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À PROCURA DE SÀNA / Richard Zimler
À PROCURA DE SÀNA / Richard Zimler

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

À PROCURA DE SÀNA

 

CONHECI SANA no meu terceiro dia em Perth, na tarde de 9 de Fevereiro de 2000. Tinha-me deslocado aí para participar no Encontro de Escritores de Perth e para fazer uma viagem promocional na Austrália e na Nova Zelândia sobre o meu romance mais recente, The Angelic Darkness (Trevas de Luz). Tivemos uma única vez uma conversa bastante demorada e, olhando para trás, em parte parece-me que a razão por que este encontro casual me iria lançar numa investigação de três anos sobre a vida dela se deve ao facto de eu me sentir nessa altura simultaneamente frágil e entusiasmado.

E sentia-me assim vulnerável porque tivera uma premonição de morte quando seguia no metropolitano de Londres em direcção ao aeroporto de Heathrow antes do meu voo para Perth. Com uma dor a abrir-se dentro de mim, sentia-me como que caminhando nas águas de um oceano nocturno, a uma distância desesperante das luzes da costa. Sob mim, léguas de uma água parda e fria puxavam-me para o fundo. No meu pânico de afogado, virei-me para falar com um dos meus vizinhos. Mas o perfil do homem idoso que se sentava a meu lado parecia tão lúgubre como as ramagens invernosas arranhando as vidraças das janelas.

Mais do que entabular conversa, no entanto, o que eu queria era mudar de pele.

Esse momento de pânico mudou a minha vida. Durante os cerca de dois anos que se seguiram, senti-me como que encerrado dentro de parênteses, sem viver realmente a vida que me estava calhada.

Nessa noite, a bordo do avião, encostei o nariz à janela e perscrutei as estrelas, na vã esperança de descobrir algum sinal de uma vida eterna que me esperasse. Os fusos horários sucediam-se. E, através de um desses portais, devo ter perdido alguma da minha resistência em aceitar o acaso. Uma constelação inexistente em qualquer mapa celeste formou-se por momentos e conduziu-me primeiro a Sana e em seguida a Helena. Mas talvez Sana tivesse já planos que retiravam ao nosso encontro um certo ar de coincidência misteriosa.

Sofri dois períodos de depressão na minha vida, o primeiro aos doze anos e o último aos dezanove, e quando cheguei a Perth preocupava-me pensar que estava prestes a ter um terceiro. O resultado é que me foi quase impossível dormir mais do que uma ou duas horas por noite. E assim, quando falei com Sana, estava a cair de sono.

A exaustão, combinada com o sentimento de trazer a morte no bolso, fez-me olhar para ela em busca de conforto; aspirava ver nela uma estabilidade que sentisse reflectir-se em mim - e dentro de mim. Tendo depositado nela esta esperança, durante algum tempo considerei como uma traição pessoal o que ela fez. Era tolice, naturalmente, uma vez que não éramos sequer conhecidos - e egoísta, também, dadas as circunstâncias. Mas um espírito trémulo que acha que está prestes a voar em chamas raramente busca as escolhas acertadas.

Nas semanas que se seguiram à minha partida da Austrália, perdia-me frequentemente a fantasiar que era a mim que cabia ter mudado o futuro de ambos. Acho que sempre desejei possuir poderes mágicos - como ela, como se veio a verificar.

 

 

O MEU VOO DE LONDRES tocou o solo numa madrugada do Verão australiano, em 7 de Fevereiro de 2000. Ao chegar ao Rydges Hotel, no centro de Perth, disseram-me que o meu quarto ainda não estava pronto. Da recepção, telefonei a Alex, em Portugal, onde vivemos, para lhe dizer que estava tudo bem. Menti e disse-lhe que a viagem tinha corrido sem novidade. Mas há já vinte e um anos que estávamos juntos e, ao perceber um travo na minha voz, disse-me para não me deixar ir abaixo, que daí a nove dias iria ter comigo a Sydney, onde me levava a minha digressão de apresentação do livro, a quase cinco mil quilómetros.

O restaurante ficava logo à saída do hotel, e, enquanto esperava que me preparassem o quarto, fui sentar-me na esplanada numa das mesas junto ao passeio. A rua conduzia a um horizonte poeirento de ambos os lados. Os carros que passavam fremiam já com a frenética energia do sol de Verão. Pedi uma Coca-Cola, que bebi de um trago, e depois um chá com leite.

Descendo a rua, começaram a surgir homens de camisa branca e óculos de sol pretos, pálidos e magros, os narizes barrados de creme branco como parte da batalha em curso na Austrália contra o cancro da pele. Traziam pastas e usavam chapéus da selva, como outros tantos Crocodile Dundees que tivessem recorrido a empregos de contabilistas quando as percentagens do filme pararam de pingar.

O Rydges Hotel era um megálito de betão e vidro, mas a vizinhança em redor era de estilo antigo; do outro lado da rua havia um alfarrabista, uma mercearia familiar, e uma loja de ferragens. Mais afastado, um bar de sumos anunciava rebentos de cevada, vendo-se alguns maciços em cima de uma banca voltada para a rua como pequenos pedaços de algum relvado de golfe. Provei-os mais tarde nessa manhã. Eram moídos para fazer um caldo esverdeado e servido numa minúscula tigelinha de papel branco, a fazer lembrar os copos de dentes. Inenarrável. O empregado, com uma esfera metálica espetada na língua, disse-me, enquanto me servia, que aquilo tinha níveis elevadíssimos de antioxidantes. No meio da conversa, contei-lhe que tinha chegado de Portugal e ele disse-me que os rebentos de cevada eram precisamente o ideal para ojet-lag - «é como comer vinte cenouras».

Ao que lhe respondi que nunca seria capaz de comer vinte cenouras.

- E agora não tens de as comer, meu! - rejubilou ele.

É assim o irreprimível entusiasmo australiano.

Perth pareceu-me, nessa manhã, como se tivesse sido modelada num cenário de Hollywood para uma cidade vitoriana remota. Não me surpreenderia ver carroças puxadas por cavalos ou, se calhar, algum tiroteio. Na minha visão cruzavam-se umas formas esbranquiçadas como esperma sempre que olhava para o céu azul-azul; na minha cabeça erravam pensamentos como um fumo opalescente.

 

Passei toda a minha semana em Perth atolado num árido jet-lag de um brilho cintilante, como se me habitasse um deserto. As temperaturas assavam-nos a 40 graus. Eu vagueava com os olhos franzidos como uma toupeira. Por vezes, a exultação do sol deixava-me eufórico como um rapaz de doze anos, emergindo dos nove meses de prisão na escola para as férias de Verão. Andava de calções, excepto no quarto do hotel. Aí, as janelas não abriam e estava quase sempre demasiado frio. Era como viver na minha própria cápsula espacial com controlo climático.

Quando não estava no Encontro de Escritores, vasculhava livrarias, visitava a Art Gallery of Western Austrália, e deambulava pelos mercados asiáticos à procura de mangas e anonas. Estudava a geografia das pintas nas pinturas aborígenes da galeria para ver onde me encontraria. Mas não me parecia que estivesse em lado nenhum, a não ser fora da minha vida real.

No Encontro, quando não estava a ouvir algum escritor, ficava a gracejar com os empregados do café, todos loiros, bonitos, gays, e obviamente à espera de serem descobertos por Gianni Versace ou pelo seu equivalente no hemisfério meridional. Ia praticando o meu sotaque australiano, dizendo razor blade imitando a pronúncia de um deles: rizeur blied.

Fiz bons amigos enquanto a minha lucidez durou. A maior parte eram também escritores: Dermot Healy e a mulher Helen, Rodney Hall, Timothy O'Grady, e Nicholas Shakespeare e a mulher, Gillian.

Recordo em particular o hálito a vinho de Dermot entrando-me pelos ouvidos dentro enquanto ele cantava uma das minhas canções preferidas de Marianne Faithfull, «Love is a Teasing». Apesar de serem duas da manhã e ele mal conseguir manter abertos os seus olhos azuis de Rasputine, a voz áspera dele conseguia manter-se no tom.

 

Durante o pequeno-almoço do meu terceiro dia em Perth, enquanto preparava os flocos de farelo com fatias de manga, uma mulher esguia de cabelo preto espetado sentou-se a uma mesa próxima. Agitava as mãos no ar como que para apanhar algum pássaro minúsculo que atravessasse a sala. Depois cerrava os punhos, que começavam a vibrar com as pequenas vidas imaginárias a bater dentro deles. Espreitava para as criaturinhas aladas através das fendas dos dedos, abria as mãos com as palmas para cima - como um mágico revelando um tesouro ao público - e libertava-as. Um homem esguio de t-shirt branca, com uma tatuagem de um peixe tropical azul, verde e amarelo no braço, foi então ter com ela, agarrou, da borda de uma mesa vizinha, um dos pássaros imaginários, e pô-lo em cima da cabeça dela. Deu-lhe um beijo na cara e saiu sem uma palavra. A mulher curvou o pescoço com o peso do pássaro. Eu podia sentir as patinhas dele a emaranhar-lhe o cabelo ao vê-la franzir o sobrolho.

Pondo o seu companheiro invisível na mão e passando-o para o ombro, desviou a atenção para a mesa do bufete. O perfil dela surpreendeu-me pela sua severidade - os olhos eram penetrantes, os lábios apertados como que para censurar os seus pensamentos. Tinha uma pele escura de uma agradável cor de azeitona, e os tendões faziam um arco tenso no pescoço delicado. Em torno dos olhos desenhava-se um leque de rugas profundas e as sobrancelhas altas subiam como asas de borboleta. Tinha uma pequena cicatriz junto à linha do cabelo. Pensei que devia ser uma actriz que viera para o Festival Artístico. Imaginei que fosse iraniana, ou talvez da índia ou do Paquistão.

Voltou-se então para o pássaro no seu ombro.

- Então, não fiques aí parado, diz lá o que queres! - Falava no tom impaciente, mas afectuoso, que as pessoas normalmente reservam aos filhos.

Depois de se ter servido de um pouco de iogurte e fruta do bufete, reparou que eu a observava e fingiu tropeçar como um palhaço, quase me atirando com a tigela que tinha nas mãos. Rimo-nos.

- Bravo! - disse eu.

- Muito obrigada, gentil senhor - respondeu, fazendo uma pequena vénia.

Olhou em torno da sala como que apreciando o pássaro a voejar em círculo. Fez que dava beijinhos com os lábios e estendeu o braço. O passarito poisou no indicador, que desceu um pouco, e ela voltou a colocá-lo em cima do ombro.

Não consegui voltar a captar o olhar dela enquanto tomava o pequeno-almoço. Suspeitei de que estava sempre em risco de ter de representar e que precisava de impor a si própria uma disciplina.

Quando me levantei, fez-me um aceno de rapariguinha.

- Até depois - disse eu.

- Espero que sim - respondeu. Tirando o pássaro do ombro, atirou-o ao ar na minha direcção. Estiquei o dedo indicador e deixei-o poisar, pondo-o depois em cima da cabeça. Cheirei a mão e sacudi-a para a limpar do que o pássaro tinha aí largado. Ela riu-se. Fiquei a desejar ter uma ocasião de falar com ela durante a minha estada.

 

Voltei a vê-la ao fim da tarde, quando regressava do Encontro de Escritores. Estava sentada ao bar, bebericando uma coisa cor de âmbar, provavelmente Drambuie, já que, como vim a saber, era a sua bebida favorita. Usava uma camisola felpuda cor-de-rosa com uma gola alta preta. Tinha uma aparência de grande nobreza. Quando lhe acenei, respondeu com outro aceno, mas com a mão abrindo-se lentamente, fechando-se depois subitamente, como o focinho de um lobo. Os olhos castanhos solenes seguiram-me enquanto eu atravessava a sala em direcção ao elevador. Pensei que podia querer-me alguma coisa. Tinha uma flor delicada de hibisco azul-da-califórnia presa atrás da orelha. Com os braços cruzados, recostou-se como que para ouvir o que a flor lhe sussurrava acerca de mim.

Pus as mãos em oração, como quem diz: «Espero que o que estão a sussurrar seja simpático.»

Ela fez que sim com a cabeça. Estive quase a ir ter com ela, mas ela afastou de repente o olhar e não se voltou de novo. Concluí que não queria ser incomodada.

 

No dia seguinte, estava eu sentado sozinho a tomar o pequeno-almoço, ela entrou, dirigindo-se a mim com um exemplar da edição britânica de O Último Cabalista de Lisboa.

- Tive receio de o abordar antes - disse. Um sotaque estrangeiro dava às suas palavras um final ascendente. - Apesar da impressão que costumo causar às pessoas, sou tímida.

A edição que ela tinha não trazia nenhuma fotografia minha, e por isso perguntei-lhe como sabia que era eu o autor.

- Li a edição brasileira logo que foi publicada. Você está na badana do livro. E também está na brochura do Festival.

Quando lhe perguntei como dominava tão bem o inglês, disse-me que vivera em Nova Iorque durante dois anos.

- Ainda lá vive?

- Não, parti há três anos e mudei-me para São Paulo - envolveu o pescoço com as mãos e fez os sons de quem está a sufocar. - Os Americanos iam-me linchando.

Respondendo às minhas perguntas, disse que não, que não era brasileira. Tinha nascido em Israel. Foi nesse momento que assumi erradamente que era judia.

Disse que se encontrava ali com a Trupe Paulista de Dança e Mimo e que estavam a apresentar a Lisístrata. Era a segunda vez que estava na Austrália. O espectáculo do grupo A Espera de Godot tinha sido um sucesso no Festival de Adelaide dois anos antes. Combinavam mímica e dança para contarem as suas histórias.

Surpreendeu-me então perguntando-me se podia pegar-me na mão. Ainda hoje sinto o aperto firme dos dedos dela.

- É tão estranho conhecê-lo - disse ela, apertando-me a mão. - Quer dizer, vi a brochura que eles nos mandaram e por isso sabia que estaria cá. No Festival. Mas não sabia que iríamos ficar no mesmo hotel. - Nos olhos dela brilharam lágrimas. - Ou que me iria cruzar consigo. - Largou a minha mão e enxugou os olhos. - O seu livro serviu-me para pôr em ordem algumas coisas... não, não é isso... ajudou-me a ver as coisas mais devagar de maneira a poder analisá-las devidamente e descobrir o que fazer. Mesmo o que não me agrada no livro, os defeitos, acabaram por me parecer não terem grande importância.

O seu romance é como uma vida bem vivida. - Queria dizer mais, mas faltou-lhe a voz. Com os dedos indicador e médio esboçou uns passos no ar entre nós, até eu ver um cavalo a caracolear. Depois deteve-se e apontou para os meus olhos. Tocou com a ponta dos dedos as minhas pestanas fechadas. Senti aquela pressão como se viesse de dentro de mim.

Não sabia o que pretendia ela dizer com esse gesto. Ainda hoje não sei. Estava demasiado atónito para falar. Talvez fosse uma espécie de linguagem gestual. Tinha o pressentimento de que estava a conhecer-me através do tacto.

Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, irrompeu numa risada e tapou a cara com as mãos como uma rapariguinha apanhada numa brincadeira secreta.

- Deve achar que sou parva, e que devo estar perturbada, com todas estas lágrimas. Mas não estou. Estou muito feliz. Só que neste momento estou particularmente sensível.

- Não é nada parva. Fico contente por me ter dito o que pensa. É sempre bom ouvir que o que escrevemos tem um efeito positivo para alguém. Estou-lhe muito agradecido.

- Oiça, não quer assinar o meu livro? Ou não é coisa que se peça?

Tirei-lhe o livro das mãos.

- Claro que assino. Que nome devo pôr na dedicatória?

- Dedique-o a Helena.

- Só isso... nenhum apelido?

- Helena basta.

Datei a dedicatória e escrevi: «Para Helena, Obrigado por me falar no efeito que o meu livro teve na sua vida!» Entre parênteses, acrescentei: «Fazer greve pela paz continua a ser uma causa justa.»

Quando leu a minha mensagem, soltou um suspiro.

- Que foi? - perguntei.

- Como tudo é estranho, na vida.

A minha afirmação parentética era evidentemente uma referência à Lisístrata. Nessa peça, as mulheres de Atenas recusam-se ao amor com os maridos até que seja posto um fim à guerra com Esparta.

Falámos um pouco mais sobre Perth, depois ela rebuscou o saco de lona e estendeu-me dois sabonetes com uma espiral rosa e branca, a cheirar a rosas, que tinha comprado na galeria de arte.

- Queria oferecer-lhe alguma coisa por ter escrito aquele livro.

Desatou de novo a chorar quando lhe agradeci.

Normalmente não sou muito ousado, mas naquele momento levantei-me e abracei-a. Vendo-a tremer, senti a sua vulnerabilidade - e também uma energia extraordinária contra o meu peito. Era tão magra que lhe sentia o desenho das costelas. Abraçá-la era o bastante para me confirmar, por instantes, a solidez e a rectidão da minha vida. Estava-lhe grato.

Pela primeira vez, pensei então que deveria ser maravilhoso escrever uma peça ou um filme - alguma coisa que ela pudesse interpretar.

- Nas suas actuações, já fez alguma coisa com palavras? - perguntei.

- Já, mas foi há alguns anos.

- É uma ideia maluca, mas se escrevesse alguma coisa para si... quer dizer, uma peça ou um filme, era capaz de lhe dar uma vista de olhos?

Agarrou-me o braço com a mão.

- Claro. Mas não escreva nada só para mim. Era capaz de ser demasiado... demasiado limitado. Escreva uma coisa bonita e boa, é a única coisa que importa.

Deu-me um beijo na cara e sem nenhuma explicação precipitou-se para o elevador. Levantou a mão direita acima da cabeça e acenou adeus sem se voltar, como se estivesse com

medo de me olhar uma última vez. À medida que caminhava,

ia sacando dos bolsos pedras invisíveis que atirava para os lados.

Ergueu-se em bicos de pés, mais leve a cada passo que dava, e

saltou para dentro do elevador, os braços abertos, como que para voar.

Que teria acontecido se tivesse corrido atrás dela e insistido em continuar a conversa?

 

Nunca mais voltei a falar com ela, embora a tivesse visto ainda uma vez.

No dia seguinte, por volta das seis horas, fiquei à conversa com Martin, um dos organizadores do Festival de Perth, na esplanada do hotel. Estava um fim de tarde de um calor tórrido. Deliciava-me com uma sopa de milho com natas. Martin fumava e ia debicando o meu pão com dentadinhas de rato.

Ouvimos o estilhaçar de vidros acima das nossas cabeças. Caíam pedaços de vidro e eu protegi-me com as mãos para evitar que me atingissem na cara. Martin agachou-se e gritou alguma coisa.

Levantei-me de um salto quase ao mesmo tempo em que Helena tocou o solo. Ouviu-se um baque surdo, como uma porta a fechar-se. Um fio de sangue corria-lhe de uma das narinas. Os olhos mantinham-se abertos mas não viam nada que fosse deste mundo.

 

OUVIMOS DIZER QUE HELENA deixara um bilhete para os seus amigos do grupo de dança, mas a polícia não nos disse o que tinha escrito. Pedi às pessoas do Encontro de Escritores que tentassem informar-se, mas tudo o que conseguiram apurar é que a única suspeita que havia é que se tratava de um suicídio. Um artigo do West Australian confirmava isso mesmo:

 

O porta-voz da Polícia de Perth disse ontem que a morte de Sana Yasawi, directora artística da Trupe Paulista de Dança e Mimo, do Brasil, fora registada como suicídio. Yasawi, de 53 anos, saltou do seu quarto no sétimo andar do Rydges Hotel, depois de ter partido a janela com uma cadeira.

 

Reparei, obviamente, que no artigo o nome dela não era Helena. Pensei que Sana devia ser o nome artístico dela. E lisonjeava-me pensar que ela tinha confiado em mim o suficiente para me dar o seu nome verdadeiro.

Sem dúvida deliberadamente, Helena - ou Sana - tinha esperado pela última representação de Lisístrata para se matar. Na manhã seguinte, estava eu a tomar o pequeno-almoço, a Trupe Paulista deixou o hotel, seguindo depois para o aeroporto. Quase todos usavam óculos escuros e entraram um a um numa carrinha branca, falando entre si em voz baixa, agarrando firmemente as bagagens como se levassem alguma coisa roubada. Senti vontade de correr para eles. Queria perguntar-lhes se ela teria recebido algum telefonema terrível no dia anterior - a revelação de alguma doença que lhe minasse o corpo, a morte da mãe -, mas não ousava invadir a mágoa íntima deles.

 

Depois de a ambulância ter levado o corpo de Helena, e depois de ter vomitado o que comera, telefonei ao Alex. Enquanto o telefone tocava, desatei a soluçar. Ele não estava em casa nem no gabinete. Estremeci, olhando a cidade da janela do meu quarto. Luz e morte - pareciam feitas do mesmo cruel elemento.

Passei a noite gelado, incapaz de controlar a temperatura do corpo. De manhã, tomei um duche quente e deixei os dedos da água tocar-me as pestanas fechadas - tal como Helena fizera, ocorreu-me mais tarde, durante o dia. Enfiei a camisola preta de lã grossa que tinha trazido para o caso de apanhar um tempo inesperadamente frio e desci para o átrio; a ideia da morte latejava dentro de mim e não me apetecia estar só. Sentei-me ao lado de Nicholas e Gillian Shakespeare. Um nó no peito fazia-me pensar que estava perto de um ataque de coração. Mandaram vir um Irish coffee para mim - para descomprimir a congestão, explicaram. Vendo-me a tremer e com ar de choro, um inspector da polícia, loiro, de ar arrapazado, identificou-se e pediu-me se podia ir sentar-me com ele no átrio. Contei-lhe a cena de Sana apanhando pássaros invisíveis, ouvindo o sussurro do hibisco atrás da orelha, saltando para o elevador. Disse-lhe que ela tinha gostado de um romance meu. Que a tinha ajudado a ver as coisas mais devagar, de maneira a poder pensar mais claramente.

- Pensar mais claramente em matar-se? - perguntou ele. É

- Não sei.

- Tinha um ar perturbado?

- Não.

- Disse alguma coisa que o pudesse fazer suspeitar das intenções dela?

O meu pescoço parecia girar em torno de um parafuso enferrujado quando abanei a cabeça a dizer que não.

- Não, de facto até disse que era feliz.

 

Quando nessa noite Alex atendeu e lhe contei o que me tinha assustado mais, ele respondeu:

- Ninguém se mata por ter gostado de um romance.

- Então achas que não tem nada a ver?

- Claro que não.

Na manhã seguinte fui mais uma vez até à Galeria de Arte. Não sabia por que tinha lá voltado até ver na loja os sabonetes que Helena me tinha comprado.

Nas estantes havia dois dos meus romances. Talvez ela tivesse reparado neles e tivesse comprado O Último Cabalista de Lisboa.

Perguntei à senhora da caixa se ela se lembrava de Helena. Descrevi-a e disse-lhe que ela devia andar com um pássaro invisível no ombro. - Esguia, de cabelo curto, alta, com ar jovem, embora andasse pelos cinquenta...

A mulher abanou a cabeça. Perguntei também ao guarda, mas também ele não se lembrava. Fui à casa de banho e fechei-me numa das retretes. Tinha um cheiro ao mesmo tempo adocicado e acre. Agarrando a cabeça entre as mãos, deu-me vontade de imitar as mulheres da Lisístrata e entrar em greve - para marcar uma posição contra a injustiça da vida, aqui mesmo, e ficar fechado até compreender as causas do que tinha acontecido.

 

Ao fim da tarde, tomei o avião para Melbourne e fiquei numa velha casa de tijolo, propriedade de Michael Rakusin, o chefe da empresa que distribuía os meus livros na Austrália. Ficava na tranquila parte residencial de uma zona na moda, apesar de degradada, onde miúdos de calções largueirões e t-shirts rasgadas vagueavam como que à espreita de janelas para partir e paredes para sujar com graffiti. Estava só, o que era uma asneira. Dormi com a luz acesa na sala de estar. Imaginava já assassinos por ali à espera para arrombar a porta e que nunca mais voltaria para Portugal, nem voltaria a ver Alex, nem acabaria o romance que andava a escrever. Pensei em chamar um táxi para ir para um hotel no centro da cidade, mas deixei-me ficar dominado pelo embaraço.

A certa altura acordei, dando por mim a gritar, sufocado. Não me lembro do que estava a sonhar, mas sentia-me como se tivesse estado a banhar-me em água gelada; o meu termómetro interior estava ainda bastante desarranjado e iria ficar assim por vários dias. Com os dentes a bater, empilhei os cobertores por cima de mim e fiquei a tremer até ser vencido pelo sono.

 

No decorrer dos três dias de entrevistas e de leituras que passei em Melbourne, cedi tanto terreno à insónia que comecei a acreditar que cair redondo em plena emissão de rádio e ser levado para o hospital era de longe a minha opção mais promissora, tanto em termos de saúde como de publicidade.

Apanhei o meu voo da Qantas para Sydney na noite do dia 16. Alex chegara antes de mim, vindo de Londres, e quando o vi à minha espera, junto à passadeira das bagagens, corri para ele. Abraçámo-nos e rimos como dois miúdos. Depois, no hotel, voltei a chorar. Tentava não pensar na morte - em ter de lhe dizer adeus um dia -, mas mesmo nos seus braços não conseguia desembaraçar-me da sensação de caminhar atolado na água num oceano de desolação. Contei-lhe tudo o que Helena me dissera, como se partilhar uma história pudesse retirar-lhe parte do seu poder. Mas era demasiado cedo para isso.

O Último Cabalista de Lisboa parecia-me agora tão ligado à morte de Helena que pensei que devo ter escrito nas suas páginas uma premonição do que acontecera. Algo ali espelhava os pensamentos e as emoções que a levaram a dar aquele derradeiro salto.

E no entanto nem Alex nem eu conseguíamos vislumbrar qualquer nexo que parecesse razoável - nem na Austrália, nem durante a minha digressão na Nova Zelândia, nem de regresso a Portugal.

 

Depois de chegar ao Porto em princípios de Março, mergulhei de imediato na paisagem do meu novo romance, Meia-Noite ou O Princípio do Mundo, num vaivém entre o século XIX do livro e a minha própria vida. Uma das personagens principais - Meia-Noite - é um curandeiro do Sul de África que é vendido como escravo. Perto do fim do romance, ele descreve a vida árdua que passou numa grande plantação na Carolina do Sul como se o tivessem «enterrado, pedra a pedra». Ao escrever estas palavras, lembrei-me de Helena tirando pedras do bolso. Mas Meia-Noite não era como ela. Tinha sobrevivido, mesmo depois de ter carregado o peso daquelas pedras durante quase duas décadas.

Por que é que Helena desistira? Ao atirar as pedras do bolso, estaria ela a dizer-me que tinha atirado fora o fardo do mundo, que assim deixava de a prender, e que ela era livre? Talvez estivesse a reivindicar o direito de ser infeliz e de apanhar a primeira via de saída.

Iniciei uma correspondência por e-mail com um dos membros da Trupe Paulista de Dança e Mimo, Mário Ungaretti, depois de ter pedido o endereço dele às pessoas do Festival Artístico de Perth. Mário fora um bom amigo de Helena - ou Sana, como ele a chamava, uma vez que era esse o nome que sempre usara com ele e com os demais membros do grupo. Fora ele até que, depois da morte de Sana, ficara com o shetland dela, um cão de guarda chamado Margot. Antes de partirem para a Austrália, ela tinha-o feito prometer isso mesmo. Quando ele lhe perguntou porquê, ela pôs-se a dizer que podia ser mordida nas costas por alguma serpente venenosa. Acabaram os dois a rir-se da paranóia dela. Mário pôs de lado a possibilidade de ela estar já a premeditar o suicídio. Pensava que era mais provável que ela tivesse sido apanhada por alguma súbita falta de equilíbrio. Disse-me que Sana era uma pessoa muito sensível e espontânea.

Num dos seus e-mails escreveu: «As pessoas não se apercebem de que estamos presos por um fio. Basta que uma qualquer coisa corte esse fio e nós., caímos.»

Não sabia o que - ou quem - poderia ter cortado o fio que prendia Sana à vida. Disse que ela não deixara nenhum bilhete.

Mário era o homem que eu vira em Perth com um peixe tatuado no braço. Contou-me que Sana se mostrava muitas vezes instável e apreensiva, e que tinha um temperamento impetuoso, mas que nunca a vira deprimida.

O mais estranho, disse ele, era que quase nunca falava do passado ou da família. Só uma vez lhe ouvira uma referência ao pai, que ele achava que vivia algures em Itália. Sana dissera a Mário que tinha nascido lá, mas nunca lhe disse onde. A mãe tinha morrido. Pelo menos, foi essa a impressão com que ficou, uma vez que Sana falava dela sempre no passado. Tanto quanto se lembrava, sempre usara o nome de Sana, embora pensasse que talvez o tivesse adoptado como nome artístico há alguns anos -antes de ir para o Brasil.

Contou-me ainda que ela nunca tinha tido problemas de saúde de que ele se tivesse apercebido. A meu pedido, Mário confirmou com o administrador da trupe a boa forma física dela. E conseguiu até chegar à fala com o médico pessoal dela, que lhe disse que todas as análises que ela fizera ultimamente tinham apresentado resultados completamente normais.

Através dele, entrei em contacto com outros amigos do Brasil. Todos confirmaram que Sana era uma pessoa temperamental, que podia passar da fúria ao riso numa questão de segundos, e que tinha nascido em Itália. Fiquei naturalmente a cogitar por que é que ela me dissera Israel.

Ana Morais, também membro da trupe, escreveu-me em Junho para me dizer que uma vez tinha falado com Sana acerca de O Último Cabalista de Lisboa. Sana, disse ela, tinha ficado apanhada pela personagem de Farid, um jovem muçulmano que é surdo-mudo. Ele e o narrador, que são amigos íntimos, falam por gestos, numa linguagem que inventaram quando crianças. Sana dissera a Ana que o que mais a surpreendera é que uma boa parte da narrativa é uma tradução da conversa deles em linguagem gestual. De facto, o que todos lemos é uma tradução, qualquer que seja a língua em que lemos o livro.

Naturalmente, eu compreendia que este aspecto do romance pudesse ter uma importância particular para uma mulher dedicada a uma arte baseada nos movimentos das mãos e do corpo, mas não me convencia que isso fosse a única razão.

Em Fevereiro de 2001, um ano depois da minha viagem a Perth, o meu editor britânico lançou uma nova edição de O Último Cabalista de Lisboa em formato de bolso. O livro vendeu-se bem numa das livrarias inglesas de Paris - a W. H. Smith - e eu fui convidado pelo gerente a ir lá falar. Apresentei então uma sessão de slides sobre a vida dos judeus secretos no Portugal do século xvi. O meu editor também esteve presente, juntamente com o seu assistente e o chefe de produção, e seguidamente fomos para um jantar pantagruélico no Le Soufflé, ali perto na rue de Rivoli.

Nessa sessão esteve também um reformado americano que me perguntou se eu poderia dar uma conferência numa organização a que ele pertencia, a Paris Jewish Connection. Mostrava-se amistoso, num tom paternal, que eu achei enternecedor, e aceitei o convite. Escolhemos uma data cerca de um mês mais tarde, em fins de Março, pois eu tinha de voltar a Paris para me encontrar com um fotógrafo, de quem estava a organizar uma exposição no Porto nesse Outono, que devia coincidir com o festival de escritores que eu também andava a organizar.

A minha conferência realizou-se num grande apartamento elegante perto do Arco do Triunfo. Lembro-me de jarrões chineses, tapetes persas e empregados franceses servindo hors-d'oeuvres em tabuleiros de prata. O projector de slides ficava em cima de um piano de cauda miniatural.

Embora a maior parte dos convidados estivesse vestido à vontade, não me largava a sensação de que Joan Collins e o resto das personagens de Dinastia podiam entrar por ali a qualquer momento.

Falei uns quarenta e cinco minutos. Depois, a seguir ao jantar volante, fiquei a conversar com os convidados. Entre eles contava-se uma mulher de olhos inchados, e uma cara pálida e descarnada. Parecia doente e amargurada, e o rosto de quem já passou por muita coisa, o cabelo grisalho quebradiço, dava-lhe o ar de alguém que vira as suas emoções arrasadas por um fogo devastador. Usava uma camisola de lã vermelha numa malha larga e uma saia preta comprida que ma fez parecer com peso a mais. Mordia o lábio inferior quando estava calada.

Deduzi que fosse francesa pelo sotaque, embora tivesse na mão a versão inglesa de O Último Cabalista. Falámos sobretudo de música sefardita, que era o tema da sua tese de doutoramento na Universidade de Paris. Possuía um rico vocabulário de inglês, tendo devorado toda a Jane Austen e a maior parte de Charles Dickens. Contou-me também que tinha esquadrinhado as colecções de várias bibliotecas inglesas à procura de material que pudesse ser-lhe útil na investigação para o doutoramento. Falava cautelosamente - como se em permanente receio de ser mal entendida. Porém, o olhar tornava-se vidrado, às vezes, e pensei que talvez se devesse a algum medicamento que andasse a tomar, talvez algum tranquilizante.

Antes de me despedir, disse-lhe:

- Se quiser, posso assinar o seu livro.

- Obrigado, mas já o assinou - respondeu ela. Estávamos sentados um em frente do outro em duas grandes poltronas. Inclinando-se para diante, abriu o livro na dedicatória que eu tinha escrito na página do título:

 

«Para Helena, Obrigado por me falar no efeito que o meu livro teve na sua vida! (Fazer greve pela paz continua a ser uma causa justa.)»

 

Fui invadido por um sentimento de morte iminente; sentia-me ali e em Perth no mesmo momento.

- Sente-se mal? - perguntou ela.

- Importa-se de me dizer onde comprou este livro? - Pensei que devia ter sido vendido por quem quer que seja que herdou as coisas de Sana e que, de um modo ou outro, tinha ido parar a um alfarrabista em Paris.

- Foi-me mandado da Austrália por uma grande amiga minha. Deve... deve tê-la conhecido lá. Ela escreveu-me a dizer que havia um encontro de escritores e que você também lá estava. .. e que o tinha visto. Lembra-se dela?

- Claro que lembro! Então a Helena mandou-lhe o livro? Ela recuou a cabeça e lançou-me um olhar surpreendido.

- Não, quem mo mandou foi a Sana.

- Então ela era Sana...? Quer dizer, se o nome verdadeiro dela era esse, então... então quem é a Helena?

- Eu. Chamo-me Helena. Ela mandou-me o livro. Achou que eu ia gostar - inclinou a cabeça. - Desculpe, não compreendo. A Sana nem sequer lhe disse como se chamava?

- Não. Disse-me para pôr Helena na dedicatória. E eu pensei que era ela.

- Aha! Isso é mesmo da Sana! - gargalhou. - Adora confusões e mostrar-se muito misteriosa... e fazer-se passar por mim. Faz isso desde que éramos crianças. Telefona para desconhecidos e fala como se fosse eu. Encomenda frigoríficos nas lojas e dá o meu nome. - A voz de Helena animava-se pela primeira vez, e os seus olhos verdes cintilavam deliciados com as travessuras da amiga. Ria-se para si mesma. - Uma vez - disse, ofegante - Sana telefonou às Forças de Defesa de Israel para se alistar e deu-lhes o meu nome! Ia-a matando quando éramos crianças... por várias vezes.

- E chamava-se mesmo Sana? Não era só um nome artístico?

- Não, sempre se chamou assim, desde que nasceu.

- Então a intenção dela foi sempre a de lhe mandar o livro?

- Acho que sim.

- E ela disse... disse mais alguma coisa sobre o nosso encontro?

- Só que tinha gostado da sua cara.

- Disse-lhe por que é que o livro era importante para ela?

- Não, só disse que eu ia gostar dele.

- Fiquei com vontade de saber mais sobre ela desde o nosso encontro.

Helena mordeu o lábio de baixo, como se ponderasse a resposta. Pôs-me a mão no ombro.

- Não sei se sabe... ela morreu.

- Eu vi. Estava lá quando ela caiu. Estava mesmo ali.

- Oh, meu Deus...

Quando perguntei a Helena se me podia contar o que sabia sobre a vida de Sana, ela disse que não se sentia à vontade a falar da amiga com tanta gente à volta - e que daria para várias horas.

- Tem a certeza de que quer saber? - disse, com uma espécie de ameaça na voz, como se não fosse aconselhável. Chegou-se para a beira da cadeira ao falar, não querendo que outros ouvissem.

- Helena, tenho pensado em Sana todos os dias desde há um ano. Isto não lhe diz nada?

Combinámos encontrar-nos no dia seguinte para jantar no Bonaparte Café, em St-Germain-des-Prés. Teria preferido encontrar-me com ela durante a manhã, para nos deixar mais tempo para conversar, mas ela disse que nunca saía antes do escurecer.

 

NESSA NOITE SONHEI que me encontrava no fundo de um poço, embora parecesse mais a torre de algum feiticeiro enterrada invertida no solo. Corvos começaram a tombar do céu em cima de mim, voando às voltas como peixes fora da água, as asas quebrando-se com um estalido horrível. Despertei, mal conseguindo respirar. Limpando o suor da cara e do pescoço, arrastei-me para ir à casa de banho e voltou-me tudo à lembrança enquanto me olhava no espelho. Lembrei-me, também, que muitas das aves tinham rostos humanos. Um deles era o do meu irmão mais velho que tinha morrido há onze anos, depois de uma longa doença. Outra era a de um homem a quem tinham matado a mulher num ataque anti-semita em Paris, em 1982, e que eu tinha entrevistado para a United Press International.

Era o mesmo sonho que me tinha assediado pela primeira vez em Melbourne.

Rabisquei umas quantas notas sobre a torre invertida e os corvos antes de voltar a adormecer, e é essa a razão porque me lembrava tão claramente das imagens na manhã seguinte. Pensei então que as aves a cair eram uma referência bastante óbvia à maneira como Sana morrera - e às mímicas dela quando nos encontrámos pela primeira vez. E talvez fosse isso tudo o que representavam realmente. Só que eu tivera o mesmo sonho tantas vezes desde então e sempre me fizera lembrar aqueles antigos filmes de actualidades - filmados nos campos de morte nazis - de judeus de corpos escanzelados atirados para covas como esqueletos, os braços e as pernas estorcendo-se. Por isso, para mim o sonho acabara por significar que todos nós podemos conceber um sofrimento pior do que a morte. De facto, era isso precisamente o que eu queria saber de Helena - o que é que Sana via como pior do que matar-se.

 

Na noite seguinte, quando eu e Helena falávamos com o meu gravador pousado entre nós numa mesa do Café Bonaparte, não me passou sequer pela cabeça que ela estava a guardar para si muito do que sabia. Claro que se estivesse no seu lugar, a falar de coisas íntimas com um desconhecido, provavelmente faria o mesmo.

Helena trazia um casaco de veludo puído - azul-escuro, com bolsos pretos - que dava a impressão de ter vindo das bancas do Exército de Salvação. Tinha posto uns lindos brincos de pérolas como que para contrastar, mas que só se viam quando puxava o cabelo estragado para trás das orelhas, um gesto nervoso que fazia com certa frequência. Na luz escassa, os olhos dela pareciam assombrados.

Comecei por lhe perguntar se Sana estava doente ou se tinha recebido alguma má notícia.

- Que eu saiba, não. Mas não estava em contacto com ela há alguns anos.

- Então não sabe se andava deprimida. Respirou fundo.

- Não sei o que lhe responda. Não me parece, mas podia não querer revelar os seus sentimentos. Às vezes era muito reservada. E mesmo que agora lhe dissesse que ela andava deprimida, será que isso queria dizer grande coisa? Se está realmente interessado, terá de ouvir tudo sobre ela... sobre o que fez dela o que era. A vida leva tempo a dar para o torto... a dar mesmo para o torto. Agora começo a ver isso - esboçou um sorriso embaraçado. - Desculpe se lhe pareço confusa ou... ou mórbida; não é essa a minha intenção. O que eu queria dizer é que penso que se leva anos a dar o salto, ainda que dure só um instante.

Helena olhou pela janela para um grupo de jovens de roupas esfiapadas em frente da igreja de St-Germain-des-Prés.

- Olhe para aqueles miúdos maravilhosos. Dois ou três deles são capazes de se sentir muito sós. Quem sabe, uma daquelas raparigas é capaz até de estar a pensar em matar-se. Mas é um segredo. - Voltou a fitar-me e levou um dedo à cabeça, depois ao coração. - Está aqui, escondido lá no fundo, e ninguém mais sabe. Talvez se venha a matar daqui a vinte anos, ou até trinta, por causa de alguma coisa que acontece hoje, uma coisa que a põe a caminho de uma janela no outro lado do mundo. Mas como o podemos saber?

- Helena, quero ouvir tudo sobre Sana. Mas preciso de saber se você, pelo menos, pensa saber o que é que pode tê-la levado a suicidar-se.

Desembaraçou-se do casaco volumoso com um sacudir dos ombros. Ao contrário da minha primeira impressão, era perigosamente magra. Os tendões do pescoço arqueavam-se nas clavículas como raios de uma roda. O casaco e as camisolas largas não passavam de camuflagem.

Pousou os cigarros e um isqueiro de plástico em cima da mesa.

- Oiça, a Sana é nova para si, mas antiga para mim. Não vou dizer que ela seja alguém fácil de explicar. Ainda que o quisesse, não posso. - Fechou os olhos para ganhar um pouco de calma e eu pude ver como a tensão lhe envelhecera o rosto, especialmente nas rugas em torno da boca, que lhe davam a queixada articulada das marionetas. Abrindo os olhos, disse num sussurro: - Gostaria de ter a sua vida reduzida a uma única explicação?

- Não, claro que não.

- Eu conhecia Sana melhor do que qualquer outra pessoa, provavelmente. Talvez saiba alguma das coisas que a levou a matar-se... talvez duas ou três coisas. Terá de decidir qual delas. Mas só depois de saber quem ela era. Por isso só falo consigo se realmente quer saber tudo dela, de onde ela veio, quem são os seus pais...

- Oiça, eu gostava dela... gostava muito dela. E não consigo tirá-la da ideia. Penso nela...

- Se quer tirá-la da ideia - interrompeu friamente, tirando um cigarro do maço -, então se calhar era melhor não falarmos. - Falava como se me acusasse de traição.

Senti-me encurralado, e um pouco zangado, mas ela tinha já baixado o olhar, talvez envergonhada das suas palavras, ou simplesmente demasiado emocionada para continuar a falar. Os gestos para acender o cigarro eram hesitantes. Começava a pensar que ela apenas exigia, a si e aos outros, a verdade como única maneira de se manter viva.

Disse-lhe então:

- É só porque preferia não ver sempre a última imagem que tenho dela... dela a cair no chão. Só queria poder voltar ao momento em que nos conhecemos e falar mais com ela.

Ela levantou os olhos, surpreendida.

- Então você também sente isso?

- Sinto.

Lançou-me um olhar emocionado.

- Vou dizer-lhe uma coisa, penso que todos nós desejávamos ter evitado que ela desse aquele salto. Essa é a última vingança dela.

Recostou-se e desviou o olhar. Pelo seu olhar fixo, tive a certeza de que estava a ver a sua velha amiga. Imaginei as duas numa rua de Paris coberta de folhas caídas. A cara de Helena tornou-se de pedra, os olhos inexpressivos. A cinza na ponta do cigarro enrolou-se, tombando depois para a mesa.

Para explicar a minha necessidade de saber mais sobre Sana, comecei a repetir o que ela me dissera em Perth acerca de O Último Cabalista de Lisboa.

Helena cruzou os braços em torno do peito e curvou-se para diante para ouvir. Apesar de lisonjeado pela atenção dela, perturbava-me o seu olhar insistente, que parecia ver até ao mais fundo de mim. Quando me calei, disse numa voz ressentida:

- É terrível estarmos ligados a uma pessoa que se matou. É como termos também um pé na sepultura, não acha?

- É como se tivesse levado com ela um livro meu.

- Mas não levou - Helena sorriu, tranquilizadora. - Porque mo mandou. Sou eu que o tenho. Compreende?

- Acho que sim. Helena, foi por a Sana lhe ter mandado o livro que assistiu à minha conferência ontem à noite?

- Fui porque a Sana tinha razão... gostei de o ler. Mas devo dizer que não gostei muito da história. Não gosto muito de romances policiais. E o ritmo da narrativa pareceu-me errado em alguns capítulos. Mas gostei das personagens. São boas pessoas ... boas pessoas que não merecem morrer.

- Há quanto tempo conhecia Sana?

- Desde miúdas.

- Conheceram-se na escola?

Negou com a cabeça e aspirou profundamente o cigarro.

- Não, não, muito antes disso. Quase nascemos juntas. Vivemos a duas casas uma da outra durante muitos anos.

- Então os vossos pais conheciam-se. Eram amigos?

- Mais do que amigos. - Afastou novamente o olhar, concentrada nos seus pensamentos. (Na gravação há uma pausa de cerca de um minuto, mas que não regista a dureza da tensão no rosto dela, com os olhos postos na janela.) - Oiça, vou ter de começar pelas nossas mães - disse ela, com um sacão da cabeça para me fitar de novo. Tinha uns olhos de um verde profundo, mas realçados a preto, e um olhar inquietante. - É que não há outro modo - prosseguiu. Achando que podia estar a falar de novo num tom agressivo, e consciente, penso eu, do efeito que o seu olhar penetrante tinha sobre mim, desculpou-se e disse: - Gostava de ir mais depressa à história, a sério que gostava, acredite. Mas não seria justo com ela... com a Sana. E não queria acrescentar mais à injustiça de tudo o que lhe aconteceu. É uma coisa que ninguém me levaria a fazer.

As mãos dela tremiam. Observando-a a acabar o cigarro, como se entorpecer-se lentamente fosse para ela a única consolação, só então me apercebi daquilo que era óbvio: a morte de Sana mudara tudo na vida de Helena - e ameaçava cortar o derradeiro fio que a prendia a ela.

 

Enquanto comia a salada com brie fundido, Helena começou a falar-me nas mães delas, Rosa e Zeinab. Não me foi preciso perguntar-lhe nada; a história começou por espreitar para fora hesitante, depois desatou a desfiar-se vertiginosa durante cerca de três horas. Engoliu um cappuccino em poucos goles, depois várias taças de vinho branco. Fumou meio maço de Marlboro Ligbts, passando a língua pelos lábios para os manter húmidos e ocasionalmente olhando para além da janela para reflectir. A sua voz estava carregada de emoção e áspera do muito que fumara. Por vezes, quando falava, sorria timidamente, como que furtando-se a ceder ao humor daquilo que contava. Quando se ria, fazia-o num rompante jubiloso. Apetecia-me pedir-lhe que prendesse o cabelo atrás de modo a ver como pareceria sem aquele emaranhado de cabelo, mas não me atrevia. Ofereci-me por duas vezes para pagar o jantar, mas ela disse que comia mais tarde - tinha-se levantado só à uma da tarde e normalmente jantava às onze. Fiquei com a impressão de que não aceitaria nenhum alimento antes de se libertar de tudo o que tinha silenciado. Disse que tinha o hábito de ficar acordada para ver chegar a madrugada e depois tomar um comprimido e dormir de enfiada até depois do meio-dia. Só saía depois do anoitecer. Ainda desta vez, não lhe perguntei porquê. Talvez tivesse pensado que a ia censurar ou recriminar, porque acrescentou precipitadamente:

- Não diga nada, por favor... Eu sei que os meus hábitos estão todos errados. Mas sempre me senti mais à vontade quando os outros me criticam. É um alívio para mim quando os outros acham que não tenho remédio. Se quer ser simpático, faça o mesmo.

Enquanto me contava o seu passado com Sana, Helena fitava-me por vezes como que surpreendida com qualquer coisa nos meus olhos.

E segundos depois furtava-se aos nossos olhares cruzados, ou era eu que o fazia, pela intimidade demasiada. Sana ligava-nos e nem ela nem eu estávamos certos de que fosse uma boa coisa.

 

SANA E HELENA tinham nascido as duas em Setembro de 1946, em Israel, numa ruela poeirenta na orla de Wadi al-Nisnas, num antigo bairro escalavrado de casas pequenas e lojas encostadas umas às outras à sombra matinal do monte Carmelo. Esse facto fez de Rosa e de Zeinab irmãs, e não tardou a que as jovens mães se revezassem a mudar fraldas, estivessem a trocar fraldas uma com a outra, pedindo emprestados azeite e farinha, e mexericando acerca dos vizinhos. Nas noites quentes, dormiam por vezes ao ar livre no quintal nas traseiras da casa de Rosa. Helena lembrava-se de as ouvir falar em voz baixa enquanto adormecia. Nunca se sentiu tão protegida - como se aquelas conversas íntimas fossem erguendo um abrigo por cima da sua vida. Desde muito cedo, as duas jovens mães forjaram também entre si um piscar de olhos cúmplice contra a conspiração internacional dos homens, conduzida, no caso delas, pelos maridos, Samuel e Mahmoud.

Ambas as mulheres eram baixas e morenas, mas naqueles sítios estratégicos onde os bolos de tâmara e de halvah que Zeinab surripiava lhe arredondavam as formas numa plenitude perfumada a água-de-rosas, Rosa mantinha-se tão compacta como um segredo. Zeinab dizia-lhe sempre que se ela comesse como uma mulher e não como um mendigo, o marido polaco - que, vindo de um clima frio, precisava de mais inspiração visual do que um homem do Médio Oriente - nunca mais se arrastaria tão desmotivado para o leito conjugal.

E também ficaria curado do seu ressonar de bomba atómica. Em resposta, Rosa disse a Zeinab que ela era demasiado coscuvilheira e que ter na cama um judeu polaco ainda mais atencioso era capaz de ser demasiada atenção em cima dela. Não estava nada interessada, na sua idade, em ser amassada como um matzo de Páscoa. E quanto ao ressonar de Samuel, achava-o tranquilizador, porque queria dizer que, depois de terem voltado vivos daquele sítio - que era a palavra de código para dizer nazis, Auschwitz, fome, pneumonia, memórias da família perdida, e muitos outros perigos e tristezas demasiado difíceis de nomear -, ela e o marido pelo menos ainda respiravam.

Rosa era feita de fluido sibilante - um fino diabo de poeira com os olhos dardejantes, que tudo vêem, de um djinn. Os vizinhos diziam que ela tinha poderes telepáticos e podia mover objectos pela força do olhar. Bastava estalar os dedos para fazer desandar cães e gatos.

Zeinab era um vale fértil de águas irreprimíveis. Gostava de contar histórias que nunca acabavam, cantar cantigas de embalar e dançar, fazer rir as crianças. Os vizinhos juravam que podia ter sido uma estrela de cinema, como Faten Hamama, a actriz egípcia que era o ai-jesus de muitos homens em Wadi al-Nisnas. Diziam-lhe que ela devia apanhar um barco para Hollywood e dançar para Jimmy Stewart e Rock Hudson. Podia começar por pequenos papéis - de gatinha sexy italiana, de cigana...

Helena riu-se:

- Ah! Ah! Todos aqueles filmes horrorosos que Sana e eu vimos com a minha mãe e Zeinab... Quando passámos a ter idade, costumávamos ir todas as semanas, às vezes duas vezes. Para elas, para nós, Hollywood parecia-nos sempre tão longe e tão... tão exótico. Não podia ser a mesma coisa para si, um americano. Mas para nós, era como estar a olhar para um planeta distante. Meu Deus, o que nós gostávamos daqueles filmes!

Helena contou-me que uma vez a mãe dela tentou tingir de loiro o cabelo com uma embalagem encomendada da América depois de ter visto um filme da Doris Day em que a actriz parecia feita de plástico polido - aparentemente considerado um aspecto invejável em algumas zonas de Israel na década de 1950. Houve alguma coisa que correu mal. Depois daquela mistela tóxica ter sido aplicada no cabelo e depois lavada em cima da tijoleira do quintal das traseiras, os caracóis de Rosa ficaram com um brilho rosado de algodão-doce. Ela e Zeinab desataram aos pulos como loucas, uivando de puro gáudio, até tombarem perdidas de riso. Rosa tinha o ar de um anúncio de néon, de uma personagem do Dr. Seuss, de um desenho infantil de um chupa-chupa... Zeinab disse que tinha de guardar uma prova do desastre e cortou uma madeixa de trás da orelha de Rosa, atando-a com uma fita vermelha. Foi Helena que veio a herdar aquela mecha minúscula mais tarde, pouco mais de uma década depois.

Agora, no nosso café, Helena fingiu que olhava em volta a ver se havia alguém à escuta.

- Um dia mostro-lhe o cabelo cor-de-rosa - sussurrou. - Mas a minha mãe matava-me se soubesse! - Fez de conta que espetava no peito uma faca e retirou-a com um grunhido cómico. Naquele tempo, Haifa era uma cidade labiríntica a desmoronar-se, a dormitar ao sol no sopé do monte Carmelo. Todos os anos, como uma criança a crescer, empurrava os subúrbios poeirentos uma centena de metros mais para norte em direcção ao Líbano e para sul em direcção a Telavive. Ninguém ali acreditava que o resto do mundo pudesse sequer encontrar a cidade no mapa. Mas não fazia mal.

Helena disse-me que Haifa era uma cidade predominante-mente palestiniana antes dos combates que se seguiram à rejeição pelos árabes do plano proposto pelas Nações Unidas para a partilha do território - anteriormente administrado pela Grã-Bretanha - em dois estados. Caiu nas mãos das forças israelitas em 23 de Abril de 1948. As milícias árabes e a maior parte dos moradores fugiram, e entre eles Sana, com os pais e os avós. As pessoas acotovelavam-se aos milhares em direcção ao porto para embarcarem em barcos ingleses rumo a Acra, que fizera parte do mandato britânico e que estava originalmente previsto - na altura da criação do Estado de Israel - tornar-se parte de um Estado árabe. Multidões frenéticas ondeavam, descontroladas. Muitos acabaram esmagados, entre eles a avó materna de Sana.

Na paz vacilante que se seguiu à vitória de Israel, em 1949, milhares de palestinianos regressaram furtivamente dos novos estados árabes independentes, especialmente do Líbano, para Haifa, reparando com plástico as janelas partidas das suas antigas casas, varrendo os excrementos dos ratos e as formigas, e atirando para a rua os limões apodrecidos das hortas. Muitos deles regressaram sem autorização do governo judaico nascente.

A família de Sana vivia na sua casa baixa de dois quartos, já ninguém se lembrava há quanto tempo. Era conhecida na zona pela sua chaminé de tubo de lata datando do século XIX. O bisavô de Sana, Gadallah, era de facto conhecido pelo nome de Tubo-de-Lata, por ter sido ele a pôr a chaminé.

Helena ouviu as histórias sobre Tubo-de-Lata contadas por Zeinab, que costumava mandar sentar as raparigas e servir-lhes chá e bolos no meio de uma grande algaraviada, como se lhes estivesse a dar um presente que elas deviam passar aos seus filhos. Helena tratava a mãe de Sana por tia Zeinab, usando a palavra «tia» em ladino, a língua tradicional dos judeus sefarditas, como Rosa (e muito parecido com o espanhol ou o português dos séculos XVI e XVII ).

- Sabia que a sua cara muda quando fala na tia Zeinab? - disse-lhe eu. - Os seus olhos abrem-se e os seus lábios... ficam com uma expressão cómica.

- A tia Zeinab era em tudo a parte cómica da vida - explicou Helena. - Mas era mais do que isso. Como posso explicar-lhe? Ela era música. E era luz. Gosta destas duas coisas? Sim. Mas é mais do que isso... é tudo. Ela era a pessoa... a pessoa que conseguia sempre fazer-nos sorrir, a mim e à Sana, quero eu dizer. Punha toda a gente a sorrir ali à nossa volta.

Os pais de Sana viviam naquele tempo com o irmão mais novo do pai, Abu-ai-Rayhan, e a mulher deste, Karaz. Abu-ai-Rayhan era o único da família que se tinha recusado a abandonar Haifa durante o cerco israelita, convencido de que o poderoso Egipto, a pátria da família durante várias gerações, viria em socorro dos palestinianos. Deixou-se ficar fechado em casa durante quatro dias e quatro noites durante os bombardeamentos israelitas, alimentando-se de pão e laranjas. E por isso, quando o tiroteio acabou, estava pronto para ir para a fila, à espera que lhe dessem papéis de residente para ele e a família. Conseguiu-os para ele e para a mulher, mas foram-lhes recusados para Sana, Zeinab e Mahmoud. Apesar de Abu-ai-Rayhan ter tomado a precaução de levar consigo as fotografias deles, o funcionário responsável disse-lhe que pelo menos um membro da família tinha de ir lá pessoalmente pedir os papéis de residente. Mas Sana e os pais conseguiram, apesar de tudo, voltar do Líbano logo que lhes foi possível, esgueirando-se para Israel mesmo sem terem garantida a autorização legal.

A família de Helena vivia duas portas mais abaixo, na Casa das Hortênsias Azuis, como era conhecida, por causa das flores que Rosa plantara à frente da casa mal ali chegaram. Tinha vivido em Salónica, na Grécia, até aos dezassete anos, e o pai, advogado, tinha feito lá um jardim resplandecente. Era a única, de uma família de quatro, que tinha sobrevivido à deportação dos 45 mil judeus dessa cidade para os campos de morte. A maior parte desta comunidade, incluindo os pais de Rosa, eram judeus sefarditas que podiam traçar as origens das suas famílias até à Espanha ou Portugal dos séculos xvi e xviI, embora todos eles fossem cidadãos gregos.

A irmã mais nova de Rosa fora-lhe arrancada das próprias mãos e levada para ser gaseada. As últimas palavras de Irene para Rosa tinham sido: «Tenta guardar-me na tua memória!» Falava como se a voz estivesse presa a uma corda que se esfiapava.

- A princípio, a minha mãe não percebia porque é que Irene tinha dito precisamente aquelas palavras - disse Helena. - Ao fim e ao cabo, como é que uma miúda havia de esquecer a irmã mais nova? Passava o tempo a pensar naquilo e, quando era uns anos mais velha, compreendeu que o que Irene estava realmente a dizer era: «Enquanto te lembrares de mim, continuarei viva de alguma maneira.»

Mas fazer um ser vivo - um golem - a partir da memória provou ser tarefa para além das capacidades de Rosa; cada ano que passava aumentava a separação entre elas, apesar dos seus votos para que isso não acontecesse. Irene ficaria para sempre a rapariguinha transformada em fumo em Auschwitz, e Rosa cresceria para se tornar mãe em Haifa.

O pai de Helena escapara aos campos de extermínio tomando um vapor de Dantzig para Inglaterra em 1932, estudando botânica na Universidade de Londres. Em 1937, depois de acabar o doutoramento com uma tese sobre a história e a estrutura da laranjeira amarga, meteu-se num barco rumo à Palestina, ansioso por fazer das areias do deserto um paraíso verdejante. Trabalhou de sol a sol numa quinta perto do mar Vermelho durante cinco anos, fazendo experiências com variedades híbridas de citrinos, tentando descobrir espécimes que resistissem ao clima escaldante. E então, em 1942, mudou-se para uma casinha a desfazer-se próximo do porto de Haifa, tendo sido recrutado, dizia-se, como espião dos britânicos. Fluente em inglês e alemão, e podendo falar francês e árabe, fez várias viagens a Damasco, Beirute e Amã ao serviço das novas funções. Cada vez que Helena lhe fazia perguntas sobre essa época, ele punha a mão em volta da orelha, dava um risinho, e dizia que o trabalho dele era simplesmente escutar às portas.

O pai dela era um homem maravilhoso, disse Helena - pequeno e forte, com as mãos mais delicadas que alguma vez vira em alguém e umas sobrancelhas como lagartas peludas. Tinha-lhe ensinado a arte de acariciar o pólen do estame de uma flor com um delicado pincel de arminho e a depositar esse pó prodigioso no pistilo de outra flor para fazer um cruzamento. Tinha-a deixado fazer híbridos de toranjas e de limões. Gostava de ler jornais franceses e fumar cachimbo. Helena sentava-se no chão entre as pernas dele, com os seus pés a rodeá-la.

Depois da guerra, Samuel abriu uma pequena loja de flores. Tinha posto na montra uma grande fotografia de Marlene Dietrich no Anjo Azul. Idolatrava a actriz por ela ter deixado a Alemanha nazi para nunca mais lá voltar. Certo dia, uma mulher de olhos de corça parou a admirar a fotografia. Trazia um chapéu encarnado com uma pluma branca comprida. Samuel saiu a correr e perguntou-lhe se desejava alguma coisa. Soube assim que ela se chamava Rosa. Três semanas depois estavam casados e compraram a Casa das Hortênsias Azuis a uma família palestiniana que partia para uma nova vida em Beirute. Alguns anos mais tarde, Samuel conseguiu um lugar de professor na Universidade de Haifa e fechou a loja de flores. Rosa engomava e costurava para fora. O seu passatempo preferido era ler, e muitas vezes ficava sentada a manhã inteira com a cabeça enfiada num livro - romances que mandava vir de Madrid e de Paris. Devorava tudo o que pudesse encontrar de Erich Maria Remarque, Thomas Mann, Kafka, Dostoievski... Gostava de uma boa história, de preferência com cenas verdadeiramente estranhas e cruéis. Detestava finais felizes. «Se pelo menos metade das pessoas não desmaiam ou adoecem, ou simplesmente se desvanecem no nada, por que havia eu de acreditar no livro?», costumava dizer a Helena.

Por vezes, quando Samuel não estava em casa, Rosa mostrava a Helena o número tatuado no braço e deixava que ela o tocasse. A jovem mãe contava à filha que era um sinal de que Deus haveria de impedir os nazis de a transformarem em cinza, pois acabava com os algarismos 1 e 8. Em hebraico, a língua em que as letras são também números, o verbo «viver» (chaí) tem como soma 18.

Aquelas histórias dos campos de extermínio assustavam Helena, mas também a reconfortavam, pois Rosa acabava-as sempre, dizendo: «O meu caminho pode ter sido sinuoso, mas a cada curva ficava sempre mais perto de ti e do teu pai. Por isso, faças o que fizeres na vida, Helena, por amor de Deus não pares de caminhar.»

Rosa e Samuel falavam sobretudo francês em casa, pois era a única língua que tinham em comum. Com o correr dos anos, contudo, passaram a falar hebraico, especialmente com Helena, que queriam que fosse fluente na língua da sua pátria adoptiva. Falavam também no dialecto árabe local, por terem vivido muitos anos no meio de palestinianos.

