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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PROFECIA - P.2 / John Kilgallon
A PROFECIA - P.2 / John Kilgallon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

                                  Capítulo Vinte e Três

Era fim de tarde quando Khalish recebeu a ligação na Costa Rica. Como antes, a conversa aconteceu inteiramente em espanhol.

Está tudo certo com as opções das ações de Londres. Todo.

Houve uma pausa para deliberação.

Bueno. Vá em frente. Mas assegure-se de que a compra aconteça de forma limpa e sem percalços. Nada de deixar opções soltas no mer­cado, como da última vez.

Entendido. Vou supervisionar o assunto pessoalmente. — A mensagem era clara: o que aconteceu em Milão não podia se repe­tir. Uma pausa carregada. O outro assunto em questão, os terroris­tas das mesquitas e suas exigências, era mais delicado. — E quanto àquele outro grupo que está fazendo alarde sobre uma proposta de aquisição?

Outros fatores podem muito bem surgir e mudar a direção disso. Assim, minha intenção agora é simplesmente esperar para ver. — Mais uma longa pausa do outro lado, como se o interlocutor estivesse espe­rando que Khalish explicasse o que os "outros fatores" poderiam ser. Khalish não explicou. — Mantenha-me informado sobre o resultado daquela compra — disse ele, e desligou.

 

 

 

 

LONDRES

Meio dia tinha passado e ainda nenhum pico de atividade significativo.

A pressão aumentava a cada hora na sala de operações. Ela aumen­tava quando os níveis subiam um pouco — o pico até então tinha sido de seis por cento — e aumentava quando não subiam. O fato de que Adel marchava de um lado a outro e a cada vinte minutos gritava por atualizações de cada setor também não ajudava.

No meio da tarde, a sala de operações era um barril de pólvora.

A atividade em Londres tinha escalado mais três por cento. Nove por cento no total.

Adel repassava regularmente as fotos dos "possíveis suspeitos e asso­ciados" tiradas nas mesquitas e madrassas, nas comunidades muçulma­nas locais e em reuniões de estudantes. Mas nesse dia ele tinha dificul­dade de se concentrar nelas.

Um rosto pareceu acender uma luz por um momento, mas Adel não conseguiu se lembrar de onde. Ele o contrastou rapidamente com os cerca de cinqüenta alvos primários impressos indelevelmente em sua cabeça. Nenhuma combinação. Nada relevante. Ele colocou as fotos de lado.

Só uma coisa ocupava sua mente no momento.

No fim da tarde, a atividade aumentara mais dois por cento. Onze por cento. Não era o tipo de pico que eles associavam com grandes ope­rações — estes normalmente ficavam entre trinta e sessenta por cento. Mas era alguma coisa.

E Adel ainda tinha toda a energia e a tensão borbulhantes da sala de operações atravessando seu corpo quando, às 18h38, ele passou pela estação de Victoria para pegar o trem de volta para casa.

Se não soubesse pelo seu dia de trabalho que algo estava aconte­cendo, ele descobriria agora ao passar pelo terminal da estação. Havia quatro vezes mais policiais armados presentes que o normal, com pon­tos nos ouvidos e submetralhadoras MP5 de prontidão. O bastão fora passado: Fizemos tudo o que podíamos de nossa parte — agora tentem encontrá-los. Detenham-nos!

Faltavam sete minutos para que seu trem saísse, e ele continuou a encher depois que Adel entrou. Ele pegou o assento da janela numa fileira de três. No fim do corredor, havia uma mulher de meia-idade falando com uma menina adolescente sentada à sua frente — Adel pre­sumiu que fosse sua filha —, e eram os únicos assentos ocupados quan­do ele chegou. Dois minutos antes da partida, todos os lugares estavam tomados. Quando o sinal de partida soou, havia também uma dúzia de pessoas em pé no corredor.

Adel não deu muita atenção ao homem sentado na cadeira do meio à sua frente até um minuto antes de o trem partir. Ele tinha 30 e pou­cos anos, de origem árabe ou do sul do Mediterrâneo, cabelos negros rareando na testa, terno cinza-claro; apenas mais um entre os milhares semelhantes que trabalhavam no centro de Londres. Só isso não teria sido suficiente para chamar a atenção de Adel.

Foi o modo como seus olhos começaram a passar nervosamente pe­las pessoas à sua volta: de Adel para a mulher ao seu lado, depois para as pessoas se aproximando no corredor à medida que o trem se enchia. Ele parecia preocupado, preocupado demais, com quem estaria a seu lado.

E a valise bege em seu colo não estava pousada de forma relaxada, nor­mal: ele a apertava com toda sua força, como se contivesse barras de ouro, ou como se sua vida dependesse dela. Ou a vida daqueles ao redor.

Uma gota de suor desenhou uma trilha pela testa do homem. Seus olhos encontraram os de Adel, que desviou o olhar. O trem começou a andar. Era tarde demais.

Adel fechou os olhos e disse a si mesmo que não era nada. Provavel­mente o homem era só um contador estressado pela pressão do dia, com o calor e com a aglomeração no trem agravando a situação.

Lembrou que, não muito depois do atentado de 7 de julho, ele viu um grupo de adolescentes de aparência árabe com mochilas nas costas entrando no trem em que ele voltaria para casa. Deixou o trem passar e pegou o próximo. E ele tinha certeza de que inúmeros outros londrinos haviam feito a mesma coisa naquela época.

Uma semana atrás, antes de Milão, se um garoto nervoso com uma mochila se sentasse a seu lado, ele se sentiria igualmente alarmado como se sentia agora.

Mas Adel tinha visto as imagens da segurança pública de Milão, os jovens em ternos claros e alinhados, com valises e mocassins Gucci. E de repente, a mensagem era: "Poderia ser aquele homem de terno que parece um contador ou um corretor da bolsa sentado bem na sua frente. Pode ser qualquer um!" Obviamente, isso era o que Khalish pretendia.

Adel abriu os olhos novamente ao ouvir um bebê chorar. Uma jo­vem mãe de aparência cansada, bebê no colo, estava de pé no corredor a 4 metros de distância. Ele estava prestes a se levantar para ceder o assento a ela, mas então pensou que, se fosse uma bomba, o bebê seria o primeiro a ser atingido na explosão. Nenhuma chance de sobrevivência. Duras imagens de Milão invadiram seu cérebro — corpos mutilados e esmagados, uma mulher desesperadamente agarrada a seu filho, já mor­ta. E, enquanto ele fazia essa pausa — paralisado entre aquelas imagens fantasmagóricas e a racionalidade —, um jovem mais perto dela ofere­ceu o lugar.

Os olhos do homem em frente pousaram sobre ele por mais um se­gundo antes de seguir saltando ansiosamente para os outros passagei­ros, outra gota de suor agora caindo de sua testa. Adel se virou e olhou distraidamente pela janela do trem enquanto ele disparava pelos trilhos, dizendo a si mesmo que não era nada. Só seus próprios demônios. Não era nada...

Mas ao ver seu reflexo assustado no vidro, percebeu que se tornara uma patética confirmação do sucesso de Abu Khalish. Pois não eram os trinta ou quarenta mortos que importavam para o terrorista; eram os milhões mais que ele aprisionava em terror.

 

                                             Capítulo Vinte e Quatro

— É só o Jem, Sam. Nada com que se preocupar — assegurou Mike pelo telefone.

Ah, sim, "só o Jem" quase me matou de susto!

Desculpe por isso. Eu devia ter te avisado sobre ele. Ou melhor, devia ter avisado Jem sobre você. Ele é o único que usa sua cabana o ano todo, então se tornou uma espécie de guarda não oficial. Eu sempre peço ao Jem para dar uma olhada na minha cabana. Ele viu a luz acesa, mas não o meu carro... — Mike suspirou. — Desculpe. Eu devia ter dito a ele.

Sam olhou de volta para Jem, que esperava pacientemente do lado de fora. Tinha 50 e muitos anos, feições desgastadas e alguma ascen­dência pele vermelha; embora só se notasse olhando com atenção. E o pouco cabelo que ainda tinha era duro como palha de aço.

Alguns minutos antes, Sam abrira silenciosamente a porta de trás e vira uma picape aberta Chevrolet dos anos 1950 estacionada a cerca de 10 metros. Não parecia um típico meio de transporte de uma equipe da SWAT — e estava vazia. Não havia outras lanternas ou sinal de outras pessoas. Então ouviu o homem na frente falando ao telefone com al­guém que ele só podia imaginar que fosse Mike. "Sim, sim. Tentei falar com você mais cedo, mas você não atendeu, então achei melhor vir até aqui e conferir. Um amigo... Ok. Sim. Sim. Vou fazer."

Sam já tinha voltado até a porta da frente a essa altura. O homem sorriu em reconhecimento quando ele a abriu.

Ele está aqui agora, na verdade... sim. Ok. — Ele se virou para Sam e estendeu o celular. — Mike quer dar uma palavrinha com você.

Sam se afastou um pouco ao falar com Mike.

Teria ajudado, com certeza — dizia Sam agora.

De novo, desculpe. — Mike arriscou uma risadinha. — Só encare isso como um ensaio para quando acontecer de verdade.

Ah, vá se foder...

Sam se virou e devolveu o telefone a Jem.

Avise se você precisar de alguma coisa — ofereceu Jem, partindo com sua lanterna-quase-holofote.

Mike deu alguns detalhes sobre Jem quando veio trazer compras no dia seguinte.

Ele costumava trabalhar para Vince Corcoran. Ainda trabalha de vez em quando, entre mexer em carros customizados e pescar... desde que seja limpo, "não criminoso".

De uma linhagem que remontava até o chefe moicano John Deseronto, Jem costumava viver na reserva Akwesasne na fronteira entre Nova York e Ontario.

Naquela época, seu trabalho com Corcoran era criminoso, con­trabandeando bebida e tabaco, mas não drogas, pela fronteira do Cana­dá. A polícia fez buscas na reserva quatro vezes, e finalmente conseguiu acusá-lo de alguma coisa. Os anciões de Akwesasne alegaram que ele "trouxe vergonha para a comunidade", e enquanto Jem estava preso, du­rante três anos, o baniram da reserva e ele perdeu sua casa.

"Foi um golpe duro para Jem pessoalmente, para alguém ligado diretamente a Deseronto. Corcoran se sentiu responsável, então com­prou a cabana aqui para ele. Eu comprei a minha um ano antes. — Mike deu de ombros. — Provavelmente foi bom que vocês se encon­traram. Ele pode ficar de olho em você também. Jem é uma fera com um rifle."

Uma equipe de elite da SWAT contra um índio velho com uma pica- pe e um rifle. Sim, Sam se sentia muito mais seguro agora. Mas ele sabia que Mike tinha boas intenções.

Depois que Mike saiu, Sam lembrou que ainda havia algumas pessoas a quem até agora ele não tinha contado sobre Lorrena: Kate, Ashley e seu pai, Ross. Viúvo havia oito anos, Ross Tynnan ainda morava no ban­galô de Eastbourne, na costa sul da Inglaterra, que ele dividira com a mãe de Sam. Falavam-se pelo menos uma vez por mês, e Ross gostava particularmente de saber dele depois de seus encontros com Ashley. Ele cresceu muito? Como ele está indo na escola?

Era estranho. Quando pensava em Lorrena — sua namorada, seu amor, uma das pessoas mais gentis e amorosas que ele já havia conhe­cido, agora morta num acidente trágico —, ele sentia que seu coração se despedaçava. Mas depois, quando pensava em toda a atividade clandesti­na da qual ela participara, seu peito congelava e ele podia ouvir a mudan­ça de tom na própria voz. De repente, ficava mais fria e distante, como se ele fosse um repórter indiferente dando a notícia. E assim ele tinha que manter a mente fixa na Lorrena certa quando fizesse as ligações.

Ele respirou fundo e pegou o telefone.

 

O silêncio de nosso amado amigo, Abu Khalish, fala em alto e bom som. Nós proclamamos desde o princípio que ele pouco se importa com o islã, mas não sabíamos então o quanto isso se provaria verdadeiro com o de­senrolar dos acontecimentos.

Três monumentos sagrados do islã profanados, mas Abu Khalish — o grande defensor do islã — fica à margem e nada faz. Ele se considera mais valioso. O insulto supremo, a arrogância suprema. Ele se coloca acima dos exaltados locais de oração a Alá. Vemos agora com nossos próprios olhos o que é mais importante para este homem: ele mesmo e sua equivocada luta contra o Ocidente. O islã, apesar do que ele vem afirmando ao longo dos anos, é colocado num pobre terceiro lugar.

Mas Alá é acima de tudo misericordioso. E assim nós concedemos a Abu Khalish mais 48 horas para que ele se redima, para recuperar sua honra e a contínua santidade do islã.

 

Como todos na sala de operações, Adel ficou em silêncio por um mo­mento depois da transmissão. Em seguida, o burburinho foi ressurgin­do lentamente.

Ele tentou ignorar os terroristas das mesquitas por dois dias para manter seu foco nas atividades em Londres, mas eles não permitiram. O vídeo foi recebido pela Al Jazeera do Qatar cedo pela manhã e, pelo horário marcado na tela, foi feito quatro horas antes. Ou seja, 38 horas até o fim do prazo.

Talvez, como no caso de Milão, a intenção dos terroristas fosse rou­bar a cena de Khalish. Se eles tinham algum acesso às redes de inteligên­cia — o que o relato de Tynnan certamente sugeria, caso fosse verdade —, então saberiam que Khalish tinha uma operação planejada em Lon­dres. Na verdade, eles saberiam só de ver os jornais. Estava passando na TV desde o começo da noite anterior: "Alerta de segurança crítico em todas as redes de transporte ao redor de Londres." Mostraram até ima­gens de policiais armados no aeroporto de Heathrow e na estação Kings Cross.

Adel sentiu todo o nervosismo renovado entre os colegas de trem no caminho para o trabalho naquela manhã. Ele não era o único que observava os outros passageiros.

A atividade em Londres atingira um pico de 13 por cento no fim da manhã, mas depois começara a retroceder. No meio da tarde, estava em dez por cento. Às cinco, quando os trabalhadores começaram a encher os trens no caminho de volta para casa, estava em apenas oito por cento. Adel estava perplexo; a maior parte do seu dia até ali se passara revisan­do e cruzando estatísticas. Talvez eles finalmente tivessem descoberto um jeito de burlar o Echelon e todos os outros sistemas de segurança. Improvável.

E, apesar do que as estatísticas diziam agora, Adel sabia que os ní­veis de pânico continuavam altos. Ele reparou que alguns passageiros no trem daquela manhã pregavam olhares mortais numa dupla de homens árabes de meia-idade vestindo thobes na estação de Victoria. Até parece que os terroristas escolheriam roupas tradicionais...

Adel congelou. Thobes! Grupos de devotos vestindo thobes saindo da mesquita de Westbourne Grove. Adel de repente se lembrou de onde co­nhecia o rosto nas fotos de ontem.

Ele foi até a cabine de arquivos e sacou as fotos. Não era ninguém em seu radar de segurança normal; provavelmente por isso ele não recor­dara na véspera. Mas estudando a foto agora, restavam poucas dúvidas: Akram, o criado de Omari. Eles nunca tinham se encontrado, mas ele já vira fotos suficientes no arquivo do MI5 sobre Omari e suas idas e vin­das da casa em Lancaster Gate para ligar o nome à pessoa.

E havia outro detalhe que ele reparava agora ao examinar a seqüência mais atentamente: enquanto alguém na frente conversava com o imame Muhyi, Akram estava ao fundo conversando com Wajd Masahran, um dos principais contatos radicais de Omari.

Adel sentiu um aperto no peito quando tudo subitamente se encai­xou: Londres. A falta de picos de atividade. Omari, o informante. Ele re­zou para não ser tarde demais.

Akram passou a maior parte do dia longe de casa.

Ele queria evitar que Omari o olhasse nos olhos, temendo o que poderia ver.

Cinqüenta anos de relação para acabar assim! Ele pensou muito na­queles dias, especialmente quando os dois eram mais jovens, e sentiu lágrimas rolando lentamente por seu rosto enquanto se sentava num banco em Hyde Park, os olhos fixos à frente. Os transeuntes cruzavam seu campo de visão, mas ele não via ninguém.

Akram afastou os pensamentos bruscamente. "Não. Foi Omari quem me traiu! Me traiu assim como traiu todos os seus irmãos. Sorrindo e doando para organizações de caridade palestinas a cada ano para man­ter as aparências, quando o tempo todo vendia sua alma para os infiéis. Por quanto tempo ele agiu assim? Quando aquela mudança havia acon­tecido?" Talvez Omari sempre houvesse sido um Judas e Akram jamais o conhecera de verdade.

Akram andou até Oxford Street, misturando-se aos compradores vespertinos. Havia algumas pessoas, como ele, vestindo thobes ou jilbabs árabes, porém não mais que um punhado. Os outros usavam roupas ocidentais: calças jeans, camisetas, meninas de saias curtas, blusas decotadas ou com a barriga à mostra — os umbigos adornados com biju- teria ou tatuagens em forma de raios de sol. Normalmente, ele achava a atmosfera revigorante, mas hoje tinha vontade de gritar: Vocês viraram a cabeça do meu irmão, afastaram-no de mim com seus hábitos vazios. Roubaram sua alma!

Akram sabia que nenhum deles, com suas esperanças e ambições vazias — centradas em pouco mais que compras, sexo e no líder da tabe­la do campeonato —, compreenderia de verdade a ligação entre irmãos muçulmanos, unidos sob Alá.

Portanto, eles jamais entenderiam o que exatamente haviam quebra­do. Talvez por isso a coisa acontecera sem que ele percebesse ou adivi­nhasse, tão casualmente, como tudo nesta sociedade descartável — sexo, amor, fidelidade, honra. Porém ele esperava mais de Omari. Eles eram iguais, mesma origem e mesma história. Como gêmeos. Por isso aquela traição agora era como fitar o espelho e ver que metade de seu rosto estava subitamente diferente, irreconhecível.

E então Akram desejou não olhar para aquele novo rosto, desviando os olhos para não ter que aceitar. Assim ele poderia se agarrar às velhas imagens e memórias, antes da traição.

Omari estava na sala de estar quando Akram voltou para casa, e ele pôde passar rapidamente com um breve aceno de cabeça. Salaam.

Akram se ocupou na cozinha, mas ainda podia sentir toda a movi­mentação e a atividade de Oxford Street, toda a raiva, ainda correndo em suas veias. Ele teve de se apoiar no balcão da cozinha para controlar o tremor em seu corpo. Akram fechou os olhos após um segundo. Eli­mine as imagens também.

Você está bem? — Omari estava olhando do corredor.

Sim, estou. — Akram levantou a cabeça lentamente e se obri­gou a sorrir. — Repassando os ingredientes de hoje à noite na cabeça. Certificando-me de que não esqueci nada.

Se a essa altura você não se lembra de como cozinhar tagine de cordeiro, não vai lembrar nunca. — Omari riu. — Vou ao hammam.

Akram assentiu.

Levarei as toalhas em breve. — Assim que meu corpo parar de tremer.

O que estava por vir, o que ele tinha que fazer, pesava mais e mais a cada minuto.

Ele adiantou apenas cinco minutos para levar as toalhas. Saia o mais rápido possível, disseram eles. Dê o maior espaço de tempo possível.

Akram pôde ouvir o barulho do mergulho na água quando chegou aos últimos degraus. O ritual de sempre: 15 minutos na piscina, vinte minu­tos na sauna, mais 15 ou vinte minutos na piscina.

Ah, as toalhas já. — Omari ergueu uma sobrancelha. — Mais cedo hoje?

Era outra parte do ritual. Normalmente Akram trazia as toalhas logo depois que Omari saía da sauna.

Sim, eu... tenho que voltar ao Mukhtars para comprar o cordeiro.

Achei que você já tinha ido mais cedo.

A entrega de halal havia acabado de chegar quando eu estava lá. Mukhtar pediu vinte minutos para desempacotar. Não demoro. — Akram fez uma breve mesura com a cabeça e saiu para evitar mais per­guntas. Antes que Omari visse a mentira em seus olhos.

Omari balançou a cabeça e sorriu para si mesmo. O que quer que es­tivesse perturbando seu amigo, desta vez era algo grande. Dê tempo ao tempo, ele pensou enquanto deixava seu corpo cair e começava a boiar. Dê tempo ao tempo.

Akram subiu as escadas correndo, os tremores quase fora de contro­le agora, e pegou a bolsa que tinha arrumado na noite anterior e escon­dido sob a cama.

Ele parou por um segundo na porta da frente. Depois, como combi­nado, deixou uma fresta de alguns centímetros.

Akram se afastou às pressas. O Mercedes cinza estava onde disseram que estaria, a 80 metros da casa. Ao passar, ele meneou a cabeça rapida­mente para os dois homens lá dentro. Ele também não conseguiu olhar em seus olhos.

Adel tentou o celular de Omari. Ninguém atendeu; caiu direto na caixa postal depois de chamar quatro vezes.

Ligue para mim com urgência no instante em que receber isto. — Ele tentou o telefone de casa.

Depois de cinco toques sem resposta, Adel saiu correndo, gritando para Malik: "Tenho que ir a um lugar."

No nono toque, quando já estava no elevador, ele desligou.

Adel chamou um táxi e tentou ligar novamente quando chegaram ao primeiro sinal. Ele mordeu os lábios, o peito apertado. Nenhuma res­posta ainda.

Havia um atraso de três minutos para gerar um alerta geral pela cen­tral do MI5 e da polícia metropolitana e, se ele estivesse errado, passar uma mensagem aberta no sistema era a última coisa que queria. Depois ele lembrou que ainda tinha o telefone de Bob Losey na memória desde a operação com Corliss. Ele discou.

Bob. Adel do TAME de novo. Tenho um possível problema em Lancaster Cate e preciso de ajuda. Onde você está?

South Kensington. Terminando um chamado na embaixada.

Bom, é 1 quilômetro a menos que eu. — Adel explicou o que queria e passou o endereço.

Sem problema. Pego um atalho no parque; estarei lá em cinco ou seis minutos.

Ah, e Bob? Pode me ligar no segundo em que chegar lá? Me in­forme como está o terreno.

Pode deixar.

Adel observava vagamente as ruas de Londres no caminho, rezando para estar errado ou para que não fosse tarde demais. Mas, após algum tempo, tudo o que elas faziam era lembrá-lo de onde ele se encontra­va com Omari. Local três, local quatro... Os encontros clandestinos que agora provavelmente tinham levado à sua sentença de morte.

Ele fechou os olhos ao sentir o peso da responsabilidade sobre seus ombros. Um risco aceitável, uma vida perdida para salvar centenas; a velha desculpa do departamento. Mas, com o que Adel sabia sobre o histórico de Omari e sobre as razões que o tornaram um informante, essa era uma perda que ele simplesmente não podia aceitar.

O trânsito estava engarrafado quando eles chegaram à Picadilly, e no momento em que o táxi finalmente entrou em Park Lane, Adel olhou o relógio. Provavelmente Losey já havia chegado, mas ainda não ligara. Adel tentou contatá-lo novamente.

Uma explosão de sirenes se fez ouvir ao fundo quando Losey atendeu.

- Sim?

O que está acontecendo? Você já chegou?

Sim, estou aqui. — Losey parecia um tanto sem fôlego, andando e falando ao mesmo tempo. — Mas, eu... eu preciso de um minuto para descobrir o que está acontecendo.

Por quê? O que aconteceu? O que você está vendo? — As sirenes estavam cada vez mais altas, e havia uma confusão de vozes ao fundo. Adel sentiu um vazio no estômago. — Fale comigo, Bob!

Uma longa pausa do outro lado da linha: Losey não queria comentar ou simplesmente não sabia?

Como eu disse, preciso falar com algumas pessoas aqui. Entender o lance. Já ligo de volta.

Não se preocupe. Até lá eu já estarei aí — respondeu Adel seca­mente, e desligou.

Ele fechou os olhos novamente por todo o quilômetro restante. Por­que ele já sabia. Antes que o táxi entrasse na rua e ele visse as manchas negras da explosão na porta de Omari, antes que ele visse os caminhões dos bombeiros, o enxame de policiais e paramédicos, antes que Bob Lo­sey viesse em sua direção quando ele saltou do táxi. Ele sabia que era tarde demais. Abu Khalish tinha chegado primeiro.

 

                         Capítulo Vinte e Cinco

"A primeira compra de ações já foi efetuada. A segunda será feita nas próximas horas."

A mensagem estava esperando no celular de Abu Khalish quando ele saiu da piscina. Como anteriormente, referências obscuras para o caso de o Echelon estar escutando. Compra de ações: assassinato.

Khalish sempre considerou que os melhores planos eram os mais simples. Em Copenhagen, Paris e enfim Milão, ele tinha certeza de que houve um informante na rede. A única pergunta era: onde?

Ele reduziu a lista a 11 possibilidades, e assim organizou para que cada um deles fosse informado sobre uma cidade-alvo diferente. Sem nenhuma outra atividade para lançar um alerta de segurança, ele sabe­ria — pela cidade que emitisse um — onde estava o elo fraco na corren­te. Neste caso, Londres: Fahim Omari.

Na casa de Khalish, metade da mobília estava coberta por lençóis brancos. Pela manhã, os criados estariam carregando malas em seu car­ro. Hora de seguir em frente.

Havia outra coisa além daquela última compra de ações em Londres que ele precisava fazer antes de ir. Já tinha visto alguns artigos na im­prensa árabe sobre as explosões nas mesquitas, e assim passou adiante a sugestão para que cinco de seus contatos fortalecessem aquele ângulo de envolvimento "ocidental".

Ele checou o computador. Três tinham respondido: dois já haviam colocado aquela sugestão em marcha, o outro o faria em breve. Mas o pós-escrito de um dos dois primeiros o intrigou: "Uma das fontes indicou que aparentemente alguém já havia feito uma insinuação parecida."

Khalish ficou feliz por mais alguém estar cuidando de seus interes­ses. Mas o que começava a preocupá-lo era não só desconhecer quem o ajudava, mas, acima de tudo: por quê?

No início da tarde seguinte, Jean-Pierre ligou.

Sam disse:

Tenho uma visita aqui no momento. Eu ligo de volta em meia hora.

Mike sugerira que, se Jean-Pierre ligasse novamente, Sam deveria falar com ele.

Foram quantas? Trinta ou quarenta pessoas com quem você falou durante a pesquisa? Então essa é a sua probabilidade: uma chance em trinta ou quarenta de que ele seja o contato de Washington. Mas há um teste simples que podemos fazer.

Sam ligou para Mike nesse meio-tempo; ele queria Mike a seu lado quando fizesse o teste, e também para dar opiniões imediatas, caso fosse necessário.

Tentei falar com você antes, mas aí fiquei ocupado com outra coisa — começou Jean-Pierre. Aquela "outra coisa": passar cada hora possível examinando as 11 páginas perdidas de Nostradamus vindas de Vrellait, na verdade também tinha sido o principal motivo que o impul­sionou a tentar a ligação de novo. — Não pude deixar de notar que os recentes atentados a mesquitas têm seguido mais ou menos o padrão que você mencionou no ano passado. Tudo que parece ter mudado é a ordem entre Alexandria e Islamabad.

Talvez nem isso. Nas minhas anotações iniciais, Islamabad vinha primeiro, só que mais tarde eu troquei a ordem das duas. Então, se as explosões estão seguindo as minhas últimas anotações, são exatamente o mesmo padrão.

Ele ouviu Jean-Pierre respirando fundo.

Nossa, é pior do que eu pensei. — Na verdade, ele pensou que era melhor. Mais uma vez, suas previsões lhe serviam bem. — Mas isso me leva ao principal motivo pelo qual eu liguei agora. Porque, veja bem, es­tou planejando meu próprio livro, todo sobre profecias e vidência. E me dei conta de que, com esses atentados a mesquitas, você de certo modo previu o futuro; e, na verdade, com o que me contou agora, previu com muito mais precisão do que eu imaginava. E claro, isso ganha ainda mais crédito, relevância e importância por nosso contato. Pode simplesmente ser combinado com outros fatores e eventos similares... e valer um capí­tulo inteiro. Ainda não decidi. Mas pensei...

Eu... eu não sei se é mesmo o caso — interrompeu Sam. Sua cabe­ça começou a girar com a conversa disparada de Jean-Pierre sobre seus planos para o livro. Mike aconselhou a contar a seqüência real das ex­plosões caso Jean-Pierre fornecesse alguma informação útil a respeito, mas a evitar qualquer menção à longa saga de ter sido alvo de um ataque e do roubo de um manuscrito. Passe por cima disso fingindo que acon­teceu no período de pesquisa. — A questão é que — continuou Sam —, assim como você sabia a ordem das explosões nas mesquitas por causa dos nossos contatos, outros também sabiam. E aqueles com quem falei depois, quando refinei minhas notas e troquei a ordem entre Alexandria e Islamabad, sabiam a seqüência exata. Ou seja, talvez não tenha sido um caso de vidência de forma alguma. Simplesmente alguém passando informação indevida para outras partes... talvez até sem querer.

Ah, entendo. — Jean-Pierre soltou um suspiro derrotado e fi­tou os papéis à sua frente. De repente, ele não estava mais tão certo de que valia a pena passar a informação adiante. Na noite anterior, ele conversou com Corinne sobre os novos trabalhos com Vrellait e como tudo podia estar conectado. Pela primeira vez, o conselho dela talvez estivesse errado. Mas alguma coisa naquela seqüência de eventos ainda parecia vaga, confusa. — Desculpe se nesse meio-tempo esqueci... mas, no seu manuscrito, por que os atentados estavam acontecendo? Qual era o propósito?

Sam se lembrou de que, com todos os contatos, ele só partilhara informações relativas à área de cada um. Para os especialistas em islã e terrorismo, ele contara o pano de fundo com Abu Khalish. Para Jean- Pierre, a informação mencionada se concentrava em Nostradamus e Mabus. Portanto, nenhum contato teve acesso à história completa.

O objetivo inicial era fazer pressão para que Abu Khalish se en­tregasse. — Sam explicou as exigências após cada atentado. — O que mais tarde levava ao anúncio de Bahsem-Yahl, o "Mabus" que você su­geriu, de que ele acreditava que os terroristas eram agentes do Ocidente. O que, claro, ameaçava mais conflitos com o islã.

Eu me lembro de você ter mencionado Khalish, mas não de todos os detalhes. — Houve uma pausa enquanto Jean-Pierre ligava as pontas. — Então mais um aspecto: a exigência de que Khalish se entregue pare­ce se desenrolar agora na vida real?

Sim.

E, na verdade, se Bahsem-Yahl se pronunciar com uma declaração, teremos um full house! — Jean-Pierre deu uma risadinha; depois, perce­bendo que podia soar insensível, ele tossiu e limpou a garganta. — No entanto, claro, nós estaríamos de volta ao campo da previsão real.

Suponho que sim — concordou Sam.

Tudo estava ficando claro para Jean-Pierre. Mabus! O terceiro anticristo de Michel de Nostredame, profetizado para unir o islã numa guerra contra o Ocidente. Parecia incrível que agora, quinhentos anos depois, eles finalmente estivessem colocando substância e um nome a Mabus. Seu tom aumentou.

E diga-me: para quando é o seu livro?

Estou terminando agora, depois vem o processo de edição. — Sam já mentia quase naturalmente após travar o mesmo jogo duplo com Washington e Lorrena. — Então talvez demore um ano, ou mais. Sem dúvida, você sabe como é o processo.

Sei muito bem. — Jean-Pierre respirou fundo. — Mas há uma coisa que eu gostaria que você pensasse. Esta sua teoria, de que tudo isso aconteceu porque um contato de pesquisa passou informações adiante, você tem ou não certeza disso?

Não. Não tenho. — Sam teve que admitir. Ele queria gritar para Jean-Pierre: eu sei que as informações vazaram, que isto não é uma visão fantasiosa do futuro, porque eu fui atacado de propósito e meu manuscrito me foi roubado sob a mira de um revólver!

Eu sempre aconselho as pessoas a manterem a mente aberta sobre essas coisas. É muito fácil se apegar à primeira explicação racional ou óbvia. Mas os poderes precognitivos não devem ser subestimados.

Sam apoiou a testa na mão. Jean-Pierre ainda se fiava na teoria de que tudo revolvia em torno de vidência. Ele deu de ombros e olhou para Mike: Outra bela confusão em que você me meteu. Mas Mike parecia an­sioso enquanto olhava para o relógio, tamborilando tetricamente nele. A mensagem era clara: embora Robby Maschek tivesse instalado um criptógrafo no celular de Sam, ele avisara que, com tempo suficiente, um bom hacker poderia burlar o aparelho e rastreá-lo.

De repente, a cabeça de Sam parecia febril e dolorida, a boca seca. Talvez as divagações de Jean-Pierre fossem para isso: mantê-lo na linha por tempo suficiente. Mas ele agora tinha a deixa perfeita para o teste de Mike. Só mais um minuto e eles teriam certeza.

Estranho você dizer isso... porque há outro elemento do meu manuscrito repetido na vida real. — Sam contou a Jean-Pierre sobre o rastreador de terroristas muçulmano que era o personagem central de A profecia. — E agora alguém parecido entrou em contato na vida real. O que você acha? Devo passar para ele o que eu sei ou não?

Mike dissera que, se Jean-Pierre começasse a interrogar para quem ele estava passando informações ou onde estava hospedado, então deve­riam começar a cogitar que ele era parte do grupo de Washington. "E se ele não fizer nenhum dos dois, há mais um teste crucial."

Meu Deus! Cada vez mais uma coisa é o reflexo da outra. — Jean-Pierre se perdeu em pensamentos por um momento. — E passar as in­formações para ele pode ser um jeito de impedir os atentados?

Exatamente.

Outra pausa, e depois um suspiro contido.

Então acho que só existe uma opção. Tem que passar a informa­ção adiante.

Sim... creio que você tem razão — disse Sam, o aperto no pei­to diminuindo. Jean-Pierre passara no teste. Se ele fosse o contato de Washington, teria aconselhado a não passar as informações adiante.

E, na verdade, sobre esse tema, acredito que eu tenha algo a pas­sar para você. — Os olhos de Jean-Pierre recaíram nos papéis sobre a mesa com uma centelha de reverência.

Uma quadra entre as vinte das últimas quatro páginas lhe saltara aos olhos imediatamente, dirigindo seus pensamentos novamente aos atenta­dos às mesquitas e a Sam Tynnan. Assim, suas deliberações sobre as pá­ginas de Vrellait nas últimas noites se dividiram entre a dúvida de ligar e dizer alguma coisa e sua autenticidade. Ele não podia parar de pensar que estava predestinado de alguma forma, que o destino determina­ra que aquelas páginas chegariam às suas mãos naquele momento; Jean- Pierre quase podia sentir Michel falando com ele através dos séculos.

Manter um toque de discrição ou evitar um cataclismo que poderia custar milhares de vidas? Não havia dúvida. Como fizera com Corinne, ele simplesmente se resguardaria pedindo o mesmo segredo e discrição a Sam Tynnan.

Jean-Pierre começou a explicar o que tinha em mente.

Eles ainda estavam escavando os escombros em busca do corpo de Fahim Omari quando Adel mandou emitir um alerta geral em busca de Akram Ghafur e Wajd Masahran.

A explosão fez desabar a maior parte das colunas em volta da pis­cina no porão, duas paredes de apoio e metade do andar de cima. A piscina e seu entorno estavam soterrados sob mais de meio metro de cimento e gesso.

Quando Adel viu o primeiro bombeiro emergindo da pesada nuvem de poeira e fumaça saindo do porão, Bob Losey teve que segurá-lo.

— Ninguém poderia sobreviver lá embaixo, Adel. Ninguém.

Durante a hora seguinte, eles juntaram as peças do que acontecera. Omari descera ao hammam enquanto Akram estava no andar de cima — e Omari provavelmente presumira que Akram ainda estava lá quando a bomba explodiu. Mas nesse meio-tempo Akram saíra de casa, deixando a porta da frente aberta ao sair, pois não havia sinal de arrombamento.

Um ou dois homens entraram e colocaram um dispositivo de C4 com cronômetro na base da escada, os últimos degraus fora do campo de visão de quem estava na piscina. Provavelmente houve um espaço de tempo de apenas dois ou três minutos no cronômetro, mas até lá eles já estavam a 1 quilômetro de distância.

Até a hora em que Adel saiu da sala de operações naquela noite, nada havia surgido, nenhuma pista na busca por Akram ou Masahran. A casa de Omari ainda estava infestada de bombeiros e especialistas em bombas. Uma hora depois que chegou em casa, Adel recebeu uma ligação de Tim McAuley, um oficial do SOI5 que chefiava a operação forense e de limpeza, para avisar que tinham parado de cavar.

Adel suspirou fundo quando McAuley terminou de relatar o que tinham encontrado.

— Ok. Peça ao restante da equipe forense para fazer a parte deles. E não esqueça, todos têm que contar a mesma história: uma explosão de gás.

Adel não queria que a posição de Omari como informante antiterrorista fosse divulgada, o que um atentado a bomba daria a entender. Uma explosão de gás então se tornou a versão oficial, e Adel insistiu num controle estrito de todos os relatórios relacionados. Por sua vez, o alerta de busca por Akram e Masahran foi associado a "uma tentativa de atentado terrorista na rede de transporte de Londres evitada pelos serviços de segurança". O ardil de Khalish serviria a algum propósito útil, afinal.

Foi uma longa noite. Deitado na cama, Adel encarava o teto vaga­mente enquanto imagens de Omari o assombravam: quando se conhece­ram e ficaram amigos; as luzes dos capacetes dos bombeiros atravessando a escuridão de poeira e fumaça; a pilha de tijolos e gesso que emergia enquanto eles escavavam em busca do corpo.

Adel estava quase na mesma posição na noite seguinte, quando fi­nalmente as lágrimas brotaram.

Tinha sido um dia confuso, frustrante.

Havia anos que Wajd Masahran estava em seu radar, mas Omari sempre insistira que o deixassem em paz. "Ele é uma peça muito pequena para levar a algum peixe grande. Além do mais, se vocês o pegarem, eu perco minha principal fonte de informação. É mais vantajoso deixá-lo em paz."

Eles conseguiram rastrear Masahran até um vôo que ele tomou para o Bahrein no fim da manhã, seis horas antes do atentado. Ainda nenhu­ma resposta das autoridades do Bahrein até então.

Mas Akram desaparecera muito mais rápido. Eles o viram pelo circuito de câmeras da estação de Paddington, mas nada depois dis­so. A hipótese era de que ele havia tomado um trem para o aero­porto de Heathrow; contudo, ele não foi visto em nenhum ponto do circuito de câmeras de lá, nem apareceu em listas de passageiros de nenhum vôo.

Depois da estação de Paddington, Akram Ghafur desapareceu por completo.

Então, pouco antes das 19 horas, Sam Tynnan telefonara com infor­mações sobre uma "nova quadra de Nostradamus". Aquele já tinha sido um dia frenético, o pior, e a paciência de Adel estava desgastada; ainda assim, ele anotou devidamente o que Tynnan oferecia:

Todos cairão no rastro dos domos despedaçados

A ordem trocada ern dois braços, para cidades outras, distantes

Até os últimos domos que anunciam o Armagedom

Os perseguidores serão impedidos

Depois de estudá-las por um momento, Adel comentou:

Isto parece contradizer o que você já me disse sobre o Omã para o próximo atentado.

Eu sei. Eu sei. Algumas vezes me pergunto se Jean-Pierre tem todos os parafusos no lugar. Mas achei melhor transmitir, por via das dúvidas.

A mensagem era clara: faça com isso o que quiser. Tynnan não estava apostando em nenhuma das duas hipóteses.

Adel decidiu que era vago demais, envolvendo muitas mesquitas in­definidas, para conseguir fazer alguma coisa a respeito. Especialmente agora, que eles tinham um alvo definido — mesquita Al-Jihwa, Muscat, Omã — e tudo já estava a postos. Ele pôs a informação de lado.

Mas, às 23h09, ele recebeu a notícia. Houve outra explosão, dessa vez na mesquita de Ras-Salwi em Karak, Jordânia. Adel voltou a pensar na quadra. Será que ele podia ter feito algo mais com aquilo? Ou ele havia subestimado sua importância porque sua cabeça estava ocupada com todo o resto?

Adel ainda estava abalado com esta última reviravolta nos eventos quando se deitou na cama com Tahiya urna hora depois. O atentado de Londres fora uma armadilha para pegar Omari, e agora a quarta mes­quita a explodir fugira das previsões de Sam Tynnan. Nada mais era o que parecia ser.

E então vieram as lágrimas — não por causa da confusão e da frustração do dia, mas pelo choque acumulado. Só agora, no primei­ro momento de descanso verdadeiro após as últimas 24 horas gritando ordens ao telefone ou na sala de operações e lidando fisicamente com os últimos eventos, ele conseguia pesar o que tudo aquilo representava para ele emocionalmente. E quando seu coração se abriu finalmente pa­ra isso, as emoções vieram numa enxurrada. Omari era seu amigo. Um bom amigo.

Tahiya estendeu a mão e lhe tocou o braço enquanto a dor sacudia todo seu corpo.

— Você está bem, Adel...?

Ele então contou sobre Omari por um bom motivo: antes de ser um informante, Omari era um amigo da família. E, quando Adel ad­mitiu que culpava a si mesmo, ela disse todas as coisas certas — embo­ra previsíveis, elas ainda assim eram reconfortantes — para aliviar sua consciência: Não se culpe. Você não tinha como saber o que eles estavam planejando. Tenho certeza de que você fez tudo que podia.

Adel falou então sobre os outros problemas e frustrações: os desa­parecimentos de Akram e Masahran e a tentativa de rastrear os terroris­tas das mesquitas; e por um momento ele se perguntou por que estava contando tudo aquilo para Tahiya, quebrando o pacto de nunca trazer o trabalho para casa. Será que era só porque tivera um dia de pesadelo e precisava desabafar?

Ela foi compreensiva, afagando sua testa e oferecendo encorajamen­to e conselhos como pôde.

E de repente ele entendeu por que estava partilhando aquilo com Tahiya.

A primeira alfinetada de preocupação aconteceu mais cedo naquele mesmo dia: uma suspeita de que Omari tinha sido atacado por causa de um vazamento interno de informações. E o mesmo pensamento lhe ocorreu uma hora antes, quando o atentado a uma mesquita foi trocado, do Omã para a Jordânia; haveria alguém em sua sala de operações em quem ele não podia confiar?

Por isso Adel estava agora conversando com sua esposa: ele já não sabia ao certo com quem podia partilhar informações com segurança.

Ele se lembrou da aparência de Sam Tynnan quando o conheceu em Springfield: o peso do mundo em seus ombros, os olhos assombrados, sem saber quem estava do seu lado. E, em apenas dois dias, Adel se tornou igual. Nada mais era o que parecia ser. Os limites entre fato e ficção escureciam.

Desenrolar a odisséia de Sam Tynnan parecia agora uma tarefa mais inatingível que nunca.

 

                                     Capítulo Vinte e Seis

Embora fosse uma necessidade inevitável, Washington odiava aquelas reuniões.

O ritual das sessões mensais, além de todas as convocações urgentes, de William — nunca "Bill" ou "Will" — Grayford, chefe do Departa­mento 101.

Agora à beira dos 60, em algum momento de seus ilustres vinte anos de carreira na CIA. Grayford ganhara o apelido "a sombra". Alguns acha­vam que era porque, examinando a fundo muitas operações clandesti­nas, Grayford seria encontrado nos fundos. Como uma sombra. Outros achavam que era por seu hábito de ter sempre uma lâmpada iluminando parcamente só um lado de seu rosto: um pedaço de pele áspera e repuxada sob sua face esquerda que ele fazia questão de obscurecer. Diziam que ele havia adquirido o ferimento como fuzileiro naval num tiroteio no Vietnã. Mas a verdade era que ele caíra numa cerca de arame quando criança e duas tentativas com cirurgias plásticas não foram suficientes para consertar o estrago.

Os motivos dados para o nome do Departamento 101 eram igual­mente ambíguos. Alguns achavam que era por causa da Sala 101 de George Orwell, e, sim, havia muitos aspectos das atividades do 101 que causariam arrepios a um comunista. Outros achavam que era simples­mente o número da porta num corredor de Langley, atrás da qual suas operações eram orquestradas.

A verdade estava na data de sua criação — vinte dias após o 11 de Setembro. O dia em que foi decidido que seria necessário outro depar­tamento para enfrentar a nova batalha pela frente: não focado predomi­nantemente na segurança interna nacional, como o Homeland Security; em contrapartida, que não fosse demasiadamente direcionado às reper­cussões de segurança internacional, como a CIA. Era necessário um de­partamento que ocupasse confortavelmente o espaço entre os dois.

Os recursos financeiros vinham tanto da CIA quanto do Homeland Security, o que, portanto, queria dizer que estava fora do alcance de ve­tos do Congresso e do Senado; contudo, esta última vantagem não era livremente admitida nos círculos políticos.

A reunião de hoje tinha sido convocada repentinamente, então Washington estava mais nervoso que o normal. Como um abutre que encontra sua presa, os olhos de Grayford recaíram sobre ele.

Você compreende que estamos agora atingindo os estágios finais mais delicados?

Washington assentiu rapidamente.

Sim, compreendo, senhor.

Vejo pelo seu relatório que você sofreu danos colaterais inespe­rados? — Grayford equilibrou o pincenê dourado na ponta do nariz en­quanto examinava o arquivo em sua mesa. — Dois membros da equipe interna. — Ele ergueu o olhar por cima da lentes e o fixou novamente em Washington.

Hum, sim, senhor. Ambos inevitáveis, infelizmente; mas muito necessários para manter a segurança da operação.

O olhar de Grayford continuou fixo em Washington. Após um mi­nuto, ele assentiu lentamente.

Dentro do contexto apresentado, posso aceitar isso. Mas o que estou achando mais difícil de compreender é o fato de que você deixou o alvo principal escapar entre seus dedos e se esconder.

Estamos checando possíveis opções e lançando algumas hipóte­ses. Não vai demorar até que ele seja encontrado.

Mais uma vez, aquele olhar imóvel.

E no momento ele ainda nos é útil — ofereceu Washington pa­ra fortalecer seu ponto rapidamente. — Ele está jogando o jogo que queremos.

Lembre-me, por gentileza, exatamente por que isso ocorre?

Washington fez uma pausa e engoliu em seco.

Porque foi assim que o senhor determinou todas as coisas.

Sim, correto. — Grayford forçou um sorriso paciente. — E como nós dois também sabemos, muito em breve ele deixará de ser útil. En­tão talvez seja uma boa idéia encontrá-lo antes que isso aconteça. — Grayford ergueu uma sobrancelha. — Você não acha?

Washington concordou.

Sim, senhor. Acho.

Grayford não disse nada, e se recostou em sua cadeira. Certo. Esta­mos entendidos. Os olhos se desviaram de Washington para os papéis em sua mesa. A reunião estava claramente encerrada.

Washington se levantou e saiu.

Imames Sahkani, Al-Assan, Ghanil; Professores Al-Hital, Yousy, Karmal, Daoud...

Sam começou a fazer uma lista. Agora que eles tinham certeza quase absoluta de que Jean-Pierre não era o contato de Washington, seus pen­samentos novamente se voltaram a quem podia ser.

Ele listou perfeitamente 18 nomes, depois ficou em dúvida sobre a grafia de dois nomes, e um terceiro — de um professor na Universidade da Jordânia — escapara por completo de sua lembrança.

Entrou na internet pelo computador do Mike para fazer uma busca, depois se deteve bruscamente antes de terminar de digitar o primeiro nome.

A equipe de Washington provavelmente tinha uma lista de todos os seus contatos de pesquisa. Aqueles nomes estavam entre suas anotações de pesquisa bem ao lado das cópias de A profecia em seu computador. Um daqueles nomes digitado num computador a apenas 20 quilômetros de sua casa — Echelon seria capaz de detectá-lo numa fração de segundo.

Era um lembrete de quão perto ele estava de ser descoberto — a um dedo de distância — e quão atados estavam seus movimentos. Ele tirou as mãos do teclado num rompante, como se tivesse tocado em uma cerca eletrificada. Precisaria se contentar em trabalhar com o que tinha.

Se o objetivo principal da operação de Washington era fazer com que Abu Khalish se entregasse, então provavelmente fazia sentido que quem quer que fosse seu contato simpatizasse com a idéia.

Sam tentou lembrar se algum contato havia expressado sentimentos antiterroristas.

Um imame — Mohammed Al-Esayi, da madrassa Umm Al-Qura na Arábia Saudita — comentara que era de fato "lamentável que o aumen­to dessa atividade seja quase diretamente proporcional ao aumento em erros de interpretação e desentendimentos sobre o islã".

E o professor Barakeh na Universidade de Beirute mencionara que havia perdido um tio num atentado à bomba num carro durante a guer­ra civil do Líbano.

Fora isso, Sam não conseguia se lembrar de mais nada digno de nota.

