. O primeiro anúncio da revista, alguns anos antes, nas paredes da cidade: um dedo que apontava os transeuntes, homens e mulheres: Tu!
Um Tu enorme, a que era impossível uma pessoa escapar-se.
- Ouçam-me bem, meus coelhinhos. Não escrevemos só para toda a gente, mas também para cada pessoa em particular e cada pessoa que nos lê deve sentir que é com ela que estamos a falar.
Tu... Em tua casa... Contigo... Em ti... Voltou cá para baixo e, no momento em que entrava no seu gabinete, chamaram-no ao telefone.
- Rabut - segredou-lhe Maleski.
- Está? Já tem notícias? Ela disse alguma coisa?
- Não. Não posso falar consigo daqui. Venha ter comigo ao meio-dia e meia ao restaurante do Palácio, e almoçaremos juntos. Fui encarregado pelo juiz de instrução de o convocar para uma acareação, às duas horas.
- Com ela?
- É claro.
O advogado desligou. Fora bastante seco, como se estivesse de mau humor.
- Ainda não sei se virei cá esta tarde. Em qualquer caso, não serei eu a tratar do próximo número. Fica ao teu cuidado.
Desceu as escadas lentamente. Durante anos, tinham-lhe perguntado:
- Para onde é que vais a correr?
Porque andava sempre apressado e passava o tempo a precipitar-se de um lado para o outro.
Mas hoje surpreendia-se a andar como toda a gente e mesmo mais devagar que os outros. Também os seus gestos eram lentos, até quando acendia um cigarro. Olhou o bar fronteiro, hesitou, atravessou a rua debaixo de chuva.
- Um scotch duplo?
Alain fez que sim com um movimento da cabeça, evitando ter de falar com o barman. Tinha à justa o tempo necessário para, sem pressas, se dirigir ao Palácio da Justiça e descobrir um lugar para arrumar o carro. Paris estava pesado, baço. Os automóveis seguiam uns atrás dos outros quase a passo. Fumou dois cigarros antes de chegar e acabou por deixar o carro bastante longe do boulevard do Palácio.
Conhecia o restaurante escuro e velho, porque, nos começos da sua carreira, fora algumas vezes encarregado de fazer o noticiário dos tribunais. Rabut era já nessa altura um advogado destacado e, quando passava rapidamente pelos corredores ou pela sala dos passos perdidos, com a beca flutuante cujas mangas pairavam como asas, os advogados jovens e menos jovens davam-lhe respeitosamente passagem.
Alain procurou-o com os olhos entre as mesas onde acusados em liberdade, pessoas que seriam julgadas à tarde, discutiam em voz baixa com os seus patronos.
- Tem mesa marcada?
- Estou à espera de maitre Rabut.
- Venha por aqui.
Era junto à janela, como sempre. Alain viu-o chegar, macilento, pescoço forte, carregando através do pátio quase deserto, como se estivesse na sala de audiências. Não trazia a pasta na mão, nem documentos.
- Já pediu alguma coisa?
- Não.
- Para mim, carnes frias e meia garrafa de Bordeaux.
- Para mim, a mesma coisa.
O rosto do advogado estava longe de se mostrar sorridente.
- Como é que ela está?
- Calma e dura. Basta-lhe aparecer assim diante dos jurados para apanhar a conta maior.
- E continua a não dizer nada?
- Quando Bénitet lhe perguntou se reconhecia que tinha morto a irmã, ela contentou-se com responder que sim. A seguir, ele perguntou-lhe se, de manhã, ao tirar a pistola da sua gaveta, já decidira o que ia fazer. Ela respondeu-lhe que ainda não tinha a certeza e que a decisão só mais tarde tinha sido tomada.
Estavam a servir-lhes as carnes frias e o vinho, e tiveram de se interromper por instantes.
- Bénitet é um rapaz paciente, bem educado. Tratou-a com muita indulgência. Por mim, no lugar dele, não tenho a certeza de não a ter esbofeteado.
Alain estava à espera, em silêncio, do que viria a seguir, mas um relâmpago de cólera acabara de lhe atravessar os olhos escuros. Conhecia Rabut, a sua brutalidade, e sabia que esta constituía boa parte da sua força nos tribunais.
- Não sei como é que conseguiu, mas parecia que acabava de chegar do cabeleireiro, ela. Nem um cabelo fora do lugar. Parecia fresca, repousada, com o saia-casaco sem uma ruga.
Era um saia-casaco verde, que a Gatinha mandara fazer havia três semanas. Na véspera saíra de casa depois de Alain e, por isso, até àquele momento, este ignorava como estaria vestida a mulher.
- Parecia estar ali de visita. Conhece as instalações lá de cima, as salas velhas, que ainda não foram modernizadas? É aí que fica o gabinete de Bénitet. Tudo cheio de poeira. Os dossiers empilham-se no chão até meia altura das paredes.
- E ela, no meio da sala, parecia uma senhora a fazer uma visita, uma senhora com medo de se sujar.
Bénitet perguntou-lhe com insistência qual a razão do seu gesto. Ela contentou-se com responder:
- "Sempre detestei a minha irmã".
Bem entendido, ele fez-lhe notar que isso não era razão para a ter morto, e ela replicou:
- "Isso depende".
Vou pedir uma peritagem psiquiátrica. Infelizmente, não há a menor possibilidade de ela estar louca. Alain interveio, hesitante:
- A Gatinha foi sempre um tanto bizarra. Eu dizia-lhe às vezes que ela era imprevisível. Como um gato novo que está a ronronar ao pé do lume e que, de repente, se lança de um salto, sem motivo, para o outro canto da sala. Foi por isso que comecei até a chamar-lhe Gatinha.
Rabut fitava-o calado, mastigando uma garfada de carne de vaca.
- Isso não pega - contentou-se ele com observar, como se o seu interlocutor acabasse de dizer uma asneira. - O juiz quis saber se ela tinha agido por ciúme e ela não respondeu, nem sequer os lábios se lhe mexeram. A partir daí, não foi possível arrancar-lhe mais nada, a não ser um silêncio que, para o fim, era quase insultuoso.
Rabut atacou nova garfada. Alain estava também a comer, sem olhar para os lados. O universo nunca fora tão pequeno e a mesa vizinha fazia já parte de um outro mundo.
- O mais duro de engolir vai ser o que se passou depois. Quando a sua mulher ia a caminho da cela...
- Puseram-lhe algemas?
- Nos corredores, sim. É a regra. Eu fiquei um momento a sós com Bénitet. Ele acabava de receber o relatório do médico da polícia. Adrienne Blanchet não morreu logo, sobreviveu durante alguns minutos, quatro ou cinco...
Alain não estava a perceber. Com o copo na mão, olhava para o advogado com uma expressão de impaciência.
- Sabe, com certeza, que a nurse, a que eles lá em casa chamam Nana, mas cujo verdadeiro nome é Marie Poterat, estava na sala ao lado, com as crianças. Primeiro, ouviu as vozes exaltadas e teve a boa ideia de levar o miúdo e a miúda para a cozinha...
No momento em que atravessava o corredor, ouviu os tiros. O rapaz quis ir a correr ver o que era... mas ela conseguiu, à força ou quase, arrastá-lo com a irmã para a cozinha onde os entregou à cozinheira.
Alain, que conhecia a casa e as pessoas, reconstituía maquinalmente a cena.
- Deve saber que a cozinha fica no outro extremo do apartamento. Em voz baixa, a nurse explicou à cozinheira que não deixasse sair dali as crianças.
Conhecendo Bénitet como conheço, acho que ele vai mandar lá a casa um inspector para apurar melhor todas estas idas e vindas. Mas, quando chegou à porta da sala, Marie Poterat não entrou logo: ficou à escuta. Como não ouviu mais nada, hesitou e depois decidiu-se a bater à porta.
Ninguém respondeu. Podemos supor que passaram até essa altura três minutos ao todo. Ora, quando a nurse acabou por entrar, a sua mulher estava de pé, com o rosto contra a vidraça, e a irmã estendida por terra, metade no tapete, metade no soalho, a um metro do toucador. Os lábios estavam entreabertos e soltavam um leve gemido.
E Rabut concluía, espetando com o garfo um pedaço de presunto:
- Vão lá defender um caso destes! Ela dispara contra a irmã. Bom! Sempre seria melhor que a outra não fosse irmã dela. Qualquer pessoa; mas a irmã, não. As pessoas ainda acreditam na voz do sangue, em Caim e Abel.
Quanto ao ciúme, de acordo. É fácil. Mas abater a irmã, deixando-a a agonizar durante quatro ou cinco minutos sem lhe prestar assistência nem chamar por ninguém...
Ora, não podemos impedir Marie Poterat de aparecer no tribunal, onde será a principal testemunha.
Vão fazê-la descrever a moribunda e, a seguir, a assassina de pé, à janela.
Alain baixara a cabeça, sem nada para dizer. Rabut tinha, sem dúvida, razão, e, contudo, não era verdade.
A verdade, Alain não a conhecia melhor do que os outros, mas talvez começasse a entrevê-la.
- Desde quando é que você era amante da irmã?
- Já não era.
- Mas foi, durante quanto tempo?
- Cerca de sete anos. Não foi como está a pensar. Havia entre nós uma espécie de amizade carinhosa.
- Pare lá com isso! Iam para a cama os dois, ou não iam?
- íamos.
- Onde?
- Num estúdio mobilado da Rua de Lonchamp.
- Mau.
- Porquê?
- Primeiro, porque as pessoas sérias desconfiam desses lugares, que consideram duvidosos e que, no espírito delas, estão associados à noção de vício.
Alain ia protestar:
- Era tão inocente!
Mas não era certo que o próprio Rabut compreendesse.
- Quando é que lá foram pela última vez?
- A 23 de Dezembro do ano passado. Portanto, há cerca de um ano.
- A sua mulher sabia?
- Não.
- É muito ciumenta, ela?
- Não me dizia nada quando eu ia para a cama com esta ou com aquela.
- Você contava-lhe?
- Quando calhava.
- E nunca desconfiou das suas relações com a irmã?
- Que eu saiba, não.
Olharam-se os dois em silêncio. As coisas ameaçavam passar-se outra vez como na véspera, entre Alain e o cunhado.
- Admite a hipótese de que pudesse haver um terceiro?
- Tive de admitir.
- É a si que pergunto agora se desconfiou de alguma coisa.
- Não.
- Passavam os dois muito tempo juntos, você e ela?
- De manhã, eu costumava ser o primeiro a sair. Ela às vezes tinha um artigo para escrever e fazia-o lá em casa. Telefonava também para as Nonnettes, para a nossa casa de campo, para falar com o miúdo.
- Que idade tem ele?
- Cinco anos.
- Bom, isso. Bom ou mau. Depende. E mais?
- Quase todos os dias, por volta das onze horas, telefonava-me para a revista para saber onde eu ia almoçar e, na maior parte das vezes, encontrava-se comigo no restaurante.
- E depois?
Rabut afastara o prato e acendera um cachimbo.
- O mais das vezes, à tarde, ela tinha de ir falar com alguém. A especialidade dela eram as entrevistas com figuras conhecidas que estivessem por cá de passagem. Não fazia pequenas reportagens, Às vezes, as entrevistas eram verdadeiros estudos, publicados em várias remessas. A seguir telefonava-me outra vez ou ia ter comigo ao Clocheton, o nosso bar, na Rua de Marignan. Encontrávamo-nos lá sempre, uns dez amigos ou mais, entre as sete e as oito horas.
- Jantavam os dois sozinhos?
- Raramente.
- Voltavam tarde para casa?
- Quase nunca antes da uma da manhã e quase sempre por volta das duas ou das três.
Rabut declarou como se estivesse a proceder a uma observação de especialista:
- Vida de família nula. Os jurados, mesmo quando toleram todos os excessos imagináveis, têm uma vida de família. Basta falar-lhes da sopa do jantar para os deixar
comovidos.
- Nós nunca comíamos sopa - replicou Alain com
frieza.
- A partir de amanhã, a sua mulher vai ser transferida para a Petite Roquette. Eu irei lá vê-la. Você também pode pedir uma autorização para a visitar, mas duvido que, neste ponto da instrução, lha concedam.
- O que é que os jornais dizem?
- Não os leu? De momento, mantêm-se prudentes. Você é uma figura conhecida em Paris e eles não se atrevem a ir muito longe. Tanto mais que a sua mulher também é jornalista...
Ficaram ainda por mais dez minutos à mesa, trocando impressões; depois atravessaram o pátio e subiram as escadas. No corredor do Ministério Público, havia presos à espera diante das portas numeradas, com algemas nos pulsos, entre dois guardas.
Diante de uma das portas, ao fundo, via-se um grupo de fotógrafos e jornalistas.
Rabut encolheu os ombros.
- Já era de esperar.
- Ontem, estiveram em minha casa.
- Bem sei. Vi as fotografias nos jornais.
Alguns flashes, alguns atropelos, duas ou três pancadas batidas na porta pelo advogado, que, logo a seguir, entrou com decisão, fazendo Alain passar-lhe à frente.
- Desculpe, meu caro. Quis evitar que o encontro se desse à porta do seu gabinete, na presença dos jornalistas e dos fotógrafos. Receio que tenhamos chegado antes do tempo.
- Três minutos antes da hora marcada.
O juiz levantara-se e apontava-lhes duas cadeiras. O escrivão, pelo seu lado, instalado ao fundo da mesa, não se mexera.
O magistrado era louro, com uma aparência de desportista e de temperamento aparentemente calmo. Trazia um fato cinzento de bom corte e um anel a enfeitar-lhe a mão comprida e bem cuidada.
- Já informou monsieur Poitaud do estado em que as coisas se encontram?
- Almoçámos juntos, aqui mesmo.
- Peço-lhe desculpa, monsieur Poitaud, de o obrigar a uma acareação que talvez seja dolorosa para si, mas não posso evitá-lo.
Alain ficou surpreendido por sentir de repente a garganta apertada e a voz rouca.
- Fico satisfeito por poder ver outra vez a minha mulher.
Tudo parecia já tão longe! Tinha a impressão de que se tinham separado havia um tempo infinito e só com dificuldade conseguia evocar na memória as linhas do rosto da Gatinha.
Todavia, tudo datava apenas da véspera. Quando madame Martin viera tocar-lhe no ombro, Alain levantara-se e, depois, no estúdio, tomara o café e comera dois croissants, enquanto dava uma vista de olhos aos jornais. Os títulos maiores eram sobre a tempestade que fustigava a Mancha, sobre duas traineiras naufragadas, o dique que cedera na Bretanha, a água que invadia as partes de baixo das casas de algumas cidades costeiras.
Vestira-se como nas outras manhãs e, quando se debruçara sobre a Gatinha, ainda metida no quente da cama, ela entreabrira as pálpebras:
- Até já. Telefonas-me?
- Esta manhã, não. Já te disse ontem. Tenho uma entrevista marcada no Crillon e almoço lá.
- Então, à tarde?
- Sim, à tarde.
Alain sorrira, brincando-lhe com os cabelos. E ela ter-lhe-ia devolvido o sorriso? Não conseguia lembrar-se.
- Um cigarro?
- Obrigado.
Pegou no cigarro, com um gesto maquinal. Era embaraçoso estarem ali à espera e não podiam sequer começar uma conversa banal.
Felizmente, alguém estava já a bater à porta. Levantaram-se os três, só o escrivão ficando como que pregado à cadeira onde estava sentado. A Gatinha entrou ladeada por dois guardas, que fecharam a porta na cara dos fotógrafos e lhe tiraram, em seguida, as algemas.
- Podem esperar lá fora.
Alain e a mulher não estavam a mais de dois metros um do outro. A Gatinha trazia o saia-casaco verde-pálido, uma blusa bordada e, nos cabelos castanhos, uma peça fora do vulgar do mesmo tecido que o saia-casaco.
- Queira fazer o favor de se sentar.
Fora o juiz de instrução que ela olhara primeiro; depois, para o advogado. Finalmente, os olhos poisaram-se-lhe no rosto do marido.
Pareceu a Alain que várias expressões passavam alternadamente pelos olhos da mulher - primeiro surpresa por o ver com as feições tão endurecidas, o olhar fixo; a seguir, um nada de ironia - Alain teve a certeza - e um nada de afecto também ou de camaradagem.
A Gatinha murmurou, antes de pegar no dossier que estava em cima de uma cadeira:
- Desculpa-me causar-te todas estas maçadas.
Ele não se mexeu, não soube o que dizer e sentou-se, tendo ficado apenas entre os dois o advogado que se mantinha fora daquela troca de olhares e palavras.
O juiz pareceu desorientado pelo que a Gatinha acabava de dizer e deteve-se alguns momentos a reflectir antes de se resolver a falar.
- Devo entender, madame, que o seu marido não tem nada a ver com o que se passou na Rua de l'Université? Rabut remexeu-se na cadeira com medo da resposta.
- Não tenho nada a acrescentar ao que já disse.
- Gostava do seu marido?
- Suponho que sim.
Não olhava para eles e parecia procurar com os olhos um cigarro. Os três homens estavam a fumar. Bénitet adivinhou-lhe a vontade e estendeu-lhe o próprio maço.
- Tinha ciúmes?
- Não sei.
- Sabia que o seu marido mantinha relações íntimas com a sua irmã?
Pela primeira vez, a Gatinha virou-se para Alain, com grande à-vontade, murmurando:
- Ele deve saber melhor do que eu, se as mantinha ou não.
- Foi a si que eu fiz a pergunta.
- Não tenho nada a responder.
- Em que momento lhe veio ao espírito pela primeira vez a ideia de matar a sua irmã?
- Não sei.
- Ontem de manhã? Lembro-lhe que, antes de sair de casa, foi buscar à gaveta do seu marido uma arma que lá estava guardada.
- Sim.
- Para quê? Ela repetiu:
- Não tenho nada a responder.
- Está a recomeçar o que fez de manhã.
- Tenciono manter a mesma atitude.
- Para proteger alguém?
Ela contentou-se com encolher os ombros.
- Tratar-se-á do seu marido? Uma vez mais, as mesmas palavras:
- Não tenho nada a responder.
- Está arrependida do seu acto?
- Não sei.
- Voltaria a fazer a mesma coisa?
- Depende.
- De quê?
- Pouco importa.
- Não sei, maitre, se não seria melhor aconselhar a sua cliente.
- Isso dependerá do que ela me disser quando falar com ela a sós.
- Falará com ela a sós amanhã, durante todo o tempo que achar necessário.
O juiz esmagou a ponta do cigarro num cinzeiro-reclame.
- A si, monsieur Poitaud, autorizo-o a fazer à sua mulher as perguntas que achar que deve fazer-lhe.
Alain levantou a cabeça, fitou o rosto da Gatinha, virado para o seu. O rosto de quem estava à espera, simplesmente, sem trair a mais pequena emoção.
- Ouve, Gatinha...
E não disse mais nada. Também ele não tinha mais nada a dizer. Quisera apenas pronunciar o nome que lhe dera, um pouco como um encanto, esperando produzir com isso qualquer breve cintilação.
Ficaram os dois a olhar-se durante longos segundos - ela pacientemente à espera, ele à procura de palavras que não descobria.
Parecia o jogo do sisudo, com os dois parceiros a fitarem-se nos olhos, a ver quem será o primeiro a sorrir ou a rir.
Nem um nem outro sorriram. Ninguém riu. Alain cedeu e virou-se para o magistrado.
- Não. Não tenho perguntas.
Pareciam todos pouco à vontade, excepto a Gatinha. O juiz, a contragosto, carregou no botão de uma campainha eléctrica. Ouviu-se o toque a ressoar do outro lado da porta, que depois se abriu.
- Levem madame Poitaud para a cela.
Porque a Gatinha era ainda "madame". Dentro de pouco tempo, seria a incriminada, antes de ser finalmente ré.
Alain fez notar que estava escuro, que o melhor seria acenderem-se as luzes. Ouviu o estalido das algemas a fecharem-se, o barulho dos saltos altos da mulher no corredor, o disparar das máquinas dos fotógrafos.
Quando a porta voltou a fechar-se, Rabut deve ter feito menção de falar, porque o juiz de instrução perguntou:
- Queria dizer alguma coisa, maitre'?
- Não. Estarei com ela amanhã.
Quando saíram, os jornalistas tinham desaparecido e o corredor estava quase deserto.
4
Ali estava ele, sozinho, debaixo da chuva miúda, diante dos gradeamentos do Palácio da Justiça, sem saber para onde ir. Recusava-se a admitir a sua desorientação, esforçava-se por acreditar que, com algum tempo, um papel e um lápis, acabaria por pôr as ideias em ordem.
Quisera-se cínico, desde a infância, desde os tempos do liceu, onde já tinha o seu grupinho, e quando fora reprovado no exame final do secundário fingira regozijar-se com o facto.
- São os idiotas quem precisa de diplomas! Atravessou a rua e entrou num bar.
- Um whisky... Duplo...
Era um hábito que os seus amigos haviam igualmente adoptado. A maior parte deles bebia um pouco menos que Alain, porque aguentavam menos na altura ou porque temiam ficar de ressaca no dia seguinte.
Não estava num bar onde o whisky fosse uma bebida habitual. Havia apenas uma garrafa dele na prateleira. Os outros clientes, à volta , tomavam café ou um copo de branco.
- De qualquer maneira, tens de arranjar uma profissão, Alain.
Quantas vezes a mãe lhe repetira aquelas palavras? Ele arrastava a sua existência pelas ruas, pelos cafés. Por vezes, sentia-se tão angustiado como a mãe, mas era um ponto de honra não o mostrar.
- Nunca aceitarei uma vida de escravo.
Como o pai, que passava doze ou catorze horas por dia a tratar de dentes estragados.
Como o avô paterno, que fora médico de aldeia, até que, com setenta e um anos, morrera de uma crise cardíaca ao volante do automóvel.
