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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PROFISSÃO DA SENHORA WARREN / Bernard Shaw
A PROFISSÃO DA SENHORA WARREN / Bernard Shaw

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Uma tarde de verão no jardim de uma casa de campo situada no declive de uma colina, um pouco ao sul de Haslemere, no Surrey. Olhando na direção da colina, a casa fica localizada ao lado esquerdo do jardim, com o telhado recoberto de palha, um vestíbulo e uma grande janela gradeada à sua esquerda. No jardim, uma paliçada completamente fechada, tendo apenas um por/ao a direita. Uni atalho sobe na direção da paliçada, seguindo para além da linha do horizonte.
Algumas cadeiras de jardim, feitas de lona, estão encostadas na parede de entrada. Uma bicicleta de mulher também encostada na parede abaixo da janela. Um pouco a direita do vestíbulo, entre dois postes, estende-se um rede na qual está deitada uma jovem, que lê e faz anotações, protegida por um grande guarda-sol. Ao lado da rede, ao alcance da mão, uma cadeira rústica sobre a qual e estão empilhados livros e folhas de papel.
Um homem surge na estrada. Meia-idade aparentemente, com um ar de artista, vestido de maneira extravagante mas cuidadosa. Bem barbeado, de bigodes, e um rosto cheio de vida e sensibilidade.
Suas maneiras são elegantes e discretas. Cabelos negros, macios, um pouco grisalhos. De sobrancelhas e bigodes escuros, mostra não estar muito seguro do caminho. Olha em direção da paliçada e se depara com a jovem deitada na rede.

 

 

 


 

 

 


O HOMEM — (tirando o chapéu) Desculpe-me incomodá-la. Poderia indicar-me o caminho para Hindhead View, a casa da Sra. Alison?

A JOVEM — (levantando os olhos do livro) Esta é a casa da Sra. Alison. (Recomeça seu trabalho)

O HOMEM — Sim? Bem... Perdoa-me a pergunta... Talvez a senhorita seja Vivie Warren?

A JOVEM — (voltando-se para olhar melhor o visitante) Sou, sim.

O HOMEM — (um pouco intimidado) Receio estar sendo indiscreto. O meu nome é Praed. (Vivie coloca o livro na cadeira e levanta-se bruscamente) Oh! Por favor, não se incomode.

VIVIE — (dirigindo-se rapidamente ao portão, abrindo-o) Entre, Sr. Praed. (Praed entra) Prazer em vê-lo. (Estende-lhe a mão de maneira franca e cordial. Ela é um exemplo de jovem inglesa da classe média, inteligente e instruída. Vinte e dois anos. Esbelta, sadia, segura de si. Veste-se com simplicidade e elegância. Traz na cintura uma espécie de chaveiro onde estão presas uma caneta, uma espátula, juntamente com outros pequenos objetos)

PRAED — A senhorita é muito gentil. (Vivie fecha o portão. Praed caminha até o meio do jardim movendo os dedos ressentidos pelo forte aperto de mão de Vivie) A senhora sua mãe já chegou?

VIVIE — (respondendo rapidamente, como se temesse algum acontecimento desagradável) Mas ela vai chegar?

PRAED — (surpreso) A senhorita não nos esperava!

VIVIE — Não.

PRAED — Oh! Meu Deus. Espero não estar enganado com relação à data. Sempre cometo esses enganos. Sua mãe combinou comigo que viria de Londres para me apresentar à senhorita.

VIVIE — (sem muita alegria) Sim! Minha mãe tem o hábito de me fazer essas surpresas. Talvez seja para ver como me comporto na sua ausência. Um dia, eu é que lhe farei uma surpresa se continuar com essa mania de acertar as coisas sem me prevenir antes. Não, ela ainda não chegou.

PRAED — (embaraçado) Eu sinto muito...

VIVIE — (agora de bom humor) A culpa não é sua, Sr. Praed. Estou muito contente com a sua presença. Dos amigos de minha mãe, o senhor é o único que eu desejava conhecer. Por isso pedi a ela que o trouxesse aqui.

PRAED — (aliviado e reconfortado) A senhorita é realmente muito gentil.

VIVIE — Prefere entrar ou ficar aqui fora conversando?

PRAED — Aqui fora é melhor, não acha?

VIVIE — Então irei buscar uma cadeira para o senhor.

PRAED — Oh! Por favor, por favor, permita-me. (Dirige-se para o lugar onde estão colocadas as cadeiras, pegando uma delas)

VIVIE — Cuidado com os dedos. Essas cadeiras são muito traiçoeiras. (Encaminha-se para a cadeira onde estão colocados os livros, deposita-os na rede, trazendo a cadeira para a frente)

PRAED — (acabando de abrir a cadeira) Oh! Por favor, deixe-me ficar com essa. Gosto de sentar-me em cadeiras duras.

VIVIE — Eu também. Sente-se, Sr. Praed. (Faz este convite de maneira gentil mas imperiosa. A cordialidade de Praed apresenta-se a Vivie como sinal de fraqueza. Ele, no entanto, não obedece de imediato)

PRAED — Em todo o caso, não seria melhor que fôssemos à estação esperar sua mãe?

VIVIE — (friamente) Para quê? Ela conhece o caminho. (Praed hesita, mas senta-se, um pouco desconcertado)

PRAED — É, suponho que sim.

VIVIE — Sabe? O senhor é exatamente como eu imaginava. Espero que possa se tornar meu amigo.

PRAED — Obrigado, muito obrigado. Só Deus sabe o quanto fico contente em ver que sua mãe não lhe causou nenhum dano.

VIVIE — Como?

PRAED — Bem... Quero dizer, que não fez a senhorita demasiadamente convencional. Sou um anarquista de nascença. Odeio a autoridade. Estraga as relações entre pais e filhos. Principalmente entre mãe e filha. Pensei que a autoridade de sua mãe a tivesse tornado convencional. É um prazer verificar que isso não aconteceu.

VIVIE — Oh! Por acaso me comportei de maneira anticonvencional?

PRAED — Não, Srta. Vivie, não. Pelo menos, não convencionalmente anticonvencional, compreende? (Ela faz que sim com a cabeça e ele prossegue com grande cordialidade) A senhorita foi muito gentil dizendo que poderia se tornar minha amiga. As moças de hoje são maravilhosas, simplesmente maravilhosas.

VIVIE — (de maneira dúbia) É? (Observando com desilusão as suas qualidades de inteligência e caráter)

PRAED — Quando eu tinha a sua idade, os jovens, moços e moças, tinham medo uns dos outros, o que tornava difícil serem amigos. Eram só galanteios copiados dos romances, sempre afetados, falsos. O pudor virginal! O cavalheirismo do gentil-homem! Dizendo sempre não quando se desejava dizer sim. Um verdadeiro purgatório para as almas simples e sinceras.

VIVIE — Acredito que deveria ser uma terrível perda de tempo. Especialmente para as mulheres.

PRAED — Ah! Perda de vida, de tudo. Mas agora as coisas começam a melhorar. Sabe que a ideia de encontrá-la depois do enorme sucesso que a senhorita alcançou em Cambridge me deixava bastante emocionado? Uma coisa impossível no meu tempo. Ter conseguido o terceiro lugar é um triunfo maravilhoso. Uma colocação ideal. O primeiro lugar é sempre conseguido por pessoas doentias, mórbidas mesmo, que fazem do estudo uma verdadeira mania.

VIVIE — Mas não valeu a pena. Pela mesma quantia eu não concorreria novamente.

PRAED — (dolorosamente surpreso) Pela mesma quantia?

VIVIE — Sim, concorri com cinquenta libras.

PRAED — Cinquenta libras!

VIVIE — Cinquenta libras. Mas talvez o senhor não saiba como as coisas se passaram. A Sra.

Lathan, minha professora em Newham, convenceu minha mãe de que eu poderia concorrer ao prêmio de matemática se eu estudasse seriamente. Os jornais naquela época só falavam da vitória de Philipa Summers, o senhor se recorda ? (Praed faz que não com a cabeça) Pois bem, ela ganhou.

Nada alegraria mais minha mãe do que se eu conseguisse fazer o mesmo. Disse-lhe que não interessava fatigar-me tanto com estudos, uma vez que não desejava me tornar professora. Mas concordei em concorrer até o quarto lugar por cinquenta libras. Ela hesitou um pouco mas acabou concordando. Fui além da minha promessa. Mas hoje só repetiria a proeza por duzentas libras.

PRAED — (decepcionado) Santo Deus! Esse é que é um ponto de vista prático.

VIVIE — O senhor imaginava que eu fosse uma pessoa pouco prática?

PRAED — Não, não é isso. Mas não acha que seria também prático levar em consideração, além do esforço, a cultura que se adquire?

VIVIE — Cultura! Meu querido Sr. Praed... O senhor sabe o que significam esses concursos de matemática? Significam estudar, estudar, estudar entre seis a oito horas por dia, matemática, somente matemática. Pensava conhecer alguma coisa sobre ciência. Mas conheço apenas o que se relacione com matemática. Sou capaz de fazer cálculos para engenheiros, técnicos em eletricidade, companhias de seguro, etc. Mas não conheço nada sobre engenharia. Eletricidade ou seguros. Nem aritmética eu conheço bem. Afora matemática. Um pouco de tênis, comer, dormir, andar de bicicleta e passear a pé, sou uma mulher tão bárbara e ignorante como as que não participaram do concurso.

PRAED — (revoltado) Sabia que era assim. Que monstruosidade! Imaginei logo que essas coisas significavam a destruição de tudo quanto torna uma mulher espiritualmente bela.

VIVIE — Não, Sr. Praed, não concordo. Eu lhe asseguro que saberei tirar proveito de tudo isso.

PRAED — De que maneira?

VIVIE — Abrindo um escritório: farei cálculos para os tabeliães. Aproveitarei o tempo para estudar direito e conseguir um lugar na bolsa. Vim para cá somente para estudar direito. Não para descansar como pensa minha mãe. Detesto férias.

PRAED — Mas tudo isso me faz gelar o sangue. Na sua vida não haverá lugar para o romance, a beleza?

VIVIE — Nenhum dos dois me interessa, posso lhe assegurar.

PRAED — A senhorita não pode dizer isso.

VIVIE — Sim, posso. Sinto prazer em trabalhar e também em ser paga para fazê-lo. Quando estou cansada, gosto de uma poltrona, um charuto, um pouco de uísque e de um bom romance policial.

PRAED — (com veemência) Não acredito. Sou um artista e me recuso a acreditar no que a senhorita me diz. (Com entusiasmo) Isto é porque a senhorita não descobriu ainda o mundo maravilhoso que a arte lhe pode revelar.

VIVIE — Sim, eu descobri . No ano passado estive durante seis semanas em Londres, com Honoria Frazer. Minha mãe pensava que estivéssemos passeando, mas, na verdade, passávamos os dias no estúdio de Honoria, em Chancery Lane. Eu a ajudava como podia nos cálculos para os tabeliães.

Quando não, ficávamos fumando e conversando, e assim passávamos toda a tarde. Nunca me diverti tanto em minha vida. Com esse trabalho tive duas vantagens: a de ganhar o suficiente para pagar as minhas despesas e de poder iniciar-me na profissão sem gastar um tostão.

PRAED — Louvado seja Deus! A senhorita chama isso de descobrir a arte?

VIVIE — Espere um pouco. Também entrei em contato com a arte. Conheci em Londres um grupo de artistas que me levaram para visitar a National Gallery...

PRAED — (aprovando) Ah!...

VIVIE — (continuando)... A Ópera...

PRAED — (com maior aprovação) Ótimo!...

VIVIE — ... E um concerto onde uma orquestra tocava Beethoven e Wagner toda tarde.

Eu não faria isso de novo por nada no mundo. Suportei por delicadeza até o terceiro dia. Depois confessei que não aguentava mais e voltei para Chancery Lane. Agora o senhor sabe que espécie maravilhosa de moça moderna eu sou. O senhor pensa que eu poderia me dar bem com minha mãe?

PRAED — Bem, eu espero.

VIVIE — Não estou interessada no que o seu senhor espera, mas sim no que o senhor pensa. É isso o que eu quero saber.

PRAED — Bem, para falar a verdade, temo que sua mãe fique um pouco desapontada. Não por sua culpa. Não quero dizer isso. Mas é que a senhorita é tão diferente do que sua mãe idealiza.

VIVIE — Do quê?

PRAED — Do que ela idealiza.

VIVIE — O senhor quer dizer do que ela idealiza para mim?

PRAED — Sim. Exatamente.

VIVIE — O que quer dizer isso?

PRAED — Bem, Srta. Vivie... A senhorita deve ter observado que as pessoas estão sempre descontentes com a forma pela qual foram educadas. Acham que se tivessem sido educadas de forma diferente o mundo andaria bem melhor. Agora... A vida de sua mãe foi... Bem, suponho que a senhorita saiba...

VIVIE — Não suponha nada. Sr. Praed. Conheço muito pouco a vida de minha mãe. Desde criança vivi na Inglaterra. Primeiro, na escola; depois, na universidade; e sempre na companhia de pessoas que eram pagas para me educar. Sempre com estranhos. Minha mãe passava o tempo todo em Bruxelas ou em Viena, e nunca me levou com ela. Eu só a vejo quando passa por Londres e assim mesmo muito pouco porque ela não se demora mais do que uns três dias. Mas não me queixo. Vivi sempre Feliz. As pessoas com quem convivia me trataram sempre com gentileza e recebia de minha mãe o dinheiro suficiente para viver com conforto. Mas não imagine que saiba alguma coisa sobre ela. Eu a conheço bem menos do que senhor.

PRAED — (reparando) Nesse caso... (Para um pouco. Recomeça a falar com uma despreocupação súbita e forçada) Mas estamos falando de coisas sem importância. Estou certo de que a senhorita e sua mãe se darão muito bem. (Levanta-se para olhar a paisagem) Que lugar encantador vocês têm aqui.

VIVIE — (sem se perturbar) O senhor mudou de assunto muito bruscamente. Sr. Praed. Por que a vida de minha mãe não pode ser discutida?

PRAED — Oh! Por favor A senhorita não deve dizer isso. Não acha natural que a ausência de sua mãe, minha velha amiga, me impeça de falar à filha sobre o seu passado? Verá quantas oportunidades terão de falar a esse respeito quando ela chegar.

VIVIE — Não, ela nunca se sente disposta a falar sobre a sua vida. (Levanta- se) Acredito, no entanto, que o senhor tenha motivos para não querer falar sobre o assunto. Mas lembre-se de uma coisa, Sr. Praed. Espero enfrentar uma o grande luta quando minha mãe souber de meus projetos para o futuro.

PRAED — (aflito) Eu também.

VIVIE — Bem, mas eu vencerei, porque não desejo nada mais que uma a passagem de volta para Londres, onde ganharei minha vida trabalhando com Honoria . Além do mais, não tenho mistérios para esconder e me parece que ela tem. Eu me aproveitarei dessa vantagem se for necessário.

PRAED — (imensamente chocado) Oh! Não, a senhorita não faria isso.

VIVIE — E por que não? Diga-me.

PRAED — Realmente eu não sei. Mas apelo para os seus bons sentimentos . (Vivie sorri de seu sentimentalismo) Além do mais, a senhorita poderia irritá-la. E sua mãe não é muito paciente quando se irrita.

VIVIE — Não me amedronta, Sr. Praed. Em Chancery Lane conheci duas mulheres semelhantes a minha mãe. O senhor pode dificultar a minha vitória. Mas se eu estiver ignorando mais do que o necessário, e se isto me trouxer prejuízos, lembre-se de que o senhor se recusou a me manter informada. E agora vamos mudar de assunto. (Segura a cadeira em que estava sentada e recoloca perto da rede, com o mesmo gesto vigoroso de antes)

PRAED — (tomando uma resolução com esforço) Srta. Warren... Acho melhor contar-lhe tudo. É muito difícil, mas... (A Sra. Warren e Sir George Crofts aparecem no portão. Ela é uma mulher de uns quarenta e cinco anos. Bonita, vestida de maneira vistosa, usando um chapéu extravagante, uma blusa de cor alegre, colante, com mangas conforme a moda. Tem o aspecto de uma mulher autoritária, viciada e decididamente vulgar. Mas tem, no conjunto, um aspecto apresentável. Crofts é um homem alto, de compleição robusta, tendo quase cinquenta anos, juvenilmente vestido a moda. Possui uma voz fina e anasalada, o que é surpreendente em um homem como ele. Cuidadosamente barbeado, rosto quadrado como o de um cachorro buldogue, orelhas grandes e achatadas, pescoço taurino. Uma elegante combinação de homem de negócios esportivo, brutal e mundano)

VIVIE — Aí estão eles. (Levanta-se e encaminha-se para o portão, enquanto eles entram) Como vai, minha mãe? O Sr. Praed está aqui a sua espera há mais de meia hora.

WARREN — Se você esperou tanto, Praddy, foi por culpa sua. Pensei que você teria imaginado que eu chegaria pelo trem das três horas. Vivie, ponha o chapéu. Você pegar uma insolação. Oh!

Esqueci-me de apresentá-los. Sir George Crofts, minha pequena Vivie.

CROFTS — Posso apertar a mão de uma jovem que já conhecia de referência, há muito tempo, como a filha de uma de minhas amigas mais antigas e queridas?

VIVIE — (que o olhava de alto a baixo, firmemente) Se o senhor quiser. (Aperta com toda a força a mão de Crofts, fazendo-o contrair o rosto. Depois se volta e diz para sua mãe) Desejam entrar ou devo arranjar mais duas cadeiras? (Dirige-se para o vestíbulo a fim de apanhar as cadeiras)

WARREN — Então, George, o que achou dela?

CROFTS — (lamentando-se) Ela tem a mão forte... Você a cumprimentou, Praed?

PRAED — Sim... Mas isso passa.

CROFTS — Espero que sim. (Vivie volta com mais duas cadeiras. Crofts apressa-se em ajudá-la) Permita-me.

WARREN — (em tom de proteção) Deixe que Sir Crofts a ajude, querida.

VIVIE — (quase empurrando as cadeiras para os braços de Crofts) Aqui estão elas. (Bate uma mão na outra, limpando-as, e se volta para a sua mãe) Gostariam de tomar um pouco de chá?

WARREN — (senta-se na cadeira ocupada por Praed, abancando-se) Estou mesmo com vontade de beber alguma coisa.