Seus pensamentos giraram por um tempo sem nenhuma direção ou resposta clara, até que lhe ocorreu: talvez eles não tivessem que saber! Ocupados com o elaborado jogo de xadrez para tentar ludibriar e dri­blar Washington, eles não viram o óbvio. Pois embora Emile se sentisse obrigado a tentar impedir os atentados nas mesquitas, se as explosões realmente poderiam levar à rendição de Abu Khalish, Emile desejaria impedir isto? Algum deles realmente desejaria impedir aquele possível desfecho?

E, com as notícias de ontem — o quarto atentado a mesquitas acon­tecendo num lugar diferente de seu manuscrito —, havia outro elemen­to vital que ele precisava passar adiante. Sam ativou o criptógrafo antes de ligar o celular e telefonar para Emile.

Sam se levantou e se afastou do computador de Mike e da janela quando Emile atendeu, e assim não viu o carro de polícia estacionando em frente à cabana de Jem do outro lado do lago enquanto falava.

— Sim, claro — disse Emile —, com Abu Khalish como principal alvo deles, isto se torna uma questão a considerar... mais que um dile­ma propriamente dito. Um possível conflito de interesses. Mas deixe-me pensar mais sobre o assunto.

Como em seu encontro, Sam sentiu um tom defensivo por trás da aparente cordialidade. Ele respirou fundo; agora vinha a parte mais complicada.

O quarto atentado a mesquitas também mudou do lugar planeja­do no meu manuscrito. E outro: o sexto na seqüência.

Entendo. — Houve uma pausa marcante. — E por que motivo?

Porque, no livro, os terroristas começam a temer que um padrão aparente ou alguma informação interna estivesse revelando os dois lo­cais. — A pausa, dessa vez, foi mais longa do outro lado. Será que Emile achava que ele estava inventando histórias? Sam devia ter contado an­tes. — Além disso, acima de tudo, é uma técnica padrão para escritores: manter a trama recheada de mudanças e reviravoltas. Mantém o leitor curioso.

Então a quarta e a sexta mesquitas que você me passou são as que foram atacadas no fim?

Sim.

E os locais originais planejados, antes que os terroristas mudas­sem os planos?

A mesquita El-Mehbir em Rabat. E Ab Sarikhan em Tabriz, Irã.

Bem, pelos menos eles não fizeram um blefe duplo e voltaram para os lugares originais. E embora a mesquita trocada não tenha sido a mesma, o fato de que houve uma mudança de local está seguindo o seu roteiro.

Sim... suponho. — O pensamento seguinte atingiu Sam neste mo­mento. — E, se eles tivessem mantido o lugar trocado do original, isso derrotaria o objetivo que os levou a fazer a troca no manuscrito: enganar quem está tentando pegá-los.

Emile suspirou.

Sim, tem isso. Uma vez que eles suspeitam que alguém está a par de seus planos, quer seja no seu manuscrito ou na vida real, a chance é de que eles alterem os planos.

Emile agradeceu e se despediu, e, quando Sam se voltou para o computador de Mike, viu a cena do outro lado do lago. A conversa entre Jem e o policial uniformizado estava a pleno vapor, e Sam via agora um segundo policial sentado no carro azul e branco 5 metros atrás.

Sam congelou, torcendo e rezando para que fosse uma visita não relacionada, mas ao ver o policial olhando em sua direção, a esperança começou a desaparecer.

Ele se afastou da janela. Será que o tinham visto?

Foi o que lhe pareceu quando ele viu o policial se dirigindo para sua cabana, seguido de perto por Jem.

Já fazia cerca de seis anos que Jem conhecia o policial da delegacia local de Utica, Bill Burridge. Cabelos louros cor de areia e pesando sólidos 110kg com pouco mais de 30 anos, ele se tornara um visitante regular desde que Jem fora liberado na sua última condicional. "Pode me cha­mar de BB, como a pistola ou o guitarrista de jazz." Talvez "BB" achasse que assim ele parecia mais descolado, com um nome que evocava um jazzista ou um rapper atual — sem realmente se dar conta da distância de cinqüenta anos que separava as duas coisas.

Mas Jem, na verdade, achava "BB Bill" um bom sujeito. Sua primeira visita após a condicional tinha sido mais formal, com a mensagem cla­ra: "É melhor se comportar agora que está no meu território, ouviu?" As visitas continuaram ao longo dos anos e, ainda que ele agora estivesse mais tranqüilo e os dois passassem a agir como conhecidos — embora longe de ser amigos —, Jem ainda achava as visitinhas irritantes demais: eram verificações muito mal disfarçadas sempre que acontecia algo que pudesse ter alguma ligação com ele.

Um caminhão com uma carga de Marlboro Light tinha sido assalta­do a caminho de Buffalo. Se Jem ouvisse falar de cigarros sendo vendi­dos por baixo dos panos na região, "você me dá a dica, hein?"

Sim, claro.

Bill já não perguntava se ele estava envolvido. Jem já tinha dito mais que o bastante que não fazia mais esse tipo de coisa. Sendo assim, ou Bill acreditava nele ou não queria subestimar a inteligência de ambos insistindo com a mesma pergunta só para receber a mesma resposta.

Bill olhou na direção do lago.

Pescou algo digno de nota este ano? — perguntou ele, casualmente.

Truta arco-íris, algumas semanas atrás.

Grande?

Seis quilos. A segunda maior que já peguei aqui.

Bill assobiou baixinho e olhou para o lago novamente. Depois seu olhar se ergueu um milímetro na direção da cabana do outro lado, como por reflexo.

Era o Mike que estava na janela há um minuto?

Humm... sim.

Jem assentiu. Com a luz do sol e o reflexo na janela, tudo que Jem conseguiu distinguir foi uma leve silhueta onde Sam passara junto à janela. Mike confidenciou para Jem alguns dias antes que Sam estava "fora de circulação", e pediu-lhe que ficasse de olho em qualquer um que quisesse espionar.

Bill mantinha os olhos fixos na mesma direção.

Não estou vendo o carro dele por lá.

Jem sentiu um aperto na garganta. Pela primeira vez, ele começou a pensar que a visita tinha sido por outro motivo.

Não, é... Cathy o deixou aí umas horas atrás. Ela precisava do carro para fazer compras.

Ah-hã. — Bill manteve o olhar por mais um tempo até se voltar para Jem. — Como ele tem passado esses dias? Terminou o livro novo?

Sinto dizer, mas ele não costuma me contar as novidades sobre essas coisas. — Jem deu de ombros como quem não quer se comprome­ter. — Segredo de Estado.

Talvez Bill tivesse relaxado nas últimas visitas em parte por isso, porque descobriu que Jem conhecia Mike Kiernan. No último verão, Mike estava na cabana quando Bill apareceu; depois de se apresentar, ele passou algum tempo se derramando em elogios ao último livro do autor. "Em quem o chefe de polícia de Boston foi baseado? Com certeza foi no nosso intrépido Len Macey."

Seria bom cumprimentá-lo de novo se não for incomodar. — Pelo tom, ficou claro que Bill não aguardaria a aprovação de Jem, e ele começou a dar a volta no lago.

Jem rapidamente o seguiu, a mente fervilhando.

E, seria. Só que... ele pediu para não ser incomodado.

Bill continuou andando como se não tivesse ouvido.

Ele foi... bem direto e insistente a respeito.

Por fim, Bill parou, virando-se lentamente.

Pelo que entendi, ele está bem no meio de escrever uma cena muito importante — arriscou Jem. Foi tudo que conseguiu pensar.

Ah, entendo. — BB estava visivelmente desapontado.

Sinto muito. Quem sabe da próxima vez?

Bill olhou para os pés, e depois de volta para Jem.

Tem certeza de que está tudo bem? Não tem nada aborrecendo você? Jem sentiu a garganta apertar mais um pouco.

Como o quê?

Talvez aqueles cigarros de que falei. Talvez alguma coisa a ver com o Mike. — Bill deu de ombros. — Quem tem que dizer é você.

Dessa vez, Jem devolveu o olhar de Bill com firmeza e sua melhor cara de indiferença. Após uma pausa desconfortável, Bill acrescentou:

Você parece apreensivo, só isso.

Jem riu para descontrair.

Só estou tentando impedir que as pessoas batam na porta do Mike, quando ele deixou bem claro: nada de visitantes, nada de interrupções.

Bill balançou a cabeça lentamente.

Sim, sim. Você já disse. — Ele encarou Jem por mais um segundo, depois voltou a olhar para a cabana.

Fio da navalha. Se Bill suspeitasse de que alguma coisa estava er­rada, ele simplesmente passaria por cima dos protestos de Jem e faria questão de bater à porta de Mike. Jem prendeu a respiração enquanto o olhar de Bill se demorava sobre a cabana.

Onde, onde, onde?

Akram não podia ter simplesmente evaporado depois da estação de Paddington. Ou seja, se ele não pegou o expresso para Heathrow, talvez tivesse tomado um trem rumo a oeste: Devon, Cornualha, Gales do Sul? Adel tinha certeza de que alguma coisa lhes escapara. Ele colocou Malik e mais três para esquadrinhar as imagens quadro a quadro das filma­gens da estação de Paddington.

Na noite anterior, enquanto Tahiya acalmava sua inquietação, algo que ela disse ficou guardado em sua mente: "A medida que os eventos se desen­rolarem, tenho certeza de que você será guiado a fazer a coisa certa. Tudo ficará claro." Isso era metade do problema: os sinais até ali tinham sido confusos. E se fosse mesmo uma operação clandestina maravilhosamente bem-planejada que seguia a primeira metade da trama de Sam Tynnan — atentados a mesquitas para pressionar Abu Khalish a se entregar? Neste caso, e se depois de um ou outro atentado, como Tynnan cogitou em sua última ligação, Khalish fizesse exatamente isso? Bilhões de libras seriam economizadas e centenas de vidas seriam salvas. E, intervindo agora, ele estragaria a operação. Khalish continuaria solto. A traição máxima a todas aquelas pessoas que perderam entes queridos e a seu amigo Omari.

O que por sua vez significava que, se havia um informante interno, ele estava cuidando dos interesses da operação de forma obtusa, e dos interesses de Adel. Os terroristas das mesquitas talvez tivessem mudado locações simplesmente por ver a segurança reforçada na mesquita de Al-Jihwa, no Omã. E agora Tynnan dizia que essa mudança de local também era um elemento de seu manuscrito.

De um jeito ou de outro, a última quadra que Tynnan lhe passara se mostrou certeira. Adel tornou a estudá-la.

Todos cairão no rastro dos domos despedaçados

A ordem trocada em dois braços, para cidades outras, distantes

Até os últimos domos que anunciam o Armagedom

Os perseguidores serão impedidos

"Braços" eram bracchia no texto original, como Tynnan relatou da informação dada por seu contato sobre Nostradamus, Jean-Pierre Bourdin — literalmente "dois braços" em latim. Ou seja, de acordo com isso, quatro domos ou mesquitas da seqüência deveriam estar em outras ci­dades distantes, até os últimos "domos". Mas mesquitas, no plural, sig­nificavam duas ou três?

Adel balançou a cabeça após um momento. Mesmo agora, sob a luz fria do dia — sem a confusão mental de quando Tynnan lhe passara a mensagem —, ele ainda não conseguia ver um caminho para agir. Não havia nada definido, nada em que se agarrar. Eles não tinham como au­mentar a segurança nas centenas de mesquitas possíveis. — Chefe? Acho que temos a seqüência agora. Adel levantou a cabeça. Malik estava junto a seu ombro. Ele assentiu e seguiu Malik até seu computador.

Na tela de Malik, havia cinco imagens congeladas. Malik clicou no quadro do canto superior esquerdo, e o quadro de figuras congeladas começou a se mover.

Essa é a primeira imagem que temos de Akram Ghafur na esta­ção de Paddington — apontou Malik com sua caneta. — Entrada leste, vindo de Praed Street. Vestindo um thobe bege e carregando uma saco­la cinza. A hora no canto da imagem diz 17h48, apenas nove minutos depois que a bomba explodiu. Presumimos que ele tenha caminhado direto da casa de Omari para a estação. — Malik clicou no próximo. — Então o encontramos de novo aqui, um minuto depois, cruzando o terminal principal da estação. — Quando Akram saiu do quadro, Malik abriu o próximo. — Em seguida aqui, aproximando-se de uma barraca de comida. Parece comprar água mineral...

Adel seguia o progresso de Akram pela estação de Paddington na tela enquanto Malik abria e passava sucessivas imagens das câmeras de segurança.

A última vez que o vemos é aqui. — Malik tocou na tela com sua caneta. —Entrando no banheiro na ala sul da estação.

Adel examinou a seqüência novamente.

E você obviamente checou depois? Estou pensando em até duas horas depois.

Já olhamos até três horas depois. Nada. Teve um sujeito que pen­samos por um momento que fosse Akram na plataforma quatro, então ampliamos a imagem. Não era ele.

Adel assentiu lentamente, os olhos ainda migrando de uma imagem para outra.

E tem algum ponto cego na câmera do banheiro? Se não, ele cer­tamente seria visto saindo.

Tem, um pequeno. Mas ainda teríamos visto um pedaço de ombro, alguma coisa. Mas não vemos nem isso. — Malik ergueu os olhos com uma careta de lábios comprimidos. — E mesmo que o perdêssemos ali, nós o reencontraríamos numa dessas duas. — Malik apontou. — Nada nelas também. Depois do banheiro, Akram Ghafur simplesmente sumiu no ar!

Mas Adel sabia que Akram tinha que estar lá em algum lugar, eles só não conseguiam vê-lo. Akram estava encoberto por outras pessoas na imagem em algum ponto crucial, ou tratava-se de alguma outra expli­cação simples. Seus olhos continuavam a pular de imagem em imagem. Onde, onde, onde?

Akram marcara de encontrar seu contato, Al Hakam — braço direito de Abu Khalish para aquela operação —, uma hora e quarenta minutos depois da explosão.

A princípio ele questionou a demora — queria fugir o mais rápido possível. Mas Al Hakam dissera que precisava de tempo para prepa­rar os últimos detalhes: o pagamento final e instruções para Akram. Sua passagem de avião. "Além do mais, você precisa se trocar nesse ínterim. Assumir sua nova identidade."

O encontro fora marcado para um lugar a 1,5 quilômetro da estação de Paddington. Akram decidiu andar até a estação e se trocar.

O passaporte com sua nova identidade e metade do pagamento, 75 mil libras, já estavam em sua bolsa. Agora ele precisava se trocar e co­locar a peruca e a maquiagem para ficar igual à foto do passaporte. Ele usou uma cabine do banheiro na estação de Paddington e terminou em 35 minutos. A barba e o bigode reais eram bem-aparados; os falsos eram mais espessos e a barba, mais comprida.

As duas próteses sob as maçãs do rosto, com as quais Akram apa­rentava ser mais gordo, foram coladas antes da barba — como ele foi instruído a fazer para seguir a foto do passaporte.

Calças pretas e um caftã verde-escuro substituíram seu thobe. Sua bolsa era dobrável e virou um quadrado pequeno, e ele desdobrou outra marrom para substituir a primeira. Ao sair do banheiro, era um homem diferente: Abdul Radwan, líbio.

Apesar do disfarce, ele ainda se sentia chamativo e vulnerável na rua, e faltavam ainda cinqüenta minutos para o encontro. Ele achou um café italiano cerca de 500 metros descendo a rua e se escondeu nos fundos, pedindo alguns espressos fortes para passar o tempo. Ele olhou para a mão ao levantar a xícara: ainda tremia.

Akram criticara Omari por ser um Judas, mas isto não era diferente: recebera pagamento por uma traição, como Judas. Akram se perguntou quanto o MI5 pagara a Omari para trair seus companheiros fedayeen?

Mas havia uma diferença, Akram lembrou a si mesmo. Omari não precisava do dinheiro; foi traição pela simples traição. Quando Al Hakam percebeu a preocupação de Akram ao mencionar um pagamen­to pela primeira vez, ele o lembrou de que eram recursos para sua so­brevivência, meios para seguir seu próprio caminho sem o salário nem o teto de Omari sobre sua cabeça.

Akram balançou a cabeça após um minuto. Aquilo não parecia im­portante. Ele examinou o assunto em sua mente um milhão de vezes, sempre com uma justificativa boa, forte; mas, mesmo assim, sentia a culpa como uma pesada mão esmagando seu coração.

Ele pagou a conta e chamou um táxi 20 metros adiante para chegar a seu encontro.

A noite caía; os postes e a iluminação nas vitrines eram agora as luzes mais fortes. Akram fechou os olhos quando o táxi passou por uma loja de antigüidades que ele e Omari costumavam freqüentar. Tire isso da cabeça.

Akram pediu ao taxista para deixá-lo no fim da rua, conforme ins­truções de Al Hakam. Ele seguiu o resto do caminho a pé. A 80 metros da rua principal, havia uma curva que formava um beco sem saída em forma de L, com uma cerca de arame separando os trilhos do trem de um lado e garagens e pequenos prédios industriais do outro, todos fe­chados havia pelo menos duas horas. Al Hakam insistiu que precisavam de um lugar tranqüilo, sem transeuntes como testemunhas, para com­pletar a transação.

Quando Akram entrou no beco, ele viu Al Hakam aguardando a 20 metros.

Al Hakam o cumprimentou com a cabeça e sorriu quando ele se aproximou.

Salaam. Você está bem?

Tanto quanto possível. — Akram forçou um leve sorriso de volta. Tire isso da cabeça. — Creio que agora irei para a Líbia, não? Para o país de Abdul Radwan.

Sim. Al Bayda. Não muito longe da fronteira, assim você ainda poderá visitar o seu amado Egito de vez em quando. E criamos um bom histórico para você. Pai egípcio, você trabalhou um tempo no Cairo e em Londres como criado. Dessa forma, seu sotaque não parecerá estranho.

Entendo.

Akram tentou fazer um gesto agradecido. Depois de concordar em cumprir as ordens de Masahran e Al Hakam, ele se sentia indiferente a todos os detalhes. Se Al Hakam dissesse que ele iria para a Patagônia, Akram dificilmente teria reclamado. Ele reparou que as roupas de Al Hakam não diferiam muito das suas: calça preta e caftã azul-escuro. Era um homem de constituição forte, barba e bigode espessos.

Al Hakam botou a mão no bolso de seu caftã.

Aqui está sua passagem de avião, para Benghazi. De lá, você pode pegar um ônibus para Al Bayda.

Akram assentiu ao pegar a passagem.

Ok. — Ele se limitou a dar uma olhada rápida.

Al Hakam tirou dois grossos envelopes de seu bolso esquerdo.

E aqui está seu pagamento final.

Mas Al Hakam manteve os envelopes à margem do campo de visão de Akram propositalmente, de modo que ele teve que desviar os olhos para vê-los; uma distração para o movimento do picador de gelo já a postos na mão direita de Al Hakam.

Era um golpe que ele tinha usado centenas de vezes antes; na ver­dade, foi ele quem ajudou Youssef a aperfeiçoá-lo. Bem-executado, não deixava manchas de sangue na roupa do agressor. E hoje não teria sido diferente, exceto que no último segundo Akram se distraiu com alguma coisa além do ombro de Al Hakam, e se mexeu.

A lâmina acertou uma costela e quebrou ao meio. Akram grunhiu, os olhos subitamente arregalados, fixos além do ombro de Al Hakam, até que eles baixaram horrorizados para a frente do seu caftã.

Al Hakam voltou a golpeá-lo, segurando Akram e girando ao mes­mo tempo para ver o que captara a atenção dele. Três garotos, com não mais que 17 anos, estavam pulando por cima da cerca da ferrovia no final da rua, voltando de sua última pichação.

Os dois grupos congelaram a cerca de 60 metros de distância enquan­to a lâmina atravessava seu alvo. O segundo garoto ainda estava a meio caminho de pular a cerca — sem saber quem tinha flagrado quem ali.

Desta vez, Al Hakam sentiu a lâmina passando perfeitamente entre as costelas; mas, partida ao meio, ela não conseguiu atingir o coração.

Ele tentou novamente, enfiando com mais força. Sentiu uma coste­la quebrar sob o peso de sua mão, mas mesmo assim não alcançou o coração.

Os gemidos de Akram culminaram num grito abafado quando o ar escapou de seu corpo.

Um dos garotos gritou:

- Ei.

O segundo rapaz pulou da cerca para o chão, mas eles ainda espe­raram o terceiro passar antes de avançar na rua. E, mesmo assim, mo­viam-se a trotes lentos; claramente apreensivos em confrontar alguém com uma faca, mesmo estando em três. Mas seus gritos agora ficavam mais ousados, mais insistentes.

Antes que os garotos se aproximassem demais, Al Hakam conseguiu desferir mais três golpes fortes contra o abdômen de Akram, torcendo para perfurar alguma coisa — estômago, fígado, intestino. Ele tinha de pegar o primeiro lote de dinheiro e o passaporte na bolsa de Akram — os últimos envelopes tinham apenas papel —, mas não havia mais tempo! Quando os meninos estavam a cerca de 30 metros de distância, ele deixou Akram cair e fugiu correndo.

Ele tinha uma motoneta roubada estacionada entre duas oficinas fechadas, 20 metros depois da esquina. Quando ouviu um dos garotos gritando atrás dele, já estava no fim da rua na motoneta. Ao entrar na rua principal, ele olhou para trás: o garoto não o seguia.

Al Hakam estava coberto com o sangue de Akram, embora fosse difícil perceber à noite em sua camisa azul-escura. Ele virou novamen­te após três cruzamentos — outra rua industrial margeando a ferrovia, deserta àquela hora —, livrou-se da motoneta e do caftã e arrancou a barba e o bigode.

Sob a camisa, ele vestia um paletó preto que combinava com suas calças, uma camisa branca e gravata azul-marinho. Em apenas alguns minutos, era mais um trabalhador bem-barbeado pegando um táxi de volta para casa.

Bill Burridge passou algum tempo contemplando a cabana de Mike an­tes de voltar a olhar para Jem.

Sim, claro — disse ele, com um sorriso amarelo. — Fica para a próxima.

Mas, quando viu o carro de polícia indo embora, Jem se perguntou se Bill suspeitara de alguma coisa — e Sam também expressou sua preo­cupação quando Jem foi até lá alguns minutos depois.

Você acha que ele pode ter sido enviado para bisbilhotar e desco­brir se há alguém na cabana de Mike?

Não sei. — Jem explicou como, com sorte, ele havia despistado Bill dizendo que era Mike quem estava lá, ocupado com o trabalho. — O problema é que não saberemos se ele caiu na história, a não ser que alguém venha fazer uma visita. E, se isso acontecer, provavelmente será nas próximas horas ou hoje à noite. Melhor você ficar na minha casa por um tempo.

Sam ficou satisfeito por dar um tempo da solidão na casa de Mike. Febre do isolamento. Ainda assim, ele foi forçado a se esconder das vis­tas num quarto dos fundos enquanto Jem montava guarda na janela da frente, binóculos fixos na cabana de Mike e o rifle ao lado. Se Jem visse uma equipe chegando, o plano era cair fora em seu Chevy.

Eles deixaram a luz da cozinha acesa e a porta da cabana que liga à sala da frente aberta para que, com a chegada da noite, Jem pudesse ver quaisquer figuras rondando no escuro.

Nada aconteceu à luz do dia, nenhum movimento nem veículo se aproximando, e as primeiras horas de escuridão também passaram devagar. Depois começou a chover e formou-se uma névoa sobre o lago quando a chuva apertou, reduzindo a visibilidade. Em alguns momentos, Jem ficou tenso, achando que tinha visto algo nas som­bras, mas depois ele relaxava novamente ao se dar conta de que não era nada. Finalmente, logo depois das 23h30, uma tensão maior retesou seus ombros. Ele sussurrou com urgência para Sam.

Tem alguém vindo!

Faróis de carro se aproximavam na estrada por trás da cabana de Mike. Cinqüenta metros de distância, depois 30. Jem os seguia atenta­mente com o binóculo.

Quem é? — pressionou Sam, com o pulso disparado.

Não tenho certeza.

Mas o carro não reduziu a velocidade e, quando as luzes passaram pela cabana e seguiram para a esquerda, Jem pôde ver quem era.

Ele respirou aliviado.

— Frank Highton, só isso. Ele aparece de vez em quando se tem sorte e arruma alguém no bar de solteiros.

Jem manteve a vigília até 4 horas da manhã — temendo que eles es­perassem para ter certeza de que Sam estava dormindo antes de agir — e deu a noite por encerrada.

Mas Sam não dormiu bem; temendo que eles viessem nas horas res­tantes de escuridão, ele se alarmava a cada minúsculo ruído: leves rufa­res, passos, motores de carros ou barulho de pneus na pista de entrada, qualquer coisa diferente do barulho da chuva constante lá fora.

O dia e a noite seguintes foram ainda piores porque ele estava de volta à casa de Mike e sozinho novamente. Talvez eles tenham decidido atacar hoje e não ontem à noite, talvez soubessem de algum jeito que an­tes ele estava na casa de Jem. Finalmente, após quatro horas de inquieta­ção, ele desistiu definitivamente de dormir um pouco.

Sam fez um café e foi até a mesa de Mike, contemplando o lago es­curo e plácido.

Febre do isolamento. Ele sentira a exasperante e tediosa quietude ar­rastando cada segundo de cada minuto de cada hora daqueles últimos dias. Além disso, durante aquele crescendo de tensão, sentia que nada do que fazia dava certo.

Os programas idiotas na TV o entediavam, e de qualquer forma não chegavam nem perto de ser o bastante para impedir sua mente de voltar ao que tinha acontecido, de chafurdar mais uma vez entre os destroços de sua sina. E, quando começava o jornal, qualquer notícia sobre Abu Khalish ou as explosões nas mesquitas trazia sua ansiedade de volta.

Talvez fosse por isso que ele começou a tentar descobrir quem era o contato de Washington. Não apenas para atenuar seu tédio, mas tam­bém sua culpa — ele deveria fazer algo para ajudar; especialmente sendo o arquiteto involuntário daquela seqüência de eventos.

Mas agora até aquilo parecia fútil. Pois, além do fato de que talvez realmente fosse melhor que todos ficassem de fora e não impedissem a operação, isso ainda assim não faria grande coisa para melhorar sua própria sina. Mesmo que a operação tivesse resultados positivos e Kha­lish se entregasse sob a pressão das explosões nas mesquitas, Sam ainda seria o homem que sabia como eles tinham feito aquilo. O homem que sabia demais.

E se Bahsem-Yahl ou outro clérigo linha-dura resolvesse se pronun­ciar ligando as explosões nas mesquitas ao Ocidente, e se as explosões continuassem mesmo assim, seria pior ainda. Ele então seria o homem que sabia demais sobre a operação maldita que levou à Terceira Guerra Mundial. De qualquer forma, eles não podiam correr o risco de deixá-lo vivo.

Ou seja, independentemente do que acontecesse, ele enfrentaria mais do mesmo: longas horas, dias e — se tivesse sorte de sobreviver o suficiente — anos passados em cabanas e outros esconderijos como este. A solidão e a tensão interminável desbastando sua força de vontade nervo por nervo, osso por osso, até que, após algum tempo, ele não se importasse mais se finalmente o encontrassem e metessem uma bala em sua cabeça para acabar com tudo.

Sam olhou para o lago negro e sem vida lá fora, mas pálido se com­parado a seu humor no momento, e pensou: Você não sabia na hora, Lorrena, mas provavelmente quem teve sorte foi você. Aquilo que ele con­tara a Emile podia ou não ser usado para salvar o mundo da calamidade, mas ele ainda tinha que desvendar como salvar a si mesmo.

 

                                         Capítulo Vinte e Sete

Meus filhos e irmãos, unidos sob a luz benigna de Alá. Vocês devem ter visto nessas últimas semanas as nuvens negras que ameaçam esta luz, mais escuras e preocupantes que muitas já vistas. Pois, embora tenhamos visto antes a profanação dos locais sagrados de oração a Alá — infelizes atos impensados de irmãos que se perderam temporariamente do cami­nho, que se retiraram de Sua exaltada luz —, nunca antes vimos atos de destruição tão deliberados e organizados contra Seus templos sagrados e, por sua vez, contra Seu nome.

Ainda assim, somos informados de que isso é feito em nome do islã, para testar a fé e a devoção de um certo Abu Khalish. Em meus olhos — nos olhos de alguém que devotou sua vida a seguir os desejos e decretos de Alá segundo proclamados por Seu único e verdadeiro mensageiro exal­tado, Maomé — isso não pode ser verdade. Que um irmão do islã teste a fé de outro através da destruição de seus monumentos sagrados é um ato herético de proporções incalculáveis. Um pecado contra o nome do islã e do próprio Alá.

Portanto, é com o coração pesado que faço esta declaração agora — com a graça e a vontade de Alá, esta proclamação divina —, de que ne­nhum filho devoto do islã se entregaria a atos como estes. Se são de fato nascidos do islã e de Alá, então esses homens se tornaram agentes do de­mônio e do Ocidente por caminhos tortuosos além do imaginável; pode­mos somente rezar por suas almas. Mas minha crença é de que jamais foram filhos do islã, que são servos dos demônios do Ocidente, infiéis, desde o princípio — razão pela qual eles foram capazes de perpetrar estas abominações sem a devida consciência. Sem sentir o punho da ira de Alá esmagando seus corações.

E assim suplico a todos os verdadeiros irmãos do islã que se ergam em uníssono contra esses atos profanos, uma só voz erguendo-se como uma poderosa espada contra as abominações. Uma voz para proclamar em alto e bom som: um ataque contra um dos monumentos sagrados de Alá é um ataque contra o próprio Alá. Um ataque contra Alá é um ataque contra todo o Seu povo.

 

Dois meses atrás, Bahsem-Yahl esteve no pódio na praça Azadi (Liber­dade) para comemorar o aniversário da Revolução, mas o discurso de hoje foi transmitido de seu escritório. Sobre sua mesa estavam o Corão e o Hadiz ao lado de um vaso de flores recém-cortadas, e a bandeira iraniana presa na parede ao fundo.

Em Washington, DC, David Stennell assistiu ao breve vídeo nova­mente, procurando pequenos detalhes ou nuances que talvez não hou­vesse notado nas três primeiras vezes. Nada. Ao menos por enquanto. Ele começou a zapear por canais de notícias, procurando reações. Pelo visto, seria um longo dia.

Ele mal levantou a cabeça durante as 15 horas seguintes, exceto para dizer à secretária que tipo de sanduíche, bolinho e café queria que fos­sem trazidos à sua mesa. Fazer as refeições na mesa de trabalho foi praxe também para boa parte da seção de Stennell após o anúncio, e para eles, o primeiro intervalo daquele esquema de vinte-e-quatro-horas-de-cara-no-trabalho aconteceu, finalmente, quase três dias depois. Foi o primei­ro momento em que tiveram uma noção real dos efeitos da transmissão, do "ânimo geral lá fora", no jargão da Casa Branca.

Pois era isso que o departamento de Stennell na NSA (Agência Na­cional de Segurança) fazia: media "efeito e reação", ou "ânimo", por assim dizer, de vários eventos: eleições, mudanças de governo, deslocamento de tropas, gestos diplomáticos e às vezes não tão diplomáticos; ou, como agora, simples anúncios políticos. Exceto que, pela reação até então, aquele anúncio se mostrava longe de ser "simples".

Stennell olhou para o vídeo congelado da notícia na tela de seu computador. Os primeiros protestos de rua foram em Teerã e Bushehr, mas em poucas horas se espalharam para Cairo, Islamabad, Riad, Amã, Damasco e Gaza. A primeira igreja cristã foi atacada no meio da primei­ra noite no Sudão, a segunda, vinte horas depois, no bairro cristão de Ashrafieh em Beirute. Àquela altura, as manifestações já se espalhavam para várias cidades ocidentais: Paris, Londres, Estocolmo, Amsterdã.

Os oito especialistas em farsi e os 15 de idiomas árabes na equipe ainda se ocupavam em filtrar as pilhas de jornais e transcrições de no­tícias de TV, mas Stennell já tinha o suficiente para gerar um relatório provisório, que inúmeros departamentos passaram as últimas 48 horas pedindo desesperadamente.

O atraso pelo volume de material, no entanto, acrescentado do fato de que as reações ainda estavam "em progresso", permitiram que ele guardasse seus trunfos e não usasse termos abertos e conclusivos que pudessem expor sua opinião com demasiada firmeza. Era a lingua­gem cautelosa de agentes de inteligência ou diplomatas. E assim ele usou "preocupante" em lugar de "alarmante", "inquietação" em vez de "medo", "ansiedade" e não "desespero"; ainda que seu coração e que seu instinto pendessem para as últimas expressões. "Será interessante ob­servar o desenrolar dos acontecimentos nos próximos dias. É, claro, se e quando houver outro atentado a mesquitas, a situação talvez venha a se agravar." Tradução: parece que essa cambada toda pode enlouquecer por conta própria, mas, se houver outro atentado, ela definitivamente enlouquecerá.

Stennell deu uma última lida geral no relatório, depois examinou a lista de pedidos. Eram quase sessenta no total, e metade chegara logo após o anúncio. O resto era composto de pedidos gerais de notificações em longo prazo de "qualquer atividade na região". Vários setores e gru­pos dentro do Departamento de Estado, da CIA, do Homeland Security, ou senadores e deputados com interesses em assuntos do Oriente Mé­dio. O fraseado num dos primeiros pedidos chamou a atenção de Sten­nell, quase como se estivessem esperando algo assim vindo do campo de Bahsem-Yahl. Ele balançou a cabeça após um segundo. Talvez apenas monitorassem Bahsem-Yahl por motivos próprios. Não seria a primeira nem a última vez. Ele começou a mandar seu relatório.

Adel quase não suportava mais as notícias na TV.

Depois do discurso de Bahsem-Yahl na véspera, os boletins de notí­cias exibindo os protestos cada vez mais voláteis aprofundavam a preo­cupação em seu rosto. Não demoraria muito até que alguém percebesse que ele sabia mais do que estava contando.

E ele não podia revelar seus pensamentos a ninguém. Não só porque prometera a Tynnan, e por um bom motivo. Se os tentáculos de Washing­ton se estendessem por alguma distância, a prioridade seria fazer de Tyn­nan um alvo. Além disso, haveria ainda repercussões para sua própria equipe. Se ele revelasse sua mão neste jogo, aqueles mesmos tentáculos fariam de tudo para frustrar seus esforços em encontrar os terroristas ou sua operação seria desativada num instante. No momento, seu único ás na manga era a informação confidencial que recebera de Tynnan.

Mas, com o sigilo exigido pelo pacto, Adel se deu conta pela primei­ra vez do quão solitário estava: não havia ninguém na sala de opera­ções com quem pudesse dividir aquele fardo. E, em todo caso, não que a equipe fosse acreditar nele: "Recebi informações confidenciais de um escritor britânico. Ele escreveu exatamente este cenário num manuscrito no ano passado, e agora teme que toda a situação esteja sendo copiada do livro. Um roteiro do Armagedom, digamos assim."

Sozinho. Adel voltou suas atenções para o rastreamento de Akram e Masahran. Era um terreno mais seguro, onde suas reações não coloca­vam seu segredo em risco.

Como está indo? — perguntou ele a Malik.

Eu eliminei os primeiros vinte minutos; 78 pessoas no total. Um banheiro movimentado.

A sugestão viera de Bahir no começo da tarde: se Akram não saiu do banheiro com a mesma cara que entrou, então talvez tivesse usado uma das cabines para se trocar, "vestir algum tipo de disfarce".

Era uma sugestão razoável, mas dolorosamente lenta de ser testada. As imagens da segurança tinham que ser examinadas quadro a quadro, combinando a entrada e a saída de todos, até que finalmente, se tudo corresse bem, eles encontrariam uma pessoa que saía e que não havia entrado. Já que a mesma pessoa precisava fazer as combinações visual­mente, era trabalho para um homem só. Já fazia quase duas horas que Malik vinha examinando as imagens da câmera de segurança.

Adel deu um tapinha no ombro de Malik com um sorriso contido.

Se não encontrar nada até uma hora depois da entrada de Akram, vamos desistir. E começar a pensar em outras opções.

Quarenta minutos depois, Karam chamou sua atenção para uma nova notícia na grande TV de plasma. "Outro ataque em retaliação aconteceu numa igreja cristã, desta vez em Ashrafieh, Beirute."

Adel fitou a tela o máximo que pôde agüentar, balançando a cabeça inconscientemente. Ele ainda estava na mesma posição em sua mesa dois minutos depois, com uma das mãos apoiando a testa e escondendo seus olhos fechados, quando o grito animado de Malik resoou pela sala.

Peguei... Peguei o cara!

Adel foi até lá. Na tela de Malik, estava um homem vestindo um caftã verde-escuro, rosto quadrado e barba e bigode pretos e espessos, com toques grisalhos. Malik ampliou a imagem duas vezes, e só assim, inclinando-se mais para perto da tela, Adel conseguiu ver alguma seme­lhança com Akram.

Tem certeza? — insistiu Adel.

Absoluta. Já examinei todas as pessoas que entraram depois de Akram. Esse homem definitivamente não está entre elas.

Os olhos de Adel se fixaram atentamente na imagem congelada na tela. Lentamente ele soltou a respiração.

Ok, parece que encontramos o nosso homem. Consiga o melhor retrato que puder e o envie a todas as centrais.

Um dos adolescentes ficou junto a Akram, murmurando palavras encorajadoras.

Você ficará bem. Agüente mais um pouco. Eles não vão demorar.

Os outros dois estavam fora de seu campo de visão, atrás dele. Um deles ligou para a emergência do celular para chamar a polícia e uma ambulância.

E venham rápido! Tem muito sangue! — Quando ele desligou, o outro já dizia que não sabia se podia ficar mais, que tinha que voltar para casa.

Akram não viu se o menino já havia ido embora no momento que a ambulância chegou, pois desmaiou segundos depois.

A próxima coisa que ele lembrava era a sensação de frio; um frio tão intenso que era como se tivesse sido atravessado por uma lança de gelo. Ele começou a tremer incontrolavelmente, e, quando a lança atingiu seu estômago, a dor foi excruciante, retorcendo seu corpo para fora da maca. Dois paramédicos lutaram para mantê-lo no lugar, dizendo mais palavras tranquilizadoras.

Fique calmo... você vai ficar bem. Só fique parado.

Mas dessa vez Akram sabia que eram apenas palavras vazias, pois viu seu próprio sangue empapando o lençol sob as luzes intensas da sirene enquanto a ambulância corria para o hospital. E ele via também em seus rostos. Ele estava morrendo!

Uma parte dele acolhia o frio e a dor — parecia uma punição ade­quada para o que ele tinha feito, por sua traição. Afinal, Fahim Omari não sofrerá menos por sua traição; por que para ele teria que ser dife­rente? E então, quando eles se encontrassem no além, poderiam dis­cutir suas respectivas traições, onde se desviaram e erraram; e talvez pudessem finalmente se abraçar e ser amigos novamente. Como sempre foram.

Ele tossiu, embora fosse difícil sob a máscara de oxigênio e com o pequeno tubo plástico no canto de sua boca. Na terceira vez, algo emer­giu de seu estômago. A paramédica mais próxima, uma moça de não mais que 24 anos, levantou a máscara e limpou seu rosto. Ele tentou focar sua atenção nela, mas ela desapareceu num borrão cinzento; e de repente ele estava mais uma vez abraçado a Omari com lágrimas nos olhos, e o amigo apagava as últimas chamas com sacos de cimento e verificava se Akram estava bem. E depois os dois estavam lado a lado, com o sol quente às costas enquanto jogavam pedras nas águas do Nilo, obrigando algumas garças a alçar vôo. "Eu sinto muito, Fahim... muito mesmo. Por favor, me perdoe." As imagens desapareceram num cinza-escuro, e logo a escuridão tomou conta novamente.

Preocupada, a jovem paramédica fitou seu colega depois de limpar o vômito. Estava carregado de sangue. Ela verificou os monitores de pressão sangüínea e batimentos cardíacos. Ambos haviam caído verti­ginosamente nos últimos minutos, o pulso agora em apenas 42. Eles o perderiam.

Houve um burburinho pela descoberta do disfarce de Akram. O bole­tim com a foto foi divulgado, enquanto Malik passava uma seqüência da nova aparência de Akram nas outras câmeras: atravessando o terminal da estação, saindo novamente na Praed Street. A nova pista elevou os ânimos na sala de operações durante cerca de mais uma hora.

Até o noticiário com o mais novo drama no rastro do discurso de Bahsem-Yahl: um protesto com mais de 2 mil pessoas nas ruas de Paris saiu do controle, e canhões dagua tiveram que ser usados. A sala de operações recaiu em silêncio novamente.

Dessa vez, Adel não tinha onde se refugiar; nada mais a fazer a res­peito de Akram a não ser esperar por respostas ao boletim divulgado.

Adel se deu conta de que não se escondia daquele drama em pro­gresso apenas porque suas reações podiam revelar seu pacto secre­to com Tynnan, mas também porque não sabia o que fazer a respeito. Impotente.

Logo após o anúncio na noite anterior, Tahiya percebera que, além de um "dia difícil", havia algo mais errado. E uma vez que as crianças foram dormir, ela finalmente perguntou o que era.

Isto é, se você achar que pode ou de fato quer falar sobre isso.

Ele balançou a cabeça.

Não, não. Tudo bem. Com sorte, tudo vai se resolver. Talvez mais tarde.

O problema é que ele não via como tudo poderia melhorar depois, ou ficar mais fácil de mencionar. Patético. Agora ele não conseguia mais conversar nem com Tahiya. Verdadeiramente sozinho.

Havia um fator sobre o qual ninguém tinha controle: se Bahsem-Yahl faria um pronunciamento ou não. Isso não podia ser copiado do manuscrito e estava puramente a cargo do destino. Ele podia tentar racionalizá-lo de diversas maneiras: se fosse para sortear alguém que se encaixasse como Mabus, Bahsem-Yahl era uma de apenas três es­colhas válidas. Houve também outros dois jornais do Oriente Médio com editoriais que alegavam uma "influência ocidental" por trás dos atentados nas mesquitas, um deles também citando um importante clérigo libanês. Mas de longe, a voz mais forte no assunto — a única com alguma chance de conseguir amplo apoio no mundo islâmico — tinha sido Bahsem-Yahl. E independentemente de qualquer racionalização que pudesse ser aplicada, agora a coisa saíra da ficção do manuscrito de Tynnan e se tornara fato.

Adel dissera a si mesmo desde o princípio que, se e quando um anúncio fosse feito por Bahsem-Yahl, ele representaria um caminho sem volta. Mesmo que tudo fosse mesmo uma operação clandestina bem-intencionada para obrigar Abu Khalish a se entregar, uma vez que o anúncio foi feito, aquele momento tinha passado: agora era a última coisa que Abu Khalish faria. Ele simplesmente se sentaria para assistir com fascinação como a batalha entre os supostos terroristas "liderados pelo Ocidente" e Bahsem-Yahl se desenrolaria. Dali em diante, o principal objetivo da operação falhou, sendo assim, nada que Adel fizesse poderia atrapalhá-la; uma coisa a menos para pressioná-lo. A corrida então, como no manuscrito de Tynnan, era meramente para encontrar os terroristas das mesquitas e com sorte descobrir que eram muçulma­nos, sem conexões ocidentais, antes que o caldeirão do ódio islâmico que Bahsem-Yahl colocara para ferver transbordasse.

O problema é que Adel não sabia mais por onde começar. Depois do último atentado e agora com uma quadra nova indicando uma mu­dança — "em dois braços, para cidades outras, distantes" — os próximos alvos podiam ser praticamente em qualquer lugar.

E, assim como Sam Tynnan lamentara apenas alguns dias antes, Adel também se sentia agora um simples passageiro a bordo do mes­mo manuscrito, impotente para alterar qualquer coisa, assistindo aos jornais mostrando as primeiras sementes da Terceira Guerra Mundial sendo plantadas.

 

                         Capítulo Vinte e Oito

Sam também precisou de distrações para não pensar no anúncio de Bahsem-Yahl e seu significado; mas, no seu caso, foi a alegria de escutar como Jem customizou uma picape Chevy 1954.

No fim das contas, decidi usar um 355 com setecentos cavalos de potência. Liguei numa transmissão quatrocentos e acrescentei um compressor BDS e óxido nitroso para dar um toque a mais.

Certo.

Sam mal sabia do que Jem estava falando, era praticamente todo um idioma diferente. Ele simplesmente sorria e concordava com a cabeça nos momentos em que achava que devia, enquanto Jem exibia com or­gulho os frutos de seu trabalho.

Coloquei cabeças de alumínio e um carburador de alta perfor­mance, instalei um kit de conversor e marchas, e ela ficou pronta para a ação!

Jem deu um tapinha carinhoso no capô e um sorriso orgulhoso para o motor antes de fechá-lo novamente.

Sam passara metade do dia assistindo às notícias dos protestos e cartazes no rastro do pronunciamento de Bahsem-Yahl com mórbida fascinação, zapeando entre os canais para pegar as últimas notícias, mas ao mesmo tempo desejando não assistir. Ele vira Jem pescando no pe­queno píer sobre o lago quando olhou pela janela, e decidiu se juntar a ele. Precisava de ar fresco.

Duas noites antes, eles haviam trocado informações sobre suas res­pectivas amizades com Mike, e Jem contara sobre seu tempo na cabana, assim como os anos passados na reserva Akwesasne. Eles então falaram sobre peixes e melhores métodos para pescá-los até finalmente chegar à picape Chevy.

Meu pai tinha uma. Ele costumava me levar à cidade nos fins de semana e parar bem em frente à sorveteria enquanto comprava para mim meu milk-shake de cereja favorito com duas bolas de sorvete. — Havia uma leve centelha de nostalgia nos olhos de Jem enquanto falava. Ele sorriu. — Mas para gente como você, deve ser mais conhecida como a caminhonete do moleque solitário de American Pie. Estou indo a Utica para fazer umas compras. Quer vir comigo?

Obrigado, mas é melhor não; especialmente depois daquele dia. Segundo a Lei de Murphy, seu amigo policial estará na cidade na mesmíssima hora.

Jem concordou. Mesmo assim, ele ainda não perguntou por que Sam estava "fora de circulação". Talvez fosse uma regra tácita, uma linha que jamais se ultrapassava ao lidar com fugitivos.

Contudo, havia algumas coisas que estavam escasseando na cabana, e assim, depois da visita guiada à sua picape Chevy, Jem se ofereceu para fazer compras para Sam.

Quando Jem saiu, era apenas Sam e os noticiários novamente. Sam se escondendo numa cabana enquanto o mundo lá fora ruía para en­cenar o terceiro ato de seu manuscrito. A febre do isolamento atacava novamente, com força.

Não muito tempo depois, ele atacou a garrafa de uísque escocês, e após algumas doses — ele perdeu a conta — Sam se dirigiu à varanda. Ele se debruçou na grade, delicadamente balançando o copo, observan­do seu contraste com o lago ao fundo, distraído. A claridade que um dia fora a sua vida e a turva escuridão em que se transformou. Ele ficou ali por mais algum tempo e, quando se virou para voltar para dentro, viu o carro: um Pontiac G6 cinza-escuro, numa tangente de trinta graus na estrada de chegada, parcialmente oculto pelas árvores. As janelas ti­nham vidro fumê, e ele não pôde ver se havia apenas uma pessoa ou se o carro estava lotado.

Tentando parecer casual, ele caminhou tranqüilamente de volta para a cabana e se colocou num lugar em que tinha uma boa visão da estrada pela janela da frente. Foram quatro minutos inteiros até que o Pontiac passasse pela cabine, fizesse meia-volta na bifurcação cerca de 200 me­tros à frente e voltasse por onde veio.

Sam ainda tentava ouvir os últimos ruídos do motor para ter certeza de que o carro tinha ido embora mesmo quando o telefone tocou. Era Jean-Pierre novamente. Tudo que ele precisava! E, quando Jean-Pierre começou a empurrar seus planos para um livro de vidência com vigor renovado, Sam já não tinha quase nenhuma resistência sobrando: o dra­ma que se desenrolava com Bahsem-Yahl o entorpecera, e meia garrafa de uísque Bushmills fizera o resto.

Quando vi o anúncio de Bahsem-Yahl pela primeira vez, fiquei estupefato — disse Jean-Pierre. — Não consegui pensar direito por al­gum tempo depois.

E eu ainda não consigo, pensou Sam; mas, pelo que ele sentia que estava por vir, por motivos diferentes.

Sei como é.

Acho que agora ambos temos que aceitar que isso está além da simples coincidência.

Sim.

As têmporas de Sam começaram a latejar, e por um momento ele se sentiu tonto. O que você quiser. Os pensamentos de Sam ainda estavam voltados para aquele carro.

Sem dúvida, isso merece mais em meu futuro livro que apenas o capítulo que mencionei outro dia. Provavelmente uma seção inteira só para isso. É uma situação incrivelmente única.

Única?

Sim... suponho que seja. — Certamente jamais aconteceu comigo.

Diga-me. O último atentado a mesquitas também seguiu o que estava no seu manuscrito?

