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Series & Trilogias Literarias
Os três navios baloiçavam ao sabor da suave ondulação que lhes passava sob as quilhas. Do castelo do leme do navio mercante conseguia-se avistar o distante porto de Ravena, sempre que a embarcação subia uma crista, mas a costa logo ficava escondida enquanto ela mergulhava na cava da onda e não chegava a vaga seguinte. O navio mercante estava preso entre duas liburnas, esguias e ágeis, que se mantinham alinhadas com a sua presa graças a inúmeros ganchos de abordagem, eles mesmos fixos em grossos postes de amarração de que os dois navios estavam providos. Os piratas que ocupavam as libumas tinham recolhido os remos e prendido apressadamente as velas, antes de se lançarem à abordagem do navio mercante. O assalto tinha sido feroz e sangrento.
A prova da fúria dos atacantes estava à vista, espalhada pelo convés: corpos despedaçados, mergulhados em grandes poças de sangue que sujavam as imaculadas e polidas tábuas. Entre eles encontravam-se os cadáveres de mais de vinte dos piratas, e no castelo da popa o capitão da libuma franziu o sobrolho, enquanto contemplava a carnificina. Tinha perdido demasiados homens na captura daquele navio de mercadores. Normalmente, a vaga ululante de homens armados que se lançavam à abordagem de uma presa era suficiente para enervar as vítimas, de tal modo que depunham as armas e se rendiam imediatamente. Mas nada disso se passara naquele caso.
A tripulação do navio, reforçada por alguns dos passageiros, tinha enfrentado os assaltantes na amurada, e tinha-os mantido à distância com uma determinação feroz, que o chefe dos piratas não se recordava de alguma vez ter visto - particularmente na infindável lista de naves de comércio que ele e os seus homens tinham capturado nos últimos meses. Equipados com arpões, ganchos, estacas e umas poucas espadas, os defensores tinham resistido tanto quanto lhes fora possível perante uma força superior em número e muito mais bem armada.
Quatro dos defensores, em particular, tinham-lhe chamado a atenção: homens de alta estatura, duros, envergando túnicas simples, castanhas, e brandindo espadas curtas. Tinham lutado até ao fim, costas com costas, em torno do mastro, e tinham liquidado mais de uma dúzia de piratas antes de soçobrarem perante o número de inimigos. Ele mesmo tinha-se visto forçado a intervir e a acabar com o último deles, mas não antes de o homem lhe ter feito uma ferida na perna - superficial, e já ligada, mas ainda assim a latejar com uma dolorosa intensidade.
Desceu para o convés principal. Parou junto ao mastro e remexeu num dos cadáveres com a ponta da bota, fazendo-o rebolar até ficar de costas. Debruçou-se sobre ele.
Tinha a constituição de um soldado, e cicatrizes bem evidentes. Como os outros, aliás. Isso talvez explicasse a habilidade que tinham demonstrado com as espadas.
Ergueu-se novamente, ainda a contemplar o romano morto. Um legionário, portanto, tal como os seus camaradas.
O capitão fez uma careta. O que estariam legionários a fazer a bordo de um navio mercante? E não eram uns soldados quaisquer: eram, claramente, homens escolhidos
a dedo - os melhores. Nem pensar em que fossem apenas passageiros que aproveitavam uma licença. Tinham sido com certeza eles a organizar e liderar a defesa. E tinham
combatido até à última gota de sangue, sem considerarem sequer a hipótese de rendição. Uma pena, reflectiu. Gostaria de lhes ter oferecido a possibilidade de se
juntarem aos seus homens. Acontecia, por vezes. Embora a maior parte dos prisioneiros fosse vendida a mercadores de escravos que não faziam perguntas sobre a proveniência
dos homens que compravam, e que tinham o bom senso de os ir vender à outra ponta do Império. Os legionários teriam sido valiosos, quer como recrutas quer como escravos,
embora neste caso, claro, fosse necessário cortar-lhes as línguas; dificilmente um homem se poderia queixar da injustiça que o levara à escravatura se não tivesse
maneira de o fazer... Mas estavam mortos. Uma morte sem sentido, decidiu. A não ser que tivessem jurado defender alguém, ou alguma coisa, até ao fim...
Portanto, o que estariam eles a fazer a bordo, realmente?
Esfregou o pano da túnica contra a coxa, e olhou à volta do convés. Os seus homens tinham aberto todas as escotilhas que davam para o porão, e alguns passavam os
objectos que pareciam mais preciosos para o convés, onde outros abriam caixas e arcas, vasculhando os conteúdos em busca de qualquer coisa de valor. Outros homens
ainda tinham-se espalhado pela coberta, onde revistavam as posses dos passageiros, e por todo o lado se ouvia o som de coisas a serem partidas.
Passou sobre os cadáveres na base do mastro e dirigiu-se à proa. Ali amontoados estavam os sobreviventes do ataque: uma mão-cheia de marinheiros, a maior parte feridos,
e alguns passageiros. Olharam-no
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amedrontados. Quase desatou a rir quando notou que um dos marujos tremia de medo e tentava esconder-se. Mas forçou-se a manter uma expressão intimidatória. Por baixo
dos caracóis negros do seu cabelo espreitavam uns olhos negros e penetrantes, enquadrados por uma testa que denunciava determinação. O nariz tinha sido partido em
tempos, pelo que era torto, e exibia uma cicatriz que curvava pelo queixo, atravessava os lábios e se prolongava pela maçã do rosto. O seu aspecto tinha um efeito
magnífico em todos os que se deparavam com ele, mas as marcas visíveis não eram o resultado da longa carreira de pirata. Pelo contrário, faziam parte do seu ser
desde a infância, quando os pais o tinham abandonado na zona mais miserável do Pireu, e há muito que tinha esquecido as circunstâncias precisas em que tinha adquirido
tão horríveis cicatrizes. Os passageiros e tripulação do navio capturado tremiam à sua frente quando ele estacou à distância de uma espada e os avaliou com os olhos
escuros.
- Sou Telémaco, o líder destes piratas. - Anunciou aos homens aterrorizados, em grego. - Onde está o vosso capitão?
Não se ouviu qualquer resposta, apenas a respiração nervosa de homens que se sabiam prestes a enfrentar um destino cruel. Os olhos do chefe dos atacantes não os
deixaram, mas a mão dele desceu e desembainhou lentamente a lâmina que levava à cintura.
- Perguntei-vos pelo vosso capitão...
- Senhor, piedade! - Interrompeu-o uma voz. O olhar do pirata dirigiu-se para o homem que, de tão aterrado, se tentara afastar o mais possível. O marinheiro
ergueu o braço e apontou-o ao longo do convés, trémulo. - O capitão está para ali... Morto... Vi-o a ser morto por si, senhor.
- Ah, viste? - Os grossos lábios do pirata curvaram-se num sorriso. - Qual deles é?
- Além, senhor. Junto à escotilha da ré. O gordo.
O chefe dos piratas olhou sobre o ombro, encontrando uma silhueta volumosa, um homem de baixa estatura que jazia esparramado no convés. E que agora era ainda mais
baixo, já que lhe faltava a cabeça. Esta não se avistava por perto, e Telémaco franziu o sobrolho, fazendo um esforço para recordar o momento em que acabara de saltar
para o convés da presa. Mesmo à sua frente, um tipo, sem dúvida o capitão do navio mercante, soltara um grito e virara-se, numa infeliz tentativa de fuga. O gume
faiscante da sua falcata tinha descrito um rápido arco através do ar, atravessando a carne quase sem dar por isso, e lançando a cabeça do homem pela borda fora.
- Sim... Já me lembro. - O sorriso abriu-se, mostrando a satisfação que sentia. - Bom, então quem é o imediato?
O tripulante, o único que se tinha arriscado a abrir a boca, rodou ligeiramente o corpo e indicou timidamente o gigante núbio que o ladeava.
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- Tu? - O pirata interpelou o outro com a ponta da cimitarra.
Antes de o confirmar, o núbio lançou um olhar de profundo desprezo e raiva ao outro marinheiro.
- Avança.
O imediato deu um passo relutante e tentou enfrentar o olhar do seu captor. Telémaco ficou satisfeito por ver que o outro tinha a coragem suficiente para tal. Isso
queria dizer que havia pelo menos um homem de jeito entre os sobreviventes. O pirata apontou para os corpos acumulados junto à base do mastro.
- Aqueles homens - os filhos da puta rijos que mataram uma data dos meus homens -, quem eram?
- Guarda-costas, senhor.
- Guarda-costas?
O núbio anuiu.
- Embarcaram em Rodes.
- Estou a ver. E quem é que eles guardavam?
- Um romano, senhor.
Telémaco olhou sobre o ombro do seu interlocutor, examinando os outros prisioneiros.
- E onde anda esse?
O núbio encolheu os ombros.
- Não faço ideia, senhor. Não o vejo desde a abordagem. É capaz de estar morto. Pode ter sido atirado ao mar.
- Núbio... - O chefe dos piratas aproximou-se e continuou num tom gélido e repleto de ameaças. - Não nasci ontem. Ou me mostras imediatamente esse romano,
ou eu mostro-te como é feito o teu coração... Onde é que ele está?
- Aqui. - Anunciou uma voz, na parte de trás do magote de prisioneiros. Um vulto abriu caminho, um homem alto e magro com as características fisionómicas
típicas da sua raça: cabelo escuro, pele bronzeada, e o longo nariz que os romanos tanto gostavam de mostrar ao resto do mundo. Envergava uma túnica simples, numa
mais do que provável tentativa de passar por um passageiro remediado, sem dinheiro para mais do que uma acomodação no convés, à mercê dos elementos. Mas a vaidade
do homem era indisfarçável, e mostrava ainda um dispendioso anel que lhe adornava um dedo da mão direita. O grande rubi incrustado em ouro atraiu imediatamente a
atenção do pirata.
- Podes começar já a rezar para que isso saia com facilidade...
O romano lançou um olhar ao dedo.
- Isto? Está na minha família há muitas gerações. O meu pai usou-o antes de mim, e o meu filho fá-lo-á depois de mim.
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- Não estejas tão certo disso. - O ar divertido do chefe dos piratas era evidente, mesmo através das suas feições calejadas. - Ora bem, quem és tu? Qualquer
tipo que viaje em companhia e sob protecção daqueles quatro armários, os cabrões, tem de ser alguém influente... e rico.
Foi a vez do romano sorrir.
- Mais do que podes imaginar.
- Duvido. No que diz respeito a riquezas, tenho uma vasta imaginação. Bom, por muito que gostasse de aproveitar esta rara oportunidade para trocar umas palavras
com alguém minimamente culto, temo que nos falte o tempo para isso. Há uma ligeira possibilidade de que algum vigia em Ravena se tenha apercebido da nossa pequena
acção, e de que tenha ido avisar o comandante local. Por muito bons que sejam os meus navios, duvido que aguentassem o embate com um esquadrão imperial. Portanto,
romano, diz-me quem és. Esta é a última vez que to pergunto.
- Muito bem. Caio Célio Segundo, ao teu serviço. - O homem inclinou a cabeça.
- Ora aí está um belo nome, cheio de ressonâncias nobres. Presumo que a tua família será capaz de juntar uma maquia decente para o teu resgate...
- Evidentemente. Diz o teu preço - desde que seja razoável. Será pago, e depois poderás desembarcar-me, a mim e à minha bagagem.
- Assim tão simples? - Telémaco sorriu. - Vou ter de ponderar a coisa...
- Capitão! Capitão!
Ouviu-se um burburinho na popa do navio, e um pirata surgiu da escotilha que dava acesso às acomodações dos passageiros. Trazia nas mãos um fardo, um objecto embrulhado
num pano de algodão sem ornamentos. Ao dirigir-se para a vante, levantou-o ao alto.
- Capitão, veja! Olhe para isto!
Todos os olhares se concentraram no homem enquanto ele corria para o chefe, e se lançava de joelhos no convés, pousando cuidadosamente a peça que transportava, afastando
as dobras de tecido e revelando um cofre na forma de uma pequena arca, feita de uma madeira fina e escura, quase negra. Estava polida, revelando a sua antiguidade
e o incontável número de mãos por que passara. Possuía alguns reforços metálicos, de ouro. Nos pontos em que as bandas de ouro se recobriam, viam-se pequenas peças
de ónix incrustadas, representando os mais poderosos dos deuses gregos. Numa pequena placa de prata na tampa podia ler- se M Antonius hicfecit.
- Marco António? - Por momentos, o capitão pirata deixou-se levar pela beleza da peça, mas depressa a sua mente profissional começou a
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funcionar e a calcular o valor do objecto, o que o fez relembrar-se do romano.
- Tua?
A face de Caio Célio Segundo não mostrava qualquer expressão.
- Seja, então não é tua... Mas eras tu que a levavas. Uma bela peça. Deve valer uma fortuna.
- De facto. - Concedeu o romano. - E pode ser tua.
- Oh... A sério? - Retorquiu Telémaco, com elaborada ironia.
- É muito gentil da tua parte. Parece-me até que vou aceitar.
O romano inclinou a cabeça, num gesto que pretendeu gracioso.
- Permite-me apenas que conserve o conteúdo do cofre.
O pirata olhou para ele com renovado interesse.
- O conteúdo?
- Uns livros. Algo que me ajude a passar o tempo, enquanto espero pelo resgate.
- Livros? Pergunto-me que género de livros poderia ser transportado numa caixa assim...
- Histórias, nada mais. - Explicou apressadamente o romano.
- Nada que possa despertar o teu interesse.
- Deixa-me ser eu a avaliar tal coisa. - Respondeu o capitão, enquanto se agachava para melhor examinar o cofre.
Havia uma pequena fechadura na frente, e a construção tinha sido tão perfeita que mal se notava a linha que marcava a junção da tampa à base do cofre. Telémaco ergueu
o olhar.
- Dá-me a chave.
- Não... Não a tenho comigo.
- Romano, não estou com paciência para jogos. Quero a chave, já. A não ser que queiras ser feito em pedaços e servir de alimento aos peixes.
Por momentos, o outro não respondeu nem se mexeu. Num instante, uma espécie de relâmpago atravessou o ar, quando o braço do pirata se moveu e a ponta da sua espada
se deteve a um dedo de distância da garganta do romano, firme como uma rocha, como se nunca se tivesse mexido. Segundo estremeceu, deixando finalmente entrever o
terror que sentia.
- A chave... - Insistiu o chefe dos piratas, calmamente.
Segundo pegou no anel com os dedos da outra mão e lutou desesperadamente para o tirar. Estava demasiado apertado, e as unhas cuidadas arranharam-lhe a pele enquanto
tentava arrancá-lo. Por fim, o anel lá saiu, lubrificado pelo sangue, entre gemidos de dor e esforço. Hesitou um instante antes de o dar ao bandido, os dedos a abrirem-se
lentamente para revelar o aro dourado na palma da mão. De facto, não era somente um anel. Na
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parte interior, paralela ao dedo, havia uma pequena saliência, elegantemente trabalhada, com uma ponta ornada.
- Ora, cá está. - Os ombros do romano descaíram, em sinal de derrota, quando o capitão pirata pegou no anel e tentou introduzir a chave na fechadura. Só entrava
numa posição, e ele passou uns instantes a procurar a orientação correcta. Entretanto, o resto da tripulação amontoava-se por perto, tentando ver o que se passava.
A chave entrou por fim, e ele rodou-a. Ouviu-se o típico ruído da abertura de uma fechadura, e a tampa soltou-se. Com dedos ávidos, Telémaco abriu-a por completo,
revelando o conteúdo da pequena arca.
Franziu o sobrolho.
- Rolos?
No interior da arca viam-se três rolos, presos a pinos de marfim e envoltos em estojos de cabedal. Estes estavam tão gastos e sujos que o pirata suspeitou imediatamente
de que eram antigos. Observou-os, de alguma forma desapontado. Um cofre daquele género devia conter uma verdadeira fortuna em jóias ou moedas. Nunca livros. Por
que raio haveria um homem de transportar uma coisa daquelas, se lá dentro só tinha uns manuscritos velhos e gastos?
O romano atreveu-se a sorrir.
- Como eu disse, são apenas pergaminhos.
O outro respondeu-lhe com ar astuto.
- Apenas pergaminhos? Não me parece.
Levantou-se e dirigiu-se à tripulação.
- Levem este cofre e o resto do saque para os nossos navios! Toca a despachar!
Os piratas cumpriram imediatamente as ordens, apressando-se a transferir todos os artigos valiosos para bordo das duas libumas que ladeavam a embarcação romana.
A maior parte da carga era constituída por blocos de mármore; valiosos, mas demasiado pesados para serem levados. O capitão pirata sorriu, ao pensar no uso que teria
a pedra. Quando chegasse o momento, ajudaria o navio a ir ao fundo, depressa e bem.
- O que vais fazer connosco? - Arriscou Segundo.
O pirata afastou o olhar das actividades dos seus homens e notou o ar de ansiedade dos marinheiros, que o observavam sem esconder o medo que sentiam. Cofiou a barba
rala.
- Perdi uma série de homens valorosos, hoje. Demasiados. Vou substituí-los por alguns de vós.
O romano insurgiu-se.
- E se nenhum de nós te quiser acompanhar?
- Nós? - O chefe dos piratas deixou que um sorriso maldoso se
lhe abrisse na face. - Não preciso para nada de um aristocrata romano apaparicado. Tu vais-te juntar aos outros, aos que não virão connosco.
- Estou a ver. - O romano semicerrou os olhos, tentando avaliar a distância ao farol longínquo, nas proximidades de Ravena.
O pirata soltou uma gargalhada, e abanou a cabeça, antes de prosseguir.
- Não, não estás a ver nada. A tua marinha não te virá ajudar. Tu e os outros hão-de estar a servir de alimento aos peixes muito antes que algum navio aqui
chegue. E quando cá chegarem, de qualquer maneira, não vão encontrar nada. Vocês vão conhecer o fundo do mar com este navio.
Não ficou à espera de resposta; virou-se e afastou-se rapidamente, atravessando o convés e saltando para bordo do seu próprio navio com um movimento fácil, nascido
da prática. A pequena arca já tinha sido posta à sua disposição, junto ao mastro, mas mal lhe lançou um olhar, preferindo dar ordens aos seus homens.
- Heitor!
A cabeça grisalha de um verdadeiro gigante surgiu junto à amurada do navio mercante.
- Sim, chefe?
- Prepara-te para lançar fogo à birreme. Mas, antes, vai escolher os melhores dos tripulantes. Trá-los para bordo do nosso navio. Os outros, mata-os. Deixa
o sacana arrogante do romano para o fim. Quero que ele sue um bocado antes de lhe tratares da saúde.
Heitor sorriu e desapareceu de vista. Pouco depois ouviu-se o ruído de madeira a ser despedaçada, enquanto os piratas demoliam partes do interior do navio para fazerem
uma pira no porão. O chefe voltou a concentrar-se no pequeno baú, agachando-se de novo à sua frente. Analisando-o de perto, apercebeu-se da magnífica peça que ali
estava, de todo o trabalho que tinha sido posto na sua feitura. Os dedos acariciaram a superfície polida, percorrendo os relevos feitos pelo ouro e pelas pedras
preciosas. Voltou a abanar a cabeça.
- Pergaminhos...
Abriu a fechadura e levantou a tampa com todo o cuidado. Parou por momentos, e depois pegou num dos rolos. Era muito mais pesado do que esperava, e por instantes
suspeitou que contivesse ouro. Os dedos lutaram com o atilho, pelo que ergueu o rolo para perceber que tipo de nó era; nesse gesto, notou um leve aroma a limão que
se desprendia do objecto. Com algum esforço, desfez o nó e atirou fora o atilho, mantendo uma ponta do pergaminho numa mão e desenrolando-o com a outra.
Estava escrito em grego. Era uma escrita antiga, mas legível, e Telémaco tentou perceber do que se tratava. A sua expressão começou por
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mostrar confusão e alguma frustração enquanto os olhos percorriam as linhas de texto.
Ouviu-se um súbito grito de terror, vindo do convés do navio mercante, que se apagou tão repentinamente como começara. Depois de uma breve pausa, seguiu-se outro
grito, uma voz estridente a pedir clemência, mas também esta se calou abruptamente. O capitão sorriu. Não haveria misericórdia. Conhecia o subordinado, Heitor, e
sabia muito bem o imenso prazer que lhe dava tirar a vida a outros homens. Infligir dor era a sua arte, e ele era extremamente hábil nisso, ainda mais do que no
comando de uma ágil embarcação pirata, tripulada por alguns dos mais sanguinários homens que alguma vez conhecera. Voltou a dar atenção ao pergaminho e continuou
a leitura, enquanto mais gritos se espalhavam pelo ar salgado.
No momento seguinte deparou-se com uma frase que tornou tudo claro. Com um verdadeiro choque, apercebeu-se do que tinha entre as mãos. Sabia onde tinha sido escrito,
por quem tinha sido escrito e, ainda mais importante, tinha agora uma ideia segura sobre o valor daqueles pergaminhos. Então ocorreu-lhe: podia pedir qualquer preço,
desde que fosse aos compradores adequados.
Lançou repentinamente os manuscritos para o interior da arca, e pôs-se de pé.
- Heitor! Heitor!
Mais uma vez, a cabeça do homem surgiu junto à amurada do navio aprisionado. Pousou as mãos sobre ela, uma delas empunhando uma longa adaga de lâmina curva, da qual
escorria sangue.
- O romano, já o mataste? - Quis saber Telémaco.
- Ainda não. É o próximo. - Heitor sorriu. - Quer ver?
- Não. Quero-o vivo.
- Vivo? - Estranhou o outro. - Não nos serve para nada, é um
mole.
- Oh, vai-nos ser útil, olá se vai! Vai-nos fazer mais ricos do que Creso. Trá-lo cá, depressa!
Momentos depois, o romano estava junfo ao mastro, de joelhos. O peito arfava-lhe enquanto contemplava o chefe dos piratas e o seu sanguinário ajudante. Telémaco
reparou que ainda havia nele algo de desafiador. Era romano até ao tutano, e por trás da sua aparência de frieza, devia estar tanto desprezo pelos seus captores
que este prevalecia até sobre o terror normal num homem que esperava a morte. O pirata tocou-lhe no peito com a ponta da bota.
- Já sei o que são aqueles manuscritos. Sei o que significam, e consigo imaginar aonde os levavas.
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- Então imagina à vontade! - O romano cuspiu no convés, aos pés do pirata. - Nada te direi!
Heitor ergueu a adaga e avançou, rosnando.
- Espera aí que já te digo...
- Deixa-o! - Interrompeu o capitão, pondo a mão à frente do outro pirata. - Já disse que o quero vivo.
Heitor estacou, olhando do seu líder para o romano e de novo para Telémaco, com um olhar assassino.
- Vivo?
- Sim... Ele tem de me dar algumas respostas. Quero saber para quem é que trabalha.
O romano desdenhou.
- Não te direi nada.
- Oh, vais dizer, sim. - O pirata debruçou-se sobre ele. - Imaginas-te um tipo corajoso. Isso é evidente. Mas ao longo da vida encontrei muitos homens corajosos,
e nenhum deles aguentou muito tempo nas mãos aqui do Heitor. Sabe infligir mais dor, e durante mais tempo, do que qualquer outro tipo que eu conheça. É um verdadeiro
génio. Sim, é uma arte, de facto. E o Heitor dedica-se a ela com extremo entusiasmo...
O capitão pirata olhou para o rosto do prisioneiro com dureza, e finalmente viu o homem vergar. Sorriu ao erguer-se, e voltou-se para o subordinado.
- Despacha os outros, e depressa. Depois deita fogo ao navio. Assim que isso estiver arrumado, quero-te aqui. Vamos passar a viagem de regresso aqui com este
nosso amigo...
? ?
À medida que a tarde descia sobre a superfície do mar e a ondulação suave, uma espessa nuvem de fumo começou a elevar-se do navio mercante, já meio destruído. Podiam
notar-se as chamas a dançar por entre o fumo, à medida que o fogo se espalhava a partir da coberta e tomava conta de toda a embarcação. Depressa se viu o cordame
a arder, uma aparentemente desordenada rede de cabos e cordas iluminada como se fosse uma decoração infernal. O som das madeiras a serem consumidas, pontuado por
estalidos típicos, e o próprio rugir das chamas, eram claramente audíveis para os homens que tripulavam os dois navios piratas, que agora rumavam na direcção oposta
às praias da península itálica. Para lá do horizonte, a leste, ficava a costa ilírica, e o seu labirinto de enseadas e ilhotas desertas. Os sons do navio moribundo
depressa ficaram para trás.
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Daí a pouco, o único som que perturbava a serenidade do deslizar dos dois navios pelo calmo oceano era o dos uivos enlouquecidos de um homem que se via sujeito ao
tipo de tortura que nunca, nem nos seus mais tenebrosos pesadelos, tinha imaginado.
II
- Roma... Merda... - Resmungou o centurião Macro, enquanto se levantava da cama, devagar, fazendo um esgar devido à terrível dor que lhe trespassava o crânio.
- Ainda estou em Roma, e não saio disto.
Pelas portadas partidas da janela passava uma estreita faixa de luz que atravessava o quarto miserável e lhe ia bater em cheio na cara. Fechou os olhos com força,
e inspirou lenta e profundamente. Na noite passada tinha bebido até à insensibilidade e agora, como era habitual, proferia uma silenciosa mas solene promessa de
se manter eternamente afastado do vinho barato. Os últimos três meses estavam repletos de juras semelhantes. De facto, a frequência daqueles episódios tinha aumentado
de forma perturbante nas últimas semanas, desde que tinha começado a suspeitar de que ele e o seu amigo Cato não voltariam a encontrar uma colocação nas legiões.
Parecia-lhe já ter passado uma eternidade desde que tinham sido forçados a abandonar a Segunda Legião na Britânia, e a regressar a Roma. Estava desesperado para
regressar à vida militar. Haveria com certeza alguma vaga numa das inúmeras legiões espalhadas pela vasta fronteira do Império. Parecia contudo que todos os centuriões
em serviço activo estavam a gozar de uma saúde invejável. Ou isso, ou então havia alguma conspiração para o manter a ele e a Cato com pagamento suspenso e fora da
lista de centuriões em actividade. Franziu o sobrolho ao considerar essa hipótese. Um desperdício dos seus muitos anos de experiência, concluiu, exasperado. E um
mau começo de carreira para Cato, que fora promovido a centurião há menos de um ano.
Abriu um olho e percorreu com ele as tábuas nuas do soalho até avistar o outro lado do pequeno quarto. Os caracóis escuros e desarranjados de Cato emergiam sob várias
camadas de capas e mantas, empilhadas sobre os miseráveis colchões de palha a tresandar a bolor que eram praticamente tudo o que existia no quarto quando o tinham
alugado.
- Cato... - Chamou, em voz baixa, mas não recebeu resposta. Nada se movia no outro colchão. O miúdo ainda devia estar a dormir,
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decidiu. Bom, então, deixá-lo dormir. Estava-se no fim de Janeiro, as manhãs eram frias, e não fazia sentido um tipo levantar-se antes de o Sol ter tido tempo para
aquecer aquela cidade apinhada. Mas ao menos não era aquele tipo de frio que tinham suportado no Inverno anterior, na Britânia, e que fazia gelar até os pensamentos.
A ininterrupta miséria daquele dima frio e húmido tinha penetrado até ao mais íntimo dos corações dos legionários, e tinha-os tornado melancólicos e saudosos do
calor de casa. E agora ali estava ele, em casa; só que a terrível frustração de ver a vida a passar sem actividade e as suas parcas economias a diminuírem todos
os dias estavam a dar com ele em doido.
Levou uma mão à cabeça e coçou-se, maldizendo os piolhos que pareciam nascer em todos os recantos daquele prédio miserável.
- Cabrões dos piolhos, também estão metidos nesta história. - Resmungou em voz alta. - Porque será que toda a gente me quer lixar?
A queixa não deixava de ter razão de existir. Durante quase dois anos, ele e Cato tinham combatido e progredido no meio das selvagens tribos britânicas, e tinham
desempenhado papel de relevo na derrota de Carátaco e da sua horda céltica. E que recompensa tinham tido por terem derrubado todas as ameaças? Um quarto húmido,
num prédio quase em ruínas, num dos piores bairros de Roma, enquanto esperavam uma nova chamada ao serviço activo. Pior ainda, por causa de alguma burrice burocrática,
ainda não tinham recebido qualquer salário desde que tinham regressado a Roma; e agora o dinheiro que tinham trazido da Britânia estava mesmo a acabar-se.
À distância escutava-se o alvoroço das vozes e gritos no fórum, enquanto a cidade começava a despertar para mais uma triste manhã de Inverno. Depois de um arrepio,
puxou a pesada capa militar para cima dos ombros. Fez uma careta de dor, devido ao latejar constante do crânio, e pôs-se de pé, dirigindo-se à janela. Desapertou
o cordel do prego entortado que servia de fecho improvisado e empurrou a portada partida para fora. As dobradiças rangeram em protesto, e a luz penetrou no quarto,
forçando o centurião a semicerrar os olhos perante o brilho súbito. Mas depressa se habituou. Mais uma vez o agora familiar panorama de Roma abria-se à sua frente,
e de novo não conseguiu evitar o assombro perante o espectáculo da maior cidade do mundo. O edifício em que se situava o quarto tinha sido construído no lado pobre
da colina Esquilina, e dos andares superiores podia facilmente contemplar-se a congestionada miséria da Subura e depois os templos e palácios que se erguiam em redor
do fórum, e ainda mais além os armazéns que se dispunham na margem do Tibre.
Tinham-lhe dito que no interior das muralhas de Roma se acotovelavam perto de um milhão de pessoas. Do local em que se encontrava,
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era fácil acreditar nisso. Seguindo pela encosta abaixo, os seus olhos contemplavam um caos geométrico de telhados, entre os quais as ruelas estreitas que percorriam
o bairro e que só se deixavam adivinhar pelos espaços entre os sujos cantos dos apartamentos mais elevados. Sobre a cidade espalhava-se uma nuvem de fumo, e o cheiro
acre da madeira queimada era tão intenso que conseguia mesmo sobrepor-se ao fedor a urina que vinha das instalações do pisoeiro, no piso térreo do prédio em que
Macro habitava. Mesmo depois de três meses passados na cidade, o centurião ainda não se tinha acostumado ao odor da cidade. Nem à imundície que preenchia as suas
ruas: uma mistura escura de excrementos e restos de comida podre, que nem o mais miserável dos pedintes era capaz de aproveitar. E, por todo o lado, o fluxo constante
de corpos para cá e para lá: escravos, mercadores e artesãos. Vinham de todas as partes do Império, e exibiam ainda as vestes próprias das suas culturas, formando
um padrão de cores e estilos exóticos. E à volta deles passava a corrente interminável de cidadãos, numa constante busca de algo com que se entreterem quando não
estavam nas bichas para a distribuição de trigo. Aqui e ali viam-se as liteiras dos ricos, cujos ocupantes viviam num outro mundo, longe da populaça, e chegavam
ao nariz cremes e pomadas, numa tentativa de afastar a atmosfera pútrida da cidade e substituí-la por algo mais agradável.
Era aquela a realidade da vida em Roma, e tal facto não cessava de assombrar Macro. Espantava-o que uma tão enorme massa humana fosse capaz de suportar tamanha afronta
aos sentidos, sem sequer almejar uma outra vida, livre e fresca, longe da cidade. Tinha a certeza de que Roma daria com ele em doido, e depressa.
Apoiou os cotovelos na madeira gasta do peitoril e espreitou para a rua sombria que passava ao lado do prédio. Os olhos percorreram os tijolos descarnados e sujos
da fachada por baixo da janela, e a vista desceu até à rua, fazendo os passantes assemelharem-se a insectos de quatro membros, distantes e olvidáveis enquanto se
dedicavam aos seus assuntos. Aquele quarto no sétimo andar do prédio era o local de construção humana mais elevado em que Macro alguma vez se vira, e a altura fazia-o
sentir-se um tanto tonto.
- Merda...
- Merda, o quê?
Macro virou-se e apercebeu-se de que Cato já estava acordado, esfregando os olhos enquanto bocejava.
- Eu. Sinto-me na merda.
Cato examinou-o, lançando um olhar reprovador e abanando a cabeça.
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- Bom, é isso que parece.
- Obrigadinho.
- Era melhor limpar-se.
- Para quê? De que é que isso me servia? Não vale a pena o esforço, se não há nada para fazer durante todo o dia.
- Somos soldados. Se nos desleixarmos agora, nunca recuperaremos o aprumo. E além disso, uma vez legionário, sempre legionário. Foi o que me disse.
- Quem, eu? - Macro ergueu o sobrolho, num gesto interrogativo. - Devia estar bêbado.
- Sabe-se lá.
- Já chega de piadinhas. - Gemeu, ao sentir a cabeça recomeçar a rodopiar. - Tenho de descansar mais um bocado.
- Não vai poder ser. Temos de nos preparar. - Cato pegou nas botas, calçou-as e começou a apertar os atilhos de cabedal.
- Preparar? - Macro olhou-o. - Para quê?
- Esqueceu-se?
- Esqueci-me? Do quê?
- Da reunião no palácio. Contei-lhe ontem à noite, quando o encontrei na taberna.
Macro franziu o sobrolho, enquanto se esforçava por recordar os detalhes dos acontecimentos da noite anterior.
- Qual delas?
- O Párcio Pintado. - Respondeu pacientemente Cato. - Estava a beber com uns veteranos da Décima quando eu cheguei e lhe disse que tinha conseguido marcar
uma entrevista com o procurador responsável pelas colocações dos legionários. Será na terceira hora. Portanto, não temos muito tempo para comer qualquer coisa, nos
lavarmos e fardarmos antes de ir para o palácio. Hoje é dia de corridas no Circo Máximo; se queremos escapar à multidão, temos de nos despachar. Parece-me que devia
comer qualquer coisa. Para acalmar o estômago.
- Sono. - Retorquiu Macro calmamente, enquanto se acomodava na cama, enroscando-se sob a capa. - Uma boa soneca vai fazer-me maravilhas ao estômago.
Cato acabou de apertar as botas e levantou-se, encolhendo o pescoço para evitar uma cabeçada na trave que atravessava o quarto - uma das ocasiões em que ser uma
cabeça mais alto do que Macro se revelava uma desvantagem. Pegou na saca de cevada moída que estava junto ao resto das suas posses, encostadas à parede, ao pé da
porta. Abriu-a e deitou uma dose em cada uma das malgas, antes de voltar a fechá-la cuidadosamente, enrolando-a e dando nós para evitar a entrada de ratos.
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- Bom, vou preparar a papa. Enquanto não volto, podia começar a polir a couraça.
Depois de a porta se fechar, Macro voltou a cerrar os olhos e tentou ignorar a dor que lhe ocupava o crânio. Sentia o estômago vazio e cheio de nós. Comer qualquer
coisa só lhe podia fazer bem. O Sol já subira mais uns graus no céu; reabriu os olhos. Deu um ai, afastou a capa que o cobria e dirigiu-se às pilhas de equipamento
junto à porta. Apesar de terem a mesma patente, a verdade é que Macro tinha mais de doze anos de antiguidade como centurião, e por vezes parecia-lhe bizarro seguir
as instruções do jovem. Mas, relembrou-se com amargura, a verdade é que não estavam ao serviço. A antiguidade era praticamente irrelevante. Na prática, eram apenas
dois amigos a tentar sobreviver até ao momento em que conseguissem finalmente arrancar das mãos dos avarentos funcionários do tesouro imperial os salários atrasados
a que tinham direito. Era portanto fundamental poupar todos os sestércios, enquanto uma nova colocação não aparecia. O que não era fácil, dada a inclinação de Macro
para gastar tudo o que possuía em bebida.
? ? ?
A estreita escadaria era iluminada apenas por frestas na parede, de dois em dois patamares, pelo que Cato, com os braços ocupados, tinha de descer com todas as cautelas,
tentando evitar passos em falso sobre as tábuas que rangiam. À volta apercebia-se dos sons dos outros inquilinos, à medida que despertavam: o choro de crianças,
os gritos exasperados dos pais e as lamentações monótonas de todos aqueles que enfrentavam mais um longo dia de trabalho algures na cidade. Embora tivesse nascido
em Roma, Cato crescera no palácio e de lá saíra para as legiões, pelo que nunca tivera ensejo ou motivo para conhecer as zonas pobres da urbe, muito menos para entrar
num daqueles prédios em que se amontoavam os trabalhadores. Tinha sido para ele um choque perceber que era assim que viviam muitos dos cidadãos livres de Roma. Nunca
imaginara tanta miséria. Os escravos do palácio viviam melhor. Muito melhor.
Na base das escadas virou para o interior do bloco, e saiu para o escuro pátio interno, onde se situava a cozinha comunitária. Um velhote de ar esquálido remexia
o conteúdo de uma panela enegrecida, e o cheiro a comida espalhava-se pelo ar. Mesmo tão cedo já havia gente na fila à frente de Cato, uma mulher magra que vivia
num quarto do sexto andar com uma família numerosa, mesmo por baixo dos dois centuriões. O marido trabalhava nos armazéns; era um homem entroncado, que regularmente
se embebedava e espancava a esposa e os filhos, de forma claramente perceptível
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no andar superior. Ao ouvir o som das botas cardadas de Cato no empedrado, a mulher virou-se e olhou-o. Há algum tempo tinha partido o nariz, e hoje eram a maçã
do rosto e um dos olhos que se apresentavam marcados. Ainda assim, sorriu-lhe, e Cato sorriu em resposta, nem que fosse pela pena que a mulher lhe inspirava. Ela
podia ter uma idade qualquer entre os vinte e os quarenta, mas a trabalheira de cuidar da família enquanto tentava constantemente aplacar as fúrias do brutamontes
do marido tinha deixado as suas marcas, e não era agora mais do que um farrapo humano desesperado, de pés nus, numa túnica em ruínas, um recipiente de bronze numa
mão e um bebé adormecido na outra, amparado com a anca.
Cato desviou o olhar, não querendo prolongar o contacto, e sentou-se na outra ponta do banco, à espera da sua vez. Na arcada que preenchia o lado mais distante do
pátio viam-se os escravos do pisoeiro, já em plena actividade, encarregando-se da primeira carga: um pequeno vagão repleto de túnicas e togas, de uma das famílias
ricas que recorriam aos seus serviços de lavandaria. As roupas eram lançadas directamente para o tanque de tratamento, repleto de urina, dentro do qual os escravos,
seminus, as esfregavam e limpavam de traços de sujidade. O jovem recordou-se de que tinha de trazer o balde do quarto, depois do pequeno-almoço. O conteúdo, vendido
ao pisoeiro, render-lhes-ia umas moedas, o suficiente para umas bebidas, ou seja, para começar a encher outro balde, reflectiu, com um sorriso.
- Olá, centurião.
Ergueu o olhar e reparou que a esposa do pisoeiro saíra do estabelecimento e lhe sorria abertamente. Era mais jovem do que ele, mas era casada com o envelhecido
pisoeiro há já três anos. Para ela, uma jovem engraçada mas rude do bairro de Subura, tinha sido um excelente casamento, e já tinha planos para o estabelecimento,
no dia em que o marido falecesse. Nessa altura, para dar corpo à sua ambição, far-lhe-ia falta um parceiro. Tinha explicado tudo isto a Cato, sem que ele tivesse
feito qualquer pergunta, logo que se tinha instalado no prédio; as implicações eram evidentes.
- Bom-dia, Lénia. - Saudou-a. - É bom ver-te.
Da outra ponta do banco ouviu-se um distinto fungar de desprezo.
- Ignora-a. - Lénia continuou a sorrir. - A senhora Dídio acha que é melhor do que nós. Como vai o fedelho, o Marco? Ainda continua a meter o nariz onde não
é chamado?
A outra mulher virou-lhe as costas, apertando o filho contra o peito sem se dignar a responder. Lénia pôs as mãos à cintura e lançou uma gargalhada de triunfo, antes
de voltar a dirigir a atenção para Cato.
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- E como está o meu querido centurião hoje? Novidades?
Cato abanou a cabeça.
- Ainda não há colocações, nem para mim nem para o meu amigo. Mas esta manhã temos uma reunião no palácio. Talvez logo à tarde tenha boas notícias.
- Oh... - Lénia fez uma careta. - Bom, suponho que te devo desejar boa sorte.
- Seria agradável, sim.
Ela encolheu os ombros.
- Mas não percebo essa preocupação toda. Já passou quanto tempo? Cinco meses?
- Três.
- E se continuar a não haver novidades? Devias pensar em fazer qualquer coisa da tua vida. Algo que fosse mais compensador. - Arqueou a sobrancelha e fez
uma boquinha. - Um jovem como tu podia ir longe, se tivesse a companhia adequada.
- Talvez. - Cato sentiu que corava, e olhou de relance na direcção da fogueira. A evidente atenção que recebia de Lénia embaraçava-o, e queria sair do pátio
antes que ela se pusesse a elaborar planos mais detalhados.
O velhote que tinha estado de volta do lume já levantara a panela fumegante, e transportava-a agora cuidadosamente a caminho das escadas. A mulher de Dídio pegou
nos seus recipientes.
- Desculpe. - Cato levantou-se. - Importa-se que eu me despache primeiro?
A mulher ergueu o olhar, os olhos encovados lançando uma questão silenciosa.
- Esta manhã estamos com alguma pressa. - Explicou o jovem.
- Temos de nos despachar rapidamente. - Pôs uma expressão de súplica, e inclinou muito ligeiramente a cabeça na direcção da esposa do pisoeiro. A outra mulher
fez um sorriso quase imperceptível e olhou para Lénia sem esconder a satisfação perante o ar frustrado da outra.
- Com certeza, senhor. Uma vez que tem tanta necessidade de sair
daqui.
- Muito obrigado. - Acenou em gratidão, e colocou as malgas sobre a grelha quente. Deitou alguma água, misturando-a com a cevada moída, e começou a mexer
a mistura, à medida que esta aquecia.
Lénia fungou, virou-se e dirigiu-se a passos largos para o interior do estabelecimento do marido.
? ? ?
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- Ela continua a atirar-se a ti, não é? - Riu-se Macro, enquanto limpava o fundo da sua malga de estanho com uma côdea.
- Temo que sim. - Cato já terminara a refeição, e estava a encerar os cabedais da farda com um trapo velho. As medalhas prateadas que recebera pela bravura
em combate brilhavam como moedas acabadas de cunhar, presas na posição correcta. Já tinha vestido a pesada túnica militar e a armadura articulada, e colocara as
grevas polidas sobre as canelas. Apanhou mais uma porção de cera no trapo e esfregou o cabedal resplandecente.
- E estás a pensar em fazer alguma coisa quanto a esse assunto?
- Continuou Macro, tentando esconder o sorriso.
- Nem pensar nisso. Já tenho preocupações suficientes. Se não saímos daqui e depressa, vou dar em doido.
Macro abanou a cabeça.
- És novo. Tens pela frente uns bons vinte ou vinte e cinco anos de serviço. Tens todo o tempo do mundo. Para mim, é diferente. No máximo, tenho mais uns
quinze anos. A próxima colocação vai ser com certeza a minha última possibilidade de arranjar dinheiro suficiente para me aguentar na reforma.
A preocupação na voz do amigo era evidente, e Cato interrompeu o que estava a fazer, olhando-o.
- Bem, nesse caso será melhor que aproveitemos bem esta manhã. Passei dias a rondar o gabinete do secretário até conseguir marcar esta reunião. Vamos ver
se não chegamos atrasados.
- Está certo, miúdo. Já percebi. Vou-me arranjar.
Pouco depois, Cato deu um passo atrás, examinando o aspecto de Macro com ar crítico - Que tal estou?
Cato observou-o de alto a baixo, e crispou os lábios.
- Menos mal. Temos de ir.
Quando os dois oficiais emergiram da escuridão das escadas para a rua, as cabeças viraram-se para apreciar o espectáculo das couraças brilhantes e das capas escarlates
impecáveis, ainda com aroma a lavandaria. Ambos levavam os capacetes colocados, e as cristas ondulavam sobre o metal que refulgia. Com a vara numa mão, e a outra
pousada no punho da espada, Cato inspirou fundo e aprumou-se.
Alguém lançou uma assobiadela de admiração, e o jovem virou-se; reparou imediatamente em Lénia, encostada de forma langorosa à entrada da loja do marido.
- Ora vejam só, olhem-me bem para eles! Dava-me jeito um homem de uniforme...
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Macro sorriu-lhe.
- Será um prazer ajudá-la. Assim que voltarmos do palácio, venho
aqui ter.
Lénia fez um sorriso pálido.
- Isso seria muito interessante... os dois davam-me jeito, de facto.
- Serei o primeiro a prestar-lhe auxílio. - Assegurou Macro. Cato pegou-lhe no braço.
- Vamos chegar atrasados. Temos de ir.
Macro piscou o olho a Lénia e seguiu Cato. Alinhados, marcharam garbosamente pelas ruas, descendo para o fórum e dirigindo-se às imponentes colunas brancas e vermelhas
do grandioso palácio imperial, que se erguia no Palatino.
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III
- Centuriões Macro e Cato? - Indagou o pretoriano, franzindo o sobrolho, enquanto percorria com a vista a tábua colocada à sua frente, sobre a secretária.
- Não estão na lista.
Macro sorriu-lhe.
- Vê lá outra vez. Com cuidado, se me entendes.
O guarda sacudiu os ombros enquanto lançava um suspiro de cansaço, tornando bem evidente que já tinha passado por incontáveis cenas semelhantes. Recostou-se para
trás, e abanou a cabeça.
- Desculpe, senhor. Tenho as minhas ordens. Ninguém pode ter acesso ao palácio se não tiver o nome na lista.
- Mas nós estamos na lista. - Insistiu Cato. - Temos uma reunião marcada no gabinete do exército. Com o procurador responsável pelas colocações. Neste preciso
momento, por isso temos de entrar.
O guarda arqueou as sobrancelhas.
- Senhor, faz ideia de quantas vezes já tentaram usar esse argumento comigo?
- Mas é verdade.
- Só é verdade se o seu nome estiver na lista, senhor. Como não está, não tem nenhuma reunião marcada.
- Espera aí. - Cato concentrou a atenção no guarda. - Olha, é evidente que alguém cometeu um erro. Garanto-te que temos de facto uma reunião. Marquei-a com
o secretário do procurador, ontem mesmo. Como é que ele se chama..? Demétrio, é isso. Manda-lhe uma nota a explicar que estamos aqui à entrada. Ele há-de confirmar
a minha história.
O guarda virou-se para um pequeno grupo de jovens escravos que se amontoavam num nicho lateral, perto das colunas que marcavam a entrada do palácio.
- Tu! Vai ao gabinete do exército. Procura o Demétrio e diz-lhe que estão aqui uns oficiais que dizem que têm uma reunião marcada com o procurador.
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- Obrigado. - Murmurou Cato, e puxou Macro das redondezas da secretária, arrastando-o para um dos bancos que se alinhavam junto à parede, ladeando a entrada
do palácio imperial.
Enquanto se sentavam, Macro resmungava.
- Convencido de merda. Deuses! Ah, se gostava de o ter só para mim na parada, para umas horitas de treino a sério. Lá se lhe ia a dureza toda. Sacanas de
pretorianos! Julgam que toda a gente lhes deve alguma coisa. E os guardas do palácio são os mais madraços dentre todos esses filhos da puta.
Esperaram em silêncio que o mensageiro regressasse; Cato admirou a vastidão do edifício em que mal tinham penetrado. Tinha sido construído na encosta da colina do
Palatino, e vários andares de aposentos davam para o fórum. O jovem centurião tinha crescido entre aquelas paredes. Tinham sido quase tudo o que conhecera do mundo
- até que o seu pai morrera e ele tinha sido enviado para as legiões, pouco mais de dois anos atrás. Agora, paredes e colunatas, antigos territórios de brincadeiras,
pareciam-lhe estranhas e, bizarramente, mais pequenas. Raciocinando, lembrou-se de que deixara o palácio praticamente ainda um menino, e de que tinha percorrido
o Império, por terra e mar, e de que já tinha presenciado, e de que maneira, os horrores da guerra. Tudo isso o mudara, e o fazia ver o mundo com outros olhos. Ainda
assim, sentir-se um estranho perante as colossais paredes que encerravam tantas das suas memórias fê-lo sentir um peso no coração. De repente sentiu-se muito mais
velho do que era, e estremeceu, aconchegando-se melhor na capa militar que envergava.
Quando o mensageiro regressou, trocou algumas palavras com o pretoriano, após o que este se virou e fez sinal aos dois centuriões.
Dirigiu a palavra a Cato.
- Senhor, parece que tinha razão. O Demétrio vai recebê-los agora.
- Ah, vai, não vai? - Desdenhou Macro. - É muito gentil da parte dele.
O pretoriano lançou-lhe um sorriso seco.
- Nem imagina quanto. Bom, seja como for, sigam o rapaz.
Marcharam através do pórtico da entrada, atravessaram um pequeno pátio, e entraram no edifício principal do palácio. Lá dentro, as pontas metálicas das solas das
suas botas ecoaram distintamente nas paredes elevadas do corredor por onde seguiram. Passaram por inúmeras portas abertas, através das quais se podiam ver escribas
e secretários nas suas funções, registando tudo e mantendo as pesadas rodas do Império a girar. Nas paredes dos escritórios viam-se prateleiras de alto a baixo,
repletas de rolos e tábuas, cada compartimento identificado por um número. A luz espalhava-se
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nestes gabinetes a partir de janelas com grades no cimo das paredes, e Macro não pôde deixar de imaginar como seria a vida de um daqueles homens, anos e anos a trabalhar
num espaço confinado, sem um vislumbre do mundo exterior.
Chegaram a uma escada estreita ao fim daquela passagem, e subiram quatro lanços até encontrarem outro corredor. As salas que davam para ele eram espaçosas e luminosas,
e a maior parte delas possuía janelas, de onde se devia ter uma espantosa vista sobre a cidade. O escravo deteve-se junto a uma porta aberta, e raspou a madeira
para se fazer notar.
- Entrem! - Gritou uma voz esganiçada.
Antes de passarem a porta, Cato chegou-se ao amigo e segredou-lhe.
- Deixe-me ser eu a falar. Sei como lidar com estes tipos do palácio.
O escravo conduziu-os ao interior, e perceberam que estavam numa antecâmara. Junto a uma parede viam-se dois bancos, e em frente destes havia três janelas que deixavam
entrar luz e ar fresco. Demasiado fresco, considerou Cato, quando sentiu um arrepio. Ao fundo da sala via-se uma porta encerrada. De um dos lados encontrava-se uma
grande secretária, feita de alguma madeira exótica, escura; por trás dela sentava-se o homem com quem Cato se tinha brevemente avistado na véspera. Demétrio era
um homem quase insignificante, que envergava uma túnica simples mas cuidada. Tinha um perfil grego clássico, e o cabelo esparso estava cuidadosamente penteado, com
os habituais caracóis oleados. Todo o seu porte anunciava ao mundo o poder e influência de que se julgava possuidor. Ao seu lado via-se um braseiro, espalhando calor.
No banco mais próximo desta fonte de algum prazer sentavam-se três oficiais.
Demétrio mal levantou os olhos do pergaminho que examinava para lhes fazer sinal para se aproximarem.
- Centuriões Macro e Cato? Estão atrasados.
As bochechas de Macro incharam-se imediatamente, mas antes que o amigo pudesse protestar, Cato interveio.
- Fomos retidos à entrada. O guarda não tinha nenhuma indicação sobre a nossa reunião. - Cato sorriu. - Sabe como eles são. Espero que não tenhamos perdido
a hora para o nosso encontro com o procurador.
- Mas perderam-na, de facto. - Respondeu Demétrio, em tom
neutro.
- Perdemo-la? - Macro pôs-lhe o dedo em riste mesmo à frente da cara. - Oiça lá...
- Voltem amanhã.
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- Nem pensar nisso.
Demétrio encolheu os ombros.
- É convosco. - Chamou o mensageiro com um gesto da cabeça.
- Faz o favor de mostrar a estes senhores a saída.
- Não vamos a lado nenhum! - Rosnou Macro. - E vamos ter uma reunião com o procurador. É bom que isso seja tratado, e já.
- O procurador é um homem muito ocupado. Deviam ter estado aqui à hora combinada.
Macro debruçou-se sobre a secretária, para tentar intimidar o outro.
- E tu devias ter-te assegurado de que os nossos nomes estavam na maldita lista.
- O problema não é meu.
- A partir daqui, podes crer que é teu. - Macro fez menção de desembainhar a espada, e os olhos de Demétrio arregalaram-se ao ver que alguns centímetros da
lâmina ficavam à vista. Estremeceu, e voltou a encarar Macro, que mostrava uma expressão fria e determinada.
- Não te atreverias...
- Experimenta.
Por momentos, Demétrio hesitou, e lançou com o olhar um apelo surdo aos outros oficiais presentes, mas estes limitaram-se a sorrir e a deixarem-se estar à espera
da sua vez.
- Olha que eu chamo os guardas.
- Força. - Incitou Macro. - Mas muito antes de eles cá chegarem, já tu saíste pela janela num belo embrulho. Deve ser uma altura e tanto... - Sorriu ao homem.
- Bom, e agora, por favor, podemos então ir falar com o procurador?
Demétrio engoliu em seco, e remexeu a secretária até encontrar uma tábua encerada.
- Sim, bom, deixem-me ver. Sim, suponho que ele vos pode dedicar alguns minutos quando acabar a reunião em que está agora. - Olhou para os centuriões com
ar desesperado. - Se quiserem sentar-se um bocadinho...
Macro endireitou-se e assentiu, satisfeito.
- Muito obrigado.
Enquanto ele e Cato se juntavam aos outros oficiais sentados no banco, piscou o olho ao amigo e fez uma sugestão.
- Daqui para a frente, deixa-me ser eu a falar. Parece-me que também já percebi como é que se lida com esta malta do palácio.
Os outros oficiais inclinaram-se à vez, apresentando-se aos recém-chegados. Dois eram veteranos, de faces curtidas e repletas de cicatrizes
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e cabelo hirsuto e grisalho. Ambos tinham os peitos repletos de medalhas, e um deles ostentava uma pesada pulseira de ouro no pulso. O terceiro era um tipo jovem,
via-se que recém-graduado, e sem uma única medalha ao peito. Demonstrava timidez e pouco à-vontade na companhia de homens cuja experiência era claramente muito mais
vasta do que a sua.
Um dos veteranos indicou Demétrio com um gesto da cabeça.
- Bem jogado, centurião... Macro, ou Cato?
- Macro. Anteriormente da Augusta Segunda Legião. Tal como aqui o Cato.
- Lólio Asínio. E este é o Hosídio Mutilo. Estamos à espera da papelada para nos irmos juntar à Décima. O miúdo é o Flaco Sósio. Aguarda a primeira colocação.
O jovem centurião sorriu brevemente ao fixar a atenção nos dois oficiais acabados de chegar.
- A Augusta? Então estiveram na Britânia? Que tal é aquilo?
Macro concentrou-se antes de responder, recordando dois anos repletos dos mais ferozes combates a que assistira ao longo da carreira. Tantos homens tinham morrido
- homens de valor, amigos de muitos anos, mas também outros tipos cujo nome mal tivera tempo de saber antes de os ver desaparecer. E o inimigo: brutal mas corajoso,
e sempre incitado por aqueles demoníacos druidas. Como era aquilo?
- Frio.
- Frio? - Sósio pareceu confundido perante tal resposta.
Macro confirmou.
- Sim, frio. Não te metas por esses caminhos. Vê se arranjas uma colocação num sítio confortável. Na Síria, por exemplo.
Cato abanou a cabeça, exasperado. Desde que conhecia Macro que aguentava aquela lengalenga, de que a Síria era a melhor colocação possível para um oficial do Império.
A ambição do amigo, a sua completa realização, seria conseguir a possibilidade de se perder nos lupanares orientais.
- A Síria? - Riu Asínio. - Nós viemos mesmo de lá. Estivemos a treinar umas unidades auxiliares em Damasco.
Macro aproximou-se do outro centurião, os olhos a brilhar de entusiasmo e concentração.
- Conta-me tudo - ah, a Síria. É tão bom como se conta?
- Bem, não sei o que se conta exactamente, mas...
Nesse preciso instante, a porta do gabinete do procurador abriu-se de par em par, e um homem assomou à antecâmara. De imediato Macro e Cato se puseram de pé e em
sentido, seguidos rapidamente pelos outros. Demétrio foi o último a levantar-se, levando o tempo suficiente para mostrar que não era apenas um funcionário subserviente.
O outro homem
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vestia a toga senatorial em todo o seu esplendor, com uma larga faixa púrpura junto à bainha. Acenou brevemente aos centuriões, reconhecendo a sua saudação, e voltou
para o interior do gabinete, enquanto Demétrio o seguia.
- Senhor, estão aqui os centuriões Licínio Cato e Cornélio Macro para o verem.
- Estão na lista?
- Uma falha dos serviços, senhor. O escrivão responsável será punido.
- Oh, muito bem. Manda-os entrar.
Demétrio permaneceu junto à porta, cerrando-a assim que os dois centuriões entraram no gabinete do procurador.
Viram-se numa sala de grandes dimensões, cujo chão estava coberto por uma série de espessos tapetes. A sala ficava num dos cantos do palácio, pelo que tinha janelas
a dar para dois lados. Janelas envidraçadas, notou Macro com mal-disfarçado espanto perante o luxo evidente no arranjo do gabinete. Ao fundo, por trás de uma mesa
de mármore, sentava-se o procurador, um homem gordo de cabelo escuro e anéis de ouro em quase todos os seus anafados dedos. Olhou-os com uma expressão irritada.
- Vá lá, despachem-se! Cheguem-se aqui, e depressa!
Macro e Cato caminharam em passo marcial e colocaram-se em sentido, em frente à mesa. O procurador fungou e recostou-se no cadeirão que ocupava, revelando o rotundo
ventre na forma como o tecido da túnica se esticou.
- Qual é afinal a finalidade da vossa visita?
- Senhor, gostaríamos de ser recolocados nas legiões. - Respondeu Cato.
O procurador apontou uma pilha de tábuas sobre a secretária.
- Sim, isso já sei. Deves ser o centurião Licínio Cato. Há muitos meses que fazes repetidos pedidos para seres colocado numa legião.
- Há três meses, sim, senhor. - Confirmou Cato.
- Bom, pela quantidade de mensagens, e pela conversa interminável dos meus assistentes acerca de ti, parece que já faz mais tempo. A verdade é que não posso
tomar qualquer decisão até ter informações definitivas sobre o teu estatuto.
- Estatuto? - Interrompeu Macro. - Senhor, o que quer isso dizer?
O procurador entrelaçou os dedos e apoiou neles as dobras do queixo volumoso.
- Há alguns dias, recebi a informação de que o centurião Cato foi
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condenado à morte pelo general Pláucio, comandante do exército da Britânia. Este facto é correcto, ou não?
Cato sentiu uma impressão gelada na boca do estômago. Assentiu.
- Sim, senhor. Mas posso explicar a situação.
- Será melhor, com efeito.
Cato engoliu em seco.
- A coorte foi condenada à dizimação por não ter cumprido ordens. Facto que resultou na fuga do comandante inimigo, com parte do seu exército. O centurião
Macro e eu mesmo conseguimos capturá-lo, e a sentença de morte foi levantada pelo legado da Segunda Legião.
- Sim, já conhecia essa história. Mas a verdade é que, ao levantar essa sentença, o legado Vespasiano excedeu a autoridade de que dispunha. E posso acrescentar
que existem, em círculos mais elevados, algumas questões quanto ao vosso possível envolvimento na morte do comandante da vossa coorte. E refiro-me à vossa possível
cumplicidade nesse facto.
Deixou-se ficar em silêncio, enquanto os dois oficiais mal se moviam e tentavam mostrar indiferença nas expressões faciais. Não se atreviam a olhar um para o outro,
e mantinham o olhar fixo em frente. Continuou então.
- Sei também que, depois da dizimação, o vosso comandante não era propriamente bem visto pelas tropas.
- Senhor, duvido que isso o surpreenda. - Arriscou Macro, encolhendo os ombros. - A maior parte dos homens considerava-o responsável pela punição que foi
imposta à coorte.
- A maior parte dos homens? - O procurador perscrutou a expressão de Macro. - E os oficiais, não tinham a mesma ideia?
Macro confirmou-o com um gesto silencioso.
- Bem, então por certo compreendem que a morte do centurião Máximo tenha levantado muitas suspeitas. E, naturalmente, perante tão graves acusações, o exército
resolveu investigar a questão a fundo. Já enviei uma missiva ao general Pláucio, solicitando-lhe um relatório completo sobre as ocorrências. Ainda aguardo a resposta.
Mas dentro de pouco tempo deveremos ter noção de como as coisas se passáram realmente. E, nessa altura, das duas uma: ou vocês ficarão isentos, e então poderei atribuir-lhes
novas colocações, ou serão detidos e muito provavelmente executados, de acordo com as leis do Império... Entretanto, agradecia que não tentassem deixar a cidade.
Ergueu o olhar e verificou o desespero bem expresso nas faces dos oficiais; por um breve momento, deixou cair a severa máscara burocrática e meneou tristemente a
cabeça.
- Lamento, mas nada mais há que eu possa dizer ou fazer. Só
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autorizei esta reunião por achar que vocês deviam saber em que pé está a situação. Atendendo às vossas folhas de serviço, penso que Roma vos devia pèlo menos isso.
Macro fez um sorriso triste.
- Isso e muito mais, atrevo-me a dizê-lo.
- Talvez. - O procurador encolheu os ombros. - Não me cabe a mim julgar tal questão. Bom, penso que é o momento de terminar esta reunião.
Macro e Cato mal perceberam a subtil ordem, e ficaram ainda alguns instantes a olhar em frente. Só quando o procurador pegou numa tábua nova e num estilete é que
compreenderam que deviam deixar a presença do funcionário imperial.
Já no exterior do gabinete, Cato voltou-se devagar para Macro, os ombros magros completamente abatidos, fazendo com que este se apercebesse do efeito que as palavras
do procurador tinham tido no seu jovem amigo.
- Vá lá, Cato, aguenta-te... - Macro pegou-lhe no braço, e foi assim que se encaminharam para a saída do palácio.
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IV
Deixaram o palácio e lutaram para abrir caminho por entre a multidão que enxameava o fórum. Famílias deslocavam-se em grupo, por entre bandos de jovens barulhentos
que empunhavam jarros de vinho, e toda a gente se dirigia para o Circo Máximo, tentando chegar cedo e conseguir bons lugares para assistir às corridas que decorreriam
durante todo o dia. Furando por entre esta excitada maré humana, os dois centuriões conseguiram alcançar uma taberna numa esquina. A clientela habitual das manhãs,
constituída por condutores de carroças e porteiros nocturnos, começava a dispersar, já que os homens exaustos, e agora também inebriados, se lembravam de que tinham
de ir para casa passar umas horas a dormir.
Macro chamou o empregado com um aceno.
- Cavalheiros, o que vai ser? - Perguntou o untuoso jovem, enquanto avaliava o uniforme dos novos clientes e calculava a gorjeta que poderia vir a receber
se tratasse bem dos dois centuriões.
- Um jarro do vinho mais barato que tiveres. Dois copos. - Retorquiu Macro, sem delongas. - E depressa.
- Depressa foi pedido, em breve será bebido. - Sorriu. - É o nosso lema.
- Muito giro. - Macro encarou-o. - Mas ainda seria mais veloz se nos poupasses a ele.
- Certo... Sim, acho que sim. - Esgueirou-se de volta ao balcão, permitindo a Macro dedicar alguma atenção ao amigo. Cato olhava sem ver a multidão que enchia
o fórum, na direcção do palácio, nas austeras alturas do Palatino. Não tinha pronunciado uma palavra desde que tinham saído do gabinete do procurador, e estava agora
ali sentado, ainda e sempre em silêncio. Macro deu-lhe uma palmada amigável no braço.
- Anima-te, miúdo. Já pedi o vinho.
Cato virou a cabeça e encarou o amigo.
- Não tenho colocação nas legiões, estou quase sem dinheiro, e
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agora, ao que parece, vou ser executado, um dia destes. Acha mesmo que um copo de vinho barato é capaz de me ajudar?
Macro encolheu os ombros.
- Bom, mal não te vai fazer. Aliás, o vinho tem uma forma curiosa de fazer as coisas parecerem melhores.
- Você lá sabe. - Resmungou Cato. - Nos últimos três meses bebeu o suficiente para deixar de rastos um exército completo.
O empregado regressou, fez tilintar duas taças de barro ao colocá-las sobre a mesa entre os dois oficiais, encheu-as e, com um floreado, deixou o jarro aos clientes.
- Ouviram as notícias?
Macro e Cato viraram-se para ele, ambos com expressões que indicavam claramente que seria melhor ele calar a boca e bater em retirada para trás do balcão. Mas o
sujeito não estava disposto a perder uma gorjeta por falta de empenho e encostou-se a um grosso poste de madeira que suportava os três andares por cima da taberna.
- O Pórcio está de volta.
- Pórcio? - Macro ergueu uma sobrancelha. - Quem é esse gajo, e por que carga de água havia eu de querer saber dele?
O outro abanou a cabeça, consternado perante a ignorância dos dois oficiais.
- Bem, é só o melhor condutor que alguma vez correu pelos azuis! É o cabeça de cartaz para esta tarde. Faz correr os cavalos como se tivesse nascido com as
rédeas na mão. - Inclinou-se para eles. - Aliás, deixem-me dizer-vos, se tiverem uns trocos para apostar, posso conseguir-vos boas probabilidades.
- Deixa-os em paz. - Resmungou uma voz vinda da mesa ao lado, e Macro viu-se a olhar para o rosto de um guarda pretoriano, que se tinha virado para eles.
- Esse Pórcio não passa de um merdoso convencido. Pensa que é o melhor. Se tivesse verdadeiramente algum talento, corria era pelos verdes. Senhor, poupe o seu dinheiro.
Aposte no Népio. Esse sim, corre pelos verdes.
- Népio! - O empregado cuspiu no chão. Olhou para o guarda com desprezo e a mal-disfarçada hostilidade que os apoiantes das diversas cores reservavam uns
para os outros. Depois voltou para o bar, deixando ainda, de passagem, alguns remoques aos dois centuriões. - Vale mais atirar o dinheiro para a sarjeta do que apostar
no cretino do Népio.
- Ouvi essa! - Gritou o pretoriano.
- Corridas. - Comentou Cato, calmamente. - Se um dia alguma coisa destruir este Império, serão as corridas, com toda a certeza.
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Mas Macro não o escutava. Os seus olhos não se despegavam do guarda. Dirigiu-se ao homem e tocou-lhe no ombro.
- Olá, amigo. - Sorriu. - Essas corridas - não terás por acaso alguma indicação que não te importasses de partilhar com um camarada de armas?
- Indicações? - O tipo olhou em volta, mas mais ninguém parecia prestar-lhe atenção. - Tenho, sim, tenho uma boa para si: não aposte naquele cabrão do Pórcio.
- Tocou no nariz. - Sei muito bem como são as coisas, e digo-lhe, senhor, Népio é o tipo certo. Uns tantos sestércios apostados nele, e é a felicidade garantida.
E agora, senhor, se me permite, tenho de ir. - Afastou o banco, fazendo-o raspar contra as pedras da parede, levantou-se a custo, e abriu caminho, titubeando por
entre os clientes da taberna e perdendo-se imediatamente na multidão que percorria o fórum.
- Duvido que consiga ir a direito até ao palácio. - Resmungou Cato. - Ainda assim, quem me dera ter os problemas que ele tem.
Macro voltou-se para o amigo, tentando a todo o custo encontrar palavras que o reconfortassem, por pouco que fosse, mas a verdade é que nunca tivera qualquer jeito
para coisas do género.
- É, miúdo, um azar do caraças.
- Azar do caraças? - Cato lançou uma série de gargalhadas amargas. - Oh, é muito melhor do que isso. Quer dizer, depois de tudo o que passámos, depois de
tudo o que fizemos pelo general Pláucio, pode ter a certeza de que aquele cabrão daquele patrício há-de fazer com que eu vá desta para melhor. Aí está uma coisa
em que pode apostar, sem receio de perder. E só para garantir que a sua brilhante reputação de disciplinador implacável não fica manchada. E o secretário imperial
há-de apoiá-lo.
- Talvez ele recomende um perdão. - Sugeriu Macro.
Cato encarou o amigo.
- E talvez não o faça. Seja como for, parece-me que se está a esquecer de um pormenor.
- Eu?
- A ameaça recai sobre ambos. E se o General decidir que é melhor apontar um responsável pela morte do centurião Máximo?
- Não me parece. Não há nada que me ligue à morte do Máximo, à parte alguns boatos postos a correr por idiotas que não aceitam que ele tenha sido liquidado
pelo inimigo. Não, isso não me inquieta. É contigo que estou preocupado. - Afastou o olhar, embaraçado, e este foi repousar na bolsa, presa à cintura. - E ainda
mais com o facto de estarmos sem dinheiro, e com a certeza de que vamos passar muita fome daqui a pouco tempo, a não ser que recebamos algum do dinheiro atrasado,
e depressa. Se isso não
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suceder, quando chegar a altura de pagar a renda, vamos ver-nos no olho da rua. Cato, miúdo, as coisas não estão nada brilhantes.
- Pois não.
- Portanto, o melhor é fazermos alguma coisa.
- Como por exemplo?
Macro sorriu, e debruçou-se sobre a mesa.
- Por exemplo, aproveitarmos aquela dica, e irmos até ao Circo Máximo.
- Está doido? Já só temos umas duas ou três moedas, e quer atirá-las fora?
- Atirar dinheiro fora é o que fazem os tansos. Nós temos uma coisa certa.
- Não, o que temos aqui é um caso de optimismo incurável. Quanto a mim, sou realista. Se é para atirarmos fora o resto do dinheiro, mais vale dá-lo a quem
precise.
Macro deu uma palmada no tampo da mesa, fazendo estremecer as canecas.
- Oh, Cato, caramba! O pouco que temos também não nos vai servir para nada. Se aquela dica tiver algum valor, as probabilidades devem ser razoáveis, e sabe-se
lá, se ganharmos, vamos conseguir manter a miséria longe mais algum tempo. O que é que temos a perder?
- Para lá do bom senso?
Macro fez cara de irritado.
- Ao menos uma vez, acredita no destino e vê o que sucede.
Cato ponderou o assunto por momentos. No fundo, Macro tinha
razão; já tinha perdido quase tudo o que era a sua vida, e ela própria parecia no caminho certo para terminar. Portanto, para quê preocupar-se com um punhado de
moedas? A resposta do general chegaria da Britânia antes que os capangas do senhorio os encostassem à parede e lhes tentassem arrancar o pagamento atrasado. Valia
mais viver um pouco enquanto podia.
- Seja, vamos embora então.
? ? ?
Quando finalmente conseguiram passar pelo enorme arco que marcava uma das entradas públicas para o Circo Máximo, já só restavam alguns lugares na secção reservada
aos militares. A maior parte dos assentos nos degraus de pedra estavam tomados por guardas pretorianos, que bebiam vinho de cantis de pele e faziam as suas apostas.
Aqui e ali havia uns grupos de legionários - homens de folga ou que, como Macro e Cato, aguardavam
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novas colocações. Também havia um bom número de ex-soldados, na reforma ou deficientes de guerra, que aproveitavam uma das vantagens do seu estatuto de veteranos.
O Imperador Cláudio tinha, astutamente, decidido alterar a disposição dos assentos reservados às tropas; desta forma, os pretorianos rodeavam o grande camarote imperial.
Os senadores, muito a contragosto, tinham mudado de posição, e viam-se espalhados pelos seus lugares, servidos pelos escravos pessoais, que os abasteciam de vinho
aquecido, em pequenos cálices. Olhando para lá deles, Cato avistou o recinto reservado às vestais, a secção da nobreza menor, mais acanhada, a seguir as bancadas
designadas para os cidadãos comuns, apinhadas, e por fim, nos últimos degraus, os libertos, os estrangeiros e as mulheres sem companhia, muitas das quais se dedicavam
a um negócio óbvio. O olhar de Macro seguiu na mesma direcção.
- Esquece-as. Não tens dinheiro para isso. A não ser que o Népio nos faça um serviço decente.
Cato dirigiu o olhar para a vasta pista que se estendia à frente deles. Vários comissários das corridas atravessavam-na, dirigindo-se à ilha interior, enquanto ao
redor laborava uma multidão de escravos, alisando a areia, criando uma superfície plana para preparar a primeira corrida da tarde. Os assistentes dos sacerdotes
empurravam uma gaiola repleta de cabritos brancos, alvos e perfeitos, na direcção do altar sacrificial, que ficava a meio da ilha, mesmo em frente ao camarote imperial.
Por todo o lado os vendedores ofereciam comida, almofadas, ou lenços coloridos com os tons das diferentes equipas. Por entre as bancadas circulavam também os corretores
de apostas, sempre acompanhados por um ou dois brutamontes, para garantir a segurança do dinheiro recolhido. Macro engoliu em seco, levantou-se, e dirigiu-se ao
mais próximo; era um hispânico de ar arguto que levava nos braços uma pilha de tábuas enceradas, amarradas. Seguiam-no dois tipos enormes, musculados e repletos
de cicatrizes, como era habitual no caso de ex-gladiadores. Cada um deles transportava uma caixa de dinheiro a tiracolo e ostentava um porrete, para
o caso de surgirem problemas.
- Deixe-me adivinhar. - Comentou, ao avistar Macro e imaginar-lhe as posses. - Vai apostar uma peça de ouro no Népio, para ganhar.
- Hum, não. - Macro sentiu o embaraço a fazer-lhe corar as faces. Olhou em redor e continuou, em voz baixa. - Cinco dinheiros no Népio, para ganhar.
- Cinco dinheiros? - O outro parecia desapontado. Refez rapidamente a sua avaliação do centurião, e prosseguiu em tom sarcástico. - Tem a certeza de que pode
apostar isso tudo?
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Macro empertigou-se.
- É claro que tenho, sim. Cinco no Népio, como já disse.
- No Népio? Sabe que as probabilidades estão a dez-para-um?
- É mesmo com isso que conto.
- Bom, o dinheiro é seu. De certeza que é isto...?
Macro fez uma careta.
- Queres aceitar a aposta, ou não?
- Não estou aqui para outra coisa. Só um momento... Senhor. - O homem abriu a sua pilha de tábuas e preparou-se para fazer um novo registo com o estilete.
Com uma letra miúda, começou a escrevinhar na cera, nurmurando enquanto o fazia. - Cinco dinheiros, no Népio, para a vitória... O seu nome?
- Centurião Macro.
- Macro. Muito bem, agora preciso do seu pagamento. - Macro passou-lhe as moedas de prata e o agente depositou-as num dos cofres que os seus ajudantes transportavam.
Desapareceram pela ranhura e juntaram-se ao resto do dinheiro com um ruído metálico abafado. O agente acenou ao homem encarregado do cofre. - É a aposta cento e
quarenta e três.
O ex-gladiador pegou no aro metálico que levava à cintura e remeteu até encontrar a peça de madeira que procurava, retirando-a do anel e ntregando-a a Macro. O
agente lançou um sorriso ao centurião.
- Foi um prazer negociar consigo, embora duvide de que nos voltemos a ver. E agora, se me dá licença...
Macro guardou a peça de madeira na bolsa, e apressou-se a regressar para junto de Cato.
- Quanto é que apostou no Népio?
- O suficiente. - Respondeu Macro rapidamente, e depois apontou na direcção do camarote imperial, sobre as cabeças dos espectadores.
- Olha, já lá estão alguns dos guardas pessoais do Imperador. Deve estar mesmo a chegar.
- Quanto? - Insistiu Cato.
- Oh, uns cinco dinheiros, ou coisa assim.
- Cinco din... Macro, isso é praticamente tudo o que temos.
- De facto, é mesmo tudo o que temos. - Encolheu os ombros,
à laia de desculpa. - É um risco, mas consegui que me dessem dez para um.
- A sério? - Respondeu Cato, com amargura. - E porque é que acha que isso é uma boa notícia? Isso só quer dizer que há nove em dez hipóteses do tipo perder.
- Olha. - Disse Macro, baixando a voz. - Aquele nosso amigo
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garantiu-nos que estava no papo. Quando a corrida acabar, vamos receber cinquenta moedas de prata.
- Eu sei fazer contas, obrigado. Cinquenta moedas, se ele ganhar.
- Vai ganhar, acredita. Tenho faro para estas coisas.
Cato abanou a cabeça e afastou o olhar, deixando-se atrair pelo camarote imperial. Neste, os escravos atarefavam-se a preparar uma mesa com petiscos e vinhos, junto
ao cadeirão do Imperador. Mesmo à distância a que se encontrava, uns cinquenta passos, distinguia perfeitamente uma travessa com aves dispostas de forma artística,
e recobertas por algo que parecia mel. A boca encheu-se-lhe de saliva, e o estômago resmungou, lembrando-lhe a fome que sentia.
A comitiva imperial começou a emergir através da sua entrada privada, e a ocupar os seus lugares. Um punhado de senadores, correntemente em posições de favor, acomodaram-se
nas almofadas acolhedoras que tinham sido colocadas de ambos os lados do estrado onde se encontrava o assento do Imperador. Seguiram-se alguns dos libertos e dos
escribas imperiais, que se deixaram ficar de pé na parte de trás do camarote. Por fim avistou-se a cabeleira branca de Cláudio, coberta pela coroa dourada, e um
tremendo alarido percorreu as bancadas, fazendo ecoar por todo o Circo Máximo a saudação da multidão ao seu soberano. Mais ruidosa do que uma batalha, considerou
Cato. Bastante mais.
O Imperador deixou-se ficar imóvel por momentos, saboreando o aplauso popular. Só a cabeça se movia, no tique característico que escapava ao mais feroz autocontrolo.
Por fim, Cláudio ergueu lentamente o braço e rodou para saudar a multidão, que respondeu ao gesto com um recrudescer do aplauso. O braço do Imperador desceu por
fim, e ele instalou-se atabalhoadamente no seu lugar. Quando Messalina, a esposa, o seguiu, o entusiasmo da populaça voltou a crescer.
Macro inclinou-se para Cato e gritou-lhe ao ouvido.
- Pelo que tenho ouvido, aposto que há por aí muita gente que a conhece quase tão bem como o marido.
Sorriu, e Cato olhou ansioso em redor, para se assegurar de que ninguém tinha ouvido o comentário. Era o género de piada pública que os informadores apanhavam no
ar e passavam aos agentes do palácio, em troca de uma pequena recompensa. E então, numa noite qualquer, um esquadrão de pretorianos arrombaria a porta de uma casa,
pegaria em alguém e levá-lo-ia, para nunca mais ser visto ou lembrado. Felizmente, as palavras impensadas de Macro tinham-se perdido no clamor da multidão, e o jovem
voltou a acalmar-se.
Nesse momento reparou noutro homem que chegara ao camarote imperial: magro, de cabelo escuro e com uma toga branca e simples.
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Cláudio acenou-lhe com um sorriso, e indicou-lhe um lugar próximo. Cato sentiu que Macro lhe punha uma mão junto à orelha, para se fazer ouvir, e apontava o camarote
com a outra.
- Viste quem acabou de chegar?
Cato confirmou.
- Sim, o nosso amigo, o secretário imperial.
- Achas que ele saberá que estamos em Roma?
- Se ainda não souber, depressa o descobrirá.
- Isso quer dizer mais sarilhos. Foi o cabrão do Narciso que convenceu o general Pláucio a dizimar a nossa coorte.
- Eu sei. O facto de eu ainda estar vivo não lhe deve dar grande
prazer.
Cato não conseguiu evitar um arrepio de receio enquanto espreitava sobre as cabeças da multidão, na direcção de Narciso. Muito pouco escapava à atenção do homem
que controlava a polícia secreta do Império, que se desembaraçava de qualquer potencial ameaça, e que se encarregava de distribuir os favores do Imperador. E se
ele viesse a saber da presença de Cato na cidade, sentir-se-ia por certo tentado a atar as pontas soltas do caso, de preferência com um discreto estrangulamento
num recanto escuro e esquecido de uma prisão mamertina. A verdade, porém, é que existia uma possibilidade, por remota que fosse, de que ele e Macro tivessem conseguido
escapar à vigilância de Narciso, pelo menos até àquela altura.
Nesse preciso instante, Narciso remexeu-se na cadeira e lançou um alhar sobre a multidão; antes que Cato pudesse reagir, fixou a área onde se encontravam os dois
centuriões. O jovem sentiu que as suas entranhas se enregelavam. Foi um momento apenas, antes de se abaixar e desaparecer da linha de visão de Narciso.
- Merda! - Vociferou. - Merda... Merda... Merda.
Macro baixou-se também, alarmado pela repentina alteração de humor do amigo.
- O que se passa?
- Viu-nos. Pelo menos, reparou em mim.
- Tretas. Como é que ele ia fazer isso? Um par de rostos no meio de milhares de pessoas. Nem pensar...
- Estou-lhe a dizer que ele me viu! - Cato já quase conseguia sentir as rudes mãos dos guardas pretorianos que Narciso não deixaria de enviar para o deterem.
Tudo estaria acabado dali a pouco tempo.
Macro levantou-se cautelosamente e arriscou um olhar na direcção do camarote imperial, para logo se voltar a sentar junto ao amigo.
- Ele nem sequer está a olhar para cá, está na conversa com o Imperador. Não se passa nada. Ele não te viu. Tem calma.
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O entusiasmo dos espectadores acalmou, à medida que os sacerdotes preparavam o sacrifício preliminar às corridas do dia. Dois assistentes tiraram um dos cabritos
brancos da gaiola e, apesar de o animal se debater, pegaram-lhe pelas patas e levaram-no até ao altar, mantendo-o depois imobilizado sobre a superfície de mármore
ofuscante. O sacerdote entoava uma reza cantada que se podia ouvir em todo o recinto, solicitando as bênçãos de Júpiter, o maior e mais poderoso dos deuses, para
o Imperador Cláudio, para a sua família, para o Senado e para o povo de Roma, e por fim para os condutores envolvidos nas corridas. Pegou então numa adaga curva,
ergueu-a sobre o animal que balia ainda, fez uma pausa, deixando que o Sol fizesse rebrilhar a lâmina, e golpeou. Os sons que o animal emitia extinguiram-se abruptamente.
O sacerdote debruçou-se então sobre a carcaça ainda em estertores, e investigou-lhe as entranhas com a ponta da adaga. Extraiu o fígado, rebrilhante em tons de vermelho
e púrpura, e que fumegava ligeiramente em contacto com o ar fresco. Examinou o órgão detalhadamente, e chamou um colega, que também se debruçou sobre o fígado; os
dois homens compararam as leituras, chegando a acordo. O primeiro sacerdote levantou então a víscera, mostrando-a à multidão e assinalando que Júpiter aceitara o
sacrifício, e que as corridas podiam começar. Um clamor subiu da turba, resultado da libertação da tensão. Macro bateu com as mãos nos joelhos e sorriu como um miúdo
a quem tinham dado um brinquedo.
Os discursos dos sacerdotes do Senado foram tão breves quanto possível. Consistiram nos habituais panegíricos aos que ofereciam o espectáculo, naquele caso o próprioCláudio.
O Imperador batia com os pés, impaciente, enquanto tentava atrair a atenção dos oradores e fazia gestos claros para os apressar. A multidão aclamava cada discurso,
como habitualmente, até que por fim o último orador desceu do pódio na ilha, e toda a gente esticou o pescoço, para obter a melhor vista dos portões na extremidade
da pista do Circo Máximo.
O momento era de expectativa. Ouviu-se então uma fanfarra estridente, e os portões escancararam-se, revelando os escuros túneis que levavam às entranhas do edifício.
Notou-se movimentto nas sombras, e logo as equipagens saíram para a luz e para a areia do Circo Máximo. A multidão ululava e agitava-se com entusiasmo, e depressa
os brados avulsos deram lugar a cânticos de apoio às diferentes equipas, ou de insulto e gozo das cores rivais. A maior parte dos pretorianos defendia os azuis,
como depressa se tornou evidente, e gritava o nome de Pórcio, enquanto este conduzia o seu veículo pela frente do camarote imperial e saudava o Imperador Cláudio.
- Será melhor que aquele sacana perca. - Disse Macro, baixinho.
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Depois deu uma olhadela em redor, nervoso, e respirou fundo. - Força, Pórcio!
Cato fez cara de espanto, e olhou para ele. Macro encolheu os ombros.
- É só para não criar inimigos por aqui. Não vale a pena andar à pancada por causa disto.
As equipagens completaram uma volta à pista e detiveram-se, alinhadas de frente para o Imperador. Os membros das equipas afadigaram-se em volta dos cavalos, fazendo
um ajuste final nas rédeas e arneses, e aplicando uma última camada de gordura nos eixos dos veículos. Os condutores verificaram as rédeas e asseguraram-se de que
tinham as facas de segurança, extremamente afiadas, nas bainhas que levavam à cintura. Cada um dos competidores envergava uma túnica sem mangas, curta, e da cor
da equipa, e os panos que tinham enrolados em torno das pernas eram também das mesmas cores.
Macro virou a sua atenção para Népio, um tipo magro e de tez escura. Mantinha-se empertigado e hirto, no seu uniforme verde. Demasiado parado, na opinião do centurião,
quase como se tivesse receio de se mexer. Ou talvez fosse uma demonstração de nervos de aço. O que seria uma perspectiva bem melhor.
Quando todos os preparativos terminaram, as equipas de apoio retiraram-se da pista, deixando aos condutores o trabalho de dominarem com as rédeas os seus cavalos.
Os animais tinham sido criados com o fito único de correr a alta velocidade, e desafiavam-se uns aos outros, nervosos, as narinas infladas e os poderosos flancos
irrequietos.
Por momentos, Cato esqueceu todos os seus problemas, debruçando-se para a frente no assento e admirando as quatro quadrigas e os cavalos, tensos e prontos a libertar
toda a sua energia. O Imperador acenou ao director da corrida, e este subiu ao pódio em frente ao camarote imperial. Levava na mão uma bandeirola, que desenrolou
cuidadosamente e ergueu no ar, até ter o braço todo esticado. Os olhos das dezenas de milhares de pessoas presentes no Circo estavam postos nele, e não se ouvia
um som excepto o resfolgar dos cavalos. O director esperou até que as quadrigas estivessem tão alinhadas quanto possível. Então baixou a mão, fazendo descer a bandeirola
com um floreado. A multidão regressou à vida, com um rugido tremendo. Os condutores fizeram estalar as rédeas e os cavalos lançaram ao ar grandes nuvens de areia
quando se puseram em movimento, puxando os veículos e acelerando a cada passada.
Pórcio, fiel à sua reputação, conseguiu de alguma forma extrair um esforço extra da sua equipagem, e ao fim da primeira recta, tinha uma ligeira vantagem. Os azuis
conseguiram destacar-se das outras equipas ao fazer
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a curva, levantando cortinas de pó, já que os veículos eram literalmente arrastados de lado; no momento seguinte, ficaram escondidos pela ilha. Os brados dos espectadores
à volta de Cato amainaram ligeiramente, enquanto todos olhavam para a outra ponta da pista e esperavam ansiosos que as quadrigas reaparecessem. A primeira a surgir
foi anunciada por um jacto de areia, e os pretorianos irromperam em gritos de júbilo ao verem que era o seu favorito Pórcio quem liderava a prova. Logo atrás vinha
Népio, o que fez Macro quase saltar de alegria, já que a sua aposta se mantinha na luta pela vitória. Com golpes selvagens das rédeas, Népio levou a sua equipagem
para o exterior da pista, à medida que progredia na recta, ainda antes de passar pela frente do camarote imperial. Pouco a pouco foi-se aproximando, e por fim estava
quase a par dos azuis. Pórcio apercebeu-se do perigo e, com um puxão rápido nas rédeas, manobrou de forma a impedir a recuperação do rival. Um grito de ultraje saiu
das gargantas dos apoiantes dos verdes, e Macro cerrou os punhos, mas manteve a boca fechada. Ao seu lado, Cato sentiu-se doente quando viu a forma como o homem
que levava consigo o destino do resto do seu dinheiro refreava desesperadamente os seus cavalos e se desviava subitamente para a esquerda, aproximando-se da ilha.
Pelo seu lado, Pórcio tinha calculado mal a manobra, o que fez com que os seus cavalos perdessem o ritmo, e via-se agora obrigado a incitá-los de novo. Mas já era
demasiado tarde. Népio, inclinado sobre a frente da sua quadriga, manejava furiosamente as rédeas e encorajava os seus animais, aos gritos. Adiantaram-se pelo interior
da equipagem azul, ultrapassaram-na e assumiram o comando. Cato sentiu uma corrente de alegria percorrer-lhe o corpo, e lutou para não o demonstrar.
- Sim! - Macro lançou o punho ao ar, antes de olhar em volta com algum receio. Alguns dos pretorianos olhavam para ele com ar surpreendido, mas depressa voltaram
a dirigir a atenção para a corrida.
- Cuidado. - Murmurou Cato. - Tenho a sensação de que não estamos propriamente no meio de amigos.
Na pista, Népio liderava agora, e foi o primeiro a rodear a ilha, curvando e de novo desaparecendo da vista. Logo a seguir, a equipagem azul imitou-o. Já havia uma
distância considerável entre os dois concorrentes que lutavam pela vitória e as outras duas cores, a vermelha e a amarela, que ainda assim se degladiavam ferozmente
pela primazia na tentativa de se aproximarem dos líderes. O barulho daquele lado do Circo voltou a decrescer, enquanto a corrida prosseguia na parte da pista que
ficava por trás da ilha. As cabeças viraram-se para a extremidade distante da mesma, e todos os espectadores se prepararam para novas emoções.
Nem todos.
Cato olhou de relance para o camarote imperial, e apercebeu-se de
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que Narciso não despegava os olhos da zona em que se sentava. Os seus olhares cruzaram-se. Não havia que enganar. O secretário imperial olhava fixamente para ele,
e o jovem nada podia fazer, excepto fingir que nada se passava, e que era apenas mais um rosto anónimo no meio da turba. Nesse momento, Narciso ergueu a mão, apontou-lhe
um dedo e acenou lentamente, antes de voltar a atenção para o que sucedia na pista. O sopro gelado do terror percorreu a espinha de Cato. Tinha sido visto e reconhecido,
e agora nada se poderia interpor entre ele e o secretário imperial. Era como se já estivesse morto. Narciso tinha chamado um dos oficiais da guarda, e falava-lhe
ao ouvido, dando claro ênfase às palavras. Podia ser qualquer coisa, tentou Cato acreditar, em desespero; podiam estar a debater outro assunto qualquer, ou outra
pessoa. Mas então Narciso virou-se e apontou para ele, e o oficial anuiu e dirigiu-se para a saída do camarote.
Cato pegou no braço do amigo.
- Temos de ir! Agora mesmo!
- Estás doido? - Macro sacudiu o braço, libertando-se. - O que resta do nosso dinheiro está em jogo ali em baixo. Não vamos a lado nenhum. Pelo menos antes
de a corrida acabar.
- Mas... - A mente de Cato funcionava a toda a velocidade. Não havia tempo para explicar a situação a Macro. E ele não se ia mexer. - Muito bem! Vou regressar
àquela taberna. Vá lá ter comigo, depois da corrida.
- Levantou-se, pegou no capacete e subiu as escadas que levavam à saída em passo acelerado.
Lá atrás, Macro ainda tentava segurá-lo, lançando a mão na sua direcção.
- Cato! Espera! Oh, olha, vai-te lixar, então!
Cato apressou-se a descer a íngreme escadaria que levava às arcadas que corriam todo o perímetro do Circo, sob as bancadas. Dali, outra escadaria mais larga dava
para a rua; as suas botas cardadas faziam um ruído que ecoava nas colunas e no tecto abobadado da galeria. Acima do som abafado da multidão julgou distinguir outro
som de passos, também de botas, e depois um grito. Correu pelas escadas abaixo, saltando de três em três degraus, arriscando-se a uma queda, na pressa de abandonar
o Circo antes que os homens de Narciso o detivessem. Quando chegou à base das escadas, emergiu das sombras do edifício e notou que ainda havia bastante tráfego na
alameda que passava junto ao Circo Máximo. Percebeu que, se corresse, seria facilmente detectado no meio da multidão. Respirou fundo e meteu-se calmamente por entre
os passantes, afastando-se da escadaria na diagonal e dirigindo-se a uma abertura entre as lojas do outro lado da rua, onde desembocava uma ruela que conduzia ao
fórum. Ouviu o som dos passos nas escadas mas, reunindo toda a sua força de vontade, forçou-se a
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não olhar para trás e a continuar a andar sem vacilar no rumo que escolhera. Recusando-se a enfrentar o olhar de todos aqueles com quem se cruzava ou quase chocava,
prosseguiu, sempre à espera de um grito nas suas costas, e que ditaria o seu fim. Por fim, chegou à esquina para onde se dirigia e meteu pela via escura, fazendo
uma ligeira pausa para ver o que se passava na saída do circo. Quatro pretorianos estavam nas escadas, escrutinando a multidão, mas nenhum deles olhava na sua direcção.
Apressou-se pelo beco, uma das mais antigas ruas da cidade, que serpenteava pela encosta e que se tornava cada vez mais estreito, até o céu não passar de uma linha
quebrada lá no alto, definida apenas pelas bermas dos blocos de apartamentos que se amontoavam de ambos os lados da via. Os gritos da multidão no Circo ficavam cada
vez mais ténues, e a atmosfera do beco tornava-se pesada, com o odor de comida apodrecida e de esgoto. Passou por poucas pessoas. Algumas mulheres de aspecto inconfundível
lançaram-lhe olhares convidativos a partir de portas abertas, e a certa altura teve de se desviar de um grupo de jovens bêbados que se dirigiam ao Circo Máximo.
Nada lhe orientava os passos na penumbra, apenas a direcção geral que a rua seguia e a necessidade de se afastar dos eventuais perseguidores. Por fim contornou uma
esquina e o beco desembocou numa rua larga e a fervilhar de gente. À esquerda estava o fórum e, com um suspiro de alívio, dirigiu-se para lá, caminhando de forma
mais calma, tentando não agir como o fugitivo em que se vira transformado.
Encontrou facilmente a taberna e sentou-se no interior do estabelecimento, junto à parede, de forma a poder vigiar a multidão lá fora e recolher-se para a sombra,
se surgisse a necessidade de escapar a algum olhar inquiridor. O jovem empregado aproximou-se, a secar as mãos num pano imundo. O reconhecimento iluminou-lhe a face,
e sorriu.
- Então, afinal não foi às corridas?
- Fomos, sim. - Retorquiu, antes de perceber que o facto de ter deixado o Circo tão depressa seria suspeito, a menos que oferecesse uma explicação lógica
para tal facto. - Mas lembrei-me de que tinha ficado de me encontrar aqui com outra pessoa. O meu amigo há-de vir cá ter.
- Certo. - O outro encolheu os ombros. - Bom, é uma pena. E o que vai ser?
- Vai ser?
- Amigo, isto é uma taberna, não uma sala de espera.
- Uma taça de vinho. Vinho aquecido.
- Só uma taça?
- Por agora é tudo.
- Certo. - O tipo lançou o pano sobre o ombro, e dirigiu-se aos grandes recipientes que ocupavam o fundo da sala. Regressou e colocou
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uma taça fumegante na mesa, com estrondo. - É um sestércio.
Aflito, Cato percebeu que era Macro quem tinha o dinheiro, e que o amigo ficara no Circo. Olhou para o empregado.
- Ponha na conta. Pago quando o meu amigo regressar.
O homem abanou a cabeça.
- Aqui não há contas. Política da casa. Pagamento imediato.
Cato aclarou a garganta e lançou um olhar duro ao jovem. Baixou
o tom da voz até esta se tornar num rosnar selvagem.
- Já disse que pago mais tarde. Desanda.
O outro abriu a boca para protestar. Cato encostou-se à parede, cruzou os braços, e acenou para o fundo da taberna. O empregado deitou-lhe um olhar frio, mas acabou
por recuar e foi-se pôr atrás do balcão, a enxaguar copos e a manter aquele cliente difícil debaixo de olho.
Cato virou a atenção para a turba que enchia o fórum, e esperou. Idealmente, Macro regressaria depois da primeira corrida, e da vitória de Népio. Nessa altura poderia
recolher a sua parte do lucro e perder-se no fórum. Passou uma hora; a taça à sua frente já estava vazia há muito tempo. Não se atrevia a pedir outra, para o caso
de Macro não aparecer, e começava a preocupar-se com a maneira como ia sair daquela história.
Então, a curta distância, abriu-se uma clareira na multidão, em resposta ao grito de nojo de uma patrícia. Passara por ela uma figura repelente, que envergava a
farda de um centurião. A face do homem estava esmurrada e sangrenta, e Cato não reconheceu Macro senão ao fim de algum tempo. Então, quando o amigo se dirigiu à
taberna, Cato saltou na sua direcção.
- Macro! Macro, o que se passou consigo?
V
- Sai da minha frente! - Berrou Macro. Afastou Cato do caminho e atirou-se ao empregado, lançando-lhe um murro ao crânio. Mas o outro trabalhava há bastante
tempo nas tabernas do fórum, e sabia muito bem como se comportar em situações do género. Esquivou-se ao golpe e deu um passo ao lado, aproveitando para aplicar um
forte empurrão nas costas do centurião quando este, com o ímpeto, se colocou a jeito. Macro atropelou uma mesa e respectivos bancos, lançando-os pelos ares, e foi
embater contra o sólido balcão com força suficiente para lhe roubar o fôlego. Deixou-se ficar por momentos, a abanar a cabeça, oportunidade que o outro não desperdiçou:
esgueirou-se para trás do balcão e empunhou um pesado cacete. Os outros clientes apressaram-se a abandonar os assentos, empurrando-se até à rua, onde se colocaram
em posição de apreciar o espectáculo que decorria no interior.
- Chamem a ronda! - Gritou um deles. Outras vozes repetiram o apelo, no meio da multidão que começava a aglomerar-se na frente da taberna.
A última coisa que Cato queria era despertar a atenção de algum dos homens da coorte urbana, que patrulhava as ruas da cidade. Cuidadosamente, aproximou-se de Macro
e pegou-lhe no ombro.
- Foram chamar a ronda. Macro, temos de sair daqui, e depressa.
O outro centurião não mostrou sinais de acalmia.
- Vai já, assim que tiver despachado aquele sacana.
- Não pode ser. - Cato olhou em redor e notou o ar selvagem do empregado da taberna, de cacete erguido e pronto para uma luta sem quartel. - Quanto é que
devemos?
- Dever? - O outro fez uma careta. - Desapareçam, vão para o raio que vos parta. Leva-me esse traste daqui para fora.
- Muito bem. - Cato voltou a aproximar-se do amigo e ajudou-o a firmar-se, tentando ao mesmo tempo controlá-lo com uma pressão firme no braço. - Vá. Temos
mesmo de ir.
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Macro reparou no tom de urgência na voz de Cato, e assentiu. Os dois centuriões abriram caminho por entre os destroços de mesas e bancos e saíram da taberna. Instintivamente,
a turba abriu-lhes caminho, recuando à sua frente. A curta distância, por entre as cabeças dos mirones, viam-se quatro cristas vermelhas a aproximarem-se.
- Por aqui. - Cato empurrou Macro, seguindo ao longo da linha de bancadas que bordejava o fórum e misturando-se com a multidão de turistas e compradores.
Quando achou que já tinham posto uma distância segura entre eles e a taberna, puxou o amigo para um beco estreito e escuro, e os dois deixaram-se ficar encostados
às imundas paredes laterais de um templo, a recuperar o fôlego.
- Para que raio foi aquilo? - Perguntou Cato, irritado.
- Hã?
- A cena na taberna. Qual foi o interesse, porra?
- Aquele filho da puta era apoiante do Pórcio.
- Já sei. E então?
- O Pórcio ganhou.
- E lá por causa...? Oh, merda. - Cato deixou descair a cabeça.
- A aposta. Perdeu todo o nosso dinheiro.
- Espera aí, o que é que queres dizer com isso? - Retorquiu Macro, furioso. - Não fui eu. O dinheiro era nosso. A aposta era nossa. Se tivéssemos ganhado,
tinhas direito à tua parte.
- Mas não ganhámos.
- Sei muito bem, foda-se! - Macro deu um murro no próprio peito. - Estava lá quando o merdoso do Népio se foi enfaixar contra a parede. E a menos de cinquenta
metros da meta. Os pretorianos mijaram-se todos a rir...
- E?
- Bem... - Macro baixou o olhar. - Foi nessa altura que espetei um murro num deles.
- Atacou um pretoriano?
- Por acaso, acho que foram dois. Ou mais alguns. Não me lembro bem. Um deles ficou logo esticado no chão.
- Estou a ver. - Cato mal conseguia falar, por entre os dentes cerrados. - Portanto, além de perder todo o dinheiro que nos restava, ainda conseguiu pôr a
Guarda Pretoriana atrás de nós. E agora, graças à animada cena ali atrás, na taberna, também temos a coorte urbana à nossa procura.
- Cato massajou a fronte, para tentar acalmar a torrente de pensamentos pouco agradáveis que lhe percorria a mente. - E ainda por cima, o Narciso já sabe
que estamos em Roma.
Macro levantou o olhar.
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- Hã?
- Viu-me. No Circo.
- Tens a certeza?
- Claro que tenho a certeza. Olhou directamente para mim. Até me acenou. Mesmo antes de mandar alguns homens ver se me apanhavam. Por que razão pensa que
eu me raspei tão depressa?
Macro encolheu os ombros.
- Fiquei na dúvida. Bom, e agora, o que é que fazemos?
- Boa pergunta. O problema é que não há uma resposta decente. Escapar de Roma não me parece realizável. De certeza que há homens à nossa espera em todos os
portões da cidade. E, sem dinheiro, vai ser difícil mantermo-nos escondidos por aqui.
Ficaram em silêncio por momentos, até que Macro levou a mão à face e fez um esgar de dor quando tocou na enorme nódoa negra que se formava na maçã do rosto.
- Au! Porra, que isto dói!
Cato olhou-o de forma severa.
- Foi merecida.
- Obrigadinho pela simpatia... - Macro olhou para o amigo. - Bem, temos de sair da rua.
? ? ?
Nessa noite, Cato estava deitado de lado, a olhar para a parede, tão próxima que conseguia ver a respiração a condensar-se sobre o estuque rachado, graças a um raio
de luar que penetrava pela portada partida. Sentia-se mais fatigado do que em qualquer outra ocasião dos derradeiros meses, mas a sua mente recusava-se a deixar
de passar em revista os acontecimentos do dia. A incerteza quanto ao futuro, que nunca deixara de o atormentar desde que regressara a Roma, parecia agora quase trivial,
face à situação desesperada em que se via. Só mesmo um milagre o poderia salvar. Assolado por estes pensamentos, deixou-se ficar imóvel, fitando a parede ao longo
do que lhe pareceram horas. Macro, como de costume, tinha adormecido profundamente assim que pousara a cabeça, e o seu ressonar ameaçava fazer ruir o edifício a
qualquer instante. Durante alguns minutos, Cato brincou com a ideia de se levantar, atravessar o quarto e ajeitar Macro de forma a que este ficasse de lado e deixasse
de ressonar, mas para isso teria de abandonar o quentinho que conseguira criar por baixo da túnica, da capa e do cobertor. Portanto, aguentou o barulho, habituou-se
a ele, e acabou por deslizar para o sono.
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Despertou ao som de algo que se quebrava. Eram os primeiros alvores da madrugada, e o interior do quarto já era perceptível à luz acinzentada. Sentou-se, olhando
para a porta no preciso momento em que o velho ferrolho metálico era empurrado para fora do encaixe e as tábuas degradadas se quebravam, entrando pelo quarto e batendo
na parede, provocando uma chuva de estuque.
- Que raio é isto?... - Macro levantou a cabeça no instante em que quatro soldados fortemente armados irrompiam pelo quarto, espadas em riste.
- Não se mexam! - Gritou um dos homens, agitando a espada de forma a tornar a ameaça claramente perceptível. Cato e Macro deixaram-se ficar imóveis, pelo
que o outro baixou a arma e se lhes dirigiu num tom mais formal.
- Centuriões Macro e Cato?
Cato anuiu.
- Narciso quer vê-los.
VI
- Porra! - Gritou Macro, e fez um gesto veloz na direcção da espada que tinha deixado encostada à parede. Mas o pretoriano não se deixou surpreender, e calcou
o pulso de Macro debaixo da bota. O centurião gritou de dor quando as pontas metálicas lhe penetraram na carne, mas antes de continuar a vociferar, sentiu a ponta
de uma espada encostada à garganta.
- Senhor, se fosse a si, não pensaria sequer nisso. - Admoestou o pretoriano, em tom razoável. - São só dois, estão por terra, e estariam mortos antes ainda
de conseguirem empunhar as espadas. Portanto, a melhor opção é não nos darem trabalho. - Deixou que as palavras fossem bem entendidas e, quando Macro demonstrou,
com um gesto da cabeça, que tinha aceitado a situação, l evantou lentamente o pé, embora mantivesse a ponta da espada assestada ao pescoço do centurião. Sem desviar
dele o olhar, deu uma ordem:
- Frontino, apanha as armas.
Um dos homens embainhou o gládio e recolheu as espadas e adagas dos dois oficiais. Só quando ele saiu do quarto é que o comandante da patrulha deixou de ameaçar
Macro, dando então um passo atrás.
- Vistam-se. E arrumem o vosso equipamento.
Cato franziu o sobrolho.
- O equipamento?
- Sim, senhor. Receio que não regressem a estas acomodações.
O sangue de Cato enregelou. Sentia-se atordoado. Era então assim que se passavam as coisas. Uma cordial visita dos homens de mão do secretário imperial, e mais dois
nomes eram apagados da História. Quase deu uma gargalhada, quando se apercebeu da presunção implícita em tal ideia. Ele e Macro não valiam sequer uma nota de rodapé
nos livros. Eram apenas dois personagens menores, com um papel passageiro num drama irrelevante, passado nas províncias. Nada mais obteriam do que o esquecimento,
mesmo nas memórias dos homens que os tinham vindo buscar e conduzir à morte. Era tudo, e Cato não podia deixar de sentir a amarga raiva de alguém
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cuja vida parecia destinada a terminar quase antes de começar, sem que esse fim tivesse qualquer significado. Encarou o pretoriano.
- Aonde nos levas?
- Já o disse, senhor. Narciso quer ver-vos.
Cato sorriu. Naturalmente, o secretário imperial queria despedir-se deles, de forma a que não lhes ficasse qualquer dúvida sobre quem tinha decidido o seu fim. Vindo
de Narciso, era típico. Por insignificante que fosse o triunfo, ele sentia que tinha de o testemunhar em pessoa. Noutras circunstâncias, Cato teria todo o prazer
em reflectir sobre as falhas de carácter que um comportamento tão inseguro punha em evidência, mas, perante a perspectiva da morte iminente, nada mais lhe ocupava
o espírito senão ódio e desespero.
- Muito bem, senhores, por favor, levantem-se agora. A minha agenda para esta manhã está cheia; ainda tenho previstos mais alguns encontros. Portanto, se
não se importam...?
Cato levantou-se do colchão lentamente, planos de luta e fúga a correrem-lhe pela mente. Tentava perceber se os pretorianos os liquidariam ali mesmo. Mas nesse caso,
imaginou, teriam de levar os corpos para depois os deixarem algures. E essa perspectiva não lhes devia agradar. Era muito mais simples se as vítimas fossem pelos
seus próprios pés até ao local de execução. Tendo sempre o cuidado de não virar as costas aos guardas, calçou as botas e apertou-as, e depois juntou as suas roupas
e equipamento na manta, antes de a dobrar para fazer uma trouxa. Macro fazia os mesmos gestos do outro lado do quarto. Não havia muito que se pudesse deixar ficar
para trás: uns restos de comida, umas peças de roupa que precisavam de remendo. Cato não podia deixar de se sentir admirado por lhes darem tempo para arrumar os
pertences, mas depois lembrou-se de que os bens terrenos dos dois centuriões ainda valeriam um bom preço nas casernas.
Acabou de dobrar a manta em volta das suas coisas, amarrou as pontas e prendeu o nó na ponta da vara de marcha. Quando Macro terminou, juntou-se a ele, a curta distância
dos pretorianos. Fingindo olhar para as botas, como se estivesse a verificar se os cordões estavam apertados, perguntou num sussurro:
- Achas que devíamos tentar qualquer coisa?
- Não.
O pretoriano sorriu, adivinhando a conversa, apesar de não a ter escutado.
- Por favor, não tentem nada estúpido. Eu e os rapazes temos uma larga experiência na condução de pessoas... Aonde quer que vão.
- De prisioneiros, queres tu dizer. - Rosnou Macro.
O outro limitou-se a encolher os ombros.
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- Pessoas, prisioneiros, para nós é a mesma coisa, senhor. Limitamo-nos a recolhê-los e a entregá-los. Outros tratam das questões mais sujas. Estou apenas
a avisá-los para que não tentem a fuga. Não seria agradável, nem para nós nem para vocês, se percebe o que quero dizer.
Macro olhou-o com cara de poucos amigos.
- Percebia-o mais depressa se não te pusesses com mariquices. Nas legiões não temos medo de dar nome às coisas. É que nós temos mesmo de lidar com as questões
sujas.
- Pois, senhor, mas não estamos na legião, não é? Aqui em Roma fazemos as coisas com mais estilo.
- A morte é a morte, rapaz. Não há como escondê-lo.
- Ficaria admirado com o que se pode esconder nesta cidade. - O pretoriano sorriu friamente, e depois deu um passo ao lado e indicou a porta. - E agora, senhores,
se não se importam...?
Os centuriões abandonaram o quarto, escoltados por dois guardas à frente e dois atrás, de espadas empunhadas. Desceram as estreitas escadas e viram-se na entrada
do edifício. A chegada dos pretorianos tinha sido notada, e havia uma pequena multidão curiosa à espera de novidades. Quando a escolta e os prisioneiros saíram para
a rua, Lénia abandonava a lavandaria. Os olhos abriram-se-lhe de espanto ao ver Cato e Macro com as suas trouxas. Colocou-se à frente dos pretorianos.
- Cato! Que se passa?
- Saia do caminho, senhora! - Avisou um dos guardas.
Lénia espreitou-lhe por cima do ombro.
- Cato?
Tentou passar, mas o pretoriano agarrou-a pelo braço e lançou-a sem cerimónia contra a parede do edifício, onde ficou a ver os guardas a afastarem-se com os prisioneiros.
? ? ?
Entraram no palácio por uma porta de serviço, situada numa ruela estreita, bem longe dos portões mais conhecidos. Cato lembrava-se de a ter utilizado várias vezes,
em criança, quando habitara nas acomodações dos escravos, no interior do palácio. Havia pouca gente por ali para assistir à sua entrada, e percebeu como era simples
fazer desaparecer pessoas naquela cidade. Depois de passarem pelos guardas que vigiavam a porta, os pretorianos levaram-nos por um corredor até uma escadaria, que
subiram, penetrando no coração do palácio imperial.
Cato virou-se para o líder da patrulha:
- Não nos levas para as celas?
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O homem mostrou-se surpreendido com a questão.
- Evidentemente que não. - Depois relaxou um pouco a dura expressão que ostentava. - Senhor, foram-nos dadas ordens para os conduzirmos até Narciso. E foi
tudo o que nos foi indicado, a vosso respeito.
- Então não nos foram buscar para sermos executados?
- Não, senhor. Apenas para vos trazermos até Narciso. É tudo. Se ele decidir que vocês afinal já eram, bom, nesse caso será diferente, e teremos de vos levar
até aos rapazes que tratam dessas coisas.
- Oh... - Cato observou o homem com atenção, tentando perceber como podia alguém ser tão despegado acerca das tarefas que lhe incubiam. Talvez o pretoriano
se tivesse simplesmente habituado a elas. Lembrava-se de que, durante os três anos em que o Imperador Calígula tinha estado no poder, a Guarda Pretoriana não tinha
tido um momento de descanso, sempre a prender e executar pessoas.
Depois de subirem quatro lanços de escadas, chegaram a um largo corredor, cujo soalho era decorado por um padrão de mosaicos. Janelas amplas, ao alto das paredes,
deixavam entrar a luz em jorros. Cato nunca tinha passado por aquele corredor e, ao aperceber-se de uma ligeira corrente de ar quente a subir-lhe pelas pernas, percebeu
que aquela zona do palácio era aquecida.
Macro resmungou.
- O nosso amigo Narciso sabe tratar-se bem.
O grupo de guardas e prisioneiros marchou pelo corredor até encontrar uma imponente porta, quase com o dobro da altura de um homem. A guardá-la estava um par de
pretorianos, e num nicho à esquerda via-se um escrivão sentado a uma secretária de nogueira. Envergava uma túnica de lã de aspecto requintado, e assim que ouviu
o som dos passos, ergueu o olhar.
- Centuriões Macro e Cato, tal como foi ordenado pelo secretário imperial.
- Está numa reunião com o Imperador. Têm de esperar. Acolá. - Apontou com o estilete para o outro lado do corredor, onde se viam alguns bancos a preencher
outro nicho na parede. O grupo dirigiu-se para lá, e os dois centuriões depuseram, aliviados, as cargas que transportavam, e sentaram-se. Dois dos guardas posicionaram-se
dos lados. Naquele ambiente austero e limpo dos gabinetes do secretário imperial, Macro não conseguiu deixar de pensar no mau aspecto que apresentava, sujo e com
a barba por fazer. Olhou de relance para Cato, mas o amigo, completamente absorto na sua miséria, tinha o olhar perdido nos mosaicos do chão.
