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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A PROMESSA / Pearl S. Buck
A PROMESSA / Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

No seu desespero, os homens sentem necessidade de acreditar em qualquer coisa, nem que seja numa simples promessa...
Por isso, embora o seu segundo filho abanasse sempre a cabeça, em ar de dúvida, ao ouvi-lo falar, Ling Tan continuava a crer nessa promessa. Estava convencido, ele e muitos outros, que os Ying e os Mei eram os homens mais fortes e valentes do mundo. E, todos os dias, os habitantes daquele território ocupado esperavam que o inimigo irritasse, com qualquer provocação, esses estrangeiros do outro lado do oceano e os forçasse a entrar em guerra e a pôr-lhe um fim. Sim, porque por mais forte e cruel que fosse o inimigo, ninguém o supunha capaz de vencer esses estrangeiros, os Ying e os Mei.
Os filhos às vezes diziam-lhe que eles já não eram tão fortes como outrora, mas Ling Tan não dava crédito a tais palavras. Um dia, Lao Er foi à cidade vender ovos de pata salgados e viu um soldado japonês cuspir no rosto dum estrangeiro. com grande espanto seu, o estrangeiro limitou-se a limpar o cuspo com um pano branco que tirou da algibeira.
- Parece até que já trazia esse pano no bolso para limpar a cara do cuspo do inimigo - comentou Lao Er, ao contar ao pai o sucedido. --Todos os que assistimos à cena ficámos pasmados. Perto de mim, um homem que vendia pudins de maçã aos transeuntes, disse-me que até lhe custava a acreditar no que os seus olhos viam. Contou-me que antigamente era costume, quando sucedia algum homem estrangeiro, ou mesmo uma mulher, ser insultado ou considerar-se como tal, desembarcarem logo, dos navios de guerra sempre a postos no rio, marinheiros bem armados para vingarem o ultraje.
- Mas onde estão agora esses navios? - perguntou Lao Ta. - Hoje só andam no rio barcos de guerra inimigos. Um dia, ao sair da cidade, vi prender estrangeiros como nos prendem a nós. E despiram-nos e revistaram-nos. Como não tinham armas, mostravam-se também dóceis e submissos: Não tenha grandes esperanças neles, meu pai.

 

 

 

 

 

Era assim que os dois filhos falavam a Ling Tan, na melhor das intenções, para que o pai não ficasse demasiado abatido, se porventura esses estrangeiros não cumprissem a sua promessa. Mas, apesar de tudo, ele continuava a esperar; sim, em quem mais poderia ter esperança?
Durante todo esse triste Outono, muito embora o céu se mostrasse claro e calmo e os campos prometessem boas searas, a situação agravara-se dia após dia. Os habitantes da aldeia de Ling tinham a impressão que viviam num mundo de silêncio. Do exterior, não recebiam outras notícias senão as que, de longe em longe, lhes segredavam alguns desses homens que percorriam o país de lés-a-lés, em missões secretas, e que às vezes ali passavam. Por eles Ling Tan e os filhos sabiam que a guerra continuava na zona livre. Sabiam igualmente que a capital fora transferida muito para o interior e que apesar disso o inimigo a bombardeava com frequência, lançando sobre a cidade bombas enormes, como as que tinham caído outrora perto da aldeia, uma das quais abrira no meio do campo um buraco medonho. A grande cova estava agora cheia de água, um verdadeiro lago, e no dia em que descreveram a Ling Tan os bombardeamentos da capital, ele foi até junto do barranco, considerou a sua extensão e profundura, e ficou a pensar no efeito produzido por essas bombas nas casas e nos habitantes duma grande cidade. Mesmo que as pessoas se refugiassem nos rochedos das colinas, como lhe haviam dito, isso não podia durar indefinidamente. E mais uma vez foi obrigado a concluir
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que só do exterior lhes podia chegar algum dia auxílio contra tão cruel inimigo.
No oitavo mês desse ano, Ling Tan e os filhos souberam que na zona livre havia cinco províncias em guerra e pela primeira vez tiveram notícias de Lao San. Ouviram-nas a um desses monges que andam de terra em terra, o qual lhes contou que todos os homens jovens e fortes estavam a reunir-se para nova ofensiva. Depois, tirou um papel debaixo do hábito, desdobrou-o e mostrou-lhes um caracol de cabelos negros, dizendo:
- Estes cabelos deu-mos o jovem mais alto que vi nos dias da minha vida. Pediu-me que me desviasse um pouco do meu caminho para vos vir ver, assegurando-me que teria o melhor acolhimento quando mostrasse esta madeixa de cabelos. E cortou-a, mesmo na minha frente, com a baioneta.
Mal o monge concluiu a narrativa, Ling São disse logo que aqueles cabelos só podiam ser do seu terceiro filho que abalara da região há muitos dias, à frente de um pequeno bando de homens das colinas.
- Quem possui cabelos assim senão o meu terceiro filho ?
- exclamou. - Nunca vi outros tão encaracolados como os dele, e sempre imaginei que fosse por causa das enguias que comia. Quando o trazia dentro de mim, só desejava comer enguias. - E voltando-se para o marido:-Lembras-te como eu comia enguias quando andava grávida do teu terceiro filho?
- Lembro-me muito bem - anuiu Ling Tan - e quando ele nasceu ficámos bastante pesarosos com os seus cabelos. Encaracolavam-se como enguias, bem me recordo. Mas já era demasiado tarde... E quanto mais cresciam, mais se encaracolavam... Onde o viu; meu bom padre?
- Perto da cidade de Long Sands - respondeu o monge.
- Anda todo esfarrapado? - perguntou Ling São, ansiosa.
- Não, não, estava convenientemente vestido, e parecia bem alimentado e muito satisfeito. Mas preparava-se
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para entrar em combate, como aliás todos os rapazes daquela região, pois aguarda-se dum momento para o outro novo ataque do inimigo à cidade.
Ling São pegou na madeixa de cabelos que o monge lhe deu, envolveu-a num papel vermelho e foi guardá-la religiosamente no seu quarto. Depois Ling Tan mandou a esposa do filho mais velho preparar para o monge toda a comida que ele pudesse comer e ainda mais alguma para ele levar. A nora logo lhe obedeceu. Era uma boa alma, fiel e diligente, sempre pronta a prestar qualquer serviço. Agora era ela quem executava os trabalhos domésticos que antes competiam a Jade e se esta lhe observava qualquer coisa, limitava-se a responder com um sorriso: "Se já tem que alimentar essas duas crianças, que mais se pode exigir de si!" Na verdade, os dois gémeos estavam sempre esfomeados e embora a mãe os alimentasse bem, tomasse muitos caldos e comesse à ceia papas de arroz misturadas com açúcar vermelho e ovos cozidos no chá, nunca conseguia transformar com suficiente rapidez toda essa comida em leite para matar a fome às duas pequeninas bocas, ávidas, sempre a sugarem-lhe os seios.
O monge abalou com a barriga bem cheia e o cesto repleto de provisões, e no dia seguinte toda a família se reuniu para falar do terceiro filho, perguntando cada um a si próprio se ele teria morrido ou não na batalha.
Passado algum tempo, Jade recebeu uma carta. Ao abri-la, descobriu que era de Mayli e vinha duma província chamada Yunnan, ou Sul Nebuloso, e da cidade de Kunming. Mayli dissera a Jade que ia para lá e já lá estava. Era uma carta curta, aparentemente escrita num tom brincalhão do princípio ao fim, que terminava pela seguinte pergunta: "Por que é que o irmão mais novo do seu marido não me devolveu ainda a minha pequena bandeira de seda?"
Ora somente Jade e Lao Er sabiam o segredo daquela bandeira, que Mayli entregara a Jade, para esta a dar a Lao San, o qual ficaria assim a saber que a jovem ia para a zona livre, onde a podia encontrar se desejasse. Portanto,
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quando Jade leu a carta em voz alta a toda a família reunida no pátio, num dia quente de Outono, omitiu essa última frase. Não desejava que lhe fizessem perguntas a que não devia responder. Mas à noite, a sós no quarto com Lao Er, falou-lhe no assunto. O marido respondeu com um sorriso:
- Não tardará muito a ir ter com ela.
E, com efeito, passado um mês, Jade recebeu outra carta de Mayli, mas desta feita a jovem escrevia-lhe: "Diga a seus pais que o seu terceiro filho chegou a Kunming. Tomou parte na batalha de Long Sands e está muito orgulhoso pela grande vitória que os nossos alcançaram sobre o inimigo".
Mayli não acrescentava mais nada, mas era o suficiente para todos se sentirem satisfeitos. Tinham conseguido uma vitória e Lao San estava vivo! Só Ling São lamentava que nessa carta não houvesse a mínima referência ao possível casamento de Mayli com o seu terceiro filho. E como tal assunto também não figurava noutra carta que chegou tempos depois, ficou indignada e explodiu:
- Gostava que o meu terceiro filho aqui estivesse, para lhe dar um bom puxão de orelhas! Quando se viu um filho meu andar sempre a meter o nariz em casa duma mulher que não lhe pertence? Se bebe os ventos por ela, por que não se casa? E a delambida é ainda pior do que ele, pois deixa-o aproximar-se, filha descarada duma mãe sem vergonha...
- Deixa-te de imprecações, mulher - ordenou Ling Tan. -Por que será que as mulheres se amaldiçoam umas às outras com tanta facilidade?
- Talvez ela não queira casar com o meu irmão - arriscou Lao Ta. - Não se esqueça, mãe, que se trata duma rapariga com muitos estudos, e o meu irmão nem sequer sabe ler o próprio nome se o vir escrito.
Ao ouvir isto, Ling São perdeu a cabeça:
- Pois se ela tem a barriga cheia de tinta, não é de facto mulher para o meu filho e isso devia ser razão de sobejo para ele não andar atrás dela.
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Desta vez riram-se todos. Ling São, irritada, tirou um dos gémeos dos braços de Jade e foi refugiar-se na cozinha. É que encontrava sempre uma espécie de conforto junto dos netos. Nos filhos, já crescidos, podia descobrir razões de queixa, mas esses pequeninos seres que mal despontavam para a vida, eram sempre perfeitos aos seus olhos.
Estes incidentes insignificantes sucediam-se todos os dias em casa de Ling Tan. E a vida continuava, apesar da dura dominação do inimigo. Lao Ta e Lao Er mostravam-se cada vez mais hábeis na arte de enganar o ocupante e duma forma ou doutra a família ia vivendo com os produtos da terra. Desde que casara com a mulher que encontrara um dia no fundo duma armadilha, Lao Ta abandonou por completo esse seu método de luta. A esposa amava-o a tal ponto que não podia suportar que ele arriscasse constantemente a vida. E chorou tanto, tanto, que Lao Ta acabou por ceder. Voltou a viver em casa do pai e a trabalhar nos campos como um verdadeiro camponês.
Embora esta família em tudo se assemelhasse às muitas outras famílias de camponeses que habitavam na região, nunca esqueciam um só momento o seu ódio ao inimigo. Alimentava-os a esperança de poderem um dia, com a ajuda do Céu e a colaboração de todo o povo, atirar os japoneses ao mar.
Ling Tan pensava que isso viria a suceder logo que o povo Mei se irritasse de tal forma que decidisse entrar na guerra.
- Nesse dia - explicou uma noite aos filhos - quando soubermos que os Mei estão em guerra ao nosso lado, todos nós teremos então força bastante para nos erguermos, cairmos sobre o inimigo e expulsá-lo para longe. Cada qual há-de atirar-se ao inimigo que estiver mais próximo, nem que possua só as mãos para o agarrar pelo pescoço. E voltaremos a ser um povo livre!
Foi numa noite fria do fim desse mês que Ling Tan se exprimiu assim, tão fria, que Ling São pedira aos dois filhos que pegassem na mesa que estava no pátio e a levassem para dentro de casa, para poderem assim cear mais
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confortàvelmente. Não nevara ainda, mas Ling São, levantando a cabeça e farejando o ar gelado, disse ao fechar a porta:
Já me cheira a Inverno.
- O quinto Inverno da guerra - acrescentou Ling Tan gravemente. - Mas no próximo, já seremos outra vez livres.
Ninguém lhe respondeu, pois não queriam dissuadi-lo daquela esperança, sua única razão de viver. Ling Tan aferrava-se obstinadamente a essa crença e forjava ele próprio razões para a fortalecer, pois agora não lhe chegavam do exterior notícias que confirmassem que os Mei e os Ying continuavam dispostos a cumprir a sua promessa. Até as raras informações que de vez em quando lhe segredava o primo que vivia na cidade, nem mesmo essas já obtinha, pois o velho letrado, uma noite, depois de absorver uma porção excessiva de ópio, adormeceu e não tornou a despertar. O proprietário da miserável espelunca onde o velho fumara a entorpecedora droga até morrer, encontrou-o morto na manhã seguinte e dispunha-se a lançar o seu corpo ressequido fora dos muros de cintura da cidade, pois os mortos já não tinham a importância que se lhes dava outrora. Todos os dias, ao romper da aurora, havia muitos cadáveres nas ruas, pessoas que morriam de fome ou de doença ou eram apunhaladas por mãos desconhecidas. No entanto o homem reparou que o velho letrado, por baixo da túnica esfarrapada, usava uma camisola de algodão ainda em muito bom estado. Decidiu tirar-lha e ficar com ela. Ao fazê-lo, descobriu, preso à roupa por um fio, um papel onde estavam escritas as últimas vontades do defunto: "Se eu morrer, levem o meu corpo a minha mulher que vive na aldeia de Ling, fora dos muros, ao Sul da cidade".
O homem apressou-se a cumprir essa vontade, na esperança duma recompensa que Ling Tan não lhe negou. Mas que dia esse em que a mulher do primo viu o corpo do seu velho esposo! A cólera e a dor arrebataram-na ao mesmo tempo. Ficara tão irritada que nem conseguia chorar convenientemente. O marido, estendido no caixão que
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Ling Tan lhe cedera, não podia ouvir mais as suas censuras... Era o esquife destinado a Ling São, pois Ling Tan e a mulher já tinham no alpendre os respectivos caixões, prontos para o caso de serem precisos. Mandaram-nos fazer quando Ling Tan completara sessenta anos. Era reconfortante para ambos saberem que se a morte chegasse, mesmo inesperada, já estavam ali os ataúdes onde dormiriam o sono eterno.
No entanto Ling São não se importou de dispensar o seu à mulher do primo.
- Na próxima vez que os meus filhos forem à cidade, podem trazer-me outro - declarou. - Deixem que os ossos do velho letrado tenham enfim repouso.
E assim se fez, e a mulher do primo ora carpia ora se indignava. Começava por chorar e lamentar-se, mas de súbito lembrava-se de que o velho se escondera na cidade durante todos esses meses, gastando quanto ganhava em ópio, e a sua cólera não conhecia então limites. Deixava de chorar, lavava o rosto, penteava os cabelos e dizia em altos gritos que se sentia muito feliz por vê-lo ali morto, pois nunca lhe servira para nada enquanto fora vivo. Depois, lembrava-se da sua condição de viúva e voltava a chorar e a exprimir os seus sentimentos de forma tão ruidosa que toda a aldeia soltou um suspiro de alívio e de satisfação quando o velho foi para debaixo da terra.
Na véspera do enterro, Ling Tan, inclinando-se para o caixão, sorriu. O velho letrado, embora reduzido pelo ópio quase só ao esqueleto, conservava uma expressão tão tranquila que até parecia feliz por estar morto. Nessa noite, ele disse a Ling São:
- Ia jurar que o maroto se sente muito satisfeito por já não ter de ouvir a mulher.
Mas depois da morte do velho letrado, a aldeia nunca mais arranjou forma de saber o que se passava no outro lado do oceano. E Ling Tan, para continuar a ter esperança, pensava a todo o momento na promessa...
Em tais circunstâncias, como podia ele estar preparado para o mais funesto de todos os dias que o céu lhe enviou?
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O inimigo atacara de surpresa o povo Mei. Lançara-se sobre os seus navios alinhados lado a lado num porto estrangeiro e incendiara os seus aviões pousados nos aeródromos. Os homens que guarneciam esses navios estavam provavelmente a dormir ou andavam em busca de prazeres que é o que fazem os marinheiros em dia de folga. É claro, o inimigo teve todo o cuidado em dar a conhecer a sua vitória ao mundo inteiro. Proclamou-a nas ruas, inscreveu-a nas paredes em letras enormes, e vozes mais rápidas do que o vento espalharam-na por toda a parte. Assim, a notícia chegou também à aldeia de Ling. Estava uma manhã clara e fria. Numa manhã assim, em tempos melhores, Ling Tan teria pedido a Ling São que lhe fizesse papas de farinha de trigo. Mal abrira a porta da casa, sentira logo o ar gelado fustigar-lhe o rosto. O pátio estava coberto de neve.
- Em tempos normais - disse para a mulher - comeria hoje papas de farinha de trigo.
- Só temos farinha de milho - respondeu Ling São
- mas também aquece.
Ling Tan comeu as suas papas de milho e o dia principiou como todos os outros, os filhos ocupados nas suas tarefas, ele sentado ao sol no pátio, a fumar o seu cachimbo. De repente, viu que alguém vinha em direcção à sua casa. Era um rapaz, o filho dum vizinho da aldeia mais próxima, que queria falar-lhe. Corria debulhado em pranto e Ling Tan gritou-lhe:
- O que se passa? Será possível que sucedam coisas ainda piores do que as que já sofremos?
- Sim, muito piores - respondeu o rapaz.
E a soluçar e ofegante, contou que nessa madrugada o inimigo atacara de surpresa os navios e aviões do povo Mei, a milhares de milhas de distância, e destruíra-os completamente. Os Mei ficaram furiosos, mas desarmados...
Ling Tan, sempre sentado, de cachimbo na mão, escutava a tétrica notícia.
- Não acredito - afirmou por fim.
No entanto sentia a boca seca. O rapaz dava-lhe
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pormenores tão precisos e concretos que ele era obrigado a concordar que isso podia muito bem acontecer a quem fosse pouco previdente. Se porventura os Mei não eram homens desconfiados e cuidadosos, então devia ser verdade. Ele conhecia muito bem a astúcia do inimigo. Mandou entrar o rapaz e pediu-lhe que repetisse a história diante dos filhos. Depois, ordenou aos filhos que chamassem os restantes homens da aldeia e, uma vez todos reunidos no pátio, o rapaz contou novamente o que sabia. E tudo parecia cada vez mais verosímil.
Quando acabou de ouvir a narrativa pela terceira vez, Ling Tan sacudiu a cinza já fria do cachimbo, que entretanto se esquecera de fumar, e voltando-se para Ling São, disse:
- Prepara-me a cama. vou deitar-me e não sei se tornarei a levantar-me.
Ficaram todos assustados com tais palavras e suplicaram-lhe que não perdesse a esperança. Entre muitas coisas, lembraram-lhe que o povo Ying não fora ainda vencido. Mas Ling Tan percebia bem o tom hesitante das vozes e sacudia a cabeça, repetindo sempre:
- Prepara-me a cama, mãe dos meus filhos, prepara-me a cama.
Esteve deitado, de olhos fechados, durante onze dias, e durante todo esse tempo recusou tomar uma verdadeira refeição ou lavar-se convenientemente. No décimo segundo dia, Ling São entrou no quarto, o rosto e as mãos cobertos de cinza, um pedaço de pano branco na destra, em sinal de luto, e começou a lamuriar-se em voz alta:
- Se morres, engulo os brincos de ouro que me deste. Não posso viver sem ti, meu velho.
Entraram depois no quarto os filhos, as mulheres dos filhos e os filhos dos filhos e todos choraram e lhe suplicaram que se levantasse e comesse.
Mas foi Jade quem o decidiu a mudar de atitude, perguntando-lhe:
- Vai deixar-se vencer pelo inimigo, depois de nos ter dado coragem durante todos estes anos?
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Ling Tan reflectiu um momento, sob o olhar penetrante da mulher do segundo filho. Por fim, soergueu-se no leito e exclamou com fingida cólera:
Encontraste precisamente as palavras que me forçam a viver, muito embora deseje a morte.
Levantou-se e os filhos precipitaram-se para o amparar. As mulheres saíram do quarto. com a ajuda dos filhos, lavou-se e vestiu-se; em seguida, bebeu um caldo, no qual Ling São batera dois ovos, e começou de novo a viver.
Mas nunca mais foi o mesmo. Muito débil, sem forças nas pernas, quando caminhava tinha de se apoiar às paredes, à mesa ou ao ombro dum filho ou de Ling São. Nunca mais falou da guerra, nem do inimigo, nem da esperança que perdera. Daí em diante, passou a ser simplesmente um velho, e todos na família assim o consideravam, cuidando dele, nunca o deixando sozinho.
A partir desse dia, Ling Tan começou a esquecer-se de tudo quanto lhe diziam, mas o que mais o desgostava era nunca se lembrar do lugar onde estava o terceiro filho. Esquecia-se com frequência que Jade já lhe lera a última carta de Mayli e pedia-lhe todos os dias que lha lesse, dizendo que ainda não a tinha ouvido. E Jade, pacientemente, repetia a leitura. Um dia em que lhe lia pela sexta vez uma carta chegada seis dias antes, Ling Tan estendeu a mão e pediu:
- Dá-me essa carta.
Jade deu-lhe a carta e ele pegou nela com a mão direita. Mas, ao recebê-la, a sua mão começou a tremer, um leve tremor que não conseguia dominar apesar de todos os seus esforços. Essa manifestação de fraqueza irritava-o em extremo.
- Olha para esta mão - disse, num tom de desprezo, como se a mão não lhe pertencesse. - Treme como uma folha seca prestes a cair da árvore.
Jade mudou de posição a criança que tinha ao colo. Trazia sempre um dos gémeos nos braços; do outro encarregava-se Ling São. Uma e outra, fizessem o que fizessem, nunca andavam sem um contrapeso.
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- É somente a mão - volveu ela para o animar.
- Mas com esta mão é que eu deitava as sementes à terra - resmungou Ling Tan.
- Por isso mesmo está mais cansada - observou Jade com brandura.
Ling Tan soltou um profundo suspiro, pegou na carta com ambas as mãos e pôs-se a voltá-la vagarosamente em todos os sentidos. Não quis, por orgulho, perguntar onde era o alto e o baixo e Jade nada lhe disse quando o viu colocar a carta às avessas. Para que havia de envergonhar o pobre velho? Ling Tan mirou e remirou o papel durante algum tempo, procurando dar aos sinais o sentido das palavras que acabava de ouvir, depois comentou:
- É estranho que ela escreva a respeito do meu filho e não sejam casados. Por que não casam?
- Como posso eu compreender que uma mulher não queira casar com um filho seu? -perguntou Jade a rir.
Mas Ling Tan nem sequer sorriu.
- Nunca mais verei o meu terceiro filho -disse tristemente.- Os ventos e os mares estrangeiros são ruins...
-- Não se abandone a tão maus pensamentos - replicou Jade. E como o filho que trazia ao colo adormecera, pensou que o podia ir deitar e dar um pouco de descanso aos braços. Levantou-se, atravessou o pátio na ponta dos pés e Ling Tan ficou sozinho.
O velho contemplou mais uma vez demoradamente a carta que não sabia ler, depois dobrou-a com todo o cuidado e meteu-a na cinta. Guardá-la-ia até que se desfizesse em pó, tal como guardava as outras que essa mulher escrevera, a mulher que o seu terceiro filho amava. Por mais voltas que desse ao miolo, não era capaz de compreender essa rapariga que apesar de não querer casar com um homem tão formoso como o seu terceiro filho, lhe escrevia regularmente, conseguindo que as cartas lhe chegassem às mãos pelos meios mais imprevistos. Mas tudo se modificara nesses anos de guerra, e não havia agora nada mais estranho do que as relações entre os homens e as mulheres. Suspirou de novo, estendeu um braço sobre
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a mesa e pousou nele a. cabeça. O sol enchia o pátio de quentura e reinava ali uma calma absoluta. De súbito, ouviu o ruído do tear, esse tear há tanto tempo parado, desde que a sua filha Pansiao fora para uma escola das montanhas, no interior do país. Há muitos meses que não tinham notícias de Pansiao e Ling Tan quase se esquecera dessa filha. Mas lembrou-se dela ao ouvir o ruído do tear... Sabia que não era Pansiao que estava agora sentada diante do engenho mas sim a viúva com quem casara o seu filho mais velho. Era uma boa tecedeira, e executava igualmente bem qualquer outro trabalho doméstico, mas apesar disso Ling São zangava-se frequentemente com ela. A pobre mulher tinha tal desejo de agradar e esforçava-se tanto por isso, que chegava a ser importuna. Então, ao ver baldados os seus esforços, escondia-se em qualquer canto a chorar. Ling São, exasperada, gritava:
- Deixa de chorar, pobre alma estúpida! É verdade que fazes tudo por me agradar, e talvez o conseguisses se não andasses a toda a hora, como os gatos, agarrada às minhas pernas. Não te amofines tanto, e acabarei por te estimar mais!
Mas a pobre mulher não entendia assim. Limitava-se a erguer para a sogra uns olhos marejados de lágrimas, enquanto gemia:
- Parece-me que nunca chegarei a fazer o suficiente para lhe poder agradar.
Tais questões tornaram-se tão frequentes, que Ling Tan um dia resolveu intervir e disse a Ling São:
- Desde que o meu filho encontrou esta mulher e gosta dela, deixa-a viver tranquila. Ou terei de suportar uma velhice desgraçada por causa das vossas constantes discussões? Já que não reina a paz no mundo, ao menos que haja um pouco de sossego na minha casa.
A partir desse dia, Ling São deixou de resmungar na presença do marido e o velho pôde então viver em paz.
Agora, o rumor abafado do tear, ressoando na atmosfera morna daquela tarde de Inverno, embalava-o com o seu ritmo regular, e adormeceu.
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II
A mais de mil milhas de distância do pátio onde Ling Tan adormecera à quentura do sol, o seu terceiro filho, Lao San, estava noutro pátio interior.
Mas Lao San usava agora um nome diferente. Lao San, ou Lao Três, quadrava bem ao filho dum agricultor, mas, após a vitória de Long Sands, passara a comandar outros homens, e o seu general, ao promovê-lo, dera-lhe também novo nome;, chamara-lhe Sheng, e Sheng ele passou a ser para toda a gente.
Estava sentado em frente duma pequena mesa de porcelana e falava com a mulher que amava e se recusava a desposá-lo. Ou, mais exactamente, era ela que o incitava a falar, interrogando-o sobre tudo quanto ele fizera desde a última vez que se tinham visto, há mais de dois meses. Depois calou-se e inclinou a formosa cabeça, como se reflectisse no que acabava de dizer. Em que estaria a pensar? Sheng ignorava-o por completo. Amava-a profundamente, mas não tinha a pretensão de conhecer os seus pensamentos. Sabia apenas que não era uma mulher como as outras. Falava-lhe à vontade como a qualquer dos seus camaradas, mas quando ela se calava, sentia-a distante, inacessível. Mayli ergueu de súbito a cabeça, como se sentisse e não pudesse suportar o peso daquele olhar, e disse com um sorriso levemente malicioso:
- Fica-lhe muito bem esse uniforme. - Depois o seu sorriso acentuou-se: - Mas por que lhe digo isto ? Sabe-o muito bem, com certeza.
Ele não respondeu, nunca lhe respondia quando os seus lábios vermelhos sorriam assim.
- Quantos caracteres já aprendeu a escrever? - perguntou Mayli, após curto silêncio.
- Os suficientes para meu governo - replicou Sheng.
- Então por que não me escreveu uma carta? - insistiu a jovem.
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para que havia de escrever se sabia que a tornava
a ver dentro dum mês ou dois?
. se não viu razão alguma para me escrever, é porque
de facto não existia - rematou Mayli.
E dizendo isto, pegou na chávena de chá. Sheng contemplou aquelas mãos compridas e finas, de unhas pintadas de vermelho. Ainda se lembrava bem do seu perfume. Mas não se aproximou. Em vez disso, meteu a mão na algibeira interior do uniforme novo, do lado do coração, e tirou de lá uma bandeira de seda. Mayli continuou a beber o chá, mas um sorriso bailava-lhe nos lábios e fazia brilhar mais os seus grandes olhos negros.
- Aqui tem a bandeira - disse Sheng.
- Ainda a traz consigo?-exclamou a jovem, com fingida admiração.
- Não ordenou que lha trouxesse? - perguntou Sheng.
- Não me indicou assim que viesse ter consigo?
Era verdade. Mayli, ao despedir-se de Jade, seis meses antes, entregara-lhe aquela bandeira de cores vivas, recomendando-lhe: "Diga-lhe que parto para a zona livre, que vou para Kunming". E Sheng viera para Kunming depois da vitória. Mas, ao chegar, Mayli recusara-se a desposá-lo. E mantinha ainda a mesma atitude, embora tivesse passado já algum tempo e ele a visitasse todos os dias.
- Por que guarda essa bandeira sobre o coração? perguntou a jovem.
- Deve lembrar-se que me pediu para vir ter consigo... E apoiando-se à mesa de porcelana, contemplou aquele
rosto de olhar distante, voltado para o dele. A sua bela cabeça desenhava-se num fundo luminoso e rico de contrastes e de cor. Para além dos muros do pátio, erguiam-se os altos cumes das montanhas que circundavam a cidade, manchas de púrpura no céu claro desse dia de Inverno. A tarde não estava fria. Aliás, era raro haver frio naquelas paragens. Noutras regiões, dias como aquele só em plena Primavera. O sol iluminava os rostos de ambos e, ao olharem-se, cada um ficou surpreendido com a beleza do outro. Os dois possuíam uma pele formosa e delicada, no
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tom dourado próprio da sua raça, uns olhos dum negro profundo e dum branco- claro e puro.
- Pergunto-lhe mais uma vez se quer casar comigo insistiu Sheng. -Perguntei-lhe ontem, volto a perguntar-lhe hoje.
Mayli baixou os olhos e retorquiu:
- Tornou-se muito atrevido nos últimos dias. Quando aqui veio a primeira vez, nem por sombras lhe ocorreu a ideia de me fazer esse pedido directamente. Lembra-se que procurou alguém que conhecia um amigo meu e que foi através desses dois intermediários que me propôs casamento?
- Mas agora tenho pouco tempo na minha frente respondeu Sheng. - Um soldado deve tomar o caminho mais curto para chegar onde deseja. Pergunto-lhe outra vez ainda: quer casar comigo antes que eu parta para nova batalha?
Mayli ergueu os olhos e ele viu neles o que mais temia no mundo, o seu riso.
- É a última vez que mo pergunta? - inquiriu ela por fim, com o ar travesso de um gato que dá uma sapatada numa bola.
- Não, continuarei a insistir, até dizer que sim.
- Ao menos espere voltar cá novamente para me perguntar outra vez.
Ambos tiveram o mesmo pensamento. E se nunca mais voltasse?... Mas nem um nem outro o exprimiu.
- Pode dizer-me a razão por que não quer casar comigo? - perguntou-lhe depois Sheng.
- Se a soubesse, dizia-lhe - afirmou Mayli. Ficaram ambos calados muito tempo, de olhos nos
olhos. Por fim, Sheng tirou a bandeira de seda de cima da mesa e guardou-a.
- Vai-se embora? - inquiriu a jovem, levantando-se.
- Sim, vou.
- Vai-se embora por que tem de ir ou por que assim o deseja? - insistiu Mayli.
- Que lhe importa saber? - interrogou Sheng.-Já
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lhe disse o que tinha a dizer-lhe. Não há outra razão para me demorar mais. ,,,.,,
Mayli não respondeu. Estava de pé ao lado dele, alta de mais para uma mulher, e no entanto só lhe dava um pouco acima do ombro.
Creio sinceramente que ainda está a crescer - observou-lhe ela, com certa perversidade. - Pode censurar-me por não querer para marido um rapaz que não é ainda homem feito?
Censuro-a por não sentir a minha falta - volveu
Sheng gravemente. - E censuro-a ainda mais porque sabe muito bem que estamos destinados a casar um com o outro. Não o dizem os nossos horóscopos? Você não é o ouro e eu não sou o fogo?
- Mas não quero queimar-me! - exclamou Mayli.
- Eu sou homem e você é mulher!
A atmosfera em volta era tão pura, tão imóvel e o sol tão brilhante... As duas sombras fundiram-se nas lajes brancas do pátio, formaram uma só. Mayli, porém, logo recuou, e as duas sombras separaram-se novamente.
- Vá-se embora - ordenou-lhe. - Quando deixar de crescer, volte então.
Sheng lançou-lhe um demorado olhar, tão insistente e altivo que ela bateu o pé no chão e gritou:
- Julga que tenho medo dos seus olhos?
- E você julga que tenho medo de si? - retorquiu ele com firmeza; e, sem mais palavras, voltou-lhe as costas e saiu.
Ao ver-se só, Mayli começou a andar dum lado para o outro; depois, parou em frente dum renque de bambus, arrancou uma folha dura e lisa, e pôs-se a desfazê-la com os dentes em mil pedaços. Quando teria ela confiança suficiente nesse homem que o seu corpo desejava? Não queria casar com um rústico, mas seria ele mais do que isso? Quem o sabia? Um mês antes, fora escolhido pelos superiores para comandar outros homens. Mas precisara de alguns meses para poder provar que os seus méritos não se limitavam a saber dirigir o punhado de soldados
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valorosos vindos com ele das colinas próximas da casa paterna. Durante esse tempo fora simples soldado e passara as noites a aprender, como qualquer estudante, os traços, os pontos e os colchetes, no desejo de saber ler e escrever. Agora já era capaz de decifrar um livro, desde que não fosse muito difícil. No entanto ela não sabia ainda se o seu espírito era ou não simples. Podia casar e abandoná-lo depois se não lhe agradasse. Muitas mulheres faziam isso nos tempos que corriam. Mas apesar do seu temperamento ardente, não queria casar apenas por casar. Desejava, sim, casar com um homem que pudesse amar até morrer, e para lhe inspirar um tal amor não bastava a beleza física, eram precisas outras qualidades, esse homem tinha de ser, em suma, um homem superior. E sê-lo-ia Sheng? Ignorava-o. Uma velha, vestindo blusa e calças pretas, apareceu à porta que dava para o pátio.
- A comida está pronta - disse. Depois, olhando em volta: - Ele já se foi embora? E fui eu de propósito à rua comprar carne de porco e castanhas, convencida que ele comia cá!
- Não faz mal, como eu a carne de porco - propôs Mayli.
- Não, isso é que não come - afirmou a velha. A sua mãe era discípula de Maomé e enquanto as minhas mãos lhe prepararem as refeições, não entrará na sua boca um bocadinho de carne de porco. Fui eu que a amamentei com o meu leite em casa de sua mãe!
- Por que diabo te tornei a ver? - suspirou Mayli, em tom de queixa.
Encontrara-a na cidade onde nascera, agora governada por um fantoche ao serviço do inimigo. E graças a essa estranha faculdade que tem a gente do povo para saber tudo o que acontece aos amos, a velha teve conhecimento que Mayli regressara de longe, de além dos mares. Foi vê-la, disse-lhe quem era, deu-lhe todos os pormenores a respeito da mãe e convenceu-a de que tinha na sua frente quem a amamentara em criança. Como era também discípula de Maomé, e se não fora Mayli não teria outrora bebido o seu
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leite, a jovem sofria-lhe agora as consequências, pois impunha-lhe ritos e refeições que para ela, educada no estrangeiro, há muito tinham perdido todo o significado.
- Foi a sua mãe que me mandou para junto de si respondeu Liu Ma. -Durante duas noites o seu fantasma puxou as cortinas do meu leito e reconheci bem o perfume de flores de cássia que ela usava sempre nos cabelos.
- O meu pai ainda gosta de flores de cássia - observou Mayli.
Uma das razões por que tomara Liu Ma ao seu serviço, fora exactamente para ouvir falar da mãe, que perdera à nascença.
- Julga que pode dizer-me a esse respeito alguma coisa que eu não saiba? - interrogou a velha. -Tudo quanto sucedeu a sua mãe foi como se sucedesse a mim. Não me esqueci de nada. E agora venha comer.
E, dizendo isto, pegou na mão da jovem e levou-a para a sala principal da casa onde as duas viviam sozinhas.
- Sente-se - ordenou-lhe.
Mayli sentou-se e Liu Ma trouxe-lhe um lavabo de cobre com água quente e uma pequena toalha branca. Enquanto a jovem lavava as mãos, a velha resmungava:
- vou dar o porco aos cães vadios. É uma comida só própria para cães. Mas, saltando para outro assunto, o que faz sempre metido cá em casa esse soldado grandalhão que a menina diz ser seu irmão de leite? Ah! que tempos estes em que uma rapariga julga convencer toda a gente que tem um irmão de leite! E, irmão ou não, o que é um irmão de leite senão um homem como os outros? E por que convive assim com um homem que não é na verdade seu irmão? Isso prejudica a reputação desta casa. Toda a vizinhança vê esse soldado curvar a cabeça para transpor a porta. Eu minto e defendo-a, mas de que servem as minhas mentiras quando toda a rua sabe que ele entra aqui? Ainda ontem essa bruxa do inferno da loja ao lado, me dizia: "Já vi que o seu patrão voltou". Como posso responder-lhe que ele não é meu patrão, se ela o vê entrar cá para casa?
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Mayli, habituada todos os dias a tais reparos que brotavam da boca de Liu Ma como água duma fonte, não lhe respondeu. Limitou-se a sorrir. com a mão branca alisou os cabelos negros e continuou a comer com grande apetite o carneiro, o arroz e as couves que estavam na sua frente. Liu Ma andava dum lado para o outro, numa roda viva, deitando-lhe chá quente, procurando adivinhar-lhe os mínimos desejos, mas resmungando sempre.
De súbito, porém, Mayli, com olhar vivo e malicioso, interrompeu-lhe a rabujice. Já comera bastante mas não pousara ainda os pauzinhos.
- Onde está então essa carne de porco? - perguntou.
- Está na cozinha, enquanto não a deito aos cães retorquiu a velha.
- Vai buscá-la, ainda tenho fome - ordenou Mayli. Liu Ma abriu muito os olhos e ficou de boca aberta, o
lábio inferior pendente.
- Não lhe dou a carne de porco, já sabe isso muito bem - disse, indignada. - Preferia vê-la morrer de fome, a servir-lhe com as minhas próprias mãos carne tão ruim.
- Mas se Sheng tivesse ficado cá e jantasse comigo, como às vezes sucede, eu comia a carne de porco - objectou Mayli.
- Eu sei pôr-me sempre no meu lugar - declarou Liu Ma. - Se tal acontecesse, claro, esperava que estivéssemos sós para a censurar.
- És uma velha rabujenta - disse Mayli a rir. Depois levantou-se e sem fazer caso dos ralhos de Liu Ma, dirigiu-se à cozinha. Em cima do fogareiro de barro, lá estava a caçarola com a carne de porco, bem assada e aromática, guarnecida com castanhas.
- Isto não tem nada o aspecto de comida para se atirar aos cães-observou a jovem, cujos olhos brilhavam de malícia. - Parece mais um belo petisco que uma velha sabida pôs de lado para o seu jantar.
- Ah! Só queria que a sua mãe fosse viva! - exclamou Liu Ma. - Teria feito de si uma menina decente, castigando-a com uma vara de bambu. Mas o seu pai foi
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cempre um homem tão brando como o fumo. Nunca tomou uma resolução firme em coisa nenhuma. A sua mãe, sim, é que devia tê-la educado.
Mas já Mayli colocara a caçarola em cima da mesa e escolhia com os pauzinhos os bocados mais apetitosos, muito loiros, gordos e tenros.
- Cozinhas muito bem a carne de porco, embora nem sequer a proves! - observou Mayli.
E ao dizer isto olhava-a de soslaio. Então o velho rosto trigueiro de Liu Ma todo ele se encarquilhou de riso.
- Maldita menina! - disse. - Se não fosse duas vezes mais alta do que eu, dava-lhe uma boa sova. Mas a minha maior satisfação é que esse filho de dragão a quem chama irmão de leite é ainda mais alto. Quando se casarem e ele perder a paciência, não serei eu que lhe irei prender as mãos. Pelo contrário, hei-de gritar: "Chegue-lhe mais uma por minha conta!"
- Velha tonta! - exclamou Mayli jovialmente.-Como sabes que caso com ele se nem eu própria sei?
Nesse mesmo instante, Sheng, na posição de sentido, estava diante do seu general. O general era um homem do Sudoeste, jovem e robusto, que comandava os exércitos da região. Tinha uma história curiosa. Fora outrora rebelde, mas agora era um soldado leal na luta contra o inimigo comum. Em tempos de paz, os homens podem bater-se por esta ou aquela causa, mas quando o estrangeiro ataca o país, ninguém mais tem o direito de defender uma ideia própria. Por isso o general, à frente de todos os seus homens, viera colocar-se às ordens do Chefe Supremo e pôr-se ao serviço da causa comum.
Vendo Sheng na sua frente, na posição de sentido, fez-lhe sinal que se aproximasse.
- Sente-se aqui - disse-lhe. - Tenho de lhe falar, não como superior, mas de homem para homem. Recebi ordem do Chefe Supremo para enviar as nossas duas melhores divisões para a Birmânia. Faço-o contra vontade, por
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isso não quero dar cumprimento a tais ordens sem lhe dizer primeiro que não aprovo a decisão que sou obrigado a comunicar. Sente-se, sente-se!
Sheng não teve outro remédio senão obedecer. Tirou o barrete da cabeça, conservando-o na mão, e sentou-se na beira da cadeira, pouco à vontade diante do superior. E também não fez qualquer pergunta, esperou em silêncio, testemunhando assim todo o seu respeito. À entrada da sala, duas sentinelas, muito hirtas, dir-se-iam dois ídolos. O general apenas lhes dirigiu um olhar e logo abandonaram o seu posto. Ficaram então os dois sozinhos. O general recostou-se no espaldar da cadeira, brincando com um pequeno búfalo de barro que tinha em cima da secretária.
- Não me disse uma vez que o seu pai é agricultor? perguntou por fim.
- Sim, sou filho dum camponês, cujos antepassados, desde há mais de mil anos, camponeses foram também respondeu Sheng.
- É o único filho de seu pai? - inquiriu o general.
- Sou o mais novo dos três filhos do meu pai - elucidou Sheng. - E são todos vivos.
O general soltou um suspiro.
- Então posso mandá-lo sem receio para uma missão arriscada. Suceda o que suceder, a árvore da vida de seu pai continuará a existir.
- A descendência da família está assegurada sem mim
- afirmou Sheng. - Tenho dois irmãos e ambos já têm filhos.
- E você é casado?
- Não e provavelmente nunca casarei - volveu Sheng com voz amarga.
O general sorriu:
- É muito jovem para dizer isso.
Sheng esteve calado um momento, depois esclareceu:
- Para um homem que anda empenhado na guerra, é preferível não ter mulher. Por isso quero ser só e livre.
- Tem razão - concordou o general, pousando o brinquedo
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de barro e pegando num pincel. - Qual é o nome do seu pai e onde fica a sua casa? Escrever-lhe-ei se você não regressar.
- Ling Tan, na aldeia de Ling, ao Sul da cidade de Nanquim, na província de Kiangsu - respondeu Sheng.
O general deixou cair o pincel.
- Mas isso fica em território ocupado! - exclamou.
- Julga que não sei? - replicou Sheng. - Os inimigos chegaram lá um dia e queimaram, saquearam e assassinaram sem dó nem piedade. Juntei-me nessa altura aos homens das colinas e de vez em quando matávamos um punhado de nipões. Mas matar apenas alguns de tempos a tempos não satisfazia a minha sede do seu sangue, e então vim para aqui. Não ficarei satisfeito enquanto não conseguir matar centenas e milhares. Sim, foi por isso que vim e passei meses e meses a estudar antes da batalha de Long Sands.
- Compreendo agora porque aprendeu tão depressa observou o general.
Depois de escrever rapidamente o nome de Ling Tan e o lugar onde vivia, pousou o pincel, e apoiando as duas mãos nos braços da cadeira, olhou bem de frente para Sheng.
- É contra a minha vontade que mando essas duas divisões para a Birmânia - disse. - Discuti o assunto com o Chefe Supremo. Disse-lhe que não devíamos combater num território que não é o nosso, e isso por duas razões. Em primeiro lugar, porque o povo da Birmânia não está ao nosso lado e vai receber-nos hostilmente quando souber que acorremos em auxílio de quem os governa. Os birmaneses não gostam dos Ying que dominam o país; portanto, como vamos defender os homens que detestam, hão-de odiar-nos também. Em segundo lugar, os Ying desprezam todos os homens que não sejam brancos, por isso embora possamos combater lado a lado, nem mesmo assim nos hão-de tratar como verdadeiros aliados. Seremos colocados num plano subalterno, e eles continuarão a ser os senhores. Ora devemos sofrer tal vexame para os socorrer?
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- E o que respondeu o Chefe Supremo a tudo isso que é a pura verdade? - perguntou Sheng.
O general inclinou-se um pouco para a frente.
- Respondeu que os Ying sabem que têm poucas possibilidades de conservar a Birmânia em seu poder e por isso ficarão reconhecidos com o nosso auxílio. Disse também que, como têm necessidade de nós, hão-de tratar-nos com cortesia, e que combatendo lado a lado poderemos alcançar juntos uma grande vitória sobre o inimigo.
-. O Chefe Supremo está então convencido que podemos vencer? - inquiriu Sheng.
- Não manda para lá as nossas melhores divisões? Não são elas constituídas por jovens fortes, aguerridos e bem treinados?
O longo suspiro do general assemelhou-se a um gemido.
- Sim, foi assim que o Chefe Supremo falou, mesmo depois de Hong-Kong ter caído, e todos sabemos que os Ying entregaram essa grande cidade ao inimigo como um presente em dia de festa. Em minha opinião, os Ying estão perdidos, e se nos juntamos a eles, estamos perdidos também. Toda a vida fui dotado duma espécie de presciência, um conhecimento antecipado dos perigos e dos desastres, e agora tenho a certeza da sorte que nos. espera. Devíamos ficar no nosso país e combater unicamente aqui. Aliás, nada nos diz que o coração desses Ying mude dum momento para o outro a nosso respeito. Desprezaram-nos sempre e continuam a desprezar-nos...
O general calou-se e ficou uns minutos imóvel, como se fora de pedra. Mas Sheng reparou que as suas veias do pescoço e das têmporas se punham tumefactas, que os punhos fechados, assentes em cima da mesa como dois martelos, mostravam as articulações esbranquiçadas, e que as veias dos pulsos tinham inchado também. O general não ergueu para ele os olhos, por isso nada pôde ler no seu olhar, mas passado algum tempo ouvi-o pronunciar, numa voz baixa, espessa, como que sufocada:
- Os Ying trataram-nos sempre como cães na nossa própria terra! Impõem-nos há muitos anos a sua vontade,
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desde que nos venceram nas guerras a que chamaram do ópio, e que na realidade não foram senão guerras de conquista. Os seus navios passaram depois disso a cruzar os nossos rios e os seus soldados a desfilar nas nossas ruas. Apropriaram-se também dalgumas parcelas de território. Recusaram-se a obedecer às nossas leis. Vivendo no nosso país, instituíram para eles leis suas, com tribunais e juizes seus. Quando algum roubava ou matava um dos nossos, nunca nos faziam justiça. Os seus padres não pagavam impostos e andavam livremente por toda a parte a pregar uma religião que não era a nossa. E assim afastaram o coração da nossa juventude do culto dos antepassados. Estabeleceram até postos aduaneiros, para cobrarem direitos às mercadorias que nos pertenciam.
Levantou-se bruscamente, a cólera chamejava-lhe nos olhos e pôs-se a andar para trás e para diante na sala estreita e comprida.
- E agora sou obrigado a mandar os meus melhores soldados, os mais jovens e aguerridos, a combater ao lado desses homens que durante anos e anos não deixaram de nos desprezar e calcar aos pés! - exclamou.
Sheng vivera sempre em casa do pai, fora da cidade, e por isso poucas ocasiões tivera até então de ver esses estrangeiros que o general tanto odiava. Apenas uma ou duas vezes encontrara um ou outro nas ruas da cidade ou os vira andar à caça de animais selvagens, no Outono, quando havia erva alta nas colinas. Olhava-os sempre com espanto ao ouvi-los falar, numa voz forte, uma linguagem áspera de que não compreendia uma única palavra. Mas ignorava tudo quanto esses estrangeiros tinham feito ao seu povo... Limitou-se portanto a escutar. Como não conhecia os factos, não podia dizer nada. Além disso, era soldado. E nos últimos meses aprendera a obedecer aos seus chefes, tal como exigia que os homens sob o seu comando também lhe obedecessem. Portanto, conservou-se calado, à espera das ordens do general.
Este continuava a andar para trás e para diante, furioso. Por fim sentou-se e deu uma palmada na mesa.
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- O que tem de se fazer, faz-se! - pronunciou, numa voz forte. - Resisti ao Chefe Supremo durante alguns dias e consegui reter aqui os meus homens todo esse tempo. Agora as suas ordens chegam-me, irrevogáveis, como vindas do céu, e não há outra alternativa, ou obedeço ou suicido-me. Mas de que serviria suicidar-me, se outro viria ocupar o meu lugar e cumprir essas ordens?
O general convidara antes Sheng a sentar-se, mas ele nesse instante levantou-se e foi de pé que recebeu a ordem de marcha.
- Prepare os seus homens para partirem para a Birmânia - ordenou numa voz rouca. - Eu próprio assumirei o comando. Quando chegarmos à fronteira, pararemos, aguardando novas ordens antes de prosseguirmos.
Sheng uniu os calcanhares, fez a continência e esperou.
- A direcção que tomaremos depois, não foi ainda decidida - continuou o general. -- Uns dizem que uma parte das nossas tropas irá para a Indochina, e se assim for invadiremos esse país. O inimigo também prometeu não entrar na Tailândia, e no entanto já lá está e os tailandeses submeteram-se em menos de cinco horas. Em toda a parte onde chega, é certo o seu triunfo. E para isso nem precisa sequer do exército. Seja qual for o país, já está conquistado antes de disparar um tiro. Só.nós lhe resistimos... até morrermos...
O general suspirou, inclinou-se para a frente, a cabeça entre as mãos:
- Vamos travar uma batalha antecipadamente perdida!
- exclamou. - Tenho disso a certeza, mas como posso convencer desta verdade o Chefe Supremo?
- Não se atormente tanto - aconselhou Sheng com firmeza. - Se ainda não combatemos, não podemos dizer que a batalha está perdida.
O general soltou novo suspiro. Ergueu a cabeça e contemplou o rosto franco e decidido de Sheng. Lembrou-se de quando o vira a primeira vez, ao chegar das colinas, seis meses antes. Como estava mudado! Até parecia incrível! Há seis meses, não passava dum selvagem, um verdadeiro
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tigre, os cabelos compridos e desgrenhados a caírem-lhe para os olhos, as vestes azuis de algodão, como as que usam os camponeses, completamente esfarrapadas. Se fosse de estatura mediana, ninguém repararia nele, teria entrado nas fileiras como tantos outros e lá continuaria ainda com certeza. Mas Sheng era muito alto, tinha pelo menos mais um palmo do que qualquer outro, e com vinte e dois anos continuava ainda a crescer, o que parecia estranho. As suas mãos eram duas vezes maiores do que as dum homem normal, e nos pés nenhumas sandálias lhe serviriam se não fossem feitas por medida. Todo o seu corpo excedia as proporções comuns. Tinha também uns olhos enormes e um olhar claro e profundo. Onde quer que passasse, todos se voltavam para o ver e admirar a sua estatura. E porque era o mais alto, facilmente se tornou o chefe dos seus companheiros.
No entanto, se fosse estúpido ou tímido, só a estatura de pouco lhe serviria. Seria apenas um corpo grande e nada mais. Mas era um homem sensato e corajoso, aprendia tudo com facilidade e cumpria fielmente as ordens recebidas. Além disso, quando transmitia qualquer ordem aos seus soldados, já se sabia que eles lhe obedeceriam, pois todos o estimavam, embora tivessem também medo dele, o que não deixa de convir a um chefe.
Além de todas estas razões, houve ainda outras que permitiram a sua rápida ascensão. Dera boas provas na frente de batalha. No oitavo mês daquele ano, a guerra reacendera-se em vários pontos e Sheng tomara parte activa na campanha, mostrando-se sempre à altura das circunstâncias. Tivera ainda a sorte de escapar com vida, recebendo apenas ligeiros ferimentos, e à medida que iam morrendo os seus superiores, ele ia subindo na escala hierárquica e tomando o seu lugar. No nono mês, por ocasião da grande batalha de Long Sands, foi Sheng quem à frente dos seus homens e dos dum outro oficial morto em combate, repeliu os últimos inimigos para fora da cidade. Atrás desse jovem gigante, os soldados reagrupavam-se, seguindo-o para todo o lado com coragem indómita. Ele era tão alto
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que nunca o perdiam de vista e estava sempre na primeira linha do combate. Quando por fim venceram a batalha, os sobreviventes enviaram mensagens ao general a pedir-lhe que nomeasse Sheng seu chefe. O pedido foi deferido e esses homens, com Sheng a comandá-los, foram incorporados numa divisão célebre pela sua bravura. O general tinha tanto orgulho nela, que reservava para esses soldados o que no exército havia de melhor, em armas e comida.
Sheng, por sua vez, aprendera a usar os cabelos curtos, como os do general, a andar asseado e a vestir um uniforme, não melhor do que o dos seus subordinados, pois era igual para todos, mas infinitamente superior às esfarrapadas vestes de algodão azul que usava nas montanhas.
E além de tudo o mais havia ainda Mayli. A jovem removera o céu e a terra para travar conhecimento com o general e aproveitara o primeiro ensejo para lhe falar de Sheng. Apenas algumas palavras, ditas despreocupadamente, como por acaso, para não dar a impressão que se interessava muito ou pouco que esse rapagão vivesse ou morresse. Mesmo assim, foi-o elogiando e contou-lhe as façanhas de Sheng nas colinas.
- Cheguei há pouco tempo da cidade perto da qual ele vivia - explicou. - Lá era grande a fama de que gozava, tanto pela sua força como pela sua bravura. Dizia-se que quando surpreendia uma pequena patrulha de inimigos, era capaz de os capturar apenas com o auxílio das mãos e duma velha espingarda. A sua perícia para colher o inimigo de surpresa era tão conhecida em toda a região que a gente do povo e as crianças cantavam nas ruas os seus feitos.
Era verdade e Mayli cantou ao general uma dessas canções que ouvira nas ruas de Nanquim.
No cimo das colinas há um dragão, Que dorme de dia, e esvoaça de noite. Tem a barriga farta e cheia Dos inimigos que extermina, E vence todas as batalhas.
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O general riu dessa cantiga ingénua, mas quando tornou a ver Sheng lembrou-se dela e passou a ter ainda melhor opinião a respeito do jovem gigante que estava sob as suas ordens.
É claro, Mayli também era um pouco responsável pelos cuidados que Sheng tinha agora consigo próprio. Ela sabia que com as suas risadas o obrigava a modificar-se, embora ele lhe dissesse muitas vezes que não lhe dava ouvidos. Jurava e trejurava que continuaria a ser sempre o que era e se ela não podia amá-lo assim, então não havia nada a fazer. Mas justamente porque Mayli se recusava a amá-lo, quando a deixava procurava modificar-se, ir ao encontro dos seus desejos, e ela, ao notar essas pequenas mudanças, era inteligente bastante para não lhe dizer nada, para fingir até que não as percebia, ao ponto dele julgá-la já esquecida. Mas a verdade é que Mayli se mostrava mais amável quando o via esforçar-se por lhe agradar.
No entanto, estava absolutamente convencida que nunca conseguiria dominá-lo. Ele amava-a e não se cansava de lhe confessar esse amor, mas ela sabia que nunca a amaria mais do que tudo no mundo. E se ela não o amasse mais do que tudo no mundo, não o amaria bastante...
As coisas estavam neste pé entre os dois no dia em que o general disse a Sheng que se preparasse para marchar com os seus homens para a Birmânia e ir combater ao lado dos Ying.
- Tenho apenas uma pergunta a fazer - disse por fim Sheng ao general. - Como iremos até à Birmânia?
- Como há-de ser, senão a pé? Não há caminho de ferro. Seguiremos pela Grande Estrada.
Sheng reflectiu um momento.
- E quanto a comida? - perguntou.
- Arranjá-la-emos como pudermos no caminho - respondeu o general;
Sheng reflectiu de novo.
- Quando partimos? - inquiriu ainda.
- Daqui a quatro dias - retorquiu o general.
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Assim que Sheng recebeu estas ordens, fez continência, deu meia volta e saiu. Bastavam-lhe dois dias, não mais, para preparar os seus homens para essa longa caminhada, pois todos eram resistentes e estavam bem treinados. Mas devia dar-lhes também algumas horas para se despedirem das mulheres, comerem uma ou duas boas refeições como tão depressa não teriam outras, arranjarem um par de sandálias suplementar e procederem, enfim, a todos os preparativos necessários a quem parte para um país desconhecido, do qual não sabe se voltará ou não.
De súbito, ao sair da sala onde estivera com o general, quando passava diante dos soldados que lhe faziam continência, um pensamento lhe atravessou o espírito: talvez ele pertencesse ao número dos que nunca mais voltavam. Sabia muito bem que ia travar a mais dura batalha da sua vida. Teria de conduzir os seus homens a pé durante milhares de quilómetros, atravessando rios, escalando montanhas, arrastando atrás de si, ao longo dos caminhos, os canhões de campanha, sempre de espingarda ao ombro, comendo o que pudessem comprar aqui e além, para no fim irem combater em terra estrangeira, ao lado de homens que não eram do seu sangue, cujo carácter desconheciam, numa empresa terrivelmente problemática.
Ficou um instante parado à porta, sem se importar com quem passava. O sol de Inverno iluminava a rua com uma luz crua e brilhante, mas Sheng não via nada, tudo era escuro na sua frente. Passaria muito tempo sem ver a mulher amada. E se nunca mais a visse? Em vez de voltar à direita, voltou à esquerda, rompendo a passos largos por entre a multidão, a cabeça e os ombros a dominarem todos em sua volta, e dirigiu-se para o Sul da cidade, onde morava Mayli.
III
Na casa de Mayli, ao fundo duma rua estreita, reinava absoluto sossego quando Sheng entrou. Estava-se a meio
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da tarde. A um canto do pátio, à sombra dos bambus, Liu Ma dormitava. A velha adormecera enquanto cosia, a mão esquerda enfiada numa dessas compridas meias de seda estrangeira que Mayli usava. No dedo médio da destra, um dedal de cobre brilhava como um anel, mas a agulha soltara-se e pendia suspensa da linha. Um cão pequeno, que Mayli encontrara um dia perdido na rua e recolhera, dormia no chão, aos pés de Liu Ma. Ao sentir os passos de Sheng, o animal abriu os olhos, mas tornou a fechá-los mal o reconheceu.
Sheng sorriu diante daquele quadro e, pé ante pé, atravessou o pátio e entrou na sala principal da casa. Mayli possivelmente estava também a dormir, pois lá dentro reinava o mesmo silêncio. Não viu ninguém. Dispunha-se já a sentar-se e a esperar que a jovem acordasse, quando os seus olhos descobriram a porta que dava para o quarto de Mayli, no qual nunca entrara.
A porta estava aberta; Sheng aproximou-se e viu-a de pé em frente da janela. Acabava de lavar a cabeça e agitava a comprida e húmida cabeleira ao sol que inundava todo o aposento. Supunha-se completamente só. Sheng ficou a contemplá-la sem ser visto, sentindo que o coração lhe batia desaustinado no peito. Como era bela e como eram bonitos os seus cabelos negros! Rejubilava por ela os não ter cortado, como as estudantes e as mulheres alistadas no exército. Usava-os enrolados na nuca, sem unturas, a envolverem-lhe o rosto numa auréola negra.
Sheng sentiu que lhe faltava a respiração.
- Mayli - chamou de súbito.
Apartando os cabelos com as duas mãos, a jovem olhou e reconheceu-o. Imediatamente correu para a porta e fechou-a com estrondo, tendo ainda o cuidado de a trancar por dentro. "Oh, grande estúpido!", ouviu-a ele pronunciar, ofegante, do outro lado da porta; e logo em seguida chamar Liu Ma.
Sheng foi sentar-se à mesa, com um sorriso nos lábios. Precisamente nesse instante apareceu Liu Ma a esfregar os olhos.
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- Como conseguiu entrar nesta casa, seu gigantão?
- inquiriu de mau humor. - Juro por tudo que não o vi passar!
- Pois como havia de ver se me servi da adaga mágica? - perguntou por sua vez Sheng, para a arreliar. Trago-a sempre comigo no cinturão e quando digo "Quero ser pequeno!", fico logo tão pequenino que posso saltar o muro a cavalo num grão de poeira. Mas se peço "Quero ser grande!", torno-me tão grande que sou capaz de passar por cima do muro como o vento oeste.
Dizia-lhe isto absolutamente convencido que a velha já teria ouvido contar várias vezes a célebre história da adaga mágica.
Mas Liu Ma, de lábio inferior descaído, recusava-se a sorrir.
- Devíamos ter um melhor cão de guarda - afirmou.
- Este é apenas um cão de sala e vale tanto como um gato para nos defender dos ladrões.
- Não deite as culpas ao cão, boa mulher - aconselhou Sheng.
Mas Liu Ma saíra já da sala, a caminho da cozinha, para aquecer a água para o chá. O cão então aproximou-se de Sheng agitando a cauda, e ele inclinou-se e acariciou-lhe as compridas orelhas. Não passava dum simples brinquedo aquele minúsculo animal, abandonado pela dona ao fugir da cidade por ocasião dos bombardeamentos inimigos do ano anterior. Sheng não estava habituado a esses cães de luxo. Na sua aldeia lidara, sim, com verdadeiros molossos, cujos antepassados eram lobos e dos lobos conservavam a ferocidade diante de qualquer desconhecido. Outrora havia um desses cães em casa do seu pai e lembrava-se de que em criança tinha de o segurar bem sempre que aparecia algum estranho, não fosse o animal atirar-se ao pescoço do visitante. Agora havia poucos desses cães, pois os cobradores de impostos e os soldados inimigos, quando entravam nas aldeias para saquear e violar, matavam-nos sem dó nem piedade ao serem por eles atacados valorosamente.
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Para que serves tu? - inquiriu Sheng ao minúsculo animal.
O cão tinha uns grandes olhos negros, em relevo, como duas bolas de vidro incrustadas no pequeno focinho e todo ele tremia. Ao ouvir a voz de Sheng, avançou uma patita, tocou-lhe delicadamente num pé, e depois farejou-o e encolheu-se todo. O rapaz soltou uma gargalhada. Nesse momento Mayli abriu a porta. Trazia um vestido verde e os cabelos enrolados na nuca. No dedo pusera um anel de jade.
- Por que se ri do meu cãozinnho? - perguntou a jovem.
- Pelos vistos, sou demasiado forte para ele - disse Sheng. - Farejou-me primeiro e depois fugiu de mim, cheio de medo.
- Isso só prova que é um animal inteligente - comentou Mayli.
E, dizendo isto, aproximou-se, pegou no bicho e sentou-se, colocando-o em cima dos joelhos. Sheng seguia-a com o olhar.
- Por que trata esse cão como se fosse uma criança?
- perguntou-lhe. - Não é muito próprio.
- Porquê? Se não está sujo... Ainda ontem lhe dei banho.
- Não faltava mais nada! - exclamou Sheng. - Dar banho a um cão como se fosse uma criança! Só de pensar nisso põem-se-me os cabelos em pé. Tratar um animal como um ser humano... Será isso decente?
- Mas ele é tão bonito... - observou Mayli, acariciando-o. - À noite dorme comigo na cama.
- Isso ainda é pior - afirmou Sheng, num tom impaciente.
Mayli continuou a afagar o pêlo sedoso do bicho aninhado no seu colo.
- Se visse então como as estrangeiras tratam e afagam os seus cãezinhos!...-disse Mayli sorrindo.-Trazem-nos presos por uma trela e quando faz frio vestem-lhes casacos de malha...
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Sheng emitiu um resmungo de desprezo:
- Bem sei que adquiriu muitos costumes dos estrangeiros, mas, de todos eles, esse amor exagerado pelos cães é o que mais me desagrada.
E erguendo-se, num abrir e fechar de olhos, antes mesmo que Mayli tivesse tempo de compreender o que ele ia fazer, agarrou no cão e atirou-o pelo ar, casa fora, para dentro do pequeno tanque que havia no meio do pátio.
- Oh, grande besta! - gritou Mayli, indignada, correndo para o pátio e retirando da água, a pingar, o pobre animal que gania. Mas como não queria molhar o vestido de seda, chamou Liu Ma que acorreu imediatamente.
- Traze-me uma toalha! - ordenou-lhe. - Olha o que fez Sheng. Atirou o meu cãozinho para a água gelada.
Mas desta vez a velha não tomou o seu partido.
- Deixe-o secar ao sol - respondeu com frieza. Tenho muito que fazer, não posso perder tempo a enxugar o cão.
- A velha Liu Ma tem bastante sabedoria - comentou Sheng.
Mayli não lhe deu ouvidos e correu a buscar uma toalha. O pobre animal entretanto tremia e olhava tristemente para Sheng, ali de pé. Depois a jovem friccionou-o bem e colocou-o, para secar melhor, em cima da toalha que estendeu numa pedra quente e exposta ao sol.
Durante esse tempo Sheng seguira todos os seus movimentos, vivos, caprichosos e cheio de graça. "É uma estrangeira", pensou, "tão estrangeira como se não possuísse uma única gota do nosso sangue nas veias". E pela primeira vez lhe pareceu que talvez não fosse muito sensato o seu amor. Se casasse com ela, não transformaria a sua casa num campo de batalha?
- Vim cá para lhe dizer, antes de toda esta louca algazarra, que parto com o exército para a Birmânia anunciou Sheng.
Mayli, ao ouvi-lo, esqueceu por completo o cão e parou a meio do pátio. O sol arrancava reflexos ao seu vestido
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verde e dava maior brilho aos seus cabelos negros. Sheng, de pé na soleira da porta, observava-a.
Quando parte? - perguntou-lhe ela por fim.
Daqui a poucos dias... dois ou três... o máximo
quatro.
Mayli sentou-se num banco de porcelana e ergueu para ele o rosto. A luz do sol doirava-lhe a pele delicada e Sheng viu as longas e finas pestanas e o leve arqueado das sobrancelhas sobressaírem na tez clara. Mergulhou os seus nos olhos da jovem e notou como o branco desses olhos era puro e como eram negras as suas pupilas. No entanto, fixando-os bem, distinguiu umas manchas mais claras.
- Há manchas de ouro nos seus olhos - disse-lhe. - Donde vieram?
- Não me fale agora dos meus olhos - respondeu Mayli. - Diga-me antes qual o motivo dessa decisão tão precipitada.
- Só a nós nos parece precipitada - afirmou Sheng. E pegando na cadeira abandonada pela velha Liu Ma,
sentou-se junto de Mayli. O cão, ainda a tremer, aproximou-se da dona e afastou-se dele, mas nem um nem outro pensavam agora no pobre animal.