Não, não. Não seguiu. — Sam engoliu um arroto. — Mas esse foi o primeiro a ser diferente.

Foi assim que eles planejaram? Esperar que Jem saísse, depois fazer Jean-Pierre telefonar para distraí-lo enquanto atacavam?

Aaah... então a quadra que eu passei estava correta. Cidades dife­rentes foram escolhidas para os últimos.

Sim... parece que sim.

O cômodo girou por um segundo e Sam se apoiou numa mesinha lateral para não cair. Ele balançou a cabeça. Sem a bebida, talvez ele ti­vesse podido antever o caminho que Jean-Pierre seguiria, e decidido se manteria aquela carta na manga. Provavelmente não faria diferença, mas ele não estava lúcido o suficiente para determinar aquilo. Tentou ouvir os ruídos do lado de fora novamente. Será que era o Pontiac voltando?

Também estive preparando quadras novas, visões modernas dos pensamentos de Michel se ele estivesse profetizando ainda hoje. E, como mencionei para você no ano passado, uso todos os mesmos equipamen­tos que ele usava na época: mapas e quadrantes, astrolábio e esfera armi- lar. Vou continuar a trabalhar nelas, mas agora também vou rever como elas podem melhor servir nesta nova situação.

Entendo... sim.

Mas eles já tinham eliminado a possibilidade de um envolvimento de Jean-Pierre, não tinham? Será que ele estava finalmente perdendo a cabeça, ou era só a bebida? Sam apoiou a cabeça nas mãos. Não se sentia nada bem.

Mas, obviamente, eu gostaria de ponderar mais sobre o assunto. Vamos continuar a conversa amanhã.

Obviamente. Sim... vamos fazer isso.

Sam fechou os olhos e massageou suas têmporas latejantes ao desli­gar o telefone. Depois, percebendo o que seu novo arroto indicava, ele correu até o banheiro para vomitar.

Jean-Pierre percebera que Sam estava distraído enquanto conversavam, que ele não parecia realmente prestar atenção. Talvez ele ainda não esti­vesse adaptado à situação. Jean-Pierre então decidiu interromper a liga­ção com uma desculpa e tentar novamente no dia seguinte.

Ele também sentia certa vertigem diante de tudo aquilo, mas possi­velmente com um bom motivo. Pois, embora ele tivesse repassado todas as possibilidades depois de falar com Tynnan da última vez, se Bahsem-Yahl de fato tomasse alguma posição, ele, Jean-Pierre Bourdin, ainda seria aquele que previu o caso e que ligou Bahsem-Yahl a Mabus!

Não era só uma profecia na vida real, algo em que ele vinha traba­lhando com quadras novas para seu próximo livro, mas uma profecia com implicações vastas e portentosas — se os eventos se desenrolassem como Tynnan descreveu em seu manuscrito.

Depois havia a questão do momento. Vrellait o contatou sobre o livro-código perdido e as novas quadras, envolvendo Jean-Pierre na autentica­ção do que poderia ser a descoberta mais vital sobre Nostradamus nos últimos cinco séculos. Assim, quando a real dimensão da odisséia do ma­nuscrito de Sam Tynnan se revelou e o pronunciamento de Bahsem-Yahl de repente se tornou uma terrível realidade, Jean-Pierre mais uma vez se viu no olho do furacão de mais uma revelação vital. E a cereja do bolo: uma das quadras há muito perdidas de Nostradamus se revelou correta.

Os trânsitos e quadrantes dos planetas e luminares — que ele passa­ra tantas noites explorando em busca de novas perspectivas proféticas.

Estavam todos conspirando como quem diz: esse é o seu momento!

Seus sentidos literalmente alçavam voo, levantando seu humor e co­locando uma alegria em seus passos quando ele saiu para almoçar no Henris. Era um dia claro com um toque de calor primaveril no ar, e em poucos minutos ele estava em sua parte preferida de Salon: o coração da cidade velha, com suas vielas estreitas levando à torre do relógio, a Tour de 1'Horloge. Ele conhecia muitos dos comerciantes nas ruas — a charcuterie e épicerie, a boulangerie onde comprava o pão matinal e os doces - e hoje ele os cumprimentou com mais entusiasmo que o habitual.

Jean-Pierre comprou um exemplar de Le Soir no jornaleiro, virou na torre do relógio e parou 60 metros adiante em frente à estátua de Nostradamus. Ele deu à estátua um cumprimento de cabeça mais firme e reverente que o normal, e ficou a seu lado um pouco mais que o de costume em contemplação, inclinando a cabeça e fechando os olhos, sentindo o sol sobre si. Sua hora, seu momento ao sol.

Um traço de sorriso ainda estava em seus lábios quando ele chegou ao Henris, e abriu o Le Soir, sentando-se a uma mesa na calçada. A fonte Moussue borbotava delicadamente a 20 metros de distância.

Ele mal podia lembrar alguma outra época err que se sentira tão bem, com tão bom humor, e mesmo Henri não parecia tão emburrado como de costume quando veio anotar seu pedido.

Jean-Pierre encontrou a notícia que estava procurando na página cinco: um artigo de duas colunas sobre o discurso de Bahsem-Yahl e as reações posteriores. Depois de ler, ele dobrou o jornal sobre a mesa. Confirmava o que ele já suspeitava por ver as notícias na TV: os pro­testos provavelmente ficariam piores, especialmente se houvesse outro atentado a uma mesquita.

Ele sentiu uma culpa momentânea por saber que seu entusiasmo talvez aumentasse com uma calamidade futura; mas, por outro lado, se ele jogasse as cartas certas com Sam Tynnan, poderia também ter um papel fundamental em impedir a calamidade.

Jean-Pierre via tudo com clareza: no mínimo dois livros grandes, entrevistas em jornais e TV, seu status aumentando até se transformar inquestionavelmente no principal especialista em Nostradamus na Fran­ça, quiçá no mundo. Ele certamente não conseguia pensar em nenhum outro que estivesse envolvido em eventos dessa magnitude.

Tomou um raro conhaque para comemorar ao fim de seu almoço no Henris, e mais um quando encontrou Corinne para um café após o trabalho e atualizá-la sobre tudo.

Que notícia maravilhosa, Jean-Pierre... maravilhosa — exclamou ela, combinando seu entusiasmo ao dele quando ouviu a história.

Mais uma vez, ela estendeu a mão sobre a mesa para tocar-lhe o braço. E, sentindo-se subitamente ousado, como se nada que fizesse pudesse sair errado naquele momento, ele se debruçou sobre a mesa e beijou-a na testa.

E você também é maravilhosa... Há um bom tempo que acho isso. Eu deveria ter dito antes.

Houve um momento congelado no qual ela pareceu ligeiramente per­plexa, e ele temeu não ter entendido os sinais corretamente e abusado de­mais da sorte. Mas logo o brilho morno nos olhos dela lhe mostrou que estava tudo bem — mais do que bem — e o levou a todo um novo patamar.

Uma hora depois, quando deu um beijo de despedida em Co­rinne, aquela febre, uma emoção intensa e crua, e um sentimento de que todos os céus lhe sorriam ao mesmo tempo, carregou-o num tapete mágico através da solidão da noite. Somente ele, a sós com as estrelas.

As duas primeiras horas passaram devagar, somente palavras soltas, pedaços de frases, nada coerente. Uma média de uma linha por hora. Depois as coisas começaram a fluir. Durante as três horas seguintes, ele terminou aquela quadra e produziu mais duas completas.

Ele então chegou a outro beco sem saída, nada. Mas Jean-Pierre ti­nha a sensação de que havia algo ali: arredio, apenas um pouco fora do seu alcance.

Agora ele também se sentia cansado, e decidiu encerrar o trabalho cerca de quarenta minutos depois.

Foi a idéia que o acordou. Ele abriu os olhos de repente como num choque elétrico. Piscou, ajustando-se à vigília — aquele primeiro mo­mento suspenso entre o sono e o despertar —, depois pulou da cama e pegou uma caneta e um bloco da mesinha de cabeceira.

A mensagem, uma quadra, que ele sentira a seu alcance na noite anterior, chegou de repente, clara como o dia. E Jean-Pierre teve medo de que, se não anotasse rapidamente, ela se perderia, desapareceria, des­lizaria por entre seus dedos.

Ele trocou apenas duas palavras antes de se considerar satisfeito, e achou que ela transmitia com precisão o que lhe ocorrera. Um arrepio percorreu seu corpo enquanto ele a lia. Sem dúvida, era o seu momento.

Quando Jem voltou de Utica, Sam perguntou sobre o Pontiac cinza-escuro.

Não. — Jem balançou a cabeça. — Não conheço esse carro. Não é de ninguém que vem sempre aqui, pelo menos. — Ele deu de ombros após um segundo. — Mas isso não quer dizer que eles não possam ter comprado um carro novo desde o ano passado, e é impossível recordar todos os hóspedes e amigos deles. Também têm as pessoas que passam por aqui só para olhar a vista do lago de vez em quando. Um sanduíche ou um cigarro rápido e lá se vão de novo.

E, imagino que sim.

Anotou a placa?

Não. Estava escondida atrás das árvores.

Jem assentiu. Ele percebeu que Sam ainda estava inquieto.

Melhor você ficar lá em casa de novo hoje. Por via das dúvidas.

— Oi, Namir. Como você está? Como vai a família?

Salaam, Adel. Bem, todos bem. É bom ter notícias suas. Tudo bem com vocês também?

Sim. Todos estão bem.

Nossa, Jibril já tem quase idade suficiente para viajar sozinho no verão. Nasuh vai gostar de ter companhia.

Sim. Talvez ano que vem.

O filho mais velho de seu irmão Namir, Nasuh, tinha quase a mesma idade que seu filho Jibril, e eles ficaram amigos instantaneamente nas últimas férias da família.

Namir era apenas 18 meses mais novo que Adel, mas às vezes essa pequena diferença parecia um século. Seus cumprimentos ainda eram tensos, mesmo depois de todos aqueles anos. Adel sempre temia que um dia, após perguntar pela saúde de seu irmão, ele responderia: "Como você acha que estou? Você ficou em Londres e partiu o coração do nosso pai. E, enquanto isso, tendo que fazer a sua parte também, sou obrigado a abandonar minhas próprias esperanças e ambições."

O plano do pai era que Adel estudasse dois anos na prestigiosa School of Economics em Londres e então voltasse a Dumyat para ajudar a gerenciar os negócios, eventualmente assumindo tudo.

Mas Adel se apaixonou: por Londres e por Tahiya. Além disso, em nenhum momento ele se vira como um comerciante de mármore e ou­tras pedras, embora jamais tivesse coragem de dizer ao pai. Os quase 5 mil quilômetros entre eles facilitaram dar a notícia: a saída do covarde.

O sonho de Namir era estudar o islã e tornar-se um imame. Ele já tinha dois anos de estudos na madrassa Sultan Hassan, no Cairo, quando Adel fez a ligação fatídica para o pai. E assim Namir teve que abandonar seus sonhos e assumir os negócios no lugar que deveria ter sido de Adel quando o pai ficou doente, no ano seguinte. Quatro anos depois, eles o enterraram.

Namir jamais fez qualquer repreensão, mas a cada telefonema e visi­ta de verão desde então, Adel sentia a questão pesando no ar entre eles. Culpa.

Mesmo passando apenas poucos anos numa madrassa, Namir era uma das pessoas com maior conhecimento sobre o islã entre as pessoas do círculo de Adel.

Ele chegou ao motivo da ligação: os atentados a mesquitas.

Você provavelmente já viu notícias a respeito.

Sim, claro. Um deles foi na mesquita El-Qelef em Alexandria, perto daqui.

Sim. Mas eu queria saber se há algum padrão entre eles? — Adel fez uma listagem rápida das mesquitas que tinham sido atacadas até então.

Bem. Cada uma parece ser mais significativa que a anterior para o islã.

Sim, ok. — Mesmo que Adel não soubesse disso por Tynnan, al­gumas pessoas no seu departamento já tinham percebido. — Mas além disso?

Namir pensou por um momento.

Todas elas, com exceção da mesquita Kalatahn em Islamabad, são sunitas. Fora isso, nada mais me chama atenção.

E alguma ligação entre a última mesquita atacada, a mesquita Ras-Salwi na Jordânia, e, digamos, uma mesquita como Al-Jihwa em Muscat, Omã? — A mudança entre a mesquita original proposta por Tynnan e a que realmente sofrerá o atentado.

Houve uma pausa breve.

Ambas tem estatura semelhante dentro do islã. E, claro, quando a importância das mesquitas aumentar, haverá cada vez menos do mesmo nível.

A semente de uma idéia surgiu na mente de Adel.

A mesquita em Omã. Quantas existem com a mesma importância?

Um dúzia, talvez 15.

Adel passou para a próxima na lista de Tynnan.

E a mesquita Dayahli em Doha, Qatar? Quantas existem no mes­mo patamar?

E uma mesquita bem significativa. Quatro minaretes, se lembro bem. — Um assovio baixo enquanto Namir ponderava a resposta. — Provavelmente não mais que oito ou dez da mesma importância.

Oito a dez. Não era um número impossível de locais para reforçar a segurança, pensou Adel.

Mas, se você quiser reduzir mais — disse Namir —, conheço uma pessoa para quem você pode ligar. Hanif al-Nabighah. Ele era da minha antiga madrassa, agora é um imame na mesquita Al-Azhar no Cairo. Ele poderá dar o número exato, além de nome e local de cada mesquita.

Ah, excelente. Obrigado.

Ele sentiu que isso era o mais perto que Namir jamais chegaria de uma crítica: "Esse homem do meu passado sabe muito mais que eu, sobre todas as coisas que eu, na verdade, planejava aprender antes que os seus planos reorganizassem a minha vida por mim."

Adel pegou o contato de al-Nabighah e agradeceu a Namir mais uma vez antes de desligar.

Ele telefonou imediatamente para o número e em dez minutos tinha uma lista de mesquitas: nove diretamente equivalentes e outras duas que, "com uma bondosa efortuita benção de Alá", podiam ser incluídas.

Não havia tempo a perder. Ele passou a lista a Karam e lhe pediu que instruísse a equipe a emitir alertas. Adel então parou e examinou a questão, tamborilando o telefone com um dedo por um segundo antes de ligar para Sam Tynnan.

A ligação que Sam mais aguardava era na verdade de "Emile" em Londres.

Assim, no fim da manhã seguinte, depois da ligação regular para Mike, ele ficou decepcionado ao receber outra ligação de Jean-Pierre.

Sam estava sóbrio dessa vez, embora cansado. Assim, quando Jean- Pierre desfiou seus planos para o livro, Sam estava mais preparado para lidar com isso.

Quanto tempo até ficar pronto? — perguntou ele.

Quatro ou cinco meses.

Sam sabia o resto: de 12 a 18 meses para o prazo de publicação, podendo ser adiantado em quatro ou cinco meses por um assunto em voga. Se os eventos se desenrolarem como em seu manuscrito, o último atentado aconteceria dentro de apenas dez ou 15 dias. Todo o drama então se resolveria muito antes do prazo. Mas, ainda assim, ele tinha que ser cauteloso.

Há certas coisas que eu não poderei divulgar, porque há contatos meus que estão sob acordos de confidencialidade. Creio que também seja necessário, por causa da natureza sensível do tema, que meu nome fique de fora. Talvez usar um pseudônimo.

Entendo. — Jean-Pierre soara um pouco decepcionado.

Mas os fatos principais ainda podem ser usados. Não há proble­ma quanto a isso. Conforme os eventos forem avançando, tenho certeza de que ficará claro o que seria sábio revelar ou não. Onde talvez tenha­mos que ser discretos.

Sim, claro. Vejo total sentido nisso.

Sam não quis bloquear Jean-Pierre totalmente. Afinal, foi ele quem ligou Bahsem-Yahl a Mabus. Além disso, a quadra que ele passou pro­vou-se acertada, e assim Sam não queria ignorá-lo como um profeta lu­nático de Nostradamus. Ele podia ter outras contribuições úteis, o que, de fato, Jean-Pierre agora revelava ter: outra quadra nova.

Sam anotou num papel.

Obrigado por isso. Vou passar adiante.

Se surgir mais alguma coisa, eu aviso, é claro. Além disso, vou mantê-lo em dia quanto ao progresso do meu livro, como ele está indo.

Sim, sim. Eu agradeço. — Em todo caso, Sam dificilmente pode­ria impedir Jean-Pierre de publicar sua própria visão dos eventos. En­quanto isso, Sam sentia que era melhor mantê-lo feliz e os canais de comunicação abertos. — E eu lhe aviso sobre como as coisas estão avan­çando do meu lado.

A ligação de Emile finalmente veio três horas depois.

Desculpe por não ter ligado antes. O pronunciamento de Bah­sem-Yahl me tirou do prumo, sim; queria um tempo para me ajustar àquilo. Mas, com a mudança de lugar no último atentado, o principal motivo é que eu não tinha mais um plano de ataque claro para atenta­dos futuros a mesquitas. Acho que agora tenho um, finalmente. — Adel explicou sua teoria de "nível equivalente". — Segurança reforçada para 11 mesquitas é executável. Já emiti os alertas.

Parece bom. Certamente cem por cento melhor que não ter pla­no. — Sam foi lembrado de que a cada momento Emile parecia ficar mais e mais similar ao personagem central de A profecia. Quando pare­cia que se tornaria um coadjuvante, fora de combate, ele dava um jeito de voltar ao centro da ação novamente. A vida imitando a arte. Sam se perguntou se um dia ele revelaria esse fenômeno para Emile. — E, nesse mesmo tema, recebi outra quadra de Jean-Pierre que ele acha que pode ser relevante.

Adel repetiu algumas palavras para ter certeza de que tinha anotado tudo corretamente, e então disse:

Você vê que isso não parece relacionado à última quadra que re­cebemos dele. Na verdade, não estou exatamente certo de que entendo o que quer dizer.

Eu sei. Mas o que posso dizer? Sou só o mensageiro aqui.

Adel riu discretamente.

Você é um pouco mais que isso, Sr. Tynnan. Mas entendo o que quer dizer.

 

WASHINGTON, DC.

— Você se lembra daquele filme, Três dias do condor, com Robert Redford e Max von Sydow? Aquele em que um departamento pequeno da CIA examina recortes de notícias e livros, procurando coisas subver­sivas e preocupantes que talvez ninguém mais tenha percebido? Bem, é isso que fazemos aqui. Exceto que, em metade do tempo, recebemos instruções quanto ao que procurar, e oitenta por cento das buscas hoje são eletrônicas. Você pode estar procurando notícias sobre movimenta­ção de tropas sudanesas, eleições argentinas, um discurso de Kadaffi ou de Putin, ou um comentário ou ação de rebeldes chechenos. Mas o seu trabalho é comparar todas as notícias e destilar delas quão preocupante o evento é ou não. Mas o diabo está nos detalhes. O diabo está nos de­talhes. Se você vir alguma coisa que o perturbe, não importando quão pequena, não deixe passar. Porque às vezes são aqueles pequenos de­talhes subterrâneos que acabam sendo mais significativos do que você pensa. E muitas vezes são os que todo mundo lá ignorou. Então, aqui nós damos sim atenção às coisas pequenas.

David Stennell se lembrou das palavras do chefe do setor, Kenny Verbeck, quando ele chegou transferido de outro departamento da NSA havia cinco anos. Não eram difíceis de lembrar porque Verbeck ainda usava variações do mesmo discurso com novos recrutas; e, se eles en­trassem na equipe de Stennell, ele participava da palestra inicial para acrescentar suas opiniões pessoais.

As palavras no pedido do Departamento 101o incomodaram, então ele finalmente decidiu relê-lo na tela. Será que estava lendo demais nas entrelinhas? Coisas pequenas. Talvez, se não tivesse visto junto a todos os outros, aquilo não teria se destacado: "Favor informar a reação da im­prensa árabe e do Oriente Médio sobre os atentados recentes a mesquitas. Particularmente nas reações, se existirem, de quaisquer líderes políticos e clérigos linha-dura da região, como Bahsem-Yahl."

Todos os outros grupos e departamentos tinham acabado de fazer pedidos genéricos, sem nomes específicos. Talvez o 101 tivesse um inte­resse especial em Bahsem-Yahl; esta era a razão. Stennell fez uma rápida busca de palavras-chave para ver em quantos documentos do 101 apa­recia o nome de Bahsem-Yahl: 47. Ele fez uma busca comparativa com outros setores equivalentes em tamanho na CIA, no Homeland Security e na sua própria NSA: 26, 9 e 21, respectivamente.

Ok, então eles realmente tinham um interesse maior que a maioria em Bahsem-Yahl. A pergunta agora era: por quê?

 

                                   Capítulo Vinte e Nove

Ouvir a voz do filho foi o que finalmente derrubou Sam.

Ele contara ao pai, Ross, sobre a morte de Lorrena dois dias antes, mas, quando tentou ligar para Kate, a ligação caiu na caixa postal. À noite, quan­do retornou a ligação, ela pediu desculpas por estar fora nas filmagens.

Sinto muito, Sam... muito mesmo. — Houve uma longa pausa, e então: — Como você está lidando com isso?

Não sei. No geral ainda em choque, tentando compreender o que aconteceu. — Ele suspirou pesadamente. — Acho que a ficha ainda não caiu totalmente. — Ele achava que esta era uma das maneiras de explicar por que parecia tão entorpecido e perplexo, e não uma pilha de nervos em prantos. — Ashley está aí?

Sim... claro — respondeu ela após um segundo. Kate ainda esta­va organizando seus pensamentos após a notícia chocante. — Mas me dê um minuto com ele, pode ser? Provavelmente você não quer repetir tudo aquilo de novo.

Ok, sim. Obrigado.

Foi um "obrigado" mais comovido do que ele gostaria de admitir. Kate conseguiria dar o tom certo e a gravidade emocional que naquele momento Sam não tinha como administrar. Tudo que ele conseguiria oferecer seria outro relato entorpecido, distante e ainda em choque.

Sam fechou os olhos ao ouvir Kate dando a notícia delicadamente ao filho. A voz de Ashley soava incrédula, com um tom suplicante, embora Sam não conseguisse ouvir as palavras.

Mas, quando Ashley pegou o telefone um minuto depois, seu tom estava mais calmo. Talvez Kate tivesse dado dicas a ele: "Quando falar com seu pai, tente ficar calmo. Ele já está passando por dificuldades de­mais para lidar com a situação."

Eu sinto muito em ouvir isso, pai. — Houve uma pausa enquanto Ashley decidia que outras palavras poderiam soar "adultas" e pondera­das. — Você gostava muito da Lorrena, não é?

Sim... sim. Gostava.

Eu também.

Um silêncio desconfortável se enraizou, os dois tentando parecer contidos sobre o que aconteceu; mas por motivos diferentes, pensou Sam.

Você vai ficar bem, pai?

Sam suspirou.

Não sei... Acho que sim.

E, de repente, ele percebeu. Não aquilo que tinha que evitar dizer por causa de Lorrena — "Eu ainda não processei o quanto ela era uma parte de mim, imagine então explicar para outra pessoa... é por isso que não faço idéia de como me expressar sobre a morte dela" —, mas todo o resto que ele tinha que esconder de seu filho: "Estou em perigo e já faz algum tempo. Estou me escondendo no momento e não tenho idéia de quando vou poder sair ou sequer se um dia poderei me livrar disso tudo e ver você novamente."

Como se a distância real de 5 mil quilômetros não fosse o bastante, ele acrescentava mais 1 milhão de quilômetros com todas as coisas que não podia dizer. Talvez fosse a última vez que falava com o filho, mas ele não ousava dizê-lo.

E, ao sentir o peso esmagador dessas emoções sobre si, finalmente vieram as lágrimas.

Tem certeza de que você está bem, pai?

Sam engoliu com dificuldade, o peito pesando uma tonelada, ten­tando empurrar as lágrimas de volta.

Sim, vou ficar bem. Já estou bem. — Irônico, pensou ele: foi preci­so sentir o peso emocional de todo o resto que estava acontecendo para finalmente acertar a emoção que precisava demonstrar por Lorrena.

Sam queria desesperadamente dizer algo a Ashley, mesmo que fosse um último "amo você" ou "cuide-se". Mas isso poderia alarmar o garoto desnecessariamente, ou pior ainda, Ashley poderia contar a Kate e ela ligaria de volta com mil perguntas. Então, no fim, Sam apenas disse:

Tchau. A gente se fala depois.

 

SANA'A, IÊMEN

Eles escolheram 4h30 como o horário de ataque. Não apenas porque parecia ser a hora em que o corpo estava em sua atividade mais baixa, mas porque já teriam passado seis horas e meia no turno dos guardas, que entravam às 22 horas. Eles estariam cansados, a atenção começan­do a se reduzir, e já de olho no fim do turno, que viria dentro de 90 minutos.

Havia seis guardas designados para a mesquita al-Dahia em Sanaa, Iêmen. Quatro de sentinela em cada canto e dois em patrulha permanente do perímetro da mesquita, tão iluminado quanto um estádio de futebol.

Para compensar, sua própria equipe de ataque foi aumentada para seis, mas ainda assim eles precisavam aproveitar ao máximo cada pos­sível vantagem.

Eles invadiram um armazém em frente para lançar de lá o ataque, após examinar o lugar na véspera e desativar o alarme.

Havia sacas de grãos, farinha, arroz e temperos empilhadas em pra­teleiras, sem muito espaço entre elas: só o suficiente para que dois ho­mens se agachassem lado a lado para mirar seus lança-granadas por uma das três janelas frontais do armazém.

Ele esperaram pelo sinal do líder da equipe, Faraj. Ambas tinham que ser lançadas exatamente ao mesmo tempo em cada canto frontal onde houvesse uma sentinela.

Faraj verificou a frente da mesquita uma última vez, procurando qualquer coisa fora do lugar, e depois ergueu uma das mãos. Os lança­mentos foram executados, e as granadas mal tinham aterrissado quan­do os dois homens do C4 disparavam para atravessar a rua com seus capacetes.

Enquanto as duas sentinelas dos cantos caíam de joelhos, subjuga­dos pelas granadas incapacitantes, os atacantes prenderam suas cargas às duas laterais da entrada central da mesquita. Os guardas estariam fora do arco da explosão, então não havia necessidade de afastá-los.

Os guardas dos fundos e os dois que patrulhavam o perímetro foram alertados pelas duas primeiras explosões das granadas e estavam cor­rendo rumo à confusão quando mais dois clarões e dois estrondos dos projéteis também os paralisaram no meio do caminho.

Faraj examinou a cena. Tudo estava indo bem.

Até a chegada — sem sirenes ou avisos — de três caminhonetes cheias de policiais militares do batalhão de choque. E, de repente, tudo mudou.

As bombas na entrada da mesquita explodiram nesse momento, e Faraj recuou ao ver o drama se desenrolando à sua frente, tudo repenti­namente difuso através da leve névoa de poeira.

Três granadas foram disparadas em rápida sucessão e pararam quase metade dos policiais onde estavam, mas o resto, um grupo de dez ho­mens, continuava avançando.

Um membro da equipe C4 conseguiu escapar e se juntaria a eles nos fundos do armazém, mas o outro foi atingido por uma bala no meio da rua e caiu. O homem rolou de lado, sacou e apontou sua arma para os dois atacantes mais próximos, levando mais duas balas no abdômen antes de deixar cair a pistola.

Com a cabeça, Faraj sinalizou solenemente para Dhakir.

Este mirou o rifle na cabeça do colega caído, mas, no disparo, um dos policiais entrou na frente. Pela mira, Dhakir viu a coxa esquerda do policial explodindo enquanto ele desabava.

Recarregou a arma, mas dois outros policiais que corriam em sua direção bloquearam sua linha de tiro.

Faraj gritou e gesticulou freneticamente.

— Yalla! Vamos... vamos!

A polícia já tinha descoberto de onde vinha o ataque e se aproxi­mava rapidamente, com dois de seus tiros ricocheteando no peitoril da janela e numa parede lateral. Ao que parecia, talvez fosse tarde demais para eles escaparem pelos fundos.

As notícias de Sanaa incendiaram a sala de operações em Londres.

Fazia algum tempo que Adel não via um burburinho tão vibrante e carregado de expectativa. Ou talvez fosse simplesmente o contraste com a apatia nas outras frentes: nada ainda sobre a nova identidade de Akram no boletim divulgado, e a lista de Cunningham para rastrea- mento de falantes da língua mehri estava empacada em 612 nomes, com chances remotas de reduzi-la mais.

Uma espera ansiosa, de roer as unhas. No fim, Adel passou quase quatro horas marchando ansiosamente, tentando absorver-se em outras tarefas, atendendo ao telefone no primeiro toque, até que a ligação que ele estava esperando finalmente veio.

Sinto muito, Adel. Ele não resistiu. — Masrur do TAME15 em Riyadh prometeu ligar assim que tivesse notícias do terrorista da mes­quita através de seu contato no hospital em Sanaa. — Ele faleceu na mesa de cirurgia há apenas alguns minutos.

Adel fechou os olhos momentaneamente. Então mais uma vez ti­nham um suspeito morto em vez de vivo. Embora desta vez houvesse uma diferença muito importante.

— Mas o rosto dele está bem, intacto, você disse?

Sim, perfeito. Os ferimentos foram no abdômen e numa perna.

Ao menos um consolo, creio. — Adel requisitou que o suspeito fosse limpo e fotografado. — E mande-me essas fotos assim que possí­vel para que eu possa procurar nos arquivos. E também qualquer outra coisa da cena que possa ser útil.

Meu contato na polícia mencionou um tipo de granada incapacitante que eles nunca viram antes. O fabricante, Indústrias Clayton, eles conheciam... mas o número do modelo era inteiramente novo.

Hum. Pode ser algo. Mande-me o número do modelo, e peça para fotografarem a cápsula das granadas também, se você achar que pode ajudar.

O número chegou em meia hora; ele teve que esperar mais de quatro horas pelas fotos do terrorista.

Adel se lembrou de uma foto que vira na faculdade de Che Guevara numa maca, tirada pela polícia boliviana para provar que o notório re­volucionário estava inquestionavelmente morto. Era como o terrorista da mesquita parecia agora: os músculos faciais encovados, duas vezes mais pálido que o normal. Não eram as melhores condições para encon­trá-lo nos arquivos de foto da polícia, mas pelo menos era algo com que trabalhar. Uma pequena benção.

E a sua aposta das "mesquitas equivalentes" tinha valido a pena, mesmo que apenas parcialmente. Se fosse vinte segundos antes, eles poderiam ter capturado outros terroristas e talvez até algum vivo. Mais importante, os terroristas teriam agora a mensagem de que ha­viam sido descobertos — e que seu plano de mudar as locações fora frustrado.

Mas uma coisa acima de tudo ficou provada: obviamente não ha­via nenhum vazamento interno de informação. Pelo menos não no seu ambiente próximo. A equipe de Karam se ligara diretamente a cada de­partamento de polícia, que por sua vez foram alertados para manter a operação em segredo. Não houve nenhum alerta geral na rede.

A foto do terrorista morto foi divulgada numa rede mais ampla —- quanto a isso não houve segredo, sua morte estaria nos jornais a qual­quer momento — incluindo todos os oficiais da TAME e também do GCHQ e da NSA. Adel passou o número do modelo da granada in- capacitante somente para Paul Cunningham do GCHQ, para que ele transmitisse à sua contraparte na NSA.

A primeira resposta veio às 9h18 do dia seguinte: Paul Cunningham com notícias sobre as granadas.

— Nós temos alguns arquivos aqui, mas eu queria pegar informações dos Estados Unidos também, só para ter certeza. O seguro morreu de velho... Eles mandaram uma mensagem durante a noite. As Indústrias Clayton são um conhecido fabricante de munição de pequeno porte nos EUA, mas esse modelo de granada incapacitante só foi lançado há dois meses. Está longe de ser de uso corrente nas forças armadas americanas, muito menos na OTAN ou qualquer outro lugar. Nesse momento, ela está em período de testes em quatro unidades de combate do Exérci­to americano e duas unidades de fuzileiros navais, e em unidades da SWAT em três cidades. — Cunningham deu o nome das unidades, mas nenhuma formava qualquer associação interessante para Adel.

Suponho que é improvável que um grupo terrorista tenha posto as mãos nelas, então?

Dado o pouco tempo e a distribuição limitada, sim. Mas não está totalmente fora de questão. Já houve casos até de protótipos e amos­tras de pré-venda roubados ou "desaparecidos", e terminando nas mãos erradas.

Ok. Entendido. — As chances eram remotas. — Bico calado sobre isso por enquanto, Paul. Com Bahsem-Yahl fazendo um escarcéu sobre o envolvimento americano, a última coisa que queremos é soltar essa batata quente. — Adel suspirou. — Enquanto isso, vou decifrando como manejar a polícia iemenita quando eles me derem retorno.

Adel desligou. Ou ele diria que ainda estavam checando ou que a rede de distribuição era maior do que era na verdade. Adel olhou para a mão quando soltou o telefone. Estava tremendo.

Desde a notícia de Sanaa, estava vivendo de adrenalina pura, muitas xícaras de café e pouco sono. Seus nervos estavam em frangalhos. Na noite anterior, enquanto rolava na cama tentando pegar no sono, com todas as possíveis conseqüências girando em sua mente, Tahiya pergun­tou novamente se alguma coisa o perturbava e se ele queria conversar a respeito. E, mais uma vez, ele mentiu para ela, dizendo que estava tudo bem, que tudo se resolveria no final.

Solitário. Escondendo coisas de Tahiya, escondendo coisas de seus colegas. E isso agora havia atingido outro patamar com eles. Embora Adel pudesse admitir que estava decidido a enterrar qualquer ligação com os EUA por causa do discurso de Bahsem-Yahl, ele tinha que tomar cuidado para não ser enfático demais. Senão eles poderiam suspeitar que algo mais profundo o perturbava: o fato de que ele já sabia como tudo podia terminar por causa do cenário apocalíptico de Tynnan.

A tensão na sala de operações se intensificava à medida que o dia avançava, ou talvez fosse só a percepção dele. Adel cogitou almoçar fora, mas não queria passar uma hora inteira num restaurante e possivelmen­te perder alguma coisa. Em vez disso, ele pediu uma panqueca de frango com salsa na lanchonete local e foi dar uma volta.

O Embankment estava a apenas 80 metros. Adel se sentou num ban­co para comer, observando distraidamente os rebocadores e os barcos de turistas passando à sua frente. Mas, quando seu olhar se desviou para o leste, ele viu a Igreja de St. Paul a distância e se lembrou de seu encon­tro com Omari às margens do rio no Anchor. Lugar quatro. Ele fechou os olhos por um minuto enquanto mastigava e engolia os últimos boca­dos. Fantasmas demais.

Adel jogou a embalagem do lanche na lata de lixo mais próxima e voltou para o escritório.

 

                     ILHA DE CEBU, FILIPINAS

Quando recebeu a ligação, Abu Khalish estava no banco de trás de um táxi saindo da cidade de Cebu em direção à sua nova mansão alugada em Cordova Reef. A agitação e o barulho diminuíam na periferia da cidade; havia menos micro-ônibus e riquixás coloridos recortando e cruzando as ruas ao ritmo de buzinas intermitentes.

Ele ponderou por um momento se deveria atender; certamente Al Hakam tentaria de novo quando ele estivesse no casarão. Entretanto, com a mudança, ainda não tivera chance de falar com ele — tudo que recebera nas últimas 36 horas foram mensagens. Ele estava ansioso por falar diretamente.

Não consegui falar com você nas últimas ligações — disse Al Hakam. — Recebeu minhas mensagens?

Si, si. Estava viajando ontem. — Era o máximo que ele podia di­zer, mesmo para Al Hakam. — Pelo que entendi, a segunda opção de ações agora também já foi resolvida?

Sim... correu tudo bem também, como a primeira. Sem problemas.

Que bom.

Ela foi encerrada num portfólio, então permanecerá privada. Não será facilmente desenterrada.

De acuerdo. Como sempre, deixo estes detalhes em suas mãos competentes.

Do outro lado, Al Hakam estudava cada nuance e inflexão. Havia algum indício de que Khalish estava desconfiado? Ele acrescentou a úl­tima informação para o caso de Khalish ter checado os jornais de Lon­dres on-line e não ter visto notícias sobre a morte de Akram Ghafur; notícias sobre um desaparecido demorariam mais para surgir e talvez sequer chegassem aos jornais.

E, como sempre, agradeço sua confiança. E ela é retornada em igual medida.

Fazia três anos que ele era o principal homem de limpeza de Kha­lish, assegurando que todos os últimos vestígios fossem apagados. Mas ele sabia que, se a cagada que fez com Akram viesse à tona, o prestígio desapareceria rapidamente. Assim como acontecera com Youssef, aque­le que recrutara os homens-bomba de Milão e que fora o último na lista de Al Hakam; um dia ele entraria em seu apartamento e o encontraria vazio, exceto por um cronômetro piscando sua luz vermelha no teto.

Khalish sentiu que Al Hakam estava nervoso por alguma coisa ou talvez simplesmente esperasse um tapinha nas costas de volta. Ele cedeu.

Sim, você foi bem. Falaremos de novo em breve. — Ele agora tinha coisas mais importantes para pensar do que as sensibilidades de Al Hakam.

O anúncio de Bahsem-Yahl tirara a maior parte da pressão de cima de Khalish. Afinal, com a suspeita agora de que o Ocidente estava por trás dos atentados nas mesquitas, não havia motivo para se entregar. Mas parecia improvável que seus contatos fossem a principal influência naquele caso; outro alguém movera aquelas peças.

Khalish olhou pensativamente para as águas do cais quando o táxi cruzou a ponte para a ilha de Mactan. Havia uma lancha voltando para a marina, dois juncos pesqueiros zarpando à luz do crepúsculo para a pesca noturna. Calma. Ordem. Um contraste impressionante com o caos da cidade a apenas 1,5 quilômetro de distância.

Ele sempre se julgara o principal jogador naquele assunto; o titereiro mestre controlando onde e quando haveria ordem ou caos. Mas, ao pensar na virada que os eventos tomaram com Bahsem-Yahl e os terroristas das mesquitas, ele se deu conta repentinamente de que havia outro titereiro em cena. Alguém com um plano ainda mais grandioso em mente.

Malik girou na cadeira e lançou a notícia assim que Adel entrou.

Acharam o resultado para a foto, chefe. Cidadão iraquiano cha­mado Rashad Nasrahi. Chegou da NSA há dez minutos.

Estava no banco de dados de terroristas?

Não. Estava na lista de Forças Armadas iraquianas. Nasrahi se alistou na força policial iraquiana pós-coalizão e saiu há cincò meses. Não há nada nos arquivos sobre o que ele vinha fazendo desde então.

O humor de Adel, que melhorara significativamente ao ouvir a no­tícia inicial, voltou a despencar.

Sunita ou xiita?

Xiita.

Adel assentiu e sentou à sua mesa. Iraquiano. Xiita. Ao menos uma vantagem. Um xiita seria bem-visto por Bahsem-Yahl devido à ânsia do Irã em ver a influência dessa ramificação aumentar no Iraque. E nem todas as novas forças iraquianas eram vistas como lacaios americanos, de forma alguma. Muitos se alistaram puramente pelo dinheiro, mas em particular, os xiitas queriam compensar o agressivo domínio da minoria sunita sob o qual viveram por tanto tempo. Ainda assim, por hora talvez fosse melhor manter o histórico de Nasrahi com a polícia iraquiana por baixo dos panos. Mais segredos enterrados.

Ele passou alguns minutos lendo as informações da NSA sobre Nasrahi, e depois começou a fazer ligações. Primeiro para o nome de contato da NSA na ficha de Nasrahi, Giles Schofield, para informá-lo de que os detalhes sobre o alistamento de Nasrahi na polícia iraquiana tinham de ser mantidos estritamente em sigilo. Depois ele ligou para Masrur para confirmar os detalhes da identificação com o necroté­rio em Sanaa. Altura: l,84m. Peso: 91kg. Cicatriz sob o queixo, lado direito.

Masrur retornou a ligação oitenta minutos depois. A altura e a cica­triz no queixo conferiam.

O peso, dois quilos a menos.

Era perto o suficiente.

Obrigado, Masrur.

Adel precisava de outro café. Era o nono ou décimo do dia; perdeu a conta. E ele já estava na metade da xícara, ruminando o texto de um comunicado oficial sobre Nasrahi e o que deveria incluir — ou, mais importante, o que deveria excluir —, quando viu o alerta em sua tela.

Ele abriu a mensagem e, ao ler, sentiu seu estômago dar um nó. Pe­gou o telefone.

No dia seguinte ao encontro com Tynnan, ele pensara novamen­te em Washington. Além do perigo de investigá-lo, Washington era o tipo de nome que levantaria um milhão de referências cruzadas. Ele não acharia nada. Mas Sam Tynnan era outro assunto, desde que procurasse discretamente. Adel usara uma linha criptografada do GCHQ que não podia ser rastreada nem até seu departamento, muito menos a ele pes­soalmente. Poderia ser qualquer um na rede do MI5, do MI6, do GCHQ ou da polícia. Nada. Obviamente, eles usavam um nome genérico ou código — escritor, escriba, autor —, ou mesmo um número. Ou Tynnan simplesmente estava imaginando a história toda. Mas Adel deixara um pedido no sistema para ser alertado caso alguma coisa de fato surgisse. E agora tinha surgido, da pior maneira possível.

Ele mordeu o lábio quando o telefone começou a tocar, rezando para que Tynnan atendesse. Caso contrário, seria fim de jogo e vitória de Washington, antes mesmo que eles começassem a se aquecer.

 

                               Capítulo Trinta

Sam contornou o lago em disparada até chegar à cabana de Jem, com uma chuva leve esfriando seu rosto e as palavras frenéticas de Adel ain­da girando em sua cabeça: "Se você está em algum destes endereços, saia daí agora!"

O primeiro era o endereço de sua casa, o segundo, a casa de Kate em Laurel Canyon, o terceiro e o quarto eram a casa e a cabana de Mike, depois a casa de Vince Corcoran em Lakeville e três endereços que ele não reconheceu. Sam imaginou que fossem outras casas de Corcoran, ou talvez de Robby Maschek.

Jesus Cristo, o que aconteceu? — Sam exigiu saber. Com a dúvida ainda persistente de que talvez Emile fosse parte do complô, Sam não disse onde estava.

Um alerta geral foi emitido nos Estados Unidos há apenas um minuto. "Cúmplice em ato de terrorismo. Armado e possivelmente pe­rigoso. Aproximem-se com cautela." Pelo menos temos um consolo, eles não sabem exatamente onde você está. Por isso eles divulgaram "todos os endereços conhecidos", para cobrir todas as bases. Mas isso não vai ajudar em nada daqui a dois minutos, quando a polícia chegar derru­bando a sua porta! Então, como eu disse, se você está em algum desses, saia agora! Agora!

Sam tocou a campainha de Jem, bateu à porta, tocou de novo e, se­gundos depois, um assustado Jem atendeu.

Ofegante como um peixe fora dagua, Sam contou apenas o essen­cial: alerta recém-emitido, preciso fugir:"Agora mesmo!" Jem levou ape­nas quarenta segundos para vestir um casaco, pegar as chaves e algumas coisas numa gaveta, e as rodas da caminhonete Chevy já estavam levan­tando lama e cascalho ao disparar pela única estrada de acesso à cabana.

A estrada principal ficava a cerca de 300 metros, e então tinham que percorrer mais 11 quilômetros até a Highway 90. Sam estava com o coração na boca. Se fossem confrontados por camburões na estrada de acesso, ficariam sem saída.

Eles chegaram à estrada principal, mas, após pouco tempo, Sam co­meçou a ficar angustiado novamente. A estrada estava calma e havia pou­co trânsito. Ele se sentia evidentemente vulnerável. Qualquer carro de polícia que passasse em direção às cabanas não poderia deixar de vê-los.

Só dois carros e um caminhão passaram pelos dois nos 6 quilôme­tros seguintes, e Sam começou a contar os segundos até chegarem à ro­dovia quando ouviu a sirene. Ele não sabia se devia se abaixar ou desviar o rosto. No fim, decidiu virar-se como se estivesse falando com Jem.

É só uma ambulância — anunciou Jem quando pôde ver com cla­reza. Ela passou direto rumo a Westernville. Sam soltou sua respiração suspensa.

Quando entraram na Highway 90, Sam ligou para Mike. Eles preci­savam planejar para onde ir. Alguma direção.

Ele contou a versão na íntegra para Mike, consciente de que Jem o encarou quando disse "cúmplice em ato de terrorismo".

Mike respirou fundo.

Jesus. Parece que finalmente cansaram de brincar com você. Ou talvez tenham demorado todo esse tempo para descobrir seus contatos e possíveis esconderijos. Onde você está agora?

Na Highway 90, indo para o leste, cerca de 13 quilômetros de Utica.

Houve um momento dc deliberação por parte de Mike.

A única pessoa que eu conheço que pode ajudar com esse tipo dc situação é Vince. Ele é o único que tem um monte de esconderijos na manga que eles não poderão encontrar. E mesmo que tenham sorte, Vince tem outras dúzias para tirar da manga. Deixe-me ligar para ele.

Parece uma boa opção. — Até parece que havia escolha. — Mas Boston? É um caminho e tanto daqui até lá.

Eu sei. Talvez ele tenha algum lugar mais perto. Ou, pelo menos para lhe dar uma primeira cobertura e reforços, Barry e Phil podem se encontrar com você em algum lugar no caminho: Albany ou Hudson.

Jem interrompeu.

Só posso ir até Little Falls, no máximo. Tenho que voltar para fazer um negócio.

Ouviu isso? — De qualquer modo, Sam repetiu para Mike.

Sim, sim. Ok. Deixe-me ligar para Vince e... — Mike parou de repente e mesmo do outro lado da linha, Sam pôde ouvir as batidas pesadas na porta que o distraíram: a voz de sua mulher, Cathy, pergun­tando num tom defensivo e depois algumas vozes masculinas ríspidas, insistentes. — Tenho que ir! Problemas.

A linha ficou muda.

Ao que parecia, a polícia já tinha chegado à porta dele.

Nadeem Shoaib se ocupava em atender os pacientes na enfermaria. Tinha apenas 23 anos e sua família era originária de Lahore, embora ela fosse nas­cida e criada na Inglaterra e por isso tinha mais familiaridade com as ruas de Limehouse, Hounslow e Hammersmith que com seu Paquistão natal.

Era muçulmana sunita por causa de seus pais, embora não fosse nada praticante, e cada centavo que sobrava de seu salário de enfermei­ra era gasto em férias em Ibiza ou Faliraki. Meu Deus, como seus pais se envergonhariam se soubessem de metade do que ela aprontava.

Mas Nadeem sempre acreditava que ganhava suficientes pontos a favor para se redimir aos olhos de Alá por seu trabalho, cuidando dia­riamente dos outros. Ela achava que tinha um verdadeiro dom.

Genuinamente ignorante de sua beleza, com olhos claros da cor de cobre e cabelos negros quase até a cintura, ela não percebia que seu rosto doce e o sorriso caloroso e irresistível faziam metade do trabalho. Sua mera presença à cabeceira dos pacientes melhorava o ânimo deles, fazia com que se sentissem melhor.

Embora ela nunca admitisse para ninguém, seus pacientes prefe­ridos eram aqueles que estavam "no limiar". Aqueles que estavam às portas da morte ou para quem ainda havia um grande risco; aqueles que talvez não tivessem mais muito tempo. Ela lhes dava atenção total, como se puramente por seu cuidado e carinho pudesse convencê-los a continuar vivendo. E, quando falhava — algumas vezes ela derramava lágrimas amargas por estes fracassos —, pelo menos sabia que dera o máximo que podia e tornara confortáveis os últimos dias para eles; que lhes oferecera uma sensação de serem cuidados, amados.

Não que o paciente trazido na noite anterior fosse perceber alguma coisa. Ele ainda estava recebendo oxigênio e remédios intravenosos e, fora alguns gemidos e tosses, desde então estivera inconsciente. Aparen­temente, ele perdera os sinais vitais por quase trinta segundos na mesa de operações, e o caso ainda estava sob o fio da navalha.

Se já houve um caso "no limiar", tinha que ser aquele. Mas existia outro motivo para a atenção especial que ela lhe dava. De acordo com a ficha, ele era cidadão líbio, mas com sua barba e bigode espessos, ele a lembrava muito de seu tio favorito em Lahore.

Como ainda estava marcado como "estado crítico", tinha um espaço anexo privado no fim da ala geral. Ele tossiu e ela se debruçou para fazer as checagens. Era a mesma rotina toda vez: verificar freqüência cardíaca e pressão sangüínea, levantar a máscara de oxigênio e limpar as vias aéreas e secar qualquer secreção que tivesse escorrido para sua barba.

Mas desta vez, ao levantar o tubo de oxigênio, ela sentiu que estava pre­so, e uma pequena parte da barba saiu com ele. Ela colocou o tubo de volta e tornou a puxar, caso fosse só uma ilusão de ótica. Aconteceu de novo.

