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A PROFECIA DA CIGANA / Bram Stoker
A PROFECIA DA CIGANA / Bram Stoker

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PROFECIA DA CIGANA

 

- Penso realmente - disse o doutor - que um de nós pelo menos deveria ir lá para experimentar, e ver se se trata ou não de uma impostura.

- Muito bem! - replicou Considine. - Depois do jantar pegaremos nos nossos charutos e iremos dar uma volta pelo acampamento.

Assim, terminado o jantar, esvaziada a garrafa de Bordéus, Joshua Considine e o amigo, o doutor Burleigh, dirigiram-se para a extremidade leste do terreno comunal onde ficava o acampamento dos ciganos.

Quando se iam a afastar, Mary Considine, que os tinha acompanhado até ao fundo do jardim onde se abria o caminho, gritou para o marido:

- Não te esqueças, Joshua! Deixa-lhes uma oportunidade equitativa de lerem o teu futuro, mas não lhes dês nenhuma pista, e não te metas a piscar o olho às ciganas jovens! E trata de manter o Gerald fora de perigo!

À guisa de resposta, Considine ergueu a mão como fazem os comediantes no palco quando prestam juramento, depois começou a assobiar uma velha canção, A Condessa Cigana. Gerald entoou por sua vez a melodia, e os dois amigos, desatando a rir alegremente, tomaram o caminho do terreno comunal, voltando-se de vez em quando para acenar a Mary que se encostara à vedação e, no crepúsculo, os via afastar.

Era um belo entardecer de Verão, o próprio ar achava-se repleto de quietude e de ventura calma, símbolo exterior da paz e da alegria que tornavam um paraíso a casa do jovem casal. A vida de Considine não fora rica em acontecimentos. O único elemento perturbador que ele alguma vez conhecera tinha sido a corte que fizera a Mary Winston, e a oposição muito tempo manifestada pelos pais ambiciosos que esperavam um partido mais brilhante para a sua filha única. Quando Mr. e Mrs. Winston descobriram o interesse do advogado, tentaram afastar os jovens mandando a filha fazer uma longa série de visitas na província, depois de terem obtido dela a promessa de não trocar correspondência com o amante durante a ausência. O amor, porém, havia ultrapassado a provação. Nem a ausência nem o silêncio tinham conseguido arrefecer a paixão do jovem, e os ciúmes pareciam uma coisa desconhecida pela sua natureza confiante; assim, após um longo período de espera, os pais cederam e os jovens casaram-se.

Habitavam o cottage há alguns meses e começavam a sentir-se em casa. Gerald Burleigh, velho amigo de univer­sidade de Joshua, e ele próprio vítima outrora da beleza de Mary, chegara na semana precedente com o intuito de ficar com eles todo o tempo que lhe fosse possível arrancar ao seu trabalho em Londres.

Quando o marido desapareceu por completo, Maiy voltou para casa e, sentando-se ao piano, consagrou uma hora a Mendelssohn.

Pouco tempo foi necessário para atravessarem o terreno comunal e, antes de os charutos acabarem, os dois homens tinham alcançado o acampamento dos ciganos. O local era tão pitoresco como são normalmente os acampamentos de ciganos - quando são instalados nas aldeias e os negócios são bons. Havia alguns curiosos em torno da fogueira, investindo o seu dinheiro nas profecias, e muitos outros, mais pobres ou mais económicos, que se mantinham afastados do acampamento, mas suficientemente perto para poderem ver tudo quanto se passava.

Quando os dois amigos se aproximaram, os aldeões, que conheciam Joshua, afastaram-se um pouco, e uma linda cigana de olhos penetrantes chegou-se a eles e propôs predizer-lhes o futuro. Joshua estendeu a mão, mas a rapariga, negligenciando examiná-la, encarou-o de um modo muito estranho. Gerald deu uma cotovelada ao amigo:

- Deves dar-lhe uma moeda - disse. - É graças a esta única condição que se manifestará o mistério.

Joshua tirou meia coroa da algibeira e apresentou-lha, mas, sem olhar para a moeda, ela respondeu:

- Deve pôr mais uma moeda na mão da cigana.

Gerald riu-se.

- Realmente, tu não falhas uma - disse.

Joshua era o género de homem - o género universal - capaz de suportar o olhar fixo de uma bonita rapariga. Assim, com um certo desprendimento, respondeu:

- Muito bem, minha linda, mas em compensação deverás predizer-me um magnífico futuro.