- Há várias semanas que se discute este assunto. O general é contrário a tal projecto, mas o Chefe Supremo defende-o. E quando o Chefe diz sim, quem é suficientemente forte para dizer não? Por isso partimos.
Sheng pronunciou as últimas palavras com firmeza e o seu rosto adquirira um ar tão severo que Mayli não fez qualquer comentário. Limitou-se a olhá-lo, e compreendeu então o que seria a sua vida sem esse homem com o qual se zangava e discutia constantemente. Mas uma vida tranquila nunca fora na verdade o seu ideal.
- Assim, agora vamos ser aliados dos brancos - pronunciou Sheng.
- Por que se opunha o general a essa campanha? inquiriu a jovem.
Sheng estendeu o braço e arrancou uma folha de bambu, pondo-se a esfarrapá-la com os dedos enquanto falava.
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Mayli observava aquelas mãos que se moviam com uma força calma. A folha de bambu, insignificante e frágil, ia sendo feita em tiras com absoluta precisão. As mãos de Sheng eram belas e delicadas como são em geral as mãos de todos os habitantes do país, mesmo as dos filhos dos camponeses.
Sheng não olhava para Mayli, contemplava, sim, as tiras verdes que caíam a seus pés.
- O general diz que está escrito que os brancos hão-de ser vencidos.
- Mas porquê? - perguntou Mayli.
E o seu espírito voou para além dos mares, para o país onde passara a maior parte da sua vida. A mãe morrera ao dá-la à luz e antes de completar um ano o pai levara-a para a América. Assim, pronunciara as primeiras palavras na língua desse país, ensinadas pela negra sua ama, pois a criada chinesa que o pai levara para cuidar dela, adoecera com saudades dos seus ainda durante a viagem e tivera de regressar no primeiro navio. Agora Mayli revia em pensamento as cidades imensas, as grandes fábricas, as pessoas ricas e laboriosas, e a opulência e o orgulho que em toda a parte estadeavam.
- Como podem os brancos ser vencidos? - perguntou.
- Está escrito - replicou Sheng.
Os lábios vermelhos de Mayli torceram-se ao canto da boca.
- Não sou supersticiosa-afirmou.-Preciso, para acreditar nisso, de melhores razões do que as profecias de qualquer velho quiromante que se senta ao canto duma rua coberto de andrajos. O general falou alguma vez com um branco? Já visitou esses países?
- Não sei - respondeu Sheng. - Nunca lhe faço perguntas.
- Então como os conhece?
- Viu-os aqui, na nossa terra - afirmou Sheng. Soprou com força os restos da folha ainda colados aos
dedos e cruzou as mãos. Depois, ergueu a cabeça e prosseguiu, de olhos voltados para Mayli, mas a jovem percebeu
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que ele nem sequer a via. Pesava cuidadosamente o sentido de cada palavra:
- O general teve ocasião de notar o orgulho dos brancos em Xangai e Hong-Kong; privou com eles nos pedaços de território que roubaram aos nossos antepassados para estabelecerem as suas cidades. Por isso afirma que sempre nos consideraram simplesmente como cães vadios e acrescenta que em toda a parte onde os brancos têm vivido, nos países em redor, trataram da mesma forma as populações sob o seu domínio. Assim esses povos preferem juntar-se ao inimigo que detestam a suportar por mais tempo esses brancos orgulhosos que os desprezaram como já desprezaram os seus antepassados.
May li ouviu tudo sem o compreender. E como podia compreendê-lo se vivera até há pouco num país onde todos se mostravam amáveis para ela? O seu pai ocupava um posto honroso na capital e ela era sua filha. Embora os habitantes dessa cidade desprezassem de facto os negros seus servidores, isso não queria dizer que a desprezassem a ela também.
- O povo Mei não nos despreza - afirmou. - Despreza somente os negros.
- Bem, mas nós não vamos para a Birmânia combater ao lado dos Mei - retorquiu Sheng. - São os Ying que lá governam e é a eles que os birmaneses odeiam.
- Não há grande diferença entre os Mei e os Ying objectou May li.
- Se isso é verdade - disse Sheng - essa é a pior notícia que me podia dar.
Mayli mordeu os lábios à procura de novos argumentos.
- Talvez não tenha muita importância que gostem de nós ou não - arriscou por fim. - Possivelmente a única coisa que nos interessa saber e ter a certeza é a força de que dispõem os povos que são contra o nosso inimigo. Se o povo dos Ying é contra os japoneses, então devemos ser seus aliados.
- Se pudermos vencer com eles - respondeu Sheng gravemente.
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- Mas quem é capaz de derrotar os povos Ying e Mei reunidos?! - exclamou Mayli.
E ao dizer isto recordou de novo as grandes fábricas, os poderosos maquinismos, a terrível precisão desses engenhos que laminavam o ferro e o aço como se fossem madeira ou papel.
- Para principiar, os japoneses alcançaram uma vitória .- observou Sheng numa voz sombria. - Não esqueço que os apanharam de surpresa e qualquer pessoa pode ser colhida de surpresa, uma vez pelo menos. Mas no mesmo dia, poucas horas mais tarde, os brancos foram de novo surpreendidos nas ilhas do sul. E novamente os seus aviões, pousados no solo, lado a lado, serviram de alvo às bombas dos nipões. Não basta ser forte, é preciso também ser inteligente!
Sheng ergueu-se num brusco movimento de impaciência e estendeu os braços.
- Olhe bem para mim! - exclamou. - Repare na enorme quantidade de carne e osso que tem diante dos olhos! Mas será bastante ser assim grande como sou? Posso dobrar uma barra de ferro com as mãos, mas é isso suficiente? Se fosse idiota, de que me serviam a estatura e a força? Não, é preciso ter alguma coisa aqui! - E batia na cabeça, num gesto pleno de significação.
Mayli não respondeu. Limitou-se a olhá-lo, assim postado na sua frente contra o fundo luminoso do céu. E teve pela primeira vez a verdadeira noção da sua força. Já várias vezes perguntara a si própria se esse homem possuía de facto a faculdade do domínio. Tinha agora a resposta. Começou a tremer e sentiu o sangue afluir-lhe ao rosto. Sheng deixara cair os braços e contemplava-a. Mayli, então, levantou-se precipitadamente, afastando-se alguns passos, como para lhe fugir. Não se atrevia a pôr à prova o seu domínio sobre ela. Sheng não devia tocar-lhe.
Começou a andar para trás e para diante no pequeno pátio e o cãozinho, ainda a tremer, levantou-se também e seguiu-a. Depois, Mayli sentou-se na beira do tanque, com os braços enlaçados nos joelhos. Não olhava para Sheng,
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mas ele podia ver-lhe o rosto reflectido na água tranquila. Nem uma só folha de loto maculava esse reflexo transparente. O tanque era um claro espelho sob o céu de Inverno. Liu Ma apareceu, de lábio inferior pendente, e colocou uma bandeja em cima da mesa de jardim, perto do banco de porcelana. Em seguida, pegando na chaleira azul e branca, deitou o chá nas chávenas, mas para demonstrar bem que não aprovava que os dois estivessem ali sozinhos a conversar, voltou logo as costas e retirou-se para a cozinha. Passado pouco tempo, um fumo espesso saía da chaminé e invadia o pátio como uma nuvem. Mayli riu a bom rir.
- Liu Ma quer afugentá-lo com o fumo - disse a jovem.
- Sou bom de mais para essa velha bruxa - respondeu Sheng indignado. - Às vezes dou-lhe uma moeda de prata quando me abre a porta.
- Rabugices próprias da idade...-desculpou Mayli.- Mas era muito amiga da minha mãe. E tanto, que não me julga digna de ser sua filha. Acha-me muito estrangeira.
- Talvez nesse ponto tenha razão - comentou Sheng. Reflectida na água, ele viu-a abanar a cabeça e o seu
rosto tomar uma expressão mais grave.
- Que se seja estrangeiro ou não, isso hoje pouco importa - declarou Mayli. - Não é sensato odiar-se alguém ou alguma coisa só pelo facto de ser estrangeiro. O melhor que temos a fazer é procurarmos aliar-nos aos povos mais fortes do mundo, e esses ainda são os Ying e os Mei.
- E são na realidade fortes? - interrogou Sheng, duvidoso. - Então por que os bateram tão facilmente os nipões, quando a nós não nos venceram ainda depois de tantos anos de luta?
- Não tome uma cilada por uma vitória - replicou Mayli. - Eu conheço bem os Mei. São fáceis de convencer e por isso o inimigo os iludiu. São tão ricos, tão seguros da sua própria competência e do seu poderio que nunca imaginaram
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que pudessem ser colhidos de surpresa. Mas agora, a raiva tornou-os duas vezes mais violentos e dez vezes mais prudentes do que antes. Num único dia, aprenderam o que normalmente só se aprende num ano de guerra.
- É uma pena para nós que tenham pago tão caro tal lição - observou Sheng com ar sombrio. - com uma parte apenas de todos esses aviões destruídos em poucas horas, podíamos expulsar o inimigo do nosso país. Não foram portanto só eles a perder.
Mayli mergulhou a mão no tanque, ficando a contemplar os pequenos círculos formados na água.
- Tudo o que diz é verdade, e no entanto quando me lembro... sei que não podem perder... não, apesar do que se passou e suceda o que suceder, serão eles por fim os vencedores e por isso devemos ficar ao seu lado.
- Do que é que se lembra? - perguntou Sheng.
O chá esfriava nas chávenas, mas nem um nem outro pensava nisso. O cãozinho que se deitara no chão, ergueu-se e foi lamuriar-se para junto da dona, mas ela nem sequer o ouviu. com a mão mergulhada na água, evocava o país distante, e embora o seu olhar percorresse maquinalmente todo o pátio, a verdade é que só via o que recordava.
- É um país magnífico! - exclamou. - Não o amo tanto como a minha pátria, mas tenho de reconhecer a verdade. Amplas estradas escalam colinas e montanhas e atravessam planícies e desertos. As aldeias são asseadas, e os habitantes andam bem vestidos e bem alimentados. Nos campos, as quintas são também muito limpas e não se vê em parte nenhuma mendigos a exibirem as suas chagas, nem cães parecidos com lobos esfaimados. As florestas são profundas e as torrentes límpidas...
- Mas não é com isso que se ganha a guerra - observou Sheng severamente.
- Sim, mas há também fábricas - prosseguiu Mayli
- fábricas de onde saem aviões e automóveis. Nesse país, cada qual possui o seu automóvel e todos conhecem a força e os segredos das máquinas. São capazes de construir aviões suficientes para cobrir a superfície da terra!
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- É estranho que não nos tivessem mandado alguns disse Sheng com amargura.
- Ainda não começaram! - volveu Mayli. - Mas você não compreende... Um povo assim tão feliz e tão bem alimentado, não desperta para a realidade dum momento para o outro. Precisa primeiro de sofrer e sentir na própria carne os efeitos da guerra...
- Há cinco anos já que os sentimos - observou Sheng.
- Ou não seremos para eles também carne e sangue?
- É preciso ter em conta - insistiu Mayli - que estamos muito longe e não nos conhecem.
- Se estão assim tão longe, vão de facto ajudar-nos?
- inquiriu.
- Tenho a certeza que sim - afirmou Mayli. - Você não os conhece, mas eu conheço-os. Têm todo o interesse em vir em nosso auxílio. Ou não será do seu interesse instalarem no nosso território campos de aviação para atacarem o inimigo? Mas temos de lhes dar tempo que despertem e que compreendam...
- Já tiveram tempo de sobra - declarou Sheng com ar sombrio. - E o que podemos agora esperar, se daqui a dias marchamos a caminho do Ocidente para lutar em terra estrangeira? Hoje, apenas alguns aviões podiam salvar-nos, ao passo que milhares desses aparelhos talvez sejam inúteis se chegarem demasiado tarde.
Como ela não lhe respondesse, acrescentou:
- Falo como soldado.
- E, no entanto - observou Mayli após um instante de reflexão - os soldados nem sempre falam com sabedoria. Só pensam nas batalhas e a guerra não se vence apenas com batalhas.
- Então com que mais? - inquiriu Sheng.
Nesse momento o cão atirou para trás a minúscula cabeça, fechou os olhos e uivou. Os dois jovens calaram-se e olharam para o pobre animal.
- O que estará o cão a pressentir que nós não ouvimos?
- perguntou Sheng, relanceando os olhos pelo pátio e olhando depois para o céu.
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- Escute! - sussurrou May li.
Foi então que ouviram distintamente o gemido duma sereia.
Sheng deu um salto.
- O inimigo! - exclamou.
Em todo o tempo que Mayli passara em Kunming, não houvera ainda um único ataque aéreo à cidade. Ela já ouvira falar, é certo, desses bombardeamentos e pudera ver, um pouco por toda a parte, as ruínas por eles causadas, mas uma coisa era ver e ouvir e outra, muito diferente, assistir. Quando, ao entrar numa loja, via um tecto caído ou uma parede transformada num montão de escombros, quase sempre o comerciante lhe contava, com um misto de entusiasmo e de horror, como conseguira escapar, por milagre, juntamente com a família, e quais os vizinhos que tinham morrido ou ficado feridos. Mas tudo isso, por muito impressionante que fosse, pertencia ao passado, era já apenas simples narrativa...
O rumor tornava-se cada vez mais forte e o cão parecia desesperado. Rojava-se no solo e gemia.
Liu Ma irrompeu no pátio, limpando as mãos ao avental.
- Agora para onde havemos de fugir? - gritou. Grande soldado, pense por nós, ajude-nos... nós somos duas pobres mulheres!...
Sheng correu para o portão e abriu-o. Na rua, as pessoas corriam em todas as direcções. Os donos das lojas punham os taipais nas montras como se já fosse noite. Ouvia-se bater as portas e aferrolhar os portões.
- Se ao menos estivéssemos fora da cidade! - exclamou. - Assim, aqui, é o mesmo que estarmos metidos numa jaula!
Lembrou-se do dia em que fora com o pai à cidade próxima da sua aldeia e assistira a um desses bombardeamentos. Recordou toda a sua angústia ao ver os corpos desfeitos de homens, mulheres e crianças misturados com os escombros das casas em ruínas. Entretanto Mayli não se mexera donde estava. Como podia ela ter medo do que nunca vira?
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Sheng reflectiu rapidamente. Estariam talvez a uma milha de distância da Porta do Sul. Se as portas não estivessem fechadas, podiam atingir os campos antes do inimigo chegar, E lá procurariam refúgio no meio dos bambus. Ao menos as vigas dos telhados e as paredes das casas não lhes cairiam em cima nem os esmagariam. O único perigo seria que uma bomba os atingisse directamente.
-. Sigam-me! - gritou.
As duas mulheres obedeceram-lhe. Mas May li lembrou-se do cão e voltou atrás para o levar. Então, mesmo naquele momento, os dois jovens questionaram. Quando Sheng viu o cão nos braços de Mayli chamou-lhe doida, e tirando-lhe o animal atirou-o ao chão. Depois, impelindo a jovem à sua frente, arrastou-a para fora do portal, apertando-a de tal forma contra si que todos os esforços dela para se libertar foram inúteis.
- Oh, filha duma mãe maldita!-exclamou.-Quando os seus dois pés precisam de correr ainda mais rapidamente do que as quatro patas do bicho, demora-se por causa dum cão, um cão inútil que nem sequer merece a comida que come...
Mayli lutava e debatia-se, mas quanto mais se debatia, melhor ele a segurava, obrigando-a a correr pelas ruas que conduziam à Porta do Sul. Algumas pessoas, ao verem-nos, mesmo apressadas como iam, perguntavam a si próprias quem seria aquele grande soldado que assim arrastava uma jovem que lhe resistia. Um pouco atrás, Liu Ma chamava-os e arquejava, mas Sheng recusava-se a esperar por ela.
- Não tem os pés atados - resmungava entre dentes
- que faça uso deles.
Passaram por um velho que gritou:
- Não tem vergonha de levar à força uma mulher num momento como este, seu soldado? Deixe-a em paz, pois se morrer vai para o inferno!
O velho pensava que Sheng sequestrava a rapariga contra sua vontade, como fazem por vezes os soldados, e que Liu Ma era a mãe, a correr atrás dos dois e a chamar por
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socorro. Sheng, porém, não lhe deu explicações, limitando-se a gritar: "Meta-se na sua vida, velha tartaruga!", e continuou a correr. Por fim Mayli deixou de lutar e seguiu-o em silêncio. Só então ele a deixou, contentando-se em segurar-lhe bem a mão.
O zumbido dos aviões era agora mais distinto e Sheng e as duas mulheres não avistavam ainda as portas da cidade. Em contrapartida podiam correr livremente, sem ninguém a estorvá-los, pois as ruas estavam desertas. Toda a gente se escondera dentro de casa, à espera do que ia cair do céu. Por fim, viram na sua frente a grande porta e não tardou que penetrassem na sombra fresca das muralhas, que com os seus trinta pés de espessura formavam um túnel sobre a estrada, no extremo do qual se saía para o campo.
Mas ao entrar no túnel, Sheng verificou que do outro lado a porta estava fechada. Já passara ali, muitas vezes, ansioso de ver horizontes amplos, de respirar ar livre, pois não era homem para viver muito tempo num recinto fechado. E era sempre com prazer que atravessava o túnel sombrio, cujo pavimento se mantinha húmido desde o princípio ao fim do ano, pois o sol nunca lá chegava, e contemplava os campos resplendentes que se estendiam aos seus olhos. Mas agora tudo era obscuridade e nela mergulharam. Encontraram uma massa enorme de gente que ali procurara abrigo, uns que não tinham talvez um tecto, outros, simples transeuntes apanhados de surpresa na rua, e, além destes, os mendigos.
Naquela fria penumbra, Sheng e Mayli começaram a pouco e pouco a distinguir as pessoas que os rodeavam, os mendigos andrajosos apertados uns contra os outros. Em tal momento, nenhum procurava distanciar-se, excepto um mendigo de rosto roído pela lepra, que se apartava de todos tanto quanto podia. Mas como fora o último a chegar, era o que estava mais perto da entrada quando apareceram Sheng e Mayli. E a jovem, sem reflectir, exclamou ao ver o homem:
- Oh, Sheng! Olha este homem... É um leproso!...
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E fez menção de sair dali.
Mas já os aviões voavam sobre a cidade, no extremo noroeste, e ouvia-se o surdo estoirar das bombas. Sheng reteve Mayli, embora também sentisse horror da lepra. Mas o medo das bombas não era menor.
Fique aqui! - ordenou.
Mas colocou-se entre Mayli e o leproso, tendo também o cuidado de não lhe tocar.
Entretanto, começaram a elevar-se outras vozes contra o pobre homem, censurando-o por se misturar com as pessoas sãs, lamentando todos a sua presença ali:
- A tua vida vale a pena salvar-se, esqueleto podre? gritava-lhe um.
- Então fugimos a uma desgraça para cair noutra ainda pior? -clamava outro.
Tais frases eram proferidas em alta grita, especialmente pelas mães das crianças que ali estavam, as mais ásperas na sua cólera contra o leproso, e por Liu Ma que vociferava tanto como todas as outras juntas.
- Afasta-te de nós, ovo de tartaruga! - invectivava ela. - A carne pura adoece tão facilmente como a imunda!
E amaldiçoava-o com veemência, cobrindo de impropérios também a mãe e os restantes antepassados.
O leproso não respondia uma só palavra. Os seus olhos sem pestanas piscavam para um e para outro lado. Quando a agitação atingia o auge e alguns se preparavam para sair do improvisado abrigo, muito embora ouvissem perto as explosões das bombas, surgiu à entrada do túnel um padre budista. Vestia hábito cinzento e trazia na mão a tigela dos monges mendicantes. Era ainda bastante novo e decerto se ordenara há pouco tempo, pois eram recentes as feridas sagradas que ostentava no crânio.
O leproso, apesar de se sentir vil e imundo, continuava firmemente agarrado à vida. Na verdade, era tudo quanto possuía, e não se mostrava muito disposto a abandonar o abrigo para se expor às bombas. Entretanto, lá fora, o barulho tornara-se tão forte e tão próximo que era já impossível
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ouvir mais alguma coisa do que as explosões; assim, sem pronunciar uma única palavra, o padre encostou o leproso à parede e colocou-se entre ele e a multidão, enquanto todos os outros, de pé, cabeças inclinadas, ouviam cair do céu aquela chuva terrível.
A atmosfera, dentro do túnel, tornara-se quase irrespirável, tanta era a poeira, e já por uma ou duas vezes os sólidos muros tinham estremecido. Construídos há um bom milhar de anos, como podia alguém nessa altura adivinhar que teriam de suportar um dia ataque de tal natureza? No entanto, os seus alicerces eram tão profundos e sólidos que a velha muralha não ruiu; também, graças ao céu, nenhuma bomba a atingiu em cheio. E a cintura coleante, a subir e a descer colinas em redor da cidade, manteve-se de pé e nem uma só das suas pedras caiu na cabeça dos que nela tinham procurado refúgio e assistiam, mudos de terror, ao desabar da medonha catarata.
De súbito, o barulho infernal cessou. Os aviões inimigos afastavam-se. Sheng saiu do abrigo para os ver partir. Divisara-os, no início da incursão, nitidamente desenhados no fundo luminoso do céu, qual bando de patos selvagens fixado pelo pincel dum artista. Agora, para os ver desaparecer, trepou rapidamente ao cimo da muralha. Lá iam eles, de regresso à base, em perfeita ordem, tal como tinham chegado, saciados e contentes. Sheng sentiu invadi-lo uma amargura tão grande que até lhe custava a respirar. Nem sequer podia desfazer o desenho perfeito do seu voo... Tinham vindo, tinham realizado a sua obra de morte e destruição e agora iam-se embora, imperturbáveis, em boa ordem...
Seguiu-os com o olhar recordando o que Mayli lhe dissera a respeito das fábricas e máquinas que no país dos Mei produziam todos os dias quantidades enormes de aparelhos iguais àqueles. E, no entanto, não eram capazes de lhes enviarem umas centenas ao menos para os ajudarem a vencer o inimigo... Só a sua produção dum dia seria o suficiente! Ali, no alto daquelas muralhas, Sheng compreendeu de súbito que ele e os seus homens estavam irremediàvelmente
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amarrados à terra. E sentiu o desejo violento de voar, de se lançar em perseguição do inimigo... Mas não, não podia, tinha de ficar cá em baixo... Daí a dias, à frente dos seus soldados, iria palmilhar milhares e milhares de quilómetros, para combater algures em terra estrangeira, enquanto a cidade onde vivia a mulher que amava continuaria a sofrer os ataques do inimigo vindo de longe para destruir impunemente, lá do alto, tudo quanto queria.
Debruçou-se no parapeito coberto de musgo e chamou por Mayli que subia ao seu encontro. Os habitantes da cidade voltavam para suas casas e os caminheiros retomavam a estrada. As portas estavam já abertas. Somente o leproso ficara acocorado ao pé do muro: não tinha para onde ir. O monge também seguiu sua rota, a caminho do templo que se erguia mais além, na colina. Viera à cidade apenas mendigar. Antes, porém, de partir, tirou do bolso algumas moedas e deixou-as cair na palma da mão do leproso. Ouviu-se tilintar, como se a mão do infeliz fosse também de metal, de tal maneira a lepra lha havia já secado e endurecido.
Mayli escalou o muro e depressa chegou junto de Sheng. A angústia nublava-lhe os olhos.
- Tenho de voltar imediatamente para casa, quero lavar-me - pronunciou. - Só me sentirei bem depois de tomar banho.
Sheng ficou surpreendido com tantos receios e observou-lhe:
- Mas se nem sequer lhe tocou, como pôde o leproso fazer-lhe algum mal? Eu também tive o cuidado de não lhe tocar. Somente o padre se aproximou dele, mas é um homem santo e por isso não lhe sucederá mal nenhum.
- Mas a um leproso não devia ser permitido andar por toda a parte! - exclamou Mayli. - Supõe que no país dos Mei ou dos Ying deixariam esse homem misturar-se assim com a multidão?
- O que fazem lá aos leprosos? - perguntou Sheng estupefacto.-Com certeza não os condenam à morte... Alguém é culpado de ser doente?
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- Não, claro, mas põem-nos num sítio onde apenas convivem uns com os outros e portanto deixam de constituir um perigo para as pessoas sãs.
- Mas isso também não é justo- observou Sheng gravemente. - Deve meter-se um homem na prisão, só porque tem uma doença de que não é o responsável?
- Oh, você nunca compreende nada!-protestou Mayli, impaciente. - É preciso pensar primeiro nos que não são leprosos!
Sheng olhou-a um instante. Tinha o rosto e os cabelos cobertos de poeira e as faces, habitualmente tão rosadas, extremamente pálidas.
- Ao menos não discutamos agora, no momento em que por pouco escapámos ambos à morte -aconselhou. -. Já reparou que estamos sempre a questionar por tudo e por nada? Talvez seja até um bem eu partir para longe e afastar-me de si. Começo a compreender que discute constantemente comigo porque não sou o que desejava que fosse.
O lábio inferior de Mayli principiou a tremer e Sheng viu-a voltar a cabeça para o lado. De súbito, a cidade mostrou-se aos seus olhos. Ambos a tinham esquecido um instante, no ardor da discussão, mas ela ali estava, duramente atingida pelo inimigo. Quatro grandes incêndios avermelhavam o espaço com as suas chamas e grossas colunas de fumo maculavam a limpidez do céu. Mayli rompeu em soluços.
- O que se passa? -interrogou Sheng, assustado, pois nunca a vira chorar.
- Estou cheia de cólera! - exclamou Mayli. - Sim, cheia de cólera, por ver até que ponto estamos desarmados! O que podemos fazer? Apenas esperar, esperar que venham matar-nos e escondermo-nos nos abrigos quando eles chegam... Mais nada.
Sheng pegou-lhe na mão e os dois ficaram a contemplar os incêndios. Um rumor de vozes, confuso e distante, distinguia-se ao longe, indicando que a multidão principiara já a combater com água as labaredas. Mas não se moveram para os ir ajudar. Gente não faltava, era mesmo a única fartura que na cidade havia...
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Liu Ma, em voz reprovadora, gritou da rua:
Tencionam ficar aí até arrefecer? Não tarda muito
que não seja noite. Eu vou para casa cozinhar o arroz. Os dois desceram então e seguiram-na, mas ambos se
sentiam exaustos e desencorajados com o espectáculo a que
assistiam.
- Tenho de voltar para junto dos meus homens - disse Sheng.
- Vem ver-me antes de partir para a Birmânia? interrogou Mayli.
Sheng não respondeu, parando bruscamente. No cruzamento de duas ruas, uma casa ruíra sob as bombas e um homem ainda novo, a chorar, escavava com as mãos as ruínas.
- Esta era a sua casa? - perguntou Liu Ma, com o rosto enrugado de piedade.
- Sim, a minha casa, a minha loja de sedas e tudo quanto possuía no mundo está debaixo destes escombros respondeu o homem a soluçar. - A minha mulher, o meu velho pai, e o meu filhinho, tudo...
- E como conseguiu você escapar? - inquiriu Liu Ma, ajudando-o a esgravatar nas ruínas, enquanto Sheng procurava nas imediações qualquer coisa com que pudesse remover o entulho.
- Eu saíra à rua a ver de que lado vinha o inimigo e ele já andava por cima de nós - explicou o jovem.
Nesse momento encontrou um pedaço de pano com flores vermelhas estampadas.
- É o casaco de meu filho! - exclamou horrorizado.
Entretanto, Sheng encontrara uma vara junto do cadáver dum camponês: Os cestos de arroz que esse homem transportava nas duas extremidades do pau estavam ainda tão cheios e lisos como quando ele os enchera, mas um estilhaço atingira-o entre os olhos e cortara-lhe metade da cabeça, tal como uma faca dividiria um melão ao meio. Sheng pegou na vara e começou a escavar, enquanto Mayli, vendo o casaquinho florido da criança, caía de joelhos e esgravatava também nos escombros.
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Assim, a criança não tardou a ser desenterrada, e quando o pai a tomou nos braços, todos compreenderam que estava morta. Ninguém pronunciou uma só palavra, mas ao ouvirem o pai clamar ao céu, por entre soluços, a sua infinda desgraça, não puderam conter mais as lágrimas. Mayli tirou o lenço, Liu Ma limpou os olhos à ponta do avental e Sheng voltou as costas e pousou a vara no chão.
- Se a criança está morta, os outros estão também mortos, com certeza - reflectiu Sheng. - Só tu te salvaste não se sabe por que desígnio da Providência. Vem comigo, dar-te-ei uma arma para te vingares.
O pobre homem logo compreendeu que Sheng não era um simples soldado, mas sim um chefe, e voltando-se para ele sem o ver, pois as lágrimas cegavam-no, dispôs-se a segui-lo, com o filho deitado nos braços como num leito.
- Deixa aí a criança - ordenou Sheng. O infeliz pai olhou-os com ar pesaroso:
- Posso abandonar os corpos enterrados nos escombros, mas se deixo aqui o meu filhinho, será devorado pelos cães.
- Dê-mo cá - pediu Mayli. - Eu me encarrego de lhe comprar o caixão e de o mandar enterrar.
- Chama-se a isso uma boa acção - comentou Sheng, envolvendo-a num caloroso olhar de aprovação.
O jovem pai entregou-lhe o pequenino corpo e Mayli tomou-o nos braços. Era a primeira vez na sua vida que pegava numa criança. Por estranho acaso, nunca estivera em contacto com crianças. Crescera sozinha na casa paterna, num país estrangeiro, longe portanto de todos os primos e primas. Agora, com aquela pobre criatura nos braços, bem aconchegada ao peito, sentiu tal angústia no coração, que não foi capaz de pronunciar uma só palavra. Só teve forças para procurar os olhos de Sheng.
E por cima desse corpito inerte, os dois trocaram um profundo olhar. Embora nem um nem outro o tivesse conhecido em vida, a morte do rapazinho aproximou-os mais.
- Irei a sua casa tão depressa quanto me seja possível - disse Sheng ao despedir-se.
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Dar-me-á muito prazer tornar a vê-lo - respondeu
May li.
"Era apenas uma frase de cortesia, como as que é hábito dizer a qualquer visita, mas os olhos de Mayli deram-lhe maior significado.
Pelo menos assim o compreendeu Sheng quando se afastou, seguido do pai da criança, enquanto a jovem tomava o caminho de casa.
- Deixe-me levá-lo - pediu Liu Ma. Mas Mayli sacudiu a cabeça:
- Sou mais nova e mais forte do que tu.
E transportou a criança até casa. A sua moradia estava intacta, mas mesmo em frente, no outro lado da rua, tinham ruído dez casas e uma nuvem de poeira pairava ainda no ar. No pátio, o cãozinho esperava-a todo trémulo, mas ao vê-la entrar com o seu fardo, sentiu a presença da morte, eerguendo a cabeça, começou a uivar. Mayli não lhe ligou importância e dirigiu-se para o quarto, depondo a criança em cima da sua cama.
Era um bonito rapaz, talvez com uns três anos, e tinha um rosto redondo e afável. Mayli examinou-o bem e não lhe descobrindo qualquer ferida, tomou entre as suas a pequenina mão roliça, perguntando a si própria se a criança viveria ainda. Mas não, a rigidez da morte principiara já a tomar conta daqueles dedos delicados e não havia indícios da mais leve pulsação. Pousou a mão da criança e ali ficou a contemplá-la, incapaz de desviar os olhos desse rosto que não conhecera em vida. E pela primeira vez teve a exacta noção do que significava a guerra. Se ninguém podia fazer nada para evitar a morte duma criança... E a cólera cresceu dentro de si e quase a sufocou.
- Ah! Como gostava de poder estrangular um desses inimigos! - murmurou.
Nesse momento Liu Ma, surpreendida com tanto silêncio, afastou a cortina vermelha da porta e espreitou para dentro do quarto. E viu a sua jovem ama, sentada junto do leito, a olhar fixamente o menino morto.
- Posso ir comprar o caixão? - perguntou.
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- Sim, vai - respondeu Mayli.
- Mas onde o enterramos depois? - inquiriu ainda Liu Ma.
- Fora da cidade encontraremos decerto qualquer sítio. Nenhum lavrador se recusará a vender um pouco de terra que lhe sirva de sepultura.
- Alugar o terreno seria bastante - objectou Liu Ma.
- O corpo duma criança não dura muito tempo e além disso essa não é do seu sangue.
- Todas as crianças que o inimigo mata são do meu sangue! - gritou Mayli com tal vigor que a velha desapareceu rapidamente por trás das cortinas.
Liu Ma saiu e passado pouco tempo Mayli levantou-se, correu o cortinado do leito e dirigiu-se para o pátio. Aí, estendeu-se numa cadeira de recosto, debaixo do alpendre. Tapou os olhos com as mãos. O cão aproximou-se e saltou para os seus joelhos. Aquele animal estava bem vivo e a criança estava morta... Tudo aquilo lhe parecia desprovido de sentido. E pela primeira vez compreendeu porque é que a sua ternura desmedida pelo cão irritava tanto Sheng. Se ao regressar a casa o tivesse encontrado morto, lastimaria sem dúvida a perda do bonito animal, mas não teria chorado. Mas com uma criança, o caso era diferente, tratava-se dum ser humano... E nesse instante quase odiou o cão.
Não chorou mais, pois não chorava com facilidade, e quando Liu Ma voltou, com o caixão num riquexó, ajudou-a a transportá-lo para o quarto e as duas deitaram nele o pequeno. O homem do riquexó foi procurar outro colega e a seguir dirigiram-se todos para fora da cidade, Liu Ma com o caixão num riquexó, Mayli no outro.
A uma milha ou duas de distância, encontraram um velho camponês, cujos filhos andavam na guerra, que aceitou, a troco de algumas moedas de prata que Mayli lhe pôs na mão, abrir uma cova no extremo da sua fazenda e enterrar nela o pequenino ataúde.
- Tenha cuidado, não venham os cães desenterrá-lo recomendou Liu Ma.
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Mas o velho camponês respondeu a rir:
- Julga que os cães têm necessidade de desenterrar os mortos nos tempos que correm? Não, andam muito melhor alimentados do que qualquer de nós!
Soltou um suspiro, cuspiu nas mãos, e pegando de novo na enxada, voltou ao trabalho.
IV
A meio da noite, Mayli despertou. Durante um instante, de ouvido atento, procurou descobrir o que a acordara. Mas apenas o silêncio reinava na cidade adormecida. Nada a despertara, portanto... Pelo menos nenhum ruído vindo do exterior. Assim deitada, à escuta, tomou de súbito consciência de tudo quanto a rodeava e de si própria, do seu corpo e da sua respiração, do quarto onde estava, do leito onde dormia e no qual poucas horas antes deitara a criança morta. Tudo era bem real e no entanto nada lhe parecia real. Invadiu-a um desespero tão grande como nunca sentira, uma tristeza tão densa que quase a sufocava.
"Tive um pesadelo?", perguntou a si própria. Mas não, nada mais a angustiava a não ser a sensação de ter sofrido uma perda irreparável. Mas na realidade o que perdera? A criança não lhe pertencia... Era possível que apenas essa morte lhe causasse tal tristeza? Apavorada, sentou-se no leito. Estaria alguém dentro do quarto e teria acordado por pressentir ali a presença dum estranho? Saltou da cama e acendeu a vela colocada em cima da mesa. Ergueu a palmatória, de forma a iluminar todo o aposento, até a porta. Mas não viu ninguém. Aproximou-se da porta e abriu-a. Liu Ma, deitada num canapé, no quarto ao lado, não despertou. Dormia de boca aberta e o seu rosto enrugado era a própria imagem da quietude. Toda a casa parecia estranhamente vazia.
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"O que tenho eu esta noite?" interrogou-se. Voltou para o quarto, fechou a porta e durante algum tempo ficou de pé, imóvel, com a vela na mão. Tudo em redor se lhe afigurou subitamente estranho e suspirou por um lar que não tinha, para onde pudesse fugir, furtando-se à desolação imensa que sentia em sua volta. Mas só se fosse a casa de seu pai, lá longe, muito longe...
Este pensamento aumentou mais a sua tristeza. Invadiu-a então a saudade do seu quartito alegre na cidade americana onde outrora vivera. Lembrou-se dos brancos cortinados das janelas, dos tapetes azuis do soalho. Por que abandonara o pai? Por que abalara dessa cidade distante?
Deixara tudo e todos para participar na guerra que esfacelava o seu país.
- Hás-de arrepender-te - dissera-lhe o pai. -E nesse dia desejarás o impossível, desejarás nunca ter partido. Não estás habituada às dificuldades...
"Não posso voltar", pensou. E a linha vermelha dos seus lábios contraiu-se: "Não quero voltar", corrigiu.
Apagou a vela e meteu-se na cama; depois, puxando para cima a colcha de seda, cobriu com ela a cabeça, para lhe servir de abrigo. Mas era um abrigo bem ilusório. Liu Ma comprara essa colcha numa loja, portanto feita à medida da estatura vulgar das mulheres, o que era insuficiente para uma pessoa tão alta como Mayli. Assim, quando cobria com ela a cabeça, ficavam-lhe os pés de fora, e para cobrir os pés tinha de destapar a cabeça; mesmo encolhendo-se o mais que podia, nunca se encolhia o bastante para se cobrir por completo.
Por fim, nervosa, impaciente, saltou novamente da cama. A sensação de infinito desespero que a assaltara ao acordar, não a abandonara ainda. Sentou-se aos pés do leito, com a colcha pelos ombros, entregando-se por completo àquela tristeza que não compreendia. Procurou descobrir as razões do seu estado de espírito. E raciocinou: não havia lugar para ela na sua própria pátria. Sim, não havia ali lugar para mulheres como ela. As camponesas trabalhavam na terra, tal como os homens, ou, se tinham alguma instrução,
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iam para enfermeiras e cuidavam dos feridos. Mas o que podia ela fazer se nunca trabalhara? E para chegar a essa conclusão viera de tão longe, abandonara o pai, que já nem sabia sequer onde ela parava...
Ali, só conhecia verdadeiramente uma pessoa, Sheng, e mesmo esse ia-se embora daí a poucos dias. Quem mais lhe restaria depois, além da velha Liu Ma e do cão? comprimiu os lábios, ao reparar bem na inutilidade da sua existência. Nos tempos que corriam, com o seu espírito, a sua capacidade e a sua inteligência, devia continuar a viver como até aí? Atirou a colcha para o lado, acendeu a vela e começou a andar no quarto, para trás e para diante a ver se aquecia. E ou fosse porque o sangue lhe começasse a correr mais depressa nas veias, irrigando-lhe melhor o cérebro, ou por qualquer outra razão, o facto é que de súbito viu com clareza o que tinha a fazer. Partiria também para o ocidente. Sheng ia combater, pois bem, ela faria qualquer outra coisa...
Uma vez tomada esta decisão, pareceu-lhe tão justa e irrevogável, como se fora ditada por inspiração divina. E logo deixou de sentir essa impressão de abandono, de inexplicável tristeza que a possuía. Sim, era isso mesmo, partiria também para a Birmânia. Mas como?...
Não havia mulheres nas fileiras do exército que participava nessa campanha. Constituíam-no apenas homens bem treinados. Várias vezes ouvira Sheng gabar-se de que os seus soldados tinham sido todos escolhidos, acrescentando, o que era verdade, que o Chefe Supremo em pessoa os inspeccionara um por um, para ter a certeza de que eram jovens e bem constituídos. Fora essa aliás a única vez que Sheng vira o Chefe Supremo e durante alguns dias descreveu a Mayli o seu rosto magro e grave e os seus olhos tristes e perscrutadores.
- Fui à sua presença-dizia Sheng-e quando enfrentei aquele olhar, tive a impressão de sentir o corpo picado por milhares de alfinetes.
Depois contou o que o Chefe Supremo lhe disse: "De todos os meus homens, és o mais alto e o melhor constituído.
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Por conseguinte, deves ser melhor soldado do que os outros". "E sê-lo-ei", respondera-lhe.
Mayli lamentava agora nunca ter aprendido a tratar de feridos. Não sabia mesmo nada de doenças. Para partir, tinha de arranjar pois outro pretexto.
Pôs-se a reflectir intensamente, e à medida que a sua vontade se fortificava, voltava a ser a rapariga corajosa que sempre se conhecera. "Por que não vou falar ao Chefe Supremo?" perguntou a si própria. "Posso muito bem fazê-lo, e se ele não quiser autorizar, a esposa há-de ajudar-me. Possivelmente ela é como eu. Fomos as duas educadas no mesmo país estrangeiro. Por isso compreenderá o que desejo e o que sinto. Ela também é uma mulher de acção".
Enquanto delineava os seus planos, Mayli prometia a si própria não dizer nada a Sheng, pois sabia antecipadamente que ele os contrariaria. Sempre lhe ouvira dizer que os homens que marcham para o combate não devem pensar nas mulheres, nem ter mulheres junto de si, nem mesmo lembrarem-se de que há mulheres no mundo.
- E as mulheres-soldados? - perguntara-lhe uma vez ao ouvi-lo falar assim.
- Deixam de ser mulheres quando se tornam soldados. Um soldado não é macho nem fêmea, é somente soldado, ou melhor, uma vontade, uma força, um combatente, alguém pronto a matar e a morrer.
Se lhe confessasse os seus intentos, ouvi-lo-ia logo exclamar: "E o que é você capaz de fazer com os pés metidos em sapatos de cetim?"
"Não lhe direi nada", decidiu. "Irei falar ao Chefe Supremo. Que isso lhe agrade ou não, pouco me importa".
E uma vez tomada a resolução, meteu-se novamente na cama e adormeceu como uma criança...
- Onde foi Mayli? - perguntou Sheng a Liu Ma, dois dias depois.
- Como hei-de saber, se ela não mo disse? - respondeu
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a velha. - Quando lhe perguntei onde ia, pôs-se a rir e declarou que não mo diria, pois se eu soubesse você havia de arranjar maneira de me obrigar a falar. Assim, nada sabendo, nada posso dizer... Só sei o que os meus olhos viram. Que levou uma mala pequena e partiu num riquexó. Sheng bateu com o pé no chão como um animal furioso.
- Mas que direcção tomou? - rugiu, fora de si.
- Se o fim da rua fica três casas adiante - disse Liu Ma com calma e secreto prazer por ver esse soldado grandalhão irritado - só podia tomar uma direcção, e como a rua vira logo a seguir, bem o sabe, era-me impossível segui-la com a vista.
- Mas disse-lhe com certeza quando regressa - insistiu Sheng.
- Deu-me algum dinheiro para comprar comida, garantindo-me que antes de eu o gastar todo estaria de volta explicou Liu Ma.
- Mostre-me quanto dinheiro lhe deixou - pediu Sheng.
A velha meteu a mão no peito e tirou de lá dez dólares de prata envolvidos em papel pardo.
- Para quantos dias lhe chega isso? - inquiriu o jovem.
- Posso gastá-lo depressa, se me alimentar bem afirmou Liu Ma - mas também pode chegar-me para um mês, se me alimentar modestamente.
Sheng sentiu vontade de esmagar contra a parede aquele velho rosto impassível, mas que ganharia com isso? Contentou-se portanto em dar um pontapé no cão que o farejava timidamente e logo fugiu a ganir.
- Pode dar quantos pontapés quiser ao cão - declarou Liu Ma. - Não gosto nada de tal bicho.
E tirando do cabelo um gancho de prata, pôs-se a esgaravatar o ouvido direito. Uma expressão de prazer indefinível invadiu-lhe todo o rosto, depois bocejou e tornou a pregar o gancho no cabelo.
- Quando a minha senhora está ausente, há tanto sossego nesta casa que adormeço quase sem dar por isso.
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Sheng não respondeu. Lançou um último olhar ao pátio deserto, pôs as mãos no cinturão e encaminhou-se para a saída. Ao chegar à porta, porém, parou e gritou para Liu Ma:
- Quando ela voltar, diga-lhe que parti para a guerra.
Liu Ma sentara-se e já cerrara os olhos, mas entreabriu-os ao ouvir-lhe a voz:
- Hum! - murmurou, cruzando as mãos sobre o ventre e fechando outra vez os olhos com ar satisfeito.
Nesse momento Mayli sobrevoava as montanhas, no próprio avião do general, sentado ao seu lado.
Ao sair de casa, dirigira-se directamente para o Quartel General e os guardas, como a conheciam, deixaram-na entrar. O general tomava nesse momento o pequeno almoço e Mayli não conseguiu suster o riso ao ver as caretas que ele fazia. Em vez de saborear o arroz, o peixe seco, os doces e os saborosos legumes de que gostava, esforçava-se por comer umas papas de aveia, cozinhadas à moda estrangeira, porque lhe tinham dito que davam ao corpo um vigor excepcional.
Levantou-se quando Mayli entrou, e como era homem cortês e possuía já algumas noções das modernas maneiras de tratar as senhoras, disse-lhe:
- Gostaria de a convidar a tomar comigo o pequeno almoço, mas isso não chegaria a ser uma amabilidade da minha parte. Compreendo agora porque é que os brancos têm sempre um ar tão carrancudo antes do meio-dia. Se comem só isto quando se levantam, não me admiro nada.
Mayli riu e pegando numa colher mergulhou-a na tigela colocada no meio da mesa. Provou o caldo e não pôde deixar de fazer também uma careta.
- Mas isto está queimado! - exclamou. - E não lhe deitaram sal. Além disso, é costume comer-se com açúcar e creme.
- O que é isso de creme? - perguntou o general.
- É a nata do leite de vaca - explicou Mayli.
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O general olhou-a horrorizado:
- Mas sou algum vitelo para beber leite de vaca? Mayli riu tanto que as suas faces ficaram mais rosadas,
e esse riso contagiou o general, homem bastante novo.
Logo, retomando o seu ar sério, bateu as palmas. Um soldado entrou na sala.
- Vá chamar o cozinheiro! -gritou-lhe. Quando o cozinheiro apareceu, vociferou:
- Deixaste queimar esta comida estrangeira, não lhe deitaste sal nem açúcar, e não me disseste que se come misturada com creme de leite de vaca. Por que afirmaste então que sabias preparar bem este prato?
O homem empalideceu e balbuciou:
- Como sei que não gosta do cheiro do leite, e está sempre a dizer que os brancos cheiram mal...
- E é isto que lhes dá esse cheiro? Pois bem, acho óptimo que continuem a comer essas papas, reconhecerei assim os meus aliados pelo cheiro.
Riu do próprio dito e, apontando para a travessa, ordenou:
- Leva isto daqui e traze-me arroz. E não dês esta porcaria nem mesmo aos cães. Deita-a fora, deita-a na lata dos despejos, pois é esse o seu lugar próprio.
O cozinheiro levou a travessa das papas e não tardou a trazer-lhe outra cheia de arroz preparado para os soldados. O general pegou nos pauzinhos, puxou a travessa para a sua frente e começou a comer com visível satisfação.
Toda esta cena se desenrolara com extrema rapidez e no entanto pareceu excessivamente longa a Mayli. Mesmo assim, preferiu deixar passar mais algum tempo, até o general recuperar por completo a boa disposição. Quando o viu absolutamente satisfeito, começou:
- Suponho que irá ainda falar ao Chefe Supremo antes de partir para o Ocidente.
Ele olhou-a um pouco surpreendido:
- Quem lhe disse que parto para o Ocidente?
- Sei que parte, é quanto basta - respondeu Mayli com um leve sorriso. - E quero ir também.
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O general parou de comer.
- Quer ir? - exclamou. - Mas o que vai lá fazer?
- Por que se admira? Não leva outras mulheres? perguntou Mayli, apoiando os braços na mesa e fixando-o bem nos olhos.
- Sim, mas apenas as necessárias pára cuidar dos feridos. Levamos alguns médicos e com os médicos vão as enfermeiras. São eles portanto que as levam e não nós.
- Posso também tratar dos feridos - arriscou Mayli.
- Isso não me diz respeito - retorquiu o general, sacudindo a cabeça. - Não lhe darei semelhante autorização. O que julga que pensariam os meus homens, se a levasse comigo, jovem e bela como é? E a minha mulher? Seria capaz de me tirar os olhos e de me arrancar os cabelos. Não, vamos combater, vamos para a guerra.
Mayli pareceu render-se a tais argumentos e não os discutiu. Limitou-se a suspirar e a dizer amavelmente:
- Talvez tenha razão, mas queria pedir-lhe ainda outro favor. Leve-me à capital quando for falar com o Chefe Supremo.
- O que vai lá fazer? - perguntou o general com ar severo.
- Preciso absolutamente de me tornar útil - afirmou Mayli com humildade. - Vim para cá pensando que podia alistar-me no exército ou fazer qualquer outra coisa, mas a verdade é que não faço nada. Na capital, talvez seja útil ao Chefe Supremo ou à esposa. Posso trabalhar nos orfanatos ou servir de intérprete. Estou convencida de que o meu pai aprovaria a minha decisão.
Ora sucedia que o general conhecia o pai de Mayli, e, pensando bem no assunto, pareceu-lhe boa ideia levar aquela jovem, tão bela como inteligente, para junto do Chefe Supremo e da mulher que a tomariam sob a sua protecção. Decerto o pai de Mayli lhe ficaria reconhecido por isso.
- Levá-la-ei de boa vontade - disse por fim.
E eis por que Mayli ia naquele momento no avião do general. Este só tencionava fazer a viagem no dia seguinte,
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ao romper da aurora, mas quando descobriu que a jovem estava decidida a não arredar pé do seu gabinete enquanto não partisse, ficou sem saber o que fazer, tanto mais que os jovens oficiais do seu estado-maior principiaram logo a arranjar mil e um pretextos para lá entrar e ver Mayli. O general começou a inquietar-se. O que sucederia se a mulher, tão agarrada às convenções, viesse a saber da presença de Mayli no seu gabinete? E acreditá-lo-ia se ele lhe dissesse que aquela jovem era filha dum amigo e para ele tão sagrada como a própria filha? A sua mulher era tão ciumenta, que só acreditava no que imaginava, nunca no que ele dissesse.
Decidiu portanto partir nesse mesmo dia, e menos de duas horas depois de ter comido o arroz, ambos subiram para o avião.
Mayli ia sentada atrás. O frágil aparelho descia, subia, caía nos poços de ar, tornava a elevar-se, quase sempre por cima das nuvens. Mayli sentia um estranho prazer ao pensar que Sheng ignorava por completo aquela aventura e nem lhe passava pela cabeça semelhante coisa. Quando o tornaria a ver? E onde se veriam? E, ao verem-se, quais as primeiras palavras que trocariam?
Sorriu para o céu e o general, voltando-se nesse momento, surpreendeu esse sorriso.
- Sinto-me um verdadeiro dragão - gritou-lhe - um dragão a cavalgar as nuvens.
Ela riu e o vento, investindo através dum buraco que havia na carlinga, arrancou-lhe o sorriso dos lábios.
O Chefe Supremo e a esposa não eram positivamente dois estranhos para Mayli. Na casa paterna ouvira falar deles com muita frequência. O Presidente era amigo do pai e a esposa também fora outrora amiga de sua mãe.
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Além disso, era do Chefe Supremo que o pai recebia ordens e directrizes.
Mayli preparou-se cuidadosamente para aquela entrevista. Preocupou-se não só com o aspecto e o vestuário, mas também com o que devia dizer. Não teve qualquer dificuldade em conseguir a audiência. Enviou uma mensagem e logo recebeu outra em resposta. Redigida em inglês pela própria esposa do Presidente, dizia apenas: "Venha amanhã, de manhã tomar o pequeno almoço connosco".
Assim, na manhã seguinte, após -um bom sono reparador da extenuante cavalgada sobre as nuvens, Mayli vestiu a sua túnica favorita, dum verde brilhante, enrolou os cabelos negros e lisos na nuca, avivou o vermelho dos lábios, alongou as sobrancelhas com um traço escuro e pôs nas orelhas uns simples aros de ouro. Depois, saiu do hotel e tomou um riquexó estacionado em frente da porta.
- Para a casa do Presidente - ordenou, pois o Chefe Supremo era comummente designado assim e por esse nome toda a gente o conhecia.
- O preço é meio dólar de prata até ao rio - respondeu-lhe o homem do riquexó, sem manifestar o mínimo espanto.
Mayli aceitou e subiu para o veículo. O homem apertou a faixa de algodão em volta da cintura e partiu no trote igual a que as suas pernas trigueiras estavam habituadas.
De ambos os lados das ruas que conduziam ao rio alinhavam-se só ruínas. Raramente se via uma casa intacta, de tal forma os bombardeamentos do Verão anterior tinham devastado a cidade de Chungking. Mas ninguém parecia reparar em tal. A guerra durava há tanto tempo, que muitas daquelas crianças que por ali corriam e brincavam, algumas mesmo já em idade de auxiliar os pais, nunca tinham visto um tecto inteiro por cima da cabeça e encaravam os bombardeamentos como um fenómeno natural, uma trovoada ou um furacão. Vendedores e compradores realizavam os seus negócios na soleira das casas meio derruídas, algumas em vias de reparação, e as crianças corriam e
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saltavam e por vezes caíam aos pés dos carregadores ou dos homens dos riquexós. Injúrias, chamamentos, exclamações, risos sonoros animavam o ar, apesar da hora matutina. Na cidade, ressoante de vida, não se descortinava em qualquer parte o mínimo sinal de tristeza ou de medo. Mayli surpreendeu-se a sorrir de prazer à ideia de que também estava viva e ia tomar o pequeno almoço com o Chefe Supremo e a esposa. E como era seu hábito fazer quando se sentia feliz, e cheia de vida, entabulou conversa com a única pessoa ao seu alcance, o homem do riquexó.
- A senhora é uma dessas pessoas que a cada passo nos surgem debaixo dos pés? - perguntou o homem por amabilidade.
Mayli sabia que era assim que os habitantes da cidade costumavam perguntar a alguém se era seu conterrâneo ou não e por isso respondeu:
- Não, vim de muito longe.
O homem do riquexó, como todos os que se dedicam a tão árduo labor, gostava de falar e logo desentaramelou a língua, explicando a Mayli que os tempos corriam de feição para o seu mester.
- Prefiro cem vezes puxar um riquexó do que ser letrado, na época em que vivemos - afirmou a rir. - E verdade verdadinha essa é também a opinião dos letrados. Conheço um homem instruído, até com diplomas de escolas estrangeiras, que anda a puxar um riquexó, pois ganha assim muito mais do que se ocupasse uma situação oficial. Não há dúvida, nos nossos tempos, um bom par de pernas rijas vale infinitamente mais do que uma cabeça cheia de saber e uma barrigada de instrução.
E prosseguindo no paleio, contou como ele e a família tinham conseguido escapar sãos e salvos dos bombardeamentos. O filho mais pequeno até aprendera a correr para a caverna talhada na rocha mal ouvia a sereia anunciar a chegada do inimigo. E para que a mulher e os filhos não tivessem de ir para muito longe quando ele andava a trabalhar, construíra uma cabana perto da entrada da caverna e assim sentiam-se verdadeiramente em segurança.
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- No entanto, isso não é vida - observou Mayli - e é preciso que tenha um fim.
- Todas as coisas têm sempre um fim - respondeu o homem jovialmente. - Por isso o nosso maior cuidado, deve ser o de estarmos ainda vivos quando esse fim chegar.
Conversa puxa conversa, o tempo passou e chegaram à beira do rio quase sem dar por isso. Mayli pagou ao homem do riquexó a soma combinada acrescentando-lhe uma boa gorjeta, e caminhou para o barco que esperava os últimos passageiros.
Mal pôs os pés na frágil embarcação, logo esta se fez ao largo, pois o barqueiro ficara fortemente impressionado com a beleza e o vestuário da jovem. E enquanto ele remava para a outra margem, Mayli contemplou de longe a cidade martirizada. Qual lutador destemido, qual dragão ferido depois de se bater até o limite das suas forças, conservava ainda a cabeça bem erguida. A luminosidade da manhã dava ao rio barrento um brilho de pérola e a cidade dir-se-ia ainda mais arruinada e triste.
O barco transportava poucos passageiros e todos olhavam para Mayli com admiração, mas ela não falou com ninguém. Na outra margem, esperava-a o automóvel do Chefe Supremo. O motorista, um jovem soldado, cumprimentou-a respeitosamente. Ela subiu para o veículo, que logo abalou a tal velocidade e com tantos solavancos pela estrada escalavrada que dava a impressão de se desconjuntar. Quando por fim desceu do automóvel, tomou lugar numa cadeirinha que a conduziu ao cimo do monte. E depois de utilizar todos estes .diferentes meios de transporte, encontrou-se diante duma casa simples, construída em tijolos, na qual viviam o Presidente e a mulher e que não se parecia nada a um palácio. À entrada, os guardas, prevenidos da sua chegada, deixaram-na passar. Atravessou um pequeno jardim, transpôs o átrio da habitação, e um criado conduziu-a a uma sala, mobilada com simplicidade, meio chinesa, meio estrangeira, onde não viu nada de sumptuoso.
Mayli sentou-se e esperou. Mas não esperou muito
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tempo. Instantes depois, sentiu um ruído de passos, ligeiro e rápido, e logo em seguida via na sua frente a esposa do Chefe Supremo, bela e fresca como a própria manhã. Estendia-lhe as duas mãos e Mayli reparou como essas mãos pequenas, esguias e firmes, apertavam fortemente as
suas.
É tal-qual a sua mãe! - exclamou. - Deixe-me
olhá-la bem. Sim, parece-se muito com ela. Os mesmos olhos grandes, o mesmo nariz pequeno e encantador. A sua mãe era muito bonita. Lembro-me bem dela.
Sentou-se no comprido e estreito divã, num movimento rápido e gracioso e convidou Mayli a sentar-se ao seu lado.
Pela primeira vez na vida, Mayli, com grande desespero, mostrou-se tímida e muda. Nunca antes sentira aquela total impossibilidade de falar. Apenas podia contemplar intensamente a mulher que tinha diante de si. Vestia, com grande simplicidade, uma rica túnica de seda dum azul escuro. Por cima da túnica, usava um casaco curto de veludo, no mesmo tom, que lhe realçava a brancura da pele e o vermelho dos lábios. O seu rosto era duma beleza rara. Cada traço, só por si, era belo, mas o que mais sobressaía no conjunto era o olhar profundo e inteligente, a mobilidade dos lábios e a cabeça altiva a rematar o corpo delgado e gracioso. Já não era uma mulher jovem, mas possuía o dom da beleza imperecível. Mayli ouvira muitas histórias a respeito do seu carácter e agora ao vê-la compreendia-as melhor, pois havia nela demasiado ardor e paixão para poder ser um temperamento dócil.
- Fale-me do seu pai - disse, sorridente. - O Presidente considera-o muitíssimo. Segue com frequência as suas opiniões; às vezes até sinto uma pontinha de ciúmes...
- acrescentou, continuando a sorrir. - Ele nem sempre me dá ouvidos - prosseguiu, com um trejeito de fingida irritação. - Oh, que desvantagem é hoje ser mulher! Não sente isso também?
E fez-lhe a pergunta com um ar tão encantador que Mayli não pôde deixar de sorrir.
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- Não vejo realmente que desvantagem possa haver para a senhora em ser mulher - observou.
- Oh! Mas há! - afirmou com vivacidade. - Ficaria admirada se soubesse... Às vezes desejo fazer isto ou aquilo, há tanto que fazer, e cedo ou tarde surge a objecção: "Lembre-se, por favor, que é mulher", diz-me o Presidente.
Riu de novo, um riso espiritual, encantador, impetuoso e pela primeira vez na vida Mayli não sentia vontade de falar, mas somente o desejo de a ouvir e de contemplar aquele belo rosto, ora grave, ora risonho, como se o envolvessem sucessivas ondas de luz e de sombra.
De súbito, a esposa do Presidente calou-se. Ouviam-se passos. Aproximavam-se. "É ele", disse, levantando-se. Mayli ergueu-se também e as duas de pé esperaram que a porta se abrisse. O Presidente entrou sozinho, sem guarda nem criado para o anunciar.
Tinha uma figura esguia, parecendo mais alto do que na realidade era. Possuía o porte dum soldado e um rosto como Mayli nunca vira outro igual. Os seus olhos causaram-lhe profunda impressão. Sentiu-se trespassada, esquadrinhada por eles, duas lâminas negras e brilhantes que procuravam adivinhar-lhe os pensamentos. Tinha mesmo a certeza de que ele não a via. Que ela fosse mulher, jovem e bela, isso não lhe importava. Só o que ela poderia pensar tinha valor.
- Esta é Mayli, filha de Wei - disse-lhe a esposa. - Já várias vezes lhe falei da mãe, lembra-se?
- Lembro-me perfeitamente -- respondeu o Presidente, aproximando-se.
Uma expressão de bondade suavizou-lhe o rosto quando tomou na sua a mão de Mayli. "Mão magra, dura e forte, nervosa como o corpo e o rosto", pensou a jovem. Mão de aço mais do que mão humana. Mayli sentiu a sua carne tenra comprimir-se toda nesse aperto. A voz não parecia também a voz dum homem. Era forte e clara, de aço também, e dir-se-ia vir de muito longe. O Presidente virou-se para a esposa e pronunciou:
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Temos de tomar já o pequeno almoço. - Os generais esperam as minhas ordens. Devem regressar aos seus postos o mais depressa possível.
Aproximou-se da mesa. A esposa seguiu-o, conduzindo Mayli pela mão. "Que diferença entre aquelas duas mãos!", pensou a jovem. "A dela, quente, macia, protectora; a dele, magra e dura; mas ambas igualmente fortes".
Sentaram-se os três à mesa e o pequeno almoço não tardou a ser servido. Meio estrangeiro, meio chinês, como tudo naquela casa. A mulher tomou café, pão, ovos; o marido, arroz e géneros salgados. Na verdade, uma imagem exacta de quanto os dois eram diferentes. O homem pertencia à sua época, ao seu país e ao seu povo. A mulher era sobretudo ela própria, uma pessoa que ora falava uma língua ora outra, exprimindo-se com igual facilidade tanto em inglês como em chinês, e da mesma forma pensando agora como se pensa num lado do mundo, e pensando logo tal como se pensa no outro. Dir-se-ia que os seus pensamentos, voando assim de país para país, continham já um pouco de todos. O homem, por seu turno, era unicamente chinês e não se exprimia senão em chinês. Por vezes, quando ela falava durante muito tempo inglês, o marido recolhia-se num profundo silêncio, como esquecido da sua presença. Então, a esposa, sempre atenta às suas mínimas reacções, voltava a falar chinês e se ele mesmo assim não respondia, chamava-lhe a atenção com qualquer pergunta ou um simples gesto.
O Presidente falava pouco; ela falava muito. Fez a Mayli imensas perguntas, mas nunca esperava as respostas. E, no entanto, parecia que as apanhava no ar. Depois de duas ou três palavras, compreendia tudo.
- Os americanos pensavam que os inimigos os iam atacar? - perguntou, mas antes que Mayli tivesse tempo de responder, prosseguiu: - Claro que não, os americanos nunca pensam nada. Andam sempre muito ocupados, não lhes sobeja tempo para isso. - Franziu as sobrancelhas, mordiscou uma côdea de pão com os dentes brancos e logo continuou: - Preciso de dinheiro para os meus órfãos de
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guerra. Não tenho o suficiente. E é absurdo que não tenhamos mais aviões. Às vezes digo ao Presidente...
O marido ergueu a cabeça e olhou-a, com expressão indulgente e afável e afirmou:
- Os aviões já nos foram prometidos. Ela teve um riso trocista:
--Oh! Continua a acreditar em promessas!...
- Acredito nos nossos aliados - retorquiu o marido.
- A quem não pede, não o ouve Deus - insistiu ela com vivacidade. - Não é assim que diz a Bíblia?
- Mas nós já pedimos.
- Há muitas maneiras de pedir - insistiu a esposa. Nós pedimos como pessoas delicadas, empregando palavras de cortesia. Outros usam de menos delicadeza e recebem muito mais.
Devia ser uma discussão já antiga, várias vezes interrompida e recomeçada, pois uma ruga de contrariedade se formou entre as sobrancelhas do Presidente, e um ricto de obstinação endureceu a bela boca da mulher. Calaram-se ambos. E, no entanto, a despeito desse princípio de desentendimento, do semblante carregado dos dois e do silêncio que reinava na sala, quem quer que ali entrasse compreenderia logo que para aquela mulher o marido era tudo no mundo ao passo que ele não vivia tão completamente só para ela. Metade ódio, metade amor, de quando em quando havia entre eles verdadeiras descargas eléctricas. Mayli lembrou-se de repente de Sheng. O Presidente também fora um jovem obscuro, filho duma família boa e simples do povo, tal como Ling Tan. Não era, nem mesmo agora, o que se chama um homem culto. Só conseguira educar-se à custa de muita vontade e sacrifício. Quando os dois casaram, isso causou grande surpresa em todo o país, pois a jovem pertencia a uma família distinta e rica e recebera uma educação esmerada. Mayli sabia tudo isso através do pai. Como sabia também que o marido nunca se vergara ao carácter imperioso da esposa. A esse respeito, corriam numerosas histórias, e falava-se muito das constantes zangas entre os dois. Essa mulher altiva considerava o esposo como seu
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igual e queria ser por ele considerada também num pé de igualdade. Mas de facto isso não sucedia. O marido lembrava-lhe constantemente a sua condição de mulher. Ela resistia de todas as formas e feitios. Uma vez quis mesmo participar à viva força num conselho de ministros onde as mulheres não tinham assento. Foi-lhe porém recusada a entrada.
- De quem recebeu essa ordem?! -perguntou, indignada, ao ver que a sentinela não a deixava passar.
- Do nosso Presidente! - disse-lhe o soldado.
Não teve outro remédio senão submeter-se, apesar de toda a sua cólera. Só Deus sabe que furiosas censuras ouviu depois o marido. Nem um nem outro falavam de tais incidentes.
Contava-se também que um dia, irada, fora de si, para se vingar começara a escrever a um homem que a amara outrora e fora então rival do marido, quando de súbito este apareceu. Atemorizada, procurou esconder o que escrevia. O presidente pediu-lhe a carta e ela recusou-se a mostrá-la. Ele então gritou, numa voz irritada:
- Não lhe dou esta ordem como marido, mas sim como chefe da nação!
E, ao dizer isto, tirou a espada. Ela entregou-lhe a carta. Depois de a ler, atirando-a para cima da mesa, ele proferiu num tom glacial:
- Pouco me importa o que escreva a esse rapaz, mas não admito que se negue a obedecer às minhas ordens.
Dizia-se ainda que, de longe em longe, a mulher do Presidente, por orgulho, recusava-se a ceder e preferia deixá-lo, afastando-se por algum tempo. Havia quem ficasse satisfeito ao vê-la partir, os que não gostavam da influência que ela exercia no marido. Mas embora a zanga pudesse prolongar-se por muitos dias, chegava sempre um momento, ambos o sabiam, em que, reconciliados ou não, o Presidente mandava chamar a esposa, quando não era ela que voltava primeiro, para recomeçarem a mesma vida de amor e ódio.