VIVIE — Vou providenciar. (Entrar na casa; enquanto isso Crofts trata de abrir a sua cadeira, colocando-a perto da Sra. Warren. Coloca a outra sobre a grama do jardim e senta-se com um ar constrangido e aparvalhado, colocando a ponta da bengala na boca. Praed, pouco a vontade, passeia irrequieto pelo jardim)

WARREN — (a Praed, olhando para Crofts) Olhe só para ele, Praed, que alegria, hein?! Há três anos que me atormenta para conhecer minha filha e agora quando a conhece, não sabe o que fazer. Vamos George, endireite-se e tire essa bengala da boca. (Crofts obedece imediatamente)

PRAED — Eu penso que... Bem... , se o assunto não lhes desagrada... Que já é tempo de deixarmos de tratar Vivie como se ela fosse uma criança. Pelo pouco que conversamos, acho que ela é bem mais velha do que nós...

WARREN — (achando graça) Ora, veja só, George! Vivie mais velha do que nós. Vê-se que ela o deixou impressionado com sua autossuficiência.

PRAED — Mas acontece que os jovens se sentem ofendidos quando nós os tratamos como crianças.

WARREN — Sim, está certo. Mas precisamos tirar essas bobagens da cabeça deles. Não se intrometa, Praddy. Sei como cuidar de minha filha tão bem quanto você. (Praed, com um grave aceno de cabeça, passeia pelo jardim, afastando-se. A Sra. Warren finge achar graça mas o acompanha com o olhar, preocupada, e murmura para Crofts) O que há com ele? Por que levou tão a sério o que eu disse?

CROFTS — (com tristeza) Você tem medo dele.

WARREN — O quê? Eu com medo do velho e querido Praed? Por quê? As moscas não têm medo dele.

CROFTS — Você está com medo dele.

WARREN — (zangada) Meta-se com sua vida, Crofts. Também não tenho medo de você. Se pretende ser desagradável, acho melhor voltar para casa. (Levanta-se, voltando as costas para Crofts, quando depara com Praed) Vamos, Praddy, sei que você reage assim porque tem bom coração. Está com medo de que eu faça Vivie sofrer.

PRAED — Não pense que estou ofendido, minha querida, por favor. Mas você sabe que, às vezes, observo coisas que lhe escapam. Você nunca aceita meus conselhos, mas muitas vezes admitiu que deveria tê-los ouvido.

WARREN — E o que você me aconselha agora?

PRAED — Quero apenas dizer que Vivie já é uma mulher. Por favor, trate-a com respeito.

WARREN — (com sincera surpresa) Respeito? Tratar minha própria filha com respeito? Por favor, o que mais?

VIVIE — (aparecendo na porta da casa e chamando) Mamãe, você não quer subir para se arrumar um pouco antes do chá?

WARREN — Sim, minha querida. ( Sorri do ar grave de Praed e bate-lhe amistosamente no rosto quando passa por ele) Não fique preocupado, Praddy.

CROFTS — (com ar furtivo) A propósito, Praed...

PRAED — Sim?

CROFTS — Gostaria de lhe fazer uma pergunta um tanto delicada.

PRAED — Pois não. (Pega a cadeira onde estava sentada a Sra. Warren, e senta-se perto de Crofts)

CROFTS — Assim está bem. Poderiam nos ouvir da janela. Alguma vez Kitty lhe falou sobre o pai dessa menina?

PRAED — Não, nunca.

CROFTS — Suspeita quem possa ter sido?

PRAED — Não.

CROFTS — (incrédulo) Compreendo que você não queira contar um segredo que lhe confiou. Mas é profundamente desagradável essa situação, agora que teremos de encontrar a menina todos os dias. Não sabemos exatamente quais os sentimentos que deveremos ter com relação a ela.

PRAED — Que diferença faz sabermos ou não quem foi seu pai? Nós devemos aceitá-la pelos seus próprios méritos. Que importa quem tenha sido o seu pai?

CROFTS — (com suspeitas) Então, você sabe quem foi?

PRAED — Eu disse que não, ainda há pouco. Não me ouviu?

CROFTS — Eu lhe peço isso, Praed, como um favor pessoal. Se você sabe (Praed faz um movimento de impaciência)... Estou apenas falando, se você sabe, poderia me tranquilizar. Porque na verdade eu me sinto atraído.

PRAED — (com severidade) O que você quer dizer?

CROFTS — Oh! não se assuste. É apenas um sentimento inocente. Praed, tudo isso me deixa muito preocupado, porque, pelo que sei, eu posso ser o pai de Vivie.

PRAED — Você?! Impossível!

CROFTS — (com astúcia) Tem certeza de que não sou eu?

PRAED — Eu nada sei sobre o assunto, já lhe disse. Nem mais nem menos do que você. Mas, na verdade, Crofts... Oh! Não... Toda essa conversa nada tem a ver com o caso. Não há a menor semelhança.

CROFTS — Também não há nenhuma semelhança entre ela e a mãe, como posso perceber. Posso então admitir que ela também não seja sua filha.

PRAED — Por favor, Crofts. (Levanta-se com indignação)

CROFTS — Não se ofenda, Praed. É uma conversa perfeitamente admissível entre dois cavalheiros.

PRAED — (recompondo-se com esforço e falando gentil e gravemente) Agora ouça-me, caro Crofts.

(Volta a sentar-se) Não tenho nada a ver com esse aspecto da vida da Sra. Warren nem nunca tive.

Ela jamais me fez confidências, nem eu jamais lhe fiz uma pergunta indiscreta. A sua sensibilidade lhe fará compreender que uma mulher bonita tem necessidade de amigos que... Bem, que não sejam propriamente suas companhias habituais, e que não mantenham com ela uma relação mais íntima.

Os encantos de sua própria beleza tornar-se-iam um suplício para Kitty se, de vez em quando, ela não se libertasse deles. Você provavelmente tem maior intimidade com Kitty do que eu. Pode interrogá-la a esse respeito.

CROFTS — Já lhe fiz essa pergunta muitas vezes. Mas ela está tão firmemente disposta a guardar a filha só para ela que, se pudesse, diria que Vivie nunca teve pai. (Levantando-se) Esta situação não me agrada.

PRAED — (Levantando-se também) De qualquer modo, como você já tem idade bastante para ser o pai de Vivie, não vejo inconveniente em nós a tratarmos paternalmente, como merece uma jovem que temos a obrigação de ajudar e proteger. Não concorda?

CROFTS — (agressivamente) Não sou mais velho do que você, se é a isso que você quis se referir.

PRAED — Sim, meu caro, você é. Você já nasceu velho. Eu não, eu nasci jovem. Nunca fui capaz de me sentir um homem realizado. (Fecha a cadeira onde esteve sentado, levando-a para o vestíbulo)

WARREN — (chamando de dentro da casa) Praed! George! O chá!...

CROFTS — (atendendo prontamente) Ela está nos chamando. (Corre para casa. Praed sacode a cabeça preocupado, seguindo atrás de Crofts, quando é chamado por um jovem que aparece no portão. Um jovem bonito, simpático, bem vestido, com ar esperto de quem não faz nada na vida, com vinte anos recém-completados, uma voz bonita e maneiras agradáveis e irreverentes. Traz na mão um rifle de caça)

FRANK — Alô, Praed!

PRAED — Oh! Frank Gardner! (Frank encaminha-se para Praed e o cumprimenta cordialmente) O que você está fazendo aqui, rapaz?

FRANK — Passando uns tempos com o padre.

PRAED — Com seu pai?

FRANK — Exatamente. Ele é o pastor aqui. Estou passando o outono com a família por questões de economia. Os negócios entraram em crise desde julho e o padre viu-se obrigado a pagar as minhas dívidas. Faliu em consequência disso. E eu também. E você, o que está fazendo aqui? Conhece os donos desta casa?

PRAED — Sim, estou passando o dia com uma certa Srta. Warren.

FRANK — (com entusiasmo) O quê? Você conhece Vivie? Não é uma moça maravilhosa? Estou ensinando-a a caçar com isso. (Mostra o rifle) Fico contente em saber que a conhece. Você é exatamente a pessoa que ela gostaria de conhecer. (Sorri e alteia a sua encantadora voz) É um prazer encontrá-lo aqui, Praed!

PRAED — Sou um velho amigo da mãe de Vivie. A Sra. Warren me trouxe para conhecer a filha.

FRANK — A mãe de Vivie? Ela está aqui?

PRAED — Sim, lá dentro, tomando chá.

WARREN — (gritando de dentro) Praedeeeeeee! O chá está esfriando!

PRAED — (respondendo) Sim, Sra. Warren, um momento. Acabo de encontrar um amigo.

WARREN — Um o quê?

PRAED — (mais alto) Um amigo.

WARREN — Pois traga o também.

PRAED — Pois não. (A Frank) Você aceita o convite?

FRANK — (incrédulo, mas contente) Ela é a mãe de Vivie?

PRAED — Sim.

FRANK — Meu Deus! Essa é boa! Você acha que ela gostara mim?

PRAED — Não tenho duvidas de que ela não resistirá aos seus encantos. Mas vamos experimentar.

Entremos.

FRANK — Espere um pouco. (Com seriedade) Antes desejo fazer-lhe uma confidência.

PRAED — Não, por favor. Com certeza é alguma nova loucura como aquela da empregada do bar, em Redhill.

FRANK — Não. Agora é serio. Ouça: você disse que acabou de conhecer Vivie?

PRAED — Sim...

FRANK — (com entusiasmo) Então você não pode fazer uma ideia do que ela seja. Que caráter!

Que inteligência! Acredite: ela é mesmo muito inteligente! E — não precisaria dizê-lo — está apaixonada por mim.

CROFTS — (chamando da janela) Vamos, Praed. Que diabo você está fazendo? (Sai)

FRANK — (surpreso) Oh! Eis aí um tipo que conseguiria o primeiro lugar em uma exposição canina. Quem é ele ?

PRAED — Sir George Crofts um velho amigo da Sra. Warren. Agora acho melhor entrarmos.

(Quando estão se dirigindo para a casa, são interrompidos pelo chamado de um pastor que aparece no portão)

O PASTOR — Frank!

FRANK — Alô! (A Praed) O padre. (Ao pastor) Pronto, chefe! (A Praed) Olhe, Praed, acho melhor que você entre para o chá. Irei imediatamente.

PRAED — Muito bem. (Entra na casa, tirando antes o chapéu para cumprimentar o pastor que responde com um pequeno movimento de cabeça. O pastor permanece de fora do portão, segurando-o com a mão. O Reverendo Samuel Gardner, pastor da igreja anglicana, tem aproximadamente cinquenta anos de idade. Aparenta ser um homem autoritário, arrogante, desagradável, presunçoso. Na realidade ele é aquela espécie de fenômeno social obsoleto, tomado como guia das famílias que comparecem à igreja. Procura sempre impor-se como pai e como pastor, sem conseguir nenhum dos dois objetivos)

O REVERENDO — Bem, cavalheiro, se me permite a pergunta, quem são os seus amigos aqui?

FRANK — Oh! Está tudo bem, chefe. Entre.

O REVERENDO — Não, senhor. Não entrarei enquanto não souber a quem pertence este jardim.

FRANK — Ora, patrão. Pertence à Srta. Warren.

O REVERENDO — Ainda não a vi na igreja desde que chegou aqui.

FRANK — Acredito. Ela obteve o terceiro lugar no concurso de matemática. Absolutamente intelectual. O senhor não está à altura dela. Por que então ela iria ouvir os seus sermões?

O REVERENDO —Não seja irreverente, cavalheiro. (Frank abre o portão sem cerimônia, fazendo com que seu pai entre)

FRANK — Não tem importância. Ninguém está nos ouvindo. Entre, quero apresentá-lo a ela.

Lembra-se do conselho que me deu em julho do ano passado?

O REVERENDO — Sim, aconselhei-o a vencer a preguiça e a leviandade para que conseguisse uma profissão honrada, da qual você pudesse viver sem depender de mim.

FRANK — Não, esse não. Esse foi dado depois. O que o senhor disse naquela época foi o seguinte: desde que não tinha nada, nem cabeça nem dinheiro, deveria aproveitar meus dotes físicos para me casar com alguém que tivesse uma coisa e outra. Pois, muito bem. A Srta. Warren é uma moça inteligente, o senhor não pode negar.

O REVERENDO — Sim, mas inteligência não é tudo.

FRANK — Claro que não. Há o dinheiro...

O REVERENDO — (interrompendo com austeridade) Não me refiro a dinheiro. Falava de coisas mais elevadas. Posição social, por exemplo.

FRANK — Isso não me interessa.

O REVERENDO — Mas interessa a mim, cavalheiro.

FRANK — Mas ninguém está sugerindo que o senhor se case com ela. De qualquer modo. ela ganhou um concurso em Cambridge e parece ter mais dinheiro do que deseja.

O REVERENDO — (ironicamente) Duvido que ela tenha mais dinheiro do que você deseja.

FRANK — Oh! Vamos, não sou tão perdulário assim. Levo uma vida modesta. Não bebo, jogo pouco e nunca fui um libertino como o senhor na minha idade.

O REVERENDO — (baixando a voz) Cale se!

FRANK — Mas o senhor mesmo me disse, quando cometi as maiores loucuras por aquela empregada do bar em Redhill, que, certa vez, ofereceu cinquenta mil libras a uma mulher para que devolvesse as cartas que o senhor lhe escrevera.

O REVERENDO — (aterrorizado) Cale-se, Frank, pelo amor de Deus! (Olha em torno, preocupado) Você está utilizando de maneira pouco leal de um segredo que lhe confiei para seu próprio bem, para salvá-lo de um erro que o deixaria arrependido pelo resto da vida. Aprenda com os erros de sei pai. Nunca se utilize deles para desculpar os seus.

FRANK — O senhor conhece a história do Duque de Wellington e de suas cartas?

O REVERENDO — Não, nem quero conhecê-la.

FRANK — O velho duque não cometeu o erro de jogar fora cinquenta libras. Não. Apenas escreveu: “Querida Jenny, publique-as e vá para o interno. Seu, cordialmente. Wellington”. Isto é o que o senhor devia ter feito.

O REVERENDO — (piedosamente) - Frank, meu menino. Quando escrevi aquelas cartas, eu fiquei nas mãos daquela mulher. Quando contei esse fato a você, também fiquei em suas mãos e lamento admiti-lo. Ela recusou o dinheiro com essas palavras: ‘‘Saber é poder. E eu nunca vendo o poder!”

Passaram-se vinte anos depois disso sem que ela se utilizasse uma só vez desse poder e sem ter me causado um só momento de preocupação. Você se comporta pior do que ela, Frank

FRANK — Sim, eu sei. Mas o senhor fez para ela os sermões que me faz diariamente?

O REVERENDO — (magoado, quase chorando) Vou deixá-lo, cavalheiro. O senhor é incorrigível.

FRANK — (Sem se perturbar) Avise em casa que não me esperem para o chá. (Dirige-se para a casa, quando encontra Vivie e Praed que saíam)

VIVIE — Aquele é seu pai, Frank? Gostaria tanto de conhecê-lo.

FRANK — Mas, certamente. (Chamando pelo pai) Chefe! O senhor está sendo chamado. (O reverendo volta ao portão, mexendo nervosamente o chapéu nas mãos. Praed se apressa em cumprimentá-lo) Meu pai, Srta. Warren.

VIVIE — Muito prazer em conhecê-lo, Sr. Gardner! (Chamando a Sra. Warren) Mamãe, venha cá.

Desejam conhecê-la. (A Sra. Warren aparece e é imediatamente tomada de surpresa, reconhecendo o reverendo) Deixem-me apresentá-los.

WARREN — (descendo rapidamente ao encontro do reverendo) Mas, não é Samuel Gardner em traje de pastor? Eu nunca imaginei... Não nos reconhece, Sam? Este é George Crofts, tão gordo quanto vivo. Não se lembra mais de mim?

O REVERENDO — (ruborizado) Sim, realmente... É...

WARREN — Naturalmente que se lembra. Tenho ainda todas as suas cartas. Outro dia mesmo estive com elas nas mãos.

O REVERENDO — (embasbacado) A Srta. Vavasour, se não me engano...

WARREN — Ssss! Bobagens... Sra. Warren; não está vendo minha filha?

 

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1 Neste ato aparece algumas vezes a palavra padre como tradução exata da expressão Roman father, o que evidentemente não fornece, em nossa língua e em nossa cultura, a conotação e a ênfase mordaz, e mesmo ofensiva, que tem, na Inglaterra, a aplicação do título de padre católico a um pastor anglicano. (N. do E.)


Ato II

 

(O interior da casa, à noite. Olhando-se de dentro, inverte-se a posição da janela, com suas cortinas baixadas, e que agora é vista no meio da parede principal. A porta de entrada fica à esquerda da janela. No primeiro plano da parede esquerda, a porta que dá para a cozinha. Mais para o fundo, na mesma parede, existe uma cômoda sobre a qual se vê um candelabro e uma caixa de fósforos. Por trás desses objetos, o rifle de Frank com o cano apoiado nas prateleiras. No meio da sala está colocada uma mesa. Sobre ela uma lâmpada acesa. Os livros e papéis de Vivie estão colocados sobre uma outra mesa, colocada contra a parede, à direita da janela. Uma lareira apagada, na parede direita, tendo ao lado um pequeno banco. Duas cadeiras estão colocadas à direita e à esquerda da mesa do centro. A porta se abre mostrando uma linda noite estrelada. A Sra. Warren, com os ombros protegidos por um xale de Vivie, entra seguida de Frank que atira a sua capa sobre a cadeira. Ela caminhou muito e faz um gesto de alívio enquanto tira os alfinetes do chapéu para retirá-lo da cabeça, repõe os alfinetes no chapéu e o coloca em cima da mesa)

 

WARREN — Oh! Deus. Não sei o que será pior no campo. Passear ou ficar em casa sem nada para fazer. Eu tomaria com prazer um uísque com soda, se isso existisse por aqui.

FRANK — Talvez Vivie possa arranjar.

WARREN — Não diga bobagens. O que faria uma moça na idade dela com uma garrafa de uísque em casa! Deixe estar, não tem importância. Não consigo fazer uma ideia de como ela passa o tempo aqui. Seria melhor que tu tivesses ficado em Viena.

FRANK — Poderia levá-la para lá? (Ajuda a Sra. Warren a tirar o xale, acariciando delicadamente os seus ombros)

WARREN — Gostaria, não? Estou começando a pensar que você é um galho do mesmo tronco.

FRANK — Como o pastor, hein? (Coloca o xale sobre a cadeira mais próxima, sentando-se nela)

WARREN — Não se preocupe com essas coisas. O que você entende disso? Ainda é muito jovem.