E apresentou-lhe um meio soberano que ela agarrou ao mesmo tempo que dizia:

- Não é a mim que cabe predizer-lhe um bom ou mau futuro, pois leio simplesmente o que as estrelas dizem.

Pegou-lhe na mão direita e voltou-a, de palma para cima, mas no instante em que os seus olhos a decifravam, deixou-a cair como se estivesse em brasa e, com o olhar apavorado, eclipsou-se rapidamente. Levantando então a cortina da grande tenda que ocupava o centro do acampa­mento, desapareceu no interior.

- Lá te deixaste enganar mais uma vez - disse o cínico Gerald.

Joshua parecia atónito, e de modo algum satisfeito. Ambos ficaram de olho na tenda principal. Pouco depois emergiu da cortina entreaberta não a jovem cigana, mas uma mulher de certa idade, com um porte digno e a presença imponente.

No mesmo instante, o acampamento inteiro pareceu imobilizar-se. O estalido das línguas, os risos, todas as actividades cessaram um breve momento, e os homens e as mulheres que estavam sentados, ou meio deitados, puseram-se de pé a fim de se aproximarem da cigana com aspecto imperial.

- A Rainha, claro - murmurou Gerald. - Temos sorte, esta noite.

A Rainha dos ciganos lançou um olhar perscrutador em redor do acampamento e depois, sem hesitar um ins­tante, foi direita a Joshua e postou-se diante dele:

- Dê-me a sua mão - disse num tom que não admitia réplica.

De novo Gerald murmurou:

- Nunca me falaram nesse tom desde que saí da escola.

- O ouro em troca da sua mão.

- Entra no jogo dela - soprou Gerald, e Joshua depositou um outro meio soberano na palma estendida.

A cigana estudou a mão, franzindo o sobrolho; depois, de súbito, encarando Joshua bem de frente, disse-lhe:

- Possui uma vontade forte, possui um coração leal capaz de mostrar coragem em frente do ser que ama?

- Penso que sim, mas receio não ter vaidade suficiente para concordar.

- Nesse caso responderei por si. Vejo, de facto, na sua cara a resolução, e mesmo a determinação. Possui uma mulher e ama-a?

- Sim - respondeu Joshua com ênfase.

- Então, deixe-a imediatamente para nunca mais a voltar a ver. Afaste-se dela já, na frescura do vosso amor e na pureza do vosso coração, incapaz de fazer o mínimo mal. Parta depressa, parta para longe e nunca mais a torne a ver!

Joshua retirou a mão rapidamente e disse: "Obrigado!" mas com dureza e num tom de sarcasmo, enquanto procurava afastar-se.

- Ah, não! Não te vais assim! - disse Gerald. - Meu velho, não adianta indignarmo-nos contra as estrelas ou o seu profeta, e além disso o teu soberano, que lhe acontece? Ao menos, escuta-a até ao fim.

- Silêncio, estróina - ordenou a Rainha. - Não sabe o que diz. Deixe-o partir; partir ignorante se não quiser saber nada.

Joshua deu imediatamente meia volta:

- Não, vamos acabar com esta história - disse. - Agora, minha senhora, deu-me um conselho e paguei-lhe para me ler o futuro.

- Aviso-te - disse a cigana. - As estrelas ficaram caladas durante imenso tempo; deixemos que o mistério que as cerca se mantenha ainda por muito tempo.

- Minha querida senhora, não passo à margem de um mistério todos os dias e prefiro tirar proveito do meu dinheiro em vez de ficar na ignorância. Com esta última acomodo-me quando quero e por nada.

Gerald aquiesceu:

- Tenho em minha casa uma grande quantidade de mercadorias invendáveis!

A Rainha dos ciganos encarou severamente os dois homens e disse-lhes:

- Como quiserem! Os senhores decidiram: opõe-s ao meu aviso o desprezo, e ao meu apelo o gracejo. Que o destino recaia sobre as vossas cabeças!

- Ámen! - disse Gerald.

Com um gesto imperioso, a Rainha voltou a pegar na mão de Joshua e começou a predizer-lhe o futuro:

- Estou a ver sangue que corre: vai correr; corre diante dos meus olhos. Corre no círculo quebrado de um anel de casamento partido.

- Continue - disse Joshua, sorridente.

Gerald mantinha-se silencioso.

- Devo falar mais claramente?

- Com certeza. Nós outros, comuns mortais, queremos uma coisa precisa. As estrelas estão longínquas e a sua mensagem é algo obscura.

