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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PROFECIA DAS PEDRAS / Flavia Bujor
A PROFECIA DAS PEDRAS / Flavia Bujor

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

O velho releu a passagem d'A Profecia e, abanando a cabeça, disse em voz baixa, num tom grave:

 

 

 

 

- Falta pouco, muito pouco tempo. - Levantou-se da cadeira com dificuldade e voltou-se. À sua frente, o duque de Divulyon mostrava um ar preocupado.

- E então? - perguntou ele.

O ancião soltou um longo suspiro. Parecia exausto. Inúmeras rugas marcavam o seu rosto. Mal se tinha em pé, as costas curvadas, as pernas trémulas. Deixou-se cair numa poltrona e disse numa voz fraca:

- Não há nada que eu possa fazer. Ela tem que seguir o seu destino.

O duque, que não escondia a angústia, elevou o seu tom de voz:

- Théodon, tu és sábio. Dedicaste toda a tua vida a estudar A Profecia. Ajudaste o meu pai. Ajudaste-me a mim. Deste-me conselhos e apoio. Não me abandones neste momento! Ela tem que viver. Ela tem que vencer, aconteça o que acontecer. Ela é tão nova. Pensar que dentro de pouco tempo. O que é que eu posso fazer para a proteger, Théodon?

O ancião, com as mãos na cabeça, respondeu após um longo silêncio:

- Eu gosto tanto dela como tu. Vi-a crescer e afeiçoei-me a ela, apesar de a razão me aconselhar a não o fazer. Mas ela não conseguirá escapar à Profecia. Acredita em mim, se eu pudesse ajudá-la, seria o primeiro a fazê-lo. Perguntas-me como podes protegê-la? Mas a verdade é que não podes protegê-la, procura entender! Tudo o que tens a fazer é entregares-lhe aquilo que lhe pertence quando chegar o dia. Mas não agora. Vai passar com ela os últimos dias que te restam.

O duque, resignado, lamentou-se:

- Estes catorze anos passaram mesmo muito depressa. Em seguida saiu da sala.

O ancião fixou as chamas que reluziam na lareira. A Profecia ia cumprir-se. Era apenas uma questão de dias. Tinha esperado por esse momento, tinha-o aguardado com impaciência. Em breve, todas as suas perguntas iriam ter uma resposta. Estremeceu. Tinha sido pouco prudente ao deixar-se afeiçoar àquela criança. Deveria tê-lo evitado. A Profecia havia adquirido um outro significado: nessas páginas obscuras onde tanto procurou ler o futuro e entender a perturbação anunciada, apenas conseguia ver neste momento o destino de Jade.

Jade estava deitada na sua cama. Tinha nas mãos um livro mas estava demasiado agitada para conseguir ler. O seu olhar perdia-se no vazio. De repente, ouviu bater à porta. Levantou-se de um pulo e gritou:

- Entre!

Um serviçal, entreabrindo a porta, anunciou:

- O seu pai deseja falar-lhe. Pode recebê-lo agora? Surpreendida por não estar ocupado a esta hora do dia, respondeu afirmativamente. O criado saiu.

Jade escovou os seus longos cabelos pretos e, em seguida, puxou-os para trás. Olhou-se no espelho, satisfeita. O seu sorriso deixava ver uns dentes ligeiramente afastados. As pestanas eram talvez espessas de mais, o que a obrigava a "lutar" constantemente contra as mais rebeldes. Quando se enervava (o que Lhe acontecia frequentemente), as maçãs do rosto ficavam vermelhas e perdia o ar pouco natural que ostentava a maior parte do tempo. Mas sabia que era bonita, alta, magra e punha sempre grande cuidado no vestir. Tinha uma grande autoconfiança. Se queria alguma coisa, sabia que iria consegui-la.

No momento em que oferecia um sorriso de reconhecimento à imagem reflectida no espelho, o pai entrou no quarto.

Foi ao seu encontro. Ele apertou-a contra ele com uma ternura pouco habitual. Apesar de gostar muito da filha, não costumava exprimir os seus sentimentos de forma tão expansiva. De temperamento fleumático, dava provas de grande sangue-frio em muitas situações. No entanto, nesse dia, algo o levava a ter um comportamento diferente. Depois de libertar Jade do seu abraço, ficou a observá-la por uns momentos, em silêncio. Admirou uma vez mais os seus olhos verdes, cuja intensidade não podia deixar de o impressionar. Ela é corajosa e voluntariosa, dizia a si mesmo para se tranquilizar, e tem uma personalidade forte". A sua fisionomia traía a sua personalidade: era possível ler no seu rosto que era orgulhosa, determinada, mas também caprichosa e teimosa. O pai não conseguia desviar o seu olhar do da filha nem pronunciar uma palavra que fosse.

Foi ela quem rompeu o silêncio:

- Papá, há algum problema? Não tens que tratar de nenhum negócio, ler toneladas de papéis ou fazer milhões de outros trabalhos, como acontece todos os dias? Passou-se alguma coisa de grave para não estares a trabalhar? É por minha causa?

Pronunciou estas últimas palavras com simulada inocência. O pai respondeu-lhe numa voz que soava a falso:

- Não, não, Jade, não aconteceu nada. Tenho algum tempo livre, só isso. Reconheço que é raro, mas, como vês, também me acontece. Então, como está a minha filha?

Jade respondeu-lhe, muito excitada:

- Está a chegar o dia da festa. Vai ser extraordinária! Estou hesitante entre o vestido cor de malva, em seda, ou o branco, em cetim. Ainda encomendei um terceiro, magnífico, no condado de Tyrel. Se chegar a tempo, é esse que vou vestir. Estou mesmo ansiosa que chegue esse dia. Agora já não conto os dias mas as horas e até os minutos. Já dei ordens para a decoração da sala, a ementa, os músicos. É tão bom ser eu a organizar tudo! E contratei músicos de uma cidade vizinha.

Jade continuava a falar com grande entusiasmo mas o pai já não a ouvia. Está tão despreocupada", não conseguiu deixar de constatar, não faz ideia dos sacrifícios, nem do perigo. Ela não vai conseguir sobreviver. De imediato, sentiu uma grande culpa por não confiar mais em Jade e procurou prestar mais atenção ao que ela dizia.

- Vai ser grandiosa, imponente, fora do vulgar! Até me custa imaginar. Ainda não decidi se vou mandar servir os gelados antes dos bolos ou depois. Talvez seja melhor depois, não? É verdade, não tenho a certeza se a baronesa de Carolynt virá. Parece que está com febre. Foi a única que ainda não confirmou. Mas também não faz mal, acho-a tão maçadora.

- Jade? Sabes o que significa ter medo?

Ela parou de repente, surpreendida e aborrecida. Por que motivo o pai a teria interrompido, ainda mais para lhe fazer uma pergunta tão despropositada? Será que ele não se regozijava com a ideia da festa que se aproximava? Respondeu-lhe, irritada:

- Medo? Medo de quê? Nunca tive medo de nada. É um sentimento que desprezo. Só os cobardes e os fracos é que têm medo. Porque é que me perguntas isso, papá?

Fez uma pausa. Apercebera-se que o pai estava lívido. Como é que foi possível ela não ter notado mais cedo as suas feições abatidas, as suas olheiras e os olhos avermelhados? E, sobretudo, o seu ar esgazeado? Passava-se alguma coisa. Talvez algum negócio que correra mal?

- Se só os cobardes e os fracos têm medo, então eu sou cobarde e fraco - disse-lhe ele, então. - Afinal de contas, pouco importa.

- Mas, papá! Tu és respeitado e admirado por toda a gente, e isso acontece por alguma razão! Tu és o duque de Divulyon!

- Logo recuperou o ânimo, os olhos verdes a brilhar. - Parece-me que estás com algum problema de trabalho mas daí a teres medo, não! Se é uma brincadeira, não tem graça nenhuma.

O duque nada respondeu. O entusiasmo de Jade esmoreceu. Disse então com um ar sério:

- Papá, explica lá porque é que não dás nenhuma importância ao meu aniversário que se aproxima. Dentro de alguns dias faço catorze anos!

- Enganas-te, Jade. Preocupo-me muito com o teu aniversário. Mas. - O duque calou-se a tempo. Já tinha falado de

mais. Ela não podia saber de nada antes do tempo. Receando trair-se e ter que dar explicações, saiu bruscamente. Subiu aos seus aposentos e começou a andar de um lado para o outro. Cada segundo que passava mais o aproximava do momento em que teria de confessar tudo.

Jade ficou pensativa. O comportamento do pai era mais que estranho. Reflectiu uns breves instantes e depois encolheu os ombros, decidindo não valorizar o incidente. Voltou a concentrar-se nos preparativos para a festa do seu aniversário, e um sorriso logo voltou ao seu rosto.

 

Âmbar estava sentada na erva. Como era seu hábito, sonhava enquanto ia deitando o rabo do olho às ovelhas que deveria guardar. Outras imagens ocupavam o seu pensamento. Imaginava-se a viver perto do sol e do seu calor agradável, dialogar com as nuvens, os pássaros. O vento arrastava-a para viagens maravilhosas; a noite trazia-lhe o deslumbramento do brilho das estrelas que ela conseguia tocar com a mão, e.

- Briette Briette!

O seu regresso à realidade foi violento. Tinha-se esquecido que não devia guardar apenas as ovelhas, mas também um dos seus irmãos mais pequenos. Este, tranquilamente deitado debaixo de uma árvore, gritava a plenos pulmões:

- Briette! Vem cá! Não tenho com quem brincar. Briette! Ninguém a tratava por Âmbar desde que Lhe puseram o apelido de Briette. O seu verdadeiro nome era, sem dúvida, demasiado pretensioso para uma rapariga do campo. Ficava melhor a uma filha de um nobre, a alguém de um outro mundo. Interrogava-se muitas vezes sobre o motivo que teria levado os seus pais a darem-Lhe esse nome. Nunca tinha obtido uma resposta plausível mas gostava deste nome pela sua originalidade, pelo seu perfume de mistério. Parecia esconder um segredo.

- Briette! Briette! Por favor, vem cá!

Âmbar levantou-se e foi ter com o irmão. Sentou-se a seu lado, à sombra da árvore.

- Algum problema? - perguntou-lhe ela na sua voz calma.

- Estou aborrecido, é esse o problema! Quero que me contes uma história.

Âmbar sorriu-lhe e acariciou-lhe o rosto carinhosamente.

- Talvez, mas agora não.

- Porquê?

- Quero estar sozinha, sossegada, e tentar ouvir o silêncio.

- Quero que me contes uma história! Não me importa o que estás para aí a dizer! - O rapaz agarrou-Lhe o braço: - Por favor, Briette - insistiu ele.

Ela desgrenhou-lhe os cabelos com ternura e, soltando-se do seu abraço, deu-lhe um beijo na cara.

- Mais logo, prometo - disse ela. - Agora vou-me embora. Não gosto da sombra. Vou voltar para o sol.

- Mas Briette, está tanto calor! Como é que consegues aguentar o sol?

- Gosto do sol. É só isso.

Âmbar voltou para o meio do campo e deixou-se cair na erva. Ninguém quereria sair com um tempo daqueles. O calor era sufocante e o ar queimava. Sem uma única nuvem no horizonte, o céu estava quase completamente azul, completamente puro. Os raios do sol inundavam de luz o rosto de Âmbar. Gostava de os sentir a acariciar- lhe a pele, adorava este calor que toda a gente achava insuportável. Na aldeia, rezavam para que acabasse a canícula, para que ela não provocasse um período de seca. Mas Âmbar, essa desejaria que esse tempo fosse eterno.

Na curva do caminho, surgiu uma silhueta. Âmbar voltou-se na sua direcção. Um rapaz dirigia-se a ela. Aproximou-se ofegante e exausto, e parou junto dela. Conhecia-o bem. Era seu amigo de infância. Sorriu-lhe. Ele olhou-a com um ar triste. Tinha um ar tão sereno. Os cabelos, entre o ruivo e o louro, dourados como o sol, emolduravam o seu rosto de feições harmoniosas. A sua tez estava bronzeada. Os olhos, castanhos claros, onde sobressaíam alguns matizes de verde, davam ao seu olhar uma doçura e uma quietude inatas.

O rapaz disse então a muito custo, de respiração entrecortada:

- Briette, despacha-te. Eu fico com o teu irmão. E guardo também as ovelhas, mas vai, corre! A tua mãe. está muito mal.

Âmbar pensou que o seu coração ia parar de bater. Tudo à sua volta parecia desabar. Via tudo meio turvo. Ficou com medo. Sentia frio, apesar do sol tórrido. Ficou incapaz de se mexer.

- Briette! Corre! Vai! Tens pouco tempo. Corre, Briette! Parecia a Âmbar que a voz vinha de muito longe. Sentia a cabeça andar à roda, o mundo inteiro vacilava. Conseguiu recompor-se com dificuldade. Era preciso chegar antes que fosse demasiado tarde. Levantou-se de um pulo e começou a correr. Depressa. Depressa. As lágrimas toldavam-lhe a vista, corriam-lhe pela cara abaixo. Ela não dava conta de nada. Só uma coisa importava neste momento: evitar o inevitável, a morte da mãe. Isso não podia acontecer! Muito doente, vivia em grande sofrimento há semanas, meses. Não havia qualquer solução. Mas ela não podia morrer! Âmbar continuou a sua desenfreada corrida contra o tempo e a morte. Já avistava a aldeia. Corria, corria, sem consciência do seu cansaço, do seu abatimento. Finalmente chegou. Uma vez diante da porta de casa, empurrou-a e entrou na única divisão, escura e silenciosa, e precipitou- se em direcção à mãe. Ajoelhou-se a seu lado e pegou-lhe na mão, que a mãe apertou com todas as suas forças, retendo-a e sentindo o seu calor. A mãe estava estendida na cama, de palha. O seu rosto era a expressão de um sofrimento indescritível e a cor da sua pele era de uma palidez de morte.

Gemia, parecia delirar. Numa voz fraca e tremulante, murmurou:

- Estás aí, Âmbar, estás aí? - fez uma pausa, e continuou. Já só tenho alguns dias de vida. Terei então cumprido a minha missão.

- Mamã, não fales. Cansas-te.

- Não. Alguns dias. Mas não vou resistir. Estou muito mal. Âmbar tentava reprimir as lágrimas. Tinha que se mostrar forte, como sempre. Apertou ainda mais a mão de sua mãe. Um profundo desespero abateu-se sobre ela.

- Mamã, mamã - não conseguiu deixar de balbuciar -, tudo se vai resolver.

Esforçava-se por acreditar nas suas próprias palavras, procurava persuadir-se a si própria. Desejaria, sobretudo, que tudo isso não passasse de um pesadelo, de que iria acordar deitada na pequena cama de palha, agarrada aos seus irmãos e irmãs, como sempre. Mas não, o pesadelo continuava. Âmbar tentava fugir à horrível verdade. Quando o seu mundo se tornava demasiado cruel, costumava inventar um mundo de sonho. Refugiava-se nele, rejeitando o sofrimento. Mas a sua imaginação estava debilitada; apagava-se com demasiada facilidade para dar lugar à realidade. A dor tornava-se, então, ainda mais intensa, como que a vingar-se por ela ter tentado negá-la.

- Âmbar. Tenho que viver. Só mais um pouco. Alguns dias, apenas alguns dias. O descanso eterno está próximo.

Âmbar estremeceu ao som da sua voz. Apercebeu-se que o seu rosto, como o de sua mãe, estavam molhados de lágrimas. A mãe gemia, quase resignada. Ela própria ainda não queria dar-se por vencida. Era daquelas que sempre lutam até ao fim, mesmo depois de toda a esperança ter morrido e já não se vislumbrar qualquer futuro no horizonte. Era assim, e continuava a procurar uma luz na noite.

- Âmbar, Âmbar. A minha missão, Âmbar.

- Não fales, mamã. Não fales. Isso cansa-te, no teu estado. Mas não te preocupes, vais ficar boa. Não é mais grave que uma simples constipação. Amanhã já te vais levantar. Vais ver, o sol brilha. As cerejas estão maduras. A erva está mais verde que nunca. Não há uma nuvem sequer. O céu está tão azul. Vale a pena sair. Garanto-te, amanhã já te vais sentir melhor.

Âmbar tinha a voz despedaçada e tentava a custo reprimir um soluço.

- Âmbar. Eu só queria viver mais uns dias. Depois, pouco importa, mas eu tenho uma missão a cumprir e ainda é muito cedo. Se eu morrer, quem cumprirá aquilo que eu tenho de cumprir? Âmbar, manter-me viva por mais alguns dias torna-se para mim um dever. Mas eu não vou conseguir. É superior às minhas forças.

- Mamã, sossega, descansa, é importante.

- Âmbar, quando chegar o meu último dia, que está tão próximo, promete-me que acreditas em mim. Mesmo que as minhas palavras sejam as de uma doente debilitada... Promete-me.

- Prometo-te tudo o que quiseres mamã, mas agora, pára de falar, isso enfraquece-te.

Âmbar não levara a sério uma única palavra da mãe; atribuía as suas divagações à febre.

 

Eu, se estivesse no lugar da tia-avó estaria preocupada com ela. É uma pessoa tão fechada, tão solitária.

- Tem razão. Ela não é normal! Não tem uma única amiga e nunca ninguém sabe o que ela está a pensar.

- Nunca sorri, é inacreditável! Sempre cabisbaixa. A sua maneira de ser, sempre tão fria e persistente, chega a tornar-se incómoda.

- É isso mesmo: é algo de anormal, de intrigante, que nos deixa constrangidas.

As duas comadres calaram-se quando viram aproximar-se uma das mulheres mais idosas da aldeia. Ninguém sabia a sua idade, nem mesmo ela, que já não tinha força nem vontade de contar os anos. As pessoas já não prestavam atenção àquilo que ela dizia, que consideravam muitas vezes coisas sem sentido. No entanto, à parte o aspecto, ela continuava muito lúcida. Tinha as costas curvadas e, no rosto, uma ruga por cada caminho percorrido. Cada um dos seus passos lentos parecia exigir dela um grande esforço.

Alguns momentos depois, chegou perto das comadres. Era impossível que as tivesse ouvido, pois, à sua aproximação, estas tinham-se calado.

Cumprimentaram-na com um sorriso, fingindo-se amáveis. A mulher de idade tratou-as com um desprezo não disfarçado. Disse-lhes numa voz firme:

- Opala não é de facto normal. Na verdade, ela é diferente. E vai realizar coisas que vocês nem sequer se atreveriam a imaginar.

Em seguida, afastou-se lentamente. As duas comadres, confusas, aperceberam-se, pela primeira vez, da dignidade e da firmeza da tia- bisavó de Opala.

Tanto quanto se lembra, Opala sempre havia vivido com a sua tia-bisavó Eugénia e a filha desta, que tinha o mesmo nome. Para a distinguir da mãe, chamavam-Lhe Gina. Opala não conhecera outra habitação a não ser a casa abastada onde as três moravam. A sua tia-avó Gina, apesar da idade avançada, continuava cheia de energia. Sempre se ocupara da lida da casa e da educação de Opala, e fora ela que lhe ensinara tudo o que ela sabia: desde a Literatura à História. Também lhe transmitira os conhecimentos que tinha sobre plantas e remédios. Opala era uma aluna ponderada e aplicada. Nunca se questionara se aprender Lhe dava prazer. Os seus gostos, os seus sentimentos, as suas ideias eram indefinidos, muitas vezes, inexistentes. Muitos rapazes achavam-na bonita, mas ela mantinha-se fria, e a sua indiferença rapidamente arrefecia as paixões que suscitava. Era um pouco magra de mais, frágil, o rosto parecia de porcelana e a sua tez era leitosa. A sua figura dava uma impressão de fragilidade, tão delicadas eram as suas feições. Os seus olhos enormes, de um azul claro cristalino, onde se via por vezes uma pontinha de cinzento, reflectiam um olhar ausente. Pesados caracóis caíam sobre os ombros, acentuando a sua figura evanescente. Os cabelos eram loiros, mas cada uma das suas madeixas tinha uma tonalidade diferente: clara, mel, acinzentada. A maior parte das vezes, andava cabisbaixa, com os olhos presos ao chão. Não era tímida, mas a companhia dos outros não tinha para ela qualquer atractivo. Ninguém gostava verdadeiramente dela e ela não gostava verdadeiramente de ninguém. Apesar da atenção incondicional que Eugénia e Gina lhe dedicavam sem regatear, nunca conhecera verdadeiramente o calor humano ou a ternura.

Opala andava à procura de um objecto para desenhar. Desenhava muito. Tinha um traço claro e preciso, procurando a perfeição na semelhança. Ouvira um dia alguém dizer que a arte era uma maneira diferente de encarar a realidade, mas, para ela, isso não fazia muito sentido. Gostava de reproduzir aquilo que via e, mais do que tudo, queria superar-se a si própria. Escolhia então modelos sempre cada vez mais difíceis de reproduzir.

Nesse dia, não tinha encontrado nada que a satisfizesse. Vasculhara cada canto do seu quarto. De repente, uma ideia atravessou-lhe o espírito. Levantou-se e dirigiu-se ao quarto de Gina. Entrou - tinha autorização para isso, mas nunca o tinha feito. Estremeceu com a sensação de estar a cometer um delito. É ridículo, pensou ela. Tenho todo o direito de estar aqui! A Gina foi à aldeia, mas, se cá estivesse, não se importaria nada que eu fosse ao seu quarto! No entanto, não deixou de sentir um certo mal-estar. Deu alguns passos e sentou-se na cama. No quarto não faltavam objectos complicados que pudessem servir de modelo. O difícil era escolher, mas, impelida por um desejo estranho, tentou abrir a gaveta da mesinha-de-cabeceira. Estava fechada à chave. Opala ficou surpreendida consigo própria por aquilo que acabara de fazer. Nunca fora curiosa.

- Passa-se alguma coisa - murmurou entre dentes. - Não consigo controlar-me.

Aquela sensação estranha continuava a persegui-la. Este quarto. pensou Opala. Parou. Instintivamente, levantou os lençóis da cama e, em seguida, a almofada. Descobriu uma pequena chave, pegou nela, enfiou-a na fechadura da gaveta da mesinha-de-cabeceira e rodou-a. Depois parou por um momento e respirou fundo. O que é que estou a fazer?, perguntou a si mesma. Com um gesto brusco, abriu a gaveta. A primeira coisa que viu dentro foi um livro volumoso cujo título, escrito em letras douradas, era A Profecia. De dentro do livro saía um marcador de livros. Opala abriu o volume nessa página e leu algumas linhas antes de voltar a fechá-lo com um gesto brusco. Sem interesse, disse para si mesma. Procurou raciocinar: mas o que é que esperava encontrar? Irritada, continuou a pesquisar a gaveta quando o seu olhar foi atraído por uma bolsa de veludo preto a que desatou os cordões. Tem alguma coisa dentro. Alguma coisa que me desafia. Era um objecto liso e quente ao toque. Uma sensação estranha percorreu Opala: tinha a impressão de estar noutro lugar. Retirou o objecto e examinou-o. Tratava-se de uma pedra preciosa, de tamanho modesto, esférica. A sua cor era de um verde cristalino muito esbatido, polida e uniforme. Opala apertou-a.

- Isto não é uma pedra - disse baixinho para si mesma. - É outra coisa qualquer, poderosa. Uma mensagem.

Desconhecia donde lhe vinham tais convicções, mas sentia-se próxima da realidade. Estava num estado anormal, como que enfeitiçada. Esquecera tudo à sua volta. Parecia-lhe que existia um contacto, uma ligação quase palpável entre ela e a pedra, que esta queria transmitir-lhe alguma coisa. Opala apertou-a ainda com mais força. Nesse momento, a pedra arrefeceu e a sua superfície pareceu- lhe áspera. A jovem sentiu um enorme vazio, uma súbita melancolia. Em poucos segundos a pedra ficou gelada. Opala, arrepiada, viu-se obrigada a largá-la. A comunicação que ela julgara ter-se estabelecido havia-se quebrado de forma brutal. Levou a mão à testa. Estava a arder.

- Nunca deveria ter aberto esta gaveta - não pôde deixar de se auto-censurar. - Não deveria ter descoberto esta pedra.

Sabia-o, sentia-o. Com gestos precipitados, voltou a meter a pedra na bolsa que voltou para o seu esconderijo inicial. Em seguida, pegou no livro que deixara em cima da cama e guardou-o também na gaveta, que fechou à chave, e voltou a colocar esta por baixo da almofada. Alisou com cuidado os lençóis. Mesmo a tempo.

Gina, a sua tia-avó, entrou no quarto.

- Opala - exclamou! - Está tudo bem? Estás muito pálida!

- Estou muito bem. Andava à procura de um objecto para desenhar - respondeu ela.

Apesar dos seus esforços para parecer descontraída, a sua voz deixava transparecer a sua perturbação.

No preciso momento em que Opala tocou na pedra, ele sentiu um violento sobressalto. Um ricto havia-lhe deformado o rosto agressivo. De imediato, ordenou ao Conselho dos Doze, por telepatia, que se reunisse. Pouco depois juntou-se a eles na ampla sala de reuniões. À sua aproximação, todos baixaram os olhos de medo. Com a sua voz glacial, declarou:

- Aquilo que já não esperávamos finalmente aconteceu. Consegui interceptar algo de muito interessante.

Os doze membros do Conselho adivinharam do que se tratava. A satisfação espelhava-se nos seus rostos carrancudos. Um deles perguntou:

- Devemos ordenar aos Cavaleiros da Ordem para a trazerem?

- Não - respondeu ele, intransigente. - Tenho uma ideia melhor.

- De qual delas se trata? - perguntou um outro membro do Conselho, ávido de saber mais coisas.

- Da terceira. Talvez a mais perigosa. Ela possui poderes ainda adormecidos. Senti isso logo que ela entrou em contacto com a sua pedra. Aconteceu cedo de mais para ela, mas ainda bem para nós. Mais alguns dias e teríamos perdido essa satisfação!

- De que pedra se trata? - perguntou um outro membro do Conselho.

- Da opala, a mais pura das três. Mas também a mais frágil, agora que sei tudo sobre ela.

 

               Paris, 2002

O Dr. Arnon tirou os óculos. Fez sinal à enfermeira para se aproximar:

- Dir-se-ia que está a dormir tranquilamente, não acha? Indicou uma cama onde repousava, encolhido, um corpo enfezado. Parecia mergulhado num sono profundo, mas o seu rosto tinha uma cor de sofrimento.

- Já não lhe resta muito tempo - acrescentou ele. - Em minha opinião, alguns dias mais. Não se afeiçoou demasiado a ela, espero!

A enfermeira encolheu os ombros com um ar resignado.

- Não, não propriamente. Mas ela já sofreu tanto. O doutor ficou por alguns momentos em silêncio. Limpou cuidadosamente as lentes dos óculos antes de acrescentar num tom sério:

- De qualquer maneira, já não podemos ajudá-la. Ela desistiu definitivamente de lutar desde que os pais morreram.

- Ela não tem mais família?

- Não tem irmãos nem irmãs - respondeu ele. - Só um tio que, aliás, é o seu tutor legal. Mas mal a conhece. É ele que paga os tratamentos com o dinheiro que os pais deixaram.

- Uma família rica? - perguntou a enfermeira.

- Sim, mas isso não vai salvá-la.

- E esse tio, nunca vem vê-la?

- Não - respondeu ele devagar. - Nunca ninguém vem visitá-la.

Calaram-se. A enfermeira observou a silhueta frágil estendida na cama. Ela não tinha o direito de se prender a alguém que estava tão perto do fim. Desviou o olhar.

O Dr. Arnon disse-lhe então, suavemente:

- Histórias tristes. Já deve ter ouvido muitas, mas, pode ter a certeza, ainda vai ouvir muitas mais.

- Eu sei.

- Venha comigo, vamos esquecer tudo isto. Que tal um café?

A enfermeira concordou. Sem olhar para trás, abandonou o local, fechando a porta atrás de si. No quarto nada mais se ouvia que o ruído do aparelho que mantinha a doente presa à vida.

 

Jade estava magnífica no seu vestido azul esverdeado vindo do condado de Tyrel, feito por medida. Os seus olhos verdes tinham um brilho especial e um sorriso iluminava-lhe o rosto. Passeava pela sala como uma rainha por entre os seus súbditos. Era o foco de atracção de todos os olhares, a estrela da noite. Ela adorava sentir-se assim. Dançava, falava com os convidados, rindo abertamente. A festa estava a correr ainda melhor do que o que previra. A comida estava deliciosa, a decoração sumptuosa e o luxo era impressionante. É a felicidade completa, pensou ela.

Cada minuto a mais que a mãe roubava à morte era um pequeno milagre. Contra todas as expectativas, conseguira sobreviver até aí. Desde aquele dia, tão recente, em que Âmbar acorrera à cabeceira da sua cama, não havia qualquer dúvida que o fim estava próximo, mas, no entanto, continuava agarrada à vida. A jovem mantinha-se a seu lado dia e noite, sem dormir e comendo apenas alguns bocados de pão quando a fome apertava. Hoje, a mãe sentia-se ainda pior. De manhã tinha perdido a consciência e ainda não recuperara. Felizmente, ainda respirava, mas com tanta dificuldade.

O sol já se tinha posto. Era preciso que a mãe saísse daquele coma nefasto. Ela vai viver, ela vai viver, ela vai viver", repetia Âmbar para si mesma, com uma convicção inabalável.

Há sempre uma esperança, sempre! Enquanto respirar...

- Âmbar. - A voz da mãe, agora rouca, sobressaltou-a. Havia recuperado a consciência.

- Mamã! Oh, mamã...

- Vou conseguir, Âmbar, vou conseguir. Que horas são?

Âmbar respondeu-lhe, contente por vê-la com alguma lucidez, apesar dos olhos cada vez mais vidrados.

- Estou bem, Âmbar. Só tenho que aguentar mais um pouco. Terei então cumprido a minha missão. Estarei tranquila, lá em cima. no Céu.

- Mamã!

- Precisas de ser forte. Precisas de aceitar aquilo que tens para cumprir.

- Descansa, mamã.

- Na verdade, espero que não te tenhas esquecido... Hoje fazes catorze anos.

- Tinha-me passado completamente.

- Pois é, Âmbar, desejo-te um feliz aniversário.

Desde que Opala descobrira a pedra, tudo começara a correr-lhe mal. Perdera o sono e fora acometida de uma febre persistente. Não disse nada a Eugénia nem a Gina, com receio que viessem a descobrir a causa da doença. Em segredo, preparara remédios à base de plantas, mas estes não surtiram efeito. A febre não desaparecia e começou a ter náuseas violentas. Tinha medo de se trair, de dar a entender que tinha encontrado aquela pedra estranha entre os objectos pessoais de Gina. Eu não queria fazer nada de mal, repetia ela incessantemente para si mesma. Desde a sua descoberta, limitava-se a falar apenas o estritamente necessário. Fechou-se ainda mais sobre si própria. O que é que me deu naquele dia?, perguntava ela. Não consigo mesmo entender.

- Opala, mais um bocadinho de bolo? - perguntou Gina com um sorriso forçado nos lábios.

Opala estremeceu, absorta nos seus pensamentos.

- Não, obrigada - respondeu ela com frieza.

Ela bem via que a sua tia-avó estava a tentar desanuviar o ambiente, mas isso não bastava para afastar o seu sentimento de culpa. Gina não conseguiu conter por mais tempo a sua irritação. A sua paciência e a sua diplomacia foram esquecidas por um momento e, elevando a voz, disse, irritada:

- É o teu aniversário! A Eugénia e eu gostaríamos que tudo corresse bem, mas tu, tu não contribuis nada para isso!

- Gina... - tentou intervir a Eugénia.

- Deixa-me - continuou Gina, cada vez mais enervada. Opala, achas que é pedir muito, esperar um sorriso teu ou um simples "obrigada"? Depois de tudo o que temos feito por ti? Mas, afinal, o que é que tens no lugar do coração? Uma pedra?

Opala lançou um olhar incisivo a Gina.

Por falar em pedra, acho que me deves uma explicação, sentiu vontade de lhe perguntar. Mas calou-se e baixou a cabeça.

O duque de Divulyon contemplava Jade, amargurado. Porquê? perguntava a si mesmo sem cessar. Porquê ela? Porquê agora? Porquê tudo isto?" Sabia que as suas perguntas eram inúteis, que não iriam alterar nada a situação. Ele próprio sentia-se impotente, incapaz de modificar ou impedir o que quer que fosse. No entanto, havia uma voz interior que continuava a oprimi-lo e a maldizer esta profecia. Queria calar esta voz, que se tornava cada vez mais dolorosa, votá-la ao silêncio. Mas não conseguia. Não podia deixar de pensar em Jade. Triste, levou a mão ao bolso da casaca. Apertou a bolsa de veludo preto.

Âmbar tinha os olhos raiados de sangue, os cabelos sujos e desgrenhados; tinha os músculos tensos; os lábios estavam ressequidos. Mas não se dava conta disso nem tão-pouco lhe importava. A sua preocupação era zelar pela mãe. Todos os seus irmãos e irmãs tinham sido acolhidos por outras famílias. Mas ela, sendo a mais velha, teria que ficar junto à cabeceira da mãe. A divisão era iluminada pela ténue luz de uma vela. A chama, vacilante, ameaçava extinguir-se a cada instante. Como a felicidade, pensava. Há dias, estava eu sentada no campo, feliz e, de repente, a vida transformou-se num horrível pesadelo.

- Âmbar, estou a sentir-me mal. muito mal. - queixou-se a mãe.

- Mamã, pára de falar, isso enfraquece-te muito. Descansa. Dorme, já é tarde. Daqui a pouco já vais sentir-te muito melhor.

- Sim. quando tudo acabar. quando deixar de sofrer. quando estiver. no outro mundo.

- Mamã, peço-te, tens que ser corajosa!

- Quase que sinto pressa. de me ir embora. de me juntar ao meu homem. de esquecer a dor, a pobreza. a sensação de não ter. feito nada. da minha vida.

- Mamã! Nada do que estás a dizer é verdade! Fizeste tantas coisas. Olha, fizeste-me a mim. Sem ti, não seria nada!

- Se tu soubesses.

Depois de Gina se acalmar, instalou- se um silêncio opressivo na sala. À volta da mesa, cada uma procurava desviar o olhar da outra. Com intervalos regulares, Eugénia e Gina consultavam nervosamente o relógio. Opala, normalmente impassível, já não aguentava mais. Queria levantar-se e ir fechar-se no seu quarto. Mas continuou sentada, desesperada. A febre fazia com que sentisse a cabeça andar à roda. Ao fim de meia hora, Eugénia tossicou e disse:

- Chegou a hora.

Opala, surpreendida, olhou para ela.

- A hora para quê? - perguntou- lhe, inquieta. Eugénia sorriu- lhe com ar triste e respondeu:

- Ainda falta uma hora mas acho que é melhor começar já.

- Começar o quê? - perguntou de novo Opala. Gina pigarreou discretamente. Pediu desculpa a Opala por se ter exaltado e, olhando para Eugénia, repetiu:

- É verdade, chegou a hora.

Em seguida, mostrou um objecto que colocou em cima da mesa. Opala sentiu o sangue gelar-lhe nas veias. Empalideceu. A bolsa de veludo preto!

A Gina sabe que eu a encontrei e que estive a remexer na sua mesinha-de-cabeceira, pensou ela, transtornada, e agora quer explicações.

Mas, estranhamente, Gina não parecia zangada.

- É uma longa história - disse ela -, mas não podemos contar-te tudo. - Vais ter que ser tu a descobrir o essencial. Não abras já esta bolsa. Na verdade, não deves abri-la antes da meia-noite, pois poderia ser grave.

Opala, estupefacta, escutava-a. Mas, como já tinha experimentado o poder da pedra, não duvidou das palavras da sua tia-avó.

A noite já vai longa, pensou o duque de Divulyon. Apenas mais meia hora. Dirigiu-se a Jade, que conversava com os seus convidados.

- Jade - chamou-a em voz baixa.

Ela voltou-se, radiante.

- Papá! Não te vi toda a noite. A festa está a correr bem, não está? - Sorriu.

O duque de Divulyon sentiu um nó na garganta.

- É verdade, está a ser uma festa linda - articulou a custo - e tu estás maravilhosa. - Novamente um sorriso iluminou o rosto de Jade. - Jade. vais ter que deixar os teus convidados. Preciso de falar contigo.

Jade sobressaltou-se.

- O quê? - perguntou ela, revoltada. - Mas é a minha festa, papá! O meu aniversário! Aquilo que tens para me dizer não deve ser assim tão urgente!

- É, sim, é urgente.

Jade não disfarçou a sua decepção e a sua irritação. Pediu autorização aos seus convidados para se retirar e, contra vontade, seguiu o pai. Este levou-a até um dos salões interiores do palácio, tendo o cuidado de fechar a porta à chave. Ela sentou-se à sua frente, contrariada. O duque de Divulyon respirou fundo. Tinha que começar, para que à meia-noite.

- Jade - disse ele -, eu não sou o teu pai.

A mãe de Âmbar, juntando as poucas forças que lhe restavam, continuou:

- Âmbar. sinto que não acreditas em mim. mas eu não estou a delirar! Quando nasceste, a tua verdadeira mãe confiou-te a mim para que te protegesse até fazeres catorze anos. Âmbar, amei-te tanto como aos meus filhos.

Âmbar não queria acreditar. Era simplesmente impossível. A mãe tirou qualquer coisa do interior da sua túnica: uma bolsa de veludo preto. Estendeu-a a Âmbar que pegou nela, intrigada.

- Não abras esta bolsa antes da meia-noite. Ela pertence-te, bem como o seu conteúdo. A tua mãe confiou- ma. juntamente contigo.

Uma sensação de mal-estar apoderou-se de Âmbar.

- Há mais duas outras raparigas - disse Gina num tom grave. - As tuas inimigas. Nunca confies nelas. Também elas, quando nasceram, foram entregues a outras pessoas, para que estas zelassem pela sua segurança.

- Que segurança? - perguntou Opala. - O que é que nos ameaça?

- Não podes saber - interrompeu-a Eugénia. - Pelo menos por enquanto.

Opala acalmou-se. Tinha a intuição de que em breve tudo iria mudar, mas mantinha-se impassível.

Lançou um olhar à noite negra e serena. Não tinha receio do amanhã, nem de qualquer outro dia futuro. Apenas perguntou:

- Porque é que esperaram tanto tempo para me dizerem tudo isto?

Jade saltou da poltrona e olhou-o, incrédula.

- O quê? - exclamou de imediato. E, em seguida, a berrar:

- Não acredito! Não acredito! - Tinha as maçãs do rosto vermelhas e os olhos ardiam de raiva. Foram precisos alguns minutos até que o seu semblante recuperasse a calma. Uma intuição tinha-a obrigado a levar muito a sério a situação: o seu pai não mentia - ou melhor, o duque de Divulyon, aquele que ela julgava ser o seu pai! Começou a dar grandes passadas na sala, sentindo dentro dela uma cólera surda prestes a explodir.

- Quero lá saber dessa bolsa de veludo e das outras duas débeis! Quero lá saber da minha mãe que me abandonou à nascença e quero lá saber daquilo que não me queres dizer!

- Jade. - ia a responder-lhe o duque de Divulyon.

- Estou a falar a sério. Porque é que toda esta história ridícula me cai sobre a cabeça? Eu não pedi nada!

- Jade... - interrompeu-a o duque de Divulyon. - Ainda não é tudo.

- O que é que há mais? Mais alguma surpresa do género? Se é isso, muito obrigada, mas passo bem sem ela.

- À meia-noite terás que te encontrar com as outras duas raparigas debaixo de uma árvore que te vou indicar. Só voltarás depois de enfrentares muitas provações. Sobretudo, não reveles a tua identidade a ninguém, e guarda muito bem a bolsa de veludo. Vais encontrar muitos inimigos no caminho. Aprende a desconfiar deles e a reconhecê-los.

- O quê? - perguntou Jade, sufocada. - Mas eu não quero partir! Não quero, não quero um destino tão repugnante! Eu quero ficar! Por favor, papá. Eu quero ficar. - Jade rompeu num pranto.

- Jade - murmurou o duque de Divulyon - amo-te mais do que amaria se fosses minha própria filha.

- Agora, tens que partir. A bolsa contém também algum dinheiro. Tu vais conseguir, Âmbar.

- Mamã, eu não quero deixar-te! Tu precisas de mim!

- Já não preciso, Âmbar. Essa árvore fica muito perto daqui, entre a aldeia e o palácio de Divulyon, num campo onde as flores nascem durante todo o ano, e que não pertence a ninguém. É um dos últimos lugares encantados do Reino.

- Já sei onde fica, mamã - diz Âmbar, com o coração a bater muito forte, tão forte que até doía.

- A árvore é grande, de folhas sempre verdes, e frutos sempre maduros. É aí que vais encontrar as tuas inimigas. Vai, Âmbar. Tens que partir. E eu também.

- Mamã, não posso ir. Tu és, e serás sempre, a minha mãe. Eu não te vou deixar. Não agora!

- Tens que ser forte - respondeu a mãe com uma voz débil. Depois fechou os olhos e sorriu com ternura.

- Mamã, eu vou ficar - disse Âmbar, com toda a convicção. Lançou um olhar à mãe: - Mamã! Mamã - gritou, em pânico.

- Mamã!

A mãe parecia dormir tranquilamente, mas já não respirava. Tinha deixado este mundo, sem uma palavra, serenamente, com a imagem imprecisa de um lugar mais livre.

- Mamã - murmurou Âmbar. - Mamã. - Uma dor lancinante apoderou-se dela. Deu um beijo na testa da mãe. Ela também tinha que partir, rumo ao desconhecido. Vou ser forte, prometeu a si mesma. Em seguida, de coração ferido e a sofrer, mergulhou na noite.

 

Sob um céu estrelado, no campo eternamente em flor, debaixo da árvore que nunca perdia as folhas, as jovens observavam-se atentamente. Desde que se encontraram, alguns minutos antes, não haviam trocado uma única palavra. Estudavam-se mutuamente, comungando do mesmo pensamento: Somos inimigas. Jade fixava com desdém as outras duas raparigas. Cabeça levantada, olhar altivo, queria dar-Lhes claramente a entender que não tinham qualquer importância para ela. Uma provinciana e uma pequena burguesa, isso não me impressiona, disse para si mesma, irónica. Mas, lá no fundo, sentia-se profundamente confusa, embora estivesse decidida a não o dar a entender. Observava Âmbar, que apresentava o rosto desfigurado, chorando em silêncio. Coitada, metes pena! pensou. Observou detalhadamente a sua roupa grosseira, o seu rosto sujo, os seus cabelos enlameados. Não sentia qualquer ódio em relação a ela, apesar de ser dada como sua inimiga. Em seguida, o seu olhar chocou com o de Opala. Logo sentiu os músculos a retesarem-se. Esta não é o meu género, concluiu. Somos e seremos inimigas! Porque é que ela me olha desta maneira? Faz- me nervos, faz-me mesmo nervos!

De facto, Opala fixava Jade com um ar distante. Não era seu hábito fazer julgamentos precipitados, mas tinha compreendido logo que ela e esta rapariga de ar afectado não tinham sido feitas para se entenderem.

Quanto a Âmbar, estava demasiado perturbada com a morte da mãe para ter pensamentos lúcidos. Tentava reter as lágrimas mas não conseguia. Lançou alguns olhares desatentos às suas duas inimigas, mas, demasiado abatida para pensar, contentou-se em observá-las sem as julgar. Vinham-lhe ao pensamento frases soltas e revia-se junto de sua mãe: Há mais duas outras raparigas. tuas inimigas. um campo. dizem que é um lugar encantado. a bolsa. antes da meia-noite.

Um pormenor despertou Âmbar dos seus pensamentos. Fez um esforço para afastar momentaneamente a dor que oprimia a sua respiração e repetiu para si mesma as últimas palavras de sua mãe: Tens que ser forte. Tens que ser forte! Era necessário lutar contra este sofrimento, regressar ao momento presente. Secou então as lágrimas e rompeu o silêncio:

- A bolsa de veludo preto! Têm horas?

Jade e Opala, surpreendidas com o facto de Âmbar ter evocado uma certa bolsa, fixaram-na com curiosidade. Apesar de nunca o terem confessado, ficaram satisfeitas por alguém ter finalmente quebrado o silêncio.

- Têm horas? - repetiu Âmbar.

Jade consultou o seu relógio, cuja pulseira era incrustada de diamantes, e que ela exibia com orgulho.

- É meia-noite e dez - respondeu ela com um ar arrogante. Âmbar olhou para Jade. Não cobiçava a sua elegância, as suas jóias e o seu olhar ardente, mas admirava, apesar disso, a força que ela transmitia. Em seguida, o seu olhar pousou em Opala. Imóvel, o rosto mudo de emoção, aparentava um sangue-frio que, naquelas circunstâncias, não deixou de impressionar Âmbar.

- Chamo-me Âmbar. Perguntei-vos as horas porque a minha mãe deu-me uma bolsa de veludo preto com a recomendação de não a abrir antes da meia-noite.

- A mim aconteceu-me o mesmo! - exclamou Jade. - Só que a mim foi o duque de Divulyon, que foi meu pai durante catorze anos - mas que já não é - que ma deu.

- A sério? - admirou-se Âmbar. - Comigo aconteceu o mesmo, a minha mãe afinal não era a minha verdadeira mãe. Mas para mim ela será sempre a minha mãe, mas... ela morreu mesmo antes de vir para aqui...

Levada novamente pela emoção, parou de falar. Opala, que havia estado em silêncio até esse momento, disse com uma bondade pouco habitual nela:

- Âmbar, lamento muito. Deve ser muito duro viver todas essas emoções no mesmo dia.

- É verdade - concordou Âmbar, sentindo-se reconfortada por ouvir uma palavra amiga. - E tu, também recebeste uma bolsa?

Opala acenou com a cabeça.

- Nós as três temos isso em comum. É verdade, eu chamo-me Opala. - Em seguida, com uma voz dura, acrescentou: Apesar de não saber porquê, parece que somos inimigas.

- Absolutamente - acrescentou Jade de forma brusca, ao mesmo tempo que observava Opala.

- Não acredito - disse Âmbar. - Porque é que havíamos de ser inimigas se nem sequer nos conhecemos? Francamente, julgo que nada nos obriga a isso!

- É verdade, pois - insistiu Jade. - O duque de Divulyon, que se dizia meu pai, nunca mente. Ele disse-me que éramos inimigas, por isso é porque somos.

- O teu pai adoptivo é o duque de Divulyon? - perguntou Âmbar.

- Sim, até esta noite, fui Jade de Divulyon. Agora já não sei. Não só não conheço ninguém da minha família como parece que não devo dizer o meu nome, porque tenho muitos inimigos escondidos.

- A mim disseram-me o mesmo - revelou Âmbar.

- A mim também - confirmou Opala.

- E depois? O que é que isso me adianta a mim? Não sei para onde devo ir, não sei o que é que devo fazer! E depois, porquê este nosso encontro? Alguém me sabe dizer o que é que estamos aqui a fazer?

- Não - responderam Âmbar e Opala em uníssono.

- Estamos bem arranjadas! - observou Jade. - E porque é que eu digo "estamos"? Vocês são minhas inimigas, por isso não tenho que dizer "estamos"! Porque é que temos de continuar juntas

- Temos mais força as três juntas do que sozinhas, sobretudo se temos inimigos comuns - respondeu Âmbar. - À partida, são eles que poderão representar o nosso maior perigo, não?

Pessoalmente, não vos quero nenhum mal, até porque não sei quem vocês são.

- E se abríssemos as nossas bolsas pretas? - interrompeu Jade. - Talvez tenham alguma coisa importante lá dentro.

- Boa ideia - concordou Âmbar.

- Apesar disso, somos inimigas! - lembrou Opala. A sua observação não encontrou eco. Âmbar e Jade estavam ocupadas a abrir as suas bolsas de veludo. Opala imitou-as com um desejo irreprimível de voltar a ver a pedra. Ambar abafou um grito ao descobrir uma pedra com cores outonais, um laranja escuro e translúcido que se tornava vermelho ou castanho. Parecia que estava a admirar um pôr-do- Sol. Sentiu uma certa tranquilidade e a dor que sentia, embora não desaparecesse, atenuou-se ligeiramente, dando lugar a um calor agradável. Apertou aquela pedra que, sentia-o claramente, não era verdadeiramente uma pedra.

No mesmo momento, Jade colocou na palma da sua mão uma pedra de um verde escuro, puro e intenso. Um jade... ", murmurou. A pedra tinha uma cor tão brilhante, tão impressio nante que ela ficou alguns momentos a observá-la. Em seguida, também ela, e sem saber porquê, apertou-a com força.

Durante este tempo, Opala examinava a pedra que havia desencadeado a sua febre. Não reparara antes nos seus reflexos azulados, nacarados, que davam ao verde pálido um cambiante complexo e fascinante, como se a pedra estivesse salpicada de lantejoulas. Instintivamente, Opala também a apertou com força. A pouco e pouco, as três raparigas começaram a sentir que as suas angústias desapareciam. Tudo nelas se tornava mais solto, os seus pensamentos tornavam-se agradáveis. Esqueceram-se por momentos que se encontravam naquele campo, que tinham sido mais ou menos expulsas de suas casas e que era noite; esqueceram tudo e uma nova liberdade apoderou-se delas. Fecharam os olhos ao mesmo tempo. Um vínculo estabeleceu-se entre elas. As suas pedras pareciam comunicar entre si, cambiar, confundir-se, arrastando-as consigo. Eram simultaneamente uma só e milhares; isso não tinha importância: formavam um todo, um conjunto indestrutível. Aos poucos, foi-se construindo no seu espírito uma imagem, uma imagem desconhecida e complexa. Aí divagou durante alguns minutos, o tempo suficiente para se impregnar nas suas memórias, e depois esfumou-se e desapareceu.

Lentamente, as três raparigas foram saindo do estado em que haviam mergulhado. Não havia qualquer dúvida: iriam ter que seguir aquele desenho, esse símbolo estranho, composto de espirais, curvas e arabescos. As pedras tinham comunicado com elas ao imporem-lhes esta figura. As jovens observaram-se umas às outras com um novo olhar, quase amigável. Numa voz ainda distante, Âmbar disse:

- Não são pedras. É outra coisa. Uma ajuda. Tenho mesmo essa convicção, e vocês?

- Sim - concordou Jade. - Agora já sabemos o que temos que fazer: compreender o significado deste símbolo e partir em sua busca.

- Já é noite - interrompeu Opala. - Amanhã vemos isso. Temos que arranjar um sítio para dormir.

- Aqui - sugeriu Âmbar.

- Aqui - disse Jade, indignada. - Eu só durmo numa boa casa, num quarto espaçoso e numa cama macia.

-Jade - disse Âmbar com a sua voz suave -, já é tarde. Não vamos andar horas até à próxima casa e chegar lá e dizer: Cucu, somos nós! São três horas da manhã e queremos dormir aqui. É evidente que não vamos dizer os nossos nomes nem quem somos, porque vocês, se calhar, são nossos inimigos. E, afinal, procurar as pessoas às três horas da manhã para dormir em casa delas é uma coisa perfeitamente normal!

Jade lançou um olhar de raiva a Âmbar.

- Eu não vou dormir aqui - repetiu ela, sublinhando bem cada sílaba. Procurou um argumento convincente. - Além disso, se nos disseram para partirmos, para termos cuidado com os inimigos desconhecidos, é porque deve haver algum perigo aqui.

- Não necessariamente - observou Opala.

- É verdade! - insistiu Jade. - Não podemos voltar para trás e muito menos ficar aqui. Temos que descobrir o significado deste símbolo o mais depressa possível.

Âmbar, hesitante, depois de reflectir um momento, disse:

- Conheço uma pequena quinta isolada a uma hora daqui. Vive lá uma velha, sozinha com as suas galinhas e os seus gatos. Podíamos dormir no estábulo. Ela não ia dar conta. Estaríamos em segurança.

- Um estábulo E depois - protestou Jade com veemência.

- O meu vestido ia ficar todo amachucado. Além disso, não vai ser num estábulo que vamos encontrar o significado do símbolo.

- E porque não? A velha conhece-me e, apesar de não confiar em ninguém, responderá às minhas perguntas. De manhã, com o pretexto de ir fazer-lhe uma visita de cortesia, vou vê-la.

- E falavas-lhe de nós? Nem pensar! - interrompeu-a Jade.

- Nada disso! Fazia de conta que tinha acabado de chegar e não Lhe falava de vocês. Dizia-lhe que a minha mãe tinha morrido e que, antes de morrer, tinha desenhado o símbolo. Eu desenhava-lho e perguntava-lhe se o conhecia.

- Em resumo, ias fazê-la engolir uma grande mentira! disse Jade, regozijando-se com a ideia. - Isso agrada- me! Mas, e se depois a velha for contar a alguém? E se os nossos inimigos ficarem a saber que andamos à procura do símbolo? Ou se a velha for nossa inimiga?

- Não corremos nenhum risco - garantiu Âmbar. - Ela já não regula muito bem da cabeça e vive isolada do mundo. Bom, estamos a perder tempo, e se fôssemos?

- Não, não e não! - disse Jade, batendo o pé, zangada. Não quero ir! Está fora de questão. Vocês não repararam nas minhas jóias, na maneira como estou vestida? Pensem um pouco e irão chegar à conclusão que eu não sou nenhuma campónia que dorme em estábulos.

- Vamos - decidiu Âmbar.

- Não! - teimou Jade. Ela não suportava que alguém lhe oferecesse resistência.

- Opala, o que é que achas? - perguntou Âmbar. Opala, como era seu hábito, tinha-se mantido fora da discussão. Respondeu:

- Estou de acordo contigo, vamos. E se a menina Jade, a caprichosa, não quiser vir, só terá que ficar aqui.

- Eu não sou caprichosa! - gritou Jade, furiosa. - E a prova é que... eu vou! - disse ela sem reflectir.

Torceu a orelha por ver que tinha cedido desta maneira à vontade de outra pessoa. E ia dormir num estábulo! Mas o seu orgulho impediu-a de voltar atrás na palavra. Viu Opala levantar os olhos para o céu:

- Bom, finalmente mudaste de opinião! Passávamos bem sem ti!

Jade fulminou-a com o olhar, incapaz de encontrar uma resposta contundente. Âmbar interpôs-se entre elas.

- Parem! - ordenou ela, com firmeza. - Temos que ir embora.

Jade e Opala seguiram os passos de Âmbar sem mais protestos. Caminhavam depressa, com a preocupação de não se atrasarem, e não disseram mais nada, perdidas nos seus pensamentos. Jade procurava maneira de humilhar Opala. Esta rapariga de aldeia estava convencida que era superior a ela! Era intolerável! Sentia uma fúria a vibrar dentro de si, fazendo-a estremecer. Além disso, via-se obrigada a humilhar-se ao ponto de ter de dormir numa quinta. Tinha vontade de gritar, de bater em Opala, mas a noite ia já muito adiantada e o seu futuro era demasiado incerto.

Por seu lado, Opala interrogava-se sobre o símbolo que tinham que desvendar, sobre esses inimigos escondidos na sombra e sobre os dias que aí vinham. Sentia que alguma coisa dentro dela despertava: um interesse pela sua nova existência. Tinha-se libertado de um peso: deixar a casa era, para ela, como deixar uma prisão, apesar do conforto em que sempre vivera. Há muito que se sentia presa a um quotidiano banal, certa que o amanhã nada lhe traria de novo. Agora, a liberdade abria-lhe as portas para uma nova vida. Ia descobrir o mundo, conhecer um perigo que sabia estar próximo. Não estava excitada, nem tão-pouco assustada. Estava curiosa: finalmente ia compreender o significado da palavra "viver".

Quanto a Âmbar, não conseguia deixar de pensar na mãe. Revia o seu sorriso protector e ouvia a sua voz doce, o seu riso sonoro. Relembrava os momentos de ternura que tinham passado juntas; o seu rosto simples, marcado por tantos desgostos e por tão poucos momentos de felicidade, vinha-lhe à memória, qual ícone. A mãe perdera o marido, atingido por uma doença fulminante. Nunca conseguira recompor-se completamente. Também Âmbar tivera que vencer essa dor, mas isso foi mais fácil: nunca amara verdadeiramente este pai grosseiro e brutal, que nunca se preocupara com ela. Além disso, quando ele morreu, ela era pequena e não chegou a aperceber-se bem do que se tinha passado. Mas hoje tudo era claro, lancinante, e tinha que aceitar esta dor atroz. Algumas lágrimas caíram-lhe pela cara abaixo.

Tens que ser forte, tens que ser forte. A voz da mãe ecoava dentro de si. A Jade e a Opala têm uma personalidade mais forte que a minha, pensou ela. São determinadas por natureza, enquanto eu tenho que fazer um esforço para o ser. Tenho que lutar. Se conseguir convencer-me a mim mesma que sou capaz de ultrapassar tudo isso... talvez o consiga. " Nesta altura, Âmbar acelerou o passo. Já não estavam muito longe da quinta. As três raparigas tinham atravessado extensas planícies, campos, prados verdejantes e algumas colinas pouco elevadas. Atrás de uma delas, num lugar isolado, apareceu a quinta, meio abandonada.

- Sigam-me - disse Âmbar em voz baixa.

Entraram num estábulo escuro e desactivado, quase em ruínas. Vigas pendiam do tecto, teias de aranha invadiam cada recanto e da palha saía um odor nauseabundo. Âmbar deitou- se no chão, sem qualquer problema.

- Boa noite - disse ela, soltando um bocejo.

Opala, após uma certa hesitação, imitou-a e deitou-se ao lado dela. Jade, horrorizada com o local, resolveu não se mexer.

- Não vou dormir - disse ela em voz alta. - Não vou dormir.

Vendo que as suas palavras não suscitavam qualquer reacção, continuou:

- Não há problema, não se preocupem comigo! Vou ficar em pé. Garanto-vos que não há problema.

Não obteve qualquer reacção. De repente, uma ideia luminosa atravessou-lhe o espírito. Aproximou-se de Âmbar, já de olhos fechados, e sacudiu-a com violência. Âmbar reteve um grito, assustada. Vendo o rosto de Jade debruçado sobre ela, perguntou-lhe o que se estava a passar.

- Dá-me a tua roupa - respondeu Jade.

- O quê? Desculpa lá, importas-te de repetir?

- Temos que trocar de roupa!

- O que é que te está a passar pela cabeça? - resmungou Opala.

- Não pedi a tua opinião - respondeu secamente Jade.

Depois, voltando-se de novo para Âmbar, disse-lhe, pressionando- a:

- Despacha-te! Tenho um plano. Passa-me a tua roupa. Eu empresto- te o meu vestido. Mas cuidado! Não o estragues, não o sujes, nem o enrugues.

- Senão... é o fim do mundo! - suspirou Opala, cheia de ironia.

- Desta vez tens razão! - respondeu Jade no mesmo tom. Âmbar. despacha-te!

- Já que insistes - obedeceu Âmbar -, mas gostaria de saber porquê.

- Não é importante - garantiu Jade.

Mas, de repente, como que assaltada por uma nova ideia, acrescentou:

- Não, afinal, não quero. Fico como estou.

- Mas. - balbuciou Âmbar, que já não sabia o que fazer.

- Até amanhã! - disse Jade, alegremente.

- Até amanhã? - repetiu Âmbar, confusa. - Espera aí, Jade! Mas Jade não lhe deu ouvidos e abandonou o estábulo.

 

Com um passo decidido, Jade dirigiu-se para a entrada da quinta. Atravessou um jardim abandonado, onde as urtigas e as silvas cresciam de forma anárquica. Quando chegou a uma porta de madeira castanha, desengonçada, bateu, sem qualquer hesitação.

- Abram! - gritou.

Era preciso acordar a aldeã. Jade voltou a bater à porta, desta vez com mais força. Esperou durante alguns minutos. Vendo que ninguém aparecia e que parecia mesmo que a mulher estava a dormir, resolveu mudar de estratégia. Soltou um grito estridente e persistente. No estábulo, Âmbar e Opala ouviram-no e olharam uma para a outra, atordoadas. O que é que Jade estava a fazer? Esta parou um momento e depois gritou de novo, ainda com mais energia. Este grito tinha mesmo que acordar a velha. Assustada, ainda meio ensonada, abriu a porta. Viu uma jovem, extremamente elegante, enfeitada com jóias caríssimas. Devo estar ainda a sonhar. disse a aldeã para si mesma. Mas Jade, com uma voz firme e bem real, disse:

- Boa noite, chamo-me Jade e venho dormir a sua casa, porque o seu estábulo é muito desconfortável e eu não estou disposta a dormir ao relento. Como deve calcular, não faz o meu género.

A velha, aturdida, arregalou os olhos. Jade continuou:

- Estou habituada ao luxo, mas uma cama limpa poderá ser suficiente. Fui expulsa do meu palácio e por isso tenho que me adaptar. Bem, mostre- me agora o meu quarto, porque estou mesmo muito cansada.

A mulher voltou a fechar a porta. Esta rapariga é maluca, pensou ela. Mas Jade, obstinada, pôs-se a tamborilar violentamente na porta, ao mesmo tempo que gritava:

- Abra! - A aldeã, curiosa em saber mais coisas, embora desconfiada, voltou a abrir a porta, devagar. Jade olhou-a nos olhos, muito séria. Calmamente, recomeçou:

- Estive para vestir uma roupa de aldeã e fingir que era uma pobre rapariga, aflita, que andava fugida. De certeza que me acolheria imediatamente. Mas preferi ser franca, por isso, não me desiluda. Ando mesmo fugida e, mesmo sem parecer pobre, a verdade é que, há mais ou menos uma hora, passei a sê-lo.

A velha voltou a fechar a porta. Ela nunca dava guarida a ninguém e esta rapariga era tão estranha! Mas ela não estava a mentir, pois a sua voz soava a verdade e a sua expressão era perfeitamente sincera. A mulher entreabriu a porta pela terceira vez.

- Porque é que andas fugida? - perguntou-lhe azedamente.