A reunião entre o Imperador e o secretário parecia não ter fim. A medida que o Sol se erguia sobre a cidade atarefada, a luz que entrava pelas
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janelas foi deslizando ao longo das paredes, até atingir os prisioneiros e a sua escolta, aquecendo-os com o seu brilho dourado. Macro recostou-se e cerrou os olhos
e, apesar da difícil situação em que se encontrava, apreciou a sensação reconfortante do calor e da luz alaranjada que via através das pálpebras. Nesse semitorpor,
não deu pela ligeira chiadela que as portas emitiram quando se abriram. Os guardas puseram-se imediatamente em sentido, e o escrivão levantou-se e fez uma vénia.
Cato também se pôs de pé, mas antes que conseguisse sacudir Macro, o Imperador de Roma e o seu mais fiel servidor, Narciso, emergiram da sala para o corredor.
- E-e-então, achas que é assim tão importante?
- Sim, César. - Narciso enfatizou as suas palavras com um gesto da cabeça. - É um componente essencial do trabalho que nos espera. Sem isso, a posteridade
ver-se-á irremediavelmente empobrecida.
O Imperador Cláudio olhou para ele de olhos arregalados, e viu-se presa de um acesso de violentas sacudidelas da cabeça.
- A sério? É isso que p-p-pensas?
- Sim, César. Sem qualquer dúvida.
- Bom, se é assim que pões a q-q-questão, que posso eu dizer? Já suspeitava que os meus poemas de i-i-infância não seriam suficientes para ilustrar a minha
autobiografia. - Sorriu, sacudiu-se, e apertou o braço de Narciso. - Convenceste-me. Como sempre, o teu bom g-g-gosto e opinião fundamentada formam o complemento
ideal para o meu génio.
- César. - Narciso inclinou a cabeça. - Não mereço tamanhos elogios. Nenhum mortal com um mínimo de sensibilidade literária poderia deixar de reparar no brilho
divino dos teus poderes de percepção e descrição.
Radiante e grato, Cláudio apertou de novo o braço do liberto; mas nesse instante reparou em Macro, cabeceando no banco, e deteve-se.
- Suspeito que aquele t-t-tipo ali não partilha a tua opinião.
Narciso reparou então na cena, e rosnou imediatamente uma ordem.
- Ponham-me esse idiota de pé, e já!
Dois dos guardas pegaram em Macro pôr debaixo dos braços e içaram-no. O centurião abriu os olhos entaramelados.
- O que é? O que foi? Oh...
Assim que viu o Imperador, Macro despertou e ficou tão hirto como um pilar de mármore; Cláudio manquejou até ele, e mirou-o de alto abaixo.
- Este é um dos homens de que me estavas a falar, Narciso?
- Sim, César.
- Devo dizer que não me parece nada um es... espécime impressionante
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. Assemelha-se mais ao tipo de homem que podemos sacrificar sem que isso nos faça perder o s-s-sono.
- Exacto, César. Mais uma vez, antecipas os meus pensamentos.
Cláudio virou-se para Cato, com a surpresa estampada no rosto.
- E este, este rapaz? Não é com certeza o outro oficial de que me falaste. Olha, n-n-nem parece ter idade suficiente para fazer a barba!
Narciso obrigou-se a dar uma gargalhada, mas, quando o escrivão o imitou, o Imperador girou sobre os calcanhares com ar de poucos amigos.
- Quem é que te disse para rires também?
O homem calou-se de imediato, empalidecendo e baixando o
olhar.
- Assim é melhor. - O Imperador voltou a concentrar-se no seu exame aos dois centuriões. - Suponho que s-s-sabes o que andas a fazer, Narciso. Aquele assunto
de que falámos vai ter de ser tratado com muita cautela. Tens a certeza de que es-es-estes homens estão à altura da tarefa?
- Se eles não estiverem, mais ninguém estará, César.
- Muito bem... Vejo-te ao jantar.
- César. - Narciso voltou a inclinar a cabeça, no que foi imitado pelos pretorianos, pelo escrivão e pelos dois centuriões. Mantiveram-se assim até que Cláudio
virou para uma galeria lateral, depois de seguir pelo corredor. No momento em que o Imperador saiu da vista do grupo, escutou-se um suspiro colectivo, resultado
do alívio da tensão. A Macro parecia que tinha estado à beira da execução sumária, a que escapara por uma unha negra, e o coração batia-lhe desalmadamente.
Narciso mal olhou para os dois centuriões antes de dar uma ordem.
- Tragam-nos!
Rodou sobre os calcanhares e voltou para o interior do seu gabinete, enquanto Cato e Macro pegavam nos seus fardos e se viam escoltados através da enorme porta que
dava passagem para as instalações ocupadas pelo secretário imperial.
A sala era vasta. O tecto estava à mesma altura que no corredor, e o chão estava coberto por peles, através das quais ainda se conseguia sentir o calor do soalho
aquecido. A parede à direita era forrada por prateleiras com formato hexagonal, onde se podiam descortinar livros e pergaminhos. A da esquerda estava ocupada por
uma pintura de grandes proporções, mostrando com todos os detalhes uma vasta baía que se espraiava pela distância, até se perder na neblina. A cena, porém, era dominada
por uma montanha altaneira, que fazia parecer minúsculas as povoações que se espalhavam no seu sopé, junto à margem. Na parede mais distante existiam quatro janelas,
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com uma vista espectacular sobre o fórum e as encostas que ficavam para lá dessa zona da capital. Narciso atravessara a sala e tinha-se instalado por trás da mesa
de carvalho, de dimensões proporcionais às do gabinete, e nem tanto devido à diminuta quantidade de papéis que sobre ela se viam, e que dificilmente dava ideia de
que o ocupante daquela posição levava uma vida atarefada. O secretário reparou nos olhares assombrados dos centuriões ao admirarem a cidade lá em baixo, fascinados
por uma vista tão ampla.
- Impressionante, não é? - Sorriu. - É geralmente a primeira coisa em que repara quem visita este gabinete. Acho que é inspiradora e, ao mesmo tempo, assustadora.
Aliás, aterrorizante.
Desviou-se de Macro e Cato para melhor apreciar a vista, e prosseguiu no mesmo tom pensativo.
- É daqui que o Império é governado. Deste palácio. É a mente que dirige os músculos e tendões do Império. E ali em baixo, no fórum, vemos a expressão pública
desse poder. Os templos a dezenas de deuses. As basílicas, onde os destinos dos homens são decididos, negociados, regulados pelas leis. Chega gente de todo o mundo
para admirar, ali mesmo, o muito que conseguimos. Em conjunto, o palácio e o fórum são o altar do poder e da ordem. - Fez uma pausa e ergueu a mão, apontando para
a encosta da Subura, uma massa disforme de tijolos e estuque, imunda, como uma vaga prestes a rebentar e submergir o fórum. - Ali, pelo contrário, imperam a pobreza
e a depravação, o caos, uma permanente ameaça à ordem que criámos. Lembra-me quotidianamente o que poderá ser o futuro desta cidade, se o Imperador e aqueles que
trabalham para o seu bem forem afastados do poder. Os plebeus são os bárbaros que já temos do lado de dentro dos portões. Enquanto os mantivermos alimentados e entretidos,
temo-los no bolso. Mas se os deixarmos perceber o poder que possuem ou, pior ainda, se permitirmos que outrem explore os seus instintos mais básicos e as suas superstições,
aproveitarão a primeira oportunidade para nos cortarem as cabeças. - Concluiu Narciso, pondo toda a ênfase nas últimas palavras.
O secretário imperial voltou-se de novo para os dois centuriões, com uma expressão de cansaço no rosto.
- Portanto, a minha missão, o objectivo que persigo nesta vida, é a manutenção da ordem e a garantia de que Cláudio permanece no poder. O que significa que
tenho de identificar e neutralizar toda e qualquer ameaça ao Imperador. E a vossa função, como soldados que prestaram um juramento de obediência à vontade do Imperador,
é prestarem-me auxílio sob toda e qualquer forma que eu determine. Faço-me entender?
- Sim, senhor. - Responderam os dois em uníssono. Cato não fazia a menor ideia do que estava o secretário imperial a falar. Mas a
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menção de que os seus serviços eram necessários, e a ausência de qualquer referência a execuções, começavam a pôr-lhe alguma esperança no coração.
Narciso acenou, satisfeito com a pronta e obediente resposta, e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos na mesa.
- Então, oiçam com atenção. Tenho uma missão para vocês os dois. Claro que é perigosa, e que as vossas vidas se verão ameaçadas. Mas vocês pouco têm a perder.
Não é verdade, centurião Cato?
- Senhor?
- Não me tentes fazer passar por parvo, jovem. És um condenado. Só teria de erguer a voz, chamar os guardas e ordenar-lhes que te executassem aqui mesmo.
A ti e ao teu amigo, se quisesse. E ninguém me perguntaria sequer o motivo de tal ordem. Por acaso, até tenho uma boa justificação. Estás a ver isto? - Pegou num
rolo de pergaminho que se via sobre a mesa.
- Chegou ontem. Da Britânia. Sabes quem mo mandou?
O coração de Cato quase parou.
- O general Pláucio?
- Em cheio. E suponho que também conseguirás adivinhar o conteúdo. - Narciso sorriu levemente. - A sentença de morte é mantida. Além do mais, o general garante-me
que existem provas circunstanciais suficientes para levarem à execução do centurião Macro por motim e assassinato. Portanto, vocês os dois não passam de mortos-vivos.
Deixou que as suas palavras fizessem efeito, mantendo o olhar severo nos dois centuriões; os olhos escuros, castanhos, encovados por baixo das cuidadas sobrancelhas,
pesavam. Cato tentou responder, repleto de temor e ira, adivinhando que o secretário imperial se preparava para os enviar ao encontro de novos perigos. Engoliu nervosamente,
antes de abrir aboca.
- A não ser que façamos o que nos vai pedir.
- É isso mesmo. - Concordou Narciso. - Farão o que vos disser, ou não passarão de carcaças lançadas aos necrófagos, antes que o dia termine.
Macro interveio, com a voz cheia de desprezo:
- E o que quer que nós lhe façamos? Algum assassínio? Fazer desaparecer alguém? O que é?
- Oh, não é nada assim tão fácil. - Riu-se o outro. - Para tarefas desse género não me faltam homens. Não, para aquilo que tenho em vista preciso de dois
oficiais engenhosos. Homens decididos, e que ainda por cima sintam que têm de triunfar a qualquer preço. Homens que saibam que as suas vidas nada valem, a menos
que cumpram as ordens recebidas. Ou seja, homens como vocês os dois. Não vou insultar a vossa inteligência
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fingindo que vos estou a oferecer esta missão. Fá-la-ão, ou morrerão aqui e agora mesmo. Só falta dar-vos os detalhes. Está claro?
- Oh, perfeitamente... senhor.
- Muito bem. - Narciso recostou-se e reordenou os pensamentos. - No mês passado, um navio mercante foi capturado por piratas junto à costa, a curta distância
de Ravena. Acontece, de tempos a tempos. Alguém acredita que pode ter sucesso na pirataria, e começa a atacar as rotas comerciais. Uma perda aqui e ali não nos aflige
mas, se as coisas começam a tornar-se sérias, enviamos um esquadrão naval para afugentar os piratas. Só que desta vez eles apossaram-se de um navio que, por acaso,
transportava um dos meus mais importantes e fiéis agentes. E ele estava envolvido numa missão de extrema sensibilidade. Foi feito prisioneiro e torturado. Recebi
um pedido de resgate. Vinha com o dedo anelar do homem. Suponho que deve ser uma espécie de tradição entre os piratas, para mostrar que falam a sério.
- E quer que o resgatemos? - Quis saber Cato. - Só isso? É
tudo?
- Não, não é tudo. O agente trazia na bagagem alguns objectos que se revestem de extrema importância para o Imperador.
- Um tesouro? - Macro franziu o sobrolho. - Vai enviar-nos numa caça ao tesouro?
- Um tesouro? Sim. - Retorquiu Narciso. - Mas um tesouro que tem muito mais valor do que todo o ouro e jóias do Egipto juntos.
- A sério? - Desdenhou Macro. - Não sei porquê, mas tenho as minhas dúvidas.
- De que tipo de tesouro estamos a falar? - Interrompeu Cato.
- Pergaminhos. - Foi a resposta de Narciso, acompanhada por um sorriso. - Três pergaminhos. Os piratas pedem por eles dez milhões de sestércios.
- Dez milhões? Por três bocados de pele de vaca? - Macro riu, enquanto abanava a cabeça. - Senhor, não pode estar a falar a sério.
- Nunca falei tão a sério na minha vida
A gargalhada de Macro morreu-lhe na garganta quando reparou na expressão austera do secretário imperial.
- Mas, então, o que há de tão especial nesses pergaminhos?
Narciso olhou para ele.
- Isso não te diz respeito. Se e quando a situação o exigir, saberás mais. Basta que compreendas que uma enorme ameaça ao Imperador será neutralizada quando
eu os recuperar. Por agora, só tens de te preocupar com a missão que vos estou a atribuir. E que consiste em encontrar, tomar posse dos pergaminhos, e trazê-los
até mim, aqui ao palácio. Se tal se
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revelar possível, gostaria que o meu agente também fosse salvo. Mas se essa possibilidade puser em causa a segurança dos pergaminhos, então o homem terá de ser considerado
dispensável.
- Quem mais sabe desta missão? - Quis saber Cato.
Narciso ponderou um instante.
- O Imperador. O meu assistente, e outra pessoa.
- Quem é essa outra pessoa, senhor?
O liberto sorriu e abanou a cabeça.
- Não precisas de o saber. Por agora. Entretanto, preparei as coisas de forma a que vocês os dois fossem colocados na base naval de Ravena. Vamos enviar uma
coluna de reforços para as operações contra esta nova ameaça. Podem juntar-se a ela. O prefeito recebeu ordens para procurar e destruir o covil dos piratas. O vosso
trabalho será o de recuperar os pergaminhos e o meu agente, depois dos bandidos derrotados. Assegurem-se também de que qualquer pirata que tenha lido ou estado em
contacto com os pergaminhos não é capturado vivo. Uma última coisa. - Narciso voltou a inclinar-se para eles. - É bem possível que os piratas tenham estabelecido
contactos com outros interessados na compra dos pergaminhos. Se tiver sido esse o caso, não esperem que os agentes dos meus inimigos mostrem quaisquer escrúpulos.
Não confiem em ninguém. Entendido?
Os dois centuriões anuíram.
- Quando partimos? - Perguntou Macro.
- Já partiram. A coluna de reforços deixou Roma pela alvorada. Assim que a nossa reunião estiver terminada, terão de a alcançar.
A mente de Cato fervilhava.
- E a papelada toda? As nossas ordens?
Narciso afastou as questões com um gesto.
- O meu assistente tem tudo preparado. Dar-vos-á todos os documentos assim que deixarem o meu gabinete. E agora, a não ser que gostem mesmo muito de arranjar
bolhas nos pés, sugiro que se ponham a mexer, meus caros.
- Senhor, só mais uma coisa. - Insistiu Macro.
- Sim?
- Dinheiro. Vamos precisar de algum para cobrir as nossas despesas até chegarmos a Ravena, senhor.
- Estou a perceber. Muito bem. O meu assistente dar-vos-á algum, para o caminho.
- Obrigado, senhor.
- Não é preciso agradeceres. - Narciso sorriu. - Se sobreviveres, poderás devolvê-lo. E agora, a caminho.
Recostou-se na cadeira e cruzou os braços, indicando de forma
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clara que a reunião tinha terminado. Cato e Macro dirigiram-se à porta. Antes que a alcançassem, foi aberta de par em par por dois pretorianos, um de cada lado.
O assistente de Narciso esperava-os na secretária, com duas tábuas de cera. Quando os centuriões começaram a percorrer o corredor, o homem passou-lhes as tábuas.
Cato recolheu a sua e atarefava-se a guardá-la na bolsa quando o seu olhar atravessou o corredor e o fez estacar. Macro reparou na reacção do amigo, e olhou em redor.
Sentado do outro lado do corredor estava um homem forte, quase gordo. Envergava uma toga senatorial, e sorriu sem prazer quando reconheceu os dois oficiais.
- Ora vejam, se não me equivoco, são os meus velhos camaradas de armas, o centurião Macro e a sua pequena mascote, o optio Cato. - E deu uma risada. Antes
de continuar, fez uma pausa, ao reparar na crista transversal que ornava o capacete pendurado na vara de Cato. - Centurião Cato? Não posso crer.
Cato inclinou a cabeça, num reconhecimento formal ao estatuto do outro, antes de responder num tom gelado.
- Tribuno Vitélio, sempre me interroguei se nos voltaríamos a encontrar.
VII
- Que raio andaria aquele bandalho do Vitélio a fazer por aquelas bandas?
- Resmungou Macro, enquanto reequilibrava o fardo e ajustava o passo.
- Tinha esperança de nunca mais lhe pôr a vista em cima, depois daquela história na Britânia. Isto mostra realmente como se passam as coisas. Quando estamos
bem enterrados na merda, podemos sempre contar com alguém para aparecer e nos deitar por cima mais uma bela poia.
Cato assentiu com um resmungo, apoiando o imaginativo fatalismo do amigo. A vida era assim. Já tinha visto o suficiente para compreender essa realidade. Macro tinha
bons motivos para estar preocupado. O facto de Vitélio estar à espera para falar com Narciso e ser recebido logo depois deles parecia indicar alguma ligação com
a missão que tinham sido forçados a aceitar. Podia ser uma coincidência, reflectiu Cato. No fim de contas, Narciso devia controlar muitos outros empreendimentos.
Mesmo assim, o jovem centurião não conseguia afastar o pressentimento de que havia uma relação entre a presença do traiçoeiro antigo tribuno da Segunda Legião e
a deles. Tinham conseguido fazer abortar o plano de Vitélio para assassinar o Imperador Cláudio, mas o astuto tribuno tinha evitado deixar qualquer traço do seu
envolvimento, e portanto não tinham tido qualquer possibilidade de o acusar. Pelo contrário, ele tinha-os confrontado, e forçado ao silêncio. Cato estava certo de
que Vitélio estava apenas a deixar correr o tempo até conseguir que ele e Macro sofressem uns acidentes fatais.
Relembrar essa ameaça apenas conseguiu dar mais força ao receio que sentia pela própria vida, e enquanto ele e Macro seguiam pela Via Flamínia, não conseguia tirar
Vitélio da cabeça. O dia estava frio, com um vento cortante, mas no céu azul viam-se apenas uns farrapos de nuvens. Ao fim de um par de quilómetros, o exercício
já o tinha aquecido, e deixou de tiritar. Tinham deixado Roma por volta do meio-dia, parando apenas no portão para encher os cantis, e só quando as muralhas da cidade
tinham ficado bem para trás é que Macro se sentira suficientemente seguro para expressar a sua opinião. Dos dois lados da estrada larga e pavimentada, só
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se viam túmulos e mausoléus, intercalados com memoriais mais modestos às gerações que ali jaziam, enterradas fora das muralhas de Roma.
O tráfego na Via Flamínia era constante, carroças e vagões carregados de produtos hortícolas, de bens essenciais e supérfluos, tudo a caminho dos grandes mercados
da capital. Em sentido contrário só se avistavam veículos vazios. Os dois centuriões caminhavam tão depressa quanto podiam, tentando alcançar a coluna de reforços
que tinha saído da cidade algumas horas mais cedo, e que seguia a caminho de Ocrículo. A coluna militar tinha maior facilidade de movimento, já que os outros ocupantes
da estrada lhe dariam prioridade, ao passo que os dois oficiais mal se notavam, e tinham de serpentear por entre todos os obstáculos.
- Não os vamos alcançar antes do anoitecer. - Considerou Cato.
- Especialmente a esta velocidade.
- Talvez. - Replicou Macro, lançando sobre o ombro um olhar ao amigo. - Se mantivermos um passo mais rápido. Embora, miúdo, não te atrases.
Cato arreganhou os dentes e alargou o passo, até que se colocou ao lado do centurião mais velho.
- Já alguma vez andou metido com fuzileiros?
- Fuzileiros? - Macro cuspiu, em sinal de desprezo. - Sim, já me cruzei com alguns. Uns tipos do esquadrão do Reno. Costumavam gozar as licenças em Argentorato,
como nós, legionários, fazíamos. Uma cambada de punheteiros sem nada para fazer. Passavam o tempo a apanhar sol nos navios, enquanto nós tratávamos dos assuntos
militares.
Cato sorriu.
- Bom, já percebi que as relações entre legionários e fuzileiros não são exactamente cordiais...
- Nada. - Sublinhou Macro, com toda a ênfase. - Foi pancadaria em cada ocasião que se proporcionou.
- Que surpresa. Mas a verdade é que agora fomos colocados nos fuzileiros, pelo que o melhor será esquecer o assunto e perdoar as eventuais ofensas, não?
- Esquecer, perdoar? - Macro franziu o sobrolho. - Que se fodam! Detesto aqueles imbecis. Como qualquer legionário que se preze. Lembra-te destas palavras:
não há um único fuzileiro que preste. Parasitas, incapazes, escumalha apanhada pelas ruas. Todos os que tinham algum valor, por mínimo que fosse, já estavam alistados
nas legiões. Vamos lidar com as sobras.
- Portanto, treiná-los é uma perspectiva pouco animadora...
- Cato, meu caro, uma coisa é a instrução militar, outra é a desordem sem rei nem roque que constitui o treino típico do fuzileiro médio.
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- Quer dizer que, quando há trabalho para fazer, estão todos a meter água?
Macro piscou os olhos em desagrado.
- Cato, esse é o tipo de piada que arruina uma amizade.
- Desculpe. Só estava a tentar aligeirar a conversa.
- Não vale a pena. Está bem? As coisas já estão difíceis para nós, não temos nada a ganhar com as tuas piadas.
- Está certo. - Cato distraiu-se contemplando a coluna de vagões que se aproximava do outro lado da via. Cada um dos carros transportava vários homens, musculosos,
aparentemente em plena forma física. Chamou a atenção de Macro. - Davam-nos jeito uns daqueles nas legiões.
Só então Macro reparou na coluna.
- Aqueles? Gladiadores? Não, aquele é o último tipo de homem que queremos no exército. Acham que sabem tudo o que há para saber sobre combate. Que é tudo
uma questão de jogo de pés e lâmina afiada. O típico bárbaro enlameado da cabeça aos pés despachava-os num ápice, enquanto eles ainda estivessem a pensar nos pontos
que podiam ganhar graças ao estilo. Gladiadores... - Abanou a cabeça, com ar cansado. - Tão vaidosos que mal dão pela presença dos outros. Se quiseres ter ao teu
lado alguém em quem possas confiar, escolhe um legionário, em qualquer circunstância. E se não encontrares nenhum, então escolhe um auxiliar.
Cato encarou-o.
- Decididamente, há alguma coisa entre si e os fuzileiros. Alguma razão em especial? Um deles fugiu com a sua irmã, ou coisa que o valha?
Macro disparou um olhar fugidio ao amigo.
- Irmã? Não. Muito pior do que isso. Com a minha mãe.
- A sua mãe?
Macro anuiu.
- Uma trirreme chegou a Ostia para reparações. A tripulação teve direito a alguns dias de folga. E um daqueles cabrões meteu conversa com a minha mãe, que
prontamente nos largou ali mesmo e se dispôs a zarpar na direcção da merda do pôr-do-sol com o seu fuzileiro, para nunca mais ser vista. Era eu pouco mais do que
um miúdo. Foi há vinte anos.
Cato estava assombrado. Conhecia Macro há dois anos, e este raramente mencionara o seu passado. E agora, aquilo. Contudo, uma vez que já estava habituado a histórias
pouco verídicas ouvidas das bocas de veteranos, não conseguiu evitar sentir algumas dúvidas.
- Isso é mesmo verdade?
- Alguma vez te menti?
Cato encolheu os ombros, desarmado.
- Bem, sim. Até com alguma frequência, para dizer a verdade.
Histórias de soldados, e coisas do género. 'O bárbaro que conseguiu escapar' e tretas assim.
- Oh. - Macro cerrou os lábios. - Bom, esta é verdade. É por isso que odeio os fuzileiros. - Concluiu, sem emoção.
Cato sentiu que um peso lhe assentava sobre o coração. Se Macro levasse aqueles sentimentos consigo até Ravena, a vida no meio dos fuzileiros seria extremamente
complicada. A rivalidade entre as diferentes armas já era suficientemente má, sem necessidade da cruzada pessoal de Macro contra tudo o que cheirasse a fuzileiro.
Resolveu tentar apaziguar os sentimentos do amigo.
- Não lhe parece um tanto exagerado julgar todos os fuzileiros por causa do que um deles fez há tanto tempo?
- Não.
Frustrado, Cato não evitou um desabafo.
- Isso não é lá muito justo.
- E o que tem a justiça a ver com o assunto? Um desses filhos da puta fugiu com a minha mãe. Agora sou eu quem está por cima, e vou-lhes dar o troco. E pouco
me interessam as patranhas que desencantares acerca do que é justo.
- Os preconceitos nunca ajudaram em nenhuma situação. - Cato tentou acalmar o amigo.
- Tretas! Qual dos teus filósofos apinocados é que mandou essa? O preconceito resolve tudo, e depressa. Desde que tenhas os tomates para o levar até ao fim,
claro. Como é que achas que este nosso Império nasceu? Não foi a tratar com justiça toda a espécie de bárbaros de cus peludos que nos apareceu pela frente, garanto-te.
Nunca nos preocupámos propriamente em tentar convencê-los a largar as armas às boas, e a entregarem-nos as suas terras. Não. Sempre os vimos como gente ignorante,
sem civilização. Todos eles. E, quanto a mim, com toda a razão. Isso fez com que fosse muito mais fácil dar-lhes o tratamento que mereciam. Se começasses a debater
os prós e os contras da situação, vista do lado deles, acabavas morto num instante. Agir em concordância com aquilo em que se acredita torna a vida muito mais simples
e, provavelmente, também mais longa. Portanto, Cato, poupa-me a essa conversa de justiça, está bem? Se eu quiser odiar os fuzileiros, é cá comigo. Facilita-me a
vida. Se tu quiseres ser amiguinho deles, pronto, é contigo. Mas não me metas nessa história.
- Seja, se insiste.
- Insisto. Percebido? E agora, vamos mas é mudar de assunto.
Cato percebeu que o amigo não ia mudar de ideias. Pelo menos,
não naquela altura. Talvez o tempo permitisse que Macro fosse revendo a sua posição; umas palavras bem escolhidas no momento certo podiam
transformar a colocação nos fuzileiros numa experiência menos desagradável do que se perspectivava. Se Narciso tinha razão, a missão em que estavam embrenhados já
envolvia perigo mais do que suficiente para ainda terem de se preocupar com a lealdade dos homens que os rodeavam.
Inclinou-se para a frente, reequilibrou o peso do fardo que transportava, e prosseguiu em silêncio. A Via Flamínia começou a subir, ao aproximar-se de uma crista
a norte de Roma. Quando o caminho voltou a nivelar, Cato deixou a estrada, dirigindo-se à sombra proporcionada por um maciço de grandes ciprestes e pousando a carga.
Macro ainda deu alguns passos, mas acabou por se deter e depois, a contragosto, saiu também da estrada e foi ao encontro do amigo.
- Não me digas que já estás cansado?
- Um bocadito. - Admitiu Cato. - Sinto falta do treino de marcha.
- A sério? Ainda acabas por te transformar mesmo num fuzileiro.
- Gozou Macro.
- Muito engraçado. - Sorveu um trago de água do cantil, e pôs-se a contemplar a estrada, deixando o olhar correr ao longo dela até abarcar Roma, espalhada
pelas suas sete colinas e já a transbordar para a área em volta. Depois de ter passado meses a viver no interior da cidade, pareceu-lhe estranho conseguir vê-la
assim, toda de uma vez, com o seu milhão de habitantes. O palácio imperial e os seus anexos constituíam um vasto conjunto claramente identificável, mesmo à distância
de vários quilómetros, embora parecesse pequenino, como se não passasse de uma construção feita por uma criança com blocos de madeira. Por momentos, Cato cismou
na pequenez das realizações humanas perante o vasto panorama do mundo. Todas as maquinações políticas que decorriam no palácio, todas as questiúnculas e aspirações
que nasciam nas ruas densamente preenchidas de Roma - tudo lhe pareceu insignificante e futil, quando visto àquela distância.
Olhou para o amigo. Para Macro, tudo era diferente. Sobrevivia no encarniçado mundo dos detalhes próximos, pensando apenas nos desafios que se lhe apresentavam em
cada momento. Uma perspectiva invejável, considerou Cato, desejando conseguir abraçar uma filosofia de vida semelhante. Desperdiçava demasiado tempo em pensamentos
abstractos. E, nas legiões, isso podia facilmente custar vidas, reflectiu; mas esse pensamento fez com que de novo se escancarasse o abismo de incerteza sobre as
suas próprias capacidades que constantemente o atormentava. Agora que era centurião, ainda mais sentia as suas falhas, e almejava uma visão simplista da vida, imaginando
que era nela que Macro se deleitava.
- Bom, se já apreciaste a paisagem por tempo suficiente,
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importas-te que continuemos? - Quis saber Macro, interrompendo-lhe os penssamentos.
- Não. - Rolhou o cantil, inspirou profundamente, e voltou a pôr a carga aos ombros. - Estou pronto. Vamos embora.
? ? ?
À medida que a tarde avançava, as nuvens foram-se acumulando, e daí a pouco o Sol ficou coberto, e o céu um miserável e frio cinzento de horizonte a horizonte. Ao
afastarem-se cada vez mais de Roma, os dois centuriões deixavam também para trás a cintura de quintas e fábricas que alimentava a capital, pelo que o tráfego começou
a tornar-se escasso. As encostas das colinas que rodeavam a estrada eram agora arborizadas, e os edifícios raros. A chuva chegou com o fim da tarde; grossas gotas
geladas, que feriam a pele e depressa ensoparam os dois amigos. Pararam numa tasca à beira da estrada e pediram dois copos de vinho aquecido, enquanto procuravam
nos fardos de carga as capas impermeáveis e as punham sobre os ombros.
Cato olhou para o tempo, do abrigo temporário constituído pelo telhado de colmo do mísero estabelecimento, do qual a água pingava sem cessar.
- Esta chuva não vai passar tão depressa. Quanto é que nos falta para Ocrículo?
Macro pensou uns segundos.
- Três horas.
- Em três horas já estará escuro.
- Com este tempo, até antes disso.
Cato olhou de novo para a tasca.
- Podíamos passar a noite aqui, e apanhar a coluna amanhã.
Macro abanou a cabeça.
- Não vou pagar para passar aqui a noite, quando há um aquartelamento perfeitamente aceitável mais à frente. Além disso, se ficarmos aqui, amanhã de manhã
teremos de forçar o andamento para os apanhar. Não vale a pena. Bebe, e vamos continuar.
Cato lançou-lhe um olhar mal-humorado, mas depois acalmou-se. Era mais fácil aturar durante umas horas um Macro encharcado e desconfortável do que aguentar todos
os resmungos que não faltariam durante toda a noite e a manhã seguinte, se ali ficassem. Com um suspiro resignado, acabou de beber o vinho, saboreando o calor que
se lhe espalhava pelo corpo, e voltou a pegar na trouxa e a sair para a chuva. Caía ainda com mais força, como um bombardeamento de raios de prata, e mal deixava
perceber a paisagem em volta, abatendo-se sobre a superfície do caminho com um
silvar constante. Apercebeu-se de que eram os únicos viajantes na estrada e, lançando um último olhar resignado à luz e ao calor que emanavam da lareira da pequena
estalagem, virou-se e seguiu o vulto escuro de Macro.
Quando tinham percorrido pouco mais de um quilómetro, tudo em redor ficou momentaneamente branco; o brilho quase os cegou, e praticamente no mesmo instante os ouvidos
foram-lhes assaltados por um troar estonteante.
Cato estremeceu e gritou:
- Devíamos procurar um abrigo!
As suas palavras foram abafadas por uma nova detonação entre as nuvens, pelo que deu uns passos de corrida e agarrou Macro pelo ombro.
- Vamos abrigar-nos!
- O quê? - Macro sorria. - Abrigo? De quê? Dumas gotinhas de chuva?
- Gotinhas de chuva?
- Nem mais. Qual é o problema? Amoleceste com a vida na cidade, ou quê?
- Não.
- Então, vamos embora! - Gritou Macro por sobre os estrondos, virando-se e recomeçando a caminhar.
Cato ficou um instante a vê-lo avançar, e depois, com um encolher de ombros, seguiu-o, vencido. Os trovões ribombavam nos céus, e ecoavam nas encostas das colinas
que os rodeavam. Foi assim que não ouviram o estrépito dos cavalos à desfilada, nem o chiar das rodas da carruagem, até o grupo estar praticamente em cima deles.
Surgiram velozes das trevas, por trás dos dois centuriões, pelo que Cato teve apenas tempo para se virar, aperceber-se do perigo, e lançar-se para o lado, alertando
Macro com um grito, ao mesmo tempo que os cavaleiros, encapuzados, desviavam as montadas no último instante. Macro saltou para fora da estrada, aterrando na valeta,
a curta distância do amigo. Junto a eles passaram os vultos de dois cavaleiros, uma equipagem que puxava uma carruagem ligeira e coberta, e outros dois cavaleiros.
Ignoraram os viajantes que tinham obrigado a sair da estrada, e prosseguiram à mesma velocidade.
- Ei! - Macro soergueu-se, apoiado num braço apenas. - Seus grandessíssimos filhos da puta!
As suas palavras perderam-se no meio da tempestade, e no momento imediato, a carruagem e a sua escolta tinham sido tragadas pela escuridão, enquanto Macro continuava
a lançar-lhes insultos. Cato levantou-se da lama e pegou na sua trouxa, antes de ir ajudar o amigo. Só quando se viram de novo os dois na estrada, ensopados e imundos,
é que o centurião mais velho se começou finalmente a acalmar.
- Cato, estás bem?
- Tudo fino.
- Se conseguirmos alcançar aqueles cabrões, dou-lhes uma sova que tão cedo não esquecerão.
- Isso não vai acontecer. Não à velocidade a que seguiam.
Macro olhou para a estrada, irritado.
- Talvez passem a noite em Ocrículo. Se for o caso, vamos ter festa.
- Bom, então é melhor pôr-mo-nos a caminho, ou nunca mais lá chegamos.
Colocaram os fardos às costas e prosseguiram, com a chuva persistente a escorrer-lhes pelos corpos.
? ? ?
Caiu a noite, embora a escuridão devida à tempestade fosse tanta que os dois amigos nem deram pela extinção dos últimos fulgores do dia. Levaram mais de duas horas
para chegar a Ocrículo e, quando se apresentaram às portas da cidade, no círculo fracamente iluminado por algumas tochas semicobertas, tinham aspecto de mendigos,
encharcados e sujos de lama devido ao mergulho na valeta.
O vigia do portão levantou-se lentamente da sua guarita, sob o arco da muralha, e aproximou-se, com os polegares enfiados no cinto.
- Bem, bem, bem... - Sorriu com desdém. - O que temos aqui? Estou mesmo a ver que dois vagabundos como vocês devem ter dinheiro para a portagem...
- Vai-te lixar. - Rosnou Macro. - E dá-nos passagem.
- Alto lá. - O vigia franziu o sobrolho, e a mão direita foi automaticamente posicionar-se sobre o punho da espada. - Cuidado com a língua. Se pagarem a portagem,
podem entrar à vontade. Se não... - Acenou, indicando a estrada.
- Nem penses, amigo. - Ripostou Macro. - Somos centuriões, em serviço activo. Deixa-nos passar.
- Centuriões? - O vigia não escondeu as suas dúvidas, pelo que Macro afastou a capa para pôr à vista os adereços militares que utilizava, da espada à armação
para a trouxa, inimitáveis. O homem lançou um olhar a Cato, o qual, ensopado, ainda parecia mais jovem do que era. - E ele também?
- Também. E agora, deixa-nos entrar.
- Muito bem. - O vigia acenou a um par de homens do outro lado do arco, e estes abriram ligeiramente uma das portadas, apenas o
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suficiente para deixar passar os dois viajantes. Macro agradeceu com um gesto de cabeça e prosseguiu.
O aquartelamento ficava próximo da entrada da cidade. Um pequeno portão dava acesso a uma parada, com estábulos de um lado e blocos de casernas a ocupar os outros
três lados. A luz escapava-se pelas frestas das janelas e espalhava-se pelas lajes do pavimento no exterior. Algumas tochas espalhadas a intervalos largos permitiam-lhes
ver por onde seguiam; Macro e Cato deram os seus dados ao escrivão que controlava a entrada e que lhes indicou o caminho para um dos quartos destinados aos oficiais.
Enquanto atravessavam a parada, Macro deitou um olhar aos veículos arrumados no parque: uma linha de carroças bem arrumadas e, lá bem ao fundo, uma forma mais refinada
e pequena. Estacou tão subitamente que Cato não conseguiu evitar o choque com as costas do amigo.
- Merda! Para que foi isso?
- Calado! - Avisou Macro. Levantou o braço e apontou. -
Olha!
Cato olhou para onde o outro indicava.
- Oh...
Ali estava a carruagem. As linhas eram inconfundíveis. Era exactamente a mesma que os tinha obrigado a atirarem-se para a valeta, a poucos quilómetros dali, na estrada
de Roma.
VIII
Cato apressou-se a seguir Macro, depois de este se ter lançado contra a porta do edifício e de se ter precipitado para o interiòr da messe. Tratava-se de um grande
salão, aquecido e iluminado por braseiras montadas em suportes de ferro na parede. Havia um bar e mesas, às quais se sentavam vários grupos de oficiais. Todos eles
se tinham virado para avaliar o homem que tinha entrado na sala de forma tão dramática. Um relâmpago fez sobressair a silhueta maciça de Macro, recortada contra
a portada e em contraste com a palidez e magreza de Cato, por trás dele. Depois, a luz extinguiu-se, e a expressão de Macro ficou iluminada apenas pelos clarões
rosados das braseiras. Sorriu.
- Boa-noite, senhores! Centurião Lúcio Cornélio Macro, ao vosso dispor. E agora, poderá algum de entre vós dizer-me a que espécie de cabrão pertence aquela
carruagem amaricada que está parada lá fora?
Por momentos ninguém se moveu ou rompeu o silêncio, até que Cato entrou também na sala, saindo da chuva e juntando-se ao amigo. O jovem largou a mochila e lançou
um espirro tão forte que o forçou a dobrar-se sobre si mesmo, quebrando o encanto. Macro acenou na sua direcção.
- E este é o centurião Licínio Cato. Nada a fazer, ele é mesmo assim. Bom, como eu dizia...
O homem por trás do bar acenou para que ele se aproximasse.
- Senhor, por favor, sente-se, tome uma bebida... e feche a porta.
Depois de voltarem a esconder o tempo miserável que fazia na rua,
os dois recém-chegados ficaram especados na entrada, a pingar, debaixo do olhar silencioso dos outros oficiais. Pelo canto do olho, Cato apercebeu-se de que um homem
saía de uma mesa junto à parede mais afastada. Esgueirou-se até uma porta discreta e seguiu por um corredor de onde não provinha qualquer iluminação. O empregado
do bar apresentou dois copos e encheu-os cuidadosamente com um líquido que verteu de um grande jarro.
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- Aqui está. Entrem e bebam, e podemos todos conversar sem estragar a noite aos outros clientes.
Enquanto os dois oficiais se encostavam ao balcão, o homem chamou um escravo; pouco depois, surgiu da arrecadação um miúdo franzino de cara suja, ainda a esfregar
os olhos de sono.
- Leva as coisas destes senhores para um quarto. Depois, vem buscar as capas. Têm de ser postas a secar. Vá, despacha-te.
O jovem escravo apressou-se a cumprir as ordens, correndo em torno do balcão e dirigindo-se às trouxas, que tinham ficado junto à porta. Sob o olhar de Cato, o miúdo
pegou na sua e levantou-a com uma expressão de esforço, seguindo de forma vacilante para fora da sala.
- Bom, caro senhor. - O tipo do bar dirigiu-se directamente a Macro. - Se quiser beber no meu estabelecimento, tem de respeitar certas regras de comportamento,
compreende? Caso contrário, terei de lhe pedir que saia.
- E o que te faz pensar que eu sairia mesmo? - Inquiriu Macro, com um sorriso falsamente doce.
Sem tirar os olhos do centurião, o outro chamou.
- Ursa. Vem cá, imediatamente.
Uma sombra enorme ocupou a entrada da arrecadação, e materializou-se numa cabeça loura que se dobrou para chegar ao bar. Quando o homem se voltou a endireitar, os
seus caracóis alourados quase tocavam nas vigas do tecto. Os braços eram espessos e rijos, e o tecido da túnica estava esticado sobre o peito maciço e os ombros
largos.
- Senhor?
- Deixa-te estar por aqui enquanto eu converso com estes senhores.
Ursa anuiu, e dedicou a sua atenção aos dois centuriões ao balcão, semicerrando os olhos de forma a demonstrar a sua desconfiança. O empregado do bar voltou a dirigir-se
a Macro.
- Se eu disser para saírem, saem. Percebido?
- Oh, perfeitamente. - Apressou-se Cato a aceder.
Macro lançou-lhe um olhar pesaroso, antes de confrontar de novo
o outro.
- Bom, então e a carruagem?
- É de um oficial superior. Segue para norte. Se quiser saber mais alguma coisa, terá de falar com aqueles tipos ali. - Apontou para a mesa de onde Cato tinha
visto o homem afastar-se, poucos momentos antes. Os três soldados ainda lá instalados consideravam cuidadosamente os dois centuriões.
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- Portanto, conversem com eles à vontade. - Continuou. - Mas sejam civilizados, ou terei de pedir ao Ursa para vos pôr lá fora.
- É justo. - Retorquiu Macro. - E obrigado pela bebida, amigo. Vamos lá, Cato.
Atravessaram a sala enquanto os outros clientes voltavam às conversas que tinham deixado interrompidas, primeiro em voz baixa mas depressa aos níveis sonoros que
habitualmente denunciavam uma boa disposição de origem alcoólica. Macro estacou em frente à mesa indicada e cumprimentou os homens sentados do outro lado.
- Boa-noite.
Os outros limitaram-se a acenar em resposta.
- Muito conversadores, sem dúvida. Importam-se de me dizer quem são vocês? Para quem trabalham?
Trocaram olhares, e um deles tossiu e respondeu.
- Não podemos discutir esse assunto, senhor.
- Deixem-me adivinhar. - Macro inclinou ligeiramente a cabeça, avaliando os homens. - Demasiado bem vestidos para serem legionários comuns. E demasiado receosos
de uma cena de porrada para serem outra coisa que não Guardas Pretorianos. Acertei?
O homem anuiu, e depois falou em ritmo rápido.
- Sim, senhor. Conhece os regulamentos. Se erguermos a mão contra um superior, mesmo que das legiões, somos homens mortos.
Macro sorriu.
- E que dizem a um passeio até lá fora, para arrumarmos esta questão sem meter patentes ao barulho? Só nós e vocês os três.
- Senhor, arrumar que questão, exactamente?
- Esta. - Macro apontou para a mancha de lama na túnica. - Uma lembrança da vala para onde vocês nos obrigaram a saltar, na Via Flamínia, há umas horas atrás.
Os olhos do soldado arregalaram-se enquanto recordava o incidente.
- Eram vocês? Pensei que não passavam de um par de vagabundos. Senhor, peço-lhe que aceite as minhas desculpas. Afinal, não aconteceu nada de grave.
- Ainda não. Portanto, queres resolver isto como um homem, ou
não?
- Resolver o quê, centurião? - Perguntou uma voz, vinda da entrada do corredor às escuras. Macro e Cato giraram e viram uma figura a emergir das trevas. O
homem deteve-se.
- Ora, ora... É um mundo pequeno, de facto. Não concordas, centurião Macro?
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- Vitélio... - Sussurrou Macro.
- Em cheio. - Vitélio lançou uma risada, enquanto avançava para o brilho do salão. Os guardas puseram-se imediatamente de pé, afastando o banco em que tinham
estado sentados e fazendo-o deslizar sobre o soalho.
- Mas preferia que me tratasses com a deferência devida ao meu posto. Gosto pouco de insubordinações. Far-te-ia bem recordares esse facto.
- Ah, sim... Senhor?
- Sim. Estou a falar muito a sério. - Vitélio fixou-o com um olhar gélido, antes de deixar transparecer de novo o habitual sorriso calculista.
- Parece então que me queriam dar uma palavrinha. Qualquer coisa acerca da minha carruagem.
- A sua carruagem? - Cato não escondeu a surpresa.
- Sim, minha. E boa-noite para ti também, centurião Cato. É agradável ver-te aqui com o teu velho camarada de armas. Como nos bons velhos tempos. Isto pede
uma bebida. Empregado!
- Senhor?
- Um jarro do teu melhor vinho, e três cálices. Cálices, percebes?
- Sim, senhor.
Vitélio acenou aos seus guarda-costas.
- Levantem-se, e deixem-nos a sós. Assegurem-se de que não seremos incomodados.
Os guardas responderam com a saudação regulamentar e retiraram-se rapidamente para outra mesa próxima, suficientemente longe para não conseguirem ouvir a conversa
entre Vitélio e os dois centuriões.
- Meus senhores, sentem-se, por favor. - Vitélio acenou na direcção do banco agora vazio.
Macro abanou a cabeça.
- Não, senhor, obrigado.
- Centurião, não era um pedido. E agora sentem-se. Os dois.
Fazendo uma pausa suficiente para tornar evidente que era a contragosto que o faziam, e que tinham resistido até onde podiam, Macro e Cato tomaram lugares à mesa.
Vitélio sorriu-lhes e sentou-se por sua vez no lado oposto da mesa. O empregado do bar chegou nesse momento com as bebidas, encheu três cálices de prata, pousou
o jarro sobre a mesa e deixou-os a sós.
Foi Macro o primeiro a falar.
- Senhor, o que está aqui a fazer?
- Vou a caminho do meu novo posto.
- Posto? - Macro franziu o sobrolho. - Vai regressar ao serviço activo? Tribuno, qual das legiões vai desta vez ter o infortúnio de sofrer as suas artimanhas?
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- Tribuno? - Vitélio fingiu-se chocado. - O que é que te faz pensar que regresso com a mesma patente? Agora que o próprio Cláudio é o meu patrono, posso certamente
alcançar mais e melhor.
Macro inclinou-se para a frente e sussurrou.
- Se ele imaginasse até que ponto conspirou contra ele...
- Pois, mas não faz ideia. E nunca fará, senhores. Confia absolutamente em mim, e o mesmo sucede com Narciso. Portanto, não comecem a pensar que lhes podem
contar umas histórias. Nunca seriam acreditados, e posso-lhes garantir que as consequências seriam bem piores para vocês do que para mim. Portanto, senhores, espero
que estejamos entendidos quanto a isso.
Macro anuiu devagar.
- Está certo, senhor. Agora, diga-nos o que faz realmente por
aqui.
- Como te disse já, estou a caminho do meu novo posto.
- E onde fica esse novo posto?
- Francamente, centurião, parece-me que vamos ter de trabalhar no duro para te ensinar a tratar as pessoas com o grau de formalidade que lhes é devido. Especialmente
porque me preparo para assumir o cargo de prefeito, no comando da esquadra de Ravena...
- Você? - Cato olhou-o de boca escancarada, espantado. - Não pode ser.
- Mas é. Garanto-to. É verdade que não tenho experiência de operações navais, mas quanto a isso, vou confiar nos meus novos subordinados, que a têm. A minha
missão real é muito mais importante, e vou precisar de toda a vossa cooperação para a levar a bom termo. Quero que isso fique bem claro.
Cato esfregou a testa.
- É você o agente de que nos falou Narciso.
- Sou mesmo. E, daqui em diante, vocês os dois estão sob as minhas ordens. Quer como oficiais da esquadra, quer como agentes de Narciso. Vou mantê-los debaixo
de olho. Se me derem alguma razão para duvidar da vossa lealdade, quer a mim quer ao Imperador terei de informar Narciso desse facto. E sabemos muito bem o que isso
quer dizer, não é? Uma curta entrevista com uns senhores do palácio, especialistas em fazer perguntas, e uma morte obscura e provavelmente lenta. E ninguém sentirá
a vossa falta, garanto-vos. Portanto, senhores, as vossas vidas estão nas minhas mãos. Sirvam-me bem, e viverão. No fim desta história, serei com toda a certeza
uma espécie de herói. Quanto a vós, estarão vivos. Não se pode ter tudo, no vosso caso. No meu, sim, e um dia esse tudo há-de ser meu. Quando esse dia chegar, será
bom que estejam nas minhas boas graças.
- Não acredito nisto. - Resmungou Macro.
- Será melhor acreditar. - Respondeu Cato, tentando esconder a ansiedade que sentia. - Ele está a falar a sério.
Vitélio sorriu.
- O teu amiguinho já percebeu tudo, Macro. E agora que a situação está esclarecida, e que sabemos todos em que pé estamos, é tempo para um brinde. - Vitélio
pegou no jarro e encheu os três cálices até ao bordo. Então ergueu o seu e sorriu-lhes. - Meus senhores, à nossa parceria. Parece que, finalmente, estamos do mesmo
lado.
Bebeu sem interrupção até esvaziar o copo, mantendo o olhar fixo nos dois centuriões. Quando chegou ao fim, pousou-o e observou os outros dois, intocados, na mesa
em frente a Macro e Cato. Sorriu.
- Como quiserem, senhores. Nesta ocasião, permitir-me-ei deixar passar a vossa insolência sem castigo. Mas lembrem-se das minhas palavras. Da próxima vez
que ousarem responder-me com a mais ínfima parcela de desafio ou descortesia, pagarão por isso.
IX
A coluna reuniu-se no pátio, pela alvorada. Um centurião, assistido por um grupo de optios, tinha sido encarregue de conduzir os fuzileiros a Ravena. Os oficiais
tinham irrompido pelo aquartelamento e, aos berros, tinham arrancado os homens do sono, com a típica linguagem de caserna, repleta de insultos e ameaças. Havia entre
os soldados muitos recrutas facilmente impressionáveis que se apressaram a sair para o ar enregelado da madrugada, meio vestidos e a tremer como varas verdes. O
resto dos homens, ainda atordoados pela forma brusca como tinham sido acordados, foi-se dispondo na formação, muitos ainda a vestir-se. Enquanto preparavam o equipamento
para a marcha que se ia seguir, Macro lançou-lhes um olhar crítico.
- Não são um grupo lá muito impressionante, pois não?
Cato encolheu os ombros.
- Não me parecem nem piores nem melhores do que aquele grupo de que eu fazia parte quando me juntei à Segunda.
- O que sabes tu disso? - Macro abanou a cabeça. - Cato, acredita em mim. Há anos que os vejo chegar e partir, e este bando é mesmo do fundo do tacho.
Cato virou-se para ele.
- Isso é a experiência a falar, ou só o desprezo por não serem verdadeiros legionários?
- Ambos. - Macro não evitou um sorriso. - Mas depressa veremos quem tem razão. Aposto contigo que perdemos um quarto destes tipos antes de chegarmos a Ravena.
Cato observou os homens que se reuniam ao pé das carroças. A maior parte dos recrutas recentes tinha de facto muito mau aspecto. Alguns nem botas tinham, e eram
quase todos magros e encolhidos, envergando trajes que mal passavam de trapos. Tal como Macro afirmara, pareciam a escumalha da cidade: homens que não tinham qualquer
possibilidade de arranjar emprego e que não tinham perspectivas de futuro. Num acto de
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desespero, tinham-se alistado como fuzileiros. Nenhuma legião os aceitaria, reflectiu. E muitos deles até dos fuzileiros seriam expulsos antes do fim da recruta.
Mas era esta a única hipótese que lhes restava. Homens em circunstâncias tão difíceis que, ou desistiam rapidamente, ou encontravam dentro de si mesmos a derradeira
reserva de força e determinação. Como acontecera com ele próprio. Voltou a encarar Macro.
- Quanto?
- Aceitas a aposta?
Cato concordou com um gesto de cabeça.
- És mesmo um pato. - Macro sorriu. Já tinham feito apostas antes, e o veterano tinha ganhado mais do que perdido, fazendo valer a sua experiência de vida
sobre a tendência de Cato para racionalizar todos os factores. Era típico do jovem insistir no erro, e Macro não podia deixar de admirar a confiança de Cato no seu
próprio julgamento. Mas nem tanto que recusasse a hipótese de fazer algum dinheiro fácil.
- Muito bem. O salário do primeiro mês.
Cato olhou para ele em silêncio.
Macro ergueu uma sobrancelha.
- É muito?
- Não. Não, nem pensar nisso. Seja, um mês de salário.
- Feito! - Macro pegou na mão do amigo e apertou-a com firmeza, selando a aposta antes que Cato pudesse mudar de opinião.
Um berro do centurião responsável pela coluna fez com que os fuzileiros se aprumassem, e se mantivessem silenciosos e trémulos enquanto os optios percorriam as colunas,
alinhando-as com as suas varas, acertando nos infelizes que não respondiam às indicações com a velocidade apropriada. Macro e Cato dirigiram-se à cabeça da coluna.
Já se tinham apresentado ao centurião, um veterano magro que dava pelo nome de Minúcio. Este tinha-se mostrado amigável, e contara-lhes que tinha regressado aos
fuzileiros, com uma promoção, depois de ter passado alguns anos nas tropas auxiliares, há bastante tempo atrás. Era evidente que se tinha mantido fiel aos princípios
de treino duro da força em que servira nessa época, e não mostrava qualquer piedade pelos homens que lhe cabia agora comandar. Depois de se terem feito conhecer
e de lhe terem mostrado as ordens, Minúcio oferecera-lhes lugares no vagão do comando. Havia um veículo que seguia à frente dos recrutas e outros três que os seguiam,
onde eram transportadas as tendas e os víveres para a viagem, uma pequena arca com dinheiro para cobrir as despesas eventuais e um carregamento de correio.
Cato olhou em redor.
- Onde anda o Vitélio?
Minúcio respondeu-lhe.
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- Já partiu. Deixou-nos há uma hora atrás, com a sua escolta. Parece que o prefeito está cheio de pressa de tomar posse do seu novo comando. Temo portanto
que não possamos desfrutar do prazer da sua aristocrática companhia durante a viagem. Uma pena. - E o centurião sorriu abertamente.
- Nem imaginas quanto. - Comentou Macro.
Minúcio olhou-o com ar inquiridor.
- Há alguma coisa que eu devesse saber?
- Não. - Interrompeu Cato. - Não é nada.
- Nada?
- Já servimos com Vitélio antes. Na Britânia.
-E...?
Cato franziu o sobrolho.
- E o quê?
- Que tal é ele? - Minúcio observou os outros dois centuriões enquanto estes trocavam um olhar entendido. - Vá lá, rapazes. Somos todos adultos. Vamos estar
juntos por meses, senão anos. Se sabem alguma coisa sobre o prefeito, deviam partilhar essa informação. No fim de contas, quando chegarmos a Ravena, quem é que vos
vai mostrar os cantos à casa?
Cato fingiu um acesso de tosse.
- Bom, digamos que tivemos as nossas divergências quanto a alguns assuntos.
- Divergências, foi? - Minúcio deitou-lhes um olhar cúmplice.
- Portanto, o tipo é um sacana de alto calibre.
Cato cerrou os lábios e encolheu os ombros.
- Podes dizê-lo. - Concordou Macro em voz baixa. - Mas não fomos nós quem to disse. Percebido?
- Percebido. - Minúcio piscou o olho, divertido. - Homem prevenido... Vou ter cuidado com o nosso novo prefeito.
- Pois. - Juntou Macro, enquanto o outro se afastava com o intuito de verificar a prontidão do comboio para iniciar a marcha. - Todos teremos de o ter.
? ? ?
A partir de Ocrículo, a Via Flamínia seguia para norte, e a paisagem tornava-se mais acidentada; a coluna seguia por entre grandes vinhedos, espalhados pelas encostas
que ladeavam a estrada. Por todo o lado se via o castanho das árvores desfolhadas, e os arbustos mostravam roupagens invernais, dando ao cenário um ar deprimente
e triste, acentuado pelos frequentes
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aguaceiros de chuva gelada. Mas nos primeiros dias ninguém abandonou a formação, o que não agradou particularmente a Macro.
Ao quarto dia depois de deixar Roma, a coluna chegou aos contrafortes dos Apeninos, e atravessou os ribeiros torrenciais que alimentavam o curso superior do Tibre.
A estrada seguia até à cidade de Hispelo. As habitações dos ricaços estavam fechadas para o Inverno, e só voltariam a conhecer animação quando chegasse o Verão e
o calor obrigasse os proprietários a procurarem o ar fresco das montanhas; assim, as ruas estavam desertas, e praticamente ninguém assistiu à passagem da coluna
militar, que atravessou a povoação antes de chegar ao aquartelamento.
Pela localização deste e pelos olhares pouco amistosos dos raros habitantes locais que percorriam as ruas, era evidente que a boa gente de Hispelo pouco ou nada
queria ter a ver com o tráfego militar que atravessava a sua cidade. Cato não os censurava por isso. Os soldados ao serviço do Imperador tinham alguma inclinação
para se considerarem acima da lei nalguns aspectos, e essa opinião era encorajada pelo próprio soberano, que sabia muito bem serem eles a derradeira garantia do
seu poder e autoridade. Um roubo aqui, uma briga de bêbados acolá, o esquecimento de pagar bens e serviços, tudo isso era facilmente olvidado - sobretudo porque
as vítimas desses crimes mal se atreviam a recorrer à justiça, já que isso, muitas vezes, apenas lhes agravava a situação. As gentes das povoações situadas ao longo
dos principais itinerários militares limitavam-se a baixar a cabeça quando surgia uma coluna militar, tentando passar despercebidas e rezando para que os soldados
prosseguissem no seu caminho sem deixar para trás demasiados estragos.
O aquartelamento, no exterior da cidade, era mantido pelo concelho local e, depois de duas noites passadas em tendas de pele de cabra, quer recrutas quer oficiais
estavam animados pela perspectiva de uma noite de descanso em casernas quentes e secas.
Ao cair da noite, os oficiais reuniram-se na pequena messe, depois de um escravo acender a lareira, para apreciar as oferendas do concelho aos recém-chegados: várias
ânforas de vinho e carnes secas. Esperavam sem dúvida que os militares se embebedassem no próprio aquartelamento, e não sentissem necessidade de fazer uma visita
à cidade. Aos oficiais juntara-se um mercador que não conseguira encontrar um quarto na povoação. Sentava-se à parte, e observava em silêncio a conversa dos soldados.
- Então, houve mais algum a ficar pelo caminho hoje? - Quis saber Macro, com esperança na voz.
Minúcio confirmou com a cabeça.
- Um, sim. Um velhote. Cláudio Afer. Ficou na estrada logo pela
manhã. Avisei-o de que, se não nos alcançasse, ficava por conta própria. Parece-me que é menos um.
- Quantos perdemos até agora? - Inquiriu Macro.
- Para lá do Afer... Deixa-me ver. Oito. E vamos perder mais quando começarmos a atravessar as montanhas. É o costume. Daqui para a frente não há refúgios,
senão daqui a três dias, e vão ser duas noites em altitude. Por esta altura do ano já não faltarão a neve e o gelo, e os novatos vão detestar cada momento da caminhada.
Quando chegarmos a Ravena, já nos teremos livrado de todos os fracotes e preguiçosos. Os que sobrarem são capazes de vir a dar fuzileiros decentes. Saúde!
Enquanto erguia o copo e bebia um bom trago, Macro entretinha-se a fazer cálculos mentais. Oito homens a menos, de um total de cento e cinquenta... vendo bem, era
um desapontamento. Para garantir a vitória na sua aposta, era preciso que perdessem ainda uns trinta e tal. Ergueu o olhar quando Minúcio acabou de esvaziar o seu
copo e lançou a mão ao jarro.
- Quantos esperas perder antes de sair das montanhas?
- Quantos? - Encheu as bochechas de ar. - O habitual é entre um quinto e um quarto dos recrutas. Se estes tipos fossem a caminho das legiões, esperaria perder
menos. Os testes físicos teriam eliminado os menos capazes. Mas, infelizmente, para os fuzileiros os testes são menos exigentes.
- Entre um quinto e um quarto. - Considerou Macro, sorrindo, o que atraiu a atenção de Cato. - É melhor ires-te habituando à ideia de um mês sem diversão
em Ravena.
- Ainda não chegámos lá. - Retorquiu o jovem. - Portanto, não comece a gastar o meu dinheiro como se já fosse seu.
Minúcio olhou-os, confundido.
- Do que estão vocês a falar?
- Nada. - Macro voltou a sorrir. Bebe. Ainda há muito para despejar, e a noite é uma criança. - Decidiu continuar a conversa. - Dizes tu que serviste nos
auxiliares, não foi?
- Sim. Uns anos numa unidade de infantaria. Na Síria.
- Síria! - A expressão de Macro iluminou-se, e puxou o banco para mais próximo de Minúcio.
Cato rebolou os olhos em desespero.
- Lá vamos nós outra vez. A merda da Síria...
- Cala-te, miúdo! - Provocou-o Macro. - Deixa os adultos conversarem. Então, a Síria. Conta-me tudo. Sobretudo as mulheres. São tão fáceis como se conta?
Minúcio encolheu os ombros.
- Não faço ideia. Estive destacado num fortezeco merdoso na
fronteira, muito longe de Heirápolis, e isto durante a maior parte dos cinco anos que lá estive. Passava meses sem ver uma mulher. Ovelhas é que não faltavam.
A expressão de Macro tornou-se sombria.
- Estás a querer dizer...?
Minúcio coçou o queixo.
- Porque é que pensas que a coorte era conhecida como "Os carneiros"?
- Oh. Lamento.
- Lamentas? - O outro pareceu surpreso. - Não é preciso. A maior parte dava para uns momentos bem passados. E não cobravam, nem te davam nenhuma conversa
de treta. O que era difícil era apanhar uma das sacaninhas. Era mais fácil apanhar um esquentamento com uma vestal. Bom, estou a exagerar... Seja como for, levou-me
tempo, mas acabei por descobrir o truque. Queres saber?
A desilusão de Macro tinha sido, a princípio, substituída pelo nojo, mas depressa uma compulsão para conhecer os detalhes mais sórdidos o tinha conquistado, pelo
que sorveu mais um trago de vinho e anuiu. Minúcio inclinou-se para ele e baixou o tom de voz, como se tramasse alguma conspiração. Porém, alguns dos optios sentados
em redor conseguiam escutá-lo, e Cato viu-os a trocar olhares sabedores.
- A ideia é aproximarmo-nos delas lentamente e em silêncio. - Começou Minúcio. - Primeiro, tens de descalçar as botas, e avançar nas pontas dos pés. Tens
de te aproximar contra o vento, claro, e andar muito devagar. Se te mexeres bruscamente, és capaz de as assustar, e lá tens de começar tudo de novo. Com a prática,
consegues aproximar-te até aí a uns três metros. E então é que vem a parte do truque. - Fez uma pausa e olhou para Macro.
Este incitou-o.
- Vá, continua.
- Agachas-te. Inspiras profundamente, e imitas a erva... - Encarou Macro por um instante, depois acenou com ar sério, e recostou-se contra a parede.
Passado um momento, Macro franziu o sobrolho.
- Imito a erva?
- Pois, a erva.
Macro espreitou na direcção de Cato, para se assegurar de que não estava a ficar doido.
- Mas... Estás a gozar. Não estás?
- A gozar? - Minúcio olhou-o indignado por uns segundos, mas depois não conseguiu aguentar a expressão, e desatou às gargalhadas. Os
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optios juntaram-se ao coro, e daí a pouco corriam lágrimas pela desgastada face do velho centurião. - Porra, ainda tens dúvidas! Caíste que nem um patinho.
A expressão de Macro adensava-se, e Cato julgou prudente tentar acalmá-lo.
- Calma. Foi você que se pôs a jeito.
Por momentos, pareceu que Macro ia ceder à fúria, mas depois olhou em volta da sala e percebeu que as expressões de todos os outros homens eram de boa disposição,
pelo que fez um esforço para se controlar.
- Pois. Uma piada do caralho. És muito engraçado, Minúcio.
- Não te quis ofender, homem. - Minúcio deu-lhe uma palmada no ombro e encheu-lhe a taça. - Vá lá. Um brinde. Aos haréns da Síria. Aos melhores botequins,
e à melhor colocação que qualquer centurião cheio de chatos pode desejar!
Despejou a taça de um trago e Macro, depois de uma brevíssima hesitação, imitou-o, o que fez Cato soltar um suspiro de alívio.
- Agora a sério. - Prosseguiu Minúcio. - Duvido muito que alguma vez tenha a possibilidade de lá voltar. Já estou demasiado velho.
- Que idade tens?
- Cinquenta e seis. Alistei-me aos vinte, para escapar à família de uma rapariga que tinha engravidado. Já passou muito tempo. - Disse, pensativo. - Bom,
até me sinto bem nos fuzileiros. Assentei, e tive a sorte de encontrar uma boa mulher. A vida corre-me sem problemas, tranquila.
- Prosseguiu, mas depois franziu o sobrolho. - Ou corria, até há uns meses atrás. Até esses piratas começarem a dar chatices.
Cato inclinou-se para ele.
- Conta-nos o que sabes deles.
Minúcio passou a mão pelo cabelo cinzento, já escasso, enquanto reunia as ideias.
- As coisas começaram com o desaparecimento de alguns navios. Como disse, isto foi há quase um ano atrás, e no Inverno há muito menos navegação. Portanto,
a princípio, julgámos que tinham simplesmente ido ao fundo. O problema é que, quando chegou a Primavera, começaram a faltar mais barcos, os suficientes para a coisa
se tornar estranha. E depois, uma noite, chegou ao porto um navio pequeno. Sabem como são, um daqueles iates de ricaços. Contaram que estavam a vogar ao longo da
costa ilírica quando foram atacados por dois barcos piratas. Durante algumas horas a coisa esteve renhida. Os outros conseguiram danificar-lhes o velame e matar
parte da tripulação. Mas os sobreviventes conseguiram ganhar distância suficiente para se manterem fora do alcance das armas dos piratas, atravessaram o mar na direcção
da Úmbria,
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e conseguiram alcançar Ravena. Foi assim que confirmámos a existência destes bandidos.
- E eles devem ter percebido que já tinham sido descobertos. Só que, em vez de se esconderem, passaram a actuar às claras, ao longo da costa; geralmente do
lado deles, mas já fizeram alguns ataques a portos isolados na nossa costa. Estão a ficar cada vez mais ousados.
- Então e a nossa marinha? - Perguntou Cato. - Já fizeram com certeza alguma coisa.
- Não é assim tão fácil, rapaz. A nossa costa é simples de patrulhar, mas do outro lado existem milhares de ilhotas e braços de mar, muitas das quais mal
conhecidas. Podia-se esconder por lá uma frota e passar meses sem ser descoberta. Aliás, é mesmo isso que se passa. Os piratas devem ter aproveitado algumas das
embarcações que capturaram. A última que ouvi foi que até já têm um par de trirremes. Ou seja, já perdemos alguns dos nossos vasos de guerra.
- Capturados?
- Nunca regressaram das patrulhas. Ninguém sabe o que lhes sucedeu. - Concluiu Minúcio, com ar cansado. - Portanto, estás a ver que temos as mãos cheias.
Mas havemos de os encontrar. Temo-lo conseguido sempre, mesmo sem ajuda de Roma. Até agora.
- Oh?
- Alguém lá em cima reconheceu finalmente que temos feito um bom trabalho. Portanto, fomos autorizados a recrutar mais umas centúrias de fuzileiros, e dois
esquadrões de Miseno foram transferidos para cá. Este bando de piratas conseguiu irritar alguém poderoso. Além disso, se não os eliminarmos, podem começar a prejudicar
os comboios de cereais do Egipto. E, se isso acontecer, Roma tornar-se-á refém deles.
Cato recostou-se.
- Não fazia ideia de que a situação fosse tão séria.
- É séria, sim. - Minúcio sorriu. - De tal maneira que afecta os poderosos deste mundo, os quais, aliás, não querem que isso se saiba. A última coisa de que
o Imperador precisa é de motins nas ruas de Roma por causa do abastecimento de cereais. Foi-nos ordenado que tivéssemos tudo pronto para dar início a uma operação
em larga escala assim que chegasse a Primavera. Portanto, aproximam-se tempos difíceis para todos nós. - Pegou no jarro e fez uma careta quando o descobriu vazio.
- Aguentem aí, rapazes. Vou buscar outro.
Enquanto o velho centurião se dirigia de forma vacilante ao monte de ânforas encostado à parede oposta, Cato aproximou-se de Macro.
- Estamos metidos num bonito sarilho.
- Eu ouvi.
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- Não, a sério. Esqueça a história da campanha contra os piratas. , Isso já é mau. Mas como demónios vamos nós pôr as mãos na merda dos
tais pergaminhos? E é essa a razão porque aqui estamos.
Macro encolheu os ombros.
- Suponho que o Vitélio tem algum plano.
- Pode ter a certeza disso. - Foi a resposta de Cato.
X
No dia seguinte, a coluna começou a ascender para um terreno mais montanhoso, em que a estrada era ladeada por florestas de pinheiros e desenhava um percurso sinuoso
por entre gargantas e vertentes inclinadas. Os fuzileiros viram-se obrigados a dar uma ajuda ao progresso dos vagões quando os declives se tornaram demasiado íngremes
para as mulas. Seguiram-se horas de árduo esforço, sempre a tentar que as rodas avançassem e a colocar cunhas de madeira a cada momento, para evitar que escorregassem
em cada pausa. Por volta do meio-dia já tinham subido acima da linha da neve, e o gelo e a lama tornaram o avanço ainda mais penoso e arriscado. Os ramos das árvores
estavam revestidos de cristais de gelo e, quando chegaram a maior altitude, começaram a deparar-se com montículos de neve, através dos quais os recrutas eram forçados
a abrir caminho.
O cansaço e o descontentamento crescentes nas faces dos homens animaram Macro. Estava agora certo de que ganharia a aposta. Mais uns dias de caminho penoso, e seria
uma limpeza. Bom, pensou, com um sorriso, limpeza era maneira de dizer. Assim que Cato lhe pagasse, ia apanhar a maior bebedeira possível. Quase sentiu pena pela
pressa com que o amigo tinha aceitado a aposta. Ora, um dia o miúdo havia de aprender...
Ao cair da noite, Minúcio deu ordens para que fizessem alto numa extensão plana da estrada, com algum espaço disponível num dos lados. Mais à frente, a estrada escondia-se
ao rodear um espigão rochoso, parte da colina que nascia ao fundo da área plana que Minúcio escolhera para implantar o campo. Os vagões saíram da estrada, e os soldados
deixaram-se cair na neve, junto a eles.
- Foda-se, o que é que as meninas pensam que estão a fazer? - Repreendeu-os Minúcio. - De pé, já! Montem as tendas. Lembrem-se de dormir ao relento, e amanhã
de manhã vamos dar com metade de vocês congelados. Toca a mexer!
Os homens arrastaram-se a custo até aos vagões do equipamento, onde os optios lhes distribuíram tendas, espias, estacas de madeira, e
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malhos. Começou a nevar, pesados flocos alvos que remoinhavam na escuridão e abafavam os sons dos homens atarefados com o desdobrar dos panos e com as tentativas
de cravar as estacas no solo enregelado de forma a garantir que as tendas resistiam de pé durante a noite. Só muito depois de a escuridão invadir a paisagem é que
as tendas ficaram montadas nas fileiras regulamentares, e que os homens puderam recolher ao interior das mesmas, com os seus cobertores e montes de agulhas de pinheiro
recolhidas nas árvores próximas para servir de colchão e isolamento do chão congelado. Em toda a zona imperava o voltear da neve e o esvoaçar das abas das tendas.
Não tinha havido tempo para acender fogueiras, e as rações foram distribuídas frias. Os recrutas mascavam os biscoitos rijos e as tiras de carne seca, encolhidos
nos seus cobertores.
Na tenda dos centuriões, Minúcio terminou a refeição e puxou a capa para cima dos ombros.
Cato olhou-o, surpreendido.
- Vais sair, com este tempo?
- É claro, miúdo. Tenho de distribuir os turnos de sentinela para a
noite.
- Sentinelas? - Cato abanou a cabeça. - Acho pouco provável que nos vejamos atacados por um rebanho de cabras-montesas.
- Por cabras, não. Mas por salteadores, sim. A gente que vive nestas montanhas não tem grande respeito pelas leis. Há até alguns rumores sobre aldeias escondidas,
onde habitariam os descendentes dos escravos que formaram o exército de Espártaco.
- Não acreditas nessa, com certeza.
- É o que se diz. Pessoalmente, acho que é uma treta. Mas, seja como for, tenho de colocar sentinelas. E é melhor ir habituando os homens à ideia.
Desatou os atilhos que prendiam a aba da entrada, e os outros centuriões fizeram má cara quando um sopro gelado irrompeu pela tenda, inflando as paredes e esticando
ao máximo as espias que prendiam a tenda. Macro arrastou-se e tentou fechar outra vez a aba, o mais depressa possível.
- Para quê? - Indagou Cato. - Daqui a pouco ele está de volta.
- Pois, mas lá por causa disso, não vamos todos ficar com os tomates congelados, não é?
Cato encolheu os ombros e ajustou o cobertor por cima da sua magra figura. Duvidava seriamente de conseguir dormir alguma coisa durante a noite que se aproximava.
Por muito cansado que estivesse, as condições eram demasiado incómodas. Daí a pouco os dentes tremiam-lhe, e Macro
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olhou-o irritado, antes de se virar e se aninhar melhor no espesso colchão de ramos e folhas que tinha feito, cobrindo-se com a capa impermeável.
Pouco depois, Minúcio regressou e deu as boas-noites a Cato antes de também ele se instalar numa cama improvisada. Daí a pouco, os dois veteranos dormiam, ressonando
em tons bem audíveis.
- Merda. - Resmungou Cato, cheio de inveja. Remexeu-se, tentando encontrar uma posição confortável, mas se se deitava sobre um dos lados, expunha o outro
à aragem gelada que de alguma forma se introduzia na tenda e o envolvia nos seus dedos gélidos. Aguentou aquele tormento durante mais de uma hora, sentindo-se cada
vez mais miserável, até que desistiu e se sentou, encolhendo os joelhos até eles lhe tocarem no queixo, abraçando as pernas com os braços e esfregando vigorosamente
os ombros, tentando devolver algum calor aos músculos. Lá fora o vento parecia estar a amainar, fazendo ouvir o seu lamento apenas quando soprava uma rajada. Mas
para Cato, a tremer de frio no interior da tenda, esse era um fraco consolo.
Tentou pensar noutra coisa, qualquer coisa, e a sua mente dirigiu-se de novo aos misteriosos rolos de pergaminho que tanto significavam para Narciso. Mais ainda,
ao que parecia, do que a ameaça dos piratas. A operação que estava a ser montada contra estes era em larga medida um disfarce, uma forma de desviar as atenções daquilo
que constituía o verdadeiro alvo de Roma. E se era esse o jogo de Narciso, então os pergaminhos deviam valer as vidas de muitos homens. Mas o que poderia ser assim
tão importante? Uma lista de traidores? Segredos de Estado da Párcia? Podia ser qualquer coisa, decidiu Cato, frustrado.
Nesse instante o vento morreu por completo, e as paredes da tenda abateram-se sobre ele. E então ouviu um grito - curto, agudo e a alguma distância. Pareceu ecoar
nas montanhas durante uns momentos, mas logo a seguir o vento levantou-se de novo, e o som esvaiu-se. Tirou o cobertor da cabeça e esforçou-se por tentar captá-lo
de novo. E lá estava ele: um fino grito torturado, que mal se ouvia acima do gemido do vento e do batimento irregular das paredes da tenda. Inclinou-se e sacudiu
o ombro de Macro. Não houve qualquer resposta, e sacudiu de novo, com mais força, ao mesmo tempo que beliscava os músculos do amigo. O centurião despertou meio atarantado.
- O quê? Que foi? Onde está a minha espada? - A mão dirigiu-se imediatamente para o gládio, e só depois os olhos do veterano se focaram na silhueta de Cato,
agachado ao seu lado.
- Calado! - Avisou Cato, em surdina. - Oiça!
- Ouvir? O quê?
- Chiu! Oiça com atenção...
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Os dois homens mantiveram-se imóveis, quase sem respirar, de ouvidos atentos, mas nada mais se notava para lá da ventania no exterior. Macro desistiu.
- Importas-te de me informar de que raio estou eu à escuta?
- Ouvi um grito.
- Um grito? Aqui nas montanhas? Tens a certeza de que não foi o
vento?
- Absoluta.
- Então deve ser alguma espécie de bacanal do pessoal que vive aqui pelas serranias.
- Calado! Lá está outra vez!
Desta vez Macro também ouviu: um som de origem claramente humana, que trazia consigo evidentes sinais de tormento e agonia. O grito foi interrompido de forma abrupta,
e Macro sentiu que os pêlos do pescoço se lhe eriçavam.
- Merda. Tens razão.
- O que é que fazemos?
Macro afastou a manta e tacteou à procura das botas.
- Vamos ver o que se passa, claro. Vamos lá. Traz a tua espada.
- E o Minúcio?
- Deixa-o estar. Não quero fazer figura de recruta assustadiço. Vamos só ver o que se passa e, se for preciso, voltamos para pedir ajuda. Embora.
Ao saírem da tenda, notaram que tinha parado de nevar, embora um manto alvo cobrisse as tendas e os vagões. Em cada extremo do campo via-se uma sentinela, a bater
os pés no solo para os impedir de gelar. O vento também tinha amainado, não passando agora de uma brisa, e no céu os pontos brilhantes das constelações de Inverno
só eram obscurecidos pela passagem fugaz de algum farrapo de nuvem prateado.
- Por aqui. - Orientou Macro, caminhando sem alarido sobre a neve e dirigindo-se à sentinela mais próxima. Ao notar os oficiais, o homem quis demonstrar que
estava atento.
- Alto! Avance ao reconheci... A
- Cala-te. Se ainda não sabes quem somos, nunca vais saber. A tua missão é prestar atenção a quem se aproxima do campo, não é vigiar os movimentos no seu
interior, e seria bom que mantivesses os olhos abertos, cretino.
- Desculpe, senhor.
- Não tem importância. - Apaziguou Cato.
- Porra, tem, sim. - Insistiu Macro. - Se este tipo não consegue fazer o papel de sentinela, nem para os fuzileiros presta.
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Cato ignorou-o, e concentrou a sua atenção na sentinela.
- Ouviste alguma coisa?
- Ouvir o quê, senhor?
- Uma voz, um grito de homem.
O soldado respondeu sem se comprometer.
- Talvez tenha ouvido, sim.
- Olha, filho, não tentes armar-te em esperto comigo. - Macro deu-lhe um piparote no peito. - Ouviste alguma coisa, sim ou não?
- Sim, senhor. Mas foi muito breve. Pode ter sido a minha imaginação. Pareceu-me vir dali. - Apontou na direcção da massa escura da colina que se erguia por
trás do campo. - Ali para cima, ou mais provavelmente na outra encosta, senhor, suponho.
- E porque é que não deste o alarme?
- Só porque julguei ouvir alguma coisa, que até posso ter imaginado, senhor?
- Não podes pôr em risco as vidas dos outros, rapaz. Percebido?
- Sim, senhor. Quer que alerte o resto dos homens?
- Não. - Disse Macro. - Nós vamos investigar. Se ainda não tivermos regressado quando for a mudança de turno, nessa altura dás o alarme. Não deve ser nada
de grave - um lobo, ou coisa do género. Bom, mantém-te atento.
O recruta fez a saudação e dirigiu a sua atenção para o exterior do
campo.
Macro apontou para a face da colina.
- Por ali, acho eu. Vamos.
Quando se viram fora de alcance dos ouvidos da sentinela, Cato interrogou-o.
- Um lobo?
- Até pode ser que sim. Já os ouvi fazerem sons deste género.
Chegaram à base da vertente e viram-se obrigados a atravessar
um montículo de neve até chegarem às árvores, parte de uma densa floresta que se estendia na direcção do cume. A neve mal tinha penetrado por entre os ramos entrançados,
e o ar tinha um intenso aroma de pinheiro. O declive era acentuado, e tiveram de avançar sobre as mãos e pés, de tronco em tronco, mas quase em silêncio, já que
as botas se apoiavam permanentemente num espesso manto de velhas agulhas caídas no solo. Ao abrigo da ventania e aquecidos pelo exercício a que se viam obrigados,
emergiram a suar e arfar do outro lado do bosque. O alvor da neve permitiu-lhes adivinhar um afloramento rochoso que se interpunha entre eles e o cume da colina.
Cato olhou para trás e viu o campo lá em baixo, quase irreconhecível, já que tendas e vagões estavam
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cobertos pela neve. Ouviu-se o grito mais uma vez, de forma muito mais clara, e os dois centuriões entreolharam-se.
- O que acha? - Perguntou Cato.
- Acho que há um desgraçado qualquer a ser maltratado por aí.
- Macro inspirou fundo e continuou a subir a encosta. Cato seguiu-o, pondo os pés nas profundas marcas que o amigo deixava na neve. As rochas eram recortadas,
e havia muitos pontos de apoio para as mãos e os pés, o que tornava a escalada fácil; pouco depois, Macro dava a mão a Cato e ajudava-o a alcançar uma rocha plana,
da qual se podia apreciar a garganta que o comboio militar percorrera nessa tarde. Mesmo por baixo deles, a estrada contornava a colina e subia pelo outro lado.
Deram pela fogueira em simultâneo, um diminuto brilho amarelado à beira da estrada, a pouco mais de cem passos de distância. Ali perto viam-se quatro cavalos, presos,
bem como três vultos humanos sentados sobre um tronco caído, bem próximos do fogo. Um quarto elemento debruçava-se sobre a ponta do tronco, e em resposta a esse
movimento, ouviu-se outro lamento agonizante. O vulto recuou para junto do fogo e revelou a presença de um quinto homem, de tronco nu e atado ao tronco. Ao fraco
brilho da fogueira, Cato e Macro notaram que o peito deste estava repleto de marcas escuras. A origem dessas marcas ficou imediatamente esclarecida quando o outro
se aproximou do fogo e mergulhou nele a ponta da espada.
Cato virou-se para o amigo.
- Já vi aquele tipo antes. O que está amarrado ao tronco. É aquele mercador.
- Mercador?
- O que estava connosco em Hispelo... O que é que acha que se está a passar? Quem serão aqueles homens?
- Não tenho a certeza. Muito provavelmente, bandidos. De qualquer maneira, não vou ficar aqui sentado a ver e a deixá-los continuar com aquilo. - Macro avaliou
o terreno e ponderou a situação. - Voltar atrás e trazer mais gente levaria demasiado tempo. Quando aqui chegássemos outra vez, já aquele desgraçado estava morto.
E com aqueles lamentáveis fuzileiros que temos entre mãos, não haveria qualquer hipótese de os surpreender. Matavam-no, saltavam para cima dos cavalos e escapuliam-se
muito antes de conseguirmos descer esta encosta.
- Estou a ver. - Concordou Cato, lentamente. - Portanto, o que está a dizer é que somos nós os dois que temos de tratar disto.
- Adivinhaste, miúdo. - Macro deu-lhe uma palmada no ombro.
- Vamos a isso.
Desceram da laje e seguiram a linha rochosa até alcançarem um
maciço de árvores que se estendia para a estrada; nesse momento, o prisioneiro voltou a gemer.
- Piedade! Por favor, chega! - A súplica chegou de forma clara aos ouvidos dos centuriões. - Juro que não sei nada!... Por favor! Não!
Um novo grito de agonia atravessou a noite, fazendo com que Macro e Cato se apressassem. Embrenharam-se por entre as sombras das árvores e, escorregando e tropeçando,
foram-se aproximando, sob as ramadas repletas de neve. Mantiveram a luz da fogueira sob mira enquanto desciam, vendo como ela cintilava entre os ramos entrelaçados
dos pinheiros. Por fim, Macro deteve-se e, com o braço erguido, fez sinal a Cato de que já estavam próximos. A não mais de cinquenta passos, viam-se perfeitamente
os quatro homens e o seu prisioneiro, iluminados pela bruxuleante luz da fogueira.
Macro desembainhou a espada e deu um passo em frente.
- Espere! - Deteve-o Cato. - Não vai atirar-se assim de cabeça.
- Porque não? - Sussurrou Macro. - Somos só dois, não vamos com certeza cercá-los.
- Pois não. - Concordou Cato. - Devíamos ter ido buscar ajuda.
- Agora é tarde.
- Muito bem então. Vamos atacar. Mas vamos ao menos tentar equilibrar as coisas. Olhe para ali. - Cato apontou para uma cova no terreno junto à estrada, e
Macro percebeu que era a valeta, coberta de neve. Passava muito perto do tronco caído, e os homens que se sentavam nele estavam de costas para a estrada.
Embainhou a espada e assentiu.
- Parece-me boa ideia.
Rastejaram pelo meio das árvores e, quando chegaram ao limite do bosque, à beira da estrada, agacharam-se e rastejaram pela neve até atingirem a valeta, onde fizeram
uma pausa, deitados de bruços. Macro tomou a dianteira e prosseguiram, lutando contra a impaciência que os fazia querer moverem-se mais rapidamente, quando se ouviu
um novo clamor. Nessa altura já estavam na clareira, e relativamente próximos do brilho da fogueira.
- Mantém-te em baixo. - Sussurrou Macro, sobre o ombro. Tirou a espada da bainha, inspirou, e soergueu-se lentamente. Observou atentamente as silhuetas dos
três homens sentados no tronco. Estavam em silêncio, limitando-se a apreciar as acções do quarto bandido, de novo debruçado sobre o prisioneiro, que dali não se
conseguia avistar. Lançou uma imprecação silenciosa. O tipo estava virado mesmo para aquele lado. No momento em que saíssem da valeta, avistá-los-ia.
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Voltou a baixar a cabeça e assistiu a nova sessão de tortura, frustrado, até que sentiu um puxão suave no pé. Olhou para trás; Cato abria as mãos, questionando o
que se passava. Abanou a cabeça e recuou, até conseguir murmurar ao ouvido do amigo sem perigo de ser escutado pelos bandidos.
- Temos de esperar. Olha para mim. Quando der sinal, levantamo-nos, sem fazer barulho, e atacamos. Não avances antes do meu sinal.
Certo. - Anuiu Cato.
Mantiveram-se deitados sobre a neve, as espadas empunhadas, à espera do momento certo. Cato sentia a neve a derreter por baixo do corpo, a ensopar-lhe a túnica e
a provocar-lhe arrepios na pele. Recomeçou a tremer, mesmo com o coração a pular de terror e excitação. À sua frente, Macro estava imóvel como uma rocha; só os olhos
se moviam, acompanhando as evoluções dos adversários. O algoz prosseguia no seu trabalho macabro, e agora conseguiam escutar tudo o que dizia à sua vítima.
- Vá lá, homem! No fim, vais acabar por nos dizer... Mas não te iludas. Vais morrer, é só uma questão de ser mais fácil e rápido, ou não. E este não pode
significar uma agonia muito longa, acredita.
- Juro que não sei nada. - Soluçou o outro. - Não sei nada do que vocês querem. Juro-o!
Deu-se uma pausa, até que a personagem que conduzia o interrogatório voltou a falar, num tom baixo que respigava ameaça.
- Parece-me que chegou o momento de te assar os tomates. Veremos se isso não te solta a língua.
Recuou, virou-se para a fogueira e inclinou-se sobre ela, para voltar a colocar a lâmina no coração das chamas. Macro preparou-se, e acenou a Cato. Levantaram-se
os dois, assumindo uma posição agachada, as espadas em riste, e começaram a avançar para o tronco. A neve gemia sob cada passo que davam, embora Cato poisasse os
pés com todo o cuidado e lentidão, sem desviar os olhos das costas dos homens sentados no tronco. Tinha consciência do vulto de Macro ligeiramente à esquerda, dirigindo-se
ao tipo que estava na outra ponta do banco improvisado. Nessa altura as narinas do jovem foram atingidas pelo fumo, misturado com o odor a cavalo e o fedor acre
da carne queimada, e viu-se obrigado a lutar contra a bílis que lhe ameaçava subir pela garganta.
O algoz endireitou-se e ergueu a lâmina, que brilhava num tom alaranjado bem evidente contra a escuridão da paisagem. Virou-se e estacou quando deu pelas duas figuras
que se aproximavam.
- Mas que mer...
- Vamos a eles! - Gritou Macro, lançando-se ao ataque e espalhando neve por todo o lado, enquanto espetava a ponta da espada nas
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costas do homem que estava à sua frente. Cato mal teve tempo de se preparar, pelo que se limitou a esticar o braço e atingir um adversário quando este começava a
rodar. A ponta da arma estava muito alta, e penetrou no ouvido do homem com um som húmido. A cabeça tombou para o lado sob o impacto, e o tipo rolou para o chão.
O terceiro bandido, sentado no meio, levantou-se de um salto e afastou-se do tronco. Num instante a espada surgiu-lhe na mão, em posição de afastar qualquer ataque.
O chefe juntou-se-lhe, os olhos a dançarem de um lado para o outro. Sorriu.
- São só dois. Podemos com eles.
Tendo reduzido a oposição a metade, os dois centuriões mantiveram-se do seu lado do tronco. A surpresa do ataque já tinha passado, e agora o que os esperava era
um combate equilibrado. Sem desviar o olhar dos adversários, Macro dirigiu-se a Cato.
- Ficas com o da lâmina em brasa. Eu trato da saúde ao outro
sacana.
Cato anuiu, e moveu-se, rodeando o tronco, semiagachado e pronto a atacar. Mas não teve ocasião para o fazer. Foi o adversário que se lançou sobre ele, com um grito.
A espada em brasa descreveu um arco brilhante no ar, e ele só teve tempo para erguer o gládio e aparar o golpe, de forma que a ponta brilhante da espada do adversário
se quebrou e foi aterrar na neve, silvando enquanto arrefecia bruscamente. Recuperou rapidamente e lançou uma estocada ao peito do inimigo, mas este era demasiado
rápido e evitou-o com facilidade, dando um passo atrás e fazendo a lâmina do centurião cortar apenas o ar. Os dois homens fizeram uma pausa para se medir, e Cato
notou pelo canto do olho que Macro trocava golpes com o outro bandido, mas não se atreveu a desviar a atenção do tipo que enfrentava.
O verdugo acenou a Cato com a mão livre.
- Anda, rapaz, se achas que chegas para mim.
Cato lançou-lhe um olhar de desprezo. Não ia cair numa armadilha tão evidente.
- Vai-te foder.
O homem riu-se, mas logo a seguir a sua face transformou-se numa máscara de intensa e letal concentração. Avançou rapidamente e fez uma finta. Cato percebeu que
estava a ser testado e, apesar do receio que sentia, manteve a sua espada firme e imóvel. O adversário grunhiu e lançou um ataque real; uma série rápida de estocadas
e cortes que obrigou Cato a recuar na direcção do tronco, enquanto se esforçava desesperadamente por deter os golpes do outro, interpondo a sua lâmina e recebendo
no braço toda a dor que os fortes impactos lhe causavam. Por fim sentiu a casca da árvore contra o corpo, e percebeu que não podia continuar a recuar. O atacante
redobrou de entusiasmo nos seus golpes. Com um grito profundo de raiva
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e triunfo, o homem forçou a espada de Cato contra o tronco caído, fazendo menção de lançar um golpe para cima e para o lado, na direcção do rosto do jovem. Mas a
espada ficara presa na madeira, e não conseguiu libertá-la com um primeiro puxão. Fez uma careta. Sem pensar, Cato deu-lhe um murro, partindo-lhe o nariz e deixando-o
aturdido. O jovem sentiu que a sua espada estava presa debaixo da do outro, pelo que a largou e aplicou outro soco no rosto do adversário, seguido por um rajada
de golpes que obrigou o homem a recuar passo a passo, até se estatelar na neve.
Só nessa altura é que Cato levantou o olhar e tentou perceber como se estavam a passar as coisas com o amigo. Mas Macro não precisava de ajuda. O seu adversário
já estava por terra, e o centurião debruçava-se sobre ele, um pé a fazer força contra o peito do homem enquanto lhe arrancava a espada do meio das costelas.
Macro olhou em redor.
- Tudo bem, miúdo?
- Nem um arranhão. - Virou-se e foi recuperar a espada. De repente surgiu uma mão que lhe agarrou o tornozelo e o fez cair. Rebolou imediatamente e respondeu
com um pontapé. O homem que tinha atingido no ouvido anteriormente rugia-lhe através dos dentes cerrados, enquanto olhava para ele com uma estranha expressão ausente.
Mas mantinha-lhe a perna presa com a força de um torno, e os dedos penetravam-lhe na carne em volta do tornozelo. Aplicou-lhe outro pontapé, usando as botas cardadas
para lhe esmagar os nós dos dedos. Ainda assim, o tipo não o largou, mesmo com o sangue a correr-lhe pelas mãos. Por trás dele, Cato reparou que o chefe dos bandidos
voltava a erguer-se. Olhou para os oficiais romanos, primeiro um e depois outro, virou-se e correu para os cavalos.
- Apanhe-o! - Gritou Cato.
Macro reagiu de imediato e lançou-se em perseguição, lançando nuvens de neve pelos ares. Entretanto, Cato virou-se de novo para o tronco, alcançou o punho da sua
espada e libertou-a com esforço. Sentou-se e, cerrando os dentes, golpeou o braço do bandido que o agarrava, cortando a carne e esmagando-lhe os ossos. O aperto
no tornozelo diminuiu, e o jovem libertou a bota. O homem fez uma cara estranha, e depois os olhos rebolaram-lhe lentamente e ele tombou de borco sobre a neve, sangue
e matéria cinzenta a escaparem-se pelo buraco aberto na parte lateral do crânio.
O som de um cavalo a relinchar atraiu a atenção de Cato na direcção das árvores, onde avistou o chefe dos bandidos encolhido sobre um dos animais, fazendo-o rodar,
saltar a valeta e tomar a estrada. Macro tentou alcançá-lo, mas já era tarde de mais, pelo que se deteve junto à beira do
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caminho, batendo com a espada contra a perna, frustrado, enquanto o cavalo galopava ao longe e se perdia na escuridão.
Cato dedicou então a sua atenção ao prisioneiro, ajoelhando-se a seu lado. Era um homem alto, bem constituído, de meia-idade, e com cabelo escuro e curto. Usava
umas calças de montar e botas de cabedal. No peito nu viam-se várias marcas de queimaduras, e tinha também uma no rosto. Quando se apercebeu da presença de Cato,
forçou-se a sorrir.
- Os meus salvadores, espero.
Cato procurou por entre as cordas que prendiam o homem à árvore, até encontrar o nó e o desfazer. Ao ficar de novo livre, o outro tombou para a frente, equilibrando-se
a custo, enquanto esfregava os pulsos.
- Oh, merda... Que agonia.
Estremeceu; Cato pegou na capa do mais próximo dos inimigos abatidos e envolveu nela o homem.
- Consegues andar?
Macro juntou-se a eles, caminhando pesadamente sobre a neve.
- Tudo bem, companheiro?
O homem levantou o olhar, e obrigou-se de novo a sorrir.
- Oh, tudo bem, obrigado. Posso perguntar-vos quem são? Parece-me que vos reconheço.
- Centuriões Macro e Cato, a caminho de Ravena com uma coluna de fuzileiros. E tu?
O homem tremeu e manteve-se em silêncio por algum tempo, até que respondeu:
- Marco Anobarbo, mercador.
Macro acenou, à laia de saudação, e depois apontou os corpos dos três homens que tinham abatido.
- E quem são estes brincalhões?
Anobarbo levantou o olhar.
- Importam-se muito que vos peça para arranjarmos um abrigo antes de vos contar a minha história? Estou-me a sentir um bocadito em baixo.
- Desculpa. - Màcro inclinou-se, e ofereceu a mão ao outro. Este agarrou-a e pôs-se de pé com uma careta, para logo desmaiar.
- Cato, dá-me aqui uma ajuda. - Disse o veterano, enquanto passava o braço pelas costas do mercador.
Mantendo-o no meio dos dois, bem apoiado, os centuriões atravessaram o campo até à estrada e seguiram-na, lentamente, até se verem de novo no campo romano.
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XI
O centurião Minúcio esperava-os na estrada junto ao acampamento. Enquanto se aproximavam lentamente, ladeando Anobarbo, cruzou os braços.
- E este, quem é?...
- Marco Anobarbo. - Resmungou Macro. - Já nos tínhamos encontrado antes. Estava lá naquela noite que passámos em Hispelo.
- E portanto vocês resolveram ir dar um passeio a meio da noite e, por acaso, encontraram-no... Foi isso? - Inquiriu Minúcio, com mal disfarçada suspeita.
- E, já agora, afinal quem são vocês os dois, exactamente?
- Centuriões, a caminho de uma nova colocação, como já te dissemos.
- Sim, já me disseram.
- Já viste os nossos documentos. - Juntou Cato. - Tem o selo do Gabinete do Exército Imperial, não têm?
- Ora, qualquer miúdo meio jeitoso era capaz de o falsificar.
- Até pode ser que sim, mas quem é que se arriscaria a fazê-lo?
- Insistiu Cato. - E agora, queres fazer o favor de nos deixar levar este tipo para a tenda e tratar-lhe dos ferimentos?
Minúcio ergueu o sobrolho.
- Ferimentos? De que género?
- Quando o encontrámos, havia uma série de tipos à volta dele, a divertirem-se numa tentativa de lhe tornar os últimos momentos de vida tão penosos quanto
possível.
- Porquê?
Macro encolheu os ombros.
- Vamos levá-lo lá para dentro e tentar descobrir.
Pouco depois, deitaram Anobarbo na esteira de Macro. Minúcio reapareceu, vindo do lado dos vagões, com uma caixa repleta de salvas e pensos. Pousou-a junto à cama,
enquanto Cato afastava cuidadosamente a capa, expondo as feridas.
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- Porra. - Comentou Minúcio. - O que raio estavam a tentar fazer-lhe?
- Soltar-lhe a língua, muito provavelmente. - Retorquiu Cato.
- Ainda os ouvimos a fazer-lhe algumas perguntas.
- Que perguntas?
- Não sei bem. Queriam qualquer coisa, ele dizia que não a tinha.
- Oh, isso dá-nos uma grande ajuda.
Macro acenou na direcção do mercador.
- Está a dar sinais de vida. Vamos perguntar-lhe.
Os olhos de Anobarbo piscaram, e ele encarou com ansiedade as faces que se debruçavam sobre si, até que reconheceu Macro e Cato, e o terror lhe abandonou o olhar.
Humedeceu os lábios e sorriu.
- Os meus salvadores. Por momentos temi que fossem... O que é que aconteceu aos outros?
- Um conseguiu escapar. - Respondeu Macro. - Os outros estão mortos. Queres dizer-nos quem eram?
- Vai já. - Interrompeu Minúcio. - Primeiro, deixem-me tratar dessas queimaduras.
Levantou a tampa da arca médica. Lá dentro espalhavam-se frascos de unguentos e outros remédios. Minúcio remexeu no conteúdo da caixa e acabou por extrair um pote
com uma rolha de cortiça. Continha um creme oleoso, que aplicou cuidadosamente no peito do mercador, e na queimadura da face.
- Gordura de ganso. - Explicou. - Vai proteger as queimaduras. Agora, levantem-no, enquanto aplico o penso.
O mercador rangeu os dentes enquanto Minúcio lhe embrulhava o torso num pano de linho, que amarrou por baixo do braço. Agradecido, deixou-se tombar de novo sobre
o leito, enquanto o centurião fechava a caixa e a arrumava a um canto.
- Muito bem, então. - Pediu Macro. - Conta-nos o que sucedeu.
Anobarbo cerrou os olhos um instante, antes de começar.
- Como já vos disse, sou mercador. Negoceio em arte. Compro peças que são embarcadas na Grécia e descarregadas em Ravena, antes de seguirem para os meus clientes
em Roma. Cheguei cá há uma semana, vindo da capital. Quando resolvi regressar, tinha comigo uma boa soma em dinheiro. A viagem estava-me a correr bem. Mas então
surgiu uma tempestade de neve, e a Via Flamínia foi encerrada. Quando o tempo melhorou, reparei num grupo de homens junto à estrada, a alguma distância. Deviam estar
à espera de viajantes distraídos. Fiz o cavalo dar meia-volta e galopei dali para fora. Montaram imediatamente e lançaram-se em perseguição.
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Tinha uma arca cheia de ouro, pesada, e isso estava a atrasar-me. Percebi logo que, se não andasse mais depressa, eles acabariam por me apanhar. Portanto, parei,
escondi a arca, e continuei a fuga.
- Escondeste-a? - Interrompeu Macro. - Onde?
Anobarbo encarou-o.
- Porque é que havia de te dizer?
- Oh homem, foda-se! Salvámos-te. Somos centuriões ao serviço do Imperador, não somos nenhum bando de salteadores da montanha.
Anobarbo pareceu considerar a situação, antes de se decidir.
- Seja. Há um pequeno santuário junto à estrada. Meti a arca numa toca de raposa ali perto. Será melhor que ainda lá esteja quando voltar, ou saberei bem
a quem atribuir responsabilidades. Tenho conhecimentos, sabem. E dos poderosos.
Macro abanou a cabeça com ar enfadado.
- Todos nós os temos, meu caro. Só nos resta tentar evitar que nos enrabem a todo o momento. Bom, segue lá com a tua história.
- O resto é fácil de adivinhar. - Prosseguiu o outro. - Continuei, mas eles tinham melhores montadas, e alcançaram-me ao anoitecer. Iam liquidar-me imediatamente,
mas quando perceberam que já não tinha comigo a arca, adivinharam que a tinha escondido algures. A princípio deram-me uns sopapos, mas quando me recusei a dizer-lhes
o que quer que fosse, o chefe ameaçou matar-me logo ali. Não era difícil perceber que, assim que lhes dissesse onde estava o ouro, a minha vida deixava de ter qualquer
valor, por isso fiquei mudo. Então prepararam as coisas, despiram-me, ataram-me ao tronco e fizeram uma linda fogueira. Não fazia ideia do que me iam fazer até que
vi o chefe a aquecer a espada. Bom, a continuação já vocês conhecem. Chegaram na hora certa. Com toda a franqueza, no momento em que ele me aproximasse a espada
aos tomates, eu dir-lhes-ia tudo o que quisessem ouvir.
Cato fez uma careta.
- Quem não o faria?
- E nessa altura entraram vocês em cena. Contra quatro deles - Anobarbo sorriu. - Isso é que é ter tomates.
- É preciso usá-los enquanto os temos. - Comentou Macro. Virou-se para Minúcio. - Surpreendêmo-los. Antes que conseguissem reagir, já tínhamos tratado de
dois. Depois despachei outro, e o quarto fugiu ao Cato.
- Um instante, não foi bem assim! - Indignou-se Cato. - O outro filho da puta rasteirou-me. Quem o perseguiu e o deixou escapar foi o Macro.
Este levantou as mãos, tentando aplacar a fúria do jovem.
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- Maneira de dizer, miúdo, só isso. Seja como for, escapuliu-se pela estrada. Como vimos todos.
Cato inquiriu o mercador.
- Disseste que negoceias em antiguidades.
- Sim. E daí?
- De que tipo?
- O habitual. Estátuas. Cerâmica. Móveis. Livros. Tudo o que possa alcançar um bom preço entre os coleccionadores de Roma. Se imaginasses o que alguns estão
dispostos a pagar por certos objectos, ficavas horrorizado. A mim, isso delicia-me.
- E que tal pergaminhos? - Quis saber Cato.
Anobarbo fez uma careta.
- Pergaminhos? De que género?
- Sei lá. Só queria saber, na tua opinião, o que faz com que um rolo de pergaminho tenha um bom valor no mercado.
- Depende. Há gente capaz de pagar uma fortuna por um livro de receitas originais. Outros coleccionam relatos históricos. Ou histórias, ditados, augúrios.
Esse género de coisas. Evidentemente, do ponto de vista do investimento, o melhor material que se pode apanhar é o erótico, sobretudo quando vem do Oriente. Dá para
ensinar um ou dois truques aos mais batidos dos frequentadores de Subura.
- Não duvido. - Cato sorriu. - Mas isso é tudo? Não há mais nada que possa fazer com que um pergaminho tenha um valor elevado?
O mercador pensou alguns momentos, e depois esboçou um ar resignado.
- Desculpa. Mas isso é tudo de que sou capaz de me lembrar por agora... Au! - O rosto contorceu-se, e levou a mão ao peito.
- Não! - Minúcio agiu, afastando a mão do outro com um gesto rápido. - É melhor não tocares na zona queimada. Tens de tentar descansar.
- Sim. Descansar. - O mercador concordou. - Acho que já respondi a perguntas suficientes por esta noite, não lhes parece?
Macro anuiu, e Cato recostou-se e encheu as bochechas de ar. Anobarbo fechou os olhos e, com uma expressão de esforço cravada no rosto, tentou respirar com mais
facilidade. Pouco a pouco, o subir e descer do seu peito tornou-se menos laborioso, e a face relaxou-se quando o sono a envolveu.
- O que acha? - Inquiriu Cato.
- Do quê?
- Da história dele. Acha que é verdadeira?
- Porque não haveria de ser? Cato, vês conspirações por todo o
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lado. Porque é que o tipo não há-de ser quem diz que é? Não é preciso grande esforço para o admitir.
- É até fácil de mais. - Murmurou Minúcio.
Macro lançou-lhe um olhar exasperado.
- O quê, tu também?
- Porque não? - Contrapôs o centurião mais velho. - E, por falar nisso, ainda nem sequer estou convencido quanto a ti e ao miúdo. O que era essa história
toda sobre pergaminhos?
- Já estou é farto disto. - Resmungou Macro. - Preciso de dormir.
- Azar. - Comentou Minúcio, indicando o mercador com um gesto da cabeça.
- Oh, merda. - Macro rangeu os dentes. - Era mesmo o que me faltava. - Levantou-se e dirigiu-se à saída da tenda.
- Onde é que vais, agora?
- Porra, vou mijar, se não te importas. E depois vou ver se corto umas ervas para arranjar sítio onde dormir, caraças.
XII
A coluna alcançou Urbino dois dias depois, após uma curta paragem para recolher uma pequena arca de madeira escondida junto a um santuário. Anobarbo decidiu permanecer
com eles, explicando que tinha amigos em Ravena que o receberiam enquanto recuperava das feridas.
Outros dois homens tinham sido perdidos nas montanhas, tendo simplesmente desaparecido durante a noite, numa vã tentativa de regressarem às suas famílias em Roma.
Minúcio duvidava que eles conseguissem sair das montanhas com vida, e Macro estava muito perto de ganhar a sua aposta.
Quando os fuzileiros chegaram finalmente ao porto de Arímino, já circulavam por todas as estalagens do caminho as histórias em que se narravam as últimas façanhas
da frota pirata que aterrorizava as águas costeiras. Não se podia dizer que os bárbaros estavam às portas da cidade, mas também não havia maneira de disfarçar a
histeria evidente que se estava a apossar das gentes da Úmbria. Naquela cidade, a própria guarnição tinha recolhido à cidadela fortificada, no que fora acompanhada
pela maior parte dos cidadãos locais com algumas posses. Poucos navios ocupavam o porto, e no horizonte azul do oceano não se avistavam quaisquer velas.
Dez dias depois do salvamento de Anobarbo, a coluna passou pela entrada fortificada de Ravena, contando um homem a mais do que o número de que Macro necessitava
para ganhar a aposta. Só por um tremendo esforço de vontade não cedera à tentação de eliminar discretamente um dos recrutas na noite anterior à chegada, e foi com
grande relutância que concedeu a vitória a Cato, quando o último dos homens entrou na cidade.
- Quer que ponha na conta? - Riu Cato.
- Se achas que tens dentes a mais na boca... Assim que recebermos, hás-de ter o teu dinheiro.
- Mal posso esperar para o gastar, mais um mês de salário. Trezentos dinheiros não são nada de deitar fora.
- Trezentos? - Minúcio não evitou uma gargalhada perante o
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diálogo que se desenrolara à sua frente. - Isso é que era bom. Suponho que vocês os dois estão a soldo da marinha?
- De facto. - Retorquiu Macro. - E então?
- Bem, nem por um momento imagino que os funcionários que vos colocaram aqui tenham tido a decência de vos informar sobre o salário...
- Não, nem por isso. - Macro sentia o coração a afundar-se-lhe, como se fosse uma pedra. - O que é que tem de especial?
- Recebemos o mesmo que os auxiliares.
Macro olhou para o outro com uma expressão de horror, e depois riu, nervoso.
- Estás outra vez a entrar comigo, não é? Pára lá com a brincadeira, Minúcio, já chega.
- Estou a falar a sério.
- Uma gaita.
- Não, a sério. É mesmo verdade.
Macro abanou a cabeça, e depois deu um murro na perna, furioso.
- Merda!... Aquele cabrão avarento do Narciso lixou-nos outra vez! Juro que um dia lhe hei-de ir aos cornos, nem que seja a última coisa que faça.
- Essa é certa. - Resmungou Cato. - E é melhor não falarmos muito dele, a não ser que queiramos que toda a cidade saiba ao que vimos.
- Não acredito nisto, foda-se. - Continuou Macro. - O sacana não se limita a pôr a corda à volta dos nossos pescoços, ainda consegue um desconto na merda
do material.
Macro continuou a praguejar enquanto a coluna percorria a rua principal de Ravena, a caminho das docas. Tal como na maior parte das cidades de província, as ruas
eram estreitas e os edifícios raramente ultrapassavam os dois andares de altura. Muito antes de chegarem à beira-mar, já Cato avistava a densa floresta de mastros
e velame que se amontoava no porto. Junto ao cais principal viam-se grupos de marinheiros, sentados por ali, com ar desconsolado, contemplando os navios acostados
em filas múltiplas que baloiçavam levemente ao sabor da ondulação tranquila. Quando viram aparecer os recrutas, puseram-se de pé e contemplaram-nos, sem esconder
a hostilidade.
- Não percebo. - Comentou Cato. - Pensava que toda a marinha mercante se tinha tentado afastar o mais possível dos piratas. Em Armino só estava um punhado
de navios. - Acenou com a mão, abarcando todo o porto. - Nunca vi tanto barco junto. Não têm medo dos piratas?
- Claro que têm, miúdo. - Respondeu Macro, com um sorriso.
- E é precisamente por isso que aqui estão. Haverá melhor lugar para estar
nesta altura do que mesmo ao lado da base naval? É aquilo que lhes garante a segurança.
Cato olhou na direcção que o amigo apontava. Ao fundo do cais via-se um portão fortificado, que dava entrada para as docas da marinha imperial. Ancorada no porto
militar via-se a frota, composta por navios de aspecto formidável. Contou mais de trinta. A maioria eram pequenas embarcações para patrulhas costeiras, mas mais
ao largo via-se um esquadrão de trirremes, vasos de grande porte, a espinha dorsal da marinha romana. Cada uma delas apresentava três filas de remos em cada bordo
e tinha torres fortificadas à vante e à ré, nas quais estavam montadas catapultas. Da proa de cada um dos navios saía um pesado esporão revestido de bronze.
Por trás das trirremes, podia ver-se um navio ainda maior. Cato saltou para cima do vagão para ver melhor, e apontou.
- O que é aquilo?
- É o Hórus, o nosso navio-almirante. É uma quinquerreme, ou uma de cinco, como nós dizemos. Aquela já tem uma longa história. Era a jóia da frota do Marco
António. Foi capturada pelo Augusto em Áccio e incorporada na marinha imperial. Foi feita para durar, e aguenta tudo. Não há no mar nada que se lhe compare.
Cato manteve o olhar fixo no Hórus mais algum tempo, e voltou a sentar-se, enquanto o comboio atravessava a área junto ao cais de mercadorias e se dirigia ao portão
da base. Os marinheiros e os trabalhadores das docas civis alinhavam-se ao longo do caminho, observando a passagem dos soldados num silêncio amargo.
Uma voz fez-se ouvir.
- Quando é que fazem alguma coisa acerca dos piratas?
A queixa foi imediatamente aproveitada por outras vozes, e daí a pouco os fuzileiros e os seus oficiais viram-se cercados por gritos hostis, e até por punhos erguidos
e ameaçadores. Os recrutas olhavam nervosamente em redor.
- Olhos em frente! - Avisou Macro. - Olhos em frente, já disse. Ignorem esses bandalhos.
Um naco de esterco atravessou o ar e embateu no ombro do centurião. Cerrou as mandíbulas e continuou a olhar para a frente. Infelizmente, dado o exemplo, o ar depressa
se encheu de lama, excrementos e outros tipos de imundície, que se abatiam sobre os indefesos fuzileiros e oficiais. Os homens que seguiam à frente da coluna vacilaram
ao tentar proteger-se do bombardeamento, o que fez com que Minúcio se erguesse e levasse as mãos em concha à boca.
- Não parem, aí à frente! Continuem a marcha, porra!
Os optios incentivaram os homens com recurso às suas varas, e a
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coluna voltou a avançar. Minúcio abriu a boca para soltar mais algumas palavras de incentivo mas, enquanto Macro observava, uma bosta voou sobre a coluna e foi atingir
o veterano precisamente na boca. Os mirones mais próximos não evitaram um acesso espontâneo de gargalhadas.
Minúcio baixou-se, cuspindo e tentando limpar os lábios na manga da túnica.