Como o outro avô, confeiteiro, que, durante toda a vida, fizera doces e caramelos, numa sala baixa e quentíssima, enquanto a mulher dele se afadigava ao balcão.
- Existem duas espécies de pessoas, tu bem vês, mamã: há os que se deixam açoitar e os que açoitam os outros. - E acrescentara, num tom de desafio: - Eu hei-de açoitar os outros.
Ao fim de seis meses de deambulação pelas ruas, entrara para o exército e passara três anos em África.
Tinha de ir à Praça Clichy para estar com a mãe e com o pai. O pai nunca o contrariara. Deixava-o fazer as coisas como entendesse, pressentindo, sem dúvida, que qualquer intervenção sua faria de Alain um revoltado.
Porque é que a Gatinha lhe pedira desculpa? Fora a única frase que lhe dirigira. Não ficara comovida, ela.
Pensou em pedir uma segunda bebida. Mas era ainda muito cedo. Saiu do bar e encaminhou-se para o carro, que deixara bastante longe dali.
Postou-se ao volante e arrancou. Para ir onde? ...conhecia toda a gente, tratava por "meu coelhinho" centenas de pessoas. Era um homem de sucesso, que ganhava muito dinheiro. Sempre soubera que não seria um açoitado.
A Tu tinha uma tiragem de um milhão de exemplares. Os discos vendiam-se bem. E estava a preparar o lançamento de uma outra revista, destinada aos jovens - entre os dez e os quinze anos.
Com quem poderia, porém, falar agora, falar de coração nas mãos? E, para começar, teria vontade de falar com o coração nas mãos? Teria realmente vontade de compreender?
Deu por si de novo na Rua de Marignan, porque precisava de estar rodeado de gente que dependesse dele. Dizia que eram os seus amigos, essas pessoas. Também à Gatinha dera um nome pelo qual ela passara a ser conhecida, um pouco à maneira como no Far West se marca o gado com um ferro em brasa. E com Adrienne fora igual.
Havia alguma coisa que estalara, não sabia o quê ao certo, e Alain começava a ter medo.
No átrio, havia uma bicha diante de um guichet, uma bicha composta principalmente por mulheres. Tinham vindo por causa do concurso. Era preciso que houvesse sempre um concurso para prender as leitoras e, depois, fazia-se delas o que se quisesse.
Subiu as escadas a pé. Só o primeiro andar do prédio não pertencia à revista, estando ocupado por uma firma de import-export. Mas por pouco tempo. Tomara já as suas medidas e, dentro de seis meses, poderia dispor do edifício inteiro, que estava a pensar transformar.
Tinha trinta e dois anos.
Quem lhe falara das Nonnettes? Quem lhe perguntara se nunca fazia com a Gatinha uma vida de família?
Nunca! Na velha casa, metade casa de quinta, metade solar, que tinham arranjado a seu gosto, todos os fins-de-semana eram uma feira e por vezes não se sabia bem, de manhã, quem estaria a dormir nesta cama ou naquele divã.
- Viva, Boris.
Maleski observava-o como se quisesse ver até que ponto estaria Alain a aguentar-se.
- O teu cunhado telefonou. Pediu para lhe ligares quando chegasses.
- Para casa?
- Não. Para o gabinete dele.
- Esse não passa de um solene imbecil.
Já tinha dito aquilo. Detestava as figuras solenes. Os imbecis irritavam-no.
- Ligue-me para o Banco de França, minha coelhinha. Para a direcção, sim, Rua de la Vrillière. Pedes que te liguem para monsieur Blanchet.
Gagnon, o secretário de redacção, entrava, com alguns papéis na mão.
- Incomodo?
- De maneira nenhuma. É para mim?
- Queria mostrar a Boris um artigo que me está a preocupar um bocadinho.
Alain desinteressara-se do número da semana. Era quinta-feira, quinta-feira, 19 de Outubro. Era fácil lem-brar-se da data, porque tudo começara na quarta-feira, 18. Na véspera. Na véspera, àquela hora, estava sentado à sua mesa de trabalho, no lugar agora ocupado por goris; depois, fora à tipografia, na Avenida de Châtillon, e nada era mais importante, para ele, nessa altura, do que o próximo número da Tu.
- Está monsieur Blanchet ao telefone.
Ele carregou num botão.
- Daqui, Alain.
- Telefonei-te porque não sei o que hei-de fazer. O pai de Adrienne chegou a Paris. Está no Hotel Lutétia.
Como qualquer bom intelectual da província ou do estrangeiro!
- Queria ver-nos, aos dois.
- Porquê aos dois?
- Porque as duas são filhas dele, não será? Uma morta, outra na prisão!
- Seja como for, convidei-o para jantar em minha casa esta noite, porque não podemos de maneira nenhuma ir ao restaurante. Disse-lhe que confirmaria o encontro depois de falar contigo.
- A que horas?
- Por volta das oito. Houve um silêncio.
- O corpo de Adrienne é-nos devolvido amanhã de manhã. O funeral poderá fazer-se no sábado.
Alain não pensara no funeral.
- Bom, quanto a esta noite, está bem.
- Viste-a?
- Sim.
- Ela não disse nada?
- Pediu-me desculpa.
- A ti?
- Talvez te surpreenda, mas foi isso mesmo.
- E o juiz o que é que acha?
- Não me comunicou a sua opinião.
- E Rabut?
- Esse não está lá muito satisfeito.
- E aceita defendê-la?
- Bem sabes que, contanto que o nome dele seja falado...
- Até logo.
- Até logo.
Alain olhou para Boris e para Gagnon que discutiam o artigo a meia voz e pensou em escolher uma das dactilógrafas ou das telefonistas com quem já fora noutras ocasiões para a cama para ir com ela fazer amor a um lado qualquer.
As pessoas têm ideias preconcebidas e a rapariga seria capaz de recusar.
- Até já ou até amanhã.
Eram só quatro horas. Alain entrou no Clocheton.
- Um duplo?
Não lhe apetecia beber. Era maquinal.
- Pois sim, meu coelhinho.
- Já a viu?
É claro que o barman conhecia a Gatinha. Toda a gente conhecia a Gatinha à força de a ver sempre do seu lado direito.
- Não está muito abatida?
- Vi-a há menos de uma hora... O que lhe faz falta é um bom whisky.
O homem não sabia se devia ou não sorrir. Alain tê-lo-ia chocado? Tanto pior! Era um hábito dele, chocar os outros de propósito. Ou antes, fizera-o de propósito durante tantos anos que se tornara nele um traço natural.
- Parece que a chuva vai parar.
- Não dei por estar a chover.
Alain passou um quarto de hora com o cotovelo apoiado no balcão, meteu-se outra vez no carro e voltou a subir os Champs-Elysées por baixo de um céu que, com efeito, ia ficando mais claro, tornando-se de um amarelo mau, de um amarelo furúnculo.
Virou pela Avenida Wagram, depois pelo boulevard de Courcelles. Não se dirigiu para o lado esquerdo, em seguida, na direcção da sua casa, mas foi estacionar o automóvel mesmo ao cimo do boulevard des Batignolles.
Os anúncios luminosos acabavam de se acender. Alain conhecia a Praça Clichy sob todos os seus aspectos: enegrecida pelos transeuntes que mergulhavam ou saíam das bocas do metropolitano, ou deserta às seis da manhã, entregue aos varredores e aos clochards, ao sol, à neve, à chuva, no Inverno, no Verão, de todas as maneiras.
Conhecia-a até à náusea por a ter visto da janela durante dezoito anos. Dezassete, porque, durante o primeiro ano, era pequeno de mais para chegar à janela e ainda não sabia andar.
Encaminhou-se pela passagem, que se abria entre um bar e uma sapataria. Uma placa que nunca fora mudada anunciava:
Oscar Poitaud
Cirurgião-Dentista
(2o andar direito)
Todos os dias, quando voltava do jardim-escola, depois da primária e, por fim, do liceu, vira aquela placa no seu caminho, e ainda não tinha oito anos quando jurou a si próprio que nunca havia de ser dentista, houvesse o que houvesse.
Desconfiava do elevador, que se avariava uma ou duas vezes por semana, ficando encravado com os ocupantes presos lá dentro, entre dois pisos.
Subiu a pé as escadas velhas e sem passadeira, passou pela loja alta onde estava instalado um calista, depois pelo primeiro andar, onde cada divisão servia de escritório a uma firma diferente. Pequenas firmas duvidosas, evocando o mundo dos burlões.
Tanto quanto se lembrava, houvera sempre pelo menos um usurário no prédio - um usurário que não era sempre o mesmo nem se instalava sempre no mesmo andar.
Não estava emocionado. A sua infância não o enternecia, pelo contrário! Detestava a sua infância, teria querido apagá-la como se limpa um quadro preto.
Não queria mal à mãe. Ela era-lhe quase tão estranha como as tias que via outrora uma vez por ano, durante as férias, quando ia visitar a família a Dijon.
Do lado da mãe, eram os Parmeron, esse nome que, acrescentado do primeiro nome Jules, se lia por cima da porta da loja de doces do avô. As tias eram todas feitas pelo mesmo molde, pequenas e encorpadas, com rostos sérios e semi-sorrisos um tanto ou quanto açucarados.
Alain entrou na sala de jantar que servia também de sala de estar. A primitiva sala de visitas ficava reservada aos doentes, enquanto esperavam a sua vez. Reconhecia o cheiro, ouvia a broca a zumbir no consultório do pai.
A mãe usava um avental que tirava, lesta, sempre que batiam à porta. Ele inclinou-se todo para a beijar nas duas faces, porque era muito mais alto do que ela.
A mãe não se atrevia a olhá-lo nos olhos e ia murmurando enquanto entrava na sala de jantar, cheia de móveis pesados:
- Se soubesses como me sinto! Ele estava quase a replicar:
- E eu, então!
Mas não seria muito amável da sua parte.
- Esta manhã, depois de ter visto a primeira página do jornal, o teu pai nem foi capaz de acabar de tomar o pequeno-almoço.
Pelo menos, o pai sempre podia fechar-se como numa concha, no consultório, com um novo doente de quarto em quarto de hora.
- Bocheche... Deite fora...
Em criança, Alain ia, de vez em quando, encostar o ouvido à porta.
- Vai doer?
- Não! Se não tiver medo, não lhe dói nada. E então? Bastava que Alain não pensasse.
- Como é que uma coisa assim pôde acontecer? Ela parecia tão meiga!
- Não sei, mamã.
- Achas que foi por ciúmes?
- Não me parece.
A mãe começara, por fim, a olhá-lo, receosa, como se tivesse medo de o achar mudado.
- Não tens ar de quem está muito cansado.
- Não estou. Bem vês, é só um dia.
- Foram avisar-te à revista?
- Não. Foram a minha casa. Estava um inspector à minha espera. Levou-me até ao Quai des Orfèvres.
- Mas tu não fizeste nada, pois não?
- Não, mas eles, mesmo assim, precisavam de me fazer algumas perguntas.
A mãe dirigiu-se ao aparador, onde foi buscar uma garrafa de vinho já aberta e um copo de pé. Era a tradição. Sempre que alguém, fosse quem fosse, vinha visitá-la.
- Lembras-te?
- De quê, mamã?
Um dos quadros, baço e banal, representava algumas vacas num prado, junto de uma vedação rústica.
- Daquilo que eu sempre te disse... Quiseste fazer tudo só pela tua cabeça. Nunca aprendeste uma profissão a sério.
Ele preferiu não lhe falar da revista, que ela considerava como uma obra do Demónio.
- O teu pai não diz nada, mas deve estar arrependido de ter sido tão fraco. Deixava-te demasiada liberdade e dizia-me para se desculpar:
- "Vais ver que ele descobre o seu caminho sozinho..."
Depois, fungou, limpou os olhos com a ponta do avental. Alain sentara-se numa das cadeiras com o fundo de couro trabalhado enquanto a mãe ficava de pé. Ficava sempre de pé, a mãe.
- E agora o que é que achas que vai acontecer?
- Vai haver um processo.
- Vão falar de ti?
- É inevitável.
- Diz-me uma coisa, Alain. Não me mintas. Sabes que eu adivinho quando estás a mentir. A culpa foi tua, não foi?
- Que queres dizer tu com isso?
- Que tinhas uma ligação com a irmã e que quando a tua mulher descobriu...
- Não mamã. Não tenho nada a ver com o que se passou.
- Havia mais alguém?
- Talvez.
- Alguém que tu conheças?
- É possível. Ela não me disse.
- Não achas que ela é meio louca? Se fosse a ti, pedia a um especialista que a examinasse. Era tão delicada, meiga... No fundo, eu gostava muito dela e ela parecia estar muito ligada a ti. Apesar disso, sempre desconfiei de qualquer coisa...
- De quê?
- É difícil de dizer. Ela não era como as outras pessoas. Uma das minhas cunhadas, Hortense, que não chegaste a conhecer, também era assim, com o mesmo olhar, os mesmos gestos, e um dia tivemos de a meter num asilo.
Agora a mãe estava a apurar o ouvido.
- Espera aí. A cliente está a sair. O teu pai vai chegar aqui por um segundo, para te ver antes de mandar entrar a próxima doente.
Quando, depois de se dirigir à entrada, a mãe voltou a aparecer trazia atrás de si um homem forte, de cabelos grisalhos cortados em escova.
Não beijou o filho. Mesmo quando Alain era criança, o pai raramente o beijava. Pôs-lhe as duas mãos nos ombros e olhou-o nos olhos.
- É muito duro?
Alain esforçou-se por sorrir.
- Eu aguento.
- Não desconfiavas de nada?
- De nada...
- Já a viste?
- Mesmo há bocadinho, no gabinete do juiz.
- E ela, o que é que ela te disse?
- Recusa-se a responder a todas as perguntas.
- Está, então, fora de dúvida que tenha sido ela?
- Absolutamente fora de dúvida.
- Tens alguma ideia...?
- Prefiro não ter.
- E o marido da outra?
- Foi ver-me ontem à noite.
- Os pais dela? •
- O pai dela veio a Paris... Vou jantar com ele, logo à noite.
- É um homem sério...
Os dois homens, o pai de Alain e o da Gatinha só se tinham visto três ou quatro vezes, mas simpatizando imediatamente um com o outro.
- Desejo-te coragem, meu filho. É inútil dizer-te que esta casa está às tuas ordens e que nós também faremos tudo o que pudermos. Agora, tenho de voltar para a fábrica.
Era assim que ele chamava ao consultório. Bateu uma vez mais no ombro do filho e encaminhou-se para a porta, com a bata branca a dançar-lhe até meio das pernas. Porque é que o pai usaria sempre batas demasiado compridas?
- Bem viste que ele não diz nada, mas está transtornado. Os Poitaud nunca foram amigos de mostrar os seus sentimentos. Já em muito pequeno, tu fazias questão de não chorar à minha frente.
O vinho tinto parecia pesar-lhe no coração e Alain deteve o gesto da mãe que se preparava para voltar a encher-lhe o copo.
- Obrigado. Tenho de ir andando.
- Tens alguém para te tratar das coisas?
- A mulher-a-dias.
- Sim. Bem sei que costumas comer fora. Isso não te dá cabo do estômago?
- Por enquanto o estômago aguenta-se bem. Alain levantou-se, ficando com a cabeça à altura do
candeeiro do tecto; inclinou-se e beijou a mãe nas duas faces. Estava já junto à porta quando voltou atrás.
- Ouve, mamã. Não posso impedir-te de ler os jornais. Acima de tudo, não te deixes impressionar pelo que eles possam dizer. Nem sempre é verdade, e eu sei do que estou a falar. Até breve!
- Vais-nos mantendo informados?
- Prometo que sim.
Desceu as escadas. Pronto. Tinha de ser. Lá fora, um nevoeiro denso subia dos passeios molhados, aureolando os candeeiros e os anúncios luminosos.
Viu um garoto a correr, com um maço de jornais debaixo do braço, sem sentir a menor curiosidade de comprar um.
Para algum lado teria de ir. Em algum lado teria de estar. Mas onde?
Via toda a gente a andar depressa à sua volta, atropelando-se, tentando ultrapassar-se, como se todos os outros tivessem uma meta que fosse urgente alcançar. Alain ficara de pé, entretanto, na beira do passeio, na atmosfera húmida, a acender um cigarro.
Porquê?
Foi um criado, com uma farda branca de barman, quem o ajudou a despir o sobretudo e o conduziu depois à sala. Blanchet estava à espera, de pé, sozinho, vestido de preto. Devia ter julgado que era o sogro quem entrara e os olhos mudaram-lhe de expressão quando, em lugar do sogro, descobriu Alain.
- Parece que sou o primeiro.
Alain movia-se com certa rigidez, um pouco hirto, porque bebera já muito durante a tarde. Trazia os olhos brilhantes, avermelhados, pormenor que não escapou a Blanchet.
- Senta-te.
A sala tinha um pé direito muito alto e era grande de mais só para eles os dois. Os móveis antigos deviam ter como proveniência o Mobiliário Nacional, e o enorme candeeiro de tecto, de cristal, não bastava para iluminar os recantos da sala.
Os dois olharam-se sem apertar as mãos.
- Ele não tarda.
Felizmente, o sogro chegou logo a seguir. Ouviu-se a campainha, os passos de Albert, a porta a abrir-se. Por fim, o criado introduziu na sala um homem tão alto como todos os Blanchet, mas muito delgado de corpo, ligeiramente curvado, de rosto fino e pálido.
A sua mão ossuda apertou a de Alain com insistência. Sem dizer nada, ele dirigiu-se depois ao outro genro para lhe apertar também a mão, tendo a seguir sofrido um acesso de tosse, que o obrigou a tapar a boca com o lenço.
- Não liguem a isto, desculpem. A minha mulher está de cama, com uma bronquite. O médico não a autorizou a vir comigo. E, sem dúvida, terá sido melhor assim. Pela minha parte esta tosse não passa de uma constipação teimosa.
- E se fôssemos até ao meu gabinete?
Um gabinete império, tão oficial como a grande sala.
- Que quer tomar, monsieur Fage?
- Qualquer coisa. Talvez um cálice de porto...
- E tu?
- Scotch.
Blanchet hesitou; depois, encolheu os ombros. Com o rosto ainda jovem e sem rugas, os cabelos grisalhos puxados para trás, as feições finamente desenhadas, André Fage era a encarnação do intelectual, de acordo com a imagem que a maior parte das pessoas lhe atribuem. Sentia-se que era um homem calmo e delicado.
Depois de Albert lhes ter enchido os copos, o mais velho olhou alternadamente para Alain e para Blanchet, observando em seguida:
- Vocês estão os dois metidos no mesmo saco, e eu perdi as minhas duas filhas. Nem sei quem hei-de lamentar mais...
A voz soava-lhe como que filtrada por uma emoção contida. Os olhos poisaram-se-lhe em Alain.
- Já a viu?
Encontravam-se tão poucas vezes que mal se conheciam.
- Vi-a esta tarde, no gabinete do juiz de instrução.
- Como está ela?
- Fiquei admirado de a achar tão calma, tão senhora de si. Arranjou-se muito bem e dir-se-ia que estava ali, simplesmente, a fazer uma visita.
- Isso é mesmo da minha Jacqueline! Ela sempre foi assim. Em pequenina, quando se sentia desamparada, escondia-se num canto resguardado lá de casa, às vezes dentro de um armário, e só voltava a aparecer depois de se ter conseguido dominar.
Bebeu um curto gole de porto e poisou o copo.
- Evitei ler os jornais e tenciono não os ler durante mais algum tempo.
- Como é que soube de tudo?
- Foi o comissário da polícia quem me preveniu. Fez questão de me visitar pessoalmente e mostrou-se de uma correcção inexcedível. A minha mulher está de cama, como já vos disse. Passámos uma parte da noite a falar a meia voz, como se tudo nos tivesse acontecido lá em casa.
Fage olhou à volta.
- Onde é que foi? - acabou por perguntar a Blanchet.
- No quarto ou, mais precisamente, na salinha ao lado.
- E as crianças onde estão?
- Jantam com a Nana no quarto dos brinquedos.
- E já sabem?
- Ainda não. Disse-lhes que a mamã teve um desastre. Bobo só tem seis anos e Nelle três...
- Têm todo o tempo para saber.
- Trazem-na amanhã de manhã. O funeral será no sábado às dez horas.
- Com serviço religioso?
Fage não era crente e as filhas tinham recebido uma formação inteiramente laica.
- Uma missa e uma bênção, sim.
Alain sentia-se tão estranho a tudo aquilo que perguntava a si próprio o que estava ali a fazer. No entanto, sempre se sentira atraído por aquele sogro, um homem de quem poderia ter sido amigo. Fage não consagrara a sua tese ao problema das relações entre Baudelaire e a mãe?
Ouvia os outros dois sem sentir necessidade de intervir na conversa. Eram muito diferentes dele, sobretudo Blanchet, é claro. Poderiam viver noutros planetas.
Ou seria ele que não era como os outros? Fosse como fosse, casara. Tinha um filho, uma casa de campo. Trabalhava de manhã à noite e muitas vezes pela noite dentro.
Parecia-lhe haver pouca luz no gabinete. Seria uma mania nova, contraída desde a véspera, aquela de achar que não havia luz bastante em parte nenhuma? Sentia-se como que encerrado num claro-escuro contínuo e as palavras dos outros chegavam-lhe como que coadas por uma atmosfera aveludada.
- O jantar.
Albert usava luvas brancas. A mesa tinha espaço para doze pessoas - coberta de pratas e cristais, com um arranjo floral ao centro. Teria Blanchet conseguido lem-brar-se das flores? Ou aquilo acontecia automaticamente, sem necessidade de qualquer intervenção directa da sua parte?
Estavam sentados longe um do outro, com Fage entre os dois inclinando-se de leve para comer a sopa.