- Não é por gosto! Obrigaram-me a isso e eu própria não compreendo ainda bem porquê. Por que motivo é que, se não fosse isso, eu viria procurar uma quinta tão miserável como a sua? E não me feche a porta na cara, não é um gesto de boa educação e, além disso, enerva-me. De qualquer maneira, enquanto não me deixar entrar, não sairei daqui.

A velha sentia-se abalada com o olhar arisco de Jade. Esta rapariga possuía algo de poderoso e raro dentro dela.

- Entra - disse a velha. - Vem daí.

Jade reprimiu um sorriso de triunfo. A aldeã conduziu-a por um corredor estreito e levou-a até um quarto exíguo, sobriamente mobilado, mas com um aspecto fresco e agradável.

- Era o quarto do meu filho - disse a velha com nostalgia.

- Serve - respondeu Jade.

- De qualquer maneira, é o único quarto além do meu.

- Está bem. Agora, é evidente que preciso de uma camisa de noite decente.

- Eu não sou dona de nenhum hotel - resmungou a velha. Saiu do quarto sem dizer mais nada. Ao fim de alguns minutos, voltou com uma camisa de noite esbranquiçada, amarelecida

pelo tempo, de um tecido de fraca qualidade. Estendeu-a a Jade, que pegou nela.

- Não é o meu palácio, mas também não é o estábulodisse ela, à laia de agradecimento.

- Fica à vontade - disse-lhe a sua anfitriã com uma voz pouco amável. - Mas amanhã vais-te embora.

- Oh, só se eu quiser. Mas não se aflija, eu não vou poder ficar.

- Ainda bem! Vá lá, dorme e deixa-me em paz. Tens umas maneiras! Acordar pessoas honestas a meio da noite!

- Sim, mas porque fui obrigada! Volto a dizer-lhe que o seu estábulo é repugnante.

A velha esboçou um sorriso fugaz e hesitante. Há muito que se esquecera como é que se sorria. Durante anos, vivera sozinha, esperando em vão que acabassem as desgraças que se haviam abatido sobre ela. Depois mergulhara na amargura. Enfim, alguém tinha aparecido, e mesmo tratando-se de uma rapariga caprichosa, autoritária e provavelmente maluca, isso fazia-lhe bem, pois obrigava-a a sair do seu torpor por alguns momentos.

Retirou-se no seu andar arrastado, sem dizer mais uma palavra. Voltou para o seu quarto e adormeceu logo, reconfortada com o sentimento de satisfação alojado no fundo do seu coração.

Quanto a Jade, enfiou a camisa de noite fazendo caretas: era um bocado grande, mas era quente e menos áspera do que parecia. A jovem meteu-se na cama. Quis ficar acordada para reflectir em tudo o que lhe tinha acontecido mas as pálpebras fecharam-se-Lhe, apesar dos seus esforços para as contrariar.

O galo cantou de manhã. A luz do sol inundou o quarto de Jade. Ela não acordou logo, tendo dormido até bastante tarde. Mal abriu os olhos, relaxada, o seu primeiro pensamento foi para o símbolo, como se ele tivesse estado presente nos seus sonhos. Levantou-se de um salto e vestiu-se rapidamente. Tinha trazido consigo um saquinho turquesa, prático e com o indispensável. Tirou uma escova e penteou-se com cuidado. Depois, pegou na bolsa de veludo preto e retirou a pedra. Apertou-a e pensou: Diz-me o que é que tenho que fazer. Mas nada aconteceu e a pedra continuou a parecer um simples jade. Colocou-a no seu lugar, excitada. Sei muito bem o que é que tenho que fazer", disse para si mesma. Não vai ser esta coisa que me vai ajudar. Lançou um olhar à volta do quarto. Numa prateleira estavam alinhados alguns livros, cheios de pó. As paredes, de um branco duvidoso, estavam nuas. Perto da cama, encostada a ela, uma secretária de madeira. Jade aproximou-se. Em cima dela não se via nada mas as gavetas estavam atoladas de cartas. Jade tentou ler algumas, mas não conseguiu decifrar a letra, confusa, que a tinta meio apagada tornava ilegível. Suspirou e voltou a colocar as cartas no sítio. Achando que poderia dar por terminada a sua inspecção ao quarto e que o aposento não tinha nada de interessante, saiu e, seguindo a voz da velha, que falava para os seus gatos, entrou na cozinha, que era ao mesmo tempo sala de estar e sala de jantar.

- Ah, estás aí? - disse a aldeã secamente ao aperceber-se da presença de Jade. - Senta-te.

Jade sentou-se em frente à mesa rectangular, de uma madeira resistente e rugosa. Disse:

- Tenho fome. Dê-me qualquer coisa para comer e depois vou-me embora.

A velha pousou à sua frente um naco de pão escuro e duro.

- Ah, não! - protestou Jade, repelindo o pão. - Quero uma coisa decente. Aviso-a desde já, não me vou embora enquanto não me servir um pequeno-almoço a sério.

- Não só não te contentas em incomodar-me - respondeu a anfitriã - como ainda és exigente!

- Evidentemente! E depois, qual é o problema? Traga-me depressa ovos estrelados, pão fresco, compota e leite com chocolate!

- Só isso?

- Não, tem razão, ainda não pedi tudo: arranje-me um cestinho com comida suficiente para alguns dias. Como lhe disse, ando fugida, e por isso tenho que tratar da minha subsistência. Não quero morrer à fome. Se isso acontecer, a culpa será sua, por não me ter ajudado! Despache-se!

- Mas. - balbuciou a aldeã, pasmada.

- Enquanto está aí, traga-me também uma folha de papel e uma caneta.

- Para quê?

- Quer ficar com o peso da minha morte na consciência?respondeu Jade, com um ar pretensamente dramático.

A velha percebeu que não adiantaria argumentar. Cedeu às vontades de Jade. Serviu-lhe um pequeno-almoço substancial. Em seguida, preparou diversas refeições frias, variadas e nutritivas, que colocou num grande cesto. Enquanto comia com apetite, Jade observava a azáfama da velha na cozinha. Quando a sua anfitriã acabou de satisfazer os seus desejos, sorriu-lhe e pediu-lhe novamente uma folha de papel e uma caneta. Sentia-se reconfortada, pois tinha comido tudo o que havia em cima da mesa. Agora só tinha que pensar no símbolo e no seu significado. A velha arrumou a mesa e deu-lhe com que escrever. Jade desenhou o símbolo com uma mão firme.

- O que é que estás a fazer? - perguntou a aldeã. - Ainda não estás satisfeita, queres mais alguma coisa? Já não posso mais!

- Está tudo bem - tranquilizou-a Jade. - Mas venha cá, quero mostrar- lhe uma coisa. Diga-me o que sabe acerca deste sinal.

A velha aldeã observou longamente o desenho e depois sacudiu a cabeça.

- Não sei realmente nada. Não te posso ajudar.

- Não me esconda nada - respondeu Jade num tom persuasivo. - Tenho que descobrir o significado deste símbolo, custe o que custar.

- Não o conheço.

- Tem a certeza?

- Absoluta. Mas conheço alguém que seria capaz de o decifrar. Mora numa cidade a algumas horas daqui. Essa cidade chama-se Nathyrnn.

- Eu conheço - disse Jade, cheia de presunção - mas nunca lá fui. Quem é esse homem?

- Vende livros antigos. Viajou muito, mas...

A velha parou de repente. Jade, não reparando na sua perturbação, perguntou:

- Conhece bem esse homem? Pode-se confiar nele? Quer dizer. posso confiar nele?

- É o meu filho - deixou a aldeã escapar, numa voz cansada.

- Ah, estou a ver. Porque é que falar nele a faz chorar?

De facto, uma lágrima tinha rolado pela cara da velha.

- Não consigo falar nisso.

- Mas eu disse-lhe o meu nome e não lhe escondi que andava fugida. É a sua vez de confiar em mim. Já deve ter percebido que não sou do género de deixar fugir as coisas. Vou convencê-la a falar porque sou muito curiosa!

- O meu filho tem muitos inimigos e tu podes estar do lado deles.

- Não se preocupe com isso! Eu também tenho uma colecção impressionante de inimigos; parecem estar por todo o lado. No entanto, eu não os conheço, mas o que é que quer?, são os tempos que correm! - disse Jade, num tom ligeiro e irónico.

- Parece que vou ter que te contar a história do meu filho, senão nunca mais me vejo livre de ti! - suspirou a velha.

- Pode ter a certeza disso - concordou Jade.

- O meu filho é uma pessoa excepcional. Desde a infância que sempre manifestou vontade em aprender. Já nessa altura adorava a natureza e tinha um bom coração, que ainda tem.

- Deixe-se de conversa fiada e explique-me porque é que ele é assim tão excepcional.

- Nós éramos muito pobres, muito mais que hoje - começou a velha. - Quando fez dezasseis anos, o meu filho partiu à descoberta do mundo. Tinha necessidade de liberdade e de aventura. Partiu, uma noite, deixando atrás de si uma carta de despedida.

- Só uma pergunta? - interrompeu Jade. - Como é que se chama o seu filho?

- Jean, Jean Losserand. Jean transformou-se, então, num vagabundo. Percorreu o mundo, sozinho, sem nunca lhe faltar a coragem. Escrevia-me muitas vezes. Um dia, chegou a um país muito estranho, o único país do mundo que não era dominado pelo Conselho dos Doze.

- Dominado! - exclamou Jade. - Está a exagerar. O que quer dizer é governado, não?

- O único país do mundo que não era dominado pelo Conselho dos Doze - repetiu a velha, obstinada. - Sob o domínio do Conselho dos Doze, quem nascer camponês ficará camponês toda a vida. Quem for fraco será menosprezado e humilhado. Quem pensar de maneira diferente será obrigado a pôr-se na linha. Quem tentar sair dessa linha será repelido e espezinhado. Quem criar terá que se contentar em reproduzir. Quem possuir um dom terá que se tornar banal. Quem se revoltar será morto. Quem sonhar com a liberdade será imediatamente preso. Quem.

- Cale-se! - gritou Jade. - Está a dizer disparates. Além do mais, se a liberdade é proibida, como é que o seu filho pode ser vagabundo?

- Precisamente, deixa-me continuar. Estava eu a dizer que o Jean tinha chegado a esse país pouco comum. Esse lugar não é governado por ninguém - dizia-me ele numa carta - e cada habitante vive como bem entende. Mas são poucas as pessoas que conseguem transpor o campo magnético que circunda o território. Para se chegar lá, é preciso acreditar na beleza de cada ser, na criatividade, na liberdade. É preciso acreditar num mundo melhor, na magia de cada instante e nos sonhos inverosímeis. É preciso conseguir imaginar o inimaginável. É preciso acreditar no impossível. Só então será possível entrar nesse país. É por isso que ele é inacessível ao Conselho dos Doze.

- O que é que há nesse país? Como é que ele se chama?perguntou Jade.

- Esse país chama-se Conto de Fadas e nele vivem criaturas mágicas, pessoas calorosas. Mas não posso descrever-te o que é que se pode ver lá exactamente, pois nunca lá fui. Tens que perguntar ao meu filho. Tudo o que sei é através das cartas que ele me escreve. Uma vez escreveu que qualquer criança pode entrar nesse país, pois aquilo que é irreal para os adultos é normal para ela.

- E o que é que o seu filho fez lá?

- O que é que ele fez? Ajudou pessoas, viveu aventuras incríveis. Arriscou a vida, combateu as forças perversas.

- Parece um conto! - comentou Jade, incrédula.

- Não há nada de surpreendente no Conto de Fadas. Mas o meu filho, cansado do país, recusou a glória e a felicidade que aí tinha e decidiu regressar a casa. Poucas pessoas resolvem deixar esse país desta maneira. Alguns deixam simplesmente de acreditar naquilo que os rodeia e, um dia, acordam na sua cama original. Nunca mais podem voltar ao Conto de Fadas. Mas com o Jean foi diferente. Ele queria apenas regressar à sua casa de infância. Ora, o Conselho dos Doze havia mandado instaurar uma nova lei que proibia a vagabundagem. Jean foi detido pelos Cavaleiros da Ordem e sofreu na prisão durante três longos anos. Mais tarde foi obrigado a arranjar trabalho. Como só os livros conseguiam oferecer-Lhe a hipótese de viajar, tornou-se vendedor de obras antigas. Mas, há dez anos, o Conselho dos Doze proibiu as comunicações por carta e nunca mais tive notícias dele. Ele não pode deixar a cidade de Nathyrnn, onde se encontra sob vigilância.

- Eu podia dar-lhe uma das minhas jóias valiosas para lhe agradecer a sua hospitalidade - disse Jade. - Mas vou fazer uma coisa ainda melhor: apesar de, provavelmente, ter de esperar muito tempo, prometo trazer-lhe notícias do seu filho.

 

Novamente a caminho, as três raparigas atravessaram o ducado de Divulyon. Contornavam as aldeias e evitavam os campos onde trabalhavam camponeses. Era preciso evitar que fossem vistas. Nathyrnn ainda ficava longe.

Âmbar levava o cesto cheio de víveres que Jade tinha trazido. Na noite passada, no estábulo, tinha-se afligido tanto! Opala e ela não paravam de se interrogar sobre a ousada decisão de Jade. Âmbar, mais sonhadora, imaginara mil possibilidades. Estremecia quando pensava nas consequências dos actos que Jade pudesse ter cometido. Quanto a Opala, mantinha a sua calma habitual. Explicou a Âmbar que apenas vivia o momento presente, nunca voltava ao passado, mas também não temia o futuro. Jade poderia fazer o que quisesse, mas preocupar-se de mais com isso não iria resolver nada. Aos poucos, a conversa foi-se desviando. Âmbar falou sem parar, descrevendo com grande entusiasmo o mundo que havia deixado atrás de si.

Reconstituiu o seu quotidiano a Opala, surpreendida com o amor que Âmbar punha em tudo. Contou-lhe como é que ela observava a lua e as estrelas, como é que ela aspirava o perfume de cada flor selvagem, como é que ela corria pela erva fresca, descalça, e como é que ela nadava na água límpida do lago. Explicou ainda como gostava tanto do sol, de imaginar histórias fantásticas, ouvir os outros e ajudá-los, ler histórias que, apesar de proscritas, se podiam encontrar em casa de um homem generoso e culto. Contou ainda muitas outras coisas enquanto Opala ouvia, bebendo cada uma das suas palavras. Âmbar tinha sido feliz, apesar de ter vivido na maior miséria material. Confessou ter sofrido, mas isso apenas contribuíra para valorizar ainda mais a sua felicidade. E depois, foi a morte da sua mãe. Âmbar não confessou a sua dor a Opala; ainda não estava preparada. Mas agradeceu- lhe por a ter ouvido, ao mesmo tempo que se dava conta que, ao abrir-se desta forma, havia criado um vínculo entre elas, embora frágil.

Caminhando em direcção a Nathyrnn, Âmbar ia observando Opala. Tinha a certeza que ela não era assim tão insensível como parecia. Na noite passada tinha tido um pesadelo que a acordara. Reparara na expressão assustada do seu rosto, como que à espera de ajuda. Opala sonhara com um perigo iminente e com rostos sombrios e ameaçadores. Atirada para uma espécie de estado febril, murmurara na altura:

- Eles estão ali, muito perto. Eles souberam por mim. Nunca devia ter entrado naquele quarto. Agora é tarde demais.

Âmbar acalmara-a com a sua voz serena. As duas voltariam a adormecer passado pouco tempo.

- Ainda falta muito? - queixou-se Âmbar dirigindo-se a Jade.

- Sim - respondeu ela, secamente. - Já vos disse por três vezes que temos que ir a Nathyrnn procurar esse tal Jean Losserand para lhe falarmos no símbolo e para lhe pedirmos que nos conte a sua viagem ao Conto de Fadas.

- Eu não acredito em contos nem nesse país mágico - interrompeu-a Opala. - O Conselho dos Doze proibiu os contos; nunca li nenhum e não me fazem falta!

- Pois eu acredito - disse Âmbar, categórica. - Sempre inventei histórias deste género e adorava contá- las. Gostava mesmo de ir a esse tal Conto de Fadas! E tu, Jade?

- Evidentemente que li histórias No meu palácio havia um

velho filósofo chamado Théodon. Obedecia ao Conselho dos Doze à sua maneira, e acho que não tinha medo dele. Foi ele que me deu alguns livros de histórias para ler e me ensinou muitas coisas.

- Muitas coisas? - ironizou Opala. - Quem diria! Jade preparava-se para lhe responder mas Âmbar interveio:

- Acalmem-se! Não vamos discutir como crianças sempre que começamos a falar! Jade, acaba o que estavas a dizer. Acreditas nesse país, na magia, no irreal?

- Gostaria de acreditar - respondeu Jade, após uma curta reflexão. - Esse país existe, disso tenho a certeza. Mas quem são os habitantes? O Conto de Fadas será um lugar mágico ou uma simples lenda? Preciso ouvir o Jean Losserand contar o que lhe aconteceu e talvez então fique completamente convencida.

Como ninguém tinha mais nada a acrescentar, a conversa ficou por aí. Entre elas instalou-se um silêncio obstinado.

Jade tentou imaginar Nathyrnn, Jean Losserand e a sua história, mas não conseguiu e não fez caso. Pôs-se a pensar nas perguntas que iria fazer ao antigo vagabundo. Fervia de impaciência, nervosa com esta caminhada demasiado longa para o seu gosto.

Âmbar lembrou-se dessa mesma manhã em que, sufocada ainda pelos receios sentidos por causa de Jade, a vira chegar com um cesto completamente cheio de alimentos e um sorriso desconcertante.

- Vamos para Nathyrnn! - limitara-se a dizer. Âmbar havia feito muitas perguntas e a tudo Jade respondera. Opala ouvira sem se surpreender, mas Âmbar reprimira uma exclamação de surpresa: a velha que ela conhecia a comportar-se assim com tanta cordialidade? Inacreditável.

Jade falara longamente do Conto de Fadas. Nesta altura da narração, a atenção de Âmbar divagou para um sonho acordado: imaginava-se a transpor o campo magnético deste país maravilhoso, com uma paisagem digna do seu nome, inventando, com todos os pormenores, as aventuras incríveis que a arrastavam para este mundo mágico.

- Âmbar!

Irritada por a terem despertado dos seus sonhos, Âmbar fixou Jade.

- Âmbar, não vês que a Opala não está bem?

Âmbar voltou-se para Opala. Esta tinha ficado para trás e parara. Petrificada, tinha uma expressão de terror. O seu olhar era distante, fixo e aterrorizado.

- Tentei ajudá-la, mas ela nem se mexeu - continuou Jade.

- E tu continuavas a andar!

- Estava longe. - justificou-se Âmbar.

- Opala também parece estar ausente. Não é que, pessoalmente, isso me incomode, mas pode ser grave.

Rodearam a jovem, falaram com ela, procuraram tirá-la daquele torpor. Âmbar não pôde deixar de sentir remorsos, por causa de Opala, embora injustificados. Não sabia como podia ajudá-la e esta impotência torturava-a. De repente, Opala pareceu regressar à realidade. A sua expressão voltou ao normal. Tentou dizer alguma coisa, mas, subitamente, caiu por terra, inanimada. Âmbar soltou um grito e ajoelhou-se junto dela. Jade continuou de pé a assistir aos acontecimentos, embora o seu olhar traísse uma certa inquietação que ela preferiria não sentir. Felizmente, Opala recuperou os sentidos ao fim de alguns minutos.

- O que é que aconteceu?

Ela não respondeu de imediato. Procurava as palavras que descrevessem com exactidão todas as sensações que havia experimentado.

- Alguém acabou de me transmitir uma mensagem, mas não me revelou a sua identidade. No início senti uma dor horrível a tomar conta de mim, e o meu corpo ficou rígido sem eu querer. O sofrimento paralisou-me. Ouvi uma voz de homem a falar comigo. Ecoava na minha cabeça, desagradável, e dizia que eu seria a primeira a morrer. Cada uma das suas palavras causava-me um mal terrível. Depois, a voz disse que eu estava sob o seu controlo e que eu nada poderia fazer para o evitar.

- Deve ser um dos nossos inimigos que não tem mais nada que fazer senão atormentar uma pobre rapariga - interrompeu Jade. - Lamentável!

- Cala-te - contrariou-a Âmbar. - Não me parece que a situação seja para brincadeiras: alguém contactou a Opala por telepatia.

- A voz também me enviou imagens - continuou Opala. A primeira era de uma cidade. Tenho a certeza que era Nathyrnn. Depois, juntamente com aquela dor inexplicável, fui acometida de uma forte náusea. Foi então que a voz me disse: Vamos encontrar-nos nesta cidade. Em seguida, vi um livro enorme cujo título, A Profecia, estava gravado em letras douradas.

Estava coberto de sangue. A voz invadiu o meu espírito: A Profecia não se irá realizar, como outros gostariam, mas, num ponto, ela diz a verdade. Vocês vão morrer! Quanto ao Eleito, ele também vai morrer. Mas tu serás a primeira a cair e vais ser tu que os vais trair a todos. Estás sob o meu domínio e obedecer-me-ás como um autómato.

- É de certeza uma mentira! - gritou Âmbar.

Jade não tentou humilhar Opala com qualquer frase contundente. De repente, deixou mesmo de sentir qualquer ódio em relação a ela. Talvez a sua inimiga não fosse assim tão insensível como o fazia crer. De facto, precisamente neste momento, Opala parecia emocionada, chorando em silêncio.

- Eu sei que todas aquelas palavras eram verdadeirasdisse ela com uma voz abafada. - Estou convencida disso.

- Estás enganada - respondeu Âmbar, para a tranquilizar. Opala, sabes muito bem que essa voz te queria fazer mal e que de certeza te mentiu.

- Não. Gostaria que assim fosse, mas sei que ela falava verdade. A voz ainda me disse outras coisas.

Opala calou-se. As lágrimas, agora mais abundantes, corriam-lhe pelo rosto. Conseguiu conter um pouco o desespero, mas aquela mensagem havia-a amedrontado de mais para que pudesse controlar-se facilmente.

- O resto! - pediu bruscamente Jade. - Conta o que é que a voz disse mais.

- Se isso não te perturbar - apressou-se a completar Âmbar.

- O resto da mensagem era perfeitamente verdade. A voz adquiriu uma entoação que se pretendia suave, mas era áspera e rouca. Disse-me que me conhecia melhor que eu própria, que eu nunca tinha brilhado fosse no que fosse, que nunca tinha conhecido o amor, a tristeza, a alegria, a piedade ou o medo. Acrescentou que eu nunca tinha dado atenção aos outros, que nunca manifestara interesse por nada. Que não tinha sido senão um fardo para os que me rodearam, que eu não era nada. Nada. As suas últimas palavras foram para referir que ninguém conseguira amar-me e que ninguém alguma vez o conseguiria. E tudo isso é inteiramente verdade. É a realidade.

Opala não irrompeu num pranto. Pelo contrário, engoliu as lágrimas. Levantou a cabeça com dignidade e declarou:

- Eu não sou aquela rapariga. Se ninguém me ama, tanto pior! A partir de agora vou deixar de fingir que sou indiferente.

Âmbar e Jade, impressionadas e um pouco perturbadas, calaram-se. Pouco faltou para Jade desatar a rir desta comédia, mas Âmbar, com um olhar sério, impediu-a.

Por fim, cansada de estar calada, Jade disse com entusiasmo:

- Isto não vai alterar nada. Vamos para Nathyrnn! E vamos já. Mais tarde pensamos nessa mensagem. De qualquer maneira, não há nada a fazer.

- Gostava de pedir um conselho às nossas pedras - respondeu Âmbar. - Esta história da voz não me agrada.

- Estás com medo! - exclamou Jade, com desdém.

- Tenho, e depois? É normal, não achas? Tenho razões para isso e não sou como tu.

- Como eu?

- Sim, tão arrogante ao ponto de nunca confessares o que sentes.

- Desculpa. Estás a criticar- me, ou estarei enganada?

- Estás enganada! Estou apenas a constatar. Bem, vamos tirar as pedras. Acabou-se a discussão.

Os olhos verdes de Jade brilharam momentaneamente, reflectindo um dos seus habituais acessos de cólera, mas a fúria que deles cintilava extinguiu-se rapidamente. Cada uma das raparigas retirou a sua pedra da bolsa preta e apertou-a. Nada aconteceu. Jade irritou-se. Âmbar e Opala, desiludidas, interrogavam-se quanto à razão de nada ter acontecido.

- Não temos alternativa: temos que ir a Nathyrnn - repetiu Jade.

Âmbar concordou, mas Opala protestou de imediato:

- Não. Não temos nada que lá ir! Quem me enviou a men- sagem disse-me que iria encontrá-lo lá. Não quero lá ir. Não posso.

- Tens razão - afirmou Âmbar. - És capaz de correr um grande risco. É melhor evitarmos esta cidade.

Jade reprimiu um protesto. Poderia ter-se mostrado inflexível, manifestar uma vez mais a vontade que tinha em se encontrar com Jean Losserand, compreender o mistério do Conto de Fadas e o significado do símbolo. No entanto, calou-se. Apesar de ser uma perfeita egoísta (do que nunca se convencera, e o que muito menos confessara), não gostaria de colocar em perigo a vida de Opala. Só que, por mais superficial que Jade fosse, também era inteligente. Percebeu que havia algo de incoerente na mensagem e pôs-se a reflectir. Ficou de pé, preocupada, e não demorou muito a encontrar a falha. Foi então que, segura do seu raciocínio, se dirigiu a Âmbar e a Opala:

- Vamos para Nathyrnn. Confiem em mim, ninguém corre perigo.

Passou a noite a pensar. Não comeu nada, não descansou. Não precisava. Tinha que delinear a sua estratégia. Tudo o mais era secundário. Quando nasceu o dia, pedira de novo, por telepatia, para que o Conselho dos Doze se reunisse. A reunião fora breve. Apenas para lhes dar conhecimento que estava tudo em ordem, que o plano era infalível e que, dentro de pouco tempo, iria começar a pô-lo em prática. Os membros do Conselho, receosos, nem haviam ousado perguntar-lhe quais eram os seus projectos. Confiavam inteiramente nele. Ele era o seu chefe hierárquico. Ordenou-lhes que voltassem ao meio-dia para uma reunião de alto nível.

Chegada a hora de rever estes incapazes ávidos de poder e de dinheiro, com um gesto brusco arranjou o trajo - um longo manto púrpura bordado a fios de ouro - e dirigiu-se para a sala de reuniões do Conselho dos Doze. Abriu a porta com a habitual brusquidão. Mal entrou, fez-se silêncio. Todos os participantes sentiram-se invadir pelo medo e imobilizaram-se. Ninguém ousou olhar para ele. Satisfeito por ver que a sua autoridade era respeitada, tomou a palavra. As paredes vibraram ao som da sua voz cavernosa:

- Opala está sob o meu controlo - disse ele, calmamente. Tudo se passou como eu queria. Acreditou em tudo o que eu lhe disse.

A admiração dos membros do Conselho dos Doze misturou-se com o medo. Olhou-os de alto a baixo por uns momentos, observando os seus rostos ávidos, os seus cabelos brancos e os seus olhos ternos. Ele não sabia o que era a velhice.

- O que é que se vai passar? - ousou perguntar o Terceiro membro do Conselho, um homem de idade avançada, mas ainda ingénuo e influenciável.

- Não precisam de saber.

- Pois não, evidentemente que não - balbuciou o Terceiro membro.

Os membros do Conselho dos Doze ousaram finalmente levantar os olhos para ele. A sua pesada silhueta estava envolta em sombra. Apenas o seu olhar se distinguia na escuridão em que tinha mergulhado o seu rosto. Os seus olhos penetrantes tinham um brilho firme.

- Terminei. Informar-vos-ei do que vier a acontecer. Depois de pronunciar estas palavras, abandonou a sala. O Conselho dos Doze viu-o sair, a ele, o Décimo Terceiro membro, cuja existência fora destas paredes ninguém conhecia, e que impunha a sua vontade a todos. A sua imagem não se reflectia em nenhum dos inúmeros espelhos. Não tinha sombra. Não era um ser humano.

 

Âmbar admirava Jade. Parecia irreflectida e mimada, mas acabara de lhes provar que também podia ser muito perspicaz. Tinha rapidamente adivinhado aquilo que ela jamais havia imaginado:

- Se a voz te ameaçou de te encontrar em Nathyrnn - dissera com toda a segurança - é porque ela não quer que tu lá vás.

Foi difícil convencer Opala. O seu belo rosto, lívido, estava destroçado pelo medo; toda ela tremia. Cada passo que dava na direcção da cidade representava um enorme esforço. Tinha começado por implorar a Jade para não continuarem. A angústia apertava-a, insuportável. Gritara de dor, soltando um grito tão desesperado que ela própria se assustou ainda mais. Jade exaltou-se e ordenou-lhe para as seguir. Como Opala não queria saber de nada, acabou por lhe dar uma estrondosa bofetada e arrastá-la por um braço. Não sabia o que era ser paciente ou moderada, e Opala sofreu as consequências.

- Vens connosco, quer queiras, quer não. Não estás no teu estado normal! Noutras circunstâncias, ter-te-ia deixado aqui sem a menor pena, mas como estás à mercê de um inimigo telepata sem nada que fazer...

Apesar de contrariada, sentindo a cara a arder, Opala acabou por obedecer a Jade.

- Opala, estás melhor? - perguntou Âmbar ao fim de algum tempo.

Opala recusou-se a falar do seu estado. A humilhação a que acabara de ser sujeita era maior que os seus receios, e não queria que a isso juntassem a impressão de que era digna de pena.

- Tudo bem - respondeu ela com uma nova segurança.

- Tens a certeza? - insistiu Âmbar.

- Sim.

- Jade, ainda estamos longe de Nathyrnn? - perguntou Âmbar. - Opala ainda está fraca.

- Estou muito bem - respondeu Opala, a quem a preocupação de Âmbar irritava.

- Estamos a uma ou duas horas de Nathyrnn - informou Jade.

- Tens a certeza que não te enganaste no caminho?

- Tenho - disse Jade, secamente.

- Tenho fome - recomeçou Âmbar. - Não comemos quase nada de manhã. É melhor pararmos outra vez, descansarmos um bocado e comermos qualquer coisa.

- Não - respondeu Jade.

- Vamos parar! - interveio Opala.

Jade lançou-lhe um olhar, mais de espanto do que de contrariedade: não contava com tal oposição.

- Vamos parar - disse Âmbar, ainda com maior firmeza.

- Está bem - disse Jade, resignada, soltando um suspiro. Sentaram-se na berma do caminho, cercadas de ervas secas e de plantas selvagens. Âmbar sorriu ao verificar que o sol brilhava com toda a intensidade. Começou a comer com um apetite que a surpreendeu. Observou Opala, que, desde a comunicação telepática, parecia outra. Os seus grandes olhos azuis reflectiam uma enorme angústia e o seu rosto estava agora sem cor. Âmbar sabia que irritava Opala com as suas preocupações, e sentia-se magoada com isso. Tinha necessidade de sentir a estima dos outros e gostaria muito que Opala Lhe manifestasse um pouco mais de amizade. Mas tinha consciência que esta rapariga adoptava uma atitude defensiva pois considerava as duas suas potenciais inimigas.

- Não tenho fome - disse Opala, empurrando o cesto que Âmbar lhe estendia.

- Vamos experimentar uma vez mais as pedras - sugeriu esta.

- Isso não vai adiantar nada - disse Jade, que, mesmo assim, acabou por desatar os cordões da sua bolsa preta e apertar a pedra que lá estava dentro.

Âmbar e Opala imitaram-na. Desta vez o efeito foi imediato. As três raparigas sentiram-se levar por um turbilhão e serem acometidas por uma náusea. Uma angústia indescritível apoderou-se delas. As pedras pareciam estremecer e as raparigas sentiram o corpo a tremer. De repente, a comunicação foi interrompida. Continuaram de pé, cambaleantes. Âmbar e Jade sentiram-se cansadas, despojadas de toda a energia, mas Opala recuperara o seu estado normal e deixara de sentir medo.

Envergonhada pela fraqueza que demonstrara, quis agora desforrar- se:

- Vamos depressa para Nathyrnn. Foi estupidez da minha parte não querer ir convosco. Estava enfeitiçada por aquela mensagem e só disse disparates. Agradeço que os esqueçam.

Queria que Âmbar e Jade se convencessem que ela não era a rapariga emotiva que havia falado por influência daquela voz. Essa voz que ressoara no seu espírito tinha-a desorientado e oprimido com uma facilidade aterradora. Censurava-se a si própria.

Maquinalmente, as três raparigas retomaram o caminho.

- Jade - disse Âmbar -, quando chegarmos a Nathyrnn é melhor venderes o teu vestido e as tuas jóias e comprares roupas mais sóbrias. Assim vestida, vais dar muito nas vistas.

- Eu gosto de dar nas vistas - respondeu Jade, irritada. - Não quero parecer uma provinciana! Se não tens dinheiro para comprares jóias e vestidos do condado de Tyrel, cala-te e deixa-me usar o que eu quiser.

Âmbar, vexada, quis responder, mas conteve-se. Era melhor não espevitar a cólera de Jade. Não há dúvida que o vestido, finamente confeccionado por hábeis artesãos, lhe assentava às mil maravilhas. Levada pela fantasia, Âmbar imaginava-a no papel de guerreira, empunhando uma espada a jorrar sangue, a cavalo num garanhão branco, como a espuma do mar, e de olhar feroz. Voltou depois o seu pensamento para Opala e via-a no papel de uma princesa de contos de fadas, com um vestido cinzento pérola a condizer com os seus olhos azuis claros e a sua tez pálida. Levava um diadema de ouro que se misturava com os seus cabelos loiros e ondulados. Sob o diadema, os olhos de Opala, como sempre, fixavam o chão. Âmbar sorria a esta ideia. A sua fantasia foi interrompida pela voz de Jade:

- Chegámos a Nathyrnn!

As três raparigas tinham chegado à cidade sem problemas, tendo-se apenas cruzado com camponeses que, surpreendidos com a sua presença, não se atreviam, contudo, a olhar para elas. Nesse momento, as muralhas impressionantes que cercavam Nathyrnn haviam substituído os campos e as pradarias.

- Como é que vamos entrar? - perguntou Âmbar, confusa.

- Isto não estava previsto - disse Jade, querendo fazer humor. Dir-se-ia que o perigo e o imprevisto a atraíam.

As muralhas eram guardadas por cavaleiros da Ordem. Lá estavam três deles, no seu uniforme cinzento, montando cavalos da mesma cor, uma espada afiada na bainha. Pareciam apreensivos e impiedosos. Perseguiam e castigavam os culpados sem piedade, aplicando por toda a parte a lei do Conselho dos Doze.

Jade dirigiu-se a um dos cavaleiros, fazendo sinal a Âmbar e a Opala para que a seguissem. Desconfiadas, puseram-se atrás dela.

- O que é que querem? - interpelou-as o cavaleiro de forma grosseira. Tinha um ar imponente, mas vulgar e pouco amável. A sua voz era firme e rude.

- Precisamos de entrar em Nathyrnn - respondeu Jade no mesmo tom, sem se mostrar intimidada.

- A sua autorização!

- Que autorização? - deixou escapar Âmbar.

Jade fuzilou-a com o olhar.

- Não lhe ligue - disse ela ao cavaleiro com um sorriso sedutor. - É uma das minhas criadas e não funciona muito bem da cabeça.

- Mostre-me a autorização - repetiu o homem. - Ninguém entra em Nathyrnn sem uma autorização passada pelo duque de Divulyon, eleito pelo Conselho dos Doze e responsável pela administração do território.

- Eu sei! - disse Jade, prontamente.

Quis acrescentar que era filha do duque de Divulyon mas conteve-se. Não devia revelar a sua identidade a ninguém.

Sorriu de novo para o cavaleiro. O homem parecia um pouco desconcertado com o seu aspecto: percebeu que era rica e que devia pertencer a uma família influente. Mas recebera ordens e não podia deixar entrar ninguém sem autorização.

Jade disse então:

- Sou sobrinha do duque de Divulyon; chamo-me Coralie de Mordorais e estas duas raparigas são a minha criada e a minha dama de companhia.

Jade tinha uma prima com esse nome, filha da irmã do duque, que tinha mais ou menos a sua idade.

- Já ouvi falar da sua ilustre família, menina de Mordorais

- respondeu o cavaleiro com uma voz mais suave. - Mas, sem autorização, não posso deixá-las entrar.

- O meu pai vai ficar zangado - disse Jade, calmamente.

- O conde de Mordorais?

- Ele mesmo - anuiu ela. - Como deve saber, ele serve às ordens do duque de Divulyon. Tem uma grande influência sobre ele e também junto do Conselho dos Doze.

- Não duvido.

- O meu pai pediu-me para vir a Nathyrnn, onde me deverei encontrar com um tal Jean Losserand. Ele precisa de me entregar um objecto que lhe pertence, um livro muito valioso.

- E porque é que o conde de Mordorais não enviou um pajem ou vos fez acompanhar de uma escolta? - perguntou o cavaleiro, desconfiado.

- Tinha que vir a Nathyrnn e não gosto de escoltas, pois só atrapalham. O meu pai, de facto, entregou-me uma autorização de entrada, assinada pelo duque de Divulyon, mas eu perdi-a. Vai ficar muito zangado se eu voltar de mãos vazias.

O cavaleiro calou-se, pouco convencido. Jade acrescentou:

- Como é que pode duvidar daquilo que eu digo com todas estas jóias que trago? Além de mim, em todo este ducado, só a filha do duque de Divulyon pode trazer jóias parecidas; elas são uma prova clara que eu sou Coralie de Mordorais e que tem que me deixar entrar.

- Não posso. Jade irritou-se:

- Deixe-me entrar em Nathyrnn imediatamente ou juro-lhe que o meu pai o arrastará pelas ruas da amargura até lhe pedir perdão! - descarregou ela, com os olhos ardendo de cólera.

- Mandá-lo-á torturar na praça pública como se fosse um criminoso qualquer, e morrerá em grande sofrimento. Se não abrir já esta porta, irá arrepender-se!

- Eu. eu, de facto, não posso, menina de Mordorais.

- Obedeça-me - bramiu Jade. Âmbar sugeriu em voz baixa:

- Ja. eh, Coralie, se calhar era melhor ofereceres uma das tuas jóias a este cavaleiro para ele nos deixar entrar.

- A sua criada não é assim tão idiota como diz, menina de Mordorais.

- Não dou nada! - protestou Jade. - Não tenho nada que pagar para entrar.

- Pois não vai entrar - rematou o cavaleiro.

- É o que pensa. Abra a porta.

- Não.

- Abra! - bramiu ela.

Instintivamente, o cavaleiro levou a mão à bainha da espada. Foi então que Opala avançou majestosamente, empurrando Jade, que vacilava, surpreendida. Fixou o seu olhar glacial no Cavaleiro da Ordem e dirigiu-se a ele num tom calmo e determinado:

- Chega de mentiras. Esta rapariga não é a Coralie de Mordorais e eu não sou a sua dama de companhia.

O homem, confuso e impressionado com a determinação de Opala, perguntou-lhe:

- Então, quem é a pretensa menina de Mordorais?

- Ela é que é a minha dama de companhia. Trocámos os papéis para garantir a minha protecção.

- A sua protecção - admirou-se o cavaleiro, cada vez mais estupefacto. - Mas, afinal, quem é a menina?

- A minha família é demasiado importante para que o seu nome seja pronunciado à sua frente - respondeu Opala, impassível. - O Conselho dos Doze encarregou-me de uma missão da maior importância. Tenho que guardar segredo e viajar na maior discrição.

O cavaleiro olhou para Opala com admiração.

- E porque é que não traz a autorização para entrar em Nathyrnn? - perguntou ele. - E qual é a sua missão?

- Pois é! Vimos de longe e viajávamos na companhia de um guia. Infelizmente, ele traiu-nos. Roubou a nossa autorização e fugiu. Quando nos apercebemos, já era demasiado tarde para reagirmos. Quanto à minha missão, eu não devia dizer nada, mas, como está a ser tão compreensivo, vou revelar-lhe alguma

coisa.

- Sou todo ouvidos - respondeu o homem, curioso.

- A minha missão está relacionada com a Profecia e três inimigos do Conselho dos Doze.

O rosto do cavaleiro da Ordem iluminou-se.

- É então verdade? Corre realmente um rumor que. aquilo que referiu.

Opala estremeceu. A sua intuição revelava-se, assim, certa. Retomando a palavra, disse:

- Compreende agora por que razão é absolutamente necessário que me ajude nesta missão. O Conselho dos Doze não deve ser travado numa busca tão urgente!

Opala falara seriamente, fixando os seus grandes olhos azuis nos do cavaleiro, sem pestanejar.

- Compreendo perfeitamente - balbuciou ele. Chamou de longe os seus dois ajudantes e, juntos, abriram a porta de Nathyrnn.

Sem uma palavra de agradecimento, Opala, numa postura de grande dignidade, entrou na cidade, seguida de Jade e Âmbar.

- Boa sorte! - gritou-Lhes o Cavaleiro da Ordem. E a pesada porta de Nathyrnn voltou a fechar-se atrás delas.

A dez anos que Jean Losserand se esforçava por manter intacto o seu gosto pela aventura e pela vida mas dera-se conta, com azedume, que a sua sede de absoluto ia desfalecendo a pouco e pouco. Há muito que sonhava fugir da prisão em que esta cidade se tinha convertido, mas, perdida a esperança, não conseguia ter forças para empreender fosse o que fosse. De vez em quando, vinha-lhe com tristeza ao pensamento a imagem da sua velha mãe e dizia que nunca mais iria voltar a vê-la. A sua existência monótona conseguira mesmo sufocar o seu amor pela liberdade. Até os livros tinham perdido encanto; os contos, as histórias fantásticas e todos os romances tinham sido proibidos. Apenas as narrativas biográficas ou técnicas eram autorizadas, pois não perturbavam o Conselho. Jean Losserand não sentia qualquer alento, era constantemente vigiado e perdera a vontade de alterar esta situação. A sua vida estava reduzida a um suspirar interminável e lânguido. Até ao dia em que ouviu bater à porta da sua loja.

Tinha muito poucos clientes, já não valia a pena cuidar da biblioteca, cuja degradação atingira já um visível estado de decrepitude. Os livros, cheios de poeira e rasgados, amontoavam-se em desordem e a porta da loja estava sempre fechada. Foi, pois, com surpresa que verificou que alguém poderia ainda interessar-se por ele. Com um passo lento, dirigiu-se para a porta e abriu-a. Ficou estupefacto ao ver as três adolescentes, tão diferentes, que o olhavam com curiosidade.

- Sois vós Jean Losserand - perguntou Jade.

O livreiro observou-a por um momento, tendo-lhe chamado a atenção a vivacidade e a determinação reflectidas nos seus olhos verdes. Cor de jade, disse para consigo.

- Desculpe incomodá-lo - disse Âmbar, calmamente -, mas queríamos saber se é o Jean Losserand, filho daquela velha senhora que mora numa quinta isolada.

- Com um estábulo muito mal conservado - acrescentou Jade.

- Sou eu mesmo - disse o livreiro, aturdido. - Conhecem a minha mãe?

- Sim! - respondeu alegremente Jade. - É muito hospitaleira.

- A minha mãe? - repetiu ele, incrédulo.

- Sim - confirmou Jade -, mas nós viemos cá porque queríamos pedir-lhe ajuda. Podemos entrar?

- Com certeza.

Jean Losserand acompanhou as suas insólitas visitas até uma sala contígua, pediu-lhes para se sentarem nas poltronas de veludo vermelho gasto e, amavelmente, serviu-lhes bolachas. Preparou-lhes também um chá e aproveitou para as examinar melhor. As três estavam vestidas normalmente, roupas de boa qualidade, sem luxos. A semelhança entre elas ficava-se por aí. Logo que encarou Âmbar, uma dúvida o assaltou. A sua mão esquerda começou a tremer sem parar, como acontecia sempre que se emocionava. Teve dificuldade em colocar o bule do chá em cima de uma mesa baixa. Âmbar, apercebendo-se, ofereceu-se para servir o chá de mentol em chávenas de porcelana lascadas.

- Obrigado - murmurou ele, de rompante. - E agora, digam-me lá o que é que posso fazer por vocês.

- É uma longa história - respondeu Jade.

Calou-se para observar atentamente a decoração à sua volta. Bebeu um gole de chá quente, deixando cair um pouco nas calças. Âmbar tinha-a finalmente convencido a vender o vestido e algumas das jóias. Tinha ficado irritada na altura mas reconheceu que os moradores de Nathyrnn olhavam para as suas roupas sumptuosas com um certo espanto. Acabara por ceder e, com uma parte do dinheiro da venda do vestido e das jóias, comprou roupa menos vistosa. Âmbar retirara da sua bolsa de veludo preto algumas moedas de cobre e também comprara algumas peças de roupa, simples e pouco originais, pois também a sua ridícula vestimenta de provinciana suscitava espanto. Também lavara a cara numa fonte pública para retirar os vestígios de terra, de palha e de lágrimas.

Sentia-se melhor, mais fresca, apesar de exausta: a comunicação estabelecida com as pedras retirara-lhe toda a vivacidade. Mastigava sem apetite um bocado de bolacha. Sentia-se aliviada por terem finalmente encontrado Jean Losserand; não tinha sido fácil encontrar a sua loja, situada numa rua sombria e estreita. Âmbar tinha que confessar que Nathyrnn não lhe agradava. As pessoas pareciam aborrecidas e não falavam; as ruas estavam demasiado calmas e havia poucas lojas. Tudo era triste e pouco cuidado. Estava mais tranquila por se encontrar na livraria, na companhia deste homem que parecia amigo e atencioso. Tinha- o observado com minúcia, como gostava de fazer. O homem apresentava um porte imponente, mas os seus ombros estavam um pouco curvos, dando a impressão que transportava um fardo incómodo. Âmbar calculava que teria entre trinta e quarenta anos. O seu rosto reflectia bondade e saber, mas os seus olhos nostálgicos exprimiam como que um desespero a que já se resignara.

- Expliquem-me em que é que posso ser-vos útil - disse de novo. - Quem são vocês? O que é que fazem em Nathyrnn?

Parecia dirigir-se a Âmbar, mas foi Jade quem respondeu:

- Vimos dos arredores de Divulyon e estamos aqui porque precisamos da sua ajuda. Conseguimos entrar em Nathyrnn graças a uma mentira brilhante de Opala.

Jade indicou-a com um gesto do queixo, não sem uma pontinha de desprezo, que Opala devolveu, lançando-lhe um olhar glacial. Jade retomou a palavra:

- Sabemos que está do nosso lado e que temos inimigos comuns. - Em voz baixa, acrescentou: - Parece que o Conselho dos Doze costuma reunir- se para falar de nós. E não é para dizer bem...

- Se sois inimigas do Conselho dos Doze, bem-vindas a Nathyrnn. Esta cidade é uma verdadeira prisão, onde se encontram fechados aqueles que foram ao Conto de Fadas - explicou Jean Losserand.

- Não se percebe por que razão o Conselho havia de se preocupar connosco - confidenciou Âmbar - e porque é que temos inimigos que nem sequer conhecemos. Por exemplo, hoje, a Opala recebeu uma interferência telepática, perversa e muito poderosa. Faz ideia sobre quem poderá ter sido o seu autor?

- Apenas os membros do Conselho dos Doze sabem praticar a telepatia. Evidentemente, no Conto de Fadas há também muitos mágicos capazes de a praticar, mas a transmissão não poderia ter sido estabelecida de tão longe.

- Então, o Conselho dos Doze está mesmo contra nósconstatou Jade. - Custa a acreditar. Sempre me disseram bem do Conselho. O meu pai até foi eleito responsável de um território e nomeado duque pelo Conselho. Ele obedecia às leis e às ordens destes doze anciãos.

Perante o olhar atónito de Jean Losserand, Jade explicou:

- Eu sou Jade Divulyon. Não deveria dizê-lo, mas confio em si. Expulsaram-me do meu castelo, mas, na verdade, não sou filha do duque.

O livreiro começou a compreender. Então, os rumores que circulavam no Conto de Fadas, há já dez anos, sempre tinham fundamento. Por outro lado, as dúvidas que tinha relativamente a Âmbar transformaram-se em certezas. Ele tinha-a reconhecido; sempre era quem ele pensava. Havia observado com muita atenção cada traço do seu rosto e tudo confirmava as suas suspeitas. Jean Losserand sentiu então uma alegria intensa a invadi-lo. Ela estava viva! Um raio de sol trespassou-lhe o coração e sentiu-se inundado por uma onda de emoção. Sentiu a esperança, subitamente, a renascer e, juntamente com ela, um amor ilimitado pela vida. Não se cansava de repetir para si mesmo esta frase mágica: Ela está viva! Queria pronunciar o que lhe queimava os lábios, mas sabia que deveria moderar-se. Mas com pesar se conteve.

Entretanto, Jade procurava no seu saco o papel onde havia desenhado o símbolo. Quando finalmente o encontrou, entregou-o a Jean Losserand que pegou nele com curiosidade.

- O que é isto? - perguntou ela de rompante. - É capaz de o decifrar?

O livreiro observou o desenho por breves instantes e respondeu:

- É um símbolo escrito numa antiga língua do Conto de Fadas.

- Ah, sim? - disse Âmbar, admirada. - E qual é o significado deste símbolo?

- É bastante complexo. Trata-se do saber e do poder de ler o que os corações encerram. Ao mesmo tempo, pode ler-se este símbolo como um nome próprio: Oonagh.

- Oonagh? - repetiu Âmbar, imediatamente seduzida pela sonoridade melodiosa deste nome.

Jean Losserand explicou:

- Oonagh é uma pessoa que vive no Conto de Fadas, cuja população foi em grande parte dizimada pelo Conselho dos Doze. Oonagh é uma criatura mágica cuja sabedoria tem grande reputação, e que possui o dom de ler os corações. Todos falam dela com muito respeito.

- Oonagh mora no Conto de Fadas! - repetiu Âmbar, cuja imaginação ficou imediatamente alerta.

- É verdade, numa gruta cheia de cristais.

- Julgo que vai ser preciso irmos ter com esta Oonaghobservou Jade. - Mas fale-nos um pouco do Conto de Fadas. Não será uma lenda?

- Nem pensar - assegurou-lhe Jean Losserand. - Eu até já lá estive.

- E então? Como é que é esse país? - perguntou Jade.

- Vou contar-vos tudo o que sei. Mas, primeiro, é preciso que acreditem sem reservas no impossível, para poderem atravessar o campo magnético que circunda o Conto de Fadas. Vós já não sois crianças ingénuas, que facilmente acreditem no irreal. Certamente vai ser difícil para vós.

- Eu consigo - disse Jade, segura, pois não conseguia pensar que pudesse existir alguma coisa no mundo que fosse incapaz de fazer.

- Quem é que vive no Conto de Fadas? - perguntou Âmbar. - Princesas em perigo, cavaleiros e mágicos.

- Não só. Há muito tempo, ainda o Conselho dos Doze não tinha o poder que tem hoje, o mundo em que centenas de pessoas com poderes mágicos viviam era um mundo de liberdade; os humanos eram apenas uma espécie evoluída entre tantas outras, e cada um respeitava as diferenças que, na altura, eram habituais. Mas, apesar das suas boas intenções, o Conselho dos Doze limitou os imensos poderes de todas estas criaturas. Atribuindo a si próprio maior importância, semeou o ódio no coração dos homens, para se voltarem contra as outras raças. Pouco a pouco, abusando da confiança cega destes povos tão diferentes de nós, acabou por destruí-los. Foi um período de grande selvajaria e de vergonha também.

O doce olhar de Âmbar reflectiu uma expressão de terror e ela perguntou, com uma voz um pouco sufocada:

- O que é que se passou a seguir? Porque é que ninguém se revoltou para os salvar?

- Ninguém compreendia muito bem o que se estava a passar. Cada pessoa confiava no seu vizinho e estava habituada à paz. Tudo se passou de uma forma confusa e dissimulada. Por fim, as criaturas mágicas, de uma forma natural e serena, decidiram evitar o derramamento de sangue.

Os sobreviventes retiraram-se para um território afastado e ainda virgem de qualquer civilização, mas com um solo rico e fértil. Ali, conjugando os seus poderes, criaram campos magnéticos para se protegerem do Mal. Foi assim que nasceu o Conto de Fadas, que é hoje uma terra próspera, de uma beleza feérica, onde os homens e os povos dotados de poderes sobrenaturais caminham lado a lado com a mesma tolerância de antigamente. Infelizmente, também aí o Mal exerceu graves sevícias. Onde existe a vida, não pode haver apenas o Bem. Mas, pelo menos, o Conselho dos Doze não pode fazer cumprir aí a sua lei. É um território livre.

- Esta história é tão bonita - murmurou Âmbar, comovida.

- É - disse Jade, não revelando qualquer estado de alma. O Conto de Fadas é longe daqui?

- Não, fica mesmo muito perto - respondeu Jean Losserand. - Nathyrnn marca o limite do ducado de Divulyon. A menos de um quarto de hora daqui, fica a fronteira do ducado, muito vigiada. São extremamente raros aqueles que a atravessam. E logo a seguir erguem-se os campos magnéticos que circundam o Conto de Fadas.

- Tão perto? - disse Jade, surpreendida. - Então vai ser muito fácil.

- Não acredite nisso - contrariou-a o livreiro. - Para já, para deixar Nathyrnn é necessária uma autorização de saída. Depois, falta o mais difícil: atravessar a fronteira.

- Para sair de Nathyrnn, não há problema: Opala arranjou uma mentira muito plausível - observou Jade com uma certa frieza, sentindo-se ainda humilhada por não ter sido ela a convencer, com o seu estratagema, o cavaleiro da Ordem.

- Sim - confirmou Âmbar, entusiasmada. - Conta-lhe, Opala!

Contrariada, Opala explicou com uma voz indiferente:

- Um instinto levou-me a dizer que eu trabalhava para o Conselho dos Doze. De repente, convenci-me que a mensagem telepática era deles. Sabia, sentia que éramos suas inimigas.

Ao ouvir estas palavras Jean Losserand estremeceu.

- Quando ocorrem as mensagens telepáticas, os espíritos que se comunicam ficam, evidentemente, ligados, mas não é possível ler o pensamento do outro! - disse ele. - Excepto. excepto se o objectivo dessa comunicação for o de infligir medo ou dor.

A estas palavras seguiu-se um silêncio.

- A voz também falou de uma profecia, de um livro volumoso coberto de sangue - contou Âmbar ao livreiro, numa voz frágil. - Sabe do que é que se trata?

Jean Losserand pesou muito bem as suas palavras, com receio de revelar sobretudo aquilo que não deveria dizer. Observou Âmbar por um momento, as suas feições suaves e o seu olhar caloroso, antes de responder:

- A Profecia foi escrita por um filósofo de nome Néophileus há alguns séculos. Fazia parte de um povo feérico de temperamento forte e indomável, chamado Clohryuns. Néophileus tinha o dom de conhecer o futuro e pressentiu a destruição parcial dos seus descendentes que se iria verificar alguns séculos mais tarde, pelo Conselho dos Doze. Infelizmente, ninguém acreditou nele, tal era a paz que todos pareciam ter conseguido.

Os olhares das três raparigas fixaram-se em Jean Losserand; o de Jade brilhava de curiosidade, o de Âmbar reflectia compreensão e interesse e o de Opala mantinha-se indecifrável.

- Néophileus sentia que havia de chegar um dia em que os tempos iriam mudar e em que o mundo iria transformar-se. Previu que uma profunda agitação iria ocorrer então e, pela primeira vez, não conseguiu prever claramente o futuro.

- Não entendo - disse Âmbar.

- Quer dizer, a dado passo da curva do tempo, o futuro pareceu indeciso a Néophileus. Viu que, em vez de seguir uma única via, clara, o futuro a partir daí dividia-se em vários atalhos. De todos esses caminhos, apenas um seria tomado e toda a huma nidade seguiria esse curso que iria transformar o mundo naquilo que ele é hoje. Foi então que Néophileus escreveu A Profecia.

Jean Losserand parou. Tinha dito o suficiente.

- Temos mesmo que ir ao Conto de Fadas ver Oonaghdisse Âmbar. - Como é que podemos passar a fronteira de Divulyon?

- Não sei dizer-vos - respondeu o livreiro. - Quando fui ao Conto de Fadas, a fronteira só existia em teoria. Agora, é diferente.

- Nós cá nos havemos de arranjar - respondeu Jade, sem hesitar.

- Mas como? - interveio Âmbar.

- Não posso ajudar-vos - respondeu Jean Losserand, - mas vão ter com um homem chamado Adrien de Rivebel. Ele só tem dezasseis anos mas, no entanto, já passou três anos nas masmorras de Nathyrnn. Foi solto há pouco tempo.

- Mas porquê? - perguntou Âmbar em voz alta.

- Esse rapaz vivia no Conto de Fadas, onde nasceu. É filho de uma família nobre de cavaleiros. Aos treze anos, este Adrien quis descobrir o mundo exterior. Fugiu de casa. Os Cavaleiros da Ordem apanharam-no na fronteira de Divulyon e levaram- no para a prisão.

- É injusto! - exclamou Âmbar.

- Pois é - concordou Jean Losserand. - Mas correm alguns rumores. Dizem que ele não é como os outros anciãos que estão

detidos; a prisão não o destruiu. Contam que é indomável e que as grades, longe de destruírem o seu carácter, tornaram-no ainda mais duro. Foi condenado a passar toda a sua vida aqui, nesta cidade pacata e sem espírito; no entanto, toda a gente murmura que ele está a tentar sublevar a população para libertar os habitantes de Nathyrnn.

- Eu gosto de revoltas - regozijou-se Jade. - É uma boa ideia.

- Infelizmente, é impossível - respondeu o livreiro.

- O impossível não existe quando acreditamos nele - retorquiu Âmbar.

Jean Losserand esboçou um sorriso triste. Já não tinha força para sonhar o impossível.

- Ide ter com Adrien de Rivebel - disse ele, soltando um suspiro. - Talvez ele possa ajudar-vos.

Jade atirou para trás uma das suas madeixas pretas e disse:

- Nós não precisamos de ajuda, mas vamos ter com o Adrien de Rivebel. Temos que libertar Nathyrnn.

- Volto a dizer-vos, isso é impossível - lamentou-se o livreiro.

- A sua mãe espera-o, senhor Losserand - respondeu Jade - e eu prometi dar-lhe notícias suas. O melhor seria ir dar-lhas você mesmo, não acha? - Num tom provocador, acrescentou: E o impossível não existe!

 

Âmbar esperava ver um príncipe encantado saído direitinho de um conto, galante e poético, mas Adrien mais parecia um cavaleiro de ar decidido, traços bem definidos e inflexíveis. A sua expressão era a de um homem sonhador e sensato, e só os seus olhos sombrios traíam a coragem e a paixão que lhe ferviam no sangue. Os cabelos, castanhos escuros, revoltos, acentuavam o seu lado tenebroso. Adrien sabia simular indiferença e reprimir os seus sentimentos até ao mais profundo do seu ser. Foi isso que lhe permitiu resistir aos três anos de prisão. Sabia- se inocente de todas as acusações, e a certeza de não ter nada de que pudesse censurar-se tinha-o ajudado, em vez de atiçar a sua cólera. A fúria não lhe teria servido de nada, tinha consciência disso, e até a esqueceu, apesar de, no íntimo, reclamar justiça. Agora, fora da prisão, deixara-se dominar de novo pela sua verdadeira natureza. Planeara a revolta de Nathyrnn ao mais pequeno pormenor. Era necessário libertar a cidade para que se pudesse libertar a si próprio. Procurava aliados que aderissem à sua causa. Acreditava ter encontrado um estratagema mas não encontrara ainda a pessoa que pudesse ajudá-lo a pô-lo em prática. Quase todos os habitantes de Nathyrnn se sentiam cansados, fosse pela prisão, fosse, muito simplesmente, por estarem habituados a resignarem-se. Eram poucos os que mantinham vivas as esperanças e os sonhos. Apoiavam a revolta de Adrien, mas não tinham coragem para se juntarem a ele. Por enquanto. Não estavam motivados, mas podiam vir a estar.

Por isso, Adrien continuava à espera de ajuda, sem desesperar. Esta surgiu-lhe de uma forma inesperada quando encontrou Jade, Opala e Âmbar. Não ficou nada surpreendido quando as viu entrar no quarto minúsculo da pensão onde estava alojado e, por isso, recebeu-as daquela forma amável. Sentaram-se numas cadeiras desengonçadas. Adrien de Rivebel era um jovem bem educado e inteligente: a identidade das suas visitas tinha-lhe saltado aos olhos. Ouvira muitas histórias no Conto de Fadas que falavam delas. Ele próprio tinha consultado Oonagh no dia em que fez dez anos para saber qual o caminho a seguir. A criatura mágica tinha-lhe respondido então:

- Tu não és o Eleito. Mas não poderás permanecer na sombra. Tens um coração digno e ardente; procura a água que há-de apagar esse calor devastador, e não achas para o atiçar.

- Mas porquê? - perguntara Adrien, perturbado.

- Poderás vir a provocar um grande perigo. Tens que te manter extremamente atento, caso contrário, porás em perigo outras vidas. Não dês ouvidos ao teu coração. É demasiado apaixonado. Abre os olhos e deixa-te guiar pela razão.

- É confuso - murmurara Adrien.

- Virá um dia em que irás cruzar- te com aquelas que todos aguardam e, nessa altura, vais entender.

Agora que as três pedras d'A Profecia se encontravam à sua frente, já não estava assim tão seguro quanto ao caminho a seguir, mas sentia claramente que, juntos, seriam capazes de dar um passo na direcção certa. Evidentemente, nada lhes disse sobre o que tinha adivinhado.