(Afasta-se até o meio da sala para estar a salvo tentação)

FRANK — Iria comigo a Viena? Nós nos divertiríamos como loucos.

WARREN — Não, obrigada. Viena não é lugar para você. Quando tiver alguns anos a mais... (Faz um gesto com a cabeça para reforçar o que disse. Frank faz uma cara triste, desmentida por seu olhar sorridente. Ela olha para Frank e se encaminha de volta, em sua direção) Agora ouça, menino: eu o conheço como a palma de minha mão, exatamente como conheço seu pai e muito mais do que você a você mesmo. Portanto tire da cabeça essas ideias bobas em relação a mim, compreende?

FRANK — (cortejando-a galantemente com um tom acariciante de voz) É impossível, minha querida Sra. Warren. É mal de família. (A Sra. Finge dar-lhe uma bofetada; depois olha para o belo rosto sorridente do rapaz, tentada. Finalmente o beija e, imediatamente, volta-se irritada consigo mesma)

WARREN — Ora veja! Não deveria ter feito isso. Eu sou mesmo impossível. Mas não dê importância, meu querido. Foi apenas um beijo maternal. Vá-se embora. Vivie está a sua espera. Vá brincar com ela.

FRANK — Já brinquei!

WARREN — (volta-se para Frank, com voz assustada) O quê?

FRANK — Eu e Vivie somos tão bons amigos!

WARREN — O que você está querendo dizer? Não permitirei que sedutor algum se divirta às custas de minha filha, ouviu? Não permitirei.

FRANK — (imperturbável) Minha querida Sra. Warren, não tem por que ficar assustada. Minhas intenções são honestas e a sua menina é capaz de se defender sozinha. E também não necessita de metade dos cuidados de que necessita a sua mãe. Não é tão bonita quanto a Sra., sabia?

WARREN — (surpreendendo-se com a segurança de Frank) Não se pode negar que não lhe falta cinismo. Não sei a quem você saiu assim. A seu pai, certamente, não foi.

CROFTS — (do jardim) Creio que são os ciganos.

O REVERENDO — (respondendo) Sim, mas os bruxos ainda são piores.

WARREN — (a Frank) Psst! Lembre-se do que lhe preveni. (Crofts e o reverendo entram, continuando o que conversavam) Então, o que foi feito de vocês? E por onde andam Praddy e Vivie?

CROFTS — (colocando o chapéu sobre o banco e a bengala no canto da lareira) Fomos até a cidade. Estava com vontade de beber. (Senta-se no banco, esticando as pernas sobre ele)

WARREN — Vivie não devia Ter saído assim sem me avisar antes. (A Frank) Pegue uma cadeira para seu pai, Frank; onde está a sua educação? (Frank levanta-se, oferece educadamente ao pai a sua própria cadeira e pega uma outra para si, sentando-se perto da mesa entre seu pai e a Sra.

Warren) George, onde você irá passar a noite? Não poderá ficar aqui. E Praed, como se arranjará?

CROFTS — Gardner me dará hospedagem.

WARREN — Não duvido que você já tenha se arranjado. Mas Praed?

CROFTS — Não sei. Que procure uma hospedaria.

WARREN — Você não teria um lugar para ele, Sam?

O REVERENDO — Bem... Como pastor dessa região... Isto é... Não tenho liberdade para fazer o que quero. Qual a posição social do Sr. Praed?

WARREN — Oh! É uma pessoa direita, um arquiteto. Mas como você é convencional, Sam!

FRANK — Ela tem razão, chefe. Praed construiu em Gales o castelo do duque. O Castelo de Caernarvon. Você já deve Ter ouvido falar. (Pisca maliciosamente para a Sra. Warren, olhando depois, com inocência, para seu pai)

O REVERENDO — Bem, nesse caso está claro que ficaremos muito contentes. Suponho que ele conheça o duque pessoalmente, não?

FRANK — São íntimos amigos. Você poderá colocar Praed no velho quarto de Georgina.

WARREN — Bem, então está resolvido. Se aqueles dois já tivessem voltado, nós poderíamos jantar.

Afinal de contas, já é tarde e eles não podem mais ficar passeando.

CROFTS — (agressivamente) Que mal lhe estão fazendo?

WARREN — Mal ou não, eu não gosto disso.

FRANK — É melhor não esperá-los mais. Sra. Warren. Praed não voltará tão cedo. Ele nunca soube o que fosse passear pela Campina, em uma noite de verão. Acompanhado de uma moça como a minha Vivie.

CROFTS — (endireitando-se no banco, com ar de certo desalento) E você sabe? Vamos?

O REVERENDO — (levantando-se, deixando de lado o seu modo profissional de falar, usando de força e sinceridade) — Frank, de uma vez por todas, isso não está em discussão. A Sra. Warren poderá lhe dizer que este assunto não lhe diz respeito.

CROFTS — Claro que não.

FRANK — (com encantadora placidez) É verdade, Sra. Warren?

WARREN — (refletindo) Bem, eu não sei. Se a menina quer se casar, não será justo conservá-la solteira.

O REVERENDO — (espantado) Casar-se com ele? A sua filha casar-se com meu filho?

Inteiramente impossível!

CROFTS — Claro que é impossível, Kitty. Não seja boba.

WARREN — (irritada) Por que não? Minha filha não será suficientemente digna de seu filho, Sam?

O REVERENDO — Mas certamente a minha cara Sra. Warren conhece razões...

WARREN — (desafiadora) Eu não conheço razão alguma. Se você conhece poderá contá-la ao rapaz, à menina... Ou a toda e congregação, se quiser.

O REVERENDO — (sentando-se desanimado na cadeira que ocupava) Você sabe muito bem que eu não poderia contá-las a ninguém. Mas meu filho acreditará quando eu lhe disser que existem razoes...

FRANK — Perfeitamente, papai, ele acreditará. Mas desde quando as suas razões influíram no comportamento de seu filho?

CROFTS — Você não poderá se casar com ela e isso é tudo. (Levanta-se e fica de pé no meio da sala, de costas para a lareira, com um ar acintosamente grave)

WARREN — (virando-se para Crofts, asperamente) Por favor, o que você tem a ver com isso?

FRANK — (com o tom mais lírico de sua voz) Era exatamente o que eu ia perguntar, com a elegância que me é habitual.

CROFTS — (à Sra. Warren) Acho que você não deseja casar sua filha com um rapaz mais jovem do que ela e sem ocupação ou bens que lhe permitam sustentar uma mulher. Pergunte a Sam, se não me acredita. Quanto você está disposto a dar ar a seu filho?

O REVERENDO — Nem um xelim. Ele já recebeu de mim o que tinha para receber, e acabou de gastar tudo em julho do ano passado (A Sra. Warren assume um ar sombrio)

CROFTS — (olhando-a) Está ouvindo? Não lhe disse? (Volta a sentar-se no banco, esticando as pernas, como o assunto estivesse definitivamente encerrado)

FRANK — (queixosamente) Tudo isso é tão mesquinho. Supõem então que a Srta. Warren se casaria por dinheiro? Se nós nos amamos...

WARREN — Muito obrigada, mas o amor de vocês tem poucas garantias, meu rapaz. Se você não tem meios suficientes para manter uma mulher, então não há mais o que conversar. Vivie não será sua.

FRANK — (divertindo- se) O que diz a isso, chefe?

O REVERENDO — Concordo com a Sra. Warren.

FRANK — E o bondoso velho Crofts já expressou a sua opinião?

CROFTS — (olhando-o com rancor) - Olhe aqui, rapaz. Eu não tolero mais as suas impertinências.

FRANK — Perdoe-me se o irritei. Mas ainda há pouco você falou comigo como se fosse meu pai e...

Basta-me um pai, obrigado.

CROFTS — (enfurecido) Ah ... (Volta-lhe novamente as costas)

FRANK — (levantando-se) Sra. Warren, eu não abriria mão de Vivie nem mesmo para lhe ser agradável.

WARREN — (resmungando entre dentes) Canalha!

FRANK — (continuando) E como tenho a certeza de que irá procurar outros candidatos à mão de Vivie, falarei imediatamente com ela. (Todos olham fixamente para ele, que recita, com grande encanto)


“Quem do destino tem medo

nunca será vencedor;

ou tudo ou nada é o segredo

de todo bom jogador.”...


(A porta da casa se abre enquanto Frank recita. Vivie e Praed entram. Ela para. Praed coloca o seu chapéu sobre a cômoda. Há uma brusca mudança nas atitudes de todos, que tentam dissimular o assunto de que tratavam. Crofts retira as pernas do banco, recompondo-se, enquanto Praed junta-se a ele perto da lareira. A Sra. Warren perde a naturalidade, refugiando-se em uma pergunta de repreensão)

WARREN — Onde você esteve, Vivie?

VIVIE — (tirando o chapéu e colocando-o delicadamente na mesa) Na colina.

WARREN — Mas você não deve sair sem me avisar antes. Já tinha caído a noite e eu não podia imaginar o que lhe tivesse acontecido.

VIVIE — (encaminhando-se para a porta da cozinha e abrindo-a, sem dar atenção ao que sua mãe lhe diz) - Bem, e com relação ao jantar, (todos se levantam, com exceção da Sra. Warren) tenho a impressão de que não haverá lugar para todos.

WARREN — Você ouviu o que eu disse?

VIVIE — (tranquilamente) Sim, mamãe. (Volta ao assunto do jantar) Quantos somos? Um, dois, três, quatro, cinco e seis. Bem, acho que dois de nós terão que esperar para jantar depois. A Sra.

Alison só dispõe de talheres para quatro pessoas.

PRAED — Oh! Não se incomode comigo. Eu...

VIVIE — Não, Praed, você andou muito e deve estar com fome. Será servido em primeiro lugar.

Eu sim, poderei esperar. Mas quero uma pessoa para me fazer companhia. Você está com fome, Frank?

FRANK — Nenhuma, eu espero.

WARREN — Você também não está com fome, Crofts. Pode esperar...

CROFTS — Ah! isso não. Não comi nada desde a hora do chá. Você não poderia esperar. Sam?

FRANK — Você quer que meu pai morra de fome?

O REVERENDO — Deixe que eu responda por mim mesmo, cavalheiro. Esperarei com prazer.

VIVIE — (tomando uma decisão) Não há necessidade. Apenas dois devem esperar. (Abre a poria da cozinha) Quer acompanhar minha mãe, Sr. Gardner? (O reverendo e a Sra. Warren entram na cozinha. Praed e Crofts seguem-nos. Todos, com exceção de Praed, desaprovam o combinado, mas não encontram meios de reclamar. Vivie contínua mantendo a poria aberta, olhando-os) O senhor poderia se sentar no canto, Sr. Praed? Dispomos de pouco espaço. Cuidado para não sujar o casaco.

Estão todos acomodados?

PRAED — (de dentro) Sim, obrigado.

WARREN — (de dentro) Deixe a porta aberta, querida. (Vivie vai fazer o que a mãe lhe pede, quando Frank a contém com um gesto Abre a porta da casa, provocando uma corrente de ar) Oh!

Deus, que corrente de ar! Acho melhor fechar essa porta, queridinha.

FRANK — (exultando) Finalmente em liberdade! Então, Vivie, o que achou de meu chefe?

VIVIE — (séria e preocupada) Conversei muito pouco com ele. Não me pareceu muito bem dotado.

FRANK — O velho não é tão idiota quanto aparenta. Procure compreender. A carreira eclesiástica lhe foi imposta e ele faz um grande esforço para representar bem o seu papel de pastor. Com isso fica sempre parecendo mais idiota do que é na realidade. Você não imagina quanto gosto dele. É um bom homem. Acha que poderá se dar bem com ele?

VIVIE — Não acredito que venha a ter muitos contatos com ele no futuro. Nem com ele nem com qualquer outro amigo de minha mãe. Com exceção de Praed, talvez. (Senta-se no banco) O que você pensa de minha mãe?

FRANK — Com toda a sinceridade?

VIVIE — Sim, com toda a sinceridade.

FRANK — Bem, ela é simpática, mas um pouco original não é verdade? (Senta-se perto de Vivie) E Crofts, então, meu Deus! Crofts!...

VIVIE — Que gente, Frank!

FRANK — Que horda!

VIVIE — (demonstrando um grande desprezo por eles) Se eu soubesse que ficaria assim, reduzida a um ser desordenado, perdido, andando de um lugar para outro sem nenhuma finalidade, fraca, sem ânimo, eu cortaria os pulsos sem hesitar um só instante.

FRANK — Não, você não faria isso E por que eles se esforçariam sem necessidade? Gostaria de ter a sorte que eles têm? O que não aceito é a maneira pela qual eles se utilizam da sorte. É mesquinha, muito mesquinha.

VIVIE — Acredita que agiria de maneira diferente da de Crofts, se atingisse a idade dele sem trabalhar?

FRANK — Claro que sim. E muito melhor. Mas não desperdice os sermões. O seu pequeno aluno é incorrigível. (Tenta acariciar o rosto de Vivie)

VIVIE — (afastando as mãos de Frank, com rispidez) Vá-se embora. Hoje Vivie não está disposta a tomar conta de seu pequeno aluno. (Levanta-se e vai até o outro lado da sala)

FRANK — (seguindo-a) Que maldade!

VIVIE — (batendo os pés) Um pouco de seriedade, por favor!

FRANK — Pois muito bem. Falemos a sério, Srta. Warren, sabe que todos os pensadores modernos concordam em que a metade dos males do mundo provém da falta de amor entre os jovens? Muito bem, eu...

VIVIE — (interrompendo-o asperamente) Você me cansa. (Abre a porta da cozinha) Há um lugar para Frank? Ele já está morto de fome.

WARREN — (da cozinha) Claro que há. (Ouve-se um barulho de garfos e facas sendo arrumados na cozinha) Há um lugar ao meu lado. Venha sentar-se, Sr. Frank.

FRANK — O seu pequeno aluno jamais se esquecerá disso, Vivie (Entra na cozinha)

WARREN — (da cozinha) Venha também, Vivie. Você deve estar faminta. (Entra na sala, seguida de Crofts, que mantém a porta aberta num gesto acintosamente gentil, dando passagem a Vivie, que passa sem olhá-lo; Crofts fecha a porta) Por que você não comeu nada. Crofts? Você não está se sentindo bem?

CROFTS — Oh! Não. Tudo o que desejo agora é um bom drinque. (Enfia as mãos nos bolsos, andando pela sala, preocupado e aflito)

WARREN — Adoro comer. Mas carne fria, queijo e alface desanimam. (Senta se no banco, com um suspiro de desânimo)

CROFTS — Para que você continua encorajando esse menino?

WARREN — (surpreendendo-se) Olhe, George, quais são as suas intenções com relação a ela?

Estive observando o seu modo de olhá-la. Eu o conheço bem e sei o que significam os seus olhares.

CROFTS — É proibido olhar para ela?

WARREN — Eu o ponho fora desta casa e o mando de volta para Londres, se você começar com suas manias. Uma unha do dedo de minha filha é mais importante para mim do que o seu corpo e sua alma juntos. (Crofts recebe essas palavras com uma contração de contrariedade no rosto. Sra.

Warren, renunciando à ideia de convencer Crofts com seu tom melodramático, usa um modo mais direto de falar) Sossegue, porque as suas possibilidades são tão grandes quanto as daquele menino.

CROFTS — Um homem não pode se interessar por uma jovem?

WARREN — Não um homem como você.

CROFTS — Que idade ela tem?

WARREN — Não lhe interessa.

CROFTS — Por que faz tanto segredo?

WARREN — Porque eu quero.

CROFTS — Pois bem, ainda não cheguei aos cinquenta anos e a minha fortuna é mais sólida hoje do que antes.

WARREN — (interrompendo-lhe) É natural que seja, pois você é um usurário corrompido.

CROFTS — (continuando) ... E um barão não se encontra todos os dias. Nenhum outro homem gostaria de ter você como sogra. Então por que diz que ela não pode se casar comigo?

WARREN — Com você?

CROFTS — Nós três poderíamos viver confortavelmente. Eu morrerei antes dela, deixando-a na invejável condição de uma viúva bela e rica. Sim, por que não? A ideia não é má.

WARREN — (revoltada) Sim, somente coisas como essas é que podem surgir na sua cabeça. (Ele recomeça a andar pela sala. Entreolham-se, ela com um pouco de temor, e de mal contido desprezo. Crofts olha a Sra. Warren furtivamente, com um lampejo de sensualidade no olhar e com um ar depravado no rosto)

CROFTS — (vendo que não conseguia ser simpático à Sra. Warren) Olhe, Kitty,. você é unia mulher ajuizada. Não lhe perguntarei mais coisa alguma nem você precisará responder a mais nada.

Farei a sua filha herdar todos os meus bens. Quanto a você, eu poderia lhe dar um cheque no dia do casamento. Basta me dizer uma quantia razoável.

WARREN — Veja a que ponto você chegou, George! A que ponto chegam todos os da sua laia!

CROFTS — (com violência) Sua ordinária!... (Antes que ela possa responder, a porta da cozinha se abre e começam a ser ouvidas as vozes dos outros. Crofts, não conseguindo se recompor, sai as pressas da casa e o reverendo aparece na porta da cozinha)

O REVERENDO — (olhando em torno) Onde está o Sr. George?

WARREN — Saiu um pouco para fumar. (O reverendo pega seu chapéu de cima da mesa e senta-se perto da Sra. Warren, enquanto Vivie entra seguida por Frank, que se senta em uma das cadeiras, aparentando um ar de extremo cansaço. A Sra. Warren olha para Vivie e com um tom afetado de carinho maternal, mais forçado do que de costume, diz) Então, minha querida? Jantou bem?

VIVIE — Você sabe como é a comida da Sra. Alison. (Olha com pena para Frank) Pobre Frank! Só lhe sobrou pão, queijo e cerveja para jantar. A manteiga desta casa à detestável (Seriamente, como se já tivesse brincado bastante naquela tarde) Mandarei buscar outra na cidade.

FRANK — Em nome de Deus, mande logo. (Vivie se encaminha até a mesa para tomar nota da compra da manteiga. Praed entra da cozinha, tirando do pescoço o lenço que usava como guardanapo.

O REVERENDO — Frank, meu filho, já são horas de irmos para casa. Sua mãe ainda não sabe que teremos visitas.

PRAED — Tenho receio de que vá importuná-los.

FRANK — (levantando-se) De forma alguma! Minha mãe ficará encantada em conhecê-lo. Ela é uma intelectual autêntica, uma artista. E há mais de um ano que não vê ninguém além de meu pai. O senhor pode imaginar o quanto isso a aborrece (Ao o pai) O senhor não é nenhum intelectual nem um artista, convenhamos. Conduza, pois, o Sr. Praed a nossa casa imediatamente. Fico ainda um pouco para fazer companhia a Sra. Warren. O senhor encontrará Crofts no jardim. Ele será uma excelente companhia para nosso buldogue.