- Se alguma vez encontrar o cabrão que me fez esta, juro que o filho da puta não há-de comer nada senão merda para o resto dos seus dias.
Macro, debatendo-se inutilmente para manter uma cara séria, deu um toque a Cato.
- Pensava que coisas destas só me aconteciam a mim.
- E acontecem mesmo. Olhe. - Cato apontou para a túnica do amigo e Macro, seguindo a indicação, reparou numa tenebrosa mancha castanha que conspurcava a peça
de lã.
O oficial de guarda ao portão tinha-se apercebido de que a confusão se ia instalar no cais, e quando a coluna de recrutas se aproximou, fez sair um esquadrão de
fuzileiros que carregou sobre a turba, para abrir caminho para a passagem de Minúcio e dos seus homens. Percebendo que se estava a acabar a possibilidade de descarregar
a frustração nos homens que considerava como responsáveis pela paralização do seu modo de vida, a multidão redobrou de entusiasmo na verdadeira barragem a que os
submetia. Macro e Cato cobriram as cabeças e protegeram-se atrás das paredes laterais da carroça.
- Porra, que raio de boas-vindas. - Protestou Macro. - Esta colocação parece-me cada vez melhor. Pergunto-me o que é que estará ainda à nossa espera.
Cato não respondeu. Contemplava absorto o mar, e pela primeira vez percebia que tinha realmente medo daquele elemento. Para além de ser um péssimo nadador, de cada
vez que tinha saído para o mar alto, tinha sofrido terríveis enjoos. E agora via-se forçado a passar os próximos tempos sobre o mar, ou pior, no mar. Só de pensar
nisso ficava maldisposto.
Quando as carroças que fechavam a coluna entraram por fim na base, os fuzileiros seguiram-nas e fecharam rapidamente os portões. O oficial da guarda, outro centurião,
dirigiu-se ao vagão de Minúcio, sorrindo abertamente.
- Isso é que foi um belo acolhimento no regresso a casa, hã?
- Óptimo. - Ironizou Minúcio, pegando no cantil e bochechando, para logo cuspir. - Varro, o que raio se passou aqui desde que parti para Roma? Toda a Úmbria
parece ter dado em doida com esta história dos piratas.
O sorriso do outro oficial apagou-se.
- Quer dizer que ainda não sabes?
- Não sei o quê?
- Desembarcaram ao pé de uma colónia de veteranos, em Lissa, há uns dias atrás. Saquearam as instalações e mataram toda a gente. Mulheres e crianças passadas
pela espada, e os homens empalados. Todos. Depois queimaram tudo.
Minúcio encarou-o, atónito.
- Lissa? Conheço pessoas por lá...
- Conhecias. Já não há lá ninguém.
- Merda... - Minúcio deixou-se abater sobre o banco da carroça. O outro oficial deu-lhe um aperto amigável no braço, antes de se virar para os outros centuriões.
- Vocês são o Macro e o Cato?
Os dois anuíram.
- Venham comigo. O prefeito deixou ordens para que fossem falar com ele assim que chegassem.
- Um instante. - Pediu Cato. Desceu do vagão e foi até ao veículo que transportava Anobarbo.
O mercador estava sentado, tentando limpar a lama da capa. Levantou o olhar ao reparar em Cato.
- Bela cidade, Ravena.
Cato estendeu-lhe a mão.
- O prefeito quer ver-nos. Despeço-me por agora. Quando encontrares acomodação, manda-nos uma mensagem.
- Fá-lo-ei. - Anobarbo apertou-lhe o antebraço. - E as bebidas serão por minha conta.
Cato apontou para o cofre.
- Bem, isso não te custará muito.
O outro sorriu de forma modesta, e concordou.
- Devo-vos a vida. Nunca o esquecerei.
- E eu lembrar-te-ei disso, se for preciso! - O jovem piscou o olho e apressou-se a regressar para junto de Macro e Varro, que se impacientava, agitando a
cana, nervoso.
Virou-se e seguiu, sem mais palavras, na direcção de um edifício maciço, com um pórtico esplendoroso, e que dominava a base.
- Bem jogado. - Sussurrou Macro. - Também já conseguiste deixar os tipos deste lado do portão chateados connosco.
- Pode ser que sim, mas pelo menos garanti que há algumas bebidas no nosso futuro. - Apontou o vagão do mercador com um gesto do polegar. - E por conta daquele
nosso amigo.
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- Bem, assim tudo vale a pena. - O sorriso de contentamento de Macro durou todo o tempo que lhes levou a atravessar a parada.
? ? ?
As instalações do prefeito eram impressionantes - uma ampla sala que dava para o nível superior do pórtico, a partir do qual se tinha acesso a todos os gabinetes
do segundo andar do edifício que albergava o quartel-general da esquadra. A vista abrangia toda a extensão do porto militar, as casernas dos fuzileiros e os barracões
dos armazéns e oficinas que se espalhavam pela distância. Num dos lados do porto avistava-se uma trirreme em seco, apoiada em grossas vigas; junto ao navio afadigavam-se
homens, que lhe cobriam o fundo com alcatrão, retirado de baldes fumegantes - uma clara evidência de que se preparava a campanha contra os piratas.
No chão do gabinete do prefeito via-se um belo mosaico que representava Neptuno, atarefado a espetar com o seu tridente um qualquer demónio das profundezas, enquanto
com a outra mão controlava a tempestade que lançara contra uma frota cartaginesa. Vitélio tinha uma pequena mas evidentemente cara secretária, instalada junto à
janela, ao fundo do gabinete, enquanto a outra extremidade da sala mostrava o teatro de operações da esquadra, pintado com toda a minúcia na parede.
Macro e Cato aproximaram-se da mesa e colocaram-se em sentido. O prefeito estava ocupado a assinar uma pilha de documentos e mal levantou o olhar, apercebendo-se
da presença dos dois amigos mas continuando a sua tarefa sem se apressar. Por fim, pousou a pena no suporte, e encarou os dois centuriões.
- Bem. - Começou Vitélio com um sorriso, enquanto se recostava no cadeirão. - Presumo que tenham realizado um agradável passeio pela nossa idílica paisagem
campestre.
- Sim, senhor. - Respondeu Cato, sem ponta de entusiasmo.
- Ainda bem, porque se acabaram as férias. Temos muito a fazer nos próximos meses. As coisas evoluíram desde as nossas reuniões com Narciso em Roma. A situação
é agora muito mais perigosa.
- Reparámos nisso, senhor.
- A sério? - Vitélio não escondeu a dúvida. - Duvido seriamente que lhes tenha sido dada a ver toda a complexidade da situação, centurião Cato. O secretário
imperial não fornece essa informação a não ser aos seus agentes de maior confiança.
- Não estou a ver nenhum por aqui... - Ironizou Macro.
O prefeito ficou em silêncio, tentando controlar a fúria, e Cato
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temeu que o amigo tivesse passado das marcas, e muito. Mas a expressão de Vitélio suavizou-se.
- Tenho de te pedir que abandones essa atitude hostil.
Deu-se uma pausa, enquanto os dois homens trocavam olhares de profundo desprezo.
Por fim, Macro acedeu.
- Muito bem, assim será.
- Ainda bem. E, a partir de agora, mostrarão o devido respeito à minha patente. Quando me dirigirem a palavra, tratar-me-ão por "prefeito", ou "senhor". Percebido?
- Sim, senhor.
- Bom. Venham cá. - Vitélio levantou-se e dirigiu-se ao mapa. Pegou numa longa vara que tirou duma prateleira próxima, e usou-a para apontar para a costa
da Ilíria.- Os piratas devem operar a partir de uma base algures nesta região. Até agora, poucas informações conseguimos obter sobre eles, mas já temos um nome.
O líder chama-se Telémaco. Um grego. Suponho que deve andar a ver se encontra algum apoio entre os habitantes locais. É um tipo astuto, que não será fácil de bater.
Cato tossiu.
- Recuperar os pergaminhos também não vai ser fácil, senhor.
Vitélio virou-se e tentou ler a expressão do jovem centurião.
- O que sabes tu acerca dos pergaminhos?
- O suficiente, senhor, para saber do valor que têm para o Imperador.
- A sério? - Vitélio lançou-lhe um olhar penetrante. - Parece-me, jovem Cato, que estás a arriscar. Ou a tentar tirar nabos da púcara. Boa tentativa, mas
o Narciso nem a mim disse o que eles contêm. Seja como for, parece que o chefe dos piratas gosta de brincar aos negócios. Enviou-nos uma mensagem, a avisar que apareceram
outros interessados, e que estão dispostos a cobrir qualquer oferta que o Narciso faça pelos pergaminhos.
- Quem são esses outros interessados, senhor?
- Não disse.
- Está é a tentar enrolar-nos, para fazer subir o preço.
- Pode ser que sim, mas não podemos correr o risco de assumir que está a mentir. O Narciso quer os pergaminhos, seja qual for o preço. Em dinheiro ou em homens.
- Mas quem mais poderia estar interessado na porra desses pergaminhos, senhor? - Perguntou Macro.
- Não importa. Sejam quem forem, não podemos permitir que os obtenham.
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- Mas, senhor, tenha em atenção que seria uma grande ajuda
sabermos com quem temos de nos haver.
- De facto. - Vitélio sorriu. - Mas ponham a vocês mesmos a questão: se estes manuscritos são assim tão importantes para o Imperador, quem mais poderá estar
interessado neles?
- Para lá de si, senhor?
- Macro, já debatemos essa questão. Não abuses da minha paciência.
- Os Libertadores. - Concluiu Cato, calmamente. A organização secreta de republicanos, dedicada ao derrube do Imperador Cláudio, parecia-lhe a suspeita óbvia.
Vitélio virou-se para ele e encolheu os ombros.
- Pois, quem mais?
- Magnífico. - Macro abanou a cabeça, exasperado. - Era só mesmo o que nos faltava. Se esses tipos também estão metidos no assunto, vamos acabar a andar com
medo das nossas próprias sombras.
- Precisamente. - Vitélio passou a mão pelo cabelo oleado, e limpou-a na túnica. - Podem portanto compreender a necessidade de agirmos cautelosamente, e em
várias frentes. Em primeiro lugar, temos de prolongar as negociações, tanto quanto possível. Isso dar-nos-á o tempo necessário para identificar os agentes desses
outros interessados nos pergaminhos. E para os apanhar, depois. Entretanto, prosseguiremos os preparativos para uma campanha anfíbia na costa ilírica. Temos de encontrar
e destruir a base dos piratas, e afundar ou capturar-lhes os navios. Mais importante ainda, temos de encontrar esses escritos. É bem possível, aliás, é provável
que os Libertadores tenham simpatizantes ou agentes no seio da esquadra. Quando desencadearmos as operações contra os piratas, a situação tornar-se-á confusa. Será
com certeza nessa altura que eles tentarão apropiar-se dos pergaminhos. Teremos portanto de estar atentos, e tudo fazer para os alcançarmos antes deles.
Macro suspirou.
- Até parece simples.
- Isso será em simultâneo com as tarefas habituais que terão de desempenhar, para manter a cobertura. Já vos foram atribuídos cargos normais. Exijo que cumpram
essas funções com o mesmo empenho com que o fariam nas vossas queridas legiões. Estes fuzileiros têm de se transformar numa força de combate eficiente, se queremos
ter alguma hipótese quando chegar a hora de enfrentar os piratas. Além disso, quando os homens e os navios estiverem em condições de avançar, tenciono nomeá-los
para comandar cada um o seu navio.
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- Comandâr navios? - Macro abanou a cabeça. - Senhor, não percebo nada da porra de um navio.
- Será melhor que aprendas, então. Mas se fosse a ti, não me preocupava muito. As operações normais serão comandadas pelo trierarca. Só terão de lhes dizer
para onde querem ir e, se houver combates, comandar os fuzileiros. - Vitélio sorriu. - O que quer dizer ser grosseiro e duro, aparecer à proa do navio e gritar muito.
Para ti, não deve ser um papel muito difícil. Seja como for, conhecerão os outros oficiais dos fuzileiros e os trierarcas na reunião de logo à tarde. Podes ir, centurião
Macro. Lá fora há-de estar um escrivão à tua espera, e ele indicar-te-á os teus aposentos.
- Sim, senhor. - Macro trocou um olhar com Cato, e depois virou-se e marchou para fora do gabinete, fechando a porta ao sair.
Por momentos, Vitélio manteve o olhar fixo no mapa, e depois deu atenção a Cato.
- Senta-te.
- Sim, senhor.
Atravessaram a sala até à mesa do prefeito, e Cato pegou numa cadeira, arrepiando-se quando os pés de metal riscaram os mosaicos. Não fazia ideia da razão para aquela
entrevista a sós, e tinha algum receio, pois conhecia bem as artimanhas do aristocrata.
Vitélio era bom leitor das emoções dos outros, e avaliou o jovem centurião com olhos frios.
- Pouco me importa que me odeies dessa forma, centurião. Compreendo as tuas razões. Mas tens de perceber que não me podes tocar. Se levantares um dedo que
seja contra mim, farei com que te esmaguem como a uma barata. Seria uma pena ver-te morto, uma vez que tens muito a oferecer a Roma. Mas, acima de tudo, tenho de
cuidar dos meus interesses, e portanto tenho de me assegurar de que posso confiar em ti, e de que não constituis uma ameaça.
Cato encolheu os ombros.
- Muito bem, proponho uma trégua entre nós, pelo tempo que durar a resolver este assunto. Para o bem mútuo. Já há suficientes perigos a enfrentar, creio que
não precisamos de os aumentar. Percebes-me?
- Sim, senhor.
- Óptimo. Estás à vontade para me odiar outra vez, assim que encontrarmos esses pergaminhos.
Cato abanou a cabeça.
- Sempre o odiarei, e de mim só merece desprezo, senhor. Mas posso viver com esses sentimentos e cumprir com as minhas obrigações, pelo menos durante algum
tempo.
Vitélio encarou-o, e fez um ligeiro aceno com a cabeça.
- Será então assim... Bom, mas há outra questão a resolver. Preciso de ti para uma missão que se pode revelar bastante perigosa.
- Muito conveniente, senhor.
- Útil, mais do que conveniente. A mensagem de Telémaco terminava com a exigência de pagamento de uma caução, se quiséssemos realmente negociar os pergaminhos.
"Uma prova de empenho", como ele lhe chamava. Portanto, irás encontrar-te com ele, assegurar-lhe que continuamos interessados, e entregar-lhe o ouro que exigiu.
- Porquê eu?
- Porque é importante que um de nós seja capaz de identificar este Telémaco a olho. Quando chegar o momento de acabar com esse sacana, quero estar seguro
de que apanhámos o homem certo. Pode ser ele o único a saber onde estão os pergaminhos guardados.
- Mas porquê mandar-me sozinho? Seria com certeza útil que o centurião Macro lá estivesse também.
Vitélio sorriu.
- O teu amigo Macro tem muitas qualidades admiráveis, mas a diplomacia não é uma delas. Nem me atrevo a mandá-lo contigo. Esta missão exige capacidades mais
subtis, mais complexas. E tu és suficientemente novo para convencer Telémaco de que está a tratar com alguém sem experiência ou astúcia. Isso deve deixá-lo mais
à vontade.
- Onde terá lugar esse encontro, senhor?
- No mar, como da última vez. Ele tem de estar certo de que não se trata de nenhuma armadilha. Vais levar uma das embarcações de patrulha. Um navio maior
poderia assustá-lo.
- E um navio menor pode pôr-nos em risco.
- Bom, esse é um risco que acho que podes correr.
- Muito obrigado, senhor.
- Deves encontrá-lo dez milhas ao largo do cabo de Morteponte, à alvorada, de forma a que ele perceba que estás só, e que tenha tempo de fugir se não for
esse o caso.
- Parece um homem cuidadoso, senhor.
- Tem de o ser. Conheces o ditado: há piratas velhos, e piratas ousados, mas não há velhos piratas ousados.
Cato assentiu, absorto em pensamentos, e encarou de novo Vitélio.
- Sabe, senhor, este Telémaco parece o tipo de homem que ainda lhe podia ensinar um ou dois truques.
- Obrigado pelo conselho, centurião. Mas parece-me que me ajeito bastante bem sozinho. E agora, tenho a certeza de que há pelo menos
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mais uma pergunta que me queres pôr.
- Quando é o encontro?
- Daqui a dois dias. Partes esta noite.
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XIII
A birreme imobilizou-se antes mesmo dos primeiros alvores da madrugada, e ficou a dançar sobre a poderosa ondulação que lhe erguia a proa, a fazia subir e depois
a deixava cair, com um ritmo monótono. Cato debruçava-se sobre a popa, o pescoço esticado, e vomitava para o negrume do abismo que se abria por baixo dele. Tinha
sido mau enquanto pudera ver o horizonte e manter um ponto de referência que lhe permitira manter algum equilíbrio, mas quando a escuridão descera sobre o pequeno
navio, os movimentos caóticos e nauseantes que se davam sob os seus pés tinham-lhe aumentado grandemente a miséria. Tinha passado a noite na amurada, a cabeça esvaída,
com regulares acessos de vómito que o faziam sentir como se o estômago se rasgasse e tentasse sair pela garganta.
Cato dava-se por feliz que Macro tivesse recebido ordens para ficar em Ravena. A sólida constituição do centurião mais velho permitia-lhe enfrentar qualquer viagem
marítima com a habitual e cega confiança, achando-a tão confortável como qualquer outra jornada. Para ele, o gelado vento marítimo não passaria de uma brisa revitalizante,
ou outro qualquer termo tão pouco apropriado como esse.
Quando o amigo soubera do encontro, tinha-o acusado abertamente de lhe esconder segredos. Na altura, embora não o tivesse manifestado, Cato tinha-se sentido orgulhoso
por ter sido escolhido para aquela missão; mas no momento presente, daria tudo para trocar de lugar com Macro.
- Sente-se melhor?
Cato virou-se e reparou em Décimo, o trierarca da birreme, à medida que este emergia da escuridão. Abanou a cabeça.
- Pensava que era um dos novos centuriões dos fuzileiros?
- Sou mesmo.
- Bom, não queria ser mau, a sério, mas não me parece que seja essa a sua vocação.
- Detesto o mar.
- Sim, já percebi que é dos que só gostam da terra firme.
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- Pois... - Uma nova onda de náusea tomou-lhe conta do corpo, e Cato teve de se debruçar e vomitar até a crise passar; antes de se virar de novo para o outro,
limpou a saliva ácida que lhe escorria dos lábios. - Fui transferido das legiões.
- Transferido? Estou a ver... - Décimo anuiu, evitando cuidadosamente perguntar a razão do que correspondia, de facto, a uma despromoção. - Para mim, nada
dessas patranhas de marchas e campos construídos todos os dias. Antes a simples vida do mar.
Cato olhou-o espantado, admitindo para si mesmo que preferiria construir sozinho um aqueduto a passar mais um momento que fosse naquele navio.
Décimo encostou-se à amurada, colocando-se cuidadosamente do lado certo de Cato, tendo em vista a miserável condição do centurião, e inspirou fundo, apreciando o
ar.
- Fresco e salgado. Vai ser um dia bom. Mar um bocadito agitado, mas nada de tempestades.
- Agitado... - Cato engoliu em seco e tentou manter-se firme.
- Onde é que estamos?
- A algumas milhas do cabo. Dei ordens para fundearmos, de forma a não nos aproximarmos demasiado dele no meio da escuridão.
- Porque não?
- Porque não? - Décimo soltou uma gargalhada. - Nunca viu o cabo, pois não?
- Há muita coisa que nunca vi. E a porra deste cabo é uma delas.
- E como é que pensa que ele ganhou o nome? "A ponte para a morte" - dá que pensar, não acha?
Cato olhou em redor.
- Bom, suponho que deva ser perigoso.
- Há mais navios naufragados por aqui do que em qualquer outro ponto da costa.
- Como é isso possível?
- Quando o Sol nascer e estivermos mais próximos, há-de perceber porque é que prefiro manter as distâncias deste cabo. Agora, se me dá licença, tenho de ir
ver dos homens. Quero toda a gente nos seus postos antes da alvorada, e ainda têm de tomar a primeira refeição.
- Estás à espera de sarilhos?
- Está a brincar? - Décimo meneou a cabeça, surpreendido. - Nunca andou metido com piratas, antes?
- Não.
- São tão leais como um tubarão à solta num matadouro. E duas vezes mais perigosos.
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Cato fez um esgar.
- Bonita imagem. Mas pouco coerente.
- Então? - Foi a vez de Décimo fazer uma careta.
- A analogia não funciona lá muito bem. Os tubarões não andam em terra.
Décimo encolheu os ombros.
- Está visto que não conhece o meu banqueiro.
? ? ?
À medida que, a leste, a primeira luz da alvorada se espalhava pelo horizonte, Cato tentou vislumbrar o cabo, mas mal conseguiu adivinhar a pálida sombra da costa
montanhosa.
Décimo apontou para uma área mais escura.
- Lá está ele. Vamos aproximar-nos.
Virou-se para a proa do navio e berrou ordens com as mãos em
concha.
- Largar vela! Até aos primeiros rizes!
Alguns dos marinheiros treparam pelas enxárcias e espalharam-se pela verga, os pés nus a avançarem cautelosamente sobre a madeira. Quando todos os homens ocuparam
as respectivas posições, o imediato deu a ordem para desatarem os nós e começarem a soltar o pano. Pouco a pouco, a vela enfunou-se, enquanto outros tripulantes,
no convés, agarravam os cabos e os prendiam aos grossos cunhos na amurada. Quando o pano rectangular desceu até à marca indicada pelo trierarca, os homens na verga
procederam às amarrações necessárias e regressaram ao convés. À medida que o navio começou a mover-se, o ritmo das suas oscilações tornou-se mais regular, e Cato
conseguia aperceber-se dos sons produzidos pela água que se escoava ao longo do casco.
- Leme! - Berrou Décimo. - Rumo, três dedos a bombordo da
proa.
- Três dedos a bombordo. Sim, senhor.
Mesmo atrás de Cato, um dos mais encorpados dos marinheiros fincou os pés num apoio no convés e empurrou o grande remo que servia de leme e que estava suspenso no
exterior da birreme, a curta distância da popa. Lentamente, o navio respondeu, e a proa apontou para a costa distante, seguindo a direcção do vento. Então a embarcação
aumentou de velocidade, deixando atrás de si uma esteira de espuma branca.
Décimo, evidentemente, estava no seu elemento, e virou-se para Cato com um brilho no olhar.
- Então, já se sente melhor?
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- Bastante, sim.
- Com este vento, depressa chegaremos ao ponto de encontro. Mas se tivermos de voltar para trás, para Ravena, vai ser complicado. Provavelmente teremos de
recolher o pano e dar trabalho aos remadores.
Acenou para o chão, e Cato seguiu o gesto com o olhar, até encontrar a grade de ventilação. Lá em baixo, na semiescuridão, mal se distinguiam as silhuetas dos homens
sentados nos bancos.
- Se isto for uma armadilha, achas que eles conseguem safar-nos?
- Emprincípio, sim. Este tipo de navios é concebido para a velocidade. A questão é saber se eles aguentam o tempo suficiente. Normalmente nantenho os meus
homens bem alimentados e descansados, de forma a ter ama reserva de força nos remos, se dela precisar. Mas vamos esperar que não venha a ser necessária, está bem?
- Vela! A bombordo! - Gritou o vigia, a partir do cesto da gávea, ndicando ao mesmo tempo a direcção com o braço.
Automaticamente, Cato virou-se e semicerrou os olhos, mas não zonseguiu distinguir o que quer que fosse na ininterrupta linha do horizonte.
Décimo interpelou o vigia:
- Consegues perceber alguns pormenores?
Depois de uma curta pausa, o homem respondeu:
- A vela é negra. Já vejo o casco. É um navio de grande porte.
- Será ele? - Quis saber Cato.
- É o mais certo. Estamos no Inverno, não deve haver muitos navios por aí. E ainda menos quando há piratas à caça na região.
- Ó do convés!
Cato e Décimo voltaram a erguer os olhares para o cesto, no topo lo mastro. O vigia apontava agora para o sul.
- Outra vela.
Cato sentiu um arrepio na nuca.
- É uma armadilha.
- Acalme-se. - Décimo sorriu. - Ainda temos tempo de sobra para escapar para o mar alto.
- Outra vela! E outra! - Gritou o vigia, apontando desta vez para ré.
Cato deixou pender a cabeça, resignado, e depois forçou-se a mostrar um sorriso, ao voltar-se de novo para Décimo.
- Dizias tu...?
O trierarca ignorou-o, e pôs-se em bicos de pés, tentando espreitar par cima das cristas das ondas que seguiam a birreme. Junto ao horizonte vislumbravam-se duas
velas triangulares.
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- Sim senhor, estupendo trabalho de navegação. - Resmungou.
- Devem ter estado a vigiar-nos lá de longe, a oriente, muito antes de termos ancorado ontem à noite.
- Como sabes?
- Nessa posição estavam escondidos pela escuridão do entardecer, enquanto a nossa silhueta se destacava contra o pôr do Sol.
- E agora?
- Agora? - O trierarca encolheu os ombros. - Apanharam-nos pelos tomates. Só nos resta esperar que não seja realmente uma traição. Nem vale a pena tentar
fugir. Temos de recolher o pano e esperar que eles se aproximem.
? ? ?
A birreme deixou-se levar ao sabor das ondas. Uma pequena vela fora içada na proa, de forma a estabilizar o navio e dar impulso suficiente para o leme poder actuar.
Em torno de Cato, o convés fora preparado para o combate, e os fuzileiros tinham ocupado as suas posições. A catapulta montada no castelo de vante estava carregada,
e a equipagem preparava-a para disparar, acumulando tensão nos mecanismos. As redes de abordagem tinham sido instaladas, e na popa estava um grupo de homens equipados
com arcos. Cato envergava a couraça, e estava ao lado de Décimo, uma mão no punho da espada. Mantinha o olhar fixo nas quatro embarcações que se aproximavam incessantemente
da birreme. Três delas eram pouco maiores do que o navio em que se encontrava, e ostentavam uma vela latina de concepção oriental. Pareciam ágeis, e cortavam com
facilidade a ondulação de um azul-acinzentado que agitava a superfície do mar. Quando o quarto navio se aproximou o suficiente para que se distinguissem os detalhes,
Décimo abanou a cabeça, em desespero. Até a Cato e aos seus pobres conhecimentos de matérias navais a silhueta parecia familiar.
- É um navio romano, não é?
- Era. É uma das trirremes que desapareceram.
Os navios mais pequenos arrearam as velas a alguma distância da birreme, e esperaram que o outro se aproximasse. A trirreme, tal como os outros barcos dos piratas,
mostrava uma vela de tons escuros, e quando virou de bordo uma última vez, viram-se figuras diminutas a recolhê-la. No momento seguinte os remos foram lançados e,
depois de uma pequena pausa, para que quem os manobrava pudesse coordenar os movimentos, mergulharam e empurraram a água, fazendo a trirreme avançar precisamente
na direcção do navio romano.
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Décimo olhou para Cato.
- Parece-me que chegou o momento da verdade.
- Sim. - O olhar de Cato estava fixo no vaso de guerra que se aproximava; não podia deixar de considerar se a verdadeira razão para Vitélio o ter nomeado
para aquela missão não teria sido a esperança de que ele não regressasse vivo.
Quando a trirreme não estava já a mais de cem passos, começou a rodar para o vento, os remos imobilizaram-se e foram recolhidos rapidamente. Quase de imediato, um
pequeno bote foi descido e percorreu o espaço entre os dois navios, tendo o cuidado de evitar a zona de acção da catapulta na proa da birreme. Deteve-se a curta
distância do navio romano.
Um jovem alto e magro, com o cabelo encaracolado a espreitar sob um barrete frígio, estava sentado no banco de trás do bote. Levou a mão em concha à boca e interpelou
a birreme num grego fluente.
- O negociador está a bordo?
Cato aproximou-se da amurada e ergueu a mão.
- Sou eu.
- Tens contigo o dinheiro?
- Sim.
- Vem connosco. - Deu uma instrução aos remadores, e o bote aproximou-se mais da birreme, até que os homens agarraram a escada de embarque.
Cato virou-se para o fuzileiro mais próximo.
- Vai lá abaixo à cabina. Está um cofre debaixo da minha cama. Trá-lo cá.
O homem saudou-o e correu pela escotilha que levava à pequena cabina à popa do navio. Cato pulou sobre a amurada, tentando encontrar os degraus com as botas.
- Romano!
Olhou para baixo e viu que o homem no bote lhe apontava um
dedo.
- Nada de espada!
Agarrado firmemente à amurada com uma mão, Cato desembainhou o gládio e lançou-o para o convés da birreme. Décimo deitou-lhe um olhar ansioso.
- Será isso prudente?
- Quem sabe? - Respondeu Cato, desanimado. Depois compreendeu que o trierarca ainda devia estar mais nervoso do que ele. Obrigou-se a sorrir. - Quando isto
acabar, quero-a de volta.
Olhou em volta, calculando os movimentos do bote para cima e
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para baixo, e deixou-se cair pesadamente. A diminuta embarcação agitou-se violentamente, e por momentos esteve certo de que ela se ia virar e lançar todos os ocupantes
para as garras do mar. Com a armadura vestida, afundar-se-ia como uma pedra. Mas nesse momento o jovem na traseira do bote agarrou-o pelo ombro e segurou-o.
- Senta-te, idiota! Onde está o ouro?
- Já aí vem.
No momento seguinte, um fuzileiro surgiu na amurada da birreme e desceu o cofre numa rede. O pirata levantou-se, exibindo o sentido de equilíbrio de alguém que já
passou muitos anos no mar. Esticou os braços para o cofre e guiou-o, até o pousar no fundo do bote. Afastou a rede e empurrou-o para baixo do banco no centro da
embarcação; então fez sinal aos remadores. O bote rodou e dirigiu-se para a trirreme, enquanto Cato se agachava, e a água gelada do mar lhe ensopava as botas e calças.
Tinha achado o baloiçar da birreme assustador, mas ali o mar parecia estar à altura dos olhos, e o bote subia e descia de forma absolutamente aterrorizante. Quando
chegaram à trirreme, agarrou-se com todas as forças à corda que lhe foi lançada, trepou pelo casco e atirou-se para o convés de forma atabalhoada mas eficaz. A relativa
firmeza das tábuas que sentia debaixo dos pés acalmou-lhe um tanto os nervos, e fez por se aprumar. No instante seguinte, o cofre foi içado e posto aos seus pés.
O jovem que estivera no bote trepou para bordo e juntou-se a ele.
- Bem-vindo! - Soltou uma voz vinda da popa, pelo que Cato girou sobre os calcanhares e viu um homem a caminhar na sua direcção. Era alto e magro, com as
inconfundíveis feições de um grego. De cada lado da face resplandecia um brinco, uma argola de ouro, mas a face era marcada por uma terrível cicatriz de que era
difícil afastar a vista. O pirata sorriu ao chegar ao pé do centurião, e estendeu-lhe a mão. Cato não esperava um encontro amigável, pelo que ficou atónito. Mas
engoliu em seco e resolveu-se a desempenhar o papel de um verdadeiro romano. Encarou com frieza a mão estendida, e abanou a cabeça.
- Lamento, mas tenho ordens estritas para não confraternizar com piratas.
O grego olhou para ele, surpreendido por momentos, e depois rebentou em gargalhadas.
- Nunca conheci gente mais emproada! Não vos ensinam boas maneiras, romano?
- É evidente que sim. Só não nos damos com criminosos. Presumo que seja Telémaco.
- Sou-o, de facto. - O grego inclinou a cabeça. - E este é o meu lugar-tenente, Ajax.
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O jovem imitou o chefe no gesto de cabeça, enquanto aquele prosseguia.
- Romano, temos de tratar do assunto de forma célere. Tenho negócios à espera.
- Negócios? É isso que chamas à pirataria e à pilhagem?
- Chama-lhes o que quiseres, centurião... Não apanhei o teu
nome.
- Não o mencionei.
Telémaco encolheu os ombros.
- Como queiras. Isto é o nosso sinal? - Tocou no cofre com a ponta da bota.
- É.
- Óptimo. Tenho uma mensagem para os teus superiores. Diz-lhes que a mercadoria ainda está na minha posse, mas que outros interessados se manifestaram, e
fizeram promessas - em ouro. Darão o seu sinal daqui a poucos dias.
- Quem são? - Quis saber Cato.
- Sabes bem que não to direi. Querem permanecer anónimos, e
vivos.
- Os Libertadores. - Desdenhou Cato. - Quem mais poderiam
ser?
- Diz-me tu. Até parece que há no mundo falta de gente com todas as razões para odiar Roma e tudo o que ela representa.
- Como posso ter a certeza de que não estás apenas a tentar fazer subir o preço?
- Não podes. - Sorriu Telémaco. - Mas será que aqueles que te enviaram podem correr esse risco? Dada a natureza da mercadoria, duvido muito. Portanto, vais
dizer-lhes que a competição me ofereceu vinte milhões de sestércios. Os teus senhores têm dois meses para suplantarem esta oferta.
Cato debateu-se para não dar sinal do seu assombro perante tal exigência. Era uma fortuna, o resgate de um rei, ou melhor, de todo um reino. Encarou Telémaco.
- Quando falas de mercadoria, estás-te a referir aos pergaminhos,
nãoé?
O chefe dos piratas trocou um olhar com o seu ajudante, e deu uma
risada.
- Isso mesmo.
- Mas nenhum manuscrito vale todo esse dinheiro.
Telémaco espetou-lhe o dedo no peito.
- Estes valem. Acredita.
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- Porquê?
Telémaco olhou-o, divertido.
- Não fazes ideia do que são, pois não?
Cato ponderou a possibilidade de tentar enganar o pirata, mas percebeu que seria facilmente desmascarado.
- Não.
- Mas gostavas de saber?
Cato olhou-o por instantes, sem conseguir disfarçar a curiosidade.
Telémaco acenou, antes de ele responder.
- Bem me parecia. Se te dissesse o que eles contêm... Se te contasse algum detalhe do conteúdo, ficarias em perigo mortal, romano. Dá-te por feliz pela tua
ignorância. Se quiseres sobreviver, claro.
Perscrutou-lhe a face, para garantir que o jovem compreendia o perigo, e prosseguiu.
- Agora, antes de te ires embora, tenho outra mensagem que gostava que levasses. - Estalou os dedos, e um núbio aproximou-se a correr com um cesto de vime,
que entregou ao líder dos piratas. Telémaco abriu a tampa e mostrou a Cato o conteúdo. Lá dentro estava uma cabeça, da qual só se via um tufo de cabelo preto. -
Apresento-te o antigo governador da antiga colónia de Lissa. Gaio Mânlio, parece-me que era o nome dele. Leva isto para Ravena, como uma recordação do nosso encontro.
E avisa os teus superiores de que passarei a atacar as vossas colónias, a menos que me seja pago um tributo de dez milhões de sestércios por ano, em ouro. - Telémaco
olhou-o mais uma vez. - És capaz de te lembrar disto tudo?
- Sim.
O chefe dos piratas pareceu duvidar.
- Que idade tens, rapaz?
- Dezanove.
- Porque é que te mandaram a ti?
- Sou dispensável.
- És mesmo, de facto. - Retorquiu Telémaco, enquanto coçava o queixo. O som atraiu o olhar de Cato, que mal deu pelo rápido movimento que se seguiu e que
culminou com uma adaga curva encostada ao seu pescoço. Deixou-se ficar imóvel, e o outro aproximou-se dele, os olhos negros a semicerrarem-se, em jeito de ameaça.
Falou com gentileza. - Hei-de lembrar-me de ti, meu arrogantezinho de merda. Estava capaz de te cortar agora o pescoço e de mandar também a tua cabeça para fazer
um conjunto.
- Aproximou-se ainda mais da face de Cato, e um odor a peixe invadiu as narinas do jovem. Então a adaga afastou-se da sua pele. - Mas a verdade é que tenho
pressa de encerrar estas negociações, e não estou para ficar à espera de que vocês, romanos, me enviem alguém com boas maneiras.
129
Ficas avisado de que, se nos voltarmos a encontrar, juro que te estripo com a minha própria faca. Agora, leva isso. - Lançou o cesto para junto de Cato.
- E desaparece do meu navio. Se houver alguma tentativa de me seguirem depois de este encontro terminar, o vosso navio será atacado e afundado, e se houver
sobreviventes, serão mortos. Vai.
Cato apressou-se a descer pelo casco da trirreme e a meter-se no bote; o cesto, ainda fechado, foi-lhe lançado. Enfiou-o rapidamente debaixo do banco e tentou esquecer
o que continha.
Ajax observou-o com uma expressão divertida.
- Tens tomates, romano. Não há muita gente que se possa gabar de ter falado assim com o Telémaco, e de ter sobrevivido para contar a história.
- A sério? - Cato olhou-o por momentos, antes de prosseguir.
- Não podes estar com ele há assim tanto tempo que o conheças tão bem.
Um sorriso estranho perpassou pela face do outro.
- Estás enganado. Conheço-o desde sempre. E ele não é o fanfarrão que pensas. Se se voltarem a encontrar, ele mata-te.
- A menos que eu o mate primeiro.
O pirata riu com gosto.
- Típica arrogância romana. Nunca encontrei nada do mesmo género.
Enquanto Décimo ajudava Cato a subir para o convés, o centurião passou o cesto ao fuzileiro que tinha enviado em busca do cofre.
- Põe isto na cabina, mas nada de o abrir, a menos que queiras ser flagelado. Percebido?
- Sim, senhor.
Cato atravessou o convés, debruçou-se no outro bordo do navio, e vomitou.
- O que aconteceu por lá?
- Nem queiras saber. Leva mas é o navio para Ravena. Tira-me
daqui.
130
XIV
O prefeito Vitélio ergueu os olhos do relatório que Cato elaborara.
- Ele deu-nos dois meses?
- Sim, senhor.
Vitélio fechou os olhos e pensou em voz alta.
- Isso dá-nos tempo suficiente para enviarmos uma mensagem a Roma, para Narciso tomar uma decisão quanto à oferta e nos informar sobre a resposta que devemos
dar ao Telémaco.
- Senhor, desculpe, mas acha que o secretário imperial estará interessado em cobrir a oferta da oposição?
- Oh, sim. Não tem escolha. Se os pergaminhos caírem nas mãos erradas, podem fazer com que a vida de Roma se torne muito difícil... - Vitélio ergueu a vista,
a tempo de notar que Cato abanava a cabeça. - Não acreditas no que digo.
- Como poderia, senhor? Não faço ideia do que contêm os pergaminhos. Parece-me tudo muito nebuloso.
- Não tens de te preocupar com esses assuntos. És um soldado e, como tal, deves obedecer às ordens que recebes. É tudo. Os teus superiores encarregar-se-ão
dos detalhes importantes.
Vitélio deitou outra olhadela às tábuas de cera.
- Agora, outro assunto. O tributo exigido para não atacar as nossas colónias. Este é o primeiro grande erro que ele comete.
- Senhor?
- O Telémaco está a tornar-se ganancioso. Os pergaminhos são uma coisa, mas esta exigência de tributo é outra. Nem pensar em ceder. O Imperador nunca o aceitaria.
- Porque não, senhor? Na Germânia, pagamos a uma série de tribos para manter a paz. - Cato esforçava-se por compreender a lógica da situação. Roma parecia
disposta a pagar mais de vinte milhões de sestércios por uns manuscritos quaisquer, mas recusava terminantemente ceder metade dessa verba para proteger as vidas
de milhares dos seus
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cidadãos e manter intactas algumas dúzias de colónias.
- Isso é outra coisa. Os germanos actuam como um tampão entre o Império e outras tribos bárbaras, ainda mais violentas e asquerosas. Os piratas são diferentes
- não passam de bandos de ladrões e assassinos.
- Dir-se-ia, senhor, que nos últimos tempos se têm transformado em mais do que um simples bando.
- É bem verdade. Mas garanto-te que Cláudio nunca se deixaria apoucar por estes piratas, que exigem dinheiro para nos manter em segurança. Há-de dar ordens
para que sejam encontrados e destruídos, e não teremos descanso enquanto não tivermos cumprido essa missão.
- Mesmo correndo o risco de perder os pergaminhos, senhor?
- Talvez as duas tarefas possam ser combinadas. - O prefeito levantou-se da cadeira e atravessou o gabinete, até junto do mapa. Cato seguiu-o. Antes de falar,
Vitélio examinou a linha que marcava a costa da Ilíria.
- Centurião, se fosses Telémaco, onde é que instalavas a tua base?
Cato observou atentamente o mapa e relembrou os seus pensamentos sobre o assunto, e depois ofereceu um palpite.
- Pelo pouco que soube dos relatórios, suponho que deve estar num sítio isolado, fora das rotas comerciais, quer marítimas quer terrestres. Não se podia arriscar
a instalar-se num local em que um navio mercante acostasse para passar a noite. Logo, isso elimina toda a Libúmia e, mais a sul, a Macedónia - há demasiadas colónias
e portos. Por outro lado, também não pode estar demasiado afastado das rotas, se as quer atacar. Alguns dos navios que tem ao seu dispor têm equipagens de remadores.
Se o aprovisionamento dos navios dele segue os mesmos princípios que aplicamos, então o seu raio de alcance será de cinco ou seis dias, no máximo. O que o põe algures
entre Flanona e, digamos, Dirráquio. Muito provavelmente nalguma destas enseadas, ou numa destas ilhotas, mesmo junto à costa. Deve haver centenas delas. - Cato
virou-se de novo para o seu superior. - Baseado na informação de que disponho, senhor, esta é a minha melhor ideia.
O prefeito Vitélio anuiu.
- Concordo contigo. Portanto, é nessa zona que vamos começar a procurá-los. - Os olhos dele percorreram o mapa. - Vou deixar uma pequena guarnição por cá,
levar a esquadra para a Ilíria, e estabelecer uma base ao pé de... Birnísio. Parece um lugar protegido, e poderemos obter abastecimentos nas colónias mais próximas.
Será Birnísio, portanto. - Olhou para Cato. - Informarei todos os oficiais amanhã ao meio-dia. Podes sair, centurião. E aproveita para me mandar o meu escrivão-chefe.
Cato saudou-o e abandonou o gabinete, deixando o prefeito a matutar nos seus planos.
132
? ? ?
Regressou aos aposentos dos oficiais, vestiu uma túnica lavada, e dirigiu-se ao edifício dos banhos. Ao entrar no caldário, reparou em Macro, sentado num dos bancos
de mármore. O amigo viu-o também, e sorriu, com indisfarçável alívio.
- Cato! É bom ver-te. Que tal correu?
Escutou atentamente enquanto o jovem relatava o seu encontro com os piratas e, quando ele terminou, limpou o rosto com uma esponja e virou-se para ele.
- Esse Telémaco, que tipo de homem é?
Cato descreveu-o, fechando os olhos enquanto procurava lembrar-se de todos os detalhes da entrevista.
- Parece um tipo eficiente. Duro, rápido com a espada. Quanto aos navios, manobram na perfeição. Claro que, quanto a isso, sou fraco juiz, mas o Décimo é
dessa opinião. E é impiedoso. - Estremeceu, ao recordar o momento em que Vitélio ordenara a um fuzileiro para despejar um certo cesto no cais, logo que a birreme
regressara a Ravena, por volta do meio-dia. Tentou pôr a imagem para trás das costas, e prosseguiu. - Pelo menos, os seus homens parecem temê-lo.
- Bom, parece um caso difícil. - Ponderou Macro. - Vai ser uma luta renhida.
- Talvez sim. - Contrapôs Cato. - Mas, como já tive ocasião de dizer, os homens lutam mais ferozmente por aquilo em que acreditam do que por aquilo que temem.
Macro sorriu, ensopou a esponja num balde de água e lançou-a ao rosto de Cato, encharcando-o.
- Francamente, Cato, às vezes tens umas ideias de merda. Estás ao serviço das águias há, o quê?, dois anos e uns meses. E achas-te um perito em capacidade
de motivação dos homens.
Cato limpou a água e o suor da testa.
- Sim, penso que tenho algumas ideias quanto ao que realmente funciona.
- Seja, está certo. - Concedeu Macro. - Tens algumas ideias. Mas, digo-te eu, estes piratas são exactamente como nós. A melhor motivação para combatentes
é a disciplina, pura e dura. Ideias, inspiração, isso é bom para artistas e para filósofos amaricados como...
- Como eu?
Macro encolheu os ombros.
- Foste tu quem o disse. Agora não te lembres de amuar.
133
- Amuar, eu?
Macro soltou uma gargalhada.
- Bom, vamos embora.
- Para onde?
- Uma bebida. Combinei que nos encontrávamos com o Anobarbo e o Minúcio junto ao porto.
- Ah, combinou? - Cato sentiu-se um tanto aborrecido pela presunção de Macro. - Estou cansado. um aqui para relaxar um bocado, e não para me ver arrastado
para uma noitada de copos.
- Não vai ser nenhuma noitada. Vamos portar-nos bem. O Minúcio vai-nos apresentar a namorada. É dona de uma taberna. - Macro sorriu. - A mulher dos sonhos
de qualquer soldado. - Olhou para Cato.
- De qualquer soldado normal, digo.
- Macro?
- Hum?
- Vá-se foder, está bem?
Macro deu uma palmada no ombro do amigo e riu com vontade.
- É assim mesmo. Agora, despacha-te, estamos a perder tempo que podíamos usar para beber mais uns copos.
? ? ?
Arranjaram roupas e capas vulgares para substituir as túnicas militares vermelhas, que rapidamente os denunciariam. Nenhum deles queria atrair as atenções, sobretudo
tendo em conta a opinião popular que reinava em Ravena. Escapuliram-se por uma porta lateral e seguiram as indicações de Minúcio através das ruelas até chegarem
a uma área degradada do porto, dominada por tabernas e bordéis, e edifícios semiarruinados. As ruas estavam repletas de marinheiros e fuzileiros vindos da base naval,
bêbados e barulhentos, mas os habitantes da zona não escondiam o olhar duro e a atitude hostil, formando magotes nas imediações das fontes públicas. Patrulhas de
prebostes circulavam pela área, atentos aos acontecimentos.
- Dá a ideia de que a qualquer momento vai haver pancada. - Murmurou Cato. - Devíamos ter ficado na caserna.
- Ora, deixa lá! - Macro deu-lhe um toque com o cotovelo. - Não me digas que estás com medo daqueles bandos de adolescentes?
- Estou, sim. - Confessou Cato de pronto. - Pelo menos destes. Pelo aspecto, até eram capazes de matar só para começar a confusão.
- Uuuui... - O outro fingiu que estremecia de receio. - Nesse caso, é melhor arranjarmos um refúgio, e depressa... Ora, cá estamos. Alameda do Caranguejo.
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Virou a esquina para uma via larga, em que todos os estabelecimentos eram tabernas. A cacofonia da animada clientela atingiu os ouvidos de Cato. Macro gritou-lhe
qualquer coisa e apontou para o outro lado da rua, para uma tabuleta berrante, bem evidente na parede suja.
- "Delfim Dançarino - Aqui não se põe água no vinho..." - Leu Cato para si mesmo. - Muito engraçado.
Os dois centuriões atravessaram a rua repleta e entraram pela arcada que dava acesso à taberna. Lá dentro a atmosfera era densa, devido aos fumos do incenso barato
que era queimado, e a iluminação era tímida, apenas a suficiente para os clientes chegarem ao balcão ou para encontrarem o caminho para a latrina, nas traseiras.
Atrás do balcão viam-se dois tipos bem constituídos e de aspecto duro, e uma mulher alta e de cabelo grisalho que tinha as costas viradas para a porta quando eles
entraram, já que estava a ocupar-se de um cliente bêbado que tentara apalpá-la. Cato apreciou a forma como um dos capangas derrubou o cliente com um soco rápido.
No centro da sala espalhavam-se mesas e bancos, aos quais se sentavam grupos barulhentos de homens, a beber ou entretidos em negociações com as prostitutas locais.
Uma das paredes da taberna abria-se para uma série de compartimentos nos quais se podia conseguir alguma privacidade, desde que se fechassem as cortinas.
- Macro!
Os dois amigos viraram-se ao ouvir o grito e viram Minúcio, que lhes chamava a atenção da alcova mais afastada, junto ao balcão. À sua frente sentava-se Anobarbo,
que lhes dirigiu também um sorriso de saudação enquanto eles abriam caminho pelo meio dos beberrões. Enfiaram-se nos bancos que rodeavam a mesa, e Minúcio encheu
imediatamente dois copos e empurrou-os na direcção dos centuriões, derramando algum do vinho.
- Já pensava que vocês não iam aparecer.
- Não perdia isto por nada deste mundo. - Retorquiu Macro.
- Bom, parece que temos de recuperar algum atraso. Saúde! - Ergueu o copo e provou o vinho.
Cato viu-se sentado ao lado de Anobarbo, e virou-se para ele.
- Como vão as feridas?
- Vão andando. Ainda me provocam bastantes dores. A pele do peito parece que encolheu, e que pertence a um homem com metade do meu tamanho.
Cato concordou.
- Conheço bem a sensação. Já sofri algumas queimaduras. Mas hás-de recuperar, é só uma questão de tempo.
- É o que diz o curandeiro local. Saúde.
Bateram as canecas e beberam um gole. Cato reparou, aliviado, que
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Anobarbo adoptava uma atitude similar à sua, limitando-se a sorver um pouco de vinho e não despejando tudo de uma vez, como se não existisse um amanhã... como estava
a acontecer do outro lado da mesa. Anobarbo pousou a caneca.
- O Minúcio disse-me que já estiveram em acção no mar.
Cato encarou-o.
- Sim, fizemos uma patrulha.
Anobarbo sorriu.
- E que tal, já te habituaste à ideia de uma vida sobre as vagas?
- Nem pensar. Passei a viagem mais enjoado do que um senador.
- Onde é que te levaram?
- Foi apenas uma patrulha. - Afirmou Cato, cuidadoso. - Até à costa da Ilíria, e volta.
- A sério? - Anobarbo adoptou um ar surpreendido. - Supunha que essa zona não seria muito aconselhável, com tantos piratas à solta por aquelas bandas. Não
viram nenhum, por acaso?
Cato abanou a cabeça.
- Não. Avistámos uma ou duas velas. Foi tudo. Uma viagem muito pouco excitante, de facto. Então e tu? Encontraste alguma peça valiosa para os teus clientes?
- Nem por isso. O mercado está morto, nesta altura. Vou ficar por aqui mais algum tempo, até recobrar as forças. Daqui a uns dias, talvez tente uma visita
a um dos portos mais acima na costa, a ver se têm alguma coisa de jeito, e depois regresso a Roma.
- Bem, desejo-te mais sorte nas próximas viagens.
- Obrigado. - Respondeu Anobarbo, calmamente. - Bem preciso.
- Vá lá, amigos! - Macro debruçou-se sobre a mesa. - Bebam. É por conta da casa! Um brinde à mulher do Minúcio, que os deuses a protejam!
As canecas entrechocaram-se, fazendo saltar o vinho, e o brinde foi cumprido, até ao fundo dos recipientes. Surpreso, Cato constatou que o vinho era de qualidade
bastante razoável, e desejou que Macro se desse ao trabalho de o saborear realmente, em vez de se limitar a emborcar a maior quantidade possível. Mas os outros dois
centuriões já tinham acabado com o primeiro jarro, e Macro já se levantava.
- A próxima pago eu.
- Não é preciso! - Minúcio sorria. Puxou Macro para baixo com uma mão, enquanto com a outra procurava sob a mesa até localizar outro jarro cheio.
Os olhos de Macro arregalaram-se.
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- Quantos mais desses é que tens aí debaixo?
- Os suficientes para nos mantermos animados por uns tempos.
Bebe!
- Onde é que anda essa tua mulher? - Macro olhou em redor, mas havia um grupo de clientes a tapar a vista de grande parte da sala. - Quero dar-lhe um abraço.
- Já vem ter connosco. Quando isto estiver mais calmo.
- Oh, está bem, então. - Macro virou-se de novo para os outros.
- Ei! Já ouviram as notícias?
- Quais? - Quis saber Anobarbo.
- O prefeito vai dar uma lição aos piratas. Vamos levar toda a frota e os fuzileiros para a Ilíria, e exterminá-los.
Cato inclinou-se para a frente e pôs a mão sobre o braço do amigo-
- Macro!
- Que é?
- Essa notícia não é para divulgar assim.
Macro olhou-o, aparvalhado.
- Assim como?
- É um segredo, supostamente.
- Segredo? Para quem? De qualquer maneira, assim que começarmos a carregar os navios, toda a gente vai ficar a saber.
- Não interessa. O prefeito quer que os piratas se mantenham na ignorância deste plano por tanto tempo quanto for possível.
- Tu contaste-me.
- Confiei em si.
Macro agitou-se no banco, acusando o remoque.
- Bom, está bem. Olha, miúdo, peço desculpa. E seja como for, não sai daqui de entre nós os quatro. Não é, rapazes?
- É claro. - Minúcio sorriu. - Vamos fazer uma jura, e selá-la com um brinde.
- Não. - Retorquiu firmemente Cato. - Basta não voltar a mencionar o assunto. E isso vale para ti também, Anobarbo.
O indicado anuiu.
- A minha boca é um túmulo. Não te preocupes.
- Não me preocupo? Isso é fácil de dizer, sobretudo com estas duas esponjas metidas ao barulho.
De repente, Minúcio animou-se, levantando-se com tanto entusiasmo que bateu na mesa e quase provocou a queda do jarro ainda cheio. A mão de Anobarbo moveu-se com
a rapidez do raio, segurando-o antes que uma só gota fosse vertida.
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- Boas mãos! - Macro piscou-lhe o olho.
- E cá está ela, rapazes! - Anunciou Minúcio. - A minha mulher. A minha miúda. O grande amor da minha vida.
Cato virou-se e contemplou a mole humana que enchia a sala. Subitamente, abriu-se um corredor no meio dos homens e por ele surgiu uma mulher já com alguma idade,
mas alta, magra e elegante, dirigindo olhares penetrantes aos clientes em redor. Notando o padrão da estola que usava, verificou que se tratava da mulher que vira
antes ao balcão. Dirigiu-se à mesa e sorriu a Minúcio.
Corado de orgulho, o veterano centurião virou-se para os companheiros.
- Rapazes, permitam-me que vos apresente a Pórcia, proprietária deste magnífico estabelecimento, e que em breve será a minha noiva trémula.
- Ignorem-no. - Sorriu Pórcia. - Há vinte anos que anda a anunciar que um dia destes há-de fazer de mim uma mulher honesta.
Minúcio soltou algumas gargalhadas, antes de se virar para os outros.
- Pórcia, estes são os rapazes de que já te falei. Foi com eles que passei por aquela aventura nas montanhas. Aquele é o Anobarbo, ali o jovem é o Cato, e
este tipo incorrigível aqui é o centurião Macro.
Anobarbo e Cato acenaram com a cabeça à laia de apresentação, mas Macro manteve-se imóvel, com uma expressão sombria no rosto.
Pórcia manifestou preocupação.
- Estás bem?
Macro engoliu em seco nervosamente, antes de conseguir articular uma resposta.
- Olá, mãe.
XV
O silêncio foi finalmente quebrado por Pórcia, que soltou um pequeno grito de choque e levou a mão à boca. Os olhos desfocaram-se, e desmanchou-se pelo solo como
um estendal sem suporte.
- Pórcia! - Minúcio passou por cima de Macro e aninhou a cabeça da mulher nas mãos. - Pórcia, meu amor! Fala comigo!
Enquanto o outro se esforçava por a fazer recobrar os sentidos, o olhar de Cato saltava entre ela e Macro, reflectindo a absoluta surpresa que sentia. Quanto a Macro,
limitava-se a olhar fixamente para Pórcia, como se a mulher fosse a mais absorvente visão que o mundo lhe podia oferecer. Quando a enormidade do que acabara de suceder
se tornou clara ao cérebro de Cato, começou a compreender a reacção de paralisia do amigo.
- O que é que se passa? - Quis saber Anobarbo, puxando pela manga de Cato. - O que é que ele lhe chamou?
- Mãe. Chamou-lhe mãe.
- É a mãe dele? - Anobarbo sorriu. - O que está ela aqui a fazer? Pensava que vocês os dois tinham vindo de Roma.
- Não faço ideia. - Cato abanou a cabeça. - O Macro contou-me que ela o abandonou, ainda criança. Desapareceu com um fuzileiro... Oh...
- Olhou para Minúcio, que estava agora agachado no chão, enquanto afagava o cabelo cinzento da mulher. - Oh, não! Macro.
Este ainda estava petrificado, a olhar para Pórcia com uma expressão assombrada. Cato pegou-lhe no braço e sacudiu-o com força.
- Macro! Vamos! Temos de ir.
A custo, o outro afastou o olhar da cena que contemplava e fitou Cato, com ar vago.
- Ir? Ir aonde?
- Acredite em mim, temos de ir. Agora mesmo.
- Mas aquela é a minha mãe.
- Já sei. Voltamos e falamos com ela quando estiver sóbrio.
- Há vinte anos que não a vejo. - Lágrimas acumulavam-se nos
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cantos dos olhos esgazeados. - Desde que era o querido menino dela.
- Sim, sim. - Cato deu-lhe umas palmadinhas de conforto no braço. - É maravilhoso, não é? Mas não queremos que ela o veja nesse estado, pois não? Vamos, vamos
primeiro cozer esta piela. Vá lá.
O jovem levantou-se e colocou-se entre Macro e a mãe, e o amante desta, e tentou fazer o amigo levantar-se também.
- Anobarbo, dá aqui uma ajuda.
O mercador olhou para Macro com alguma suspeita.
- Porquê? O que é que se está a passar aqui?
- Dá-me aqui uma ajuda. Temos de o tirar daqui.
- É a minha mãe. - Ruminou Macro, as lágrimas já a correrem-lhe pelo rosto. - A minha mãe, e abandonou-me. Deixou-nos, por causa de um fuzileiro. - De repente
interrompeu-se, e fixou Minúcio com os olhos arregalados. - Ele!
- Oh, não! - Cato percebeu que a situação estava a piorar. - Depressa! Vamos!
Agarrou o braço do amigo e puxou com toda a força, arrancando-o do banco; mas nessa altura já a mente entorpecida de Macro tinha conseguido abarcar todos os detalhes
da ocasião. A cabeça do centurião virou-se na direcção de Minúcio.
- Tu!... Grande cabrão! - Rosnou, antes de lhe irromper pela garganta um urro de ódio puro. - Foste tu! Foste tu quem a levou!
Minúcio ergueu o olhar, surpreso perante a erupção de raiva. Levantou as mãos numa tentativa de se proteger, o que fez com que a cabeça de Pórcia descaísse e batesse
no soalho. Os olhos dela entreabriram-se, repararam em Macro, e ouviu-se novo grito.
Antes que Cato pudesse reagir, Macro soltou uma imprecação incompreensível, e carregou sobre Minúcio, pegando-lhe pelos ombros e lançando-o para trás, sobre um magote
de fuzileiros. Os homens dispersaram, fazendo voar mesas e quebrar jarros de vinho que lançavam o conteúdo pelo ar, sujando tudo à volta com tons vermelhos como
sangue. Ouviram-se gritos de indignação e guinchos de pânico das prostitutas que frequentavam o local, enquanto Macro prosseguia, furando por entre a turba como
um touro enraivecido que se entretinha com um acrobata empoleirado nos cornos.
Cato virou-se para Anobarbo, encolhendo os ombros.
- Pronto, lá vamos nós outra vez...
O mercador franziu o sobrolho.
- Ele faz isto muitas vezes?
- Não, de facto nem por isso. Mas esta é uma ocasião especial. Uma reunião de família.
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No outro lado da taberna, Macro tinha encurralado Minúcio contra um pilar de madeira, e ocupava-se a dar-lhe cabeçadas. Os clientes do estabelecimento amontoavam-se
junto ao arco da entrada, tentando chegar à rua, a maior parte deles esforçando-se por evitar envolver-se numa desordem que não deixaria de atrair a atenção dos
prebostes, e alguns tentando aproveitar a confusão para saírem sem pagar a conta.
Entretanto, Pórcia recuperara da sua comoção, e já corria pela sala, depois de pegar numa caçarola de ferro.
- Larga-o! - Gritou. - Larga-o, espécie de monstro!
Macro ignorou-a, e continuou a espancar o amante da mãe com uma louvável concentração.
- Pois então toma lá esta, sacaninha!
Pórcia puxou a caçarola atrás, apontou cuidadosamente, e esmagou-a de encontro ao crânio de Macro. Ouviu-se um som semelhante a um gongo, e os joelhos do centurião
dobraram-se, deixando à vista Minúcio, atordoado e de cara ensanguentada. No momento seguinte, também ele escorregou para o solo. Pórcia largou a caçarola e desatou
a chorar, lançando horríveis soluços, que faziam lembrar um pássaro preso num passador de carne, enquanto os ombros oscilavam fortemente para cima e para baixo.
- Cuidado! Vêm aí os prebostes! - Gritou uma voz assustada, algures na rua.
- Vamos. - Incitou Cato. - Temos de os tirar daqui. Antes que os prebostes lhes tratem da saúde, a eles e a nós.
- Com certeza que não vão agredir um centurião.
- E como é que eles sabem? Estamos à civil.
Atravessaram à pressa os destroços da mobília, evitando os clientes que se precipitavam para a rua. Cato tentou obter indicações de Pórcia.
- Temos de os tirar daqui. Há alguma saída pelas traseiras?
A mãe de Macro olhou-o como se não o visse, até que pareceu voltar à realidade.
- Sim. Por aqui! - Apontou para uma pequena porta atrás do balcão. Anobarbo e Cato pegaram na forma inerte de Macro, arrastaram-no até à porta e lançaram-no
para dentro, antes de regressarem para transportar Minúcio. Enquanto o levavam, Pórcia segurou-lhe na mão e afagou-lhe o cabelo. À porta do Delfim Dançarino gerava-se
um verdadeiro pandemónio, à medida que os fuzileiros bem bebidos tentavam enfrentar os prebostes e os seus cacetes.
Pórcia alarmou-se, e gritou.
- Cautela com a portada! Custou-me bom dinheiro!
Um dos prebostes deu sinal de ter ouvido.
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- Desculpe, senhora. - E continuou a espancar o fuzileiro prostrado aos seus pés.
Com os dois centuriões já fora de perigo, Cato fechou a porta, correndo o ferrolho para evitar que alguém os seguisse. Olhou em redor, e deu conta de que se encontravam
numa grande despensa, em que se acumulavam ânforas de vinho, quase até à altura de um homem. Via-se uma pequena e gasta secretária embutida na parede, com um livro
de registos aberto sobre ela. Havia um portão para a rua, fechado, e através dos espaços entre as tábuas, conseguiam-se adivinhar as sombras dos que passavam a correr
em pânico, tentando escapar à confusão que se estabelecera. Quase escondida entre umas talhas, havia uma porta de reduzidas dimensões, e foi para lá que Pórcia os
conduziu.
- Por aqui.
Cato cerrou os dentes com o esforço de levantar Macro, pondo-lhe um braço pelas costas e levando-o, meio arrastado meio carregado. Anobarbo seguiu-o, carregando
Minúcio, mais leve e também mais perto de recuperar os sentidos. Atrás da porta havia um estreito e comprido corredor, apenas iluminado por uma candeia a óleo na
ponta distante. Pórcia procurou uma chave por entre o molho que carregava, e abriu outra porta, que dava passagem para uma divisão mal iluminada, mas ampla. Cato
deixou Macro escorregar para o chão de azulejo, e endireitou-se. Estavam num átrio de dimensões modestas, mas bem apresentado. No centro, sob uma abertura no telhado,
havia uma pequena fonte, que deixava ver as estrelas distantes. Candeias tremeluziam junto de um pequeno altar aos deuses do lar, que ficava num dos cantos. De uma
porta ao fundo vinham sons fracos de água a correr.
- Tem aqui um belo refúgio. - Comentou Cato, depois de recuperar o fôlego.
- E é assim que o quero manter. - Respondeu Pórcia com azedume. - Podes dizer isso ao teu amigo, quando ele acordar. E depois podes levá-lo daqui para fora,
tão depressa quanto possível.
- O meu amigo? - Cato arqueou as sobrancelhas. - Se não estou enganado, é também o seu filho.
Pórcia olhou-o fixamente.
- Assim parece... Muito bem, trá-lo aqui para a sala de jantar. Vamos despertá-lo e tentar meter algum juízo naquela cabeça dura.
O triclínio para onde levaram Macro estava tão ricamente decorado como o átrio, e mostrava os três cadeirões habituais, dispostos em torno de uma mesa. Depuseram
o centurião sobre uma delas, enquanto Pórcia ajudava Minúcio a chegar ao quarto do casal.
Anobarbo olhou em volta, assombrado.
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- Não fazia ideia de que se podia viver assim graças aos proventos de uma taberna, especialmente de uma onde o vinho não é aguado.
Cato ignorou o comentário, já que estava ocupado a examinar a nuca de Macro, com o auxílio de uma lamparina. O cabelo estava empastado com sangue, mas o crânio parecia
ter resistido bem ao impacto da caçarola. Macro gemeu, e os ombros estremeceram-lhe violentamente, enquanto balbuciava algo de incompreensível.
Pórcia regressou à sala daí a pouco, trazendo uma bacia com água e uns panos velhos.
- Jovem, dá-me espaço. - Sentou-se no cadeirão junto à cabeça de Macro. - Se vais ficar aqui a rondar, faz qualquer coisa de útil. Segura a luz, mas aqui
onde ela faz falta, ao pé da cabeça dele.
- Desculpe.
Cato observou a forma como ela limpava o sangue e punha à vista um corte no escalpe. Assim que o sangue era limpo, voltava a surgir do interior do crânio do centurião.
Pórcia enxaguou o pano, e depois apertou-o com firmeza contra a ferida.
Com a outra mão tocou na face de Macro, afagando-a levemente.
- Nunca pensei que voltaria a fazer estes gestos. É impossível contabilizar a quantidade de vezes que tive de tratar dos cortes e feridas deste rapaz.
A afirmação intrigou Cato.
- Ele era assim tão desajeitado?
- Desajeitado? Não. Era um perfeito rufia quando era pequeno. Sempre a arranjar lutas, e meter-se com gente do seu tamanho não era para ele. Igualzinho ao
pai. Entre os dois, esgotaram a minha paciência.
Cato tossiu, nervoso.
- Hã... E foi por isso que os abandonou?
Pórcia encarou-o com uma expressão gelada.
- Afinal, jovem, quem és tu, exactamente?
- Gaio Licínio Cato, senhora. Um amigo do seu filho. Servi com ele dois anos na Segunda Legião.
- Legionário?
- Não, senhora. Centurião, como ele.
- Macro, centurião? Este imprestável, um centurião?
- E muito bom, senhora.
Ela apontou-lhe um dedo elegante.
- O meu nome é Pórcia. Preferia que não me tratasses por senhora. Não sou tua avó, e não gosto de ser tratada como tal, percebeste, jovem?
- Está certo. - Concordou Cato. - Da mesma forma, gostaria que me tratasse por Cato, e não por jovem.
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Por momentos ela pareceu irritada, mas depois as suas feições austeras abriram-se num sorriso divertido.
- Bem respondido.
Voltou a atenção para o filho inanimado, percorrendo-lhe o cabelo com os dedos até se deter. Inclinou-se sobre ele.
- O que raio...? Isto é uma cicatriz? Caramba, é enorme. É inacreditável que o rapaz ainda esteja vivo.
- Pois é. - Confirmou Cato, calmamente. - Eu estava lá quando aconteceu. Um celta quase lhe arrancou o topo da cabeça. Passou meses na enfermaria. Aliás,
partilhámos o quarto.
- Já estiveste em combate? Pareces demasiado novo.
- Sim, já combati. E sobrevivi, em larga medida graças ao Macro.
Pórcia sorriu.
- Pareces gostar muito dele.
Cato considerou a afirmação por momentos.
- Sim. Sim, gosto muito dele. Depois da morte do meu pai, ele é o que tenho mais parecido com família.
Anobarbo tossiu para chamar a atenção.
- Hã....
- O que é? - Pórcia voltou a adoptar a expressão dura e distante que usava no bar. - Do que é que precisas?
- Latrina.
- Ao fundo do corredor, última porta à esquerda. E vê se a deixas limpa quando saíres. Sei muito bem como vocês, os homens, são.
Depois de o mercador sair da sala, Cato tentou retomar a conversa sobre Macro, mas a curta manifestação de afeição maternal tinha terminado. Pórcia levantou-se e
pegou na bacia, repleta de água manchada de sangue. Dirigiu-se a um canto da sala e deitou o conteúdo do recipiente na terra de um vaso, antes de o pousar de novo
no cadeirão em que estava Macro.
- Mantém a pressão sobre a ferida. Quando ele acordar, vai quase de certeza ter vontade de vomitar. Vê lá se o faz na bacia.
- Onde vai?
- Ver se o meu prometido sobreviveu ao ataque do teu amigo. E depois tentar perceber se sobrou alguma coisa da minha taberna. Pode ser?
- Concluiu, de forma quase desafiadora.
Cato assentiu, e ela saiu na direcção do átrio.
Olhou para o amigo, e reparou que o fluxo de sangue estava mais lento; manteve a pressão na ferida, como ela indicara. Macro gemeu e rebolou, pondo-se de lado.
- Ohhh, merda... Que raio me atingiu? Tenho impressão de que uma casa desabou em cima de mim.
- Chiu. Deixe-se estar quieto.
Os olhos de Macro abriram-se e a testa franziu-se à medida que tentava reconhecer a sala em que se encontrava.
- Onde é que estamos?
- Bom, pode não gostar de o saber, mas está em casa.
- O quê? - Macro virou-se rapidamente. Em demasia. Os olhos reviraram-se e, depois de uma convulsão, o vómito irrompeu-lhe pela garganta e espalhou-se, falhando
completamente a bacia que Cato tinha apanhado do chão e posto em posição.
XVI
- Fiz um bocado figura de parvo, não foi? - Resmungou Macro. Sentou-se na cama e piscou os olhos por causa da luz que entrava pela janela do quarto nos alojamentos
dos oficiais. - Cato! Fecha-me aquela portada. Esta luz dá cabo de mim.
Cato fez o que lhe era pedido, tendo o cuidado de a prender de forma a que a brisa matinal, vinda do mar, não escancarasse a janela. Regressou para junto de Macro
e debruçou-se para inspeccionar o corte na parte de trás da cabeça do amigo. O sangue tinha coagulado, formando uma pasta horrível em tons negros e púrpura.
- Isto vai ter de levar um penso.
- Para quê? Não quero andar por aí como se fosse um maldito Párcio. - Apalpou a cabeça, e não conseguiu evitar um grito de dor quando os dedos pressionaram
a ferida.
Cato deu um estalido com a língua.
- Pois, é por isso. Não lhe mexa mais, eu vou procurar uma ligadura.
Deixando o amigo no quarto, percorreu o corredor que atravessava o edifício onde se alojavam os oficiais. O bloco hospitalar ficava do outro lado da parada, a alguma
distância. Mas nessa altura recordou-se da pequena arca médica de Minúcio, e deteve-se à porta do quarto do centurião, pondo-se à escuta. Nenhum som provinha do
interior, e Cato imaginou que o outro ainda devia estar em casa de Pórcia.
Suspirou. Aquela história ia criar mau ambiente entre Macro e Minúcio. Mais uma complicação, a adicionar a todos os pormenores e perigos que teriam de considerar
nos meses que se aproximavam. Abriu cautelosamente a porta e espreitou, mas não estava ninguém no quarto, pelo que entrou e se pôs à procura da caixa dos apetrechos
médicos. O quarto estava arrumado de forma impecável, e depressa a avistou, empurrada para debaixo da cama. Cato agarrou a pega, fincou os pés e puxou-a para fora.
Era muito mais pesada do que pensara, pelo que teve de renovar os seus
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esforços, cerrando os dentes enquanto a arca raspava nas tábuas do soalho.
Debruçou-se sobre a caixa, desapertou os fechos e ergueu a tampa. Deixando de lado os frascos de óleos e salvas, escolheu entre as ligaduras um rolo de linho. Fechou
a arca e devolveu-a ao mesmo sítio onde a encontrara, e então regressou para junto de Macro.
- Quieto, agora. Isto é capaz de doer.
- Não é o costume?
Com todo o cuidado de que foi capaz, Cato começou a enrolar a ligadura em volta do crânio de Macro, e assim que fez várias passagens sobre a ferida e se convenceu
de que esta estava bem protegida, atou as pontas de um lado da cabeça e escondeu-as debaixo do pano.
- Pronto. Agora, nada de brincar com a ligadura.
- Sim, mamã. - Troçou Macro, arrependendo-se de imediato, ao recordar os acontecimentos da noite anterior. Tentou afastá-los da mente, e encarou Cato. - Como
é que um para aqui?
- Trouxemo-lo.
- Plural? - Inquiriu Macro, desconfiado.
- A Pórcia emprestou-me alguns escravos.
- Oh, não... - Lamentou-se Macro. - Alguém nos viu?
- Sim, algumas pessoas. - Respondeu Cato rapidamente. - Mas provavelmente não mencionarão o facto.
- Achas que não? - Respondeu friamente Macro. - E onde está o sacana do Minúcio?
- Bom, suponho que ainda estará com a sua mãe.
Macro não evitou uma careta ao ouvir o termo, e deixou-se escorregar para baixo na cama.
- Que merda de confusão...
Cato fez que sim com a cabeça, concordando, antes de se dirigir à janela e espreitar pelas portadas meio fechadas. Das acomodações dos oficiais tinha-se um panorama
do porto, que se estendia até ao molhe fortificado, e ao mar para além dele; naquele momento, sob o radioso Sol da manhã, a água cintilava de forma gloriosa. No
céu não se via uma nuvem, apenas as gaivotas que volteavam, lançando os seus estridentes gritos. Os preparativos para a campanha contra os piratas já se tinham iniciado.
Várias trirremes estavam acostadas, e viam-se marinheiros atarefados a instalarem estruturas nos castelos de proa das embarcações. Cato voltou-se para o interior
do quarto e encostou-se à parede.
- O que está a pensar fazer quanto a isto?
- Para lá de estrangular aquele pinga-amor daquele bode velho e a cabra da minha mãe? Não sei. Não sei o que hei-de fazer. Estou demasiado... Estou confuso.
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- E eu a pensar que seria natural que sentisse alguma alegria por a rever, ao fim destes anos todos.
- Que sabes tu disso? - Rosnou Macro. - Nunca conheceste a tua mãe.
- Pois não. - Admitiu Cato, com solenidade, e instalou-se um silêncio incómodo.
- Desculpa. - Disse Macro, por fim. - Não queria magoar-te.
- Está desculpado.
- É que ela deixou-me sem uma palavra. A última vez que a vi foi em Ostia, no porto. Tinha ido pescar para a barra, e estava a ver um navio de guerra a passar,
e lá ia ela a bordo, agarradinha a um cabrão dum fuzileiro qualquer. Chamei-a, mas ou não me ouviu ou não quis saber. Cheguei a pensar que tinha visto outra pessoa,
mas quando voltei para casa, ela não estava lá. Às vezes, quando havia discussão com o meu pai, ela ia para casa da irmã por uns tempos. Mas também não apareceu
por lá, e alguns dias depois acabei por contar ao meu pai o que tinha visto. Ficou doido, espancou-me e depois saiu para se enfrascar. Voltou a chorar, e deu-me
outra carga de porrada. E isto durou anos, até que me fartei e saí de casa para me alistar nas Águias... Não, nunca lhe vou perdoar.
- Lamento. - Cato sentia-se incapaz de oferecer ao amigo quaisquer palavras de conforto. Ao mesmo tempo, sentia que havia uma outra parte da história, algo
a que Pórcia tinha aludido brevemente na noite anterior. Porém, aquele não era o momento de o mencionar a Macro.
- Lamentas? - Macro ergueu o olhar. - Porque é que hás-de lamentar, companheiro? A culpa não é tua. Não tens qualquer responsabilidade nesta história.
- Eu sei. Mas sou seu amigo. Não me agrada vê-lo neste estado.
- Neste estado? - Macro manteve-se em silêncio por momentos, e depois sentou-se. Pôs-se em pé. - Não vale a pena ficar macambúzio. Vou-me vestir. Temos reunião
com o prefeito ao meio-dia.
- Sabe, talvez devesse tentar falar com a sua mãe acerca disto. Agora não, mas talvez daqui a uns tempos...
- Sobre o meu cadáver, ou de preferência os dela e do cabrão do Minúcio.
Cato reconheceu o tom de voz do amigo, e apercebeu-se de que seria infrutífera qualquer insistência, pelo menos naquela altura.
- Seja, muito bem, mas prometa-me que evitará confrontos com o Minúcio.
- Cato, não sou nenhuma criança, porra, não me trates como se fosse. Enquanto estiver de uniforme vestido, cumprirei todos os meus deveres lado a lado com
aquele filho da puta, sem uma palavra. Mas quando
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estiver de folga, outro galo cantará. Se ele quiser viver até à idade da reforma, será melhor que não se meta na minha frente.
? ? ?
Mal se tinha deixado de ouvir a última nota do sinal de meio-dia quando os oficiais da esquadra de Ravena se reuniram no gabinete do prefeito. O pessoal deste tinha
afastado todos os móveis e colocado no mesmo espaço os bancos da messe dos oficiais, dispondo-os de forma a estarem de frente para o mapa que ocupava a parede do
fundo. Estavam presentes todos os centuriões e optios dos fuzileiros, bem como os trierarcas de todas as embarcações da frota. Cato, sentado ao lado de Macro numa
das primeiras fileiras, olhou sub-repticiamente em torno, tentando avistar Minúcio, mas não havia sinal dele. Assim que todos os oficiais se acomodaram, o ar ficou
cheio de conversas excitadas. Já se tinham espalhado pela base vários rumores, alimentados pelos trabalhos que decorriam no cais, e não havia oficial que não tentasse
adivinhar os planos do prefeito.
Póstumo, o chefe dos escrivães de Vitélio, entrou na sala, com ar marcial, e anunciou:
- Senhores, o Comandante!
Os bancos rangeram quando todos os oficiais se levantaram e puseram em sentido. O prefeito entrou no gabinete, passando pelo meio das fileiras de bancos e colocando-se
ao lado do mapa. Antes de falar, contemplou com alguma demora a assembleia dos seus oficiais.
- Senhores, sentem-se, por favor.
Quando todos se acomodaram, Vitélio dirigiu-se a Macro.
- Centurião, parece que já andaste em combate.
Uma onda de riso percorreu as filas de oficiais.
- Então, Macro, conta-nos lá o que te aconteceu.
- Eu... Hã, escorreguei e caí pelas escadas abaixo, senhor.
- A sério? - O ar de gozo de Vitélio era evidente. - E isso foi antes ou depois de a tua mãe te ter chegado a roupa ao pêlo?
Seguiu-se uma nova gargalhada geral, enquanto o sangue fugia da face do visado.
- Calma. - Sussurrou Cato. - Não lhe dê essa satisfação.
A porta do gabinete rangeu quando foi aberta por Minúcio, que se esgueirou pela fresta, a fechou e se sentou o mais depressa possível, no primeiro banco que encontrou.
Tinha o rosto repleto de manchas negras, amarelas e púrpura, e o nariz estava partido.
- Ah, eis que se junta a nós o presumível padrasto. Bom, uma vez que já cá está a família toda, vamos aos assuntos sérios.
O riso morreu, e os oficiais concentraram a atenção no prefeito. Vitélio pôs as mãos atrás das costas e começou.
- Como todos sabem, nos últimos meses, as costas da Apúlia, Úmbria, Libúrnia e Ilíria têm estado sob a ameaça dos piratas. Há poucos dias foi destruída a
colónia de Lissa. E esta manhã fiquei a saber do saque feito a outra colónia. Meus senhores, estas notícias são perturbadoras. Já é suficientemente mau que eles
tenham passado os últimos tempos a atacar as rotas comerciais com absoluta impunidade, mas quando começam a destruir as nossas colónias, é imperioso que respondamos,
e que os castiguemos com a máxima severidade. O líder deste bando, Telémaco, fez-nos chegar há algum tempo uma missiva, exigindo o pagamento de um tributo para se
abster de destruir mais colónias romanas. A minha resposta foi inequívoca: Roma não negoceia com piratas. Recebi ordens para eliminar esta ameaça, e hoje vamos dar
o primeiro passo para as cumprir cabalmente. Vou deixar seis birremes para a defesa de Ravena. O resto da esquadra- o meu navio-almirante, oito trirremes
e vinte birremes -, bem como os reforços de fuzileiros, deixarão o porto daqui a cinco dias e dirigir-se-ão à costa ilírica.
Vitélio empunhou uma vara e apontou no mapa.
- Desembarcaremos aqui, em Birnísio, e construiremos um campo fortificado. A partir desta base, vamos esquadrinhar a costa, milha a milha, até encontrarmos
o covil dos piratas. Tomá-lo-emos, destruiremos os navios e capturaremos ou eliminaremos as tripulações. Se forem feitos prisioneiros, serão enviados para Roma,
para serem executados em público.
Macro inclinou-se discretamente, para segredar a Cato.
- E garantir ali ao nosso amigo a aclamação popular.
O comentário escapou à atenção de Vitélio, que se voltava para a assembleia.
- Perguntas?
- Senhor. - Uma mão ergueu-se no ar, na parte de trás da sala.
- Sim, Décimo?
- As alterações que estão a ser feitas às trirremes...
- Sim, o que têm?
- Um dos homens disse-me que estavam a instalar um corvo. - Cato recordou-se da estrutura que vira a ser adaptada às trirremes. Corvo era o termo usado na
marinha para uma espécie de ponte de ataque, rotativa e com um esporão na parte inferior, que era empregue nalguns navios.
- É verdade. Combateremos os piratas de navio para navio. Já sei que as embarcações que eles usam são muito manobráveis. Temos de ter alguma forma de as prender,
de forma a que os nossos fuzileiros possam
entrar em combate. Portanto, resolvi equipar todos os navios com esse dispositivo. Mal posso esperar para ver a cara dos piratas quando as rampas descerem e os esporões
os prenderem irremediavelmente. Vai ser como preparar um porco para o espeto.
- Mas, senhor, não vai fazer o mesmo com as birremes, com certeza?
- Como já disse, será feito em todos os navios.
Os trierarcas trocaram olhares preocupados, e levantou-se algum burburinho. Vitélio raspou o chão com a ponta da vara, exigindo silêncio.
- Décimo, há algum problema com a minha decisão?
- Bom, senhor, há.
Vitélio não escondeu a irritação perante o tom do outro.
- Explica-te, por obséquio.
- Com a carga que vão levar, senhor, as birremes não têm capacidade para aguentar um corvo no convés. Há a base, e depois a própria rampa, as protecções laterais,
e todas as engrenagens necessárias à manobra, a erguê-la, rodá-la e fazê-la descer sobre o navio inimigo. As birremes vão ficar com muito peso acima da linha de
água. Se encontrarmos uma tempestade, ou até mar simplesmente alteroso, serão perigosamente instáveis.
- Pensei nisso. - Retorquiu Vitélio, de forma ríspida. - Os navios vão levar uma carga extra de abastecimentos e equipamento. Esse lastro - suponho que é
isso que vocês lhe chamam na marinha - vai contrabalançar o peso do corvo.
Décimo pesou a ideia durante algum tempo, mas logo se pôs a abanar a cabeça.
- Qual é o problema agora? - Já não havia forma de esconder a irritação de Vitélio.
- Senhor, o lastro necessário para contrabalançar o corvo tornaria os navios ingovernáveis. E eles já têm pouca altura de bordo, para começar.
- Altura de bordo?
- A distância do convés à linha de água, senhor.
- Ah. Bom, estou certo de que,a altura de bordo será mais do que suficiente para a travessia que vamos realizar. E assim que alcançarmos a outra costa
e descarregarmos tudo o que levamos, não teremos de nos preocupar mais com isso. Quanto ao peso no convés, bom, quando chegar o momento adequado, havemos de verificar
o lastro necessário. Mais alguma questão?... Óptimo. Nesse caso, senhores, farão o favor de recolher as vossas ordens junto do meu escrivão-chefe, à medida que forem
saindo. Passem em revista os vossos homens, assegurem-se de que estão preparados e equipados para uma campanha que promete ser longa.
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Vamos enfrentar dias difíceis, e árduos combates. Mas, se estes piratas têm tido metade do sucesso que lhes é atribuído, no fim cada um vai ter direito a um bom
quinhão de despojos. E, com esta promessa de riqueza para todos, deixo-vos com um bom dia.
Os oficiais levantaram-se ao verem Vitélio dirigir-se à saída, e só quando ele deixou a sala é que abandonaram a posição de sentido. À medida que os centuriões,
optios e trierarcas se aglomeravam para sair, Cato apercebeu-se de que Minúcio furava à esquerda e à direita, na pressa de se esgueirar, o que o deixou aliviado.
Macro também o viu, e seguiu-lhe o percurso com mal disfarçado ódio.
Cato deu-lhe uma palmada no ombro, e ofereceu-lhe um sorriso exagerado.
- Ouviu o prefeito. Um magnífico saque à nossa espera. Se as coisas correrem como planeado, vamos ficar bem governados. Para nós, acabaram-se as espeluncas
no cu de Roma.
- Se correrem de acordo com os planos? - Macro abanou a cabeça, pesaroso. - E desde quando é que as coisas decorrem conforme o planeado? Além disso, não te
estás a esquecer de qualquer coisa?
- Os pergaminhos?
Macro anuiu.
- Para nós, miúdo, só isso é que tem realmente importância. É por isso que aqui estamos. Arrumar os piratas e apanhar parte do saque, isso é uma questão lateral.
- Eu sei. - Cato deixou cair a falsa expressão de entusiasmo. - Só estava a tentar animá-lo.
- Bem, obrigado pela intenção. Mas temos muito trabalho pela frente. Vamos embora.
Nos dias seguintes, a base naval fervilhou de actividade. A maior parte dos navios da frota tinha passado o Inverno resguardada, e alguns dos navios de grande porte
não deixavam o porto há anos. Foi preciso levá-los à praia, pô-los a seco e limpar-lhes os cascos das algas fedorentas e das cracas que se tinham instalado abaixo
da linha de água. Foi-lhes aplicada uma nova camada de piche, cujo odor acre irritou as gargantas de todo o pessoal da base. O cordame foi todo verificado, e substituídos
todos os cabos desgastados ou velhos. As pesadas velas foram levadas às oficinas e examinadas minuciosamente em busca de sinais de fraqueza, e depois remendadas
e reinstaladas.
Só quando os navios foram declarados em condições para entrarem em acção é que os abastecimentos começaram a ser carregados: armaduras, feixes de dardos e arcas
repletas de pontas de ferro, setas, chumbos para fundas, botas e mais botas, e por fim os mantimentos que manteriam os homens durante a travessia do estreito braço
de mar e os primeiros dias na outra costa.
Enquanto as tripulações preparavam os navios, os fuzileiros treinavam o combate naval, e familiarizavam-se com o funcionamento dos corvos. Uma série de molinetes
permitia erguer e baixar a rampa, e outros mecanismos faziam-na rodar de forma a orientar-se correctamente para um navio inimigo que se aproximasse de qualquer dos
bordos.
Macro e Cato viram-se introduzidos aos rudimentos do combate no mar. Para evitar mais fricção entre Macro e Minúcio, este foi enviado ao norte, a Hisponto, para
adquirir mais cabos para a frota, o que deixou os dois centuriões entregues à supervisão de outro oficial.
- Pelo que vejo, é o mesmo que lutar em terra. - Concluiu Macro, ao fim do primeiro dia de treino. - A única diferença é que a marinha nos leva ao combate
e nos traz de volta. Sempre é melhor do que todo aquele marchar a que éramos forçados nas legiões.
Cato encolheu os ombros.
153
- Desde que me garantam que regresso dos combates, já me darei por feliz.
Ao fim de cada dia, os fuzileiros regressavam às casernas, para verificar e limpar o material, e para registar os seus testamentos. Aos que tinham família em Ravena
era permitido passarem a noite na cidade.
Para proteger o secretismo da missão, tanto quanto fosse possível, Vitélio ordenara o encerramento do porto, e por isso nenhum navio entrara ou saíra - nem sequer
os barcos de pescadores. Todos os dias, o prefeito via-se obrigado a enfrentar os furiosos representantes do conselho da cidade ou das guildas de mercadores. Mas
nada o fazia mudar de opinião, e os notáveis de Ravena nada mais podiam fazer para lá de espumar de raiva perante as perdas nos negócios, já significativas devido
aos ataques da frota pirata de Telémaco.
Ao quinto dia, o abastecimento foi concluído, e os navios ficaram prontos para iniciar as operações. Carregados como estavam, pouco se via dos cascos, flutuando
nas calmas águas do porto militar. Do outro lado do molhe de protecção, o mar estava agitado, e as ondas cinzentas vinham abater-se sobre o quebra-mar em grandes
explosões de espuma. O vento fresco apanhava os salpicos e espalhava-os sobre os navios mais próximos, ensopando os homens que cumpriam as suas tarefas a bordo.
O ar estava repleto dos sons de panos a bater em mastros, e ouvia-se um zumbido surdo provocado pelo vento a correr pelo cordame. Os trierarcas tinham tido de empregar
todos os argumentos para conseguirem persuadir o prefeito a adiar a partida. Carregadas como estavam, muitas das embarcações ter-se-iam afundado assim que passassem
a barra. Por fim, e a custo, Vitélio lá dera ordens para que as tripulações deixassem o estado de prevenção, e os fuzileiros recolheram de novo às casernas. Os homens
menos experientes passavam o tempo a jogar aos dados, ou a beber e a trocar histórias e anedotas, numa tentativa de afastar da mente a operação cujo começo fora
adiado. Os veteranos aproveitavam para dormir mais umas horas, sabendo muito bem como podia ser miserável uma travessia marítima debaixo de mau tempo.
Ao longo de todo o dia, o vento foi crescendo de intensidade, e o mar tornou-se mais alteroso, enquanto nuvens escuras se acumulavam no horizonte. A tempestade aproximou-se
de terra, e abateu-se sobre Ravena com uma estrondosa saraivada, com pedras de gelo que rolavam pelos telhados e saltavam pelas ruas até se acumularem em montes,
arrastadas pelo vento. Mesmo no porto, relativamente abrigado, o vento e as ondas transformaram as embarcações ancoradas ou acostadas em meros joguetes. Enquanto
caía a escuridão, os preocupados trierarcas tratavam de pôr as tripulações a baldear a água que os navios faziam, vinda do mar e do céu.
154
Eram destacados vigias para manterem os cabos das âncoras sob vigilância, para garantir que os navios não eram arrastados, e as tripulações mais nervosas preparavam
âncoras de substituição e oravam aos seus deuses, para que lhes permitissem sobreviver à terrível noite que se adivinhava.
Quando por fim os pálidos alvores da madrugada tentaram romper as trevas que ocupavam o horizonte, a fúria da tempestade começou a diminuir. O céu mantinha-se carregado,
mas a chuva e o granizo não voltaram. O vento amainou, passando a ser pouco mais do que uma brisa, e as vagas reduziram-se a um ondular preguiçoso. Os oficiais da
esquadra emergiram da protecção dos seus aquartelamentos para avaliarem os estragos. Havia cacos de telhas arrancadas por todo o lado junto aos edifícios, mas os
maiores estragos, como era natural, tinham sido sofridos pelas embarcações. O interior do molhe estava repleto de destroços de navios que tinham sido empurrados
contra as rochas e despedaçados. Aqui e ali viam-se corpos a flutuar, torcidos como brinquedos abandonados. Alguns navios tinham-se afundado ainda presos às âncoras,
e desses só os topos dos mastros, com os panos ainda enrolados nas vergas, eram visíveis à superfície das águas.
Passeando o olhar sobre a extensão do porto, Cato e Macro contaram os navios sobreviventes.
- Quantos perdemos? - Quis saber Cato.
- Contei duas trirremes e quatro birremes. - Adiantou Macro.
- Parece que os marinheiros tinham razão quanto às pranchas de embarque. Claro que o Vitélio nunca o admitirá. Talvez para a próxima preste atenção.
Cato virou-se para o amigo com as sobrancelhas arqueadas.
- Sim, tens razão. - Concedeu Macro. - Não é propriamente o melhor começo para esta campanha. Achas que ele a cancela?
- Não pode. A missão dele é a mesma que a nossa. O Narciso não aceitará desculpas.
E, de facto, assim que as nuvens começaram a dispersar, ecoou por toda a base o toque a reunir. Os fuzileiros saíram das casernas e formaram junto aos respectivos
navios, aguardando ordem de embarque. Vitélio confabulou com os seus oficiais navais, e o pessoal das embarcações perdidas foi redistribuído pelos outros navios.
Foi então dado o sinal, e os homens embarcaram nos navios acostados. Assim que um navio recebia a sua quota-parte de fuzileiros, deixava o cais e era substituído
por outro. O navio de Macro, uma birreme baptizada Tridente, que ostentava o nome na proa, acostou e baixou a prancha de embarque.
- Vejo-te do outro lado. - Ofereceu a mão a Cato como se se tratasse de uma despedida final, e o jovem sorriu.
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- Macro, é só um braço de mar, não é o Estige.
- A sério? - Macro olhou para lá do porto, até ao horizonte. - Daqui, não vejo nenhuma diferença.
- Oh, vá lá. Amanhã à noite já estaremos de volta a terra firme.
- Supunha que era a ti que não agradava passear sobre a água?
Cato obrigou-se a sorrir.
- E não agrada.
- A mim também não... - Macro apertou-lhe a mão. - Juro, se nos safarmos desta com vida, nunca mais trabalho em navios.
- Esperemos vir a ter essa possibilidade.
Macro assentiu, e depois aprumou-se e voltou-se, marchando até ao Tridente e seguindo pela prancha atrás do último dos seus homens. Assim que as suas botas tocaram
o convés, a prancha foi recolhida, os cabos largados das amarras do cais, e os marinheiros esforçaram-se por empurrar o navio para o meio do porto, utilizando grandes
remos. Na amurada, Macro olhou na direcção de Cato, acenou-lhe uma última vez, e depois foi tomar a sua posição junto ao capitão do navio, no castelo da popa.
A birreme de Cato tinha sido uma das vítimas do temporal, e a sua centúria tinha sido transferida para o Espartano, uma trirreme. A unidade que o precedeu a bordo
era a de Minúcio. O veterano ainda exibia as marcas do seu encontro com Macro, e não lhe agradou ver Cato.
- Estamos sobrecarregados. Leva os teus homens para vante. Os meus ficam cá atrás. Sempre ajuda ao equilíbrio do navio.
Cato encarou-o por momentos, antes de passar a ordem ao seu optio. Então, enquanto os homens se dirigiam para a proa do navio e se acomodavam junto às mochilas,
dirigiu-se ao centurião mais velho.
- Posso dar-te uma palavra?
Minúcio encolheu os ombros, e Cato chegou-se a ele, de forma a não serem ouvidos.
- Não quero saber dessa história entre ti e o Macro. Não tenho nada a ver com isso.
- Limita-te a mantê-lo longe de mim. Para a próxima, pode não ter tanta sorte.
- Sorte? - Cato sorriu. - Tu é que tens sorte por ainda andares. O Macro não é conhecido por tratar os adversários com luvas de pelica.
- A mãe dele diz o mesmo. Ao que parece, desde pequeno que não passa de um rufião.
- Diria então que encontrou a sua vocação. Não achas? Acredita, ele é muito bom naquilo que faz. Portanto, o melhor é não te meteres com ele. Farei o que
puder para ver se ele muda de opinião. Já temos sarilhos que cheguem com os piratas, não precisamos de questiúnculas familiares.
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- Não somos família. - Replicou Minúcio, por entre os dentes.
- São, praticamente. - Cato piscou o olho. - Portanto, verei o que posso fazer.
Minúcio olhou-o irritado, mas depois a sua expressão adoçou-se.
- Seja, é justo. Pela mãe dele.
- Então, esse assunto está arrumado. Agora, outra coisa.
- Ah?
Cato endireitou as costas, de forma a olhar para o outro oficial de
cima.
- Sou um centurião das legiões. Portanto, sou o oficial mais velho a bordo.
Minúcio não evitou uma risada.
- Não me digas que te vais armar em superior?
Cato confirmou a intenção.
- Foda-se, mal passas de um garoto. Ainda tu não eras nascido e já eu andava nesta vida. - Uma faísca de fúria brilhou nos olhos de Minúcio.
- Com quem é que pensas que estás a falar?
O rosto de Cato não mostrava qualquer expressão.
- Minúcio, o respeito é devido à patente, e não a quem a detém. E daqui para a frente tratar-me-ás por "senhor", em frente aos homens.
- Senhor? - Minúcio deu uma gargalhada. - Nem pensar nisso!
- Nesse caso, não me deixas alternativa. Vou participar de ti por insubordinação. A não ser que prefiras que seja por motim?
- Não te atreverias...
Cato inspirou profundamente, e chamou sobre o ombro:
- Optio Félix!
O seu subordinado pôs-se rapidamente de pé e marchou até junto dos dois centuriões. A dúvida atravessou a face de Minúcio, e ele espetou o dedo na direcção de Cato.
- Muito bem. Ganhou, senhor.
O optio colocou-se em sentido ao lado deCato, à espera de ordens. Este manteve-se em silêncio algum tempo, para assustar Minúcio. Então virou-se para o optio.
- Diz aos homens para não andarem a passear pelo convés. O centurião informou-me de que estamos sobrecarregados. Não faz sentido tornar o navio mais instável
do que ele já está. Trata disso.
- Sim, senhor. - O optio fez a saudação regulamentar e dirigiu-se de volta à proa do navio. Cato fixou o olhar no de Minúcio.
- Sei muito bem que tens muito mais experiência do que eu.
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Quando precisar de conselhos, não terei problemas em escutar-te. Mas enquanto estiver a bordo, sou eu o oficial mais graduado. Percebido?
- Sim... senhor.
- Óptimo.
- Posso ir, senhor?
- Sim.
Minúcio fez a saudação regulamentar e afastou-se, marchando hirto até junto de alguns dos seus homens encostados à amurada.
- Que é que se passa? Nunca viram a merda do mar, imbecis? Vá, para dentro, seus sacanas preguiçosos!
Cato observou-o, francamente aliviado. Tinha receado que o veterano o enfrentasse e o obrigasse mesmo a uma demonstração de autoridade. Mas, lá no fúndo, e apesar
da indignação que demonstrara, Minúcio tinha consciência de que Cato tinha razão. A hierarquia das legiões tinha precedência sobre a das tropas auxiliares, e nenhum
deles podia fazer o que quer que fosse quanto a isso. A partir daquele momento, e uma vez que Cato tinha reclamado a antiguidade, havia entre eles uma distância
insuperável. Mas fora precisamente isso que o jovem pretendera. Preferia que qualquer ressentimento que o outro homem lhe guardasse estivesse centrado na diferença
de autoridade, e não numa animosidade pessoal justificada pelo facto de ele ser amigo de Macro. Na verdade, o mais provável é que a hostilidade de Minúcio tivesse
agora uma base mais alargada, mas Cato podia lidar com essa situação. O importante era que a relação entre os dois se mantivesse dentro das regras da profissão.
Acenou com a cabeça para si mesmo, virou-se e dirigiu-se à proa do navio, para junto dos seus homens.
? ? ?
O prefeito foi o último homem a embarcar, subindo solenemente a prancha engalanada até alcançar o amplo convés do seu navio-almirante, a quinquerreme Hórus. Depois
subiu até ao castelo da popa e recebeu a saudação formal do trierarca que capitaneava o navio.
- Dá sinal para que a frota deixe o porto.
- Sim, senhor.
- Que assumam a formação em volta do navio-almirante, assim que chegarmos a mar aberto.
- Sim, senhor.
- Vou para baixo. Não quero ser incomodado. Prossegue.
Sem esperar pela resposta do outro, Vitélio baixou-se e passou pela escotilha que dava acesso à cabina, a qual acompanhava as formas da quinquerreme. Ignorou os
montes de rolos de pergaminho que esperavam a sua
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atenção sobre a secretária, e lançou-se sobre a estreita cama, na face lateral da cabina. Tal como a maioria dos homens, pouco tinha dormido na noite anterior, mas
ao contrário deles, beneficiava dos privilégios do comando, e decidira que se podia permitir aquela indulgência. No convés por cima dele ouviam-se os passos da tripulação
atarefada em afastar o navio do cais e levá-lo para o mar alto.
Ostentando uma longa flâmula de cor púrpura que ondulava ligeiramente sob a brisa amena que se fazia sentir, o navio-almirante da frota atravessou lentamente as
águas do porto militar e entrou pelo mar, passando pela estreita barra entre os molhes que protegiam a base. Quando o esporão de bronze enfrentou as ondas, a equipagem
dos remos cerrou os dentes e lançou-se ao trabalho, fazendo o grande navio avançar pelo oceano. Atrás do Hórus, toda a frota se dirigiu ao mar sob o olhar da diminuta
guarnição que ficava na base, bem como de uma multidão de habitantes locais, reunida à beira-mar. Na sua maior parte era constituída pelas famílias e namoradas dos
homens a bordo, que lançavam tristemente as suas despedidas à medida que as embarcações se afastavam, dispondo-se atrás do altivo navio-almirante e dirigindo-se
lentamente ao longínquo horizonte.
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XVIII
Durante algumas horas, foi como se a tempestade estivesse a recuperar o fôlego, antes de se voltar a lançar sobre o mar. Havia algo de pouco natural no suave ondular
das águas, e a tensão acumulava-se nas condições de calmaria. O céu manteve-se cinzento, obscurecendo o Sol, de forma que apenas uma ligeira mancha de tom mais claro
fornecia a certeza da sua presença para lá das nuvens. Os tripulantes do navio em que Cato seguia tinham uma vasta experiência do mar no Inverno, e sabiam bem que
depressa se podia transformar num monstro agressivo, pelo que observavam o tempo com justificada apreensão. Num ápice, os fuzileiros aperceberam-se do estado de
espírito dos marinheiros, e as conversas no habitual tom jocoso tornaram-se raras a bordo do Espartano, enquanto este seguia na esteira do navio-almirante, os remos
a subirem e a mergulharem de novo nas águas num ritmo inalterável.
Cato fez por aliviar a crescente premonição de desastre, passeando lentamente pelo convés, as mãos atrás das costas. Tentou afastar a mente da situação em que se
via, mas de cada vez que passava junto ao mastro, a caminho da ré, reparava em Minúcio pelo canto do olho, e por fim o jovem desistiu do seu percurso repetitivo
e foi juntar-se ao trierarca no castelo da popa.
- Quanto tempo pensas que vai levar a travessia?
Tito Albino cerrou os lábios, apreensivo, antes de responder.
- Depende, senhor. Sem vento, só nos restam os remos. Ainda podemos manter os homens a este ritmo por algum tempo. Se mantivermos esta velocidade, então devemos
alcançar a costa da Ilíria amanhã ao fim do dia. Partindo do princípio de que o tempo não piora. Depois, será mais um dia ao longo da costa, até Birnísio.
Ao olhar em redor, apreciando o conjunto da frota, uma dúvida surgiu repentinamente na mente de Cato.
- E como é que vai ser quando escurecer? Não há perigo de os navios colidirem, ou de se perderem?
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Albino sorriu e acenou na direcção da popa da trirreme.
- Assim que cair a noite, cada navio colocará uma lanterna à ré. Dessa forma, será fácil manter a formação até à alvorada. Pelo menos, em teoria.
- Teoria? - Cato não escondeu o espanto. - O que é que queres dizer? Não me digas que vai ser a primeira vez que navegas de noite?
- Senhor, claro que não. - Albino pareceu magoado pela suspeita. - Isso faz parte do treino básico. O que se passa é que a maior parte das vezes os navios
se aproximam tanto quanto possível da costa, procuram um bom abrigo, e ancoram por lá para passar a noite. Já passei várias noites no mar aberto com o Espartano,
mas nunca englobado numa frota assim.
- Nunca? - Cato mal podia acreditar no que ouvia.
- Nunca. - Albino sorriu. - Vai ser uma experiência interessante.
Cato olhou para ele como se o julgasse louco.
À medida que o dia avançava, uma ligeira brisa de norte começou a agitar a superfície das águas, e o navio-almirante fez sinal à frota para recolher os remos e soltar
o pano. O suave marulhar das águas, que substituiu o monótono ranger e mergulhar dos remos, tinha um efeito calmante e tranquilizador, e Cato afastou-se ligeiramente
enquanto Albino dava ordens até que a tripulação deixou as velas ao seu gosto. Depois o trierarca dirigiu o olhar para o navio-almirante, algumas dezenas de metros
à frente.
- Imediato!
- Senhor?
- Assegura-te de que mantemos a posição.
O Espartano, sendo mais leve, tinha tendência a ser mais rápido do que a pesada quinquerreme, pelo que o imediato se viu obrigado a instruir os tripulantes para
de tempos a tempos afrouxarem o pano rectangular, deixando passar o vento, e assim evitar que o navio se aproximasse demasiado do Hórus ou de qualquer outra das
embarcações.
À medida que a escuridão se abatia sobre a frota, e que o mar e o céu se uniam numa massa escura indistinta, um dos marinheiros emergiu da coberta com uma lanterna,
um objecto de bronze, pesado, com uma protecção de vidro para a chama. Esta já estava acesa, e a pálida luz reflectia-se no espelho metálico fortemente polido que
constituía a parte de trás da lanterna. Havia um gancho metálico no mastro da ré, e foi aí que o tripulante a pendurou. Ficou a baloiçar docemente, ao sabor dos
movimentos do navio; enquanto Cato olhava, viram-se outras luzes a surgir nos navios que seguiam à volta do Espartano. O espectáculo fê-lo recordar as procissões
à luz de tochas que os seguidores de Mitra organizavam, e a que tinha por vezes assistido nos campos da Segunda Legião.
161
- Ó do convés! Vela à vista!
Cato olhou para cima, onde se divisava uma figura empoleirada na verga, com um braço em redor do mastro para se segurar. O outro braço do homem apontava numa direcção
perpendicular à disposição da frota. Todos os olhares no convés se precipitaram imediatamente na direcção indicada; Cato bem esforçou a vista, mas não conseguiu
distinguir o que quer que fosse.
- O que viste? - Indagou Albino ao vigia.
- Uma vela latina, senhor. A ser içada. A não mais de duas milhas.
- Duas milhas... - Albino não escondeu o alarme. - Ainda consegues vê-la?
A luz desaparecia rapidamente, e passou algum tempo até o vigia voltar a falar.
- Apanhou o vento, e pôs-se ao largo. Deve ter-nos visto, senhor... Já não consigo avistá-la.
- Merda. - Murmurou Albino.
- Achas que era uma embarcação dos piratas? - Quis saber
Cato.
- Muito provavelmente, senhor. Se nos viram, o mais natural é que tenham visto também alguns dos outros navios, e que tenham percebido que se tratava da frota.
Se fosse um navio mercante, não teria nenhuma razão para nos evitar de forma tão deliberada. Era capaz de apostar uma boa maquia em que era um pirata, sim.
Cato lançou um olhar na direcção apontada pelo vigia.
- Suponho que consideraram que, contra uma força desta dimensão, não tinham quaisquer hipóteses.
Albino riu com franqueza.
- Nem o mais atrevido dos piratas seria assim tão estúpido.
Cato corou, irritado por ter emitido uma opinião típica de um recruta sem experiência. Ao olhar em volta, reparou em Minúcio, que abanava a cabeça. O veterano tinha
com certeza escutado a observação de Cato, e a sua opinião sobre o jovem tinha descido ainda mais.
- Centurião, não se preocupe. - Continuou Albino. - Por agora, está em segurança. Pelo menos, enquanto o inimigo não se aperceber de que somos comandados
por alguém que está fora de pé, como o prefeito Vitélio.
Cato sabia muito bem que a falta de confiança em oficiais inexperientes, por parte do trierarca, o englobava também a ele, pelo que cerrou os lábios, evitando qualquer
resposta mais ríspida.
- Nesse caso, o que vão eles fazer?
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- Vão com certeza informar Telémaco. Na altura em que esse sacana receber a informação, porém, já nós estaremos em terra, preparados
para o caçar.
- Será que aquele navio não estava à nossa procura?
- Não. - Albino meneou a cabeça. - Só pode ter sido um encontro fortuito. Eles não sabiam da nossa campanha.
- Mas, e se soubessem? - A mente de Cato já se adiantava, tentando prever todas as implicações de tal cenário. - E se ele se fez ao mar para nos interceptar?
- Senhor, isso não passa de pura especulação. - Respondeu Albino, com um traço de irritação na voz. - Digo-lhe, eles nada sabiam. Como seria isso possível,
com todas as medidas de segurança que o prefeito impôs? E mesmo que soubessem, já viu os nossos navios. Aliás, já viu alguns dos dele, se formos a isso. É evidente
que ele não nos pode confrontar. - Albino olhou em redor, para se assegurar de que nenhum dos seus homens ouvia as palavras seguintes. - Senhor, tenho de lhe pedir
que não continue a lançar essas suposições. Não faz bem nenhum aos meus homens ver um oficial a perder a cabeça ao primeiro sinal de uma vela estranha. Aliás, não
fará com certeza nenhum bem aos seus próprios homens, também.
- Muito bem. - Cato anuiu. - Não voltará a suceder.
- Será bem melhor assim, senhor. E agora, se me dá licença, vai ser uma noite longa. Tenho de ver como está o meu navio.
- Sim. Sim, com certeza.
Albino fez a saudação e afastou-se, de pés nus sobre as pranchas, em direcção à proa. Cato ficou a vê-lo misturar-se com o grupo de figuras escuras aglomeradas junto
à base do mastro; depois cerrou o punho e aplicou um murro na própria perna. Não fora a primeira vez que acabara por fazer figura de principiante amedrontado. Apesar
da sua constante determinação em evitar pôr à vista a sua inexperiência e falta de conhecimentos, havia sempre algo que o denunciava, e acabava por ser visto como
um incapaz. Uma impressão que se sentia compelido a apagar, a qualquer preço.
? ? ?
A noite passava devagar. Para Cato, tratava-se de uma experiência arrasadora. À sua volta, todos os sons do mar pareciam demasiado próximos, como se o oceano se
preparasse a cada momento para se erguer e tragar a casca de noz que o transportava. Atormentavam-no imagens tenebrosas de si mesmo, a lutar para se manter à tona,
só e olvidado na imensidão
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ondulante do escuro mar, até que as forças lhe faltavam e ele mergulhava pela última vez, a caminho do esquecimento nas profundas trevas daquele líquido sufocante.
Não havia qualquer possibilidade de sono enquanto o pensamento lhe fosse consumido por temores daquele género, o que o fez contemplar os corpos adormecidos dos fuzileiros
da sua centúria com genuína admiração e inveja. Durante algum tempo passeou pelo convés, admirando as luzes dispersas nas popas dos outros navios. Por vezes chegavam-lhe
pedaços de conversas tidas a bordo de outras embarcações. Na viagem, os sons tinham perdido qualquer entoação ou significado, e por vezes soavam inumanos, o que
o levava a esforçar o olhar para as trevas, interrogando-se sobre se haveria afinal alguma ponta de verdade em todas as histórias e mitos sobre monstros marinhos.
- Uma noite tranquila, senhor.
Cato deu um pulo e virou-se, avistando um vulto escuro por perto, junto à amurada. Rapidamente identificou a voz, e acenou à laia de cumprimento.
- Sim, optio. Suponho que sim.
Apercebeu-se da expressão divertida do optio Félix, antes mesmo de este prosseguir.
- Senhor, acabará por se habituar. Mais uns meses, e o mar será para si como uma segunda casa.
- Duvido sinceramente que isso venha a suceder. - Retorquiu Cato, antes de pensar no que ia dizer. Conhecia o optio há não mais do que alguns dias, e era
imprudente estabelecer relações de proximidade com o homem; muito menos se poderia arriscar a dar a entender medo ou fraqueza. Tossicou para limpar a garganta, e
endireitou-se, agarrando a amurada com ambas as mãos crispadas. Prosseguiu, tentando adoptar um ar de desprendimento. - Como experiência, até é interessante, mas
imagino que depressa se tornará aborrecida.
- Aborrecida? - O optio mostrou-se surpreso. - Não há nada de chato no mar, senhor. É uma criatura estranha, senhor. Nunca se acalma por completo. É caprichoso
como só ele. Quando julgamos que já o percebemos, e que lhe conhecemos todos os truques, manda-nos toda a sua fúria à cara... Não, senhor, não tem mesmo nada de
aborrecido. Tem sim, e muito, de assustador, e merece todo o nosso respeito.
Cato olhou na direcção do optio, embora não conseguisse distingui-lo, e amaldiçoou-o em surdina por lhe ter proporcionado mais uns motivos para se sentir aterrorizado.
- Bem, Félix, essa é, hum, uma perspectiva interessante. Não a esquecerei. Obrigado.
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- Senhor, será melhor dormir um pouco. Nunca se sabe o que nos vai trazer a manhã.
- Dormir. Sim, é uma boa ideia. Para ti também, optio.
Félix saudou-o e recuou para o meio da densa massa de vultos que ocupava o convés do Espartano. Cato ficou a vê-lo afastar-se, e depois dirigiu de novo o olhar para
o breu da noite, mais nervoso do que nunca.
Por fim, o esforço a que sujeitava os sentidos começou a fazer sentir o seu peso, o que o fez procurar um espaço vago na proa do navio. Encostou as costas ao mastro
de vante, fechou os olhos e tentou adormecer. Se os seus homens conseguiam dormir naquelas condições, era fundamental que o vissem também a dormir. A pouco e pouco,
o suave subir e descer do convés, os estalidos do cordame e o som do mar a passar ao longo do casco fizeram-no mergulhar no sono.