Timidamente, ela puxou a área da barba levantada. Outro pedaço se soltou. Ela se dirigiu ao fim da ala para chamar sua supervisora.

 

Acesso negado. Acesso negado. Acesso restrito ao nível 8.

Dos 47 arquivos sobre Bahsem-Yahl, 36 eram negados, cinco eram de nível 8, três de acesso geral, deixando apenas três que Stennell podia abrir.

Nada apetitoso. Apenas relatórios gerais do pós-revolução até ali, que pareciam montados por meia dúzia de estagiários a partir do Fact-book e da Wiki da CIA.

Seu departamento tinha acesso à conferência de palavras-chave em todos os documentos, independentemente do nível de segurança, para que eles pudessem determinar quais departamentos tinham interesse em quais assuntos — não apenas para fornecer atualizações sobre os tais assuntos, mas para cruzar referências com outros departamentos. Mas abrir e ler arquivos completos eram outros quinhentos.

Stennell coçou o queixo. Ele já tinha visto um bom número de res­trições nível 6 e 7 em seu tempo, mas nível 8 era mais raro; só a hierar­quia da CIA, da NSA e do Departamento de Estado. Ele fez uma busca para ver se outros departamentos além do 101 tinham o mesmo nível de bloqueio com arquivos sobre Bahsem-Yahl: 54% do acesso restrito, mas a maior parte era de nível 4 e 5, um punhado de 6 e 7, um do 8. Mais próximo dos padrões normais.

Pegou o telefone e chamou o número de Kenny Verbeck. Ele ha­via chegado o mais longe que podia. Talvez o nível de acesso de Ver­beck fosse suficiente para abrir outros arquivos e descobrir o que estava acontecendo.

Vinte e cinco minutos depois, Mike ligou. Era mesmo a polícia à sua porta.

Eles foram embora há dez minutos. Dei a eles um giro rápido pela casa para mostrar que eu não estava escondendo você embaixo de alguma cama ou dentro de algum armário. Mas também quis dar uma palavra com Vince antes de ligar de volta.

Deu sorte? — perguntou Sam.

Sim, está tudo acertado. Eles foram ao Vince também, mas não conseguiram nem passar do portão de entrada. Ele mandou o Barry e os outros caras até lá para se livrar deles. "O cara que vocês querem não tá aqui! Agora se querem ir mais longe, sabem o que têm que fazer. Sejam bons meninos e tragam mandados de busca. E lembrem-se de trazer lan­ternas, porque o Vince não vai ligar as porras das luzes por vocês."

Sam riu.

Mike respirou fundo.

Agora o plano é que Barry e Phil encontrem você, e o melhor lugar seria Albany mesmo. Mas se o Jem só pode chegar até Little Falls, você vai ter que esperar mais tempo até que...

Tudo bem — interrompeu Sam. — Jem vai alugar um carro para mim lá, com a carteira dele, para que eu possa seguir. — Esperando a ligação de Mike, eles tinham acertado os detalhes. — Com um alerta de terrorismo na praça, acho que dirigir com o número da carteira de outra pessoa é a menor das minhas preocupações.

Ok. — Mike repassou os arranjos. Barry e Phil o encontrariam no bar Broadway Joe em Pearl Street, Albany. — Tem mesas de sinuca, televisões com esportes, geralmente cheio. Ninguém vai prestar atenção em você. Mas fique escondido nos fundos, por via das dúvidas. Você deve chegar lá uns trinta ou quarenta minutos antes deles, mas não se preocupe. Eles vão aparecer.

Nunca fui, mas sei onde é. Obrigado, Mike.

Sem problemas. E Sam? — Mas quando Sam disse sim?, Mike parou por um segundo, como se talvez fosse soar sentimental demais ou evidenciar demais o pesadelo que Sam estava vivendo, quando este lembrete era a última coisa de que ele precisava. — Boa sorte.

Jem olhou para Sam algumas vezes depois que ele desligou. Ele sen­tira antes que Jem estava com alguma coisa na cabeça, e agora ele dissera aquela palavra pavorosa novamente: terrorista. Mesmo assim, levou mais de um minuto até que Jem tomasse coragem para dizer alguma coisa.

Olha, Sam. Eu não quero me meter na sua vida. E qualquer ami­go do Mike e do Vince é amigo meu e tal. Mas eu quero dizer que não concordo com gente que joga aviões em prédios e planta bombas em shoppings e cafeterias. Se meus irmãos de sangue pelo lado do meu pai tivessem feito isso a cada injustiça ou disputa de terra, não teria sobrado muito da nossa bela nação.

Duvido que Mike desejaria ter algo a ver comigo também, se fos­se o caso. Não se preocupe. O mais perto que eu estive disso foi escre­ver um livro sobre terroristas. Algumas pessoas estão usando o livro de maneira que não deviam, e agora me querem fora do caminho para esconder o que fizeram. É uma longa história.

Entendi. — Jem assentiu e arriscou um sorriso tímido. — E se você me contar, vai ter que me matar.

Jem confessou que o motivo pelo qual tinha que voltar era que sua filha iria visitá-lo na cabana. Ela tinha 13 anos e ele só a via uma vez por semana.

Então os dois tinham algo em comum, considerou Sam: ambos eram pais em meio período. Em troca, ele contou a Jem sobre Ashley, e como ele morava na Costa Oeste com sua ex-mulher.

Eu adoraria vê-lo mais vezes, mas o que posso fazer?

Ali houve uma pausa na conversa. Talvez porque os dois começaram a pensar em seus filhos. Após algum tempo, Jem ligou o rádio. Era uma estação de música tranqüila e "Let Your Love Flow", dos Bellamy Bro­thers, estava tocando.

Não havia muito mais a dizer. Eram dois pais de meio período: um deles com um passado acidentado por pequenos crimes, que passava a maior parte dos dias pescando; o outro com um alerta terrorista pen­dendo sobre sua cabeça e os dias contados. Isso representava ainda mais intensamente para Sam um lembrete de que talvez jamais visse Ashley novamente.

Com o rádio ligado, a princípio eles não ouviram as sirenes. Já fa­zia 65 quilômetros desde a sirene da ambulância, e ficaram relaxados demais.

Jem diminuiu o rádio e elas ficaram bem claras, chegando rapida­mente mais perto. Sam sentiu o pescoço se retesando enquanto olhava fixamente para a frente.

Jem deu uma espiada no retrovisor.

São carros de polícia dessa vez. Dois. Sessenta metros. Quarenta. Bem na nossa cola agora.

Sam fechou os olhos, um arrepio subindo por sua espinha.

Eles obviamente tinham descoberto que Jem era um dos únicos que estaria em sua cabana nessa época do ano, então pegaram os dados do carro e o encontraram na estrada; não era muito difícil, já que aquela era a principal rota sudeste para Boston e Nova York. Eles não tinham ido muito longe, Sam pensou amargamente: menos de 80 quilômetros. Mas o que ele esperava com metade da polícia do estado de Nova York procurando por ele?

Ainda estão atrás da gente — disse Jem. — Parece que querem que encostemos. O que quer que eu faça?

O que quer dizer com "o que quer eu faça"? — Sam ergueu uma sobrancelha. — Não parece que temos muita escolha.

Tudo acaba aqui, ele pensou, com o estômago embrulhado. Prisão, baía de Guantánamo, ou pior ainda, uma vez que estivesse nas garras de Washington: jogado no fundo de um lago como Lorrena.

Mas Jem tinha um sorriso maroto no rosto, um dedo buscando um interruptor debaixo do painel.

Bem, é aí que você se engana. Uma coisa que aprendi fazendo contrabando em Akwesasne. Tenha sempre algo sob o capô para o caso de necessidade. É só apertar esse botão e o compressor de óxido nitroso entra em ação. Em pouco tempo, eles estarão comendo poeira.

Não sei. — O som das sirenes era ensurdecedor, atrapalhando os pensamentos de Sam. Todas as opções pareciam casos perdidos. — Agora eles já nos descobriram, podem simplesmente chamar reforço pelo rádio mais à frente. E o que vamos ganhar? Vinte, trinta minutos no máximo.

Jem deu de ombros.

Ou podemos escapar deles. A escolha é sua, Sam. Não é o meu na reta. Encostar agora e deixar que eles o levem, ou apertar o botão e ganhar tempo, ou talvez até escapar?

 

                                       Capítulo Trinta e Um

As ruas de Londres corriam pela janela do táxi de Adel, rumo a Hammersmith.

A partir do momento em que a enfermeira-chefe percebeu a barba fal­sa de Akram, eles levaram apenas vinte minutos para juntar todas as peças. Primeiro olharam em sua bolsa — onde haviam encontrado o passaporte para identificá-lo —, procurando pistas. Quando abriram um envelope e encontraram um maço grosso de dinheiro dentro, checaram a lista de pes­soas desaparecidas e boletins da polícia recebidos regularmente e, dessa vez, viram um que tinha passado despercebido antes.

O secretário do hospital, Michael Grierley, pediu desculpas pelo des­cuido ao levar Adel até o quarto.

— A primeira pessoa que checou o sistema infelizmente não per­cebeu a relação. Os pacientes são listados apenas pelo nome, e a pessoa não vê quem está na enfermaria. O paciente estava listado como Abdul Radwan, e não Akram Ghafur como em seu alerta. Então, com a irre­gularidade da barba é que conferimos novamente e vimos a observação: "possivelmente usando um nome falso". Ainda bem que conferimos. — Grierley abriu um largo sorriso, como se tomasse crédito pessoalmente por aquele último cuidado.

Adel mal ouvia, todo seu foco estava concentrado em apenas uma coisa.

Ele respirou fundo quando Grierley abriu a porta no fim da ala. Não havia dúvida de que era Akram, mas a visão dele, sua condição, foi um baque e tanto. Estava pálido como a morte e cercado por tubos para monitorá-lo e alimentá-lo. Vendo o homem à sua frente, Adel percebeu que a esperança de que ele resistisse era remota.

Sam tentou conter o tremor na mão ao tomar um gole de sua cerveja.

Como Mike dissera, o bar estava cheio e ninguém prestava muita atenção nele. Mas Sam ainda se sentia inseguro graças à situação da qual escapara por um triz.

Jem apertara o botão quando o primeiro carro de polícia fez uma manobra para ultrapassá-los.

— Parece que vão tentar nos encurralar com um na frente e outro atrás!

Com o ruído mais intenso do motor, Sam sentira a arrancada quan­do o compressor de óxido nitroso começou a funcionar. Mas então Jem viu o segundo carro mudando de faixa para tentar a ultrapassagem — pelo visto, não estavam atrás deles. Com a mesma velocidade, Jem des­ligou o botão.

Os carros de polícia passaram e já estavam 100 metros à frente quan­do Jem finalmente relaxou. Obviamente o que quiseram era uma brecha no trânsito para ultrapassá-los.

Desde o começo daquele pesadelo, Sam esteve com os nervos à flor da pele, mas os carros de polícia na sua cola levaram a coisa a um novo patamar. Talvez agora ele finalmente compreendesse, com um alerta e metade da polícia do estado no seu encalço. Não havia mais para onde fugir. Não havia mais tempo a ganhar. Ali estava o fim, agora.

Sam levantou o copo com as duas mãos para ter mais estabilidade, fechando os olhos lentamente ao beber. Oh, Deus. Enquanto esperava na esquina até que Jem alugasse o carro, seus nervos começaram a ata­car novamente, chegando a um estado quase febril quando ele estacio­nou num edifício-garagem a cerca de dois quarteirões de distância e ouviu sirenes por perto. Ele ficou imóvel, sentado sem respirar por um momento até que ouviu o barulho sumir ao longe.

O tremor ainda estava lá quando entrou no bar, e se deu conta de que, depois do tempo de solidão na cabana, fazia tempo que não se via no meio de uma aglomeração. Sua boca estava seca ao fazer o pedido, e cada olhar que durasse mais de um segundo sobressaltava seu coração. Dentro do bar havia duzentas pessoas ou mais. Quais eram as chances de ter um policial entre eles que tinha visto sua foto no alerta? Talvez encontrar Barry e Phil ali não tinha sido uma boa idéia.

Sam olhou o relógio: tinha que esperar mais vinte ou trinta minutos. Ele tomou outro gole de cerveja.

Ao menos nos últimos cinco minutos, ele ficara menos visível para os freqüentadores do bar, mesclando-se mais com a paisagem. Era um bar dedicado a esportes, e o jogo de hóquei no gelo local tinha começado, passando na maioria das 35 telas do lugar, com as restantes exibindo os melhores momentos da NFL ou o noticiário local da CNN ou da WNBC.

Sam já estava contente só em se recostar na cadeira e assistir ao jogo de hóquei nas telas à frente. Nos últimos dias, ele tinha visto suficientes notícias e entrevistas de analistas políticos especulando onde os protestos acabariam, quando ele mesmo já sabia quase totalmente.

A multidão no bar foi ficando mais barulhenta, torcendo e gritando com os altos e baixos do jogo. E Sam de repente percebeu que os sons da cidade lá fora estavam inaudíveis ali. Se carros de polícia com o ruído de suas sirenes parassem à porta e viessem pegá-lo, ele não conseguiria ouvir. Deu mais uma olhada nervosa no relógio.

Nas telas de TV, uma briga irrompeu entre dois jogadores, e os gritos e xingamentos da multidão no bar ficaram mais altos à medida que ou­tros jogadores se envolveram e o conflito se tornou um "salve-se quem puder". Mas uma TV ligada no jornal exibia notícias das últimas mani­festações árabes.

Uma multidão puxava e rasgava uma bandeira americana, com um homem finalmente ganhando o dia e pisoteando a bandeira esfarrapada antes de atear fogo, para o delírio dos demais. O barulho do bar momenta­neamente pareceu ecoar as palavras de ordem cada vez mais altas. Allahu akbar... Allahu akbar. Os profanadores do islã vão morrer... morrer! Eles jogaram pedras nos carros que passavam, uma delas quebrando um para-brisa; e um coquetel molotov atingindo outro, incendiando o automóvel.

Sam desviou o olhar, repentinamente temendo que alguém percebes­se sua agitação pelos tumultos na TV. Os freqüentadores do bar ainda es­tavam vidrados no jogo, os xingamentos diminuindo quando o juiz apar­tou a briga. Entretanto, ao observar a multidão, Sam percebeu que um homem estava de fato olhando para ele: o barman que o serviu. O homem desviou o rosto rapidamente quando Sam encontrou seu olhar, mas, antes que ele pudesse voltar a prestar atenção ao chope que estava servindo, Sam viu seus olhos se voltando para uma das TVs suspensas do teto.

Sam não conseguia ver a tela de onde estava, ela ficava de costas para ele. Algum lance do jogo de hóquei, ou outra coisa? Sam se debruçou à frente e olhou para a única TV que passava notícias à sua vista: a CNN. Discussões sobre os altos e baixos do Dow Jones na semana.

O barman pegou o dinheiro do chope, mas, em vez de servir o pró­ximo cliente, ele se dirigiu ao fim do bar e atravessou um pórtico aberto que dava para a área dos funcionários. Antes de sumir de vista, deu mais uma olhada na direção de Sam, como se quisesse se assegurar de que ele ainda estava lá. Sam sabia que algo estava errado. Muito errado. O que estava passando naquela tela?

Sam se levantou apressadamente, deixando metade da cerveja na mesa, e se dirigiu à máquina de cassino à esquerda do bar. De lá ele podia ver o que havia na tela; se não fosse nada, só o jogo de hóquei ou a CNN, ele podia voltar para a mesa e continuar esperando Barry e Phil. Se não, ele já estava na metade do caminho da porta de saída.

Suas pernas pareciam instáveis quando ele se moveu em meio à multi­dão, e seu pulso parecia um tambor batendo rapidamente em suas têmporas.

Quando Sam finalmente pôde ver a tela, tudo se encaixou: era o noticiário local da WNBC, e estavam passando um vídeo sobre um in­cêndio num armazém em Rochester, mas, obviamente, ele estivera na tela um segundo antes. Passaram sua foto no boletim policial para as redes de TV locais!

Sam teve novamente a sensação de olhos sobre si, e desviou o olhar da tela. Pela porta aberta no fim do bar, o barman o encarava nervo­samente enquanto falava ao telefone. E outro homem que acabara de passar por Sam virou a cabeça para ele duas vezes.

Oh, Jesus. Sam sentiu o chão desaparecendo sob seus pés. Sem fôle­go, com o coração retumbando mais a cada passo, ele se dirigiu rapida­mente à saída.

A porta dupla e a multidão no caminho tremularam e se nublaram por um momento. As pernas ameaçaram ceder, e Sam se sentiu repen­tinamente tonto, temendo não conseguir chegar nem à porta. Ele des­maiaria e desabaria antes de chegar, e acordaria com policiais esticando os braços para colocá-lo de pé.

Mais pessoas olhavam para ele agora. Mas talvez fosse porque ti­nha os olhos fixos na saída enquanto avançava como um zagueiro em disparada, pronto para derrubar qualquer um que ousasse cruzar seu caminho.

Sam irrompeu porta afora. Estava fresco na rua, mas isso não aju­dou muito a limpar sua mente; os ruídos e zumbidos do bar ainda esta­vam em sua cabeça, dando-lhe uma sensação de calor e pressão. Quatro pessoas do lado de fora davam um intervalo para fumar, e Sam passou rápido entre elas, olhando por cima do ombro após dez passos para ter certeza de que ninguém do bar o seguia. E novamente depois de 15 pas­sos: ninguém.

Mas ele então ouviu uma sirene de polícia e seu coração pulou para a boca. Estava perto, não mais que 100 metros. Sam olhou por cima do ombro e viu um carro de polícia vindo de uma rua lateral atrás dele. Fixou os olhos à frente mais uma vez: Não olhe mais para trás. E, o que quer que faça, não comece a correr. Eles vão saber que tem algo errado!

A sirene se aproximava mais, mais, e Sam precisou de toda sua força de vontade para não sair correndo. Ele manteve o passo firme, apesar de seu pulso latejar duas vezes mais rápido. Finalmente a sirene parou, a cerca de 30 metros dele. Mesmo assim, manteve seu passo firme. Não olhe para trás... não olhe para trás. Mas com o extenso silêncio, apenas o ruído de seus passos no calçamento, o barulho do motor do carro de polícia esfriando e agora um burburinho de vozes, ele percebeu que havia algo errado.

Sua determinação finalmente desmoronou quando ele olhou para trás e viu o barman falando com os policiais através de uma janela aber­ta. Quando o barman levantou uma das mãos e apontou em sua direção, Sam soube que seu medo anterior se justificava. Tudo realmente acaba­va ali, agora.

 

WASHINGTON, DC

Kenny Verbeck afastou-se da tela e coçou o queixo. Dave Stennell en­contrava-se sentado do outro lado da mesa, observando a reação de seu superior, que absorvia as informações que ele tinha descoberto.

Verbeck tinha 50 e muitos anos e era totalmente careca, com seus traços de buldogue mal-humorado escondendo seu raciocínio rápido. Um veterano da NSA desde a malfadada política "Guerra nas Estrelas" de Reagan, Verbeck sentia que merecia orgulhosamente cada folículo perdido em cada crise desde então.

E agora um membro de sua equipe derrubava mais um possível drama em seu colo. Verbeck só conseguiu abrir mais quatro arquivos do 101. Três deles não tinham esclarecido muito, mas o quarto era ou­tra questão, bem mais preocupante. Mesmo assim, eram só insinua­ções e frases veladas — a linguagem da diplomacia —, nada concreto. Mas ele sabia que, se levasse o caso a um superior, não chegaria a lugar nenhum; pior ainda, os martelos bateriam rapidamente e os arquivos desapareceriam.

Ok, vamos fazer assim. Daqui a uma hora, você terá problemas com o computador.

Terei?

Sim. Suspeita de vírus. Um cara chamado Hank vai aparecer para consertar.

Ok — concordou Stennell, mas ainda não tinha muita idéia de onde o outro queria chegar.

Ele vai conectar o seu laptop ao dele para fazer uma busca e talvez exterminar o vírus. Na realidade, ele vai passar os arquivos do 101 pelos melhores programas de quebra de criptografia que existem. — Verbeck abriu um sorriso conspiratório. — Nada como usar os próprios decodi- ficadores da firma para invadir os arquivos dela.

Uma sombra de preocupação passou pelo rosto de Stennell.

Mas isso tudo estará ligado ao meu computador. A mim.

Não se preocupe. Hank é um velho mestre. Ele vai rodar por tan­tos servidores remotos desde aqui até Tóquio que nunca vão saber o que está indo e o que está vindo. Acharão que foram hackeados por um sujeito na Bielo-Rússia ou em Mumbai. Quando estará acontecendo de­baixo do nariz deles o tempo todo.

Stennell concordou com a cabeça, mas não disse nada. Ele ainda pa­recia desconfortável.

Hank vai sumir com todos os links e rastros para cá e me enviará os arquivos do 101 por qualquer que seja o servidor de fim de mundo que ele usará para hackear você. E você nem estará por dentro da joga­da. — Verbeck manteve o olhar firme. — E, claro, nem preciso dizer: essa conversa aconteceu.

Stennell finalmente livrou-se da preocupação e conseguiu abrir um sorriso tímido.

— Que conversa?

Sam correu. Não havia mais nada a fazer. Mas o carro de polícia o al­cançaria num piscar de olhos; ele precisava de outras opções, e rápido.

Seu coração batia violentamente e seu fôlego estava mais curto após apenas meia dúzia de passadas, e ele ouviu a sirene ligar novamente quando a viatura arrancou em seu encalço.

Faltavam 9 metros até a esquina, ele chegaria fácil, mas os policiais fariam a curva e o alcançariam logo depois. Então eram mais 30 metros até a próxima esquina.

Exigindo severamente das pernas, ele agora estava a apenas poucos metros da esquina, mas o carro de polícia já tinha reduzido a distância entre eles pela metade e estava chegando, rápido.

Ao entrar na rua lateral, Sam viu um beco a 18 metros. Ele correu naquela direção, e já tinha dado 12 passos quando o carro virou a es­quina. Eles tiveram que reduzir a velocidade para fazer a curva, mas o motor já acelerava novamente agora, a sirene ensurdecedora chegando perto.

O carro de polícia estava a apenas 10 metros quando ele chegou ao beco. Uma van azul-escura estava estacionada a 16 metros, mas ele não conseguiria passar por ela antes que o alcançassem. Sam estava desespe­rado. Ele continuou correndo, e formulou um plano.

Ele ouviu um megafone:

Polícia! Pare... pare! Fique onde está.

Finalmente, 8 metros depois do beco, quando a viatura chegou junto dele logo após passar por um carro estacionado, Sam parou. Ele se virou e ergueu as mãos lentamente. Ofegante, o coração disparado, Sam torcia para parecer submisso; rezava para que tivesse calculado bem o tempo. Quando o policial do lado do passageiro fez menção de abrir a porta, Sam disparou de volta, em direção ao beco. Ele sabia que, uma vez fora do carro, o policial arrancaria sua arma do coldre e tudo estaria terminado.

Ei, pare! — gritou o policial pela porta entreaberta. Depois houve o som da porta se fechando e a sirene ligando novamente.

A esta altura, Sam já tinha dado nove passos dentro do beco, as per­nas latejando intensamente.

Eles deram meia-volta atrás dele, cantando pneus. Agora estavam furiosos. As rotações do motor pareciam mais altas, gritando, uma ar­rancada maníaca à frente, e os pneus cantando para parar a 1 metro da van. Uma porta se abriu violentamente e ele ouviu o megafone outra vez.

Eu disse polícia. Pare onde está! Agora!

Sam já tinha passado 20 metros da van, e estava se afastando. Depois seu estômago afundou quando viu o policial ao volante mirando a arma em sua direção.

Havia um carro prateado à esquerda, e Sam entrou rapidamente atrás dele e se manteve próximo à parede, correndo agachado para não dar na vista.

Não havia uma linha clara de tiro quando Sam olhou para trás, e agora já parecia haver 40 metros de distância.

Por isso ele ficou muito surpreso, o coração saltado, quando veio o tiro. O estrondo ecoou pelo beco estreito, e a bala ricocheteou numa parede 30 centímetros acima de sua cabeça. Sam agachou-se ainda mais e continuou correndo.

O policial se endireitou para atirar novamente, depois pensou melhor e guardou a arma. Os dois voltaram para o carro e deram ré rapidamente.

Sam tentou situar a posição do carro de polícia pelo barulho da si­rene enquanto se aproximava do próximo cruzamento. Eles pareciam estar dando a volta no quarteirão. Mas ele já estaria longe e, com sorte, correndo pelo próximo beco até lá.

Depois veio o barulho de mais sirenes; obviamente, eles tinham pedido reforços pelo rádio. Sam avaliou que ainda estavam a uma boa distância — ele teria oitenta ou noventa segundos de folga se tivesse sorte.

Havia outro beco logo do outro lado da rua, e mais dois frente a frente, 30 metros à sua direita. Meia dúzia de pessoas andava por ali. Ele se dirigiu ao beco do lado oposto. Era a última coisa que esperavam que ele fizesse, voltar por outro caminho, e era vital que ele chegasse ao carro. Não duraria muito mais tempo correndo pelas ruas de Albany.

Mas agora uma das sirenes distantes parecia fazer a manobra para se dirigir ao mesmo lugar. Se ele conseguiria ou não chegar à próxima rua antes deles, era uma incógnita. Ele pôs um gás extra e, ao chegar do outro lado — o peito arfando, doendo muito —, a rua estava livre. Havia outro beco na diagonal do outro lado e, se ele estivesse certo sobre a geografia do lugar, o edifício-garagem onde deixara o carro ficava dire­tamente em frente à extremidade do beco.

Mas suas pernas eram como gelatina, pareciam incapazes de levá-lo por mais cinco passos apenas, e muito menos pelos cinqüenta que pre­cisava para chegar à garagem. Em seguida, a meio caminho no beco, ele ouviu o som de outra sirene, paralisando sua corrida aos tropeções. Pa­recia vir da estrada diretamente em frente ao edifício-garagem, embora ele não tivesse visto nenhum camburão passando.

Sam diminuiu a velocidade ao chegar ao fim do beco, aproximando- se cautelosamente. Ele parou bem no final e espiou para fora. Depois ele recuou com a mesma rapidez, o coração disparado.

Um carro de polícia estava estacionado a 40 metros; a única coisa boa era que estava virado para o outro lado.

Sam ouviu outras sirenes se aproximando. Em menos de dois mi­nutos, a rua estaria totalmente tomada. Naquele exato momento, era apenas uma possibilidade entre o razoável e o arriscado. Sam fechou os olhos por um segundo, juntando coragem. Então tirou o casaco e o virou do avesso, deixando o forro de cetim branco aparente; não era um casa­co reversível, mas àquela distância eles provavelmente não perceberiam.

Havia um sem-número de homens caucasianos de idade semelhante na cidade, mas ele tinha esperança de que o casaco branco, não bege, e o fato de que ele estava andando, e não correndo, fossem o suficiente para diferenciá-lo do alerta no rádio. Sam sentiu como se caminhasse na corda bamba; ele podia sentir sobre si os olhos dos policiais pelos retrovisores enquanto caminhava.

No segundo em que saiu do campo de visão, Sam disparou em direção ao elevador. Ele apertou o botão uma vez, duas. Nada. Er­gueu os olhos para as luzes indicadoras. Quebrado ou preso no quar­to andar.

Sam começou a subir as escadas, e os músculos de sua perna doíam a cada degrau. Ao chegar ao primeiro andar, ele se lembrou de repente: Barry e Phill Eles chegariam ao bar a qualquer momento. Sam ligou para Mike do celular.

Oi, Sam. Como estão as coisas? Barry e Phil já chegaram?

Não, não. É por isso que estou ligando. Estou com problemas, grandes problemas. — Ele relatou o pesadelo com o barman e o boletim da polícia. — Passei os últimos dez minutos correndo deles. Escapei por um fio.

Escapou? Ainda estou ouvindo as sirenes ao fundo.

Sim, sim. Não muito longe. — Sam mantinha a voz baixa, como se orelhas estivessem coladas às paredes da garagem. — Mas acho que os enganei agora.

Jesus, Sam. Que confusão. Sinto muito. — Mike chegara apenas vinte minutos antes e ainda não tinha visto o jornal local. — Eu não fa­zia a menor idéia. Ok. Então precisamos de um novo lugar para o encon­tro com Barry e Phil. Algum lugar onde não haja pessoas que possam ter visto o noticiário local. Talvez...

Me deixe sair daqui primeiro — interrompeu Sam. — Pode ser que eu não tenha muitas opções de rotas de fuga. Só diga a eles que esperem até eu saber o que... — Sam se deteve. Ele ouviu uma sirene entrando na rua abaixo. — Espere aí, Mike.

Sam correu os últimos degraus para chegar ao terceiro andar. Ele foi até a mureta e olhou para baixo. Agora havia um segundo carro de polícia junto ao primeiro. Seu coração parou. Ele achou que o primeiro carro não o identificara em sua passagem. Mas talvez tivessem identi­ficado; estavam simplesmente aguardando o reforço para persegui-lo.

— Tenho que ir, Mike. — Enquanto ainda posso. — Diga a Barry que ligarei de volta em dez ou 15 minutos, quando souber onde estou pisando.

Silêncio ao desligar, apenas o clique constante de seus passos atra­vessando o estacionamento. Eles o identificaram ou não? Sua cabeça fer­vilhava com a questão.

Ele agora via seu carro do outro lado do andar: um Dodge Caliber cin­za, logo após um Nissan Pathfinder. Sam apertou o passo em sua direção. Tic, toc. Sim, não? Contudo, quando ouviu a sirene aumentando novamen­te e entrando no térreo do estacionamento, ele teve sua resposta: sim. Desta vez, não era necessário ir até a mureta para saber. O ruído da sirene ecoava claramente pelo estacionamento, como se amplificado três vezes.

A sirene foi desligada enquanto o carro patrulhava o térreo, depois começou novamente ao subir a rampa para o primeiro piso, como se anunciasse: Estamos chegando para pegá-lo, Sam... estamos chegando! Tudo acaba aqui, agora!

Sam começou a correr novamente. Sua única esperança era se es­conder dentro do carro. Ficar fora de vista até que eles fossem embora e rezar para que não o encontrassem. Depois seus olhos se desviaram para as câmeras de segurança: uma em cada canto. Eles precisariam de apenas alguns minutos na cabine de segurança para descobrir onde ele estava. Talvez até já houvesse um policial observando as imagens.

Ele sacou as chaves do carro e apertou o botão a 5 metros de distân­cia para destravar as portas. Ou talvez pudesse driblá-los enquanto eles subiam. Se cronometrasse bem, descendo por uma rampa bem na hora em que eles estivessem subindo pelo outro lado, poderia ganhar uma boa distância antes que conseguissem fazer a volta para segui-lo. E, se houvesse um carro de polícia bloqueando a saída, ele podia virar e sair pela pista de entrada. Já tinha visto isso num filme.

Coração disparado, frenético, ele estendeu a mão para abrir a porta.

De repente, um braço se travou duramente em torno de seu pescoço.

Os músculos de Sam se dissolveram, todos os últimos nervos em frangalhos de seu corpo se renderam: não havia mais resistência. A po­lícia obviamente tinha descoberto a ligação com Jem e o carro alugado, e ficara de tocaia, sabendo que ele voltaria em algum momento. As al­gemas surgiriam e outro policial apareceria para ler seus direitos. Eles sempre vinham em dupla.

Em vez disso, um pano foi empurrado contra seu nariz e boca, o cheiro acre alcançando as narinas bem no fundo, arrancando lágrimas de seus olhos.

E, à medida que as luzes começavam a desaparecer e o estaciona­mento se afundava numa névoa cinzenta, Sam soube que não era a polí­cia no fim das contas. Os homens de Washington chegaram até ele.

 

                                     Capítulo Trinta e Dois

Adel parou por um segundo quando a enfermeira abriu a porta do quar­to de Akram Ghafur. Aquilo não seria nada fácil.

Não demore muito — pediu ela. — Ele ainda está bastante fraco.

Akram piscou os olhos lentamente em reconhecimento. Ele ainda estava ligado ao tubo intravenoso e aos monitores, e o leitor cardíaco pulsava discretamente a seu lado, mas Adel notou que retiraram o tubo de oxigênio de sua boca. E ele parecia um tom menos branco; semi-morto apenas. Adel acenou para a enfermeira quando ela fechou a porta atrás dele, então se sentou à cabeceira de Akram.

Akram finalmente acordara oito horas depois da primeira visita de Adel, por volta de meia-noite, e Adel recebeu uma ligação do oficial SO15 que estava de guarda. "Os médicos precisam ainda de uma hora ou mais para fazer exames." Adel disse que chegaria lá quando os exames estivessem terminando.

Ele se apresentou como Emile, amigo de Fahim Omari.

E tem algumas perguntas que nós precisamos fazer, Akram. Pre­cisamos saber quem fez isso com você.

Nos? — perguntou Akram. — Você é amigo de Fahim ou é da polícia? Acho que precisa se decidir.

Não sou da polícia. Mas, pela minha posição, cabe a mim falar com você e passar para eles o que me disser.

Aaaah — disse Akram. Seus olhos brilharam. — Então você é o contato de Fahim. Para quem ele passava informação.

Como quiser. — Adel deu de ombros. Não havia sentido em ne­gar; pelo caminho que a conversa seguiria, isso logo ficaria evidente.

Mas eu era amigo de Fahim em primeiro lugar, contato em segundo.

Adel inclinou-se à frente na cadeira. — Então voltemos à minha per­gunta: quem fez isso com você, Akram? Quem tentou matá-lo?

Mas os olhos de Akram apenas esfriaram e ele desviou o rosto.

O bipe constante do monitor cardíaco contou dez segundos, depois mais cinco. E, quando ficou claro que Akram não pretendia responder, Adel disse:

Ouso dizer que foram as mesmas pessoas que plantaram a bomba que matou Fahim Omari. Mas estou só presumindo, claro. Então, Akram, quem? Porque não foi só um assaltante qualquer que saiu das sombras para esfaqueá-lo. Eram pessoas com quem você tinha arranjos. Quem?

Akram passou a língua pelo lábio superior ao olhar de volta para Adel.

Mesmo que eu estivesse disposto a contar, coisa que não estou, você acha que eu sou louco? Eles com certeza me encontrariam e termi­nariam o serviço da próxima vez.

Adel abriu um sorriso seco.

O que me parece é que eles vão fazer isso de qualquer maneira. Está bem claro que você sabe mais do que eles gostariam. — Ele deu de ombros. — Mas tudo bem. Se você acha que ficará bem sem proteção...

Os olhos de Akram se agitaram quando as primeiras sementes de preocupação foram plantadas em sua mente. Mas a empáfia logo retor­nou à sua voz.

Bah! Proteção. Como a proteção que você deu a seu precioso con­tato, Omari, claro. Inútill

Não tínhamos nem idéia de que ele estava correndo riscos. Com você, nós temos. — Adel abriu um sorriso contido. Ele sabia que tinha acertado um nervo; Akram se sentiu vulnerável. — De qualquer forma, já temos metade da equação: fotos suas conversando com Wajd Masahran em frente à mesquita de Westbourne Grove. Temos o suficiente sobre Masahran para prendê-lo e jogar a chave fora, mas, no momento, ele está foragido. Então agora só nos resta você. E com sua participação no atentado contra Omari, terrorismo e cumplicidade num assassinato, parece que vamos jogar sua chave fora também. Uns bons dez ou 15 anos na prisão de Belmarsh. — Adel estendeu uma das mãos. — Aí sim você não precisará temer que eles o encontrem. — Adel deu de ombros.

A não ser, claro, que nós queiramos que eles o encontrem. Vamos garantir que você fique na parte certa de Belmarsh.

Akram arregalou os olhos. A freqüência do monitor cardíaco au­mentou um ponto. Mas Adel viu que pelo menos ele entendia a situação claramente: seu destino estava inteiramente nas mãos de Adel, e depen­dia do que dissesse a seguir. Por um momento, Akram pareceu pronto para jogar a toalha. Mas logo o brilho provocador voltou a seus olhos.

Você presume, claro, que eu não estou assim tão cansado da vida e que sua proposta teria algum valor para mim. Que, enquanto ainda estou respirando, não há outras coisas mais importantes, como honra, consciência, não ultrapassar certos limites para que não seja difícil viver consigo mesmo. Como traição. — Akram olhou fixamente para Adel.

E suponho também, meu amigo, que na verdade você não tem infor­mações suficientes para jogar a chave fora, como sugeriu.

Adel esperara conseguir a cooperação de Akram pelos métodos nor­mais: afagos com uma das mãos e tapas com a outra. Porque a alternativa envolvia contar um segredo que ele guardou por seis anos; um segredo que ele prometeu a Omari jamais contar a ninguém, nem mesmo Tahiya. Mas agora, dadas as circunstâncias, talvez finalmente fosse o momento.

Adel respirou fundo.

Belas palavras, Akram: honra, consciência, traição. É uma pena que nenhuma delas se aplique a Masahran e seus comparsas; que, depois de ganhar sua confiança, traíram você e o largaram para morrer numa sarjeta. Então certamente não lhes deve nada disso em troca. — Adel sus­pirou. — Mas vamos falar da verdadeira traição, que tal? A traição contra o homem cuja família o tirou das ruas. Aquele que lhe deu roupa e co­mida e assegurou que nada lhe faltasse. Que, ao longo de quarenta anos, tornou-se mais que um patrão: tornou-se um amigo, um irmão. Porque essa traição, querido Akram, é bem mais difícil de entender.

Você sabe que não é dessa traição que estou falando! — vocife­rou Akram, uma gota de saliva caindo sobre seu lábio inferior. — Estou falando da traição de Omari a todos os seus irmãos. É disso que estou falando agora. — Mas Adel percebeu que mais uma vez havia atingido um nervo: os olhos de Akram se marejaram, quase às lágrimas, quando ele foi confrontado com o que fizera. — Você não acha que levei tudo isso em consideração? Que não lutei contra minha consciência antes de tomar essa decisão? E, além disso, se eu me recusasse a ajudar, você acha que teria feito alguma diferença? Eles simplesmente me rotulariam como traidor também. Teriam planejado para que ambos estivéssemos lá quando a bomba explodisse. — Akram balançou a cabeça. — Este problema agora se deve à traição de Omari, não à minha!

Adel não disse nada, simplesmente manteve sobre Akram o mesmo olhar contemplativo e firme. Queria que ele falasse mais, que exorci­zasse seus demônios; com sorte, falaria demais e daria mais munição a Adel, que então o fisgaria no momento apropriado.

O monitor cardíaco soou oito vezes antes que Akram voltasse a falar.

Todos aqueles anos doando para causas palestinas, fingindo para seus irmãos que ele estava ajudando... Quando o objetivo sempre foi traí-los. No momento que descobri, foi como se eu jamais tivesse co­nhecido Omari. — Akram balançou a cabeça novamente. — Sabia que a mãe de Layth era palestina?

Adel permaneceu em silêncio. Ele assentiu, fechando os olhos por um segundo como se em penitência. A mãe de Layth morrera de um tumor no cérebro quando o menino tinha apenas 12 anos. Layth. Sim, tudo começara com Layth.

E o irmão dela ainda mora na cidade de Gaza até hoje. E uma estrela ascendente no Hamas, dizem. E quando o pai de Layth morreu, apenas cinco anos depois... você sabe das promessas solenes que Fahim Omari fez a seu amado irmão Ihsan em seu leito de morte?

Adel assentiu solenemente, os olhos ligeiramente baixos.

Ah, sim, todo mundo sabe da primeira promessa — continuou Akram. — Que ele tomaria conta de Layth e o amaria e cuidaria dele como se fosse seu filho, como é o costume entre irmãos no islã. Mas houve outra promessa na época. Nos velhos tempos, Fahim e Ihsan cos­tumavam seguir tipos como Arafat, e Ihsan contribuía regularmente para causas palestinas; mais ainda em memória de sua esposa e da fa­mília dela que ainda estavam lá. Fahim prometeu solenemente que con­tinuaria as contribuições, pelo espírito e memória de ambos. — Akram comprimiu os olhos cerrados por um momento. — Mas no fim ele traiu seus irmãos, traiu sua causa. Traiu sua memória. — Akram simulou uma cusparada para um lado.

Adel balançou a cabeça discretamente.

Promessa que ele manteve nos primeiros anos. Na verdade, aqui­lo que era mais importante, o verdadeiro espírito da promessa, ele sem­pre manteve. — Adel viu Akram franzir a testa. Hora de fisgá-lo. — Mas em algum momento você se deu ao trabalho de perguntar o porquê da mudança? Por que Fahim de repente decidiu trair a memória de seu irmão e sobrinho?

Akram pensou por um minuto, franzindo a testa ainda mais.

Você está fazendo charadas agora. Não faz sentido.

Pense bem. Ele os amava, não? Ou quem sabe ele não gostasse tanto deles no fim das contas? Por isso a traição foi tão fácil.

Não seja idiota! — O tom de Akram era tão duro quanto sua ex­pressão. — Fahim era muito próximo de Ihsan. E Layth era como um filho para ele. — Akram desviou o olhar por um segundo. — Depois da morte de seu próprio filho Nasib, Layth era a luz que ele precisava desesperadamente. Mas Fahim passou a amar Layth por Layth... e não como um substituto de Nasib. Ele tinha um espírito tão generoso e iluminado, nós dois o amávamos. Nunca vi Fahim tão feliz e satisfeito quanto du­rante os anos que Layth passou conosco.

Os olhos de Akram ficaram úmidos com a lembrança de tempos mais felizes. Nós dois o amávamos. Adel sentiu um nó na garganta pelo que estava prestes a fazer.

Então pense bem, Akram. Todo esse amor... não é algo que al­guém trai a troco de nada. Deve ter havido um motivo fortíssimo. — Os olhos de Akram se agitaram novamente, como se sua mente tentasse agarrar algo que lhe fugia ao alcance. Â beira do precipício de onde Adel estava prestes a empurrá-lo. Adel engoliu em seco. — Mas eu posso afir­mar que essa mudança, a decisão de "trair seus irmãos" como você diz, se deu com a morte de Layth. Esse foi o evento-chave que mudou a men­talidade de Fahim Omari. Pense nisso por um momento, na morte de

Layth, e depois pergunte a si mesmo por que ela poderia ter provocado uma mudança tão grande.

Os pensamentos de Akram continuaram a se revirar, os olhos em busca, até que ele finalmente perdeu a paciência.

Do que você está falando? Está fazendo charadas de novo. Layth morreu num acidente de carro em Long Island. O que diabos isso tem a ver com uma decisão daquelas por parte de Fahim?

Sim, essa foi a história que ele divulgou. Mas pense bem na época do acidente, Akram. O momento. O que mais aconteceu em Nova York na semana em que Layth morreu?

Após outro movimento rápido dos olhos, Akram finalmente chegou ao ponto, como quem se arrebenta contra uma parede. Ele engasgou.

As Torres Gêmeas. — Mas logo ele se conteve e rapidamente des­denhou da idéia. — Não, não. Não pode ser. O acidente de Layth foi uma semana depois disso.

Cinco dias. Foi o tempo que levaram para examinar os registros de trabalho e assegurar que ele estava lá naquele dia e não conseguiu escapar.

Os olhos de Akram continuavam buscando saídas.

Mas não pode ser. Ele não pode ter estado lá. Ele trabalhava para a UBS; eles não tinham um escritório no World Trade Center.

E essa era a parte da história que o próprio Layth inventou, antes de sua morte.

Havia um tom de súplica nos protestos de Akram, e Adel via o mes­mo em seus olhos; como se soubesse que era verdade e agora se agarras­se a pouco mais que fiapos desesperados de uma história falsa. Estava na hora de acabar com o jogo. Adel respirou fundo.

A intenção inicial de Layth era ir para Nova York para trabalhar na UBS, para quem ele, na verdade, já havia trabalhado em Londres. Mas uma oportunidade melhor apareceu, em outro banco de investimentos, o Armell-Levy. Só tinha um problema, a Armell-Levy era uma empresa predominantemente judaica. Sua diretoria era toda judia e, para piorar, uma parte significativa de seu portfólio de investimentos estrangeiros era composta por empresas israelenses.

"Sua ligação com a Nakba, a Catástrofe, pelo lado de sua mãe não significava nada para Layth pessoalmente. Afinal, ele teve amigos judeus na UBS e acreditava que carregar aqueles eternos ressentimentos numa época tão moderna era ridículo. Mas, ainda assim, ele se sentia desafiando as crenças mais importantes de seus pais, maculando suas memórias. E, em conseqüência, seu tio Fahim também não aprovaria. Então Layth não disse nada a respeito e fingiu que trabalharia para a UBS."

Adel deu de ombros.

Fahim não descobriu a verdade até dois anos depois. Ele tinha o celular de Layth e o telefone de casa, mas um dia o celular não estava funcionando. Fahim tentou ligar para o trabalho de Layth e tudo foi revelado ali. Porém ele só confrontou Layth com sua descoberta quatro meses depois.

"Layth confessou tudo, não escondeu nada. E Fahim, por sua vez, foi compreensivo. Embora ele simpatizasse com a dedicação de seu irmão à causa', por sua vez não via por que Layth tinha que carregar aquela cruz nos dias de hoje. Aquilo não era uma parte significante da vida do rapaz. Fahim então descobriu onde Layth trabalhava, no escritório da Armell-Levy no 98o andar da Torre Norte, e Layth falou também dos amigos que tinha lá. Alguns eram judeus, outros cristãos e, sim, alguns muçulmanos como ele. Mas Layth não via raça e crença, mas sim como pessoas. En­xergava as possibilidades para esta geração: como eles podiam ensinar algumas coisas novas às gerações anteriores, ainda presas ao ódio de raça e credo. Para Fahim, Layth era a bondade da cabeça aos pés."

Os olhos de Akram estavam cheios de lágrimas e agora elas começa­ram a escorrer por sua face.

Assim, quando Layth morreu, quando aqueles aviões atingiram as torres, o mundo de Fahim caiu. Ele não apenas havia perdido Layth, mas todas aquelas outras vidas jovens e cheias de esperança se acabaram também; os amigos de quem Layth falara. E pelo quê? Por quê? Ali a "causa" passou a fazer menos sentido que nunca para Fahim. — Adel estendeu a mão. — Você sabe quantos muçulmanos foram mortos no 11 de Setembro, Akram?

Eu... eu... ahn.

Akram engoliu em seco, incapaz de responder. Tudo em que ele acreditava foi demolido em questão de minutos, e via os escombros à sua volta. As vidas duplas de Layth e Fahim, e agora a terrível percepção de que traíra o homem que fora seu melhor amigo por quarenta anos, que o condenara à morte baseado numa mentira.

Mais de trezentos — disse Adel. — A maioria era de muçulma­nos americanos, mas havia alguns de nações árabes. Trezentos! Muitos irmãos tiveram que morrer pela causa, não Akram?

Ele não respondeu, simplesmente cerrou os olhos e sacudiu a cabe­ça, como se não suportasse mais ouvir o que Adel tinha a dizer.

Vendo o estado angustiado e trêmulo de Akram, Adel sentiu uma pontada de culpa. Mas não havia outro jeito; e este fora um exorcismo difícil para ele também, livrar-se do fardo de um segredo guardado por tanto tempo. Adel passou a mão na testa.

Fahim me ligou quando aconteceu para fazer todos os acertos. O nome de Layth foi removido dos registros dos mortos no 11 de Se­tembro e criou-se a história do acidente de carro. Se soubessem que Layth tinha morrido no WTC, tipos como Masahran podiam começar a suspeitar. Nos primeiros meses, Fahim não fez nada. Ainda estava chocado demais para colocar seu plano em ação. Mas ele sabia que estava numa posição privilegiada: podia continuar ajudando causas palestinas ao mesmo tempo que usava seus contatos para adquirir in­formações vitais sobre atentados. Para ele, a morte de Layth havia se­parado as duas coisas. Ele me disse que nunca teve tanta certeza sobre a questão antes.

Quando Akram finalmente abriu os olhos, deixou escapar de seus lábios um meio-murmúrio, meio-gemido.

Perdoe-me, por favor... por favor! — Mas a súplica não era para Adel. Seus olhos estavam fixos no teto, cegos.

Bin Laden já estava escondido então, e no geral era uma força já desgastada. Abu Khalish se ergueu para tomar o manto de "rei dos terroristas" com sua campanha de atentados à bomba. Mas para Fahim, eram lembretes do que acontecera a Layth, e ele começou a ver a situa­ção como uma batalha pessoal contra Khalish. Cada atentado que ele impedia por passar a informação adiante era para ele um passo na vin­gança pela morte de Layth; uma forma de dar o troco, ou de penitência, como preferir.

Os gemidos de Akram se tornaram soluços discretos.

Veja bem, Akram, Fahim nunca traiu as promessas que ele fez ao irmão. Ele continuou doando para causas e caridades palestinas. Se fosse para uma ala de escola danificada pelas tropas israelenses ou para um orfanato, ele doava. Mas, se fosse para morteiros, bombas ou fuzis AK-47, ele recusava. Porque tudo que ele lembrava era o que tinha acon­tecido a Layth. Esta era a separação em sua cabeça. Foi a única maneira que encontrou de se manter fiel ao espírito de seu irmão e ao de Layth. No fim, ele não traiu nenhum dos dois.