PRAED — Venha conosco, Frank. A Sra. Warren não vê a filha há muito tempo e nós ainda não a deixamos sozinha com ela um momento sequer.

FRANK — (olhando para Praed, com admiração) Mas é claro Esqueci-me inteiramente. Obrigado por ter me lembrado, Praed. Você é um perfeito cavalheiro. O meu ideal na vida! (Prepara-se para se retirar, parando entre Praed e o reverendo. Coloca uma mão no ombro de Praed e depois a outra no do pai) Ah ! se você fosse meu pai ao invés desse velho indigno.

O REVERENDO — (em tom de severa reprimenda) Cale-se, cavalheiro, cale-se ! O senhor está se tornando insolente.

WARREN — (rindo alto) Precisava tê-lo mantido sob controle, Sam, Boa noite. Olhem, levem o chapéu e a bengala de Crofts, com os meus cumprimentos. (Os homens apanham suas coisas)

O REVERENDO — (segurando o chapéu e a bengala de Crofts) Boa noite ! (Despede-se da Sra.

Warren e de Vivie. Depois, imperativamente, para Frank) Vamos, cavalheiro. (Sai)

WARREN — Até logo, Praddy.

PRAED — Até logo, Kitty. (Cumprimentam-se carinhosamente e a Sra. Warren o acompanha até o portão do jardim)

FRANK — (a Vivie) Uni beijinho? ...

VIVIE — (Com raiva) Não. Eu o odeio. (Apanha alguns livros e papéis da cadeira e senta-se a mesa para estudar, ao lado da lareira)

FRANK — (fazendo uma careta) Desculpe-me (Vai apanhar o rifle. A Sra. Warren volta. Frank aperta a sua mão) Boa noite, querida Sra. Warren. (Beija-lhe a mão, apertando-a. A Sra. Warren a retira mordendo os lábios e demonstrando uma grande vontade de estapeá-lo. Frank sorri com malícia e sai, batendo a porta)

WARREN — (resignando-se a uma noite enfadonha, depois da saída de todos) Nunca ouvi tantas bobagens na minha vida. Ele não a aborrece? (Senta-se na mesa em frente a Vivie) Já que estamos falando dele, acho melhor que você não continue a encorajá-lo. Estou certa de que ele é um perfeito inútil.

VIVIE — (levantando-se para apanhar mais livros) Sim, tenho medo que seja. Pobre Frank! Tenho que me desvencilhar dele, mas sinto pena, embora ele não mereça. Aquele Crofts também não me parece ser grande coisa, não? (Coloca os livros sobre a mesa, com força)

WARREN — (chocada com a indiferença de Vivie) O que você sabe dos homens para falar desse modo sobre eles? Você deve mudar a sua opinião sobre o Sr. George Crofts e passar a tratá-lo como um amigo meu.

VIVIE — (sem se perturbar) Por quê? (Senta-se, abrindo os livros) Acredita que nós nos veremos com maior frequência agora? Quero dizer, eu e você?

WARREN — (encarando-a) Naturalmente. Até que você se case. Não quero mais que volte para o colégio.

VIVIE — Acredita que a minha maneira de viver combine com a sua? Eu não acredito.

WARREN — Sua maneira de viver? O que quer dizer isso?

VIVIE — (cortando as páginas de um livro com a espátula pendurada de sua châtelaine) Nunca lhe ocorreu, mamãe, que eu tenha uma maneira de viver, como as outras pessoas?

WARREN — Que bobagem e essa agora! Com certeza anda pensando que já é dona de sua vida só porque se tornou uma pequena personalidade no colégio? Não seja tola, menina.

VIVIE — (com calma) É tudo quanto você tem a dizer, não é, mamãe?

WARREN — (confusa, depois irritada) Não me faça mais perguntas como essa. (Com violência) Cuidado com o que diz. (Vivie, sem perder tempo, continua trabalhando em silêncio) Você e sua maneira de viver, hein? O que virá depois? Sua maneira de viver será aquela que eu determinar, aquela que mais me agradar. Tenho notado que você se modificou muito depois daquele exame, ou lá que nome tenha! Se você acha que o seu sucesso me deixou impressionada, engana-se. Quanto mais cedo souber disso, melhor. (Pausa) Isso é tudo quanto precisava lhe dizer. (Novamente enraivecida) A mocinha sabe com quem está falando?

VIVIE — (levantando os olhos para ela, sem levantar a cabeça do livro) Não. Quem é você? O que é você?

WARREN — (levantando-se ofegante de raiva) Demônio!

VIVIE — Todas as pessoas sabem quem eu sou, a que classe pertenço, a profissão que pretendo seguir. Mas eu na conheço nada a seu respeito. Que espécie de vida pretende que eu leve com você e com o Sr. George Crofts? Diga-me, por favor.

WARREN — Tome cuidado, Vivie. Eu poderei fazer alguma coisa de que venha a me arrepender no futuro, e você também.

VIVIE — (colocando os livros de lado, com uma fria decisão) Bem, deixemos esse assunto para um momento em que você esteja capaz de discuti-lo. (Olhando de modo crítico para sua mãe) Você está precisando de bons passeios e de jogar algumas partidas de tênis. Com isso se sentirá melhor.

Atualmente, você não está em condições de andar mais de quarenta metros sem parar um pouco par descansar. Seus braços estão redondos e flácidos. Veja os meus. (Mostra os braços)

WARREN — (depois de olha- la desconsoladamente, começa a choramingar) Vivie...

VIVIE — (levantando-se e repreendendo-a) Oh! Por favor, não comece agora a choramingar. Não, tudo menos isso. Não tolero. Se continuar, eu me retiro.

WARREN — (implorando) Oh! Vivie, como pode ser tão cruel comigo... Eu tenho direitos sobre você! Não sou sua mãe?

VIVIE — Você é minha mãe?

WARREN — (consternada) Se eu sou sua mãe? Oh Vivie...

VIVIE — Diga-me então onde se encontram nossos parentes. Meu pai. Os amigos de nossa família. Você reclama os direitos de mãe, o que lhe permite me chamar de boba, de criança; de me falar como nenhuma superiora que tive no colégio ousaria; de ditar o que devo fazer e como viver; de me impor a companhia de um homem que qualquer um reconheceria como o exemplo da mais pervertida espécie saída dos subúrbios de Londres. Antes de perder tempo com as suas imposições, quero saber primeiro, se elas têm razão de existir.

WARREN — (ofendida, mal se suportando de pé) Oh! Não, não, pare, pare! Eu sou sua mãe. Eu juro! Oh! Você não pode se voltar contra mim. Você e minha filha. Não é justo. Você acredita em mim, não é? Diga que acredita, por favor!

VIVIE — Quem foi meu pai?

WARREN — Você não sabe o que está perguntando. Eu não posso responder.

VIVIE — Sim, você pode, se quiser. Eu tenho o direito de saber e você sabe muito bem que eu tenho esse direito. Você pode se negar a me dizer, mas, se o fizer, me verá amanhã pela última vez na sua vida.

WARREN — É horrível ouvir falar assim! Você não poderia fazer isso comigo; você não poderia me deixar.

VIVIE — Sim, eu posso, e sem hesitar um só momento, se você continuar a esconder a verdade.

(Tendo um arrepio de nojo) Como posso estar certa de que o sangue daquele ordinário não corre dentro do meu sangue?

WARREN — Não, não. Eu juro que não é ele. E nenhum outro que você conheça. Disso, ao menos, tenho certeza. (Vivie olha rapidamente para sua mãe, surpresa ante o significado dessa declaração)

VIVIE — (vagarosamente) Disso, ao menos, você tem certeza. Ah! Somente disso é que você tem certeza! (Pensativamente) Compreendo. (A Sra. Warren esconde o rosto nas mãos) Não faça isso, mamãe. Você sabe que não está sentindo nenhum remorso. A Sra. Warren baixa as mãos, olhando desconsoladamente para Vivie, que enfrenta o seu olhar) Bem, por hoje é bastante. A que horas quer tomar o café? Oito horas é muito cedo?

WARREN — (voltando a raiva de há pouco) Meu Deus! Que espécie de a mulher é você?

VIVIE — (friamente) Da espécie de que o mundo está composto em sua maioria. Do contrário, não saberia como se fazem os negócios. Vamos? (Toma sua mãe pelo braço fazendo-a mover-se resolutamente) Fique tranquila. Está tudo bem.

WARREN — (queixosamente) Você é muito rude comigo, Vivie.

VIVIE — Não diga bobagens, Vamos dormir. Já passa das dez horas.

WARREN — (emocionada) De que adianta ir para a cama? Você pensa que eu conseguiria dormir?

VIVIE — Por que não? Eu conseguirei.

WARREN — Você. Você não tem coração! (De repente ela volta a seu falar natural, o de uma mulher do povo. Todas as suas afetações maternais e suas maneiras convencionais desaparecem.

Expressa-se num ímpeto de verdadeira convicção e de profundo desprezo por Vivie) Não aguento injustiça. Que direito você tem pra ficar me olhando de cima? Fui eu, eu, que dei a possibilidade de você ser o que é agora. Que possibilidades eu tive? Que oportunidades me deram? Você devia ter vergonha, filha sem coração, moralista metida a besta!

VIVIE — (sentando-se e encolhendo os ombros, já não tão segura; suas respostas, que lhe pareciam verdadeiras, tornam-se presunçosas, quase falsas, diante do modo como sua mãe lhe fala) Não pense que me considero superior a você. Não quis demonstrar nada disso. Você me atacou com a autoridade convencional de mãe e eu me defendi com a superioridade convencional de mulher honesta. Francamente, mamãe, não suportarei as suas tolices. E, quando você parar de dizê-las, não terei a pretensão de esperar que você aguente as minhas. Respeitarei sempre o seu direito de dizer o que quiser e de levar a vida que bem entender.

WARREN — Minhas opiniões! Minha vida! Ouçam só o que ela está dizendo. Pensa que eu fui educada como você? Capaz de escolher a minha própria vida? Pensa que fiz o que fiz porque gostava ou porque pensava que era direito? Pensa que não teria preterido ir para o colégio e me tornar uma mulher honesta, se eu tivesse tido essa oportunidade?

VIVIE — Todas as pessoas têm uma certa possibilidade de escolha, mamãe. Não digo que uma menina pobre possa escolher entre ser rainha da Inglaterra ou reitora de uma universidade. Mas ela pode escolher entre ser cozinheira ou florista, de acordo como seu gosto. As pessoas sempre culpam as circunstâncias pelo que são. Eu não acredito nas circunstâncias. Os que triunfam na vida são os que triunfam sobre as circunstâncias. Eles as procuram e, se não as encontram, fazem suas próprias circunstâncias.

WARREN — Falar é fácil, muito fácil mesmo. Quer saber quais foram as minhas circunstâncias?

VIVIE — Sim, seria melhor que você me dissesse. Não quer se sentar?

WARREN — Sim, eu me sento, não se preocupe. (Coloca a cadeira mais para a frente, com energia. Vivie impressiona--se, embora contra sua vontade) Sabe quem foi sua avó?

VIVIE — Não.

WARREN — Não, você não sabe. Mas eu sei. Ela dizia que era viúva e morava num lugar miserável onde mantinha quatro filhas. Duas eram irmãs: eu e Liz. Éramos fortes e sadias. Provavelmente, o nosso pai foi um homem que gostava de comer bem. Minha mãe dizia que ele era um cavalheiro, mas eu duvido. As outras duas eram irmãs só por parte de mãe. Franzinas, magras, com caras doentias, mas resistentes ao trabalho, pobres e honestas criaturas. Eu e Liz quase teríamos matado as duas de pancada, se nossa mãe não tivesse quase matado a nós duas de pancada para evitar isso.

Eram honestas. De que valeu para elas a honestidade? Eu Conto. Uma delas trabalhava doze horas por dia numa fábrica de alvaiade, ganhando por semana o que mal dava para comprar pão, até que morreu envenenada pelo ar da fábrica. Ela esperava ficar apenas com as mãos paralisadas quando caiu doente. Mas ela morreu. A outra era apontada como exemplo porque tinha se casado com um funcionário público e porque conseguia, com oito xelins por semana, manter a casa e os filhos sempre limpos e arrumados. Isso até o dia em que o marido deu para beber. Valeu a pena serem honestas, não é?

VIVIE — (agora pensativa e atenta) Você e sua irmã pensavam assim?

WARREN — Ela não. Tinha mais outras qualidades. Nós frequentavamos a escola da igreja. Por isso humilhávamos as outras que não sabiam nada e não iam à escola. Até que, uma noite, Liz desapareceu e não voltou mais. Eu sabia que a professora estava com medo que eu seguisse o mesmo caminho de Liz, porque o diretor dizia sempre que ela acabaria se atirando da ponte de Waterloo. Velho idiota! Era só o que sabia dizer. Mas eu tinha mais medo da fábrica do que do rio.

Você também, se estivesse no meu lugar. O diretor me arranjou uni emprego de lavadora de pratos na cantina da Sociedade de Temperança. Depois consegui um lugar de criada, e depois fui trabalhar num bar, na estação de Waterloo. onde passava quatorze horas por dia servindo bebida e enxugando copos, ganhando uma miséria por semana. Mas lá eu tinha direito a casa e comida, o que foi considerado um progresso na minha carreira. Bem, uma noite das mais frias e mais tristes, quando mal me aguentava em pé, cansada, imagine quem aparece pedindo um uísque, enrolada numa pele grande e confortável e com um monte de dinheiro na bolsa?

VIVIE — (horrorizada) Tia Liz?

WARREN — Sim, uma boa tia para se ter, posso assegurar. Ela a vive agora em Winchester, perto da catedral, e é uma das senhoras mais respeitáveis do lugar. Acompanha as mocinhas aos bailes, imagine! Nada mais de rios para Liz, ainda bem! Você se parece um pouco com ela. Era uma mulher que sabia resolver os seus negócios, sempre economizando e não permitindo nunca que os outros percebessem o que ela era, nunca perdendo a cabeça nem as oportunidades. Quando viu que eu tinha ficado uma mulher bonita, ela me disse, debruçada sobre o balcão: “O que você está fazendo aqui, sua boba, desperdiçando a saúde e a beleza em proveito dos outros?” Nesse tempo Liz juntava dinheiro para se associar a um a casa em Bruxelas. Nós duas juntas poderíamos conseguir mais dinheiro, muito mais depressa. Ela me emprestou algum, no início. Consegui pagar logo e pouco depois entrava como sua sócia no negócio. Por que não? A casa de Bruxelas era realmente de primeira classe. Muito melhor do que a fábrica de alvaiade onde Anne Jane morreu envenenada.

Nunca nossas meninas foram tratadas como eu na cantina, no bar da estação ou em casa. Você gostaria que eu continuasse num daqueles lugares para me matar de trabalho e cansaço antes de chegar aos quarenta anos?

VIVIE — (mostrando-se agora interessada) Não. Mas por que você escolheu esse tipo de negócio?

Economia e trabalho poderiam fazer sucesso em qualquer outro ramo de comércio.

WARREN — Sim, economizando. Em que outra espécie de trabalho a mulher pode ganhar o suficiente para economizar? Você poderia economizar ganhando apenas quatro xelins por semana e tendo que se vestir decentemente? Não, você não. Naturalmente se eu tivesse jeito pura a música, teatro ou jornalismo, seria diferente. Mas nem eu nem Liz tínhamos inclinação para essas profissões. Tudo o que possuíamos era beleza e jeito para agradar os homens. Ou você acha que nós seríamos bobas a ponto de deixar que os outros ganhassem às nossas custas?

VIVIE — Vocês ficavam perfeitamente justificadas do ponto de vista comercial.

WARREN — Sim, desse e de qualquer outro ponto de vista. Qual a razão para se educar uma mulher se não lhe ensinamos a conquistar um homem rico e a conseguir o seu dinheiro, casando-se com ele? A cerimônia do casamento não torna a coisa mais moral. Ah! A hipocrisia do mundo me enoja. Eu e Liz tivemos que trabalhar e economizar muito. Do contrário, teríamos ficado como essas pobres mulheres que pensam que o destino é imutável. (Com grande energia) Eu desprezo esse tipo de pessoas. Elas não têm caráter e uma das coisas que mais me irritam em uma mulher é a falta de caráter.

VIVIE — Vamos, mamãe: O que você chama de falta de caráter não será apenas a profunda repulsa por esse modo de ganhar dinheiro?

WARREN — Sim, naturalmente. Ninguém gosta de ganhar dinheiro trabalhando. Mas tem sempre que trabalhar. Eu mesma quantas vezes senti pena de uma das pobres meninas, cansada física e moralmente, e tendo que ser agradável a um homem que ela desprezava, um grosseiro meio embriagado que pensava encantar, quando na verdade enojava a moça, cujo esforço terrível de suportar aquele homem não poderia ser pago com dinheiro nenhum do mundo. Mas ela tinha que suportá-lo, como se fosse uma enfermeira no hospital. Mulher nenhuma faz com prazer esse tipo de trabalho.

Deus sabe! Mas quando se ouve as pessoas caridosas, ah!... Você poderia pensar que essa vida é um mar de rosas.

VIVIE — Contudo, você acha que compensa.

WARREN — É claro que compensa para uma moça pobre que seja bonita, ajuizada e saiba resistir às tentações. É muito melhor do que qualquer outro emprego. Sempre achei que não deveria ser assim. É injusto, eu sei, mas não existem oportunidades melhores. Certo ou errado, é assim. Só resta tirar o melhor proveito possível.. Naturalmente, não vale a pena para quem nasceu em condições diferentes. Você, por exemplo, seria uma idiota se o fizesse, mas eu seria uma idiota se não tivesse feito o que fiz.

VIVIE — (cada vez mais comovida) Mamãe, se nós fôssemos agora tão pobres quanto você naquela época, tem certeza de que não me aconselharia a trabalhar no bar da estação, a me casar com um empregado do governo ou até mesmo a me empregar na fábrica?