- Ela terá sofrido muito?
- O médico diz que não sofreu.
- Quando era ainda muito nova, eu costumava chamar-lhe a Princesa Distante. Adrienne não tinha nem a vivacidade nem o encanto de Jacqueline. Era até um bocadinho gorducha.
Alain não conseguia deixar de evocar certas imagens de Adrienne e de as comparar com o retrato que o pai dela ia traçando.
- Brincava pouco e era capaz de ficar uma hora sentada numa cadeira, ao pé da janela, a ver passar as nuvens lá no alto.
"- Não te maças assim, minha pequenina?"
"- Porque é que havia de me maçar?"
Às vezes, a minha mulher e eu chegávamos a assustar-nos com aquela calma, que confundíamos com falta de vitalidade. Mas o Dr. Marnier tranquilizava-nos.
"- Não se queixem. Quando ela um dia acordar, vão-se ver aflitos para a reter. É uma criança com uma vida interior intensa."
Instalou-se um período de silêncio. Blanchet aproveitou a pausa para, por sua vez, tossir um pouco, menos demoradamente embora do que o sogro. Estavam a ser servidos os filetes de linguado.
- Mais tarde, tornaram-se ciumentas uma da outra, embora nós tenhamos feito todos os possíveis para o evitar. Julgo que a mesma coisa se passa em todas as famílias. Isso começou quando Jacqueline passou a ter o direito de ir para a cama uma hora depois da irmã.
Durante meses, Adrienne recusou-se a adormecer. Ficava a cair de sono, mas aguentava-se acordada e acabámos por adoptar uma solução de compromisso. Passaram as duas a deitar-se à mesma hora, a meio caminho entre a hora de Adrienne e a de Jacqueline.
- Mas era uma injustiça para Jacqueline - notou Alain.
Causava-lhe uma sensação estranha dizer "Jacqueline" em vez de "Gatinha".
- Bem sei. Mas com as crianças não há justiça possível.
Aos treze anos, Adrienne exigia que a vestissem como a irmã, que tinha devasseis, e que parecia já uma rapariga crescida.
Passados dois anos, começou a fumar. Tentámos ser tão abertos quanto possível, a minha mulher e eu. Tanto com uma como com a outra. Se elas se tivessem revoltado, teria sido pior...
O olhar de Fage ficou como que suspenso. A realidade voltava a assaltá-lo de súbito e ele acrescentou em voz fraca:
- O que é que podia ser pior?
Olhou para os dois genros.
- Não sei qual de vocês os dois terá sofrido mais. Com uma expressão toldada pelo desgosto, recomeçou a comer. Agora o ruído dos talheres era tudo o que se ouvia.
Albert mudou os pratos. Começou a servir a perdiz e encheu os copos de bourgogne.
Blanchet disse:
- Eu fui vê-la. Fui lá...
"Lá" era o Instituto de Medicina Legal. Gavetas metálicas, como as dos ficheiros, dentro dos quais havia corpos mortos.
O pai de Adrienne sussurrou:
- Eu não era capaz.
Seria tudo aquilo real? Não seria um palco de teatro onde três actores iam recitando, com uma excessiva delonga, os seus papéis? Os silêncios eram numerosos, insuportáveis. Por momentos, Alain sentia vontade de gritar, de gesticular, de fazer qualquer coisa, de atirar o prato para o chão, por exemplo, para que tudo voltasse à vida.
Não estavam a falar das mesmas mulheres. Fage ficara-se pelos bebés, pelas meninas, pelas adolescentes.
- Quando elas nasceram, tive o sonho de um dia lhes vir a ouvir as confidências, de vir a ser um amigo para elas, um amigo que talvez lhes fosse útil.
Reflectindo, virou-se para Blanchet:
- Adrienne falava muito consigo?
- Nem por isso. Não muito, não. Parecia não sentir vontade de se exteriorizar.
- E com os seus amigos?
- Adrienne era uma boa dona de casa, que nunca tentava evidenciar-se. Os outros mal davam pela presença dela.
- Está a ver! Foi sempre a mesma! Vivia as suas coisas por dentro, incapaz de comunicar. E Jacqueline, Alain, como era ela consigo?
Alain hesitou, sem saber o que dizer. Não queria magoar aquele homem que suportava com tanta dignidade o golpe que o destino lhe vibrara.
- A Gatinha... era assim que eu lhe chamava...
- Bem sei.
- A Gatinha fazia questão de conservar sempre a sua personalidade intacta, e foi por isso que continuou a ter sempre o seu próprio trabalho. Nesse domínio, eu não estava autorizado a entrar, e ela nunca me pediu ajuda nem conselho. Havia uma parte do dia que era só dela. Durante o resto do tempo não se separava de mim nem por um minuto.
- É curioso o que me está a dizer. Estou a vê-la, há anos, sentada no sofá do meu gabinete, a fazer os deveres. Entrava tão devagarinho que eu me admirava sempre, ao levantar a cabeça, de a ver instalada à minha frente, sem ter dado por ela chegar.
"- Queres dizer-me alguma coisa?"
"- Não."
"- Tens a certeza de que não me queres dizer nada?"
Ela abanava a cabeça. Estava contente por estar ali, sem mais, e eu continuava a trabalhar.
Quando decidiu vir estudar para Paris em vez de ficar em Aix, percebi que era para não continuar a ser a filha do professor...
Era falso! A Gatinha decidira, sim, viver por sua própria conta.
- Claro que Adrienne seguiu pelo mesmo caminho, de modo que a minha mulher e eu ficámos sozinhos, precisamente na altura em que mais esperávamos gozar da companhia das nossas filhas.
Fage olhou alternadamente para os dois homens.
- Foram vocês os dois beneficiados.
Que fora a sobremesa? Alain não se lembrava. Levantando-se da mesa, seguiram, o sogro e ele, o dono da casa até ao seu gabinete, onde lhes foi oferecida uma caixa de charutos.
- Café?
Alain não se atrevia a olhar para o relógio de pulso. O relógio do gabinete, de estilo império, estava parado.
- Nunca me meti na vida delas. Nunca insisti para que me escrevessem mais vezes ou me contassem mais coisas. Depois de casadas, continuaram as duas a ver-se?
Alain e Blanchet interrogaram-se com os olhos. Blanchet respondeu, por fim:
- Jacqueline vinha às vezes jantar com Alain cá a casa. Não muitas vezes.
- Umas duas vezes por ano, em média - precisou Alain.
O cunhado sentiu naquilo uma ponta de censura.
- Vocês sabiam que eram sempre bem-vindos.
- Estávamos ocupados todos, cada um para seu lado.
- Mas elas falavam pelo telefone uma com a outra, e penso que de vez em quando iam tomar chá juntas.
Alain, por seu turno, seria capaz de jurar que isso não devia ter acontecido sequer duas vezes em sete anos.
- Víamo-nos quando íamos ao teatro ou ao restaurante.
Fage continuava a olhá-los, sem que nada no seu olhar traísse o que estaria a pensar.
- Passavam os fins-de-semana no campo, não era, Alain?
- Às vezes, passávamos lá também uma parte da semana.
- Como é que está Patrick?
- Está um homem.
- Conhece o primo e a prima?
- Já se têm visto.
Fage não perguntou com que frequência, e era melhor assim. Também ele não se devia sentir à vontade naquela casa que não passava de um cenário e onde nada havia que revelasse a vida quotidiana dos que nela moravam.
- E ela não disse porque é que fez isto?
Era o tema principal das preocupações de todos e que, sem transição, voltava a impor-se. Alain fez que não com um movimento de cabeça.
- Nem vocês sabem porque terá sido? Nem um nem outro?
Um silêncio mais pesado foi a única resposta.
- Talvez Jacqueline se decida a falar, não é verdade?
- Duvido muito - suspirou Alain.
- Acham que me autorizam a vê-la?
- Acho que sim. Fale com o juiz Bénitet. É um homem sério.
- E comigo, ela aceitará falar comigo?
Tinha tantas dúvidas à partida que sorriu tristemente.
Estava muito pálido, com os lábios quase sem cor e a despeito da sua estatura, parecia frágil.
- No fundo, acho que a compreendo.
Olhou de novo para os dois genros. Alain teve a impressão de que o fitara a ele com mais simpatia do que a Blanchet. Simpatia, sim, mas também curiosidade e, talvez, até uma certa desconfiança.
Depois, acabou por suspirar:
- Talvez seja melhor assim...
Só Blanchet acendera um charuto, cujo aroma açucarado tornava mais pesada a atmosfera do gabinete. Alain ia já no quarto ou quinto cigarro. Fage não fumava. Tirou uma caixinha da algibeira e, de dentro da caixinha, um comprimido que levou à boca.
- Não quer um copo de água?
- Não vale a pena. Estou habituado. É um medicamento para activar a circulação. Nada de grave.
Que mais podiam dizer? Blanchet abriu o armário que servia de garrafeira.
- Que hei-de oferecer-vos? Tenho um armagnac velhíssimo...
- Obrigado.
- Obrigado.
Frustrado, fazia pensar, com o seu grande corpo mole, numa criança amuada. Virou-se para Fage.
- Desculpe-me não lho ter perguntado antes, mas não ficaria melhor aqui do que no hotel? Temos um quarto de hóspedes.
- Muito obrigado. Mas estou habituado ao Lutétia há já tantos anos! Era lá que ficava, bem como a maior parte dos meus colegas e professores, quando, em estudante, vinha a Paris. Aquilo, é verdade, foi perdendo o brilho, como eu...
Levantou-se, com o corpo magro a lembrar um accordéon.
- Tenho de ir andando. Agradeço muito aos dois... Nada deixara transparecer do que pensava. Poucas perguntas lhes fizera. Talvez não se tratasse apenas de discrição.
- Eu também vou - declarou Alain.
- Não ficas mais um bocadinho?
Teria Blanchet a intenção de falar com ele? Ou recearia apenas o que Alain pudesse contar ao sogro?
- Tenho de me ir deitar. Albert trouxe-lhes os sobretudos.
- Amanhã instala-se a câmara ardente aqui na sala. As portas da sala estavam abertas, e a divisão parecia enorme. Teria o pai de Adrienne imaginado o mesmo cenário que Alain, os panos negros e o féretro, isolado, no centro, rodeado de círios?
- Obrigado, Roland.
- Boa-noite, monsieur Fage.
Alain seguiu, ao descer as escadas, os passos do sogro. Os pés de ambos fizeram ranger o saibro da álea de acesso ao edifício, sobre o qual gotejavam os ramos das árvores negras.
- Até outra vez, Alain...
- Tenho aqui o meu carro. Vou levá-lo.
- Obrigado, mas preciso de andar um bocadinho. - Olhou a rua deserta, ainda rebrilhante de humidade e suspirou como que para consigo: - Preciso de estar sozinho.
Alain sentiu frio, apertou rapidamente a mão ossuda do sogro e correu a meter-se no automóvel.
Um novo peso lhe caía em cima dos ombros. Tinha a impressão de ter acabado de receber uma lição e sentia-se como um garoto.
Também ele precisava de estar sozinho, mas não tinha coragem. Guiava e, enquanto guiava, perguntava a si próprio onde poderia encontrar pessoas, fosse quem fosse, essas pessoas a quem dizia:
- Vivam, meus coelhinhos!
Dar-lhe-iam lugar. O criado inclinar-se-ia perguntan-do-lhe:
- Um duplo, monsieur Alain?
Tinha vergonha. Era mais forte do que ele.
5
Havia uma campainha, muito longe e muito perto ao mesmo tempo, depois um silêncio, depois de novo a campainha, como se estivessem a dirigir-lhe algum sinal. Quem poderia estar a fazer-lhe sinal? Estava incapaz de se mexer, porque se encontrava no interior de um buraco. Devia ter apanhado uma pancada na cabeça, que sentia dorida.
Aquilo durou muito tempo, até ele compreender que estava na cama, para, em seguida, se levantar, vacilante.
Estava completamente nu. Na almofada ao lado, viu uma massa de cabelos ruivos. Sabia agora que era à porta que estavam a tocar e procurou o roupão, que acabou por descobrir caído e por apanhar do chão e vestir com dificuldade.
Ao passar pela sala, verificou que o dia não nascera ainda por completo sobre Paris. Havia apenas uma linha amarela, muito longe, ao fundo, por cima dos telhados. A campainha recomeçava a tocar no momento em que ele abriu a porta e deu de caras com uma mulher nova e desconhecida.
- A porteira bem me disse...
- O que é que a porteira lhe disse?
- Que, com certeza, o senhor não abriria logo. Será melhor dar-me uma chave.
Alain continuava sem compreender. Tinha a cabeça a rebentar. Examinou com estupefacção aquela mulher jovem e roliça, cujos olhos não pareciam nada intimidados e que só dificilmente continha o riso.
- Não se deve ter deitado lá muito cedo, não! - observou a rapariga.
Depois, começou a despir o casaco de lã azul grossa. Ele hesitava em perguntar-lhe quem era ela.
- A porteira não lhe falou de mim?
Alain tinha a impressão de não ver a porteira havia anos.
- Sou a nova mulher-a-dias. Costumam tratar-me por Mina...
Colocara, entretanto, um embrulho de papel de seda em cima de uma mesa.
- Disseram-me que tenho de o acordar às oito horas com muito café e croissants. Onde fica a cozinha?
- É só uma kitchenette. Venha por aqui.
- E o aspirador, onde está?
- Nesse armário.
- Vai voltar para a cama?
- Sim. Acho que sim.
- E quer que o acorde outra vez às oito horas?
- Não sei bem. Não. Eu chamo-a.
A rapariga tinha um sotaque de Bruxelas, e Alain quase lhe perguntou se era flamenga. Mas tratava-se de um assunto demasiado complicado para o momento.
- Como quiser.
Alain voltou para o quarto, fechou a porta e franziu o sobrolho ao ver de novo a massa de cabelos ruivos na sua cama, deixando, porém, para mais tarde igualmente esse problema.
Precisava urgentemente de tomar duas aspirinas. To-mou-as, mastigando-as, porque o médico lhe dissera que as mucosas da boca absorvem mais depressa os medicamentos do que as mucosas do estômago. Bebeu um pouco de água - pela torneira.
Ao ver o pijama pendurado atrás da porta, tirou o roupão para o vestir.
Não se lembrava de nada, coisa que só duas ou três vezes na vida lhe acontecera. A banheira estava cheia de água com sabão. Fora ele quem tomara banho? Ou a ruiva desconhecida?
Estivera em casa do imbecil do Blanchet. Lúgubre! Sinistro! Saíra a bater com a porta? Não. Lembrava-se de estar no passeio, cá fora, à saída, com Fage. Um tipo fixe! Gostaria de poder dizer a um homem como esse Fage tudo o que sentia dentro de si.
Sim, era evidente. Os outros imaginavam que Alain nada tinha dentro, porque ele próprio assumia aquela atitude de cinismo. Mas, mesmo assim, se Fage não fosse seu sogro...
Voltava a vê-lo, afastando-se, com o seu grande sobretudo cinzento, na penumbra da rua.
Depois, estivera a beber. Não muito longe. Num café que não conhecia - o primeiro que encontrara. Não era de maneira nenhuma um desses cafés como os que ele habitualmente frequentava. Os clientes eram do tipo freguês certo. Funcionários, sem dúvida, a jogar às cartas.
Observando-o. Era-lhe indiferente. Deviam tê-lo reconhecido por causa das fotografias publicadas pelos jornais.
- Um duplo!
- Um duplo quê?
- Então, não percebe nada disto, você? O patrão não se deixara impressionar.
- Se quiser que o sirva de uma garrafa ao calhas...
- Whisky.
- Já podia ter dito. E água com gás?
- Quem é que lhe pediu água com gás? Estava agressivo. Precisava de se descomprimir.
- Água lisa.
- Já viu água lisa, já?
Ali, a sua maneira de falar não produzia efeito em ninguém.
- Água simples.
Não se contentara com uma dose. Bebera três ou quatro e, a seguir, quando se encaminhara para a porta, todos tinham ficado a olhar para ele.
Alain voltara-se então para os olhar, por seu turno. Todos uns imbecis. Género Blanchet, alguns furos abaixo. Deitara-lhes a língua de fora e, depois, na rua, demorara algum tempo antes de conseguir descobrir o automóvel. O automóvel vermelho, bem entendido. O amarelo era o da Gatinha, e estava na garagem. A mulher não precisaria do carro tão cedo.
Era esquisito, quase indecente, imaginar a mulher e a cunhada em crianças, e, depois, em adolescentes. Onde é que acabara por atravessar o Sena? Lembrava-se de uma ponte, da Lua que surgira no meio de duas nuvens, dos reflexos da lua nas águas.
precisava de descobrir alguns dos seus companheiros habituais. Sabia de todos os lugares onde havia possibilidade de os encontrar. Uns ou outros. Não era Alain o homem que mais amigos tinha neste mundo?
Não devia ter-se casado. Um homem ou se decide a ter uma mulher, ou...
- Ninguém?
- Não vi ninguém, monsieur Alain. Um duplo?
- Já que insistes, meu coelhinho.
Porque não? Nada mais tinha a fazer. Não precisavam dele na revista. Boris tratava de tudo. Um tipo esquisito esse Boris. Havia só tipos esquisitos a rodeá-lo.
- Viva, Paul.
- Boa-noite, monsieur Alain.
Devia ter sido Chez Germaine, na Rua de Ponthieu, e depois...
Tomou uma terceira aspirina, lavou os dentes, gargarejou, porque tinha a boca a saber mal. Molhou a cara com água fria, passou um pente pelo cabelo. Não estava lá muito bonito. Não gostava de se ver assim.
Parara noutro lugar qualquer, sim, mas onde? Toda a gente parecia ter desaparecido naquela noite. Do grupo, nem um só companheiro restava. Que queria aquilo dizer? Teriam feito de propósito para não se encontrarem com ele? Receariam mostrar-se na sua companhia?
Voltou ao quarto, apanhou do chão umas calças de mulher e um soutien, que poisou numa cadeira, e levantou a roupa da cama.
Descobriu um rosto que não conhecia, um rosto muito jovem, que, mergulhado no sono, parecia inocente. Os lábios estendiam-se ao de leve, num beicinho de menina amuada.
Quem era ela? Que se passara?
Vacilante, perguntava a si próprio se não seria melhor voltar a deitar-se e dormir. Sentia o sangue a palpitar-lhe nos olhos, o que lhe causava uma impressão extremamente desagradável.
Voltou ao estúdio, que a mulher-a-dias começara a arrumar. A rapariga trocara o vestido que trazia ao chegar por uma bata de nylon, transparente quanto bastasse para deixar entrever o negro das ligas.
- Como é que se chama?
- Mina. Já lhe tinha dito.
Ela parecia continuar cheia de vontade de rir. Devia ser uma espécie de mania.
- Então, Mina, por favor, faça-me algum café, muito forte.
- Julgo que está mesmo a precisar.
Alain não se sentiu chocado com as palavras dela. Viu-a dirigir-se para a kitchenette, a dar ao rabo, e disse para com os seus botões que, mais dia menos dia, haviam de fazer amor os dois. Nunca fizera amor com uma mulher-a-dias. Todas as que tinham trabalhado lá em casa se encontravam já para além do limite de idade, deixan-do-lhe apenas uma vaga lembrança de rostos duros e trágicos. Mulheres que tinham sofrido esta desgraça ou aquela e que estavam cheias de ressentimento para com o mundo inteiro.
A faixa amarela, no céu, aumentara. O amarelo tornara-se mais brilhante. Já não estava a chover. Via-se até mais longe do que nas manhãs anteriores e adivinhavam-se as torres de Notre-Dame.
Quem é que lhe ia telefonar? Era uma das poucas ideias que lhe tinham ficado da noite anterior. Havia alguém que lhe ia telefonar e por um assunto importante. Alain jurara que estaria em casa.
O cheiro do café chegou-lhe às narinas - familiar. Mina não devia saber que ele costumava tomá-lo na grande chávena azul que tanto lhe custara a descobrir e que levava três vezes mais líquido do que uma chávena vulgar.
Encaminhou-se para a kitchenette. Compreendeu pelo olhar da rapariga que ela julgava ser outro o motivo da sua entrada em cena. Não parecia assustada. Ficara à espera - de costas.
Alain abriu o armário.
- É esta a minha chávena, a chávena por onde bebo o
café todas as manhãs.
- Muito bem, monsieur.
Porque é que ela continuava a esforçar-se por conter o riso? Que lhe teriam contado a seu respeito? Alguma coisa lhe deviam ter dito. Milhares, dezenas de milhares de pessoas, nos últimos dias, andavam, sem dúvida, a falar dele.
- Levo-lhe já o café.
Quando a rapariga entrou na sala, estava ele a apagar um cigarro. O tabaco sabia-lhe mal.
- Não dormiu muito bem esta noite, está-se mesmo a
ver! Alain fez um sinal de assentimento.
- Suponho que aquela outra pessoa ainda está a dormir, não?
- Como é que sabe que está outra pessoa no meu quarto?
A rapariga foi buscar a um canto um sapato de seda cor de laranja, de salto muito alto e fino.
- Deve haver outro sapato por aí, não acha?
- Acho natural. Ela riu-se.
- É giro.
- O que é que é giro?
- Nada. Tudo. Você.
Alain escaldou-se quando tentou provar o café.
- Que idade tem?
- Vinte e dois anos.
- Está há muito tempo em Paris?
- Só há seis meses.
Ele não se atreveu a perguntar-lhe o que é que ela andara a fazer durante esses seis meses. Admirava-se que a rapariga tivesse resolvido ser mulher-a-dias.
- Sempre é verdade que só me quer aqui durante metade do dia?
Alain encolheu os ombros.
- Tanto me faz. E você como é que prefere?