A cigana estremeceu e pôs-se a falar de um modo impressionante:

- Aqui temos a mão de um assassino! O assassino da mulher!

Deixou cair a mão e desviou a cabeça. Joshua riu-se:

- Sabe - disse ele - que se eu estivesse no seu lugar, introduziria um pouco de jurisprudência no meu sistema de predição. Por exemplo, disse que "esta mão é a mão de um assassino". Ora bem, embora possa vir a sê-lo no futuro, ou tornar-se, por enquanto não o é. Deveria dizer a sua profecia em termos como este: "A mão que será a de um assassino" ou antes: "A mão que será a de uma pessoa que será o assassino da mulher". As estrelas, realmente, não são muito aptas nestas questões técnicas.

A cigana não fez comentários mas, baixando a cabeça com um ar triste, encaminhou-se lentamente para a tenda e desapareceu depois de levantar a cortina.

Silenciosos, os dois homens tomaram o caminho do regresso e voltaram a atravessar a charneca. Após um certo tempo e com um pouco de hesitação, Gerald pôs-se a falar:

- Naturalmente, meu velho, tudo isto não passa de uma brincadeira, de uma brincadeira aterradora, mas uma brincadeira. Não seria melhor guardá-la para nós?

- Que queres tu dizer?

- Ora bem, não contar à tua mulher. Ela poderia alar­mar-se.

- Alarmar-se? Mas, meu caro Gerald, em que estás tu a pensar? Mary não ficaria alarmada nem assustada por mim, mesmo se todas as ciganas, que nunca vieram da Boémia, se pusessem de acordo para dizer que vou assassiná-la ou que vou ter um pensamento ofensivo a seu respeito, e isto num lapso de tempo tão extenso como aquele de que precisaria para dizer "Não".

Gerald retorquiu:

- Meu caro, as mulheres são supersticiosas, muito mais do que nós. E também estão abençoadas... ou amaldiçoadas... pelo seu sistema nervoso ao qual somos estranhos. Farto-me de ver isso no meu trabalho para deixar de levá-lo em consideração. Acredita-me, não lhe digas nada ou vais assustá-la.

O rosto de Joshua endureceu quando ele respondeu:

- Meu caro, não terei segredos para a minha mulher. Tê-los seria destruir o entendimento que reina entre nós. Não temos segredos um para o outro. Se alguma vez os tivermos, então conta que suceda algo de bizarro entre nós!

- Mesmo assim, - disse Gerald - mesmo se corro o risco de irritar-te, repito-to antes que seja demasiado tarde, que o melhor será não lhe falar no assunto.

- São as mesmas palavras da cigana - disse Joshua. - Ambos transmitem o mesmo aviso. Diz-me cá, meu velho, trata-se de uma coisa combinada? Foste tu que me falaste do acampamento dos ciganos; terias, por acaso, combinado tudo com Sua Majestade?

Joshua falara com um ar meio sério, meio prazenteiro. Gerald garantiu-lhe que só tinha ouvido falar no acampamento naquela mesma manhã. Mas Joshua zombava do amigo e durante esta troca de gracejos, o tempo tinha passado e entraram no cottage.

Mary estava sentada ao piano mas não tocava. A obscuridade tinha-lhe despertado ternos sentimentos no peito e os seus olhos estavam repletos de doces lágrimas. Quando os dois homens entraram, deslizou para o lado do marido e beijou-o. Joshua assumiu uma pose trágica:

- Mary - disse numa voz profunda -, escuta as palavras da sorte. As estrelas falaram e o destino está traçado.

- Então diz-me, querido! Diz-me o futuro mas não me assustes.

- Claro que não, minha querida. Mas há uma verdade que deves conhecer. É mesmo necessário a fim de que todos os preparativos possam ser tomados antecipadamente e cada coisa realizada decentemente e na ordem devida.

- Continua, querido. Estou a ouvir-te.

- Mary Considine, não é impossível que se veja um dia a tua efígie no museu de Madame Tussaud. As estrelas, que zombam dos juristas, anunciaram a sinistra nova: esta mão ficará vermelha, vermelha com o teu sangue, Mary!

- Meu Deus!

Precipitou-se, mas tarde de mais, para ampará-la antes de ela cair desmaiada no chão.

- Eu tinha-to dito - comentou Gerald. Tu não as conheces como eu as conheço.

Pouco depois, Mary recuperou os sentidos, mas para logo mergulhar numa forte histeria que a fez rir, chorar, divagar. Gritava: "Mantenham-no à distância de mim, de mim! Joshua, o meu marido!" e muitas outras palavras de apelo de socorro e de pavor.