? ? ?
- Senhor! - Uma mão sacudia-lhe o ombro. - Senhor! Acorde!
Piscou os olhos e viu-se a contemplar uma estranha prancha de madeira. Por momentos sentiu-se confundido, mas depressa as lembranças lhe vieram à mente, e soergueu-se,
sem conseguir sentir o braço sobre o qual repousara a cabeça. Virou-se e interpelou Félix.
- O que se passa?
- O vigia assinalou velas a norte da nossa posição, senhor.
Cato levantou-se de um salto, pondo-se de pé com alguma rigidez nos membros. A maior parte dos seus homens já estava a pé, mirando o horizonte em silêncio. Abriu
caminho entre eles e dirigiu-se à popa, onde Albino o saudou com um aceno. Respondeu-lhe da mesma forma.
- O meu optio disse-me que avistaram qualquer coisa.
- Várias velas. E o número aumenta, a cada momento. Além. - Levantou o braço, indicando uma direcção. - Vêm da costa da Ilíria.
- Piratas?
- Quase de certeza. Não há mais nenhuma frota com aquele número nestas águas. - Virou-se para o mastro principal e berrou. - Quantos vês agora?
Após uma breve pausa, o vigia respondeu.
- Quinze. Ainda não consigo distinguir os cascos, mas alguns parecem grandes, senhor. Birremes ou maiores.
Cato tossiu.
- Até parece que sabiam que nós vínhamos aí. Como eu temia.
- Dá a ideia de que sabiam, sim. - Albino fez uma careta e depois concedeu, mal-humorado. - Parece que tinha razão, senhor.
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- Obrigado.
De repente, Albino esticou o pescoço.
- Ali! Veja!
Cato olhou para o horizonte e, quando o Espartano cavalgou uma vaga, notou várias formas escuras lá longe, no limite da sua visão.
- Quanto tempo vão levar a alcançar-nos?
Albino mordeu os lábios.
- Três, talvez quatro horas. Mas isso não vai acontecer. O prefeito vai ter de seguir para sul até alcançarmos a costa.
- Retirar? Porquê? Temos com certeza capacidade para os enfrentarmos.
- Com toda esta carga, nem por isso; para mais quando são eles que têm o vento pelas costas, e estão portanto em vantagem. Depois de descarregarmos o material
todo, então sim, poderemos alcançá-los rapidamente. Nessa altura, veremos quem vira de bordo e foge. - Albino sorriu.
- Capitão! - Indicou o imediato. - O navio-almirante está a fazer sinais!
Albino virou-se para a frente e concentrou a sua atenção no Hórus. Um longo pendente vermelho estava a ser içado no mastro principal, e o vento fazia-o dançar como
um dragão de fogo. O trierarca abanou a cabeça, abatido.
- O que se passa? - Quis saber Cato. - O que é que aquilo significa?
- Significa que o prefeito é um idiota chapado. - Respondeu Albino a meia-voz.
- O quê?
Albino acenou na direcção da flâmula escarlate.
- Aquele é o sinal para a frota atacar.
- Atacar? Pensei que tinhas acabado de dizer que não podíamos.
- E não podemos...
Cato estava confuso.
- Então, o que está ele a fazer? Deve haver algum engano.
Mas, enquanto falava, já a tripulação do Hórus recolhia todo o pano do mastro principal. As diminutas figuras dos marinheiros trepavam pelas enxárcias, espalhando-se
pelas vergas e prendendo rapidamente as velas, ao mesmo tempo que os bordos do navio se viam de repente eriçados de remos.
Enquanto o capitão Albino berrava ordens à sua tripulação, tudo o que Cato podia fazer era observar horrorizado a forma como a proa do navio-almirante se afastava.
Pouco a pouco, o Hórus foi ganhando velocidade,
166
À medida que os seus remos quebravam a superfície cinzenta do mar. A quinquerreme acelerou, dirigindo-se directamente ao coração da frota pirata.
XIX
- Todos às suas posições! - Rugiu Albino, preenchendo todo o convés com a voz. - Recolham a vela! Lancem os remos!
Era para momentos daquele género que os marinheiros e fuzileiros a bordo treinavam anos a fio e, ao som do tambor, os homens no convés lançaram-se às respectivas
tarefas. Alguns dos tripulantes treparam pelo cordame e espalharam-se pela verga, para recolherem a vela. Cato correu para vante, para se juntar à sua centúria,
e o som pesado das suas botas era acompanhado pelo bater e ranger dos remos que eram colocados em posição, por baixo do convés principal. Em redor, os fuzileiros
equipavam-se, colocando armaduras e cinturões com espadas e adagas, e pegando em capacetes e escudos. Quando chegou ao sítio onde deixara o seu equipamento, já Félix
lá estava, estendendo-lhe a cota de malha, de forma a que a envergasse rapidamente.
Agradeceu com um aceno.
- Assim que os homens estiverem equipados, distribui os dardos. E traz umas dez caixas dos armazéns, para irem substituindo os que forem lançados.
- Sim, senhor.
Enquanto se ajeitava com os cordões de cabedal do capacete, deitou um olhar à popa. Albino debruçava-se na amurada, observando o que fazia o Hórus. A vela do Espartano
já estava recolhida, e por isso a trirreme começou aperder terreno. Nesse momento, do convés inferior começou a ouvir-se o bater do tambor que marcava o ritmo para
os remadores. Em resposta, as pás mergulharam na água, levantando salpicos, e com um grunhido de esforço colectivo, o Espartano lançou-se para a frente. A equipagem
levou algum tempo a encontrar o ritmo correcto, mas assim que o conseguiram, o movimento do navio estabilizou e a progressão tornou-se mais rápida. No momento em
que se viram directamente por trás do navio-almirante, Albino deu uma ordem ao homem do leme, que lançou o seu peso sobre a haste do enorme remo que saía da ré do
Espartano. Enquanto a larga pá do
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leme lutava contra o oceano, Cato sentiu o convés a agitar-se por baixo dos pés e agarrou-se instintivamente à amurada. Ao seu lado, Félix não deixou de reparar
no gesto, e sorriu.
- Senhor, será melhor habituar-se ao movimento. Quando nos aproximarmos mais daqueles sacanas, isto vai dar voltas e mais voltas.
- Esperemos que eles prefiram fugir a enfrentar-nos.
O outro encarou-o com alguma desconfiança.
- E porquê, senhor?
- Estamos sobrecarregados. A vantagem será deles, em velocidade, e talvez até em poderio. Só espero que eles se limitem a avaliar o número e bater em retirada.
O optio Félix olhou para a frente, por sobre a proa do navio, para a nuvem de velas distantes, quase no horizonte. Quando a trirreme se elevou sobre uma vaga, as
silhuetas escuras dos navios piratas ficaram claramente visíveis contra o azul brilhante da superfície do oceano.
- Não me parece que eles estejam a fugir.
- Pois não. - Cato cerrou os lábios. A frota inimiga aproximava-se de forma deliberada, sem dar qualquer sinal de que ia mudar de rota.
- Diz ao Minúcio para preparar o corvo.
Félix saudou-o e afastou-se para cumprir a ordem. Pouco depois, ouviu-se Minúcio a dar ordens aos seus homens, para que depusessem escudos e dardos e o acompanhassem
à área onde o mecanismo de abordagem estava preso ao convés, na zona à frente do mastro. Enquanto eles se lançavam ao trabalho, Cato avaliava a situação, não deixando
de notar o tempo que o Espartano levava a dar um quarto de volta e a colocar-se na esteira do navio-almirante. Parecia-lhe que a trirreme era pouco manobrável, uma
impressão confirmada pela muito maior rapidez das birremes na realização das manobras para se disporem em leque nos dois lados do Hórus e assumirem as posições que
lhes tinham sido ordenadas. Tal e qual como em terra, reflectiu. Os enormes vultos da quinquerreme e das trirremes no centro, como nas legiões, e as naves mais ligeiras
nos flancos, tomando o papel da cavalaria, preparados para explorar a velocidade de que dispunham nos espaços que se abrissem à sua frente. lentamente, à medida
que as duas frotas se aproximavam sobre o mar, os navios romanos foram-se reordenando, alterando a formação de cunha para linha, com uma pequena reserva constituída
por duas trirremes e quatro birremes, que ficaram para trás para colmatar qualquer brecha que surgisse na frota.
Cato ergueu a mão para proteger a vista do brilho do Sol e olhou em volta, procurando o navio de Macro. Avistou a birreme no flanco esquerdo, distinguindo-a pelos
símbolos pintados no casco. Semicerrou os olhos e conseguiu vislumbrar uma crista vermelha num dos capacetes
Apinhados junto à proa. Sorriu, tentando imaginar o que sentiria o amigo em relação ao seu novo papel naquela espécie de cavalaria. Estaria sem dúvida ansioso por
se atirar aos piratas, e já teria dado indicações ao trierarca para abalroar o primeiro navio inimigo que aparecesse à sua frente. Enquanto Cato observava, a silhueta
de um corvo ergueu-se acima de Macro e dos seus homens, e ficou em posição inclinada, pronta para descer e se cravar num navio inimigo.
A bordo do Espartano, Minúcio e os seus homens levavam a pesada engrenagem para a posição que devia ocupar, na proa. Enquanto o navio oscilava ao atravessar as vagas,
lutaram para alinhar o espigão de madeira com o encaixe em metal que tinha sido instalado no castelo da proa. Por fim, depois de muitas imprecações, o corvo foi
colocado na posição correcta, e as cordas que haviam de controlar o movimento da rampa foram passadas pelos mecanismos. Quando tudo ficou pronto, a rampa foi levantada
para permitir que fosse também colocado em posição o espigão de ferro na sua base, e as cordas foram amarradas firmemente, de forma a manter o dispositivo imóvel
até se tornar necessário. Cato reparou que o peso do mecanismo e dos homens que o manobravam fizera baixar a proa do navio, e a trirreme parecia claramente mais
lenta, enquanto os remos a faziam progredir por entre as ondas.
A frota romana ia directamente contra o vento, e as proas dos navios enfrentavam com estrondo as vagas que vinham de frente, fazendo saltar grandes nuvens de salpicos
que molhavam os homens no castelo da proa. Cato pestanejava sem cessar, tentando afastar a água salgada dos olhos e não perder um momento da aproximação do inimigo.
Os piratas ainda seguiam à vela e chegavam rapidamente; ao fim de uma hora já estavam claramente à vista, a pouco mais de uma milha. A maior parte dos navios eram
da classe das birremes, e no centro da linha via-se a trirreme que Cato visitara vários dias antes, as suas flâmulas vermelhas a ondular na forte brisa como se fossem
as línguas de serpentes. Apesar do que Albino lhe dissera sobre os perigos de combater no mar com navios sobrecarregados, o centurião não conseguia deixar de pensar
que o combate que se aproximava ia ser desequilibrado, e que a vantagem estava do lado de Roma.
- Olá... - Indagou o optio Félix. - O que é que aquele sacana grandalhão está a preparar?
Cato olhou para a trirreme inimiga. A vela principal ondulava ao vento, mas sobre a verga viam-se pequenas figuras que a recolhiam rapidamente, ao mesmo tempo que
os remos eram lançados à água. De ambos os lados do grande vaso de guerra, as birremes e as liburnas, mais ágeis, prosseguiram, atirando-se para os dentes da frota
romana. Mas quando os remos da trirreme entraram em acção, notou-se algo de estranho na sua
movimentação, e Cato fez um esgar de concentração, até perceber o que se passava.
- Estão a remar, para trás!
Félix olhou com atenção, e concordou com um gesto de cabeça.
- Pois estão! Qual será a jogada deles? Senhor, acha que aquele filho da puta está a fugir?
- Não faço ideia. - Sentiu um súbito arrepio de ansiedade nas entranhas. Havia algo de errado, tinha a certeza. Embora pouco percebesse de tácticas navais
- apenas aquilo que lhe tinha sido ensinado à pressa desde que chegara a Ravena -, estava seguro de que aquilo era uma artimanha qualquer. Porém, à sua volta, os
seus homens e os marinheiros soltavam brados de alegria perante a aparente retirada do navioinimigo, como se a batalha já estivesse ganha.
- Calados! - Gritou Cato. - Silêncio! O próximo a abrir a boca será castigado!
Os gritos morreram, e Cato voltou a atenção para a frota inimiga, agora já tão próxima que se podiam distinguir os homens que trabalhavam nos mais próximos dos navios.
A trirreme de Telémaco continuava a recuar à frente do Hórus, e os gritos excitados dos homens a bordo da quinquerreme chegavam facilmente aos navios que seguiam
a nave-almirante romana. Alguns dos homens mais próximos do centuirião olharam-no com mal disfarçado ressentimento, mas prudentemente mantiveram a boca fechada.
Lá no alto, na popa da quinquerreme, uma figura envergando uma capa vermelha brandiu uma espada que refulgiu ao sol da manhã como uma labareda prateada; era Vitélio,
que incitava a sua tripulação à perseguição. Para lá do Hórus, um clarão colorido atraiu o olhar de Cato, que reparou numa faixa amarela brilhante que subia no mastro
do navio pirata. Numa resposta imediata, todas as embarcações da frota inimiga viraram de bordo, as velas a rodar para a melhor posição para recolher o vento. Num
instante tinham-se dividido em dois esquadrões, que se dirigiam agora ao encontro dos navios ligeiros que ocupavam os flancos da frota romana.
Como que despreocupado com o perigo que ameaçava as birremes, Vitélio fazia o seu navio prosseguir na perseguição ao navio mais importante dos piratas. Do castelo
de proa do Espartano, Cato nada mais podia fazer do que assistir horrorizado à forma como a frota inimiga evitava os mais pesados dos navios romanos. Percebia perfeitamente
o raciocínio do prefeito. Se conseguissem capturar ou aniquilar Telémaco, seria muito provável que os piratas fossem destroçados naquele primeiro embate. E, de facto,
o Hórus aproximava-se a pouco e pouco do navio do chefe dos piratas. O problema era a aproximação ser demasiado lenta. E, a cada momento que passava, os mais poderosos
vasos de guerra romanos afastavam-se da zona
em que se iam travar os combates iniciais, nos flancos. A acção fora muito bem planeada, compreendeu Cato, em desespero. Telémaco oferecera-se como isco, sabendo
muito bem que o prefeito romano não hesitaria perante a possibilidade de obter uma estrondosa vitória e recolher os louros que lhe permitissem avançar na carreira
política. O truque consistia em dar a aparência de que os romanos o poderiam alcançar, mantendo sempre uma margem de segurança que lhe permitisse virar e escapar
sem problemas.
- Lá vão eles. - Murmurou Félix, e Cato virou-se a tempo de avistar o navio de Macro. A cerca de meia milha de distância, no mar agitado, as velas dos navios
piratas começavam a misturar-se com os mastros nus das birremes romanas. Enquanto Cato observava, um dos inimigos aproximou-se velozmente duma embarcação romana
e fez uma passagem rasante, quebrando-lhe os remos e lançando destroços pelo ar. O pirata deslocava-se com tal velocidade que os fuzileiros não tiveram tempo de
pôr o corvo em acção, e mal tinham começado a reorientá-lo quando o inimigo cortou os últimos dos remos e se pôs fora de alcance. Os remos do outro lado, porém,
continuavam em movimento, o que fez com que a birreme começasse a rodar sobre si mesma e se inclinasse perigosamente para o lado em que estava a rampa do corvo.
O outro navio tombou sob o olhar horrorizado dos fuzileiros do Espartano, e o mar penetrou sobre a amurada, ao mesmo tempo que homens e equipamento se precipitavam
para as ondas. Um momento depois ouviu-se um estalido, provocado pela fractura do mastro, e o navio virou-se por completo, deixando à superfície apenas o fundo abaulado
e reluzente do casco, rodeado por homens que se debatiam em pânico, tentando encontrar um qualquer destroço que os ajudasse a flutuar.
- Oh, merda! - Exclamou um fuzileiro junto a Cato, enquanto abanava a cabeça. - Viu aquilo? Desgraçados...
Cato já passava o olhar sobre os outros barcos, tentando descortinar o de Macro. O Tridente tinha passado pela frota pirata sem danos, e já se preparava para dar
meia-volta e procurar um inimigo para enfrentar. Ali perto, outra birreme tinha sido abalroada, e o impacto tinha quebrado a verga do navio atacante. Mas os piratas
tinham rapidamente invertido a acção dos seus remos e tinham-se afastado de imediato, deixando ao mar o trabalho de acabar com a sua vítima, já que a água se precipitara
pelo rombo no casco e o peso depressa fizera o navio virar-se também. Cato virou-se de novo para o Hórus, que ainda avançava a toda a velocidade na tentativa de
alcançar a trirreme de Telémaco.
- Que raio se passará na cabeça do prefeito? - Félix deixou que o punho se abatesse sobre a madeira da amurada. - Foda-se, o tipo não vê o que está a acontecer?
- Vê, e perfeitamente. - Respondeu Cato, com toda a calma.
- Limita-se a considerar que é um sacrifício que se justifica.
- Sacrifício? Vai ser mas é um massacre, caralho. Olhe! Lá vai outro.
Cato observou em silêncio a forma como os navios dos piratas desbaratavam a formação naval romana, penetrando pelos flancos. Apenas um punhado das birremes tinha
conseguido responder. Uma tinha conseguido abalroar uma embarcação inimiga, e os fuzileiros já saltavam para o convés desta, abatendo os adversários com uma selvajaria
que denunciava o desespero que sentiam. Ali perto, outra birreme tinha também abalroado outro barco pirata, cujo convés já era lambido pelas vagas, à medida que
mergulhava para as profundezas. Os outros navios romanos, ou estavam já envolvidos em combate, ou procuravam alvos entre os inimigos.
O optio Félix tinha toda a razão, decidiu Cato. Ia ser um massacre, a não ser que alguém fizesse alguma coisa. Lançou um derradeiro olhar para o navio-almirante,
que continuava a perseguir Telémaco, e depois virou-se e abriu caminho por entre os homens, na direcção da popa, para junto de Albino. Minúcio observou-o ao passar,
com um ar receoso.
- Faz-nos inverter o rumo! - Gritou Cato.
O trierarca olhou para ele sem compreender, como se não o tivesse escutado. Cato trepou os degraus que o separavam do castelo da popa e apontou com o braço na direcção
do flanco romano, onde Macro e os outros combatiam pelas suas vidas.
- Ouviste? Altera o rumo!
- Não. - Albino acenou na direcção do navio de Vitélio. - Não recebi qualquer ordem do navio-almirante.
- Esquece-o. Olha para ali. Os nossos camaradas precisam de ajuda. Agora.
- Não recebemos ordens para isso.
- Que se fodam as ordens! Os nossos barcos estão a ser estraçalhados. Se não agirmos agora mesmo, e quero dizer neste momento, vamos perdê-los todos.
- Mas... A
- Dá a volta. É uma ordem!
Por momentos, os dois oficiais enfrentaram-se, e quer os tripulantes quer os fuzileiros observaram-nos com atenção, conscientes da crise que se desenhava. Por fim,
Albino anuiu.
- Muito bem, centurião. Mas vou exigir que essa ordem seja passada à escrita.
Cato quase desatou às gargalhadas, cheio como estava de desdém pelo outro.
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- Claro, hás-de tê-la por escrito... Se sobrevivermos. Mas, por agora, cumpre-a.
Albino virou-se para o homem do leme.
- Tudo a bombordo, depressa!
- Sim, senhor! - O homem empurrou o remo, esforçando cada músculo dos braços grossos como vigas, e a água espumou na esteira da trirreme. Cato teve alguma
dificuldade em conter a impaciência, enquanto a proa se desviava pouco a pouco da rota seguida pelo Hórus até se alinhar com o combate que se desenrolava a mais
de uma milha. Olhando para as outras trirremes, apercebeu-se dos rostos virados para o seu navio, e conseguiu mesmo ler a surpresa estampada nas faces da tripulação
da mais próxima. Empunhou a espada e apontou com ela sobre a proa do Espartano. Levou a outra mão à boca e gritou sobre a água.
- Sigam-nos! Pelos deuses, sigam-nos!
A princípio não houve resposta, mas depois o trierarca deu ordens aos seus homens e o coração de Cato respirou de alívio quando verificou que a proa da trirreme
virava para seguir o Espartano. Outras duas embarcações de grande porte mudaram de rumo, dirigindo-se ao outro flanco da frota, mas as restantes mantiveram a rota,
seguindo o navio-almirante.
- É melhor do que nada. - Comentou Cato, resignado. Virou-se para Albino. - Atira-te mesmo para o meio daquela confusão. Escolhe um alvo qualquer que pareça
promissor.
- Onde vai?
- Temos de aligeirar o navio.
Albino acedeu.
- Seja. Mas despache-se!
Cato correu pelo convés, à procura do centurião Minúcio.
- Leva os teus homens para a coberta. Tragam tudo o que puderem cá para cima, e atirem-no pela borda fora.
- Atirar? - Minúcio fez um ar de espanto. - Mas depois vamos precisar das coisas.
- Se não as atirarmos fora, se calhar não haverá depois para nos preocuparmos com isso.
Minúcio abanou a cabeça.
- Não tens autoridade para isto.
Irritado, Cato fez sentir ao outro o peso da sua patente.
- Tenho, sim. Agora, executa as ordens que recebeste, senão terei de mandar prender-te no porão e passar o teu comando para o optio. Não estou a brincar.
Minúcio fez a saudação regulamentar e afastou-se, dando as ordens
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necessárias à execução do plano de Cato. Este dirigiu-se aos seus homens e ,procurou Félix.
- Optio!
- Sim, senhor!
- Pega numa secção. Vai lá abaixo, e traz os projécteis para as fundas.
- Sim, senhor. Que quantidade devo trazer?
- Tudo. Despacha-te.
O optio servia há tempo suficiente para saber que não devia discutir as ordens, por muito estranhas que parecessem. Interpelou os homens mais próximos.
- Vocês. Larguem as lanças e os escudos, e sigam-me.
Félix abriu a escotilha de vante e desceu para a coberta, seguido pelos homens que escolhera. Pouco depois começaram a passar para cima pequenos e pesados sacos
cheios de bolas de chumbo. A cabeça do optio emergiu pela escotilha.
- Senhor, e as fundas?
- O quê?... Ah, sim, porque não? Já agora damos-lhes uso e aliviamos a carga ao mesmo tempo.
Enquanto os fuzileiros empilhavam os sacos no centro do convés, Cato olhou para a popa e comprovou que Minúcio e os seus homens já lançavam pela borda fora sacas
de cereal e placas metálicas para couraças. Um relance à trirreme que os seguia revelou que também a sua tripulação se tinha apercebido da necessidade de aligeirar
a embarcação. Satisfeito, dirigiu-se à pesada proa do Espartano. O maciço esporão de bronze da trirreme subia e mergulhava de novo sob as águas ao ritmo do avanço,
directo ao coração da batalha que se travava a menos de meia milha.
Cato procurou identificar os navios que combatiam por entre os destroços, o lixo e os corpos que enxameavam a superfície do mar. O Tridente, que tinha passado através
das linhas inimigas, tinha invertido a marcha e entrara na batalha, abalroando pela popa um navio pirata que, por sua vez, esporeara uma birreme no bordo lateral.
As tripulações dos três navios combatiam no convés do pirata e, tanto quanto o centurião conseguia avaliar àquela distância, eram os romanos quem estava a levar
a melhor.
Gritos desesperados chegaram-lhe aos ouvidos, e reparou que havia homens na água, mesmo na rota do Espartano, tanto romanos como piratas. Estava a ponto de gritar
um aviso a Albino, quando se apercebeu de que nada havia a fazer por aqueles tipos. Não havia forma de desviar a trirreme para os evitar, já que o navio levaria
demasiado tempo a responder. Enquanto se aproximava a toda a velocidade da batalha, Cato vislumbrou as expressões de desespero dos homens na água; alguns tentavam
nadar
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freneticamente para fora do caminho da trirreme. Os que estavam demasiado feridos para o conseguir, ou que se abraçavam a pedaços de destroços flutuantes, pouco
mais podiam fazer do que esperar aterrorizados que o esporão de bronze os aniquilasse. Um grupo que se agarrava a uma extensão de mastro desapareceu de vista quando
a proa se abateu sobre eles, destroçando a madeira que os mantivera à superfície; logo a seguir ouviram-se os gritos dos sobreviventes, que tinham sido empurrados
para os lados do navio e eram agora trucidados pelas pesadas pás dos remos, que se moviam a toda a velocidade.
Cato tentou ignorar os gritos, e olhou em redor. Voltou a avaliar o que se passava no Tridente, e ficou paralisado. A curta distância do navio de Macro, via-se a
proa de outro pirata que avançava rapidamente, à força de remos. Quando a tripulação do navio romano se apercebeu do perigo, os seus gritos de aviso escutaram-se
claramente, mesmo àquela distância. Os fuzileiros ainda combatiam a bordo do navio que tinham aprisionado com o corvo. Mas começavam a hesitar e a olhar para o seu
próprio navio, agora também em perigo. Com urros de triunfo, os piratas com quem estavam envolvidos aproveitaram a oportunidade para contra-atacar.
- Para ali! - Cato gritou sobre o ombro, apontando para o navio de Macro. - Dirige-te para ali!
Albino transmitiu a ordem ao homem do leme, e o Espartano, já agilizado pela perda de peso, virou de bordo, dirigindo-se aos três navios ainda encadeados e ao quarto
navio que se aproximava com a nítida intenção de acabar com o Tridente e a sua tripulação.
- Preparem as fundas! - Ordenou Cato aos seus homens, enquanto lhes indicava o alvo. - Apontem àqueles filhos da puta que se aproximam! Homens, dêem espaço
aos fundibulários!
O Espartano não estava a mais de duzentos passos do aglomerado de embarcações quando o navio pirata se enfaixou no casco do de Macro. O tremendo impacto provocou
um estrondo e fez o Tridente subir no ar, enquanto o cordame se desmantelava. Logo a seguir, o mastro rachou e desabou sobre o convés. A colisão fez cair pelo chão
todos os homens que estavam a bordo dos três navios presos, e deu-se um momento de silêncio enquanto eles se recompunham, levantavam, e retomavam os combates. Os
tripulantes do recém-chegado navio lançaram ganchos sobre o Tridente e começaram a forçar os navios a encostarem-se, enquanto um grupo numeroso se preparava para
a abordagem, brandindo as armas, impacientes por as poderem utilizar contra a tripulação e fuzileiros da birreme.
Cato virou-se e encheu os pulmões. Olhou através da grelha de ventilação no convés da trirreme, mal distinguindo as faces dos remadores lá em baixo.
- Força! Mais depressa, seus preguiçosos de merda! Mais depressa!
O batedor aumentou o ritmo, e os remadores esforçaram cada músculo, fazendo o Espartano saltar sobre a água e aproximar-se cada vez mais e mais depressa da confusão
à sua frente. De repente, Cato apercebeu-se de que a proa se estava a desviar dos outros navios, e sentiu uma onda de cólera que o fez virar-se para Albino e começar
a erguer o punho. Mas compreendeu num instante a ideia do trierarca, de contornar a popa do Tridente e abalroar o novo navio pirata pelo lado.
Entretanto, já estavam ao alcance das fundas, pelo que Cato gritou uma ordem.
- Fundas! Lançar! Dêem-lhes com força, rapazes!
O ar encheu-se do típico assobio das fundas, seguido pelo silvar dos projécteis que foram lançados sobre o mar num arco pouco pronunciado, e se abateram sobre os
piratas amontoados na proa do seu navio. O coro de impactos e de gritos e gemidos de dor foi claramente audível para os homens do Espartano, que responderam com
um clamor de cruel satisfação, enquanto disparavam nova rajada, que abateu mais alguns inimigos; um bom número deles tombou para o espaço entre os dois navios, onde
foram imediatamente esmagados. Mas Cato não teve tempo para continuar a observar. A trirreme já tinha contornado a popa do Tridente e ao seu esporão oferecia-se
o indefeso flanco do navio pirata. Alguns dos tripulantes deste observavam horrorizados a aproximação veloz do grande navio de guerra. Outros, com maior presença
de espírito, afastavam-se da área de impacto e tentavam proteger-se da chuva de projécteis que se abatia sobre o convés. À medida que a distância entre os dois navios
se reduzia rapidamente, Cato notou que podia olhar de cima para o inimigo, e cerrou os dentes, aguardando a colisão.
No último instante, o optio Félix virou-se e reparou que o seu centurião estava à proa da trirreme, e se debruçava para a frente. Saltou, agarrou Cato pelo braço
e puxou-o para trás com toda a força que conseguiu reunir. Enquanto os dois homens rebolavam pelo convés, as gastas tábuas elevaram-se com estrondo e fizeram tombar
hornens por todo o navio. O impacto empurrou Cato, fazendo-o bater com o capacete contra as vigas da proa. A terrível dor quase o fez perder os sentidos, mas a preocupação
com os seus homens venceu, e olhou em redor. A maior parte recompunha-se a pouco e pouco, recolhendo o equipamento e começando a dirigir-se para a rampa de abordagem.
Mas havia algumas baixas: homens que tinham chocado contra partes do navio e desmaiado, alguns com membros fracturados, e um coro ininterrupto de grunhidos e urros
de dor vindos da coberta, onde os remadores tinham sido cuspidos dos seus bancos.
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Félix já estava de pé, e estendeu a Cato um escudo.
- Senhor, fique com este. Agora, de pé.
Enquanto o centurião sacudia a cabeça, tentando afastar a dor, o optio despachava homens para o corvo. A trirreme tinha abalroado o navio pirata de esguelha, e na
parte de trás Minúcio já tinha posto os seus homens a lançarem ganchos para tentarem puxar o outro navio para o lado do seu. Cato endireitou-se e, erguendo o escudo,
aproximou-se com cautela da proa, e espreitou para baixo. O esporão tinha esmagado o casco do adversário, e tinha penetrado uns bons dois metros. A água borbulhava
e espumava ao precipitar-se pelo rombo. Sentiu um movimento à sua esquerda e baixou-se no preciso instante em que uma lança esbarrou no escudo, com um estalido metálico.
Os homens no castelo de proa do barco pirata já tinham recuperado do choque, e um grupo deles preparava-se para enfrentar os novos oponentes, enquanto os outros
se precipitavam para o Tridente. O trierarca inimigo devia ser um tipo com cabeça, compreendeu Cato. Percebera que tinha de vencer a primeira batalha antes de enfrentar
a trirreme. Enquanto Cato observava os homens a saltarem para o convés da birreme romana, apercebeu-se da presença de Macro e de um punhado dos seus homens, que
lutavam pelas vidas num círculo apertado, junto ao mastro.
- Ponham a prancha de embarque no sítio! - Berrou, por cima do ombro.
Os homens de Minúcio continuavam a puxar os cabos, fazendo a trirreme girar e aproximar-se do navio pirata. Os soldados que manejavam o corvo conseguiram por fim
descer a rampa, projectando-a sobre as águas, até que a sua sombra tombou sobre o convés do outro navio.
- Larguem! - Gritou Félix.
Assim que os homens libertaram o travão, o pesado espigão na face inferior da rampa caiu sobre as madeiras do navio inimigo, perfurando-as com estrondo. Lançando
brados de encorajamento, os fuzileiros subiram para a rampa e correram ao encontro do inimigo. Foram recebidos por alguns dardos e setas, mas os projécteis embateram
nas protecções laterais da rampa e não provocaram baixas. Félix mantinha-se na entrada da rampa, fazendo subir mais homens.
- Vamos! Vamos! Seus preguiçosos de merda! Não vai sobrar nenhum daqueles peçonhentos para vocês! Vá!
Cato empunhou a espada e juntou-se à corrente de homens que atravessavam para o navio inimigo. No fim da rampa viu-se obrigado a dar um pulo para o convés, onde
aterrou de escudo aperrado e espada em riste, olhando em volta. Vários dos seus homens tinham-se dirigido à vante, passando à espada qualquer pirata que encontrassem
pelo caminho. Virou-se para a popa. Um grupo de homens, todos de aspecto poderoso e bem equipados, aguardava a oportunidade de enfrentar os romanos.
- Vocês! - Cato virou-se para os homens que o tinham acompanhado pela rampa. - Sigam-me!
Avançaram para a ré, devagar, escolhendo o caminho sobre o cordame caído e emaranhado. As grades de ventilação estavam abertas, e ao olhar para a coberta, Cato reparou
que os remos tinham sido abandonados, já que toda a tripulação se tinha armado e atirado contra os romanos a bordo do Tridente. Agora a parte inferior do navio estava
repleta de água, que reluzia enquanto o mar continuava a precipitar-se para o interior pelo buraco feito no casco. Os oponentes cerraram fileiras, apresentando aos
romanos uma frente de escudos redondos. Não havia tempo para formações e tácticas, pelo que Cato se limitou a encher os pulmões e dar uma ordem simples e clara.
- A eles! - Baixou a cabeça, recolheu-se por trás do escudo e lançou-se sobre os piratas.
Os homens à sua volta imitaram-no, e o ar encheu-se rapidamente de gritos e brados, e dos sons metálicos do cruzamento das armas. O escudo de Cato veio de encontro
a ele quando um dos piratas o atingiu, enquanto soltava um urro de raiva. A luz refulgiu na lâmina que se erguia sobre ele, uma pesada espada curva que pretendia
abater-se sobre ele e rachar-lhe o capacete. Desviou o golpe com o gládio e, antes que o adversário se recompusesse, agrediu-o com o punho da espada, fazendo o metal
embater nas faces arreganhadas do pirata. A cabeça do homem foi atirada para trás com um grunhido, e gotas de sangue voaram pelo ar, devido ao profundo golpe que
sofrera na testa. Cato aproveitou imediatamente a ocasião para o golpear de novo, fazendo o gume da espada atingi-lo no nariz e nos olhos. O pirata soltou um grito
e tombou contra a amurada. O centurião ergueu o escudo e empurrou o inimigo para fora do navio, fazendo-o cair para o mar, após o que procurou novo adversário.
Um tipo atarracado, de cabelo louro por baixo de um capacete de couro, saltou-lhe ao caminho, agachado e avaliando-o com olhos semicerrados. Ergueu a espada e aproximou-se
devagar. Cato preparou-se para um ataque selvático. Mas, ao invés, o pirata deteve-se, franziu o sobrolho e olhou para o próprio peito, onde surgira a ponta ensanguentada
de uma espada, rompendo-lhe a túnica de cabedal. As pernas do homem dobraram-se, e ele deslizou para o solo. Por trás surgiu um fuzileiro, sorrindo satisfeito enquanto
recuperava a espada das costas do outro. Cato abriu a boca para lhe agradecer, mas nesse instante uma outra lâmina cruzou velozmente o ar e cortou o pescoço do homem,
lançando a cabeça para longe. Ainda a fazer rodar a espada, um pirata saltou para a frente do jovem, com um esgar de triunfo.
Cato lançou o escudo para cima, obrigando a lâmina do outro a embater na orla e a fazer faíscas, mas o peso do homem empurrou-o contra uma travessa de reforço da
popa. Enquanto o pirata recuperava a espada e recuava um passo, os olhos do centurião percorriam rapidamente as redondezas, descobrindo horrorizado que era o único
romano naquela parte do navio. Todos os homens que o tinham seguido a bordo jaziam no convés, numa pilha ensanguentada, misturados com cadáveres inimigos. Agora,
dois piratas tinham o centurião só para eles.
O tipo da espada longa, que continuava a fazer rodopiar sobre a cabeça, era gordo e de pele escura. A curta distância estava outro dos bandidos, este magro e bamboleante.
Tinha uma armadura articulada, e empunhava um pequeno escudo redondo e uma espada ligeira, curva, que pingava sangue sobre as tábuas encardidas do convés. Os olhos
de Cato saltavam de um para o outro enquanto esperava, agachado, por um novo ataque. O magro soltou uma ordem e a espada do outro cortou o ar, dirigida à cabeça
do romano. Dobrando os joelhos, o jovem baixou-se e a lâmina foi-se cravar profundamente no mastro da popa, com tanta potência que o pirata se viu obrigado a um
esforço violento para recuperar a arma. Mas antes que Cato pudesse tirar partido da situação, o mais novo dos adversários avançou, manejando velozmente a espada
numa sucessão de golpes que obrigou o centurião a uma defesa empenhada. Quando o seu camarada ficou fora do alcance do romano e apanhou outra espada do chão, o pirata
mais novo afastou-se, ofegante.
Cato sabia que estava numa situação desesperada, e pela mente passou-lhe a ideia de que a sua única possibilidade de salvação consistia em saltar borda fora. Porém,
com todo o equipamento que envergava, percebeu que seria imediatamente arrastado para o fundo do oceano. Portanto, empunhou a espada com determinação, ergueu o escudo,
e esperou pelo ataque seguinte.
- Senhor! - A voz de Félix conseguia distinguir-se sobre o ruído de fundo dos combates nos outros navios. - Senhor, baixe-se!
Cato e os dois homens que o enfrentavam ouviram o silvo no mesmo momento, mas só o romano compreendeu o perigo a tempo de reagir, lançando-se para o convés e cobrindo-se
com o escudo. Uma nuvem de projécteis abateu-se sobre eles, atingindo a madeira e os corpos dos dois piratas. Os dois homens tombaram para o solo, gemendo.
- Aguentem! - Gritou Félix aos seus homens.
Cato esperou um momento para se assegurar de que não vinha a caminho outra rajada, e levantou-se. Olhou para os dois homens no chão. O maior já estava morto, com
o crânio esmagado por um impacto directo. O seu jovem companheiro tinha sido atingido nas costas, o que lhe esmagara
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a omoplata e algumas costelas, e o sangue corria-lhe do canto da boca enquanto tentava respirar. Fitou o romano com raiva, e as mãos procuraram a espada no convés.
Cato deu um pontapé na arma e debruçou-se sobre ele.
- És tu o comandante? - Perguntou, em grego.
O ferido não lhe respondeu, limitando-se a encará-lo com uma expressão de ódio, e depois cuspiu-lhe na face, uma mistura de saliva e sangue. O centurião limpou o
rosto.
- Como queiras.
Levantou a espada para acabar com ele, e o pirata cerrou os olhos e estremeceu. Cato sorriu e virou-lhe as costas, dirigindo-se de novo à rampa, onde os últimos
dos fuzileiros de Minúcio saltavam para o navio inimigo. Estavam agora quase duas centúrias de a bordo, e o espaço não abundava; Cato teve de abrir caminho para
encontrar Minúcio e o optio Félix.
- Temos de nos despachar. Este navio está a afundar-se e duvido que os outros aguentem muito tempo. Vamos!
Avançou para a proa, onde um grupo de fuzileiros estava envolvido numa escaramuça com os piratas que ocupavam o convés do Tridente, embora nenhuma das partes mostrasse
vontade de atravessar o espaço que as separava.
- Dêem espaço à fileira da frente! - Berrou Cato, empurrando os homens que se aglomeravam. - Para trás!
Assim que houve espaço suficiente para os homens na amurada mexerem os braços, Cato pegou num dardo e lançou-o contra os piratas, dando o exemplo.
- Usem os dardos! Limpem-me aquele espaço!
Os fuzileiros que ainda tinham dardos apontaram e lançaram; a tão curta distância, as lanças trespassaram todos os inimigos que não tinham tido o senso de recuar.
Assim que o convés ficou livre de inimigos, Cato trepou para a amurada, equilibrou-se e saltou, caindo desajeitadamente no convés do Tridente. Endireitou-se, levantou
o escudo e a espada e chamou os outros.
- Venham daí!
Não ficou à espera de que eles se lhe juntassem; correu na direcção dos homens que combatiam em torno da base do mastro. Alguns dos piratas aperceberam-se da nova
ameaça e viraram-se para a enfrentar. Por trás deles, a poderosa voz de Macro fazia-se ouvir, encorajando os seus homens e lançando insulto atrás de insulto sobre
os oponentes. Cato não evitou um sorriso. Depois cerrou os dentes, quando o seu escudo esbarrou contra o do pirata mais próximo, num choque que lhe provocou uma
onda de dor pelo braço acima. Deixou que o escudo fosse para trás, ao mesmo tempo
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que dava uma estocada, ultrapassando uma desajeitada tentativa de defesa e cravando a ponta do gládio no estômago do adversário. Puxou a lâmina para a libertar e
em simultâneo trouxe de novo o escudo para a frente, derrubando o pirata para o lado e dirigindo-se de imediato a um novo inimigo, um brutamontes com um machado,
que lançou um estridente grito de guerra enquanto avançava para o centurião. O machado abateu-se sobre o escudo, desequilibrando Cato pelo tempo suficiente para
que o gigante preparasse novo golpe, desta vez por baixo, dirigido directamente às pernas do centurião. Este viu-se forçado a dar um salto para trás, esbarrando
nos seus próprios homens, e o gigante avançou confiante, com um urro de triunfo antecipado, enquanto erguia de novo a arma, no intuito de a fazer descer sobre a
sua vítima. Cato já não tinha para onde recuar. Por instinto, agachou-se, baixou a cabeça e carregou, passando sob o movimento do outro e fazendo o capacete embater-lhe
com toda a força contra o rosto, deixando-o inanimado.
Os fuzileiros progrediram rapidamente, golpeando e destroçando as fileiras inimigas, e a ferocidade do seu ataque quebrou o espírito de resistência dos piratas.
Começaram por recuar lentamente, mas depressa se viraram e fugiram, na vã esperança de encontrar algum refúgio. Aqui e ali alguns minúsculos grupos combatiam ainda,
costas com costas, ou contra a amurada. E morriam onde lutavam, sem qualquer misericórdia. Alguns depuseram as armas e renderam-se, pedindo clemência, mas os romanos
não estavam com disposição para fazer prisioneiros, e também os corpos desses homens se juntaram às pilhas dos seus camaradas que tinham morrido a lutar.
Cato afastou-se da confusão para recuperar o fôlego e avaliar a situação. Já só um punhado de inimigos dava luta, encurralado junto ao mastro, entre os seus homens
e os sobreviventes da centúria de Macro. Quando o último pirata foi abatido, Cato abriu caminho por entre os soldados, tentando perceber se Macro ainda estava vivo,
ansioso por rever o amigo.
A cena que se via junto ao mastro era macabra. Corpos retorcidos, romanos e piratas, amontoavam-se no convés pintado de vermelho; o sangue e as entranhas deslizavam
na direcção das aberturas na amurada. Não havia mais do que uma dúzia de fuzileiros, feridos e exaustos, no apertado círculo de resistentes em torno da base do
mastro. Entre eles via-se Macro, salpicado de sangue, olhando em redor com ar selvagem. Então avistou Cato, e pouco a pouco um sorriso animou-lhe as feições.
- Porra, porque é que demoraste tanto?
O alívio da tensão era contagioso, e Cato não resistiu a uma gargalhada.
- Caraças, se é assim que me agradecem, para a próxima não vale a pena preocupar-me.
- Será melhor que o faças, caralho.
Cato limpou a lâmina na capa de um dos piratas abatidos, e embainhou a espada; depois, apertou o braço do amigo.
- Feliz por o ver com vida, seja como for. Agora, temos de nos pôr
a andar.
Macro fez uma careta de espanto.
- A andar?
- Sim, abandonar o navio.
- Mas se acabámos de o recuperar?
- Está-se a afundar. Aliás, estão os três. Vamos. - Sem esperar por uma resposta, Cato virou-se para os seus homens e gritou a plenos pulmões. - Rapazes,
de volta ao Espartano! Depressa!
A poucos passos, avistou um dos fuzileiros a revistar um cadáver inimigo ricamente adornado; irritado, dirigiu-se ao homem e afastou-o a pontapés.
- Não há tempo para isso. Optios! Ponham os homens a mexer!
Recuaram para a zona onde o esporão do navio pirata estava cravado no casco do Tridente. Atravessaram para o outro navio, ajudando os camaradas feridos, mas poucos
homens conseguiam atravessar a fenda em simultâneo; Cato observava, a sua frustração a aumentar, batendo com a mão na perna. Macro abanou a cabeça, e olhou para
o amigo com um sorriso irónico.
- E agora, o que é que te está a preocupar dessa maneira?
Um som agudo espalhou-se pelo ar, e Cato sentiu o convés a estremecer debaixo dos pés, obrigando-o a firmar-se melhor. Acenou na direcção da embarcação que o Tridente
abalroara.
- Ali! Era aquilo que receava.
O convés do navio já era presa das vagas, e no momento seguinte a amurada desapareceu sob a ondulação, enquanto o navio se afundava e começava a arrastar consigo
a proa do Tridente. As tábuas da birreme romana rangiam devido ao imenso peso que se viam obrigadas a suportar, e os fuzileiros, adivinhando o fim do navio, saltavam
à pressa para o convés do outro navio pirata. Mas nesse momento, enquanto os homens se apinhavam na passagem estreita, ouviu-se um estalido forte na proa, e o convés
do Tridente estilhaçou-se logo por trás do mastro de vante, como se um punho gigante se tivesse erguido do fundo do oceano e o tivesse rasgado. A água precipitou-se
sobre os restos do navio, e o convés inclinou-se perigosamente, obrigando os homens ainda a bordo a procurarem um lugar onde se pudessem agarrar. Cato largou o escudo
e atirou-se à amurada, agarrando-se
com toda a força. Ainda havia feridos espalhados pelo convés, e os seus gemidos de agonia transformaram-se em gritos de terror perante o funesto destino que subia
pelas tábuas ao seu encontro.
Por momentos, Cato deixou-se envolver pelo mesmo terror gélido. Viu então Macro, também agarrado à amurada, a curta distância. O amigo piscou-lhe o olho.
- Bom, parece-me que é chegado o momento de desembarcar.
Em volta dos dois centuriões, já só restava um punhado de fuzileiros; um a um, foram saltando através do abismo, caindo nos braços esticados dos camaradas que rapidamente
os puxavam para a segurança. Enquanto Cato e Macro aguardavam que o último dos seus homens deixasse o que restava do Tridente, ouviu-se um grito de alarme, vindo
do convés do navio pirata. Cato olhou nessa direcção e compreendeu que também aquela embarcação se afundava rapidamente, arrastada pelo peso combinado das outras
duas. A proa mergulhava nas águas, e já quase estava ao nível das ondas. Nesse instante sentiu que uma vaga o molhava, ao percorrer o convés da birreme.
- Oh, merda. - Murmurou. - Não nos vamos safar.
XX
- Não fiques aí especado, porra! - Gritou Macro. - Salta!
Cato observou a forma como o amigo trepava para a amurada, se equilibrava e punha de pé, oscilante. Logo a seguir Macro lançou-se sobre o mar e embateu contra o
casco do navio pirata. As mãos procuraram um apoio, mas imediatamente alguns dos fuzileiros o agarraram pelos braços e o puxaram para o convés. Entretanto, a água
já chegava à cintura de Cato, e ele sabia que o Tridente estava apenas a momentos de se precipitar para o fundo do oceano.
- Senhor! - Gritou uma voz por trás dele.
Olhou sobre o ombro e avistou um jovem fuzileiro no convés já inundado, agarrado com uma mão à amurada. O outro ombro do homem tinha sido desfeito por um golpe profundo,
e o braço pendia-lhe, inútil e preso apenas por uns restos de tendões. Olhou para Cato, com uma expressão de terror inconfundível. Mas era já tarde de mais para
o ajudar. Sob o olhar do centurião, o mar apossou-se do Tridente, e o jovem fuzileiro desapareceu num remoinho de tons carmesim. Uma tremenda vontade de viver apossou-se
de Cato. Apressou-se a trepar para a amurada e a atirar-se para o vazio, na direcção do navio pirata. O impacto fê-lo perder o fôlego. Os dedos procuraram algo a
que se agarrar no casco, até que uma mão se fechou sobre o seu pulso e braços poderosos o puxaram sobre a amurada e o lançaram no convés.
O peito de Macro arfava quando olhou para Cato.
- Para a próxima, não fiques a ver a paisagem. Quando eu disser para saltares, salta.
- Pensava que tinha de perguntar até que altura.
Macro encarou-o.
- Olha, miúdo, há lugares e momentos para esses comentários espertinhos. Mas não é aqui, nem agora. Vamos. - Pegou em Cato pelo braço e levantou-o.
O jovem olhou para o lado e viu a silhueta distorcida do Tridente a
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desaparecer debaixo de água. Durante um momento, ouviu-se um gemido profundo, seguido por estalidos bem nítidos, já que a birreme que se afundava continuava presa
ao esporão do barco pirata, e o convés deste estremeceu sob os pés de Cato. Finalmente, com um brutal estrondo, a parte lateral do casco da birreme cedeu. O convés
ergueu-se debaixo dos romanos, lançando vários pela borda fora, e o Tridente precipitou-se para o abismo negro do oceano. No meio dos destroços via-se um punhado
de homens, que pediam ajuda aos gritos. Macro puxou o amigo, e os dois centuriões seguiram os fuzileiros até à rampa de abordagem, por onde os homens seguiam ansiosamente,
a caminho da segurança a bordo do Espartano. Mesmo depois de libertado do peso do Tridente, o navio dos piratas estava a afundar-se rapidamente, já que a água continuava
a invadi-lo através do rombo que o segundo navio romano lhe provocara, e já mal se movia sob a influência das vagas. Sob as grelhas de ventilação, a água subia rapidamente.
O navio sacudiu-se de repente, quando uma vaga lhe galgou a ré. Borbulhando e espumando, a água escorreu para o lado esquerdo, inclinando ainda mais o convés. Com
a mão livre, Macro agarrou-se à base do mastro de vante.
- Vai-se virar. - Apercebeu-se Cato. - Depressa! Temos de sair
daqui.
Macro olhou-o espantado.
- Sair?
- É a nossa única hipótese. - Cato fincou um pé contra a base do mastro e desapertou apressadamente o cinto que lhe rodeava a cintura. Depois, gemendo com
o esforço, tirou a pesada armadura peitoral e lançou-a sobre o convés, onde escorregou no plano inclinado e mergulhou na água.
- Tire a armadura!
Enquanto Macro se livrava das armas e do equipamento pesado, Cato manteve-se agarrado ao mastro de vante. Os fuzileiros já tinham regressado ao Espartano, e esforçavam-se
por recolher a torre de abordagem para bordo da trirreme e afastá-la do navio pirata condenado.
- Pronto! - Macro atirou para o chão a sua cota de malha. - Eu vou primeiro. Tu segues-me, e saltamos para fora desta banheira antes que ela se lembre de
se virar connosco ainda em cima dela.
As madeiras começaram a gemer em protesto, à medida que o ângulo de inclinação do convés aumentava. Macro deixou-se escorregar ao longo da amurada, até atingir a
superfície da água. Apoiou-se nas tábuas já submersas, virou-se para Cato e preparou-se para o amparar quando chegasse lá abaixo. O jovem acenou, engoliu em seco,
nervoso, e deixou-se ir. Acelerou pelo declive e caiu mesmo em cima de Macro.
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Rapidamente, os dois treparam à amurada, inspiraram, e saltaram para o meio das ondas. O mar fechou-se sobre a cabeça de Cato, e logo os ouvidos se lhe encheram
dos sons de pânico que lhe saíam da garganta, enquanto lutava para regressar à superfície. Apercebeu-se de um vulto próximo, e uma mão forte agarrou-lhe o braço
e puxou-o para cima, para a luz do dia.
Os dois amigos emergiram e, quase em uníssono, esforçaram-se por recolher uma boa golfada de ar. A curta distância estava o casco gasto do Espartano que visto da
água parecia tão alto como um edifício. O som da água em cascata era ensurdecedor e, ao notar uma sombra sobre si, Cato olhou em volta e avistou a forma brilhante
do navio pirata, precisamente quando este rolava sobre si mesmo e se precipitava sobre eles.
- Nade! - Balbuciou, enquanto tentava não engolir água. - Nade com força!
Os dois centuriões dirigiram-se à trirreme com braçadas atabalhoadas e prejudicadas pelas vestes e botas que ainda tinham calçadas. O trovão da água a borbulhar
assolava-lhes os ouvidos, e por momentos Cato sentiu que o mar o puxava de volta ao navio condenado, mas conseguiu libertar-se da corrente e nadou desesperadamente
para se manter a par de Macro. Finalmente, com uma tremenda erupção de ar e espuma, o navio pirata rolou e virou-se, produzindo uma vaga que os empurrou na direcção
da trirreme. Cato espreitou para trás e avistou o casco reluzente que se erguia sobre a superfície do mar, fazendo pensar no dorso de um grande monstro marinho,
coberto de cracas. Macro cuspiu a água salgada que lhe enchera a boca, e sacudiu a cabeça de forma a afastar os caracóis encharcados que lhe pendiam sobre a testa.
- Foda-se! Foi por pouco.
- Muito pouco mesmo. - Respondeu Cato, dando vigorosos pontapés sob a superfície, na tentativa de manter a cabeça tão afastada da água quanto possível, e
cuspindo também a água que sorvera. - Agh! Esta porcaria só serve mesmo para os peixes.
Ergueu um braço e agitou-o na direcção das faces que povoavam a amurada da trirreme.
- Uma corda! Lancem-nos uma corda, depressa!
Agitando furiosamente os braços e as pernas, Macro e Cato mal conseguiam flutuar, devido ao peso das suas túnicas de lã ensopadas. Por fim, uma corda surgiu a serpentear
pelo ar e caiu na água a curta distância. Macro esticou o braço na sua direcção, conseguiu apanhá-la com as pontas dos dedos, e depressa a agarrou com firmeza.
- Puxem devagar! - Gritou para o navio; a corda começou a esticar-se e a puxá-los para bordo. Já tinha sido colocada uma rede na face da
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embarcação, e dois fuzileiros tinham descido por ela e esticavam os braços na direcção dos oficiais que se debatiam entre as vagas.
- Porra, do que é que estão à espera? - Berrou Macro. - Saltem cá para dentro e dêem uma ajuda!
Os homens hesitaram um momento, mas depois largaram a rede e lançaram-se à água, tentando ajudar Macro e Cato a agarrarem-se à rede.
Poucos instantes depois, os dois centuriões descansavam no convés, tentando recuperar o fôlego, enquanto a água formava poças em seu redor. Albino estava por perto,
abanando a cabeça com ar de gozo.
Cato afastou o cabelo emaranhado da frente dos olhos e tentou perceber o que se passava com os outros navios em redor do Espartano, muitos dos quais ainda envolvidos
em combates. Aparentemente, só pouco mais de metade das birremes ainda navegava, ou pelo menos fazia-o em mãos romanas. Um dos navios dos piratas não passava de
uma gigantesca fogueira flutuante, coberta por espesso fumo negro. Outro soçobrava, prestes a ser tragado pelo mar. Os outros abandonavam apressadamente os combates
e seguiam por entre os destroços flutuantes e os sobreviventes da frota romana, a caminho do mar aberto. A razão para esta fuga era evidente: o navio do prefeito
aproximava-se do coração da batalha, seguido por todos os navios pesados que o tinham acompanhado. A uma distância segura, via-se a trirreme de Telémaco, que bordejava
a zona onde se concentravam os navios romanos e se dirigia ao encontro da pequena força de piratas que tinha destroçado as sobrecarregadas birremes inimigas.
Cato massajou a testa.
- Graças aos deuses, acabou.
- Nem pensar nisso. - Retorquiu Albino, calmamente. - Nem de perto. Eles estão simplesmente a reagrupar-se. Vão manter-se em redor da esquadra, à espreita
de uma possibilidade para um ataque rápido, como lobos em volta de um rebanho. Se não chegarmos à costa antes do anoitecer, vão aproveitar a escuridão para destruir
as embarcações mais frágeis, mesmo nas nossas barbas.
O vigia lançou um brado.
- Senhor, o navio-almirante está a fazer sinais!
Albino olhou para cima, à espera de novas indicações do homem, que esforçava a vista para perceber os sinais.
- Então?
- Todos se devem agrupar em redor do Hórus.
Enquanto os navios de maiores dimensões mantinham as posições, baloiçando sobre as ondas, os mais pequenos aproximaram-se à força de remos, acolhendo-se à protecção
da quinquerreme. O trierarca do Hórus estava no castelo da proa, com um altifalante junto à boca, e começou a
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desfiar uma série de ordens. Estas foram passadas de navio para navio, e quando todos içaram o pendão que assinalava a recepção, foi dado o sinal para as executarem.
O navio-almirante tomou a dianteira e as trirremes assumiram as suas posições, criando a forma de um diamante espalhado sobre o oceano. As embarcações mais pequenas
protegeram-se no interior do losango, quase todas evidenciando marcas da batalha a que mal tinham sobrevivido: o cordame danificado, as velas rasgadas, nalguns casos
um eloquente rasto vermelho sobre as águas.
Depois de formar o comboio, a frota rumou lentamente para a distante costa ilírica, ainda invisível para lá do horizonte. Os remadores tinham ficado exaustos com
as manobras exigidas durante a batalha, pelo que os navios tinham içado as velas, enquanto os respectivos trierarcas rezavam para que se mantivesse a brisa de norte.
Depressa os piratas se organizaram para a perseguição ao inimigo ferido, e as suas escuras velas triangulares mantiveram-se a par da frota romana, nos flancos, espreitando
qualquer oportunidade de lançar um ataque, tal como previra Albino. De vez em quando uma das suas embarcações alterava o rumo repentinamente e dirigia-se a um espaço
aberto entre duas trirremes, tentando penetrar nas defesas romanas. Mas agora a vantagem estava do lado destes, e a sua vigilância constante permitia às trirremes
fechar imediatamente qualquer brecha que surgisse e que os piratas pudessem explorar.
À medida que o dia avançava, o céu clareava, acabando por se encher de um sereno e imaculado azul, e a brisa diminuiu de intensidade, fazendo com que as duas frotas
se arrastassem pelo oceano. Por duas vezes os piratas conseguiram penetrar no perímetro romano. Da primeira, duas das suas ágeis naves conseguiram iludir as pesadas
trirremes e lançarem-se em simultâneo sobre uma birreme já muito danificada, que navegava um quarto de milha atrás das outras. Foi abordada por ambos os flancos,
a tripulação liquidada, tudo o que havia de valor a bordo saqueado, e num instante o navio foi incendiado. Os piratas escapuliram-se rapidamente, evitando a trirreme
que voltara atrás numa tentativa de socorrer o navio atacado. Pior ainda, em consequência dessa manobra, a trirreme abriu uma passagem que logo foi aproveitada
por outros navios inimigos, que entraram por ela e abalroaram outra embarcação romana, antes de se verem forçados a retirar. Porém, os danos provocados eram sérios,
e os romanos nada mais puderam fazer do que recolher a tripulação e todo o material que a prudência lhes permitia, e abandonar tudo o mais para ir ao fundo com o
próprio navio.
Do convés do Espartano, Cato e Macro assistiram, tal como toda a tripulação, ao desenrolar do drama. Apesar das pesadas perdas que os
romanos tinham sofrido às mãos dos piratas, Cato não pôde deixar de admirar a forma como Telémaco preparara o ataque. As informações que recolhera tinham sido precisas,
e tinham-lhe permitido atacar a frota de Vitélio no momento em que esta estava mais vulnerável; Cato estava quase certo de que isso fora obra de um traidor. Que
alternativa poderia explicar a confiança com que os piratas manobravam, quando o normal seria que se sentissem ameaçados pelo superior poderio da marinha imperial,
em navios e homens? Muito antes de terem avistado a frota romana, estavam já conscientes da vantagem que possuíam. E ainda agora espreitavam qualquer ocasião de
avançar e atacar, sem se darem ao trabalho de esperar pela noite, quando as trirremes se tornariam impotentes para deter os vultos invisíveis que passariam por entre
as filas de navios romanos.
A admiração que sentira por Telémaco depressa foi esquecida quando Cato se pôs a matutar nas consequências desastrosas daquele recontro. Tinham sido perdidas centenas
de homens, bem como a maior parte dos abastecimentos e do equipamento necessário ao lançamento da campanha terrestre que o prefeito planeara para depois do desembarque
na costa da Ilíria. Era possível que as baixas já fossem suficientes para obrigar ao cancelamento da operação.
Assim que esse pensamento lhe surgiu na mente, Cato afastou-o. Conhecia Vitélio demasiado bem, e sabia que o prefeito não aceitaria um tamanho revés para a sua reputação.
Outros oficiais superiores já tinham sido exilados, e até mesmo executados, por falhanços de menor expressão. Vitélio não tinha, portanto, qualquer escolha. A campanha
teria de prosseguir, mesmo que agora as probabilidades estivessem declaradamente contra ele. O prefeito levaria os seus homens à vitória, ou então à derrota e à
morte. Eram esses os únicos destinos ainda possíveis a todos os que seguiam naquele comboio; enquanto, em silêncio, via o fogo a consumir a birreme que ficara para
trás, Cato sentiu que um pressentimento funesto e pesado lhe tomava conta do coração.
A sua lúgubre disposição continuou a piorar enquanto a tarde passava, e quando finalmente o vigia gritou o avistamento de terra, Cato não pôde deixar de concluir
que o desembarque seria apenas o início de uma fase ainda mais perigosa da campanha.
XXI
Vitélio ergueu o dedo de forma ameaçadora.
- Centurião Cato, que raio de brincadeira foi aquela?
- Senhor? - Cato perfilou-se em frente à secretária do prefeito, na tenda que lhe servia de quartel-general. Em redor, os outros oficiais estavam sentados
nos bancos e observavam com atenção o confronto que se adivinhava.
- Não te armes em parvo comigo, rapaz. Há bocado, em plena batalha, fizeste com que metade das minhas trirremes abandonasse a formação.
- Senhor, tivemos de agir para salvar as embarcações ligeiras. O inimigo estava a dizimá-las.
- Isso até pode ser verdade, mas custaste-nos a possibilidade de encurralar o Telémaco, e de terminar esta campanha logo à primeira.
- Senhor, não podemos ter a certeza de que ele estava a bordo daquele barco. Parece-me que o estava apenas a usar como isco para afastar os nossos melhores
navios do grosso da frota.
- Centurião, isso não passa de especulação. Por acaso já te passou pela cabeça que o ataque às birremes podia ter sido uma artimanha para que a protecção
ao meu navio fosse descurada? Podias ter posto a minha vida em risco.
Cato encolheu os ombros.
- A guerra é um risco para todos nós, senhor. E, de qualquer maneira, o Hórus e os outros navios que o acompanhavam teriam sido capazes de enfrentar qualquer
ataque que surgisse. Na minha opinião, o maior perigo naquele momento era o que ameaçava as nossas birremes.
Vitélio olhou-o, indignado.
- Na tua opinião? Centurião Cato, isto não é um grupo de debate. É a marinha imperial. Obedeces às ordens dos teus superiores, não tens direito a criar as
tuas próprias ordens.
- Peço perdão, senhor, mas limitei-me a mostrar espírito de iniciativa.191
E não recebemos nenhuma contra-ordem. Além disso, se as trirremes não tivessem acorrido em auxílio das embarcações ligeiras, as nossas perdas teriam por certo sido
ainda mais pesadas. - Cato fez uma pausa para dar maior ênfase às suas últimas palavras. - Mais pesadas do que foram.
Os lábios de Vitélio cerraram-se, formando uma linha fina; ao olhar em redor, notou que Macro e a maior parte dos outros oficiais na tenda davam sinais inequívocos
de concordância com o jovem centurião.
O confronto foi interrompido quando se ouviu o guarda no exterior da tenda a interpelar alguém que se aproximava. Logo a seguir, as abas da tenda foram afastadas
por um escrivão, que entrou com um molho de ardósias debaixo do braço. Empertigou-se, marchou até junto do prefeito e fez a saudação regulamentar.
- Senhor, a lista das baixas. - Passou a Vitélio uma das placas, e este acenou a Cato para que se sentasse. Enquanto o prefeito passava os olhos pelos números
inscritos na cera, Cato e os outros oficiais aguardaram em silêncio. Estavam todos exaustos. Mesmo depois de os navios sobreviventes terem aportado à baía ao fim
da tarde, não tinha havido tempo para descansar. A costa arenosa prolongava-se em curva por mais de duas milhas, e só nos limites dessa extensão é que a praia dava
lugar a formações rochosas que desenhavam promontórios. Para o interior, a terra estava coberta por arbustos e árvores de pequeno porte durante algumas centenas
de metros, e depois subia abruptamente, numa cadeia de colinas arborizadas que se estendia ao longo da costa, pelo menos tanto quanto o olhar conseguia alcançar.
A pequena distância ficava a abandonada povoação de Birnísio, que agora pouco mais era do que um conjunto de pilhas de rochas.
Enquanto as trirremes ancoravam a curta distância da margem, os navios de menor calado tinham sido levados até à praia e tinham começado imediatamente a descarregar
mantimentos e equipamento de guerra. A maior parte dos fuzileiros tinha sido colocada sob o comando do centurião Macro e tinha dado início à penosa tarefa de edificar
um campo fortificado em redor da zona de desembarque. Ao invés dos homens da legião, os fuzileiros tinham pouco treino na preparação de fortificações, e Macro dava-lhes
ordens com cada vez maior exasperação e má vontade. Trabalharam até muito depois do pôr-do-sol, concluindo um arremedo de fosso defensivo e muralha à luz dos archotes.
Para lá dos fuzileiros que suavam na construção, tinha sido disposta a alguma distância uma linha de piquete, que esperava na escuridão, deitando olhares ansiosos
em redor, sempre no temor de que os piratas renovassem os seus ataques, agora em terra.
Assim que as trirremes tinham lançado ferros, à vante e à ré, e se tinham colocado numa linha paralela à margem, Vitélio dera ordens para que a artilharia fosse
instalada nos navios, e cobrisse a zona de aproximação
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pelo mar. Qualquer navio pirata que tentasse atacar a frota romana teria de " enfrentar o fogo de dezenas de catapultas e de alguns pesados onagros. Sofreria pesadas
baixas muito antes de conseguir aproximar-se das trirremes. Portanto, Telémaco manteve as suas forças à distância, limitando-se a observar os movimentos dos romanos
até ao anoitecer. Nessa altura, quando os últimos raios do Sol se extinguiam no horizonte, a frota pirata afastou-se e seguiu um rumo paralelo à costa, deixando
o inimigo ferido a avaliar o custo da refrega.
O prefeito Vitélio pousou a ardósia que estivera a ler, e fixou o olhar no tampo da mesa. A expressão pesada nas feições do aristocrata revelava claramente o seu
desespero. Cato quase sentiu pena do homem, antes de recordar que o desastroso desenlace do recontro naval fora da inteira responsabilidade do prefeito. As embarcações
ligeiras nunca deveriam ter sido sobrecarregadas com homens e equipamento; agora, tudo isso jazia no fundo do oceano. Se tivessem utilizado um comboio de navios
de transporte para levar todo o material necessário à campanha, o inimigo teria sido facilmente mantido à distância. A travessia teria sido mais demorada, mas esse
teria sido um preço ligeiro a pagar para poupar a esquadra ao desastre que agora enfrentava.
Enquanto divagava inutilmente sobre a forma como as coisas se poderiam ter passado, Cato apercebeu-se de que, de facto, nem toda a culpa era de Vitélio.A precisão
do ataque dos piratas tinha sido muito mais do que uma coincidência. Mesmo que a frota tivesse sido avistada por algum navio pirata ao deixar o porto de Ravena,
não teria havido tempo para tal notícia chegar aos ouvidos de Telémaco e para este organizar uma força para interceptar os romanos no preciso momento em que se apresentavam
mais vulneráveis. Alguém o tinha avisado com antecedência.
Vitélio suspirou e levantou-se.
- Como imagino que já sabem, asnotícias não são boas. Perdemos oito birremes, e outras duas estão muito danificadas, bem como uma das trirremes. Tem um grande
rombo, e terá de ser reparada nos estaleiros. Também perdemos a maior parte da artilharia e das máquinas de cerco. Felizmente, o grosso dos abastecimentos estava
a Bordo das trirremes, portanto não vamos morrer de fome. - Sorriu levemente, mas nenhum dos oficiais lhe respondeu, e o sorriso morreu-lhe nos lábios quando continuou,
anunciando em último lugar as piores novidades.
- Quase oitocentos homens se perderam com os navios em que vinham embarcados, e outros sessenta morreram a bordo dos navios que resistiram; oitenta e três
foram feridos...
Cato olhou em volta para os outros oficiais, e reparou que todos mostravam expressões de hostilidade. O custo em vidas fora terrível, e muitos
daqueles homens tinham perdido camaradas que conheciam há anos. Mas para Vitélio o custo era ainda mais alto, considerou Cato. Fora uma amarga derrota, e não haveria
maneira de o disfarçar no relatório que o prefeito tinha de enviar para Roma. Tinha no entanto pelo menos um mês para tentar rectificar a situação, o tempo que levaria
a enviá-lo, que ele fosse lido e avaliado no palácio, que uma resposta fosse preparada e um mensageiro enviado.
- Foi uma porra de um desastre. - Pronunciou uma voz, perfeitamente audível no meio do silêncio geral.
- Quem disse isso?
Ninguém se mexeu. Ninguém respondeu. Por momentos tudo pareceu paralisado, mas depois Minúcio pôs-se em pé.
- Fui eu, senhor. Apenas traduzi em palavras aquilo que todos nós pensamos. Os piratas deram-nos um tratamento completo, e circulam por aí rumores de que
fomos traídos.
- Traídos? - Vitélio ergueu o sobrolho. Se os homens andavam à procura de um traidor, talvez pudesse usar esse facto para se colocar numa posição mais vantajosa.
- Alguém nos vendeu, senhor. Disse-lhes onde é que nos podiam encontrar.
Ouviu-se um coro de assentimento, e Minúcio ganhou embalagem para prosseguir.
- Temos de encontrar esse filho da puta. E fazê-lo pagar pelo que nos fez, devagarinho e sem lhe negar qualquer tratamento que nos ocorra.
As cabeças moveram-se em concordância, e alguns dos mais afoitos lançaram ideias arrepiantes sobre o que deveria ser o destino do traidor, depois de descoberto.
Vitélio aproximou-se do braseiro, para que todos pudessem vê-lo bem à luz das chamas. Ergueu as mãos a pedir silêncio.
- Muito bem! Têm a minha palavra. Quando encontrarmos esse tipo, poderão tratar dele como quiserem, mas com uma condição.
A maior parte dos oficiais olhou-o com suspeição; Minúcio limpou a garganta.
- E qual será essa condição, senhor?
- Tem de me dar a vossa palavra de que a morte desse sacana será o mais dolorosa possível.
Os oficiais riram em coro, aliviados, e Minúcio anuiu solenemente, enquanto o ruído morria. Impôs-se então um silêncio expectante, enquanto Vitélio não continuava
a falar-lhes.
Macro interrompeu o silêncio.
- Senhor, o que vamos fazer agora?
- Prosseguimos de acordo com o planeado. - Respondeu o 194
prefeito, com firmeza. - Ainda temos navios suficientes para enfrentar os piratas.
- Não, senhor. - As cabeças viraram-se para Albino. O trierarca levantou-se de forma a ser claramente visto e ouvido. - Precisamos de mais navios. De birremes.
- E por que razão? - Respondeu Vitélio, friamente. - Por aquilo que vi hoje, diria que navios desse género são piores do que inúteis.
Albino abanou a cabeça.
- Senhor, essa não é uma opinião justa. Os homens a bordo desses navios lutaram tão bem como puderam. Não foi por culpa deles que os seus barcos não se revelaram
à altura das embarcações dos piratas. Se não tivéssemos mudado de rumo e ido socorrê-las, duvido seriamente de que alguma tivesse sobrevivido.
Cato inspirou profundamente, e olhou para os oficiais em redor. As críticas de Albino ao comandante não podiam ser mais claras, e centuriões e trierarcas olhavam
para Vitélio, para ver como iria ele responder.
Por momentos limitou-se a fixar Albino com ira, mas por fim anuiu, devagar, e respondeu.
- A tua opinião é interessante, mas nada mais do que académica, Albino, visto o ponto a que as coisas chegaram. Ainda quero saber para que são afinal mais
birremes. A nossa força principal, os esquadrões de trirremes, está mais ou menos intacta. Assim que os lançarmos contra os piratas, as coisas ficarão resolvidas,
depressa e bem.
- Sim, senhor. Desde que os piratas estejam dispostos a ficar quietinhos e esperar que as trirremes vão ter com eles...
- E então? - A impaciência na voz do prefeito era evidente para todos. - O que é que queres dizer?
- Senhor, serviu nas legiões.
- E daí?
- Os aspectos tácticos são-lhe com certeza familiares. As forças ligeiras devem ser usadas para localizar e imobilizar o inimigo, de forma a que a força principal
possa cair sobre ele e destruí-lo. Pelo menos, no mar, é assim que fúnciona. Supunha que faziam o mesmo género de coisa no exército.
- É evidente que sim! - Macro não aguentou a provocação. - Não somos parvos, sabes? Pelo menos, a malta da legião sabe construir a merda de um campo fortificado
de jeito! - O centurião abarcou com um movimento do braço a silhueta das muralhas improvisadas que os rodeavam. - Em vez desta espécie de acampamento...
- Obrigado, centurião. - Interrompeu-o Vitélio. - Já chega.
A boca de Macro ainda estava aberta, e preparada para continuar
195
numa diatribe, mas lá a conseguiu fechar e limitar-se a sinalizar a sua indignação.
- Muito bem, então. - Prosseguiu Vitélio. - Precisamos portanto de umas birremes.
- Não, senhor. Precisamos de muitas birremes. Temos de ter pelo menos tantas como eles. Contei uma boa dúzia delas, todas bem manobradas. O que quer dizer
que as tripulações deles são de qualidade, e que os trierarcas são bons comandantes. Francamente, senhor, eles são melhores do que nós. E é por isso que precisamos
de mais navios. Temos de ter alguma vantagem se quisermos ter hipóteses de triunfo na próxima vez que os enfrentarmos. - Concluiu Albino, com firmeza.
- Pois, mas não há mais birremes. - Retorquiu Vitélio. - Não posso fazê-las aparecer do nada, pois não?
- Há as seis que ficaram em Ravena. - Ripostou Albino, sem emoção.
Cato levantou-se, tossicou e juntou a sua opinião.
- E também lá ficaram uns mil fuzileiros, que também nos davam muito jeito.
- Não! - Vitélio bateu com a mão na perna, irritado. - Não deixarei Ravena desprotegida. Se acontecesse alguma coisa à cidade, Roma far-me-ia pagar com a
cabeça.
- Roma pode estar já a pensar nisso, senhor. - Afirmou Cato, calmamente. - Assim que souber do que se passou aqui. Se vamos continuar com as operações contra
os piratas, vamos precisar de todos os navios e homens que conseguirmos reunir.
Vitélio deu um passo na direcção do jovem centurião.
- E se eles atacarem Ravena?
- Senhor, temos as nossas ordens. - Cato deu ênfase ao plural.
- A operação que temos em mãos é prioritária.
- E Ravena? - Quis saber o prefeito, subjugado.
- Ravena terá de correr os seus riscos, senhor.
- Estou a ver. É portanto isso que me aconselhas? E estás disposto a pô-lo por escrito?
Cato cerrou os dentes para evitar que se lhe escapassem algumas palavras ácidas que demonstrassem o desprezo que sentia pelo superior. Engoliu em seco, e respondeu.
- Sim, senhor, é o meu conselho. Em vista das ordens que recebemos. Mas a decisão é sua. O fardo da patente.
- Percebo. - Vitélio baixou o olhar e ponderou o assunto, em silêncio. Os restantes oficiais mantiveram-se também calados, à espera da sua decisão.
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O prefeito sabia que estava numa posição difícil. Tinha perdido um quarto da sua força, bem como o seu equipamento mais decisivo. O que começara como uma demonstração
de força arrasadora, orientada para a destruição da ameaça crescente dos piratas, tinha-se transformado num quase desastre, que ameaçava destabilizar toda a região.
Se cancelasse a operação, isso seria entendido como uma admissão de derrota, e o Imperador não era conhecido pela benevolência demonstrada para com comandantes militares
vencidos. A sua carreira, a sua própria vida, ficariam em perigo. Fez uma careta. A carreira era o que dava sentido à sua vida. Sem a perspectiva de riqueza e poder,
mais valia estar morto. Portanto, cancelar a operação era impossível. Isso estava assente. A campanha prosseguiria.
A questão era, portanto, se teria homens e material suficientes para garantir o sucesso. Tinha sofrido uma derrota, sim, mas se encontrasse e destruísse os piratas,
então o deslize inicial poderia ser facilmente esquecido. Aliás, se fosse possível atribuir as culpas da derrota à existência de um traidor, até talvez conseguisse
escapar a qualquer tipo de censura. Desde que conseguisse a vitória no fim da campanha. Mas teria as forças necessárias? Não estava seguro disso. Albino tinha a
certeza de que não, e as expressões dos outros trierarcas enquanto escutavam o camarada indicavam que concordavam com ele, e que achavam que a frota precisava de
mais birremes. E eles deviam saber do que falavam, considerou. Com os navios e homens que deixara em Ravena, podia refazer as baixas que tinha sofrido naquele dia.
Mas isso deixaria a cidade e a base naval virtualmente indefesas. Teria de garantir que os piratas se veriam debaixo de tanta pressão que nem pensassem em montar
uma expedição contra Ravena. Se o impensável sucedesse e eles conseguissem realizar uma proeza do género de saquear a cidade, o Imperador Cláudio não lhe mostraria
qualquer clemência.
Recordou-se então do que Cato afirmara, a lembrança de que possivelmente havia coisas mais importantes em jogo: os pergaminhos que Narciso lhes ordenara que recuperassem,
a qualquer preço.
A qualquer preço...
Amaldiçoado fosse, por não ter posto essas ordens por escrito. Nessas circunstâncias, Vitélio poderia sempre clamar que os riscos extremos que correra ao lançar
todos os homens e navios contra os piratas lhe tinham sido exigidos pelos termos empregues nas ordens que recebera. Mas Narciso era demasiado esperto para cometer
esse lapso, claro. Não haveria qualquer prova contra ele, se Vitélio se visse obrigado a levantar a questão. Tal e qual como não haveria qualquer desculpa aceitável
para não lhe levar os pergaminhos.
À medida que passava em revista as opções de que dispunha, viu
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abrir-se à sua frente um caminho evidente, a melhor estratégia a adoptar, e fixou-se nela com desespero crescente, embora continuasse relutante em abraçá-la por
completo e emitir as ordens necessárias. Olhou para os seus oficiais, e o ânimo vacilou-lhe ao perceber que todos o observavam, à espera que ele dissesse qualquer
coisa, que lhes explicasse o seu plano. Quando começasse, não podia dar sinais de hesitação. Tossicou para limpar a garganta, e os homens olharam para ele atentamente.
- Temos de prosseguir a campanha. Se não conseguirmos enfrentar os piratas agora, só os deuses sabem até que ponto crescerá o seu poder. Podem estrangular
os nossos canais comerciais, se quiserem. Meus senhores, pura e simplesmente não podemos tolerar tal ameaça. Aceito o argumento do trierarca Albino, e concordo que
precisamos de uma força suficiente para podermos enfrentar o inimigo em condições aceitáveis. Para resolver essa questão, enviarei um oficial a Ravena, para nos
trazer as forças de reserva e mais equipamento...
Olhou em redor, e os seus olhos pousaram em Cato, que aquecia a magra figura junto ao fogo. Podia ser boa ideia mantê-lo tão longe quanto possível do verdadeiro
objectivo daquela operação, considerou o prefeito. Tinha de ser ele a reclamar todo o crédito pela recuperação dos pergaminhos. Além disso, podiam surgir outras
oportunidades exploráveis naquela história, e do que menos precisava era de outro agente de Narciso a espreitar-lhe por cima do ombro. Também havia o centurião Macro,
claro, mas Vitélio não o considerava uma ameaça do mesmo calibre. Não havia nele traço de malícia. Ainda assim, mantê-los afastados seria aconselhável. Seria portanto
Cato o oficial a enviar a Ravena.
- Centurião Cato!
O indigitado aprumou-se.
- Sim, senhor.
- Ao nascer do dia, tu e o Albino levarão o Espartano de volta a Ravena. A guarnição de fuzileiros fica cá, para que tenhas mais espaço a bordo no regresso.
Trarás contigo o resto da esquadra, ou seja, todos os fuzileiros e os abastecimentos necessários. O meu escrivão passar-te-á as ordens que te permitirão agir com
a minha autoridade.
- Sim, senhor.
- Meus senhores, é tudo! O centurião Macro fica com o primeiro turno de vigia. Os outros podem ir descansar até ser a vez deles. Estão dispensados!
Enquanto os oficiais se erguiam pesadamente, abandonando a área em redor do braseiro e encaminhando-se para as suas unidades, Cato deixou-se ficar. Acenou a Macro,
que, relutantemente, se juntou ao amigo; dirigiram-se então ao prefeito.
198
- Que é que vocês querem? - Irritou-se Vitélio. - Despachem-se. Estou fatigado.
Macro concordou.
- Suponho que todos os homens da esquadra o estão, senhor.
Vitélio ignorou-o, concentrando-se em Cato.
- O que queres?
- Por que razão me está a enviar em busca de reforços, senhor? Ser-lhe-ia com certeza mais útil aqui. Dadas as ordens que recebemos de Narciso.
- Tenho de elaborar um despacho para o secretário imperial.
- Explicou Vitélio, sem emoção. - Tenho de apresentar um relatório do que se passou. Narciso há-de querer ficar a par da situação. E tenho de me assegurar
de que esta missiva chega a Ravena e segue para Roma.
- Porquê eu?
- Sei que posso confiar em ti. - Vitélio fez um gesto largo, abarcando os oficiais que se dispersavam pela escuridão. - O resto pode não ser tão leal ao Imperador.
E tenho de saber que a mensagem chega a Narciso. Por isso, tens de ser tu. Quanto ao Macro, bem, preciso que os meus melhores oficiais estejam preparados para o
que quer que aquele sacana do Telémaco resolva lançar contra nós.
Cato encarou o prefeito com um olhar frio e azedo. Depois fez a saudação regulamentar.
- Posso ir, senhor?
- Claro. - Vitélio não lhe devolveu a saudação, limitando-se a acenar na direcção das tendas da centúria de Cato. - Neste momento não é necessária a tua presença.
Vê se descansas. Terei o relatório pronto antes da madrugada, a tempo de zarpares antes que o Sol nasça. - Virou-se para Macro. - Quanto a ti, será melhor que vás
ter com os teus homens e cumpras o teu turno.
À medida que os dois centuriões avançavam pelo campo, Cato olhou sobre o ombro, para se assegurar de que ninguém os ouvia.
- Enquanto estiver fora, tenha cuidado consigo.
Macro franziu o sobrolho.
- O que é que queres dizer com isso?
- Não sei bem. Mas não confio nele.
- E onde é que está a novidade? Ninguém no seu perfeito juízo confiaria naquele filho da puta. O que é que achas que ele está a preparar?
Cato abanou a cabeça.
- Não sei. Por qualquer razão lá dele, quer separar-nos. Só podemos ter a certeza de que não é nada que tenha a ver com a mensagem. Portanto, cautela, percebe?
199
Macro sorriu.
- Pareces mesmo a minha mãe.
Assim que o disse, Macro desejou ter mantido a boca fechada. Lembranças do desastroso encontro no Delfim Dançarino encheram-lhe a mente.
Cato lançou-lhe um olhar.
- Quer que eu a procure?
- Não. Não te metas. - Afirmou Macro com firmeza. - Não voltes a falar-me dela.
Prosseguiram em silêncio por algum tempo, até Cato mudar de assunto.
- Era boa ideia encontrarmos o tal traidor, e depressa. Antes que tenha outra oportunidade de nos vender.
Macro anuiu.
- Sim, mas pode ser um tipo qualquer.
- Pode ser, sim. - Concordou Cato. - Mas há-de ter alguma forma de comunicar com os piratas. E isso reduz o número de candidatos.
Macro sorriu. Quase conseguia ouvir as engrenagens do cérebro do amigo em plena actividade.
- Tens alguém em mente?
- Não tenho a certeza. Ainda. Mas tenho ideia de onde começar a procurar.
XXII
- As tuas ordens. - Já na praia, o prefeito Vitélio entregou a Cato um rolo selado. Um bote esperava o centurião para o conduzir ao Espartano, ancorado a
curta distância. Mal se adivinhava a silhueta da trirreme na escassa luz do novo dia, que só agora começava a ultrapassar os cumes altaneiros das montanhas em redor.
- Dou-te poderes para agir em meu nome quando chegares a Ravena. Não hesites, traz tudo aquilo de que precisamos. Se alguém tentar impedir-te, tens de ser impiedoso.
Circunstâncias extraordinárias exigem acções extraordinárias, percebido?
- Sim, senhor.
- Óptimo. - Vitélio baixou a voz ao entregar a Cato um pequeno pacote também selado. - E isto é o meu relatório. Assegura-te de que segue para Roma assim
que chegares ao porto.
Cato recolheu o pacote e guardou-o na mochila.
- Pronto. Acho que é tudo. - Vitélio fez uma verificação mental, acenando para si mesmo. - Ver-te-ei de novo daqui a uns dias, com os reforços. Deves regressar
no mais curto espaço de tempo possível. Se te demorares desnecessariamente, não deixarei de te responsabilizar.
Cato devolveu-lhe o olhar com frio desdém.
- Compreendo, senhor.
- Ainda bem que assim é, centurião. Seria uma pena ter de pôr um fim à nossa velha antipatia mútua. Mas tenho a certeza de que rapidamente encontraria novos
inimigos.
Um sorriso irónico aflorou aos lábios do jovem centurião.
- Não tenho quaisquer dúvidas quanto a isso, senhor.
Vitélio olhou-o ainda um instante, e depois afastou-se. Macro foi ter com ele assim que a figura do prefeito desapareceu por entre as tendas. Estendeu a mão, e trocaram
um aperto de antebraços.
- Faz boa viagem. - Desejou Macro, bem-disposto. - Dadas as nossas recentes experiências marítimas, vais com certeza precisar de toda a sorte que arranjares.
201
- Não me diga. - Cato sorriu também. - Macro, se escaparmos com vida a esta confusão, tem a minha permissão para me pôr a dormir se èu alguma vez voltar a
olhar para um navio com uma expressão de agrado.
- Podes contar com isso.
Cato sorriu. Num mundo dominado pelos caprichos do destino, era reconfortante saber que podia contar com a solidez de Macro. Deu-lhe uma palmada nas costas e dirigiu-se
ao bote que o esperava. Trepou por cima das tábuas, e os marinheiros empurraram a embarcação para as ondas que suavemente se vinham enrolar na areia. Depois de atravessar
a rebentação, todos subiram para bordo, pegaram nos remos e conduziram o centurião na direcção do grande vulto do Espartano. Cato virou-se para dar uma última olhadela
ao amigo; viu-o erguer a mão num gesto de despedida e depois marchar de regresso às tendas que se amontoavam na estreita faixa entre a praia e a muralha improvisada.
? ? ?
No momento em que o Sol se levantava sobre as montanhas, a trirreme deixava a baía e aproava ao mar aberto que a esperava. O céu estava carregado, e as águas cinzentas
como chumbo agitavam-se com ferocidade. Soprava uma brisa constante ao longo da costa, e a tripulação tinha içado a vela principal no ângulo mais favorável para
aproveitar o vento. De pé no castelo da popa, Cato não deixara de reparar na tensão que se sentia claramente entre os marinheiros, que não paravam de espreitar o
horizonte, como se esperassem ver a todo o momento um esquadrão de navios piratas, decididos a castigá-los por se terem atrevido a abandonar o resto da frota. Virou-se
e caminhou lentamente na direcção de Albino. O trierarca parecia tão ansioso como os seus homens, e Cato tentou adoptar o estilo de calma destemida que tantas vezes
vira em Macro.
- Achas que eles ainda andam por aí?
Albino anuiu.
- Com toda a certeza. Devem ter deixado uns tantos navios a vigiar-nos.
- Serão perigosos?
Albino mirou-o.
- No mar, o perigo é sempre uma possibilidade. Os piratas, os deuses, os elementos, todos são perigosos.
Cato sorriu levemente.
- Queria dizer os piratas.
- Eu sei. Com este mar, devemos safar-nos melhor do que eles.
- Albino lançou um olhar às nuvens cinzentas. - Estou mais preocupado
202
com o tempo. Parece-me que vamos levar umas sacudidelas.
- Sacudidelas? - Cato franziu o sobrolho. - Isso soa-me a eufemismo náutico, nem sei bem porquê.
Foi a vez de Albino sorrir.
- Seja. Vamos apanhar uma tempestade. Vento forte, vagas de meter medo. Vai ser um mau bocado.
- Bom, parece-me que preferia as sacudidelas, afinal. - O centurião olhou sobre o ombro, para a costa ilírica, e notou que a entrada da baía já tinha ficado
para lá do horizonte, e que já só se avistava a linha acidentada dos cumes das montanhas.
- Vela à vista!
Por todo o convés, as cabeças ergueram-se, olhando para o topo do mastro para verificarem a direcção indicada pelo vigia, e logo se viraram para esse ponto.
- Duas... Não, três velas.
Albino pôs as mãos em concha e interpelou o vigia.
- Que rumo seguem?
Um momento depois, o homem respondeu, com um pesado fatalismo na voz, que não escapou a ninguém no convés.
- Rumo de intercepção, senhor! Já os consigo distinguir melhor. São outra vez os piratas.
- Muito bem. Avisa se eles alterarem o rumo.
O trierarca Albino deixou cair os braços e cerrou os punhos, antes mesmo de os esconder por trás das costas, de forma a ocultar o seu estado de espírito aos outros
homens, excepto a Cato e ao marinheiro que seguia ao leme.
- Três. - Comentou Cato. - Chegam para nos enfrentar?
- Chegam e sobejam, se forem bem manobrados. O vento serve-lhes, e hão-de tentar aproximar-se por trás, num ângulo que lhes permita manter a vantagem.
- Não somos mais velozes do que eles?
Albino crispou os lábios, enquanto comparava mentalmente a velocidade do seu navio com a que os piratas já tinham demonstrado.
- Não, a não ser que o tempo piore. Neste ritmo, vão apanhar-nos por volta do meio-dia. Tem a favor a velocidade e o número. Mas vão ter de tentar a abordagem.
Nestas condições é muito perigoso tentar simplesmente abalroar-nos. E o Espartano é um navio rijo. O casco é forte, de madeira bem amadurecida. - O trierarca fez
um gesto de cabeça, sem esconder o orgulho que sentia no seu navio. - Não hão-de conseguir fazer-nos nenhum buraco.
Havia um ar de certeza na sua voz que ia para lá da mera soberba,
203
e Cato ficou mais sossegado ao ouvi-lo. Atravessou para o outro lado do navio e, com o resto da tripulação, dedicou-se a perscrutar o horizonte, à procura do primeiro
sinal das velas dos piratas.
Menos de uma hora depois, avistou-as: três minúsculos triângulos escuros, que tão depressa se viam como desapareciam, à medida que a trirreme subia e descia as vagas.
Albino manteve o vigia ocupado, atento ao progresso dos piratas, e quando estes já estavam tão perto que as velas eram constantemente visíveis, deu ordens à tripulação.
- À vela! Dêem-lhe mais dois rizes!
Alguns dos tripulantes olharam-no com desconfiança, antes de se lançarem pelas enxárcias acima e se disporem na verga, onde se dobraram para desfazer os nós que
prendiam o pano. A vela já se apresentava retesada como a pele de um tambor, o que fez com que o pano se soltasse das mãos dos marinheiros com um estalido claramente
audível; solta, a vela ondulou ao vento até que os tripulantes no convés alcançaram os cabos e a prenderam na posição correcta. A pressão do vento aumentou, e a
trirreme respondeu inclinando-se; Cato agarrou-se com firmeza à amurada, vendo a superfície espumante da água passar velozmente a poucos centímetros do convés inclinado
do navio, quase submergindo as aberturas para os remos. O aumento de velocidade foi também imediatamente perceptível, e Cato contemplou as velas dos piratas, persuadido
de que o Espartano lhes ia ganhando algum terreno. Trepou pelo convés torto, dirigindo-se ao trierarca, piscando os olhos para se livrar da sensação de ardor provocada
pelos salpicos salgados que lhe atingiam a face quando a proa rompia as vagas.
- Isto não é um bocado arriscado?
Albino afagou a amurada.
- Ele aguenta. A menos que o vento se torne mais forte. Nessa altura, teremos de recolher algum pano, se quisermos manter o mastro intacto.
- Oh. - Cato olhou para a proa e reparou que todos os cabos estavam esticados ao máximo e vibravam debaixo da pressão exercida pela grande vela, toda ela
exposta ao vento norte. Então voltou a atenção de novo para as embarcações dos piratas, e deu uma palmada na amurada, com um grito de triunfo.
- Estamos a ganhar vantagem!
- Sim, mas eles também podem usar o mesmo truque. Olhe!
Apontou para os navios que os perseguiam, e Cato viu as pequenas
figuras que trepavam pelo cordame e soltavam também o resto do pano. Depressa o inimigo voltou a aproximar-se.
Cato virou-se para Albino.
204
- E agora?
- Temos de tentar escapar de outra forma. Seguir o vento e esperar que o nosso navio se comporte melhor do que os deles nessa situação.
Dirigiu-se ao timoneiro.
- Põe-no debaixo do vento.
- Sim, senhor.
À medida que a proa mudava de direcção, Albino dava ordens à tripulação para manobrar as velas, amainando-as até o navio ficar paralelo ao vento. Nesse instante,
os marinheiros voltaram a esticar o pano, esforçando-se por manter os cabos tensos. Como seguiam ao sabor do vento, a aragem que atravessava o convés diminuiu, e
Cato sentiu uma onda de pura exaltação ao ver como a trirreme cavalgava as ondas. Pela primeira vez, começava a perceber a atracção que o oceano tinha para homens
como Albino e a sua tripulação. Mas nesse instante olhou para trás e percebeu que os piratas também tinham alterado o rumo e seguiam na esteira do Espartano, a cerca
de uma milha. De forma quase inconsciente, a sua mão dirigiu-se ao punho da espada.
- Daqui a quanto tempo é que nos alcançarão?
Albino semicerrou os olhos, calculando.
- Se tivermos sorte, daqui a umas quatro horas. Seja como for, será antes do anoitecer.
A perseguição continuou, atravessando o mar cinzento salpicado de cristas brancas, e o vento aumentou de intensidade, fazendo com que a vela e os cabos do Espartano
gemessem. Albino dirigiu-se à vante do navio, avaliando a tensão nos cabos e nas costuras da vela, completamente esticada. Porém, quando regressou à popa e olhou
para os navios que os seguiam, verificou que era já evidente a aproximação destes, e que reduzir a superfície de pano não era uma possibilidade a considerar. Por
trás dos piratas via-se uma cortina cinzenta que escondia o horizonte, e que se estendia até ao céu, também ele cinzento-escuro.
- O que é aquilo? - Apontou Cato. - Tempestade?
- Uma borrasca, mais provavelmente. Nada mais do que vento e chuva. Ainda assim... - A expressão do trierarca fechou-se subitamente, revelando a sua concentração.
Avaliou a distância entre o Espartano e os piratas antes de se focar num ponto para lá dos três navios, tentando perceber a natureza da escuridão que se adensava
rapidamente. Depois virou-se para Cato com um sorriso. - Pode ser que estejamos com sorte. Assim que o vendaval nos alcançar, vou dar ordens para alterarmos a rota.
Talvez consigamos despistá-los, ou pelo menos ganhar distância suficiente para nos mantermos a salvo até à noite; e nessa altura poderemos fazer com que eles nos
percam o rasto.
205
O manto de chuva avançou sobre o mar até que alcançou os piratas e os envolveu de repente, fazendo-os desaparecer da vista dos homens a bordo da trirreme. A tripulação
mantinha-se a postos, preparada para executar as ordens do trierarca no momento em que elas surgissem. Precisamente antes de o véu cinzento os apanhar, Cato pressentiu
uma alteração no vento, que se tornou mais forte e irregular em direcção, o que fez com que a vela se pusesse a dançar e a bater, até que a atmosfera voltou a estabilizar,
fazendo gemer o cordame. A chuva surgiu sem aviso, e grandes bátegas abateram-se sobre o convés, explodindo em grossas gotas junto aos pés nus dos tripulantes. Cato
encolheu-se sob a capa, mantendo o capuz preso com uma mão e agarrando-se à amurada com a outra.
- Soltar cabos! - Gritou Albino, esforçando-se por se fazer ouvir acima do rugido dos elementos. - Leme! Alterar rumo!
A trirreme virou de bordo, voltando a dirigir-se para a costa italiana. A vela principal ondulava e batia como se fosse as asas de uma enorme ave.
- À verga! Tirem um dos rizes!
Cato observou ansiosamente enquanto os marinheiros treparam pelas enxárcias e se espalharam pela verga. Por baixo deles, a vela continuava a dançar ao sabor do vento,
ameaçando lançá-los para o mar turbulento. Quando todos os homens assumiram as suas posições, o trierarca deu a ordem, e começaram a recolher o pano, até alcançarem
as escotas indicadas. Amarraram-nas apressadamente à verga, e em seguida arrastaram-se até ao cordame e desceram para o convés, os peitos a arfar com a excitação
e o cansaço provocados pela manobra.
- Bem feito, rapazes! Agora é deixá-lo ir, e afastarmo-nos ao máximo daqueles cabrões!
Com o vento a dar-lhe a meia nave e por trás, a trirreme balançava num ângulo apertado enquanto abria caminho no meio do temporal. O estômago de Cato começou a dar
sinais de inquietude. Tropeçou a caminho da amurada.
- Desse lado não! - Avisou Albino, esticando o braço para indicar o outro bordo. - Ponha-se a favor do vento!
Cato virou-se, pôs a mão sobre a boca, e meio a correr meio a escorregar, lá conseguiu chegar ao lado esquerdo do navio, onde vomitou. Parecia não terminar, e ficou
ali pelo que lhe pareceu uma eternidade, dobrado sobre a amurada, agarrando a áspera superfície de madeira com quanta força tinha, sofrendo acessos de agonia que
o faziam arrepiar e quase lançar o estômago pela boca fora. E durante todo esse tempo a chuva castigou-o, ensopando-lhe capa e túnica, até que se viu envolto em
panos frios e molhados, a tremer de frio.
206
Ao fim de algum tempo reparou que o ar parecia mais claro, e que o chicotear constante da chuva sobre os seus ombros parecia amainar. Levantou a cabeça e olhou em
redor, precisamente no momento em que a cortina cinzenta da borrasca se dispersava, e depois ficava para trás, de forma tão súbita como chegara. O som da chuva diminuiu
e acabou por desaparecer à medida que o mau tempo progredia para sul, afastando-se. Depois do intenso rugir selvagem de vento e chuva, parecia que a trirreme avançava
sobre o mar agitado em silêncio. Um raio de Sol atravessou as nuvens e iluminou a área que o Espartano atravessava, o que fez com que as gotas de água que escorriam
pelo cordame cintilassem como diamantes. Cato limpou a boca do sabor ácido do vómito e virou-se para Albino.
- Conseguimos? Despistámo-los?
Albino encolheu os ombros.
- Ainda é cedo para dizer. Temos de esperar mais um bocado.
Os dois homens dirigiram-se à popa e perscrutaram o horizonte, à
medida que o mar acalmava. Não havia sinal dos navios inimigos, e passado um bocado o trierarca soltou um suspiro de alívio e acenou, satisfeito. Olhou para Cato
com um sorriso nervoso.
- Parece que...
- Ó do convés! Velas à vista!
O trierarca e o centurião precipitaram-se de novo para a amurada, no preciso instante em que três velas emergiam da neblina que marcava a região afectada pelo dilúvio,
a menos de uma milha de distância. O enjoo de Cato foi substituído por uma vaga de desespero.
- Merda! - Albino aplicou um valente murro no mastro da ré.
- Os sacanas adivinharam-nos os pensamentos. O comandante daqueles navios é um filho da puta bem esperto, não há dúvida.
- Será melhor prepararmo-nos para o combate. - Sugeriu Cato, ainda demasiado maldisposto para assumir o comando do navio. - Tens de dar as ordens necessárias.
Daqui a um bocado já estarei melhor.
Albino concordou, e dirigiu-se à tripulação, berrando ordens para que os homens se armassem e se preparassem para repelir uma tentativa de abordagem. Cato continuou
a apreciar a aproximação dos piratas, que pareciam manter todas as velas expostas ao vento, debaixo de enorme tensão. Chegavam a toda a velocidade, e o centurião
compreendeu que os inimigos não tinham amainado de todo as velas. Por momentos amaldiçoou a timidez de Albino, e perguntou-se por que razão não teria o trierarca
dado ordens aos seus homens para soltarem de novo o pano que tinham recolhido anteriormente.
Albino juntou-se a ele, observando com ansiedade a aproximação
207
do inimigo. As proas dos navios piratas já estavam repletas de homens cujas armas e equipamento rebrilhavam ao sol que começava a romper por entre as nuvens. Os
piratas navegavam em formação cerrada, e só quando chegaram ao alcance das catapultas se tornou evidente o plano de ataque que iam seguir. Dois dos navios mantiveram-se
do lado do vento, preparando o assalto pela direita da trirreme, enquanto o terceiro começou a desviar-se para o outro flanco, para atacar pela esquerda. Os defensores
ver-se-iam assim forçados a dividir as suas forças.
- Atenção a toda a tripulação! Aos vossos postos! - Berrou Albino aos homens amontoados no convés. Pegaram nas armas e nos escudos e capacetes que lhes eram
distribuídos dos armários de vante. Os comandantes de secção formaram os seus homens nos dois bordos da trirreme, e Cato apercebeu-se imediatamente de que não eram
de forma alguma os suficientes para manter o inimigo à distância. Se tivessem o treino e o armamento dos fuzileiros, talvez tivessem alguma hipótese. Mas eram antes
de mais marinheiros, e soldados só pela força das circunstâncias. A sua única vantagem no combate que se aproximava era o desespero que lhes era dado pela certeza
de que lutavam pela vida.
Afastando-se da amurada, soltou o fecho da capa e sacudiu-a, fazendo-a tombar sobre o convés, ensopada. Ordenou ao marinheiro mais próximo que lhe fosse buscar o
capacete e o escudo à cabina. Virou-se para Albino.
- Se me suceder alguma coisa, e o Espartano prevalecer, tens de assegurar que estes despachos chegam a Roma. - Deu uma palmada no saco que levava a tiracolo.
- Se tiver a certeza de que o navio está perdido, eu mesmo me encarregarei deles. Seja como for, não podem é cair em mãos inimigas.
- Compreendo. Esperemos apenas não chegar a esse ponto.
Cato sorriu.
- Podes ter a certeza de que, por mim, levarei tantos quantos puder.
- Todos o faremos. - Albino indicou os seus homens. - Eles sabem que não podem esperar misericórdia.
- Certo.
Não havia mais nada a dizer, e o trierarca e o centurião deixaram-se ficar lado a lado enquanto os piratas se aproximavam, os gritos dos que seguiam à proa dos navios
perseguidores a fazerem-se ouvir com clareza através das ondas. O marinheiro regressou, trazendo o capacete e o escudo de Cato. Mantendo os inimigos debaixo de olho,
o jovem apertou calmamente o capacete e pegou no escudo, ajeitando-o até encontrar uma posição confortável.
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- Muito bem então, vamos fazer com que eles nunca se esqueçam dos homens do Espartano.
No preciso instante em que acabava de pronunciar estas palavras, ouviu-se o som de madeira a estalar. Olhou para o primeiro dos navios dos piratas, e notou que o
mastro parecia oscilar, para logo tombar empurrado pelo vento, descrevendo um arco gracioso, a vela e o cordame a serem atirados para o lado como se puxados por
uma mão gigante e invisível. A massa de madeira, cabos e velas mergulhou no oceano, obrigando a proa a curvar abruptamente e a colocar-se precisamente na rota do
navio que vinha atrás, muito perto. Era demasiado tarde para este conseguir mudar de direcção, pelo que abalroou o outro a toda a velocidade, num choque que fez
tombar todos os homens a bordo dos dois barcos.
Albino desatou às gargalhadas, e deu uma palmada nas costas de
Cato.
- Já tinha visto uma coisa assim? Cretinos, estúpidos! Oh! Olhe para aquilo!
O mastro do segundo navio também vacilou e em seguida abateu-se para a retaguarda, ruindo sobre os homens mal refeitos do choque, e provocando um novo coro de gritos
e aflições.
A face de Albino era a imagem do deleite, perante a má fortuna do inimigo.
- É para que vejam.
Cato ainda estava a tentar refazer-se da súbita alteração das circunstâncias.
- O que é que aconteceu, afinal?
- O que acontece sempre que se larga demasiado pano sob demasiado vento. Partiu-lhes o mastro!
Durante algum tempo, o terceiro navio manteve a rota, até que o seu trierarca compreendeu que não conseguiria dominar a trirreme sem ajuda. Baixou as velas e mudou
de direcção para ir prestar auxílio aos seus camaradas. Albino esfregava as mãos de contentamento.
- Bem, parece-me que é hora de acabar com eles!
- Não.
Albino virou-se para Cato, atónito.
- Desculpe. O que é que disse?
- Deixa-os.
- Deixá-los? Mas estão à nossa mercê. Só temos de virar e ir para cima deles. O outro põe-se a milhas assim que perceber que vamos abalroá-los. - Havia uma
expressão de súplica no olhar do homem, e Cato percebia-o perfeitamente. Depois de tudo o que tinham passado na véspera, a oportunidade da vingança tinha um doce
perfume. Albino aproximou-se
209
e baixou a voz. - Centurião, não há qualquer risco nesta operação. Garanto-o... Aposto nisso a minha vida.
- Não. Não podemos arriscar. As nossas ordens são para regressarmos a Ravena e levarmos os reforços. Não assumirei quaisquer riscos desnecessários. Os nossos
camaradas contam connosco. - Percebeu que o trierarca estava longe de estar convencido, pelo que adoptou outra linha de argumentação. - Olha, imagina que realmente
os atacávamos, e que por acaso eles conseguiam meter alguém a bordo do Espartano. Eles são mais do que nós. E se fôssemos derrotados, o que seria de Vitélio e dos
outros?
Albino olhou do centurião para os piratas, já a ficarem para trás, e uma expressão de frustração tomou-lhe conta das feições. Por momentos, Cato esteve certo de
que teria de impor a sua patente. Preparou-se, e inspirou fundo. Mas antes que pudesse falar, Albino virou as costas à cena que se desenrolava sobre o oceano e dirigiu-se
à tripulação.
- Fim do alerta! Regressem às vossas tarefas!
Os gritos de alegria e excitação no convés foram desaparecendo, para serem substituídos por um murmúrio de descontentamento entre os marinheiros, que se foram virando
para enfrentar o trierarca.
- Acabou-se! Reponham as armas nos depósitos e regressem aos postos de navegação! Agora! Chefes de secção! Ponham os vossos homens a mexer!
Os oficiais subalternos dispersaram os homens como lhes tinha sido ordenado, no meio de grande gritaria e empurrões; os que estavam de folga foram enviados para
a coberta, enquanto os outros se mantiveram no convés, prontos a receber novas ordens.
Albino virou-se de novo para Cato.
- Pronto. Espero que esteja contente.
Cato deixou-se ficar calado e limitou-se a olhar para ele até que o outro desviou a vista e se concentrou no mar, onde ainda se viam os navios dos piratas a baloiçarem
nas ondas.
- Albino. - Começou Cato, com toda a serenidade. - Temos ordens. O nosso dever é cumpri-las tão depressa quanto possível.
- Sei disso, caramba. Mas queria tanto ver aquela escumalha a sofrer...
- Vê-lo-ás. Agora não, mas muito em breve. Pensa nisso.
Albino acenou brevemente e depois virou-se e afastou-se ao longo
do navio, em silêncio, com uma expressão intimidatória para quem quer que se cruzasse com ele. Cato deixou escapar um suspiro de alívio, contente por, no fim de
contas, o homem ter visto a razão. Mas não haveria forma de o controlar na próxima ocasião, e que os deuses protegessem os piratas nesse
210
caso, porque Albino a nada os pouparia no seu desejo de os fazer pagar por tudo o que tinham feito aos seus camaradas.
Uma rajada de vento súbita fê-lo tremer descontroladamente ao atravessar as suas roupas ensopadas, enregelando-o até aos ossos. Nesse momento uma ideia terrível
atravessou-lhe o pensamento, e levou imediatamente a mão às costas, puxando o saco para a frente. Estava todo molhado, e os dedos gelados debateram-se com os nós
até conseguir abri-lo e espreitar para o interior. O rolo que continha as suas ordens ainda estava dentro do seu contentor de couro, e devia estar seco. Mas o outro
pacote, que continha o relatório de Vitélio, estava encharcado. Quando Cato tentou extraí-lo do saco, o selo caiu e a ponta do pacote abriu-se. Lá dentro viam-se
as tábuas de cera onde estava escrito o relatório.
Por momentos ficou imóvel, quando a tentação de fazer aquilo que sabia não dever fazer lhe passou pelo espírito. Seria fácil. Podia esperar até chegarem a Ravena.
Nessa altura, enquanto as birremes eram apetrechadas e os homens embarcavam, poderia aproveitar para ler o relatório do prefeito, e voltar a selá-lo antes de o enviar
para o seu destinatário em Roma, Narciso. Seria simples, e ficaria a saber o que andava Vitélio a preparar. Talvez houvesse no texto alguma menção aos pergaminhos;
alguma coisa que explicasse por que razão valeriam eles as vidas de muitos homens. Uma voz na consciência lembrou-lhe que ler o documento seria uma quebra de lealdade.
Se algum dia fosse descoberto o facto de ele ter violado um despacho imperial, as consequências seriam dramáticas.
Depois lembrou-se de que estava a lidar com Vitélio.
- Caraças. - Murmurou para si mesmo, enquanto fechava o pacote. Tinha decidido que lê-lo seria a primeira coisa que faria quando chegasse a Ravena.
XXIII
Os cidadãos de Ravena não estavam de todo contentes. Uma multidão tinha-se reunido junto aos portões da base naval, e homens irados lançavam insultos às sentinelas
na torre por cima do portão. Este tinha sido encerrado e trancado com um pesado barrote. Não valia a pena arriscar confrontos com a turba, considerou Cato. O povo
da cidade não apreciava a situação, mas ele nada podia quanto a isso, dadas as ordens que recebera. No interior da base, os centuriões dos fuzileiros e os trierarcas
das birremes que restavam mantinham os homens num ritmo frenético, a completarem o carregamento de provisões e equipamento militar.
Cato resolvera regressar à Ilíria o mais depressa possível, apesar das súplicas do conselho municipal. Tinham-lhe enviado uma delegação, para indagar dos motivos
de deixar a cidade indefesa. O porta-voz da delegação, uma figura deplorável, tinha-se mostrado cheio da arrogância vazia que era tão típica dos funcionários provinciais.
Cato escutara Rúfio Polo enquanto este expressava o ultraje sentido pelo conselho, depois apresentara as suas desculpas e explicara que estava limitado pelas ordens
que recebera.
À medida que a notícia se espalhara pelo porto, todos os inúteis que se arrastavam pelos botequins tinham-se encaminhado para a frente do cais, para fazerem sentir
as suas opiniões sob a forma de insultos dirigidos aos homens por trás das muralhas. Depressa se lhes juntara a miudagem da cidade, ansiosa por saber a que se devia
a agitação, e antes da chegada da noite, no próprio dia em que o Espartano entrara no porto, a larga passagem entre o cais e os armazéns estava repleta de gente
furiosa.
- Quer que envie uma centúria para dispersar a multidão? - Inquiriu o centurião Metélio, enquanto observava a turba ao lado de Cato, nas muralhas.
Cato pesou a sugestão, e depois abanou a cabeça.
- Não, não é preciso. Quando perceberem que só estão a perder tempo, hão-de dispersar por eles mesmos. Não vale a pena acicatar-lhes o ânimo, já nos olham
de esguelha.
212
- Tem razão, senhor. - Metélio esforçou-se por esconder o desapontamento. - Ainda assim, um dia destes há-de ser preciso dar-lhes uma lição. Nem pensar em
deixar aquela maralha julgar que se pode portar assim. Desde que os piratas meteram o nariz de fora, têm passado o tempo a criticar-nos e a insultar-nos.
- Pode ser que alguém tenha de lhes dar uma lição. Mas não seremos nós. E não agora. Temos mais que fazer. - Concluiu Cato, sem entusiasmo.
Metélio encolheu os ombros.
- Se assim o diz, senhor.
- Digo mesmo. - Cato virou-se para o subordinado. - Vê se garantes que nenhum dos teus homens faz o que quer que seja que possa ser entendido como provocação.
A tarefa deles é guardar o portão. É tudo. Percebido?
- Sim, senhor.
- Vou para os meus aposentos. Se houver alguma alteração na situação, avisa-me imediatamente.
- Sim, senhor.
Trocaram uma saudação e Cato virou-se e desceu pelas estreitas escadas até à rua que ia dar ao portão. Enquanto atravessava a parada, espreitou na direcção do porto
militar. Seis birremes estavam acostadas, a proa de uma junto à popa da anterior, e outras duas estavam ancoradas a curta distância, à espera de vez para serem carregadas.
Um fluxo contínuo de homens movia-se entre os navios e os armazéns, incitado pelos gritos ásperos dos seus oficiais. Naquele ritmo, os navios estariam carregados
antes do anoitecer, e prontos a zarpar assim que amanhecesse. A nortada tinha-se transformado numa brisa constante, e se se mantivesse, permitiria que Cato e os
reforços alcançassem Vitélio uns cinco dias depois de o Espartano ter partido da Ilíria.