A princípio, nenhuma das raparigas falou. Limitaram-se a observá-lo com muita atenção. Jade percebera imediatamente que encontrara um aliado, alguém parecido com ela. Lia nos seus olhos a revolta de Nathyrnn, que poderiam organizar juntos. Não prestara nenhuma atenção ao olhar intenso que Adrien Lhe dirigia, mas isso não passou despercebido nem a Âmbar nem a Opala.

Âmbar estava surpreendida com o jovem. Imaginava-o altivo e determinado, como Jade, mas capaz de maior discrição. Prevejo que vai haver problema! disse para si própria. Duas pessoas tão parecidas, igualmente fogosas, não podem. não devem... atrair-se ou, pior do que isso, amar-se! "

Um pensamento diferente animava Opala. No preciso instante em que pela primeira vez vira Adrien, sentira operar-se em si uma grande transformação. Uma profunda emoção agitara o seu coração. Um calor difuso invadira-a subitamente. Não conseguia lutar contra o que descobrira e, no fundo, também não era isso que desejava. Confusa, interrogava-se sobre o que lhe estava a acontecer. Fixava Adrien ostensivamente. Uma agradável perturbação tomava conta dela. E uma intuição atravessou-Lhe o espírito: compreendeu, sentiu, que tinha sido feita para amar esses olhos verdes acinzentados. Teve a certeza que Adrien e ela deveriam ficar juntos, que outra coisa não poderia acontecer. Ela, sempre tão fria, sufocava de calor. Mas o olhar de Adrien estava fixo em Jade. Opala reparou nisso. Estranhamente, não sentiu qualquer ciúme, qualquer despeito. Disse para si mesma, calmamente: É um erro. Adrien não pode olhar assim para Jade. E se ele está a sentir por ela o que eu sinto por ele. bem, vai ter que mudar de opinião.

Entretanto, Jade, entusiasmada com a ideia de fomentar uma revolta, afrontar a lei e provar a sua audácia, conversava animadamente sobre a sublevação da cidade.

- Um amigo contou-nos que estavas a preparar a sublevação de Nathyrnn! - disse ela a Adrien, com um sorriso cúmplice.

Tratava-o por tu, sem cerimónia. Era apenas dois anos mais velho que ela e ela não estava nada preocupada com formalismos.

- Eu não quero passar a minha vida dentro dos muros desta cidade horrivelmente triste - respondeu Adrien. - Pensei num plano de fuga, para regressar ao Conto de Fadas. Mas gostaria que todos os habitantes de Nathyrnn fossem libertados. E tenho uma solução para o conseguir.

- E qual é? - perguntou Jade, os olhos brilhando de interesse.

- É muito complicado. Era necessário que pudéssemos recorrer à magia mas não encontrei ninguém nesta cidade capaz de pôr em prática o meu pensamento.

- E de que é que se trata? - quis saber Jade, impaciente.

- Alguém teria que lançar um feitiço que adormecesse num sono profundo todos os que se encontrassem fora do círculo de encantamento.

- O círculo de encantamento? E o que é isso?

- É um pequeno círculo de protecção que se forma à volta do mágico mal ele pronuncia as palavras mágicas, e que o imuniza contra os efeitos do seu próprio feitiço. O círculo ajuda-o a manter-se acordado. Uma vez formado o círculo e consumado o encantamento, o mágico pode sair dele; a magia não o afecta.

- Estou a ver o problema - disse Jade. - Os Cavaleiros da Ordem adormeciam, mas os habitantes de Nathyrnn não!

- Exactamente. E só um mágico reconhecido conseguiria realizar um vasto círculo de encantamento. Era preciso que fosse enorme para abranger todos os habitantes de Nathyrnn.

- Nesse caso, toda a gente poderia escapar sem correr riscos - acrescentou jade.

- Não é bem assim. O feitiço não duraria mais que uns dez minutos, apenas o tempo necessário para abrirmos as portas de Nathyrnn e sair. Mas, para atingirmos a fronteira do ducado de Divulyon, era necessário repetir o feitiço várias vezes. Ora, isso é um problema inextricável: utilizar uma magia tão poderosa já é muito difícil, lançar o mesmo feitiço com intervalos curtos é quase impossível.

- Quase - sublinhou Jade. - Aí é que está toda a diferença. De repente, Opala rompeu o seu silêncio.

- Adrien - disse ela -, já encontraste o mágico capaz de realizar o teu plano?

- Não - confessou o jovem.

- Nós poderíamos realizá-lo. Bem. julgo que sim - disse ela.

- Nós? Como assim? - disse Âmbar, admirada.

- As pedras! - respondeu Opala. - Se o problema é encontrar uma fonte de grande magia.

Adrien não se preocupou em simular qualquer espanto. Aguardava por este momento.

- Imaginemos que isso era possível - disse ele. - Põe-se um outro problema. É preciso prevenir a população de Nathyrnn da hora exacta da evasão, para que esteja pronta.

Adrien sabia que a revolta não podia ocorrer sem derramamento de sangue, mas não queria assustar mais as suas novas aliadas.

- E para quando é que planeávamos a evasão? - procurou saber Âmbar.

- Digamos que dentro de um mês - propôs Adrien. Esperou pela reacção de Jade. Foi a que esperava.

- Não! - insurgiu-se ela. - Não vou esperar um mês. Eu quero chegar ao Conto de Fadas o mais depressa possível.

- O que é que queres dizer com "o mais depressa possível"? - perguntou Âmbar, ligeiramente alarmada.

- Esta noite.

- Esta noite?! - exclamaram Âmbar e Adrien em uníssono.

- Tem que ser possível - disse Jade. - Os nossos inimigos contactaram a Opala por telepatia. Temos que utilizar este mesmo expediente para prevenir os habitantes!

- Para conseguirmos chegar a todos os espíritos desta cidade - começou a dizer Adrien - era preciso que vocês.

- Era preciso que nós tentássemos! - interrompeu-o Jade.

- Se começamos a duvidar de tudo, arriscamo-nos, sobretudo, a acabar os nossos dias nesta cidade, e isso, nem pensar!

- Não é assim tão simples - preveniu Adrien. - O esforço que vos é exigido é. Oh, mas. dou-te razão Se vocês chegaram até aqui, também vão conseguir tirar-nos daqui! - concluiu ele, contagiado pelo entusiasmo de Jade.

Âmbar respirou fundo. Não estava inteiramente convencida mas Jade e Opala tinham já retirado as suas pedras das bolsas de veludo preto. Ela hesitou. Afinal de contas, tinham acabado de conhecer Adrien; a confiança que as duas depositavam nele não seria prematura? Mas retirou também a sua pedra. No fundo, a perspectiva de se imaginar fechada em Nathyrnn não a seduzia mais que a Jade.

- Pensem só no vosso objectivo: prevenir os habitantes da evasão - disse então Adrien. - Se a vossa mensagem for suficientemente clara e a vossa vontade for muito forte, as pessoas serão convencidas. Concentrem toda a vossa força nisso.

Opala abanou a cabeça em sinal de aprovação, mas Âmbar, sem saber porquê, ficou tensa. As três raparigas, apertando as suas pedras, concentraram todos os seus pensamentos na libertação de Nathyrnn. As suas faces ficaram rosadas, pois, apesar de não se aperceberem, o esforço que estavam a fazer era grande. Foi então que algo de imprevisto se passou. As raparigas fecharam simultaneamente os olhos. E, sob o olhar espantado de Adrien, formou-se à volta delas uma esfera translúcida, vinda não se sabe de onde. O círculo começou então a erguer-se no ar, levando consigo as três raparigas flutuando com toda a leveza no seu interior. O círculo parecia tão frágil como uma bolha prestes a rebentar, mas, de facto, era mais sólido que uma arma dura de metal. Elas não se aperceberam de nada. Apenas uma imagem surgia diante delas, a de uma multidão transpondo as portas da cidade. Murmuravam palavras que não conheciam, projectavam imagens cujo significado lhes era desconhecido. Algo se tinha apoderado delas e, no entanto, esse algo parecia vir do mais profundo das suas almas. Sem o saberem, estavam a transmitir estes pensamentos a toda a população de Nathyrnn.

Adrien, impressionado, observava a cena que se desenrolava à sua frente. Percebia as palavras que Jade, Opala e Âmbar emitiam por telepatia. As suas vozes repercutiam-se no seu espírito, persuasivas.

Ao fim de um quarto de hora, o círculo que cercava as três raparigas começou a descer lentamente e pousou no chão. A bolha desapareceu tão subitamente como tinha aparecido.

Jade e Opala não pareciam nada afectadas pelo prodígio que tinham acabado de concretizar. Tranquilamente, voltaram a sentar-se nas respectivas cadeiras. Jade sorria, orgulhosa. Mas os olhos de Âmbar estavam perdidos no vazio. Sentou-se mesmo no chão e começou a chorar:

- Nunca. nunca mais vou voltar a vê-la. Eu não deveria nunca. e sem uma palavra de desculpa. Eu não vou sobreviver. - Depois, bruscamente, o tom da sua voz alterou-se. Agitou o punho, ameaçadora. A voz tornou-se violenta:

- Não quero! Não! Deixem-me! Quero ser livre! Parem!

- Âmbar - gritou Jade. - O que é que se passa? Adrien soltou um suspiro e disse:

- É o que eu receava. Ao entrar em contacto com todos os habitantes, Âmbar absorveu os seus pensamentos. Vai ser obrigada a experimentar as emoções de cada uma destas pessoas para se libertar. Isso vai demorar várias horas.

- E porque é que a Opala e eu não fomos afectadas como ela? - perguntou Jade.

- Isso significa apenas que Âmbar tem uma grande sensibilidade - explicou Adrien. - Mas não se preocupem. Isto vai passar-Lhe e apenas deixar-lhe uma má recordação.

- Tens a certeza? - perguntou Jade.

- Absoluta. O mais importante é que vocês conseguiram! Foi uma proeza e isso significa que temos uma hipótese. Bravo!

- Obrigada - respondeu Jade sem modéstia. - Não foi assim tão difícil.

- Melhor ainda. O que nos espera vai ser.

- Vamos ver - disse Jade. Em seguida, com uma certa altivez, acrescentou:

- Não tenho medo.

 

                       Paris, 2002

Acordei. Pela primeira vez, há já muito tempo, senti o meu coração a bater, senti-me viva e feliz por isso. Consegui distinguir, de forma pouco perceptível, uma luz frouxa ao fundo deste abismo negro de dor, esta escuridão quotidiana, sem esperança. Não podia ignorar que a morte me espreitava e tomava conta de mim sem piedade. Tinha medo. Tinha frio. A minha vida não fazia qualquer sentido; estava morta, estando viva. Os dias pareciam todos iguais, sem esperança, inúteis e cheios de sofrimento. A doença minava-me. Já não aguentava mais. Tinha já esgotado as lágrimas, a coragem faltava. Já nada mais me restava. Tudo se tinha revelado inútil. No fundo, a minha existência estava reduzida a nada; já nem tinha força para encarar o desespero como uma injustiça.

Mais uma noite, semelhante às que a tinham precedido e às que se lhe seguiriam. Pelo menos, era isso que eu pensava, quando mergulhei no sono. Habitualmente, não sonhava. Dormia pouco e mal. Mas, desta vez, algo se passou de anormal. Tive um sonho maravilhoso, de um realismo incrível. Tinha a impressão que ele prosseguia, algures num mundo longínquo. Como saber se os sonhos não seriam mensagens de uma exis tência real e se a minha vida, absurda, não seria o reflexo imaginário desse mundo desconhecido? Fui acometida de um violento ataque de tosse. O sonho. Agarrei-me a ele com toda a força do meu pensamento. Jade, Opala e Âmbar. Estranho! As iniciais dos seus nomes formam o meu diminutivo, Joa. Antigamente, tratavam-me sempre assim, embora o meu nome verdadeiro seja Joana. Tentei engolir a bola que me obstruía a garganta. Julgo ter ultrapassado a fase em que as lágrimas de nostalgia me enchiam os olhos sem avisarem. Joa. Isso pertencia ao passado. Uma época que terminara. Desde então, deixara de ter nome, pois ninguém me fazia o favor de falar comigo. Nada mais era que um corpo quase inerte, numa cama de um quarto. Nada.

Fechei os olhos, que me ardiam. A esperança não me leva a nada. Apesar de tudo, gostaria que o meu sonho continuasse.

Jade e Adrien prepararam ao pormenor o plano da evasão. Parecia que não tinham qualquer dúvida quanto ao seu êxito. Durante muito tempo, o jovem procurou a fórmula em alguns livros de magia escondidos na cidade. Finalmente, agitou uma folha amarelecida e endurecida pelo tempo. Jade examinou-a. Estabeleceram o plano das operações que iriam realizar. Tinha chegado agora a hora de levar a cabo o sortilégio.

É demasiado tarde para recuar", pensou Opala. Tinha que ir até ao fim. No entanto, algo nela tentava convencê-la do contrário.

Âmbar tinha saído do estado de torpor em que mergulhara, mas ainda se sentia fraca. Jade e Adrien estavam ansiosos por começar.

Jade apoderou-se da fórmula. Opala aproximou-se. Âmbar, mal se aguentando em pé e ainda perturbada, juntou-se a eles.

- Bom - disse Adrien, com o coração a bater -, agora ide! Basta repetir a fórmula ininterruptamente. O círculo de encantamento é invisível. A magia sustentar-se-á nas vossas forças.

As três raparigas retiraram as suas pedras.

- Nesta altura - prosseguiu Adrien, febril -, os habitantes de Nathyrnn estão a preparar-se para se juntarem à saída da cidade. Eu vou agora ao seu encontro. Entretanto, vocês formulam o encantamento. Eu abrirei a porta da cidade. Vocês juntam-se a mim depois. E toda a gente será libertada.

- Nós sabemos - respondeu Jade. - É simples.

- Vocês vão sentir dificuldade em se movimentarem - preveniu-as Adrien. - De certeza que ireis sentir-vos muito fracas por causa da força do sortilégio. Espero que o cansaço só surja depois de termos saído de Nathyrnn.

- Não há problema - interrompeu-o Jade com uma voz segura.

- Concentrem-se - repetiu, apesar de tudo, Adrien.

- Está bem, está bem, já está tudo explicado - respondeu Jade, mal humorada e impaciente.

A discussão ficou por aí. Adrien partiu ao encontro dos habitantes de Nathyrnn. As três raparigas apertaram as suas pedras e começaram a dizer a fórmula mágica. Não aconteceu nada. As palavras não faziam qualquer sentido. Leram por diversas vezes a fórmula. Foram invadidas por uma grande prostração. Mas, ao fim de alguns minutos, pararam simultaneamente, ao perceberem que o sortilégio tinha sido lançado. Não se sentiam nada cansadas, haviam perdido a capacidade de reflexão ou de expressão. Eram meros corpos sem consciência. Mas elas sabiam o que deviam fazer, como se fossem controladas por uma vontade desconhecida. Dirigiram-se para a saída de Nathyrnn, onde encontraram Adrien junto à porta, já aberta. As pessoas estavam encantadas e excitadas. A liberdade era-lhes oferecida como por milagre.

- Chegaram! - exclamou Adrien, vendo as três raparigas. Parece que tudo correu bem. É preciso agora evacuar toda a gente. Alguns prosseguirão o seu caminho connosco em direcção ao Conto de Fadas, outros regressarão às suas terras de origem.

Jean Losserand contava-se entre estes últimos. Ia finalmente voltar a ver a sua velha mãe, e a sua casa. No meio da multidão que se apressava para sair, fez um sinal a Jade, Opala e Âmbar e, com os olhos cheios de lágrimas de felicidade e incre dulidade, partiu. Mas as três raparigas não o viram. Já não o podiam reconhecer.

Adrien continuou:

- Vocês vão ter que continuar sem mim. Preciso de libertar os prisioneiros que estão nas celas. Eu sei onde posso encontrar as chaves mas tenho que ser rápido. Continuem a caminhar durante mais dez minutos em direcção ao Conto de Fadas e depois parem para recuperarem as forças e esperarem por mim.

As três raparigas mantiveram-se caladas. Saíram, com a mente vazia, seguindo a multidão, sem manifestarem qualquer espanto perante a situação que, no entanto, era insólita: a população inteira a apressar- se em direcção às portas da cidade, e os Cavaleiros da Ordem a dormir um sono profundo.

As três raparigas e uma parte dos habitantes de Nathyrnn avançaram pela noite dentro, com o coração a transbordar de alegria. Ao fim de dez minutos, de acordo com as instruções de Adrien, toda a gente parou. Alguns instantes mais tarde, o sortilégio chegou ao fim. Jade, Opala e Âmbar caíram então na terra seca. A magia tinha-se alimentado de todas as suas energias. Enquanto se manteve o sortilégio, as raparigas não se deram conta disso, mas, agora, sentiam-se completamente sem forças. Todos os esforços para fazê-las sair daquele estado de torpor foram em vão.

Uns dez minutos mais tarde, chegou Adrien, à frente de um grupo de mais de cento e cinquenta prisioneiros.

- Até agora, tudo tem corrido extraordinariamente bem - disse ele.

Um dos habitantes mais idosos de Nathyrnn apontou para as raparigas estendidas no chão. Adrien sabia que o seu estado não era grave, mas, ao ver Jade imóvel e inconsciente, sentiu um arrepio de frio. Retomando a palavra, disse:

- Vamos continuar o nosso caminho. Eu levo uma das raparigas e dois de vocês levam as outras. Terão que recuperar a consciência antes de chegarmos à fronteira. Foram elas que lançaram o sortilégio, foi graças a elas que chegámos até aqui.

Ouviu-se então um murmúrio de espanto. Com um gesto brusco, Adrien interrompeu-o.

- Elas não têm forças para lançar um segundo sortilégio e adormecer os Cavaleiros da Ordem que guardam a fronteira. Não temos outra solução: temos que mostrar que os nossos sonhos se justificam, que a nossa coragem não é uma ilusão. Lutaremos.

Ergueu-se então um clamor de terror. Adrien não se deixou perturbar:

- Cada um dos prisioneiros ficou com a espada de um cavaleiro de Nathyrnn. Como alguns são ainda crianças, ou não têm força para combater, as armas vão ser redistribuídas pelos mais valentes de entre nós. A nossa fuga não pode ter sido em vão! Temos um objectivo e estamos perto de o atingir. Aqueles que têm coragem para combater dêem um passo em frente. Não há nada que resista à esperança!

A fronteira do ducado de Divulyon estava muito bem guardada, mas, perante o entusiasmo de Adrien, a sua vontade inabalável, todos os homens mais capazes deram um passo em frente. Adrien encarregou-se de distribuir as armas.

- Não há nada que resista à esperança! - murmurou ele uma segunda vez, para se convencer a si mesmo.

Os habitantes de Nathyrnn puseram- se em marcha. Dois homens levantaram Jade e Âmbar. Adrien dirigiu-se a Opala para a levar. Foi então que o jovem reparou na dignidade do seu porte. Deixou-se levar pelo calor do seu corpo e apertou-a contra si. Admirou a multidão que o seguia. Em cada olhar brilhava uma determinação absurda. As mulheres, os velhos, as crianças, todos caminhavam, cheios de coragem. A noite estava escura, mas o caminho pedregoso e difícil que eles seguiam era o da liberdade. Ninguém falava, saboreando a tranquilidade efémera que os cercava.

Pouco depois, as raparigas recuperaram a consciência. Estavam extenuadas, com dores de cabeça, os membros doridos, mas lúcidas. Compreendendo a situação, quiseram lançar um novo sortilégio, mas não conseguiram. Aqueles que as transportavam pousaram-nas no chão. Mal se seguravam em pé e custava-lhes caminhar. Tiveram que as amparar ainda durante bastante tempo.

Cerca de um quarto de hora mais tarde, a multidão chegou à fronteira do ducado de Divulyon. A escuridão que os cercava protegia-os dos olhares dos inimigos. Diante deles erguiam-se, às centenas, os Cavaleiros da Ordem. E atrás destes, o campo magnético, formando um semicírculo que englobava o Conto de Fadas, e libertava uma claridade deslumbrante, apesar da sua opacidade.

- Combatam com valentia - disse Adrien aos seus homens armados. - Distraiam-nos para que os mais fracos possam passar em primeiro lugar e vocês sejam os últimos a retirarem-se. Lancem a confusão.

Ditas estas palavras, lançou-se para a frente, brandindo a espada, com os homens no seu encalço, prontos para o combate. Alguns, sem armas, mergulharam na confusão da batalha, de mãos vazias, a gritar.

No início, o efeito surpresa foi total. As mães e as crianças correram em debandada até ao campo magnético. Os Cavaleiros da Ordem, preocupados em defenderem-se dos assaltantes, poucas conseguiram deter. As crianças penetraram no Conto de Fadas sem dificuldade. As mães conseguiram segui-las.

Mas, do lado da batalha, tudo se transformara rapidamente em derrota. Sem qualquer dificuldade, os cavaleiros da Ordem dominavam por completo os seus adversários: apenas uma dezena de homens, entre os quais Adrien, conseguia verdadeiramente fragilizá-los. Muitos dos habitantes mais idosos de Nathyrnn jaziam por terra, gravemente feridos ou agonizantes. Escondidos na sombra, nada mais restava que um punhado de homens impotentes, velhos amedrontados, muitas mulheres de idade avançada, Jade, Âmbar e Opala.

- Se demorarmos, não conseguiremos passar - disse subitamente Jade. - Temos que tentar a nossa sorte agora, aproveitando a surpresa do ataque. Corram! Salvem-se! Não parem metam-se pelo meio dos cavaleiros. Ainda há uma pequena esperança, agarrem-na!

Reunindo as poucas forças que recuperara, Jade correu para o meio da batalha, sem medo, e agarrou na espada de um homem coberto de sangue, estendido no chão. A sua educação tinha sido completa; aprendera línguas antigas, mas também aprendera a combater. Ergueu a espada. Nesse instante, o barulho das espadas que se chocavam diminuiu, acabando por se esfumar completamente. Os Cavaleiros da Ordem, bem como os fugitivos, não conseguiram deixar de se sentir impressionados com a visão desta rapariga de cerca de catorze anos, cabelos pretos e olhar altivo. A sua imagem parecia deslocada, neste ambiente onde o sangue jorrava abundantemente. Os Cavaleiros da Ordem hesitaram quanto ao comportamento a adoptar. Foi um erro. Jade, rápida e ágil, atacou um deles. Âmbar, Opala e os fugitivos, incapazes de combater, aproveitaram para atravessar o campo de batalha. Âmbar passou o campo magnético com facilidade. Algumas outras pessoas, depois de se concentrarem bem, seguiram-na, embora com mais dificuldade. Mas a maior parte, entre as quais Opala, não conseguiram transpor a fronteira que as separava do Conto de Fadas. De repente, Adrien, que lutava com grande impetuosidade, gritou aos homens que restavam e a Jade:

- Temos que nos concentrar! Se continuarmos assim, não vamos sobreviver!

Mas Jade não o ouviu. Com uma técnica exemplar, dominava os Cavaleiros da Ordem mais experientes.

-Jade! Vem! Estamos em minoria, não podemos vencer! Jade, quase com pena, recuou em direcção ao campo magné tico com Adrien e os outros homens. Precipitando-se a apertar a sua pedra, tentou atravessar a protecção do Conto de Fadas.

- Eu acredito - disse ela - tenho que ir ver Oonagh. O Conto de Fadas existe. O impossível também. - Sentiu uma enorme dor ao chocar com o campo magnético. Todo o seu corpo foi impelido com violência. Um vento glacial invadiu-a. Tentou andar mas não conseguiu. Fechou os olhos, fechou os punhos. Quando voltou a abri- los, compreendeu que tinha passado para o Conto de Fadas.

Do outro lado do campo magnético, as coisas corriam muito mal. Os poucos sobreviventes tinham conseguido transpor a fronteira a seguir a Jade. Faltava apenas Adrien e aqueles que não conseguiam acreditar no impossível, entre os quais Opala. Os Cavaleiros da Ordem, verificando que toda a gente fugia, desertando da batalha, dirigiram-se aos últimos combatentes. Adrien não podia abandoná-los. Alguns choravam, desesperados, outros gritavam com medo.

- Basta acreditar - disse-lhes então Adrien. - Façam um esforço, lembrem-se de um vosso sonho de criança, um qualquer. Vocês vão conseguir.

Mas ele sabia que era demasiado tarde e que as suas palavras soavam a falso. De repente, contra todas as expectativas, Opala avançou em direcção aos inimigos. Chegando perto deles, disse-lhes numa voz forte e segura:

- Cavaleiros! Não peço para me pouparem. Mas apelo ao vosso coração para julgarem com justiça estas pessoas que me acompanham. O seu único crime foi buscarem a liberdade. Será que merecem a morte por isso?

Adrien contemplou Opala, com admiração. Ela, que habitualmente mantinha os olhos cravados no chão, fixava agora os cavaleiros com um olhar impassível. Adoptando um porte altivo, dava a impressão, naquele momento, que era invulnerável. Parecia tão majestosa, tão bela. Adrien compreendeu então que tinha estado cego. Amava Opala. Correu ao seu encontro, para a proteger, dizer-lhe o que sentia. Mas um cavaleiro da Ordem foi mais rápido que ele. As palavras de Opala apenas lhe haviam despertado sorrisos trocistas. Eram palavras que não faziam qualquer sentido para ele. Tinha sido preparado apenas para acabar com a vida e não para a poupar. Desembainhou a espada de lâmina cortante e, sem piedade, enterrou-a no coração de Opala. Trespassou-a, com um sorriso cruel nos lábios.

O corpo inerte de Opala caiu nos braços de Adrien. O seu sangue, escarlate, espalhou-se pela roupa. Mais bela do que nunca, até na morte era serena. Os olhos de Adrien encheram-se de lágrimas. Pousou os seus lábios nos lábios ainda suaves e mornos de Opala.

- Eu amava-a - disse apenas.

Os cavaleiros da Ordem olharam uns para os outros. Estavam habituados às lamentações, aos choros e às acusações, que não os comoviam. Era preciso acabar com isto. Mas Adrien continuou, numa voz triste e segura:

- A culpa não é vossa.

Os cavaleiros voltaram a levantar a cabeça, surpreendidos.

- Ensinaram-vos a combater, ensinaram-vos a matar. É a vossa profissão, e vocês desempenham-na bem. Vocês são homens, sabem manejar as armas melhor que ninguém.

Os cavaleiros estavam cada vez mais espantados. Adrien retirou discretamente a pedra da bolsa de veludo preto e, como Opala fazia antes, apertou-a. Depois prosseguiu:

- No entanto, vocês esqueceram-se do essencial. Todos vocês têm um coração, todos vocês podem sentir o amor. E é isso que faz de vocês verdadeiros homens.

Os presentes abanaram lentamente a cabeça. Estranhamente, mais ninguém ousou continuar a batalha.

- Vocês mataram aquela que eu amava - disse Adrien. - Não vos censuro por isso.

Eram as palavras de Adrien que faziam emudecer os cavaleiros, ou a visão do jovem levando o corpo inerte de Opala? Ou ainda a pedra que libertou um sortilégio mágico? Nunca ninguém o soube. Mas Adrien disse apenas:

- Se vocês são verdadeiros homens, saberão o que devem fazer.

E, nesse instante, um primeiro cavaleiro da Ordem, hesitante, voltou a embainhar a espada. Os outros seguiram o seu exemplo. Não sabiam se tinham feito a opção correcta, mas algo no seu íntimo os tinha forçado a isso.

Então, Adrien, voltando-lhes as costas, dirigiu-se para o campo magnético. Apertou a pedra com força, reprimindo as lágrimas. Ele e Opala eram agora um só. Ela amara-o. Ele amava-a.

Ele passou facilmente o campo magnético do Conto de Fadas. O amor, à falta de esperança, soubera vencer o impossível.

 

A ferida era profunda: um corte sangrento no antebraço esquerdo. Tivera que combater os Bumblinks na véspera. Estas criaturas perversas atacavam na floresta setentrional do Conto de Fadas. Ele quis atravessá- la, em vez de perder longos e difíceis dias a contorná-la, mas a sua opção revelou-se insensata. A floresta estava povoada de espíritos maléficos que não toleravam a presença de humanos. Já travara duas batalhas em apenas três dias, e o seu cavalo havia sucumbido numa delas. Felizmente, a noite começara a cair e, com ela, a hora de os habitantes da floresta irem dormir.

Parou numa das raras clareiras existentes. Estava sem forças. De repente, ouviu um ruído. Com a mão do braço que não estava ferido, desembainhou rapidamente a espada de lâmina cintilante. Viu então uma silhueta. O jovem, desconfiado, esperou. O desconhecido avançou. Pequeno, atarracado, vestia uma túnica vérde escura larga, e trazia uma espada embainhada. Era impossível calcular a sua idade: apesar das rugas que marcavam o seu rosto, a expressão era a de um jovem. Os cabelos loiros muito claros caíam revoltos à frente da testa saliente. Tinha um nariz minúsculo, achatado, lábios lívidos mas carnudos. As sobrancelhas, como os cabelos, eram muito finas e quase brancas. Por baixo delas, dois grandes olhos negros reflectiam um olhar de indiferença, mas, no entanto, de grande experiência. Um largo sorriso esboçou-se no seu rosto, aparentemente amável. Todavia, observando-o melhor, percebia-se que poderia tornar-se terrível se a situação o exigisse. Será um ser humano? À primeira vista, poderíamos ser levados a pensar que sim. O seu

aspecto praticamente não diferia do dos homens. Entretanto, se o olhássemos com atenção, verificávamos que a sua pele era ligeiramente prateada.

- Guarda a tua espada, estranho! - disse a criatura. - As minhas intenções são pacíficas.

O jovem do braço ferido não ficou convencido e não obedeceu logo à sugestão. Contudo, após um momento de reflexão, acabou por ceder.

- Vim de longe para te encontrar - continuou a criatura. Chamo-me Elfohrys e venho ter contigo para te pedir ajuda e não para combater.

Elfohrys deu alguns passos em frente. Observou o jovem que se encontrava à sua frente. Deveria ter perto de dezoito anos. Os seus cabelos eram castanhos escuros e os seus olhos azuis carregados, com ligeiros cambiantes de esmeralda, eram de uma grande intensidade e neles se podia facilmente adivinhar uma certa melancolia. O seu rosto tinha um ar sério.

Elfohrys, com a respiração suspensa, disse para consigo: Pois bem, - Diz-me, não és por acaso um ovalino ou um cavaleiro andante, como diz o povo?

- Sou - confirmou o jovem.

- E como é que te chamas? - perguntou Elfohrys, com o coração a bater mais depressa. - Não tenhas receio de o dizer.

- Não tenho nome - confessou o jovem ovalino. - Ou, pelo menos, não o conheço. Há dois anos, acordei num campo. O meu passado tinha-se varrido da minha memória. Depois, decidi ser ovalino e pôr-me a caminho, em busca do meu nome.

- O Sem Nome! - exclamou Elfohrys, exteriorizando uma admiração e um entusiasmo sinceros. - A tua reputação é conhecida em todo o Conto de Fadas! Por toda a parte se fala de um corajoso ovalino que anda à procura do seu nome. Serás tu o Sem Nome?

- Sim, infelizmente. A minha busca parece não me levar a lado nenhum.

- Eu tenho poderes para te ajudar. Posso ajudar-te a atravessar a floresta e acompanhar-te até mais longe ainda.

- Mas por que razão me quer ajudar?

- Eu também tenho uma busca a fazer, mas não posso revelar-te o motivo e a finalidade dessa busca.

Eu procuro o Eleito. E julgo que o encontrei, acrescentou Elfohrys para si mesmo.

Sem Nome não fez perguntas. Afinal de contas, um companheiro de estrada, apesar de misterioso, era sempre bem-vindo. O jovem ficou silencioso. Os seus pensamentos levavam-no, como sempre, até ao seu sonho: ter uma identidade. Tinha já percorrido a maior parte do Conto de Fadas, perguntando a toda a gente se sabia alguma coisa sobre ele. As suas buscas não tinham produzido ainda qualquer efeito. Na verdade, várias foram as vezes que teve de combater monstros que aterrorizavam a população e tinha sido bem recompensado por isso. Mas não era a glória que procurava. À noite, depois de ter enfrentado mil peripécias, nunca adormecia sem se interrogar sobre o seu nome e a sua origem. Inventou para si próprio centenas de passados, em função do seu estado de humor. Mas isso não bastava para Lhe saciar o desejo, e a frustração devorava-o enquanto prosseguia a sua errância.

Fazia-se tarde e a fome começava a dar sinal. Sem Nome retirou do seu pesado alforge um pedaço de pão, uma cabaça de água, peru fumado e um fruto com aspecto estranho. Quis dividi-los com Elfohrys, que educadamente recusou, tirando do seu próprio saco uma ementa pouco vulgar. Comeu com avidez uma massa violeta, viscosa e pegajosa. Sentindo-se depressa saciado, aguardou pacientemente que o seu companheiro acabasse de comer o seu próprio farnel. A seguir, fez-se silêncio. Sem Nome fez uma fogueira. As chamas pareciam dançar. Em seguida sentou-se e continuou calado. A situação era extraordinária, pensou ele. De um instante para o outro, encontrou-se na companhia de um estranho de que nada sabia, ou quase nada. Será que poderia confiar nele?

Elfohrys deitou-se, entretanto, e parecia dormir profundamente.

Sem Nome não tinha sono e ficou deitado, com os olhos abertos, a olhar para as estrelas cintilantes. Tentava identificar as diferentes constelações e citar os seus nomes. Uma nostalgia indescritível invadiu o seu coração. Quem era? Quem era? Nenhuma lembrança, nada que fizesse dele um ser humano, nada a não ser um corpo e uma alma que sofriam. Era um estranho, até para si mesmo. Sem Nome retirou a espada da bainha, observou atentamente a sua comprida lâmina gelada, uniforme e afiada. Imaginou essa lâmina a enterrar-se no seu coração. Experimentaria alguma sensação de frio? Talvez não, o Inverno há muito se instalara dentro de si, um Inverno eterno de perguntas e respostas. O que é que estava a fazer neste mundo?

As estrelas brilhavam mais do que o habitual. Levantou-se e, de espada sempre na mão, começou a caminhar, sem saber bem para onde ia, sem pensar no risco que corria de se perder. Que importância teria isso? Seguiu um atalho sinuoso e mergulhou nas profundezas da noite. Caminhou durante muito tempo, sem se preocupar com o que estava à sua volta, sem parar. Finalmente, chegou a uma clareira iluminada pela palidez nocturna da lua. Sem Nome reparou que havia um lago. Sentou-se na beira e contemplou o seu rosto reflectido na água clara. Este rosto, o seu rosto, o que é que representava, se não tinha nome? Meditou durante muito tempo, a espada pousada a seu lado. De repente, o seu reflexo na água agitou-se e uma criatura com o aspecto de uma sereia saiu do lago. Bela, um corpo de mulher com duas caudas, de tamanhos iguais e cobertas de escamas de ouro, ela pertencia, sem dúvida, ao mundo mágico; a sua pele era de uma brancura, de uma pureza quase demasiado perfeitas, feições esculpidas, e uns olhos azuis mesclados de dourado. Os cabelos pretos caíam-lhe pelos ombros abaixo, em caracóis pesados e perfeitos, que não pareciam estar molhados pela água donde acabara de surgir. Nas mãos de dedos finos segurava um guarda-jóias incrustado de pérolas redondas. Dirigiu-se a ele sem receio:

- Tu, mortal, ousaste aventurar-te vindo até ao lago das Tormentas! Só as almas sofredoras podem contemplar o seu reflexo nas suas águas: as outras perdem-se por terem tentado encontrar aí a consolação que não merecem. Eu e as minhas irmãs somos as guardiãs e as donas do lago. Raramente aparecemos a alguém, e isso só acontece aos que são dignos. Subi à superfície para te falar, mortal, pois tenho que te devolver o que te pertence.

- Está enganada. Eu só tenho o meu corpo, a minha alma. Eu não sou nada, nem sequer tenho nome. Chamam-me Sem Nome.

- Eu sei quem tu és, conheço o teu passado e até parte do teu futuro. Muitos são os que sabem tanto como eu, sem te conhecerem. Mas, mesmo que quisesses, não te revelaria o nome que te deram quando nasceste, pois essa não é a minha missão. A única coisa que tenho o direito de te dar é este guarda-jóias. Foi-nos confiado, a mim e às minhas irmãs, há já alguns anos. Prometemos entregá-lo a uma pessoa especial, cujo destino um dia traria até à beira deste lago. Essa pessoa és tu, mortal. Cuida bem do que está dentro deste guarda-jóias. Era essa a vontade de quem nos confiou a sua guarda.

Sem Nome agarrou no objecto. Logo a seguir, a sereia de caracóis escuros voltou a mergulhar nas profundezas do lago sem uma palavra, sem um ruído. Sem saber o que fazer, mas movido pela curiosidade, abriu com cuidado o guarda-jóias, a respiração suspensa pela emoção, o coração a bater descompassadamente. O guarda-jóias estava vazio.

O Décimo Terceiro membro raramente se irritava. No entanto, desta vez, estava num estado de fúria indescritível e tremia de raiva; tinha as feições completamente alteradas; gritava, e a sua voz repercutia-se por todas as salas do palácio do Conselho dos Doze.

- O quê - bramou ele. - Estás a dizer-me que todos os habitantes da cidade de Nathyrnn fugiram? Julgas que sou imbecil?

Numa grande placa dourada, pouco espessa, suspensa no ar, aparecia a imagem de um cavaleiro da Ordem com uma expressão amedrontada.

- Euh. sim, toda a gente fugiu - confessou o homem com uma voz quase inaudível.

- E como é que se explica isso - bradou o Décimo Terceiro membro do Conselho. - Não me vai dizer que estava a dormir?

- Bom, de facto. é verdade - balbuciou o cavaleiro da Ordem, confuso e envergonhado.

- Tem a coragem de me mentir? Sabe então qual a sorte que o espera? A morte! Na praça pública, na maior desonra!

- Mas. garanto-vos que não estou a mentir.

- Ligue-me à fronteira do ducado de Divulyon! Imediatamente

Imediatamente a imagem no ecrã se toldou, dando lugar ao rosto de um outro cavaleiro da Ordem.

- Comandante-chefe dos cavaleiros da Ordem que protegem a fronteira de Divulyon, ao seu serviço! - gritou ele.

- Comandante - disse o Décimo Terceiro membro, alterado - diga-me se interceptou um importante grupo de fugitivos há algumas horas?

- Quer dizer. - começou o comandante, num tom repentinamente mais humilde e hesitante.

- O que é que se passou? - gritou o seu interlocutor. - Não me minta!

- De facto interceptámos algumas pessoas. Neutralizámos a maior parte. Batemo-nos com grande valentia. As nossas tropas foram duramente postas à prova. Nós.

- Quero saber se alguém passou para o Conto de Fadas!

- Sim - confessou o cavaleiro da Ordem, baixando os olhos.

- Mas é impossível! - gritou o Décimo Terceiro membro. Quem é que dirigiu a revolta?

- Aparentemente, um jovem que não conseguimos identificar.

- Desse grupo faziam parte três raparigas com mais ou menos catorze anos?

- Penso que sim. Uma delas sabia defender-se particularmente bem.

- Não me diga que morreu ou será você a morrer!

- Ela não. Foi outra que morreu.

- Outra? Descreva-a!

- Loira, olhos pálidos, pele leitosa, roupa modesta.

- O quê? Acaba de assinar a sua morte, cavaleiro! - vociferou o Décimo Terceiro membro do Conselho.

Em seguida, fez um gesto rápido com a mão e a imagem desapareceu. Fechou os punhos, furioso. O seu plano falhara. Não só Opala fora a Nathyrnn como a sua morte acontecera demasiado cedo. E, a partir de agora, as outras duas pedras já deveriam estar no Conto de Fadas, fora do seu alcance. Juntas, as três pedras representavam uma ameaça; eram poderosas. Mas se Opala estava morta. Tanto pior. Seria impiedoso para as outras duas.

De repente, teve uma ideia. Um ricto aterrador de alegria desfigurou então o seu rosto.

 

A paisagem estava mergulhada na escuridão. Adivinhavam-se as planícies de ervas selvagens e densas e as colinas arborizadas.

Os antigos habitantes de Nathyrnn transbordavam de alegria. Cada um abraçava o vizinho, o rosto transfigurado de felicidade. Como não acreditar no impossível depois de ter visto os impiedosos cavaleiros da Ordem a voltarem a embainhar as espadas?

Só Adrien, Jade e Âmbar não partilhavam da euforia geral. Estavam em silêncio, o espírito ocupado por pensamentos sombrios. A morte de Opala começara por surpreendê-los e depois deixara-os transtornados. Ela já não estava com eles; nunca mais voltaria. A sua partida tinha sido tão repentina que ainda não tinham conseguido aceitá-la. E, no entanto, o seu corpo inanimado jazia nos braços de Adrien. Os seus caracóis loiros revolviam-se no vazio; os seus lábios pálidos, petrificados, esboçavam um último sorriso; do seu rosto, agora lívido, todo o sangue havia desaparecido. Apesar de tudo, apesar da própria morte, ela continuava bela, parecendo ainda mais inacessível.

Adrien, com o coração destroçado de desgosto, procurava conter as lágrimas e a tristeza com grande coragem. De rosto fechado, e apesar de perturbado, acompanhava Jade e Âmbar à vivenda de um dos seus amigos, Owen d'Yrdahl. A moradia era elegante, mas não sofisticada. Adrien entrou e dirigiu-se para um quarto de visitas onde dormira muitas vezes. A porta de entrada estava aberta, pois ninguém se dava ao trabalho de a fechar. Assim, não teve que explicar a ninguém o motivo da sua

vinda. Nos corredores escuros, cruzou-se com alguns foliões, ainda acordados àquela hora avançada da noite, que olharam fixamente para ele mas a quem ele não prestou atenção.

Chegando ao quarto, deitou cuidadosamente Opala em cima da cama com lençóis brancos e frescos, ajoelhou-se diante dela, pegou na sua mão ainda morna e olhou-a em silêncio.

Atrás dele, um pouco afastadas, estavam Jade e Âmbar. Não sabiam o que se estava a passar, onde se encontravam, o que estavam ali a fazer. Recusavam-se a pensar, e muito mais a mexer-se. Opala estava morta. E isso, elas não conseguiam compreender.

Âmbar não podia deixar de chorar. Cega pelas lágrimas, interrogava-se sobre o carácter incompreensível da vida, que não dava qualquer descanso aos que ela decidia destruir. Acreditara que Opala seria inatingível, que, de certa forma, seria imortal. Porque é que tinha sido preciso fazê-la desaparecer de uma maneira tão prematura e cruel?

Jade sentia-se mal. Não conseguia ter verdadeiramente pena que Opala tivesse desaparecido. Algumas lágrimas tinham corrido pelo seu rosto mas ficavam a dever-se mais ao horror que a própria morte Lhe inspirava, à angústia de vir a encontrar-se um dia mergulhada num nada sem fundo e sem fim, de deixar de pensar, de deixar de sonhar, de desaparecer do mundo, esquecida. Jade reconhecia isso e sentia-se envergonhada: chegara mesmo a detestar Opala. Apesar de morta, não conseguia nutrir qualquer afecto por ela, apenas um pouco de compaixão. No entanto, tinha consciência que Âmbar, Opala e ela própria formavam um todo, um todo indefinido, que não deveria ser separado. Opala não deveria morrer, tinha a certeza disso. Os seus sentimentos contraditórios chocavam-se violentamente. Por um lado, não lamentava a morte de Opala, por outro, sentia remorsos da sua insensibilidade. Lembrava-se da frieza e do desprezo que esta rapariga sempre lhe devotara, mas uma voz dizia-lhe baixinho que Opala era indispensável, censurava-a por se ter mostrado dura e arrogante.

Nesse momento, entrou um homem no quarto. Ombros largos, bem constituído, um sorriso franco a iluminar o seu rosto

aberto e jovial, deveria ter à volta de vinte anos. Vestia com sim plicidade e irradiava alegria. Da soleira da porta exclamou:

- Adrien! Voltaste! Fiquei ansioso por te ver quando soube que estavas cá! Diz lá: quem são estas jovens encantadoras?Voltando-se para Jade e Âmbar, disse:

- Eu sou Owen d'Yrdahl, um amigo de longa data do Adrien, e estou encantado por vos conhecer! Bem-vindas a minha casa!

Adrien levantou-se, deixando ver o corpo de Opala. Tomou a palavra com uma voz pouco firme:

- Olha, Owen! Ela está morta! Morta! A culpa foi minha. Foi assassinada por um cavaleiro da Ordem, mas eu podia tê-lo impedido! Não fiz nada!

O sorriso de Owen desapareceu de imediato. Precipitou-se para a cabeceira de Opala, agarrou-lhe o pulso e olhou para o sangue que corria inexoravelmente da chaga. Depois, sem explicações, saiu do quarto que nem um furacão. Jade e Âmbar olharam uma para a outra, atónitas. Ao fim de alguns minutos Owen Yrdahl voltou na companhia de um homem atarracado, de meia idade, que observou Opala em silêncio.

- Lloghin, que vocês vêem aqui - disse Owen -, é um dos nossos curandeiros com mais experiência. Evidentemente, no caso da tua amiga, Adrien, já não vale a pena, mas convém que ela não perca muito sangue.

- Owen, pára de me gozares! - respondeu Adrien, aborrecido. - Opala está morta e não estou a ver como é que um curandeiro pode fazer alguma coisa! Não tem graça nenhuma.

- Graça?

Owen bateu na testa e disse em voz alta:

- É verdade, tu não estás a par!

- A par de quê? - perguntou Adrien, sentindo uma esperança absurda a encher-lhe o coração.

- Da greve da Morte, há já dois séculos que não fazia uma. É inquietante. A tua amiga está viva.

- Inquietante? - repetiu Âmbar. - Não vejo em que é que um milagre possa ser inquietante. O que é isso da greve da Morte?

- Toda a gente sabe que a Morte é uma criatura que mora no Conto de Fadas. Evidentemente que os territórios que ocupa não são acessíveis a ninguém. E, há algumas horas atrás, ela decidiu não trabalhar mais. Por isso, ninguém pode morrer.

Jade e Âmbar estavam estupefactas. Adrien, habituado ao Conto de Fadas, não pôde deixar de soltar lágrimas de felicidade.

- A Morte está deprimida - continuou Owen. - Afirma que ninguém gosta dela, o que, seguramente, é verdade. Mas ela gostaria que as pessoas fossem justas e a estimassem pelo valor que também tem. Dizem que ela se quer matar. Como isso é impossível, ela fica cada vez mais deprimida. Os seus conselheiros estão desesperados.

- Então Opala está viva! - entusiasmou-se Âmbar.

- Sim, mas vai levar tempo a curar completamente. É por isso que ela não deve perder muito sangue.

Lloghin, o curandeiro, aplicava bálsamos e compressas em Opala, ao mesmo tempo que entoava palavras estranhas.

- A última greve da Morte teve consequências terríveisrecomeçou Owen d'Yrdahl. - Durou cerca de dez anos. Aqueles que se feriam ou ficavam doentes durante a greve curavam-se rapidamente, mas aqueles que já estavam feridos ou doentes antes continuavam a agonizar sem que a Morte pudesse libertá-los. Os seus conselheiros conseguiram finalmente trazê-la de novo à razão. Mas, desta vez, tenho a impressão que o caso é mais sério.

- Que história! - exclamou Âmbar, impressionada.

- Agora que as preocupações com a vossa amiga - Opala, se bem entendi - já passaram, talvez seja altura de nos apresentarmos, não? - sugeriu Owen a Jade e a Âmbar.

- Bem, nós conhecemos o Adrien ainda não há um dia, mas, apesar disso, já libertámos juntos uma cidade. Estamos aqui porque queremos encontrar-nos com uma tal Oonagh que lê nos corações ou qualquer coisa assim - declarou Jade, bocejando de cansaço. - Na verdade, eu sou a Jade, e é tudo o que sei sobre mim. Fui expulsa do meu palácio pelo meu próprio pai, tenho inimigos por todo o lado, o que não é propriamente a minha ideia de felicidade, mas o que é que quer.

- Eu sou a Âmbar - disse esta apenas.

- Jade, Opala, Âmbar. - disse Owen em voz baixa, surpreendido com o que acabava de descobrir.

Jade bocejou novamente. Estava exausta, a cabeça andava à roda, já não sabia muito bem o que dizia.

- Dormir. - murmurou ela, sentindo as pálpebras a ficarem cada vez mais pesadas.

- Euh. sim, com certeza, vou acompanhá-la até outro quarto - disse Owen, acrescentando para Adrien: - Aguarda um minuto que eu já volto.

Já de volta, Owen exclamou para o jovem, extremamente excitado:

- As pedras d'A Profecia! Trazes para aqui aquelas de que todo o Conto de Fadas fala! Deves-me uma explicação!

- São raparigas incríveis - declarou Adrien. - Não leves a mal que a Jade tenha adormecido. Passou estas últimas horas a combater os cavaleiros da Ordem.

- Mas é muita imprudência da parte dela revelar assim o seu nome e toda a sua história... Ela não se dá conta do risco que corre?

- Não, não acredito - respondeu Adrien. - Não tem o ar de quem conhece verdadeiramente A Profecia.

- Então, não nos cabe a nós abrir-lhe os olhos. Conta-me então como é o Exterior!

- É muito diferente daqui - disse Adrien, suspirando. Não imaginas até que ponto; são dois mundos quase opostos. O Exterior é belo, enorme, como as pessoas comentam entre nós, mas é igualmente duro, violento e primitivo. A vida lá é difícil e primitiva. As pessoas não sabem o que é a liberdade, a sociedade é hierarquizada e injusta.

- Não estarás a exagerar?

- Talvez. mas penso que não. Mas. e tu, diz-me: o que é que mudou aqui?

O rosto de Owen tornou-se sombrio.

- Começamos a ficar desesperados - confessou ele em voz baixa.

- Não. não me digas que. o Eleito.

- É verdade. Ainda não o encontrámos.

- Isso está a tornar-se preocupante! De acordo com o que diz A Profecia, o dia da batalha está muito próximo. E se o Eleito não der sinais de vida. como é que vamos lutar? O exército dentro de pouco tempo vai voltar a reunir-se, mas, sem ele, isso não irá adiantar nada.

- Toda a gente pensa o mesmo que tu - disse Owen, impaciente. - É de perder o moral. Oonagh espera, mas nada se passa. O Eleito ainda não se manifestou.

- E se ele não aparece?

- Isso significaria que Néophileus se enganou, que a Profecia é falsa e que as nossas esperanças são vãs - rematou Owen, soltando um suspiro. - Mas isso não pode acontecer!

- Se o Eleito não existir, talvez as pedras não tenham o poder que lhes é atribuído.

- E tudo estaria perdido - desabafou Owen, lentamente.

 

Sem Nome teve dificuldade em encontrar o caminho de regresso. Mas a aurora surpreendeu-o já na clareira ao lado de Elfohrys. A luz do dia, clara e poderosa, apesar do campo magnético à volta do Conto de Fadas, inundava a floresta. Uma aragem quente fazia sussurrar as folhas das árvores. Ouviam-se as melodias matinais de alguns pássaros. A floresta despertava e, com ela, Sem Nome e Elfohrys abriram os olhos. Ainda cansados e com os membros doridos, decidiram, mesmo assim, partir.

Ao longe, ressoavam gritos estridentes. As criaturas que povoavam os bosques também estavam a acordar. Pertenciam à raça dos Bumblinks ou dos Ghibduls.

 

Quanto a Elfohrys, pertencia a uma raça de criaturas mágicas pouco divulgada, mas respeitada, os Clohryuns, donde tinha saído o próprio Néophileus. Estes não possuíam, verdadeiramente, poderes mágicos, mas Elfohrys sabia defender-se e não tinha receio de combater um adversário mais ágil que ele. Conhecia um caminho para sair da floresta, apesar de nunca o ter utilizado. Soubera dele através de um amigo de confiança. Contudo, havia sempre o risco de se encontrarem com Bumblinks ou Ghibduls. Era necessário, pois, manterem-se permanentemente alerta.

Os dois companheiros puseram-se a caminho, num passo acelerado. Elfohrys seguia, determinado, por atalhos sinuosos, ladeados de silvas e arbustos definhados. Sem Nome não tinha medo. Dava tão pouca importância à sua vida que não receava perdê-la. Ao fim de algumas horas bastante monótonas, Elfohrys deixou os atalhos para se aventurar nos bosques.

- Não pode ser de outra maneira - justificou ele em poucas palavras a Sem Nome, que se limitou a acenar com a cabeça.

A partir daí, a floresta parecia ainda mais ameaçadora. As árvores descarnadas elevavam-se nos céus, onde não se via uma única nuvem.

- Quanto mais nos aproximamos do coração da floresta - explicou Elfohrys - mais se faz sentir a presença das criaturas maléficas. Estou admirado por termos chegado até aqui sem problemas.

À medida que o tempo passava, que o sol se erguia no horizonte, a atmosfera tornava-se mais pesada, apesar da sombra proporcionada pelas árvores. Sem Nome sentia-se estranhamente cansado, tinha vontade de parar, de se deitar debaixo de uma árvore, de se deixar levar pelo sono. Caminhava cada vez mais devagar, o olhar perdido no vazio. À medida que avançava, os sons chegavam-lhe cada vez menos perceptíveis, as imagens cada vez menos precisas. Abafava. O vazio acabou por tomar conta dele: à sua volta, tudo ficou escuro. Caiu frouxamente no chão. Uma voz nasalada ressoou:

- Nada, nada, nada, não és nada, nada, nada. Em seguida, foi a voz suplicante de Elfohrys que o forçava a ouvi-lo por telepatia:

- Não te deixes cair, Sem Nome! É um ataque mental dos Ghibduls! Acorda, só precisas de ter alguma força de vontade. Não te deixes abater.

Mas esta voz incomodava Sem Nome, que queria afastá-la mentalmente, impedi-la de o continuar a perturbar. A sua boca estava pegajosa. Com esforço, tentou ordenar a Elfohrys para se calar. E, de repente, sem verdadeiramente querer, articulou dis tintamente:

- O guarda-jóias, no meu alforge!

Parecia que alguém lhe ditara estas palavras sem sentido. Depois mergulhou num estado de inconsciência onde desejou ficar para sempre.

Entretanto, ao fim de alguns instantes, sentiu que Elfohrys lhe punha nas mãos o guarda-jóias incrustado de pérolas. Impelido por um instinto poderoso, abriu-o. Foi imediatamente inundado por uma sensação de frescura, de bem-estar. Levantou-se de um salto.

- Sem Nome! Até que enfim, voltaste a ti! - exclamou Elfohrys. - Pensei que estivesses perdido; a força persuasiva mental dos Ghibduls é muito forte. Tentei acordar-te, gritei, até recorri à telepatia para te ajudar. Mas continuaste mergulhado num grande torpor.

- Obrigado - disse Sem Nome. - Se não estivesse comigo, não teria sobrevivido.

- Sim, é verdade, mas os Ghibduls teriam vindo capturar-te e ter- te-iam levado para a sua maldita morada onde te torturariam.

- Obrigado - repetiu o ovalino, não sabendo o que dizer

mais.

- Felizmente que falaste neste guarda-jóias! Encontrei-o no teu alforge, mas, apesar de ter tentado abri-lo, não o consegui... Diz- me, é um guarda-jóias encantado? Só te obedece a ti?

- Não sei muito sobre ele, cruzou-se no meu caminho... Elfohrys não insistiu. Porque seria que Sem Nome tinha pedido, no estado de torpor em que se encontrava, que lhe desse o guarda-jóias? E como é que ele o conseguiu salvar?

- Sem Nome - disse de repente Elfohrys -, quando deixarmos a floresta, para onde contas ir?

- Ainda não saímos da floresta - respondeu o jovem, iludindo a questão.

- Os Ghibduls não te deixarão fugir facilmente. Tu escapaste-lhes; eles vão fazer tudo para se vingarem.

- São inimigos terríveis - exagerou Sem Nome, aliviado por ver que a conversa se desviava para outro tema.

Mas Elfohrys insistiu:

- Deixando isso de lado, nunca chegaste a revelar-me o teu próximo destino.

- Eu. eu contava seguir para a cidade de Thaar - respondeu Sem Nome, manifestamente incomodado.

- A cidade de Thaar? - repetiu Elfohrys, incrédulo. - A cidade das Origens? Que interesse poderá ela ter para um ovalino como tu? É uma cidade muito perigosa, é difícil lá entrar, e não oferece qualquer atractivo para aquilo que procuras!

- Eu não sei para onde ir - confessou então Sem Nome - e Thaar é um dos poucos sítios onde ainda não fui. É tão simples como isso.

- Já alguma vez estiveste com Oonagh? - perguntou Elfohrys, convencido de que conhecia. a resposta.

- Não, nunca. O que terá essa criatura para me dizer? Eu só conheço bem o que vai dentro do meu coração, as perguntas, os tormentos, mas nada sobre o meu passado.

- Enganas-te. Eu próprio Soube coisas que não imaginava e, no entanto, elas estavam gravadas no meu coração.

- Tenho quase a certeza que as suas palavras não me ajudarão em nada - teimou Sem Nome. - E, além disso, Oonagh mora tão longe, naquela gruta perdida na montanha escarpada. Poucas são as pessoas que tentam essa viagem.

- Confia em mim. Segue os meus conselhos, vai ter com Oonagh. Se ela não souber dizer-te nada sobre a tua identidade, iremos então a Thaar.

- Porque não? Se estás tão seguro disso, vou ter com Oonagh - acedeu o ovalino.

Lá longe, mesmo no centro da floresta, erguia-se, medonho e lúgubre, o refúgio dos Ghibduls. Ninguém conseguia definir a sua personalidade estranha. Os Ghibduls, entre eles, tinham um comportamento muito superior ao dos homens. Nunca entravam em guerra, toleravam os defeitos dos seus semelhantes e no interior das suas casas não sabiam o que era a cólera. Tinham-se os seus costumes na conta de pouco evoluídos, e a sua sociedade como primitiva. Puro engano. Os Ghibduls viviam sem conflitos e, como as outras criaturas, talvez até mais, conheciam o amor e a piedade. Viviam em liberdade e eram felizes; a floresta era a sua morada, o seu local de diversão, o seu único limite, pois nunca a deixavam. O seu aspecto era deveras repelente, o que em muito contribuíra para que se tivessem inventado uma série de histórias sobre a sua crueldade. Na verdade, eram naturalmente meigos e leais. Mas eram combatentes ferozes. Tinham consciência que eram mais fortes que a maior parte das outras espécies e, com receio que os intrusos que entrassem no seu território se apropriassem da floresta, matavam-nos. Esses estrangeiros de aspecto invulgar eram, aos seus olhos, animais selvagens e cruéis, presas excitantes votadas a uma morte violenta. É verdade, os Ghibduls gostavam muito do cheiro a sangue quente a jorrar nas suas mãos, o seu odor pesado e suave a impregnar as suas narinas. Em sua opinião, morrer às suas mãos era uma bênção para esta caça inferior, incapaz de pensar, de amar (o mesmo que, aliás, a caça em questão pensava dos seus adversários).

Ora, nestes últimos dias, os Ghibduls tinham acabado de sofrer uma das mais graves afrontas de que havia memória entre eles. Havia um homem na floresta, e esse homem tinha-os vencido. O ataque surgira depois da derrota que ele havia infligido aos seus amigos, os Bumblinks. Defendera-se galhardamente, conseguindo ferir a maior parte deles. Manejava com destreza uma espada aparentemente encantada e, sobretudo, não receava a morte. Até essa altura, os Ghibduls apenas tinham encontrado homens muito ligados à vida, agarrando-se a ela, desesperados. Este ovalino era diferente, foram forçados a admiti-lo, tendo-se retirado cobertos de vergonha. Feridos no seu orgulho, juraram vingar-se, mas, no fundo, não podiam lutar contra um sentimento de admiração, proporcional ao ódio que a partir de agora votavam ao ovalino. Tentaram fragilizá-lo mentalmente, humilhação por que apenas passavam em relação aos seus adversários mais intrépidos, mas mesmo assim o humano vencera.

Mortificados, os guerreiros ghibduls foram ter com os seus pensadores: eram os seus estrategas e os seus conselheiros, responsáveis pelos assuntos de maior importância. Os próprios pensadores haviam ficado desconcertados com o relato dos guerreiros, mas um deles, de espírito mais vivo, acabou por encontrar uma solução que surpreendeu toda a gente. A princípio foi violentamente contrariado mas todos acabaram por dar-lhe razão. Os Ghibduls não eram quem se pensava, e este homem que os tinha vencido ainda ia ter muitas surpresas, disso podia ter a certeza.

 

               Paris, 2002

silêncio impenetrável, inalterável, metia-me medo. Apenas ouvia o barulho contínuo dos aparelhos a que estava ligada, a que a minha vida, trémula, estava ligada. Sempre tive medo do escuro. Para quê negar? E, para mim, a morte, era isso: a escuridão total, eterna e insondável. Imaginava-me a cair num abismo sem conseguir segurar-me a nada. Via-me a ser agarrada pelo nada, engolida para sempre por um mundo desprovido de sentimentos, de pensamentos, de cores, desprovido de tudo. Deixaria de sofrer. Ia perder-me neste vazio, esquecer tudo, apagar tudo, até as recordações da minha existência. Mas, no fundo, se isto era a morte, a vida talvez me tivesse já abandonado. Mas não, eu continuava presente, deitada, imóvel, o rosto macilento, sacudida por movimentos convulsivos, aguardando o fim. Tinha medo, tanto medo que acreditava que o medo levaria a melhor, que me mataria antes da doença. Tinha mais ou menos aceite a dor, tinha compreendido que ela iria continuar a devorar-me, sorrateira, até ao fim. Mas nunca esquecera o medo, que, sempre escondido dentro de mim, me consumia, me perseguia, me inundava, sem descanso. Tinha medo do silêncio, do negro, do esquecimento, da eternidade. Da morte. Queria parar o tempo, ordenar-lhe que interrompesse o seu curso. Gritava-lhe que voltasse para trás, que me restituísse a vida, o futuro. Nada mais tinha junto a mim que me pudesse ajudar, reconfortar. Apenas subsistia a angústia, cada vez maior.