WARREN — (indignada) Que espécie de mãe você pensa que eu sou? De modo algum daria esses conselhos. Como você poderia se respeitar, vivendo naquela escravidão miserável? De que vale uma mulher, de que vale uma vida sem respeito? Por que eu sou uma mulher independente e capaz de dar à minha filha uma boa educação, enquanto outras, que viveram igualmente boas oportunidades, estão na lama? Por que sempre soube me respeitar? Por que hoje Liz é admirada e respeitada numa cidadezinha de província? Onde estaríamos agora se tivéssemos ouvido as bobagens do diretor da escola? Lavando o chão, ganhando uma miséria por dia, com a única esperança de sermos internadas num asilo de velhas. Não se deixe levar pelas pessoas que não conhecem o mundo, minha filha. O único meio de uma mulher conseguir o seu sustento de maneira decente é ser agradável a um homem que possui o suficiente para ser agradável a ela. Se os dois pertencem a mesma classe, ela deve deixar que ele se case com ela. Mas, se ela for de condição inferior, o que poderá esperar? Esse casamento não a faria feliz. Pergunte a qualquer senhora da sociedade de Londres e ela dirá a mesma coisa. Só que eu digo cruamente, e elas diriam com hipocrisia. Essa é a única diferença.

VIVIE — (olhando a, fascinada) Minha querida mãe; você é uma mulher maravilhosa. Mais forte do que toda a Inglaterra. Mas me diga uma coisa: você nunca teve dúvidas, nunca se sentiu envergonhada?

WARREN — Bem, é claro, querida, faz parte das boas maneiras ficar envergonhada. Isso é esperado em uma mulher. Elas devem aparentar mais do que sentem na realidade. Liz irritava-se comigo porque eu sempre lhe dizia a verdade. Ela costumava dizer também que, quando uma mulher consegue ver o que está diante de seus olhos, ninguém mais poderá lhe ensinar nada sobre o que viu. Liz era uma perfeita lady, ao passo que eu sempre fui um pouco vulgar. Quando você me mandava as suas fotografias, eu ficava contente de ver que você se parecia com Liz, o mesmo jeito de lady, o mesmo ar resoluto. Não sou daquelas que pensam uma coisa e dizem outra. Por que ser hipócrita? Mas, se o mundo é feito assim para as mulheres, seria inútil pretender o contrário. Não, eu nunca me envergonhei, na verdade. Tenho o direito de ficar orgulhosa pela maneira respeitável com que sempre dirigi os nossos negócios. Nunca recebemos uma palavra de censura ao modo pelo qual tratávamos as meninas. Muitas fizeram uma carreira invejável. Uma delas se casou com um embaixador. Mas compreende-se que hoje em dia eu não fale mais dessas coisas. O que pensariam de nós? (Boceja) Oh! Querida, acho que estou mesmo ficando com sono. (Espreguiça-se aliviada pelo desabafo e calmamente prepara-se para dormir)

VIVIE — Acho que agora sou eu que não conseguirei dormir. (Encaminha-se para o móvel e acende uma vela. Depois apaga as lâmpadas mergulhando a sala em meia escuridão) Acho melhor deixar que entre um pouco de ar fresco antes de fecharmos tudo. (Abre a poria de entrada e descobre estar a noite enluarada) Que linda noite! (Afasta as cortinas. A paisagem aparece batida pela lua que nasce da escuridão)

WARREN — (olhando superficialmente) Sim, querida, mas tome cuidado para não se resfriar.

VIVIE — (desdenhosamente) Bobagens.

WARREN — (queixosa) É, tudo que eu digo você acha bobagem.

VIVIE — (voltando-se parta ela, apressadamente) Não, mamãe. Esta noite você venceu, embora desejasse que as coisas se tivessem passado de outro modo. Sejamos boas amigas de agora em diante, não?

WARREN — (balançando a cabeça melancolicamente) Mas eu acabarei perdendo. Foi sempre assim com Liz e acho que acontecerá o mesmo com você.

VIVIE — Mas não se preocupe, vamos. Boa noite, minha velha e querida mãe. (Abraça-a)

WARREN — (comovida) Eu a eduquei bem, não foi?

VIVIE — Muito.

WARREN — E por isso você será boa para sua pobre e velha mãe, não é?

VIVIE — Claro que sim. (Beijando-a) Boa noite.

WARREN — Eu a abençoo, minha filha querida. Uma bênção de mãe! (Abraça a filha como se a protegesse, olhando instintivamente para o alto, à espera da bênção divina)


Ato III

 

(Na manhã seguinte, no jardim da casa do pastor, sob um sol brilhante e um céu sem nuvens. O muro do jardim tem, bem no centro, um portão com cinco barras de madeira, que dá espaço bastante para passar uma carruagem. Perto deste portão, há um sino pendurado numa espécie de mola em espiral, ligada a um longo cordel. O caminho de veículos chega até o centro do jardim, desviando repentinamente para a esquerda, onde o jardim termina num pequeno círculo de cascalho, frente a varanda da casa. Além do portão e paralelamente ao muro, vê-se uma larga estrada de terra com sua margem mais distante limitada por uma faixa de capim e um bosque de pinheiros, sem nenhuma cerca. No gramado, entre a casa e a passagem de veículos, há um teixo, com a copa bem podada e, em sua sombra, um banco de jardim. Do lado oposto, o jardim é fechado por uma sebe de buxo. Vê-se anda um relógio de sol, tendo a seu lado uma cadeira de ferro. Atrás deste relógio, um trilho estreito atravessa a sebe. Frank, sentado na cadeira que está perto do relógio de sol, sobre o qual ele colocou os jornais matutinos, está lendo The Standard. Seu pai se aproxima, vindo da casa. Tem os olhos vermelhos e está trêmulo. Seus olhos encontram os de Frank e demonstram grande apreensão)

 

FRANK — (olhando o relógio) Onze e meia. Isto são horas de um pároco levantar-se para o café?

O REVERENDO — Nada de brincadeiras. Frank. Estou me sentindo um pouco...

FRANK — Zonzo?

O REVERENDO — (com dignidade) Não, cavalheiro. Não me sinto bem esta manhã. Onde está sua mãe?

FRANK — Fique tranquilo. Ela não está. Foi à cidade com Bessie, no trem das onze horas e treze minutos, e deixou uns recados para você. Está em condições de recebê-los agora ou quer esperar para depois do café?

O REVERENDO — Já tomei café, cavalheiro. Estou surpreso com a ida de sua mãe à cidade. Ela sabe que nós temos visitas e que elas estranharão a sua ausência.

FRANK — Ela deve ter pensado nisso. De qualquer modo, se Crofts pretende continuar aqui e se você pensa ficar com ele todas as noites até às quatro horas, bebendo e recordando os episódios de sua juventude fogosa, é natural que mamãe, como dona de casa prudente que é, se ache na obrigação de ir à cidade providenciar um barril de uísque e cem vidros de bicarbonato.

O REVERENDO — Não notei que Sir George Crofts bebesse demasiado...

FRANK — Não estava em condições de notá-lo, chefe.

O REVERENDO — Você não quer insinuar que eu...

FRANK — Nunca vi um pároco tão pouco sóbrio. As anedotas que você contou sobre a sua juventude foram tão espantosas que Praed não teria passado a noite sob o seu teto se não tivesse nascido, entre ele e mamãe, uma simpatia tão grande.

O REVERENDO — Tolices. Eu estou hospedando Sir George Crofts. Devia conversar com ele sobre alguma coisa. Mas só existe um assunto que o interessa. Onde está o Sr. Praed agora?

FRANK — Acompanhando mamãe e Bessie à cidade.

O REVERENDO — Crofts já se levantou?

FRANK — Há muito tempo. Ele resiste melhor do que você. Talvez esteja mais treinado.

Provavelmente não parou de beber desde ontem. Saiu agora para fumar um pouco. (Frank volta a ler o jornal. O reverendo se encaminha, desconsolado, até o portão; depois volta-se, com ar pouco seguro)

O REVERENDO — (a Frank) Ah! Frank...

FRANK — Sim?

O REVERENDO — Você acha que a Sra. Warren e sua filha estejam esperando um convite nosso, depois de nosso encontro de ontem?

FRANK — Elas já foram convidadas.

O REVERENDO — (empalidecendo) O quê?

FRANK — Crofts nos informou, durante o café, que você o tinha encarregado de trazer a Sra.

Warren e sua filha a nossa casa e de dizer-lhes que esta casa é como se fosse delas. Foi então que mamãe descobriu que precisava ir à cidade.

O REVERENDO — (com desesperada veemência) Jamais fiz esse convite. Nunca pensei em fazê-lo.

FRANK — (com compaixão) Como você pode saber o que disse e pensou ontem a noite, chefe?

PRAED — (entrando pela cancela) Bons dias.

O REVERENDO — Bom dia. Quero lhe pedir desculpas por não ter estado presente ao café. Tive um pouco de...

FRANK — Enxaqueca de padre. Felizmente não é uma doença crônica..

PRAED — Bem, devo lhe dizer que sua casa está localizada em um lugar magnífico, verdadeiramente encantador.

O REVERENDO — Sim, sim, é verdade. Frank o levará para um passeio pelas redondezas, se o senhor quiser. Terá que me desculpar, mas devo aproveitar, enquanto a Sra. Gardner está ausente e meus hóspedes entretidos, para escrever o meu sermão. O senhor não se incomodará, não?

PRAED — Não, é claro. O senhor é que não deve se preocupar comigo.

O REVERENDO — Obrigado. Eu vou... É... (Sai gaguejando desculpas)

PRAED — (sentando-se na grama perto de Frank, abraçando os joelhos) Coisa curiosa escrever um sermão toda semana!

FRANK — Curiosíssima para quem escreve. Mas ele compra os sermões. Foi agora tomar um pouco de bicarbonato.

PRAED — Meu caro menino, gostaria que você respeitasse mais o seu pai. Você sabe ser atencioso quando quer.

FRANK — Meu querido Praed, você se esquece que eu tenho que viver com o chefe. Quando duas pessoas vivem juntas, sejam elas pai e filho, marido e mulher, ou mesmo irmão e irmã, não podem manter por muito tempo aquele tipo de fingida cortesia que é próprio das visitas cerimoniosas.

Agora. meu pai, que une a muitas qualidades familiares a irresolução de um carneiro e a obstinação de um jumento ...

PRAED — Não, por favor, não esqueça, ele é seu pai.

FRANK — Não lhe nego esse mérito. (Levanta-se e joga para o ar o jornal) Mas pense que ele pediu a Crofts para trazer aqui Sra. Warren e Vivie. Devia estar bêbado. Você talvez saiba, meu querido Praddy, que minha mãe não pode suportar a Sra. Warren nem por um momento. Vivie não deve vir aqui antes que sua mãe tenha ido embora.

PRAED — Mas sua mãe nada sabe a respeito da Sra. Warren, não é verdade? (Apanha o jornal do chão e senta-se para lê-lo)

FRANK — Talvez, não sei. O fato de ter evitado a Sra. Warren, indo à cidade, me faz pensar que sim. Não que ela se importasse por razões convencionais. Ela já amparou muitas mulheres que se encontravam em situações delicadas. Mas eram todas mulheres educada. Nisto reside a diferença. A Sra. Warren sem dúvida tem qualidades, mas é muito agitada. E minha mãe não poderia suportá-la. Por isso... Olá! (Esta saudação se dirige ao reverendo que sai de casa com ar consternado e apressado)

O REVERENDO — Frank, a Sra. Warren e sua filha estão vindo para cá, acompanhadas por Crofts. Eu os vi pela janela de minha sala de trabalho. Como poderia explicar-lhes a ausência de sua mãe?

FRANK — Ponha o chapéu e vá saudá-las. Diga-lhes que Frank está no jardim, que mamãe e Bessie tiveram que ir à cidade visitar um parente e que lamentaram muito não terem podido ficar, que você espera que a Sra. Warren tenha passado uma boa noite e... E... Diga qualquer coisa que lhe vier à cabeça, exceto a verdade, e deixe o resto com a providencia divina...

O REVERENDO — Mas como farei depois para me desvencilhar delas?

FRANK — Agora não é o momento para se pensar nisso. Vamos! (Entra em casa correndo e volta com o chapéu do reverendo) E agora, a caminho. (Empurra-o pela porta) Praed e eu esperaremos aqui para dar a tudo um ar mais natural.

O REVERENDO — (confuso, mas obedecendo) Ele é tão autoritário. Não sei o que fazer com ele, Sr. Praed.

FRANK — Temos que encontrar um meio de mandar a velha para a cidade, Praed. Diga-me, Praed, sinceramente, você gosta de ver as duas reunidas, Vivie e sua mãe?

PRAED — E por que não?

FRANK — Não lhe provoca arrepios? (Rilhando os dentes) Aquela velha feiticeira, que eu suponho capaz das maiores baixezas do mundo, com Vivie, meu Deus!

PRAED — Cale-se por favor. Elas estão chegando. (Veem-se o reverendo e Crofts caminhando pela estrada, .seguidos por Vivie e pela Sra. Warren, que caminham abraçadas carinhosamente)

FRANK — Veja só! Ela está com o braço passado pela cintura da velha. Por Deus! Ela está se tornando sentimental. Isso não o deixa arrepiado? (O reverendo abre o portão, a Sra. Warren e Vivie entram e param no meio do jardim para olhar a casa. Frank, dissimulando, dirige-se a Sra.

Warren) Sinto-me verdadeiramente encantado em vê-la, Sra. Warren. Este velho e sossegado jardim paroquial é o mi ambiente perfeito para a senhora.

WARREN — Você ouviu, George? Essa agora! Que eu fico muito bem neste velho jardim da paróquia.

O REVERENDO — (segurando ainda a cancela para Crofts que atravessa demonstrando uma profunda amolação) A senhora fica bem em qualquer lugar.

FRANK — Bravo, chefe. Agora olhe, vamos procurar nos divertir até a hora do almoço . Antes de qualquer coisa, vamos visitar a igreja. É uma igreja do século XIII, autêntica, sabiam? Papai fica orgulhoso dela, pois conseguiu restaurá-la inteirinha. Praed será o nosso guia.

PRAED — (levantando-se) Com prazer, se é que a restauração deixou alguma a coisa intata.

O REVERENDO — (dirigindo-se hospitaleiramente a eles) Ficaria muito contente se a Sra. Warren e Sir George tivessem prazer nessa visita.

WARREN — Oh! Vamos logo e acabemos com isso.

CROFTS — (dirigindo-se novamente ao portão) Por mim, não faço objeções.

O REVERENDO — Por este caminho, não. Vamos pelo campo, se é que não lhe desagrada. Por aqui. (Ele os conduz pelo atalho que atravessa a sebe de buxo)

CROFTS — (seguindo o reverendo) Pois muito bem. Praed acompanha a Sra. Warren. Vivie não se move. Olha os outros até desaparecerem. Percebe-se em seu rosto a decisão que tomou e que o marca acentuadamente)

FRANK — Você fica?

VIVIE — Sim, quero preveni-lo de uma coisa, Frank. Procure tratar a minha mãe com o mesmo respeito com que você trata a sua. Ainda há pouco você zombou dela, com aquela insinuação sobre o jardim. Essas coisas ficam proibidas daqui por diante.

FRANK — Mas Vivie, ela não perceberia a diferença. Cada uma delas requer um tratamento próprio. Mas o que lhe aconteceu? Ontem a noite nós estávamos perfeitamente de acordo com relação a sua mãe e ao séquito que a acompanha. Hoje de manhã, eu vejo você representar a sentimental, enlaçando a cintura de sua mãe..

VIVIE — (com rubor de raiva) Representar?

FRANK — Foi o que me pareceu. Pela primeira vez vi você agindo dessa maneira.

VIVIE — (procurando controlar-se) Sim. Frank. Houve uma grande transformação em mim. Mas não creio que tenha sido para pior. Ontem eu era uma jovem presunçosa...

FRANK — E hoje?

VIVIE — (com um pequeno sobressalto, encarando-o) Hoje, eu conheço minha mãe bem melhor do que você.

FRANK — Que Deus não a ouça!

VIVIE — Que quer dizer isso?

FRANK — Vivie, as pessoas imorais pertencem a uma maçonaria, a qual você desconhece, porque tem caráter. É exatamente esse o elo entre mim e sua mãe. Por isso mesmo é que eu a conheço como você jamais poderá conhecê-la.

VIVIE — Você está enganado. Você não a conhece. Se conhecesse as circunstâncias contra as quais minha mãe teve que lutar...

FRANK — (concluindo a frase de Vivie) Saberia por que ela é o que é, não? Que diferença faria?

Circunstâncias ou não circunstâncias, você jamais suportará sua mãe, Vivie.

VIVIE — (muito zangada) Por que não?

FRANK — Porque ela é uma velha megera, Vivie. Se você a abraçasse novamente em minha presença eu daria um tiro em mim mesmo para não assistir a um espetáculo que me repugna.

VIVIE — Então eu devo escolher: ou você ou minha mãe?

FRANK — (graciosamente) Isto colocaria a velha senhora em nítida desvantagem com relação a mim. Não, Vivie. O seu apaixonadíssimo menino permanecerá de seu lado, em qualquer caso. Mas ele desejará sempre que você não cometa esses erros. Não adianta, Vivie. Sua mãe é unia mulher insuportável. Ela não presta, Vivie, não presta mesmo.

VIVIE — (com calor) Frank! (Ele permanece imperturbável. Ela afasta-se, sentando-se em um banco e tentando readquirir o controle) Ela deve ser então abandonada por todos porque, segundo a sua opinião, ela não presta? Não tem o direito de viver?

FRANK — Não se preocupe com isso. Ela jamais será abandonada. (Senta-se no banco ao lado de Vivie)

VIVIE — Mas eu devo abandoná-la, suponho.

FRANK — (fazendo um jeito de criança, ninando-a, e cortejando-a com a voz) Não deve viver com ela. O pequeno grupo familiar, mãe e filha, não teria sucesso e estragaria o nosso grupinho.

VIVIE — (deixando-se encantar) Que grupinho!

FRANK — O dos dois meninos no bosque! Vivie e o pequeno Frank. (Aninha-se em Vivie como um menino cansado) Agora as folhas irão nos cobrir.

VIVIE — Sob as árvores, dormir profundamente de mãos dadas.

FRANK — A menina sabida com seu menino bobinho.

VIVIE — O querido menino com sua feia menininha.

FRANK — Sossegados, em paz, o menino liberto da imbecilidade do pai e a menina, da reputação da...

VIVIE — (abafando as palavras de Frank contra o seio) Sh... Sh... Sh... A menina quer esquecer tudo o que se refere a sua mãe. (Ficam em silêncio, embalando-se. De repente Vivie desperta, exclamando) Que dois bobos somos nós ! Vamos, levante-se. Meu Deus, seu cabelo! (Assenta o cabelo de Frank com as mãos Será que todas as pessoas brincam assim de crianças quando ficam sozinhas? Nunca fiz isso quando pequena.