- Preferia um lugar a tempo inteiro.
- Então pode ficar a tempo inteiro.
- Paga-me a dobrar?
- Como quiser.
Conseguiu finalmente beber o café, em pequenos goles. Quase vomitou a princípio, mas o estômago acabou por aceitar.
- Aquela senhora não quererá também café?
- Não faço a mínima ideia.
- Vai acordá-la?
- Talvez. Talvez seja melhor...
- Seja como for, vou fazer mais café. Se precisar de alguma coisa, chame-me.
Alain ficou de novo a vê-la afastar-se, bamboleando as ancas. Depois, decidiu-se a entrar no quarto, fechando a porta atrás de si, para levantar, em seguida, os lençóis da cama.
Viu abrir-se um olho, de um azul-esverdeado, medin-do-o de alto a baixo. A mulher disse sem se mexer, com uma voz ensonada:
- Viva, Alain.
Portanto, ela, pelo menos, lembrava-se. Se estava embriagada, não era tanto como ele.
- Que horas são?
- Não sei. Não tem importância.
Os dois olhos da rapariga estavam agora abertos. Ela afastou os lençóis, descobrindo dois seios rijos cujo bico rosa parecia ainda em botão.
- Como é que te sentes? - perguntou a Alain.
- Mal!
- Não te poupaste!
A rapariga falava com um leve sotaque inglês e ele perguntou-lhe:
- És inglesa?
- Pelo lado da minha mãe.
- Como é que te chamas?
- Não te lembras do meu nome? Bessie...
- Onde é que nos encontrámos? Alain sentara-se na borda da cama.
- Não haverá, por acaso, café cá em casa?
Alain levantou-se com esforço e, com esforço, dirigiu-se ao estúdio e depois à kitchenette.
- Você sempre tinha razão, Mina, Ela quer café...
- Levo-lho já. E croissants, não? A porteira tinha-me dito para os trazer.
- Então, leve também os croissants.
E voltou para o quarto. Bessie já não estava na cama desfeita. Ele viu-a voltar completamente nua da casa de banho e, depois, tornar a deitar-se, tapando-se com o lençol só até aos joelhos.
- De quem é a escova de dentes que está do lado esquerdo do espelho?
- Se é verde, é a da minha mulher.
- Daquela que...
- Sim. Dessa que...
Bateram à porta. Bessie não se mexeu. Mina entrou, com uma bandeja na mão.
- Onde é que ponho isto?
- Dê cá.
As duas olharam-se com uma curiosidade isenta de embaraço. Depois de a mulher-a-dias sair, Bessie perguntou:
- Ela trabalha cá há muito tempo?
- Desde esta manhã. Vi-a pela primeira vez quando fui abrir a porta.
A rapariga bebia avidamente o seu café.
- O que é que tu querias saber?
- Onde foi que nos encontrámos.
- No Grelot.
- Na Rua de Notre-Dame-de-Lorette? É curioso. Nunca vou para esses lados.
- Andavas à procura de alguém.
- De quem?
- Isso não mo disseste. Só repetias a todo o momento que era de importância capital encontrar essas pessoas.
- Tu és entraineuse? (1)
Danço. Não estava sozinha ontem à noite.
- Quem é que estava contigo?
- Dois dos teus amigos. Um tal Bob...
- Demarie?
- Acho que é isso. É escritor.
Era Demarie, que ganhara o Renaudot havia dois anos e que trabalhava para a Tu.
- E o outro?
- Espera. Um fotógrafo com mau aspecto e triste. Tem a cabeça um bocado à banda.
- Julien Bour?
- É possível.
- Muito mal vestido?
- Sim. Isso mesmo.
Bour trazia sempre a roupa em mau estado e, talvez por inclinar a cabeça para um dos lados, parecia ter a cara torta.
Um tipo esquisito. Era ele que fazia as melhores fotografias da revista. Não eram os nus agressivos que outras publicações divulgavam. A Tu pretendia entrar na intimidade das pessoas. As raparigas, as mulheres tinham de se reconhecer na revista. Uma rapariga adormecida, por
* (1) Rapariga contratada para levar os clientes de um bar a consumirem (N.T.). *
exemplo, da qual se descobria apenas um dos seios, um seio que assumia uma espécie de valor humano. Enfim, era pelo menos o que Alain explicava aos seus colaboradores.
- Os artigos têm de parecer escritos por qualquer uma das nossas leitoras.
Nada de cenários sofisticados. Um quarto como a maior parte dos quartos. Nada de rostos excessivamente maquilhados, nada de pestanas demasiado compridas, nada de lábios de púrpura entreabrindo-se para revelar dentes demasiado cintilantes.
Foi numa tarde quando estava a olhar para a cunhada, enquanto ela tornava a vestir-se, que ele tivera a ideia. Nessa altura, escrevia artigos sobre o mundo do teatro e dos bares. Fizera já algumas canções.
O título viera-lhe de súbito ao pensamento.
- Tu... - murmurara a meia voz.
- O quê, eu? O que é que tenho de diferente das outras?
Justamente, ela era como as outras.
- Tive uma ideia. Uma revista. Falo-te disso para a próxima vez.
Fizera um número experimental, escrevendo ele próprio todos os artigos. Não conhecia Bour e era-lhe extremamente difícil obter dos fotógrafos dos jornais o material que pretendia.
- Não, meu velho. Essa não tem ar de ser uma rapariga simples.
- Estás a ver-me pedir a uma rapariga simples que me deixe fotografar-lhe as nádegas?
Arranjara crédito numa tipografia. Lusin, que se tornaria o seu agente publicitário, descobrira o apartamento do quinto andar da Rua de Marignan.
- Em que é que estás a pensar? - perguntou a rapariga, mordiscando um croissant.
- Achas que estou em estado de pensar? Como é que eu me portei ontem?
- Falaste imenso tempo de um tipo que tem a cara mais bonita do mundo.
- E não disse quem era ele?
- Disseste que tinhas estado a jantar com ele.
- O meu sogro?
- É possível. Disseste que gostavas de lhe dizer algumas coisas importantíssimas. Era tudo importantíssimo. Depois, fizeste-me sentar ao teu lado e puseste-te a acariciar-me a coxa...
- Os outros não protestaram?
- O fotógrafo não parecia lá muito satisfeito. A certa altura, entornaste o copo. Ele censurou-te por beberes tanto e tu ameaçaste-o de lhe endireitar a cara. Também lhe aplicaste um insulto que eu nunca tinha ouvido. Espera aí! Já sei: disseste que ele era um viscoso! Julguei que vocês iam brigar a valer, o criado também julgou a mesma coisa, mas ele acabou por se ir embora.
- Só ele?
- O outro deixou-nos alguns minutos depois.
- E nós?
- Tu mandaste vir uma garrafa grande de champagne, proclamando que aquilo era uma porcaria, mas que era dia de beber champagne. Bebeste a garrafa quase inteira. Eu só tomei três ou quatro taças.
- Também estavas bêbada?
- Um bocado. Bastante mesmo.
- E vim a guiar até aqui...
- O dono da boite impediu-te de o fazeres. Estiveram os dois a discutir que tempos no passeio e tu acabaste por entrar para o táxi que ele tinha chamado.
Alain pegou na bandeja do pequeno-almoço que ela acabara de tomar.
- Fizemos amor?
- Não te lembras?
- Não.
- Eu estava meio a dormir e tu parecias furioso. Gritavas:
"- Goza! Mas goza mesmo, puta!"
- Acabaste por me dar um par de estalos, sempre a gritar a mesma coisa.
A rapariga riu, fitando-o com os olhos brilhantes.
- O mais esquisito é que deu resultado!
- Quem é que esteve a tomar banho?
- Nós os dois.
- Ao mesmo tempo?
- Tu fizeste questão disso. Depois, foste beber mais um copo. Não tens sono?
- Tenho a cabeça a andar à roda. Dói-me o corpo todo.
- Toma uma aspirina.
- Já tomei três.
- Já recebeste o teu telefonema?
- Não. Já nem sei de que telefonema estou à espera.
- Falaste disso umas dez vezes, sempre carrancudo. Alain começara a acariciar-lhe maquinalmente uma das ancas.
Era a primeira vez que uma mulher, sem ser a Gatinha, dormia naquela cama, que era dela havia ainda só três noites. Em que dia estavam?
Talvez não devesse ter feito aquilo. Pensaria no caso mais tarde. Sentia as pálpebras a escaldar.
Voltou a deitar-se. Sentia-se melhor assim e ouvia ao lado o barulho do aspirador. A mão dele procurou de novo a anca de Bessie. Tinha a mesma pele clara e suave que Adrienne.
Não queria pensar nem na mulher nem na cunhada. Duas vezes, três vezes, julgou ter pegado no sono, mas acabava por se dar conta de que não passava de um estado de torpor momentâneo.
O mundo bem podia tornar-se vago, estranho - apesar de tudo, continuava a ser um mundo. Alain ouvia até, ainda que bastante longe, o motor dos autocarros e, por vezes, um ranger de pneus.
Remexeu-se na cama a fim de tirar o pijama, que empurrou para os pés, por baixo dos lençóis.
Sentia Bessie, quente, o seu corpo contra o dele. Ficou sem se mexer, recusando-se a sair dos limbos onde mergulhara e foi a rapariga que, com os seus dedos de unhas em ponta, fez o gesto que o levou a penetrá-la.
Reconheceu o som do telefone e acordou imediatamente. Ao estender o braço para o aparelho, espreitou o relógio de parede, que marcava onze horas.
- Está? Daqui, Alain Poitaud.
- Daqui, Rabut. Já liguei para a revista. Ainda estou na Petite Roquette. Vou agora para o escritório e gostava de o ver dentro de meia hora.
- Há novidades?
- Isso depende do que se entender por novidades. Preciso de falar consigo.
- Vou já. Talvez me atrase um bocadinho...
- Não se atrase muito, por favor. Tenho outra entrevista já marcada e preciso de estar no tribunal às duas horas.
Alain saiu da cama e tomou um duche. Estava ainda no duche quando Bessie entrou na casa de banho.
Vestiu, depois, um roupão de turco e começou a fazer a barba.
- Demoras muito?
- Não faço ideia. É possível que esteja fora o resto do dia.
- E eu? O que é que faço?
- O que quiseres.
- Posso ficar a dormir mais um bocadinho?
- Se quiseres.
- Não te queres encontrar comigo outra vez, logo à noite?
- Não. Esta noite, não.
- Quando?
- Logo se vê. Deixa-me o teu número de telefone. Precisas de dinheiro?
- Não foi por isso que eu vim.
- Não te estou a perguntar porque é que vieste. Isso não me interessa. Precisas de dinheiro?
- Não.
- Bom. Vai arranjar-me um whisky. Há uma espécie de bar na sala.
- Bem sei, vi-o na noite passada. Achas que posso ir assim como estou?
Alain encolheu os ombros. Cinco minutos mais tarde, enfiou as calças. Deitou um bocadinho de água no whisky, que engoliu de um trago como se fosse um remédio. Lembrou-se de que não tinha o automóvel à porta de casa. Mais tarde, precisaria de o ir buscar à Rua de Notre-Dame-de-Lorette.
- Desculpa, minha coelhinha. É um caso sério.
- Já sei. Quem era?
- O advogado.
- O advogado da tua mulher? Alain ia a entrar na sala.
- Então, sempre fica comigo para o dia todo?
- Sim. Há uma chave na cozinha. Fica para si. Passa a acordar-me às oito horas com café e croissants.
Desceu as escadas, pulando três ou quatro degraus de cada vez, e, à esquina, fez sinal a um táxi.
- Boulevard Saint-Germain. Penso que o número é o 116.
Não se enganara. Lembrava-se de que o apartamento de Rabut ficava no terceiro piso, e meteu-se no elevador. Veio abrir-lhe a porta uma secretária com óculos, que parecia tê-lo reconhecido.
- Por aqui. Vai ter de esperar só um momento. Maitre Rabut está ao telefone.
À direita, havia uma porta de dois batentes; à esquerda, um corredor, para o qual davam as portas de outras salas. Ouviam-se as máquinas de escrever. Rabut tinha vários estagiários e estes foram aparecendo, um a um, no corredor para verem Alain.
Finalmente, a porta abriu-se.
- Entre, meu velho. Acabo de passar uma hora com a sua mulher.
- Ela decidiu-se a falar?
- Não no sentido em que queríamos. Acerca do caso propriamente dito, continua de boca fechada. De resto, sobre outros problemas também não diz nada. Mas não me pôs fora, o que já é um progresso. Sabe que a sua mulher é muito inteligente?
- Já muitas vezes mo têm dito.
Alain absteve-se de comentar que a inteligência não era, porém, a qualidade que ele mais apreciava numa mulher.
- Tem uma força de carácter pouco comum. É o segundo dia que passa na prisão. Deram-lhe uma cela pequena, só para ela. Propuseram-lhe pô-la noutra cela, com outra detida, se ela quisesse. Ela recusou. Mas talvez ainda mude de opinião.
- Já lhe puseram a farda?
- As incriminadas ficam com a sua roupa pessoal. Não tem de trabalhar. Está fora de questão ela permitir-lhe, a si, que a vá ver. Quanto a esse ponto, foi categórica. Não é uma pose, e ela não se mostra absolutamente nada nervosa. Sente-se, quando ela diz alguma coisa, que é inútil insistir.
"- Diga-lhe que não o quero ver mais, excepto no julgamento, e só porque é indispensável. De resto, nessa altura, estaremos bastante longe um do outro."
Foram estas as palavras de que ela se serviu, tal e qual. Quando lhe falei do seu desnorteamento, ela respondeu-me com toda a calma:
"- Ele nunca precisou de mim. Ele precisa de pessoas, e tanto lhe faz quem essas pessoas sejam. Precisa de ter outros ao lado dele e é-lhe indiferente que sejam estes ou aqueles os que lá estão."
Esta frase chocou de tal maneira Alain que ele perdeu, a seguir, uma parte do que o advogado continuava a dizer-lhe.
- Ele precisa de pessoas.
Era verdade. Sempre precisara de ter à sua volta os amigos ou aqueles a quem ele chamava os seus colaboradores. Sozinho, ficava inquieto - uma inquietação vaga, mórbida. Não se sentia em segurança e era por isso que, apesar da embriaguez, levara para casa uma rapariga na véspera à noite. E, logo à noite, que iria ele fazer? E amanhã?
Via-se sozinho no antigo atelier, com a noite de Paris desdobrada à sua frente, do outro lado da vidraça.
- O pai vai vê-la à tarde. Ela concordou imediatamente com a visita dele.
"- Pobre papá! É ele quem vai sofrer mais com isto tudo."
Quando lhe disse que a mãe estava doente, não pareceu comovida, nem sequer interessada.
Quis-lhe falar da defesa dela. Não podemos deixar que a condenem a vinte anos de cadeia ou a prisão perpétua, e, para isso, precisamos de um motivo que impressione os jurados. O único que vejo é o drama passional. Você está fora de causa.
- Porquê?
- Você mesmo mo disse. Há cerca de um ano que não se encontrava com a irmã dela. Ser-me-ia muito difícil invocar um ciúme tão ao retardador. Não pense que a polícia está de braços cruzados. Antes da noite de hoje, se é que não o fizeram já, eles vão descobrir o quarto onde vocês se encontravam. É absolutamente indispensável sabermos quem era o outro. Rabut deitara uma olhadela a Alain que empalidecera.
- Indispensável?
- Julguei que já lho tinha dito. Não posso exigir que isso lhe seja agradável, mas é um facto, a menos que todos nós estejamos completamente enganados. Não deu por nada de estranho na atitude da sua mulher ao longo dos últimos meses?
De pálido que estava, Alain teve a impressão de ficar vermelho, porque acabava de fazer uma descoberta súbita. Até ali a coisa não lhe passara sequer pela cabeça. Foi precisa a pergunta brutal de Rabut para lhe despertar a memória - e talvez também o que se passara de manhã, na cama, com Bessie.
Durante anos, a Gatinha mostrara-se sempre sexualmente disponível. Faziam muitas vezes os dois uma espécie de jogo que era o segredo de ambos. Ela estava a ler, a ver televisão ou a escrever um artigo. Alain dizia em voz baixa, de repente:
- Olha para mim, Gatinha.
Ela virava-se para ele ainda sem pensar em nada, depois rebentava a rir.
- Ah, é isso? Bom! Não vale a pena continuar o que estava a fazer. Como é que fazes para me influenciares assim?
Ora, por diversas vezes desde o início do Verão, ela dissera-lhe, pouco à vontade:
- Hoje não, de acordo? Não sei o que é que tenho. Sinto-me fatigada.
- Isso não parece teu.
- Talvez eu esteja a ficar velha. Rabut observava-o.
- Então, que me diz?
- Talvez, sim. Talvez tenha mudado.
- Desagradável ou não, será preciso falar de tudo isso na sala de audiências. Quer que ela seja absolvida, não quer?
- Evidentemente.
- Mesmo que ela não volte a viver consigo?
- De acordo com o que ela lhe disse, não conta em caso nenhum voltar a viver comigo.
- Continua a gostar dela?
- Acho que sim.
- A polícia também pensou nisto. Talvez encontre o nosso homem. Na minha opinião, porém, você está em melhor posição para isso, porque há bastantes possibilidades de que se trate de alguém que lhe seja familiar.
Rabut sentia que Alain não estava bem.
- Que se passa consigo?
- Não ligue. Ontem à noite, fui obrigado a jantar em casa do meu cunhado e, depois, embebedei-me a valer, fiquei que nem um cacho. Mas estou a ouvi-lo.
- Ela disse-me ainda mais uma coisa que me impressionou e que a proibi de repetir. Estava a falar-lhe do vosso filho, Patrick. Pedi-lhe que pensasse nele, no futuro dele. Então, ela comentou quase com secura:
"- Nunca tive grande alma maternal." É verdade?
Alain tinha de reflectir, de procurar certas imagens guardadas na memória. Quando Patrick nascera, ele e a Gatinha ainda não eram ricos. Fora pouco antes de ele ter a ideia da revista. A Gatinha tratara perfeitamente do bebé, com uma minúcia por vezes um tanto exagerada. Do mesmo modo, quando estava a bater à máquina um dos seus artigos, recomeçava do princípio qualquer página em que descobrisse uma gralha.
Tinham ficado, durante cerca de dois anos, a viver os três em Paris. Depois, arranjaram uma nurse e, a partir desse momento, a Gatinha atirara-se de novo ao jornalismo, passando a ir ter com Alain a todo o lado e voltando com ele para casa, à noite, já tarde.
Não se lembrava de ir ver o filho a dormir antes de ela própria se deitar. A maior parte das vezes, só Alain o fazia.
Depois, tinham comprado e arranjado as Nonnettes, onde passavam os fíns-de-semana, aproveitando a Gatinha a maior parte do tempo para trabalhar.
- Percebo o que ela quer dizer com isso - acabou por quase segredar Alain.
Rabut levantou-se e olhou para o relógio de parede. Em cima da sua mesa de trabalho, o telefone começou a tocar. Ele atendeu.
- Sim. Passe-me a chamada. Ele ainda aqui está. E estendeu o telefone a Alain:
- É da sua revista.
- Está lá? Alain? Daqui, Boris. Estou há meia hora a tentar apanhar-te. De tua casa, uma mulher cuja voz não reconheci disse-me que tinhas saído à pressa depois de um telefonema. Falou-me de um advogado. Telefonei logo para Helbig, mas ele não estava. Quando acabei por conseguir contactá-lo, ele disse-me que devias estar com certeza com Rabut...
Aconteceu uma coisa, há cerca de uma hora. O comissário Roumagne veio cá e trouxe mais dois homens. Mostrou-me um papel assinado pelo juiz de instrução e instalou-se à tua secretária. Revistou meticulosamente todas as gavetas. Depois, pediu-me uma lista do pessoal. Anunciou-me que tencionava ouvir toda a gente, mas que não demoraria muito. Fez questão de começar pelas telefonistas.
- Já aí vou ter.
Desligou o telefone e virou-se para Rabut, que começava a dar mostras de impaciência.
- O comissário Roumagne está no meu gabinete com mais dois polícias. Revistou-me as gavetas e está a interrogar o pessoal da revista. Fez questão de começar pelas raparigas dos telefones.
- O que é que eu lhe estava a dizer?
- Acha que ele desconfia de algum dos meus colaboradores?
- Em todo o caso, começou a pescaria e agora você não pode impedi-lo de continuar. Obrigado por cá ter vindo. Tente descobrir o nosso homem.
O nosso homem! A expressão era de uma ironia tal que Alain não pôde impedir-se de sorrir.
- Precisa de um copo, você. Tem um bar à saída, à esquerda...
Alain ficou irritado com o advogado. Irritado com ele por causa de tudo, do modo como o chamara, como lhe repetira as palavras da Gatinha, como aludira à sua necessidade de álcool.
Ficou à espera do elevador, no patamar, de cabeça baixa e, pouco depois, estava ao balcão do barzinho.
- Um scotch. Duplo.
- O quê?
- Um whisky duplo, se prefere assim...
Alguns trabalhadores de fato-macaco olhavam para ele com curiosidade. Alain não estava com vontade de se encontrar com Roumagne. Também o comissário, pela cara dele, veria logo que género de noite passara na véspera...
Vergonha, não tinha. Era livre. Passara a vida a rir das pessoas, a escandalizá-las propositadamente, como que por desporto.
Porque é que, de repente, se sentia agora incomodado quando o olhavam na cara? Não fizera nada. Nada tinha a ver com o que acontecera. Havia milhares de maridos que iam para a cama com as cunhadas - era um facto mais que sabido. As irmãs mais novas tendem a cobiçar o que as mais velhas possuem.
Adrienne nunca gostara dele a sério e ele nada se importara com isso. Talvez a Gatinha também não o tivesse amado?