O pai de Sana, Mahmoud, era um homem de pele cor de azeitona, de olhar triste, contabilista num banco, que fizera a sua aprendizagem no escritório do pai, no Cairo. Para ganhar mais alguma coisa, fazia a contabilidade de vários comerciantes da zona. Muitas vezes, quando Sana acordava já ele tinha saído para voltar apenas depois do pôr do Sol. Helena contou-me com um olhar sombrio que ele era o tipo de homem que se respeitava, mas com quem não nos sentíamos à vontade. Ninguém sabia ao certo a razão por que ele e o irmão tinham vindo do Cairo para Gaza e depois para Haifa, mas dizia-se que tinha havido uma querela que dividira a família. Mahmoud era extraordinariamente bem-educado, se bem que apreciasse demasiado o silêncio para que isso fosse de alguma ajuda para Zeinab e para Sana. Talvez isso explicasse que elas tentassem sempre levá-lo a demonstrar a sua afeição de outro modo. O irmão de Mahmoud, Abu-ai-Rayhan, era mais alegre, e às vezes punha-se a cantar com a sobrinha ou levava-a a dançar pela casa fora. Helena disse que era um homem simpático quando estavam a sós com ele, mas metido consigo quando entre outros adultos. Não se sentia à vontade com pessoas que não fossem da família, nem sequer com Samuel e Rosa. Talvez por serem judeus.

Como que para assinalar o fim das histórias sobre o passado, Helena bebeu um último gole de vinho e disse:

- O apelido do meu pai é Verga. Disse-me ele que era português.

- É um nome muito comum em Portugal - respondi.

- E que significa?

- Vara ou chibata... ou mesmo pau.

- Aha! - Helena cortou o ar como Zorro com a sua «verga» imaginária. - Então talvez o meu destino seja salvar Sana... salvá-la com os meus bruxedos. Embora todos os meus encantamentos não sirvam de muito, ao fim e ao cabo, não é?

- Não deve culpar-se de nada. Não é...

- Não precisa de dizer mais nada, estou bem - disse ela, desdenhando com um gesto os meus esforços para a animar, sentindo, muito provavelmente, que em grande parte era a mim que se destinavam. - No seu romance há uma personagem chamada Verga, lembra-se? Essa era outra das razões porque Sana mo mandou... embora não o dissesse na carta.

Salomão Ibn Verga era uma das poucas pessoas reais no meu livro. Tinha ficado famoso pelo seu tratado sobre a história judaica, chamado Shebet Yehuda, O Ceptro de judá.

- Ainda tem a carta que ela lhe escreveu? - perguntei.

- Estais com sorte, senhor. - Piscando-me o olho, sacou do bolso do casaco uma folha de papel bege e abriu-a em cima da mesa. Sorriu, feliz por me ser útil.

Estava escrita em hebraico, numa letra muito elegante. Quando o fiz notar, Helena respondeu:

- Sim, a Sana tem uma caligrafia muito boa. Pas comme moi... não como eu. Também tinha uma boa caligrafia em árabe. Podia fazer tudo, aquela rapariga. No fundo, acho que podia de mais.

- De mais, porquê?

- As pessoas talentosas têm muitos problemas. São demasiado... demasiado visíveis.

- Destacam-se dos outros.

- Pois. E atraem a inveja.

- Tinha inveja dela?

- Tinha, mas a minha inveja era apagada por aquilo que fazíamos juntas.

Helena passou-me para as mãos por instantes o bilhete, depois traduziu-mo:

 

Querida Helena, mando-te saudades daqui dos antípodas. Pedi ao autor que assinasse o livro - espero que gostes. Acho que vais gostar. Conheci-o aqui. Acho que tem uma cara bonita. Pensa em mim com ternura. Gosto de ti como da lua a sorrir por cima de Wadi al-Nisnas. Quanto à flor - sem papéis!

 

Não compreendi esta última referência. Helena explicou que Sana tinha mandado dentro do envelope uma flor de hibisco prensada.

- E que quer dizer «sem papéis»?

- Durante os primeiros anos da Guerra da Independência, os soldados israelitas prendiam os árabes que não tivessem autorização de residência - como Sana e os pais dela. Punham essas pessoas do outro lado da fronteira com o Líbano. E por isso as mulheres ficavam ao cimo das escadas no fundo da ruela onde morávamos e gritavam quando viam chegar os soldados. E quando os nossos vizinhos árabes ouviam os gritos, desatavam a correr e desapareciam.

- Os soldados vinham em qualquer altura?

- De noite, de dia... - sacudiu a mão, desgostosa. - Vinham quando queriam. Zeinab recusava-se a... arriscar-se a ser causa de problemas para o cunhado e a mulher se ficasse escondida em casa, e por isso agarrava na Sana e fugia. Mahmoud ia com elas quando estava em casa. A Sana insistia sempre em levar também o gato dela.

- Um gato? Como se chamava?

- Barkuk, «ameixa» em árabe. Era cinzento-claro e muito meigo. O único gato em toda a Palestina que gostava de cenouras! Era famoso! Uma vez, não devíamos ter mais do que cinco ou seis anos, perguntei à Sana por que é que não deixava antes o gato comigo, e ela respondeu: «Sem papéis.» Tornou-se na nossa piada preferida - porque sabíamos que a ideia de autorizações de residência para gatos era uma coisa meshugeh -, assim como o era para a família de Sana, que vivia naquela casa há séculos. Mas a loucura não era nossa - era dos soldados. E então, quando os nossos pais nos mandavam fazer alguma coisa que nos parecia sem sentido, como vestir uma camisola numa tarde de calor ou fazer as nossas camas, olhávamos uma para a outra e dizíamos: «Sem papéis!» Mais tarde, dizíamos isso sempre que achávamos que alguma coisa não fazia sentido - mesmo coisas boas.

- Então, mandar-lhe uma flor seca... Queria dizer que era uma ideia louca, mas que mesmo assim a queria mandar.

- Deve ter muito cuidado, meu amigo, pensar como a Sana pode ser perigoso.

Apertou-me a mão, contente por eu começar a compreender, depois pensou melhor na nossa ligação e afastou-se de mim. Mandou vir outro copo de vinho branco. Pensei que podia querer parar um bocado de falar de Sana, mas ela disse que estava a recuperar forças.

Depois de eu ter posto outra cassete no gravador, ela respirou fundo e disse:

- Infelizmente, a artrite no joelho da tia Zeinab começou a tornar-se muito dolorosa. Era-lhe completamente impossível correr. A minha mãe disse-lhe que se escondesse em nossa casa. Os soldados raramente revistavam as casas dos judeus, naturalmente. Mas a tia Zeinab não queria causar-nos sarilhos. Recusou. E então... deve ter sido em mil novecentos e cinquenta e dois ou cinquenta e três, os soldados espancaram um óptimo rapaz da nossa vizinhança e levaram-no para o Líbano. Disseram-lhe que não voltasse a Haifa. Nunca mais voltámos a vê-lo. Pff... desapareceu para sempre! Mas mandaram o casaco dele aos pais e estava sujo de sangue.

Todos os vizinhos viram o casaco. Andou de casa em casa. Pouco depois disso, os soldados dispararam contra uma padaria junto da nossa casa. Não morreu ninguém, mas duas mulheres e um rapaz ficaram feridos. Desde então, a minha mãe não deixava a tia Zeinab, nem Mahmoud, nem Sana irem-se embora quando os soldados apareciam. Obrigava-os a ficar em nossa casa. E então o meu pai pegou num serrote e abriu um... um... - Helena não conseguia encontrar a palavra que queria em inglês e com a mão traçou um círculo no ar.

- Um buraco.

- Sim. Um buraco na parte de trás do guarda-fato dos meus pais. Ele e o Mahmoud carregaram com ele para a outra ponta da casa e puseram-no em frente do quartinho onde guardávamos as coisas fora de uso. Sempre que a Sana se enfiava lá, eu ia com ela. O Barkuk também. - Helena puxou para trás o cabelo, retirando anos do rosto. Os olhos abriram-se - estavam negros de uma alegria profunda. - Tínhamos sete anos quando nos escondemos assim pela primeira vez e o segredo daquilo tudo... o segredo fazia-nos conter a respiração até quase explodirmos de riso.

Helena desviou o olhar e levou uma mão à sobrancelha. Depois de uns segundos, baixou-se. Começou a respirar com dificuldade e a cara ficou vermelhíssima.

- Helena, está a sentir-se mal?

; Levantou a mão a mandar-me esperar uns segundos.

Agarrei-a e apertei-a com os dedos.

- Posso fazer alguma coisa? - perguntei. - é asma?- Afinal, preciso de descansar um bocado - disse ela numa

voz fraca. Limpou as lágrimas dos olhos, depois levantou-se e

pediu licença para sair. - Volto já.

Deduzi que queria ir à casa de banho e acalmar os nervos. Mas olhando pela janela avistei-a na rua, tremendo, esfregando os ombros para se aquecer. Acenei-lhe com a mão e fiz um gesto a dizer que, se ela quisesse, podia ir para junto dela. Sorriu e disse que não com a cabeça, depois tapou os olhos com as mãos e espreitou por entre os dedos, como se fosse uma rapariga a precisar de se esconder - brincando com o seu próprio medo. Percebi que gostava bastante dela.

Ficámos a olhar um para o outro, até que ela sacudiu a cabeça a desculpar-se e afastou o olhar. Lá fora na rua tinha um ar mais frágil - uma rapariga no deserto. Estive quase para ir ter com ela, mas não a queria embaraçar. Passados uns minutos, voltou para dentro.

- Sente-se melhor? - toquei-lhe no braço. Estava gelado.

- Uma onda de vertigem, que me cobriu toda... e também o calor. Estava com tanto calor. Precisava de fresco. - Deu uma palmadinha na barriga. - É uma idade nova para mim. Gil ha-blut, como dizemos em hebraico... a idade do declínio físico. Mas enfim, o Príncipe Encantado já não precisa de se preocupar que eu lhe faça um filho. - Bebeu um gole de vinho e limpou umas gotinhas de suor da cara com o guardanapo. - Santo Deus, o drama que estas mudanças podem causar.

- Há um Príncipe Encantado? - perguntei. Soltou um som como um grunhido.

- Tive um há anos, e tinha pouco de encantado. Agora, o que eu quero é só um homem que saiba cozinhar. E que se vá embora antes da hora de ir para a cama.

- Tem a certeza de que não quer comer nada?

Disse que não com a cabeça.

- Não é permitido comer no nosso esconderijo. É uma regra que a minha mãe tem depois daquela vez em que eu e a Sana deixámos lá ossos de frango. Aparece um exército de formigas. - Apertou o nariz, o que me fez rir. - Cheira tão mal que não dá para acreditar. A minha mãe está muito zangada.

- Agora não está lá. Coma um bocado de pão, pelo menos. Helena diz que sim com a cabeça, intencional.

- Não, nós estamos lá... você e eu, neste preciso momento. - Apontou para o tecto. - Lá no cimo há uma única janela que o meu pai tapa com uma toalha vermelha. Deixa passar uma luz soturna. Mas a Sana e eu gostamos. Faz-nos sentir como se fôssemos feitas de sombras coloridas... E talvez feitas de sonhos também. Ali... - Aponta para o outro lado do café, para a parede junto às escadas que descem para as casas de banho - há um prego onde penduramos os casacos. Estás a vê-lo?

- Sim, estou a vê-lo. Zeinab esconde-se aqui com vocês?

 

50

 

- Aha! Será que Faten Hamama pode enfiar-se num buraco num roupeiro? A Elizabeth Taylor pode?

- Se forem obrigadas.

- Bem, Zeinab disse-nos que nunca entrará connosco. Tinha demasiado medo do escuro. E achava que mais valia deixar os soldados levarem-na se a encontrassem. Provavelmente viu uma cena assim heróica num filme italiano... um filme realizado pelo Rossellini. Estava convencida de que eles deixavam de andar à procura de Sana assim que a prendessem a ela. A menina seria educada por Mahmoud e pela cunhada até ela arranjar maneira de voltar a Haifa. Mas, para o caso de nunca voltar, obrigou a minha mãe a prometer que Sana havia de ir para a universidade - embora Mahmoud não gostasse. E que haveria de casar. Lembro-me de que a minha mãe disse na brincadeira que havia de arranjar um belo rapaz judeu para Sana. A tia Zeinab disse-lhe: «Desde que seja bonito e simpático e possa dar um bom futuro à minha filha, pode até ser inglês!»

- Ela não se importava que a Sana casasse com um judeu?

- Claro que não, isto não é Israel, isto é Wadi al-Nisnas... O nosso bairro tem as suas próprias regras. Ou talvez não tenha regras nenhumas. E então Zeinab começou a esconder-se no quarto dos meus pais sempre que os soldados apareciam, ficando aterrorizada à escuta do hebraico agressivo daquelas vozes. Ficava assustadíssima. Mahmoud, quando estava em casa, sentava-se na borda da cama, à espera. Por vezes, punha-se a fumar, embora fosse arriscado. - Helena pôs as mãos em concha. - Usava um cinzeiro feito de uma concha que eu lhe levava. Nesta altura, está a ver, ele recusava esconder-se, fazer concessões ao perigo. Era desonroso. A minha mãe dizia sempre que matava o primeiro soldado que tentasse prendê-lo, a ele ou a Zeinab. E nós percebíamos que era mesmo capaz de o fazer. A minha mãe tinha uns olhos... eram como pérolas pretas. Umas pérolas de sobrevivência. Nunca conheci ninguém com uns olhos assim. Ela dizia sempre que só quem viveu muito tempo com a morte ao lado é que os podia ter assim. Uma vez disse-me:

«Aqueles soldados têm uma grande surpresa à sua espera se julgam que eu voltei viva daquele sítio para ver desaparecer mais alguém da minha família. Eles que tentem!» Disse-me aquilo agitando uma arma na mão.

- Ela tinha uma arma?

- Pois, claro que tinha. E uma das boas. Um dos soldados russos que estiveram na libertação de Auschwitz tirou-a a um alemão e deu-a à minha mãe para a caminhada de milhares de quilómetros que ela ia fazer até à Grécia. E até a ensinou a disparar. Mas nunca chegou até casa dela. Mesmo no princípio da viagem, um homem de Salónica que conhecia os pais dela disse-lhe que eles tinham ido pela chaminé acima. - Helena torceu as mãos e levantou-as ao alto, depois cerrou os punhos. - E então, em vez disso, foi para Génova. Fez a maior parte do caminho a pé. Quando lá chegou, encontrou um barco que a levou até Chipre. E lá encontrou outro que a levou para Israel.

- E ela ameaçou realmente os soldados?

- Sim, mas espere... ainda não acabei. Por esta altura, tinha conseguido transformar-se numa loira. - Helena sorriu; estava a divertir-se com esta parte da história e a encontrar o seu ritmo. - E então todos os soldados pensavam que aquela mulherzinha pequenina que tinha vindo da Grécia com cabelo à Dorís Day e pestanas pretas não tinha juízo nenhum na cabeça... Que tinha perdido o juízo todo no arame farpado da Europa. E também pensaram que ela nunca havia de disparar a arma. Uma vez, um jovem oficial bateu à nossa porta. Tinha um sotaque yiddish e atreveu-se a dar um passo para dentro de casa sem pedir licença à minha mãe. Foi um grande erro. A minha mãe agarrou na arma e deu um tiro para o ar. A bala partiu uma telha e assustou as galinhas no quintal. Desataram a cacarejar e a correr à toa. O soldado chamou maluca à minha mãe. E vai ela respondeu-lhe: «Tão maluca que da próxima vez faço pontaria à tua cabeça, fesbteinzee.»

A voz de Helena estava cheia de orgulho.

- A minha mãe era formidável quando ficava zangada. Nessa altura tinha aquela ideia, todos nós tínhamos, de que todos os israelitas estavam do mesmo lado. Por isso não acreditava que o soldado podia fazer alguma coisa contra a vontade dela... pelo menos depois de ela lhe ter mostrado que falava a sério. Mas o oficial agarrou-a pelo pulso, agarrou-a com força. E tirou-lhe a arma das mãos. E com aquele sotaque yiddisb disse-lhe que se acalmasse... Outro grande erro. Porque agora, para a minha mãe, ele soava como um homem das SS. Fez-lhe lembrar muitíssimo tudo aquilo daquele sítio. Tornou-se muito fria. E todo o seu bom senso, a sua razão, se desvaneceu. Era um fantasma de si própria. Pensou que talvez o casamento com o meu pai, o meu nascimento, tivesse sido tudo um sonho.

Helena baixou a voz, como se fosse dar-me uma informação secreta.

- As pessoas que acreditam que podem ser fantasmas ficam libertas das peias normais - disse ela. - Talvez como Sana é... era, antes de dar o salto.

- Porque havia Sana de se ver como um fantasma?

- Talvez por ter já decidido que mais vale estar morta, não? Acho que se calhar é assim com ela. Mas nunca saberei. E então, enquanto o soldado avançava pelo corredor fora em direcção ao quarto dos meus pais, a minha mãe correu para a cozinha para ir buscar uma faca. Cravou-lha na coxa assim que ele abriu a porta. Zeinab mais tarde disse-me que o berro dele foi tão forte que deve ter partido os vidros das janelas até Telavive.

- A sua mãe deve ter ficado metida num grande sarilho.

- Nem por isso. Na audiência, ela disse ao juiz que o soldado com a coxa ferida teve muita sorte. Que da próxima vez pegava era na faca grande que usava para picar as amêndoas para o haroset da Páscoa e furava-lhe as kishkas... as tripas. A minha mãe tinha aprendido com o meu pai o yiddish que sabia, está a ver. Diz a toda a gente na sala do tribunal que já tinha morrido nos campos de concentração muitas vezes, por isso não há nada que um tribunal israelita pode fazer capaz de a assustar... Nada! Acho que o ser uma sobrevivente dos campos da morte foi o que a salvou, porque não a mandaram para a prisão.

O juiz limita-se a dizer-lhe que não volte a arranjar problemas. E essa foi a última vez que tivemos problemas, pois que desde aí em Haifa toda a gente ficou a saber o que se tinha passado com aquela mulherinha grega dos campos de concentração, com o cabelo à Doris Day e um feitio tramado, que vivia na Casa das Hortênsias Azuis. - Helena fez de conta que fechava um livro, e que depois o punha a um canto da mesa. - A minha mãe consegue quase sempre arranjar um happy ending.

Vi os gestos de Sana na maneira como Helena criava objectos imaginários com as mãos. Começava a vê-las como irmãs.

- A tua mãe ainda está viva?

- Não, morreu há dez anos.

Helena disse então uma coisa estranha:

- Uma vez conheci um homem com uma membrana entre o polegar e o indicador. Podiam ver-se as veias à luz.

Isto tornou-se num truque recorrente dela - desviar a minha

atenção com um aparte sempre que sentia chegar as lágrimas.

Quando lhe perguntei o que queria dizer, ela respondeu:

- Estava só a pensar em voz alta... sobre a singularidade das pessoas. - Depois acrescentou: - Uma rapariga, uma rapariga furiosa, pode nunca sorrir... É capaz de preferir rasgar a boca a ter de sorrir.

Quando lhe perguntei que rapariga, respondeu:

- A Sana disse-me isto uma vez, e deixou-me aterrorizada.

- Porque estava assim tão furiosa?

- Não sei. Estávamos no nosso esconderijo quando ela disse isso. Não explicou o que queria dizer. Raramente falava sobre o que se passava dentro dela. Em vez disso, inventava coisas. Tínhamos de encontrar as pistas sobre ela a partir das histórias que contava.

Helena esfregou o pescoço, como se as memórias dos tempos que tinham passado juntas tivessem deixado alguma ferida. Contou-me então que a primeira vez que lera O Leão, A Bruxa e o Guarda-Fatos, de C. S. Lewis, convencera-se de que o autor, numa altura qualquer da sua vida, devia ter sido obrigado a esconder-se, porque ela e Sana costumavam inventar longas histórias semelhantes às dele quando passavam para dentro do guarda-roupa no quarto de arrumações. No fundo, gostavam de estar ali - o perigo controlado, o silêncio justificado, a satisfação por saberem que as mães delas as protegiam. Sentiam-se felizes por serem como bandoleiros. Como deveria acontecer com todas as crianças, eram as estrelas rainhas da bilheteira das suas próprias vidas.

Sana, que herdara a imaginação da mãe, era capaz de inventar histórias sobre caravanas no deserto, viagens no mar, monstros escamosos... Helena lembrava-se do medo que tinha em particular de um ciclope que dava pelo nome de Abelha-Mestra que as perseguia até ao Egipto - até às pirâmides, pelo Nilo abaixo...

- A Abelha-Mestra capturou-me! Tira-ma daqui! Está a dar-me ferroadas! Vai-me levar a voar para o Cairo.

- Já aí vou.

Mal Helena empurrava o monstro para longe com um rugido, já o ciclope estava de volta, tentando levar Sana com ele.

- Espera, tenho aqui o pó mágico - dizia Helena, e polvilhava o monstro com o pó. - Já se foi embora.

Depois, quando passava o efeito do pó, Helena tinha de inventar uns feitiços em hebraico e em árabe, e de disparar setas mágicas. Uma vez, Sana foi picada pela Abelha-Mestra na cabeça, e Helena teve de a trazer de novo à vida com água mágica e um beijo do Barkuk.

As duas raparigas ficavam sentadas em frente uma da outra e representavam as suas histórias até que Rosa ou Zeinab batiam à porta a avisá-las que os soldados andavam por perto.

- Nem um pio! - diziam as mães delas.

Nesse tempo falavam com as mãos e criaram a sua própria linguagem por gestos. Transformavam-se em animais também - sobretudo borboletas e aves. Mas nunca abelhas.

- A Sana adorava pássaros e borboletas... e aviões também - disse Helena. - Mas odiava abelhas e vespas.

Havia vezes em que Sana fingia ser um pássaro pousado no ombro de Helena. Batia as asas e limpava as penas.

Também gostava de dar a Helena problemas de multiplicação e longas divisões para resolver.

- Nem podes acreditar o tamanho dos números que ela me dava para multiplicar - disse Helena. - E eu fiz... Fiz as contas! - acrescentava, espantada com a Helena daquele tempo.

Quando eram já mais velhas, Sana descobriu os jogos de palavras. Havia um a que costumavam chamar «Ligações».

Não percebi nada da explicação de Helena, e então ela tirou um pedaço de papel do bolso e escreveu em inglês:

 

         Love Lone Lane Sane Sana

 

A ideia, explicou ela, era ligar a primeira palavra à última, mudando apenas uma letra de cada vez. Neste caso, foram precisos quatro passos para passar de «Love» a «Sana».

- A Sana uma vez assinou assim uma carta que me mandou - disse Helena. - Era capaz de inventar ligações em qualquer língua, hebraico, árabe, francês, ladino... A cabeça dela nunca parava de trabalhar. Se ao menos tivesse conseguido descansar dela própria - Helena esfregou os olhos. - Não serve de nada pensar nela. Detesto-a por ter desistido... desistido de... - A voz apagou-se.

- Desistido de quê?

- De tudo. Dela própria acima de tudo. Mas vou ser egoísta, também... Detesto-a por ter desistido de mim.

 

Mais tarde, de regresso a Portugal, falei a Alex nas «Ligações» e ele lembrou-se de ter lido uma coisa semelhante num dos antigos livros de matemática do meu pai, que adorava problemas de matemática. E não tardei a localizar o livro. Intitulava-se Martin Gardner's New Mathematical Diversions from Scientific American, e tinha sido publicado em 1966.

Neste livro, Gardner fala de um jogo igual ao de Sana chamado «Parelhas». Foi inventado por Lewis Carroll por altura do Natal de 1877, para duas meninas que, dizia ele, «não tinham nada para fazer». Isto pareceu-me uma coincidência inacreditável. Quando falei nisso ao telefone com Helena, ela confirmou que tinham tido ambas um professor de matemática muito simpático, o professor Constantine, que se tinha interessado bastante por Sana depois de saber que ela e Helena ficavam escondidas durante as rusgas. Devia conhecer os livros de Carroll e ensinou-lhes o jogo.

Quando perguntei a Helena como é que podia encontrar o professor Constantine, ela disse-me:

- É um beco sem saída, Sherlock. Por esta altura, ele teria cento e vinte anos.

 

Naturalmente, eu não sabia nada sobre Lewis Carroll nem sobre o professor Constantine quando estive no Café Bonaparte com Helena, e por isso naquela altura não lhe fiz nenhuma pergunta sobre jogos matemáticos. Em vez disso, perguntei-lhe se Sana tinha tido irmãos ou irmãs.

- Nenhum - respondeu ela.

Era mentira, mas havia de me levar muitos meses para o descobrir.

Perguntei-lhe por outros amigos que eu pudesse contactar. Disse-me que não sabia nada da vida de Sana no Brasil. Tinham perdido o contacto. Algum marido ou namorado? Nada, não sabia de nada - embora isso não quisesse dizer que não houvesse algum; Sana era discreta acerca da sua vida pessoal.

Tive um pressentimento de que se passara alguma coisa de mau entre Helena e Sana, mas não fiz nenhuma pergunta. Helena bebeu o resto do vinho.

- Então, uma tarde, Zeinab desapareceu - disse ela. Apagando o que restava do cigarro, chamou o empregado e pegou no troco. - Vamos - disse ela. - Conto-te o resto enquanto andamos, mas tenho de ir para casa. Estou à espera de uma chamada de Israel.

 

Em 1982, quando me formei em jornalismo, tive a sorte de ganhar uma bolsa do Correspondente Fund para um estágio numa delegação da United Press International no estrangeiro. A minha primeira escolha foi Roma, mas um dia recebi uma chamada em casa de meus pais, em Long Island, a dizer que me tinham mandado para Paris.

Foi aí que pela primeira vez me vi confrontado com o anti-semitismo - e percebi como é que Israel, um país que nunca visitara, podia influenciar o modo como as pessoas me viam. O nosso escritório era na rue des Italiens, a poucos quarteirões da Opera de Paris. Instalei-me num apartamento meio a cair perto da Notre Dame, que pertencia a um cientista amigo do Alex. Podia tocar com os dedos o tecto descaído pondo-me em bicos de pés. Não havia duche, nem água quente. Recorrendo a uma série de contorções dignas do Homem de Borracha, lá conseguia lavar-me com o fiozinho de água fria, fino como um lápis, que saía da torneira enferrujada. Dormia num colchão antigo entalado numa armação metálica. O único incómodo inultrapassável, porém, era a esquadra da polícia na porta ao lado - polícias de motorizada entravam, tonitroantes, a toda a hora. Arrancado ao sono, arrastava-me então para uma das janelas do tamanho de uma bandeja, o cobertor pelos ombros, e ficava a olhar para a Notre Dame através da difusa luz acinzentada da manhã. Imaginava ter acordado num século anterior. Estava no Paraíso.

No meu primeiro dia de trabalho, esgueirei-me para o escritório como um adolescente imberbe ao passar a porta discreta de um bordel, mais do que convencido de ser sujeito a alguma abjecta humilhação às mãos de especialistas. O chefe da delegação foi-me indicado pela recepcionista. Era alentado, expressão amorfa, aí uns sessenta anos, com uns tufos de cabelo castanho colados à testa pelo suor. A fralda da camisa branca saía-lhe das calças e uma pança pesada balançava-se por cima do cinto. Tinha as mãos nodosas, gigantescas, de um lavrador de Van Gogh.

Vim a saber mais tarde que era polaco e que vivia em França desde os primeiros anos da década de 1960. Tinham-lhe prometido o lugar de chefe da delegação da United Press em Varsóvia a seguir à queda dos comunistas. Quando o conheci, continuava ainda à espera que chegasse o dia de São Nunca. Chamo-lhe aqui Pierre, pois pode dar-se o caso de não ter ainda morrido.

Pierre estava a ver televisão num aparelho instalado no alto da parede, em frente de um grupo de homens entroncados. Supus que seriam os nossos repórteres, mas vim a saber que eram os nossos dois fotógrafos franceses, Stéphan e Giles, e jornalistas de outras agências noticiosas que partilhavam os nossos telexes. Um canal francês estava a transmitir uma reportagem em que se via o exército israelita a arrasar uma aldeia pales-tiniana. Pierre agitava as mãos e praguejava contra os soldados como se quisesse cuspir-lhes na cara. Quando o programa acabou, apresentei-me e ele atirou-me em francês:

- Só espero que não seja também judeu.

Senti a cabeça a enfiar-se dentro dos ombros como uma tartaruga. Se a vida fosse um filme de Martin Scorsese, eu teria tido a calma insolente de olhar em redor e de lhe perguntar: «You talkirí to me?» Em vez disso, na esperança de apaziguar a tensão que me apertava as tripas, esbocei um sorriso e disse:

- Sou realmente judeu, para o melhor e para o pior.

- Hmmmmm - murmurou ele, olhando-me de alto a baixo. Um insecto prestes a ser esmagado deve sentir-se tão animado como eu me senti naquele momento.

Trabalhei para Pierre, o anti-semita polaco, durante os meses de Julho, Agosto e Setembro de 1982. Ele e os repórteres esbugalhavam os olhos à simples ideia de abandonar o escritório e fazer qualquer tipo de trabalho de reportagem de caneta na mão, por isso mandavam-me a mim fazer a cobertura das conferências de imprensa ministeriais, das rupturas de canalizações de água, de torneios de golfe, das estreias de filmes e, o mais excitante de tudo, o Campeonato Mundial de Pong (sendo o «Pong» o Ford T da indústria de jogos de computador). Havia também naquela altura uma quantidade de manifestações anti-sionistas, dado ser uma causa que permitia aos académicos e intelectuais franceses reunirem-se, bebericando os seus uisquezinhos. Numa concentração na Place de la Concorde, aprendi a canção do momento, com umas rimas bem apanhadas e que se referiam ao então prímeiro-ministro de Israel, Menachem Begin:

 

         A bas Begin, A bas Reagan,

         Vive les combattants Libanais Palestiniens...

 

         Abaixo Begin, Abaixo Reagan

         Vivam os combatentes Libaneses-Palestinianos...

 

A única coisa que faltava a estas manifestações de punho no ar era uns quantos palestinianos em carne e osso, naturalmente, e talvez Vanessa Redgrave, com um sedutor olhar de desafio nos seus jeans de camuflado e top de alças. Mas os palestinianos exilados em Paris estavam ocupados em ganhar a vida, e a Redgrave estava evidentemente sobrecarregada de ensaios em Londres.

Se não tenho em grande conta estes protestos, não é certamente porque discordasse de muito daquilo que os manifestantes queriam ver mudado na política israelita. Não era preciso ser dotado de superpoderes para saber, em 1982, que os colonatos judaicos em territórios que deviam ter ficado sob soberania palestiniana haveriam de se tornar no principal impedimento à paz nas décadas que se seguiriam. Era antes porque a minha intuição me dizia que pelo menos alguns daqueles paladinos da fraternidade e da liberdade tinham também pintado os graffiti que eu tinha visto pela cidade, comparando os Israelitas aos nazis, e muitos deles não teriam perdido sequer um minuto de sono se todo o Israel fosse afundado, à bomba, no mar - excepto talvez a parte mais antiga de Jerusalém, pois os intelectuais franceses sabem apreciar o valor de um bom sítio arqueológico quando o encontram.

Aos meus olhos cépticos, aquelas concentrações assemelhavam-se a desculpas adolescentes para guinchar uns quantos lugares-comuns e puxar brilho à plumagem com uma boa camada de testosterona, embora talvez seja próprio de tais protestos terem um ar menos bem-intencionado e sincero do que realmente são. Por isso, é possível que o meu desdém fácil fosse provocado pelo embaraço, por eu próprio não estar a fazer nada para me opor às injustiças em curso no Médio Oriente.

Aquilo de que mais me lembro destas manifestações era o profundo desapontamento com os judeus que eu sentia nos esquerdistas franceses. As vozes deles estavam tão roucas de indignação que, quem os visse, pensaria que todos eles tinham sido pessoalmente traídos pelo sionismo. Eu não conseguia perceber porque haveriam eles de se sentir assim - e porque é que eles se manifestavam sempre contra Israel e não contra regimes bem piores em países como a China e a África do Sul - até que, quinze anos mais tarde, li as memórias de Jorge Semprun, Literatura ou Vida. Foi então que compreendi como, para muitos intelectuais europeus, os judeus tinham assumido o papel dos explorados e das vítimas em qualquer parte do mundo. Apoiá-los tornara-se na manifestação evidente de um firme compromisso na luta contra o mal, qualquer que fosse a forma que revestisse.

Na página 36 da edição inglesa, Semprun refere que num dos seus romances criara a personagem de um amigo judeu precisamente por essa razão. Escreve ele: «O Judeu - mesmo passivo, mesmo resignado - era a intolerável encarnação dos oprimidos.» Quando li isto, compreendi então o que não compreendera todos aqueles anos antes, ao observar aquela manifestação anti-sionista na Place de la Concorde: que os Israelitas, ao rejeitarem o papel da vítima passiva - a mais tolerante das representações cristãs tradicionais -, rejeitaram ao mesmo tempo os termos da amizade com a esquerda europeia. Se Semprun estivesse certo, então eles tinham rompido um pacto tácito que dizia: gosta de mim por ser brutalizado.

De facto, ao esmagarem os seus inimigos árabes em guerras sucessivas e ao brutalizarem os seus vizinhos palestinianos, os Israelitas tinham queimado este pacto para sempre e espalhado as cinzas sobre os Territórios Ocupados. Em resultado disso, os intelectuais europeus deixaram de poder exibir a prova do seu empenhamento na luta contra a injustiça, apoiando os judeus. Todos aqueles bem-intencionados intelectuais e políticos tinham de recomeçar de novo. E, pior ainda, tinham-se visto forçados a passar o seu empenhamento para os palestinianos, um povo com quem pouca cultura e quase nenhuma história partilhavam (e que quase sempre falavam francês com cerrados sotaques árabes!). Não admira que as vozes dos manifestantes estivessem roucas de raiva.

 

Passei horas a burilar os meus artigos sobre as manifestações anti-sionistas. No entanto, nada do que escrevi tinha algum interesse para os leitores na América, e nem um único texto dos que enviei aos nossos editores em Nova Iorque alguma vez veio a lume. Pelo contrário, tendo em conta a natureza do jornalismo americano, o meu artigo mais bem sucedido foi o seguinte, que saiu na primeira página do San Francisco Chronicle e vários outros jornais naquele mês de Julho:

 

         «Vespas Cocó» Podem Salvar Paris

 

Como todos os parisienses que frequentam os Champs-Elysées sabem, os passeios estão cheios de armadilhas. Os excrementos caninos cobrem as ruas. Mas os Parisienses, sempre criativos, decidiram combater o problema de uma maneira inovadora. «Aspiradores de cocó» instalados na parte de trás de vespas rodando lentamente irão percorrer em força as ruas a partir de 1 de Setembro.

Na traseira da vespa, uma escova e um braço hidráulico limpam e depositam os excrementos caninos num saco. As autoridades camarárias prevêem que serão necessárias 45 vespas para limpar as ruas. A Câmara contratou uma empresa privada para este programa de utilização das vespas, que levarão a cabo a sua missão a uma velocidade de cerca de 5 quilómetros por hora.

 

O meu dia mais ocupado na UPI, durante esse Verão, começou com um telex da Agence France-Presse que nos trouxe a notícia de que a princesa Grace de Mónaco tinha ficado ferida num acidente quando conduzia o seu carro através das profundas ravinas acima da cidade do Mónaco. Ainda ninguém sabia que a princesa de facto tinha morrido. Especulações levantando a suspeita de que a princesa Stephanie, ainda menor, iria ao volante, deixavam os jornais em Nova Iorque a afiar os dentes. Incapazes de reencontrar o caminho para a terra da compostura, pediam à nossa delegação actualizações de meia em meia hora, implorando a Pulitzer, o deus das cachas jornalísticas, que fosse de facto a adolescente Stephanie quem ia a conduzir, e que Grace estivesse - no mínimo - gravemente ferida, uma vez que, nesse caso, a notícia assumiria as dimensões de tragédia e crime: Menor Stephanie Toma o Volante Antes do Acidente e Deixa Inválida a Princesa Mãe: Mónaco Em Suspenso Enquanto a Antiga Estrela de HollywoodJaz em Coma.

Nesse momento, fiquei completamente entregue à minha alma em pânico, pois o único jornalista de serviço além de mim, Pierre o polaco anti-semita, afogava o seu desespero por não poder regressar à sua Varsóvia limpa de judeus em Chablis barato, como fazia todas as tardes, na escuridão transilvaniana do bar da esquina.

Os editores em Nova Iorque berravam pragas cada vez que eu repetia ao telefone que ele devia estar num almoço extra-demorado ou que talvez tivesse tropeçado na rua num qualquer acontecimento capaz de fazer tremer a terra - uma gigantesca manifestação anti-sionista, talvez. Lembro-me perfeitamente de um deles se referir a ele como: «Esse cabrão!»

Não me desagradava de todo. Ofereci-me para o ir procurar e dizer-lhe que o procuravam urgentemente.

Os editores ordenaram-me no entanto que não deixasse o escritório para ir procurar «esse cabrão». Por isso ocupei-me dos telefones e mandei as primeiras notícias sozinho, acrescentando citações de várias fontes monegascas que tagarelavam incessantemente através da versão francesa dos telexes da Agence France-Presse. Consegui até localizar o homem que afirmara ter encontrado a princesa Grace inconsciente depois do acidente, embora ele se tivesse revelado diabolicamente resistente a permitir alguma citação mais comovedora ou dramática pelo telefone. «Sim senhor, encontrei-a» foi o máximo que ele conseguiu dizer. Dava a impressão de que falava ao mesmo tempo que mascava as gengivas, como algum Gomer Pyle francês. Falando com ele, fiquei a pensar se a população das colinas do Mónaco não praticaria há demasiado tempo o casamento endogâmico.

 

O meu pior dia foi o dia 10 de Agosto de 1982. No dia anterior, dois assassinos do grupo terrorista de Abu Nidal, o Conselho Revolucionário da Fatah, tinha lançado granadas e disparado metralhadoras contra os clientes que estavam a comer no Jo Goldenberg, um restaurante bastante conhecido na rue des Rosiers, a rua principal do bairro judeu de Paris, o Marais. Eu não estava de serviço quando isso aconteceu e nesse dia não li os jornais, mas na manhã seguinte fui enviado, mal cheguei, para o Hôtel-Dieu, o hospital centenário perto da Notre Dame e do meu apartamento, para entrevistar um americano que tinha ficado ferido no ataque. (Franceses mortos ou feridos tinham muito menos interesse para as redacções americanas, como é óbvio.) Seis pessoas tinham sido mortas e vinte e duas feridas. Uma das vítimas era a mulher desse americano. Não sei como, mas não consigo encontrar o artigo que escrevi sobre esse encontro, que foi publicado em vários jornais, e com mais relevo no St. Louis Post-Dispatch, já que ele e a mulher eram de lá. Lembro-me porém do nome da filha deles - Clara. Tinha três anos. Não sabia ainda que a mãe tinha morrido porque o pai, em estado de choque, não fazia ideia de como lho dizer. Ele e a mulher eram professores universitários e tinham passado as férias de Verão a fazer investigação nas bibliotecas de Paris.

Quando cheguei, o pai de Clara passeava-se de um lado para o outro no quarto do hospital. Estava magro e pálido e as faces tinham uma palidez cavernosa que eu, desde então, associo à morte. De facto, a cara dele aparece-me no sonho recorrente que me assedia desde que Sana se suicidou.

Expliquei-lhe quem era e disse-lhe que sairia se ele achasse que estava a invadir a sua privacidade, mas ele esperava desesperadamente uma oportunidade para falar com alguém fluente em inglês. Fiquei sentado com ele a manhã toda, fundamentalmente a ouvi-lo, enquanto ia contando, de olhos vidrados, o ataque e o que sucedera a partir daí. Ele e a mulher tinham procurado arrastar-se para as traseiras do restaurante, mas ela não conseguiu. Pensava tê-la coberto com o próprio corpo, tinha a certeza de que a protegera. Não conseguia compreender como é que ela tinha sido morta. Ou porquê. Nada fazia sentido. Se algum deles tinha de morrer, devia ter sido ele.

Uma hora mais tarde, deixei de tomar notas. O que ele me contava da vida deles era demasiado íntimo. Não tinha já nada a ver com a notícia - pelo menos com a minha definição de notícia; era antes um casamento desfeito em cacos.

Enquanto estava ali sentado na cama ao lado dele, um dos Rothschilds - acho que o barão Philippe - apareceu para apresentar condolências em nome da comunidade judaica de França. Elegantemente vestido, tinha um andar um pouco curvado.

Apertámos as mãos. Não parecia surpreendido com a violência. Tive a impressão de que se perguntava se a Idade de Ouro do anti-semitismo estava prestes a voltar novamente - ganhando desta vez um verniz médio-oriental.

Deixei o pai de Clara com o barão Philippe enquanto ia visitar outra das vítimas do ataque, ali perto, no mesmo corredor. Era uma francesa já idosa, de cabelo curto e uns grandes olhos castanhos. Falámos durante algum tempo e ela mostrava-se contente por ter companhia. As pernas e os braços tinham tantos buracos e perfurações das feridas dos estilhaços que parecia comida dos bichos. Numa voz hesitante, perguntou se estava tão assustadora como se sentia; tinham-lhe tirado o espelho do quarto e não podia confiar no filho e na filha para lhe dizerem a verdade. Disse-lhe que me parecia bem - que nenhuma das feridas parecia tão funda que deixasse cicatrizes.

Não acreditou.

- Vamos pôr as coisas de outra maneira - disse ela em francês, tapando com a mão alguns dos ferimentos já com crosta que tinha no peito. - Se me atirassem para uma piscina, acha que ia direita ao fundo? - Esta mistura de coragem e de humor fez-me rebentar em lágrimas assim que saí para o corredor.

De regresso ao escritório, a repórter que cobria a secção de moda começou aos berros comigo. Chamo-lhe Marlene, porque também ela pode ainda estar viva. Era uma cabra seca, de olhos amarelados, com um cabelo tingido de hena que parecia ter sido cortado usando uma tigela de sopa e que, apesar de viver em Paris há quarenta anos, insistia em falar com um sotaque americano de pastilha elástica, na intenção de despertar o ódio de todos os empregados franceses, que ela desprezava por não serem americanos.

- Por que raio não gravaste a conversa com esse gajo a quem mataram a mulher? - perguntou ela. Explicou-me que a UPI tinha um serviço de rádio e que podíamos ter cortado a gravação nuns quantos bocados com as frases mais bombásticas para ouvintes sedentos em todas as partes do mundo.

Teria sido uma cacha das grandes. - Se a Clara ainda não fala muito bem, podias ao menos pô-la a chorar. - Marlene não usou estas palavras, mas era isso que queria dizer. Disse-lhe que não considerava decente gravar a menina ou o pai dela.

- Decente! - fungou, desdenhosa. - Não me venhas com a merda dessas tretas! - Enfiando-me à força na mão o pequeno gravador dela, disse-me para voltar imediatamente para o hospital.

Quando expliquei ao americano ferido as ordens que tinha, ele disse-me, numa voz horrorizada, que esperava que eu não gravasse aquilo que ele tinha para dizer.

Quando ao fim da tarde voltei com uma fita em branco, vi-me injuriado em coro por Marlene e por Pierre. Ele gritava comigo em inglês e em francês, pois a sua raiva não cabia numa única língua. Só Deus sabe como me terá amaldiçoado em polaco dentro da sua cabeça. Por mim, sentia-me grato por ele não me ter cuspido em cima.

 

Foi assim que percebi que no fundo não queria ser jornalista, embora durante os oito anos que se seguiram continuasse a fingir que sim. A ironia é que ali estava eu agora, de volta a Paris, quase vinte anos mais tarde, ao lado de Helena, a ver se ainda não tinha perdido a mão passado tanto tempo.

 

Quando saíamos do Café Bonaparte, Helena fez um desvio para ir à casa de banho. Enquanto a esperava na rua, pus-me a pensar no meu trabalho na United Press. A rapariga que perdera a mãe, Clara, devia andar agora pelos vinte e tal anos. Perguntava a mim próprio se ela ainda viveria em St. Louis e se teria voltado a Paris muitas vezes durante as últimas duas décadas. Será que alguma vez esteve à porta do Jo Goldenberg, agachada, à procura de lascas de vidro partido com o nome da mãe? Talvez tenha até entrado no restaurante e se tenha forçado a comer o canto de uma sanduíche, à espera de sentir o enjoo nas entranhas que deve acompanhar a lembrança da morte violenta da mãe. E o pai, será que alguma vez terá pensado em mim, aquele rapaz desajeitado que ousara pegar-lhe na mão enquanto ele falava da mulher assassinada? Como era curioso que nunca mais nos tivéssemos encontrado.

Talvez ele leia o que aqui escrevo e fique a saber que não o esqueci.

Pensei também se ele e a filha ocasionalmente acordariam a meio da noite com pesadelos - corvos caindo sobre eles, acocorados no fundo de um poço. Ou talvez se vissem como figuras rígidas de judeus de órbitas esvaziadas a serem atirados para a vala comum de um campo de extermínio. Talvez esse pesadelo nos unisse também.

Quanto a Pierre, o polaco anti-semita - se é que eu fosse capaz de o reconhecer no velho calvo de braços cruzados especado à entrada do Deux Magots -, será que lhe diria o que tinha pensado dele e, se fosse, de que serviria apoucar um velho gordo e bêbado? Um homem capaz de odiar os judeus depois de tudo o que eles tinham sofrido nos campos da morte na pátria dele, de desprezar pessoas que tinham sido transformadas em adubo para os campos de couves do Reich de Mil Anos - não era pessoa para perder o sono por causa das minhas opiniões. E eu nem sequer estaria interessado em mudá-lo. Não, ele que morresse com os mortos a odiá-lo em resposta ao ódio dele.

 

Tinham começado a insinuar-se umas nuvens vindas de noroeste, da Normandia. Puxei para cima o fecho do meu blusão e enfiei as mãos nos bolsos. Helena saiu envolta no seu casacão enorme, com umas fotografias a preto e branco na mão. Disse que quase se ia esquecendo de que mas tinha trazido.

Uma das quatro fotografias tornou-se logo a mais importante para mim. A rapariga à esquerda é delgada, toda cotovelos e calcanhares ossudos, com uma blusa branca e saia escura e, apesar de um lampejo de raiva reprimida, há nela uma inegável suavidade cómica, de quem finge estar furiosa e não o consegue muito bem. O cabelo comprido está dividido ao meio, e ela segura as pontas irregulares nos punhos fechados, prestes a dar um pulo e um guincho infernal. Os tendões do pescoço estão esticados, como se ela se dedicasse a uma imitação do Incrível Hulk em miniatura. Está a representar para a objectiva, o que deve querer dizer que está já, aos nove anos, a pensar em futuras glórias. Imagina já certamente o que se vai rir do produto acabado com a outra rapariga na fotografia - e talvez com o rapazinho que aí se vê também. Nos olhos dela há sementes douradas de travessura.

Essa, pelo menos, foi a minha primeira interpretação, à porta do café, ao lado de Helena, mas há outra possibilidade; tendo em conta aquilo que eu mais tarde haveria de descobrir, Sana podia também estar a experimentar a raiva que gostaria de exprimir mais abertamente. Podia fazê-lo durante aquela fracção de segundo captada para sempre pela objectiva, quando toda a gente pensa que ela está a representar. Noutras circunstâncias, seria motivo de castigo.

Quando Helena apontou para os pés delas, reparei que Sana usava dois sapatos do pé direito, e a rapariga ao lado dela, Helena, dois do pé esquerdo.

- Foi só uma ideia da Sana - disse Helena, agora, encolhendo os ombros. - Nem tudo o que fazíamos tinha um significado, sabes?

 

Ao olhar hoje para a fotografia, na minha secretária no Porto, não me é difícil ver nela a cara de Sana em Perth, pois aquilo que nela havia de irreprimível, a descarada, gentil, extravagante estranheza que a fazia levar a mão ao pássaro pousado no ombro e falar com a flor de hibisco presa no cabelo, estava já ali. Talvez Zeinab tivesse reconhecido nela o fogo criador no dia em que veio ao mundo a chorar. Gosto de pensar que sim. Gosto de pensar que teve uma mãe capaz de ler nas profundezas dos olhos da criança prodigiosa que ela era. Por aquilo que Helena me conta, acho que teve.

Devemos estar contentes por Zeinab não ter sobrevivido à filha; disseram-me duas mães que viram morrer os filhos já crescidos que não há nada pior. Se bem que, se Zeinab fosse viva, talvez Sana não tivesse escolhido mergulhar para fora do nosso mundo.

Na mesma imagem, a boca de Helena é uma fenda de silêncio forçado, como se tivesse feito algum voto de não mostrar emoções - não se rir muito provavelmente. Contém a respiração, e os seus olhos olham para cima e para longe, como se devessem apenas voar acima da sua cabeça, pois se olhasse ainda que brevemente para a objectiva ou para a pessoa que tirava a fotografia perderia o domínio de si - e era até capaz de se mijar de riso. O cabelo é castanho, iria jurar, e cai-lhe pelos ombros. Segura na anca um rapazinho que fixa a objectiva com a boca aberta, como se assistisse a um milagre.

O que mais me chama a atenção em Helena é ela ser uma rapariga forte - de certeza mais forte do que Sana. Embora haja alguma coisa na posição delas - com Sana inclinada em direcção à objectiva e Helena num gesto de afastamento, quase com vontade de fugir - que mostra bem que das duas era Sana a mestre de táctica, a comandante de operações.

 

- Éramos cá umas desaforadas - disse Helena num tom de espanto, enquanto fixávamos o seu passado a preto e branco. - Por aqui se vê porque é que os nossos pais estavam sempre a rir-se quando nos viam juntas. Sabes que nesta altura o meu pai nos chamava as duas diabinhas. - Mas ela dizia-o em francês, naturalmente - /es deux démonettes!

Deixou soltar-se uma risadinha breve. Depois baixou a cabeça, embaraçada.

- Que foi ? - perguntei eu.

- Os maus pensamentos vêm-me sempre quando estou mais feliz. Não consigo evitá-lo. Vamos andando. - Surpreendeu-me dando-me o braço, e pusemo-nos a caminho.

- Quem é o rapaz na fotografia? - perguntei.

- O meu irmão.

- Quantos anos mais novo?

- Quase seis anos.

- Onde está agora?

- Oh, está ainda em Israel... Em Telavive.

Helena deteve-se inesperadamente e pediu para ver as fotografias outra vez. Pu-las à frente dela, à luz de um candeeiro, como se me preparasse para algum truque de cartas. Pegou naquela que tínhamos estado a ver e inclinou-se para ela com vivacidade, num movimento muito parecido com o de Sana em direcção à objectiva. Por momentos, pareceu-me vê-las juntas já adultas, trocando de posições e de personalidades. Compreendi o que era óbvio: crescendo lado a lado, devem ter aprendido muitos dos mesmos gestos e hábitos.

Helena abanou a cabeça como que para se libertar da lembrança daquele dia.

- A Sana ameaçou-me de que me batia se eu estragasse a cena. - Olhando para o céu, acrescentou: - Às vezes penso que ela ainda aqui está e que ainda pode cumprir a ameaça.

 

- Os patos voam em V porque assim a resistência do vento é menor, é mais fácil para eles voarem.

Estávamos a chegar perto de casa de Helena quando ela disse isto.

- O quê? - perguntei.

Ela bateu umas asas invisíveis.

- A Sana disse-me isso uma vez. Mas o pato da frente continua a ter um trabalho difícil... a voar à frente dos outros. Está a ver?

Será que queria dizer que Sana tomou a dianteira quando eram crianças e que isso fez com que fosse mais fácil a Helena voar, que ela se tinha sacrificado pela amiga? Ou estaria Helena a referir-se ao suicídio?

Quando lhe pedi que explicasse melhor, ela replicou, num tom desafiador:

- Não sei... você é que é o escritor. Estou à espera que me diga.

 

Um ano mais tarde, Helena haveria de me explicar este inesperado confronto. Estávamos a falar ao telefone então, e eu gravava a conversa.

- Nem imaginas o quanto eu estava preocupada, naquela altura, que pudesses escrever a história toda mal - disse ela. - Ou que a pudesses contar de tal maneira que as pessoas iriam ficar com uma impressão distorcida de Sana e do passado que vivemos juntas. Tinha falado tanto no café, e de repente percebi que tu ainda não tinhas compreendido as coisas mais importantes. Não é que me importasse muito o que pudesses dizer sobre mim, porque eu ainda estava ali para me defender. Mas a Sana... preocupava-me que a pudesses transformar numa pessoa diferente daquilo que ela era. E então percebi que irias dizer coisas erradas. É inevitável. Não se pode evitar. Ao escreveres uma parte do que aconteceu, deixando de lado outras coisas, vais contar apenas uma parte da história. Talvez que as coisas que decidas excluir, ou que não se podem exprimir... talvez sejam essas as coisas mais importantes. E então, quando estava ali ao teu lado na rua, senti que já tinha falado de mais. Tu não estavas na fotografia e nunca poderias vir a estar. Podias ficar a olhar para ela, mas não podias saltar lá para dentro. Era isso que eu queria mostrar-te. E é isso que eu queria que tu dissesses naquilo que ias escrever.

- Não compreendo. O que é que tu queres precisamente que eu diga?

- Que aquilo que tu escreves é apenas uma parte da história... mesmo que apanhes perfeitamente todos os factos e sentimentos.

Isto foi durante uma época em que Helena me telefonava uma vez por semana para acrescentar pequenos pormenores acerca de Sana e do passado comum das duas, e eu prometi-lhe referir a inevitável imperfeição e subjectividade da minha narrativa no que quer que viesse a escrever. Ela desligou, tranquilizada. Ou foi o que eu pensei. No telefonema seguinte, porém, acordou-me a mim e ao Alex por volta da uma da manhã. Soluçava de tal modo que não conseguia falar. Eu não tinha maneira de saber que era ela na outra ponta do fio. Pensando que fosse a minha mãe, que nessa altura tinha oitenta e quatro anos e uma saúde frágil, o coração parecia querer saltar-me do peito. Via-a a sangrar de alguma queda grave, incapaz de se levantar do chão. Cambaleei como se tivesse sido atirado de um carro a alta velocidade.

- Mamã! Mamã! Que se passa? Mamã!

Foi então que Helena me disse que era ela.

Gritei com ela por me ter assustado. Ela pediu desculpa e disse:

- Tenho de te contar um segredo que percebi que tenho estado a esconder. Eu estava ainda com mais medo naquela altura, quando falámos pela primeira vez, de que tu contasses bem a história e descobrisses todas as nossas coisas secretas... tudo o que nós sempre quisemos esconder. E ainda tenho medo disso.

 

Assediada pelas suas dúvidas persistentes em relação a mim, Helena ficava cada vez mais silenciosa enquanto continuávamos a caminhar pelas ruas nocturnas de Paris. Pensava que estava tudo a correr mal e que não devia ter-me ajudado. E então, para plantar pelo menos uma bandeira sólida no meio daquela confusão, deteve-me e falou-me no muito que Sana significara para ela.

- Há pessoas tão poderosas que nos orientam. Só por saber que ela estava no mundo... era como ter sempre uma praça central diante de mim. Percebes ? Podia ir para qualquer lado, mudar de profissão, fazer o que queria, sabendo que ela estava onde estava. Isto faz algum sentido?

Quando acenei que sim, ela pediu-me para ligar o gravador. Agarrou-o com as duas mãos. Falando como que para o mundo inteiro, a voz esmagada pela tristeza, disse:

— Sana é a última pessoa... a última das pessoas que eu pensei que podia morrer nova. Embora cinquenta e três anos talvez não seja propriamente nova, já não percebo nada destas coisas. A morte dela empurrou tudo do meio para o lado. A maior parte do tempo não sei onde estou. Nem sequer consigo ir a pé de minha casa até ao metro. Às vezes acordo a meio da noite e penso que estou em Haifa, na Casa das Hortênsias Azuis. Que estamos lá as duas. — Os olhos pareciam tão pesados de desespero quando os levantou para mim, que eu estendi-lhe os braços. — Mas ela não está lá comigo. Foi-se para sempre.

Passou-me o gravador para as mãos como se fosse uma granada e desatou a chorar, as mãos a tapar a boca. Tomei-a nos braços e ela estremeceu. Falando num sussurro desfalecido, como se a voz seguisse desolada os traços da memória, Helena prosseguiu:

- Acordo e consigo sentir o cheiro da nossa antiga casa e a secura do ar. Sinto o perfume do mar na distância. Às vezes penso que eu também devo estar morta. Oh, bem sei que ainda aqui estou ao seu lado... aqui agora. Não quero dizer morta no meu corpo. Ainda não. Mas o meu espírito... às vezes sinto-o longe de mim. E a morte da Sana levou-me a acreditar que pode não faltar muito para que o que resta de mim me seja levado.

 

Duas pessoas que no fundo não se conhecem — e que pensam que nunca se teriam encontrado se não fosse o suicídio de uma mulher — estão lado a lado numa rua como que entre o tiquetaque de um relógio. Começou a chuviscar. O homem abre o guarda-chuva a abrigá-los. Com este gesto, espera que a mulher compreenda que ele não lhe quer mal. Afastam se.

À medida que se aproximam de casa dela, ele começa a falar-lhe do americano que Abu Nidal tornou viúvo e de como se recusara a gravar as palavras dele numa tarde de Agosto, em 1982. Ela volta a ouvi-lo atentamente. Ele sente-se agradecido. Ao acabar a sua história, afiança-lhe que ela poderá sempre fazer os cortes que quiser naquilo que ele gravar e escrever - pode até mudar o nome dela e o de Sana. O que lhe interessa é a questão em si, diz ele. Hesita em dizer mais alguma coisa, mas espera que o guarda-chuva por cima da cabeça deles, protegendo-os do calafrio da chuva, possa fazer-lhe compreender que ele a protegerá também de outras maneiras. Passa o braço pelo braço dela de novo enquanto entram em casa. Ela não o rejeita, por isso talvez compreenda. Ele acha que sim, mas está enganado.

 

HELENA VIVIA num quarto andar no Marais. Com a sua pedra antiga a fender-se e os estores, o edifício parecia respirar no frio e humidade da noite. Ficava na rue Vieille du Temple, apenas a dois quarteirões de distância do Jo Goldenberg. Enquanto subíamos as escadas, perguntei-lhe se já vivia ali em 1982, quando os terroristas de Abu Nidal dispararam contra o restaurante.

— Não, nessa altura vivia com um amigo perto da Bastilha, num apartamento demasiado apertado para dois, como um caixote. Mas sabes como é, ele pensava que éramos só uma pessoa... e que os dois éramos ele! Vou confessar-te uma coisa — disse ela com um suspiro. — As mulheres podem ser muito estúpidas. Ao contrário dos homens, temos tendência para ver só aquilo que queremos.

— Estás a falar do Príncipe Encantado?

- Estou. E digo-te mais uma coisa, quando não se é uma grande beleza, fazer amor com alguém que é... levou-me dois anos a perceber que a minha gratidão não era a mesma coisa que amor... É uma lição importante a aprender, não achas? — Rodando a chave na fechadura, Helena antecipou a minha pergunta seguinte. — Não ouvi as explosões nem o tiroteio de Monsieur Nidal, mas ouvi o que se passou no noticiário da rádio e fui até ao restaurante ao fim do dia. Vi aquela polícia toda. Meu Deus, os judeus de Paris pensaram que era o fim do mundo. Compraram armas e organizaram-se. Tínhamos aí uns cinquenta John Waynes yiddish nas nossas ruas - com pistolas debaixo dos casacos. Não estou a brincar. Dava a impressão de que nunca tinham matado nenhum judeu antes.

— Mas deve ter sido assustador.

— Ouve, eu sou israelita... seis judeus mortos não são mais do que uma gota de sangue para nós. Seis judeus mortos nem sequer Deus os vê. E se pensas que vê, és meshugeh.

— Então, quantos são precisos para Ele ver?

— Ele nem seis milhões viu durante o Holocausto... e sabe-se lá quantos mais russos e ciganos e todos os outros. Por isso deve ser um número qualquer acima disso. - Tomou o meu aceno silencioso por uma desaprovação silenciosa e disse com um encolher de ombros: - Desculpa se te ofendi, mas é no que eu acredito.

Nessa altura, a franqueza dela assemelhava-se a uma forma oblíqua de gentileza. Estava-lhe agradecido por não se pôr a insultar-me com uma falsa boa disposição ou pondo qualquer outro tipo de máscara.

— Pelo contrário — disse eu —, muito pouco do que tu ou outra pessoa qualquer pudesse dizer contra Deus por tudo o que aconteceu me poderia ofender.

Ao passarmos a porta, Helena esticou a mão para tocar uma mezuzab de prata por cima do umbral e murmurou uma oração em hebraico. Olhando para trás por cima do ombro, disse:

— Protege-me contra os demónios e fantasmas e tudo o mais que me ameaça.

Acendeu as luzes. Havia livros empilhados no soalho da sala de estar e em resmas vacilantes em cima da mesa de jantar. Das janelas voltadas a sul via-se a torre de Montparnasse, iluminada como que por algum secreto propósito - como um farol no extremo do mundo.

— Por vezes, ponho-me a imaginar-me como judia religiosa — disse ela, enfiando novamente as chaves no bolso dos jeans. - Bem sei que não o posso ser... sou demasiado caótica. Mas fazia-me a vida mais fácil. - Desenhou com as mãos um quadrado no ar.

- Teria um quadro e podia viver dentro dele. – Apoiou a cabeça dentro dos limites do quadrado por momentos, relampejou um sorriso, depois atirou para longe a moldura imaginária. – Desculpa – disse, tirando o casaco. – Tenho uma certa tendência para representar.

— Não te desculpes. Alguma vez pensaste em te dedicar também à dança ou à mímica?

— Não, isso era com a Sana. Ela podia explorar isso por nós as duas. Deixava-me livre para fazer outras coisas. Assim como eu a deixei livre para não fazer as coisas que eu faço.

Fez um gesto para que lhe desse o casaco, o que eu fiz, enquanto dizia:

— Queres dizer que achavas que não podias acompanhá-la.

— Sim, em parte. Cheguei a tentar o palco há muitos anos em Israel... a cantar. Mas estava nervosa de mais. Sentia-me mal do estômago, antes dos espectáculos. Não podia viver assim.

Helena perguntou-me o que queria beber e, quando sugeri um chá, ela disse que estava a ser muito americano e insistiu para que tomasse alguma coisa mais forte.

— Tenho ali um brandy muito bom — lambeu os lábios com deleite arraparigado. - É delicioso. Eu também bebo. Vem a calhar. Vá, tens de beber um copo comigo.

Falava como uma rapariguinha impaciente por levar os pais a brincar com ela, e acedi. Enquanto ela estava na cozinha, peguei em alguns dos livros sobre história da música. Alguns deles tinham um aspecto descolorido, outros crestados nos cantos. Helena explicou-me que tinha havido um incêndio.

— Por causa de um aquecedor que fica maluco e tenta matar-me — disse ela, estendendo-me o copo. — Provavelmente trabalha para a Mossad... o aquecedor, digo eu. Não limpei os livros com sabão. Disseram-me que isso dava cabo do papel.