Até que o sonho acontecera. Perturbara a minha espera, tinha-me modificado, projectado para fora do tempo, para fora da vida que levava ou da ausência de vida que constituía o meu universo. Desejaria que o sonho não mais terminasse, que me fizesse esquecer tudo o resto, que o apagasse do mundo. Julgava que poderia viver no meu sonho, torná-lo realidade, e transformar a minha triste realidade num sonho longínquo e inverosímil. Sem o saber, recuperara um pouco a esperança. Mas nada mais era que um sonho. Esta constatação veio, inevitavelmente, destruir as minhas ilusões.

Soltei um profundo suspiro. E encarei a verdade, aquela que lia nos olhares evasivos das enfermeiras, aquela que se escondia, receosa, dentro de mim. Não podia continuar a acreditar que a minha vida iria ser como dantes, não tinha esse direito, não tinha essa força. Joa, a filha mimada de seus pais, adulada, rodeada de amigos e de sucesso, essa Joa já não existia.

Dominei o meu medo, quebrei a carapaça irreal em que procurava envolver-me graças a este sonho. E disse em voz alta, para ouvir melhor aquilo de que fugia: Tenho catorze anos. E vou morrer.

Ponto final.

 

Ao acordar, Âmbar, desorientada, teve um momento de pânico. Onde é que estava? O que é que se tinha passado? Depois, subitamente, vieram- lhe à memória os acontecimentos do dia anterior, cheio de emoções.

Levantou-se com preguiça, vestiu-se, tomou um banho quente numa salinha interior contígua. Cheirou os perfumes delicados pousados numa prateleira, e experimentou um deles. Em seguida penteou-se e, quando ficou pronta, deixou o quarto. Este dava para um corredor, que seguiu sem saber onde ia dar, passou por diversas portas em madeira esculpidas, sem se atrever a entrar. Depois de atravessar uma série de corredores idênticos, apercebeu-se que tinha andado às voltas. Para seu alívio, cruzou-se finalmente com alguém, uma mulher com cerca de cinquenta anos. Âmbar explicou o seu problema e a mulher, rindo da confusão que ela tinha feito, exclamou:

- Minha jovem, esta casa não é assim tão grande para alguém se perder dessa maneira! Vem comigo, vou mostrar-te a sala principal onde poderás tomar o pequeno-almoço.

- Na verdade - arriscou-se Âmbar a dizer -, eu queria era encontrar-me com a Jade, o Adrien e a Opala. Nós chegámos ontem à noite.

O rosto da mulher ficou de repente muito sério.

- Então és tu? - disse ela, com um ar pensativo.

- Desculpe?

- Não, não. Não é nada. Vem, vou levar-te para junto dos teus amigos.

Âmbar seguiu-lhe os passos. Foi então que reparou que a mulher não andava: o seu corpo flutuava e deslizava a um ou dois centímetros do solo.

- É... é mágica? - perguntou-lhe desajeitadamente.

- Mágica? Era o meu sonho de criança, sim, mas não tinha essa capacidade. São necessários dotes especiais.

- Mas a sua maneira de andar sem andar. - disse Âmbar, confusa.

- Isso? Mas, minha jovem, eu sou uma Dohnlusyenne. Como é que queres que eu caminhe de outra maneira?

- Ah, desculpe - respondeu Âmbar, embaraçada. O sentido da conversa escapou-lhe completamente. Ao fim de alguns metros, a Dohnlusyenne abriu uma das portas e deixou passar Âmbar. Adrien estava já lá, à cabeceira de Opala, acompanhado de Jade e de Owen d'Yrdahl.

- Âmbar! - gritou Owen. - Finalmente chegaste! Que tal se déssemos um passeio para ficares a conhecer um pouco melhor o Conto de Fadas?

- Com prazer! - respondeu ela, realmente encantada.

- Eu fico aqui - decidiu Adrien. - Opala pode acordar e é bom que ela me encontre ao seu lado.

Jade, Âmbar e Owen saíram de casa. No pátio estavam atrelados três cavalos. Quando se aproximaram, as duas raparigas repararam que eram mínimas as diferenças que os distinguiam da espécie que conheciam: estes animais estavam cobertos de uma espécie de pelagem castanha, com aspecto macio e bastante espesso; a crina dourada, brilhante, parecia em chamas, e os seus olhos azuis brilhavam de inteligência.

- São estes os cavalos que vamos levar para o nosso passeio é - disse Owen. - São verdadeiros puro-sangue; não há cavalos mais mágicos.

- Mágicos? - perguntou Âmbar, desconcertada. - Será que eles voam, deitam chamas pelas narinas e não sei mais quê.

- Evidentemente que não - respondeu Owen, espantado. Eu não disse que tinham sido enfeitiçados por nenhum mágico. - Então porque é que eles são mágicos - perguntou Âmbar.

- Ficaste decepcionada? Se quiseres, posso arranjar-te uma montada mais vulgar - respondeu Owen, com uma pontinha de malícia.

- Não, não.

Âmbar não insistiu. Cada um deles montou um cavalo e pôs-se a caminho, com Owen à frente. Não demorou muito a que as duas raparigas se mostrassem desapontadas. A paisagem do Conto de Fadas não oferecia nada de surpreendente. O céu, de um azul imaculado, estendia-se a perder de vista, apenas dissimulado por alguns picos longínquos cobertos de neves eternas. Âmbar observava estes cumes engrinaldados de branco e as coli nas que se ofereciam ao seu olhar. Owen disse bruscamente:

- É lá em baixo, na direcção destas montanhas, que mora Oonagh. É difícil chegar até lá. Se vocês não tivessem mesmo necessidade de lá ir, eu seria o primeiro a desaconselhar-vos a viagem, mas. A não ser que não entrem em Thaar. Nem sequer tentem, seria a última coisa a fazer.

- Porquê? - interrogou-o Jade, surpreendida com estas recomendações.

- É mais que perigoso - respondeu Owen -, é simplesmente fatal. Essa cidade é maldita. Baptizaram-na, rebaptizaram-na mas de nada serviu; nunca vai mudar, não poderá mudar nunca.

- Mas porquê? - repetiu Jade.

- Não tem importância - concluiu bruscamente Owen, que ficou subitamente nervoso.

Quanto a Âmbar, não seguia com muita atenção a conversa. Acariciava a pelagem do seu cavalo. Contava que fosse macia mas afinal era áspera.

Mas, mal esta ideia Lhe veio à cabeça, a textura, por baixo dos seus dedos, mudou. Ficou lisa, sedosa, infinitamente agradável ao toque, exactamente como a tinha imaginado. Intrigada, pousou o seu olhar sobre a pele do animal. Como seria bonita, se fosse branca, disse para si mesma. Logo o seu desejo foi satisfeito. Viu a pelagem do cavalo tornar-se cada vez mais clara até atingir a cor que ela desejara, um branco puro, uniforme, brilhante.

- Owen - gritou Âmbar -, já entendi! O cavalo adivinha os desejos do cavaleiro, e satisfá-los! É mágico...

- E como é que querias que fosse? - perguntou-Lhe Owen provocador. - Não te convém? Mas olha que estes cavalos sempre me pareceram excelentes montadas.

- Evidentemente que sim - disse Âmbar, entusiasmada. Mas até me custa a acreditar!

Os três jovens seguiam por uma estrada sem qualquer encanto, ladeada de casas vulgares, de prados sem interesse. Âmbar sugeriu aos seus dois companheiros para fazerem uma corrida, o que eles aceitaram de imediato. O seu desejo era agora ver o cavalo galopar até ao limite das suas capacidades e foi nele que pensou com todas as suas forças. Sentiu de imediato o ar a fustigar-lhe a cara, a velocidade a inebriá-la; o chão parecia fugir-lhe por baixo da montada. Nunca tinha experimentado uma tal sensação. Passados alguns minutos deliciosos, voltou-se. Jade e Owen tinham ficado para trás, ofegantes. Ordenou mentalmente ao cavalo que parasse e esperasse pelos companheiros.

- Nunca vi uma coisa assim! - exclamou Owen. - Normalmente, é preciso algum tempo para os cavalos se habituarem aos cavaleiros; só passados alguns meses de treino é que eles costumam aceitar os seus desejos e, mesmo nessa altura, é preciso usar de uma certa habilidade. Mesmo eu, tive que preparar bem o cavalo que estás a montar, mas nunca consegui que ele me compreendesse tão bem como acontece contigo!

- Ele tem algum nome?

- Como é que queres que eu saiba? Certamente que deve ter, mas, é evidente, um cavalo não fala nunca com um homem, mesmo que seja capaz disso.

- E tu não lhe deste um nome? - perguntou-lhe Âmbar.

- Não, seria um vexame para ele, é contrário aos seus

hábitos.

- Ah! - contentou-se em dizer Âmbar, que já não tinha palavras para exprimir o seu espanto.

Como o passeio começasse a tornar-se cansativo, Owen sugeriu que dessem meia-volta, ao que as jovens imediatamente acederam. Jade interpelou o seu anfitrião sobre o modo de vida dos habitantes do Conto de Fadas, mas ele apenas respondeu:

- Somos livres. É evidente que temos responsabilidades, mas cada um toma as suas próprias decisões. Trabalhamos, divertimo-nos, vivemos.

- Mas, e as criaturas feéricas? - insistiu Jade.

- Vivem entre nós.

- Mas, então, o que é que a existência neste local tem de tão mágico? - perguntou Jade, já enervada.

- O Conto de Fadas não é mais que um nome, uma noção, e não uma vida. São palavras, que não reflectem a realidade, que não procuram representá-la O irreal acaba por se tornar o nosso quotidiano; acabamos por nos habituar. E a nossa existência não é nenhum conto, todos nós temos desgostos, problemas, apesar de vivermos com outras criaturas mágicas. - Owen fez uma pausa. - Onde existe vida - disse em voz baixa -, onde existem homens, existe também o Mal.

Não tardaram a avistar a vivenda. Os três companheiros levaram os cavalos para uma pequena estrebaria. Âmbar olhou com uma certa ternura para o garanhão que tinha montado. Tinha um porte altivo; a sua crina dourada contrastava com a cor leitosa que a sua pelagem adquirira, os olhos vivos, azuis, observavam a sua cavaleira, sem pestanejar. Âmbar deixou-o, com pena, e foi juntar-se a Owen e Jade.

Dentro da casa reinava uma grande agitação. Mal os três jovens entraram, um homem precipitou-se ao encontro de Owen. Jade e Âmbar reconheceram-no; era Lloghin, o curandeiro da véspera.

- Há um problema muito grave - disse ele, visivelmente fora de si.

- Acalma-te, Lloghin. O que é que se passa?

- Não consigo. Depois de saíres, chegou um mensageiro.

- Um mensageiro? A notícia devia ser importante!

- É verdade - suspirou Lloghin, num tom queixoso. - Owen,

aconteceu o pior.

- Mas o que é? Vais contar-me ou não?

- A cidade de Thaar caiu.

- O quê? - gritou Owen d'Yrdahl, transtornado.

- O mensageiro está na sala principal - disse Lloghin. Pedi-lhe para esperar pela tua chegada.

Silencioso, com o olhar inquieto, Owen afastou-se com o curandeiro. As duas raparigas encontraram facilmente o quarto onde Adrien vigiava Opala, mas não entraram logo.

- Thaar. - murmurou Âmbar, pensativa. - Que perigo

pode representar uma cidade? Em que mãos é que caiu?

- É muito estranho - respondeu Jade. - Owen e o curandeiro pareciam fora de si. Além do mais, julgava ter compreendido que no Conto de Fadas nunca havia guerra.

- Tenho a impressão de estar a viver um sonho - respondeu Âmbar. - São tantas as coisas que me parecem irreais.

- E eu já estou farta! Quero saber o que representam as pedras, quem sou eu, porque é que me expulsaram de casa - declarou Jade. - Quero que me expliquem o que é que o Conselho dos Doze pode ter contra nós; quero viver num mundo real, onde não esteja rodeada de mistério, de sonhos inverosímeis! Logo que Opala acorde, vamo-nos embora ter com Oonagh.

Ditas estas palavras, entraram no quarto. Adrien já não se encontrava à cabeceira de Opala, tinha saído do quarto. Quanto a Opala, tremia violentamente. As duas raparigas acorreram a ajudá-la. Estava ainda inconsciente mas, desde que entrara em coma, costumava articular sons vagos. No emaranhado de monossílabos que formulava, não era perceptível qualquer palavra coerente. Repentinamente, calou-se e ficou imóvel.

Jade, aborrecida, gritou:

- Onde está o Adrien? Vai-se assim embora, sem avisar, e nós aqui encurraladas com a Opala a delirar, numa casa desconhecida, neste maldito Conto de Fadas!

- O Adrien deve ter tido uma razão forte - disse calmamente Âmbar. - Podemos ir procurar o Lloghin.

- Onde? Sinto-me perdida aqui! Não estou no meu ambiente, é tudo demasiado mágico para mim!

- A casa nada tem de mágica - disse Âmbar. - Além disso, podemos tentar encontrar a sala principal!

Foi então que apareceu Adrien. Estava vestido com uma espécie de uniforme azul e dourado. Tinha uma expressão particularmente determinada, mas o seu rosto estava lívido.

- Adrien! - gritou Jade, indignada. - Onde estavas?

- Thaar caiu - informou o jovem.

- Sim, nós sabemos - respondeu Âmbar.

- Rebentou então alguma guerra? - perguntou Jade.

- Sim e não - respondeu Adrien, num tom sério. Sentou-se numa cadeira de madeira e continuou: - Vou contar-vos tudo; vocês têm que saber para poderem explicar à Opala porque é que a abandonei.

- Tu só a deixaste enquanto fomos passear - disse Âmbar.

- Não é assim tão grave.

- Não me refiro a isso. Vou partir em breve. Para sempre.

- Mas. - ia a dizer Jade.

- Não me interrompas, ouçam-me as duas. Thaar não é uma cidade qualquer. Algumas pessoas dizem que é uma cidade assombrada. Pertence ao passado, reflecte esse passado. É a única cidade que se tem mantido intacta há milénios, parece uma cidade atemporal. Costumam chamar-lhe a cidade das Origens. Nunca fez verdadeiramente parte do Conto de Fadas e, estranhamente, embora esteja coberta pelo campo magnético, este não a protege. Há muito tempo que o Conselho dos Doze consegue chegar até ela por telepatia. Esta é uma das razões por que esta cidade é perigosa. Tem poucos habitantes. Ora, nem todos são pessoas honestas e alguns, sedentos de poder, traíram o Conto de Fadas e ajudaram o Conselho dos Doze a dominar o espírito de todos os habitantes de Thaar. Alguns conseguiram resistir, embora com dificuldade, mas a força tenebrosa do Conselho dos Doze invadiu a cidade e obrigou-a a ficar sob o seu domínio. A partir de lá, ele pode avançar e entrar no Conto de Fadas. Os membros do Conselho dos Doze ou mesmo os cavaleiros da Ordem podem, neste momento, infiltrar-se por teletransporte na cidade, graças a um sortilégio de grande complexidade que apenas foi realizado uma dezena de vezes na história. Mas é pouco provável que o façam. A sua estratégia deve ser a seguinte: através dos seus aliados em Thaar, vão infiltrar-se mentalmente no espírito das pessoas e subjugá-las, destruí-las ou submetê-las à sua vontade. E vão conseguir. Em Thaar toda a gente acabou por desistir de combater. Não sabemos qual será a sua situação, mas, felizmente, um dos habitantes conseguiu escapar. Foram enviados mensageiros por todo o Conto de Fadas.

- Como é que vamos combater? - perguntou Âmbar, a tremer.

- É simples, a cidade vai ser cercada por regimentos de voluntários. Se o Conselho dos Doze tentar alargar o seu domínio, os soldados lutarão. mentalmente. De qualquer maneira, o exército vai tentar penetrar no espírito dos habitantes, ajudá-los, o que é praticamente impossível, atendendo à força do Conselho dos Doze. Vamos também tentar entrar na cidade, combater, repelir o ataque mental.

- Espera aí - disse Jade - porque é que dizes "vamos"?

- Acabo de me alistar no exército - disparou Adrien com uma voz carregada de emoção. - Parto amanhã.

- Vais arriscar a tua vida?! - exclamou Jade.

- Quero ser útil, não quero esconder-me cobardemente, a assistir à evolução dos acontecimentos - replicou o jovem. - São precisos voluntários. A minha vida, ou a de outro qualquer, que importância tem?

- Mas vais voltar, não? - perguntou Âmbar.

- Talvez sim - disse Adrien num tom evasivo. - Quando

tudo tiver acabado. Mas talvez não. Nesse caso, pelo menos terei lutado.

- Adrien, não dramatizes - gritou Jade prontamente. Falas como se fosse o fim do mundo!

O jovem esboçou um pequeno sorriso.

- Ainda não acabei. Não me façam perguntas. Acreditem em mim, aquilo que vos vou contar não são palavras no ar. Deveria ficar calado, mas.

- Bom, despacha-te - disse de repente Jade.

- Vocês têm que encontrar-se com Oonagh. Mas já, não percam tempo. A partir de agora o tempo está a contar.

- Mas, e a Opala? - perguntou Âmbar.

- Lloghin, o curandeiro, entregou-me um frasquinho de um produto que ele próprio fez, que consegue acordá-la durante breves instantes para eu poder despedir-me dela. Em seguida voltará a ficar inconsciente. Vai ser preciso arranjar maneira de a levar. Ela irá curar-se por ela própria.

- Mas como é que vamos conseguir encontrar o caminho? - perguntou Âmbar, assustada.

- Vocês vão conseguir. É importante. Agora, deixem-me alguns instantes a sós com a Opala. Depois, metam-se a caminho.

O Owen porá à vossa disposição os cavalos mágicos que vocês montaram há pouco.

As raparigas afastaram-se para o corredor e ficaram junto à porta fechada. Jade estava extremamente excitada.

- Toda a gente nos dá ordens para fugirmos! Estamos a ser constantemente expulsas!

Âmbar não respondeu. Jade tinha razão; ela também já estava farta.

No quarto, Adrien observava Opala com um ar nostálgico.

- Sinto muito - murmurava ele em voz baixa. Em seguida, retirou do bolso da sua túnica um frasquinho habilmente trabalhado, onde parecia borbulhar um líquido azulado. Adrien abriu-o. Um cheiro a sangue, a morte, escapou-se, forte, fazendo lembrar carne putrefacta. O jovem fez um esgar de repulsa e colocou a mistura repugnante por baixo do nariz de Opala, que entreabriu os lábios. Em seguida, derramou o líquido miracu loso na boca da jovem. Ela engoliu-o lentamente. A pouco e pouco, foi voltando a si. As narinas estremeceram e, depois, os lábios abriram-se num sorriso. Murmurou, com os olhos ainda fechados:

- Que bem que eu dormi. - Bocejou e abriu as pálpebras.

- Opala! - gritou Adrien, com a garganta apertada pela emoção.

A visão da jovem era ainda vaga e pouco nítida. Demorou alguns segundos até coordenar as ideias. Os seus olhos claros, quase transparentes, iluminaram-se e, perturbada, deixou escapar num fôlego:

- Adrien! Estás aqui... O que é que aconteceu? O jovem sentiu as lágrimas inundarem-lhe os olhos, mas conteve-as. Com o coração apertado, pensou para si mesmo que seria talvez a última vez que veria Opala.

- Amo-te - confessou-lhe numa voz trémula. - Vou pensar sempre em ti, até voltar a ver-te. Estarei perto de ti todas as vezes que pensares em mim.

Não conseguiu continuar. Opala, com os seus olhos enormes pousados em Adrien, sentia-se triste e feliz ao mesmo tempo: endireitou- se, agarrou-se ao jovem e murmurou:

- Não me abandones. Não partas, fica ao pé de mim. É perigoso, estás a arriscar a tua vida. E eu amo-te.

Quis acrescentar algo mais, mas, subitamente, o seu olhar ficou turvo e ela caiu sobre a almofada, novamente inconsciente.

Adrien nunca entendeu como é que ela adivinhou que ele estava de partida para ir combater. Mas saber que Opala também o amava era para ele o mais importante. A partir de agora, podia partir e afrontar sem medo o Conselho dos Doze; teria como escudo o amor.

 

Jade e Âmbar, taciturnas, cavalgavam em direcção aos picos nevados. Jade levava Opala, inanimada, e perguntava a si própria onde iria dormir quando chegasse a noite e em que nova aventura insensata estava a meter- se.

Âmbar olhava à sua volta. As casas sucediam-se, ora humildes, ora imponentes. Campos, culturas ladeavam o caminho. Âmbar apenas tinha visto alguns camponeses que, em vez de trabalharem a terra, cantavam e riam, todos bem humorados. Pareciam humanos, mas pareceu-lhe que os seus cabelos compridos tinham uma cor prateada. Apesar dos seus esforços para se manter calma, observar a paisagem e coordenar os seus pensamentos, não podia deixar de sentir uma certa fúria. Sentia-se impotente, tinha a impressão de já não conseguir gerir a sua própria vida, de estar a avançar para a mais completa escuridão. O que estaria à sua espera? Será que iria finalmente saber?

Jade também praguejava intimamente. No fundo, interrogava-se porque não poderia voltar atrás, regressar ao seu palácio? Sabia que não o podia fazer, que não o devia fazer, mas o desejo de não continuar a seguir cegamente os conselhos dos outros atormentava-a, embora desejasse ardentemente descobrir o que é que lhe estavam a esconder.

De repente, disse:

- Não te rias de mim, mas tenho a impressão que toda a gente sabe o que é que temos de fazer, menos nós. Conhecem-nos melhor do que nós próprias! Âmbar, sabes em que é que estou a pensar?

- Não - respondeu Âmbar, pensativa.

- Se o Conselho dos Doze tem algo contra as criaturas

mágicas, é porque tem medo delas.

- Sim, isso parece evidente.

- Se o Conselho dos Doze tem algo contra aqueles que conhecem o Conto de Fadas, é porque também tem medo deles. Imagina que toda a gente tinha conhecimento desse local. Haveria muitas insurreições! Todas as pessoas quereriam lá ir. Agora, pensa três segundos. Se as revoltas contra o Conselho dos Doze são raras, é porque ninguém tem coragem para as fazer, mas também porque qualquer tentativa seria em vão: os cavaleiros da Ordem estão por toda a parte. A grande verdade é que a maior parte das pessoas não se dá conta de nada! Compreendes?

- Sim - concordou Âmbar. - As pessoas estão privadas da liberdade, dos sonhos, das ambições. Desde que nascem, é-lhes imposto um futuro sem surpresas; os meus pais eram camponeses, eu estava destinada a sê-lo também e não tinha escolha. O Conselho dos Doze, a pretexto de uma sociedade estável, priva as pessoas da liberdade e ninguém se dá conta. Habituamo-nos a isso desde que nascemos e seguimos as regras sem nada questionar.

- Eu, antes de sair de casa, via o mundo como me ensinaram a vê-lo. E tu, há já muito tempo que adivinhas as coisas?

- Desde sempre. Cresci em liberdade, de forma selvagem, refugiando-me em livros proibidos e conhecendo a vida através deles. Repara no mundo dominado pelo Conselho dos Doze: os enfermos, os doentes são considerados fracos e inúteis, toda a gente os despreza e só se refere a eles para os ridicularizar.

- É verdade, as pessoas só fazem o que lhes mandam,

nunca se questionam, esquecem-se da amizade, da afeição.

- É ridículo - adiantou Âmbar -, mas. Não, nada. Apesar da insistência de Jade, ela não revelou o que Lhe aflorara ao pensamento.

- O que eu queria dizer - retomou Jade - é que, se o Conselho dos Doze tem alguma coisa contra nós, é porque também tem medo de nós, por muito improvável que isso possa parecer. Desde que nascemos, ele teve muito tempo para nos destruir, de enviar cavaleiros da Ordem em nossa perseguição.

Se o Conselho dos Doze tem receio de nós, deve haver uma razão forte, mas não consigo vislumbrar qual.

- Precisamente! Eu acho que deveremos poder fazer qualquer coisa contra ele. Talvez consigamos fragilizá-lo ou. é isso! Mostrar às pessoas o que vemos.

- Hum. - fez Jade, duvidosa. - Como é que queres abrir os olhos a milhões de pessoas? Embora, espera... Quem sabe se as pedras nos poderão ajudar?

Foi a vez de Âmbar fazer um trejeito de hesitação.

- Parece-me pouco provável. Ninguém nos iria seguir, à excepção daqueles que já estão convencidos.

- E porque é que deveríamos ser nós a fazê-lo? Mas, por outro lado, se ninguém faz nada.

- Sim, mas. se calhar, não somos mesmo capazes de alterar seja o que for.

As duas raparigas perderam-se nos seus pensamentos. A tarde ia um pouco avançada e ainda não tinham comido nada. Decidiram, pois, fazer uma paragem. Antes de partirem, Owen d'Yrdahl tinha-lhes arranjado uma provisão de alimentos substancial. A sua subsistência não iria, assim, constituir qualquer problema durante a viagem.

Jade e Âmbar concordaram em parar e sentaram-se à sombra fresca de um carvalho. Tiveram o cuidado de deitar Opala junto delas. A jovem continuava inconsciente e permanecia inerte. Lloghin tinha tratado em parte a sua ferida, que deixara de sangrar.

Jade e Âmbar tiraram para fora os mantimentos. Com apetite, trincaram o pão fresco, a carne seca, o queijo cremoso, deixando de lado outros alimentos de aspecto estranho e pouco tentadores.

- Sabes, Jade. - disse Âmbar -, no fundo, não lamento estar aqui. Qual seria o meu futuro? Eu não tinha futuro... Ia deixar a infância e ficar à espera do que me iria oferecer o futuro: nada.

- Claro! Claro! - disse Jade. - Mas comigo era diferente. Há meia dúzia de dias atrás, eu ter-te-ia dito alto e bom som que era a filha do duque de Divulyon; ter-te-ia falado da sumptuosidade do meu palácio. Ao contrário do que tu dizes em relação a ti, acho que o futuro tinha tudo para me oferecer, riqueza, nome, tudo aquilo com que sonhara. Neste momento, sinto-me um pouco culpada por não ter sabido viver para lá das aparências.

Jade calou-se, as faces ruborizadas. Nunca imaginara vir um dia a falar com alguém dos seus sentimentos. Além do mais, o duque de Divulyon tinha-lhe assegurado que iria encontrar em Opala e Âmbar duas inimigas, o que se revelou verdadeiro em relação à primeira mas falso em relação à segunda. Porque teria ele dito aquilo? Jade tinha a desagradável impressão que tinha mudado desde que saíra do palácio. E Âmbar parecia, perigosamente, representar a sua primeira amiga - um termo que sempre lhe parecera simultaneamente obscuro e atractivo.

Não, isso era impossível! Ela, Jade, a filha do duque de Divulyon, pensar nessas coisas!

Que sensação estranha, tendo em conta os poucos dias que tinham passado desde que partira! Juraria que tinham passado anos, talvez por sentir que o seu passado tinha definitivamente terminado.

- Tenho uma ideia - disse de repente Âmbar. - Porque é que não tentamos reanimar a Opala com as nossas pedras?

- Se achas que sim.

Âmbar retirou do bolso de Opala a bolsa de veludo preto.

Colocou a pedra entre os dedos fechados da jovem. Em seguida, com a sua própria mão, pegou no seu âmbar e apertou-a com toda a força. Jade, com um ar longínquo, fez o mesmo com a sua pedra. Esperaram um momento. Âmbar apertou com mais força. As duas raparigas sentiram que as pedras tentavam entrar em contacto com Opala, através da sua energia, mas nada aconteceu. Como estava inconsciente, era impossível estabelecer a comunicação habitual.

Decepcionadas, retomaram pouco depois o caminho.

Âmbar colocou Opala no seu cavalo, pedindo-lhe mentalmente desculpa pelo excesso de peso. Tinha a certeza que a sua montada a compreendia, apesar de não lhe responder.

- Gostava mesmo de te dar um nome - sussurrou-lhe

Âmbar por telepatia -, apesar de Owen ter dito que isso não iria agradar-te.

Nesse instante, o cavalo ficou agitado e, em seguida, Âmbar sentiu uma ligeira dor. Percebeu que tinha origem na sua montada que, por telepatia, a dissuadia de se opor à sua vontade.

- Está bem, não vale a pena enervares-te! Não vou dar-te nenhum nome. Mas não sabia que podias transmitir-me sentimentos, sensações. É surpreendente!

O cavalo parou. Âmbar compreendeu que ele estava aborrecido, ferido no seu orgulho.

- Desculpa! É só porque não estou habituada ao Conto de Fadas. No sítio donde venho, não acontece nada disto.

O cavalo retomou a marcha, sereno. Âmbar tinha a impressão que ele se dirigia a ela, pois o seu espírito fora invadido por imagens, impressões. Talvez fossem produtos da sua imaginação, mas duvidava.

As duas raparigas cavalgaram durante muito tempo sem pararem. Não sabiam se estavam a seguir o caminho certo; dirigiam-se para as montanhas. Ainda estavam longe, tão longe de Oonagh.

O fim de tarde chegou, envolvendo o Conto de Fadas num véu de penumbra e, em seguida, a noite veio substituí-lo. Não se sentiam cansadas, mas as formas tornavam-se ameaçadoras, os contornos da paisagem apagavam-se e as duas raparigas receavam perder-se ou ser atacadas por um inimigo desconhecido. Decidiram parar. Adrien tinha-as aconselhado a não pedirem abrigo a ninguém, com receio de encontros indesejados. Elas sabiam isso, os seus inimigos poderiam estar em toda a parte. Tinham-se sentido em segurança no Conto de Fadas, mas, agora, na escuridão, apenas tinham fé. Sentaram-se à beira do caminho, debaixo de uma árvore. Depois de comerem, estenderam-se sobre a erva áspera, deitando o corpo de Opala ao lado delas.

- Estive a pensar - disse Âmbar.

- Eu também.

- Os habitantes do Conto de Fadas têm fé. Acreditam no impossível, nos seus sonhos. São livres. Não necessariamente felizes, como disse Owen, mas livres de escolher o rumo das suas vidas. Não acredito que a guerra possa acontecer aqui. É uma terra tão pacífica. No resto do mundo, na região dominada pelo Conselho dos Doze, as pessoas não têm fé, não sonham, não esperam mais nada. Não sabem se são felizes ou infelizes. Nem tão-pouco querem saber. Além, também não, não há guerra. mas há tantas proibições.

- Enganas-te - interrompeu-a Jade. - Aqui também há o Mal, disse-o o Owen. Houve, seguramente, guerras, violência. Não se pode viver sempre em paz. E além, no Exterior. há muito que existe guerra, e ainda hoje há. O Conselho dos Doze luta contra a liberdade, contra a felicidade. Nunca conseguirá vencê-las completamente. Além, onde existe o Mal, existe forçosamente o Bem. Por isso, há guerra. Aqui e além.

Jade calou-se. Âmbar, impressionada, respondeu:

- Talvez tenhas razão. O Bem e o Mal, o eterno combate. Riram as duas.

- No Exterior - retomou Âmbar -, a maior parte das pessoas raramente pensa nos outros. Esquecem-se de olhar à sua volta, esquecem os sentimentos. E nem sequer se dão conta disso! Quem é que iria revoltar-se além? Quem se atreveria a ser diferente dos outros? E quem convenceria os outros a mudar?

- É por isso que cabe ao Conto de Fadas ajudar o Exterior -, decidiu Jade. - Aqui, as pessoas podem compreender o que se passa além. São capazes de os ajudar. Quanto a nós, não temos o direito de fazer de conta que não se passa nada!

Entusiasmada com o seu caloroso discurso, Jade estava prestes a acrescentar qualquer coisa quando uma voz débil a interrompeu:

- O que é que se passa? Onde estamos?

Sobressaltaram-se. Opala acabara de acordar.

- Sinto-me mal - articulou com uma voz débil. Âmbar baixou-se a seu lado e sossegou-a:

- Estamos no Conto de Fadas. Foste ferida, mas não é nada de grave.

Opala levou a mão à ferida, soltando um grito de terror. Lloghin tinha-a tratado, mas ainda sentia dores.

- Vamos pegar nas pedras - sugeriu Jade.

Opala e Âmbar obedeceram maquinalmente. Concentraram-se. Foram invadidas por um agradável calor. Por um instante, não pensaram em nada. Sentiram-se descontraídas, os problemas desapareciam. Depois, a pouco e pouco, a comunicação foi-se extinguindo. Parecia a Jade e Âmbar que tinham transferido para Opala uma parte das suas forças. Foram invadidas por uma vaga de fadiga.

- Sinto-me melhor - murmurou Opala. - A minha ferida já quase não me dói. Mas é melhor eu descansar um pouco mais antes de partirmos. Onde é que realmente vamos?

- A casa de Oonagh, evidentemente - disse Jade, bruscamente.

- Mas nada de pressas - adiantou Âmbar. - Agora vamos dormir. Amanhã contamos-te tudo.

E as três raparigas fecharam os olhos, esquecendo as suas angústias.

 

Sem Nome e Elfohrys pararam numa clareira para passarem a noite. Depois do ataque mental dos Ghibduls, nenhum outro incidente perturbara o seu percurso. Uma vez, Elfohrys, desorientado, convenceu-se que estava perdido, mas, ao fim de uma hora, os dois companheiros conseguiram reencontrar o seu caminho.

Antes de se deitarem para dormir, Sem Nome perguntara quanto tempo levaria a atravessarem a floresta.

- Pois é! - respondera Elfohrys -, isso não depende de mim. Se não encontrarmos nenhum obstáculo, talvez consigamos atravessar a floresta em dois dias, mas também pode levar semanas.

Em seguida, depois de comerem e conversarem um pouco, os dois companheiros deitaram-se. Sem Nome, que na noite anterior quase não tinha dormido, mergulhou num sono profundo. Ao longo do dia, sem ele o saber, os Ghibduls haviam sondado o seu espírito. Logo que sentiram que tinha adormecido, infiltraram-se insidiosamente nele e anestesiaram-no por algumas horas. Fizeram o mesmo com Elfohrys. Podia vir o fim do mundo que eles não iriam acordar.

Satisfeitos, os pensadores ghibduls esfregaram as mãos de dedos torcidos. Numa risota sonora, ordenaram a uma dezena de guerreiros para irem buscar Sem Nome e Elfohrys e para os levarem para o seu refúgio.

As criaturas mágicas atravessaram a floresta como furacões, voando a baixa altitude. Podiam voar assim em distâncias curtas, a menos de três metros do solo. Chegaram por fim junto das suas vítimas.

Com modos bruscos, os Ghibduls amarraram-nos com fortes lianas e observaram a sua caça com um ar de grande gozo. Como é que puderam imaginar que estas pobres presas representariam uma verdadeira ameaça?

Dois dos guerreiros ghibduls levantaram sem qualquer delicadeza Sem Nome e Elfohrys e levaram-nos como se de meros embrulhos se tratasse. Em seguida, as criaturas mágicas dirigiram-se alegremente para a sua cidade.

Os contornos da sala eram pouco precisos. Onde estava?

O que é que se estava a passar? Sem Nome não fazia a mínima ideia. Esforçava-se por se lembrar dos últimos acontecimentos, mas o seu espírito mantinha-se perturbado. Fez questão de manter os olhos abertos. Não se lembrava de ter perdido a consciência.

Apercebeu-se que os punhos e as pernas estavam presos com lianas e que estava amarrado a uma espécie de cadeira recoberta de uma espuma esverdeada semelhante ao líquene. Ainda sonolento, nem sequer tentou libertar-se. Encontrava-se numa sala desconhecida, de paredes de um branco sujo, na companhia de Elfohrys, inconsciente e igualmente preso com lianas. Aos poucos, foi retomando a consciência. Esta situação fez-lhe lembrar o seu despertar brutal num campo, dois anos antes. Mas dessa vez, felizmente, lembrava-se de todos os acontecimentos que haviam precedido o momento em que adormecera na clareira. Observou o quarto com mais atenção. A luz era ténue. Não havia móveis no quarto, que nada deixava transparecer sobre os seus proprietários. Sem Nome procurou mexer-se, rebentar as amarras que o prendiam, mas em vão. Pelo contrário, as lianas cada vez o apertavam mais à estranha cadeira.

Elfohrys acordou. Estava tão desorientado como o ovalino.

- Onde é que estamos - perguntou ele, numa voz arrastada.

- Não sei. Também não se lembra de nada?

- Apagou-se tudo da minha memória.

O ovalino soltou um suspiro de alívio. Não era o único a não se lembrar do que os havia trazido até aqui; a sua perda de memória e a de Elfohrys deveriam ter uma explicação.

A criatura mágica olhava o quarto, cada vez mais intrigado.

- É estranho - disse Elfohrys -, estávamos na clareira, e agora estamos neste lugar, prisioneiros de um inimigo desconhecido.

Mal tinha acabado de pronunciar estas palavras, a porta abriu-se com um grande estrondo. Um Ghibdul, com um ar altivo, entrou. Era de pequena estatura, o que não era motivo para tornar o seu aspecto mais tranquilizador. O corpo estava recoberto de uma carapaça verde escuro, donde apenas sobressaíam as suas mãos repelentes e os pés com garras afiadas, o pescoço e a cabeça arroxeada. Esta carapaça protegia-o como uma armadura natural. Mantinha o dorso curvado. O rosto era particularmente assustador. Os olhos, duas finas aberturas franzidas, tinham uma cor lamacenta, nojenta; reflectiam um brilho inteligente mas uma expressão dura. A boca, de um verde igual ao da carapaça, era torcida, transparente, quase invisível; o nariz apresentava três buracos. O rosto era todo ele às dobras, parecia amarrotado. Trazia uma espécie de capacete enferrujado donde saíam uns cabelos em desalinho, semelhantes às lianas que amarravam Sem Nome e Elfohrys. No dorso do Ghibdul, podiam ver-se duas asas escuras, definhadas e fechadas sobre si.

Era assustador.

Avançou com um passo pesado e lento.

- É um Ghibdul - confirmou Elfohrys em voz alta.

- E isso levanta-te algum problema, prisioneiro? - respondeu a criatura, num tom ríspido.

- Onde é que estamos - perguntou Sem Nome. - O que é que querem de nós?

- Cala-te, verme. Animais como vocês não têm dignidade para me dirigirem a palavra. A ninguém, a nenhuma das minhas presas, dei jamais essa honra.

- Dispenso-a - resmungou Elfohrys.

- Eu disse-te para te calares! Eu é que falo, vocês ouvem-me. Se não me obedecerem, corto-vos imediatamente a cabeça e tereis que esperar que acabe a greve da Morte para eu vos matar definitivamente!

A perspectiva de esperarem, de cabeça cortada, por tempo indeterminado até que a criatura os liquidasse, coagiu Elfohrys e Sem Nome a manterem-se em silêncio.

- Bem - retomou o Ghibdul na sua voz cavernosa -, vou

explicar-vos a situação. Vocês são nossos prisioneiros e não têm qualquer hipótese de saírem daqui. Antes de mais, encontram-se na nossa cidade, o que, estou certo disso, só pode espantar animais inferiores como vocês, desacostumados a uma civilização perfeita como a nossa. Dentro de algumas horas dar-vos-ão de comer. Depois, levar-vos-ão para um lugar que arrebatará os vossos espíritos incultos.

- Que lugar? - deixou escapar Elfohrys, esquecendo-se que deveria estar calado.

- Silêncio! - gritou o Ghibdul com a sua voz de estentor. Como é que te atreves a contrariar-me, ser inferior?

- Não era minha intenção -, respondeu Elfohrys sem medo.

- Miserável, menos que nada! Se soubesses a vontade que tenho de te esquartejar neste momento...

O Ghibdul aproximou-se de Elfohrys e raspou-Lhe a cara com a ponta dos dedos. As garras afiadas laceraram-Lhe a cara. O sangue dourado manchou a pele prateada de Elfohrys. Não soltou qualquer gemido.

Sem Nome, entretanto, dirigindo-se ao Ghibdul, desabafou:

- Vais arrepender-te, podes ter a certeza disso.

- O quê, estás a ameaçar-me?

Estranhamente, a criatura ficou com um ar quase pensativo, um pouco intrigado.

- Não se trata de uma ameaça leviana - continuou Sem

Nome. - É que não gosto de apanhar ninguém desprevenido.

- Vou mostrar-te imediatamente de que é que eu sou capaz - declarou o Ghibdul.

- Não desejo eu outra coisa - disse o ovalino num tom firme.

- Vamos lutar de mãos vazias, mas tenho que te poupar a vida para não ir contra as ordens que me deram.

- Muito bem - respondeu Sem Nome, nada perturbado. Elfohrys lançou-lhe um olhar pouco tranquilo. O Ghibdul pronunciou algumas sílabas ininteligíveis e as lianas que prendiam o ovalino soltaram-se.

Sem Nome sabia que, com meia dúzia de arranhões, o seu adversário poderia facilmente vencê-lo. No entanto, com serenidade, avançou num passo quase indolente.

Algo de ignóbil se distendeu no rosto do Ghibdul, um trejeito que poderia ser interpretado como um sorriso perverso. Sem prevenir, lançou- se sobre o ovalino que, em comparação, parecia impotente e inofensivo. As suas mãos cortaram raivosamente o ar várias vezes seguidas. Sempre que ele julgava atingi-lo, Sem Nome, ágil, fugia aos seus ataques. Cada vez mais ofegante, mas não querendo reconhecer a derrota, o Ghibdul continuava a tentar ferir o ovalino.

Elfohrys observava Sem Nome, com grande orgulho. Movia-se com agilidade e destreza, evitando os golpes, sem falhar.

Finalmente, o Ghibdul, esbaforido, rosnou algumas palavras incompreensíveis e o ovalino foi imediatamente projectado por uma força invisível até à cadeira. As lianas amarraram-no de novo.

- Homem - disse a criatura mágica com uma voz seca que deixava transparecer uma certa admiração -, o facto de, com as mãos livres, teres sabido evitar os meus ataques, em nada faz de ti um ser superior a mim.

- Nunca foi essa a minha pretensão - respondeu Sem Nome no mesmo tom -, mas também não tem nenhuma razão para me considerar inferior.

- Espera para veres do que nós, os Ghibduls, somos capazes! A nossa força telepática é inegável e, armados, somos terríveis!

- Muito interessante - comentou o ovalino.

A criatura mágica, profundamente humilhada, saiu sem dizer mais nada. Sem Nome e Elfohrys ficaram novamente sós.

- Porque é que afrontaste o Ghibdul? - disse o Clohryun ao ovalino em tom de censura.

- Eu não ia permitir que ele o agredisse sem dizer nada.

- Que imprudência por apenas algumas gotas do meu sangue! A minha ferida vai cicatrizar rapidamente e não ficará qualquer marca. As minhas defesas naturais são muito grandes. Mas tu, Sem Nome, acabas de provocar o rancor deste Ghibdul que, podes crer, não se dissipará assim tão facilmente!

- De qualquer maneira, desde o início que ele não tinha um ar particularmente simpático em relação a nós - respondeu o ovalino, indiferente.

Impotentes por causa das amarras que os prendiam, Sem Nome e Elfohrys viam o tempo passar sem descobrirem uma maneira de se libertarem. Não podiam deixar de sentir ansiedade sempre que se interrogavam sobre o que Lhes reservariam os seus raptores.

Finalmente, a porta abriu-se. Entrou uma mulher. Era humana! Elfohrys e Sem Nome olharam para ela, de olhos arregalados pelo espanto. Vestida com uma mistura pouco cuidada de tecidos vegetais fabricados a partir de plantas da floresta, a mulher avançou. Estava suja; os pés, nus, estavam cobertos de cicatrizes, como acontecia com as mãos. O rosto, poucn simpático, revelava claramente a sua natureza humana. As maçãs do rosto, grandes, eram salientes. Nos seus olhos pretos, rasgados, reflectia-se uma expressão agressiva; os lábios eram finos, a pele, mate. O nariz achatado sobressaía no seu rosto triste. Os cabelos castanhos, colados uns aos outros pela lama e pela sujidade, caíam sobre os ombros largos.

Trazia um tabuleiro de madeira carregado com algumas frutas e, aproximando-se, colocou os víveres no chão. Praguejando, ela soltou as amarras de Elfohrys e de Sem Nome.

- Comam - disse, com uma voz desagradável -, mas não pensem que podem escapar! Podem fazer o que quiserem, que as amarras dos pés não se soltarão!

- És humana? - interpelou-a delicadamente Sem Nome.

- Sou, mas os Ghibduls precisam de criadas como eu. Apanham as mulheres que se perdem na floresta e põem- nas ao seu serviço. Eles não são maus para mim, pelo contrário.

- Como te chamas? - perguntou Sem Nome, na esperança de entabular conversa com a mulher e conquistar a sua confiança.

- Nailde. Comam e não façam perguntas! Não posso falar com vocês. Estou bem aqui, e não tenho que ajudar os prisioneiros. Se calhar, pensais que quero fugir? Pois lamento desiludir-vos: não quero.

- Deixas morrer gente igual a ti? Não ficas com remorsos quando os ouves gritar por estarem a ser torturados? - perguntou Elfohrys.

- Os Ghibduls tratam-me melhor que os humanos, por isso, sirvo-os como deve ser, é tudo.

Ao dizer isto, Nailde rogou uma praga e cuspiu com desprezo para os pés de Sem Nome. Em seguida, pendendo-lhe, ainda, um fio de saliva dos lábios, com um ar confiante e firme, rodou os calcanhares e saiu, batendo ruidosamente com a porta.

- Incrível! - declarou Elfohrys. - Esta mulher, de tanto viver com os Ghibduls, até já adoptou os seus costumes!

- Quem sabe o que teria sido a sua vida entre os humanos?

- replicou Sem Nome, indulgente. - Antes de se transformar numa mulher desumana, deve ter sido uma mulher simples, talvez incompreendida. Não há dúvida que deve ter sofrido muito. Não sabemos que consolo lhe terão proporcionado os Ghibduls. Pelo que ela disse, a vida que aqui leva satisfá-la.

Elfohrys olhava para Sem Nome, surpreendido. A compadecer-se com o destino de uma mulher que acabara de lhe recusar a liberdade!

- Decididamente - concluiu o Clohryun -, a natureza dos homens é ainda mais incompreensível do que o que diziam.

Sem Nome comia tranquilamente a fruta que Nailde trouxera. Depois de satisfeito, estendeu o tabuleiro a Elfohrys que tragou tudo o que restava. Com as mãos livres, o ovalino tentou libertar-se. Não conseguiu.

- Ah! Vocês, os humanos... - disse Elfohrys, soltando um suspiro, quase resignado. - Sempre cheios de esperança. Em minha opinião, é isso que vos permite sobreviver. Por mais que se vos diga que não há nada a fazer, vocês teimam, apesar de tudo.

Nailde voltou para levar o tabuleiro. Sem Nome reteve a respiração, esperando que a criada mudasse de ideias, que a piedade levasse a melhor. Elfohrys surpreendeu o seu olhar brilhante. Sempre ingénuo, a confiar nos outros, disse para consigo, soltando um suspiro. Os homens estão convencidos que têm dentro de si o Bem, mas tudo fazem para se destruírem uns aos outros. Estranho.

Nailde despejou mais uma série de insultos para o Sem Nome, parecendo sentir um gozo especial em humilhá-lo. Era bom de ver que não tinha mudado de ideias.

Sem Nome compreendeu, desapontado, que não conseguiria convencer Nailde a libertá-lo.

A criada abandonou o quarto a resmungar.

Elfohrys e Sem Nome começavam a sentir um pouco de apreensão. Quase imediatamente a seguir à saída de Nailde, entraram quatro Ghibduls de aspecto imponente. Um deles murmurou algumas palavras e os dois prisioneiros foram libertados das lianas que os amarravam.

- Sigam-nos - ordenou abruptamente um Ghibdul. Foram levados até à saída, através de salas sombrias. Os dois companheiros puderam observar o edifício onde tinham estado retidos como prisioneiros. Era lúgubre, de uma arquitectura estranha, transmitindo uma impressão de abandono, de escuridão. No entanto, o seu interior pululava de Ghibduls.

Ao atravessarem, conduzidos pelos seus carcereiros, as ruas estreitas e sinuosas, Sem Nome e Elfohrys descobriram o que ninguém suporia: a cidade dos Ghibduls, activa e organizada. Esta pequena cidade estava cercada de enormes árvores, muralhas naturais. A escolha da sua localização não tinha sido anódina.

Um enorme edifício ergueu-se, pouco a pouco, diante dos seus olhos espantados. Assemelhava-se a um teatro, com ornamentos saindo de pedras pintadas de preto. Os Ghibduls, apercebendo-se do espanto dos prisioneiros, esboçaram sorrisos de orgulho. Entraram, então, no hall que encerrava esculturas e pinturas que retratavam a mestria de uma arte perfeita e original de que não se supunha os Ghibduls capazes.

Uma multidão destas criaturas mágicas aglutinava-se à entrada. Os carcereiros abriram caminho, levando consigo os prisioneiros. Subiram escadas intermináveis, até que chegaram a uma porta de couro, para lá da qual lançaram Elfohrys e Sem Nome. Em seguida fecharam a porta e foram-se embora.

Os dois companheiros caíram no vazio, sem compreenderem o que estava a acontecer-lhes, e depois atravessaram uma bolha esponjosa e voltaram a cair por terra, sem qualquer ferimento.

Embasbacados, esfregaram os olhos. Era incrível o espectáculo que tinham à sua frente: viram-se num teatro gigantesco, muito elegante e muito bem iluminado, onde milhares de Ghibduls se encontravam confortavelmente sentados em poltronas revestidas a veludo escuro. O teatro tinha uma forma elíptica; inúmeras filas de espectadores erguiam-se até ao tecto, que representava a floresta sob um céu azul. O palco, espaçoso, encontrava-se na parte central do edifício, por cima de uma coluna de mármore baixa e larga. Estava cercado de vidros transparentes. Os espectadores podiam, assim, vê-lo de qualquer parte.

O único problema era que Elfohrys e Sem Nome se encontravam precisamente em cima do palco. Ao levantarem os olhos, distinguiram no tecto o alçapão, quase imperceptível, através do qual tinham sido projectados para o coração do teatro.

- Onde é que estamos? - perguntou Sem Nome.

- Não faço ideia. Mas isso pouco importa...

- Mas é assombroso! - exclamou o ovalino. - Dizem que os Ghibduls são criaturas selvagens, e aqui estamos nós no meio de um local inimaginável.

- Pois é, Sem Nome, mas já pensaste como é pena não podermos vir a testemunhar tudo isto?

Havia Ghibduls a esvoaçarem de um lado para o outro na sala, oferecendo aperitivos aos espectadores. Não havia a noção de dinheiro. Vender, comprar, tudo isso eram noções desconhecidas para eles. A natureza fornecia tudo.

Sem Nome reparou que uma parte do teatro estava reservada a algumas dezenas de mulheres mal vestidas, humanas e de outras espécies, que assistiam em pé. Apesar da distância, conseguiu reconhecer entre elas Nailde, que vociferava, agitava o punho, talvez para ele.

De repente, as luzes apagaram-se. Ecoou na sala uma voz poderosa.

- Meus caros amigos Ghibduls, bem-vindos! Hoje, tenho a honra de vos apresentar um autêntico Clohryun e um homem, diria mesmo um ovalino! Quem será o vencedor? Quanto tempo irão resistir? Estão abertas as apostas. Como de costume, eles vão realizar as provas que preparámos e que sabemos irão dar-vos muito prazer. Desejo-vos, pois, uma tarde agradável... e espero que se divirtam com este espectáculo!

Os Ghibduls aplaudiram, entusiasmados.

Elfohrys e Sem Nome trocaram olhares preocupados. Antes que tivessem tempo para emitir um som que fosse, e enquanto o público continuava a aplaudir a sua entrada, sentiram um golpe violento a atingir-lhes o braço esquerdo. Sem Nome tinha já uma ferida infligida pelos Bumblinks durante um combate. Reparou que o corte tinha voltado a abrir-se e o sangue começara a correr. Reteve um grito. Quase simultaneamente, é-lhe infligido novo ataque mas, desta vez, é o corpo inteiro que é atingido. Este não provocara qualquer ferida, mas foi necessário um enorme esforço para que o ovalino não se deixasse cair no chão e torcer-se de dores.

Os espectadores riam, comentando a cena, todos divertidos. O rosto de Elfohrys, crispado, exprimia uma dor atroz. À terceira descarga, que visava a perna esquerda dos dois companheiros, o Clohryun deixou-se cair no chão, inconsciente.

Os Ghibduls apuparam-no com desprezo.

Quanto a Sem Nome, vacilava. A perna estava profundamente ferida. O cheiro insuportável do seu sangue subia-lhe à garganta, constrangia-o, prendia-o pouco a pouco. Os olhos estavam alterados pela fúria. Por que razão estes Ghibduls se saciavam selvaticamente com o sofrimento? Manteve-se dignamente em pé, enquanto o seu braço esquerdo era lacerado por uma força invisível. Por entre a multidão começou a circular um burburinho.

Novamente uma descarga de dor geral foi enviada ao ovalino, que se deixou cair no chão. Ergueram-se clamores de decepção.

No entanto, mal caiu, Sem Nome, retomando a sua vontade e a sua coragem, voltou a levantar-se. Os seus olhos brilhavam com uma tal determinação que não deixou de chocar a multidão de espectadores.

Quando sentiu uma punhalada invisível traspassar-lhe o ventre, o ovalino nem pestanejou. Afinal de contas, ele não arriscava nada, a Morte estava em greve. Tudo o que tinha a fazer era resistir aos ataques. Mas já não podia mais. Quando uma nova dor invadiu o seu corpo, teve que se amparar contra a vidraça que cercava o palco. Num último esforço, quis voltar a erguer-se, soltar um grito ameaçador, uma frase digna e penetrante, algo que pudesse restituir-lhe um pouco do seu amor-próprio. Mas tudo se toldava à sua volta, as imagens, os sons, os cheiros, todas as suas percepções se atenuavam, desapareciam, só restando a dor.

Ainda resistia quando, de repente, uma voz ecoou na sala, a mesma que se ouvira no início:

- Chegou o momento de escolhermos.

Um burburinho de excitação percorreu o público. Sem Nome fez um esforço sobre-humano para continuar de pé. Tudo lhe parecia tão longínquo.

- Ovalino! - retomou a voz. - Ajoelha-te, renega o que tu és, renuncia ao combate. Nunca nos poderás vencer. Se te baixares, a tua tortura cessará, serás um dos nossos. Conhecemos a tua identidade, aquela que procuras tão desesperadamente. Revelar-ta-emos. Terás um lugar entre nós. Mas, se teimares, e recusares esta proposta, a dor atormentar-te-á até à loucura. Logo que a greve da Morte terminar, matar-te-emos. Então, reconheces-te vencido? Aceitas servir-nos?

- Nunca! - disse Sem Nome num fôlego.

Imediatamente, uma nova vaga de dor se abateu sobre ele. Uma voz longínqua, grave, firme, mas de admiração, ecoou então na sala:

- É ele... É ele! Parem, é ele!

Sem Nome mergulhou num estado de inconsciência.

 

As três raparigas acordaram ao mesmo tempo. O Sol levantara-se há pouco. Tomaram um pequeno-almoço ligeiro. Âmbar aventurou-se a provar um fruto estranho que veio a revelar-se delicioso. Ninguém falou; estavam ainda demasiado cansadas.

Opala foi a primeira a notar que se aproximavam duas raparigas, dirigindo-se para elas. Nos seus rostos frescos e delicados havia um ar de indiferença. Entretanto, Âmbar não pôde deixar de notar o seu aspecto altivo, quase de desprezo.

Inicialmente, ficaram caladas, contentando-se em examinar as viajantes. Era impossível calcular a sua idade. Uma tinha cabelos castanhos, curtos, sabiamente desgrenhados; os olhos eram de um azul pervinca, com um brilho malicioso. A outra, morena, penteada da mesma maneira, tinha uns olhos castanhos, fluidos. Tinham vários pontos em comum: o nariz pequeno, estreito, ligeiramente arrebitado, lábios carnudos de trejeitos inocentes. A sua atitude, as suas feições davam-lhes um ar angelical e encantador. No entanto, não conseguiam esconder uma certa arrogância.

- Loorine! - gritou a rapariga de olhos azuis com uma voz infantil. - Achas que são humanas? Das verdadeiras?

- É provável -, respondeu a outra, num tom igualmente altivo. - Que sorte!

- Eu estou aqui! - disse Jade, secamente. - Não acham que deveriam ter isso em conta quando estão a falar de nós?

- Tens razão, Mairénith - disse Loorine. - São humanas!

- Obrigada pela constatação - respondeu Jade, irritada.

Âmbar e Opala olhavam atentamente para as duas estranhas raparigas. As suas vozes amargas suscitavam mais irritação que fascínio.

- Como estou contente! - exclamou Mairénith, batendo as pestanas negras, longas e curvas.

- Estamos encantadas por vos encontrar - disse Lnorine com um sorriso que deixava ver os seus dentes brancos, perfeitamente alinhados.

- Vocês são bonitas - disse Mairénith com alegria. - Não são bonitas, Loorine?

- Sim, muito.

- Obrigada - respondeu Jade -, mas não se importam de parar de nos gozar?

- Muito bonitas - repetiu Loorine. - Nunca vimos raparigas assim tão bonitas, pois não?

- Não - disse Mairénith. - Diz lá, Jade, achas que sou bonita?

- Como é que sabes o meu nome?

- É que eu sou uma Nalyss, e só por isso.

- Então, achas que somos bonitas? - repetiu ela, modulando a sua voz caprichosa.

Jade, Âmbar e Opala interrogavam-se sobre quem seriam estas visitantes.

- E porque é que fazes essa pergunta? - perguntou Âmbar.

- Quero saber - respondeu Mairénith, num tom de amuo.

- Sim, vocês são bonitas - disse Jade, irritada. - Mas vocês são muito estranhas e, se eu fosse a vocês, não me mostraria tão pretensiosa.

Âmbar e Opala não puderam deixar de sorrir ao ouvirem Jade referir o seu próprio defeito.

- Ela acha-nos bonitas - disse Mairénith, animada, feliz, como se fosse a primeira vez que o ouvira.

- Evidentemente que somos! - afirmou Loorine. Foi então que apareceu uma terceira rapariga. Competia com as outras duas em termos de beleza. No entanto, não se parecia com elas e era mais fácil calcular a sua idade: não deveria ter mais de quinze anos. Parecia delicada, sem, no entanto, se mostrar frágil. Uma longa cabeleira, macia como a seda, caía até à cintura fina. As suas feições resplandeciam de pureza. Tinha a tez fresca, lábios vermelhos. O seu olhar inocente era algo de perturbador.

- Ah, Loorine! - gritou Mairénith, fora de si.

- Que fealdade! - exclamou a sua companheira.

- Não suporto isso - queixou-se Mairénith, quase a chorar.

- Vai-te embora depressa, horrível criatura - exclamou Loorine em altos berros. - Vai-te embora! Não te aproximes delas!

Em seguida, como se tivessem tido uma visão repelente, Mairénith e Loorine fugiram a correr.

- São mesmo muito esquisitas - disse Âmbar, dividida entre o desejo de desatar a rir e a surpresa.

- São mesmo! - confirmou Jade.

- E, além do mais, porque é que elas fugiram a sete pés?perguntou Âmbar, espantada. - Julguei que tivessem visto alguma criatura ignóbil. Gritavam tanto que quase nos rebentavam os tímpanos! Decididamente, não compreendo nada!

Jade encolheu os ombros. Um pouco retirada, a recém-chegada disse com um sorriso:

- Chamo-me Janelle.

- Prazer em conhecer-te - respondeu Jade, num tom azedo.

- As raparigas que acabaram de ver são Nalyss. São muito estranhas, não são?

Janelle sentou-se ao lado das três raparigas e começou a contar- lhes a história das Nalyss. No Conto de Fadas existiàm muitas, todas do sexo feminino. Não viviam mais de trinta anos. Estas criaturas eram muito narcisistas, a ponto de se apaixonarem pela sua própria beleza e de dedicarem a ela toda a sua vida. A sua obsessão era tal que tinham que evitar verem-se ao espelho ou no reflexo de qualquer lago, com medo de não conseguirem desviar-se da sua imagem.

Janelle não acrescentou que elas só podiam ser vistas por um número reduzido de pessoas. As Nalyss tinham um dom extremamente raro, que não valorizavam: sabiam avaliar a beleza interior das pessoas, da qual se apercebiam melhor do que da beleza física. As pessoas que conjugavam estas duas qualidades eram as únicas a quem as Nalyss apareciam. As outras causavam-lhes repugnância.

Durante toda a sua vida, as Nalyss procuravam encontrar o maior número de pessoas que pudessem confirmar a sua beleza. Superficiais, eram desprovidas de inteligência. Divertiam-se a seduzir os homens que achavam dignos delas para os deixarem loucos de amor e, às vezes, darem à luz crianças, que nasciam sempre Nalyss.

No fim da sua existência, eram poucas as que se davam conta que tinham corrido em vão atrás de um ideal sem sentido, que a sua beleza não lhes tinha servido de nada, e que, muito simplesmente, se tinham esquecido de viver.

Janelle calou-se, deixando que o final da sua narrativa fosse marcado por um longo silêncio.

- E tu, quem és? - perguntou Jade, interrompendo o encanto.

- Chamo-me Janelle e conduzo as pessoas aos seus destinos em troca de alimentação e de um pouco de consideração.

- Nesse caso, podes ir-te embora - respondeu Jade com maldade, sem saber por que razão estava a reagir tão violentamente.

- Não, pelo contrário! - gritou Âmbar, indignada. -Janêlle, eras capaz de nos levar até à Oonagh? Não conhecemos absolutamente nada do Conto de Fadas e estamos um pouco perdidas...

- Com certeza - respondeu Janelle, radiante.