Apesar de tudo, esta mulher tinha um grande poder sobre o marido, pois prendia-o ao mesmo tempo pelo corpo,
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pelo espírito e pela alma. Ele nunca conhecera mulher alguma capaz de o prender assim tão completamente. Era bonita, culta, inteligente, cheia de tacto e de sabedoria; conhecia o mundo como ele jamais o conheceria; em todas as circunstâncias sabia qual a atitude a tomar, as palavras a proferir; e, além do mais, adivinhava-lhe na alma os sentimentos íntimos que o animavam. Na verdade, ele precisava de ter a certeza, como bom discípulo de Tao, que tudo quanto fazia era não somente justo e grande, mas também cheio de bondade. E ela compreendia essa sua necessidade de crer e acompanhava-o nas suas orações. Haverá porventura no mundo muitas mulheres assim capazes de satisfazer um homem que é ao mesmo tempo soldado e santo?
Mayli observava-os, sentindo bem a força e a atracção desse casal, que recebia no seu seio e, fosse pelo que fosse, a repelia ao mesmo tempo. Esse homem e essa mulher permaneciam sempre sós em qualquer parte onde estivessem, mesmo que o mundo inteiro gravitasse em sua volta.
E tudo isso transparecia no mais leve sorriso, nos ditos de espírito e nas declarações graves. Ao falar dos seus numerosos orfanatos, a mulher do Presidente contou a conversa que tivera na véspera com um dos internados:
"-. Devo aprender a ler, senhora?"
"- Pois decerto; todas as crianças devem aprender a ler" - respondera-lhe.
"- Mas se eu não tenho tempo para aprender" - dissera-lhe a criança muito triste. - "Tenho de combater o inimigo. Por favor, senhora, ensine-me primeiro a pegar numa espingarda".
Depois, sorrindo, acrescentou gravemente:
- Na verdade, é preciso ensinar-lhes ao mesmo tempo a ler e a combater. Todas as desgraças quê hoje sofremos devem-se ao facto de termos aprendido unicamente a ler e não a combater.
E prosseguindo, mais gravemente ainda:
- Alguns povos, no decurso desta guerra, podiam abrir caminho para um mundo novo, no qual tivéssemos confiança
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uns nos outros. Mas por enquanto não podemos confiar neles... Têm traído tantas e tantas vezes as promessas que nos fazem...
Desta vez, porém, o Presidente negou-se a recomeçar a discussão há pouco interrompida. Finda a refeição, levantou-se e, com a chávena na mão, bebeu à pressa um gole de chá bem quente.
- Recuso-me ainda a acreditar em tais coisas - disse.
- E porque continuo a ter toda a confiança nos meus aliados, vou mandar as minhas melhores divisões para a Birmânia. Se combatendo lado a lado obtivermos uma grande vitória e conseguirmos manter aberta a Grande Estrada, nessa altura terei a certeza de que labora em erro.
E inclinando rapidamente a cabeça para Mayli, saiu da sala. As duas mulheres ficaram sós. Durante um momento, reinou absoluto silêncio, como se aquele homem, ao sair, levasse consigo toda a energia que havia na esposa. Ela continuava sentada, os braços nus e redondos apoiados à mesa, os olhos rasgados perdidos algures, talvez seguindo o marido em pensamento. Quando por fim os ergueu para Mayli, a jovem ficou surpreendida com a angústia desse olhar.
- Tenho medo - disse-lhe - tenho um medo terrível.
- De quê, senhora? - perguntou Mayli.
- Tenho medo dessa campanha. Ele vai mandar para a Birmânia os nossos melhores soldados, os mais experientes, os melhor treinados, justamente os que devia reservar para defender o país. E se o inimigo nos ataca quando essas divisões partirem? Ele preza tanto esses soldados que é como se mandasse para lá os próprios filhos, e no entanto insiste em que deve mandar os melhores.
Falava em inglês, como fazia sempre na ausência do marido, e acrescentou:
- Receio as consequências dessa campanha, sobretudo o efeito que nele teria uma derrota.
- Mas por que não pensamos antes que tudo há-de correr bem? -perguntou Mayli.
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A mulher do Presidente abanou a cabeça. O seu belo rosto revelava agora profunda tristeza:
- Tenho razões para duvidar, muitas razões - disse.
- Gostaria de ser homem e de estar à frente desses soldados. Talvez pudesse impedir que essas razões prevalecessem. - Soltou um profundo suspiro. - Gostava de saber tudo quanto se vai passar, dia após dia, para na altura em que vencêssemos a campanha, ou a perdêssemos, saber a verdade, e não ser enganada...
O coração de Mayli pulou de contentamento:
- Envie-me para lá em seu lugar - arriscou Observarei tudo e mandar-lhe-ei o relato fiel de quanto veja e suceda.
Viu-a erguer a cabeça e fixá-la demoradamente.
- É muito perigoso - proferiu por fim. - E devo pensar no seu pai e na sua mãe.
Mas, ao dizer isto, não deixava de a fitar.
- Bem sabe que pais e mães pouco significam nos tempos que correm - opôs Mayli calmamente. - Hoje só uma coisa conta: que cada um cumpra o seu dever. E se há mulheres capazes de combater como os homens e de marchar ao seu lado milhares e milhares de quilómetros, eu poderei também fazê-lo.
- Sim, pode - concordou a esposa do Presidente. Se eu estivesse no seu lugar, também podia com certeza. Mas qual o pretexto para ir? Nessas divisões não há mulheres... Tem algumas noções de medicina?
- Não - respondeu Mayli. - Mas posso por exemplo tomar conta das que possuem tais noções. Permita-me que cuide das enfermeiras. Arranjar-lhes-ei comida e alojamento e o mais que precisem, ficarei junto delas de noite, olhando pela sua segurança nessas paragens distantes.
- Sim - pronunciou lentamente a mulher do Chefe Supremo - pode ir nessa qualidade.
- E onde quer que esteja - continuou Mayli - observarei tudo que possa para lhe transmitir. Serei por assim dizer os seus olhos e os seus ouvidos.
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Os meus olhos e os meus ouvidos... - repetiu a
mulher do Presidente.
E em silêncio ficou um instante a reflectir. Um raio de sol, entrando pela janela, fazia cintilar o anel de jade que usava no dedo. Aquela jóia, dum verde claro, era verdadeiramente fabulosa. Vendida, permitiria adquirir com que alimentar numerosos órfãos durante muitos dias. Mas na verdade essa jóia fazia parte integrante dela própria, da sua beleza, e nunca a venderia. A beleza pertencia-lhe de direito, era a sua força. Os que a conheciam sentir-se-iam roubados se ela se despojasse da mínima parcela, pois há pessoas para quem a beleza é pelo menos tão necessária como a vida para outras. E Mayli, profundamente impressionada pelo encanto dessa beleza, sentiu por ela tanta devoção e lealdade como se estivesse em presença duma deusa.
A mulher do Presidente ergueu os olhos, dir-se-ia ter adivinhado o que se passava no coração da jovem:
- Sinto que posso ter confiança em si. Irá. Agora, deixe-me sozinha, tenho de preparar devidamente as coisas.
VI
Mayli não tornou a ver o Presidente nem a mulher. Voltou para o hotel e logo no dia seguinte recebeu uma missiva da esposa do Chefe Supremo que dizia apenas: "Sobre o que combinámos ontem, está tudo resolvido. Voltará esta noite de avião a Kunming. Espero que a sua mãe, lá de cima, veja e aprove".
A jovem não saiu dos seus aposentos durante todo o dia. A única coisa que fez foi dormir, levantando-se apenas por momentos para comer. À meia-noite, quando chegou ao local indicado, junto do frágil avião que a ia transportar, sentia-se absolutamente fresca, capaz de enfrentar fosse o que fosse.
No interior do aparelho já estava outro passageiro. Era
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um oficial, com um uniforme que Mayli não conhecia, homem novo, de rosto redondo e simples. O oficial cumprimentou-a, tratando-a pelo próprio nome. Mayli ficou assim a saber que ele estava informado da sua identidade. No entanto, não falaram mais, ele enrolou-se no seu capote e em silêncio fizeram toda a viagem.
Quando no dia seguinte entrou em casa, reinava nela uma calma absoluta. Era uma quietude tão grande após a rapidez e a excitação daquela sua viagem a Chungking, que dir-se-ia ter sido tudo um sonho. No pátio, os bambus estavam completamente imóveis e na água tranquila e pura do pequeno tanque reflectia-se o céu claro dum dia magnífico. Mas mal se aproximou da porta, logo o pequeno cão começou a ladrar, manifestando ruidosamente a alegria de a tornar a ver. Liu Ma não tardou também a aparecer: vinha da cozinha, com uma tigela de arroz na mão. Ia principiar a comer, e podia imaginar tudo menos ver ali a sua jovem senhora.
- Já de volta?! - exclamou.
E pousando a tigela, apressou-se a ir preparar-lhe o chá e. a comida. De repente, deixou de haver sossego naquela casa, tudo era ruído e agitação, o cão, a velha criada, a própria Mayli que, cheia de vida e boa disposição, não parava de cantar ou de falar com Liu Ma. Nem sequer dissimulou o seu desejo de saber se Sheng a procurara ou não durante a sua ausência.
- O grande soldado veio importunar-te nestes dias?
- gritou para a cozinha.
- Então não havia de vir?! E irritei-me bastante por sua causa! - respondeu de lá Liu Ma.
- Porquê?! - admirou-se Mayli.
A jovem colocara uma bacia de porcelana no rebordo da janela e lavava a cara com água quente, o lindo rosto e os lábios frescos mal se divisando através da nuvem de vapor.
- Porque ficou mais furioso que um tigre - continuou Liu Ma. - Amaldiçoou o Norte, o Sul, o Este e o Oeste, pois ignorava para qual desses lados tinha ido.
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E tu sem poderes dizer-lhe nada! - observou Mayli, jovialmente.
Nada, absolutamente nada! - cacarejou a velha, no
meio dum ataque de tosse provocado pelo fumo do fogão.
Agora que a sua ama voltara, sentia-se excitada e de novo cheia de vida. Mas, com a pressa, tudo lhe caía das mãos. Um ovo esmigalhou-se no chão e chamou o cão para o lamber. Procurava, sem conseguir, fazer várias coisas ao mesmo tempo.
Mayli, por seu lado, nunca se sentira tão feliz na sua vida. Por muito tempo que vivesse, havia de se lembrar sempre do Chefe Supremo e da mulher, desta especialmente, de quem de futuro passaria a ser os olhos e os ouvidos. Nenhuma outra missão lhe agradaria mais. Sabia que era capaz de a desempenhar e tinha confiança em si própria. Sentou-se à mesa e pôs-se a comer com grande apetite o arroz, os ovos e o peixe que Liu Ma lhe servira. Depois partiu com as mãos um bocado de pão trigueiro de sésamo e começou a trincar os minúsculos grãos com os dentes brancos e afiados, ao mesmo tempo que ia dando ao cão algumas migalhas. Entretanto, o seu espírito, saltando por cima de planícies e montanhas, voava para muito longe, para os campos de batalha.
"Havemos de ser bem sucedidos", sonhava. "O avanço do inimigo há-de ser detido pelos nossos soldados e o mundo inteiro compreenderá então como somos fortes e corajosos. Quando os nossos aliados presenciarem esse triunfo, passarão a admirar-nos e cumprirão todas as suas promessas".
Os seus pensamentos venciam os altos cumes das montanhas, não conheciam obstáculos, e tornavam fáceis a dureza dos combates e a marcha dos exércitos vitoriosos. Não era Sheng, nesses exércitos, o mais corajoso e o mais brilhante dos oficiais? Ela e Sheng talvez fossem ainda um dia como o Presidente e a esposa... Ao chegar a este ponto, Mayli, que não era por natureza sonhadora, riu de si própria e, puxando as orelhas ao cão, ralhou:
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- Ainda apanhas uma indigestão se continuas a comer assim, meu pequeno glutão.
Levantou-se e foi passear para o pátio, impaciente, sem saber se havia de prevenir Sheng da sua partida ou esperar que ele mais tarde a descobrisse. Andou assim, dum lado para o outro, mais de uma hora, antes de tomar uma decisão a esse respeito. Gostaria, evidentemente, de lho dizer, pois ele não poderia opor-se a uma ordem da mulher do Presidente. Mas, por outro lado, de temperamento travesso, sentia já vontade de rir só de pensar na cara que Sheng faria quando a visse pela primeira vez, lá longe, a marchar ao lado dos exércitos. As enfermeiras seriam decerto transportadas em camiões, até onde fosse possível, e Mayli imaginava-se num desses veículos, a passar junto das colunas dos soldados, e Sheng a olhar para ela, cheio de espanto. A ideia seduziu-a tanto que decidiu logo não lhe dizer nada, nem mesmo avisá-lo do seu regresso.
Lembrou-se então do general. Sabia que já tinha voltado, pois ouvira o Presidente dizer que ia despachar os generais rapidamente para prepararem a campanha. Não falaria ele a Sheng, se visse o seu nome nalguma lista? Decidiu ir ao Quartel General e pedir-lhe que guardasse segredo.
E tão depressa essa ideia lhe ocorreu ao espírito, logo a pôs em prática. Penteou-se com todo o cuidado, espetou nos cabelos negros pregos vermelhos, vestiu uma túnica de lã, também encarnada, e por cima uma comprida capa preta, borrifou de perfume as mãos e a nuca e preparou-se para sair.
- Onde vai agora?, - gritou-lhe Liu Ma da janela da cozinha.
- Tenho assuntos a tratar - respondeu Mayli. - E se Sheng entretanto cá vier, não lhe digas que já voltei.
Esta resposta sossegou a velha, que não punha as mãos no lume pela sua senhora e julgava-a mesmo capaz de ir procurar um homem a sua casa. Muitas vezes lhe dizia, alto e bom som, que quando uma mulher entreabre uma pequena nesga no muro que a defende, logo essa nesga se
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transforma em amplo corredor. Em sua opinião, as mulheres deviam viver cercadas de muros, pois doutra forma eram capazes de fazer fosse o que fosse sem se importarem com a decência.
Mayli tomou um riquexó e dirigiu-se ao Quartel General. No caminho, ia pensando: "Seria muito pouca sorte se Sheng estivesse lá também". Mas não, não o encontrou. Ao chegar ao portão, deu o nome à sentinela e não teve de esperar muito pois o general mandou-a logo entrar. Estava sozinho e agradou-lhe a ideia de tornar a ver Mayli. Embora fosse homem que nunca olhava para outra mulher além da sua, nem por isso apreciava menos a oportunidade de conversar com aquela jovem bela e sedutora, considerando-se como se considerava ao abrigo de qualquer tentação.
Assim, pôs de lado os mapas e planos que examinava, endireitou a gola, alisou os cabelos e mirou-se no vidro da janela aberta que lhe servia de espelho. Ao ouvir-lhe os passos, ergueu-se. Mayli entrou num passo rápido, sem dar conta que imitava inconscientemente a mulher do Presidente, tanto na maneira de andar como no amável sorriso.
O general inclinou-se e cumprimentou-a, mas Mayli estendeu-lhe a mão, gesto usado pelos estrangeiros e nela perfeitamente natural. Ele hesitou e por fim estendeu também a mão, apertando a da jovem ao de leve. Mayli riu e comentou:
- Esqueço-me sempre que o aperto de mão não é habitual entre nós. Mas vivi tanto tempo no estrangeiro...
- Sente-se - disse-lhe o general, instalando-se na sua cadeira.
O perfume da jovem espalhou-se na sala e ele aspirou-o profundamente. A sua mulher era uma excelente criatura, amava-a bastante e já lhe deradois filhos; mas não podia esquecer que os pais é que lha tinham escolhido. Foi com um vago sentimento de melancolia que contemplou o rosto belo e fresco de Mayli. Ela sentou-se, tirou a capa, apoiou os braços na secretária e olhou-o francamente. Esse olhar
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perturbou-o um pouco, mas deu-lhe prazer ao mesmo tempo. "Estas mulheres modernas"-, pensou, "talvez sejam inquietantes para um marido, mas não deixam de possuir o seu encanto". Claro, não gostaria de casar com uma mulher assim; um homem não deve desejar que a sua esposa tenha tanto encanto. Mas era agradável, isso era, olhar para uma mulher como aquela quando não se sente a responsabilidade pelo que ela diga ou faça.
- Venho uma vez mais pedir o seu auxílio - começou Mayli, com modos insinuantes.
Nunca falava assim a Sheng. com ele, mostrava-se ora rude, ora trocista, mas sempre franca. O seu instinto aconselhava-a, porém, a não dar ao general a impressão de que se supunha sua igual.
- E eu fico sempre satisfeito por poder ajudá-la - respondeu ele com um sorriso.
- Já viu a lista das enfermeiras que partem para a Birmânia com as três divisões? - perguntou.
- Ainda não - respondeu o general. - Tenho tido bastante que fazer com outros pormenores da campanha.
- Então, cheguei mesmo a tempo - comentou Mayli, inclinando-se um pouco mais. - Como sabe, fui ver o Presidente e a esposa - pronunciou em voz baixa. - Falaram-lhe de mim?
- Não vi a esposa e com o Chefe Supremo falei apenas sobre assuntos militares.
- A mulher do Presidente confiou-me o encargo de tomar conta das jovens enfermeiras - revelou então Mayli.
O general sorriu e observou:
- A mulher do Presidente pode fazer aquilo que muito bem quer, mas acho que é nova de mais para ocupar esse lugar.
Os lábios de Mayli abriram-se num sorriso travesso: - Sou nova mas muito forte. Sou capaz de andar quilómetros e quilómetros, suporto bem o calor e como de tudo.
- Em resumo, um bom soldado. Mas que quer de mim? As suas funções não dependem directamente do meu
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comando, bem sabe. Deve portanto apresentar-se a outra
pessoa.
E principiando a folhear os papéis que tinha na sua frente, encontrou por fim aquele que procurava:
O seu superior é Pão Chen.
Pão Chen - repetiu Mayli, como para fixar bem o
nome. - Mas não foi por isso que o vim ver.
O general recostou-se na cadeira e, olhando-a sorridente, perguntou:
- Então quando se decide a revelar o objectivo da sua visita? Olhe para esta rima de papéis que está em cima da minha secretária. Cada um é uma ordem para ser executada. E já nos resta tão pouco tempo! Estamos muito e muito atrasados.
- vou dizê-lo em poucas palavras - decidiu-se Mayli.
- É uma coisa muito simples e no entanto tão difícil de explicar... Bem, é isto: peço-lhe por tudo que não diga a ninguém que vou partir.
Agora que chegara a altura de fazer o pedido, achava não só difícil mas impossível pronunciar o nome de Sheng. Corou violentamente e baixou os olhos.
- Mas por que quer partir em segredo? - interrogou o general, admirado, fixando-a atentamente.
Mayli compreendeu que ele não tinha a menor suspeita do que se tratava e, recobrando a coragem, continuou:
- Esse jovem comandante... o que promoveu recentemente... aquele de que lhe falei...
- Ling Sheng?
- Sim, esse mesmo. É por causa dele, não quero que saiba...
- Ah! - exclamou o general intencionalmente.
- Tem certas ideias a meu respeito - acrescentou Mayli, cada vez mais corada-e... e... é melhor que não nos encontremos... isto é, temos ambos uma missão a cumprir e não quero... bem... não quero...
- Também tem algumas ideias a respeito dele, não é verdade? - interrompeu o general.
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- Não, não, nenhumas - pronunciou Mayli precipitadamente. - Quero realizar o meu trabalho tão bem quanto me seja possível, e não desejo causar-lhe preocupações. Ele tem o seu dever a cumprir, e eu tenho o meu, não me interessa mais nada. Além disso, se ele descobre que vou também, é capaz de remover este mundo e o outro para o impedir.
- O que me parece bastante difícil, uma vez que foi a mulher do Presidente quem deu essa ordem - observou o general.
- Ah, não o conhece! - exclamou Mayli com calor. -- Está convencido que tem o direito de me dizer o que devo e não devo fazer.
- Por outras palavras, ama-a, não é assim? - interpôs o general com um sorriso indulgente.
- Mas eu não desejo ser amada - respondeu a jovem com vivacidade. - Não é ocasião para isso.
Um riso silencioso sacudiu o general durante algum tempo. Depois, limpando os olhos, anuiu:
- Está bem, farei o que deseja. Tenho uma campanha a organizar e estou de acordo consigo, é melhor não dizer nada a Sheng. Se ele for ferido, descobrirá imediatamente a sua presença. Se não for, não há razão nenhuma para vir a saber sequer que nos acompanha.
- É exactamente isso o que desejo - disse Mayli.
E uma vez deferida a petição, a jovem entendeu que era tempo de se despedir. Sabia perfeitamente que quando um homem cede ao pedido de uma mulher, não gosta que ela se demore junto dele, em especial se não fica muito convencido com as razões da sua transigência.
Mayli levantou-se, apoiou as duas mãos na secretária e disse com um sorriso:
- Foi tão bom e tão amável... Prometo cumprir o meu dever, e se alguma vez precisar de mim, mande chamar-me.
O general fez um gesto de assentimento. Sentia-se invadido por uma sensação de bem-estar, como se tivesse bebido um copo de vinho quente e açucarado.
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Nesse instante entrou um soldado para o informar que os comandantes das divisões, convocados para aquela hora, esperavam na sala ao lado.
- Ah, sim! - exclamou. - Já me esquecia... Manda-os entrar.
Mas Mayli, pondo um dedo nos lábios, sussurrou-lhe:
- Ainda não, deixe-me sair primeiro.
- É verdade - considerou o general. - Ele é um dos comandantes, não me lembrava. - E voltando-se para o soldado: - Bem, dize-lhes que esperem só um momento.
O soldado retirou-se e um minuto depois Mayli, renovando os seus agradecimentos, despediu-se e saiu. com receio que Sheng a visse, ergueu a gola da capa, baixou a cabeça e apressou o passo. Como no corredor não encontrou ninguém, partiu confiante.
E na verdade teria passado despercebida se o soldado não fosse um desses homens maliciosos, sempre prontos a ver maldade em tudo e a espalhar aos quatro ventos histórias picantes. Assim, apareceu junto dos três comandantes, sufocado de riso, dizendo-lhes, em ar de confidência, que o general não os podia receber imediatamente porque tinha no seu gabinete uma visitante misteriosa.
Os oficiais olharam uns para os outros sem dizer nada, por respeito pelo superior, mas quando o soldado desapareceu, Sheng comentou:
- Não pensava que fosse homem para isso.
- E não é - confirmou outro oficial. - Os inferiores estão sempre mortos por inventar histórias dessas, especialmente a respeito daqueles que os dirigem.
A saleta em que os três esperavam era muito pequena e não dava para o pátio principal. Ficava dela separada por um corredor, com o qual comunicava por uma porta. Dando um passo em frente, o terceiro oficial, que ainda não se pronunciara, murmurou quase contrariado:
- E na verdade vejo uma mulher.
Os outros dois aproximaram-se e os três viram uma mulher alta e elegante, envolvida numa comprida capa, mas que passou com demasiada rapidez para poderem
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distinguir-lhe as feições. No entanto Sheng reconheceu-a logo. Muitas mulheres usavam capas iguais àquela, mas Mayli era mais alta do que as outras e, além disso, aquela mão que segurava a gola da capa tinha um anel de jade que ele conhecia muito bem.
Invadiu-o uma onda de terror, de cólera e de angústia. Fora então ali, naquela casa, que ela passara esses três dias de ausência? Era essa a explicação para o seu desaparecimento? Seria possível que o seu chefe fosse seu rival?
O soldado voltou antes de ter tempo de pensar bem no assunto.
- O general espera-os - disse.
Não era altura própria para tais congeminações. Sheng viu-se obrigado a seguir os companheiros e os três entraram no gabinete. O general esperava-os, de faces vermelhas e olhos brilhantes. Os três oficiais puseram-se em sentido, fizeram a continência e no mesmo instante Sheng sentiu na atmosfera o odor subtil dum perfume que conhecia.
- O grande soldado não veio - disse logo Liu Ma mal viu Mayli transpor a porta.
- Tanto melhor - respondeu a jovem, com ar indiferente.
Sentia-se feliz e apesar de tudo inquieta. Depois de tirar a capa e mudar de vestido, subsistia nela a mesma inquietação. Foi para o pátio e começou a andar dum lado para o outro. Se ele aparecesse, não lhe diria nada. Claro que haviam de brigar e discutir, como sempre, forma muito particular de mostrar que se amavam, mas quando o visse partir dir-lhe-ia adeus como habitualmente e depois acontecesse o que acontecesse. A resolução não lhe tirou o desassossego, ria, brincava, fazia travessuras ao cão, arreliava Liu Ma. A velha criada, porém, pondo-se nas suas tamanquinhas, exclamou:
- Olhe que já não é nenhuma criança! E juro que lamento muito, pois se fosse dava-lhe um bom par de açoites. Que o Céu lhe mande depressa um marido, seja ele qual for. Até me dá vontade de ir à procura desse soldado
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grandalhão para lhe dizer que pode tê-la absolutamente de graça, só pela satisfação de viver um pouco mais tranquila.
- Julgas então que passavas a viver em paz? - perguntou Mayli a rir. - Tinhas de continuar a cuidar de mim e bem sabes que eu e ele estamos sempre a discutir um com o outro.
Seríamos ao menos dois contra si, meu vivo demónio! - rematou a velha.
A verdade é que Liu Ma se afeiçoara a pouco e pouco a esse rapaz alto e forte e já chegara à conclusão que o melhor que podia suceder à sua jovem ama era casar com ele. Pois quem, a não ser um soldado, se atreveria a desposar uma rapariga tão independente e voluntariosa? Um homem sensato procura uma mulher carinhosa e obediente e Liu Ma estava convencida que Mayli nunca seria uma boa esposa para tal homem. Portanto, já decidira, no seu íntimo, que quando Sheng voltasse lhe daria a entender que estava modificada e de futuro passaria a protegê-lo. Esperava-o com impaciência, convencida que ele apareceria dum momento para o outro, pois não faltara nenhum dia enquanto Mayli estivera ausente.
Mas Sheng não apareceu. Durante todo esse dia a velha o esperou, cheia de ansiedade.
- O grande soldado teria partido já para a guerra? perguntou ela na tarde do segundo dia - Nunca esteve tanto tempo sem nos vir ver.
- Que nos importa se partiu ou não? É-nos completamente indiferente, não é verdade, meu pequerrucho? perguntou Mayli, puxando as orelhas do cão.
- Já estava habituada a esse grande rábano - disse Liu Ma, contrariada.
- Então gostas mais de rábanos do que eu - replicou Mayli a rir.
No entanto, sem o querer confessar, nem mesmo a si própria, também ela se interrogava para descobrir a razão por que Sheng não aparecia.
A partir desse dia Mayli não falou mais de Sheng. Aliás também não tinha tempo para isso, pois logo na manhã
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seguinte um mensageiro lhe comunicou que se apresentasse ao seu superior, Pão Chen, para receber ordens.
Ao tomar conhecimento do aviso, Mayli entendeu que era tempo de prevenir Liu Ma da sua próxima partida. Assim, após o pequeno almoço, quando a velha se preparava para ir lavar a loiça, a jovem puxou dum cigarro, acendeu-o e disse:
- Liu Ma, tenho uma coisa importante para te dizer.
- Então diga -- replicou a velha, com as mãos cruzadas sobre o avental.
- vou partir - anunciou abruptamente. - Recebi do Chefe Supremo e da mulher a incumbência de desempenhar certa missão, de que não posso falar, mas que tenho de cumprir.
Liu Ma não pronunciou uma só palavra e ficou de boca aberta, a olhá-la fixamente.
- Ainda não sei o dia em que abalo - continuou a jovem - mas este mensageiro que cá veio esta manhã trouxe-me ordem para me apresentar ao meu chefe; só depois saberei alguma coisa. Quanto a ti, ficas aqui até eu voltar, para tomares conta da casa e do cão. Se te sentires muito só, arranja uma criada que te faça companhia.
Liu Ma estava suficientemente habituada a mudanças no decurso da sua já longa existência para ficar de cabeça perdida. Por outro lado, sabendo donde provinha aquela ordem, nem sequer lhe passou pela ideia barafustar contra ela; mas o facto não lhe agradava mesmo nada, e não podendo opor-se-lhe no todo, contentou-se com os simples pormenores.
- Para que preciso doutra mulher aqui? Só para lhe dar de comer, ter de lhe falar e inquietar-me a toda a hora? Não, prefiro ficar sozinha com o cão, ao menos a esse já o conheço.
- Farás como entenderes - disse Mayli, em tom conciliador.- Tudo quanto te peço é que guardes e cuides da casa.
- Não sei se farei bem em ficar - resmungou Liu Ma, dando roda livre ao mau humor. - Estou longe, muito
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longe da minha terra, e quem me afiança que a menina algum dia volta? Pode mudar de opinião e eu para aqui fico à sua espera, tempos infindos, naturalmente até morrer, sozinha, tendo por única companhia uma cama e um cão...
Lá estás tu com as tuas lamúrias - observou Mayli
A rir - Que queres que te diga mais? Fica, se quiseres;
senão, quando eu partir, fecha a porta e vai-te embora. Podes levar o cão ou deixá-lo, isso também é contigo; de qualquer maneira, só te peço que faças o que muito bem entenderes, nada mais.
Mayli suprimiu deste modo todo o motivo de discussão, e isso só aumentou o mau-humor de Liu Ma. Reunindo os pratos, batia com eles uns nos outros, e continuava a resmungar:
- Por que a incumbiram duma missão? Nem por sonhos me passaria uma dessas pela cabeça.
- Não é a mim que o deves perguntar, mas à mulher do Presidente - replicou Mayli. - Eu também às vezes faço essa pergunta a mim própria. Mas o facto é que me mandam e devo obedecer.
- Bem se vê que ela não a conhece - exclamou Liu Ma. - Uma Maria-rapaz obstinada e caprichosa... o que pode ir lá fazer? Pegar numa espingarda e marchar ao lado do grande soldado?
Ferida na sua dignidade, Mayli, cheia de cólera, avançou para a velha e deu-lhe uma bofetada:
- Cala já essa boca! - gritou-lhe. - Nem sequer sei se seguimos os dois a mesma direcção. É muito triste ter uma cabeça apenas cheia de maldade e de pensamentos ruins.
Liu Ma acalmou-se imediatamente.
- Sou uma mulher honesta - defendeu-se - e não tenho outro pensamento na cabeça senão o de a ver convenientemente casada. Uma mulher decente casa-se, vive no seu lar e dá filhos ao seu marido.
- Tu sonhas, pobre velha - retorquiu Mayli. - Nos tempos que correm, uma mulher pode casar, ter filhos e viver fechada em sua casa?
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Mayli falava com tanta severidade que Liu Ma, assustada, não abriu mais a boca, e de beiço caído e orelha murcha entregou-se em silêncio ao seu trabalho. A jovem, por seu turno, começou a preparar-se para obedecer à ordem recebida, mas a cólera tornava-a também silenciosa. Tinha plena consciência de que não ia partir para o Ocidente por causa do Sheng, mas sim por desejar a todo o custo ser útil.
Dirigiu-se a pé ao lugar que lhe fora indicado e, quando chegou próximo do portão, viu outras mulheres que caminhavam na mesma direcção. Eram todas jovens e fortes e mostravam um rosto grave. Juntou-se a elas e entraram numa sala ampla onde dois funcionários, sentados às suas secretárias, lhes tomaram os nomes e as mandaram esperar.
Quando chegou a vez de Mayli, não sucedeu o mesmo, indicaram-lhe imediatamente uma porta aberta e ao transpô-la achou-se em frente do mesmo oficial que viajara com ela no avião poucos dias antes. Mayli perguntou uma vez mais a si própria por que não lhe teria ele dirigido a palavra durante a viagem. Mas as coisas são como são e não merecia a pena pensar mais no assunto. Ficou de pé até ele a mandar sentar e depois esperou. O oficial lia atentamente um papel. Por fim, ouviu-o pronunciar:
- Já a puseram ao corrente das suas obrigações?
- Somente em parte.
- Tudo o que tem a fazer está aqui escrito - disse-lhe, estendendo-lhe a folha de papel que tinha na mão. - Leia e se não compreender alguma coisa, diga-me.
Mayli leu cuidadosamente o documento e não encontrou nada obscuro. Todas as suas atribuições estavam ali minuciosamente enumeradas. O oficial esperava, imóvel, que ela terminasse a leitura.
- Tudo bem claro? - perguntou.
- Perfeitamente claro - afirmou Mayli.
- É sua obrigação tratar de todas as coisas aí indicadas; se houver falhas ou esquecimentos a si pedirei responsabilidades. Será seu colaborador o médico-chefe, o
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Dr. Chung Liang-mo. Os dois ficam responsáveis por tudo quanto diz respeito a doentes e feridos e às enfermeiras que trabalhem sob as vossas ordens. O doutor tem a seu cargo, especialmente, os assuntos médicos e cirúrgicos, a senhora ocupar-se-á em particular das enfermeiras, sua alimentação, alojamento, o que seja necessário. Quando não estiverem de acordo sobre qualquer assunto, dirijam-se a mim, serei o árbitro. Mas penso que não há-de ser preciso. Mayli inclinou a cabeça em sinal de assentimento. O oficial premiu o botão duma campainha e logo apareceu um soldado.
- Diga ao Dr. Chung que venha ao meu gabinete. Esperou em silêncio, sem um gesto, sem um movimento.
Passados poucos minutos, apareceu o médico. Mayli esperava-o com impaciência, pois a partir desse momento ia trabalhar ao seu lado, em estreita colaboração; se lhe fosse antipático logo de início, isso não facilitaria nada o trabalho em comum, antes pelo contrário. Mas assim que o viu entrar, gostou dele. Chung Liang-mo era um homem baixo e forte. Tinha a cabeça redonda, o rosto também redondo, uma boca impaciente e um olhar tolerante e luminoso de inteligência. Não era nem tímido nem ousado. Saudou Pão Chen como amigo e sentou-se. Pão Chen, parecendo despertar de súbito, disse-lhe:
- Esta é a sua colaboradora, Wei Mayli, de quem lhe falei. Recebeu agora as necessárias instruções, e como você também já tem as suas, o melhor é irem conversar os dois. Passem para o gabinete ao lado enquanto eu prossigo o que estou a fazer.
O Dr. Chung ergueu-se e com um sorriso amável convidou Mayli a segui-lo.
Ela levantou-se também e dirigiram-se ambos para a sala ao lado, onde se instalaram. O médico tirou do bolso uma folha parecida com a que Mayli recebera momentos antes e entregando-lha propôs:
- Enquanto eu leio a sua folha, vá lendo a minha. Ficaremos assim ao corrente das nossas respectivas tarefas.
- Aqui tem a minha - disse Mayli.
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E os dois mergulharam por instantes na leitura dos documentos.
- Este Pão Chen - afirmou depois o médico - é um homem estranho. Prefere sempre escrever uma coisa a dizê-la. Mas tem um cérebro tão claro e bem ordenado que raramente comete qualquer erro. É um homem que gosta mais de acções do que de palavras e não conheço outro melhor para desempenhar as suas funções nesta campanha.
- Enquanto falava, ia examinando Mayli com bondade.
- É ainda muito nova - observou depois. - Já passou alguma vez privações?
- Não - confessou Mayli - mas estou preparada para as sofrer.
- Esta campanha vai ser muito difícil e teremos de suportar as mais duras privações - continuou o médico, numa voz branda. - O Presidente pede um esforço enorme aos seus soldados. E em nenhum caso nos devemos render. É uma ordem formal. Podemos morrer lá todos, mas não devemos capitular.
- Não podia ser outra a ordem do Presidente - disse Mayli, lembrando-se desse rosto de soldado iluminado por um olhar de apóstolo.
- Haverá decerto muitos feridos - prosseguiu o médico
- e temos de estar preparados para passar dias e noites sem descansar nem dormir, logo que comece a batalha.
Mayli inclinou a cabeça.
- Posso passar sem comer nem dormir, se assim for necessário - disse com simplicidade. - Tenho somente uma pergunta a fazer: quando partimos?
- Ninguém lhe pode responder a essa pergunta declarou o médico. - Somente o sabe o Chefe Supremo. Quando ele der o sinal, partimos. Mas está. tudo a postos. Uma divisão vai já a caminho. As outras duas não tardarão a marchar. Depois será a nossa vez, a não ser que sigamos juntamente com elas.
Ao ouvi-lo, o coração de Mayli fez imediatamente outra pergunta a si própria: "A divisão de Sheng já teria partido e só por isso ele não a fora ver?" Mas quem pode responder
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a perguntas feitas pelo coração? Mayli continuou calada, de olhos fitos no rosto bondoso do médico.
Nós não sabemos mesmo ao certo para onde vamos
explicou Chung. - Uns dizem que partimos para a
Indochina, outros que vamos juntar-nos aos brancos na Birmânia. Talvez as duas hipóteses sejam verdadeiras. Só o saberemos quando nos pusermos a caminho.
Uma vez mais o coração de Mayli gritou: "E se eu for para um lado e Sheng para outro?" Mas quem pode responder às perguntas do coração? E uma vez mais também, Mayli ficou silenciosa; passado um instante, levantou-se e despediu-se.
- Esteja pronta para partir dum momento para o outro - recomendou-lhe o médico.
- Pode ficar descansado - respondeu-lhe a jovem.
VII
De si para si, Mayli censurou-se. Num momento como aquele, quando a própria existência do país estava ameaçada pelo inimigo e a grande estrada da Birmânia em vias de ser cortada, teria o direito de pensar em si própria e escutar os clamores do coração? Não, não era altura para dar ouvidos ao amor. Várias vezes dissera isso mesmo a Sheng, sem acreditar muito no que dizia. Mas agora, na presença desses homens de rosto grave, de quem dependia a vida de tantos outros homens, compreendia toda a verdade dessas palavras. Durante um instante duvidou de si própria. Teria ela força e coragem para viver no meio de mortos e feridos e percorrer, de camião e a pé, milhares de quilómetros de más estradas e de veredas através da selva? Mas já era demasiado tarde para recuar. E, além disso, se renunciasse a ir, poderia suportar a espera na ociosidade? Parecia-lhe que no dia em que Sheng partisse, toda a cidade se transformaria para ela num deserto. Quer o encontrasse ou não, sentir-se-ia contente só de saber que
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os dois caminhavam para o Ocidente, unidos na luta contra o inimigo.
- Quais são as suas ordens? - perguntou ao Dr. Chung.
- Peço-lhe que venha todos os dias ao meu gabinete e me ajude a preparar as caixas de medicamentos que temos de levar connosco. Não disporemos depois de mais nada além do que pudermos levar.
- Virei amanhã de manhã - prometeu Mayli.
E durante onze dias, todas as manhãs, foi trabalhar com o médico, voltando a casa só à noite. Nunca mais fez qualquer alusão a Sheng diante de Liu Ma e só falou nele quando um dia a velha perguntou onde se teria ele metido.
- Por onde anda esse grande soldado?
- Naturalmente mandaram-no para a Indochina - respondeu calmamente Mayli. -Já partiram muitos homens.
Liu Ma, ocupada a arrumar a casa, lançou-lhe um olhar penetrante e curioso, mas Mayli continuou absolutamente calma. Alguma coisa na sua atitude impediu a velha de fazer mais perguntas e a partir desse dia nunca mais voltou a falar em Sheng.
A vida de Mayli passou a decorrer num ritmo que devia manter-se durante muitos e muitos meses. Levantava-se de manhã cedo e preparava-se para o trabalho do dia. Nunca antes se dedicara a um trabalho regular e agora tinha o tempo todo ocupado de manhã à noite. Depois de tomar o pequeno almoço, punha um vestido escuro, guarnecido de seda, e percorria a pé a distância, de pouco mais de uma milha, que a separava do local onde estava armazenado o material sanitário do hospital. Por mais cedo que chegasse, o médico já lá estava, os cabelos rijos arrepiados para trás, o rosto simples e bondoso, as mãos vermelhas de frio, a empacotar medicamentos, a dispô-los nas respectivas caixas, se porventura não tivesse chegado ainda ninguém. Mas depressa o vasto recinto, construído em madeira
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e papel, se enchia de homens e mulheres, soldados, enfermeiras, empregados que verificavam as listas, separavam os remédios, envolvendo-os em oleados, embrulhando-os em papéis impermeáveis e metendo-os depois em caixas. Numa extremidade do enorme barracão, começava já a formar-se uma grande pilha. Cada caixa tinha de ser pesada, pois não podia exceder o peso que um homem é capaz de transportar.
Desde o primeiro .dia, Chung encarregou Mayli da tarefa de superintender em tudo quanto as enfermeiras teriam necessidade e entregou-lhe para o efeito um maço de listas.
- Verifique isso bem, por favor - disse-lhe em inglês
- e se faltar alguma coisa, acrescente-a.
Falava-lhe sempre em inglês, pois a sua língua era um dialecto duma região distante, nas funduras da província de Fukien. O inglês subia-lhe aos lábios naturalmente, pois vivera mais anos no estrangeiro do que na terra natal. O francês e o alemão também lhe eram familiares. A sua figura atarracada não tinha nada de especial. Somente as mãos, verdadeiras mãos de cirurgião, possuíam uma delicadeza fora do vulgar. Mayli não sabia ainda o bastante nesses primeiros dias para intentar dalguma forma protegê-las, mas havia de chegar o tempo em que, depois de as ver explorar os frágeis liames da vida humana, se apressaria a impedi-lo de tocar em objectos ásperos ou pesados, não fossem eles causar algum dano à preciosa delicadeza dessas mãos.
Este médico não se poupava a nenhuma tarefa. Mayli via-o curvar-se, erguer uma caixa como se fosse um descarregador e pô-la aos ombros para se certificar de que a sua forma não era incómoda. Batia pregos, pegava nos vidros dos frascos partidos e cortava-se com frequência. No seu canto, a conferir listas e provisões, Mayli sentia a sua presença, sempre bondoso, calado e activo.
A pouco e pouco, a massa dos abastecimentos e a multidão de homens e mulheres organizava-se. Mayli passou a conhecer, uma a uma, todas as enfermeiras. Eram
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muito diferentes umas das outras; havia algumas indolentes e estúpidas, mas todas partiam satisfeitas e convencidas de que o seu trabalho era útil e necessário. Pôde no entanto conhecer quatro melhor e mais depressa, pois estavam sempre ao seu lado, prontas a executarem as suas ordens. Uma chamava-se Han Siu-chen, era estudante e a família fora chacinada no saque de Nanquim. Somente ela escapara por estar nessa altura numa escola do interior. De rosto redondo, sempre alegre apesar de tantos desgostos, animava-a um profundo ódio ao inimigo e o desejo de vingar a morte dos seus. As suas mãos gorduchas, de dedos compridos, andavam sempre cheias de frieiras. Tinha uma pele fina e rosada, lábios vermelhos e faces coradas onde o sangue afluía com extrema facilidade. Foram as suas mãos que primeiro atraíram a atenção de Mayli, pois um dia chamou-a para lhe enrolar algumas ligaduras e quando Siu-chen lhas devolveu viu manchas de sangue no linho branco.
- Do que é este sangue? - perguntou.
A jovem corou, muito confusa, e mostrou as mãos cheias de frieiras.
- Vem cá e deixa-me tratá-las - disse-lhe Mayli. Como podes trabalhar com as mãos nesse estado?
Desde então, todas as manhãs Mayli lhe pincelava as mãos com óleo, ligando-lhas em seguida. Teve assim ocasião de conhecer melhor Han Siu-chen, que não se cansava de repetir, sempre corada e sorridente, que as suas mãos não mereciam tantos cuidados.
A segunda era uma rapariga pequenina, pálida e magra, que viera de Tientsin. Filha duma família rica, os pais tinham sido obrigados a fugir diante do invasor. A mãe morrera com as privações sofridas, os dois irmãos caíram nos campos de batalha e ela ficara sozinha com o velho pai. Ele, que nada mais tinha para dar e era velho e fraco, suplicava-lhe constantemente que partisse para vingar os irmãos. Quando se apercebeu que a filha não se decidia para não o abandonar, tomou uma dose forte de veneno. Ao encontrá-lo morto na manhã seguinte, a jovem compreendeu
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que devia obedecer-lhe para além da morte. O seu nome era Tão An-lan.
A terceira chamava-se Sung Hsieh-ying e com a guerra não sofrera ainda outros horrores além dos bombardeamentos aéreos, pois nascera e crescera naquela cidade. Todo o seu zelo provinha do amor à pátria, ou então do desejo de mudar de ambiente, de viajar por terras desconhecidas. Fosse como fosse, estava pelo menos convencida que agia por amor ao país.
A quarta era uma jovem viúva a quem o inimigo infligira tormentos que ela se recusava a contar. Combatera como simples soldado, no noroeste; feita prisioneira, conseguira fugir, e depois de passar muitos trabalhos e suportar dificuldades sem conta, chegara por fim à cidade, a tempo de ouvir dizer que partiriam em breve algumas divisões para o Ocidente. Oferecera-se e ali estava. O seu nome era Mão Chi-ling.
Todas estas raparigas tinham aprendido a tratar de feridos e doentes. Algumas, claro, seriam mais competentes do que outras, mas todas possuíam noções suficientes de enfermagem.
Além destas quatro, que espontaneamente se juntaram a Mayli, considerando-a logo sua chefe, todas as outras, com o decorrer dos dias, se habituaram a pouco e pouco a olhá-la como dirigente, uma espécie de intermediária entre elas e os superiores. Mayli sentiu que dentro de si qualquer coisa se modificara. Durante toda a vida nunca pensara nos outros, e agora era responsável por essas mulheres, pelas quais tinha de pensar e reflectir. Depois dum dia inteiro de trabalho árduo, muitas vezes acordava a meio da noite, aterrada, receando ter-se esquecido de alguma coisa que em plena selva lhes fosse absolutamente indispensável. Nem sempre encontrava nos livros as indicações de tudo quanto procurava. Assim, passou a fazer toda a espécie de perguntas a quem quer que já tivesse viajado por esses sítios, especialmente aos condutores de camiões, carregadores, vendedores ambulantes que chegavam do Ocidente.
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- Qual é o clima dessas paragens? -perguntava.
- Tão quente que até o chá a ferver parece fresco dizia um.
- Tão húmido que o vestuário apodrece e se desfaz no corpo--respondia outro.
- Os insectos consideram-nos um maná caído do céu
- acrescentava um terceiro.
- As serpentes aparecem a cada passo debaixo dos nossos pés e recebem-nos como o seu prato de arroz quotidiano - dizia outro.
- As trepadeiras venenosas prendem-nos com as suas gavinhas - juntava mais um.
- O sol arranca a pele à cabeça, com cabelo e tudo.
- As febres penetram-nos no corpo pelas sete aberturas e fazem-nos chocalhar os ossos como se fossem dados dentro dum copo.
- Os rios correm calmos e serenos - disse-lhe um velho - e de repente transformam-se em mares tenebrosos e engolem-nos. Os deuses das águas, nesse país, são poderosos e maléficos, e foram todos subornados pelo inimigo.
Este velho caíra a um rio e um crocodilo comera-lhe uma perna, deixando-lhe apenas um coto.
Mayli escutava tudo, concluindo que a região que iam atravessar era muito perigosa e doentia. Tinha a obrigação de tomar todas as precauções necessárias. Como ao médico competia arranjar os medicamentos, não se preocupou com esse assunto, mas comprou, para cada enfermeira, um par de botas de cabedal suplementar, e mandou preparar compridas ligaduras com o pano forte que as camponesas da região teciam, as quais serviriam para enrolar em volta das pernas, defendendo-as assim das picadas dos insectos. Arranjou também metros e metros dum tecido mais leve para se abrigarem das moscas venenosas e dos mosquitos. Preparou igualmente caixas com alimentos, de volume extremamente reduzido, e cada enfermeira recebeu uma contendo farinha de feijão, carne salgada e açúcar cândi.
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Tudo quanto levavam devia ser leve e pouco volumoso, pois se viessem a faltar os veículos, cada qual teria que transportar a sua carga, e ninguém pensasse que podia com grandes carregos, pois respirar o ar da selva já era por si só penoso fardo. A propósito, havia quem citasse os soldados estrangeiros que, para terem- um pouco de conforto, andavam ajoujados com a tralha que transportavam. Mas isso impedia-os de marchar com a necessária rapidez e assim eram facilmente apanhados pelo inimigo.
Um velho soldado, que acabava de chegar do Sul, onde combatera, praguejava, cuspia e ria, protestando por quererem obrigá-lo a carregar com uma muda de roupa: "Julgam que quero seguir o exemplo desses tartarugas estrangeiros que levam às costas roupa de Inverno e roupa de Verão, galochas, capote, cama, comida, um chapéu para o sol, outro para a chuva, tudo em suma quanto precisam excepto a casa? Uma espingarda, todas as balas que possa arranjar, um segundo par de sandálias e é quanto basta. Posso comer o que encontrar pelo caminho; e por que hei-de ter medo da chuva?
Tal era com efeito o estado de espírito dos soldados. Não estavam dispostos a carregar senão com o que precisavam para combater. Cada homem cuidava da sua arma e queria-lhe mais do que à própria vida, e defendia com unhas e dentes as suas munições, mesmo dos camaradas, pois havia alguns que embora considerassem uma vergonha roubar fosse o que fosse, não hesitavam em apropriar-se das munições alheias.
Por fim chegou o dia que todos ansiavam. O general, à espera de ordens superiores, cada vez se mostrava mais impaciente e irritado. Estava pronto para se pôr a caminho há onze dias e por isso praguejava e barafustava contra aquela demora; quanto mais tempo ali se atardassem, mais o inimigo se fortalecia. Nas ilhas do Sul, os brancos sofriam derrotas sobre derrotas, e empurrados para o interior, escondiam-se agora nas cavernas das montanhas, como animais selvagens. Um belo dia a ordem chegou. Em menos duma hora o general a transmitiu aos
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seus subordinados e não tardou que todos soubessem que partiriam na manhã seguinte, ao romper da aurora.
Nessa noite, em sua casa, Mayli não conseguiu dormir. Duas ou três vezes saltou do leito para examinar o equipamento. Estava tudo em cima duma cadeira, perfeitamente em ordem, os pesados sapatorros, o uniforme igual ao dos soldados, o revólver, a mochila. Abriu esta última e verificou uma vez mais o seu conteúdo. Arranjara também um cinturão com algibeiras para o dinheiro, que usaria por baixo do uniforme.
A meio da noite, a porta abriu-se e Liu Ma entrou furtivamente no quarto. Trazia um pequeno saco, não muito maior que a palma da mão, e entregou-o a Mayli.
- Se lhe cair algum botão, como é que o prega? - perguntou com ar solene. - Pequenas causas pode originar grandes efeitos.
Mayli abriu a saquinha e encontrou curtas agulhas chinesas, fio de seda resistente enrolado num papel, uma tesoura bem afiada, dois dedais de cobre, alguns botões de osso, à moda estrangeira, seis alfinetes de segurança, e admirou-se como Liu Ma conseguira desencantar coisas tão preciosas.
- Não tinha pensado em nada disto - declarou - mas pode ser-me muito útil.
- Como havia de pensar em tais coisas, se sou eu que coso a sua roupa? - desculpou a velha.-Mas agora quem sabe se algum dia voltarei a cosê-la!
E dizendo isto começou a chorar, acrescentando, entre soluços:
- Tem sido para mim uma criança bem difícil de aturar, mas vai ser-me muito mais difícil viver sem si!
- Hei-de voltar - afirmou Mayli. - Fica aqui e espera-me... Voltarei, prometo-te.
- Só o Céu pode cumprir as suas promessas - considerou Liu Ma e saiu do quarto, limpando os olhos à ponta da camisa.
No escuro, Mayli estendeu-se novamente em cima da cama. Agora que estava prestes a partir, talvez para sempre,
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no seu espírito reinava a confusão. Por que partia? Tomara aquela decisão impelida em parte pelo seu isolamento, em parte pelo seu amor relutante a Sheng e em parte pelo seu desejo sincero de ser útil ao país. Agora, tudo isso se resumia numa única palavra: partir. Sabia que a estrada da Birmânia era a única por onde a China comunicava com o resto do mundo. Essa porta tinha de continuar aberta, pois somente por ela podia entrar algum auxílio que os ajudasse na luta contra o inimigo.
Manter aberta a estrada da Birmânia era o propósito dessas três divisões que partiam para o Ocidente, objectivo bem gravado no coração de todos esses homens e mulheres que na manhã seguinte se puseram em marcha. E essa finalidade comum aproximava-os tanto como se pertencessem todos a uma só família, profundamente irmanados num mesmo desígnio. No entanto, quem seria capaz de traduzir por palavras tal sentimento? A partida efectuou-se, como todas as partidas, com o habitual barulho e confusão: gritos, exclamações, queixas por causa de carregos demasiado pesados, pequenas teimosias, súbitas discussões. Primeiro foram carregados os camiões, que iriam até onde fosse possível. Neles se empilharam as caixas das provisões, depois as mulheres e por fim os homens, apertados uns contra os outros. Cada condutor recebeu um plano de marcha, com indicações precisas sobre horários, paragens, locais de reagrupamento, até o fim da estrada.
Mayli, no seu duro uniforme, a mochila bem presa aos ombros, esperava ordens, à frente das suas jovens enfermeiras. Todas vestiam uniformes iguais, idênticos ao dela, e todas se pareciam pela expressão grave dos seus rostos. Junto de Mayli estavam as suas quatro assistentes. Os seus corações também batiam de excitação e angústia e vontade de vencer. Siu-chen, de faces redondas e rosadas, tinha o ar duma criança solene; An-lan dir-se-ia mais pálida do que habitualmente; Chi-ling, a jovem viúva, parecia cansada e triste, como se já lhe pesasse a fadiga da caminhada,
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somente Hsieh-ying, a que até então menos sofrera, se mostrava alegre e sorridente, os olhos negros muito brilhantes e os lábios vermelhos, pois estava constantemente a mordê-los.
- Vigias dos feridos! - gritou uma voz de homem. Protectoras dos doentes! Por aqui!... Por aqui!...
Um tenente baixote, agitando uma folha de papel na mão, chamava-as; Mayli apressou-se a ir ao seu encontro, seguida das enfermeiras, e dirigiram-se todas para os camiões que lhes estavam reservados. Antes de subirem, todas esperaram cortesmente que Mayli tomasse lugar ao lado do motorista, um rapaz alto, de rosto vulgar, e uns olhos pequenos a luzirem ao fundo dumas sobrancelhas espessas e eriçadas.
Mais um instante de espera, alguns gritos ainda, um ou outro riso excitado e por fim o sinal da partida. O camião em que Mayli seguia era o primeiro dos quatro que as conduziam. O motorista puxou uma alavanca e o carro não arrancou. O homem decidiu então apoiar os dois pés nas alavancas e repetir a manobra, mas o camião continuou parado. Tomando o céu por testemunha e batendo com ambas as mãos na cabeça, o condutor principiou a gritar e a injuriar o veículo:
- Oh, filho duma mãe maldita e desavergonhada! Não te atafulhei bem o bandulho de óleos estrangeiros? Não te dei água bastante? Não queimei ontem incenso diante dos deuses? O que queres mais?
Saltou do assento, deu alguns pontapés no camião, e voltando para o seu lugar, recomeçou a manobra.
O resultado foi o mesmo. O motor assobiava, roncava, gemia, mas o camião ficava no mesmo sítio. Então Mayli que já várias vezes andara naqueles carros estrangeiros, indicou-lhe um pequeno manipulo em que ele ainda não tocara.
- E se desse uma volta a esta chave? - perguntou.
O homem riu, mostrando os dentes todos, deu volta à chave, e o camião partiu imediatamente. O soldado não ficou nada embaraçado por se esquecer duma manobra
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tão essencial, antes começou a lamentar-se, enquanto o veículo parecia desconjuntar-se todo com os sucessivos solavancos, ao correr pela estrada escalavrada.
- O mal destas invenções estrangeiras - explicava o motorista a Mayli - é que quanto a mim nunca são suficientemente aperfeiçoadas. Pois se esses estrangeiros são tão habilidosos em tudo quanto se refere à mecânica, por que não vão eles mais longe ainda e não fabricam comandos automáticos, para o próprio veículo poder fazer tudo quanto é preciso? Como pode a minha pobre cabeça pensar por mim e pelo camião? é justo que todos os cuidados e responsabilidades recaiam sobre mim?
Nesse momento, Mayli apercebeu-se que a capota estava levantada e que o motor ia exposto à poeira e à chuva.
- Não acha uma grande imprudência andar com o motor descoberto? - perguntou. - Se chove, seremos com certeza obrigados a parar, e a poeira também não faz bem nenhum a essa máquina delicada.
O motorista puxou a pala do boné para o lado oposto ao de Mayli, para a poder ver melhor.
- Julga que é boa vida levantar e baixar vinte vezes por dia essa maldita capota? É muito mais simples levantá-la só uma vez.
Dizia isto com ar jovial e despreocupado e ao mesmo tempo conduzia o camião a uma velocidade louca pela estrada esburacada. Mayli teve de calar-se, todos os sentidos concentrados no esforço de não saltar do assento, de apoiar firmemente os pés ao fundo do veículo, o que não a impedia de ser projectada para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo; tantos balanços provocaram o seguinte comentário do motorista:
- Era aconselhável pôr outro soldado do lado de lá, para os dois lhe servirmos de almofadas nestes solavancos.
- Não pode... não pode... ir um pouco mais devagar?
- arquejou Mayli.
Mas o soldado limitou-se a sacudir a cabeça.
- Este filho maldito duma mãe depravada - gritou-lhe, procurando dominar o barulho do motor - se lhe
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diminuo a velocidade, pensa logo que já é tempo de descansar. Não, uma vez que o ponho em marcha, deixo-o andar e só paro para comer quando sinto fome. Além disso, durante a tarde o camião anda muito menos do que de manhã. Porventura os estrangeiros não trabalham de tarde?
Mayli abanou a cabeça e não pensou sequer em responder, limitando-se a sorrir, pois quase lhe faltava a respiração.
A paragem do meio-dia foi verdadeiramente bem-vinda. Sem uma palavra de aviso, o motorista parou de repente, tendo de agarrar Mayli pelos ombros para evitar que ela saltasse fora do veículo que não possuía pára-brisas. A jovem experimentou então uma estranha sensação de alívio. Ficou ainda um momento sentada, para se recompor, mas o motorista saltou logo do seu lugar, entrou numa estalagem e reclamou comida em altos gritos. Passado pouco tempo, já refeita, Mayli não pôde deixar de rir e dispôs-se a descer por sua vez.
- Parece-me que percorremos já centenas de milhas disse a Hsieh-ying que correra a ajudá-la a descer.
As outras enfermeiras rodearam-na e Hsieh-ying propôs:
- Esta tarde trocarei o meu lugar consigo, pois vi que esse motorista não tem nenhum cuidado e não procura evitar os buracos do caminho. Pelo contrário, o condutor do nosso camião é um estudante muito hábil que sabe desviar-se de todas as covas e pedregulhos.
A verdade, porém, era outra. Hsieh-ying, rapariga forte e sadia, sentia-se atraída pela robustez do soldado que guiava aquele camião. Mayli compreendeu-a perfeitamente, mas limitou-se a sorrir.
Assim, depois de comerem o arroz, a carne e as couves, ninguém conseguiu impedir Hsieh-ying de se sentar ao lado do robusto soldado, enquanto Mayli ia tomar lugar junto dum jovem magro e pálido que a saudou sem sorrir.
Na realidade, era um rapaz muito diferente do outro. Conhecia o camião como os dedos das suas mãos e guiava-o com todo o cuidado. O veículo avançava com a ligeireza dum felino. É claro, era a mesma estrada, toda esburacada, mas que diferença!
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- Conduz este carro como se o conhecesse perfeitamente - observou May li.
- E na verdade conheço-o bem - respondeu o jovem. Sou engenheiro. Formei-me numa universidade americana.
- Então por que veio como motorista? - interrogou
Mayli.
Sem dar por isso, falara-lhe em inglês e foi também em inglês que ele lhe respondeu:
- Estava a completar os meus estudos na América... era o último ano... mas de repente senti que não podia lá continuar. Tinha de voltar para aqui e tomar parte nesta luta. Bem, cheguei a Chungking e esperei, esperei meses e meses. Não sucedia nada... surgiu por fim esta oportunidade e aproveitei-a.
- Não sucedia nada? - repetiu Mayli. Os lábios do jovem contraíram-se.
- Faltava-me o que é preciso para se chegar junto do Chefe Supremo - elucidou.
- O que é preciso?!-admirou-se Mayli.
- Sim, protecções... dinheiro para abrir certas portas... uma influência política... enfim, qualquer coisa.
- Mas não é bem assim - contrariou Mayli. - Eu também não tinha nada disso e fui recebida por ele e pela esposa.
O rapaz encolheu os ombros e não respondeu, sempre de olhos fixos na estrada. Passado algum tempo, sem se voltar para ela, tornou a falar:
- o nosso país é o mais belo do mundo. Olhe para estas montanhas! Não há outras tão belas! Lá longe sentia-me doente, com saudades da pátria.
Na verdade, a região que atravessava era duma extraordinária beleza. As colinas em volta, despidas de árvores mas cobertas da erva avermelhada do Inverno, tomavam ao entardecer tons de púrpura, sumptuosas manchas rubras no fundo dourado do céu. Ao longo dos vales, no sopé das montanhas, as habitações agrupavam-se em aldeias e mais acima, nas ásperas vertentes, o homem construíra
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socalcos para poder cultivar a terra. Camponeses vestidos de azul postavam-se às portas das suas casas para verem desfilar os camiões e a petizada corria à beira da estrada, aos gritos, a agitar as mãos. Aqui e além, numa depressão das colinas, maciços de bambus estavam ainda verdes e de longe em longe erguia-se a curva alta da cúpula dum templo.
- Foi por isso que voltei - continuou o jovem, em inglês. -Por causa desta terra e deste povo... não pelos seus dirigentes.
- É comunista? - perguntou May li, num relâmpago de intuição.
- Não sei o que quer dizer quando me chama comunista - replicou o soldado. - Sou um homem do povo. Calou-se desta vez e após um longo silêncio repisou: - Do povo... pelo povo... para o povo.
Mayli reconheceu a frase estrangeira e familiar, embora não compreendesse por que a empregava naquele instante. Ele também não lhe explicou. Rodaram outra meia hora em silêncio, depois o jovem parou suavemente às portas duma pequena cidade.
- Vamos acampar aqui esta noite - explicou ao saltar do seu assento.
Mayli desceu e viu que o estudante examinava o camião tão ternamente como se fosse um ser vivo que lhe pertencesse.
"Amanhã hei-de perguntar-lhe como se chama", pensou, admirada de não lhe ter ocorrido antes essa ideia. Mas, ao fim e ao cabo, os nomes pouca importância tinham. Uma só coisa contava, todos marchavam para a frente.
VIII
Mayli estava persuadida de que não poderia dormir. Nunca na sua vida dormira no chão. As suas quatro assistentes tinham juntado alguma palha para ela se deitar em cima. Assim, depois de se certificar que todas as enfermeiras,
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após a refeição, ocupavam já os lugares onde deviam passar a noite, estendeu-se nessa palha, enrolada no cobertor. As mulheres ficavam instaladas no pátio interior das traseiras dum templo, enquanto os homens acampavam no lado oposto. Mas como o local era bastante exíguo, muitas enfermeiras, e entre elas Mayli, preferiram dormir no exterior. A noite não estava fria e o silêncio era apenas quebrado pelo sussurro dum arroio que descia das colinas e atravessava o pátio para fornecer água ao templo. Embalada por esse leve rumor, Mayli pensava nos acontecimentos do dia.
"com certeza não serei capaz de dormir". Mas isso parecia-lhe completamente destituído de importância. Que importava o que sucedia a um único ser? Reparou então que pela primeira vez não se interessava com o que lhe pudesse acontecer, nem mesmo a Sheng, ou a quem quer que fosse. Ambos eram arrastados pela grande vaga que corria para o Ocidente. Talvez se encontrassem, ou talvez não, também isso carecia de importância. Marchar em frente, ao encontro do inimigo, vencê-lo, isso, sim, era para todos o único objectivo.
Ao romper da aurora, Mayli foi a primeira a despertar. Por momentos, não teve bem a consciência onde estava. No lusco-fusco desse amanhecer húmido e frio, o canto esganiçado dum galo quebrou o silêncio. Depois viu acenderem-se as luzes do templo e, passados alguns instantes, ainda deitada, distinguiu um surdo rumor, os cânticos dos monges nas suas orações matinais. Era um templo budista e aquela música, tão antiga que nenhum homem vivo se lembrava da sua origem, possuía uma cadência estranha. Oriunda da índia, era esse país que evocava. Mayli nunca estivera na índia e esse nome pouco mais significava para si do que uma mancha colorida dum mapa escolar. Mas agora, naquela parda alvorada, ao ouvir esses cânticos, pensou na índia como no país que os esperava. Em tempos remotos, alguns homens tinham ido da China à índia para
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descobrir um novo deus, mais justo e bom. Um imperador dissera aos seus mensageiros: "Ouvi dizer que há na índia um deus que não conhecemos. Ide, encontrai-o e trazei-o aqui, para viver connosco". Os mensageiros foram e encontraram Buda.
Uma vez mais os chineses tomavam o caminho da índia, mas agora eram soldados, não sacerdotes. Milhares de soldados, caminhando a pé, arrastando peças de artilharia apenas com o auxílio de cordas e correias. Acampavam em qualquer parte à beira da estrada. Trinta milhas era a distância percorrida em cada dia. Tinham iniciado a caminhada dois dias antes dos camiões e ainda levavam a dianteira.
A seu lado, Chi-ling ergueu a cabeça.
- Está acordada, capitão?-perguntou, pois Pão Chen dera a Mayli o posto de capitão.
- Sim, estou acordada - respondeu a jovem. Atirou para o lado o cobertor e levantou-se. Em sua
volta algumas cabeças se ergueram. Nenhuma dessas raparigas dormia e, ao verem-na preparar-se, seguiram-lhe o exemplo, e uma a uma começaram a levantar-se, a dobrar o cobertor e a arrumar a mochila em silêncio.
Mayli foi a primeira a concluir esses arranjos e dirigiu-se à cozinha do templo. Por trás do grande forno, dois velhos monges alimentavam o fogo com ervas. Um caldeirão com água quente fumegava ao lume.
- Sirva-se à vontade, senhora - disse-lhe um dos monges, evitando olhar para ela por ser mulher. - Esta água é para as vossas abluções.
Mayli encheu de água quente uma bacia de metal que estava perto do fogo e afastou-se para um maciço de bambus, ao fundo do pátio, onde se lavou e penteou. Continuava a ter cabelos compridos e ao penteá-los pensou:
"Para que conservo assim o cabelo. Só me dá trabalho e maçadas". Depois pensou em Sheng e lembrou-se que ele gostava de lhe ver os cabelos compridos.
"Gosto de saber que uma mulher é uma mulher, mal olho para ela", dissera-lhe um dia em que o pretendera
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arreliar com a ameaça de ir cortar o cabelo, como então era moda.