— A Mossad? Por que é que os serviços secretos israelitas haviam de estar interessados em ti?

— Têm espiões por toda a parte, e todos precisam de mostrar trabalho... quanto mais não seja para complicar um bocadinho a vida dos israelitas que vivem noutros países. E podes crer que eles têm maneira de fazer ir pelos ares mesmo um aquecedor. - Falava para o balão chinês de papel de arroz que balançava do tecto. - Olá, Chaim, olá Moishe. Que tal vai o trabalho na embaixada?

Piscou-me o olho. Ocorreu-me que havia de ter gostado de a conhecer a ela e a Sana em pequenas.

A um canto da sala havia uma meia dúzia de umas caixas castanhas enormes seladas com fita gomada.

- Mais livros?

- Não, roupas que o meu pai mandou de Israel. Andou a fazer a limpeza dos quartos de arrumações. Não queria que ele descobrisse as minhas coisas, mas descobriu. O meu pai é muito, muito...

- Arrumado - sugeri.

- Sim, e implacável no que toca a deitar coisas fora. Não é como a minha mãe e como eu. Comprei muitos vestidos quando era nova. Estão todos nestas caixas. - Esboçou uma vénia. - Nesse tempo, gostava de parecer bonita... Era uma boa menina.

Um sofá puído de veludo vermelho e uma poltrona estavam também carregados de livros. As almofadas tinham ar de albergar colónias de traças.

- Posso fazer um lugarzinho para me sentar? - perguntei.

- Não, os livros estão por ordem, embora tu nunca a pudesses perceber. Eu vou buscar uma cadeira. Espera um segundo.

Dirigiu-se ao canto oposto da cozinha, ao que devia ter sido o quarto dela.

- Quem tirou as vossas fotografias, em pequenas? - perguntei de longe.

- O Mahmoud.

- Fez um bom trabalho

- Era muito competente - mordeu a palavra como que desagradada.

- Não gostavas dele?

- Voltou com uma cadeira, que eu lhe tirei das mãos e pus no canto de um pequeno tapete persa no meio da sala.

- Se eu gostava do Mahmoud? - perguntou a si própria. O lábio superior dobrou-se num esgar teatral. - Não, nem por isso. É obrigatório gostar dos pais das nossas amigas?

- Claro que não.

- Ou dos Palestinianos? Meu Deus, só porque são oprimidos tenho de gostar deles todos? Espero bem que não. Conheci palestinianos que não se recomendam. Incluindo o Mahmoud. Mas ele só se diz palestiniano quando acha que está a ser viti-mizado. O resto do tempo, como está sempre a esclarecer, é egípcio de nascimento... Como se isso fizesse dele o sobrinho favorito de Ramsés, o Grande. - Pressentindo, mais uma vez erradamente, que eu a ia criticar, acrescentou: - Ou será que os Palestinianos não têm de ser seres humanos como o resto de nós? Não queres que sejam todos Abu Nidal, pois não? Ou santos com aureolazinhas... - Helena entoou as primeiras notas da «Canção de Embalar» de Brahms, depois fungou com desagrado.

- Acabaste? - perguntei.

Sorriu ao ouvir-me. Percebi que estava à espera que eu respondesse - provavelmente a noite inteira. Concluí que Helena era uma daquelas pessoas que gosta de estar sempre a empurrar-nos até lhe darmos uma boa pancada na cabeça.

- Então por que é que não gostavas do Mahmoud? - perguntei.

Ia para me responder, mas levantou a mão.

- Não, deixa-me antes falar-te na tia Zeinab... do desaparecimento dela. E logo verás por que é que o Mahmoud não é o sobrinho favorito de Ramsés ou de quem quer que seja.

Helena sentou-se ruidosamente a um canto do sofá. Eu pus o gravador delicadamente no braço do sofá ao lado dela, enquanto aproximava a minha cadeira.

- Helena, se preferes, posso deixá-lo desligado - disse eu.

- Não, não faz mal. Estava só a pensar... Quanto mais me conheceres, mais vais não gostar de mim.

Falava como se estivesse a declarar um resultado estatístico - um resultado que não lhe agradava, mas que tinha de reconhecer.

- O que te leva a pensar uma coisa dessas? - perguntei.

- É o que está sempre a acontecer. As pessoas gostam cada vez mais da Sana e cada vez menos de mim. São assim as nossas vidas. E a nossa simetria. - «Sem papéis.»

Ia para dizer qualquer coisa animadora, mas ela rejeitou as minhas palavras abanando as mãos.

- Por favor, não interessa. A Sana ajudou-me a deixar de me importar... A morte dela, quero eu dizer. Pôs termo à simetria... Pelo menos em grande parte.

Helena puxou o gravador para mais perto e bebeu um gole demorado do brandy. Disse-me que ela e Sana tinham nove anos quando Zeinab desapareceu. Contou os anos pelos dedos.

- Então foi em mil novecentos e cinquenta e cinco ou princípios de mil novecentos e cinquenta e seis. A tia Zeinab, pura e simplesmente, não voltou para casa uma tarde. Estava sempre em casa antes das cinco para tomar chá connosco e contar-nos histórias. E ninguém por perto sabia dizer onde ela estava. A minha mãe, o meu pai e o Mahmoud andaram pela cidade toda à procura, nessa noite e durante os três dias seguintes. Depois, o meu pai ouviu dizer num mercado perto do porto que uma mulher parecida com a tia Zeinab tinha sido presa pela polícia israelita uns dias antes. E então foi à esquadra mais próxima e a polícia disse-lhe que a tinham levado num carro para a fronteira libanesa e a tinham largado do outro lado, juntamente com outros presos. Mas os polícias estavam muito nervosos. O meu pai pensa que deviam estar a mentir e que a tia Zeinab ainda lá está, numa cela. Mas eles dizem que não, que ela está no Líbano. - Helena enfiou as pernas por baixo das coxas. - Quando o meu pai pergunta porque a prenderam, eles dizem-lhe que ela arranjou sarilhos no mercado. Que sarilhos?

Não sabem... Sarilhos, limitam-se a dizer. E então, no dia seguinte, o meu pai e o Mahmoud voltam ao mercado. Um velho talhante diz-lhes que a Zeinab esteve a discutir com uma mulher judia. Ela e a tia Zeinab empurravam-se uma à outra aos berros, e então apareceu a polícia. Ao ouvir aquilo, Mahmoud arranca no seu velho Ford com mais dois homens para o Líbano.

- Quem eram os outros?

- Não sei... Provavelmente colegas de trabalho do Mahmoud. A Sana ficou em Haifa com a tia e o tio, claro. Mas não queria saber deles. Passava o tempo em minha casa. Começou a chorar desde a primeira noite e recusava-se a dar um passo fora do meu quarto. A minha mãe tentou convencê-la a sair, a sentar-se connosco na sala de estar. Ofereceu-lhe embalagens de batatas fritas, que era do que ela mais gostava. A Sana ficou tentada, adorava batatas fritas. Mas não se mexeu do canto da minha cama. A cara dela era uma bolinha de medo. Era horrível... os olhos dela pareciam tão magoados! Tinham umas sombras escuras a toda a volta. E ela chorava, chorava. - Helena esticou a mão para os cigarros. - Quando a tia e o tio dela tentaram entrar no meu quarto, ela guinchou como uma ave tropical. O tio Abu-ai-Rayhan cantou uma cantiga para ela de fora da porta. Era outra vez como num filme de Hollywood... um musical, desta vez. Mas a cantiga dele não melhorou a situação. A Sana entrou em greve... E não foi a última vez que o fez. O único poder que as crianças têm, às vezes, é não fazer as coisas.

- Lisístrata - disse eu.

- Que é que tem?

- É uma história assim... As mulheres entram em greve pela paz.

Ela acendeu o cigarro.

- Também pensei isso... logo que ela me disse que ia fazer essa peça. Mas naquela altura a Sana não queria paz. Queria ver toda a gente tão aflita como ela. Nem o profeta Maomé havia de mover aquela pequena montanha. E aquelas histórias dela, iam-se tornando cada vez mais aterrorizadoras com o correr dos dias.

A Abelha-Mestra, agora, andava sempre atrás dela. E eu tinha de a pôr a andar com magias mais poderosas do que antes. Tinha de fazer gestos no ar, da maneira certa... - Helena imitava um tornado com as mãos. - Era uma linguagem gestual que só a Sana entendia. Uma vez estive uma hora a andar à volta dela para a manter protegida, e a murmurar orações em hebraico. Depois, quando a Abelha-Mestra foi derrotada, a Sana pergunta-me coisas como: «Que acontece se atam uma rapariga dentro de um saco e é atirada ao mar?» Ou: «E se os soldados põem correntes à minha volta e me levam para cima de uma montanha e me atiram de lá abaixo? Achas que a minha mãe volta para casa e me encontra?» Eu chorava imenso e pedia-lhe para não dizer coisas tão horríveis, mas ela não se calava. Não conseguia. O desaparecimento da mãe tinha desatado um nó aqui - Helena bateu com a mão na cabeça. - Disse-lhe que ia ficar bem porque eu ia segui-la para qualquer lado que a levassem os soldados ou a Abelha-Mestra. Que eu cortava as cordas e as correntes com a minha tesoura mágica. «E se a Abelha-Mestra vier atrás de nós quando formos a fugir para casa?», pergunta ela. «E se me obriga a subir para as costas dela e me leva para a prisão?»

- A Sana saía-se sempre com mais uma razão para ter medo - observei eu.

- Pois é. Mas então tive uma ideia. Disse-lhe que lhe ia bater na cabeça com flores de hortênsia do nosso jardim e transformá-la num pintarroxo pequenino para ela poder fugir. Ia ficar tão pequenina que a Abelha-Mestra não a via, digo-lhe eu, e bem camuflada no céu. E muito rápida. Os olhos dela... abriram-se enormes ao ouvir aquilo... tão grandes como toda a esperança que havia nela. E então, quando não havia mais nada para a acalmar, quando ela estava a soluçar, eu transformava-a num passarinho com as cores do céu.

Eu pensei em Sana no restaurante do hotel, em Perth, fingindo que tinha um pássaro pousado no dedo. E a flor azul de hibisco atrás da orelha, quando a vi no bar, será que a transformou num pintarroxo quando estava sozinha no quarto? Mas tinham-na descoberto e obrigado a saltar - ou tinham-na empurrado, até.

- Tenho uma pergunta estranha para te fazer - disse eu a Helena.

- Então vou tentar dar-te uma resposta estranha.

- Achas que alguém pode ser ferido, ou até assassinado, por alguma coisa imaginária?

- Pela Abelha-Mestra, queres tu dizer? Não sei.

- Porquê uma abelha? Ela abanou a cabeça.

- Desculpa. Há muitas coisas sobre a Sana que eu não compreendo. - Mostrou o copo vazio. - Preciso de mais um pouco. Volto já.

Enquanto ela se servia de outro brandy, pensei que o suicídio de Sana tinha sido um enorme fracasso para Helena; prova de que não era uma feiticeira capaz de salvar a amiga.

Depois de ela se aninhar de novo no sofá, perguntei-lhe:

- Porque achas que a Sana tinha tanto medo de ser apanhada por um monstro... ou de ser assassinada?

Helena fumava pensativamente.

- Não sei. Talvez já tivesse nascido assim. Talvez fosse por ser árabe em Israel, numa pátria que se torna um país estrangeiro. Quem o pode dizer? Seja como for, Mahmoud acabou por trazer de volta a tia Zeinab, no mesmo velho Ford. A princípio, parecia a mesma. Tinha um grande sorriso quando saiu do carro. Ainda assim, aquilo era um fim feliz, e ela foi a vedeta do filme policial do bairro durante duas semanas inteiras! Não me parece que mesmo ela acreditasse que o fim não fosse realmente muito feliz. A princípio não. Ou então era realmente uma actriz tão boa como todos no bairro queriam que ela fosse. A Sana correu para ela e abraçou-a. Estavam as duas desfeitas em lágrimas. Sentaram-se em frente da casa. Quando a minha mãe e eu corremos para elas... - Helena agitou os dedos levemente diante dos olhos a mostrar o muito que elas choraram. - A minha mãe adorava a Zeinab e aquela miúda com toda a vida e ferocidade que os nazis tinham tentado destruir nela. Ela adorava-as com abraços e risadas e beijos... Era a vitória da minha mãe em relação a tudo daquele sítio, estás a ver? Graças a Deus, ela nunca soube que a Sana se tinha matado. - Helena abanou a cabeça como se não se pudesse esperar nada de bom do mundo. - Vou dizer-te uma coisa da minha mãe que é segredo. Quando se levantou, ao lado da tia Zeinab, ergueu as mãos acima da cabeça e deu graças. Estás a ver, o regresso de Zeinab era a resposta às suas orações. É verdade, ela ainda rezava depois de tudo o que se tinha passado na Europa, embora dissesse a toda a gente, menos a mim e ao meu pai, que não acreditava em Deus. Ninguém sabia que tinha sido ela, e não o meu pai, quem tinha posto a mezuzah por cima da nossa porta. Tenho a impressão de que não saiu do lado da tia Zeinab durante uma semana. Mas depois começámos a perceber que as coisas não eram as mesmas...

- Espera aí, por que é que a Zeinab tinha andado ao barulho no mercado?

- A mulher judia tentou passar à frente dela. Puseram-se a discutir e aquela estúpida chamou à tia Zeinab cbametz, sabes o que é, aquela comida que tem de se varrer para fora de casa na Páscoa. A tia Zeinab sabia o que a palavra queria dizer porque ajudava sempre a minha mãe, o meu pai, e a mim a limpar a nossa casa antes da Páscoa. E comia connosco o Seder, também. - Os olhos de Helena endureceram. - Dizer a uma mulher palestiniana que ela não está limpa... É um insulto enorme. A tia Zeinab ficou fula e desatou a bater na outra.

Helena levantou-se para abrir a janela que dava para a rua. Estávamos a ficar lentamente assados pelo aquecimento e eu ia-me desembaraçando aos poucos da minha roupa. Ela ficou a fumar uns instantes sem dizer nada, a rebuscar nas memórias do passado.

- E era verdade que Zeinab tinha sido levada para o Líbano?

- Era, mas primeiro levaram-na para um edifício em Haifa. Ela não conseguia dizer que sítio era esse. Talvez fosse a esquadra onde foi o meu pai. Havia lá outras mulheres.

Tenho quase a certeza de que foi violada. Ela nunca o disse, mas... mas eu bem via a tremenda angústia da minha mãe quando olhava para a tia Zeinab. E o medo também. Ela sabia o que tinha acontecido na esquadra.

- Alguma vez te disse alguma coisa?

- Não, disse-me que estava tudo bem. O que era estranho, porque ela dizia-me sempre a verdade, mesmo quando talvez eu não a devesse saber. Acho que a tia Zeinab a deve ter feito jurar que não dizia nada. - Helena sentou-se novamente. - Depois de ter voltado para casa, a tia Zeinab andava sempre nervosa. Começou a ver problemas onde não os havia. Acreditava que tinha poderes especiais. Ela e a Sana sempre quiseram ter poderes mágicos, sabes. E infelizmente queriam que eu os tivesse também. E então, quando a tia Zeinab olhava para nós... - aqui, Helena fixou-me com a insistência penetrante de um hipnotizador - ... não era para nós que olhava, mas sim para a crise que crescia dentro de nós. Pensava que podia ver o nosso futuro, a doença fatal que íamos apanhar, a pedra que nos ia fazer tropeçar na rua... Viu coisas más em toda a parte, em toda a gente. E tudo falava com ela a todo o momento. As paredes sussurravam-lhe que os telhados iam ceder. O vento fala-lhe de fumos venenosos das fábricas. Tornou-se na Cassandra de Haifa. Era uma coisa de loucos! A minha mãe começou a dizer que quando a tia Zeinab entrava numa sala, entrava com ela uma onda de desgraças. Eu, às vezes, até tinha dificuldade em lembrar-me de como era ela antes disso. Mas tenho a certeza de que havia um antes. As pessoas mudam.

- Há pessoas que pensam que não mudam, pelo menos a sério.

- Enganam-se. Pela minha experiência, normalmente mudam para pior. Helena levantou-se de novo, tomada pelo desassossego em que a sua história a lançara. Levando com ela o gravador, voltou para junto da janela e encostou-se ao parapeito, recortada contra a noite. - E então veio o pior. Descobrimos que o medo que a tia Zeinab tinha do que pudesse acontecer era contagioso.

Fez-nos sentir a todos que estávamos para sofrer uma tragédia a qualquer momento. Lembro-me de que uma vez me mandou um berro para me afastar da janela junto da cama da Sana porque ia rebentar com uma explosão. Eu ia ficar coberta de vidros. Bateu-me na cabeça por eu não me afastar depressa. Foi a primeira e a última vez que me bateu. A seguir desatou a soluçar e não conseguia parar. Tive de sair a correr para ir buscar a minha mãe. Quando depois ia a casa da tia Zeinab, ela punha cruzes de fita-cola em todas as janelas, como se estivéssemos para ser bombardeados. E sabes uma coisa? Comecei a ver com cuidado onde me sentava. E cada pequeno ruído na rua levava-me a imaginar que os soldados israelitas estavam a apontar as armas para a tia Zeinab, para a Sana e para mim. Todo aquele medo que emanava dela, dava cabo de tudo... Mesmo das horas que eu e a Sana passávamos no nosso esconderijo.

- E depois não melhorou?

- Mais tarde, mas não antes de piorar. Sabes uma coisa, a Zeinab acabou por pôr no quarto dela a cama da Sana. Punha-a a dormir lá. E obrigou-a a prometer que só saía de casa para ir para a escola. Tinha de voltar para casa logo a seguir. Embora às vezes se deixasse ficar fora, a brincar comigo e outras crianças. Nessas alturas, Mahmoud espancava-a até ela gritar a pedir socorro. Um dia fechou os olhos e deixou de falar, como se uma porta se tivesse fechado dentro dela. Voltou a entrar em greve. Mesmo quando o pai lhe batia, não soltava nenhum som. Isto já te deve dar uma ideia da determinação daquela miúda. E ele batia-lhe com força, o suficiente para lhe deixar marcas. Mas ela cerrava os lábios como... como se os tivesse cosido. O silêncio dela ainda provocava mais o Mahmoud. Também ele tinha mudado, estás a ver. Depois do regresso de Zeinab, não conseguia resistir à violência que havia dentro dele. Até eu era capaz de ver que as coisas não andavam bem entre ele e Zeinab, e que a Sana estava a pagar pêlos problemas entre eles. Talvez Mahmoud pensasse que o que a judia tinha dito sobre a sua mulher era verdade, que Zeinab estava chametz por os soldados a terem violado. Se eu fosse mais velha, talvez o pudesse entender melhor, compreender a culpa que sentia por não ter protegido a mulher. Mas para mim ele era simplesmente cruel. Odiava-o. Mas a Sana não. Temia-o, mas amava-o. Estava muito confusa com todas aquelas mudanças. Queria que as coisas voltassem ao que eram antes do desaparecimento de Zeinab. Queria voltar atrás no tempo. Mas não era possível. Às vezes não falava comigo. Ficávamos no nosso esconderijo horas e horas e ela recusava-se a pronunciar uma palavra. Foi com ela que aprendi que as pessoas a quem não deixam dizer aquilo que realmente pensam, às vezes deixam de dizer o que quer que seja. Fingem... fingem não ter voz. - Helena murmurou estas últimas palavras com as mãos a tapar a boca, como se estivesse a quebrar algum tabu, e depois rompeu em lágrimas. Eu levantei-me e ajoelhei-me ao lado dela. - A tristeza vem em vagas - gemeu. - Desculpa.

- Não tens de falar mais - disse eu.

- Não, não vês? Também estou em greve, desde que a Sana se matou. Não digo nada a ninguém. Nada. Mas tenho de contar estas coisas a alguém. Estão a matar-me. Tenho de as deitar para fora antes que também elas me façam dar um salto.

Helena tinha posto um CD de Leonard Cohen quando saíra para encher o copo, e enquanto eu segurava na mão dela, ele cantava suavemente: «But I sivear by this song and by ali that I have dom wrong, I will make it ali up to thee...» Não conseguia adivinhar se ela estava a ouvir, mas, quando se acalmou, voltou-se para a aparelhagem e disse:

- E como é que resolve os problemas a uma amiga morta, Monsieur Cohen? Olhando para mim, acrescentou: - Se me perguntas, foi por isso que ela se dedicou à dança e à mímica... para dizer o que tinha a dizer da única maneira possível, porque falar sobre si, em voz alta, falar sobre aquilo que sentia, era sempre punido. E, segundo a Zeinab, podia até desencadear uma tragédia na família.

Helena foi à casa de banho lavar a cara. Comecei a pensar se ela e Sana tinham sido amantes. Semanas depois, ela havia de me contar ao telefone:

- Oh, tentámos uma vez, na minha casa em Paris. Mas éramos tão desajeitadas que acabámos na risota.

Tocou o telefone. Helena precipitou-se para a sala e começou uma longa conversa em hebraico, fumando compulsiva-mente enquanto falava, como se a nicotina a pudesse levar através do Mediterrâneo até às costas de Israel. Na confusão das suas palavras, conseguia aperceber-me de que era alguém que ela conhecia há muito tempo e com quem precisava de falar deses-peradamente. Eu gostava do som áspero, de papel de lixa, do hebraico na voz dela. Uma vez, ouvi-a dizer o meu nome. Os nossos olhares encontraram-se e ela girou a mão no ar e apontou para uma rima de livros em cima da mesa de jantar, a dizer que podia vê-los à vontade.

- Há mais no meu quarto - sussurrou, tapando o bocal com a mão. - Pega nos que quiseres... não te preocupes com a ordem. Não quer dizer nada. - Observando-a a falar ao telefone, apercebi-me de que, apesar do que ela dissera, eu iria acabar por gostar cada vez mais dela.

 

Depois do telefonema, que era do pai («O meu pai manda cumprimentos»), Helena disse que nessa noite não podia dizer mais nada sobre Sana. Antes de sair, perguntei-lhe pelo pai, e ela disse-me que ele se tinha reformado da universidade. Vivia sozinho desde a morte da mãe dela, há dez anos, e passava a maior parte do tempo a fazer jardinagem numa casita que tinha comprado no deserto perto do mar Morto. Dedicava-se à criação de feijoas híbridas, um tipo de goiaba de que ouvira falar pela primeira vez a um amigo botânico da Nova Zelândia. O objectivo dele era conseguir uma feijoa de polpa dourada. Além disso, fazia também um programa sobre jardinagem às terças-feiras numa estação de televisão de Ramallah e às quintas na secção documental de uma biblioteca em Hébron. Tinha de andar de carro um bom bocado, mas mantinha-o ocupado.

- Se alguma vez precisares de saber se há uma autobiografia de Abu Nidal em árabe ou em hebraico, ele é a pessoa indicada.

A julgar pelo modo como sorria ao falar do pai, podia ver que o adorava. Também já sabia que ela queria fazer com que as suas amizades e fidelidades durassem para sempre.

- Ele não tem medo de trabalhar nos Territórios Ocupados? - perguntei.

Helena viria a dizer-me mais tarde que ele tinha sido atacado, mas por agora limitara-se a responder:

- Oh, por amor de Deus... quem é que ia agora criar problemas a um velho judeu com pêlos nas orelhas e umas mãos minúsculas, com pouco mais do que metro e meio de altura, aos tropeções com uma bengala... como um Mister Magoo judeu.

- Como é que conheces o Mister Magoo?

- Via muita televisão quando vim para França. Adoro o Mister Magoo.

A voz dela soava-me despreocupada e forte, mas quando demos um beijo de despedida os modos dela tornaram-se embaraçados, como se não confiasse inteiramente nas suas próprias pernas e braços. No umbral, voltou a tocar a mezuzah e levou os dedos aos lábios. Como explicação, disse:

- Agora vais deixar-me sozinha.

 

PASSEI AS TRÊS SEMANAS seguintes a trabalhar no romance que andava a escrever, a dar as minhas aulas de jornalismo e a transcrever as gravações de Helena. Surpreendeu-me a sua voz seca e apagada - como uma brisa furtiva sobre a pedra nua. Alex achou que lhe soava muito só, mas não triste - como se fosse isso que ela queria. Decidi não correr o risco de a pressionar - não lhe telefonar durante umas semanas. Mas ela telefonou-me já noite adiantada no fim de Abril, cerca de um mês depois do nosso encontro.

Eu estava quase a dormir. Depois de um pouco de conversa de circunstância, saiu-se com mais uma das suas bolas para o ar:

- Quem há-de salvar uma rapariga que recebe ameaças de morte?

Aquilo soava-me como uma pergunta que Sana podia ter feito quando eram crianças. Lembrava-me que as duas partilhavam uma linguagem que remontava à infância.

- Alguém andava a ameaçar a Sana, a fazer chantagem com ela? - perguntei, julgando ter detectado mais uma ligação com O Ultimo Cabalista de Lisboa, no qual os judeus secretos de Portugal - que tinham de esconder a sua fé da Coroa e da Igreja - estão sempre sujeitos a chantagem.

- A mim, não a ela - replicou Helena. - Ameaçam-me com cartas.

- Quem é que te ameaça?

- Está-me a parecer que tu é que vais ter de me dizer isso, Sherlock. Não sei se estás a ver, eles não vão pôr a assinatura e o endereço nas cartas. Embora isso - chilreou ela jovial - fosse muito, muito simpático.

- Por que é que te ameaçam?

- Vou mandar-te as cartas. Depois de as leres, falamos.

- É tarde... Diz-me agora.

- Não, tens de esperar. Digo-te quando receberes as cartas.

- Helena, tiraste-me da cama. Diz-me agora. Ela riu-se.

- Okay, okay... A morte de Sana... deixou-me livre de embaraços e comecei a escrever cartas aos jornais de Israel. As cartas vão buscar força à minha tristeza e à minha raiva. Não consigo conter-me... estamos a escrevê-las juntas, ela e eu.

- A Sana ajuda-te a escrever as cartas?

- Oh, deixa-te disso, não estou assim tão louca. Mas é como se estivéssemos as duas ainda juntas no nosso esconderijo... o tempo todo, agora. Ela está a ver por cima do meu ombro enquanto eu escrevo. Concorda com umas coisas e discorda de outras. Três das nossas cartas foram publicadas. Alguns leitores devem ter descoberto onde é que eu vivo e escreveram-me. Talvez trabalhem para os jornais e tenham visto o remetente. Talvez trabalhem para a Mossad.

Estar a ser espiada pela polícia secreta de Israel pareceu-me altamente improvável e caí na asneira de lho dizer. Ela ficou calada, e depois disse umas coisas que não faziam sentido nenhum. Apercebi-me de que tinha estado a beber. Finalmente, disse:

- Eles não se limitam a caçar velhos nazis e palestinianos, não sei se sabes! Têm fichas de todos os judeus que falam de mais.

- Pode ser que sim. Seja como for, o que é que dizes nas tuas cartas que possa deixar a Mossad tão alarmada?

- Vou mandar-te a mais recente. Vou traduzir-ta para inglês o melhor que sei, embora vás perder alguma coisa do que eu digo no original em hebraico. É mesmo pena que não fales hebraico. Não és lá grande judeu, sabes?

Ri-me.

- Não te preocupes, eu acredito que a tua carta é muito

melhor no original.

- Não, deves é acreditar que é muito pior... É sempre pior ser-se traído na própria língua.

 

Não tardei a receber pelo correio nove das cartas anónimas que tinham sido enviadas a Helena. Tinham sido todas mandadas nas duas semanas anteriores, depois de dois jornais de Telavive, o Maariv e o Yediot Acbaronot, terem publicado uma carta provocadora dela. Cinco delas eram em hebraico, duas em inglês, e a mais comprida numa mistura de hebraico e de grego, num papel azulado. Helena disse-me que esta última fora enviada por um israelita que afirmava ter crescido em Salónica com a mãe dela, embora Helena nunca tivesse ouvido falar nele e suspeitasse de que era mentira. Entre outras coisas, declarava que a mãe dela nunca haveria de lhe perdoar aquilo que ela tinha escrito. Era isso o que mais incomodava Helena, mesmo sabendo que não era verdade. Disse-lhe então que, se tivéssemos de contratar um detective, talvez o papel azul nos conduzisse a uma papelaria determinada e ao autor da carta.

Ela insinuou que eu devia andar a ver demasiados episódios do Columbo e que não servia de nada descobrir algum velhote grego com uma máquina de escrever, uma memória vasta mas possivelmente falseada, e com uma data de tempo livre.

- Ou será que queres enfiar-lhe um tiro em vez de mim? - acrescentou ela num tom esperançado.

Quando lhe disse que, se lhe acontecesse alguma coisa, eu contratava realmente um detective israelita para descobrir o inimigo grego, ela respondeu:

- Bem, se nessa altura eu estiver morta, deseja boa sorte ao Columbowitz da minha parte. Se ele descobrir o grego, diz-lhe que ando a aprender a fazer moussaka e todas aquelas coisas que nunca tive tempo para aprender.

Vendo que eu não me ria, acrescentou:

- Se calhar não tenho muita piada. Desculpa. É que estou nervosa.

A carta mais comprida em inglês - uma página inteira escrita à mão - estava assinada «Judith», com umas aspas grossas no nome. Fora enviada de Inglaterra. Provavelmente adoptara aquele nome para mostrar que defenderia Israel até à morte; num dos livros apócrifos da Bíblia, Judith seduz um general inimigo e corta-lhe a cabeça. A carta começava com: «Deves achar que és muito esperta, mas não paças de uma puta anti-semita no papel de iscrever às mãos dos nazis.» Continuava, acusando Helena de traição e condenando-a à morte «na ponta de uma espada» por esquecer o Holocausto. Acabava «devia ter pena de ti por udiares a ti própria, mas não há lugar para anti-semitas num coração que surviveu aos campos da morte». O texto continha vários erros ortográficos e de gramática, pelo que era claro que aquela não era a língua materna da tal Judith. Estava escrita com tinta vermelha.

A segunda carta em inglês fora enviada de Israel e constava de duas linhas apenas. Um aparo furioso tinha atravessado o papel em vários pontos. «Tenho uma boa arma, por isso vê por onde andas em Paris, porque andarei a seguir-te», dizia a carta. Mais uma vez não havia data, e estava assinada de forma ilegível por cima da frase: «Justo é o soldado que verteu o seu sangue para maior glória de Deus.»

Nos excertos que Helena traduziu das cartas em hebraico, referiam-se-lhe frequentemente como uma «cabra» e uma «terrorista». Mas zona, que quer dizer «puta», era o epíteto mais frequentemente usado - doze vezes numa carta de três páginas impecavelmente dactilografada e assinada «David». Se era algum louco, então era dos meticulosos, o que tornava ainda mais terrível a ameaça de «levar de volta para Israel a tua carcaça de putéfia enfiada numa mala».

Pondo de parte as ameaças propriamente ditas, pareceu-me revelador que quase todos os autores das cartas viam uma mulher que discordasse deles como uma prostituta ou como um animal.

Mulheres com opiniões divergentes não podiam, aparentemente, ser seres humanos.

Apesar da minha prudência, aceitei ajudá-la a traduzir para inglês a carta que ela escrevera e que tinha inspirado tanto ódio. A nossa versão final dizia o seguinte:

 

Sr. Director,

Li recentemente a notícia do apedrejamento até à morte de Yosef Ish-ran, de 14 anos, e de Ya'acov Mandell, de 13, dois rapazes que viviam no colonato judaico de Tekoa nos Territórios Ocupados. Os corpos deles foram encontrados numa gruta perto das suas casas e tinham sido tão horrivelmente mutilados pelos árabes palestinianos das vizinhanças que tiveram de ser identificados por meio das fichas dos dentistas. Li igualmente que, apesar da sua mágoa, a mãe de Yosef está determinada a permanecer em Tekoa. Diz ela que essa determinação lhe vem das palavras que o filho lhe disse um dia: «Se tiveres de deixar Tekoa, é contigo - Eu fico cá. Gosto deste lugar.»

Vários artigos publicados em jornais e revistas, logo a seguir ao apedrejamento, asseguravam aos leitores que, até estes assassinatos, Tekoa tinha sido um modelo de coexistência pacífica entre os 230 colonos e os 7000 árabes palestinianos que vivem nas aldeias circunvizinhas. Tenho as minhas dúvidas, mas aceitei que - pelo menos à superfície - a vida fosse ali tranquila. Como todos sabemos, no entanto, «tranquilo» é uma palavra que em Israel não significa nenhuma estabilidade - é uma palavra capaz de mudar a cada momento, digamos assim.

Mais tarde, chegaram notícias de que os atiradores furtivos árabes tinham realmente disparado contra o colonato de Tekoa e tinham mesmo colocado bombas nas bermas das estradas antes da morte dos rapazes.

As particulares circunstâncias destes crimes levaram-me a uma conclusão que durante algum tempo tenho tentado evitar, talvez toda a minha vida. Devo ainda confessar que houve dois outros acontecimentos que me incentivaram a pegar na caneta: um ataque no deserto ao meu pai, Samuel, um botânico de oitenta anos que apenas pretende criar beleza a partir das areias do deserto; e o suicídio de uma amiga palestiniana que encarnava todo o poder criativo dos nossos dois povos. É por solidariedade com ela que agora digo o seguinte: os Palestinianos odeiam-nos, mesmo nas melhores circunstâncias. Mesmo em Tekoa. E a verdade que poucos de nós admitirão é que eles têm razão para isso, pois nós demos-lhes amplas provas de que os odiamos ainda mais. Pondo de lado as atrocidades que cometemos contra eles e que são conhecidas de todos, mostramos esse ódio cada vez que um judeu diz que o nosso sofrimento é diferente e mais importante do que o deles.

Os três milhões de palestinianos que vivem no exílio sabem que nós os odiamos. Não os devemos esquecer nem aos seus irmãos e irmãs que vivem nos Territórios Ocupados, porque eles são igualmente capazes de atirar pedras. E que ninguém se engane: na Palestina há pedras que cheguem para matar todos os cidadãos de Israel.

Mesmo no mais pacífico dos colonatos, em lugares como Tekoa, mostramos o nosso ódio pela simples razão de essas cidades e aldeias serem construídas em terra palestiniana. A mãe de Yosef, ainda que possa ser muito boa pessoa, é a representante de um exército ocupante. E não nos esqueçamos também que ela chegou até nós vinda da América, pois ela e a família apenas se mudaram para Israel há sete anos. De certeza que cada palestiniano se pôs a questão pelo menos uma vez: haverá tão pouca terra nos Estados Unidos que os judeus americanos têm de nos tirar a nossa?

Por isso, que aqueles que admiram a mãe de Yosef pela sua determinação em ficar em Tekoa percebam isto: ela permitiu que o seu filho se tornasse alvo de ódio no dia em que o trouxe da terra das suas amadas estrelas de basebol para uma nova pátria onde os jogos que se jogam são muito mais sérios. Não me peçam que acredite que ela está a fazer o que deve ao ficar em Tekoa. Não me peçam que louve a coragem dela. Nunca poderei acreditar que mães dedicadas permitam que os filhos e filhas vivam numa terra roubada a outro povo. Coragem seria reconhecer o erro e abandonar a sua nova casa. E até que o último colono de Tekoa faça isso, ou, ainda melhor, a dê de presente a um palestiniano a quem os tanques do exército tenham derrubado a casa, não me peçam que acredite que são pessoas de justiça e de paz.

O ódio brutal que caracteriza os dois lados neste combate levará muitas décadas a abrandar, mesmo que a paz acabe por se fazer. E por isso, até à época em que a paz acompanhe até à idade adulta pelo menos duas gerações, eu apelo a uma separação total entre judeus e árabes. Todos os colonatos judaicos nos Territórios Ocupados deviam ser evacuados e encerrados, e todos os árabes que vivem em Israel deviam ser deportados. Deixem os Palestinianos ficar com Jerusalém Oriental como capital e comecemos a construir aí a grande barreira - um muro que vá de norte a sul, desde as ruínas do templo de Salomão.

Quando ouço os nossos dirigentes dizer-nos que as pedras do Muro oriental são mais valiosas do que as vidas dos palestinianos, fico a perceber que o novo muro deve começar aí. Comecemos a sua construção com as pedras ensanguentadas que mutilaram os corpos de Yosef e de Ya'acov.

Que todos saibam: se o Muro das Lamentações pudesse falar haveria de dizer-nos: «Preferia tombar em pó, preferia desfazer-me em nada, preferia ser esquecido, do que usado para justificar a morte de uma só pessoa. Por isso mandem-me pelos ares, se for preciso, e construam um novo muro, e que ele suba e desça ao longo da fronteira de Israel, e abra o seu caminho até ao mar, para que mais nenhum sangue seja derramado. Que não se abram nem portas nem passagens neste muro. Que nem palavras, nem sequer sonhos, possam atravessar as suas pedras.»

Sim, façam com que a separação entre os dois povos seja absoluta - para nos proteger daqueles que possam apedrejar os nossos filhos até à morte, e para os proteger a eles dos que acreditam que é prova de coragem roubar uma pátria a outros.

 

Enquanto procurávamos aperfeiçoar a tradução inglesa, pus algumas perguntas a Helena sobre o ataque ao seu pai, mas as respostas dela eram sempre muito vagas.

- Quando acabarmos a carta, conto-te o que se passou - prometeu.

Agora que se mostrava satisfeita com a última versão do texto, telefonei-lhe e lembrei-lhe a promessa.

- Oh, não foi nada de terrível. O meu pai foi ferido por uns rapazes palestinianos. Empurraram-no e fizeram-no cair. Teve de ficar no hospital três dias.

- Mas agora está melhor?

- Está óptimo - mentiu ela. - Está a descansar em casa. Está tudo tranquilo.

- E o muro... Estás realmente a falar a sério quanto à necessidade de construir um muro?

- Totalmente. Já não acredito que a coexistência seja possível. Nem mesmo aos que deixam Israel faz bem. Acabam por se atirar de janelas de hotel na Austrália.

- Queres dizer que achas que a Sana se suicidou por não ver nenhuma maneira de fugir ao seu passado?

- Eu? Eu não sei nada! - replicou amarga. - A Sana não confiava em mim o suficiente para me dizer o que pensava. Só raramente dizia o que queria dizer... Tinha uma mãe que ouvia paredes a sussurrar e um pai que lhe batia com tal gana que ela se remetia ao silêncio como única defesa. Não tinha papéis do Governo para viver na sua própria casa. Estás a ouvir o que te digo? Na sua própria casa! Meu Deus, passou anos a proteger o gato dos soldados. - O desespero queimava na voz dela. - Se não escreves isso... se não explicas isso na tua história, então está tudo errado. Estás a ouvir-me? Vais perceber tudo ao contrário, sobre ela?

- Helena, claro que quero perceber tudo bem. Compreendo que ela devia estar desolada.

- Não é só isso! O que ela fez... foi um último espectáculo, contigo como assistência. Ficou à espera até tu estares na primeira fila.

Ou julgas que foi um acaso tu estares ali para assistir à sua morte? Deves ter topado isso, não?

- Mas ela não podia saber que eu estava ali quando saltou.

- Aah! Claro que sabia. Olhou em volta e viu-te sentado na esplanada, a tomar o teu chá e decidiu que estava na hora - disse Helena, e ofegou.

- Que foi?

- Meu Deus, meu Deus, mesmo que o tenha planeado, devia estar tão assustada!... Se ao menos estivesse ao lado dela. Fui muito louca.

- Mas por que é que ela havia de me querer lá? - perguntei.

- Diz-me cá, o que é que fazes como profissão?

- Sou professor de jornalismo. E escritor.

- Exactamente. E ela leu um livro escrito por ti. Fê-la confiar em ti.

- Estás a dizer que ela queria que eu escrevesse sobre a sua morte? Que ela se matava e eu pegava na caneta? Mas eu escrevo ficção. É uma loucura.

- Pode ser que sim, mas se era isso que ela queria, então o seu desejo realizou-se, porque estás a falar comigo agora e queres escrever alguma coisa sobre ela. Estás a ver? Ela sabia que, mais tarde ou mais cedo, havia de te levar a contar a história dela... Como a Zeinab foi violada, e como vivíamos na Casa das Hortênsias Azuis e tudo o mais. Ela não a podia escrever, não tinha assim tanta confiança em si. E talvez também não tivesse o talento. Por isso arranjou uma pessoa que fizesse isso por ela. Sabia que podias transformar o silêncio em alguma coisa: em alguma coisa com vida. Se queres saber a minha opinião, foi por isso que te disse que tinha gostado do livro.

- Mas isso quer dizer que... que de certo modo ela quase... - Que ela te usou.

- Não posso acreditar numa coisa dessas.

- Pensas que ela era uma santa, não é? Okay, talvez fosse, mas talvez os santos sejam as pessoas mais ardilosas de todas. A Sana planeava tudo dentro das teias de aranha daquela cabecinha dela. E tu, mon cher ami, foste apanhado na teia.

- Será que ela se sacrificou só pela possibilidade de eu vir a escrever alguma coisa? Não me parece.

- Talvez ela não estivesse a pensar muito bem... Houve uma coisa que a tornou muito emotiva nessa semana, muito nervosa. Disseste-me que ela mimava pássaros no restaurante do hotel. Ainda não compreendes, pois não? Isso não queria dizer que estivesse feliz ou que se estava a divertir. Não era o que tu pensavas. Significa que estava a tentar voar para longe daquilo que a ameaçava. E a flor atrás da orelha, estava atada à ponta de uma varinha mágica que tu não conseguias ver. Só ela a podia ver. Aquele pássaro que tu apanhaste e lhe devolveste, tu pensaste que estavas só a fazer uma linda brincadeira com ela. Mas para ela era muito mais do que isso. Era um sinal de que tu a compreendias e de que estavas disposto a juntar-te a ela em tudo o que ela planeava. Concordavas em tornar-te parte da sua estratégia. Entraste nas fantasias dela. E deixa que te diga, ela tinha fantasias muito maiores do que qualquer outra pessoa que tenhas conhecido. Tu... tu tornaste-te como eu, estás a ver... um co-conspirador.

Helena sussurrou esta última frase, como que para a furtar a ouvidos indiscretos. Mas havia uma energia tensa por detrás daquilo que dizia. Imaginei que os nós dos dedos com que agarrava o auscultador lhe ficavam brancos.

- Então ela matou-se para me levar a escrever a história dela? - perguntei. - Será possível?

- É possível. Só não sei ao certo se foi isso que aconteceu.

- Não és uma pessoa fácil, sabias? Toda esta história... tudo o que aconteceu desde Perth... É como se tu e a Sana estivessem a virar o

meu mundo de pernas para o ar.

- Bem te dizia que ias gostar cada vez menos de mim, quanto mais me conhecesses.

- Isso não é verdade, e tu bem o sabes. Só que tudo isto me deixou bastante confuso.

- Todos nós estamos confusos.

As cartas odiosas enviadas a Helena estavam espalhadas à minha frente.

- Já foste à polícia por causa das ameaças que recebeste?

- Não. Que havia de dizer à polícia? Não podem fazer nada até que um dos escribas tente atingir-me. Vou dizer-te uma coisa... nesta altura, acho que até gostava que algum tentasse, só para pôr fim a esta espera.

- Estás com medo?

- Claro que estou. Não te pareço com medo?

- Não, pareces-me furiosa. Talvez até um pouco divertida. Acho que és muito mais forte do que pensas.

- Essa é muito boa! Ainda não topaste que eu também sou uma actriz? Não é sem mais nem menos que eu e a Sana somos amigas. Somos duas pequenas démonettes escondidas no escuro e a representar o tempo todo. Sabes uma coisa, se alguma vez fores a Israel, vais ver que a maioria dos israelitas são óptimos actores. Rabin e Sharon e Netanyahu... sempre a representar em peças que eles pensam que estão escritas na Tora. Aqueles loucos nem sequer sabem que são eles que as estão a escrever sozinhos! Tu também dizes isso precisamente no teu livro. Quando falas nas máscaras que os judeus têm de usar para se manterem em segurança, e como isso fará deles os melhores actores do mundo. O teu livro era perfeito para ela. Um dia destes devias mesmo tentar ler o que escreveste.

- Tem muita piada - comentei, numa voz irritada.

- Não era para ter. O que te estou a dizer é que devias ler o que escreveste e não confiar em nenhum de nós.

Helena afastou-se para ir buscar cigarros. Quando voltou ao telefone, disse:

- Então, o que é que pensas da minha carta?

- Se calhar, não devias meter-te em política.

- Isso não. Não me meti durante a minha vida toda. A morte da Sana obriga-me a meter-me. Concordas com o que eu escrevi, não concordas?

- Não tenho ideia nenhuma de como resolver o problema entre Israel e a Palestina.

- Deixa-me cá adivinhar... Como bom americano... tu achas que, se todos se sentarem à volta de uma mesa a dizer como se sentem, as guerras acabam logo ali: um-dois-três? Ou talvez que se Monsieur Arafat e o dirigente israelita aparecerem juntos no Larry King Live, voltam amigos para casa. Deixa que te diga, tu acreditas mais do que a Sana em varinhas mágicas com flores azuis de hortênsia na ponta.

Eu prometera a mim próprio, junto ao leito de morte do meu irmão - vendo-o definhar mau grado todos os nossos desejos em contrário, que nunca mais acreditaria em magia.

- Ouve, Helena, às vezes vais longe de mais - disse-lhe. - Na tua carta dás a impressão de que a mãe do Yosef é responsável pela morte dele. Não vês como isso pode virar as pessoas contra ti? E dizer uma coisa horrível... que magoa e que é cruel.

- Ai é? A sério que é? Então diz-me lá que espécie de boa mãe americana leva a família para um colonato rodeado de árabes... a merda de sete mil árabes! E que não está boa da cabeça. É uma criminosa!

- Mas talvez as coisas estivessem realmente tranquilas em Tekoa. O apedrejamento pode ter sido apenas uma anomalia. Coisas dessas podem acontecer.

- Oh, meu Deus, então não estavas a mentir, realmente não percebes nada. Volta a ler a minha carta. Em Israel, tranquilo é uma palavra de código que quer dizer que as coisas não estão ainda a explodir, mas que a qualquer momento podem estar. A única maneira de viver lá é fazer por esquecer que... esquecer o que pode acontecer a qualquer momento. E é o que as pessoas fazem. Somos muito bons a representar, como eu digo. Até acreditamos nos papéis que representamos. Mas posso garantir-te, quando um israelita, ou um palestiniano, está tranquilo, é a altura para ficar alerta.

- Mesmo assim, não tens de estar sempre a levar as coisas tão longe. Já alguma vez ouviste a palavra tacto?

- Passei cinquenta e três anos a ter tacto! Quando é que posso dizer aquilo que realmente penso? Depois de morta?

- Mesmo assim, todas essas ameaças...

- Enfim, não me vou matar só para lhes facilitar a tarefa. Aquele filho-da-puta do grego que tem a cbutzpab, a grande lata, de falar em nome da minha mãe... Bem pode esperar sentado, se está à espera disso. E a Sana também pode esperar mais um bocadinho. Quero que ela se vá foder!

- Achas que ela está à tua espera?

- Claro que está. Há-de esperar por mim o tempo que for preciso. É a pessoa mais paciente do mundo. Onde quer que esteja, está em greve até nós chegarmos junto dela... sem se mexer um centímetro. - Afastando o auscultador da boca, gritou: - Mas vais ter de esperar, Sana, estás a ouvir?

- Nós? Que nós é esse de quem ela está à espera ?

- De mim, queria eu dizer.

- Não, diz lá, quem mais?

- O meu pai, para começar. Ela adorava o meu pai. Achava que ele era o homem mais giro do mundo... um elfo judeu. Quando tinha doze anos já era mais alta do que ele. E gostava de brincar com as sobrancelhas dele... são peludas.

- Quem mais?

- Não sei. Mas devia ter bons amigos no Brasil. E talvez... talvez também esteja à tua espera.

- E se te matassem por escreveres essas cartas, o que é que ela acharia?

- Desculpa, tenho massa a ferver ao lume. Tenho de fazer o jantar. Está a chamar por mim. - Afastou o telefone da boca e fingiu que chamavam por ela. - Helena... Helena... - Depois despediu-se: - Adeus.

- Ouve, tu achas que ela ficava contente se te matassem, não achas?

- Richard, tu és muito esperto, mas não sabes calar-te quando deves. Se me permites uma criticazinha, acho que tu é que precisas de aprender a ter algum tacto, se vais escrever a história da Sana.

Desligou antes de eu conseguir mandar-lhe um berro ou então pedir-lhe desculpa; não sei bem qual seria a reacção mais adequada.

 

A próxima vez que Helena telefonou, foi também à noite, bastante tarde, e via-se claramente que tinha emborcado uns copos de brandy a mais. Começou até a falar comigo em hebraico. Começava a parecer-me que a bebida estava realmente a dar cabo dela.

Estava desesperada por me contar o ataque ao seu pai.

- Tem de ser - dizia. - Já não posso guardar segredos nenhuns.

- Então, afinal, ele não está bem?

- Não, não está nada bem.

Helena explicou que Samuel ia de carro de casa, no deserto, para a biblioteca, em Hebron, às sete da manhã no dia 12 de Março e tinha acabado de entrar nos Territórios Ocupados quando quatro rapazes mandaram parar o carro. Estavam em pé no meio da estrada, o amolgado Fiat branco deles parado na berma. Reconheceu um um rapaz magro, aí de um metro e oitenta, com uns bonitos olhos cor de folha de oliveira. Chamava-se Ibrahim e tinha ido à biblioteca dois anos antes para se informar sobre universidades na Austrália; um tio em Melbourne tinha-lhe sugerido que tentasse uma bolsa de estudo. Dissera a Samuel que queria ser engenheiro. Desde pequeno que fazia pontes, com arame, pregos, e raios de rodas de bicicleta enferrujados.

Samuel tinha pesquisado na Internet para mandar vir prospectos de universidades australianas. Quando chegaram, meteu-os num grande envelope e deixou-o na recepção com «Ibrahim» escrito em árabe. O rapaz tinha ido buscar a encomenda num dia em que Samuel não trabalhava.

E agora, o mesmo Ibrahim apontava a sua arma automática ao peito do velho. Ele e os outros rapazes palestinianos tinham cabelos crespos, empoeirados. No queixo, uns pêlos eriçados. Tinham ar de ter passado a noite acordados. Samuel pensou que Ibrahim não havia de querer mostrar diante dos amigos que conhecia um velhote israelita, por isso não disse nada. Talvez tivesse sido esse o seu erro. Talvez o rapaz tivesse ficado furioso com aquele minúsculo botânico judeu da biblioteca, que parecia não ser capaz de distinguir um palestiniano de outro. Numa voz desesperada, Helena disse-me:

- O meu pai devia ter dito: «Shalom, Ibrahim, então há notícias das universidades australianas? E como está o teu tio em Melbourne?» Às vezes, penso que nos treinaram para esquecermos a mais elementar cordialidade.

Um rapaz entroncado com uma t-shirt onde estava escrito «San Francisco 49» ordenou a Samuel que lhes entregasse as chaves do carro. Os quatro enfiaram-se então no Peugeot dele. Eram capazes de o terem deixado ali sem lhe fazerem mal, ou até devolvido o carro depois de o terem levado para alguma aventura, mas o segundo erro do botânico, pelo menos na opinião de Helena, foi dizer numa voz implorante que tinha andado naquele Peugeot sem problemas em todo o Israel e nos Territórios Ocupados durante dezassete anos e que era para ele de grande estimação.

- As pessoas que procuram sarilhos não gostam que lhes peçam para ter sentimentos - disse ela.

Um dos rapazes apontou a arma à perna esquerda de Samuel, mesmo acima do joelho. Puxou o gatilho. O velhote caiu e soltou um grito. O chapéu branco voou-lhe da cabeça. Sentiu uma dor aguda no braço e ouviu um estalido como de lenha que se quebra; tinha fracturado o braço ao cair. «Gott helfmir!» gritou ele, arquejante, em yiddish, «Deus me ajude!». Antes de perder a consciência, pensou em Rosa dizendo-lhe que a carreira olímpica dele como lançador de disco estava acabada. Ouviu risos. Dela? Dos rapazes?

Quando um primeiro carro passou por ele, de rajada, Samuel acordou no rasto de poeira e fumo. Tentou levantar-se, mas não conseguiu.

Encolhendo-se com as dores, entrou num silêncio escuro e inquieto. Suava de tal modo que, em sonhos, via-se a derreter no deserto. Quando voltou a acordar, soergueu-se no cotovelo intacto. O quarto carro a passar tinha parado - grande, verde e cintilante. Recorda-se de um homem de bochechas pendentes, comendo uma maçã e observando-o da janela aberta. Atirou o caroço para o chão, junto aos pés de Samuel. E arrancou a toda a brida.

Um velho judeu polaco jazia à beira da estrada numa poça de sangue e quatro condutores tinham seguido o seu caminho... Um quinto carro finalmente deteve-se e o condutor chamou uma ambulância. Levaram Samuel para o hospital local, onde lhe retiraram a bala.

Agora estava em casa, com uma pessoa a cuidar dele durante o dia. Embora não pudesse mais do que dar uns passos a manquejar, mostrava-se animado.

- Depois de tudo o que sofreu na vida, das duas uma: ou se tornou extremamente resistente, ou perdeu o juízo, depende do ponto de vista - observou Helena. - Seja como for, não quer pensar no futuro. Mas eu tenho de pensar. Se não puder voltar a andar, que vamos nós fazer?

Falámos durante bastante tempo nas opções que se punham ao pai dela. Helena mostrava-se cada vez mais sombria e desconfiada. Depois, com renovado vigor na voz, disse que tinham publicado outra carta dela.

- Outra vez não! - resmunguei. Disse que não conseguia conter-se.

- Se gosto de Israel, mas detesto o que se passa, que mais posso fazer? Diz-me lá.

Tinha usado a tradução que fizéramos da carta anterior como base para uma continuação - a sua primeira tentativa em inglês. Tinha-a enviado para o New York Times, o L.A. Times, o Guardian, e o Daily Telegraph. Estava simultaneamente entusiasmada e assustada com a possibilidade de conquistar um público mais vasto e ainda mais enfurecido. Chegou a perguntar-me se eu conhecia, nos Estados Unidos, algum jornal judaico semanal ou mensal que pudesse publicar o que ela tinha escrito.

- Mesmo que soubesse, não te dizia - repliquei. - Queres ver se te lixas, não é?

- Tenta ver as coisas desta maneira... se alguma coisa me acontecer, podes contratar o detective Colombowitz e investigar. São capazes de se divertir um bocado, tu e ele. Além disso, a minha família passou por tanta coisa naquele sítio que eu estou vacinada contra assassínios.

Deixei que o meu silêncio mostrasse que, mais uma vez, não estava a achar-lhe nenhuma piada.

- Ouve, eu não quero que me ataquem - apressou-se ela a garantir-me -, mas também não quero ficar calada. Compreendes?

Insisti em vão com ela para que deixasse de pensar em mais cartas; a maior parte dos leitores talvez pensem que ela não passa de uma pateta alegre, mas talvez outros pensem que é perigosa.

Felizmente, não tinha havido nenhum jornal americano nem inglês que tivesse publicado as cartas que ela enviara.

- Não tenho a certeza se fiz bem em traduzir aquela tua carta - disse eu.

- Eu assumo toda a responsabilidade. E não vai acontecer nada, prometo. Sabes uma coisa, estás a parecer-te um bocado com a tia Zeinab... está-me a parecer que ela te passou a doença das catástrofes. De qualquer maneira, há muito tempo que deixei de sair de casa durante o dia.

- Então o que é que te faz ter tanto medo de sair durante o dia?

- Se te dissesse, ias pensar não tenho o juízo todo.

- Não ligas muito ao que eu penso, pois não?

Estava à espera que desatasse a rir-se, mas disse, cortante:

- Não é nada simpático isso que disseste.

- Desculpa - disse eu. - Ouve, só queria que falasses nos teus medos. Não vou ficar a pensar nada de mal sobre ti.

- Há algum tempo - replicou Helena - comecei a reparar que havia um homem que me seguia quando eu saía de casa.

- Quem?

- Não sei. Começou há uns três anos. Na realidade eram dois homens... Revezavam-se. Um deles era tão ostensivo que só se eu fosse cega é que não o via. Acho que ele queria que eu soubesse que me seguia. Vi que nos olhos dele havia sempre um brilho de felicidade. Mas nunca mais o vi desde que deixei de sair durante o dia. Uma vez até falei com ele. Negou que estivesse a seguir-me. Falámos em francês. Mas quando lhe berrei em hebraico que chamava a polícia, ele praguejou comigo também em hebraico. Aquilo foi um erro.

- Era israelita?

- Claro. Quem mais fala a nossa língua? Mas isso não é muito importante. Nunca me fez nada.

- Detesto dizer isto, mas pode ser que ele e o outro tipo continuem a seguir-te. É mais difícil dar por eles à noite.

- Não me importa. Sair à noite não é com eles. A noite faz-me sentir melhor... mais escondida e protegida.

- Não achas que podem atingir-te com a mesma facilidade à noite?

- Vais ficar contente por saber, meu Sigmund, que dediquei alguma reflexão ao assunto. Herdei isso da minha mãe. No campo de concentração, a minha mãe só se sentia segura à noite. Acordar pela manhã era o que havia de mais difícil para ela. Durante a noite, nos sonhos, às vezes fugia por cima do arame farpado e corria o caminho todo até Salónica. Durante o dia, havia sempre o risco de ser escolhida para os fornos.

- Há quanto tempo sentes isso?

- Talvez desde sempre. Sabia que queria atravessar a vida sem ser vista desde que eu e a Sana começámos a entrar no nosso esconderijo. Depois, com a tia Zeinab a ver catástrofes por toda a parte, eu dizia: «Quem é que quer uma vida assim?» Claro que sabia, pela minha mãe, que se me vissem assim, tão magra e pálida, eles me podiam escolher para os fornos. «Muito magricela... Krematorium ! », diz a Abelha-Mestra, apontando-me com o dedo.

- E ainda sentes isso tudo?

- Talvez sinta.

- Achas que a Sana acreditava realmente que havia um monstro qualquer a persegui-la?

- Acreditas em Deus?

- Nos dias maus.

- Boa resposta! Bem, a Sana também acredita na Abelha-Mestra nos maus dias. E, mais importante ainda, a Abelha-Mestra acredita nela. Por mim, vejo assim as coisas: como filha única da minha mãe, tenho também o número dezoito tatuado no braço. É invisível, mas está lá. Por isso estou segura. - Helena ficou uns instantes calada; depois acrescentou: - Que achas se eu sugerisse ao exército israelita que fizesse tatuagens aos palestinianos, para os manter sob controlo? Podia pôr isso nas minhas cartas.

- Helena, tenho uma pergunta importante para te fazer - disse eu, desejoso de mudar de conversa. - Agora não fiques zangada comigo, mas quando foi a última vez que viste a Sana?

- Não tinha ousado perguntar-lho antes porque suspeitava que tinha havido uma grande zanga entre elas.

- Olha uma coisa, eu tenho de te contar a nossa história da única maneira que me é possível - respondeu ela, numa voz que implorava paciência. - É como os livros no meu apartamento... talvez tu não consigas ver ali nenhuma ordem, mas ela está lá. Talvez não seja perfeita, mas é a que eu consigo.

- Não tens de me contar o que aconteceu, só há quanto tempo foi que falaram pela última vez.

- Há cinco anos... quatro anos antes de ela morrer. - Pensei que ela ia explicar um pouco mais, mas limitou-se a acrescentar:

- Embora continue a falar com ela, claro.

A 3 de Junho, voei para Paris para mais dois dias de gravações com Helena. Depois de me instalar no Hotel Villa Modi-gliani, tomei o metro para o Marais. Eram três da tarde quando cheguei ao apartamento, mas ela estava ainda a acabar o pequeno-almoço e veio à porta com a caneca de café fumegante na mão.

Tinha arrumado a sala de estar e posto todas as rimas de livros atrás da poltrona. Um espantoso ramo de cravos cor-de-rosa e brancos floriam numa jarra de vidro por cima da lareira. O tapete persa revelava agora um castanho e preto vibrantes.

- Estive a inspirar o apartamento todo - explicou ela, enrolando o cabelo com os dedos, embaraçada por ver a atenção centrada nela. - Nem te digo a quantidade de coisas perdidas que encontrei.

- Está muito bonito - disse eu, sem me apetecer corrigir o verbo errado.

Assim que ela acabou de comer a torrada com ovos, pegou no meu gravador e disse:

- Começo a gostar destas conversas. É quase como se eu fosse uma pessoa importante.

Deixou-se cair no sofá almofadado e colocou o gravador, os cigarros e um cinzeiro de barro no braço do sofá. Falámos de Paris por um bocado e ela disse-me que tinha começado a dar passeios de várias horas, duas ou três vezes por semana, perfeitamente ao acaso. As vezes achava que, se andasse durante bastante tempo, acabaria por regressar exactamente ao ponto onde começara, como se a cidade fosse um círculo... ou até um planeta.

- Não conheço nenhum outro sítio assim - disse ela. - Acho que é por isso que fico cá. Quer dizer, posso perder-me sem realmente ficar perdida. Seja como for, faz-me bem dar de novo os meus passeios.

Puxei a minha cadeira para diante dela. Helena recomeçou a história, explicando-me que tudo mudara novamente para Sana uns meses depois do regresso de Zeinab. Nessa altura, Mahmoud recebeu uma proposta de um emprego melhor num banco em Itália. Apanhou um barco para lá... Helena não tinha bem a certeza de qual era a cidade. Assim como não sabia o nome do banco, mas achava que a sede era no Egipto ou na Arábia Saudita. Sana tinha então nove anos. O pai mandava dinheiro para casa todos os meses.

- De onde, mais precisamente?... Qual era o remetente?

- Roma, acho eu. Não tenho a certeza.

- Tens o endereço actual dele, por acaso?

Deitou-me a língua de fora, como se fosse uma pergunta despropositada.

- Olha lá, quando era pequena, não queria saber para nada onde ele estava. E agora também não. Cá por mim, até pode morar no Vaticano.

- Depois de ele partir, onde diziam os teus pais que ele estava?

- Diziam só Itália. Também ficaram contentes por ele estar a mais de mil quilómetros.

- A Sana alguma vez te deu a entender que ele ainda lá vivia?

- Não falava nele. Sabia que eu não gostava muito dele. Mas deu-me a entender que tinha morrido.

Helena disse que com o dinheiro que Mahmoud mandava Zeinab comprou um frigorífico, sapatos bons para Sana, e um divã carmim com almofadas verdes.

- Carmim e verde?

- A Zeinab estava muito à frente do seu tempo - riu-se. - Todos nós tivemos de ficar uns anos à espera que os Anos Sessenta chegassem.

- E continuava a ver catástrofes em toda a parte?