Opala, em silêncio, observou com atenção a rapariga que lhe sorria. Não sendo particularmente simpática para a recém-chegada, também não a hostilizou.

Puseram-se de novo a caminho. Âmbar e Opala montavam um cavalo, Jade e Janelle o outro.

Não tardou muito que as três raparigas começassem a sentir-se incomodadas com a presença da nova companheira. Não sabendo se podiam confiar nela, optaram por se manter caladas, com receio de desvendarem alguma coisa importante. No entanto, Janelle parecia perfeitamente inofensiva. Âmbar procurava meter conversa com ela. Jade e Opala não abriram a boca.

Depressa, no entanto, Janelle mostrou ser uma rapariga normal e simpática. Explicou a Âmbar que também tinha catorze anos e que era muito pobre. Em vez de definhar na sua aldeia, preferiu vir à descoberta do Conto de Fadas, tendo-se tornado guia.

- Na tua idade? - admirou-se Âmbar. - Não imaginava que aqui também pudesse haver miséria!

- Infelizmente, há. Só onde existe vida é que podemos encontrar a felicidade.

Apesar dos olhares mortíferos que Jade lhe lançava, Âmbar, sensibilizada com a gentileza de Janelle, começou a contar-Lhe a sua própria história desde o início. Quando chegou ao momento em que descobrira a pedra, Jade interrompeu-a, bruscamente:

- Cala-te, Âmbar! Não tens nada que contar isso! O olhar caloroso de Âmbar arrefeceu instantaneamente. Endireitou-se, irritada.

- Jade, não tens nada que me dar ordens quanto ao que devo ou não fazer. Sou suficientemente forte para me controlar. Se não consegues confiar em ninguém, é triste, mas o problema é teu. Não meu. Respeito os teus pontos de vista, mas não penses que tens o direito de julgar os meus. Preocupa-te contigo, com as tuas pretensões de princesa, e deixa os outros resolverem os seus problemas sozinhos.

Jade dirigiu um olhar magoado a Âmbar, que o recebeu, muito admirada com as palavras que tinham saído da sua boca.

- É engraçado verificar como nos enganamos - declarou Jade num tom grave, glacial. - Corremos o risco de simpatizar com uma pessoa, esquecendo-nos que ela pode vir a revelar-se uma inimiga, representar um perigo. Ignoramos estas verdades, e convencemo-nos de que estamos a construir uma amizade, se bem que ainda frágil, um entendimento mútuo. E, depois, somos obrigadas a descobrir aquilo que pensámos pudesse ser ignorado. Do dia para a noite descobrimos uma inimiga, aquela que na véspera juraríamos ser uma amiga.

Surpreendida com a discussão acesa entre as suas companheiras, Opala saiu da sua indiferença. Tentou, desajeitadamente, levar a conversa para um terreno mais seguro:

- O que é que aconteceu enquanto estive inconsciente? O que é que fizeram para eu sobreviver? E o Adrien, está bem? Onde é que ele está? Tive um sonho... ele vestia uma espécie de uniforme, e tive a impressão de que ele ia partir.

- É verdade - respondeu Ambar. - Esqueci-me que não estavas ao corrente.

E começou a contar a Opala os acontecimentos que ela ignorava, a voz denunciando uma grande irritação.

Jade mantinha-se cabisbaixa. Muito perturbada, tinha consciência que não estava no seu estado normal, mas recusava-se a admiti-lo. Janelle irritava-a cada vez menos. Começava, não a aceitar a sua presença, mas, muito simplesmente, a esquecê-la.

As raparigas atravessaram algumas aldeias, sem que nada de especial acontecesse. Logo que Âmbar acabou de contar tudo a Opala, instalou-se um silêncio pesado. Janelle procurou desanuviar o ambiente, mas não conseguiu.

Ao fim de algumas horas, o cavalo de Âmbar, extenuado, enviou-lhe uma onda telepática, fraca, pedindo para descansar.

- Vamos parar - disse ela.

Todas concordaram e pararam numa pradaria selvagem.

Entre elas, a tensão não tinha desaparecido.

- Estás convencida que te tornas engraçada a interpretar os pensamentos dos cavalos? - perguntou Jade, agressiva, a Âmbar.

- Pelo menos, não me coloco a mim no centro do mundo.

- Acalmem-se! - interveio Opala, cada vez mais admirada.

- Está a passar-se alguma coisa que não é habitual. Talvez fosse melhor utilizarmos as pedras.

- A verdade é que tu não consegues assumir-te por ti própria - respondeu Âmbar. - Tens que pedir sempre ajuda.

Opala, confusa, olhou para ela. O que é que se estava a passar? Apesar de tudo, desapertou os cordões da sua bolsa preta e agarrou na opala de reflexos nacarados, mas logo sentiu a pedra arder-lhe na mão. Largou-a de imediato, soltando um grito de dor.

Com mil precauções, apanhou-a da erva e colocou-a na bolsa. A sua mão direita, a que tinha pegado na opala, estava agora queimada e vermelha.

Jade e Âmbar nem sequer um olhar de compaixão Lhe dirigiram. Só Janelle quis saber como estava.

Opala, que acabara por tolerar Jade e começara a estimar Âmbar, voltou a guardar distância. Tudo o que tinham vivido juntas deveria tê- las aproximado, mas a chegada de Janelle criara uma certa tensão entre elas. E, agora, uma fúria brutal, sem fundamento, tinha vindo intrometer-se entre elas e destruir a sua relação ainda frágil.

- Julgas que me magoas - perguntou Opala a Âmbar. - É pena, mas enganas-te. Espero que não comeces para aí a chorar, pois não esqueço como és sensível, como te comoves com toda a gente, e seria muito triste ver as tuas lágrimas a correr. Como é possível eu dizer-te tais coisas, a ti que não tens defeitos? Evidentemente, esqueço que és uma pobre camponesa ignorante e franzina.

Opala não se arrependeu de ter despejado esta torrente de palavras. Tinham saído sozinhas, arrebatadas, incontroláveis. Neste momento, não lamentava tê-las proferido; um ódio injustificado começava a crescer dentro dela.

As raparigas retomaram o caminho. Janelle não se atrevia a intervir. Procurou, usando um tom neutro, lançar um tema de conversa. Em vão. As outras três maltratavam-se cada vez com mais violência. A situação começava a degradar-se quando, ao fim de duas horas, Âmbar e Jade pararam os cavalos com o pretexto de nova paragem. Mal tinham posto o pé no chão, atiraram-se uma à outra às estaladas. Opala juntou-se à briga, aplicando alguns golpes violentos.

Janelle não reagiu de imediato. Desceu do cavalo e gritou-Lhes de longe, mas em vão. Berrou ainda mais alto. Perdeu o seu tempo. Interveio, recebendo de passagem uma chuva de golpes cheios de raiva. Por um instante, o seu corpo franzino pareceu vergar. Depois, com uma força de que não parecia capaz, separou as três raparigas.

Jade, com o cabelo azeviche caindo selvaticamente sobre os olhos, a roupa rasgada, parecia estar fora de si. O olhar fulminava, no rosto escarlate. A face apresentava um ligeiro corte, donde saíam algumas gotas de sangue. Opala acabara com alguns arranhões apenas e um olhar ainda mais insondável que o habitual. A dor da sua antiga ferida reavivou-se um pouco.

E baixava a cabeça para disfarçar o que sentia. Âmbar, por seu lado, lutava contra as lágrimas. O seu lábio inferior tinha um corte, que lhe doía. Sentia o gosto acre, quente, desagradável do sangue que lhe corria na boca.

Lançaram olhares hostis umas às outras.

A situação tinha-se tornado insustentável.

 

                 Paris, 2002

Sentia-me cada vez mais fraca, mais definhada. Mal tocava na comida que as enfermeiras me traziam. Há meses que recusava olhar-me ao espelho. Imaginava-me magra, trémula, ossos salientes, feições abatidas. Não me atrevia a enfrentar o meu olhar desesperado. Queria guardar em mim a imagem de Joa, e não a de uma doente contorcida de dores. Quando fechava os olhos com bastante força, imaginava-me como era dantes. Aos poucos, a imagem materializava-se, cada vez mais confusa à medida que os dias iam passando. Eu era outra. Joa.

A evocação destas recordações fazia-me sofrer e levava a que lágrimas ardentes se soltassem dos meus olhos. Procurei tudo esquecer, relegar a minha história para o fundo da minha memória. E julgava tê-lo conseguido. Queria aceitar o meu destino.

Mas o sonho fez ressurgir o passado, ao mesmo tempo que começava a esboçar o futuro. Estava convencida que era suficientemente forte, suficientemente inflexível para lhe resistir. Não era o caso. Sem o confessar, sentia a esperança nascer lentamente dentro de mim. No entanto, toda esta história nada mais era que um sonho, e desde o princípio o meu espírito atormentado inventara este conto para me trazer de novo à vida. Quase tinha medo de pensar nisso, como se as minhas recordações, os meus sentimentos, os meus pensamentos pudessem alterar as cores cintilantes do sonho, esbatê-las até que desaparecessem, se afastassem, desmaiadas. O sonho tornara-se tão importante que eu tinha medo de deixar escapá-lo da minha memória. Queria que ele continuasse para sempre. Inconscientemente, apesar de não querer confessá-lo, achava que era verdadeiro, sentia que era verdadeiro, queria que fosse verdadeiro.

Mas a doença continuava a destruir-me. Sentia dores, e o sonho, que me transportava para longe da realidade, reavivava a minha dor quando regressava à minha cama do hospital. Quanto mais vontade de viver eu tinha, mais sofria a lutar contra a morte. Voltei a recusar esta fatalidade e a acreditar na ilusão que era a esperança. Acontecia dar comigo a censurar-me por ser tão ingénua, mas, no fundo, era mais feliz assim.

 

A noite caiu, marcando o fim de um dia penoso e cansativo, as quatro raparigas pararam nas imediações de uma pradaria. Janelle preferira a natureza a uma aldeia desconhecida, e as outras cederam às suas imposições. A tensão atingira o auge. Jade, Opala e Âmbar continuavam caladas, mas era a muito custo que conseguiam conter-se. Mantinham-se cabisbaixas, mas os seus rostos, os seus olhares estavam cheios de um ódio destrutivo, incompreensível, prestes a explodir. Âmbar e Jade tinham as mãos crispadas sobre os pescoços dos seus cavalos. Até Opala, direita, hirta, deixava transparecer uma enorme fúria.

As quatro raparigas sentaram-se na pradaria. Âmbar abriu a sacola e, lentamente, começou a retirar os alimentos. Jade e Opala levaram a mão à mesma peça de fruta.

- Larga, é minha! - gritou Jade.

- Ah sim? E porquê? - respondeu Âmbar. - Os teus desejos não têm que ser sempre satisfeitos primeiro que os dos outros.

- Atreves-te a falar comigo? Se julgas que vou dar-te ouvidos, enganas-te. Ainda não percebeste que não existes para mim?

Jade lançou-se por cima de Ambar, dando por fim livre curso à sua raiva. A briga foi tão violenta, tão encarniçada que Janelle e Opala nem se atreveram a interferir. Jade sabia defender-se muito bem, dominada por uma força felina, mas Âmbar debatia-se com uma fúria selvagem. A zaragata finalmente terminou.

- Porque é que estás a olhar para mim, eh? - perguntou Jade a Opala, dando-lhe um soco forte, apesar do cansaço que sentia. Opala deitou então Jade ao chão, que só com muita dificuldade se levantou, esgotada e ferida.

- Não vou continuar com seres tão desprezíveis - gritou ela. - Vou deixar-vos com pessoas da mesma espécie.

E, num passo determinado, partiu para o outro lado do campo, decidida a passar aí a noite. Opala fez o mesmo, mas para o lado oposto.

Âmbar ficou só com Janelle. Ela não sentia qualquer raiva em relação à jovem guia e a sua presença, embora não atenuasse a irritação que sentia, também não a atiçava.

- Posso ajudar-te? - perguntou- Lhe Janêlle. - Se falasses comigo, talvez te sentisses mais calma.

- Não acredito - respondeu Âmbar, carrancuda.

- Bom, então, se quiseres, posso contar-te algumas histórias. Seria uma maneira de pensares noutras coisas.

- Se te apetece.

Janelle começou a falar dela, descrevendo em pormenor a sua infância, a sua vida, as viagens que fizera. Não conseguia definir o Conto de Fadas, porque, para ela, este universo era o seu quotidiano: estava habituada a ele e já não encarava o fantástico que aí reinava como algo de extraordinário.

Janelle contou-lhe como vivera numa casa miserável. Tinha sido criada numa família numerosa e miserável. Desde muito cedo, tivera o sonho de viajar, de fugir daquela existência precária para poder levar uma vida diferente. Apesar disso, gostava muito da sua família e prometeu voltar um dia para os ajudar.

- A tua história é muito parecida com a minha - disse Âmbar, com um ar pensativo, carregado de recordações.

Janelle sorriu e retomou a sua história. Sempre fora dotada de uma imaginação fértil, que lhe permitia fugir à pobreza, Quando tinha dez anos, saíra de casa, com vontade de conhecer o Conto de Fadas e dá-lo a conhecer aos outros. Durante dez anos atravessara regiões vastas e pitorescas, admirara locais de cuja existência e beleza jamais suspeitara. Regressara mais tarde a casa para rever os seus familiares e tornar-se finalmente guia. Era grande a sua satisfação quando chegou à sua aldeia, o que era compreensível. Mas foi encontrar a sua casa devastada por uma epidemia que dizimara a família. As duas irmãs, as únicas sobreviventes, pediram-lhe que fugisse e não mais voltasse. Mal as tinha reconhecido, tal era a palidez dos seus rostos e a magreza dos seus corpos. Perseguida pela imagem da sua aldeia enlutada, Janelle partira nesse mesmo dia, esperando que o futuro a ajudasse a apagar da memória este passado sombrio.

- Tu também não tiveste uma vida muito fácil - compadeceu-se Âmbar.

- É verdade. Procurei dar a volta à minha vida contando histórias, histórias que inventava, mas as pessoas já estão fartas. Evidentemente, continuei a querer ser guia; infelizmente, não fui muitas vezes solicitada.

Com o desenrolar da conversa, Âmbar resolveu falar de si, o que a fez sentir-se mais próxima de Janelle. A rapariga contara-lhe algumas histórias divertidas ou poéticas, que tinha inventado. Âmbar ouvia-a com atenção, rindo e aplaudindo cada uma das suas fábulas.

- És, de facto, uma boa contadora de histórias - exclamou cativada.

- Obrigada - respondeu Janelle. - Agora é a tua vez. Gostava de conhecer a tua história.

Âmbar acedeu. Como Jade já lá não estava para se opor, relatou todos os acontecimentos a Janelle, que a escutava religiosamente, parecendo viver a narrativa à medida que Âmbar a relatava. O seu olhar incendiava-se, as maçãs do rosto coravam; ficava arrebatada, animada, fascinada.

Quando Âmbar acabou, Janelle pousou os seus olhos nos olhos ocres da outra.

- Tu és dotada - disse sobriamente. - Tudo o que dizes, di-lo de uma maneira que fascina quem te ouve.

Âmbar soltou um riso cristalino.

- Estás a exagerar - respondeu-lhe ela.

- Não estou; consegues provocar um autêntico arrebatamento em quem te ouve, ao fazer-nos ver e sentir o que contas.

Âmbar riu novamente, mas distinguiu, na penumbra, uma lágrima furtiva no rosto de Janelle.

- Sentes-te bem? - perguntou-lhe com ternura. - Posso ajudar-te?

- Não, não - titubeou Janelle, visivelmente perturbada.

- Diz-me o que tens - insistiu Âmbar.

- Nada. É só que. enfim, lembrei-me dos meus pais, e. não consigo deixar de...

Estas últimas palavras perderam-se num súbito soluço. Em breve se recompôs. Âmbar, comovida, não fez mais perguntas. Ela própria contou a morte de sua mãe. Janelle não lhe dirigiu qualquer palavra de condolências; mostrou-se compreensiva, mas sem exuberância. Âmbar admirou a sua reacção, o que a aproximou mais da sua companheira, como se partilhassem um segredo, algo de pessoal. Falar da mãe era confiar uma parte dela própria. Sentia-se cada vez mais à vontade com Janelle; tinha a impressão que, entre elas, estava a nascer uma verdadeira amizade.

Todavia, no seu íntimo, a raiva fervilhava, indomável, crescendo lentamente. Âmbar conseguia contê-la só porque Jade e Opala não estavam por perto.

- Sabes, Âmbar - disse timidamente Janelle -, eu sei que isto não te interessa muito, mas, há anos, vivi sozinha, pelo menos interiormente. Partilhava a companhia das pessoas apenas durante curtos instantes, e não me prendia a ninguém. Guardava para mim mesma todos os meus sentimentos, todas as minhas opiniões, sem nada deixar transparecer.

- Devia ser difícil - adiantou Âmbar, julgando adivinhar a resposta.

- Sim...

Embora parecesse que ia acrescentar algo mais, Janelle mudou de assunto. Depois, continuaram a conversar com grande entusiasmo, descobrindo numerosas afinidades entre elas.

- E aquelas raparigas que estão contigo, o que é que pensas delas - perguntou Janelle.

Âmbar começou imediatamente a sentir de novo a fúria a crescer.

- Jade é pretensiosa - disse ela, elevando o tom. - É uma egoísta, uma rapariga completamente cheia de si mesma. É execrável e nunca foi prestável a ninguém. Julga-se perfeita! Já não a suporto, com os seus ares de princesa orgulhosa. Quanto a Opala, é um bloco de gelo. É incapaz de qualquer sentimento por alguém. Não sabe sorrir; quando decide emitir um som, pode dizer-se que se trata de um milagre. Detesto-a. Tenho raiva às duas.

Janelle observou-a. O sangue começara de novo a jorrar do lábio aberto, a sua expressão amável e calorosa havia dado lugar a uma expressão aterradora, marcada por uma raiva sem fim.

De qualquer maneira, Janelle conseguiu ajudá-la a reencontrar a calma. A noite ficou negra de breu. No entanto, as duas raparigas continuaram a conversar por muito mais tempo. Janelle irradiava bondade. Âmbar estava satisfeita por tê-la encontrado.

Quando começaram a sentir o cansaço, as duas amigas decidiram deitar-se, prometendo uma à outra novas histórias para o dia seguinte. Depois de algumas risadas, acabaram por adormecer. Âmbar mergulhou num sono pesado, sem sonhos.

O céu estava semeado de estrelas. A lua brilhava de forma ténue. No meio da noite, o silêncio que reinava foi quebrado por um grito sufocado. Âmbar acordou bruscamente, ofegante. Sentia uma queimadura no corpo todo. Levantou-se devagar, cheia de dores. Na penumbra, reparou que Janelle estava diante dela.

- O que é que se passa? - gemeu. - Sinto-me tão mal. Janelle não respondeu. A sua expressão estava alterada, o rosto tinha um ar agressivo, de raiva. Âmbar julgou estar enganada. Janelle baixou-se e quis apanhar algo que estava pousado na erva espessa, depois soltou um grito estridente e voltou a levantar-se. Era impossível negá-lo: o brilho dos seus olhos reflectia raiva.

- Janelle. - murmurou Âmbar, intrigada.

- Deixa-me - gritou Janelle, numa voz estridente, histérica.

- O que é que tens?

- Então não vês? Não percebes?

Janelle estendeu lentamente o seu punho cerrado e, depois, abriu as mãos. A palma da sua mão apresentava sinais de queimadura. Neste momento, Âmbar viu-a como as Nalyss a tinham visto - como qualquer pessoa a veria se o seu exterior sempre tivesse reflectido o que lhe ia na alma. Inchada, os cabelos negros em desalinho, uma pele gordurosa, olhos da cor do carvão, encovados, reluzentes, maçãs do rosto salientes, um nariz porcino, uma silhueta desagradável, ombros largos e compactos. A maldade reflectida nos olhos, as feições crispadas pelo desejo de destruição. Transformara- se no próprio ódio, era a sua incarnação.

- A culpa é tua! - gritou Janelle, transtornada.

- Mas. porquê?

- Tudo! Não queres abrir os olhos? Eu odeio-te... Eu odeio-te!

Âmbar sentiu-se vacilar. Os olhos encheram-se de lágrimas. Já não entendia nada; já não queria entender nada.

- Tu tens tudo, és como eu gostaria de ser! - continuou Janelle. - Roubaste-me o lugar! Roubaste-me a vida!

- Isso é um absurdo - balbuciou Âmbar.

- Pois é, é fácil para ti dizeres isso. Eu, eu não passo de uma pobre rapariga, miserável, não tenho direito a existir! Não é isso que pensas?

- Não, nada disso!

- Continuas a não entender? Então, eu explico-te. Retomemos a história desde o início. Acontece então que me cruzo no meu caminho com três raparigas. Paro e, pelo que ouço delas, percebo que tinham visto Nalyss, que fugiram quando me aproximei. Evidentemente que elas têm de ser suficientemente perfeitas para as verem, o que não acontece comigo!

- Eu. eu não sabia - deixou escapar Âmbar, sentindo o mundo desabar à sua volta.

A sensação de queimadura no corpo intensificava-se.

- Então - retomou Janelle - decido travar amizade com elas. Quero mostrar-lhes que eu também tenho direito a existir, de ser apreciada.

- Mas eu não disse o contrário.

- Mas estas três raparigas ignoram-me.

- É falso!

- Têm tudo para agradar. A vida ofereceu-lhes tudo; a mim - não me quis dar nada. Sinto então a raiva crescer dentro de mim, violenta, mas benfazeja. Inspira-me, domina-me, até me invadir completamente. Preciso de me ver livre dela. Concentro- me, e com uma facilidade que nunca encontrara, liberto-me. Ela solta-se e vai saciar a alma de outra pessoa no meu lugar.

- Jade! - exclamou Âmbar.

- Mas o ódio continua a crescer dentro de mim; para resistir, transmito-o a ti, depois à outra rapariga, Opala, não é? Pouco a pouco, a fúria foi-me subjugando e, em seguida, subjugou-vos a vocês.

- Porquê? Nós não fizemos nada! - protestou Âmbar, sufocada.

- Depois, tu começas a abrir-te comigo. Invento uma história da minha vida, que nunca existiu; acreditas em mim, tens pena de mim. Detesto os teus sentimentos doces, o teu ar de caridade. Estava ansiosa por te contar a verdade, de te dizer como é que transmiti o ódio e engendrei mortes, guerras. Quando me falaste da tua pedra, percebi então quem tu eras. E, então, convenci-me que a raiva iria vencer a minha resistência. Quis superar-te, humilhar-te, destruir-te.

- Não! - gritou Âmbar, ferida, continuando a recusar a verdade.

- Esta noite, tentei subtilmente apoderar-me da tua pedra mas não consegui. Queimou-me a mão. E tu acordaste, confiante, com o teu ar de santinha, perfeita, insuportável.

Âmbar não conseguiu responder.

- O que é que pensas? Que sou violenta? Que recorro ao Mal só para me livrar dos meus problemas? Não. O Mal é que me alimenta, me dá poder! Sem ele, não sou nada. Sirvo-o, mas ele, por sua vez, reconforta- me, transforma-me, torna-me invulnerável! Preciso dele. Quando vejo os outros sofrer, quando sinto o Mal dominar-me, torno-me forte! Não mais tenho necessidade de me esconder atrás de sorrisos parvos, não mais tenho necessidade de me obrigar a ser outra pessoa, de parecer gentil. O Mal permite-me ser eu própria.

- E porque é que me dizes tudo isso?

- Porque sei que isso te incomoda. As minhas palavras atingem-te, ferem-te, fazem correr o sangue da tua alma mortificada. E eu sinto prazer nisso. Achavas que eras superior a mim? Não és! Julgavas que eu era tua amiga? Pelo contrário, eu sou uma das tuas mais fervorosas inimigas! As tuas lágrimas causam-me uma alegria imensa. Julgas que sou uma traidora? Pois não tenho nenhum desgosto nisso; sigo os meus desejos, assumo a minha natureza. Não me comovo diante do mundo direitinho que me querem impor; eu crio o Mal e vivo dele.

Ao dizer estas palavras, sorriu com um ar triunfal, depois retirou-se, satisfeita. Âmbar pensou ter avistado um cavaleiro ao longe, que observava a cena. Mas esta imagem só podia ser ilusória, um milagre na noite.

Apanhou a sua pedra da erva, que adquiriu uma temperatura reconfortante. Com a partida de Janelle, o ódio, a queimadura desapareceram do seu coração. Todavia, as lágrimas continuaram a correr-lhe pela face, quais pérolas de um enorme desvario.

 

Sem Nome abriu os olhos. Coordenou rapidamente as ideias. As feridas tinham desaparecido. Não subsistia qualquer dor, qualquer vestígio dos cortes profundos que tinham dilacerado a sua carne. Reparou que ainda se encontrava no mesmo quarto estreito, de paredes vazias. Mas, embora continuasse sentado naquela estranha cadeira de espuma verde, já não tinha os membros amarrados com lianas. A seu lado, Elfohrys, ainda preso com lianas, também parecia incólume.

- Ah! Sem Nome! - exclamou ele. - Finalmente acordaste!

- Mas. o teatro, a dor.

- Desculpa? Ainda deves estar em estado de choque.

- Eu não sonhei - murmurou Sem Nome, confuso.

- Há algumas horas os Ghibduls voltaram, depois do regresso de Nailde.

- Eu sei.

- Puseram-se à tua volta, começaram um jogo de encantamento esquisito. Tu desmaiaste. Estiveram sempre ao teu lado, calados. Tu agitavas-te, balbuciavas sons incompreensíveis... A cena durou cerca de meia hora. Já começava a ficar preocupado! Depois de saírem, continuaste inconsciente. Gritei, tentei ajudar-te. Finalmente, ao fim de duas horas, as tuas amarras soltaram-se sozinhas e o teu sono tornou-se mais regular.

Sem Nome, espantado, olhou para os seus membros intactos - à excepção da antiga ferida no braço direito - sem nada compreender. Pôs a cabeça entre as mãos. Será que a sua memória começava a pregar-lhe partidas? Depois de apagar o seu passado, iria traí-lo de novo, forjando um presente imaginário?

Não teve tempo para reflectir sobre estas questões. Três Ghibduls entraram no quarto. Os seus rostos monstruosos reflectiam agora uma certa afabilidade, os seus lábios procuravam até esboçar um sorriso. Chegando perto do jovem, um dos Ghibduls, sem uma palavra, estendeu-lhe um objecto de forma alongada embrulhado num pano de um branco imaculado. Sem Nome estendeu a mão com precaução, hesitando.

- Toma - animou-o um Ghibdul, com uma voz rouca, que deixava transparecer humildade, respeito e admiração.

Sem Nome pegou no objecto, retirou o pano. Atónito, reconheceu a sua espada encantada.

- Se estiveres disposto a aceitá-las - prosseguiu o Ghibdul

- queríamos apresentar-te as nossas desculpas, digno ovalino. Elfohrys desatou a rir às gargalhadas. Os Ghibduls lançaram-lhe um olhar ameaçador.

- Talvez queiram agora libertar- nos - sugeriu alegremente Elfohrys. - A vossa súbita mudança de comportamento sensibilizou-nos muito, mas.

- Cala-te, miserável! - ordenou- lhe aquele que tinha entregue a espada ao ovalino e que era, evidentemente, o chefe.

- Proíbo-vos de tratarem o Elfohrys dessa maneira! - disse Sem Nome, indignado.

- Se é esse o teu desejo - resmungou o Ghibdul, contrariado.

- Acho que podiam dar-nos algumas explicações - retomou o jovem, ainda deslumbrado, mas disposto a tirar partido desta situação inesperada.

- Nós penetrámos no teu espírito e simulámos uma encenação a partir das imagens que já ocupavam os teus pensamentos mas cuja existência ignoravas. Juntámos-lhes alguns elementos à nossa escolha.

- Tudo o que julguei ver, sentir era então falso?

- Desde que saíste deste quarto - completou o Ghibdul. Era uma experiência necessária e eficaz. Somos particularmente dotados para este género de manipulação indolor.

Indolor. disse para si Sem Nome. Cada um dá à palavra a sua interpretação, mas, quanto a mim, não considero que a sua intrusão tivesse sido propriamente agradável ou simpática!

O Ghibdul colocara-se tão perto do jovem que este não conseguia deixar de sentir o seu hálito fétido. Virou a cabeça quando este prosseguiu:

- Tínhamos dúvidas a teu respeito. O que tínhamos adivinhado parecia-nos improvável, mas mantivemo-nos determinados. E esta intervenção telepática confirmou as nossas suspeitas, as nossas esperanças.

- Mas vocês são mesmo capazes de ter esperança? - ironizou Elfohrys. - Estamos sempre a aprender.

- Ovalino, tu és aquele que há muito esperávamos. Qual é o teu nome?

- Não tenho nenhum - respondeu o cavaleiro. - Sou o Sem Nome.

Os Ghibduls não pareceram perturbados.

- Foste o único a conseguir resistir tanto tempo à. euh, tortura mental, que te infligimos. Lamentamos, aliás, ter-te feito passar por isso.

- Na verdade, não foi muita delicadeza da vossa parte.

- Mas era necessário - queixou-se o Ghibdul. - É que, mesmo entre nós, ninguém aguentou tanto tempo uma tal prova. Sobretudo a tua escolha é algo que achamos incrível. Ninguém, antes, optara por essa solução, ninguém tivera ainda coragem para isso. Menos tu.

- Vocês divertem-se a torturarem-se mentalmente entre vocês? - perguntou Elfohrys. - Que ocupação... engraçada!

- É um teste por que toda a gente passa.

- E porque é que eu sou "aquele que há muito esperavam"? - perguntou Sem Nome.

- Durante séculos vivemos enclausurados. Criámos uma civilização e ajudámo-la a dar os primeiros passos. Mas, desde tempos remotos, foi-se transmitindo uma tradição, uma crença: a de que um homem haveria de chegar um dia e nós iríamos reconhecê-lo. Iria mudar a nossa existência, aproximar-nos-ia das outras criaturas. E nós iríamos segui-lo, obedecer- lhe, ajudá-lo quando pedisse a nossa ajuda. Esse homem, Sem Nome, és tu.

- Não pode ser - protestou o ovalino. - Como é que querem que eu vos aproxime das outras criaturas? E, além do mais, não tenho a menor intenção de vos comandar!

- Vamos acompanhar-te numa visita à nossa cidade e, depois, vais-te embora. Mas, um dia destes, vais apelar para nós - afirmou, placidamente, o Ghibdul. - Vai ser assim. Como Sem Nome não parecesse convencido e a sua expressão reflectisse esse seu cepticismo, um outro Ghibdul explicou:

- Tudo isso está n'A Profecia, ovalino. Néophileus escreveu que no fundo da floresta vivia uma civilização escondida e que, um dia, depois de uma vitória, seria descoberta por um homem. Seria sujeito a um teste que iria revelar a sua identidade às criaturas que o tivessem cativo. Depois, o homem seguiria o seu caminho. Quando as Trevas estivessem quase a devorar a Luz, ele voltaria. Pediria ajuda a esse povo e ele fá-lo-ia sair do esquecimento. Ovalino, esta é a tua história. E a nossa.

O Ghibdul fez uma pausa. Uma das outras criaturas revezou-o:

- Sabemos quem tu és. Não podes sabê-lo antes desse dia, pois, conforme diz A Profecia, caberá a nós fazer-te essa revelação.

Tremendo de emoção, o coração quase a rebentar, sentindo um nó de ansiedade na garganta e no estômago, Sem Nome aguardou. Será que iria finalmente descobrir quem era na realidade? Os Ghibduls olharam-no com ar sério e solene. Por fim, um deles proclamou:

- Sem Nome, tu és aquele que toda a gente esperava. Tu és o Eleito.

 

Âmbar passou o resto da noite acordada, os olhos embaciados de lágrimas. Não conseguia imaginar porque é que Janelle a traíra. Acreditara na sua amizade. Apesar de essa ilusão ter durado pouco tempo, confiara na jovem, abrira-Lhe o coração.

Ao amanhecer, Jade e Opala aproximaram-se dela. Toda a raiva havia desaparecido. As duas raparigas tinham tido um pressentimento de que alguma coisa de terrível tinha acontecido a Âmbar. Apressaram-se a escutá-la e a consolá-la. Instalou-se um certo mal-estar entre elas quando se lembraram da fúria que tinham sentido na véspera. O lábio inchado de Âmbar era a prova do seu desvario.

Por fim, após um momento de desculpas murmuradas de forma precipitada, as três raparigas deram-se conta da aproximação que se tinha estabelecido entre elas desde a libertação de Nathyrnn. Mesmo a hostilidade que reinara entre Jade e Opala se amenizara consideravelmente.

Comeram em silêncio e, em seguida, retomaram a estrada. Ao longe, as montanhas vestidas de um véu de bruma e neve subiam ao céu ainda tingido pela luz frouxa da aurora.

Como acontecera na véspera, as três raparigas cavalgaram em direcção à gruta de Oonagh. Ainda estavam a uma distância considerável do seu objectivo. Jade calculou que uma semana seria o tempo necessário para completarem o trajecto, caso se apressassem. Informou Âmbar, que ordenou baixinho ao cavalo que aumentasse um pouco a velocidade.

- De facto - contou Âmbar. - Lembrei-me agora. Durante a noite, pareceu-me ver um cavaleiro. É completamente impossível, eu sei, mas mesmo assim quis dizer-vos.

Jade encolheu os ombros, mas Opala, que montava o mesmo cavalo que ela, disse:

- Eu também, antes de adormecer, reparei que havia uma sombra.

A voz era calma, como se a informação fosse natural e sem interesse.

- Quem é que poderá estar a espiar-nos - perguntou Jade.

- Já não suporto todos estes mistérios. A última coisa que precisamos é mesmo de um cavaleiro fantasma às costas! Se o voltarem a ver, avisem- me, que eu vou ter com ele para lhe meter a minha bota num sítio que eu cá sei!

Âmbar riu alegremente. Opala olhou-a e dirigiu-lhe um sorriso fugaz. Lembrou-se do momento que passara com Adrien antes de voltar a perder a consciência, e isso transmitia-lhe uma certa ternura, reconfortante, que a levava a ter um olhar indulgente sobre o mundo.

Tinha dificuldade em acreditar que estava a atravessar um local povoado de criaturas diferentes dos humanos, mas esta perspectiva, ao contrário de a intimidar, fazia crescer nela um interesse por tudo o que a envolvia. Observava as paisagens que se sucediam como se fossem maravilhosas. O seu olhar alterara-se; tinha, de facto, uma nova forma de olhar. Teriam sido o seu encontro com Jade, Âmbar e Adrien, o seu inconsciente, a sua sobrevivência miraculosa, que a teriam transformado? É verdade que durante o período de coma sentira impressões estranhas. Tivera muitos sonhos, de que já não conseguia lembrar-se. Apenas percebera, naquele seu estado de torpor, que Adrien se preparava para partir, arriscando a vida. Ao vir-lhe à memória esta ideia, sentiu o coração apertar. Iria vê-lo em breve?

Âmbar, ainda aborrecida, procurava distrair-se observando tudo à sua volta. Reparou, uma vez mais, que não havia qualquer lavrador a trabalhar nos campos. Homens e mulheres, sem qualquer ferramenta, ostentando longos cabelos prateados, riam e cantavam no meio das culturas. Curiosa, sugeriu às duas companheiras que parassem um pouco para falarem com eles, o que elas aceitaram. Desceram dos cavalos e dirigiram-se a eles, abrindo caminho pelo meio de um campo de girassóis. Quando se aproximaram dos camponeses, estes receberam-nas com um largo sorriso de boas-vindas. Âmbar cumprimentou-os amavelmente e o seu olhar caloroso conquistou-os de imediato. Um deles, pequeno, espadaúdo, exclamou:

- Os seus olhos são ouro, céu, flores!

Os outros concordaram, lançando um olhar malicioso, galhofeiro. Âmbar não soube o que responder a este cumprimento tão pouco habitual. Recompondo-se, perguntou:

- Vocês trabalham a terra? Eu não conheço nada do Conto de Fadas e gostaria de saber se vocês são camponeses e como é que vivem aqui.

Todos riram, mas sem maldade. Esta gente parecia simples, mas acolhedora, o seu olhar exultava de alegria.

- Desde tempos remotos que compreendemos bem a terra - explicou uma das mulheres. - Os nossos cantos, as nossas gargalhadas alimentam-na, fazem-na feliz. É para nós gratificante quando vemos as plantas começarem a germinar, vacilantes. Entre nós e elas há uma cumplicidade, que se estende à terra que as traz ao mundo. Se isso significa sermos "camponeses", como dizes, então nós somos.

- Vocês são um povo mágico? - perguntou Jade, maravilhada.

- Não o somos mais que qualquer outro, nem mesmo mais que vocês - respondeu a mulher. - Cada pessoa possui a sua magia. Não há nenhum germe semelhante a outro.

Perante o ar interrogativo das três raparigas, os trabalhadores desataram a rir de novo. Em seguida, a mulher que lhes havia dirigido a palavra murmurou:

- Estamos contentes por vos termos conhecido. Sentindo que era chegada a hora de retomarem o caminho, as três raparigas deixaram aquela gente alegre, que ficou a aclamá-las, com risos e cantos melodiosos à mistura.

Já no caminho, Âmbar comentou:

- Quando viemos embora, o homem que disse aquelas coisas estranhas acerca dos meus olhos sussurrou-me uma frase...

- Ah, sim - perguntou Jade, surpreendida.

- Sim, disse-me qualquer coisa parecida com: A natureza faz milagres de que a magia nem sequer sonha.

- Esta gente é estranha - disse Opala.

- Mas simpática - acrescentou Âmbar.

- De qualquer maneira, pareceu- me que eles gostaram de ti - opinou Jade.

- De mim? - respondeu Âmbar. - Talvez por me sentir próxima deles, ter a impressão que os compreendo.

As três raparigas continuaram a cavalgar, fazendo apenas breves paragens. Ao fim de algumas horas, começaram a desenhar-se no horizonte os contornos de uma cidade envolta numa auréola de bruma enegrecida. Jade, Opala e Âmbar decidiram atravessá-la, apesar da desconfiança que começavam a sentir em relação ao desconhecido. Iriam perder demasiado tempo se optassem por contorná- la.

À tarde, entraram finalmente na cidade. Apearam-se dos cavalos e levaram-nos pelas rédeas. Estes avançavam, garbosos.

Corremos algum perigo aqui?, perguntou Âmbar à sua montada.

O cavalo não respondeu. Pareceu sorver o ar antes de enviar à sua cavaleira uma impressão de desolação, miséria, mas não de perigo.

A cidade, onde todas as casas se encontravam fechadas, estava silenciosa. Opala comentou calmamente:

- Algumas das casas foram recentemente incendiadas.

Com efeito, ao fim da primeira rua viam-se algumas casas que haviam sido, sem dúvida, de madeira, mas que nada mais eram que um montão de cinzas, de objectos destruídos.

Âmbar estremeceu. De repente, de uma casa saiu um homem com uma expressão de desespero. Era corpulento, vestia um elegante traje de seda semelhante a uma toga. No entanto, o seu rosto lívido era o espelho do terror. Tremia violentamente. Nos seus olhos húmidos, lia-se um desvario próximo da loucura. Deixou-se cair aos pés das três raparigas.

- Quem quer que vocês sejam - suplicou ele -, ajudem-nos! Imploro-vos, não nos deixem morrer.

Opala, convencida que se tratava de mais um estratagema, tentou continuar o seu caminho. Tinha aprendido a desconfiar de tudo. Mas Âmbar reteve-a pelo braço e Jade fez um ligeiro aceno de cabeça, em sinal de concordância.

- O que é que aconteceu? - perguntou Âmbar.

- Então não sabem? - queixou-se o homem. - Entrem no que resta da minha casa, e vão já entender.

As três raparigas trocaram olhares. Uma por compaixão, outra por curiosidade, Âmbar e Jade decidiram aceitar. Opala foi obrigada a acompanhá-las. Âmbar ordenou ao seu cavalo que esperasse e depois seguiu o homem até ao interior de uma habitação de pedra de tamanho médio. Fechou a porta atrás delas, devagar.

No interior, um grupo de crianças e uma mulher esguedelhada, agachados e desfeitos em lágrimas, pareciam aterrados, em estado de choque.

A habitação havia sido saqueada. Objectos e móveis juncavam o chão, destruídos. Quadros sem valor, mas interessantes, haviam sido lacerados. Devia ter sido uma habitação confortável, mas, neste momento, estava reduzida a escombros.

- Vejam o que eles nos fizeram, vejam! - disse o homem. Como é que vamos resolver tudo isto? Ninguém, excepto vocês, se atreveu a pôr os pés na nossa cidade; ninguém irá sacrificar a sua vida para nos vir ajudar.

- O que é que aconteceu? - repetiu Âmbar.

- Eles voltaram - disse baixinho o homem, com os olhos fora das órbitas, aterrado. - Desde a queda de Thaar, eles apareceram de todo o lado.

- Quem? - interveio Jade.

A mulher, ao fundo do quarto, soltou um grito.

- Não lhe liguem - disse o homem. - É uma demente que vagueia pela cidade. Quando eles vieram, recolhi-a para a salvar, em memória da minha própria mulher, que foi morta por eles, já faz muito tempo.

A mulher continuava a gritar, histérica.

- Béah Jardun, cala-te! - ordenou-lhe o homem, tapando os ouvidos com as mãos.

A mulher obedeceu, dócil, acalmada pela suave sonoridade do seu nome.

- Então vocês não os conhecem? - inquiriu surpreendido, o homem, voltando à conversa com as raparigas. - Sempre tivemos muito medo deles. Houve alturas em que dominaram quase por completo o Conto de Fadas, outras em que deixámos de ouvir falar deles durante séculos. Voltaram agora e, desta vez, estão mais poderosos que nunca! São comandados por uma centena de feiticeiros da Escuridão. Sempre quiseram dominar o Conto de Fadas. Foi por isso que se colocaram ao lado do Conselho dos Doze, que lhes prometeu este território em troca do seu apoio e da sua submissão. Vergaram-se às suas ordens, certamente para melhor os traírem depois de nos vencerem.

- Aparte os feiticeiros da Escuridão como diz - interrompeu Jade -, quem são os outros?

- São criaturas maléficas de todas as espécies - respondeu o homem -, que preferiram colocar-se ao lado do Mal. Também há homens entre eles. Têm todos um ponto em comum: o desejo de destruição. Alguns conseguem mesmo incutir o ódio nas almas puras. Têm o Dom do Mal.

Como a Janelle", pensou Âmbar, amargamente.

- Desde que Thaar caiu nas suas mãos e nas do Conselho dos Doze - prosseguiu o homem -, não param de deixar o seu rasto no Conto de Fadas. Pilham, oprimem os mais fracos... A maior parte do nosso exército, que nos protege deles, está mobilizado à volta de Thaar. Quanto aos feiticeiros da Luz, pensa-se que se trata de lendas e que eles nunca existiram. Evidentemente, muitos de nós estão prontos a combater, mas o Eleito nunca mais aparece... já começamos a desesperar e acabaremos por nos resignarmos.

- O Eleito? Quem é? - interrogou- o Jade.

O homem olhou-a, muito espantado, para, logo depois, se mostrar surpreendido com algo que era evidente. Tossicou e retomou a palavra:

-Já não sei o que digo. Devo estar a delirar, como a pobre alucinada da Béah Jardun. Não liguem ao que eu disse.

- Não pense que acredito em si... Mas esqueçamos isso... Diga-me, eles têm algum nome?

- Não propriamente. apenas Exército da Escuridão.

- E quem são os feiticeiros da Luz?

- Se existirem, são as únicas pessoas capazes de se oporem aos feiticeiros da Escuridão. Em breve, quando o Exército da Luz se juntar de novo...

- O quê? Que exército? - perguntou Jade. - Porque é que vai juntar-se de novo? Vai haver alguma guerra?

- Já falei de mais - suspirou o homem -, mas não vão saber mais nada de mim.

Âmbar aproximou-se das crianças e da mulher para as reconfortar, de forma inábil. Enquanto Jade procurava obter do homem mais informações sobre o Eleito, ela conversava com eles numa voz doce e quente. Um assomo de lucidez pareceu perpassar nos olhos de Béah Jardun. Endireitando-se um pouco, puxou Âmbar pelo braço para a obrigar a baixar-se e sussurrou-lhe, nervosa:

- Quando nasceste, a tua mãe ficou tão contente. Amedrontada, também, mas feliz. Eu estava lá, era uma simples criada, mas estava lá. Havia muita gente, até o Jean Losserand, o vagabundo, que, depois de ter vencido várias peripécias, voltava para casa e passou por lá nessa noite. Ajudou a tua mãe a fugir, a pôr-te em segurança no Exterior. E, quando quis trazê-la de volta ao Conto de Fadas, antes de voltar para casa, foram interceptados. Jean Losserand ficou lá, preso, mas a tua mãe foi morta à ordem do Conselho dos Doze. Eu também estava com eles. Felizmente, eu tive mais sorte, consegui regressar e encontrar o teu pai, que aguardava a sua mulher em vão. Mais tarde, também ele foi morto pelo Exército da Escuridão.

- Isso é verdade?

Foram as únicas palavras que Âmbar conseguiu proferir, de tal modo as emoções pulsavam dentro dela.

- Evidentemente que é verdade - respondeu Béah Jardun, indignada. - A tua mãe e o teu pai amavam-te, Jean, eu e ainda outras pessoas, e foi isso que te fez diferente, Âmbar.

Em seguida a mulher caiu num mutismo donde nem mesmo a veemência das perguntas de Âmbar a fizeram sair.

Durante este tempo, o homem havia retomado o seu relato:

- Esta modesta cidade é apenas habitada por curandeiros, como eu, ou por mágicos de profissão. Apenas utilizamos uma forma rudimentar de magia para dar às nossas poções e aos nossos unguentos a força pretendida. Somos pessoas de bem, pacíficas E, no entanto, foram implacáveis em relação a nós. Levaram-nos os nossos mantimentos, as nossas jóias raras e incendiaram-nos as casas. Só consegui salvar uma dezena de poções. Voltaram hoje para destruir o que restava. e selaram a cidade.

- Selaram a cidade? - repetiu Jade. - Não entendo.

- É o que eles fazem em todas as cidades por onde vão passando. Marcam-nas com o Selo da Escuridão. Durante um ano, ninguém pode sair daqui. Estamos condenados a morrer à fome ou, em qualquer caso, a sofrer atrocidades até que acabe a greve da Morte.

- É ignóbil - disse Jade.

- Pois é, ninguém se atreve a entrar numa cidade selada pelo Exército da Escuridão, com medo de represálias, ou para não ser preso!

- O que significa que estamos precisamente fechadas na vossa cidade - constatou Opala com toda a calma.

- Sim, mas. - O homem desatou a soluçar. - A partir do momento que vocês entraram, já não pude fazer mais nada - queixou-se ele.

- Temos alguns mantimentos que nos permitirão aguentar alguns dias - respondeu Opala, optimista. - Vamos encontrar uma solução.

- Ora bolas, mais uma ratoeira! - desabafou Jade, irritada. Âmbar, que não acompanhara a conversa, não interveio. Não conseguia desviar o seu pensamento das palavras de Béah Jardun.

- Mas porque é que esse Exército da Escuridão vos atacou? - perguntou Jade.

- Eles poupam os campos, as aldeias, porque para eles são uma perda de tempo. Essas pessoas nunca se lhes oporiam e não constituem, aos seus olhos, qualquer ameaça. Mas em certas cidades, como a nossa, eles praticam sevícias de forma impiedosa. Sabem que estamos contra eles. Logo que o Eleito chegue, colocar-nos- emos a seu lado. Eles tentam dissuadir-nos.

- Dizia há pouco que o Eleito não existia, que estava a divagar - ironizou Jade.

- Mas evidentemente que sim! Eu... eu não estou bem - respondeu o homem, procurando disfarçar. - Digo disparates, já não consigo controlar-me. O Eleito? Não sei onde é que fui buscar essa ideia.

Tentou simular um ataque de loucura, mas em vão.

- A propósito, como é que se chama? - perguntou Jade, desistindo de obrigar o homem a falar sobre este misterioso Eleito.

- Eu chamo-me Amnhor.

- Bem, agora o que temos a fazer é encontrar uma maneira de libertar esta cidade - sintetizou Jade.

- É impossível - disparou Amnhor. - O que é que vocês pensam? Que não tentámos já? Uma cidade selada pelo Exército da Escuridão é uma cidade condenada. O mau-olhado que nos deitaram é muito poderoso.

- Tudo bem. Mas, apesar disso, vamos tentar, pois não tenciono ficar aqui mais do que algumas horas - respondeu Jade.

As três raparigas trocaram olhares cúmplices e retiraram as pedras. Amnhor, convencido do seu insucesso, soltou um longo suspiro, resignado. Jade, Opala e Âmbar concentraram-se, trazendo à memória a fina auréola de bruma enegrecida que envolvia a cidade: o Selo da Escuridão. A comunicação entre as pedras foi estabelecida e as três tornaram-se uma só. Inundou-as um suave calor que começava a tornar-se habitual.

Romper o Selo, romper o Selo, diziam elas mentalmente, cada vez com mais força.

Mas nada aconteceu. A força do Selo era demasiado grande para que elas pudessem afrontá-la. Tiveram que se dar por vencidas e guardaram as pedras, despeitadas.

- Eu tinha-vos prevenido - admoestou-as o curandeiro. Entretanto, Opala reparou que estava a tremer. Sentia-se febril. Depois deu-se conta que, desde que descobrira a sua pedra antes do tempo, nunca deixara de ter dores de cabeça. Tinham-se, gradualmente, atenuado um pouco, e por isso não lhes atribuíra grande importância, mas, agora, por causa da ferida, a febre voltara, intensa e dolorosa.

Amnhor apercebeu-se que Opala não estava a sentir-se bem. Perguntou-lhe o que tinha e saiu depois para procurar num quarto vizinho um frasquinho cheio de um líquido transparente, bem como um pequeno boião de unguento.

- É a poção mais simples que existe - explicou-lhe - mas trata tudo o que é febre e dores de cabeça.

Opala tomou um gole do líquido fresco, revigorante. Imediatamente se sentiu melhor.

- Pega isto para a tua ferida. É um remédio muito raro mas muito eficaz. - disse Amnhor, estendendo-lhe um boião de unguento.

Opala agradeceu e untou a chaga.

- Vocês têm sorte - retomou Amnhor - por terem saído ilesas da vossa luta contra o Selo. A magia negra é muito perigosa.

- Eu nunca desisto - disse Jade, com determinação. - Tenho que ir ver Oonagh e hei-de ir!

- Procura antes uma maneira de sobreviveres um ano sem mantimentos - respondeu, tristemente, o curandeiro.

- Procure-a você, se isso o diverte - respondeu Jade -, pois quanto a mim, tenho intenções de destruir o Selo.

- Essa é também a minha intenção - afirmou Opala.

- Mas, espere! Amnhor, foi você que disse que nesta cidade existem mágicos, não foi? - perguntou Jade, entusiasmada.

- Sim, mas só utilizam a magia a um nível muito superficial - explicou o homem. - Nunca conseguiriam quebrar o sortilégio do Selo.

- Apesar disso, convoque-os! - exclamou Jade com um ar autoritário. - Aquilo que eles, sozinhos, não conseguirem fazer, nós juntas havemos de conseguir!

- De qualquer maneira, é melhor tentarmos que esperar pacientemente até morrermos de fome - concluiu Opala.

Amnhor saiu e regressou ao fim de uma hora:

- Os mágicos estão reunidos na praça principal. Expliquei-lhes que vocês queriam destruir o Selo. Não ficaram muito convencidos, mas, apesar disso, vieram. Sigam-me.

Na grande praça, a abarrotar de homens e de criaturas, reinava um silêncio temeroso. Uma tensão urdida de desgraça e desânimo assaltava a multidão. Jade tomou a palavra, numa voz forte:

- Sei tudo aquilo por que têm passado, mas não podem resignar-se a abandonar a luta! Podemos continuar a tentar quebrar esse famoso Selo e, um dia, vamos conseguir. Cada um de nós, sozinho, nada conseguirá, mas todos juntos podemos consegui-lo!

Toda a gente se calou, e nos seus rostos repousava agora a dúvida.

- Os sortilégios não se praticam colectivamente - interveio Amnhor. - É contra os costumes. Ninguém se arrisca a fazê-lo.

- Um costume é mais importante que as nossas vidas?enfureceu-se Jade.

A assembleia nem pestanejou.

- Tentar vencer o Selo é duro e arriscado - continuou Amnhor.

Jade fez um esforço para conter a fúria.

- Não me querem ouvir - resmungou ela em voz baixa.

- Deixa-me falar com eles - sussurrou Âmbar. Avançou um pouco, tímida. Queria mostrar àquela multidão que desejava ajudá-la, compreendê- la, mas não sabia como. As pessoas examinaram-na detalhadamente. A sua cabeleira cor de fogo, o seu olhar quente não lhes inspiravam qualquer simpatia. Não queriam ouvir falar mais do Selo, pois receavam-no e não admitiam a hipótese de se oporem a ele. Âmbar esboçou um sorriso, mas sentiu que este não lhe saíra do coração.

- Gostaria de vos ajudar - começou ela a medo. Respirou fundo e retomou a palavra com uma voz mais firme: - Temos um inimigo comum. Quer se chame Exército da Escuridão ou Conselho dos Doze, o que é certo é que ele tenta privar-nos a todos da mesma coisa: a liberdade. Não podemos deixar-nos abater, aceitar o seu domínio. Desde sempre, alguns houve que ousaram opor-se a eles e combatê-los. Graças a esses, foi possível que a paz perdurasse alguns anos. Hoje, é preciso resistir. Eles mataram os que vos eram próximos, e mataram a minha mãe, que nunca tive a sorte de conhecer. É em nome dessa injustiça, daqueles que sofreram, que vos peço para tentarem quebrar o Selo.

Âmbar estava entusiasmada e, ao evocar a mãe, não conseguiu evitar uma lágrima ao canto do olho. A multidão observava-a, e começava a vibrar com as suas palavras e a sua expressão apaixonada e sincera. Uma voz elevou-se na multidão:

- Eles vieram há uma semana, mataram, pilharam. Voltaram há apenas algumas horas, incendiaram o que restava das nossas casas e selaram a cidade. Se, por milagre, conseguíssemos romper o Selo, possivelmente eles regressariam e, nessa altura, a sua fúria seria ainda mais terrível!

Um burburinho percorreu a multidão.

- Vocês não podem recusar-se a lutar, pois isso é recusar a própria vida - disse Âmbar, afogueada.

A multidão reflectiu durante algum tempo nos seus propósitos e, em seguida, foi atravessada por alguns burburinhos.

- Os mágicos seguir-vos-ão - afirmou Amnhor. A partir de então, a multidão aguardava ordens. Jade sussurrou a Âmbar:

- Eu não sabia que a tua mãe tinha sido morta pelo Exército da Escuridão. Julgava que tinha morrido de doença.

- Ela foi morta pelo Conselho dos Doze - rectificou Âmbar -, e estou a falar da minha verdadeira mãe, da que me trouxe ao mundo. Béah Jardun foi quem me disse.

- E a minha mãe? E o meu pai? - perguntou Jade. - Também tenho o direito de saber o que é que lhes aconteceu! Será que a Béah Jardun saberá alguma coisa sobre eles?

- Não, não creio - sussurrou Âmbar. - Sinto muito. Depois, dirigindo-se à multidão:

- Eu não sei como havemos de vencer o Selo - confessou ela. - Cada um de nós vai tentá-lo à sua maneira: uma vez reunidos, alguma coisa irá seguramente acontecer.

A multidão aquiesceu. As três raparigas tiraram as pedras, apertaram-nas e dirigiram os seus pensamentos para o Selo. Os mágicos, de comum acordo, puseram-se a recitar um encantamento incompreensível.

o Alypiúmm, disse para si mesmo Amnhor, sério, o sortilégio mais poderoso, o mais difícil de realizar... e o mais perigoso.

Todavia, mesmo unida à das raparigas, a força dos mágicos não era suficiente para travar uma luta contra o Selo. Nada aconteceu.

- O que é que aconteceria se tentássemos simplesmente transpor o Selo? - perguntou Âmbar.

Um burburinho de terror paralisou a multidão. Toda a gente baixou os olhos. Amnhor disse então num fôlego:

- Morreríamos.

- Mas há a greve da Morte - lembrou Jade.

- Sim, mas isso não altera nada. O que acontecerá se transpusermos o Selo. será pior que a morte.

- Tenho a certeza que podemos quebrar esse Selo - afirmou Âmbar. - E vocês, vocês todos, não acreditam no impossível? Tenham confiança em vós próprios, em mim! Prometo-vos que vamos conseguir.

Calou-se. As pessoas olhavam-na fixamente. Ela retomou:

- Tenho uma ideia.

Fazendo sinal a Amnhor para se aproximar, sussurrou-lhe algumas palavras ao ouvido.

- Isso não vai resultar - disse ele. - Vocês vão conduzir a cidade inteira para uma catástrofe.

- Se nada fizermos, a cidade correrá, de qualquer maneira, para a catástrofe.

Amnhor, resignado, rendeu-se aos seus argumentos. Sabia, como aliás toda a multidão, que Âmbar tinha razão. Era preciso tentar alguma coisa. Mas ele também sabia qual o destino que o Selo reservava aos que tentassem opor-se a ele.

- Tens a certeza do que estás a fazer? - perguntou Jade a Âmbar.

- Não.

- Era o que eu calculava. Bom, tanto pior, de qualquer maneira isso não altera nada. O melhor é não fazer muitas perguntas.

Ao fim de alguns minutos, as instruções que Âmbar transmitira a Amnhor foram executadas. Todos os habitantes da cidade formaram uma espécie de roda onde entravam igualmente as três raparigas. Elas também davam as mãos, escondendo as pedras nas respectivas palmas.

- O que é que fazemos agora? - perguntou Jade.

- Nada - respondeu Âmbar. - Nada de fórmulas, nada de magia. Não nos largamos, e transpomos o Anel. É como com o campo magnético do Conto de Fadas. Se estivermos convencidos que somos capazes de o transpor, conseguiremos passá-lo. Se acreditarmos no impossível.

- E tens a certeza que isso também se aplica ao Selo?

- Vamos ver!

Em breve a cadeia humana chegou junto do Selo, cada um sentindo o odor acre que ele libertava. Dois passos bastariam para que ficassem do lado de fora da cidade, mas entre os homens e a liberdade existia o Selo.

- É preciso acreditar - repetiu Âmbar.

A sua convicção foi-se propagando. Todos os corações se encheram de uma esperança louca, envoltos pelo calor das pedras. Eram milhares e, todavia, constituíam uma só e a mesma pessoa, determinada a romper o Selo. Começaram por vencer todos os seus medos e, depois, num único impulso, deram um passo em frente. Foram envoltos numa nuvem de bruma negra, que os paralisou. Nem por um só instante duvidaram da vitória. Iniciou-se uma luta invisível. O Selo era um sortilégio saído de uma força mágica aterradora; numa altura normal, alguém que o tentasse transpor morreria fulminado. Mas a Morte estava em greve, e o Exército da Escuridão inventara algo de pior ainda.

Âmbar, nesse instante, entendeu o Selo. Teve a impressão que ele lhe tinha falado, que se abrira com ela, mas nunca se pode saber se ela tinha razão.

Janelle comunicou-nos o seu ódio, pensou ela, este Selo transmite-nos o Mal, os sentimentos de quem o criou. Alguém que, seguramente, transporta consigo algo de terrível, algo de destrutivo: esse famoso Dom do Mal. E o Selo nada mais é que o reflexo de alma do seu criador.

Respirava com dificuldade e de forma irregular, sentindo uma transformação em si, como que dominada por um elemento cruel que ela não conseguia repelir. Foi então que ela viu a evidência.

O Selo incute o Mal naqueles que tentam destruí-lo, disse para si própria. Alguns sofrem até à morte. Mas há a greve da Morte... Em vez de sucumbirem, as pessoas absorvem o que emana do Selo. Ele domina-nos até nos transformar, fazer de nós pessoas habitadas pelo Mal, ao serviço deste Exército da Escuridão... É por isso que o sortilégio é tão poderoso!

E, de facto, o Mal começava a infiltrar-se em cada um. O ódio, o medo, a raiva, a ânsia de poder e, sobretudo, a dor paralisaram a multidão. Entretanto, o combate prosseguia. Como se fossem uma só, os milhares de pessoas presentes opunham as suas convicções, a sua esperança, todo o Bem que havia dentro delas ao Mal que as abafava.

Jade, Opala e Âmbar sentiam-se inundadas pela fadiga, abatidas. O odor pesado e embriagante da bruma que os envolvia dava-lhes vontade de abandonar o combate. As mãos começavam a aliviar a pressão sobre as pedras, as pálpebras fechavam-se pouco a pouco. Mas elas não desistiam, não podiam desistir. O Bem e o Mal lutavam sem piedade nos seus corações, como o Selo da Escuridão lutava contra os habitantes da cidade. As forças eram iguais. Mas todos sufocavam, esgotados, e o ataque contra o Selo esmorecia. A dor era demasiado intensa. E, no entanto, uma réstia de esperança subsistia em cada coração: iriam vencer o Selo. Não podiam resignar-se a que assim não fosse, não completamente.

Então, todos juntos, reuniram as suas últimas forças. O Selo resistiria, era certo. mas era preciso tentar. Todos, em simultâneo, deram um passo em frente.

O Selo não resistiu, dissipou-se, rompendo-se com violência. Acreditaram que podiam vencê-lo. Venceram-no.

Jade, Opala e Ambar desfaleceram, extenuadas.

 

Olhem! Está a acordar! Até que enfim! Âmbar abriu os olhos. Viu os rostos de Amnhor e de Jade debruçados sobre ela. Tudo girava à sua volta. Demorou alguns minutos a vir a si. Erguendo-se, perguntou, perturbada:

- O Selo. Foi quebrado, não foi? Conseguimos quebrá-lo ou não?