E, afinal de contas, que significava a palavra "amor"? De amor, vendia ele um milhão de exemplares por semana. De amor e sexo. Era a mesma coisa.
Não gostava de se sentir só. Não porque tivesse necessidade de trocar ideias com os outros, nem mesmo por necessidade de afeição.
- Rua Notre-Dame-de-Lorette! - exclamou em voz alta, dirigindo-se ao motorista do táxi e batendo com a porta.
Então, seria por necessidade de quê? De uma presença, em suma, de uma presença qualquer. Os velhos solitários têm um cão, um gato, um canário. Alguns contentam-se com um peixinho vermelho.
Nunca considerara a Gatinha como um peixinho vermelho, mas, ao reexaminar o passado com um olhar novo, dava-se conta de que ela, de facto, fora para ele, sobretudo, uma presença. Nos bares, nos restaurantes, no carro. À direita, a poucos centímetros do seu braço direito.
Da parte da manhã e à tarde outra vez, ele ficava à espera do telefonema dela e enervava-se quando a Gatinha se atrasava. Quantas vezes em sete anos teriam os dois tido uma verdadeira conversa?
Na altura do lançamento da revista, Alain, sem dúvida, falara-lhe do assunto. Sentia-se em forma, seguro do seu êxito. Ela fitava-o com um sorriso de compreensão.
- O que é que achas?
- Não é uma coisa já feita?
- Não é a mesma coisa. Pareces não estar a compreender o aspecto pessoal, o aspecto íntimo. Hoje, há um esforço no sentido de personalizar tudo, justamente porque tudo é fabricado em série, incluindo as nossas diversões.
- Talvez.
- Entras para a nossa equipa?
- Não.
- Porquê?
- Porque a mulher do patrão não deve fazer parte do pessoal.
Houvera também as Nonnettes. Tinham descoberto a casa num sábado à tarde, quando passeavam pelo campo. No domingo, na estalagem onde tinham ficado, Alain começara imediatamente a traçar grandes planos.
- Para nós, é uma necessidade termos uma casa de campo, percebes?
- Talvez. Não será um bocadinho longe de Paris?
- Suficientemente longe para afastar os chatos. Não tão longe que impeça os amigos de aparecerem.
- Contas convidar muita gente?
Ela não protestava, deixava-o decidir, seguia-o. Mas sem participar do entusiasmo dele.
- Pare, por favor. Atrás desse carro vermelho.
- É seu?
- Sim.
- Parece-me que tem dois ou três talões da polícia no pára-brisas...
Era exacto. Apanhara duas multas. As chaves tinham ficado no seu lugar. O motor demorou um bocadinho a pegar. Alain olhava para a boite onde, até à noite anterior, nunca pusera os pés. Entre as fotografias de raparigas despidas que se viam à entrada, reconheceu a de Bessie, no centro, de um formato maior, como se fosse ela a atracção principal do estabelecimento.
Dirigiu-se para a Rua de Marignan e arrumou o carro no pátio do edifício. Hesitou antes de subir. Já passava do meio-dia. As salas do rés-do-chão estavam fechadas.
Ia começar agora a ter medo de um comissário-adjunto da P. J.?
Entrou no elevador. Os corredores e a maior parte das salas estavam vazios. O seu gabinete estava com a porta aberta de par em par e lá dentro encontrou Boris, à espera dele.
- Já se foram embora?
- Há uns dez minutos.
- Descobriram alguma coisa que os interessasse?
- Não me disseram nada. Não estás com fome, tu? Alain fez uma careta.
- Estás com uma cara de morto desenterrado.
- Estou com uma ressaca, mais nada. Vou tentar comer alguma coisa contigo e, durante o almoço, tu contas-me tudo.
Esperava encontrar o gabinete numa barafunda completa. Mas não.
- A tua secretária voltou a arrumar tudo.
- Como é que ele se portou?
- Quem? O comissário? Correctíssimo. Havia uma pilha de fotografias em cima da mesa, as que eu recusei por serem demasiado atrevidas. Ele esteve uns bons dez minutos a observá-las. Um belo javardo, o tipo, afinal de contas!
6
Tinham descoberto, ao lado da Praça Saint-Augustin, um restaurante onde ninguém os conhecia, uma falsa tasca, com toalhas de mesa e cortinas aos quadrados vermelhos e uma quantidade de tachos de cobre à laia de decoração. O patrão, vestido de cozinheiro, com um grande barrete branco, andava de mesa em mesa a impor a sua ementa.
Arranjaram lugar a um canto, embora houvesse muita gente. Todas aquelas pessoas que comiam e iam conversando eram estranhas a Alain. Nada sabia de nenhuma delas. Tinham a sua existência própria, as suas preocupações, o seu universo, no qual gravitavam com a maior seriedade, como se tudo fosse de extrema importância.
Porque é que precisava daquilo? Não lhe passaria pela cabeça almoçar em casa, sozinho com Boris, por exemplo. Teria podido, de facto, organizar a sua existência de outra maneira.
Tinham-no tentado em certa fase, a Gatinha e ele.
Metera-se na cabeça dela cozinhar em casa. Comiam diante um do outro, junto à grande vidraça do estúdio, do outro lado da qual se desbobravam os telhados de Paris.
Às vezes, Alain via mexerem-se os lábios da mulher. Sabia que ela estava a falar, mas as palavras não chegavam até ele ou então não tinham o menor sentido. Parecia-lhe que eram palavras cortadas da vida, afundadas de repente num mundo irreal, estagnante, de onde, preso de pânico, ele se esforçava por escapar.
Não era um sonho que tivesse a dormir. Precisava de se agitar, de ouvir barulho, de ver seres humanos a ir e vir, de estar rodeado de gente.
Rodeado, era essa a palavra. Ser o centro, a figura principal?
Não se decidira ainda a admiti-lo. Vivera sempre com amigos à volta dele, e talvez fosse por medo de se achar sozinho que prolongava as suas noites até tão tarde.
Amigos? Ou antes uma espécie de pequena corte que arranjara para se tranquilizar?
Estavam a servir-lhes acepipes em pratos tirados de um carrinho de rodas, e Alain esforçava-se por comer, por engolir qualquer coisa com a ajuda de grandes tragos de rose.
- E a ti, o que é que ele perguntou?
- Pouco mais ou menos a mesma coisa que aos outros. Em primeiro lugar, se a tua mulher vinha muitas vezes ter contigo à revista. Disse-lhe que não, que ela costumava telefonar-te e que nós só a víamos lá em baixo, no bar ou no restaurante. Depois, quis saber se eu conhecia a tua cunhada. Disse-lhe a verdade. Nunca a vi.
- Mas ela visitou a revista uma vez, há três anos. Quis ver o sítio onde eu passava a maior parte do tempo...
- Sim, mas eu estava de folga. Também me perguntou se não tinhas uma agenda com números de telefone pessoais. Tens?
- Não.
- Foi o que eu lhe disse. Fez-me ainda uma última pergunta. Peço-te desculpa de ta repetir. Perguntou-me se eu sabia que a tua mulher tinha um amante. Se havia, entre os colaboradores da revista, alguém que eu achasse que pudesse ser amante dela. Tu pensas em alguém, tu?
Alain respondeu, desenganado:
- Podia ser um qualquer.
- Depois, convocou as telefonistas. A primeira a aparecer foi a Maud. Sabes como ela é. O tipo deixou-me assistir a todos os interrogatórios. Talvez tenha feito de propósito, por calcular que eu depois te contaria tudo. Com Maud, foi mais ou menos o seguinte:
- Há quanto tempo trabalha para monsieur Poitaud?
- Vai fazer quatro anos para o mês que vem.
- É casada?
- Solteira, sem filhos, e não vivo com um amante, mas com uma tia velha, que é uma maravilha de mulher.
- É uma das amantes de monsieur Poitaud?
- Quer saber se vou para a cama, de vez em quando, com Alain? Vou. De tempos a tempos.
- Onde?
- Aqui.
- Quando?
- Quando ele quer. Pede-me para ficar depois da hora de saída. Espero que os outros saiam e, depois, subo.
- Acha isso natural?
- Sobrenatural é que não é, com certeza.
- Nunca foram surpreendidos por ninguém?
- Nunca.
- Que aconteceria se a mulher dele entrasse numa altura dessas?
- Suponho que teríamos continuado.
- Conhece Adrienne Blanchet?
- Só a vi uma vez.
- Ela telefonava muitas vezes?
- Mais ou menos, duas ou três vezes por semana. Eu passava a chamada para o patrão. As conversas deles eram sempre muito rápidas.
- Quando foi que ela ligou para cá pela última vez?
- O ano passado, antes das férias do Natal.
- Sabia que Alain Poitaud tinha uma ligação com a cunhada?
- Sim. Era eu que telefonava para a Rua de Longchamp.
- Ele encarregava-a de telefonar para lá?
- Para marcar o quarto e mandar pôr no frigorífico uma garrafa de champagne. Ela devia gostar de champagne. Ele não gosta.
- E nada disso voltou a acontecer depois de Dezembro passado?
- Nem uma só vez.
- Ela nunca tentou apanhá-lo aqui?
- Nunca.
Boris comia com apetite e continuava a falar, enquanto Alain se sentia enjoado com os enchidos de porco que enfeitavam a mesa.
- As outras duas telefonistas confirmaram as declarações de Maud acerca da tua cunhada. A seguir a elas, foi a vez de Colette.
A secretária de Alain. A única que se mostrava um tanto ciumenta.
- Quando ele lhe perguntou se ela ia para a cama contigo, começou por protestar e invocar o segredo da sua vida privada. Mas acabou por confessar.
Colette tinha trinta e cinco anos e protegia-o com as asas, como se Alain fosse um bebé. O sonho dela seria passar o dia inteiro a mimá-lo.
- Veio a vez das dactilógrafas, das empregadas da contabilidade e, por fim, dos homens.
- Casado? Pai de família? Importa-se de me dar a sua morada? Costumava jantar muitas vezes com o patrão e a mulher dele?
Eu fazia-lhes um sinal, sugerindo-lhes que dissessem a verdade. A todos eles, o tipo perguntou se conheciam a tua cunhada. Depois, quis saber se já se tinham encontrado com a Gatinha em privado.
Para alguns, as perguntas foram menos exigentes. Por exemplo, para Diacre e para Manoque.
Diacre era feio como um bode e Manoque tinha sessenta e oito anos.
- Bour foi o último. Acabava de chegar à revista e estava com um aspecto parecido com o teu.
- Passámos umas horas juntos, a noite passada. Com Bob Demarie. Estávamos os três bêbados.
- E é tudo. Tenho a impressão de que aquele comissário não é nenhum imbecil e de que sabe onde quer chegar.
Antes de lhes servirem o entrecôte de vitela que tinham pedido, Alain acendeu um cigarro. Não se sentia bem, nem do ponto de vista físico nem do ponto de vista moral. Lá fora estava um céu glauco. Como ele próprio.
- Hoje é sexta-feira, não é?
- É.
- Montaram uma câmara ardente na casa do meu cunhado, na Rua de l'Université... não sei se não devia passar por lá...
- Deves saber isso melhor do que eu. Não te esqueças de que foi a tua mulher que...
Boris não completou a frase. Sem dúvida, fora a mulher de Alain que matara a que estava agora no caixão.
Alain voltou à revista. Se não estivesse com Boris, talvez tivesse ido para casa dormir.
- A secretária de maitre Rabut pediu que ligasse para lá logo que pudesse.
- Faz-me a ligação.
Poucos momentos depois, Colette passava-lhe o telefone.
- Monsieur Poitaud? Daqui, fala a secretária de maitre Rabut.
- Sim.
- Maitre Rabut pede-lhe desculpa por se ter esquecido de lhe falar do caso esta manhã: a sua mulher entregou-lhe uma lista de coisas que gostaria que lhe fossem enviadas o mais depressa possível. Quer que lhe mande a lista?
- É muito grande?
- Nem por isso.
- Então, se quiser ditar-ma...
Apanhou um bloco e transcreveu, em coluna, a lista das coisas pedidas.
- Primeiro, um vestido cinzento de jersey, que está do lado esquerdo do armário, a menos que tenha ido para a tinturaria. Parece que o senhor sabe do que se trata. Uma saia de lã preta, a última, com três grandes botões. Quatro ou cinco camiseiros brancos, os mais simples. Onde ela está, a roupa demora mais de uma semana a chegar da lavandaria.
Alain julgava estar a ver a Gatinha, a ver e a ouvir. Era sempre a mesma comédia quando ficavam nalgum hotel.
- As duas combinações brancas de nylon, sem rendas. Dez pares de meias, as últimas que ela comprou e que estão num embrulho de seda vermelha.
A Gatinha estava na Petite Roquette, acusada de homicídio. Arriscava-se a ser condenada a prisão perpétua e ralava-se com as meias!
- Não estou a ditar muito depressa? As chinelas de verniz preto e as sandálias de banho. O roupão de banho. Um frasco, tamanho médio, do perfume que ela costuma usar. O senhor sabe qual é...
Até o perfume! A Gatinha não se deixava impressionar! Aguentava a pé firme, de olhos abertos para a vida.
- Uma pequena provisão de sedativos e os comprimidos para as dores de estômago. E ainda, quase me ia esquecendo: pente e escova - foi o que ela escreveu.
- Foi ela que escreveu a lista?
- Foi. Entregou-a a maitre Rabut, recomendando-lhe que ele lha entregasse o mais depressa possível. Acrescentou aqui mais qualquer coisa que eu não consigo ler bem. Está escrita a lápis e o papel não presta... So... sim, são dois rr...Sorry...
Às vezes falavam os dois em inglês. Sorry! Desculpa.
Alain olhou para Colette que estava a observá-lo, agradeceu à secretária de Rabut e desligou.
- Não ficou muito transtornada com o interrogatório, você?
E ao vê-la abrir os olhos, estupefacta:
- Desculpa. Estava a tratar-te por você... Tiveste vergonha de dizer que às vezes vamos os dois para a cama?
- Ninguém tem nada a ver com isso.
- Isso é o que parece. Imaginamos que a nossa vida é só nossa. Depois, acontece qualquer coisa inesperada e tudo se torna público.
E acrescentou com ironia:
- Estou a ser exibido!
- Sofres muito?
- Não.
- Isso não será só fachada?
- Juro-te que aquelas duas fêmeas podiam ter ido para a cama com o mundo inteiro sem que isso me afectasse.
Pobre Colette! Continuava a ser uma sentimental. Teria podido ser uma das leitoras da Tu. Devia ser uma das raras pessoas de todo o pessoal a levar a revista a sério.
Gostaria mais de ver Alain desfeito. De o ver encostar-lhe a cabeça no ombro, enquanto ela o consolasse.
- Vou pôr-me a andar. Tenho de lhe levar as coisas. Meteu-se no carro que deixara no pátio e voltou a fazer o caminho até casa, tão seu conhecido. O ar estava a ficar mais fresco. Os transeuntes andavam com uma vivacidade maior do que na véspera e paravam já a ver as montras.
Entrou no elevador, abriu a porta de casa, e admirou-se, no primeiro instante, por dar de caras com a nova mulher-a-dias. Ela escolhera, como era de esperar, trabalhar o dia todo. No corredor, as portas e as gavetas dos armários estavam abertas.
- O que é que está a fazer, minha coelhinha? Tratava-a por você. Por enquanto. Mas era algo com que ele próprio se sentia já surpreendido. Não duraria muito.
- Para fazer algum trabalho que preste, tenho de saber onde estão as coisas. Vou aproveitar para escovar o que estiver a precisar de escova.
- Nesse caso pode ajudar-me numa coisa.
Alain tirou a lista do bolso e foi buscar uma mala bastante grande.
- O vestido cinzento de jersey.
- Esse precisava de ser mandado limpar.
- A minha mulher não sabia se o tinha mandado limpar a seco ou não! Tanto pior! Dê-mo cá.
Depois, foram as combinações, as calças, as meias, as peúgas, o resto...
- Deixe-me ser eu a fazer isso. Está a enfiar tudo aí dentro de qualquer maneira.
Ele olhou para a rapariga com surpresa. Era não só uma bela jovem, fresca e apetitosa, mas parecia também saber do seu ofício.
- É para levar para a prisão?
- É.
- O perfume também?
- Parece que sim. Enquanto não são julgadas, gozam de um regime especial. Até que ponto, não sei.
- Já a viu?
- Ela não quer ver-me. De facto, a pessoa que esta manhã estava na minha cama...
Alain contava que Bessie ainda lá estivesse em casa.
- Levantou-se pouco depois de o senhor sair, quis mais café e foi à cozinha ajudar-me a arranjar-lho.
- Sempre nua?
- Não. Enfiou-se no seu roupão de banho que lhe ficava a arrastar pelo chão. Estivemos a tagarelar um bocadinho. Preparei-lhe, depois, o banho.
- E ela não disse nada?
- Contou-me o vosso encontro ontem à noite e o resto que, entretanto, aconteceu. Ficou espantada por ser o meu primeiro dia de trabalho aqui em casa, e acrescentou que o senhor iria, com certeza, precisar de mim, dentro de pouco tempo.
- Precisar de si, para quê?
Ela respondeu com toda a calma:
- Para tudo.
- Então arranja-me um whisky não muito forte.
- Já?
Alain encolheu os ombros.
- Vais-te habituar.
- Fica muitas vezes como na noite passada?
- Quase nunca. Bebo, mas raramente fico bêbado. Esta manhã, foi a terceira ou quarta ressaca de toda a minha vida. Anda, despacha-te.
Aí estava. Começara já a tratá-la por tu. Mais um coelhinho. Tinha necessidade de fazer entrar as pessoas na sua órbita - um círculo que se situava um bocadinho, ou muito mesmo, abaixo dele.
Seria assim? Nunca pensara no caso. Julgara que os seus amigos formavam um grupo de pessoas com os mesmos gostos e com quem ele podia contar.
Mas não era verdade. Muitas outras coisas em que acreditara eram igualmente falsas. Um dia, faria a lista dessas coisas, como a Gatinha fizera para os vestidos, a roupa de dentro, o calçado e o resto.
Ia-se ver se o cunhado, apesar da câmara ardente, fora à Rua de la Vrillière. Era pouco provável. Devia estar à porta da sala cheia de panos negros, não longe do féretro e das velas com as suas chamas trémulas.
- Está lá? Albert? Por favor, posso falar com o meu cunhado? Sim. Bem sei. É só uma palavra.
Um desfile ininterrupto de gente diante da urna, como era de esperar. Funcionários, deputados, talvez ministros. Os Blanchet ocupavam lugares hierárquicos muito elevados. Não se podia prever até onde iriam.
Porque é que Alain se ria? Não os invejava. Não teria aceitado em caso nenhum ser como eles. Não os suportava. Além disso, desprezava-os por todas as concessões que faziam em vista das suas carreiras. Como ele costumava repetir com gosto, tresandavam.
- Sou eu, Alain. Desculpa incomodar-te.
- Para mim, é um dia muito pesado, muito doloroso, e...
- Justamente. Era disso que eu queria falar-te. Sem dúvida, aí à volta está tudo cheio de fotógrafos e de jornalistas.
- A polícia está a tentar mantê-los à distância.
- Penso que será melhor eu não aparecer, não achas?
- Sim, é o que me parece.
- Quanto a amanhã...
- Não podes, de maneira nenhuma, ir ao funeral.
- Era o que eu te ia dizer. Sou o marido da assassina, não sou? Sem contar...
O que é que lhe estaria a passar pela cabeça?
- É tudo o que tens para me dizer?
- É tudo. Estou desolado. Só queria repetir-te que não tenho nada a ver com o que se passou. Esta é actualmente também a opinião da polícia.
- O que é que lhes foste dizer?
- Nada. O comissário interrogou o pessoal da revista. A polícia esteve na Rua de Longchamp...
- Insistes em precisar tudo isso?
- Os meus sentimentos, Roland. Diz ao nosso sogro que tenho muita pena de não estar com ele. É um homem como deve ser. Se precisar de alguma coisa de mim, sabe onde me pode contactar.
Blanchet desligou sem continuar a conversa.
- Era o marido?
- O meu cunhado, sim.
A rapariga estava a olhar para ele com um ar quase de troça.
- O que é que te dá vontade de rir?
- Nada. Quer que eu me meta num táxi e vá lá levar a mala?
Alain hesitou.
- Não. Mais vale que vá lá eu.
Era um contacto, apesar de tudo. Não se tratava provavelmente de amor, daquilo que as pessoas chamavam amor. A Gatinha saltitara ao lado dele durante anos. Estivera ali.
O que é que ela dissera, realmente, a Rabut? Que não voltaria a vê-lo, a não ser à distância, no julgamento.
E se fosse absolvida? Rabut tinha a fama de conseguir a absolvição de nove décimos dos seus clientes.
Alain imaginava o juiz-presidente, os seus assessores, o advogado, os jurados entrando em fila indiana, e o ar de importância assumido pelo porta-voz destes últimos ao declarar:
- ...à primeira pergunta: não... à segunda pergunta:
não...
O barulho da sala, talvez alguns protestos, assobios, os jornalistas fugindo a correr para as cabinas telefónicas.
Que se passaria então? Que faria ela, com um vestido escuro, ou um saia-casaco, entre os seus dois guardas?
Rabut virava-se na cadeira para lhe apertar a mão. Procuraria a Gatinha, com os olhos, Alain entre as pessoas que enchiam a sala? E ele ficaria lá a olhar?
Seria a outra pessoa que ela dirigiria um sorriso?
- Diga-lhe que não o quero ver mais, excepto...
Para onde iria ela? Não voltaria àquela casa, onde tinha ainda guardada a maior parte das coisas. Mandá-las-ia buscar? Mandar-lhe-ia uma lista, como esta manhã fizera?
- Em que está a pensar?