Enquanto Adel continuava, os soluços de Akram se tornaram mais intensos, até que seu corpo todo tremia. Uma enfermeira alarmada apa­receu à porta.

Akram controlou o choro, enxugando as lágrimas com uma das mãos e gesticulando para ela com a outra.

Está tudo bem... tudo bem. Só mais um pouco.

Relutante, ela saiu, pousando por um segundo um olhar acusatório sobre Adel. Um lembrete de que ele ficara lá por mais tempo do que devia.

Quando a porta se fechou com um clique, Akram secou o resto das lágrimas e controlou sua respiração.

O que posso fazer... o que posso fazer?

E, quando os olhos de Akram pousaram sobre ele, Adel gostaria que o apelo não fosse dirigido a ele também, pois era digno de pena.

Para ajudar, ou para salvar sua própria alma e consciência? Nesse momento, as duas coisas eram a mesma. Adel podia simplesmente res­ponder: "O que eu queria desde que cheguei aqui saber quem fez isso com você". Mas até ali tudo tinha sido uma questão de penitência: a penitência de Fahim Omari por seu irmão e por Layth; por si e pelos outros. Então talvez fosse também o melhor momento para dourar a pílula. Duas doses de penitência e uma de "apego à causa".

Acho que você sabe o que Fahim gostaria que fizesse agora — começou ele.

 

                                       Capítulo Trinta e Três

SALON, PROVENÇA

Um dia, enquanto revisava algumas quadras antigas, Jean-Pierre repen­tinamente caiu em prantos. Uma delas falava em peste, e ele teve uma súbita e vivida imagem da dor de Michel pela perda de sua primeira esposa e filhos pequenos, consumidos pela peste em Agen. Era não so­mente uma imagem clara de Michel ajoelhado junto às camas, chorando enquanto os últimos ritos eram recitados, mas de como ele se sentira naquele momento.

Ao reviver a vida de Michel o mais similarmente possível, algumas vezes as imagens cruzavam a fronteira e se tornavam precisas demais. Afinal, todos os principais monumentos da vida dele estavam espalha­dos pela cidade, seu fantasma habitava quase todas as esquinas: sua anti­ga casa na rue Moulin dlsnard — agora chamada rue Nostradamus em sua homenagem —, onde vivera com sua esposa Anne e seus seis filhos; os mercadores da rue de 1'Horloge onde comprava seus suprimentos diários; o local da capela franciscana onde rezava regularmente e onde foi finalmente enterrado; a Igreja de St. Laurent para onde seus restos foram levados depois da revolução de 1789; a cova comum da peste, junto ao canal — Michel tratara de vítimas da peste quando chegara a Salon, e antes disso em Marselha, Lyon e Aix.

Talvez uma sobrecarga emocional de vez em quando fosse previsí­vel, um sintoma indireto, uma reação por sua imersão demasiadamente profunda. Pois enquanto a maioria dos estudiosos se contentava em li­dar apenas com a história conhecida e provada da vida de Michel, Jean-Pierre estava mais interessado em cruzar os eventos para descobrir o que podia tê-lo movido: a perda trágica de sua primeira família para a peste, levando-o a estudar seu tratamento para salvar outros da calamidade; um encontro tenso com inquisidores em Toulouse em sua juventude, exigindo dele uma cautela maior mais tarde para não ser muito direto ou específico em suas profecias; seu interesse em astronomia levando-o, por sua vez, à astrologia, e em seguida o sucesso das primeiras profecias de seu "Almanac", encorajando-o a continuar.

Jean-Pierre esperava entender melhor não apenas como Michel se sentiu durantes aqueles momentos-chave — a perda da primeira famí­lia, a morte de seu pai menos de um ano após sua mudança para Salon, o nascimento dos seis filhos com Anne, todos num período de dez anos, entre 1551 e 1561 —, mas também o efeito que tiveram em sua escrita, suas quadras.

As quadras de Michel sobre Mabus foram escritas em 1557, dois anos após solidificar seu nome com sua profecia sobre o rei francês. O conflito entre cristianismo e islamismo também era uma preocupa­ção forte na época. Havia apenas sessenta anos que a Reconquista na Espanha eliminara os últimos vestígios do domínio muçulmano, e os conflitos entre o Império Otomano e as forças cristãs eram um evento regular no leste do Mediterrâneo, por fim culminando no Grande Cerco de Malta em 1565. O quanto de tudo aquilo havia influenciado Michel?

A mente de Jean-Pierre ainda estava parcialmente envolvida com isso quando ele encontrou Corinne para jantar aquela noite.

Você está bem? — perguntou ela, esticando o braço para tocar sua mão em encorajamento.

Sim, estou bem. — Quando percebeu que ela não ficou satisfeita com sua resposta curta, Jean-Pierre explicou a sobrecarga emocional que tivera mais cedo.

Talvez seja de se esperar neste momento — disse ela —, com tudo que está acontecendo. Você está muito mais focado que o normal, as emoções à flor da pele.

Suponho que sim.

Emoção. Foi a primeira coisa que a atraiu em Jean-Pierre, além de sua excentricidade — as túnicas bordadas, o cabelo hippie, seu desa­pego, por vezes exasperante, do mundo lá fora e dos sentimentos dos outros —, a paixão e a intensidade de seu trabalho sobre Nostradamus. Ela já havia desistido de conseguir direcionar um pouco daquela con­centração sobre si mesma.

Eles foram a La Brocherie, o restaurante que ficava junto da capela franciscana onde Michel de Nostradamus fora enterrado pela primeira vez, onde as paredes eram cobertas por placas comemorativas, retratos e pergaminhos com quadras antigas.

Corinne contraiu os lábios.

Sabe, eu nunca entendi por que Mabus é uma figura tão impor­tante nas quadras de Michel. Eu só encontrei uma referência a ele.

Sim, é verdade. Mas, uma vez que o nome foi estabelecido, todas as referências de Michel ao "terceiro anticristo" foram então ligadas a ele.

Corinne assentiu lentamente.

E daí foi postulado que esse terceiro anticristo, Mabus, viria da península árabe, da Pérsia ou do Levante?

Isso mesmo. — Após passar um ano assistindo a suas palestras, não surpreendia que Corinne estivesse a par desses fatos. Ela mordeu o lábio. Era óbvio que havia algo em sua mente. — Por quê?

Só estou curiosa... O que levou você a escolher Bahsem-Yahl como associação a Mabus? Há tantos outros que poderia escolher.

Verdade. Mas acho que o que fechou o negócio para mim foi, em primeiro lugar, que tudo apontava para o Irã, Pérsia na época, na epístola de Michel para Henrique II, em que ele descrevia o terceiro anticristo como o novo Xerxes, antigo rei da Pérsia. E finalmente porque Bahsem-Yahl era a voz mais preocupante a sair do Irã, uma que poderia unificar todo o islã.

Entendo. — Mais uma vez, Corinne se perdeu em pensamentos momentaneamente. Xerxes. — E agora, com uma nova quadra mencionando Saladino, parece que temos mais um guerreiro islâmico da antigüidade.

Suponho que sim... nós... — A frase de Jean-Pierre se perdeu no ar quando ele se deu conta do último elo naquela corrente. Ele percor­reu a seqüência novamente para ver se não tinha perdido nada, pedindo desculpas a Corinne ao pegar o celular. — Desculpe... tenho que fazer uma ligação rápida.

Mas Tynnan não atendeu, e a ligação caiu na caixa postal.

Aconteceu novamente quando Jean-Pierre ligou ao sair do restau­rante, mas dessa vez ele deixou recado. E, quando 24 horas depois ain­da não havia recebido retorno, tentou mais uma vez. De novo, caixa postal.

— Ok, então em que ponto estamos? — perguntou Adel.

Cedo pela manhã, Adel passou as informações que conseguira com Akram para uma equipe de quatro pessoas, depois se reuniu com eles novamente logo após o almoço.

Havia três locações-chave para examinar: o primeiro era o lugar onde Akram fora atacado, os outros dois, onde ele encontrara com seu algoz anteriormente. Ambos eram bancos em parques: um próximo ao Italian Garden no Hyde Park e outro no lado sul do lago do St. James Park — mas, nos dois, as únicas câmeras de segurança ficavam nas en­tradas e nos restaurantes. E mais o que pudessem descobrir sobre Al Hakam pelas conexões de viagem.

Isam levantou o bloco de notas.

De todos os voos e viagens do Eurostar desde o ataque, há apenas dois possíveis resultados para Al Hakam ou para os três pseudônimos dele que temos em arquivo. Ambos estão fora da faixa etária: um homem de 59 anos num voo para o Kuwait no fim do dia seguinte, e outro de 28 anos hoje de manhã para Toronto.

Adel coçou a testa. Akram descrevera a idade do homem que o ata­cara como entre meados dos 30 e começo dos 40.

Siga somente com o de 28 anos.

Ele estava com a mulher e o filho de 5 anos, é pouco provável.

Verdade. — Adel deu de ombros. — Mas você tem que admitir, é um bom disfarce. E já vimos coisas mais estranhas. — Ele encarou os outros. — E na cena do ataque e nos parques? O que temos?

Não tivemos muita sorte reduzindo as opções no Hyde Park, in­felizmente. — Bahir suspirou dramaticamente. — Quarenta e seis possibilidades.

Siraj disse que não tinha notícias melhores do St. James Park.

Quantos?

Trinta e oito.

Adel balançou a cabeça. Não estava surpreso. Tudo que Akram con­seguira lembrar era que Al Hakam estava vestindo um casaco escuro — mas não soube dizer a cor exata — e uma camisa clara, sem gravata, em ambos os encontros no parque. Então o principal traço marcante era a barba e o bigode espessos.

E você tem uma notícia melhor para nos dar, suponho? — per­guntou Adel, vendo o sorriso maroto de Karam.

A princípio, achei que não fosse ter. — Karam checou suas ano­tações. — Não há câmera em nenhum lugar perto de onde ele foi ata­cado, então tive que expandir a busca até que encontrei algumas, par­ticularmente nas principais ruas que levam àquela área. — Ele passou uma pilha de imagens para Adel. — Oito ao todo. O que mais ajudou a identificá-lo foi o caftã. Sem isso, provavelmente estaríamos falando de uns quarenta ou mais.

Adel olhou as fotos. Eram todas de homens com barbas espessas vestindo caftãs e andando de motonetas ou motos de pequeno porte. A descrição de Akram daquela ocasião fora mais precisa, e eles também ti­nham o relato do adolescente que vira Al Hakam subir numa motoneta.

Isso é bom... muito bom. — Adel olhou o relógio, e deu instru­ções para que eles concluíssem suas listas de "possibilidades" e depois se reunissem para cruzar referências. — Avisem-me no segundo em que chegarmos a um resultado, se houver. O prazo é 16h. E a hora em que pretendo sair para o hospital de novo e repassar estas fotos com Akram Ghafur.

Reunião encerrada.

Quando cada um voltou para sua mesa, Adel pousou a cabeça entre as mãos. Eram 9h18 em Nova York. Tynnan disse que ligaria de novo em algumas horas, "quando eu estiver seguro". Agora já tinham passado 18 horas. Ele tentou ligar para o número de Tynnan, mas caiu direto na caixa postal. Adel não deixou recado. Se Tynnan estivesse mesmo nas mãos da policia, explicar por que os dois estavam em contato seria uma desagradável saia justa.

Em pouco mais de uma hora, sua equipe encontrou uma possível equivalência entre uma das fotos da motoneta e uma do Hyde Park. Dezoito minutos depois, mais um resultado possível: não era a mesma motoneta, e outra foto do Hyde Park.

Adel estava examinando as duas opções quando foi interrompido pela voz de Malik.

Chefe? Você precisa ver isso.

Adel levantou a cabeça quando ouviu o áudio sendo ligado para acompanhar as cenas na tela: uma grande multidão protestando, dois carros em chamas atrás deles, outro mais ao lado. O fogo também ardia numa loja onde uma bomba de gasolina fora atirada pela janela.

Karachi, dessa vez — explicou Malik. — Trinta mil pessoas, aparentemente.

Era o terceiro do dia. O Oriente Médio despertava cinco horas antes deles; mais tempo para convocar protestos e causar confusão, pensou Adel com amargura. E eles pareciam ficar mais numerosos e fortes a cada vez, lembrando Adel de que lhe restava pouco tempo. Ele resistiu à tentação de enterrar a cabeça nas mãos; apenas fechou os olhos rapida­mente e balançou a cabeça.

Eu sei... eu sei — disse Adel.

Mas mesmo isso soava comprometedor. Eu sei, porque já vi pro­testos demais nos últimos dias e estou de saco cheio deles, não consigo nem olhar mais? Ou eu sei porque já vi todo esse cenário planificado num manuscrito, então conheço os rumos de tudo isso? A pressão de não poder dividir o segredo era sufocante.

Adel pegou seu casaco um minuto depois e recolheu o resto das fo­tos com a equipe, dizendo que decidiu sair vinte minutos mais cedo para ver Akram no hospital.

De qualquer jeito, já fomos o mais longe possível com essas fotos.

Mas sua saída se devia mais a uma fuga da crescente volatilidade do protesto na tela. Metade da sala de operações estava vidrada na cena, al­guns agora de pé, boca aberta e olhos fixos no bombardeio de imagens, questionando o quanto ainda podia piorar ou até onde podia chegar — ao passo que Adel praticamente sabia a resposta.

Descendo pelo elevador, sozinho, Adel finalmente enterrou a cabeça entre as mãos.

Hank conseguiu acessar todos menos sete dos arquivos sobre Bahsem-Yahl do Departamento 101.

Kenny Verbeck passou mais de uma hora examinando os arquivos até finalmente levantar a cabeça. Novamente, a linguagem era diplomá­tica, por vezes vaga, porém havia mais que o suficiente nas entrelinhas para acender alertas vermelhos.

Um nome específico saltou à atenção de Verbeck e lhe deu motivo de preocupação: Matt Calvinson. Entre todos os lunáticos do pacote de cristãos "renascidos" e profetas do apocalipse, Calvinson era uma estrela.

Alguns poderiam argumentar que era uma injustiça, que na verdade havia outros malucos do fim do mundo mais radicais que ele, que Cal­vinson era só o mais conhecido, o doido mais "visível na mídia" e o mais rico: seus programas de evangelização na TV tinham audiência na casa dos milhões.

Mas eram suas contribuições significativas para o Partido Republi­cano e sua relação com o presidente, muitas vezes desconfortavelmente próxima, que causavam sobressaltos ao serviço secreto. Então eles faziam questão de monitorar cada ação e palavra de Calvinson. Se ele fizesse algo constrangedor — o que fazia regularmente —, eles estuda­vam como aquilo poderia se refletir na relação entre os dois; se seria necessário algum pronunciamento da Casa Branca para desassociar-se ou contrabalançar o último escândalo.

Verbeck checou no computador quem na NSA era responsável pelas informações ligadas a Calvinson: George Caffrey.

Ele ligou para Caffrey e explicou o que queria: os encontros e co­mentários mais importantes de Calvinson no último ano.

— Daqueles com o presidente nós já sabemos tudo, são bem documen­tados. Mas há alguns outros em que estou interessado.

Verbeck listou os nomes, dois senadores, um negociante de armas e um executivo da Halliburton dos arquivos do 101, tomando notas en­quanto conversavam; mas, ao chegar ao último nome, William Grayford, Caffrey ficou em silêncio.

O que houve? — perguntou Verbeck.

Bem... Nós pegamos Grayford em três encontros nos últimos 14 meses. E começamos a nos perguntar por quê.

Foi a vez de Verbeck ficar em silêncio. Ele não estava disposto a preencher aquela lacuna, embora soubesse a resposta. Caffrey entendia como a coisa funcionava considerando suas respectivas posições: Ver­beck perguntava, Caffrey respondia.

E essas reuniões com Grayford. Quando e onde?

Depois de anotar as três reuniões, Verbeck pediu cópias dos ser­mões mais recentes de Calvinson.

Digamos, dos últimos dois meses?

Sim, temos. Até de dois anos atrás, se você quiser.

Só os dois meses já está bom. Aliás, quando é o próximo sermão dele na televisão?

Amanhã à noite, às 19 horas, e domingo de manhã, às 11 horas. Sempre nos mesmos dois horários. Assista ou arrisque-se ao fogo eter­no! — Caffrey deu uma risadinha, depois resolveu ousar novamente. — Algum motivo especial para este interesse?

Sim. Porque, Deus seja louvado, acho que finalmente vi a luz. — Ele agradeceu e desligou o telefone.

Normalmente, Verbeck teria caído no sono em minutos com a ba­lela sobre fogo e enxofre, mas ele estava determinado a resistir e ouvir atentamente cada palavra daquele próximo sermão.

Sem saída.

Todo dia havia um grupo de manifestantes no Speakers' Corner des­de o discurso de Bahsem-Yahl, mas agora chegavam a algumas centenas de pessoas. Eles repetiam palavras de ordem e exibiam seus cartazes para os motoristas de passagem enquanto o táxi de Adel pegava a Park Lane na volta da visita a Akram.

Sob a manchete "Islã em fúria", o assunto também estava na primei­ra página do jornal Evening Standard que ele leu no trem de volta para casa. Havia fotos dos protestos mais recentes em Karachi, Medina e Bushehr nas primeiras páginas, depois outros quatro protestos menores na Europa, incluindo o de Speakers' Corner nas duas seguintes. Já chega. Mas depois as três páginas seguintes estavam repletas de retrospectivas do 7 de julho, das conseqüências do alerta de bomba em Londres na semana anterior, do número atual de membros do Hizb ut-Tahrir no Reino Unido e o último comentário esdrúxulo do Conselho Muçulmano da Grã-Bretanha.

Adel desistiu rapidamente do jornal, dobrando-o com um suspiro. Após um momento, ele fechou os olhos com o suave balanço do trem. Lendo as notícias, tinha-se a impressão de que a maioria dos muçulma­nos na Grã-Bretanha — e no resto do mundo — era radical. Algumas vezes, Adel sentia o isolamento do seu trabalho mais duramente.

Alguns dias antes, ele tentava desesperadamente salvar as vidas da­queles a seu redor e, contudo, nunca poderia contar a ninguém o que fazia, muito menos a seu próprio povo: muitos o considerariam um trai­dor de seus iguais. E agora, tendo que manter a odisséia de Tynnan para si, Adel se distanciava até de seus colegas de trabalho. Ele sorriu diante da ironia.

As luzes fortes de uma estação passaram, e Adel abriu os olhos. Eles tinham avançado com Akram, sim, mas nada ainda de Tynnan. Onde estaria ele? Adel pegou o celular para tentar mais uma vez.

 

Uma hora depois, Adel beliscava seu jantar, os acontecimentos do dia ainda em sua cabeça. Akram identificara Al Hakam em uma das fotos da motoneta, mas ele também tinha certeza de que sua barba era falsa. Então agora eles teriam que usar progressões de imagem no computador para determinar como Al Hakam ficaria sem ela, para ter uma idéia de como ele poderia estar no passaporte e na passagem pela alfândega.

Adel ligara para o escritório e mandara a foto para Max Redmond do GCHQ antes de ir para casa.

— Espero retornar para você até amanhã de manhã.

Quando olhou para o outro lado da mesa, Tahiya sorriu sem mui­ta vontade. Embora sentisse que ele estava perturbado, ela obviamente desistira de perguntar o que estava errado. Mas havia algo naquela noi­te — talvez o fato de que ele finalmente conseguira uma identificação positiva no caso de Omari — que finalmente o levou à decisão de contar a ela tudo que o perturbava nos últimos dias, não apenas a versão resu­mida que ele lhe relatara sobre a morte de Omari.

Contudo, em respeito a uma regra — não na frente das crianças —, ele esperou até dar um abraço de boa noite em Farah e Jibril e que Tahiya os levasse para a cama.

Adel serviu duas taças de Zibib, uma mistura feita de tâmaras fer­mentadas, em vez de anis. Nenhum dos dois era radical quanto ao cos­tume de abandonar todo tipo de álcool e, ainda que bebessem esporadi­camente, Zibib era uma das bebidas favoritas de Tahiya, reservada para ocasiões especiais.

Ele explicou tudo em seqüência — os atentados às mesquitas, Sam Tynnan, Nostradamus e Jean-Pierre, Bahsem-Yahl — e viu a expressão de Tahiya tornando-se mais grave a cada frase.

Eles ficaram em silêncio quando Adel terminou, Tahiya olhando para as mãos. Nas raras ocasiões em que ele partilhara com ela informações do trabalho, eram sempre de duas categorias: ou ele já sabia a opinião dos colegas de trabalho e queria apenas confirmação; ou estava descon­fiado do consenso e buscava uma opinião contrária, algo que reforçasse sua dúvida. Mas ela percebeu que desta vez era diferente; ela era a única com quem ele se abrira, e agora sentia o peso da responsabilidade: os dois como os únicos guardiões de um segredo tão profundo.

Tahiya ergueu os olhos para ele.

Agora entendo por que tem sido tão difícil para você carregar esse fardo sozinho.

Adel concordou, fechando os olhos momentaneamente.

E agora, para piorar, há a preocupação de que esse tal Sam Tyn­nan esteja desaparecido. Divulgaram um alerta para prendê-lo nos Es­tados Unidos, e ele disse que me ligaria em algumas horas, quando, com sorte, estivesse seguro. Há 24 horas que não tenho notícias dele.

Aquela talvez tivesse sido a gota dagua que o levou a contar tudo para Tahiya. Conforme o dia progredia, cada hora sem notícias do escritor aumentara sua inquietação. Mas ele não podia simplesmente desabafar com alguém no escritório: Sam Tynnan nem existia no radar deles.

Tahiya deu de ombros.

Talvez ele tenha sido pego pela polícia, no fim das contas.

—- Não, acho que não. Eu chequei pouco antes de sair do escritório. Não tem nenhum boletim de prisão; o alerta ainda está ativo, ainda a ser respondido. E ele não atende o telefone.

O olhar de Tahiya se desviou por um momento.

Espere mais um pouco. Com sorte, ele pode reaparecer, fazer contato de novo.

É possível. — Ele tomou um gole maior de Zibib antes de chegar à outra preocupação: os atentados às mesquitas e se ele estava fazendo o suficiente a respeito. — Se eu estiver errado a respeito da próxima, pode ser tarde demais para escapar do precipício. — Ele deu de ombros, desamparado. — Você já viu os protestos por aí?

Vi, sim. — Ela olhou para o copo, como se buscasse inspiração. — Mas você acredita em seu coração que está fazendo o melhor que pode?

Sim, eu... eu acho que sim. — Adel coçou a testa, depois expli­cou sua teoria de "mesquitas equivalentes". — Na verdade, meu irmão Namir foi quem me deu a dica. E certamente funcionou da última vez. Pegamos um deles, mas não com vida.

Ainda pensativa, Tahiya se debruçou à frente e o tocou no braço.

Se você realmente acredita que está fazendo todo o possível, Adel, então não há mais nada que possa fazer. Seu trabalho não é salvar o mun­do. — Ela acariciou sua mão. — E certamente não sozinho, como você esteve até agora com isso.

Suponho que sim. — E, quando um pouco do peso se ergueu de seus ombros, Adel se sentiu feliz por ter conversado com Tahiya. Tal­vez fosse isso que ele vinha buscando o tempo todo: não exatamente conselhos, mas uma confirmação de que estava administrando as coisas direito. Absolvição. Ele balançou a cabeça. — Mesmo assim, não consigo evitar a sensação de que estou deixando passar algo nos atentados às mesquitas. Alguma coisa vital.

Na madrugada anterior, ele desenterrara a segunda quadra de Jean- Pierre para examinar mais uma vez:

Dos últimos domos em chamas,

A ordem de um será reversa,

O outro substituído por um de ordem mais alta,

Saladino será aturdido.

Quase não fazia sentido, ainda. Não só porque contradizia a pri­meira quadra de Jean-Pierre, que sugeria que as últimas duas mesquitas alvejadas, Damasco e Medina, continuariam sendo as mesmas do ma­nuscrito de Tynnan. O único elemento estável em tudo. Ambas tinham pesados padrões de segurança, mas eles enviaram alertas de qualquer forma; e ainda havia a dúvida de quando.

Tahiya passou o dedo distraidamente pela borda da taça.

Esta é a única coisa com a qual não posso ajudar, infelizmente, Adel: desembaralhar seus pensamentos. É uma área onde todos estamos verdadeiramente sozinhos. — Ela ergueu uma sobrancelha. — O único conselho que posso dar é que, perversamente, quando você deixa de pensar em alguma coisa, quando não tenta forçar, os pensamentos mais claros invariavelmente vêm à tona.

Adel concordou.

Muitas vezes, é verdade.

Eles recaíram num bate-papo, no geral sobre o dia dela e as crian­ças, enquanto terminavam seus drinques. Quando foram dormir, Adel seguiu o conselho: por quase duas horas, ele ficou deitado com os olhos no teto, tentando não pensar no que teria acontecido com Sam Tynnan e o que lhe estava escapando nos atentados às mesquitas, antes de final­mente dormir.

 

                                Capítulo Trinta e Quatro

Não havia ninguém na sala quando Sam acordou. Ele sentia uma dor embotada na cabeça enquanto olhava em volta devagar. A sala tinha cerca de 2 metros quadrados e ele estava deitado numa cama de soltei­ro, o pulso esquerdo algemado à armação dela naquele lado. Os únicos outros móveis eram uma mesa lateral e uma cômoda, ambas de pinho. Um quarto básico e funcional.

Era noite e as cortinas estavam fechadas, sem nenhuma fresta de luz nas laterais. Mas a porta do quarto estava aberta e entrava luz de um corredor; a única coisa o iluminando. Sons agora vinham do outro lado do corredor. Um discreto ruído de pratos, talheres, uma gaveta sendo fechada. Sam se debruçou e, por uma porta entreaberta do outro lado do corredor, pôde ver armários de cozinha. Ali a luz era mais forte e ele ouviu alguém se movendo.

Ele recuou rapidamente quando viu alguém lá fora. Pela fração de segundo em que a viu, notou que era uma mulher, magra e loura.

Mais pratos se batendo, algumas portas de armário se abrindo e fe­chando. Em seguida, som de passos abafados.

Após um momento, Sam arriscou outra olhada. A princípio estava fora de seu campo dc visão, mas, quando ela reapareceu, olhou em sua direção.

Era tarde demais para retroceder, seu coração acelerava; não tanto por ser pego espiando, mas pelo que achava que tinha visto.

Quando a mulher entrou no quarto com a luz às suas costas, obrigando-o a estreitar a vista, ele demorou um instante para ter certeza: Lorrena!

Entretanto, tudo ainda tinha uma qualidade de sonho. Como se, com uma sacudidela rápida de cabeça, ele pudesse acordar para a reali­dade: Washington ou um de seus capangas estaria vindo em sua direção. Quando as peças começaram a se encaixar em sua mente, ele se deu conta de que o sonho não era tão diferente do pesadelo da realidade. Eles certamente estavam do outro lado do corredor em outra sala, espe­rando que ela lhes dissesse que ele estava acordado.

Sam... Sam. — Lorrena tinha o rosto doce e preocupado, como nas lembranças dele. — Você está bem?

Ela estendeu um braço em sua direção, e ele se retraiu — tanto quan­to a algema permitia.

Lorrena tocou em seu rosto, afagou-o suavemente, e o fez estreme­cer ao sentir seu toque. Ele virou a cabeça e fechou os olhos, tentando fazer aquela presença desaparecer.

Ela tirou a mão, mas ele sentiu o colchão afundar quando Lorrena se sentou a seu lado. Sam abriu os olhos após um instante, lentamente balançando a cabeça.

Então isso também foi uma mentira? Seu acidente de carro? Seu afogamento? Exatamente como os 18 meses que passou comigo. — Sua mandíbula se retesou. — Suponho que seja apropriado: começar com uma mentira e terminar com outra.

Lorrena franziu a testa.

Não, não. Q primeiro era mentira, sim. Mas não o acidente. Washington realmente tentou me matar.

Sam sustentou o olhar dela.

Sim, claro. Claro. Por um momento, eu esqueci como você é boa nisso. Então qual é o plano desta vez? Me enrolar por um tempo, não? Passar uma vaselina. Conseguir a última informação vital de que vocês precisam. — Ele olhou por cima do ombro dela. — Daí Washington e o resto dos idiotas chegam para pôr minhas pernas em botas de cimento prontas para um lago? Vamos, Lorrena, você ficou comigo durante a mer­da de um ano e meio! Que segredo poderia restar para arrancar de mim?

Lorrena balançou a cabeça e, mesmo à meia-luz, Sam pôde ver seus olhos úmidos.

Não, não foi nada disso. — Ela parou e deu de ombros. — Bem, sim, no começou era assim. Mas as coisas mudaram.

Mudaram? — perguntou ele, incrédulo, estreitando os olhos.

Lorrena devolveu o olhar, mas depois virou o rosto. Ela repassara tantas vezes aquelas palavras em sua mente nos últimos dias, mas ago­ra elas apenas congelaram em sua garganta. Tudo soaria simplesmente trivial, ridículo. Ele acharia que era só outra "historinha". Mas Sam reto­mou o assunto do acidente de carro.

Bem, se não foi uma armação, como você está aqui? A polícia encontrou sangue no vidro do para-brisa quando tiraram seu carro do lago.

Ah, eu caí no lago, pode acreditar. Fui drogada, e um dos homens de Washington dirigiu o carro na direção do lago e pulou fora pouco antes de ele cair na água. Eu me arrebentei no lago e no vidro, com força! Está vendo? — Ela virou o rosto e pegou a mão de Sam para que ele a tocasse.

Sam viu um amontoado de oito ou nove pequenas cicatrizes, os de­dos tremendo ao tocá-la.

Sinto muito — disse ele, sem saber imediatamente por quê: Sinto muito pelo que aconteceu com você, ou sinto por não acreditar em você? Sam engoliu em seco. — Mas você ainda conseguiu sair? Não estava in­consciente? —- E de repente ele soube qual das duas opções era verdade. Seu tom de voz não deixava dúvidas: ele ainda tinha fortes desconfianças.

Por ura instante, sim... dez, trinta segundos... não faço idéia. Mas eu tive sorte. A correnteza funcionou a meu favor. — Parecia tão sim­ples: a correnteza funcionou a meu favor. A sensação era de estar dentro de uma máquina de lavar. Sem saber onde era acima, onde era abaixo ou os lados. E o frio, tão frio que ela não conseguia respirar, seus pul­mões quase explodindo em busca de ar enquanto era jogada e arrastada pelas águas turvas. — Pareceu uma eternidade até que eu chegasse à superfície, e eu já tinha engolido um bocado de água. — Ela mordeu o lábio. — A única vantagem foi que, graças à correnteza, àquela altura eu já estava uns 200 metros rio abaixo. E presumo que Washington e seu parceiro ficaram parados olhando bem à frente para ter certeza de que eu não voltaria à superfície.

Sam assentiu, lentamente. Mais uma coisa da qual tinha dúvidas. Ou ela estava contando a verdade, ou era uma mentira perfeitamente cons­truída; uma que cobria todas as dúvidas. Como a que ela interpretou nos 18 meses em que viveu com ele.

Se, como você diz, Washington e sua tropa não estão escondidos na sala ao lado, por que usaram clorofórmio para me apagar? E por que estas algemas? — Ele deu um puxão com a mão esquerda, fazendo a algema brandir contra a estrutura metálica da cama.

Não tive muita escolha quanto ao clorofórmio. Eu sabia que não viria comigo facilmente. Estava rastreando você desde a véspera, quando descobri que estava na cabana de Mike e que a polícia o pegaria a qual­quer segundo. E uma vez nas mãos deles, você seria entregue a Washing­ton. Foi o departamento dele que emitiu o alerta. — Ela gesticulou. — E as algemas? Eu sabia que, uma vez acordado, você presumiria o pior. Poderia tentar me atacar, fugir. — Ela deu de ombros e desviou o olhar. — Não há mais ninguém aqui, Sam. Mas, se ao final desta conversa você ainda não acreditar em mim, tudo bem. Eu tiro as algemas e estará livre para ir embora. Tente a sorte lá fora mais uma vez.

Aquele Pontiac ao lado da cabana de Mike no outro dia. Sam concor­dou. Até parece que ele tinha escolha. Público cativo.

Ok. — Depois, contradizendo o que ela acabara de afirmar, ele ouviu sons no corredor. Uma porta se fechou e passos vinham na dire­ção deles.

Sam ficou tenso, esperando a aparição de Washington à porta a qualquer minuto, um sorriso presunçoso no rosto: Você é muito fácil, Sr. Tynnan. Ela o enrolou totalmente outra vez. Mas o homem que se debru­çou à porta tinha pouco menos que 30 anos, cabelo louro e arrepiado com gel, óculos estilosos cor-de-rosa, piercings no nariz e nas orelhas e uma camisa verde-limão em tie-dye.

Ah, exceto pelo Chris — disse Lorrena. — Um amigo. Ele me ajudou a colocar e tirar você do carro.

Sam tentava absorver toda aquela informação. O Nissan junto a seu carro no edifício-garagem. Chris era magro e desengonçado; mesmo com a ajuda de Lorrena, carregar todo o peso de Sam deve ter sido uma dificuldade para aquele sujeito. Ele claramente não era um dos homens de Washington. Aquele ali só conseguiria matar mosquitos.

Tudo bem? — perguntou o jovem.

Lorrena fez que sim e ele voltou para o corredor.

Quando ouviu o clique de uma porta se fechando no fim do corre­dor, Lorrena respirou fundo. Por onde começar? Pelo dia em que se co­nheceram na biblioteca? Não, tinha que voltar mais atrás, quatro meses antes disso; então foi por aí que ela partiu, quando um dos contatos de pesquisa de Sam — ela nunca soube quem exatamente, não era informa­ção para seu nível — se comunicou com o departamento de Washing­ton. Foi o primeiro momento de preocupação de que o material que ele estava escrevendo poderia ter maiores implicações. Assim, o encontro dos dois foi armado, após o monitoramento das visitas regulares de Sam à biblioteca de Albany. Sam assentiu em silêncio —- sua única reação até ali —, até que começou a interrogá-la sobre seu passado. Ele queria saber quem ela realmente era.

Sim, seu pai era originalmente de Taranto, mas ele não morava mais lá; estava em São Francisco agora, onde a família viveu a maior parte de sua vida. Mas ela conhecia bem a área de Oneida porque tinha um tio que morara por anos em Syracuse. Esse foi um dos motivos pelos quais ela foi escolhida. Lorrena puxou uma mecha de cabelo.

E, no fim da adolescência, eu costumava clarear o cabelo. Meu tom natural é um castanho médio, mas para a minha "história" com você eu escureci dois tons. Quase preto. — O nome era o mesmo, mas o sobrenome foi trocado de Perello para Presutti. Ela fez uma careta. — Eles gostam de manter as histórias próximas da realidade, se possível. Reduz o risco de derrapadas.

Finalmente, ela chegou à parte em que foi morar com ele para moni­torar as atividades do dia a dia e seu progresso com A profecia.

E também para saber a quem você mandava partes do livro ou contava detalhes cruciais da trama.

Sam piscou lentamente ao assimilar a história, tentando encontrar o sentido em tudo aquilo.

Então todo aquele terror de me perguntar para onde eu tinha mandado o manuscrito, eles já sabiam?

Bem, oitenta por cento. Eu não estava do seu lado o tempo todo, então havia uma chance de que você mandasse pedaços sem que eu sou­besse. — Ela deu de ombros. — Embora eu checasse seu histórico de e-mails regularmente para conferir.

Sam fechou os olhos por um segundo, ainda sentindo um arrepio na espinha ao pensar em toda a história.

E você também sabia que eles viriam naquele dia? Que enfiariam uma arma na minha cara e brincariam de roleta-russa?

Eu sabia que eles atacariam, sim. Mas não tinha idéia de que se­riam tão brutos. Detalhes assim não eram partilhados comigo; como eu disse antes, "no meu nível". Eu não era suficientemente importante. Descartável, no fim das contas. — Ela deu de ombros, desamparada. — Mesmo que eles me contassem, não faria diferença, porque se eu protes­tasse, eles saberiam que tinha sentimentos por você. Que me tornei mais próxima de você do que devia.

Sam balançou a cabeça lentamente; ele teve ainda mais dificuldade em assimilar aquele pedaço.

O quê? Depois de passar um ano me induzindo a abrir meu cora­ção e minha alma, abrir minha vida para você, só para depois demolir tudo em nome de "Deus e Pátria", você de repente decidiu que gostava de mim? — Ele levantou a voz, incrédulo.

Não, era mais profundo que isso.

Mas Lorrena rapidamente se conteve. Ali eles já estavam passando longe dos sentimentos reais: Gostava. Me tornei próxima. Sam já tinha dificuldade de compreender apenas isso, o abismo entre aquelas emo­ções e a mentira que descobriu ser sua relação; ela não precisava piorar a situação falando em coisas mais profundas. Mas lembrou a si mesma que seus sentimentos por ele surgiram aos poucos, em etapas; então tal­vez essa fosse a melhor maneira de abordar a questão: conduzir Sam passo a passo até ela. Lorrena suspirou.

Sabe, quando me enviaram para lá, foi como na maioria das missões: eles dizem que você está fazendo isso por um bem maior. Pela nação. É a sua pequena participação para consertar o mundo. Então você é levado a ter orgulho do que está fazendo. No seu caso, disseram que seu manuscrito tinha implicações preocupantes para a Guerra ao Terror. Que ele podia acender paixões islâmicas e levar a conflitos sérios. Em outras palavras, mexer no maior vespeiro do momento. Era preciso monitorar, ficar de olho em você. Mas, pouco a pouco, a pressão aumentou. Cheque isso, cheque aquilo, monitore isso, mo­nitore aquilo... "É mais sério do que imaginávamos!" E, a cada dois capítulos que você concluía, eu tinha que copiar tudo e mandar para Washington.

Lorrena pôs as mãos na testa, acariciando de leve as têmporas.

Quando finalmente me disseram que pretendiam tirar o manus­crito de você e destruir todas as possíveis cópias, eu não tinha idéia do que estavam planejando. Muito menos da maneira como aconteceu. — Ela fixou os olhos em Sam. — Mas àquela altura eu já tinha visto todo o trabalho que você teve com A profecia. Dedicando-se dia após dia. Dando tudo de si ao livro. Eu sabia que, para você, seria como ter um filho recém-nascido arrancado de seus braços.

Ela viu Sam se retrair e desviar os olhos. Será que ele ainda tinha dúvidas, ou a lembrança ainda era dolorosa demais?

Contudo Lorrena manteve o olhar fixo nele; pois quando Sam olhas­se de volta, ela queria que ele visse que foi sincera. Que não eram apenas mais mentiras acumuladas na montanha que ela lhe dissera durante seu relacionamento.

E eu também vi, Sam, como você era com seu filho. Com seus amigos e os outros... e, acima de tudo, comigo. Você me fazia sentir tão bem, Sam. Desejada. Amada. Nunca me senti assim. Não desse jeito. — Mas, quando Sam tornou a olhar para ela, Lorrena viu porque ele tinha desviado o rosto. Seus olhos estavam úmidos, lágrimas brotavam.

Talvez seja porque eu realmente amava você — disse ele.

Eu sei... — Ela fechou os olhos por um segundo, torcendo para que o chão a engolisse pelo que tinha feito. Lorrena sentiu as próprias emoções transbordando e engoliu de volta as lágrimas. — Foi por isso,

Sam, quando eu vi tudo aquilo, quando eu conheci você mais a fundo, por isso eu também passei a...

Mas ele estendeu a mão e pressionou dois dedos delicadamente so­bre os lábios dela.

Não fale... não falei

Por um momento houve silêncio, apenas o som de suas respirações, os olhos de Sam vasculhando desesperadamente os dela. Lorrena sentiu-se repentinamente vazia por dentro, sem saber o que mais podia dizer a ele, que parte de sua alma ainda restava para desnudar e convencê-lo. Mas o que ela esperava? Por 18 meses, fizera parte de uma conspiração para desfazer a vida dele. Achava que podia remendar tudo aquilo numa conversa de 20 minutos? Ela então se lembrou de algo que seu pai dis­sera anos atrás. "Um presente às vezes pode ajudar a provar o seu amor. Não precisa ser caro, mas algo que deixe claro que foi bem pensado. Uma coisa que a pessoa realmente queira, que realmente signifique algo para ela." Lorrena não conseguia pensar em nenhuma outra coisa que Sam desejasse mais.

Eu fiz uma cópia — disse ela.

O quê? — Ele a encarou como se isso fosse outra mentira, um truque; ou talvez ele não tivesse ouvido direito.

Quando descobri que eles roubariam A profecia de você, depois de ver tudo que dedicou ao livro, sabendo o que significava para você... eu fiz uma cópia num cartão de memória. E guardei num lugar seguro.

Os olhos de Sam continuavam perscrutando os dela, como se, de to­das as coisas que ela dissera até então, esta fosse a mais difícil de acreditar.

Lorrena tirou do bolso uma chave, inclinou-se para a frente e abriu as algemas, beijando-o delicadamente no rosto ao se afastar. E ali ela percebeu que algo nos olhos de Sam finalmente se abrandou, ajustando- se aos acontecimentos. Talvez ele estivesse pronto para a próxima etapa; talvez.

Mas, para acabar com tudo isso, Sam — disse Lorrena —, temos que pegar esta cópia. Deixe-me explicar.

 

                                             Capítulo Trinta e Cinco

— Encontre, encontre... Encontre o cara!

Apesar do puxão de orelha — que diabos, ele já estava acostumado a passar por isso com Grayford —, Washington sentiu certa satisfação ao ver Grayford suando frio e perdendo a cabeça. Ser o Sr. Sofisticação-e-nervos-de-aço — ou melhor, nervos de gelo — era a essência de Grayford. Era o tipo de sujeito que Washington imaginava capaz de re­mover seu coração cirurgicamente com você ainda vivo e, sem piscar ou derramar uma gota de suor, mostrá-lo para uma conversa casual. "O coração não é uma coisa fascinante?"

Nada jamais abalava Grayford. Nada exceto isso.

Pelo menos a satisfação amenizou um pouco a humilhação pela chi­bata verbal de Grayford. E ele também desfrutou de uma pequena vin­gança quando repassou a mensagem de Grayford para sua equipe.

— Os poderes do alto se pronunciaram. E as instruções são bem detalhadas e complexas, então prestem bastante atenção agora. — Ele afinou a voz em três oitavas, numa imitação exagerada de Grayford. — Encontre, encontre... Encontre o cara!

Isso provocou algumas risadas. Depois sua expressão ficou mais gra­ve ao tratar dos detalhes de como cumprir as ordens, ou seja, bancando o Sr. Inteligente quando Grayford era o incompetente. Realinhando a balança após o sermão de antes.

Dadas as ordens, ele se dirigiu ao escritório ao lado e sentou-se ao computador para fazer o relatório de toda a lamentável saga do alerta em Albany que Grayford pedira.

Uma vez encontrados todos os possíveis endereços de Tynnan, emi­tir um alerta parecera a melhor maneira de lidar com o caso, se não a única. Sua unidade era pequena: eles só podiam vasculhar quatro en­dereços ao mesmo tempo, no máximo. Principalmente com um dos sete sendo a mansão de Vince Corcoran em Lakefield — sem dúvida protegida como o Fort Knox, e consequentemente exigindo o dobro de homens para atacar. E, se não coordenassem as batidas, as notícias se es­palhariam de um lugar ao outro como um incêndio. Eles simplesmente ajudariam Tynnan a estar sempre um passo à frente.

Não, um alerta geral era a melhor opção, na condição de que todos atacassem ao mesmo tempo. E ele estava na metade dessa explicação quando Grayford deu seu escândalo.

Oregon foi o primeiro a ter notícias, pouco mais de uma hora depois.

A polícia em Albany definiu três lugares possíveis onde eles po­dem ter perdido Tynnan. Duas ruas onde ele talvez tenha tomado um táxi e um edifício-garagem. A garagem e uma das ruas têm câmeras, mas se ele foi para a outra rua estamos sem sorte.

Quanto tempo até que nos mandem as fitas?

A princípio disseram amanhã de manhã por portador, mas eu disse que não tínhamos tanto tempo. Eles então farão cópias e transfor­marão as imagens em JPEGs, depois mandarão os arquivos por e-mail direto para o meu computador. Devem chegar em uma hora.

Bom trabalho.

Após sete clipes de papel destruídos, foi a vez da cabeça de Cali apa­recer na porta, mas, por sua expressão, parecia trazer más notícias.

Tivemos outra invasão no sistema.

Quando?

Há apenas 15 minutos. — Washington arqueou uma sobrancelha como quem pergunta: por que não fui informado imediatamente? Cali ergueu a mão. — Passei esse tempo tentando descobrir com que esta­mos lidando.

É o mesmo cara da última vez?

No fim da tarde anterior, eles sofreram o primeiro ataque, com Cali chegando às raias do lirismo pela inteligência do hacker. "Um code-breaker do caralho! As poucas pegadas que deixou evaporaram em algum servidor remoto do Suriname. Quem quer que seja, é bom. Não vamos conseguir rastrear esse sujeito".

Não, esta é a questão. — Cali deu de ombros. — Nenhum code-breaker desta vez. Quem quer que seja entrou direto com um código conhecido, e não foi o mesmo usado pelo hacker de ontem. Os últimos três dígitos eram diferentes. — Cali explicou que os códigos de acesso tinham sempre os mesmos 14 dígitos iniciais, mas variavam nos três últimos. — Muitos agentes acham que são os mesmos 17 números para todo mundo, mas não são. Os três últimos, na verdade, identificam exa­tamente quem está acessando o...

Washington interrompeu com impaciência.

Poupe-me do jargão nerd, pode ser? Vamos ao ponto: quem você acha que acessou o sistema?

Você não vai gostar.

Não, é claro que não. — Washington o encarou duramente. — E vou gostar menos ainda com seu arremedo de suspense.

Quando Cali disse quem achava que era, Washington sentiu um aperto no peito.

Não é possível. — Ele balançou a cabeça. — Impossível.

".. para que me reconheçam quando eu me revelar Divino através de ti ante os olhos dele. Eu invocarei uma espada contra Gog em todas as mi­nhas montanhas... toda espada irá contra seu irmão. Eu passarei julga­mento sobre ele com peste e derramamento de sangue; derramarei sobre ele torrentes de chuva, granizo e enxofre fervente e sobre suas tropas e sobre as muitas nações com ele."

Kenny Verbeck recostou-se na cadeira e esfregou os olhos. Ele co­meçara a assistir aos sermões de Matt Calvinson no fim da tarde ante­rior, foi para casa e teve tempo apenas para pegar um café rápido antes de se instalar no escritório de casa para a segunda rodada: o sermão de Calvinson ao vivo às 19 horas. Entre encher novamente a caneca de café e uma prova rápida do jantar que sua esposa deixara cozinhando no fogão, ele conseguiu assistir a maior parte. De qualquer forma, estava gravando: o mais importante era a seqüência, como a retórica se desen­volvera nas últimas semanas, e ele ainda tinha quatro gravações para assistir antes dessa.

Então pela manhã ele se instalou para a tarefa vital de assistir aos sermões de ponta a ponta, e já tinha completado setenta por cento quando Hank ligou. Verbeck ficou feliz com a interrupção. Doze horas de inferno e danação com Matt Calvinson, com Satã, demônios e anjos trombeteiros como elenco coadjuvante, era demais para qualquer um.

Consegui abrir mais cinco dos arquivos do 101 — disse Hank.

Ah, ótimo. — Hank dissera que tinha esperança de conseguir decodificar mais arquivos. Mas quando revelou o que havia encontrado, Verbeck não sabia se deveria estar tão satisfeito. — Obrigado.

Hank mandou os arquivos para ele, e Verbeck passou meia hora len­do, tomando notas enquanto avançava, antes de voltar a assistir ao resto dos sermões de Calvinson.

".. e vieram da boca do dragão e da boca da besta e da boca do falso profeta — espíritos de demônios fazendo sinais milagrosos, e eles vão aos reis de todo o mando de modo a reuni-los para a batalha no lugar que chamam Armagedom..."

Verbeck massageou as têmporas. Ele percebia um ritmo e uma ca­dência deliberados nos discursos mais recentes. Havia anos que Calvin­son falava do "Fim dos tempos" e do "Arrebatamento" em termos vagos; mas agora era como se ele tivesse a certeza de que aquela hora estava chegando. Seu sorriso cada vez mais arrogante, satisfeito, como quem diz: eu sei de algo que vocês não sabem!

"... E agora estamos vendo todos estes eventos se abatendo sobre nós enquanto testemunhamos as palavras do falso profeta em Teerã, Bahsem-Yahl, também convocando seu povo para as batalhas finais no Vale de Jeosafat, em Damasco... como estava escrito..."