- Sossega - disse Amnhor.

Colocou-Lhe um frasco por debaixo do nariz. Ela agarrou-o, bebeu um gole do líquido nauseabundo e sentiu-se um pouco mais calma.

- Estiveste inconsciente quase um dia - explicou Jade.

- Um dia? - Âmbar não se lembrava de nada desde o momento em que transpusera o Selo. - A cidade... já não está selada, pois não?

- Evidentemente que não - tranquilizou-a Jade. - Vencemo-lo! Como dizias, bastou acreditarmos e lutarmos juntos!

- E tu? E a Opala? Vocês não desmaiaram quando atravessaram o Selo?

- Desmaiámos, mas, graças aos cuidados do Amnhor, acordámos algumas horas mais tarde.

- Aliás - interveio o curandeiro -, quando o Selo foi rompido, muitas pessoas caíram, esgotadas, e ainda não vieram a si. Mas não nos temos poupado a cuidados e já estão fora de perigo. Graças a ti, tudo vai entrar na ordem.

Opala entrou no quarto. Quando viu Âmbar acordada, sorriu-lhe.

- Bom, podemos então partir esta tarde - decidiu Jade.

- Pusemos alguns sacos de mantimentos nos vossos cavalos - disse Amnhor - como agradecimento por nos terem libertado. Depois de uma longa conversa entre as três raparigas e o curandeiro, seguiu-se uma refeição deliciosa.

- Mas. onde é que está a Béah Jardun e as crianças? - perguntou Âmbar, de repente.

- Na verdade, não sei - confessou Amnhor. - As crianças eram órfãos. Foram recolhidas por algumas famílias. Quanto a Béah Jardun, partiu logo após a ruptura do Selo. Na confusão que se gerou, ninguém prestou atenção. Não sei mais nada.

Terminada a refeição, as raparigas acharam que eram horas de partir. Amnhor foi buscar os cavalos e fez-lhes uma surpresa ao oferecer-lhes um garanhão, da parte dos mágicos da cidade.

- As mulheres também vos trouxeram algumas roupas, confeccionadas por elas próprias, que quiseram oferecer-vos como testemunho da sua gratidão - disse-lhes ainda Amnhor.

Cada uma delas recebeu um elegante vestido de noite. Em seguida, o curandeiro entregou-lhes um frasquinho minúsculo de vidro azulado, cujo fundo continha um líquido espesso.

- Tomem lá esta poção, da parte dos curandeiros. Foi a única que se manteve intacta desde que o Exército da Escuridão devastou a nossa cidade. Para a sua preparação são necessários meses de trabalho assíduo. Infelizmente, este frasquinho apenas contém duas gotas.

- Obrigada - respondeu Âmbar, pegando no frasco. - Para que serve?

- Vocês disseram que iam visitar Oonagh. Essa criatura mágica mora numa montanha perigosa, à volta da qual vagueiam aves medonhas, aves de rapina gigantes. Só a sua presença já espalha o terror. Enquanto vocês não sentirem nenhum medo, não acontecerá nada, eles não notarão a vossa presença. Mas facilmente conseguem provocar a angústia nas pessoas, pelo que é muito provável que vocês entrem em pânico. No entanto, para sobreviverem, é necessário que se mantenham impassíveis. É nessa altura que entra a poção. O efeito de um gole dura apenas alguns minutos. Uma de vocês vai ter que se privar.

- E de que maneira é que a poção poderá ajudar-nos? - perguntou Jade.

- Fará de vocês um ser que nem é humano nem mágico - respondeu seriamente Amnhor. - Felizmente, a sua acção dura apenas menos de cinco minutos. Durante esse lapso de tempo, ela apagará todos os vossos sentimentos, desde o medo até mesmo à sensação de estar vivo.

Jade encolheu os ombros com uma certa displicência. Opala ficou imperturbável. Só Âmbar ficou impressionada e perguntou:

- Porque é que essas aves de rapina são tão perigosas?

- Primeiro, alimentam-se do vosso medo. Deleitam-se com ele, absorvem-no. Vocês já não conseguirão fugir... É então que elas se precipitam sobre vocês e vos levam até à sua toca onde se encarregam de vos transformar numa deliciosa refeição.

- Obrigada pela poção - disse Jade, contendo um arrepio.

- Para além disso - aconselhou Amnhor -, estejam muito atentas e não confiem em ninguém.

As três raparigas aquiesceram. O curandeiro despediu-se finalmente delas, com a voz carregada de emoção:

- Lembrem-se que podem contar sempre comigo e com todos os habitantes desta cidade.

Jade, Opala e Âmbar sorriram, agradeceram-lhe a hospitalidade e partiram.

De comum acordo, cavalgaram a bom ritmo, apenas se permitindo algumas paragens muito curtas. Não se cruzaram praticamente com ninguém. Voltaram a atravessar uma zona de campos, tranquila e ensolarada. Por vezes, passavam numa aldeia ou numa cidade pequena, mas não detectaram sinais da passagem do Exército da Escuridão. Âmbar, intrigada, acabou por perguntar:

- Porque será que tudo parece tão tranquilo, quando deixamos ainda há pouco um local devastado? Pensava que o Conto de Fadas estava a ser alvo de sevícias de uma guerra.

- Não - respondeu Jade. - Enquanto recuperavas as tuas forças, Amnhor explicou-nos que, neste momento, os campos e as aldeias não interessam ao Exército da Escuridão. Os seus alvos são as cidades inimigas, que destrói metodicamente, mas evita atacar os locais onde vivem criaturas que utilizam com mestria a magia, ou cavaleiros. Chamam-lhes ovalinos, aqui.

- Mas o que é que procura o Exército da Escuridão? - perguntou Âmbar.

- Dominar o Conto de Fadas, seguramente - disse Jade. Todavia, ainda não passaram ao ataque. Avançam passo a passo.

- Amnhor afirma que estão à espera de alguma coisa - interveio Opala. - Mas ele não quis dizer-nos o que era.

As três raparigas cavalgaram o dia inteiro. Petiscaram alguma coisa, falaram pouco. Quando chegou a noite, pararam numa planície.

- Ainda bem que ficámos na cidade selada - deixou escapar Jade. - A partir de agora, vou começar a parecer-me com uma camponesa suja e descuidada!

Ao ouvir esta comparação, Âmbar ficou um pouco tensa. Mordeu o lábio inferior para não dar a entender a sua irritação, apercebendo-se então que a ferida havia desaparecido, certamente graças a Amnhor...

A noite, desta vez reconfortante, soltou as línguas das três raparigas que se puseram a conversar em grande animação.

Âmbar relatou pela enésima vez o que Béah Jardun Lhe confidenciara. Jade e Opala escutaram-na com enorme atenção, como se fosse a primeira vez que ouviam. Sonhadoras, puseram-se a pensar nos seus próprios pais. Quem seriam? Ainda estariam vivos? Porque as teriam eles abandonado?

Jade queria tanto saber quem eles eram. Mas, ao mesmo tempo, sentia uma raiva muito grande em relação a eles: porque se teriam separado dela, sem lhe deixar nada que lhes pertencesse, nenhuma recordação, nenhum sinal de afecto, quando era apenas um bebé? Sabia que a tinham confiado ao duque de Divulyon para que este a protegesse de um perigo, mas não podia deixar de pensar que eles não a procuravam, não a amavam. No fundo, não chegava nem a amá-los nem a odiá-los. Achou mais simples acreditar que foram eles que não a amaram. O seu pai verdadeiro era o duque de Divulyon.

Quanto a Opala, os pais nunca constituíram motivo de inquietação. Quando era pequena, perguntou algumas vezes por eles a Eugénia e a Gina, mas as respostas eram sempre muito evasivas. Deixara de se preocupar. Não sabia o que significavam um pai e uma mãe. Neste momento, punha a si própria, pela primeira vez, numerosas perguntas para as quais não conseguia imaginar as respostas.

Quando chegou o momento de se deitarem, Jade era a única que não tinha sono. Sentia-se constrangida nesta planície, perdida num mundo que desconhecia.

Lamentava a vida fácil que levara, o seu palácio sumptuoso, a admiração que toda a gente lhe votava. E o duque de Divulyon fazia- lhe falta. Apesar de não ser seu pai, ele amara-a mais que ninguém, olhara por ela. Pensaria nela neste momento? Sentiria medo por ela?

- Eu quero. papá - murmurou ela. - Hei-de voltar um dia para te ver e dizer-te como és importante para mim.

Sentiu-se mais tranquila, como se o duque de Divulyon pudesse ouvir as suas palavras carinhosas. Depois de tudo o que tem acontecido, porque não?

Por outro lado, esta aventura proporcionava a Jade uma sensação de prazer. Descobrira noções de cuja existência ela nem suspeitava, aprendeu a servir-se de poderes que nunca imaginara possuir. Gostava, às vezes, de sentir o perigo a espreitar, de enfrentar o imprevisto.

Sentindo uma fome repentina, levantou-se, sacudiu a roupa suja de terra e dirigiu-se aos sacos de mantimentos. Subitamente, sem saber porquê, sentiu-se indisposta, deixou de ver e pouco faltou para que as suas pernas fraquejassem. Tremia um pouco. Por fim, conseguiu recompor- se.

Tinha a certeza: ao longe, perfilava-se a silhueta imprecisa de um cavaleiro. Sem hesitar, Jade precipitou-se na sua direcção, correndo o mais rápido que podia, arrependendo-se por não ter pegado no cavalo. Viu a sombra a desaparecer e percebeu que não conseguiria apanhá-la.

No dia seguinte de manhã, Jade apressou-se a contar a sua aventura nocturna.

- Sentiste-te mesmo perturbada quando o viste? - perguntou Âmbar, pensativa.

- Sim. Por um momento, senti-me enjoada e não vi mais nada à minha volta. Quase desmaiei.

- Não há então dúvida que se trata de um inimigo - concluiu Âmbar com amargura.

- Mais um - ironizou Jade.

Depois de comerem brioches e fruta, as três raparigas retomaram o caminho. Obrigavam os cavalos a andarem depressa. Pouco a pouco, cada uma foi-se perdendo nos seus pensamentos.

Âmbar remoía as palavras de Béah Jardun, como se algum pormenor lhe tivesse podido escapar. Recordou o rosto bom e meigo de Jean Losserand. Porque seria que nada lhe contara do seu passado? Teria gostado tanto de o ouvir falar da mãe. Sentia crescer nela a indignação, a fúria contra o Conselho dos Doze. Os seus pensamentos ensombraram-se. A sua expressão contraiu-se. Porque não poderia viver normalmente, numa família normal, num sítio normal, ter problemas normais?

Jade e Opala fizeram o possível para distraí-la. Não lhes era difícil adivinhar o motivo das suas preocupações. Mas as suas tentativas revelaram-se infrutíferas.

Por volta do meio-dia, as três raparigas pararam à sombra de uma árvore frondosa. Todas sentiam um certo constrangimento. Comeram, procurando racionalizar a comida. Mais tarde, quando retomavam a estrada, Opala anunciou tranquilamente, enquanto apontava para um pequeno arvoredo ao longe:

- Reparem, lá em baixo. Parece- me ver um cavaleiro. Com efeito, uma silhueta vestida de negro desenhava-se ao longe, imprecisa. Sem hesitarem, as três raparigas recolheram suas coisas e montaram. Mas, entretanto, o misterioso cavaleiro já desaparecera.

Jade, Opala e Âmbar retomaram o caminho. O inimigo desconhecido ocupava todos os seus pensamentos. Embora nenhuma o confessasse, ele inspirava-lhes um medo irracional terrível.

O Décimo Terceiro membro sorriu na escuridão. A raiva marcava as suas feições e uma força terrível, maléfica, estava espelhada no seu rosto. O seu plano funcionava às mil maravilhas. Desta vez, tudo estava sob o seu controlo. Opala afinal não tinha morrido. As três pedras d'A Profecia tinham-se refugiado no Conto de Fadas, já não as podia alcançar por telepatia. Mas isso já não o inquietava. Tinha encontrado uma solução ainda mais satisfatória que a anterior.

As suas risadas romperam o silêncio.

Fez um gesto com a mão. Uma placa dourada, flutuando no ar, emitiu um zumbido antes de fazer aparecer a imagem de um homem de rosto muito duro, sulcado pelas cicatrizes. Olhos azuis, cabelos pretos, aspecto temível. Vestia um sumptuoso uniforme de azeviche.

- Ah! És tu, Décimo Terceiro membro - disse ele numa voz afiada. - Enviei um dos meus cavaleiros. Não te preocupes. Está tudo a correr bem.

- Confio em ti, encantador. Mas um dos teus homens. é prudente?

- Já não é um homem. É um soldado da Escuridão. Não vai falhar.

- Muito bem.

- Ele vigia-as. Até agora, está tudo a correr conforme previsto.

- Não te esqueças que se aproxima o momento decisivo.

- Não me esqueço, Décimo Terceiro membro. Logo que chegar esse momento, fica atento. A nossa vitória depende de ti.

- Não precisas de me lembrar.

O Décimo Terceiro membro fez um gesto para terminar a comunicação. As notícias eram boas. Este encantador da Escuridão irritava-o; era o único que se atrevia a falar-lhe de igual para igual. Para já, não podia fazer nada, pois ainda precisava dele para destruir as pedras e para que o Conselho dos Doze pudesse vencer.

Desta vez, ele tinha a certeza. O seu plano não podia falhar.

 

                   Paris, 2002

Chegava a dizer a mim própria que podia viver, que tinha esse direito. Sabia que era impossível ordenar à Morte que recuasse, que me deixasse tranquila, mas contentava-me em acreditar nisso. A minha realidade aliava-se ao meu sonho. Ingenuamente, pensava que, se lhe suplicasse para me poupar, a Morte, como criatura dotada de algum sentimento, escutar-me-ia e seguiria o seu caminho. Afinal de contas, porque é que ela não podia estar em greve? Porque é que ela não poderia comover-se com a minha dor? Foi então que dei livre curso às minhas lágrimas. Quando não dormia, chorava - de raiva, de desespero, de tristeza, de medo... Procurava convencer-me que um dia já não acordaria, que entraria no sonho, que passaria a viver aí, feliz. Se o quisesse verdadeiramente, se acreditasse com todas as minhas forças, não seria possível que este desejo insensato se realizasse, deixando-me entrar num conto de fadas?

Todas as noites eu mergulhava no universo mágico do meu sonho. Vivia-o à minha maneira. As imagens, os sentimentos eram tanto meus como das personagens que percorriam este mundo irreal.

Passava os meus dias à espera que o sonho continuasse na noite seguinte. Uma voz aguda e desagradável insinuava maldosamente que eu acalentava ilusões. Eu tinha consciência disso, mas repelia esse pensamento. Esse sonho não era real.

E, entretanto, eu esperava. De novo. Como nunca o tinha feito antes. As recordações ressurgiam do mais profundo da minha memória. Custava-me tanto votá-las ao esquecimento. Agora, estavam lá, arrogantes, mas também magníficas e contundentes como sempre foram.

As imagens afluíram primeiro. Tentava em vão afastá-las, devolvê-las ao nada, onde pensava tê-las arquivado. Mas elas continuavam lá, bailando, vivas, coloridas, dando reviravoltas à minha frente. Compreendi, então, que o único meio de me ver livre delas era encará-las e aceitá-las. Recordo-me de ter começado a chorar. Mais tarde vi essas imagens, fantasmas do passado.

As primeiras eram dos meus pais. De imediato as lágrimas inundaram os meus olhos vermelhos. Tinham morrido. E eu nada podia fazer. No entanto, a sua imagem continuava a impor-se, sorridente, afectuosa, traiçoeira. Fazia-me crer que era real, e eu chorava freneticamente por causa dela.

Os meus pais estavam à minha frente, rindo, provocando-me, acarinhando-me. Era de novo a Joa.

Lembro-me de ter gritado para afastar essas imagens. Elas partiram, perturbadas, assustadas, mas eu sabia que elas voltariam, que continuariam a assaltar-me dolorosamente.

 

Os Ghibduls levaram o Eleito e Elfohrys a visitar o seu refúgio. A sua aldeia era modesta e bastante sinistra. As construções, basicamente de madeira, pareciam pouco seguras. Algumas estavam em ruínas.

- Não somos um povo de artistas - explicou humildemente um Ghibdul a Sem Nome. - Estamos vocacionados para a luta e a telepatia e para mais nada. A nossa civilização é rudimentar.

O Eleito e Elfohrys, apesar de tudo, estavam impressionados. Os Ghibduls revelavam-se bons anfitriões e, por detrás do seu comportamento e das suas maneiras ameaçadoras, mostravam ser agradáveis. O ovalino foi tratado com um respeito de que nunca tinha sido alvo. Na rua, saudavam- no com deferência e admiração.

Ficou com eles um pouco mais de uma semana. As criaturas mágicas pediam-Lhe incessantemente para prolongar a sua estadia e ele não tinha coragem para dizer que não.

Ficou alojado com Elfohrys numa das cubatas mais bonitas, ornamentada com peças esculpidas em madeira. Dormiram os dois em camas de espuma verde e cobriam-se com lençóis tecidos com folhas.

A comida era deliciosa. Cada refeição era um banquete organizado em honra do Eleito. Serviram-lhe carne fresca, legumes, frutos que ele não conhecia. Para ele, os Ghibduls caçavam durante todo o dia na Floresta sem Fim e traziam as melhores peças de caça. As mulheres saíam para apanhar bagas silvestres e da sua própria horta colhiam frutos e legumes deliciosos.

Sem Nome mudara. As suas feições tinham-se tornado mais firmes; o seu olhar perdera a melancolia. A partir de agora, apesar de continuar a desconhecer o seu nome verdadeiro e as suas origens, era o Eleito. Tinha uma identidade. Sabia que era aguardado por milhares de pessoas. Tinha um lugar no meio dos outros. No entanto, continuava em busca da sua memória para poder sentir-se uma pessoa de corpo inteiro.

Ao final do dia, um eminente pensador ghibdul veio ter com ele.

- Ovalino - disse com ar sério -, não podemos reter-te por mais tempo. Tens grandes missões a cumprir. Mas, para te reencontrares a ti próprio, tens que ir ver Oonagh.

- Eu sei - respondeu o cavaleiro.

- Lá, existem umas aves de rapina cruéis. Leva isto para te protegeres delas.

O Ghibdul entregou-lhe duas lianas verdes de cujas extremidades pendiam duas pequenas esferas pretas.

- São amuletos - explicou. - Uma é para ti, a outra para o teu amigo. Colocai-a à volta do pescoço apenas quando vos aperceberdes da presença das aves de rapina. Durante uma hora, este pingente encantado proteger-vos-á do medo, antes de desaparecer.

- Obrigado - disse com sinceridade o ovalino, apertando o amuleto.

- Ainda não sabes qual é a tua verdadeira missão - continuou o Ghibdul, soltando um suspiro. - Mas não te esqueças que bastará dizeres que és o Eleito para provocares tanto ódio como felicidade.

Sem Nome abanou a cabeça.

- Alguns dos nossos guerreiros vão acompanhar-te até à orla da floresta - continuou o Ghibdul. - Também te oferecemos dois cavalos selvagens. Infelizmente, não são mágicos, mas vais ver que são possantes.

O Eleito exprimiu toda a gratidão que sentia. Neste mesmo dia, acompanhado de Elfohrys, deixou o refúgio das criaturas mágicas. As mulheres entregaram-lhes alguns víveres e, então, eles embrenharam-se na floresta, escoltados por guerreiros Ghibduls que esvoaçavam à sua volta.

Os viajantes tiveram que parar algumas vezes, para que os Ghibduls pudessem descansar do seu voo. Quanto mais penetravam no bosque, mais estreitos eram os atalhos que eram obrigados a seguir. Às vezes, os ramos secos fustigavam-lhes a cara. Os Ghibduls esforçavam-se por tornar a viagem agradável, mas não podiam modificar a floresta.

- Vós ainda estais muito longe de Oonagh - disse uma das criaturas mágicas. - Depois de sairdes daqui, ainda tendes mais duas semanas até terminardes o vosso périplo.

- Eu conheço mais ou menos o caminho que temos que seguir - respondeu Sem Nome.

- Não é perigoso. É a zona mais inofensiva do Conto de Fadas, a que encerra menos magia.

- Apesar de tudo, prestem atenção ao Exército da Escuridão - aconselhou um outro Ghibdul. - Mesmo aqui, sabe-se que ele está de volta. E vocês conhecem bem a sua força e crueldade.

Foi já ao crepúsculo que chegaram à orla da floresta.

- Os nossos caminhos separam-se aqui - disse um Ghibdul.

- Não te esqueças, Eleito, que ficamos a aguardar o teu regresso. Um dos guerreiros tirou então do seu alforge o guarda-jóias, ornado de pérolas, que o ovalino se esquecera de solicitar.

- Devolvo-te aquilo que te pertence.

O Eleito observou o guarda-jóias com uma nova curiosidade. Continuava sem saber para que servia.

- Adeus - disse ele aos Ghibduls. - Obrigado por tudo.

- Adeus - responderam eles. - E até breve.

Elfohrys e Sem Nome atravessaram a orla da floresta. Extenuados pela viagem, estenderam-se na erva fresca e adormeceram.

Na manhã seguinte acordaram, foram logo comer. Desataram em seguida os cavalos, montaram de novo e partiram, em marcha rápida.

- Então, Sem Nome - disse Elfohrys -, agora que sabes que és o Eleito, o que pensas disso?

- Sei que tenho uma missão a cumprir, apesar de ainda não a conhecer. Mas sinto-me diferente. Encontrei sentido para os dias que se avizinham.

Elfohrys sorriu com ar cúmplice.

O campo à volta estava ainda adormecido. Muito ao longe, era possível avistar os cumes cobertos de neve onde morava Oonagh.

O Eleito e Elfohrys conversaram muito, recordando a impressionante estadia entre os Ghibduls e evocando o futuro incerto que se desenhava à sua frente.

Sem Nome acabara por tratar por tu o seu companheiro e ver nele um amigo.

- Mas tu - perguntou-lhe de repente -, o que é que procuras? Porque é que me quiseste ajudar?

- Creio que já posso dizer-te agora - respondeu Elfohrys.

- Muitas pessoas começavam a ficar desesperadas à espera do Eleito. Tu és importante. Tu és aguardado. Eu decidi vir ao teu encontro, levar-te a descobrires quem eras. E consegui.

- Mas. - balbuciou o Eleito, estupefacto. - O que é que esperam exactamente de mim?

- Oonagh irá revelar-to. Está escrito n'A Profecia que tu não o deverás saber antes desse encontro. Acontece que Néophileus, o autor deste célebre livro, é originário do povo Clohryun, como eu, e eu acredito nas suas palavras.

- Ele morreu há séculos - exclamou Sem Nome. - Não podes seguir as suas palavras à letra!

Elfohrys sorriu mas não fez comentários.

Ao fim de algumas horas, avistaram no horizonte uma cidade, modesta. Estava envolvida num véu de bruma enegrecida.

- Uma cidade selada pelo Exército da Escuridão - murmurou Elfohrys.

- Temos que lá entrar, salvar as pessoas!

- Não - contrariou-o Elfohrys, com toda a calma. - Não podemos fazer nada por eles. É demasiado tarde. Não é possível quebrar um Selo. Eu conheço este local. É uma cidade de comerciantes. É habitada por pessoas de bem, simples e honestas. O Exército da Escuridão só ataca os alvos demasiado fracos para se defenderem.

Elfohrys reteve Sem Nome, que queria dirigir-se naquela direcção. Este último cedo percebeu que não podia ajudar os habitantes desta cidade. Sentiu-se culpado, inútil. Elfohrys tentou, em vão, reconfortá-lo.

Tinham cavalgado durante mais uma hora quando o Eleito avistou, ao longe, os contornos de um castelo donde saía fumo. Desta vez, com o acordo de Elfohrys, depois de bater violentamente nas ilhargas do cavalo, precipitou-se em socorro dos habitantes.

Constatou no local, já demasiado tarde, que o fumo não ficava a dever-se a quaisquer chamas mas ao Selo da Escuridão que estava a formar-se.

Diante de si erguiam-se centenas de cavaleiros vestidos de preto, montados em cavalos escuros. Cercavam o castelo e pareciam unidos por uma mesma força, um mesmo pensamento. Os seus lábios mal se mexiam enquanto recitavam o encantamento do Selo.

O Eleito tinha diante de si uma parte do Exército da Escuridão. Nem reflectiu. Elfohrys soltou um grito agudo quando o viu desembainhar a espada. Abriu instantaneamente o guarda-jóias, no seu alforge, e lançou- se em direcção a um soldado da Escuridão. Cortou-lhe a cabeça, que rolou pelo chão, com os olhos fora de órbitas a fixarem Sem Nome com ar de reprovação.

Alguns soldados da Escuridão desviaram a sua atenção do Selo, que começou a dissipar-se de forma imperceptível.

- Como é que te atreves a atacar um dos nossos? - bramiu uma criatura com um aspecto disforme.

- E vocês? Como é que se atrevem a destruir a vida de inocentes? - perguntou o Eleito.

- Quem és tu?

- O Eleito.

Imediatamente, uma dezena de soldados da Escuridão precipitaram-se em direcção a ele. Elfohrys juntou-se-lhes na batalha. O guarda-jóias dava ao Eleito uma força nunca vista. Sempre soubera bater-se muito bem, mas, desta vez, manejava a espada com virtuosismo. A flexibilidade dos seus gestos aliava-se a uma precisão perfeita. Rasgava a carne dos inimigos, rápido, eficaz. Os golpes quase não o atingiam e apenas deixavam cortes superficiais.

Mas os soldados da Escuridão eram fortes, bem treinados e em maior número. Começavam a tirar partido disso quando um homem de estatura imponente ordenou o fim da batalha. Imediatamente, os soldados guardaram as suas espadas e aprumaram-se, dóceis. Cercaram o Eleito e Elfohrys.

O recém-chegado, que gozava de uma autoridade incontestável, era um humano. Montava um garanhão preto, encantado, de cujas narinas saíam chamas. Estava vestido com um uniforme luxuoso da cor do azeviche, e a bainha da sua espada era incrustada de safiras.

Tinha um ar temível, impressionante. O seu rosto, de feições duras, estava cheio de lanhos. Os olhos, duas jóias azuis acinzentadas, impiedosos, brilhavam por baixo de sobrancelhas muito vastas. Tinha um queixo forte, voluntarioso, um nariz direito, lábios finos. Os cabelos eram pretos.

- Homem, avança - ordenou ele ao Eleito com uma voz

cavernosa.

Sem Nome nem se mexeu. O homem não pareceu ficar incomodado.

- Sabes bater-te melhor que os mais fracos de nós, o que já é uma façanha.

O Eleito não reagiu.

- Eu sou um encantador da Escuridão, e sou eu que comando este regimento de incompetentes.

Elfohrys dirigiu um olhar inquieto na direcção de Sem Nome, que teimava em ficar calado.

- Não há dúvida que és um ovalino - disse o encantador da Escuridão, retomando a palavra. - Onde é que aprendeste a combater?

O Eleito permaneceu em silêncio. Continuando montado no seu cavalo, fixava o olhar duro do seu inimigo.

- Porque é que te opuseste ao nosso exército? Nunca ninguém se atrevera a isso. És mesmo corajoso.

- Ele diz que é o Eleito - interveio um soldado da Escuridão.

- O Eleito? - repetiu o homem, num tom gélido.

- Sou sim - afirmou o ovalino com toda a calma. - Tens tanto do Eleito como eu. Com um só gesto, o homem fez elevar o Eleito até alguns metros acima do solo. O jovem ovalino não se mexeu.

- Sabes qual é o símbolo do Exército da Escuridão?- perguntou o encantador.

Sem esperar pela resposta, mostrou o tornozelo esquerdo. Ao longo da pele, via-se uma marca representando uma lua negra e, por cima dela, uns algarismos. Fez um novo gesto com a mão e o Eleito foi levantado ainda mais. O seu tornozelo esquerdo estava ao nível do homem. Com um estalar de dedos, levantou um dos lados das calças de Sem Nome. Na pele não havia qualquer símbolo da Escuridão.

- Oh! - exclamou o encantador da Escuridão, com sarcasmo. - Tenho então diante de mim um desertor.

Desembainhando a espada, roçou a ponta da arma no tornozelo esquerdo do Eleito. Para surpresa geral, um fio de sangue negro começou a escorrer, formando uma lua acompanhada de alguns números.

- Eu tinha razão. Desertor! - disparou o encantador da Escuridão.

Quem é que ficou mais aterrado? Elfohrys ou Sem Nome?

- De acordo com os números, há dois anos que fugiste do nosso exército.

Sem Nome não queria acreditar no que ouvia.

- Ah! Agora me lembro - declarou o encantador da Escuridão. - A tua história circulou na época. Os teus pais tinham morrido alguns anos antes. Vivias com os teus avós, mas decidiste sair de casa, uma noite, deixando para trás uma existência banal. Vagueaste de aldeia em aldeia. Nós recolhemos-te, apesar de teres apenas dezasseis anos. Ao fim de apenas alguns meses, desertaste. Depressa te tornámos a apanhar. Era costume condenar à morte os que fugissem do exército. Mas, como eras muito novo, limitámo-nos a apagar a tua memória. Totalmente. Foste poupado.

Com um gesto, deixou cair Sem Nome no chão. Magoado, levantou-se, contendo lágrimas de dor e de desespero.

O homem pôs-se a gozá-lo com grande alarido.

- Em situações normais, eu deveria matar-te. Mas há esta maldita greve da Morte. Por isso, vou deixar-te viver para levares uma existência execrável e insignificante.

Continuando vivo, Sem Nome estava condenado a transportar consigo a vergonha. Em sua opinião, a esperança começava a esvair-se, os olhares desviar-se-iam. A sua existência seria uma longa história de errância, sem sentido, na maior desonra.

O feiticeiro da Escuridão sabia que uma tal vida seria bem pior que a morte. E continuou no seu riso tonitruante:

- E querias que eu acreditasse que eras o Eleito? Em seguida, fez sinal a Sem Nome e a Elfohrys para irem embora.

Nada mais puderam fazer senão obedecer.

 

As três raparigas não voltaram a ver o estranho cavaleiro. Atravessaram o campo, sempre a cavalgar, sem encontrarem obstáculos. Durante o dia, contentavam-se em avançar em direcção às montanhas nevadas, perguntando o caminho às criaturas de longos cabelos prateados que iam encontrando. À noite, descansavam nas acolhedoras pradarias. Durante o percurso, não encontraram mais cidades seladas. Toda a zona envolvente parecia próspera e pacífica.

À medida que os dias passavam, as culturas iam rareando, as cidades eram cada vez menos. Finalmente, certa manhã, decorrida que estava uma semana de viagem, as três raparigas chegaram ao sopé das montanhas cujos cumes se mostravam cobertos de neves eternas. Nesta altura, perto já do seu objectivo, começaram a interrogar-se sobre o local onde moraria Oonagh. Felizmente que ia a passar um homem de idade, montado no seu burro.

- Desculpe - perguntou Âmbar -, poderia indicar-nos onde mora Oonagh?

- Eu venho de lá - respondeu o homem, exibindo um sorriso desdentado. - Foi muito difícil passar despercebido àquelas malditas aves de rapina, mas sempre consegui!

- Como é que se chega até lá? - repetiu Âmbar. O velho homem indicou uma montanha cujo pico se perdia nas nuvens.

- Oonagh mora além, mas não é no cume da montanha, sosseguem. Basta seguir o caminho que já está marcado. Vão ver que a única dificuldade são as aves de rapina. Felizmente, se conseguirem vencê-las à ida, elas já não se irão preocupar convosco no regresso.

As três raparigas agradeceram ao homem e, em seguida, retomaram o caminho em direcção à montanha que ele lhes indicara. Um atalho permitia subir uma encosta que não era muito íngreme. Começaram por atravessar um arvoredo. O caminho sinuoso continuava a abrir-se pelo meio das árvores. Até esse momento, as aves de rapina ainda não se tinham manifestado. Mas, quando a encosta se tornou mais escarpada e coníferas imponentes substituíram a agradável floresta, os cavalos começaram a ficar nervosos, agitando-se e relinchando, em pânico. Âmbar tentou ler o pensamento do seu cavalo. Sentiu medo, sem perceber qual era a razão. Depois de muitos esforços, conseguiu entrar em contacto com a mente da sua montada.

O que é que tens?, perguntou-lhe ela.

O seu cavalo só conseguiu responder-lhe alguns minutos mais tarde. Sob o efeito do terror, esqueceu os seus hábitos e transmitiu de forma clara:

Não vou mais para diante. Se continuar, sucumbirei ao ataque das aves de rapina. Vai. Eu esperarei aqui.

Âmbar compreendeu que não adiantava nada insistir. Explicou a situação a Jade e a Opala, que se resignaram a prosseguir a viagem a pé.

- Vamos levar connosco apenas o essencial - decidiu Jade.

- As provisões. O resto, viremos buscar mais tarde. Cada uma pegou num pequeno saco de víveres e, em seguida, retomaram a subida.

Agora que a viagem já não era feita a cavalo, a fadiga fazia-se sentir muito mais. No entanto, as raparigas procuravam parar o menos possível. Mantinham-se silenciosas, economizando, assim, as forças. Jade ardia de curiosidade à medida que se aproximava de Oonagh, e as outras duas partilhavam dessa sua excitação. O seu objectivo estava praticamente à mão, o que as motivava a redobrar os esforços. Só pensavam na criatura mágica, nas revelações que poderia fazer-lhes. Âmbar lembrou-se do símbolo que as pedras Lhes haviam transmitido, depois recordou Jean Losserand, que o traduzira, e que as tinha encaminhado para Oonagh. Recordou tudo o que tinha passado em tão pouco tempo, desde que cruzara o caminho de Jade e de Opala.

A noite caiu finalmente na floresta de coníferas. Jade decidiu que era impossível continuar, sob pena de se perderem. Instalaram-se numa clareira enorme.

No momento de começarem a comer, uma certa tensão se fez sentir entre elas. A floresta, mergulhada na escuridão, tornou-se ameaçadora, hostil. Âmbar julgou ouvir gemidos aterradores ao longe. Lobos. Começou a tremer. As sombras estendiam-se por todo o lado. Âmbar imaginava pares de olhos amarelos a cintilar atrás das árvores que cercavam a clareira. Fixavam-na, hostis, com uma expressão cruel no olhar.

Quando Jade deixou cair do seu alforge uma maçã, que rolou pelo chão, Âmbar, com os nervos à flor da pele, soltou um grito.

- Tem calma - disse-Lhe Jade, com a voz a tremer ligeiramente. - Fizeste-me medo!

- Não te preocupes, está tudo bem, Âmbar - disse Opala para a tranquilizar.

- E se. e se as aves de rapina vierem esta noite enquanto dormimos? - balbuciou Âmbar.

Esta ideia fez gelar o sangue de Jade. Até Opala se sentiu estremecer.

- Não podemos ficar sem dormir - observou Jade.

- Não vai acontecer nada! - afirmou Opala, desta vez com uma voz menos segura.

Esta conversa fez perder o apetite às três raparigas. Deitaram-se, respiraram fundo, procuraram dormir. Nada. Uma angústia desmedida havia- se apoderado delas. O silêncio era insustentável. Por fim, Jade sugeriu que conversassem para se descontraírem um pouco. Opala e Âmbar concordaram logo.

A noite, propícia às confidências, dissimulava as expressões dos seus rostos. As palavras soltavam-se, assim, mais facilmente. Jade começou a contar a sua vida no palácio de Divulyon. Sem se dar conta disso, esqueceu a sua angústia, o mesmo acontecendo às outras duas, e confessou a nostalgia e o desespero que, por vezes, a assaltavam. Âmbar relatou pela primeira vez a morte daquela que sempre havia considerado como sua mãe. Confidenciou até que ponto o relato de Béah Jardun a tinha fragilizado. Em seguida, contou como é que Janelle a tinha traído.

Depois foi a vez de Opala falar. Jade e Âmbar esperaram que ela se calasse. Mas, a princípio hesitante, quase tímida, descreveu a existência sem surpresas que levara e, ganhando coragem, explicou como gostava da experiência que estava a viver, apesar do seu ar distante. Molhou os lábios, fez uma pausa, e acabou por contar como apreciara a companhia de Adrien.

Jade e Âmbar, por delicadeza, fizeram de conta que estavam surpreendidas.

Quando as pálpebras das três raparigas começaram a ficar pesadas, a angústia já as tinha deixado.

Sem saberem, nessa noite algo mudara. Depois de terem revelado os seus sentimentos daquela maneira, nunca mais poderiam ser inimigas. As pedras, as aventuras comuns tinham- nas já aproximado, mas foi esta conversa que as ligou para sempre.

As três raparigas passaram todo o dia seguinte na enorme floresta de resinosas. O ambiente era mais descontraído que o habitual. Era agora frequente uma gargalhada quebrar o silêncio dos lugares. Jade, Opala e Âmbar contavam anedotas umas às outras e divertiam-se. Todavia, o cansaço fazia-as sofrer e a subida continuava a ser penosa.

Até ao momento, a subida não parecia apresentar qualquer perigo. Âmbar acabou, aliás, por se convencer que o uivo dos lobos era apenas fruto da sua imaginação. Quanto às aves de rapina, as três raparigas chegaram a interrogar-se se existiriam na realidade...

Foi assim que o dia se passou, tranquilamente. À noite chegaram a uma clareira onde, completamente esgotadas, se deixaram levar pelo sono.

No dia seguinte, Opala acordou de madrugada. Sabia que tinha tido um pesadelo horrível mas não conseguia lembrar-se dele. No entanto, o medo continuava a atormentá-la com a mesma intensidade. O seu rosto estava banhado em lágrimas e sentia o coração a ceder. Levou um bom bocado a recompor-se.

Jade e Âmbar não tardaram a acordar. Também estavam com um ar assustado.

- Não me sinto muito bem - murmurou Âmbar. - Sinto um aperto na barriga; estou a tremer. E não sei porquê!

Jade, reflectindo um momento, respondeu num tom fatalista:

- Devemos estar a aproximarmo-nos das aves de rapina. Amnhor disse que elas emitem ondas que provocam o medo. Ainda devemos estar a uma distância razoável, uma vez que não entrámos completamente em pânico...

Ao ouvir estas palavras, Âmbar sentiu-se desfalecer. Convencera-se que poderia fazer frente às aves de rapina; agora que estava prestes a enfrentá-las, a sua determinação desaparecera bruscamente.

As três raparigas levantaram-se, trocando olhares muito apreensivos.

- Vamos voltar para trás - propôs de repente Âmbar.

Jade e Opala consideraram por um momento esta proposta tentadora, e quase concordaram com ela. Mas Jade acabou por dizer:

- Fizemos um esforço tão grande para chegarmos até aqui. Desde a libertação de Nathyrnn até hoje, arriscámos várias vezes as nossas vidas para virmos ter com Oonagh. Agora que estamos tão perto do nosso objectivo, não podemos abandonar tudo.

As outras duas viram-se obrigadas a reconhecer a justeza dos seus propósitos.

- De qualquer maneira - declarou Âmbar -, ainda temos a poção.

- Só devemos usá-la em último recurso - lembrou Jade. E retomaram o caminho. Desta vez, cheias de medo, não conseguiam manter uma conversa com sentido. Avançavam lentamente, obcecadas pela imagem que tinham dos predadores. Opala guardava no seu alforge o frasquinho que Amnhor lhe tinha dado. Tirou-o, olhou para ele, apaziguada pelo seu contacto macio.

Os minutos pareciam mais compridos, como se o tempo tivesse parado e cada instante trouxesse uma angústia ainda maior que a anterior. As raparigas estavam sempre à espera de ver as aves de rapina aparecer a qualquer momento, cortando o ar e precipitando-se sobre elas. No entanto, ainda não tinham visto nenhuma.

Saíram finalmente da floresta, com o sol no zénite. Alguns arbustos substituíam agora as coníferas e a subida tornava-se mais escarpada. Pouco a pouco, os arbustos começaram a ser cada vez mais raros, para, finalmente, deixarem lugar a uma erva salpicada aqui e além de flores delicadas. Âmbar levantou ansiosamente os olhos para o céu. Ofuscada pela claridade do sol, esfera de fogo no meio de um oceano azul, não viu sinais dos famosos predadores.

As três raparigas, no entanto, sentiam o medo a crescer dentro delas. Em breve deixariam de poder suportar o terror que as invadia. Ainda caminharam durante uma hora, mas os seus passos eram cada vez mais lentos.

De repente, Âmbar apercebeu-se das silhuetas ameaçadoras no céu claro, com as suas enormes asas abertas. As aves de rapina voavam muito alto, mas podiam ser facilmente identifi cadas. Desde o momento em que as três raparigas as avistaram, começaram a sentir-se envolvidas num turbilhão de medos. Todavia, elas não pareciam ter-se apercebido da sua presença, continuando a planar no céu.

Mas a sua força depressa se fez sentir. Opala só por milagre conseguiu conservar uma certa calma. Toda a tremer, conseguiu convencer-se que não devia deixar-se dominar pelo medo.

Jade fechou os punhos, puxou bruscamente para trás os cabelos e, com determinação, afrontou o terror que a assaltava. Tremia, o coração a bater muito depressa, mas continuava na posse de todas as suas capacidades.

Quanto a Âmbar, estava paralisada de medo. Não podia deixar de imaginar as aves de rapina quase a caírem sobre ela para a devorar; os joelhos batiam um no outro; tremores con vulsivos percorriam os seus membros. Estava incapaz de retirar o olhar das aves de rapina.

- O frasquinho. - conseguiu balbuciar Âmbar. - Preciso dele, Opala.

Mas Opala não cedeu. Para já, as aves de rapina não tinham descido e Amnhor tinha recomendado que utilizassem a poção apenas no último momento.

Então, lentamente, as aves de rapina começaram a descer em voo planado. Eram mais de cinquenta, fazendo uma enorme sombra no céu. Neste momento, podia-se distinguir a sua plumagem cinzenta e, sobretudo, o seu porte assustador. Eram duas ou três vezes maiores que um homem?

Âmbar gritou, segura de estar a viver o seu pior pesadelo. Até Opala se sentiu vacilar.

As aves de rapina concentraram-se, unindo forças. Para sobreviver, alimentavam-se do medo, por isso era necessário que o terror das suas presas atingisse o paroxismo. Para isso, havia um método quase infalível.

As três raparigas não demoraram muito a descobri-lo. As aves de rapina picaram em sua direcção e pararam a uma dezena de metros por cima delas. Estas já não haviam conseguido avançar desde que os predadores apareceram, mas, quando se aperceberam dos seus longos bicos encurvados, das garras aduncas e afiadas, o pânico dominou-as por completo.

O pior ainda estava para vir. As aves de rapina despertaram nelas os medos mais tenebrosos e mais secretos, o que elas mais temiam. Nessa altura, a maior parte das aves não estava a mais de cinco metros. Os seus olhares penetrantes reflectiam a concentração, a avidez, a vitória esperada.

A imagem de Adrien agonizante afectara brutalmente Opala. Julgou vê-lo a morrer, o tronco coberto de sangue, o olhar alterado, sem poder falar-lhe ou intervir. A dor, a fúria invadiram-na.

Jade foi confrontada com o nada, com a eternidade infinita. Vacilou, obcecada por este abismo sombrio, sem fundo. Em seguida, apareceu-lhe a imagem do pai adoptivo, velho, doente, no seu leito de morte. As lágrimas jorraram quando o viu assim tão magro, tão vulnerável. Mas logo a imagem se toldou. Depois foi o Conselho dos Doze que ganhou corpo diante dela, hostil. Organizava a sua morte com toda a minúcia e enviava o Exército da Escuridão em sua perseguição. Jade deixou-se vencer sem reagir.

Quanto a Âmbar, viu surgirem tantas imagens, tantos sentimentos que todos eles se confundiam. Sentia que era impossível superar tamanho horror.

Foi então que, como que por milagre, começou a sentir o medo a abandoná-la. Teve a presença de espírito para se lembrar que as aves de rapina absorviam primeiro o terror das suas vítimas antes de as matar. Articulou com dificuldade:

- Opala, a poção!

A voz de Âmbar sobressaltou Opala, que voltou a si. Remexeu nervosamente no alforge, encontrou o frasquinho de vidro azul e atirou-Lho. Âmbar agarrou-o com força. Percorrida por um espasmo de terror, tirou a rolha e bebeu um golo do líquido. As mãos tremiam tanto que o frasco escapou-se das mãos, caiu no chão, quebrando-se em mil bocadinhos. A gota que restava perdeu-se no meio da erva.

Opala lançou um olhar desesperado a Âmbar. Acabara de reduzir a nada a única possibilidade de se livrarem daquela situação.

O efeito da poção foi imediato. As aves de rapina sentiram a presa escapar-se. Todos os sentimentos de Âmbar, as suas sensações, se apagaram pouco a pouco. Permanecia de pé, o rosto inexpressivo, olhando à volta com indiferença. Viu os rostos perturbados de Jade e Opala. A ideia de as ajudar nem sequer lhe aflorou.

Não se preocupava sequer em fugir, em refugiar-se em alguma parte; não via tão-pouco o perigo que a rodeava.

- As pedras! - gritou Opala. - Peguem nas pedras! Jade obedeceu-lhe maquinalmente, Âmbar também, por reflexo. Mas nada aconteceu, pois Âmbar já não estava propriamente viva, nem era propriamente um ser humano. Sem sentimentos, já não era uma pessoa real.

Entretanto, do fundo do seu torpor, esta última apercebeu-se de uma brecha no chão. Aproximou-se e constatou que havia um atalho transitável que se entranhava pelo interior da terra. Opala viu-a desaparecer na passagem subterrânea, abandonando-as. Entrou em pânico mas tentou afastar, com todas as suas forças, o terror que procurava dominá-la.

Opala olhou para Jade. Percebeu que o medo da jovem tinba sido absorvido pelas aves de rapina: sorria com um ar sereno; Um predador, que ficara a maior altitude que os outros, precipitou-se então sobre Jade a uma velocidade assombrosa. Opala não hesitou um segundo. Sentia que dominava o seu próprio medo, que se esquecia dele para pensar apenas em Jade. Estava a alguns passos de distância. Lançou-se então sobre ela para a salvar das garras do predador, empurrando-a com violência. Ambas perderam o equilíbrio e caíram. Opala voltou a levantar-se e ordenou a Jade que a seguisse. Mas esta não a ouvia. Não entendia por que razão tinha que fugir. Opala nunca soube como conseguiu pegá-la nos braços.

O predador retomara um pouco a altitude, como se esta cena o divertisse e quisesse tirar partido do espectáculo. Mas não podia deixar fugir a presa. As outras aves de rapina permaneciam imóveis, pois a única com direito a apanhar a caça era o cabecilha - as outras contentavam-se em provocar o medo às suas vítimas e a alimentarem-se dele. Opala tinha dado apenas alguns passos quando percebeu que a ave de rapina ia atacar de novo e que, desta vez, não se deixaria enganar.

Não tentou correr. Continuou a andar, sempre a tropeçar. Não pensou mais nela. Não procurou o contacto agradável da sua pedra. Numa tentativa desesperada, apenas podia contar com ela. Qualquer outra pessoa acreditaria que o predador ia destruí-las, que não valia a pena lutar. Esse alguém não era Opala. Dizia a si mesma que nunca abandonaria Jade. Concentrou-se, para reunir todas as forças que tinha. As aves de rapina não poderiam vencê-la, repetia-o em silêncio, cada vez com mais convicção. Uma esperança louca cresceu dentro dela. Pouco a pouco, começou a ser invadida por um suave calor. Tinha a impressão que estabelecera contacto com a sua pedra. Sentia as garras cruéis a cravarem-se na pele, a mortificá-la, e viu-se a ser levantada lentamente no ar. Continuava a agarrar Jade com toda a firmeza. Não tinha medo. Pelo contrário, um sorriso desabrochou no seu rosto. Os seus caracóis loiros agitavam-se, sentia dores, o sangue brotava da sua pele pálida, do sítio onde o predador a apertava, mas ela não se preocupava. Impassível, fechou os seus olhos azuis mais claros que o céu, e continuou a ter esperança.

A ave de rapina começou então a perder altitude. Opala não reagiu, não manifestou qualquer alegria. Só a esperança tomava conta do seu coração. Quando voltou a abrir os olhos, o predador estava imobilizado a dois metros do solo. Muito lentamente, contra vontade, diminuiu a pressão que exercia sobre Opala. A jovem caiu por terra, juntamente com Jade, que continuou a não reagir.

No céu, as aves de rapina iam desaparecendo, feridas por um mal invisível. Jade voltou a si. Opala mostrou-lhe o buraco por onde Âmbar se tinha escapado e ela meteu-se por ele dentro. Antes de a seguir, Opala lançou um olhar calmo ao céu liberto de todas as ameaças e esboçou um sorriso.

Depois, embrenhou-se no subterrâneo, como se nada se tivesse passado.

 

Jade e Opala avançavam às apalpadelas no túnel escuro. Mal tinham percorrido alguns metros, tropeçaram numa forma arredondada. Apesar da escuridão, reconheceram Âmbar, sentada de cócoras, com a cabeça entre as mãos. Os seus soluços ecoavam no subterrâneo.

- Âmbar! - exclamou Jade. - Estás bem?

Âmbar levantou-se de um salto.

- Vocês estão aqui, as duas! - gritou, ao mesmo tempo que secava as lágrimas. - Eu abandonei-vos! E julgava que vos tinha perdido!

- Porque é que não vieste ajudar-nos quando os efeitos da poção desapareceram? - censurou-a Jade.

- Não pude - choramingou Âmbar. - Só voltei a mim há alguns minutos, e tinha a certeza que já era tarde de mais para vos salvar. Como é que chegaram até aqui?

Jade começou a contar a Âmbar o que se tinha passado desde a sua partida. Opala completou a narração, sem conseguir explicar a fuga das aves de rapina.

Depois, Jade agradeceu a Opala, sentidamente, o ter-lhe salvo a vida. Âmbar, sempre emotiva, abraçou as duas raparigas, aliviada por tê- las reencontrado.

- E agora, onde vamos? - perguntou Jade, preocupada. - Se as aves de rapina voltam.

- Não te esqueças que elas não podem atacar-nos duas vezes. Mas penso que poderíamos seguir este caminho subterrâneo - sugeriu Opala. - De certeza que vai dar a algum lado, e estou com curiosidade em saber onde.

Depois de uma breve troca de palavras, decidiram seguir esta sugestão. As três raparigas, ainda um pouco perturbadas pelos últimos acontecimentos, embrenharam-se nas profundezas da terra. Estranhamente, em vez de escurecer, o túnel ficava cada vez com mais luz. Distinguiam perfeitamente o que estava à sua volta. A luz, forte, sobrenatural, parecia surgir de toda a parte, e não de qualquer fissura que deixasse penetrar um raio de sol.

Ao fim de uma longa caminhada, as três raparigas estremeceram, assustadas. Um barulho de passos, cada vez mais audíveis, ecoava no túnel. Com o coração a bater, e quando esperavam ver uma criatura terrível, surgiu uma rapariga. Não deveria ter mais de cinco anos e, apesar de não ser humana, não era por isso menos enternecedora. Emanava dela uma frescura cândida. A sua pele era de um azul muito pálido; o seu vestido branco, largo, deixava ver os braços graciosos e as suas pernas curtas. Uns enormes olhos violeta devoravam o seu rosto sério e inocente: uma cabeleira loira caía em cascata sobre os seus ombros até aos pés nus.

- Bom dia - disse ela, numa voz cristalina.

As três raparigas sorriram para ela.

- O que é que fazes aqui? - perguntou-lhe Âmbar, amavelmente. - Moras aqui?

A menina limitou-se a rir alegremente, e o seu sorriso mostrou uns dentes brancos e brilhantes.

- Como te chamas? - perguntou-lhe então Âmbar, com a sua voz doce.

Mas a pequena continuou obstinadamente calada, mantendo um ar desenvolto e misterioso.

- Nós viemos até aqui para vermos Oonagh - disse Jade. Sabes dizer-nos se ainda é muito longe?

- Oonagh, Oonagh - repetiu a menina com malícia. - Eu posso ajudar-vos.

- Obrigada - respondeu Âmbar. - Mas como?

- Venham - disse a criança. - Eu conheço Oonagh. Só têm que me seguir.

Depois de dizer estas palavras, a estranha menina partiu, a saltitar. Sem hesitarem um minuto, Jade, Opala e Âmbar seguiram-lhe os passos. Ela cantarolava alegremente uma cantilena em que a letra era apenas Oonagh, Oonagh", como se se tratasse do nome mais agradável do mundo. Às vezes lançava olhares divertidos às três grandes raparigas que a seguiam, curiosas.

De vez em quando, apareciam no túnel algumas bifurcações, mas a menina não mostrava qualquer hesitação, seguindo por caminhos que, claramente, lhe eram familiares. Finalmente, ao fim de mais de uma hora, chegaram a uma parede pouco vulgar, que resplandecia de luz. Jade, Opala e Âmbar, inebriadas, ouviram a voz clara da pequena ressoar:

- Entrem na luz, ela não vos fará mal.

E pareceram vê-la atravessar o muro resplandecente.

- O que é que fazemos agora? - disse Âmbar, alarmada.

- Julgo que não temos propriamente escolha - disse Jade. Ou continuamos sozinhas, sem a menina, e corremos o risco de nos perdermos, ou tentamos transpor este limiar.

Âmbar não tivera tempo de protestar e já Jade avançava e desaparecia na luz. Opala quis segui-la, mas Âmbar reteve-a:

- Quem sabe o que existe por trás desta porta? Eu acho que não devíamos passá-la.

- Não vamos abandonar Jade - respondeu Opala. - Ela pode estar a correr perigo e, por isso, mais uma razão para estarmos a seu lado.

Âmbar, resignada, avançou e a luz devorou-a ao mesmo tempo que a Opala.

Atravessaram a parede como se fosse etérea. Do outro lado esperava-as um espectáculo incrível. As paredes, revestidas de cristais multicolores, cujas cores e beleza resplandeciam, iluminavam uma sala.

Opala e Âmbar avistaram Jade, tão maravilhada quanto elas.

- É daqui que sai toda a luz que ilumina o túnel - pensou Âmbar.

Procurando, com o olhar, a menina que as tinha guiado até este lugar feérico, as três raparigas avistaram-na atrás de uma árvore.

- Oonagh, Oonagh - disse ela a rir. - É aqui que ela vive.

- Ai é? - exclamou Jade, eufórica. - E onde é que ela está? A menina avançou na sua direcção, com um olhar repentinamente sério:

- Sou eu - respondeu, muito simplesmente.

E era impossível duvidar das suas palavras, de tal maneira a sua voz se afirmava franca e transparente. As três raparigas olharam-na agora de forma diferente e repararam na sua expressão pensativa por detrás do seu sorriso de criança. Jade encontrou o seu olhar e compreendeu imediatamente que ela não estava a mentir. Nos grandes olhos violeta reflectia-se um turbilhão de anos, de reflexões, de loucura, de sabedoria, de experiência, de felicidade e de infelicidade... Jade pensou que ia perder-se neste olhar que tanto havia sofrido; compreendeu que, sob uma aparência frágil e pueril, Oonagh vivera mais tempo que ela própria iria viver.

-Já estava na hora de vocês virem ter comigo - disse a criatura mágica. - Estava à vossa espera.

Os corações das três raparigas deram-se por vencidos.

- Quem são os nossos pais? - perguntou bruscamente Jade.

- Porque é que nos expulsaram de casa? Qual é o perigo que nos ameaça? Porque é que o Conselho dos Doze nos persegue?

Com a cara a arder, preparava-se para continuar quando o seu olhar cruzou o olhar pacífico de Oonagh. Calou-se.

Foi então que a voz límpida de Oonagh se elevou e encheu toda a sala:

- Das trevas surgirá o Eleito Para unificar o Reino

E levá-lo até à luz

Feito Rei que não deve reinar

Sagrado em nome do Deus. Trêspedras, três raparigas.

Uma descobrirá o Dom,

Uma reconhecerá o Rei,

Uma convencerá as outras duas a morrer. Das três pedras só ficará um destino.

- Há séculos que as pessoas murmuram esta passagem d'A Profecia - acrescentou Oonagh. - Esperámos por vocês pacientemente. O vosso destino está traçado. Apenas o seu desfecho é incerto.

As três raparigas sentiram um arrepio.

- Não compreendo nada - murmurou Âmbar.

- Uma convencerá as outras duas a morrer - disse Jade, transtornada. - Isso quer dizer que uma de nós vai empurrar as outras para a morte?

Perturbada com as suas próprias palavras, Jade interrompeu de repente o que estava a dizer. Instalou-se na sala um silêncio pesado. Então, essa era a razão por que deveriam ser inimigas: uma delas trairia as outras e empurrá-las-ia para a morte...

- Que horror! - exclamou Jade. - Isso não pode ser verdade!

- Nenhuma de nós era capaz de uma coisa dessas - reforçou Âmbar.

Oonagh manteve-se calada.

- Quem é o Eleito? - perguntou Opala, para desviar a conversa.

- Daqui a dois meses, no dia do solstício de Verão, terá lugar um intenso combate - disse Oonagh, iludindo a questão.

- Néophileus foi quem fixou a data. O Bem e o Mal vão confrontar-se nas planícies do Exterior, à frente do campo magnético do Conto de Fadas. De um lado estará o Exército da Escuridão, com o Conselho dos Doze e os Cavaleiros da Ordem, do outro, o Exército da Luz.

- Quem é que faz parte deste exército? - interrogou-a Âmbar.

- Todos aqueles que queiram lutar pela liberdade. Cavaleiros, homens, criaturas... O Exército da Luz está a reorganizar-se. Mas nunca poderá lutar se o Eleito não aparecer, entretanto. Cabe-lhe a ele levá- lo à vitória, dar a sua vida no campo de batalha, se tal for necessário. Ora, acontece que o Eleito ainda não apareceu. Ninguém sabe quem ele é, talvez nem ele próprio o saiba... Vocês agora têm que ir ao palácio de Yrianz de Myrnehl. É aí que uma parte do Exército da Luz aguarda o Eleito. Está escrito n'A Profecia que uma de vocês o reconhecerá. Talvez lá esteja. Caso contrário, procurem-no, encontrem-no!

- E como é que chegamos a esse palácio? - perguntou Jade.

- Não se preocupem. Um homem de confiança será o vosso guia. Chama-se Rokcdr. Trata-se de um dos conselheiros da Morte.

As três raparigas trocaram olhares de espanto.

- Vocês precisam de ir ter com a Morte - afirmou Oonagh. Ela tem que acabar com a greve para que a batalha possa ter lugar. Só vocês é que conseguirão chamar à razão esta criatura teimosa.

Enquanto Oonagh se retirou para ir buscar um objecto a um recanto da sala, as três raparigas, confusas, interrogavam-se inquietas. Ir ter com a Morte? Chamá-la à razão? Como conseguir isso sem encontrar obstáculos? Oonagh, aproximando-se delas, estendeu-lhes um mapa para que elas pudessem orientar-se até ao sombrio país da Morte.

De repente, Jade tomou a palavra e, com uma voz estranhamente séria, disse:

- Toda esta história do Eleito, da batalha é muito interessante, mas eu quero saber qual é o meu papel no meio de tudo isto. Quero saber quem sou.

- Vocês são as três pedras d'A Profecia - explicou Oonagh.

- Vocês são aquelas que farão o mundo balançar para o lado do Mal ou do Bem. Enquanto decorrer o confronto dos dois exércitos, vocês irão a Thaar, a cidade das Origens. É aí que vocês irão travar o último combate.

- E é aí também que uma de nós levará as outras à morte?

- perguntou Jade, num tom agressivo. - Já estou farta! Porque é que tenho que ir ter com a Morte e depois procurar o Eleito? Porquê ir a Thaar travar "o último combate", o que significa, em poucas palavras, deixar- se massacrar? Porque é que não posso voltar para casa, eh? O que é que me obriga a arriscar a minha vida? Eu não quero voltar a sentir medo. Eu não quero voltar a fazer perguntas a mim própria para as quais não tenha respostas!

Fez uma pausa para retomar o fôlego.

- Agora - recomeçou mais calma - diz-me o que é que me impede de regressar tranquilamente ao meu palácio, voltar a ver o meu pai, de viver finalmente em paz.

- Jade, o Exército da Luz precisa de vocês para ganhar este combate. Se vocês se recusarem a lutar, o Mal vai destruí-lo.

- E depois? Não tenho nada a ver com isso!

- Tens que ir a Thaar - continuou Oonagh. - Porque os teus pais se sacrificaram por ti. Porque eles sabiam que um dia lutarias contra a Escuridão e porque eles deram a sua vida para te protegerem. Não tens o direito de os trair.

- Eles já morreram? - gritou Jade. - Já morreram!

- Eles puseram-te em segurança antes de serem mortos pelo Exército da Escuridão ou pelo Conselho dos Doze. Pelo Mal.

- Mas quem eram eles? Como é que eles se chamavam?

- Em que é que o saber isso iria ajudar-te? Não podes viver no passado. Não sofras por aquilo que não tem solução. Investe toda a tua energia naquilo que ainda podes mudar. Não tens o direito de renunciar ao combate.

- E os meus pais? - perguntou Opala, de repente.

- Sinto muito - disse Oonagh, em voz baixa. - Também não foram poupados. Foram obrigados a fugir para te esconderem. O Exército da Escuridão e o Conselho eram muito poderosos, perseguiram-nos. Os teus pais não conseguiram escapar-lhes. Adivinharam qual seria o seu destino. Foi por isso que te confiaram a pessoas em quem tinham toda a confiança.

- Mas não respondeste à pergunta de há pouco - interveio Jade. - Quem somos nós? Porque é que temos tantos inimigos?

- O Eleito e vocês... são os Feiticeiros da Luz - explicou Oonagh, com ar sério.