FRANK — Nem eu tampouco. Você é a primeira menina com quem eu brinco. (Segura a mão de Vivie, quando inesperadamente surge Crofts por trás das sebes) Maldito!

VIVIE — Por que maldito, querido?

FRANK — (falando baixo) Shsh... Esse animal do Crofts. (Afasta-se dela assumindo um ar indiferente)

CROFTS — Poderia falar um momento com a senhorita?

VIVIE — Pois não.

CROFTS — (a Frank) Desculpe-me, Gardner, mas estão esperando por você na igreja, se isso não lhe desagrada.

FRANK — (levantando-se) O que você quiser, Crofts, para agradá-lo, menos a igreja. Se por acaso precisar de mim, Vivie, basta tocar o sino do portão. (Dirige-se para a casa, mantendo a suavidade de seu comportamento)

CROFTS — (olhando-o com ar de astúcia, enquanto Frank desaparece, e falando a Vivie com um tom próprio a um tipo de relações privilegiadas) É um rapaz agradável. Pena que ele não tenha posses, não é mesmo, Srta. Vivie?

VIVIE — O senhor acha?

CROFTS — Bem, o que poderá ele fazer ? Não tem profissão, não tem propriedades. O que é que ele vale?

VIVIE — Eu já pesei essas desvantagens, Sir George.

CROFTS — (explicando-se para ser melhor interpretado) Não, não é bem isso. Mas, enquanto estivermos no mundo, é nele que viveremos, e dinheiro é dinheiro. (Vivie não responde) Que bonito dia, não?

VIVIE — (escarnecendo de sua pobreza de conversação) Muito.

CROFTS — (tendo prazer em demonstrar seu rude bom humor) Mas não foi para lhe dizer isto que eu vim até aqui. (Senta-se perto dela) Agora escute, Srta. Vivie. Estou perfeitamente convencido de que não sou um homem que agrade as mulheres jovens...

VIVIE — Não, Sir George?

CROFTS — Não. E, para lhe dizer a verdade, eu não me preocupo muito com isso. Mas quando eu digo uma coisa, é porque quero dizê-la. Quando expresso um sentimento, é porque eu estou sentindo honestamente. E, para satisfazer um desejo, pago o que for preciso. Essa é a espécie de homem que eu sou.

VIVIE — O que muito o enobrece, sem dúvida.

CROFTS — Oh! Eu não desejo fazer meu autoelogio. Tenho meus defeitos. Deus sabe, e ninguém os conhece melhor do que eu. Sei que não sou perfeito. Isto é uma das vantagens em ser um homem de meia-idade, porque não sou nenhum jovem, bem sei. Mas o meu código moral é simples e, acho eu, muito bom. Honra entre os homens, fidelidade entre homem e mulher, nenhuma hipocrisia a respeito desta ou daquela religião, e uma sincera confiança em que as coisas vão sempre do bom para o melhor.

VIVIE — (com maldosa ironia) “Um poder, e não nós, faz as coisas tenderem para o bem”, não é?

CROFTS — (levando-a a sério) Exatamente isso. Nós jamais o faríamos. A senhorita compreende o que eu quero dizer. Agora sejamos práticos. Com certeza a senhorita pensa que eu dilapidei a minha fortuna, mas está enganada. Hoje sou mais rico ainda do que no dia em que recebi a minha herança.

Aproveitei a experiência que adquiri do mundo para investir meu dinheiro em empresas que os outros desprezavam. Posso ser criticado em muitas coisas, menos no que diz respeito a dinheiro.

VIVIE — O senhor se mostra muito gentil, dando-me essas informações.

CROFTS — Oh! Por favor! A senhorita sabe o que eu quero dizer. Desejo uma Lady Crofts. A senhorita deve achar um pouco rude a minha maneira de falar, não é?

VIVIE — Absolutamente. Agradeço-lhe a maneira franca e prática com que o senhor me expõe os seus negócios. Aprecie muito a sua oferta: dinheiro, posição social, Lady Crofts... Mas penso que recusarei, se o senhor não se importa. Prefiro renunciar. (Levanta-se e aproxima-se do relógio de sol para fugir da proximidade de Crofts)

CROFTS — (sem desanimar, considerando a primeira negativa como parte das recusas preliminares da inevitável rotina de cortejar e aproveitando o espaço para se sentar mais confortavelmente) Não tenho pressa. Desejo apenas que a senhorita esteja a par de minhas ideias, no caso do jovem Gardner tentar conquistá-la com suas armadilhas. Deixemos a discussão em aberto.

VIVIE — (asperamente) Minha recusa é definitiva. Não voltarei atrás.. (Crofts não se impressiona.

Sorri largamente. Apoia os cotovelos nos joelhos e, com a ponta da bengala, fustiga um inseto qualquer. Observa-a com malícia. Ela passeia e se volta com impaciência)

CROFTS — Sou muito mais velho do que a senhorita. Vinte e cinco anos mais velho. Um quarto de século. Não viverei eternamente e tomarei as providências necessárias para que a senhorita não fique desamparada quando eu partir.

VIVIE — Nem mesmo argumentos tão sedutores me convencerão. Não acha melhor aceitar a minha recusa? Não há a menor possibilidade de que eu volte atrás.

CROFTS — (levantando-se, depois de arrancar urna margarida, encaminha-se para perto de Vivie) Bem, não importa. Poderia lhe dizer algumas coisas que fariam a senhorita mudar de atitude mas não as direi, porque prefiro conquistá-la com a sinceridade do meu afeto. Fui um grande amigo de sua mãe. Pergunte-lhe. Ela jamais teria conseguido o dinheiro com que sustentou a sua educação, se não fossem meus conselhos e minha ajuda, sem falar no dinheiro que lhe emprestei. Não existem muitos homens capazes de fazer o que fiz. No total gastei quarenta mil libras.

VIVIE — (olhando-o, espantada) O senhor está querendo dizer que foi o sócio de minha mãe.

CROFTS — Sim. Agora pense nas preocupações e explicações que poderão ser evitadas, se nós mantivermos tudo, como direi, em família. Pergunte à sua mãe se ela gostaria de explicar todos os seus negócios a uma pessoa inteiramente estranha.

VIVIE — Eu não vejo dificuldades, uma vez que sei estar o negócio encerrado e o capital empregado de outra maneira.

CROFTS — (parando, estupefato) Encerrado? Encerrar um negócio que nos anos piores rende trinta e cinco cento? Impossível. Quem lhe disse isso?

VIVIE — (empalidecendo) Quer dizer que ainda... (Interrompe bruscamente, Apoia-se no relógio de sol e depois corre a sentar-se em uma das cadeiras de ferro) A que negócio o senhor se refere?

CROFTS — Bem, a verdade é que não o podemos considerar propriamente um negócio muito elegante. Pelo menos não é assim considerado pelos aristocratas, pelas pessoas de minha classe, de nossa classe, se você mudar de ideia quanto a minha proposta. Não que exista nisso um mistério maior. Não, não pense nisso. O próprio fato de sua mãe participar dele mostra o quanto é honesto e correto. Conheço sua mãe há muitos anos e sei que ela cortaria as mãos antes de tocar em algo que não devesse ser tocado. Posso lhe explicar tudo se você quiser. Não sei se já observou o quanto é difícil encontrar um hotel verdadeiramente confortável, quando se viaja.

VIVIE — (virando a cabeça, enojada) Sim. Continue...

CROFTS — Bem, sua mãe possui um talento raro para administrar essas coisas. Temos dois em Bruxelas, um em Ostende, outro em Viena e mais dois em Budapeste. Naturalmente outras pessoas, além de nós, participam do negócio. Mas a maior parte do capital nos pertence e sua mãe é indispensável como diretora geral. A senhorita deve ter observado que ela viaja com frequência.

Mas veja bem, não se pode mencionar essas coisas em sociedade. Basta pronunciar a palavra hotel para que as pessoas fiquem pensando que se trata de uma espelunca. Você não gostaria que as pessoas dissessem isso para sua mãe, não é verdade? Eis por que falamos sempre de maneira tão reservada. Aliás, a senhorita também manterá este segredo. Desde que vem sendo guardado ha tanto tempo ...

VIVIE — É para esse tipo de comércio que me deseja como sócia?

CROFTS — Oh! Claro que não. Minha mulher jamais seria importunada pelos meus negócios. Você participaria deles da mesma forma como participou até hoje.

VIVIE — Da mesma forma? Que quer dizer com isso?

CROFTS — Quero dizer apenas que a senhorita sempre viveu dele. Pagou a sua educação e as roupas que está vestindo. Não torça tanto o nariz para os negócios. Sem eles, onde estariam agora os seus diplomas e lauréis da universidade?

VIVIE — (levantando-se, quase fora de si) Cale-se. Eu sei a espécie de negócio que fazem.

CROFTS — (sufocando uma imprecação) Quem lhe contou?

VIVIE — Seu sócio. Minha mãe.

CROFTS — (com ódio) Aquela velha...

VIVIE — (interrompendo) Exatamente. (Crofts sufoca o adjetivo, blasfemando entre dentes no paroxismo da raiva. Sabe que o único caminho é mostrar-se compreensivo. Tenta conquistar-lhe a simpatia, fingindo indignação)

CROFTS — Ela deveria ter tido mais consideração pela seu senhorita. Eu jamais lhe contaria.

VIVIE — Contaria, sim, quando estivéssemos casados. Seria uma grande arma para me dominar.

CROFTS — (sinceramente) Jamais o faria. Sob minha palavra de honra.

VIVIE — (olhando-o, aturdida, estupefata; seu sentido de ironia pouco a pouco domina, ajudando-a a vencer a situação) Não importa. Quero dizer que o senhor compreenda de uma vez por todas que, quando sairmos daqui hoje, nossas relações estarão encerradas para sempre.

CROFTS — Por quê? Por eu ter ajudado sua mãe?

VIVIE — Minha mãe era uma mulher paupérrima e que não teve a menor possibilidade de escolher outro caminho senão o que escolheu. O senhor sempre foi um homem rico e fez o mesmo que ela, com um só objetivo: os trinta e cinco por cento. O senhor não passa de um canalha vulgar. Esta é a opinião que tenho sobre o senhor.

CROFTS — (depois de examiná-la, sem se desagradar, pelo contrário, satisfeito com os termos francos em que a discussão se coloca) Há, há, há, há... Continue, menina, vamos. Isso não me ofende e faz com que se divirta. Por que diabo não deveria investir meu dinheiro nessa espécie de negócio? Procuro aumentar meu capital como qualquer outra pessoa. Espero que não pense que eu sujaria minhas mãos trabalhando. Todos conhecem o primo de minha mãe, o Duque de Belgravia, e ninguém lhe recusa o cumprimento pelo fato de ter ele ganho dinheiro de maneira um tanto duvidosa. Ninguém, espero, deixaria de saudar o Arcebispo de Canterbury porque os delegados eclesiásticos contam, entre seus contribuintes, com alguns pecadores e libertinos. Recorda-se da Bolsa de Estudos Crofts, dada em Newham? Foi instituída por meu irmão deputado. Ele arranca vinte e dois por cento de lucros de uma fábrica na qual trabalham mais de seiscentas moças.

Nenhuma delas ganha o suficiente para viver. Como acha que elas se arrumam quando não têm família para sustentá-las? Sabe o que elas fazem? Pergunte a sua mãe. Pensa que eu abriria mão de trinta e cinco por cento, quando todas as outras pessoas estão conseguindo tudo quanto podem?

Não sou tão estúpido assim. Se a senhorita tem a intenção de escolher e selecionar as suas amizades em função de conceitos morais,, acho melhor que abandone esse país, a menos que a senhorita queira viver afastada de todas as sociedades respeitáveis.

VIVIE — (sentindo-se culpada) O senhor poderia observar ainda que nunca tive curiosidade de saber de onde provinha o dinheiro que eu gastava. Acredito que valha tanto quanto o senhor.

CROFTS — (tranquilizado) Claro que vale. A senhorita é uma boa pessoa. Afinal não há nada de mal nisso. (Censurando-a, em tom de brincadeira) A senhorita agora não deve estar me achando tão canalha quanto ainda há pouco, não é verdade?

VIVIE — Participei dos seus lucros e lhe permiti a suficiente intimidade para saber o que penso a seu respeito.

CROFTS — (sério e cordial) Exatamente. Verá que não sou tão mal assim. Não tomo as atitudes de um intelectual refinado, mas não me falta uma grande parte dos mais honestos sentimentos humanos. A velha tradição dos Crofts manifesta-se em mim numa espécie de atração que sinto por tudo quanto é vulgar, no que você concorda comigo, com torta a certeza. Creia-me, senhorita Vivie, o mundo não é tão feio quanto o fazem os profetas da desventura. Enquanto não se desafiar abertamente a sociedade, ela não fará perguntas indiscretas, eliminando aqueles que as fazem. Não existe segredo mais bem guardado do que aquele que todos adivinham. No ambiente no qual eu posso introduzi-la, não existem senhores ou senhoras tão grosseiros a ponto de discutir os meus negócios ou os de sua mãe. Nenhum homem pode lhe oferecer uma posição tão segura.

VIVIE — (examinando-o com curiosidade) Suponho que o senhor esteja pensando que me impressiona.

CROFTS — Bem, espero poder me lisonjear por ter a senhorita mudado de opinião a meu respeito.

VIVIE — (com calma) Acabo de descobrir que não vale a pena ter opinião sobre o senhor. Quando penso na sociedade que o tolera, nas leis que o protegem Quando penso no desespero daquelas jovens que o senhor e minha mãe tiveram nas mãos, aquela mulher inominável e seu capitalista sem escrúpulos!

CROFTS — (lívido) Maldita!

VIVIE — Não é necessário me amaldiçoar, porque já vivo entre os malditos. (Levanta o trinco do portão para abri-lo e sair. Ele corre atrás dela e, com violência, mantém fechado o portão)

CROFTS — Se pensa que suportarei isso de você, você, pequeno demônio...

VIVIE — (imóvel) Cale-se. Alguém ouvirá o sino tocar. (Sem se mover, Vivie bate com as costas da mão no sino, que soa com violência. Crofts recua. Quase imediatamente, Frank aparece, segurando o fuzil)

FRANK — (com alegre polidez) Quer o fuzil, Vivie, ou prefere que eu mesmo o faça?

VIVIE — Frank, você esteve ouvindo?

FRANK — (entrando no jardim) Somente o sino, lhe asseguro. Assim não a fiz esperar muito tempo. Parece que minha intuição não falhou com relação ao seu caráter, Crofts.

CROFTS — Não sei por que não lhe arranco este fuzil da mão e não lhe quebro a cabeça com ele.

FRANK — (apontando lhe a arma) Não tente, por favor. Sempre fui muito descuidado no manejo das armas. Poderia ocorrer um acidente fatal e eu seria repreendido no tribunal por minha negligência.

VIVIE — Largue o fuzil, Frank, não há mais necessidade.

FRANK — Você tem razão, Vivie. Será muito mais digno pegá-lo com uma ratoeira. (Crofts, insultado, faz um gesto de ameaça) Crofts, há quinze cartuchos no tambor e, a essa distância e com um alvo de suas dimensões eu não erraria um só tiro.

CROFTS — Oh! Não tenha medo, não lhe tocarei.

FRANK — Dadas as circunstâncias, você está sendo muito gentil. Obrigado.

CROFTS — Devo-lhes dizer uma coisa, antes de ir-me embora. Pode interessar a ambos, visto que são ligados. Permita-me. Sr. Frank, apresentar-lhe sua irmã, a filha mais velha do Reverendo Samuel Gardner; Srta. Vivie, seu irmão. Bons dias. (Atravessa o portão e se encaminha pela estrada)

FRANK — (após um silêncio de estupefação, alçando o rifle) Você dirá ao tribunal que foi um acidente, Vivie. (Mira a figura de Crofts que se afasta. Vivie segura o cano da arma, colocando-a contra o seio)

VIVIE — Pode atirar agora.

FRANK — (desviando a arma) Pare, Viv, tome cuidado. (Ela larga a arma, que cai no chão) Que susto você me pregou, seu menino. Se eu tivesse atirado! (Senta-se no jardim, mal refeito do susto)

VIVIE — Se tivesse atirado, pensa que não seria um alívio sentir meu corpo atravessado por uma dor lacerante?

FRANK — (carinhosamente) Fique tranquila, Vivie. O que aquele homem disse, por medo da arma, não pode transtorná-la a esse ponto, fazendo de você uma criança boba, perdida no bosque. (Faz menção de abraçá-la) Vamos, Vamos nos cobrir com as folhas.

VIVIE — Não, isto não, isto não. (Com um grito de repugnância) Isto me deixa arrepiada!

FRANK — Por quê? O que aconteceu?

VIVIE — Adeus. (Encaminha-se para o portão)

FRANK — (pondo-se de pé) Ei, Vivie, pare, Vivie. (Ela se volta do portão) Para onde você vai?

Onde poderemos encontrá-la?

VIVIE — No escritório de Honoria Frazer, Chancery Lane, 67, pelo resto de minha vida. (Afasta-se rapidamente na direção oposta à seguida por Crofts)

FRANK — Ouça... Vivie... Espere! ... (Corre atrás de Vivie)


Ato IV

 

(O estúdio de Honoria Frazer, em Chancery Lane, no último andar do New Stone Building. Uma janela envidraçada, uma parede pintada a óleo, uma lâmpada e um aquecedor. Tarde de Sábado; através das janelas, veem-se as chaminés de Lincoln’s Inn e uma parte do céu crepuscular. No meio da sala, há uma escrivaninha para duas pessoas sobre a qual estão colocadas uma caixa de charutos, um cinzeiro e uma lâmpada elétrica portátil, em meio a uma grande quantidade de livros desordenadamente colocados. No vão da mesa, duas cadeiras. A mesa do auxiliar, pequena e arrumada, com um banco alto, está contra a parede, ao lado da porta de comunicação com o interior do estúdio. Na parede oposta, uma porta dá para o corredor. A parte superior dessa porta é de vidro opaco, no qual estão gravados dois nomes: Frazer e Warren. Um biombo protege o canto entre a porta e a janela. Frank, em uma elegante roupa esporte, clara, de luvas, bengala e um chapéu branco na mão, passeia de um lado para outro. Alguém procura abrir a porta com a chave)

 

FRANK — Entre. Não está fechada a chave. (Entra Vivie de chapéu e casaco. Para e o olha com espanto)

VIVIE — (séria) O que está fazendo aqui?