Havia ainda uma série de assuntos que Cato tinha de resolver antes de zarpar. Os seus pensamentos dirigiram-se ao relatório do prefeito, deixado sobre uma secretária
num gabinete fechado, no edifício do comando. Assim que tinha transmitido as ordens aos oficiais responsáveis pela guarnição, Cato tinha recolhido ao gabinete de
Vitélio e aberto o despacho, tendo todo o cuidado em proteger quer o invólucro quer o selo. A mensagem nas tábuas não tinha sido danificada pela água, e Cato perdeu
algum tempo a pô-las na ordem correcta antes de tentar ler o relatório. Infelizmente, este era incompreensível. Havia palavras, sim, mas eram compostas por grupos
de letras que não faziam sentido. Um código, portanto. O que era compreensível, já que a mensagem podia ter caído nas mãos do inimigo antes de chegar a Ravena.
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Assim que compreendeu que estava a olhar para uma mensagem codificada, Cato lembrou-se de que os agentes do palácio imperial tinham o hábito de utilizar um código
augustal: uma simples alteração das letras do alfabeto, de acordo com uma chave previamente combinada. Simples, mas suficientemente eficaz para afastar a curiosidade
de todos os que não tivessem a inteligência necessária para encontrar a chave. Cato tinha perdido a maior parte da manhã a experimentar algumas trocas simples, mas
sem sucesso. Portanto, o código envolvia valores alternados, e a meio da tarde encontrou-os por fim; quatro, dois e cinco. Elaborou rapidamente o novo alfabeto,
e depressa descodificou todas as tábuas menos a última.
O relatório do prefeito começava habilmente, com uma antecipação em relação aos protestos que o conselho de Ravena não deixaria de apresentar a Roma. Vitélio explicava
que se vira obrigado a retirar a guarnição da cidade de forma a garantir uma célere e decisiva vitória sobre os piratas. Fazia uma rápida descrição da batalha naval,
garantindo que os piratas tinham sido rechaçados, com perdas substanciais de ambos os lados. Ao ler essa parte, Cato sorrira com amargura. Vitélio prosseguia, detalhando
as forças com que ainda contava e os seus planos de acção. Cato tinha chegado a esse ponto quando Metélio o chamara ao portão principal, para ver a turba que se
juntara no exterior da base. Para lá da evidente mistificação quanto ao primeiro e desastroso recontro com os piratas, e da previsão demasiado optimista em relação
às operações futuras, não havia nada de sinistro no relatório. O que o enfurecia era a ausência de detalhes acerca dos pergaminhos, pelos quais tanto sangue já fora
derramado.
Mas Cato queria voltar ao gabinete e decifrar o resto, antes de se arriscar a sair para a cidade para tratar do outro assunto premente. Entrou no edifício e subiu
rapidamente as escadas para os aposentos do prefeito. Alguns escrivães ainda estavam nas suas secretárias, a prepararem inventários dos abastecimentos que estavam
a ser carregados nas birremes. Cato passou por eles enquanto procurava a chave na bolsa. Meteu-a na fechadura, girou-a, abriu a porta e entrou. Deitou uma olhadela
ao escrivão mais próximo.
- Não quero ser perturbado. A não ser que ocorra alguma emergência.
- Sim, senhor.
Fechou a porta e sentou-se no elaborado cadeirão do prefeito. Ainda havia algum vinho diluído no copo que enchera antes, e bebeu um gole antes de pegar no estilete
e voltar ao trabalho. Cada letra do relatório correspondia a outra letra, mais à frente no alfabeto. À medida que ia decifrando
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a última parte, escrevia-a numa tábua limpa que tirara do armário do prefeito. O sumo do relatório começava a tornar-se claro, e Cato sentiu um arrepio de receio,
que pouco a pouco foi dando lugar ao desejo de vingança. Quando chegou ao fim, pousou o estilete e leu a cópia que fizera.
Em conclusão: as nossas forças alcançaram até ao momento um importante sucesso, o qual se deve em larga medida à forma diligente como actuei no planeamento, preparação
e execução da operação. Épor isso com grande pesar que devo referir que a resolução rápida do problema dos piratas e a possível recuperação dos pergaminhos délficos
se viram comprometidas pelas acções do centurião Cato durante o combate naval que descrevi anteriormente.
Num momento crítico da batalha, quando o comandante inimigo se encontrava em fuga, perseguido pelo Hórus e pelo esquadrão de trirremes, o centurião Cato deu ordens
para que o seu navio abandonasse a formação e enfrentasse as embarcações ligeiras inimigas que defrontavam a nossa força de birremes. Uma explicação caridosa para
esta acção seria a possibilidade de o centurião ter decidido ir em auxílio de algumas das nossas naves, que se encontravam em dificuldades. Porém, é muito possível
que o desejo de glória pessoal do centurião Cato se tenha sobreposto à obrigação de seguir as ordens que recebera.
É também possível que tenha deliberado enfrentar um inimigo de muito menor poderio do que o navio-almirante inimigo.
Seja como for, a verdade é que a embarcação do centurião Cato quebrou a formação, efoi seguida poralgumas das outras trirremes. Este facto deixou-me com uma força
insuficiente para enfrentar o inimigo, pelo que me vi obrigado a abandonar a perseguição.
Em consequência do acto impensado do centurião Cato, a operação vai ocupar bastante mais tempo do que aquilo que previra. Peço portanto licença para remover o
centurião Cato das tropas sob o meu comando, e para o enviar para Roma, onde deverá ser submetido a medidas disciplinares. Dado o carácter sensível da missão que
nos foi atribuída, a mim e aos centuriões Cato e Macro, não posso garantir o sucesso desta tarefa enquanto tiver de suportar a presença de um homem que, claramente,
não possui nem a experiência nem a coragem necessárias. Narciso, custa-me bastante deixar estas acusações no meu relatório, já que sei que tens uma elevada opinião
sobre as
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capacidades deste indivíduo. Porém, dada a relevância do assunto que aqui nos trouxe, estou certo de que compreenderás as minhas preocupações e darás a tua permissão,
tão rápida quanto possível, para que este fardo inútil seja removido, por qualquer método disponível.
Vitélio
Cato pousou a tábua e inspirou fundo. Aquele relatório equivalia a uma sentença de morte, e sentiu um arrepio de medo a atravessar-lhe as entranhas, enquanto a mente
tentava perceber todas as implicações dos últimos comentários de Vitélio. A sua primeira reacção foi de puro ódio pelo prefeito. A conclusão do relatório era muito
mais do que injusta. Era pura desonestidade egoísta, concebida para que a culpa pelo fiasco na batalha naval recaísse apenas em Cato. O prefeito desejava a sua morte,
era tão simples e evidente como isso. Se deparasse com a oportunidade adequada, podia nem sequer esperar pela permissão do secretário imperial.
Encheu o copo de vinho mais uma vez, e desta feita não lhe juntou água. Antes de formular quaisquer planos para enfrentar esta nova ameaça, tinha de perceber por
que razão queria o prefeito vê-lo morto. Devia ter alguma coisa a ver com os pergaminhos. Pergaminhos de Delfos... Seguramente não os pergaminhos de Delfos.
Fossem quais fossem, o secretário imperial atribuía-lhes importância suficiente para arriscar uma força importante, em homens e navios, para os recuperar. E agora,
parecia que também Vitélio os considerava suficientemente importantes para fazer tudo o que podia para afastar Cato e vê-lo morto, de forma a poder ficar na posse
dos pergaminhos.
Apercebeu-se de que tinha de encontrar forma de afastar o perigo. Podia fazer o seu próprio relatório e enviá-lo para Roma com o de Vitélio. Podia expor a verdade
por trás dos terríveis resultados do recontro com os piratas. Podia também exprimir as suas dúvidas acerca da confiança que o prefeito lhe inspirava, quanto à questão
de recuperar os pergaminhos e de os entregar a Narciso. Mas assim que estas ideias lhe atravessaram a mente, percebeu que não valia a pena tentar repor a verdade.
Vitélio era um dos favoritos de Cláudio, desde que recebera todo o crédito por salvar o Imperador da lâmina de um assassino, durante a visita imperial às tropas
na Britânia. E era também um dos agentes em que Narciso mais confiava. A palavra de um humilde centurião pouco peso teria contra a de um aristocrata. Aliás, o mais
provável era que quaisquer acusações que Cato levantasse fossem vistas como maliciosas, pelo menos, talvez até sinistras e malevolentes. Seria assim que Vitélio
apresentaria as coisas, e Cato seria
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simplesmente removido de cena. Mais um cadáver anónimo retirado do Tibre, lançado para uma vala comum e coberto de cal.
Acabou de beber, e voltou a analisar o relatório do prefeito. Ao fazê-lo, um sorriso começou a formar-se no seu rosto. Pois muito bem, se não podia atrever-se a
contrapor a sua versão às mentiras de Vitélio, então alteraria o relatório de forma a que o prefeito se condenasse pelas suas próprias palavras. Inclinando-se sobre
a mesa, Cato pegou nalgumas tábuas vazias e começou a reescrever o relatório.
Algum tempo depois, quando a escuridão começava a cair sobre o porto, recostou-se na cadeira e admirou o trabalho. Vitélio que se safasse daquela agora, pensou.
Atou o molho de tábuas, graças aos buracos nas molduras de madeira, e embrulhou-as cuidadosamente num pano. Depois eliminou os sinais do relatório nas tábuas originais,
com movimentos firmes da outra ponta do estilete. Por fim, aqueceu cera e fê-la pingar sobre o embrulho, antes de marcar e lacrar o relatório assim fechado com o
selo do prefeito da esquadra, que Vitélio lhe confiara. Inspeccionou cuidadosamente o resultado, e sorriu satisfeito, antes de se levantar.
Antes de deixar o gabinete, Cato sentiu-se tentado a deixar o relatório descodificado sobre a secretária, de forma a que, quando regressasse, o prefeito percebesse
o que se passara. Seria uma enorme satisfação fazer Vitélio perceber que tinha sido ultrapassado pelo homem que tentara destruir. Brincou com a ideia, mas depois
afastou-a, embora a contragosto. Pegou no estilete, aqueceu a ponta larga na chama da candeia a óleo, e destruiu o trabalho, assim como qualquer sinal das alterações
à mensagem. Depressa Vitélio saberia que o seu plano tinha sido desmantelado. Ele que ficasse depois roído pela dúvida sobre as razões de tamanho fracasso.
Abriu a porta e saiu para o salão da entrada.
- Tu! - Fez sinal a um dos escrivães, ainda sentado à secretária.
- Vem cá!
- Sim, senhor.
- Leva este despacho à secção de correios. Deve ser enviado imediatamente para Roma.
- Sim, senhor.
- Será melhor que o correio saia pelo portão da praia. Não faz sentido obrigá-lo a enfrentar a multidão. Trata disso.
O escrivão fez a saudação e apressou-se a deixar o gabinete, transportando o despacho nas duas mãos. Cato teve de lutar para dominar a excitação nervosa que ameaçava
tomar conta de si. Antecipar o momento em que Vitélio perceberia que tinha sido enganado era extraordinariamente reconfortante. Agora, só os deuses poderiam salvar-lhe
carreira e reputação.
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XXIV
A boa disposição de Cato mantinha-se quando, depois de escurecer, saiu da base naval através de uma quase escondida porta lateral. Estava frio, e havia um vento
ligeiro que percorria as ruelas em rajadas, arrastando com ele um chuviscar persistente. Puxou o capuz para a frente e acomodou os ombros sob as dobras de lã da
capa que o cobria. Da turba que se manifestara em frente ao portão principal já só restavam cerca de uma centena de irados e bem bebidos personagens, mas não valia
a pena arriscar a vida tentando passar pelo meio deles para alcançar as ruas escuras de Ravena. Cato tinha tirado o uniforme, e vestia apenas uma túnica sem adornos
e uma capa de mar, acompanhadas por sandálias simples; as vestes típicas dos marinheiros que se viam pelas ruas próximas ao porto. Circundou a frente marítima e
os cais e dirigiu-se à labiríntica rede de vielas e becos que delimitavam a zona mais degradada do bairro.
A rua em que se situava o Delfim Dançarino tinha um ambiente muito mais tranquilo do que da última vez que Cato ali estivera. Os fuzileiros e o restante pessoal
da marinha imperial tinham sido os principais clientes dos incontáveis bares e bordéis da área. Viam-se, sentadas pelas alcovas rodeadas por cortinas, prostitutas
desocupadas, com expressões desalentadas, que rapidamente se transformavam em olhares profissionais que se queriam sedutores quando alguma delas se apercebia da
aproximação do centurião. Este recusava-se a encará-las, ou a dar qualquer sinal de que escutava as propostas explicitamente sexuais, enquanto prosseguia de cabeça
baixa.
Não havia mais do que um punhado de clientes no Delfim Dançarino quando Cato entrou. Enquanto olhava em redor, manteve o capuz erguido. A única face que reconheceu
foi a do homem que, por trás do balcão, com um cotovelo apoiado na madeira, esperava pela oportunidade de servir um cliente. Olhou para o recém-chegado com esperança,
e o centurião abriu caminho por entre os desordenados bancos e mesas,
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dirigindo-se ao balcão. O homem deu-lhe um leve e pouco convincente sorriso de boas-vindas.
- Boa-tarde. O que é que vai ser?
- Mulso.
- Certo. - Tirou uma concha cheia de um recipiente fumegante, e encheu uma taça de bronze, fazendo-a deslizar pelo balcão na direcção de Cato. - São três
moedas.
O jovem extraiu as pequenas moedas da bolsa e bateu-as no balcão. Apesar do elevado preço a bebida era quase intragável, e Cato sentiu o sedimento que lhe ficava
na boca quando engoliu o primeiro gole quente.
O homem devolveu a concha ao recipiente.
- Mais alguma coisa?
- Sim. - Sorveu mais um trago. - Pórcia. Tenho de falar com ela. Informa-a de que estou aqui.
- E tu és...?
- O centurião Cato. Ela conhece-me.
O homem afastou-se ligeiramente do balcão, avaliando o interlocutor. Tornou-se claro que não lhe atribuía grande importância, pelo que meneou a cabeça.
- Não a podes ver. Ela não está.
- Muito bem, engraçadinho. Então, onde é que está?
O ar de enfado que atravessou o semblante do homem enquanto tentava inventar uma desculpa foi suficientemente claro para Cato.
- Hã... Ela, hã... Foi falar com o fornecedor dos vinhos.
- Estou a ver. E, evidentemente, ele só trata de negócios à noite, suponho?
- Pois é... Hã, não. De facto, trata-se de um favor especial.
- A sério? - Cato sorriu sem qualquer expressão de humor, e depois inclinou-se para o homem. - Olha, pá, sei muito bem que ela está neste edifício. Não vale
a pena negares. Vai mas é dizer-lhe que o Cato - o amigo do Macro - está aqui e precisa de lhe falar com urgência. Agora vai. Antes que tenha de te obrigar.
Sentiu que o coração acelerava enquanto enfrentava o olhar do outro, tentando fazer-se passar pelo tipo de homem que não aceitaria um não como resposta. O empregado
encarou-o, enquanto limpava lentamente as mãos num pano imundo. Por fim, cerrou os lábios e emitiu uma fungadela de desprezo.
- Já disse que ela não está. Portanto, acho que o melhor é acabares de beber e saíres, senão vou ter de te pôr na rua eu mesmo.
Cato puxou do gládio que levava por baixo da capa e, num rápido movimento, dirigiu-o ao peito do outro.
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- Parece-me que o melhor é ires mesmo ver se ela está.
Os olhos do homem não se conseguiam afastar da ponta da lâmina, e ele acedeu prontamente.
- Ah, lembrei-me agora. Ela deve estar a tratar das contas. Vou dizer-lhe que está aqui.
Cato concordou.
- Muito obrigado.
Manteve a espada pronta, e o outro recuou cautelosamente ao longo da parede por trás do balcão até se ver fora do alcance da arma, e depois esgueirou-se pela porta
que dava para o corredor. Quando o tipo desapareceu de vista, Cato embainhou a espada e procurou verificar qual a reacção dos outros clientes à altercação. Alguns
tinham-se virado para ele, curiosos com os acontecimentos no balcão, mas a maior parte continuava a falar com os companheiros em voz baixa, ou a olhar em frente
num transe alcoólico. Virou a atenção para a sua bebida e ergueu a taça. Recordou então o sedimento áspero, e voltou a pousá-la, com uma careta.
- O que há de errado com a tua bebida?
Surpreendido pela voz que o interpelava, olhou em redor ansioso, antes de se esforçar por recuperar a compostura. Pórcia encontrava-se na ombreira, ainda na escuridão.
Ouviu-a rir.
- O meu empregado disse-me que tínhamos um durão no bar. Não disse nada sobre um rapazola.
- Qual rapazola? - Respondeu Cato, rangendo os dentes. - Um centurião.
- Um jovem susceptível, com que então. - Ela avançou para a luz, e Cato apercebeu-se do sorriso de troça que ela nem sequer se esforçava por esconder. Sentiu
que corava enquanto Pórcia se aproximava, enfrentando-o do outro lado do balcão. - Pensava que estavas para as bandas da Ilíria, a ajustar contas com os piratas.
- A amarga ironia das últimas palavras ficou no ar como se fosse uma acusação.
- E estava. Mas o prefeito precisou de alguém para vir buscar reforços.
- Já tinha ouvido. Deixam-nos à mercê do primeiro atacante.
Cato nada disse, mas baixou o olhar, numa tentativa de esconder a
culpa que sentia.
- Que posso eu fazer por ti, centurião? É por causa daquele idiota do meu filho?
Cato assentiu.
- Sim. Isso, e outra coisa.
Ela franziu as sobrancelhas cuidadas.
- Parece algo portentoso. Há notícias do meu homem?
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- Minúcio? Está a salvo. - Cato recordou a frágil muralha erguida em redor do que restava do efectivo da esquadra de Ravena. - Pelo menos, estava, da última
vez que o vi.
- Está bem. - Repetiu Pórcia suavemente, antes de passar a mão pelo cabelo que tinha apanhado num rabo-de-cavalo simples. - Ainda bem. Amanhã farei uma oferenda
aos deuses para que assim se mantenham.
- Plural? - Cato não evitou um sorriso.
- Porque não? Até mesmo aquele imbecil do teu amigo deve precisar de uma ajudinha dos deuses.
Estabeleceu-se um silêncio embaraçoso, até que Cato reuniu a coragem necessária para dizer o que queria.
- Sabes, acho que estava na altura de uma pequena reconciliação.
- Então será melhor que lho digas a ele. - Respondeu Pórcia com firmeza. - Da última vez que vi o meu filho, pareceu-me que ele não queria mais do que transformar
o meu futuro marido numa polpa e dar cabo da minha vida.
Cato deu um rápido relance pelo bar decadente, e Pórcia imediatamente se apercebeu do desdém do centurião.
- Podes achar que isto não é grande coisa, mas há anos que me põe o pão na mesa. Eu e o Minúcio enterrámos aqui cada sestércio que conseguimos poupar. Se
não tivesse conseguido algum dinheiro extra há pouco tempo, nunca perdoaria ao Macro os estragos que ele provocou na outra noite. Seja como for, vou vender isto.
Assim que o Minúcio regressar, deixamos Ravena.
- Deixar Ravena?
- Cato, não quero acabar os meus dias a servir ao balcão. Eu e o Minúcio queremos encontrar uma quinta apresentável e passar a velhice em sossego.
Foi a vez de Cato arquear as sobrancelhas.
- Isto deve estar a dar um bom lucro.
Pórcia fungou.
- Quem me dera. Não. O dinheiro é do Minúcio. Morreu um tio dele, há uns meses. Parece que o homem era suficientemente esperto para não ter filhos. - Acrescentou,
empolgada. - Deixou tudo ao único sobrinho. - Sorriu com amargura. - O que reduz a quase nada todos os anos que dediquei a este sítio, não te parece?
Cato encolheu os ombros.
- Antes tarde do que nunca. E o mesmo se aplica a fazer as pazes com o Macro.
- Não te estás a esquecer de qualquer coisa? Eu deixei-o, a ele e ao
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pai. Larguei-os e fui-me embora com outro homem. És capaz de imaginar como isso o terá magoado, um miúdo tão novo? Apesar de ter tido as minhas razões, nunca me
consegui perdoar por o ter deixado para trás. Muitas vezes imaginei o que ele terá passado - isso atormentou-me tantas vezes... E sempre tive a sensação de que,
por muito difícil que fosse para mim, para ele ainda era pior, mesmo que para aquele inútil bêbado do pai dele nada tivesse importância. Podes ter a certeza de que
o Macro nunca me perdoará.
- Talvez o faça, se lhe deres essa possibilidade. - Retorquiu Cato.
Pórcia franziu o sobrolho, e depois afagou a mão do jovem.
- Olha, Cato, pareces um miúdo realmente decente. Mas, muito a sério, isto não te diz respeito.
- O Macro é meu amigo. Portanto, isto diz-me respeito.
- Seja como queres, então... - Enfrentaram-se em silêncio durante alguns instantes, antes de Pórcia desviar o olhar. - Muito bem, diz-lhe que estarei disposta
a conversar com ele quando este assunto com os piratas estiver resolvido. Dou-lhe mais uma oportunidade para crescer. Se não estiver para se portar como um adulto,
lavo daí as minhas mãos. Tenho um futuro com o Minúcio, afinal de contas. Não preciso mesmo nada de andar a revolver o passado.
- Acho que é uma atitude compreensível. - Assentiu Cato. - Dir-lhe-ei.
- Bom, se é tudo... Não, espera, falaste doutro assunto.
- Sim.
- Então?
- Lembras-te daquela noite em que viemos cá?
Pórcia arqueou as sobrancelhas.
- Como é que podia esquecê-la?
Cato baixou o olhar para dissimular a vergonha.
- Estava outro tipo connosco. Um mercador. Anobarbo.
- Lembro-me dele. Um homem atraente.
- Voltaste a vê-lo depois dessa noite?
- Durante alguns dias, não. Mas depois voltou a aparecer por cá. Veio umas duas ou três vezes. Direitinho ao primeiro homem da esquadra que avistasse. - A
memória fez Pórcia sorrir. - Não se importava nada de mostrar o dinheiro. Da última vez pagou uma rodada geral.
- A sério? - Cato assumiu um ar inquisitivo. - Tens alguma ideia de onde o posso encontrar? Precisava de lhe dar uma palavra.
Pórcia abanou a cabeça.
- Lamento. Não faço ideia... Mas podes perguntar àquele tipo.
- Indicou um homem esparramado sobre uma mesa ao lado da porta, a cabeça a repousar entre os braços cruzados.
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- Aquele?
- É um dos encarregados dos armazéns. É ele quem contrata os estivadores para todos os armadores e mercadores do porto. Se alguém sabe onde está o homem que
procuras, é ali o Lécio.
XXV
- Lécio? - Cato debruçou-se sobre o sujeito, embora o nariz se lhe franzisse perante o fedor a vinho e suor. No banco, ao lado do homem, via-se uma capa enrolada;
ele tinha vestida uma túnica de cabedal sem mangas, suja e gasta por anos de trabalho duro no porto. Lécio não se mexeu, e o centurião inclinou-se mais sobre ele
e sacudiu-lhe os ombros, uma massa de músculos tatuados. - Lécio...
O homem resmungou e os seus olhos entreabriram-se, enquanto os lábios deixavam escapar um arroto. Cato pestanejou perante o odor fétido a vinho e alho que o atingiu
em cheio.
- Magnífico.
Agarrou de novo os ombros do homem, e sacudiu com força.
- Lécio! Acorda, homem!
- Desaparece. - Lécio abanou a mão na direcção de Cato, tentando afastá-lo. - Deixa-me em paz, 'da-se, não se vê que 'tou a dormir?
- Não, não estás. - Cato sacudiu-o de novo, agora com mais força. - Tenho de falar contigo. Levanta-te! - Olhou para o balcão. - Um jarro de água, se faz
favor!
Enquanto esperava que lhe trouxessem o que pedira, largou o chefe dos estivadores, que imediatamente mergulhou no mesmo torpor, resmungando de forma incoerente enquanto
franzia o nariz. O empregado do bar emergiu da copa e dirigiu-se a Cato com um jarro e duas taças. Pousou-as na mesa, junto a Lécio.
- Senhor, quer que despeje?
- Sim, tudo, se fizeres o favor.
O taberneiro olhou para as taças e fez uma cara de espanto.
- Não é nos copos, imbecil! Por cima dele! Despeja-lhe o jarro em
cima.
Lentamente, um sorriso iluminou o rosto do homem.
- Ah, já estou a perceber!
Pegou cuidadosamente no jarro, apontou e virou-o, fazendo
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desabar uma verdadeira torrente sobre o estivador. Assim que o jarro ficou vazio, saltou para longe, evitando envolver-se na confusão que previa. Lécio sacudiu-se,
confuso e furioso.
- Foda-se, o que é isto...? - Os olhos percorreram as proximidades e fixaram-se em Cato. - Tu! O que é que estás a...
- Calado! - Interrompeu-o Cato, com brusquidão. - Deixa-te estar quieto e responde às minhas perguntas.
- Quieto? - Lécio riu. - Ná. Primeiro vou-te dar cabo dos cornos, meu grande cabrão.
Moveu-se, passando o enorme braço sobre a mesa e varrendo tudo o que estava sobre ela, fazendo as taças voar e esmagarem-se contra a parede. Mas antes que pudesse
levantar-se do banco, Cato tinha dado um passo atrás e, com ar resignado, empunhara a espada. O centurião sorriu, fatigado.
- Vamos lá a ter calma! Senta-te.
Lécio estacou, avaliando a nova situação de olhos semicerrados: uma espada, e o jovem que a empunhava. Com a água fria ainda a escorrer-lhe pelos desgrenhados caracóis
oleosos e colados ao escalpe, já estava suficientemente sóbrio para perceber que estava em desvantagem. Deixou-se tombar no banco e afastou-se de Cato, apoiando
as costas contra o estuque rachado da parede.
- Muito bem. - Cato tentou acalmar-se. - Agora que tenho toda a tua atenção, vou fazer-te algumas perguntas. O nome Anobarbo diz-te alguma coisa?
- Anobarbo? - O outro ergueu a mão e esfregou o queixo, enquanto pensava. - Nunca ouvi falar nele.
- Esforça-te mais. - Ameaçou Cato. - Um tipo com uma certa idade. Magro. Negoceia em arte.
- Talvez o conheça, sim. - Reconheceu Lécio, lentamente. - O que tenho eu a ganhar com esta história?
- Evitas uma detenção na base naval, para interrogatório. - Cato lançou-lhe um sorriso sardónico. - Será bem melhor para ti responderes às minhas perguntas
aqui do que obrigares-me a entregar-te aos meus homens, para que te arranquem as respostas à pancada. Portanto, volto a perguntar: conheces esse tipo?
- Seja. Deixa-me pensar... Esse Anobarbo, chegou ao porto há uns
dias?
- Sim, parece ser o tipo que procuro. Trabalhaste para ele?
- Não.
- Sabes de alguém que o tenha feito?
- Não.
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- Lécio, se não queres passar umas horas dolorosas com os meus homens, tens de fazer melhor do que isso. Estou a ser claro? - Cato fixou o adversário, obrigando-o
a baixar o olhar.
- Sim, senhor, está a ser claro. E sim, conheço-o. Faz parte do meu trabalho saber quem ele é, bem como todos os outros mercadores e negociantes que passam
pelo porto. Assim que soube que estava por cá um tipo novo, fui falar com ele.
Um pensamento ocorreu a Cato. Anobarbo tinha chegado a Ravena integrado num comboio militar, e por isso não tinha pagado a taxa de entrada, nem tinha tido de se
registar, dando o nome e a ocupação.
- E como é que soubeste da sua chegada?
- Foi fácil. Desde que chegou, ele tem entrado e saído da cidade várias vezes, para fazer algumas transacções. Tenho um miúdo a vigiar os portões da cidade.
Sempre que vê alguém que ache que me pode interessar, faz umas perguntas sobre o visitante. O costume: o nome, o negócio e onde é que está hospedado.
- Estou a ver.
- Seja como for, este Anobarbo parecia interessante, portanto fui ao local que o puto me tinha indicado.
- E o que sabes dos negócios dele?
Lécio encolheu os ombros e esfregou os olhos avermelhados.
- Não muito, para dizer a verdade. Segundo ele, negoceia estátuas, urnas, olarias, móveis. Peças de qualidade. Diz ele.
- Viste alguma das mercadorias?
- Uma ou outra. Alugou espaço no armazém de um primo meu, para as guardar. Peças da região, adquiridas aqui e ali. Nada de extraordinário, se me entende.
- Lécio sorriu. - Vivemos no cu da península. Demasiado distantes e desgraçados para o gosto dos vossos milionários lá de Roma. Já quanto a antiguidades, a coisa
é diferente. Há anos que andam por aí agentes, revirando tudo à procura de cacos e trastes velhos. Já limparam praticamente a região, por isso passaram para a Grécia
e a Ásia, sempre à caça de peças que possam enviar para os clientes.
Cato coçou o queixo.
- Então, porque é que este Anobarbo ainda anda por cá?
Lécio olhou-o, surpreso.
- Pela mesma razão que faz com que todos os outros mercadores não se atrevam a pôr o pé lá fora. Os piratas. Seja como for, ele está à espera que chegue o
seu navio, carregado de estátuas da Grécia.
- E esse navio tem nome?
Lécio anuiu.
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- O Príapo. É dos rijos. Lento, mas robusto.
- Conhece-lo?
- Sim. O capitão é meu primo. Já devia ter chegado, há mais de um
mês.
- Achas que os piratas o apanharam?
- Pode ser que sim. Por outro lado, o Cássio sabe muito bem o que faz. E, se bem o conheço, está abrigado e perdido de bêbado num porto algures, à espera
que o tempo melhore e que vocês façam alguma coisa de jeito, como por exemplo dar cabo dos piratas.
A expressão de Cato mostrou o desagrado que sentiu perante o remoque. Depois acenou na direcção do jarro de vinho, vazio, na ponta da mesa.
- Estou a ver. Tu e a tua família bebem, enquanto os meus homens morrem. E assim segue a vida, não é?
Lécio encarou-o, sem vacilar perante a expressão gélida no olhar do centurião.
- Senhor, não quero ser desrespeitoso, mas é para isso que lhes
pagam.
Era bem verdade, reflectiu Cato, e o homem tinha todo o direito de insinuar que a esquadra não estava a cumprir o seu papel. Afastou tais pensamentos e voltou a
focar a sua atenção no presente. Portanto, Anobarbo tinha algumas provas de que era quem dizia ser. Ainda assim, aquele tipo de actividade podia ser um disfarce
muito adequado para alguém que se demorava na região com outro propósito. Cato olhou de novo para o chefe dos estivadores.
- Tanto quanto sabes, este tipo já tinha passado alguma vez por Ravena?
- Talvez. - Lécio passou a mão sobre o cabelo curto. - Não faço ideia. Passa por cá muita gente.
- Sabes onde é que ele está alojado?
Lécio anuiu.
- Arranjou um belo poiso. Hóspede de honra do Rúfio Polo, um dos membros do conselho da cidade.
- Conheço-o. - Cato sorriu ligeiramente. - Já nos encontrámos. Parece que o nosso amigo Anobarbo tem bons contactos por cá. Onde é que vive esse Rúfio Polo?
Lécio acenou com a mão, numa indicação vaga.
- Ao pé da estação de bombagem.
- Óptimo. Podes levar-me lá. Levanta-te.
Lécio olhou para Cato, e abanou a cabeça.
- Só depois de acabar de beber.
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Cato apontou para o jarro vazio.
- Já acabaste, parece-me. Portanto, vamos. De pé!
Lécio não se mexeu. Continuou a olhar para Cato, e em seguida
fungou.
- Muito bem. Quanto é que vale essa informação?
- Outro jarro, e a satisfação de saber que prestaste um bom serviço ao Imperador. - Cato sorriu, e indicou a porta com o polegar. - E agora, vamos.
? ? ?
Quando chegaram à casa do líder do conselho, era quase meia-noite. A cidade tinha-se aquietado, e ao longo do caminho não tinham encontrado mais do que um punhado
de pessoas que se apressavam pelo labirinto escuro das ruas de Ravena. Ao aproximarem-se do bairro mais rico da cidade, centrado na estação de bombagem, onde a pressão
da água era suficiente para fazer jorrar as fontes, notaram que as ruelas estreitas tinham dado lugar a vias mais largas. Quase de imediato tinham dado de caras
com uma patrulha da guarda, mas assim que Cato revelara a sua identidade e patente, a patrulha tinha-lhes dado passagem, antes de prosseguir, marchando pelo centro
da rua, o som das botas a ecoar nas paredes altas e a dar amplo aviso da sua aproximação a todos os meliantes.
A casa de Rúfio Polo tinha, no exterior, a típica aparência despretensiosa de uma rica habitação numa cidade romana. Paredes brancas e lisas rodeavam uma pesada
porta de madeira cravejada de pontas metálicas. Sobre os muros escapava-se um leve murmúrio de vozes, entrecortadas por risos; e, quase inaudíveis, notavam-se os
suaves sons de uma flauta.
- Cá estamos. - Anunciou Lécio. - Portanto, passe para cá o dinheiro. O preço de um jarro de vinho, como combinado. - Fez uns cálculos rápidos, depois resolveu
arredondar o preço para o dobro, e estendeu a mão. - Uns seis sestércios devem chegar.
Cato afastou-lhe a mão com um gesto brusco.
- Só depois de concluirmos o trabalho.
Avançou até à porta, e deu duas pancadas fortes com o batente de ferro. Quase de imediato, abriu-se a fresta de observação e um par de olhos avaliou-os.
- O que desejam, a esta hora da noite? - Antes que Cato pudesse responder, o homem reparou nas roupas que o jovem envergava, e prosseguiu sem pausa. - Desapareçam,
antes que chame a guarda para tratar de vocês.
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- Se fosse a ti, não faria isso. - Retorquiu Cato. - Só conseguirias embaraçar o teu senhor. Vai dizer a Rúfio Polo que o comandante interino da base naval
deseja vê-lo.
O porteiro voltou a olhar para Cato de alto a baixo, desta vez com mais atenção.
- Comandante interino? Pois sim... Não serás antes o tambor interino? Vá, ponham-se a andar!
Cato desembainhou a espada e atingiu a orla da fresta com o punho da arma, fazendo o homem dar um pulo atrás.
- Sou o centurião Gaio Licínio Cato, o oficial mais graduado da esquadra de Ravena presente na cidade. Em nome do Imperador, exijo falar com Rúfio Polo! Já!
O porteiro olhou-o espantado por algum tempo, antes de resmungar.
- Espere aqui.
Fechou bruscamente a janela de inspecção, e deixou Cato e Lécio a olharem para a porta fechada. O jovem sentia-se embaraçado perante o desrespeito da sua autoridade,
e a princípio não se atreveu a enfrentar o olhar do estivador, temendo que o outro não escondesse alguma risada face à fífia do centurião. Em alternativa, virou-se
para o outro lado e inspeccionou o céu. As nuvens tinham-se dispersado, e no profundo negro do firmamento só se viam os pontos luminosos das estrelas.
- O tempo deve estar bom amanhã. - Disse, para fazer conversa.
- Vou ter mar calmo para a travessia.
- Talvez sim. - Lécio cuspiu para a sarjeta. - Talvez não. Nesta época, o tempo muda num instante.
- A sério? - Cato olhou para o companheiro. - Ora aí está um pensamento animador, na véspera de uma viagem.
A ironia perdeu-se no ar alheado de Lécio, que se pôs a coçar as
costas.
- A mim não me apanham outra vez no mar, nem que me paguem. Bom, talvez, se me pagassem bem, mas mesmo muito bem... O mar é um grandessíssimo cabrão caprichoso.
Cato arqueou as sobrancelhas.
- Bela imagem. Estou a ver que já fizeste vida de mar. Negócios? Ou foste marinheiro?
- Sim, andei embarcado. - Lécio contemplou as estrelas e estremeceu involuntariamente.
- E porque é que deixaste a profissão?
- Gosto demasiado da vida. Ou melhor, gosto demasiado de beber para desperdiçar a vida doutra maneira. O mar não é lugar para um
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homem. Não é natural. É bom é para os peixes e para os demónios que habitam nas suas profundezas.
Olhando para o rosto do homem, Cato viu nele, pela primeira vez naquela noite, a expressão de um terror profundo. Lécio tossiu para limpar a garganta, e tentou dar
uma aparência de tranquilidade às suas palavras.
- Sim, demónios. E piratas. Este bando tem sido dos piores. Atacam os navios, matam os tripulantes ou vendem-nos para a escravatura, e desaparecem. E de cada
vez que a marinha tentou encontrá-los, falhou. É como se eles soubessem onde e quando é que os nossos iam aparecer. Tem de haver nessa história alguma espécie de
magia.
- Ou então há alguém que os informa. - Sugeriu Cato, calmamente.
Com um repentino estrépito, a porta foi destrancada e depois aberta silenciosamente, graças às dobradiças bem oleadas. O átrio de entrada estava escuro, mas viam-se
luzes a brilhar ao fundo de um corredor longo e de tecto alto, que dava para um pátio ajardinado. O porteiro acenou-lhes para que entrassem e voltou a fechar a porta.
- Por aqui, senhor. O amo recebê-lo-á à mesa.
Cato fez uma pausa.
- À mesa? Não há necessidade disso. Se ele quiser, pode ser discreto. Não quero perturbar-lhe a vida.
- Mas isso já foi feito, senhor. - O outro inclinou a cabeça. - Se me quiser acompanhar...
- Muito bem. Lécio, espera aqui. Porteiro!
O homem virou-se de novo, lutando para afastar da face uma expressão de irritação.
- Sim, senhor? - Respondeu, exasperado.
- Traz a este homem um jarro de vinho.
As sobrancelhas do outro arquearam-se em surpresa perante tal exigência, mas depois sorriu untuosamente.
- Verei o que posso arranjar para o seu homem se refrescar, senhor, assim que o tiver conduzido ao meu amo.
- Obrigado.
O porteiro virou-se, fez outra pausa para o caso de haver mais algum pedido, e conduziu Cato pelo corredor. Passaram por paredes revestidas por ricas tapeçarias,
que abafavam o som dos seus passos. Bustos elegantes, dos membros da família, supôs Cato, viam-se em nichos dispostos a intervalos regulares.
Emergiram para o jardim, repleto de estátuas, e muito bem iluminado por centenas de archotes pendurados em treliças. Estava-se no início da Primavera, e havia numerosos
braseiros espalhados pelo jardim, adicionando
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o fumo que produziam aos rolos gordurosos que se libertavam das tochas. Um salão de banquetes dava para o jardim, e havia inúmeras mesas espalhadas pela área, onde
tinha sido servido um festim. Semideitados nos cadeirões, viam-se os convidados, ricamente vestidos, A refeição tinha terminado, e os escravos recolhiam os últimos
pratos, tentando manter-se invisíveis, sem falar nem ousar qualquer contacto visual com os convivas. Muitos dos comensais tinham já abandonado a mesa e passeavam
pelo jardim, conversando nos tons elevados e descuidados de quem bebeu demasiado e não se preocupa em manter qualquer reserva. A um dos lados via-se um pequeno grupo
de músicos, que tinha acabado de pousar os instrumentos quando Cato passou por eles.
Procurou Anobarbo por entre os convidados, mas o mercador não estava à vista.
- Centurião!
Cato olhou para a cabeceira da mesa e viu Rúfio Polo a sentar-se, de braço levantado para lhe chamar a atenção.
- Aqui! Vem juntar-te a mim.
Furando por entre um grupo de adolescentes excitados, Cato dirigiu-se ao anfitrião da festa e acenou com a cabeça, à laia de saudação. Polo deu uma palmada no lugar
vazio à sua esquerda e, no mesmo movimento, fez sinal a um escravo.
Cato sentou-se na ponta da cadeira, de frente para o interlocutor.
- Bela casa que aqui tens, Rúfio Polo.
Polo sorriu com ar modesto.
- Oh, estou certo de que faria fraca figura em comparação com as casas de Roma.
- Fraca? - Cato abanou a cabeça. - Asseguro-te de que não perderia na maior parte das comparações.
- És muito gentil. - Retorquiu o conselheiro. - Temo que tenhas perdido o banquete, mas já mandei um dos meus escravos ver se há alguma coisa que te possa
ainda servir.
Cato afastou a ideia com um gesto da mão.
- Agradeço a tua oferta. Mas tenho de recusar. Já jantei.
- Tens a certeza? Muito bem, então. - Estalou os dedos e apontou para o escravo um dedo magro e longo, mandando-o embora. O homem baixou a cabeça de imediato,
recuou dois passos e desapareceu de vista.
- A que se deve a celebração? - Quis saber Cato.
- Celebração? - Polo deu uma risada, sem vontade. - Bem, centurião, de certa forma pode-se dizer que estou a celebrar - se alguma vez se pudesse usar essa
palavra - a tua decisão de nos deixares à mercê dos piratas. Uma última festa para esgotar as minhas reservas, antes de deixar
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Ravena com a minha família e ir refugiar-me na propriedade que tenho longe da costa. Muito longe.
- Não te parece que essa atitude é um tanto alarmista? - Contrapôs Cato.
- Achas? - O outro riu. - Imaginas quantas destas festas estão a decorrer hoje? Ficaria surpreendido se amanhã por esta hora ainda estivesse por aí um terço
das famílias que habitam nesta zona. E quem os pode criticar? Nem um só fuzileiro ficará na cidade para se opor aos piratas quando eles vierem.
- Se vierem.
- Quando vierem. - Repetiu Polo, com firmeza. - Como poderiam resistir?
- E não ficarão sem guarda. Deixo na base uma centúria de fuzileiros.
- Sim, para a proteger. - Interrompeu-o Polo, com argúcia. - Não a nós. Aliás, suponho mesmo que só os deixas por cá para que protejam a base da nossa fúria...
Cato ignorou o reparo, e prosseguiu em tom calmo.
- Seja por que for, eles ficam; com alguma sorte, até serão suficientes para convencer Telémaco e os seus piratas de que Ravena continua a estar bem defendida.
- Duvido que ele leve muito tempo para perceber o embuste.
- A sério? - Cato perscrutou o seu interlocutor. - Porque é que pensas assim? Porque haveriam eles de suspeitar?
- Ora, centurião, não nasci ontem. Não sou parvo. Alguém tem fornecido aos piratas informações sobre todos os passos da esquadra. Não é propriamente um
segredo... - Olhou para o chão e abanou a cabeça, antes de encarar novamente Cato com um sorriso forçado. - Mas não estou a cumprir as minhas obrigações de anfitrião.
Em que posso ajudar-te?
Por momentos Cato ficou a olhar para o outro, tentando perceber o que saberia ele realmente sobre a fonte de informações dos piratas. Polo não se atreveria a revelar
tudo a um homem que tinha centenas de fuzileiros à sua disposição. Mas a realidade era que o centurião estava ali sozinho, e naquele instante os soldados podiam
estar noutra província. Sentiu-se repentinamente vulnerável, mesmo entre dezenas de convidados, e ao olhar rapidamente em redor, não deixou de reparar num grupo
de amigos de Polo que os observava atentamente.
O outro sorriu perante o desconforto do centurião.
- Como disse, há alguma coisa que possa fazer por ti, antes de deixares a minha casa?
- Quem disse que eu ia sair?
- Acredita em mim. Vais fazê-lo, daqui a pouco.
- Muito bem. Diz-me uma coisa. Estou à procura de alguém. Um amigo. Disseram-me que ele estava hospedado na tua casa.
- Bem, como podes ver, tenho neste momento mais hóspedes do que se podem contar. - Polo abriu os braços, abarcando a multidão. - É verdade que alguns destes
trastes até têm casas aonde regressar... Como se chama o teu amigo?
- Anobarbo.
Os olhos de Polo não conseguiram desmentir a surpresa que a menção daquele nome lhe provocou, mas ele recuperou rapidamente e inclinou ligeiramente a cabeça. Olhou
intensamente para o centurião durante um momento, e depois baixou a voz e aproximou-se de Cato.
- Amigo, dizes tu? Se eu te perguntasse o que busca o cego, o que é que me responderias?
Cato franziu o sobrolho. Não sabia nada acerca da família do mercador, e a estranheza da pergunta deixara-o surpreendido. Abanou a cabeça.
- Não faço ideia. Cego? O que é que queres dizer?
- Não é nada. - O olhar de Polo desviou-se ligeiramente, e ele fez um gesto na direcção do átrio de entrada. - Anobarbo esteve cá, sim. Foi-se embora ao princípio
da noite. Muito antes de tu chegares.
- E onde foi?
- Não sei.
- Estou a ver. - Fez uma pausa, e prosseguiu. - Posso perguntar-te como é que ele acabou hospedado em tua casa?
- É muito simples. Temos amigos comuns em Roma. Disseram-lhe para vir ter comigo quando viesse a Ravena.
- Que amigos?
- Amigos, é tudo. - Polo sorriu. - Diz-me, centurião, suspeitas que o Anobarbo tenha cometido algum crime?
- Por acaso disse isso?
- Não. Mas acho estranho que procedas a uma investigação a esta hora da noite. Porque é que procuras o Anobarbo? Achas que ele está realmente envolvido nalgum
crime? Traição, talvez?
Cato fez uma pausa antes de responder.
- Quero apenas eliminar o nome dele da minha lista de suspeitos.
Polo mostrou-se surpreso.
- Tens uma lista?
- Não posso revelar informações oficiais.
- Compreendo... - Recostou-se, sem desviar os olhos do centurião.
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Fingiu um bocejo. - Bom, temo que agora devas partir. A minha hospitalidade está a atingir o limite, estou cansado. Os meus homens acom->ánhar-te-ão à porta.
- Tal não será necessário. - Cato recuou alguns passos. - Sei o caminho. Desejo-te uma boa noite, Rúfio Polo. Até ao nosso próximo encontro.
Polo abanou a cabeça, e acenou a um par de escravos de aspecto obusto que se mantinham ao fundo do salão, apontando discretamente para o centurião. Cato virou-se
e encaminhou-se rapidamente para o corredor. Espreitou sobre o ombro e percebeu que os dois escravos tentavam alcançá-lo, abrindo caminho por entre os convidados
que enchiam o salão. Assim que se viu livre da turba, correu pelo corredor, ignorando as expressões de surpresa dos convidados, a quem o som das suas botas no soalho
despertara a atenção.
- Lécio! - Gritou. - De pé! Vamos embora.
À sua frente, o vulto maciço do estivador saiu das sombras, um jarro de vinho na mão.
- O que é, senhor?
- Abre a porta!
Cato lançou-se para a frente; quando Lécio percebeu finalmente o tom urgente na voz do centurião, já este estava a seu lado, debatendo-se contra a porta, os dedos
numa procura desenfreada pelo pesado ferrolho de ferro que a trancava. Lá atrás ouviam-se passos apressados pelo corredor. Conseguiram finalmente soltar a tranca
e puxar a porta, que abria para dentro.
- Vamos! - Gritou Cato, empurrando Lécio para a rua. - Core!
Saltaram pelos degraus que davam acesso à entrada e quando se viram sobre o empedrado, correram para o emaranhado das ruas de Ravena. Pouca distância tinham percorrido
quando os homens de Polo saíram da casa, as lâminas das adagas que empunhavam a brilhar timidamente à luz que vinha do interior.
Um deles apontou-os.
- Ali!
- Mas que raio se passa? - Protestou Lécio, enquanto corria ao lado do centurião. Este nada respondeu, limitando-se a cerrar os dentes e a dirigir-se para
uma ruela escura, esperando que não se revelasse um beco sem saída. Estava tão negro como no coração de um párcio, e havia lixo es-palhado em montes abandonados
há muito, que ameaçava fazê-los escorregar a cada passo que davam, enquanto tentavam ganhar terreno aosperseguidores. Viraram à direita e prosseguiram sem diminuir
de velocidade,
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depois viraram à esquerda, para um beco ainda mais estreito que tresandava a excrementos e vegetação podre. A curta distância, Cato apercebeu-se da entrada para
um pátio e foi para lá que puxou o estivador; agacharam-se por trás de uma pequena carroça.
Enquanto esperavam, os pulmões a arder e os ouvidos a troar com o som do sangue a pulsar, Cato desembainhou a espada e espreitou para a entrada do pátio, tentando
descortinar alguma coisa na escuridão do beco. Estava tudo calmo, e não havia sinal dos homens de Polo.
Lécio deu-lhe um puxão na túnica.
- Será capaz de me explicar o que raio se está a passar?
- Quem me dera sabê-lo. - Sussurrou Cato. - Pouco barulho!
Continuaram à espera, mas as ruas estavam em silêncio. Ouviram
uma voz a chamar, a alguma distância, depois uma resposta abafada, e depois mais nada. Cato esperou até ter recuperado completamente o fôlego e a pulsação. Apesar
da imobilidade do corpo, a mente corria-lhe veloz, tentando perceber todos os acontecimentos daquela noite. As suspeitas que tinha albergado sobre Anobarbo pareciam
agora adquirir maior consistência. Mas que relação haveria entre o mercador e Rúfio Polo? Este demonstrara claramente que temia o que quer que fosse que o centurião
soubesse acerca dele, e não tinha hesitado em tentar silenciá-lo. Estariam os dois a vender informações aos piratas? Franziu o sobrolho. Essa ideia não fazia muito
sentido. Mas se nem Polo nem o seu amigo Anobarbo negociavam com os piratas, então para quem trabalhariam eles?
XXVI
Cato deixou Lécio perto da taberna, e ao partir entregou-lhe um punhado de moedas de bronze.
- Compra algum vinho, e vai para casa. - Sorriu. - Bem o mereces.
- Mereço? Porra, depois de toda esta aventura, bem preciso dele. Além disso, talvez precise de beber bastante, até esquecer este fedor.-Agarrou numa ponta
da túnica e cheirou-a, a medo. - Neste estado, a minha mulher nem me vai deixar entrar em casa.
Cato deu-lhe uma palmada amigável nas costas e dirigiu-se à base naval, mantendo-se junto às paredes e atento a qualquer sinal de estar a ser seguido. Enquanto atravessava
Ravena, tentou concentrar-se nas múltiplas linhas conspirativas em que se via enredado. As suspeitas que alimentava em relação a Anobarbo e aos seus prováveis laços
com os piratas pareciam fundadas, e nem eram de estranhar. Trocar informações por dinheiro, mesmo que o negócio fosse com piratas, não devia repugnar particularmente
a um mercador, desde que desse lucro. Mas qual era a relação entre Anobarbo e Rúfio Polo? O grego era claramente mais do que um vulgar hóspede. Senão, porquê enviar
homens em perseguição de um oficial romano? Teria a intenção sido apenas a de o assustar, ou de o despachar de vez? Era fácil de imaginar: uma facada rápida num
beco imundo e deserto, e as suas investigações teriam sido iterrompidas. Mas isso implicava que Polo e Anobarbo estavam em conluio. O que não fazia sentido. O que
teria Polo a ganhar com as actividades dos piratas, que asfixiavam o comércio que alimentava Ravena e era a origem da sua riqueza? Além disso, ele parecia determinado
em abadonar o porto, perante a possibilidade de ataques dos piratas. Tinha muito mais a perder do que a ganhar, se ajudasse Telémaco. Portanto, se Polo e
Anobarbo não trabalhavam para os piratas... Para quem o fariam? Para os Libertadores?
Deteve-se numa esquina para esfregar os olhos. Nos últimos dias
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não tinha conseguido mais do que umas poucas horas de sono, e a cabeça doía-lhe horrivelmente. E pior, sentia a mente obscurecida pela fadiga, e era-lhe difícil
manter-se focado na confusa situação que se lhe deparava. Quando voltou a abrir os olhos e contemplou o mar, apercebeu-se das primeiras luzes da alvorada, que tingiam
os telhados dos edifícios em redor. O céu estava limpo, e o tempo apresentava-se de feição para a navegação. A pequena flotilha de birremes devia estar a preparar-se
para partir, pelo que Cato se forçou a prosseguir, e depressa.
Quando chegou à base, já o Sol se tinha erguido acima do horizonte, derramando luz dourada pelas janelas do gabinete do prefeito e delineando-as na parede oposta.
Semicerrando os olhos, Cato observou o cais. Todas as birremes menos uma estavam ancoradas, e sobre elas podiam ver-se as formas arredondadas dos homens ainda a
dormir. Só o Espartano se apresentava acostado, a prancha de embarque estendida, à espera que Cato subisse a bordo e assumisse o comando. Mas ainda havia uma questão
a resolver antes disso.
Depois de uma rápida passagem pelos seus aposentos, para voltar a envergar o uniforme, Cato dirigiu-se ao edifício do comando. Ao entrar na secção administrativa,
apontou um dedo ao primeiro escrivão que avistou.
- Póstumo, vem comigo. Traz uma tábua.
- Sim, senhor. Senhor, desculpe?
- O que é?
- Alguns dos oficiais perguntaram por si toda a noite.
- E o que lhes disseste?
- Nada, senhor. Apenas o que me ordenou. Estava nos seus aposentos, e não podia ser incomodado sob nenhum pretexto.
- Muito bem. Era tudo o que eles precisavam de saber. Agora, vamos despachar isto.
Assim que o escrivão se instalou num banco junto à secretária do prefeito, Cato ditou as suas ordens.
- Um: passar um mandato para a detenção do mercador conhecido por Anobarbo. Encontrá-lo-ão, em princípio, na casa de Rúfio Polo. Em todo o caso, mantenham
a casa sob vigilância. Depois de preso, Anobarbo deve ser mantido em isolamento, até que o prefeito e a esquadra regressem da Ilíria. Não poderá receber quaisquer
visitas, nem comunicar com alguém seja sob que forma for.
- Dois: Rúfio Polo deve ser vigiado. Quero saber quem o visita, onde é que ele vai, com quem é que fala. Quero um relatório constantemente actualizado, que
possa ler assim que regressar.
Levantou a vista e reparou na expressão de surpresa no rosto do escrivão.
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- Algum problema?
O outro cerrou os lábios.
- Bem, senhor. Rúfio Polo? É o mais rico e poderoso homem de Ravena. E tem alguma influência em Roma. Se descobre que o andamos a espiar...
- Bom, assegurem-se de que ele não descobre. Usem os melhores homens. Mesmo uma cidade pequena como esta deve ter uma boa rede de nformadores.
- Sim, senhor.
Cato perscrutou a expressão do subordinado, em busca de sinais de luplicidade. Podia muito bem suceder que as conspirações que pareciam florescer naquele porto se
estendessem até ao interior da base naval. Mas depois irritou-se consigo mesmo. Começava a ver inimigos em todos os cantos. Por outro lado, talvez fosse melhor assim.
Era a atitude mais segura, mas a verdade é que tinha de deixar a base dali a menos de uma hora, e assegurar-se de que as medidas necessárias para deter os traidores
estavam em marcha enquanto a frota ia tratar da questão dos piratas. Tinha de confiar na lealdade dos servidores do Imperador. Não havia mais ninguém a quem pudesse
recorrer.
Inclinou-se ligeiramente para o escrivão, e indicou a tábua que lhe repousava no colo.
- Há gente neste porto que está a soldo dos piratas, e que os informa de todos os nossos movimentos. Isso já nos custou bastantes navios, e centenas de homens.
Quero saber quem são, e quero tratar-lhes da saúde, se venho a descobrir que alguém os avisou, farei com que os responsáveis paguem com as vidas. Percebido? Isto
é um assunto confidencial. Não digas nada a ninguém, excepto aos homens de que necessitares, e mesmo nessa ltura não lhes digas mais do que eles precisarem para
executar as missões. Póstumo, deixo tudo nas tuas mãos. Tenta não me decepcionar.
- Sim, senhor. Mais alguma coisa?
- Não...
Póstumo inclinou a cabeça.
- Muito bem, senhor. Posso saber que autoridade poderei invocar se as suas ordens entrarem em conflito com as do oficial que ficará no comando da base?
- Espera. - Cato puxou de uma tábua de cera limpa e rabiscou uma nota que cobrisse as instruções que deixava ao escrivão. Quando terninou, reparou numa caixa
sobre a secretária. Pegou nela, abriu-a e extraiu
o selo do comandante da esquadra de Ravena. Pressionou-o contra a cera, verificou que a marca era bem visível e empurrou a tábua na direcção de 'óstumo. -
Aí tens. Até ao regresso de Vitélio, tens a última palavra neste
238
assunto. Só deves usar esta nota se o centurião emitir quaisquer ordens que possam comprometer as investigações.
- Compreendo, senhor.
Cato respondeu à saudação, e o escrivão rodopiou e abandonou o gabinete. Por momentos, o centurião contemplou a secretária, dilacerado entre dois deveres. Acima
de tudo, queria descobrir quem tinha traído os seus compatriotas a favor dos piratas. Para ele, nada havia de mais desprezível do que homens capazes de pôr a sua
ganância à frente do bem comum do Império e de todas as suas gentes. A traição grosseira custar-lhes-ia a vida. Mas nada podia fazer a esse respeito naquele momento.
A centenas de milhas de distância, na costa ilírica, os seus camaradas esperavam pelos reforços necessários para enfrentarem Telémaco e o seu bando de piratas. Talvez
até já tivessem sido novamente atacados, quiçá derrotados e aniquilados. Cerrou os punhos perante tal ideia. Era idiota. Pior, tinha sido um momento de pânico infantil.
Os piratas tinham tido a vantagem no primeiro recontro, mas graças à traição. Para a próxima, os navios romanos não estariam sobrecarregados com provisões e equipamentos,
e seriam mais numerosos. Seria pouco provável que os piratas conseguissem resistir a um segundo embate frontal. Nem mesmo Vitélio seria capaz de falhar nessas circunstâncias.
Tentou recordar-se do seu encontro com Telémaco, com toda a precisão que conseguiu. Era um tipo calmo, calculista, realista e impiedoso. Nunca o conseguiriam atrair
a uma batalha que não pudesse vencer. Era bem mais provável que adoptasse uma estratégia de desgaste, caindo de repente sobre navios isolados e patrulhas pouco numerosas,
castigando os romanos até que estes abandonassem a campanha, ou até que ficassem suficientemente fracos para permitir aos piratas arriscarem um ataque final e devastador.
Presos entre a ambição desmedida de Vitélio e a astúcia e calculismo de Telémaco, era com apreensão que os homens da esquadra de Ravena podiam contemplar o futuro
imediato.
Cato deu um murro na secretária, frustrado. Levantou-se, deixou o gabinete e saiu do edifício. Do outro lado da parada, no cais, o Espartano subia e descia suavemente,
em resposta à fraca ondulação que se fazia sentir. O fuzileiro que montava guarda à prancha de embarque pôs-se em sentido, batendo com a haste da lança no chão quando
Cato se aproximou.
Assim que as suas botas tocaram o convés, Cato gritou ao trierarca:
- Partimos imediatamente!
Cato foi para a ré do navio, para junto do timoneiro, enquanto os marinheiros recolhiam a prancha e soltavam amarras. Depois, vários homens pegaram num varapau grosso
e usaram-no para empurrar o navio
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para longe do cais, começando pela proa e seguindoao longo de todo o DStado, até haver espaço suficiente para se fazerem sair os remos. À medida que o batedor marcava
o ritmo, os remadores faziam as pás entrar e sair da água, fazendo o Espartano avançar e passar pelo resto da flotilha. Ao verem isto, os trierarcas das restantes
birremes deram as suas ordens para que 5 âncoras fossem levantadas e para que os seus navios tomassem posição atrás do navio que levava Cato.
A frota passou a barra sob o olhar de alguns madrugadores, postados no molhe e a bordo de alguns dos navios mercantes que se amontoavam no porto comercial, tentando
esconder-se dos perigos do oceano. Da popa da trirreme, Cato observou a extensão dos armazéns e os telhados vermelhos da cidade que se estendia por trás deles. Já
pareciam pouco mais do que brinquedos, graças à distância que crescia sem cessar.
Com o Sol bem acima do horizonte, o Espartano lançou-se para o mar alto, aproando precisamente ao refulgente astro. A vante subia ao enfrentar as cristas das ondas
que engrossavam, e Cato sentiu que se levantava uma brisa. Assim que os navios se afastaram de terra, o trierarca deu ordens para que os remos fossem recolhidos,
e para que fosse desfraldada a vela principal.
Os olhos de Cato cerraram-se por momentos, abriram-se, voltaram a fechar-se, e o jovem centurião rendeu-se ao acolhedor desejo de repouso. De repente, sentiu-se
a desfalecer, e abriu os olhos mesmo a tempo de evitar uma queda.
- Senhor, está bem?
Cato reparou no timoneiro.
- Sim, tudo bem. Só estou cansado. Acho que me vou sentar um ocadinho.
Deixou-se escorregar até ao convés, encostando as costas à amurada. Uma hora. Não mais. Só uma hora, disse Cato a si mesmo, com firmeza, e no momento seguinte,
a cabeça descaiu-lhe para a frente, até que o queixo se apoiou nas dobras da capa. Respirava regular e pesadamente, completamente esquecido do baloiçar do navio
e da azáfama da tripulação enquanto reparava o navio para o dia de navegação.
O timoneiro contemplou-o, sorriu e abanou a cabeça, antes de voltar a concentrar-se na rota para a distante Ilíria.
- Mantiveram os homens ocupados. - Albino acenou na direcção da costa, e Cato seguiu o gesto e apercebeu-se de que as defesas da testa-de-ponte tinham sido
aumentadas e melhoradas nos poucos dias em que estivera ausente. A curta distância da praia erguia-se um forte de grandes dimensões, com uma muralha alta e um fosso
defensivo triplo. Duas paliçadas estendiam-se até ao mar, para proteger a frota, a maior parte da qual tinha sido levada até ao areal; alguns navios mantinham-se
porém ancorados. No promontório tinha sido estabelecido um fortim de vigia; sob o olhar de Cato foi içado na torre deste um estandarte de aviso, a que respondeu
também um aviso colorido no forte principal. Imediatamente se fez notar um aumento de actividade a bordo dos navios fundeados. O centurião semicerrou os olhos, tentando
perceber o que sucedia, e apercebeu-se de diminutas figuras que formavam no convés dos navios, o equipamento polido a refulgir sob o Sol. Pouco depois os remos surgiram
dos bordos das embarcações, e uma trirreme afastou-se da costa, dirigindo-se ao Espartano, com uma coluna de birremes em formação apertada a segui-la de perto.
Albino virou-se para Cato e sorriu.
- Parece que não querem correr qualquer risco connosco.
Cato anuiu.
- E ainda bem que assim é. A esquadra já teve mais surpresas do que precisava. Talvez o prefeito tenha finalmente aprendido alguma coisa.
Albino deitou um olhar ao centurião.
- Já serviu com ele, não foi?
- Na Germânia, e depois na Britânia. Era o figurão entre os tribunos.
- Estou a ver. E que tal se portou?
Cato considerou a questão por momentos. Recordou a altura em que tinha combatido ao lado do tribuno Vitélio na defesa de uma pequena aldeia germânica contra uma
horda de guerreiros bárbaros que tinha conseguido atrair uma das coortes da Segunda Legião a uma elaborada emboscada.
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Nessas horas desesperadas, Vitélio tinha evidenciado a sua coragem. O problema é que, desde esse momento, tinha demonstrado que não passava de um traidor, sem qualquer
traço de compaixão para com mulher ou omem que se atrevesse a barrar-lhe o caminho para o poder. No percurso do jovem aristocrata já se podiam contar alguns cadáveres.
Era, em condições normais, um homem perigoso, letal para quem quer que o ameaçasse de alguma forma. Decidiu que era melhor não contar toda a verdade a Albino, para
o proteger. Tossiu e olhou para a costa, enquanto respondia.
- Menos mal. Tem tomates. Mas não te metas no caminho dele.
Percebeu que o outro o olhava, à espera de mais, mas manteve o silêncio e, finalmente, Albino aceitou a sua posição, desviando o olhar e íurmurando.
- Percebido, centurião. Obrigado. Não se preocupe comigo. Manter-me-ei à distância.
- Sim, faz isso.
Ouviu-se um grito do cimo do mastro.
- Senhor, o forte está a fazer-nos sinais!
Os dois oficiais olharam para o fortim no promontório, e viram um pendente verde a ondular ao vento, à medida que era içado no poste de riso.
- É uma exigência de reconhecimento. - Explicou Albino. Colocou a mão em concha e gritou na direcção do mastro. - Icem o sinal de aceitação, e mostrem as
nossas cores!
Um par de marinheiros tirou um fardo de material vermelho de um armário e apressou-se na direcção do mastro; prenderam a ponta da imula a uma linha. Foi rapidamente
içada até ao topo do mastro, onde ficou a ondular sob a acção da brisa da tarde. Após uma curta pausa, o pendente que dançava sobre o fortim foi recolhido. Os navios
na baía abrandaram, viraram e dirigiram-se de novo aos pontos em que estavam ancorados. Nesse preciso momento, outra flâmula foi hasteada sobre o fortim; surpreso,
Albino ficou hirto e virou-se para vasculhar o horizonte com o olhar.
- O que foi? - Perguntou Cato, ansioso.
- O fortim avistou outra vela.
- Vela? - Cato pôs a mão em pala e olhou para norte ao longo da costa. Avistou-a quase de imediato: um pequeno triângulo escuro, praticamente invisível contra
as rochas distantes. Ergueu o outro braço e apontou.
Ali! Estás a ver?
Albino seguiu a indicação, esforçando os olhos para tentar distinguiir os detalhes.
- Não... Eu... Um momento. Sim, estou a vê-la. Parece-me uma
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galera. - Fez uma pausa e olhou para Cato, admirado. - Caramba, centurião, tem boa vista. Sem a sua indicação, nunca a teria visto. Estou a ficar velho. - Voltou-se
de novo para a distante vela. - Só pode ser um pirata. A vigiar os nossos movimentos. Bom, já ficam a saber que repusemos os efectivos. Isso fará com que Telémaco
não arrisque outra batalha naval, presumo.
Cato concordou.
- Pois, sobretudo se for tão esperto como parece. Daqui para a frente, será um combate entre a força e a astúcia.
Albino coçou o queixo.
- A questão é: quem tem a força, e quem tem a astúcia?
O céu tinha-se posto de um azul uniforme quando o pequeno esquadrão de reforços remou lentamente até à praia. No convés do Espartano, alguns dos tripulantes ocupavam-se
em posicionar uma grossa estaca, que tinham trazido da coberta, e um cabo robusto que serviria para prender eficazmente a trirreme à margem. Os fuzileiros, e todos
os outros que não tinham uma tarefa atribuída, amontoavam-se na ré do navio, de forma a que a proa se elevasse à medida que se aproximavam da margem. Ouviu-se o
som de um mergulho quando foi lançada uma âncora sobre a popa. O cabo raspou pela amurada, enquanto o navio continuava a avançar para o areal em que se abatiam pequenas
ondas, espumando sobre o declive suave antes de recuarem e voltarem à carga. Mais acima, uma figura distinta observava a aproximação dos navios. A capa vermelha
e a couraça resplandecente revelavam a identidade do vulto: era o prefeito, que avaliava os recém-chegados. Cato olhou para ele com uma expressão de azedume, ao
relembrar os termos do relatório que ele enviara para Roma. Mas depois os seus lábios torceram-se num sorriso, ao recordar a mensagem que enviara no lugar do relatório.
Naquele momento já devia ir a caminho de Roma. Um pequeno estremeção das tábuas sob os seus pés revelou-lhe que a proa encontrara a praia. O navio inclinou-se um
pouco e depois abateu-se com uma sensação mais sólida, e todos os que estavam no convés foram como que empurrados para a frente quando a trirreme se deteve abruptamente.
- Parem de remar! - Ordenou Albino. - Recolham os remos, e baixem as rampas!
Dos dois lados da trirreme, o resto do pequeno esquadrão avançou até à praia e encalhou deliberadamente no cascalho. As rampas foram rapidamente colocadas nas posições
adequadas, nas aberturas próprias nas proas dos navios, e baixadas até à areia. Assim que o caminho ficou livre, Cato marchou pela rampa abaixo e atravessou a areia
até chegar junto ao prefeito, que o esperava de pé no meio dos tufos de ervas que cresciam acima da linha da maré-cheia. Depois de quase dois dias de mar, o chão
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parecia-lhe subir e descer sob os pés, apesar de tentar caminhar com firmeza. O prefeito Vitélio deu um passo à frente, e Cato apresentou-lhe a saudação egulamentar.
- Centurião Cato! Por fim. Começava a imaginar o que te poderia ter sucedido!
O prefeito sorria, mas nada podia esconder a crítica implícita, e Cato cerrou os dentes, irritado, antes de se controlar e responder de forma cordial.
- Senhor, regressámos tão depressa quanto nos foi possível. O trierarca pode atestá-lo.
- Não há qualquer necessidade disso! - Vitélio deu-lhe uma palmada amigável no ombro. - Estamos todos felizes por te ver. Os homens que trazes vão dar jeito.
- Baixou a voz. - A verdade é que precisava desesperadamente de reforços. Da maneira como as coisas se estão a passar, já nem sei se somos nós que estamos à caça
de piratas, ou se são eles que nos andam a caçar.
- Senhor, a situação não pode ser assim tão má.
Vitélio deu uma risada amarga.
- Achas que não? Bem, nesta altura, qualquer optimismo é bem-vindo... - O prefeito fez uma pausa enquanto contemplava o oceano.
- Filhos da puta de cabrões de piratas. Júpiter é minha testemunha, hei-de fazê-los pagar pela audácia de desafiarem Roma.
- Sim, senhor.
- Vamos. Temos de falar. Na minha tenda.
Virou-se e dirigiu-se de regresso aos portões da fortificação, seguido por Cato. No interior, as filas de tendas distribuíam-se à volta da alameda central. A maior
parte era de pele de cabra, como era usual, mas algumas eram de linho e outras de lona, gasta e suja; Cato percebeu que tinham sido cortadas a partir de velas velhas,
para substituir o material perdido. Os omens estavam sentados junto às respectivas tendas, e ao verem os dois oficiais a passar, levantavam-se e faziam a saudação
regulamentar. Notou expressões tensas e cansadas das faces dos soldados, e tentou imaginar o que se teria passado durante os dias em que estivera ausente.
Ao chegarem às tendas do estado-maior, erigidas num pequeno montículo no centro do campo, uma leve brisa agitou os panos, e Cato apreciou a frescura do ar. Mas nesse
instante chegou-lhe às narinas um fedor intenso, o cheiro acre da gordura queimada, que se mantinha sobre o tempo,o, sem ceder às investidas da brisa marítima. Vitélio
olhou em redor enquanto entravam na maior das tendas, e surpreendeu a expressão admirada de Cato.
- É das piras funerárias. Cremámos os mortos há uns dias atrás.
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Cato olhou para o prefeito e notou, com surpresa, que este parecia afectado pela sorte que coubera a tantos dos seus homens.
O prefeito fez uma careta.
- Uma visão que será difícil de esquecer. E haverá mais. Só esta noite perdemos outros oito homens. Um deles não parou de gritar mesmo até ao fim. Entre isso
e os ataques repentinos, não temos tido muito descanso.
- Ataques, senhor?
- É verdade. - Vitélio sorriu, desmoralizado. - Os nossos amigos têm mantido a pressão. Há três dias, desembarcaram alguns homens na costa, a norte. Tem-se
entretido a abater as nossas sentinelas e os grupos de recolha de alimentos, com fundas. De cada vez que envio um destacamento contra eles, fogem para as colinas.
Aliás, o teu amigo Macro está neste momento a persegui-los. Nem precisei de lhe pedir para se oferecer.
- Consigo imaginar a situação, senhor.
- E ao mesmo tempo têm tentado umas expedições mais arriscadas: enviam uns botes à noite, para tentar capturar e levar uma das trirremes. - Vitélio fez um
gesto vago em direcção ao céu, ao mesmo tempo que se deixava cair sobre um dos cadeirões que tinha trazido de Ravena. - Nos últimos dias temos tido a sorte de estar
Lua cheia, e avistámo-los sempre a tempo de os repelir. Mas as noites vão começar a ficar mais escuras. E nessa altura... - Abanou a cabeça.
Cato sentiu que se abatia sobre as suas costas o peso da exaustão e do desespero. Verificava que o prefeito nada tinha feito para tomar a ofensiva. Tinha-se limitado
a esperar no seu campo fortificado, e deixado toda a iniciativa a Telémaco.
- Senhor, então e o seu plano?
- Plano?
- De patrulhar a costa. Para encontrar a base do inimigo.
- Foi cumprido. No dia a seguir ao desembarque, mandei seis trirremes bordejarem a costa. Não encontraram nada. Só um labirinto de ilhotas e braços de mar.
Podia-se esconder a esquadra de Miseno nestas águas, anos a fio, e ninguém descobriria um único navio. Não há hipótese.
Cato manteve-se em silêncio, enquanto observava cuidadosamente o prefeito. O desespero de Vitélio era bem evidente. Depois da derrota sobre a água, as operações
terrestres estavam também a soçobrar, e a situação devia parecer realmente sem saída para o ambicioso aristocrata. E ainda havia, para além de tudo isso, a vital
missão de recuperar os pergaminhos. Cato tinha perfeita consciência de que o seu futuro, bem como o de Vitélio, passava por encontrá-los e garantir que chegavam
às mãos de Narciso em segurança. Mas, enquanto para o prefeito um falhanço nessa missão se traduziria
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numa perda do favor imperial, para Cato e Macro as consequências seriam muito mais sérias. Letais, de facto. Era preciso convencer o prefeito,
provocá-lo, até o levar a dar ordens para atacar.
Além disso, raciocinou Cato, muitos outros tinham a ganhar com uma decisão dessas. Os homens precisavam de uma vitória, e depressa. Não : podia permitir que o inimigo
continuasse a dizimá-los daquela forma. Se acontecesse o pior e a esquadra de Ravena fosse derrotada, todo o Adriático caíria à mercê dos piratas, e levaria meses
até se conseguir reunir outra frota íficientemente poderosa para pôr fim às suas depredações. Perder-se-iam milhares de vidas, portos e povoações seriam saqueados,
e os navios mercantes não se arriscariam no mar alto. O comércio, o sangue da economia romana, seria estancado; de facto, seria estrangulado, tal e qual como Cato
o;ria às mãos de um qualquer carrasco da Guarda Pretoriana. Estremeceu perante a tenebrosa perspectiva. Pois muito bem, o seu destino estava assim directamente ligado
ao destino de Roma. E portanto tinha de convencer Vitélio a agir, e depressa. Pelo futuro de todos eles.
Tossiu, limpando a garganta.
Vitélio pareceu despertar de um torpor, e interrogou-o.
- Sim?
- Senhor, há os pergaminhos. Temos de os encontrar.
- Centurião, diz-me algo que eu ainda não saiba.
- Bem, senhor, não os conseguiremos recuperar se ficarmos aqui à espera. Temos... Tem de fazer qualquer coisa. Não podemos permitir-lhes que nos mantenham
aqui sitiados e que ajam a seu belo prazer. Nesta altura temos concerteza mais homens do que eles. Mais gente, mais navios...
- Por agora. - Interrompeu Vitélio, com azedume. - Mas daqui a pouco vai ficar escuro, e todas as noites serão assim até à próxima Lua. Podes ter a certeza
de que eles hão-de voltar a tentar capturar um dos nossos navios.
A mente de Cato já estava em frenética actividade. Ideias surgiam-lhe, e as possibilidades, e as consequências das opções tomadas, corriam em catadupa. Depressa
se formou um plano, primeiro só em linhas gerais, depois mais concreto; era um plano modesto, mas pelo menos permitia-lhes recuperar a iniciativa e dar um primeiro
passo para recolocar os homens da esquadra de Ravena na ofensiva. Olhou para o prefeito, os olhos abrilharem-lhe com um entusiasmo que não conseguia reprimir.
- Muito bem, senhor. - Sorriu. - Eles que venham. Aliás, vamos assegurar-nos de que o fazem. Vamos oferecer-lhes um isco que eles nunca poderão recusar.
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XXVIII
- Isto não foi nada boa ideia. - Protestou Macro, enquanto se esforçava por ver alguma coisa no meio da escuridão. Sobre o bordo da embarcação ouviam as ondas
a rebentar docemente nos seixos da margem, a alguma distância. À volta pressentiam-se as massas negras dos dois braços de terra que rodeavam a baía que tinham escolhido
para a emboscada. Do lado do mar, água e céu convergiam num negrume inpenetrável.
- Porra, não vejo rigorosamente nada. - Continuou Macro.
- Era mesmo essa a ideia. - Respondeu Cato pacientemente. - É um factor que joga a nosso favor. Acredite.
Sentados no convés, o jovem mal conseguia distinguir as feições cansadas do amigo. Em redor, os fuzileiros mantinham um estrito silêncio, de armas aperradas e encostados
à amurada da birreme. Tinham sido montados painéis de linho ao longo do convés, de modo a dar à embarcação o aspecto de um navio mercante. Depois de seis dias a
passearem-se ao longo da costa, tinham finalmente conseguido atrair a atenção de alguns piratas mais gananciosos. À distância, no meio da escuridão, a birreme facilmente
passava por algo de mais inocente e tentador, a baloiçar docemente nas ondas suaves.
Os únicos sinais de vida viam-se na praia - algumas fogueiras, à volta das quais se sentavam os tripulantes da birreme. Dois homens faziam de sentinelas, quase invisíveis
na orla da área iluminada pelos fogos - a mesma luz que desenhava a silhueta da birreme, ficando à vista do mar alto. Era com isso que Cato contava. Algures, à
distância, estavam com certeza as três embarcações que tinham seguido a birreme durante toda a tarde. Tinham agido de forma prudente, mantendo-se junto ao horizonte,
suspeitando com certeza de uma presa que parecia oferecer-se. A birreme tinha desempenhado a sua parte, como se a bordo ninguém se preocupasse com piratas, avançando
para eles e mudando de rumo quase no último momento, e quase desaparecendo da vista ao cair da noite.
Os piratas, pelo seu lado, tinham feito o seu próprio jogo, afastando-se
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como se tivessem desistido da perseguição e tomado um rumo paralelo à costa, para norte. Pouco antes de saírem do campo de visão, Cato dera ordens para que a birreme
se dirigissse a terra, rumando à estreita baía que tinha visitado na véspera e decidido imediatamente que seria ideal para a cilada que tinha imaginado. Na base
de cada um dos promontórios que se achavam perto da água, estavam escondidas baterias de catapultas, prontas para varrer com projécteis a superfície do mar na zona
que ficava entre elas, quando chegasse o momento de fechar a armadilha. Outras duas birremes estavam ancoradas à sombra de uma arriba, preparadas para entrar imediatamente
em acção, à força de remos. Se os piratas mordessem o isco, teriam poucas hipóteses de escapar.
Enquanto Cato reflectia nos detalhes do plano que estabelecera, foi acometido por um repentino ataque de dúvida. E se os piratas tivessem realmente abandonado a
perseguição, e estivessem agora a preparar-se para passar a noite calmamente, a muitas milhas dali? Quando chegasse a manhã, os fuzileiros e tripulantes que tinham
passado a noite em vigí-a, desconfortáveis, tensos, à espera do inimigo, estariam furiosos e fartos, amaldiçoando o jovem centurião que os obrigara àquilo, e que
não passaria de um idiota, aos seus olhos. Depois da derrota recente e dos ataques que os piratas tinham realizado nas noites anteriores, seria mais uma pedra no
moloral das tropas. Se aquela emboscada falhasse, não tinha dúvidas de que o prefeito não ousaria tentar mais nenhuma surpresa, e Telémaco poderia proclamar uma
vitória sobre a marinha romana. O que constituiria um perigoso precedente para todos os piratas que se escondiam nas franjas do Mediterrâneo. O Imperador não teria
misericórdia para com todos os que julgasse responsáveis por uma situação desse género...
Macro agitou-se de novo, olhando mais uma vez para o mar. Fungouu, irritado, e voltou a sentar-se junto a Cato.
- Estou-te a dizer, eles não vão atacar. - Resmungou. - Estamos à espera há para aí umas seis horas. Uma perda de tempo, é o que isto é.
- Paciência. - Sussurrou Cato. - Eles hão-de vir.
- Como é que tens tanta certeza?
- Bom, são piratas, não são?
- Sim, uns cabrões de piratas bem espertos. - Ripostou Macro, com azedume. - Desde que começou a merda desta campanha, têm andado a dar-nos baile. O que é
que te faz pensar que se vão deixar enganar desta vez?
- Pense bem. Há meses que acumulam presas e saques. O resultado é que a maior parte dos mercadores já nem se arrisca a sair dos portos, o próprio sucesso
levou-os a uma escassez de vítimas nos últimos tempos. Aposto que este é o primeiro navio mercante que vêem nas últimas semanas.
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Não serão capazes de resistir à tentação. Aposto nisso a minha vida.
Macro resmungou.
- Pois, estás mesmo a apostar a vida nisso. E a minha também.
Cato encolheu os ombros.
- Então, o melhor é lançar algumas preces para que eu tenha razão.
- E se eles não vierem de todo?
Cato não respondeu, deixando-se ficar quieto, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado. Macro deu-lhe um toque.
- Então?
- Calado... - O jovem ficou tenso, e perscrutou as trevas, mantendo-se imóvel.
- O que se passa?
- Não tenho a certeza... Ali, veja. - Apontou para a massa escura que correspondia ao mais próximo dos promontórios, e Macro seguiu a indicação com o olhar,
esforçando a vista para tentar descortinar alguma coisa.
- Não vejo nada.
- Não?
Macro abanou a cabeça.
- Eu também não. - Admitiu Cato, lançando uma risada abafada.
- Muito engraçado, realmente. Espero que também estejas de bom humor quando o Imperador nos mandar lançar às... - Nesse instante, o olhar de Macro foi atraído
por alguma coisa, e ele voltou a sacudir o amigo.
- Olha, parece que afinal tinhas mesmo razão.
Cato virou a cabeça e reparou imediatamente no navio inimigo que se aproximava como se se tivesse materializado a partir do negrume. Os piratas tinham-lhe removido
o mastro para o tornar menos visível, e os remos estavam com toda a certeza envoltos em panos para não rangerem, à medida que faziam avançar lentamente a embarcação,
agora a menos de meia milha de distância.
- Passa palavra! - Macro chamou a atenção do fuzileiro mais próximo com a ponta da bota. - Inimigo à vista. Todos preparados, mas ninguém se mexe antes de
ser dado o sinal. Vai.
O homem esgueirou-se pela escuridão, avisando os camaradas, e os dois centuriões voltaram-se de novo para o navio que se aproximava. Cato apertou o braço do amigo.
- Ali... De lado. Outros dois. Parece que vamos fazer uma limpeza.
- Pois, mas primeiro é preciso apanhá-los.- É verdade...
Enquanto observavam, os navios inimigos avançavam pela baía, tornando-se mais nítidos a cada impulso dos remos. Daí a pouco já conseguiam ouvir os sons produzidos
pelas remadas, e distinguir a espuma criada pelo avanço das proas. Na vante de cada um dos navios via-se uma densa massa escura de homens, imóveis e silenciosos
enquanto se aproximavam da suposta vítima. Macro desembainhou a espada e cerrou a mão peluda em volta do punho. Olhou para Cato.
- Ainda não. - Murmurou este, em resposta. Olhou para lá de Macro, reparando num fuzileiro que manejava um gancho de abordagem, preso a uma corda enrolada
e disposta no convés. Conseguiu chamar a atenção do homem, e acenou-lhe para que se mantivesse escondido. O outro baixou rapidamente a cabeça.
O inimigo continuava a aproximar-se, e a mente de Cato acelerava, na expectativa do combate próximo. O coração pulava-lhe de excitação, e a boca estava seca. Dali
a momentos tudo começaria, e o caos tomaria conta do convés em que se encontrava. Agachados atrás do toldo, dissimulados, estavam os homens de três centúrias, e
Cato sentia perfeitamente a tensão que os possuía, bem como a sua vontade de liquidar os piratas, mas também o medo que lhes mordia o íntimo. Quase duzentos e cinquenta
fuzileiros, todos com uma faixa branca atada em redor da testa, para se identificarem facilmente. Mas quantos piratas estariam a bordo daqueles navios que deslizavam
na sua direcção? Para aí uns cem em cada um deles, imaginou Cato. Ia ser uma refrega renhida, pelo menos até às duas outras birremes chegarem. Nessa altura, a sorte
dos piratas estaria decidida.
Sobre o gentil som da ondulação a bater no casco, Cato conseguiu distinguir ordens a serem dadas em surdina, por uma voz que mal conseguia esconder a excitação.
Sorriu. Os piratas deviam estar a pensar que a sua aproximação não tinha sido notada, e que se iam lançar ao assalto de um navio mercante completamente desprevenido.
Com um estrondo repentino, a proa da primeira embarcação dos piratas embateu no casco da birreme, e escorregou ao longo do casco. Os outros dois navios dirigiam-se
à proa e à ré, preparando-se para juntar as suas tripulações ao ataque.
Cato inspirou bem fundo, enchendo os pulmões de ar antes de se pôr de pé e gritar.
- AGORA!
Com um profundo urro colectivo, os fuzileiros saíram das sombras e derrubaram os painéis de pano que tinham estado até ali a disfarçar as formas do vaso de guerra.
Os que tinham ganchos de abordagem
giraram-nos e lançaram-nos através da escuridão, de forma a alcançarem os navios inimigos. As linhas foram imediatamente puxadas, e as pontas aguçadas cravaram-se
nas madeiras, forçando os barcos a aproximarem-se da birreme. Na popa acendeu-se uma luz, quando um dos romanos lançou fogo a um facho embebido em óleo que já estava
preparado para o efeito. O clarão tremeluzente iluminou os fuzileiros que se movimentavam pelo convés, e também as faces repletas de choque e surpresa dos piratas,
ainda a bordo da embarcação agora irremediavelmente presa à birreme. Poucos momentos depois, outras chamas acenderam-se à distância, assinalando a recepção do sinal
e o fecho da armadilha.
Os piratas mantiveram-se em silêncio por um curto período, mas logo os seus chefes ladraram ordens e, com grande alarido, eles treparam pelas amuradas dos seus navios
e lançaram-se sobre os romanos.
- APANHEM-NOS! - Berrou Macro, e os fuzileiros avançaram ao encontro do inimigo. Num momento as duas forças ainda se distinguiam, um espaço vazio entre elas,
mas logo a seguir o caos tomou conta do convés da birreme, já que por todo o lado se podiam ver corpos envolvidos em combates encarniçados, com espadas, adagas,
maças e machados. À luz pálida do archote, só as faixas brancas que os fuzileiros usavam na testa permitiam distinguir os elementos de cada grupo. Em redor de Cato,
uma ténue linha de romanos desfez-se quando um magote de piratas se lançou na refrega, atacando-os.
- Cuidado! - Gritou-lhe uma voz ao ouvido, quando cinco ou seis vultos escuros atravessaram o ar e se abateram sobre os romanos. Cato empunhou o seu pequeno
escudo redondo e usou-o para atingir o inimigo mais próximo. O pirata tombou por cima dele, fazendo-o rolar no convés; o impacto expulsou-lhe todo o ar dos pulmões,
numa explosão de dor. Sentiu-se a sufocar, e o horrível hálito do homem nauseava-o; largou o escudo e procurou com os dedos até encontrar a garganta do adversário
e lhe apertar a traqueia. O outro debateu-se, tentando respirar, e libertou-se do aperto de Cato. Este respondeu espetando-lhe a espada no flanco, mesmo por baixo
das costelas, fazendo-o soltar um grunhido de dor. O pirata libertou-se de novo, caindo para longe e fazendo jorrar sangue Quente sobre o braço do centurião. Este
levantou-se um pouco, permanecèndo agachado, e avaliando a situação dos combates que o rodeavam. Sobre o entrechocar metálico das armas e os gritos e rugidos dos
homens envolvidos nos combates, ouviu Macro a gritar a plenos pulmões aos romanos.
- Apanhem-nos! Matem-nos a todos! Matem-nos!
Voltou a empunhar o escudo e lançou-se para a confusão, furando entre dois fuzileiros que enfrentavam com golpes incansáveis um grupo de piratas que tentava subir
a bordo do navio romano. Mesmo à frente de Cato,
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um tipo enorme aterrou no convés da birreme. Envergava uma couraça e empunhava uma espada curva e pesada que fez rodopiar sobre a cabeça assim que notou o oficial
romano à sua frente.
- Nem penses nisso! - Gritou Cato, lançando o escudo ao encontro do golpe, ao mesmo tempo que dava uma estocada com o gládio. A lâmina atingiu o inimigo no
peito, fazendo-o recuar um passo, mas a ponta só conseguiu danificar a superfície da couraça e fazer um golpe pouco profundo no músculo, antes de bater contra um
osso. Ainda assim, fez diminuir em muito o poder do golpe que se abateu sobre o centurião; a espada do outro bateu no escudo e foi deflectida, acabando por chocar
com as tábuas do convés. Uma dor aguda percorreu o braço esquerdo de Cato, os dedos perderam a sensibilidade, fazendo-o largar a pega do escudo, que rolou para
longe. Reposicionou o gládio, alterou o ângulo de ataque e lançou a ponta contra a zona desprotegida por baixo do queixo do homem, fazendo-a penetrar no crânio.
O pirata tombou para trás, e Cato puxou a ispada para si, com um som de ressonâncias húmidas.
Endireitou-se, olhou de novo em volta, mas era impossível perceber para que lado estava a tombar a batalha. A massa de fuzileiros e piratas em movimento era demasiado
confusa para que ele concluísse qual dos lados estava a levar a melhor. Sobre as cabeças dos homens, via como a luz de um facho se tornava mais forte, à medida que
a birreme a bordo da qual se encontrava se aproximava do combate, à força de remos. Mas nesse instante outro inimigo surgiu-lhe ao caminho, manejando um machado,
os dentes arreganhados numa expressão de raiva e ódio, à fraca luz da chama que ardia na popa.
De repente, os homens que combatiam à sua volta aproximaram-se, ímpurrando-o e acotovelando-o, e descobriu com horror que tinha o braço que empunhava a espada preso,
encostado ao corpo,impossível de mover. O adversário apercebeu-se da situação e, com um esgar vitorioso, fez rodopiar o machado, que atravessou a noite na direção
do pescoço de Cato. Este lançou alguns pontapés em redor, para se libertar, e deixou-se deslizar para o convés. O machado prosseguiu na sua trajectória horizontal,
atingindo o homem mais próximo do centurião, esmagando-lhe a coluna e fazendo a cabeça saltar pela borda fora. De gatas, Cato sentiu a torrente de sangue quente
que se abateu sobre os seus ombros. Na confusão de corpos que o empurravam e encurralavam, viu-se presa de um novo terror: podia morrer esmagado ali. Protegendo
a cabeça tão bem como conseguiu com o braço esquerdo ainda dormente, manteve a espada pronta a entrar em acção, e tentou colocar-se de novo em pé. Mas uma nova vaga
de empurrões fê-lo cair, e de imediato uma bota se abateu sobre o seu peito.
- Sai! - Gritou. - Sai de cima de mim!
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Uma face preocupada aproximou-se dele, e a bota foi imediatamente removida.
- Desculpe, senhor.
Antes que Cato pudesse responder, a ponta de uma lança mergulhou na garganta do homem e fê-lo desaparecer de vista. Tornou-se-lhe claro que, se não se pusesse de
pé rapidamente, morreria ali. Inspirou profundamente e ergueu-se, abrindo espaço com os punhos e a espada, sem cuidar de ver se atingia piratas ou romanos. Estava
finalmente equilibrado, os pés firmados e a espada pronta. A parte mais densa da massa de combatentes tinha-se afastado, e agora o fulcro da refrega já estava do
outro lado do mastro. Desviou-se de um grupo de fuzileiros que se lançava na luta com entusiasmo. De respiração ofegante, deu-se um momento para avaliar a situação,
e notou que uma das birremes estava já a poucos metros de distância. As tropas que trazia a bordo amontoavam-se na proa, ansiosas por se juntarem ao combate e contribuírem
para acelerar o inevitável desfecho. Virou-se e viu a outra birreme, um pouco mais longe, os remos a trabalhar a toda a força e a trazerem-na também para o combate.
Por essa altura já um dos trierarcas inimigos se tinha apercebido do terrível perigo que ele e os seus homens enfrentavam. O navio que comandava estava a tentar
afastar-se da popa da birreme romana, mas fora detido por um dos cabos de abordagem. Um grito fez com que um dos homens a bordo se dirigisse à amurada e golpeasse
o cabo com umm machado, até o desfazer.
- Merda... - Resmungou. Aquele navio ia escapar, a não ser que alguém fosse alertado para as intenções do seu trierarca. Só a birreme mais distante o poderia
ainda interceptar, mas entre Cato e a possibilidade de alertar o outro navio estava a confusão do combate apertado. Embainhou a espada, correu para a amurada e passou
as pernas sobre ela, tentando com as pontas dos pés encontrar um ponto de apoio na face exterior do casco. Começou a progredir para a ré, sempre com a ameaça próxima
e brilhante da superfície da água. Do outro lado das tábuas continuava a confusão de choques, pragas, maldições e gritos, e Cato manteve o olhar afastado da cena,
deslizando desajeitadamente ao longo do costado da birreme. Este começou a curvar para cima, para o castelo da popa, onde ficava o leme. Cerrando os dentes, Cato
esforçou-se para se içar, mas assim que a sua cabeça assomou por cima da amurada, um pirata magro deu-lhe um sorriso desdentado e inclinou-se para ele, com uma adaga
pronta para lhe cortar as goelas. Quando se preparava para se lançar à água, o pirata foi apanhado por um braço grosso, que lhe envolveu o pescoço e o levantou do
chão. Grunhiu, antes de entrar em espasmos e cair para o lado; Macro extraiu a sua lâmina de debaixo do ombro do cadáver.
253
As sobrancelhas de Macro arquearam-se quando avistou o amigo.
- Centurião Cato, já te vais embora?
- Cale-se e dê-me uma ajuda.
Assim que Cato subiu de novo a bordo, compreendeu que o combate na birreme estava a tombar para o lado dos romanos. Os piratas tinham sido confinados à parte central
do navio, e já lutavam costas com costas, junto ao mastro, incentivados por um homem de vestimentas ornadas, com pesadas e brilhantes argolas de ouro nas orelhas.
Cato acenou, satisfeito, e depois apontou para o barco que tentava esgueirar-se para a escuridão.
- Aquele sacana está a ver se nos escapa.
- Não o podemos permitir. - Macro sorriu, enquanto Cato se virava para a birreme que ainda não se tinha envolvido no combate. Levou a mão à boca e gritou
um aviso.
- Mudem de rumo! Impeçam-nos de escapar! - Esticou o braço na direcção do navio que se afastava. - Atrás deles!
Após alguns momentos, a proa da birreme mudou de direcção e, debaixo do impulso dos remos, passou rente aos navios engalfinhados e prosseguiu em perseguição dos
piratas. Os dois navios aproximaram-se da entrada da baía, onde várias tochas marcavam agora a posição das baterias antes escondidas. O som das rodas dentadas a
serem manejadas atravessava facilmente o ar nocturno, enquanto as equipagens preparavam os engenhos para disparar contra os navios que se aproximavam; Macro e Cato
mal os conseguiam notar, já que se tinham confundido com a escura superfície da água na tentativa desesperada dos piratas para alcançarem mar aberto e escaparem.
Momentos depois, uma linha de fogo descreveu um arco a partir do cabo mais próximo, dirigindo-se ao meio da baía e fazendo sobressair a silhueta de um dos navios,
antes de atingir a água e se extinguir imediatamente.
- Daqui a pouco estará ao alcance. - Comentou Macro, no preciso instante em que outros três projécteis foram lançados pelo ar. Pouco depois ouviu-se o som
do disparo dos braços de torção. A bateria do outro lado da baía juntou-se à barragem e atingiu o navio pirata à primeira, espalhando fagulhas quando a flecha incendiária
se lhe cravou no convés. Ouviram-se gritos de júbilo vindos da falésia, e a barragem prosseguiu.
Macro deu um toque em Cato.
- Ocorreu-me que algo pode correr mal.
- A mim também. - Retorquiu Cato, preocupado. - Devia ter-me apercebido do perigo.
Os dois centuriões calaram-se enquanto os projécteis incendiários descreviam os seus longos arcos, reflectindo-se na calma superfície do mar,
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e se abatiam sobre a birreme romana. Observaram impotentes enquanto o navio era atingido três vezes.
- Merda! - Cato deu um murro na madeira. - Devia ter previsto
isto!
Um pequeno incêndio tinha começado no navio pirata, e enquanto as figuras distantes lutavam para apagar as chamas, o trierarca da birreme fez o navio dar rapidamente
meia-volta e dirigir-se a toda a velocidade para a baía, enquanto as equipas das catapultas concentravam esforços no navio restante. Antes que a birreme se pusesse
a salvo, porém, um último projéctil atingiu-lhe a vela recolhida, incendiando-a. Entretanto, outro incêndio fora ateado a bordo do navio pirata e, à medida que as
chamas se espalhavam, os remadores abandonavam os seus bancos e lançavam-se à água, abandonando o navio à progressão das labaredas que depressa iluminaram a entrada
da baía com uma terrível e brilhante luz entre o alaranjado e o vermelho. Mais próxima da margem, a tripulação da birreme continuava a debater-se na tentativa de
suprimir o seu próprio incêndio, tendo formado uma cadeia de marinheiros que passavam baldes aos homens que, sentados na verga, tentavam em desespero extinguir as
chamas.
Cato deu outro murro na madeira, consumido pela frustração e pela autocrítica, até que Macro lhe deu uma palmada amigável nas costas.
- Não podemos fazer nada quanto àquilo. Além disso, portámo-nos bem, esta noite. É hora de arrumarmos a questão. - Acenou na direcção do punhado de homens
que se defendiam junto ao mastro principal.
Entretanto, uma nova vaga de fuzileiros vindos da outra birreme entrava a bordo pela proa e caçava e aniquilava qualquer pirata que ainda andasse naquela área do
navio.
Os dois centuriões abriram caminho por entre o amontoado de corpos e desceram as escadas até ao convés principal. Macro embainhou a espada e puxou com brusquidão
um punhado de soldados que rondavam a orla da confusão.
- Para trás! - Gritou. - Para trás! Dêem-lhes espaço!
A ordem foi retransmitida pelos oficiais Subalternos, e pouco a pouco os fuzileiros foram-se afastando dos piratas sobreviventes, recuando cuidadosamente sobre o
convés, escorregadio por causa do sangue espalhado. Os homens viam onde punham os pés, tentando não tropeçar nos cadáveres. Abriu-se por fim um espaço em redor do
grupo de homens ensanguentados que se defendia ferozmente. Continuavam a olhar para os fuzileiros com ar de desafio, e as armas estavam em riste, prontas a entrar
em acção. Um silêncio bizarro tomou conta da cena, à medida que os combates cessavam e os homens aguardavam o que se ia seguir. Cato e
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Macro abriram caminho por entre os fuzileiros até se verem a poucos passos dos piratas sobreviventes. Cato procurou o líder que tinha avistado antes, e àpontou-lhe
o dedo.
- Ordena aos teus homens que se rendam!
O líder dos piratas olhou-o, e cuspiu em desafio. Havia nele qualquer coisa de familiar, e Cato franziu o sobrolho, tentando recordar de onde
o conhecia. Antes de o conseguir, o homem brandiu a sua espada recurva.
- Não haverá rendição, romano! - Gritou em grego. - Recusamo-nos a morrer como cães nas vossas cruzes!
Cato ergueu a mão, tentando acalmar o homem, e respondeu-lhe na mesma língua.
- Tens a minha palavra, não serão executados. Serão reduzidos à escravatura, mas pelo menos terão as vidas poupadas.
- Nunca! - Rosnou o outro. Mas enquanto proferia estas palavras em ar desafiador, ouviu-se um som de metal contra madeira: um dos seus homens lançara a espada
pelo chão, e baixava a cabeça, submisso. Os outros olharam dele para o comandante, e logo a seguir outra arma foi arrojada para o convés. Logo a seguir, só o chefe
empunhava uma arma, e olhou para os seus homens, frustrado.
Macro tentou convencê-lo.
- Desiste, homem. A batalha está perdida. Não vale a pena perderes também a vida.
O jovem rangeu os dentes, e por instantes Cato teve a certeza de que ele lutaria até à morte. Mas depois a sua resolução fraquejou, e a espada caiu-lhe dos
dedos enquanto ele mantinha um olhar cheio de ódio e fixo nos romanos. E nesse instante Cato lembrou-se precisamente de onde o tinha visto antes. No convés da trirreme
de Telémaco. E veio-lhe à memória a proximidade entre aquele homem e o próprio chefe máximo dos piratas.
- Ajax. - Pronunciou entre dentes.
XXIX
- Mas eu dei a minha palavra. - Protestou Cato, enquanto lançava um olhar a Macro, procurando o apoio deste. O veterano, porém, limitou-se a encolher os ombros
de forma quase imperceptível.
- Deste a tua palavra. - Repetiu Vitélio com um leve sorriso, olhando para lá de Cato, para os prisioneiros que formavam um pequeno círculo na praia, acorrentados
uns aos outros. À sua volta via-se outro círculo, este de fuzileiros, que os mantinham sob vigilância. O prefeito abanou a cabeça. - Não sei o que é que te leva
a pensar que somos obrigados a respeitar as promessas que fazemos a esta escumalha assassina.
- Foi a condição aceite para que eles se rendessem. Os termos foram acordados com o comandante, Ajax.
- Paciência, ele que não fosse parvo. Separem-no dos outros. Se ele for realmente um dos lugares-tenente de Telémaco, como tu pareces acreditar, pode ser
que consigamos extrair-lhe alguma informação útil. Tragam esse tal Ajax para o quartel-general, e vamos ver o que tiramos dele. Quanto aos outros, serão crucificados.
Fará bem aos nossos homens ver o espectáculo. - Olhou em redor e apontou para o promontório. - Ali em cima. Onde o inimigo os consiga ver, e os nossos soldados possam
apreciar a vista.
- Senhor, vejo-me obrigado a protestar.
- Muito bem. Protesto anotado. Mas agora faz-me a cortesia de me permitir dar ordens para a execução.
A boca de Cato abriu-se, fechou-se, e voltou a abrir-se, enquanto ele abanava a cabeça.
- Isto não é correcto...
Vitélio concordou.
- Tens toda a razão. Não é correcto, é a guerra. E esta discussão está terminada. Agora, vai tratar de pôr as embarcações em terra, e distribui aos homens
uma ração extra de vinho. Bem a merecem. E vê se eles são informados de que fui eu quem lhes atribuiu essa recompensa.
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Quero os vossos relatórios até ao fim do dia. Podem tratar disso depois de interrogarmos o prisioneiro. - Fez um curto gesto com a mão. - Estão dispensados.
Cato e Macro fizeram a saudação, deram meia-volta com gestos marciais, e desceram a praia de seixos até à beira-mar.
- Obrigadinho pela ajuda. - Resmungou Cato.
Macro encolheu outra vez os ombros.
- Desculpa, mas neste caso concordo com o prefeito. Trata-se de piratas. Deviam saber muito bem que não poderiam esperar qualquer piedade da nossa parte.
- Macro franziu o cenho. - Cato, não amoleças. Aqueles sacanas vão ter o que merecem, e merecem-no já há muito tempo. Aliás, se fosse ao contrário, e se fôssemos
nós os prisioneiros, achas que eles nos mostrariam alguma clemência?
Cato recusou-se a enfrentar o olhar do amigo, fitando em vez disso as próprias botas.
- Não. Mas é por isso mesmo que nós temos superioridade moral.
I é isso que faz com que valha a pena combater por Roma.
- Superioridade moral? - Macro estacou, e olhou Cato fixamente, antes de rebentar em gargalhadas. - Foda-se, miúdo, tu desencantas com cada uma...
Cato olhou para o amigo sobre o ombro.
- Bom, vamos lá tratar disto, e acabou-se a conversa, está bem? No fim de contas, estamos a cumprir ordens.
- De facto! - Macro deu-lhe uma sonora palmada nas costas.
- E às vezes, digo-to eu, cumprir ordens é um verdadeiro prazer...
Cato olhou-o irritado, e Macro riu-se de novo.
- Estava a brincar. Vamos lá.
Tinha-se juntado um magote de fuzileiros, vindos do campo, em torno dos prisioneiros; havia incitamentos e gritos de satisfação quando alguns pegavam em pedras e
as atiravam aos piratas. Enquanto se aproximavam, Cato viu Ajax encolher-se, mas sem conseguir evitar que um seixo lhe arranhasse a testa.
- Ei! - Berrou Macro, fazendo com que os fuzileiros mais próximos dessem um salto. - Parem com isso! Precisamos desse em bom estado.
Os homens abriram alas à medida que os dois centuriões se aproximavam dos prisioneiros. Para lá das feridas resultantes do combate de há duas noites, vários dentre
eles exibiam novas mazelas, provocadas pelas pedradas recebidas. Normalmente, os soldados teriam mais cuidado com os cativos, já que lhes poderiam render boas maquias
em leilões de escravos; mas sendo aqueles homens piratas, dificilmente seriam poupados -
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portanto, os fuzileiros podiam, sem preocupações, exercer neles o desejo de vingança que sentiam.
Macro acenou ao optio que comandava o destacamento de guardas.
- O prefeito está a preparar uma coisa especial para estes. Leva-os à oficina de carpintaria. Excepto este. - Apontou para o líder do grupo.
- Este vem connosco. Separa-o dos outros.
- Sim, senhor. - O optio saudou e apressou-se a cumprir as ordens.
Os prisioneiros foram organizados numa coluna desajeitada, enquanto o seu jovem líder foi mantido à parte, sob vigilância apertada de um soldado, uma mão sobre o
ombro do detido e outra no punho da espada. Ajax observou num silêncio derrotado enquanto os seus homens eram levados para o campo romano, as correntes a tilintarem
à medida que os seus pés nus avançavam sobre os seixos da praia.
Entretanto, os dois centuriões tinham-se dirigido às birremes encalhadas nos baixios, onde Cato deu ordens para se procederem às reparações na birreme que tinha
ardido parcialmente, enquanto Macro organizava o desembarque dos feridos, e passava a palavra acerca da ração extra de vinho concedida pelo prefeito. Esta última
notícia provocou um clamor entusiástico, e fez com que os homens se lançassem ao trabalho com afinco, de forma a depressa concluírem os seus deveres, que incluíam
limpar todo o equipamento, sempre com o pensamento de poderem emborcar mais algum do vinho, barato mas potente, que era fornecido à marinha.
Cato observou-os por momentos, um sentimento de desprezo a crescer dentro de si. Nessa noite seriam erguidos muitos copos agradecidos a Vitélio pela ração extra
de vinho. Precisamente o mesmo Vitélio que, poucos dias antes, os tinha conduzido a uma batalha naval desastrosa, que tinha custado a vida a centenas de camaradas
dos homens que agora o vitoriariam. Seria a memória dos homens assim tão curta? Por outro lado, o sucesso da emboscada e a captura de alguns piratas tinha renovado
a confiança das tropas, e aos olhos de Cato a melhoria do moral tinha sido evidente na viagem de regresso à base das três birremes, mais as duas embarcações capturadas
e o grupo de prisioneiros. E agora Vitélio tentava reentrar nas boas graças dos homens, e Cato não duvidava de que o conseguiria, assim que os soldados mergulhassem
no abraço morno e intoxicante da dádiva do prefeito.
Virou-se para o prisioneiro e, mais uma vez, observou-o com atenção. Estava certo. Aquele era o mesmo homem que tinha visto a bordo do navio-almirante dos piratas,
ao lado de Telémaco... O chefe dos bandidos tinha falado dele como de um ajudante. Mas, à medida que lutava para
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recordar todos os detalhes daquele instante, apercebia-se de que havia mais qualquer coisa naquela relação. Ajax não era um mero subordinado. Pelo contrário, era
um dos principais lugares-tenente do líder. E agora caíra nas mãos dos romanos. Não era de admirar que Vitélio tivesse ficado tão con-ente com os resultados daquela
acção. Tinham finalmente uma pequena vantagem sobre os seus esquivos adversários.
Ajax virou a cabeça, avaliando os homens e embarcações que o rodeavam com evidente inteligência; nesse instante, o seu olhar cruzou-se com o do centurião, e ele
baixou a cabeça e deixou descair os ombros, tentando oferecer uma convincente aparência de completo desalento. Cato sorriu. O tipo era bom naquilo, e tentaria intrujar
os seus captores enquanto lhe fosse possível.
Assim que ficou satisfeito com o andamento das coisas, Macro foi ter com o amigo.
- Pronto? Vamos lá levar então esta belezoca ao quartel-general, para termos uma linda conversa. - Avançou e instigou Ajax a avançar com uma estocada da vara
no fundo das costas. - Toca a marchar!
O prisioneiro tropeçou, fazendo tilintar as correntes, e preparou-se para tentar cuspir em Macro, mas este apercebeu-se do gesto e respondeu com uma bofetada com
as costas da mão.
- Então, então... Vamos lá a ter maneiras!
Apontou o caminho com a vara, indicando a entrada do campo ao cimo da praia, e os três puseram-se a caminho.
Vitélio esperava-os na tenda. Um pouco de lado aguardavam dois homens de aspecto duro, que deviam ser os interrogadores, adivinhou Cato. Como quase todos os especialistas
que integravam o exército romano, os dois deviam conhecer todos os meandros da sua arte; e, dado o aspecto que tinham, o jovem suspeitou que não lhes teriam faltado
oportunidades para praticar.
Quando os dois centuriões e o prisioneiro entraram na tenda, Vitélio acenou na direcção de uma sólida cadeira de madeira com as costas altas, que se via ao centro
de uma área livre, de onde tinha sido afastada toda a mobília. Até os tapetes que normalmente cobriam o solo tinham sido enrolados e postos de lado, para evitar
que se sujassem. Macro levou o prisioneiro até junto da cadeira.
- Espera aqui.
Os dois verdugos aproximaram-se imediatamente, começando por rasgar o pouco que restava das roupas de Ajax, e atirando os trapos fora até que ele ficou nu. Um dos
interrogadores empurrou-o, fazendo-o sentar-se na cadeira, e depressa os dois lhe prenderam os pulsos e os tornozelos com algumas tiras de cabedal.
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- Muito bem. - Vitélio rodeou lentamente o prisioneiro, até parar mesmo na sua frente. - Parece-me que a este, o melhor é esfolá-lo. Vivo.
Ajax olhou para ele com uma expressão de horror, e Vitélio sorriu.
- Ora muito bem! Vejo que percebemos latim. Isso deve facilitar as coisas. - O prefeito deixou de sorrir, e concentrou a sua atenção no prisioneiro.
- Ouve-me bem. Existem apenas três questões para as quais quero resposta. Quero saber onde é a vossa base. Quero saber quantos navios têm, que armamento possuem
e quantos homens estão às vossas ordens. E, por fim, quero saber onde estão os pergaminhos. Se o que me contou o centurião Cato for correcto, és um dos principais
ajudantes do Telémaco, e sabes perfeitamente do que estou a falar. As perguntas estão postas. Tu tens as respostas. Se mas deres imediatamente, poupar-te-ás a uma
boa dose de dor e sofrimento. Se tentares escondê-las... - Assinalou os interrogadores.
- Nesse caso, estes homens encarregar-se-ão de ti. Sabem infligir agonias que nem consegues começar a imaginar. Tudo o que deves ter presente é que acabarás
por falar. De uma forma ou doutra.
Ajax respondeu com desprezo.
- Romano, até agora só tu é que falaste, e não foi pouco.
Vitélio sorriu.
- Ah! Tanta coragem em face da adversidade. Estou impressionado... Quase. Bom, vamos começar, sim? Estou em pulgas para ver como te comportas.
Deu um pequeno passo ao lado.
- Meus senhores, é todo vosso.
Não houve qualquer preâmbulo. Nenhuma tentativa de assustar o pirata com a exibição dos instrumentos de tortura, de lhe dar tempo a imaginar o que iria suceder.
O mais forte dos dois homens limitou-se a aproximar-se da cadeira e a desferir um potente murro na face de Ajax, partindo-lhe de imediato o nariz. A cabeça do jovem
bateu contra as costas da cadeira. Houve um momento de silêncio atordoado, e em seguida ele gritou de dor; mas imediatamente se apercebeu do que fizera e forçou-se
a cerrar os lábios, enquanto olhava com ar desafiador para o algoz, sem se preocupar com o sangue que lhe escorria da boca e lhe manchava o peito. O golpe seguinte
veio de lado, acertando-lhe em cheio na maçã do rosto.
Cato e Macro deixaram-se ficar de lado, em silêncio, enquanto o esbirro fazia o seu papel, desferindo uma série de golpes na cabeça e nas costelas do prisioneiro.
Embora se sentisse enojado pelo espectáculo de violência a que assistia, Cato dizia a si mesmo que aquele tratamento era necessário. Era Ajax quem detinha as informações
que o podiam salvar, a ele e a Macro, e redimir Vitélio, e voltar a tornar seguras as vias marítimas.
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O que representava o sofrimento daquele jovem, em comparação com todos esses factores? Ainda assim, o centurião sentia-se percorrido por uma Vaga de repulsa, e não
queria ser parte daquela cena. Porém, também não podia simplesmente sair da tenda. Toda a gente ficaria a saber que não tinha estômago para aquelas coisas, e quando
tal notícia se espalhasse pelo campo, seria alvo de chacota geral. Tinha portanto de aparentar completa indiferença pela tortura que se desenrolava à sua frente.