E agora os arquivos do 101 davam contexto e substância ao caso, explicavam exatamente por que Calvinson achava que sabia de alguma coisa.

Verbeck voltou às suas anotações e marcou um dos nomes: Adel Al- Shaffir. Era a terceira vez que o nome aparecia, e provavelmente era o contato mais viável. De acordo com os arquivos do 101, ele estava em contato com os outros e, por sua vez, poderia alertá-los se achasse que era a melhor ação a tomar.

Mas a outra ligação urgente que Verbeck precisava fazer apresentava um dilema maior. Não fazia sentido falar com seu chefe e, depois, com o chefe da NSA a respeito. Grayford tinha uma patente equivalente, logo seria um impasse. Bastariam algumas semanas de ameaças vazias sobre "inquéritos internos" e já seria tarde demais. Não, ele tinha que chegar mais alto, e rápido. Porém havia apenas uma pessoa conhecida de Ver­beck que conseguiria ter a atenção do presidente num estalar de dedos.

Conforme prometido, Max Redmond do GCHQ deu retorno a Adel na manhã seguinte com desenhos digitais do suposto rosto de Al Hakam sem barba e bigode.

Ou só de bigode, se você preferir.

No mesmo minuto em que chegaram, Adel os passou adiante para Isam e Siraj.

Busquem resultados possíveis nas câmeras de segurança de todos os aeroportos de Londres e no Eurostar.

Qual o período? — perguntou Isam.

Quarenta e oito horas depois do ataque. Se não encontrarmos nada, vamos repensar: aumentar o período ou checar outros aeroportos regionais.

Siraj encontrou um resultado uma hora depois do almoço. Aeropor­to de Heathrow.

Adel foi até o computador de Siraj enquanto ele repassava a seqüência.

Nós o encontramos primeiramente aqui, no corredor do Termi­nal Quatro. Depois aqui: esta é a imagem mais clara.

Siraj aproximou a imagem, e Adel concordou lentamente. Não restava dúvida, era quase exatamente igual à foto do computador: terno azul-marinho, camisa branca, gravata. Sem o reconhecimento facial, ele se mescla­ria à multidão de empresários em viagem e seria impossível encontrá-lo.

Aqui nós o perdemos por um tempo... Depois o encontramos novamente aqui, entrando na fila da KLM.

Adel olhou para o horário no canto: 21h08. Noventa minutos depois do ataque a Akram.

Certamente não perdeu tempo para se enfiar no primeiro voo para fora daqui. — Al Hakam era um dos tenentes mais importantes de Abu Khalish; eles nunca tinham chegado tão perto. Adel olhou para a imagem congelada. Depois de quatro anos de perseguição a Khalish, pa­recia quase surreal. — Contate a KLM e descubra para onde esse vôo ia.

Não precisa. — Siraj sorriu. Ele digitou algumas teclas a mais com destreza e apareceu outra tela em que o guichê do check-in aparecia de frente. Siraj aproximou a imagem até que a placa no guichê ficasse clara: KLM. 22h15 para Amsterdã Schiphol.

Adel voltou à sua mesa e telefonou para seu equivalente no TAME9 na Holanda.

Hayyan. Um peixe grande acaba de cair no seu lago. E pode ser que ele ainda esteja lá.

Impossível! Ela estava morta... morta!

Ele ficara plantado junto de Ohio e ambos observaram por vários minutos, sem ver nenhum movimento ou onda na superfície do lago à frente.

Tinham recebido as fitas da câmera de segurança da polícia de Al­bany havia meia hora, e começaram a examiná-las. Viram Tynnan pas­sar agilmente pela visão da câmera da rua; não havia nenhum táxi à vista naquele momento. Eles se concentraram no edifício-garagem, seguindo seu progresso escada acima: falando ao telefone no meio do caminho, olhando sobre a mureta quando chegou ao terceiro andar, desligando segundos depois. Ele parecia cada vez mais agitado, e por fim começou a correr.

Eles pensaram que tinham determinado exatamente onde ele de­saparecera, bem na hora em que entraria no carro, um Dodge Caliber cinza, mas a visão era quase inteiramente bloqueada pelo Pathfinder de vidros fumê ao lado. Tudo que conseguiram ver na câmera foi o relance de um braço se agitando, um indicativo de luta atrás do carro.

Viram o carro de polícia entrar na imagem e passar lentamente pelo andar. O vidro do Pathfinder era escuro, não dava para ver nada por trás, mas a aposta de Washington era de que eles já tinham colocado Tynnan no banco de trás, abaixado e fora de vista.

O Pathfinder saiu logo depois que o carro de polícia desapareceu do quadro. O carro de Tynnan agora estava perfeitamente visível. Pelo vidro claro, dava para ver: nada de Sam Tynnan.

Eles retrocederam as fitas para a hora em que Sam Tynnan chegou com seu Dodge Caliber e estacionou no quarto andar, 34 minutos antes. Oitenta e dois segundos depois, pelo horário da câmera, enquanto Tynnan descia pelo elevador da garagem, o Pathfinder aparece e estaciona a seu lado.

Ao ver a porta do Pathfinder se abrindo e um jovem de cabelos louros arrepiados saindo, Washington suspirou audivelmente de alívio. Não era Lorrena! Seus olhos não o enganaram. Ele realmente viu Lorre­na se afogar no lago.

Depois, a alguns passos de distância do Pathfinder, outra pessoa apa­recia na imagem e começava a conversar com o arrepiado: mulher, loura platinada, magra. Washington deduziu que ela chegara em outro carro, fora da visão daquela câmera. Mas havia algo nela, na maneira como se movia, que chamou sua atenção. E, quando ela se virou e começou a ca­minhar junto ao arrepiado em direção à câmera, ele teve quase certeza. Quase.

Congele esta imagem e aproxime! — instruiu ele a Cali.

E cada vez que a imagem ficava maior, 5 vezes, 10 vezes, 20 vezes — até que aquele rosto preenchesse toda a tela —, Washington sentia marteladas em seu peito: não, não... não!

Washington fechou os olhos por um segundo para se recompor. Ele então pediu a Cali para retroceder ao momento em que o Pathfinder aparece pela primeira vez, para congelar e aproximar a tela novamente sobre a placa.

Minutos depois, Washington fez a ligação — talvez isso tornasse a vingança mais pessoal, uma espécie de exorcismo — e o número da pla­ca foi divulgado na rede em conexão com o alerta contra Tynnan; além de duas fotos de Lorrena Presutti/Perello, ou qualquer que seja seu nome agora: uma loura, outra de cabelos escuros.

Podem estar viajando juntos ou separados. Aproximem-se com cautela. Ambos estão armados e são altamente perigosos.

 

                                         Capítulo Trinta e Seis

— Tudo acertado. Union Bank em Lancaster, New Hampshire — con­firmou Mike. — Barry e Phil vão encontrá-lo lá... bem, a uma distância discreta. Três e meia, você acha?

Isso, três e meia. — Esse era o tempo que Lorrena dissera que levaria desde a casa de Chris em Binghamton. Olhando para o lado en­quanto dirigia, ela gesticulou. — Mais ou menos.

Eles devem chegar um pouco antes de você. Se não, espere. Não corra o risco de entrar sem que eles estejam lá para vigiar sua retaguar­da. É arriscado demais! Eles não vão demorar.

— Tudo bem, mas não por muito tempo. Ficar sentado em frente a um banco com o motor ligado e um alerta ainda rolando contra "este que vos fala", provavelmente não é a coisa mais inteligente a se fazer.

Mike riu.

Você anda assistindo a muitos filmes do Dirty Harry. E, Sam... Merda para você, ok?

Sim. E, se tudo der errado, sem dúvida alguém vai garantir que eu acabe nela mesmo.

Uma hora antes de sair para Lancaster, tomando algumas xícaras de café forte, Lorrena dera detalhes e explicara por que pegar a cópia do cartão de memória podia mudar tudo.

Como eu disse, pessoas do meu nível não sabiam de muita coisa. E isso foi mudando e evoluindo conforme as coisas progrediram. De­pois daquele primeiro estágio, quando me disseram que seu manuscrito podia trazer conseqüências catastróficas para a relação entre o islã e o Ocidente, o estágio seguinte chegou depois que eles já tinham roubado. "Ok, vocês já têm o que querem", eu disse. "Por que a operação não se encerra e vocês não me tiram daqui?" Eles disseram que eu precisava ficar por perto para garantir que você não tivesse cópias ocultas ou que não pensasse em reescrever tudo. Ou seja, estar em contato constante com a falsa quadrilha árabe; pois, se você de repente virasse uma ame­aça, eles seriam os caras que o executariam, e não a equipe principal de Washington. Tudo perfeitamente explicado depois como um ataque terrorista.

Lorrena fechou os olhos por um segundo ao lembrar, e respirou fundo.

No final, quando partes do seu manuscrito começaram a aconte­cer na vida real com os atentados às mesquitas, eles revelaram a bomba final: que aquilo que você havia escrito era um engenhoso cenário para expor Khalish e que agradou a certos poderes — Lorrena abriu aspas com os dedos —, como "uma oportunidade boa demais para não testar na vida real". Do jeito que Washington falou, não ficou claro se eles me contaram naquele estágio porque os eventos na minha área geravam aquela "necessidade de informar", ou se ele mesmo tinha acabado de ser informado. Então eu não sei dizer, juro por qualquer coisa, se este era o plano desde o início. — Lorrena deu de ombros. — Ou se era só uma questão de quem ficava sabendo, inclusive Washington.

Então, por que ter esse cartão com A profecia vai resolver tudo. isso?

Porque essa era a maior preocupação, principalmente no estágio de Abu Khalish. Se você conseguisse reaver uma cópia de A profecia em algum lugar, ou reescrevê-la, sei lá, se de repente ela surgisse para o público geral, Khalish saberia que tudo que tinha a fazer era conseguir que alguém como Bahsem-Yahl fizesse uma declaração de oposição e a pressão não estaria mais sobre ele.

E agora que eleja fez essa declaração?

O efeito é diferente, mas o resultado é o mesmo. Imagine só a reação do grande Bahsem-Yahl subitamente informado de que não passa de um coadjuvante num manuscrito de ficção que um departa­mento da CIA decidiu levar a cabo? Ele certamente evitaria "grandes proclamações" dali em diante, a não ser que quisesse levar mais uma torta na cara. E, uma vez que ele se retirasse com o rabo entre as per­nas, o furor corrente também diminuiria, sem dúvida. — Lorrena fez uma careta. — Claro, ele certamente tentaria pintar a situação como parte da "grande conspiração dos demônios ocidentais", mas cópias de A profecia para alguns grandes veículos de imprensa, incluindo datas de criação e edição, todas registradas naquele mesmo cartão, isso o si­lenciaria bem rápido.

Mike ficara incrédulo quando Sam lhe relatara os últimos aconteci­mentos: Jesus, Lorrena ainda está viva? Tem certeza de que pode confiar nela? Que ela não está enrolando você novamente?

Você consegue dar alguma outra boa razão para ela me contar tudo isso? E se expor desta forma para pegar o cartão? — Mike não soube responder, e assim eles fizeram planos: eles encontrariam Barry e Phil no banco como reforços. O banco onde, seis meses antes, Lorrena depositara uma cópia; tudo, menos as quatro páginas que ele escrevera no último dia.

Mike foi o único a quem Sam telefonou. Lorrena foi contra ligar para Emile em Londres antes que tivessem o disco.

Eu entendo que você confia nele. Mas ele ainda é parte da mesma grande rede de segurança. Talvez não seja o intento dele, mas bastaria uma palavra para a pessoa errada em seu departamento e nós daríamos de cara com um comitê de recepção nos esperando no banco. Uma vez que tenhamos o cartão, aí é diferente. Aí já temos nossa carta na manga.

Lorrena dirigia. Chris foi atrás com seu laptop.

Ele nos manterá informados se a polícia ou Washington estão na nossa cola.

As plantações e os morros verdes de Vermont passavam do lado de fora; uma placa dizendo Claremont 5 quilômetros, logo à frente.

Mas uma parte da história de Lorrena não fazia sentido, Sam percebeu.

Se você sabia de tudo isso, por que não pegou o cartão antes?

Por mais que eu odeie Washington pelo que ele fez comigo, e com você... Acha que eu desejaria estragar uma operação como esta? A possibilidade de que Abu Khalish se entregasse... Todas aquelas vidas salvas? — Lorrena apertou as mãos no volante. — E o pronunciamento de Bahsem-Yahl aconteceu há quanto tempo? Cinco, seis dias? Só agora, vendo os protestos ganhando vulto nas ruas, é que parece improvável que Abu Khalish se entregue. Ele só vai ficar na dele e assistir como tudo se desenrolará entre o islã e o Ocidente.

Sam concordou.

Isso certamente mudou tudo. A pergunta é: será que não fazia parte do plano desde o princípio? E, se sim, por quê?

Não sei, Sam. Como pode ver, eu também fui enganada; apenas não no mesmo grau que você. E levei até agora para descobrir só esta parte, imagine todo o resto. São coisas que talvez nenhum de nós jamais fique sabendo.

— Recebi dois avisos de reconhecimento de câmeras daquela placa: Bellow Falls e Claremont. Ambos na Highway 91, Vermont.

Washington assentiu e seguiu Indiana até seu computador, olhando por cima do ombro do outro, enquanto ele traçava uma rota com o dedo num mapa do Google na tela.

Qual foi o último aviso a chegar? — perguntou Washington.

Claremont, gravado há apenas sete minutos. Bellow Falls, 23 mi­nutos. Então eles estão indo para o norte.

O que tem mais para cima?

Indiana subiu o mapa.

Hanover, St. Johnsbury, Lyndonville e Lancaster.

Washington estudou o mapa por um segundo.

Ok. Vamos entrar na área. Qual é a pista de pouso militar mais próxima que podemos usar?

Indiana fez uma busca.

Nada próximo. Mas há uma pista particular ao sul de St. Johns­bury. Deve ser possível pousar um C-37 ou um Bombardier, apertando um pouco.

Minutos depois, todos os preparativos estavam prontos: um Bombardier CL-605 estaria esperando com o tanque cheio para decolar da base da força aérea de Langley. Cali se assegurou de que tinha tudo que precisava para manter comunicações e rastreamento com seus dois lap-tops e, após o último colete de Kevlar vestido, o último cadarço amar­rado e o gatilho do último rifle checado, a equipe dos 12 homens de Washington estava a bordo de dois Hummer H3 em furiosa disparada rumo à base.

 

                                   Capítulo Trinta e Sete

— Você não devia ligar para cá! É arriscado demais. — Adel ofegava ao falar, não só pela surpresa, mas por sair de casa correndo no segundo em que reconheceu a voz. Ele começou a subir a rua.

Recebi a mensagem que você deixou sobre Al Hakam — disse o interlocutor.

Sim. Mandei no caminho do trabalho para casa, quando podia falar. Mas essa é toda a notícia que tenho. Você não devia ter retornado a ligação.

Do outro lado, o homem ficou ern silêncio por um momento. Era noite e o mar atrás das palmeiras parecia agora uma sopa negra, sua única luz vindo de uma lua enevoada e alguns barcos de pesca no hori­zonte. Os distantes pontos de luz de suas lanternas brilhavam na água para atrair peixes.

Esse era o nosso acordo desde o princípio. Você me manteria informado.

Sim, claro. E foi o que eu fiz. Mas, no momento, isto é tudo que há.

Outra pausa carregada.

Você me informará no segundo em que houver mais informações sobre Al Hakam? Se eles se aproximarem?

Sem dúvida. É claro.

Então, como sempre, deixarei tudo novamente em suas mãos efi­cientes. Salaam.

Salaam.

Era a segunda ligação do dia que abalava Adel. A primeira, de Kenny Verbeck, da NSA, aconteceu uma hora antes que ele saísse do trabalho, e desde então Adel passara cada minuto fazendo malabarismos com as palavras em sua mente, como um monte de batatas quentes.

Estamos examinando os arquivos de outro departamento em re­lação a Bahsem-Yahl. E seu nome aparece nesses arquivos, junto com um tal de Sam Tynnan e um Jean-Pierre Bourdin. Ambos lhe são fami­liares, não?

Sim. São sim. — Verbeck obviamente já sabia.

Veja bem, nós acreditamos que uma operação originalmente di­recionada a capturar Abu Khalish tomou outro rumo em algum ponto.

E que rumo seria esse?

Verbeck recuou.

Ainda não temos certeza absoluta. Estamos juntando as peças. Mas basta dizer que, embora passemos a maior parte do tempo focando nos extremismos do islã em relação ao terrorismo, também há extremismos do outro lado, no cristianismo. "Profetas do Apocalipse", como são conhecidos. Alguns dos quais na verdade podem ser beneficiados pela intensificação do conflito entre o islã e o Ocidente, porque concretiza certas profecias bíblicas que eles creem ser verdadeiras.

Quando Adel tentou espremer mais de Verbeck, ele deu outro passo atrás.

Como eu disse, ainda estamos tentando desfiar o novelo, então não seria justo nem inteligente dizer mais do que eu já disse. Mas o mo­tivo principal da minha ligação agora: você obviamente sabe como Sam Tynnan foi usado e manipulado em tudo isso. Bem, a questão é que, pelo que estou vendo no arquivo, parece que você e Bourdin também foram.

Adel perdeu o chão.

De que forma?

Mais uma vez, não temos todas as especificidades. Mas acho que você precisa estar ciente disto: parte da informação que você vem rece­bendo talvez não seja confiável. Particularmente se está baseando deci­sões importantes nelas. Você tem contato com Tynnan e Bourdin?

Só com Tynnan. Mas não nos últimos dias. Emitiram um alerta sobre ele, e pelo visto ele se escondeu.

Sim, eu vi isso. Vou ver o que podemos fazer deste lado para ten­tar resolver aquela situação.

Tenho certeza de que o Sr. Tynnan ficaria muito agradecido.

Adel colocou certo peso nestas palavras. Ver o que podemos fazer...

tentar resolver... Soava tênue demais. Certamente não dava a impressão de que Verbeck tinha grande influência sobre o destino de Sam. O que levou Adel a se perguntar exatamente que tipo de influência ele tinha sobre qualquer outra coisa.

Mas, se você conseguir entrar em contato com qualquer um dos dois, seus relatos podem esclarecer exatamente quais informações são confiáveis e quais podem ter sido manipuladas por terceiros.

Adel estava sem fôlego. Ele vinha subindo a ladeira em ritmo cons­tante desde que saíra de casa, e agora, ao chegar ao topo, voltou-se para admirar a vista.

Estava no alto de Epsom Downs e à frente a terra descia suavemente. Nenhum penhasco ou queda dramática; vestidas no horizonte diante dele, apenas as luzes de Londres.

Ele costumava ir muito àquele lugar com Tahiya, principalmente logo depois que se conheceram. Eles almoçavam tarde ou tomavam drinques num bar local e depois corriam para chegar ao estacionamen­to pouco antes do anoitecer. Ali ficavam, no combalido Toyota Corolla de nove anos de Adel — tudo que ele podia comprar na época —, e assistiam ao pôr do sol e às luzes de Londres lentamente aumentando.

Essa foi parte do motivo para terem escolhido aquela área para mo­rar. Podiam desfrutar daquela mesma vista a uma caminhada curta de casa e, nos fins de semana, muitas vezes traziam as crianças.

Adel checara Verbeck no sistema e viu que ele era chefe de uma se­ção de tamanho considerável da NSA. Parecia legítimo. Mas e se Verbeck fosse parte da operação? Eles sabiam que Adel estava no caminho para impedir as últimas explosões nas mesquitas, então precisavam de algum artifício para desviá-lo. Alguma coisa que o levasse a desconfiar das in­formações atuais. E assim Washington coloca um de seus capangas para ligar para Adel.

Informações? Tudo que ele tinha para trabalhar era a lista de mesqui­tas de Tynnan e duas quadras de um Nostradamus moderno; o resto, ele agrupara pessoalmente, com alguma ajuda de Namir.

Outro rumo? Extremistas cristãos e profecias bíblicas? Profetas do Apocalipse?

Soava ainda mais ridículo e impossível que o manuscrito de Tynnan. Se Washington pretendia colocar um de seus colegas para confundi-lo, podia ao menos ter inventado uma história minimamente plausível...

Adel se deteve. É claro. Isto é, só podia ser o oposto: aquela era a úl­tima coisa que eles inventariam se quisessem fazê-lo acreditar. Ou seja, por conseqüência, isso significava que provavelmente era verdade.

As luzes à frente piscavam e cintilavam. Provocantes, fugidias. Algo que ele não estava vendo, logo ali, à beira de seu alcance...

Apocalipse? Os últimos domos de fogo... Saladino?

E finalmente, quando aquela luz o alcançou, a última peça faltando no mosaico, Adel sentiu a respiração congelar em seu peito. Mas ele ainda precisa checar para ter certeza. Começou a caminhada de volta para casa, às pressas. Em menos de vinte passos, ele já estava correndo.

Mike Kiernan tinha a xícara de café a meio caminho da boca quando viu a notícia. Ele tornou a baixá-la.

As crianças estavam na escola, e Cathy na aula de aeróbica. Paz. Mo­mento ideal para escrever. O pânico com Sam havia bagunçado sua agen­da de escrita nos últimos dias e ele precisava recuperar o tempo perdido.

Mas não podia simplesmente fechar as cortinas e ignorar o mundo lá fora. Não enquanto ainda estavam no olho do furacão.

Por fim, ele achou uma boa solução intermediária. O jornal local era incrivelmente tedioso: abertura do novo shopping, fechamento do asilo, líder da torcida do NY Giants demitida da equipe porque descobriram que ela havia posado nua.

Mike então deixava a TV ligada só com imagens, sem som. Uma novela interminável e descerebrada da vida real para ajudar a mente a mudar de canal para outra coisa. Qualquer outra coisa.

Ele teve um bom aproveitamento por duas horas, até que a notícia apa­receu: uma foto ampliada do rosto de Lorrena com cabelos escuros, como Mike a conhecera. E outra com uma peruca ou cabelos pintados de louro.

Mike aumentou o som e pegou o final da história. "... ligada ao sus­peito de terrorismo Samuel Tynnan. Vista pela última vez na região de Albany e ainda foragida." Houve outra imagem rápida do rosto de Sam para lembrar a todos antes do fim da notícia. "E hoje no Zoo Rosamund Gijford em Syracuse, uma surpresa para o panda recém-chegado." Mike apertou o botão de mudo.

Quando Mike falara com ele mais cedo, Sam assegurou que ficaria bem. "Os vidros do Pathfinder são bem escuros, mas, como precaução extra, pintei meu cabelo de louro, como Lorrena. De qualquer forma, nin­guém me verá. Ela entrará no banco sozinha. E Lorrena não está nem remotamente no radar de alguém. Ela morreu, lembra?"

Mas, de algum jeito, eles juntaram as peças, descobriram tudo. Mike pegou o telefone.

Adel estava sem fôlego. Tanto pela corrida de volta de Downs como pela busca frenética que fazia em seu computador. Dos últimos domos em chamas, A ordem de um será reversa, O outro substituído por um de ordem mais alta, Saladino será aturdido.

Adel originalmente descartara a segunda quadra de Jean-Pierre. Es­pecialmente porque contradizia a primeira, que parecia mais correta e o levara a um grande avanço com a teoria das "mesquitas equivalentes". O que também queria dizer que as duas últimas mesquitas em Damasco e Medina ainda seriam as mesmas.

Ele começava a se perguntar se "Saladino" não seria uma referên­cia a ele mesmo. Mais um árabe tentando combater as forças reunidas contra o islã; tentando salvar os últimos "domos de fogo". Mas, no fim, aturdido pelas armações deles, pela informação apresentada. Usado e manipulado? Parece que você e Bourdin também foram...

O fato dc Verbeck mencionar o "extremismo cristão" foi o que acen­deu a lâmpada. Saladino foi o lendário guerreiro que liderou o islã con­tra o assalto das forças cristãs nas Cruzadas. E uma de suas batalhas mais famosas foi o cerco a Jerusalém. Profetas do Apocalipse? Adel se lembrava de ter lido em algum lugar que Jerusalém também fazia parte das profecias finais deles. Começou a procurar no computador.

Em determinado momento, quando Adel digitava furiosamente, a cabeça de Jibril apareceu à porta. O computador doméstico de Adel também era usado regularmente pelas crianças em seus trabalhos esco­lares. Adel o dispensou com impaciência.

Agora não... agora não! — Não vê que seu pai está tentando salvar o mundo?

A cabeça de Tahiya apareceu logo a seguir.

Está tarde, Adel. Ele está indo para a cama. Só queria dar boa-noite.

Adel puxou Jibril para perto e o abraçou, provavelmente bem mais apertado que o normal.

Perdão... perdão! — disse ele, subitamente percebendo que a pressão o levara a ter uma reação exagerada. Ao sair com Jibril, Tahiya lançou a Adel um olhar que dizia: "Fizemos um pacto de que você nunca traria isto para casa. Talvez agora entenda por quê."

Adel voltou a fitar a tela.

Saladino reconquistou Jerusalém em 1187 após 88 anos de domínio dos Cruzados. Inicialmente, ele não tinha intenção de poupar os mora­dores europeus de Jerusalém, até que Balião de Ibelin ameaçou matar to­dos os muçulmanos na cidade e destruir os templos sagrados islâmicos do Domo da Rocha e da mesquita Al-Aqsa, caso não fosse concedida clemência.

Adel vasculhou as páginas dos "apocalípticos" que encontrara no Google, e encontrou a seguinte referência: "Mas, quando virdes Jerusa­lém cercada de exércitos, sabei então que é chegada a sua desolação... Por­que dias de vingança são estes, para que se cumpram todas as coisas que estão escritas... Porque haverá grande angústia sobre a terra, e ira contra este povo. E cairão ao fio da espada, e para todas as nações serão levados cativos; e Jerusalém será pisada pelos gentios..."

Damasco, como Adel agora via ao vasculhar o documento, se­guia Jerusalém na programação do "Fim do Mundo": as últimas duas cidades destruídas antes do Armagedom. Damasco era a penúltima mesquita na lista de Tynnan, mas ele não mencionava Jerusalém. A ordem de um será reversa... O outro substituído por um de ordem mais alta.

Ainda mais preocupante, segundo o que Adel lera naquelas páginas, é que muitos dos profetas do fim do mundo acreditavam que a destrui­ção do Domo da Rocha era necessária para a construção do Terceiro Templo, o evento que anunciaria a volta do Messias.

Ele fez uma última busca no Google para ter certeza: Jean-Pierre Bour­din. Vaticinador e estudioso de Nostradamus. Cinqüenta e três resultados, sendo que a página de Jean-Pierre era a sexta na lista. Havia um endereço de e-mail e um telefone no final da página. Adel pegou o telefone.

Demorou a ser atendido, depois de quatro toques. Adel disparou a falar diretamente qual a razão de seu telefonema.

Ah, você é o contato de Sam Tynnan? — confirmou Jean-Pierre.

Tentei falar com ele algumas vezes outro dia, mas ele não atende ao telefone. Estava começando a ...

Ele está com problemas no momento — interrompeu Adel. — Com sorte, tudo se resolverá em alguns dias. E uma longa história. Mas, em parte, é por isso que estou ligando no lugar dele. As duas quadras que você passou para ele... onde as conseguiu?

Jean-Pierre ficou repentinamente cauteloso, lembrando-se da reco­mendação de Vrellait para que não compartilhasse a informação com mais ninguém. O acordo de confidencialidade que assinara.

Eu... eu sinto não poder dizer. A origem das quadras é confidencial.

Então elas realmente vieram de outro lugar? — pressionou Adel.

É isso que você está dizendo?

Jean-Pierre se enrolou.

É... é uma situação delicada. Envolve uma promessa de discrição que fiz a terceiros.

Adel respirou fundo. Estava perdendo a paciência.

Escute... eu não preciso saber de onde elas vieram. Só que elas foram entregues a você por outras pessoas.

Elas?

Sim, foi sim, mas só a primeira quadra. A segunda é de minha autoria.

Ok. Só a primeira, você diz. A última quadra não foi entregue, sugerida ou enviada a você por nenhuma outra pessoa e de nenhuma forma? Tem certeza disso?

Sim. É toda minha, minha própria criação. — Jean-Pierre explicou que estava preparando um volume de profecias modernas de Nostradamus usando os mesmos métodos antigos. — Consultando as estrelas e os céus exatamente como o grande Michel teria feito há quinhentos anos. Pura ins­piração! — O tom de Jean-Pierre se aguçou com a empolgação. — Mas era exatamente por isso que eu queria falar com Sam. Veja bem, os três anticristos de Michel sempre foram vistos como Napoleão, Hitler e por fim Mabus. Mas ele também menciona o "novo Xerxes" em relação a Mabus, e agora com essa minha nova quadra acrescentando Saladino, temos também uma corrente de três líderes do que é hoje o islã: Xerxes, Saladino... e finalmente Mabus. Ou seja, neste contexto, três anticristos poderiam ter outro signifi­cado. Eu achei que ele, você, deveria saber disso... caso seja importante.

Entendo.

Embora certamente fosse um excelente chamariz para o tipo de livro que Jean-Pierre escrevia, nada ocorria imediatamente a Adel com aque­la associação; e ele já tinha conseguido o que queria. Adel agradeceu a Jean-Pierre pela ajuda e, no instante em que desligou, começou a discar novamente.

Domo da Rocha, Jerusalém. Adel rezou para não ser tarde demais.

 

LANCASTER, NEW HAMPSHIRE

Lorrena diminuiu a velocidade ao entrar na rua do banco.

Cinqüenta metros antes, Barry e Phil estavam estacionados em seu Buick cinza-escuro. Sam lembrou-se do dia em que conhecera Emile em Springfield. Receberam um cumprimento de cabeça de Barry quase im­perceptível ao passar. Como na outra ocasião, não deram nenhum sinal de reconhecimento que pudesse indicar que estavam juntos.

A cidade parecia calma. Só ficava agitada no inverno, a temporada de esqui e de chalés, ou no auge do verão, graças aos lagos próximos. Agora, estavam naquele estranho período intermediário, morto.

Lorrena escolhera Lancaster porque queria um lugar distante da área de Oneida. "Nenhum lugar ao qual Washington pudesse fazer uma associação." Ela só esteve em Lancaster duas vezes quando criança, em visitas ao tio de Syracuse, quando ele a levou à estação no fim de semana para suas primeiras experiências de esqui.

Ela parou 20 metros depois do banco na primeira vaga disponível. Deu uma olhada rápida no espelho e saltou do carro.

Me deseje sorte!

Ela não esperou pela resposta antes de bater a porta, então Sam só pôde desejar em pensamento enquanto a via entrando no banco pelo retrovisor lateral. Lorrena caminhava casualmente, tomando cuidado para não parecer muito apressada ou nervosa, depois parou um instante pa­ra se compor antes de entrar no banco. Então, sumiu de vista.

A espera era exasperante. Só uma pessoa entrou no banco ao longo dos minutos seguintes, e duas saíram — uma parecia bancária, pelo uniforme azul. Sam observava cada um como uma águia. A bancária, uma ruiva de cabelos curtos com 30 e poucos anos, entrou num café quatro lojas depois. O cliente que saiu, um homem barrigudo na casa dos 50 anos, foi na direção contrária até virar numa rua lateral a 100 metros de distância.

Depois tudo ficou parado por um tempo; ninguém entrou nem saiu.

Era incrível, irreal, que a qualquer minuto Lorrena fosse reaparecer com o cartão de memória e que tudo se ajeitaria, como ela dissera. Todo o pesadelo acabaria e ele retomaria os 18 meses de sua vida perdidos com A profecia. Com os olhos vidrados no retrovisor, acompanhando cada movimento na rua principal de Lancaster, tudo parecia quase bom demais para ser verdade.

Sam teve um sobressalto quando seu telefone tocou. Ele olhou para a tela: Mike. A única pessoa que ele atendera nas últimas 48 horas.

Sim? — Então, Sam sentiu o chão se abrir sob seus pés ao ouvir o relato de Mike sobre a notícia que acabara de ver.

O que quer que aconteça, não deixe Lorrena entrar naquele banco!

É... é tarde demais! Ela já está lá dentro. — Sam olhou no re­trovisor novamente, desta vez ainda mais nervoso, imaginando sirenes disparadas e carros de polícia virando a esquina a qualquer momento.

Há quanto tempo?

O quê? — Sam olhou para trás quando ouviu Chris murmurar alguma coisa. Ele acabara de ver a notícia on-line. Chris virou a tela do laptop para Sam. A foto com cabelos louros estava fora de foco, mas ainda assim era Lorrena, indubitavelmente. — Humm... três ou quatro minutos atrás. Não mais que isso.

Mike suspirou.

Isso passou há apenas um minuto. Talvez seja a primeira vez que tenha passado. Só podemos rezar que ninguém naquele banco tenha visto ainda.

Sim, acho que sim. — Sam engoliu em seco. Na sua frente, a ban­cária ruiva estava saindo do café com uma sacola contendo um sanduí­che ou um pedaço de bolo. — É tudo o que podemos fazer. — E depois que Mike desligou, foi exatamente o que Sam fez. Fechou os olhos e rezou em silêncio.

 

                                    Capítulo Trinta e Oito

CASA BRANCA, WASHINGTON, DC.

Carl Miller era uma lenda. Aposentado havia seis anos, ele fora chefe da CIA por tanto tempo — 22 anos para ser exato — que a maioria das pessoas achava que ele ainda estava no comando.

Os últimos dez anos de sua gestão não foram fáceis. Sofrendo de artrite, a doença finalmente atingira sua espinha e o curvara, torcera e deformara suas mãos e dedos, até que eles parecessem raízes de árvores.

Daí vieram os apelidos cruéis como "sapo torto" ou "perneta amar­go", além dos esforços para afastá-lo, alegando que sua doença o incapa­citava para o trabalho. Mais que por um reflexo verdadeiro das habilida­des de Miller, sucessivos presidentes resistiram à pressão, amplamente movida por ambição, para demiti-lo; para eles, Miller e a CIA eram si­nônimos. Para eles, tornou-se difícil imaginar outra pessoa exercendo o papel adequadamente.

Apesar dos apelidos e da reputação ácida que alguns lhe imputavam, Verbeck sempre achou Miller um dos chefes mais gentis e bondosos que já tivera, graças a uma temporada de quatro anos na CIA antes de ir para a NSA. Ele era também uma das únicas pessoas que Verbeck conhecia que podiam contatar o presidente a qualquer momento.

Eles esperaram apenas alguns minutos antes de serem conduzidos ao Salão Roosevelt por um oficial. Miller era magro como um graveto e tinha cerca de l,80m, mas sua coluna curvada lhe roubava alguns centí­metros. Ele caminhava com o auxílio de uma bengala.

O presidente estava sentado à cabeceira de uma longa mesa de mog­no. Ele indicou duas cadeiras à sua esquerda. Miller se sentou na mais próxima.

Após a troca de amenidades e de Miller perguntar pelo pai do pre­sidente — demonstrando quão longa era sua história com a família —, ele começou a expor seu caso, descrevendo os acontecimentos crono­logicamente: Bahsem-Yahl, os arquivos do 101, Grayford, Washington, Tynnan, Adel Al-Shaffir, Matt Calvinson — praticamente da mesma maneira que Verbeck lhe contara antes. Ele repassou os documentos relevantes do 101 enquanto falava, mas o presidente só deu uma olha­da em alguns trechos. A maior parte do tempo, seus olhos seguiram fixos em Miller.

Era uma performance definitiva. Ao longo dos anos, Miller apren­dera a usar a doença a seu favor. Uma careta de dor ou uma pausa sem fôlego, como se acabasse de ser atingido por uma pontada repentina, geralmente funcionavam com perfeição.

Houve um momento de silêncio quando ele terminou; o presidente estava organizando seus pensamentos ou incerto de que houvesse algo mais.

Finalmente:

E este segundo cenário de que você suspeita... Você acredita que isto já se encontra em marcha agora mesmo?

Sim. Neste exato momento. Não há tempo a perder... e todos os outros clichês batidos. — Miller forçou um sorriso.

Algumas perguntas mais para esclarecer a situação, e então o presi­dente se recostou, o olhar alternando entre Miller e os documentos. Ele apontou para os papéis.

Bem, não vou nem tentar fingir que eu não tinha conhecimento da primeira parte desta operação. Isso seria muito honesto de minha parte.

Desonesto — corrigiu Miller.

O presidente sorriu.

Só estava testando. Como eu dizia, você acharia difícil de acreditar. E passaria a mensagem de que eu não sei o que acontece nas minhas pró­prias redes de segurança. Mas você realmente está sugerindo que eu tinha conhecimento desta segunda parte e mesmo assim a aprovei?

Não. De jeito nenhum, senhor presidente. — Miller fez uma ca­reta de dor repentina. — Na verdade, é o contrário. Eu acredito que eles apresentaram apenas a primeira parte desta operação, sabendo que tinham grande chance de receber um selo de aprovação. Depois, em al­gum ponto, desviaram para o segundo estágio; provavelmente para onde pretendiam seguir desde o princípio. Foi o caso de começar de um jeito e terminar de outro completamente diferente. — Ele forçou um novo sorriso. — E, depois do Iraque, provavelmente todos temos uma com­preensão melhor de como isso pode acontecer.

O presidente assentiu, lentamente.

Mesmo assim, tudo ainda é apenas uma teoria, Carl. É isso que está dizendo? Uma miscelânea de pontos nestes arquivos do 101. Você ainda não tem fatos concretos?

Miller deu de ombros.

Ah, claro. Em algumas semanas ou meses, sem dúvida teremos os fatos. E provavelmente será tarde demais. E daqui a um ano provavelmente teremos um inquérito no Senado, no mesmo momento em que estaremos ocupados contando os destroços e os corpos das rebeliões islâmicas por ter­mos bombardeado suas mesquitas sagradas, e Bahsem-Yahl terá a desculpa perfeita para disparar aqueles mísseis que o senhor teme que estão em posse do Irã. Ou talvez Israel tenha uma crise de ansiedade e dispare primeiro! Se o senhor quiser esperar que tudo isso aconteça, tudo bem.

Estou ouvindo seu recado em alto e bom som, Carl. Mas há tam­bém outro lado: se eu interromper a operação, baseado, como eu disse, em pouco mais que uma teoria até o momento... poderíamos perder a me­lhor oportunidade que já tivemos de ver Abu Khalish sair com as mãos ao alto. Haveria muitas vidas salvas aí também, caso você tenha esquecido.

Sem dúvida. Cada operação tem um lado positivo e um negativo. E, ao longo dos anos, provavelmente passei mais tempo que a maioria pesando os dois. — Miller se moveu na cadeira, gemendo discretamen­te pelo esforço. — Mas acredito que esta já passou deste ponco agora. Depois da declaração de Bahsem-Yahl, a chance de Abu Khalish se en tregar é remota. Mais atentados a mesquitas e ele apenas se sentará para ver o que Bahsem-Yahl fará em seguida.

O presidente olhou de esguelha para os retratos na parede lateral, como se os anteriores pudessem inspirá-lo.

Então o que você está dizendo é que estou entre a cruz e a espada?

Miller simplesmente concordou com a cabeça e nada disse. Não se­ria a primeira vez, refletiu ele.

O presidente tomou um instante para reorganizar seus pensamentos.

Como sempre, Carl, você fez um bom trabalho em apresentar o caso. Mas preciso de algum tempo para considerar isso.

Tempo? É a única coisa de que não dispomos.

Eu sei. Entendo perfeitamente. — Mas, além do sorriso forçado do presidente, não houve grandes indicações de que decisão ele tomaria.

E por falar em cruz, ou crucificação, como ele gosta de colocar... talvez seja prudente manter certa distância de Calvinson quando tudo isso vier à tona, o que eu acredito que vai acontecer. Haverá um grande foco sobre as contribuições dele ao partido nos últimos anos, como se já não houvesse o suficiente.

Também buscarei aconselhamento sobre isso, Carl. Obrigado. — O presidente sorriu com dificuldade, começando a se cansar da máscara oficial.

Eles saíram e, com seus passos ecoando na ala oeste, Miller se diri­giu a Verbeck.

Fizemos tudo o que podíamos. Levamos o mais longe que podíamos, ou o mais longe que ousamos levar. Agora tudo está nas mãos de Deus.

Você quer dizer nas mãos do presidente?

Miller sorriu.

Só testando.

Durante o vôo, Washington organizou por telefone para que dois BMW X5 os esperassem no aeroporto.

Cali recebeu outra imagem de reconhecimento de placa logo antes do pouso.

No viaduto saindo da 91. Parece que estão indo para Lancaster.

No primeiro X5, Washington, Caii e Indiana estavam encarregados das comunicações. Nevada e Montana montavam guarda com rifles a postos, e Ohio dirigia. Os outros seis, com rifles e fuzis M16 prontos para a ação, seguiam no segundo carro.

Vinte e oito minutos depois, eles estavam na mesma saída da rodo­via 91, e o humor de Cali melhorou quando ele examinou o laptop.

Encontrei novamente. E dessa vez é uma leitura fixa. Parece que estão estacionados. — Ele virou a tela para que Washington pudesse ver. — Câmera em frente a um banco em Lancaster.

A que distância estamos?

Cali clicou para trazer o mapa de volta na tela.

Quarenta e três quilômetros.

Washington olhou para o velocímetro: 140 km/h. Estariam lá em 18 minutos.

Tudo no gerente bancário Colin Finch era compacto, pensou Lorrena: não era alto, l,65m no máximo, uma silhueta pequena e compacta; não era gordo, mas também não tinha um grama de músculo.

Seus papéis estavam em pilhas bem-arrumadas e compactas ao lado, seus óculos de leitura era finos e compactos, e ele na verdade os tirara de um estojo compacto para comparar o recibo dela com o registro aberto em sua mesa.

Ela sorriu quando Finch terminou de ler.

Parece que está tudo em ordem, Srta. Pres... Presutti. Foi pago adiantado por um ano, então não há taxas pendentes. — Ele aproximou o olhar da tela. — Ainda faltam cinco meses, na verdade. — Ele a enca­rou como se isso significasse alguma coisa.

Lorrena manteve o sorriso. Não significava. Como era a última meia hora antes do fechamento dos bancos naquele dia, ela teve que esperar dez minutos para ele terminar de atender o último cliente. Antes de en­trar, Lorrena conseguiu acalmar os nervos, mas, quando os segundos começaram a se alongar, ela começou a ficar tensa novamente. Lorrena olhou para o relógio.

Desculpe, Sr. Finch. Mas tenho pouco tempo para chegar a outro compromisso.

Sim. Sim, claro. — Ele enrubesceu levemente — não tinha sido suficientemente compacto com seu tempo — e rapidamente escaneou um documento que estava a seu lado. Ele passou a folha para ela. — Formu­lário de entrega. Assine e coloque a data no fim, e isso conclui o processo.

Ela seguiu as instruções e devolveu o documento.

Obrigada.

E a identificação?

Ela entregou seu passaporte.

Ele comparou assinaturas, Ok, mas seus olhos hesitaram ligeiramen­te entre a foto e o rosto de Lorrena.

Ela tocou o cabelo.

Dizem que as louras se divertem mais. — Sorriso.

Ele devolveu o passaporte.

Tudo parece estar em ordem. — Ele então soltou o envelope com o cartão de memória de outro formulário e o passou para ela. — Tudo terminado, creio. Não quero prendê-la por mais tempo que o necessário.

Eles ficaram de pé.

Mas, quando saíram do escritório de Finch e Lorrena viu uma das caixas olhando para ela — uma ruiva de cabelos bem curtos —, perce­beu que havia um problema.

A mulher a encarou duas vezes e parecia ter visto um fantasma.

Sr. Finch! — gritou a mulher, com pânico nos olhos. Ela acabara de ver a foto na TV do café e tinha certeza de que não estava enganada.

Só um minuto — retrucou Finch rispidamente —, estou me des­pedindo de uma cliente. — Finch abriu o portão para Lorrena. — Se eu puder ajudá-la no futuro, não hesite em entrar em contato.

Certamente — assentiu ela. — Obrigada. — Mas o sangue que pulsava em sua cabeça era tão quente que ela mal podia ouvir o som da própria voz.

Lorrena avançou para a saída o mais rápido que pôde sem demons­trar que havia algum problema, e ela já tinha percorrido dois terços do caminho quando Finch a chamou.

Srta. Presutti. Espere um segundo!

Lorrena continuou andando, mas deu uma olhada para trás. As ex­pressões nos rostos de Finch e da caixa diziam tudo que ela precisava sa­ber. Ela murmurou:

Nem pensar. — E correu os últimos metros até a porta.

Finch apertou o botão que travava a porta tarde demais. Lorrena ainda ouviu um apito quando a escancarou e escapou. O alarme soou um segundo depois, despertando Lancaster de sua calma habitual.

 

DOMO DA ROCHA, JERUSALÉM

O Domo da Rocha e a mesquita de Al-Aqsa compõem o terceiro local mais sagrado do islã, atrás de Meca e Medina. Também estão entre os mais bem-guardados. Não apenas pelo contingente de guardas muçul­manos do Waqf dentro do complexo do Monte do Templo, como tam­bém pela guarda israelense na sua entrada principal, a ponte Mughra- bi, e também no muro oeste, seu "Muro das Lamentações". Além disso, incontáveis câmeras de segurança ao redor do perímetro e da Cidade Velha mandam imagens diretamente a um centro de controle a menos de 1 quilômetro de distância, comandado por Choam Weisel.

A segurança do Domo da Rocha era uma questão muito séria para Is­rael. Entre outros motivos, porque um ataque ao Domo sem dúvida levaria o mundo islâmico a alegar um descuido proposital para que este ocorresse. As possíveis repercussões eram terríveis demais para se contemplar.

A primeira coisa a alertar a equipe de Weisel que monitorava as câ­meras naquela noite foi uma van cinza que parou junto ao muro no lado leste. Mikhel, o operador, assistiu por algum tempo sem alertar Wei­sel, mas o chamou desesperadamente quando quatro homens vestindo máscaras de esqui irromperam do carro.

Três correram até o muro, atirando ganchos no alto. O outro correu para o sul e rapidamente saiu da visão das câmeras.

Qual é a patrulha mais próxima do local? — ladrou Weisel.

Via Dolorosa, eu acho. — Mikhel pegou o telefone. — Alerto também os guardas da ponte Mughrabi?

Não. As patrulhas do Waqf verão o bando antes. — Com uma equipe da Via Dolorosa atrás e os guardas Waqf na frente, eles não chega­rão muito longe, pensou Weisel.

Mas, no meio da ligação, Mikhel congelou ao ver um jipe da polícia Sufa aparecer na mesma câmera e parando 20 metros atrás da van. Um policial ficou no veículo e outros cinco saíram, os dois da vanguarda já com armas em punho, gritando para os três que estavam a meio cami­nho de escalar o muro.

Mazel tov! — Weisel ergueu as duas mãos, olhando para o céu. — Em alguns dias, Deus lê a sua mente.

Quando Mikhel desligou, outro de seus homens, Yaniv, estendeu seu telefone para ele. Na linha estava um dos policias no muro leste.

Choam Weisel.

Como eu estava dizendo a seu funcionário, nós avistamos a van no quarteirão muçulmano. Achamos suspeito e decidimos segui-la. Que bom que o fizemos.

Certamente. — Yaniv trocara uma das telas para a imagem da mesma câmera, para que Weisel pudesse ver o policial falando de dentro do jipe, com seus homens ao lado ordenando que os invasores descessem do muro sob a mira de suas armas. Ele então se lembrou do quarto homem. — Ele correu para o sul. Nós perdemos a imagem quando ele passou por trás de umas árvores, então talvez vocês também não o tenham visto.

Ah, certo. — O policial olhou por cima do ombro. — Vamos conferir.

De repente, houve um clarão e uma pequena explosão cerca de 70 metros atrás do jipe. Todas as telas na sala de operações ficaram em branco.

O que aconteceu?! — berrou Weisel.

Hum... olá. Ainda estou aqui na linha. Parece que o sujeito que você mencionou derrubou a subestação mais próxima. Mas não se preo­cupe, vamos resolver. E os três no muro estão começando a descer ago­ra. — Ao fundo, Weisel ouvia os gritos exaltados em hebraico e árabe. — Eles não vão a lugar algum. Escute, preciso ir e ajudar meus homens. Ligo novamente em dois minutos quando eu tiver certeza de que tudo está cem por cento seguro.

Ah, sim. Claro.

Contudo, no silêncio que se seguiu, com todas as telas em branco na sala de operações e agora sem olhos e ouvidos para o que estava aconte­cendo, Weisel começou a ficar inquieto. E se eles não pegaram o último sujeito? E se não estiver tão seguro quanto pensam? Ele se dirigiu nova­mente a Mikhel.

Vamos seguir aquela sugestão afinal. Alerte os guardas da ponte Mughrabi. Esses caras podem precisar de reforços.

Mikhel começou a falar ao telefone, e Weisel viu seu rosto desmoro­nar em total incredulidade.