- Sim, mas melhorou um pouco depois da partida de Mahmoud. Pelo menos, as profecias de tragédias tornaram-se menos frequentes. E já não deixavam as outras pessoas furiosas. Excepto talvez a minha mãe. A Sana nunca mais levou pancada, o que era uma bênção.

- Quer dizer que estava tudo um bocado melhor.

- Nem tudo. A tia Zeinab queixava-se à minha mãe de que Mahmoud nunca lhe escrevia mais do que umas linhas. Ela, pelo contrário, mandava-lhe páginas e páginas todas as semanas. Contava-lhe tudo o que se passava no bairro: quem tinha nascido, quem tinha morrido, os acidentes... Tinha esperanças de que as cartas fizessem com que ele voltasse a amá-la, acho eu. A Sana também lhe escrevia, e mandávamos nas cartas alguns dos desenhos que fazíamos no nosso esconderijo, à luz das velas. Mesmo nesse tempo eu sentia que a tia Zeinab continuava a tentar encaixar o ter sido violada pelos soldados israelitas. Agora penso que talvez Mahmoud pensasse que ela era responsável pelo que aconteceu. Provavelmente ela também pensava.

- Ele nunca mais voltou?

- Não. Mas depois de dois anos de separação, isto foi por volta de mil novecentos e cinquenta e oito, a tia Zeinab anunciou um dia à Sana que iam a Itália. Iam lá passar umas semanas. Quando ouviu isto, a Sana entrou mais uma vez em greve. Ficou sentada no meu quarto como se a tivessem condenado à morte.

- Espera aí, tu disseste que ela continuava a gostar do pai, ainda que tivesse medo dele.

- Mas a Sana pensava que a mãe tinha outra intenção... que queria convencer o Mahmoud a deixá-las ficar em Itália. E a Sana não queria deixar Haifa para sempre. Antes de ir, deu-me o seu alfinete preferido. Pediu-me que lho guardasse. Era em forma de borboleta... grande, de esmalte brilhante, azul, vermelho e verde, com contas de vidro a servir de olhos. Achava que se ficasse nas minhas mãos, o alfinete haveria de a trazer de volta a casa.

- Ainda o tens?

- Não. Mandei-lho há uns anos atrás.

- Deve ter ficado comovida... Recebê-lo de volta - disse eu. As lágrimas assomaram aos olhos de Helena. Quando me levantei para ir para junto dela, exclamou:

- Tens uma arte muito especial de dizer a coisa errada no momento errado, sabias isso? - Estendeu a mão para os cigarros e fez o possível para não olhar para mim.

- Estou do teu lado Helena... do teu e da Sana.

- Nem sempre era o mesmo lado, sabes?

Se tivesse ficado calado, talvez ela continuasse e explicasse o que é que ao certo tinha corrido mal entre as duas. Mas não fiquei e disse:

- Mesmo que às vezes discordassem, pelo menos tiveram um passado em comum. Ninguém lhes podia tirar isso.

- Oh, queres fazer-me o favor de não estar sempre a tentar animar-me! - disse, batendo no braço do sofá e levantando-se com um salto para se dirigir à janela. Os lábios tremiam-lhe.

- Não foste tu que a mataste - disse eu.

- Guarda para ti a psicanálise que me queres fazer, Sigmund.

- Não gostas que ninguém te ajude, pois não?

- É isso que estás a fazer? - disse ela com uma expressão indignada. - Muito obrigada pela informação. Merci beaucoup!

Fitou-me com um olhar duro, os olhos agora raiados de vermelho; depois apanhou o cabelo com as duas mãos e puxou-o para trás. Vi que tinha posto outra vez os brincos de pérolas.

- São muito bonitos - disse eu.

- O quê?

- Os teus brincos.

Suspirou, desfeita a fúria.

- É uma sorte para a nossa relação, esse teu perverso sentido do momento próprio. - Limpou os olhos, e depois abriu a janela uma nesga. Deu-me uma pancadinha amistosa na cabeça antes de voltar a sentar-se. Puxando de novo o cabelo para trás, acrescentou: - Foi a minha mãe que mos deu. Sempre gostou de pérolas.

- Então, achas que a Sana sabia que ia ficar em Itália por uns tempos? - perguntei.

- Talvez tivesse ouvido a mãe dela a falar com os meus pais... e talvez Zeinab lhes tenha dito alguma coisa.

- E quanto tempo ficaram elas?

- Dois anos. - Acendeu um cigarro. Numa voz ressentida, disse: - Sabias que metade das pessoas de Paris vivem sozinhas? Que me dizes disso?

- Digo que não pareces particularmente feliz por seres uma delas. E que a Sana te deixou o coração despedaçado.

- Não - disse ela pesando cuidadosamente as palavras. - Estou só zangada com ela... e com tudo o que aconteceu. É incrível, mas ainda estou furiosa com coisas que aconteceram há quarenta anos. Não é uma loucura? Se calhar devia tomar Prozac. Ou talvez heroína.

- Faz-te mal aos dentes.

- Como assim?

Contei-lhe que um amigo, que fora drogado, me disse uma vez que quando se larga a heroína os dentes começam a desfazer-se.

- Valia a pena se me fizesse esquecer - Helena franzia os olhos com o fumo. - Sabes uma coisa, sempre pensei que a tia Zeinab tinha mentido à Sana. Mas mais tarde, depois de a Sana se ter matado, comecei a dar voltas e mais voltas ao passado na minha cabeça. Agora acho que talvez fosse antes o Mahmoud que queria que a mulher e a filha ficassem em Itália. Talvez não tivesse dito à tia Zeinab a princípio. Se calhar, ter ficado mais do que umas semanas também foi para ela uma surpresa.

- Quando é que soubeste de certeza que elas iam ficar em Itália durante muito tempo?

- Nunca o soube... pelo menos oficialmente. - Helena tirou a camisola de lã. Por baixo trazia uma camisola interior cor-de-rosa, sem alças. Tinha os ombros e os braços muito magros... Parecia um cabide. Apercebi-me então daquilo que devia ter sido evidente - estava a matar-se à fome.

- Tu vives quase só de brandy e nicotina, é ou não é? As sobrancelhas arquearam-se, desafiadoras.

- Espero que não me vás dizer que isso é mau!

- Porque não me deixas convidar-te hoje para um bom almoço? Escolhes tu o sítio.

- É um convite muito simpático, mas há vários meses que não tenho muita fome.

Quando insisti para termos uma refeição como deve ser, respondeu-me que o pai passou anos a insistir com ela para que mudasse o estilo de vida.

- Não conseguiu nada, e também não és tu que vais conseguir.

- Sou muito teimoso - observei. - Por isso não apostes nada. - Helena ia para protestar, mas eu interrompi-a: - Então o que se passou a seguir, entre ti e a Sana?

- A seguir? Nada! Nem uma carta da tia Zeinab ou da Sana. Pff, desapareceram! - Levantou-se de novo e encostou-se à parede junto à janela que dava para a Torre de Montparnasse. - Deram um emprego ao meu pai na universidade. Sentia-se feliz. A minha mãe sentia-se só. Por isso mudámo-nos para uma casa nos arredores. A minha mãe criava galinhas na garagem. .. como se ainda vivêssemos na Casa das Hortênsias Azuis. Os nossos vizinhos sentiam-se embaraçados... eram todos Herr Doctors e Monsieur le Professeur vindos da Europa e podia imaginar-se pelo modo como olhavam para a nossa casa... o cheirete que de lá saía. Mas todas as crianças adoravam as galinhas. Eu fiz novos amigos... miúdos que tinham bicicletas, bonecas Barbie e sapatos giros, com sotaques de Bucareste, de Munique e de Odessa. Uma família francesa da Argélia - os Hadjenbergs - até piscina tinham. Imagina tu! Os olhos até me saltavam fora quando via aquilo. Aqui, todos os vizinhos eram judeus. Levei anos a perceber que era por isso que tudo me parecia tão estranho. Nas nossas brincadeiras, alguns dos meus novos amigos disparavam contra árabes e faziam-nos prisioneiros. Eu queria que me aceitassem e por isso fazia como eles. Mas nunca pensei na Sana como árabe. Era a Sana e mais nada. Éramos muito novas e passávamos o tempo a esconder-nos dos soldados e da Abelha-Mestra e das profecias da tia Zeinab para pensarmos em coisas dessas... coisas que não significavam absolutamente nada.

Helena pegou num livro de uma das rimas atrás da poltrona e abriu-o a meio, passando o dedo do topo até ao fundo da página.

- Se bem que talvez não soubesse ler muito bem, a Sana... pelo menos de uma ponta à outra. Estás a ver? Talvez ela tivesse consciência desde sempre de que era árabe e eu judia. - Fechou o livro e abraçou-o contra o peito. - Lembro-me do primeiro dia que passámos juntas depois de ela voltar de Itália. Estávamos diante da nossa casa nos subúrbios judaicos e eu mostrei-lhe a bicicleta azul que os meus pais me tinham dado há pouco.

- Espera aí... a Sana tinha ido morar para a antiga casa dela, em Wadi al-Nisnas?

- Tinha. O tio e a mulher tinham-se ido embora entretanto, e por isso só tinham ficado a Sana e a mãe.

- Por que é que o tio se mudou?

- A mulher tinha dado à luz. Precisavam de mais espaço. Agora ouve... eu estava a mostrar à Sana a minha bicicleta nova e passou por nós um homem baixinho. Era um dos nossos novos vizinhos, um judeu húngaro que fora salvo por Wallenberg durante a guerra. Eu disse olá. Estávamos as duas a olhar para ele... estávamos curiosas. Como não havíamos de estar? Ele vestia um grande fato escuro naquele calor seco de Haifa! Não regulava bem da cabeça. Mas não deve ter gostado que estivéssemos a olhar para ele. «Que se passa, Fátima, nunca tinhas visto um branco?», disse ele.

- Que horror. E a Sana, ficou muito chocada?

- Não o mostrou, mas deve ter ficado muitíssimo magoada. Fingi que não percebia o que ele queria dizer com aquilo... para ela não se sentir embaraçada. Disse-lhe que o homem não passava de um húngaro maluco com aquele fato estúpido e que nem sequer falava bem hebraico. Devia andar já pelos trinta anos quando voltei a pensar naquilo. Percebi que ele queria dizer que a Sana pertencia a outra raça... não só diferente dele, como também de mim! Aquilo nunca me tinha ocorrido. És capaz de imaginar um judeu a dizer uma coisa semelhante?

Um judeu salvo por Wallenberg? Agora não me sai da cabeça. Porque me apercebi de que ele era como tantas pessoas que não aprenderam o que deviam com tudo o que aconteceu. Não sei se estás a ver, eu tinha crescido a pensar que toda a gente era como eu e a Sana.

- O Mahmoud também voltou de Itália?

- Não. Ele ficou. - Helena pôs os olhos no chão, triste. Deixou que o silêncio do seu desapontamento com o mundo levasse os seus pensamentos para longe, e depois disse, numa voz envergonhada: - Quando eu e a Sana nos encontrámos pela primeira vez depois de ela voltar de Itália, desatámos aos pulos a rir. Mas não tardámos a perceber que tudo tinha mudado entre nós. Ela estava mais alta e mais magra, e metida cada vez mais no seu próprio mundo... Só ela. Fazia coisas loucas. Eu estava assustada com ela. E a minha raiva por ela se ter ido embora, passada a alegria inicial, tornou-me fria e distante.

- Que tipo de coisas loucas fazia ela?

- Passava horas e horas a brincar sozinha, a fazer gestos com as mãos, a contar histórias a si própria, mexendo os lábios a dizer coisas que eu não conseguia ouvir. Não queria que eu nem ninguém a interrompesse. Era como se vivesse num universo onde ninguém era bem-vindo... como se fosse surda e muda. Um pouco como o Farid do teu livro.

- Alguma vez te falou nas histórias que contava a si própria?

- Só me disse que a Itália não era segura. Não havia lá nenhuma Abelha-Mestra, mas havia outros monstros. Não sei o que ela queria dizer ou o que lhe teria acontecido lá. Só se fosse o não saber falar italiano e o não ter amigos nenhuns... Os pais dela não terem conseguido reencontrar o amor... Deve ter sentido que só podia contar consigo própria. Feitas as contas, talvez não fosse suficiente. - Helena esmagou o cigarro vingativamente. - Se queres saber a minha opinião, não é suficiente para nenhum de nós.

Helena desculpou-se por ter de ir à casa de banho. Inclinou-se e deu-me um beijo na cara ao passar, coisa que nunca fizera antes. Fiquei tocado.

- Obrigada - sussurrou ela.

 

Um mês mais tarde, haveria de me explicar o que a fez sentir tal afeição por mim.

- Dar-te parte da história fez-me sentir muito mais leve e capaz de seguir em frente. Sentia-me mais livre do que me tinha sentido o ano todo. Ao voltar da casa de banho, disse: - Disse-te que a maior parte das pessoas em Paris vive só, porque isso é outra das razões por que eu vivo cá. Não sou um caso raro, em França. Em Israel, sou. As pessoas lá querem sempre saber por que é que não tenho filhos, por que não sou casada... e por que vivo na Europa. Estão sempre a perguntar-me «Acredita em Deus?», ou: Os Franceses ainda são anti-semitas?» Querem saber tudo. Mas eu não tenho respostas que os satisfaçam.

- O teu pai não é assim, de certeza.

- Não, ele não. Mas é só um homem. E cada vez mais frágil. Ainda não consegue andar muito bem. Não tarda, também ele se terá ido.

Sentou-se de novo no sofá. O olhar absorto fez-me pensar que devia estar a lembrar-se do pai como ele era, anos antes. Perguntei a mim mesmo se ela ainda estaria a viver em Israel se a mãe fosse viva.

- Depois de a Sana voltar de Itália, íamos visitá-la, a ela e à tia Zeinab, mais ou menos de seis em seis meses - recomeçou Helena. - Normalmente, no aniversário das nossas mães. A última vez que nos vimos foi no funeral da tia Zeinab. Em Outubro de mil novecentos e sessenta e três. A Sana e eu tínhamos dezassete anos. Lembro-me bem da data porque foi mesmo antes do assassinato do Kennedy. A Zeinab... a morte dela foi horrível, talvez o pior momento da minha juventude.

- Como é que ela morreu?

- Adoeceu e ficou com dores por todo o corpo. Muitos anos depois, a minha mãe disse-me que ela devia ter um cancro da mama, que passara para o estômago e outros sítios. A minha mãe ia ao hospital visitar a Zeinab todos os dias enquanto eu estava na escola. Não faltou um único dia.

- Viste a Sana no funeral?

- Ela estava com o tio e a tia. O Mahmoud não veio. Não sei porquê. E estava triste... tão triste. A cara dela quase não tinha cor. Estava cinzenta. Falámos, e eu abracei-a, mas era como abraçar o ar. Pedi-lhe que ficasse connosco na casa nova, a viver connosco, mas ela disse que não era possível, que tinha de ficar com o tio e a tia. Percebi que não me ia deixar entrar para além... para além daquele muro que construíra dentro da cabeça. Eu fora banida. Era tão injusto! Sabes uma coisa, às vezes penso que eu e ela nos tínhamos enfurecido desde pequenas contra o mundo por ser tão injusto. O que nenhuma de nós conseguia dizer é que estávamos também furiosas uma com a outra. - Helena carregou no peito com uma mão e respirou fundo. - Depois disso, não voltámos a ver-nos até à Primavera de mil novecentos e noventa e seis. Nem uma carta, nem um telefonema... Nada.

Na altura em que se mudou para Paris, em 1974, Helena estava convencida de que não voltaria a ver Sana. Apaixonara-se e casara com um botânico, um judeu francês parecido com o Alain Delon e que tinha estado em Haifa a fazer um pós-doutoramento com o pai dela. Deixou-o passado quatro anos, quando descobriu que os rododendros não eram a única coisa que ele polinizava livremente.

- Não era pelas outras mulheres - disse ela. - Era a água-de-colónia que ele punha para encobrir o cheiro delas. Homens a cheirar a lírio fazem-me pena, e a última coisa que uma mulher pode querer é sentir pena pelo homem que tem na cama.

Em resultado do divórcio, ficou com o apartamento perto da Sorbonne. Voltou a estudar e acabou um mestrado pela Universidade de Paris, em Estudos sobre o Médio Oriente, em 1982. Depois de se formar, trabalhou como funcionária na Embaixada de Israel durante seis anos. Despediu-se no dia em que o chefe lhe disse que não gostava que ela fosse de jeans para o emprego.

- Era muito conservador, e estava a dizer-me, no seu código hebraico pessoal, que eu nunca seria promovida.

O desemprego - e a depressão peganhenta que arrastava consigo - desencadeou o primeiro ataque de terror de sair à rua durante o dia. Passaram sete meses sem pôr o nariz fora do apartamento, excepto para ir à caixa do correio e ir uma vez por semana a uma mercearia próxima comprar o indispensável. Ao saber do seu estado, uma conhecida dela, dona de uma pequena pastelaria perto dali, começou a mandar-lhe almoço todos os dias. Mais tarde, tendo-se tornado amigas, ofereceu trabalho a Helena como empregada de balcão. Helena compreendeu que era provavelmente a sua última oportunidade de recomeçar a vida. Um ano mais tarde, ainda aí trabalhava, vendeu o apartamento e usou o dinheiro para ajudar a pagar uma pequena casa de chá pegada à loja, tornando-se assim co-proprietária. Geriu a casa de chá de 1988 até 1997, e durante esse período conseguiu dominar os seus medos de andar na rua durante o dia. A verdade é que fez grandes viagens, pela Grécia, Marrocos, Turquia e Albânia, a fim de fazer gravações com velhos judeus que ainda sabiam cantar as canções tradicionais dos seus povos. Este trabalho de campo levou-a a investigar a influência das culturas muçulmanas e cristã na música sefardita. Curiosamente, descobriu que as letras de certas canções judaicas tendiam a manter-se as mesmas em qualquer terra de diáspora onde as cantassem, mas as melodias geralmente iam-se aproximando dos estilos musicais dominantes das regiões ou países onde viviam as minorias judaicas. Helena referia-se a esta flexibilidade como «adaptação melódica».

Helena não soube nada de Sana durante este período. Continuava com curiosidade de saber, mas pensou que seria melhor não tentar o passado.

- Sabíamos ambas que era melhor guardar boas lembranças do que correr o risco de as estragar. Mas então aconteceu uma coisa - acrescentou ela, os olhos cintilantes. - Em mil novecentos e noventa e seis, num dia de Junho, ia eu a descer o Boulevard St. Germain, ao passar mesmo em frente da livraria La Hune vi uma mulher lindíssima a dar um espectáculo de mímica. Tinha cabelos curtos e era elegantíssima... como uma dançarina de ballet. Usava umas calças pretas compridas e uma t-shirt cor-de-rosa vivo. Era magra, mas forte... muito forte. Havia uma multidão à sua volta. Estava a imitar um grupo de cães levados a passear por um homem tão pequeno que não conseguia dominá-los. Cada cão tinha a sua personalidade particular. Quando vi que era a Sana, foi como... como se uma casa desabasse em cima de mim... ficou tudo escuro e senti uma tontura. Assim que recuperei o equilíbrio, apeteceu-me desatar a fugir. O meu coração... - Helena bateu no peito com o punho fechado. - Depois ela viu-me. Mas não parou a mímica. Apenas pelos olhos vi que me tinha reconhecido, como se dissesse «então é aqui que tu andas, minha démonette... Sabia que um dia acabaria por descobrir-te». As lágrimas impediam-me a visão, o que me deixava furiosa por não poder ver o que ela fazia. Vê-la... era como se tivesse voltado a casa. Como se o mundo tivesse recuperado a sua ordem original. Quando a Sana acabou, pegou numa flor do ar e trouxe-ma. Atravessou a multidão como Moisés, batendo os calcanhares como se devesse erguer-se nos ares e voar. Quando me estendeu a flor, murmurou: «Sem papéis, Helena.» Bem, aquilo foi de mais para nós as duas. Sentámo-nos ali mesmo no passeio, entre soluços e risos.

 

Helena serviu-se de um cálice de brandy e levou-o para o peitoril da janela, contemplando o cenário de fachadas e telhados parisienses. A meu pedido, mostrou-me o que queria dizer quando falava na «adaptação melódica» da música judaica, cantando-me uma curta balada sobre a Rainha Ester. Cantava com os olhos fechados, a sua voz tecendo as diferentes melodias numa voz sussurrada, como se fossem demasiado delicadas e antigas para serem cantadas de outro modo.

- Graças a Deus - disse ela quando acabou -, tive uma oportunidade de voltar a ver a Sana antes de... antes de ela morrer. Devia tê-la gravado também. - A voz dela soava frágil, da pena que sentia.

- Quanto tempo passaram juntas, nessa visita? - perguntei.

- Só três dias. Ouve, importavas-te muito se não falássemos mais dela neste momento?

- Não, claro que não.

Sorriu, agradecida. Estava a sentir-me com fome e disse-lhe que ia buscar comida chinesa a um sítio que vendia para fora perto do metro St.-Paul onde uma vez tinha comido. Queria também dar-lhe tempo para estar sozinha. Avisou-me que não comia nada, mas acabou por petiscar um pouco de massa de arroz e uma tigelinha de sopa won-ton. Depois de um chá de jasmim, combinámos encontrar-nos no dia seguinte.

- Mas de facto pouco mais há a dizer - disse ela, encolhendo os ombros. - Não aconteceu mais nada de importante a seguir a isso. Voltámos a conhecer-nos uma à outra. Descobrimos que gostávamos uma da outra... não como crianças, mas como adultas. E é tudo. Só ficou cá três dias. Não voltei a vê-la depois disso. Falou sobretudo sobre Paris e de como as casas eram bonitas, como as pessoas andavam depressa nas ruas... Para ela, toda a cidade... era como se as portas do circo tivessem sido abertas e ela pudesse olhar lá para dentro. Estás a ver? Lembro-me de ela dizer que gostava de a poder pintar. Foi só o que ela disse... mais nada. Agora já sabes quase tudo o que eu sei. Talvez por que é que ela se matou, talvez não.

Ao sair, abraçou-me com força. Também desta vez, fiquei muito comovido. Mais tarde, havia de me dizer que era sentido, mas que dessa vez o seu gesto de afeição visava também convencer-me de que não estava a esconder-me nada.

Quando na tarde seguinte cheguei ao apartamento de Helena, ela estava com olheiras e o nariz encarnado. Tinha um ar de quem não dormiu nada e estava a chocar uma constipação. Quando lhe perguntei como se sentia, replicou:

- Oh, por amor de Deus, há uma quantidade de coisas no mundo mais importantes do que isso.

- Mas não dormiste nada.

- Tinha muito em que pensar.

- Em quê?

- Muitas coisas... tudo. Não consigo entender como cheguei ao ponto em que estou.

Percebi que precisava de um dia sem falar muito sobre o passado, por isso pedi-lhe que me levasse aos sítios que ela e Sana tinham visitado em 1996.

- Não tens de falar em nada de mau que possa ter acontecido - disse eu. - Mostra-me só o que fizeram juntas em Paris. Vamos sem pressas. Podemos divertir-nos um bocado, para variar.

- Mas bem sabes que não posso sair durante o dia - disse-o como se estivesse desapontada comigo e com ela simultaneamente.

- Okay, então saímos logo à noite.

- Isso não vale a pena. A noite não vês o que nós vimos.

- Helena, mais tarde ou mais cedo, tens de sair de dia.

- Tenho? E porquê?

- Para veres que não te vai acontecer nada... que a tia Zeinab estava enganada.

- Não, tinha razão. A morte crescia já dentro da Sana quando éramos ainda crianças.

- Não era preciso ter poderes mágicos para saber que a filha não viveria para sempre.

- Mas, e se agora acontece alguma coisa? E se não for só a mim, mas a ti também?

- Nesse caso, podes dizer: «Vês? Eu não disse?» Dava-te um certo gozo, confessa.

- Não, acho que não dava. Continuei a insistir e ela acabou por aceitar:

- Ouve, mato-te se me deixas só nem que seja por um segundo... mesmo que seja para comprares um postal.

- Combinado.

Foi buscar o casaco.

- Só saio para deixar de ser dona daquilo que fizemos juntas, a Sana e eu. A partir de hoje, tudo isso é teu.

Helena desceu as escadas em bicos de pés, a mão seguindo a parede com os dedos. Uma vez na rua, ofereci-lhe a mão, mas ela disse que queria tentar andar sem ajuda. Recusava-se a olhar para qualquer lado, com os olhos pregados em frente desde que começámos. Perto da estação do metro, passou o braço pelo meu. Um tremor - como um espasmo de frio - abanava-a.

- É quando penso em voltar-me - explicou ela. - Podia acontecer voltar a ver um dos homens que me perseguia, e hoje prefiro não ver ninguém de Israel.

Olhei em volta e não vi ninguém que nos seguisse. Mas Helena continuava com tremuras. Na rue Saint-Antoine tivemos de parar porque o pulso dela batia tão acelerado que receei que estivesse prestes a ter um ataque. Corri para um café e levei-lhe um copo de água para ela tomar um Valium. Disse-me que normalmente tomava meio comprimido ao acordar e outra metade ao deitar.

- Então, se calhar não devias beber brandy, nem sequer vinho - fiz-lhe notar.

- Pois não, não devia - concordou ela, como reconhecendo uma evidência, sacudindo a minha insinuação.

Quis sentar-me um pouco para que descansasse, mas ela insistiu em recomeçar antes que perdesse a vontade. Apercebi-me de que não tinha compreendido nada das profundezas do terror dela... ou da sua coragem.

Começámos o nosso passeio pela igreja de St.-Julien-le-Pauvre.

- É a minha preferida em Paris - disse Helena. - Faz lembrar uma igreja de aldeia... como todas as igrejas devem esperar vir a ser se viverem o suficiente. Por isso, foi aqui que comecei por trazer a Sana.

A nave, emoldurada em pedra cor de areia, parecia carregada de desejos silenciados. O ar cheirava a séculos de escuridão bafienta - como se à luz do sol nunca fosse permitido entrar aquelas portas. Como uma rapariguinha feliz, Helena fez-me passar sob os arcos laterais para me mostrar uma imagem de São Jorge - empunhando uma lança semelhante a um espeto, matava o dragão e tinha um ar bastante impetuoso com a sua comprida capa vermelha. Comentei com Helena a expressão determinada do santo.

- Não, determinada não - corrigiu. - Está é triste.

- Triste, porquê?

- O único destino dele é matar o dragão. Agora que o faz, não lhe fica mais nada para fazer na vida. A vida dele acaba com a morte do dragão. - Olhou para São Jorge como se procurasse ler-lhe o pensamento. - Também disse à Sana que ele estava triste, e ela disse: - Tens razão. São como nós... dois gémeos que não se parecem.

- Tenho a impressão de que não preciso de dizer qual das duas era o dragão - observei.

Helena deu-me uma palmada no ombro.

Sentámo-nos encostados nos assentos de palhinha entrançada, onde ela e Sana se tinham sentado cinco anos antes. Passei-lhe o braço pelos ombros. Ela fechou os olhos e aspirou profundamente - como se pudesse ainda sentir o cheiro de Sana a seu lado.

Ao sairmos, li num painel afixado na parede a história da igreja e descobri que se tinha tornado na capela do hospital Hôtel-Dieu em 1658 - o mesmo hospital onde eu visitara o americano vítima do atentado no Jo Goldenberg, em 1982. Senti-me como se tudo na vida me tivesse conduzido a este momento - como se o destino me tivesse conduzido aqui.

Quando disse a Helena que por vezes sentia haver ligações invisíveis entre o meu passado e o presente, ela respondeu que muitas vezes sentia o mesmo.

- Éuma das razões porque tomo Valium - observou com um sorriso malicioso. Encaminhou-me para a porta. - Anda, vou mostrar-te o que a Sana fez a seguir.

Parámos ali perto, na rue Galande, em frente de uma loja de egiptologia chamada Cybele. Um busto antigo de madeira de um faraó fixava a rua de dentro da montra, soberano e sereno. - Ao chegar aqui, a Sana desatou a fazer mímica. Fez o dragão que São Jorge mata, caminhando na rua para cima e para baixo, abanando a cauda, mordendo. Perseguiu algumas pessoas. Juntou-se uma multidão a ver.

Subi com o olhar a fachada do edifício de pedra do outro lado da rua até à abóbada do céu azul. Terá Sana sentido a precariedade da sua vida quando aqui esteve? Sentiria já a gravidade da sua história pessoal a arrastá-la para o suicídio?

- Ela encenou o combate - prosseguia Helena. - Era feroz. São Jorge e o dragão tornavam-se um só... um fim, uma morte. Representava isto fazendo movimentos cada vez mais parecidos.. . como se eles estivessem a dançar. - Helena apontou para umas varandas de ferro forjado nas casas próximas. - Havia pessoas a ver das janelas. O que elas não imaginavam é que a Sana... é que ela estava muito nervosa. Não viam que ela exprimia uma coisa terrível sobre si própria. Ninguém percebeu isso pelo modo como ela representava. Foi como quando tu interpretaste erradamente os pássaros invisíveis em Perth. Ela era tão boa a fazer aquilo... tão espantosa... que as pessoas não viam a essência do que ela estava a dizer. Quando São Jorge e o dragão acabaram, ela não ficou à espera dos aplausos. Fugiu a correr.

Fomos a muitos outros sítios que Helena e Sana tinham visitado durante os três dias que passaram juntas - à Torre Eiffel, o Museu Picasso, o Café de La Paix, um restaurante alsaciano perto do Trocadéro, a livraria Village Voice, a FNAC na rue de Rennes... Ofereci o almoço a Helena num pequeno restaurante tailandês, perto da estação de Montparnasse, que eu e o Alex tínhamos descoberto alguns anos antes. Ela comeu o pato em leite de coco todo, um pouco de um arroz glutinoso, e até uma colherada do meu gelado de coco. Estava mais brincalhona - perfeitamente à vontade comigo, pela primeira vez, acho eu. Não quis estragar nada perguntando-lhe as razões, mas esperava que se devesse em parte ao triunfo de sair comigo durante o dia.

Os nossos olhares cruzaram-se antes de nos levantarmos para sair e ela não tentou escapar à nossa intimidade.

- Não me tornei na pessoa que pensava vir a tornar-me - disse ela. - E só agora começo a habituar-me a essa ideia.

Acabámos a nossa volta junto a um banco de madeira no Boulevard St.-Germain.

- A Sana ficou aqui sentada duas horas, enquanto eu fazia umas compras - contou-me Helena. - «Não te preocupes comigo, observar as pessoas é o meu alimento», disse-me ela.

Deixando-me cair no banco, pus-me a pensar como seria, para uma rapariga de uma ruela empoeirada de Haifa, vir a tornar-se numa mulher fazendo teatro nas ruas de Paris. Sentia a sua necessidade de contactar com outras pessoas - e o medo de falar. Pensando em Zeinab, senti uma ponta do orgulho que ela devia sentir pela filha. Se bem que, se ela e Helena eram realmente gémeas de espírito, sair durante o dia para representar - ou tão-só observar as pessoas - deve ter-lhe exigido um grande esforço de vontade. Todos os dias deve ter sido uma luta para dar um passo para fora do seu próprio universo e juntar-se ao nosso - para evitar desaparecer completamente.

Enquanto seguíamos em direcção a uma estação de metro para prosseguirmos o nosso itinerário, Helena sentiu ter forças suficientes para me contar o pouco daquilo que Sana lhe contara sobre a sua vida adulta.

Depois de ter deixado Haifa nos fins da década de 1960, estudara e actuara com companhias de bailado em Roma, Bolonha e Londres, coreografando também algumas peças para pequenos grupos noutras cidades europeias. Em 1994, foi viver para Nova Iorque e começou a dançar e a actuar com um conjunto instalado em Manhattan. Helena disse que ela tinha escrito o nome num pedaço de papel e que ia tentar encontrá-lo. - O que se passa é que a Sana pouco ou nada me disse sobre si própria - disse Helena, quando passávamos junto do Centro Pompidou. - Falámos das coisas que víamos em Paris, sobre o presente. Lembro-me de que lhe perguntei se alguma vez se tinha apaixonado a sério e ela disse que não. Uma noite embebedámo-nos e começámos aos beijos. Mas não deu... e acabámos na risota. Pensei que era uma pena que não fôssemos lésbicas.

- Que é que ela estava a fazer em Paris?

- Nunca cá tinha estado mais do que um dia ou dois, e por isso veio cá passar uma semana para dar uma vista de olhos. O grupo dela tinha estado num festival de rua na Alemanha, acho eu. E é... é tudo o que eu sei da vida dela desde que saiu de Haifa. - Vendo o meu desapontamento, acrescentou: - Como te hei-de explicar? Eu queria saber tudo sobre ela... a sério. Mas não queria forçá-la a contar-me nada. A Sana era muito vulnerável, embora isso não se visse. Percebes? É como o que te disse de às vezes ficar calada e não perguntar nada, isso com a Sana era essencial. Eu queria que as coisas fossem saindo ao seu próprio ritmo. Pensava que tínhamos tempo para deixar que as coisas acontecessem devagar. Agora que nos tínhamos encontrado, não íamos voltar a perder-nos. Além disso, já sabíamos tanto das coisas que importam... Eu sabia como é que a pele dos ombros dela ficava toda coberta de borbulhas quando estava assustada. E os ruídos que ela fazia a dormir, como um bichinho. Ela conhecia... conhecia o toque do meu cabelo ao passá-lo por entre os dedos quando estávamos deitadas uma ao lado da outra. E o sentimento de plenitude quando ficávamos sentadas no escuro. Por isso, que necessidade havia de ter pressa?

 

Alguns dias mais tarde, sentado à minha secretária no Porto, quando transcrevia as gravações que fizera com Helena, ela telefonou para me dar o nome do conjunto com quem Sana trabalhara em Nova Iorque.

- Era o Soho Dance Theater. Mas não tenho o endereço nem o número de telefone.

- Qual era a morada da Sana?

- Não sei. Naquela altura estava a mudar-se. Disse que depois me escrevia a dar-me a nova morada.

- E escreveu?

- Não. Nunca recebi nenhuma carta.

Sabia que era mentira, porque me tinha falado numa carta de Nova Iorque, que Sana assinara com «Love - Lone - Lane - Sane - Sana». Mas decidi não a desafiar ainda.

- Muito bem, mas diz-me outra coisa, podes dar-me o número de telefone do teu pai?

- Para que queres ligar para ele?

- Ele conheceu a Sana em pequena e pode ter alguma coisa para me contar. - No silêncio que se seguiu, senti que preparava uma desculpa. - Ouve, Helena - acrescentei precipitadamente -, é só porque tu já me disseste tudo o que podias. Agora preciso de falar com o teu pai.

- Ele está velho, devias deixá-lo em paz. Não podes telefonar-lhe.

- Helena, eu não vou fazer-lhe mal.

- A memória dele não é boa. Fica facilmente confuso. Há semanas contou-me que tinha visto no noticiário uma notícia sobre uma baleia que ia comendo um rapaz na Austrália.

- Uma baleia?

- Sim, é uma loucura. Disse que o pai e os tios do rapaz tiraram a baleia da água e mataram-na. Passaram uns vinte minutos antes de eu perceber que ele queria dizer um tubarão.

- Então vou escrever-lhe. Assim já não deve ficar tão confuso. Se estás preocupada com o que ele possa dizer sobre ti, prometo só lhe fazer perguntas sobre a Sana.

Helena cedeu e deu-me o endereço. Muito mais tarde, vim a descobrir que depois de eu desligar, telefonou ao pai e pediu-lhe para não dizer nada sobre a família de Sana nem revelar nada sobre o irmão. E que em caso algum falasse na relação entre ela e Sana.

 

ESCREVI UMA CURTA CARTA a Samuel, explicando quem eu era e pedindo-lhe que me enviasse o número do telefone para podermos conversar sobre a infância de Sana. Procurei também informações sobre o Soho Dance Theater na Internet, mas só me apareceu uma breve referência a uma produção do grupo, O Grande Inquisidor, de Dostoievski, no Joyce Theater, em 1996. Não me foi difícil conseguir o número do teatro, mas a pessoa da bilheteira com quem falei não se lembrava de nada sobre o grupo. Decidi ir lá pessoalmente, quando fosse a Nova Iorque visitar a minha mãe.

 

Ao longo dos meses anteriores tinha escrito e-mails a Mário, Ana e vários outros artistas da trupe de mimos a perguntar se o retrato que Helena fizera de Sana quando jovem - particularmente a tendência para se retirar para o seu próprio universo fechado - continuava a existir na vida adulta. Sim, todos concordavam, por vezes desaparecia dentro de si própria sem aviso prévio. Ao almoço, por exemplo, era capaz de simplesmente ficar calada durante dez ou quinze minutos. Os olhos concentrados num ponto interior. Depois, subitamente, voltava a si e retomava a conversa, como se nunca se tivesse afastado. Ou durante um ensaio podia sair por meia hora para ficar sentada sozinha numa das últimas filas do teatro. Tinham aprendido a deixarem-na à vontade nessas ocasiões. Mário disse-me que costumava chamar-lhe «Dona Tartaruga Mordedora», porque podia ser bastante mazinha se a incomodavam no momento errado.

- Mazinha, como?

- Gritava para que a deixassem em paz. Ou enxotava-nos com as mãos, como se fôssemos uma grande maçada para ela.

- O que é que lhe parece que estaria a pensar quando ficava assim sozinha?

- Novas danças... maneiras de fazer as coisas de outro modo. É preciso que compreenda, ela estava sempre a ter novas ideias para coreografias e movimentos. Era como se estivessem sempre a sair chispas coloridas daquela cabeça. Tinha de ficar só para ver como as poderia usar de maneira controlada.

Mário contou-me que ela nunca parecia assustada ou preocupada nos seus momentos de paz. Nunca falara em precisar de se esconder. Aquilo pareceu-me estranho. Ou ela tinha mudado muito ou, como começava a acreditar, tinha aprendido a mascarar os seus sentimentos mais brilhantemente do que nunca. Agora, tinha a certeza de que o que ela pretendia era comunicar com as pessoas a um nível profundo e íntimo, se bem que nunca conseguisse revelar os seus sentimentos abertamente. Talvez fosse esse o dilema que a levara ao suicídio.

Mário nunca pusera em dúvida que ela tivesse nascido em Itália, especialmente desde o momento em que revelou a sua fluência em italiano quando estiveram a representar em Milão. Nas duas ou três ocasiões em que se referira aos pais, tinha dito também que eram os dois italianos. O pai dela nascera no Egipto, dissera ela, onde escolhera o nome de Mahmoud. O verdadeiro nome dele era Marco. O avô dela, explicara Sana, tinha pertencido ao corpo diplomático e tinha andado com a família pelo mundo todo - desde Roma ao Cairo e Asmara. O último posto dele tinha sido em Camberra.

Antes da primeira viagem da trupe à Austrália, Sana deu a entender a Mário que o pai dela já não era vivo. Disse-lhe então que ele havia de ficar contentíssimo por ela actuar lá.

Mário e Ana não conseguiam acreditar que ela fosse uma palestiniana de Israel. Ana chegou ao ponto de dizer que não podia ser verdade, que ela nunca lhes teria mentido.

- A Sana era a verdade, pelo menos para mim - escreveu Ana num e-mail que me mandou.

Mário disse que ela falara em Israel algumas, poucas, vezes, e sempre em relação a Lisístrata. Uma vez dissera-lhe que «era essencial haver equilíbrio entre homens e mulheres, sem que nenhum dos lados pudesse ter uma vitória clara. Quem vencer, deve perder também».

Quando lhe perguntei o que é que um tal equilíbrio na Grécia antiga tinha a ver com Israel, Mário disse que me ia mandar o vídeo do último ensaio e que então eu havia de perceber logo.

Ninguém na trupe podia dizer alguma coisa mais sobre Mahmoud.

Quando fiz algumas perguntas sobre a forma como Sana se identificava com as aves, disseram-me que muitas vezes as incluía nas suas coreografias - realmente, em À Espera de Godot tinha inventado um papel para um papagaio que segue Estragon por todo o lado e representa uma espécie de testemunha das suas palhaçadas desconcertantes, por vezes mimando até o que ele diz. Mário disse ainda que ela tinha falado em adaptar um dia o poema épico de Farid ud-Din Attar, A Conferência dos Pássaros.

 

Por esta altura, eu começava a compreender que Sana tinha criado um novo passado para si. Falaria verdade quando, num súbito impulso, me disse que era de Israel? Talvez tivesse já decidido que ia saltar da janela do hotel, de maneira que revelar a sua verdadeira origem já pouco importava. Ainda que, se Helena tinha razão, se era verdade que Sana tinha coreografado tudo para me induzir a contar a sua história, isso queria dizer que me dissera a verdade na esperança de que eu apanhasse correctamente a sua história.

Poucas horas depois, ocorreu-me que talvez as pessoas da trupe tivessem afinal razão: Sana nascera em Itália, filha de pais italianos. Helena pode ter inventado tudo. Por que é que, ao fim e ao cabo, eu haveria de confiar mais na versão dela do que na deles?

Precipitei-me para a secretária para ver as fotografias que ela me dera. Se calhar aquelas duas raparigas conspirando juntas diante da objectiva não eram Helena e Sana. Seria possível?

 

Precisava de falar urgentemente com o pai de Helena para ter uma confirmação do relato que ela fizera da vida das duas em Haifa. Depois de duas semanas à espera de notícias dele, telefonei a alguns amigos em Jerusalém para ver se me conseguiam o seu número, mas só havia um Samuel Verga em todas as listas telefónicas de Israel, e esse vivia em Telavive. Telefonei-lhe de qualquer modo e usei uma mistura de português e espanhol, já que ele sabia falar ladino. Mostrou-se muito empenhado em querer ajudar, mas não era o pai de Helena - nem sequer conhecia nenhum outro Samuel Verga.

Já desesperado, telefonei a Mário para lhe pedir que tentasse encontrar nos registos da trupe um telefone de Mahmoud. Aproveitei para lhe lembrar a promessa de me mandar o vídeo da Lisístrata.

Poucos dias depois, o vídeo chegou por correio expresso. Sana mudara a cena da acção de Atenas para Haifa na década de 1950. As mulheres usavam todas lenços palestinianos. Além disso, o coro e Lisístrata - representada por Sana - usavam véus negros que as cobriam completamente, com excepção dos olhos, fortemente maquilhados. Daquilo que Helena me contara de Zeinab, imaginei que Sana tinha pintado os olhos como os da mãe.

Os homens usavam todos xailes de oração judeus. O Corifeu usava um yarmulke branco.

Em vez de Hermes à entrada de cada porta, como na cidade grega, havia uma estrela judaica encimando todos os telhados. Além de ser o mensageiro dos deuses, Hermes era também o deus dos ladrões na Grécia antiga, e a sua imagem era usada como protecção contra o roubo. Iria jurar que a estrela de seis pontas que Sana usara visava insinuar que o deus judaico protegia aqueles israelitas porque era mais ladrão do que o próprio Hermes - o maior ladrão de sempre!

O vídeo estava mal focado e não conseguia apanhar o palco todo, pelo que era difícil ficar com uma boa ideia do espectáculo. Pelo que consegui entender, porém, Sana tinha entregue os movimentos mais graciosos aos homens, que executavam saltos baléticos e corriam pelo palco com grande exuberância. Por contraste, as mulheres moviam-se como se carregassem grandes fardos às costas, ou temessem cada movimento, excepto Lisístrata, que deslizava pelo palco, ultrapassando os homens com as suas façanhas acrobáticas. No momento em que declara a greve, por exemplo, irrompe pelo coro feminino e salta - exultante - do telhado de sua casa para o chão, seguramente três metros ou mais.

Sana executava este salto espantoso com a segurança compacta de um gato.

O momento mais dramático acontecia quando Lisístrata despe as suas roupagens e se precipita para o Corifeu. Depois de tentar passar o seu véu à volta da cabeça dele (como na peça original), veste-o com as roupas dela (um acrescento que deve ser de Sana). O Corifeu, agora transformado em mulher palestiniana, junta-se à greve.

Este momento de triunfo das mulheres depressa se revela, porém, como a sua perdição. Desempenhando agora o papel de uma matrona de gestos largos e cómicos, o Corifeu escapa-se para o coro masculino a coberto da escuridão e informa-os como e quando penetrar na fortaleza das mulheres. Os homens assassinam todas as grevistas, com excepção de Lisístrata, que - ensanguentada, espancada, e ainda nua - é metida numa jaula no centro do palco. O Corifeu, sorrindo de satisfação, cobre-lhe a cabeça com o seu véu, de maneira que ela fica incapaz de ver. Cada vez que respira, o tecido cola-se numa verdadeira tortura ao nariz e aos olhos, dando ao rosto a aparência de um cadáver. Alex ouvira já as minhas histórias sobre Sana e, ao ver esta cena, comentou: «Como um pássaro de asas cortadas.»

O sentimento de aflitiva sufocação que Sana inspira é insuportável.

No fim da peça, as personagens masculinas, incluindo o coro dos homens, juntam-se todas à volta da jaula de Lisístrata e estendem os braços por dentro das grades, os dedos como vermes, esforçando-se por tocar-lhe. Não é claro se pretendem consolá-la ou matá-la. Cai o pano.

 

Decidi voltar a Paris para visitar Helena e para lhe mostrar o vídeo, antes das minhas férias de Verão, que passava em Nova Iorque com a minha mãe. Avisou-me que não o veria na minha presença e que tinha de escolher um momento em que se sentisse com forças suficientes para o ver.

No dia 1 de Julho, o dia anterior à minha partida, Mário telefonou para me dizer que o médico de Sana cedera e lhe dera o endereço e o número de fax do pai de Sana, em Bolonha. Sana nunca lhe dera nenhum número de telefone.

Comecei nessa mesma noite uma carta para Mahmoud. Quando, na tarde do dia seguinte, me encontrei com Helena, dei-lhe a boa notícia e pedi-lhe que desse uma vista de olhos ao que eu tinha escrito.

Quando acabou de ler, franziu o sobrolho.

- Óptimo - disse ela, sarcástica. Devolveu-me a carta. - Mas, se falares com ele, não lhe digas nada sobre mim.

- Porquê?

- Já te disse, não gosto dele.

- Se ele perguntar, posso só dizer-lhe que estás em Paris?

- Não. Além do mais, ele achava que eu exercia uma má influência sobre a Sana, por isso não deve perguntar nada. Provavelmente já se esqueceu completamente de mim.

Era o tipo de resposta que alguém que tivesse inventado as histórias sobre Sana poderia dar - caso Mahmoud realmente não se lembrasse dela. Uma dor invadiu-me à ideia de ela não me ter dado mais do que invenções e falsidades desde o nosso primeiro momento juntos.

- Que é que tens?

- Estou só cansado - menti.

Helena começou a fazer um chá para nós - num velho bule de barro com um desenho em xadrez azul e branco.

- Foi o que a tia Zeinab me deixou em testamento. Era o que ela usava para fazer chá para mim e para a Sana... quando nos contava histórias. Sempre o adorei.

- Tens alguma fotografia de Zeinab ou do Mahmoud? Fez que não com a cabeça.

- Tiens! - exclamou subitamente. - Sabes o que devias fazer? Devias mentir ao Mahmoud e dizer-lhe que a Sana lhe deixou dinheiro no testamento. Era a maneira de ele querer falar contigo.

- Não tens lá muita fé nele.

- Se fosse ele o condutor do quinto carro, teria deixado o meu pai a morrer no deserto.

- E também não tens muita fé na natureza humana.

- Não acredito que as pessoas sejam boas por natureza. Fala com o teu caro amigo Colombowitz... vais ver que concorda comigo.

- Se bem que o Mahmoud deve estar bastante magoado, e era um insulto se...

- Magoado! - Bateu com a caneca de chá na mesa. - Nem sequer foi ao funeral da tia Zeinab!

- Então foi isso que te deixou assim tão furiosa.

- Não. Estou furiosa, como tu dizes, porque ele batia na Sana... e batia-lhe a sério. Deixou-lhe a marca da mão na pele... toda vermelha e dorida. Sabes o que é andar com a marca da mão do pai por toda a parte para onde se vá?

 

Nessa noite, descrevi-lhe a Lisístrata em pormenor, pois queria estar preparada para a ver. Levou o vídeo para o quarto e escondeu-o no roupeiro.

Contei-lhe então que Sana dissera aos companheiros do grupo de dança que era de Itália.

- Já esperava uma coisa dessas - replicou, servindo dois copos de brandy.

- Porquê?

- Vê lá o tempo que me levou a falar-te em nós as duas. Tens vinte horas de gravações. A Sana não ia investir esse tempo todo com pessoas em quem não confiava. É mais fácil inventar um passado simples... com uns pais italianos simpáticos e um avô que é um grande diplomata. Tudo muito lasanha e Chianti e «O Sole Mio».

- Mas é uma fraude, não te parece?

- E que é que isso tem? As vezes digo às pessoas que Haifa é só divertimentos e gelados e banhos nas águas quentes do Mediterrâneo. É evidente que nunca digo que a minha mãe esteve em Auschwitz. Para que é que as pessoas precisam de saber isso?

- É embaraçoso para ti a tua mãe ter estado num campo de concentração?

Lançou-me um olhar de incredulidade.

- Embaraçoso? A minha mãe era a pessoa mais corajosa que eu conheci! Ouve lá, achas que os desconhecidos têm algum direito de conhecer a vida privada dela? Ou a minha? Vou dizer-te uma coisa... Depois da Guerra dos Seis Dias, a minha mãe ouviu uma amiga dizer que tínhamos o direito de matar os Palestinianos e de ficar com as terras deles por causa de tudo o que os nazis nos tinham feito.

Nesse momento, ela inventou também um novo passado. Gostavas de servir de justificação ao roubo de um país? Gostavas que os teus amigos usassem o teu passado e o teu sofrimento para justificar os seus fins políticos? Por isso, ela começou a dizer às pessoas que tinha passado a guerra numa praia perto de Esmirna... a bronzear-se, a comer baklava, e a aprender a tomar café turco. Helena riu-se. Eu não.

- Que é? Não achas divertido? - desafiou ela. - A minha mãe e eu achávamos que era divertidíssimo.

- Tenho a impressão de que o meu sentido de humor é diferente.

- O meu pai também não achava que fosse divertido. Talvez sejas como ele.

- Eu só não acho que seja divertido dizer às pessoas que não se sofreu quando se sofreu - observei.

- Oh, por amor de Deus, as pessoas não estão interessadas no que os outros sentem. Que idade tens tu?

- Quarenta e cinco.

- E ainda não percebeste isso? Olha lá, se isso te faz sentir melhor, talvez a Sana acreditasse realmente que era de Itália. Quando era pequena, viveu lá durante dois anos. E depois em adulta foi para lá de novo. Escolhemos uma profissão, escolhemos os amigos, porque não havemos de escolher o que nos acontece no passado?

- Se o fazemos, então não somos quem somos.

- Será quem somos uma única coisa? Não pode ser duas? E ao fim e ao cabo, será realmente assim tão sagrado?

Estive quase a acusar Helena de me ter mentido por me dizer que nunca tinha recebido nenhuma carta de Sana. Mas decidi falar primeiro com o pai, antes de a desmentir. Talvez partilhássemos o mesmo sentido de humor, e talvez ele me contasse coisas que a filha não contaria... ou não poderia contar.

Quatro dias mais tarde, estando eu em casa da minha mãe em Nova Iorque, escrevi mais uma carta a Samuel, explicando-me melhor e pedindo-lhe por favor que entrasse em contacto comigo. Acabei também nessa altura a carta para Mahmoud. Dizia-lhe que queria falar com ele para saber mais sobre a vida da filha. Teria muito gosto em ir a Bolonha na altura que melhor calhasse aos dois.

Mandei-a traduzir para italiano numa agência de viagens próxima, especializada em viagens para Itália. Pareceu-me um tanto abusivo mandá-la por fax, por isso mandei-a por correio expresso. Mandei tanto a Samuel como a Mahmoud os meus números de telefone e os meus endereços em Nova Iorque e em Portugal.

Não tive notícias nem de um nem de outro durante o tempo em que estive com a minha mãe. E quando regressei ao Porto, não tinha nenhuma carta à minha espera. Não sabia ainda, nessa altura, que Helena pedira ao pai para não falar comigo sobre Sana, por isso imaginei que ele não queria ter nada que ver com o passado. Quanto a Mahmoud, talvez se tivesse mudado, ou morrido.

 

Enquanto estava em Nova Iorque, fui com Alex ao Joyce Theater. Um técnico de luzes que lá trabalhava há muito tempo era a única pessoa que tinha alguma ideia da Lisístrata do Soho Dance Theater. Lembrava-se que a noite de estreia teve uma boa casa, mas que os espectáculos acabaram quase logo a seguir. Não sabia explicar as razões. Deu-me o número de telefone de um amigo que fora crítico de dança em Nova Iorque, nesse tempo. Chamava-se Mark Fleisher e vivia agora em San Francisco. Telefonei-lhe, mas tinha um recado no gravador a dizer que estava fora até 1 de Setembro.

Ao regressar a Portugal em fins de Julho e não tendo recebido nenhuma resposta de Mahmoud, escrevi-lhe de novo. Desta vez, enviei-lhe um exemplar da edição italiana de bolso de O Último Cabalista de Lisboa. No fim da carta, tentei pela primeira vez pôr por escrito o que sentia por Sana:

 

Não sei bem o que me fez sentir uma atracção tão imediata pela sua filha. É estranho como uma pessoa desconhecida pode ter um efeito tão grande na nossa vida. Escrevo sobre isso nos meus livros por vezes, provavelmente porque sempre senti que temos muita sorte em termos sentimentos tão profundos por pessoas que nem sempre conhecemos muito bem. Se não tivermos tal capacidade, imagino que não somos sequer capazes de nos apaixonarmos.

Gostaria de ter conhecido melhor a sua filha e ficava-lhe muito grato se me concedesse a possibilidade de falar sobre ela.

Também desta vez, mandei traduzir a carta para italiano, mas agora mandei-a por fax. Para minha surpresa, responderam-me passados dez minutos. Telefonei a Helena de imediato.

- Tenho-o aqui, tenho-o aqui! Um fax do Mahmoud!... Tenho-o aqui na mão.

- Que é que ele diz?

- Não faço ideia. Está em árabe.

- Árabe? Como pode ele ser tão estúpido?

O árabe de Helena estava bastante enferrujado, por isso mandei o fax de Mahmoud a um amigo dela na Sorbonne, que era especialista em literatura egípcia e do Médio Oriente. Helena telefonou-me nessa noite com a tradução francesa e não tardámos muito a traduzi-la por nossa vez:

 

O escritório está temporariamente encerrado e reabrirá no dia 12 de Agosto. Envie-nos o seu nome e número de telefone e entraremos em contacto consigo. Prevenimos que poderá levar uma semana até à entrega do seu presente de aniversário; por isso, caso precise que lhe seja entregue antes de 19 de Agosto, é favor contactar outra agência.

Helena não fazia a menor ideia do que significava esta mensagem e desatou-se a rir.

- O Mahmoud provavelmente trabalha para alguma grande loja de brinquedos.

Enviei de imediato outro fax – pedindo que me respondesse em inglês, francês ou italiano – mas, após nova espera de dez minutos, começou a deslizar na máquina exactamente a mesma resposta em árabe. Percebi então aquilo que devia ser desde logo evidente – era apenas uma resposta automática.

 

DESDE QUE CONHECERA HELENA, tinha começado a fazer recortes de jornais com artigos sobre suicidas. Suponho que procurava descobrir a chave para as motivações de Sana. Guardá-los num envelope na gaveta da minha secretária tornou-se no entanto estranhamente importante para o meu sentido de segurança, como se fossem necessários para a minha protecção.

Quando o meu irmão estava a morrer no hospital, tinha medicamentos escondidos na mesinha-de-cabeceira junto da cama. Numa pequena bolsa de cabedal havia antidepressivos, tranquilizantes e sabe Deus mais o quê. Uma neuropatia tinha-o deixado inválido e ele só podia utilizar as mãos como se fossem barbatanas, por isso eu punha-lhe um comprimido na língua e depois ajudava-o a beber um gole de sumo de maçã para que o pudesse engolir.

Foram muitas as vezes em que pensei naquele esconderijo quando enfiava mais um artigo dentro do envelope, porque quando certa manhã o meu irmão me confessou a sua agonia, eu tinha-lhe dito que ninguém ia ficar a pensar mal dele por ter posto termo à vida se era isso o que ele queria. Ao dizer-lhe isso, estava implícito que o ajudaria.

O primeiro artigo que atraíra a minha atenção foi publicado no Expresso, um semanário português. Não tinha mais do que uns três centímetros quadrados de texto:

 

       Suicídio de jovem por enforcamento

Um jovem suicidou-se ontem, por enforcamento, na Casa dos Rapazes, uma instituição de beneficência no Barreiro que alberga rapazes órfãos e abandonados. O jovem, de 19 anos, foi encontrado cerca das 7 horas da manhã no pátio da casa.

 

Nessa noite, depois de ter lido o artigo, voltei a sonhar ter ficado preso no fundo de um poço, enquanto pássaros com rosto humano mergulhavam do céu sobre a minha cabeça. Quando acordei, sentia a morte - pesada e fria - profundamente cravada nas minhas entranhas.

Com o tempo, a minha colecção aumentou para dezassete artigos. O método do suicídio apenas era mencionado em três deles, o que me pareceu estranho, até que me explicaram que a informação era normalmente omitida para evitar que houvesse um efeito de imitação. Ao que parece, as pessoas desesperadas são extremamente sugestionáveis.

Houve um caso em especial que me perturbou. O suicídio de uma rapariga de quinze anos, de Lisboa, tinha sido uma completa surpresa para os pais e amigos dela. «Nunca me pareceu deprimida... Era uma rapariga despreocupada», disse a mãe aos jornalistas.

Em todos os outros artigos, citava-se como razão para o suicídio a «depressão prolongada». No entanto, quantos mais artigos eu cortava, mais óbvio se tornava para mim que aquela frase tinha significados diferentes para diferentes pessoas. Será que o jovem que se enforcou tinha o mesmo género de depressão que a mãe de quatro filhos, a quem o mais velho morrera de overdose, que cortou os pulsos no dia do seu aniversário? Seria o sofrimento deles semelhante ao do pai de três filhos implicados numa rede pedófila na Madeira?

Será que os sentimentos deles se teriam conjugado com alguma emoção em particular que os levou a buscar um escape definitivo?

No artigo sobre a rapariga de quinze anos, voltava frequentemente a uma frase de um dos amigos dela: «Uma vez, vínhamos para casa da escola e de repente ela desatou a correr. Quando a apanhei, quis dar-me o anel dela, mas eu não o aceitei. Foi essa a única vez em que me pareceu perturbada.»

Lembro-me de Sana atirando-me o pintarroxo invisível. Seria essa a dádiva que ela me queria legar? Eu aceitei-a. Por isso, talvez Helena tenha razão - tornei-me nesse momento parte do plano de Sana.

Seria ela tão boa actriz que fosse capaz de esconder de todos a sua depressão?

- Devia vê-la como parte da actuação - respondeu-me Helena quando lho perguntei.

- Mas isto era a vida dela... não era uma actuação.

- Descobri há pouco que para a Sana isso era a mesma coisa.

 

O suicídio mais famoso com que deparei foi o de Hannelore Kohl, a mulher do ex-chanceler alemão, Helmut Kohl. Num artigo da sua edição de 6 de Julho, o jornal O Público dizia que ela sofria de uma doença alérgica da pele que a impedia de sair durante o dia ou, na fase final, de acender sequer a luz eléctrica. Vivia como que encerrada dentro de um túmulo.

Em 14 de Junho de 2001, o suicídio da filha do xá da Pérsia, há muito falecido, surgiu nos noticiários. Leila tinha posto termo à vida na suite do hotel londrino onde se encontrava. O artigo que recortei tinha como título «A Morte Misteriosa da Princesa Leila». Mas não parecia haver ali grande mistério. Nos últimos anos, sofria de perigosas alterações de humor e tinha tendência para prolongadas crises de melancolia. Durante as duas décadas anteriores, a sua vida emocional - como a de muitos iranianos -tornara-se envolta numa simetria sem esperança: centenas de milhares de pessoas na sua própria pátria desejavam desesperadamente fugir, e outras tantas centenas de milhares - como Leila - ansiavam por regressar.

Seria o mesmo com os Palestinianos? - perguntava-me eu.

Será que Sana desejava voltar para casa e sentiu que não o podia fazer - que isso seria um beco sem saída?

Apercebi-me então de que nem a Cisjordânia nem Gaza tinham qualquer lugar nas memórias dela. Quaisquer que viessem a ser as futuras fronteiras da nação palestiniana, esse país nunca seria a sua pátria, já que nascera árabe em Haifa - em Israel. Num certo sentido, era uma sem-Estado - o que devia ser uma das razões por que insistia em que era de Itália. Havia, no caso dela, uma trágica simetria: se voltasse para casa, seria aí, sempre, uma estrangeira.

 

Durante as minhas férias de Verão em Nova Iorque, comprei um livro de Theodore Zeldin intitulado An Intimate History of Humanity. Um dos capítulos tinha por título: «Como se criou a arte de fugir aos próprios problemas». Nesse capítulo, Zeldin refere as experiências sobre stress levadas a cabo pelo cientista francês Henri Laborit, que descobriu que os ratos sujeitos a pressão, aos quais se permitia que fugissem e encontrassem abrigo, recuperavam a pressão sanguínea normal passado uma semana. Os que eram impedidos de fugir perdiam a esperança, , apanhavam úlceras, e sofriam de perda de peso extrema. Quando lhes abriam as portas das jaulas, estavam demasiado traumatizados para fugir.

Ao analisar as implicações destas experiências nos seres humanos, Zeldin escreve: «Quando as circunstâncias não nos permitem fugir fisicamente, podemos fazê-lo nos nossos pensamentos. A imaginação é a única parte de nós que ninguém nem nenhum grupo pode tocar. Podemos estar indefesos, mas na nossa imaginação podemos transformar o mundo.»

De tal modo que comecei então a acreditar que um mundo interior - um lugar onde podia criar danças e gestos mágicos - tinha proporcionado a Sana um refúgio desde o primeiro momento em que se enfiou pelo roupeiro dentro para se esconder.

Parecia-me também claro que alguma coisa na Austrália tinha feito com que sentisse ameaçada a própria existência deste refúgio salva-vidas. Mesmo a mímica a tinha abandonado.

Devia ter-me dito, a mim ou a outra pessoa, que estava em perigo, pensei. Devia ter gritado por socorro, tão alto quanto pudesse. Mas lembrei-me então que levantar a voz era precisamente aquilo que Sana fora proibida de fazer desde pequena.