Mas tais recordações não a detiveram. Pegando na comprida trança, caminhou para o sítio onde dormira e, abrindo a mochila, tirou de lá a pequena tesoura que Liu Ma pusera no estojo de costura. Agarrando nos cabelos com a mão esquerda, cortou-os rente à nuca. As enfermeiras olhavam-na, sem proferir uma só palavra. Em seguida, com a comprida trança na mão, Mayli dirigiu-se à cozinha; o velho monge continuava acocorado atrás do forno e sob o seu olhar atónito lançou os cabelos ao fogo, como se fossem ervas.
O velho riu, mostrando as gengivas desdentadas:
- Juro que é a primeira vez que o pequeno almoço dos monges é cozinhado com o lume duma cabeleira de mulher
- exclamou numa voz aflautada de eunuco.
Mayli sorriu e afastou-se. Ao chegar ao pátio, sacudiu a cabeça e o vento fresco agitou-lhe os cabelos curtos. Sentiu-se mais leve e mais livre e a partir de então passou a andar com a cabeça ainda mais erguida do que antes.
Nesse dia, a Grande Estrada, que já na véspera subira constantemente, lançou-se à escalada das mais altas montanhas. Até aí a caravana avançara pelos pequenos carreiros, para se furtar aos bombardeamentos do inimigo. Mas como se aproximavam da fronteira, receberam ordem para seguir em direcção ao sul pela Grande Estrada. Quem não ouvira ainda falar dessa Estrada? Todos sabiam que fora construída por homens e mulheres cujos únicos utensílios eram as enxadas e pás com que até aí trabalhavam os campos. E quando não possuíam outra ferramenta, serviam-se das próprias mãos.
Mayli ia no segundo camião, no mesmo em que viajara no dia anterior, e bastante satisfeita por isso, pois o jovem engenheiro mostrava-lhe coisas que doutro modo lhe passariam despercebidas. Encontrara-o já ao volante quando se aproximou do camião, depois de se certificar que tudo
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corria em boa ordem. Fazia questão, e tinha nisso orgulho, que as enfermeiras não fossem causadoras do mínimo atraso; por isso já esperava à entrada do templo, à frente das suas subordinadas, quando Chung apareceu. Este esboçou um sorriso confuso ao ver Mayli, pois vestira-se à pressa e de qualquer maneira e nem sequer se penteara.
- Levantar cedo é o maior castigo que podem dar a um homem - lamentou-se, com fingida consternação.
- Parece-me que foi sempre mais madrugador do que eu - observou Mayli.
O médico não respondeu, bocejou ruidosamente, sacudiu-se como um cão molhado, tirou da algibeira um naco de pão de sésamo e pôs-se a comê-lo enquanto caminhava para o seu lugar, no cimo das caixas de provisões. Depois de todas as enfermeiras subirem para os seus veículos, Mayli instalou-se ao lado do jovem engenheiro que, muito lavado e limpo, os cabelos bem penteados, a esperava ao volante do camião, cujo motor já roncava.
Contemplou-a com a sombra dum sorriso a bailar-lhe nos lábios.
- O meu nome é Li Kuo-fan - disse. - Na América chamavam-me Charlíe.
- Charlie? - repetiu a jovem. - Assenta-lhe melhor que Li Kuo-fan. Passarei a chamar-lhe Charlie. Eu sou Mayli e o meu apelido é Wei.
O rapaz abanou a cabeça, em sinal de aquiescência, sem
no entanto lhe repetir o nome e o camião pôs-se em marcha.
Os olhos rasgados de Charlie brilhavam de excitação.
- Esperava este dia há tanto tempo! - exclamou. Desde que a Grande Estrada foi concluída que ansiava passar por ela. A oportunidade surgiu e não a desperdicei. Talvez seja por isso que aqui estou.
A estrada subia sempre, num declive insensível mas contínuo, bem agarrada aos flancos das íngremes montanhas.
- Veja como ela segue os trilhos desde sempre percorridos - observou o engenheiro. - Foi feita por homens que conheciam tão bem estes montes que sabiam perfeitamente onde haviam de pôr os pés.
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E assim era com efeito. Gerações e gerações de cortadores de erva tinham desbravado o caminho, descobrindo passagens seguras, por mais ocultas que estivessem; além disso, gerações e gerações de negociantes, guiando mulas ajoujadas ao peso de mercadorias, que iam vender às terras ocidentais, regressando depois carregadas com as que lá compravam, tinham encontrado e calcorreado todos os possíveis caminhos para escalar essas cadeias de montanhas do maciço ocidental.
- Perguntaram aos engenheiros estrangeiros quanto tempo seria preciso para construir a Grande Estrada -. continuou Charlie. -- Eles avaliaram as ferramentas de que dispunham e responderam: "Alguns anos". Mas o Presidente retorquiu: "Fá-la-emos nalguns meses e só com os nossos utensílios". E a estrada fez-se em poucos meses...
Percorreu com a vista a íngreme subida e acrescentou:
- Sinto-me orgulhoso.
Mayli observava-o e, vendo-lhe os olhos cheios de lágrimas, conservou-se em silêncio.
A meio da manhã, chegaram a um sítio onde a estrada estava cortada por enorme buracão produzido pelo bombardeamento do dia anterior. Homens e mulheres, iguais aos que tinham construído a estrada, trabalhavam já arduamente e não tardariam a tapar a cova, restabelecendo a circulação. Mayli perguntou a si própria quem seria aquela gente. Desceu do camião para desentorpecer um pouco as pernas e autorizou que as enfermeiras se apeassem também, pois de qualquer forma tinham de parar ali algum tempo. Vestidos de andrajos azuis, todos se afadigavam na sua tarefa. Mayli aproximou-se duma mulher sentada no chão que partia pedras com outra maior e mais dura. Era ainda nova, mas tinha o rosto e os cabelos sujos de poeira. Perto dela, dentro dum cesto velho, dormia uma criança enrolada numa manta esfarrapada. Quando Mayli se aproximou, a mulher olhou-a timidamente, tomando-a por estrangeira. Mas Mayli dirigiu-se-lhe com delicadeza e perguntou-lhe: "Já comeu?" No Norte, aquela pergunta
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não passava dum simples cumprimento de cortesia, mas a mulher respondeu-lhe como se se tratasse duma pergunta a sério:
- Trabalhei toda a noite e comi enquanto trabalhava.
Como Mayli lhe falara na própria língua, um largo sorriso iluminou-lhe o rosto coberto de pó, deixando ver uns dentes brancos e regulares.
--E a criança? -perguntou Mayli surpreendida.
- Está a dormir a sono solto - disse a mulher a rir.
- E a sua família? - interrogou ainda Mayli.
- Sou eu, o meu marido e os nossos dois filhos mais velhos. Trabalhamos todos na estrada - afirmou com orgulho. - Ajudámo-la a construir.
- Assim? - inquiriu Mayli.
-. Eu parto pedras, meu marido acarreta terra - explicou a mulher. - A minha filha também parte pedras e o meu filho transporta as que partimos.
E dizendo isto fez com a cabeça sinal a uma criança que a poucos passos parara de trabalhar e olhava para ambas.
- Qual é o seu marido? - perguntou ainda Mayli. com o queixo, a mulher indicou um homem que cavava
a terra com a sua enxada, não longe dali. Viu-o então encher os dois cestos de bambu, colocá-los depois nas duas extremidades duma vara, pôr esta ao ombro e correr a despejar os cestos na grande cova que cortava a estrada.
- Vivemos perto daqui - continuou a mulher estendendo o braço para indicar o local exacto - e quando pedem trabalhadores para reparar a estrada, fechamos a porta e vimos todos. Que importa que o inimigo abra buracos, se nós os podemos tapar?
Voltou a rir e de novo os seus dentes brancos brilharam no rosto coberto de pó; depois, continuou a partir pedras. Homens e mulheres trabalhavam no ritmo apressado a que estavam habituados e em menos duma hora, com pedra e terra, construíram uma passagem estreita mas sólida.
- É esta a família a que pertenço - comentou Charlie quando se puseram de novo em marcha.
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Os seus pais eram realmente gente assim? - perguntou May li.
O povo é o meu pai e a minha mãe - respondeu o
rapaz, sucintamente.
Os seus lábios delgados tornaram-se mais delgados ainda. E foi tudo quanto May li conseguiu saber a respeito dos seus antepassados.
A esse dia seguiram-se muitos outros dias parecidos. Se Mayli fosse tímida ou medrosa, não lhe teriam faltado ocasiões para ter medo, pois a estrada corria agora tão alto que ao percorrê-la tinha-se mais a impressão de voar do que de andar sobre rocha e terra. Muitas enfermeiras sentiam-se mal dispostas e os vómitos obrigavam-nas a debruçar-se sobre os abismos. Mas não se queixavam nem pediam que se fizesse alto. Em dado momento, quando a estrada passava por uma crista entre dois altos cumes, Mayli olhou para trás e viu o rosto pálido de An-lan completamente desfigurado pelo medo. Havia na realidade razão para ter medo ao ver aquelas vertentes cortadas a pique dos dois lados da estrada estreita. Gritou-lhe:
- An-lan, An-lan, pode continuar?
A jovem nem sequer teve forças para lhe responder. Tinha os lábios ressequidos. Tentou humedecê-los, mas a língua também estava seca. Só conseguiu abanar a cabeça.
- Tudo corre bem? - perguntou Charlie.
- An-lan está verde de medo - respondeu Mayli - mas agora não é altura de parar.
- De facto não é - afirmou Charlie que não despegava um instante os olhos da perigosa passagem.
Era na realidade um sítio muito perigoso. Dos dois lados da estrada, no fundo dos precipícios, podiam ver-se os destroços de camiões e automóveis que se tinham despenhado dum lado e do outro. E em volta desses destroços, alguns homens andavam a desmontar e a recolher o metal que reuniam em feixes que depois punham às costas. Tudo quanto fosse de metal era precioso e a caravana não tardaria muito a passar por uma cidade onde o metal era tido no mais alto preço. Há centenas de anos que essa cidade
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se tornara célebre pelas tesouras que fabricava e a guerra não interrompera a actividade dos seus famosos artesãos.
Pararam aí para a refeição do meio-dia e Mayli, tal como as outras enfermeiras, teve curiosidade de ver as tesouras famosas. Eram tão bem feitas e tão delicadamente cinzeladas que todos quiseram comprar uma; de boa vontade se privariam do almoço, se isso fosse necessário, para adquirir uma dessas tesouras.
Mayli comprou uma também. Escolheu uma pequenina, brilhante e aguçada, com borboletas cinzeladas; embora já possuísse a que Liu Ma lhe dera, não resistiu à tentação de adquirir aquela. Tinha as lâminas tão afiadas como uma navalha de barba.
- Corta muitíssimo bem -. disse ao vendedor, em cujo pequeno estabelecimento não havia senão tesouras.
- É feita com aço estrangeiro - respondeu o homenzinho, ajustando bem os óculos de aros de latão e pegando numa tesoura para lhe explicar.
- Mas onde conseguem arranjar esse aço? - perguntou Mayli.
- Oh, como as mulheres são impacientes! - exclamou o vendedor, com um ar de reprovação no olhar solene. Ia justamente explicar-lhe. O aço provém dos camiões que caem nos precipícios que marginam a Grande Estrada. Ora, esses camiões são fabricados no país dos Mei. Lá fazem uma liga de metais que torna o aço extraordinariamente duro, mais duro que qualquer outro metal que possamos fabricar. Daria tudo para conhecer o segredo desses fabricantes de aço. E agora, graças a Deus, fabricamos as melhores tesouras de sempre, embora há centenas de anos sejamos conhecidos pela fama da nossa indústria.
- Eu vivi no país dos Mei, que se chama América disse Mayli com um sorriso - e vi lá grandes fornos de aço, onde o metal é misturado.
E contou ao velho, que a ouvia de olhos esbugalhados e boca aberta, a visita que um dia fizera a uma grande fundição, quando fora passar algum tempo a casa duma condiscípula que vivia em Pittsburgh.
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- É extraordinário - disse-lhe. - Os fornos são mais altos do que as casas e o metal em fusão corre como água a ferver, mas não lhe sei dizer as ligas que usam. Limitei-me a admirar, não fiz perguntas.
Embrulhando a tesoura num papel fino, o velho ouvia atentamente. Depois, abanou a cabeça e comentou:
- Esses estrangeiros conhecem todos os segredos dos metais e do aço e são capazes de voar nos aviões como se eles próprios os tivessem construído. Vejo-os às vezes passar por cima das nossas cabeças. Vêm lá do alto das montanhas e as suas máquinas voadoras eram capazes até de assustar os demónios com a sua barulheira infernal. E como os inimigos guincham e fogem mal eles aparecem! Que espécie de homens são esses que guiam semelhantes monstros? Eu pensava que deviam ter pelo menos uns dez pés de altura e asas como as águias. Mas não. Vejo-os com frequência, pois há um campo de aviação aqui perto. São rapazes novos iguais aos outros, embora estrangeiros, alegres e barulhentos como todos os rapazes. Descem lá das alturas e roncam daquela maneira porque têm fome.
Riu em silêncio, tirando os óculos. Depois acrescentou, numa voz branda:
- Umas crianças, crianças brincando com a magia. Tinha um ar tão sabedor e uma idade tão avançada que
Mayli se sentiu insignificante diante desse velho que nunca fizera outra coisa senão fabricar e vender tesouras; pegou na sua compra e saiu do estabelecimento.
Mas não se esqueceu do que ele lhe disse. Na tarde do dia seguinte, quando rodavam num troço bastante perigoso da estrada, de súbito viram aumentar ainda mais o perigo. Dezassete aviões inimigos apareceram no horizonte, a voar sobre as montanhas. O dia estava límpido, o céu azul e não havia nenhumas possibilidades de se esconderem. Dum lado abria-se um precipício com milhares de pés de fundura, do outro erguia-se, majestosa, a montanha. Nem uma caverna, nem um rochedo onde se abrigassem. Aliás, mesmo que houvesse, não teriam tempo de fugir para lá. Os aviões inimigos já investiam qual bando de dragões.
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Como decidir se deviam parar ou andar mais depressa?
- Mesmo que parássemos e nos abrigássemos debaixo dos camiões o que ganharíamos com isso? - observou Charlie. E carregando no acelerador, imprimiu maior velocidade ao veículo que rodava mesmo à beira da estrada estreita.
Como animais traiçoeiros, os aviões inimigos desciam ao seu encontro e em todo o vale atroavam os roncos dos seus motores que as montanhas repercutiam. Mayli agarrou-se firmemente aos rebordos do assento, com os pés bem fincados no fundo do veículo. Compreendera perfeitamente toda a extensão do perigo. Dum instante para o outro podia suceder que um amálgama de aço, madeira e carne humana se precipitasse no fundo do abismo.
Mas tão depressa como apareceram os aviões nipónicos, assim surgiram no céu quatro outros aparelhos que os atacaram com tal rapidez que até se tornava difícil segui-los com o olhar. Andavam muito juntos, ora voando baixo, ora voando mais alto para evitarem as balas do inimigo. Foi uma batalha como Mayli nunca imaginara ver. O inimigo renunciou a atacar os camiões e virou-se para os quatro aviões que o perseguiam. Mas quem era capaz de dominar esses verdadeiros ases do espaço? Seis aviões japoneses despenharam-se das alturas e caíram no fundo do vale e os outros fugiram, sem atirar uma bomba sequer.
Nesse momento Charlie parou o motor. Os quatro aviões amigos iam em perseguição dos fugitivos e era melhor ficar longe da refrega. A longa fila de veículos imobilizou-se na estrada.
- Os Tigres-voadores! - exclamou Charlie.
Os seus lábios tremiam e os seus olhos brilhavam. Estava ofegante, como se tivesse corrido à desfilada.
- Dêem-lhes uma coça! - sussurrava por entre dentes durante a batalha. - Vamos, derrubem mais esse! Bravo!... Atenção, lá vem outro... Oh! Boa pontaria!... Bravo, rapazes!...
Tudo isso se passou em menos de dez minutos, mas
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quando o céu ficou outra vez limpo, Mayli sentiu dores em todo o corpo, como se tivesse passado horas e horas numa posição incómoda. De súbito notou uma dor mais forte na mão e reparou que apertara tanto o rebordo metálico do assento que se cortara.
Mas depressa esqueceu a ferida. com um ruído ensurdecedor, subindo do fundo do abismo, um pequeno avião passou tão rente a ela que pôde entrever o rosto sorridente dum piloto americano. Viu-o agitar a mão e depois lembrou-se do comentário do velho que na véspera lhe vendera a tesoura: "Uma criança brincando com a magia".
No entanto, nada do que sucedera antes foi tão estranho como o que se passou no último dia dessa caminhada pela Grande Estrada. Todos estavam profundamente impressionados com a beleza do espectáculo que se desenrolava aos seus olhos. Altas montanhas, vales profundos, e quedas de água, tombando das alturas, numa nuvem branca de espuma. O panorama era digno de se contemplar. Quando caía a noite, acampavam em lugares onde reinava uma calma majestosa, ou em pequenas cidades encarrapitadas no cimo dos montes, ou em templos construídos no fundo duma dessas taças caprichosamente formadas por súbita depressão no cume das montanhas. Diante de toda essa grandeza, permaneciam em silêncio. Uma risada ecoava em dez vales, um grito abalava os rochedos das escarpas. Sem mesmo darem por isso, falavam todos em voz baixa e procuravam abafar o próprio riso. Depois, a pouco e pouco, à medida que os dias passavam, as montanhas transformaram-se em colinas e o ar seco e frio tornou-se mais suave. De novo encontraram bambus, e lírios, e forragens. Tinham franqueado a adusta cordilheira e entravam nas terras baixas que se estendiam até à Birmânia.
E foi aí que sucedeu essa coisa estranha. Certa cidade, apenas um pouco maior que uma aldeia, esperava-os ao fim do dia. Mayli instalara já as enfermeiras nos lugares que
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lhes estavam destinados, como fazia sempre, e dispondo de algum tempo e vontade de ver coisas curiosas, aproximou-se do portal do templo onde as mulheres passariam a noite. Os homens acampavam fora da cidade. E estando aí parada, viu aproximar-se um grupo de raparigas que não pertenciam à sua companhia. Aliás, já sabia que havia outro acampamento próximo da cidade, pois quando fora apresentar a Chung o habitual relatório, este dissera-lhe:
- Há aqui um contingente de doentes, deixados pela divisão que nos precedeu. São homens atingidos pela malária negra. Esta tarde irei ao seu acampamento, que fica ao sul da cidade, para ver como estão a ser tratados. Por isso mandei acampar os nossos homens ao norte, para evitar aproximações e contágios.
- A malária negra? -- repetiu May li.
O doutor explicou-lhe então o que era essa doença, mais perigosa do que qualquer outro inimigo, a qual se esconde nas terras baixas que se seguem às montanhas e é na realidade horrível, pois ataca ao mesmo tempo o corpo e o cérebro.
- O que devo fazer para defender as enfermeiras desse perigo? - perguntou a jovem, verdadeiramente alarmada.
- Antes de mais nada, devem evitar as picadas dos mosquitos - aconselhou o médico.
Mayli passara assim o resto da tarde a instruir as suas subordinadas sobre o perigo que as ameaçava, até que apareceu um velho padre e lhe disse:
- Elas que durmam protegidas pelo fumo do incenso, pois os demónios transmissores do mal têm horror ao incenso que queimamos em honra dos deuses.
E saiu, voltando daí a pouco com um punhado de incenso e pedaços de papel acastanhado de que se serviu para o queimar.
Só depois de ver o fumo espalhar-se no templo é que Mayli se aproximou do portal para observar o movimento da rua e foi quando avistou o grupo de jovens que não conhecia.
Nessa altura sucedeu uma dessas coisas que as pessoas
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costumavam considerar incríveis, mas que no entanto sucedem. Ao ouvir uma voz que julgou reconhecer, ergueu os olhos e viu uma cara conhecida, a da irmã de Sheng, a pequena Pansiao que deixara alguns meses antes na escola do interior do país, onde estivera como professora durante algum tempo.
De olhos fixos na garota, pensou: "Mas esta é Pansiao"; logo a seguir, porém, opôs: "Não pode ser ela; era tão nova e fraca, como podia estar aqui?"
As raparigas passavam agora mais perto. Riam e tagarelavam umas com as outras. Mayli pronunciou em voz baixa, mas distintamente:
- Pansiao!
A garota parou, voltou-se e pôs-se a fixá-la com os olhos arregalados. Era de facto Pansiao.
- Oh! A senhora! - gritou.
E separando-se de súbito das companheiras, correu para Mayli, pegou-lhe nas mãos, levou-as ao peito, não afastando os olhos dos dela e rindo com emoção.
- Por que se foi embora?-perguntou.--Fez-nos tanta falta! Foi por sua causa que fugi. Por causa de tudo o que nos ensinou. Lembra-se de me ter proibido a leitura de Paul Revere?
- Lembro-me muito bem - disse Mayli a rir. - Entra. - É uma amiga minha-anunciou Pansiao, voltando-se
para as outras raparigas, muito admiradas. - É... é minha professora... ou pelo menos foi...
- Entrem todas - convidou Mayli.
As jovens entraram e sentaram-se nos degraus de mármore da entrada do templo. Pansiao contou a Mayli como fugira da escola de Miss Freem, no interior do país.
- Fugimos seis; cada uma tomou a sua direcção. Foi muito fácil. O exército não andava longe e muita gente se dirigia para o sudoeste. Juntei-me a essa gente e quando souberam que eu ia reunir-me ao exército, repartiram comigo as suas provisões.
Parecia tão ingénua, tão novinha, com as faces vermelhas e os ternos olhos castanhos, tão criança apesar do
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corpo desenvolvido e endurecido pelas caminhadas, que Mayli não pôde deixar de sorrir com ternura. E aliado a esse natural impulso, havia o pensamento de que Pansiao era irmã de Sheng e fora quem pela primeira vez lhe falara nele, formulando até o voto infantil de casarem um com o
outro.
Sabes que o teu irmão vai também a caminho da
Birmânia? - perguntou-lhe.
Pansiao bateu as palmas e depois levou as mãos ao rosto:
Fala do meu terceiro irmão?
- Sim, é a ele que me refiro - confirmou Mayli. Pansiao então inclinou-se e perguntou-lhe:
- Está?... Não está?...
- Não, não estou casada - respondeu Mayli, sentindo-se corar.
- E ele também não? - insistiu a jovem.
- Não, ele também não.
Mayli sentia as faces cada vez mais a arder diante do olhar franco daquela garota. Mas o que podia dizer ou fazer, senão falar doutra coisa?
- Para onde vão vocês agora? - perguntou-lhe.
- Não sabemos ainda - respondeu Pansiao.
- Gostarias de vir connosco para o ocidente?
- Oh! Sim, gostava imenso de ir consigo - exclamou ela, cheia de entusiasmo.
- Então verei o que se pode fazer para conseguir isso
- prometeu Mayli.
Seria agradável ter consigo aquela garota que era irmã de Sheng. E pousando-lhe a mão no ombro, acrescentou:
- Vai para o teu acampamento e volta amanhã de manhã com tudo o que te pertence. Falarei esta noite aos meus superiores e pedir-lhes-ei autorização para te levar connosco... comigo.
- E se eles não quiserem? - exclamou Pansiao. Mayli sorriu.
-- Penso que hão-de querer.
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Nos seus olhos e na sua voz percebia-se que não estava acostumada a recusarem-lhe qualquer coisa. Pansiao deu um salto.
- vou empacotar imediatamente as minhas coisas disse. Depois, caindo de joelhos diante de Mayli: - Permita-me que venha já esta noite - suplicou.
Como resistir a tal adoração? Mayli não teve forças para tanto:
- Está bem, vem esta noite. Será até melhor, pois amanhã partimos ao romper da aurora.
IX
Há vários dias já que Sheng esperava na fronteira da Birmânia, e tal como ele os seus soldados impacientavam-se cada vez mais. Tinham escalado a muralha de montanhas, fria de noite e quente de dia, mesmo quando enterravam os pés na neve. Tinham percorrido assim mais de mil quilómetros, em marchas regulares de trinta milhas por dia, cada homem carregando com uma espingarda, uma baioneta, um chapéu de bambu para a chuva, um capacete, comida para três dias, um par de botas suplementar, um cantil, uma pá, vinte balas e duas granadas de mão. Acompanhavam-nos os carregadores, marchando ao lado dos soldados. Embora cada carregador transportasse oitenta libras de arroz, Sheng não forçou nem retardou a marcha, pois sabia que os homens que comandava tinham um lugar marcado na longa e interrupta torrente de forças que vinha da China. Esse lugar era na vanguarda, mas outras divisões chegavam do norte e do sul. Pelo caminho, teve o cuidado de estudar bem as regiões que atravessava, tanto a terra como as gentes, em especial os lugares onde abundava a comida e aqueles onde escasseava. Neste último caso, não era porque a população escondesse as provisões, pois em toda a parte o exército era bem acolhido e os camponeses muito generosos.
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Chegara por fim às proximidades da fronteira da Birmânia com os seus homens, no dia preciso que o general lhe assinalara, com seis horas de avanço. Os seus soldados estavam exaustos e cobertos de lama, tinham combatido já muitas vezes o inimigo, mas mesmo assim ardiam de impaciência por essa nova batalha que supunham ser a maior de todas. Durante a longa caminhada, nem uma só espingarda se perdera ou se molhara com a chuva. Eram espingardas novas que o Chefe Supremo lhes mandara distribuir antes de partirem. Cada qual considerava-a como um presente pessoal, e mesmo quando dormiam com a cabeça em cima da lama, arranjavam forma de pôr a espingarda em segurança. Levavam também artilharia com eles, arrastando-a por montes e desfiladeiros, mas de maneira que cada peça, devidamente limpa e oleada estava pronta a servir.
Mas a sua força não residia apenas nas armas que possuíam. No dia da partida, em grande segredo para que o inimigo não a descobrisse, o general dissera-lhes que eram enviados à Birmânia não como qualquer exército vulgar.
- Vão partir - declarara-lhes - como uma prova de confiança do nosso chefe na aliança das nações agora unidas contra o inimigo comum, O nosso Chefe decidiu lançar todas as forças de que dispõe na luta contra a tirania no mundo. Combatemos no nosso posto numa guerra mundial.
Os soldados nunca mais esqueceram essas palavras. Sabiam que tinham a incumbência de representar a pátria e o seu Chefe perante esses estrangeiros agora seus aliados, e o soberbo comportamento de todos, o cuidado e a coragem que cada um punha no cumprimento do seu dever, era um espectáculo que dia após dia impressionava quase dolorosamente o coração de Sheng.
Porque, apesar da firmeza com que falava aos soldados, Sheng sabia muito bem que o general, no íntimo, se debatia com angustiosas dúvidas. Lembrava-se ainda das suas palavras no momento da despedida:
- Daria tudo para ter a confiança do nosso chefe! Gostaria
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de estar certo de que não vamos trair a nossa própria gente.
Sheng pensava nessas palavras quando conduzia os seus homens através de montes, vales e desfiladeiros. Todas as noites lhes recordava, em voz grave, as responsabilidades que os esperavam, explicando-lhes que era preciso baterem-se ao lado desses aliados estrangeiros, de tal forma que todos quantos outrora os consideravam seres fracos e inferiores compreendessem como eram corajosos, diligentes e seguros. Quantas vezes, mais tarde, havia de se lembrar dessas noites! Paravam sempre ao anoitecer, mesmo que estivessem no cimo dalguma montanha solitária; em baixo, medonhas gargantas abertas na escuridão, em cima, o céu cintilante de estrelas ou iluminado pelo pálido fulgor da Lua. Quando a sorte os favorecia, descobriam um templo, ou uma pequena povoação incrustada nos rochedos. Todas as noites, depois dos seus homens se terem retemperado com um pouco de comida e de repouso, Sheng reunia-os em sua volta e duma forma simples e directa , falava-lhes da marcha desse dia, do que corria bem e do que era preciso emendar no dia seguinte. Ouvia as possíveis queixas, respondia a qualquer pergunta, e por fim pronunciava sempre algumas palavras sobre o mesmo tema, dizendo-lhes, por exemplo, o seguinte:
- Não devem considerar-se como soldados vulgares. Antigamente, os soldados eram tidos em pouca estima. Eram aventureiros que vendiam a sua coragem a quem mais desse. Mas nós somos homens muito diferentes. Reparem em mim. Sou filho dum camponês e o meu pai foi um homem abastado. Em casa éramos três irmãos e tínhamos sempre o suficiente com que nos vestir e comer. As colheitas eram boas nessas ricas terras de aluvião agora em poder do inimigo. E aqui estou sem nada possuir, só para me bater. Fui primeiro guerrilheiro nas montanhas, depois fiz-me soldado e o meu único fito tem sido matar quantos inimigos possa. Se estou aqui a comandá-los, é porque a sorte me favoreceu, não porque valha mais do que qualquer de vós. Somos todos iguais e todos irmãos nesta
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guerra e fomos escolhidos por sermos jovens e fortes e não termos medo de morrer. O Chefe Supremo escolheu-nos porque nos considera os seus melhores soldados. E manda-nos combater ao lado dos brancos para lhes mostrarmos do que somos capazes. Suceda o que suceder, ninguém pense em retirar ou salvar a vida.
- Não é preciso dizer-nos isso - resmungavam os homens entre dentes. -- Para onde quer que nos leve, segui-lo-emos.
- Mas se eu morrer em combate - respondia Sheng gravemente - cada qual deve pensar por si próprio o, que tem a fazer, e proceder como procederia um chefe. Da forma como todos se baterem, dependem mais coisas do que podem imaginar. É preciso que os nossos aliados estrangeiros compreendam o que valemos e concedam ao nosso povo um lugar adequado no mundo.
E assim, dia após dia, com tais prelecções, Sheng instruía os seus homens a não se considerarem soldados vulgares, mas sim soldados com a missão de se mostrarem nobres aos olhos dos seus aliados estrangeiros, tomando parte importante na derrota que haviam de infligir ao inimigo. Quando acampavam perto dum templo ou numa pequena aldeia, alguns homens aproximavam-se e assistiam às exortações de Sheng. Os sacerdotes, com as suas túnicas cinzentas ou cor de açafrão, escutavam-no em silêncio, e nas aldeias, os camponeses e os filhos ficavam a ouvi-lo e mais duma vez, na manhã seguinte, alguns jovens o seguiam, de tal maneira os tinha emocionado na noite anterior com as palavras que dirigira aos soldados. Sheng não se opunha. Era também filho de camponeses e se um exército como aquele tivesse passado alguma vez pela sua aldeia, decerto se juntaria a ele. Admitia esses jovens como carregadores, pois não estavam suficientemente treinados para serem soldados. E foi assim que Sheng e os seus homens atravessaram as mais altas montanhas e se aproximaram da fronteira da Birmânia.
Ora Sheng pensava, e nunca lhe passou outra coisa pela cabeça, que mal chegasse à Birmânia marcharia logo
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directamente para o campo de batalha. Várias vezes os seus subordinados lhe perguntaram:
- O que faremos quando atingirmos a fronteira? E sempre lhes respondera:
- Sabê-lo-emos quando lá chegarmos. O chefe estrangeiro, sob as ordens do qual vamos combater, há-de dizê-lo. Mas decerto partiremos sem demora, pois o inimigo invadiu a Tailândia e está já no Sul. Decerto o Mei há-de dizer-nos o que temos de fazer.
Era tão grande a confiança que o Chefe Supremo depositava nos seus aliados que não hesitara em confiar a um estrangeiro o comando das suas tropas melhores e mais experimentadas. Quem não conhecia esse homem? Todos os soldados da companhia de Sheng sabiam o seu nome, mas nenhum o vira ainda e por isso o interrogavam às vezes a respeito dele. Mas Sheng também não o conhecia.
O general dissera-lhe apenas: "Vamos combater sob as ordens dum homem do país dos Mei".
E dissera-lhe isso no último dia, no dia em que Sheng vira Mayli, envolta numa comprida capa, sair do gabinete do seu superior. O coração batia-lhe desordenadamente e pela cabeça passavam-lhe os mais disparatados pensamentos, no entanto tivera ainda calma bastante para perguntar:
- Por que é que o Presidente nos coloca sob as ordens dum chefe estrangeiro?
- Há nesta guerra algumas coisas difíceis de compreender - respondera o general. - Talvez se possa explicar pelo facto dos homens do país Ying se entenderem mais facilmente com ele do que connosco. -E acrescentara num tom de azedume: - Os Ying só falam uma língua, a deles...
Os outros oficiais que estavam com Sheng diante do general, calaram-se. Todos achavam estranho passarem a ser comandados por um chefe estrangeiro, mas se o Presidente decidira assim, não havia nada a fazer senão calar e obedecer.
- Esse branco - perguntara ainda Sheng, após um momento de silêncio - tem ao menos bom coração?
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- Vi-o duas vezes e falei com ele - retorquira o general - e parece-me que tem bom coração. É alto e magro, não muito novo e bastante calmo. Não se considera superior aos seus homens nem a nós. Os que o conhecem, dizem que é capaz de pôr de lado os galões e combater como qualquer soldado. Não é como esses Ying que esperam que um moribundo lhes faça a continência lá por serem oficiais... Pelo menos é isso que se conta.
- E como compreenderemos esse estrangeiro quando ele nos falar? - interrogara um dos oficiais.
- Ele fala a nossa língua-volvera o general. Depois, inclinando-se para a secretária, o olhar perscrutador pousando ora num ora noutro, acrescentara:
- Oiçam; estou convencido que podemos confiar nele. Mas ele não é o chefe supremo. Esses insulares puseram alguém mais acima. Ele comanda-nos, mas eles comandam-no.
Os oficiais fitaram-no com certo espanto, tentando perceber todo o significado daquele aviso e esperando que ele dissesse mais alguma coisa. Mas o general limitou-se a dar uma palmada na secretária e concluíra:
- Preveni-os do que se passa, agora que cada um cumpra o seu dever.
E dizendo isto abandonara a sala e Sheng nunca mais o vira.
Sheng estava extremamente ansioso por saber como corriam as coisas na Birmânia. Durante todos esses dias de marcha não tivera forma de obter quaisquer notícias. Onde se encontraria agora o inimigo? Os brancos teriam conseguido detê-lo? Se conservassem ainda Rangoon em seu poder, então tudo correria bem, pois com os brancos na posse dessa cidade que dominava o golfo de Bengala, os chineses podiam defender a estrada de Lashio e todo o Norte, obrigando o inimigo a um desvio de centenas de milhas para transportar os seus reabastecimentos desde Bangkok.
Porém, quando chegou à fronteira da Birmânia, não havia quaisquer notícias. Estava tudo tão sereno e calmo
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como se não houvesse guerra no Mundo. Sheng acantonou as suas tropas nos subúrbios duma pequena cidade e como aquela divisão, guarda avançada do exército, foi a. primeira a chegar ali, o povo olhava para os soldados com pasmo e medo. Era uma população bastante heterogénea, amálgama de chineses, birmaneses e homens de várias tribos, que se tornava às vezes difícil diferençar. Os birmaneses tinham a pele mais escura do que os chineses, o andar mais rápido, e mostravam-se sempre satisfeitos, possuindo uma alegria quase infantil. Chineses e birmaneses viviam lado a lado em boa vizinhança, e no entanto notava-se que alguma coisa os separava. Na realidade, os chineses eram mais hábeis e perspicazes, melhores negociantes, e isso irritava os birmaneses. Embora soubessem que o chinês, seu vizinho, trabalhava mais e por isso enriquecia mais depressa, os birmaneses nem assim lhe desculpavam a prosperidade. Os dois povos viviam ao lado um do outro, habitavam às vezes as mesmas casas, uniam-se pelos laços do casamento, e apesar de tudo subsistia uma secreta raiva . no coração dos birmaneses, e no dos chineses um certo desprezo pelo facto dos seus vizinhos apreciarem tanto o prazer.
Era uma coisa fácil de verificar e Sheng notou-a logo na primeira tarde, quando vagueava pelas ruas dessa cidade estranha, ao parar diante dum vendedor ambulante para lhe perguntar o preço duma guloseima. Como há muito tempo se alimentava só de arroz, peixe seco e os raros legumes adquiridos no caminho, sentiu crescer a água na boca à vista daqueles doces. O vendedor, um birmanês, franziu a testa ao ver Sheng e resmungou o preço entre os dentes. Sheng não compreendeu e perguntou-lhe abertamente:
- Quer ou não quer vender-me a mercadoria?
O birmanês, em bom chinês, respondeu mal-humorado:
- Que me importa a mim quem come os meus doces, desde que mos pague? Mas o que não sei é se você tem dinheiro ou não. Não é a primeira vez que um chinês me engana.
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Sheng, irritado, atirou uma moeda para cima do balcão.
O birmanês recuperou logo o bom-humor, pois não é fácil esta gente ficar zangada muito tempo, e enrolando o bolo num pedaço de jornal, entregou-o a Sheng e disse:
Não me queira mal. Quando um homem é mordido
duas vezes por um cão, será muito louco se esperar que o mesmo cão o morda terceira vez.
Que história é essa de cães e de mordidelas? - interrogou Sheng.
O birmanês encolheu os ombros.
- Quanto mais avançar para o interior do país, melhor comprenderá o que lhe digo - respondeu. - Entre os chineses e os ingleses, nós, os birmaneses, somos esmagados tal como um piolho entre o polegar e o indicador dum mendigo.
- Os ingleses? - repetiu Sheng que não compreendia uma única palavra estrangeira.
- Sim, vocês chamam-lhes Ying - elucidou o vendedor. - Os ingleses! Governam-nos no seu próprio interesse e os chineses roubam o nosso comércio. A verdade é que odiamos tanto uns como outros.
E dizendo isto soltou uma gargalhada, cuspiu com abundância, coçou a cabeça, bateu os pés no chão e por fim ficou mais aliviado. Sheng levou o bolo e comeu-o com prazer, embora lhe achasse um gosto esquisito.
Era verdade, e isso via-se logo, que qualquer loja com ar próspero pertencia inevitavelmente a um chinês. Um dia Sheng entrou numa dessas lojas para comprar um par de peúgas de algodão, pois ferira o calcanhar do pé esquerdo durante a longa caminhada. O homem que estava atrás do balcão, já de certa idade sem ser velho, era chinês e Sheng entreteve-se a falar com ele. Depois das saudações do costume, descobriu que o comerciante vivia antigamente no outro extremo da Grande Estrada e que se instalara ali apenas há alguns meses.
- Prosperou com grande rapidez - observou-lhe, examinando a loja, pequena mas muito bem abastecida.
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Toda a gente pode enriquecer aqui em pouco tempo
respondeu-lhe o dono da lojeca. - As pessoas gastam
o dinheiro com facilidade. Gostam de luxo e de objectos brilhantes. São muito preguiçosos e apreciam principalmente comer bem, dormir melhor e divertir-se. Verdadeiras crianças...
"Crianças maldosas", considerou Sheng para consigo. Quando regressou nessa noite ao acampamento, um dos seus soldados perguntou-lhe:
- Está ferido, irmão mais velho?
- Não, creio que não - disse Sheng. - Mas por que perguntas isso?
- Porque tem uma grande mancha de sangue nas costas -- respondeu o homem.
Sheng despiu a farda. Estava, com efeito, manchada de vermelho. Mas, examinando bem a nódoa, descobriu que não era sangue, mas sim saliva rubra do bétele. Um transeunte qualquer, mascando bétele, cuspira-lhe nas costas ao passar por ele no meio da multidão. Sheng praguejou, amaldiçoou o desconhecido, mas não teve outro remédio senão limpar a farda o melhor que pôde, pois não tinha outra.
Essa noite passou-a a estudar o mapa da Birmânia que o general lhe dera assim como a todos os outros oficiais. Não era a primeira vez que se debruçava sobre esse mapa, mas nessa noite estudou-o com muito mais cuidado. Sabia agora que quando atravessasse a Birmânia com os seus homens, não seria bem acolhido pelos habitantes. "Ingleses e chineses, odiamos tanto uns como outros", dissera-lhe o birmanès. "Que quererá dizer tudo isto?" perguntava a si próprio sombriamente.
Ficou até muito tarde debruçado sobre esse mapa, decifrando os nomes impressos em pequenos e apertados caracteres. Já lia correctamente, por isso leu também o texto que acompanhava o mapa. Dir-se-ia tratar-se de dois países diferentes, de tal maneira as duas metades da Birmânia eram pouco parecidas. Ao Norte, a montante do grande Irrawaddy, só havia montes e cadeias de montanhas, que
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corriam, em longas filas, de Norte a Sul. Essas montanhas, dizia o mapa, eram habitadas por numerosas tribos que viviam no interior de imensas florestas. Mas os homens dessas tribos seriam amigos ou inimigos? Sheng amaldiçoava o mapa e o texto que lhe indicavam que havia petróleo nas montanhas da alta Birmânia e pedras preciosas, esmeraldas enormes, rubis e jade dum verde maravilhoso, mas que nada diziam a respeito dos homens que lá habitavam.
E no Sul, na vasta embocadura do Irrawaddy, estendia-se uma região absolutamente diferente, terras fecundas que produziam o. mais belo e mais branco arroz do mundo, alongando-se à beira do mar, numa extensão de milhares de quilómetros, a que se juntavam ainda milhares de pequenas ilhas. Mas quanto à população, Sheng não tinha forma de saber fosse o que fosse, pois o mapa não dizia absolutamente nada.
Por fim fechou o livro e ficou a reflectir no escuro no que acabava de ler. A cidade onde estava, situava-se mais ou menos na junção da alta com a baixa Birmânia. Mas quer partissem para o Norte, quer marchassem para o Sul, penetrariam num país totalmente desconhecido. Uma profunda angústia o invadiu. O que lhes sucederia nessa terra estrangeira, de selvas densas e profundas e estradas pouco numerosas? Iam como aliados dos homens odiados pelos indígenas, que governavam o país há longos anos. Mas qual é o povo que gosta de ser governado por estrangeiros? Na sua angústia, Sheng desejou ardentemente tornar a ver o general e tomou a decisão de o ir procurar assim que ele chegasse, para o pôr ao corrente dos seus receios. Sim, fossem quais fossem as culpas do general, quer tivesse ou não induzido Mayli para além do que devia, não era ocasião para um homem pensar em mulheres.
Notou o zumbido dos mosquitos por cima da cabeça e embora a noite estivesse bastante quente, enrolou-se todo no cobertor. Ouvira dizer que os mosquitos transmitiam a malária e apesar de não acreditar muito nisso, pois em casa de seu pai, desde a Primavera até o Outono, era devorado
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por eles sem lhe suceder mal nenhum, não achava impossível que naquele país distante esses insectos fossem portadores de veneno.
Transpirando debaixo do cobertor, sem poder conciliar o sono," vieram-lhe à memória fragmentos do passado. Tornou a ver a casa paterna, os irmãos, Jade, a mãe e as irmãs, Orquídea, tão cruelmente assassinada, e Mayli, ainda e sempre Mayli, na sua casa de Kunming. Devia lá estar nesse momento, a brincar com o seu cãozinho. Viu-a à janela do quarto, os compridos cabelos negros e brilhantes a secarem ao sol, e num breve instante todo o seu corpo jovem e são ardeu em desejos. Desejou-a até o sofrimento, mas num esforço supremo de vontade repeliu-a do pensamento. Talvez não a tornasse mais a ver. Devia encarar a realidade bem de frente. Pois bem, deixá-lo, se assim fosse! Jurara não pensar em mulher alguma antes do dia da vitória e os seus homens quase todos tinham feito igual juramento. Os que não o cumpriam eram muito poucos, e ficavam confundidos se os camaradas os surpreendiam com alguma mulher.
E lembrando-se desse voto, sentiu a febre baixar. O desejo acalmou e pôde então adormecer.
O general chegou no dia seguinte e Sheng apressou-se a ir apresentar-lhe o seu relatório. Soube a notícia a meio da tarde, mas demorou-se ainda uma hora num estabelecimento de banhos. Nesse estabelecimento, todos os empregados eram birmaneses ou mestiços: jovens e bem parecidos, cheios de vida, rindo por tudo e por nada, mas pouco cuidadosos no seu trabalho. Quando Sheng entrou, um rapaz muito novo foi atendê-lo. Tinha atrás da orelha uma flor vermelha de que Sheng não sabia o nome, os dentes vermelhos do bétele e a pele luzidia do óleo. Usava um turbante de seda às riscas vermelhas e amarelas, que tirou da cabeça ao entrar na sala cheia de vapor. Sheng viu com surpresa que os seus cabelos eram tão compridos que lhe chegavam até os ombros. Diante daquele ar
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surpreendido, o jovem enrolou os cabelos com gesto rápido e fixou-os na nuca.
- Pertenço à irmandade - explicou em mau chinês. Sheng não insistiu, mas quando o rapaz tirou as vestes
que lhe cobriam o dorso, reparou que tinha o corpo cheio de tatuagens. Disse de si para si que aquilo devia ser também um costume da irmandade e não fez qualquer reparo. Porém, notou que os braços delgados do jovem eram extraordinariamente fortes; à primeira vista, pareciam braços de rapariga mas erguiam pesadas celhas de água quente sem esforço aparente.
- Posso perguntar qual é a vossa irmandade? - inquiriu Sheng depois de bem esfregado, suado e friccionado sob a água alternadamente quente e fria.
O rapaz não respondeu imediatamente, depois" disse:
- Já ouviu falar de Thakin?
- Nunca ouvi - respondeu Sheng. - Não conheço nada deste país, cheguei há poucos dias.
O jovem ficou calado um instante e, de súbito, com estranha entoação de amargura, interrogou:
- Por que é que vocês, os chineses, vêm ajudar os ingleses?
Sheng ficou tão surpreendido com a pergunta que não conseguiu responder imediatamente. Mesmo os mais humildes habitantes daquele país tinham assim o coração a transbordar de amargura? Passado um momento, pronunciou:
- Nós viemos apenas com o propósito de expulsar os nipões para os Mares do Oriente, e eles são tão vossos inimigos como nossos.
A esta resposta o jovem apertou os lábios grossos e não disse mais nada. Sheng pagou a despesa, acrescida duma gorjeta, o birmanês tornou a pôr o seu turbante e a flor vermelha atrás da orelha.
Ao sair dali, Sheng foi falar com o general. Este, embora bastante cansado, não tivera ainda um instante de repouso. Ocupava-se dos seus homens, recebendo todos aqueles que iam apresentar-lhe relatórios ao pequeno quarto da locanda onde instalara o seu quartel general.
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Ao ver Sheng, fez-lhe sinal que esperasse até concluir a leitura duma carta que tinha na mão. Outros oficiais esperavam, mas o general, entregue à leitura, não lhes prestava atenção. Por fim dobrou a carta e meteu-a na algibeira.
- Qual é o primeiro? - perguntou.
Eu desejava ser o último, irmão mais velho - disse
Sheng.
. Então sente-se - convidou o general.
Sheng sentou-se e esperou que todos os outros apresentassem os seus relatórios. Passado pouco mais duma hora, chegou a sua vez, mas o general estava extremamente fatigado e recostou-se na cadeira, suspirando.
- Feche a porta - disse-lhe - mas antes mande trazer-me um pouco de chá fresco. Tenho sede.
Sheng fez sinal a um soldado que não tardou a aparecer com um bule de chá e duas chávenas. O general encheu-as, deu uma a Sheng e bebeu duas, uma a seguir à outra. Sheng esperava que o seu superior lhe fizesse algumas perguntas, mas este não disse nada. Em vez disso, desabotoou a gola do uniforme e conservou-se em silêncio. A sua expressão atormentada dava bem a entender que o afligiam graves preocupações. Tirando a carta da algibeira, entregou-a a Sheng.
- Não sou capaz de compreender isso - disse.
Sheng percebeu logo que se tratava duma carta do americano. Estava escrita em chinês, não por ele, claro, mas por alguém a quem a ditara, e dizia, em resumo, que o general devia, até nova ordem, manter-se com as suas divisões na fronteira.
- Não sou capaz de compreender isso - repetia o general. - Chego aqui persuadido que encontro ordem para marchar logo no dia seguinte para a frente de batalha e em vez disso terei de esperar até nova ordem. Mas que ordem? E ordem de quem?
Os dois homens olharam-se.
- Se bem compreendo, a ordem daqueles que estão acima do americano - pronunciou Sheng, lentamente.
- Sim, é também o que suponho-concordou o general.
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É extremamente difícil manter em sossego homens impacientes por se baterem e que não compreendem a razão por que os retêm longe dos combates. Sheng não se demorou a conversar com o general; depressa percebeu que sabia tanto como o seu superior, o que queria dizer que nem um nem outro sabia fosse o que fosse. Retirou-se, cheio de dúvidas e apreensões, deixando o general entregue aos seus sombrios pensamentos.
Nos dias seguintes, não se passou sequer uma hora sem que algum dos seus homens lhe perguntasse quando se punham de novo a caminho. Dirigiam-se-lhe com cortesia, procurando sempre qualquer pretexto, mas acabavam todos por lhe fazer a mesma pergunta: "Quando partimos?".
Sheng respondia a verdade, que não sabia. Os seus homens abriam muito os olhos, e um ou outro, mais ousado, interrogava-o sem papas na língua:
- Por que não procura saber, irmão mais velho? Pergunte ao general.
- O general também não sabe - respondia Sheng simplesmente.
Os homens retiravam-se, admirados, resmungando entre dentes, pois não lhes tinham ensinado a comportar-se diante dos superiores como animais submissos. Cada qual tinha respeito por si próprio e era capaz de tomar iniciativas durante os combates, e não se tratam tais soldados como o inimigo tratava os seus, sempre calados e receosos. Os homens de Sheng só se batiam bem se soubessem porquê e contra quem. Falavam uns com os outros e quando supunham que os chefes erravam, diziam-no, pois eram homens livres e como homens livres combatiam.
E justamente porque eram homens livres sentiam-se no direito de estar irritados, de insultar o céu por causa daquela demora e de protestar contra a decisão dos seus
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chefes. Todos estavam de acordo que deviam entrar na Birmânia sem se importarem com vãs considerações de cortesia e sem esperarem um pedido formal dos ingleses.
Que malditas considerações nos retêm aqui? -
ouviu Sheng um dos soldados perguntar aos seus camaradas, sem suspeitar da sua presença.
Era meio-dia, os homens tinham almoçado há pouco e preguiçavam ao sol em volta dos abarracamentos. Uns arranjavam as sandálias de palha, outros faziam a barba ou fumavam e a maior parte não fazia nada. No rumor confuso de vozes, gritos e risos distinguiu-se perfeitamente o comentário impaciente. Houve um murmúrio quando reconheceram Sheng, mas o jovem que acabava de falar não se mostrou intimidado. Sheng parou e olhou bem para ele. Era um rapaz alto e forte que falava com acentuada pronúncia do Norte.
- Vocês não estão mais impacientes do que eu - pronunciou calmamente Sheng.
- Eu não passo dum simples soldado e o irmão mais velho é um homem importante - replicou o rapaz. - Se eu fosse pessoa importante, não esperava mais.
O seu rosto moreno abriu-se num sorriso, e nos seus olhos negros, vivos e brilhantes havia um misto de impaciência e zombaria.
- Não sou suficientemente importante para fazer o que quero - respondeu Sheng e continuou o seu caminho.
Mas tais palavras não bastavam para aquietar jovens buliçosos. Questionavam uns com os outros e com os habitantes da cidade, olhavam para as mulheres com atrevimento, quebravam os votos feitos. As prostitutas elevavam os seus preços e de todos os lados choviam as queixas. As notícias que chegavam do Sul também não contribuíam para melhorar as coisas. Passavam por ali todos os dias pessoas vindas desses lados. Uns eram simples comerciantes, outros procuravam fugir à guerra e iam em demanda da Grande Estrada para se internarem na China. Mas todos davam as mesmas novas. Os estrangeiros, os ingleses, estavam reunidos ao longo do Sahveen, mas o inimigo já
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atravessara o rio um pouco mais abaixo tomara a cidade de Martaban. Em Paan, os ingleses ainda se mantinham e alvejavam sem descanso a frota inimiga, mas poderiam continuar a defender essa posição? E seria mesmo sua intenção fazê-lo?
Sheng escutava esses viajantes tão gravemente como os seus homens.
- Não é que Martaban seja uma cidade importante - explicava-lhe um vendedor ambulante a quem comprara uma toalha. - Mas Martaban é uma ponte para o inimigo vindo da Tailândia. Graças a essa ponte, as duas forças inimigas podem juntar-se.
Sheng fez então algumas perguntas ao vendedor, um hindu de casta inferior que de tanto viajar adquirira o dom de tomar a cor do país em que se encontrava. Mas era um homem vivo e inteligente que sabia o que queria e para onde ia.
- Por que é que os ingleses não nos deixam entrar na Birmânia? - perguntou francamente Sheng a esse estrangeiro.
O homem inclinou-se um pouco para a frente, as mãos escuras pousadas nos joelhos nus.
- Os ingleses não querem que o povo da Birmânia vos veja armados com espingardas estrangeiras e comandados pelos vossos próprios chefes - respondeu o hindu, e o seu rosto transformou-se numa verdadeira máscara de ódio. - Os ingleses hão-de perder a Birmânia-silvou.-O povo deste país há-de voltar-se contra eles. Chegou o momento de todos nós sacudirmos o jugo dos ingleses. - Cuspiu por entre os dentes cerrados e Sheng recuou um pouco.
- Mas se você não é da Birmânia por que lhes tem assim tanto ódio?
- Se o povo da Birmânia não odeia bastante os ingleses, então venha à índia e verá como lá os odeiam - disse o homem.
As suas mãos estavam enclavinhadas nos joelhos. Sheng experimentou uma sensação desagradável.
- Mas os birmaneses também não gostam muito dos
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hindus, segundo tenho ouvido dizer - declarou. - Desejam separar-se de vocês.
O vendedor encolheu violentamente os ombros e os seus olhos negros rolaram nas órbitas fundas.
Lembram-se de Saya San - declarou.
Saya San? - repetiu Sheng que nunca ouvira tal
nome.
O vendedor pronunciou o nome de Saya San dando ao mesmo tempo um estalo com os dedos.
- Não era nada... não era ninguém - declarou.- Um homem ignorante do Tharrawaddy, mas que começou bastante bem. Matou um oficial... bem, mas os seus ignorantes discípulos voltaram-se contra o meu povo... e então... tudo isto não tem nenhum sentido.
Desfez e refez o turbante com os dedos ágeis e compridos.
- Veja, os birmaneses são um povo extremamente ignorante. Sabem ler e escrever e no entanto não passam de ignorantes. O prazer tem mais importância para eles do que a liberdade. Aliás... -o sorriso fez-lhe brilhar os dentes brancos -- odeiam igualmente os chineses. Porquê? Nem os próprios deuses compreendem este povo da Birmânia. Mas uma coisa é certa: os seus habitantes não ajudarão os ingleses.
O seu rosto tornara-se outra vez afável, recalcando a cólera no fundo da alma. Percebia-se ainda no olhar e na entonação com que pronunciava "os ingleses", mas deixou de a exteriorizar. Passado pouco tempo tornou a embrulhar a mercadoria e seguiu o seu caminho.
Claro que tais conversas não deixavam de exercer certa influência no moral da tropa. O general sabia-o e por isso um dia reuniu os seus oficiais.
- Os nossos homens ficarão completamente desmoralizados se isto continua por muito tempo - disse-lhes.
Era uma tarde de Fevereiro, mas fazia ali tanto calor como se estivessem em pleno mês de Junho, no país natal. Um lagarto saiu debaixo duma viga do tecto e começou a percorrer a parede limpando-a de mosquitos com a língua
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ágil e delicada. Sheng observava-o enquanto ouvia o general. Havia no gabinete um novo oficial, um jovem que Sheng não conhecia.
- Pedi ao nosso irmão que aqui viesse - continuou o general - para nos dar informações directas a respeito dos nossos aliados estrangeiros. Quanto melhor informados estivermos, com mais paciência esperaremos.
O jovem oficial levantou-se. Era excepcionalmente belo, de rosto afável e feições delicadas. À primeira vista, nem parecia soldado; no entanto, o desenho da sua boca era firme. Tinha umas mãos finas, e fazia gestos quando falava.
- Sou o vosso irmão mais novo de Kwangsi - disse numa voz baixa e inesperadamente firme. - Vim a pé com os meus homens. Não tínhamos camiões, nem sequer mulas. Carregámos com as nossas armas através das montanhas e arrastámos como pudemos a artilharia. Atravessámos a província de Shan, de acordo com as ordens do nosso Presidente. Fomos até junto dos ingleses e informámos o seu comandante que tínhamos chegado. Transmitimos-lhe igualmente a mensagem do nosso Presidente, repetindo as suas palavras: "Se tiverem necessidade do nosso auxílio, na Birmânia, estamos prontos a enviar para aqui milhares de soldados".
- E o inglês o que respondeu? - perguntou o general.
- Falou com muita cortesia por intermédio do seu intérprete - respondeu o oficial. - Disse que estavam já na Birmânia muitas forças chinesas e que ele se sentia satisfeito por saber que podiam vir mais ainda se fosse necessário...
- E foi tudo quanto disse? -insistiu o general.
- Foi tudo- confirmou o oficial. - Ou melhor, indicou-nos que fôssemos para o território montanhoso, por ser mais próprio para as nossas armas. E aí, que esperássemos.
Todos escutavam, imóveis e silenciosos. A palavra "esperar", uma expressão idêntica passou como uma onda por aqueles rostos. Eram todos novos, fortes, bem treinados, e para eles esperar representava uma tortura.
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Mas a luta é extremamente violenta no Sul - disse
o general. - Os ingleses pretendem combater sozinhos?
Há lá também tropas hindus, mas comandadas por
ingleses - elucidou o oficial.
- Vão perder o Sul da Birmânia enquanto nós continuamos aqui à espera - comentou o general.
- Asseguraram-me que Rangoon seria defendida até a última - afirmou o oficial.
- Mas o Norte da Birmânia tem de ser defendido, custe o que custar - volveu o general. - Mesmo que o Sul da Birmânia caia nas mãos do inimigo, o Norte não pode cair, senão o nosso país ficará cercado pelo inimigo por todos os lados.
Houve um longo silêncio na sala. Os oficiais, de expressão sombria, olhavam para o vácuo. O lagarto caiu no chão, produzindo um baque surdo nas lajes. Assustado com o próprio barulho, fugiu.
O jovem oficial sentou-se e continuou a falar, de olhos fixos nas mãos cruzadas nos joelhos.
- Perguntei ao comandante inglês por que não se apressavam a autorizar-nos a entrar no país, como estava previsto nos planos traçados pelos dois Chefes Supremos ao regressarem da índia. Respondeu-me que nos mandariam entrar logo que tudo estivesse preparado. Explicou-me que os seus homens travavam no Sul uma acção retardadora para dar tempo que nos preparassem bases e aeródromos e que provavelmente a batalha principal se decidiria nas planícies do centro.
O general soltou uma breve risada.
- Não temos necessidade de tantos preparativos para combater! - exclamou. - Estamos habituados a lutar sem preparativos de qualquer espécie!
E apoiando a palma das mãos na mesa colocada na sua frente, levantou-se e começou a andar dum lado para o outro. Sem o saber, parecia-se nesse instante com o próprio Presidente. De repente parou, voltou-se para os oficiais e disse:
- Eis agora as notícias que recebi. Os nossos homens
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encontraram o inimigo no extremo norte da Tailândia, o qual procurava atravessar o rio a Oeste de Chiengmai, mas sem ter entrado ainda na Birmânia. Soube também que o inimigo concentrou forças em Chiengmai.
- E continua a concentrá-las aí? - perguntou Sheng.
- Sim - respondeu o general. - Competia a nós impedi-lo, mas ninguém o impedirá.
Parou de súbito e olhou em volta, com ar impaciente.
- Não tenho mais nada a dizer -prosseguiu abruptamente. - Nada mais, pois nada sei. Mas se não recebermos ordem daqui a alguns dias, ver-me-ei obrigado a pedir ao Chefe Supremo que me exonere do meu comando. Tenho de protestar de alguma maneira contra esta espera. Vamos esperar aqui como galinhas chocas, até Rangoon cair?
com a mão, fez o gesto de que desejava ficar só e os oficiais retiraram-se, preocupados, pois nunca encontrariam outro comandante igual àquele. Jovem e já veterano na guerra, tendo participado em numerosas batalhas, hábil nos combates das montanhas, duma coragem a toda a prova, não havia dois como ele.
Sheng, de parecer carregado e triste, voltou para junto dos seus homens, mas parecia tão mal disposto que nenhum ousou interrogá-lo.
O general seguiu com o olhar aqueles jovens oficiais que se retiravam. Todos tinham o passo largo e firme do soldado habituado a marchar e não a passear. Eram magros, elegantes, e tão ágeis que dir-se-ia terem esqueletos elásticos por baixo dos músculos. O general era um homem duro, capaz até de crueldades, mas para os seus soldados tinha um coração terno como o de uma mulher. Estimava-os e conhecia todos pessoalmente, tanto soldados como oficiais. A cada rosto aliava sempre um nome e embora nunca hesitasse em expor a vida de qualquer deles para ganhar terreno ao inimigo, quando perdia algum inutilmente afastava-se e chorava em segredo, não de cólera, mas apenas porque os corações em que depositava confiança tinham deixado de bater e os corpos que o enchiam de
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orgulho estavam mutilados, sem vida. A sua ideia dominante era nunca expor a vida dos seus homens senão quando podia infligir perdas cruéis ao inimigo.
Bebeu uma após outra várias chávenas de chá, pois parecia-lhe que naquele clima nunca conseguia absorver tanto líquido como o que perdia ao transpirar, e depois caminhou até a porta e fechou-se à chave. Abriu em seguida um cofre e retirou de lá um pequeno rádio. Era um objecto precioso, pois não precisava de fios nem de maquinismo para captar os sons no ar. O general ignorara por completo a existência de tal aparelho até o dia em que encontrou um na presa tomada ao inimigo, e nunca o pudera utilizar antes de ver um igual em casa do Presidente. Hesitara um momento, sem saber se devia ou não informar o Chefe Supremo que estava na posse dum desses aparelhos, que eram extremamente raros, mas apaziguou os escrúpulos ao pensar que no decorrer da campanha ser-lhe-ia duma utilidade extraordinária.
Sentado à secretária, a rodar os botões, pôs-se à procura das ondas. Aquela caixa mágica fazia-lhe esquecer todas as preocupações. Parecia-lhe que a sua alma abandonava o corpo e ia errar, nas asas dos ventos, lá em cima, mais alto que as nuvens. A primeira coisa que ouviu foi música, uma melodia estranha e suave, depois vozes que falavam línguas que ele não compreendia. A seguir gemidos, soluços, ruídos que nada tinham de humano. Mas, de tempos a tempos, lá distinguia algumas palavras que entendia, ora na sua língua, ora na do inimigo. A língua nipónica era-lhe familiar, pois fizera a maior parte dos seus estudos no Japão. E por conhecer bem esse povo é que o odiava e o temia. E agora era-lhe de grande utilidade perceber o que diziam.
Como rodasse o instrumento para o sul, na direcção da Tailândia, uma voz dura e metálica, vinda através dos ares, pôs-se a martelar as sílabas:
"Rangoon está em fogo. Os seus defensores, derrotados, incendiaram a cidade. Todo o dia a nossa aviação a bombardeou impiedosamente, provocando também numerosos
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incêndios. Os ingleses encerraram no porto milhares de carregadores, receando que eles fugissem ao bombardeamento. Como não puderam abrigar-se, tiveram uma morte horrível. Os oficiais ingleses e os demais residentes britânicos refugiaram-se nas colinas. Na cidade, as suas residências são defendidas por nativos. Os ingleses não querem saber da vida dos indígenas, mas nós vamos libertar esses escravos. As nossas forças estão somente a dezoito milhas de Rangoon. Habitantes de Rangoon, não fujam. Nós os libertaremos!".
O general deu volta ao botão. Aquele homem diria a verdade? Sondou as ondas, mas sem resultado. Só a voz do inimigo clamava para os ares:
"Construiremos estradas até o Norte da Birmânia, Atacaremos do Norte e do Sul. O inimigo está preso numa tenaz. Coragem, habitantes da Birmânia! Vão ser libertados dos vossos tiranos. Nós somos vossos irmãos, homens da mesma raça. Os brancos consideraram-nos alguma vez seus iguais? Nunca permitiram que um só de nós entrasse nos seus lares sagrados. A Ásia para os Asiáticos!"
De novo o general calou a voz inimiga. Mesmo que houvesse nesse discurso alguma verdade, não suportava ouvi-lo. Seria possível que depois de se baterem e de ganharem a guerra não fossem livres?
Sentou-se pesadamente diante da mesa, de punhos fechados.
Quem sabe? Se os japoneses não fossem tão cruéis, se tivessem usado outros meios e não a morte e a destruição, talvez se visse forçado a dar-lhes razão. Mas agora em quem podia o seu povo ter confiança? Não havia outra coisa a fazer senão lutar até acabar aquela guerra. Quando a ganhassem, se outra guerra surgisse, seria preciso combater de novo. Mas agora o inimigo era o Japão.
Depois de meditar um momento, levantou-se, fechou o aparelho, abriu a porta e chamou. Um soldado acorreu logo e o general perguntou-lhe:
- Há alguém que deseje falar-me?
Era já tarde e sentia-se cansado, mas muitas vezes, a
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meio da noite, os seus espiões, que calcorreavam todo o país, vinham apresentar-lhe relatórios.
- Estão dois homens à espera, meu general - disse-lhe o soldado, pondo-se em sentido.
- Dize-lhes que entrem - ordenou.
Quase imediatamente apareceram na sala dois homens e fecharam a porta atrás de si. O general reconheceu logo dois espiões que enviara à Birmânia algumas semanas antes. Vestiam os trajos dos camponeses do país donde vinham, tinham a pele tisnada de negro e cobriam a cabeça com turbantes de algodão.
Acolheu-os com um sorriso e eles conservaram-se calados à espera que o general os interrogasse.
- Chegam mesmo na altura precisa - disse-lhes. - Se vêm do Sul, podem dizer-me se é verdade que Rangoon está em chamas?
- com certeza é verdade -- respondeu o mais velho.
- Não era difícil adivinhar o que ia suceder. Deixámos Rangoon há alguns dias, fizemos o trajecto ora de carro ora a pé, mas quando de lá saímos era evidente que a cidade não podia manter-se. Nenhuma disposição fora tomada nesse sentido. As forças inimigas chegam por mar e avançam em todas as direcções, apesar da falta de água e do calor. Os soldados japoneses suportam a sede, pois receiam que os poços estejam envenenados e não se atrevem a beber. No entanto continuam a avançar.
O general escutava os seus homens sem deixar de os fitar. Sim, conhecia essa terrível coragem do inimigo, essa coragem que formava um todo, como um penedo sem fendas. Não, ninguém era capaz de lhe destruir a sua indomável bravura.
- O inimigo toma Rangoon com um sorriso nos lábios
- disse tristemente o mais novo dos dois. - Agora que a Malásia caiu, pode reagrupar todas as suas forças.