Hein? — Weisel se virou bruscamente quando um dos outros ho­mens tentou chamar sua atenção. Era Gabriel Chayat do Shin Bet na linha para falar com ele. Realmente, estava acontecendo de tudo naquela noite. — Peça ao Sr. Chayat para aguardar um minuto. Estou terminan­do outro assunto. — Pela primeira vez, o grande Anjo Gabriel teria que esperar. O que quer que estivesse acontecendo na ponte Mughrabi pare­cia subitamente mais intrigante.

Mikhel colocou uma das mãos sobre o bocal ao se virar para Weisel.

Você não vai acreditar nisso.

Adel ligou para o TAME12 em Tel Aviv, que por sua vez ligou para Ga­briel Chayat, chefe do Shin Bet, a agência de inteligência interna de Is­rael. Chayat fez três ligações: a primeira para mobilizar imediatamente uma unidade de choque Yassam com vinte homens, para o Domo da Rocha; a segunda para informar o ministro da Segurança sobre o que estava acontecendo e por quê; a terceira para avisar a Choam Weisel o que ele veria a qualquer momento em suas telas de segurança no Monte do Templo.

A terceira ligação aconteceu justamente quando a equipe Yassam, liderada por Avrim Talmi, invadiu a ponte Mughrabi, pouco depois que um dos guardas do portão atendeu à ligação de Mikhel. O segundo em comando de Talmi, Jaron, falou rapidamente com Mikhel e, ao saber do ataque no muro leste, comentou:

Com certeza estão todos de conluio. Não imagino que eles pen­sariam em dominar uma dúzia ou mais de guardas Waqf com apenas quatro homens. — Ele então colocou seu capacete, sua máscara integral de gás e visão noturna e seguiu na retaguarda de sua equipe, que já avan­çava num trote.

Talmi foi um dos primeiros a chegar à plataforma de pedra do Monte do Templo, com alguns de seus homens fazendo a proteção em cada flanco. À sua direita, estava a mesquita de Al-Aqsa, à esquerda, o Domo da Rocha. Os holofotes principais estavam desligados, mas luzes de emer­gência se encontravam acesas graças a um gerador, criando pontos bri­lhantes em meio à fluorescência verde de seus óculos de visão noturna.

Ele podia ouvir vozes, passos frenéticos, alguns tiros, mas só conse­guiu ver as pessoas por trás dos sons quando avançou mais 20 metros — o próprio Domo bloqueava a maior parte da cena.

Ali, tudo ficou claro. Dois homens corriam do lado mais distante do Domo, uns 10 metros à frente do outro. Alguns guardas no chão, e Tal­mi deduziu que fosse a patrulha Waqf, derrubada pelo gás que emanava de um recipiente próximo.

Um guarda Waqf não estava totalmente inconsciente e conseguiu erguer seu braço o suficiente do torso para atirar contra os dois homens correndo. Houve retaliação imediata, e dois tiros levantaram poeira à sua volta, mas o terceiro atingiu em cheio o ombro que segurava o rifle.

Eles dificilmente conseguiriam avançar um centímetro sem tomar aquela posição, considerou Talmi: do parapeito no topo da muralha les­te, alguns homens estavam atirando com rifles e havia cordas pendura­das no muro abaixo; os dois homens que atravessavam o pátio corriam freneticamente na direção daquelas cordas.

Talmi ordenou que dez de seus homens atingissem o topo do muro com uma saraivada de tiros, e que outros dois atirassem nos dois ho­mens correndo.

— Mirem nas pernas; queremos pegá-los vivos, se possível.

Ele já começava a correr, chamando Jaron para segui-lo — não sabia se podia chamar qualquer outro homem para aquela missão.

Os C4 tinham "pavios curtos"-, foi tudo que lhe disseram. Mas isso queria dizer quarenta segundos, um minuto, dois? A diferença agora seria crucial.

Um tiro passou zunindo por perto, e a resposta de seus homens foi ainda mais pesada. O som de sua respiração ressoava dentro da más­cara de gás, e o verde fantasmagórico da visão noturna sacudia em sua corrida.

E, neste momento, ele viu o plastique. Pacotes cinza pálido dos dois lados do pórtico em frente ao Domo da Corrente. Talmi se dirigiu ao mais distante — ele estava 3 metros à frente — e apontou o outro para Jaron.

Eles não checaram os cronômetros. Apenas deram alguns passos frenéticos e atiraram os C4 o mais longe possível. O pacote de Jaron alcançou as árvores do outro lado dos degraus daquele lado antes de explodir. Talmi não teve tanta sorte. Mal havia soltado o pacote de seus dedos quando sentiu a força da explosão queimando o seu cabelo e o ar de seus pulmões, e lançando-o contra a muralha do Domo da Rocha. Depois, tudo ficou escuro.

 

Tudo deu errado. Sam já estava convencido de que tudo tinha ido pelo ralo dois minutos antes de soar o alarme do banco, quando viu um carro de polícia parar a 40 metros deles, do outro lado da rua.

A primeira coisa que pensou foi que tinham identificado a placa do carro de Lorrena. Chris acabara de acessar o último alerta divulgado e viu a atualização dos detalhes sobre eles. Ou talvez alguém dentro do banco a tenha reconhecido e alertado a polícia. Contudo, o policial no banco do carona saltou do carro e entrou no Starbucks.

Sam soltou sua respiração.

Mas, quando o homem voltou com dois cafés e os dois continua­ram lá, bebendo, Sam mais uma vez se convenceu de que seu primeiro pensamento estava certo e que era tudo uma armação: Alerta terrorista. Aguardem reforços. Enquanto isso, bebam um café, ajam como se nada estivesse acontecendo. Tomem cuidado para não os assustar antes que a cavalaria chegue.

Os olhos de Sam disparavam entre os dois espelhos laterais, rezando para que o carro de polícia fosse embora e provasse que ele estava erra­do, ou que Lorrena saísse antes que os reforços chegassem e meia dúzia de sirenes se abatessem sobre eles.

O alarme do banco matou toda e qualquer especulação.

O motorista da patrulha ligou o carro num reflexo instantâneo; ele nun­ca imaginou que faria uma prisão tão fácil quanto esta. O alarme tocan­do, o flagrante da moça correndo para fora. E o tempo todo um carro de polícia do outro lado da rua. Rapaz, atualmente existem uns ladrões bem idiotas...

A única vítima foi a camisa de seu parceiro, com um pouco de café derramado na arrancada do carro. A sirene mal deu um giro completo e eles já estavam no banco, as duas portas escancaradas, armas na mira. A moça tinha acabado de abrir a porta do motorista do Pathfinder.

Mãos ao alto! Não se mova! — Ela congelou e ergueu as mãos, hesitante.

Havia dois homens dentro do carro, agora os policiais podiam ver.

Mantenham as mãos onde eu possa vê-las. Saiam! Saiam! — Eles também ergueram as mãos. A porta de trás se abriu.

Sim, nunca tinha visto uma prisão mais fácil. Tapinhas nas costas de todos na delegacia. Correção, agora um funcionário do banco surgia na calçada berrando alguma coisa sobre "suspeitos de terrorismo". Terroris­tas, hein? Talvez eles até ganhassem medalhas de honra por isso.

Mas outra coisa também deveria ter passado por sua cabeça. Ele percebeu de repente: estava fácil demais. Porém esse pensamento não lhe ocorreu até ele ouvir um som familiar às suas costas: duas armas sendo engatilhadas.

Agora sejam bons meninos e coloquem as armas no chão, deva­gar — disse Barry Chilton. — E ninguém sairá ferido.

Adel recebeu a ligação de retorno de Yoav Zahavi à 0h16, 2h16 em Is­rael, com um relato detalhado do que acontecera no Monte do Templo aquela noite.

... danos mínimos ao Domo da Corrente, mas três guardas feri­dos. Um no ombro, outro na perna; o terceiro infelizmente foi atingido por parte da explosão: queimaduras de segundo grau, três dedos perdi­dos, clavícula fraturada e um tímpano rompido.

Ele vai ficar bem?

Bem, ele vai sobreviver, se é o que você está perguntando — con­firmou Zahavi. — Do lado dos terroristas: um morto, um ferido.

Adel fechou os olhos, mal ousando torcer.

E esse vai ficar bem? Ele vai sobreviver?

Com certeza. Só um ferimento superficial na perna. Os médicos acham que estará liberado e pronto para falar em três ou quatro horas.

Sim, sim! Adel sacudiu o punho em direção aos céus.

Estou indo direto para aí. Estarei com você antes do nascer do sol. Não deixe ninguém interrogá-lo até que eu chegue!

Não tenho certeza de que isso é...

Yoav, isto é uma dinamite política — interrompeu Adel. — Estes homens são responsáveis pelos piores ataques contra templos islâmicos na história. Não importa o que Israel descubra sobre isso, os muçulma­nos nunca vão acreditar ou aceitar; muito menos Bahsem-Yahl, que se autointitulou porta-voz oficial para condená-los. Pior ainda: se o que aparecer não for favorável, Israel pode acabar levando parte da culpa. — Adel suspirou. — Acredite, é do interesse de Israel manter uma distância salutar deste caso. Só um muçulmano como eu poderia ser um media­dor confiável. Mesmo assim, talvez eu não seja considerado suficiente­mente alinhado, e pode ser necessário envolver as autoridades de outros países que tiveram atentados: Egito, Jordânia, Iêmen, e o resto. Mas ao menos estou em contato com eles e, até agora, minha mediação e meus esforços para rastrear os terroristas têm sido aceitos.

Já que você coloca dessa forma... — Havia um sorriso na voz de Yoav.

Desculpe-me por lembrá-lo de que seu país não está na moda entre o mundo muçulmano.

Você podia ao menos nos dispensar com um pouco mais de delicadeza. — Yoav riu. Pelo visto, ele teria que fazer outra ligação para Gabriel Chayat. — Vou ver o que posso fazer.

 

                                         Capítulo Trinta e Nove

— O que é isso que ela está passando?

Washington e sua equipe assistiram a toda a cena patética pela co­nexão ao vivo no laptop de Cali: o alarme do banco tocando, Lorrena correndo, os policiais aparecendo e sacando as armas, os dois bandidos chegando por trás deles. Os bandidos obrigaram os policiais a andarem alguns metros sob a mira de suas armas, apanharam e enfiaram suas pis­tolas no bolso. Finalmente, eles atiraram nos pneus traseiros da viatura e os dois carros foram embora: o Pathfinder liderando o caminho e o Buick cinza dos bandidos logo atrás.

Washington suspirou, balançando a cabeça.

Mas ele viu quando Lorrena tirou algo do bolso ao abrir a porta do carro, colocando de volta rapidamente quando a polícia chegou. Então, antes de sua partida, ela tirou o objeto do bolso novamente e o passou ao sujeito no banco de trás. Washington pediu a Cali para retroceder àquelas imagens.

— Ali. É aquilo, bem ali! Agora aproxime a mão esquerda. O que ela está segurando?

Aumentando dez vezes, o objeto já podia ser identificado, mas Cali aumentou 15 vezes e aplicou um filtro para amenizar a granulação para ter certeza.

Parece um drive portátil, um cartão de memória.

Washington sentiu como se uma faca se enterrasse em seu estô­mago. Ele pediu a Cali para passar o vídeo adiante, para ter certeza de que era aquilo mesmo que ela passara ao sujeito no banco de trás. Era. Tudo fez sentido naquele momento: por que visitar uma agência tão distante? Ela poderia ter sacado dinheiro em outro banco ou até num caixa eletrônico. Não, tinha que haver algo físico depositado lá. Algo importante.

Se isto for o que eu acho que é... — rilhou ele. Como se já não houvesse razão suficiente para dar cabo daquele grupo antes, e rápido, agora eles recebiam um impulso digno de um foguete. — Quão longe estamos deles agora?

Cali abriu o mapa novamente.

Estamos ali quilômetros de Lancaster e eles estão o quê? A não mais que 3 do outro lado da cidade?

Washington assentiu, lentamente.

Mas um segundo depois, Cali franziu a testa.

Agora, infelizmente, temos outro problema. Se eles têm um lap- top com internet sem fio no carro, podem mandar o que quer que exista naquele cartão para qualquer lugar imediatamente. — Ele viu o rosto de Washington caindo como uma pedra, e sorriu de soslaio. — Mas talvez eu possa fazer alguma coisa em relação a isso.

 

AMSTERDÃ, HOLANDA

O gerente Luke Haartman nunca imaginou que 12 homens enormes pudessem se mover com tanta destreza e tão silenciosamente. Como bailarinas.

Mesmo com o peso aumentado por rifles, capacetes, coletes e botas pesadas, eles subiram a escada de mármore sem emitir um som. De­pois de deixá-los passar pela porta principal do prédio, o gerente assistiu nervosamente sua subida.

Eram 3h30 e o prédio estava fantasmagoricamente silencioso, com apenas um leve murmúrio do trânsito da cidade lá fora. O som de um alfinete caindo se propagaria.

Al Hakam fora avistado pela primeira vez pouco antes de 1 hora por um agente disfarçado do MIVD, durante um encontro com um in­formante num café na região de Pijp. Ele ficou de olho em Al Hakam, observando por cima do ombro do contato, e, quando o viu saindo meia hora depois, deu uma desculpa para sair e parou um táxi para segui-lo.

Foi nesse momento que conseguiu ligar pela primeira vez e pedir re­forços. Mas ninguém havia chegado ainda quando ele viu o táxi à fren­te deixando Al Hakam num prédio residencial logo após Hoofdweg, a duas quadras do parque Rembrandt.

Era um apart-hotel para estada curta; eles falaram com o gerente e mostraram uma foto de Al Hakam para descobrir em que apartamento estava.

— B5, primeiro andar.

Eles então montaram a equipe de choque. A notícia chegou a Hayyan Melki do TAME9, mas, quando ele tentou falar com Adel para atualizá- lo, caiu direto na caixa postal.

O gerente estava disposto a deixá-los entrar — ele não queria ne­nhuma porta derrubada desnecessariamente. Por sua vez, a equipe de ataque não queria fazer barulho. Mas agora o líder o encarava com uma indagação quando se aproximava do alto das escadas. O gerente ainda estava plantado no mesmo lugar no saguão de entrada. Nenhuma pala­vra foi dita, mas o olhar do líder deslizando do gerente para a porta no primeiro andar deu o recado. Você não vai abrir esta também?

O gerente não estava tão seguro em abrir aquela porta. Terrorista? Parar logo ali do outro lado da porta enquanto uma chuva de balas voa­va nos dois sentidos ou uma bomba explodia não era uma decisão das mais sábias. Com um sorriso humilde, ele passou o cartão eletrônico da tranca para que o homem mais próximo o passasse escada acima.

O líder da equipe levantou uma das mãos enquanto outro posicio­nava o cartão na fechadura. Assim que ouvisse o clique da tranca, Al Hakam podia acordar; eles teriam que ser rápidos.

Na realidade, ele não se mexeu, apesar do burburinho de passos rá­pidos após a abertura da porta. Um dos homens encostou o cano de seu MP5 contra a bochecha de Al Hakam.

Al Hakam sentiu cócegas no rosto e, quando abriu os olhos, o cano da arma foi pressionado fortemente, enterrando sua cara no travesseiro. Cinco guardas da BBE estavam em seu campo de visão, e sem dúvida havia mais por perto. Ordens frenéticas foram passadas em holandês e inglês. Mas, na posição em que estava, ele só podia mover uma das mãos, a outra estava presa sob o travesseiro — a apenas dois centímetros de sua pistola, uma Browning HP.

Ele se lembrou do que leu sobre Abu Nidal, um de seus heróis: como ele dormia todas as noites com uma arma sob o travesseiro. Havia quase uma década que Al Hakam fazia o mesmo. Mas ele não conseguiria se erguer para usá-la, mal podia se mover com o cano do rifle esmagando sua cabeça — e então fez a única coisa que podia fazer: virou a mão es­querda nos dois centímetros finais e a disparou onde estava.

Uma bola de sangue explodiu da coxa do guarda e o tiro em resposta foi disparado num reflexo instantâneo: a bala atravessou a face de Al Hakam, arrancando dois dentes e parte da mandíbula esquerda antes de sair pelo outro lado.

— A história dos atentados a mesquitas e Bahsem-Yahl, é isso?

Sim. O que estou prestes a mandar jogará tudo isso no ventilador de uma maneira que você não vai acreditar. O maior escândalo desde Watergate. — Lorrena falava pelo celular com um fone de ouvido en­quanto dirigia. Chris procurara o número, discara e depois passara o fone para ela. — Por que acha que liguei para vocês, e não para o New York Times?

Eu fico grato, sem dúvida. É sempre bom passar por cima deles quando podemos. — O tom era positivo, animado, mas o subeditor que atendera na seção que cobria o Oriente Médio no Post, Gill Altmann, pensou: se ganhasse um centavo a cada vez que alguém mencionava Watergate, já estaria rico. A maioria destas ligações não levava a lugar nenhum, mas, em nome daqueles dois por cento que de fato tinham alguma relevância, ele agia como se cada ligação fosse a notícia do ano. — E como é mesmo o seu nome?

Lorrena. Mas eu não sou importante. O sujeito central nisso tudo, aquele cujo nome você vai querer colocar em letras garrafais na primeira página e fazer questão de grafar corretamente, é Tynnan, Sam Tynnan. — Lorrena deu uma olhada de lado para Sam e se perguntou se toda aquela propaganda era por si mesma: ela ainda tentava desesperadamente se redimir pelo que fizera com ele, tentava fazer as pazes. — Ele é o autor do manuscrito que enviarei dentro de um minuto. E que você verá, à medida que avançar nele, que é a base de noventa por cento daqueles eventos que estão acontecendo. — Quando Altmann lhe deu seu e-mail, Lorrena repetiu em voz alta para Chris. — Estará aí num minuto. Woodward e Bernstein ainda trabalham com vocês, por acaso?

Altmann riu. Essa ele ainda não tinha ouvido.

Vou começar a trabalhar nisso assim que chegar. Darei um retor­no em breve.

Chris digitou uma nota breve, "Conforme combinado com Lorrena", anexou o arquivo e clicou em ENVIAR.

Mas, quando o progresso estava em um terço, o e-mail congelou. Ele aguardou um momento, achando que podia ser uma sobrecarga na rede, e depois experimentou alguns comandos para tentar seguir com o envio. Sem resposta. Na verdade, nada em seu computador parecia responder mais. Alguns segundos depois, toda a imagem começou a se mesclar e derreter, as palavras escorrendo pela tela como caramelo quente.

Pelo retrovisor, Lorrena viu o choque no rosto de Chris.

O que houve?

Eu não sei. Não sei.

Eles então ouviram os primeiros ruídos das sirenes em seu encalço. Distantes, mas audíveis.

Adel recebeu a ligação de Yoav quando ainda estava no aeroporto de Heathrow, quarenta minutos antes de seu voo.

O Anjo Gabriel do Shin Bet pensa exatamente como você: ataques contra os locais mais sagrados do islã? É melhor que Israel sente no ban­co de trás desta vez, o mais distante possível. O prisioneiro o aguarda.

Assim, a primeira ligação de Adel depois de passar pela alfândega no aeroporto de Ben-Gurion foi para Hayyan Melki, que ligara e deixara um recado enquanto ele estava no voo.

Adel não sabia se ria ou se chorava quando Melki relatou os eventos daquela noite em Amsterdã.

... daí, infelizmente, a cara de Al Hakam acabou ganhando uma "ventilação".

E cá estava eu, prestes a dizer que não poderia interrogá-lo por­que estou em Israel. Ao que parece, ele não vai falar com ninguém nos próximos dias.

Cinco, dizem os médicos. Com a reconstrução da mandíbula, marcada para hoje ainda, e com os novos pontos de cada lado, pelo visto eles vão colocar uma prótese fixa em vez de contar só com arames.

Cinco dias? A prisão de Al Hakam chegaria aos jornais naquela mes­ma tarde e então Abu Khalish saberia que estava em risco. Ele mudaria de lugar imediatamente e apagaria todos os rastros dos últimos pontos e detalhes de contatos.

A trilha de Khalish terá esfriado até lá, mesmo que Al Hakam diga algo no fim das contas — suspirou Adel. A informação seria inútil. Estavam tão perto de Khalish, e ainda assim ele os driblaria.

Talvez tenhamos que ver a coisa de maneira filosófica. Al Hakam provavelmente não diria nada nesse período de qualquer forma. Já tive­mos muitos prisioneiros, e tenho certeza de que você também teve, que não abriram a boca por meses a fio, isso quando chegaram a falar um dia.

Verdade. — Mas ao levantar a mão para chamar um táxi em fren­te ao aeroporto Ben-Gurion, Adel teve uma idéia.

Eles encontraram o celular dele entre as coisas que tiraram do apartamento?

Não sei, vou checar o inventário. Por quê?

Se encontraram, há uma coisa que podemos tentar.

 

                                     Capítulo Quarenta

Dois camburões entraram na festa à nossa frente — anunciou In­diana. Ele havia sintonizado a freqüência do rádio da polícia local. — Como imaginávamos, os caras que ficaram para trás em Lancaster cha­maram a cavalaria.

Washington concordou, mas seus olhos continuavam fixos em Cali, que tocava uma sonata em seu laptop. Sua preocupação no momento era mais em saber seu progresso.

Conseguiu pegá-los?

Acho que sim — disse Cali orgulhoso. — É uma manobra bem bacana. Nós chamamos de "Cólon, o bárbaro". Entra pelo traseiro do seu computador, bloqueia todas as conexões de rede e começa a destruí-lo por dentro. Depois, seguindo a mesma trilha, nós entramos com isso. — Com um breve frenesi sobre o teclado, Cali mudou para outra página.

Presumindo, é claro, que seja o mesmo sujeito que nos hackeou usan­do o código antigo de Lorrena no outro dia. Se não, estamos perdidos!

Depois de um segundo, um ponto verde brilhante apareceu na tela. Ele inclinou a tela para Washington.

São eles, bem ali!

Washington sorriu pela primeira vez na última hora.

Que distância?

Oito quilômetros, e reduzindo.

Washington virou-se para Indiana.

E as patrulhas?

Não tenho uma localização exata. Mas, pela conversa, eu diria cerca de 3 quilômetros.

— Al Hakam foi preso.

Do outro lado, Abu Khalish congelou. Depois de um segundo, disse:

Quem está falando?

Sharaf Fahri. Um amigo íntimo de Al Hakam.

Houve outro silêncio intenso. Karam, assim como o resto da sala de operações, esperava com a respiração suspensa, temendo que Khalish tivesse desconfiado e estivesse prestes a desligar.

Ele nunca mencionou você.

Não havia motivo para isso. Afinal, você lhe paga para ser discre­to. Mas ele pediu que eu ligasse para você caso algo acontecesse com ele. Para alertá-lo.

Khalish soltou a respiração lentamente.

É muito gentil da parte dele. Mas eu presumo que se Al Hakam teve a cortesia de arranjar essa ligação, então ele não pretende dizer nada de qualquer forma. Então por que a preocupação?

Karam engoliu em seco. Eles haviam treinado vários cenários possí­veis para a conversa. Este não era um deles. Do outro lado da sala, Siraj ergueu um dedo. Primeiro obstáculo ultrapassado: Rede regional ampla. Malik estava de pé atrás de Siraj, os olhos alternando ansiosamente en­tre o computador e Karam ao telefone.

Eles haviam encontrado o celular de Al Hakam, e Melki na Holanda o enviou para a equipe de Adel em Londres. Eles focaram nos núme­ros chamados imediatamente depois dos ataques a Youssef, responsável pelo atentado em Milão, e a Akram, em Londres. Um se destacou.

Malik, líder da unidade enquanto Adel estava fora, coordenou tudo; Karam fez a ligação porque seu dialeto árabe era o mais próximo de Al Hakam — que eles acreditavam ser originalmente da Jordânia —, e Siraj ficou encarregado de rastrear o progresso do telefone na rede em seu computador. Agora tinham que rezar para manter Khalish ao telefone por tempo suficiente para rastrear onde o sinal da rede terminava. Ain­da faltavam três estágios.

Porque toda a informação que a polícia usou para chegar a Al Hakam também pode levar a você. — Houve outro silêncio pesado do outro lado. Karam continuou, hesitante. — Não sei, estou apenas preen­chendo as lacunas aqui, tentando adivinhar. Tudo que ele me pediu foi que eu ligasse para você.

Sim, sim, entendo. E onde ele foi preso?

Em Amsterdã. Num apartamento próximo ao parque Rembrandt. — O coração de Karam deu um sobressalto quando Siraj levantou outro dedo: Rede do país.

Realmente. Uma lástima. — Khalish suspirou, resignado. — Obrigado por me avisar.

Karam entrou em pânico, sentindo pelo tom de Khalish que ele esta­va encerrando a conversa. O próximo estágio, Rede regional local, reduziria para um número entre 50 mil a 250 mil pessoas, dependendo da densidade populacional. Só chegando ao último estágio, Rede de bairro, eles teriam alguma chance de encontrar Khalish. Ele tinha que mantê-lo na linha.

Suponho que, com essa informação, você vai fazer outros planos agora?

Sim, claro. Sem dúvida. Mas obrigado, sua ligação é apreciada.

Dessa vez, houve um tom bem decidido na voz de Khalish: é pro­blema meu. Karam não ficaria surpreso se ouvisse a ligação sendo inter­rompida imediatamente. Ele precisava de algo mais revelador e dramá­tico para segurar Abu Khalish.

Al Hakam me disse outra coisa importante para passar adiante.

Sim? — Khalish estava perdendo a paciência.

Karam soltou um suspiro lento e dramático, e o prolongou.

Ele disse que Akram Ghafur não morreu afinal; só ficou grave­mente ferido.

O quê? — Khalish pareceu furioso, incrédulo. Logo um tom de suspeita penetrou sua voz. — E por que ele se daria ao trabalho de me dar essa informação nessa altura dos acontecimentos?

Porque... porque... — A mente de Karam girava em busca de op­ções. Siraj levantou um terceiro dedo: Rede regional local. Só mais um minuto. — ... Ele sentiu que havia falhado com você. Estava pesando em sua consciência. Por isso ele ficou por perto, no apartamento em Ams­terdã. Ele esperava poder voltar e terminar o trabalho.

Entendo.

E agora que ele não pode fazer isso, suponho que a única coisa que lhe restava era pedir desculpas. Tentar remediar. Talvez tenha sido o fato de que Ghafur sobreviveu que levou as autoridades até ele. Pode ter sido sua derrocada.

Sim, eu... eu suponho que sim — murmurou Khalish.

Ao fundo, ele podia ouvir o barulho de grilos e ondas batendo a cerca de 80 metros de distância. Ao menos isso fazia sentido com o que Al Hakam dissera na última conversa que tiveram sobre o corpo ("opção de ações") sendo enterrado. "Não será facilmente desenterra­do." Ele tentava acobertar o fato de que o corpo não fora encontrado, de que nada aparecera nos jornais. Mas algo o incomodava sobre esta ligação agora. Estava ansioso para desligar e ficar a sós com seus pen­samentos para determinar o que seria. — Mais uma vez, obrigado.

Era o mínimo que eu podia fazer. Respeitar os desejos de Al Hakam nesse momento difícil. Assegurar que...

E você o fez — interrompeu Khalish. — Obrigado. Adeus.

A linha ficou muda.

Os olhos de Malik se moveram rapidamente de Karam para Siraj em seu computador.

Conseguimos pegá-lo? Conseguimos?

— Estão vindo de Colebrook — disse Indiana. — Os outros vão inter­ceptá-los no cruzamento com a rota 26. Três patrulhas.

Washington sorriu. Agora certamente os pegariam. Seguindo sua su­gestão, Indiana ficou em contato por telefone com a rede policial local. Com o rastreamento digital de Cali, eles conseguiram passar informações vitais.

Assim que Lorrena e os outros souberam que a polícia estava em sua cola, eles aumentaram a velocidade. A julgar pelo ponto na tela de Cali, não haviam reduzido muito a distância entre eles na última meia hora, e a luz estava começando a diminuir. Interceptá-los num cruzamento adiante se tornou uma opção necessária.

Uma leve bruma começava a subir dos lagos pelos quais eles passa­vam intermitentemente; vislumbres de um cinza-azulado entre pinhei­ros e arbustos correndo de ambos os lados da estrada.

Os policiais dizem que estão a apenas 1 quilômetro e meio do cruzamento. — Indiana segurava seu telefone a 30 centímetros de dis­tância, repassando a informação assim que a ouvia. — Só mais um mi­nuto agora.

E a que distância estão nossos amiguinhos fugitivos da barreira?

Cali checou a tela.

Nove quilômetros.

Ele virou o computador para que Washington também visse a tra­jetória do ponto verde: seis quilômetros, cinco, quatro... a pulsação de todos acelerando enquanto viam a distância diminuir. Assim que eles fi­nalmente viram o ponto reduzir a velocidade e parar, tudo estava encer­rado. Agora podiam seguir com mais tranqüilidade. Os policiais à frente já teriam prendido e algemado o grupo quando sua equipe chegasse.

Contudo, faltando pouco mais de 1 quilômetro antes do cruzamen­to, o ponto verde mudou de direção, entrando em outra estrada e se­guindo em diagonal para o nordeste.

Ah, não! — Cali gritou instruções para Indiana que, por sua vez, ladrou as mesmas para a polícia.

Washington enfiou a cabeça entre as mãos, pela sucessão de fiascos. Pelo celular de Indiana, ele podia ouvir as vozes frenéticas da polícia tentando se reorganizar. Quando conseguiram, as três novas patrulhas não estavam mais perto que as duas que já seguiam pela nova rota.

Parece que eles sabiam ou adivinharam que havia polícia à frente — disse Indiana.

Washington fulminou-lhe com um olhar furioso.

Não diga!

Pela primeira vez naquele dia, Washington começou a temer que não conseguiriam pegá-los; pelo menos, não facilmente. Não havia bases mi­litares próximas em Vermont nem em New Hampshire.

Mas e quanto ao Maine? — perguntou ele a Cali, vendo pelo mapa que a fronteira com o Maine estava próxima.

Nada de bases militares, mas tem uma base aérea naval não muito longe, em New Brunswick.

Ok. Coloque-os na linha para mim. — Estava na hora de chamar certos figurões.

 

                             Capítulo Quarenta e Um

— Então, o que acha dela? — perguntou Barry a Phil. — A nova namoradinha de Vince?

Quando os gritos histéricos do rádio da polícia finalmente dimi­nuíram, eles voltaram à conversa anterior: a nova namorada de Vince Corcoran, Ivana. Vinte e seis anos e recém-chegada da República Tcheca havia dez meses.

Parece normal para mim. — Phil pensou por um segundo. — Sorriso bonito.

Sorriso bonito? — Barry deu uma risada incrédula, tirando uma das mãos do volante. — Foi só isso que você reparou? A cintura mais fina que o seu pescoço e aquele par de peitões prestes a saltar da blusa a qualquer momento... Eles passaram batidos por você?

Claro, eu notei. — Phil deu de ombros. — Mas não quis ser indelicado.

Indelicado? — Barry ergueu uma sobrancelha. Soem as trombetas, Phil usara uma palavra de mais de três sílabas. — Sabe do que alguns dos caras estão chamando aquela comissão de frente da garota?

Não.

Barry fez uma pausa dramática.

Dote opulento! — Eles riram, a gargalhada de Barry mais alta, apesar de já ter contado a mesma piada uma dúzia de vezes para outros.

Mas a graça acabou rápido quando viram que o Pathfinder à frente in­dicava que ultrapassaria uma carreta de gasolina.

Já fazia algum tempo que Barry tinha um rádio da polícia no carro; graças a ele, já havia escapado de poucas e boas. Assim, quando Sam ligou e disse que o computador pifara — "Não temos mais como saber das movimentações da polícia" —, Barry pôde ajudar.

Sem problema, estamos ouvindo tudo aqui pelo rádio da polícia em alto e bom som. Qualquer coisa estranha à frente, eu ligo para você.

E ele ligara.

Mas, embora tivessem driblado o bloqueio na estrada, agora havia três viaturas atrás deles. O plano inicial de que eles serviriam como distração caso a polícia chegasse perto demais não funcionaria mais. Eles poderiam até segurar dois carros, mas os outros passariam direto.

Barry tentou ouvir as sirenes por um instante, tentando julgar a distância. Em alguns momentos, dependendo da direção do vento, elas soavam como se estivessem chegando mais perto.

Quando ligou a seta para ultrapassar o caminhão, Barry tomou uma decisão. Logo que fez a ultrapassagem, virou o carro bruscamente e me­teu o pé no freio.

Phil arregalou os olhos, não apenas pela ação inesperada, mas tam­bém pelo enorme caminhão se aproximando rapidamente, cantando pneu.

A carreta parou a 30 centímetros deles.

Barry saltou do carro com a arma em punho.

Saia, e deixe o motor ligado. Saia! Agora!

O motorista desceu, as mãos semierguidas, sem saber o que fazer com elas.

O que quer comigo?

Barry percebeu que o sujeito era apenas alguns centímetros mais baixo que ele.

Quero formar uma porra de time de basquete... o que você acha?

Ele sacudiu a arma. — Comece a andar naquela direção e só pare quando eu mandar.

As sirenes estavam cada vez mais próximas, as luzes já visíveis no horizonte.

Barry pulou para a cabine, engatou a ré e virou o caminhão até que ele bloqueasse toda a estrada.

Os carros de polícia estavam a 800 metros, 700... e 600 quando ele desceu.

Barry abriu a tampa do tanque de combustível embaixo. Quinhen­tos, 400. Ele correu de volta para o carro, avançou 30 metros e parou.

Quando mirou no combustível derramado, a polícia estava a ape­nas 200 metros e cada vez mais perto. As duas primeiras balas ricochetearam pelo asfalto, mas não acenderam. A terceira, sim. Ele se virou, protegendo o rosto da rajada de ar e da muralha de calor que o atingiu. Cem metros.

Ele pulou para dentro do carro e afundou o pé no acelerador, os olhos fixos no retrovisor e nos carros de polícia por trás das chamas e da nuvem de fumaça preta. As sirenes diminuíram, e os carros pararam cerca de 20 metros atrás do caminhão. Portas se abriram e alguns poli­ciais saltaram.

Barry se preparou, esperando uma saraivada de tiros sobre eles, mas nada aconteceu. Obviamente eles já estavam longe demais para a polícia se dar ao trabalho de tentar. Ele notou o motorista do caminhão ainda caminhando pelo acostamento.

Pode parar agora! — Barry gritou pela janela. Depois deu de om­bros e disse para Phil: — E cada um que me aparece...

Com todo o respeito, mas foi isso mesmo que você disse a ele. "Só pare quando eu mandar."

Literal, Phil. Nem tudo que a gente fala tem que ser entendido literalmente. Ou um dia desses, quando eu mandar você dar o fora ou cair morto, vou dar sorte? — Ele abriu um sorriso, mas, pela expressão de Phil, parecia que ele demoraria algum tempo para pescar a piada.

Eu me pergunto — disse Phil —, se você não tivesse mandado o cara parar, será que ele continuaria andando?

Agora nunca saberemos, não é? — Ele deu de ombros. — Mais um dos grandes mistérios da vida.

Enquanto Indiana relatava o que tinha acontecido com a policia, Cali checava o mapa em sua tela freneticamente.

Vire aqui! Aqui! — ordenou ele, com a voz em pânico.

Ohio deu uma freada brusca e, ainda a 100 quilômetros por hora, girou o volante. O X5 deu uma guinada, a traseira começando a deslizar até que ele acelerou de novo na curva e, com uma derrapada rápida, ajustou a direção.

Cali soltou a respiração. Se tivessem perdido aquela entrada, seria o fim. Não havia outra antes da carreta bloqueando a estrada mais à fren­te. Assim como as patrulhas, eles estariam presos.

Ele olhou para a frente, depois voltou para a tela.

Setecentos metros adiante, vire a esquerda.

Quando Ohio fez a curva, Cali traçou a nova estrada na tela com o dedo. Era paralela à estrada original, e em certo ponto havia apenas 400 metros entre elas. Depois o intervalo aumentava novamente para 800 me­tros até que outro cruzamento fazia a ligação entre elas, cerca de 25 qui­lômetros adiante.

O que você está pensando? — pressionou Washington.

Estou pensando que não temos outra escolha a não ser esta rota. — Cali suspirou. — Podemos voltar para a outra estrada mais à frente, mas até lá vamos nos afastar mais 2 quilômetros deles.

Novamente o pensamento: não vamos pegá-los. Washington pediu a Cali que passasse seu telefone. Ele precisava de uma atualização do piloto do Apache que sairia de New Brunswick.

Qual é a sua posição no momento? — perguntou o piloto a Washington.

Treze quilômetros a norte de Oquossoc, mais ou menos seguindo ao longo da fronteira do Canadá, 16 quilômetros mais para dentro. Na direção nordeste.

Ok, entendido. — Washington mal podia ouvir o que o piloto di­zia com o barulho dos rotores pesados e do motor retumbante. — Estou sobrevoando Farmington agora. Devo estar aí em 12 ou 15 minutos.

Bom. Vamos nos falar novamente quando você estiver na área. — Washington desligou e notou a mudança na expressão de Cali, um olhar capcioso. — O que houve?

Eles diminuíram a velocidade. O ponto verde mal se move.

Mas não pararam? — Essa era uma das maiores preocupações deles. Assim que percebessem que estavam sendo rastreados, talvez se livrassem do computador.

Não, mas estão bem lentos. Quase se arrastando.

Temos chance de alcançá-los, então?

Se eles continuarem assim por algum tempo, sim — assentiu Cali. — Uma boa chance.

A bruma se tornava mais densa à medida que escurecia, e os faróis dianteiros transformavam extensões do nevoeiro em nuvens leitosas enquanto eles passavam.

Lorrena demorou a reagir às luzes piscando adiante, que surgiram repentinamente num ponto enevoado. A princípio, ela sentiu pânico de que fosse outro bloqueio policial, um que Barry não tivesse percebido. Mas, ao chegar mais perto, ela viu que era uma casa desmontada sobre dois caminhões, um comboio precedido e fechado por veículos-guia com luzes girando.

Ela freou bruscamente e viu a velocidade do carro despencar. Caiu até trinta por hora.

Era tudo de que precisavam! Suas mãos apertaram o volante com for­ça e, pela primeira vez, ela percebeu que estava tremendo. Provavelmen­te já estava assim havia algum tempo, mas com a velocidade alucinante e as vibrações do carro, ela não havia percebido.

Não havia muito trânsito na estrada até então, mas, à medida que as 18 horas se aproximavam e as pessoas voltavam do trabalho para casa, mais carros começavam a surgir na outra direção. Um carro passou, depois outro 200 metros à frente. E depois mais outro. Ela precisava manter os nervos sob controle e esperar que passassem.

Sam percebeu o nervosismo dela.

Pelo menos com a carreta bloqueando a estrada, passou o pânico de ter a polícia na nossa cola.

É, tem isso. — Ela deu uma olhada rápida no retrovisor, e o Buick cinza de Barry entrou em seu campo de visão novamente. Barry piscou os faróis para eles quando chegou a 100 metros de distância, querendo dizer: "Estou aqui agora" ou talvez "Que diabos está acontecendo aí na frente?"

Ela tamborilava um dedo ansiosamente no volante. Após um mo­mento, houve uma brecha no trânsito na pista contrária. Lorrena passou para ela, mas, após 20 metros apenas, teve que frear bruscamente e vol­tar para trás do comboio. Havia um par de faróis surgindo numa curva lenta na direção oposta.

Ela teria de esperar até o traçado da estrada ficar reto novamente. Precisava de um trecho de pelo menos 400 metros livres para ter certeza de que conseguiria ultrapassar o comboio. Pareceu uma eternidade, mas finalmente apareceu. Depois do último carro, ela saiu da pista e meteu o pé no acelerador.

A dois terços do caminho, viu outro par de faróis no horizonte. Ela conseguiu chegar com facilidade, mas ficou de olho em Barry atrás dela. Ele também conseguiu, por pouco; o motorista da direção oposta foi obrigado a reduzir a velocidade, e buzinou duas vezes em protesto ao passar. Barry voltou para a direita, 40 metros atrás deles.

Os nervos de Lorrena saltaram quando ela ouviu um rufar de folhas esmigalhadas e galhos quebrando na floresta à sua direita. Ela olhou para o lado — seria um alce ou talvez um cavalo correndo? Mas não viu nada. Depois, ouviu novamente: ruídos rápidos de coisas sendo esma­gadas e trituradas por alguns segundos, e depois silêncio.

Barry estava piscando os faróis outra vez. E agora? Ela ouviu novamen­te, estalos atravessando as árvores, depois algo assoviando por perto com um estouro no fim, e ela finalmente entendeu. Estavam atirando neles!

Mais uma piscada de Barry, ela virou e finalmente viu: luzes piscan­do atrás das árvores, correndo em paralelo a cerca de 400 ou 500 metros, e uns 70 metros atrás.

Quando se viram cada vez mais próximos do ponto verde na estrada paralela, Nevada teve uma idéia. Além do Ml6, ele trouxera um TAC-50 para o caso de enfrentar uma situação para um tiro de longa distância.

Com todas as árvores, você acha que conseguirá acertá-los?

Vai ser tentativa e erro. — Nevada abriu um sorriso malicioso ao mirar e amparar a arma na janela do X5. — Mas vale a tentativa.

Era parte do desafio, pensou Nevada. O TAC-50 era bem podero­so, com pesadas balas calibre .50; atravessariam facilmente os galhos das árvores, até rachariam uma árvore pequena ao meio. Só uma árvore grande poderia pará-las.

Então era uma questão de quantas árvores pequenas ou grandes ha­via entre eles. Uma loteria.

O movimento do alvo e de seu próprio veículo — as rápidas vibra­ções contra as quais Nevada tentava se escorar enquanto mirava — difi­cultavam ainda mais a situação. Um desafio. Algo que deliciava Nevada, ex-atirador de elite dos Boinas Verdes.

O tiro seguinte chegou à metade do caminho, cortando gravetos e galhos até se cravar num pinheiro de 15 metros de altura. O segundo parou bem antes, num tronco grosso. O terceiro atravessou quase toda a distância.

Sam e Lorrena ouviram seu impacto claramente, viram a casca, as lascas e a poeira da madeira explodindo no ar a apenas 20 metros de distância.

Temos que fazer alguma coisa — disse Sam, as mãos cerradas em punhos e os nervos retesados ao extremo. — Se uma dessas nos acertar.

O quê? — Lorrena fez um gesto indefeso. — Estou indo o mais rápido que posso!

Eu sei, mas precisamos fazer alguma coisa!

Mais dois tiros: um acertou longe, mas o outro chegou a 40 metros de distância.

Apague os faróis! — disse Sam.

Você ficou louco? — Lorrena o encarou rapidamente. — Nesse nevoeiro, mal consigo ver com a ajuda das luzes.

Eu sei. É um risco. Talvez seja melhor diminuir a velocidade para compensar. Mas provavelmente é melhor que...

Uma bala então os atingiu, e Lorrena caiu sobre Sam, com um pouco de seu sangue espirrando em seu rosto. Uma tempestade de vidro caiu sobre eles, e o Pathfinder derrapava fora de controle.

Por um momento, Sam temeu que ela estivesse morta ou incons­ciente. A cabeça balançava e seus olhos se fecharam por um momento. Mas então ele percebeu que sua mão esquerda ainda apertava o volante com força, lutando para aprumar o carro.

— Foi de raspão, como dizem — suspirou ela, ofegante.

A bala atingira a janela lateral e rasgara a pele acima da clavícula arrancando um pouco de carne antes de estourar o para-brisa na saída.

Lorrena diminuiu a velocidade por reflexo a pouco mais de 100 qui­lômetros por hora, mas a ventania que os acertava ainda fazia parecer que estavam num vórtice de vento.

Mais dois tiros: um percorreu metade do caminho, o outro chegou a dois terços, perto o bastante para que vissem a poeira da madeira no ar.

Ok. Apague as luzes — disse Lorrena. — É melhor você fazer isso. Este braço aqui já era.

Você precisa colocar um torniquete aí — disse Chris, tirando a camiseta e começando a rasgá-la.

Ao se inclinar sobre ela para apagar os faróis, Sam viu que o sangue es­corria aos borbotões de seu ombro. Mas ele viu também outra coisa em seus olhos: tristeza, arrependimento, mais do que medo. Como se ela soubesse, naquele momento, que eles morreriam, mas queria dizer-lhe o quanto se arrependia por sua participação em tudo. Se eu morrer agora nesta missão fatídica, você acreditará que eu disse a verdade? Eu me apaixonei por você.

Atrás deles, Barry buzinou ao apagar seus faróis também, entenden­do a mensagem; caso contrário, o atirador ainda conseguiria ver o Pathfinder sob a luz de seus faróis.

Escuridão. Apenas um leve luar iluminava a estrada à frente, lutan­do para atravessar a espessa camada de névoa.

Lorrena diminuiu a velocidade mais um pouco. Além dos 30 metros de estrada à frente, não havia nada além de um buraco negro. Ela não conseguiria ajustar a rota às curvas ou desvios com rapidez suficiente, ainda mais controlando o volante com apenas um braço.

Chris se debruçou à frente e amarrou um torniquete improvisado sobre sua clavícula, prendendo-o sob o braço.

Então vieram mais três tiros: dois se perderam na floresta, mas um terceiro conseguiu atravessá-la.

Todos prenderam a respiração, mas o tiro pareceu passar pelo me­nos 3 metros à frente.

De repente, a estrada foi iluminada por um carro vindo na direção oposta. Ao passar, ele ainda buzinou duas vezes para avisá-los de que seus faróis estavam apagados.

Eles ouviram mais quatro tiros, nenhum dos quais chegou a atraves­sar o caminho todo; no silêncio gélido que se seguiu, ousaram especular se os policiais haviam desistido.

Certamente estão dando tiros às cegas agora?

Eles esperaram mais quarenta segundos em silêncio, a densa bruma e a escuridão do norte do Maine passando ao lado, até que Lorrena fi­nalmente falou:

Parece que pararam. Desistiram de nós.

Sim, é o que parece — concordou Sam.

Segundos depois, ele sentiu essas palavras virando pó em sua boca quando ouviram o barulho ritmado de um helicóptero rompendo o si­lêncio sobre suas cabeças.

 

                                       Capítulo Quarenta e Dois

Adel sentiu como se o mundo estivesse explodindo ao seu redor.

Atentados a mesquitas, sunitas versus xiitas, muçulmanos versus cristãos, esquerda e direita, certo e errado. A fúria nas ruas no rastro do pronunciamento de Bahsem-Yahl se espelhava em suas ligações e con­versas frenéticas naquela manhã, cada um querendo jurisdição sobre o destino, o sangue, do terrorista capturado.

"Meu nome é Muhab Haiáar e sou da vila de Shehabiyeh no sul do Líbano, onde minha família ainda vive..."

Foi preciso quase duas horas para fazer o prisioneiro falar. E uma hora depois, Adel já preferia que ele não houvesse falado. Sabia que ti­nha dinamite nas mãos e começou a fazer as ligações.

Haidar estava à sua frente quando cruzaram a pista na área militar do aeroporto de Lod em direção ao helicóptero que os aguardava. Três guardas de cada lado: israelenses de um lado, egípcios do outro.

Israel já deixara claro que não tinha nenhum interesse em ter jurisdi­ção para julgamento de um caso envolvendo propriedades e territórios islâmicos, inclusive o Domo da Rocha, também visto exclusivamente como território sagrado islâmico. As informações que Adel conseguira durante o interrogatório não deixaram dúvida. Israel queria aquela ba­tata quente o mais longe possível.

A maior parte das conversas de Adel tinha sido com Gabriel Chayat, chefe do Shin Bet, que por sua vez se comunicara com Ari Dahan e ou­tros ministros do Kadima.

Uma vez confirmada a posição de Israel, Adel começou a ligar para outros países atingidos por atentados a mesquitas: Turquia, Egito, Jor­dânia, Paquistão e Iêmen.

"Detivemos um dos terroristas que perpetravam atentados a mesqui­tas, e algumas decisões difíceis e rápidas precisam ser tomadas quanto a local e arranjos para o julgamento."

Após cinco horas de cabo de guerra entre promotores, ministros e às vezes até imames locais pela jurisdição, chegou-se a um acordo: o jul­gamento aconteceria em Alexandria, Egito, local do segundo atentado. Cinco juízes o presidiriam, cada um representando seu país: Egito, Tur­quia, Paquistão, Jordânia e Iêmen. Israel mandaria um promotor para prestar consultoria e cuidar dos interesses do país.

Três guardas egípcios seriam despachados imediatamente para au­xiliar no transporte do prisioneiro. Diplomaticamente, ele já era parcial­mente considerado um prisioneiro de tutela do islã. Assim que aterris­sasse em solo egípcio, a transição estaria completa.

Adel não partilhara detalhes do prisioneiro ou qualquer informa­ção obtida em seu interrogatório nas ligações, a não ser com Gabriel Chayat. Isso foi divulgado numa reunião de uma hora a portas fechadas enquanto esperavam a chegada dos guardas egípcios. A informação era considerada sensível demais para discutir ao telefone.