 

No DIA 2 DE AGOSTO, Mário ligou-me do Brasil e disse: - Isto está a ficar cada vez mais esquisito. Contou-me então que tinha acabado de conhecer um ex-namorado de Sana de quem nunca tinha ouvido falar. E dizia-me que ele me iria telefonar em breve, pois estava em Portugal de visita a uma irmã, em Lisboa, antes de seguir para Viena, onde ia abrir uma exposição sua. Era pintor abstracto. Afirmava ter andado com Sana durante seis meses. Mário achava que aquilo lhe soava duvidoso, por isso queria avisar-me de que ele podia estar a querer iludir-me de uma maneira qualquer.

Alguns dias depois, o tal ex-namorado telefonou-me de Lisboa. Chamo-lhe Júlio, uma vez que me confessou haver coisas na sua relação com Sana que o faziam sentir-se embaraçado e preferia que não usasse o nome dele.

Curiosamente, a expressão que usou, «A Sana andou comigo há uns anos», ao explicar-me a razão do telefonema, era como se a escolha tivesse sido dela e não dele, ou como se ela se tivesse mostrado relutante em andar com ele.

Júlio disse-me que poderia falar comigo se eu fosse ter com ele a Lisboa. Sugeriu que nos encontrássemos daí a dois dias, às oito da manhã, pois à tarde tinha o voo para Viena e no dia anterior estaria ocupado com donos de galerias.

Encontrar-me com ele tão cedo significava passar a noite em Lisboa, por isso perguntei-lhe se não podia ser mais tarde. Desculpando-se, Júlio disse que era o único tempo de que dispunha, por isso apanhei um voo para Lisboa na noite anterior.

Decidi-me por um hotel na zona da Expo, junto ao rio. Deixando-me cair exausto na cama depois de um duche, fiquei a olhar-me no espelho que ficava diante de mim. Vi os meus pés, as pernas e o peito, e finalmente os meus olhos, que pareciam fechados, as pestanas apertadas contra o rosto. Era como se estivesse a ver-me numa gaveta da morgue. Não me mexi durante um bom bocado, lembrando-me de Sana, do meu irmão e de todas as pessoas que conhecera e que tinham morrido jovens.

 

No dia seguinte pela manhã, apanhei o metro e encontrei-me com Júlio na Pastelaria Mexicana, na Praça de Londres. Tinha-lhe comprado uns pastéis de amêndoa na Astro, uma pastelaria maravilhosa não muito longe dali, que descobrira uns anos antes. Agradeceu com um sorriso, acrescentando que a irmã dele era bastante gulosa.

- Vai devorá-los um a um com uma só dentada - disse com uma risada. O seu sotaque brasileiro tecia voltas de serpentina em torno das vogais.

Júlio encaminhou-me para o interior, sugerindo que nos sentássemos aí, em vez da esplanada.

- Tenho luz que chegue lá em São Paulo - disse.

Era alto e desengonçado, curvando-se para diante ao caminhar, como se fosse atirar-se para o chão a qualquer momento. Os cabelos eram curtos e desalinhados e não se tinha barbeado. Gostei daquela sua informalidade ao estilo americano.

Um cozinheiro de avental branco, transportando um bolo de dois andares, sólido e branco como gesso, com bolinhas prateadas a toda a volta, ia embatendo nele, e desataram-se os dois a rir com a iminência do desastre. Júlio pôs a mão no ombro do homem por instantes. Parecia completamente à vontade. Seria isso que Sana achara tão atraente nele?

Com um pedido de desculpas, fui de imediato à casa de banho - herdara da minha mãe esta necessidade de fazer chichi de meia em meia hora quando estava nervoso. De passagem, reparei no aviário na parte de trás do café, onde se viam periquitos azuis e verdes, os olhos fechados, imóveis como estátuas, poisados nos ramos nus de uma árvore com cerca de três metros morta há muito. A esta hora, estavam indubitavelmente à espera de mais uns instantes de sono.

Assim que me sentei em frente de Júlio, mostrei-lhe o aviário.

- Certo, é uma coisa que deixava a Sana arrepiada - disse ele.

- Porquê?

- Os pobres dos bichos estão numa ratoeira.

Mais tarde na nossa conversa, haveria de acrescentar: «Uma vez entrei com ela numa igreja em São Paulo e havia um pombo lá dentro. Ia tendo um ataque. Desatou aos soluços por o pombo não poder sair. Tive de ir ter com o padre, que lhe garantiu que, quando abrisse as portas de manhã, ia convencê-lo delicadamente a sair. Já tinha acontecido antes, disse ele, e nunca nenhum pombo tinha ficado magoado.»

Estávamos sentados a uma das mesas quadradas de mármore. A iluminação fraca dava ao local o ar sonolento de um aquário.

Depois de pedir um café, Júlio disse-me que vira Sana pela primeira vez num restaurante turco em São Paulo.

- Estava comendo sozinha numa mesa próxima. A certa altura começámos a conversar. Foi um papo legal e achei-a também extraordinariamente bonita.

Acrescentou que, depois de terem partilhado uma baklava como sobremesa, tinham ido essa mesma noite para o apartamento dele e tinham feito amor. Durante os seis meses que se seguiram, viam-se duas ou três noites por semana. Ele teria preferido que vivessem juntos, mas ela queria levar as coisas devagar.

- Disse que as mulheres têm de levar as coisas mais devagar do que os homens, para não ir tudo pelo ar.

- Foi por isso que disse que ela é que andou consigo? - perguntei.

- Estava a ver se você ia topar essa - disse sorrindo. Coçou a cabeça de uma maneira cómica, como que para desfazer a importância do que ia dizer a seguir. - Tive sempre a impressão de não estar bem à altura. Foi isso que acabou por nos separar. É difícil não ser suficientemente bom.

- Ela alguma vez lhe disse a razão?

- Não, negou que fosse isso que sentia. Disse que era só porque precisava de algum tempo para si própria. Andava ocupada com uma coreografia e tinha de ensaiar muitas horas por dia. Deve ter-se sentido muito pressionada. De qualquer modo, sempre me fez sentir que não passava de uma coisa secundária, como a... como a terra natal, onde se vai só aos fins-de-semana. Fazia-me sentir tão frustrado que não faz ideia. Nunca conseguia sentir que realmente chegava até ela.

- Alguma vez saíram os dois com outras pessoas da Trupe Paulista?

- Nunca.

- Mas deve ter ido aos espectáculos dela.

- Não, a Sana não queria que eu fosse.

- Mas conhece um pouco o Mário.

- Só o conheci recentemente. Comecei a ficar outra vez curioso sobre o que ela fez. Fui ter com ele num bar onde estava numa festa com outros caras do grupo. Nunca nos encontrámos quando eu andava com a Sana.

Em resposta à minha expressão de surpresa, Júlio disse:

- Ela queria manter-me separado do resto da vida dela. Quando estávamos juntos, era como se estivéssemos num castelo. Ela não queria que nada mais entrasse lá dentro.

- Que é que ela lhe contou da infância dela?

- Só que tinha crescido em Israel. E que os pais dela eram da Europa, o pai da Polónia e a mãe da Grécia.

- Tem a certeza de que foi isso que ela disse, Polónia e Grécia?

- Absoluta.

- E de que cidade era ela?

- Haifa. Cresceu num bairro misto... não me lembro agora do nome. Quer dizer, misto no sentido de que havia judeus e palestinianos. Naquele tempo isso não era problema, disse ela. Ao ponto de a melhor amiga dela ser uma palestiniana.

- A esse ponto? - assenti, com admiração por Sana e por tal reinvenção de si própria.

- Certo, chamava-se Helena. A Sana às vezes falava nela. Ei, se calhar você devia falar com ela. Não tenho a morada dela, nem o número de telefone, mas talvez o possa conseguir de Mário ou outro cara do grupo. A Sana dizia que tinham sido muito íntimas... como irmãs gémeas. Costumavam ir muitas vezes ao cinema com as mães delas.

- E a Sana disse que Helena era palestiniana?

- Disse. Tinham nascido quase ao mesmo tempo. Helena muitas vezes tinha de se esconder dos soldados israelitas por os pais dela não terem papéis oficiais para viverem na sua própria casa. A Sana costumava ir com ela para o esconderijo. Até levavam o gato de Helena com elas. Isso tornou-as muito próximas.

- A Sana disse-lhe que era judia?

- Certo. Em Portugal não sei, mas no Brasil ser judeu não tem problema. São Paulo tem uma imensa comunidade judaica. A família de meu pai é judia. Ninguém liga... pelo menos ninguém que eu conheça.

- Que mais disse ela sobre os pais?

- Disse que o pai era botânico. Faz híbridos de citrinos, acho eu. E a mãe era uma sobrevivente do Holocausto. Não me lembro qual era o trabalho dela. Que mais... ? Disse que o pai era muito baixo. Que tinha umas sobrancelhas como tufos. Que costumava brincar com elas.

- Disse se os pais ainda eram vivos?

- Disse que não, que já tinham morrido. Acho que era por isso que não queria falar muito neles. Era doloroso para ela.

- Alguma vez falou na Abelha-Mestra?

Júlio abriu muito os olhos.

- Como sabe disso?

- Disso, o quê?

- Era o que ela costumava chamar-me. «És a minha Abelha-Mestra», dizia ela às vezes. Normalmente quando se sentia desapontada comigo. Era uma coisa estranha... Quer dizer, a Abelha-Mestra devia ser uma mulher, né? Como sabia disso?

- Falei com a Helena, a mulher de quem falou. Ao que parece, era uma espécie de alcunha que elas usavam lá em Haifa.

- Uma alcunha de Helena?

- Não. De alguém que só existia na cabeça da Sana. De uma pessoa imaginada por ela.

- Imaginada, como?

- Como os amigos imaginários, acho eu. Coisas de miúdos.

- Bem, se calhar encontrou a Abelha-Mestra a sério quando me conheceu.

 

Júlio continuou a contar-me histórias sobre Sana, do comportamento dela quando estavam os dois a sós, e impressionou-me a sua lealdade para com ela. Parecia-me ser um homem naturalmente meigo. Disse-me que tinham rompido há mais de um ano antes da morte dela. Não houve discussão. Uma noite, quando saía do apartamento dele, Sana disse que lhe telefonava no dia seguinte. Mas nunca mais o fez. Ele decidiu não andar atrás dela; ainda que continuasse a amá-la, parecia não haver esperança para a relação deles.

Aquilo de que mais me lembro é de Júlio, as mãos abertas voltadas para mim, a dizer: «A Sana era como uma opala... Com muitas cores maravilhosas dentro dela. Mas também dura. Como se nunca fosse possível deixarmos nela uma impressão durável, por mais que tentássemos.»

Depois fechou os punhos com força, como se nunca mais devesse abri-los.

 

Na SEGUNDA NOITE a seguir ao meu encontro com Júlio, Samuel telefonou. Desculpou-se por não o ter feito mais cedo, mas a saúde dele não andava grande coisa.

- E também - confessou - a minha filha pediu-me que não falasse consigo.

- Com que então pediu-lhe! - repliquei, uma declaração de guerra no pensamento.

- Não se zangue com ela. Está sempre a querer proteger a Sana... e eu também, para dizer a verdade.

- É só por que podia ter sido sincera comigo.

- É verdade, mas isso agora pouco importa. Falo consigo sobre o que quiser.

O sotaque de Samuel era uma mistura de aristocrata inglês e de hebraico. Disse-lhe que me soava muito distinto.

- Obrigado. É dos meus tempos na universidade de Londres. Nesse tempo muitos ingleses desprezavam os judeus, por isso fiz o possível para me integrar. Claro que a certa altura percebi que, mesmo se falasse como o Laurence Olivier, não seria suficiente... pelo menos com o aspecto que tinha.

Insisti em ser eu a ligar para ele, pois sabia que íamos ficar à conversa um bom bocado. Depois, para começar, fiz-lhe umas perguntas sobre o ataque de que fora vítima. Disse que isso não era importante e que lá ia dando as suas voltas a coxear.

- Consigo tratar das minhas feijoas e dos meus canteiros sem ajuda de ninguém, e de momento é tudo o que preciso de fazer.

Disse-me que ia comprar outro Peugeot assim que se sentisse suficientemente confiante para voltar a guiar - um automático, para não ter de usar a embraiagem. Por insistência minha, falou então demoradamente sobre o que acontecera no deserto, acrescentando muitos pormenores de que Helena não falara, sobretudo que infelizmente, com o tiro, tinha perdido o domínio da bexiga e dos intestinos e que por isso estava uma lástima enquanto os carros iam passando por ele.

- Cheirava que nem uma jaula de gatos no Zoo de Londres - confidenciou com uma risadinha. - Sabe, a única coisa realmente preocupante, depois da dor e do choque iniciais, eram aqueles carros a passar por mim sem pararem. É uma coisa que nos deixa a pensar.

Mais tarde, quando falei nisso a Helena, ela disse:

- Os pais e as irmãs do meu pai foram mortos nos campos de concentração e ele ainda se põe a cogitar sobre a crueldade humana? Desculpa lá, mas isto de ele ser ferido por aqueles rapazes e de os carros não pararem só prova aquilo que sempre soubemos: ninguém liga a ninguém. A solidariedade é coisa que não existe.

Enquanto estava estendido na estrada, Samuel pensara em Helena e em Rosa. Sentia que elas ficariam muito desapontadas com ele por se deixar morrer, mas não tinha forças suficientes para lutar. Depois viu-se no exterior da sua sinagoga em Lodz, e Marlene Dietrich cantava «Lili Marlene» dentro da casa do rabi. Pôs-se a pensar que talvez não conseguisse criar a sua feijoa dourada se ela parasse de cantar, embora não conseguisse explicar qual fosse a ligação entre as duas coisas.

Apesar de tudo isso, Samuel estava exuberante, com uma alegria divertida.

- Há pessoas que lhes dá para verem seres alados e túneis de luz. A mim calhou-me uma sinagoga reduzida a cinzas sessenta anos antes e uma Marlene Dietrich viajante do tempo. Ah! Ah!

Percebi então de onde vinha o riso rápido de Helena. Jazendo ferido na berma da estrada, Samuel limitou-se a fechar os olhos e a despedir-se do mundo. Quando os voltou a abrir, viu a cara de uma mulher debruçada sobre ele - a condutora do quinto carro, uma professora palestiniana.

- Um anjo a pedir socorro por telemóvel - disse Samuel. - Era tão bonita!

Foi conduzido a toda a velocidade para um hospital em Hébron.

- Os médicos palestinianos foram maravilhosos - disse ele.

- Salvaram-me a vida. E falavam um hebraico impecável... melhor do que o meu.

- E qual é o prognóstico?

- Os médicos dizem que posso voltar a andar bastante bem daqui a um mês ou dois. Claro que com a ajuda de uma bengala, mas já precisava dela antes, por isso vai ficar tudo mais ou menos na mesma.

Abordei então o tema da Sana - perguntando-lhe o que pensava dela em pequena.

- Oh, não faz ideia de como ela era boa e meiga em criança! - disse ele numa voz enternecida pela afeição. - E que energia! Santo Deus, mal conseguíamos acompanhá-la. E cheia de talento também. Tinha até uma bela voz para cantar, não sei se sabia. Ensinei-lhes, a ela e à Helena, a «Lili Marlene». Eram tão boas amigas!

Quando lhe perguntei, na sua opinião, por que se teria Sana matado, disse:

- Oh, a vida leva-nos a muitos lugares, alguns deles maus, quem pode saber? Talvez... talvez o quinto carro nunca tivesse passado e ela simplesmente se tivesse rendido.

Não fazia ideia onde parava Mahmoud actualmente, nem se a Abelha-Mestra representava alguém realmente existente na vida de Sana; de facto, ele já se tinha esquecido disso. Contou-me que, em parte, a razão que levou Rosa a deixar a Casa das Hortênsias Azuis era que as relações com Mahmoud, antes de ele ir para Itália, não eram nem de longe tão amistosas como tinham sido em tempos. Mahmoud chegara à conclusão de que não podia haver futuro para os Palestinianos enquanto os judeus vivessem em Israel. De um dia para o outro, pôs Samuel e Rosa fora da sua vida.

- O futuro da Palestina apareceu-lhe como uma revelação - disse Samuel. - Estava a rezar e teve uma visão.

Para explicar a profundidade da nova crença de Mahmoud, Samuel contou-me uma lenda palestiniana em que três carvões em brasa caem do céu durante o Inverno, sendo o último deles o sinal do início da Primavera. Mahmoud dizia que tivera uma visão em que havia dois carvões ardentes, e que lhe fora revelado que a terceira brasa de carvão nunca haveria de cair enquanto vivessem judeus em Israel. O Inverno eterno era o destino do seu povo. A terra, e com ela os corações das pessoas, haveriam de tornar-se tão áridos como pedra.

- A Helena provavelmente nunca se apercebeu, mas a Zeinab nunca nos visitava quando o Mahmoud estava em casa. Nem sequer lhe permitia que falasse com a Rosa. E eu sei que a Sana foi muitas vezes castigada por lhe desobedecer e continuar a brincar com a Helena.

- Se ele realmente pensava assim, então por que é que foi viver para Itália?

- Acho que queria fugir do mau casamento. Aquilo estava a dar cabo dele. Ou talvez a Zeinab tivesse acabado por ganhar coragem para lhe dizer que partisse. Acho que no fundo era boa pessoa, que se viu submetido a uma pressão desmedida... depois daquilo que aconteceu a Zeinab, quero eu dizer.

- Ela foi violada? A Helena não tinha a certeza.

- Não sei bem como lhe hei-de responder.

- Desculpe. É uma pergunta horrível, para ser feita por um estranho. Não precisa de responder.

- É só porque há tanto tempo que é segredo. Mas foi, a Zeinab foi violada. E por mais do que um soldado. Meu Deus, foi horrível. Para uma pessoa que cresceu na Europa ou na América já é uma coisa horrorosa. Mas deixe que lhe diga, é ainda mais devastador para uma mulher palestiniana. E o Mahmoud acreditava que tinha perdido tudo: a mulher, a honra, o seu lugar no mundo. Acho que acreditava que, só se partisse, poderia voltar a ser a boa pessoa que sempre fora... e salvar a Zeinab e a Sana. Podia recuperar a sua honra noutro país. Num estranho sentido, partir era fazer uma coisa muito responsável, pois queria dizer que a vida seria mais calma e estável para a mulher e para a filha. E também, para dizer a verdade, nunca tivera muita paciência para o Jamal. Por isso, quando surgiu a possibilidade de ir trabalhar para Itália, foi-se embora. Uma vez disse-me que voltaria quando começasse a próxima guerra. Chamava-lhe a Guerra da Primavera, porque significaria o fim do Inverno espiritual que se apoderara desta terra. Um dia disse-me na minha cara que esperava não ter de me matar, mas que me dava um tiro, a mim, a Rosa e a Helena, se nos encontrasse a viver na Casa das Hortênsias Azuis durante a Guerra da Primavera.

- Que lhe respondeu?

Samuel deu um profundo suspiro, e eu compreendi que toda esta conversa sobre Mahmoud e sobre o passado estava a deixá-lo extenuado.

- Disse-lhe que tinha a certeza de que nunca poderia disparar contra nós - respondeu. - Mas mudei-me para um subúrbio judaico quando surgiu uma possibilidade. A mudança de Mahmoud pareceu-me um sinal de que a vida entre judeus e muçulmanos se tornaria mais hostil em Haifa.

- Samuel, só mais uma pergunta: quem era esse Jamal em quem falou?

- A Helena não lhe falou nele?

- Não.

- Era o irmão mais novo da Sana.

- Por que raio a Helena não me falou nele?

- Não sei.

- Como posso entrar em contacto com ele?

- Não pode. Morreu. Mas oiça, antes de lhe dizer mais alguma coisa, acho que devia falar com a minha filha. Ela sabe muito melhor do que eu o que aconteceu ao Jamal.

Estava furioso por Helena me ter mentido. Liguei-lhe, mal acabei de falar com Samuel, mas ela não estava - ou recusava-se a atender. Passei uma noite como se dormisse sobre pedaços de vidro e só consegui falar com ela na manhã seguinte. Fiquei contente por a ter acordado e desatei logo aos berros.

A princípio reagiu friamente.

- Desculpa, não pensei que o Jamal tivesse tanta importância.

- Oh, não me venhas com essa, Helena. Eu sei que consegues mentir melhor do que isso.

- Odeias-me - choramingou ela. - Já sabia que ia dar nisto.

- Por favor, deixa-te disso. Não te odeio coisa nenhuma. Mas porque mentiste, se não tinha importância?

- Porque... porque com ele é tudo tão complicado. Não sei como hei-de falar sobre o que se passou. E a Sana... fez-me prometer que nunca diria a ninguém o que ela me contou sobre o irmão.

- Mas como posso falar contigo se me vais mentir?

- Ela obrigou-me a jurar que nunca diria nada... não compreendes?

- Mas ela está morta! - gritei. -Já não se pode zangar contigo.

Helena deixou o silêncio vibrar com a minha fúria - e talvez com a falsidade do que eu acabara de dizer; afinal, Helena passara a maior parte do último ano a manter Sana viva.

- Se vieres cá - sussurrou -, conto-te tudo.

- Helena, não me posso dar ao luxo de voar para Paris cada vez que tu me mentes. Estaria falido dentro de um mês. - Ela não tinha resposta para isto. - Não pensaste que eu acabaria por descobrir que Sana tinha um irmão?

- Pensei, mas tentei que fosse o mais tarde possível. Estava assustada. Acho que... acho que dei cabo de tudo. Lamento muito. - Desatou então a chorar como se a vida lhe fugisse.

Sosseguei-a, dizendo-lhe que não ficava zangado com ela, e, assim que se recompôs, começou a falar-me de Jamal. Nascera seis anos antes de Sana e tinha sido uma criança meiga e contente - o orgulho e a alegria de Mahmoud. Mas quando fez três anos, Zeinab começou a suspeitar que fosse surdo. Veio a concluir-se que não era, mas foi-lhe diagnosticada uma deficiência no desenvolvimento - «atrasado mental», como se dizia nessa época. Era o rapaz de boca aberta numa das fotografias que eu conservava.

- O Mahmoud detestava-o por ele não ser normal? - perguntei. - O teu pai deu a entender que não era uma relação fácil.

- Isso é um dos aspectos complicados. Ouve, isto não dá pelo telefone. Eu pago-te a viagem a Paris se puderes vir cá falar comigo sobre isto. E desta vez não te minto.

Exactamente uma semana depois, a 18 de Agosto, tomei um avião para Paris. Quando Helena me abriu a porta de casa, reparei que cortara o cabelo e o pintara de um castanho-avelã. Caíam-lhe para a testa umas farripas lisas, fazendo com que os olhos parecessem maiores e mais atentos. Tinha a pele mais escura, também - quase cor de azeitona. Parecia muitíssimo bonita e viva, como que pronta para que lhe pintassem o retrato. - Ena! - disse eu, o que só lhe mereceu um encolher de ombros. Dei-lhe um beijo na cara e disse-lhe que estava bonita.

Ansiosa por que afastasse dela o olhar, propôs-me de imediato um chá e, sem esperar pela minha resposta, correu para a cozinha para pôr a chaleira ao lume.

- Estive com o meu pai as duas últimas semanas de Julho - explicou ela, enquanto deitava uma colher de folhas de chá no bule de Zeinab. - Ali podia andar a passear sem preocupações... sem me sentir observada. A terra ali é só pedras e areia do tempo de Moisés. Todas as plantas de feijoa que ele plantou... estão muito bonitas. E estávamos sós, só nós os dois. Debaixo de um céu que é imensamente azul. Não há nada assim na Europa...

Não se pode ter um céu assim com cidades e com pessoas.

- E agora? Já consegues sair de casa durante o dia?

- Não, ainda não. Na Europa não... A Europa ainda é daquele sítio.

- Talvez estejas a precisar mudar-te para Israel.

- Nem todo Israel é como a casa e a quinta do meu pai - disse ela com um resmungo desdenhoso.

- Não precisas de Israel inteiro. Só precisas de um lugar. Helena reflectiu no que eu dissera.

- Se caminharmos bastante longe no deserto, não voltamos ao ponto de onde partimos... nem sequer se seguirmos os nossos passos até ao ponto onde começámos. Arriscamo-nos a ficar completamente perdidos. E eu não quero isso. Sabes uma coisa? Descobri que não quero juntar-me à Sana. - Olhou-me fixamente, determinada a não chorar. - Disse-lhe adeus baixinho quando estava lá... com o meu pai. Mais perto de nossa casa em Haifa. Mas isso não fez com que me sentisse muito melhor. Pensei que sim, mas enganei-me.

Sentada no sofá com os pés enfiados debaixo dela, bebendo o chá por uma caneca, Helena disse que Sana - durante a sua breve estada em Paris em 1996 - a tinha acordado uma noite e lhe tinha contado o que acontecera a Jamal durante aqueles anos.

- Pediu-me que não acendesse a luz - recordou Helena. -Por isso peguei numa vela e ficámos sentadas na minha cama, debaixo dos lençóis. Disse-me que tinha de falar comigo sobre o irmão, ou dava em louca. As palavras corriam dela como... como se fossem de fogo. Assim que acabou, disse que tinha de ir dar uma volta lá fora. Disse-lhe que também ia, mas ela recusou, tinha de ir sozinha. Passava das três da manhã. Só voltou ao amanhecer. Deixou-me assustada. Fiz-lhe um café e sentei-me aos pés dela. Ela acariciou-me o cabelo e contou-me uma última coisa. Talvez fosse isso que fez com que pela primeira vez ela pensasse em se atirar da janela.

 

Se NÃO FOSSE OS ANIMAIS gostarem de Jamal quando ele era pequeno, talvez não tivesse acabado por ir parar à prisão. Mas gostavam - da sua presença silenciosa na rua, à sombra de uma palmeira escanzelada, ou sentado na velha banheira, no pátio, o ouvido encostado ao transístor, escutando uma qualquer melodia nasalada sintonizada em Beirute. Os cães em particular ficavam pasmados diante do rapaz do rádio. Talvez lhes desse a impressão de que só a caixa preta junto ao ouvido falava. Ele raramente dizia alguma coisa, parecendo como que uma peça mais do puzzle formado pelo mundo natural, não muito diferente de uma romãzeira ou de uma chuvada de Inverno, ou então uma daquelas milhentas curiosidades impregnadas de cheiros, que eram só o que eram e nunca poderiam ser entendidas ou mudadas, embora as pudessem lamber, arranhar e farejar. Ou talvez fosse o facto de ele estar ali simplesmente especado, por vezes completamente imóvel, de boca aberta, que o tornava tão perfeito para criaturas de focinho e orelhas caídas, como uma imagem-memória de que não conseguiam desfazer-se e, mesmo que pudessem, também não quereriam.

Quando Sana era pequena, costumava dizer a Helena que, se nos baixássemos bastante e olhássemos de baixo para o irmão, num certo ângulo, era possível ver que ele estava ali abrindo a alma à mecânica do universo - atento aos rangidos da crosta terrestre ou sentindo a curvatura da gravidade sob os seus pés. Talvez fosse isso que os animais viam nele. - Não achas? - perguntava ela a Helena.

- Talvez - respondia a outra rapariga, mas não era isso que realmente pensava. Imaginava que o interior da cabeça de Jamal deveria antes parecer fumo branco.

Por vezes, a esperança na voz de Sana subia-lhe até aos olhos como lágrimas. Sana amava o rapaz como se tivesse sido ela a trazê-lo ao mundo. Sentia que, para ela ser normal, tivera que de algum modo haver nele qualquer coisa que não estava bem. As duas crianças estavam juntas num balance, como Zeinab dizia. Mas não era justo - nem para ela nem para ele. Era uma coisa que todos sabiam.

O tio dela, Abu-ai-Rayhan, acreditava que, quando Jamal ficava completamente imóvel, era até possível que estivesse a ouvir os versos que há catorze séculos Alá ditou a Maomé no deserto árabe e que continuavam a ser sussurrados a quem tivesse os ouvidos de profeta para os ouvir. E era verdade que o rapaz aparentava por vezes aquele olhar de mistérios desvendados, de ouvir uma melodia dentro de si que punha tudo na ordem que devia ser.

- Mas provavelmente não estava a pensar em mais nada do que no rádio que vibrava nas mãos dele - dizia-me Helena.

Por vezes, Sana e Zeinab reconheciam para si próprias que Jamal devia ser tão santo ou tão dotado como um tijolo. Mas nunca o disseram em voz alta.

Helena contou-me que o primeiro animal com quem Jamal travou amizade foi a cabra de Murta, o andrajoso vendedor de fruta que parecia andar sempre coberto de uma poeira de areia fina tão antiga como a Mesopotâmia, de tal modo que mais parecia uma antiga fotografia a sépia do que uma pessoa viva. O nome da cabra era Aisba, como a heroína de um famoso filme egípcio do mesmo nome, e Murta tinha-a comprado por ela ter aqueles olhos à Hollywood-do-Nilo de que tanto gostava. Mas a pobre da cabrinha era tímida e assustadiça. Murta estava já a ponto de desistir de fazer com que ela desse algum leite ou sequer se aventurasse para além do canto do quintal mal amanhado onde se mantinha a tremer noite e dia.

Fosse o mundo dele mais moderno e já a teria levado a um veterinário, mas estando nós em Wadi al-Nisnas na década de 1950, o que fez foi pedir ao imã que murmurasse umas quantas orações sobre a cabeça de Aisha, passando-lhe as contas de rezar à volta do cachaço, e lá voltou à venda de romãs, pêras e alfarroba pelas ruas.

Certo dia, o vendedor de fruta acordou e deu com Jamal - que na altura não podia ter mais do que sete anos - conduzindo Aisha rua abaixo puxada pela sua corda gasta. Era a primeira vez que ela consentia em sair do quintal.

- Como é que levaste este desgraçado animal a sair dali, rapaz?

Mas Jamal, coçando o traseiro como era seu hábito, limitou-se a desandar com Aisha, que trotava alegremente atrás dele, até atingir um tosco triângulo de erva perto do largo da feira, onde a beijou entre os olhos, deixando os lábios pousados nela tanto tempo que a maior parte das pessoas haveria de considerar aquilo um perigo para a saúde. Possivelmente, aquilo deixava o animal hipnotizado, pois que de imediato se lançava na tarefa há muito menosprezada de encher a barriga de erva, os molares a moerem o mais que podiam, para compensar todo o sustento a que se tinha furtado nos meses precedentes.

Depois disso, deu quartos de um leite espumejante e viveu uma vida de aventuras nas proximidades, completadas com viagens na traseira de camiões e até com um banho numa fonte pública, tudo graças a Jamal, que assim lhe dera a conhecer o mundo.

É possível que visse o rapaz como sendo outra cabra. Ou talvez Deus. Vá-se lá saber, afinal, o que pensa uma criatura como Aisha quando vence a sua agorafobia e sente os lábios de um rapaz pousados na testa.

Depois do sucesso de Jamal com Aisha, os vizinhos começaram a pedir-lhe para olhar pelos animais deles quando iam à feira ou desciam ao porto, largando-lhe algumas moedas na mão por lhes cuidar das galinhas, por lhes levar o gato a dar uma volta ou até por lhes pôr os periquitos a voar um bocado à volta da cozinha. Era a maneira de fazerem duas boas obras ao mesmo tempo - a Jamal e aos seus próprios animais.

 

Quando Sana acompanhou Zeinab a Itália para visitar Mahmoud, Jamal ficou em casa. O orgulho com que Mahmoud recebera o seu nascimento começara por se transformar em desapontamento para depois se tornar em gélida indiferença. Nunca levantou a mão para o rapaz, mas não o queria ver.

- O Jamal podia estar sentado na mesma sala a ouvir rádio e Mahmoud nem sequer se aperceber da sua presença - explicou-me Helena. - Em vez disso, virou a sua raiva contra Sana.

O miúdo ficou em Haifa com os tios enquanto a irmã e a mãe estiveram fora. Jamal percebeu que elas tinham partido, mas, mesmo depois de regressarem, nunca perguntou a razão. À medida que o irmão ia crescendo, Sana apercebeu-se da evidência: que ele nunca teria uma profissão, ou sequer uma maneira de ganhar o sustento. E não tendo nada que fazer, haveria de estar sempre metido em sarilhos. Este dilema deixava-a à noite sem dormir. Sentia que o futuro dele se alojava nas entranhas dela.

Tentou ensinar-lhe a contar, de modo a poder trabalhar numa loja, ou vender velas e fósforos na rua, mas embora ele acabasse por aprender até a tabuada, as moedas nas mãos deixavam-no apenas confuso e desarmado. Ensinou-o a ler todo o tipo de letras no alfabeto hebraico de modo que pudesse começar a decifrar os letreiros das ruas, mas por mais certa que estivesse de que ele poderia arranjar trabalho como marçano, ele cerrava os punhos e batia com eles na cabeça quando ela tentava levá-lo para fora do bairro.

Sana desistiu. Ou talvez estivesse apenas à espera que chegasse a sua hora, pois que, passados dez anos, depois de passar um Verão num curso de dança em Roma, voltou com novas ideias sobre a maneira de ajudar o irmão. Tinha então vinte e quatro anos e Jamal dezoito. Continuava a viver com os tios. Corria o ano de 1971, e Zeinab morrera há oito anos. Mahmoud continuava a viver em Itália.

Em Roma, Sana tivera ocasião de ver estudantes de blue-jeans a ser arrastados pela rua abaixo na ponta de uma meia dúzia de trelas - passeando os cães dos ricos. Veio-lhe então a ideia de que Jamal poderia fazer o mesmo com os cães de judeus idosos já fracos ou jovens casais ambiciosos, que viviam nas suas vivendas nos cimos do Monte Carmelo. A todos que andassem a passear um cão num dos parques da colina, entregava-lhes uma fotocópia com um anúncio em hebraico:

 

         Passeiam-se cães. Primeiro mês grátis.

         Bons preços. Tratamento de especialista.

 

Por vezes, as pessoas olhavam-nos como se eles tivessem acabado de aterrar num disco voador. Duas ou três vezes rogaram-lhes pragas. Mas Sana sabia que o irmão precisava de um trabalho estável se queria que houvesse qualquer hipótese de felicidade para ambos e assim, depois de três semanas a abordar donos de animais, quatro deles concordaram com o trato. Uma vez pela manhã e outra ao fim da tarde, o irmão sentava-se no autocarro que ziguezagueava pela colina acima, de Wadi al-Nismas até ao Monte Carmelo, e levava os cães a passeio, ganhando assim algum dinheiro e arranjando ao mesmo tempo um modo de vida.

A parte mais difícil foi habituar Jamal a apanhar o autocarro sozinho. Sana teve de começar por seguir com ele o caminho todo até à zona comercial no cimo da colina, onde saíam junto ao Banco Leumi. Partindo daí, levou-o às casas judaicas onde os cães o esperavam. A primeira vez que ela lhe disse para ir sozinho, Jamal chorou, no entanto, e desatou a bater com os punhos na cabeça até ficar com o nariz a sangrar. Mas Sana não se deixou demover.

- Uma paragem, Jamal, só uma paragem, é tudo o que te peço - implorou ela, empurrando-lhe a cabeça para trás e limpando-lhe o nariz com o lenço.

Jamal não cedeu, e então ela ordenou-lhe que se sentasse lá sozinho e que não se mexesse. Ele ficou a chorar com a cara encostada à janela. Sana tinha um táxi à espera e seguiu o autocarro. Na paragem seguinte ajudou-o a descer, mas ele recusou-se a falar-lhe ou sequer a olhar para ela durante o resto do dia.

Levou-lhe um mês de lágrimas, mas acabou por habituar Jamal a ir e voltar ao cimo do Monte Carmelo sozinho. Começou a ansiar por estas viagens. E não tardou a conseguir mais três fregueses.

Um husky com um olho azul e outro castanho adorava-o com mais tenacidade do que todos os outros cães e por vezes deitava-o ao chão à força de lambidelas. As pessoas eram também simpáticas com ele no autocarro, e pela primeira vez Jamal começava a ir além das palavras hebraicas básicas. Sabia dizer «cão», celev, e «é aqui a minha paragem?», ze batachana sheli? Por vezes falava até com pessoas completamente desconhecidas. Os fregueses ofereciam-lhe taças de gelado - a coisa que mais adorava no mundo, a seguir aos cães e à irmã - e por vezes voltava para casa todo peganhento, o que lhe valia a zanga enlevada de Sana.

 

Por mais sete anos, as coisas ficaram neste pé. Até que a pessoa errada notou que Jamal podia entrar e sair na casa dos judeus ricos, bastando-lhe apenas bater à porta. Certo dia, esse homem abeirou-se de Jamal na rua e perguntou-lhe o nome. Tudo aquilo de que mais tarde o rapaz conseguia lembrar-se é que o homem era pequeno e pesado e cheirava a gasolina. Talvez trabalhasse como mecânico. Quem quer que fosse, deve ter falado de Jamal a outro homem, de nome Hamid, pois que esse tal Hamid meteu conversa com Jamal várias vezes, quando andava a passear os cães. Tinha cabelo comprido, uns olhos grandes escuros e mãos calosas. Fumava cigarros uns atrás dos outros. Comprou alguns pequenos presentes a Jamal - doces, t-shirts, revistas com fotografias de animais. É tudo o que a polícia ficou a saber sobre ele, pois era tudo o que Jamal sabia. Jamal tinha agora vinte e cinco anos. Era um rapaz alto, de membros desengonçados, queimado do sol, com o cabelo que a tia repuxava para trás todas as manhãs, e que depois ao longo do dia se ia despenteando, de modo que parecia sempre que tinha andado a brincar ao vento.

Parece que a primeira ideia de Hamid era entregar uma bomba a Jamal para que ele a deixasse na manhã do dia 20 de Maio de 1978 em casa do dono de quatro papelarias - um homem de idade, chamado Rosensweig. A mulher dele, Miriam, dava sempre um gelado de baunilha a Jamal quando ele lhe levava de volta o colite depois do passeio matinal. Tudo isto veio a apurar-se durante o julgamento, embora tivesse levado horas a dar aos pormenores uma ordem lógica, uma vez que era Jamal a fornecer o grosso dos testemunhos. Falava o mais claramente que podia, no dialecto árabe local, mas confundia os dias e as horas, assim como quase tudo o mais. Havia quem não acreditasse numa só palavra do que ele dizia. Estavam convencidos de que a compreensão lenta de que dava mostras não era mais do que uma hábil estratégia da sua defesa. O advogado de Jamal, Suleiman Tamari, era um israelita palestiniano que na sua juventude tinha vivido nos kibbutz, e por isso mesmo era considerado duplamente suspeito por alguns funcionários do tribunal.

Os planos de Hamid mudaram. Porquê, nunca se veio a saber. Disse a Jamal que deixasse a bomba na manhã de 19 de Maio no autocarro que subia o Monte Carmelo. Como é óbvio, não disse ao rapaz que o que levava era um engenho explosivo. Não, o que lhe disse foi que o embrulho rectangular de papel castanho era um vestido de seda de Paris para ser recolhido pela Sr.a Rosensweig, que entraria no autocarro assim que ele -Jamal - saísse. Ela já sabia que o embrulho estaria ali. Hamid até escreveu o nome dela no embrulho - Miriam Rosensweig.

Jamal lembrava-se mesmo da tinta azul das letras quando foi testemunhar. Gostava do cheiro da tinta fresca.

Hamid disse-lhe que se sentasse sozinho e deixasse o embrulho em cima do assento quando saísse do autocarro. Os investigadores deduziram que deveria ser despoletado por controlo remoto, uma vez que Jamal não teve de rodar nenhum disco nem de carregar em botões nenhuns. Hamid nunca disse a Jamal que não devia falar no caso aos tios, provavelmente porque o rapaz nunca falara neles, mas deu-lhe instruções para não dizer nada à irmã. Jamal dissera a Hamid que a irmã mais velha, Sana, lhe telefonava de Roma de quinze em quinze dias para falar com ele. Nessa altura, Sana passava lá todo o ano, a estudar e a dançar.

A Sana disse-me que o Jamal provavelmente estava a adorar ter uma aventura só dele, sem ninguém saber. Ao fim e ao cabo, todos precisamos de ter os nossos segredos, explicou-me Helena. Naquela manhã fatídica, Jamal estava todo entusiasmado por dentro de pouco tempo poder estar a passear os cães - como sempre - e esqueceu-se de que tinha de deixar o embrulho no autocarro. Mas pode ser também que sentisse alguns escrúpulos em fazer uma coisa tão clandestina, sem que sequer a irmã mais velha soubesse.

Só que, depois de ter saído do autocarro, Jamal não sabia o que havia de fazer com o embrulho. A Sr.a Rosensweig devia estar à espera de o receber. Em pânico, resmungando com os seus botões, deixou-o no banco da paragem de autocarro habitual, em frente ao Banco Leumi, e seguiu apressado. Tinha a certeza de que alguém haveria de o encontrar e de o entregar à Sr.a Rosensweig.

Mais tarde, uma testemunha de nome Mordecai Gerber haveria de contar que viu Jamal afastar-se a coçar o nariz. Era uma coisa que fazia muitas vezes quando estava nervoso, particularmente se pensava que havia pessoas a observá-lo.

Mais tarde, estava Jamal ocupado com três dos seus cães, a bomba explodiu. Por um qualquer pequeno milagre, não havia ninguém na paragem.

Mesmo assim, a potência da explosão decepou o braço esquerdo de um miúdo de nove anos, um judeu persa chamado David Mizrahi, que estava no passeio a dar corda ao relógio novo. O braço foi encontrado a quase cinco metros do corpo caído. O relógio estava ainda atado no pulso. Os estilhaços laceraram ainda o peito e as pernas de uma velha sobrevivente de Bergen-Belsen de setenta e sete anos, chamada Edith Brauner, que ia a atravessar a rua e o impacto da explosão foi tal que ainda ficou com duas costelas partidas. Várias outras pessoas ficaram feridas, mas com menos gravidade. Os vidros do Banco Leumi ficaram todos partidos.

Mordecai Gerber fez uma descrição de Jamal à polícia. O velhote encaminhava-se para o seu carro com um pão de centeio na mão quando foi projectado pela explosão contra a parede de uma joalharia, mas a memória dele era boa.

Passado menos de uma hora, a polícia tinha capturado Jamal. Ao ouvir aquele estrondo enorme, sentara-se a tremer ao pé de um pinheiro num jardim próximo, o husky com um olho azul e outro castanho a seu lado. Tinha largado as trelas dos outros dois cães e estes tinham desatado a fugir.

Os tios de Jamal andaram num frenesim nos três dias que se seguiram, pensando que ele tinha sido raptado, ou que se tinha desorientado e jazia estendido algures no fundo de alguma ravina. Sana tomou um avião para casa. Correu as casas de todos os clientes a perguntar por ele. Também eles se mostravam preocupados. O husky fora encontrado num jardim, mas os outros dois cães tinham sido encontrados a vaguear pelas redondezas. Talvez o pobre do Jamal tivesse ficado ferido na explosão da bomba e estivesse numa enfermaria de emergência. Bem-intencionados, alguns deles tinham telefonado para os hospitais e clínicas, mas não o tinham encontrado. Um jovem farmacêutico judeu conduziu Sana a quatro hospitais diferentes, mas Jamal não estava em nenhum deles. Foram também às esquadras locais e finalmente ficaram a saber - cinco dias depois da polícia o ter apanhado - que estava preso. O capitão da polícia não lhes disse onde é que Jamal tinha sido preso. O rapaz era suspeito de terrorismo. Estava a ser interrogado.

Sana desmaiou ao ouvir a informação.

No dia seguinte contratou Suleiman Tamari - um amigo do farmacêutico que a conduzira aos hospitais e às esquadras. Dez dias depois, conseguiram saber que Jamal tinha sido sujeito a um interrogatório prolongado em Haifa, mas que agora estava na Prisão de Ashkelon, a norte da Faixa de Gaza. Não estavam autorizados a visitá-lo.

Veio a saber-se no julgamento que, durante a primeira fase do interrogatório em Haifa, os homens do Shin Bet, o Serviço Geral de Segurança, tinham sentado Jamal com as mãos algemadas atrás das costas, e os pés atados às pernas da cadeira. Perguntaram-lhe onde é que tinha arranjado a bomba e qual era o nome da organização a que pertencia. Jamal falou-lhes no embrulho para a Sr.a Rosensweig e que lhe tinham dito que o deixasse no autocarro. Disse-lhes que tinha cheirado a tinta azul com que tinham escrito o nome dela no embrulho. Gostava daquele cheiro. Esperava que não fizesse mal. Contou-lhes como Hamid lhe dera presentes e qual o aspecto dele e que estava sempre a fumar. Não, não sabia a marca, mas era um maço vermelho. Não sabia que mais havia de dizer e começou a falar dos cães. Numa voz trémula, perguntou aos polícias se lhe podiam dizer se os dois que fugiram tinham sido encontrados pelos donos. Iam ficar zangadíssimos com ele. Disse que estava aflito com isso. Desatou a chorar.

Os interrogadores estavam fartos. Um dos homens atou um capuz de lona sujo de merda à volta da cabeça de Jamal e então começaram a fazer-lhe de novo as mesmas perguntas, batendo-lhe com uma moca na cabeça a cada resposta, cada vez com mais força, até que o que ele dizia deixou de fazer qualquer sentido. Deixaram-no então em paz. Os gemidos dele não pararam mesmo passadas vinte e quatro horas, por isso na segunda manhã um dos homens tirou-lhe o saco, enfiou-lhe na boca um trapo embebido em urina e voltou a tapar-lhe a cabeça. Jamal disse a Sana mais tarde que tentou gritar, mas que não saía nada. Estava preocupado porque podia morrer. E nesse caso nunca saberia se os dois cães que fugiram estavam bem.

Nessa tarde, um dos homens veio por trás de Jamal e atou o capuz tão apertado à volta da cabeça com o que lhe pareceu um arame fino que ele desmaiou com falta de ar. Quando voltou a si, estava estendido de lado no chão. Estava ainda atado à cadeira. Doía-lhe o corpo todo, e tinha a garganta tão seca que parecia areia.

Um homem calvo perguntou-lhe em árabe se se sentia bem. Sim, respondeu Jamal. O homem endireitou a cadeira do jovem palestiniano e deu-lhe água a beber. Jamal pensou que agora estava em segurança. Mas então o homem voltou a atar-lhe o capuz na cabeça. Tinham feito dois buracos no saco para Jamal poder respirar. Berrou até lhe baterem com uma moca na cara. Nessa noite, esmagaram cigarros acesos no pescoço, na cara e nas costas de Jamal. Um homem impedia-o de adormecer dando-lhe uma pancada com a moca cada vez que ele deixava pender a cabeça.

No julgamento foram apresentadas provas médicas que indiciavam que Jamal tinha sido também violado, embora não pudesse ficar provado acima de qualquer dúvida que isso fora praticado por um membro do Shin Bet e não por algum preso ou um guarda em data posterior. Jamal não diria uma palavra sobre isso.

No julgamento, os interrogadores negaram ter-lhe batido, ou sequer tê-lo tratado com rudeza.

Isto pareceu-me impossível, tendo em conta a extensão dos ferimentos, mas um ano depois de Helena me ter falado nos desmentidos deles, Suleiman Tamari enviou-me um relatório do governo israelita elaborado em 1987 por uma comissão judicial especial que concluíra que os investigadores mentiam rotineiramente nos tribunais mesmo em relação às torturas mais horrendas.

Dirigida por um antigo Juiz do Supremo Tribunal, Moshe Landau, a Comissão Landau pôs de lado liminarmente qualquer recomendação de procedimento criminal contra os investigadores do Shin Bet, dizendo que «eles se limitavam a cumprir ordens».

Sana disse a Helena que vira queimaduras de cigarro no pescoço de Jamal quando foi autorizada a vê-lo pela primeira vez. - Não sei se compreendes... tinham passado quatro meses depois de ter sido preso e eles continuavam a torturá-lo.

Aparentemente, o Shin Bet achava que aquele rapaz desengonçado de olhar perdido estava a representar, e que sabia perfeitamente o que fazia. De facto, poucos militantes palestinianos alguma vez admitiam que queriam matar judeus, mas todos se orgulhavam de terem sangue judeu nas roupas - e sabiam que o martírio significava uma rápida entrada no paraíso. O jovem fanático que mandara pelos ares a paragem de autocarros em Haifa podia ser um pouco atrasado, mas era precisamente por isso que os camaradas dele pensavam que iria apanhar uma condenação leve se fosse apanhado - e que se calhar nem sequer seria levado a julgamento.

Na Prisão de Ashkelon, Jamal apanhou uma infecção nos ouvidos provocada pelos espancamentos. Algemado, foi conduzido a uma clínica na Prisão de Ramle, mais a norte, para aí receber tratamento. Depois de recuperar, foi posto na solitária, uma cela de noventa centímetros por um metro e meio, a comida entregue através da porta, como um animal raivoso. Como pequeno-almoço, davam-lhe um ovo cru, duas azeitonas, e uma côdea de pão duro. O almoço era um peixe que era moído e cozinhado com tripas e tudo e uma colher de arroz cru. O jantar era uma tigela de sopa de feijão, uma colherinha de iogurte, e outro ovo.

Só uma vez é que um guarda entrou na cela. Tinha olhos azuis e cabelo grisalho curto. Não lhe agradava que o jovem terrorista estivesse a armar-se em parvo e que mal tocasse na comida. Pôs Jamal em pé diante dele, sacou de uma navalha, murmurou umas palavras em hebraico, e abriu-lhe uma das narinas. Provavelmente estava a imitar a cena que vira no filme Chinatmvn, em que Roman Polanski pôs Jack Nicholson a passar pelo mesmo.

Jamal teve de voltar à clínica e levar quatro pontos. Os funcionários da prisão disseram que o responsável era um outro preso e que tinha sido castigado com prisão na solitária.

- Quando vi o meu irmão pela primeira vez - disse Sana a Helena -, parecia que tinha sido atropelado por um camião. Tinha crostas a toda a volta do nariz e dos lábios. E aquelas queimaduras... lembro-me de que estavam cheias de moscas. Pareceu-me um santo martirizado. Não consegui aguentar.

Jamal perguntou à irmã quando é que o levava para casa. Implorou-lhe que o levasse de volta para os seus cães. Tinham-no metido na prisão por ele ter largado as trelas?

- Disse-me que havia de arranjar maneira de compensar os clientes - disse Sana a Helena. - Levava-lhes os cães a passear grátis enquanto fosse vivo. Foi aí que perdi a cabeça. Gritei por socorro, mas o que eles fizeram foi agarrar-me e arrastar-me para longe do Jamal.

No julgamento, o representante da acusação surpreendeu toda a gente ao pedir clemência ao juiz.

- Nessa altura, depois de ouvir o testemunho de Jamal, mesmo ele compreendeu que o meu irmão não podia saber o que fazia - disse Sana. - Qualquer pessoa com olhos e ouvidos percebia que o tinham usado.

O juiz perguntou a Jamal se ele queria fazer uma declaração final em sua defesa.

Possivelmente no intento de impressionar o velho juiz judeu, Jamal disse umas quantas palavras em hebraico pela primeira vez: - É aqui a minha paragem? Que lindo cão que tu és! - Depois de olhar para trás para Sana, que levou as mãos à boca e fez-lhe sinal com a cabeça a dizer-lhe que estava a portar-se bem, Jamal perguntou ao juiz se a irmã já o podia levar para casa. - Ela é bailarina! - anunciou ele, em árabe.

Foi condenado a vinte e oito anos de prisão.

Passava das três da manhã quando Sana acabou esta parte da história do irmão. Abalada, demasiado emocionada para continuar a falar, precipitou-se para a rua para ir dar um passeio ao longo do Sena, recusando a companhia de Helena. Regressando ao amanhecer, enfiou-se na cama da amiga e contou o mais que se segue.

 

Durante todos aqueles anos que Sana passou a dançar no estrangeiro, em Roma, Londres, e Bolonha, Jamal vivia na Prisão de Ashkelon. Levantava-se todos os dias às cinco da manhã e trabalhava na cozinha até à noite. Gostava de abrir as latas de vegetais e tinha uma colecção dos rótulos afixados na parede ao pé da cama. A maior parte dos guardas e os outros presos consideravam-no como um irmão mais novo. Autorizavam-no mesmo a levar num carrinho as refeições aos presos doentes na clínica. Jamal gostava da suavidade da borracha das rodas dos carrinhos rolando no pavimento. Um médico chamado Tannenbaum oferecia-lhe livros ilustrados em todas as festas de Hanukkah. Uma vez, ofereceu-lhe também um rádio vermelho. Foi autorizado a tê-lo na cela e a sintonizá-lo na estação que quisesse. Às vezes, alguns presos liam para ele em voz alta.

Em Junho de 1993, Sana soube pelos tios que Jamal tinha ido a uma audiência especial para sair da prisão. O Dr, Tannenbaum tinha-o conseguido de uma maneira qualquer e até tinha telefonado para lhes dar a boa notícia. Jamal tinha agora quarenta anos.

E então, na noite anterior à libertação de Jamal, um dos presos - um militante do Hamas, ao que se disse - pediu-lhe que pusesse na boca uma cápsula com uma mensagem e que a engolisse. Assim que fosse libertado, devia defecar num saco de plástico. Daí a dois dias viria um homem ter com ele a casa do tio em Haifa para que lhe desse o saco.

Jamal não queria fazê-lo mas, quando o ameaçou com pancada, fez o que ele mandava. Talvez houvesse microfones escondidos na cela dele.

Ou talvez houvesse algum informador entre os presos. Jamal foi levado para a clínica a meio da noite e a libertação foi cancelada. A mensagem foi retirada de um penico na manhã seguinte. Nunca disseram a Jamal o que trazia escrito. Alguns dias mais tarde, de acordo com o que ele contou à irmã, foi levado da cela, outra vez durante a noite, e interrogado por dois homens que nunca tinha visto. Furiosos e impacientes, exigiram que lhes contasse como é que tinha conseguido a cápsula. Onde é que tinha conhecido o homem que lha dera? Quem eram os outros amigos desse militante? Depois de Jamal lhes ter dito o que podia, ataram-lhe um capuz na cabeça. Entraram mais dois homens na cela. Um deles trazia na mão uma coisa pesada, a julgar pelo baque surdo que fez em cima da mesa quando ali a poisaram. Jamal começou por pedir que o deixassem ver a irmã, mas foi calado por estalos na cara. Ouviu que discutiam em hebraico e decidiu manter-se o mais calado possível. Jurou por Alá que não voltava a falar se o deixassem ir-se embora.

Um dos homens esticou o braço direito de Jamal e comprimiu-o contra o tampo da mesa, de maneira a que não o pudesse mexer. Jamal percebeu que estava para acontecer alguma coisa de terrível. Mais tarde disse a Sana que sentia o cheiro do perigo à volta dele. Apesar do juramento que fizera, desatou aos guinchos. Outro dos homens levantou o que devia ser um machado - embora Jamal nunca chegasse a ver a arma - e cortou-lhe a mão.

Nove semanas depois, a tia e o tio de Jamal receberam uma notificação por escrito de que o sobrinho ia ser trocado por um reservista israelita que fora raptado perto de Hébron seis meses antes. Nunca falaram na mão decepada de Jamal.

Na data marcada, 14 de Agosto de 1993, Jamal foi conduzido à Faixa de Gaza e largado em frente da Majlis, a antiga sede do exército israelita. Não o levaram de volta a Haifa porque os pais dele nunca tinham conseguido os papéis para viverem na sua casa. Do ponto de vista do governo israelita, Jamal Yasawi era um estrangeiro a quem erradamente fora permitido passar a juventude em Israel.

Os tios de Sana falaram-lhe na tal troca e ela lá estava para receber o irmão. Sana desmaiou quando viu aquela espécie de bolbo de tulipa que lhe saía da manga do casaco. A cabeça bateu com força no chão e fez um grande lanho. Vinha-lhe daí a cicatriz abaixo da linha do cabelo em que eu reparara em Perth.

Jamal explicou-lhe o que tinha acontecido enquanto se dirigiam a uma farmácia para comprarem ligaduras. Mais ou menos um mês depois disso, Sana pediu ao Sr. Tamari para investigar o que se passara, e foram informados de que a mão ficara cortada durante uma luta brutal entre os presos. Segundo o carcereiro, alguns militantes palestinianos tinham querido vingar-se por ele ter dito aos guardas o que sabia sobre o homem do Hamas.

Sana não sabia bem o que fazer com o irmão mais novo. Talvez conseguisse passá-lo clandestinamente de volta para Israel, para casa dos tios em Haifa. Mas não valia a pena; mais tarde ou mais cedo, acabaria por ser apanhado pela polícia e deportado. Ou, pior ainda, podia ser preso e enviado de volta para Ashkelon. Desta vez, seria morto - por um guarda ou por outro preso, pouca diferença faria. Naturalmente, não o podia levar consigo para Roma - não tinha papéis. E de qualquer modo, que faria ele num país estrangeiro onde quase ninguém falava árabe?

Durante vários dias, Sana e o irmão dormiram em casa de um conhecido. Ela dormia no chão e o irmão num divã. O amigo que os recebeu ensinava geografia num liceu na cidade de Gaza. Disse a Sana que Jamal podia ficar com ele o tempo que quisesse. Sana sentia-se tocada por tanta amizade e pela simpatia com que as pessoas da vizinhança os tratavam aos dois. O coto de Jamal transformou-o numa espécie de celebridade, especialmente entre as crianças da rua. Seguiam-no para todo o lado e pediam-lhe que lho mostrasse. Alguns fugiam a correr, entre guinchos e risadas, depois de o tocarem.

Sana cogitava se haveria em Gaza pessoas com cães que quisessem a ajuda dele para passear os animais. Ou, agora que sabia alguma coisa sobre o trabalho de cozinha, talvez pudesse encontrar um emprego num restaurante. Se bem que só com uma mão...

Uma tarde, quando Sana fazia uma ronda pelos restaurantes a pedir um emprego para o irmão, Jamal aventurou-se a sair sozinho. Ao fim e ao cabo, ela não podia mantê-lo fechado. Era um homem crescido. O corpo dele foi encontrado morto dois dias mais tarde numa lixeira fora da cidade de Dir al-Balah, alguns quilómetros a sul da cidade de Gaza. Sana insistiu em que fosse feita uma autópsia, e descobriu-se que tinha apanhado dois tiros na cabeça disparados à queima-roupa, com uma pistola de calibre 22.

Nunca descobriu quem o fizera, apesar de Suleiman Tamari ter avançado com a hipótese de os dirigentes locais do Hamas estarem furiosos por ele ter respondido às perguntas dos guardas. Ou talvez algum militante tenha pensado que Jamal podia revelar - mesmo que acidentalmente - informações importantes à pessoa errada sobre os presos que conhecera.

- Ainda hoje, a minha raiva contra tudo o que o fez sofrer é tão forte que me faz doer os ossos durante a noite - disse Sana a Helena.

 

De regresso ao Porto, consegui obter o número de telefone do escritório de Suleiman Tamari em Haifa. Quando falei com ele, expliquei-lhe o meu interesse no caso de Jamal. Falámos em francês, a única língua comum aos dois. Consultou as notas dele e disse-me que um homem que não se identificara, falando com sotaque russo, lhe tinha telefonado pouco depois da libertação de Jamal e tinha afirmado saber quem eram os dois guardas que lhe tinham decepado a mão. Para surpresa de Tamari, o seu interlocutor sabia até o nome do homem que tinha ficado a segurar a mão de Jamal, identificando-o como N. (Uso apenas a inicial do nome próprio, a conselho do advogado do meu editor.) O interlocutor anónimo disse então que N. queria enviar as suas desculpas à família de Jamal. Acrescentou que não se sentia autorizado a revelar a identidade do outro guarda.

Mais tarde, Tamari interrogou um ex-preso que tinha conhecido Jamal na prisão, e soube que o outro culpado, o homem que tinha empunhado o machado, era provavelmente S. Era o tal guarda de olhos azuis e cabelo grisalho curto que tinha fendido o nariz a Jamal. Ao que parece, gostava de citar o Antigo Testamento antes de torturar os presos.

Será que S. acreditava estar a aplicar a lei do olho por olho, dente por dente? Teria ele preferido decepar o braço inteiro de Jamal de maneira a fazê-lo pagar pela perda de David Mizrahi, o menino de nove anos - o braço que foi pelos ares com a bomba que Jamal deixara na paragem do autocarro em Haifa?

Tamari pensava que o autor da chamada anónima tinha sido o próprio N., levado pelos remorsos.

- Mas não teria medo de um processo? - perguntei.

- Deve estar a brincar, não? - replicou o advogado no seu francês correcto, se bem que com forte sotaque. - Mesmo que eu tivesse na minha posse o vídeo com o guarda e o amigo dele a cortarem a mão do Jamal, nunca havia de lhes acontecer nada.

- Sabe se eles ainda estão em Ashkelon?

- Não.

- Podia saber isso?

- Posso tentar.

- E se não estiverem, pode tentar saber onde eles estão?

- Porquê?

- Queria falar com eles.

Riu-se.

- Está bem, mas tenho a impressão de que eles não vão querer falar consigo.

 

A 21 DE AGOSTO, enviei outro fax a Mahmoud. No dia seguinte telefonou-me. Dei um salto na cadeira quando ele disse quem era. Falava inglês bastante bem, o que me deixou surpreendido. E fiz logo um comentário sobre isso.

- Quando era muito novo, vivi em Inglaterra uns tempos - explicou ele. - E mais tarde fui visitar a Sana a Londres. Sabia que ela viveu lá um curto período, não sabia?

- Sim, mas não sabia por quanto tempo. E não sabia que... que mantinha um contacto tão próximo com ela.

- Passou lá um ano.

- Há quanto tempo foi isso?

- Oh, meu Deus, deixe cá ver... Deve ter sido em mil novecentos e oitenta e oito ou... talvez mil novecentos e oitenta e nove. Depois disso, quando mudou de novo, costumávamos encontrar-nos pelo menos uma vez por ano em Londres. Ficávamos sempre no mesmo hotel. Temos muito boas lembranças de lá.

- Nem sei por onde começar - confessei. - Tenho tantas perguntas para fazer. Não pensava realmente que me ia telefonar. Meu Deus, é espantoso poder falar consigo finalmente.

- Porque não havia eu de telefonar?

- Não me conhece. E tenho a certeza... tenho a certeza de que a morte dela foi difícil para si.

- Oiça, eu amava a Sana. Não é problema nenhum falar consigo sobre alguém que eu amava.

Pediu-me então para lhe contar com mais pormenores como a tinha conhecido, e eu contei-lhe um pouco o que se passou em Perth. Quando terminei, ele disse-me que devia ir a Bolonha se quisesse saber mais sobre ela.

- Mas não pode demorar muito - avisou.

- E porquê?

- Tenho uma viagem de negócios ao Oriente marcada para o mês que vem. Não sei ao certo quando estarei de volta.