Joshua Considine achava-se num estado de espírito próximo do desespero; quando, enfim, Mary se acalmou, ajoelhou-se à frente dela, beijou-lhe os pés, as mãos, os cabelos, chamou-lhe todos os nomes meigos e dirigiu-lhe todas as palavras ternas que os seus lábios conseguiram formular. Passou toda a noite sentado à sua cabeceira e a segurar-lhe a mão. Ao longo da noite e até ao alvorecer, ela despertou várias vezes do seu sono e gritou, como se apavorada, até ser reconfortada pela consciência de que o marido velava ao seu lado.

No decorrer do pequeno-almoço, que foi servido já tarde na manhã seguinte, Joshua recebeu um telegrama que o chamava a Withering, uma aldeia situada a cerca de vinte milhas. Hesitou em lá ir, mas Mary não quis que ele ficasse, e um pouco antes do meio-dia partiu no seu cabriole.

Quando ficou sozinha, Mary retirou-se para o seu quarto. Não se mostrou ao almoço, mas quando o chá da tarde foi servido na relva, debaixo do grande salgueiro chorão, foi reunir-se ao seu convidado. Parecia recomposta por completo da doença da véspera à noite. Após alguns comentários anódinos, disse a Gerald:

- Claro que foi uma estupidez ontem à noite, mas não pude evitar sentir-me assustada. Creio que ainda o estaria agora se me permitisse pensar no assunto. Mas no fim de contas, essa gente apenas imagina estas coisas e estou em condições de provar que a predição é falsa... sim, a predição é inteiramente falsa - acrescentou tristemente.

- Que conta fazer? - perguntou Gerald.

- Ir eu própria ao acampamento dos ciganos e pedir à Rainha que me preveja o futuro.

- Perfeito! Posso acompanhá-la?

- Oh, não! Isso estragaria tudo! Ela poderia reconhecê-lo e adivinhar-me, e arranjar as suas predições! Irei esta tarde, sozinha.

Ao cair da tarde, Mary Considine tomou a direcção do acampamento dos ciganos. Gerald acompanhou-a até à entrada do terreno comunal e regressou sozinho. Mal havia decorrido uma hora quando Mary voltou ao salão onde Gerald se achava estendido no canapé a ler. Estava pálida como a morte e num estado de excitação extremo. Mal transpusera a soleira quando se afundou a gemer no tapete. Gerald precipitou-se para ajudá-la a levantar-se, mas ela fez um esforço extremo, controlou-se e pediu-lhe silêncio. Ele ficou à espera e o desejo de obedecer-lhe pareceu constituir o melhor socorro, porque após alguns minutos pareceu um pouco recuperada e pôde contar-lhe o que se passara.

- Quando cheguei ao acampamento, pareceu-me que não havia vivalma. Dirigi-me para o centro e aguardei. De súbito, uma mulher alta apareceu ao meu lado. "Algo me disse que me queriam", disse-me. Estendeu a mão e pus nela uma moeda de prata. Tirou do pescoço um pequeno objecto de ouro e colocou-o ao lado. Depois agarrou nos dois e atirou-os ao ribeiro que passava aos nossos pés. Depois tomou-me nas suas mãos a minha e pôs-se a proferir: "Apenas sangue neste sítio culpado" e afastou-se. Fui atrás dela, alcancei-a e pedi-lhe que me contasse mais coisas. Após algumas hesitações, disse: "Que desgraça! Que desgraça! Estou a vê-la deitada aos pés do seu marido, e as mãos dele estão vermelhas de sangue."

Gerald não se sentiu nada à vontade e quis gracejar.

- Seguramente - disse -, essa mulher anda obcecada pela ideia de um crime.

- Não se ria - disse Mary -, não posso suportar isso. E, como arrebatada por um impulso súbito, abandonou a sala.

Pouco depois, Joshua regressou, sorridente e de bom humor, tão esfomeado como um caçador após uma longa caminhada. A sua presença reconfortou a mulher que pareceu muito mais sorridente, mas não mencionou o episódio da visita ao acampamento dos ciganos, de maneira que Gerald também se calou. Como por um consentimento tácito, o assunto não foi abordado durante o serão. Mas uma expressão estranha e decidida perpassou pelo rosto de Mary, que Gerald não pôde impedir-se de ver.