FRANK — Esperando por você. Estou aqui há horas. É assim que você trabalha? (Coloca o chapéu e a bengala sobre a mesa e com um salto senta-se sobre a escrivaninha, olhando-a. Suas maneiras traduzem inquietação: são nervosas e irreverentes)

VIVIE — Eu me ausentei por vinte minutos para tomar urna xícara de chá. (Tira o casaco e o chapéu, colocando-os atras do biombo) Como você entrou aqui?

FRANK — O seu estado-maior ainda não tinha saído quando cheguei. Foi jogar uma partida de Críquete no campo de Primrose. Por que você não emprega uma moça, dando oportunidade às de seu sexo?

VIVIE — Por que você veio?

FRANK — (descendo da mesa e aproximando-se dela) Viv, vamos aproveitar essa tarde de Sábado, como fez o seu estado-maior. Que tal um passeio a Richmond, um café concerto e depois um bom jantar?

VIVIE — Não posso me permitir esse luxo. Ainda terei que trabalhar umas seis horas antes de dormir.

FRANK — Não pode? Será que não podemos? Ah! Olhe só (Retira do bolso um punhado de moedas, fazendo-as tilintar) Ouro, Viv, ouro!

VIVIE — Onde você o conseguiu?

FRANK — Jogando, Vivie, jogando pôquer.

VIVIE — Ah! É mais indigno do que roubar. Não, eu não vou! (Senta-se na mesa para trabalhar com as costas para o vidro. Começa a remexer nos papéis)

FRANK — (insistindo com voz lamentosa) Mas, Viv querida, eu tenho que conversar seriamente com você.

VIVIE — Pois bem. Sente-se aí na cadeira de Honoria e fale aqui mesmo. Gosto de conversar uns dez minutos depois do chá. (Frank, desconsolado, senta-se na cadeira diante dela) Passe-me a caixa de charutos, por favor.

FRANK — (empurrando na direção de Vivie a caixa de charutos) Um feio hábito para mulher. Os homens educados já deixaram de fumar charuto.

VIVIE — Sim, reclamam do cheiro e por isso temos que nos adaptar aos e cigarros. Veja! (Abre a caixa e tira um cigarro. Acende-o, oferece-lhe um. Frank recusa com um movimento de cabeça e uma ligeira careta. Ela se acomoda melhor na cadeira e fuma) Continue.

FRANK — Bem, desejava saber o que você tem feito, quais as decisões que tomou.

VIVIE — Decidi tudo vinte minutos depois de minha chegada aqui, Honoria estava achando o trabalho deste ano demasiado para ela. Ia me escrever propondo sociedade no negócio, quando entrei dizendo que estava sem dinheiro. Instalei-me aqui, despachando-a para uma quinzena de férias. O que aconteceu em Haslemere depois de minha partida?

FRANK — Nada. Disse que você partira para a cidade a fim de resolver negócios particulares e urgentes.

VIVIE — E Então?

FRANK — Então ficaram todos estupefatos demais para poder falar. Crofts, já tinha prevenido sua mãe.. De qualquer forma ela não disse nada. Nem Crofts. Praed limitou-se a ficar de olhos esbugalhados. Depois do chá, foram-se embora, e não os vi desde então.

VIVIE — (enquanto acompanha com o olhar a fumaça do cigarro) Muito bem.

FRANK — (olhando em torno, com ar de desprezo) Você pretende continuar neste lugar?

VIVIE — (soltando uma baforada e sentando-se corretamente) Sim. Esses dois dias devolveram-me as forças e o controle. Nunca mais tirarei férias enquanto viver.

FRANK — (com ar irônico) Bem, você parece estar muito feliz... E tão firme quanto essas paredes.

VIVIE — (com uma ligeira contração no rosto) É bom que eu seja assim.

FRANK — (levantando-se) Vivie, precisamos conversar. Nós nos separamos outro dia, sob a impressão de um mal entendido. (Senta-se na mesa perto de Vivie)

VIVIE — (apagando o cigarro) Pois bem, Frank, esclareça-o.

FRANK — Você se lembra do que nos disse Crofts?

VIVIE — Sim...

FRANK — O que ele nos revelou deveria ter produzido uma transformação completa na natureza de nossas relações, no que sentíamos um pelo outro. Nos colocou na posição de irmãos.

VIVIE — Sim.

FRANK — Você nunca teve um irmão?

VIVIE — Nunca.

FRANK — Então você não sabe o que um irmão sente pelo outro. Tenho muitas irmãs e por isso o sentimento fraterno me é bastante conhecido. Posso lhe garantir que o que sinto por você é inteiramente diferente. As meninas seguirão o seu caminho, e eu seguirei o meu, sem nos preocuparmos se nos veremos ou não no futuro. São assim os irmãos. Mas com você... Eu não posso ficar tranquilo se passar uma semana sem a ver. Os irmãos não são assim. É exatamente o que eu sentia uma hora antes de Crofts nos fazer aquela revelação. Em suma, Vivie, é um sonho de amor de jovens.

VIVIE — (mordaz) O mesmo sentimento, Frank, que trouxe seu pai para perto de minha mãe, não é?

FRANK — (revoltado, fica de pé por um instante) Eu protesto violentamente, Vivie, e contra ter os meus sentimentos comparados com os de um homem como o Reverendo Samuel. E me recuso ainda mais a admitir uma comparação entre você e sua mãe. (Voltando a sentar-se na mesa) Além do mais, eu não acredito nessa história. Falei com meu pai a esse respeito e obtive dele uma declaração que vale por uma negação.

VIVIE — O que é que ele disse.

FRANK — Disse que estava convencido de que deveria haver algum engano.

VIVIE — Você acredita nisso?

FRANK — Prefiro acreditar nele a acreditar em Crofts.

VIVIE — Isto faz alguma diferença? Quero dizer... Na sua imaginação ou na sua consciência? Por que na realidade não há uma verdadeira diferença.

FRANK — Para mim, nenhuma.

VIVIE — Nem para mim.

FRANK — (Surpreso, levanta-se) Mas isto é surpreendente! (Volta a sentar-se, agora na cadeira) Pensei que nossas relações estivessem fundamentalmente alteradas na sua imaginação e na sua consciência , como você diz, a partir do momento em que aquela besta disse as asneiras que disse.

VIVIE — Não, não foi assim. Eu não acreditei no que ele disse. Mas eu queria acreditar, se pudesse.

FRANK — O que?

VIVIE — Penso que as relações fraternas seriam as melhores e mais convenientes para nós.

FRANK — Você pensa realmente assim?

VIVIE — Penso. Esse é o único tipo de relações de que eu gosto, ainda que pudéssemos nos permitir um outro.

FRANK — (levanta os olhos, como que iluminado por uma nova luz e possuído por um sentimento de efusiva gentileza) Minha querida Vivie, por que você não me disse tudo isso antes? Sinto-me penalizado por tê-la atormentado. É claro que eu compreendo...

VIVIE — (perturbada) Compreende o quê?

FRANK — Oh! Vivie, eu não sou nenhum tolo no sentido comum da palavra, mas sim no sentido bíblico, daquele que faz tudo o que os homens sábios dizem ser tolice depois de tê-las experimentado até o fim. Vejamos que não sou mais o menino de Vivie. Não se preocupe, não a chamarei mais de Viv, de agora em diante. Pelo menos até que você se canse de seu novo amiguinho, não importa quem seja.

VIVIE — Meu novo amiguinho?

FRANK — (com compreensão) Deve existir agora um novo amiguinho... É sempre assim que acontece.

VIVIE — Ninguém que você conheça, felizmente para você. (Batem a porta)

FRANK — Maldito quem bate, seja lá quem for.

VIVIE — É Praed. Vem se despedir. Está de viagem para a Itália. Disse-lhe para passar por aqui esta tarde. Faça-o entrar.

FRANK — Continuaremos nossa conversa depois dessa delicada despedida. Ficarei esperando que ele vá embora. (Encaminha- se para a porta, abrindo-a) Como Vai, Praddy? Muito prazer em vê-lo.

Entre. (Praed, vestido para viagem, entra, com um ar alegre)

PRAED — Como está passando, Srta. Warren? (Ela cumprimenta, embora o certo sentimentalismo de sua alegria a irrite) Terei que estar dentro de uma hora na estação de Helborn. Gostaria de convencê-la a um viagem pela Itália.

VIVIE — Para quê?

PRAED — Para conviver com a beleza e o romance, naturalmente. (Vivie, estremecendo, vira a sua cadeira para a mesa como se o trabalho que a esperava constituísse um amparo para ela. Praed senta-se a sua frente. Frank coloca uma cadeira ao lado de Vivie, senta-se preguiçosamente, falando-lhe por sobre os ombros)

FRANK — É inútil insistir, Praed. Vivie é uma pequena filisteia. É indiferente ao meu romantismo e a minha beleza.

VIVIE — Sr. Praed, de uma vez por todas quero lhe dizer que para mim não existe nem beleza nem poesia na vida. A vida é o que é. E eu estou preparada para aceitá-la assim.

PRAED — (com entusiasmo) Não diria nada disso, se viesse comigo a Verona ou a Veneza. Você choraria de emoção se vivesse em um mundo tão belo.

FRANK — Isto é que é eloquência, Praed. Continue.

PRAED — Digo-lhe isso porque eu chorei, Vivie, e chorarei novamente até os cinquenta anos. Na sua idade, Srta. Warren, não se precisa ir a um lugar tão distante como Verona. E seu espirito se encantaria com um simples olhar a Ostende. A senhorita ficaria seduzida pela alegria, o brilho e o ar feliz de Bruxelas.

VIVIE — (levantando-se com uma exclamação de horror) Ah!...

PRAED — (levantando-se) Que foi?

FRANK — (levantando-se) Vivie!

VIVIE — (a Praed) Não poderia descobrir um exemplo melhor do que Bruxelas para me falar de poesia e beleza?

PRAED — (confuso) Oh! É claro que Bruxelas é bem diferente de Verona. Não quis sugerir em momento algum que...

VIVIE — (com amargura) Provavelmente as duas possuem a mesma beleza e poesia.

PRAED — (calmo, mas preocupado) Minha querida Srta. Warren, eu... (Olha interrogativamente para Frank) Há algo errado?

FRANK — Ela considera frívolo o seu entusiasmo, Praddy. Coisas mais importantes é que lhe interessam.

VIVIE — (asperamente) Cale-se, Frank. Não seja bobo.

FRANK — (sentando-se) A isso você chamaria de boas maneiras. Praddy?

PRAED — (ansioso e prestativo) Quer que o leve embora, senhorita? Estou certo de estarmos atrapalhando o seu trabalho.

VIVIE — Sentem-se. Não me sinto disposta a recomeçar o meu trabalho. (Praed senta-se) Vocês dois pensam que eu tive uma crise nervosa. Nada disso. Apenas existem dois assuntos sobre os quais nunca mais quero ouvir falar. Um deles (a Frank) refere-se ao sonho de amor de jovens, de qualquer modo ou forma; o outro (a Praed) é sobre a poesia e a beleza da vida, especialmente em Bruxelas. Tenham as ilusões que quiserem. Eu já não tenho nenhuma. Se nós três desejamos continuar amigos, vocês deverão me tratar como uma simples mulher de negócios. (A Frank) Definitivamente solteira (a Praed) e definitivamente prosaica.

FRANK — Eu também permanecerei solteiro até que você mude de opinião. Praddy, mudemos de assunto. Use a sua eloquência, vamos.

PRAED — (hesitante) Estou desconfiado de que não existe nada no mundo de que eu possa falar. O evangelho da arte é o único que sei pregar. A Srta. Vivie é uma grande devota do evangelho do sucesso. Mas não podemos discutir esse problema sem ferir a sua sensibilidade, Frank, porque você esta firmemente disposto a não vencer na vida.

FRANK — Oh! Não se preocupe com a minha sensibilidade. Dê-me bons conselhos e será bastante.

Faça uma nova tentativa para me tornar um homem bem sucedido. Viv. Vamos, você sabe como fazer sucesso. Energia, prudência, economia, respeito, caráter; você detesta as pessoas sem caráter, não é Viv?

VIVIE — Pare, pare. Por favor, vamos deixar as hipocrisias de lado. Sr. Praed, se existissem apenas esses dois tipos de evangelho no mundo, seria melhor nos matarmos porque eles estão contaminados, totalmente, pelo mesmo veneno.

FRANK —. (com um olhar de crítica) Hoje estou notando em você um tom poético que lhe estava faltando.

PRAED — (repreendendo-o) Você não acha que está sendo pouco gentil, meu caro Frank?

VIVIE — (sem compaixão de si mesma) Não, isto é bom. Evita que eu caia em sentimentalismos.

FRANK — (caçoando) Refreia a sua tendência natural para o sentimentalismo, não é?

VIVIE — (quase fora de si) Oh! Sim, vamos, continue, não me poupe. Por um instante na minha vida eu fui sentimental — maravilhosamente sentimental — ao luar... E agora...

FRANK — Chega, Viv. Não se descontrole.

VIVIE — Pensa que o Sr. Praed nada sabe a respeito de minha mãe? (Voltando-se para Praed) O senhor teria feito melhor se me tivesse contado tudo, naquela manhã. Na verdade, Sr. Praed, a sua prudência já está um pouco fora de moda.

PRAED — Não acha que seus preconceitos é que estão um pouco fora de moda, Srta. Warren?

Como artista, sinto-me obrigado a lhe dizer que estou persuadido de que as mais íntimas relações humanas estão muito além e acima de qualquer lei. Por isso, sabendo que sua mãe nunca foi casada, jamais deixei de respeitá-la. Pelo contrário.

FRANK — (com frivolidade) Bravo, bravo!

VIVIE — (olhando Praed fixamente) Isso é tudo o que o senhor sabe?

PRAED — Sim, é tudo o que sei.

VIVIE — Então nenhum dos dois sabe de nada. Suas suposições são a própria inocência, comparadas com a verdade.

PRAED — (levantando-se surpreso e indignado e fazendo esforço para responder com cortesia) Espero que não, (com maior ênfase) espero que não, Srta. Warren. (Frank assobia)

VIVIE — O senhor está me dificultando em dizer a verdade.

PRAED — Se existe algo de pior, isto é, alguma outra coisa, quero dizer... A senhorita está certa de que faria bem se nos contasse?

VIVIE — Estou certa de que, se eu tivesse coragem, deveria passar o resto de minha vida contando-a para todo mundo até deixá-la gravada na sociedade como o sinal de uma queimadura, para que todos se sentissem responsáveis por essa vergonha, assim como eu me sinto. Não há coisa que eu despreze mais s do que a infame convenção que protege tais horrores proibindo as mulheres de mencioná-los. E, no entanto, não posso lhes contar. A duas sórdidas palavras que definem o que é minha mãe soam nos meus ouvidos e queimam a minha boca. Mas eu não posso dizê-las. A vergonha que elas significam é horrível demais para mim. (cobre o rosto com as mãos. Os dois homens, estupefatos se entreolham. Olham depois para Vivie. Ela torna a levantar a cabeça e, desesperadamente, pega um pedaço de papel e um lápis) Vejam, vou redigir um anúncio.

FRANK — Ela é louca. Ouviu, Vivie? Você está louca, controle-se.

VIVIE — Vocês verão. (Escreve) “Capital empregado: nada menos do que quarenta mil libras pertencentes a Sir George Crofts, barão, principal acionista. Propriedades em Bruxelas, Ostende, Viena e Budapeste. Diretora Geral: Sra. Warren”. Mas não esqueçamos as suas qualificações: as duas palavras. (Ela escreve as palavras e lhes estende o papel) Oh! Não leiam, por favor, não leiam. Vivie apanha o papel e o rasga. Segura a cabeça com as mãos, escondendo o rosto na mesa.

Frank, que lera o papel por sobre os ombros de Vivie, com o olhar espantado, tira do bolso um cartão e escreve nele as duas palavras. Em silêncio, passa-o a Praed, que o lê horrorizado, guardando-o rapidamente no bolso)

FRANK — (falando com carinho) Viv, querida, está tudo bem. Eu li o que você escreveu. Praed também. Nós compreendemos e ficaremos desse modo, para sempre, seus devotados...

PRAED — Para sempre, Sta. Warren. Eu declaro que a senhorita é a mulher mais esplendidamente corajosa que conheci. (Estas frases sentimentais dão a Vivie a força para reagir com desdém.

Levanta-se com impaciência, mas não conseguir manter-se em pé sem apoiar na mesa)

FRANK — Não se levante, Vivie, se você não está se sentindo bem. Fique tranquila.

VIVIE — Obrigada. Levo duas vantagens sobre vocês: não chorar e não me lamentar. (Caminha alguns passos em direção à porta que dá para o corredor interno, aproximando-se de Praed) Precisarei de muito mais coragem agora do que no momento em que for dizer a minha mãe que nós devemos nos separar. Tenho que me retirar um momento para me arrumar um pouco, se me dão licença.

PRAED — Devemos nos retirar?

VIVIE — Não. Voltarei num instante. (Praed abre a porta para que ela passe para o outro aposento)

PRAED — Que revelação surpreendente! Estou muito desapontado com Crofts. Muito mesmo.

FRANK — Pois eu não. Não esperava outra coisa dele. Mas que golpe levei, Praddy. Agora não posso mais me casar com ela.

PRAED — (repreendendo-o) Frank! (Os dois se olham; Frank, imperturbável; Praed, indignado) Permita-me dizer-lhe, Gardner: se abandonasse a Srta. Warren nas atuais circunstâncias, você cometeria um ato indigno.

FRANK — Velho Praddy! Sempre cavalheiresco. Mas você está enganado. Não é o aspecto moral que interessa, mas o financeiro. Não terei mais possibilidades de pôr a mão no dinheiro da velha.

PRAED — Mas era por isso que você desejava o casamento?

FRANK — E por que mais seria? Não tenho um só xelim nem a capacidade de procurá-lo. Se me casasse com Vivie agora, ela teria que me sustentar. Eu custaria para ela mais do que realmente valho.

PRAED — Mas, certamente, um rapaz inteligente e brilhante como você pode conseguir dinheiro por seus próprios meios.

FRANK — Sim, um pouco. (tira novamente o dinheiro do bolso) Consegui tudo isso ontem, em uma hora e meia. Mas numa indústria altamente especulativa. Não, querido Praddy, mesmo que Bessie e Georgina se casassem com milionários e meu pai me deserdasse quando morresse, antes dos setenta. Nos primeiros anos teria que me contentar com uma pequena mesada. Pouparei Vivie, se puder. Por isso me retiro, deixando o campo livre para a jeunesse dorée da Inglaterra. Assim fica resolvido. Não quero que ela se preocupe. Depois que partirmos escreverei um bilhete. Ela compreenderá.