Era evidentemente mais fácil resolver adoptar essa atitude do que fazê-lo de facto e, quando um salpico de sangue lhe atingiu a face, Cato sentiu que o estômago
se lhe revoltava, e forçou-se a engolir em seco, aflito.
Ao fim de algum tempo, Vitélio interveio, e ordenou ao interrogador que se detivesse. Estava calor no interior da tenda, e a pele do homem refulgia quando ele se
afastou do pirata, abatido sobre a cadeira.
- Para começar chega, Trébio, obrigado. - Sorriu ao homem.
- Não queremos dar cabo dele, para já, pelo menos.
O bruto pareceu afectado pelo comentário.
- Senhor, sei o que faço. Ele está capaz de falar, e continuará assim enquanto eu quiser.
Vitélio ergueu as mãos.
- Desculpa-me. Não quis de todo ofender-te. Mas antes de continuarmos... Jovem Ajax, há alguma coisa que me queiras dizer?
A respiração do pirata era pesada, e a princípio deu a sensação de que não ouvira o prefeito. Então a cabeça descaiu-lhe. Abriu os olhos e cuspiu algum sangue.
- Romano, hás-de pagar por isto... Hás-de sofrer... E, se me matares, o meu... - Por momentos o olhar de Ajax traduziu ansiedade, mas esta depressa foi substituída
por uma máscara de ódio e azedume. - Ele fará com que pagues.
Macro olhou para Cato e lançou uma pergunta a meia-voz.
-Ele?
- O Telémaco, provavelmente. - Respondeu Cato, com um encolher de ombros.
Aproximando-se do prisioneiro, Vitélio debruçou-se sobre ele, e lançou uma pergunta em tom amigável.
- Quem é que me vai fazer pagar? O teu amigo, o chefe dos piratas? Achas mesmo?
- Romano, vais morrer.
Vitélio soltou uma leve gargalhada.
- Amigo, todos acabamos por morrer. Só que alguns vão antes dos outros. E isso é tudo o que interessa nesta vida. Bom, já sabes quais são as perguntas. Estou
à espera das respostas.
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- Vai-te foder! - Ajax levantou repentinamente a cabeça e cuspiu , na cara do prefeito.
Vitélio encolheu-se por instinto, e depois passou a mão sobre a face para limpar a saliva sanguinolenta. Sorriu.
- Não, pirata de merda, quem se vai foder és tu. - Acenou ao interrogador. - Trébio, podes voltar ao trabalho. E desta vez, podes fazer doer a sério.
- Sim, senhor. - O algoz virou-se para o assistente. - Passa-me as facas...
? ? ?
Ajax aguentou-se ao longo de toda a tarde, e até Macro acabou por admirar a coragem do jovem. Tinha gritado quando Trébio lhe tinha cortado o dedo mindinho e depois
lhe tinha arrancado várias tiras de carne, mas nunca tinha suplicado que pusessem fim ao seu sofrimento, e muito menos respondera às perguntas de Vitélio. À medida
que as horas passavam e a sessão de tortura se prolongava, Cato ia ficando cada vez mais maldisposto. Quando estava mesmo a ponto de intervir e tentar pôr fim à
mutilação sem sentido a que assistia, a resistência do pirata quebrou-se e, no meio dos soluços e da agonia, ele deixou escapar um nome.
- Vectis terra... - Murmurou.
- O quê? - Vitélio aproximou-se, tentando perceber as palavras do prisioneiro. - Fala!
- Vectis terra... O meu pai está em Vectis terra.
Houve um inesperado momento de silêncio na tenda, enquanto os romanos trocavam olhares de surpresa. Cato abanava a cabeça, irritado por não ter percebido a agora
óbvia ligação entre Telémaco e Ajax. Era evidente, as feições eram similares. E porque teria um jovem uma posição tão elevada na hierarquia dos piratas, se não possuísse
ligações de sangue ao líder?
Vitélio foi o primeiro a reagir.
- Ora aí está um facto interessante. És então o filho dele.
Ajax não respondeu, limitando-se a manter a cabeça descaída para evitar o olhar dos seus captores.
- Muito bem! - Vitélio não escondia o prazer que a notícia lhe dera. - Tenho a certeza de que agora, meu caro Ajax, ainda nos virás a ser mais útil. Pergunto-me...
Até onde irá o teu pai para garantir que voltas para junto dele são e salvo?
Ajax cuspiu no chão, uma mistura de saliva e sangue.
- Prefiro morrer!
- É claro que sim. Mas será que ele também o prefere? Essa é que
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é a questão. - Vitélio atravessou a tenda, desenrolou um mapa e percorreu com o dedo as linhas que marcavam a costa, até encontrar a região indicada. - Vectis terra,
dizes tu... Huuuum, não, não me parece. Isso fica muito longe das rotas de navegação. Os vossos navios teriam de viajar dias antes de chegar à zona de caça. - Virou-se
e deu uma risada. - Bem tentado, jovem Ajax. Sabia que ias começar por mentir. Agora, vamos à verdade, se faz favor.
Enquanto o prefeito voltava para junto dele, o prisioneiro deixou pender a cabeça, desesperado.
- Vá lá, Ajax. Custe o que custar, vamos fazer-te dizer a verdade.
A única questão que te deves pôr é quanto queres sofrer antes de cederes.
Se cooperares connosco, tens a minha palavra de que viverás. Se persistires nesta fútil e tonta tentativa de resistir, só obterás tormentos e mais tormentos, até
que nos dês a verdade. E nessa altura, morrerás.
Vitélio debruçou-se sobre o prisioneiro e levantou-lhe o queixo.
- Portanto, jovem, a única saída sensata é aceitares que acabarás por nos dar aquilo que queremos saber. Já, mais tarde, não importa. Mas acabaremos por te
arrancar a informação... Trébio!
- Sim, senhor!
- Estás pronto?
- Sim, senhor.
- Então, de volta ao trabalho.
Ajax mirou o verdugo, aterrorizado. Fechou os olhos com força por instantes, e deixou escapar um murmúrio.
- Petrápilas...
Vitélio sorriu e afagou-lhe a cabeça.
- É isso mesmo.
O prefeito regressou para junto do mapa e perscrutou-o atentamente. Pouco depois endireitou-se e virou-se de novo para o prisioneiro com uma expressão de raiva.
- Não existe nenhum lugar com esse nome. Agora, diz a verdade,
ou...
Cato interrompeu-lhe a ameaça.
- Senhor, esse mapa é um dos nossos.
Vitélio olhou-o, irritado.
- E então?
- A língua dele é o grego. Petrápilas - os portões de pedra, ou qualquer coisa assim. Posso ver o mapa, senhor?
Vitélio acenou.
- À vontade.
Cato alisou a folha e percorreu com o olhar a linha de costa, a
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norte da posição em que se encontravam. Então indicou um local com o dedo.
- Aqui. Parece-me que deve ser isto. Os portões de pedra.
- Deixa-me ver isso! - Vitélio apressou-se a observar o ponto indicado por Cato e anuiu, enquanto um sorriso se lhe formava nos lábios.
- Sim, deve ser isso.
- Faz todo o sentido, senhor. Não fica em plenas rotas comerciais. Há por ali uma colónia grega abandonada, montanhas por todos os lados. A entrada parece
suficientemente estreita para ser fácil de defender. - Encolheu os ombros. - Por outro lado, há imensos outros esconderijos possíveis nesta zona da costa.
Vitélio lançou um olhar por cima do ombro.
- Supondo que ele está a mentir?
- Bom, senhor, mantemo-lo vivo até reconhecermos a área. Se estiver a tentar enganar-nos, podemos sempre voltar a interrogá-lo depois.
- É verdade. Mas há mais uma coisa. - Vitélio regressou para junto de Ajax. - Os pergaminhos. Estão guardados lá?
Depois de uma breve pausa, Ajax confirmou o facto. Vitélio manteve o olhar fixo no prisioneiro, antes de encarar Cato e Macro.
- Acham que ele está a dizer a verdade?
Macro encolheu os ombros.
- Parece-me que é o lugar mais lógico para os manter, senhor. Tivemos este trabalho todo só para descobrirmos a base, e o Telémaco deve querer mantê-los por
perto, por uma questão de segurança. Se têm assim tanto valor como as pessoas dizem.
- Valor? - Vitélio fungou. - Está muito para além disso, centurião. De facto, ninguém lhes pode atribuir um valor terreno.
Antes que qualquer um dos centuriões pudesse fazer mais alguma pergunta, a aba de entrada da tenda foi afastada, e um dos guarda-costas do prefeito meteu a cabeça
pela abertura. O sobrolho arqueou-se ligeiramente ao avistar a figura ensanguentada do prisioneiro.
- O que se passa? - Disparou Vitélio.
- Senhor, perdão, mas aproxima-se um navio.
- Um navio? De que género?
- Parece uma espécie de iate, senhor. Pequeno mas veloz.
- E vem para aqui, dizes tu?
- Sim, senhor. Direito a nós.
Vitélio olhou para Ajax alguns instantes, antes de tomar uma decisão.
- Ele fica aqui. Cato, Macro, avisem o oficial de dia. Ele que tenha duas centúrias preparadas. E alertem as baterias. Que estejam prontas a disparar
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assim que o iate estiver ao alcance, para o caso de ser necessário. Já rou ter convosco.
Saudaram o comandante e deixaram a tenda, mas ainda ouviram Vitélio a dirigir-se ao seu homem de confiança.
- Bom, vamos lá arrancar-lhe mais algumas respostas...
Do exterior da tenda de comando, Cato e Macro tinham uma vista desimpedida sobre o declive que levava à muralha e, para lá dela, à praia. O sol estava forte, e tiveram
de proteger a vista para conseguir perceber o que se passava no mar. Lá longe, pouco mais do que uma silhueta anunciava o navio que se aproximava, com uma vela latina
bem enfunada, já que o vento lhe dava por trás. Desceram até à beira da água e transmitiram as ordens do prefeito, antes de voltarem a dar atenção à embarcação.
- Quem será agora? - Indagou Macro.
Cato encolheu os ombros.
- Não faço ideia.
- Seja quem for, parece que está com uma pressa dos demónios em chegar cá. Um correio imperial, ou algo do género? - Propôs Macro.
Enquanto esperavam, Cato sentia que o sangue se lhe gelava nas veias, ao recordar o despacho que enviara para Roma. Ouviu um seixo a raspar na areia, e apercebeu-se
repentinamente dos olhos do prefeito fitos em si; resistiu à tentação de se virar e enfrentá-lo, mantendo-se imóvel. Concentrou-se no navio quase a chegar, até que
o seu olhar foi atraído por um movimento distante num dos cabos que ladeavam a baía. Contra o céu ocidental via-se uma linha de cruzes escuras. Em cada uma delas
estava pregada uma pequena figura humana. Enquanto olhava, mais uma foi erguida, com um homem a contorcer-se nos seus braços de madeira.
Cato reprimiu um arrepio de terror. Se Vitélio descobrisse que ele tinha aberto o seu despacho, tinha grandes hipóteses de vir a partilhar o destino dos piratas
crucificados nas cruzes que dominavam a baía.
XXX
A pequena embarcação manteve o rumo, e entrou na baía quando o Sol começava a mergulhar no horizonte. Da praia, Cato conseguia distinguir um grupo de pessoas no
convés. A luz oblíqua fazia sobressair o vermelho das capas e refulgia nas armaduras polidas.
Macro, ao seu lado, não evitou um resmungo.
- Parece-me um bando de figurões. O que andarão por aqui a fazer?
Viraram-se ambos para o prefeito Vitélio, que aguardava a curta distância, franzindo os olhos para tentar perceber quem vinha a bordo e incapaz de esconder a expressão
de ansiedade. Macro inclinou-se para o amigo.
- Achas que isto tem algo a ver com o relatório que ele mandou para Roma?
Cato tentou parecer sincero ao responder.
- Não faço a menor ideia. Veremos.
Macro olhou-o com ar curioso. Depois deitou uma olhadela em redor, para ter a certeza de que ninguém mais o escutaria, e procurou mais esclarecimentos.
- Cato, sabes alguma coisa desta história?
- Qual história?
- Ouve, miúdo, não tentes armar-te em esperto comigo. Conheço-te bem. A
A necessidade que sentia de aliviar o fardo que carregava há tempos quase fez Cato ceder; precisava de um conselho de amigo, precisava de ajuda. Mas não podia colocar
Macro numa situação ainda mais perigosa do que aquela em que se encontrava já. Devia-lhe isso, pelo menos.
- Desculpe. Mas não tenho nada a dizer.
Macro encarou o seu jovem amigo, e mostrou-se difícil de convencer.
- Queres tu dizer que não há nada que me queiras dizer. Seja, podes
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continuar a ser um idiota obstinado e a guardar esse segredo para ti. É o costume... - E o veterano deu um toque suave no braço de Cato. - Mas vê lá se tens cuidado,
sim?
Macro aproximou-se da água e olhou para o navio, cuja vela tinha sido recolhida. Surgiram dois grandes remos de cada lado, e foi à força de braços que a embarcação
percorreu o resto da distância até tocar terra. No último instante os remos foram manobrados de forma a que a proa apontasse à praia. Uma pequena onda empurrou o
navio até à areia, onde encalhou com um ruído característico. Os homens que estavam na popa da embarcação atravessaram o convés e saltaram para terra. Eram seis,
a maior parte deles jovens oficiais de estado-maior; aristocratas a fazerem a sua aprendizagem do meio militar, sem dúvida. Com eles vinha também um homem mais velho,
que envergava uma túnica simples e uma pesada capa militar. Cato e Macro reconheceram-no de imediato, e entreolharam-se espantados.
- Vespasiano? - Macro abanou a cabeça. - Mas que raio está ele aqui a fazer?
Cato não fazia ideia. Estava tão surpreso como o amigo por rever o antigo comandante. A última vez que o vira fora há meses atrás, quando tinham acompanhado o legado
na viagem de regresso a Roma, depois de deixarem a Britânia. Cato e Macro viraram-se para apreciar a reacção de Vitélio. Dois anos antes, o agora prefeito tinha
servido como tribuno sob as ordens de Vespasiano, e tinha existido uma intensa e amarga rivalidade entre os dois homens.
Vitélio inspirou fundo e acenou aos oficiais que o rodeavam.
- Sigam-me!
O grupo desceu a praia, dirigindo-se aos recém-chegados, enquanto Vespasiano e os seus homens se recompunham e aguardavam, alguns passos acima da zona onde as ondas
vinham morrer.
- Senhor! - Saudou Vitélio, com um sorriso forçado. - O que o traz até estas paragens?
Vespasiano aparentou a mesma cordialidade, esticando a mão para apertar o braço do outro oficial.
- Fui enviado pelo secretário imperial. Mais tarde apresentar-te-ei os oficiais do meu estado-maior. Mas temos de falar imediatamente. Narciso quer saber
como está a decorrer a operação.
Vitélio franziu o sobrolho.
- Eu enviei-lhe um relatório. Já o deve ter recebido há uns dias. A menos que... - E lançou um olhar a Cato.
- O relatório chegou em segurança. - Confirmou Vespasiano.
- Narciso agradece-te a intenção, mas dada a, hum, complexidade da
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situação, decidiu mandar alguém para proceder a uma avaliação dos teus progressos no terreno. E, uma vez que já servimos juntos, encarregou-me dessa tarefa. - Sorriu.
- Portanto, cá estou, relutantemente.
- Compreendo.
- Enquanto nos aproximávamos, reparei que tens tido algum sucesso. - Vespasiano virou-se e indicou o promontório.
- Aquilo? Os meus homens prepararam uma armadilha para os piratas. Capturámos três dos seus navios e fizemos alguns prisioneiros, incluindo um bastante próximo
do chefe, Telémaco. Estava justamente a interrogá-lo quando fui avisado da sua chegada. Os outros foram executados, para servir de aviso aos piratas e dar algum
moral aos nossos homens.
- Avisar os piratas? - Espantou-se Vespasiano. - Nesse caso, devem estar por perto.
- Mantêm-nos sob observação constante. - Admitiu Vitélio, cauteloso.
- A sério? Bom, então não podemos perder tempo. - Prosseguiu Vespasiano, adoptando um tom mais ligeiro. - Foi uma viagem longa e desconfortável. Os meus tribunos
e eu próprio agradecíamos se nos fosse servido um refresco.
- Evidentemente. - Vitélio virou-se para um dos seus oficiais.
- Corre até aos meus aposentos. Preparem uma tenda. Vinho e comida para os oficiais superiores e para os nossos convidados, depressa. Vai.
Enquanto o homem se afastava em corrida, Vespasiano admirou as fortificações que se viam na praia, e os navios fundeados ou levados até à praia.
- Fizeste um bom trabalho quanto às defesas. Parece-me uma excelente base de onde lançar as operações.
Vitélio inclinou a cabeça, graciosamente.
- Incomoda-te que eu e o meu estado-maior demos uma volta por aí antes de aproveitarmos a tua hospitalidade? Assim, os teus homens terão mais tempo para completar
os preparativos. - Vespasiano sorriu.
- Claro, terei todo o prazer...
O outro ergueu a mão, interrompendo-o.
- Oh, já te demos demasiado trabalho. - Olhou em volta, para os oficiais que rodeavam Vitélio, até que descobriu Cato. - Centurião Cato! É um prazer rever-te.
Importas-te de nos servir de guia?
- Senhor, será uma honra.
- Obrigado. Prefeito Vitélio, daqui a pouco juntar-nos-emos de novo a ti.
- Ficarei a aguardar, senhor.
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Sem pronunciar outra palavra, Vespasiano encaminhou-se pela praia, com Cato ao lado, enquanto os oficiais do estado-maior seguiam a curta distância. Vitélio observou-os
atentamente durante uns momentos, sorrindo ao pensar na dura punição que daí a pouco seria com certeza imposta a Cato. O relatório que enviara para Roma tinha sido
absolutamente claro quanto à sua desobediência às ordens. Vespasiano devia ser portador de um mandato para a execução do jovem centurião. Todavia, se o alegrava
a perspectiva de se ver finalmente livre de Cato, o facto de Narciso ter enviado Vespasiano para avaliar a situação era profundamente perturbador. Era evidente
que as palavras cuidadosamente escolhidas com que descrevera as fases iniciais da campanha não tinham conseguido iludir a inteligência lo secretário imperial. Teria
de tratar Vespasiano com muito cuidado, se queria continuar a ocultar a Narciso a verdadeira dimensão do desastre. Virou-se e acenou a Macro para que se aproximasse.
- Senhor?
- Volta para junto do prisioneiro. Limpa-o, e leva-o para um sítio qualquer, seguro e fora do alcance dos ouvidos do Vespasiano.
- Sim, senhor.
Deixou-se ficar ainda algum tempo a observar em silêncio o progresso de Vespasiano e do seu grupo. Em seguida virou-se e dirigiu-se ao interior do campo fortificado.
? ? ?
Assim que terminou a inspecção às defesas costeiras, Vespasiano dispensou os seus oficiais e ordenou a Cato que o conduzisse até ao exterior das muralhas. Quando
se viram a uma distância segura da paliçada, Vespasiano Dirigiu-se para o centurião e pôs de parte todos os formalismos.
- Bom, já chega de conversa de chacha. O secretário imperial quase trepou pelas paredes quando leu o relatório do prefeito. Uma frota do Império quase derrotada
por um bando de piratas. Centenas de vidas perdidas e equipamento valioso mandado ao fundo. E quando passei por Ravena, a cidade estava à beira da anarquia. Tive
de requisitar uma coorte de auxiliares a Armínio, só para restabelecer a ordem. Quando estas notícias chegarem ao palácio, será melhor que o Vitélio tenha todos
os assuntos em ordem, e o testamento escrito.
- Senhor, a situação é assim tão séria?
- Talvez o prefeito consiga sobreviver, se derrotarmos os piratas rapidamente e encontrarmos os famosos pergaminhos. Pelo menos o relatório era honesto, e
não tentava esconder a confusão que ele conseguiu engendrar. Talvez isso o salve.
270
Cato estremeceu. A boa fortuna de Vitélio parecia não ter fim.
- Centurião, tenho de saber qual é a verdadeira situação por aqui. - Prosseguiu Vespasiano. - É suposto o prefeito Vitélio estar a conduzir uma expedição
punitiva e que leve a destruição até ao covil dos piratas. Em vez disso, porra, tenho a sensação nítida de ter chegado a uma cidade sitiada. Como raio chegaram as
coisas a este ponto? Fala livremente. Suspeito que não tenho de me preocupar com qualquer tendência para protegeres este comandante em particular, dada a tua anterior
experiência com ele.
Cato devolveu ao seu superior o sorriso de cumplicidade e ordenou rapidamente os pensamentos, enquanto percorriam a passo lento o perímetro exterior das defesas.
- Se incluirmos os feridos, já perdemos um quarto dos efectivos. Vários navios sofreram danos e Vitélio tem-se mantido na defensiva, o que não ajuda nada
ao moral dos homens. - Fez uma pausa e apontou para o arvoredo no cimo de uma colina, a pouco mais de um quilómetro de distância. - Pior ainda, o inimigo mantém
forças naquela área, e ataca os nossos destacamentos de aprovisionamento, além de abater uma ou outra sentinela durante a noite. Os piratas têm navios mais rápidos
e melhores tripulações, e têm conseguido iludir todas as tentativas de perseguição. - Fez um gesto na direcção das cruzes que se erguiam no promontório. - Aquele
foi o nosso único sucesso desde o início da campanha, senhor.
- E o que sucedeu?
- Armámos uma cilada numa enseada que fica a alguma distância. Morderam o isco, e pagaram o preço.
Vespasiano encarou-o com ar de quem estava a adivinhar a história.
- De quem foi a ideia? Tua?
- Eu estava lá, sim. - Respondeu Cato. - Foi simples.
- Pode ter sido simples, sim. Mas tu conseguiste-o, enquanto o prefeito se deixava ficar refastelado no campo. Essa é a diferença.
- Bem, senhor, alguém tinha de fazer alguma coisa.
- Não sejas parvo. - Contestou Vespasiano, de forma ríspida. - Cato, não peças desculpas. Pelo que vejo, foste o único a fazer alguma coisa de jeito por aqui.
Há mais alguma coisa que eu precise de saber?
- Bem, senhor, é possível que tenhamos descoberto a base de operações dos piratas.
Vespasiano estacou e encarou-o.
- E só agora é que me dizes isso?
- Um dos prisioneiros que capturámos é o filho de Telémaco. Esta
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tarde, o prefeito pô-lo nas mãos de um especialista. Deu-nos algumas indicações sobre um local.
- Achas que disse a verdade?
Cato encolheu os ombros.
- Não sei, senhor. O tipo parece ter coragem. Pode ter-nos mentido, de forma a ganhar tempo para o pai e os seus homens. Por outro lado, o homem que o estava
a interrogar estava a fazer um bom trabalho, e já lhe tinha quebrado a resistência.
O olhar de Vespasiano redobrou de intensidade.
- E disse alguma coisa sobre pergaminhos?
Cato sentiu que o pulso se lhe acelerava, e decidiu nesse instante arriscar. Lutou para manter a voz calma.
- Pergaminhos, senhor? Os pergaminhos délficos?
Vespasiano permaneceu alguns momentos em silêncio, antes de
responder.
- Estás portanto ao corrente da história? Disseram-me que só o prefeito tinha sido informado.
Cato pensou depressa.
- Foi o próprio secretário imperial que nos contou, quando nos encarregou desta missão.
- Nos? Queres dizer que o centurião Macro também sabe da existência desses manuscritos?
- Sim, senhor. - Não tinha tido tempo para pensar em mais nada, e Cato lançou uma prece para que aquela afirmação não tivesse colocado o amigo em perigo.
- Estou a ver... Será melhor terem cuidado, vocês os dois. É um conhecimento perigoso, este dos pergaminhos.
- Mas, senhor, não me parece que eles sejam um segredo assim tão grande, ou que ninguém saiba o que está escrito neles. Os sacerdotes no templo de Júpiter
consultam-nos há centenas de anos.
- Sim, aos três primeiros livros. Agora imagina como ficariam satisfeitos se conseguissem deitar as unhas aos outros três, e ter à sua disposição todo o conjunto.
- Vespasiano virou-se para contemplar o mar, na direcção de Itália e Roma. Quando voltou a falar, fê-lo em tom pensativo.
- Não é difícil imaginar quantos gostariam de os ter em sua posse, e o que estariam dispostos a pagar por eles...
A mente de Cato ainda funcionava a toda a velocidade, tentando perceber todas as implicações daquilo que Vespasiano lhe dissera. Os outros três pergaminhos délficos?
Impossível. Tinham sido destruídos, queimados pelo próprio oráculo. Ou assim se supunha. Mas se tinham sobrevivido, seriam uma poderosa arma nas mãos de qualquer
um dos ambiciosos
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personagens que, em Roma, não hesitariam em explorar as superstições da populaça para os seus próprios fins. Alguém como Vitélio, ou... Uma sensação de frio percorreu
a espinha do jovem quando contemplou Vespasiano. Nesse instante, o senador voltou-se de novo para ele e, por um breve momento, Cato julgou perceber um sinal de pena
na face do outro. Mas depois a sua expressão endureceu.
- Bom, o Narciso deve ter tido as suas razões para vos informar. Pelo menos, compreendem a importância de que eles se revestem. E porque é que não podem cair
noutras mãos, muito menos nas dos inimigos do Imperador.
Cato anuiu.
- Muito bem. - Vespasiano olhou em volta, apreciando a disposição das colinas e das florestas sombrias que as cobriam. Virou-se e contemplou o campo romano,
dando especial atenção a uma sentinela que percorria a paliçada e lançava olhares nervosos para os arredores. Abanou a cabeça. - Já vi o suficiente. Chegou o momento
de agir.
? ? ?
Vitélio olhou para o senador, chocado.
- Não está a falar a sério.
- Estou, sim. - Retorquiu o outro, com firmeza. - Pela autoridade em mim investida pelo Imperador Cláudio, pelo Senado e pelo Povo de Roma, retiro-te o comando
e assumo eu a patente e a autoridade como prefeito da esquadra de Ravena.
Fez-se um silêncio aturdido na tenda, enquanto os oficiais assistiam ao confronto entre os dois homens. Por momentos, Vitélio ficou como que em transe e não conseguiu
responder. Em seguida sacudiu a cabeça e endireitou as costas.
- Não. Não tem essa autoridade.
- Tenho sim. - Vespasiano virou-se para um dos seus oficiais e estalou os dedos. - Décio, a autorização, se faz favor.
O tribuno meteu a mão sob a placa peitoral da sua armadura e daí retirou um papiro cuidadosamente dobrado. Passou-o a Vespasiano, o qual, depois de o abrir com todo
o cuidado, o ofereceu a Vitélio para inspecção.
- Lê.
Vitélio olhou para o documento como se fosse venenoso. Depois pegou-lhe. A autoridade de Vespasiano era confirmada pelo próprio Imperador Cláudio, embora o texto
fosse invulgarmente conciso. Era porém claro quanto aos plenos poderes atribuídos ao novo comandante da esquadra de Ravena. Vitélio dobrou o papiro e devolveu-o
ao senador.
273
- Senhor, as minhas felicitações. - Continuou, num tom carregado de amargura. - A esquadra é sua... Posso perguntar o que será feito de mim?
Vespasiano esperava a pergunta, e tinha uma resposta pronta. Nos termos da autoridade que lhe fora atribuída, podia prender Vitélio, e condená-lo por incompetência.
Podia até fazer com que o executassem, se assim o desejasse. Mas em qualquer desses casos, teria de responder a perguntas complicadas quando regressasse a Roma.
Apesar de o favorito do Imperador ter praticamente transformado a campanha num desastre, Cláudio ainda o apreciava. O suficiente para se vingar de quem se atrevesse
a destruir o seu protegido. Por outro lado, se Vitélio sobrevivesse, mais cedo ou mais tarde teria ocasião de usar as suas falinhas mansas e regressar a uma posição
de favor, e não se esqueceria do que lhe fizera Vespasiano.
Poucas alternativas tinha, portanto. Vitélio tinha de ser mantido com a esquadra durante o resto da campanha, onde Vespasiano o pudesse controlar. E, com alguma
felicidade, e uma judiciosa atribuição de missões, o homem bem poderia ser morto em combate, e o problema de Vespasiano estaria resolvido sem mais complicações.
Antes de responder, encarou Vitélio durante longos momentos, como se estivesse a sopesar as opções.
- Ficas cá. Atendendo às perdas que já sofremos por causa das tuas más decisões, vamos precisar de todos os homens capazes de empunhar uma espada. Por agora,
ficas no meu estado-maior. Mas assim que a acção começar, avanças para a linha da frente.
Vitélio inclinou a cabeça.
Vespasiano olhou em redor da tenda, avaliando os outros oficiais, ainda aturdidos pelo extraordinário acontecimento que acabavam de presenciar.
- Nenhum outro oficial será considerado responsável pelo mau desempenho da esquadra até agora. Todos vocês continuarão nos respectivos postos. Mas lembrem-se
de que em Roma há bastante descontentamento com o que foi conseguido até ao momento. Senhores, estou a oferecer-vos a possibilidade de reporem as coisas, de recuperarem
a vossa honra e a da esquadra. Gostaria que reflectissem sobre isso. A partir de amanhã, somos nós que atacamos, os piratas que se defendam.
Um murmúrio de aprovação percorreu as filas dos oficiais. Vespasiano indicou então Macro e Cato.
- Entre vós, há quem já tenha servido sob as minhas ordens. Sabem que não dou descanso aos meus homens. Mas sabem também que sou justo. Sirvam-me, como eles
o fizeram, e a vitória será nossa. Haveremos de matar ou capturar todos os piratas, e de destruir os seus navios e a sua
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base. E quando tudo estiver acabado, haverá um belo saque para distribuir por todos os que sobreviverem. Porém, se não estiverem à altura do que vos exijo, seja
em que momento for, não esperem misericórdia. Senhores, compreendem o que vos digo?
Os oficiais anuíram, e alguns exprimiram-no em surdina.
- Muito bem. A reunião terminou. Regressem às vossas unidades e preparem-se para marchar. Amanhã deixamos este campo e avançamos ao longo da costa. Por agora,
não vale a pena fazerem perguntas. Estão dispensados... Centuriões Macro e Cato, deixem-se ficar. Tenho uma pequena missão para vocês.
Enquanto os outros oficiais passavam pelas abas da tenda, Macro inclinou-se para o amigo e sussurrou:
- Tens alguma ideia do que nos espera?
- Não.
- Lindo. Mesmo catita. - Macro abanou a cabeça. - Estava capaz de apostar que vamos outra vez ficar com a parte merdosa da história.
XXXI
Duas noites depois, o iate que Vespasiano requisitara desembarcou os dois centuriões cerca de cinco milhas a sul da região conhecida como as Portas de Pedra. Cato
e Macro vestiam túnicas cinzentas e levavam consigo apenas as espadas e rações para três dias. As instruções que tinham recebido do novo prefeito da esquadra de
Ravena eram claras. Deviam proceder ao reconhecimento da área e tentar localizar o esconderijo dos piratas. Se, de facto, se encontrava naquelas paragens. Tinha
sido garantido a Ajax que, se a informação que fornecera se revelasse falsa, seria submetido a novas sessões de tortura. Os dois centuriões estavam proibidos de
tentar gestos heróicos, e em caso algum deviam ser vistos pelo inimigo. A embarcação que os levara aguardava-os numa baía escondida, mais próxima das Portas.
Enquanto eles batiam a área, a força principal, agora comandada por Vespasiano, avançava lentamente ao longo da costa. Os navios estavam em estado de prontidão permanente.
Todo o equipamento que o prefeito julgara desnecessário para a operação tinha sido deixado na testa-de-ponte. Cinco birremes, danificadas na batalha contra Telémaco,
tinham sido incendiadas na praia, para evitar que os piratas pudessem vir a recuperar qualquer parte delas. Outra tinha sido enviada de volta a Ravena, com os homens
demasiado feridos para poderem tomar parte no resto da campanha.
Era frequente que a frota avistasse velas junto ao horizonte, mas o inimigo parecia contentar-se em manter os romanos sob vigilância, e não procurava o confronto.
Vespasiano estava bem consciente da possibilidade de os piratas possuírem espiões na sua força, bem como em Ravena, e exigia a duplicação das sentinelas todas as
noites, nos campos fortificados que iam sendo erigidos. Além disso, as sentinelas tinham ordens para vigiar quer o exterior quer o interior dos campos, para o caso
de alguém tentar entrar em contacto com os piratas. Havia naquela altura pouco para lhes comunicar que eles não pudessem observar por si mesmos, mas quando surgisse
o momento decisivo da campanha, Vespasiano teria de avançar rapidamente
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e surpreender o inimigo. Nem pensar em permitir que este tivesse um aviso prévio.
O prefeito sabia também que havia algumas hipóteses de a base dos piratas não estar onde Ajax indicara, mas a localização tinha lógica, e justificava o risco. Mais
a sul, na direcção de Risínio, existiam várias colónias bem povoadas, e poucos locais onde uma frota como a dos piratas se pudesse esconder. Para norte, pelo contrário,
a costa transformava-se num emaranhado de ilhas e enseadas ladeadas por montanhas altaneiras. Era razoável supor que Telémaco e os seus homens tivessem escolhido
essa área para se esconderem. Suficientemente longe das rotas comerciais para evitar que quaisquer navios de passagem os localizassem, mas por outro lado a uma distância
aceitável para lhes permitir prosseguirem os ataques que tanto embaraço tinham provocado a Roma nos últimos meses. Se a informação de Ajax estivesse correcta, a
campanha estaria terminada numa questão de dias. Se se revelasse falsa, restar-lhe-ia garantir que a sessão de tortura e interrogatório seguinte produziria a verdade,
por muito tempo e agonia que exigisse.
? ? ?
Depois de uma noite ao relento, e de um dia a trepar por tortuosos caminhos de cabras, sempre atentos a qualquer sinal de presença humana, Macro e Cato encontraram
uma pequena gruta próxima do cimo de uma montanha, e resolveram usá-la como abrigo para a segunda noite. A entrada era estreita e ao longe não se notava, já que
se situava por trás de um espigão rochoso. De facto, nem sequer a teriam encontrado se o trilho que seguiam não lhe passasse mesmo ao lado. No interior, a gruta
alargava apenas o suficiente para que os dois homens se acomodassem para passar a noite com uma fogueira entre eles. Pousaram as mochilas e deixaram-se escorregar
para o solo, recuperando o fôlego. Passado algum tempo, Macro abanou a cabeça, fatigado.
- Porquê nós? Porque é que ele nos escolheu? Já devia ser a vez de
outros.
- Ouviu o que ele disse. - Retorquiu Cato. - Somos os melhores homens para esta tarefa.
- E acreditaste nele? - Contrapôs Macro. - Lembra-me, quando chegarmos a Roma, tenho uma carroça sem rodas para te vender.
- É bem possível que o legado tenha falado a sério. - Insistiu Cato, solenemente. - No passado já nos pediu vários trabalhos difíceis, e nunca o desapontámos.
- Espera aí. - Macro sentou-se direito. - Se bem me lembro, ou
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tu nos ofereceste como voluntários, ou ele nos deu ordens directas. Portanto, ou somos uns cretinos, ou ele acha que somos dispensáveis. Em qualquer dos casos, essa
não é propriamente a direcção que quero dar à minha carreira - ou ao que resta dela.
Cato sorriu.
- Ora, vai dizer-me que não está a gostar deste passeio?
- Passeio? Dois dias sem dormir, dezenas de quilómetros de escalada, cheio de frio e fome, e muito provavelmente bem próximo do covil de centenas de piratas
sanguinários. Realmente, como é que posso não apreciar a situação?
- Aí está o Macro que eu conheço!
- Oh, vai-te lixar... Tu é que gostas da ideia de usar este buraco imundo como casota. Eu?... Por mim, vou mas é tratar de arranjar uma bela fogueira.
Enquanto Macro recolhia alguma lenha por entre os arbustos enfezados que cresciam na face da montanha e preparava a sua fogueira, Cato tirou da mochila uma pele
de cabra, um aparo e um pequeno frasco de tinta, espalhando-os pelo chão da gruta. A luz sumia-se, mas ainda teve tempo de adicionar vários detalhes ao esboço da
área que um escrivão tinha copiado para a pele, a partir dos mapas existentes no estado-maior. Marcou com todo o cuidado a cadeia de elevações que tinham percorrido
durante o dia, assinalando a posição dos trilhos seguidos, e em seguida preocupou-se com a secção do mapa ainda em branco, correspondente à área que visitariam no
dia seguinte. Depois de alcançarem o cume da montanha que estavam a subir, teriam uma vista completa sobre o braço de mar lá em baixo; poderiam depois descer para
irem reunir-se à frota.
Ao fundo da gruta, Macro tentava acender o fogo, usando a sua pederneira. Algumas faíscas conseguiram pegar-se ao material, que se tornou incandescente. Macro soprou
com todo o cuidado, avivando a chama antes de a transferir para os gravetos; continuou a soprar até que a madeira começou a crepitar e pôde então alimentar a fogueira
com mais lenha.
- Aí está! - Recostou-se, sorrindo. - Mais um bocadito, e este buraco ficará bem mais confortável.
- Bom trabalho. - Cato obrigou-se a responder com um sorriso. A culpa roía-o, devido à relação de genuína amizade que tinha estabelecido com Macro. Ao implicá-lo
no seu suposto conhecimento acerca dos manuscritos de Delfo, tinha-o colocado em perigo. Agora, para o bem de Macro mas também para manter a amizade entre os dois
em terreno são, era chegado o momento de lhe contar toda a verdade. O veterano tinha de saber o que continham os pergaminhos, e o que significavam.
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- Macro...
O outro levantou os olhos do fogo.
- Hum?
- Tenho de lhe dizer uma coisa. Acerca dos tais rolos de pergaminho que o Narciso quer.
- Oh. - Macro apercebeu-se do tom estranho na voz do amigo.
- O que é que têm?
- Não sei bem por onde começar. Eu...
- Ó homem, manda isso cá para fora. Podes preocupar-te com os detalhes e as frases bonitas depois.
- Muito bem...
Macro abanou a cabeça.
- Foda-se, Cato, despacha-te lá. Até parece que me vais pedir para casar contigo.
Cato deu uma gargalhada.
- Bem, estava mesmo a pensar nisso. Vê-lo debruçado sobre o fogo fez-me perceber que daria uma excelente esposa.
Macro respondeu-lhe com um dedo médio esticado.
- Calminha aí, miúdo. Nunca leves uma piada desse género longe de mais.
- Tem razão, desculpe...
Macro encarou-o com ar expectante, e depois deu um suspiro.
- Os pergaminhos?
- Ah, pois, é verdade. - Pôs-se numa posição confortável, abraçando os joelhos, de frente para o fogo. - Descobri o que lá está escrito. Já ouviu falar dos
textos délficos?
Macro revirou os olhos, e respondeu com ar de paciência forçada.
- Sim. Parece-me que já ouvi falar dessa história, com efeito.
- E da história por trás dela?
Macro adoptou um ar de dúvida.
- Foram dados ao rei Tarquínio pelo oráculo. Não foi isso? Há muito tempo.
Cato assentiu.
- Sim, há mais ou menos uns quinhentos anos. Mas a sacerdotisa não os ofereceu, vendeu-os. Por uma fortuna. E apenas três dos livros.
- Havia mais?
- Oh, sim. Eram seis. Seis textos que supostamente prediziam todo o futuro de Roma e do seu povo. Um achado. Portanto, ela veio a Roma e ofereceu-os ao rei,
por um preço que o deixaria na ruína. Ele recusou, claro. Ela deixou-o, queimou um dos livros e voltou no dia seguinte com os cinco que tinham sobrado, e pediu o
mesmo preço. De
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novo ele recusou, e ela queimou mais um e voltou, exigindo sempre o mesmo preço. Mais uma vez o rei disse não, o que provocou a destruição do terceiro texto. Quando
ela regressou, o rei estava à beira do desespero, e aceitou o preço. E são esses três textos que temos hoje em dia no templo de Júpiter. Sempre que há uma crise,
os sacerdotes consultam-nos e tentam perceber o que se vai passar. O que não é fácil, quando só se tem metade da informação que se devia ter.
- Estou a ver. - Macro contemplava o coração da fogueira. - Mas então, o que têm estes rolos que nós procuramos a ver com esses manuscritos de Delfos?
Cato inclinou-se ligeiramente para a frente.
- Não está a ver? São os mesmos.
- Espera aí, estás a dizer que os que estão no templo de Júpiter são
falsos?
- Não. Não. Escute bem. Pense no que vou dizer. O oráculo sabia perfeitamente que aqueles manuscritos não tinham preço. Portanto, porquê destruí-los?
- Para, como disseste, ganhar alguma vantagem nas negociações com o rei.
- E conseguiu-o. - Admitiu Cato. - Mas não seria mais inteligente guardar os textos num lugar seguro e limitar-se a proclamar que os tinha queimado? Mais
tarde acabaria por surgir outro rei, com outra fortuna para gastar, e ela, ou uma sucessora, revelaria a existência dos outros três pergaminhos. Por essa altura
já o povo de Roma teria percebido que os três primeiros livros, por si só, eram praticamente inúteis. E estaria preparado para pagar o que quer que fosse pela posse
dos outros textos, pela totalidade da profecia.
- Mas então porque é que ela não voltou a tentar vender-nos esses
textos?
- Não faço ideia. Talvez achasse que ainda não tinha chegado o momento. Talvez estivesse à espera que Roma se tornasse suficientemente rica para pagar o preço
que queria pedir. Talvez fosse demasiado ciosa dos seus segredos e morresse sem dizer à sucessora o local onde se encontravam os textos. Não sei. Estou apenas a
dar palpites. Contam-se histórias de homens que afirmaram tê-los visto. Ouvi até dizer que foram parar às mãos de Marco António, mesmo antes da batalha de Áccio.
E a verdade é que ele quase bateu Augusto, mas perdeu a coragem no último momento e abandonou a frota, que foi destruída. Segundo me contaram, ele leu os textos
na véspera da batalha, e assim ficou a saber que seria derrotado.
Macro fixava o amigo.
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- Achas que isso é verdade?
Cato deu uma risada.
- Como poderá alguém saber? A frota foi arrasada porque ele fugiu, isso é certo. Se o fez por causa de uma profecia, então é um idiota ainda maior do que
os historiadores o consideram. O nosso destino não está escrito nas estrelas. Somos nós que o fazemos. O resto é uma treta.
- Mas pode ter acontecido. - Persistiu Macro. - Há mais coisas nos céus e na Terra do que o que podes encontrar em todos esses livros que lês, Cato.
- Talvez. - Cato encolheu os ombros. - Ou talvez António fosse tão mau a comandar uma frota como a escolher uma amante.
Foi a vez de Macro encolher os ombros e continuar a fixar o fogo, abatido, de tal forma que Cato temeu ter ido longe de mais na demolição das superstições que tanto
significavam para o amigo. Decidiu mudar de assunto, e tossicou para lhe atrair de novo a atenção.
- Bom, o que aconteceu agora é bem evidente.
- Oh?
- Alguém descobriu os pergaminhos e percebeu o que eram. Esse alguém fez um negócio com o Imperador - ou, mais provavelmente, com o Narciso. Este deve ter
enviado um agente com o ouro para pagar o preço combinado; em teoria, o homem devia ter regressado a Roma em triunfo, com os textos que completavam as profecias
délficas. Finalmente, os senhores da cidade ficariam a saber o que o futuro reserva para o Império, e poderiam fazer os seus planos de acordo com esse conhecimento.
Isto, partindo do princípio que as profecias têm alguma substância.
- E se estiverem erradas? - Perguntou Macro.
Cato encolheu os ombros.
- Não interessa. O Narciso só precisa de espalhar a notícia de que tem os pergaminhos, e os seus inimigos não se atreverão a atacá-lo, receando que ele seja
conhecedor dessas intenções. Terá portanto em mãos uma poderosa arma política. Praticamente um tesouro... O único problema é que os rolos nunca chegaram a Roma.
Já perto de Ravena, o navio em que o agente de Narciso viajava foi apresado por Telémaco e os seus piratas. Quando este percebeu o que tinha apanhado, viu logo que
podia pedir uma fortuna por eles. Melhor ainda, se vários interessados ficassem a saber da existência dos manuscritos, haveria um verdadeiro leilão, e ele poderia
lucrar ainda mais. Não é apenas o palácio imperial que está empenhado na aquisição dos pergaminhos. Há outros. Por exemplo, os nossos amigos, os Libertadores. Portanto,
o Telémaco pô-los uns contra os outros, e forçou a subida do preço. Mas cometeu um erro: foi demasiado ganancioso, e o
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Narciso resolveu recuperar os pergaminhos a qualquer preço. E mandou-nos, e à esquadra de Ravena, com ordens para que nada nos detivesse até à completa destruição
dos piratas.
- E à recuperação dos pergaminhos. - Concluiu Macro. - Então esta história toda é por causa deles?
- Não por completo. Alguma vez haveriam de ter de lidar com o Telémaco e os seus homens. Mas uma campanha contra os piratas oferecia uma cobertura perfeita
à operação. A única dificuldade para o secretário imperial era a necessidade de manter em segredo essa parte, não só para evitar alertar os rivais quanto à existência
dos textos, como para não revelar onde é que estes se encontravam.
- Estou a ver. Mas se é um segredo assim tão bem guardado, como é que tu sabes isso tudo?
Cato corou.
- Li o relatório do Vitélio. Aquele que ele mandou para Roma.
Macro mostrou-se horrorizado.
- Tu, o quê?
- Bem, houve uma tempestade. O selo molhou-se e partiu-se. Não confiava nele, por isso li o relatório...
Macro olhava-o com os olhos muito abertos. Tratava-se de uma quebra de protocolo, das mais sérias que se podiam imaginar. Um legionário podia facilmente ser executado
de pronto por ofensas muito menos graves. Engoliu em seco.
- Bom, continua. O que é que dizia esse relatório?
- Bem, conhecendo o nosso estimado Vitélio, não ficará surpreso se lhe disser que ele mentia descaradamente sobre a batalha, e a situação de merda em que
nos pôs. Tentava simplesmente responsabilizar-me pelas nossas perdas.
- Ati?
- Porque não? Tinha de alijar a culpa. E se me afastasse, ficariam só ele e você a saber dos pergaminhos. Se alguma coisa lhe sucedesse a si, ele teria o
caminho livre para inventar a história que quisesse e guardar os textos para proveito próprio.
- Para que faria ele isso?
- Para os vender, se calhar. Ou, melhor ainda, para fazer valer os seus interesses. Sabe como ele é ambicioso.
- Sim, sei muito bem disso. - Retorquiu Macro, com ênfase. - Filho da puta.
- Bom, por isso fiz algumas alterações ao relatório antes de o selar de novo e de o enviar para Roma.
Macro estava abismado e agoniado perante a confissão de Cato.
282
- Alteraste-o?
- Tive de o fazer. - Cato encolheu os ombros. - Se não o fizesse, era como se estivesse já morto. Portanto, limitei-me a mudar o suficiente para que a verdade
ficasse bem expressa.
Macro levantou o olhar repentinamente.
- Por isso é que mandaram para cá o Vespasiano.
Cato assentiu.
- Porra, Cato. Arriscaste-te muito. Se isto alguma vez se sabe, partem-te os ossinhos todos.
- No mínimo... - Cato encarou o amigo, embaraçado. - Olhe, lamento tudo isto. E lamento tê-lo envolvido neste assunto.
- O que é que queres dizer?
- Bem, eu enganei o Vespasiano, de forma a saber o resto da história. Vi a referência às profecias de Delfos no relatório do Vitélio, e fingi que sabia tudo
quando estive com o Vespasiano e o informei da situação por cá. Ele acreditou e, antes que eu parasse para pensar, estava a dizer-lhe que você também sabia da história
toda.
Macro franziu o sobrolho e abanou a cabeça.
- E? Qual é o problema?
- Até que isto se resolva, quem quer que saiba dos pergaminhos vai correr perigo de morte. O assunto é demasiado sério para que se possam deixar pontas soltas.
- Estou a ver. - Macro acenou com a cabeça. - Obrigadinho, pá. Muito obrigado. Cato, por muito que te aprecie, e por muito que ache que te tornaste um magnífico
soldado, há alturas em que desejo realmente que nunca nos tivéssemos conhecido. Já tinha servido quinze anos antes de tu apareceres. É verdade que tinha passado
por alguns maus bocados, mas nestes dois últimos anos quase fizeste com que me matassem mais vezes do que aquelas em que consigo pensar. E agora esta...
- Desculpe.
- Pára de te desculpares. É tarde de mais para fazer o que quer que seja quanto a isso. - Pegou na mochila e amassou-a, formando uma espécie de almofada,
e deitou-se junto ao fogo, de costas para Cato. Manteve-se silencioso durante algum tempo, antes de murmurar. - Só quero que me prometas uma coisa.
- Sim?
- Se nos safarmos desta, chega de aventuras.
- Bem, farei o possível.
- Hum...
? ? ?
283
Levantaram-se assim que a primeira luz da manhã se reflectiu nas paredes da gruta. Macro esticou os membros rígidos e tossiu quando o ar frio lhe encheu os pulmões.
Cato manteve-se em silêncio, ainda envergonhado pela confissão da noite anterior. Voltaram a colocar as provisões nas mochilas, calçaram as botas e deixaram o pequeno
abrigo rochoso. O céu estava carregado, e pela face da montanha soprava um vento frio e húmido, com ameaça de chuva.
- Para que lado? - Indagou Macro.
- Para cima. Lá do alto devemos ter uma boa vista da base e do ancoradouro dos piratas.
- Se a informação estiver correcta. - Contrapôs Macro, pouco animado. - E o mais provável é que não esteja.
- Daqui a pouco saberemos. - Cato pôs a mochila às costas e começou a subir o trilho que serpenteava pela encosta repleta de rochas. No momento seguinte,
depois de proferir algumas asneiras, Macro seguiu-o.
Depois de treparem algum tempo, viram-se envolvidos em nevoeiro. Logo a seguir, pareceu-lhes que tinham alcançado a base das próprias nuvens, e ficaram rodeados
por uma chuva fina, fria e persistente. Pouco a pouco o chão começou a aplanar, formando um patamar rochoso onde se viam, aqui e ali, por entre penedos e pedregulhos,
uns míseros maciços de erva batida pelo vento, que tentavam sobreviver nas condições terrivelmente agrestes.
- Bonito. - Comentou Macro. - Mas tenho a certeza de que a vista vale o terreno.
- Vista? - Cato olhou em volta. - Se fosse a si, não contava muito com isso.
Macro abanou a cabeça.
- E eu a pensar que eras tu o mestre do comentário irónico.
Cato sorriu.
- Desculpe.
- Lá estás tu outra vez...
Abrigaram-se da chuva e do vento sob uma cornija rochosa e sentaram-se, embrulhados nas capas, mastigando alguma da carne seca que levavam nas mochilas. Passaram
as horas, mas o céu não deu sinais de melhoria do tempo. Por fim, quando pela estimativa de Cato já anoitecia, as nuvens começaram a dispersar e um tímido raio de
Sol desabrochou sobre o cimo da montanha. A chuva parou e pedaços de céu azul surgiram por entre as nuvens. Por baixo deles a encosta começou também a revelar-se,
e por fim distinguiram lá bem ao fundo a superfície do mar, na base da montanha. Por fim a brisa afastou por completo as nuvens, e os dois centuriões tiveram uma
vista privilegiada da outra metade dos Portões de Pedra - a
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montanha que ficava do outro lado da entrada do braço de mar. A partir desse ponto, a linha de cristas embrenhava- se para o interior, descrevendo um vasto círculo
até vir dar à serra onde Macro e Cato se encontravam sentados. Lá em baixo, as águas resplandeciam calmamente, enquanto no mar aberto se viam as cristas brancas
das ondas ainda alterosas.
- Seja, admito-o. - Disse Macro. - A vista vale mesmo a pena.
- Sim. - Retorquiu Cato. - Sobretudo se pensarmos naquilo.
Levantou o braço e apontou para a montanha em frente. Na base
desta via-se uma saliência rochosa que se projectava sobre as águas, desenhando uma pequena baía. Na sua extremidade, dominando toda a enseada, encontrava-se uma
pequena povoação fortificada, enquanto que nas águas calmas aos seus pés se distinguiam as formas estreitas de vários navios, ancorados em duas fileiras bem ordenadas.
XXXII
- Aí está! - Macro deu um murro na palma da própria mão. - Só podem ser os malditos piratas!
Cato semicerrou os olhos, tentando perceber que tipo de navios estavam fundeados. Dois eram sem dúvida trirremes, e o aparelho de tipo liburniano da maior parte
das outras embarcações era do mesmo género do apresentado pelas que tinham atacado a frota e pelas duas que tinham capturado há poucas noites atrás. Concordou.
- São eles, sim. - Remexeu nas costas, trouxe a mochila para a frente e começou a desapertar as amarras. Macro olhou para ele, espantado.
- Não me parece que seja a melhor altura para comer. Quanto mais cedo voltarmos para junto de Vespasiano e lhe relatarmos isto, melhor.
Cato meneou a cabeça, enquanto preparava o mapa e os aparos.
- Sim, mas só depois de fazer um mapa.
- Muito bem. - Concordou Macro. - Mas despacha-te.
Cato fez um esboço rápido da baía, incluindo o pontão, as fortificações e a disposição dos navios, e voltou a guardar o equipamento.
- Vamos.
O cume da montanha estava próximo, e os dois homens curvaram-se para a frente e subiram, mais animados do que se sentiam desde há muito tempo. Se tudo corresse bem,
daí a poucos dias a esquadra de Ravena irromperia pela baía e destruiria os piratas. Poderiam então regressar a Roma, triunfantes, e Narciso levantaria as acusações
contra eles e, quem sabe, talvez até lhes oferecesse uma pequena recompensa. A vida parecia voltar a correr bem, e Macro sentiu vontade de cantar. Começou a trautear
uma canção que tinha sido popular entre as legiões da Britânia, pouco tempo antes de ele e Cato terem sido forçados a deixar a ilha. Inspirou fundo e entoou.
Oh, quando me alistei
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Parece que foi ontem Em Clúsio a beijei Antes de marchar...
Cato pegou-lhe no braço e repreendeu-o.
- Calado!
Macro soltou o braço com rispidez e virou-se furioso para o companheiro.
- O que é que pensas que estás a fazer?
- Chhhiu! - Cato olhava-o quase em desespero. - Escute!
Agacharam-se, e Macro esforçou-se por ouvir o que quer que fosse.
Quase de imediato, notou um som de conversa a curta distância, no cimo da montanha. Os dois centuriões olharam para cima ao mesmo tempo, os olhos a seguirem o caminho
que desaparecia atrás de um bloco rochoso, a não mais de quinze passos. Alguém fez um chamamento numa língua estranha, e repetiu-o, como se esperasse uma resposta.
Ouviram botas a resvalar em pedras soltas, e depois a mesma voz voltou a fazer-se ouvir, mais próxima.
- Merda! - Sussurrou Macro. - Devem ter-me ouvido.
- Ainda não foi dado o alarme. - Cato pensava a toda a velocidade, enquanto avaliava o terreno em redor. Não havia esconderijos possíveis. E, de qualquer
maneira, o tipo tinha-os ouvido, embora, pelo tom da voz, não esperasse encontrar inimigos. Apontou para o penedo.
- Ali! Depressa!
Avançaram tão depressa e tão silenciosamente quanto possível, e quase tinham alcançado o enorme pedregulho desgastado quando um homem o rodeou e estacou, a uns cinco
passos de distância. Tinha a pele escura e envergava uma pesada capa, ao cinto da qual se via uma pesada espada oriental. O pirata mirou-os, de boca aberta, mas
sem emitir qualquer som. Os três mantiveram-se imóveis por momentos. Foi Cato o primeiro a reagir, desfazendo-se da mochila e empunhando a espada enquanto se lançava
ao pirata. Com um gemido de temor, o homem levou a mão ao cinto, mas os seus dedos nervosos mal conseguiram fechar-se em volta do punho da espada. Cato chocou contra
ele, a mão esquerda lançada à garganta e a ponta da espada a cravar-se com toda a força no estômago, rasgando a capa. O homem caiu de borco sobre a arma, soltando
o ar dos pulmões num gemido e deslizando para o trilho rochoso, enquanto Cato se abatia pesadamente sobre ele. O impacto roubou-lhe o que lhe restava de fôlego,
pelo que o único som que emitiu foi um desesperado arfar. Mesmo sabendo-se acabado, o pirata tentou lançar as mãos à face de Cato, procurando-lhe os olhos, com as
unhas partidas a arranhar-lhe a pele.
Àquela distância, o jovem sentia perfeitamente o odor a cebola no
hálito do adversário, mas ignorou-o e colocou mais força ainda na espada, fazendo-a subir na direcção do peito, procurando o coração do inimigo, de forma a pôr cobro
às suas tentativas de resistência. Num espasmo final e desesperado, o pirata agitou braços e pernas, encolhendo os joelhos e atingindo Cato na virilha. Depois o
corpo ficou tenso por um instante, e tombou inanimado.
Enquanto Macro se aproximava, Cato largou a espada e deixou-se cair no solo, rebolando em agonia, protegendo os testículos com uma mão, enquanto uma vaga de náusea
o submergia.
- Oh... Merda. - Mal conseguiu pronunciar a palavra antes de virar a cabeça para o lado e vomitar.
Macro verificou que o inimigo estava morto e só depois se virou para o amigo, com ar de gozo.
- Isso é que foi azar!
Antes que o veterano começasse a gargalhar perante o espectáculo de Cato a sofrer no chão, com as mãos enfiadas entre as pernas, ouviram uma voz que lançava um grito.
Logo a seguir, outro homem respondeu.
- Há mais! - Avisou Macro. - Fica aqui!
Desapertou a capa e deixou-a tombar para o solo, enquanto desembainhava a espada e avançava na direcção do rochedo. Tomando cuidado para não perder o equilíbrio,
agachou-se e espreitou para o outro lado. O trilho serpenteava pelo planalto pedregoso até alcançar um pequeno abrigo, a curta distância de um precipício de cujas
margens se podia admirar a baía, de um lado, e o mar na zona de aproximação à mesma, do outro. O posto de vigia dos piratas era feito de pedras, e os espaços entre
elas estavam preenchidos por terra amassada, de forma a oferecer alguma protecção nas intempéries. Do telhado subia uma fina coluna de fumo, e à entrada via-se um
homem que exercitava descontraidamente os músculos do pescoço e das costas. Rolou a cabeça e depois espreitou para o trilho, chamando com impaciência. Pegou numa
lança, e começou a avançar na direcção do esconderijo de Macro.
Este recuou cuidadosamente.
- Vem aí outro. E há pelo menos mais um no abrigo. Deixa-te estar quieto. Eu tomo conta dele.
- Deixar-me ficar quieto? - Cato ofegava e cerrava os dentes, tentando resistir às ondas de náusea que o percorriam.
Macro permaneceu agachado, mantendo a espada em posição, preparado para saltar e atacar no momento em que o pirata surgisse de volta do penedo. O coração batia-lhe
ferozmente no peito, e tentou acalmar a respiração quando deu pelos passos no trilho, cada vez mais próximos. O ruído parou e ouviu o homem a chamar de novo, desta
vez com evidente
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preocupação na voz. Avançou, mas com cuidado. Macro espreitou e compreendeu que o outro veria o cadáver a qualquer instante. Reagiu instintivamente. Inspirou fundo
e saltou de detrás do rochedo, parando a menos de três metros do pirata, que o esperava de lança erguida.
- Merda! - Soltou o centurião, fazendo uma pausa minúscula antes de carregar sobre o inimigo. Este, ainda atónito perante a súbita aparição, só reagiu no
último instante, e tentou atingir o romano com a lança firmemente agarrada nas duas mãos. Macro usou a espada para desviar a ponta da lança e continuou, apontando
ao pescoço do homem. Mas a manga da túnica ficou-lhe presa na ponta da lança e puxou-o para trás de repente. Perdeu o equilíbrio e estatelou-se no solo, expelindo
o ar dos pulmões.
O pirata soltou um grito de triunfo enquanto desprendia a lança da manga de Macro e avançava para ele, ameaçando-lhe o peito com a ponta metálica. Macro sentiu o
ferro rasgar-lhe a carne, e estremeceu. O homem gritou-lhe qualquer coisa, acenando na direcção da espada que Macro ainda empunhava. O centurião percebeu imediatamente
o sentido das palavras do outro, e deixou a arma escorregar-lhe dos dedos.
- Pronto! Pronto, desisto.
Sem desviar os olhos do prisioneiro, o pirata girou ligeiramente a cabeça e abriu a boca para alertar o colega que ficara no refúgio. Mas, antes que conseguisse
emitir uma palavra, o ar foi atravessado por uma massa escura, uma pedra do tamanho do punho de um homem, que o atingiu na têmpora. Caiu para trás com um gemido,
soltando uma das mãos da lança. Macro rolou imediatamente para longe, recolhendo a espada no mesmo movimento. Adiantou-se e atingiu o joelho do pirata por trás,
cortando tendões e esmagando ossos. O oponente tombou pesadamente. O crânio embateu-lhe contra uma rocha, e ele ficou imóvel, o sangue a escorrer de uma ferida profunda
no escalpe. Macro levantou o olhar e viu Cato apoiado contra o rochedo.
- Bela pontaria, miúdo.
Cato acenou, aceitando o cumprimento, e dobrou-se sobre si mesmo mais uma vez, com uma careta. Macro deitou uma olhadela ao pirata e correu na direcção do abrigo,
a uns cinquenta passos de distância. Por baixo das botas cardadas, as pedras faziam toda a espécie de ruídos, mas o elemento de surpresa já tinha sido perdido; agora,
só a velocidade importava. Antes de conseguir alcançar a barraca, um braço afastou a cortina de couro, e do interior emergiu uma cabeça coberta por um turbante.
Uma face escura com olhos amarelados virou-se para Macro, e mal teve tempo para apresentar um ar de choque e medo antes de o centurião se lançar sobre ele com um
urro. Caíram engalfinhados para dentro da cabana, tombando sobre uma panela que fervia ao lume. O homem gritou quando
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sentiu as costas queimadas pelo conteúdo da panela e pelo fogo. O ar pesado do abrigo encheu-se imediatamente com o aroma da papa que cozia, e com o fedor a cabelo
queimado. A espada de Macro tinha-se alojado na cintura do outro, e ele largou-a, usando as mãos para manter o pirata preso no solo, apertando-lhe o pescoço e o
pulso. O bandido continuou a berrar, mesmo quando o centurião aumentou a pressão na garganta, esmagando-lhe a traqueia. Por momentos o outro debateu-se desesperadamente
até que, ao fim do que pareceu um tempo interminável, as forças lhe faltaram e ele soçobrou, perdendo a consciência. Macro estrangulou-o ainda algum tempo, para
se assegurar de que o serviço estava completo, e depois rebolou para o lado, completamente esgotado.
Uma sombra assomou à entrada; era Cato, que se encostou à madeira mal trabalhada da ombreira. Olhou para o cadáver que abafava o lume e não escondeu o desagrado
pela cena.
- Não era preciso assá-lo... - Olhou para o amigo. - Tudo bem consigo?
- Tudo. Catita. - Macro ergueu-se e depois agachou-se sobre o corpo, agarrando o punho da sua espada com ambas as mãos e arrancando-a. Limpou-a na túnica
do pirata e voltou a embainhá-la, antes de passar por Cato e sair para o ar fresco, deixando para trás o odor da carne queimada e do cabelo em chamas.
- E tu? - Macro apontou para as virilhas do amigo.
- Sobrevivo... Só não sei se os meus presumíveis herdeiros alguma vez verão a luz do dia.
Macro sorriu.
- E ando eu sempre a dizer que tens tomates de ferro.
- Obrigado pela preocupação. - Sentou-se, olhou em redor, abarcando a pequena estação de sinalização, e pensou alguns momentos. - Temos um problema.
- Temos? - Macro acenou na direcção do pirata morto no interior do abrigo. - Acho que já não. Apanhámo-los todos, penso eu.
- Precisamente. O que é que vai acontecer quando os piratas perceberem que liquidámos estes tipos? Pense nisso. Vão saber que estivemos aqui, e que portanto
lhes descobrimos a base.
Macro anuiu, compreendendo imediatamente as implicações da situação.
- Vão pôr-se a milhas. E estaremos de volta à estaca zero. Com um prefeito Vespasiano completamente furibundo, ainda por cima. Mas, se conseguirmos voltar
à esquadra a tempo, ainda temos hipóteses de os conseguir encurralar na baía, antes que eles percebam que o posto de vigia foi atacado.
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Cato abanou a cabeça.
- Não, eles vão descobrir isso muito mais depressa.
- Porquê?
- O primeiro tipo que encontrámos. Tive a sensação de que ele estava à espera de alguém, quando o ouviu cantar. Faz sentido. Aqui em cima não há nada que
se coma. Os vigias tinham de ser abastecidos. E se aquele tipo estava à espera de alguém, pode ter a certeza de que devem estar a chegar, e de que irão a correr
dar o alarme assim que virem os corpos. Provavelmente até o farão daqui mesmo, o que significa que o Telémaco terá tempo de sobra para escapar, e o fará muito antes
de nós chegarmos ao pé do Vespasiano.
- Merda. - Resmungou Macro. - Bom, então o que é que fazemos? Esperamos que chegue o grupo de abastecimento, e damos cabo deles também?
- Não. Temos de avisar a esquadra o mais depressa possível.
- Magnífico! - Deu uma palmada em si mesmo, frustrado. - Então, o que é que propões?
- A única coisa que podemos fazer. - Retorquiu Cato. - Você regressa para junto da esquadra e dá-lhes as novidades. Leve o mapa que eu fiz, torna as coisas
mais claras. Eu fico por aqui e espero pelo grupo de abastecimento.
- Isso é uma loucura. - Protestou Macro. - Não fazes ideia de quantos homens serão.
- Não devem ser mais do que um ou dois. - Contrapôs Cato.
- Não são precisos mais para guiar umas mulas pelos trilhos da montanha.
- E se também vierem homens para substituir estes que cá estavam? - Macro abanou a cabeça. - Não terás hipóteses. Não quero menosprezar-te nem nada disso,
Cato, mas não és propriamente um campeão gladiador.
- Não me ofendeu. - Respondeu Cato, irritado. - Quanto a isso, teremos de esperar que eles não substituam os vigias com frequência.
Macro encarou-o em silêncio, tentando encontrar outros argumentos que servissem para dissuadir o amigo, mas no fundo ele tinha razão. Não podiam de facto correr
o risco de que o inimigo se apercebesse de que a sua base tinha sido localizada. Se ao menos não tivessem feito asneira ao aproximarem-se do posto de vigia. Ou seja,
se ele não se tivesse posto a cantar, relembrou Macro, repreendendo-se com azedume. Podiam ter-se apercebido dele a tempo e tê-lo rodeado, prosseguindo a viagem
de volta à esquadra sem que ninguém soubesse da sua passagem. Olhou para o jovem.
- Fico eu. Tu voltas à esquadra. Foi por minha causa que tivemos de acabar com eles.
- Não. - Cato abanou firmemente a cabeça. - Fosse como fosse, tínhamos de os matar. Senão, eles avisariam a base quando a frota se aproximasse. Tivemos foi
sorte quando os descobrimos. Não se culpe por isso.
Macro encolheu os ombros, ainda incapaz de sacudir a culpa que
sentia.
- Vá. - Insistiu Cato. - Vespasiano tem de ser avisado da presença dos piratas. A mensagem tem de lhe chegar, e é você a melhor aposta para isso. Eu fico,
e faço a minha parte por aqui.
- Estou a ver. E como é que te juntas à esquadra depois de tratares do grupo de abastecimento?
- Ficarei aqui até à chegada da esquadra. Se realmente os conseguirmos surpreender, desço, e depois podem mandar um bote para me apanhar deste lado. Se me
vir em maus lençóis por aqui, tento escapar. Depois de deitar fogo a isto tudo. Esse será o sinal para os nossos de que os piratas já sabem que os descobrimos. Macro,
não vou correr riscos desnecessários. - Tentou sossegar o amigo. - Prefiro ser um centurião vivo do que um herói morto.
Macro riu.
- A frase mais inteligente que alguma vez disseste, Cato. Muito bem, vou eu.
- Era boa ideia partir já.
- O quê? Sem descansar? Logo a seguir a um combate?
- Vá, Macro, siga. - Tirou o mapa de dentro da túnica e passou-o ao amigo. - Aqui tem.
Macro pegou-lhe.
- Até depois, Cato.
- Lembre-se, nada de paragens. E cautela. Nada de cantorias.
- Até parece que canto mal. - Macro sorriu, antes de se virar e encetar a caminhada pelo planalto. Cato ficou a vê-lo afastar-se, até que o caminho desceu
pela outra encosta da montanha e o centurião desapareceu de vista. Estava só, excepto pelos espíritos dos três homens que jaziam em redor. Tudo era silêncio e quietude
em torno do posto de vigia, sobre o qual soprava uma brisa fria e húmida.
Cato aguardou que a dor na virilha diminuísse e lhe permitisse mexer-se à vontade. Agora que Macro o tinha deixado, assaltavam-no as habituais dúvidas acerca das
acções em que tinha insistido. Se aparecessem três homens pelo caminho, estaria em clara desvantagem. Surpreender um par de piratas e aniquilar imediatamente um
deles era uma coisa - só sobraria um, e em condições normais conseguiria vencê-lo em combate. Mas, e se sobrassem dois? Já tinha assistido a um número suficiente
de combates para saber que dois homens derrotariam facilmente um adversário isolado, desde que não cometessem erros evidentes. Bastava não ter pressa e atacá-lo
de dois lados. Tomou portanto uma decisão. Se lhe surgissem pela frente mais de dois homens, atearia fogo ao posto de vigia e fugiria.
Pensar em fogo despertou-lhe a atenção para as circunstâncias em que se via. O pirata que grelhava lentamente por cima da fogueira começava a soltar um odor nauseabundo.
Cato inspirou profundamente o ar fresco da montanha e entrou no abrigo. O interior estava cheio de fumo, e o cheiro a cabelo queimado e carne humana assada era quase
insuportável. Cerrou os dentes, debruçou-se sobre o cadáver e, pegando-lhe pelos tornozelos, puxou-o para fora da fogueira e para o exterior. Antes de pensar sequer
em emboscadas, era preciso esconder os corpos dos vigias. Havia uma latrina escavada a uns vinte metros do abrigo, pelo que Cato arrastou o corpo até à cova e lançou-o
lá para dentro, ignorando o odor repelente dos dejectos humanos que lhe assaltava o olfacto. Quando se aproximou do homem que tinha atingido com a pedra, apercebeu-se
de que este ainda estava vivo, embora moribundo.
Durante um momento, debateu consigo mesmo se devia acabar com ele. Já estava praticamente morto, fosse como fosse: se a frota romana ganhasse a batalha próxima,
Vespasiano não mostraria qualquer clemência para com os piratas. A ferida na cabeça parecia suficiente para lhe provocar a morte, e Cato não conseguiu resolver-se
a pôr fim ao sofrimento do homem. Se fosse um combate, o jovem não teria qualquer problema em liqui-
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dá-lo, tão depressa quanto possível, e sem qualquer emoção. Mas a perspectiva de matar um homem indefeso perturbava-o. Era irracional sentir esses escrúpulos perversos,
pensou, enquanto pegava no pirata inconsciente por baixo dos ombros e o começava a puxar na direcção da latrina. O homem gemeu baixinho quando Cato o lançou por
cima do camarada, depois de o arrastar sobre as rochas.
Afastou-se rapidamente e dirigiu-se ao primeiro inimigo abatido, o que tinha sido morto na trilha. Ao pegar no corpo, reparou que o chão estava ensopado em sangue,
e que havia salpicos na face do penedo próximo. Depois de atirar o cadáver para junto dos outros, rasgou tiras de uma capa que alguém deixara junto ao abrigo, e
pegou num cantil com água; regressou ao ponto próximo do penedo e lançou-se ao trabalho. Esperava o inimigo a qualquer momento, pelo que agiu depressa, molhando
as manchas e esfregando-as com os panos. Ao fim de algum tempo concluiu que tinha feito um bom trabalho para tentar esconder a evidência do combate. A água já se
infiltrava no solo, e depressa tudo ficaria seco e com o aspecto normal. E, de qualquer maneira, os piratas não estariam com certeza à espera de ter problemas num
local tão ermo como o cimo da montanha. O perigo que eles esperavam viria do mar, e era isso que estavam ali para vigiar. As montanhas em torno da baía eram difíceis
de escalar, como Cato e Macro tinham descoberto; e os dois tinham-no feito com o mínimo de equipamento. Era muito pouco provável que uma força numerosa e bem equipada
conseguisse trepar por aqueles declives sem se fazer notar.
Uma vez que já tinha escondido os corpos e limpado os traços de sangue, Cato resolveu examinar com maior atenção as redondezas. A curta distância do abrigo, o planalto
tornava-se mais estreito e terminava num precipício assustador. Da ponta, era possível avistar longas extensões da costa nas duas direcções. Os piratas tinham erguido
ali um rudimentar posto de sinalização, um mastro ao lado do qual se via uma pequena arca. Cato ergueu a tampa e avistou diversos panos coloridos amontoados. Não
tinham grande utilidade, evidentemente, uma vez que desconhecia o significado de cada um dos estandartes. Também ao lado do mastro, via-se um objecto de formato
peculiar, com um suporte baixo. Era constituído por duas placas de metal extraordinariamente polido, que faziam um ângulo entre si, e Cato supôs que fosse um tipo
qualquer de heliógrafo.
Regressou ao abrigo, pegou nas lanças dos vigias e dirigiu-se ao penedo, resolvido a vigiar o caminho; este serpenteava algumas centenas de metros pela encosta abaixo,
antes de desaparecer por trás de uma crista rochosa na face da montanha. Colocou as lanças à mão e instalou-se tão confortavelmente quanto lhe foi possível, observando
a paisagem. Avistaria facilmente quem quer que se aproximasse. Aguardou, encostado ao rochedo,
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enquanto o Sol subia no céu e começava a aquecer o ambiente. A ligeira brisa que se fazia sentir empurrava e dissipava as nuvens ao longo da costa, revelando pela
primeira vez toda a extensão que se podia vigiar do cume da montanha.
Durante algum tempo, Cato deixou-se invadir pela sensação de ser quase um deus do Olimpo, ao olhar para a baía lá em baixo, no sopé da montanha oposta à posição
que ele próprio ocupava. Algumas figuras diminutas afadigavam-se em torno de três embarcações que tinham sido arrastadas para a praia. Tinham-nas feito rolar até
se apoiarem nos flancos, de forma a que a parte inferior dos cascos ficasse acessível. Ali perto via-se fumo que se elevava de algumas fogueiras, e Cato adivinhou
que os piratas deviam estar a aplicar uma nova camada de piche no fundo dos navios. Deixou que o olhar percorresse lentamente a estreita faixa de terra que ligava
a praia à cidadela. Parecia ser essa a única forma de a alcançar, já que nas outras três faces a povoação estava protegida por falésias abruptas. No lado acessível
via-se uma muralha de pedra, baixa mas de aspecto sólido, e um portão fortificado, do qual saía uma ponte de madeira que se projectava sobre um fosso defensivo.
Por trás da muralha havia um labirinto de casas de paredes esbranquiçadas que se estendia até ao cimo da formação rochosa, onde se situava uma torre, cujas paredes
tombavam a pique sobre o mar que remoinhava na base da falésia. Os piratas deviam ter-se apossado da cidadela, ou então esta fora abandonada há muito tempo. Fosse
como fosse, Telémaco tinha escolhido uma excelente localização para a sua base, excepto por um detalhe; se um inimigo bloqueasse a entrada da baía, não existia uma
saída alternativa. O que explicava a necessidade de um posto de vigia que dominasse todas as rotas de aproximação à baía. Para terem hipóteses de fuga, os piratas
precisavam de um aviso atempado, percebeu Cato.
Contemplando o oceano, notou um pequeno triângulo, uma vela a muitas milhas de distância; algum navio mercante, certamente atento à presença de piratas, mas felizmente
ignorante de que estava a passar bem perto do seu covil. Apercebeu-se de que se não fosse a sua intervenção, os vigias estariam naquele preciso instante a assinalâr
a presença daquele navio, e a selar-lhe o destino. Sorriu, ao concluir que pelo menos aquela presa não cairia nas mãos de Telémaco e do seu bando.
À medida que o Sol subia para o zénite, o ar aquecia, e Cato viu-se obrigado a tirar a capa e deixá-la sobre uma rocha próxima, enquanto mantinha a vigia. Pouco
antes do meio-dia, deu por uma voz a gritar. Empunhou a espada e ficou tenso, mas depressa reparou que o som provinha não da encosta mas sim da direcção contrária,
do lado do abrigo. Virou-se e inspeccionou o planalto com o olhar. Quase de imediato notou uma forma
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escura que se salientava contra a planura do solo, o que lhe fez o coração dar um salto. Ouviu-se outro gemido, uma mistura de grito de dor e pedido de ajuda. Nesse
momento, compreendeu que se tratava do pirata ferido, que recobrara os sentidos e se sentara na fossa da latrina.
- Merda! - Resmungou. Devia ter acabado com o tipo antes. Agora tinha mesmo de o liquidar, antes que ele recuperasse o suficiente para representar algum perigo,
ou para avisar os camaradas. Mas limitou-se a observar com um misto de horror e fascínio enquanto o outro tentava sair da fossa, perdia o equilíbrio e voltava a
tombar para fora de vista, soltando um grito de dor e frustração. No momento seguinte, a cabeça do homem reapareceu, assinalando uma nova tentativa de sair daquela
situação.
Um som distante captou a atenção de Cato, e fê-lo desviar o olhar da latrina e regressar à encosta. A princípio nada conseguiu divisar. Mas então surgiu uma figura
humana no trilho, no local em que este transpunha uma crista. Conduzia uma mula com dois grandes cestos nos flancos. Logo atrás vinha outra mula, seguida por três
homens armados de lanças. Sentiu um nó apertar-se nas entranhas, e o terror preencheu-lhe o espírito ao ver como os homens subiam o trilho. Eram muitos, demasiados.
Deixou-se escorregar para trás do bloco rochoso e preparava-se para ir lançar fogo ao abrigo quando se deteve e, numa inspiração momentânea, investigou pormenorizadamente
a base do grande penedo. Colocou as palmas das mãos contra a face áspera da rocha, fincou os pés no solo e empurrou com força. Por momentos nada aconteceu, mas depois
sentiu um ligeiro movimento e verificou que alguns dos pequenos calhaus no solo eram projectados pela encosta abaixo.
Ouviu-se outro gemido do homem na latrina, agora mais alto. Se Cato não o silenciasse, os homens que se aproximavam escutá-lo-iam muito antes de chegarem ao planalto.
Deitou uma última olhadela ao trilho, tentando avaliar o progresso do grupo, e correu na direcção do abrigo. Ao aproximar-se da latrina, refreou a velocidade. O
Sol tinha aquecido a mistura de fezes, urina e sangue, que libertava agora um fedor indescritível, fazendo com que o estômago do jovem se revoltasse. Espreitou cuidadosamente
sobre a borda da fossa, no momento em que o ferido soltou mais um ai.
- Calado! - Ordenou de forma ríspida.
O outro encarou-o com olhos esbugalhados de terror. Logo a seguir, abriu a boca e lançou mais um lamento.
- Cala-te! - Ameaçou-o Cato. Esticou um dedo na sua direcção e levou-o aos lábios. - Chhhhiu! Vê se te portas como um bonito pirata e ficas de boca calada,
porra!
O outro continuou a berrar, pelo que Cato fez um outro gesto com o dedo, passando-o pelo pescoço.
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- Ou te calas, Ou morres! Percebido?
Olhou para o penhasco, desesperado. Se aquele tipo continuasse com o festival de ais, acabaria por lhe custar a vida. Nesse instante, compreendeu que era ele ou
o pirata. Tão simples como isso. Desembainhou a espada e colocou-se em posição sobre a latrina.
- Lamento. Mas não fizeste o que eu pedi.
No último instante, o homem lançou as mãos para cima, juntas, à laia de súplica. Fechou os olhos e virou a face quando a lâmina resplandecente lhe rasgou a garganta.
Cato endireitou-se, vendo o sangue a jorrar. O tipo agitou-se ainda alguns momentos. O centurião aguardou até estar seguro de que o outro estava morto e não constituiria
qualquer ameaça,
e concentrou-se então no problema que enfrentava. Correu até ao abrigo, embainhou a espada, agarrou firmemente um dos postes da entrada e puxou-o. A madeira cedeu
um pouco, e ele empurrou-a, antes de voltar a puxá-la. Esforçou-se até conseguir soltar o poste, o que fez com que o telhado ruísse naquela secção e ele fosse atirado
para trás. Pegando na trave, correu até ao penedo, extenuado por toda aquela actividade.
Ao alcançar a posição pretendida, voltou a espreitar para o trilho; teve um choque ao aperceber-se de que os inimigos já não estavam a mais de cinquenta passos do
local em que abatera o primeiro vigia. Agachou-se e empurrou o poste por baixo do bloco rochoso, fazendo-o avançar tanto quanto conseguiu, antes de arrastar uma
pesada pedra para a posição adequada, para servir de ponto de apoio à alavanca improvisada. Depois rastejou em torno do penedo, espreitando com toda a cautela, até
conseguir avistar o trilho. Já se escutava a irregular marcha das mulas, e logo a seguir notou as vozes dos piratas, cansados, mas dando largas à verborreia no tom
humorístico típico de homens que não pensam em perigos imediatos.
Subiam pouco a pouco para o cimo do monte, o que deu tempo a Cato para considerar uma última vez a possibilidade de deixar de ser parvo e fugir enquanto podia. Os
piratas estariam cansados da longa subida, e não conseguiriam persegui-lo por muito tempo. Se se despachasse, conseguiria esgueirar-se ao longo da crista sem que
os outros o vissem, e poderia seguir o caminho que Macro tomara para descer a oútra encosta. Nessa altura, o jovem obrigou-se a refrear o medo que ameaçava tomar
conta do seu espírito. Era perfeitamente natural que, momentos antes de um combate, a sua mente ágil o presenteasse com um ror de dúvidas. Tinha de se lembrar de
tudo o que estava em jogo nos momentos seguintes. Se falhasse, aqueles homens depressa dariam o alarme, o que permitiria aos piratas escapar e procurar outra base
de onde pudessem continuar a operar. Perder-se-iam muitas mais vidas no futuro, se isso ocorresse. Pior ainda, Narciso não hesitaria em lançar mais forças na busca
pelos preciosos pergaminhos, e pouco
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se preocuparia com as baixas resultantes. Portanto, Cato não podia de forma alguma fugir naquele instante. Mais, não podia falhar.
O homem que conduzia as mulas surgiu à vista, e Cato acalmou-se e agarrou a ponta do poste com ambas as mãos. Preparou-se e esperou que as mulas passassem.
Assim que o condutor pôs um pé no planalto apercebeu-se da presença do jovem, e a boca abriu-se-lhe de espanto. Com um gemido de esforço que lhe atravessou os dentes
cerrados, Cato lançou todo o seu peso sobre a extremidade do poste. Por momentos, o bloco rochoso oscilou, esmagando os calhaus próximos, e depois começou a rolar,
primeiro devagar e depois ganhando velocidade, percorrendo o trilho. Um grito agudo atravessou o ar, e foi cortado subitamente quando a massa rochosa esmagou o homem
que o soltara. A rugosidade do terreno impediu que a progressão do penedo pela encosta prosseguisse; deteve-se, lançando uma chuva de calhaus e pó sobre o trilho.
Cato pegou numa das lanças e enfrentou o condutor das mulas. O homem estava desarmado, e levantou as mãos, gritando-lhe em latim.
- Não! Eu não! Poupa-me!
Cato estacou, apercebendo-se das vincadas marcas brancas que lhe rodeavam os pulsos. Então apontou para o solo e respondeu-lhe.
- Deita-te e não te mexas, se queres viver!
O outro largou a correia da primeira mula e lançou-se para o chão. O animal mal lhe deu atenção, não desviando os olhos arregalados do penedo, as narinas frementes.
Pouco atrás, a espinha da segunda mula tinha sido partida pela rocha, e ela estava de lado no solo, as patas da frente a esgravatarem a rocha enquanto as traseiras
jaziam inertes e esmagadas. Mais atrás ainda, viam-se as pernas de um dos piratas a emergir de debaixo do penedo, enquanto peito e crânio tinham sido transformados
em papa. Ao lado, outro homem contemplava chocado a perna partida; a ponta irregular do osso salientava-se, branca, no meio da ferida ensaguentada que rasgara na
carne.
O terceiro pirata escapara ileso, mas ainda estava imóvel, incrédulo perante o que sucedera aos seus companheiros. Porém, viu Cato no instante em que o romano contornou
o rochedo de lança nas mãos, pronta a ser usada. Não hesitou mais do que um instante antes de rodar nos calcanhares e correr pelo trilho fora, aos trambolhões, tentando
recuperar o equilíbrio.
- Sacana! - Protestou Cato, saltando sobre o ferido e lançando-se em perseguição do outro. Sabia perfeitamente que não o podia deixar escapar, pelo que correu
com toda a velocidade. O avanço do pirata era pequeno, mas Cato depressa percebeu que nunca o alcançaria enquanto transportasse a lança. Deteve-se, de respiração
já pesada, puxou o braço atrás, apontou
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cuidadosamente e lançou-a com toda a força. O projéctil descreveu uma trajectória recta e baixa, direita às costas do inimigo; este tinha acabado de virar a cabeça
para avaliar a posição do perseguidor quando a ponta metálica se lhe cravou na carne, atravessando a omoplata, trespassando-lhe o coração e saindo pelo peito. O
impacto fez o homem tombar para a frente, e ele precipitou-se para fora do trilho, escorregando pela face da montanha até se deter contra umas rochas.
Cato pôs-se em posição de descanso, as mãos apoiadas nos joelhos, enquanto tentava recuperar o fôlego. Depois avançou até ao corpo, para confirmar a morte do pirata.
Os olhos sem luz contemplavam o céu azul, e nenhum movimento denunciava qualquer sinal de vida. Tinha encetado a subida quando ouviu um grito e olhou, a tempo de
ver o ferido a tentar defender-se do homem que tinha conduzido as mulas. Este tinha pegado num calhau e, enquanto o centurião observava, usou-o para agredir o adversário.
Com um gemido, o pirata tombou. O outro encarniçou-se sobre ele, atacando-o sem cessar, até que a rocha tomou uma cor avermelhada e começou a pingar sangue e massa
cinzenta.
Cato empunhou a espada e aproximou-se lentamente, falando com toda a calma.
- Parece-me que já o dominaste.
Acenou na direcção do corpo inerte sob os pés do condutor das mulas, e o homem contemplou o resultado do seu esforço, antes de voltar a olhar para Cato, os olhos
esbugalhados de horror e medo.
- Afasta-te!
Cato deteve-se e embainhou a espada.
- Pronto. Como vês, não te desejo mal. - Levantou as mãos. -
Vês?
O outro olhou para ele, o peito magro a arfar, e então baixou a mão e soltou a pedra ensanguentada, após o que se deixou abater ao lado da sua vítima. Ainda assim,
manteve um olhar desconfiado sobre Cato.
- Quem és tu?
- Centurião Cato. Oficial da esquadra de Ravena. Estamos aqui para liquidar os piratas.
O condutor das mulas olhou-o em silêncio, mas logo em seguida os ombros do homem oscilaram e grandes soluços chorosos percorreram-lhe o peito, ao mesmo tempo que
se inclinava para a frente, escondendo a cara nas mãos. Cato aproximou-se devagar, e apertou-lhe o ombro timidamente.
- Acabou. Estás livre deles.
O homem anuiu, ou talvez fosse apenas mais um tremor. Na dúvida, o jovem tentou encontrar mais algumas palavras de conforto.
- Estás livre. Já não és escravo dos piratas.
- Escravo! - O homem repeliu a mão de Cato e virou-se para ele com uma expressão selvagem, um misto de raiva e amargura. - Escravo! Não sou nenhum escravo.
Sou romano... Romano!
Cato recuou.
- Desculpa. Não podia saber... Como te chamas?
- O meu nome? - O homem endireitou as costas e encarou Cato com toda a altivez e desdém que foi capaz de reunir, considerando o deplorável estado em que se
encontrava. - O meu nome é Caio Célio Segundo.
XXXIV
A noite já caíra quando o iate alcançou a frota e acostou à trirreme que servia de navio-almirante a Vespasiano. Os navios estavam fundeados numa baía, a curta distância
da massa imponente do cabeço rochoso em que os piratas tinham colocado o seu posto de vigia. Não se via uma única luz em toda a esquadra, já que Vespasiano ordenara
que nos navios não se acendessem fogueiras nem archotes. As tropas em terra tinham construído um acampamento para passar a noite, e pela altura em que Macro esperava
que a tripulação acabasse de prender o iate à trirreme, já todos os legionários comiam as suas rações, apinhados nas suas tendas. O centurião subiu os poucos degraus
da escada de acesso da trirreme, saltou para o convés, e foi imediatamente conduzido à cabina da popa por um tribuno subalterno.
O novo prefeito encontrava-se sentado à mesa, jantando papa de cevada à luz mortiça da única candeia de óleo que iluminava a sala. Quando alguém bateu à porta, levantou
o olhar e engoliu rapidamente, antes de responder.
- Entre!
O tribuno abriu a porta e meteu a cabeça pela abertura.
- Senhor, o centurião Macro regressou.
- Manda-o entrar.
O tribuno afastou-se para o lado e indicou a Macro que devia entrar no compartimento. Macro apresentou-se, colocando-se em sentido.
- À vontade. Onde está o centurião Cato?
- A vigiar o inimigo, senhor.
Vespasiano inclinou-se sobre a mesa, os olhos a brilhar de antecipação.
- Encontraram-nos, portanto?
- Sim, senhor. Tanto a frota como a base. A menos de vinte quilómetros daqui. Posso mostrar-lho no mapa, senhor.
Vespasiano afastou a tigela e a taça, enquanto Macro se debatia com
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o mapa de Cato, que trazia sob a capa. Esticou-o sobre a mesa cuidadosamente, e em seguida os dois homens debruçaram-se sobre ele, examinando-o atentamente sob a
luz fraca. Macro apontou o cume da montanha a que ele e Cato tinham chegado nessa manhã.
- O inimigo tinha aqui um posto de vigia, senhor. Encontrámo-lo por acaso esta manhã, e tivemos de eliminar os homens que o guarneciam.
Vespasiano olhou de relance para o centurião.
- Quantos eram?
- Apenas três, senhor.
- Só três. - Vespasiano sorriu. - Fazes tudo parecer muito simples.
- Senhor, caímos-lhes em cima sem eles esperarem. E quando temos a surpresa do nosso lado, as coisas às vezes ficam mais fáceis.
- É bem verdade. Continua, por favor.
- Sim, senhor. - Os dedos de Macro percorreram o mapa até chegarem à baía no sopé da montanha do outro lado do braço de mar. - É aqui que eles estão, senhor.
Contámos vinte e três embarcações: duas trirremes, oito birremes, nove liburnas e quatro barcos mais pequenos.
Vespasiano cerrou os lábios.
- É uma frota impressionante. Esse Telémaco deve ser um excelente comandante.
Macro assentiu.
- Descobrimos isso da maneira mais difícil, senhor.
- Sim... Que mais viram?
- Tem uma cidadela fortificada nesta crista rochosa, senhor. Falésias a pique em três lados, e uma espessa muralha e fosso no lado que dá para a praia.
- Nada que não consigamos ultrapassar. - Decidiu Vespasiano.
- A prioridade é capturar ou destruir os navios. Depois teremos tempo de tratar da cidadela.
Macro olhou para o comandante.
- Senhor, suponho que será na cidadela que Telémaco guarda os pergaminhos. Será melhor termos cuidado quando a atacarmos. Não poderemos arriscar-nos a incendiá-la,
senhor.
- Bem visto. - Concordou Vespasiano. - Não usaremos quaisquer projécteis incendiários no bombardeamento, e darei ordens estritas aos fuzileiros para que evitem
atear fogos quando penetrarmos nas defesas.
- Senhor, será que podemos confiar neles? São apenas fuzileiros, no fim de contas, não são legionários. A disciplina não é a mesma.
302
- Bem, centurião, nesse caso compete-nos a nós, legionários, dar-lhes o exemplo, não achas?
- Sim, senhor.
Macro sorriu. Vespasiano era um bom tipo. Um comentário daquele género, vindo da boca de outro qualquer membro da classe senatorial, soaria a falso, um pedaço de
retórica barata, enunciada apenas com o fito de conquistar apoio entre a soldadesca. Mas, de alguma forma, Macro conseguia perceber que aquele homem sentia o que
dizia. Era verdadeiramente um homem do povo. Tanto quanto lhe era permitido pela sua patente, partilhava sem hesitação as agruras da vida dos homens. Fora por essa
razão que a Augusta Segunda Legião tão bem tinha combatido na campanha da Britânia, e tinha estabelecido uma excelente reputação. Compreendeu que era essa a origem
do seu próprio sentimento de lealdade a Vespasiano. Ali estava um homem que era digno de ser seguido.
O outro considerava gravemente o mapa e coçava a ampla testa; Macro apercebeu-se de que o comandante estava exausto. Mais do que qualquer outro homem da esquadra.
Uma das desvantagens de se ocupar um posto tão elevado, supôs o centurião. Enquanto Vespasiano observava o mapa, Macro reparou que o prefeito da esquadra de Ravena
lhe fazia lembrar Cato; os dois pareciam partilhar o dom da actividade cerebral ininterrupta. Por instantes invejou os dois homens, e a capacidade que mostravam
para elaborarem complexos esquemas mentais. Era um talento que ou se tinha ou não, e Macro aceitava sem problemas o facto de não ser exactamente dotado naquela área.
Para ele, a vida de soldado era algo de muito mais imediato e directo, e era assim que ele a apreciava, embora tivesse bem presente que isso significava que não
subiria nas fileiras muito para além da patente que possuía naquele momento. A alternativa, o eterno ponderar a que Cato e os seus pares se dedicavam, parecia a
Macro muito mais uma maldição do que uma bênção.
Vespasiano matraqueou o mapa com os dedos.
- Bom, apanhámo-los, desde que consigamos fechar rapidamente a armadilha. Só temos um problema - a aproximação a esta baía. Graças a ti e ao centurião Cato,
podemos chegar lá perto sem que eles dêem por nós, mas assim que a esquadra sair de detrás desta montanha, vão ver-nos. O que lhes dará uma boa hora para se fazerem
ao mar e prepararem as defesas. Temos de arranjar maneira de nos aproximarmos mais sem que eles se apercebam do perigo.
Macro limpou a garganta, para chamar a atenção do superior.
- Senhor, um ataque nocturno?
- Não. - Vespasiano abanou a cabeça. - Está fora de questão. Seria muito difícil coordenar a esquadra em pleno mar. Acabaríamos por
303
perder alguns navios contra os penhascos. E não conseguiríamos realizar um ataque maciço, o que lhes permitiria organizar as defesas antes de os atingirmos com as
forças adequadas para alcançarmos a vitória. Não, terá de ser durante o dia. Talvez por terra. Se desembarcássemos uma força deste lado da montanha, os homens podiam
atravessá-la durante a noite e lançar um assalto no instante em que a frota surgisse à vista. - O olhar de Vespasiano brilhava de excitação. - Isso podia resultar.
- Senhor, peço desculpa, mas não funcionaria.
- Oh? - A face do prefeito franziu-se. - E porque não?
- As montanhas, senhor. Eu e o Cato vimo-nos aflitos para as escalar. Os fuzileiros não são maus tipos, mas não têm grande experiência de marchas, e aquele
género de terreno ia dar cabo deles, senhor. Admitindo que conseguissem atravessar as montanhas, iam levar demasiado tempo e chegar ao outro lado demasiado cansados
para combater o inimigo. - O seu olhar cruzou-se com o de Vespasiano, e ele percebeu que o superior estava irritado com a sua intervenção. - Lamento, senhor. Mas
é a minha opinião.
- Muito bem, então. - Resmungou Vespasiano. - Temos de encontrar outro plano... Uma maneira de nos aproximarmos antes que eles se apercebam de que estão a
ser atacados... Uma espécie de cavalo de Tróia.
Macro inchou as bochechas e soprou, e Vespasiano não conteve um
sorriso.
- Centurião, tens algum problema com a mitologia grega?
- Nem por isso, senhor, desde que fique lá pelos livros.
- Depreendo que não aprecias livros, portanto?
- Não, senhor. Já oiço bastantes histórias de homens com outras patentes.
- Bem, centurião, talvez devesses ler um bocadito mais. Nada se lhe compara no que diz respeito a alargar os horizontes da mente e a estimular a imaginação.
Macro encolheu os ombros.
- Se o diz, senhor. Mas não me parece que tenhamos tempo para construir um cavalo de madeira. E, além disso, há a questão do transporte. Uma coisa com tamanho
suficiente para levar lá dentro uma força decente ia ser uma chatice do caraças para meter a bordo de um navio. Mesmo num tão grande como este.
Enquanto Macro expunha as suas dúvidas, Vespasiano observava-o com um espanto divertido. Quando o centurião terminou, o prefeito não evitou um sorriso.
- Senhor, disse alguma asneira? - Macro sentiu-se ofendido.
- Simplesmente não me parece que possa resultar, senhor. Por muito boa
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que a ideia seja. - Acrescentou rapidamente. - E, além do mais, é o tipo de truque baixo a que só os gregos seriam capazes de recorrer.
- Por vezes, centurião, até os gregos tomaram a direcção correcta... Mas, não. Tens razão. Não resultaria. Temos de tentar outra coisa qualquer.
Macro concordou com um gesto de cabeça, feliz por o comandante ter visto a razão. Era o lado mau da inteligência criativa de homens como Vespasiano e Cato, reflectiu.
De vez em quando, a imaginação deles desatava a correr, deixando o raciocínio lá atrás, e nessas ocasiões eram necessárias umas palavras sensatas de alguém com os
pés mais bem assentes na terra, que fossem capazes de lhes refrear os voos.
Vespasiano lançou um derradeiro olhar ao mapa e fez um quase imperceptível aceno, antes de voltar a encontrar os olhos de Macro, desta vez com um brilho malicioso
no olhar.
- Muito bem. Nada de cavalos de Tróia. Em vez disso, uma baleia de Tróia.
Macro pestanejou. O que é que estaria agora naquela cabeça?
- Aqueles dois navios piratas que tu e o centurião Cato capturaram há umas noites...
- O que têm, senhor?
- Parece-me que chegou o momento de lhes dar bom uso.
XXXV
Caio Célio Segundo acordou pouco antes de o Sol desaparecer por trás do horizonte; aflito, olhou em volta, mas vieram-lhe entretanto à memória os acontecimentos
recentes que lhe tinham devolvido a liberdade, e as imagens e as emoções invadiram-no. Olhando para cima, reparou no que restava do telhado do abrigo. Lançou a mão
e pegou na capa que alguém deixara ao seu alcance, mesmo junto ao colchão improvisado. Pô-la sobre os ombros magros enquanto se levantava, com um gemido. Ainda meio
agachado, dirigiu-se à porta do casebre. Esperou um momento antes de afastar a cortina de couro e espreitar para o exterior. A curta distância, um brilho fraco escapava-se
duma fogueira e iluminava a face do centurião Cato. Tinham trocado algumas breves palavras depois da emboscada, quando Cato o tinha conduzido através do planalto
até ao abrigo. A longa escalada tinha-o deixado esgotado, e a torrente de emoções ligadas à sua inesperada libertação tinha contribuído para o deixar arrasado. A
raiva que albergara no coração durante os meses de sofrimento e infâmia tinha explodido num momento de fúria, e tinha esmagado sem remorso a cabeça de um dos piratas,
mas depois ficara prostrado, gasto, sem energia, e Cato tinha-se limitado a tentar pô-lo confortável e a deixá-lo descansar.
Nesse instante, o jovem oficial levantou os olhos, sentindo-se observado, e sorriu a Segundo.
- Sente-se melhor?
- Muito melhor. - Segundo deu um passo para o exterior do abrigo e endireitou-se. Um leve aroma de carne a guisar chegou-lhe às narinas, lembrando-lhe imediatamente
a fome que sentia, e que tinha sido uma companheira constante ao longo do cativeiro. Caminhou rigidamente até à fogueira, e sentou-se em frente do seu salvador.
Entre eles, pendurado num minúsculo tripé, via-se um tacho de ferro, velho e amolgado, mas cheio quase até cima com um líquido espesso que borbulhava. - Cheira bem.
O que é?
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- Mula e cevada. - Respondeu Cato. - Achei que podia aproveitar a que ficou debaixo das pedras. A outra fugiu.
No silêncio que se seguiu, Segundo olhou em redor, apreciando o límpido céu nocturno. Junto ao horizonte, a ocidente, via-se ainda uma faixa de tons alaranjados,
mas esta rapidamente cedia lugar aos tons azuis que se tornavam cada vez mais profundos à medida que o olhar atravessava a cúpula celestial, até ao negro absoluto
que se via no horizonte oposto. As estrelas mais brilhantes já eram facilmente visíveis, espalhadas pelos céus como pequenas gotas de prata. Àquela altitude nas
montanhas, o ar era frio, pelo que se aconchegou melhor na capa e se arrastou para um pouco mais perto da fogueira. Voltou a encarar o centurião.
- Jovem, ainda não te agradeci.
Cato reagiu com alguma impaciência à menção da sua idade, mas depois inclinou a cabeça, em jeito de reconhecimento.
- De nada.
Seguiu-se uma nova pausa, até Segundo levantar uma questão.
- O que andavas a fazer aqui por cima? Estranho local para encontrar um centurião, ainda por cima só.
Cato percebeu a suspeita que se escondia na voz do outro, e sorriu para si mesmo. Sentir-se-ia exactamente da mesma forma se fosse inesperadamente salvo por outro
romano.
- Estávamos em missão de reconhecimento.
- Estávamos?
- Eu e um amigo. Um outro centurião da esquadra de Ravena. Tivemos indicações de que os piratas se encontravam nesta região. Fomos enviados para tentar confirmar
essa informação. A esta hora, o Macro deve estar a fazer o seu relatório. E assim, dentro em pouco, o prefeito conduzirá as tropas até aqui, e destruirá os piratas.
- Pareces muito seguro da vitória.
Cato riu.
- Estou seguro, sim, mas é quanto ao prefeito Vespasiano. Não é do género de perder tempo quando o inimigo está mesmo a jeito para ser varrido do mapa.
- E porque é que tu ficaste cá?
- Tive de ficar. - Respondeu Cato, com simplicidade. - Quando demos com a estação sinalizadora, percebemos que tínhamos de a neutralizar, para garantir que
os piratas na base não vão receber qualquer aviso da aproximação da esquadra. Assim que os nossos navios chegarem, descemos a montanha e juntamo-nos a eles.
- Estou a ver.
Cato encarou-o.
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- Agora, se não se importar, há algumas perguntas que gostaria de lhe fazer.
- Encantado por poder responder. - Retorquiu Segundo, indicando a panela fumegante. - Sobretudo se for enquanto como.
- Evidentemente. Peço desculpa. - Cato pegou na sua malga de estanho e debruçou-se sobre o fogo, para colocar uma porção de guisado no recipiente. Passou-o
a Segundo, e voltou a sentar-se, enquanto o outro aproximava a malga dos lábios.
- Cuidado! - Avisou-o. - Está muito quente. É melhor deixá-lo arrefecer um bocadinho. E isto deve dar-lhe jeito. - Atirou uma colher na direcção do homem.
- Obrigado. - Segundo segurava a malga, protegendo as mãos do calor com as dobras da capa. - Vamos lá às perguntas.
- Bom, em primeiro lugar, estava aqui como agente de Narciso, não era?
Segundo olhou para ele, surpreso.
- O que te faz pensar isso?
- Ele disse-nos o que se tinha passado. Foi por isso, aliás, que eu e o Macro nos vimos metidos nesta história. Fomos enviados, com o prefeito Vitélio, para
esmagar os piratas e para o salvar.
- Parecia-me ter-te ouvido dizer que era Vespasiano o prefeito.
- Agora, é. O Vitélio transformou a campanha num desastre completo, e assim que isso chegou aos ouvidos do Narciso, substituiu-o.
- Limpou a garganta. - Para lá de derrotarmos os piratas, também nos foi exigido que recuperássemos os pergaminhos.
Segundo ficou tenso por um instante, e em seguida chegou uma colher de guisado à boca e soprou, para a esfriar. Quando parou de soprar, não levantou os olhos da
colher.
- Pergaminhos? Que pergaminhos são esses?
- Os que levava consigo a caminho de Roma.
- No momento da minha captura, levava comigo inúmeras mensagens para Roma.
- Talvez. - Cato encolheu os ombros. - Mas tenho a certeza de que se lembra dos pergaminhos de que falo. Os manuscritos de Delfos.
Segundo olhou-o fixamente.
- Sabes da sua existência? Quem mais?
- O Macro, o Vitélio, e agora também o Vespasiano, como é evidente. E essa é a lista oficial dos que sabem. - Quase não custou a Cato mentir. - Foi-nos ordenado
que levássemos os pergaminhos, fosse qual fosse o preço. E a si também, claro.
Segundo não evitou um sorriso.
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- Mas os pergaminhos têm prioridade, não é? Se bem conheço o Narciso, a minha recuperação era um objectivo suplementar. Estou certo?
- Conhece-o, de facto.
- Sim, bastante bem... Mas, centurião Cato, diria que tens as tuas prioridades baralhadas. Libertaste-me, mas os pergaminhos continuam lá em baixo, na posse
do Telémaco. Ao que sei, ele exige um pesado resgate pelos livros.
- Quem me dera que fosse assim tão simples. O que ele quer, de facto, é promover um leilão pelos pergaminhos.
Segundo provou cautelosamente o guisado e sorriu, satisfeito, antes de voltar a dirigir o pensamento para a situação política.
- Bom, se me puser a pensar em quem mais poderia querer pôr as mãos nos pergaminhos, acho que no cimo da lista viriam os Libertadores.
- É o que eu acho também. - Concordou Cato. - Mas sejamos claros; qualquer um que tivesse o dinheiro e os contactos para isso gostaria de ter estes pergaminhos.
Não acontece todos os dias ter à frente dos nossos olhos todo o futuro do Império.
- Precisamente por isso, é fundamental que seja Narciso a controlá-los.
- Ele não tem propriamente uma posição neutral nesta questão.
- Pois não. Apesar de tudo, porém, é um par de mãos seguro; e uma vez que só responde perante o próprio Imperador, o risco de pretender usá-los para aumentar
o seu poder é diminuto. Quanto a qualquer outra questão, confio tanto nele como num vigarista. É um sacana, sem qualquer espécie de dúvida; mas, pelo menos, é o
nosso sacana. - Segundo fez uma pausa para engolir mais um pouco de comida. - Seja como for, estamos a pôr o carro à frente dos bois. Os pergaminhos ainda estão
nas mãos do Telémaco.
- Sabe onde é que ele os guarda?
Segundo confirmou.
- Acho que sim. Depois da minha captura, ele manteve-me preso numa cela, na cidadela. Durante os primeiros dias, fui torturado; eles queriam arrancar-me todas
as informações que tivesse sobre os malditos pergaminhos. Espancavam-me regularmente, e depois levavam-me para os aposentos privados do Telémaco, para ele me interrogar.
Com o filho. Aquele jovem Ajax tem um largo traço de crueldade.
Cato sorriu.
- Talvez aprecie saber que agora é ele que está a receber um tratamento desse tipo. Capturámo-lo há uns dias, com dois dos navios dos piratas.
- Excelente, centurião. O sacana bem o merece, depois de tudo o
que me fez passar... Bom, mas foi lá que os vi - aos pergaminhos. Sobre a secretária. Nalgumas das sessões, o Telémaco consultava-os. Tirava-os de um pequeno baú.
- Fez uma pausa, para relembrar a cena. - Era escuro, de ébano. O meu último interrogatório já foi há mais de um mês. Foi a última vez que os vi. Mas presumo que
ele os mantém em segurança, próximos de si. Há outra coisa que te interessa com certeza. Acho que o Telémaco tem um espião na esquadra. Disse-me uma vez para esquecer
qualquer possibilidade de salvamento. E vangloriou-se de conhecer todos os detalhes acerca das movimentações da esquadra de Ravena. E de como isso lhe garantia a
vitória.
- De facto, deram-nos uma bela lição. - Confirmou Cato. - Perdemos vários navios, e centenas de homens. Tem razão quanto ao espião. Os piratas sabiam exactamente
onde e quando nos deviam interceptar, e como as nossas embarcações mais ágeis estavam vulneráveis devido ao equipamento e abastecimentos que carregavam. Se algum
dia descobrirmos esse espião, acho que nenhum poder terreno o vai salvar da fúria dos homens. Vão despedaçá-lo, e vão levar o seu tempo.
- Sim, os piratas afiançaram-me que tinham derrotado a esquadra de Ravena. Na altura, não quis acreditar. - Segundo abanou a cabeça, triste perante a inacreditável
inversão da sorte das armas. Como todos os romanos, acreditava piamente na invencibilidade dos seus exércitos. Cato, pelo seu lado, via as coisas do ponto de vista
de quem executava as políticas imperiais; e o sucesso na defesa das fronteiras, dependente de legiões e esquadras espalhadas num território imenso, parecia-lhe pouco
menos do que um milagre. Segundo continuou, de forma serena. - Ao que parece, o Telémaco é mesmo tão bom como se considera a si mesmo.
Foi a vez de Cato abanar vigorosamente a cabeça.
- Teve um período de sorte, é tudo. O tempo dele está a acabar, acredite. Já falta pouco. Mas diga-me, o que sucedeu depois de os interrogatórios acabarem?
Com a mão livre, Segundo mostrou o aspecto gasto que apresentava.
- Mandaram-me para os estábulos, para cuidar das mulas. Desde aí, tenho passado uma vida na merda, com vindas aqui de três em três dias. O que quer dizer,
atravessar a baía a remar, num filho da puta de um barco enorme, e depois esta porra desta subida pela montanha.
- Daqui a quanto tempo é que eles vão notar a sua ausência, e a dos outros?
- Devíamos estar de volta esta noite.
- Está bem. - Respondeu Cato. - Fico espantado por não o terem mantido num lugar seguro e escondido. Podia escapar.
- Era constantemente vigiado.
- Percebo. Ainda assim, deve ter-se familiarizado com as instalações, o suficiente para poder fornecer informações importantes quando fosse resgatado.
Segundo olhou para Cato.
- O que é que te leva a pensar que alguma vez me libertariam? Além disso, um dos guardas disse-me que dentro de pouco tempo iam abandonar a baía, e procurar
um novo esconderijo, numa região em que não fossem esperados.
- O Telémaco alguma vez mencionou os Libertadores?
- Disse que havia outros interessados nos pergaminhos.
- E alguma vez referiu o nome do agente desses outros?
- Não. Mas parece-me que o vislumbrei uma vez. - Segundo franziu o sobrolho, esforçando-se por recordar o momento. - Estava a carregar o bote com provisões
cá para cima quando chegou um dos navios e desembarcou um romano. Foi directamente para a cidadela, escoltado. Não consegui saber o nome desse tipo.
- E que aparência tinha?
- Trinta e muitos, talvez quarenta... Constituição média. Não havia nada nele que saltasse à vista. Excepto a cicatriz.
- Cicatriz? Como era?
- Tinha uma marca vermelha evidente na face, como se fosse uma queimadura... Lamento, mas é tudo de que me recordo.
- E é suficiente. Se o levasse à presença desse homem, seria capaz de o reconhecer?
- Com aquela cicatriz, não tenho qualquer dúvida.
- Se eu estiver correcto, esse tipo chama-se Anobarbo. O nome diz-lhe alguma coisa?
- Não. Lamento. - Baixou a cabeça e inspirou o aroma que se evolava do recipiente nas suas mãos. - Nem consigo dizer como isto está bom.
- Há aí muito, é só servir-se. Mas não exagere. Parece-me que o Narciso não apreciaria que o tivesse salvado da tortura e da escravatura, e depois o rebentasse
com comida e calor.
Segundo riu com vontade, inspirou no momento errado e engasgou-se, vendo-se a sufocar com um pedaço de guisado, que lhe saltou pelo nariz quando o corpo foi sacudido
por um acesso de tosse. Cato ergueu-se de um salto, alarmado, e correu para lhe dar uma forte palmada nas costas magras. Levantou a mão para repetir o gesto, mas
o outro desviou-se.
- Chega! Já estou bem! Estou bem. Não é preciso. - Tossiu mais algumas vezes, e depois olhou para Cato com um sorriso. - Desculpa, mas
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há meses que não me ria. Não me atrevia a isso. Obrigado. - Sorria ainda.
- Fizeste-me sentir muito melhor. Quase como se fosse outra vez humano. Muito obrigado, centurião Cato.
Durante alguns momentos, a sensação de alívio foi quase impossível de aguentar, e os olhos de Segundo encheram-se de lágrimas. Afastou-as rapidamente com as costas
da mão, pousou a malga e levantou-se.
- Bom, acho que agora vou dormir.
- Sim, faça isso. - Cato deu-lhe umas palmadas amigáveis no braço. - Parece-me que amanhã vai ser um dia muito longo.
? ? ?
Cato levantou-se ainda de madrugada, despertando repentina e completamente, vindo de um sono profundo. Já era soldado há tempo suficiente para fazer essa transição
de forma quase automática. Afastou a manta que tinha encontrado no abrigo e pôs-se de pé, esticando os braços e flectindo os ombros. Do abrigo vinha o som do ressonar
do agente de Narciso, e Cato resolveu deixá-lo dormir. O homem precisava de tempo para descansar e recuperar do longo cativeiro que sofrera.