Um profundo silêncio se seguiu a esta confissão.

- Ah! - disse por fim Jade. - E o que é que isso adianta?

- Prestem então atenção. Quando vocês nasceram, vocês já traziam as pedras guardadas nas vossas mãos. Essas pedras conferem-vos um poder enorme, mas são só vossas, fazem parte de vocês. Até aos vossos catorze anos, o vosso Dom estava adormecido em vós. Ainda não estava pronto para despertar. Tornava-se essencial que vocês o não descobrissem demasiado cedo e, sobretudo, que o descobrissem juntas. Sozinhas, vocês são vul neráveis e o vosso Dom não vos serve de nada.

Opala pigarreou. Ela tinha encontrado a sua pedra antes do tempo, mas nunca pensara que isso pudesse trazer consequências. Oonagh franziu as sobrancelhas.

- Opala, o teu coração revela-me o que procuras esconder. É mau o que acabo de descobrir, muito mau. Se encontraste a tua pedra cedo de mais, certamente que chamaste a atenção do Conselho dos Doze... Provavelmente teve acesso à tua mente, por telepatia - disse Oonagh, soltando um grande suspiro. - Tanto pior. O que está feito, está feito! Dizia eu, então, que desde o dia em que fizeram catorze anos o vosso Dom se desenvolveu. Entretanto, era necessário que vocês fossem submetidas a uma série de provações para o melhorar; chegar até mim era a última etapa que vocês deveriam cumprir para que ele atingisse a sua plenitude. Mas, se tivessem descoberto a vossa missão cedo de mais, durante uma dessas peripécias o vosso poder pararia de crescer.

- Então, fomos expulsas de casa porque, quando atingíssemos catorze anos, o nosso dito Dom iria manifestar-se, e era necessário estarmos juntas para o descobrirmos? - começou Jade, à laia de síntese. - E depois teríamos que viver uma aven tura aterradora para finalmente decidirmos o destino do mundo? Não acham que é demasiado para nós as três? Sobretudo quando o fim que se anuncia não parece muito alegre, uma vez que duas de nós vão ter que morrer.

- É isso - disse Oonagh.

- Mas - gritou Jade - achas que nós somos tolas? Nós não vamos matar-nos deliberadamente em Thaar!

- E tendes outra alternativa? Volta para casa, se é isso que queres, mas, de qualquer maneira, o Conselho dos Doze ou o Exército da Escuridão apanhar-te-ão e matar-te-ão. Vocês as três juntas serão capazes de muitas coisas. Cabe a vocês decidir se vale a pena ou não. Mas ouve uma coisa, Jade: se te recusares a ir a Thaar e sobreviveres, provavelmente não serão os outros que irão detestar-te, mas serás tu que te odiarás a ti própria.

Jade foi incapaz de acrescentar fosse o que fosse. Ela sabia que as palavras de Oonagh traduziam a verdade, embora tentasse convencer-se a si mesma do contrário.

- E o nosso famoso Dom, é o quê? - perguntou Opala.

- Uma descobrirá o Dom - respondeu Oonagh. - Estas são as palavras de Néophileus. Não me cabe a mim revelar-vos aquilo que apenas uma de vocês deverá entender.

Apesar da avalancha de perguntas desenrolada pelas três raparigas, Oonagh não disse nem mais uma palavra. Retomara o seu sorriso indolente de menina. Pôs-se a cantarolar:

- Das trevas surgirá o Eleito Para unificar o Reino

E levá-lo até à luz

Feito Rei que não deve reinar

Sagrado em nome do Deus. Três pedras, três raparigas.

Uma descobrirá o Dom, Uma reconhecerá o Rei,

Uma convencerá as outras duas a morrer. Das três pedras só ficará um destino.

Jade, Opala e Âmbar compreenderam então que Oonagh não iria dizer- lhes mais nada e, movidas por uma vontade comum, atravessaram a parede de luz no sentido inverso que as conduziria ao seu destino.

 

                     Paris, 2002

Tinha acordado, ofegante, perturbada pela noite agitada que tinha passado. Lembrava-me, até ao pormenor, das revelações da criatura mágica de olhos violeta e as emoções de Jade, Opala e Âmbar dominavam-me, como se tivesse sido eu a vivê-las.

Uma vez mais o meu sonho fora interrompido, conduzindo-me dolorosamente ao meu universo sombrio e frio. Lembro-me de ter chorado, revoltada pela injustiça que estava a viver, por este sonho que continuava a não tomar a forma da minha desesperada realidade. As minhas recordações escolheram este momento para voltarem à superfície, enganadoras e insuportáveis por detrás da sua aparência dourada.

Desta vez, sentia-me demasiado destroçada para as repelir. Invadiram-me, cintilantes de uma alegria amarga. Revi-me, Joa. Recordei a forma como tinha sido admirada, a rapariga exuberante que eu fora. Era rica, pretensiosa; a minha roupa fazia empalidecer de inveja todas as raparigas que se cruzavam no meu caminho. Todos toleravam os meus caprichos, interpretando-os como ordens que lhes dava. Joa tinha uma personalidade execrável, mas eu sabia que ela era bem mais sensível do que aquilo que deixava transparecer. Lembrava-me perfeitamente dos olhares fascinados que acompanhavam os meus gestos mais desenvoltos, mas também da chacota que outros faziam a meu respeito. Refugiava-me, nessa altura, num canto escuro e chorava em silêncio. No fundo, era uma pessoa frágil, apesar de procurar habilmente disfarçar essa insegurança. Gostava de me divertir, rir à custa dos outros, e é bem verdade que estava longe de ser uma pessoa ponderada e madura. Mas acontecia-me, às vezes, através da minha ligeireza, pensar de forma mais séria, mostrar-me atenciosa. Tudo em mim era vitalidade; pelo contrário, o meu coração era de uma grande sensibilidade. Só mostrava a minha emotividade quando estava longe dos olhares, longe da efervescência que provocava.

Acreditara na felicidade eterna. As amigas que me rodeavam pareciam-me sinceras e dedicadas. Mas os seus sorrisos eram só aparentes. Logo que a doença me destruiu a vida perfeita que levava, esperava sentir-me apoiada e rodeada de atenções. No entanto, toda a gente fugiu cobardemente. Que interesse podia eu despertar, deitada na minha cama do hospital, as feições desfiguradas pelo mal que me consumia? Só os meus pais continuavam a preocupar-se comigo, mas a vida deve ter achado que mesmo esta consolação era supérflua e, num acidente, fê-los desaparecer igualmente do meu universo. Que os meus amigos me tenham abandonado, pouco a pouco vou entendendo e aceitando. Mas, entre eles, também ele desaparecera, aquele que eu amava, e que me amava. Eu não sabia o que significava o amor. Mas isso não me impedia de me prender a ele, de o amar à minha maneira, com a despreocupação que me caracterizava nessa altura. As suas feições eram semelhantes às do Eleito do meu sonho, mas, como ele, também era um desertor, um traidor que aspirava à Luz mas só servia a Escuridão. Visitou-me uma única vez, depois fugiu para não mais voltar. E isso ainda não consegui aceitar.

 

Sem Nome cavalgava ao lado de Elfohrys, abatido pela tenebrosa notícia que acabara de lhe ser dada. Era-lhe difícil compreender como tinha podido entregar a sua alma ao Mal. De acordo com as suas recordações mais remotas, sempre considerara a Escuridão como um inimigo terrível e repugnante. E, no entanto, tinha estado do lado das Trevas! O símbolo do exército sombrio estava gravado no seu tornozelo, e o seu sangue continuava a correr, desenhando com nitidez uma lua e por cima dela os números. O feiticeiro da Escuridão não lhe mentira, por mais vis que fossem as suas intenções. Dali em diante, lamentava os dias em que se interrogara em vão sobre o seu passado. Sabia que a certeza de ter servido o Mal iria atormentá-lo até ao fim dos seus dias.

Desesperado com a revelação do feiticeiro da Escuridão, Elfohrys não mais dirigiu a palavra a Sem Nome durante dias. Continuaram o seu caminho, abatidos e silenciosos. Finalmente, após três dias a cavalgar, tristes, ao cair da noite, Elfohrys decidiu-se a quebrar o silêncio:

- Como é que foi possível tu teres sido soldado da Escuridão, tu que considerei como um amigo, e que tenhas o sangue de inocentes nas tuas mãos?

Sem Nome não respondeu. No olhar de soslaio que lançou a Elfohrys podia ler-se toda a sua angústia. A voz da criatura mágica tornou-se mais suave:

- Eu sei que não te lembras de nada, mas eu, eu acreditei em ti! Estava convencido que eras o Eleito! Destruíste vidas quando fingias querer salvá-las! Como é que eu sei se mudaste, que a tua alma perdida na Escuridão acabou por ser invadida pela Luz?

Sem Nome aguentou o olhar acusador de Elfohrys, que continuou:

- De que serve irmos ver Oonagh para ela ler no teu coração cruel? Julgo que os nossos destinos se separam aqui, e espero não voltar a ver-te. Se um dia me cruzar de novo no teu caminho, espero que a tua imagem se tenha entretanto apagado da minha memória!

Ditas estas palavras, Elfohrys deu meia-volta e fez tenção de se lançar a galope. Mas Sem Nome, com uma voz rouca, gritou por ele e disse:

- Antes de te decepcionar, traí-me a mim próprio. Nunca pensei ter servido a Escuridão. Como é que isso foi possível, não sei, mas posso assegurar-te que, hoje, preferiria morrer a juntar-me àquele exército tenebroso. Não sei se a minha alma passou subitamente do Mal ao Bem, mas o sangue que mancha as minhas mãos magoa- me mais que o maior sofrimento que algum dia imaginei poder experimentar.

Ao ouvir estas palavras, Elfohrys voltou atrás. Fixou o seu olhar dourado nos olhos azul safira do ovalino. Por detrás da sua imensa melancolia, podia-se continuar a perceber a sua força e nobreza.

- Admitindo que isso é verdade - replicou secamente Elfohrys -, por que motivo te deveria seguir? Tu não és o Eleito, e eu tenho que continuar a procurá-lo. Não posso ficar contigo e esquecer as atrocidades de que foste capaz. Tu és um assassino e não posso esquecer-me disso!

- Então, em tua opinião, devo carregar o peso dos meus crimes até à morte?

- Mereces mesmo desaparecer!

- Mas eu mudei - disse, exaltado, o ovalino. - Não vou permitir que o meu passado me persiga toda a vida! Tenho remorsos; lamento o que fiz, apesar de não me recordar de nada. Não terei nunca o direito de expiar os meus erros?

- Será que os teus arrependimentos fazem voltar aqueles que te suplicaram que lhes poupasses a vida? - respondeu-lh Elfohrys, com maldade. - Um homem não muda do dia para a noite, e as mortes que tu causaste exigem a tua própria morte!

- Tenho então que sofrer o resto da minha vida?

- Seria de toda a justiça!

E Elfohrys partiu. Sem Nome ficou só, sentindo-se desvairado, entregue ao desespero. Cavalgou nesse estado durante uma hora. Finalmente, no meio das trevas, começou a desenhar-se a forma de uma elegante vivenda. Decidiu parar. Desceu do seu cavalo e bateu à porta. Quase de imediato, uma mulher jovial e cheia veio abrir.

- Peço-vos humildemente abrigo - disse ele. - Sou um ovalino perdido e sem nada para comer.

- Seja bem-vindo! - exclamou a mulher. - Com uma noite tão escura, dormir ao relento seria uma imprudência. Entre, sente-se à mesa, enquanto vou levar o seu cavalo para a cavalariça. Sem Nome agradeceu- Lhe, sentindo-se um pouco mais tranquilo com o ambiente caloroso que reinava na casa. Seguiu por um corredor, observando com atenção os retratos que cobriam as paredes brancas. A certa altura, ouviu um alarido de gente divertida, que parecia vir de uma sala e, guiado pelo som, entrou numa ampla sala onde decorria um animado banquete. Umas cinquenta pessoas riam, conversavam, enquanto os criados lhes serviam pratos apetecíveis. À medida que os convidados se apercebiam da presença de Sem Nome, iam-se calando a pouco e pouco. Finalmente, um homem de rosto redondo e simpático, vestido com simplicidade, levantou-se. Exclamou com bonomia:

- Ora aqui está um convidado inesperado! Eu apresento-me: Tivann de Orleys. Bem-vindo! Vem sentar-te connosco. Não és ovalino?

- Sou - respondeu Sem Nome.

- É interessante. Vem, senta-te e conversemos um pouco! Sem Nome tomou lugar à mesa, ao lado de Tivann de Orleys, e serviu-se. Neste ambiente descontraído, procurou esquecer as suas canseiras.

- Com que então és ovalino? - repetiu o homem, visivelmente o dono da vivenda.

- Sim - respondeu de novo o jovem cavaleiro.

- Pois nós temos aqui um objecto que certamente te vai interessar - prosseguiu Tivann, num tom misterioso. - Há muito que pertence à minha família, pois vem sendo transmitido de pai para filho... Trata-se de um anel encantado, que nada tem de original, a não ser. - Tivann de Orleys parou de repente, medindo as suas palavras. Em seguida, em voz mais baixa: - A não ser que é capaz de... - Mas o homem pareceu recompor-se subitamente e calou-se. - Amanhã ficarás a saber - concluiu.

Sem Nome, intrigado, acabou de comer em silêncio, enquanto observava os convivas à sua volta. À sua frente estava uma jovem de aspecto frágil e delicado. Estava vestida de forma mais cuidada que os restantes convidados; vestia um vestido azul- céu comprido que moldava graciosamente o seu corpo. O seu rosto pálido parecia como que iluminado pelos seus olhos verdes claros, quase irreais; os seus lábios finos abriam-se num sorriso vago. O seu olhar cruzou-se com o de Sem Nome. Ela examinou-o com atenção e sorriu-lhe.

- É minha filha, Orlaith - disse o dono da vivenda ao ovalino. - É a mais nova dos meus filhos e a mais sensível. Ela é o meu orgulho mas também o meu desespero. A tradição diz que a sua mão será dada àquele que estiver predestinado a receber o anel de que te falei, a não ser que ele não aceite casar-se com ela. O que, na verdade, me espantaria. Orlaith é uma jóia.

Sem Nome calou-se, sem saber o que responder. Logo que acabou de comer, confidenciou a Tivann de Orleys que estava muito cansado. Compreensivo, este último pediu para o acom panharem ao quarto. Sem Nome vestiu a camisa de dormir que lhe tinham deixado para esse fim e estendeu-se na cama, absorvendo o cheiro dos lençóis frescos. Enterrou a cabeça numa almofada de penas e procurou dormir, mas teve que esperar horas até que os seus tormentos o deixassem descansar. Sonhou com Tivann Orleys que não parava de repetir: É um anel encantado, é capaz de... É um anel encantado, é capaz de... Em seguida, o rosto de Orlaigh dominou o seu sonho, enquanto Tivann dizia: É uma jóia... ".

Ao nascer do dia, Sem Nome foi despertado por dois braços robustos que o sacudiam violentamente. Abriu os olhos e viu o rosto de Tivann de Orleys curvado sobre ele.

- Despacha-te, ovalino - disse- lhe ele, todo entusiasmado

- Daqui a dez minutos esperamos-te na sala onde jantámos ontem.

Sem Nome vestiu-se rapidamente. Pegou na sua espada encantada e sentiu vontade de a enterrar no seu coração: já não suportava mais o peso do seu passado. Mas a curiosidade salvou-o. Tornou a embainhar a espada e dirigiu-se a toda a pressa para a sala onde era aguardado por Tivann. O que é que ele iria revelar-lhe? Seria a propósito do anel estranho de que lhe falara?

Quando chegou à ampla sala, Sem Nome não pôde conter a surpresa: à volta da mesa rectangular, de madeira, estavam o seu anfitrião e inúmeras pessoas, humanos ou criaturas mágicas, todos em pé. Algumas apresentavam incómodas armaduras, outras mostravam cicatrizes de ferimentos de guerra. Todos tinham a mesma expressão solene e traziam uma espada embainhada. Sem Nome soube imediatamente que se tratava de uma assembleia de ovalinos. Reparou que a bela Orlaith de Orleys também lá estava e parecia ainda mais frágil e feérica no meio destes homens com porte de soldados.

A um sinal de Tivann, Sem Nome avançou e tomou o seu lugar. Perguntava a si mesmo qual seria o acontecimento a que iria assistir. Não tardou a saber. Tivann de Orleys, de cara alegre, declarou com uma voz calorosa:

- Meus amigos, a nossa assembleia reuniu o número exacto de ovalinos necessários para perpetuar o antigo costume que se vem transmitindo nesta casa. Cada um de vós vai ter a possibilidade de experimentar o anel encantado que tenho comigo, mas devo lembrar-vos que é uma tentativa muito perigosa.

Após uma pausa, recomeçou:

- Há já alguns séculos, quando um voluntário se propõe experimentar o anel de Orleys, a tradição manda que se faça uma reunião de vários ovalinos, segundo um ritual preciso. Hoje, o jovem corajoso que vai arriscar-se a colocar o anel em primeiro lugar é Arthur de Farrières.

Um jovem ovalino com ar presumido avançou, todo emproado.

- Se o conseguir - continuou Tivann -, dar-lhe-ei a mão da minha filha e será digno de toda a minha estima. Se falhar, qualquer outro voluntário com assento nesta mesa poderá igualmente tentar a sorte.

Sem Nome, cada vez mais intrigado, observava com toda a atenção Tivann, que, pigarreando, fez um sinal à filha. Orlaith meteu a mão no decote e retirou um cordão de prata em cuja extremidade cintilava um anel.

- Só Orlaith pode trazer esta jóia junto à pele sem sofrer queimaduras horríveis - declarou Tivann. - De acordo com a tradição, só a rapariga mais pura de Orleys tem o privilégio de guardar o anel. Em seguida, lançando um olhar a Arthur de Farrières, que o susteve, disse, cheio de bazófia:

- Ovalino, estás decidido a colocar este anel enfeitiçado por feiticeiros em tempos imemoriais? Pensa bem antes de dares a tua resposta. Na verdade, depois de a anunciares perante esta assembleia, a mesma será irreversível.

- Assumo o que digo - respondeu Arthur de Farrières, lançando um sorriso cheio de orgulho a Orlaith, que desviou o seu olhar, intimidada.

- Bom. Antes de começarmos a prova, devo prestar alguns esclarecimentos aos ovalinos aqui chegados há menos tempo e que ainda não conhecem as propriedades do anel de Orleys. Ele encerra um poderoso sortilégio: consegue distinguir as almas ensombradas pelo Mal dos corações puros que não trabalham a não ser para o Bem. Quanto mais um homem for dominado pela escuridão, mais o anel se mostra impiedoso em relação a ele, pois só tolera a inocência e a justiça. Mas mesmo um homem honesto, com uma existência irrepreensível, ao atrever-se a colocar esta jóia no seu dedo, é bem provável que sofra desagradáveis consequências. É por isso que é preciso reflectir maduramente antes de se submeter à prova do anel de Orleys. - Uma sombra misteriosa obscureceu o olhar de Tivann. - O anel foi criado com uma única missão: reconhecer aquele que é aguardado há séculos. Logo que tenha cumprido o seu dever, desaparecerá. É um anel encantado, capaz de encontrar o Eleito.

Sem Nome sentiu-se estremecer. Quis fugir da sala, mas as pernas vacilaram, a visão toldou-se. Recompôs-se e a sua fraqueza passou despercebida.

Orlaith retirou o cordão do pescoço e pousou o anel na palma da sua mão.

- Eu sempre soube que era o Eleito - disse Arthur de Farrières. - Nunca me considerei um simples ovalino. Esta prova não me assusta nem um pouco.

Orlaith enfiou o anel no dedo de Arthur. Era um anel em ouro branco, habilmente cinzelado, que não tardou nada a liquefazer-se num turbilhão que começou a rodopiar à volta do dedo do ovalino. O rosto do cavaleiro era a expressão de um terror crescente; os olhos, fora de órbita, traíam a dor que sentia. A pouco e pouco, o anel foi-se transformando em chamas prateadas com reflexos nacarados. Com as feições desfiguradas pela dor, o ovalino gritou, ao mesmo tempo que sacudia a mão:

- Tirem-me este anel! Já não o aguento mais! Misericórdia! Suplico- vos, ajudem-me!

- É impossível - murmurou Tivann, desiludido. As chamas maléficas continuaram a multiplicar-se, lambendo avidamente a sua mão. Pouco tempo depois, começaram a ver-se fragmentos de carne calcinada a soltarem-se do dedo mutilado. Sem Nome estava fascinado com este espectáculo; a repulsa invadia-o, mas ele não conseguia desviar o olhar.

- Raros são aqueles que são tratados com tal crueldade pelo anel de Orleys - desabafou Tivann, soltando um suspiro.

A tortura finalmente terminou. O dedo do ovalino esboroou-se em cinzas escuras. O anel, que recuperara a forma que tinha quando estava pendurado ao pescoço de Orlaith, caiu no chão com um ruído audível. A jovem apressou-se a apanhá-lo. Arthur de Farrières voltou para o seu lugar, contraindo os músculos da face com dores.

- E agora - disse Tivann de Orleys - há mais alguém que queira arriscar experimentar o anel?

Fez-se silêncio na assembleia de ovalinos. Um homem de rosto duro tomou a palavra:

- Eu quero tentar a minha sorte.

- Se é esse o teu desejo - consentiu Tivann. - Gohral Keull, tu és um homem de muito valor e, se tu não és o Eleito, então ninguém mais é digno de o ser.

Gohral Keull manteve uma expressão impassível. Estendeu a sua mão, golpeada de inúmeras cicatrizes, a Orlaith. O fenómeno ignóbil repetiu-se. As chamas envolveram o dedo numa roda frenética. Gohral Keull não soltou qualquer grito; pelo contrário, ficou que nem uma estátua, como se o sofrimento que experimentava fosse insignificante. Apenas o seu olhar sombrio deixava transparecer a dor que sentia. Pouco tempo depois, o anel tilintava no chão. Orlaith apanhou-o rapidamente. Entretanto, todos os ovalinos olhavam, estupefactos, para o cavaleiro: o dedo que estivera envolvido pelas chamas do anel de Orleys, o dedo de Gohral Keull, estava intacto.

- O anel achou que, apesar de não seres o Eleito, és mesmo assim um homem de valor - explicou Tivann de Orleys.

Gohral Keull não reagiu a este cumprimento.

- Há mais algum voluntário que queira experimentar o anel de Orleys? - perguntou Tivann, convencido que mais ninguém se ofereceria.

- Sim, eu - declarou de repente Sem Nome surpreendendo-se a si próprio.

- Tu? Vejamos, tu ainda és muito novo! Como te chamas?

- Não tenho nome - respondeu o ovalino, divertido com esta pergunta que, todavia, lhe parecera sempre funesta.

Um murmúrio percorreu a assembleia.

- Sem Nome - murmurou com desdém Arthur de Farrières,

- Então és tu! E estás convencido que és o Eleito!

- Não - retorquiu Sem Nome. - Quero precisamente saber se estou possuído pelo Mal ou pelo Bem.

Gohral Keull franziu a testa. Tivann, embaraçado, respondeu:

- Sem Nome, segundo a tradição, eu não posso impedir que tentes a tua sorte. Mas, se fosse a ti, eu não me submeteria a esta prova.

- Mantenho o que disse - replicou o jovem ovalino, com

firmeza.

Dirigiu-se a Orlaith. Os cavaleiros que cruzaram o seu olhar tiveram de admitir que ele reflectia força e determinação. Sem Nome colocou a sua mão de dedos compridos e ágeis na palma acetinada de Orlaith. Observou o anel. Era simples, mas bonito. À primeira vista, parecia feito apenas de ouro branco, mas, mais de perto, podia ver-se que a sua textura polida e brilhante, estava incrustada de diamantes minúsculos. Orlaith fê-lo deslizar lentamente no dedo de Sem Nome e dirigiu-lhe um olhar de encorajamento.

O anel de Orleys transformou-se num líquido prateado que corria, cada vez mais depressa, à volta do dedo do ovalino. Chegou a conter um gemido. No entanto, a dor tornava-se penetrante, cruel. Pouco depois, as chamas prateadas mortificaram impiedosamente a sua pele. Quis gritar, julgou desfalecer, mas resistiu, direito, reprimindo a fraqueza, apesar do cheiro a carne queimada que se espalhava no ar.

Os ovalinos observaram-no com compaixão. No seu caso, a tortura durou ainda mais tempo que a de Arthur de Farrières e de Gohral Keull juntos. Sem Nome fez um esforço para manter a cabeça erguida, sem olhar para o seu dedo ferido. Tinha a confirmação daquilo que se recusava a admitir: a dor tinha sido tão forte, tão insuportável que tinha a certeza que o anel de Orleys tinha visto o Mal que o possuía e procurou castigá-lo.

Sentia os olhos dos ovalinos fixados nele, sem se atrever a afrontar os seus olhares. No silêncio fez-se ouvir um murmúrio, seguido de muitos outros, que Sem Nome interpretou como duras críticas à sua pessoa. Tomou a palavra, a voz angustiada:

- Vós tínheis razão; eu falhei e o Mal domina o meu coração. O anel de Orleys confirmou os vossos pensamentos. Orlaith deve apanhar este anel e colocá-lo no dedo de outro, mas esqueçam-me, esqueçam a derrota que acabo de sofrer, esqueçam até o meu rosto...

Já não sabia o que dizia. Por acaso, estes propósitos, ditos em voz baixa, não foram ouvidos por ninguém. Olhou à procura do anel no chão, mas não o encontrou. Esquadrinhou todos os cantos da sala, à procura do brilho prateado. Em vão. Foi então que, hesitante, ganhou coragem para olhar para a sua mão mortificada.

Não apresentava qualquer ferida.

Orlaith sorriu-lhe, radiosa. Os cavaleiros observaram-no com admiração e humildade, apesar de alguns lhe lançarem olhares de inveja.

- Sem Nome, não há qualquer dúvida - declarou Tivann de Orleys, comovido até às lágrimas. - Tu és o Eleito, aquele que todos nós sonhámos um dia poder ver!

Ao dizer estas palavras, a assembleia rompeu numa ovação magistral em honra de Sem Nome, que continuava incrédulo.

Seria mesmo ele o único nome, o Eleito, que fazia palpitar a esperança no fundo do coração do mundo?

 

Perturbadas com as revelações de Oonagh, as três raparigas caminharam em direcção aos cavalos. Âmbar e Opala estavam preocupadas. Saberem que eram tão importantes assustava-as e fascinava-as ao mesmo tempo. Quanto a Jade, demasiado transtornada pelo encontro com Oonagh, não sabia bem o que sentia. Inicialmente, foi invadida por uma grande revolta contra um futuro tão sombrio. Estas novas responsabilidades pesavam demasiado sobre os seus ombros. Mas tinha que ir até ao fim. Se a aguardavam há séculos... não podia abandonar tudo agora. Todavia, como aceitar ir deliberadamente ao encontro do perigo? Jade, sem o confessar, estava transida de medo.

- Juro - disse ela de repente - que nunca vos trairei. A Profecia é seguramente falsa. Nunca nenhuma de nós empurrará as outras para a morte. Nunca!

- Juro - repetiu Âmbar com ar sério - que nunca farei uma tal coisa. Antes morrer que matar-vos!

- Também juro - disse Opala. - Este Néophileus enganou-se. Já morreu há séculos. Não há nenhuma razão para fazermos tudo aquilo que ele disse!

Jade e Âmbar sorriram, mas a angústia ainda as atormentava.

- Não consigo acreditar nisso - murmurou Jade. - O que está a acontecer connosco é tão...

- Estranho, imprevisto, inimaginável - completou Âmbar, preocupada. - E dizer que vamos ao encontro da Morte!

- É aterrador - disse Jade - mas, ao mesmo tempo, tão excitante.

- Além disso, vamos ter centenas de pessoas com os olhos postos em nós - declarou Opala, pensativa. - Oonagh afirmou que há séculos que estão à nossa espera!

- Tenho medo - confidenciou Âmbar, de repente. - Como é que podem pedir-nos para escolhermos o destino do mundo? É uma loucura. Gostava tanto de fazer de conta que não sei nada e voltar para casa, viver uma existência normal.

- Eu também. Eu não quero, eu não quero ir a Thaar... sabendo o que nos espera. Mas sei que sou obrigada a ir - respondeu Opala, vagarosamente.

- Então se tu vais. eu também vou - prometeu Âmbar.

- E eu também - declarou Jade, muito séria. - Temos de nos manter juntas. É impossível adivinhar o horror que nos espera. Mas, se há tanta gente a contar connosco, não podemos decepcioná-las. Se os nossos pais deram a sua vida por nós, se somos de facto capazes de mudar alguma coisa, de dominar o Conselho dos Doze ou a Escuridão, devemos fazê-lo.

Jade calou-se. Ela não podia abandonar Âmbar, Opala e todas aquelas pessoas que acreditavam nela. Âmbar, nostálgica, pôs-se a recordar com saudade os dias despreocupados que vivera antes dos seus catorze anos, tendo consciência que tinha que viver o seu destino.

Opala conservava o seu ar misterioso e impassível, mas os sentimentos e as recordações estavam presentes. Antes de encontrar Jade e Âmbar, o tempo para ela corria lentamente e sem qualquer surpresa. Levava uma vida de rotina, sem paixões ou aventuras. À força de ver os dias repetirem-se, acabara por esquecer o que era sonhar, rir, chorar, ter emoções. Rejeitara a amizade, o amor, para se concentrar só nela. Ao cruzar o caminho de Jade e Âmbar e, mais tarde, também o de Adrien, aprendera a descobrir uma nova faceta do mundo: surpreendente, belo, doce e rude ao mesmo tempo. E agora que começava a dar valor à vida, e esta estava ameaçada, ainda mais preciosa ela se tornava.

- Como é que Oonagh quer que convençamos a Morte a não se suicidar? - resmungou, de repente, Jade. - A que propósito seremos mais capazes que os outros de chamar à razão tal

criatura?

- Além disso - acrescentou Âmbar -, ver a Morte é, apesar de tudo... terrivelmente anormal!

As três raparigas exprimiram a sua incredulidade, as suas dúvidas. Em seguida, questionaram-se sobre o episódio das aves de rapina. Porque terão elas poupado Jade e Opala? E porque teriam fugido, perseguidas por uma força desconhecida que parecia mortificá-las?

A descida foi fácil, quase agradável. Em menos de dois dias, as viajantes reencontraram as suas montadas que as aguardavam tranquilamente. Âmbar acariciou o seu cavalo durante muito tempo, contente por voltar a vê-lo. Tinha agora o pêlo branco que ela adorava e olhava-a com ternura.

Antes de voltarem a partir, Jade observou com atenção o mapa que Oonagh lhes havia dado.

- Se bem entendo - disse ela -, a zona rural que atravessámos até aqui pertence a uma região florestal chamada Hornimel. A cadeia de montanhas onde nos encontramos não é muito importante; tem o nome de Irog e, de acordo com o que diz este mapa, marca os limites da Hornimel. Do outro lado ficam os planaltos, as velhas montanhas, que se estendem ao longo de uma região cujo nome é Ellrog. Aí, aparentemente, não existe nenhuma cidade.

- Mostra-me o mapa - pediu, repentinamente, Âmbar.

Aproximou-se de Jade, sentou-se ao lado dela e analisou, interessada, o pergaminho.

- Era o que eu temia - suspirou ela, impressionada. - O Conto de Fadas é enorme!

- Mas nós estamos muito perto do território da Morte - replicou Jade. - Só temos que seguir um rio, o Déâthod, que atravessa Ellrog. Conduz a uma grande planície que acompanha um imenso lago, onde, estranhamente, se lança o Déâthod. Em seguida, é preciso atravessar a planície ou o lago para chegarmos lá. - Jade apontou para uma inscrição com letras elegantes, escritas a preto: - Okdhrúl, país da Morte. Se quisermos chegar um dia a este famoso Okdhrúl - continuou ela -, temos de retomar a estrada imediatamente!

- Okdhrúl - disse Âmbar. - Que nome horrível!

As três raparigas retomaram a estrada, atravessando em sentido inverso a floresta frondosa. De repente, um pensamento desagradável surgiu na mente de Opala, que estremeceu, perturbada:

- Tenho a impressão que, mal cheguemos ao sopé desta montanha e atravessemos a região de Ellrog, os nossos inimigos recomeçarão a perseguir-nos.

- Sim, eu sei - interveio Jade, estremecendo só de pensar nisso. - Mas, afinal de contas, eles não sabem onde nós estamos, nem nos conhecem.

- Precisamente - continuou Opala -, sobre aquele cavaleiro negro que avistámos por diversas vezes concluímos que devia ser um inimigo... E se ele pertencia ao Exército da Escuridão? Se era uma espécie de guarda avançada?

- É melhor não pensarmos nisso - apressou-se Âmbar a desabafar.

- Mas se eu tiver razão? - insistiu Opala.

- É provável - disse Jade. - Aliás, diversas pessoas que não conhecíamos pareceram reconhecer-nos. Devemos ter qualquer sinal visível que permite aos outros identificar-nos. e que nos põe em perigo!

- Três raparigas sozinhas, mais ou menos de catorze anos, que atravessam a cavalo a Hornimel - disse Opala -, só podem chamar a atenção.

Cada vez mais angustiadas, calaram- se. Se o Exército da Escuridão as encontrasse, que torturas lhes infligiria?

- Se eu ao menos tivesse uma espada - disse para consigo Jade -, sentir-me-ia mais tranquila. Felizmente que tenho a minha pedra. Mas será ela suficiente para nos proteger?

- Ainda assim - acrescentou Opala -, se somos assim tão facilmente reconhecíveis, e se temos assim tantos inimigos, porque será que eles ainda não nos atacaram?

O resto do dia passou sob a ameaça de um ataque do Exército da Escuridão. Âmbar esperava ver, a qualquer momento, cavaleiros vestidos de negro precipitando-se sobre ela, empu nhando uma espada cintilante.

- Se acontecer o pior, se o Exército da Escuridão nos encontrar - pensou ela, a tremer -, será que vou ter coragem para lutar ou irei ficar incapaz de reagir, como aconteceu quando enfrentei as aves de rapina?

O seu cavalo, sentindo-a nervosa, tentou tranquilizá-la através de suaves ondas telepáticas. Mas Âmbar continuava ansiosa.

A noite caiu no momento em que as três raparigas deixavam a montanha. Observaram por um momento a cordilheira de Irog, que tinham acabado de atravessar, deixando, assim, a região de Hornimel. Seguiram o Déâthod, um rio de águas turvas, através da floresta frondosa. À sua frente, as colinas da região de Ellrog estendiam-se a perder de vista, e as viajantes aperceberam-se vagamente que esta região abandonada lhes era hostil.

Cansadas, Jade, Opala e Âmbar sentaram-se mesmo no chão, perto do Déâthod, que corria, num sussurro cristalino. Petiscaram alguma coisa, sem se atreverem a tocar na água lamacenta do rio. Em seguida, deitaram- se na erva. Apesar do ambiente calmo, estavam preocupadas. Contemplaram a abóbada celeste, maravilhadas. Juntas, comunicavam sem uma palavra. Sabiam que estavam irmanadas no mesmo sentimento, que a natureza, imensa, generosa, apagava o seu tormento, que as unia um mesmo fascínio, uma mesma poesia. Nenhuma delas ousava dizer uma palavra, com medo de quebrar a magia deste instante. Jade, Opala e Âmbar tinham apertado, suavemente, as suas pedras.

Na manhã seguinte, transbordantes de vitalidade, puseram-se a caminho pouco depois do nascer do dia. Observaram por alguns momentos a paisagem desolada de Ellrog: colinas com erva rasteira, amarelecida, seca; algumas árvores descarnadas espalhadas aqui e acolá; alguns cumes aplanados pela erosão, pouco mais altos que as colinas à volta.

A princípio, a viagem decorreu com tranquilidade. O ar apresentava-se matinal, fresco, aromatizado pelo perfume que algumas flores destilavam, os pássaros cantando de regozijo. Uma corça espavorida, com uma admirável pelagem aveludada, passou que nem um furacão à frente dos cavalos. Acabaram por achar a região de Ellrog muito agradável, o que deveras as surpreendeu. Relegando a imagem dos seus inimigos para o fundo dos seus pensamentos, puseram-se a conversar, simulando despreocupação.

Âmbar observou o Déâthod que, graças aos seus inúmeros afluentes, se tornara mais largo e imponente. Serpenteava, rápido; a sua água, agora clara, reflectia de tal maneira o sol que parecia de prata. No entanto, movidas por um misterioso instinto, as três raparigas não aproveitaram para aí se dessedentarem.

O sol elevava-se no céu e o calor tornava-se mais intenso. As três raparigas interromperam a conversa. Invadiu-as um estranho mal-estar. De repente, Âmbar revelou aquilo que nenhuma delas se atrevia a confessar:

- Este sítio é estranho.

A pouco e pouco, a paisagem transformara-se. As flores haviam desaparecido. Os cavalos mostravam-se tensos e nervosos. Um completo silêncio, inquietante, abatera-se sobre a terra. Nenhum animal à vista. À medida que avançavam, parecia que todas as formas de vida desapareciam de Ellrog.

- Talvez seja o sinal de que estamos a aproximar-nos de Okdhrúl, o país da Morte - sugeriu Jade.

- E é suposto eu regozijar-me com isso? - ironizou Âmbar. Eu tenho medo. Eu sei que vocês as duas são corajosas, que nunca confessam o medo que sentem. Mas eu, sim! Não tenho nenhuma vontade de ver a Morte e já estou a sentir-me mal nesta região!

- Não penses assim - sossegou-a Opala. - Nós não corremos nenhum risco.

- Ah sim? - exclamou Âmbar, com a voz trémula. - De facto, para além de podermos ser despedaçadas pelo Exército da Escuridão ou por qualquer outro inimigo interessado na nossa vida, na verdade, não corremos nenhum risco! E, além disso, se sobrevivermos, se nos encontrarmos com a Morte, podemos sempre regressar a Thaar! E lá, não temos qualquer hipótese de sairmos incólumes.

Jade e Opala tentaram serenar Âmbar, mas sem grande convicção. Felizmente, até ao momento, nenhum cavaleiro vestido de preto tinha voltado a aparecer. Falavam muito, para evitar deixarem-se dominar pelo medo. Toda a paisagem lhes parecia ameaçadora. Até o sol fora absorvido pelas nuvens acinzentadas e o ar tornara-se frio e húmido.

Quando, finalmente, a noite caiu na região de Ellrog, as três raparigas pararam junto ao Déâthod, cujas águas estavam de novo sujas, escuras, cheias de terra.

Âmbar, angustiada, tacteou na escuridão à procura da mão de Opala.

- Quando eu era pequena, a minha mãe segurava-me sempre na mão para eu adormecer - disse ela baixinho. - Enquanto ela estivesse à minha beira, tinha a certeza que as sombras más, os pesadelos. seriam afugentados.

Âmbar parou, mas Opala, compreensiva, apertou-lhe suavemente a mão e não a largou. As três raparigas acabaram por adormecer.

No dia seguinte, levantaram-se sem qualquer vontade de se fazerem de novo ao caminho. Custava-lhes cavalgar nesta paisagem sombria e hostil, seguindo o curso de água. Os cavalos relinchavam e avançavam a medo e devagar. Elas sentiam-se cada vez mais exaustas e abatidas. Ao fim de algumas horas, foram envolvidas por uma ligeira bruma, que se transformou num nevoeiro denso, sufocante. As três viajantes já não viam mais nada, já nem se viam umas às outras. Só o Déâthod, estranhamente brilhante, era ainda visível. Jade, Opala e Âmbar viram-se obrigadas a falar calmamente para se não perderem. Haviam perdido a noção do tempo. Sem verem, por causa do nevoeiro, e geladas por um vento seco, começaram a tiritar.

Finalmente, o nevoeiro começou a dissipar-se gradualmente. Avistaram então uma planície cheia de flores, cercada por um imenso lago.

- Eu sei onde estamos! - disse Jade, entusiasmada. - Só temos que atravessar esta planície para chegarmos a Okdhrúl!

- Já? - perguntou Âmbar.

- A região de Ellrog é muito pequena. Não o lamentemos! Preparavam-se para entrar na planície quando uma voz forte de homem se fez ouvir. Todavia, não se via ninguém.

- A planicie ou o lago.

A Okdhrúl vos levarão estas duas vias.

Se para a planicie os vossos passos vos conduzirem, Os sonhos até à morte vos vão perseguir, Se no barco se decidirem entrar,

O lago o passado vos vai mostrar

A voz calou-se. As três raparigas trocaram opiniões durante um momento, perturbadas, até que, de comum acordo, optaram pelo lago do Passado. Âmbar ordenou aos cavalos que aguardassem ali com os seus objectos pessoais. Só levaram o essencial, que se resumia a mantimentos. Um barco de madeira aguardava-as, e aí se instalaram. A embarcação, instável, vacilou com o peso, depois deslizou sob a água límpida e azulada do lago, puxada por uma força desconhecida. As três raparigas trocaram um olhar de desorientação. Mas já os contornos da margem se perdiam na bruma de Ellrog. De repente, Âmbar soltou um grito. A água clara tornou-se vermelha de sangue. Jade berrou por sua vez, horrorizada. Em seguida, das águas agitadas começou a surgir uma forma sombria. Âmbar foi a primeira a aperceber-se. O barco imobilizou-se. Mas o terror de Âmbar em breve deu lugar à alegria. A sombra assumiu a forma de uma mulher jovem, de olhar meigo e amável; soube que estava diante da sua mãe. Esta acariciou-lhe os cabelos, com ternura.

- Vem comigo - disse-lhe com uma voz melodiosa. Fizeste-me tanta falta. Vem comigo, Âmbar.

E a mulher jovem estendeu-Lhe a sua mão branca. Âmbar pegou nela, dominada pelo seu encanto, desejosa de lhe obedecer. Para Jade e Opala, a aparição não era visível. Soltaram também um grito de terror quando viram Âmbar erguer-se no ar, pronta a transpor a margem e a deixar-se mergulhar na água. Jade, fora de si, puxou-a com violência para trás, e Âmbar caiu sobre ela, fazendo o barco baloiçar. As três acabaram por cair ao lago. Opala e Jade agarraram-se com toda a força à embarcação, enquanto Âmbar, com o olhar no vazio, escorregava. Jade teve um momento de hesitação. O seu olhar cruzou o de Opala, que murmurou:

- Sinto-me demasiado fraca. Não me sinto capaz de ir procurá-la.

Com efeito, Opala sentia a cabeça a andar à roda, apercebendo-se das sombras que a cercavam, formando o teatro da morte cruel de seus pais. Ela via o sangue jorrar do coração da mãe, ouvia-a gritar por misericórdia; distinguia o rosto implacável de um feiticeiro da Escuridão.

Jade, ao mergulhar, engoliu inadvertidamente um pouco de água com sabor a sangue. Avistou Âmbar e dirigiu-se a ela. Mas a imagem perturbadora de milhares de rostos sorridentes assaltou-a de repente. Quem eram eles? Parecia que lhe queriam falar. Abandonando Âmbar, aproximou-se deles, ouviu os seus queixumes:

- Nós vivemos para que tu vivas. Nós lutámos para que tu traves a última batalha. Nós estamos em ti, nós estamos contigo. Se tu estás aí, é porque nós estivemos aí.

O ar começava a faltar a Jade, mas mal tinha consciência disso. Sentiu, então, que apertava a pedra e que uma voz no seu íntimo dizia: Estas sombras que te falam pertencem ao passado. Tens que salvar Âmbar, tens que viver! Então, desviando-se dos rostos bons, nadou o mais depressa que pôde em direcção a Âmbar, os pulmões quase a rebentarem. Esperava conseguir salvar Âmbar que, num último esforço, tinha apertado a pedra. Mas já não aguentava mais. Estava resignada a desistir, a deixar-se levar para o fundo do lago do Passado, quando uma energia renovada a atravessou, e ela soube então que Opala também tinha apertado a sua pedra.

Tu vais viver, afirmou a voz que tanto parecia ser de Âmbar como de Opala, Jade já não conseguia identificar qual. Tu vais viver, e enquanto viveres, não poderás renunciar a ter esperança em continuar a viver.

Jade encontrou então energia para trazer Âmbar até à superfície. Engoliu avidamente um gole de ar. Âmbar voltava a si, mas como Jade sentiu que ela estava demasiado fraca para nadar, continuou a segurá-la.

A cabeça andava-lhe à roda. A visão estava turva. Extenuada de cansaço, Jade estava quase a deixar-se engolir de novo pelas águas avermelhadas do lago do Passado.

De repente, sentiu dois braços firmes a cingi-la, a puxá-la, e teve a certeza que o seu corpo estava estendido em terra firme.

 

                               Paris, 2002

Acordei, sobressaltada. O meu coração batia demasiado depressa, com demasiada força, dentro do meu peito. Desta vez, sabia que o sonho pertencia irremediavelmente à ficção, que nada mais era que fruto da minha imaginação desenfreada.

Acalentara-me de ilusões; quase que acreditei que esse sonho existia, algures. Estava enganada, sabia-o. Os meus esforços acabavam de ser aniquilados.

Nas águas profundas desse lago do Passado, por entre todos aqueles rostos que se dirigiam a Jade, vi o meu. Ou melhor, o de Joa. Joa, mais bela, ainda mais sorridente do que alguma vez estivera. Esta visão mortificava-me; no entanto, infligi-a a mim própria sozinha, achei que era necessário introduzir a minha própria imagem no meu sonho, para me lembrar que ele nada mais era que o reflexo do que eu inventava. E Joa continuava a sorrir com complacência sob os meus olhos, os seus caracóis arruivados emoldurando o seu rosto, os seus olhos azuis esverdeados, luminosos, vibrando com uma alegria prazenteira. Ela estava calada e, no entanto, os seus lábios fechados pareciam dizer-me baixinho como eu tinha sido ingénua.

O sonho não era, pois, nada. Eu controlava-o, inventava-o. Ele não era nada, nada. nada mais que uma tentativa falhada para continuar a viver. A verdade surgia brutalmente à minha frente. Porque é que quis demonstrar a mim mesma a minha própria credulidade? Porque é que quis destruir a única hipótese que me restava?

A Morte, que esperara repelir, espreitava de novo. Desta vez, seria impossível escapar-lhe; a minha última defesa, o sonho, tinha-se cobardemente desmoronado. Nada mais sentia que uma dor infinita. A Morte sabia muito bem qual era a sua missão, que executaria sem demora. Trémula, fechei os olhos, mas a visão da criatura tenebrosa, vestida de negro, perseguia-me, cada vez mais nítida. Real.

Queria voltar a ver o sol atravessar as nuvens sombrias do meu coração. Queria ouvir o vento sussurrar ao meu ouvido a sua doce melodia. Queria sentir o aroma embriagante da Primavera, e o aroma pesado do Verão. Queria saborear a vida como jamais havia ousado fazer antes.

Convencera-me que, quando chegasse o momento da partida, me mostraria corajosa. Mas não era o que acontecia. Como é que podia sê-lo? Havia tantas coisas que não tinha feito quando ainda podia fazê-las. E acabei por lamentar isso. As lágrimas banhavam o meu rosto, mas não tinha a sensação de chorar. Se o meu sonho tivesse a ousadia de acabar, de me deixar uma última trégua. Suplico-te", digo à Morte, deixa-me viver ainda um pouco mais. Uma noite.

 

Jade e Âmbar não tardaram a voltar a si. Opala estava junto a elas.

- É incrível - disse em voz baixa. - Logo que apertei a minha pedra, senti uma força enorme a invadir-me e consegui nadar até aqui. E, no entanto, estávamos no meio do lago, e parecia-me que só tinha avançado alguns metros quando, de repente, cheguei à margem...

- Estamos em Okdhrúl? Do outro lado do lago do Passado - perguntou Jade, incrédula.

- Sim - respondeu Opala.

- Como é que saímos do lago? - interrogou-a Âmbar, aturdida.

- Estava aqui há alguns instantes - disse Opala - a perguntar a mim mesma como é que vos poderia salvar, quando vos avistei. Âmbar, tu estavas inconsciente e foi a Jade que te trouxe. Quando chegaram a menos de um metro de terra, vi que a Jade não podia mais... Vocês estavam ao alcance da minha mão; icei-vos até aqui.

- Como é que nós viemos do meio do lago? - perguntou a si própria Jade, pensativa.

- É um lago encantado - respondeu uma voz grave atrás delas. - Uma vez vencidas as suas miragens, é possível a entrada em Okdhrúl.

As três raparigas, sobressaltadas, voltaram-se. Um homem vestido de preto, com uma expressão lúgubre no rosto, estava à sua frente. Montava um cavalo negro.

- Socorro! - gritou Âmbar. - É um soldado da Escuridão!

- Não nos mete medo - declarou Jade com arrogância, mas num tom pouco convincente. - Lutaremos!

O homem soltou uma risada, divertido.

- Não duvido, mas não vale a pena. Eu sou Rokcdr, conselheiro da Morte e, para o seu bem, decidi levar-vos até ela.

- É verdade! Oonagh falou-nos de si! - exclamou Jade. - Ela disse-nos que nos levaria até ao palácio d'Yrianz de Myrnehl.

- Para já, é até à Morte que vos vou levar. Bem, é uma maneira de falar!

Com um misto de alegria e surpresa, Âmbar avistou de repente o seu cavalo que pastava tranquilamente a alguns metros de distância. Seguindo o seu olhar, Rokcdr explicou:

- Fiz chegar os vossos cavalos até aqui, podem montá-los. O palácio da Morte não é longe. Vou levar-vos até lá.

As três raparígas montaram os seus cavalos em silêncio, ainda desconfiadas. O conselheiro da Morte partiu a galope. Elas seguiram-no. À sua volta, a paisagem era espectral, desértica. Silvados pobres cobriam a terra negra e seca. Por fim, um imponente palácio perfilou-se no sombrio cenário envolvente de Okdhrúl.

- É aqui que vive a Morte - murmurou Rockcdr. As três raparigas levantaram os olhos em direcção ao edifício escuro, cercado por várias torres enormes, cujo cume se perdia no céu. Dele emanava uma sensação de força sinistra. À volta de todo o edifício reinava um silêncio fúnebre. Estava protegido por um regimento de guardas vestidos de preto que, ao avistarem o conselheiro Rokcdr, o saudaram e deixaram passar. As três raparigas entraram a seguir. Criados vestidos de preto, atarefados, apressaram-se a levar os cavalos para a cavalariça, enquanto Jade, Opala e Âmbar seguiam as pisadas de Rokcdr ao longo de corredores intermináveis, escuros e inquietantes.

- Não duvido que possuam grandes poderes - disse bruscamente o conselheiro -, mas, mesmo assim, estejam atentas, Chamar a Morte à razão não é tarefa fácil.

Soluços lancinantes fizeram com que as três raparigas estremecessem. Agora que estavam tão perto de atingir o seu objectivo, sentiam-se desfalecer. Rokcdr parou diante de uma porta de ébano, donde vinham os carpidos. Sem bater, abriu-a e entrou juntamente com Jade, Opala e Âmbar. A sala, bastante ampla, estava toda mobilada de preto. Cortinados pesados de veludo impediam a luz de entrar pelas janelas estreitas. À volta de uma cama larga, estavam sentados uma dezena de homens de ar sério, vestidos como Rokcdr e, estendida na cama, uma forma negra chorava de um modo que fazia cortar o coração.

- Tem visitas - anunciou Rokcdr à Morte.

As três raparigas, esperando ver levantar-se uma criatura saída de um dos seus pesadelos mais medonhos, fecharam os olhos, aterrorizadas. Quando voltaram a abri-los, viram à sua frente uma jovem de pequena estatura que as fixava, fungando. Tinha cabelos castanhos claros, curtos, lisos; a sua tez era de uma palidez extrema. Os seus olhos cor de avelã brilhavam de melancolia. Tinha umas maçãs do rosto cheias, lábios muito finos, de um rosa nacarado. Era um pouco gorda e vestia uma saia larga, preta, até aos joelhos, e uma linda camisa da mesma cor, adornada a azeviche. Era bastante insinuante. Todavia, as suas feições estavam marcadas por uma angústia infinita, que traía a pesada missão eterna que há tanto tempo assumira.

- Todos têm medo de mim - disse ela numa voz clara, entrecortada de soluços. - Vocês amaldiçoam-me, suplicam-me noite e dia para não aparecer.

Jade, Opala e Âmbar, desconcertadas, não souberam que responder.

- A minha greve convém a toda a gente, por isso, porque é que se vêm queixar? Tu, Opala, tu sabes que o nosso encontro deveria ter acontecido mais cedo, e chamas ao facto de ainda estares viva um milagre! Ninguém gosta de mim, a não ser alguns suicidas desgraçados. E mesmo esses ainda chegam a temer-me no fim. - Em seguida, com um gesto nervoso, ordenou: - Vão-se todos embora! Deixem-me com estas três jovens!

Os conselheiros da Morte obedeceram. Jade, Opala e Âmbar ficaram sós com ela.

- Não sei verdadeiramente porque é que toda a gente me detesta. Mesmo os privilegiados que me dou ao trabalho de ir buscar a morrer, gritam quando me aproximo. Os outros, que sentencio à morte somente por um pensamento fugaz, ficam ainda mais assustados ao verem chegar o seu fim.

- E para onde levas os mortos? Há uma vida para além da morte? - atreveu-se Âmbar a perguntar.

- Tinha que ser! - exclamou a Morte, ofendida. - A vida, a vida! Só têm esta palavra na boca, só pensam nela, a minha irmã bajulada por todos! Quanto ao local para onde levo os mortos, não esperem que vá revelar-vos. Vocês podem ser as três pedras do destino, mas eu não deixo de ser a criatura mais misteriosa, a mais temida pelos homens. É impossível eu falar-vos dos segredos que o mundo há tanto tempo procura desvendar.

- Gostava tanto de ver a minha mãe - disse Âmbar -, a minha mãe que me roubaste antes de eu a conhecer!

- Ora aí está o que todos os mortais me censuram. Acusam-me de crueldade, querem rever os que Lhes eram próximos. Mas eu não tenho nada com isso, nada mais faço que cumprir a minha missão! Desde tempos remotos, antes mesmo de as criaturas mágicas terem aparecido, os homens tudo têm feito para se matarem uns aos outros. Criaram o Mal, alimentaram-no com o seu sangue. Não fui eu que os levei a cometerem os seus actos assassinos; eu nada mais faço que levar o repouso aos que agonizam. Eu segui os caminhos que os homens traçaram.

- Mas porque é que fazes greve? - perguntou Jade. - Todos nós precisamos de ti; sem ti a vida deixa de existir, o mundo perde-se na eternidade.

- Obrigada - respondeu a Morte, comovida, esboçando um ligeiro sorriso. - Há já muito tempo que não me dirigiam um cumprimento. À vida são oferecidos poemas, mas eu só recebo queixas. Porquê? Sou assim tão hedionda? Respondam!

- Não é a ti que odiamos - explicou Opala. - Temos medo, muito simplesmente, interrogamo-nos sobre quem és, o que provocas. Tememos-te porque não te conhecemos, e o desconhecido mete medo.

- Tu separas as famílias, os amigos - continuou Âmbar - e é por isso que te amaldiçoamos: achamos que és injusta, cruel. Mas, no fundo, sabemos que tens que aparecer, mais cedo ou mais tarde, que é preciso, que a morte de alguém próximo, o luto, é uma etapa incontornável mas que permite avançar, reflectir.

- Então, porque é que me consideram uma infelicidade, uma fatalidade? - queixou-se a Morte, secando as lágrimas.

- Porque gostaríamos de manter para sempre os entes queridos junto de nós - respondeu Jade, muito triste. – Sabemos que é impossível, mas, apesar disso, temos essa esperança, e não podemos deixar de sofrer quando desaparecem...

- Então a minha greve é uma grande coisa. É o que eu dizia: ninguém gosta de mim.

- Não é verdade - insistiu Âmbar -, é mentira. Há muitas pessoas que esperam por ti para poderem finalmente encontrar o seu último repouso, apesar de se interrogarem sobre o destino que lhes reservas. E tens que prosseguir a tua missão para que o mundo possa sobreviver. Tu dás um grande contributo para a vida, fazes parte dela!

- Ah sim - exclamou a Morte, entusiasmada e mais tranquila.

- No entanto, ainda há tanta gente que fica transtornada quando me vê. Penso que é o preto, esta cor não me fica nada bem. Mas se me visto de outra maneira, lá se vai a minha credibilidade.

Jade, Opala e Âmbar, divertidas, olharam umas para as outras e sorriram.

- Estou muito gorda - disse de repente a Morte, alarmada.

- Deve ser disso. Estou a tentar fazer dieta mas é impossível, pois sou, na verdade, muito gulosa. É absolutamente necessário eu emagrecer.

As três raparigas desataram a rir. Surpreendida por uma alegria que raramente tinha ocasião de suscitar, a Morte sorriu também.

- Não te preocupes - disse Jade. - Estás muito bem assim.

- A sério? Achas-me bonita e simpática?

- Acho, pois - insistiu Âmbar.

- É inacreditável, nunca me disseram isso, e há séculos que esperava ouvi-lo.

A Morte, feliz, batia palmas. Em seguida, puxando para trás uma das suas madeixas castanhas, sorriu, um sorriso aberto que iluminou o seu rosto ainda jovem e agradável.

- Bom, agora - declarou Jade -, vais parar com a tua greve, não é?

- Não. Se retomar a minha missão, ao fim de três dias vou sentir-me novamente desgostosa.

- Mas há pessoas a agonizar, a sofrer dores horríveis à tua espera - advogou Âmbar. - Estavam quase a morrer na altura em que declaraste greve, e eles suplicam-te que vás buscá-los.

- Eles estão à minha espera? - repetiu a Morte, surpreendida. - Muito bem. Se eles querem que eu vá, eu vou, retomarei a minha missão. Mas com uma condição. - A Morte fixou o seu olhar profundo no das três raparigas. - Nenhum mortal veio ainda ao meu encontro. Só pararei com a minha greve se me prometerem que, quando nos encontrarmos de novo, talvez daqui a muitos anos, me seguirão sem gritos nem choros. Como se fôssemos amigas que se encontram alegremente, que caminham juntas para uma morada agradável.

- Prometemos - juraram as três raparigas em uníssono.

- Neste momento, não vou reter-vos mais tempo - recomeçou a Morte -, pois leio nos vossos espíritos que vocês estão a ser pressionadas pelo destino. Rokcdr acompanhar-vos-á até aos limites do meu reino. Mas, apesar de não saber ler o futuro, pressinto perigo à vossa volta. Saberei esperar antes de voltar a ver- vos e espero que a vida vos ofereça ainda longos e felizes anos.

A Morte fez uma pausa e, em seguida, continuou com ar sério:

- Durante muito tempo associaram-me ao Mal, no entanto eu estou para além disso. Não pertenço nem ao Bem, nem ao Mal, e não julgo nem um, nem outro. Entretanto, conheço-os, vejo- os, sinto-os. Saibam que a sua força atingiu o auge e que a luta entre eles está próxima. Um ou outro será provisoriamente aniquilado, mas os dois são muito poderosos para desaparecerem totalmente do mundo. Estes dois inimigos coabitarão para sempre no coração dos homens.

A Morte retomou a palavra numa voz inquieta:

- Têm a certeza que não preciso de fazer dieta?

- Temos - respondeu Jade com firmeza, antes de começar novamente a rir.

Depois de se despedirem carinhosamente, as três raparigas deixaram a Morte, que Lhes sorria com tristeza:

- Estou triste por irem embora. Se o destino não fosse sempre assim tão apressado, tentava reter-vos mais um pouco à minha beira. Mas eu sei que vou voltar a ver-vos.

 

Sem Nome não conseguia aceitar a evidência. Como é que ele podia ser o Eleito, ele que tinha servido a Escuridão? Era impossível. O anel de Orleys enganara-se. Durante todo o dia, Tivann organizara festejos em sua honra. Mas, apesar da insistência dos ovalinos, ele mantivera-se enclausurado no seu quarto, a reflectir. A noite já ia avançada quando alguém bateu à porta e, apesar dos seus protestos, entrou. Apareceu Gohral Keull, rosto duro, olhar temerário.

- Eu sei o que atormenta o teu coração - disse-lhe o ovalino. - Vai ter com Oonagh. Ela pode ajudar-te.

Sem Nome, com ar ausente, não respondeu.

- Tivann de Orleys está já a preparar o teu casamento com sua filha Orlaith, mas eu sinto que tu não a amas.

- Eu vou-me embora - disse Sem Nome. - Irei ter com Oonagh. Todas as pessoas desta casa acreditam em mim. Eu não mereço isso. Tenho que me ir embora. - Fez uma pausa e depois acrescentou: - Eu não sou o Eleito.

- Eu sei - disse Gohral Keull. - Eu conheço o teu passado. Sem Nome, surpreendido, desviou os seus olhos azuis escuros na direcção do ovalino.

- Sabes quem eu fui? - murmurou ele.

- Sim. E sei também que mudaste. Deixa-me acompanhar-te até à morada de Oonagh. Sei muitas coisas a teu respeito que tu ignoras.

Sem Nome hesitou por um momento.

- Só sairei quando for completamente noite - decidiu. Fugirei cobardemente daqui. Se quiseres ir comigo, segue-me.

- Seguir-te-ei - confirmou Gohral Keull.

Na hora que se seguiu, os dois ovalinos prepararam as suas coisas e depois, discretamente, abandonaram a vivenda de Tivann de Orleys. Foram em seguida buscar os cavalos à cavalariça, quais ladrões disfarçados na noite, subiram para as suas montadas e fugiram a galope. Sem Nome lançava olhares curiosos a Gohral Keull, que se limitava a respirar o ar estimulante, mantendo-se obstinadamente calado. Acabou por dizer:

- Conheço uns atalhos que nos conduzirão rapidamente até Oonagh; ficarás então a saber qual será o teu destino e terás que te submeter a ele.