- Em nada, minha coelhinha. Deu-lhe uma palmada no rabo.
- Tens as nádegas rijas.
- Preferia moles?
Alain esteve quase... Não, agora não. Tinha de ir à
Rua de la Roquette.
- Até já.
- Ainda volta da parte da tarde?
- Não devo voltar.
- Então, até amanhã.
- É verdade, até amanhã.
O rosto tornara-se-lhe mais sombrio. Aquilo significava que voltaria para uma sala vazia, que ficaria sozinho, que beberia um último copo olhando as luzes de Paris, acabando por se dirigir ao quarto para se despir e deitar.
Olhou para a rapariga, abanou a cabeça e repetiu:
- Até amanhã, minha coelhinha.
Entregara a mala a uma matrona indiferente e agora ia ao volante do seu carro por um bairro que não lhe era familiar. Havia pouco, passara diante do Père-Lachaise, onde algumas folhas descoloridas pendiam ainda dos ramos das árvores, e perguntara-se se seria ali, no dia seguinte, o enterro de Adrienne.
Os Blanchet deviam ter um jazigo de família algures - sem dúvida um monumento de mármore de várias cores. Alain não a tratava por Adrienne, mas por Bebé. Não era ela mais um membro do seu circo?
Dentro de poucos minutos, a Gatinha abriria a mala, arrumaria os vestidos, a roupa de dentro, sempre com o mesmo rosto sério, as mesmas sobrancelhas franzidas.
Organizava as coisas. Tinha agora uma vida pessoal. Ele não conseguia imaginar bem a cela. Nada sabia, na realidade, do modo como a vida decorria na Petite Ro-quette, e isso contrariava-o.
Estaria ela com o pai? A falar através das grades, como se vê em certos filmes?
Alain estava na Praça da Bastilha e dirigia-se para a ponte Henrique IV, a fim de continuar ao longo do Sena.
Sexta-feira. Na sexta-feira passada, como em quase todas as outras sextas-feiras, tinham-se metido os dois no Jaguar, ela e ele, e atravessado a auto-estrada do Oeste. Os carros pequenos eram para andar em Paris. Na auto-estrada serviam-se do Jaguar descapotável.
Estaria ela também a pensar nisso? Não se deixaria desencorajar pelo mundo baço que a rodeava na prisão, com o seu cheiro a desinfectante?
De que lhe serviam semelhantes conjecturas? A Gatinha decidira não o ver mais. Ele nem sequer estremecera quando Rabut lho dissera. Mas nem por isso deixava de sentir uma espécie de calafrio. Aquelas palavras que o advogado lhe transmitira queriam dizer tanta coisa!
No fundo, ela devia sentir-se liberta, como uma viúva. Redescobria a sua personalidade. Já não estava amarrada a alguém com quem tinha de ir ter aqui ou ali, depois de um telefonema.
Podia falar. Já não seria ele a falar, ele a ser escutado, mas ela. Para o advogado, para o juiz, para as carcereiras, para a directora da prisão, ela era uma pessoa de parte inteira, contando em seu próprio nome.
Depois de saírem da auto-estrada, bastava-lhes deixar para trás mais um bosque e avistavam, a seguir, as Nonnettes, no meio dos prados. No Natal anterior, tinham comprado uma cabra para Patrick.
Este passava mais tempo com o jardineiro, o bom do Ferdinand, do que com a mademoiselle Jacques, a nurse.
Jacques era o nome de família dela. Patrick tratava-a por Mamie, o que de começo fizera a Gatinha sentir-se irritada. A Gatinha era a "mamã". Mas Mamie era mais importante do que a mamã aos olhos da criança.
- Diz-me uma coisa, papá: porque é que não vivemos aqui, todos juntos?
Sim, porquê? Fazia mal em pensar naquilo. De nada lhe servia e era perigoso. No dia seguinte, iria às Nonnettes.
- E a mamã, onde está a mamã?
Que havia ele de lhe responder? De qualquer maneira, tinha de lá ir. Além disso, aos sábados, as instalações da revista na rua de Marignan estavam fechadas.
Não pôde arrumar o carro no pátio, porque havia um camião a fazer entregas de gás. Arranjou outro lugar, entrou e deitou uma olhadela às filas de pessoas diante dos guichets. Para além dos concursos, a revista criara um clube. Estavam a distribuir os respectivos emblemas.
Ninharias, é claro. Mas, fosse como fosse, a verdade era que, a partir de um andar mobilado com algumas secretárias em segunda mão, Alain conquistara todo o edifício onde ficavam as instalações da revista, e, dentro de um ano, o prédio seria remodelado e arranjado de alto a baixo. A tiragem continuava a aumentar todos os meses.
- Viva, Alain.
Os antigos, o grupo que o rodeava desde os primeiros tempos, os que já faziam parte do seu mundo quando ele era ainda jornalista, tratavam-no por Alain. Os outros chamavam-lhe "chefe".
- Viva, meu coelhinho.
Gostava de subir as escadas a pé e de passar pelos diferentes serviços, de seguir os corredores estreitos, de andar para cima e para baixo, de surpreender os seus colaboradores durante o trabalho.
Não mostrava má cara quando descobria cinco ou seis reunidos numa das salas, contando anedotas e rindo às gargalhadas. Ria com eles. Mas agora, não.
Continuava a subir, tentando livrar-se da confusão das ideias que o assediavam, pequenas ideias dissimuladas, como em certos sonhos. Algumas delas eram tão imprecisas que não seria capaz de as formular, mas o conjunto nem por isso lhe parecia menos desanimador.
Era um pouco como pôr tudo em questão. Ou como assistir à sua própria autópsia.
Encontrou Maleski no seu gabinete.
- Não, mademoiselle - dizia ele ao telefone. - Não sabemos absolutamente nada. Tenho muita pena. Nada mais tenho a dizer-lhe.
- Sempre por causa de...
- Claro. Agora é a província que ataca. Esta estava a telefonar de La-Roche-sur-Yen. Tenho um recado para ti. O comissário Roumagne telefonou. Pede-te que passes pelo gabinete dele logo que possas.
- Então, vou lá agora.
Apesar de tudo, aquilo não o irritava. Alain não sabia que fazer do seu próprio corpo. Estava convencido de andar a incomodar toda a gente.
Antes de tudo o mais, entrou no bar fronteiro para tomar um whisky duplo. Conforme dissera a Mina, não tencionava exagerar. Não estava a beber mais do que o costume.
Sempre bebera assim, talvez por necessidade de viver um tom acima da realidade. Os amigos dele bebiam também. Excepto os que, depois de se casarem, tinham deixado o grupo e só apareciam agora de longe em longe. Nesses casos, a mulher vencera. A mulher, aliás, sem o parecer, não será sempre a vencedora?
A Gatinha, bem vistas as coisas, não saíra igualmente vencedora?
Mina entrara-lhe em casa pela primeira vez às sete horas da manhã. Às onze ou onze e meia, já conseguira convencê-lo a contratá-la para o dia inteiro. Deus sabe se esta noite não estaria lá ainda, à espera dele. Não tardaria provavelmente muito antes de ela passar a dormir na Rua Fortuny.
- Duplo?
Para que lho perguntavam ainda? Não tinha vergonha de beber, de ser talvez aquilo a que se costuma chamar um alcoólico. Agora já não era um vício, mas uma doença. Nada podia fazer, uma vez que de uma doença se tratava...
- Pouco trabalho?
As pessoas têm sempre o talento de fazer as perguntas mais desastradas. Todavia, o barman, que o conhecia havia anos, estava a dizer aquilo cheio de boa vontade.
- Não tenho nada que lhe explicar!
- Desculpe. Julguei... mais um?
- Não.
Não precisava de pagar o que bebera. Liquidava as suas contas no fim do mês, tal como a maior parte dos seus colaboradores, que, de quando em quando, vinham cá abaixo tomar um copo. No começo, costumavam levar as garrafas para a revista. Rapidamente, todos se tinham dado conta de que não era a mesma coisa - lá em cima, acabavam por beber maquinalmente, pelo gargalo.
Que lhe quereria o comissário-adjunto?
Porque é que não era o juiz de instrução a chamá-lo?
Podia esconder-se à esquina de uma rua, no dia seguinte, e ver passar o enterro... Ela tinha uma maneira estranha de o olhar... Sempre lhe vira nos olhos uma pequena chamazinha trocista cujo motivo Adrienne nunca lhe quisera explicar...
- O que é que te está a divertir, Bebé?
- Tu.
- Porquê? Achas-me engraçado?
- Não.
- A minha cara dá-te vontade de rir?
- Claro que não. És até um bonito rapaz. Até...
- Então, é quando te digo alguma coisa?
- É tudo. És um achado.
Ora, Alain não gostava de ser um achado, embora fizesse dos outros coelhos, bebés ou cabecinhas espertas...
Seria Adrienne a única, afinal de contas, a não o levar a sério? Porque os outros levavam-no a sério: as casas de impressão, as distribuidoras, os bancos. Ninguém o considerava um garoto, nem um palhaço.
- Tem a entrevista marcada?
Era um agente a cortar-lhe o passo à entrada da P. J.
- O comissário Roumagne está à minha espera.
- Pelas escadas da esquerda.
- Bem sei.
Não encontrou ninguém pelo caminho. Lá em cima, o bedel fê-lo preencher uma ficha. Na rubrica "motivo da visita", Alain pôs um ponto de interrogação.
Não o fizeram esperar, e o inspector, que estava com Roumagne quando o introduziram na sala, saiu imediatamente.
Desta feita, o comissário estendeu-lhe cordialmente a mão e indicou-lhe uma poltrona para que se sentasse.
- Não o esperava tão cedo. Nem sabia se ainda voltaria a passar pela revista. Sei que, às sextas-feiras, costuma ir para o campo...
- Isso já vai longe - replicou Alain com ironia.
- Amargo?
- Não. Nem sequer isso.
O comissário tinha a cara de um homem não muito distante da terra. O avô ou o bisavô dele devia ser ainda camponês. Era um homem de carne rija e ossos fortes. Olhava bem a direito.
- Suponho que não tenha nada de novo para dizer-me, monsieur Poitaud?
- Não sei em que é que está interessado. Quer que lhe diga que passei a noite a beber? Que acordei esta manhã não só com uma ressaca horrível, mas ainda com uma rapariga na cama?
- Isso já sei.
- Mandou que me seguissem?
- Porque havia de mandar? Apesar de tudo, não foi você que disparou contra a sua cunhada, não é verdade?
Alain assumiu uma expressão mais dura.
- Não me leve a mal ter-me instalado esta manhã no seu gabinete e revistado as suas gavetas.
- Isso não tem importância.
- Fiz algumas perguntas ao pessoal da revista.
- É a minha vez de lhe dizer que já sabia.
- O interrogatório do pessoal confirmou o que você me declarou ontem a propósito das relações com a sua cunhada.
- Quer dizer?
- Que essas relações terminaram antes do Natal passado. O senhorio do estúdio da Rua de Longchamp é categórico no seu depoimento.
- Eu não tinha qualquer razão para mentir.
- Podia ter...
O comissário calou-se, acendeu um cigarro, ofereceu o maço ao visitante, que aceitou maquinalmente. Alain percebeu que aquele silêncio era deliberado. Fingiu achá-lo natural e começou a fumar de olhar perdido no vago.
- Queria que fosse tão franco como ontem ao responder à pergunta que lhe vou fazer agora. Há-de compreender que é da maior importância. Que reacção será a sua quando souber quem era o amante da sua mulher?
- Quer dizer da minha mulher e da irmã dela?
- Exactamente.
Alain cerrou, por um momento, os punhos. O rosto tornou-se-lhe mais duro. Foi a sua vez de deixar passar um silêncio.
- Não sei - acabou ele por dizer. - Isso depende.
- De quem for o homem?
- Talvez.
- Por exemplo, se fosse um dos seus colaboradores? Num relâmpago, Alain viu todo o prédio da Rua de Marignan, de cima a baixo, evocou rostos de homens jovens e menos jovens, dos mais velhos também, eliminan-do-os um a um. François Lusin, o chefe de publicidade, um bonitão que se julgava irresistível? Não! Com a Gatinha, não podia ser.
Maleski também não podia ser, nem o baixote do Gagnon, saltitante e gorducho, secretário de redacção.
- Não se ponha a adivinhar. Vou dar-lhe a resposta dentro de um instante.
- Sabe quem é?
- Tenho à minha disposição meios que você não possui. Por isso, estou numa situação delicada, e tal foi a razão por que lhe pedi que cá viesse. Note que o não convoquei oficialmente. Esta conversa nada tem de oficial. Como é que se sente?
- Mal - respondeu Alain com dureza.
- Não estou a falar da sua ressaca, mas dos seus nervos.
- Se é isso que quer saber, estou tão calmo como um peixe acabado de estripar.
- Gostava que me ouvisse com atenção. Conheço suficientemente bem maitre Rabut para saber que ele defenderá a ré, apresentando a morte da sua cunhada como um crime passional. Para isso, precisa de um protagonista.
- Estou a ver.
- O senhor já não serve, porque rompeu com a sua cunhada há cerca de um ano. Talvez tenha passado já mais de um ano quando o caso for a tribunal.
Alain sacudiu a cabeça. Estava extremamente calmo, com efeito. Uma calma dolorosa.
- A sua mulher recusa-se a falar. Mas nem por isso tem menos direito a que lhe façam justiça e, se se tiver tratado de um crime passional...
- Não preciso desse blá-blá todo, por favor! Abrevie, peço-lhe que abrevie.
- Desculpe monsieur Poitaud, mas sou obrigado a tomar medidas no sentido de não causar um novo drama.
- Tem medo de que eu o mate?
- O senhor tem reacções bastante vivas.
Alain riu.
- Matava-o por causa de quem? Da minha mulher? Estou a habituar-me à ideia de a ter perdido. Reflecti muito no assunto. Sabia que ela estava ao meu lado, sempre, e isso bastava-me. A partir do momento em que deixou de estar... - fez um gesto vago. - Quanto à Bebé, Adrienne, quero eu dizer...
- Percebo. Mas resta o seu orgulho. Você é orgulhoso e reconheço que tem razões para estar contente consigo próprio.
- Mas não estou.
- Não está contente consigo próprio?
- Não.
- Então pouco lhe importa quem seja o homem que ocupou o seu lugar junto das duas irmãs?
- É o que sinto.
- Não tem mais nenhuma arma?
- Só tinha a browning.
- E promete-me que não vai arranjar outra?
- Prometo.
- Confio em si. Prepare-se para uma surpresa. Os meus homens foram interrogar as porteiras de alguns dos seus colaboradores, dos que pareciam suspeitos mais plausíveis... Habitualmente, a última porta a que se bate é que é a certa. Desta vez, o acaso quis que fosse a primeira, a da morada mais próxima, na Rua de Montmartre.
Alain tentou lembrar-se de quem é que, de entre o pessoal da revista, morava na Rua de Montmartre.
- Julien Bour.
O fotógrafo de cara à banda e aparência doentia! Aquele com quem Alain estivera na noite anterior, na boite da Rua Notre-Dame-de-Lorette!
- Espanta-o?
Alain esforçou-se por sorrir.
- Parece-me uma escolha curiosa.
Bour seria o último em quem ele teria pensado. Cuidava pouco da sua pessoa e poderia jurar-se que nunca lavava os dentes. Não olhava os outros na cara - como se tivesse medo deles.
De facto, não sabia quase nada do passado desse homem. Antes de entrar para a Tu, não trabalhara para nenhum dos semanários mais conhecidos nem para os grandes jornais diários.
Quem lho apresentara? Pôs-se a rebuscar na memória: fora há anos. Alguém que não estava ligado à revista, e a apresentação dera-se num bar.
- Alex! - acabou ele por exclamar em voz alta. Depois, explicou ao comissário:
- Estava a tentar descobrir como é que o conheci. Foi um tal Alexandre Manoque que me falou dele. Manoque é vagamente realizador de cinema. Fala muito dos filmes que anda a fazer, mas até agora só realizou ainda duas curtas-metragens. Em compensação, conhece um número incalculável de belas raparigas e, quando temos falta de modelos, costumamos telefonar-lhe...
Alain não voltava a si do seu espanto. Bour, o Maltrapilho. Bour que qualquer das dactilógrafas teria recusado. Diziam que ele cheirava mal, embora Alain, pelo seu lado, nunca tivesse dado por isso.
Raramente saía com o grupo e, quando saía, desempenhava um simples papel de figurante. Toda a gente ficaria estupefacta se alguma vez o visse entrar na conversa.
Levava as fotografias à revista, subia até às águas-furtadas para as paginar com Léon Agnard, porque era um profissional meticuloso.
- As duas! - murmurou ele, numa espécie de pasmo.
- Foi a sua mulher a primeira a começar a ir regularmente a casa dele, na Rua de Montmartre.
- Era em casa dele que se encontravam?
- Sim. Um grande prédio quase a cair, onde há sobretudo escritórios e ateliers. Um atelier de fotogravura, por exemplo.
- Bem sei.
Um semanário sensacionalista, para o qual Alain escrevera no início da sua carreira, tivera nesse prédio as suas instalações. Em quase todas as portas havia uma placa. Carimbos. Fotocópias. Agência E.P.C.
Alain nunca soubera o que era a agência E.P.C., porque o semanário durara apenas três números.
- Ele tem, lá em cima, a dar para o terraço, uma sala grande e duas divisões mais pequenas. A sala grande serve-lhe de estúdio e é aí que ele faz a maior parte das fotografias. Vive sozinho. O meu inspector mostrou à porteira as fotografias da sua mulher e ela reconheceu-a imediatamente.
- Aquela senhora nova, tão distinta e tão simpática! - exclamou ela.
- Quando é que as coisas começaram?
- Há coisa de dois anos.
Alain viu-se obrigado a levantar-se. Aquilo ultrapassava-o. Durante dois anos, a Gatinha estivera apaixonada por Julien Bour, e ele não dera por nada! Ela continuava a viver com ele. Faziam amor. Dormiam, nus, na mesma cama. Só nos últimos tempos é que ela se mostrara menos apaixonada.
- Coisa de dois anos!
Optou por rir, com um riso duro e cruel.
- E a irmã? Quando é que esse pobre-diabo seduziu a irmã mais nova?
- Só há três ou quatro meses.
- Tinha cada uma delas o seu dia?
O comissário observava-o com toda a calma.
- Para o fim, era Adrienne que se encontrava mais vezes com ele.
- Para se impor à irmã, caramba! Era a vez dela!
Começara a andar de um lado para o outro do gabinete, como costumava fazer na revista ou na sala da Rua Fortuny.
- O meu cunhado está informado?
- Não é altura de estar. Julgo que o funeral será amanhã de manhã...
- Sim. Estou a ver.
- E depois, não me compete a mim dar-lhe a notícia. Se maitre Rabut achar que é melhor dizer-lhe...
- Já o informou a ele?
- Já.
- Foi ele que o aconselhou a chamar-me cá?
- Eu tê-lo-ia feito, de qualquer maneira. Há repórteres a investigarem todas as pistas imagináveis. Chegaram à Rua de Longchamp antes de nós e hoje um semanário, parecido com esse de que você se lembrou há bocado, já fala no assunto.
- Bour nem sequer é um tipo a quem se possa partir a cara - resmungou Alain.
- Disponho de mais algumas informações a respeito dele. O nome lembrava-me alguma coisa. Fui ter com um colega meu da Polícia de Costumes, e descobri que ele há alguns anos andou atrás de Bour.
- Havia alguma coisa contra ele?
- Não chegou a haver. Falta de provas. Você falou há bocado em Alex Manoque. Lembro-lhe que o verdadeiro nome dele se escreve com um ck no fim: Manock. A Polícia de Costumes andou muito tempo de olho nele por causa de umas fotografias eróticas. Manock começou por ser seguido. Encontrava-se muitas vezes com Julien Bour, sempre num café ou num bar. Bour devia ser o operador da história, mas a busca feita em casa dele, na Rua Montmartre, não permitiu à polícia descobrir nada.
Não sei se continuam com o negócio. Não é da minha área e, para o seu caso, tanto faz. O meu colega está convencido de que não eram só fotografias, mas também filmes. - Acha que ele fotografou a minha mulher?
- Acho que não, monsieur Poitaud. A minha primeira intenção foi procurá-lo e revistar-lhe a casa à procura de fotografias. Mas, neste momento, isso poderia ter consequências desagradáveis. Nós raramente passamos despercebidos, sobretudo quando a Imprensa está toda alerta.
- Bour! - repetiu Alain olhando para o tecto.
- Se estivesse no mesmo lugar que eu, há vinte anos, não se sentiria tão espantado. As mulheres precisam, às vezes, de um ser mais fraco do que elas, ou que julgam mais fraco, de um homem que lhes faça pena.
- Conheço a teoria - interrompeu Alain, impaciente.
- Pode crer que, na prática, é verdadeira.
Ele compreendia-a muito melhor do que o comissário e foi por isso que se pôs tão sombrio. Agora sabia o bastante. Tinha pressa de sair dali.
- Promete-me...
- ... não matar Bour. Nem sequer uma bofetada lhe vou dar. Nem sei mesmo se o porei na rua, uma vez que é ele o nosso melhor fotógrafo. Bem vê que não tem nada a temer. Agradeço-lhe por me ter avisado. Rabut há-de conseguir absolvê-la. Serão os dois muito felizes e terão muitos filhinhos...
A caminho da porta, deteve-se, deu meia volta e estendeu a mão ao comissário.
- Desculpe. Estava distraído. Até um dia destes. Há-de ter em breve alguma coisa mais para me dizer.
E permitiu-se o luxo de largar, quando passou pelo velho bedel com a sua corrente de prata, um:
- Boa-tarde, meu coelhinho.