Dirigiu-se ao posto de sinalização na ponta da falésia e sentou-se, apoiando as costas no próprio mastro. O horizonte apresentava-se límpido, e não havia sinais
de quaisquer navios junto à costa. Antes de os piratas se terem instalado naquela região, provavelmente avistar-se-iam dezenas de velas por ali. Virou-se e contemplou
a baía, na face oposta do braço de mar no sopé da falésia. Por cima da cidadela via-se uma fumaça que obscurecia ligeiramente a vista, e na margem, junto aos navios,
viam-se algumas figurinhas a andar para cá e para lá. Uma cena pacífica, pelo menos de momento. Quando Vespasiano chegasse, tudo mudaria.
Por momentos, Cato deixou-se ficar em contemplação. A vista era magnífica, e uma peculiar serenidade invadiu-o. Lá muito em baixo, havia homens a prepararem-se para
mais um dia de trabalho nos navios que tinham sido arrastados até à praia. Algures ali perto, era bastante provável que os homens da esquadra de Ravena se estivessem
também a preparar, mas para uma dura batalha contra os incautos piratas. Porém, dali de cima todos esses pormenores pareciam insignificantes e irrelevantes perante
as montanhas que se estendiam a toda a volta e um oceano que se alargava até ao horizonte, sem se ver circunscrito por qualquer pedaço de terra. Tudo parecia fantasticamente
pacífico.
Nesse momento, um detalhe na periferia do seu campo de visão despertou-o para a realidade. Lá longe, na imensidão azul, avistavam-se cinco navios, quase perdidos
na sombra da costa rochosa. Já deviam ser
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visíveis há algum tempo, percebeu Cato, furioso por não ter reparado neles antes. Cinco galés, a julgar pelos rastos geminados que marcavam o seu progresso através
das águas. Observou-as atentamente à medida que elas viravam para o canal de entrada naquele braço de mar e se dirigiam decididamente à pequena baía, ou seja, à
base dos piratas. Quando estavam mais próximas, esforçou a vista e percebeu que as duas embarcações que abriam e fechavam o comboio eram liburnas. No meio seguiam
três birremes. Franziu o sobrolho. Qual seria o significado daquilo? Onde estava a esquadra de Ravena?
No preciso instante em que a liburna da frente saiu das sombras para uma extensão de mar iluminado, viu-se um clarão fulminante que saía do castelo da proa. Cato
olhou directamente para a embarcação mesmo a tempo de receber outro clarão nos olhos. E depois outro. A seguir a uma curta pausa, os três clarões repetiram-se. Era
um sinal, compreendeu. Os piratas enviavam uma mensagem ao posto de vigia. Foi atingido por uma onda de pânico, ao perceber que deviam estar à espera de uma resposta,
ou de que o sinal fosse retransmitido para a base. Levantou-se, tentando raciocinar. Então virou-se e correu para o abrigo, gritando a plenos pulmões.
- Segundo! Segundo! Depressa, cá para fora! Despache-se!
A cortina de couro foi afastada e Segundo saiu, ainda a esfregar os olhos. Assim que se apercebeu da expressão tensa no rosto do centurião que corria na sua direcção,
despertou por completo.
- O que foi? O que se passa?
- Estão a chegar navios piratas! - Cato apontou para a beira da falésia. - Estão a fazer-nos sinais. Tem de me ajudar. Depressa!
Apontou na direcção do posto de sinalização. Quando Segundo se lhe juntou, ofegante, Cato notou que o navio continuava a emitir os sinais. Virou-se para o agente
imperial.
- Vá, você esteve com eles tempo suficiente para lhes conhecer as rotinas. O que é que significa aquele sinal?
Fez uma careta.
- Depressa, homem. Deve haver algum sinal de reconhecimento. Qualquer coisa que eles usavam para mostrar que eram amigos, e que tudo estava bem... Diga-me!
Temos de fazer com que os piratas na baía se sintam seguros, tanto tempo quanto possível. Alguém vai avistar aqueles navios a qualquer momento. E, a não ser que
nós enviemos o sinal correcto, vão perceber que alguma coisa de errado se passa aqui em cima, e dar o alarme. Vá, diga-me. O que é que temos de fazer?
- Estou a pensar. - Segundo fechou os olhos e tentou recordar os tempos passados na base dos piratas. - Sim! Sim, já me lembro. O pendão negro! Temos de içar
o pendão negro!
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Cato encarou-o.
- Negro? Tem a certeza? Não é nada com o heliógrafo?
- Não - isso é só para comunicar com a cidadela. Para os navios que se aproximam, usam-se os pendões. E sempre que os navios deles voltavam de um ataque,
usavam o pendão negro.
Cato tirou o monte de tecido negro do armário, e prendeu-o à corda usada para içar os pendões. Assim que estava fixo, içou-o, e prendeu a corda no pino a isso destinado.
A brisa matinal desfraldou os três metros de material escuro que se tornou evidente contra o azul do céu.
Virou-se para Segundo.
- Espero sinceramente que esteja certo.
O outro engoliu em seco.
- Bom, de uma maneira ou de outra, vamos sabê-lo daqui a pou co.
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XXXVI
- O que é aquilo? - Macro apontou na direcção da montanha. Ao seu lado, no castelo de vante da liburna, um dos marinheiros pôs a mão em pala sobre os olhos
e esforçou a vista, antes de responder.
- Um pendão, senhor, acho eu.
- De que cor? - Inquiriu Macro. - Desembucha, homem!
- Eu... Não consigo distinguir, senhor. Parece escuro. Talvez seja azul... Ou preto.
Macro virou-se e gritou, com a mão em concha:
- Tragam-me o prisioneiro!
Enquanto a ordem de trazer Ajax ao convés era passada, Décimo aproximou-se, juntando-se a Macro na proa do navio. Nenhum dos homens no convés envergava o uniforme
da marinha imperial, nem utilizava qualquer equipamento que a ela pudesse ser associado. Tinham-se vestido e equipado com o material obtido nas duas liburnas capturadas.
Décimo ostentava um turbante de seda, e uma túnica de amarelo-vivo. Macro, de acordo com a sua natureza, tinha escolhido uma discreta capa castanha, e umas calças
de cabedal, e não parava de abanar a cabeça perante a extravagante escolha de indumentária do trierarca; entretanto, este tinha subido ao pequeno castelo da proa.
Os dois homens fitavam atentamente a diminuta sombra que se interpunha entre eles e a luz do Sol que se erguia por trás da montanha.
- Portanto, ele viu o nosso sinal. - Afiwnou Décimo.
- Alguém o viu. - Contrapôs Macro, calmamente. - Não temos maneira de saber se é o Cato que está lá em cima, ou outra pessoa qualquer.
- O que pensa?
Macro coçou o queixo, onde se viam os primeiros sinais de barba.
- Não sei bem. Se é o Cato, como demónio saberia ele a resposta correcta? Se calhar teve de fugir, e deixar o posto de vigia de novo nas mãos dos piratas.
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Por trás deles, levantou-se alguma confusão, o que fez com que os dois oficiais se voltassem, e vissem Ajax a ser empurrado sem cerimónias através da escotilha,
para o convés. Dois fuzileiros obrigaram-no a pôr-se de pé e arrastaram-no para a proa. Na penumbra, para lá da escotilha, Macro apercebeu-se do brilho das armaduras
dos militares que se amontoavam na coberta, fora da vista. O convés do navio inclinou-se quando passou pela crista de uma onda, e depois mergulhou na cava, o que
o fez imaginar quão desconfortável estaria a ser a viagem para os fuzileiros. Mas não havia nada que ele pudesse fazer para melhorar as condições dos homens. Tinham
de se manter escondidos até ao último momento, se queriam que o plano do prefeito resultasse.
Os fuzileiros lançaram Ajax para junto dos dois oficiais, mantendo-lhe os braços presos atrás das costas. O jovem enfrentou-os com um olhar de desafio, o que fez
Macro abanar de novo a cabeça e suspirar.
- Boa tentativa, parceiro, mas comigo isso não vai servir de nada. Vi a maneira como eles te quebraram a resistência. Portanto, deixa de fingir-
- Vai-te foder, romano! - Ajax tentou cuspir-lhe na face, mas o medo tinha-lhe deixado a boca tão seca que só conseguiu assoprar.
- Belas maneiras. - Comentou Décimo, erguendo o punho. - Acha que o posso ensinar a portar-se como deve ser?
Os olhos do jovem arregalaram-se perante a ameaça do trierarca, e Macro deixou-o sofrer alguns momentos, antes de abanar a cabeça.
- Não. Deixa-o. Daqui a mais um bocadinho já pode voltar a sentir-se miserável. Por agora, preciso dele em bom estado.
- Uma pena. - Resmungou Décimo, enquanto voltava a dedicar a atenção à extensão de mar que se abria à frente do seu navio, e que se alongava sempre cercada
por montanhas. Tinham memorizado a localização da baía a partir do mapa de Cato, e o trierarca perscrutou o sopé da mais afastada das montanhas, tentando vislumbrar
a cidadela.
- Tem calma. - Disse Macro. - Só a vamos conseguir ver daqui a mais um bocado.
Voltou-se para o prisioneiro e apontou na direcção do posto de vigia.
- Estás a ver aquilo? O pendão. Fizemos o sinal que nos indicaste, e responderam-nos com aquilo. O que é que significa?
Ajax olhou na direcção indicada, esforçando a vista. Antes de voltar a encarar Macro, engoliu em seco, nervoso; depois esboçou um sorriso.
- Tarde de mais, romano. É o pendão negro. Ou seja, um aviso. Já sabem que vocês se aproximam. O meu pai desaparecerá muito antes de vocês chegarem à baía.
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Macro não respondeu. Não mostrou qualquer reacção, limitando-se a observar o jovem pirata enquanto tentava decidir se ele estava ou não a dizer a verdade. Apercebeu-se
de que Décimo, ali ao lado, estava irrequieto.
- Ele tem razão. É negro. Ou seja... Macro?
- Calado.
- É negro. Já sabem que estamos aqui.
- É o que ele diz...
- Vou dar ordens para voltarmos para trás.
Foi nesse preciso instante que Macro viu perpassarem pela face de Ajax os mais ínfimos sinais de triunfo e alívio, e soube que o prisioneiro mentira.
- Décimo, mantém o rumo.
- Mas ouviu o que ele disse.
- Mantém o rumo. É uma ordem. Ele está a mentir. O sinal só pode querer dizer que os enganámos.
Décimo abriu a boca para protestar, mas anos de dura disciplina fizeram-se sentir, e em vez disso o trierarca fez uma continência.
- Manter o rumo, sim, senhor...
Macro virou-se para os dois fuzileiros.
- Levem o prisioneiro para baixo. E tentem não o danificar muito pelo caminho, sim?
- Desculpe, senhor. Não houve maneira de o evitar. Ele é um bocadito a dar para o fresco, senhor.
Macro inspeccionou o prisioneiro, de forma exageradamente preocupada.
- Bom, está amarrado, e um bocadito amachucado. Caramba, parece-me que não deve dar grandes problemas, mesmo a um par de fuzileiros.
Os dois homens coraram, e depois levaram o prisioneiro, rápida mas cuidadosamente.
Décimo acenou na direcção do posto de vigia.
- Isso quer dizer que não é o Cato quem está lá em cima?
Macro encolheu os ombros.
- Não me parece que possa ser, a não ser que tenha conseguido capturar algum dos piratas e o tenha forçado a revelar o código dos sinais. Parece-me que seria
pedir-lhe de mais. - Sorriu de forma funesta. - Até o Cato, de vez em quando, tem de evitar um combate. Só espero que tenha conseguido escapar.
- Pareceu-me um jovem bastante empreendedor. - Concordou Décimo.
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- Isso às vezes não é suficiente. Por vezes é precisa uma boa dose de sorte, e o Cato já usou mais sorte do que aquela que um tipo normal pode esperar...
Bom, em breve saberemos.
Desviou a atenção para a montanha do outro lado do braço de mar, a umas seis ou sete milhas de distância. Os cinco navios que estavam sob o seu comando alcançariam
a baía bastante antes do meio-dia. Pouco depois, de acordo com o planeado, a esquadra de Ravena faria a sua aparição, bordejando a costa, bem à vista do posto de
vigia, e dirigir-se-ia a toda a velocidade para a mesma baía. Antes, ele e o seu pequeno esquadrão tinham de lançar um ataque com tamanho ímpeto e poder destrutivo
que mantivesse os piratas ocupados, e permitisse a Vespasiano levar toda a frota até ao palco dos combates a tempo de encurralar o inimigo. Se o prefeito se atrasasse,
ou se os piratas tivessem tempo suficiente para organizar a resistência, as coisas podiam correr francamente mal a Macro e à sua pequena força de fuzileiros e marinheiros.
O Sol subiu pelo céu da manhã, completamente limpo, a brisa ganhou força, e Décimo pediu licença para içar as velas.
- O vento sopra favoravelmente. Podemos chegar à baía nesta rota, sem mudarmos de bordo.
Macro deitou um olhar aos remadores que se esforçavam nos seus
bancos.
- Por outro lado, se mantivermos os homens nos remos e içarmos as velas, vamos chegar lá bem mais depressa.
- Demasiado. - Avisou Décimo. - Não podemos arriscar-nos a ficar muito à frente da esquadra, senhor.
- Quanto mais depressa chegarmos à baía, maiores serão as nossas possibilidades de os apanharmos de surpresa. Sabes isso tão bem como eu, Décimo.
- É verdade, senhor. Mas se os homens ficarem exaustos pelo trabalho nos remos, não combaterão com o mesmo vigor. E o combate já se adivinha difícil, mesmo
com os homens descansados. Lamento, sei bem como lhe apetece lançar-se sobre o inimigo, mas as coisas são assim.
Macro concordou, embora relutante.
- Seja. Dá sinal aos navios para içarem as velas e recolherem os remos. E reza aos deuses para que eles não nos avistem a tempo de tomarem medidas contra
a nossa pequena artimanha. Porque se o fizerem, estamos praticamente liquidados.
À proa da liburna, o centurião contemplou o promontório cada vez mais próximo, e tentou empurrar o navio através das vagas com a força do pensamento. Até a sua limitada
imaginação era capaz de conceber a possibilidade de um pirata estar a pescar ou nadar algures por aquela zona, longe
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das águas inquinadas onde os navios ancoravam e despejavam imundícies. Bastava que esse homem olhasse na direcção certa para ver as cinco velas a dirigirem-se para
a enseada, e fosse a correr avisar Telémaco. E com certeza que os piratas, sabendo que havia uma esquadra romana à sua procura, estariam a ser cautelosos. Num instante
reuniriam as suas tropas, equipadas para o combate; e as embarcações deviam estar prontas para a acção. Assim que percebessem o estratagema dos romanos, cairiam
sobre eles e massacrá-los-iam, e as águas da baía ficariam vermelhas com o seu sangue.
Tentou afastar as macabras imagens que lhe invadiam a mente. A aposta de Vespasiano tinha todas as condições para resultar. Os piratas tinham enviado aquelas mesmas
embarcações à caça de presas, ainda há poucos dias. Estariam portanto à espera do seu regresso, e o aparente sucesso da expedição enchê-los-ia de alegria. Mais ainda,
se o seu palpite sobre o pendão negro estivesse correcto, todos pensariam que tinham sido trocados os sinais correctos, e que tudo estaria bem. As hipóteses estavam
todas do lado de Roma, mas ainda assim Macro sentia a necessidade de solicitar a protecção dos deuses. Em silêncio, ofereceu preces a Marte e Fortuna, fazendo a
promessa de uma lança votiva a cada um dos deuses no caso de sobreviver ao combate iminente, e de o dia terminar com a esquadra de Ravena triunfante.
Estavam a pouco mais de uma milha do promontório quando avistou duas figuras minúsculas que observavam a aproximação dos navios do alto das falésias. Enquanto se
aproximavam, Macro aguardou que os dois homens desatassem a correr na direcção oposta, mas eles deixaram-se estar, sem desviar a atenção dos cinco barcos. Quando
já não estavam a mais de meia milha, um deles ergueu o braço numa saudação. Macro engoliu em seco e respondeu da mesma forma, temendo que aquela fosse mais uma manobra
de reconhecimento. Mas não houve qualquer sinal de alarme, e os navios começaram a rodear o cabo. Lá longe, pensou, estaria a ser dado o sinal para o grosso da frota
se pôr em movimento e se dirigir à baía tão depressa quanto velas e remos permitissem.
Do outro lado do promontório havia no ar uma fina neblina, provocada por fumo, mas quando o navio a ultrapassou, depressa se começou a avistar a altaneira arriba
onde se situava a cidadela dos piratas. O centurião apercebeu-se da onda de tensão que percorreu os tripulantes que se encontravam no convés, e avisou-os, com rispidez.
- Porra, vamos a ter calma. Tanto quanto eles sabem, somos dos deles. Portanto, toca a sorrir e a acenar sempre que for preciso. Percebido?
Os tripulantes e fuzileiros disfarçados anuíram, sem disfarçar o receio, e continuaram nas suas tarefas, alguns alinhando-se na amurada e contemplando a baía que
se abria à sua frente. À primeira vista, as águas
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pareciam apinhadas de embarcações inimigas. Macro resolveu contá-las, e constatou que o número era o mesmo que ele e Cato tinham assinalado no mapa dois dias atrás.
A superfície do mar parecia um espelho, reflectindo tremulamente os vultos das embarcações dos piratas, agora a poucas centenas de metros de distância. Nas mais
próximas assomavam faces curiosas, e a maior parte acenava, celebrando aquilo que via: birremes capturadas que navegavam entre as duas liburnas. Por trás dos navios
ancorados, sobre a baía, erguia-se a cidadela; Macro notou imediatamente as catapultas instaladas sobre as muralhas e nalgumas plataformas que davam melhor ângulo
para disparar sobre a zona do ancoradouro. Mas não se via o fumo oleoso que denunciaria a preparação de projécteis incendiários. Até ali, tudo bem, suspirou. Virou-se
para trás, chamou a atenção de Décimo, e acenou.
- Recolher as velas! - Ordenou o trierarca, em grego. - Lançar
remos!
Uma a uma, as outras quatro naves seguiram as indicações, continuando a aproximar-se lentamente das embarcações inimigas. Os tripulantes recolhiam o pano e amarravam-no
como se nada os apressasse, e o ritmo das remadas mantinha-se lento e cadenciado, de forma a não despertar as suspeitas dos piratas, como se os recém-chegados se
preparassem apenas para encontrar o seu lugar entre os outros navios. Para dar mais força ao embuste, Décimo ordenou que se preparasse a âncora, enquanto a liburna
deslizava pela baía. Na penumbra da coberta, através da escotilha aberta, Macro distinguia as faces ansiosas dos soldados que olhavam para o céu luminoso, prontos
para sair e combater. Ainda não, impôs Macro a si mesmo. Só podia dar essa ordem, e deixar cair o disfarce, no último momento, quando estivessem o mais próximo possível
das embarcações inimigas.
Décimo tinha ordens para se dirigir à trirreme, e indicou ao timoneiro, por murmúrios, que orientasse a liburna para passar junto ao navio-almirante dos piratas,
e não para que traçasse uma rota de colisão. Os remos prosseguiam nos seus movimentos regulares, para a frente, mergulhando na água e empurrando o lixo e a espuma
que flutuavam à superfície.
- Ajax!
A chamada fez Macro dar um salto, e ao procurar a fonte, viu um rosto sorridente na popa da trirreme. O homem voltou a chamar, numa qualquer língua incompreensível,
que até podia ser grego, no que a Macro dizia respeito. Obrigou-se a sorrir e a abrir os braços num gesto de saudação alegre, apesar de o coração lhe querer explodir
no peito. O homem repetiu o que tinha dito, e o centurião respondeu-lhe com uma gargalhada, o que provocou um franzir de sobrolho no interlocutor. Olhou de Macro
para os outros homens no convés, que evitaram o seu olhar, e empertigou-se,
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analisando cuidadosamente ó aspecto da liburna - especialmente a escotilha aberta. Macro virou-se, pôs as mãos em concha, e inspirou profundamente antes de gritar.
- AGORA!
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XXXVII
Ainda antes que o som da sua voz ecoasse na parede da falésia, já as ordens voavam a bordo dos cinco navios. Enquanto os fuzileiros deixavam as cobertas, os marinheiros
empunhavam os ganchos de abordagem, e os remadores lançavam as embarcações a toda a velocidade contra os alvos designados. Macro indicou a trirreme, e Décimo confirmou-o,
passando a ordem para o homem que manobrava o leme. De ambos os lados do navio, os longos remos eram levantados, puxados à frente, mergulhados, empurravam a água
e recomeçavam o ciclo, fazendo-o ganhar velocidade e reduzir rapidamente o espaço que o separava da embarcação inimiga. A princípio não existiu qualquer reacção,
e os piratas limitaram-se a contemplar, surpresos e horrorizados, os vasos de guerra que se precipitavam sobre eles. Tinha sido ordenado aos fuzileiros que se mantivessem
em silêncio, pelo que reinava na baía uma tétrica quietude.
Finalmente, depois do que pareceu uma enorme pausa, os piratas começaram a responder ao ataque. Os oficiais berraram ordens, e os homens entraram numa correria,
em busca do armamento. Na praia, onde se viam ainda as três embarcações que estavam a ser calafetadas, o inimigo levou mais tempo a reagir, e observou em silêncio
o ataque decidido dos navios romanos. Ouviu-se então uma longa nota de uma trombeta, vinda da cidadela e dando o alarme; só nesse instante é que os piratas compreenderam
de facto o que se estava a passar. Mas, para os navios mais próximos do pequeno esquadrão de Macro, era já demasiado tarde.
No último instante, o homem do leme lançou todo o seu peso contra o gigantesco remo, ao mesmo tempo que os remadores de bombordo interromperam os seus movimentos;
em resultado, a embarcação virou de bordo e embateu contra a parte lateral da trirreme, o que fez tremer toda a sua estrutura.
- Lançar ganchos! - Ordenou Décimo, e logo os três ganchos metálicos atravessaram o ar e foram cair no convés da trirreme. Os tripulantes rapidamente esticaram
e prenderam os cabos, e logo a seguir pegaram
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no seu armamento ligeiro e lançaram-se para o navio inimigo. Os fuzileiros, mais bem equipados, apressaram-se a lançar pranchas de embarque e a seguir os seus camaradas.
Macro furou por entre as fileiras mais próximas, e trepou para uma prancha. Apoiando-se na amurada da trirreme, saltou para o convés. Aterrou pesadamente, mas conseguiu
equilibrar-se e empunhou imediatamente a espada que levava debaixo da capa.
O combate já estava decidido. Tal como Vespasiano previra, a bordo estava apenas uma pequena tripulação. O resto dos homens devia estar em terra, aquartelado na
cidadela ou nas casernas que salpicavam a encosta sobranceira à praia. No convés jaziam três corpos. Um quarto homem estava por terra junto ao mastro, jactos de
sangue a saírem-lhe pela boca. Dois outros tentaram render-se, mas os fuzileiros abateram-nos sem piedade e precipitaram-se pela escotilha de acesso à coberta. Todos
os participantes no assalto tinham recebido ordens estritas: não seriam feitos prisioneiros. Não tinham possibilidade de dispensar homens para os guardar, e todo
o tempo que fosse gasto a controlar alguns cativos faria diminuir o ímpeto do ataque.
Alguns dos piratas tinham conseguido escapar à primeira vaga do assalto romano fugindo para o outro lado do navio; agora, lançavam-se à água e nadavam para a costa
a toda a brida, enquanto os homens de Macro lançavam sobre eles tudo o que estava à mão: cavilhas, potes, jarros, e até as próprias armas dos piratas, abandonadas
na pressa de escapar.
Macro deixou os homens entretidos com essa caça, e lançou-se para o castelo da popa, subindo a pequena escada de um salto. Na amurada, olhou em volta, avaliando
a prestação do seu esquadrão de ataque. A birreme mais próxima já quase tinha dominado a sua presa, e mais além, nos outros navios, os combates eram encarniçados.
Satisfeito com o sucesso obtido nos primeiros instantes do ataque, deu um leve murro na amurada. Mas era preciso manter o ímpeto. Debruçando-se, reparou em Décimo,
e agitou a espada para atrair a atenção do trierarca.
- Preparar para avançar! Traz a tripulação para bordo. Eu trato dos fuzileiros.
Décimo saudou-o, e berrou imediataménte ordens aos seus homens. Macro correu para o convés principal.
- As primeiras duas secções, aqui! O resto, regressem ao navio.
A excitação que lhes corria nas veias fez com que os homens levassem algum tempo a responder, mas depois começaram a dirigir-se de novo às pranchas de embarque.
Quando os que tinham sido os primeiros a invadir a trirreme regressavam do porão, Macro segurou o optio pelo braço.
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- Pega nalguns homens. Volta lá abaixo, e atiça umas fogueiras. Das valentes. Depois volta para o nosso navio.
- Sim, senhor.
- Não podemos ficar à tua espera. - Macro acenou na direcção de um bote que se via no convés, amarrado. - Terás de te safar com aquilo. Vai!
Virou-se, trepou pelo lado do navio e desceu para o convés da liburna. Estava repleto de fuzileiros sorridentes, excitados, felizes com a rapidez da vitória que
acabavam de alcançar. Macro dirigiu-se ao encontro de Décimo, enquanto os ganchos eram soltos e as rampas de abordagem recolhidas.
Décimo sorriu-lhe.
- Um a menos, já só faltam uns vinte, ou coisa assim.
- Cagativo. - Respondeu Macro, com uma gargalhada. Virou-se e apontou para uma birreme, mais perto da margem do que a embarcação que acabavam de destruir.
- A próxima é aquela. Põe-nos ao lado dela, e depressa.
Antes de dirigirem a liburna para o novo alvo, a equipagem usou os remos para a afastar da trirreme condenada. Enquanto a deixavam para trás, Macro reparou numa
fina coluna de fumo que se escapava do convés, e que rapidamente se tornou mais espessa e escura, à medida que as chamas avançavam. À sua frente, a tripulação da
birreme preparava-se, conforme podia, para repelir os atacantes. Durante o rápido assalto à trirreme, os piratas do outro navio tinham tido tempo para se armar e
dispor ao longo da embarcação. Alguns tinham arcos, e via-se que tinham sido colocados dardos em posição de serem rapidamente utilizados, apoiados na amurada. Como
no caso anterior, apenas uma fracção da tripulação estava a bordo, mas ainda assim Macro contou cerca de vinte homens. Os suficientes para oferecerem alguma resistência.
Tossiu para chamar a atenção dos fuzileiros.
- Rapazes, este vai ser um combate a sério. Mas o plano é precisamente o mesmo. Ataquem com rapidez, dêem-lhes com força, e não façam prisioneiros.
A maior parte dos homens lançou vivas, mas os veteranos entre eles já avaliavam o desafio que se lhes apresentava e calculavam as hipóteses de sucesso, enquanto
a liburna continuava a aproximar-se do navio inimigo. Quando já não estavam a mais de cinquenta passos, Macro ouviu uma ordem ser dada no convés da birreme, e assistiu
ao lançamento de vários dardos. Mal teve tempo para lançar um aviso.
- Escudos para cima!
Logo a seguir, as pesadas pontas metálicas dos projécteis embateram
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com estrondo no convés, ou furaram os escudos com ruídos de metal a rasgar. Ouviu-se um grito de dor, e um homem tombou, o ventre trespassado por um dardo que o
prendeu à amurada.
- Tirem-lhe aquilo da barriga, e levem-no para baixo! O resto, mantenham a merda dos escudos ao alto! Décimo! Manda alguns homens devolverem-lhes o favor!
A distância entre os dois navios diminuía, e mal houve tempo para trocar mais algumas descargas antes de Décimo dar ordens aos remadores para travar. As embarcações
chocaram, proa contra proa, e o impacto fez com que a maior parte dos homens caísse, numa confusão de pernas, braços e equipamento, misturados com imprecações e
urros de dor e raiva.
Macro pôs-se rapidamente de pé, gritando.
- Lancem os cabos! Vá! Vá!
Mais uma vez os ganchos voaram pelo ar e abateram-se sobre a presa, e os cabos foram esticados. Um primeiro fuzileiro atreveu-se a trepar pelo bordo da birreme.
Porém, antes que conseguisse chegar ao convés, surgiu sobre ele um pirata, empunhando um machado nas duas mãos. A pesada lâmina descreveu um arco pelo ar e rasgou
o capacete e o crânio do romano quase até aos ombros. O corpo entrou em espasmos e tombou para o estreito fio de água entre os dois navios. Os outros fuzileiros
hesitaram, pelo que Macro pegou num dardo, apontou e lançou-o contra o tipo do machado. A ponta de ferro apanhou-o mesmo no peito, e ele caiu para trás, desaparecendo
de vista.
- Estão à espera de quê? - Rugiu Macro aos fuzileiros. - Querem que vos faça o trabalho todo?
Gritando de raiva, pegou num cabo, trepou por ele, e saltou para o convés da birreme, preparado para rachar ao meio qualquer pirata em que pousasse os olhos. Foi
o primeiro romano a bordo, e logo quatro adversários o enfrentaram, de espadas em riste e olhar impiedoso. Aos pés do centurião estava o machado ensanguentado do
homem que tinha abatido antes. Macro pegou nele com ambas as mãos e fê-lo rodar sobre a cabeça.
- Venham lá, então. - Ameaçou. - Quem é que se acha suficientemente duro?
Por trás dele, o cabo estremeceu, quando os fuzileiros começaram a içar-se. Um dos piratas lançou um grito de aviso aos seus camaradas e atirou-se contra Macro.
Este respondeu-lhe com o machado, decepando-lhe o braço mesmo acima do pulso e fazendo a espada, com a mão ainda agarrada, cair no convés. Com um pontapé, Macro
afastou o homem, que berrava, para o lado, e carregou sobre os outros três. O primeiro tinha um pequeno escudo que levantou para tentar desviar o ataque do centurião,
mas o impacto surpreendeu-o e lançou-o para o lado, fazendo-o tombar sobre o
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convés. Enquanto Macro fazia rodar o machado, preparando o golpe seguinte, um dos piratas rodou sobre os calcanhares e correu em busca de um inimigo menos perigoso,
mas o outro lançou um golpe no momento ideal e atingiu o peito do romano com uma lâmina fina e recurvada que cortou capa, túnica e carne. Macro sentiu uma dor como
se alguém o tivesse flagelado com um ferro em brasa.
- Foda-se! - Lançou por entre os dentes cerrados, e recuou, apoiando-se contra a amurada. O adversário sorriu e lançou-se para a frente, a espada dirigida
à garganta do centurião; mas antes que a lâmina atingisse o alvo foi desviada por um golpe de lança, e o primeiro fuzileiro a seguir Macro pela corda acima saltou
para o convés e deu um murro na face do pirata, derrubando-o. O romano virou rapidamente a lança e trespassou o peito do inimigo com a ponta metálica, libertando-a
em seguida e procurando em redor um novo inimigo.
Enquanto mais fuzileiros subiam a bordo e se espalhavam, Macro deu uma olhadela ao ferimento, notando que o sangue se espalhava pelo tecido rasgado da túnica. Praguejou
mais uma vez e baixou o machado; afastou a capa e percorreu com dedos cautelosos a região ferida. Quase trinta centímetros do seu peito tinham sido retalhados, e
ao encontrar uma dobra de pele separada da carne estremeceu.
- Isto não tem nada bom aspecto. - Resmungou, e tirou a túnica pela cabeça. A ferida estava limpa, mas sangrava abundantemente. Cortou com a espada uma tira
da túnica arruinada e improvisou um penso para aplicar no peito, suficientemente apertado para estancar o sangue, mas não tanto que lhe dificultasse a respiração.
Entretanto, mais tropas romanas tinham entrado a bordo e progrediam para a ré. Mas os piratas tinham montado uma defesa feroz, reparou, mantendo-se juntos e combatendo
com determinação para não perder o navio. Mesmo perante o número superior dos romanos, recuavam lentamente, fazendo o inimigo pagar caro por cada metro conquistado.
Já três fuzileiros tinham sido abatidos, e enquanto o centurião contemplava a cena, mais dois tombaram, um com os tendões cortados, o outro em pânico, com uma adaga
de lâmina larga cravada num dos olhos.
- Força, rapazes! - Gritou Macro aos seus homens. - Acabem com eles!
Depressa a diferença do número traçou o destino do combate. Os fuzileiros abandonaram os escudos e obrigaram os piratas a recuar pelo ímpeto com que avançavam, fazendo-os
tropeçar e abatendo-os assim que se punham ao alcance dos gládios. O convés já estava manchado por poças de sangue, e as botas dos fuzileiros escorregavam no fluido
avermelhado. Um a um, os piratas tombaram, até não restar mais do que um punhado na
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defesa do castelo da popa. Enquanto a refrega prosseguia, Macro destacou um esquadrão de fuzileiros para irem atear fogos no porão. Quase de imediato levantou-se
um imenso clamor, o que fez com que o centurião metesse a cabeça pela escotilha.
- O que se passa aí em baixo?
Um dos fuzileiros veio responder, piscando os olhos por causa da luz repentina.
- Prisioneiros, senhor. Estavam encarcerados no porão.
- Então liberta-os, homem! Partam as fechaduras e tragam-nos cá para cima.
- Sim, senhor. - Regressou à escuridão, e ouviram-se os sons de madeira a ser cortada e despedaçada. No preciso instante em que o último dos piratas era abatido
no convés, Macro ouviu uma tremenda comoção junto à escotilha principal. Surgiu um magote de homens num estado miserável, sujos e desgrenhados, tentando proteger
os olhos do insuportável brilho do Sol, enquanto olhavam em redor para avaliar a nova situação em que se viam. Macro apontou para o lado do navio.
- Abandonem o navio! - Gritou. - Desçam para a liburna. Vamos deitar fogo a este! Despachem-se!
Perante o fumo e o som das chamas que já lambiam a estrutura do navio, marinheiros, antigos escravos e soldados abandonaram a birreme, procurando a segurança do
outro navio. Enquanto esperava pela sua vez de descer, Macro olhou em volta da baía. Havia quatro navios em chamas. A trirreme que tinham atacado antes estava a
arder com tanta intensidade que mesmo àquela distância se sentia o calor. Os fuzileiros combatiam noutras quatro embarcações, tentando controlá-las. Na orla da batalha,
um dos navios dos piratas tentava escapar, a diminuta tripulação a esforçar-se para o pôr em movimento com um punhado de remos.
Na margem, a praia fervilhava com homens que arrastavam pequenas embarcações para a água. Algumas já vogavam, dirigindo-se para os navios próximos que ainda estavam
nas mãos dos piratas. Na cidadela, as equipagens das peças de artilharia guarneciam as catapultas e preparavam a munição. Pequenas colunas de fumo subiam das fogueiras
onde se aquecia óleo para os projécteis incendiários. Daí a pouco, apercebeu-se Macro, iam fazer os primeiros disparos, para confirmar o alcance das armas. Sorriu:
podiam tentar à vontade. Com a confusão que reinava na baía, tinham tantas hipóteses de atingir um navio romano como um dos seus.
Ainda assim, no momento seguinte ouviu-se um som surdo, e ao erguer o olhar, Macro avistou um projéctil em chamas, provindo da cidadela. Parecia vir mesmo na sua
direcção, até que atingiu o ponto mais alto da trajectória e o som das chamas se tornou claro sobre o clamor da batalha.
No último instante tombou e caiu na água com um silvo, levantando uma onda, a poucos metros da birreme.
- Caraças! - Comentou um dos fuzileiros. - Se aquele foi só o primeiro tiro deles, estamos arrumados.
- Sorte, e mais nada. - Disse Macro, com uma calma forçada.
- O próximo vai sair ao lado por uma milha.
O soldado não se deixou convencer.
- Bom, senhor, não faço tenções de ficar aqui para descobrir.
Macro riu.
- Eu também não. Vamos pôr-nos a andar daqui para fora, e depressa.
Quando todos regressaram a bordo da liburna, Décimo deu ordens para se afastarem do navio inimigo, e Macro indicou o mais próximo dos vasos romanos, envolvido em
combate com a tripulação de outra birreme.
- Além. Leva-nos até ao outro lado, e acabamos com eles num instante.
- Sim, senhor. - O trierarca reparou no penso improvisado que Macro tinha em volta do peito. - Tudo bem consigo?
- Porra, por acaso dá ideia de que estou são como um pêro? - Irritou-se o centurião. - Cumpre as tuas ordens, e manda-me um enfermeiro!
Enquanto o trierarca voltava à sua posição junto ao leme, Macro sentou-se, encostado à amurada. Sentia-se um tanto fraco, e por instantes notou que na periferia
da visão via sombras indistintas. Cerrou o punho e aplicou um forte murro no convés. Nada o impediria de comandar os seus homens naquela refrega, nem a mais tenebrosa
das feridas. Não naquela altura. Ainda não. Não antes da chegada de Vespasiano e da confirmação da vitória sobre aquela escumalha.
Enquanto a embarcação se aproximava das duas birremes, o enfermeiro levantou o penso que Macro improvisara, limpou apressadamente a ferida e aplicou um novo penso,
com uma faixa limpa de linho. Enquanto o homem trabalhava, o centurião via como as equipagens da artilharia na cidadela tentavam mais alguns disparos - contudo,
agora que a liburna se afastara, nenhum dos navios romanos estava ao seu alcance. As catapultas interromperam a barragem, mas já um novo perigo se desenhava, uma
vez que os botes que antes enxameavam a praia se moviam agora por entre os navios fundeados. Alguém com dois dedos de testa tinha-lhes ordenado que evitassem os
navios envolvidos em combate, e que se dirigissem antes aos que estavam ainda intactos. Rapidamente se compunham tripulações, e se preparavam os navios para a acção.
Assim que todos estivessem em movimento, com tropas frescas e sedentas de vingança a bordo, os cinco
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navios de Macro teriam de se haver com o dobro do número de inimigos. Tinha de fazer qualquer coisa que tornasse a relação mais equitativa.
Inclinou-se para o optio mais próximo e fez-lhe sinal para se aproximar.
- Equipa os teus homens com arcos. Acendam um lume e usem flechas incendiárias em todos os navios que se aproximarem.
O optio saudou-o, baixou o escudo e correu a cumprir as ordens que recebera. O centurião já dava ordens a outro grupo de fuzileiros, para que lançassem dardos sobre
os botes que levavam os piratas para os navios ainda não envolvidos no combate. Nenhuma daquelas medidas teria grandes efeitos. As flechas incendiárias seriam facilmente
extintas, e os dardos não causariam mais do que umas poucas baixas; mas talvez distraíssem o inimigo e lhes dessem mais algum tempo para respirar.
A liburna acostou à birreme, e mais uma vez os fuzileiros entraram em acção, com um coro de gritos que fez os piratas hesitarem antes de se lançarem na refrega.
Macro notou que já eram poucos os que estavam em condições de combater, e que pareciam cansados. Enquanto os piratas eram varridos do convés da birreme, Macro solicitou
que lhe trouxessem a sua couraça; o enfermeiro ajudou-o a colocar a armadura articulada, prendendo as correias. O centurião enfiou na cabeça o barrete protector
e pôs o capacete, sentindo-se muito melhor sob o peso familiar do equipamento.
- Senhor, não se esforce demasiado, pense na ferida. - Recomendou o enfermeiro. - Se não descansar, pode recomeçar a sangrar.
- Bom, nesse caso vou meter uns dias de licença, está bem? - Respondeu Macro com irritação, antes de agarrar o cabo mais próximo e se içar a custo para o
convés do navio inimigo. Tornou-se-lhe imediatamente evidente que o combate fora duro e cruel. Havi a corpos espalhados por todo o convés, e muitos deles pertenciam
a fuzileiros, reparou com preocupação. Mas pelo menos a embarcação estava agora em mãos romanas. Procurou o comandante do outro navio do seu esquadrão. O centurião
Minúcio tinha sido escolhido para aquela missão por ser um veterano, duro e de confiança. Apesar das diferenças pessoais que os separavam, Macro tinha-se sentido
agradado com a escolha.
- Minúcio! Vem cá.
O outro centurião apressou-se na sua direcção. Acenou para a carnificina que se via pelo convés.
- Parece que finalmente arranjaram coragem para um combate
decente.
Macro concordou. O choque inicial do ataque inesperado tinha passado, e os piratas estavam a reorganizar-se rapidamente. Agora que já tinham uma ideia clara da dimensão
da força de assalto romana, não
demorariam a ripostar. Nesse momento, já uma das embarcações que tinha escapado à atenção dos atacantes tinha recolhido a âncora e rodava à força de remos para aproar
à confusão de navios que se via no outro lado da baía. Depressa outras se lhe juntariam, já que muitos navios estavam a receber as tripulações a bordo.
Minúcio seguiu a direcção do olhar de Macro, e depois olhou para o promontório. O mar estava calmo, o horizonte limpo, não havia sinais do resto da esquadra.
- Não te animes. - Avisou Macro, calmamente. - Não vão chegar cá antes de pelo menos uma hora.
- Eu sei. - Minúcio lançou um sorriso desanimado. - A questão é saber se nós ainda estaremos por cá daqui a uma hora.
XXXVIII
- Como é que o nosso lado se está a portar? - Quis saber Segundo, arquejante.
Tinham começado a descer a montanha assim que os cinco navios tinham dado início ao ataque à frota dos piratas. A surpresa perante aquele desenvolvimento tinha sido
de curta duração, já que Cato depressa compreendera o que se estava a passar. O centurião e o agente imperial percorriam à pressa o trilho inclinado, arriscando
os pescoços em cada curva. A areia solta e os calhaus dispersos tornavam a progressão difícil e arriscada, obrigando-os a adoptar um passo que estava a deixar Cato
à beira da exasperação, o que era ampliado pela constante necessidade de voltar atrás para ajudar o outro homem, mais idoso e por isso menos ágil. De tempos a tempos,
viam-se obrigados a curtas paragens, para que ele recuperasse. E, de cada vez que tal sucedia, o jovem tentava avaliar a forma como a batalha distante se desenrolava,
do outro lado do braço de mar. Nenhum som lhes chegava das diminutas figuras que se moviam para cá e para lá sobre os navios, como se fossem formigas a percorrer
os brinquedos de crianças.
- Cato, como é que vão as coisas? Voltou a inquirir Segundo.
O centurião descansava, apoiado a uma rocha, enquanto tentava
perceber a situação na baía, protegendo os olhos com as duas mãos em Pala-
- Daqui, é difícil dizer. Há vários navios a arder. Um parece ter rompido os cabos, e está a derivar em direcção aos penhascos. Há várias embarcações emparelhadas,
consigo perceber que há combates. Mas saber quem é que está a levar a melhor, isso é outra história. Já nem distingo bem quais são os nossos e quais são os piratas.
Segundo abanou a cabeça.
- Mas que raio estará esse vosso prefeito a pensar, se mandou só cinco navios contra toda a frota dos piratas? É um perfeito suicídio.
- Não me parece. - Contrariou Cato. - Isso não é nada o estilo
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do Vespasiano. Só pode ser uma jogada táctica, o prenúncio de um verdadeiro ataque.
- Prenúncio? - Arqueando as sobrancelhas, Segundo encarou Cato, antes de soltar uma gargalhada amarga. - Não me parece que aqueles tipos resistam o tempo
suficiente para assistirem ao golpe definitivo do vosso prefeito. Partindo do princípio de que ele se vá dar.
Cato encolheu os ombros.
- Acredite. O homem nunca nos deixou mal. Agora, vamos.
- Há sempre uma primeira vez. - Resmungou Segundo, enquanto, a custo, se punha de pé.
Recomeçaram a descida. Cato fez um cálculo rápido, e depressa se apercebeu de que não alcançariam a base da montanha antes do anoitecer, não àquela velocidade. E
quando chegasse a noite, teriam de parar, era impossível prosseguir por aquela via traiçoeira em plena escuridão. Por essa altura, era bem possível que a batalha
já estivesse decidida. E se corresse mal ao lado romano, não valeria a pena prosseguir naquela direcção, a única hipótese de se manterem em segurança seria voltar
a subir a montanha.
- Cato? O que é que vai acontecer quando chegarmos lá abaixo?
- Bem, se o nosso esquadrão tiver conseguido a vitória, pegamos no bote e vamos ter com eles.
- E se tiverem perdido?
- Essa hipótese nem se põe. E agora, poupe o fôlego e vamos continuar.
A descida prosseguiu em silêncio, à excepção da respiração ofegante de Segundo e dos ocasionais gritos das gaivotas que pairavam mais abaixo. Passaram por algumas
árvores raquíticas, e pouco depois o trilho chegou à orla de um denso e escuro pinhal. Cato estacou.
- Conhece bem este caminho?
- Demasiado bem. - Afiançou Segundo, com um esgar. - Nestes últimos meses, subi-o e desci-o mais vezes do que me quero lembrar.
- Até onde é que vão as árvores?
- Mesmo até ao mar.
- Não há nenhumas clareiras? Nenhum sítio de onde possamos avaliar o que se passa na baía?
Segundo pensou uns momentos, e depois abanou a cabeça.
- Merda... - Cato mordeu o lábio. A última coisa que lhe apetecia era descer toda a encosta sem fazer a mais pequena ideia de como decorria a batalha. Mas
não havia nada a fazer. Era assim o terreno, e teriam de atravessar a floresta na esperança de que os piratas estivessem a ser derrotados. Porém, ao avaliar mais
uma vez a situação na baía, o centurião percebeu que os combates se tinham concentrado numa zona restrita da mesma, e
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que todos os navios piratas, de todos os tamanhos, convergiam na direcção do pequeno grupo de embarcações emparelhadas. E isso só podia significar uma coisa. Os
romanos estavam a perder, e bem. Se não acontecesse algo de novo e depressa, os piratas iam aniquilá-los.
- O que é aquilo? - Perguntou Segundo, enquanto apontava para o mar. - Um navio de guerra?
Cato dirigiu o olhar para o ponto onde a face da montanha descia abruptamente para o mar. A proa esguia de uma trirreme surgia à vista. Quase ao mesmo tempo, começaram
a aparecer as outras embarcações que a acompanhavam. Com remadas rápidas e as velas enfunadas, a esquadra de Ravena lançava-se ao assalto do covil dos piratas à
velocidade máxima, enquanto Cato e Segundo assistiam lá no alto.
O jovem virou-se para o companheiro com um sorriso estampado no rosto.
- Aí está. Eu bem lhe disse que Vespasiano tinha algum plano.
- É bem verdade. - Segundo fez um sorriso algo contrariado.
- Ainda assim, parece-me que ele assumiu um risco demasiado elevado.
Cato virou-se e depressa reconheceu que o outro tinha alguma razão. A esquadra ainda ia levar uma boa hora a rodear o promontório e penetrar na baía. E pela forma
que as coisas estavam a levar, os sobreviventes dos primeiros cinco navios não iam conseguir aguentar tanto tempo.
? ? ?
Da torre instalada no castelo da proa do seu navio-almirante, Vespasiano tinha uma visão desimpedida do braço de mar que dividia as montanhas. Sobre o distante promontório
erguia-se um penacho de fumo denso. Atrás dele ouvia-se o bater cadenciado dos tambores, marcando o ritmo das remadas; e cada impulso era sentido como um pequeno
estremeção em todo o navio. A brisa que enfunava as velas vinha da retaguarda, e dificilmente podia ser mais adequada ao propósito que o animava, já que empurrava
a frota na direcção correcta. Ainda assim, o prefeito sentia-se mais ansioso do que alguma vez o estivera ao longo de toda a Sua vida. Os seus homens combatiam e
morriam a algumas curtas milhas mais à frente, e ele sentia que era seu dever auxiliá-los com toda a brevidade. E não eram apenas as vidas dos homens que lhe ocupavam
o pensamento. Se o plano falhasse, os piratas escapariam e continuariam a ameaçar as rotas comerciais do Adriático, Telémaco continuaria na posse dos pergaminhos
e a exigir por eles um pesado resgate, e a sua carreira estaria terminada.
- Ao que parece, o centurião Macro está a provocar a confusão do costume. - Vitélio sorriu sem traço de sinceridade ao juntar-se ao
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comandante na torre. - Esperemos que o seu plano esteja a resultar, senhor.
- Está. - Disse Vespasiano, com firmeza.
- Ainda bem. - Comentou Vitélio. - Porque, se não correr bem como nós... Como espera, bem, nem quero pensar nas consequências... senhor.
Vespasiano forçou-se a manter a boca fechada, amordaçando a sua ira, e tentando não morder o isco com que o outro lhe acenava. Vitélio, pelo contrário, estava a
gozar o momento, e decidiu torcer a faca tanto quanto pudesse.
- É claro, era um plano arriscado. - Ponderou. - Mas suponho que na guerra os riscos são inevitáveis. Pergunto-me como serão apreciados em Roma os riscos
que decidiu assumir. Só espero que por lá o seu raciocínio seja tão bem compreendido como aqui, senhor.
Vespasiano ergueu a mão.
- Já chega, tribuno. A tua opinião já se tornou bem clara.
- Não me parece. - Ripostou Vitélio, em tom tão baixo que só Vespasiano o ouviu. - Não sei como o fez, mas garanto que um dia se vai arrepender de me ter
retirado o comando. Um dia. Verá. Portanto, peço desculpa por não desejar ao seu plano as maiores felicidades.
Vespasiano contemplou-o sem esconder o nojo e o desprezo que
sentia.
- Deuses... Gostavas mesmo que isto não resultasse.
- Evidentemente.
- E aqueles homens? A vida deles não significa nada para ti?
Vitélio encolheu os ombros.
- O que são para mim uns milhares de romanos? O que importam eles? São apenas peões da História. E só aqueles que a escrevem serão recordados, meu caro Vespasiano.
De que género se acha? - Olhou-o atentamente, e de repente apontou-lhe o dedo. - Aí está! Eu sabia. Portanto, poupe-me a sermões sobre a importância da vida dos
soldados. Isto só tem a ver consigo, com o seu lugar na História. Faça-me a cortesia de reconhecer a verdadeira natureza dos seus motivos... senhor.
Antes que Vespasiano pudesse responder, Vitélio deu um passo atrás. Empertigou-se, fez a saudação, e ofereceu ao prefeito um sorriso de gozo, antes de se virar e
preparar-se para descer para o convés. Vespasiano ficou a vê-lo afastar-se, o coração repleto de ódio. Um dia teria de haver um ajuste de contas entre eles, e só
um deles sobreviveria para ver nascer um novo dia. Mas ao mesmo tempo que assumia essa resolução e se virava para avaliar o fumo que se elevava nos céus, enquanto
a frota prosseguia na aproximação ao esconderijo dos piratas, sentiu que se lhe instalava uma terrível dúvida no peito. Vitélio estava certo quanto à ambição que
o animava.
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E, em sinal de gratidão por o ter elucidado quanto a esse assunto, o prefeito decidiu que nomearia o tribuno comandante do primeiro grupo de assalto a desembarcar.
? ? ?
- Orientem a catapulta para aquela! - Gritou Macro aos fuzileiros que guarneciam a torre. Indicou com o braço esticado a birreme que tentava posicionar-se
para os atacar pelo flanco. Já estava a virar de bordo para o assalto. Felizmente, e como já se tornara evidente, Telémaco ordenara aos seus homens que abordassem
e capturassem os navios romanos, em vez de simplesmente os abalroarem e afundarem. Porém, reflectiu rapidamente Macro, era um gesto que não lhe despertava propriamente
vontade de agradecer, dada a enorme desproporção que havia entre o número do inimigo e o do seu cada vez mais reduzido esquadrão.
Já só sobreviviam três dos seus navios, agrupados em torno da segunda trirreme dos piratas e tentando afastar os ataques que vinham de todos os lados. Uma das liburnas
tinha sido abordada por três navios em simultâneo, pelo que a sua equipagem tinha sido rapidamente dominada e massacrada. O outro navio romano tinha-se incendiado
quando o braseiro em que se acendiam os projécteis incendiários tinha espalhado o conteúdo sobre o convés, em consequência de um choque contra a embarcação que estava
a tentar destruir. As chamas tinham-se espalhado num ápice sobre as duas naves, obrigando a equipagem a saltar para a água e a tentar chegar aos outros navios romanos.
Infelizmente havia numerosas embarcações de pequeno porte na água, e os piratas que as ocupavam dirigiram-se imediatamente à área e perseguiram impiedosamente os
romanos que tentavam alcançar a nado uma área segura. Um a um, foram todos mortos, com pancadas de remos ou trespassados por lanças.
A equipagem da catapulta virou-a de forma a apontar à proa do navio pirata que se aproximava, o optio fez um ajustamento final à elevação, saltou para o lado e puxou
a alavanca que libertava o mecanismo. O braço de torção saltou para a frente com um estalido sonoro, e a flecha de quase um metro, com ponta metálica, voou pelo
ar, descrevendo um arco. Na pausa que se seguiu, Macro e os soldados seguiram-na com o olhar, até que o projéctil desapareceu entre a turba que se tinha juntado
na proa do navio inimigo, fazendo saltar membros e pedaços de armadura. Os homens ergueram a mão e vitoriaram o momento.
- Bem jogado! - Gritou-lhes Macro. - Agora não fiquem aí especados, porra! A pontaria está boa. Mandem-lhes mais umas!
A equipagem lançou-se ao trabalho, rearmando o mecanismo,
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enquanto Macro se dirigiu à ré, para ver como ia o combate na outra ponta da trirreme. O convés estava salpicado por manchas de sangue meio seco e pegajoso, e os
enfermeiros esforçavam-se por cuidar dos feridos, que tentavam proteger-se sob as amuradas. O centurião interrogou-se sobre se valeria a pena perder tempo a tentar
salvá-los. Se os piratas triunfassem, os feridos seriam massacrados sem piedade. E, nesse caso, a dezena de homens que fazia as vezes de enfermeiros seria muito
mais útil na defesa dos navios que ainda resistiam. Todavia, ao passar por um homem que agarrava o estômago com as duas mãos, tentando evitar que as entranhas se
espalhassem pelo convés, mudou de ideias. A maioria daqueles homens estava a morrer. O mínimo que lhes devia era a possibilidade de algum conforto, antes de passarem
para as sombras. Contornou a pilha de cadáveres junto à base do mastro e subiu para o castelo da popa.
O centurião Minúcio ocupava essa posição com um grupo de homens, equipados com arcos que tinham obtido no armeiro dos piratas. Concentravam esforços num grupo de
três botes que se tinham aproximado da popa da birreme romana mais próxima. Macro avaliou rapidamente a situação, notando que duas das embarcações estavam repletas
de cadáveres, cravejados de setas. Muitos dos homens do terceiro bote também já tinham sido abatidos, restando apenas um punhado de tipos agachados, tentando proteger-se
atrás de pequenos escudos redondos.
- Excelente. - Elogiou, antes de se virar para ver como um grupo de piratas se preparava para subir a bordo da mesma birreme, graças à rampa de embarque que
tinha sido instalada a partir do navio onde se encontravam. Na outra ponta da rampa, os fuzileiros lutavam desesperadamente para evitar que os primeiros piratas
pusessem pé no convés. Mas bastava um pequeno grupo de homens para criar uma testa-de-ponte que permitiria aos restantes lançarem um assalto em massa e romper as
defesas. Macro apontou a nova ameaça.
- Minúcio! Vê se consegues dar cabo daquele grupo.
- Sim, senhor! Rapazes, para ali, depressa! O grupo na rampa. Dêem-lhes com força!
As cordas dos arcos emitiram a sua canção de arrepiar, e uma contínua chuva de setas abateu-se sobre as cabeças dos piratas amontoados, o que os fez, como Macro
previra, esquecer a vontade de saltar para bordo do outro navio e, ao invés, cuidar antes de mais da sua própria protecção, correndo a esconder-se sob a amurada
do seu navio ou a acolher-se por trás dos escudos.
Outra ameaça evitada, suspirou Macro. Mas não tinha conseguido mais do que uma pequena fracção do tempo de que necessitava até à chegada da força principal. Interrogou-se
sobre o que o teria feito oferecer-se
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como voluntário para aquela missão. Vespasiano tinha pedido um comandante para o assalto, e ele tinha sido o primeiro a levantar-se. Sabia que ia ser uma missão
muito arriscada, nem era preciso dizê-lo, mas não fazia ideia de que seria mais próxima do suicídio. Pensamentos desse género eram raros na sua cabeça. Ia aonde
era preciso, para combater, e para o fazer de forma eficiente. Até ali, sempre conseguira sobreviver. Mas tudo o que era bom chegava ao fim, pensou, e talvez tivesse
chegado o seu momento.
A situação não era de todo promissora. Os romanos estavam encurralados na curva da baía, sem qualquer hipótese de abrir um caminho de fuga através da dúzia de navios
piratas que os rodeavam. Mesmo assim, Macro ainda tinha ao seu dispor metade dos homens que tinham iniciado o ataque, guarnecendo as amuradas das quatro embarcações
entretanto juntas, e por enquanto aguentavam-se. Tinham a vantagem de estar na defesa, e de não ter de correr, portanto, os riscos inerentes a quem tenta abordar
outra embarcação. Essa parte da operação já estava terminada.
Olhou em volta, analisando toda a baía, e não deixou de se sentir algo satisfeito. A outra trirreme afundava-se lenta mas seguramente; já só era visível o topo do
mastro, e as chamas ainda lambiam os restos carbonizados da vela aí presos. Aqui e ali, outros seis navios ardiam. Os piratas tinham conseguido subir a bordo de
outros dois e extinguir as chamas, mas os estragos que tinham sido feitos iam levar vários dias a recuperar. Portanto, cerca de metade da frota dos piratas tinha
sido destruída ou inutilizada, e os navios e homens restantes tinham sido obrigados a um tremendo esforço para tentar esmagar a força que liderava. Quando Vespasiano
chegasse ao terreno de batalha, não precisaria de grande trabalho para os derrotar. O plano do prefeito tinha resultado, mesmo implicando o sacrifício de Macro e
do seu esquadrão.
Já tinha dado ordens para que, se o inimigo estivesse prestes a tomar conta de um dos seus navios, este fosse incendiado e abandonado. Evidentemente, quando as defesas
do último fossem rompidas e o navio fosse por sua vez incendiado, seria cada homem por si, e pela borda fora; sorriu tristemente. Se tal chegasse a ser o caso, assegurar-se-ia
de que os enfermeiros punham os feridos para sempre fora do alcance dos piratas e das chamas.
- Senhor! Centurião Macro, senhor!
Ouviu o grito através do clamor da batalha, os urros de raiva dos homens, os choques metálicos de espadas e escudos, os gemidos dos feridos, e virou-se para a fonte
do mesmo. Na proa da trirreme, viu o optio que comandava a catapulta a agitar um braço no ar de forma a chamar-lhe a atenção.
- Que se passa? - Respondeu. Mas tinha a garganta seca, e as
palavras mal soaram. Cuspiu, limpou a garganta e tentou de novo, com as mãos em concha. - O que é?
- Ali, senhor! Veja! - O optio apontava na direcção do promontório. Da popa, Macro não via nada a não ser o oceano. Mas os piratas que se aproximavam da zona
de combate já olhavam para trás, para o mar aberto, e depois de uns instantes de silêncio, começaram a soltar gritos de raiva e desespero que facilmente atravessaram
o espaço e lhe chegaram distintamente. Franziu o sobrolho e voltou a espreitar para o mar, a confusão que sentira a ser pouco a pouco substituída pela esperança
e pelo júbilo, ao perceber o que os outros tinham avistado.
Nesse mesmo instante, a proa de um vaso de guerra surgiu por trás do promontório. Um convés longo emergiu em seguida, com remos a funcionarem a toda a velocidade
e a levantarem espuma da água que empurravam com ferocidade. Logo a seguir surgiu o mastro, com uma gloriosa vela vermelha completamente enfunada. E nela, pintada
no centro do pano, via-se a semiapagada silhueta de uma águia.
XXXIX
À medida que a baía se abria à frente da quinquerreme, o coração de Vespasiano rejubilava de satisfação. Macro e os seus homens tinham feito um óptimo trabalho.
Quase metade da frota dos piratas estava destruída. As embarcações sobreviventes amontoavam-se em torno de um pequeno grupo de navios onde ainda se combatia, o que
levou o prefeito a concluir que pelo menos alguns dos homens que tinha enviado na primeira vaga sobreviviam ainda. Inspirou profundamente e sorriu, ao sentir que
o pesado fardo de culpa que Vitélio lhe conseguira atirar para cima dos ombros se aliviava. Os piratas já viravam as costas aos navios de Macro e preparavam-se para
enfrentar a nova ameaça. Mas, à medida que mais e mais vasos de guerra romanos surgiam de detrás do promontório, a vontade de resistir esvaía-se claramente. Não
havia tempo para organizar uma defesa eficaz contra a esquadra de Ravena em peso, e os piratas pouco mais faziam do que olhar aterrorizados para a aproximação dos
navios romanos. A maior parte das tripulações, vendo a esmagadora superioridade do inimigo, fugia para a praia. Alguns dos comandantes de navios recuperaram algum
sangue-frio a tempo de procurar a fuga, forçando as suas já exaustas tripulações a pegar nos remos para tentar desesperadamente sair da baía antes que a armadilha
se fechasse. Vespasiano indicou os navios aos seus tribunos ajudantes.
- Sinalizem ao segundo esquadrão de birremes que devem persegui-los e destruí-los. Não quero que nenhum escape.
- Sim, senhor.
Seis birremes separaram-se do resto da esquadra para cortar o caminho aos piratas, enquanto os outros navios se dirigiam directamente para a costa, à força de remos,
já que as velas tinham sido recolhidas. Alguns gritos de alegria, vindos dos sobreviventes da força de Macro, saudaram-nos, e vários dos homens de Vespasiano responderam
à alegria dos camaradas. No entanto, a maioria permaneceu com o olhar fixo na praia que se aproximava, preparando-se para o assalto que se seguiria. Os piratas que
tinham ficado em terra estavam ainda frescos e determinados a combater. Os seus
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comandantes estavam a fazê-los formar para atacar em força os romanos, assim que estes pusessem o pé em terra.
Os baixios e a areia entre as duas forças estavam repletos de figuras em fuga, poucas das quais mostravam a presença de espírito necessária para se juntarem aos
seus camaradas ainda frescos e desafiadores. A maior parte esgueirava-se por entre as fileiras e desaparecia por entre as cabanas e casebres que se espalhavam acima
da praia, em busca da protecção da floresta que cobria as colinas próximas. Outros corriam pela língua rochosa, buscando a segurança da cidadela, olhando preocupados
para o lado e apreciando a forma como os romanos avançavam, esquecendo-se até de cruzar a ponte levadiça que atravessava o fosso defensivo e dava acesso ao portão
fortificado. Nas muralhas, alguns dos seus camaradas chamavam-nos, mas muitos estavam imóveis a contemplar o drama que se desenrolava na baía, percebendo perfeitamente
o desastre que se aproximava das suas forças a passos largos.
As catapultas romanas soltavam estalos ao lançar projécteis contra qualquer navio pirata que mostrasse sinais de querer resistir. Vespasiano tinha dado às embarcações
mais ligeiras a tarefa de se apossarem dos navios ainda no ancoradouro. Entretanto, o grosso da força romana dirigia-se deliberadamente à praia.
- Fuzileiros à popa! - Ouviu-se a ordem, dada a partir do navio-almirante e instantaneamente repetida nos outros navios romanos. A manobra de desembarque
tinha sido treinada incontáveis vezes, pelo que os soldados rapidamente se dispuseram no espaço da ré do navio, concentrando o peso na retaguarda e fazendo a proa
elevar-se, de forma a entrar pela praia. Toda a gente a bordo se preparou para absorver o choque com as pernas bem firmes e afastadas. O declive da praia era suave,
de forma que o navio-almirante quase nem estremeceu quando a quilha entrou em contacto com a areia e o impulso que levava o fez subir uma curta distância pelo areal,
até se imobilizar.
- Fuzileiros, em frente! Baixar as rampas!
Vespasiano espreitou da torre, apreciando a passagem dos homens. Avistou Vitélio entre eles, e acenou-lhe vagamente.
- Boa sorte, tribuno! Conto contigo para levares esses homens à
vitória.
O visado respondeu com um ar irritado, fez uma saudação rígida e furou por entre os homens até ao local onde os marinheiros manobravam as pranchas da proa, orientando-as
para a praia, por sobre as suaves ondas que morriam sobre a areia. Assim que os tripulantes largaram as cordas, as extremidades das rampas abateram-se sobre a água,
com estardalhaço.
- Mexam-se! Avancem! - Vociferou o centurião que comandava
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os fuzileiros da quinquerreme, e os primeiros homens subiram para , as passadeiras de madeira e correram pelo plano inclinado até à água que lhes dava pelo peito,
mantendo os escudos sobre a cabeça para evitar que se ensopassem e o peso os tornasse inutilizáveis. Os outros seguiram-nos, criando uma torrente imparável de homens
que se abatia primeiro sobre as águas para emergir depois, a pingar, na areia. Quando chegou a sua vez, Vitélio preparou-se e correu pela rampa, quase perdendo o
equilíbrio, até que chocou contra o soldado que o precedia. O homem mergulhou de cabeça na água, e Vitélio rodeou-o e prosseguiu a caminho da praia, deixando que
o outro se levantasse sozinho e o amaldiçoasse por o ter posto naquele estado, ensopado e furioso.
Outros navios tinham entretanto alcançado a praia, de ambos os lados do navio-almirante, e desembarcavam já as suas forças de fuzileiros, que os respectivos centuriões
se apressavam a formar na praia. Ali perto, os piratas lançavam os seus gritos de guerra num crescendo audível. Os homens batiam com as espadas nos escudos, e alguns
ameaçavam lançar-se isoladamente sobre os romanos, ficando-se porém pelos insultos e pelos gestos de desafio. Das distantes muralhas da cidadela escutava-se uma
poderosa trombeta, rasgando o ar com uma nota estridente que atravessava a baía e ecoava nas encostas rochosas que a rodeavam. Um clamor elevou-se das fileiras dos
piratas, que se adiantaram de forma pouco harmoniosa, ganhando impulso e acabando por carregar pela praia abaixo contra a linha defensiva romana. Os arqueiros e
as catapultas ainda a bordo dos navios só tiveram tempo para um lançamento. Em seguida foi a vez de os dardos serem atirados pelos fuzileiros, antes de estes empunharem
as espadas e oferecerem os escudos à pressão dos inimigos. Dezenas de piratas foram derrubados pelos diversos projécteis, levantando nuvens de areia. Os seus camaradas
desviaram-se ou saltaram sobre os homens abatidos, mal lhes dedicando um último olhar antes de se lançarem sobre os romanos.
A areia solta fez com que os homens perdessem velocidade, pelo que a carga se viu privada de muito do ímpeto inicial e se transformou rapidamente numa série de duelos
individuais e de pequenas escaramuças ao longo da praia. Inicialmente, Vespasiano contemplou o combate com a habitual ponta de dúvida e incerteza; sentia-a sempre
que os homens sob o seu comando entravam em contacto com o inimigo e era difícil perceber para que lado tombava a vantagem. Mas rapidamente se tornou evidente que
os piratas eram menos numerosos e não tinham o treino dos fuzileiros, pelo que estavam a ser empurrados para trás, sendo obrigados a subir a praia e a zona de seixos
mais acima, deixando pelo caminho inúmeros mortos e feridos. Quando a linha de combate alcançou as cabanas, os
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piratas na retaguarda começaram a fugir, muitos deixando pelo solo as armas e escudos. Os seus comandantes tentavam impedi-los e conduzi-los de novo à linha da frente,
batendo-lhes com a folha da espada, mas quando isso não resultava, não hesitavam em abatê-los, como exemplo para todos os que pensassem em seguir-lhes o gesto. Contudo,
assim que os piratas foram obrigados a recuar para o meio das cabanas, toda e qualquer coesão que restasse nas suas linhas foi desfeita, e a fuga na direcção das
encostas arborizadas generalizou-se. Os fuzileiros desfizeram então a sua formação e perseguiram-nos, alcançando facilmente os mais lentos e abatendo-os sem piedade.
Quando se fatigaram da perseguição e carnificina, os soldados começaram a fazer prisioneiros, o que fez com que pequenos grupos de piratas começassem a ser escoltados
de regresso à praia, onde eram colocados sob apertada vigilância.
Apenas um punhado de inimigos, no flanco mais próximo da cidadela, conseguiu manter um arremedo de formação defensiva e recuar em boa ordem, atravessando a língua
rochosa debaixo dos ataques dos fuzileiros. Uma birreme do segundo esquadrão tentou utilizar a catapulta contra o grupo em retirada, mas logo que se aproximou, viu-se
sob bombardeamento das peças que os piratas tinham instalado nas muralhas. Assim que o primeiro projéctil incendiário lhe rebentou na proa, com uma explosão de chamas
e fagulhas, o trierarca apressou-se a levar o seu navio para longe do perigo. Enquanto Vespasiano observava as operações, uma chuva de setas e projécteis de fundas
começou a abater-se sobre os fuzileiros e a provocar-lhes baixas; porém, o seu entusiasmo e sede de vingança eram tais que mantiveram a perseguição até às proximidades
do fosso, só então se dando conta do perigo e começando a recuar, de escudos erguidos para se defenderem dos projécteis. O último dos piratas atravessou a ponte
levadiça que dava entrada na cidadela, os portões foram encerrados e pouco depois a própria ponte foi levantada até ficar praticamente na vertical em frente ao portão.
A batalha estava portanto terminada, decidiu Vespasiano. Depois de limpar a região de quaisquer piratas ainda dispersos, só restava o cerco à cidadela. Telémaco
e o que restava dos seus homens estavam presos naquele penedo por trás das muralhas. Tinham perdido todos os seus navios, e portanto já não tinham meios de fuga,
e também não podiam contar com quaisquer aliados que viessem em seu auxílio. A derrota era, para eles, tão certa como o facto de a noite suceder ao dia. Um único
assunto estava ainda por esclarecer, a razão secreta para todo aquele derramamento de sangue
- a recuperação dos pergaminhos. E isso, concluiu, ia ser complicado. Se ainda se encontravam na posse do chefe dos piratas, certamente que este os utilizaria
para tentar negociar. Todavia, Vespasiano não o poderia permitir.
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A esquadra de Ravena, que tantos homens tinha perdido, não aceitaria de bom grado um acordo que permitisse aos piratas escapar incólumes. A possibilidade de um
motim - a pior perspectiva que um comandante podia enfrentar - seria bem real.
Os sons de combate tinham diminuído, sendo substituídos pelos gritos e lamentos dos feridos, e pelo ocasional entrechocar de armas provocado por alguns duelos isolados,
quando os derradeiros piratas ainda animados por alguma vontade de resistir resolviam vender cara a vida.
Vespasiano desceu da torre no castelo da proa do Hórus satisfeito, mas esgotado pela tensão que tinha suportado desde que assumira o comando da esquadra. Daí a pouco
tudo estaria acabado, e se as coisas corressem bem, regressaria a Roma em triunfo e presentearia Narciso com os pergaminhos.
? ? ?
Depois de o último dos piratas na baía ter sido eliminado, a força romana começou a desembarcar o equipamento pesado e os abastecimentos. Vários prisioneiros foram
imediatamente postos a trabalhar, escavando um fosso e erguendo baluartes que bloqueavam a saída da cidadela, de forma a conter os seus camaradas no interior. Outros
foram forçados a construir uma paliçada em torno da testa-de-ponte romana.
Tendo sido informado de que o desembarque estava a decorrer em boa forma, Vespasiano requisitou um bote para o levar através da baía até junto dos navios de Macro,
que flutuavam no meio de um caos de cabos, velas, madeiras e corpos. Dos vazadouros das embarcações escorriam riachos de sangue. Nos costados, cravados aqui e além,
viam-se projécteis de variada natureza, desde setas a torpedos pesados. À medida que o bote com o prefeito se aproximava, escolhendo o caminho por entre os destroços
da batalha, os sobreviventes, exaustos, foram assomando às amuradas, e alguém lançou um esganiçado viva ao comandante. Quando o barco em que seguia acostou a uma
das birremes, Vespasiano trepou os lancis da rampa lateral, de madeira, e subiu ao convés. Percebeu Imediatamente a intensidade da luta desesperada que aqueles homens
tinham travado enquanto esperavam pela chegada do resto da esquadra. Junto ao mastro havia uma pilha de cadáveres, as tábuas estavam cobertas de sangue seco, e por
todo o lado se viam armas e outro equipamento abandonado. Sobre a sua cabeça, a verga tinha tomado uma posição quase vertical, e as velas soltas ondulavam preguiçosamente.
- Onde está o centurião Macro? - Perguntou ao fuzileiro mais próximo.
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O homem apontou para lá do convés, para onde a trirreme se elevava acima das outras embarcações.
- Ali, senhor.
Vespasiano atravessou o convés e subiu a rampa de acesso ao navio de maiores dimensões. Também ali eram visíveis as marcas da refrega; uma vez que tinha constituído
a última linha de defesa de Macro, fora para ali que todos os feridos tinham sido levados. Estavam deitados ou sentados em filas ininterruptas de ambos os lados
do convés, e havia homens ocupados a instalar toldos para os proteger do Sol. Alguns dos feridos saudaram o prefeito ao vê-lo passar. Descendo as escadas do castelo
da popa vinha Macro, que se dirigia a ele com um amplo sorriso. Tinha várias ligaduras em torno do peito, e via-se uma mancha vermelho-escura, onde o sangue tinha
conseguido empapar o penso.
- Centurião, é bom rever-te.
- Também a si, senhor. - Macro saudou o prefeito. - Chegámos a ficar preocupados por não o ver chegar.
- Preocupados? - Vespasiano passeou o olhar pelo casco arruinado e pelos restos do aparelho do navio. Conseguia facilmente imaginar o desespero dos homens
que tinham aguentado ali, enquanto a frota se aproximava da baía. Virou-se de novo para Macro e sorriu. - Com certeza não duvidaste da minha chegada, centurião?
Depois de tantos anos em que servimos juntos, esperava de ti um pouco de fé nas minhas promessas.
- Oh, senhor, sabia bem que acabaria por chegar. Pensava era que dificilmente estaria ainda por aqui para ver esse momento.
- Bom, mas estás. Espero que tenhas tomado conta do jovem
Ajax.
Macro acenou na direcção da escotilha principal.
- Está lá em baixo, senhor. Mandei-o para lá depois de tomarmos esta trirreme. Pareceu-me o local mais seguro. O centurião Minúcio está a guardá-lo.
- Muito bem. - Vespasiano assinalou a sua preocupação com os ferimentos de Macro. - Espero que não seja nada de muito grave.
- Já tive pior, senhor.
- Não o duvido. Temo é que não haja muito tempo para recuperares devidamente. Ainda temos um assunto difícil para arrumar, e vou precisar da tua ajuda para
o resolver.
- Vamos a isso, senhor. - Macro empertigou-se. - Pode contar
comigo.
Vespasiano soltou uma gargalhada. Quando prosseguiu, elevou o tom de voz.
- Se o Império tivesse dez legiões com oficiais como tu, e homens
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como estes fuzileiros, nada se poderia alguma vez interpor no nosso caminho.
Era um dito fácil, e como retórica era até bastante pobre, mas Vespasiano conhecia a mentalidade dos soldados, e sabia que um louvor, vindo de (Um oficial superior
ainda por cima, operava maravilhas, e só por si seria quase o suficiente para dar ânimo aos homens até ao termo da campanha. Mas era sobretudo fácil de dizer porque
era verdade, reflectiu. Porém, o tempo dos louvores terminara, pelo menos por agora. Havia muito trabalho a fazer, e a expressão do prefeito retomou a habitual dureza
que reflectia o seu profissionalismo.
- Se estes navios estiverem em condições, quero que sejam levados até à praia. Os feridos podem ficar a bordo. Faz uma contagem, e envia os resultados ao
meu pessoal, assim que possível. Depois, tu e os teus homens podem ir receber as vossas rações e descansar até amanhã. Entendido?
- Sim, senhor.
- Óptimo. Mais uma coisa. Vou precisar do prisioneiro. Envia-mo assim que os navios cheguem à praia. Vejo-te na reunião geral, à tarde. - Vespasiano preparou-se
para abandonar o navio.
- Senhor?
O prefeito interrompeu o movimento e voltou-se de novo para o centurião.
- O que é?
- O Cato, senhor. Temos de mandar alguém à procura dele.
Vespasiano assentiu.
- Assim que o campo estiver pronto. Amanhã, logo pela manhã, enviarei uma força à montanha para tentar recuperá-lo.
- Obrigado, senhor.
? ? ?
Ao fim da tarde, a esquadra de Ravena tinha completado a descarga de mantimentos e equipamento. Os fuzileiros e os prisioneiros estavam a acabar as defesas do campo,
que nesta altura se estendia da testa-de-ponte até às fortificações de contenção que bloqueavam o acesso à cidadela. As peças de quatro grandes onagros tinham sido
transportadas até um ponto onde as máquinas poderiam alcançar as muralhas da cidadela, e os engenheiros já se atarefavam a montá-las. Pela distância que os tiros
anteriores dos piratas tinham alcançado, os artilheiros romanos tinham uma boa ideia do alcance das armas inimigas, pelo que trabalhavam a uma distância segura.
Já tinham sido enviados grupos para recolher pedras adequadas para servir
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de munições, e a pilha crescia regularmente no terreno que tinha sido aplanado para as máquinas.
A impaciência de Vespasiano era tamanha que, assim que a primeira máquina de cerco foi terminada, ordenou que fosse accionada e começasse a bombardear o portão.
O engenheiro-chefe seleccionou cinco pedras de proporções muito aproximadas e deu ordens para que o onagro fosse preparado. Seis homens esforçaram-se na alavanca,
fazendo com que a roda girasse até levar o braço de lançamento à posição adequada para ser municiado. Dois homens levantaram uma das pedras e depositaram-na na concha,
afastando-se de imediato. O engenheiro fez um último ajuste, ergueu o braço para assinalar que ia lançar e, assim que os seus homens se colocaram a uma distância
segura, baixou-o. A alavanca foi accionada e, com um estalo das cordas, o braço da arma lançou-se para a frente, contra a barra de retenção, fazendo com que a pedra
fosse projectada na direcção da cidadela. Vespasiano e os seus oficiais seguiram a trajectória do pedregulho, até que este caiu bem para lá da muralha, fora de vista.
O som do impacto chegou-lhes aos ouvidos no momento em que uma nuvem de poeira se levantava por trás das fortificações.
- Baixar dois! - Gritou o engenheiro, quando a sua equipagem se lançou de novo ao trabalho na alavanca, puxando atrás o braço da arma. Contaram duas casas
menos no avanço da roda, e colocaram outra pedra. O facto de a noite ter começado a cair fez com que fosse mais difícil de seguir a sua trajectória após o lançamento.
O projéctil abateu-se sobre a muralha, uns metros abaixo das ameias, e fez cair uma chuva de material sobre o fosso, enquanto a equipagem do onagro soltava um grito
de triunfo.
- Bem apontado! - Vespasiano felicitou o encarregado das máquinas. - Usem as vossas três últimas pedras. Depois montem as outras máquinas. Quero aquela muralha
derrubada amanhã de manhã.
O chefe da equipa de engenheiros mordeu os lábios.
- Senhor, não será fácil. Vamos disparar às cegas. Provavelmente, a maior parte dos projécteis vai falhar o alvo. Vai ser um desperdício de munições, senhor.
Vespasiano sorriu pacientemente.
- Não te perguntei se ia ser fácil. Pedi para que fosse feito, uma vez que dei tal ordem. Trata disso, sim?
O engenheiro saudou-o e virou-se para os seus homens.
- Vamos a isto! Ouviram o prefeito. Vamos lá mandar-lhes mais umas pedras e acabar de montar as outras máquinas.
Vespasiano dirigiu-se a um dos oficiais do seu estado-maior.
- Diz ao centurião Minúcio para trazer o prisioneiro. E quero duas secções de fuzileiros para uma escolta, imediatamente.
O tribuno saudou-o e afastou-se a correr, enquanto Vespasiano voltava a observar a cidadela e a forma como três projécteis se abatiam sobre as muralhas do torreão
da entrada. Enquanto assistia, ponderava a acção a tomar em seguida. Suspeitava da futilidade daquilo que se preparava para fazer. Tinha de ser tentado, já que podia
poupar tempo e vidas. Se Telémaco tinha algum ponto fraco, só podia ser o amor e o orgulho que tinha pelo filho.
Pouco depois, um grupo avançou pela língua rochosa que dava acesso à cidadela. Um tribuno adiantou-se com um trombeteiro, que soprou duas notas de aviso aos defensores.
Faces curiosas surgiram nas ameias, e Vespasiano deu ordens ao grupo para se deter, antes mesmo de se colocar ao alcance das fundas. Levou as mãos à boca e chamou.
- Está aí Telémaco?... Telémaco?
Por momentos, considerou a possibilidade de o chefe dos piratas ter sido morto nos combates do dia. Se fosse esse o caso, aquela tentativa de pôr fim ao cerco estava
condenada a um fracasso imediato. Mas no preciso instante em que lhe ocorreu essa dúvida, viu surgir uma figura altiva nas ameias sobre o portão.
- Eu sou Telémaco. - Gritou o homem, em grego. - O que me queres, romano? Não é tarde de mais para te renderes. Talvez eu me mostre misericordioso!
Os risos dos defensores alcançaram os ouvidos de Vespasiano, que não evitou um sorriso perante a corajosa tentativa do homem para elevar o moral dos seus homens.
Noutras circunstâncias, o Império teria com certeza podido utilizar um homem com tais capacidades de liderança. Mas Telémaco preferira a pirataria, e teria portanto
de morrer. Vespasiano virou-se para o centurião Minúcio.
- Traz o Ajax aqui à frente. Assegura-te de que eles o vêem perfeitamente.
Minúcio arrastou o prisioneiro para a frente do prefeito e da sua escolta. Colocou-se por trás dele, torcendo-lhe o braço e segredando-lhe ao ouvido.
- Nem penses em tentar escapar. Estripava-te antes que desses dez
passos.
Vespasiano avançou e colocou-se ao lado do jovem.
- Telémaco! Temos o teu filho em nosso poder! Ofereço-te a vida dele em troca da tua rendição, com todos os teus homens.
Na cidadela instalou-se o silêncio, até que Telémaco respondeu.
- E se nos rendermos, romano, o que nos farás? Crucificar-nos-ás? Antes combater-vos e morrer aqui, na nossa casa, do que nas vossas cruzes.
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- Telémaco, de uma forma ou de outra, morrerás. Mas os teus homens poderão viver. Como escravos, por certo, mas viverão - e também o teu filho - se te renderes
antes que os meus homens iniciem o assalto, pela alvorada. Se me desafiares, Ajax será crucificado aqui mesmo, tomaremos a tua cidadela e não teremos qualquer piedade.
Qual é a tua resposta?
Ajax debateu-se desesperadamente no aperto de Minúcio, e gritou.
- Pai! Não...
Minúcio cortou-lhe a palavra com um golpe selvático nos rins.
- Calado, tu...
- Romano! - Gritou Telémaco. - Se voltas a tocar-lhe, juro-te...
- Nada farás! - Cortou Vespasiano. - Excepto aquilo que te exijo. E exijo que te rendas!
Uma curta pausa precedeu a resposta.
- Nunca!
Vespasiano antecipara aquela resposta, e o coração pesava-lhe com a certeza de todas as mortes que o desafio do chefe dos piratas implicava. Levantou o olhar para
a muralha.
- Seja. Pela alvorada, regressarei aqui com o teu filho. Pedirei uma última vez que te rendas. Dou-te a minha palavra de que Ajax e os teus homens serão poupados.
- Apontou um dedo a Telémaco. - Até ao nascer do dia!
Virou-se e fez sinal a Minúcio para trazer o prisioneiro.
- Leva-o para a trirreme e mantém-no sob vigilância, pessoalmente.
- Sim, senhor. - O centurião empurrou o prisioneiro.
Ajax torceu o pescoço, tentando lançar um último olhar desesperado ao pai, enquanto o grupo marchava rapidamente de volta às linhas romanas.
Assim que alcançaram a segurança da fortificação romana, Vespasiano dirigiu-se à sua tenda, acompanhado pelos tribunos do estado-maior. Os oficiais da esquadra já
deviam estar à espera da reunião marcada, e com certeza estariam esgotados, depois do dia de combates. Não seria justo fazê-los esperar mais do que o necessário,
até porque precisavam de preparar
o assalto matutino à cidadela. Apenas os oficiais gravemente feridos tinham sido dispensados daquela reunião.
E nesse número incluía-se Vitélio.
Tal como Vespasiano esperara, o tribuno tinha sido ferido em plena batalha. Infelizmente, o responsável pelo feito tinha desperdiçado a oportunidade e só o tinha
atingido no capacete, o que fizera com que a lâmina escorregasse e ferisse o romano no ombro. O tribuno tinha descrito
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permonorizadamente o incidente quando tinha encontrado Vespasiano na praia, pouco depois de este ter desembarcado. Tinha o ombro coberto por ligaduras ensopadas
em sangue, e mal se aguentava de pé. Enquanto se aproximava da tenda, Vespasiano abanava a cabeça, lamentando com amargura que Vitélio tivesse escapado com vida.
Afastou a aba da tenda, e os centuriões e trierarcas levantaram-se à medida que ele atravessava o espaço e se dirigia à secretária, onde se sentou. - Obrigado, senhores.
- Acenou-lhes para que se sentassem, e ofereceu-lhes um sorriso caloroso. - Antes de mais, os meus sinceros agradecimentos pelo vosso comportamento hoje. Quando
escrever o meu relatório, farei tudo o que estiver ao meu alcance para que o vosso valor e profissionalismo sejam reconhecidos pelos nossos senhores em Roma. Especialmente
todos aqueles que estiveram com o centurião Macro na acção desta manhã. Fantástico desempenho. - Inclinou a cabeça na direcção de Macro, que se remexeu no banco,
incomodado com a distinção.
- Porém, o nosso trabalho ainda não terminou. - Prosseguiu o prefeito. - Telémaco e alguns dos seus homens ainda estão vivos. Estou determinado a alterar
esse estado de coisas até amanhã à noite.
Os oficiais agitaram-se, e alguns trocaram acenos e olhares. Vespasiano tinha previsto que fosse essa a reacção, e compreendia-a perfeitamente. Tinham os piratas
encurralados, sem qualquer hipótese de fuga, e em circunstâncias normais aquele seria o momento de acalmar as coisas e obrigá-los a submeterem-se pela fome. Um assalto
à cidadela, mesmo que vitorioso, surgia-lhes como um desperdício de vidas. Mas, reflectiu Vespasiano, a verdade é que aqueles oficiais não eram conhecedores das
ordens do secretário imperial, e não faziam ideia de que era necessário recuperar os pergaminhos tão depressa quanto possível, e a qualquer preço.
Tossiu e enfrentou o olhar dos oficiais.
- Assim que alvorecer, vou propor-lhes de novo os termos da rendição. Temos uma peça importante para negociar - o filho do Telémaco. Contudo, imagino que
mesmo que ele esteja disposto a sacrificar tudo para salvar o filho, os seus homens não serão da mesma opinião, e não terão problemas em mostrar-lhe que a rendição
não é uma opção aceitável. Temo assim que um assalto à cidadela seja a única possibilidade. Não podemos suportar um cerco continuado. Cada dia que aqui passarmos
será mais uma oportunidade para Telémaco elaborar um plano de fúga. E não podemos permitir que ele nos escape entre os dedos. Se tal suceder, todos os camaradas
que perdemos neste último mês terão morrido em vão.
Fez uma pausa, durante a qual se ouviu com clareza o som de um onagro em funcionamento. Acenou na direcção do som.
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- O bombardeamento prosseguirá durante toda a noite. Espero que, quando chegar a madrugada, as defesas já apresentem várias brechas. A maior parte do entulho
deve cair no fosso, mas ainda assim teremos de levar material para o atravessar, bem como escadas de assalto. Não estou a dizer que isto vá ser fácil e indolor,
mas temos de o fazer. A melhor forma de salvar vidas é entrar com força e com rapidez. - Sorriu. - Para o caso de alguns de vocês estranharem o uso que faço do termo
"nós", asseguro-vos de que acompanharei a primeira vaga de assalto. Tomarei o comando de um pequeno grupo com a missão específica de encontrar e aprisionar Telémaco.
Portanto, senhores, tenho tanta razão para desejar este confronto como vocês.
Uma vaga de risos desfez a solenidade do momento, e Vespasiano aproveitou a oportunidade para dar por terminada a reunião. Levantou-se da cadeira.
- Mais tarde receberão as vossas ordens específicas.
Preparava-se para lhes dar licença para saírem quando a aba traseira da tenda foi aberta. Olhou para lá com uma expressão de surpresa que rapidamente se transformou
num sorriso caloroso de boas-vindas, quando percebeu quem emergia da escuridão.
- Senhor, as minhas desculpas pelo atraso. - Disse o centurião Cato. - Perdi alguma coisa importante?
XL
As equipagens de artilharia continuaram a bombardear a cidadela durante toda a noite. Tinham sido colocadas tochas junto aos onagros, e os homens trabalhavam de
forma contínua, retesando as cordas, municiando os mecanismos com pedras e afastando-se quando as cargas eram projectadas com um estalo e um assobio, lançando os
projécteis rochosos através da escuridão até se irem abater, invisíveis, sobre a fortaleza dos piratas. Nas muralhas não se via qualquer luz que pudesse facilitar
a pontaria dos romanos, e os únicos sinais de sucesso eram os ocasionais sons distantes de impactos, baques surdos a que se seguia geralmente o ruído de paredes
a caírem. Um cordão de fuzileiros, distante uns cem passos, assegurava a protecção das peças, para o caso de os sitiados tentarem uma sortida com o fito de as destruírem.
Um pouco mais atrás ficava o campo fortificado da esquadra de Ravena. No seio da escuridão tremeluziam aqui e ali as fogueiras em que os homens preparavam a refeição,
enquanto os fatigados fuzileiros e marinheiros que tinham sobrevivido à batalha conversavam no jeito habitual, um misto de alívio e despreocupação fingida. Mais
atrás ainda, ao longo da curva da baía, adivinhavam-se as formas escuras dos navios. Mais longe da margem circulavam pequenas embarcações, patrulhando em busca de
quaisquer piratas que resolvessem tentar uma fuga a nado.
Caminhando pela praia, três figuras aproximavam-se dos navios aí encalhados. Dirigiram-se deliberadamente à trirreme em que Ajax estava detido. Dois fuzileiros mantinham
guarda à prancha de embarque, e quando repararam na aproximação dos vultos, um dos soldados avançou e interpelou-os.
No porão, à diminuta luz de uma candeia, o som da pergunta mal despertou a atenção do centurião Minúcio. Repousava num leito improvisado, feito de velame dobrado
por cima de cabos enrolados. Confortável até certo ponto, ou seja, nem pensar em dormir. Mas isso servia o seu propósito. Tinha-lhe sido ordenado que vigiasse o
prisioneiro, sentado na grelha que dava acesso à quilha, a alguns metros. Ajax estava acorrentado a um
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anel de ferro, profundamente cravado numa das maciças travessas da trirreme. Não dormia, e estava absorto nos seus pensamentos, enquanto afagava a mão cujo dedo
mindinho tinha sido cortado durante o interrogatório. Minúcio observava-o com atenção. Não haveria possibilidade de fuga, nem de suicídio.
Ouviu-se o som de botas no convés, encaminhando-se para a escotilha principal. Sombras destacaram-se contra o céu nocturno, e umas botas surgiram nos primeiros degraus,
à medida que um homem, em farda de fuzileiro, entrava no porão. Minúcio avistou por fim Vitélio, acompanhado por dois guarda-costas. O centurião saltou do leito
improvisado e pôs-se em sentido imediatamente. De onde se encontrava, encostado ao casco do navio, os olhos de Ajax brilharam com evidente hostilidade.
Vitélio acenou com a mão do braço saudável.
- À vontade, centurião. Vim buscar o prisioneiro.
- O prisioneiro, senhor? - Minúcio parecia surpreendido. - Mas tenho ordens para que ele seja mantido aqui até de madrugada. Ordens do próprio Vespasiano.
- Pois, não digo que não, mas a verdade é que o prefeito o quer ver agora. Para o interrogar.
- Senhor, a meio da noite? - Os olhos de Minúcio franziram-se, denunciando a suspeita do centurião. - Não me parece.
Deu um passo atrás, para junto de Ajax, e pôs a mão no punho da
espada.
Vitélio enfrentou-o, falando em tom baixo e imperioso.
- Vais entregar-me o prisioneiro, centurião; é uma ordem.
- Não, senhor. O prisioneiro só sairá daqui quando o prefeito mo ordenar.
Os dois homens enfrentaram-se, e Minúcio reparou que os guarda-costas do tribuno se esgueiravam para os lados. O gládio saltou-lhe imediatamente da bainha, apontado
directamente à garganta do oficial superior. Vitélio sorriu, tentando acalmar os ânimos.
- Centurião, não é preciso entrarmos por esse caminho. Muito bem, percebeste o meu plano. Preciso do prisioneiro. Podia levá-lo à força. Mas essa atitude
podia custar-me algum ferimento, ou a perda de um dos meus homens. E não me posso arriscar a isso. Já estou com falta de pessoal. Portanto, vou fazer-te uma oferta.
- Oferta? Que tipo de oferta?
- Uma que te tornará rico, muito rico mesmo. E sei que isso te dava jeito. Verifiquei os registos. Para o ano, vais para a reforma.
- Sim. E então?
- Uma vez que és cidadão romano, terás direito ao prémio
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habitual. E já deves ter poupado o suficiente para uma reforma sossegada. Uma vida razoável, mas nada de luxos. Suponho que um tipo do teu género comprará uma quinta,
ou uma estalagem. Mas porque não almejar uma vida melhor, Minúcio? Depois de vinte e cinco anos de serviço, com certeza que a mereces.
O centurião fitou-o. Vitélio quase conseguia ouvi-lo a pensar nas possibilidades, e teve de se dominar para evitar que um sorriso se lhe espalhasse pela
face. No fim de contas, os homens eram muito simples. Bastava ofrecer-lhes o incentivo adequado, e podia-se levá-los a fazer o que quer que fosse. Para alguns, era
a perspectiva do amor, ou mesmo de sexo, puro e simples. Para outros, era a riqueza, e Minúcio tinha a idade suficiente para saber que o dinheiro era mais duradouro
que o prazer de alguns momentos.
O idoso centurião observou cuidadosamente a expressão de Vitélio.
- O que tenho de fazer para alcançar tal fortuna?
- Vir connosco, trazendo o prisioneiro.
- E aonde iremos, senhor?
- Dar um pequeno passeio de barco. Aqui o Ajax vai mostrar-nos o caminho para entrarmos na cidadela.
- Na cidadela? - Irrompeu Minúcio. - Eu devia ter desconfiado. Afaste-se!
Vitélio tentou erguer os dois braços, num gesto apaziguador, mas a ligadura no ombro impediu-lhe o gesto. Franziu o cenho.
- Só um momento!
Afastou-se ligeiramente, e com a mão livre desfez o nó que segurava a ligadura ensanguentada, removendo-a rapidamente e guardando-a no interior da túnica. No momento
seguinte fez o mesmo à ligadura que lhe cobria o crânio, e Minúcio abanou a cabeça perante a completa ausência de quaisquer ferimentos sob os pensos.
- Ora ora...
- Precisava de um álibi. - Explicou Vitélio. - Tanto quanto todos julgam saber, estou na minha tenda, a recuperar dos ferimentos. É lá que acham que estou
neste momento, e será lá que acharão que estou amanhã, quando invadirem a cidadela. - Estendeu a mão a Minúcio. - Aqui está a proposta. Vens connosco. Penetramos
na cidadela, e o Ajax mostra-nos como chegar aos aposentos do pai. Ele tem uma coisa que eu quero. Está num pequeno cofre. O Ajax foi muito gentil, e informou-nos
que o pai também guarda a sua fortuna pessoal por ali. Eu fico com o tal cofre e o seu conteúdo, e tu e os meus guarda-costas podem ficar com tudo aquilo que conseguirem
carregar do tesouro do Telémaco. Todos conseguimos aquilo
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que queremos, e voltamos antes que dêem pela nossa falta.
- E o prisioneiro?
- Levamo-lo outra vez até ao barco, e depois libertamo-lo.
- E como é que eu depois explico a suposta fuga?
- Abriu o fecho das correntes com um prego, e depois atacou-te pelas costas. Saltou pela borda fora e nadou até à cidadela. Serás encontrado vivo, mas atordoado.
Um dos meus homens encarregar-se-á de fazer com que o ataque pareça real.
Minúcio avaliou o forte guarda-costas especado ao lado de Vitélio.
- Não duvido... Mas o que é que acontece se alguém notar a sua falta, senhor?
- Deixei uma missiva a explicar que resolvi tentar recuperar o cofre sozinho. - Vitélio sorriu. - Para recuperar a minha honra, estás a ver. Se as coisas
correrem bem, assim que voltar à tenda, destruo-a. Já tratámos das sentinelas. Foram amordaçados e amarrados, e atirados para o depósito do cabo da âncora. Evidentemente,
se tivermos sucesso, vai ser preciso eliminá-los. Mais uma acção do Ajax.
Minúcio acenou devagar.
- Parece que pensou em tudo, senhor.
- Tentei, pelo menos. Portanto, centurião, o que decides?
- É uma proposta muito interessante. - Afirmou. - O que haverá nesse cofre que valha as nossas vidas?
- Nada que te diga respeito. Nada que tenha qualquer valor para ti. Bom, temos negócio ou não?
Minúcio considerou a situação mais uns instantes, e depois encolheu os ombros.
- E tenho alguma escolha? Se disser que não, sou eliminado e vocês levam-no na mesma.
- É evidente. Portanto, só tens de fazer o que é lógico. Acredita, é melhor para todos. Vai ser perigoso. Mas, se tivermos sucesso, vais passar a ser o homem
mais rico de Ravena. E de longe.
- Pois, mas o que é que vos impede de me despacharem assim que vos entregar o prisioneiro?
- Tenho muito mais a ganhar em ter-te do meu lado. E depois, do que é que servia matar-te? Há por lá muito mais riquezas do que vocês os três conseguem carregar,
portanto não há qualquer incentivo para golpes traiçoeiros, pelo contrário, todos beneficiamos se trabalharmos em conjunto.
Minúcio continuou a observá-lo por mais um momento, e depois estendeu a mão e apertou o braço do tribuno.
- Muito bem, senhor, estamos de acordo.
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- Óptimo! Vamos então pegar no prisioneiro e pormo-nos a caminho. Não há tempo a perder.
Minúcio abriu a corrente que prendia o jovem prisioneiro, e puxou-o com rudeza. Um dos guarda-costas pôs-se ao trabalho com a ponta da espada, soltando o anel que
estava cravado na madeira. Assim que o libertou, foi à bolsa que levava ao cinto e retirou dela um prego, que pousou ao lado do anel.
- Ora aí está. - Sorriu Vitélio. - Uma prova clara da engenhosidade do prisioneiro, e da sua fuga. Agora vamos.
Os cinco homens subiram a escada até ao convés, dirigiram-se à popa da trirreme e desceram para um dos pequenos botes que estavam amarrados à grande nave. Vitélio
assumiu posição à proa, Minúcio e Ajax ficaram na parte de trás, e os dois guarda-costas pegaram nos remos. Soltaram o cabo, afastaram-se da trirreme e encaixaram
os remos nos suportes, de forma tão desajeitada que um deles caiu imediatamente na água, fazendo barulho.
- Pouco barulho! - Repreendeu Vitélio. - Isso com calma. Não podemos ser vistos nem ouvidos, seus cretinos!
Repreendidos, os dois guarda-costas prosseguiram o trabalho de forma mais cuidadosa, mergulhando suavemente os remos, puxando-os devagar e depois fazendo a pá regressar
bem acima da superfície da água na preparação da remada seguinte. O mar estava calmo na baía, e o barco deslizava facilmente, aproximando-se da escura massa rochosa
no alto da qual se erguia a cidadela. Enquanto o bote passava junto ao istmo rochoso, ouviam-se os sons dos onagros em funcionamento, seguidos pelos impactos distantes.
Minúcio debruçou-se sobre Ajax e sussurrou:
- Porque é que os estás a ajudar?
- Para viver. - Foi a resposta do jovem, também sussurrada. - Ele prometeu que me libertava com o meu pai, quando este assunto estiver resolvido.
- Estou a ver. - Minúcio ficou surpreso perante a credulidade do jovem, mas considerou que talvez a tortura lhe tivesse quebrado o espírito de tal forma que
agora ele se mostrava capaz de aceitar qualquer coisa sem duvidar por um instante.
Dirigiram-se a um ponto em que a falésia se mostrava menos abrupta ao encontrar o mar, e depressa começaram a escutar o som das ondas a lamber as rochas.
- Parem de remar. - Ordenou Vitélio, em surdina. - Ajax, e agora?
- Em frente. Vêem aquela rocha? Temos de a rodear. Devagar.
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O bote avançou, dirigindo-se aparentemente a uma linha contínua de penedos onde avultava um de maiores dimensões. As oscilações da embarcação tornaram-se mais amplas
e passaram a ser acompanhadas de um marulhar em tom mais elevado, e por instantes Minúcio convenceu-se de que a intenção do pirata era mesmo fazer com que o bote
embatesse nas rochas. Mas depois viu aquilo que Ajax procurava: uma passagem estreita entre as rochas, mesmo por trás da maior delas, que dava acesso a uma pequena
enseada de águas tranquilas. Os guarda-costas de Vitélio perceberam rapidamente a ideia, e remaram com toda a força, fazendo o bote passar pela abertura e deslizar
para a zona mais calma. Havia uma rocha na base da falésia, que se prolongava para cima até que, lá no topo, se adivinhava o vulto dos edifícios de cor clara empoleirados
sobre o mar.
- Ali. - Apontou Vitélio, e o barco deslizou até embater na rocha. O tribuno saltou para terra firme, com uma linha para prender a embarcação. Um dos guarda-costas
seguiu-o, enquanto o outro ajudava Minúcio e Ajax a saírem do barco.
- Senhor, prendo-o? - Perguntou um dos homens de Vitélio.
- Não. O melhor é puxá-lo para cima das rochas até ali à base da falésia, onde não pode ser visto.
Enquanto os dois homens puxavam o bote por cima das rochas cobertas de algas, Vitélio levou os outros até ao sopé dos rochedos, e reparou imediatamente numa série
de apoios para as mãos e os pés, que subia pelas rochas. Testou as primeiras e escalou um metro e meio antes de assentir, satisfeito, e regressar para junto dos
outros. Virou-se para um dos guarda-costas.
- Trébio, vais à frente. Sobe até lá acima e vê aonde é que isto vai dar. Nós seguimos-te...
- Sim, senhor. - A relutância do homem perante a perspectiva de escalar uma face rochosa na escuridão era bem evidente, e Vitélio inclinou-se para ele.
- Pensa no tesouro, homem. Vai.
Começou a escalar, aproveitando com segurança todos os apoios. Vitélio aguardou alguns momentos, e içou-se.
- Eu vou agora. Depois o Ajax, a seguir o Minúcio. Se o rapaz tentar algum truque, centurião, silencia-o.
- Sim, senhor.
Vitélio acenou ao outro guarda-costas.
- Silo, tu vais em último.
Ascenderam lentamente, procurando com todo o cuidado os apoios seguintes. Ajax, que já tinha escalado a falésia muitas vezes, tinha muito maior certeza sobre a rota
a seguir, e ter-se-ia adiantado a Minúcio se
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o centurião não lhe tivesse agarrado o tornozelo e o tivesse recordado das ordens de Vitélio. Por duas vezes, Trébio enganou-se no caminho, e todos os outros se
viram obrigados a parar, enquanto ele retrocedia e Ajax lhe passava instruções para o fazer retomar o percurso correcto. Por fim emergiram, um a um, num minúsculo
recanto no cimo da falésia, onde o solo estava coberto de cascalho; Vitélio percebeu que estavam sobre as ruínas de uma casa que tinha, muito provavelmente, caído
para o mar. Em redor viam-se as paredes de outras casas, as janelas fechadas para impedir a entrada do ar frio da noite. Deixaram-se estar calados, a recuperar o
fôlego.
Vitélio deu novas ordens num sussurro.
- Tirem as botas. Juntem os atilhos, e prendam-nas à volta do pescoço.
Quando todos ficaram prontos, sacudiu o prisioneiro.
- Está na hora. Lembra-te que aqui o centurião vai estar sempre por trás de ti. Se tentares alguma coisa, serás morto antes de perceberes o que se passa.
Entendido?
- Sim. - Respondeu Ajax, suavemente, enquanto se levantava.
- Por aqui.
Conduziu-os sobre o entulho até encontrarem os restos de um muro que dava para uma rua estreita. Esperaram um momento para se certificarem de que não havia movimento,
e então pularam os restos do muro e apressaram-se a recolher-se sob a sombra do edifício no outro lado da rua.
- Fica longe? - Sussurrou Vitélio.
- Por esta rua, atravessamos um cruzamento, e subimos até ao
portão.
- Tu vais à frente.
Por momentos, Vitélio julgou divisar um sorriso no rosto de Ajax, mas acabou por se convencer de que provavelmente não teria passado de uma sombra mais escura. O
jovem avançou, seguido de perto pelos quatro romanos, subindo silenciosamente pela rua empedrada e estreita, as botas a embaterem-lhes no peito enquanto os pés nus
sentiam as pedras do chão. Mais à frente avistava-se uma luz fraca, revelando ó fim da ruela e o espaço aberto que ficava para lá dela. Ajax fez menção de continuar,
mas Minúcio segurou-o com firmeza e avançou por sua vez, espreitando pela esquina.
A rua dava para uma pequena praça, num dos cantos da qual ardia uma fogueira. Em volta desta viam-se os corpos adormecidos de homens embrulhados em cobertores. Um
deles estava acordado e contemplava as chamas, sentado de costas para o ponto em que se encontravam. Mantendo os olhos sobre o homem, Minúcio fez sinal aos outros
para avançarem, e agarrou o pulso de Ajax quando o jovem ia a passar por ele. Correram
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ao longo das fachadas das casas meio arruinadas que davam para a praça. Agachados, moveram-se tão depressa e silenciosamente como puderam até saírem da praça e mergulharem
de novo nas trevas de um beco que, pouco adiante, levava a um vasto portão. As portadas há muito tinham apodrecido, e agora o que restava delas apoiava-se aos pilares
de uma arcada. Logo à frente via-se um pátio e, do outro lado, a massa densa e quadrada de uma velha e fortificada torre de vigia. A luz espalhava-se a partir das
portadas mal fechadas de uma janela no topo da torre, e no cimo desta conseguiam escutar as vozes de homens que falavam em voz baixa.
Minúcio deteve-se sob a arcada e obrigou Ajax a baixar-se, enquanto esperavam pela chegada dos outros.
- É aqui? - Inquiriu Vitélio, num murmúrio.
Ajax anuiu.
- Onde estão as sentinelas? Devia haver alguém de guarda.
- Talvez estejam na muralha. - Especulou Minúcio. - Para o caso do Vespasiano tentar um assalto nocturno.
- Então, quem é que está lá em cima na torre?
- A equipagem da catapulta. - Informou Ajax. - Há uma montada lá em cima.
Vitélio lançou um olhar para cima, tentando divisar a silhueta das muralhas, e depois perscrutou todo o pátio, antes de se voltar a dirigir ao prisioneiro.
- Muito bem, então como é que entramos?
- Sigam-me. - Levantou-se, embora o centurião ainda o segurasse, e apontou com a mão livre. Vitélio fez sinal a Minúcio.
- Seja. Vamos.
Atravessaram o pátio e seguiram ao longo da face lateral da torre até encontrarem uma larga porta reforçada. Minúcio explorou a madeira envelhecida até que os seus
dedos encontraram um ferrolho metálico e pesado. Preparava-se para o levantar quando se ouviu um repentino fungar a poucos passos e uma figura se remexeu no solo,
antes de voltar a soltar um ressonar intenso. Os cinco homens deram um salto, surpresos, e quando recuperou do susto, Vitélio puxou Trébio para perto de si e murmurou-lhe.
- Trata deste.
Um leve ruído traiu o gesto do guarda-costas ao desembainhar uma arma. Debruçou-se sobre o homem que dormia, colocou-lhe a mão sobre a boca e empurrou-lhe a ponta
da adaga contra o queixo, fazendo-a penetrar pela base do crânio e atingir-lhe o cérebro, antes de a torcer com violência de um lado para o outro. O corpo teve um
espasmo e um arrepio, antes de ficar completamente inerte. Trébio tirou a mão devagar, e puxou a adaga, libertando-a. Limpou-a na túnica do morto e voltou a colocar
a
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adaga na bainha. Agachou-se, pôs o corpo aos ombros e levou-o para trás da esquina, antes de voltar a reunir-se aos outros.
- Lá para dentro. - Comandou Vitélio, e Minúcio levantou o fecho e abriu a porta devagar. Houve um ranger que não fez eco, pelo que o centurião percebeu que
o espaço por trás da porta era pequeno. Deu um passo hesitante no interior, explorando com o pé nu, até que sentiu a canela roçar contra algo duro. Inclinou-se e
usou as mãos para tentar perceber o que era um degrau, e a seguir outro.
- Escadas, aqui, à direita da porta. - Sussurrou Minúcio. - E agora, rapaz?
- Subam. Os aposentos do meu pai ficam no corredor da esquerda. As escadas vão até lá acima, à plataforma onde está a catapulta.
Minúcio seguiu à frente, de gatas, subindo um degrau de cada vez até que, com os dedos, percebeu que atingira um patamar. Espreitou em redor, e notou uma fraca luz
que passava sob uma porta a curta distância. Para lá dela, o corredor voltava a mergulhar na escuridão mais profunda. O centurião rastejou até à porta, com a cabeça
encostada ao solo, e espreitou pela fresta na parte inferior da porta. Conseguia ver os pés de vários móveis, uma capa deixada pelo chão e alguns baús. Não havia
sinal de presença humana. Escutou com atenção, mas o único som que lhe chegava era o das vozes no cimo da torre.
- Acho que estamos sozinhos. - Murmurou na direcção das escadas; os outros apressaram-se a juntar-se ao centurião, tentando fazer o mínimo de ruído.
- Deixa-te ficar aqui, e guarda o Ajax. - Ordenou Vitélio. - Os meus guarda-costas entrarão primeiro... Bem, abram a porta.
O fecho raspou levemente, a porta foi escancarada, e logo o corredor se iluminou com a luz que provinha do quarto; no momento seguinte, os aposentos de Telémaco
abriam-se à inspecção dos invasores. Os guarda-costas entraram primeiro, depois os outros, e Vitélio fechou calmamente a porta.
Tinham a sala por sua conta, e os quatro romanos soltaram suspiros de alívio, sentindo a tensão diminuir. O quarto era grande, e praticamente quadrado, com janelas
com portadas nas paredes que davam para o exterior. Na lareira viam-se os restos de um lume, responsáveis pela luz alaranjada e pelo calor que preenchiam o compartimento.
Num dos cantos via-se um cadeirão, coberto por uma colcha artesanal. Na outra extremidade havia uma grande mesa, por trás da qual estava uma cadeira que mais parecia
um trono. Dos dois lados desta mesa viam-se pequenos cofres empilhados. Vitélio olhou-os com cupidez, e virou-se para os seus companheiros.
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- Bom, rapazes, eis a vossa recompensa! Tal e qual como vos tinha dito. Vamos lá ver o que está por aqui.
Trébio e Silo apressaram-se a chegar à mesa, enquanto Vitélio levantava a tampa do cofre mais próximo. Lá dentro refulgia ouro. Meteu uma mão nas moedas, agarrou
um punhado delas e ergueu-a, para que os outros a vissem. Os guarda-costas e Minúcio não esconderam o prazer que aquela visão lhes dava. Vitélio sorriu perante a
reacção dos outros.
- Tratem dos vossos negócios, mas não façam barulho. E agora, nós. - Virou-se para Ajax. - Mostra-me o que procuro.
Notou-se uma ligeira hesitação enquanto o pirata percorria com o olhar os diversos cofres, mas logo apontou um com firmeza.
- Aquele ali, debaixo da mesa.
Os olhos de Vitélio seguiram a direcção indicada, até se depararem com uma caixa negra finamente decorada. Agachou-se e puxou-a. O coração batia-lhe a toda a velocidade
quando a colocou sobre a mesa. Mal podia acreditar que estava realmente na presença dos manuscritos de Delfos. Passou as mãos pela tampa, até à fechadura, que abriu.
Respirou fundo, e levantou a tampa. Lá dentro, à luz bruxuleante da lareira, viam-se lado a lado três grossos rolos, em estojos de cabedal.
- Rolos? - Minúcio não pôde esconder a surpresa. - Tudo isto por causa disso? Duns escritos?
Vitélio olhou-o com um sorriso misterioso.
- Sim. Uns rolos, como dizes.
- Pensava que havia alguma coisa... Especial.
- Centurião, isto é algo de muito especial. Alguns dos mais importantes documentos que alguma vez foram escritos.
- Oh? - Minúcio abanou a cabeça e riu. - Bem, senhor, pode ficar com eles à vontade. Eu contento-me com o ouro.
- Sim, faz isso... - Vitélio voltou-se de novo para os rolos, esticou o braço e tocou-os com reverência. Então olhou rapidamente para cima.