Eles entraram no helicóptero, um Bell V-22, pela rampa na traseira. De cada lado, havia bancos frente a frente, com paraquedas ao fundo. O motor foi ligado e a porta traseira, fechada.

Era um híbrido de avião e helicóptero, e assim ele decolou verti­calmente, mas as duas pequenas asas abaixo dos rotores garantiam um padrão de vôo mais parecido com o de um avião.

Adel fechou os olhos. O dia fora exaustivo, e ele dormira menos de uma hora durante o voo desde Londres.

"Meu nome é Muhab Haidar e sou da vila de Shehabiyeh no sul do Líbano...

"Shehabiyeh é uma vila predominantemente muçulmana. E eu tam­bém sou muçulmano. Xiita...

"No fim da década de 1990, eu me envolvi com atividades da milícia do Hezbollah, majoritariamente contra Israel, mas também em alguns ataques contra falanges e interesses estrangeiros na área. Principalmente americanos e franceses. Trabalhei como especialista em armas e explosivos para eles, e ainda sou, oficialmente, listado como um membro do Hezbollah."

Haidar dissera que tinha 34 anos, mas a barba espessa o tornava alguns anos mais velho. A conversa com ele foi gravada. A sala em que estavam tinha pouca mais que 1 metro quadrado e não possuía janelas. Um dos homens de Chayat passara vinte minutos procurando grampos na sala; Chayat também queria assegurar que aquilo que fosse dito ali não chegasse a ouvidos indesejáveis.

A única boa notícia do dia fora a ligação de Malik de Londres, logo após o fim de sua reunião final com Gabriel Chayat.

Acho que o pegamos, Adel! A rede de telefonia rastreou o sinal até meia dúzia de casas num lugar chamado ilha Cebu, nas Filipinas. No mo­mento, a polícia local está montando uma força-tarefa para prendê-lo.

Realmente, são ótimas notícias, Malik. Maravilha! — Mas, após quatro anos caçando Khalish, tudo que ele conseguia sentir era torpor. Por que isso não podia ter acontecido na semana passada? Neutralizado o principal alvo, os atentados a mesquitas teriam parado. Especialmente aquela última tentativa em Jerusalém e o cataclismo que poderia ter re­sultado. — Mantenha-me informado.

Adel finalmente começava a cair num sono inquieto quando ouviu a comoção. Ele abriu os olhos num estalo.

Até então, os guardas no voo estiveram em silêncio, com apenas bre­ves conversas intermitentes. Mas agora ambos os grupos estavam de pé gritando uns com os outros.

Adel percebeu rapidamente o motivo do pânico: Haidar, as mãos algemadas na frente do corpo, pegara uma granada do cinto do guarda israelense a seu lado e a segurava junto ao peito, gritando enquanto os guardas tentavam pegá-la de volta.

Um dos outros guardas israelenses saltou 1 metro para trás, abriu a tampa de uma caixa na lateral da aeronave e apertou o botão vermelho no interior.

A traseira começou a se abrir lentamente.

Alguém gritou freneticamente para o piloto.

Egroph Gohvah! Egroph!

O CV-22 embicou para baixo e começou a perder altitude. A inten­ção obviamente era se livrar da granada pela traseira aberta.

Mas, quando Adel olhou para Haidar e o guarda travando uma luta de vida ou morte, gritando um com o outro a poucos centímetros de distância, ele viu que o pino da granada já tinha sido removido. E o punho de Haidar sobre a granada parecia de aço, intocável. Não havia tempo suficiente para tirá-la da mão dele, muito menos de jogá-la pela traseira com segurança.

Um arrepio gélido correu pela espinha de Adel. Era tarde demais, eles não conseguiriam.

— Assim que estiver em posição, você verá dois grupos de veículos — disse Washington ao piloto. — Menos de 800 metros de distância em estradas paralelas, seguindo para o nordeste. Já localizou?

O piloto do AH-64 checou sua tela de visão noturna. Por causa da nebulosidade, ele contava apenas com o sistema infravermelho de re­conhecimento de calor. Depois de alguns momentos, ele viu os quatro veículos aparecerem.

Sim, localizei.

Ok. Nossa equipe está nos dois veículos da direita. — Depois do primeiro contato de Washington com a base de New Brunswick, uma enxurrada de ligações entre o departamento e o alto escalão da Marinha colocou um helicóptero sob sua direção e comando para eliminar um alvo, se necessário. — O alvo é o veículo da frente no grupo da esquerda. O que está liderando. Entendeu?

Positivo. Veículo da frente, lado esquerdo. Estou chegando à po­sição de tiro.

Quando o barulho do helicóptero aumentou no céu noturno sobre eles, Lorrena suspirou, resignada.

Não soa como um vôo de reconhecimento para mim. Parece mais um helicóptero de ataque.

As reverberações eram pesadas, onipresentes. Sam podia senti-las em seu peito, mescladas aos batimentos de seu coração. Ele fechou os olhos por um segundo.

Se essa parte estivesse no roteiro, eu até poderia ajudar, dizer o que fazer. Mas o manuscrito não era roubado em A profecia, e você e eu não estávamos nele... nem mesmo como alter egos.

Viu? É tudo culpa sua. — Ela sorriu afetuosamente para ele. — Você pulou as melhores partes.

Mas Sam sabia que era apenas uma tentativa finai de manter o hu­mor diante do vazio da perda — era o fim. Estava tudo acabado. Os dois estavam prestes a morrer.

Morrer? Nunca mais ver Ashley, nunca mais tê-lo em seus braços. E Lorrena, bem; ele já a havia perdido duas vezes: primeiro, quando desco­briu que sua relação era uma farsa, uma mentira; depois, novamente quan­do soube que ela se afogara. E agora, justo quando descobria que ela afinal o amara — com tudo que ela resolveu sofrer como penitência, arriscando a vida quando poderia simplesmente ter desaparecido —, Sam estava à beira de perdê-la mais uma vez, assim como todo o resto. Destino cruel.

Uma parte dele queria gritar em protesto. Mas outra parte pensou: talvez fosse assim que as coisas tinham que ser, karma, compensação por todas as vidas perdidas por causa de A profecia. Afinal, certo ou er­rado, direta ou indiretamente, inconscientemente, e todas as outras jus­tificativas ad riauseum — tinham sido sua criação. Sua única esperança era no fim salvar o dia, por ter percebido o que estava acontecendo e enviado a informação para Emile. Mas até disso ele começava a duvidar. Se Washington tinha conseguido impedir suas tentativas com Lorrena, certamente faria o mesmo com Emile. Eles estiveram enganando a si mesmos o tempo todo.

Mas suas emoções pareciam desgastadas; após tanto tempo na mes­ma rota entre a fé cega e o medo, ele já não tinha mais nenhuma reser­va. A angústia por perder a vida e nunca mais ver o filho se reduzia a pouco mais que uma resignação dormente, e ele fitava o céu como num desafio.

Você já tem as coordenadas do veículo-alvo? — perguntou Washington. — O líder do lado esquerdo.

Sim. Já fixei a posição. — Os olhos do piloto escolhiam entre as duas opções de míssil. O melhor seria provavelmente o Hydra-70. Des­truiria o veículo sem deixar um buraco muito grande na estrada.

Ok, soldado. Elimine o alvo!

O piloto pousou a mão sobre o fone em seu capacete por um mo­mento, para se assegurar de que tinha ouvido as instruções corretamen­te, apesar da estática.

Afirmativo.

Ele apertou o botão para lançar o míssil.

Os gritos e berros dos guardas ao redor ficavam cada vez mais frenéticos enquanto Haidar e o guarda se debatiam.

Um deles foi ajudar, mas os dois se agitaram e giraram na direção contrária. Eles rolaram 1 metro mais próximo à traseira entreaberta, mas a granada ainda estava travada numa disputa de vida e morte entre eles.

De repente, alguma coisa mudou no rosto do guarda israelense. Ele se deu conta de que não conseguiria soltar a granada e que só restava uma opção. Haidar também percebeu, ou talvez sentiu a mudança no corpo do guarda, porque gritou para ele em hebraico; como se só pudesse demovê-lo do que estava prestes a fazer usando seu próprio idioma.

Tarde demais. Haidar já estava desequilibrado e o peso do guarda aumentou o impulso.

Eles foram lançados contra a traseira aberta. Os pés de Haidar derrapavam desesperadamente, tentando resistir, suas palavras se elevando num grito estrangulado quando o guarda conseguiu derrubá-lo com um último empurrão e os dois desabaram.

Bateram na lateral da porta aberta, a dois terços da queda, e pare­ceram suspensos na beirada por um segundo antes de despencar no ar.

A explosão se ouviu um segundo depois, sacudindo e trepidando todo o helicóptero.

Adel esperava que logo depois o voo ficasse estável, mas não foi o que aconteceu. O balanço e os sacolejos laterais continuaram. Ele perce­beu então que estavam em apuros. Algo vital tinha sido danificado, ou a traseira aberta naquela altitude, combinada com a explosão, causara sérios problemas.

Enquanto o piloto lutava para manter o helicóptero sob controle, Adel fechou os olhos e rezou.

 

                           Capítulo Quarenta e Três

RECIFE DE CORDOVA, ILHA CEBU, FILIPINAS

Al Hakam capturado? Essa era a primeira coisa que precisava checar.

Abu Khalish fez uma busca on-line. A notícia ainda não esta­va em nenhum artigo dos grandes jornais, mas ele a encontrou em alguns sites de notícias: um holandês, o outro inglês. Detido numa operação de madrugada, ele levara um tiro e no momento estava em tratamento num hospital. Esperava-se uma recuperação completa. Os detalhes eram basicamente os mesmos passados pelo "amigo" de Al Hakam.

Ele achava improvável que Al Hakam falasse, mas era melhor partir mesmo assim. A umidade do lugar era alta demais para ele de qualquer forma, como um cobertor quente e grudento enrolado à sua volta dia e noite. Só com aquela pequena atividade de teclar no computador ele já começava a suar. Da próxima vez, escolheria um lugar com calor seco, mais parecido com sua Jordânia natal.

No entanto, o uso do celular de Al Hakam o inquietava. Khalish só atendera porque reconhecera o número no identificador de chamadas. Mas como Al Hakam dera o telefone para seu "amigo"? Uma operação de madrugada? Se Al Hakam realmente foi surpreendido daquela for­ma, ele não teve nem oportunidade nem motivo para passar o telefone para um amigo de antemão.

Ou seja, a polícia era a principal suspeita de estar com o telefone. Mas por que diabos eles o alertariam antes de todos sobre a prisão de Al Hakam e também o encorajariam a fazer arranjos e dar no pé?

De repente, a natureza arrastada da conversa lhe veio à mente, e como o homem o prendera na linha revelando que Akram Ghafur na verdade não estava morto. Era a coisa que mais parecera falsa. Por que alguém tentaria ganhar sua confiança ligando e avisando por um lado, mas se denegrindo por outro ao dizer que a última missão de Al Hakam fora um fracasso?

Abu Khalish deu um salto, olhando no relógio: doze minutos ha­viam passado desde a ligação. Ele precisava de apenas três para pegar itens essenciais, jogá-los numa maleta e fugir. As únicas forças de segu­rança significativas estavam em Cebu City. Eles conseguiriam se organi­zar e atravessar a ponte até o recife naquele meio-tempo?

Um minuto depois de começar a fazer as malas, ele soube a resposta. Um holofote passou rapidamente pela janela da frente, logo acompa­nhado de outro. Mantendo-se fora das vistas, Khalish foi até a janela e olhou para fora. Havia seis ou sete jipes de polícia e exército, trinta ou mais homens espalhados ao redor com rifles em punho. Alguns tam­bém se posicionavam na mansão ao lado.

Khalish correu para os fundos da casa. Já havia uma dúzia de ho­mens lá, uma mistura de uniformes azuis e camuflados, e mais vinham correndo da frente. Ele suspirou, resignado; sempre soube que aquele momento chegaria um dia. A grande ironia é que chegava agora, exa­tamente quando ele estava descobrindo que era apenas parte de um es­quema muito maior. Ele abriu um sorriso irônico. Estavam armando aquele circo todo achando que ele era o rei, quando, na verdade, não passava de um peão.

Só restava uma coisa a fazer. Ele foi até o armário lateral, pegou uma pistola e saiu.

O inspetor-chefe Andres Morua não quis arriscar. Convocou unida­des completas de três delegacias de polícia e mais o apoio da infantaria do 53° batalhão local para a operação.

Abu Khalish. Ele esperava encontrar armamento pesado e um grupo grande de guardas da milícia terrorista. Assim, quando viu um homem saindo sozinho, foi tomado de surpresa. Morua continuou em alerta, estreitando os olhos para examinar as janelas do casarão, esperando que canos de armas surgissem e despejassem uma torrente de tiros a qual­quer momento. Mas tudo que viu atrás do homem foi uma governanta e um criado filipinos observando assustados por uma janela francesa.

O homem que se aproximava vestia calça bege e um caftã branco de algodão. Tinha cabelos longos e escuros penteados para trás e o rosto bem-barbeado; não havia nenhuma semelhança evidente com as fotos do Khalish barbado que ele recebera por e-mail.

Morua ergueu uma das mãos para seus homens, pedindo cautela, e levou o megafone à boca.

Levante as mãos! Levanta tus manos!

Khalish não tinha a menor intenção de obedecer, de ser subjugado daquela maneira. Ele apenas assentiu educadamente e continuou avan­çando em direção aos soldados com as mãos junto ao corpo.

Era inútil dizer qualquer coisa àquele grupo de soldados. Eram ape­nas subordinados e não acreditariam nele de qualquer forma. E haveria uma seqüência interminável de subordinados dali até a Baía de Guantánamo que também não ouviriam, que descartariam suas palavras como devaneios de um lunático e o jogariam em algemas de uma jaula à outra.

Morua repetiu a ordem a Khalish em inglês e espanhol, com um tom mais ríspido.

Khalish parou, sorriu delicadamente mais uma vez e começou a er­guer as mãos lentamente. O fato de que ele esconderia aquela informa­ção, e que eles talvez jamais viessem a descobrir, já era suficientemen­te satisfatório. Ele lamentava apenas que não veria com seus próprios olhos como tudo terminaria. Uma vez que ele descobriu o que estava acontecendo, ficou intrigado: será que tudo aconteceria como haviam planejado com Bahsem-Yahl ou, como ele suspeitava, tudo sairia espe­tacularmente errado?

É de fato vergonhosa a maneira como vocês todos foram engana­dos! — gritou Khalish em direção ao grupo de soldados. — E que, mais uma vez, a última satisfação, a última cartada, foi minha.

Com um último sorriso e um meneio de cabeça, ele baixou as mãos num dramático cumprimento "Saiam Aleikum"; e, ao se erguer, puxou com a mão direita a arma que estava presa na cintura da calça. Khalish apontou a arma para os soldados.

Três tiros vieram da fileira de soldados em rápida sucessão; depois uma avalanche de trinta ou mais tiros de armas semi-automáticas até que Morua ergueu a mão para interrompê-los.

Khalish estava caído na grama a 20 metros de distância, uma massa confusa e ensangüentada, quase irreconhecível comparado com o mo­delo de anúncio de Martini de alguns segundos atrás.

Morua se adiantou e agachou ao lado do corpo. Olhou a arma na mão de Khalish: era uma réplica de brinquedo, nem sequer uma imi­tação muito boa. "A última cartada foi minha" O glorioso anúncio de que ele e seus homens colocaram o ponto final na história do infame Abu Khalish certamente perderia o brilho se fosse divulgado que eles o transformaram numa peneira por nada mais que uma pistola de brin­quedo. Entre aquele instante e a chegada de volta à delegacia, ele teria que fazer suas ligações para considerar como proceder a respeito.

Quando William Grayford ouviu as sirenes se aproximando do portão, ele já sabia que vinham buscá-lo.

Ele tinha visto as notícias no jornal mais cedo: "À luz de comentários recentes do televangelista Matt Calvinson, o porta-voz da Casa Branca, Jeff Baumann, anunciou que todas as doações que o Partido Republicano recebeu no passado do Sr. Calvinson serão devolvidas. O Sr. Baumann declarou: 'Nós afirmamos claramente muitas vezes que o recebimento destas doações não significa que os membros do Partido Republicano ou o presidente apoiam ou endossam as opiniões do Sr. Calvinson, que são de sua inteira responsabilida­de. No entanto, para evitar mais especulações incorretas e inúteis, decidimos que os fundos doados serão devolvidos imediatamente ao Sr. Calvinson.'"

Obviamente, estavam tentando se distanciar o máximo possível de Calvinson antes que a bomba estourasse.

Quando o criado de Grayford se voltou da tela do videofone para dizer que o tenente Blandford estava lá, Grayford já estava a meio cami­nho de subir as escadas.

Devo deixá-lo entrar?

Sim, por favor. Leve-os até a sala de estar e diga que vou encontrá-los num minuto.

Tudo começou pouco depois da morte de seu pai, havia quatro anos. Um jovem sargento naval que lutou no Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial e foi promovido a tenente-general de três estrelas antes da aposentadoria, seu pai foi um dos homens mais fortes que conheceu. Era sua rocha; a pessoa que ele sempre procurava em momentos difíceis em busca de conselhos sábios. Provavelmente, muitas pessoas também o achavam forte, mas ele puxara em grande parte ao pai; porém só soube o quanto depois que seu pai faleceu.

Grayford perdeu a cabeça por quase dois anos. Nada de favoritismo: todos os quatro vícios tiveram seu momento — bebida, jogo, mulheres, algumas carreiras de cocaína nas festas certas. Até que um dia ele foi vítima de um golpe baixo que resultou em chantagem de uma prostituta — acrescentando homicídio à sua lista — e então decidiu que era hora de se endireitar novamente.

Seu pai fora muito religioso. Bíblia numa das mãos, pistola na ou­tra, guiando-se com certezas e retidão pelo lamaçal enevoado da vida; nunca havia falta de clareza no que dizia respeito a seu pai. Talvez aquilo também funcionaria para ele; clareza era exatamente do que precisava no momento. Após um breve envolvimento com a Igreja Presbiteriana local, o que ainda não fora o bastante para limpá-lo, ele viu um dos sermões de Calvinson; viu a mesma convicção clara e inflexível que seu pai tinha.

Vozes exaltadas no andar de baixo, insistentes. Os oficiais da polícia estavam deixando claro que não tinham vindo para um café e um bate-papo. Tinham um mandado de prisão. Ele foi até a escrivaninha e tirou uma arma da gaveta.

Por algum tempo, não acreditou totalmente nas doutrinas mais ra­dicais de fogo e enxofre de Calvinson. Até que um dia houve total cla­reza — como se atingido por uma luz ofuscante, Calvinson sem dúvida diria. Naquele momento de revelação, ele viu em que ponto sua visão e a de Calvinson se cruzavam.

Por anos no 101, Grayford vinha avisando que o islã tinha que ser confrontado diretamente a curto prazo, e não longo; que se eles perdes­sem tempo enquanto regimes islâmicos instáveis adquiriam armas nu­cleares, seria tarde demais. Muitos sem dúvida o acusariam de cutucar o vespeiro desnecessariamente. Mas para ele, tratava-se apenas de uma manutenção prudente. Em sua visão, um conflito final com o islã era inevitável; o Ocidente só poderia travá-lo em seus próprios termos, com a certeza da vitória.

Belicista? Claro que não. Ele estava apenas assegurando que o Arma- gedom final e inevitável fosse menor, com o número de vítimas reduzido o máximo possível. E, à medida que se convencia mais e mais disso, os sermões e avisos de Calvinson começavam a apresentar mais sentido e portento. Ele começou a ver um padrão na vontade de Deus, como insis­tia Calvinson, de que o Armagedom realmente tinha que ser iminente.

Grayford também se via como um elemento-chave em tudo aquilo: por que outro motivo a morte de seu pai o teria levado às portas da igreja de Calvinson naquele momento? Quem mais estava em posição de interpretar as profecias corretamente e levá-las à fruição ao mesmo tempo de assegurar que a vontade de Deus fosse cumprida?

Passos subindo a escada. Ele manipulava a arma com reverência. Era uma Colt Ml911, a arma que o pai carregara no 5o batalhão dos fuzilei­ros no dia em que libertaram Iwo Jima.

A vontade de Deus? Os atos da peça haviam sido tão inteligentes e elaborados que ele não podia levar todo o crédito sozinho; tinha certeza de que a mão de Deus o guiara por grande parte do caminho: o manus­crito de Tynnan, os atentados a mesquitas, Adel Al-Shaffir, Jean-Pierre Bourdin, e finalmente Bahsem-Yahl. Com Tynnan em contato direto com Al-Shaffir e Bourdin permanecendo uma fonte importante, só precisavam de uma quadra falsa passada ao segundo — um irresistível livro-código há muito perdido de Nostradamus, mais algumas quadras novas e jamais vistas — para fornecer o desvio necessário no timão e afastá-los dos últimos atentados vitais às mesquitas.

Passos avançando com urgência pelo corredor. Seu pai lubrificava e limpava regularmente a arma, mantida sempre funcionando em perfeita condição.

Quanto a Bahsem-Yahl fazendo o pronunciamento como eles espe­ravam, já havia sugestões de "conluio com o Ocidente" na imprensa ára­be. Era preciso apenas agregar mais um pouco de ímpeto à idéia, nutrir aquelas primeiras sementes através dos contatos árabes que tinham no bolso — um jovem clérigo iraniano que Bahsem-Yahl respeitava, o ou­tro um proeminente repórter iraquiano pró-xiitas: "Uma afirmação me veio à atenção e creio que merece grande crédito. Contudo, no momento não há nenhuma voz forte por trás dela. Tenho a forte crença de que, se uma voz tal lhe fosse emprestada, ela ganharia muito apoio no islã, com dois objetivos principais: afastar a improvável hipótese de que um verda­deiro filho do islã danificaria seus próprios monumentos sagrados e unir o islã ainda mais contra a interferência ocidental em assuntos muçulmanos. Acredito que tal pronunciamento demonstraria que o indivíduo possui tanto visão de futuro quanto sabedoria. Seria uma grande vantagem para seu prestígio pessoal. Mas cabe uma precaução: deve vir de alguém que já é visto como dotado dessas qualidades, caso contrário o pronunciamento talvez não adquira o impacto adequado. E, de fato, dentro do islã, poucos são os que se podem afirmar possuidores de tão alta qualificação quanto o senhor." A vaidade de Bahsem-Yahl fizera o resto.

Brincando de Deus? Ele preferia pensar que estava apenas executan­do Sua vontade. E, mesmo que fosse o primeiro caso, ainda era uma vi­são muito melhor que aquilo que aconteceria agora se ele não o fizesse. Ter que encarar um Armagedom adiado, quando o islã estivesse mais forte, mais preparado. Felizmente, ele não estaria ali para ver isso.

Passos próximos à porta, forçando caminho.

Grayford colocou o cano da arma na boca e puxou o gatilho.

 

                                   Capítulo Quarenta e Quatro

DUMYAT, EGITO

Após pedir du'aa, a benção à mesa, Namir levantou a taça em honra de seu irmão.

É bom, vê-lo, Adel. Muito bom. Você deveria ter assuntos oficiais em Alexandria com mais freqüência.

Diante disso, o prazer é todo meu. — Adel gesticulou em direção ao banquete à frente e sorriu com gratidão para Inayah, que o prepara­ra. Batarekh e mortah para começar e, segundo Namir, que cochichara em tom de conspiração quando Inayah estava na cozinha, como quem conta um segredo que não deveria revelar, "Molokheya de camarão a se­guir, seu preferido. Lembra que nossa mãe costumava fazer? Às vezes com camarões que nós mesmos pegávamos de manhã com o papai."

Adel lembrava. Para ele, esta visita era mais comovente que muitas das anteriores. Talvez porque o último capítulo dos eventos que pesa­ram sobre ele nas últimas semanas estivesse encerrado, ou simplesmen­te porque se sentia feliz por estar vivo — tudo parecera mais brilhante, mais fresco na viagem de trem de Alexandria para Dumyat, que ele co­nhecia tão bem, uma viagem que sua família fizera muitas vezes em sua infância.

Os sons dos filhos de Namir e Inayah podiam ser ouvidos da cozi­nha. Namir era antiquado e formal no que diz respeito a isso. As crian­ças comiam separadamente na cozinha com uma criada, que ajudara Inayah a preparar o jantar. Quando o mais velho, Nasuh, tivesse 14 anos, receberia permissão para se sentar com os adultos.

Adel nunca havia beijado o chão após um voo, como fazem mui­tas pessoas que têm pânico de avião, mas, naquele dia, ele o fez. Uma vez que a traseira se fechou, a estabilidade foi parcialmente restaura­da, mas, mesmo assim, fora um voo turbulento e difícil pelo resto do caminho.

Após lidar com a burocracia e os depoimentos sobre o caso, a pri­meira ligação que fizera no trem foi para Gabriel Chayat.

"Meu nome é Muhab Haidar e sou da vila de Shehabiyeh no sul do Líbano..."

E qual era o nome do guarda? — perguntou Adel a Chayat.

David. David Shapira. Tinha só 31 anos. Os médicos lhe deram o diagnóstico há apenas alguns dias: tumor inoperável no cérebro. Ele ainda não tinha contado nem à esposa.

e ainda sou, oficialmente, listado como um membro do Hezbollah, mas sete anos atrás fui recrutado como informante pela CIA. Passei infor­mações internas valiosas sobre as atividades do Hezbollah."

Então você o selecionou para esse trabalho?

Não, ele se ofereceu. Havia duas outras escolhas. — Silêncio. Um momento de respeito pela alma de David Shapira. Chayat limpou a gar­ganta. — Sua viúva e os dois filhos serão bem-cuidados. Uma apólice de seguro de vida com um pagamento de 5 milhões de siclos aparecerá magicamente.

Adel fechou os olhos e assentiu. O fim justificava os meios.

"Todos em nosso grupo, como eu, são muçulmanos, exceto um — um cristão maronita —, e todos com um histórico semelhante: recrutados pela CIA em algum momento. Disseram-nos que a missão dos atentados a mesquitas era de uma divisão de operações especiais, mas muitos dos encarregados foram os mesmos. Nunca soubemos o nome da divisão."

Quando Haidar começou a falar, Adel sabia que divulgar aquela informação era suicídio. As alegações de Bahsem-Yahl se mostrariam corretas e o cataclismo que freneticamente tentavam deter seria ine­vitável. Pior ainda, e esta era a ironia cruel, os objetivos torpes da­queles que estavam por trás dos atentados seriam cumpridos. Tudo que ele e sua equipe fizeram teria sido em vão. Mas como suprimir a informação?

Foi então que teve sua reunião privada de uma hora com Gabriel Chayat e eles fizeram seus planos. Além de querer evitar rebeliões mu­çulmanas, Israel tinha um forte interesse em ocultar uma ligação ame­ricana com os terroristas. Israel era visto por muitos países árabes como nada mais que um procurador dos Estados Unidos no Oriente Médio. O fato de que o terrorista capturado foi apreendido em solo israelense teria sido o último prego no caixão.

Qualquer que seja a explicação que apresentemos, vão falar em conluio — disse Chayat com um suspiro resignado. — Infelizmente, só existe um jeito de enterrar uma coisa assim. Mas precisa parecer um aci­dente, e também deve ser testemunhado por guardas muçulmanos. Só o testemunho deles será de inteira confiança numa situação como esta.

Shapira enfiara a granada nas mãos algemadas de Haidar, fechando-as com as próprias mãos enquanto lutavam, uma ação tão rápida que foi impossível dizer o que aconteceu primeiro. Com todos os ar­quivos ainda listando Haidar como um membro ativo do Hezbollah, a última conexão seria enterrada. A história com Bahsem-Yahl morreria rapidamente.

Obrigado pela ajuda, Gabriel.

Não. Eu é que deveria agradecer. Tínhamos tanto a ganhar quan­to vocês. Pelo menos fizemos o suficiente para provar que a cooperação entre árabes e israelenses às vezes pode funcionar.

Enquanto Inayah retirava os pratos do jantar, Adel e Namir foram para o terraço. Namir acendeu um enorme charuto cubano, seu único vício; Adel agradeceu, mas recusou. Se desse apenas algumas tragadas, voltaria aos trinta cigarros por dia que fumara entre os 20 e os 30 anos.

Comoção. Seu pai costumava fumar charutos parecidos, e a antiga casa da família ficava a apenas três quadras dali. O ar quente da noite, o perfume de hibisco, jasmim e da fumaça perfumada da shisha tempera­do por uma leve brisa marinha; tudo exatamente como Adel lembrava.

E ele não sabia se foi pela comoção do momento ou porque David Shapira exemplificara o "sacrifício pelos outros", mas finalmente Adel se desculpou com Namir por ter desertado, por tê-lo obrigado a assumir os negócios do pai.

Namir o encarou e tirou o charuto da boca.

isso foi há muito tempo, Adel.

Eu sei. Mas foi errado de qualquer forma. Você teve que abando­nar seu sonho de se tornar um imame. Aquilo que sempre quis em seu coração.

Namir ficou pensativo por um segundo. Ele soprou uma leve nuvem de fumaça e gesticulou com a mão do charuto.

Você acha que estou infeliz com tudo isso? Com o que aconteceu desde então?

Não é esse o ponto. O fato de que você se saiu bem com o que lhe foi imposto. Mesmo assim eu pensei primeiro em mim. E isso significa que você foi deixado com poucas escolhas, ou nenhuma. Suas ambições foram sacrificadas pelas minhas. Foi errado.

Namir ergueu uma sobrancelha.

Acha que eu insistiria que você colocasse suas ambições em se­gundo plano? Que colocasse tudo que encontrou em Londres, seu amor por Tahiya, de lado?

Adel não respondeu. Os olhos de Namir continuaram fixos no irmão.

Todos fazemos escolhas, Adel. E, se eu realmente quisesse seguir a carreira de imame, poderia colocar alguém para gerenciar os negócios. Principalmente depois que nosso pai morreu. — Ele sorriu. — Mas o resultado foi que, através de meus contatos, eu me tornei provavelmente o maior fornecedor de pedras e mármore para as mesquitas do norte do Egito. Há um pouco de mim em todas elas. E ainda haverá daqui a cem anos. — Seu sorriso se ampliou. — Tenho mais presença nas mesquitas do que jamais poderia sonhar como imame.

Adel sabia que Namir tentava mitigar sua culpa, mas a sensação era boa mesmo assim. Ele gesticulou.

Já que você coloca as coisas assim, de forma tão eloqüente...

O prazer é meu. — Namir soprou outra nuvem de fumaça. — Mas o que me preocupa, Adel, é que isso ainda perturba você depois de tanto tempo. Esse fardo. — Ele bateu as cinzas do charuto. — Então per­mita que eu lhe dê um conselho que me foi passado há muito tempo: em qualquer ação, se você não pode ser fiel a Alá, seja pelo menos fiel a si mesmo. A voz dele dentro de você. Sua consciência. E, se não puder fazer nenhum dos dois, então aquela ação deve ser evitada. Caso contrário, ela pesará em seus ombros por muitos anos. Mas, neste caso, sua preo­cupação é indevida, meu irmão. — Namir ficou de pé e chamou Adel. Eles se abraçaram. — Independentemente do que ficou em seu coração sobre aquele incidente, tudo foi perdoado. Mesmo que eu pessoalmente nunca tenha achado que havia algo a perdoar.

Seja fiel a si mesmo e a Alá.

Quando sentiu o afago suave de seu irmão em suas costas e as lá­grimas encheram seus olhos, não foi tanto pelo perdão final, mas pelas almas de Muhab Haidar e David Shapira. Ambos sacrificados, por um pedido seu, no altar do bem comum. O fim que justifica os meios.

Naquele último segundo, Haidar gritara para Shapira em hebraico: "Por que está fazendo isso ? Eu estou do seu lado!" Incapaz de compreen­der por que seria sacrificado.

Talvez por isso Adel finalmente se livrara do fardo com seu irmão: não lhe seria possível carregar os dois.

— Descobrimos o que estava acontecendo um pouco tarde demais, infe­lizmente — disse Verbeck. — Mas pelo menos chegamos lá.

— É, isso vocês fizeram. —- Sam lembrou-se da equipe de Washing­ton no primeiro dia: Chegamos bem na hora.

Verbeck não quis dar detalhes do quão perto chegaram e preocupar Tynnan ainda mais.

O presidente finalmente decidira fazer alguma coisa duas horas de­pois da visita de Verbeck e Carl Miller. Mas outra hora foi perdida rastreando o progresso da operação, com parte daquele rastro chegando a um Apache AH-64 convocado da base naval de New Brunswick. Eles entraram em contato com o comandante e explicaram a situação. Por sua vez, o comandante contatou o piloto e soube que a posição de tiro foi ordenada a partir do "veículo frontal do lado direito, em relação ao veículo frontal do lado esquerdo". Quando o piloto voltou a falar com o comandante um minuto depois, para informar que tinha recebido or­dem definitiva de atirar, o comandante reverteu a ordem:

Você deve atirar no veículo da frente do lado direito. Eles são os renegados nesta situação em particular. Repito: líder do lado direito!

"Afirmativo!"

O segundo X5 aparentemente foi pego na bola de fogo e na cratera do primeiro veículo, e também foi efetivamente eliminado.

Verbeck respirou fundo.

Então, Sr. Tynnan. Qual é a sua decisão final?

Sam tinha que admitir: Verbeck comandava uma operação eficiente. Três horas antes ele recebera uma ligação de alguém em seu departamen­to — um advogado da NSA, cujo nome Sam não lembrava — explican­do qual seria a explicação oficial: "Um grupo de terroristas muçulmanos roubou o manuscrito de Samuel Tynnan e usou partes dele para executar uma série de atentados a mesquitas com o objetivo de pressionar o líder terrorista Abu Khalish. Em algum ponto, esse grupo também corrompeu membros do Departamento 101, uma seção da CIA. O alcance dessa infil­tração é agora alvo de investigação pelo Departamento de Estado."

Nada seria dito além disso. Também pediriam que Sam assinasse um acordo de confidencialidade — e, como o interlocutor fez questão de lembrar, "assuntos de segurança nacional geralmente estão acima de qualquer direito garantido pela Primeira Emenda" — prometendo não dizer nada fora do combinado. Como compensação pela assinatura, ele receberia uma indenização de 2 milhões de dólares num pagamento único a...por todas as perdas relativas ao confisco de seu manuscrito. Não mencionaremos possíveis traumas sofridos. Afinal, não podemos ser res­ponsabilizados por ações de terroristas, e as atividades de funcionários re­beldes do 101 gerariam questões juridicamente complexas e irrelevantes."

"E se eu me recusar a assinar?"

"Bem, você não receberia o pagamento, claro. Então advogados teriam que lutar pelos dois lados. Enquanto isso, seu manuscrito seria retido e embargado para publicação por dois bons motivos: um, para examinar­mos o risco à segurança causado pela publicação; dois, prova material, e lambém para checarmos se teríamos base para processá-lo por incitação ao terrorismo pelo que você escreveu."

Sam não achava que eles conseguiriam levar essas acusações adian­te, mas o dano seria irreversível. A profecia ficaria indisponível por um ano ou até mais. A mensagem era bem clara: assinatura rápida e cheque recheado de um lado, montanha de problemas do outro.

Após este telefonema, Sam ligou para Elli, que já havia ficado empolgadíssimo com o potencial de vendas de A profecia quando os dois se falaram anteriormente, e pediu conselhos.

"Como eu disse, Sam, esse é um grande livro. O maior. Então não que­remos que nada mais o mantenha fora do mercado. Além disso, eles lhe deixaram espaço suficiente para manobra. O fato de que no fim será dado como um grupo terrorista de afiliação desconhecida não tem a menor importância. A grande notícia que vai aumentar o interesse e as vendas é o fato de que o manuscrito foi roubado por sete meses e usado como rotei­ro para os atentados a mesquitas e contra Abu Khalish, um dos assuntos mais quentes do momento — especialmente agora com o embate final con­tra Khalish. Os detalhes menores por trás disso não são importantes. Na verdade, podem até aumentar o elemento de intriga: mais pessoas lerão o livro para tentar descobrir quem estava por trás de tudo."

Sam sorriu, recordando por que Elli Roschler era seu agente. Incorrigível. Potencial de marketing em primeiro, segundo e terceiro lugares. Mike tinha dito basicamente a mesma coisa quando Sam ligou para ele em busca de uma segunda opinião.

"De qualquer forma, você não sabe o suficiente sobre o que está acon­tecendo por baixo dos panos para dizer algo. São só conjecturas. Elli está certo: é um excelente pano de fundo. Dá todo um novo sentido à 'dificul­dade' pela qual nós, autores, passamos ao produzir um livro. Pelo visto, terei concorrência na lista do NYT."

Sam voltou sua atenção para Verbeck.

Então a história oficial é: um bando de terroristas muçulmanos pegou meu manuscrito para usar como guia em sua campanha de ata­ques a mesquitas e ao mesmo tempo se infiltraram num departamento da CIA. Daí eles se deram as mãos e partiram alegremente rumo a um possível Armagedom?

Sim, mais ou menos.,Se você se contenta com a versão da "Estradinha dos Tijolos Amarelos". — A risada fraca de Verbeck acabou rapidamente. — O problema é que não há muito mais que possa ser dito além disso. Eu estou amarrado pelo mesmo acordo de confidencialida­de pela "segurança nacional" que você vai assinar. Mesmo que você me pressione, o máximo que eu poderia dizer é que há extremos nos dois lados da fronteira, e às vezes, só às vezes, o aumento do conflito parece servir aos interesses dos dois. Mas eu não poderia dizer mais que isso, o que já é extra-oficial.

Então, no fim, tudo que estão admitindo é o primeiro ato do que aconteceu. O segundo ato será ignorado ou talvez até contado totalmen­te às avessas: os terroristas influenciando um departamento da CIA, e não o oposto.

Verbeck ficou em silêncio por um instante.

Acho que nos entendemos perfeitamente quanto ao que pode e o que não pode ser dito, Sam. E mesmo que o que você sugere tivesse alguma substância... não seria do interesse de ninguém alegar isso agora, seria?

Sam concordou. Ele entendia o que Verbeck queria dizer, em alto e bom som. Aquele era, na verdade, o elemento crucial na decisão de Sam.

Eu sei. Se algo fosse revelado a respeito, apenas alimentaria a ale­gação de Bahsem-Yahl e levaria a mais conflito. Esses malucos, "não especificados" no momento, conseguiriam o que queriam desde o prin­cípio. E o que todos nós tentamos evitar, todo o nosso esforço, teria sido em vão. — Sam suspirou. — Por isso, sim, eu me sinto inclinado a aceitar a oferta e assinar o acordo. Por nenhum outro motivo.

Muito bem — disse Verbeck. — Uma montanha de dinheiro e uma causa nobre. Não dá para ficar melhor que isso.

Sam sorriu. Ele gostava de Verbeck. Sem dúvida, o homem era mais escorregadio que um balde de vaselina, mas tudo era feito com tanto estilo que era quase um prazer ser enrolado por ele.

Chegando ao fim dos arranjos do acordo, Verbeck perguntou:

A propósito, como ela está?

Elli e Mike já haviam perguntado antes, e Sam respondera do mes­mo jeito: bem. A operação no ombro tinha sido um sucesso.

O cirurgião espera que ela tenha uma recuperação completa. — Ele planejava ir ao hospital mais tarde.

Mike também perguntara: "E como você está?"

A pergunta principal: Ele havia passado por tantas emoções com Lorrena nas últimas 48 horas que não sabia mais o que pensar. Suas dú­vidas sobre a traição inicial dela foram amplamente silenciadas quando ela arriscou a própria vida para ajudá-lo, mas a verdade é que ele nunca deixou de amá-la, apesar de tudo.

Estou satisfeito com a situação. Estou bem.

Seu plano era ir para a Califórnia por um ano. Fugir de Oneida e de todos os fantasmas do que aconteceu por lá. Ele encontraria mais com Ashley, e Lorrena ficaria mais perto do pai em São Francisco. Eles iriam procurar um lugar na costa, entre Santa Barbara e San Luis Obispo.

Sam olhou o relógio. Ele tinha uma última ligação a fazer antes de ir ao hospital para ver Lorrena.

— É seguro falar agora?

Sim, é seguro.

Adel ficara mais algumas horas com Namir após o jantar, e depois seu irmão o levou para a estação a fim de pegar o último expresso no­turno para o Cairo. Seu voo de Cairo para Londres sairia às 2h15. Ele recebeu a ligação quando a viagem no trem já durava vinte minutos.

Vi a notícia sobre Khalish. Por isso liguei. Parece bom demais para ser verdade.

Ah, mas é verdade sim. Não há nenhuma dúvida. — Adel rece­bera a notícia através de Malik pouco tempo depois de chegar a Ale­xandria. — Por isso agora você realmente pode ligar com segurança, meu querido Fahim. Ah, tanta segurança. E aconteceu não muito longe de onde você está, aparentemente. — O esconderijo remoto escolhido para Omari era Langkawi, Malásia. Irônico que, para se manter livre das garras de Khalish, Omari acabasse vivendo uma vida muito parecida com a dele.

Sim, não muito longe — disse Omari por reflexo e, ao ver as on­das lambendo a praia entre as palmeiras, elas se transformaram no leve sussurro das águas enquanto ele nadava no hammam em seu último dia em Londres.

O telefone tocara incessantemente. Primeiro seu celular, que ele es­quecera no andar de cima, depois o telefone de casa. Quando finalmente percebeu que Akram tinha saído e não atenderia, ele saiu da piscina e colocou o roupão para responder.

Omari imediatamente viu o dispositivo no terceiro degrau, piscando uma luz vermelha. Não ousou tocá-lo, apenas saiu correndo; a explosão aconteceu quando ele já estava a meia quadra de distância.

Jalal Haboush, um dos integrantes de seu grupo de Mahbusa, mo­rava a duas ruas dali. Omari correu para lá e, após alguns cafés e doses fortes de araq, ligou para Adel.

Eles delinearam um plano: se Omari ressurgisse, Khalish simples­mente tentaria matá-lo novamente. Assim, escolheram uma nova iden­tidade e fizeram Haboush jurar silêncio. Adel acobertou a explosão com uma história de vazamento de gás. Uma investigação de assassinato ra­pidamente revelaria a falta de um corpo.

Então está tudo acabado — disse Omari com um suspiro.

O evento principal, sim. Mas ainda há células residuais fiéis a Khalish para nos preocupar. Mais dois anos escondido e, com sorte, elas também estarão mortas. Aí será seguro para você ressurgir.

E o que vai acontecer com ele? — perguntou Omari. — Akram?

Adel ficou tocado pois, apesar de tudo que Omari teve que abando­nar e do quão perto ele esteve da morte, sem contar a traição, Akram ainda era sua primeira preocupação.

Como ele forneceu informações, conseguimos um acordo. Uma acusação de conspiração com terroristas no nível mais brando possível; ele pegará três anos. Com bom comportamento, pode sair daqui a um ano, um ano e meio.

Entendo. — A voz de Omari soava vazia.

Mais uma vez Adel se lembrou do quanto Omari havia perdido: seu filho, seu jovem sobrinho Layth, e por fim — através de uma terrível traição — seu melhor amigo por quarenta anos. Ao ter que se esconder do alcance de Khalish, ele também teve que cortar relações com Londres e tudo que conhecera por tantos anos, todos os outros amigos.

A comoção causada por aquela perda ajudou Adel a manter a farsa da morte de Omari para Tahiya e os outros. Para Omari, realmente ti­nha sido uma espécie de morte.

Obrigado, Adel, por pegar Khalish; por todas as vidas salvas no futuro. Todos os outros Layths. Mas também porque, se você não o pe­gasse, a sombra ainda estaria sobre minha cabeça. Eu estaria condenado à Terra dos Mai Tais para sempre.

Os dois riram suavemente.

Tínhamos que impedir isso a qualquer custo.

E sobre a explosão no hammam, eu coloco a culpa toda em Kha­lish também. Ele era um flagelo, um câncer que contaminava tudo que tocava. Akram não foi muito mais que um pobre peão sujeito à vontade dele, quase sem escolha. Tenho dificuldade em guardar rancor por ele em meu coração.

Adel fechou os olhos. Omari ainda tentava desesperadamente afas­tar a culpa de seu grande amigo para diminuir a dor da traição.

Eu sei.

— Mas o que o fez pensar em Jerusalém?

Sam já tinha visto os jornais: o dramático ataque ao Domo da Rocha impedido no último segundo pela polícia israelense. A matéria cobria o único terrorista capturado, que mais tarde tirou a própria vida e levou consigo um guarda israelense. "O terrorista foi identificado como Muhab Haidar, muçulmano xiita do sul do Líbano com ligações ativas com o Hez­bollah. O guarda israelense era David Shapira..." Adel só precisou preen­cher as lacunas.

Adel explicou a linha de raciocínio que seguiu com Jean-Pierre Bourdin.

Quando Verbeck me contou que a informação provavelmente foi manipulada e Bourdin disse que só a primeira quadra tinha vindo de fonte externa, naturalmente voltei meu foco para a segunda quadra. Aparentemente, foi uma criação dele. E uma das batalhas mais impor­tantes de Saladino foi o cerco a Jerusalém. "Liberada" é o termo usado nos textos islâmicos, embora eu tenha certeza de que judeus e cristãos usam outros adjetivos. Então parece que, ao menos nesta ocasião, Bour­din foi um profeta preciso.

Tenho certeza de que ele ficará feliz em saber. Será uma compen­sação por ele ter sido enganado com a primeira quadra. — Ele falou ra­pidamente daquela saga como elemento do futuro livro de Jean-Pierre. Mas, com as mãos amarradas pelo acordo com Verbeck, não havia mui­to mais que Sam pudesse dizer. Ele teria que decepcionar Jean-Pierre delicadamente.

Sam fez uma pausa neste ponto para encontrar as palavras certas, recompondo-se para a principal razão do telefonema: o segredo que es­condera de Emile por todo o tempo.

Há algo que eu devia ter contado antes. Você se lembra do perso­nagem de A profecia que eu dizia ser parecido com você?

Sim, lembro que você disse algo a respeito.

Bem, ele era mais que um coadjuvante. Era o grande protagonis­ta. E, como você na vida real, no livro ele tinha o papel mais importante: o de salvar a todos.

Ah, entendo. — O trem noturno agora se aproximava do Cairo. Os trilhos seguiam o Delta do Nilo, mas o rio só era visível em partes. Havia grupos de palmeiras e vilas de pedra calcária ocupando suas mar­gens. — E por que você não disse nada antes?

Porque achei que poderia ser intimidador, que talvez colocasse muita pressão sobre você.

Suponho que sim.

Já havia sido bastante intimidador sem aquilo; será que a informa­ção teria tornado tudo mais difícil? A desconfortável sensação de que a vida imitava a arte um pouco demais? Adel se lembrou da primeira vez que fizera aquela viagem de trem. Não tinha mais que 5 anos e eles viajavam de terceira classe: bancos rústicos de madeira ou às vezes ban­co nenhum, uma lata de sardinhas, com cabras e galinhas amarradas junto às bicicletas. Quatro anos depois, quando os negócios de seu pai começaram a melhorar, eles passaram para a segunda classe. Finalmen­te, na adolescência, primeira classe. De muitas maneiras, a forma como faziam aquela viagem espelhava a transição da família.

Sam continuou.

Mas ele termina fazendo as coisas de um jeito muito diferente do seu. Talvez porque ele tem que tomar uma última e difícil decisão. — Sam parou, torcendo para não ter soado como deboche. Emile provavel­mente teve que tomar várias decisões "difíceis" ao longo do caminho. — Porque, no livro, um dos terroristas acaba revelando ligações profundas com o Ocidente. E assim o protagonista tem que mentir e encobrir isso.

Ah, claro.

O coração de Adel parou por um segundo. De repente, era como se toda a umidade fosse sugada de sua boca. Ele viu seu reflexo na janela escura do trem. Uma semana antes, ele vira um homem, como milhões de outros, aprisionado pelo medo dos ataques terroristas de Abu Kha­lish. O que via agora? Um rosto que para sempre refletiria os fantasmas de suas ações?

Sam suspirou com resignação, como se tentasse tirar o peso da de­cisão mais vital que seu protagonista foi obrigado a fazer em A profecia.

Pareceu a coisa certa a fazer naquele momento: uma mentira para salvar o mundo da calamidade. Uma troca justa. Mas essa mentira, e o que ele teve que fazer, pesa em sua consciência por um bom tempo depois. Ele fica gravemente abalado.

Eu entendo como uma coisa assim poderia pesar na consciência. — Ele ainda via o rosto de Haidar naqueles últimos segundos, ainda ouvia seus gritos. Adel fechou os olhos delicadamente, engoliu em seco. Mal podia respirar. — Mas, me diga, no fim ele sobrevive a isso?

Sim, ele sobrevive. 

 

                                                                                John Kilgallon 

 

 

                      

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