- O que é que sabes a meu respeito? Sabes como me chamo?

- Não é o teu nome que faz de ti uma pessoa - respondeu Gohral Keull. - É aquilo que tu és, o que fazes, o que sentes. Nomes, atribuíram-te já muitos, e eu não sei qual foi o que os teus pais te deram.

- Diz-me o que sabes do meu passado!

- O presente é muito mais importante.

Gohral Keull calou-se e, durante várias horas, recusou-se a falar. Os dois cavaleiros cavalgaram durante toda a noite atravessando a região de Hornimel. Logo de madrugada, resplandecente nas cores de um novo dia, Sem Nome perguntou em voz baixa:

- Tu sabes quem eu era, antes. Sabes que servi a Escuridão.

- Sei - confirmou Gohral Keull.

- E não me odeias? Apesar de não me lembrar disso, sei que as minhas mãos estão manchadas de sangue. Sou um criminoso.

- Tu és homem. Eu também. Quem sou eu para te julgar?

- Antes de me tornar um homem, fui um monstro! Fui soldado da Escuridão!

- Mas já não és. Ao desertares, renunciaste ao Mal. Quando perdeste a memória, tornaste-te outra pessoa. A partir daí és o Sem Nome. Um ovalino ao serviço do Bem. Tu sofreste. Lutaste. Agora, apesar de o Mal ainda fazer parte de ti, pois faz parte de cada um de nós, o Bem venceu.

- Como é que sabes? O que é que sabes de mim?

- Encontrei-te, Sem Nome, há alguns anos. O que sei de ti. Nunca vi os teus pais, mas tu disseste-me que eles morreram quando ainda eras criança.

- Eles morreram - repetiu o jovem, lentamente.

- Tu vivias com os teus pais - continuou Gohral Keull, imperturbável. - Nunca quiseste falar desta época, nem do nome que te tinham dado nessa altura. Aos dezasseis anos, saíste de casa pois estavas ansioso por descobrir o mundo. Encontrei-te no meu caminho. Vinha de ti uma força, uma coragem que me espantavam. Querias combater, lutar contra a injustiça, e arriscar a tua vida não te assustava.

Sem Nome, surpreendido, bebia as palavras de Gohral Keull.

- Eras de uma tal audácia e bravura que os que se encontravam contigo te chamavam Elyador, "aquele que foi eleito". Tu rias-te; a glória para ti não era importante.

Sem Nome já não sabia em que acreditar. O tom de Gohral Keull parecia sincero, mas a marca no seu tornozelo esquerdo perseguia a sua memória.

- Foi nessa altura que o teu caminho se cruzou com o do Exército da Escuridão.

E Gohral Keull calou-se misteriosamente, como se receasse invocar os soldados das Trevas. Sem Nome ansiava por saber o que se tinha passado, descobrir por que motivo se tinha virado para a escuridão. Queria, finalmente, ter uma visão clara sobre o seu passado, esquecer as suas dúvidas, as suas interrogações, conhecer os erros que cometera, para conseguir apagá-los.

Ao longo de todo o dia, os dois ovalinos atravessaram a região de Hornimel. As montanhas onde morava Oonagh perfilavam-se no horizonte. Resolveram parar, uma vez que a noite caíra há já algumas horas e a fadiga começava agora a atormentá-los. Partilharam a comida, falaram pouco. Em seguida, deitaram-se no chão para dormir. Sem Nome não se atrevia a fazer mais perguntas ao seu companheiro; sentia que ele só recomeçaria a contar a sua história quando quisesse. Será que, finalmente, Sem Nome iria descobrir tudo sobre o seu passado?

Os dois ovalinos chegaram por fim diante da cordilheira do Irog, e começaram a subir a imponente montanha onde habitava Oonagh até à densa floresta de coníferas, onde fizeram uma paragem. A noite escura envolvia os dois homens, que cedo começaram a sentir a angústia transmitida pelas aves de rapina. Mas eles não as temiam: o Eleito guardara os amuletos oferecidos pelos Ghibduls. Sentia-se a mergulhar no sono, quando Gohral Keull se decidiu a falar:

- Sem Nome, tenho vindo cobardemente a adiar o momento de te falar disto. Mas, amanhã, vamos encontrar-nos com Oonagh e eu quero que tu fiques a saber tudo o que conheço a teu respeito. - Gohral Keull respirou fundo e depois começou: - Não sei por que razão mudaste para o lado do Mal. Na altura eu era teu amigo, éramos inseparáveis. Um dia, cruzámo- nos com o Exército da Escuridão. Não sei o que se passou contigo. Ficaste fascinado com o poder dos soldados tenebrosos, algo te atraiu para o Mal. Tu, que sempre foras bom, como o és hoje, alistaste-te no exército das sombras. Tentei chamar-te à razão. Não quiseste ouvir nada. Porquê? Eras tão jovem, ainda ingénuo. Porque é que o Mal há-de tentar de tal maneira os homens? Uma vez experimentado o seu poder, uma vez conhecido o ódio, é muito difícil voltar para a luz. A Escuridão arrastou-te para as profundezas. Perdi-te o rasto.

Sem Nome, mortificado com estas revelações, disse com dificuldade:

- Se eu era bom, antes de me tornar soldado da Escuridão, isso significa que, mesmo agora, o Mal poderia voltar a apoderar-se de mim! Se lhe cedi uma vez, será que serei capaz de Lhe resistir agora?

- É um combate que toda a gente tem que travar a todo o momento. Nunca estaremos a salvo da Escuridão.

- Porque é que vens comigo à morada de Oonagh?

- Em memória daquilo que tu foste, daquele a quem chamavam Elyador. Tu não és o Eleito. Mas já não és soldado da Escuridão. O resto da tua história é do conhecimento de muita gente. Ao passar de boca em boca, acabei por ficar a conhecê-la. Desertaste do exército negro. Porquê? Talvez porque já não suportasses mais a ideia de teres que matar. Talvez porque desejasses voltar para a luz. Mas tornaram-te a apanhar. Como castigo, apagaram a tua memória. Desde essa altura, voltaste a ser quem verdadeiramente és, um ovalino.

- Mas como é que posso expiar as faltas que cometi? O sangue que derramei? Será que as pessoas ainda vão continuar a confiar em mim quando souberem quem fui?

Gohral Keull não respondeu.

Sem Nome, sentindo um nó na garganta, fixou o céu sem estrelas. O feiticeiro da Escuridão tinha dito, pois, a verdade. Ele fora um criminoso e, mais tarde, um desertor. Uma única coisa continuava a intrigá-lo. Retirou do seu alforge o guarda-jóias que a sereia do lago das Tormentas lhe havia dado e mostrou-o a Gohral Kuell.

- Sabes alguma coisa sobre este objecto?

- Não, absolutamente nada. Mas pergunta a Oonagh, talvez ela te possa esclarecer.

Sem Nome concordou. Passou uma noite mais atormentada que nunca, sonhando com violência, sangue.

No dia seguinte de manhã, os dois cavaleiros retomaram o caminho. Quando avistaram as aves de rapina, manchando o céu de Verão, eles puseram ao pescoço os amuletos dos Ghibduls e o terror imediatamente os abandonou. Gohral Keull, que já visitara Oonagh, avançava determinado. Sem Nome seguia-o, melancólico, nos meandros do túnel. Demoraram mais de uma hora a chegar à parede de luz que obstruía a gruta de Oonagh. Atravessaram-na sem medo e entraram na ampla sala.

- Ah! Ora aqui está aquele a quem chamam Sem Nome - disse uma voz esguia.

Sem Nome voltou-se e encontrou-se diante de Oonagh.

- Ajuda-me - pediu-lhe serenamente. - Como é que eu me chamo? Qual vai ser o meu destino?

- Queres redimir-te? Muito bem. Vais ter que te despachar. Vai ao castelo de Yrianz de Myrnehl. É aí que os ovalinos mais corajosos juram lutar contra a Escuridão, no dia do solstício de Verão, e se tornam Soldados da Luz.

- Mas. não compreendo - confessou Sem Nome. - O que é que eu vou fazer lá?

- Tu serviste a Escuridão. Agora serves a Luz. Alista-te como soldado. Luta, quando tiver lugar o combate tão aguardado por todos. Faltam menos de duas semanas.

- Mas as pessoas, nesse castelo. Eles não vão querer nada comigo, quando souberem o que eu fui! Vão odiar-me!

- Se queres afrontar a Escuridão, terás primeiro que afrontar o ódio dos homens.

- Eu vou contigo, Sem Nome - interveio Gohral Keull. Eu também quero lutar ao lado do Exército da Luz. E todos aqueles que tiverem força irão juntar-se a nós! Há tanto tempo que o Conto de Fadas aguarda este combate. O Conselho dos Doze, o Exército da Escuridão, vão estar, finalmente, reunidos diante de nós. Vamos exterminá-los! No dia do solstício de Verão, milhares de pessoas vão lá estar. Virão de toda a parte para lutarem a favor da Luz!

- Mas não te esqueças que o Eleito ainda não chegou - disse Oonagh com ternura. - É a ele que cabe chefiar o exército da Luz. Sem ele. receio que o combate não tenha lugar.

Sem Nome baixou os olhos. Ele não era o Eleito.

- Vai ao castelo de Yrianz de Myrnehl - repetiu Oonagh. Talvez lá encontres o Eleito e talvez te encontres também a ti próprio.

- O que é que isso significa? Vou saber qual é o meu nome? Ou qual vai ser o meu futuro?

- Leio nos corações, e não no futuro - lembrou Oonagh. Sem Nome desistiu de saber o que quer que fosse mais. Devagar, retirou o guarda-jóias do seu alforge e estendeu-o a Oonagh.

- Estava à espera que me mostrasses esse objecto - disse a criatura mágica. - Há muito tempo, ainda eras criança, os teus pais sentiram que o teu destino seria ameaçado pelas trevas e pelo perigo. Guiados pelo instinto, eles sabiam que o Mal te espreitava e receavam pela tua vida. Vieram, pois, ver-me para me expor os seus propósitos. Tentei dissuadi- los mas não me ouviram. Rumaram em direcção ao interior da floresta e chegaram ao lago das Tormentas.

Sem Nome estremeceu, a respiração acelerada.

- Aí, pediram às sereias, que são feiticeiras poderosas, para fazerem um feitiço que só elas pudessem executar. Está bem, responderam elas de forma cruel, mas vocês têm que pagar isso com as vossas vidas. Os teus pais aceitaram.

Sem Nome pensou que ia sufocar.

- Que feitiço era esse? - perguntou ele, com a voz a vibrar de emoção.

- As sereias juraram que te entregariam este guarda-jóias quando passasses perto do lago das Tormentas. Elas guardaram dentro dele o amor que os teus pais tinham por ti.

Sem Nome sentiu as lágrimas a saltarem-lhe dos olhos. Os seus pais haviam-se sacrificado por ele... Pegou no guarda-jóias das mãos de Oonagh, acariciou-o, trémulo.

- Todas as vezes que abrires este guarda-jóias - vaticinou a criatura mágica - serás protegido pelo amor inalterável dos teus pais.

- É incrível - disse Gohral Keull, baixinho.

- Sem Nome - disse Oonagh com uma voz serena -, não lamentes a escolha dos teus pais. Eles não morreram, não estão verdadeiramente mortos. Todas as vezes que abrires este guarda-jóias, o seu amor viverá em ti, e eles estarão lá, sempre.

O ovalino esboçou um sorriso triste.

- Agora - declarou Oonagh -, tens que te ir embora. Atravessa a região de Ellrog, contorna o país da Morte. Até o Exército da Escuridão tem medo de se aventurar aí. Segue em direcção à morada de Yrianz de Myrnehl. Se te cruzares com as três pedras d'A Profecia, convence-as a irem a Thaar. A luta que elas aí vão travar será decisiva para todos nós.

- Mas. - ia a dizer Sem Nome.

- Boa sorte - interrompeu-o Oonagh. - Ver-nos-emos talvez na batalha!

- O quê? - disse Gohral Keull, admirado, tendo em conta a fragilidade da criatura. - Também vais lutar no solstício de Verão, tu também?

- Não se fiem nas aparências - replicou Oonagh, secamente. - A magia é uma arma poderosa. - Parou e, depois, concluiu: - Não percam mais tempo.

Sem Nome e Gohral Keull deram meia-volta em direcção à luz.

 

Rokcdr levou as três raparigas até aos limites de Okdhrúl. Mais tarde, numa certa noite, ergueu-se diante delas o palácio onde eram aguardadas, e Rokcdar deixou-as. Depois de ele ter partido, Jade, Opala e Âmbar, alternadamente, esconderam-se atrás de uma árvore para enfiarem os vestidos de seda que as mulheres da cidade de Amnhor lhes tinham oferecido. Lavaram as mãos e a cara na água do rio, e Âmbar ordenou aos cavalos que esperassem ali por elas.

Orgulhosas com o seu novo visual, passaram um portão de ferro, dourado, que dava entrada para o castelo, e que estava entreaberto. Os vestidos ficavam-lhes às mil maravilhas. Elas não sabiam, mas as mulheres da cidade de Amnhor tinham-nos enfeitiçado um pouco e, aos olhos dos outros, ainda pareciam mais atraentes. Meteram-se por uma alameda de seixos brancos que atravessava um imenso jardim, muito bem cuidado. Flores de diversas cores, dos mais subtis cambiantes e raros perfumes eram um encanto para os olhos. Algumas árvores carregadas de frutos maduros erguiam-se na curva da alameda.

As três raparigas riam alegremente: haviam esquecido o perigo. Jade voltava a ser o que era: a filha do duque de Divulyon. Usava um vestido comprido azul da Prússia, em seda fina, que balanceava à volta das pernas. Os seus cabelos pretos, revoltos, emolduravam um rosto distinto, onde brilhavam uns olhos cor de jade. Todavia, seriam muitos os que a não reconheceriam. A sua aventura tinha-a mudado: perdera o seu ar arrogante, as suas maneiras pretensiosas. As feições, mais maduras, reflectiam seriedade. Mas os seus olhos verdes continuavam a reflectir uma expressão de certa rebeldia.

As três raparigas bateram à porta do palácio. A criada que imediatamente a abriu ficou emudecida de pasmo diante da aparição destas três criaturas de vestidos resplandecentes de luz.

- Até que enfim chegaram - murmurou ela, maravilhada. As três pedras. Entrem!

Conduziu-as a uma enorme sala, iluminada por imponentes lustres de cristal, onde se encontravam centenas de convidados, com espadas embainhadas, em animada conversa. Havia homens, mas também criaturas mágicas, e até mulheres, que vinham alistar-se no Exército da Luz. Não estavam ali todos os futuros combatentes; haviam sido enviados mensageiros pelos quatro cantos do Conto de Fadas para reunirem o exército e conduzirem-no, no dia do solstício de Verão, ao local fixado pel'A Profecia para a batalha. Os ovalinos mais temerários, os mais reconhecidos tinham-se reunido na morada de Yrianz de Myrnehl para aí prestarem o juramento de lutar contra a Escuridão. Todos eles esperavam que o Eleito também aparecesse e que as três pedras d'A Profecia, enviadas por Oonagh, conseguissem identificá-lo. Néophileus havia escrito que o Eleito era um feiticeiro da Luz, como aliás as três raparigas. Jade, Opala e Âmbar, essas, deveriam dirigir-se a Thaar. Só faltava, pois, o Eleito para confrontar os feiticeiros da Escuridão. Ninguém mais o conseguiria. Sem ele, o combate não teria lugar.

Logo que as três raparigas apareceram, fez-se silêncio. Todos se imobilizaram, deslumbrados. Alguns admiraram Jade, cujos olhos reluziam como duas estrelas; outros, Âmbar, no seu vestido de musselina de um vermelho flamejante; outros ainda, Opala, resplandecente no seu vestido de tule branco, qual encarnação da própria pureza. O seu aspecto frágil havia dado lugar a uma expressão de completa autoconfiança. Ela, que costumava andar sempre cabisbaixa, mantinha agora a cabeça direita, e o seu ar frio e distante havia desaparecido.

Não tardou muito a ouvirem-se gritos vindos de todo o lado:

- Vivam as três pedras d'A Profecia! Viva a liberdade, o Exército da Luz!

Jade, Opala e Âmbar sorriram. Foi então que surgiram duas silhuetas, emolduradas pelo vão da porta. A primeira era a de um cavaleiro de aspecto duro e destemido. A segunda, a de um jovem que irradiava uma força inexplicável. Envolvia a multidão com o seu olhar sério e, todavia, dir-se-ia que ele não a via. Cabelos castanhos desgrenhados, rosto marcado por um grande arranhão, a roupa em desalinho. As suas feições pareciam desfiguradas por uma dor invisível. Nos seus olhos lia-se uma melancolia infinita.

Um ovalino que estivera em casa de Tivann de Orleys reconheceu-o. Exclamou:

- É o Eleito! Este homem é o Eleito!

Um outro, que tinha também assistido à cerimónia do anel de Orleys, acrescentou:

- Viva o Elyador, aquele que foi eleito! Combaterei a teu lado!

Estas palavras foram seguidas de um tumulto. Gritos de alegria espalharam-se pela sala. Mas uma voz ecoou:

- Este homem não é o Eleito! É um soldado da Escuridão! Um pesado silêncio se abateu de imediato. Todos os olhares convergiram na direcção da criatura de cabelos loiros muito claros, olhos pretos, tez prateada, que tinha falado. Era Elfohrys. Dirigiu-se a Sem Nome:

- Diz-lhes quem tu és! Um assassino.

Todos ficaram à espera de ver o jovem negar estas acusações. Mas ele disse:

- É verdade. Fiz parte do Exército da Escuridão. Fui um assassino. Mas já não sou. Mudei. E gostaria de me tornar Soldado da Luz.

- E achas que vamos confiar em ti? - gritou um ovalino, cheio de ódio. - Como é que sabemos se realmente mudaste? Não é possível passares da Escuridão para a Luz! Derramaste sangue.

- E agora era o teu sangue que merecia ser derramado - acrescentou um outro.

A multidão começou a apupar o jovem, bombardeando-o de injúrias. Jade exaltou-se com os cavaleiros. Opala comungava do mesmo sentimento, mas calou-se.

Quanto a Âmbar, observava o jovem com compaixão. Pálido, digno, não dizia nada, não procurava defender-se. Fixava a multidão com um ar ausente, mas o seu rosto reflectia tristeza.

Em certo momento, o seu olhar cruzou-se com o de Âmbar. Cada um deles descobriu o outro e percebeu. Pareceu-lhes que já se conheciam, como se sempre tivessem vivido à espera de se reencontrarem. Sem Nome já não via Âmbar, no seu vestido cor de fogo; via para além dela, via o seu coração. Soube de imediato que ela ocuparia o seu. Só havia uma palavra para descrever o que ele estava quase a compreender. Trémulo, apoderou-se dele com receio. Impalpável, mais forte, mais louco que qualquer outro sentimento, a palavra repousava no seu guarda-jóias como, a partir de agira, no seu coração, no olhar de Âmbar. O Amor.

Das Trevas surgirá o Eleito

Para unificar o Reino.

A voz de Oonagh ecoou no espírito de Âmbar. Das Trevas surgirá o Eleito.

Âmbar, pensativa, baixou os olhos. Este jovem. Se derramou sangue. É verdade que tinha mudado. Queria certamente esquecer o passado, expiar as suas faltas. mas, mesmo assim... Seria na verdade um assassino?

Uma reconhecerá o Rei.

A voz de Oonagh enchia o seu espírito.

- Das Trevas surgirá o Eleito - murmurou Âmbar sem prestar grande atenção. Depois, subitamente, percebeu e gritou:

- Das Trevas surgirá o Eleito!

A assembleia, surpreendida, calou-se.

- Sentes-te bem? - perguntou-lhe Jade.

Âmbar ignorou-a. Caminhou em direcção a Sem Nome. Em seguida, dirigindo-se à multidão, disse:

- Aquele que foi eleito, Elyador, o Rei, tudo o que vós quiserdes. É ele. Este assassino, este desertor que tanto desprezais. Precisamente por vir das Trevas é que ele é o Eleito.

Jade e Opala olharam uma para a outra, pasmadas. Âmbar estava alterada, a sua voz vibrava cheia de paixão, o seu olhar reflectia excitação.

- É impossível - interveio Elfohrys. - Um soldado da Escuridão não pode ser um feiticeiro da Luz!

Um sussurro de aprovação percorreu a multidão.

 

                 2h66

- Está escrito n'A Profecia. Das Trevas surgirá o Eleito - repetiu Âmbar. - Este homem fez parte do Exército da Escuridão, mas teve a força suficiente para o abandonar. Quem, de entre vocês, teria sido capaz de abandonar as Trevas para voltar para a Luz?

A assembleia permanecia na dúvida.

- Este homem merece a vossa admiração, e não as vossas injúrias. Teve a coragem de vir aqui para se alistar no Exército da Luz. Não procurou tão-pouco mentir-vos. Confessou ter servido a Escuridão. Ele sabia que ninguém confiaria nele. Que seria odiado. Mas, mesmo assim, veio. Qual de vocês teria feito o mesmo? - Âmbar parou, antes de concluir num tom grave: Aqueles que sempre estiveram do lado da Luz são bons. Mas aqueles que conheceram as Trevas, que sofreram, que suportaram olhares de desprezo. e que continuaram a sua caminhada em direcção à luz. esses são grandes.

Terminada a declaração, fez-se silêncio na sala. Subitamente, um barulho fez agitar a multidão. Elfohrys tinha desembainhado a espada. Dirigiu-se a Sem Nome. Âmbar, que se mantinha ao lado do jovem, quis gritar, mas dos seus lábios não saiu qualquer som. Chegando junto de Sem Nome, Elfohrys fez algo que pasmou a assembleia. Pousou um joelho no chão e depôs a sua espada diante do jovem:

- Elyador, àquele que foi meu amigo, apresento as minhas desculpas. Àquele que é o meu Rei, apresento as minhas homenagens.

- Levanta-te, Elfohrys - disse o Eleito. - Eu não sou Rei. Sou apenas um homem. Um homem que te perdoa.

Elfohrys levantou-se, devagar. Pegou na sua espada, brandiu-a e gritou:

-Juro combater a Escuridão! Juro servir a Luz e o seu Rei! Juro!

Então, todos os homens desembainharam as espadas e, em uníssono, proclamaram:

- Juro.

- Não fui feito para ser Rei - disse o Eleito numa voz fraca. Ninguém o ouviu, excepto Âmbar.

- Há alguns instantes, eras um assassino. Agora és Rei. Apesar de tudo, é bem melhor, não achas? Não te lamentes e aceita a homenagem que te fazem.

Elyador sorriu. A partir de agora tinha um nome. E a sua vida tinha um objectivo. Olhou para Âmbar e, depois, para a

multidão. Oonagh tinha razão: neste castelo, ele encontrou o Eleito. E, ao mesmo tempo, encontrara-se a si mesmo.

- Vou levar-vos à vitória - prometeu ele à assembleia. - O Exército da Escuridão e os Cavaleiros da Ordem são poderosos. Nós podemos sê-lo ainda mais. Basta acreditar. Congregados na Luz, nós vamos vencê-los!

Gritos entusiásticos fizeram-se ouvir.

Opala, que não se lembrava de ter derramado uma lágrima em toda a sua vida, chorava de felicidade.

- Esta noite não está a correr nada bem - constatou Jade, vendo-a. - Primeiro Âmbar. e agora, és tu que começas. O que é que se passa?

- Eu entendi - disse Opala entre dois soluços. - Eu entendi! Parou, o rosto inundado de lágrimas, e disse:

- Como é que nós quebrámos o Selo? Lembras-te? Foi porque acreditámos. Estávamos convencidas que conseguiríamos. E as aves de rapina? Não tínhamos qualquer hipótese, mas eu acreditei que iríamos livrar-nos delas. Acreditei nisso. E o lago? Foi a mesma coisa! E a batalha... será graças a essa convicção que vamos ganhá-la. É evidente!

Jade dirigiu a Opala um olhar de comiseração e disse:

- Acredita em mim, tu não estás no teu estado normal.

- Mas tu não entendes!

- O quê? Que basta acreditar? Se achas...

- Não é isso - respondeu Opala, revoltada. - O Dom é isso.

- O quê?

- É o que nos permite acreditar. O que pode transformar seja que homem for. Fazer de um assassino um Rei. Não vês?

- Não. O que vejo é sobretudo que tu não estás bem! Opala respirou fundo antes de soltar estas palavras:

- O nosso Dom. é a Esperança.

Uma descobrirá o Dom Uma reconhecerá o Rei.

Uma delas convencerá as outras duas a morrer.

Âmbar e Elyador ficaram juntos até ao final da noite. Falaram de tudo, de nada, partilharam os seus receios quanto ao futuro. O Eleito tinha que ir arriscar a sua vida no campo de batalha, Âmbar, a sua, em Thaar. Prometeram voltar a encontrar-se quando tudo tivesse terminado. Foi com orgulho que a jovem conteve as lágrimas.

No dia seguinte de manhã, Elfohrys pediu a Elyador para o acompanhar à floresta. Os Ghibduls tinham manifestado vontade de aderir à sua causa. O Eleito foi obrigado a deixar Âmbar. Com o coração apertado, procuraram fingir que nem um nem outro corriam perigo, que iriam voltar a ver-se em breve.

À tarde, Jade, Opala e Âmbar, por sua vez, também tiveram que partir. Thaar ficava bastante longe, a vários dias de marcha. Tinham que se apressar. As três raparigas retomaram, pois, o caminho. Mas, desta vez, tinham consciência que o desfecho da sua aventura estava perigosamente próximo. Opala pôs Âmbar ao corrente da sua descoberta.

- O nosso Dom é a Esperança? - perguntou Âmbar, admirada. - É incrível! Como é que conseguiste descobrir?

- Mas saltava aos olhos! E tu, em relação ao Eleito? Como é que adivinhaste que era ele?

Âmbar não respondeu. Jade dirigiu-lhes um olhar doloroso. Toda a noite, a frase da Profecia perseguira os seus sonhos: Uma delas convencerá as outras duas a morrer. Âmbar tinha reconhecido o Rei. Opala tinha entendido o Dom. Só restava ela. Tinha a impressão de estar a começar a viver um pesadelo. Impossível, era impossível. Ela nunca empurraria Opala e Âmbar para a morte! E, no entanto, A Profecia, até agora, tinha-se revelado verdadeira.

Um silêncio constrangedor abatera-se sobre as três rapari gas. Opala e Âmbar adivinhavam os pensamentos de Jade. Não se atreviam a falar, sem saber como poderiam ajudá-la. Elas sabiam que Jade nunca as empurraria para a morte. Mas Jade, perante o seu silêncio, supunha o contrário.

Cavalgaram através das planícies monótonas, semelhantes às de Hornimel, mas salpicadas de cidades ou aldeias, que elas atravessavam sem nunca pararem. Esta região chamava-se Lionral.

Uma noite, Jade não aguentou mais e disparou:

- Eu não vou trair-vos. Acreditem o que quiserem, mas eu nunca.

- Nós sabemos - interrompeu-a Opala.

- Deve haver algum erro n'A Profecia - interveio Âmbar, numa voz apaziguadora. - É só isso.

Jade rompeu num pranto.

- Não há engano. E vocês sabem muito bem isso. Mas eu nem consigo imaginar. Enfim, eu nunca o farei. - Calou-se, sacudida pelos soluços incontidos. - Não vamos a Thaar - disse ela de repente. - Prefiro ser odiada por todos a estar constantemente a ouvir esta frase na minha cabeça. Uma delas convencerá as outras duas a morrer.

- Elyador vai arriscar a sua vida à frente do exército - retorquiu Âmbar numa voz meiga. - Não tenho o direito, pela minha parte, de me recusar a ir a Thaar. Era como se eu o abandonasse, como se o traísse. Se lutarmos, estaremos unidos no mesmo combate, contra o Conselho dos Doze, contra a Escuridão.

- Como? - interpelou-a Jade. - Importas-te de repetir?

- Não faças caso - interveio Opala. - Ela está apaixonada, não vale a pena tentar perceber. Mas ela tem razão: depois de todas as adversidades que ultrapassámos, não podemos parar agora que estamos tão perto do fim! Se precisam de nós para exterminar o Mal.

- Sim, mas Elyador, pelo menos ele sabe o que tem que fazer - pretextou Jade. - Vai combater, comandar o seu exército... Mas, e nós? Uma vez chegadas a Thaar, o que é que fazemos?

- É verdade, tens razão. - concordou Âmbar. - Apesar de a Morte ser simpática, preferia não voltar a vê-la tão cedo!

Tenho ainda tantas coisas para fazer. Thaar mete-me medo. Mas, apesar disso, vou.

- Muito bem - concluiu Jade, resignada. - Mas. se A Profecia estiver certa.

- Tu não nos trairás - afirmou Opala. - Nós sabemos que não.

As três raparigas tinham a impressão que, se permanecessem verdadeiramente unidas, nada de mal lhes poderia acontecer. E talvez tivessem razão.

Viram por toda a parte o Exército da Luz a reunir as suas forças, sob a orientação de mensageiros, e essa actividade tranquilizava-as e dava-lhes coragem para prosseguirem o seu caminho.

A dada altura, Âmbar julgou avistar a forma de um cavaleiro vestido de preto. Fechou os olhos, receosa, e quando voltou a abri-los, ele tinha desaparecido. Contou a Jade e a Opala, mas, como o homem não voltou a aparecer, as três raparigas acabaram por esquecê-lo.

Chegaram às portas de Thaar na manhã do solstício de Verão, depois de terem cavalgado toda a noite, e ficaram pasmadas ao ver a cidade das Origens. Imponente, a cidade erguia-se entre enormes muralhas que encerravam imóveis ainda mais altos, com inúmeras janelas resplandecendo ao sol pálido da manhã. As três raparigas nunca tinham visto um espectáculo semelhante; não sabiam mesmo o que é que a palavra imóvel" significava.

Avançaram em direcção às muralhas, desceram dos cavalos, e deixáram lá as suas montadas. Os soldados que, antes, tinham cercado a cidade, entre os quais Adrien, tinham deixado os seus postos para se juntarem ao Exército da Luz. Apercebendo-se que uma das portas recortadas nas muralhas estava entreaberta fazendo um esforço para dominar a angústia que sentiam, entraram na sombria cidade de Thaar.

Nessa mesma altura, o Exército da Luz atravessava o campo magnético que cercava o Conto de Fadas. Elyador, à frente, espada reluzente, abriu o seu guarda-jóias. Imediatamente

começou a sentir uma força invisível a envolvê-lo, a acalmá-lo. Pensou em Âmbar. Gohral Keull e Elfohrys, a seu lado, ficaram surpreendidos ao vê-lo de repente adoptar um porte mais imponente, como nunca tinham visto. Atrás do Eleito, o Exército da Luz cobria toda a região de Hornimel, até onde o olhar podia alcançar e mesmo para além desse horizonte. Os Ghibduls, os seus amigos Bumblinks, os curandeiros e os feiticeiros da cidade de Amnhor, os camponeses de longos cabelos prateados, Owen d'Yrdahl, Adrien... Tanta gente pronta a combater... Um pouco retirados, encontravam-se alguns poderosos feiticeiros, dos quais fazia parte Oonagh, prontos a salmodiar os seus encantamentos.

Quando Elyador avançou, todos o seguiram com a mesma coragem. Pouco depois, mal o Exército da Luz deixou o Conto de Fadas, viu-se confrontado com o Exército da Escuridão, acompanhado de milhares de cavaleiros da Ordem, e comandado por uma dezena de tenebrosos feiticeiros. Sorrateiramente, o Mal espreitava nos seus rostos. Eram em número tão elevado como o dos seus adversários. Os dois exércitos observaram-se por momentos e, em seguida, abateram-se um sobre o outro.

- Vamos vencer! - gritaram em uníssono Elyador e os seus homens.

O silêncio reinava, sufocante, sobre a cidade das Origens. As três raparigas apertaram as suas pedras; a angústia que as atormentava abrandou um pouco.

- Aconteça o que acontecer, nós vamos vencer - disse Jade. Âmbar e Opala concordaram, pois a Esperança renascia dentro delas. Mas, nesse momento, sentiram que alguma coisa penetrava os seus espíritos, algo nocivo. Contra sua vontade, dirigiram-se a um imóvel, entraram num hall muitíssimo iluminado. Tinham consciência que o Conselho dos Doze dominava os seus sentidos mas era-lhes impossível resistir. Sem conseguirem reagir, começaram a subir uma escadaria interminável até ao último andar e deram consigo numa ampla sala, cercada de janelas sem vidros. Um homem, com um sorriso cruel nos lábios, estava sentado numa poltrona de couro. Vestia uma larga túnica púrpura bordada a ouro. Emanava dele uma força absoluta, terrível.

- Bom dia, eu sou o Décimo Terceiro membro do Conselho dos Doze.

Paralisadas pelo medo, as três raparigas apertaram as suas pedras com todas as forças que tinham.

- Vej o que estais cheias de medo e de dúvidas. Eu não sou um ser humano, é verdade, eu sou um espírito. O espírito dos Doze membros do Conselho reunidos.

As três raparigas não conseguiam reagir.

- Como sois ingénuas! Chegastes a Thaar sem qualquer problema, e no entanto não entendestes nada! O Exército da Escuridão vem a vigiar-vos desde que entrastes no Conto de Fadas, zelou mesmo pela vossa segurança. Para que pudésseis chegar a salvo até mim. Eu sou o único que posso destruir-vos. Por outro lado, será que vale a pena? Vós fizestes todo o trabalho por mim.

Os dois exércitos defrontavam-se ferozmente. Os feiticeiros da Escuridão entoavam encantamentos maléficos, que os mágicos tudo faziam para destruir. Os combatentes caíam de todos os lados; gritos lancinantes ressoavam no Exterior. Elyador lutava com uma força sobre-humana, com Gohral Keull e Elfohrys sempre a seu lado.

- Contanto que Âmbar e as duas outras raparigas consigam vencer o Mal em Thaar. - disse o Eleito. - Aqui, não sei se ele poderá ser destruído.

Com efeito, o Exército da Luz combatia com entusiasmo, mas estava pouco preparado e, gradualmente, ia perdendo terreno.

- Há milhares de anos - explicou o Décimo Terceiro membro do Conselho -, a violência e o ódio, causaram estragos em todas as partes do mundo. As criaturas mágicas escondiam-se, receosas, e os homens nem desconfiavam da sua existência. Mas, um dia, elas decidiram ajudar os homens a resolver os seus conflitos e apareceram-lhes. Durante alguns séculos, reinou a paz. Deve-se dizer, a talhe de foice, esta foi a época do querido Néophileus. Entretanto, a natureza humana recuperou a situação perdida, e o mundo foi de novo assolado pela guerra. Foi então que o Conselho dos Doze foi eleito com o objectivo de transformar o mundo num único país, pacífico.

- É mentira - retorquiu Jade. - O Conselho dos Doze foi

instaurado quando a paz reinava entre os homens e as criaturas, com o único objectivo de a destruir!

Era de facto o que Jean Losserand tinha dito às três raparigas.

- Não - contrariou-a o Décimo Terceiro membro. - Eu não vos minto. Não vale mesmo a pena. - Fez uma pausa, antes de continuar: - Quando o Conselho dos Doze chegou ao poder, havia demasiadas armas, demasiada tecnologia, para que a paz fosse possível. A pouco e pouco, para evitar as guerras, o mundo

moderno foi varrido. Tudo regrediu, por assim dizer. As cidades de antanho desapareceram. Thaar é a única que guarda uma recordação do seu passado glorioso.

As três raparigas escutavam, trémulas.

- De pai para filho, o Conselho dos Doze foi-se perpetuando. Apesar de todas as mudanças, ainda havia revoltas, pessoas que semeavam a agitação... Entretanto, a pouco e pouco, o Conselho dos Doze conseguiu dominar por telepatia o espírito do povo e tirou-lhe a liberdade sem que ele se desse conta... Era

bem melhor assim! Reinavam a calma e a prosperidade. Mas as criaturas mágicas também sabiam praticar a telepatia. Compreenderam o que estava para acontecer e revoltaram-se... Foi então que o Conto de Fadas foi criado, o único revés sofrido pelo

Conselho dos Doze em tantos anos.

O Décimo Terceiro membro fez uma pausa.

- O Conselho dos Doze, de geração em geração, foi assegurando o seu reinado. E a sua dominação acabou por se tornar cada vez mais forte. Foi esquecido o mundo de outrora, para dar lugar a uma vida onde o povo era controlado pelo Conselho...

Sem revolta, sem guerra.

As três raparigas sentiram o sangue gelar.

- Só Thaar está tal e qual como era há milénios. Foi-lhe dado o nome de Cidade das Origens. Teve tantos nomes...

Durante séculos, quando os homens julgavam que eram os únicos habitantes da Terra, também lhe chamaram Paris.

A batalha estava no auge. A visão do sangue excitava o Exército da Escuridão, sedento de mal, enquanto Elyador, aureolado de amor, incentivava o Exército da Luz para continuar a lutar. Toda a gente fraquejava. Regos de sangue inundavam o chão; cadáveres mutilados jaziam aqui e acolá; centenas de feridos agonizavam, vítimas de tormentos cruéis. O sangue salpicava de todo o lado, escorria da espada de Elyador que, no entanto, continuava a brilhar. O Eleito só pensava em Âmbar, e a sua imagem aparecia-lhe para o exortar a prosseguir o combate.

De súbito, um dos seus adversários conseguiu desequilibrá-lo. Caiu do cavalo e a espada escapou-se-lhe. O terror gelou-o. Com a certeza de que iria morrer, levantou os olhos para o soldado da Escuridão que estava prestes a matá-lo, quando este caiu por terra, traspassado por uma espada. Elyador, levantando do chão a sua espada, agradeceu ao seu salvador. Este parecia muito jovem. Era moreno, com olhos escuros, um ar determinado, e chamava-se Adrien de Rivebel.

Tendo perdido de vista Elfohrys e Gohral Keull, o Eleito continuava a combater ao lado de Adrien. Este lutava com uma agilidade surpreendente. Nenhum dos seus adversários tinha ainda conseguido feri-lo.

Entretanto, a vitória do Exército da Escuridão parecia inevitável. Os seus soldados, movidos pelo ódio e preparados para matar, mostravam a sua selvajaria, contrariamente aos numerosos camponeses e aldeões do Exército da Luz que não sabiam combater.

- Tenho que voltar a ver Opala - dizia para consigo Adrien -, não tenho o direito de morrer...

Quanto a Elyador, já não aguentava mais. Mas jamais abandonaria o combate.

- E vós, vós, as três pedras d'A Profecia - continuou o Décimo Terceiro membro -, vós atreveis-vos a ameaçar o reino do Conselho dos Doze! Por causa de vós e desse maldito Néophileus, a revolta germinou nos corações das pessoas, inúmeros espíritos escaparam ao nosso controlo... Mas vós não sois nada! Eu podia matar-vos imediatamente. Mas quero primeiro tirar partido da vossa derrota.

- Nunca conseguirás vencer-nos! - exclamou Jade. - O nosso Dom, a Esperança, é mais forte que tudo!

O Décimo Terceiro membro deu uma gargalhada tonitruante.

- É mais forte que isto? - perguntou ele entre duas gargalhadas.

Com um gesto da mão, apontou para uma grande janela. As três raparigas soltaram um grito de terror. Do alto do imóvel onde se encontravam, podia-se avistar a batalha. Milhares de cadáveres juncavam o solo. Os cavaleiros da Ordem e os soldados da Escuridão estavam vestidos de cinzento e de preto. O Exército da Luz trazia armaduras prateadas. Viam-se milhares de combatentes tenebrosos, mas os soldados da Luz, uma pequena mancha clara no meio de uma massa negra, não eram mais que umas centenas.

- O que achais? - disse o Décimo Terceiro membro com uma voz glacial. - Não conseguistes vencer o Mal. Ele está por todo o lado: no coração de cada um, no ar, na vida.

- O Bem também - replicou Âmbar.

Mas, olhando em direcção à batalha, começou a tremer, o coração a palpitar de medo. Elyador ainda estaria vivo? Ela sabia-o, o resultado do combate era certo. Em Thaar, como nos campos de batalha, a Luz seria vencida.

- Obrigado, minhas meninas, muito obrigado - disse o Décimo Terceiro membro, retomando a palavra. - Sem vós, nunca ninguém teria reconhecido o Eleito e ele não estaria a travar um combate. Nunca teria tido ocasião para exterminar todos os meus inimigos de uma só vez. Que delicadeza a vossa terem- nos reunido a todos e terem-nos mandado até nós para se deixarem matar! Morrerão até ao último. Como é que eles pensavam vencer os meus cavaleiros da Ordem e o Exército da Escuridão? Amanhã e para sempre, o poder do Conselho dos Doze será absoluto; nunca mais haverá qualquer ameaça que possa fazer-lhe sombra.

As três raparigas olharam para o Décimo Terceiro membro, desesperadas. O que é que podiam fazer?

Os soldados da Luz sabiam que tinham perdido o combate. Já quase não lutavam. Os feiticeiros da Escuridão continuavam a entoar encantamentos tenebrosos, que não actuavam, graças aos esforços firmes de Oonagh e de alguns mágicos. Só uma centena de ovalinos aguerridos combatiam ainda com entusiasmo, bem como um punhado de gente. Elyador, Elfohrys, Gohral Keull e Adrien eram quem mais obstruía a acção do Exército da Escuridão. Para surpresa geral, os combatentes que mais provas davam de um enorme ardor eram os Ghibduls. Voavam a alguns metros do solo, escolhiam um soldado da Escuridão, iam em direcção a ele e matavam-no com algumas unhadas, antes de voltarem a elevar-se no ar para atacar uma outra presa. O exército tenebroso só tinha conseguido matar alguns. Infelizmente, os Ghibduls não eram suficientemente numerosos para causarem grandes estragos nas hostes inimigas.

O Eleito ainda combatia com grande coragem, mas sentia-se fraquejar. Sabia que não iria aguentar por muito mais tempo. Subitamente, viu-se cercado por vários soldados da Escuridão e, reunindo as suas últimas forças, preparou-se para se defender.

- Com que então és tu o Eleito? - disse uma das criaturas das sombras. - Parece que, antigamente, eras um dos nossos.

- Antes de combater - disse com ar de troça um outro soldado da Escuridão. - O Exército da Luz vai buscar os mais negligentes dos nossos soldados para os transformar em Reis, ou quê?

- Um Rei, isto? - acrescentou um homem com ar duro. Bah! Vamos matá-lo, assim pelo menos podemos dizer que fizemos derramar o sangue de um Rei. Aposto que não é diferente do nosso. Rei ou Eleito... não é isso que o impedirá de morrer!

Vendo Elyador em perigo, os Ghibduls organizaram-se rapidamente, voaram em seu socorro e, implacáveis, retalharam os soldados da Escuridão que o ameaçavam. Em seguida, um por um, puseram o pé em terra: tinham decidido lutar corpo a corpo contra a Escuridão. Assim, poderiam enfraquecer mais as suas forças. Apesar de saberem que morreriam, com toda a certeza.

- O que é que vou agora fazer convosco? - perguntou a si mesmo o Décimo Terceiro membro. - Matar-vos? - Fez uma cara de quem está a reflectir, antes de prosseguir: - Não. Tenho uma ideia melhor. Vão embora.

As três raparigas estremeceram. Trocaram um olhar de surpresa.

- Sim - regozijou-se o Décimo Terceiro membro. - Ide embora. O que é que haverá de pior que uma esperança não realizada? Vós não entendestes nada, guardastes o vosso Dom para vós... E quando o Mal triunfar, quando vós soçobrardes na amargura, o vosso Dom irá soçobrar convosco. De esperança transformar-se-á em desespero. A vossa presença inspirará o desalento. Odiar-vos-ão por terem falhado. Para qualquer parte que vão, o desespero seguir-vos-á... Até que a Morte vos liberte.

Âmbar sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos. Mas Jade perguntou:

- Disseste que não tínhamos entendido nada, que tínhamos guardado o nosso dom para nós... Então, bastaria que o oferecêssemos aos outros, para que a batalha fosse ganha? Dar-Lhes a Esperança que temos dentro de nós?...

O Décimo Terceiro membro conteve a sua irritação. No seu entusiasmo, acabara por falar de mais. Mas, de qualquer maneira, isso não ia alterar nada.

- É um pouco tarde de mais para o entenderes - respondeu ele a Jade.

- Não acredito - interveio Opala.

Como aconteceu com Jade e Âmbar, ela apertou a sua pedra. As três raparigas dirigiram-se para a janela sem vidro. O Décimo Terceiro membro deixou-as ir. Preparavam-se para lançar as pedras para o campo de batalha, quando estas ficaram muito quentes. Procuravam esquecer a dor. Mas aperceberam-se então que não conseguiam atirar as pedras, alguma coisa as impedia. Sentiam uma espécie de ligação invisível entre as suas pedras e elas, uma ligação que não podia ser quebrada.

Ressoou então uma risada lúgubre do Décimo Terceiro membro:

- Continuais a não perceber? As vossas pedras fazem parte de vós. Elas representam o vosso Dom. Nunca conseguireis separar- vos delas. Estais ligadas a elas como estais ligadas entre vós. Se uma de vós morrer, a Esperança morrerá com ela. Sabeis como é que alcançastes este Dom? Em tempos remotos, alguém deteve o vosso poder. No início, era frágil, mas, à medida que as gerações foram passando, ele foi aumentando.

- Os rostos, os rostos no lago do Passado - pensou Jade - eram os das pessoas que nos transmitiram a força que nós temos!

- Em cada geração, só uma pessoa detinha o Dom - prosseguiu o Décimo Terceiro membro. - Dizem que tinha no meio da palma da mão uma espécie de pequena cicatriz em forma de sol. E o vosso poder acabou por atingir a plenitude, dividiu- se em três. A cicatriz transformou-se em pedras. Desde essa época longínqua, a Esperança escolhia aquele que a deveria acolher e essa pessoa, durante a sua vida, ficava encarregue de a transmitir aos outros. Se todas essas pessoas tivessem falhado a sua missão, se tivessem guardado a Esperança para eles próprios, ela ter-se-ia extinguido. Mas ela chegou até vós, graças a muitos esforços. E tudo isso, manifestamente, não serviu para nada, porque falhastes! O vosso Dom só vos deixará quando morrerem, e quem sabe em que é que se transformará então?... Extinguir-se-á, seguramente. Ou, transformado em desespero, abater-se-á sobre o mundo. Neste caso, pelo menos servistes para duas coisas: juntar todos os meus inimigos para que eu pudesse tranquilamente exterminá-los, e assegurar o reino do Mal para a eternidade. - Um sorriso cruel esboçou-se então no rosto do Décimo Terceiro membro. - Agora, ide embora.

As três raparigas nem se mexeram. Sabiam que estava tudo perdido, mas não conseguiam aceitar a sua derrota.

Apertaram então, ainda com mais força, as suas pedras. Âmbar pensava em Elyador com toda a sua alma, porque só a sua imagem podia ainda ajudá-la. Opala viu o rosto de Adrien desenhar-se à sua frente.

Quanto a Jade, preocupada, ouvia a voz de Oonagh invadi-la cada vez mais: Uma delas convencerá as outras duas a morrer. E, a pouco e pouco, compreendeu que não tinha escolha. Se obedecesse ao Décimo Terceiro membro, se se fosse embora, o Mal triunfaria. O seu Dom transformar-se-ia no desespero e, quando morresse, talvez ele se espalhasse pelo mundo... Ora, era necessário que ela desse, agora, a Esperança ao Exército da Luz. Como conseguir isso, já que não podia separar-se da sua pedra?... Até à sua morte...

Jade procurou apagar a verdade que começava a emergir dos seus pensamentos. Mas não era capaz. Respirou fundo e, depois, confessou para si mesma: se ela morresse, agora, num sacrifício voluntário, talvez o seu Dom fosse recair sobre o Exército da Luz, o Mal seria vencido... Mas também poderia acontecer que ele se extinguisse com ela... Como adivinhar? E como aceitar morrer?

Ela não tinha o direito de se ir embora sem nada fazer. O que seria a sua vida? O Mal estaria por toda a parte. Os raros sobreviventes da Luz detestá-la-iam e, vencidos, não poderiam mais fomentar novas revoltas... Em toda a sua vida, traria sob os seus ombros o peso do seu erro. Arrepender-se- ia de não ter agido quando ainda era tempo. Não podia partir, cobardemente. No entanto, não seria isso mais simples? Esta ideia fê-la sentir logo os remorsos a espreitar...

Lançou um olhar resignado a Opala e Âmbar. Sozinha, sabia-o, não era nada. A sua morte não serviria de muito. Se as três raparigas queriam transmitir o seu Dom, teriam que fazê-lo juntas. Mas isso, Jade era incapaz de aceitar: jamais pediria a Opala e a Âmbar para sacrificarem a sua vida, apesar de ela estar pronta a sacrificar a sua.

Dirigiu-se, determinada, para a janela sem vidro, apertando a sua pedra. Os seus olhos verdes cintilantes tinham um brilho estranho; parecia um soldado que vai travar o último combate ou, melhor ainda, um feiticeiro da Luz a enfrentar o seu pior inimigo - o medo. Tinha tanto medo de saltar, de rever a Morte e, desta vez, de abandonar a vida...

Opala e Âmbar adivinharam as suas intenções sem compreenderem, contudo, a razão. Precipitaram-se sobre ela e retiveram-na.

O Décimo Terceiro membro não interveio; tinha a certeza que estas três raparigas de catorze anos nunca teriam coragem para se sacrificar. E isso alteraria alguma coisa? Estava seguro de ter ganho a batalha.

- Mas ele não ganhou a guerra - murmurou Jade às outras duas.

- Tu não estás a pensar em saltar, pois não? - perguntou Âmbar em voz baixa.

- Estou - respondeu Jade, reprimindo um tremor.

- Dizias-me ontem à noite que eu não estava no meu estado normal - disse Opala -, mas agora tu... não estou a entender!

- Centenas de pessoas viveram com o objectivo de nos transmitirem o Dom - replicou Jade. - Milhares de outras aguardaram-nos na esperança de vencermos o Mal. Os nossos pais foram mortos. O Exército da Luz está a ser dizimado debaixo dos nossos olhos. A liberdade, a felicidade vão desaparecer. Até agora, mesmo no Exterior, havia uma hipótese de tudo mudar. Amanhã, já deixará de haver. E nós, perante tudo isto, vamos ficar de braços cruzados?

- Não sejas fatalista - disse Âmbar. - Não é razão para saltar pela janela!

- É sim - segredou Jade. - Não entendeis... A guerra não acabou, ainda. Nós estamos aqui, as três, e tudo depende de nós. Ou damos ouvidos a este monstro e aceitamos a derrota, ou oferecemos o nosso Dom aos outros, à Luz. E, então, uma coisa é certa: a vitória acontecerá.

- É muito bonito - disse Opala no mesmo tom -, mas nós não podemos separar-nos das nossas pedras!

Jade olhou pela janela.

- Podemos, sim - respondeu ela.

Opala e Âmbar seguiram-lhe o olhar, horrorizadas.

- Mesmo assim, tu não queres dizer... - começou Âmbar.

- Morrer é o único meio de abandonarmos as nossas pedras - assegurou Jade. - Talvez então o nosso Dom se possa espalhar pelo campo de batalha... - Com um sorriso amargo, acrescentou: - Dessa forma, reconheceremos se a Profecia é verdadeira.

- Pelo menos - ironizou Opala - a Morte ficará contente por voltar a ver-nos.

Mas elas ainda não estavam preparadas para o sacrifício.

Elyador estava quase sem forças. Mas não podia aceitar baixar as armas. Os seus pais tinham-no amado e amá-lo- iam sempre; Âmbar amava-o, ele amava-a, e o Amor alimentava-o, incentivava-o a continuar.

De repente, o céu escureceu. Todos os combatentes ergueram os olhos. Inúmeros pássaros de plumagem cinzenta planavam por cima do campo de batalha. As aves de rapina. Tinham sentido as torrentes de medo que emanavam do combate e acorreram para se deleitarem e acabarem com os últimos sobreviventes.

Mal Âmbar e Opala viram as aves de rapina, soltaram um grito lancinante. Mesmo que Elyador e Adrien tivessem sobrevivido até então, certamente que sucumbiriam a estes monstros.

Olharam para Jade. As três apertaram as pedras. Nunca tinham sentido tanto medo. Nunca tinham sido tão determinadas. Esboçaram um sorriso crispado. Em seguida, sob o olhar incrédulo do Décimo Terceiro membro, lançaram-se para o vazio.

Foi então que as pedras desapareceram das suas mãos, o seu Dom abandonou-as. Uma luz ofuscante cegou-as.

Sentiram-se a cair, cair... A Esperança que tinham final mente dado aos outros transformara-se numa chuva de ouro que se espalhava sobre o mundo, saciando o coração de todos. Os soldados da Escuridão, os da Luz pararam de combater e levantaram os olhos ao céu, o rosto banhado de chuva de ouro e de felicidade.

Quanto às três raparigas, estavam a poucos metros do solo, da morte. Haviam-se sacrificado. Tinham perdido o Dom... e, no entanto, a Esperança dominava-as mais do que nunca.

Subitamente, sentiram garras cravarem-se na sua carne. As aves de rapina tinham-nas agarrado. Mas elas já não tinham medo, pelo contrário, todas as suas angústias haviam desaparecido e pensavam, aliviadas, que estavam bem vivas. A chuva de Esperança nimbara de ouro a plumagem das aves de rapina e tinha-as transformado. Jade, Opala e Âmbar sentiram que elas já não lhes queriam mal. Elas tinham-lhes salvo a vida.

Apontaram em direcção ao campo de batalha e, com suavidade, pousaram as três raparigas antes de levantarem novamente voo.

Jade, Opala e Âmbar não conseguiam compreender o que lhes tinha acontecido. Repararam que Elyador, Adrien e Oonagh vinham em direcção a elas. À sua volta, todos os adversários tinham cessado o combate e pareciam ter adquirido uma repentina beatitude.

Opala e Âmbar rebentavam de alegria. Precipitaram-se na direcção dos dois jovens, comovidas. Quanto a Jade, dirigiu- se a Oonagh.

- Conseguimos? - perguntou ela. - Vencemos o Mal?

- Sim - respondeu a criatura mágica. - Vós repelistes o Mal. Mas um dia ele vai voltar. Nunca poderemos destruí-lo definitivamente.

- Mas então - balbuciou Jade - tudo o que fizemos... não serviu para nada!

- Graças a vós, o Mal foi afastado. A paz reinará agora durante alguns séculos... E se continuarmos a lutar, a cada momento, contra a ira, o medo, a intolerância que habitam os nossos próprios corações, talvez ele não volte nunca mais.

Jade tinha vontade de chorar. Ela que acreditara ter aniquilado a Escuridão para sempre!

- E agora, o que é que se vai passar? - perguntou-lhe ela.

- O Exterior e o Conto de Fadas irão ser reunificados num só país, o Reino.

- E o Eleito, vai ser o nosso Rei?

Ouvindo o seu nome, Elyador aproximou-se, acompanhado de Âmbar.

- Não - disse ele com ternura - não serei o Rei. Eu não quero governar.

- No princípio, de acordo com o que disse o Décimo Terceiro membro - explicou Jade -, o Conselho dos Doze queria instaurar a paz... A pouco e pouco, inebriado com o poder, tirou a liberdade ao povo. Não sei se é verdade, mas...

- Isso é verdade - interrompeu Oonagh. - É precisamente por isso que Elyador tem razão. Ele foi Rei durante uma batalha, sê-lo-á ainda até à reunificação do Reino.

Depois disso, ele dará a liberdade a todas aquelas pessoas que nunca souberam o que isso era... É preciso evitar cair no erro do Conselho dos Doze. O poder transforma os homens. Elyador não será Rei.

- E eu? - perguntou Jade. - E Âmbar, e Opala? O que é que vai ser de nós?

- Vós é que ireis escolher - declarou Oonagh. - A partir de agora, sois livres para decidirdes o vosso destino.

Jade pensou no seu pai, o duque de Divulyon, que iria rever brevemente.

De repente, uma pepita de ouro caiu aos pés de Elyador. Ele apanhou-a. Tinha a forma de um grão. Mostrou-a a Âmbar.

- Será a tua pedra? - perguntou ele.

- Não - respondeu a jovem, a rir. - As nossas pedras já não existem. Transformaram-se em chuva de ouro.

Opala e Adrien aproximaram-se.

- O que é que se passa? - perguntou Opala.

- Encontrámos isto - respondeu o Eleito, mostrando-lhe o grão de ouro.

Oonagh observou a pepita com ar pensativo.

- Guarda-a no teu guarda-jóias, Elyador - disse ela.

-O que é?

- Um grão de Esperança - murmurou Oonagh, pensativa. Elyador seguiu a recomendação da criatura mágica.

- Agora, enterra o guarda-jóias - disse Oonagh. Elyador, cada vez mais intrigado, obedeceu. Logo a seguir, começou a crescer uma árvore. O seu tronco era da cor da prata pura. Em poucos instantes, rebentaram longos ramos onde baloiçavam folhas de ouro cintilantes.

- Graças a esta árvore - explicou Oonagh -, a recordação do combate de hoje atravessará os séculos. Enquanto resplandecer, isso significará que o país está em paz. Quando o seu tronco escurecer e as folhas caírem, é sinal que a Escuridão está próxima. Hoje, o Bem é o grande vencedor. Alegremo-nos com isso.

Jade, Opala e Âmbar olharam para a árvore da Esperança, que resplandecia, aureolada de gotas de ouro.

 

                     Paris, 2002

Acordei. Desta vez, acabou. A Morte está a chegar. Mas eu tenho que viver. Para que o meu sonho se torne realidade. Olho pela última vez para a minha mão direita. Na palma da minha mão, o sol reflecte os seus raios com majestade. A Esperança. Guardei-a para mim; deixei que a minha doença me vencesse. Vou morrer, a Esperança vai extinguir- se. Fecho os olhos. Custa mesmo muito partir.

Aí está. Ouço os passos da Morte. A sua respiração fria toca ao de leve o meu rosto. Tenho vontade de chorar. As lágrimas não vêm. Tenho vontade de gritar, mas já não tenho forças.

Queria partir sem sofrer. Sem mágoas. É impossível. Sufoco. Tudo se apaga à minha volta. Só estamos nós, a Morte e eu. Ela estende-me a mão. Sinto-me tão mal...

As enfermeiras acotovelam-se no quarto. A porta abre. O Dr. Arnon entra, impassível.

- O que é que se passa? - pergunta ele.

- É a pequena, a que não tem pais - responde uma enfermeira. - Está muito mal.

O Dr. Arnon dirige-se à cama onde está deitada a doente. O seu corpo mirrado é sacudido pelos espasmos; os seus lábios secos deixam escapar alguns gemidos.

- É o fim - disse ele num tom sério.

De repente, um rasgo de lucidez parece atravessar a moribunda. Grita:

- O telefone!

Em seguida, numa voz trémula, sussurra:

- Tenho... tenho... que chamar... alguém.

O Dr. Arnon acenou com a cabeça em sinal de aprovação e, dirigindo-se a uma das enfermeiras, disse:

- É o seu último desejo - diz baixinho - não podemos recusá- lo.

Não tenho o direito de morrer! Tenho que transmitir a Esperança. E se for demasiado tarde? A Morte está tão perto. No entanto, continuo a acreditar no meu sonho, no impossível. Nada mais me resta do que isso, a Esperança. Deveria tê-la dado aos outros. Mas não o fiz. Porque não acreditar ainda nela? Enquanto estiver dentro de mim, será que a Morte pode mesmo levar-me?

O médico e as enfermeiras saíram do aposento. A doente, febril, agarra no telefone e marca um número. Ainda o sabe de cor. A voz que perseguiu os seus sonhos, como os seus pesadelos, responde-lhe.

- Vou morrer - diz ela numa voz débil. - Perdoo-te. Mas, agora, cabe a ti escolher. Ou me esqueces, ou... sabes o que tens que fazer.

- Joa? És tu, Joa?

Mas a doente já desligara.

Pronto, está feito. Telefonei-lhe. Elie Ador, aquele que eu amei, aquele que me abandonou. Porque é que fugiu, da primeira e única vez que veio ver-me? Fiquei convencida que não contava para ele. Mas talvez ele tivesse medo. Do hospital, da Morte que rondava nos corredores. Daquilo em que eu me transformara.

Agora, nada disso tem importância.

No fundo, Sem Nome saiu das Trevas. O sangue que tinha nas mãos não o impediu de vir a ser o Eleito. Se souberam perdoar-lhe, fazer dele um Rei... Porque não perdoar a Elie?

A minha respiração é cada vez mais ofegante. Quase já não ouço o bater do meu coração. A Morte espreita, impaciente.

- Ouça, ela está muito fraca - diz a enfermeira. - São talvez os seus últimos momentos.

- Você não pode impedir-me de a ver! - diz o jovem, exaltado. - Tenho que ir para junto dela. Ela tem que viver!

- Receio que seja demasiado tarde - responde a enfermeira. Ela observa o jovem. Cabelos castanhos desgrenhados, olhar de desespero.

- Nunca veio vê-la, pois não? - perguntou ela.

- Uma vez - diz o jovem com uma voz triste. - Deixe-me ir vê-la - implorou ele.

A enfermeira reflectiu por um momento.

- Pode ir - murmurou ela -, mas não demore.

Não sei se Elie virá. Mas olho o sol na palma da minha mão e acredito que sim. Acredito no impossível, acredito no meu sonho. Acredito no Elyador. Espero. Muito simplesmente.

A Morte está perto de mim. Tanto pior. Esperará. Vou viver. Porque é preciso. Porque eu quero. Sonhei. Agora, prefiro viver, mesmo que volte ao mesmo.

O meu sonho trouxe-me de novo à vida. Resta-me levar o sonho a essa minha nova vida.

  

                                                                                Flavia Bujor 

 

 

                      

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