- Não devemos considerar tudo perdido - comentou o general em voz baixa. - Enquanto estivermos aqui à espera, não devemos dar-nos por vencidos.
- Tem muito que esperar, com efeito, irmão mais
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velho - disse o outro. Estava tão magro que dir-se-ia possuir apenas a pele em cima dos ossos. - E arrisca-se a esperar até que a cidade caia. - E voltando-se para o mais novo: - Achas que devemos dizer o que vimos?
Não é o nosso dever? - interrogou o companheiro.
Não devem ocultar-me nada - declarou o general.
Os dois contaram então, falando ora um ora outro, que na estrada que ia de Rangoon a Mandalay, os brancos estavam tão certos da vitória do inimigo que, numa extensão de centenas de milhas, tinham destruído todos os camiões, automóveis e demais veículos estrangeiros.
Ao ouvir isto, o general bateu com as mãos na testa:
- E pensar que os meus homens tiveram de percorrer a pé milhares de quilómetros carregados com as suas armas! - exclamou.
Os dois olharam-se e o mais jovem observou:
- Mas sempre foi preferível terem destruído esses veículos do que deixarem-nos cair nas mãos do inimigo que se serviria deles para atravessar a Birmânia.
- Como destruíram esses camiões? - perguntou o general. Nervosamente, passava as mãos pelos cabelos e de tal maneira que já estava completamente despenteado e isso dava-lhe um ar mais fatigado ainda.
- Regaram-nos com gasolina - explicou lentamente o mais velho.
- com gasolina! - gemeu o general. - Oh, minha mãe!
Os dois homens olharam-se com ar comprometido, como se se sentissem responsáveis do sucedido. A gasolina era mais preciosa do que o ouro e extremamente difícil de obter, pois vinha de muito longe.
- Quantos veículos destruíram assim? - insistiu o general.
- Mais de duzentos - respondeu-lhe o mais velho.
- Ainda não tinham servido - acrescentou o outro e eram de seis rodas. Numa pequena cidade contei vinte e três que puseram num montão antes de lhes lançarem fogo. E estavam carregados com munições e pneus.
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O general rangeu os dentes, arrancou uma vez mais os cabelos e amaldiçoou as mães e as mães das mães de todos os que tinham incendiado os veículos.
- Deviam fugir com eles! Maldita seja toda a sua linha materna! - exclamou.
-. Mas o inimigo cortou-lhes todos os caminhos da retirada - desculpou o mais velho. O outro acrescentou:
- Não lhes disseram que não deviam deixar nada em poder do inimigo? Não lhes ordenaram que não deixassem sequer uma tigela de arroz, uma barra de ferro, uma roda, um prego ou uma arma? Fique certo, os que foram obrigados a incendiar esses veículos sentiram-no dolorosamente. Vi lágrimas correrem nos seus rostos e os aldeões que assistiam ,a esse espectáculo choravam também.
Mas o general não prestava ouvidos a coisa nenhuma.
- Se eu lá estivesse, salvava os veículos - repetia com obstinação.
Os dois homens, vendo que nada podia acalmar a sua cólera, despediram-se e saíram.
A meio da noite, o general que não conseguira ainda conciliar o sono, tal era a sua ira, ouviu ruído no pátio interior e, impaciente, saltou do leito. Deitara-se completamente nu, fechado dentro do mosquiteiro, preferindo o calor aos mosquitos. Só teve tempo de pôr pelos ombros um roupão, antes de sair para o pátio, exasperado com o barulho.
- Mãe da mãe da minha mãe! - rugiu e de repente parou. O pátio interior estava cheio de mulheres que o olhavam muito admiradas. a claridade da grande tocha que o dono da hospedaria segurava, viu os olhares das enfermeiras voltados para ele, e, à frente de todas, apenas a alguns passos, distinguiu Mayli. O rosto da jovem estremecia de riso contido e o general sentiu-se tão desamparado que, apertando o roupão, ali ficou, por momentos, esquecido da sua aparência.
E Mayli, de lábios comprimidos e olhos brilhantes, quando instantes antes dir-se-ia demasiado fatigada para
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poder respirar, fez-lhe a continência e disse em tom respeitoso:
- Chegámos agora mesmo, meu general, e desejaríamos saber onde é o nosso Aacantonamento.
Voltando si, o general entrou em casa em dois passos, vestiu rapidamente o uniforme sobre o qual apertou o cinturão. Momentos volvidos, abria a porta como se não tivesse visto ainda ninguém. com ar muito grave, perguntou numa voz forte:
Finalmente que chegaram? Onde está o vosso superior?
- Creio que o doutor se perdeu - respondeu Mayli.
- Naturalmente, enganou-se no caminho. Acompanhámo-lo até cerca de quinze milhas daqui, depois perdemos-lhe o rasto e viemos sozinhas.
- Ah! Ah! - riu o general e fazendo sinal a um dos ajudantes, ordenou: - Conduz estas mulheres ao templo de Confúcio, que lhes está reservado.
E ali ficou à espera, muito firme e aprumado, que as enfermeiras desaparecessem atrás de Mayli. A jovem marchava à frente das suas subordinadas, mas ao chegar ao portal voltou-se. A luz da lanterna ali suspensa, os dois fitaram-se e o general viu que os olhos de Mayli riam. Um instante depois desapareceu.
O general voltou furioso para o quarto, mas logo considerou como devia ter parecido ridículo surgindo no meio do pátio em trajos menores. E, riu, riu, tanto que foi obrigado a assoar-se. Quando tornou a deitar-se, estava completamente descontraído. Prestes a adormecer, ocorreu-lhe um pensamento que o despertou de novo. Sheng e Mayli estavam agora perto um do outro, e Mayli pedira-lhe que nunca revelasse a Sheng onde ela estava. Hesitou um momento, imaginando o prazer que teria de proporcionar a Sheng uma agradável surpresa e de arreliar Mayli, para a castigar por se ter rido dele à saída do portão. Depois reconsiderou:
"Não, é a guerra, e não devo esquecer isso um minuto sequer. É preferível que não se encontrem, pois doutro
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modo podiam esquecer os seus deveres para pensarem no amor e o culpado seria eu".
Decidiu portanto não dizer nada, bocejou duas ou três vezes ruidosamente e voltou-se com tanta rapidez que a poeira acumulada no baldaquino lhe caiu em cima. Proferiu ainda algumas imprecações e pensando em tudo quanto sucedera naquele dia, caiu por fim num sono profundo.
XI
Na parte da cidade onde estavam aquarteladas as enfermeiras, Mayli andava muito atarefada. Ela que nunca trabalhara na vida, descobria agora o prazer do trabalho, mas uma grande parte desse prazer provinha da autoridade que exercia sobre as jovens confiadas aos seus cuidados. Gostava de mandar, e por isso ria-se intimamente de si própria, mas para se desculpar aos seus olhos, punha todo o cuidado em não limitar a sua acção a mandar, tomando sempre parte nos trabalhos que era preciso fazer,
Se havia no aquartelamento onde chegavam algum quarto pouco limpo ou um pátio sujo pelos animais, ordenava logo às suas subordinadas que limpassem bem tudo aquilo e imediatamente dava o exemplo. De manhã até a noite não despia a fardeta de trabalho. E Pansiao nunca se afastava dela, pois assim é que a criança se sentia feliz, não se queixando desde que estivesse junto de Mayli.
Essa pequena Pansiao era um desses seres que nunca deixam de ser crianças. Não sabia por que é que o seu país estava em guerra nem cuidava de saber. Quase esquecera a casa paterna e a família, e quando Mayli o percebeu, passou a ter o cuidado de lhe falar de vez em quando de Ling Tan e de Ling São, dos três irmãos, de Jade e dos sobrinhos. O bonito rosto de Pansiao iluminava-se com um sorriso quando Mayli lhe falava assim dos entes que ela sabia serem a sua família, mas depressa o seu sorriso se desvanecia para dar lugar a uma expressão estranhamente grave.
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- Lembras-te - perguntou-lhe um dia Mayli quando as duas, ao lado uma da outra, inclinadas para um tanque, lavavam a roupa - do lago que havia perto da casa do teu pai? Parece que foi a explosão duma bomba que o abriu, mas quando o vi já lá havia peixe.
Um lago? - repetiu Pansiao com ar sonhador. - Cheguei a vê-lo?
Talvez não - atalhou rapidamente Mayli.-Mas
lembras-te com certeza do pequeno tanque do pátio, onde havia peixes vermelhos?
Pansiao não respondeu. Parou de esfregar a roupa que estendera numa pedra e olhou gravemente para Mayli.
- Não te lembras do pátio e da mesa por baixo do caramanchão de roseiras, onde fazia tanto fresco no Estio?
- insistiu Mayli.
- Claro que me lembro - pronunciou lentamente Pansiao.
Depois o seu olhar entristeceu.
- Mas não sou capaz de me recordar dos rostos continuou em voz baixa. - Lembro-me do meu terceiro irmão porque costumávamos montar ambos no búfalo para o levar a pastar nas colinas, mas é em vão que tento lembrar-me das feições do meu pai. Recordo-me que minha mãe era magra e robusta e tinha uma voz forte. Mas não me lembro da sua cara. Parece-me que não consigo recordar nada do que antecedeu essa noite em que fugimos de casa para procurar refúgio junto da mulher estrangeira.
Os olhos da jovem pareciam esforçar-se por esquadrinhar o passado. Fazia em vão apelo à memória e Mayli compreendeu que efectivamente Pansiao não podia ir mais longe nas suas recordações.
- Não te esforces mais - disse-lhe com doçura. Qualquer dia tornas a vê-los e então recordar-te-ás de tudo.
Pansiao riu com o seu riso infantil.
- Claro que nessa altura hei-de recordar-me.
E pôs-se a bater a roupa com tanta força que os borrifos de água se esparrinhavam por toda a parte, molhando-lhe
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as sobrancelhas elegantemente arqueadas e brilhando-lhe nas faces como se fossem lágrimas.
Mas do meu terceiro irmão - continuou - de Sheng,
conhece-o, lembro-me perfeitamente. Tinha um carácter muito difícil quando era pequeno e todos o evitávamos. Eu tinha medo dele e no entanto quando estávamos os dois sozinhos nas colinas, ele ia colher para mim bagos de uvas. Muitas vezes dizia-me que um dia havia de fugir de casa.
Mayli, mergulhando o vestido azul na água do tanque, perguntou:
- Fugir para quê?
- Nunca mo quis dizer - respondeu Pansiao a rir. Penso que nem mesmo ele sabia... Suponho que fingia ter um plano, mas na realidade não tinha nenhum.
- Tivesse ou não tivesse, o resultado seria o mesmo replicou Mayli. - Hoje todos os jovens têm igual objectivo, combater o inimigo até o conseguirem repelir do nosso país.
- com efeito - disse Pansiao alegremente, mas a sua voz e a sua expressão mostravam bem que não se apercebera do sentido das palavras de Mayli.
Esta criança aprendera a ignorar voluntariamente o que mais odiava e temia, a guerra, e assim chegava mesmo a ignorar obstinadamente o que sucedia em sua volta. Ocupava-se de boa vontade, alegre e satisfeita, de tudo que Mayli a encarregava. Ajudava à cozinha, lavava a roupa e remendava-a, dispensava aos doentes os maiores cuidados e depressa todos aprenderam a estimá-la e a sorrir-lhe, mas mal se falava da guerra na sua frente, o seu olhar fugidio perdia vivacidade e expressão, como toldado pelo sono.
Mas esta não era a sua única singularidade. O seu espírito flutuante perdera por completo a noção do bem e do mal. Quando qualquer ninharia lhe agradava, apossava-se dela. Mayli descobriu isso num dia em que com Pansiao e três das suas ajudantes foi à cidade comprar linhas, peúgas de algodão e outros objectos insignificantes. De passagem, as jovens pararam em frente duma loja para admirarem
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essas flores de papel que as mulheres costumam prender nos cabelos. Só para as admirar, não para comprar, pois para que precisavam de tais ornamentos com a vida que levavam? Mas, mulheres acima de tudo, nem por isso deixavam de sentir o maior prazer em contemplar essas flores, aliás admiravelmente bem feitas, sobre as quais pousavam pequenas borboletas multicores. Depois de as contemplarem um bocado, retomaram o seu caminho, mas poucos passos andados, ouviram gritar; voltaram-se e viram a dona da loja, que parou um instante em frente do estabelecimento e logo correu ao seu encontro, proferindo imprecações e designando Pansiao com o dedo.
- O que se passa? - perguntou Mayli.
Mas a mulher só falava a sua língua e Mayli não a compreendia. Quando a viram sacudir Pansiao, procurando desabotoar-lhe os botões da blusa, todas correram em seu socorro. Mas nesse instante a mulher conseguira arrancar um botão e tirar-lhe da algibeira interior duas flores de papel.
- Pansiao! - gritou severamente Mayli. - O que quer isto dizer? Não te vi pagar estas flores.
Os lábios vermelhos da garota começaram a tremer.
- Mas se não tenho dinheiro - proferiu ela por fim, abrindo muito os olhos. - Nunca ninguém me dá dinheiro!
- Então como te atreveste a pegar nessas flores, envergonhando-nos a todas? - perguntou Mayli.
As outras três jovens que assistiam à cena mantinham um semblante grave. O general dera a todas as mais severas instruções, tanto aos soldados como às enfermeiras, proibindo-os que se apoderassem fosse do que fosse sem pagar, tanto mais que se encontravam numa cidade da fronteira cujos habitantes eram doutra raça. Somente a jovem viúva, Chi-ling, tomando entre as suas a mão de Pansiao, lhe perguntou com doçura:
- Dize-me, por que tiraste as flores? Pansiao começou a chorar.
- São tão bonitas! - pronunciou entre soluços. - Eu não tenho nada bonito... nem a mais pequenina coisa!
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Quem pensa agora em coisas bonitas? - interrogou
An-lan com azedume.
. E por que não há-de ela ficar com estas ninharias,
se gosta tanto delas? - exclamou Hsieh-ying. E voltando-se para a mulher da loja: -Quanto custam as flores, maldita criatura?
Tirou da algibeira algumas moedas e a vendedora indicou uma de prata. Hsieh-ying deu-lha, injuriando-a copiosamente e franzindo as espessas sobrancelhas para dar ao rosto corado e alegre uma expressão severa. A vendedora, mais calma, retirou-se enquanto Pansiao continuava a chorar. Hsieh-ying então pôs nos cabelos da criança as flores delicadas.
- Não chores mais - disse-lhe meigamente - as flores são para ti e são muito bonitas.
Pansiao levou as mãos ao cabelo para se certificar de que as flores estavam lá de facto. Deixou logo de chorar e continuaram todas o seu caminho.
Enquanto esta cena se passou, Mayli não disse nada, mas a partir desse dia passou a observar Pansiao e mais de uma vez viu a garota apoderar-se de pequenas coisas que não lhe pertenciam, um pente, uma linha, qualquer outro objecto. Um dia desapareceu-lhe o estojo de costura que Liu Ma lhe dera e foi junto de Pansiao e disse-lhe:
- Hás-de dar-me o meu estojo de costura, pois preciso dele para remendar o uniforme.
Pansiao tirou-o da sua mochila e entregou-o a Mayli com um ar tão cândido que a jovem compreendeu que ela não supunha haver maldade em apropriar-se do que não era seu. A partir de então, Mayli teve o cuidado de prevenir toda a gente o que se passava com Pansiao, acrescentando que a garota era mais digna de lástima do que de censura; e sempre que podia, restituía aos donos os objectos que a criança roubava. A guerra não fere apenas o corpo; em Pansiao o espírito é que fora atingido.
Quando Pansiao se apercebeu que ninguém a censurava, tornou a viver alegre e satisfeita e mais do que nunca disposta a fazer tudo quanto lhe mandavam. Só se ouvia
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falar na guerra o seu olhar tomava uma expressão sonolenta.
E assim passavam os dias. Como o acampamento das enfermeiras estava afastado do dos soldados, nem uma só vez Sheng e Mayli se encontraram. No entanto, cada um pensava no outro, mas sem ansiedade. A guerra é para o coração o que a pimenta é para a língua, desvanece todas as outras impressões. O doce e o ácido desaparecem ante um sabor mais forte. E por isso nem Sheng nem Mayli tinham o pressentimento de estar tão perto um do outro.
Embora as mulheres sejam por natureza menos impacientes do que os homens, o desassossego que reinava no acampamento dos soldados acabou por se transmitir ao das enfermeiras. O doutor Chung ardia também em impaciência e para passar melhor esses dias de espera, começou a visitar os doentes da cidade, e não lhe faltava que fazer. Aparecia todas as manhãs no acampamento das enfermeiras, pois era seu dever verificar se ali, como no dos homens, tudo estava nas devidas condições de higiene e limpeza. E todas as manhãs conferenciava também com Mayli, pois era ela quem o prevenia quando alguma enfermeira estava doente. Nesse dia ele disse-lhe:
- Irrita-me ter tão pouco que fazer quando vejo na cidade tantas crianças doentes dos olhos, e escrofulosos e mendigos cobertos de chagas. Não temos o direito de gastar os medicamentos que hão-de fazer falta para os nossos feridos quando a batalha começar, mas podíamos preparar algumas mezinhas com ervas e lavar ao menos essas chagas.
- É uma excelente ideia - concordou Mayli. Desde então todas as manhãs, durante três ou quatro
horas, Mayli abria o portão e os doentes entravam. Chung examinava-os, diagnosticava o seu mal e depois indicava o tratamento a seguir. A maior parte dos pacientes sofria de disenteria, de malária, de doenças dos olhos, de chagas, tudo coisas que podiam tratar-se sem muitos medicamentos.
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Aparecia às vezes um ou outro doente com uma perna que precisava de ser cortada, ou um tumor em qualquer parte do corpo, ou uma mulher com o ventre rasgado por um parto difícil, ou algum outro mal e o médico sentia-se tentado a utilizar o bisturi, único meio de que dispunha para lhe salvar a vida. Mas os próprios doentes lhe evitavam esse trabalho, pois nenhum se deixava operar.
Cortar-me a perna! - exclamou um homem, apontando para o membro gangrenado. - Vim aqui para me tratar não para ficar sem a perna!
E todos os outros concordavam que um homem não podia ir para o túmulo com uma perna a menos, senão como o haviam de reconhecer os seus antepassados?
E por causa de Chung, Mayli também se sentia cada vez mais impaciente com aquela espera.
- Não é para isto que aqui estou - dizia o médico com ar sombrio depois de passar algumas horas a lavar olhos doentes e a limpar úlceras. - Este trabalho podia fazê-lo também em minha casa. Vim, sim, para tomar parte na guerra.
- E porque não partimos? - admirava-se Mayli.
- Sim, com efeito por que não partimos? - repetia o médico, sacudindo a cabeça.
Quanto a Pão Chen, nunca falava nem ouvia. De manhã à noite, no seu pequeno quarto apenas mobilado com uma mesa e um leito, não fazia outra coisa senão escrever. Dirigia queixas ao general, ao Presidente, ao americano, aos jornais, a quem lhe viesse à cabeça, e como se sentava de pernas cruzadas em cima da cama, puxando para junto de si a mesa, tinham-no alcunhado do Buda escritor.
Li Kuo-fan, mais conhecido por Charlie, chegou um dia junto de Mayli e disse-lhe:
- Parto amanhã para longe, mas volto daqui a dezassete dias.
- E se nos pusermos a caminho antes do seu regresso?
- perguntou Mayli.
- Não há perigo que tal suceda - disse o jovem com ar
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sombrio. - Estamos fincados aqui como camelos durante uma tempestade de neve.
Uma espécie de rude amizade se desenvolvera entre os dois desde que tinham atravessado juntos, lado a lado no mesmo camião, a poderosa muralha de montanhas, e de dois em dois dias ou de três em três Charlie chegava, sentava-se perto de Mayli e os dois iam falando enquanto ela trabalhava.
- E onde vai? - perguntou-lhe a jovem nessa noite. Ele juntou as mãos e segredou-lhe:
- Cumprir uma missão.
Mayli ergueu as sobrancelhas e Charlie continuou:
- O general está farto de esperar. Ontem mandou chamar cinquenta homens e incumbiu-os de ir ver o que se passa.
Depois corou muito e acrescentou bruscamente em inglês:
- Peço-lhe que olhe pela sua pequena irmã.
- Pela minha pequena irmã? - repetiu Mayli, admirada.
E fitando-o bem, viu-o olhar para Pansiao, sentada a um canto, e fazer-lhe uma gentil careta.
- É por ela então que cá vem? - exclamou com malícia. - E eu a supor que era por minha causa!
- Eu não me atrevia a vir aqui para a ver - disse o rapaz no mesmo tom. - A senhora é uma dama e o que iria eu fazer, um filho do povo, com uma dama?
Mayli bateu com o pé no chão e tirou o avental, indignada, mas já Charlie fugia a rir. Quando o viu desaparecer, tornou a pensar no que lhe ouvira e compreendeu que ele partia porque também estava impaciente. Os seus olhos pousaram então em Pansiao e a pequena, como se sentisse esse olhar, ergueu lentamente as arqueadas pálpebras e corou.
- Costumas ver Charlie Li quando ele cá vem? - perguntou-lhe.
- Sim, vejo-o algumas vezes - confessou Pansiao e corou mais ainda.
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- Ah! Ah! - exclamou Mayli, inclinando-se para a garota e dando-lhe uma pequena palmada na face, depois na outra, e rindo docemente.
Ele não se parece um pouco com o meu terceiro
irmão? - murmurou Pansiao, para se desculpar do atrevimento.
Mayli inclinou-se mais para aquele rosto implorante.
- Não, não se parece. Absolutamente nada. Sheng é muito mais belo do que Charlie.
É verdade? - proferiu Pansiao. - Então também
me esqueci dele.
Suspirou. Mas Mayli prendendo-lhe carinhosamente o pequeno nariz entre o polegar e o indicador, riu de novo.
Dezassete dias mais tarde Charlie Lie deslizava sub-repticiamente junto do posto da fronteira onde um soldado inglês fazia a guarda. Enganar aquele homem não era coisa difícil. Durante aqueles dias não encontrara um único inglês capaz de diferençar um chinês de um birmanês .ou de um japonês, se estivessem todos vestidos da mesma forma. Alguns ingleses tinham-no mandado descalçar para lhe verem os pés e como o seu dedo grande não estava separado dos outros e usava o vestuário dos birmaneses, deixavam-no passar. Mas o inimigo, sabendo isso, arranjara também maneira de disfarçar essa particularidade. Quatro vezes Charlie se encontrara em presença de espiões inimigos e, desses quatro, matara dois. Ele próprio se transformara de tal forma que era impossível que um inglês o reconhecesse. Escurecera a pele, pois os birmaneses são mais escuros do que os chineses, e vestira um hábito de monge, cor de açafrão. Estava quase a passar sem despertar a atenção da sentinela, quando o inglês o mandou parar, apontando-lhe a espingarda.
- Levanta as malditas mãos do peito! - gritou-lhe. O que levas aí?
Charlie estendeu a bandeja das esmolas, com a qual viera a mendigar pelo caminho.
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- Thabeit - disse com um sorriso forçado, pois é assim que se chama, em birmanês, à bandeja das esmolas.
- Segue à tua vida, mendigo - pronunciou o inglês, deixando-o passar.
E Charlie passou a fronteira, a arder em cólera. Como teria passado facilmente se fosse um inimigo... E como eram estúpidos estes brancos que não confiavam senão em si próprios e de tal forma ignorantes que não sabiam distinguir um amigo dum inimigo. O velho pressentimento voltou a assaltá-lo. Como podiam vencer com tais aliados?
Mergulhado nestes pensamentos chegou, por volta da meia-noite, à pequena cidade da fronteira e dirigiu-se directamente para onde estava o general... Mesmo que já estivesse a dormir, decidiu, acordá-lo-ia. Mas por uma das janelas iluminadas viu o general inclinado para um mapa desdobrado em cima duma mesa; rodeavam-no os seus ajudantes de campo, Sheng, Pão Chen, Yao Yung e Chan Yu, cujas cabeças, muito juntas umas às outras, formavam uma enorme mancha de sombra.
- Alto! - gritou a sentinela postada diante da porta quando Charlie se aproximou.
- Não me demores - disse Charlie. -Trago notícias.
- Dize então a senha! - exigiu o soldado.
Ora como a senha mudava todos os dias, Charlie não podia conhecer a desse dia. Elevando a voz, chamou o general pelo próprio nome e este, atraído pelo barulho, acorreu à porta.
- Que barulho é este? - gritou no escuro.
Mas nesse instante a luz iluminou Charlie; reconheceu-o e mandou-o logo entrar. Uma gargalhada geral acolheu o jovem à sua entrada no quarto, pois parecia verdadeiramente um sacerdote birmanês com a bandeja das esmolas na mão.
- Estes espiões que aparecem uns atrás dos outros, até nos fazem supor que assistimos a uma peça de teatro - disse Sheng com um sorriso.
- Dos cinquenta que partiram, és o décimo sexto a
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voltar - declarou o general. - Agora, conta-me o que há de novo.
O general sentou-se em frente da mesa e fez sinal aos seus ajudantes que se sentassem também; Charlie, olhando ora para um ora para outro, começou a narrativa:
- Fui a Rangoon porque é aí o coração da batalha. O general fez um sinal de aprovação e acendeu um
cigarro. O seu rosto amável endureceu.
- Como sabe, meu general, Rangoon é uma cidade completamente explorada pelos brancos - disse Charlie. A sua voz era branda, mas o seu olhar feroz. - Há numerosas e importantes casas comerciais, mas estão todas nas mãos dos brancos. Há igualmente numerosas escolas, mas são só para os que desejem ser contabilistas, secretários e servidores dos brancos.
- Continua-ordenou o general.
- Mas agora já não há brancos em Rangoon. Deixaram a cidade e refugiaram-se nas colinas, onde esperam... pelo menos foi isso o que disseram aos seus criados... que a guerra termine daqui a algumas semanas.
A sua voz ressoava, igual e calma. Mas a estas palavras, todos os oficiais se puseram a rir.
- Que a guerra termine daqui a algumas semanas! - repetiu Chan Yu, com desprezo.
- Continua - disse o general.
- Há nesta cidade um grande relicário de ouro que contém dois cabelos de Buda - prosseguiu Charlie. Todo o dia os peregrinos sobem e descem os degraus que conduzem a esse santuário e tiram cá em baixo os sapatos, pois até mesmo os degraus são sagrados. Mas disseram-me que já não há nem metade dos peregrinos que havia antigamente.
- Deixa o santuário em paz - declarou o general, acendendo outro cigarro. - Fala-nos do porto. Está bem defendido?
- Nem por isso - respondeu Charlie. - Nunca conceberam nem construíram senão frágeis defesas. E no entanto é um grande porto. Parece que na época da colheita do
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arroz entram e saem mais navios nesse porto do que em todo o ano no de Nova Iorque. Aliás toda a região é extremamente importante para os brancos, pois produz arroz em abundância e petróleo, metais, madeiras raras, teca, etc.
- E a cidade está fortificada? - perguntou o general.
- Absolutamente nada - afirmou Charlie. - E quantas outras coisas desfavoráveis ouvi dizer! Ao longo das docas reparei que havia altas barricadas com arame farpado, aqui e além interrompidas por portas fechadas a cadeado. Supus que tais barricadas se destinavam a deter o inimigo e fiquei muito admirado, pois pensava que mesmo os brancos deviam saber que os nipões não chegariam pelo mar, mas sim por terra. Disseram-me então que essas barricadas não tinham sido erguidas contra o inimigo, mas sim contra os descarregadores do porto. Os brancos receavam que quando a cidade fosse bombardeada, os descarregadores, apavorados, se refugiassem nas colinas, deixando de haver quem descarregasse os barcos. Mandaram portanto construir essas barricadas e, quando o inimigo sobrevoou a cidade, fecharam as portas para que os homens que estavam nas docas não pudessem fugir.
- Foram mortos?!-exclamou Sheng.
- Não são feitos de carne e sangue como nós? - replicou Charlie.
Durante um momento ninguém pronunciou uma única palavra.
- Continua - disse por fim o general.
- O povo é miserável nesta região - prosseguiu lentamente Charlie - morre muita gente tuberculosa. Contaram-me que na cidade de Rangoon há mais pessoas que morrem de tuberculose do que vítimas dos bombardeamentos, embora num só ataque aéreo, no segundo mês, tenha havido mais de mil mortos.
- Continua, continua! - impacientou-se o general. - De que serve nos tempos que vivemos falar de homens que morrem ? Dize-nos antes se nos aeródromos havia aviões e outro material pronto para nos ser enviado.
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- Centenas de toneladas-esclareceu Charlie.-Material vindo da América e aviões desmontados para nos serem remetidos pela Grande Estrada.
O general acendeu outro cigarro. A sua mão tremia.
- Nunca mais o receberemos - murmurou. - Está tudo perdido... todo esse precioso material que esperámos durante tantos meses! O inimigo vai tomar Rangoon antes de mais nada. Claro, primeiro que tudo hão-de querer tomar Rangoon e os seus aviões vão encarniçar-se contra a cidade, como corvos em redor da carcaça duma vaca. Rangoon é o coração da Birmânia.
Não o será dentro de poucos dias - observou Charlie em voz baixa. - A cidade está perdida. Não a podem manter.
O cigarro do general tornou-se incandescente e uma pequena faúlha se desprendeu dele quando o chupou com mais força.
- Os brancos não a podem defender? - perguntou.
- Não, os brancos não defenderão a cidade - afirmou Charlie. E abandonando a voz igual e calma, gritou: Vão retirar!
Os jovens oficiais soltaram exclamações de cólera e de maldição. O general esmagou o cigarro na palma da mão esquerda.
- Já o previa - disse simplesmente. - Isso não nos surpreende. Não devemos admirar-nos.
- Mas nós vamos continuar aqui?-perguntou Yao Yung.
Era um jovem magro e em casa esperavam-no a mulher que ele amava e três filhos.
- Um instante - disse o general.
Falava numa voz tão surda que todos o olharam.
- E nem só um desses brancos ficou na cidade?
- Ficaram alguns - continuou Charlie. - Ouvi falar dum que continua nas docas com os seus homens. E tem junto dele a mulher e dois filhos. Enquanto lá estiver, os navios que ainda chegarem serão descarregados.
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- Os brancos são cobardes? - perguntou o general.
- Não, não são cobardes - pronunciou Charlie lentamente. - Não são cobardes mas são loucos. Não tinham preparado nada e deixaram o povo na maior confusão. Veja, por exemplo - disse, inclinando-se para a. frente, as mãos pousadas nos joelhos - o inimigo enviou mensagens ao povo birmanês, na língua do país, recomendando a todos que não tivessem medo, pois iam libertá-los do jugo dos brancos. O que fizeram os brancos para lutar contra essa propaganda? Publicaram outras mensagens, para sossegar o povo e recomendar-lhe que não desse ouvidos aos rumores que corriam... Mas essas mensagens estavam escritas em inglês, língua que a gente da Birmânia não compreende...
Alguns risos sublinharam as últimas palavras de Charlie.
- Gostava mais que fossem cobardes do que loucos sentenciou Sheng. - Os cobardes fogem, mas os loucos ficam para realizar as suas loucuras.
O general não dizia nada. Estava sentado, de cabeça apertada entre as mãos.
- Saiam - disse por fim. - Saiam todos e deixem-me reflectir no que devo fazer. Você, Pão Chen, fique. Vai escrever uma mensagem ao Chefe Supremo. Quero implorar-lhe uma vez mais que pense no que vai fazer.
Os outros oficiais levantaram-se, fizeram a continência e saíram a um e um. Charlie seguiu-os. O general deixou-o chegar à porta e só nesse momento o chamou para lhe dizer intencionalmente:
- Não me esquecerei de si.
- Então mande-me para outra missão - respondeu Charlie satisfeito, e fez a continência, o hábito de monge a flutuar-lhe em volta do corpo.
O general respondeu a rir:
- Vá vestir o uniforme. Você não engana ninguém que conheça a diferença que há entre um monge e um soldado.
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XII
O general estava bastante inquieto e ainda mais por ter perdido todo o contacto com o Presidente há vários dias. O pequeno posto de rádio que trouxera consigo para a Birmânia, avariara-se e não tinha concerto. Mandou chamar Pão Chen e disse-lhe:
Escreva ao Presidente, seja o mais persuasivo que
possa, a ver se ele compreende bem o que exige de nós. Diga-lhe que o posto de rádio está avariado e não tenho nenhum outro meio de receber as suas ordens. Diga-lhe que não receio nada. Diga-lhe que irei para onde me mandar, mas em nome do nosso povo implore-lhe que nos dê licença de travar o nosso próprio combate e não nos una a um aliado que bate em retirada antes de receber qualquer socorro. Pergunte-lhe se devemos realmente ir para a frente, agora que Rangoon está condenada. Diga-lhe que é a ele e não a mim que compete decidir se as nossas melhores divisões devem embrenhar-se na selva para correr em auxílio dos brancos, ou se não faríamos melhor bater-nos por nossa própria conta. Ponha toda a sua força de persuasão nas palavras, Chen, faça com que elas roam o próprio papel. Diga-lhe que os brancos não nos autorizam a comprar arroz. Pergunte-lhe onde está o Chefe americano. Diga-lhe que estamos para aqui agachados, como macacos numa jaula sentados sobre a cauda, enquanto o inimigo avança; que perto de sessenta mil soldados nipónicos estão já concentrados na fronteira da Tailândia, prontos para o ataque; que esse terreno é o pior de todos para combatermos, e pergunte-lhe se devemos de facto embrenharmo-nos nele não para defender o nosso país, mas sim para salvaguardar o império dos brancos. Diga-lhe que vinte mil soldados inimigos estão na outra fronteira da Tailândia e que entre os dois exércitos inimigos há uma guarda avançada das suas tropas. Que as montanhas de Shan dominam essa região, com cumes que se elevam a seis mil pés, enquanto
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nos vales reina a selva. Diga-lhe ainda que os nossos espiões nos informaram que os brancos deixam atrás de si os poços de petróleo intactos, que não os destroem ou destroem-nos tão superficialmente que alguns meses ou mesmo algumas semanas de trabalho serão suficientes para os pôr em condições de servirem o inimigo. Diga-lhe...
A pena de Pão Chen corria sobre o papel e o suor cobria-lhe o rosto.
- Descreva-lhe as coisas tão negras quanto possa, que nunca lhes dará negrura bastante - disse o general calorosamente.
- Fique descansado...-murmurou Pão Chen. Ambos se calaram e nada mais quebrava o silêncio a
não ser o leve rumor produzido pela pena estrangeira de Pão Chen ao desenhar os caracteres.
- Quer que a leia? -perguntou o oficial quando chegou ao fim da missiva.
- Leia - anuiu o general.
Estava sentado, a cabeça entre as mãos e preparava-se para ouvir a carta quando a porta se abriu bruscamente, dando passagem ao décimo sétimo espião. Trazia as vestes esfarrapadas, os pés em sangue, e fora ferido na mão esquerda que envolvera numa tira de pano rasgada da túnica.
- Rangoon caiu! - gritou ofegante. O general deu um salto.
- Acrescente isso na carta! - gritou. - Rangoon caiu... Diga-lhe que não fomos autorizados a atravessar a fronteira, e entretanto Rangoon caía.
O general, de pé atrás de Pão Chen, mordia o lábio inferior enquanto esperava que o oficial escrevesse as últimas palavras. Depois pegou na carta e numa voz forte chamou um dos seus ajudantes de campo.
- Permita-me - exclamou Pão Chen - permita-me que leve essa carta ao Chefe Supremo. Entregar-lha-ei em mão própria e falarei em seu nome.
O general reflectiu um segundo, o rosto vermelho, as sobrancelhas franzidas, os olhos cheios de cólera.
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Está bem - pronunciou num tom breve. - Meta-se
no avião e vá. Esperarei o seu regresso, mas mais tempo não. Quando voltar, pomo-nos a caminho, numa direcção ou noutra.
O Presidente pousou a carta que Pão Chen escrevera, ditada pelo general. Lera-a cuidadosamente e sem pressas, enquanto a mulher, atrás dele, a lia ao mesmo tempo. Ela estava muito bela nessa noite. Vestia uma túnica de seda esmeralda, muito comprida e bem ajustada ao corpo gracioso; por. cima da túnica, um pequeno casaco de veludo preto sem mangas, muito curto e muito justo também. A gola da túnica era alta e esse verde gritante tornava mais clara ainda a sua pele dourada e avivava-lhe o vermelho dos lábios e o negro dos cabelos lisos penteados para trás. Pão Chen ficou profundamente impressionado com a sua beleza, como sucedia a todos os homens que a contemplavam, mas admirou-a sem qualquer pensamento reservado.
Nem o Presidente nem a esposa diziam nada. Ela que falava com tanta volubilidade como uma criança das coisas mais insignificantes quando lhe agradavam, sabia ficar em silêncio se a prudência assim lho indicava. Sentou-se e juntou as mãos. No dedo brilhava a fabulosa jóia de jade que dir-se-ia fazer parte de si própria e das orelhas pendiam-lhe brincos de jade também. Ergueu para o marido os grandes olhos negros, esses olhos que eram como que a luz da sua beleza, dum branco tão branco, dum negro tão negro e duma expressão tão enérgica e altiva, que todos que a viam, nem que fosse uma vez só, não mais os esqueciam.
O Presidente ergueu a cabeça e trocou com a mulher um longo olhar. Depois voltou-se para Pão Chen que esperava, de pé:
- Não pense que ignoro o que aqui diz. Já o sabia. Mas tenho de olhar para mais longe do que esta batalha. Tenho de pensar no futuro tanto como no presente e nesta guerra nós somos apenas um entre muitos.
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Nesse momento a mulher interrompeu-o, impetuosamente:
- Combatemos sozinhos pelos outros durante anos e anos. Devemos continuar a combater sozinhos?
O Presidente obrigou-a a calar com um simples olhar,
- Sei o que faço - afirmou.
Ela levantou-se, os olhos extremamente brilhantes, e com graça altiva abandonou a sala. O Presidente seguiu-a com a vista. Nos seus olhos havia uma grande ternura mas não disse nada e quando a viu desaparecer, voltou-se para Pão Chen.
- Volte para o seu posto - disse. - Irei ver o que se passa.
E assim, poucos dias volvidos, reinava em todo o acampamento a maior barafunda.
"O Presidente está cá!", murmurava-se de boca em boca e em menos de uma hora toda a gente sabia que ao meio-dia aterrara um avião no aeródromo situado fora das portas da cidade e que dele tinham descido o Presidente, a esposa e o chefe americano. Cada um procurou logo tirar o melhor partido que possuía. Os soldados escovavam o uniforme, puliam a espingarda, lavavam o rosto e as orelhas, alisavam os cabelos, e as enfermeiras, enquanto se arranjavam o melhor que podiam, iam perguntando umas às outras se a mulher do Presidente seria tão bela como todos os homens proclamavam.
- É de facto tão bonita como se diz? - perguntou Hsieh-ying a May li.
- Em minha opinião é - respondeu Mayli a rir.
- Mas não é mais bonita do que vós! - gritou Pansiao, ciumenta.
- É muito mais bonita, sim - declarou Mayli, sorrindo sempre.
-- Já a vi uma vez - disse Siu-chen com orgulho. Há muitos anos, antes da guerra, foi visitar a nossa escola e falou-nos dos cuidados que devíamos ter connosco e com
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nosso vestuário, e do que ela chamava a Nova Vida. É verdade, era muito bonita. Lembro-me que viu as minhas mãos todas gretadas com frieiras, como me sucede sempre no Inverno, e recomendou à directora que me comprasse um creme estrangeiro. Mas como era muito caro, nunca o usei.
A meio da tarde, tudo pronto para a inspecção, Mayli lá estava também, muito aprumada, à frente das suas jovens enfermeiras. O Presidente chegou, acompanhado da mulher, do chefe americano, um homem alto e magro, de cabelos grisalhos, e do general. As jovens fizeram a continência e os seus rostos mantiveram-se graves enquanto o Chefe Supremo as passou em revista. Mas a esposa parou e disse com a sua gentileza habitual:
- Sois magníficas, e nunca o sereis tanto como neste momento em que estais dispostas a servir o país:
E voltando-se para Mayli perguntou-lhe:
- Está satisfeita?
- Sim, muito satisfeita - respondeu a jovem, sem deixar a posição de sentido.
Mas a mulher do Presidente demorou-se um pouco mais e pousando dois dedos delicados no braço de Mayli disse-lhe em voz baixa:
- Venha ver-me daqui a meia hora.
Várias enfermeiras ouviram o convite e invejaram Mayli, umas amavelmente, porque a estimavam, outras sem amabilidade nenhuma, pois não morriam de amor por ela. Meia hora depois, Mayli dirigiu-se ao quartel-general onde a esposa do Presidente a demorou mais de uma hora. Estava sozinha, pois o Chefe Supremo discutia nesse momento os planos da campanha com os oficiais superiores, e assim aproveitou a ocasião para fazer a Mayli uma infinidade de perguntas.
- Recomendei-lhe que fosse os meus olhos e os meus ouvidos - disse-lhe. - Conte-me, pois, tudo quanto viu e ouviu.
Escutou atentamente o relatório de Mayli, fazendo de ora em quando uma ou outra pergunta acerada.
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Ao fim duma hora, pôs a mão sobre os olhos e suspirou profundamente. Mayli esperava que ela falasse, mas ouviu-a apenas pronunciar:
- Vá deitar-se. Os seus olhos e os seus ouvidos foram-me fiéis, mas deram-me notícias tristes, mais tristes do que pode imaginar.
Nesse momento o Presidente entrou e mal viu a esposa disse imediatamente:
- Não se sente bem?
- Não me sinto bem, com efeito.
O Presidente inclinou-se, fez um sinal a Mayli e ordenou:
- Depressa, depressa, vá chamar o médico.
Mayli ia abandonar a sala; ela, porém, reteve-a com o gesto.
- Não, quero voltar já para casa. Partamos imediatamente. Mande preparar o avião.
E dizendo isto ergueu-se e começou a andar dum lado para o outro. Parecia sofrer muito. O Presidente deu ordens à sentinela que estava à porta e Mayli saiu.
Pouco depois as enfermeiras ouviram por cima das suas cabeças o roncar dos motores do avião que voava para Leste e assim que desapareceu no horizonte e Mayli deu ordem de dispersar, os pátios encheram-se de gritos de admiração, de risos e de elogios ao Presidente e à esposa que para essas jovens simples não eram somente os chefes respeitados, mas, mais do que isso, o perfeito símbolo do amor entre o homem e a mulher, esse amor que todas desejavam intimamente e que talvez nunca chegassem a encontrar.
A própria Mayli sonhou essa noite, pensando em Sheng com maior ansiedade do que nos últimos tempos. O Presidente, na sua juventude, não fora também um rapaz rude? Lembrou-se uma vez mais que, tal como Sheng, era filho duma família humilde, que tivera poucos estudos, não falava nenhuma língua estrangeira e estava habituado às privações e ao mais duro trabalho. Contavam-se muitas histórias da sua juventude aventurosa. Nem sempre fora o homem grave que era agora. Mayli suspirou e, perguntando a si própria onde estaria Sheng nesse instante, saltou do
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leito e aproximou-se da janela. Ao contemplar a estreita faixa de céu estrelado, entregue mais às impressões do que aos pensamentos, sentiu-se de repente perto dele.
Não longe dali, Sheng estava estendido na sua tarimba, num dos abarracamentos, no meio duma longa fila de homens. Sob as suas pálpebras fechadas, contemplava Mayli. Ele também se encontrava à frente dos seus homens quando o Presidente e a mulher tinham passado revista às tropas e ela lançara-lhe um longo e profundo olhar que o comovera, pois fizera-lhe lembrar o de Mayli.
Teve de fazer os maiores esforços para se conservar imóvel e não se deixar vencer pela emoção. Talvez nunca mais a visse...
Uma vez terminada a inspecção, o Presidente chamara todos os oficiais superiores.
- Amanhã - declarara-lhes - conduzireis os vossos homens para lá da fronteira. Não esperaremos mais.
Nesse instante o seu olhar penetrante pousara em Sheng.
- Olá, jovem gigante - disse-lhe com ar bondoso. - Lembro-me perfeitamente de si, do seu nome, da sua família. Mandei-o para aqui porque o considero um dos melhores oficiais. E recomendei ao general que se houver uma missão verdadeiramente difícil, lhe seja confiada.
A estas palavras o orgulho de Sheng tremulou como uma flâmula.
- E cumpri-la-ei - respondeu.
Mayli atravessou a fronteira à frente do seu pequeno grupo de mulheres.
"Pisamos agora solo estrangeiro", pensou, e um arrepio percorreu-lhe todo o corpo. O que sucederia naquela terra a todas essas jovens que comandava?
Era uma manhã sem sombras e sem nuvens e todos iam a pé, pois os caminhos da Birmânia, estreitos e sinuosos, , não são feitos para veículos de qualquer espécie. À frente das enfermeiras marchavam os carregadores que transportavam as armas e as munições e mais adiante ainda os
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soldados. Mayli via-os serpentear na estrada, qual animal imenso, todos os homens uniformemente vestidos de azul. Também ela, como as enfermeiras, usava o mesmo uniforme. E nada mais distinguia o general dos seus soldados além da placa de esmalte azul sobre a qual se via a estrela branca chinesa. Atrás das enfermeiras, marchavam mais tropas, na estrada em ziguezagues, tão longe quanto a vista podia alcançar.
Mayli sorria para as companheiras. Pareciam frescas e robustas ao sol matinal, com a pele bronzeada e os olhos claros. Nenhuma pintava os lábios ou as faces. Todas essas coisas estavam esquecidas. A própria Mayli renunciara ao carmim e ao pó no rosto. Lavava bem a cara com água quente e sabão, como as outras. Por vezes, passavam à noite um pouco de gordura de carneiro pelas faces queimadas do sol e nas mãos, e era tudo. No entanto Mayli nunca se sentira tão forte e nunca também parecera tão bonita, e ela sabia-o. A própria An-lan começava a perder a palidez. A delicada rapariga ainda não sorria mais do que outrora, mas já havia menos desespero nos seus olhos.
Encontrando o olhar de Mayli, disse-lhe com ar sério:
- É a primeira vez que os nossos exércitos avançam em terra estrangeira.
- Sim, é a primeira vez, com efeito - respondeu Mayli, surpreendida e grave.
Sim, era a primeira vez que os soldados chineses e mulheres chinesas deixavam o seu território para combater. Mayli reflectia em tudo isso enquanto caminhava. Atrás, ficava a China; na sua frente e em toda a volta, a Birmânia. Ergueu os olhos e contemplou as verdes colinas. Se fosse possível cortar ali o país com uma faca, ficaria dividido em dois: alta e baixa Birmânia. À direita, o terreno elevava-se mais rapidamente ainda do que à esquerda. Para o norte, as colinas irregulares trepavam até as montanhas, mas para o sul o país descia até o mar. A estrada retorcia-se, sem razão aparente, ondulava e serpenteava ao bel-prazer daqueles que a haviam traçado para o seu serviço, séculos após séculos. Era um país rico. Mesmo nessa
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época do ano os arrozais estavam verdes e ela via os camponeses dobrados para o seu trabalho. De ora em quando, como um clarão a brilhar no meio da verdura, distinguia-se o hábito dum monge, cor de açafrão. Havia muitos monges na região e quase todos jovens.
Mas monge ou não, quem quer que encontrassem no caminho mostrava-se alegre e risonho. Toda a gente parava para os ver passar: os camponeses abriam muito os olhos e as crianças chupavam o polegar. Quando atravessavam as aldeias, de casas construídas sobre estacas, os habitantes interrompiam os seus trabalhos para os verem bem. Ao meio-dia fizeram alto, mas não numa povoação, pois o exército transportava as suas próprias provisões. O general dera ordens terminantes que ninguém tirasse à população nem um ovo sequer. Comprariam os alimentos de que precisassem, sem necessidade de lançar mão fosse ao que fosse que não lhes pertencesse. Deviam recusar os próprios presentes.
- Lembrem-se que pela forma como agirem podem honrar a pátria ou desonrar os vossos antepassados - dissera-lhes o general.
Assim, quando receberam ordem para parar, as jovens enfermeiras sentaram-se em pleno campo, à beira do caminho, e comeram a tigela de arroz que constituía a sua ração, com o chá fraco que traziam nos cantis.
O sol estava quente, a estrada cheia de poeira, e enquanto descansavam, um bando de garotos aproximou-se, parou a pouca distância e ficou ali a observá-las. Mayli ofereceu-lhes um punhado de arroz, mas a esse gesto as crianças puseram-se em fuga.
- Como são bonitos! - suspirou Chi-ling. - Eu também tive um filho...
E dizendo isto ergueu-se, afivelou o cinturão e voltou as costas às crianças. Mas nenhuma disse nada nem lhe respondeu. Naqueles tempos perturbados já ninguém fazia perguntas. Quem é que não tinha perdido um ente amado?
Por fim chegou a ordem de se porem de novo a caminho. Todas se ergueram e retomaram o passo largo e fácil
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que lhes permitia percorrer vinte milhas, depois vinte e cinco, depois trinta num só dia. A tarde avançava e o sol declinava já no horizonte e ainda elas marchavam para o Sul, na direcção de Sittang. Todas sabiam que os aliados batiam em retirada diante dos nipónicos e que os exércitos chineses deviam reforçá-los no flanco esquerdo e atacar o inimigo.
Atacar o inimigo! Pronunciavam estas palavras tão facilmente como se se tratasse dum encontro, uma festa, um passeio. No entanto, intimamente, Mayli sentia certos receios e apreensões.
Nessa noite, a primeira noite passada em terra estrangeira, apoderou-se de todos um profundo mal-estar. Fizeram alto ao pôr do sol, num vale pouco profundo, entre pequenas colinas, e embora estivessem extremamente fatigados ninguém conseguia conciliar o sono. Por cima das suas cabeças, tanto a leste como a oeste, o céu cor de pérola passou de rosa a púrpura. Em seu redor, as luzes das aldeias, semelhantes a pirilampos, brilhavam e palpitavam na noite nascente. Mayli agrupara as enfermeiras em sua volta, mas nenhuma se decidira a "ir enrolar-se nos cobertores já estendidos. A inquietação dos homens transmitira-se às mulheres. Umas estavam sentadas, silenciosas, outras andavam dum lado para o outro, tropeçando ao passar nas que se tinham já deitado. No ar vibrava o zunido dos mosquitos e de vez em quando ouvia-se o barulho duma palmada e duma imprecação, logo seguidas doutras palmadas e doutras imprecações.
"Por que estaremos tão nervosas?", perguntava Mayli a si própria. Somente Pansiao conseguia dormir. Estendera o seu cobertor perto do de Mayli, enrolara-se nele completamente, incluindo a cabeça, para se proteger dos insectos, e Mayli ouvia-a respirar tão profunda e regularmente como uma criança.
De súbito, ouviu alguém pronunciar o seu nome e a enfermeira mais perto de si logo apontou para uma silhueta um pouco afastada do círculo. Levantou-se e caminhou ao encontro dessa sombra, reconhecendo Pão Chen.
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O general disse-me para vir aqui - pronunciou o
oficial em voz baixa. - Mandou-me perguntar-lhe se as suas subordinadas não podiam ir distrair um pouco os soldados... Talvez com cantos, declamações, danças ou alguma pequena comédia. Os homens estão inquietos. Dizem que andam no ar espíritos malignos.
Mayli ficou tão surpreendida que teve de reflectir um instante.
- Sim, é possível - disse rapidamente. - Siu-chen pode cantar algumas canções estrangeiras. Hsieh-ying sabe bem a dança da espada... e... sim, vamos arranjar qualquer coisa. Diga ao general que estaremos prontas daqui a meia hora.
Pão Chen inclinou a cabeça em sinal de assentimento e desapareceu; Mayli voltou para o círculo que formavam as jovens, bateu as palmas para chamar a atenção de todas, depois explicou o que o general pedira e na sua voz alta e clara, que alcançava mais longe que a voz dum homem, continuou:
- Que todas as que saibam fazer alguma coisa o digam. Nada de timidez! Pensem nos soldados que precisam de se distrair e rir para poderem adormecer. Vamos, decidam-se, aproximem-se de mim, é uma maneira de servir o país.
As jovens enfermeiras também sentiam decerto necessidade de se distrair um pouco, pois começaram todas a falar e a rir ao mesmo tempo e Mayli não pôde deixar de sorrir. Estas raparigas, como eram ainda novas! Se não houvesse guerra, a maior parte estaria ainda nas escolas ou no seio da família, e no entanto estavam ali, incorporadas num exército que ia empenhar-se na luta contra o pior inimigo que o seu país jamais conhecera! E Mayli que detestava as lágrimas, sentiu apertar-se-lhe a garganta em face dessa explosão de inocente alegria, enquanto fazia esforços para que os seus lábios trémulos sorrissem.
- Vamos, vamos - disse. - Ou terei de esperar toda a noite?
Uma a uma as jovens avançaram.
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- Conheço algumas canções estrangeiras - disse Siu-chen.
- E eu sei a dança da espada - declarou Hsieh-ying.
- E eu conheço uma sorte de prestidigitação que o meu irmão me ensinou - anunciou An-lan.
- Eu posso contar algumas histórias - afirmou Chi-ling.
E assim, uma após outra, umas vinte avançaram, pois todas sabiam fazer qualquer coisa, e dirigiram-se, conduzidas por Mayli, para o acampamento dos homens, onde estes já as esperavam, tendo formado um grande círculo. Pão Chen recebeu-a e deu início aos aplausos. Os soldados seguiram o seu exemplo, mas sem grande entusiasmo e só por breves instantes.
O recinto estava iluminado por luar brilhante. Pão Chen falou e tão bem que dir-se-ia que lia num livro.
- Meus irmãos - disse - esta noite encontramo-nos distantes dos nossos lares e do país que nos viu nascer. É verdade que nunca os nossos antepassados fizeram o que nós fazemos hoje. Vamos combater na terra dum povo que não é o nosso. Isto é para nós um acto tão estranho que nos sentimos inquietos, perguntando cada qual a si próprio se na realidade temos o direito de agir assim. Sosseguem, meus amigos. Executamos apenas as ordens do nosso Chefe Supremo, ao qual devemos obediência. E o inimigo continua a ser o mesmo, o que ainda hoje lançou bombas nas nossas casas e matou centenas e milhares de compatriotas. Embora estejamos numa terra estrangeira, não viemos para a conquistar. Quando vencermos o inimigo, voltaremos para as nossas casas e não levaremos nada que não tenhamos trazido connosco. Podemos portanto estar certos de que tudo quanto fazemos é justo. E agora, para dar alívio aos nossos corações e podermos dormir melhor, as nossas irmãs consentiram em cantar, declamar e dançar para nós durante uma hora ou duas. Pouco nos importa saber como se chamam. São nossas irmãs e isso nos basta.
Dito isto, inclinou-se e afastou-se para o lado. Mayli
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então avançou, explicando nalgumas frases simples e curtas o que .iam fazer. Não indicou nenhum nome, nem mesmo o seu, pois os nomes não interessavam. Na sua frente, brilhantemente iluminados pela luz do luar, via numerosos rostos de soldados que para ela também não tinham nome.
- Uma de nós canta, outras contam histórias e seis representam uma pequena peça, cujos papéis desempenharam em várias povoações do país, quando andavam de aldeia em aldeia a explicar ao povo o que é esta guerra e como todos a devem travar e vencer, tanto nas fileiras do exército como em suas casas.
No momento em que Mayli começou a falar, Sheng encontrava-se nas últimas filas de soldados. Estremeceu e levantou-se de repente. Seria possível que a voz duma outra jovem se parecesse tanto com a voz de Mayli? Pôs-se à escuta, atentamente, não conseguindo porém ouvir todas as palavras, pois estava muito longe e os mosquitos ensurdeciam-no. Mas como divisar-lhe o rosto à luz do luar? Usava o mesmo uniforme de todas as outras jovens e parecia um rapaz. Viu que uma brisa ligeira lhe agitava os cabelos curtos, mas não conseguiu distinguir-lhe claramente as feições.
Voltou a sentar-se no chão. Evidentemente, não era Mayli. Como podia ser ela se a deixara a centenas de milhas de distância, na sua pequena casa de Kunming?
Lembrou-se então em que circunstâncias a vira a última vez. Não pudera ver-lhe o rosto, mas reconhecera o anel de jade que ela usava sempre no dedo. Saía do gabinete do general e recordava-se ainda desses momentos de espera, na companhia dos outros oficiais, e das grosseiras insinuações do soldado.
- Terão de esperar muito tempo, irmãos mais velhos
- pronunciara ele com ar irónico - o general está no gabinete com uma linda rapariga.
E quando essa rapariga saiu, reconheceu Mayli! Partira com os seus homens no dia seguinte ao romper da manhã e não fora pedir-lhe explicações. Um homem que
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parte para combater não vai humilhar-se diante duma mulher.
A jovem continuava a falar e por fim cantou uma canção estrangeira, numa voz alta e harmoniosa. Sheng nunca ouvira músicas estrangeiras, a não ser algumas vezes na rádio, mas Charlie, sentado ao seu lado, conhecia bem tudo quanto era estrangeiro. Assim, inclinando-se para ele, perguntou:
- O que está ela a cantar?
- Alguma canção que aprendeu na escola - explicou Charlie. E após um instante de reflexão traduziu: Embriagas-me só com os teus olhos.
- Embriagas-me só com os teus olhos! - repetiu Sheng, admirado. -- Que quer isso dizer?
- Quer dizer - explicou Charlie - que quando uma mulher nos olha, não é preciso vinho para nos embebedar.
Sheng não disse mais nada. Escutava as palavras estrangeiras e aquela voz pura e clara. A própria melodia lhe fazia mal. Insinuava-se em todo o seu ser e fazia-o tremer. " É verdade", disse, pensando em Mayli, "que quando a olho me sinto embriagado como se tivesse bebido vinho, e um calor estranho circula-me nas veias".
Quando a jovem acabou de cantar, levantou-se.
- Para onde vais? - perguntou-lhe Charlie.
- Isso é comigo - respondeu secamente Sheng, abrindo caminho por entre os homens sentados ou estendidos no chão. Afastou-se, pôs a sua manta ao pé duma árvore, enrolou-se nela da cabeça aos pés e entregou-se completamente ao sentimento de solidão que o invadia.
XIII
Sheng só acordou quando alguém tropeçou no seu corpo. Antes de conseguir levantar-se, sentiu-se pisado por vários pés. Por fim, lá se ergueu a praguejar:
- Oh! Filhos duma cana!
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E, estendendo um braço, agarrou a primeira perna que encontrou. O homem caiu por cima dele e durante breves instantes os dois lutaram. Depois ergueram-se ambos.
- Maldita seja a tua mãe! -exclamou o outro. Olharam-se com ar feroz. - Mas você é oficial! - disse o homem, ao ver as divisas no ombro de Sheng. - A dormir quando há ordem para nos pormos imediatamente em marcha! Os nossos aliados estão cercados, seu dorminhoco! Onde param os seus homens?
Sheng abriu a boca de pasmo, depois esfregou rudemente a cara com as duas mãos. Sem pronunciar palavra, afastou-se, abrindo caminho com os cotovelos através da massa compacta de soldados.
Quanto tempo dormira? Certamente não chegara a uma hora. No céu cintilavam as estrelas e o silêncio da noite era profundo no vale. A música que ouvira antes de adormecer, soava ainda nos seus ouvidos.
- Não passo dum animal - exclamava, envergonhado.
- Como consegui adormecer assim?
Avistou um dos seus homens e caminhou ao seu encontro.
- Olá, Caranguejo! - gritou-lhe.
Chamavam Caranguejo àquele homem porque fora ferido numa batalha e o ferimento deixara-lhe a perna esquerda mais curta do que a outra, de forma que quando caminhava parecia andar de lado.
- Por que é todo este barulho? - perguntou-lhe.
E puxando-o para o lado, afastou-se um pouco, dando grande volta antes de atingir a sua tenda, para evitar o ajuntamento dos soldados.
- Como o posso saber? -respondeu-lhe o homem. Não passo dum simples soldado e ninguém me diz nada. Mas enquanto as enfermeiras representavam a peça, no momento em que uma jovem estudante ia ser feita prisioneira. .. conseguira matar seis inimigos graças a um veneno que punha nos lábios... exactamente nessa altura chegou a correr um mensageiro do quartel-general, dizendo que nos preparássemos para partir dentro duma hora, pois os
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brancos estão cercados ao Sul do rio e reina entre eles a maior confusão, na vanguarda, na retaguarda, no meio das tropas e esses demónios dos japoneses atacam-nos de todos os lados. Parece que os brancos já não têm provisões nem água e se não chegarmos a tempo morrerão como tordos. A estas palavras Sheng apressou o passo, deixando para trás, a manquejar, o Caranguejo. Em poucos minutos atingiu o quartel-general, onde encontrou os camaradas reunidos, à espera de ordens. Se houvesse a mínima apreensão no espírito do general, era impossível descobrir-lha no rosto. De pé atrás da secretária, de papéis na mão, dava ordens numa voz baixa mas clara e firme.
- Você, Pão Chen - dizia - coloca os seus homens ao centro. Yao Yung e Chen Yu avançam nas duas alas.
Erguendo os olhos, viu Sheng e no seu olhar penetrante brilhou um lampejo de riso.
- Quanto a você, Sheng, parece que dormiu em cima dum monte de ervas - pronunciou, sem mudar de tom.
Sheng levou a mão aos cabelos. com a pressa, esquecera-se do boné de oficial no lugar em que dormira e tinha os cabelos cheios de folhas secas de bambu. Alisou-os à pressa com os dedos, o rosto muito corado.
- Não passo dum animal - resmungou. - Quando há silêncio em volta de mim, adormeço logo.
- Não corre o risco de lhe suceder o mesmo nos dias mais próximos - observou o general ironicamente. -- Os seus homens marcham na vanguarda e devem estar prontos para partir dentro duma hora. Dirige-se primeiro para o Sul, flectindo depois para o Oeste. Tem de atravessar o rio tão depressa quanto possível, mal encontre um vau, pois não é muito provável que as pontes ainda estejam praticáveis. O inimigo, ao que parece, cercou completamente os brancos.
- Pode estar certo da minha inteira obediência - respondeu Sheng.
E fazendo a continência, os cabelos sempre desgrenhados, saiu da sala. Assim que transpôs a porta, começou a correr e por pouco não derrubava o médico que a toda
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a pressa se dirigia ao quartel-general. O rosto de Chung estava tão pálido como a papelada que levava na mão.
- O general está lá? - gritou para Sheng ao passar.
- Então onde havia de estar? - respondeu o outro no mesmo tom.
Na obscuridade, uma mulher caminhava a passo apressado e ligeiro ao lado do médico, mas Sheng não se voltou para a ver.
Era Mayli. Ao ouvir a voz de Sheng, parou e ficou a ver desaparecer no escuro aquela alta silhueta. Uma luz vacilante, suspensa à porta do quartel-general, era tão fraca que não tinha forças para vencer as trevas. À entrada, Chung voltou-se e chamou por Mayli:
- Apresse-se... O tempo urge! Não podemos partir sem recebermos ordens precisas.
Mayli recompôs-se. Não era de facto ocasião propícia para sonhar. E além disso não havia no exército milhares de jovens com voz forte? Para que pensar em Sheng naquele momento?
- Não me demoro - pronunciou com firmeza e entrou no gabinete do general.
Antes da meia-noite o exército pôs-se em marcha. O principal era saber se os brancos podiam ou não ser socorridos antes que fosse demasiado tarde. As pequenas inimizades foram esquecidas e homens e mulheres só pensavam numa coisa, honrar a pátria, correndo em auxílio daqueles que sempre os tinham tratado como amos e senhores.
- Desta vez são eles que nos chamam - dissera bruscamente o general. Um orgulho desdenhoso brilhava-lhe nos olhos e endurecera-lhe a voz. - Até aqui, não prestávamos para nada, mas agora estão completamente cercados por esses anões do mar do Oriente e precisam de nós. Pois bem, vamos mostrar-lhes do que somos capazes.
Foi com este espírito que cada homem se aprestou a cumprir o seu dever e que todos se puseram em marcha.
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A distância não seria percorrida num dia, nem mesmo em dois ou em três. O terreno era difícil e escasseavam os caminhos, pois os brancos tinham construído poucas estradas importantes durante todo o tempo em que administraram o país. Serviam-se por isso de velhas e estreitas estradas, cheias de lama seca e de pedras partidas, marcadas pelas rodas primitivas dos carros dos camponeses. Por vezes a estrada minguava tanto que era simples carreiro por onde só se podia transitar a um e um; por duas vezes tiveram de abrir passagem através da selva, mas por sorte em pleno dia, tornando-se assim mais fácil evitar as serpentes, as sanguessugas e todos os horríveis animais que pululam nas florestas. E se todos os cuidados eram poucos para verem bem onde pousavam os pés, não podiam ao mesmo tempo esquecer-se de esquadrilhar atentamente o céu, que os aviões inimigos enxameavam, procurando descobrir as colunas de socorro que iam em auxílio dos brancos sitiados.
- Apesar das serpentes, estamos mais em segurança na selva - disse Sheng para aqueles que o seguiam.
Todos vestiam capotes verdes e levavam ramos de verdura na cabeça, para se confundirem com a floresta que os cercava e passarem despercebidos a quem observasse lá de cima. Mayli, que caminhava à frente das enfermeiras, também lhes ordenou que cobrissem a cabeça com ramos de árvore. Ao observá-las pouco depois, notou que todas ficavam bonitas com esse ornamento improvisado. Eram tão jovens que tudo lhes servia de pretexto para rir, tendo transformado numa brincadeira esse artifício contra a morte. Inclinavam-se umas para as outras e dispunham com graça essa coroa de folhagens, escolhendo as plantas com cuidado. Pansiao colheu, numa trepadeira, flores escarlates, misturou-as na sua coroa e o seu pequeno rosto redondo ficou tão encantador com aquelas flores que todos lhe sorriram.
Sheng caminhava na vanguarda, à frente de todos. Mayli e as suas enfermeiras seguiam na retaguarda do mesmo exército. No entanto, os dois jovens não se tinham
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ainda encontrado e ignoravam que tomavam parte na mesma campanha. Apesar dos múltiplos deveres que os ocupavam dia e noite e apesar da fadiga da caminhada, um e outro pensavam, durante um segundo, um instante fugidio, na voz, na silhueta que supuseram reconhecer e que não devia ser de quem imaginavam. Depois, a guerra, ainda e sempre, tomava posse deles, com os seus pesados deveres, deixando-lhes pouco tempo para sonhar...
Todas as noites, quando faziam alto, Mayli tinha de verificar se as enfermeiras recebiam a sua ração e ficavam devidamente instaladas até o outro dia. Sheng, por sua vez, depois dos seus homens terem comido o arroz e a geleia de soja, que era toda a sua refeição, e bebido a água que conseguiam encontrar no caminho, devia debruçar-se sobre os mapas e enviar patrulhas para colherem todas as informações possíveis sobre a posição do inimigo e o cerco dos brancos.