- Tirem o que quiserem dessas arcas, e vamos regressar ao bote.
- E a mim, o que vai acontecer? - Perguntou Ajax. - Romano, o nosso acordo?
Vitélio olhou para ele. Precisava do prisioneiro ainda por algum tempo, como segurança para o caso de encontrarem alguns dos homens de Telémaco. Mas quando tudo
estivesse resolvido, o filho do chefe dos piratas era tão dispensável como outro qualquer. Colocou-lhe a mão sobre o ombro.
- Assim que chegarmos ao bote, estarás livre. Poderás regressar para junto do teu pai.
- E a tua promessa de nos poupares, se a cidadela cair?
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- Tens a minha palavra.
Ajax olhou-o com suspeita, e depois acenou, como se estivesse satisfeito. Rodeou a mesa e sentou-se na cadeira que o pai normalmente ocupava. Entrelaçou os dedos,
formando um apoio para o queixo enquanto apreciava os esforços de Minúcio e dos dois guarda-costas para abrirem as arcas do tesouro.
Vitélio pegou na caixa e encaminhou-se para perto da lareira. Pousou-a, e sentou-se. Pegou em dois pedaços de madeira da pilha próxima e colocou-os sobre as brasas,
que atiçou até o fogo pegar e produzir luz suficiente para conseguir ler. Então abriu a caixa, pegou num dos rolos e examinou o estojo de cabedal que o protegia.
Havia ali alguma coisa escrita, quase desaparecida, pelo que inclinou a mão para tentar ver melhor. Como esperava, era grego, e enquanto traduzia para si mesmo,
a sua excitação aumentava até um ponto quase impossível de aguentar. Os dedos tremiam-lhe quando retirou o manuscrito de dentro da bolsa. As profecias estavam escritas
em belas pinceladas vermelhas, no melhor pergaminho que alguma vez vira. Era quase tão suave como a pele de um bebé, e viu-se obrigado a reprimir um leve arrepio
de horror quando lhe ocorreu a comparação. Abriu o pergaminho, esticando-o entre as pegas, e passou o olhar sobre o texto em que se descrevia o futuro de Roma, ano
a ano. Os olhos brilharam-lhe quando reparou nas referências a um desastre militar nas florestas da Germânia, à ascensão de um jovem e louco príncipe que se faria
tratar como um deus, à sua sucessão por um tonto aleijado... Prosseguiu, sôfrego, os olhos saltando de linha em linha, até que encontrou o que procurava e as mãos
ficaram imóveis. Leu a passagem devagar, uma e outra vez, para ter a certeza, e sentiu o fogo da ambição a percorrer-lhe as veias quando enunciou a meia-voz.
Quando o último dos Cláudiospela sua própria mão tombar
Roma será daquele que possui o signo do arco para caçar...
- Senhor, o que se passa? - Perguntou um dos guarda-costas.
- Nada. - Retorquiu, sem sequer se virar. - Não é nada.
O homem olhou para o aristocrata por um momento, depois encolheu os ombros e dirigiu novamente a atenção para as arcas espalhadas pela sala. Todas as que ele e os
outros dois romanos tinham aberto estavam repletas de ouro, prata e, por vezes, pedras preciosas. Havia ali riqueza suficiente para comprar qualquer das melhores
casas de Roma e recheá-la com os maiores luxos que um homem pudesse conceber. Porém, enquanto os abafados sons de contentamento e celebração se espalhavam pela sala,
Vitélio não conseguia deixar de sorrir com puro desprezo. Todo o ouro do mundo pouco representava quando comparado com o pergaminho que guardava ao colo.
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Enrolou apressadamente o manuscrito, saboreando a certeza de que era um dos eleitos do destino. Mais tarde, quando estivesse a salvo, leria o resto das profecias
num ritmo mais pausado. Colocou cuidadosamente o escrito no seu estojo de cabedal, fechou a tampa e meteu o pequeno cofre debaixo do braço, após o que se levantou.
- É hora de partirmos.
Minúcio e os guarda-costas apressaram-se a guardar umas últimas moedas e jóias nas respectivas bolsas e mochilas. Quando o centurião se preparava para arrancar o
prisioneiro do cadeirão do pai, ouviu-se um alarido no exterior, por baixo da janela.
Por um breve momento, os quatro romanos ficaram imóveis, enquanto a berraria subia de tom. Foi Minúcio o primeiro a romper o encanto, atravessando a sala até à janela;
com toda a cautela, desapertou os ferrolhos e entreabriu as portadas. Lá em baixo, o pátio fervilhava de homens, alguns com tochas erguidas ao alto. Ouvia-se o barulho
de rodas sobre o empedrado, e depressa se viu uma carroça a entrar pelo portão. À medida que o veículo descrevia um círculo, os piratas abriam alas; parou quando
ficou com a frente virada de novo para o portão. Um dos homens com tochas gritou algumas ordens, o que fez com que os outros se dirigissem à porta lateral do torreão
da entrada, a abrissem e entrassem. Depressa reapareceram, empunhando dardos, arcos e flechas, o que fez com que Minúcio compreendesse que o arsenal dos piratas
se situava por baixo das paredes do pátio. As armas foram colocadas na carroça, e os homens foram buscar mais.
- O que se passa? - Perguntou Vitélio, num sussurro.
- Estão a carregar uma carroça. - Respondeu Minúcio. - Parece que se preparam para enfrentar os fuzileiros com todas as armas de que dispõem.
- Porra... - Vitélio cerrou os punhos, frustrado. - Não podemos fazer nada. Temos de esperar até que o pátio fique vazio. A não ser que haja outra saída.
Cuidado!
Minúcio rodou mesmo a tempo de ver Ajax a tentar alcançar a porta. Mas o aviso de Vitélio fez com que Trébio empunhasse a espada e se interpusesse no caminho do
jovem com um salto. Os olhos do pirata semi-cerraram-se, enquanto ele calculava rapidamente as suas hipóteses contra o romano. A hesitação foi suficientemente longa
para permitir a Minúcio alcançá-lo e derrubá-lo com uma pancada por trás do joelho. Com um grito de dor, Ajax rolou pelo chão.
- Olha, amigo, é melhor não voltares a tentar uma dessas. - Rosnou o centurião. - Não estava inclinado a cortar-te os tendões, mas se tiver de ser...
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Enquanto Ajax se sentava dorido contra uma das arcas de riquezas, Vitélio aproximou-se.
- Há mais alguma forma de sair daqui?
Ajax abanou a cabeça.
- Só pelas arcadas. Dos outros lados, só há falésias.
- E não podemos descê-las?
- Não. São verticais. No escuro, ainda por cima, seria uma loucura tentá-lo.
- Bom, já falta pouco para deixar de estar escuro. - Interveio Minúcio. - E assim que nascer o dia, o prefeito há-de ir ver do nosso prisioneiro. E nessa
altura estaremos completamente na merda.
- Obrigadinho por esse resumo tão eloquente da nossa delicada situação. - Foi a fria resposta de Vitélio. Os guardas trocaram um olhar de espanto, que não
escapou à atenção do tribuno. - Vocês os dois não vieram connosco para nos animar com comentários. Vigiem-no, enquanto eu penso.
Dirigiu-se à janela e espreitou cautelosamente. No pátio, os piratas continuavam a carregar a carroça com armas. À velocidade a que o faziam, depressa ela estaria
cheia, e o pátio ficaria deserto, o que permitiria ao tribuno e aos seus homens abandonar a cidadela e regressar à trirreme antes da alvorada. Deixou-se ficar imóvel
e em silêncio, mantendo a caixa com os pergaminhos junto ao corpo. Os outros homens tinham-se sentado junto a Ajax, e um deles matava o tempo fazendo estalar os
nós dos dedos, num ritmo que depressa irritou Minúcio.
Espetou um dedo no peito do homem, avisando-o.
- Pára com isso.
- Porquê?
Minúcio olhou-o espantado, e depois furioso.
- Vais parar porque um centurião te manda parar, soldado.
- Não sou soldado coisa nenhuma. - As narinas de Trébio incharam. - E tu já não és nenhuma merda de nenhum centurião. Pelo menos, não hás-de ser quando esta
história acabar.
Vitélio virou-se para a fonte da perturbação.
- Calados, os dois. Querem ver se nos matam?
Minúcio indicou o outro com um aceno.
- Que é que ele quis dizer, "quando esta história acabar"?
- Nada. Ignora-o. Só está a armar-se em parvo.
- Não foi isso que me pareceu. - Minúcio levantou-se lentamente e deu um passo atrás, com a mão no punho da espada. Mas antes que pudesse dizer outra palavra,
ouviu-se um grito no pátio, o estalar de um chicote, e as rodas da carroça começaram a rolar sobre as pedras.
364
- Vão-se embora! - Vitélio espreitou pela janela. De facto, a parte de trás da carroça desaparecia na escuridão para lá do portão; no entanto, os homens no
pátio não a seguiram, e encostaram-se às paredes, como que à espera de algo. Alguns até se agacharam por baixo de uma das tochas que tinham colocado num suporte
na parede, e começaram imediatamente a jogar aos dados.
- Mas do que é que eles estão à espera? - Interrogou-se Vitélio em voz baixa. - Ponham-se a andar, cabrões...
Porém, os piratas deixaram-se ficar no pátio. Continuaram à espera, e o têmpo pareceu esticar, tornando-se uma cadeia infindável de frustração e fazendo crescer
o perigo para os romanos que esperavam na sala da torre.
Minúcio deu um murro na palma da própria mão.
- Senhor, temos de fazer qualquer coisa. Se ficarmos aqui, é como se já estivéssemos mortos.
- De uma maneira ou de outra... - Concedeu Vitélio. - Mas porque é que eles não se mexem?
O ruído da carroça anunciou o seu regresso, e os homens no pátio imediatamente se puseram de pé e se aproximaram quando o veículo entrou. Estava repleto de feridos,
tratados à pressa, que foram retirados e levados para as caves. Assim que a carroça ficou vazia, os homens começaram a enchê-la com mais armas retiradas dos depósitos.
Vitélio olhou para o céu, e sentiu o coração apertar-se. Um tímido fulgor via-se no céu a leste, definido pela silhueta negra das montanhas opostas à baía.
- Oh, não...
Minúcio voltou-se para ele.
- Senhor? O que se passa?
- Estamos prestes a ficar sem tempo. O dia começa a nascer.
- Então, temos de fazer alguma coisa, senhor. Agora mesmo!
- O que sugeres, centurião?
Depois de uma brevíssima hesitação, Minúcio continuou em tom menos exaltado.
- As falésias. Temos de arriscar.
- Ouviste o que ele disse. Impossível.
- Temos de tentar. Mande um dos homens ao outro lado, ver como são.
- Não vale a pena. Pelo que o Ajax disse...
- O Ajax podia muito bem estar a mentir, senhor. Não podemos confiar nele. Ao menos, envie um homem para verificar.
Vitélio franziu o cenho, irritado, e voltou a espreitar lá para fora. O céu estava a clarear, sem dúvida. Não havia tempo a perder. Pousou a caixa
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dos pergaminhos na mesa e enfrentou os homens.
- Muito bem. Irei verificar pessoalmente. - À porta, hesitou, e olhou sobre o ombro. - Trébio, talvez seja melhor vires comigo, para o caso de encontrar alguém
pelo caminho.
- Sim, senhor.
Vitélio dirigiu-se então a Minúcio.
- Mantém o prisioneiro em silêncio e afasta-te da janela. Não nos demoraremos. Quando voltarmos, bateremos duas vezes, de forma a saberes que somos nós.
Depois de a porta se fechar, Minúcio aguardou algum tempo, até que os sons dos passos dos outros homens se desvaneceram, e então virou-se para o outro guarda e sorriu.
- Estou curioso quanto a estes pergaminhos. Não estás?
Silo encolheu os ombros.
- Mais ou menos.
Minúcio olhou para a caixa e cofiou o queixo.
- Há mais qualquer coisa nesta história. Tem de haver. Talvez alguma coisa sobre a caixa. Qualquer coisa escondida nela. - Fez uma careta quando se inclinou
sobre a caixa e reparou numa marca na tampa. - O que é isto?
O outro homem aproximou-se e olhou para o ponto indicado pelo centurião.
- Não faço ideia. Parece-me só uma marca de uma pancada ou de um corte.
- Não. - Minúcio deu um passo ao lado, deixando espaço para o outro se aproximar mais. À medida que ele se inclinava, o centurião agarrou firmemente no punho
da espada. - Vê lá com cuidado.
- O quê? Não vejo nada... - E começou a endireitar-se.
Minúcio puxou da espada, fê-la descrever um arco e atingiu ferozmente o pescoço do homem. O golpe fez a cabeça cair para o lado, depois de cortar pele, músculo e
espinha. Minúcio recuperou a arma, pronto a desferir novo golpe. O sangue jorrava do pescoço de Silo, e este, com um último olhar de surpresa para o centurião, tombou
para o soalho, onde uma poça de sangue começou a formar-se em redor do corpo que, depois de um último tremor, ficou imóvel.
? ? ?
O jovem pirata tinha razão, reflectiu Vitélio, desesperado, enquanto voltava com Trébio para a torre e subia silenciosamente as escadas, a caminho dos aposentos
de Telémaco. Tinham-se esgueirado junto à base da torre e
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espreitado pela face da falésia, onde só tinham conseguido ouvir o som do mar a esmagar-se de encontro aos penedos, lá muito em baixo. Apesar de ainda estar muito
escuro, tinha-se tornado evidente que por aquele lado não conseguiriam escapar. Tinham encontrado um local em que a escarpa parecia ter uma inclinação ligeiramente
mais suave, e Vitélio tinha mandado Trébio descer, para ver até onde se podia ir. Mas depois de descer a custo pouco mais de cinco metros, o homem tinha chegado
a uma face vertical, e tinha tido de regressar ao cimo.
Estavam portanto presos na cidadela, enquanto o inimigo ocupava o pátio.
Com o dia a nascer, as hipóteses de regressar ao campo antes que a falta de Ajax fosse notada eram cada vez mais remotas. Tinha sido sempre uma aposta arriscada,
considerou Vitélio, mas os ganhos possíveis eram elevados, e isso significava que era preciso enfrentar as probabilidades. Porém, agora que se via encurralado, desejava
ardentemente nunca ter ouvido falar dos pergaminhos.
Chegaram ao patamar e dirigiram-se à porta em silêncio. Vitélio ergueu o punho e bateu com os nós dos dedos nas toscas tábuas. Em seguida abriu o ferrolho, empurrou
devagar a porta e entrou na sala debilmente iluminada. Ajax estava outra vez sentado à mesa, e olhou para ele com um sorriso sardónico. Sentindo-se cada vez mais
desesperado, Vitélio não conseguiu evitar que uma vaga de fúria o inundasse, perante a expressão do jovem.
- Do que é que te estás a rir? Onde está...
Ouviu-se um som surdo, e um gemido de Trébio. Vitélio virou-se instantaneamente, vendo uma expressão de intensa surpresa na face do guarda-costas. Os dois homens
olharam para a ponta ensanguentada de uma espada que saía do peito do soldado. Então Trébio foi empurrado, entrando em convulsões quando a lâmina desapareceu do
seu peito, deixando no seu lugar uma ferida horrenda e um buraco na túnica. O tecido depressa começou a ganhar um novo tom escarlate, escuro. Com uma nova convulsão,
Trébio caiu de joelhos. Vitélio olhou para cima e deparou com o centurião Minúcio a emergir das sombras junto à porta, a espada ensanguentada nas mãos. A cabeça
de Trébio descaiu, e os seus olhos fixaram-se em Minúcio, sem compreender. Então o olhar do homem perdeu o brilho, e ele tombou para o lado.
Vitélio hesitou demasiado antes de levar a mão à espada que lhe pendia do cinto, o que permitiu a Minúcio avançar e apontar-lhe a arma à garganta.
- Nem pensar! Mantenha os dedos longe da espada.
Ajax levantou-se e aproximou-se; Vitélio apercebeu-se de que também ele empunhava uma espada. Não tinha hipóteses de se safar daquela
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situação, pelo que deixou descair a mão. Encarou Minúcio, furioso.
- O que significa esta traição?
Minúcio sorriu.
- Vá lá. Um tipo com uma mente como a sua não deve ter dificuldade em perceber a situação.
- Do que é que estás a falar? O que...
- Calado, tribuno. - Minúcio não afastou o olhar de Vitélio enquanto se dirigia a Ajax. - Vai buscar uns homens. E manda avisar o teu pai.
O pirata anuiu e deixou a sala apressadamente; o som dos seus passos pelas escadas foi claramente audível.
Vitélio olhou para o centurião com olhos semicerrados, avaliando a situação.
- O que é que o Ajax te prometeu? Dinheiro? A fuga? Não me digas que caíste nessa?
- Não. - Minúcio riu. - De qualquer maneira, já recebi dinheiro mais do que suficiente do pai dele...
- Do pai? - Vitélio franziu a testa, e então a verdade atingiu-o como se fosse uma pedrada no crânio. Os olhos dele esbugalharam-se, e apontou um dedo ao
centurião. - O traidor. O tipo que tem denunciado aos piratas todos os movimentos da frota... Tu?
- Eu.
- Mas porquê?
- Você mesmo o disse. A minha passagem à reserva está próxima. Nos últimos anos, comecei a pensar nisso. Tinha umas economias, o suficiente para uma reforma
quase confortável. Mas porquê contentar-me com o conforto, quando podia pensar no luxo? Portanto, fiz um acordo com o Telémaco, e no último ano passei-lhe várias
informações. Agora já tenho o suficiente para passar o resto da vida sem preocupações. E agora deu-me a possibilidade de angariar mais algum. Imagino que o Telémaco
não deixará de ficar grato ao homem que lhe devolveu o filho. E ao mesmo tempo ainda lhe ofereceu um refém de elevada linhagem.
- Sacana...
Minúcio riu e abanou a cabeça.
- Não se finja indignado, tribuno. Porque é que está aqui, afinal? Não me parece que seja por integridade, e por querer servir lealmente o Império. Aqueles
pergaminhos, sejam lá o que forem, não iam propriamente ser usados para o bem do Imperador, pois não?
- Não, não para o bem do actual Imperador. - Os lábios de Vitélio torceram-se num sorriso. - Pronto, Minúcio, qual é o teu preço?
- Preço?
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- Para me tirares daqui.
- Não vamos sair daqui. É tarde de mais. Daqui a pouco o Sol nasce, e já não havia qualquer possibilidade de regressarmos ao campo. E se ficássemos aqui,
os piratas acabavam por nos encontrar. Portanto, cheguei à conclusão de que era o momento de abandonar o seu serviço.
Ouviram Ajax a dar ordens no pátio, e Vitélio humedeceu nervosamente os lábios e aproximou-se de Minúcio.
- Ouve, ainda podemos chegar a um acordo.
Minúcio recuou um passo e ergueu a espada.
- Mantenha-se longe de mim!
- Escuta-me! Posso fazer-te rico, muito mais do que podes imaginar.
O som pesado de passos a aproximarem-se na escada fez com que ambos olhassem para a porta, e Minúcio abanou a cabeça.
- Lamento, tribuno, mas não haverá negociações. O seu tempo esgotou-se.
A porta abriu-se de rompante, e Ajax entrou na sala acompanhado por vários piratas, de espadas em riste, prontos a atacar. Ajax empurrou Vitélio, fazendo-o recuar
até ao canto do quarto e cair sobre a cama. Depois deu uma ordem, e dois piratas passaram a vigiar o romano.
Ajax dirigiu-se então a Minúcio.
- Já mandei chamar o meu pai. Em breve estará connosco. Entretanto, entrega-me a tua espada.
- O quê?
- Larga a espada e põe-te ali ao pé da mesa, com as mãos na cabeça, onde as possamos ver bem.
- Mas eu estou do teu lado. Já to disse.
- Veremos. Por agora, larga a espada.
Minúcio abanou a cabeça, e Ajax avançou para ele, de dedo em
riste.
- Larga-a! Ou têm de ser os meus homens a obrigar-te?
Os lábios de Minúcio cerraram-se, numa expressão amarga. Então lançou a espada aos pés de Ajax, passou com brusquidão por um dos piratas e foi colocar-se junto à
mesa, com as mãos erguidas.
- Pronto! Satisfeito? Porque não me parece que o Telémaco fique contente quando vir como fui tratado.
- Eu trato do meu pai. - Contrapôs Ajax, numa voz calma e ameaçadora. - E se estiveres a mentir, garanto-te desde já uma morte lenta e dolorosa.
Ouviu-se uma risada vinda da outra ponta do quarto, enquanto Vitélio se sentava e recostava contra o canto.
369
- Bem, centurião, parece-me que estás tão enterrado na merda como eu.
- Não me parece, tribuno. Vais ver. Assim que o Telémaco chegar.
- Calados! - Gritou Ajax. - Os dois.
Esperaram em silêncio, debaixo da apertada vigilância dos piratas, enquanto lá fora a luz cinzenta da alvorada ganhava terreno à escuridão. À distância, conseguiam
ouvir os sons regulares do funcionamento dos onagros romanos, enquanto ali mais perto, no pátio, continuava a azáfama em torno da carroça. Quando escutaram finalmente
o som de alguém a subir as escadas, o céu lá fora já mostrava os tons rosados da manhã que despontava. Os passos aproximaram-se ao longo do corredor, e Telémaco
surgiu na portada, os olhos a vasculharem todos os recantos do quarto e fixando-se imediatamente em Vitélio, primeiro, e depois em Minúcio. Um ar de surpresa surgiu-lhe
na face.
- Centurião? O que fazes aqui?
- Não tive outro remédio. O teu rapaz foi feito prisioneiro, e ali o tribuno quis usá-lo para entrar na cidadela. A minha escolha era entre morrer e ajudá-lo.
Portanto, tive de colaborar. Quando cá chegámos, aproveitei a primeira oportunidade para libertar o teu filho e inverter a situação.
Telémaco fez-lhe um olhar céptico, e depois lançou uma interrogação silenciosa ao filho, que anuiu.
- Estou a ver... Bem, não escolheste de facto a melhor ocasião para pôr fim ao nosso pequeno arranjo.
- Pôr fim? - Inquiriu Minúcio, ansioso. - O que é que queres
dizer?
- Ser-te-ia difícil regressar à frota romana nesta altura sem despertar suspeitas. E aliás, como deves ter reparado, o teu lado está prestes a atacar a cidadela.
Como é que pensas que eles vão reagir, se te descobrirem aqui, entre o inimigo? Já não tens utilidade para mim, centurião. Mas não vou prejudicar-te. Podes lutar
ao lado dos meus homens, se quiseres, e tentar recuperar alguma da honra que perdeste quando traíste os teus.
- Isso não é necessário! - Minúcio avançou, mas um dos piratas interpôs-se imediatamente com ar ameaçador, e o centurião ergueu as mãos para mostrar que não
pretendia atacar o chefe dos piratas. - Telémaco, há um bote escondido na base das falésias. Tem tamanho suficiente para te levar a ti, ao teu filho, alguns homens
e umas peças mais valiosas.
- Lançou um olhar cheio de significado às arcas espalhadas pelo quarto e às riquezas que elas encerravam. - O barco não se vê do mar nem do cimo das falésias.
Podemos esconder-nos nele, esperar pela noite e fugir com algum do teu tesouro. Podes recomeçar noutro sítio.
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Minúcio parecia desesperado, e Telémaco olhou-o com um misto de pena e repugnância.
- Ainda não chegámos a esse ponto. Por agora, vou enfrentar os fuzileiros, e abater os primeiros que se atreverem a espetar o nariz para lá do que resta das
minhas muralhas. Esse bote de que falas ficará para último recurso. Quando chegar o momento, usá-lo-emos, e levaremos parte do tesouro. - O chefe dos piratas voltou-se
então para o tribuno. - Foi por isso que vieste? Para me roubares o tesouro?
- Não, ele veio por causa dos pergaminhos. - Interrompeu Minúcio, apontando para a caixa sobre a mesa. - Naquela caixa. Era tudo o que ele queria.
- Estou certo disso. - Respondeu Telémaco calmamente, voltando a encarar o tribuno. - Para quem trabalhas? Já me encontrei com o agente enviado pelos Libertadores.
Portanto, tu vens do Imperador? Ou estás por conta própria?
Vitélio empertigou-se.
- Sirvo o Imperador Cláudio! Sou o seu agente mais precioso. Se me suceder alguma coisa, podes ter a certeza de que o Imperador te dará caça e te abaterá
como um cão.
- Nesse caso, deve estar disposto a pagar por ti um belo resgate.
- Ponderou Telémaco.
O desespero relampejou no rosto do tribuno.
- Podes estar certo disso!
- Então pode ser que nos sejas útil... - Telémaco coçou o queixo por momentos, e preparava-se para voltar a falar quando se ouviu o estridente som de uma
trombeta.
Minúcio virou-se na direcção da origem do som, esforçando-se por distinguir as notas que se seguiram. Eram mais distantes e não tão estridentes, mas, com um arrepio
de medo, reconheceu-as.
- São trombetas romanas! Estão a iniciar o assalto!
Telémaco deu algumas ordens rápidas aos seus homens. Imediatamente dois dos piratas embainharam as espadas, pegaram em Vitélio e levaram-no. O tribuno estava pálido
enquanto era empurrado pelo quarto e pelas escadas abaixo.
- Pai, o que lhe vais fazer? - Quis saber Ajax, falando em grego.
- Ainda não sei. Pode vir a ter alguma utilidade.
Ajax agarrou o braço do pai e prosseguiu.
- Se sobrevivermos a este ataque, deixa-me matá-lo.
- Matá-lo? Matar um refém valioso?
- Pai, ele torturou-me. Humilhou-me. Fez-me contar-lhe tudo acerca dos pergaminhos. Exijo a minha vingança... - Suplicou Ajax.
371
- Mais tarde. Agora, temos de ir para as muralhas. Vamos! Romano, vem connosco.
Telémaco abandonou o quarto, seguido por Ajax. Só Minúcio se deixou ficar, na companhia dos cadáveres dos guarda-costas de Vitélio. Deitou um último olhar ao tesouro
e abanou a cabeça com tristeza.
- Oh, Pórcia... Em que raio de história me vim meter?
Então soltou um grito angustiado, pegou na espada e seguiu os dois
piratas.
XLII
- Desapareceu? O que é que queres dizer com isso? - Indagou Vespasiano.
O oficial do estado-maior abanava a cabeça.
- Não sei, senhor. Só sei que não está lá. Nem o centurião Minúcio. Nem as sentinelas.
- Foram-se todos?
- Sim, senhor. - Respondeu o tribuno, sem encontrar forma de se justificar.
Vespasiano lançou-lhe um olhar assassino, e depois explodiu.
- Impossível! Que raio é que se está a passar por aqui? Porra! Vou ter de ver isso com os meus próprios olhos.
Deixou a tenda do estado-maior de supetão, enfrentando a luz cinzenta que precedia o alvorecer e dirigindo-se a passos largos através do campo para os navios que
estavam na praia. Quando se aproximou da trirreme, deu de caras com um magote de mirones à beira da água, que assistiam à agitação evidente a bordo do navio, nessa
altura passado a pente fino por algumas dezenas de fuzileiros e um punhado de oficiais, em busca de quaisquer sinais do prisioneiro e do centurião que recebera ordens
para o vigiar pessoalmente.
- Saiam-me da frente! - Avisou Vespasiano, e a pequena multidão apressou-se a abrir alas para que o prefeito passasse. Subiu até meio da prancha de embarque
e virou-se para eles, irado. - Deixem-se de estar aí feitos basbaques, tudo para o campo e já!
Saltou para o convés e aterrou com estrondo, o que fez com que os homens a bordo se apercebessem da sua presença e se pusessem imediatamente em sentido. O centurião
Macro estava junto à escotilha de vante a receber informações dos seus homens, e foi para lá que o prefeito se dirigiu de imediato.
- Então? O que é que se está a passar, centurião?
Macro saudou o superior antes de responder.
373
- Senhor, o prisioneiro fugiu.
- Já sei. Explica-te. Ele estava à tua guarda.
- Sim, senhor. - Macro prosseguiu de forma crispada. - Dei ordens ao centurião Minúcio para que o vigiasse durante a noite. Deixei bem claro que Ajax devia
ser observado de perto, e que nada de mal lhe devia suceder. Foram colocados dois homens a guardar a entrada do navio, senhor. Não devia ter havido nenhum problema.
- Pois, mas a verdade é que também desapareceram os dois.
- Vespasiano abanou a cabeça. - Belo trabalho, centurião.
Macro não respondeu.
- Quando é que te apercebeste deste desastre?
- Mesmo antes da alvorada, senhor. Vim com o centurião Cato para substituir Minúcio e os seus homens, e para recolher o prisioneiro. Assim que vimos que as
sentinelas não estavam no seu posto, percebemos que havia alguma coisa errada.
- Muito perspicazes. E onde anda o Cato agora?
- Na coberta, senhor. Onde estava o prisioneiro.
- Mostra-me.
Macro foi à frente, entrando pela escotilha e descendo as escadas, encolhendo a cabeça para não embater nas pesadas vigas. Na penumbra, os dois oficiais piscaram
os olhos tentando adaptar-se, e Vespasiano não evitou torcer o nariz perante o odor que se soltava das profundezas do navio. No convés o cheiro já era horrível,
mas ali em baixo era insuportável, e o prefeito interrogou-se sobre como poderiam os homens trabalhar naquelas condições. Mais à frente havia uma área iluminada,
sob uma grelha no convés, e era ali que se encontrava Cato, debruçado sobre uma das imensas tábuas que constituíam o cavername da birreme.
- Cato! - Chamou Macro. - Está aqui o prefeito.
O jovem pôs-se rapidamente de pé e em sentido, embora a cabeça se inclinasse para a frente, para evitar embater no tecto. Trocou uma saudação militar com o prefeito,
que se pôs a perscrutar o acanhado compartimento.
- Era aqui que o prisioneiro era mantido?
- Sim, senhor. Repare nisto. - Cato apontou para um aro de ferro, no chão. Ao lado, via-se um prego. - Alguém tentou fazer uma cama além. - Assinalou uma
pilha de cabos e panos de vela no outro lado do compartimento. - Era ali que devia estar o centurião Minúcio.
- Estou a ver. Então, o que se passou?
Cato encolheu os ombros.
- Não tenho forma de o garantir, senhor.
- Seja, muito bem. - Prosseguiu Vespasiano, pacientemente. - O que é que achas que se passou?
Cato agachou-se e pegou no anel de ferro, apontando para uma zona da viga que parecia escavada, rodeada por lascas de madeira.
- Era ali que se prendia a corrente, senhor. Ele pode ter esperado que o Minúcio adormecesse e depois usado o prego para escavar a madeira e soltar o anel.
Vespasiano inspeccionou a madeira e concordou.
- E o que é que achas que aconteceu ao Minúcio?
- É difícil dizer, senhor. Até agora, não encontrei sinais de sangue.
- O prisioneiro pode tê-lo atirado pela borda fora.
Cato acenou na direcção de Macro.
- Pensámos nessa possibilidade, senhor. Podia ter feito o mesmo com as sentinelas, por isso mandei alguns homens nadarem em volta do casco. A água é límpida,
mas não encontraram quaisquer corpos. O que eu acho é que Ajax o levou com ele.
- Levar um prisioneiro? Para quê?
- Talvez Ajax precisasse dele para evitar problemas com os barcos que faziam a patrulha da baía, senhor.
Vespasiano considerou a ideia.
- Pouco provável... E se o Minúcio foi por sua própria vontade?
Macro agitou-se.
- Senhor, está a sugerir que ele deixou o prisioneiro escapar? Porque faria ele isso?
- Não. - Interrompeu Cato. - O Ajax fugiu. Senão, como é que se explica o anel? Alguém teve o trabalho de o soltar da madeira.
Vespasiano coçou o queixo.
- Talvez tenha sido deixado assim de propósito, para dar essa
ideia.
- É uma possibilidade, senhor, com efeito. - Concordou Cato.
- Mas acha que é provável?
Antes que Vespasiano pudesse retorquir, ouviu-se um grito no convés, e logo a seguir o som de botas a descer a escada da escotilha principal. Um fuzileiro meteu
a cabeça no quarto escuro e fez a saudação regulamentar, ao avistar o prefeito.
- Senhor, encontrámos as sentinelas.
Vespasiano e os dois centuriões apressaram-se a seguir o homem, saindo para o convés e dirigindo-se à proa. Os soldados estavam a ajudar dois homens a saírem do
compartimento do cabo da âncora; ao aproximarem-se,
375
Cato reparou nas marcas vermelhas e vivas nos pulsos e tornozelos dos homens, que tentavam a custo manter-se em sentido.
- O que é que vos aconteceu? - Perguntou-lhes Vespasiano com rispidez. - Façam o vosso relatório!
Os dois homens entreolharam-se nervosamente, antes de um deles, o mais velho, começar.
- Senhor, estávamos de guarda ontem à noite. Por volta da quinta hora vimos alguém a aproximar-se. Executámos o procedimento habitual, mas era o tribuno Vitélio,
senhor.
- Vitélio? Tem a certeza?
- Absoluta, como se ele estivesse aqui, senhor. O tribuno e dois outros homens. Acho queram aqueles guarda-costas dele, senhor. Bom, ele disse-nos que tinha
ordens para levar o prisioneiro. Portanto, deixámo-los passar. - Deixou cair o olhar. - E foi nessa altura que aconteceu, senhor.
- Aconteceu o quê?
- Os guarda-costas atacaram-nos. O meu camarada ficou inconsciente, e eu fui derrubado. Levaram-nos para bordo, amarraram-nos, amordaçaram-nos e atiraram-nos
para este compartimento, senhor.
- Estou a ver... E por acaso deram-vos a palavra-passe correcta?
O fuzileiro ficou atónito perante a questão.
- Bom, não, senhor. Reconheci o tribuno, portanto não vi motivo para isso.
- Centurião Macro!
- Senhor?
- Ficas encarregado do castigo para estes homens: um mês de faxina às latrinas. Pode ser que para a próxima tenham o bom senso de respeitar o protocolo quanto
às palavras-passe.
- Sim, senhor.
- Mas tratas disso depois. Agora, temos coisas mais importantes a resolver. Tu e o Cato, venham comigo.
Desceram o passadiço até à praia e dirigiram-se aos onagros, que ainda lançavam pedras na direcção da cidadela distante. Apesar de o Sol ainda não se ter erguido,
Cato apercebeu-se de que o torreão sobre a entrada da fortificação estava praticamente em ruínas, e que os destroços quase entulhavam completamente o fosso externo.
Os projécteis que partiam das linhas romanas já atingiam os edifícios antes protegidos pela muralha, e viam-se figuras minúsculas a tentar barricar a entrada da
rua que ia desembocar na zona em que as defesas estavam enfraquecidas.
- Seja qual for o plano do Vitélio, podem ter a certeza de que está relacionado com os pergaminhos. - Disse Vespasiano, enquanto percorria a praia.
376
- Senhor, acha que ele foi tentar obtê-los? - Inquiriu Cato.
- Com toda a certeza. Senão, para quê levar o Ajax? Mas antes de agirmos, temos de ter certezas. Vai à tenda dele. Entra e revista-a de alto a baixo, com
a minha autorização. Partindo do princípio de que ele não vai estar lá, vê o que encontras e depois vem ter comigo. Mais uma coisa...
- Senhor?
- O agente imperial que resgataste, o Segundo. Falei com ele. Conhece bastante bem a cidadela. Procura-o, e trá-lo contigo também. Assim que penetrarmos na
fortaleza, temos de encontrar os aposentos do Telémaco o mais depressa possível. Percebeste tudo?
- Sim, senhor.
- Macro, preciso que escolhas duas secções de fuzileiros para formarmos o nosso grupo de assalto. Os melhores que encontrares. Agora, ao trabalho, os dois!
? ? ?
Vespasiano estava à cabeça de uma densa coluna de fuzileiros quando Cato se aproximou em corrida, vindo do campo. Os onagros tinham completado o serviço, destruindo
completamente o torreão, e agora concentravam-se nas muralhas, de forma a alargar a brecha antes do assalto. As tropas escolhidas para o ataque observavam atentamente
o bombardeamento, esperando que as muralhas ruíssem completamente e que a zona por onde teriam de avançar fosse tão larga quanto possível. Por esse motivo, pouca
atenção dedicavam ao prefeito e ao pequeno grupo de fuzileiros reunido junto a ele, que incluía ainda Macro e Segundo. A experiência militar do agente imperial era
muito limitada, o que se revelava no seu pouco à-vontade com o equipamento. Enquanto se apoiava na borda do escudo, não parava de remexer no punho da espada, o que
levou Macro a agarrar-lhe o braço e a tentar sossegá-lo.
- Tenha calma.
- Calma? - Segundo virou-se para ele com uma expressão de assombro. - Quando estamos prestes a atacar aquele ninho de piratas? Já os conheço bem, sei do que
são capazes.
- Também os conheço. - Macro sorriu, tentando dar alguma confiança ao homem. - E garanto-lhe que morrem, tanto e tão bem como outros homens quaisquer. Além
disso, assim que os nossos entrarem na cidadela, só vão pensar em salvar a pele, nem se vão lembrar de nós. Tudo vai correr bem. Garanto-lho pessoalmente.
Segundo mirou-o.
- Hei-de lembrar-me disso.
377
- Sem problemas. - Macro sorriu, e depois apontou sobre o ombro do homem. - Aí vem o Cato.
O jovem tinha recolhido couraça e armas nos armazéns, formando um pacote que levava nos braços, o que não o impediu de se pôr em sentido assim que encontrou o prefeito.
- Então, centurião?
- Não estava lá, de facto. Mas encontrei isto. - Deixou tombar o equipamento para o chão e recolheu no interior da túnica um papiro dobrado e selado. - É-lhe
dirigido, senhor.
Vespasiano pegou no documento, quebrou o selo e passou rapidamente o olhar pela mensagem. Quando terminou, voltou a dobrar a carta e colocou-a por dentro da couraça
peitoral, enquanto falava calmamente.
- Parece que o Vitélio está a tentar conseguir alguma glória pessoal. Levou o Ajax e foi para a cidadela, para tentar recuperar os pergaminhos. Para o Imperador,
naturalmente.
Macro fez uma careta.
- É doido. Não tem hipótese nenhuma de o conseguir. E, aliás, pensava que ele estava ferido, senhor.
- Pois, deve ter ocorrido alguma cura milagrosa. - Vespasiano sorriu brevemente, antes de se virar para Cato. - Mais alguém viu esta carta?
- Oh, sim, senhor. Assim que disse que tinha sido autorizada uma busca à tenda do tribuno, o seu escrivão apresentou-me a carta... Na presença de várias testemunhas.
- Muito conveniente. - O sorriso de Vespasiano era agora amarelo. - Tudo indica que o nosso velho amigo tratou de manter as costas quentes, como de costume.
- Sim, senhor. - Cato deitou uma olhadela à cidadela. - Mas talvez desta vez tenha ido longe de mais.
- Não, não me parece. O Vitélio tem demasiada sorte para isso. Só espero que consigamos obter os pergaminhos antes dele.
- Senhor, e se for ele a consegui-los primeiro?
- Nesse caso, espero que o apanhemos antes que ele se ponha ao largo. Porque, se ele escapar e encontrar um local seguro para guardar os pergaminhos, pode
regressar a Roma e contar ao Narciso a história que bem lhe apetecer. E podem imaginar a reacção do secretário imperial, se nós voltarmos de mãos a abanar.
- Não preciso de imaginar o que quer que seja, senhor. Sei perfeitamente o que se passaria comigo. Seria executado.
- Portanto, nesse caso, temos de nos pôr a mexer. Centurião, prepara-te.
378
Cato pegou no equipamento e levou-o até à zona onde Macro tinha alinhado o grupo de assalto. Enquanto o centurião se equipava, ajudado pelo amigo, Vespasiano deu
ordens para que os onagros parassem o bombardeamento. Imediatamente soou uma nota, e a coluna avançou pela ponte. Mais à frente, os piratas abandonavam os refúgios
e precipitavam-se para a muralha, guarnecendo ambos os lados da brecha. Os fuzileiros avançavam em silêncio e em passo cadenciado. Assim que entraram ao alcance
das fundas, os centuriões deram ordens para os homens erguerem os escudos, o que fizeram, quase até ao nível dos olhos, embora continuassem a avaliar os movimentos
dos homens que os esperavam do outro lado da muralha.
Os primeiros projécteis partiram da cidadela, e o constante ruído dos impactos aumentou de intensidade à medida que a coluna se aproximava da muralha. Nesse momento
ouviu-se um estalido familiar, que fez com que Macro e Cato dirigissem a atenção ao que se passava na formação. De uma catapulta que os piratas tinham rapidamente
colocado em posição depois do fim do bombardeamento romano tinha saído um projéctil que se dirigia à coluna de fuzileiros. Desapareceu entre os homens, espalhando
corpos à medida que progredia. Mas o avanço da coluna não se interrompeu, e as ruínas do torreão estavam cada vez mais próximas.
Vespasiano juntou-se ao seu grupo de assalto. Tinha-se livrado da capa, e trazia um escudo, cujo peso avaliava.
- Um pouco menos pesado do que um escudo de legionário, parece-me. - Sorriu. - Pronto, centurião Cato?
- Sim, senhor. Praticamente. - O jovem acabou de apertar o cinturão da espada, assegurando-se de que estava numa posição confortável, e que o punho era facilmente
alcançável. Depois enfiou a protecção de feltro na cabeça, colocou o capacete e apertou as correias. Pegou no escudo e inspirou profundamente. - Pronto.
Vespasiano virou-se para a cidadela.
- Então, vamos.
XLIII
Arrancaram em corrida ligeira, o equipamento a tilintar e as botas a esmagarem os grãos de areia. Vespasiano liderava o grupo, e manteve um ritmo constante de forma
a assegurar que, quando chegassem à cidadela, não estavam já esgotados. De qualquer maneira, a força principal ainda teria de atravessar a brecha nas muralhas, e
o grupo do prefeito teria de esperar até que o caminho ficasse desimpedido e pudesse prosseguir na tentativa de alcançar os aposentos de Telémaco e recuperar os
pergaminhos.
Enquanto avançavam pelo istmo rochoso, Cato olhou para a frente e viu que os fuzileiros já tinham progredido até ao fosso. A coluna interrompera a marcha enquanto
a primeira centúria fazia caminho por entre o monte de entulho que era o que restava do torreão de protecção aos portões. À sua frente, e dos dois flancos, os piratas
usavam arcos e fundas, e lançavam dardos e até pedras contra as compactas fileiras romanas. Enquanto observava, Cato viu o centurião que comandava a vanguarda ser
abatido, o capacete com a crista vermelha a desaparecer de vista no meio da confusão de corpos e couraças, ao tentar abrir caminho por entre os destroços que enchiam
o fosso. Outros homens foram mortos, mas os sobreviventes continuaram a avançar, tentando desesperadamente atravessar a zona flagelada e carregar sobre a linha de
piratas que os esperava do outro lado.
A segunda centúria estava a começar a avançar sobre os destroços quando o grupo de Vespasiano alcançou a retaguarda da coluna. O prefeito lançou uma ordem para que
os soldados abrissem caminho, e levou os seus homens até mais próximo da muralha. Deteve-se no espaço por trás da centúria que seria a seguinte a avançar para a
brecha. À sua frente, a segunda vaga de fuzileiros estava a sofrer tantas baixas como a primeira, e a sua progressão era ainda mais difícil, devido aos corpos espalhados
pelo caminho.
- Cuidado! - Gritou alguém à direita de Cato, e este mal teve tempo de se virar e ver como um projéctil pesado atingia a coluna,
380
derrubando vários fuzileiros até se deter. O centurião notou que as faces dos soldados em redor mostravam expressões fúnebres, e que alguns apresentavam evidentes
sinais do medo que lhes fazia nós no estômago, enquanto aguardavam pela sua vez de avançar. Na frente, os homens da segunda centúria vacilavam. Vários deles tinham-se
abrigado por trás dos escudos, lançando-se pelo solo e recusando-se a avançar. Os outros tinham, quase por instinto, refreado a progressão, embora isso lhes diminuísse
as hipóteses de sobrevivência; e agora começavam mesmo a recuar, afastando-se da brecha, mantendo os escudos ao alto.
Vespasiano apercebeu-se de imediato da gravidade da situação; virando a cabeça, gritou a toda a coluna.
- À minha ordem... Todos para a frente!
Cato e Macro, bem como todos os soldados da coluna, agarraram com mais força ainda as espadas e escudos. Cato reparou que Segundo, ao seu lado, tremia, mas o agente
imperial tinha a arma a postos e manteve a posição no seio do grupo de assalto do prefeito. Era claramente a primeira vez que passava por uma situação daquelas.
Cato recordava-se perfeitamente da sua primeira entrada em combate, quando não passava de um recruta inexperiente e se tinha lançado para o coração de uma povoação
germânica hostil, ao lado de um centurião Macro que lançava brados incoerentes. Desde então tinha passado por muitas batalhas, mas continuava a sentir aquele mesmo
aperto na garganta, a náusea na boca do estômago, e uma estranha euforia no espírito.
- Avançar! - Berrou Vespasiano.
A coluna saltou para a frente, devagar, enquanto a primeira fileira trepava pelo monte de entulho, dirigindo-se à brecha na muralha, que aparentava ter uns seis
metros de largo. Cato, como os homens que o rodeavam, ergueu o escudo em ângulo sobre a cabeça e procurou o melhor caminho sobre o empedrado. Este depressa cedeu
o lugar a calhaus soltos e ao entulho, quando alcançaram a beira do fosso. Enquanto progredia, o centurião via-se obrigado a manter os olhos no solo. Conseguia ouvir
os gritos e incentivos dos piratas à medida que bombardeavam a coluna com todo o tipo de projécteis, que chocavam com estrondo contra os escudos dos atacantes. Uma
seta atingiu-lhe em cheio a bossa do escudo, com um retinir metálico, e depois tombou para o chão, inutilizada. Ao redor escutava os sons que reflectiam o esforçado
avanço dos fuzileiros, as botas a tentar encontrar apoio na superfície pouco consolidada. Mas os piratas conseguiam por vezes atingir os seus alvos, e aqui e ali
homens tombavam com gemidos e gritos de dor. Estas baixas, com os cadáveres e o labirinto de setas e dardos cravados no solo, contribuíam para retardar o avanço
da força romana na direcção da brecha.
381
- Continuem! - Gritou Vespasiano, acima do barulho. - Avancem!
- Vamos, Cato! - Solicitou Macro, alguns passos à frente. - Não fiques para trás.
O jovem forçou-se a prosseguir, embainhando a espada de forma a auxiliar a caminhada com a mão livre. Alcançou finalmente uma zona plana. Erguendo o escudo, espreitou
e viu-se obrigado a franzir os olhos ao contemplar, no meio da poeira, as silhuetas dos homens na muralha, recortadas a negro contra o céu brilhante da alvorada.
De repente, sentiu passar próximo da cabeça algo a silvar, e um projéctil chocou contra um pedaço de muralha, arrancando um estilhaço que o feriu mesmo por baixo
do olho.
- Merda! - O golpe, e a sensação de queimadura que lhe provocou, fê-lo vacilar, mas compreendeu imediatamente que não podia parar, pelo que prosseguiu sobre
o entulho e desceu para o interior da cidadela. Lá em baixo, conseguia descortinar a linha defensiva dos piratas, através da massa humana que o precedia. Já muitos
dos fuzileiros tinham conseguido atravessar a barragem e agora precipitavam-se ao encontro do inimigo, com os escudos em baixo, e escorregando pelo declive. Do lado
de dentro do portão arruinado abria-se uma rua larga, e os piratas tinham edificado barricadas em todos os pontos de acesso ao interior da cidadela, com entulho,
peças de mobiliário e barricas. As entradas para os edifícios também tinham sido seladas com traves pregadas em cruz sobre as portas. Ao pé das barricadas já se
viam alguns fuzileiros abatidos, membros das duas primeiras centúrias que tinham conseguido sobreviver à passagem pela brecha.
- Refazer linhas! - Ordenou o prefeito. Imediatamente os centuriões e optios transmitiram as ordens e os soldados colocaram-se em posição, formando fileiras
compactas, com escudos em posição e dardos prontos para a acção.
- Os homens na muralha! - Vespasiano apontou para os piratas empoleirados nas ruínas da muralha, dos dois lados da brecha. - Derrubem-nos!
Os fuzileiros, já no interior da cidadela, viraram-se contra os piratas que ocupavam a posição superior, lançando contra eles uma chuva letal de dardos com pontas
de ferro. Os inimigos estavam concentrados num pequeno espaço, e não tiveram tempo de tentar a fuga. Dezenas tombaram de imediato, trespassados, e precipitaram-se
do alto das muralhas. Afastada a ameaça, a coluna de fuzileiros que atravessava a brecha engrossou rapidamente. Antes que se acumulassem demasiadas tropas no interior
das muralhas e se tornasse complicado manobrar, Vespasiano deu novamente ordem de avanço, e os fuzileiros progrediram na direcção do inimigo
382
abrigado por trás das suas barricadas. Os homens que ainda tinham dardos lançaram-nos contra os defensores que atulhavam as ruas, e empunharam as espadas, preparados
para o combate próximo.
Cato e Macro tinham ficado de lado, com o resto do grupo de assalto do prefeito; Vespasiano abriu caminho entre os fuzileiros para se reunir a eles.
- Segundo! Por onde?
O agente imperial olhou em redor do terreiro, e apontou para uma estreita passagem do lado direito.
- Por ali.
Vespasiano assentiu.
- Muito bem! Macro, Cato, peguem nuns homens, e limpem aquela barricada.
Os dois oficiais correram para a centúria de fuzileiros que tinha acabado de entrar na cidadela. O respectivo optio, um veterano de ar duro, entretinha-se a alinhar
as colunas como se estivesse na parada, e massacrava aos gritos um maçarico impotente.
- És uma desgraça! Aperta-me a fivela desse capacete, antes que te atire eu mesmo aos cabrões dos piratas!
- Optio! - Interrompeu Macro.
O homem virou-se e colocou-se em sentido, mal estremecendo quando uma seta lançada de detrás de uma das barricadas lhe passou junto à cabeça.
- Sim, senhor!
- Preciso de quatro secções, agora mesmo. Forma-os ali em frente daquela barricada.
- Sim, senhor! - Voltou-se para os homens, com uma enxurrada de ordens para o grupo mais próximo, que ainda se preparava para formar no interior da fortificação.
Entretanto, Macro e Cato, levantando os escudos, concentraram a sua atenção na barricada inimiga, avaliando as defesas.
- Como é que vamos fazer isto? - Perguntou Cato.
- Como de costume, entramos pelo centro e desfazemo-los.
- Dito pelo mestre das tácticas.
- Tens uma ideia melhor, espertinho?
- Não...
Com um estrondo de botas cardadas sobre as pedras, o optio trouxe os seus homens e formou-os num bloco sólido, de escudos apertados e prontos a entrar em acção.
Por trás deles, Cato conseguia ver os outros fuzileiros a atacar as barricadas inimigas, uma massa agitada de homens e armas, sob um constante bombardeamento de
pedras e pedaços de madeira,
383
projécteis trocados entre as fileiras da retaguarda quer dos piratas quer dos atacantes.
Macro aguardou que a formação estabilizasse, e em seguida levantou o braço com a espada para chamar a atenção dos homens, desviando-a da batalha cujo estrondo ecoava
nas paredes dos edifícios da praça.
- Temos de eliminar aquela barricada. É entrar a matar! Quando eles cederem, atrás deles. Nada de prisioneiros. Depois disso, podem dedicar-se ao saque à
vossa vontade!
Os soldados lançaram alguns gritos de entusiasmo perante a perspectiva, e depois prepararam-se, atentos, para a ordem seguinte.
- Em frente! - Gritou Macro, e juntou-se, com Cato, à linha da frente, enquanto a pequena formação se aproximava da barricada.
Os defensores daquele sector apreciaram o avanço com expressões mistas. Cato reparou que alguns dos homens se mostravam frios, desdenhosos, enquanto outros se agitavam
e tinham os olhos vermelhos de tanto cuspir a sua raiva. Outros ainda, poucos, pareciam estar tão aterrados como ele.
- Escudos ao alto! - Ordenou Macro, e Cato mal teve tempo de erguer o seu antes de a primeira fileira ser atingida por uma chuva de pedras. Pouco dano podiam
causar ao bater nas superfícies arredondadas dos escudos dos fuzileiros, e a barragem nem sequer conseguiu fazer abrandar o avanço da pequena formação. Quando alcançaram
a barricada, Macro ordenou-lhes que se detivessem; as pedras tinham dado lugar a estocadas de lanças e golpes de lâminas curvas das espadas dos piratas.
- Cato! Dá-me aqui uma ajuda.
Apontou para a base da barricada, onde se via um pesado baú. Na frente deste havia uma pega, que Macro agarrou depois de embainhar a espada. Cato imitou-o.
- Pronto? - Macro deitou-lhe uma olhadela rápida. - Um... Dois... Iça!
Puxaram com toda a força, fazendo a madeira raspar pelas pedras quando o baú começou a mexer-se.
- Vamos lá! - Conseguiu Macro dizer, por entre os dentes cerrados. - Puxa!
A pega soltou-se de repente do corpo maciço do baú, quase fazendo os dois centuriões espalharem-se ao comprido. Macro recuperou o equilíbrio e praguejou quando reparou,
espreitando por trás do escudo, que uma parte da frente do baú tinha cedido ao mesmo tempo que a pega. Cerrou o punho, frustrado, e procurava já outra forma de arrastar
o que restava do baú quando se ouviu um ranger e o resto da estrutura cedeu, obrigando ao colapso daquela secção da barricada improvisada.
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- Aí está! - Soltou, com voz de triunfo. - Tirem isso do caminho, e vamos a eles!
Os piratas tentaram defender-se com desespero, mas a segunda fileira de fuzileiros protegeu os homens da frente com os seus escudos, tornando infrutíferos os ataques
do inimigo. Macro e Cato arrancaram pedaços da barricada e afastaram-nos para o lado, onde outros fuzileiros os atiravam para o meio da praça, mantendo o caminho
desimpedido. Daí a pouco a barricada não passava de uma ruína que mal separava as duas forças, e Macro endireitou-se.
- Avançar! - Gritou, desembainhando a espada e pisando os destroços que ocupavam o solo. Cato imitou-o e seguiu o amigo. À sua frente via-se um mar de faces
hostis e lâminas rebrilhantes. O jovem pôs todo o seu peso por trás do escudo e lançou-se para cima de alguns dos piratas. Aterrou sobre um tipo atarracado, de peito
nu, cuja pele resplandecia de óleo e suor, uma mistura que criava um odor repelente, o qual lhe encheu as narinas, enquanto o homem tombava sob o impacto e o centurião
lhe espetava a espada no estômago. Antes que os piratas conseguissem responder, outros fuzileiros entraram pela abertura na barricada e saltaram sobre eles, usando
os escudos para os agredir e golpeando qualquer pedaço de pele exposta que passasse ao alcance das suas espadas. Apesar de tentarem a todo o custo manter a sua posição,
os piratas não estavam à altura do ímpeto dos fuzileiros pesadamente equipados. Passo a passo, foram obrigados a recuar pelas estreitas ruas por trás da barricada.
Cato viu-se de novo ao lado de Macro, e o veterano recebeu-o com um sorriso.
- Ah, isto é que é vida! Combater de novo em terra firme!
- Cuidado! - Avisou Cato, quando um dos piratas se abaixou e tentou atingir o centurião na parte inferior das pernas, por baixo do escudo.
Macro deixou cair o escudo, e a espada do outro ressoou ao bater contra o metal. No momento seguinte, manejado por Macro, o escudo subiu outra vez e foi de encontro
ao rosto do inimigo, deixando-o desacordado. Tombou para o solo e o soldado que seguia à esquerda do centurião acabou com ele, aplicando-lhe um golpe no crânio e
rachando-o como se fosse uma melancia madura.
À medida que mais dos seus iam sendo dizimados, os outros piratas começaram a bater em retirada. Daí a pouco, as fileiras de trás entraram em debandada, correndo
pela cidadela, na esperança de se abrigarem no labirinto de ruelas que a percorria. O pânico espalhou-se entre os defensores como a peste, e daí a momentos, Macro
e Cato viram-se lado a lado, de respiração pesada, a observar a fuga do último dos combatentes inimigos.
Macro olhou para os fuzileiros.
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- Não fiquem aí especados! Atrás deles!
Os centuriões deram um passo ao lado, deixando espaço para a passagem dos homens. Quando o optio apareceu por entre os restos da barricada, Cato chamou-o.
- Leva o resto dos teus homens e dá a volta por trás destes edifícios. Com um pouco de sorte, pode ser que vás dar à retaguarda de uma das outras barricadas,
e podes dar cabo deles de surpresa.
- Sim, senhor.
Quando o último dos fuzileiros se afastou a correr, foi a vez de Vespasiano se aproximar com a sua escolta.
- Bom trabalho. Agora, vamos ver se encontramos os pergaminhos. Segundo!
- Senhor? - O agente imperial avançou, e Cato reparou na marca ensanguentada que lhe corria pelo braço abaixo.
- Mostra-nos o caminho.
Segundo engoliu em seco e assentiu.
- Sim, senhor. Sigam-me.
O grupo arrancou de novo em corrida ligeira, subindo a rua na direcção da torre que dominava a cidadela. Por trás deles ouviu-se o som de uma trombeta, que foi imediatamente
abafado pelos instrumentos dos fuzileiros que ainda se dirigiam à fortaleza, apesar de estarem mais longe. Passaram pelas entradas de casas entretanto forçadas por
fuzileiros em busca de saque. Cato vislumbrou três soldados a matarem um homem que tentava defender a mulher e os filhos, num dos casebres. Porém, o grupo de Vespasiano
não se deteve quando os gritos de terror da mulher se começaram a fazer ouvir e a ecoar pela rua. Em cada cruzamento Cato espreitava para a direita e para a esquerda
e via mais fuzileiros a forçarem portas e a perseguirem homens, mulheres e crianças, e a abater sem piedade todos os que eram demasiado lentos para escapar.
- Ainda fica longe? - Quis saber Vespasiano, ofegante.
- Estamos quase lá, senhor.
De repente desembocaram num largo e quase chocaram com um punhado de piratas que avançava no sentido contrário. Os dois grupos estacaram, surpresos e silenciosos.
Então Cato soltou um urro e lançou-se sobre os inimigos de espada em riste. Os piratas avaliaram a lâmina ensanguentada e a expressão selvagem no rosto do centurião,
viraram-se e fugiram, tomando uma das ruelas que davam para o largo.
Cato perseguiu-os, mas logo parou, encostando-se ao próprio escudo para recuperar o fôlego. Apercebeu-se de que, nas suas costas, Macro tinha desatado a rir às gargalhadas.
O resto do grupo juntou-se ao centurião, e Cato pegou no escudo e regressou para junto deles, as faces coradas.
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- Qual é a piada, porra?
- Nada! - Macro abanou a cabeça e tentou parar de sorrir.
- Pois! - Interrompeu Vespasiano, irritado. - Já chega! Vamos prosseguir.
Segundo levou-os através do largo, direito a umas arcadas, por trás das quais podiam ver a torre. Na plataforma que a encimava, a equipagem da catapulta apercebera-se
já da aproximação do pequeno grupo de romanos, e tentava reorientar a arma. Os fuzileiros correram atrás do prefeito, deixando Macro e Cato na retaguarda.
- Vamos lá, meu assassino! - Riu Macro, dando um pequeno empurrão ao amigo. - Mas deixa uns tantos para mim, está bem?
Quando se aproximaram da arcada, depararam com três vultos em fuga, e um deles carregava um pequeno cofre. Cato apontou-os.
- Senhor! Veja! Telémaco e Ajax! - Chocado, reconheceu também o terceiro homem. - É o Minúcio!
- Minúcio? - Vespasiano ergueu a espada. - Apanhem-nos!
Os três homens viraram-se rapidamente e correram ao longo das
arcadas, com Vespasiano e os seus homens no seu encalço. Mas Minúcio e os dois piratas não tinham o pesado equipamento a prender-lhes os movimentos, e quando o prefeito
e o primeiro dos soldados atravessaram as arcadas, já tinham desaparecido de vista. Macro e Cato tinham acabado de chegar ao pátio quando a catapulta fez o seu disparo.
O projéctil acertou na parede por cima das arcadas e fez desabar estuque sobre os dois centuriões. Cobertos de pó e a tossir, os dois amigos apressaram-se a correr
até à base da torre.
Vespasiano olhou de relance em torno do pátio e virou-se para Segundo.
- Para onde é que eles podem ter ido? Há mais alguma saída?
- Não, senhor. Só podem estar nos armazéns lá em baixo, ou então na torre de vigia.
- Certo... - Contemplou os homens à volta, e apontou para a entrada dos armazéns, ao lado dos arcos. - Primeira secção! Por ali. Passem tudo a pente fino!
Seis fuzileiros destacaram-se e correram pelo pátio até à entrada; os seus passos ecoaram nas escadas, à medida que iam desaparecendo na escuridão. O prefeito dirigiu-se
de novo a Segundo.
- Como é que se chega à torre?
- Temos de ir à volta, senhor. Há uma porta. Depois, subir as escadas e virar à esquerda.
Vespasiano liderou o grupo até à esquina da torre, espreitou e fez sinal a todos para se aproximarem. Quando se juntaram ao pé da porta,
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levantou o ferrolho e escancarou-a, preparado para atacar quem quer que surgisse do outro lado; mas a escadaria estava vazia, pelo que ordenou aos fuzileiros que
entrassem e subissem. Já só restavam quatro homens da segunda secção. Antes que eles atingissem o meio das escadas, Cato ouviu sons de passos no interior do edifício
e compreendeu que a equipagem da catapulta se lançara contra os romanos.
Lançou-se pela porta logo a seguir a Macro e Vespasiano e, ao olhar para cima, ficou supreendido pelo clarão que se introduzia por uma abertura no cimo do edifício.
Um vulto materializou-se nas escadas, vindo da luz e brandindo uma lâmina curva que faiscou e derrubou o primeiro dos fuzileiros, que mal soltou um gemido. O homem
que se lhe seguia empurrou o corpo para o lado, ergueu o escudo, subiu em corrida os degraus seguintes e lançou o metal contra o pirata que ocupava o cimo das escadas.
O tipo desequilibrou-se, vacilou na direcção de uma janela e caiu com um grito arrepiante. Porém, antes que o fuzileiro recuperasse, um segundo pirata cravou-lhe
uma lança no dorso, atravessando a cota de malha e rasgando-lhe os órgãos vitais. Caiu no patamar, largando a espada e o escudo, tentando a todo o custo arrancar
da carne a arma que lhe tinha provocado o ferimento fatal.
Mais abaixo nas escadas, Vespasiano empurrou o homem que estava à sua frente.
- Lá para cima! Mexe-te! Ou estamos todos mortos!
Os dois fuzileiros sobreviventes avançaram sob a cobertura dos escudos até alcançarem o patamar e virarem para o corredor. Vespasiano, Segundo, Macro e Cato precipitaram-se
atrás deles, os corações a palpitar. Ao virar a esquina, Cato deparou-se com um corredor largo e comprido, iluminado por feixes de luz que provinham de aberturas
na parede da torre. Na extremidade oposta do corredor havia outras escadas que levavam ao telhado. Mas pelo meio viam-se vários piratas, atacando sem cessar os escudos
dos fuzileiros que tentavam forçar a passagem.
- Obriguem-nos a recuar! - Gritou Macro, correndo para juntar o seu peso ao dos dois soldados. As paredes amplificavam os sons dos choques metálicos, lâminas
contra lâminas, golpes que se abatiam sobre a dura superfície dos escudos. No espaço confinado, as espadas curtas dos romanos voltaram a mostrar o seu valor, provocando
rapidamente a morte a dois dos piratas, que foram pisados pelos fuzileiros no seu avanço.
No corredor, por trás dos defensores, abriu-se uma porta, e Minúcio saiu. Trazia uma sacola de cabedal apertada contra o peito e lançou um olhar desesperado aos
homens que combatiam na passagem, antes de se lançar para a escadaria que levava ao cimo da torre.
- Aquele cabrão é meu! - Berrou Macro, enquanto lançava uma
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estocada e atingia um dos piratas no pescoço. O homem caiu com uma mão agarrada à garganta, numa vã tentativa de impedir os jactos de sangue que se escapavam dos
vasos cortados. Mas enquanto tombava, ainda teve a presença de espírito para cravar profundamente a espada na virilha de Segundo. Com um grito de agonia, o agente
romano caiu por cima do pirata, obrigando a lâmina a penetrar ainda mais fundo. Deslizou contra a parede, de boca aberta. Vespasiano preparou-se para avançar para
a brecha, mas Cato deteve-o.
- Não, senhor! Permita-me!
Antes que o prefeito pudesse protestar, o centurião adiantou-se, ergueu o escudo e lançou-o contra o pirata que o enfrentava. Não havia no movimento nenhuma subtileza
técnica. Limitou-se a pôr a espada em posição e a esbarrar contra o homem, sentir o choque no antebraço e torcer o punho, puxando ao mesmo tempo a lâmina. O pirata
tombou com um grito e esparramou-se nas tábuas do soalho. A espada tilintou ao soltar-se e ele ergueu um braço, suplicando clemência. Por trás dele, os sobreviventes
recuaram, lançaram as armas por terra e renderam-se, erguendo os braços.
Vespasiano deu um toque no ombro do fuzileiro sobrevivente.
- Vigia-os! Macro!
- Senhor?
- Vê se apanhas o Minúcio.
- Será um prazer. - Macro empurrou os piratas para o lado, correu até às escadas e desapareceu por elas acima, com passos apressados.
- Cato, vem comigo. - Vespasiano manteve a espada em posição de combate, e aproximou-se da porta de onde Minúcio irrompera pouco antes. Cato espreitou sobre
o ombro do prefeito e contemplou uma divisão espaçosa. No canto mais afastado, por trás de uma grande mesa, estavam Telémaco e o filho. Aos pés de Ajax ajoelhava-se
o tribuno Vitélio, os pulsos atados, a cabeça puxada para um lado, de forma a expor a garganta à fina lâmina recurvada empunhada pelo jovem pirata.
Vespasiano entrou no quarto devagar, com Cato ao seu lado.
- Parem aí! - Avisou Telémaco. - Mais um passo, e o vosso tribuno morre.
Cato olhou de relance para o prefeito, e notou a sombra de um sorriso a passar-lhe pela face, antes que ele abrisse a boca.
- Imagino que queiras negociar.
Telémaco confirmou a intenção.
- A vida do vosso tribuno pelas nossas.
- A sério? Parece-me que me estás a confundir com outra pessoa, estou-me absolutamente nas tintas para o tribuno.
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Telémaco franziu o sobrolho.
- Estou a avisar-vos, não hesitarei em mandar o meu filho matá-lo.
- À vontade. Não passa de um traidor.
- Outro? Primeiro o Minúcio, depois aquele mercador grego, e agora então o vosso tribuno. Dá-me a sensação de que o vosso Imperador era capaz de ganhar alguma
coisa se inspirasse um pouco mais de lealdade entre o seu povo...
O silêncio imperou por momentos, enquanto Telémaco, de olhos semicerrados, tentava perceber se o prefeito estava a ser sincero. Tendo chegado a uma conclusão, pôs
a mão sobre o ombro do filho.
- Fá-lo sangrar, só um bocadinho.
Com um sorriso selvagem, Ajax golpeou o pescoço do tribuno, fazendo-o gritar; o sangue formou uma pequena linha que escorreu pela garganta de Vitélio.
- Para a próxima, ele morre. - Avisou Telémaco, com ar firme.
Vespasiano pousou o escudo e apoiou-se na borda.
- Então, força. Mata-o.
O tribuno lançou um olhar horrorizado ao prefeito, e suplicou, numa voz esganiçada.
- Por piedade...
Vespasiano encolheu ligeiramente os ombros.
- Lamento, tribuno. Gostaria de te poder ajudar. Mas sabes qual é a nossa política nestes casos. Não negociamos com piratas. Além disso, não foi para te salvar
a vida que vim cá. um precisamente pelo mesmo motivo que te pôs nessa posição.
Vitélio olhou-o assombrado, e não conseguiu mais do que murmurar.
- Sacana...
Nesse momento, Telémaco compreendeu que o prefeito estava mesmo pronto a ver Vitélio morto. Pegou num frasco de óleo de iluminação que estava sobre a mesa e lançou-o
para as chamas que ardiam na lareira. O frasco desfez-se, provocando um eclodir de labaredas assim que o fogo encontrou o novo alimento. Enquanto todos recuavam
perante a súbita vaga de calor que ocupou a sala, Telémaco pegou numa caixa com ar gasto, abriu-a, recolheu os três rolos que continha e deu três passos rápidos
na direcção da lareira, empunhando os pergaminhos. Virou-se para Vespasiano.
- Muito bem, então! As nossas vidas em troca destes manuscritos!
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Vespasiano deu um passo. Telémaco aproximou-se mais das chamas.
- Romano, não vou conseguir aguentar isto por muito tempo! O acordo é este, as nossas vidas pelos pergaminhos. Dar-nos-ás salvo-conduto. A tua palavra, já,
ou os rolos ardem!
Os dedos de Vespasiano apertavam a orla do escudo.
- Não posso deixar-te partir.
- Então perdes os pergaminhos. - Telémaco estremeceu ao sentir o calor a queimar-lhe as mãos. - Romano, é a tua última oportunidade.
Cato olhava de um para o outro, e percebeu que nenhum deles ia ceder. Por momentos, não quis acreditar que Vespasiano fosse assim tão inflexível. Mas então compreendeu.
Se o prefeito permitisse que os pergaminhos fossem destruídos, e se Vitélio fosse morto, a culpa poderia facilmente ser atribuída a este último. Afinal de contas,
tinha em seu poder uma carta do tribuno, detalhando o seu plano. Quanto a Cato, assim que Narciso soubesse que os pergaminhos se tinham transformado em cinzas, estaria
praticamente morto. E Macro partilharia esse destino, com toda a certeza...
Deu um passo à frente.
- Esperem.
Telémaco e Vespasiano viraram-se ambos para ele, e o centurião continuou, rapidamente.
- Os pergaminhos pela vida do teu filho.
- Não farei essa troca! - Vociferou Vespasiano, por entre os dentes.
- Senhor! É a única forma de conseguir os pergaminhos e o chefe dos piratas...
- O meu filho... - Ponderou Telémaco, em voz alta, antes de olhar para Ajax, o que fez Cato perceber que tinha acertado em cheio. Era aquele o ponto fraco
do líder dos piratas: o amor que tinha ao filho. O olhar de Telémaco voltou a dirigir-se a Vespasiano.
- O meu filho pelos rolos drpergaminho?
Vespasiano respondeu com o silêncio e uma expressão fria e impiedosa. Ajax virou-se para o pai.
- Não! Não o permitirei! Pai, não podes fazer isso!
- Cala-te! - Ordenou Telémaco. - Então, romano?
Vespasiano contemplou os rolos, e por fim anuiu, devagar.
- A tua palavra, romano! Exijo-a!
- Tens a minha palavra...
- Ahhh! - Telémaco soltou um grito de dor ao arrancar as mãos do alcance das chamas e lançar os pergaminhos para o chão.
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- Apanha-os! - Indicou Vespasiano, e Cato apressou-se a cumprir a ordem, pegando nos rolos e recuando com eles nos braços.
Telémaco fez um gesto na direcção do filho.
- Solta o tribuno. Liberta-o.
Ajax olhava para o pai num torpor abismado, a lâmina a tremer-lhe na mão. Então encarou Vitélio com uma expressão de ódio visceral. Por um instante, Cato esteve
certo de que o jovem ia mesmo executar o tribuno. Mas nesse momento ele inclinou-se e cortou as cordas que prendiam os pulsos de Vitélio. Assim que se sentiu livre,
este saltou para longe do pirata, juntando-se aos outros romanos. Ao ver-se a uma distância segura, pôs-se de pé, tentando reassumir alguma dignidade, e enfrentou
Vespasiano, com a respiração pesada.
- Enquanto for vivo, não me esquecerei deste momento. - Ameaçou, sem sinal defúria na voz. - E nunca o perdoarei.
- Nem eu. - Vespasiano sorriu sem vontade. - Uma oportunidade perdida, por certo.
Cato desviou o olhar da confrontação entre os dois aristocratas. Havia no quarto uma tensão extremamente perigosa, e ele queria apenas passar despercebido e não
se ver envolvido naquela questão. Enquanto apertava os pergaminhos contra o corpo, olhou para o outro lado da sala. Depois de um momento de hesitação, Telémaco tinha-se
dirigido para junto do filho, e pousara-lhe o braço sobre os ombros, num gesto quase doce. Ajax olhava para o progenitor, desesperado, ferido, os olhos repletos
de lágrimas, até que deixou cair a faca e abraçou o pai, sentindo abater-se sobre ele a dor da derrota, as humilhantes torturas que sofrera às mãos de Vitélio, e
o terrível sacrifício que o seu pai aceitara para o salvar. Com um urro de dor e o peito arfante, deixou que toda a sua amargura se derramasse sobre as dobras do
tecido que cobria os ombros do pai.
? ? ?
Ao sair para o telhado, Macro moveu-se com prudência, espreitando por trás da porta antes de saltar para a atravessar de rompante e se virar de imediato, o gládio
pronto a entrar em acção. Contudo, só estava outra pessoa no cimo da torre. Do canto mais afastado, Minúcio lançou-lhe um meio-sorriso desanimado.
- Macro. Tinha esperança de que fosses tu.
- A sério? - Macro manteve a espada em riste enquanto se aproximava lentamente do traidor.
- Sim! É que temos muito pouco tempo.
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- Errado. - Macro abanou a cabeça. - Para ti já não há tempo algum, Minúcio. Estás acabado.
- Espera! - Minúcio ergueu a mão. O punho crispava-se em torno dos cordões que fechavam a sacola de cabedal. - Está aqui uma fortuna! Pedras preciosas, ouro.
É tua!
- Minha?
- Se me ajudares a escapar.
Macro soltou uma gargalhada.
- Fugir? Estás doido. - Com a mão livre, fez um gesto abarcando toda a cidadela. Havia fuzileiros por todo o lado, entretidos a saquear onde lhes cheirasse
à mais ínfima porção das riquezas acumuladas pelos piratas.
- Daqui a pouco, todos saberão que foste tu quem os traiu ao longo de todo este tempo. Se te puserem a vista em cima, desfazem-te. Não, Minúcio, a fuga é
impossível.
- Podes esconder-me. Arranjar-me um disfarce. Levar-me daqui para fora. Se o fizeres, ficarás rico!
Macro cerrou os lábios por momentos, para combater o nojo que
sentia.
- Há algumas coisas a que nenhum homem pode sobreviver. E uma delas é ter atraiçoado os seus camaradas de armas. Portanto, pousa o saco e pega na espada.
Minúcio olhou-o, e depois deixou descair a sacola para o lado do
corpo.
- Pronto, seja, não o faças pelo dinheiro. Fá-lo pela Pórcia. Fá-lo pela tua mãe. Ela ama-me, sabes? Precisa de mim.
- Larga o saco.
- Por ela, Macro. Fá-lo por ela. Não por mim.
- Larga o saco.
- Se me acontecer alguma coisa, vai partir-se-lhe o coração.
- LARGA A MERDA DO SACO! - Macro não ficou à espera da continuação do discurso. Agachou-se e avançou para o traidor, a espada à frente.
- Espera! - Gritou Minúcio. - O que é que isso prova? Ambos sabemos que és melhor guerreiro do que eu! Não tenho hipóteses!
- Então, morre.
Minúcio largou a sacola e lançou-se de joelhos, implorando, de braços estendidos.
- Misericórdia! Pensa na tua mãe!
Macro levantou a espada, decidido a acabar com ele ali mesmo. Por um instante esteve prestes a golpear o maldito traidor, mas depois cerrou os dentes e baixou o
gládio.
- De pé!
Minúcio ergueu a vista, os olhos esbugalhados por um relampejo de esperança.
- Não vais arrepender-te disto, Macro.
- Levanta-te!
Minúcio pôs-se de pé, com um sorriso nervoso na face.
- Abençoado sejas! Sabia que eras bom tipo. Um bom filho. Nunca nos esqueceremos disto, eu e a tua mãe.
- Queres mesmo ajudar a minha mãe?
- O quê? Sim! É claro. É evidente. Amo-a.
- Muito bem. Ama-la. - Macro, com a cabeça, deu sinal de que compreendera. Aproximou-se da borda da torre e olhou lá para baixo. A muralha descia a pique
até à falésia em que estava implantada, e esta seguia com a mesma inclinação até à base, onde se viam as vagas a espumar quando chocavam contra os penhascos. Não
havia qualquer possibilidade de sobreviver a uma queda daquela altura. Endireitou-se e encarou Minúcio.
- Se a amas realmente, salta.
- O quê?
- Seja como for, vais morrer. Posso tratar disso e poupar-te a uma execução pública e humilhante. Ou então podes saltar, e prometo que darei o meu melhor
para ocultar o tipo de cabrão traiçoeiro que me saíste.
- Forçou-se a sorrir. - Faço-o apenas pela minha mãe, como decerto compreenderás.
- Não estás a falar a sério, pois não?
- Perfeitamente a sério. Bom, não temos de facto muito tempo. Daqui a pouco hão-de chegar aqui os outros, para saber o que se passou. Se ainda aqui estiveres,
entrego-te a eles, e pronto. Sabes bem o que isso quer dizer.
Minúcio mordeu o lábio, e juntou as mãos em súplica.
- Macro, imploro-te.
- Faz-nos um favor a todos, e salta.
- Eu... Eu não consigo. Tenho medo.
- Azar.
Nas escadas ecoou o som de botas. Macro acenou significativamente para a berma da torre, e lançou um olhar interrogativo. A face de Minúcio contorceu-se num esgar
de desespero, e ele abanou a cabeça.
- A escolha é tua. - Macro encolheu os ombros, recuou alguns passos e virou-se para as escadas. Quando Cato emergiu do interior, de espada pronta, saudou-o,
de mão levantada.
- Calma! Está tudo resolvido, lá em baixo?
Cato confirmou, enquanto recuperava o fôlego.
394
- Encontraram os pergaminhos?
- Sim... Onde está o Minúcio?
Macro virou-se de rompante. O traidor tinha desaparecido. Tudo o que ficara fora o saco de cabedal, abandonado junto à parede como um fardo sem importância. Olhou
para a face da torre, antes de responder.
- O Minúcio? Estava acolá agora mesmo. - Abanou a cabeça.
- Parece que o sacana do velho se resolveu a experimentar as asas...
X LIV
Seis dias depois, a esquadra estava de volta a Ravena. A princípio, quando a notícia do avistamento das velas se espalhou pelas ruas, os habitantes sentiram-se entusiasmados.
Multidões precipitaram-se para o porto, e amontoaram-se nos molhes, para saudar a frota que se aproximava. Os parentes dos marinheiros e dos soldados concentraram-se
aos portões da base naval, ansiosos por rever os seus familiares. Quando os navios se aproximaram da entrada do porto, as velas foram recolhidas, e a progressão
passou a ser feita à força de remos, através de um denso aglomerado de navios mercantes.
Os feridos tinham sido embarcados nas trirremes que lideravam o comboio naval, e estas, as maiores das embarcações, foram as primeiras a acostar, lançando cabos
de amarração que foram recolhidos pelos homens que os esperavam. Assim que as trirremes se imobilizaram, as rampas de acesso foram lançadas e começou o lento desembarque
dos feridos. Estabeleceu-se um fluxo contínuo de macas carregadas a caminho do bloco hospitalar da base, e de macas vazias ensanguentadas em sentido contrário, despachadas
à pressa para recolher novos ocupantes. Havia tantos feridos a precisar de transporte que aqueles que conseguiam andar, por pouco que fosse, foram deixados sozinhos
e tiveram de fazer o curto percurso através da base por si mesmos.
À medida que se tornava evidente a enormidade das baixas sofridas, o clima de alívio e celebração que se estabelecera na cidade desapareceu, sendo substituído pelo
desespero e por um lamento contínuo entre amigos e parentes que esperavam no exterior dos portões. Depois de cada uma das trirremes ter despejado a sua quota-parte
de feridos, afastava-se do cais e era levada pelos remadores até meio do porto, onde fundeava. Era então a vez de outros navios desembarcarem os exaustos fuzileiros
e tripulantes, que se arrastavam pela parada até chegarem às casernas, ansiosos por uma refeição quente e pela possibilidade de passarem alguns bons momentos a relaxar
nos banhos. Os que tinham família mal podiam esperar para lhe fazer saber que tinham sobrevivido, mas até que acabassem de limpar e
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arrumar o equipamento, os oficiais não lhes permitiriam a saída da base.
Os últimos a desembarcar foram os prisioneiros: longas filas de homens, mulheres e crianças, acorrentados em conjunto. Eram trazidos dos porões malcheirosos e escuros,
desciam as rampas para o cais e eram levados para um dos armazéns que iam servir de prisões temporárias, até que chegassem os agentes dos negociantes de escravos
para os inspeccionar e preparar as licitações pelos melhores lotes no leilão que se seguiria, daí a alguns dias. As receitas dessas vendas, bem como o saque obtido
na cidadela dos piratas, fariam alguns homens, sobretudo os oficiais, ricos. Outros prefeririam entregar os seus quinhões a banqueiros, tentando poupar para a reforma,
ou aumentando a sua participação nalguma associação. A maior parte dos homens, porém, preparava-se para esbanjar alegremente uma pequena fortuna em mulheres e bebida,
assim que tivesse permissão para sair da base.
Macro e Cato observavam enquanto a última leva de prisioneiros era desembarcada. No fim da linha de homens acorrentados e em mísero estado, vinha Ajax, tentando
aparentar orgulho e desafio, enquanto era conduzido a um destino duro e incerto. Tinha adoptado a mesma expressão, sem mostrar qualquer sinal de emoção, quando o
seu pai e os trierarcas sobreviventes da frota dos piratas tinham sido crucificados, pregados através dos pulsos e tornozelos antes de serem amarrados às estruturas
cruciformes e içados, no promontório oposto à cidadela. Do outro lado da baía elevavam-se grandes rolos de fumo, vindos dos fogos ateados pelos fuzileiros nas ruínas
da cidadela arrasada.
O olhar de Ajax encontrou-se com os dos dois centuriões enquanto o jovem pirata desembarcava, o que o fez hesitar um instante, e provocou em Cato a tentação de lhe
oferecer algum conforto. Mas nesse momento o fuzileiro que seguia a coluna de prisioneiros empurrou-o, e ele seguiu os outros condenados, aos trambolhões.
- Não te lembres de ter pena dele. - Avisou Macro em tom suave.
- Era um pirata. Sabia muito bem o que arriscava.
- Não estou com pena dele.
Macro sorriu. Conhecia o amigo, e não se deixava iludir de forma tão simples.
- Se o dizes. Mas lembra-te, se fôssemos nós a estar no lugar dele, duvido muito que pudéssemos contar com alguma misericórdia.
- Eu sei.
- Além disso, ele vai safar-se bem. Tem carácter para dar um guarda-costas decente, talvez mesmo um gladiador. Portanto, não te aflijas por ele.
- Não estouaflito. - Insistíu Cato, com voz firme; virou-se para
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o amigo. - Consigo, é que estou preocupado. Tem a certeza de que quer fazer isso? Vai partir-lhe o coração, como sabe.
Macro assentiu.
- O Vespasiano deu-me autorização para ficar por cá mais uns diias. Quando tudo estiver arrumado, sigo-te até Roma. Quando é que partes?
- Assim que o prefeito entregar o comando ao Décimo. Penso que está a terminar de compor as ordens para que prossiga a caça ao Rúfio Polo e ao nosso amigo
Anobarbo.
- Anobarbo?
- Sim, parece que ele e o Polo andavam a trabalhar para os Libertadores. O Anobarbo, aliás, tentou mesmo chegar a acordo com os piratas para lhes comprar
os pergaminhos. Quando vim à cidade buscar reforços, deixei ordens para que fossem detidos. Alguém os deve ter avisado, porém, e conseguiram fugir. Bom, mas assim
que o Vespasiano acabar, partimos. Os cavalos já estão selados.
- E os famosos pergaminhos?
Cato sorriu.
- O Vespasiano leva-os pessoalmente. Ao que parece, não confia em mais ninguém.
- Não o critico. Só espero que nunca se lembre de dar as costas ao
Vitélio.
- Não se preocupe com esse. - Sossegou-o Cato. - Vou mantê-lo sempre debaixo de olho.
- Faz isso, sim.
Ficaram em silêncio durante algum tempo, observando a forma como Ajax e os outros eram encaminhados para os armazéns. Então Cato virou-se para o amigo e estendeu
o braço.
- Vejo-o em Roma, então. Vá ter a casa do Vespasiano. Ele garantiu que nos albergava até obtermos uma nova colocação.
Macro apertou o antebraço do amigo.
- Não pode ser pior do que aquele ninho de ratos que alugámos da última vez.
Sorriram ambos, ao recordar os aposentos miseráveis em que tinham passado tanto tempo.
- Boa sorte, Macro.
- Boa viagem, Cato.
O jovem oficial deu um breve aceno de cabeça, virou-se e atravessou a parada em passos largos, dirigindo-se ao edifício do estado-maior. Macro deixou-se ficar a
vê-lo uns momentos, antes de se dirigir por sua vez para as casernas. Tinha ainda várias tarefas a concluir, antes de ter tempo
para sair da base e ir até Ravena, para dar à mãe as novidades. Era um fardo que lhe feria o coração e lhe pesava como se fosse uma ponta de chumbo, e preferiria
mil vezes passar um ano em faxinas a ter de enfrentar a mãe e dizer-lhe que Minúcio estava morto.
? ? ?
A escuridão já tinha tomado conta do céu quando Macro decidiu que tratara de tudo, e que podia assim ausentar-se da base pelo resto da noite. Pelo menos, esforçou-se
por se convencer disso. Tarde fora, tinha-se dedicado a tarefas cada vez menos importantes, mas sempre com um zelo exagerado, o que provocara olhares de assombro
por parte dos outros oficiais, até que ele mesmo acabara por se aperceber de que tamanha dedicação não parecia normal. Nessa altura, encarregara um optio de terminar
o trabalho, pegara na capa, na bolsa e na mochila, e tomara a direcção do porto. Ao sair pela pequena abertura lateral, viu-se rodeado por uma multidão que se acotovelava
e empurrava na tentativa de se aproximar dos grandes quadros pendurados nos portões, nos quais se podiam ler os nomes dos mortos e feridos. Olhos ansiosos percorriam
as listas, não encontravam nomes conhecidos, mas voltavam a percorrê-las, para ter a certeza, antes de virarem costas e darem graças pelo facto de um ente querido
ter escapado à mortandade. Outros corriam a lista com um sentimento fúnebre de inevitabilidade, até que encontravam aquilo que mais temiam e se abatiam, chorando
e rogando aos deuses, ou ficavam atordoados, incapazes de acreditar naquilo que liam.
Macro abriu caminho por entre a turba, tentando a todo o custo afastar-se daquela gente em agonia, mas sentindo o peso da sua própria culpa de sobrevivente e achando-se
por isso incapaz de gestos bruscos. Viu-se por fim livre da multidão, e seguiu pelo cais, caminhando com lentidão, enquanto pensava na melhor forma de dizer a Pórcia
que Minúcio estava morto. Não havia nenhuma explicação fácil. E como poderia haver? Mais difícil ainda seria explicar a forma como ele morrera. Macro queria pelo
menos poupá-la aos detalhes, mas era evidente que a traição de Minúcio não permaneceria em segredo durante muito mais tempo. Poucos homens na esquadra tinham conhecimento
de toda a história, mas muitos sabiam de algumas partes dela, e as conversas e rumores acabariam por trazer a verdade ao de cima, e levá-la aos ouvidos da sua mãe,
o que só faria aumentar a dor que a esperava.
Virou para a avenida que conduzia à parte menos abastada de Ravena, e passou por um ajuntamento de marinheiros bêbados que celebravam a derrota dos piratas. Por
momentos sentiu-se tentado a parar e
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a dizer-lhes como se passavam realmente as coisas. Como a sua liberdade reencontrada para prosseguir nas suas viagens tinha custado as vidas de centenas de homens
de valor. Mas no fundo, compreendeu subitamente, todos já o sabiam. O outro lado da vitória era o preço que ela custava aos que triunfavam. E além disso, pensou
com um sorriso amargo, parar só o levaria a adiar ainda mais a dura tarefa que o esperava.
Viu-se na rua, em frente ao Delfim Dançarino, demasiado depressa. Parou e observou a área. Ainda não se sentia preparado para o que tinha de fazer. Cerrou os punhos,
irritado consigo mesmo, e avançou com passos largos sobre as pedras que permitiam atravessar a rua evitando toda a imundície nela acumulada. Inspirou fundo, e entrou
no estabelecimento.
Não estavam mais de meia dúzia de clientes na sala, e notou imediatamente onde estava Pórcia. Como estava de esguelha, a preparar copos para os clientes que não
deixariam de surgir mais tarde, não deu pela entrada do filho. Macro engoliu em seco e atravessou a sala, fazendo tão pouco barulho quanto possível, mas uma tábua
solta atraiçoou-o com um ranger, antes que conseguisse chegar ao balcão, e ela virou-se.
Por momentos os seus olhares cruzaram-se, enquanto os dois permaneciam imóveis e em silêncio. Então a face da mulher enrugou-se, e ela apoiou-se no balcão para não
desfalecer.
- Não... Não... Não... - Os dedos cravavam-se na madeira com tanta força que os nós dos dedos ficaram lívidos. Macro deu os últimos passos e segurou-a gentilmente
pelos ombros.
- Mãe, lamento.
A cabeça descaiu-lhe, e Macro sentiu o magro corpo a estremecer-lhe nos braços. Olhou em redor, e notou que os clientes observavam a cena, curiosos.
- Mãe, vamos para ali. Para o fundo da sala.
Atabalhoadamente, deu a volta ao balcão, pôs-lhe a mão sobre os
ombros e ajudou-a a entrar na copa. Acomodou-a no banco junto à pequena secretária em que ela se sentava habitualmente a fazer as contas. Durante algum tempo, Pórcia
manteve as mãos sobre a face, enquanto o corpo era percorrido por profundos soluços. Macro deixou-se estar em silêncio, amparando-a com um braço. Hesitante, levantou
a outra mão e afagou-lhe o cabelo grisalho.
Por fim o choro diminuiu, e pouco depois Pórcia baixou as mãos, endireitou as costas e apanhou um pano do bar para enxugar as lágrimas.
- O que é que aconteceu?
- Foi morto no decorrer do assalto final.
- Não sofreu?
- Não. Foi rápido. Não sentiu nada.
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- Percebo. - Anuiu, como se a rapidez da morte a tornasse mais aceitável. - Ainda bem. Não gostaria de saber que ele tinha sofrido. Não queria... - A expressão
dela voltou a contorcer-se de dor, e as lágrimas irromperam da face gasta, até que conseguiu recuperar alguma compostura.
- Era um bom homem.
Macro manteve-se em silêncio, e ela apercebeu-se imediatamente de que havia alguma coisa errada.
- Macro, o que foi?
- Não é nada. Queres uma bebida?
- Uma bebida? - Pórcia olhou-o com argúcia. - Isso é o que dizem os homens quando não querem falar de algum assunto.
Macro sentiu-se impotente.
- O que é que aconteceu? - Perguntou Pórcia, de forma suave mas firme. - Diz-me.
- Não é a altura certa.
- Diz-me!
Macro engoliu em seco, tentou enfrentar o olhar da mãe, e fracassou. Baixou os olhos e começou, quase em surdina.
- Minúcio era um traidor. Vendia informações aos piratas. Há meses que o fazia.
- Não.
- Sim. De que forma é que pensas que ele tinha arranjado dinheiro para todos aqueles planos de reforma de que andava sempre a falar?
- Ele disse-me que o tinha herdado. - Pórcia parecia confusa.
- Não, ele não podia ser um traidor. Como podia? Eu teria reparado.
- Quer dizer que nunca suspeitaste de nada?
Irritada, Pórcia respondeu com uma bofetada.
- Como te atreves...?
Macro esfregou a face. A mãe abanou a cabeça, tremendo de fúria e de mágoa, e de desespero.
- Macro... O que vai ser de mim?
- Mãe, eu tratei disso. - Pegou na mochila e colocou-a sobre a mesa, abriu os cordões e extraiu dela a sacola de cabedal que Minúcio tinha levado para o cimo
da torre. - Isto era dele. Acho que agora deve ficar para ti.
Pórcia contemplou a sacola.
- O que é que contém?
- Ouro, algumas gemas, alguma prata. Mais do que suficiente para te dar uma vida confortável. Ainda podes comprar a tal quinta nas províncias.
Os olhos dela não se soltavam da sacola.
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- Como é que isto te foi parar às mãos?
Macro estremeceu.
- Estava com ele quando morreu.
Os olhos dela piscaram.
- Estavas lá?
Macro assentiu.
- Como é que foi?
Quando o filho não respondeu imediatamente, uma expressão de terror tomou-lhe conta do rosto.
- O que é que lhe fizeste? O que é que lhe fizeste?
Pegou-lhe pelos braços, e tentou sacudi-lo. Macro apresentou-lhe uma expressão dura.
- Ofereci-lhe uma escolha. Ou eu o matava, ou ele se suicidava. Escolheu a melhor saída. Matou-se.
Pórcia encarou o filho com toda a intensidade de que foi capaz.
- Jura que não foste tu a acabar com ele! Jura.
- Mãe, juro-te, não fui eu a pôr fim à vida de Minúcio.
- Pela tua saúde, espero que estejas a dizer a verdade. - Afastou o olhar, desesperada. - Não fazes ideia do que terias feito, se tivesses sido tu.
Macro franziu o sobrolho, sem perceber o que ela queria dizer com aquilo. Mas Pórcia manteve-se em silêncio, de olhos no chão. Macro tossiu para lhe chamar a atenção.
- Sabes, podias muito bem vir comigo para Roma. De lá a Ostia é um pulinho... Pelo que sei, o pai ainda está vivo.
Então Pórcia voltou a olhá-lo, e de repente desatou às gargalhadas. O som era pouco natural, quase assustador. Por momentos, pareceu ter perdido completamente o
controlo.
- Mãe? O que se passa?
- Oh, é impagável! - Voltou a rir-se. - De todo... Queres mesmo que eu regresse a Ostia e vá tomar conta daquele bêbado estúpido, imprestável e bruto a que
chamas pai?
Macro encolheu os ombros.
- Era só uma ideia. Esperava... - Olhou-a de novo, com uma terrível suspeita a nascer-lhe nas entranhas, quando finalmente se deu conta da estranheza daquilo
que ela acabara de afirmar.
- O que é que o meu pai tem de tão errado?
- De errado? - Os lábios de Pórcia fremiam. - O estar morto. É isso que está errado quanto a ele. O Minúcio era o teu pai.
- Não...
Pórcia confirmou com um gesto da cabeça.
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- Engravidou-me e pôs-se ao largo. Por causa disso, tive de me casar com aquela besta a quem chamas pai. Mas o Minúcio regressou, anos depois, para me ir
buscar. Já estavas demasiado crescido para vires comigo. E a situação já era suficientemente complicada. - Prosseguiu, derrotada. - Disse-lhe que tinha feito um
aborto. Ele nunca soube que eras filho dele.
Encararam-se durante alguns instantes. Macro abanou a cabeça. Era mentira. Não podia ser de outra forma. E todavia, lá bem no fundo, sabia que aquela era a verdade.
Não havia qualquer razão para que a mãe lhe mentisse, e de repente uma avalanche de recordações e de comentários mal percebidos subjugou-o. Ergueu o olhar de novo,
enfrentando o de Pórcia. Com lentos gestos da cabeça, ela respondeu afirmativamente às perguntas que o filho não vocalizava, e depois colocou-lhe os magros braços
em redor do pescoço e apertou-o contra ela. Macro estava completamente atordoado, incapaz de reagir, e limitou-se a ficar ali, de olhos fechados e punhos cerrados.
- Oh, meu querido... Meu rapazinho. - Consolou-o Pórcia, com suavidade. - Que fizeste tu?
X L V
- Um trabalho bem feito, sim senhor! - Narciso não escondia a satisfação que sentia. - Isto não podia ter corrido melhor. Apanhámos os pergaminhos, acabámos
com os piratas, e os Libertadores ficaram de mãos a abanar. Uma pena que o Rúfio Polo e esse outro tipo, o Anobarbo, se tenham escapulido. Mas, mais cedo ou mais
tarde, havemos de os descobrir e tratar deles... Oh! As minhas desculpas, façam o favor de se sentar. Vou mandar que tragam umas bebidas frescas. Desconfio que,
depois da vossa cansativa viagem de Ravena para cá, vos deve apetecer comer e beber qualquer coisita, não?
Em frente ao secretário imperial viam-se três indivíduos desgrenhados e imundos. Salpicados de lama, com barbas de vários dias, olhavam-no com um ar mortiço. Foi
Vespasiano o primeiro a responder.
- Sim. Tal seria muito bem recebido. Obrigado.
Enquanto Narciso chamava um escravo e lhe dava ordens, os visitantes deixaram-se abater sobre os assentos que rodeavam a mesa de trabalho do secretário imperial.
Cato, consciente da sua posição, esperou que Vespasiano e Vitélio se acomodassem antes de os imitar. Assim que ele o fez, Narciso debruçou-se sobre a mesa com uma
expressão excitada.
- Bom, vamos ao que interessa. Os pergaminhos - mostrem-mos, depressa.
Vespasiano apresentou a pequena mochila que levava ao ombro. Desapertou os fechos e meteu a mão lá dentro. Extraiu os manuscritos um a um, colocando-os sobre a mesa
e empurrando-os na direcção de Narciso. Este contemplou-os com uma indisfarçada comoção. Depois encarou Cato.
- Acredito que sabes o que eles contêm?
- Sim, senhor.
Vespasiano agitou-se.
- Supunha... Não, não interessa.
Mas o olhar de Narciso já tinha regressado aos pergaminhos, e não
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reparara na surpresa estampada por momentos no rosto do prefeito.
- As profecias de Delfos. - Anunciou Narciso, suavemente. - Mal acredito que existem, apesar de estarem aqui mesmo à minha frente. Ainda não me parece possível.
- E quase não foi. - Vespasiano coçou o queixo. - Não fazes ideia da quantidade de sangue que foi derramado para recuperarmos esses pergaminhos.
- Bem, tenhoXcerteza de que vou ficar a saber tudo graças aos vossos relatórios. -Narciso dirigiu-lhe um sorriso. - Verão que nem eu nem o Imperador nos mostraremos
ingratos perante o vosso esforço; é uma promessa.
- Ah, então ficamos descansados.
O comentário não obteve o efeito desejado, já que Narciso tinha de novo dirigido toda a atenção para os pergaminhos. A Cato dava a sensação de que o homem nem se
atrevia a pegar neles. O que era perfeitamente compreensível, reflectiu o jovem centurião. Os textos tinham saído da pena do oráculo em Delfos, e eram o resultado
de anos a apreciar presságios e a interpretar as vontades dos deuses, a tentar adivinhar o futuro da mais grandiosa das nações. O mínimo que se podia pedir, na presença
de tão insignes documentos, era alguma humildade.
Havia porém algo mais na expressão de Narciso, o que perturbava Cato. Avareza, ou ambição, ou uma mistura das duas. Evidentemente, o secretário reconhecia o poder
contido naqueles manuscritos. E isso amedrontava-o, o que ficava bem expresso na forma como a mão se aproximava dos rolos e parava mesmo antes de as pontas dos dedos
tocarem nos envelhecidos estojos de cabedal que os envolviam.
Mesmo que os documentos tivessem de facto algum valor profético, o prévio conhecimento dos acontecimentos era uma faca de dois gumes, e Cato, imaginando-se na posição
de Narciso, viu-se a sopesar a sede de saber contra o perigo de saber de mais, de conhecer a sorte do Império
- qual sairia vencedor? No fim de contas, de que serviria a um homem saber de antemão que uma calamidade se ia abater sobre o Estado, ou mesmo que uma tragédia
pessoal o iria atingir, se nada poderia fazer para alterar o destino? Por vezes, pensou Cato com um sorriso forçado, a ignorância era uma bênção.
Olhou de relance para Vespasiano e Vitélio, e perguntou-se se os dois partilhariam as suas emoções acerca do conteúdo dos pergaminhos. Talvez sim, no caso de Vespasiano.
Mas quanto a Vitélio, era difícil conceber que a implacável ambição que lhe ardia no coração lhe permitisse resistir ao desejo de saber.
Nesse instante, ele deu sinal de vida.
- Vá, homem. - Disse ao secretário imperial. - Os pergaminhos não mordem.
Narciso perscrutou a expressão do tribuno, e então arrebanhou os rolos, puxando-os para si.
- Examiná-los-ei mais tarde, quando tiver disponibilidade para lhes dedicar o tempo que merecem.
- Oh, tenho a certeza de que constituirão excelente material de leitura. - Vitélio sorriu. - Partindo do princípio de que esses escritos não partilharão a
habitual tendência dos adivinhos para a especulação e a ambiguidade. Se precisares de ajuda...
- Obrigado, Vitélio, mas tenho a certeza de que conseguirei dar conta do recado sozinho.
Mais uma vez, Cato sentiu-se agradecido por ter sido Vespasiano a tomar o comando das operações para a recuperação dos pergaminhos, e por os ter colocado sob a sua
guarda pessoal assim que eles tinham regressado a mãos romanas.
Tinham permanecido na sua mochila durante toda a viagem de Ravena a Roma, e a mochila nunca tinha saído de ao pé de Vespasiano. Cato tinha mantido uma discreta vigilância,
e nem uma única vez tinha visto o prefeito a mexer sequer nas tiras de cabedal que fechavam a mochila. Claro que era possível que Vespasiano tivesse arriscado uma
espreitadela numa qualquer noite enquanto dormiam em redor da fogueira ou partilhavam um quarto num posto do Império. Mas Cato duvidava disso. Vespasiano parecia
padecer do comum mal dos recém-promovidos, e queria acima de tudo fazer o que era correcto. Se as ordens que tinha eram de entregar os pergaminhos a Narciso sem
os ler, tornava-se difícil imaginar que alguma vez tivesse aberto a mochila para ao menos os contemplar. Por outro lado, Vitélio não teria tido quaisquer escrúpulos
em lê-los. Cato não se tinha deixado enganar pelas esfarrapadas desculpas para justificar a tentativa de recuperar os documentos em proveito próprio. Como era habitual,
o ardiloso aristocrata tinha tido uma história pronta para apagar os traços da sua ambição. Se Telémaco não o tivesse apanhado, Cato estava seguro de que Vitélio
teria mantido os pergaminhos na sua posse.
- E depois de os examinares, o que vai acontecer? - Quis saber Vespasiano.
- Acontecer? - Narciso fez uma careta. - O que é que queres
dizer?
- O que vai acontecer aos pergaminhos? Suponho que os enviarás para o templo de Júpiter, onde estão os outros.
Narciso deu uma gargalhada.
- Nem pensar nisso!
Vespasiano contemplou-o, admirado.
- Não percebo. Pensei que era essa a razão disto tudo - reunir todos os pergaminhos.
- E para que haveria eu de fazer isso?
- Para que eles pudessem ser consultados.
- Consultados por quem?
Foi a vez de Vespasiano dar uma gargalhada.
- Pelo Imperador. Pelos sacerdotes. Pelo Senado.
Narciso anuiu.
- Ora bem, precisamente. Já encontraste a resposta.
- Desculpa. Não te entendo.
O secretário imperial recostou-se na cadeira, e sorriu.
- Se todos tivessem acesso aos pergaminhos, iam com certeza usá-los para os seus próprios fins políticos.
- Imagine-se! - Lançou Vitélio, com um sorriso.
Vespasiano confrontou-o, irritado.
- Nem todos são como tu.
- Pois não. Mas há um número suficiente. Vespasiano, passaste demasiado tempo longe de Roma. Há por aí incontáveis senadores que sonham com posições mais
elevadas. - Os olhos do tribuno rebrilharam de malícia. - E, se eles não o fazem, podes ter a certeza de que as suas doces esposas sim...
Vespasiano baixou o olhar, tentando esconder que o remoque o afectara.
- Percebes agora o meu problema? - Narciso inclinou-se para a frente. - Para o Imperador, seria um alívio saber que todos os senadores se empenham em servir
Roma como tu. Mas há demasiados que preferem servir os seus próprios interesses. E não lhes posso facultar informação sobre o que o destino nos reserva a todos.
Compreendes com certeza esta posição.
Vespasiano ergueu o olhar.
- O que vejo é que estamos a perder uma ocasião única para tomarmos o futuro nas nossas mãos. Para o fazernos apreciar pelas melhores mentes do Império.
- Ah, sim. - Narciso não se conteve. - Mas a verdade é que as melhores mentes nem sempre são as mentes com as melhores intenções, se percebes o que quero
dizer. Seja como for, seria demasiado perigoso amarrar o futuro de Roma a umas especulações, meio místicas, meio loucas, passadas à escrita quando esta cidade não
passava de uma vilória. De facto, pouco importa o conteúdo destes pergaminhos, desde que algumas pessoas fiquem a saber que existem e que estão nas nossas mãos.
Eles que tremam
perante aquilo que lá poderá estar escrito. É isso que os torna valiosos, para mim e para o Imperador, pelo menos. Ficou claro, Vespasiano?
Este anuiu.
- Óptimo! - Concluiu Narciso. - Então também deves compreender por que razão não podes falar disto a ninguém. Por agora, apenas um punhado de homens sabe
da existência dos pergaminhos. Nesta altura, gostaria que a coisa ficasse assim.
Vespasiano sorriu.
- Evidentemente, não hesitarás em usá-los para teu próprio proveito.
Uma expressão defúria percorreu o rosto de Narciso, mas foi dominada, e ele prosseguiu.
- Sirvo o Imperador Cláudio. Como tu. Não hesitarei em usar os pergaminhos para fortalecer a posição do Imperador.
- Comove-me a tua lealdade, Narciso. Estou certo de que usarás as informações que conseguires extrair dos pergaminhos de forma totalmente desinteressada.
Os dois homens encararam-se; Narciso juntou as mãos sobre os pergaminhos e continuou.
- Não te insultarei exigindo um voto solene quanto a esta questão. Peço-te apenas que reconheças que a estabilidade do Império depende da manutenção deste
segredo. Suponho que concordas?
- Imagino que, em caso contrário, seria discretamente eliminado.
- De facto. Seria como se tu e toda a tua família nunca tivessem existido.
- Assim sendo, concordo...
Narciso sorriu.
- Obrigado. Vitélio?
Este anuiu de imediato.
Narciso virou então a sua atenção para Cato, e o jovem centurião não conseguiu evitar que um arrepio de apreensão lhe percorresse a espinha. Não tinha ilusões quanto
à sua irrelevância em assuntos de Estado. Ainda assim, reuniu toda a coragem de que dispunha, aprumou-se e enfrentou o olhar do Secretário Imperial.
- Centurião, tenho acompanhado a tua carreira com algum interesse. Prometes muito. É um facto que o destino nem sempre te tem reservado a recompensa devida
aos serviços que já prestaste ao Imperador...
Era dizer o menos, considerou Cato, mas limitou-se a anuir em silêncio.
- Estás aqui porque sabes da existência dos pergaminhos, e eu preciso de ter a certeza de que posso confiar em ti e no teu amigo Macro
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quanto a este assunto. Sei perfeitamente que compreendes a necessidade de > segredo, e vocês nada têm a ganhar com a divulgação destes factos. Aliás, têm é tudo
a perder. O que quer dizer que não vou ter de tratar da vossa eliminação, o que seria, para além do mais, um terrível desperdício. O Império não se pode dar ao luxo
de perder homens como tu. - Narciso recostou-se e sorriu. - Por acaso, preciso de alguém para uma missão especial, portanto dentro embréve deixarás Roma. O que me
permite eliminar um problema quanto ao secretismo relativo a estes pergaminhos.
- Deixar Roma? - Cato inclinou ligeiramente a cabeça. - E ir para onde, senhor?
- Em breve tudo te será revelado, centurião.
O coração de Cato acelerou quando um pensamento lhe ocorreu.
- Senhor, isso quer dizer que já não estou sob sentença de morte?
Narciso anuiu.
- Assim que esta reunião terminar, darei ordens para que a sentença seja levantada.
- E o centurião Macro também será isentado das acusações que sob ele pendem?
- Sim.
- Nesse caso, poderemos voltar a ser colocados nas legiões.
- Que mais poderia eu fazer com dois tão excelentes oficiais?
Foi como se se desatasse um pesado nó no peito do jovem, e ele
pudesse de novo respirar livremente. Houve um breve momento de indignação e raiva por ter sido submetido a tão dura provação sem qualquer motivo razoável. Mas passou
depressa, e Cato deixou-se inundar pelo alívio que as palavras de Narciso lhe tinham transmitido. A ansiedade esvaiu-se. A sombra do carrasco, que o acompanhara
durante meses, desvaneceu-se, e sentiu que podia mais uma vez encarar o futuro com confiança. Em breve, ele e Macro estariam de volta à vida em que se sentiam realizados:
a servir nas Águias.
- Bom, centurião, estamos entendidos? Enquanto viveres, não dirás a ninguém uma palavra sobre estes pergaminhos.
- Sim, senhor. - Cato concordou solenemente. - Tem a minha palavra quanto a isso. E tenho a certeza de que posso dá-la também em nome do Macro.
- Estou certo disso.
Ouviu-se alguém a bater à porta, e Narciso virou-se nessa direcção.
- Entre!
O escravo assomou à entrada e inclinou a cabeça com deferência.
- Senhor, o vinho e a comida estão servidos.
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- Muito bem.
O escravo voltou a inclinar a cabeça e desapareceu de cena; Narciso voltou a dedicar a atenção aos seus visitantes.
- Pronto. Acho que os nossos assuntos estão despachados. Quero os vossos relatórios o mais depressa possível. Podem entregá-los ao meu assistente.
Levantou-se, e os outros apressaram-se a imitá-lo. Narciso acompanhou-os à porta, onde apertou o antebraço de Vespasiano e inclinou a cabeça em reconhecimento.
- Uma vez mais, agradeço-te profundamente por tudo o que conseguiste.
Vespasiano acenou com ar cansado e saiu da sala. Cato estava ligeiramente atrás e ao lado de Vitélio quando o secretário imperial pegou no braço do tribuno para
se despedir. Os dois homens inclinaram as cabeças. Nesse instante, Cato não pôde deixar de reparar numa marca de nascença no braço de Vitélio, mesmo abaixo da bainha
da túnica. Foi a forma da marca que atraiu a atenção de Cato - um crescente quase perfeito, como se fosse um arco de caça, com alguns centímetros.
- Adeus por agora, Vitélio. - Dizia Narciso. - Que a boa fortuna te acompanhe.
Vitélio sorriu em resposta.
- Oh, tenho a certeza de que o fará.
NOTA DO AUTOR
A marinha imperial romana tem atraído muito menos a atenção dos investigadores do que as legiões, e há muito menos material que nos possa dar uma ideia correcta
sobre a vida a bordo dos navios. Aos leitores que queiram saber mais, sugiro que comecem pelo livro de Peter Connolly, Greece and Rome at War (Grécia e Roma em Guerra).
Há um outro livro muito interessante mas difícil de encontrar; trata-se de The Imperial Roman Navy (A Marinha Imperial Romana), de Chester Starr. Fiz um único desvio
consciente em relação aos factos históricos, ao trazer a base da esquadra de Ravena para perto da cidade e do porto comercial. De facto, as bases navais romanas
eram colocadas longe da confusão dos portos comerciais. Não queria, porém, deixar Macro e Cato estafados, obrigando-os a longas caminhadas de cada vez que quisessem
ir beber um copo à cidade.
Para lá das duas grandes bases navais em Miseno e Ravena, existiam pequenas esquadras espalhadas pelas fronteiras do Império. Tinham por missão vigiar as rotas comerciais
e fornecer tropas que podiam ser desembarcadas em qualquer ponto em que se fizesse sentir de repente a necessidade de uma presença militar.
A pirataria era um facto comum nas vidas de marinheiros e mercadores do mundo antigo. De facto, no século I a.C., havia piratas que ousavam acostar na península
itálica e raptar viajantes em plena Via Ápia. O descaramento chegou ao ponto máximo quando se deu um ataque ao porto de Ostia e os piratas queimaram a frota militar
romana. Foi de mais para o Senado, que depressa encarregou Pompeu, o Grande, de organizar uma poderosa armada e livrar os mares da praga da pirataria. O que ele
realizou numa vertiginosa campanha de apenas três meses. Daí para a frente, os piratas viram-se forçados a operações limitadas. Homens como Telémaco constituíam,
de tempos a tempos, uma ameaça local para as rotas comerciais. Porém, os confrontos entre a esquadra de Ravena e os navios de Telémaco nada têm a ver com a muito
maior escala das manobras e combates das guerras Púnicas e civis romanas.
Quanto aos piratas, a missão histórica da marinha imperial foi coroada de sucesso quase absoluto durante cerca de três séculos. Como bem salienta Chester Starr,
o trabalho deles "não era travar batalhas, mas antes torná-las impossíveis".
Uma nota final. Hollywood tem por costume representar as galeras romanas propulsionadas por centenas de escravos em correntes, mas a realidade era provavelmente
diferente e semelhante ao que sucedia na Renascença, período durante o qual os remos eram manejados por uma mistura de escravos e homens livres, que eram pagos pelo seu trabalho.
Simon Scarrow
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