Combinei ir lá no fim-de-semana seguinte se conseguisse arranjar um voo. Encontrávamo-nos no sábado de manhã e eu ficava até domingo à noite. Disse que não se importava que eu gravasse a conversa.

- Pode até enviar as cassetes para a Mossad, pouco me importa.

Achei aquilo estranho, mas não fiz qualquer comentário. Tentei falar com Helena, mas não a encontrei. Telefonei ao pai dela, e ele mostrou-se preocupado comigo.

- Tenha cuidado. Lembre-se de que os nacionalistas islâmicos por vezes visam atingir pessoas como você. Não quero dizer que ele seja um deles, mas no Mahmoud houve sempre mais do que aquilo que os olhos vêem.

- Que quer dizer com isso?

- A maneira como ele descobriu, de repente, a religião. Tive sempre a impressão de que aquilo era mais uma decisão política do que outra coisa... como se estivesse a usar o Corão como uma desculpa para nos odiar. Ou talvez alguém importante lhe tenha dito para deixar de se dar connosco. Quer dizer, por que é que ele e o irmão saíram do Cairo para irem viver para Haifa, antes de mais nada? Eles eram palestinianos, mas a família deles vivia há várias gerações no Egipto. Não eram assim tão pobres. Não precisavam de se mudar. Então, porque o fizeram?

- Helena disse qualquer coisa sobre uma grande querela na família... com o pai, ou coisa assim.

- Isso foi o que eu lhe disse quando ela me perguntou. Inventei aquilo. Tinha de lhe dizer qualquer coisa quando ela se mostrou curiosa. Preocupava-me que ela pudesse ficar com medo se lhe dissesse o que eu e a mãe pensávamos.

- Que era...?

- Bem, veja bem o que se passou entre os palestinianos no Egipto.

- Não sei.

- Foi aí que eles começaram a politizar-se... no Cairo. Muita gente esquece, mas já na década de mil novecentos e vinte tinha havido lá movimentos nacionalistas palestinianos. Mahmoud e o irmão mudaram-se para Haifa por volta de fins da década de trinta ou princípio da de quarenta. Seria ideia deles mudarem-se para outro país quando ainda eram tão novos? Nunca o soubemos. Penso que provavelmente andaram de um lado para outro, entre Haifa e o Cairo, até à fundação de Israel em mil novecentos e quarenta e oito. Nessa altura surgiram movimentos estudantis palestinianos. E grandes manifestações contra a imigração judaica. Foi em lugares como o Cairo que pessoas como Mahmoud começaram a sonhar com um país próprio. Foi de lá que eles trouxeram essa mensagem de volta para Israel.

- Está a dizer-me que Mahmoud estava envolvido em política?

- Não, estou a dizer muito mais do que isso. Acho que ele trabalhava desde o princípio para uma das organizações nacionalistas. Mais tarde, por volta de mil novecentos e cinquenta, acho que foi possivelmente recrutado para a Fatah. Ele e o irmão. Rosa pensou nisso antes de mim. Mas era só um palpite, sem prova nenhuma a apoiá-lo.

Samuel acrescentou que havia sempre qualquer coisa de reticente no comportamento de Mahmoud. Isso levava-o a pensar que era porque tinha alguma coisa a esconder. Rindo-se, disse depois que talvez fosse só o seu espírito excessivamente desconfiado. Esperava não me ter assustado. Mahmoud no fundo não era má pessoa... apenas alguém no sítio errado no momento errado. Pedia que lhe desse cumprimentos e lhe dissesse que estava muito triste com o que acontecera a Sana. Se alguma vez viesse a Israel, deviam encontrar-se.

- Quer vê-lo mesmo que ele tenha trabalhado para a Fatah todos estes anos? - perguntei.

- Claro! Não tenho nada a dizer quanto aos seus objectivos.. . sempre pensei que devia haver um estado palestiniano. Só não gosto dos métodos deles. Não gosto de ver ninguém morto ou ferido. Tenho muito boas recordações da Sana, do Jamal e da Zeinab.

Disse que daria o recado. Assim que desliguei, apercebi-me de que me tinha esquecido de uma pergunta importante e voltei a ligar.

- A Sana suspeitava que o pai era membro da Fatah?

- Não faço ideia.

- E a Zeinab?

- Isto não é mais do que especulação, por isso hesito um bocado em lho dizer.

- Quero saber tudo... mesmo que sejam só boatos.

- Bem, podia ser uma das razões por que eles discutiam tanto... por que a Zeinab não foi com ele logo para Itália. Com a sua visão catastrófica do mundo, pode ter visto o desastre no fim daquela estrada. Quanto à Sana, não sei... Era uma rapariga esperta, e falava muito com a mãe, por isso talvez também suspeitasse de alguma coisa. Embora a Zeinab fosse surpreendentemente boa a guardar segredos, quando necessário.

- Acha que as actividades políticas de Mahmoud podem ter alguma coisa a ver com o suicídio da Sana?

- Não vejo como. A Helena disse que eles não se viam há vários anos. Disse-me que a Sana falava do pai como se ele tivesse morrido.

- Mas o Mahmoud disse-me que eles se viam muitas vezes por volta de mil novecentos e oitenta e oito. A Sana vivia em Londres, nessa altura. Mesmo depois de se ter mudado, encontravam-se lá por vezes.

- Admira-me ouvir isso. Não eram muito próximos quando a Sana era nova.

- Samuel, acha realmente que o Mahmoud foi para Itália para trabalhar num banco?

- Isso é uma pergunta que faço a mim próprio há quarenta anos! Porque não lhe pergunta isso quando o vir? Adorava ouvir o que ele tem a dizer.

 

Dissera a Samuel que não tinha tido sorte ao telefonar para a filha e ele respondera que devia continuar a tentar. Mas quando estávamos para nos despedir, ele sussurrou conspirativo:

- Ela está aqui comigo, sabe.

- Quem?

- A Helena. Ela estava aqui ao pé e por isso não podia dizer nada antes, mas agora já saiu.

- Ela não quer que eu saiba que está aí consigo?

- Não. Veio esconder-se. Quer fugir de tudo e de todos. Mas eu não queria que continuasse a perder o seu tempo a telefonar para Paris.

- Há quanto tempo está aí consigo?

- Há umas semanas.

- Ela está bem?

- Podia estar melhor. Estou preocupado... mas também nunca deixei de estar preocupado com a minha filha.

Samuel prometeu que ia tentar convencer a filha a telefonar-me. Nessa noite, já tarde, estava eu deitado, Helena telefonou-me. Estava apenas ligeiramente aborrecida por o pai me ter dito onde estava.

- Já devia saber que ele não consegue guardar um segredo. Perdeu essa capacidade quando deixou de trabalhar para os britânicos como coscuvilheiro profissional. - Disse-me que estava só a ver se ajudava o pai com as suas plantas de feijoa e se esquecia Sana por uns tempos. - Não sei se te devia dizer isto -acrescentou -, mas estou também a ver se deixo de beber.

- Muito boa ideia. Porque não havias de me querer dizer?

- Porque a última coisa que me apetece é receber elogios por um esforço que muito provavelmente vai falhar.

- Ou elogios por o que quer que seja, já agora.

Ela suspirou, como se eu estivesse a ser insuportável. Quando lhe contei o que o Mahmoud dissera sobre a Mossad, replicou:

- O meu pai falou-me nisso. O Mahmoud estava só a armar-se era valente. - Tentei levá-la a falar mais sobre ele, mas ela não estava para aí virada. Disse-me que só tinha telefonado para me contar a última discussão que tivera com Sana. - Para o caso de o Mahmoud vir com isso, queria que soubesses o meu ponto de vista.

- Um minuto. Eu ligo já. - Enfiei as calças do pijama e liguei do telefone do andar de baixo, para não incomodar o Alex. Peguei também no gravador e liguei-o ao telefone.

- Muito bem - começou ela. - Divertimo-nos bastante juntas quando ela esteve em Paris em mil novecentos e noventa e seis. Isso já te disse. Rimos e chorámos e tudo o mais. Cantámos canções antigas dos filmes que tínhamos visto. O Que Será Será da Doris Day... Conheces?

Cantei um bocado do refrão.

- Nada mal! Parecíamos estar num filme antigo de Hollywood. Mas ela tinha de voltar para o trabalho. Então eu tive uma ideia. «Vou contigo para Nova Iorque e fico lá umas semanas», disse eu. Ao ouvir aquilo, a Sana arrastou-me pelo apartamento todo a dançar um tango, com uma flor invisível na boca. Telefonei para as companhias de aviação e fiz uma reserva. Estava tudo a correr bem. E então... estava a esquecer-me de uma coisa - Helena fez uma pausa dramática.

- O quê?

- Adivinha.

- Dinheiro?

- Não, o meu passaporte! Não o conseguia encontrar. Não estava na gaveta onde costumo guardar os documentos importantes, nem em lado nenhum. Estava a ficar nervosíssima. Chorei. E não podia apanhar o avião. A Sana mostrou-se muito meiga. «Não te preocupes. Vais para a semana.» Disse até que o adiamento lhe dava tempo para comprar mais um futon e alguma mobília para o apartamento. Então, fiz nova reserva para a semana seguinte e corri à Embaixada de Israel a pedir um novo passaporte. Não há problema, disseram eles, está pronto daqui a três dias. Telefonei-lhe para lhe dar a boa notícia. Nenhuma resposta. Telefonei outra vez. Nada. Tentei a semana toda para o número que ela me tinha dado. Na noite antes do voo, respondeu-me um homem a dizer que nunca tinha ouvido falar em nenhuma Sana. Pensei que talvez se tivesse enganado ao dar-me o número. Cancelei a viagem outra vez e escrevi-lhe ao cuidado de um grande amigo dela. Ela dissera-me para lhe escrever para casa dele porque não se lembrava bem do seu novo endereço.

- Quem era esse amigo? Porque não me falaste nele?

- Espera aí... isso não interessa.

- Porquê?

- Paciência... espera. A carta foi-me devolvida sem ser aberta duas semanas depois. Não havia ninguém com aquele nome naquele endereço. Então tentei de novo, e aconteceu a mesma coisa.

- Mas ela escreveu-te uma carta.

- Como sabes? - perguntou Helena, espantada.

- Uma vez disseste-me que ela te tinha escrito de Nova Iorque uma carta assinada «Love-Lone-Lane-Sane-Sana».

- Merde, nunca esqueces nada que me possa deixar atrapalhada, pois não? Recebi uma carta passados quatro ou cinco meses. Dizia: «Perdoa-me. É tudo demasiado complicado para te explicar agora.» Nunca mais soube nada dela. Pelo menos até ter chegado de Perth o teu livro, mais de dois anos depois.

- É muito estranho.

- Quero lá saber se é estranho! É mas é uma grande traição. Estava tão furiosa que lhe mandei de volta o alfinete que ela me tinha dado quando éramos raparigas... o nosso belo alfinete de esmalte. Ela sabia que isso significava que estava tudo acabado entre nós. Oh, quem me dera tê-lo ainda! - disse Helena amargamente. - Que parva que eu fui.

- Como é que lho devolveste se não sabias o endereço dela?

- O papel timbrado que ela tinha usado era de um teatro em Nova Iorque. Calculei que devia ser lá que ela actuava. Mandei-o para lá.

- O Joyce Theater?

- Não me lembro.

- Ainda tens a carta?

- Queimei-a e atirei as cinzas pela janela fora.

 

CHEGUEI A BOLONHA ao fim da tarde de 24 de Agosto. Tinha reservado um hotel pela Internet, o que veio a revelar-se um grande erro. A «rua agradável, cheia da azáfama das lojas, perto da universidade» transformou-se numa rua degradada e depressiva, com grades metálicas sujas nas montras, fechadas com grande estrondo à noite. E, em vez de estudantes de mochila às costas, tinha drogados de heroína mesmo em frente da entrada do hotel a engorgitar cerveja e a borrifarem-se uns aos outros com a espuma. É certo que havia um lindo jardinzinho, com azáleas cor-de-rosa e azuis, mas o meu «quarto limpo e confortável» era sujo e escuro, e cheirava a bolor, como se tivesse passado por alguma inundação recente. Ao tomar um duche nessa noite, descobri que a minha toalha não era muito mais do

que um esfregão da loiça de algodão grosseiro e não absorvia a água.

Depois de me secar com a minha t-shirt, sentei-me na cama a ver televisão e pelo menos a desenferrujar o meu italiano. Como todos os programas eram abomináveis, optei por um daqueles espectáculos de variedades com um homenzinho com ar de bufão a servir de apresentador - sempre a rir-se - e umas quantas loiras de pernas de Amazonas que aparecem a receber cada novo convidado. Era grotesco, mas não me apetecia estar só.

Na manhã seguinte, acordei cedo e saltei para fora do colchão de gelatina. No café do lado, todo cromados e vidro, tomei um cappuccino e comi vários bolos de amêndoa.

Uma rapariga simpática no serviço de turismo perto das torres medievais que dominam o horizonte de Bolonha deu-me um bom mapa. Encaminhei-me tranquilamente para o meu destino; eram só nove horas e o encontro era às dez em ponto. Sabia que, se chegasse adiantado, era só para ficar mais nervoso. A medida que me aproximava da casa de Mahmoud, parecia recolher-me no fundo de mim próprio. Nadava no interior do meu próprio bater do coração e quase não ouvia nada mais.

As igrejas por onde passava eram todas de tijolo cor de areia, muito macias ao olhar. Um homem num cavalo castanho falava com um padre no exterior de uma delas. Foi a única observação que rabisquei no meu caderno de notas durante toda a manhã, por estar demasiado nervoso para escrever outra coisa, mas lembro-me de que o padre, minúsculo, empunhava uma mangueira verde. Como não havia plantas à vista, imaginei que devia haver um grande jardim nos anexos da igreja. Começava a perceber que grande parte da cidade devia desenvolver-se dentro de altos muros. Tudo que víamos de fora era o que a cidade nos permitia. A Via Capramozza era uma rua estreita numa zona sossegada a sul da praça principal. Acima dos telhados, as colinas verdes à distância exibiam ciprestes como agulhas erguidas para o céu. As bonitas residências antigas que me rodeavam estavam pintadas daquele ocre carregado que apenas vi em Itália. As janelas viradas a sul cintilavam como espelhos. Ia ser um dia escaldante. «Estou a meter-me numa boa alhada», pensei, enquanto tocava a campainha.

- É o Richard? - perguntou uma voz de mulher através do intercomunicador, com um forte sotaque italiano.

- Sim, sou eu.

Ouviu-se a porta a abrir. Subi até ao segundo andar. Não foi preciso tocar. Uma mulher de uns cinquenta anos, tendo nas mãos uma toalha vermelha e branca e sorrindo acolhedora, esperava-me já à entrada. Tinha cabelos grisalhos que lhe davam pelo ombro e vestia jeans. Estava descalça.

- Seja bem-vindo - disse ela.

Apertámos as mãos. As dela estavam frias.

- Chamo-me Carlotta. O meu inglês não é bom. Tem de perdoar.

Pedi desculpa por falar tão mal italiano. Entrámos para uma sala de estar atulhada. Uma bicicleta de corrida prateada estava encostada a uma estante completamente cheia de livros, e por baixo de uma das janelas via-se uma enorme caixa de roupa.

- Não temos espaço para pôr as coisas... as coisas das crianças. Mahmoud vem já ter consigo. Quer que lhe traga um café?

Aceitei um chá com leite. Carlotta convidou-me a sentar-me num sofá de veludo vermelho com almofadas amarelas e saiu para a cozinha. Fotografias a preto e branco cobriam as paredes - na sua maior parte fotografias de Israel e da Palestina. Reconheci a Cúpula de Pedra, Masada, e o Muro das Lamentações. Levantei-me para as examinar, depois aproximei-me da estante. Quase todos os autores eram italianos, e muitos deles eram-me familiares; Primo Levi, ítalo Calvino, Ignazio Silone, Natalia Ginzburg... Havia também uma pequena secção de livros em árabe.

Carlotta voltou com um bule de cerâmica preta, duas chávenas iguais, e um tabuleiro com biscoitos que pareciam conchas polvilhadas com açúcar. Disse-lhe que não sabia como agradecer tanta simpatia. Ela respondeu:

- Não, é um amigo da Sana. Por isso é muito mais do que um convidado.

Estas palavras deixaram-me muito comovido. E o tom maternal com que as disse fez-me compreender que era alguém em quem Sana pudera confiar.

- Isto são sfoguatelle - disse ela apontando para os biscoitos. - De Bolonha. Uma specialità. Comprei-os esta... mattina... como se diz?

- Manhã.

- É isso, esta manhã. Tem de provar um.

Tinham um gosto a queijada.

- Têm ricotta por dentro - explicou Carlotta. - São bons, não são?

- Deliciosos!

- A Sana come-os sempre quando cá vem. Gosta muito deles - Carlotta ia para continuar, mas fraquejou. Sorriu como se estivesse prestes a romper em lágrimas. - Desculpe - disse ela. - Pensar na Sana... leva-me os pensamentos e deixa-os num nodo. - Levantou as mãos e fez que atava um nó invisível.

- Eu compreendo - disse eu. Caiu sobre nós um silêncio embaraçoso. - São os seus livros ou são de Mahmoud? - perguntei, apontando a estante.

- A maior parte são meus. - Franziu as sobrancelhas e abanou a cabeça. - O Mahmoud... só lê o jornal. Não tem tempo.

Passeou o olhar pela sala como que desagradada com alguma coisa. Apontou para uma zona mais escura do soalho. - Tínhamos ali um piano - apontou para a janela. - O sol... torna o resto piii chiaro.

- O sol tira a cor à madeira.

- Sim - sorriu ela.

- Quem é que toca?

- Eu. Mas não sou grande coisa.

Ouviram-se passos ao fundo do corredor. Mahmoud entrou na sala, a mão já estendida para mim. Era alto e elegante, tinha uns olhos escuros e vibrantes e cabelo grisalho suave que se enrolava atrás das orelhas. Vestia um colete de malha azul-claro e uns jeans cuidadosamente passados a ferro. Tinha um ar professoral, o que me surpreendeu - e novo para a idade que tinha, setenta e cinco anos, como mais tarde me disse. Pareceu-me ver qualquer coisa de Sana nos seus movimentos, muito rígidos, como se tentasse compensar uma timidez receosa.

Pôs a minha mão entre as suas e cumprimentou-me com firmeza. Os olhos irradiavam contentamento.

- Muito obrigado por ter vindo tão depressa. Sente-se... sente-se...

Fez um gesto para que voltasse para o sofá e sentou-se a meu lado. O sotaque britânico parecia ainda mais acentuado em pessoa.

- Então, vive em Portugal - disse ele. - Não é muito habitual para um americano.

Tinha mãos compridas e movia-as com elegância. Pensei que talvez Sana tivesse herdado isso também.

Conversámos um pouco, comigo a contar como é que eu tinha ido parar ao Porto e as dificuldades que tivera a princípio para dar aulas em português. Não sabia bem se devia falar em Alex, mas ele não ficou chocado. Achou bem não sermos da mesma profissão.

- Dois escritores, eram capazes de se matar um ao outro -riu-se ele.

Achei Mahmoud calmo e amistoso, o que me surpreendeu depois de tudo o que ouvira.

- Obrigado por me ter enviado o seu romance - disse ele. - Ainda não o li, mas a Carlotta já.

Olhei para ela e fiz a careta que costumo fazer quando me sinto embaraçado.

- Tenho algumas perguntas que gostava de lhe fazer - disse ela. - Depois... Falamos disso depois.

- Com todo o gosto.

Dei os cumprimentos de Samuel a Mahmoud. Levou as mãos acima da cabeça, como se os pensamentos lhe fugissem. Era um gesto de uma ternura cómica.

- Santo Deus, isso foi há séculos. Admira-me que ainda se lembre de mim. Diga-lhe que espero que esteja bem.

- A Helena também se lembra de si.

- Ah, a Helena! A Sana falava sempre dela com ternura. Que raparigas endiabradas elas eram!

Mahmoud pegou num maço de cigarros MS, italianos, da mesinha baixa. Declinei a oferta, o que ele achou muito bem. Usava um isqueiro fino, de prata, que tirou do bolso do colete de malha e apertava na mão enquanto falávamos. Fez-me algumas perguntas sobre o meu encontro com Sana em Perth.

Queria saber tudo - se a tinha visto falar com outras pessoas, com que disposição estava ela, e até que roupa trazia vestida e se tinha outros livros com ela. Parecia particularmente interessado quando disse que a tinha achado muito sensível - ao romper em lágrimas depois de eu assinar o livro para Helena. A impaciência com que queria saber todos os pormenores pareceu-me estranha, até me lembrar que eu era uma das últimas pessoas a ver a filha com vida. Isso deve ter pesado na sua disponibilidade para se encontrar comigo. Por isso respondi às perguntas dele com atenção e disse-lhe tudo aquilo de que conseguia lembrar-me - até dos sabonetes que ela me tinha oferecido a mim e aos outros elementos da trupe de teatro.

- Ainda tem os sabonetes? - perguntou Mahmoud.

- No fundo de uma gaveta. Não me apetece olhar para eles, não sei se compreende.

- Infelizmente, compreendo muito bem.

Depois de fazer as perguntas que tinha para fazer, Mahmoud sorriu e abriu as mãos.

- Agora é a sua vez. Estou à sua disposição. Peguei no gravador.

- A sério que posso gravar a conversa?

- Mas com certeza.

Coloquei-o na mesa entre nós os dois. Ele e Carlotta tinham-me posto à vontade, mas ainda assim respirei fundo antes de fazer a minha pergunta mais importante:

- Sabe o que poderá ter levado a Sana a pôr termo à vida? Mahmoud abanou a cabeça, depois olhou para Carlotta.

- Pensámos tanto nisso - disse ela. - Mas não sabemos.

- Tinha andado deprimida?

Mahmoud levantou-se e deu a volta à mesinha baixa, onde antes estava o piano. Girava o pé no chão, fumando pensativamente.

- A Sana... como hei-de dizer? - Inalou profundamente e tossiu. Carlotta disse-lhe em italiano para largar o cigarro, mas ele limitou-se a fazer um gesto de recusa. - A Sana era uma rapariga complexa - prosseguiu. - Tinha muitos interesses... e coisas de mais para fazer. Mas nunca deu a impressão de não poder... de não poder ultrapassar os seus problemas. - Encolheu os ombros. - Não faço ideia.

Disse-lhe que havia uma grande parte da história dela que eu não conhecia, desde que viera a primeira vez para Itália, ainda menina.

- É simples. Nessa altura vivíamos em Bolonha. Ela veio de Haifa com a mãe e matriculou-se na escola.

- Ela gostava de estar cá?

- Não, nem por isso. - Mahmoud virou a cara como se tivesse ouvido alguma coisa ao longe. - Um momento, desculpe - disse, e depois dirigiu-se, determinado, para a cozinha.

Regressou com um copo de água e voltou a sentar-se a meu lado. Em italiano, Carlotta perguntou-lhe se tinha tomado os comprimidos. Ele disse que sim.

- Seja como for - recomeçou ele -, a vida aqui era difícil para ela. Quer dizer, um novo país, uma nova língua... - bebeu um grande gole de água. - Levou meses a fazer novos amigos. Mas fez. Depois andava mais contente. E, afinal, acabou por ser uma boa coisa, porque pôde ficar com a nacionalidade italiana.

- Renunciou à nacionalidade israelita?

- Não, ficou com as duas. Mas ter um passaporte italiano dava-lhe jeito para viajar para o estrangeiro e para ter aqui uma ocupação. Era também uma grande segurança. Eu não queria que ela fosse apátrida... de maneira nenhuma.

- Apátrida, como? Ela tinha nascido numa cidade integrada em Israel.

- Sabe-se lá o que fará o governo israelita. Um dia podem decidir que os palestinianos nascidos em Israel deixam de ser considerados cidadãos. São capazes de nos juntar a todos e nos mandarem para a Síria ou para a Jordânia. Não pense que não é possível.

- Deve mesmo odiar os israelitas depois de tudo o que se passou.

- Talvez sim. Mas não é assim que eu vejo as coisas. Só queria que as coisas mudassem lá.

- Então a Sana, num certo sentido, era italiana? - estava a pensar no que ela dissera aos outros elementos da trupe.

Pôs a cabeça de lado, ponderando a minha pergunta. Deu umas palmadinhas no peito.

- Prefiro dizer que aqui ela era palestiniana, sempre, e só às vezes italiana.

Queria falar sobre Zeinab e sobre Jamal, mas pensei que ele podia não gostar. Mahmoud reparou na minha hesitação e perguntou-me o que era. E então respondi:

- E no entanto ela e a mãe voltaram para Haifa passados dois anos. Por que foi?

- Era o que a Zeinab queria - bateu com o punho na testa. - Tivemos uma grande discussão. Eu fiquei furioso. Era novo... um homem diferente daquele que sou hoje. Afastei-me dela e não disse o que me ia no coração. Ela gritou, e então eu disse coisas que não devia. Sabe como é, quando perdemos as estribeiras. A Zeinab voltou para casa. Tinha razão em voltar. Foi só isso... voltou para casa. Não se passou mais nada.

- Quando é que voltou a ver a Sana?

- Oh, era ela muito mais velha. Deixe cá ver... devia ter dezoito ou dezanove anos. Eu vivia em Roma nessa altura. Ela veio para cá estudar dança. Ficou em minha casa. Nessa altura dávamo-nos melhor. Ela era mais velha. E eu era mais velho, também, e mais paciente. Não me enfurecia tão facilmente. Compreendíamo-nos melhor um ao outro.

- Isso devia ser por volta de mil novecentos e sessenta e cinco ou sessenta e seis, não?

- Sim, por volta disso. Pouco depois de chegar, arranjou um apartamento para ela. A mim não me parecia bem... uma rapariga nova, sozinha em Roma... - abanou a cabeça. - Mas a Sana sempre soube o que queria e dizia-me sempre: «Não preciso de ti! Posso fazer tudo sozinha.» E era verdade! Então arranjou um pequeno apartamento no Trastevere. Estava muito contente e orgulhosa... Era a primeira casa só dela que tinha. - Voltou-se para Carlotta e sorriu. - O apartamento era tão pequeno. - Fez com os dedos o gesto de caminhar no ar. - Dois passos e tínhamos atravessado o quarto! - riu-se.

Lembrei-me de que Sana fizera o mesmo gesto com os dedos em Perth. O coração começou a bater-me, agitado.

- Não consigo deixar de pensar que a morte dela não foi premeditada - disse eu. - Que ela saltou num momento em que Deus estava a olhar para outro lado.

Os olhos de Mahmoud humedeceram-se. Por um segundo pensei que ia recompor-se, mas ele escondeu a cabeça nas mãos e começou a chorar silenciosamente. Carlotta aproximou-se dele e sussurrou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Levantando para mim um olhar perturbado, disse:

- Voltamos já. - Puxou Mahmoud pelo braço para o fazer levantar, mas ele limpou os olhos e disse em italiano que queria continuar a falar. Olhando para mim, disse-me: - Desculpe. Vou tentar que não volte a acontecer.

- Não tem mal nenhum.

Esmagou a ponta do cigarro, e logo a seguir tirou outro do maço. Carlotta acendeu-lho. Ele voltou a limpar os olhos, com o fumo em espirais à sua volta.

- Pode continuar. Pode fazer-me outras perguntas. Carlotta voltou a sentar-se de novo diante de nós, com a

mesinha do café a separar-nos. Inclinava-se para diante, como que para amparar Mahmoud.

- Então a Sana começou a viver em Roma e a estudar dança. Quando é que começou as actuações?

- Uns anos mais tarde. Formou o seu próprio grupo. Pequeno. Mas não tem muita paciência para as ideias dos outros sobre como se deve dançar. Por isso é melhor ser ela a decidir todos os pormenores.

- E viu-a dançar?

- Muitas vezes.

- Ela alguma vez voltou a Haifa?

- Sim, mas só raramente. Haifa não significava grande coisa para ela depois de a mãe ter morrido.

- Havia o irmão.

Mahmoud virou-se como se tivesse recebido uma estalada.

- Pois, o Jamal - lançou-me um olhar duro. - Sabe uma coisa, quando ficamos velhos, como eu, percebemos que cometemos muitos erros. Mas que se há-de fazer? É tarde de mais. A vida é muito injusta.

- Quantas vezes foi a Sana visitar o irmão quando ele estava a morar em casa do seu irmão?

- Via-o uma ou duas vezes por ano. Como lhe hei-de explicar? Ela precisava de algum tempo longe dele. Precisava de ter a sua própria vida. Tinha sido sempre demasiado responsável por ele... demasiado em cima do... - Esticou o braço e fê-lo oscilar para cima e para baixo.

- Balance - disse eu. Lembrei-me de que Samuel me dissera que Zeinab usava esta metáfora. Senti como que uma porta a abrir-se - que eu entrava na história comum deles. Percebi nesse preciso momento que havia de escrever um livro sobre Sana e Helena, e o que lhes tinha acontecido.

- Pois, mas não era bom andarem os dois para cima e para baixo. Foi sobretudo por minha culpa. Por não ter acompanhado o Jamal. De qualquer modo, ele estava com a tia e o tio. Estava bem. Estava melhor do que todos nós.

- Mas depois teve problemas.

- Isso não teve nada a ver com a Sana. Embora ela pensasse que tinha sido o trabalho que ela lhe arranjara com os cães... que o levou à prisão e à morte.

- Acha que pode ter sido isso que a levou a matar-se? Quer dizer, o Jamal ter sido assassinado?

- Não, falámos muitas vezes sobre o Jamal e a razão não foi essa. O que aconteceu deixou-a revoltada, mas não deprimida. Deixou-nos a todos revoltados. - Os olhos de Mahmoud faiscavam.

Disse-lhe que tinha falado com o advogado de Sana e que ele me dissera os nomes dos homens que tinham cortado a mão ao filho.

- Por acaso sabe se esses guardas ainda estão em Ashkelon? Mahmoud abanou a cabeça.

- Tentei que se fizesse um inquérito, mas as autoridades recusaram.

- Vou fazer-lhe outra pergunta pessoal que não é da minha conta, espero que não se zangue.

- Se calhar, vou chorar outra vez - disse ele, sorrindo humildemente -, mas não me parece que fique zangado.

- Porque não foi ao funeral da sua mulher?

- Porque antes de morrer ela deixou bem claro que não queria que eu estivesse presente. Escreveu-me uma carta a dizer-me isso mesmo.

- Disse-lhe que não queria que fosse lá?

- Disse. E eu também pensei que a Sana talvez não quisesse que eu fosse. Nessa altura, não éramos ainda os melhores amigos do mundo. Achei que podia ser... mais simpático se me mantivesse de parte.

- Já está reformado do banco?

- Que banco era?

- Um banco privado, egípcio. É um banco para investimentos em negócios. Como é que lhe chamam na América... ?

- Um banco comercial, acho eu.

- É isso mesmo.

- Quando lhe mandei um fax, recebi uma mensagem a dizer que os escritórios estavam fechados e a dizer não sei o quê sobre presentes de aniversário.

Olhou para Carlotta e levantou as sobrancelhas. Ela encolheu os ombros, e ele disse:

- Como hei-de explicar? A máquina manda uma resposta automática quando eu não estou. A sua mensagem é igual à de todos que me mandaram faxes.

- Mas que era aquilo dos presentes de aniversário?

- Quem é que lhe traduziu a carta? - perguntou, dando a impressão de que começava a ficar aborrecido.

- Uma pessoa da Sorbonne, em Paris. Um amigo da Helena.

- Às vezes tratava de transferências de dinheiro para as pessoas. Através das minhas relações nos bancos - Agora falava com mais facilidade. - Mas é mais seguro se guardar a informação para mim. Por isso, digo «presente de aniversário» - piscou-me o olho. - Compreende?

- Não muito bem. Mais seguro, porquê?

- É uma longa história.

- Gostava de perceber, se não se importa.

- Porque estou reformado. O governo italiano não quer que eu ganhe comissões. Mas eu preciso de dar de comer aos meus filhos. Tenho uma segunda família, sabe, e tenho de olhar por ela. Você não conhece o sistema fiscal daqui. São como uma polícia secreta, como a Mossad, como o KGB, só que muito pior! Tanto quanto sei, as paredes têm ouvidos, mesmo neste momento podem estar a ouvir-nos. Os funcionários dos impostos em Roma só me dão problemas.

- E quem é que envia essas transferências de dinheiro?

- Há palestinianos no mundo inteiro que precisam de mandar dinheiro à família no Líbano, nos Territórios Ocupados, em França, em Itália... até no Michigan. Ainda há uma semana mandei dinheiro para uma terra chamada Lansing. Onde fica Lansing?

- Não sei ao certo, mas deve ser perto de Detroit. Mas por que é que essas pessoas não vão simplesmente ao banco delas?

- Tem de compreender que muitas delas nem sequer falam a língua dos países onde estão. Não têm contas. Nem todo o mundo é como a Itália e a América. E então eu possibilitava as coisas. Se não o fizesse, eles tinham de mandar o dinheiro pelo correio. Podiam roubá-lo. - Inclinou-se para diante e deu-me uma palmadinha na perna. - Se alguma vez precisar de mandar dinheiro para qualquer parte, eu faço isso. Vai ver como funciona bem. Sem custos!

Carlotta disse-lhe em italiano que tinha coisas para fazer.

- Desculpe - disse-me ela -, mas tenho de ir buscar a minha filha à escola. Daqui a pouco é hora do almoço.

- Mas estamos em Agosto. Como é que ela tem escola?

- É só meio dia... são sobretudo aulas de arte e de desporto - replicou Mahmoud. Voltou-se para a mulher: - E se eu a fosse buscar e levasse o Richard também? - perguntou em italiano.

- Sim, se o Richard não se importa de ir, a Alice havia de ficar contente - disse Carlotta, com um sorriso.

Mahmoud tinha um velho BMW guardado numa garagem a seguir à esquina. Tinha uma grande amolgadela na porta.

- Há já muito tempo que percebi - desculpou-se - que tinha de escolher entre andar a reparar o carro de cada vez que um italiano lhe bate e viver a minha vida. Não tenho tempo para as duas coisas.

Seguimos uma grande avenida que circunda a cidade. Mahmoud tinha um anel fino, com uma turquesa minúscula, no dedo mínimo da mão esquerda, junto à aliança de casamento. Tinha um ar muito feminino, e gostei de ver o contraste que fazia com os seus dedos fortes. Perguntei-lhe onde o tinha arranjado. - No Líbano. Numa viagem de negócios - apontou para os olhos. - Vi-o numa montra.

Ficámos calados uns instantes. Parecia irritado com alguma coisa. Então, perguntou-me se era difícil publicar um romance.

Fiz-lhe uma introdução breve e um tanto cínica sobre o intrincado mundo da indústria editorial e ele ouviu-me pacientemente. No fim, perguntei-lhe se estava a pensar publicar algum livro.

- Oh, eu não! Não tenho talento para tanto. Não, estou curioso porque a Sana às vezes dizia que queria escrever.

- Que ia ela escrever?

- Talvez uma peça de teatro. Uma vez disse-me que queria escrever alguma coisa sobre o seu passado.

- Uma peça autobiográfica?

- Talvez só algumas cenas da vida dela.

- Que cenas seriam as mais importantes, que é que acha?

Lançou-me um olhar rápido e avançou o lábio inferior.

- A nossa infância é o mais importante, não? Por isso, talvez aquilo de se esconder dos soldados israelitas. Ou talvez... talvez quando eu parti para Itália sozinho.

- Alguma vez lhe falou em mim ou nos meus livros?

- Não, lamento muito. Oiça, eu sou um velho e por isso talvez não me leve a mal. Mas posso dar-lhe um conselho? - Falava num tom grave.

- Claro.

- Acho que, quando partir de Bolonha, devia esquecer a Sana. Não é bom lembrar de mais. Esqueça-nos. Esqueça Haifa. Você vive em Portugal. Tem o Alex. Isso é uma boa coisa. Viva a sua vida. Escreva os seus romances. Isso é mais do que suficiente.

- Mas, e se a Sana sentisse que não era capaz de escrever essas cenas importantes da vida dela da maneira que queria? Se ela quisesse que eu o fizesse?

Ele olhou-me enternecido, como que assustado com o meu destino. Por instantes pensei que ia encostar o carro ao passeio, mas limitou-se a perguntar se não me importava de ir ao bolso do casaco que estava no banco de trás e de lhe passar um cigarro do maço que lá tinha.

Não voltámos a falar até ele ter acabado de fumar. Então, tocou-me no ombro e disse:

- Aquilo do anel era mentira. Desculpe. Era da Zeinab... o último presente dela. A Sana deu-mo depois da morte da mãe.

 

Pouco antes de estacionarmos junto à escola, perguntei-lhe se conhecia Júlio.

- Não sei muito sobre ele - disse Mahmoud. - Acho que era um que lhe batia.

- O Júlio batia na Sana?

- Acho que era ele. Nunca o vi. Uma vez ela chegou a Itália com uma pisadura no pescoço e outra na cara. Ele não era boa pessoa.

Enfiou o carro de marcha atrás num lugar de estacionamento em frente de um grande edifício de tijolo.

- Nunca lhe mostrou nenhuma fotografia dele, por acaso? - perguntei.

- Não.

Mahmoud deve ter pressentido que eu me interrogava por que é que Sana pode ter ficado com um homem que a agredia fisicamente. Encolheu os ombros e disse:

- O coração por vezes comete erros e, como sabe, nem sempre é fácil libertarmo-nos - desligou o motor. - Mas eu fiz a Sana prometer-me que não voltaria para ele.

Alice estava já à espera no portão da escola, com duas amigas. O pai tinha-me avisado para não falar em Sana - eram muito chegadas e só agora começava a lidar melhor com a morte dela.

- Foi um inferno - disse ele. - Por isso vou só dizer-lhe que você conheceu a Sana e mais nada. Não se importa?

- Claro que não.

Alice tinha doze anos, mas parecia uns dois anos mais velha, com uns grandes olhos perscrutadores e um modo adulto de cruzar os braços no peito. Era alta para a idade, com um cativante ar desengonçado. Parecia ter também os seus segredos. Usava um lenço na cabeça, tal como as amigas, mas trazia também uns ténis vistosos, dourados e azuis.

Mahmoud disse-me que era uma escola islâmica fundada há quinze anos por um italiano convertido, que se tinha deslocado a Isfahan para estudar o Corão com um imã iraniano.

- Não com o ayatollah Khomeini, espero.

Disse isto como piada, mas Mahmoud replicou num tom sério:

- Não, Khomeini era demasiado importante, demasiado... Desculpe, esqueci-me da palavra adequada.

- Ilustre - sugeri.

- Pode ser.

Quando Alice nos viu avançar, fez-nos um aceno rápido, despediu-se das amigas e dirigiu-se para nós, saltitante, os pés delicadamente de lado.

Com um aperto de alegria e tristeza combinadas, apercebi-me da evidência: Sana deve tê-la influenciado para começar a ter lições de dança. Mais tarde, confirmei com a mãe que a menina andava a aprender ballet clássico.

O pai inclinou-se para lhe dar um beijo, agarrando-a ternamente pelos ombos. Depois pegou na mochila dela. Apertámos as mãos quando Mahmoud nos apresentou. Enquanto caminhávamos - ele com a mão no ombro dela -, ia pensando como seria ter um pai de setenta e tal anos e que a adorava. Saberia ela a sorte que tinha?

Sentei-me no banco de trás. Do lugar da frente, Alice virou-se para mim, muito viva:

- Lei è Americano? - perguntou, em italiano.

- Si.

- Da dove vieni?

- Stop - ordenou Mahmoud. - Alice - disse ele num tom de frustração -, o teu professor veio este caminho todo desde o pólo Norte para enfiar algum inglês nessa tua cabecinha, e tu falas italiano? - Virou-se e piscou-me o olho.

- De onde é? - repetiu ela, agora em inglês.

- Nova Iorque.

Disse alguma coisa ao pai num italiano rapidíssimo, depois na brincadeira deu-lhe uma palmadinha no ombro.

- Diz ela que quer passar o Verão todo em Nova Iorque.

- Se fores, podes passar um grande fim-de-semana com a minha mãe - disse-lhe eu.

- Oh, isso era mesmo bom! - sorriu Mahmoud. Fitou-me pelo retrovisor. - Mas a sua mãe tinha de ter cuidado, esta menina é uma grande marota... tal e qual como...

Mahmoud ia a dizer «Sana», mas conteve-se a tempo. Alice no entanto compreendeu e voltou-se de costas. Encostou a cabeça à janela e não dava mais do que umas respostas vagas às tentativas que o pai fazia para trazer de volta os seus pensamentos para junto de nós, no carro.

 

De regresso a casa, ouvia-se uma música de violino vinda do fundo do corredor - uma melodia vivíssima. As notas chegavam-nos como centelhas.

- É a minha mãe - disse Alice, tirando o lenço da cabeça., Tinha cabelos castanhos compridos. Abanou-os para os soltar para as costas.

- A minha mulher toca na orquestra de Bolonha - disse „ Mahmoud.

- Há quanto tempo toca lá?

- Oh, santo Deus, há vinte anos. - Sentámo-nos de novo no sofá a ouvir enquanto Alice ia tomar um duche e mudar de roupa. - Há uns quinze anos - disse Mahmoud - estou aqui numa visita de negócios, com a universidade. E eu...

- Que é que fazia na universidade? - interrompi.

- Tentava arranjar bolsas para estudantes palestinianos... e estudantes árabes de outros países, também.

- Há muitos em Bolonha?

- Alguns... É uma grande universidade. A mais antiga da Europa, sabia? E então estou aqui e vou a um concerto porque... porque me sentia só. Não gostava de música ocidental nesse tempo, mas estão a tocar Beethoven e nunca ouvi nada composto por ele. Já vê o ignorante que eu era... e ainda sou. Vejo esta mulher no palco e não consigo desviar os olhos e não sei o que me acontece porque o peito... - deu umas palmadinhas no sítio do coração - ... parece que não conseguia respirar.

- Foi-se apresentar a ela depois do concerto?

- Não. Sou muito tímido. Uma bela mulher italiana e eu, um emigrante árabe? Não. Não disse nada. Mas venho a Bolonha todos os fins-de-semana que posso. Vou a mais concertos. É muito caro, mas que havia de fazer? Devia dizer-lhe alguma coisa, mas não consigo. E então um dia... Bolonha não é uma cidade grande, por isso estamos sempre a ver pessoas conhecidas. E então vi-a ao passar numa livraria - Mahmoud faz um gesto na direcção da janela.

- Uma livraria não muito longe daqui. E então entro. - Faz com os dedos o gesto de caminhar. - Finjo que estou a ler, mas... - Mahmoud faz uns olhares disfarçados para o lado. - Ela vê-me a olhar e sorri. Sorri-me! E é então que eu vou ter com ela e lhe digo como a acho linda. Por uma sorte inesperada, consigo evitar que o coração me expluda e ela não fica a pensar que sou maluco.

- E foi assim.

- Sim, foi assim.

- E mudou-se para Bolonha logo a seguir?

- Logo a seguir não. Um ano depois consegui montar aqui um escritório... A Carlotta não se podia mudar para Roma, claro, porque o trabalho dela é aqui.

- Sentiu saudades de Roma?

- Nunca. Bolonha é muito central... entre Milão e Roma. É fácil andar de um lado para o outro.

- Vai muitas vezes a Milão?

- Vou. Temos lá um Centro Cultural Muçulmano. É muito importante para os meus negócios. E às vezes levo a Alice comigo. Tem de conhecer a sua herança.

 

Carlotta e Mahmoud convidaram-me a ficar para jantar, e nem queriam ouvir falar de recusa.

- Não dá trabalho nenhum - garantiu Carlotta. - Só uma pasta e salada. Come carne?

- Como, mesmo porco e marisco.

- Não é um judeu assim muito a sério - brincou Mahmoud.

- A Helena está sempre a dizer-me a mesma coisa.

Carlotta sugeriu-me que aproveitasse o dia de sol para ir ver a cidade, e que voltasse antes do jantar, e foi o que fiz. Arranjei maneira de ir ao Museu Morandi, um dos meus objectivos, mas dentro das taças do artista, dos vasos e jarros, havia todas as minhas fantasias de salvar Sana.

Nessa tarde, comecei a imaginar como é que eu tentaria pintá-la, e como seria a sua cara num retrato. E oito meses depois, descobri-o... Nessa altura, em Abril de 2002, dois bons amigos de Londres, Judith e Tim, enviaram-me uma monografia maravilhosamente impressa sobre o artista contemporâneo Ken Kiff, que antes da sua morte eu tentara convencer a ilustrar alguns contos meus. Ao analisar um auto-retrato dele num domingo ocioso, reparei em como ele escondia metade da cara em profunda obscuridade, apenas vagamente definida. Essa metade podia transformar-se em absolutamente qualquer coisa que ele - ou o observador - quisesse.

Regressei a casa de Mahmoud às sete da tarde, levando um pequeno ramo de ervilhas-de-cheiro vermelhas, cor-de-rosa e brancas que descobrira numa magnífica florista perto da praça principal. Carlotta mostrou-se radiante quando lhas ofereci e, depois de as levar ao nariz, disse-me que cheiravam divinamente. Pô-las numa elegante jarra de ametista no meio da mesa de jantar.

Tommaso, o filho de quinze anos, ficou apenas uns breves minutos, pois ia ao cinema com os amigos. Não consegui falar com ele. Tinha os olhos escuros de Mahmoud e a cara redonda da mãe. O cabelo preto espesso era comprido e despenteado segundo as leis da moda, como se ele tivesse passado horas a dar-lhe um ar descuidado e natural.

Tommaso andou às voltas pela casa antes de sair, à procura de uma carta que não sabia onde tinha posto. Estava zangadíssimo por uma razão qualquer. Mahmoud estava furioso com ele, também, e embora não dissesse nada, fumava com ar irritado e olhava o rapaz de soslaio. Parecia que as paredes suspiravam de alívio quando ele saiu.

- O seu filho parece estar na idade em que nada está bem - disse eu a Mahmoud, quando ele entrava na sala com uma garrafa de água gaseificada, vindo da cozinha.

Limitou-se a encolher os ombros com irritação.

- Só espero que isto não continue assim por muito tempo - disse Carlotta.

Tinha feito pasta aipesto, com uma grande salada de tomate com mozzarella, que Alice salpicou com vinagre balsâmico. A seguir ao jantar, ficámos a falar da equipa de basquetebol das raparigas. De momento, Alice jogava no centro, porque o único elemento mais alto do que ela não sabia driblar e ao mesmo tempo ver o que estava a fazer. - Está sempre a ir contra as outras jogadoras e perde a bola. Uma vez driblou fora das linhas e bateu na parede.

Alice punha o pai a sorrir o tempo todo. Depois de falarmos um pouco sobre a escola dela, passámos para a carreira de Carlotta. O único problema em tocar numa orquestra, dizia ela, é que isso a forçava a uma prolongada adolescência. Às vezes sentia-se como Tommaso.

- Ver as mesmas pessoas todos os dias, e sempre as mesmas querelas, sobre as mais pequenas minúcias musicais, até... - aqui puxou o cabelo - até termos vontade de matar alguém. Acho que estou a precisar de uns tempos sem tocar... um ano ou dois. Logo se vê.

Depois de jantar, enquanto eu levava os pratos para a cozinha, Carlotta tomou-me pelo braço.

- A violência no seu livro... era realmente assim tão duro para os judeus em Portugal?

- Naquela época, acho que sim.

- Horrível. Leva muito tempo para eu ler toda aquela violência. O que acontece é que... o livro faz-me sentir como se eu estivesse lá. Eu vejo tudo. Mas eu não quero ver. - Sorri. - Compreende?

Continuámos a levantar os pratos e talheres da mesa e a levá-los para a cozinha.

- Que acha que a Sana viu no meu livro? - perguntei.

- Que viu no livro?

- Por que é que o livro seria importante para ela.

Carlotta apertou a minha mão brevemente, depois deu uma palmadinha na testa:

- Vou pensar nisso.

Cerca de meia hora mais tarde, estando eu sentado no sofá, a tomar o meu chá, começou a olhar-me intencionalmente. Alice estava a falar-me de uma caminhada que tinha feito com alguns amigos nas montanhas perto de Como, e de como uma das raparigas tinha deixado cair por uma ravina abaixo um dos ténis que calçava. Tinha tentado, sem sucesso, recuperá-lo com uma cana de pesca. Alice e eu ríamo-nos, divertidos. Quando ela acabou, Carlotta disse-me para ir com ela à cozinha.

- Duas coisas que eu pensei - disse ela. - Primeiro... o seu narrador, Berequias, fala com Farid por gestos... fala com as mãos, não é? Como a dança ou a mímica. Mas também exprime-se numa língua falada, em português. Move-se entre dois mundos. Acho que é isso que a Sana quer. Quer dançar e quer fazer mimo, mas também quer falar... com palavras que nós podemos ouvir, compreende? Quer escrever. Berequias, o seu narrador... ela quer ser ele.

- Mahmoud também disse que a Sana queria escrever. Alguma vez lhe mostrou alguma coisa que tenha feito... ou em que estivesse a trabalhar?

- Não. Ela diz que isso é a próxima coisa que faz... a mossa seguinte

- O passo seguinte.

- Pois, passo. Mas pode querer dizer que abandona a dança. Por isso está preocupada. É um risco.

- Que iria ela escrever?

- Nunca diz. Mas há outra coisa. Berequias tem de viver num país estrangeiro... para escapar a toda aquela violência contra os judeus. Apanha um barco para Constantinopla no fim, não é? Bem, isto é também como a Sana. Ela vem para Itália. É uma esiliata.

- Uma exilada.

- Sim, e no fim do romance você diz que Berequias volta para casa. Ou pelo menos quer voltar para casa. Quer avisar os judeus dos perigos que os esperam. Acho que era isso que a Sana quer também. Talvez Berequias a ajude a decidir o que fazer.

- Voltar para casa e avisar os palestinianos de quê?

- O meu inglês... - disse Carlotta com uma careta. - Não sei se «avisar» é a palavra certa. Talvez ela queira só... motivar o povo dela. E pensa que para o fazer talvez a dança não seja suficiente.

Mahmoud chamou-nos de volta à sala de estar logo a seguir. Falámos um bocado sobre a política italiana. Ele achava que todo o país era corrupto, mas em especial os funcionários dos impostos. Carlotta disse que não era bem assim, sobretudo em Bolonha, que ela achava «a cidade mais civilizada de Itália».

Mahmoud resmungou ao ouvir isso. Seguiu-se uma troca de palavras em italiano. O sono apoderava-se de mim. Quando Carlotta reparou nisso, propôs que nos encontrássemos no dia seguinte num café perto do hotel. Ela e Alice queriam mostrar-me um pouco da cidade. Mahmoud concordou em acompanhar-nos também, mas só durante um bocado, pois tinha vários telefonemas de negócios para fazer.

 

Encontrámo-nos às onze horas do dia seguinte. Estava também um dia de sol, mas quase todas as ruas de Bolonha tinham arcadas, por isso não tirei a camisola enquanto passeava com elas. Carlotta fez questão em começar por me mostrar os frescos do Oratório de Santa Cecília. Apontou para o último deles, em que Santa Cecília com uma auréola era transportada numa mortalha para a sepultura.

- Bonito, não? Venho sempre cá, desde pequena. Os freschi foram terminados em mil quinhentos e seis. Lembrei-me da data quando li o seu livro, porque, na mesma altura que os cristãos de Lisboa matam os judeus, um artista está a pintar estas maravilhosas imagens cristãs aqui neste lugar.

Sob minha insistência, fomos ver a casa onde Carlotta passara a infância. A fachada do belo edifício de três andares estava pintada de amarelo-vivo. No rés-do-chão havia um restaurante com lanternas cor-de-rosa penduradas à porta. Chamava-se Da Fantoccini, que Alice traduziu como «Na Casa dos Fantoches».

- Tinha na janela os fantoches mais bonitos do mundo quando eu era pequena - disse Carlotta. - Eu adorava vir aqui.

A manhã estava clara e limpa - como se um vento forte tivesse varrido toda a confusão para longe. Eu sentia-me feliz por conhecer estas pessoas - e grato por ter conhecido Sana, que nos reunira a todos. Parecia-me que estivera até agora à espera de fazer as pazes com ela, desde o momento em que ela caíra na rua em Perth.

Carlotta apontou para a janela do segundo andar.

- O meu quarto era ali - voltou-se e apontou para o fundo da rua. - Está a ver ali aquela... aquela farmácia? O meu pai trabalhava lá.

- Ainda está vivo?

- Não. Mamma e papa já morreram há muitos anos - as lágrimas assomaram-lhe aos olhos. - As emoções agora vêm até mim muitas vezes - disse ela. - Desculpe.

- Não tem de que pedir desculpa. Tem irmãos ou irmãs?

- Não - passou os braços em torno de Alice e deu-lhe um beijo na nuca. - Só tenho esta minha pequenina, o irmão dela e o pai.

Tinha trazido a máquina e tirei uma fotografia de Alice nos braços da mãe. A menina a fazer que quer escapar, mas sorridente. Ambas têm o ar de estar exactamente no sítio onde deviam estar.

Enquanto comíamos uma sopa e uma salada na esplanada de um café, Alice telefonou ao pai do seu telemóvel para saber onde é que ele estava e quando vinha ter connosco. Pensando que poderia vir a precisar de contactar Mahmoud mais tarde, pedi-lhe que me escrevesse o número dele nas costas de um talão de caixa. Ela mordeu o lábio e consultou a mãe com o olhar.

- Prometo que só o uso em caso de urgência - assegurei.

- É só porque o meu marido pediu que não o déssemos a ninguém - explicou Carlotta.

- Se me derem o número de casa também, eu tento sempre esse primeiro. Só não quero é perder o contacto agora que os conheci. E posso precisar de voltar a falar com ele.

Carlotta assentiu com um sorriso, e disse a Alice para escrever os dois números.

Agradeci-lhe. O sol de Verão nas nossas caras era como um metal aquecido e Alice inclinava a cabeça para trás, exultante com aquela luz abençoada. Com os olhos fechados, via-se a semelhança dela com a mãe nos ângulos delicados do perfil.

A caminho do encontro com Mahmoud, Carlotta levou-me por um pequeno desvio. Diante de um edifício cor-de-rosa, decrépito, com um grande castanheiro-da-índia em frente, perguntou:

- Veja lá se sabe quem viveu aqui.

- Dante ou Leonardo. Era a resposta que eu dava sempre em Itália quando alguém me fazia uma pergunta semelhante, já que raramente acertava na resposta.

Riu-se.

- A Sana e o Mahmoud - disse ela. - Vivem aqui quando mudam da Palestina... quando a Sana tem a mesma idade da Alice.

Uma janela do andar de cima tinha ao fundo uns gerânios vermelhos. Imaginei Sana olhando-me dali. Será que tinha há muito planeado que eu haveria de estar ali a pensar nela? Seria ela assim tão boa feiticeira?

Levei a mão ao umbral da porta e fiz pressão com os dedos, imaginando-a a tocar esse mesmo sítio quarenta anos antes. No intento de deixar ali alguma coisa de mim, fiz com a unha um risco na parede.

 

Uma hora mais tarde, Mahmoud encontrou-se connosco no centro da cidade, mostrando-se cansado e alterado. Cumprimentou-me friamente. Dir-se-ia que os telefonemas não lhe tinham corrido bem. Carlotta falou com ele em italiano, e imaginei que lhe perguntava se havia algum problema, mas ele limitou-se a uma resposta vaga e breve.

Estávamos junto das duas torres medievais de Bolonha. Assemelhavam-se a um sonho de criança - a mais pequena tão inclinada que a sua sombra tinha um ar ameaçador, a maior tão fina e direita que parecia apontar para o verdadeiro centro dos céus.

Enquanto os pais falavam, contei a Alice que há quase vinte e quatro anos exactos eu tinha subido ao topo da Torre degli Asinelli, de cerca de cem metros de altura. Tinha vindo passar o Verão a Assis, Florença e Siena para um curso de música e apanhara um comboio em Florença para conhecer Bolonha.

A miudita queria levar-me a empreender novamente a subida e puxava-me pelo braço. Na brincadeira, disse-lhe que só ia se ela tivesse lá em cima uma garrafa de oxigénio à minha espera. Carlotta desistira das suas tentativas para alegrar o ânimo sorumbático do marido e concordava comigo, rindo-se.

Alice explicou, numa voz entusiasmada, que em tempos houvera duzentas torres em Bolonha.

- Imagina tentar subi-las todas até lá acima!

- Às vezes ponho-me a imaginar aquelas duzentas sombras na cidade - disse Carlotta, estendendo os braços em volta.

- Bolonha devia ser uma... uma scacchiera... - comentou com um franzir de sobrancelhas, por não saber a palavra em inglês.

- Um tabuleiro daquilo... do jogo de mesa, acho que é isso - disse Alice.

- Um tabuleiro de xadrez - sugeri.

- Sim, isso mesmo! - exclamou Carlotta, alegre. - Era um tabuleiro de xadrez de luz e sombra.

- Era a Nova Iorque de Itália - disse Alice, conclusiva. Soava como um slogan publicitário que ela tivesse lido numa brochura. Carlotta e eu sorrimos um para o outro.

- Agora percebo porque queres ir a Nova Iorque - disse o pai. - Para recuares no tempo até à Bolonha medieval.

Sorri para Mahmoud, mas ele não deixou que os nossos olhares se cruzassem. Fiquei a pensar se ele teria ficado ofendido com alguma das minhas perguntas no dia anterior.

Comprei um gelado para todos num café na praça central. Eram já três da tarde. Em breve teria de voltar ao hotel e partir para o aeroporto. Num momento em que Carlotta foi com Alice à casa de banho, aproveitei a ausência delas para pedir desculpa a Mahmoud por alguma coisa impensada que eu pudesse ter dito.

- Não, não. Não há nenhum problema - respondeu, puxando dos cigarros.

O tom distante dele insinuava o contrário. Não querendo desperdiçar esta oportunidade, disse:

- Posso não ter ocasião de voltar a Bolonha tão cedo. Importa-se que lhe faça mais umas perguntas?

Com os olhos fixos no outro lado da praça, acedeu ao que lhe pedia. Tive o pressentimento de que estava arrependido de se ter mostrado tão amistoso e receptivo comigo no dia anterior.

- Havia outros motivos para a sua vinda para Itália? - perguntei.

- Que quer dizer com isso? - voltou-se para mim e franziu os olhos de espanto.

- Além do banco, tinha outros motivos para vir para cá? Motivos políticos, por exemplo.

Pegou no cigarro por acender que lhe pendia dos lábios e sorriu. Os olhos negros brilhavam de malícia.

- Quer saber - disse ele, num tom jovial - se eu sou um espião?

- Qualquer coisa do género.

Riu-se.

- Isso lisonjeia-me. Mas se eu fosse um espião, por que o convidaria para minha casa? Não tenho nada a esconder. Não quer dizer que não tenha as minhas opiniões sobre a Palestina. E que não tente dar uma ajuda, à minha maneira.

- Através das...

- Já lhe expliquei como - disse ele, impaciente. - Tentando arranjar bolsas para estudantes palestinianos estudarem no estrangeiro. Quando voltam, possuem uma formação. Podem ajudar a melhorar as condições e ajudar outros a estudar. - O olhar de Mahmoud ficou novamente perdido na distância.

- Em breve irei à América por essa mesma razão. Muitos dos nossos estudantes estão lá agora.

- Quando pensa ir?

- Depois do Oriente... lá para fins de Setembro. - Parecia que ia continuar a falar sobre a viagem, mas perguntou antes:

- Por acaso conhece algum hotel simpático em Nova Iorque?

- Não, fico sempre em casa da minha mãe. Mas posso perguntar a uns amigos ou então tenho a certeza de que o meu agente literário conhece algum.

- Talvez a sua mãe conheça.

- Não. Vive em Long Island há cinquenta anos. Mas vou perguntar ao meu agente.

- Não, não se incomode. Tenho lá colegas do banco. Foi só por pensar que você podia saber.

Acendeu o cigarro e recostou-se, afastando-se de mim, enquanto fumava avidamente. O perfil dele fazia-o parecer extremamente contido.

Na esperança de aliviar a tensão entre mim e Mahmoud, mostrando o meu interesse no passado que ele e Sana tinham partilhado, perguntei-lhe se em Londres ficara em casa dela. Tencionava ir lá também - para ver onde eles se encontravam. Ele disse-me que era no Hotel R... não muito longe de Marble Arch. Parecia caro, mas Mahmoud explicou-me que por vezes tinham uma tarifa de fim-de-semana.

Quando o empregado passou, pedi-lhe a conta.

- Bem sei que estou a abusar da sua paciência, mas tenho ainda uma última pergunta - disse eu a Mahmoud. - Acha que a Sana andava a pensar voltar para Israel ou para a Palestina?

- Já não tinha nada em Haifa - disse ele, ausente. - Todos os que conhecia tinham morrido ou partido. Não. Sentia-se feliz no Brasil.

- Feliz?

Confirmou com um aceno da cabeça.

- E mesmo assim matou-se?

Ele aspirou vivamente o cigarro, depois fez o fumo sair em espirais pelo nariz, medindo as palavras.

- E tem a certeza disso? - perguntou.

- Que quer dizer?

- Talvez alguém a tenha empurrado.

- Quem?

- Não sei. Não estava em Perth. - Havia cólera na sua voz, agora. Parecia estar prestes a acusar-me por não ter olhado pela filha.

- Acha que alguém a assassinou? - perguntei.

- Talvez sim, talvez não.

Já antes pensara nisso, claro, mas ninguém me levara a pensar que poderia ser uma hipótese séria. Apercebi-me de que devia ter sido essa a verdadeira razão por que Mahmoud me fizera perguntas tão pormenorizadas sobre o que se passara em Perth.

- Mahmoud, não tem realmente nenhuma ideia de quem poderia ter feito isso?

- Não.

- Sabe quem era a Abelha-Mestra? - perguntei.

- Quem?

- A Abelha-Mestra... era o nome de um monstro que metia medo à Sana quando era pequena. Deve lembrar-se.

- Só vagamente.

- E sabe se ela pensava em alguém em especial?

Abanou a cabeça negativamente.

- A Sana às vezes referia-se ao Júlio, o namorado, como Abelha-Mestra.

- Não sei nada disso.

- Acha que ele pode ter querido matá-la?

- Não. Ela nunca mais falou nele, depois de terem acabado a relação.

- Acha que ela tinha inimigos em qualquer parte?

- Era uma bailarina... quem havia de ser inimigo dela? Não sei nada de inimigos.

- Vi um vídeo da Lisístrata, um espectáculo dela. Pode haver pessoas que tenham odiado a maneira como ela mostra os Israelitas, como inimigos.

Ele olhou-me espantado, como se eu tivesse dito alguma coisa estúpida.

- Essa sua interpretação é muito simplista.

- Há pessoas que são muito simplistas.