7
Alain evitou a revista. Não tinha vontade de "os" ver. Talvez quisesse provar a si próprio que não precisava deles, nem de ninguém. Ao volante do pequeno automóvel vermelho, continuou em frente até dar por si no bois de Bologne, por onde andou às voltas sem uma ideia precisa.
Estava à espera de que o tempo passasse, nada mais. Via as árvores, as folhas mortas, dois cavaleiros que seguiam a passo, conversando.
Descobrira, em muito pouco tempo, grande número de verdades desagradáveis, que teria de digerir a pouco e pouco.
Não sentia necessidade de beber. Se acabou por parar diante de um bar desconhecido, junto à porte Dauphine, foi para não alterar demasiado os seus hábitos. Olhou para as outras pessoas, que o rodeavam, bebendo também, e perguntou-se se teriam os mesmos problemas que ele.
Não exactamente os mesmos. O que acabava de lhe acontecer era bastante invulgar. Mas o fundo da alma de um homem não devia ser muito diferente do de outro.
Outros olhares, como o dele, a flutuar no vago. Que estariam a ver? De que andariam em busca?
- Parece-me que o conheço - murmurou ao seu lado um tipo bastante encorpado, de rosto sanguíneo, que já bebera de mais.
- É, com certeza, um engano - replicou ele secamente.
Fixara a sua linha de conduta para esse dia e estava a ser capaz de a cumprir. Jantou sozinho, num restaurante onde nunca entrara, na Avenida des Ternes. Era um restaurante familiar, com prateleiras de madeira clara para os guardanapos dos fregueses.
Não tinha fome, mas, apesar disso, não deixou de comer: Primeiro, sopa; depois uma linguiça grelhada com batatas fritas. O patrão observava-o à distância. Por sorte para ele, a fotografia que saíra nos jornais não era famosa. As pessoas franziam a testa, demoravam-se um pedaço a olhar para ele e, depois, encolhendo os ombros, com-venciam-se de que estavam a fazer confusão.
Entrou num cinema dos Champs-Elysées e deixou-se conduzir ao seu lugar pela empregada. Não sabia sequer o nome do filme. Reconheceu nele alguns actores americanos, mas não seguiu a intriga.
Sempre fiel ao seu plano, ia gastando as horas uma a uma. Por fim, voltou para casa, subindo de elevador e servindo-se da chave para abrir a porta.
Lá dentro, tudo estava vazio e às escuras. Mina não se atrevera a ficar. Pensara nisso, sem dúvida, mas receara andar depressa de mais.
Acendeu as luzes. Tinha uma bandeja à sua espera, com uma garrafa, um copo e água.
Sentou-se numa poltrona, serviu-se de uma bebida e sentiu-se tão longe dos homens como nunca na sua vida se sentira. Quando fora reprovado no exame final do secundário, reagira de modo quase idêntico. Lembrava-se bem. Ficara na varanda do apartamento da Praça Clichy, a olhar o movimento da vida nocturna que começava.
Aquelas pequenas silhuetas negras que gravitavam na rua saberiam deveras para onde iam? Estivera quase a voltar para dentro, a escrever um poema.
O sentido do ridículo levara a melhor. Procurava as saídas que se lhe ofereciam e não encontrava nenhuma satisfatória.
Repetidamente, os outros perguntavam-lhe em criança ou adolescente:
- Que contas fazer mais tarde?
Como se isso dependesse dele! Muito novo, tinha já a impressão de que o seu destino dependia do acaso, de um encontro, de algumas palavras ouvidas de passagem. Não seria um açoitado, e era tudo. Não enfiaria, como o pai, por um corredor todo a direito, gastando a vida a continuar sempre em frente para nada encontrar no final.
Lembrava-se de tudo, em pormenor. Os pais, na sala de jantar, deviam estar a falar dele, porque conversavam baixando a voz. Não queriam mortificá-lo, recordando-lhe o seu fracasso.
- Podes voltar a apresentar-te em Outubro.
Dois carros tinham batido um no outro e, à volta deles, apinhara-se já uma pequena multidão. As formigas gesticulavam. Era, ao mesmo tempo, lamentável e grotesco.
Só havia uma saída, uma só, que não o entusiasmava, mas que ele aceitava como um mal menor. Alistar-se-ia no exército.
Não ouvia em redor o mínimo ruído e sobressaltou-se quando soou um estalido de madeira a um canto da sala.
Não podia sair outra vez agora. Também não saíra da varanda antes de se sentir seguro da sua decisão.
- Não vens para dentro? - viera o pai perguntar-lhe.
- Não.
- Não tens frio?
- Não.
- Boa-noite, filho.
- Boa-noite.
Depois, fora a vez de a mãe aparecer a dar-lhe as boas-noites. Não insistira com ele, pedindo-lhe que voltasse para dentro. Tanto ela como o pai tinham uma espécie de medo de Alain, sabendo que o filho era um rapaz de pele sensível e que qualquer erro poderia fazer dele um revoltado.
Ele não se revoltara. Fora um soldado como todos os outros. Aquilo parecera-se com o que os cristãos chamam um retiro. Uma preparação. Aprendera a beber, embora o fizesse apenas uma vez por semana, à falta de dinheiro.
Olhou para a garrafa com ironia. Parecia estar a troçar dele, a desafiá-lo. Bastava-lhe estender o braço - um gesto tão familiar que o poderia executar sem disso sequer dar conta.
Levantou-se para ir olhar os telhados, a silhueta de Notre-Dame recortando-se no céu claro, a cúpula do Panthéon.
Ninharias!
Entrou no quarto, viu a cama vazia, começou a despir-se. Não tinha sono. Nem vontade de nada. Não havia qualquer razão para estar ali em vez de noutro sítio. Um acaso. A Gatinha também fora um acaso. Como Adrienne, que ele baptizara de Bebé. Porque teria ele a mania de pôr alcunhas às pessoas?
- Merda! - disse em voz alta.
Repetiu-o pouco depois, ao lavar os dentes diante do espelho da casa de banho.
Bour devia estar com medo, à espera de o ver aparecer. Quem sabe? Talvez tivesse comprado uma arma para se defender? Ou talvez, precipitadamente, tivesse saído de Paris?
Alain sorriu, irónico, enfiou o pijama e apagou as luzes sem tocar na garrafa.
- Boa-noite, meu velho...
Tinha de dar as boas-noites a si próprio, uma vez que não havia mais ninguém para o fazer em seu lugar.
Não adormeceu logo e foi passando o tempo, no quarto às escuras, imóvel, tentando afastar as ideias desagradáveis. Apesar de tudo, o sono deve ter-lhe chegado bastante depressa, e o barulho do aspirador na sala estremunhou-o, arrancando-o de um sono profundo.
Os lençóis amarrotados fizeram-no compreender que devia ter estado a revolver-se, durante toda a noite, na cama. Não se lembrava de nada do que sonhara, mas devia ter sonhado muito.
Levantou-se, entrou na casa de banho, lavou os dentes e passou o pente pelo cabelo. Depois, entrou na sala enquanto Mina desligava o aspirador.
- Já a pé? Fui eu que o acordei?
- Não.
- Vou arranjar-lhe o café.
Alain seguiu-a com os olhos. Não tinha os dedos a tremer como na véspera. Não lhe doía a cabeça. Apenas uma sensação de vazio, não excessivamente desagradável sequer.
Era como se as coisas tivessem deixado de lhe dizer respeito, como se se tivesse desembaraçado de todas as responsabilidades.
Que responsabilidades ao certo? Como é que um homem podia ser responsável por outro homem, ou por uma mulher, ou mesmo por uma criança?
Ninharias!
Palavra que não pertencia ao seu repertório habitual. Uma palavra nova. Não desgostava dela. Experimentou-a duas ou três vezes, olhando lá fora o sol ainda pálido.
Mina chegava com o café e os croissants.
- Ontem veio muito tarde para casa?
- Não, minha coelhinha.
E com um olhar na direcção da porta do quarto:
- Não está lá ninguém?
- Só estamos cá nós os dois.
Alain examinava a figura da rapariga com um olhar frio. Devia ser impossível adivinhar em que estaria ele a pensar. Dir-se-ia que se encontrava para além dos pensamentos declarados, dos pensamentos correntes.
- Quer o jornal?
- Não.
A rapariga estava de pé diante dele, endireitando-se de modo a realçar o volume dos seios. Trazia apenas a bata de nylon, as calças de dentro e o soutien.
Alain reflectia, ponderando os prós e os contras. Mina começara por lhe sorrir, um sorriso encorajador; depois, um certo despeito transtornara ao de leve o seu rosto jovem e cor-de-rosa.
Ele deixou o croissantde lado, acabou de beber o café, acendeu um cigarro, ofereceu o maço à rapariga e, em seguida, aproximou-lhe do rosto um fósforo aceso.
Ela estava outra vez a sorrir. Erguendo-se, Alain media-a de alto a baixo, e dos pés à cabeça. Quando os olhos dele encontraram os dela, havia neles uma pergunta que a rapariga compreendeu imediatamente, como um barman compreende que deve voltar a encher os copos.
Ela riu. Qualquer resposta se tornava supérflua.
- Prefere que me dispa?
- Tanto me faz.
Mina poisou o cigarro no cinzeiro, tirou a bata pela cabeça, levantou do chão um pé, primeiro, e depois o outro, para tirar as calças. Tinha um púbis louro, saliente, e o ventre dela conservava ainda o arredondado da adolescência.
- Porque é que está a olhar para mim dessa maneira?
- Como é que estou a olhar para ti?
- Parece triste.
A rapariga tirara o soutien. Estava nua. Alain perturbava-a e ela não sabia bem o que havia de fazer a seguir.
- Vem cá - murmurou ele por fim, depois de esmagar no cinzeiro a ponta do cigarro.
Dissera aquilo com doçura, suavemente.
- Deita-te...
Dir-se-ia que estava a pôr na cama para a adormecer. Não olhava para ela como alguém que a desejasse, mas antes como se quisesse apenas fixar a imagem do seu corpo na própria memória.
- O senhor... Tu não te deitas?
Alain tirou o pijama, estendeu-se ao lado dela, deixando a mão deslizar-lhe na pele da rapariga.
Ela estava surpreendida. No seu espírito, não era assim que as coisas deviam acontecer. Alain mostrava-se muito diferente do homem que conhecera na véspera.
- Já fazes amor há muito tempo?
- Desde os catorze anos.
- E o primeiro com quem fizeste isto, também era novo?
- Era um tio meu. - Começou a rir. - Tem graça, não tem?
Alain não se ria.
- Quando foi a última vez?
- Há três semanas.
Puxou-a para si, para a beijar, um beijo longo e meigo, que não se dirigia necessariamente a Mina. Também não se dirigia nem à Gatinha, nem a Adrienne, nem a qualquer outra mulher em particular.
- Estás triste? - insistiu ela.
- Já te disse que não.
- Mas estás com um ar triste. Parece...
- O que é que parece? Alain sorriu-lhe.
- Não sei. Nada. Dá-me outro beijo. Não me têm beijado muitas vezes assim.
A pele da rapariga era muito clara. Alain nunca vira uma mulher com a pele tão clara. E macia também. A mão dele acariciava-a, enquanto o seu espírito permanecia distante.
Tomou-a uma primeira vez, lentamente, com gestos cheios de ternura. Também ele não se reconhecia a si próprio nesses gestos. Afagou-a com as duas mãos, da cabeça aos pés. Depois, com os lábios - e ela parecia não ser capaz de acreditar que tudo aquilo fosse verdade.
Ficaram enlaçados durante muito tempo, e, enquanto a olhava, ele redescobria sempre a mesma pergunta nos olhos dela - uma pergunta a que lhe era impossível responder.
Ao levantar-se, Alain começou por virar a cabeça.
- Estás a chorar?
- Não.
- Não deves chorar muitas vezes, pois não? Desculpa estar a tratar-te por tu. Daqui a bocadinho, quando puser outra vez a bata, trato-te outra vez como antes. Não te importas?
- Não.
- Posso ir à casa de banho?
- Claro.
Mina estava a fechar a porta quando Alain entrou. Um tanto admirada, a rapariga deixou-se observar. Era um outro género de intimidade, outros gestos comuns a todas as mulheres.
- Sabes que é a primeira vez que...
Mina hesitava, continuando a mostrar a sua perturbação. Alain parecia-lhe ao mesmo tempo muito próximo e muito distante.
- O quê?
- ...que as coisas são assim... com tanto... tanto carinho...
Ele pôs-se debaixo do chuveiro, deixando-se ficar imóvel e com a água a escorrer-lhe pelo corpo.
- Também posso tomar um duche?
- Se tens vontade...
Vestindo o roupão, Alain foi buscar um copo de whisky, que bebeu em goles curtos, com os olhos no panorama que se desdobrava do outro lado da parede de vidro. Ouvia Mina a tomar banho. Para ele, acabara-se tudo. Já não pensava no caso. A rapariga fazia parte do passado. Era isso que ela era incapaz de compreender.
Quem, de resto, compreenderia? Nem ele próprio sequer! Pelo menos não completamente.
- é engraçado - comentou ela, ao entrar na sala para voltar a vestir-se. - Depois de fazer amor, os homens costumam ficar tristes. Mas eu, por mim, sinto-me alegre, muito leve. Tenho vontade de cantar, de dar cambalhotas.
- O que é isso de cambalhotas?
As cambalhotas que dava a brincar, em miúda. Baixou a cabeça até ao chão, atirou as pernas para o ar, girou várias vezes sobre si própria.
- Não fazias isto, tu? Fazia.
Não lhe servia para nada pôr-se a evocar a infância. Pelo contrário.
- Importas-te de mo prender? - perguntou-lhe Mina indicando-lhe as duas alças do soutien.
Os mesmos gestos da Gatinha e das outras. Como é que as mulheres se arranjariam quando estavam sozinhas?
- Obrigado.
Alain serviu-se de um pouco mais de whisky, engolin-do-o de um trago; acendeu um cigarro e dirigiu-se ao roupeiro do corredor. Escolheu umas calças de flanela cinzenta, um casaco de tweed, uns sapatos macios. Por fim, pegou numa camisola de gola alta.
- Fica-te bem esse estilo desportivo. Ele não reagiu. Já não reagia a nada.
- Não pões um sobretudo? Olha que, apesar de haver sol, não está ainda quente.
Alain agarrou num blusão de pele e olhou à volta. Foi Mina a última imagem que viu quando estava já a chegar à porta. Ela pôs-se em bicos de pés para lhe chegar à boca.
- Não queres? Ele hesitou.
- Sim.
Beijou-a como poderia ter beijado uma irmã.
- Volta esta tarde?
- Talvez.
Desceu as escadas degrau a degrau e parou por duas vezes. Ouviu vozes de crianças no apartamento do segundo andar. Depois, esteve para bater à porta envidraçada da porteira, mas não tinha nada a dizer-lhe e não lhe interessava o correio.
Meteu-se no carro e dirigiu-se à garagem, na Rua Cardinet.
- Bom-dia, monsieur Alain. Quer levar o Jaguar?
- Encheste-lhe o depósito, filho?
- Está tudo pronto. O óleo, as baterias também. Quer que lhe desça a capota?
- Sim.
Sentou-se ao volante, dirigiu-se para Saint-Cloud, atravessou o túnel e desembocou na auto-estrada do Oeste. Não ia ninguém no banco ao seu lado, ninguém que lhe recomendasse que não andasse depressa de mais.
Era curioso pensar que, na Petite Roquette, a Gatinha se ocupava a organizar a sua vida.
Alain conduzia tão lentamente que vários automóveis o ultrapassaram, com os seus ocupantes olhando para trás. Não era costume ver um Jaguar ir tão devagar numa auto-estrada.
Não tinha pressa. O seu relógio marcava onze e um quarto. Alain olhava para as árvores como se nunca tivesse visto árvores na vida. Algumas eram avermelhadas, outras de um amarelo-doirado, outras ainda de um verde-escuro. De vez em quando, via uma estrada de terra batida, com trilhos profundos. Havia muito que não andava por um caminho de terra assim.
Prados, uma quinta, com a casa rodeada de vacas brancas e pretas. Ao fundo, uma linha de névoa que assinalava provavelmente o curso sinuoso do Sena.
O ar estava fresco, mas ele não tinha frio. Alguns camiões ultrapassaram-no. Alain chegara, em África, a guiar também camiões. Afinal de contas, fizera não poucas coisas na vida.
Por pouco, ia-se esquecendo de virar à direita para sair da auto-estrada a caminho das Nonnettes. Costumava ser a Gatinha a lembrá-lo. Ali já quase não havia automóveis.
Quando avistou o telhado de ardósia e a pequena torre quadrada, deu-se conta de que não fumara desde que saíra de Paris. Do outro lado do muro, despontando, identificou o chapéu velho e amachucado de Ferdinand. Patrick devia estar com ele, na horta.
Atravessou o portão que ficava aberto o dia inteiro, arrumou o automóvel no pátio, junto a uma modesta escada de pedra. Mademoiselle Jacques, vestida com uma espécie de bata azul que devia ter sido cortada e concebida por ela, veio abrir-lhe a porta.
Era alta, tinha o rosto calmo, as feições correctas. Tornava-se difícil dizer se seria ou não bonita. Talvez tivesse um corpo muito belo, embora não se desse logo por isso.
- Não sabia se vinha. Patrick está na horta.
- Já desconfiava, porque vi, por cima do muro, o chapéu de Ferdinand. Ele ainda não sabe de nada?
- Não. Preveni as outras pessoas que por cá passam. São só o carteiro e os fornecedores.
Alain estava a olhar para a casa branca, com as vidraças das janelas recortadas em pequenos quadrados - aquela casa que lhe dera tanto que pensar. Fora uma espécie de sonho que ele tentara realizar: uma casa onde gostaria de ter nascido, onde poderia ter outrora passado férias com uma avó.
A grande cozinha estava pavimentada com tijolos vermelhos; em todas as outras divisões, o chão era de um soalho bem encerado; as paredes eram brancas, como se tivessem sido caiadas, na grande sala rústica, e as cortinas das janelas dos quartos enfeitadas com flores.
- Parece cansado.
- Sempre estou menos cansado do que ontem.
- Deve ter sido muito duro para si.
- Sim. Bastante.
- Estava sozinho?
Alain respondeu com um sinal afirmativo.
- E o seu cunhado?
- Aceitou a coisa melhor do que eu esperava. Depois, encaminhou-se para a horta, rodeada de um pequeno muro e de latadas. Viam-se peras enormes no pomar, já amareladas, e maçãs que Ferdinand cuidava com todo o amor, ensacando-as, quando começavam a fazer-se, para as proteger dos insectos.
Os carreiros estavam limpos e bem tratados, as hortaliças dispunham-se em boa ordem, sem uma erva ruim no meio.
O jardineiro e Patrick estavam entretidos a apanhar feijão, na altura em que o miúdo viu Alain. Precipitou-se direito a ele e abraçou-o.
- Vieste cedo. Onde está a mamã? E pôs-se a procurá-la com os olhos.
- Teve de ficar em Paris. Tinha muito que fazer.
- Vem cá ter amanhã?
- Não me parece. Tem muito trabalho.
Patrick não ficou demasiado aborrecido. Ferdinand tirara o chapéu enodoado, e o seu crânio calvo e brilhante rebrilhava ao sol. Como tinha um rosto escuro, curtido e requeimado, aquele alto da cabeça cor de marfim tornava-se quase uma indecência.
- Seja bem-vindo, monsieur Alain.
- A mamã não veio, Ferdinand. Tem muito trabalho. Não te esqueças de me fazer um arco, como prometeste.
O jardineiro poderia servir de modelo à ilustração de um livro infantil.
Também a casa parecia saída de uma história para crianças.
- Vamos, Patrick? São quase horas de almoço.
- Ainda não tocou a sineta.
Porque havia mesmo uma sineta, junto à cozinha, e Loulou, a mulher de Ferdinand, tocava-a sempre para anunciar que estava na hora de se ir para a mesa.
- Bom-dia, Loulou.
Alain sentia o cheiro do coelho guisado, das cebolinhas refogadas, das ervas aromáticas do tempero.
- Bom-dia monsieur Alain.
A mulher não pôde deixar de observar o patrão, atenta, embora não se atrevesse a fazer-lhe perguntas diante do filho.
- A mamã não veio - anunciava Patrick, entretanto.
Com quem se parecia ele? Tinha os olhos da mãe, castanhos, sonhadores e vivos ao mesmo tempo, extremamente móveis. A parte de baixo da cara, porém, era mais como a de Alain.
Loulou tinha uma enorme barriga, sobressaindo por baixo do avental de riscado, pernas gordas e um puxo grisalho no alto da cabeça.
- Mais uns minutos e o almoço está pronto. Querem filetes de arenque? Foi o menino que se lembrou...
Alain não ouviu. Passou diante da porta da sala de jantar e entrou na sala, onde um velho armário de canto servia de garrafeira.
Serviu-se de whisky, e o filho ficou muito interessado a vê-lo beber.
- É bom?
- Não.
- É melhor do que a limonada?
- Não.
- Então, porque é que bebes?
- Porque as pessoas grandes bebem estas coisas. Nem sempre se sabe porque é que as pessoas grandes fazem as coisas que fazem.
O olhar que mademoiselle Jacques lhe dirigiu era como um sinal de alarme e Patrick compreendeu que devia mostrar-se mais reservado no que dizia.
- Vem mais gente cá, amanhã? -Não, meu filho.
- Ninguém.
- Absolutamente ninguém.
- Então, podemos brincar os dois?
- eu também não posso cá ficar.
- Quando é que te vais embora?
- Daqui a um bocadinho.
- Porquê?
Sim, porquê? Como explicar a um garoto de cinco anos que não era capaz de aguentar por mais de duas ou três horas a atmosfera das Nonnettes nem tudo o que aquele cenário significava?