Na manhã do dia seguinte, Joshua desceu para o pequeno-almoço mais tarde do que habitualmente. Mary tinha-se levantado cedo e passeava-se pela casa desde a manhã. À medida que o tempo passava, parecia ficar nervosa e, de vez em quando, deitava em seu redor um olhar ansioso.

Gerald não pôde deixar de notar que ninguém ao pequeno-almoço conseguia engolir a comida de maneira satisfatória. Não era que as costeletas fossem duras, mas as facas estavam rombas. Claro que, como convidado, não fez qualquer comentário. Mas em breve viu Joshua a passar um dedo pelo rebordo da lâmina da sua faca de um modo inconsciente. Ao vê-lo fazer isto, Mary empalideceu e quase desmaiou.

Depois do pequeno-almoço, saíram todos para o relvado. Mary compôs um ramalhete e disse ao marido:

- Colhe-me algumas destas rosas, querido!

Joshua puxou um ramo do roseiral que trepava pela fachada da casa. O caule flectiu-se, mas era demasiado espesso para poder ser quebrado. Meteu a mão na algibeira para pegar na faca mas não a encontrou.

- Passa-me a tua faca, Gerald - disse ele.

Mas Gerald não tinha faca e por isso foi à casa de jantar e pegou numa que estava em cima da mesa. Regressou a tocar no fio da lâmina e a resmungar:

- Que diabo! Que se passou com as facas, que parecem todas rombas?

Mary desviou-se subitamente e voltou para casa.

Joshua tentou cortar o caule com a faca romba como fazem os cozinheiros nos campos aos pescoços das galinhas, ou os rapazes quando cortam cordéis grossos. Com um pouco de esforço, desempenhou a sua tarefa. As rosas cresciam espessas no ramo, e por isso decidiu colher um grande ramalhete.

Não conseguiu encontrar uma única faca amolada no aparador onde elas se achava arrumadas e por isso chamou Mary; quando ela chegou disse-lhe o que se passava. Parecia tão agitada e tão miserável que ele não pôde resistir ao desejo de saber a verdade e, como se espantado e ofendido, perguntou-lhe:

- Queres dizer que foste tu, que foste tu que fizeste isso?

Ela interronpeu-o:

- Oh, Joshua, estava com tanto medo!

Joshua, após um momento, prosseguiu, com um ar decidido no seu rosto empalidecido:

- Mary - disse -, é assim que tens confiança em mim? Não teria acreditado em tal!

- Oh, Joshua! - exclamou ela suplicante. - Perdoa-me!

E verteu lágrimas amargas. Joshua reflectiu um instante e disse:

- Agora compreendo. Temos de acabar com tudo isto ou ficaremos todos loucos.

Correu para o salão:

- Onde vais? - quase gritou Mary.

Gerald interveio, dizendo que não era supersticioso ao ponto de ter medo de instrumentos rombos, sobretudo quando viu Joshua sair da porta-janela, segurando na mão uma grande faca gourka que, normalmente, ficava pousada na mesa do meio - era um presente que o irmão lhe tinha mandado da índia do Norte, uma dessas grandes facas de caça utilizadas nos combates à arma branca e que tão eficazes haviam sido contra os inimigos dos Gourkas leais, aquando da sua sublevação. Pesada, mas bem equilibrada na mão, parecia leve, com a sua lâmina afiada como uma navalha de barbear. Com uma destas facas, um gourka teria podido cortar um carneiro ao meio.

Quando Mary viu o esposo sair da sala com a arma na mão, pôs-se a gritar num acesso de pavor, e as histerias da noite anterior reapareceram imediatamente.

Joshua correu para ela e, ao vê-la cair, largou a faca e tentou agarrá-la.

Mas interveio um segundo demasiado tarde e os dois homens gritaram ao mesmo tempo quando viram Mary caída sobre a lâmina nua.

Gerald, chegado junto dela, verificou que ao cair a lâmina tinha ficado em parte cravada na relva e que havia cortado a mão esquerda de Mary. Algumas das pequenas veias da sua mão estavam cortadas e o sangue corria livremente da ferida. Enquanto punha um penso, fez notar a Joshua que o anel de casamento fora cortado pelo aço.

Transportaram-na, desmaiada, para casa. Quando, após um certo tempo, recuperou os sentidos, e já de braço ao peito, sentia-se apaziguada e feliz. Disse ao marido:

- A cigana estava maravilhosamente perto da verdade; demasiado perto para que a verdadeira coisa pudesse alguma vez suceder agora, querido.

Joshua inclinou-se e beijou a mão ferida.

 

                                                                                Bram Stoker  

 

                      

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