- Não sei nada disso.

- Mas estava a dizer que alguém a queria ver morta. Tinha de ser alguém da trupe dela. Eram eles os únicos que sabiam que ela estava em Perth. E provavelmente eram as únicas pessoas que ela conhecia em toda a Austrália.

- Foi só uma ideia! - disse ele descoroçoado, com uma palmada na mesa. - Esqueça o que eu disse. Esqueça tudo o que lhe disse. - Atirou o cigarro para longe. Percebi que estava para se levantar e ir embora. Mas a mulher e a filha estavam agora a aproximar-se por trás dele. Acenei-lhes, para o demover de partir. Inclinando-se para mim, agarrou-me uma mão. Os olhos fulguravam de justa cólera. Sussurrou-me: - Avisei-o de que fazia melhor em esquecer-nos a todos. Lembre-se disso!

Retirei a mão, mas ele deixou-me mesmo assustado. O meu coração batia desabalado, os meus pensamentos debandavam em todas as direcções. Apercebi-me de que não o conhecia de todo - nem o que ele pensava de mim. Não tinha a certeza de poder agir como se nada tivesse acontecido entre nós.

Entretanto, Alice e Carlotta tinham voltado a sentar-se e eu não ousava falar da hipótese de Sana ter sido assassinada. Carlotta reparou imediatamente na frieza do marido e com o olhar pediu-me desculpa. A miúda reparou também, mas não pareceu preocupar-se. Por insistência dela, peguei na minha máquina fotográfica. Mahmoud resmungou e disse que parecia um cadáver nas fotografias - os maxilares salientes e os olhos fundos na sombra. Passou o casaco pela cabeça, mas Alice puxou-o de novo para baixo. Tirei várias fotografias deles os três, e Carlotta tirou duas comigo, o marido e a filha. Numa delas, Alice está sentada entre mim e Mahmoud. Ele tem os olhos postos na distância, furioso, como quem espera a sua hora. Alice faz um aceno com a mão.

Tenho esta fotografia em cima da minha secretária, junto às minhas preferidas de Sana e de Helena. O que eu não sabia nessa altura é que o aceno de Alice era um aceno de despedida.

 

Às QUATRO DA TARDE, Mahmoud, Carlotta e Alice acompanharam-me a uma praça de táxis. O chão parecia quebradiço, como se fosse ceder. Carlotta deu-me um abraço demorado. Alice deu-me um beijo na cara. Mahmoud apertou-me as duas mãos com muita força, como se quisesse transmitir-me a sua vontade, depois encostou a boca ao meu ouvido e disse-me, num sussurro cáustico a cheirar a tabaco:

- Escreva os seus romances e esqueça a Sana.

 

Talvez este conselho hostil me tenha influenciado. Ou talvez eu estivesse hesitante em aprofundar mais a história de Sana. Sei que estava ainda com mais medo de Mahmoud quando cheguei ao Porto. Em retrospectiva, pressentia que ele nunca me teria permitido entrar em sua casa se tivesse outra maneira de saber o que eu sabia acerca do último dia de Sana em Perth. Talvez fosse um actor tão dotado como a filha.

Por isso não telefonei a Helena nem ao pai dela para lhes dizer o que soubera em Bolonha. Mantive o meu caderno de notas fechado e esqueci as gravações. Alex e eu andávamos a remodelar o apartamento e estávamos a viver na nossa casa de fins-de-semana, a uma hora de caminho a norte do Porto, perto de Caminha. Estava contente por poder trabalhar doze horas por dia no meu novo romance Meia-Noite ou O Princípio do Mundo. Para descansar, de vez em quando sentava-me no jardim,

Como uma criança, a arrancar ervas daninhas. À noite, torturava-me a pensar nas minhas personagens.

Telefonei a Mário para lhe perguntar se havia alguém na trupe que estivesse tão zangado com Sana, ou tão incontrolavelmente invejoso dela, que pudesse ter querido fazer-lhe mal. Ele pensou que eu tinha perdido o juízo.

Helena telefonou uma semana depois da minha viagem a Bolonha e eu acabei a falar-lhe da nova família de Mahmoud. A voz dela ressumava ressentimento.

- Que maravilha! Estou extasiada! - disse cortante. Podia ouvi-la pensar: «Sana e Jamal estão mortos, e aquele sacana começa uma nova vida...»

Helena estava ainda em casa do pai. A abstenção de álcool dava-lhe uma dor de cabeça quase constante e uma disposição e um apetite furiosos.

- Ainda bem que a minha mãe está morta... era capaz de me matar, se me visse assim.

- E a feijoa dourada do teu pai, vai andando?

- Ainda nada. Mas as verdes estão a começar a cair das plantas. Estive a fazer doce com elas... com um grama de Valium em pó em cada boião. É a minha nova iniciativa de paz. O meu pai diz que eu podia fazer uma fortuna em Israel e na Palestina.

Passados instantes, Samuel pegou no telefone e mostrava-se mais compreensivo para com Mahmoud.

- Ainda bem para ele - disse. - Talvez tenha recuperado a honra num país estrangeiro. A propósito da resposta de Mahmoud, de que não era nenhum espião, Samuel disse que ele se mostrara mais esperto do que eu. - Ao exagerar o que lhe tinha perguntado, podia negar tudo e ao mesmo tempo dizer a verdade.

- Acho que estraguei tudo - disse eu.

- Não faz mal. Se não mo disse a mim, não lho ia dizer a si. Nunca o saberemos.

Contei-lhe o segundo dia que passei com ele.

- A maneira forçada como falava comigo... foi um choque.

- Aposto que se sentia furioso por ter mostrado as suas emoções diante de si no dia anterior - replicou Samuel. - Viu isso como uma fraqueza, e provavelmente culpava-o por isso.

- Pensa realmente que foi só isso? Não acha que ele odeia os judeus, pois não?

- Oiça, para jogar pelo seguro, não volte a contactá-lo. Se quer o meu conselho, deixe o Mahmoud entregue à nova família. Para termos paz com os Palestinianos, não temos de ser amigos; vizinhos basta.

Quando lhe disse que gostava muito de ver Wadi al-Nisnas, onde todos eles tinham vivido, Samuel respondeu que se encontraria comigo em Haifa quando eu quisesse e que me mostrava a cidade.

- Acho que é capaz de ainda haver algumas hortênsias azuis na nossa antiga casa! - Fizemos alguns vagos planos para nos encontrarmos durante a primeira semana de Outubro. E disse que falaria à filha para se nos juntar.

Eu não falara a Helena no que Mahmoud dissera sobre o assassínio de Sana porque me sentia incapaz de prever a reacção dela. Mas contei a Samuel.

- Francamente, acho que não é mais do que um desejo piedoso - disse ele.

- Desejo piedoso?

- Vá por mim, nenhum pai gosta de ter de aceitar que a filha se matou. Assim, sempre tinha alguém a quem acusar... e talvez punir.

 

No dia 2 de Setembro, recebi uma chamada de Mark Fleisher, o crítico de dança que vivia em San Francisco, e que eu tentara contactar depois de ter falado com um amigo dele no Joyce Theater. Fleisher disse-me logo que se lembrava muito bem de Lisístrata, o espectáculo de Sana.

- Foi um daqueles desastres sem importância de que toda a gente fala durante quarenta e cinco segundos. Só teve duas actuações.

- Porquê?

- Pensa a sério que uma Lisístrata anti-semita pode vender bilhetes em Nova Iorque?

- Era anti-semita? - perguntei.

- Não brinque comigo! A sua amiga alterou uma peça da Grécia antiga só para poder atacar Israel. O que chama a isso?

- Uma reinterpretação para um público moderno - respondi.

Ele riu-se e disse:

- Boa jogada. Oiça, o que eu ouvi nessa altura foi que o crítico do Times ia escrever uma coisa feroz sobre a peça, e então os produtores desligaram a tomada antes de o artigo ter ocasião de ser publicado.

- A Sana disse-me que a puseram a andar de Nova Iorque... quase linchada.

- Oh, não brinque comigo, ela estava só a dramatizar... os bailarinos estão sempre a fazer isso. Põem em cena uma qualquer diatribe política de pesadelo e pensam estar a ser perseguidos quando são forçados a fechar. Posso garantir-lhe que quando essa Lisístrata foi a enterrar, todos nós continuámos a nossa vida sem pensar mais no bailado, nem na autora. O tom viperino de Fleisher revelava claramente que estava a delirar com esta oportunidade de minimizar o trabalho de Sana. Decidi pôr termo ao telefonema antes que lhe pagasse na mesma moeda.

- Antes de o deixar - disse eu -, por acaso guardou algum programa que tenha os nomes dos outros artistas?

- Lamento. Nada. E tenho a certeza de que o Soho Dance Theater se desfez logo a seguir. Pelo menos assim o espero.

 

À medida que o Verão se aproximava do fim, sentia-me cada vez mais pressionado para acabar a reescrita do meu romance e por isso trabalhava nele a tempo inteiro. Mesmo assim, mantive o contacto com Helena. Tinha retomado as suas cartas aos jornais de Israel e ia recebendo as cartas de ameaça que lhe reenviavam de Paris. Um homem de Telavive escrevia-lhe: «Devia ser grelhada no Inferno por incitar os ataques a Israel!».

Num tom de orgulho, disse-me que recebera recentemente cartas vindas de tão longe como a Cidade do Cabo e Singapura.

- Não sabia que havia judeus em Singapura - respondi.

- Bem, há pelo menos um. Embora o vocabulário hebraico dele seja muito limitado. E dê imensos erros! Deve ser um judeu americano que aprendeu algum hebraico para o bar mitzvah - disse Helena, que lhe chamara «cabra» sete vezes em dois curtos parágrafos.

Disse-lhe que não compreendia como é que pessoas vivendo tão longe a tinham encontrado; não era possível que todos conhecessem alguém nos jornais onde ela publicava as cartas.

- Israel é um país tão pequeno - respondeu - que se uma pessoa descobrir o meu endereço numa terça-feira, na quinta já todo o país o tem. E na sexta já todos os parentes da Diáspora o têm também.

A carta que mais a incomodou viera de Santiago do Chile. O autor - Chaim - fizera um desenho de Helena com uma suás-tica na testa e o braço levantado na saudação nazi. Curiosamente, desenhou-a com um nariz adunco, como se tivesse absorvido a propaganda fascista sobre os rostos judaicos. Incomodava-a de tal modo que não quis ficar com o desenho em casa e mandou-me o original. Pensei em queimá-lo, mas acabei por decidir guardá-lo para me lembrar de como as pessoas podem ser cruéis. Quando lhe disse isso na conversa seguinte, ela ficou completamente em silêncio.

- Que é que tens? - perguntei.

- Não mudou nada. Todas aquelas pessoas morreram no Holocausto e nada disto é novo. Sabes uma coisa? Deve haver uns quantos velhos nazis por aí que se deliciam com todos estes problemas em Israel. Na minha opinião, é uma razão mais do que suficiente para fazer a paz com os Palestinianos.

Estava a pensar voltar para Paris por uns tempos, e sentia-se com suficiente estabilidade para voltar a pegar na sua tese.

- Queria acabá-la e depois trabalhar na pastelaria uns meses. Preciso da minha antiga rotina. Preciso de voltar à minha vida. Quando tiver isso, decido o que vou fazer a seguir.

Depois de fazer as reservas on line para a minha viagem a Haifa em Outubro, encontrei uma explicação mais plausível para a maneira como as pessoas conseguiam o endereço de Helena: uma busca na lista telefónica de Paris pela Internet fornecia-o em trinta segundos. Pensei em ligar a Helena para lhe dizer isso, e também para lhe dar as datas que tinha escolhido para a viagem a Israel, mas a minha atenção foi desviada pelo que me aconteceu nessa tarde: ia a passar na Rua Júlio Dinis, no Porto, quando vi uma multidão num café especada diante de um televisor a um canto. Imaginei que devia ser um desafio de futebol. Mas pela montra consegui ver o topo das Twin Towers de Nova Iorque envoltas em chamas e lançando para o céu nuvens densas de um fumo cinzento. Precipitei-me para o interior. Parecia ficção científica - absolutamente impossível. Então umas das torres desabou. Tive a impressão de que todas as pessoas à minha volta se afastavam de mim e se diluíam. A minha experiência dizia-me que estava prestes a desmaiar. Sentei-me com a cabeça nos joelhos. Não queria chorar. Mas chorei. Também não queria que me vissem, e por isso mantive-me com a cabeça baixa. Pensei em Sana e em Helena nos seus esconderijos. Quando senti a tontura diminuir, sentei-me e bebi um copo de água. Estava gelado. Um homem na mesa ao lado reconheceu-me e sorriu. Reconheci-o também - Germano Silva. Era um jornalista e historiador que uma vez me entrevistara. Veio ter comigo e sentou-se à minha mesa. Falámos uns minutos, pois ele lembrou-se de que eu era de Nova Iorque, mas não consigo lembrar-me de uma única palavra da nossa conversa. Quando consegui levantar-me, precipitei-me para chamar um táxi e fui ao gabinete de Alex. Estava numa reunião, mas saiu para me dar um abraço. Lembro-me do cheiro dele - o cheiro de todos os anos que passámos juntos. Depois sentei-me à secretária dele. Surpreendentemente, consegui ligar para a minha mãe de imediato. Estava à espera de a encontrar histérica, mas estava calma, com uma incredulidade estupefacta.

 

PASSEI OS DIAS QUE SE SEGUIRAM a trocar e-mails com amigos do liceu e da universidade, com o meu agente literário e editores, com vizinhos da minha mãe, e com toda a gente de quem me lembrava em Nova Iorque. Felizmente, todos os meus conhecidos estavam bem. Passei a maior parte do tempo diante da televisão a ver a CNN e a Sky News.

Uma semana mais tarde, lembrei-me de que Mahmoud me dissera que tinha de ir a Nova Iorque em fins de Setembro. Perguntei a mim próprio se teria adiado a viagem - como eu cancelara a minha a Haifa. Mas o fax dele estava desligado e nem o telefone de casa nem o telemóvel funcionavam. Havia notícias de represálias contra os árabes na Europa e na América - li até no International Herald Tribune que um estudante egípcio tinha sido atacado em Nápoles. Teve de levar trinta e oito pontos na cara depois de o terem cortado com uma lâmina de barbear. Um dos partidos italianos de direita, a Liga do Norte, fazia ameaças abertamente racistas contra os imigrantes. Pensei que Mahmoud devia ter achado melhor desaparecer com a família por uns tempos.

Helena e Samuel tinham telefonado logo a seguir aos atentados, e foram os dois muito simpáticos comigo. Helena acabou a nossa conversa dizendo-me que a situação política em Israel e na Palestina iria piorar muito agora, que podia até haver uma guerra total com a Síria e o Iraque. Tinha voltado para Paris. Pedi-lhe que não publicasse mais cartas e que retirasse o endereço dela da lista telefónica; começavam a surgir informações sobre redes terroristas da al-Qaeda na Europa, particularmente em França, e eu estava convencido de que um qualquer fanático judeu ou muçulmano podia dar o passo lógico seguinte e rasgar a cara dela com uma lâmina. Ela concordou em parar com as cartas.

- Pelo menos por agora - acrescentou sombria, como se estivesse a preparar-se para um ataque decisivo.

 

No dia 3 de Outubro, quando percorria o International Herald Tribune à procura de artigos sobre suicídio para a minha colecção, dei com um texto curioso no topo da página, intitulado «Investigado Sistema Secreto de Movimentação de Dinheiro para Financiamento de Bin Laden».

Escrito por Douglas Frantz, o artigo analisava como é que Bin Laden e outros terroristas movimentavam fundos em todo o mundo, usando um sistema de transferência de dinheiro com séculos de existência, chamado baivala, a palavra hindi para «confiança». Apesar de ilegal na maior parte dos países, milhares de milhões de dólares passavam pelo sistema anualmente.

Para mandar dinheiro para o estrangeiro - para comprar armas ou livros de estudo, pouco importava -, tudo o que é preciso é ir ter com um agente hawala próximo e entregar-lhe a soma necessária, juntamente com o nome da cidade onde a pessoa que deve receber os fundos os irá levantar. Não é preciso nenhuma identificação, nem de quem entrega nem de quem recebe o dinheiro. O agente fornece então uma palavra de código, que se pode enviar por fax ou por telefone ao contacto na outra ponta do sistema. Com esse código, ele ou ela pode levantar a mesma quantia num associado do agente que fez o envio.

Acabei a sublinhar a tinta vermelha uma frase: «Com apenas um telefone e um fax, o Sr. Kahn transfere dinheiro de quase qualquer sítio no mundo - sem perguntas, sem nomes, sem pistas que a lei possa seguir.»

Tendo em conta aquilo que Mahmoud me explicara dos seus negócios, comecei a suspeitar de que esta poderia ser a verdadeira natureza da sua actividade. Talvez o tivesse sido desde sempre, ou talvez tenha alguma vez trabalhado para um banco comercial e se tenha tornado num agente hawala só depois de se reformar. Calculei que o «presente de aniversário» mencionado no primeiro fax que eu recebera era uma palavra de código para fundos a transferir.

Embora me perturbasse pensar que ele devia estar envolvido em transferências ilegais de dinheiro - e que podia até ter tido algum contacto fugaz com pessoas que financiavam o terrorismo -, o artigo explicava claramente que havia milhares de agentes hawala que nunca tinham movimentado quaisquer quantias por razões menos honestas. O trabalho de Mahmoud devia ser tão limpo como ele dissera: arranjar bolsas que permitissem a jovens palestinianos estudar no estrangeiro. Justificadamente, considerava isso um trabalho valioso. Apesar de tudo, começava a acreditar que ele era de facto um homem mais complexo e contraditório do que dera a entender. Será que acreditava ainda que os judeus mantinham a Palestina num Inverno eterno?

 

Enviei a Helena uma cópia do artigo, e por seu turno ela passou-o ao amigo da Sorbonne que antes tinha traduzido o fax de Mahmoud. Era um palestiniano que se criara no Cairo e em Beirute, bem informado sobre a política actual naquela parte do mundo. Chamava-se Michel Khalidi.

- Não é um nome pouco habitual para um palestiniano? - perguntei-lhe, quando falámos ao telefone pela primeira vez. Falávamos em francês, pois como ele disse o seu inglês era deplorável.

- E, mas o meu pai trabalhou muito tempo em Marselha e o jogador favorito dele era o Michel Platini.

Michel explicou-me então que Mahmoud não estava necessariamente envolvido em hawala, explicando que a OLP recebia «impostos» da diáspora palestiniana através de representantes no estrangeiro.

Mahmoud podia ser um desses «cobradores de impostos», lembrou ele. Ou então podia ser simultaneamente agente de hawala e cobrador de impostos. A fronteira entre as duas profissões nem sempre é muito clara.

- Então não acha que ele estivesse envolvido em actividades terroristas, pois não? - perguntei.

- Quem o pode dizer? Mais uma vez, estas coisas não têm fronteiras definidas.

- Que quer dizer ao certo com isso?

- Bem, digamos que Mahmoud recolhe dinheiro para uma escola islâmica em Paris. Ou que ajuda a garantir fundos para esse fim. Com esse dinheiro, os directores trazem professores da Argélia e do Líbano... de química, de matemática, de geografia e de tudo o mais. Suponhamos que um deles vem a revelar-se um fanático e começa a conspirar com alguns amigos para largarem gás tóxico numa estação do metro em Paris. Você diria que Mahmoud está envolvido em actividades terroristas? E se ele reunisse fundos para um negócio, um importador de azeite ou fabricante de roupa, e se viesse a descobrir que os donos usavam os lucros para recrutar homens para irem para campos de treino de terroristas no Sudão? Qual era a responsabilidade de Mahmoud em tudo isso?

- Então ele poderia não saber necessariamente de onde vinha o dinheiro nem para onde ia?

- É precisamente nisso que consiste o sistema da hawala. Os que estão no meio nunca sabem nada.

 

Quando falei com Helena sobre o que Michel me tinha dito, ela não me pareceu interessada. Estava muito deprimida e falava num sussurro enrouquecido.

- Voltaste a beber? - perguntei, com o pânico na voz.

- Não, não é isso. Só que estou sempre cansada. Não tenho sequer energia para escrever a minha tese. É desanimador... estou desanimada comigo própria.

- Talvez estejas com saudades do calor e da luz de Israel.

- Não é isso. Mas se te digo, tens de prometer que não te pões a tentar consolar-me.

O coração caiu-me aos pés.

- É o teu pai? Não me digas que foi atacado outra vez, é isso?

- Não, mas lembras-te de eu ter cortado o cabelo? Não foi para ficar mais bonita. Foi porque... Disseram-me que me ia cair todo.

A minha mãe tinha sido submetida a radioterapia por causa de um cancro da mama uns anos antes, por isso compreendi perfeitamente aquilo que Helena estava a querer dizer-me. O médico tinha-lhe detectado um pequeno alto no seio esquerdo. Embora ele tivesse recomendado uma cirurgia imediata, ela precipitou-se antes a ir ter com o pai.

- Precisava de falar com ele e talvez dizer-lhe adeus.

Quando estava na companhia do pai, compreendeu que queria fazer a operação na sua pátria.

- É esquisito, já sei, mas sentia que precisava que fosse um médico israelita a fazer a operação - disse ela num tom confessional. - Acho que ainda penso que pertencemos todos à mesma equipa.

- E a operação correu bem? - perguntei.

- Correu.

- E agora andas a levar radiações?

- Ando, aqui em Paris. Os médicos dizem que não vou precisar de quimioterapia, o que é muito bom. Por isso, nem sequer precisava de ter cortado o cabelo, afinal.

- Mas olha que ficas com muito bom aspecto. Por favor, não o deixes ficar tão comprido outra vez.

- Pareces a minha mãe.

- Ainda tens de levar radiações por muito tempo?

- Cerca de mais duas semanas. Sabes uma coisa? Estou com mais medo de morrer do que pensava ser possível. Era capaz de passar o tempo a chorar. Apetecia-me partir as janelas todas.

- Podes gritar comigo se quiseres.

Riu-se.

- Tu e o meu pai são as únicas pessoas que eu ainda acho divertidas. Isso deve querer dizer alguma coisa.

- Quer dizer que precisas de te relacionar com mais pessoas. Tens conseguido sair durante o dia?

- Sim. É estranhíssimo, mas agora que as predições da tia Zeinab finalmente se tornaram verdadeiras para mim, sinto-me mais livre do que me sentia desde os meus tempos de menina... Livre e velha e frágil. Não é uma combinação assim tão má, não achas?

 

Tinha organizado uma conferência de escritores no Porto que estava marcada para começar em 20 de Outubro. Durante três semanas seguidas, iríamos ter a visita de quatro romancistas em cada fim-de-semana e cada um deles iria falar nas influências que o seu trabalho recebera. Infelizmente, as minhas aulas deviam começar na mesma altura, e por isso tinha uma quantidade de coisas a pôr em ordem. Uma delas era mandar revelar as fotografias que tinha tirado em Bolonha. Alice estava particularmente encantadora - respirando uma alegria de menina. Fiquei tão contente com o resultado que mandei fazer cópias para Mahmoud e para Samuel. Imaginei que Mahmoud devia continuar a esconder-se, mas esperava que as fotografias lhe haveriam de chegar às mãos mais cedo ou mais tarde.

Esperava também que, ao enviá-las, ele visse nisso um gesto amigável. E que me perdoaria, caso eu tivesse dito alguma coisa que o tivesse ofendido.

Samuel telefonou assim que recebeu as fotografias.

- Aquele homem não é o Mahmoud - disse ele.

- Como diz?

- O homem que está nas fotografias... não é o Mahmoud.

- Que quer dizer com isso? Passei um fim-de-semana com ele a falar de Sana.

- Não quero saber, não é ele.

- Mas o médico dela tinha-o na lista dos parentes mais próximos. E ele respondeu ao fax que lhe mandei.

- Garanto-lhe, é outra pessoa. Não se parece em nada com o pai da Sana.

Lembrei-me dos protestos de Mahmoud quando tirei as fotografias, chegando a tapar-se com o casaco.

- Samuel, isto é uma loucura. Tratei-o por Mahmoud todo o fim-de-semana e ele nunca me corrigiu. A mulher dele e a filha... todos eles conheciam a Sana. Conheciam-na realmente bem.

- Talvez se chame também Mahmoud. É um nome muito comum. Seja como for, não é o Mahmoud Yasawi. Se quiser, posso ir buscar as antigas caixas da Rosa e descobrir uma fotografia. Mando-lhe uma hoje mesmo.

- Não é preciso, eu acredito em si. Mas então quem é ele?

Helena acabara o tratamento de radiações e estava ansiosa por pegar na tese no ponto em que a deixara. Esperava poder entregá-la ao orientador até ao fim do ano. Os médicos concordaram que podia voltar ao trabalho a um ritmo moderado.

Escrevi-lhe uma carta, explicando o que Mahmoud me dissera sobre Sana, e fui aos correios para lha mandar via expresso, juntamente com duas fotografias. Pus um post-it em cima da primeira, com a pergunta: «Conheces este homem? Colombowitz não tem a certeza da identidade dele.»

Helena telefonou no dia seguinte:

- Devia reconhecê-lo? - perguntou logo a começar.

- Fez-se passar pelo Mahmoud.

- Ahah! Essa é muito boa.

- Nem parecenças?

- Não, a não ser que o Mahmoud tenha comprado uma cara nova e tomado hormonas de crescimento.

- Não reconheces a mulher nem a filha, suponho.

- Não.

Expliquei-lhe então como tinha sido levado. A minha voz soava apagada de espantada incredulidade.

- Não percebo porque fizeram isto - disse eu.

- Por gozo - sugeriu. Tinham-se-lhe acabado os cigarros e foi buscar um novo maço ao quarto.

Quando voltou ao telefone, perguntei:

- Que queres dizer com isso... gozo?

- Há pessoas a quem dá gozo enganar os outros. Sinto-me muito contente comigo quando digo a alguém que a minha mãe passou a Segunda Guerra Mundial a bronzear-se nas praias de Esmirna. Dá-me um maravilhoso sentido de poder.

- Mas eles pareciam tão... tão...

- Autênticos?

- Sim.

- E afectuosos?

- Também.

- As pessoas são boas a representar... especialmente os israelitas e os palestinianos. Acho que te disse isso uma vez, não disse? Hollywood devia recrutar-nos.

- Okay, mas porquê?

- Ouve, tu mandaste um fax a Mahmoud a dizer que querias saber mais sobre a Sana, e o homem que recebeu o fax percebeu que te podia contar o que quisesse sobre ela. Provavelmente, o Mahmoud morreu. E ele não queria que soubesses a sua identidade. Talvez esteja ilegal na Itália. Talvez tenha grandes problemas com os impostos, como te contou. Talvez seja um agente bawala como tu pensas. Ou talvez trabalhe simplesmente para a Fatah ou para o teu velho inimigo Abu Nidal. Seja ele quem for, sentiu simpatia por ti e quis ajudar. Gostava da Sana e queria ser simpático com os amigos dela. Ou talvez precisasse desesperadamente de saber por ti como é que ela passou os últimos dias na Austrália. E por isso decidiu dar-te o que tu precisavas, mas sem dizer quem era. Provavelmente pensou que estava a ser muito generoso. E talvez estivesse... deu-te as informações que tu querias, ao fim e ao cabo.

- Mas talvez o que ele me contou seja tudo mentira.

- Não me parece. É sempre muito mais simples dizer a verdade. É a maneira de não ser apanhado em nenhuma teia de aranha mais tarde. E o que ele te disse sobre a Sana parece-me bastante razoável.

- Mas porque não me disse ele que não era pai dela? Podia ter-me dito que era um amigo e que eu não devia falar dele a ninguém.

- Já uma vez falámos sobre isso, tu e eu. Porque te achas com o direito de saber a história pessoal de alguém? Só porque perguntas? Só porque és americano e a América governa o mundo?

- Helena - rosnei eu -, se ele não queria dizer-me a verdade, então não devia sequer ter falado comigo... ou ter-me convidado para sua casa. É o mínimo que se pode esperar de alguém.

- Ouve, disseste que ele sabia tudo sobre a Sana. Talvez ele se visse como uma espécie de pai... ou como um padrasto. O verdadeiro Mahmoud não era grande coisa, de qualquer modo.

- Mas e a mulher dele... ela entrava no jogo! E a filha também. Era como se eles me desprezassem durante todo o tempo que passei com eles.

- Sabiam que eram só dois dias de fingimento. Não é muito. Há pessoas que passam a vida toda assim... talvez a própria Sana.

O à-vontade com que ela falava irritava-me.

- Achas tudo isto muito engraçado, não achas?

- Engraçado? Nada. Acho é que é... é perfeito.

- Perfeito? Porquê?

- Porque assim é que está bem para a morte da Sana... tudo de pernas para o ar e cheio de nós por desatar.

- Mas quando voltar a falar com eles, como é que vão justificar isto?

- Ora! Já ninguém dá justificações para aquilo que faz. Limitam-se a inventar razões quando precisam. Tu vives mesmo no escuro, não vives?

- Obrigado pela ajuda.

- Ouve, neste momento não precisas de ajuda nenhuma, precisas de verdade. Por isso não te irrites comigo. Concordo contigo... o que eles fizeram não é bonito. Mas provavelmente só o fizeram porque se viram obrigados a isso... de maneira a que este outro Mahmoud pudesse proteger a sua identidade. Seja como for, eu simplesmente não acredito que não seja habitual. Se acenderes as luzes nessa cave onde vives em Portugal, vais ver que vivemos todos num baile de máscaras. Ninguém sabe quem são os outros.

A raiva fez-me ficar calado. Helena suspirou.

- É uma metáfora assim tão pobre? - estava a tentar ser engraçada. - Ouve - prosseguiu ela -, talvez haja uma explicação inocente. Porque não lhes telefonas a perguntar?

- Já liguei dúzias de vezes! Mas o raio dos telefones não funcionam. Provavelmente fugiu com a família para longe da violência contra os Árabes. Ou talvez a polícia ande atrás dele por causa das suas actividades como agente de hawala.

- Tens de continuar a tentar.

- O que é que lhe digo quando falar com ele?

- Que tal dizeres «Como raio se chama você realmente e por que é que o senhor e a sua família me mentiram?».

 

Depois de discutir tudo com Alex, chegámos à conclusão de que o verdadeiro pai de Sana deve ter sido um colega de emprego do homem que eu conheci, partilhando o mesmo escritório e número de fax. Deviam conhecer-se há muitos anos. De outro modo, não poderia saber tantas coisas sobre Sana. Partindo do princípio de que Mahmoud tinha morrido, este tal colega - o homem que eu conhecera - provavelmente tinha continuado em contacto com ela durante bastante tempo. Talvez a tivesse mesmo ajudado a pagar os estudos. Com o correr dos anos, ela deve ter-se ligado muito a ele e à família. Ela gostava de inventar o passado e provavelmente disse às pessoas - incluindo o médico dela - que ele era o pai.

O meu raciocínio soava lógico, mas continuava a não acreditar nele. Sofri de uma insónia persistente durante várias noites seguidas. Sentia muito calor e logo a seguir muito frio. O meu termómetro interior quebrara-se novamente - como tinha sucedido em Perth. Às vezes ficava à janela a olhar para o nosso jardim, banhado pelo luar. Estava tudo demasiado tranquilo. Nos meus pensamentos, revia todas as conversas que tivera com Mahmoud em Bolonha, à procura de um qualquer deslize dele. Passei as gravações várias vezes. Mas o meu anfitrião mostrava-se praticamente sem falhas. A única coisa que me intrigava era ele não saber nada da Abelha-Mestra.

A única pista além dessa era que não conseguia lembrar-me de Carlotta usar o nome do marido diante de mim - a não ser quando disse que Mahmoud e Sana tinham vivido numa casa que me mostrou. Mas podia ser que estivesse a referir-se - na sua cabeça - ao verdadeiro Mahmoud Yasawi. Muito provavelmente, queria desse modo poder dizer-me mais tarde que nunca me tinha mentido.

A verdade, de facto, é que ele nunca me disse realmente que era o Mahmoud que tinha sido o pai de Sana. Deixou que eu partisse desse princípio. Até me tinha contado que o anel de turquesa que usava lhe fora legado por Zeinab. Devia ter inventado aquilo. Mas tinha-me convencido de que era verdade ao fazer questão em corrigir o que me dissera antes como sendo mentira. Foi um truque muito inteligente.

Nos dias que se seguiram, tive várias discussões com Alex. Berrei-lhe umas quantas coisas desagradáveis, e ele fez outro tanto. Na hora da reconciliação, tornou-se claro que eu andava nervoso por ver que a minha intuição acerca dos outros não era tão forte como eu pensava. Não tinha nenhuma antena, nenhum radar, nenhuma visão profunda. Não tinha nenhumas defesas.

Mas nenhum de nós tem defesas sólidas, como se sabe. Durante as semanas que se seguiram, li dúzias de artigos nos jornais on line americanos e ingleses a explicar que os terroristas implicados no ataque ao World Trade Center eram vistos como pessoas simpáticas, tranquilas, que gostavam da sua privacidade - imigrantes que se tinham adaptado bem ao American way of life.

No St. Petersburg Times, por exemplo, descobri que os vizinhos de Abdul Al-Omari, que ajudara a dominar a tripulação do Voo 11 da American Airlines e desviá-lo para a Torre Norte, o consideravam um «homem bem-parecido com uma família maravilhosa e filhos bem-educados e simpáticos». O senhorio da casa onde moravam, em 57th Terrace em Vero Beach, declarou: «Custa a acreditar que aquele pai soubesse o que estava para acontecer, e que o soubesse há muito tempo.» E no entanto, todas as manhãs, enquanto os vizinhos viam Abdul sair de casa para ir para a escola de treino para piloto comercial, o que ele fazia era precisamente pensar e planear o crime. A mulher, Halimah, que conduzia as crianças à escola pouco depois de o marido sair de carro para o trabalho, também deve ter pensado nisso um bom bocado.

Se Helena tinha razão, quer dizer que eles deviam andar excitadíssimos por viverem uma mentira - por serem agentes secretos de um tipo especial. Ou talvez não - talvez Halimah soubesse que o seu jovem marido cumpria uma missão suicida e odiasse a ideia de ter de educar sozinha os quatro filhos.

Abdul Al-Omari, a mulher e os filhos desapareceram uma semana antes do ataque de 11 de Setembro - tal como Mahmoud, Carlotta e Alice. Começava a acreditar que devia haver uma ligação entre as duas coisas.

A primeira semana da conferência de escritores correu muito bem. Para a sessão da noite de abertura, com António Lobo Antunes e Luis Sepúlveda, tínhamos mais de seiscentas pessoas a assistir. Espalharam-se pelas coxias e pela galeria superior do auditório.

No dia seguinte, telefonei de novo para casa de Mahmoud e da família várias vezes. Nada. Na segunda-feira, apanhei o comboio e troquei o Porto pela nossa casa da aldeia.

Alex mostrava-se protector e sugeriu que era melhor para mim deixar de tentar falar com Mahmoud ou a família. Eu estava com medo dele, e dividido quanto a querer saber mais, mas decidi tentar contactar Carlotta através do emprego dela. Agradava-me a ideia de falar primeiro com ela - achava que me seria mais fácil lidar com ela. Pensei que podíamos até continuar amigos, se ela pudesse simplesmente dar-me uma justificação. Consegui o telefone da Orchestra dei Teatro Comunale di Bologna através de uma companhia telefónica italiana.

- Preciso de falar com uma das vossas instrumentistas - disse eu à senhora que atendeu a minha chamada. Esforcei-me por falar italiano.

- Quem é o senhor?

- Um escritor americano.

- Com quem deseja falar?

- Carlotta. É violinista.

- Carlotta Ciolli? - perguntou.

- Sim, ela mesmo.

- É inglês? - perguntou.

- Não, americano.

- A Carlotta já não toca na orquestra - disse ela em inglês.

- Como? Mas está doente ou assim?

- Não, foi... foi-se embora.

- Quando... quando é que ela se foi embora?

- Havia dois… dois meses.

- Quando exactamente? Preciso de saber exactamente.

- É amigo dela?

- Não. Sou primo... um primo americano.

- Saiu no princípio de Setembro.

- Ninguém responde de casa dela. Há um mês que tento ligar todos os dias. Dá-me só um sinal esquisito, como um rápido sinal de ocupado.

- É que ela... ela... - a senhora falava italiano com alguém, depois voltou à minha chamada. - Ela mudou de casa.

- Para onde?

- Não sei.

- Pode sabê-lo?

- Um momento.

Esperei uns minutos. Veio um homem ao telefone.

- Deseja falar com Carlotta Ciolli?

- Sim. Sou primo dela. Estou de visita a Itália. Queria vê-la.

- Ela mudou-se.

- Pois, já me tinham dito. Para onde se mudou?

- Não sabemos.

- Deve ter dito alguma coisa.

- Não, não nos deixou nenhum telefone nem morada. Diz-nos só quatro dias antes de sair. Diz que não pode dizer mais porque o marido é árabe. Está preocupada, diz ela. Que depois nos diz onde está daqui a umas semanas. Mas ainda não nos contactou. Oiça, se a encontrar, diga-nos, okay?

- Claro. E os filhos foram também com ela?

- Sim, temos uma pequena festa aqui para eles, para a Alice e o Tommaso.

- O marido também esteve... na festa? - Não. Ele não esteve em Bolonha quando fazemos a festa.

- Como se chama o marido de Carlotta? Há tanto tempo que não os vejo e estou muito preocupado com ela.

- Samir.

- Pois. É isso mesmo. E o último nome?

- O quê?

- O apelido.

- Não sei. A Carlotta não usa o nome dele.

- Importa-se de ver nos ficheiros?

Enquanto esperava, veio-me ao espírito a mancha escura no soalho de Mahmoud, no sítio onde estivera o piano. Tinham -no despachado, o que significa que sabiam que iam partir pelo menos algumas semanas antes de Carlotta se ter despedido do emprego. E Mahmoud tinha-me também aconselhado a esquecer Sana. O que ele realmente queria dizer é que não tencionava voltar a falar comigo sobre ela.

Peguei na fotografia de Alice sobre a minha secretária e compreendi agora por que é que ela não conseguira resistir a acenar-me um adeus.

Talvez Tommaso andasse aos pontapés pela casa fora com a raiva que sentia por lhe terem acabado de dizer que se iam mudar - tal como Sana fora avisada de que iam para Itália quando era rapariga. Talvez Carlotta se tivesse mostrado por vezes tão emocionada não por causa da morte de Sana, mas por saber que em breve deixaria a sua pátria para sempre. O homem da orquestra voltou ao telefone:

- Samir Nizar al-Hassan - disse ele.

- Obrigado. Sabe para onde Carlotta despachou o piano dela? - perguntei.

- Não.

- Imagino que não deve saber o nome da empresa que pode ter tratado do despacho.

- Não, lamento muito. Não sabemos nada.

- Oiça, se souberem para onde o piano foi despachado, digam-me imediatamente, porque foi para aí que foram Carlotta e Samir.

 

Pus-me logo à procura na Internet de informações sobre Samir Nizar al-Hassan, mas não encontrei nada. Assim como não descobri nenhuma referência a Mahmoud Yasawi.

Em 29 de Outubro, descobri a minha primeira informação indirecta sobre Samir num artigo do International Herald Tribune, intitulado «Itália aperta rede em torno da al-Qaeda». Dizia-se aí que tinham sido destacados mais de seiscentos agentes especiais da polícia para a tarefa de perseguir a fonte de financiamento local de Osama bin Laden. Citava-se o ministro italiano das Finanças, Giulio Tremonti, como tendo declarado: «Temos perfeita consciência de que o dinheiro do terrorismo... passa por Itália.» O artigo prosseguia referindo que o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos apontara o Instituto Cultural Islâmico de Milão como o principal ponto de apoio da al-Qaeda na Europa.

A partir daí, encontrei vários artigos sobre o instituto em dúzias de websites. Começara por aparecer nos títulos dos jornais em 1995, quando mais de dez dos seus membros foram acusados pela justiça italiana de fornecimento de armas a terroristas egípcios e à guerrilha bósnia. O egípcio que desempenhava as funções de imã no Instituto fugiu à prisão e foi mais tarde morto a tiro na Bósnia por um assaltante desconhecido.

Desde então, a brigada antiterrorista italiana passou a observar de perto o Instituto, chegando a colocar microfones ocultos nos apartamentos dos seus membros. Não tardaram a descobrir que servira de base a militantes vindos de grande número de países do Médio Oriente, um ponto de apoio para a transferência de dinheiro e de armas, e base de recrutamento para treino de terroristas no Afeganistão. A controlar todas estas actividades - e ao que parece directamente nomeado por Bin Laden como chefe de operações para a Europa - estava um tunisino de trinta e três anos, chamado Essid Sami Ben Khemais.

Ben Khemais mantinha laços estreitos com outras células da al-Qaeda operando na Alemanha, em Inglaterra e em Espanha. As conversas telefónicas mostravam, por exemplo, que estava a par das actividades de Abu Doha, o dirigente argelino de uma unidade terrorista de Londres que também se dedicava a recrutamentos para Bin Laden.

A polícia italiana prendeu Ben Khemais e mais cinco elementos em Janeiro de 2001 por tráfico de armas e explosivos, além de uso de passaportes e outros documentos falsos. Numa busca ao seu apartamento, a polícia descobriu cerca de quarenta cassetes vídeo com cenas de treino no Afeganistão e de combates militares na Chechénia.

Os investigadores descobriram pouco depois que ele planeava lançar gás cianeto no sistema de ventilação da embaixada americana em Roma.

 

«Do que eu preciso não é de um exército», disse Ben Khemais numa chamada que fora detectada, na Primavera de 2001, mas de duas pessoas com miolos, com treino e com nada a ganhar ou a perder. Espalham o gás e dizem adeus. Apenas preciso de um bidão de 10 litros e uns quantos documentos. Deus está do nosso lado.»

 

Depois do último fim-de-semana do meu encontro de escritores, apanhei um avião para Londres onde ia dar uma conferência numa sinagoga em Hampstead sobre «Ser Judeu Secreto no Tempo d'O Último Cabalista de Lisboa».

Fiz uma extravagância e hospedei-me no Hotel R..., onde Samir dissera ter ficado com Sana. Era tudo muito chique e rebuscado, com jarras italianas gigantescas por todo o lado e um tapete turco antigo à entrada. O porteiro usava um uniforme vermelho com alamares no peito. Parecia saído da capa do Sgt Peppers trinta e cinco anos depois. Depois de um duche, perguntei na recepção se podia falar com o gerente.

Veio ter comigo à sala de espera daí a poucos minutos. Era um gentleman já com uns anos, alto, de cabeça rapada, exibindo um olhar altaneiro enquanto caminhava na minha direcção - como se eu pudesse ser uma miragem um pouco decepcionante. Usava um fato às risquinhas, de casaco de trespasse, e não tirou a mão direita do bolso até ao momento de apertarmos as mãos. Uns seis meses depois disso, iria ver nos jornais fotografias do político holandês Pim Fortuyn, quando foi assassinado. O gerente do hotel podia ter sido o irmão mais velho dele. Perguntei-lhe se o podia convidar para uma bebida no bar porque queria contar-lhe uma história estranha acerca de dois hóspedes do hotel.

- Tenho uma reunião daqui a pouco. Quanto tempo pensa que vai demorar?

- Quinze minutos no máximo... para a versão resumida. Ano e meio para a versão completa.

Não sorriu. Olhou para o relógio, que era de ouro e enorme. Eu vestia uma linda camisola azul e as minhas melhores calças de fazenda, mas, mesmo assim, podia imaginá-lo a pensar se devia ou não deixar que o vissem com um hóspede tão pouco distinto como eu. Para o convencer de que eu podia merecer alguma atenção - pelo menos como uma excentricidade -, tirei um exemplar d'O Último Cabalista de Lisboa de um envelope que tinha comigo.

- Queria oferecer-lhe um dos meus romances. Tem alguma coisa a ver com o que lhe queria contar.

Inclinou a cabeça para trás, observando a capa do livro com os olhos franzidos mais uma vez. Se calhar estava a pensar que eu ia insistir com ele para que o lesse.

- Obrigado - disse, sem grande convicção. Voltando-o nas mãos, passou os olhos pelo texto da contracapa. Murmurou: - Muito interessante. Quantos romances escreveu?

- Três - esperava que fosse o suficiente para me garantir um público.

- Só lhe posso conceder dez minutos - disse. Três minutos e vinte segundos por romance. Sentámo-nos a uma mesa nuns bancos azuis de espaldar

baixo - num design demasiado sofisticado para serem confortáveis. Manteve-se de pernas cruzadas e bebericando a sua água tónica com um ar distante.

Com o nervoso, contei precipitadamente como Sana tinha gostado do meu livro e como se suicidara. Expliquei um pouco do passado dela, também, e depois o meu encontro com Samir e a família dele em Bolonha e o recente desaparecimento deles. Acabei por lhe dizer que queria que verificasse se Samir se tinha registado no hotel com o seu verdadeiro nome ou com o de Mahmoud.

- Então quer ver os nossos registos - perguntou o gerente. A expressão tornara-se severa, como o director de uma escola; acabara de se aperceber que toda a sua boa vontade ao aceitar encontrar-se comigo fora inútil. Estava a pedir-lhe o impossível.

- Talvez esteja tudo em computador agora - repliquei, esperançado. -Basta escrever o nome dele e ver o que dá.

- Receio bem que não nos seja possível dar informações sobre os nossos hóspedes.

- Mas o que eu quero não é propriamente uma informação sobre ele. Só quero saber se ele esteve aqui e que nome usou. E se Sana esteve aqui.

- Se eles se registaram aqui? - perguntou, como se eu estivesse a dizer uma coisa diferente.

- Sim, só isso... e as datas. Por favor, ficava-lhe muito grato. Levantou-se e enfiou a mão no bolso do casaco. Com uma pequena vénia, disse:

- Não, lamento muito, Mister Zimler, mas a política do hotel não o permite.

 

Começava a tornar-se claro para mim que teria de fazer apelo a poderes mais altos para conseguir a informação de que precisava, e resolvi telefonar ao meu velho amigo George Miklós, um advogado reformado remotamente aparentado - através da sua avó materna - com a família real britânica. George e eu tínhamo-nos conhecido em Agosto de 1977, dezoito meses antes de eu ter conhecido Alex, e desde então tínhamo-nos mantido em contacto. Quando lhe falei nas dificuldades que enfrentara no hotel, disse que era um prazer vir em meu socorro.

De facto, estava mais do que feliz com esta oportunidade de provar os seus poderes de persuasão. Como de qualquer modo estava a pensar ir à minha conferência em Hampstead, decidiu mandar o seu motorista fazer um desvio e passar pelo hotel ao fim da tarde.

- Tomamos uma bebida, damos a volta ao secretismo desse gerente e depois seguimos para a sinagoga. Mandei muitos amigos importantes para o R... e estou mais do que certo de que hei-de conseguir.

Esperei por ele no átrio, onde me deu um grande abraço e um beijo logo que chegou - tinha sido preso por sodomia em Brighton em 1958 e a notoriedade que daí resultou curou-o de toda a rígida descrição para que fora educado.

- Ao contrário de Oscar Wilde, a prisão foi a melhor coisa que me podia ter acontecido - dissera-me certa vez. - Foi a oportunidade para abandonar as regras da vida inglesa.

Tinha envelhecido desde a última vez em que o vira, e o seu andar era uma hesitante acrobacia em cima de uma corda, mas continuava a ter o mesmo sorriso luminoso e uma farta cabeleira prateada.

Usava um colete de cores vivas e um chapéu de feltro branco de aba larga. Dava-lhe o ar de um inglês das colónias. Trazia a bengala com castão em cabeça de pato que sempre o acompanhava - herdada do pai, um diplomata húngaro que desertara em 1956, quando os Russos entraram com os tanques em Budapeste para esmagar o movimento reformista nascente. Havia alguma coisa de gracioso, mesmo agora, no modo como se movia e na sua pose.

«A Inglaterra é o sítio onde a excentricidade é mais atraente», estava eu a pensar.

Dirigiu-se ao balcão da recepção e disse à jovem espevitada de cabelo preto e batom reluzente que precisava ver imediatamente o gerente. O seu tom era simpático, mas ao mesmo tempo insinuava «eu pertenço à aristocracia e você não, por isso receio bem que tenha de fazer mesmo o que lhe digo».

Voltou-se e começou a falar comigo de imediato mal acabou de falar com ela, de modo que ela na verdade não podia levantar nenhuma objecção sem parecer mal-educada.

- Agora, fazes favor, não digas uma única palavra quando o gerente aparecer - disse-me ele sotto voce -, mesmo que aches que devias dizer. No fundo, sabes uma coisa... ? - fez-me uma festa na cara. - Porque não sais já daqui e vais falar com o barman sobre literatura russa, que eu já lá vou ter contigo? Há assuntos delicados que só podem ser tratados entre ingleses, meu querido.

Dez minutos depois, a bengala dele abria caminho para a minha mesa. Levantei-me para o ajudar a sentar-se a meu lado.

- E então? - perguntei.

- Já te trazem a tua lista. E então, o que vamos beber? Diz lá, achas que preciso de alguma coisa forte para sobreviver à tua palestra?

Quinze minutos depois, a rapariga que eu vira na recepção trouxe-me numa bandeja uma lista manuscrita. Sana Yasawi e Samir Nizar al-Hassan tinham ficado três dias em Junho de 1994, sete dias em Julho de 1995, e quatro dias em Maio de 1996. Esta última estada tinha sido imediatamente antes da sua visita a Helena em Paris. Calculei que a base de dados não incluía registos anteriores. Quanto a datas posteriores, eu começava a compreender a maneira de pensar de Sana e decidi pedir mais um favor.

Vinte minutos depois tinha nas mãos mais uma nota manuscrita. Helena e Samuel Verga tinham ficado no hotel três vezes: quatro dias em Junho de 1997, cerca de duas semanas em Agosto de 1998, e uma semana em Julho de 1999.

 

Nessa noite acordei numa espécie de frenesim de loucura lúcida, convencido de que Sana me escrevera um bilhete de adeus e que o tinha posto no saco com os sabonetes que me oferecera. O bilhete era capaz de explicar porque é que ela estava tão confusa e desesperada - talvez houvesse até alguma advertência contra Samir.

Ela queria que eu a lesse logo a seguir ao seu suicídio, mas eu nunca fora capaz de tirar do saco a sua prenda.

Telefonei a Alex às três da manhã. Sonolento e a resmungar, levantou-se e foi buscar os sabonetes. Mas não havia mais nada na bolsa da loja da galeria de arte de Perth.

Pedi-lhe que cortasse os sabonetes ao meio.

- Deves estar a brincar comigo - disse ele. Estava a vê-lo em pé junto ao telefone na sua enorme camisa de dormir cor de laranja.

- Faz-me esse favor.

Encaminhou-se vacilante para a cozinha para ir buscar a faca.

- Nada - disse ele quando voltou ao telefone.

 

Ao chegar ao Porto, telefonei a Helena. Negou ter estado alguma vez no Hotel R...

- Julgas que eu te minto como aquele homem de Bolonha, não é?! Mas há anos que não vou a Londres.

- Não estás a topar, pois não?

- Topar o quê?

- A Sana roubou-te o passaporte.

- O quê?

- Queria registar-se no hotel com um nome diferente. Roubou o teu passaporte quando esteve aí contigo e depois deve ter dito ao Samir para lhe arranjar alguém que substituísse a tua fotografia pela dela. Quando eram crianças, ela estava sempre a fazer-se passar por ti, não é? Tudo perfeito. E Samir deve ter decidido registar-se como teu pai para as coisas encaixarem.

- Mas o passaporte do meu pai nunca foi roubado... pelo menos nunca falou nisso.

- O Samir deve ter mandado falsificar um passaporte. Se está metido na hawala, também deve ter bons contactos em meios escusos.

- Mas podia haver alguém no hotel que reparasse na mudança de nomes. Disseste que eles tinham lá estado antes.

- Ninguém se recorda dos nomes de hóspedes que só lá ficam uma vez por ano. Além do mais, o pessoal da recepção provavelmente não fica lá muito tempo. Talvez a Sana e o Samir até gostassem do risco.

- Não é possível. Como podia a Sana saber que me ia encontrar por acaso em Paris? É uma grande cidade. Não acredito.

- Helena, ela não te encontrou por acaso. Foi tudo planeado. Sabia onde tu vivias e deve ter-te seguido. É capaz até de ter posto alguém a vigiar-te, antes da visita dela... para conhecer as tuas rotinas. Talvez tenha sido nessa altura que começaste a pensar que alguém te seguia.

- Isso não me parece... não... - o protesto dilui-se em silêncio.

- Para ter a certeza de que tu a vias, começou o espectáculo na rua onde sabia que tu costumavas ir. Nessa altura, ainda saías durante o dia.

- Ela não me fazia uma coisa dessas.

- Fazia pois. Fez! Se não, como é que ela se podia ter registado com o teu nome?

- Então tudo o que fizemos juntas durante o tempo que cá esteve, os nossos passeios em Paris... era tudo mentira. Usou-me. Só... só me contactou para me usar.

- Helena é evidente que ela gostava de ti... e que estava contentíssima por te ver. Davas por isso se fosse tudo teatro. Conhecia-la bem de mais para te deixares levar o tempo todo. E é possível que eu esteja enganado quanto a ser tudo planeado... talvez a ideia de roubar o passaporte só lhe tenha vindo depois de ter ido ao teu apartamento. Não sei. Mas deve ter percebido a certa altura que podia assumir a tua identidade. A questão agora é a seguinte: porque precisava ela de o fazer? E porque precisava da tua identidade a partir de mil novecentos e noventa e seis?

 

Suleiman Tamari telefonou-me uns dias depois e pediu desculpa por demorar tanto tempo a recolher mais informações sobre os guardas que tinham torturado Jamal. Disse-me então que descobrira que os dois homens tinham abandonado o emprego vários anos antes. N., que ele pensava ser o que tinha segurado o braço de Jamal, vivia ainda em Israel, em Telavive. Tamari deu-me o número do telefone dele, mas pediu-me que não dissesse a N. como o tinha conseguido, pois precisava de proteger as suas fontes. Quanto a S., o que provavelmente tinha empunhado o machado, desaparecera sem deixar rasto.

- Tenho um amigo em Ashkelon que conseguiu até consultar os registos oficiais. Não há nada sobre ele em parte nenhuma. É como se tivesse desaparecido para outro universo.

 

Sentia-me extremamente nervoso ao ligar para N. Respondeu uma mulher, mas praticamente não falava nada de inglês. Um rapaz novo veio ao telefone e, quando percebeu o que eu queria, disse-me que ia chamar o pai. Passados uns instantes, ouvi uma animada conversa em hebraico.

- Quem é? - perguntou quando pegou no auscultador. Disse-lhe o meu nome e que era um jornalista americano.

- Procuro um homem chamado N.

- Sou eu - confirmou. - Que deseja?

- Trabalhou em tempos como guarda em Ashkelon?

- Não.

- De certeza?

- Sou programador de informática - disse ele. - É tudo o que faço.

Desligou.

Pensei que só um compatriota israelita poderia convencer N. a não desligar o telefone e a falar sobre Jamal. Helena pensou que era a pessoa errada para fazer isso, pois só iria mostrar-se ansiosa e nervosa. Propôs o pai, que se mostrou disposto a colaborar. Disse-lhe que queria saber três coisas: 1) Se N. alguma vez fora contactado por Sana; 2) Se alguma vez fora ameaçado por ela ou outra pessoa pelo que se passara com Jamal; e 3) onde é que S. vivia e qual era o telefone dele.

Disse a Samuel que Tamari provavelmente teria conseguido localizar S. se ele ainda vivesse em Israel. Deve ter emigrado. Pus a hipótese de ele estar a viver na América ou no Brasil.

- Porquê aí?

- Porque foi para aí que a Sana foi viver. Acho que ela deve ter tentado localizá-lo.

Samuel concordou em fazer o telefonema. Quando voltou a falar comigo, disse-me:

- Como calculava, o homem está assustadíssimo.

- Com quê?

- É evidente que não quer ser associado de forma nenhuma ao que aconteceu ao Jamal. Tem uma vida tranquila agora. Nem sequer se quer lembrar de Ashkelon.

- Mas trabalhou lá?

- Sim. E houve alguém que o contactou em tempos acerca do Jamal. Mas não foi a Sana. Era um homem. Ele não disse, mas eu acho que esse homem o ameaçou. E numa coisa acertaste: foi numa altura em que ele vivia no Brasil. Tinha ido para lá, mas não se adaptou e voltou para Israel. Agora só quer esquecer o passado.

- Em que cidade brasileira vivia ele?

- Não disse. E eu esqueci-me de perguntar. Desculpe.

- Não é importante. Ele disse onde vivia o S. à pessoa que o ameaçou?

- Disse que não sabia nada sobre o S., pelo menos a princípio.

- A princípio?

- Não queria reconhecer ter feito mal a Jamal ou confirmar o nome do outro guarda... o que me irritou. E então comecei a fazer jogo sujo.

- Que é que fez?

- É horrível, mas não me importo... devia isso ao Jamal e à Zeinab. Disse que tinha sido contactado por uma organização americana de direitos humanos que queria analisar o caso do Jamal. Disse que você era um jornalista nomeado por esse grupo: assim, o seu telefonema tinha uma explicação. E disse-lhe que esse grupo o deixaria em paz se ele me revelasse o nome do outro guarda e onde vivia. Era tudo o que eles queriam.

- E ele?

- Confirmou que S. era o guarda que tinha cortado a mão ao Jamal. Tinha ido viver para a Austrália uns anos depois disso. Mas não me disse onde. Foi tudo o que consegui que me dissesse.

Talvez ele tenha medo do S …, de que ele volte para lhe fazer mal se disser mais alguma coisa.

 

A seguir telefonei a Mário e perguntei-lhe se Sana passara alguns dias mais na Austrália durante alguma das viagens deles.

- A última vez que lá fomos - respondeu -, apanhou um avião para Perth antes de nós. Precisava de estar lá antes para preparar as coisas. E queria voltar a ver Sydney. Na nossa primeira viagem, tínhamos passado lá três dias e ela tinha gostado imenso da cidade.

- Então, quando a conheci em Perth, ela já tinha estado em Sydney?

- Já.

- Por quanto tempo?

- Talvez uma semana, acho eu. Não tenho a certeza... uns dias, pelo menos. Pagou o voo e o hotel do bolso dela... a trupe não tinha dinheiro extra.

- Como é que ela foi de Sydney para Perth?

- De avião. A Ana e eu fomos buscá-la ao aeroporto.

- E ela estava bem?

- Óptima. Disse que tinha gostado muito.

- Estava nervosa ou perturbada?

- Não. Parecia um pouco cansada, mas disse que tinha saído à noite para ir dançar e se tinha deitado tarde.

- E a vossa primeira viagem tinha sido dois anos antes?

- Isso. Tínhamos sido convidados para o Festival de Adelaide.

- Ela também foi primeiro a Sydney dessa vez?

- Não, depois... fomos todos. Demos os nossos espectáculos em Adelaide, depois fomos a Sydney para mais três actuações. Ela ficou mais alguns dias, e depois voltou sozinha para casa.

- Como é que foram convidados para o festival de Adelaide?

- A Sana disse que sempre tinha querido ir à Austrália. Por isso tentou interessar os diferentes festivais de lá, enviando-lhes o vídeo que tínhamos do nosso espectáculo À Espera de Godot. Sei que o enviou para Sydney e para Melbourne. Pode ser que também tenha tentado Wellington... na Nova Zelândia. Juntou também algumas das críticas que tinham saído no Brasil... uma muito positiva do Estado de São Paulo. Estavam escritos em português, por isso duvido de que alguém os tenha lido, mas ela achou que podiam causar boa impressão. As pessoas de Sydney e de Melbourne nunca nos responderam, pelo menos que eu saiba, mas um dia ela apareceu toda entusiasmada com uma carta de Adelaide. Tinham gostado do vídeo e queriam-nos no festival seguinte. E então fomos. E por duas vezes fomos aplaudidos de pé. Os organizadores do festival de Perth devem ter ouvido falar de nós e dois anos depois convidaram-nos para lá. E foi muito bom.

- Em Perth, alguma vez a viu a falar com alguém estranho à trupe?

Mário riu-se.

- A Sana estava sempre a falar com toda a gente!

- Alguém suspeito?

- Assim como alguém com um chapéu preto de cowboy e uma arma na mão?

Reconheci que era uma pergunta estúpida.

- Teve alguma discussão com alguém do hotel, ou de Perth... com alguém do público, talvez?

- Não, que eu saiba não.

- Alguma vez falou com alguém que se mostrasse furioso por ela ter feito uma adaptação anti-semita da Lisístrata?

- Não era anti-semita! - protestou Mário.

- Isso agora não interessa. Só estou a dizer que pode ser que alguém no público tivesse pensado que era.

- Não, ninguém.

- Alguém foi ter com ela aos bastidores?

- Homem, a que vem tudo isto?

- Imagine que alguém estava furioso com ela e queria fazer-lhe mal. Houve uma pessoa que me deu a entender que podia ter acontecido uma coisa dessas.

- Quer dizer que foi assassinada?

- Ou talvez atirada contra a janela durante uma luta... quem sabe...

- Não estou a ver ninguém.

- Alguém a foi ver aos bastidores?

- Só alguns jornalistas.

- Ela falou hebraico com algum deles? Ou em árabe?

- Já lhe disse, nunca a ouvimos falar em hebraico ou em árabe.

- Foi almoçar ou jantar com alguém que não fosse da trupe?

- Acho que não. Saíamos juntos todas as noites.

- Alguma vez falou de visitas a Londres?

- Não, acho que não.

- De um homem chamado Samir?

- Não.

- E nunca disse que havia alguém a ameaçá-la ou a incomodá-la... quando estava na Austrália ou no Brasil?

- Não. Sentia-se muito bem.

Mas a questão é que ela não se sentia nada muito bem - pelo menos em Perth não, e também não se Helena tinha razão na interpretação que fazia daquilo que levava Sana a imitar passarinhos e a pôr uma flor atrás da orelha. Sana estava numa situação desesperada e precisava de alguma magia que a salvasse. Precisava falar com alguém - mesmo com um desconhecido como eu.

 

NÃO ME ERA POSSÍVEL pôr de lado as aulas e a escrita e voar para a Austrália, por isso recorri a alguns amigos e pus um anúncio no Sydney Morning Herald e no Australian Jewish News, pedindo informações sobre uma mulher chamada Sana Yasawi ou Helena Verga, que estivera em Sydney em Março de 1998 e em Fevereiro de 2000. Incluí uma fotografia bastante recente de Sana que Mário me dera e enviei-a aos dois jornais por e-mail, como attachment. No anúncio escrevi: «Yasawi ou Verga andou provavelmente à procura de uma pessoa amiga ou conhecida de Israel.»