Os habitantes do país sabiam agora que os brancos estavam cercados e uma alegria maligna iluminava-lhes os rostos. Era uma satisfação ruim que Sheng considerava um sinal de hostilidade, pois era igualmente dirigida contra eles, que iam em auxílio dos brancos. Esse ódio recaía especialmente nos desgraçados hindus que viviam nessas paragens, pois os birmaneses têm pelos hindus uma aversão enorme, acusando-os de roubarem à população do país o arroz e o trabalho que de direito lhe pertencem. Sheng descobriu em toda a parte sinais desse ódio, primeiro ao avançar para o Sul, depois para o Oeste, e teve oportunidade de salvar em várias ocasiões a vida dalguns hindus ou mesmo de toda uma família. Um desses hindus manifestou por ele tal reconhecimento, que abandonou os seus e seguiu Sheng durante toda a jornada. Mas ao fim de um dia, a devoção do hindu tornara-se para Sheng um fardo e assim, chamando o Caranguejo, ordenou-lhe que levasse o pobre diabo para junto dos soldados.
- Sinto-me pouco à vontade com essa maneira que ele tem de estar sempre a olhar para mim e de se precipitar ao mínimo gesto que eu faça - explicou Sheng.
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Se o hindu agia assim, é porque Sheng o arrancara das mãos dum birmanês que regara o infeliz de gasolina e se aprestava para lhe lançar fogo. Desse dia em diante foi o Caranguejo que passou a ocupar-se do homem, indicando-lhe o que devia fazer, e o hindu obedecia-lhe como um cão.
Entretanto, o general pusera Charlie Li ao lado de Sheng, pois Sheng era apesar de tudo um homem das montanhas e não estava habituado a viver fora do seu país. Charlie, pelo contrário, era um desses homens que pertencem ao país cujo solo pisam e compreendem o povo como os camponeses decifram a linguagem dos ventos e das nuvens e adivinham o seu pensamento como se este se evolasse com a própria respiração. Todas as noites voltava para junto de Sheng e contava-lhe o que pudera descobrir, pois durante o dia, ora à frente ora à retaguarda das tropas, vestido com o hábito de monge, misturava-se com a população e como sabia o suficiente a linguagem do país, compreendia uma parte e adivinhava o resto.
- Será preciso mais de uma geração para apagar o ódio que existe contra nós por combatermos nesta guerra ao lado dos brancos e não ao lado dos homens da nossa raça
- disse uma noite Charlie a Sheng, com ar triste. Acusam-nos de trair a nossa causa. O inimigo anda por toda a parte a repetir que somos os únicos a dar auxílio e assistência àqueles que os governam. Se não fosse por nossa causa, e isso ouço-o dizer em todo o lado, há muito tempo que tinham ganho a guerra e que os brancos teriam retirado.
Sheng afastava-se sempre dos seus homens para conversar com Charlie e nessa noite estava sentado num tronco apodrecido próximo da orla da selva onde acampavam, longe de qualquer aldeia para evitar toda a surpresa possível.
Em volta do acampamento postavam-se vários soldados de atalaia, bem vigilantes, pois nenhum ignorava o perigo que os ameaçava. Sheng estava sentado, as pernas afastadas, as compridas mãos pousadas nos joelhos, a cabeça
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erguida e o olhar atento. Não cessava de olhar em volta, enquanto respondia a Charlie:
-. Se não tivesse sofrido o que sofri desses japoneses, e o que sofri nunca o direi a ninguém, se não tivesse visto o que vi na cidade perto da qual fica a casa de meu pai, se não tivesse assistido ao que se passou na aldeia dos meus antepassados, então diria que essa gente tem razão para afirmar que traímos os da nossa raça. Mas o que vi jamais esquecerei. Aos brancos, não os conheço. Desde que nasci, nunca tive ocasião de me aproximar de qualquer deles. Mas aos anões do mar do Oriente, a esses conheço-os bem, vi como procederam; até morrer, serão meus inimigos, e mesmo depois de morrer não os esquecerei.
A sua voz ressoava na noite como um trovão abafado . Depois continuou:
- Posso amar os brancos que nunca vi? Era preciso que fosse louco. Não, não é para salvar os brancos que aqui estou esta noite e piso um solo que não é o meu, cujas areias e ventos não me são familiares. Mas se os brancos são inimigos dos meus inimigos, então são meus amigos.
- O país está infestado de espiões - anunciou Charlie. E ao dizer isto coçou o ouvido, num gesto nervoso. Entre os sacerdotes, nove em dez são pelos japoneses, e entre a população ninguém será capaz de levantar a mão contra eles.
- Então este povo também é meu inimigo - proferiu Sheng com ar sombrio.
Ergueu-se e contemplou esse país estrangeiro, envolto em trevas, que o rodeava. Respirou o ar da noite.
- O próprio vento tem um odor estranho - disse. Um odor de podridão.
- É a selva - explicou Charlie. - A selva está podre. Calaram-se por algum tempo, cada um recusando-se a
exprimir os seus receios.
- vou dormir - declarou por fim Sheng numa voz dura e rouca, como o rosnar dum cão.
- vou também repousar uma ou duas horas, depois retomarei o meu caminho - respondeu Charlie. - Duma
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maneira ou doutra, voltaremos a ver-nos. Antes de cair a noite de novo descobrir-lhe-ei o rasto.
- Na terceira alvorada que se seguir a esta, devemos chegar ao nosso destino, a não ser que os brancos tenham retirado para mais longe ainda - afirmou Sheng.
- Retirado! - repetiu Charlie. - Mas se não podem retirar... Já não têm uma única aberta e não são capazes de andar senão por estradas por causa do seu material.
Os dois jovens soltaram uma risada sem alegria e com estas palavras se despediram.
A marcha realizou-se nesses dias no maior silêncio. O general sabia agora exactamente, com o possível erro de um terço de milha, o local onde os brancos esperavam a sua ajuda. Estava em ligação, por meio de mensageiros, com o chefe americano, mas não tinha muita confiança nele. O americano era naquele país mais estrangeiro do que ele próprio. No decurso dessa longa caminhada, tomara a decisão de não contar senão consigo. Aquela guerra excedia a capacidade de entendimento dum branco que só conhecia bem os homens da sua raça. O general sentia agora um soberano desprezo por todos esses brancos, quaisquer que eles fossem, que tinham abandonado a pátria para virem combater no meio de povos que nem sequer sabiam distinguir uns dos outros. E por várias vezes um amargo sorriso lhe entreabria os lábios, enquanto avançava, a pé como os seus homens, o rosto manchado pelas sombras dos ramos colocados em cima do capacete.
"Estes brancos!", dizia de si para si, numa mistura de angústia e desprezo. "Não sabem distinguir um rosto trigueiro doutro. Se um inimigo aparecesse na sua frente e lhes dissesse que era um aliado, acreditavam logo".
Os seus espiões contavam-lhe todos os dias histórias a esse respeito. O inimigo não usava uniforme; vestido somente com umas calças e umas sandálias ou sapatos com solas de borracha, misturava-se com a população, vestida da mesma forma, e os brancos não distinguiam uns dos
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outros, pois não conheciam a língua que falavam. Tinham governado aquele país durante centenas de anos e no entanto não eram capazes de diferençar um rosto de outro, nem um dialecto de outro.
"E é gente desta que vamos socorrer!", pensava o general O seu desprezo crescera tanto, que quando o chefe americano, durante a tarde, lhe transmitiu ordens, indicando-lhe para onde devia dirigir-se e o que tinha a fazer, o general amachucou os papéis na mão e atirou-os para longe.
"Só devo ter confiança no pouco saber que possuo", disse para consigo.
Esse desprezo do general, pelos brancos filtrava-se-Lhe na voz, no olhar e nas palavras que empregava e todos os que o rodeavam absorviam-no sem mesmo dar por isso. Iam em socorro de aliados, mas por mais esforços que fizessem não tinham confiança neles. Estavam no entanto animados da melhor boa-vontade e mesmo os reticentes compreendiam bem que não havia alternativa para agirem de outra forma. Tinham de combater ao lado dos brancos ou contra eles, e baterem-se contra eles significaria aliarem-se aos seus inimigos, o que não podiam fazer.
Além do mais, não havia um só homem que não ouvisse ainda ressoar aos ouvidos as últimas palavras que lhes dirigira o Presidente. A sua voz forte fustigara o ar como uma chicotada por cima das suas cabeças.
- Defendam a vossa honra como uma bandeira - gritara o Presidente. - Temos de mostrar aos brancos do que são capazes os chineses. Se cumprirmos o que eles esperam de nós, estou persuadido que nos considerarão enfim como verdadeiros aliados nesta guerra contra os nossos inimigos do Mar do Oriente. Onde podemos encontrar aliados contra os que querem apossar-se do nosso território senão nos povos Ying e Mei? Tenho fé na vitória. Peço-vos portanto que obedeçam ao chefe estrangeiro que vos comandará. Não porque tenham necessidade dum branco a comandá-los, mas sim porque esse chefe ficará entre vós e os Ying que são para nós mais duros e menos nossos amigos. No entanto também são nossos aliados. Mostrai a esse homem
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o vosso valor como soldados! Todo o nosso povo tem os olhos postos em vós. Soldados, eis o que espero da vossa acção!
Ao seu lado, enquanto falava, estava a esposa, e no momento em que o Presidente gritou as últimas palavras, cia brandira o punho fechado acima da cabeça.
O general tornou a vê-la, de pé, na sua frente. Uma criatura maravilhosa, sem dúvida, mas não era também estrangeira? Havia até quem afirmasse que era ela a culpada do Presidente ser aliado dos brancos. Passara lá longe a juventude e fora alimentada pelo solo e pelos ventos dum país que não era o seu. Dizia-se mesmo que falava melhor essa língua estranha do que a sua. E na verdade pronunciava a língua materna com um leve sotaque estrangeirado e empregava expressões literárias, compridas palavras antigas, já em desuso, aprendidas nos clássicos, como se não conhecesse as expressões novas, breves e incisivas, da linguagem moderna. Mas, evidentemente, ela vivia longe do vulgo, como grande dama, as mãos recamadas de anéis e jóias a penderem das orelhas.
O general sacudiu a cabeça para afugentar estes pensamentos inúteis. Era um soldado e acima de tudo tinha de colocar o seu dever de soldado, claro e simples. Por vezes assaltavam-no certas dúvidas a respeito dos seus amigos, mas não lhe restavam nenhumas em relação aos inimigos. Consultou o relógio de pulso. No dia seguinte, ao romper da aurora, teriam atravessado o rio e estariam à vista dos brancos... se porventura ainda houvesse brancos com vida...
Quanto a Mayli, não foi capaz nessa noite de conciliar o sono, e não apenas por fadiga. O odor de batalha andava no ar. Todos sabiam o que os esperava na alvorada do dia seguinte. E para Mayli era a primeira batalha. Pela primeira vez ia encontrar-se na presença de homens cobertos de sangue, moribundos, aos quais seria necessário prodigalizar todos os cuidados. Estaria à altura da sua tarefa?
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Sentia vergonha quando pensava em toda a sua vida passada, absolutamente inútil. Vivera agradavelmente longe do seu próprio povo. Passara a infância no estrangeiro e crescera no meio de estrangeiros e mesmo agora não tinha a sensação de fazer parte do seu próprio povo. Sentia-os próximos de si, do seu sangue, pertencendo ao mesmo país... e no entanto não estava tão próximo deles como eles uns dos outros. Desejou, por um instante, nunca -ter aprendido outra senão a língua materna; como gostaria de poder destruir todas as recordações do passado...
"Se algum dia tiver tempo", prometia a si própria, "lerei e tornarei a ler, não livros estrangeiros, mas unicamente a literatura do meu país... a poesia mais antiga, a mais velha filosofia. Quero encontrar as minhas raízes".
E de súbito assaltou-a o pensamento de que talvez nunca mais tivesse tempo para tais leituras, talvez morresse antes... e não pôde conter as lágrimas, metendo as mãos na boca para abafar os soluços, pois estava deitada no meio das enfermeiras que por nada deste mundo queria despertar. Mas Pansiao ouviu-a; a garota esperava sempre que Mayli se deitasse para fazer a cama ao seu lado. Despertou, ficou imóvel um instante, depois avançou a mão no escuro, tocou-lhe na face e sentiu-a húmida. Ficou tão perturbada com a ideia de que Mayli também podia ter a fraqueza de chorar, que se desfez em lágrimas; e Mayli foi obrigada a falar-lhe com severidade, pois sabia perfeitamente que só a severidade fazia parar esses acessos de choro sem causa que podiam contagiar as outras enfermeiras como uma epidemia.
Soergueu-se, agarrou Pansiao pela ponta da trança e sacudiu-a ao de leve.
- Cala-te! - ordenou. - Cala-te imediatamente ou serei obrigada a castigar-te como a uma criança!
Pansiao calou-se, aterrada com a cólera que adivinhava nessa voz amada e Mayli tornou a deitar-se, já curada do seu acesso de fraqueza.
"Para que pensar noutra coisa além do dever que me espera?"
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XIV
Foi nesta disposição de espírito que homens e mulheres se levantaram na manhã seguinte, muito antes do romper do dia, que tomaram à pressa uma refeição fria, se reuniram e se puseram logo em marcha no meio do maior silêncio. Sabiam-se rodeados de inimigos, e por isso caminhavam com precaução e nem uma única voz se ouvia. Já se distinguia perfeitamente o silvo das balas e o troar dos canhões. O general avisara os seus homens que o inimigo era capaz de trepar às árvores como os macacos ou de se esconder na selva como os animais selvagens, e por essa razão as tropas avançavam tanto quanto podiam a descoberto.
- Que cada um esteja sempre alerta por si e por todos
- dissera o general. - E lembrem-se que aqui tanto homens como animais são nossos inimigos.
E os soldados sentiam-no bem, pois um vago mal-estar os acabrunhava. Aqueles homens e mulheres que seriam capazes de se bater indefinidamente no seu território, não estavam habituados a pisar terra estrangeira. Enquanto na pátria a própria terra lhes incutia força, sentiam que ali o próprio solo lhes era hostil.
Marchavam para o combate de corações mudos, e porque os corações se calavam, a angústia possuía-os. Não tinham para os encorajar senão as ordens dos seus superiores e um deles era americano. Aliás esses homens não estavam habituados a combater apenas por obediência às ordens, como mercenários. O abatimento dos soldados transmitira-se às enfermeiras que avançavam num pesado silêncio. Mayli não conseguia confortá-las, embora fizesse para isso todos os esforços. Conseguira que dois soldados lhe dessem madeira suficiente para uma fogueira e antes da partida distribuíra chá bem quente às suas subordinadas. Mas, em troca, obtivera delas apenas pálidos sorrisos. Cada uma meditava nalgum desgosto íntimo que esquecera
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na boa disposição geral, mas ao qual o ambiente de angústia dava de novo toda a acuidade. Chi-ling recordava os filhos que perdera, An-lan o velho pai, e poucas havia que não tivessem um ente querido a chorar, e mesmo essas sentiam como era triste estarem ali, sem lar e sem abrigo, numa terra estrangeira.
Entretanto, quando rompeu o sol, os corações tornaram-se menos acabrunhados. O inimigo não os descobrira ainda nem os atacara e se as colunas de socorro pudessem juntar-se aos aliados antes de serem localizadas pelos aviões que enxameavam o céu, havia alguma esperança das forças assim agrupadas consolidarem posições e partirem para o ataque em vez de continuarem aquela eterna retirada.
Quanto a Sheng, avançando no seu passo largo e regular de camponês, estava ansioso por se encontrar na presença dos brancos e ver as armas e material de que dispunham. Combatera tanto tempo apenas com uma velha espingarda, que tinha a impressão que se ele e os seus homens pudessem utilizar algumas dessas máquinas de guerra de que os brancos se serviam passariam ao ataque sem se pensar mais em retirada. Quantas vezes sonhara possuir nem que fosse só um morteiro! Mas os brancos tinham tanques e até -aviões. com todo esse material, não podiam inverter o curso dos acontecimentos?
Acalentando essa esperança, fez alto nesse dia no local que lhe indicara o general e esperou com os seus homens que o grosso das tropas se lhe juntasse. Ao falar aos soldados, não pôde deixar de lhes exprimir a sua esperança e eles ficaram um pouco mais animados. Ouvia-se agora claramente o troar dos canhões, mas como não eram de grosso calibre, todos se admiraram. Os brancos não teriam artilharia pesada?
Nesse momento, por feliz acaso, apareceu Charlie Li, coberto de lama. Explorara os arredores durante cerca de três horas e embora uma pedra lhe tivesse golpeado a planta do pé, nem por isso deixara de descobrir a posição exacta dos brancos.
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- O inimigo atacou-os durante a noite - disse a Sheng
- mas os brancos continuam a resistir.
- Têm algumas máquinas? - perguntou Sheng ansiosamente.
- Sim, têm algumas - replicou Charlie. - Vi-as com os meus próprios olhos. Estão todos reunidos, homens e material, num vale pouco profundo, a menos de duas milhas daqui. Mas o inimigo ataca-os de todos os lados. Alguns conseguiram romper o cerco. Aqui e além vi grupos de brancos abrirem caminho com os seus carros.
- Então perderam também esta batalha - comentou Sheng serenamente. - Os homens não desertam na altura da vitória.
Apesar de tudo, recusava-se a perder por completo a esperança. O general não tardou, seguido das suas tropas. Lentamente, as forças reuniram-se e tomaram posições, prontas para avançar logo que o general tivesse conhecimento das últimas notícias. O inimigo, sabia-o agora, afluía por três lados, subindo os vales por onde corriam os três grandes rios. Estas-eram por assim dizer as três artérias principais da sua ofensiva, mas entre elas estendera apertada rede que bloqueava todos os caminhos. Ora as estradas eram absolutamente indispensáveis aos brancos. As pesadas máquinas de que dispunham, tornavam-se em tal emergência numa verdadeira maldição, pois não podiam rolar senão em estradas. E essas máquinas perdiam toda a sua força, justamente por causa do seu tamanho, quando abandonavam os caminhos construídos pelo homem. Ora as estradas eram raras e o inimigo, misturando-se com a população, trabalhando em segredo, auxiliado pelos habitantes do país, não tardou a tornar quase impraticáveis todas as vias por onde era possível circular. E essas enormes máquinas de guerra, como liviatãs arrojados à praia, como cascos de navios afundados, tornavam-se um fardo pesado que os brancos não podiam utilizar e não se decidiam também a abandonar. Um simples tronco de árvore atravessado no caminho bastava para imobilizar esses engenhos e enquanto os soldados se esforçavam por retirá-lo, os aviões
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inimigos sobrevoavam-nos e deixavam cair as suas bombas, ou então, da selva próxima, desabava sobre eles uma chuva de balas. E os brancos morriam às centenas, aos milhares, ao tentarem salvar o seu material...
O general sabia tudo isto, pois os seus espiões tinham-no informado bem a esse respeito, e dizia de si para si que não havia tempo a perder, embora estivesse intimamente convencido que aquela guerra já estava perdida. No entanto ninguém seria capaz de adivinhar o seu secreto desencorajamento quando na alvorada desse dia subiu ao cimo dum pequeno montículo, donde dominava todo o exército reunido em sua volta, e se dirigiu aos seus homens.
- Soldados! - gritou, e a sua voz jovem e forte chegou a todos os ouvidos atentos. - Tendes um dever a cumprir. Nenhum de nós se preocupa com o que lhe poderá suceder. Estamos aqui para auxiliar os nossos aliados e transformar uma derrota em vitória. Soldados! Não se esqueçam que vão travar o mesmo combate que travam há cinco anos no nosso próprio solo. O inimigo que está na nossa frente é o mesmo inimigo e batê-lo aqui é batê-lo igualmente na nossa pátria. Soldados! Temos de vencer o inimigo e reabrir enfim a Grande Estrada que conduz ao nosso país. Que todos se batam com os olhos postos na pátria!
Uma surda aclamação elevou-se daqueles peitos, abafada, mas profunda. E logo a seguir puseram-se em marcha para o Ocidente. Charlie Li ia um pouco atrás do general, para lhe indicar as posições. Mas nem uma só vez este lhe dirigiu a palavra, salvo para lhe responder quando Charlie lhe apontava um caminho mais curto ou uma passagem mais escondida que conduzia ao vale onde combatiam os brancos. Era já dia claro e mal nascera o sol começara logo o calor. O ar quente e pesado incendiou-se, e o calor que fazia instantes antes não passava de frescura comparado com aquele. Todos os rostos se inundaram de suor, mas o general não abrandou o passo.
- Os brancos estão para lá daquelas colinas que daqui se avistam - indicou Charlie em voz baixa.
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O troar do canhão ouvia-se agora extremamente próximo, despedaçando o ar que os rodeava. O general fez sinal que compreendera e continuou a marchar. Mas o soldado que ia atrás ouviu as palavras de Charlie, a notícia passou de boca em boca, e cada um sentiu o coração comprimir-se de esperança e de temor.
Seguido dos seus homens, o general escalou uma colina e depois meteu ao ligeiro declive. A coluna serpenteava na vertente do monte. De súbito, a pouca distância, distinguiram, primeiro um, depois dois camiões. Os veículos pararam no meio da estrada e o general, assestando o binóculo, viu que se tratava de brancos, tolhidos de terror, os rostos aumentados e deformados pelas lentes.
- Parece que têm medo - disse Charlie, profundamente espantado. - Por que terão medo de nós?
O general estendeu o binóculo a Charlie que depois de olhar começou a rir.
- Tomam-nos por inimigos - observou. - Quando os inimigos andam com uniforme, usam um uniforme verde. Mas quem sem ser louco podia usar um uniforme doutra cor neste país?
- Deixemo-los suar de medo até que descubram o seu erro - pronunciou o general secamente.-Trazemos nos capacetes o sol branco em fundo azul. Já que não nos reconhecem pelos rostos, reconhecer-nos-ão ao menos por isso.
Continuou a marchar e, efectivamente, quando avançaram mais alguns passos, o terror transformou-se em alegria no rosto dos brancos que se ergueram nos seus veículos, agitaram os braços e começaram a gritar qualquer coisa que o general reconheceu, passado um instante, que era o grito de guerra dos chineses:
- Chung kwo wan shui!
Basta por vezes muito pouca coisa para desanuviar o espírito do homem! Ouvir a esses brancos o mesmo grito que os seus soldados tinham soltado em centenas de batalhas, comoveu o general; sentiu no peito o coração desoprimir-se, como pássaro que voa para fora da gaiola, e gritou
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por sua vez numa voz possante: Chung kuo wan shuif E todos os seus homens repetiram o grito de guerra, clamaram-no tão alto que subiu até o céu. Entretanto, o general não abrandara por um só instante o estugado passo.
Pergunte onde está o inimigo - ordenou a Charlie,
quando se aproximaram dos carros.
Além! Além!...-responderam eles, apontando-lhes a direcção.
O general compreendeu então que aqueles homens não deviam ser soldados, pois não traziam consigo quaisquer armas. Naturalmente eram civis.
O inimigo está ali e os nossos soldados continuam
a bater-se - gritavam.
Charlie traduziu ao general a resposta e este continuou a avançar à cabeça da coluna, sempre na direcção do Ocidente.
Um pouco mais atrás, Cheng ao cruzar com esses estrangeiros, perscrutou os rostos desses novos aliados. Nunca antes vira brancos tão perto. Que rostos extraordinários... barbudos, macilentos, ossudos, o nariz comprido, os olhos encovados. Brancos? Estavam negros da poeira e de tal maneira queimados do sol que faziam lembrar a chaleira de argila vermelha de sua mãe!
Muito mais atrás ainda vinha Mayli, à frente das suas enfermeiras. O seu passo perdera um pouco de elasticidade e os seus cabelos estavam húmidos do suor. Mas quando viu os homens sorrindo, de pé, no veículo, agitou a mão e gritou-lhes:
- Olá, amigos!
Ela sabia perfeitamente o poder que teriam essas simples palavras. Sujos e cobertos de poeira como estavam, os vestuários rasgados, os braços nus e cheios de pêlos, viraram-se para ela e responderam alegremente:
- Olá, linda rapariga!
Mayli não podia parar, pois o general ia à frente, mas alguma coisa reconfortou o coração da jovem. Que tempos felizes vivera na América, dançando, tagarelando e namoriscando jovens como aqueles! Que bons momentos podiam
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passar juntos os rapazes e raparigas de todos os países, mas não evidentemente em tempos como aqueles.
- Estes jovens peludos não são cruéis? - perguntou-lhe ansiosamente Pansiao que seguia ao seu lado.
- Não - respondeu rapidamente Mayli. - Não são cruéis. Têm fome, estão cansados e acabam possivelmente de escapar à morte.
A própria Mayli estava esfomeada e fatigada. Suspirou profundamente e desejou de repente que a guerra acabasse.
Quem falava ali de gloriosas batalhas? O general, ao passar em silêncio diante das destroçadas filas de homens exaustos que eram seus aliados, desejava nunca ter nascido. Nenhuma palavra lhe saiu dos lábios, mas o seu coração tornou-se numa pedra. Não, não eram aliados, mas sim um fardo mais a juntar a todos os outros que para ele já constituía o facto de se encontrar num país estrangeiro, no meio duma população hostil e perante um inimigo superior em número e em material. Imaginara que unindo as suas tropas às dos brancos, se poderia constituir um exército poderoso, mas compreendia agora, ao olhar para esses homens, que aliar-se a eles era aliar-se à fraqueza e não à força.
Mesmo assim, passou por entre as fileiras num passo seguro, não prestando atenção às fracas aclamações. Ao seu lado, caminhava Charlie Li, pois o general não falava outra língua senão a sua e sabia que tinha de ir apresentar-se ao chefe que o Presidente colocara acima de si, o americano.
Voltou-se para os seus homens.
- Alto! - ordenou e a ordem foi transmitida de uns para outros. - Comam alguma coisa - acrescentou. Não sabemos ainda quando recomeçará a batalha.
O inimigo, depois de ter atacado toda a noite, cessara momentaneamente de fazer fogo e nem um avião se avistava no céu da tarde. Os homens aproveitavam essa curta trégua para descansar um pouco, e estendiam-se no chão, em qualquer sombra que encontravam. Uns estavam deitados
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de barriga para baixo, outros de costas, com o capacete sobre os olhos, alguns tinham ficado sentados, a. cabeça apoiada nos joelhos em arco, a espingarda ao lado. Os soldados chineses chegavam junto deles e contemplavam-nos em silêncio, com ar perplexo. Alguns brancos, ao verem esses recém-vindos na sua frente, erguiam um braço pesado de fadiga para os saudar, outros sorriam ou gritavam numa voz rouca qualquer fórmula de acolhimento, mas a maior parte deles calavam-se, demasiado cansados para se manifestarem.
O general abriu caminho por entre esses homens deitados e viu dirigir-se ao seu encontro a delgada silhueta que ele sabia ser do americano. Ambos pararam, para uma saudação recíproca, e depois, com grande surpresa do general, este ouviu o americano falar-lhe em chinês. De facto tinham-lhe dito que o americano conhecia a sua língua, mas sempre lhe custara a acreditar e ficou agradavelmente surpreendido por compreender o que o chefe estrangeiro lhe dizia. Claro estava muito longe de falar perfeitamente e via-se bem que aprendera o chinês com gente vulgar, mas, enfim, fazia-se compreender.
- Apresento-lhe as minhas saudações - disse o americano. - Mas receio que tenha chegado demasiado tarde acrescentou secamente.
- Não é minha a culpa se chego demasiado tarde respondeu o general com frieza. - Retiveram-nos na fronteira muitos dias.
- Não era fácil arranjar o arroz necessário aos vossos homens - afirmou o americano.
- Nós arranjá-lo-íamos - replicou o general - e declarámos isso mesmo.
- Quaisquer que sejam os erros que tenhamos cometido - disse o americano - é bom lembrarmo-nos que somos aliados e que a nossa única esperança é unir os nossos esforços e não erguermo-nos uns contra os outros. Está pronto a passar ao ataque?
- Não estamos aqui para outra coisa - retorquiu o general.
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Sabia agora que entre ele e o americano não havia a menor simpatia e decerto o chefe estrangeiro sentia o mesmo. Adivinhava-se essa quase hostilidade na frieza dos seus olhos azuis e na sua voz seca. O americano, olhando para as tropas que acabavam de chegar, disse calmamente:
- Os vossos homens parecem em boa forma. É agradável neste momento contemplar soldados tão bem dispostos. ..
- Os meus homens estão habituados a realizar grandes esforços - afirmou o general com orgulho. - São capazes de cobrir trinta milhas por dia transportando tudo o que precisam e procurando eles próprios a alimentação.
- Então - disse o americano lentamente - aconselho-o a atacar ao ocidente logo que possa. O inimigo entrincheirou-se na cidade cujo pagode se vê por cima daquela colina. A coberto do vosso ataque, poderemos reorganizar e fortificar as nossas posições com a ajuda dos Ingleses.
Hesitou um instante, depois continuou de má vontade:
- Sugiro-lhe também que mande acampar os seus homens um pouco afastados dos outros... digamos, por exemplo, do outro lado do rio. Evitam-se assim querelas possíveis entre homens extenuados.
- Querelas?! -exclamou o general com arrogância. Os meus soldados não darão razões para contendas.
Nesse momento, porém, Charlie interveio com um sorriso nos lábios.
- O que o chefe americano quer dizer é que os brancos preferem que nós não estejamos muito perto deles. É bom que nos lembremos que não somos brancos e eles não querem misturas.
O general corou profundamente por baixo do suor.
- Para nós também será melhor - pronunciou.
O americano tomou um ar grave e foi num tom insistente que proferiu:
- Admitindo que não morremos todos aqui, aguarda-nos uma tarefa extremamente dura. Aceitemos os factos como são e esqueçamos as queixas recíprocas. Pode pensar
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o que quiser, mas, em nome do Céu, esqueça tudo e ajude-nos. Depois... quando tivermos vencido esta batalha... tome a sua desforra. Mas agora... -fez com a mão um gesto, voltou-se, tirou da algibeira um lenço sujo, enxugou a testa e levantando o capacete limpou igualmente a cabeça calva- ...agora... temos apenas mais alguns minutos antes que eles ataquem de novo.
- Ele tem razão-.disse Charlie ao general.
Este ficou ainda um momento imóvel, lutando consigo mesmo. Depois, após breve saudação, deu meia volta e gritou para os seus homens:
- Soldados! Aos seus lugares! Esquerda volver! Marcha!
Os homens formaram fileiras, deram meia volta e marcharam em direcção ao rio que atravessaram com água pela cintura, espalhando-se na margem oposta.
E o americano ficou a olhá-los, no rosto extenuado uma expressão de tristeza. As omoplatas desenhavam-se-lhe por baixo da camisa encharcada de suor; deixou pender as mãos, como pesos, numa atitude de desalento. Só Deus sabia em que pensava.
Sheng passou por ele com os seus homens e olhou-o com curiosidade. Era então aquele o famoso chefe americano! Tinha um aspecto tão velho, demasiado velho para aquela vida. Um homem da sua idade devia estar em casa rodeado dos netos. Não havia homens novos na América? Além disso, era muito magro e o cinturão quase lhe dava duas voltas à cintura estreita. Os músculos sobressaíam no delgado pescoço e o rosto era tão pequeno que as orelhas pareciam enormes. Mas as orelhas grandes são um sinal de sabedoria e de bondade, pelo menos assim o afirmava a mãe de Sheng.
O americano, encontrando os olhos jovens e intrépidos de Sheng, sorriu bruscamente.
- Já almoçou?-perguntou-lhe.
- Mas como consigo compreender o que me diz? exclamou Sheng, detendo-se admirado.
- Por que não, se falo a sua língua? - respondeu o americano. - Há vinte anos que vivo no seu país.
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- Quase tantos como eu tenho - disse Sheng com o seu sorriso aberto.
- Você é muito jovem... uma criança-observou o americano. - Eu podia ser seu avô.
Sheng sentiu de súbito uma grande simpatia por esse estrangeiro.
- É verdade, sois bastante velho - disse delicadamente. - com essa idade, devíeis estar em casa, a descansar.
Ao ouvi-lo, um clarão brilhou nos claros olhos azuis, por baixo do capacete- colonial do americano.
- É melhor não falar nem pensar na casa - disse num tom seco. - Aliás, quem possui hoje ainda uma casa?
- A casa do meu pai continua de pé - proferiu Sheng com orgulho.
- Onde? - interrogou o americano.
- Perto da cidade de Nanquim - respondeu Sheng. E com estas palavras se afastou, a caminho do seu
acampamento, enquanto o americano via desfilar na sua frente a longa fila de homens, até os últimos, os carregadores, que transportavam as provisões necessárias ao exército e os medicamentos. Por fim, surgiram o médico e as enfermeiras. O chefe americano deteve-os com um gesto.
- Pare um momento, por favor - disse a Chung. Ficar-lhe-ia reconhecido se dispensasse alguns cuidados aos nossos feridos antes que as moscas lhes devorem a carne até os ossos.
E foi assim que Mayli, ao tomar o primeiro contacto com os aliados, viu na sua frente uma horda de homens famintos, sujos e extenuados. Os seus rostos estavam negros de poeira, estriados pelos sulcos do suor, a barba por fazer, os olhos encovados. Os feridos encontravam-se aqui e além, deitados nas raras sombras que proporcionavam alguma frescura, e entre eles havia mortos e moribundos. Mayli sentiu o coração bater-lhe na garganta, enquanto dava calmamente ordens às enfermeiras.
- Eis o que vamos fazer. Em primeiro lugar, transportar os feridos que ainda vivem para a sombra daquela
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grande árvore lá em baixo. Depois, cada uma irá buscar água ao rio. Não podemos perder tempo a fervê-la; deito-lhe desinfectante e lavam com ela as feridas dos que estiverem mais fracos. Hsieh-ying, tu que és robusta, vai buscar um pouco de lenha, para acendermos o lume e aquecermos a comida. Dez tratam dos feridos e as outras duas ajudam Hsieh-ying. Pansiao fica ao pé de mim.
Distribuiu assim calmamente a tarefa a cada uma, enquanto Chung escolhia uma superfície plana, estendia debaixo duma grande árvore um oleado limpo que tirara da sua caixa de instrumentos e vestia a blusa de cirurgião, preparando-se para extrair as balas e coser a carne dos feridos que ali jaziam. E pela primeira vez Mayli discutiu com ele, pois não se decidia a abandonar à sua sorte os feridos que ainda respiravam. Mas Chung dizia-lhe, apontando agora este e logo aquele:
- Deixe-o morrer, está perdido. Este já tem os olhos vítreos. Só devemos tratar aqueles que têm possibilidade de viver.
- Mas como pode afirmar que um morre e outro não?! - exclamava a jovem.
O médico, mostrava-se, porém, implacável e continuava a indicar-lhe os que deviam ser tratados e os que deviam ficar onde estavam. E Mayli sentiu os olhos -encherem-se de lágrimas, enquanto trabalhava, sem um minuto de repouso, mas arranjou ainda tempo para dar de beber a um moribundo e para recolher as cartas e as fotografias das esposas, mães, filhos, de todos os entes queridos enfim, daqueles que iam morrer. Prestes a exalarem o último suspiro, os moribundos conseguiam forças ,para levar a mão a qualquer bolso do uniforme e tirar de lá algum papel húmido de suor ou manchado de sangue que metiam na mão de Mayli, murmurando num último esforço: "diga-lhe... diga-lhe..." E antes de poderem pronunciar fosse o que fosse, morriam...
Sem mesmo dar por isso, Mayli começou a soluçar, não em voz alta, mas com soluços profundos e abafados. Sentia a garganta apertada como por um colar de ferro e as
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suas mãos tremiam ao recolher todos esses papéis que eram para esses homens o símbolo do que mais amavam no mundo.
Por fim, conseguiu suster as lágrimas; sabia bem que esse dia era apenas o primeiro duma série de dias semelhantes; mas ela era ainda nova e inexperiente em tal tarefa e não presenciara nas últimas horas suficiente glória que valesse tanto sofrimento. As outras enfermeiras mostravam-se infinitamente mais calmas, pois estavam há muito habituadas a espectáculos parecidos, noutras batalhas em que tinham tratado soldados do seu sangue, ao passo que aqueles eram simplesmente estrangeiros... Mas com Mayli não sucedia o mesmo, conhecera esses jovens cheios de vida, de ardor e de alegria; conhecera-os no seu próprio país, tranquilos, estimados, em lares confortáveis. Dançara com rapazes em tudo parecidos àqueles e deixara-se até cortejar por eles: para ela não eram portanto estrangeiros. Era doloroso vê-los ali, enganados, traídos, carecidos de tudo, cercados por todos os lados. E ao desdém sucedeu a piedade... E mais doloroso do que tudo, era a gratidão que eles exprimiam quando lhes falava na sua própria língua.
- Não oiço uma mulher falar inglês... há mil anos...
- suspirou um jovem muito louro.
Fechou os olhos claros e apertando-lhe a mão murmurou:
- Não pode cantar qualquer coisa?... Somente uma canção?...
Mayli sentia a garganta de tal forma apertada que mal podia respirar; mesmo assim esforçou-se por cantar a primeira canção que lhe subiu aos lábios, a mesma que cantara algumas noites antes:
Não procures a embriaguez senão nos meus olhos E eu me embriagarei com o teu, olhar
Começara em voz baixa, mas cantar aliviou-lhe a garganta e a sua voz clareou e tornou-se mais firme. O moribundo sorriu.
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Mas isso... é uma canção... inglesa... - pronunciou,
ofegante. - Como a sabe?...
A voz extinguiu-se, a mão deixou de a apertar. No entanto Mayli continuou a prender-lha e concluiu a canção, sentindo as lágrimas correrem-lhe pelas faces. Depois retirou a mão que se fizera pesada na sua, mão jovem, ainda com a magreza própria da adolescência, de unhas compridas e pele enegrecida. E pousando a cabeça nos joelhos, começou a chorar, sem se importar já que a pudessem ver ou ouvir, pois parecia-lhe que não havia senão dor e maldição no mundo onde tais coisas sucediam.
Nesse momento sentiu que alguém a erguia do chão. Dois braços a agarravam e a punham de pé. Voltou-se.
- Sheng! - murmurou.
- Foi então a tua voz que eu ouvi na outra noite cantando esta mesma melodia?!...
XV
E foi assim junto dos restos mortais dum jovem inglês louro, que Sheng e Mayli se encontraram. Noutro momento, teriam decerto exteriorizado a sua surpresa, mas não faltavam surpresas naquela terra estrangeira. Numa altura em que tudo podia acontecer e em que ninguém sabia onde estaria dali a uma hora, nem Mayli, nem Sheng, após a primeira exclamação, sentiram qualquer espécie de espanto. Cada um agarrava as mãos que o outro lhe estendia, e assim ficaram, as mãos estreitamente unidas, os olhos fixos um no outro, e os dois sentindo a mesma impressão, um conforto difícil de traduzir em palavras. Não podiam sentir-se felizes, pois em sua volta tudo era morte e desolação, mas esse contacto das suas mãos foi o suficiente para dar a ambos nova coragem e bastou esse instante para Sheng esquecer completamente as suas dúvidas e os seus ciúmes.
Viu que ela tinha o rosto húmido de suor, que os seus
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cabelos pendiam para a testa e para a nuca. Trazia um grosseiro chapéu de palha como os que usam os camponeses e os ramos verdes que cobriam a copa já estavam murchos. Viu também que estava terrivelmente magra e que o uniforme azul, encharcado de suor, se lhe colava ao corpo. Os seus pés nus andavam metidos numas sandálias de palha e enrolava as mangas acima dos cotovelos. Por sua vez Mayli tinha na sua frente um rapaz alto e magro, de pele curtida e uniforme sujo. No seu rosto bronzeado, luziam bagas de suor, como pingos de chuva, que escorriam pelo rosto, até o queixo, donde pingavam. Os dois estavam à torreira do sol. Não havia árvores em volta, nada senão uma vegetação rasteira, e os feridos, deitados à sombra fraca desses arbustos, suplicavam que lhes dessem água. Junto deles, um hindu, em cujo rosto pairava já a sombra da morte, começou a queixar-se docemente.
- Pani-pani - repetia.
Os dois voltaram-se ao ouvir aquela voz e viram que o homem tinha o ombro despedaçado e se esvaía em sangue. Sheng, antes mesmo de falar a Mayli, abandonou-lhe as mãos, caminhou para o moribundo, desarrolhou o cantil cheio do precioso líquido e chegou-o aos lábios do moribundo, soerguendo-lhe a cabeça com a mão direita, para ele poder beber com mais facilidade.
- Morrerá duma maneira ou doutra - disse-lhe Mayli em voz baixa. - Guarde a água para si.
Mas Sheng deixou-o beber até à última gota. Depois, pousou de novo a cabeça do soldado na terra em fogo e no mesmo instante o homem morreu.
- Gastou essa água inutilmente - observou-lhe Mayli, sempre em voz baixa.
- Ter-me-ia envenenado se lha tivesse recusado - respondeu Sheng.
Tornou a rolhar o cantil, colocou-o no seu lugar, depois voltando-se para Mayli pegou-lhe nas mãos e perguntou:
- O que faz aqui?
- Estou com as enfermeiras.
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- E eu que a imaginava em sua casa a brincar com esse cão absurdo pelo qual me trocava - disse Sheng.
E eu que nunca pensei que estivéssemos tão perto
um do outro volveu Mayli, sorrindo-lhe com os lábios
crestados.
Foi então a sua voz que ouvi cantar naquela noite
em que partimos - pronunciou Sheng. - Estava convencido que não podia ser...
Trocaram estas palavras no meio dos feridos e moribundos, sob um sol de chumbo; os dois sabiam que esse encontro não podia prolongar-se, tinham deveres a cumprir. As enfermeiras já começavam a lançar-lhes olhares curiosos. As suas mãos desuniram-se.
- Virei vê-la esta noite - prometeu Sheng.
- Esperarei por si - respondeu Mayli.
E pareceu-lhe de súbito que não poderia esperar até a noite de um tal dia. Quem era capaz de saber se estaria morto ou vivo quando chegasse a noite?
- Tome cuidado consigo - disse-lhe, olhando-o com expressão de súplica. - Que a noite o encontre são e salvo.
Uma chama interior iluminou o rosto sombrio de Sheng.
- Julga que podia morrer neste dia? Até logo à noite, depois do pôr do Sol.
Abriu caminho por entre os corpos que juncavam o chão e Mayli seguiu com a vista a sua silhueta alta e delgada, até sentir insinuar-se na sua uma pequenina mão.
- Irmã, quem é aquele homem tão alto? - perguntava-lhe Pansiao.
Pansiao habituara-se a chamar-lhe irmã e Mayli consentira, sabendo quanto a pobre criança se sentia só na vida. Voltou a cabeça e mergulhou o olhar nos olhos espantados da garota. Depois começou a rir.
- Como pude esquecer-me de ti! - exclamou. - Palavra que me esqueci completamente. Mas aquele é o teu irmão, o teu terceiro irmão! Finalmente que se encontraram!
Pansiao abriu muito os olhos para o ver melhor, mas ele desaparecera já no meio dos soldados.
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- Acha que devo correr atrás dele? - perguntou. Mayli abanou a cabeça:
- Não é ocasião para isso, temos muito que fazer. Esta noite ele voltará, depois do pôr-do-Sol, e vamos esperá-lo as duas.
E, dizendo isto, levou dali Pansiao e logo adiante as duas se debruçaram para um inglês que se arrastava, como podia, com o auxílio das mãos e dos joelhos, para a sombra dum camião. Tinha a cabeça inclinada e Mayli não lhe podia ver o rosto.
- Quer que o ajude? - perguntou-lhe.
Ao som daquela voz e das palavras em inglês, o homem fez um esforço desesperado para erguer a cabeça. E o que Mayli viu fez-lhe esquecer tudo o que não fosse o sofrimento daquele homem. Tinha toda a parte inferior do rosto despedaçada. Já não se lhe via boca, nem queixo, nem nariz. Somente um olhar espantado, fitando-a na agonia.
Ajudada por Pansiao, Mayli inclinou-se e, agarrando-o pelos ombros, levou-o para a sombra do camião. Estendeu-o de maneira que a cabeça ficasse abrigada e depois, tirando uma seringa do pequeno estojo que trazia sempre consigo, deu-lhe uma injecção no braço e a mão para ele agarrar. Só quando sentiu os dedos desprenderem-se e viu os olhos tornarem-se vagos, pousou suavemente a mão na terra escaldante e abandonou-o. Outros esperavam, que talvez pudessem salvar-se.
O que agravava o horror daquele dia era que enquanto cada um cumpria a sua tarefa, a grande retirada continuava. E tanto vivos como moribundos tinham que se deslocar continuamente. Mayli sabia que se combatia ali perto, mas não prestava a isso a mínima atenção e não deixava um instante de prodigalizar os seus cuidados aos feridos, ajudada pelas enfermeiras, enquanto o médico operava num camião aberto com um toldo. De vez em quando chegava ordem para se deslocarem mais para a retaguarda.
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Uma batalha não é uma coisa que se possa ver no seu conjunto. É feita de numerosos movimentos de tropas, nela participam muitos homens e mulheres, e cada um faz parte dum todo que não pode ver nem compreender. Tinham de se deslocar na direcção indicada, mas a razão por que o faziam ninguém sabia nem perguntava.
Em todo esse dia abrasador, May li deixou um ferido para acorrer a outro, e sem interrupção chegavam junto dela mais e mais feridos, uns apenas para morrer outros para continuarem a viver. Quase a cair de fadiga, sabia mesmo assim que não podia parar, pois o Dr. Chung não parava também de operar. O médico enrolara uma toalha em volta da cabeça, para o suor o não cegar, mas apesar disso corriam-lhe grossas bagas pelas faces e ao longo dos braços nus, invadindo-lhe os dedos enquanto ele retalhava a carne e ligava veias e artérias. As enfermeiras assistentes faziam os pensos com ligaduras ensopadas em suor, mas quem podia ter as mãos secas com aquele calor impiedoso? Todos bebiam a água que iam buscar a um regato sujo e quase seco. O doutor deitava-lhe um ou dois frascos de certo líquido, juntava-lhe ainda alguns sais e deixava-os beber. Rodeados por toda a parte pela morte, não podiam deixar de agir com temeridade, e como recusar água, em semelhante momento, a todas essas bocas sequiosas?
Mayli observava de perto as jovens confiadas aos seus cuidados para ver como se comportavam, e teve a impressão que resistiam bem. Pansiao, por quem mais receava, dir-se-ia a mais corajosa de todas. Apesar do calor, do sangue e da morte, andava dum lado para o outro, não cessando de ser útil, o rosto banhado de suor e quase sereno. Em certo momento, aproximou-se de Mayli e sorriu-lhe.
- Estou a pensar nesta noite - sussurrou.
Na realidade não passava duma criança e Mayli retribuiu-lhe o sorriso. No meio de tantos horrores, Pansiao rejubilava à ideia de ver o irmão nessa noite. O seu espírito preferia não entender o que significava todo aquele
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horror. Via um homem morrer e não sentia nada porque vira já demasiadas mortes e porque a morte fazia parte da vida. Ignorava deliberadamente o sangue, os feridos, o mau cheiro, e fixava o pensamento apenas em qualquer coisa que lhe agradasse. Hoje era a ideia de tornar a ver o irmão, como ontem fora a duma guloseima que descobrira na montra duma loja e que comprara ou um gatinho encontrado abandonado no meio da estrada. Amanhã seria qualquer outra coisa.
Siu-chen, a jovem que frequentara uma escola do interior e ficara órfã durante o ataque a Nanquim, chorava enquanto trabalhava. De tempos a tempos, limpava os olhos com os dedos manchados de sangue, e as suas faces, habitualmente coradas, estavam agora vermelhas, mas de sangue que não era seu. Mayli não .receava nada por ela, pelo menos enquanto pudesse chorar. Nem por Hsieh-ying que praguejava, carregando às costas os homens mais pesados e tomando nos braços os mais leves, como se fossem crianças.
Mayli ouviu-a proferir injúrias e maldições sem se interromper um só instante.
- Oh! Minha mãe! Oh! Mãe da minha mãe! Que miséria! Rapazes tão valentes! Oh, malditos demónios! Que os pais se transformem em tartarugas e que apodreçam os órgãos genitais das mães!
De súbito exclamou:
- Mas eu conheço este rapaz, capitão; o que perdeu as duas pernas! É o motorista que conduzia o nosso camião
- quase gritou, dirigindo-se a Mayli. - Lembra-se dele? Oh, tão bom rapaz! Coragem, meu pobre homem, vou levar-te ao médico...
Chung disse-lhe que não lhe levasse feridos em tal estado, pois como podia ele colocar duas pernas num tronco? Mas Hsieh-ying não se convenceu e começou a gritar que com pena de todas as penas, nem que a sua própria mãe fosse amaldiçoada, recolheria todos os feridos com vislumbres de vida nos olhos, qualquer que fosse a cor da sua pele, tivessem pernas ou não, e que só deixaria
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no chão aqueles que estivessem já mortos. Além disso, não ia abandonar um homem que conhecia: E enquanto assim falava, o homem morreu...
Coisa estranha, durante esse dia terrível, quando o inimigo os atacava constantemente do céu e da selva, todos, embora extenuados como estavam, tinham ainda tempo e força para questionar violentamente, como acabavam de fazer Chung e Hsieh-ying, em vez de se dedicarem apenas ao seu trabalho. As bombas inimigas não cessavam de explodir por cima das suas cabeças e homens e mulheres davam livre curso à sua irritação, por excesso de angústia, de cansaço e de calor. E o pior de tudo era esse fogo abrasador dum sol inclemente, cujo calor se tornava mais impiedoso à medida que avançava o dia.
Mas enquanto esses jovens exteriorizassem os seus sentimentos com gritos, discussões e lágrimas, Mayli não tinha motivos para se inquietar. Só se as via muito caladas as observava mais de perto, e as duas que por isso lhe causaram maiores apreensões eram An-lan e Chi-ling. Ambas trabalhavam sem um instante de repouso, e quando depois do meio-dia lhes foi distribuída alguma comida, Chi-ling abanou a cabeça e recusou-se a comer.
Mayli aproximou-se.
- É necessário comer - disse-lhe. - Ordeno-te que comas.
Chi-ling abanou novamente a cabeça:
- Não posso, mesmo que mo ordene. Vomitaria tudo quanto ingerisse.
Mayli não insistiu, mas observou-a atentamente. Chi-ling e An-lan trabalhavam sempre lado a lado, pois entre as duas estabelecera-se uma estranha amizade, como se encontrassem conforto no seu silêncio mútuo.
Essa longa jornada avançava, cada hora mais pesada, pois a meio da tarde todos sabiam que a batalha estava perdida. Respirava-se o cheiro a derrota, no ar, na poeira,
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no calor. Ninguém pronunciara ainda essa palavra, mas todos pensavam nela, e curvavam-se ao desastre como à passagem dum vento ruim,
O general compreendeu o que se passava antes mesmo de ser informado pelos seus mensageiros. Conduzir os seus homens ao ataque, esforçando-se o mais que podia por libertar a estrada e permitir que os exércitos recuassem para novas posições; mas o inimigo era tão hábil, tão diabòlicamente hábil que mal a estrada ficava aberta num ponto, logo a bloqueava noutro, e era esse perpétuo bloqueio que retinha as tropas numa verdadeira ratoeira. Já por várias vezes o general amaldiçoara essas pesadas máquinas estrangeiras, que não valiam nada se o motor parava, pois como o coração no corpo humano, o seu motor era o ponto mais delicado e vulnerável. Além disso, o inimigo reunia muitas vezes alguns desses pesados veículos postos fora de combate, atravessava-os no meio da estrada, abrigava-se atrás desse forte improvisado e daí alvejava impiedosamente o caminho da retirada.
--Por que estamos ligados a esses engenhos?! -rugia o general aos seus oficiais. - Seria melhor que nos fiássemos apenas nas pernas e deixássemos essas malditas máquinas apodrecer nas estradas!
No entanto, como abandonar a artilharia e os carros em que os aliados depositavam tanta confiança? Por causa dessas máquinas eram obrigados a seguir só pelas estradas e o inimigo, sabendo isso, fazia chover fogo do céu, postava-se na selva e metralhava-os sem dó nem piedade, e eles, irremediavelmente presos à estrada, não podiam procurar qualquer abrigo.
Quando por fim chegou a noite, os homens fizeram alto. Sabiam que nesse interregno o inimigo tornaria intransitáveis os caminhos por onde tinha de seguir no dia seguinte, e os habitantes do país, igualmente seus inimigos, auxiliá-los-iam em tal tarefa.
O povo alvejava-os também. Sheng teve nesse dia a prova. O inimigo possuía balas excelentes, dum modelo recente, que explodiam na carne e a despedaçavam em
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mil bocados. Mas Sheng, um pouco antes de fazerem alto, sentiu uma Picada no cimo do braço esquerdo. Seguia nesse momento por estreito carreiro que saía da estrada principal, pois como a hora já ia avançada, procurava um lugar para os seus homens acamparem. Levou a mão ao braço e antes que pudesse descobrir a causa de tal picada, uma verdadeira chuva de balas desabou sobre o punhado de homens que o acompanhavam. Curvaram todos a cabeça e fugiram. De regresso à estrada, já a suficiente distância das árvores, Sheng tacteou o braço e com grande estupefacção sentiu por baixo dos dedos a cabeça dum prego, ali tão bem espetado como se fosse por mão dum carpinteiro. Arrancou-o, viu que o prego tinha dois ou três centímetros, e agarrando-o entre o indicador e o polegar chamou os seus homens:
- Olhem, vejam com que eles atiram agora.
- Esse prego - disse um dos soldados - não foi atirado pelo inimigo, pode estar certo disso, mas sim pelos birmaneses. Como não dispõem de- armas modernas, pois os brancos proibiam-lhes o uso de espingardas, só têm velhas carabinas que desde há muito conservam escondidas e, à falta de balas, carregam-nas com pregos ou quaisquer outros fragmentos de metal que conseguem arranjar.
Um fio de sangue negro começou a escorrer lentamente da ferida aberta pelo prego. Sheng deixou primeiro correr o sangue, depois limpou a ferida, e em seguida arrancando uma tira do próprio vestuário, com ela fez uma ligadura e voltou para a estrada. Nessa noite não acamparam em local afastado, mas sim no meio da estrada principal, donde podiam, em todos os sentidos, avistar o inimigo se ele se aproximasse. Sheng dispôs os seus homens em leque; os mais afastados serviriam de sentinelas, enquanto os que estavam no centro dormiriam até a meia-noite, para em seguida renderem os camaradas. Quando tudo ficou devidamente ordenado e depois dos homens extenuados terem comido a magra ração com que deviam contentar-se até poderem ser abastecidos da retaguarda, Sheng pediu a um oficial que o substituísse e dirigiu-se ao acampamento onde se cuidava
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dos feridos, a uma milha de distância, para cumprir a sua promessa.
Ao aproximar-se, o coração a bater e a pular no peito, avistou, bem distintamente, duas silhuetas, em lugar da única que esperava à beira do acampamento. A claridade do luar inundava de luz a estrada, via-se quase como em pleno dia, e Sheng reconheceu bem Mayli, de cabeça erguida, o ouvido à escuta. Mas ao seu lado, de mãos dadas, estava uma jovem mais baixa e mais nova... O ardor de Sheng esmoreceu. Por que teria trazido com ela uma estranha para esse primeiro encontro? Iria recomeçar o mesmo jogo de escondidas e de esquivas que o mantivera durante tanto tempo cheio de ansiedade? A cólera invadiu-o.
"Não é altura própria para tais brincadeiras", pensou. "Hei-de fazer-lhe sentir isso mesmo. Tem de passar a lidar comigo com tanta lealdade como se fosse um homem e não uma mulher".
Continuou a avançar; a cólera fê-lo apressar o passo e Mayli, mal o viu, reparou logo no seu ar irritado. Mas não disse nada. Olhou-o e esperou.
- Quem é essa garota que trouxe consigo? - perguntou ele num tom breve.
Mayli compreendeu então o motivo do seu ar furioso e começou a rir.
- Sheng! - exclamou. - Por que perguntas, se a conheces?
Sheng lançou um olhar a Pansiao, mas sem insistir, tal era a sua pressa de se encontrar a sós com Mayli. Pansiao, por seu turno, ergueu timidamente o pequenino rosto e contemplou com admiração esse jovem alto, de voz rude. Seria na verdade o seu terceiro irmão? Lembrava-se dele, um rapaz teimoso e obstinado, que revolvia como uma tempestade a casa de seu pai. E, no entanto, recordava-se também que, quando era pequenina, ele a levava às vezes para o campo a pastar o búfalo e nesses momentos era muito bom para ela. Colhia-lhe ervas doces, que têm tenras cápsulas argênteas forradas de verde e espremia-as, uma a uma, sobre a sua boca aberta, fazendo escorrer um
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líquido açucarado de que ela gostava muito; e os dois riam a. bom rir. Às vezes também cantava para ela ouvir.
- Lembra-se desta canção que diz como os camponeses amanham os campos na Primavera? - perguntou-lhe.
E numa voz clara e trémula começou a entoar a canção.
- Como é que a sabes? - perguntou Sheng. - É uma canção da minha aldeia natal.
- Porque sou Pansiao - disse a garota, a tremer sob aquele olhar frio e severo.
Sheng olhou-a, respirou profundamente e coçou a orelha direita.
- Mas que hei-de pensar de mim se não reconheço a minha própria irmã... e se és na verdade minha irmã, como apareces aqui neste buraco maldito, não o poderei nunca adivinhar nem que pense nisso o resto dos meus dias.
Perdera o ar furioso e parecia ao contrário interessado e intrigado e quanto mais olhava para Pansiao mais tinha a impressão de que a reconhecia.
- Qual é o nome da minha cunhada? - perguntou-lhe.
- Jade - disse Pansiao muito depressa.
- E quantos irmãos tenho eu?
- Dois - respondeu Pansiao muito contente. - Lao Ta e Lao Er, e tu és Lao San e a nossa casa é construída em redor dum pátio que tem ao centro um tanque cheio de peixes vermelhos e no Verão há um alpendre de roseiras por cima do pátio e nós comemos aí e os filhos do meu irmão mais velho correm atrás uns dos outros... e...-levou a mão à boca. - Oh! Pobre Orquídea - murmurou - há tanto tempo que não pensava em ti e já morreste!
- As duas crianças morreram também - pronunciou Sheng, num tom breve.
Pansiao soltou uma exclamação de tristeza.
- Oh! Eram tão bonitos os dois pequerruchos! - disse com lágrimas na voz. - Lembro-me bem como o mais pequeno era gordo e meigo. Pegava-lhe tantas vezes ao colo... e mamava como um vitelinho.
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E assim, nesse lugar solitário e desolado, durante uma pequena trégua a meio da noite, rodeados de soldados que dormiam e de feridos que gemiam, os -dois irmãos encontraram-se e evocaram a casa onde tinham nascido.
- E se procurássemos um sítio qualquer para nos sentarmos? - propôs May li,
Mas onde encontrar sítio para se sentar naquele país maldito?
- Não podemos aproximar-nos muito da orla do bosque - avisou Sheng. - As serpentes são rápidas e a sua mordedura é mortal. Procuremos antes um lugar a descoberto.
Um camião jazia não longe dali, meio destruído por uma bomba do inimigo e nele se instalaram. Pansiao entre os dois. Os mosquitos zumbiam-lhes aos ouvidos e da selva que os rodeava, chegavam-lhes os estalidos produzidos por todos os pequenos animais que caçam de noite e por vezes " um rumor forte advertia-os que os ramos eram pisados por algum animal mais corpulento. Estavam ali, numa noite calma, iluminada pelo luar, e a recordação da casa paterna, a milhares de quilómetros de distância, enchia-lhes os corações de nostalgia.
Ambos se calaram. Pansiao esquadrinhava a memória e Sheng sonhava, esquecido de tudo que não fosse a sua casa e os seus. O coração tem recessos tão misteriosos...
Ora, sucedia que nesse mesmo instante Ling São, estendida na cama, sem conseguir conciliar o sono, pensava no seu terceiro filho. Ela que chegando a noite caía no leito e adormecia no mesmo instante, estava angustiada porque uma vez mais a infelicidade lhe batia à porta.
Também Ling Tan, pela mesma razão, não conseguia dormir e para ali estava deitado ao lado da mulher, imóvel mas acordado. Nesse dia soubera pelos filhos, que o tinham ouvido na cidade, onde foram vender rábanos, que a guerra da Birmânia estava perdida. Fora mesmo de lá, a muitos milhares de quilómetros, que chegara a triste notícia
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Vozes misteriosas tinham-na transmitido através do espaço, depois outras vozes a tinham bichanado a ouvidos atentos e agora já muitos sabiam que a Birmânia estava perdida e por essa razão tinham de esperar muito tempo antes de reconquistarem a liberdade.
Ling Tan, nesse dia, ao ver os filhos regressarem da cidade com expressão carrancuda embora trouxessem os cestos vazios, perguntou-lhes:
- Que mais fizeram esses demónios?
Ele já não ia à cidade, poupando as forças que lhe restavam para trabalhar nos campos.
- Desta vez, não é dos demónios que se trata, mas sim dos brancos na Birmânia.
Lao Ta, ao dizer isto, deixou-se cair no banco junto da porta, suspirou, pousou perto de si os cestos vazios, tirou da algibeira o cachimbo de bambu e encheu-o com as ervas secas de que se servia em lugar de tabaco.
Este Lao Ta, desde que casara com a mulher que encontrara numa armadilha, tornara-se mais gordo e de pele tão lisa como nunca tivera, porque a sua nova esposa lhe preparava em segredo pequenas iguarias e deitava-lhe no prato os melhores bocados sem ninguém dar por isso. Convencera-o a abandonar as armadilhas e conseguira isso persuadindo-o que o seu principal dever era agora ajudar o seu velho pai.
- É isso o que tem obrigação de fazer um bom filho mais velho - dizia-lhe.
E com elogios e adulações levara-o a pouco e pouco a fazer o que ela queria.
Verdadeiramente era assim que se exercia a influência desta mulher naquela casa; esforçava-se por convencer com tanta doçura, e sentia-se nela tanto amor que ceder-lhe chegava a ser um prazer. Ela mostrava nos seus actos um tão completo esquecimento de si própria e manifestava por todos tal amor, que todos lhe retribuíam na mesma moeda. Em relação a Jade, nunca se dispusera a ocupar o lugar de mulher do filho mais velho da casa, pelo contrário, estava
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constantemente a proclamar o saber e a beleza da cunhada; além disso, tinha verdadeira adoração pelos três filhos de Jade, especialmente pelos dois gémeos, ao nascimento dos quais assistira. Sempre pronta a servir Lao Er e a elogiá-lo, quase lhe dava a entender que ele, com a sua sabedoria, é que devia ser o filho mais. velho. Procurava também evitar o menor aborrecimento a Ling São e tratava Ling Tan como o seu senhor. Mas só ao esposo, Lao Ta, confessava o seu grande desejo de ter um filho, antes que fosse demasiado tarde, mas mesmo quando lhe falava nisso, manifestava-lhe tanto amor que o marido, comovido, procurava confortá-la em vez de a censurar.
- Deixa de te atormentar por causa dum filho - dizia-lhe com frequência. - Agradas-me tal como és, mesmo sendo estéril. E além disso os tempos "não correm nada propícios ao nascimento dum filho.
Mas a mulher nem por isso deixava de orar de manhã à noite a Kwanyin, fazendo deslizar nos dedos, uma a uma, as contas do seu rosário, e esperava sempre.
Lao Ta era agora um homem bem disposto. Por isso todos lhe notaram o abatimento e lhe perguntaram o motivo e todos partilharam também da sua tristeza quando ele contou o que ouvira na cidade. Estiveram levantados até tarde nessa noite, interrogando-se o que se passaria se a Birmânia caísse.
-- Isso significa para nós alguns anos de espera, uma vez que ficamos completamente cercados - disse tristemente Lao Er e o seu olhar procurou o de Jade.
- Os nossos filhos terão então de viver sempre como escravos? - gritou ela.
Jade estivera calada até esse momento; quando ouviram a sua repentina explosão, todos se voltaram, admirados. Ela rompeu em soluços e abandonou a sala.
Ling Tan olhou para o segundo filho, cujo rosto permanecia grave.
- O que quer ela dizer com aquilo? - perguntou.
- É o terror de que os nossos filhos não saibam nunca o que é a liberdade - respondeu Lao Er. - Esperava
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ainda, contra toda a evidência, que os brancos vencessem rapidamente o inimigo comum e ela sabia bem que a Birmânia era a nossa última esperança.
- Ela sabe sempre muitas coisas - suspirou Ling São.
- A tua mulher, meu filho, sabe mais do que muitos homens.
Ling Tan dirigiu-se de novo a Lao Er:
- Se queres que os teus filhos cresçam em liberdade, tens de deixar esta casa.
- O quê? - gritou Ling São. - Hei-de deixar partir os meus netos para nunca mais os ver, como sucedeu com o meu terceiro filho?
E dizendo isto começou a chorar alto, limpando os olhos com a ponta do avental azul e Lao Er esforçou-se por consolá-la.
- Vamos, minha mãe, porque pensa sempre no fim, antes mesmo das coisas começarem? Porventura já disse que penso tirar-lhe os seus netos?
- Não, não disseste - anuiu Ling São. - Mas se Jade quiser ir, tu vais.
- Como podíamos partir secretamente, levando connosco três crianças de tenra idade? - perguntou Lao Er.
- Isso não passa dum sonho de Jade. Não saímos daqui. Mas Ling São recusava ser consolada.
- Quando Jade se põe a sonhar, eu começo logo a ter medo - declarou.
E agora, ali deitada, imaginava toda a sua tristeza se deixasse de ter os netos em casa, e parecia-lhe que isso seria ainda pior do que se soubesse do desaparecimento do seu terceiro filho. Depois censurou-se amargamente por ter tais pensamentos a respeito do próprio filho e sentiu de repente um grande desejo de tornar a ver Lao San e pôs-se a chorar baixinho.
Entretanto, Ling Tan apercebeu-se de que ela chorava e repreendeu-a com vivacidade.
- Deixa de chorar, mulher. Como podes ter ainda lágrimas para carpir depois de todas as desgraças que temos sofrido?
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- Terei de acabar os meus dias privada de crianças?
- exclamou Ling São.
- Não pensas senão em ti - disse tristemente Ling Tan. - Mas tu e eu, minha velha, já não podemos viver muito tempo. E havemos de deixar crescer essas crianças na servidão? Jade tem razão.
Ao ouvir estas palavras, Ling São chorou ainda mais e ele, a quem a idade tornara irritável, perdeu a paciência e erguendo-se deu-lhe uma bofetada.
- Cala-te, cala-te imediatamente ou acabarás por me fazer chorar também.
Ling São calou-se. Sem ligar importância à zanga, estendeu a mão e tocou no rosto de Ling Tan. Encontrou-o húmido de lágrimas. Acalmou-se de repente.
- Tu também? - disse-lhe baixinho.