A governanta ficara também admirada. A criada de quarto, que vinha a descer as escadas, perguntou:
- É preciso ir buscar alguma mala?
- Não, Olga. Obrigado.
A sineta estava a tocar. Ouviu-se o voo de uma vespa, zumbindo. Alain esquecera-se das vespas. Estavam apenas os três - Alain, Patrick e Madeimoselle Jacques - na sala de jantar, sentados à mesa oval, com um grande ramo de flores numa jarra de faiança azul.
- Não queres arenques?
- Quero. Desculpem.
- O que é que tens? Estás cansado?
- Estou. Trabalhei muito.
Era verdade. Um trabalho sujo. Um trabalho que habitualmente se faz apenas uma vez na vida. Descera ao fundo de si próprio. Arranhara a superfície, rompera-a, despira-se até sangrar. Acabara-se. Já não sangrava. Mas não lhe podiam pedir que continuasse a ser o mesmo homem.
Mina não compreendera que tinha vivido aquela manhã uma experiência sem dúvida única.
Nem Patrick, nem a nurse, nem ninguém podia compreender. Alain estava a comer. Sorria para o filho.
- Posso pôr um bocadinho de vinho na água, Mamie?
- Amanhã. É só aos domingos.
- Amanhã, o papá não está cá!
A nurse olhou para Alain e acabou por deitar um pouco de vinho tinto na água do garoto.
A refeição parecia interminável. A janela estava aberta. Ouviam-se os pássaros a cantar e as moscas entravam na sala, voavam à volta da mesa e voltavam a fugir, em busca da luz do Sol.
- Quer tomar o café aqui ou na sala?
Ora se dizia a sala ora o hall. Alain instalou-se numa das poltronas de couro escuro. O automóvel estava agora ao sol, mas ele não teve coragem para se levantar para o ir arrumar noutro lado.
- Vou ver se Ferdinand já acabou de comer. Ele prometeu que me fazia um arco.
Mademoiselle Jacques não sabia se devia ficar ou sair também.
- Não tem nenhuma recomendação a fazer-me? Alain ficou pensativo por um longo momento.
- Não. É melhor não.
- Dá-me licença de ir espreitar o que é que Patrick anda a fazer?
Alain acabou de tomar o café; depois, subiu as escadas e percorreu os quartos, lá em cima. Eram quartos de tecto baixo. Os móveis pareciam quase móveis das casas dos lavradores, pesados móveis rústicos - mas o conjunto era alegre, cheio de uma espécie de candura.
Uma candura deliberada. Uma falsa candura. Uma candura para mostrar aos convidados que ali apareciam aos fins-de-semana.
Como a Tu criava uma falsa intimidade.
Como...
Inútil! Era tarde de mais. Ou muito cedo. Alain abriu a porta do quarto e olhou lá para dentro sem emoção.
Depois voltou a descer as escadas, viu o filho na companhia do jardineiro, que estava, de facto, a arranjar-lhe um arco. Mademoiselle Jacques mantinha-se a alguns metros de distância.
Para quê arrastar aquilo por mais tempo? Dirigiu-se ao grupo dos três e inclinou-se para dar um beijo a Patrick.
- Voltas com a mamã para a semana que vem?
- Talvez.
O miúdo parecia mais interessado no arco do que no pai.
Alain limitou-se a um aceno de mão, à laia de despedida, na direcção da nurse.
- Vai-se já embora, monsieur Alain?
- Tem de ser, Ferdinand.
- Não precisa de nada? Não quer levar alguma fruta para Paris?
- Não, obrigado.
Foi dizer adeus a Loulou que começou logo a dar sinais de grande emoção.
- Quem teria adivinhado uma coisa destas, monsieur. ..
Levava aos olhos a ponta do avental.
- Uma pessoa tão...
Tão - o quê? Partiu sem o saber. O motor rugiu e o automóvel deixou para trás as Nonnettes.
8
Agora, podia, devia beber. Tudo o que estava a fazer hoje, incluindo os mínimos pormenores do que se passara com Mina, fora previsto, antecipadamente deliberado. Não era curioso que esse papel tivesse cabido a uma flamengazinha que, na antevéspera, ele ainda não conhecia sequer e que, miraculosamente, lhe fora bater à porta?
Talvez não fosse um papel importante - já não era tão importante, em todo o caso, como ela ainda estaria a imaginar.
Era demasiado cedo. Ficara menos tempo nas Nonnettes do que pensara, de tal modo se sentira asfixiado. A sua partida, que gostaria de ter feito de modo tranquilo, sereno, tomara a aparência de uma fuga.
Ia a conduzir depressa, mas não em direcção a Paris. Não tardou a chegar a Evreux, por onde já antes passara muitas vezes. Estava à procura de um bar, mas tudo o que via eram pequenos cafés ou tascas onde certamente não haveria whisky.
Durante alguns minutos, perdeu-se num dédalo de ruas, todas parecidas umas com as outras, até descobrir, por fim, uma seta que indicava a estrada para Chartres.
Porque não Chartres? Ao fim de um quarto de hora, encontrou uma estalagem para turistas, com uma velha caleche no relvado, à laia de tabuleta. Ali deviam de ter um bar.
Havia, de facto, bar. O barman, atrás do balcão, estava a ouvir o comentário das corridas de cavalos.
- Um duplo!
Ia emendar mas o homem compreendera e estava já com a garrafa de Johnny Walker na mão. Ele não era o único a utilizar aquela fórmula. Um scotch duplo. Um whisky duplo. Um duplo. Palavras que bastavam para o enjoar.
- Está bom tempo para andar na estrada.
Alain respondeu distraidamente que sim. Estava-se lichando para o tempo. Não fazia parte do programa. Não havia qualquer cortejo oficial em perspectiva.
- Outro.
- Parece-me que o senhor já aqui esteve.
Mas claro, coelhinho. Toda a gente o vira já alguma vez. Até em sítios onde ele nunca estivera. Tudo porque a fotografia dele viera na primeira página dos jornais.
- Boa-tarde.
- Até à vista.
O seu carro devia fazer inveja às outras pessoas. Acelerou a fundo numa estrada que não era feita para aquelas velocidades e, pelo menos por duas vezes, em duas curvas, esteve quase a despistar-se.
Chartres! Bem! Conhecia os vitrais da catedral. Lembrava-se, sobretudo, de um restaurante numa esquina, um restaurante com um bar simpático. Acabou por conseguir descobri-lo.
- Um scotch duplo.
Começava a dar resultado. Alain animava-se, voltava a pouco e pouco ao seu ritmo. Desta vez, a brincadeira com o barman virou-se contra ele.
- Já aqui estava há dois anos, não estava?
- Não, monsieur. Só vim para aqui o mês passado.
- E onde é que estava a trabalhar antes disso?
- Em Lugano.
Alain nunca fora a Lugano. Zero! Também tinha o direito de se enganar, ou não teria?
De novo ao volante, via os carros que seguiam em sentido contrário, os condutores que assumiam uma expressão séria.
Ele, durante toda a sua vida, fizera as coisas ao contrário, e os outros tinham acreditado nele. Viam-no tão desenvolto que nenhum deles suspeitava de que ele fosse um rapazinho disfarçado de índio.
Na realidade, tinha os mesmos medos que os outros. E até alguns suplementares, incluindo o de olhar os homens nos olhos. E então, dizia-lhes:
- Meu coelhinho. Ou ainda:
- Cabecinha esperta...
Dava resultado. Os outros aceitavam-no assim. Mas a ele, bastaria isso para o tranquilizar?
Não bebera o bastante. Dentro em breve, quando atravessasse Saint-Cloud, voltaria a parar. Uma grande boíte onde se dançava aos sábados à noite. Estivera lá, num desses sábados, com uma dactilógrafa. Fora na altura em que a Gatinha tinha ido a Amsterdão fazer uma entrevista. Um sábio americano, se ele bem se lembrava.
Tinham feito amor na erva, na margem do Sena.
Também isso era outra coisa que os outros não tinham sabido ver. Alain não tinha medo das mulheres, não chegava a esse ponto, mas o certo é que elas o impressionavam. Datava tudo da sua infância, das primeiras leituras. Tendia a pô-las no topo de um pedestal.
E, depois, levantava-lhes as saias e possuía-as. Já não havia pedestal.
A auto-estrada do Oeste. Chegou a Saint-Cloud e não se esqueceu de parar na boite. A decoração do sítio estava diferente. O género de estabelecimento também. Mas continuava a haver um bar.
- Um scotch duplo.
As coisas avançavam menos rapidamente do que na antevéspera. Alain conservava o sangue-frio, não se esquecia das recomendações que o comissário Roumagne lhe fizera. Prometera. Um tipo decente, o comissário. Compreendera muita coisa, quase compreendera de mais. Não gostaria Alain de ser, afinal, um homem como ele?
Um homem sólido. Um homem que não precisava de...
Merda! Demasiado tarde.
- Quanto lhe devo?
Era um fardo, mas, na véspera à noite, parecera-lhe indispensável fazer aquilo. Previra-o no seu programa e não estava disposto a alterá-lo.
Certas preocupações pareciam-lhe, de súbito, bizarras. Havia imagens que se tornavam distantes, rostos que se apagavam, e só com dificuldade ele lhes reconstituía as feições.
Os Champs-Elysées. Os olhos de Alain procuraram a Rua de Marignan e detiveram-se na fachada do prédio onde um imenso Tu se acendia todas as noites.
Arrumou o carro na Praça da Bolsa e entrou numa tasca do bairro dos jornais. Noutros tempos, ia ali comer, de vez em quando, um ovo cozido.
- Um copo de tinto, meu filho.
O rapaz do balcão, com o seu avental azul, era demasiado jovem para se lembrar dele, apesar de nada lhe parecer distante do passado.
- Mais um.
Um vinho áspero. Que não estava no programa. Alain
esmerava-se.
- Quanto te devo?
Não queria mal nem a uma nem a outra. A Gatinha seguira-o até onde fora capaz. Talvez acreditasse nele? Talvez pensasse que lhe fazia falta? Não tinha importância.
Fartara-se de ser a Gatinha, de andar sempre atrás dele. Sentira vontade de ser ela a desempenhar o papel principal.
O papel principal! Dava-lhe vontade de rir.
Entrou como em casa no velho edifício da Rua Mont-martre e começou a subir as escadas de degraus envelhecidos e cobertos de pontas de cigarro. As paredes não eram pintadas havia muito e Alain ia lendo as placas de cada porta.
Na porta das antigas instalações do jornal em que ele colaborara, uma placa dizia agora:
ADA
Flores artificiais
Seria um novo disfarce de casa de passe? "Ada" fazia-o sonhar. Talvez a casa tratasse de flores para os funerais? Laváveis? De plástico?
Mais dois andares. Alain tinha calor. Ia agora por um corredor adiante. Na terceira porta à esquerda, não havia placa, mas um cartão de visita forrado de celofane.
Julien Bour Fotografia de Arte
Fotografia de arte! Nada menos! A chave estava na porta. Alain abriu e viu-se numa sala grande, com projectores espalhados por toda a parte. Por cima de uma outra porta, estava acesa uma lâmpada vermelha.
Ouviu-se uma voz gritar:
- Não abras! Vou já.
Era a voz de Bour. De que estaria ele à espera? O comissário tê-lo-ia avisado da eventualidade daquela visita?
Um colchão montado em cima de quatro paralelepípedos de madeira, a um canto, servia de divã e de cama, coberto por um tapete marroquino. Uma outra porta, que Alain abriu, dava para uma casa de banho minúscula, com a sua banheira de quatro pés. No lavatório, por baixo das torneiras, viam-se laivos amarelados deixados pelo tempo.
Voltou a fechar a porta da casa de banho, virou-se e deu com Bour pela frente. O fotógrafo Estava em mangas de camisa, sem gravata. Imóvel, cadavérico.
- Bour, minha cabecinha esperta...
Bour virou-se para o lado da porta, como se tencionasse pôr-se em fuga.
- Senta-te. Não tenhas medo. Não quero fazer-te mal. Porque é que, na véspera, teria pensado que aquela visita seria indispensável? Ver o pobre Bour aterrado, lamentável, não lhe causava qualquer impressão forte. Depois, também não o impressionou vê-lo no divã pelo qual haviam passado sucessivamente a Gatinha e a Bebé. Ainda que tentasse imaginar Bour completamente nu, não conseguia sentir nada.
- Juro-lhe, chefe...
- O que é que isso me importa, Santo Deus? Só queria ver-te a cara. Mais nada. Estou a ver-te. Talvez tenhas feito bem em não cuidares mais da tua pessoa. Algumas mulheres devem gostar assim.
Alain acendeu um cigarro e foi à janela, olhando para o pátio onde se empilhavam algumas dezenas de carrinhos de mão. Devia ser um dos últimos pátios de Paris onde, em vez de automóveis, havia carrinhos de mão.
- Estás à espera de alguém?
- De um modelo.
Alain olhava-o fixamente. É estranho fitar assim um homem do qual nada se espera, acerca do qual não se tenta sequer chegar a nenhuma opinião. Era como olhar para um animal. Vê-se o animal respirar. Observam-se-lhe os olhos medrosos. Descobre-se-lhe o beiço que treme, as gotículas de suor que se formam junto às narinas.
- Não te apetece fotografar-me?
Também aquilo não estava no programa. Era uma ideia que lhe passava, de repente, pela cabeça.
- Porquê? Quer mesmo que...
- Quero.
- Um retrato?
- Porque não?
Bour levantou-se, com um passo inseguro, e aproximou-se de um dos projectores que ligou à tomada de corrente. Foi buscar a um canto uma máquina fotográfica com tripé e, ao virar as costas para o fazer, devia estar à espera de uma bala ou de um ataque.
Alain não se mexia.
- De frente?
- Como quiseres.
Endireitou-se e arranjou-se um pouco. Tinha os dedos a tremer.
- Tiraste fotografias à Gatinha?
- Juro-lhe que não.
- Deixa-te dessa mania de jurar. Dizes-me que não, e isso chega. Nunca tiveste vontade de a fotografar nua, no divã?
- Não.
- E a outra, também não a fotografaste?
- Foi ela que mo pediu.
- E tu fizeste o que ela te pediu?
- Fiz.
- Ainda tens o rolo?
- Não. Ela destruiu-o. Só queria ver o resultado...
- Em que pose é que a fotografaste?
- Em várias poses. Alain ouviu o disparar da máquina.
- Não tiras outra?
- Não. Tenho a certeza de que esta ficou boa.
- Não tens whisky?
- Não. Só vinho.
Depois de o olhar uma última vez, bem de frente, com o nariz quase a tocar no dele, Alain despediu-se:
- Até depois.
Que esperara de tudo aquilo? De que teria medo o comissário? Nada se passara. Ele nada sentira. No fundo, Bour não tinha importância. Só desempenhara aquele papel por acidente.
Onde tinha Alain deixado o carro? Pôs-se à procura dele na rua e acabou por se lembrar de que o deixara na Praça da Bolsa.
Dali em diante, tinha tempo. Só precisava de descobrir alguns bares simpáticos. Bares onde, de preferência, não o conhecessem. Não lhe apetecia falar mais.
O mais fatigante era arranjar um lugar para o automóvel. Mas tinha de ser. Meteu pela Rua do Faubourg-Montmartre, mas não quis voltar à Praça Clichy. Isso tinha acabado, como as Nonnettes. As ideias de Alain obedeciam a uma sequência própria.
Deu por si na Madeleine. Um bar cheio de raparigas à espera de quem viesse. Não era daquilo que ele andava à procura. - Um scotch. Duplo.
As raparigas, ora uma, ora outra, iam-lhe deitando o rabo do olho. Ele olhava para elas como tinha olhado para Bour, como se elas fossem peixes, ou coelhos, ou qualquer outra coisa que está viva e precisa de respirar. É perturbador ver uma coisa que respira.
- Mais um, meu velho.
Era complicado descobrir bares onde não o conhecessem. Tentou um, acabado de abrir, no boulevard Hauss-man. O barman trazia vestida uma espécie de casaca vermelha.
- Duplo.
- Johnny Walker?
Era tudo muito lento. O álcool não lhe sabia a nada.
- Acha que já estou a ficar com ar de quem bebeu de mais?
- Não, monsieur.
Era verdade. Verificara-o ao ver-se ao espelho, mas quisera a confirmação do barman. O fundo da sala estava quase às escuras. Havia um parzinho de mão dada, sentado num banco acolchoado.
Era preciso acreditar que existiam coisas assim. Encolheu os ombros e quase se esquecia de pagar. Fosse como fosse, ter-lho-iam lembrado.
- Até depois, Bob.
- Eu chamo-me Johnny, monsieur.
- Até depois, cabecinha esperta.
Continuava, como que contra vontade, a brincar aos índios.
E se... Não! Era tarde de mais para mudar os planos. Tivera o tempo todo para reflectir. Mas - só por curiosidade - se voltasse na segunda-feira à revista... Bem... Toda a gente fingiria, e Boris antes dos outros...
Só ele, Alain, não seria capaz de fingir... Era isso... Com ninguém... Nem a sós... Era um acaso, sim. A Gatinha não podia prever, quando se sentira atraída por Julien Bour, que iria acabar por dar um tiro na irmã.
Agora, ela sabia, também ela sabia. E mandara-lhe dizer por Rabut que ele não voltaria a vê-la.
- Excepto durante o julgamento.
Ela pensara em tudo. As mulheres pensam em tudo. Há ordem na desordem delas.
Alain achava-se um idiota, tão idiota como os artigos da Tu.
- Um duplo, por favor.
- Martini, monsieur!
- Scotch.
Estava algures por trás do Palais-Bourbon, não longe da casa do cunhado. Blanchet já se teria olhado assim, a uma luz tão crua? Não era tão parvo que o fizesse, o cunhado. Devia calcular que se tratava de uma experiência perigosa.
Quanto a recomeçar... Por que ponta?... Recomeçar o quê?...
Se não tivesse sido reprovado no exame final do secundário... Estava a tentar desculpar-se. Teria falhado noutra coisa qualquer.
- Mais um! O barman olhou-o por um instante antes de se decidir
a servi-lo. Isso queria dizer que ele estava a começar a
ficar bêbado. Agora já não faltava muito.
- Não tenha medo. Eu aguento.
- Toda a gente diz sempre isso, monsieur. O que é que teriam os barmen para se mostrarem tão solenes?
Alain esvaziou o copo, encaminhou-se para a porta, com uma dignidade um tanto excessiva, tentando esconder um equilíbrio já incerto. No automóvel, teve dificuldade em acender o cigarro.
- Ele precisa de ti, Alain.
Era a mãe que lho dizia. Julgava ouvi-la, ver o seu olhar baço de mulher que nunca tivera um prazer em toda a sua vida. O pai era a mesma coisa.
Para que é que o filho precisava dele? Não precisava mais de Alain do que este da sua própria mãe. A mãe e o filho em nada lhe valiam, nem um nem outro.
Patrick sentia-se melhor com Mamie, como ele dizia, e com o casal dos velhos. Não se dava ainda conta de que as Nonnettes eram uma falsificação, um sonho falhado.
Herdaria muito dinheiro. Um milhão de leitores e leitoras, sobretudo leitoras, tinham-no feito rico.
Não era justo. O pai de Alain trabalhara de manhã à noite, para ganhar a vida, ao passo que ele, ao serão, durante uma conversa divertida com os amigos, acabara por descobrir uma mina de ouro.
Onde estava agora? Não sabia onde estava. Seguia ao longo de um boulevard aparentemente interminável. A sua intenção era dirigir-se para o bois de Boulogne e não para a circunvalação exterior.
Enganou-se ao pretender virar, ouviu o apito de um polícia, deteve-se, envergonhado e com receio de que aquele apito viesse estragar tudo.
- Não sabe que por aí é sentido proibido?
Tinha de evitar que o polícia descobrisse que ele estava embriagado.
- Desculpe. Como é que vou para o bois de Boulogne?
- Está a ir no sentido contrário. Vire à direita e, depois, outra vez à direita, até à Ponte Alexandre III.
Uf! Tinha direito a um último copo, mas não já - só quando chegasse mesmo às imediações do Bois. Estava agora em terreno bem conhecido e entrou num café. A boca sabia-lhe mal.
- Whisky.
- Um whisky da casa ou...
Ele apontou para a prateleira, indicando a garrafa quase quadrada de Johnny Walker.
- Copo cheio.
Já não tinha vergonha. Era o fim. Aguentara tudo. Não se teria esquecido de nada? Era tarde de mais para pensar nisso. As ideias começavam a confundir-se-lhe.
As ideias! Viu o homem que estava ao seu lado a respirar. Eram aquilo, as ideias. Respirar.
- Outro igual.
O criado olhou para ele, hesitante.
- Por favor!
Esvaziou o copo de um trago e atirou para cima do balcão molhado uma nota de cem francos. Não precisava do troco.
Sabia onde estava a árvore, um grande plátano, mesmo ao virar de uma curva. Bastava-lhe descobri-la agora. Estava a orientar-se.
Se a Gatinha...
Que Gatinha? Tudo se teria passado da mesma maneira com qualquer outra mulher. Tratá-la-ia por Gatinha igualmente, ou por outro diminutivo qualquer: coelhinha, cabecinha esperta e assim por diante.
Porque, no fundo, tinha medo. E ela agora sabia-o, todos o sabiam.
Lá estava a sua árvore - a cem metros. Carregou a fundo no acelerador. O Jaguar precipitou-se em frente. A paisagem fugia e ele tinha a sensação de estar a devorar os carros que vinham em sentido contrário.
Sempre tivera medo.
Mas agora não. Não...
Não ouviu o choque, os outros automóveis travando brutalmente, os passos, as vozes, as exclamações nem, por fim, uma ambulância ao longe.
Para ele, acabara-se.
Georges Simenon
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