O anúncio foi publicado no Sydney Morning Herald de 18 e 24 de Novembro, e no Australian Jewish News dos meses de Novembro e Dezembro.

Passei também alguns dias em buscas na Internet sobre S., mas não consegui nada. Se ainda estava em Sydney, o número do telefone e o endereço dele não estavam na lista, e o nome nunca aparecera em nenhum dos jornais locais.

 

Quando telefonei a Júlio, ele não negou ter batido em Sana.

- Mas foi só uma vez - apressou-se a dizer. - Aconteceu uma noite, logo depois de nos termos deitado. De repente, ela ficou maluca. Gritava que eu a fazia sentir que não era nada, e que o fazia de propósito. Esbofeteava-me. Empurrei-a para o lado, com força, porque fiquei assustado. Ela caiu contra a parede, e depois avançou para mim como se estivesse possuída. Nos olhos dela... havia alguma coisa... havia neles alguma coisa de terrível e de furioso, e não era a Sana que eu conhecia. Começou aos murros, e, para me defender, fiz um gesto para a afastar. Mas bati-lhe com a mão aberta. Não a queria magoar. Parámos os dois e ficámos a olhar um para o outro. Estávamos os dois aterrorizados com o que tinha acontecido. Nunca mais lhe levantei a mão. Ela foi para a casa de banho, fechou a porta à chave e ficou lá dentro com as luzes apagadas cerca de uma hora. Do outro lado da porta disse-me que estava a esconder-se e que não podia falar comigo... não podia falar com ninguém nem fazer o mínimo ruído. Quando saiu, estava calma. Disse que não tinha importância. Fiquei mais nervoso do que ela, garanto-lhe. E ainda nos voltámos a encontrar depois disso. Isto é só para lhe mostrar que não tive culpa nenhuma.

- Foi nessa altura que ela começou a chamar-lhe Abelha-Mestra?

- Não faço ideia.

- Pense bem... por favor.

- Não sei. Foi há anos. A sério que não me lembro.

- Alguma vez esteve na Austrália?

- Não.

- E não voltou a bater-lhe?

- Nunca, juro. Eu amava a Sana. Ela é que não me amava. Talvez fosse isso que a levou a atacar-me. Eu não conseguia ser suficientemente bom para ela e talvez estivesse furiosa comigo e com ela pela injustiça daquilo tudo. Sei que ela não queria que as coisas fossem assim... Mas eram.

 

Durante as duas semanas seguintes, deixei-me levar pela imaginação e convenci-me de que inicialmente a Abelha-Mestra tinha de ser Mahmoud. Quando era pequena, Sana devia viver no terror de que ele fosse mais longe e lhe batesse até a magoar a sério - ou matá-la até. Como não podia reconhecer o seu medo, inventou-lhe um nome. Intuí que quem a fazia «sentir que não era nada» era Mahmoud. Júlio provavelmente apenas lhe lembrava o pai.

Por quê «Abelha-Mestra», não sei. Talvez devido ao ferrão aguçado do medo de ser espancada. Talvez associasse o sexo com Júlio com uma experiência assim tão penosa.

Pensei que podia também ser possível - mas menos provável - que ela tivesse sido alguma vez apanhada por um soldado israelita e tivesse sido violada ou forçada a excitá-lo sexualmente. Talvez houvesse nesse homem alguma coisa que lhe fazia lembrar uma abelha - ou, quem sabe, Sana podia ter escolhido esse nome simplesmente por o associar à dor.

Quando interroguei Helena e Samuel sobre a possibilidade de Sana ter sido abusada sexualmente por um soldado, ou até pelo pai, ambos disseram nunca terem suspeitado de alguma coisa semelhante.

- Embora não seja impossível - acrescentou Helena. - Uma coisa dessas, para a Sana, seria um segredo.

Enviei algumas das minhas notas sobre a infância de Sana a Cal Arkanian, um velho amigo da universidade que era agora psicólogo de crianças em Chapel Hill, na Carolina do Norte. Perguntei-lhe o que diria ele de uma rapariga com semelhantes fantasias - especialmente o seu medo da Abelha-Mestra. Quando falámos ao telefone, disse que era impossível chegar a quaisquer conclusões sem falar com ela. Teria de a acompanhar vários meses para, pelo menos, começar a compreender o significado das fantasias - o que é que ela estava a tentar dizer-nos sem se denunciar. Também precisaria de tempo para estudar como é que ela brincava quando estava sozinha e como interagia com os pais e com os irmãos, se os tivesse.

- Nada disso é possível - disse-lhe eu. - E nem sequer podes falar com a Sana sobre o que ela passou. Quando cresceu, suicidou-se. - Depois de lhe ter explicado as circunstâncias da morte dela, perguntei: - Não me podes dizer o que achas que pode significar esta fantasia em especial?

Mostrou-se reticente, mas perante a minha insistência acabou por ceder:

- Diria que ela estava mortalmente assustada por alguém que lhe era muito próximo. Poderiam ser os soldados israelitas. Ou mesmo um familiar ou um vizinho. E poderia envolver abuso sexual. Mas quem quer que fosse, e o que quer que tenha acontecido, estava convencida de que precisava de magia para se ver livre do seu problema, o que poderia significar que não havia nenhuma escapatória normal possível. Ela estaria nas mãos dessa pessoa e isso duraria enquanto fosse criança. A mesma coisa quanto aos pássaros e ao voar. Diria que se sentia tão diminuída que se via como sendo minúscula. Uma das maneiras que alguém desamparado tem de fugir é voando.

- E que achas da ligação dela a Helena?

- Helena era a sua feiticeira, a sua protectora... mas também, por outro lado, a sua criada ou escrava. Num certo sentido, ela fazia com que Helena se sentisse exactamente como ela se sentia... diminuída, encurralada.

- Que se sentisse usada até.

- Sim, até usada.

- Zeinab mudou Sana para o seu quarto durante a infância da filha. Isso não te parece uma prova de que tentava proteger Sana de abuso... quem sabe se de abusos repetidos por parte de Mahmoud?

- Não necessariamente. Por aquilo que me disseste, bastava que Zeinab visse catástrofes em toda a parte para querer ter Sana junto de si.

- E porquê Abelha-Mestra... porquê esse nome em particular?

A explicação de Cal era, em grande parte, a mesma a que eu próprio chegara, e concluiu dizendo:

- De qualquer modo, nunca o viremos a saber ao certo. - Sentindo o meu desapontamento, acrescentou: - Tu queres probabilidades e certezas, mas não as há... neste momento não há, tantos anos depois dessas coisas terem acontecido e depois da morte dela. Talvez Sana não tenha sequer sido magoada por ninguém em particular. Ser perseguida a todo o momento por soldados seria o suficiente para que uma miúda tão sensível como ela começasse a imaginar monstros. E acontece os miúdos terem medo de abelhas, especialmente as grandes que dão nascimento a outras e que lhes podem fazer mal. Tudo o que podemos dizer ao certo é que houve pessoas e acontecimentos que traumatizaram Sana. Ela era muito perturbada. E com extrema necessidade de ajuda... que merecia ter, independentemente de quem ou daquilo que lhe causava sofrimento.

 

Ao chegar o Natal de 2001, eu tinha já desistido de alguma vez entrar em contacto com Samir. Continuava a ligar para o telemóvel dele uma vez por dia, mas ouvia sempre a mesma mensagem em italiano dizendo que o número marcado não se encontrava disponível.

Pela mesma altura, tinha recebido quarenta e nove respostas ao meu anúncio no Sydney Morning Herald e no Australian Jewish News. Vinte e oito dessas pessoas queriam vender-me pornografia ou brinquedos sexuais. Tinham entendido as minhas palavras como um apelo em código para tudo, desde sexo pelo telefone em hebraico até números telefónicos de raparigas tailandesas vivendo na Austrália. A maior parte dos restantes pensavam ter avistado Sana numa altura qualquer: «Acho que a vi à espera do autocarro em Blues Point Road» ou «Ela parece ser uma mulher que eu vi num ferry para Manley, há uns dois anos - talvez viva lá».

Havia duas respostas que pareciam mais prometedoras, pois os dois correspondentes diziam ter falado com ela ao telefone. Porém, nenhum deles sabia o nome dela, e uma breve troca de e-mails permitiu-me concluir rapidamente que a pessoa que eles tinham conhecido provavelmente não era Sana.

Helena fizera um check-up completo a seguir ao Natal, incluindo análises de sangue. Não havia vestígios de cancro e o prognóstico era excelente. Festejou a notícia com a entrega da tese de doutoramento.

- Não está grande coisa, mas pouco importa - disse ela. - Estudei o que queria estudar, e pode ser que interesse a algumas pessoas. Vou ter o meu diploma. É quanto me basta.

Para mim, o seu tom desalentado tinha o significado oposto - que ela tinha esperado muito mais de si própria. Mas aprendera com ela a mostrar um pouco mais de disciplina nas minhas perguntas, e não disse nada. Planeava passar todo o mês de Janeiro com o pai. Depois iria assumir novamente a gerência da sua casa de chá em Paris. Tendo recuperado o apetite, estava muito entusiasmada com a ideia de ter permanentemente à mão tantos doces.

- A próxima vez que me vires, hei-de parecer um elefante - advertiu-me.

 

No dia 4 de Janeiro, às três e vinte da tarde, Samir atendeu o telemóvel.

- Deixe de ligar para mim - foi a primeira coisa que disse. - Está a ser muito irritante.

- Sabe quem fala?

- Vejo pelo número. Não conheço mais ninguém em Portugal. Oiça, deixe de ligar para mim. Não volto a atender se vir o seu número.

Tinha deixado o gravador ligado ao telefone do andar de baixo e carreguei no botão para o ligar.

- Porque me mentiu? - perguntei. Na gravação pode sentir-se a raiva contida nas minhas palavras, mas lembro-me mais do meu medo do que de outra coisa.

Silêncio.

- Oiça com atenção - disse ele, a voz a tremer-lhe. - Não volte a ligar para mim. Não é bom para mim. E, se quer saber a verdade, também não é bom para si. São coisas que você nunca poderá compreender. Em Bolonha, disse-lhe para esquecer tudo sobre nós. E para esquecer a Sana. Volto a dizê-lo. Está a compreender?

- Posso querer escrever sobre ela.

- Se o fizer, então não ponha o meu nome! Em caso nenhum. Está a ouvir?

Gritava como se agitasse uma arma diante da minha cara. Passei muitas vezes esta gravação e também sinto o pânico na voz dele.

Um caranguejo de medo trepava-me pelas costas acima. Tenho uma certa tendência para dizer as coisas mais ingénuas quando me sinto em risco de me afogar nas minhas próprias emoções.

- Acho que não devia falar assim comigo - disse eu. - Sobretudo depois de ter passado dois dias a mentir-me.

- Oiça, isto é maior do que eu. Você não sabe no que está metido. Não sabe até onde isto pode chegar.

A desconfiança pairava entre nós, e não respondi nada por instantes. Ele confirmava as minhas piores suspeitas.

- De certeza que percebe que o seu nome, mais tarde ou mais cedo, virá ao de cima - disse eu finalmente.

Era curioso como tanto eu como ele andávamos à volta de qualquer referência ao 11 de Setembro, como se fosse um território de que não ousávamos aproximar-nos.

- Por amor da Carlotta e da Alice, não ponha o meu nome. Elas não têm nada a ver com... com aquilo que aconteceu. Não merecem sofrer. Será pedir muito?

Dei-lhe a minha palavra de que não as identificaria a elas nem a ele naquilo que escrevesse. (Neste livro mudei os seus nomes, embora tivesse dado ao FBI os nomes correctos. O nome verdadeiro de Samir foi também publicado pelo menos em catorze notícias da imprensa italiana disponíveis na Internet.)

- Agora tenho de desligar - disse-me.

- Espere! Como estão a Carlotta e a Alice?

- Estão bem - a voz acalmou-se um pouco.

- Onde estão a morar?

- Não lhe posso dizer.

- O pai da Sana trabalhava consigo? Foi assim que a conheceu?

- Há coisas que você não precisa de saber.

- Mas preciso.

- Éramos amigos... bons amigos. Pode deixar as coisas assim naquilo que escrever.

- Ele morreu?

- Sim.

- Samir, tenho uma teoria pessoal sobre as razões que levaram Sana ao suicídio.

Ele não disse nada.

- Tenho quase a certeza de que ela sabia o tipo de actividades que você financiava. Diga-me se estou enganado.

Silêncio.

- Os ataques do 11 de Setembro devem ter sido planeados há muito. Será que ela soube deles quando estava em Perth? Ou precisamente antes de partir para lá? Falou com ela quando ela lá estava, para a avisar? Talvez ela não pudesse viver sabendo que alguém a quem amava ia ajudar a matar tanta gente.

Ele desligou e não atendeu quando liguei de novo. Pergunto a mim mesmo se ele teria coragem de confirmar aquilo que eu estava a pensar dizer-lhe: «Então talvez você tivesse razão sobre ela ter sido assassinada. Foi você que a matou.»

 

Em fins de Janeiro de 2002, as notícias na Internet da agência noticiosa italiana ANSA começaram a incluir o nome de Samir.

Em 28 de Janeiro: «Os investigadores acreditam que o financiamento da célula terrorista de Milão foi canalizado nos últimos anos através de uma firma bancária privada dirigida por Samir Nizar al-Hassan. Al-Hassan, um egípcio de uma família abastada do Cairo, passou parte da juventude em Londres e supõe-se ter aí estabelecido fortes contactos, assim como pelo Médio Oriente. Segundo os vizinhos, ele e a família desapareceram em 7 de Setembro de 2001, precisamente nos dias que precederam os atentados em Nova Iorque e em Washington D.C.»

Em 11 de Fevereiro: «Também alegadamente activo no chamado Corpo Armado de Resistência Muçulmana (CARM) era Samir Nizar al-Hassan, cidadão egípcio que vivia em Bolonha antes de desaparecer em Setembro de 2001. O CARM foi associado a ataques bombistas e desvio de aviões em França e em Itália, assim como a assassínios na Argélia e no Líbano.»

Em 27 de Fevereiro: «Em Abril de 2000, as autoridades italianas interceptaram uma série de chamadas de telemóveis, entre Rashid Omar Fu'ad, que orientava em Munique uma casa de apoio a recrutas terroristas a caminho dos campos de treino no Afeganistão, e Samir Nizar al-Hassan, um financeiro de Bolonha, nos quais Fu'ad faz referências a "entregas de 'presentes de aniversário' em New Jersey e na Florida". O Departamento das Finanças dos Estados Unidos supõe agora que se tratava de uma referência a transferências de dinheiro necessário ao financiamento dos homens que viriam a participar nos ataques de 11 de Setembro.»

 

Durante os meses seguintes, Samir seria mencionado em mais sete artigos da ANSA, descrevendo as suas ligações a operações da al-Qaeda na Alemanha, na Inglaterra, em Espanha e na Suíça. Aparentemente, não possuía quaisquer laços familiares na Palestina - nem quaisquer ligações a grupos terroristas palestinianos ou mesmo à OLP. O apelido do verdadeiro pai de Sana, Yasawi, nunca apareceu publicado.

Convenci Helena a fazer-nos uma visita de cinco dias em Fevereiro, durante o período de férias entre semestres. Realmente, a cara dela estava mais cheia, mas não se pode dizer que estivesse gorda. Parecia mais descontraída do que alguma vez a vira antes. Na primeira noite, ficámos até tarde a falar de Samir e da sua família. Quando lhe disse que não conseguia compreender como é que Carlotta podia aceitar continuar com um homem envolvido em actividades terroristas, ela disse:

- Talvez não tivesse por onde escolher. Podia ter medo dele, sabes.

- Não, parecia ser confiante... e amá-lo também. Assim como a Alice.

- Bem, isso é a tua resposta. As mulheres são capazes de fazer muita coisa para defender o amor e para assegurar um pai aos seus filhos.

- Mesmo assim, ela renunciou a tudo.

- Disseste que ela estava farta da orquestra, por isso se calhar estava pronta a mudar.

- Mas não em tais circunstâncias. Custa-me a acreditar.

- Ouve uma coisa, provavelmente ela viu-se forçada a decidir à pressa o que devia fazer. Não teve tempo para pensar. Imagina a pressão que estaria a sofrer. Só virá a saber o que realmente fez daqui a uns meses, quando a sua vida se tornar mais calma. Pode ser que nessa altura o lamente.

 

Na manhã do dia seguinte demos um passeio à beira-mar durante uma hora, depois sentámo-nos num enorme bloco de granito na praia mais próxima da nossa casa, voltados para o mar.

- Isto podia ser Haifa - disse ela. - Às vezes penso que hei-de morrer ainda com cinco anos de idade, ainda maravilhada com este mundo e como é que vim a existir. - Tirou um envelope do bolso. - Toma - disse, estendendo-mo. - Encontrei isto ao arrumar o apartamento. Tinha prometido que te mostrava.

"Dentro do envelope havia uma madeixa de cabelo de um cor-de-rosa vivo atada com uma fita vermelha antiga; o tempo mostrara-se impotente contra a marca de colorante que devia ter vindo do Inferno para tingir o cabelo da pobre Rosa de uma cor tão chocante. Comecei por achar divertido, e depois comovente. Helena e eu abraçámo-nos.

 

Um dia depois, seguimos para a nossa casa na aldeia. Helena trabalhou no jardim três dias de enfiada, mesmo com chuva - até ficar com as unhas partidas e sujas, cheia de arranhadelas das silvas que tinha tentado cortar nos nossos velhos muros de pedra. Houve uma trovoada e eu ia para sair a correr, para ela não ficar completamente encharcada, mas Alex deteve-me:

- Não, deixa-a lá. Só lhe faz bem.

Ao fim da tarde, quando entrou em casa, envolvi-a num cobertor e Alex fez-lhe um chá bem forte. Helena chorou sentada ao nosso lado, depois saiu a correr da sala. Passado algum tempo fui ter com ela e sequei-lhe o cabelo com uma toalha. Disse-me então que o cancro lhe tinha pregado um susto de morte e duvidava de que voltasse a sentir-se outra vez a mesma. Imaginava muitas vezes que o seu próprio corpo a traía - as células reproduzindo-se infinitamente e criando tumores invisíveis. Todas as manhãs ao acordar desejava poder livrar-se da sua pele.

- Talvez esteja a precisar de voltar a Israel e deixar-me perder no deserto - disse. Fitou-me com uns olhos espantados. - Será a isso que se resume todo este drama?

Não tinha resposta para lhe dar. Apercebia-me de que Helena não era muito diferente de Sana - o país dela estava devastado pela guerra e pelo terrorismo, e a pátria com que realmente sonhara só existia na sua cabeça. Uma boa parte dos seus concidadãos odiavam-na e tinham-na até ameaçado de morte.

Mais tarde, ao jantar, quando lhe perguntei se alguma vez pensara em Israel como sendo um país estrangeiro, cerrou o punho e disse:

- Nunca deixarei que me tirem Haifa! - declarou.

 

Pensei que estaria curada do medo de sair de dia e que em breve se habituaria de novo a Paris, mas, quando voltou para casa, caiu novamente nos seus velhos hábitos de vampira. Trabalhava na casa de chá só a partir do entardecer. Negou que tivesse voltado a beber, mas havia na voz dela um ligeiro travo que me dizia que estava a mentir.

- Vamos ter de te espetar uma estaca no coração para te libertar - disse-lhe eu.

- Quem dera que fosse assim tão fácil - replicou. - Era eu a fazê-lo.

 

Agora, ano e meio depois do início da Intifada, tropas israelitas tinham entrado em todas as cidades dos Territórios Ocupados e bombistas suicidas palestinianos estavam a pôr os Israelitas em permanente estado de alerta. Em 31 de Março, uma explosão no restaurante Matza, em Haifa, matou quinze pessoas. Num frenesim de ansiedade, Helena passou vários dias a telefonar para dezenas de pessoas conhecidas para se assegurar de que estavam bem. Descobriu que tinha andado no liceu com uma das vítimas e tinha mesmo conseguido falar com os pais dele.

- A mãe dele esquecia-se a todo o momento daquilo que ia dizer - contou-me Helena. - Era horrível. Acho que era tudo por causa dos tranquilizantes. O pai estava tão revoltado que era como se estivesse em chamas. «Será que os Palestinianos pensam mesmo que lhes vamos oferecer uma paz feita dos corpos dos nossos filhos?», perguntou-me ele. Que podia eu dizer? Tentei dizer-lhe que tinham de se começar imediatamente conversações de paz sérias se se queria pôr um termo à violência, mas ele gritou-me que eu era idiota. «Você acha realmente que os Palestinianos ainda são como eram quando você era nova?», disse ele. «Quando é que vai perceber que Yasser Arafat e os outros não passam de criminosos? Nunca foram outra coisa, embora nós não o soubéssemos.» Depois, disse-me que Israel nunca negociaria com criminosos cobertos de sangue judeu. «Seria para nós um suicídio. E talvez agora o resto do mundo comece a compreender isso», disse ele.

Sem se deixar intimidar, Helena fez o que podia para dar a sua contribuição para a atmosfera geral de perversa insensatez, escrevendo cartas para os jornais de toda a Europa e do Médio Oriente, afirmando que as únicas pessoas no mundo tão cobardes como os dirigentes palestinianos eram os ministros de Israel.

- Ariel Sharon e o resto do governo israelita acreditam que uma espingarda automática nas mãos de alguém faz dele um herói de guerra, e Yasser Arafat e os militantes palestinianos pensam que uma bomba atada à cintura de alguém faz dele um santo. Deus nos livre de heróis e de santos!

 

Estávamos em Abril e ainda não recebera da Austrália nenhum e-mail promissor. Ia receber em breve algum dinheiro dos meus direitos de autor, e decidi voltar a publicar o meu anúncio num formato maior durante mais uma semana. A 6 de Abril, recebi um e-mail de resposta de um homem chamado Boaz Cohen, um israelita que emigrara para a Austrália há trinta e um anos. Durante os últimos vinte e três anos, trabalhara como detective privado. Dizia no e-mail: «Tenho quase a certeza de que a pessoa do seu anúncio contratou os meus serviços em mil novecentos e noventa e oito. Mas usava o nome de Rosa Verga, e não Helena. Se está interessado, contacte-me. Prefiro não falar disto por e-mail.»

Quando falámos, a primeira coisa que me disse foi: - Há quatro anos que tenho estado à espera de poder contar esta história a alguém que não fosse da polícia.

Com as vogais a dançar livremente entre o australiano e o hebraico, Boaz contou-me que no dia 16 de Março de 1998 (o dia a seguir ao encerramento do Festival de Adelaide, por sinal), recebeu a visita de uma mulher parecida com Sana.

- Os mesmos olhos, a mesma boca, mas o cabelo muito diferente. Era loira... e tinha o cabelo pelos ombros.

Deve ter-se arranjado de maneira a parecer a mãe de Helena, Rosa, que, sem se deixar demover pelo desastre cor-de-rosa do cabelo, passara a loira desde a década de 1950. Sana provavelmente considerou a imitação como um desafio à sua criatividade teatral.

- Essa mulher mostrou-me uma fotografia de uma miudita... a filha dela. E então...

- Um momento, ela disse de onde era?

- De Haifa.

- Disse que era judia?

- Disse que era israelita. Com um nome daqueles, parti do princípio de que era judia.

- Falou com ela em hebraico?

- Uma mistura de inglês e hebraico... O meu hebraico estava muito enferrujado.

- Como é que ela foi ter consigo?

- Uns amigos dela israelitas de Sydney tinham-me indicado.

- Disse-lhe o nome desses amigos?

- Não.

- E depois?

- Mostrou-me a fotografia da filha e...

- Um momento, desculpe... Ela disse que a filha se chamava Helena?

- Exactamente. Conhece-a?

- De certo modo. - Disse-lhe que lhe contaria tudo o que sabia sobre Rosa Verga quando acabasse a história dele.

- E então ela contou-me que a filha estava a morrer com leucemia. A única esperança era um transplante de medula. Mas que a medula dela não era compatível com a da filha. Por isso, precisava de entrar em contacto com o ex-marido.

O único problema era que, depois do divórcio, ele não queria ter nada a ver com ela nem com a filha. Desapareceu. Sabia que ele tinha ido viver para Sydney, mas nada mais. Nunca pagara o sustento da filha a que estava obrigado.

Perguntei-lhe se ela tinha identificado o ex-marido como S., e Boaz confirmou.

- Dá-me a impressão de que o senhor conhece esta história, mesmo antes de eu a ter contado - observou.

- Estou só a juntar umas coisas às outras. Aposto que descreveu o ex-marido muito precisamente.

- Exacto. Disse-me que em Israel ele trabalhava como segurança, como guarda de um banco. Mas não tinha nenhuma fotografia. Costumo pedir um par de boas fotografias sempre que é possível.

- Isso não lhe pareceu estranho?

- Um bocado. Mas ela disse que o divórcio fora uma grande trapalhada, e que um dia ele foi a casa dela e tinha partido e roubado uma quantidade de coisas, incluindo as fotografias... mesmo as dos pais dela que não tinham nada a ver com ele. Disse que ele também tinha levado todos os velhos discos dela... tudo da Edith Piaf. E do Georges Moustaki, também. Sabe quem é?

- Um cantor grego que viveu em França muito tempo.

- Exacto. Nem sequer sabia quem era, antes de ela ter falado nele.

Mais tarde, confirmei com Samuel que Rosa adorava Piaf e Moustaki.

- Pareceu-lhe convincente?

- Muito. Estava a chorar. Tinha os lábios gretados, e parecia muito magra e cansada. Era como se estivesse a ser roída pelo que acontecia à filha. Senti-me desde logo do lado dela.

- Que mais?

- É tudo. Pagou-me adiantado e combinámos ficar em contacto. Disse-me que me telefonaria mais ou menos todos os meses, pois viajava muito por causa do trabalho dela e eu podia não ter possibilidade de a encontrar.

- Deu-lhe algum número de telefone?

- Claro... no Brasil. Disse que a base dela era em São Paulo.

- A base?

- Exacto. Disse que era hospedeira da El Al, a companhia aérea de Israel.

- Raios!

- Imagino que não trabalha nada lá.

- Não. Disse mais alguma coisa?

- Não. Pagou e foi-se embora.

- Voltou a contactar?

- Exacto. Todos os meses. E mandava-me mais dinheiro de três em três meses, mais ou menos.

- Do Brasil?

- Exacto.

- De uma conta brasileira?

- Não. De uma conta britânica. Do Barclays Bank de Oxford Street, em Londres.

- Quanto tempo levou a descobrir S.?

- Cerca de ano e meio. Tinha mudado de nome. Queria viver escondido e era bom nisso.

- E depois mandou-lhe o nome e o endereço dele.

- Exacto, em fins de Agosto de mil novecentos e noventa e nove. Parecia mesmo contente ao telefone. Voltou a chorar, e disse que eu era um anjo e que o ia contactar imediatamente e que eu tinha salvo a vida da filha. Uma semana depois, recebi o último pagamento e um presente... Um CD de um tal Ney qualquer coisa, um cantor brasileiro de que ela devia gostar.

- Ney Matogrosso.

- Exacto! Senti-me mesmo bem por a ter ajudado. Gostei dela. Sabe como é, às vezes pedem-nos para fazermos coisas que não são lá muito bonitas... Seguir mulheres que têm encontros com amantes em hotéis, esse tipo de coisas. Mas isto era diferente... isto era lindo! Passei um mês a rodar por aí pensando que era o Batman.

- Até que soube que S. tinha sido assassinado.

- Não, ele não. Um dia estou eu a ler o Morning Herald e vejo um artigo. Um artigo pequenino ao fundo da página. Dizia que tinha havido uma explosão numa casa em Glebe. É um bairro de Sydney. Era a casa de S., embora o artigo não use o nome original dele.

- Isso em Fevereiro de dois mil?

- Exacto. Dia quatro. Ainda tenho o artigo.

- Mas o S. morreu?

- Não. Ele, a mulher e uma filha conseguiram safar-se com pouco mais do que uns ossos partidos. Mas levou cerca de duas horas a libertar o miudito dos escombros que tinham caído em cima dele. Tinha queimaduras graves e derrames internos. Morreu um dia depois no hospital.

- Oh, meu Deus - tive a sensação de que eu e Sana caíamos a pique num abismo que tentávamos evitar desde a morte dela. Agora não havia saída. - Ligou o caso imediatamente a Rosa Verga? - perguntei.

- Exacto. Quer dizer, mais ou menos... Primeiro não queria acreditar. Depois pensei que compreendia o que tinha acontecido. S. deve ter-se recusado a ajudá-la, a ela e à filha, e ela ficou louca. A doença da filha... era de mais para ela. Por isso, fui à polícia e contei o que sabia. Senti-me verdadeiramente culpado.

- A polícia voltou a contactá-lo?

- Nada. Nem uma palavra. E eu fiz o possível para esquecer o caso, até que vi o seu anúncio.

- Nunca falou com S. ou com alguém da família dele?

- Não. Na polícia disseram-me que tratavam do caso. Enquanto pensava nas perguntas que devia fazer, Boaz disse ainda:

- Então é assim que vê as coisas? Ela tentou vingar-se do marido por ele não ajudar a filha, exacto?

- É um bocadinho mais complicado do que isso.

- Ela foi apanhada? É por isso que queria mais informações sobre as actividades dela na Austrália?

- De certo modo. - Disse-lhe que tinha de começar por lhe contar a minha chegada a Perth, quatro dias depois de ela ter posto uma bomba em casa de S.

Quando acabei, ele disse:

- Aquele sacana fez uma coisa horrível ao irmão dela, mas será que este miudito merecia morrer por causa disso?

- Provavelmente ela só queria pregar-lhes um susto.

- Nem pense. Fui lá de carro uns dias depois de ler o artigo. O rés-do-chão tinha desaparecido e o primeiro andar tinha desabado. Estava como a merda de uma panqueca. Foi um milagre alguém ter saído dali vivo.

 

No final de O Último Cabalista de Lisboa, o narrador paga a um mercenário para que mate o assassino do seu tio. Seria por isso que ela me disse em Perth que o meu livro a ajudara a ver mais claramente o caminho a seguir? Será que ela viu a morte do irmão como um símbolo da opressão dos Palestinianos? Será que via o seu atentado bombista como o primeiro de uma longa campanha para corrigir as injustiças na sua pátria?

 

Uma mulher em fuga através da vastidão de um país distante com medo de ser apanhada pela polícia e mandada para a prisão. Talvez seja isto o que mais teme. Perseguem-na desde sempre pesadelos com aves presas em gaiolas - e sobre o que acontecera ao irmão. Se fosse apanhada, que lhe poderiam fazer os guardas? Cortar-lhe as mãos? Ela sabe que não poderia viver assim.

Sabe também que cedera à sua revolta e matara um rapazinho. Tudo lhe parece agora diferente daquilo que tinha pensado - mais sujo, e mais inútil. Nunca pensara vir a cometer um acto semelhante. Que poderia fazer no futuro?

Quando encontra um escritor que criara personagens que parecem reflectir a sua vida, perde o equilíbrio. Diz-lhe que vive um momento em que se sente «particularmente sensível».

Ele abraça-a, e ela apercebe-se de que está a tremer. Deverá dizer-lhe alguma coisa, ou simplesmente chorar nos braços dele?

Talvez mais tarde telefone a um amigo da família para ouvir uma voz paternal. Ou ele lhe telefone para saber como ela está. Ela confessa-lhe o seu crime. Ele conforta-a e tranquiliza-a dizendo que o que fizera era justificado. Na verdade, diz-lhe, ele e os seus iguais estão a planear um golpe no próprio coração do poder que criou tanto sofrimento na Palestina e em todo o Médio Oriente. Daí a um ano ou dois, ela veria como o mundo terá mudado. Pede-lhe que não faça mais nada - ele e os amigos agirão por ela. A única coisa que lhe cabe fazer é trazer beleza ao mundo com a sua dança.

- Mas, o que vão fazer? - pergunta ela.

Ele hesita, mas depois conta-lhe - e obriga-a a jurar segredo.

Depois de desligar, fica sentada a olhar pela janela para a cidade de Perth, ajoelhada ao longe. Nunca antes se sentira tão só, tão perdida. Vê que o destino não pode ser alterado. Toda a sua vida - o esconder-se dos soldados, a violação da mãe, a rudeza do pai, o assassínio de Jamal, a sua ruptura com Helena - tudo o que fizera a conduzira até ali.

Levanta-se. Sentindo-se estranhamente forte, ergue a cadeira acima da cabeça e parte a janela. Terá fechado os olhos? Talvez ouça na sua cabeça um sussurro a dizer-lhe que nunca tinha sido nada, que a sua morte não tinha qualquer sentido. Será que imagina que finalmente irá voar de verdade?

 

Passei os dias que se seguiram a passar a limpo as minhas notas, dando-lhe uma ordem reconhecível e fazendo cópias das gravações e fotografias. Depois, juntei duas páginas a um espaço de uma carta de explicação e enviei tudo para o director do FBI, Robert Mueller. Provavelmente devia tê-la mandado para um subordinado, mas a página web do FBI é espantosamente confusa.

O tentar passar ao papel mesmo que fosse apenas uma fracção da história de Sana deixou-me exausto; não conseguia dizer nada da maneira que pretendia. Por vezes, sentado à secretária, limitava-me a olhar pela janela para a neblina matinal para além dos telhados de telhas vermelhas e deixava o espírito vaguear em fantasias em que eu a conseguia salvar - assim como ao rapazinho de Sydney.

Um agente do FBI chamado Stephenson telefonou-me cerca de duas semanas mais tarde. Parecia desconfiado dos meus motivos. Disse que tinha achado a minha carta interessante, mas difícil de decifrar.

- Não me surpreende... Eu próprio não a sei decifrar - confessei.

- Está-me a parecer que seria melhor voltarmos ao princípio - replicou, com um tom de desalento.

Durante mais de uma hora, contei-lhe o que sabia. Era praticamente um monólogo. Instantes antes de desligar, perguntei-lhe se ele já tinha ouvido falar em Samir e nas suas actividades de financiamento, e se elas tinham conexões na América.

- Não lhe posso responder - replicou.

- Deixe-me adivinhar... Por razões de segurança nacional.

- Exacto.

- Acha-me com ar de quem está para pôr em perigo o bem-estar da América nos tempos mais próximos?

Não ligou à pergunta e disse rudemente:

- Espero que não esteja a gravar esta chamada. - Estava sem dúvida a lembrar-se da minha carta, em que eu dizia ter gravado os telefonemas de Helena e de Mahmoud. - É ilegal - acrescentou por precaução.

Em abono da verdade, estava mesmo. Mas a fita tinha acabado há vinte minutos, e por isso podia dizer que não sem faltar à verdade.

 

Quando telefonei a Helena para lhe contar que Sana tinha matado o filho de S. na Austrália, ela recusou-se a acreditar.

- Há aí um engano qualquer. A Sana que eu conheci nunca faria uma coisa dessas.

- Pois não, a Sana que conheceste, não.

Deixei a ambiguidade das minhas palavras pairar no ar. Ela agarrou-se à única possibilidade que lhe permitira guardar intacta a imagem da sua velha amiga.

- Alguém a deve ter forçado a fazer isso... O filho-da-puta que conheceste em Bolonha. Foi ele!

Em fins de Abril, Samuel telefonou-me desfeito em pranto. Não conseguia falar com Helena e disse que precisava de falar com alguém de fora de Israel. O país estava a fazê-lo perder o juízo.

- Que aconteceu? - perguntei.

Explicou que os soldados israelitas tinham destruído a estação independente de televisão educativa em Ramallah, onde ele prestava serviço voluntário uma vez por semana. O equipamento que não tinham escaqueirado tinham-no atirado pela janela fora. O arquivo de vídeo da estação tinha sido completamente destruído.

- Mas por que fizeram uma coisa dessas? - perguntei.

- Perdi todas as gravações do meu programa de jardinagem - disse ele, passando por cima da minha pergunta. - Tudo perdido... três anos de trabalho. Eram só flores e frutos. Em que é que isso ameaçava o estado de Israel?

A voz dele era a de um rapazinho perdido.

- Tenho a certeza de que consegue começar tudo desde o princípio - disse eu.

- Quem me dera ter aqui a Rosa.

- Ficou algum equipamento com que possa recomeçar?

- Não está a compreender. O estúdio está agora ocupado por funcionários israelitas. Precisavam dele como centro de operações. Foi por isso que fizeram isto. Não vão sair daqui. Sabe o que me disse a minha filha mesmo antes de isto ter acontecido?

- O que foi?

- Disse-me para sair de Israel enquanto o posso fazer.

- Talvez fosse melhor.

- Não posso. Israel salvou-me a vida. Não compreende o que significa para mim... para todos nós. É tudo. Sair agora seria como abandonar toda a gente boa que conheci, toda a gente que construiu este país a partir do nada, enfrentando a hostilidade de todo o mundo. Não sabe as pessoas maravilhosas que aqui conheci. As melhores pessoas que alguma vez conheci são todas israelitas. E todas estas bombas terríveis por todo o lado... estes palestinianos orgulhosos por matarem judeus. Quer que eu me vá embora quando estamos a ser atacados por eles? Por homens que dançam de alegria quando matam um judeu? Quer que eu deixe que vençam os loucos de ambos os lados? Aqueles que rezam a Deus a pedir a guerra eterna entre nós? Quem me dera ter a Rosa ao meu lado - murmurou ele.

- Que podia ela fazer?

A voz dele tornou-se áspera.

- Pegava na arma que trouxe da Europa e ia comigo a Ramallah.

- Acha que ela disparava contra os soldados?

- Não esperava dela o raio de outra coisa.

 

Quase no fim da nossa conversa, lembrei-me de perguntar a Samuel se alguma vez o tinham inquirido sobre a mulher numa altura entre a Primavera e o Verão de 1998.

- Inquirido sobre ela, como?

- Se ainda estava viva... ou quando tinha morrido.

- Bem, houve um polícia israelita que há uns anos veio ter comigo... Deve ter sido em mil novecentos e noventa e oito... e queriam ver algumas fotografias da Rosa.

- E disseram porquê?

- Disseram que alguém tinha usado o nome dela numa carta de condução roubada ou num cartão de crédito ou coisa assim. Já não me lembro... Não percebi nada daquilo. A Rosa tinha morrido há anos. Não tenho nenhum cartão de crédito nem carta de condução em nome dela. Pensei que deviam ter um parafuso a menos.

Decidi não contar para já a Samuel que Sana se fizera passar pela mulher dele. Já lhe bastavam os problemas que tinha.

 

Em finais de Junho tinha finalmente acabado a última revisão de Meia-Noite ou O Princípio do Mundo. Devia ter-me sentido aliviado, mas tinha à minha espera todas as notas sobre Sana. A vida e a morte dela não me saíam dos pensamentos nem dos sonhos.

Lançando-me na história dela, vi-me enredado nas suas contradições e nas minhas próprias dúvidas. Uma semana depois, tornou-se claro que a única maneira de criar uma narrativa com algum sentido era começar pelo momento em que me vira envolvido na sua história - o nosso encontro em Perth. Assim que experimentei esta via, a escrita começou a fluir.

 

Helena defendeu a tese no princípio de Julho e obteve o doutoramento. Alex e eu apanhámos um avião para Paris, para festejar com ela. Helena mostrou-se bem-disposta e simpática, e aliviada por ter concluído o trabalho. Confirmou que tinha andado a beber «um bocadinho», como ela dizia, mas tinha parado novamente. A partir de agora, iria manter-se fiel ao Valium. Combinámos uma nova visita a Portugal em Agosto.

Poucos dias depois, porém, os testes que o médico dela lhe mandara fazer há pouco revelaram um cancro nos nódulos linfáticos debaixo do braço direito.

O radiologista em breve descobriu um alto perto do sítio onde ela tivera o tumor inicial. Destroçada, tomou de imediato um avião para Israel e fez uma operação que a deixou amputada dos dois seios. Quando lhe liguei para o hospital, ainda estava entorpecida da anestesia. A voz dela soava como a de alguém que tivesse mergulhado fundo dentro de si.

- Não ia ficar à espera de ter cancro no outro - sussurrou. - Achas que fiz o que devia?

- Claro. Acho que tiveste uma coragem incrível.

Perguntei-lhe então o que tinham dito os médicos. Disse que não conseguia falar nisso e passou o telefone ao pai. Samuel disse que eles estavam convencidos de que tinham tirado tudo, mas desta vez Helena ia ter de fazer quimioterapia. Ela pegou no telefone novamente para se despedir e disse-me que ficava a viver com amigos seus em Telavive durante o tratamento e depois voltava para ficar com o pai.

- E depois, quem sabe? Tenho de pensar naquilo que quero realmente fazer se só tiver uns anos de vida.

- Estás a assustar-me - disse eu.

- Desculpa. Não te preocupes comigo. Trata de acabar o livro sobre a Sana... É a melhor coisa que podes fazer por todos nós. Quando souber que o acabaste, fico mais sossegada, mesmo que aconteça o pior.

 

Incapaz de deixar de pensar em Helena, telefonei-lhe na manhã seguinte e disse-lhe de imediato:

- A Sana não quereria que morresses, bem sabes. Enquanto falava, compreendi pela primeira vez por que é

que aquilo que dizia parecia tão verdadeiro para mim.

- Como sabes isso? - perguntou.

- Ela não te contactou desde a última vez que te viu em Paris. Não estás a ver? Ela queria voltar à tua vida, mas queria também proteger-te. Precisava de saber que estavas bem. Pensou que, se fosses a Nova Iorque, acabaria por te arrastar com ela naquilo que andava a planear. Helena, podes não querer que te diga, mas acho que podias estar muito pior se ela tivesse continuado em contacto contigo. Ao não falar contigo, estava a salvar-te.

 

Em 19 de Agosto, Abu Nidal foi encontrado morto no seu apartamento em Bagdade, atingido por vários tiros. As primeiras informações falavam em suicídio, mas a maior parte das notícias que se seguiram diziam que fora provavelmente assassinado pela polícia secreta iraquiana. Perguntei a mim próprio o que estaria a pensar neste momento Clara, a filha do homem com quem falei em Paris em 1982. Pergunto-me se se lembraria ainda da mãe assassinada pelos terroristas de Abu Nidal, se a morte dele poderia compensar ainda que minimamente alguma daquela ausência de vinte anos, feita de sangue derramado.

 

No fim do mês, Alex e eu partimos para Porto Santo, para passarmos uma semana de sol. Imprimi as cerca de duzentas páginas que escrevera sobre Sana e levei-as comigo. Sentado naquela areia dourada, tudo o que acontecera em Haifa, Perth, Paris, e Bolonha, parecia agora longínquo e incapaz de voltar a deixar-me desorientado. Talvez por isso mesmo, conseguia perceber o caminho que o livro precisava de seguir.

 

A quimioterapia de Helena seguia regularmente, e ela ficou com o pai durante todo o Outono. Habituara-se a usar na cabeça um yarmulke vermelho de renda e continuou a usá-lo mesmo depois de o cabelo ter crescido de novo. Usava-o mesmo na cama, também, por fazer com que se sentisse protegida. «Como se fosse uma rapariguinha de pijama», disse-me ela numa voz alegre.

Aquilo de que mais gostava no sítio onde vivia, perto do mar Morto, era a luz do sol, que fazia com que as sombras no chão do deserto vibrassem como num esforço para ganhar vida.

- Mas se queres que te diga a verdade, nem isso é suficiente - confessou-me um dia.

- Suficiente para quê?

- Já não há muito mais para eles cortarem em mim se... se o cancro voltar - disse ela. O terror insinuava-se na sua voz.

Várias semanas antes, um amigo dela do meio editorial de Telavive manifestara interesse em publicar em livro a tese sobre a música sefardita, e deu-lhe até algumas ideias sobre a forma como a poderia reescrever. Insisti para que aceitasse a oferta, mas ela mostrou-se relutante em começar um novo projecto. Estava convencido de que Helena ouvia o tiquetaque de um relógio dentro da cabeça, e sentia que não teria tempo de vida suficiente para acabar o projecto. No entanto, em vez de reconhecer isso mesmo, replicou cortante:

- Não preciso dos teus conselhos... Tu não sabes o que é estar doente.

- Helena, não queres que peça desculpa por ter saúde...

Isto irritou-a.

- Tu queres é que eu deixe de pensar só no meu cancro! - gritou.

- E isso era assim tão mau, bolas!? - berrei eu também.

- É meu. Não compreendes. É só meu. - Numa voz quebrada, acrescentou: - E se for tudo o que me resta?

- Não te atrevas a entrar em greve outra vez - avisei.

- Agora estás a querer armar-te em espertinho! - replicou, como se eu tivesse passado o risco.

Desligou-me o telefone. Mas quando voltámos a falar, pediu desculpa.

- O medo estava a deixar-me gelada até aos ossos naquele dia - disse ela. Trabalhava dez horas por dia na revisão da tese e a nova rotina estava a ajudá-la. - Quando escrevo, deixo de pensar no futuro. Pode ser que afinal me tenham tirado a mania das catástrofes da tia Zeinab.

- Espero que sim.

- Há outra coisa em que tenho andado a pensar ultimamente...

- O que é?

- Quando estava no hospital, depois de me poder levantar, passava o tempo a ver-me ao espelho... a olhar para aquelas cicatrizes horríveis. Na cama ao lado da minha estava uma mulher ainda nova. Trabalhava numa padaria e por isso falávamos a respeito disso. Ela deve ter contado ao avô aquilo de eu me olhar ao espelho. O avô dela era um judeu italiano, com um ar muito digno, e um bonito homem, com uma poupa do mais lindo cabelo prateado... O tipo de homem que anda sempre de casaco e gravata. Não fiz nenhuma pergunta sobre aquele sítio, mas percebi que tinha lá estado por aqueles olhos pretos líquidos que eles têm. Uma vez veio ter comigo, e eu pensei que fosse por eu estar com os olhos postos nele. Mas ele apontou para o espelho e disse: «Diga-me para quem está a olhar ali?» Fiquei sobressaltada. Respondi: «Acho que é só para ter a certeza de que ainda cá estou.» Mas ele insistiu: «Não, não me refiro a si, quem mais?» Quando lhe disse que não sabia, ele disse que há pessoas que pensam que os mortos nos podem ver através dos espelhos. Aquilo fez-me estremecer... Não queria nenhum morto a olhar para mim. Mas, mais tarde, percebi que realmente queria que a minha mãe me visse... Há muito tempo que desejava isso.

- Disseste ao velhote italiano isso que compreendeste?

- Não. Disse à neta. Na visita seguinte, ele veio ter comigo, pegou-me na mão, e disse: «É bom que tenha deixado a sua mãe olhar para si. Eu sei... sou pai.» Não foi bonito, ele dizer isso?

- Foi.

- E agora, sempre que me vejo ao espelho, imagino que a minha mãe pode estar ali, a olhar para mim.

- Ela havia de ficar muito contente por te ver.

- Sim, mas... ainda não estou muito convencida de que a Sana também ficasse. Embora eu gostasse que ela ficasse. Quer dizer, agora sei que quero viver, mesmo num mundo sem ela. O cancro mostrou-me isso.

 

Concluí uma coisa próxima de uma versão final do meu livro acerca de Sana – o livro que o leitor tem nas mãos – em Novembro e mostrei-o a Alex, à minha mãe, a Helena. Para meu grande alívio, todos gostaram dele. Helena telefonou-me uma tarde desfeita em lágrimas para me dizer que era muito mais do que ela poderia esperar, o que foi para mim um monumental alívio. Tinha rabiscado umas quantas pequenas correcções para as partes sobre a infância de Sana e ia mandá-las. Continuava entretida a reescrever a tese.

- Sento-me no escritório do meu pai, enquanto o vejo a tratar das suas adoradas feijoas, sentindo toda aquela luz a embeber as flores e a ele próprio. Sinto que estou no sítio onde quero estar. O trabalho que estou a fazer na preparação da tese para publicação está a melhorá-la. Estou a torná-la como ela devia ser desde o princípio. É como salvar uma parte da minha vida que corria o risco de perder. É uma bênção.

- Então ficas em Israel?

- Não quero pensar no futuro. A minha mãe uma vez disse-me para não parar de andar, e no fundo nunca a compreendi. Mas depois de ter perdido os seios, acho que a compreendo. - Deu uma risadinha trocista. - Embora, às tantas, seja mais uma ilusão na minha vida.

- O que achas que a tua mãe queria dizer?

- Que todas as minhas indecisões... estar dividida entre Paris e Israel, judeus e palestinianos, São Jorge e o dragão... podiam nunca ter fim. O importante é não parar enquanto esperamos para decidir. Já não sou rapariguinha nenhuma. Tinhas razão naquilo que disseste sobre não entrar em greve outra vez. Apesar do meu medo, e de tudo o que fiz de errado, e de todos os meus graves defeitos, tenho é de não parar de andar.

 

                   Post Scriptum.

ORIGINALMENTE, tencionava acabar este livro com qualquer coisa como isto:

Quando andava na Escola de Arte da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, durante o Verão de 1977, falei com um rapaz de doze anos, um verdadeiro prodígio na viola, que nascera cego. Perguntei-lhe se o que ele via diante dele era uma escuridão uniforme. «Vejo exactamente a mesma coisa que tu vês com as tuas mãos», disse ele.

Esta resposta deixou-me espantado, mas também me deu esperança. Ao fim e ao cabo, há tantas coisas para além da nossa compreensão. Talvez haja até uma vida depois da morte e nos faltem os sentidos para saber como será e como parece - ou sequer para a imaginarmos devidamente. Para tal,teríamos de ser capazes de «ver» com as mãos.

 

Pergunto-me o que pensaria Sana quando se atirou para a morte. E o que veria do seu passado, se é que via, enquanto caía. Estaria Zeinab com ela? E Helena? Espero que lhe pegassem cada uma numa mão e lha apertassem bem.

O coração de Sana devia bater descontrolado de medo. Espero que a morte fosse realmente o que ela queria.

Se por acaso me usou, não me importo. Mas gostava de ter compreendido que ela precisava de ajuda - de ter podido compreender as suas aves imaginárias e a flor mágica atrás da orelha. Que triste não sabermos interpretar com alguma precisão a linguagem de sinais dos outros.

Estou bastante convencido de que as ligações que eu mencionei entre a vida dela e o meu livro são as que ela viu e sentiu. Cheguei à convicção, no entanto, de que as conexões mais verdadeiras e mais profundas não estarão possivelmente nas páginas desse romance. O que Sana viu no meu livro estava intimamente ligado à sua própria experiência e à sua viagem. Às páginas do livro, terá acrescentado aquilo que lhe era mais caro, e agora tudo isso se desvaneceu.

 

À Procura de Sana só não acabou assim porque no dia 3 de Junho de 2003, pouco antes do lançamento americano de Meia-Noite ou O Princípio do Mundo, pus o primeiro capítulo do livro no meu website e convidei os leitores a escreverem-me para o meu endereço hotmail. E recebi então o seguinte e-mail:

 

               Caro Richard,

Sou Alice, a filha de Samir e de Carlotta. Espero que ainda se lembre de mim. Obrigado pelo primeiro capítulo de Meia-Noite ou O Princípio do Mundo. Gostava de ler o resto!

Espero que esteja bem. Nós estamos óptimos, embora com muitas saudades de Bolonha. Desculpe não contar mais nada, mas nem sequer devia escrever-lhe. Gostava de o ver, mas isso é impossível.

Há muitas coisas que são impossíveis agora. Por favor, perdoe-me e não fique zangado comigo. Parabéns pelo seu romance!

Con i migliori auguri,

         Alice

 

O e-mail dela acabava com co.uk, embora isso não quisesse dizer forçosamente que vivesse na Grã-Bretanha. Podia ser que ela, ou Samir, tivesse um servidor aí e depois acedesse ao correio em qualquer outra parte do mundo.

Respondi de imediato, sobretudo por ter percebido entre linhas que ela se sentia infeliz. Agradeci-lhe as suas palavras e pedi-lhe que me falasse na sua nova escola e me dissesse se havia alguma coisa que eu lhe pudesse enviar ao cuidado de algum amigo ou familiar em Itália (uma vez que naturalmente não poderia dar-me o seu próprio endereço). Não falei nos ataques ao World Trade Center nem ao Pentágono. Calculei que não soubesse muito sobre as actividades do pai. Provavelmente disseram-lhe que tinham de fugir das represálias racistas em Itália - ou até dos problemas de Samir com os impostos.

Nunca recebi qualquer resposta.

 

Helena voltou para Paris em princípios de Julho e daí a dois meses acabou a versão para livro da tese. Está programado para ser publicado em Israel durante o próximo ano. Está livre do cancro, pelo menos por agora, e trabalha à tarde na sua casa de chá. Continua a escrever para os jornais as mesmas cartas indignadas, e recebe umas quantas ameaças de morte todos os meses, o que não a impede de sair durante o dia. Quando lhe perguntei o que é que tinha mudado, respondeu-me:

- Se te dissesse que estou em Israel mesmo quando estou em Paris, isso fazia algum sentido para ti?

- Nem por isso.

- Bem, quando agora olho para o céu, vejo o mesmo sol que brilha por cima da casa do meu pai. E sinto debaixo dos pés a mesma terra que a minha mãe pisava no nosso jardim em Haifa. Tento lembrar-me disso. E quanto à Sana, tento lembrar-me apenas das coisas boas. Não quero as coisas más outra vez... são muito pesadas. Não sou como ela... não posso deitar fora pedras do bolso quando quero voar.

 

Em Setembro de 2003, a minha editora portuguesa concordara em publicar este livro, com aquele final do pequeno músico de viola em que já falei. Mas decidi mandar o manuscrito a Samir. Queria dar-lhe uma oportunidade de manifestar a sua discordância quanto à minha conclusão de que ele contribuíra decisivamente para o desejo de Sana pôr termo à vida.

Mandei a Alice o livro completo por e-mail, como attachment. Pedi-lhe que não o lesse e que simplesmente o imprimisse e o desse ao pai. Dizia-lhe que não havia razões para ele se zangar com ela por me ter escrito, pois eu nunca daria a ninguém o e-mail dela.

Alice não respondeu. Por precaução, mandei o manuscrito uma segunda vez alguns dias mais tarde.

 

Em 7 de Janeiro de 2004, recebi uma encomenda de Budapeste. Tinha uns vinte centímetros por trinta, embrulhado num espesso papel pardo. Não tinha remetente. Calculei que fosse do meu editor húngaro - já antevia uma caixa de chocolates. Se soubesse que vinha de Samir, teria chamado uma brigada antibomba.

Trazia dois vídeos e um curto bilhete.

O primeiro vídeo mostrava um campo de treino numa árida terra de ninguém. A qualidade da imagem e do som era má, como se fosse uma cópia distante do original. Quase todos os homens usavam calças e camisas de camuflado. Muitos deles tinham barbas hirsutas e outros tinham máscaras de pano a tapar-lhes a cara. Erguendo espingardas automáticas acima da cabeça, corriam através de um campo, depois trepavam e passavam um muro de cimento - em vagas sucessivas. Para mim, tinham o aspecto de lojistas em baixo de forma a porem à prova a sua robustez.

- Patético - disse Alex quando viu aquilo.

As imagens do treino duram oito minutos e nove segundos. Depois vemos sete homens sentados no chão, no interior de uma sala de paredes nuas pintada de verde-claro. Um dos homens usa uma túnica branca e tem uma barba comprida. Fala em árabe. Os outros respondem de vez em quando.

Esta parte dura sete minutos e quatro segundos.

Mandei uma cópia do vídeo a Helena, que a ouviu atentamente, mas os seus conhecimentos de árabe não eram suficientes para decifrar tudo o que diziam. Pensava que estavam a discutir as más condições das estradas e o tempo - qualquer coisa acerca da neve.

Para dizer a verdade, não pensei seriamente em arranjar uma boa tradução do filme porque na última cena, que se desenrolava no campo de treino, um rapaz de grandes olhos escuros e uma barba de vários dias leva a câmara do sítio onde estivera a filmar e aponta a objectiva no sentido oposto. Sana sorri, depois pisca o olho, como que embaraçada. Empunha uma arma automática na mão direita e veste blue-jeans e uma camisola de lã larga - cor-de-rosa com uma gola preta. Helena reconheceu-a como sendo a que lhe tinha dado em Paris. Por isso, ficámos a saber que o vídeo não era anterior a 1996. Lembrei-me também de que ela a vestia quando a vi no bar do hotel em Perth.

Depois de o amigo de Sana lhe ter tirado a câmara, ela pede-lhe - tratando-o por Ali - para lha devolver. Será o mesmo Ali em casa de quem ficou na Cidade de Gaza depois de terem cortado a mão a Jamal? Quando ele se recusa a fazer-lhe a vontade, ela gira o braço direito num grande círculo, o mais rápido que pode. Pensei que devia estar a tentar criar um vórtice imaginário que lhe trouxesse de volta a câmara. Mas Helena disse-me que me enganava; o que ela estava a fazer era um dos gestos mágicos que elas usavam para afastar a Abelha-Mestra.

- O que ela quer não é a câmara de volta - explicou Helena. - É afastá-la para longe.

- Mas a Sana tem um ar feliz e descontraído - protestei.

- Não estás a ver - disse Helena, um tom infeliz na voz -, é tudo mentira! Ela está confusa. Está assustada. Foi aquele Samir que tu conheceste que a meteu nisto. E ela não sabe como escapar.

Ali fica com a câmara. Passados uns segundos, a expressão de Sana torna-se grave. Aponta a espingarda à objectiva e aproxima-se, até que não vemos mais do que o cano metálico. Depois o vídeo acaba.

O segundo vídeo é muito mais curto - só três minutos e sete segundos. Mostra Sana sentada ao lado de Samir no sofá vermelho da casa de Bolonha, as fotografias de Israel e da Palestina nas paredes. Sombras compridas estendem-se pelo chão como água escura - devia ser o fim da tarde. Falam em árabe acerca de um espectáculo nessa mesma noite por um grupo chamado Le Tracce. Samir ri-se a certa altura e diz que não vai, seja qual for a chantagem que Sana possa tentar.

Mais tarde descobri que a companhia italiana de bailado Le Tracce actuou em Bolonha a 10 de Fevereiro de 1999, um ano antes do meu encontro com Sana em Perth.

Sana e Samir têm um ar calmo e feliz. Ele está a fumar. A certa altura, a mais de metade do vídeo, diz uma coisa qualquer ininteligível que faz Sana soltar uma risadinha.

«Mostra lá onde foste buscar a ideia», diz-lhe ele. Volta-se para a câmara com um aceno, como a preparar o espectador para uma cena interessante.

Sana levanta-se e conduz a câmara pelo corredor até um quarto. Vemo-la de costas, depois o umbral de uma porta e um cobertor azul amarrotado em cima de uma cama estreita. Acima das almofadas vê-se um cartaz de Zucchero, um cantor italiano. Devia ser o quarto de Tommaso.

Sana diz ao operador da câmara para apontar a objectiva para fora da janela. Começa por se ver uma imagem desfocada onde depois se distinguem os telhados da cidade e as torres medievais apontando para cima, para o céu azul. A imagem faz um zoom até aí, e depois regressa a Sana.

- Já houve duzentas torres em Bolonha - diz ela em árabe. - E agora há apenas duas.

Levantando a mão direita, Sana imita então o adejar das asas de uma ave. Depois o pássaro pousa-lhe no ombro, ela afaga-o e dá-lhe um beijo. Pegando nele delicadamente na palma das mãos, estende-o em direcção à câmara, sorrindo.

«Está a dar-nos um presente - o que tem de mais precioso», pensei.

Quando disse isso a Helena, ela disse:

- Sim, está a oferecer-se a si própria.

A imagem desaparece daí a poucos segundos.

 

Fiz imediatamente uma cópia dos dois vídeos na universidade e mandei-a por correio expresso ao agente Stephenson do FBI. Apesar de lho ter pedido, não me explicou se os recrutas eram da al-Qaeda ou do Hamas, ou até os remanescentes do grupo do velho amigo Abu Nidal.

- Há uma data de organizações por aqueles lados - disse Stephenson. - E acho que é melhor você não saber qual delas é.

- Pensei que não podia ser da al-Qaeda por a Sana não usar véu nenhum.

- Não lhe posso dizer.

- Mas é um grupo terrorista de que tenha ouvido falar? Diga-me só isso.

- Isso não há dúvida.

- Só mais uma coisa...

- Diga.

- Soube alguma coisa dos Israelitas? Quer dizer, a polícia secreta deles sabe alguma coisa da Sana? Andavam a segui-la? Poderá ela ter sido assassinada por um agente?

- Não posso falar consigo sobre isso.

- Tem de falar. Não posso voltar à minha vida se não me disser.

Depois de um longo silêncio, acabou por dizer:

- Eles sabiam dela. É tudo o que posso dizer.

- É possível que a tenham assassinado?

- Não tenho nenhuma informação nesse sentido nem em sentido contrário. Absolutamente nada.

- Diga-me a verdade. Peço-lhe...

- Estou a dizer-lhe o que sei. Pode não ser a verdade, mas é tudo o que tenho.

Helena calculou que Samir e a família se tinham provavelmente mudado para o Irão ou para o Iraque, ou talvez até para a Líbia, e que o que ele escrevera no bilhete que me mandou era só para me despistar. Estava igualmente convencida de que Sana devia estar a representar nos vídeos, seguindo um guião de Samir, e que ele a forçara a participar. Mesmo hoje, Helena pensa que Sana não devia ter por onde escolher, mas pode ser que a confiança absoluta na amiga da juventude a esteja a cegar.

- Há coisas que não se pode pedir a ninguém que desista delas - disse, avisando-me com os olhos para nem sequer tentar. - Se perder o que sinto pela Sana, então perco tudo o mais e regresso ao ponto onde estava.

Tentei não acreditar no bilhete que Samir me escreveu a acompanhar os vídeos, mas se calhar estava a dizer a verdade - embora não me pareça que acusar a Mossad faça grande sentido; se o que ele diz de Sana for verdade, então quer dizer que ela tinha mais uma boa razão para se sentir suficientemente culpada para pôr fim à vida.

O bilhete diz o seguinte:

 

     Caro Richard,

Acho que não lhe resta mais nada senão rever as suas conclusões depois de ver estes vídeos. Ao fim e ao cabo, quem, se não uma rapariga que passou parte da sua infância sob as torres de Bolonha, poderia ter pensado num tal modo de mudar o mundo para sempre?

Agora, também você pode ver, por que é que eu penso que ela foi assassinada. Ela não devia ter ido a Sydney. A Mossad deve tê-la seguido de lá até Perth.

Peço-lhe que se lembre que tentei evitar que viesse a saber isto e que tive o cuidado de confirmar consigo que a sua mãe não vivia em Manhattan. Não tente encontrar-me a mim ou a Alice, nunca mais.

         Cumprimentos, Samir.

 

                                                                                Richard Zimler  

 

                      

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