- Cala-te - respondeu ele numa voz que despedaçou o coração da mulher.
- Meu pobre velho - disse ela, submetendo-se uma vez mais. -O que tem de ser tem muita força... O que tem de ser tem muita força...
E na noite escaldante, Sheng mergulhado nos seus pensamentos revivia o passado; Pansiao, ao seu lado, rememorava-o também; Mayli, muito calada, deixava-os entregues às recordações.
Pansiao estendeu a mão e Sheng tomou-a e reteve-a na sua.
- Ah, minha irmã! - pronunciou ele tristemente. Por que estás aqui? É pior para ti do que para mim. Como acabará tudo isto?
- Mas foi uma grande felicidade ter encontrado Mayli primeiro e encontrar-te agora a ti - disse Pansiao jovialmente. - Seria muito pior se estivesse absolutamente só.
E contou-lhe então em que circunstâncias encontrara Mayli.
- Foste como uma folha arrastada pela corrente, agora aqui, logo ali, sem saberes como nem porquê.
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- Mas estou em segurança - contestou Pansiao, com ar satisfeito - agora que encontrei os dois.
Por cima da cabeça da garota Sheng e Mayli trocaram um longo olhar e cada um sabia o que pensava o outro. Apesar de todo o desejo que tinham de estar sós, como podiam pedir àquela criança, tão confiante, que se fosse embora, mesmo por um instante? Não sentiram coragem para ser tão cruéis e continuaram a escutar a sua tagarelice, olhando-se por cima da cabeça da garota.
E constantemente ela falava na casa paterna e nos seus.
- Lembras-te, meu terceiro irmão, que Jade começara a ensinar-me a ler? - perguntou. - Gostaria de poder mostrar-lhe quantos caracteres já conheço e ler na sua frente o livrinho que ela me deu. Esse livro trago-o comigo.
- É verdade -- disse Mayli - algumas vezes vi que o lias.
- Aprendi a ler na escola da mulher estrangeira - continuou Pansiao -. lá onde a vi pela primeira vez, querida irmã - acrescentou voltando-se para Mayli. - E nesse instante pressenti...
Calou-se uma fracção de segundo, e logo, voltando-se para Sheng com ar muito compenetrado, prosseguiu:
- Quando vi a minha irmã mais velha, disse-lhe que seria uma boa esposa para ti.
Sheng soltou uma gargalhada.
- Isso mesmo também lhe tenho eu dito sempre declarou a Pansiao - e continuo a dizê-lo. Não conseguirás tu convencê-la de que ambos temos razão?
Pansiao estava muito compenetrada do seu papel. Reuniu sobre os joelhos as mãos de Mayli e de Sheng e reteve-as entre as suas.
- Bem, agora os dois vão pôr-se de acordo a esse respeito - disse ela, titubeando um pouco.
Como se fosse unicamente para não lhe desagradar, Mayli não retirou a mão e Sheng apertou-a firmemente na sua. E sobre essas duas mãos juntas pousavam as de Pansiao, quentes e leves.
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- Não quer concordar connosco? - perguntou a garota a Mayli, com ar suplicante.
- Minha filha - respondeu a jovem - não achas pouco próprio o momento para uma conversa desta natureza? Quem sabe se amanhã estaremos ainda vivos?
- Mas é por isso mesmo que devem chegar os dois a acordo - insistiu Pansiao com ar ansioso. - Se estivéssemos certos do dia de amanhã... não havia razão para pressas. Mas justamente por não haver talvez amanhã, acho que os dois devem pôr-se de acordo já esta noite.
- Ela tem razão - proferiu Sheng, numa voz profunda.
Mayli estava comovida. Não seria para si também uma nova força dar a sua promessa a Sheng e ter ao menos essa segurança?
Mas como se o Céu até isso lhe recusasse, antes de poder pronunciar uma única palavra, ouviram na noite um ruído de passos precipitados e An-lan apareceu diante deles, pálida à luz do luar, ofegante por ter corrido, os olhos negros a brilhar na palidez do rosto. Precipitou-se para Mayli, como se mais ninguém ali estivesse e gritava enquanto corria:
- Oh! Está aqui... Procurei-a por toda a parte! Chi-ling... Chi-ling enforcou-se numa árvore. Está além!
E An-lan apontava para o outro lado do acampamento. Mayli pôs-se logo de pé e começou a correr na direcção indicada, seguida de Sheng. Pansiao nem sequer se mexeu, mas ninguém se importou saber com ela. Os três correram para a orla da selva, um pouco adiante do local onde os homens estavam deitados, por trás da barricada formada pelos veículos, e aí, numa árvore baixa, cujos ramos em forma de leque tremiam embora não soprasse a mais ligeira brisa, viram Chi-ling, pequeno vulto esguio a balouçar num tronco.
Sheng pegou numa faca de mato e cortou a tira de pano que a suspendia, tomou-a nos braços pousou-a no solo. Era Chi-ling com efeito. Tinha -rasgado em dois o cinturão, depois atara-o à árvore e pusera assim termo à vida.
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Mas teria deixado já de viver? Mayli ajoelhou-se e apalpou-lhe o corpo ainda quente.
- Corre! - gritou a An-lan. - Vai chamar o médico. E pôs-se a friccionar as mãos inertes de Chi-ling e a
imprimir movimentos aos seus braços delgados. Chung não tardou muito a aparecer, ainda a acabar de vestir-se enquanto caminhava, pois com aquele calor dormia quase nu. Ajoelhando-se, auscultou o coração de Chi-ling. Depois abanou a cabeça... O coração já não batia, estava morta. Os dois ergueram-se. An-lan, junto deles, olhava o cadáver fixamente. Já não havia lágrimas nos seus olhos muito abertos, somente espanto na expressão da sua boca.
- Ela não te disse nada, An-lan?-perguntou Mayli com doçura.-Vocês andavam sempre juntas...
- Não, não me disse nada - respondeu An-lan. Tínhamos jantado as duas, como fazíamos sempre, um pouco afastadas das outras, para estarmos mais tranquilas. Depois, fomos ambas cumprir as ordens que nos deu, cuidando dos feridos. Ela tratou os seus, eu tratei os meus.
- Eu vi-a ainda não há uma hora - afirmou Chung lentamente. - Foi dizer-me que um dos australianos tinha morrido. Mas eu já esperava isso mesmo. A gangrena tomara-lhe conta da ferida e já não tenho sulfamidas... Ela bem sabia que havia poucas ou nenhumas esperanças de o salvar... Além disso tratava-se dum estrangeiro...
- Ela sentia sempre imenso a morte de qualquer soldado- murmurou An-lan.-Eu bem lhe dizia... Hás-de ver morrer muitos e o que vai ser de ti se reages assim todas as vezes?
- E o que respondia ela? -perguntou Mayli.
- Bem sabe que nunca respondia a ninguém - declarou An-lan. - Não me respondeu nada. Mas disse-lhe isso quando ela ia tratar esse soldado moribundo. Provavelmente, depois de o ver morrer, veio aqui para morrer também.
- Vamos ver os despojos desse homem - propôs Chung. - Talvez tenha deixado junto dele alguma indicação.
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- Mas não a podemos abandonar aqui - observou Mayli vivamente. - Os animais da selva devorá-la-iam... as formigas, os gatos bravos... diz-se mesmo que nesta região há tigres.
Sheng inclinou-se e proferiu:
- Eu levo-a.
E erguendo o corpo de Chi-ling colocou-o aos ombros e voltaram assim para o acampamento. Um soldado inglês que fazia sentinela bradou:
- Quem vem lá?
- Uma enfermeira suicidou-se - disse Chung, num tom breve.
- Oh! - murmurou a sentinela. Depois, baixando a espingarda e erguendo a rede que lhe pendia do capacete e o protegia dos mosquitos:
- O quê, foi esta rapariga?!-exclamou.-Vi-a passar ainda não há meia hora e aconselhei-a a não se afastar sozinha, mas ela repeliu-me e não insisti... É difícil discutir com quem não compreende o inglês.
- Pode deixá-la aí - disse o médico para Sheng. A sentinela guarda-a até o nosso regresso.
Sheng pousou no chão o corpo de Chi-ling e Mayli, ajoelhando-se, arranjou-a com todo o cuidado. Deixaram-na ali, deitada, em sossego, a luz do luar a iluminar-lhe o rosto.
- Velarei por ela - murmurou a sentinela. Dirigiram-se então, em silêncio, ao local onde jazia o
soldado que acabava de morrer. Mas Chi-ling não deixara ali nenhuma indicação, nenhuma mensagem de qualquer espécie. Inclinaram-se para o corpo do jovem e repararam que alguém o arranjara com todo o cuidado, os cabelos bem penteados, e sobre a ferida gangrenada colocara um punhado de folhas aromáticas.
- Foi ela que pôs estas folhas - disse An-lan. Calaram-se um momento, depois Chung considerou:
- Voltemos atrás para a enterrar. com este calor, não se pode esperar. Outros se encarregarão de enterrar este
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rapaz, mas a ela é a nós que compete fazê-lo, é uma das nossas.
Voltaram ao local onde a tinham deixado e na orla da selva abriram uma cova com a ajuda duns paus que Sheng conseguiu arranjar. Depois An-lan e Mayli atapetaram a cova com ramos verdes e nela depuseram Chi-ling. Quando a tumba ficou toda coberta de terra, Sheng e o médico foram buscar um grosso tronco duma árvore caída perto dali e colocaram-no em cima do túmulo para o defender dos animais selvagens.
Uma vez tudo terminado, Sheng e Mayli olharam um para o outro. Ele retomou o tom rude que lhe era habitual.
- Agora, tenho de voltar para junto dos meus homens. E os seus deveres também a reclamam.
Viram nesse instante aproximar-se Pansiao. Olhou-os em silêncio, os olhos muito abertos, aterrados, mas não lhe prestaram a mínima atenção, nem sequer a An-lan que se sentara na extremidade dum tronco de árvore, a cabeça entre as mãos. Chung já se fora embora.
- Voltaremos a ver-nos todas as noites, sempre que seja possível - pronunciou Sheng. - Espere por mim. Quando puder, virei.
Mayli aprovou com a cabeça e seguiu-o com o olhar. Quando Sheng desapareceu, dirigiu-se para An-lan e pousou a mão no ombro da jovem.
- Vem comigo - disse-lhe.
An-lan ergueu-se e Pansiao aproximou-se, calada e cheia de medo. Mayli pegou-lhe na mão e as três dirigiram-se em silêncio para o acampamento para descansarem um pouco nas poucas horas que ainda faltavam para o romper do dia.
XVI
Mas nem na noite seguinte, nem na outra, nem nas seis noites que se sucederam Sheng e Mayli tornaram a
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ver-se. Na alvorada do dia seguinte, os que não estavam acordados devido aos mosquitos, sanguessugas e demais temíveis insectos e pequenos animais que abundam nas regiões selvagens, foram bruscamente arrancados ao sono pelos aviões inimigos que voavam extremamente baixo e semeavam o pânico em toda a parte, mesmo na retaguarda onde se encontravam Mayli e as enfermeiras. Depois de Sheng partir, Mayli, com Pansiao ao lado, deitou-se para uma ou duas horas de repouso, tendo recomendado primeiro a An-lan que não se afastasse, pois podia precisar dela, mas na realidade apenas porque o mutismo da rapariga a inquietava.
Ao deitar-se, estava convencida que não conseguiria dormir, de tal maneira se sentia inquieta e atormentada, mas o sono prostrou-a, pois era bastante jovem e estava muito cansada.
Arrancou-a a esse sono o fragor das explosões das bombas; saltou e pegando em Pansiao correu a refugiar-se na selva. E aí, numa semi-obscuridade, as duas jovens abraçaram-se uma à outra. Uma chuva ligeira caíra pouco tempo antes, uma chuva que não as havia acordado na sua tenda estreita, mas que molhara todas as folhas dos arbustos, e nesse esconderijo, apesar do calor e da falta de ar, a humidade fazia-as tremer. Aliás elas não se sentiam de maneira nenhuma em segurança, pois toda a gente sabia que os soldados inimigos subiam às árvores como macacos e que, vestidos de verde, se confundiam com os ramos. Assim, Mayli olhava constantemente em volta, cheia de ansiedade. Mas em lugar do inimigo que receava avistar, viu emergir de súbito, por trás dum tronco apodrecido, a cabeça duma serpente, curta e maciça.
- Não te mexas - disse baixinho a Pansiao. - Está ali uma horrível serpente a espreitar-nos.
Não se atrevendo a mexer-se, abraçaram-se uma à outra, fixando com horror a serpente, enquanto por cima delas os aviões ganhavam altura, mergulhavam, tornavam a subir, com barulho ensurdecedor; e de cada vez que desciam as bombas explodiam com o fragor do trovão. A serpente,
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irritada com esse barulho, pôs-se a balouçar para diante e para trás, erguendo a cabeça redonda acima do ninho formado pelo corpo enrolado, e deitando de fora uma língua estreita dum vermelho vivo.
Pansiao observava-a e o seu rosto empalideceu.
Não parece uma serpente - sussurrou - mas sim
um demónio.
No meio daquele calor sufocante, debaixo de ramos a gotejarem água, as duas jovens permaneciam imóveis, não tirando os olhos da serpente. Ela avançou a cabeça, depois balouçou-a lentamente, para a direita e para a esquerda, para diante e para trás, os olhos negros e redondos fixos nelas, de tal maneira que Mayli, embora estivesse afastada uns vinte pés, se persuadiu de que o réptil se preparava para as atacar.
- Não fiquemos aqui - disse baixinho a Pansiao. recuemos mas devagar, de maneira que ela não dê por isso.
E começaram a recuar muito lentamente para a orla da selva, esquecendo, no seu terror, o perigo que pairava por cima das suas cabeças. Mas no momento em que retiravam, apoderou-se delas um tal terror que sem pensarem em mais nada, tomadas dum medo louco, insensato, correram até o meio da estrada sem olharem uma única vez para trás.
- Julga que a serpente nos supõe culpadas de toda esta barulheira? - perguntou Pansiao, ansiosamente, quando pararam de correr.
- É muito possível - respondeu Mayli. Não tinha ainda pensado nisso. E no meio do perigo, enquanto as bombas explodiam à direita e à esquerda, a jovem pensou um instante nesses habitantes da floresta, habituados ao silêncio desde o princípio do mundo e decerto irritados agora com tão incompreensível tormenta.
Nos dias que se seguiram, Mayli lembrou-se com frequência desse terror que se apoderara dela e de Pansiao ao fugirem diante da serpente, pois um terror semelhante parecia ter-se apoderado dos exércitos em retirada. O inimigo
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atacava cinco e seis vezes por dia, enquanto as tropas recuavam, deixando atrás de si mais mortos do que os que podiam enterrar e mais feridos do que os que podiam tratar. Já não havia tempo para dormir, muito pouco para comer e nenhum apetite para engolir a miserável ração que se distribuía, pois todas as comunicações estavam cortadas com a retaguarda e tinham de se contentar com o que iam encontrando pelo caminho. Em poucos dias Pansiao ficou pálida e fraca e as faces rosadas de Siu-chen tornaram-se brancas como o mármore. E já ninguém tinha forças para se irritar e discutir... Os que ainda viviam, cumpriam os seus deveres para com os mortos.
E por cima deles, e por baixo deles, e em volta deles, como cobertores de lã húmidos, havia esse eterno calor que não cessava nem de dia nem de noite. Durante o dia, o fulgor do sol era insuportável e ansiava-se pela noite. Mas à noite, a obscuridade asfixiante tinha qualquer coisa tão difícil de suportar que se esperava o dia com impaciência. Era a estação dos aguaceiros, essas chuvas breves e repentinas, que caíam bruscamente dum céu que parecia azul e findavam tão bruscamente como tinham começado, chuvas que noutros tempos os habitantes desses lugares viam tombar com satisfação, pois amadureciam as searas. Mas se esses aguaceiros diminuíam um pouco o calor, comunicavam aos corpos enfraquecidos um arrepio perpétuo, nada de bom sucedeu portanto nesses dias. Era uma luta sem fim e um-esforço desesperado para retirar mais rapidamente, até que a retirada se transformou em terror, uma espécie de pânico que se comunicava duns para os outros, pois a carne tinha medo e o espírito estava adormecido.
Seis dias se passaram assim e nem uma só vez Mayli viu Sheng. Ela própria não procurara tornar a vê-lo, pois não tinha um só instante de seu. Mas na noite do sexto dia o movimento de retirada deteve-se; uma chuva violenta transformara as estradas em ribeiros e o céu toldara-se tanto que não havia que recear os aviões inimigos. E pela primeira vez ao fim de tantos dias e tantas noites, Mayli teve tempo de se lavar. A chuva continuava a cair, leve e regularmente.
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Mayli tirou da mochila o último bocado de sabão que conservava religiosamente. Chamou Pansiao um pouco à parte, pediu-lhe que segurasse numa toalha, aberta em forma de taipa para não a verem da estrada, e por trás desse improvisado abrigo ensaboou-se debaixo da chuva.
De súbito, viu Pansiao espreitar por cima da toalha, o rosto molhado da chuva que caía.
O que vamos fazer agora? - disse-lhe. - Vejo aproximar-se o meu terceiro irmão.
Ele vem aí? - exclamou Mayli. - vou vestir-me
num abrir e fechar de olhos.
E assim fez, aprontando-se num instante, pois bastava-lhe vestir o uniforme húmido e atirar para trás os cabelos curtos.
Saiu de trás da toalha e correu para Sheng, mas viu logo que ele parecia doente e que trazia o braço ao peito, grosseiramente apoiado num pedaço de corda.
- Está ferido?! - exclamou.
- Eu não chamo a isto uma ferida - declarou Sheng.
- Foi um prego que me atiraram há seis dias em vez duma bala e não supus que fosse coisa de cuidado, mas agora pergunto a mim mesmo se o prego não estaria envenenado.
E contou-lhe que sentira uma ligeira picada e extraíra do braço um prego enterrado até à cabeça.
- Deixe-me ver isso - pediu Mayli levando-o para a sua tenda, onde desenrolou a ligadura improvisada com uma tira da camisa.
Feito isto, viu que a ferida tinha verdadeiramente mau aspecto e estava bastante infectada. O braço inchara, o pus escorria do ferimento e pequenas veias vermelhas desenhavam-se sob a pele até o ombro.
- É muito idiota! - exclamou ela, furiosa de inquietação. - Por que não me mostrou isto há mais tempo?
- Quem tem ensejo para pensar em si próprio nesta altura? - respondeu Sheng.
Mayli não encontrou resposta. Voltou-se para Pansiao que olhava os dois com ar ansioso.
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- Vai procurar o médico - ordenou-lhe. - E dize-lhe que é por causa do teu irmão.
Pansiao partiu a correr em busca de Chung e Mayli começou a lavar a ferida com um desinfectante que tinha consigo.
A timidez invadiu-os, e no entanto parecia-lhes maravilhoso estarem ali sozinhos, apesar das circunstâncias. Mas esse instante não duraria muito, sabiam-no bem, e ambos procuravam ansiosamente as palavras que deviam pronunciar e que lhes serviriam de conforto até o próximo encontro. Foi Sheng quem falou primeiro:
-- Se alguma vez conseguirmos sair deste maldito inferno, não esperarei um só dia para saber o que decidiu a meu respeito.
Mayli, ocupada a lavar a ferida, ergueu a cabeça para lhe sorrir, mas o sorriso morreu-lhe nos lábios quando reparou que o mais leve contacto das suas mãos o fazia sofrer atrozmente.
- Oh! - exclamou. - Isto faz-lhe doer muito. Devia dizer-me que lhe faço doer. Sente-se, Sheng...
E obrigou-o a sentar-se numa caixa de munições vazia, que servia agora de banco. Continuou a lavar-lhe a ferida, procurando confortá-lo meigamente.
- Sei que estou a fazer-lhe doer muito... Mas não pode ser de outra maneira. Também sofro por ter de o magoar tanto, mas é preciso limpar todo este pus. Quando Chung chegar, verá já a ferida limpa e saberá então o que tem a fazer...
Sheng continuava quieto, sem a interromper. As palavras de Mayli eram carinhosas e a sua voz repleta de ternura. Sentiam-se tão próximos um do outro... Nada os poderia separar, nem mesmo a morte.
Mas tudo isto durou apenas um instante. E antes que o pudessem agarrar, esse instante fugiu e Chung apareceu à entrada da tenda.
- De que se trata? - perguntou.
- Veja este rapaz - disse Mayli. - Um prego envenenou-o.
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O rosto quadrado de Chung parecia uma caveira, de tal forma emagrecera nos últimos dias. Os tendões do pescoço, como cordéis, faziam-lhe mover a cabeça. A barriga que tivera em tempos melhores, desaparecera, para dar lugar a uma cavidade em volta da qual dava duas voltas o cinturão. Mas nunca adoecia e não se lamentava de fadiga. Examinou a ferida que Mayli havia lavado, cheirou-a, verificou que estava infectada e abanou a cabeça.
Este rapaz devia ser tratado com sulfamidas - disse
mas já não tenho essa droga. Empreguei o resto há
muitos dias.
- E os ingleses não a terão? - perguntou Mayli.
- Como posso eu saber se a têm? - replicou Chung.
- Há dez dias que não vejo um único médico inglês.
- Nós não os podemos acompanhar - disse Sheng com ar de desprezo. - Vão sempre à frente da retirada.
Pela primeira vez Mayli compreendeu o que sucedia todos os dias.
- É por isso que desfazemos as tendas sempre ao meio-dia? - perguntou.
- Todas as manhãs recebemos ordens para nos mantermos - explicou Sheng. - E mantemo-nos a todo o custo. Depois, ao meio-dia, chega nova ordem, desta vez para reforçarmos as nossas posições. E passamos então o resto do dia a recuar para as linhas indicadas.
Olharam uns para os outros com o mais completo abatimento.
- Como acabará tudo isto? - perguntou Mayli.
- Quem sabe? - pronunciou Sheng. - O general está como louco. Ele que nunca, durante toda a sua carreira, bateu em retirada, tem todos os dias que retirar, abandonando os seus mortos. E nós que comandamos sob as suas ordens... o que podemos fazer?
- Mas o americano? - perguntou Mayli.
- Que pode ele fazer? - interrogou Sheng. - Não é um deus... é como nós... um estrangeiro a combater em terra estrangeira. Não, a batalha está perdida. Todos o sabemos. E os soldados desertam...
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- Mesmo os nossos? - perguntou Mayli em voz baixa.
- Todos... - disse Sheng.-Os que têm vontade de desertar, desertam, quer sejam brancos, amarelos ou negros.
Enquanto falava, mantinha o braço sossegado. O médico por fim endireitou-se e disse com um suspiro:
- Não sei na verdade o que hei-de fazer.
De súbito, Pansiao falou. Estivera sempre calada enquanto falavam da guerra, sem ligar sequer importância às palavras, pensando apenas no braço do irmão.
- Lembras-te, meu terceiro irmão, que a nossa mãe fazia cataplasmas de pão de fermento cozido que punha sobre os furúnculos que às vezes tínhamos no Verão? Os furúnculos amadureciam, rebentavam e desapareciam. Ela acrescentava também alguns grãos de colza, mas isso não temos nós aqui. Trago um bocado desse pão na minha mochila. Guardo-o há muito tempo, na previsão de vir ainda a ter verdadeiramente fome e todos os dias o limpo com muito cuidado. Já comi um bocadinho, mas guardei o resto, pois muitas vezes penso que pode chegar um dia em que não tenha mais nada para comer.
- Se isso não lhe fizer bem - declarou o médico -- em qualquer dos casos não lhe fará mal. Vá buscar o pão, minha filha.
Pansiao abriu a mochila e tirou de lá um embrulho de oleado. Por baixo desse oleado havia outro, do qual ela sacou por fim um bocado de pão seco que estendeu a Chung. Este fez a cataplasma e aplicou-a no braço de Sheng.
- Não se sirva em nenhum caso desse braço - disse-lhe.
- Felizmente não é o braço que segura a espingarda e por isso posso obedecer-lhe - respondeu Sheng.
Depois levantou-se.
- Não posso ficar aqui mais tempo. O general convocou-nos para esta noite.
Não estendeu a mão a Mayli mas lançou-lhe um longo e profundo olhar.
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Fará bem em voltar cá amanhã para poder examinar-lhe o braço - aconselhou Chung.
Se puder, virei - afirmou Sheng, sem deixar de
fixar Mayli - Mas se não voltar durante alguns dias, não imagine que piorei da ferida. Isso quererá apenas dizer que o general me encarregou de qualquer missão. Logo que possa, virei.
Falando assim, era a Mayli que se dirigia; ela sorriu-lhe e disse corajosamente:
Não me atormentarei, prometo.
E com estas palavras se separaram.
Sheng, quando deixou Mayli, abriu caminho através da confusão do exército em derrota; depois, voltando à esquerda, dirigiu-se para uma pequena tenda que era a do general. Tossiu à entrada para assinalar a sua presença e ouviu a voz do general que o convidava a entrar.
Os outros já lá estavam: Yao Yung, de rosto comprido e triste, sentava-se numa cadeira dobradiça. Pão Chen estava de cócoras. Charlie Li apenas vestia umas calças em farrapos, enroladas por cima dos joelhos.
- Sente-se onde puder - disse-lhe o general num tom breve. -Não temos muito tempo para perder com delicadezas. Mandei-o chamar porque Li me trouxe más notícias. Não podemos contar com tropas da retaguarda. Os homens sabem que a batalha está perdida. Já não nos chegam reforços. Não nos chegam também ordens. Se não nos enviam reforços, como pudemos manter a frente? E, no entanto, a despeito de tudo isto, recebi esta tarde ordem do chefe americano para levar rapidamente socorro aos brancos que estão cercados noutro ponto. Uma vez mais o inimigo os isolou da sua retaguarda. Os seus soldados, disfarçados, introduziram-se na região com a ajuda dos habitantes e cortaram o rio que os brancos deviam passar. Ordenam-nos que os ataquemos nesse ponto de forma a abrirmos uma brecha suficientemente larga pela qual os brancos possam escapar. Há uma ponte que é defendida
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pelo inimigo. Temos de o repelir das margens, atravessá-la depois e destruir a ponte antes que o inimigo nos possa seguir. É uma operação tão delicada como trabalhar ao torno uma peça de marfim.
Dizia isto numa voz igual e fria e quando terminou ninguém disse nada. Por fim Sheng perguntou:
- Se é exacto não podermos contar com o auxílio da retaguarda, como diz Li Kuo-fan, o que vão fazer esses brancos depois de atravessarem o rio?
- Continuam a bater em retirada-respondeu o general. Ergueu para eles um rosto cansado e olhou-os um por um.
- Não tenhamos ilusões-disse. - O auxílio aéreo que supúnhamos que os brancos enviariam, nunca chegaremos a ver. Não devemos esperar ajuda de qualquer espécie.
- Eles vão então abandonar os seus a uma morte certa?
- exclamou Yao Yung num tom cheio de horror.
Este rapaz tinha na realidade um coração demasiado terno para a profissão que escolhera.
- Os seus chefes julgam preferível sacrificá-los do que enviar outras tropas que perderiam igualmente - observou o general.
, - Então por que combatemos nós? - inquiriu Sheng.
- Deixe que cada homem o pergunte a si próprio replicou o general num ar sombrio. - Além disso, são ordens. Quem se oferece como voluntário?
O general lembrou-se que o Presidente lhe dissera que se uma missão verdadeiramente delicada se apresentasse, devia incumbir dela Sheng, e lembrou-se que Sheng lhe respondera: "Cumprirei tal missão". Mas não tinha grande vontade de enviar assim um homem para a morte e esperou.
Houve um silêncio.
- Oferece-se alguém voluntariamente ou serei obrigado a designar quem deve ir? - perguntou o general, vendo que nenhum dos oficiais se decidia a falar.
Pão Chen cuspiu para o chão e calou-se. Yao Yung pensou na mulher e nos filhos e calou-se também. Chan Yu
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manteve-se igualmente em silêncio, pois o seu lugar era ao lado do general e sabia que este não o deixaria partir.
Sheng olhou para todos e lembrou-se da sua promessa. Atirou a cabeça para trás e proferiu:
já que nenhum quer falar, falarei eu! vou eu, meu
general, e os meus homens abrirão a passagem para os brancos. Mas diga-me primeiro por que razão estão eles cercados, para eu poder considerar esta missão como um
dever.
Não sei nada-volveu o general.-Ninguém me diz
nada. Só me dão ordens. Tenho de decidir se devo ou não executá-las. Até agora tenho-me inclinado sempre. Se alguém for, inclino-me uma vez mais. Senão...
Sheng lutava intimamente. Era então verdade que nunca lhe diziam nada... O que os brancos faziam e a razão por que o faziam, era um mistério. Davam ordem para manter uma posição, depois, sem razão aparente, recuavam, afastavam-se a distância dum dia inteiro de marcha, trinta milhas, algumas vezes mais, algumas vezes menos. E agora tinham-se deixado cercar de novo e o que daí resultaria ninguém podia saber. O braço de Sheng fazia-o sofrer horrivelmente e a dor subia-lhe ao ombro e espalhava-se-lhe nas costas, enquanto reflectia em tudo isso.
- Se não fosse pelo Presidente e pelo orgulho que ele tem em nós - prosseguiu o general lentamente - daria ordem às minhas tropas que voltassem costas a esta batalha perdida.... perdida antes mesmo de termos posto pé nesta terra estrangeira. Mas como podia eu aparecer diante do Presidente se não fizesse tudo o que ele me ordenou que fizesse?
A estas palavras Sheng soltou um profundo suspiro e apoiou o ombro doente ao mastro que sustinha ao centro a tenda.
- Irei - repetiu Sheng - e cumprirei o que tem de se cumprir... pois assim deve ser,
- Então fique aqui depois dos outros se retirarem disse-lhe o general. - Quero dar-lhe os mapas necessários e indicar-lhe o caminho mais curto.
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- Só lhe peço um favor - continuou Sheng. - Deixe-me levar este rapaz comigo.
E pousou a mão no ombro de Charlie.
O general anuiu, os outros oficiais retiraram-se e os três ficaram sós para os últimos preparativos. Falaram durante mais de duas horas, ou melhor, o general falou e os dois jovens escutaram. De tempos a tempos Charlie indicava no mapa um caminho mais curto ou uma passagem só dele conhecida. Como se deslocavam a pé e sem artilharia, era-lhes fácil empregar os mais estreitos carreiros para chegar rapidamente à beira do rio.
- Num dia e meio de marcha rápida, devem estar no local - disse o general. - Mande então descansar os seus homens até à noitinha. E lance o seu ataque de noite, como lhe disse há pouco. Disperse tanto quanto possível os seus soldados, de forma a chegarem ao local em pequenos grupos isolados. Mas dê-lhes instruções absolutamente precisas. Devem encontrar-se todos num lugar determinado a uma hora dada e ninguém faltar à chamada.
- Ninguém faltará - garantiu Sheng.
- Quando pode pôr-se a caminho? - perguntou o general.
Sheng não respondeu logo. Sob o uniforme, o seu ombro doente latejava. Mas afastou deliberadamente do espírito esse pormenor, ao qual se recusava a ligar a mínima importância. Hesitava por outra razão muito diferente. Perguntava a si próprio se devia ou não ir dizer a Mayli que partia. E supondo que a fosse avisar, ela tomaria isso a bem ou a mal? Seria capaz de lhe dissimular que sentia a cabeça a arder em febre, que os olhos lhe queimavam nas órbitas e que o braço lhe inchava cada vez mais por baixo da ligadura? Compreendeu que não teria forças para resistir ao poder que ela sobre ele exercia. Aliás já a prevenira que talvez se passassem alguns dias antes de poder ir vê-la... pois bem, passaria efectivamente alguns dias sem a ver.
- Partirei ao romper do dia - declarou ao general.
- Como vai arriscar a vida - respondeu-lhe o general
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- não tenho quaisquer ordens a. dar-lhe. O seu próprio julgamento indicar-lhe-á o que deve fazer.
Depois informou Sheng do único pormenor que até ali conservara secreto.
- Escolhi, para os pôr sob o seu comando, os melhores elementos das nossas três divisões.
Em qualquer outro momento, essas palavras teriam enchido Sheng de orgulho, mas naquela altura se os ouvidos as ouviram o cérebro não as registou. Fazia os maiores esforços por fixar os olhos no rosto do general, mas via-o em duplicado.
- Compreendeu o que eu disse?-perguntou o general.
- Farei o melhor que puder - balbuciou Sheng.
E forçando o braço direito a fazer continência, deu meia volta e saiu da tenda.
XVII
Até o romper do dia Sheng não conseguiu dormir um instante sequer, de tal maneira o braço doente o fazia sofrer. Não podendo suportar mais a dor, rompeu a manga do uniforme e sentiu um ligeiro alívio, pois a pele do braço estava tão inflamada que o simples contacto da fazenda era insuportável. Desfez em seguida a ligadura e retirou a cataplasma. Um fio de pus amarelado escorreu da ferida. Deixou-o correr, sentindo-se mais aliviado e suficientemente bem para aparecer em frente dos seus homens. Quando a corneta tocou a reunir, os soldados formaram sob as ordens de cinco oficiais, à frente dos quais devia seguir Sheng.
De pé diante dos seus homens, Sheng sentiu o ar calmo e puro desse dia acalmar-lhe o espírito toldado pela febre. Olhou para os soldados com orgulho. Eram verdadeiros soldados, magros, queimados do sol, mas sólidos. Os seus uniformes pareciam acinzentados, duma cor de tal forma desbotada que seria muito difícil de definir a cor primitiva. Tinham os pés nus metidos em sandálias de palha e levavam ao ombro um par suplementar. Cada um possuía uma
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espingarda dum modelo mais ou menos recente, uma mochila e um chapéu de palha de arroz para os defender do sol e da chuva.
- Estão prontos? - perguntou Sheng.
Numa só voz, os homens gritaram que sim e, sem esperar mais, Sheng pôs-se a caminho. A coluna deslocava-se atrás de si, ondulando através do vale, e entre os homens, o que Sheng ignorava, ia o hindu a quem salvara a vida. O Caranguejo bem lhe recomendara que não abandonasse o acampamento, mas o hindu esperara que a coluna se pusesse em marcha e misturara-se com ela para ficar junto de Sheng. Charlie Li partira um pouco antes para procurar comida e obter informações sobre a posição exacta do inimigo.
Caminharam assim algumas milhas. Quando o dia nasceu, Sheng parou e mandou descansar os homens. Depois deu-lhes as seguintes ordens:
- Agora que já é dia, vamo-nos dispersar em leque, mas encontrar-nos-emos todos na aldeia das Três Águas que fica a Leste do rio, exactamente a cento e duas milhas de distância do sítio em que nos encontramos agora, à beira dum pequeno lago quase totalmente seco. Vão partir em grupos de cem, afastados um terço de milha uns dos outros, depois tomam a direcção do Ocidente para chegarem a esse lago. Tomem depois a direcção do Sul se vierem do Norte e do Norte se vierem do Sul, atravessam o lago onde for mais fácil, e na outra margem, mais ou menos a meio, encontrarão uma aldeia fácil de reconhecer, pois é banhada dum lado por um lago, do outro por um rio bastante insignificante para estar assinalado no mapa e noutro ainda por um estreito canal. Por isso tem o nome de Aldeia das Três Águas. Mas não se conservem juntos. Procurem passar por viajantes, monges, ou soldados perdidos.
Sheng levou consigo um rapaz ainda bastante novo que se juntara a eles na fronteira e escolheu-o porque esse adolescente era muito calado. O seu braço voltara a fazê-lo sofrer, a cabeça andava-lhe à roda com a febre e não tinha a mínima vontade de falar. Durante todo o dia caminhou
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em silêncio, não chegando a dirigir vinte palavras ao jovem aterrorizado que marchava respeitosamente dez passos atrás e que não abria a boca senão para dizer "Sim, meu irmão mais velho", de cada vez que Sheng para ele olhava.
Da primeira metade dessa jornada, Sheng nunca mais se lembrou de nada a não ser que punha sucessivamente um pé à frente do outro. Não parou para comer nem para descansar, mas cada vez que descobria água, bebia a mais não poder. Evitava as aldeias, o que não era difícil, pois as mais importantes estavam rodeadas duma paliçada de bambus e as mais pequenas eram visíveis de longe, com suas casas construídas sobre altas estacas, e cada aldeia raramente constituída por menos de vinte dessas casas. Sheng e o companheiro avançavam através dos campos e a coberto das colinas quando as havia. Era coisa fácil, pois os carreiros serpenteavam em toda a região e conduziam onde se queria ir. Por vezes, nos sítios onde o arroz era alto, atravessavam os arrozais e outras vezes evitavam-nos.
De ora em quando, um fazendeiro birmanês abria muito os olhos na sua frente e Sheng ao vê-lo apontava para o braço doente fazendo-lhe crer que andava à procura dum médico; os camponeses aprovavam com a cabeça e nos olhos de alguns havia piedade. Uma só vez foram detidos por um velho de ar enérgico, de olhos negros e brilhantes, que quando viu o braço de Sheng o interpelou e pegando-lhe na mão válida o levou consigo. Sheng, não querendo discutir, seguiu-o até a aldeia mais próxima. Era um pequeno aglomerado constituído por uma única rua para a qual deitavam algumas lojas e uma forja, tendo ao fundo um mosteiro. O velho transpôs o portão do templo acompanhado de Sheng e penetrou numa quadra onde estava um ancião de ar venerável no seu hábito de monge. Depois, apontando para Sheng, disse em voz forte:
- Pong yi... pong yi!
Sheng, que não percebia patavina daquela linguagem, mostrava um ar estúpido, mas o camponês começou a falar com grande desenvoltura e o monge, erguendo a manga rota no braço de Sheng, examinou a ferida, abanou a
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cabeça e suspirou repetidas vezes como para indicar que o caso era bastante grave. Depois levantou-se com lentidão, dirigiu-se a passos vagarosos para a dependência vizinha e voltou com um pequeno boião de porcelana branca contendo um unguento escuro. Mergulhou nele o indicador comprido e afilado, fez sinal a Sheng para estender o braço e espalhou o unguento sobre a ferida. À primeira impressão, Sheng supôs que iria gritar de dor, pois o unguento queimava-lhe a ferida como fogo. Conteve-se por vergonha. Mas depressa essa impressão cáustica se transformou numa impressão de frescura e por fim a dor desapareceu completamente. Sheng, tomado de reconhecimento, tirou a bolsa do cinturão para recompensar o velho padre, mas este não quis aceitar nada, nem sequer o camponês que o conduzira ao mosteiro. Este camponês guiou Sheng até à entrada da vila e embora ele insistisse de novo em dar-lhe algum dinheiro, não quis aceitar. E Sheng retomou o seu caminho, maravilhado por encontrar, mesmo naquele país hostil, homens bons e desinteressados.
Tendo deixado de sofrer momentaneamente, Sheng retomou o caminho com renovada coragem. De súbito pensou que o rapaz que o seguia devia estar esfomeado, o que decerto era verdade, e disse-lhe:
- Assim que encontrarmos onde comprar alguma comida, paramos; é preferível isso do que consumirmos as poucas provisões que trazemos connosco.
Continuaram portanto a avançar e Sheng, de espírito agora mais lúcido, reparou, olhando em volta, que a região que atravessavam era excepcionalmente rica e fértil. Viu uma coisa que nunca vira antes, arroz a germinar ao lado de arrozais prestes a serem ceifados, pois não havia ali Verão nem Inverno, como na sua terra, e os campos estavam eternamente verdes.
Acabaram por encontrar um vendedor ambulante que vendia pastéis de arroz. Compraram cada um cinco ou seis pastéis bem quentes e instalaram-se à beira da estrada, à sombra duma árvore de folhas delicadas, de flores dum vermelho ardente e tão perfumadas que o ar em
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volta estava vibrante de abelhas. Sheng estendeu-se a essa sombra e o rapaz sentou-se a pouca distância, observando-o num silêncio respeitoso. Sheng dizia para consigo que devia conversar um pouco com o adolescente, quanto mais não fosse por simples cortesia, mas sentia-se incapaz de o fazer. A febre dava-lhe uma invencível sonolência, a tarde atingia o seu momento de maior calor, o perfume penetrante da árvore em flor atordoava-o, e depois de comer sem apetite, estendeu-se e adormeceu.
Acordou novamente com dores no braço doente e olhou em volta, sem saber ao certo onde estava e sentindo o corpo tão pesado como se nas suas veias corresse chumbo fundido. Esforçou-se por se erguer e viu que o adolescente o olhava.
- Dormi muito tempo? - perguntou-lhe.
- Muito tempo não - respondeu o rapaz - mas eu já começava a perguntar a mim próprio se devia acordá-lo.
Sheng não respondeu, ergueu-se com esforço, esfregou o rosto e a cabeça com o braço válido e pôs-se a caminho, sempre seguido do companheiro.
E não se passou mais nada de extraordinário durante todo esse dia, a não ser que ao anoitecer chegaram às margens do lago que estava transformado num grande paul, contornaram-no, atravessando-o sobre um fundo rugoso de vasa endurecida. Na outra margem encontraram os homens que os esperavam, não agrupados como um exército, mas dispersos aqui e além debaixo das árvores. com grande satisfação, Sheng viu Charlie que correu ao seu encontro trazendo-lhe alguma comida. Numa folha de loto muito verde, pusera algum arroz misturado com ovos e enchera uma chaleira de chá bem quente. Sheng deixou-se cair por terra com um grande suspiro. Quando reparou na chaleira, apoderou-se dele uma sede insuportável. Pegou nela com a mão válida, levou-a à boca e bebeu a largos tragos. Charlie contemplava-o, e esperou que ele acabasse de beber.
Quando por fim Sheng pousou a chaleira, disse-lhe num tom calmo:
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- Posso agora informá-lo do que se passa. Terá de exigir aos seus homens que caminhem em marcha forçada, e- não lhes dar esta noite senão um curto repouso. Os brancos serão totalmente exterminados se deixarmos passar mais um dia e outra noite. Posso-o afirmar como coisa certa. Mal tenhamos comido, devemos pôr-nos a caminho.
Sheng escutava atentamente, mas o braço latejava-lhe tanto que soltou um gemido. Foi a sua única resposta.
Entretanto, ordenou aos seus homens que descansassem um pouco, mas sem dormirem. Depois, dirigiu-se sozinho para a beira do lago, mergulhou a cabeça na água lodosa, tentando refrescar-se. com as mãos, molhou também todo o vestuário. Mas tinha tanta febre que em menos duma hora, quando deu o sinal para largarem, sentia-se novamente seco e a arder.
Durante toda a noite a divisão avançou, só parando de duas em duas horas para curtos repousos. Não era a primeira vez que Sheng obrigava os seus homens a marchar todo o dia e toda a noite. Sabia bem que a única maneira de o conseguir era fazer alto a intervalos regulares, tanto de dia como de noite. Os homens mantiveram-se agrupados enquanto reinou a escuridão, mas ao romper da aurora, dispersaram de novo, depois de Sheng lhes ter indicado o nome da aldeia na qual deviam reunir-se. Aí, num campo próximo, dormiram algumas horas antes de passarem ao ataque.
Até então tudo correra bem; somente por volta do meio-dia o braço de Sheng começou a fazê-lo sofrer duma forma intolerável. Ou fosse porque os aguaceiros que caíam de tempos a tempos dissolvessem o unguento, ou porque o suor produzisse o mesmo efeito, a dor voltou, insuportável, e a cabeça começou a andar-lhe à volta. Daria tudo por encontrar um velho como o que lhe pusera o unguento, mas o facto é que não podia conceder a si próprio um instante sequer de tréguas. Nada mais havia a fazer senão continuar a avançar e foi o que fez.
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Houve, no entanto, um momento de alívio nesse dia, pois a selva abrasadora, de vegetação baixa, deu lugar, a meio da tarde, a uma floresta de enormes tecas, cujas folhas formavam no solo um macio tapete, agradável aos pés fatigados. A maior parte dos soldados que já tinham gasto as sandálias e caminhavam com os pés nus, entraram com satisfação nesse troço do caminho. Uma coisa, porém, tornava o avanço na floresta difícil: eram numerosas as veredas e Charlie, examinando as pegadas impressas na terra branda, explicava:
- Isto são marcas das patas dos elefantes, ali onde as árvores estão arrancadas, mas temos de ser extremamente prudentes, pois se nos perdemos num destes trilhos, teremos de andar dias e dias antes de sair da floresta.
Foram caminhando com a ajuda das bússolas e acabaram por atingir a orla do bosque.
Mas como a noite se aproximava, Sheng deu ordem aos seus homens que se instalassem ali para algumas horas de repouso antes de se lançarem ao ataque. Os soldados instalaram-se como e onde puderam, estendendo-se sobre os cobertores e por vezes dois soldados partilhavam um cobertor somente. Só Charlie não quis dormir.
-- Tu nunca dormes? - perguntou-lhe Sheng.
-. Durmo enquanto marcho - respondeu Charlie com um largo sorriso.
Quando a calma reinou no acampamento, Charlie que já tinha comido e bebido, disse ainda a Sheng:
- Antes que acorde estarei de volta para lhe dizer onde ficam as posições inimigas e em que sítio estão os brancos cercados.
E partiu através da floresta, a passos largos e silenciosos, levando apenas com ele o mudo adolescente que acompanhara Sheng até então.
Sheng estava persuadido que não poderia dormir, tantas eram as dores que sentia no braço. No entanto adormeceu, pois Charlie acordou-o três horas mais tarde, tal como
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tinham combinado. Ao sentir no braço doente o contacto leve da mão de Charlie, Sheng deu um salto, soltou um urro e começou a tremer de dor apesar da noite quente.
- Irmão mais velho, o que tem? - perguntou Charlie, estupefacto.
Sheng estava desta vez completamente acordado. Humedeceu os lábios secos. O seu corpo estava seco como madeira e a pele tensa e ardente.
- Nada - disse num tom breve. - Tive um sonho mau.
-- Bem, então não pense mais nisso - respondeu Charlie. - Já sei onde se encontram os brancos. Estão efectivamente cercados. Os demónios postaram-se entre o rio e eles e cercam-nos de todos os lados. Mas têm muitas forças ao Sul e a Leste e poucas ao Ocidente, do lado da ponte. É aí que deve atacar. O inimigo ocupa uma faixa estreita à beira do rio, a menos de meia milha daqui. Se com os seus homens franquear imediatamente essa milha, chegará a tempo de libertar os brancos, permitindo-lhes que atravessem a ponte. Mas o ataque tem de ser de surpresa, para que os demónios não tenham tempo de destruir a ponte, senão ficaremos todos metidos numa ratoeira. O rio engrossou com as últimas chuvas e não há um único barco para o atravessar.
- Não há barcos? - repetiu Sheng. - É muito curioso ver um rio sem barcos.
Charlie limpou-lhe o suor do rosto com a ponta da sua veste.
- Os soldados brancos desertam e fogem para longe dos seus chefes - explicou. - Aliás, nem todos são brancos, há também alguns hindus. Sabem-se perdidos, quem os pode censurar? De cada vez que um desertor troca a espingarda por um barco, já se sabe que está perdido, pois o soldado, ao chegar à outra margem, abandona-o ao sabor da corrente.
- Como é possível que entreguem assim as suas magníficas espingardas a esses birmaneses traidores? - exclamou Sheng, a quem a raiva clareara as ideias.
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Não têm outra coisa para oferecer em troca... - disse Charlie. - São homens como nós, brancos ou negros.
- Mas uma boa espingarda!... - rugiu Sheng. Quando nós não temos boas espingardas...
O seu cérebro fatigado reteve as últimas palavras, que lhe dançavam na mente, desvairada pela febre, e pôs-se a murmurar maquinalmente:
Boas espingardas... boas espingardas... boas espingardas...
Está embriagado? - gritou-lhe Charlie.
Não - respondeu com simplicidade.
Mas para si mesmo dizia que estava embriagado com dores, e que não tinha o direito de pensar em si próprio. Soltou uma gargalhada:
- Estou bêbedo por combater - gritou para Charlie.
E correndo para os seus homens, rugiu ordens, convocando-os a seguirem-no sem demora. Não lhes deu sequer tempo para comerem e todos o seguiram sem protestar, atemorizados com o som da sua voz. Sheng começou a correr à sua frente, possuído dum fogo, duma energia extraordinária. A cabeça andava-lhe à roda, ardiam-lhe os olhos, mas sentia em si uma força que não conhecera nunca antes.
Ouvia atrás os seus homens ofegantes, protestarem, mas não lhes prestou a mínima atenção e continuou a arrastá-los ao ritmo máximo duma marcha forçada. Antes do nascer do dia, chegou, seguido dos seus soldados, à vista das tendas baixas do acampamento inimigo. Mas sem conceder a si nem a eles um instante de repouso, pôs-se a rugir como um touro, incitando os subordinados a rugirem com ele, e levou-os ao assalto dos inimigos, ainda meio sonolentos e que não esperavam aquele ataque.
Os homens de Sheng tinham-no seguido sempre como se ele fosse um deus e não um homem, e quando o viram num tal estado de raiva e de loucura, tornaram-se também loucos e enterravam as baionetas a torto e a direito. Tinham começado por fazer fogo, mas muitos possuíam apenas velhas espingardas que precisavam de ser carregadas sempre
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que disparavam um tiro e em vez de perderem assim tempo, começaram a apunhalar os soldados inimigos, a cortar-lhes a cabeça, a estrangulá-los com as mãos, a arrancar-lhes os olhos, enfiando os polegares nas órbitas das vítimas, a cortar-lhes as orelhas, a abrir-lhes as entranhas, a espesinhá-los, lançando-os depois ao rio. E o mais feroz de todos era Sheng, transformado em demónio, os olhos vermelhos e faiscantes, a boca toda aberta, rugindo sem parar. Aqueles sobre os quais caía ficavam petrificados de terror e os seus homens juravam que nunca tinham visto ninguém tão terrível como Sheng durante essa batalha. Servia-se do braço doente tão bem como do outro, pois todo o seu corpo era agora apenas dor, como um vaso cheio dum vinho escuro, e sentia-se realmente bêbedo.
Assim lançados ao ataque, os seus homens despersaram rapidamente o inimigo e, pela brecha aberta, precipitaram-se os soldados brancos, seguidos dos hindus, escapando assim ao cerco em que teriam decerto perecido. A retaguarda das tropas de Sheng que chegava nesse momento, viu os soldados brancos a correr pela ponte fora, a maior parte a pé, muitos deles feridos, e outros em camiões em melhor ou pior estado. Alguns agitaram os braços e gritaram hurras aos seus libertadores, mas foram poucos. O maior número passou sem prestar a mínima atenção a quanto os rodeava, o pensamento apenas fixo na própria vida que queriam salvar a todo o custo. Por vezes, acotovelando-se e atropelando-se, um ou outro caía na torrente barrenta e turbilhonante do rio, mas ninguém se detinha para tentar prestar-lhe socorro.
Sempre à frente das suas tropas, Sheng continuava a avançar, embora isso já não fosse necessário, esquecido de tudo no estado de febril excitação em que se encontrava, apenas se lembrando que fora incumbido de pôr o inimigo em debandada. Ia na frente e atrás sentia os seus homens seguirem-no quando de súbito notou que alguém o agarrava firmemente pelo cinturão...
- Está completamente louco?! - ouviu gritar Charlie.
- Quer persegui-los até à índia? Volte para trás... Os seus
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homens estão a ser massacrados à retaguarda! O inimigo contra-ataca do Sul, filho dum cão!
Sheng voltou-se, ofegante:
Já passámos a ponte? - gaguejou.
A ponte fica-nos a meia milha de distância - berrou Charlie.
E dizendo isto sacudia rudemente Sheng. Este, voltando a si, começou a correr, seguido dos seus homens que conduzira demasiado longe, quais galgos que percorressem em sentido inverso a meia milha de caminho ao longo do rio que os separava da entrada da ponte. Uma vez aí chegados, o seu pasmo não conheceu limites.
O arco da ponte estava quebrado na outra extremidade e o rio arremetia furiosamente pela brecha. A corrente tomara conta do extremo deslocado e imprimia-lhe um movimento furioso; por fim, à vista de Sheng, um pedaço da ponte foi arrancado triunfalmente pelas águas tumultuosas.
- A ponte!... - rugiu Sheng.-A ponte!...
Mas sentiu uma vertigem e não pôde terminar a frase. E foi o silencioso adolescente que estava ao seu lado quem a concluiu por ele. A sua voz elevou-se num grito agudo e penetrante:
- Oh, minha mãe! Os brancos destruíram a ponte!
A estas palavras o sangue de Sheng subiu-lhe à cabeça. E soltou uma enorme gargalhada:
- Os nossos aliados... Os nossos aliados...
Sentiu a cabeça estalar como se uma machadada lha abrisse ao meio e perdeu os sentidos.
XVIII
Quando voltou a si, seria incapaz de dizer quantos dias teriam decorrido e em que sítio se encontrava. Sentia-se envolvido por uma suave luminosidade verde, que não sabia explicar, pois não era a luz do dia nem da noite. Teve por momentos a ideia de que se encontrava debaixo
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de água. Percorria-lhe o corpo uma sensação de pureza, de frescura, de fraqueza. Estava deitado de costas e por cima dele e em volta dele não havia nada mais senão verde. Depois ouviu assobiar perto de si, um som claro e agudo saía duns lábios invisíveis e uma voz começou a falar inglês. Ele não compreendia o inglês e aquela língua estranha e rude tornava a atmosfera mais estranha ainda. Onde teria ele regressado à vida? Não era capaz de erguer a cabeça para verificar o que se passava em sua volta e contentava-se em abrir e fechar as pálpebras enfraquecidas. De novo rudes e duras sílabas chegaram aos seus ouvidos. Alguém respondeu e desta vez reconheceu aquela voz: era a de Charlie. Mas não pôde emitir qualquer som. Esforçou-se por abrir os olhos e fitar a luz verde. Então, viu um rosto interpor-se entre ele e a luz, o rosto do hindu. Ouviu-o soltar um grito de alegria, e logo o seu rosto ser substituído pelo de Charlie, que o olhava de muito longe, e que finalmente pronunciava palavras que ele podia compreender.
- Sheng, está acordado?
Sheng não podia falar. Abriu a boca, mas somente a respiração lhe passou pelos lábios. O rosto de Charlie aproximou-se. Estava ajoelhado ao lado dele.
- Sheng, ouve-me?
Sheng fez um esforço imenso e por fim conseguiu pronunciar, muito baixinho:
- Sim.
- Reconhece-me ?
- Sim.
- Agora tenho a certeza de que viverá - disse Charlie com doçura.
Tirou então do seio um ovo que perfurou cuidadosamente para que o seu conteúdo pudesse escoar-se pelo buraco assim aberto. Depois aproximou-o dos lábios de Sheng.
- Beba - disse-lhe. - Guardei para si este ovo de galinha.
Sheng sentiu a doce substância descer até à garganta.
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Engoliu uma e duas vezes e abandonou-se de novo à flutuante luminosidade verde.
Charlie Li, sentado sobre os calcanhares, contemplava-o, a casca do ovo vazia na mão. O rosto de Sheng era dum amarelo muito pálido, mas apesar disso estava agora com bom aspecto.
Há-de curar-se.
Graças a si - disse o inglês.
Foi você que lhe deu as sulfamidas -replicou Charlie, com cortesia.
O inglês esboçou um leve sorriso.
- Daria agora, tudo por um cigarro- declarou bruscamente.
- Se aparecesse um japonês no horizonte, matava-o para lhe tirar os cigarros e dar-lhos - afirmou Charlie.
- Por que será que os japoneses têm sempre cigarros?
- perguntou o inglês com ar indiferente.
- Porque têm também espingardas - respondeu Charlie.
E dizendo isto levou a casca do ovo aos olhos, alargou depois ligeiramente o buraco e chegando-o à boca pôs-se a limpar cuidadosamente o interior com a língua.
- Há alguns meses já que não comia ovos - afirmou.
- Mas esta manhã o Céu favoreceu-me. Deparei com uma galinha preta aninhada na orla dum arrozal. Ainda não tinha posto o ovo, mas eu obriguei-a a pô-lo.
- Uma verdadeira boa dona de casa! - comentou o inglês a rir, - Vocês, os chinas, são uns tipos bem caçados!
A palavra china, Charlie lançou-lhe um olhar acerado. Não, o rosto macilento do jovem inglês mostrava-se perfeitamente amável. Empregara aquela palavra sem pôr nela má intenção. Charlie ergueu-se e esmagou a casca do ovo nas mãos.
- O que há de mais perturbador em vocês, malditos ingleses -. disse-lhe numa voz amável - é que nem mesmo sabem quando nos insultam.
- Insultam?!-repetiu o inglês estupefacto.
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- Vocês insultam tão naturalmente como respiram. continuou Charlie. O seu rosto estava perfeitamente calmo, mas o seu olhar gelava.
- Mas como? - insistiu o inglês, cada vez mais admirado.
- Eu não sei sequer o seu nome - disse Charlie.
O inglês ergueu-se precipitadamente do talude sobre o qual estava estendido. Os seus olhos azuis revelavam sinceridade e também um pouco de estupefacção.
- Desculpe-me, chamo-me Dougall - disse.
- E eu chamo-me Li - respondeu Charlie calmamente. Nem um nem outro estenderam a mão. Os dois olharam-se, Charlie perfeitamente à vontade, o inglês confuso.
- Acabamos de passar dois dias e meio juntos - continuou Charlie - mas durante todo esse tempo não me perguntou o meu nome. Eu, como não perguntou o meu, não perguntei também o seu. Como vê, não sou um verdadeiro china... como me chamou. Um autêntico china teria sido delicado consigo, mesmo que você não o fosse comigo. Mas eu pertenço a uma nova espécie de chinas... e não me mostro delicado para um homem simplesmente por ser branco. Sou, digamos, comunista...
- Oh! - murmurou Dougall.
O seu rosto agradável corou sob a barba loura que começava a invadi-lo.
- Bem sei que não o fazem com má intenção - continuou Charlie - e é isso o que mais deploro.
- Receio bem não o compreender - declarou Dougall com ar ríspido.
O seu rubor principiara a desaparecer e os seus olhos brilhavam.
- Bem sei que não me compreende - afirmou Charlie, sem elevar a voz nem mudar de entonação. - E estou persuadido que nem por sombras se considera culpado de não compreender nada de nada.
- Realmente...
O jovem inglês mordia os lábios. Estavam fendidos pelo calor e a poeira enegrecia o seu rosto claro.
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Vocês são tão honestos... - continuou Charlie. - Tão
miraculosamente honestos, todos, absolutamente todos!.,.
E começou a rir à gargalhada, passando repentinamente as mãos pelos cabelos negros e hirsutos. Depois, tão bruscamente como começara a rir, pronunciou uma prece; "Oh meu Deus! Livrai os asiáticos destes brancos tão honestos!" E sentindo dentro de si quebrar-se qualquer coisa, voltou-se e embrenhou-se na floresta.
Quando ficou completamente oculto pelos altos fetos e o mato espesso, limpou um estreito espaço em redor dum tronco caído, tendo todo o cuidado de observar se nele não se escondia alguma serpente, depois arrancou uma ou outra sanguessuga e sentou-se. Onde se encontrariam os destroços da divisão? Quando vira Sheng cair, agarrara-o por baixo dos braços e começara a correr. Nesse momento uma silhueta negra saíra dum maciço de ervas e partilhara com ele o fardo do corpo de Sheng. Era o hindu. Não cuidara sequer de lhe perguntar por que milagre se encontrava ali. Tinham caminhado desde as margens do rio até o seio da floresta e durante duas horas não descansaram um só instante. O corpo inerte de Sheng pesava-lhes como chumbo nos braços. Charlie perguntara várias vezes a si próprio se Sheng estaria morto, mas não se atrevera a parar para se certificar. O hindu era infatigável, silencioso e como que invisível. Charlie imaginava facilmente o que se passava atrás deles. Miseravelmente armados, colhidos entre o rio e o inimigo, os soldados de Sheng deviam estar a ser massacrados e lançados ao rio. Se alguns conseguiam escapar a essa sorte é porque tinham tentado o que ele próprio acabava de fazer. Pousaram por fim Sheng no solo e Charlie compreendeu, ao examiná-lo, que se não tivesse nenhuma ajuda, morreria. Mas onde encontrar ajuda naquele país hostil? No entanto, depois de recomendar ao hindu que velasse por Sheng e impedisse que as moscas o devorassem vivo, deslizou até a orla da selva que ficava a meio dia de marcha e viu-se diante duma terra em fogo. Os incêndios avermelhavam o horizonte como vulcões; compreendeu logo o que se passava. Os birmaneses,
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tomados de loucura, lançavam fogo às próprias cidades e vilas. Por que agiam assim não o conseguia explicar, mas não era a primeira vez que os via reagir daquela maneira, como se o caos que os rodeava lhes comunicasse uma espécie de delírio. Charlie contemplou demoradamente esse espectáculo de desolação e depois, voltando-lhe as costas, empreendeu o caminho de regresso.
E foi nesse momento que caíra sobre o inglês, também escondido na selva. Quase lhe pusera os pés em cima e, durante uma fracção de segundo, viu apenas o cano duma espingarda. Esse segundo foi suficiente para dar um salto e salvar a vida, pois Dougall tomara-o por um japonês e envolvendo-o com os seus longos braços tombara-o. Caíram juntos e então, face a face, o rosto do branco apenas a poucos centímetros do seu, Charlie Li pôs-se a blasfemar, a jurar e a gritar que era chinês. Dougall largou-o imediatamente.
- Meu Deus! - disse-lhe. - Pouco faltou para o matar. Tomei-o por um japonês.
Fizeram juntos o percurso, trocando apenas poucas palavras, até chegarem junto de Sheng que respirava ainda. Dougall procurou nas algibeiras e tirou um pequeno embrulho que abriu sem dizer palavra. Trazia aí alguns medicamentos, entre os quais uns comprimidos brancos.
- Ele que tome isto - disse.
O hindu, na ausência de Charlie, descobrira uma cavidade húmida e escavando-a fez aparecer água, a água negra da selva. Charlie tomou-a com as mãos em concha, despejando-a na boca de Sheng e assim o obrigou a engolir o medicamento.
Tudo isto se passara na véspera de manhã. Dougall desde então não cessara de prodigalizar cuidados a Sheng. Preparara para ele um leito melhor, juntando galhos e restolhos e fazendo com eles um verdadeiro colchão. Lavara em seguida cuidadosamente o seu lenço e dele se servira para filtrar a água que dava a beber ao doente; depois, durante horas e horas, ficara sentado ao lado de "Sheng, pegando-lhe no braço e expondo-o aos raios do sol que aqui
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e além penetravam obliquamente a alta cúpula das tecas formada muito acima das suas cabeças, tendo todo o cuidado em afastar moscas e mosquitos. "O sol sarará a ferida. É uma das coisas que nos disseram e repetiram".
Da retirada, nem um nem outro proferira ainda uma só palavra.
Charlie suspirou e ergueu-se. Tinha horror às florestas. No meio do silêncio, começava a ouvir leves estalidos. Pequenos animais saíam das suas tocas para o examinarem. Um lagarto surgiu debaixo do tronco, a seus pés, olhou em volta, avistou Charlie, e tomado de pânico, desapareceu na erva fofa, arrastando atrás de si, como um cometa, a cauda azul celeste. Em sua volta dançavam mosquitos. Não havia paz para um homem no meio da selva e muito menos segurança. Que fazer então? Tinha de sair dali de qualquer maneira e dirigir-se para Oeste, a ver se encontrava o general. A missão que lhes tinham confiado estava cumprida. Tinham libertado os ingleses.
Retomou então o carreiro que havia seguido pouco antes e que já estava meio desfeito. Os ramos que ele vergara voltavam a endireitar-se e a erva pisada readquiria a sua frescura. Dentro duma hora, todo o vestígio de passos humanos estaria apagado. Mas em menos duma hora também atingiu a pequena clareira onde estavam escondidos. Encontrou Sheng acordado, o olhar claro e lúcido. O inglês instalara-o numa cama feita de pequenos ramos e estava de pé diante dele, as mãos nas ancas, a olhá-lo.
- Alegra-me vê-lo voltar - disse a Charlie com ar satisfeito. - O seu camarada despertou pouco depois de ter partido. Penso que foi o efeito do ovo. Mas não sabe uma única palavra de inglês, pois não?
- Nem uma palavra - confirmou Charlie.
Nesse momento, como se não estivesse ali o inglês, Sheng começou a falar, numa voz ainda fraca, mas decidida.
- Onde estão os meus homens? - perguntou.
Por momentos, Charlie pensou que talvez fosse melhor poupá-lo, ocultando-lhe a verdade; mas logo decidiu justamente o contrário. Era preciso que Sheng encarasse a
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realidade como pudesse e reunisse todas as forças para iniciarem a viagem de regresso.
- A divisão foi destroçada - afirmou. - Destroçada? - repetiu Sheng.
- Os brancos deram cabo da ponte depois de a terem atravessado - declarou Charlíe. - Não se recorda?
Sheng fez um sinal afirmativo, os olhos fixos no rosto do companheiro.
- No mesmo instante, os soldados inimigos saíram em massa da aldeia e entre eles vinham monges com a sua túnica alaranjada - continuou Charlie. - Vi-os precipitarem-se sobre nós no momento preciso em que caiu e procurei arrastá-lo para longe. Nesse instante, o hindu apareceu ao meu lado... tinha-nos seguido. Ajudou-me a transportá-lo e pudemos escapar. Mas que posso dizer dos que ficaram à retaguarda? Vi o inimigo cair sobre eles; disparavam as espingardas, enterravam as baionetas nos corpos... Entretanto, eu e o hindu embrenhámo-nos na floresta. E assim caminhámos, sem perder sequer um minuto para repousar, metade do dia.
Sheng ergueu os olhos para o inglês, e examinou de cima a baixo esse jovem alto e delgado que não compreendera uma só palavra do que Charlie acabava de dizer. Estava ali de pé diante deles, sorridente e afável, cheio de boa vontade.
- Quem é este comprido rábano branco? - perguntou Sheng a Charlie.
- Tropecei nele na floresta e pouco faltou para me estrangular, pois tomou-me por inimigo, e quando o convenci do contrário, seguiu-me - explicou Charlie.
Os dois chineses e o hindu olharam para Dougall que suportou pacientemente o exame, sem perder o bom-humor.
- Ele disse-te por que destruíram o nosso único meio de escapar depois de os termos socorrido? - perguntou Sheng.
- Ainda não lho perguntei - replicou Charlie.
- Então pergunta-lhe - ordenou Sheng.
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Passando sem qualquer dificuldade duma língua para outra, Charlie dirigiu-se ao jovem inglês.
- Por que destruíram vocês a ponte depois de a terem atravessado, cortando-nos assim a retirada, apesar de termos vindo em vosso socorro?
Dougall abriu muito os olhos azuis.
- Não fizemos decerto semelhante coisa - disse. Charlie traduziu a resposta a Sheng.
- Será possível que ele não saiba o que se passou? perguntou Sheng.
- Parece que não sabe absolutamente nada - disse Charlie.