PRAED — (tomando-lhe a mão) Eu peço perdão pelo que lhe disse. Você é um bom rapaz. Mas acha que não deverá vê-la nunca mais?

FRANK — Nunca mais? Por Deus, seja razoável. Estarei com ela sempre que possível, como um irmão. Jamais consigo entender as consequências absurdas que vocês, românticos, sempre tiram das coisas. (Batem na porta) Quem será? Poderia abrir a porta? Se for um cliente, será mais respeitoso você atender.

PRAED — Tem razão. (Encaminha-se para a porta, abrindo-a. Frank senta-se na cadeira de Vivie para escrever um bilhete) Minha querida Kitty, entre, entre. (A Sra. Warren entra, procurando, ansiosa, por Vivie. Fez o possível para vestir-se de maneira digna e matronal. O chapéu extravagante foi substituído por outro, mais sóbrio, e a blusa colorida está encoberta por um custoso casaco de seda preta, pesado. Sua ansiedade provoca compaixão e ela está,, evidentemente, em pânico)

WARREN — (a Frank) O quê? Você aqui?

FRANK — (para de escrever, volta-se, mas não se levanta) Aqui, e encantado por vê-la. A senhora surge como a brisa da primavera.

WARREN — Oh! Deixe-me em paz com suas gracinhas. (Em voz baixa) Onde está Vivie? (Frank aponta para a porta interna sem nada dizer. A Sra. Warren senta-se de repente, quase chorando) Praddy, será que ela não quer me ver?

PRAED — Minha querida Kitty, não se atormente. Por que ela não desejaria vê-la?

WARREN — Oh! Você nunca sabe por quê. Você é muito inocente. Sr. Frank, ela lhe disse alguma coisa?

FRANK — (dobrando o bilhete que escreveu) A senhora só verá Vivie se (acentuando) esperar aqui até que ela volte.

WARREN — (amedrontado) Por que não esperaria? (Frank a olha ironicamente. Coloca o bilhete no tinteiro para que Vivie não deixe de descobri-lo quando for mergulhar a caneta. Volta depois toda a sua atenção para a Sra. Warren)

FRANK — Minha querida Sra. Warren, suponha que fosse um pássaro — um pássaro pequeno e gracioso, saltitando na estrada. Quando visse surgir um pesado rolo compressor vindo em sua direção, ficaria esperando por ele.

WARREN — Ah! Não me aborreça com seus pássaros. Por que ela fugiu de Haslemere daquela maneira?

FRANK — Temo que ela lhe quando chegar, já que a senhora insiste em esperá-la.

WARREN — Quer que eu vá embora?

FRANK — Não, quero que a senhora fique. Mas eu a aconselho a ir embora.

WARREN — O quê? E não vê-la mais?

FRANK — Exatamente.

WARREN — (chorando novamente) Praddy, não permita que ele seja tão cruel comigo. (Segurando as lágrimas e enxugando os olhos) Ela ficaria muito zangada se me encontrasse chorando.

FRANK — (com um tom de real compaixão em seu ar carinhoso) A senhora sabe que Praddy á uma boa alma, não? Praddy, o que diz você? Ela deve ir ou ficar?

PRAED — (à Sra. Warren) Eu sentiria muito se lhe causasse sofrimentos desnecessários, mas acho melhor que você se vá. Na verdade... (Ouve-se o barulho causado por Vivie que se aproxima)

FRANK — Ssst. Agora é tarde. Está chegando.

WARREN — Não digam que eu estava chorando. (Entra Vivie; para gravemente, quando encontra a Sra. Warren, que a recebe com uma alegria histérica) Minha queridinha! Até que enfim você apareceu!

VIVIE — Estou contente por você ter vindo. Precisava lhe talar. Você disse que já estavam de saída, não é Frank?

FRANK — Sim. Vem comigo, Sra. Warren? Que me diz de um pequeno passeio a Richmond? E um teatro à noite? Richmond é um lugar seguro. Sabe, os rolos compressores...

VIVIE — Não diga bobagens, Frank. Minha mãe ficará aqui.

WARREN — (assustada) Não sei... Acho melhor ir-me embora. Ficando, talvez eu perturbe o seu trabalho...

VIVIE — (com tranquila firmeza) Sr. Praed, por favor, leve Frank embora. Sente-se, mamãe. (A Sra.

Warren obedece, desesperançada)

PRAED — Vamos, Frank. Adeus, Srta. Vivie.

VIVIE — (apertando-lhe a mão) Adeus. Boa viagem.

PRAED — Obrigado, obrigado. Assim espero.

FRANK — (à Sra. Warren) Adeus. A senhora deveria ter seguido o meu conselho. (Cumprimenta a Sra. Warren; depois, para Vivie, em tom alegre) Adeuzinho, Vivie.

VIVIE — Adeus. (Frank sai alegremente, sem apertar-lhe a mão)

PRAED — (com tristeza) Adeus, Kitty.

WARREN — (choramingando)... Adeus... Adeus (Sai Praed. Vivie, extremamente grave, senta-se ao lugar de Honoria, à espera que sua mãe fale. A Sra. Warren, temendo o silêncio, começa a falar) Bem, Vivie. Por que você saiu daquele modo, sem me dizer uma só palavra? Como pôde agir daquele modo? E o que fez com o pobre George? Pedi a ele para me acompanhar até aqui, mas se recusou. Verifiquei que ele estava morrendo de medo de você. Imagine! Aconselhou-me a não vir também (tremendo) como se eu tivesse motivos para ter medo de você, queridinha. (Vivie torna-se cada vez mais séria) Mas, naturalmente, eu disse que estava tudo bem entre nós, tudo muito bem.

(Não podendo fingir mais) Vivie, o que significa isto (Mostra uma carta com envelope comercial e leva-a até Vivie) Recebia do banco esta manhã.

VIVIE — É a mesada que recebo da senhora. O banco que mandou como de costume, mas eu devolvi para que fosse creditada em sua conta, pedindo para que lhe enviassem o recibo. Daqui por diante, viverei as minhas custas.

WARREN — (não ousando compreender) Não era suficiente? Por que não me disse antes? (Com um olhar esperto) Eu dobrarei a quantia.. Já tinha mesmo a intenção de aumentá-la. Quero saber apenas quanto você deseja.

VIVIE — Você sabe muito bem que não é isso. Daqui por diante andarei por meus próprios caminhos, com meu próprio trabalho e com meus próprios amigos. E você andará com os seus.

(Vivie levanta-se) Adeus...

WARREN — (levantando-se, pálida) Adeus?

VIVIE — Sim, adeus. Vamos, evitemos uma cena inútil. Você compreende perfeitamente bem. O Sr. George Crofts contou-me tudo.

WARREN — (com raiva) Aquele velho estúpido... (Evita dizer o adjetivo empalidece ante o perigo de dizê-lo)

VIVIE — Exatamente.

WARREN — Deveria ter a língua a cortada. Mas eu pensei que estivesse tudo terminado disse que não se importava.

VIVIE — (firme) Desculpe. Eu me importo.

WARREN — Mas eu expliquei.

VIVIE — Você explicou como tinha sido. Mas não me disse que o negócio continuava. (Volta a sentar-se. A Sra. Warren fica um momento em silêncio e olha desconsoladamente para Vivie, que permanece imóvel, esperando interiormente que a luta tenha terminado. Mas a Sra. Warren, voltando a ganhar uma expressão de astúcia, apoia-se na mesa e insiste, em voz baixa) Vivie, você sabe quanto eu possuo?

VIVIE — Não tenho dúvidas de que você seja muito rica.

WARREN — Mas você sabe o que isso significa? Você é ainda muito jovem. Significa um vestido por dia, teatros e festas todas as noites; significa ter a seus pés todas os homens da Europa; significa que você pode escolher a comida e a bebida. Significa tudo de que você gostar e tudo o que você quiser, tudo o que você imaginar. O que é você aqui? Uma besta de carga que trabalha de manhã a noite para levar uma vida miserável e ter dois vestidos brancos baratos por ano. (Tentando conciliar) Isso a escandaliza, eu sei. Entendo os seus sentimentos. Eles só podem honrá-la. Estou certa disso. Sei como as jovens são. Mas sei também que você pensará melhor e que voltará atrás.

VIVIE — Então é assim que se faz, não? Você já deve ter dito coisas semelhantes a muitas outras mulheres, mamãe, para ter tudo isso tão bem decorado.

WARREN — O que estou lhe pedindo de mal? (Vivie se volta, com ar de desprezo. A Sra. Warren prossegue, desesperada) Vivie, escute. Você não compreende. Ensinaram-lhe, de propósito, coisas mentirosas a esse respeito. Você ignora o que seja realmente o mundo.

VIVIE — Coisas mentirosas de propósito? O que quer dizer?

WARREN — Quero dizer que você está jogando fora as possibilidades por nada. Você pensa que as pessoas são o que elas fingem ser, e que a maneira pela qual elas lhe ensinaram a encarar o mundo, no colégio, é a maneira certa? Mas não é assim. Tudo isto é uma mentira para manter as pessoas covardemente escravizadas. Você prefere descobrir isso mais tarde, como qualquer outra, aos quarenta anos, quando envelhecer e tiver perdido todas as oportunidades, a saber agora, por sua mãe, que lhe tem um grande amor e que jura estar dizendo a verdade, toda a verdade?

(Impressionando-a) Vivie, as pessoas importantes, inteligentes, as pessoas hábeis, todas elas sabem disso. Fazem exatamente o que eu faço e pensam exatamente o que eu penso. Conheço muitos deles. Posso apresentar você a eles e fazê-los seus amigos. Não estou querendo dizer nada de mal. É isto o que você não entende. Você está com a cabeça cheia de ideias erradas a meu respeito. O que sabem as pessoas que lhe ensinaram o que deve pensar da vida e das pessoas como eu? Quando se encontraram comigo, quando falaram comigo ou deixaram que alguém lhe falasse sobre mim?

Idiotas! Fariam alguma coisa por você sem que eu lhes pagasse? Não lhe disse talvez que eu desejava que você levasse uma vida honrada? Não eduquei você para isso? Com você poderia se manter honrada se não fosse o meu dinheiro, a minha influência e os amigos de Lizzie? Não vê que você esta se suicidando e me cortando o coração?

VIVIE — Estou reconhecendo a filosofia de vida de Crofts, mamãe. Já ouvi tudo isso dele, aquele dia, na casa dos Gardner.

WARREN — Você pensa que eu quero lhe impor aquele velho acabado e beberrão? Não é verdade, Vivie, juro que não é verdade.

VIVIE — Mesmo que o desejasse, você não o conseguiria. (A Sra. Warren estremece, ferida com a indiferença de Vivie à intenção carinhosa de suas palavras. Vivie não compreende e não se preocupa. Continua calmamente) Mamãe, você não me conhece. Não tenho nada contra Crofts nem contra qualquer outra pessoa de sua classe. Para dizer a verdade, ele me inspira uma certa admiração por ser forte bastante para viver como deseja, ganhando muito dinheiro, ao invés de viver inutilmente de caça, de jantares, de modas, de sociedade, como muita gente faz. E também estou convencida de que se me encontrasse nas mesmas condições de tia Lia teria feito o mesmo que ela.

Não me considero mais preconceituosa ou puritana do que vocês. Sei que a moral convencional é uma hipocrisia e que se aceitasse o seu dinheiro passando o resto de meus anos a gastá-lo em vida mundana, eu me tornaria uma mulher inútil ou indigna, sem que ninguém pudesse me censurar por isso. Mas eu não quero ser uma inútil. Não me agradaria passear de carruagem pelo parque, fazendo o reclame de minha costureira e de meu cocheiro, ou me enfadar em um teatro ouvindo ópera somente para exibir meu novo colar de diamantes.

WARREN — (confusa) Mas...

VIVIE — Um momento, ainda não terminei. Diga-me, por que continua com o negócio, agora que é rica e independente? Você me disse que sua irmã já o abandonou. Por que você não faz o mesmo?

WARREN — Ah! Para Lizzie foi muito fácil. Tem maneiras de grande senhora e adora fazer vida social. Mas imagine eu em sociedade? Até mesmo um cego acabaria descobrindo quem eu sou, embora procurasse me adaptar a uma vida dessas. Preciso estar sempre trabalhando, indo de um lado para outro, porque senão a melancolia me deixará louca. Que mais poderia? Esta é a vida que me convém. Estou preparada para levá-la. Se não fosse eu, seria outra qualquer. Portanto, na verdade, não faço mal. E depois, isso dá dinheiro, e eu gosto de ganhar dinheiro. É inútil... Não poderia renunciar a essa vida por nada no mundo. Mas que adianta você saber de tudo isso? Nunca mais tocarei no assunto. Manterei Crofts longe de sua vista. Não a aborrecerei muito. Como você vê tenho que estar correndo de um lado para outro e você ficará livre de mim, definitivamente, quando eu morrer.

VIVIE — Não eu sou filha de minha mãe. Sou como você. Tenho que trabalhar e ganhar muito mais dinheiro do que gasto. Mas o meu trabalho não é o seu trabalho, e o meu caminho não é o seu.

Temos que nos separar. Não fará muita diferença. Ao invés de nos encontrarmos por alguns meses em vinte anos, não nos encontramos mais, Isso é tudo.

WARREN — (com voz embargada) Vivie, a minha intenção era ficar com você, juro.

VIVIE — É inútil, mamãe. Não serão algumas lágrimas nem sentimentalismos baratos que modificarão a minha atitude. Exatamente como você.

WARREN — (desesperada) Você diz que lágrimas de mãe não valem nada?

VIVIE — Elas não lhe custam nada. E você me pede em troca a paz e a quietude de toda a minha vida. Ainda que tivesse a minha companhia, de que ela lhe serviria? O que temos em comum que possa nos fazer felizes?

WARREN — (voltando à fala vulgar que lhe é natural) Somos mãe e filha. Quero a minha filha.

Tenho direitos sobre você. Quem cuidará de mim na velhice? Muitas meninas foram criadas por mim como filhas e até choravam quando iam embora. Mas as deixava ir porque eu tinha você. Eu guardei minha solidão para você. Você não tem o direito de me abandonar, de se recusar a cumprir o seu dever de filha.

VIVIE — (irritada com o eco de um passado miserável na voz de sua mãe) Meu dever de filha!

Sabia que acabaríamos chegando a isso. Agora. de uma vez por todas, mamãe, você quer uma filha e Frank quer uma mulher. Pois eu não quero mãe nem marido. Não poupei nem a mim nem a Frank, mandando-o embora. Por que acha que deveria poupá-la?

WARREN — Conheço a sua espécie. Nenhuma piedade, nem consigo mesma, nem com ninguém.

Eu sei. Minha experiência valeu ao menos para isso: reconheço logo a mulher carola, petulante, dura e egoísta. Pois bem, arranje-se. Eu não preciso de você. Mas ouça agora. Sabe o que eu faria com você, se fosse novamente recém-nascida? Ah! Sim, tão certo como existe um céu...

VIVIE — Você me estrangularia, talvez.

WARREN — Não. Educaria você para ser minha filha realmente e não para ser aquela que é, com seus orgulhos, seus preconceitos, seus bons negócios e tudo o mais que você roubou de mim, sim, roubou. Negue se puder. Não foi um roubo? Educaria você na minha casa, palavra de honra.

VIVIE — (calma) Em alguma de suas casas .

WARREN — (gritando) Escutem só. Vejam como ela cospe nos cabelos brancos da mãe. Que você possa viver o suficiente para ter uma filha que lhe dilacere e a espezinhe assim como você me espezinhou. E isso lhe acontecerá. Oh! Se acontecerá! Mulher alguma pode ser feliz, quando amaldiçoada pela mãe.

VIVIE — Gostaria que terminasse esse melodrama. Você só me irrita ainda mais. Sou provavelmente a única moça, entre as muitas que passaram por suas mãos, que você beneficiou.

Não estrague tudo agora.

WARREN — Sim. Deus me perdoe, é verdade. E foi você a única que se voltou contra mim. Que injustiça, que injustiça, que injustiça! Sempre quis ser uma boa mulher. Tentei trabalhar honestamente e fui tratada como escrava até o dia em que amaldiçoei o instante no qual, pela primeira vez, ouvi falar de um trabalho honesto. Fui uma boa mãe. E porque fiz de minha filha uma mulher honesta é que ela se volta contra mim, como se eu fosse uma leprosa! Ah! Se eu pudesse viver a minha vida novamente, diria umas boas verdades àquele padre mentiroso da minha escola.

Daqui por diante, que Deus me perdoe na hora de minha morte, só farei o mal, nada mais do que o mal, E ficarei rica!.

VIVIE — Sim, é melhor escolher o próprio caminho e segui-lo até o fim.. Se eu tivesse sido você, mamãe, teria feito a mesma coisa. Mas eu não levaria uma vida acreditando em um a outra. Você é uma mulher convencional, no fundo. É por isso que agora eu lhe digo adeus. Tenho razão, não é verdade?

WARREN — (surpresa) Razão de jogar fora todo o meu dinheiro!

VIVIE — Não. Em separar-me de você. Seria uma idiota se não o fizesse, não é?

WARREN — (mal-humorada) Sim, desse ponto de vista, suponho que sim. Mas que Deus proteja o mundo se todos os homens se dispuserem a fazer o que é direito. E agora é melhor eu ir embora do que ficar num lugar onde não sou desejada!

VIVIE — (gentilmente, estendendo-lhe a mão) Não quer...

WARREN — (olha para as mãos de Vivie, encara-a com ódio, contendo o desejo de espancá-la) Não, obrigada. Adeus.

VIVIE — Adeus!... (A Sra. Warren sai, batendo a porta com violência. O rosto de Vivie se descontrai. O ar grave de seu rosto vai ganhando um ar de felicidade e satisfação. Suspira com um meio soluço e um pequeno riso de alívio. Com passo firme, anda até a mesa, empurra a lâmpada para o lado, retira a lâmpada para o lado, retira um molho de cartas para iniciar o trabalho e, quando vai molhar a caneta no tinteiro, descobre o bilhete de Frank. Abre o bilhete sem hesitar e acompanha a leitura de alguma frase com um pequeno sorriso) E adeus, Frank! (Rasga o bilhete em pedaços, jogando-os na cesta de lixo, sem pensar mais nele. Começa a trabalhar e, pouco a pouco, vai sendo absorvida pelas cifras dos papéis)

 

CAI O PANO

 

 

 

                                                                  Bernard Shaw

 

 

 

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