- Então este homem é um desertor - opinou Sheng, após um instante de reflexão. - Pergunta-lhe porque desertou.
- Por que desertou do exército? - perguntou então Charlie a Dougall.
O rosto do jovem inglês corou de novo.
- Já tinha a minha conta - disse. - Qualquer podia ver que estávamos irremediavelmente batidos - acrescentou após um instante de silêncio. Depois pôs-se a olhar para as mãos pálidas. Estavam cobertas de arranhões e as unhas negras e partidas. - Era simplesmente estúpido pronunciou por fim. - Os nossos próprios chefes não sabiam o que fazer, na precipitação da retirada. Era um salve-se quem puder. - Sorriu com ar confuso. - E no fim de contas - continuou, retomando o seu sorriso alegre e confiante - para que serve tudo isto? Se ganharmos a guerra, este país voltará para a nossa posse. Se a perdermos, de que serve bater-nos por esta maldita terra de pagãos?
Charlie traduziu uma vez mais a resposta a Sheng e este, apesar de bastante fraco, emitiu um surdo resmungo.
- Pergunta-lhe o que tenciona fazer agora - disse a Charlie.
- O que vai fazer agora? - perguntou Charlie.
- Eu?
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Dougall ergueu a cabeça e contemplóu-os, um após outro.
-Mas quero muito simplesmente ficar convosco, se não vêem nisso inconveniente. Foi para mim uma grande sorte tê-los encontrado... sobretudo porque fala inglês.
- Ele diz que virá connosco - traduziu Charlie. Sheng fechou os olhos.
- Deu-lhe esses comprimidos brancos que tinha - continuou Charlie - fez-lhe um colchão de ramos de árvores e pôs o seu braço ao sol para o curar. Alguém é culpado que a mãe tenha dado à luz um imbecil?
Sheng sorriu com amargura sem abrir os olhos e pronunciou:
- Pois que venha connosco, já que é o nosso aliado... Dois dias mais tarde puseram-se a caminho em direcção
ao ocidente. Sheng já se sustinha de pé, muito fraco ainda, mas em franca convalescença.
XIX
O general fixou no americano um olhar destituído de qualquer expressão, procurando dissimular o melhor que podia a hostilidade que o dominava por completo, até a raiz dos cabelos. Sentia uma vontade enorme de lhe dizer tudo quanto sentia, de lhe gritar que nada do que ele fizesse os poderia já salvar. Gostaria igualmente de lhe afirmar que todos sabiam que aquela batalha estava perdida muito antes dele e das suas tropas terem posto os pés na Birmânia.
- Sacrifiquei uma divisão inteira - disse. - Nem um só homem voltou. Onde estão esses bravos soldados?
- Só Deus o sabe - replicou o americano. - Uma divisão desaparecer assim completamente... nunca vi coisa semelhante... e no entanto sucedeu...
O general estava decidido a mostrar-se paciente.
- Compreenda-me - declarou - um exército não pode combater sozinho.
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Procurava falar com toda a simplicidade e clareza. Esse estrangeiro tinha muito orgulho nos seus conhecimentos de chinês, mas não sabia que o falava com as incorrecções próprias dos homens do povo, com quem aprendera.
- Compreende? - repetiu o general. - Dão-me ordem para defender uma posição. Defendo-a. Os meus homens batem-se com um completo desprezo pela própria vida. Depois recebemos ordem para retirar, de forma a encurtar a frente. E então o que descobrimos? Que enquanto lutávamos, os nossos aliados batiam em retirada sem querer saber de nós. E somos assim obrigados a abandonar posições que defendemos à custa dos maiores sacrifícios. É assim que se ganha uma guerra?
O rosto magro do americano ruborizou-se. Não respondeu.
- Vocês, os brancos - continuou o general, articulando as palavras distintamente - procuram apenas uma coisa, salvar-se uns aos outros.
Bateu nos joelhos, levantou-se, fez a continência, deu meia volta e saiu. Fez um brusco aceno de cabeça à sentinela, a escolta que o esperava perfilou-se à sua passagem, e dirigiu-se para o seu quartel general, mantendo bem direito o corpo franzino. Agora tinha a certeza de que nunca mais tornaria a ver a mulher e os filhos. Essa convicção comunicara-lhe uma frialdade interior parecida à que experimentara no dia em que provara uma guloseima estrangeira... um gelado, como lhe chamavam. Dir-se-ia sentir um buraco no estômago, tal como lhe sucedera então, Desejou bruscamente ter ao pé de si uma mulher como a sua, à qual pudesse pedir conselho. A sua mulher, embora seis ou sete anos mais nova, era sensata e hábil, sabia encontrar soluções para as dificuldades da vida. Mas separavam-no dela milhares de quilómetros. Transpôs o portão, passou diante das sentinelas sem as ver. Uma vez no interior da tenda, sentou-se, fechou os olhos e começou a passar lentamente as duas mãos pela testa. Estava desesperado. Sheng não voltara. Entretanto, o ritmo do avanço inimigo triplicara de intensidade. Ao princípio, esse avanço
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limitara-se a dez milhas por dia. Depois passara para vinte, em seguida para trinta e agora era de quarenta milhas por dia.
O general continuava a reflectir, as mãos espalmadas nos joelhos. Por fim tomou uma decisão. Ia escalonar os seus homens ao longo da estrada de Lashio. Assim, defenderiam ao menos essa estrada. "Uma vez que eles não pensam em nós", disse de si para si, "temos de olhar pelos nossos interesses".
Sentiu de súbito vontade de chorar e ficou surpreendido. "É esta perpétua retirada", pensou. "Tenho de passar à acção. Doravante agirei por mim mesmo".
Desapertou a gola do uniforme. Fazia um calor terrível, tanto de noite como de dia, e embora estivesse habituado ao calor, pois a sua cidade natal ficava situada ao fundo dum vale, entre altas cadeias de montanhas, não havia comparação possível. As serpentes eram também um inimigo temível e os mosquitos outro. Duas noites antes, fora mordido por um escorpião no calcanhar e ainda o tinha inchado. E só a prontidão dum dos seus homens, que arrancara logo o ferrão com as unhas, evitara que a mordedura se tornasse perigosa. O general soltou um profundo suspiro pensando nos soldados que não tinham voltado. E Sheng desaparecera também, esse bravo rapaz das colinas de Nanquim! Pensando em Sheng, ocorreu-lhe dizer alguma coisa a essa jovem que o conhecia, preveni-la pelo menos. Uma vez que não tornaria a ver a mulher, ela não teria ocasião para se mostrar ciumenta...
Chamou uma ordenança que logo acorreu.
- Diga a Wei Mayli que venha ver-me - disse num tom breve.
Depois, para justificar o que essa ordem podia ter de estranho, acrescentou:
- Diga-lhe que desejo mandá-la falar com o americano. Ela exprime-se perfeitamente em inglês e eu não compreendo o chinês desse estrangeiro.
Animou-o uma lufada de satisfação à ideia de enviar Mayli junto do americano, vexando-o ao dar-lhe a entender
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que não compreendia o chinês que ele empregava e (Do qual se sentia tão orgulhoso. Sorriu e voltou-lhe um pouco da sua arrogância.
Sim, vou já, não me demoro- e dizendo isto Mayli
limpava as mãos ao avental. - Apenas o tempo de mudar de blusa, pois esta está cheia de sangue...
O mensageiro fez um sinal de aprovação e Mayli entrou apressadamente na sala de operações, onde momentos antes ajudara Chung a um parto difícil duma mulher birmanesa. O marido era um comerciante chinês. Esperava à porta e deteve-a ao passar.
- Diga-me - perguntou-lhe em voz ansiosa - a criança tem um sinal no lóbulo da orelha esquerda?
- Julga que tive tempo para reparar nisso? - respondeu Mayli a rir.
Mas o homem não perdeu nada da sua gravidade.
- A senhora não conhece estas mulheres birmanesas - disse num tom solene, num chinês já fora de moda, pois abandonara o país há muitos anos e ainda falava a mesma linguagem que usava em criança, muito antes de deixar a pátria em busca de futuro. - Como hei-de saber que é meu filho se não possuir um único sinal meu?
Voltou a cabeça e mostrou-lhe, no lóbulo da orelha esquerda, um sinal donde saía um tufo de pêlos.
- Mas não é fatal que o seu filho tenha um sinal exclamou Mayli. - Vai avaliar a virtude da sua mulher por um simples sinal?
Mayli ria sem vontade, mas o homem não a secundou.
- Veja se tem o sinal - insistiu - pois não tenho nenhuma vontade de desperdiçar ovos pintados de vermelho pelo filho de outro homem. A minha mulher é nova e bonita e eu não estou sempre em casa...
Mayli deixou-o, prometendo-lhe verificar se a criança tinha ou não o sinal e entrou na sala onde estava Chung que limpava cuidadosamente os instrumentos de que se servira, metendo-os a um e um na caixa esterilizada.
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- Chung, o general mandou-me chamar - disse-lhe Mayli, começando a lavar as mãos numa bacia cheia de água quente colocada sobre um banco... - Oh, Chung! Julga que será por causa de Sheng? Sim, por que havia de me mandar chamar senão por causa dele? Há algumas semanas que não o vejo...
- Na verdade Sheng já devia ter voltado - considerou Chung.
Era de facto bastante estranho ter visto partir tantos homens e não ver voltar um só, nem sãos nem feridos. E aquela espera tinha também qualquer coisa de estranho. Há quase oito dias que não arredavam pé do mesmo sítio.
As enfermeiras ergueram a maca sobre a qual se encontrava a doente e levaram-na. Chung ainda hesitara em empregar um anestésico naquela operação, depois decidira-se. E era um rapaz.
Mayli pegou numa blusa lavada e Chung voltou-se pudicamente. Nunca chegara a descobrir se Mayli era destituída de pudor ou se andava apenas atordoada; mas que importância tinha isso? Num abrir e fechar de olhos Mayli ficou pronta e, quando se dirigia já para a porta, ouviu a criança chorar. Tinham-na esquecido a um canto, onde jazia envolta num pano, sobre um pouco de palha.
Chung precipitou-se para o recém-nascido e tomou-o nos braços.
- Depois de nos teres dado tanto trabalho, já te esquecemos - comentou.
Mayli deteve-se e voltou atrás.
- Dê-o cá - disse. - Encarregarei Pansiao de cuidar dele até o meu regresso.
E pegando no pequeno embrulho, caminhou a passos rápidos para a porta. Ao abri-la, encontrou-se diante do pai, que esperava pacientemente, e, ao vê-lo, lembrou-se do que ele lhe pedira.
- Olhe, aqui está o seu filho.
Ela sabia bem que havia poucas probabilidades da criança possuir o mesmo sinal de nascença do pai, mas afastou com cuidado a roupa que cobria a minúscula cabeça
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descobrindo uma pequena orelha perfeitamente desenhada, na qual se distinguia um minúsculo sinal preto.
Cá está o sinal - exclamou Mayli, muito satisfeita
- tão pequeno que mal se vê, mas ele também é tão pequenino...
O comerciante chinês ergueu-se, procurou os óculos na algibeira, colocou-os no nariz e debruçou-se sobre o lóbulo
minúsculo.
É de facto meu filho - disse num tom solene, e um
sorriso iluminou-lhe o rosto.-O meu primeiro filho!... E estendendo os braços: - Dê-mo!
- Mas tenho primeiro de o lavar e vestir - protestou Mayli.
- Dê-mo - repetiu o pai com firmeza - Lavá-lo-ei e vesti-lo-ei eu mesmo.
Mayli entregou-lhe a criança e viu-o partir, as vestes a flutuarem ao vento, a criança pousada nos dois braços estendidos, como uma oferenda a um imperador. Desapareceu ao fundo da rua e Mayli voltou a si. Que coisa estranha é a vida, pensou. Em plena guerra, quando tudo não é senão morte e miséria, podia-se durante um instante esquecer todas as coisas excepto uma: que àquele homem tinha nascido um filho.
Caminhou para a tenda do general, ao mesmo tempo sorridente e triste.
- De Sheng, nada sei - afirmou o general e Mayli apertou um pouco mais contra o peito as mãos cruzadas. O que havia entre vocês, ignoro-o por completo - continuou o general - mas o meu dever é dizer-lhe que nem um só dos meus homens voltou. Decerto atravessaram o rio com os nossos aliados, mas Charlie Li devia já estar de volta para me indicar onde tencionam juntar-se a nós. Penso escalonar as minhas tropas ao longo da estrada de Lashio, mas como o posso fazer antes deles voltarem? Será uma linha demasiado estreita, mas no entanto é isso mesmo o que vou fazer.
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- Então quer dizer que partimos? - perguntou Mayli.
- Sim, e partimos imediatamente-acrescentou o general. - O que lhe peço é que vá falar a esse americano, na qualidade de mensageiro particular, compreende bem, e lhe diga isto mesmo na língua dele, para ficarmos bem certos de que compreendeu. Diga-lhe que me vou embora, sem mais considerações pelos outros. Estou cansado desta perpétua retirada. Não recuarei mais. Escolherei eu próprio as minhas posições e protegerei a fronteira do nosso país. Quanto aos brancos, que façam o que muito bem entenderem.
Mayli compreendeu que o general estava extremamente cansado. O seu rosto ossudo, já de si magro, não era agora mais que uma série de covas nas faces: covas nas têmporas, covas no queixo e por baixo das orelhas. Mas a retirada fora tão rápida! Ela própria dificilmente pudera seguir as ordens que constantemente lhe davam para recuar. Não seria natural assim que Sheng não tivesse podido ainda juntar-se-lhes? Estavam agora a centenas de milhas do local onde se tinham encontrado pela última vez.
- Devo ir falar já com o americano? - perguntou Mayli.
- Sim, agora mesmo, pois partimos amanhã. Mayli ergueu-se e o general olhou-a com um ar extenuado.
- Nunca mais verei a minha mulher nem os meus filhos
- disse-lhe de súbito.
- É preciso não perder a esperança - observou Mayli, com vivacidade.
- Não perdi a esperança, arrancaram-ma a pouco e pouco - opôs o general.
Hesitou um instante, depois continuou:
- E tenho muita pena que esse jovem... Sheng...
- Oh, não! - exclamou Mayli. - Não me diga nada. Eu não perdi a esperança de o tornar a ver. Não sabe como ele é forte... não pode ter morrido.
- Sim-disse o general-é forte, mas... eu também...
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Posso retirar-me? - perguntou Mayli que se sentia
pouco à vontade.
Aquele homem estava profundamente transtornado, em desespero. Não é que tivesse medo dele, mas sentia que ele precisava de se agarrar a qualquer coisa...
Voltarei o mais rapidamente possível - acrescentou
ao retirar-se.
Ela sabia, claro, o local onde ficava a tenda do americano. Toda a gente sabia que ele vivia numa tenda como um simples soldado. Essa tenda fora armada à sombra duma figueira da índia que lhe dispensava uma certa frescura e Mayli passou sob os ramos dessa árvore enorme de troncos inumeráveis. Não receava de forma alguma encontrar-se na presença do americano, embora nunca lhe tivesse falado. Conhecia-o pelo que dele diziam soldados e enfermeiras. Corria que simpatizava mais com os soldados rasos do que com os oficiais. "Sempre o mesmo horror à igualdade", pensou Mayli com desdém. "Os brancos só querem ver em nós homens vulgares para poderem continuar a tratar-nos como senhores".
Quando chegou ao pé do soldado americano que estava de sentinela, disse secamente em inglês:
- Trago uma mensagem do general chinês.
- Está bem - proferiu o soldado, sem lhe fazer a continência, e entrou na tenda.
Um momento depois, saía.
- O chefe convida-vos a entrar.
Mayli entrou e encontrou o americano instalado numa cadeira dobradiça, a saborear um melão de casca verde e de conteúdo dum amarelo dourado. Ergueu os olhos, sorriu e levantou-se, a metade do melão nas mãos.
- Não lhe posso apertar a mão - proferiu numa voz baixa e agradável - mas permita-me que lhe ofereça uma talhada.
- Não, .obrigada -- agradeceu Mayli, sentando-se noutra cadeira.
- Faz mal, pois é bastante bom - disse o americano, tornando a sentar-se.
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- Tem aspecto disso - anuiu Mayli - mas vim aqui simplesmente comunicar-lhe uma mensagem do nosso general. Pediu-me que o informasse que parte amanhã com as suas tropas na direcção da estrada de Lashio.
O americano engoliu um bocado do fruto dourado e saboroso.
- Fico desolado se a sua decisão for irrevogável disse numa voz arrastada - pois se executar o plano de que me falou, formará uma frente demasiado estreita e colocará as suas unidades numa posição desvantajosa. Tente persuadi-lo, minha jovem... eu não posso. Ele recusa-se a aceitar as minhas ordens.
- Está desencorajado - afirmou Mayli com calor. Todos nós estamos desencorajados.
O americano pousou o melão numa pequena mesa, também desmontável, e limpou as mãos com um lenço duma brancura notável.
- Eu sei - disse com bondade - eu sei.
Mayli esperava, mas ele não disse mais nada. Ela viu-o recompor-se a pouco e pouco. O seu olhar endureceu, os seu lábios fecharam-se numa vontade firme de silêncio, os seus ombros endireitaram-se e começou a dobrar cuidadosamente o lenço.
- Defendem-se uns aos outros, americanos e britânicos -- disse Mayli bruscamente.
Ele lançou-lhe um vivo olhar por baixo das sobrancelhas, depois respondeu:
- Nós somos estrangeiros num país estrangeiro.
- E nós? - replicou Mayli.
- Vocês não são tão estrangeiros neste país como nós. Mayli inflamou-se de cólera e exclamou:
- Vocês os brancos estão sempre prontos a sacrificar todos os seres humanos nos altares que erguem.
- Vivi vinte anos no vosso país - lembrou o americano.
- E nem por isso deixou de ser branco. - Sou-o de nascença.
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Mayli voltou a, cabeça e levantou-se, tinha cumprido já a sua missão. Mas ele reteve-a com um gesto.
A despeito de tudo o que possam pensar, nunca
vi homens mais corajosos do que esses ingleses. Sabem que não receberão reforços, que não lhes enviarão nem aviões, nem barcos, nem tropas de socorro... nada. E no entanto empenham-se no que se chama uma acção retardadora. Oferecem as suas vidas ao pasto desses lobos que não cessam de avançar, para que outros sejam poupados.
- Encara-os sempre como heróis - disse Mayli com dureza. -Esquece-se que podiam ter aliados na Birmânia em lugar de inimigos, se se tivessem comportado como seres humanos neste país e não como heróis brancos entre negros selvagens.
- Não se esqueça que sou americano - lembrou-lhe. -- Lembro-me apenas duma coisa, que é um branco. E após uma rápida inclinação de cabeça, Mayli abandonou a tenda.
A caminhar rapidamente, pois a cólera dava-lhe asas, estava quase a chegar ao seu acampamento quando se lembrou que devia ir dar conta ao general da sua diligência. Porém, quando chegou, este estava ocupado e não a pôde receber. Mas saiu da sua tenda e foi na presença dos soldados que Mayli lhe disse:
- Transmiti a sua mensagem e o americano aconselha-o a renunciar a esse projecto.
- Não aceito nenhum conselho.
- Partimos então amanhã? - inquiriu Mayli.
- Ao romper do dia - confirmou o general.
Mayli inclinou a cabeça em sinal de assentimento e dirigiu-se ao seu acampamento, pois agora não havia tempo a perder. Os feridos.mais graves deviam ser transportados, na medida do possível, para casas que pertencessem a chineses e os restantes postos em estado de continuar o seu caminho. Precisava de prevenir primeiro Chung e depois as enfermeiras. E havia mil pequenas coisas a fazer ainda antes de se porem em marcha.
Mayli franziu o cenho e o olhar perscrutador que lhe
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era agora natural voltou-lhe ao rosto. Mas desta vez, pelo menos, não se tratava de retirar. Sentia pressa em partir. Sim, o general tinha razão. Iam ocupar as suas próprias posições. O americano ouvira das boas! Quando tornasse a ver Sheng, contar-lhe-ia tudo e ele decerto ficaria contente. Mas no fundo não sabia ao certo se tinha ou não razão. Esse americano era um homem honesto. Mas quando a honestidade é acompanhada de cegueira, continua a ser-se honesto? Onde ela via honestidade, Sheng via cegueira e era ele quem tinha razão. Sheng era mais inteligente do que ela.
"Oh! Nunca chegarão a compreender?", murmurou entre dentes. Não, ela sabia que eram incapazes de compreender. Esses brancos que batiam em retirada diante dos japoneses, continuariam a não compreender nada. Decerto planeavam já, enquanto recuavam diante do inimigo, voltar a este país e tornar a ser o que sempre foram, brancos e heróis!
Rangeu os pequenos dentes, apertou um contra o outro os lábios vermelhos e sentiu que os olhos lhe ardiam. A cólera dava-lhe asas e precipitou-se para as tarefas que lhe competiam e agitava-se e apressava-se de tal forma que acabou por chamar a atenção de Chung, o qual lhe observou: .
- Às vezes tem tão maus modos como os estrangeiros. Mayli parou de súbito e após um momento de reflexão
respondeu:
- Talvez tenha razão.
E como se ele lhe tivesse ministrado um calmante, serenou de facto; os seus movimentos continuavam a ser rápidos, mas já não havia neles pressa excessiva. A sua voz perdeu o acento nervoso e tornou-se igual. E Pansiao que se mantivera afastada, aproximou-se.
- Partimos? - perguntou na sua voz meiga.
- Sim, mas desta vez é para nos aproximarmos de casa - respondeu Mayli.
Ela supunha que a garota ficaria contente ao ouvir essa resposta, mas viu, ao contrário, o rosto de Pansiao transtornar-se.
262

- Isso não te causa alegria? - perguntou-lhe Mayli, enquanto arrumava as batas das enfermeiras num cesto
de vime.
Sim, mas... - Pansiao calou-se.
Mas o quê? - perguntou Mayli.
Sheng? - balbuciou Pansiao. - Como nos poderá
depois encontrar?
Mayli reflectiu um instante.
já pensei nisso - disse. - Sabes o que vamos fazer?
Entregarmos uma carta para ele à mulher que teve o nené. Ela volta hoje para casa e o marido deve vir buscá-la. Dou-lhe a carta recomendando-lhe que esteja alerta a ver quando aparecem alguns chineses nestas paragens. Quando Sheng voltar e não nos encontrar, naturalmente se dirige a alguma casa chinesa.
No entanto Pansiao não se mostrava absolutamente satisfeita. Inclinava a cabeça para o lado, torcia os dedos e lançava a Mayli, enquanto trabalhava, olhares furtivos.
Mayli observou-a um instante, depois disse-lhe:
- Dize-me o que te inquieta, pois vejo bem que me ocultas qualquer coisa.
- Nada me inquieta - afirmou Pansiao com calor. Nada, pelo menos nada que tenha importância. Em todo o caso, nada de importante para mim. Mas se deixamos uma carta para Sheng...
Mayli teve uma súbita inspiração.
- ...Devíamos deixar também uma carta para Charlie Li - acrescentou a rir.
E estendeu os dois dedos indicadores para Pansiao, como duas facas, no gesto infantil, velho como o mundo, pelo qual as crianças troçam umas das outras, e Pansiao, levando ao rosto a ponta do vestuário, saiu a correr.
Mayli, ao vê-la partir, deixou bruscamente de rir, suspirou e ficou imóvel por muito tempo, as mãos apoiadas nos rebordos da cesta. Era muito possível que Sheng e ela não se tornassem mais a ver...
263
XX
Nessa noite Mayli escreveu uma carta a Sheng. Uma carta curta e simples, pois ignorava a que mãos iria parar. Eis o seu conteúdo:
Sheng:
Partimos amanhã de manhã, ao romper do dia; ordens superiores. Se não o souberes doutra, maneira, o chefe americano dir-te-á para onde fomos. Espero que nos possamos reencontrar. A tua irmã e eu esperamos-te dia e noite. Tenho a certeza de que estás vivo. Se estivesses morto, já o coração mo teria dito.
Quando concluiu a curta mensagem, demorou-se algum tempo a reflectir, perguntando a si própria se devia escrever mais alguma coisa. Não ignorava que da campanha projectada pelo general podia nunca mais voltar. Claro, tinha de lhe obedecer, mas não podia esquecer-se também da advertência do americano que considerava aquele projecto uma loucura, dado que o general não tinha número suficiente de homens para o executar. Se ia morrer naquela campanha, pois o inimigo não poupava mulheres nem homens, a quem mais devia escrever?
Pensou no pai, lá longe, na América. Escrever-lhe-ia ou não? Não, não podia escrever-lhe. Parecia-lhe tão distante, de tal maneira ignorante da vida que ela levava e de todas as privações que sofria... Como havia de lhe explicar agora como, onde e porquê ali estava? Passara-se tanto tempo sem lhe dar notícias suas... O silêncio entre ambos já não podia ser rompido.
Não existiria então ninguém no mundo a quem ela desejasse dizer que partia no dia seguinte para uma campanha
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perigosa? E enquanto divagava pensou de súbito na família de Sheng, na aldeia perto de Nanquim, e sentiu que lhes podia escrever. Compreenderiam o que significava essa batalha, quem era o inimigo e quais eram os perigos que os esperavam.
Em caracteres claros e firmes escreveu a Jade dizendo-lhe exactamente o que se passava... que Sheng não voltara, que ela se recusava a supô-lo morto e que partia no dia seguinte com as tropas para uma nova frente de batalha. Depois de escrever tudo isto, reflectiu um instante, perguntando a si própria se acrescentaria ainda mais qualquer coisa. A noite em sua volta estava sombria e o ar pesado de calor. Ela estava dentro da sua pequena tenda, a escrever à luz duma lanterna de papel, em redor da qual nuvens de borboletas e mosquitos voltejavam, caindo depois, atordoados ou queimados, em cima da mesa. Mayli afastou-os com a mão e continuou a escrever:
Há ainda uma coisa que quero dizer-lhe... os nossos aliados não nos ajudariam aqui. Não alimentem demasiadas esperanças, pois batemos em retirada. E, como disse, aqueles a quem viemos auxiliar traíram-nos. O presente é bastante sombrio. Mas quem pode prever o dia de amanhã? Envio a todos os meus cumprimentos. Se ainda formos vivos, Sheng e eu voltaremos um dia para junto de vós.
Aquilo era mais do que Mayli alguma vez dissera para dar a entender àquela família que Sheng e ela se casariam um dia. Quando escrevia estas palavras, uma profunda emoção se apoderou de todo o seu ser e prometeu a si própria nunca acreditar na morte de Sheng antes de ver com os próprios olhos os seus despojos mortais. Fechou as duas cartas e expediu a que se destinava a Jade, mas a que Sheng devia receber entregou-a à mulher birmanesa, suplicando-lhe que a confiasse ao marido e recomendou:
- Diga ao seu marido que saiba do paradeiro dum oficial muito alto, de sobrancelhas espessas e com o braço ao peito e lhe faça chegar às mãos esta carta.
265
A mulher birmanesa, feliz por ter dado à luz um rapaz, prometeu a Mayli que faria o que lhe pedia, em reconhecimento do belo rapagão que tivera graças aos seus cuidados. Tudo isto se passou na noite anterior à partida.
A carta que Mayli escreveu a Jade foi confiada primeiro a um portador, depois viajou de avião, em seguida foi levada novamente por um estafeta, e por fim atravessou o país ocupado pelo inimigo graças aos homens das colmas, e por meios secretos chegou à aldeia de Ling Tan, sendo entregue na casa deste. Depois da morte do velho letrado, não havia em toda a aldeia uma única casa onde se soubesse ler senão na de Ling Tan. E Jade, por causa do seu saber, era considerada por todos como uma mulher de grande sabedoria e grande habilidade e muitas mulheres vinham de longe para a consultar e para lhe pedirem que as ajudasse nas suas dificuldades. Umas perguntavam-lhe o que deviam fazer para conceberem filhos, outras para que as galinhas pusessem ovos. Algumas consultavam-na para extrair um tumor ou para curar um fluxo, outras porque os olhos do filho purgavam e ainda por muitos males deste género. Quando os livros davam resposta a tais perguntas, Jade lia-lhes e, pouco a pouco, instruída pela experiência, tomou a seu cargo dar-lhes conselhos e como estes eram geralmente bons, Jade sem fazer nada para isso depressa foi conhecida em todas as redondezas pela sua actividade benfazeja.
O próprio Céu lhe era favorável, pois Lao Er nunca olhava para outra mulher. O coração do marido pertencia-lhe inteiramente, os seus filhos nunca estavam doentes e quando deu à luz dois gémeos estes não eram débeis nem lhe causaram excessivas dores. A própria Ling São não encontrava uma única razão de queixa de Jade. Pelo contrário, adquirira o hábito de contar com ela para dirigir a casa e Jade, sem nunca se queixar nem se gabar, ia assumindo a pouco e pouco, em seu lugar, as responsabilidades que lhe competiam na direcção da casa de Ling
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Tan, e fazia-o com tanta doçura que ninguém sentia nunca o peso da sua mão ou da sua língua. A mulher de Lao Ta, embora fosse mais velha, habituara-se a considerá-la como guia e era Jade quem mantinha a paz entre essa pobre mulher e Ling São, apaziguando as violentas cóleras a que Ling São dava cada vez mais livre curso, à medida que a sua idade avançava, e consolando a mulher de Lao Ta que possuía grande propensão para as lágrimas. Tudo isto Jade fazia com tanta delicadeza que Lao Ta não se sentia espoliado do seu lugar de filho mais velho, Ling São continuava a ocupar o lugar de honra entre as mulheres e quanto a Ling Tan chamava Jade em altos gritos logo que dele se aproximava uma mosca quando tinha vontade de dormir, ou quando queria beber água quente para fazer expelir os gazes do ventre, que bastante o incomodavam na sua avançada idade, e estava persuadido que Jade não tinha mais nada que fazer senão cuidar dele.
E assim se mantinha a paz do lar, apesar dos tempos calamitosos. Ling Tan e Lao Er passavam o tempo a procurar novos meios de enganar o ocupante sobre a importância das suas colheitas, o número dos seus galináceos, a quantidade de peixe que pescavam e, fingindo nada possuírem, comiam em segredo suficientemente bem. A cave que tinham aberto por baixo da cozinha servia-lhes para esconderem o peixe salgado, a carne seca, o presunto, o porco salgado, as couves, os nabos, os barris de arroz. Bem alimentadas, as crianças estavam tão bonitas que Lao Er as ensinou a esconderem-se quando o inimigo se aproximava, pois pareciam fortes de mais para crianças que viviam sob a ocupação.
Em resumo, só havia um motivo de desgosto naquela casa, e consistia no seguinte: passados dois anos, a mulher de Lao Ta ainda não tivera um filho. Ela não podia esquecer que tinha quase dez anos mais do que seu marido e, na sua impaciência, a pobre mulher julgou duas ou três vezes que estava grávida. Mas falou demasiado cedo e depois foi obrigada A confessar que se enganara. À terceira vez Ling São irritou-se e disse-lhe: -
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- Nunca mais me digas que esperas um filho antes do ventre te começar a crescer e que eu própria o possa verificar.
A estas palavras, a mulher de Lao Ta principiou a chorar, pois tinha o choro fácil. Ling São, ao reparar nisso, continuou com mau humor:
- E mesmo assim isso pode não querer dizer nada, pois já tenho conhecido mulheres cujo ventre está tão cheio de vento que conseguem enganar toda a gente, e quando chegam à altura do parto, em vez de nascer um filho apenas saem ventos.
Quando por fim a mulher ficou realmente grávida, Ling São recusou-se a acreditar antes da criança nascer. Mas ah!, a criança que veio ao mundo era uma rapariga e tão fraca e insignificante que Ling São a detestou mal a viu, transformando-se em nova causa de perturbação naquela casa. Mas Jade tomou secretamente o partido da pequerrucha e compensou-a o melhor que pôde do ódio que lhe votava Ling São. A verdade é que Ling São, que gozara sempre de boa saúde e só dera à luz filhos robustos, estava realmente agastada pelo facto duma criança tão insignificante e pálida ter vindo ao mundo em sua casa.
- Come! - gritava-lhe. - Come!
E quando a criança, assustada, começava a chorar e se recusava a comer, Ling São afligia-se e irava-se ainda mais, de forma que já não havia paz naquela casa. Mas Jade adquirira o hábito, à medida que a criança crescia, de a levar para o seu quarto, tentando-a com um ovo, um prato de aletria ou outras gulodices e como lhe sorria e a tratava com doçura, algumas vezes a criança comia.
Durante todo este tempo, mostrando a todos um rosto calmo e um olhar bondoso, Jade guardava para si os seus pensamentos, calando-os mesmo por vezes diante do marido. E o seu pensamento ia constantemente para Mayli e para Lao San, ou Sheng, como lhe chamavam agora. Ela pensava sobretudo no dia, passara já bastante tempo, em que Lao Er lhe afirmara que não deviam pensar em abandonar a casa e ir para a zona livre.
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- O nosso dever é ficar aqui na casa do nosso pai dissera-lhe - e aqui esperaremos o dia da libertação.
Pensando em Mayli e em Sheng, alimentava constantemente a esperança de que um dia eles e outros que se lhes juntassem viriam livrá-los do jugo do inimigo. Se eles não os libertassem, é que não havia mais esperança e os seus filhos, esses magníficos rapazes, cresceriam como escravos num país ocupado. Ela podia continuar a alimentá-los em segredo tornando-os fortes e robustos, mas de que lhes serviria isso se continuassem a viver na escravidão? Muitas vezes essa mulher pensativa erguia os olhos para o céu crivado de estrelas ou deixava errar os olhos pela campina verdejante e sentia comprimir-se-lhe o coração, de tal forma aspirava à liberdade. "Se não recuperarmos a liberdade, preferia ver os meus filhos mortos enquanto são crianças", dizia-lhe no mais fundo de si mesmo uma voz secreta.
Jade recebeu portanto a carta de Mayli em que esta lhe dizia que Sheng partira com os seus homens em socorro dos brancos e -que não voltara ainda e ninguém sabia o que lhe acontecera. Depois chegou à última parte e leu: Batemos em retirada... e um pouco mais adiante: Aqueles a quem viemos libertar traíram-nos.
Por feliz acaso aconteceu que no momento em que Jade lia essa carta estava sozinha. Era Verão, começava a fazer calor e os outros membros da família repousavam após a refeição do meio-dia. Mas Jade não podia ter repouso, tanto a oprimia o seu desejo de ser livre. Adquirira por isso o hábito, enquanto todos dormiam, de se sentar no pátio à sombra dos bambus a coser sandálias. Foi aí que a carta lhe chegou às mãos, entregue por um camponês que a recebera dum misterioso mensageiro. Quando concluiu a leitura, essa mulher que nunca chorava deixou que as lágrimas lhe subissem aos olhos e rolassem depois lentamente pelas faces. Se aqueles em que depositava tantas esperanças, e dos quais esperava tudo, eram assim batidos e traídos, que esperança poderia ter então que os seus filhos conhecessem algum dia a liberdade?
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De faces ainda húmidas, reflectiu um momento se devia ou não ler aquela carta aos seus, arriscando-se a matar neles toda a esperança, mas considerou: "Ser-me-á mais fácil ocultar esta carta e guardar para mim só estas deploráveis notícias, do que ouvir os gemidos da minha sogra e as maldições do meu sogro".
No entanto não se atrevia a tomar por si só a responsabilidade de privar os velhos das notícias do filho. Levantou-se e dirigiu-se ao quarto onde dormia Lao Er. Este estava estendido em cima da colcha que cobria a cama, o tronco nu, apenas vestido com umas calças de pano azul. Ela viu-o dormir, de coração angustiado, cheia de ternura e de piedade. Aquele homem que passava a vida a enganar o inimigo, estava constantemente em perigo. No entanto Jade deixara de fazer qualquer alusão aos perigos quê corria desde o dia em que ele lhe respondera, quando ela lhe manifestara a sua inquietação: "O que faço devo fazê-lo e fá-lo-ei mais facilmente se não me falares nisso".
Jade suspirou e pousou levemente a mão no ombro nu do marido. Mas, embora o gesto fosse muito leve, Lao Er acordou e soltou um grito, o que demonstrava bem o estado de constante sobressalto em que vivia. Quando reconheceu a mulher, ficou envergonhado e enxugando o rosto que se cobrira rapidamente de suor, murmurou: "Como sou idiota!"
Jade não respondeu, pois sabia muito bem a razão porque ele gritara, e limitou-se a dizer-lhe:
- Recebi uma carta de Mayli com más notícias. Queria que me dissesses se devemos guardá-las só para nós ou comunicá-las aos outros.
E leu-lhe a carta enquanto ele blasfemava baixo, franzia as sobrancelhas, e sentando-se na beira do leito, batia nos joelhos.
Depois reflectiu um momento. Jade aguardava e por fim ouviu-o pronunciar:
- De nada serve dizer a verdade aos meus velhos pais. Eles sabem bem que hão-de morrer durante a ocupação, mas vivem na esperança que nós, seus filhos, conheçamos
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um dia a liberdade. Sabes bem a confiança que o meu pai ainda tem na promessa que o branco nos fez. Que pensaria se soubesse agora que fomos traídos pelos brancos? Poderia continuar a viver depois disso? E se lermos a carta ao meu irmão mais velho ele não deixará de falar nela à mulher que por sua vez é incapaz de ter um segredo para a minha mãe. Não, guardemos essas más notícias só para nós, pelo menos enquanto não soubermos se o meu terceiro irmão morreu ou não.
Sinto-me feliz por decidires assim -- declarou Jade.
- Era exactamente isso o que eu desejava fazer.
E dizendo isto levantou-se, pegou na carta e meteu-a no fundo dum cofre que continha roupa de Inverno. Quando tornou a fechar o cofre, olhou para Lao Er que lhe retribuiu o olhar. Aproximou-se do marido e as mãos de ambos juntaram-se. Os dois pensavam nos filhos. Depois Lao Er clareou a voz e disse:
- Tenho de voltar para os campos. E Jade limpou os olhos e afirmou:
- Já é tempo de toda a gente acordar e tenho de ir tratar do teu pai e da tua mãe.
E assim os dois suportaram sozinhos, em segredo, a partir desse dia, o seu próprio desespero.
Entretanto a mulher birmanesa a quem Mayli entregara a carta destinada a Sheng, metera-a numa algibeira e aí se esqueceu dela durante seis dias consecutivos depois de regressar a casa. Em primeiro lugar, a sua casa estava suja e tinha absoluta necessidade de a limpar; em segundo lugar o marido, que ficara tão satisfeito no dia do nascimento, depois do seu regresso punha-se triste sempre que olhava para o pequeno, pois metera-se-lhe na cabeça que apesar do sinal na orelha havia naquele pequeno rosto qualquer coisa diferente do seu. Assim, ocupada em agradar ao marido para o fazer mudar de ideias, esqueceu por completo a carta. Só no sexto dia, quando foi ao tanque lavar a roupa, ao meter a mão nas algibeiras para ver, antes de
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mergulhar os vestidos na água, se teria deixado lá qualquer coisa, encontrou a carta esquecida. Pensou que o mal não era muito grande, pois de qualquer maneira a carta não se perdera. Meteu-a então na algibeira do vestido que trazia e aí a esqueceu ainda mais dois dias e só então, lembrando-se dela bruscamente, a tirou do bolso e a entregou ao marido.
Ora sucedeu que o homem soube nessa manhã, numa reunião de comerciantes chineses, que uma divisão do exército chinês fora inteiramente dizimada, excepto dois ou três homens que tinham regressado, depois de escaparem por milagre, e que extenuados andavam à procura dos seus camaradas que tinham deixado o país. Pegou na carta e quando a mulher lhe explicou que Mayli lha tinha confiado para ele a dar a um soldado alto, bateu-lhe para a castigar por ter sido tão negligente e apressou-se a voltar ao local da reunião, onde se encontravam ainda alguns negociantes. Falaram-lhe então desses homens perdidos, mas o que sabem os comerciantes do que fazem os exércitos?
- Vamos falar com o americano - disse um deles. -- Ele-ainda cá está.
Todos foram unânimes em reconhecer que era uma boa ideia e dirigiram-se ao acampamento, onde pediram para falar com o chefe americano, o qual os recebeu com bondade.
- Pode dizer-nos qual o caminho que tomarão os homens que se perderam para reencontrar o exército chinês? - perguntaram-lhe.
- O caminho do nordeste - disse-lhes o americano mas mais do que isto não sei.
Mas era o suficiente. Os comerciantes inclinaram-se, retiraram-se e procurando pequenos burros, montaram neles e dirigiram-se pela estrada principal para o nordeste. Avançaram assim durante meio dia, examinando todos os caminhos e atravessando as aldeias até que por fim encontraram, não três mas quatro homens que marchavam um pouco adiante deles. Obrigaram as montadas a trotar e
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aproximando-se dos viandantes, acharam-se na presença de dois chineses, um inglês e um hindu, todos os quatro em farrapos, cobertos de poeira e com ar extenuado. Mas um dos chineses era tão alto que o comerciante sem hesitar levou a mão ao bolso, tirou a carta e entregou-lha, dizendo:
- É para si, não é?
Sheng olhou para o sobrescrito e viu o seu nome nele
escrito.
É para mim, sim - respondeu.
- Então a minha missão está cumprida - declarou o chinês.
E metendo algum dinheiro na mão de Sheng, à laia de presente, fez o burro dar meia volta e tomou com os colegas o caminho de casa.
Sheng ficou bastante admirado ao receber aquela carta. Como explicar coisa tão estranha? Não podia adivinhar que ela lhe chegava às mãos porque Mayli assistira ao parto duma mulher birmanesa que dera à luz o primeiro filho dum comerciante chinês. E ficou maravilhado, maravilhado e contente, sempre era uma carta de Mayli e deu graças ao céu por saber ler o suficiente para decifrar o que nela estava escrito. Aliás Mayli tivera o cuidado de traçar caracteres grandes e bem legíveis, ciente de que ler não era para Sheng coisa tão natural como respirar. Leu a carta três vezes, depois sentou-se à sombra duma figueira para a ler ainda uma vez mais, enquanto os companheiros se sentavam também sobre as raízes grossas como braços, à espera que ele terminasse a leitura. Por fim, Sheng anunciou :
- Temos de voltar atrás, ir ver o americano e perguntar-lhe para onde foram as nossas tropas.
Dizendo isto ergueu-se e meteu a carta no cinturão; os companheiros levantaram-se também, excepto o inglês que ficou sentado onde estava. Quando Charlie lhe explicou que era preciso ir falar com o americano e perguntar-lhe onde estavam as outras divisões, o inglês olhou-o com ar confundido.
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- Não quero andar para trás - disse-lhe. - Vão vocês perguntem tudo quanto quiserem, eu espero-os aqui.
A estas palavras Charlie Li soltou uma gargalhada e comentou em chinês para o companheiro, certo de que o inglês não podia compreendê-lo:
- Como este homem é desertor, naturalmente não tem muita vontade de aparecer na presença dum oficial branco.
Deixaram pois o inglês sentado à sombra da figueira é voltaram para trás. A meia jornada de caminho, descobriram o acampamento do americano, com as tropas que ainda lhe restavam, uma mistura de chineses, hindus e outros elementos que ele conseguira salvar na retirada, apesar das severas perdas sofridas.
Encontraram-no sentado à entrada da sua pequena tenda, vestido com uma camisa e umas calças, como um simples soldado. Os seus cabelos grisalhos estavam húmidos de suor, pois o calor não diminuía de dia nem de noite. Charlie dirigiu-se a ele e perguntou-lhe onde se encontravam as divisões chinesas.
O americano, debruçado para um mapa, inscrevia nele algumas notas a lápis; quando viu na sua frente aquele punhado de homens esfarrapados, com o uniforme da divisão perdida, pôs-se a praguejar na língua materna, ao mesmo tempo surpreendido e maravilhado. Mas limitou-se a fazer-lhes uma única pergunta:
- Donde vêm, meus amigos?
Charlie contou-lhe então rapidamente e com simplicidade como Sheng conduzira os seus homens em socorro dos brancos, os quais tinham destruído depois a ponte, cortando a retirada à divisão chinesa, que fora completamente massacrada, à excepção dum ou outro que conseguira escapar. Mas quais e quantos, ignoravam-no.
O americano ouviu-o, a cabeça erguida, o olhar azul atento, sem pronunciar uma única palavra.
Charlie, ao ver que ele não dizia nada, perguntou:
- Onde estão os nossos?
- Partiram em direcção a Lashio - disse o americano em inglês - e avisei o vosso general de que tomava uma
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decisão louca. Vai dispor os seus homens numa profundidade absurda para uma frente tão reduzida. Os japoneses não o pouparão, mas ele não me quis ouvir.
Charlie traduziu para chinês as palavras do americano. O hindu limitava-se a abrir muito os olhos, pois não compreendia nada de tudo aquilo, mas Sheng percebeu instantaneamente o que o americano queria dizer e deu-lhe
razão.
Dize ao americano que receio muito que ele tenha
razão e apressemo-nos a ir falar com o general. Talvez não seja demasiado tarde.
- Eu compreendo a sua língua - disse o americano em chinês.
Fixou bem Sheng com os seus olhos azuis. Sheng sustentou aquele olhar e os dois sentiram simpatia um pelo outro.
- Já nos vimos em qualquer parte - disse o americano.
- Sim, vimo-nos uma vez - concordou Sheng.
- Ah! É o rapaz das colinas de Nanquim, agora me lembro - continuou o americano no seu chinês simples de rude. - Lamento que não seja você o general. Tem muito mais bom senso do que ele.
Sheng não respondeu, pois não devia desautorizar os seu superiores e disse simplesmente a Charlie:
- Partamos o mais rapidamente possível.
E depois de apresentarem os seus agradecimentos, que o americano recebeu sem cortesia, apressaram-se a retomar o seu caminho.
Ao chegarem ao local onde tinham deixado o inglês, encontraram-no a dormir à sombra da figueira, deitado entre as raízes da árvore gigante. Quando soube o que tencionavam fazer, tomou um ar hesitante.
- Devíamos ir para a índia - resmungou. - Era a única maneira de nos salvarmos.
- A índia! - exclamou Charlie estupefacto.-Decerto não conhece as montanhas que teríamos de atravessar para lá chegar.
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Mas o inglês não queria saber de razões.
- Se eu pudesse chegar à índia, estaria salvo - insistiu. - Conheço aquela gente.
No entanto, dado que não se sentia seguro naquele país inimigo, pois os birmaneses atacavam os ingleses isolados, não teve outro remédio senão segui-los; tinha, medo de ficar só. E assim os quatro se puseram a caminho, por ínvios atalhos, evitando cidades e aldeias, e quando na estrada avistavam alguém a distância, procuravam ocultar-se nos campos ou na selva, segundo o local onde se encontravam.
Depois de caminharem vários dias, começaram a encontrar, aqui e além, numerosos sinais de que se encontravam à retaguarda dum exército inimigo. Mas não podiam saber se tal exército era importante ou não. No entanto os sinais da sua passagem eram cada vez mais evidentes. Aldeias meio destruídas pelo fogo, outras na qual a bandeira do inimigo flutuava ao vento e o povo excitado e triunfante celebrava a derrota dos dominadores brancos.
Sheng, ao observar tudo isso, disse a Charlie:
- Se não conseguirmos atravessar as linhas inimigas, a batalha terá terminado antes de podermos falar com o general e se o americano não se enganou isso será uma grande infelicidade.
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O general dispusera as suas unidades conforme o seu plano. De dia e de"noite, permanecia sombrio eSilencioso, pois não podia esquecer o que lhe dissera o americano e no entanto não queria confessar a si mesmo que talvez não tivesse razão. Dispôs os seus homens com o maior cuidado ao longo da frente que escolhera e quando, com a noite, a inquietação se apoderava dele, tranquilizava-se dizendo a si próprio que o americano não tinha o mínimo direito de lhe dar conselhos, pois não vencera uma única batalha. "Esse americano faz o jogo dos ingleses. Como
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posso ter confiança nele?", pensava com amargura. Os brancos estão todos unidos contra nós. Deixaram-nos vir para um país que não é o nosso e não nos trataram como seus iguais. Que se unam pois uns aos outros; nós agiremos por nossa conta e risco, já que não nos consideram como
aliados.
De dia e de noite assaltavam-no os mesmos pensamentos; a cólera fortalecia-o nas suas decisões e dizia sempre a si próprio que ele e os seus homens eram capazes de fazer frente a qualquer ataque do inimigo. Não o tinham combatido tantas vezes?
Entre as enfermeiras, nenhuma sabia fosse o que fosse a não ser que o trabalho aumentava todos os dias e cada vez havia mais que fazer. As sandálias dos soldados estavam gastas, muitos marchavam descalços, os seus uniformes "em farrapos; além disso eram picados por insectos, mordidos por escorpiões, aracnídios e serpentes que abundavam na região. Muitos andavam também mal dos intestinos, por beberem a água dos poços insalubres, ou essa! água estagnada que se encontra na selva e que se bebe por não haver outra.
Mas Chung, ocupado a tratar dos soldados, sentia-se cada vez menos à vontade, pois ouvira mais coisas do que sabiam as enfermeiras. Uma noite foi ter com Mayli que estava a remendar o seu uniforme e tinha junto de si o estojo de costura com que a presenteara Liu Ma. Chung1 sentou-se no chão ao seu lado e disse em voz baixa.
- Se formos atacados e vencidos, já pensou alguma coisa para se salvar com as enfermeiras?
Mayli reflectia várias vezes no que faria em tal emer- gência, pois sabia que as enfermeiras esperavam tudo dela e respondeu:
- Ficaremos com o exército se for possível, mas se não pudermos procuraremos refúgio na selva... Que mais havemos fazer?
- Quero dar-lhe uma coisa - disse Chung.
E levando a mão à algibeira, tirou de lá uma pequena bússola.
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- Tome isto que lhe permitirá dirigir-se para oeste é afastar-se do inimigo.
Mayli aceitou a bússola e guardou-a no bolso.
- Muito obrigada - disse-lhe, continuando a coser.
E Chung ao contemplá-la pensou como ela estava diferente da rapariga bonita, impetuosa e descuidada que conhecera quando a vira, pela primeira vez. Estava agora magra e rija como uma camponesa, os cabelos negros estriados de madeixas castanhas, o rosto e os braços queimados do sol, os lábios, menos carnudos, apertados firmemente um contra o outro e o olhar pensativo. As suas mãos estavam calejadas e as unhas "partidas, pois não havia trabalho, por mais árduo que fosse, que não realizasse. A sua maneira de ser modificara-se muito também. O tempo do coquetismo e dos sorrisos já passara; agora era raro vê-la sorrir.
Ela sentiu que ele a fixava e ergueu os olhos. Os seus olhares encontraram-se. Mas nem um nem outro falou. O que podiam dizer naquele instante a respeito do presente ou do futuro e de que lhes serviria falar? Ele ergueu-se, fez-lhe um ligeiro aceno de despedida e deixou-a, sem saber que nunca mais tornaria a ver essa mulher, em quem aprendera a ter confiança como num camarada ou um amigo.
Ao alvorecer do dia seguinte, num sector que parecia sossegado, o inimigo atacou de repente. Os primeiros homens que despertaram viram uma nuvem no horizonte, na direcção do sul. Mas seria mesmo uma nuvem? Naquela região, o céu aparecia muitas vezes nublado antes do nascer do sol, e embora a nuvem fosse mais amarela do que de costume, nada já naquele país os surpreendia.
Mas na realidade a nuvem provinha da poeira que levantavam os camiões e outros veículos que transportavam o exército inimigo; atrás dessa nuvem, escondiam-se os aviões que apareceram de súbito no céu com um ruído infernal.
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- O inimigo!... O inimigo!.,. - gritaram os homens, fugindo em todas as direcções, tentando assim escapar ao bombardeamento.
O general não dormia; ao ouvir o barulho, saltou doleito e saiu da tenda. Nesse mesmo instante um avião, voando muito baixo, fez fogo com a sua metralhadora. O general recebeu a descarga nas costas e caiu. Nem teve tempo de pensar na morte, pois num simples segundo deixou de viver.
Aliás poucos homens se aperceberam da morte, pois o inimigo surgia agora de todos os lados, no céu e na terra, assaltando, atacando, dispersando-os e abatendo-os na fuga. Sob um tal bombardeamento, o que poderiam fazer uns pelos outros? Chung levantou os braços e ficou imóvel. "É o fim!", pensou. Ergueu o rosto para o céu, um avião mergulhou e Chung caiu.
O inimigo semeou o pânico entre as tropas, separando batalhões e regimentos, cercando os homens que estavam à retaguarda, isolando-os em pequenos grupos para lhes cair depois em cima e massacrá-los. E assim aquelas divisões foram destruídas até o último homem, e foi como se nunca tivessem existido.
Homens feridos ou homens válidos, isso não fazia nenhuma diferença, e o que o inimigo, descendo do céu, não tinha exterminado, o inimigo, rolando furiosamente no terreno, concluía. Em pouco tempo, apenas o suficiente para o sol romper por entre as nuvens, a batalha terminara, e veículos, homens a pé e aviões desapareciam na direcção do norte, a marcha forçada, verdadeiro tufão de homens e metal, deixando atrás de si, na estrada que corria através da selva, cadáveres sem sepultura.
No entanto alguns tinham encontrado refúgio na selva, entre os quais Mayli, Pansiao, Siu-chen, An-lan e Hsieh-ying. Depois de Chung a deixar, na noite anterior, Mayli, inquieta e perturbada, não conseguira dormir. "Ele não me falaria assim se não receasse o pior", pensava. E quanto
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mais pensava no inimigo e na maneira como ele tratava as mulheres, mais Nervosa ficava. Por fim, desistiu de dormir, levantou-se do leito e aproximou-se de Pansiao e das outras três enfermeiras que dormiam sempre ao pé de si, acordou-as e murmurou:
- Estou inquieta esta noite. Levantem-se e escutem. Hesitou um instante, fazendo incidir a luz da pequena
lâmpada que tinha ,na mão nas outras enfermeiras que dormiam. Estavam deitadas, bem juntas umas às outras) extenuadas, cobertas de poeira e o coração de Mayli constrangeu-se. "Devo acordar todas ou não?", perguntou a: si mesma. Contemplou o céu absolutamente negro, depois passou o cone de luz pelos rostos adormecidos. Nem uma só acordou. A noite estava tão calma que Mayli começou a lamentar ter cedido à sua angústia e decidiu não acordar mais nenhuma. Voltando-se para o pequeno grupo das que estavam levantadas, mandou-as deitar.
- Eu não devia tê-las acordado simplesmente porque estou inquieta - disse-lhes - pois não há outra razão além deste receio que sinto dentro de mim.
Elas voltaram a deitar-se e Mayli acalmou os seus temores, não sem lhes dizer primeiro, antes de as deixar.
- Se no entanto a minha inquietação for fundada, se suceder alguma coisa, embrenhem-se na selva e tomem a direcção do ocidente. Caminhem cerca de uma milha e esperem por mim.
As jovens escutavam-nas aterradas e Pansiao pronunciou em voz baixa:
- Estou cheia de medo, irmã mais velha.
- Não deves ter medo - disse Mayli vivamente.-Vai dormir.
E dizendo isto foi deitar-se.
Intimamente censurava-se, pois sabia que uma grande parte da sua inquietação e da sua incapacidade de dormir provinha do facto de estar sem notícias de Sheng, ignorando se era vivo ou morto, e no caso de estar ainda vivo se o tornaria alguma vez a ver, pois era muito possível que tivesse ficado prisioneiro. E vivendo nessa incerteza, tudo
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lhe era penoso. Não podia conciliar o sono e a comida sabia-lhe a cinza.
Continuava ainda acordada quando ouviu um surdo rumor no céu; saltou da cama e perscrutou o horizonte. Distinguindo uma nuvem amarelada, não a tomou por uma nuvem vulgar e gritando às enfermeiras que se levantassem, precipitou-se para o lugar onde se encontravam os feridos e os doentes.
- Fujam... fujam como puderem - gritou-lhes - e os que não puderem deitem-se de bruços.
Enquanto falava, começaram os aviões a dtescer e ela deitou-se no solo, mas ainda teve tempo para ver caií Chung.
Quem pode dizer por que foi poupado um e o outro não? Mayli estava estendida, imóvel, o rosto pousado nos braços, sem nenhuma protecção contra o inimigo te sentia cair em sua volta uma verdadeira chuva de fogo, e os roncos dos aviões e o sibilar das rajadas de metralhadora e no entanto não foi atingida. Continuou deitada, a cabeça em cima dos braços.
- Eu morro - dizia. - Desta vez morro. Nunca mais caminharei, nunca mais pronunciarei uma palavra. Este pensamento é provavelmente o último.
Sentia o espírito extraordinariamente lúcido, pronto para viver uma eternidade no momento da morte. "Uma cabeça que funcionava bem", pensou, "sim, um bom cérebro".
O seu corpo também o sentia fremente e cheio de vida, e sentia o sangue correr-lhe nas veias, e os músculos cheios de elasticidade e de força. Jamais se sentira com tanta vida como nesse instante em que esperava a morte dum momento para o outro. "Por que não casara com Sheng?", perguntou de súbito a si mesma, desesperada. "Se ao menos me tivesse entregado uma vez a ele... que tristeza ter vivido tão sozinha todos estes meses!"
Tais eram os seus pensamentos, e não pensava em mais nada, pois estava convencida que ia morrer. "Sheng! Sheng!"-exclamava em pensamento. -"O meu corpo vai morrer sem ter sabido o que é a vida!" E diante da morte era esta a ideia mais cruel.
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Mas a morte não chegou. O inimigo desapareceu e ela continuava ali, deitada entre os mortos. O barulho terrível foi diminuindo a pouco e pouco, os aviões voltaram para as alturas e Mayli não ouviu mais nada. A batalha findara e o sol erguia-se, lá no alto, como todas as manhãs. Levantou a cabeça e viu que estava rodeada de cadáveres, mas ela... ela vivia. Ergueu-se e ali ficou de pé, perdida e angustiada porque vivia enquanto todos os outros tinham morrido. Contemplou um momento, sem se mexer, os corpos retorcidos, convulsos, sangrentos, dos feridos e moribundos. As enfermeiras tinham morrido enquanto dormiam. "Devia tê-las prevenido também", chorou dentro dela uma voz. E de súbito, cega pelas lágrimas, transtornada de horror, começou a correr, a tropeçar e a gemer, em direcção à selva.
Apesar de todos os seus esforços, Sheng e os companheiros não conseguiram tornear as forças inimigas, que dispunham de veículos mais rápidos do que as pernas dos homens.
Quando por fim chegaram ao local devastado pelos nipões, encontraram cadáveres, corpos desfeitos que apodreciam rapidamente à torreira do sol, de ora em quando cortada por bruscos aguaceiros duma chuva quente que às vezes caía durante uma hora ou duas. Compreenderam logo que ninguém escapara ao imenso desastre. Descobriram o corpo do general. Estava estendido em frente da sua tenda, de rosto voltado para a terra, e na mesma posição em que caíra. O inimigo levara-lhe as armas e arrancara-lhe as insígnias. Shéng soergueu-o e voltou-o. Sim, era de facto ele.
Mas podia sentir fosse o que fosse por alguém, mesmo pelo general?
- Onde estão as mulheres? - perguntou numa voz rouca a Charlie. - Havia entre elas uma que eu conhecia...
- Sim?! - exclamou Charlie. - Também havia entre elas uma que eu conhecia...
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De pé no meio desse campo de morte, os dois homens olharam-se. O inimigo desaparecera, a caminho .do norte, em direcção a Lashio, para cortar a Grande Estrada que conduzia à China. Não estavam "em perigo, mas quem os livrava da sua dor? Sheng teve a impressão que se pronunciasse o nome de Mayli ficaria menos angustiado e disse a Charlie:
- Refiro-me a essa jovem alta cujo nome próprio é Mayli e o de família é Wei.
- Essa?! -exclamou Charlie.
Durante um instante, Sheng teve o louco receio de que Charlie e ele estivessem apaixonados pela mesma mulher. Mas o companheiro logo acrescentou:
- Eu refiro-me a uma garota, quase uma criança, que seguia Mayli para toda a parte como um cão.
- Mas essa é minha irmã! - exclamou Sheng. É Pansiao.
- Pansiao é sua irmã?! - interrogou Charlie.
E os dois homens que a morte cercava por todos os lados, deram as mãos e sentiram os olhos encherem-se-lhes de lágrimas. Gostariam de falar mais, mas o inglês interrompeu-os:
- Pois bem-; camaradas, que tencionam fazer? Para onde vamos agora? Devem reconhecer que eu tinha razão... Se tivéssemos partido logo direitos à índia...
Não se oferecia outra alternativa a Sheng e aos seus companheiros, senão embrenharem-se na selva, afastarem-se daquele cheiro de podridão que já exalavam os cadáveres; depois decidiriam o que haviam de fazer. No entanto nem Sheng nem Charlie podiam abandonar o campo de batalha sem verem primeiro se encontravam Mayli e Pansiao no meio- dos mortos. Reconheceram os corpos de vários camaradas, mas não podiam enterrar todos. Limitaram-se portanto a juntá-los e a estendê-los piedosamente. Depois, pegaram no pano da tenda e cobriram com ele o corpo do general para o protegerem das moscas. Fizeram
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em seguida minuciosas buscas, mas não encontraram as duas raparigas e quando por fim se convenceram que elas não figuravam entre os mortos, o calor já era intolerável e o número de moscas espantoso, embrenharam-se na selva, em busca dum pouco de sombra e água, para comerem as provisões que traziam nos bolsos, compradas ainda com o dinheiro que o comerciante chinês dera a Sheng. Aquela selva era quase impenetrável e com grande dificuldade encontraram um caminho; desta vez foi o hindu que os guiou, conduzindo-os a um estreito carreiro por onde depois seguiram, muito longe de suporem que Mayli e as suas assistentes tinham por ele passado quatro ou cinco horas antes. Graças a esse carreiro, Mayli encontrara facilmente as companheiras quando se embrenhara na selva, aterrada,. cambaleante, indo descobri-las muito chegadas umas às outras, num silêncio de pavor. A chuva começara a cair, numa bátega forte, e elas olhavam em volta, temerosas de que essa chuva não as deixasse ouvir o inimigo aproximar-se. com efeito, nem sequer ouviram Mayli, que se acercou antes delas terem tempo de pressentirem a sua presença. Todas lhe estenderam logo as mãos e a puxaram para o seu esconderijo, as lágrimas e os pingos de chuva a correrem-lhe nas faces. Mayli afastou os cabelos molhados do rosto e perguntou a si própria o que havia de fazer. Onde se dirigir naquele país hostil? Como é que umas tantas mulheres podiam escapar aos perigos que as ameaçavam e encontrar enfim os seus? Nas árvores, em redor, dum verde intenso avivado pela chuva, empoleiravam-se pequenos macacos que afastavam os ramos para as examinar bem, como se fossem seres humanos. Mayli estremeceu ao ver esses pequenos focinhos negros; sabia que o inimigo costumava esconder-se também no cimo das árvores. E se no meio dos macacos estivessem também homens? As outras tiveram o mesmo pensamento, e todas ficaram transidas de terror à ideia de que o inimigo podia estar ali perto. Esse terror comunicou-se de umas às outras, como lume, e cegas de medo começaram a correr em direcção à estrada.
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Mayli foi a primeira a recompor-se e parando chamou-as:
Parem!... Parem!... Vocêssão loucas!... Para onde
vão?
Ao som da sua voz, as jovens pararam e olharam-na; Pansiao pôs-se a chorar, pois tinha muito calor e estava cansada e cheia de medo. Vendo aqueles rostos voltados para ela, Mayli compreendeu que tinha de tomar uma decisão e, esforçando-se por retomar alento, pôs-se a reflectir tão calmamente quanto podia.
A chuva cessara. Em volta delas reinava uma luminosidade verde, doce e profunda. Se estivessem em estado de distinguir a beleza que as cercava, tê-la-iam apreciado, mas essa luz verde pareceu-lhes simplesmente estranha e perigosa, e desconfortável a água que pingava das folhas. Além disso, sentiam fome e sede; ,a chuva fora rapidamente absorvida pela terra e pelos musgos e não havia nenhum curso de água nas proximidades.
Nesse momento ouviram, ali próximo, uns pés que caminhavam na selva, o característico estalar de ramos, e vozes de homens... Aproximaram-se mais umas às outras, receando acima de tudo a aproximação do inimigo. E essas mulheres tão fortes, tão resistentes, que tinham sofrido a dureza das batalhas, e marchado dias e dias ao lado dos soldados, esqueceram tudo para se sentirem unicamente mulheres e por esse facto à mercê dos homens que se aproximavam. Muito juntas umas às outras, mudas, imóveis, esperaram, perscrutando a selva com ansiedade.
O carreiro passava muito perto do sítio onde estavam e já não havia tempo para recuar; aliás, não se atreveriam a fazê-lo, com receio de serem descobertas. As vozes aproximavam-se, elas escutavam intensamente e Mayli ouviu de súbito uma voz inglesa descontente pronunciar as seguintes palavras:
- Só lhes digo, meus amigos, que já não terei amanhã botas nos pés se continuarmos por estes caminhos.
Mayli levou um dedo aos lábios, afastou-se das outras, avançou um pouco e afastando as ramagens espreitou.
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Três jovens estavam sentados à beira do caminho. Traziam as vestes em farrapos e as mãos vazias, com excepção das espingardas que nunca largavam. Um deles tirara as botas que contemplava com ar preocupado.
Mayli aproximou-se mais. Devia falar ou não? Esses homens pareciam andar perdidos, estavam extremamente pálidos e cansados, e além de tudo o mais eram muito novos, apenas saídos da adolescência.
- Olá! - pronunciou Mayli em voz baixa.
Todos se puseram de pé, os olhos muito abertos, as armas em posição de disparar.
- Quem está aí? -perguntou aquele que descalçava as botas. - É um amigo ou um inimigo?
Mayli saiu da moita em que se escondia e disse:
- Como sou chinesa, suponho que devo ser vossa aliada.
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Os três ingleses olharam para Mayli. Ela viu naqueles olhos claros a dúvida habitual dos brancos. Uma chinesa! Amiga ou inimiga?
- Não têm que ter medo de mim - pronunciou Mayli calmamente. - Embora não seja inglesa, da mesma forma sou apenas uma mulher.
- Está sozinha? - perguntou o que falara primeiro. Baixara a espingarda, mas apertava-a com tal força
que Mayli viu as suas mãos magras e sujas esbranquiçadas nas articulações.
- Não, somos cinco ao todo - disse Mayli. - Fugimos hoje mesmo do campo de batalha.
- Qual campo de batalha? - perguntou o inglês.
- Não vêm da estrada? - interrogou por sua vez Mayli.
- Bem ao contrário - disse o inglês abanando a cabeça. - Há vários dias que erramos na selva sem descobrirmos
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uma única estrada. O nosso intento era atingirmos a índia, mas sem vermos o nascer nem o pôr do sol por causa desta maldita obscuridade verde, é muito provável que nos tenhamos enganado no caminho.
Mayli tirou da algibeira a pequena bússola que lhe
dera Chung.
Seguem na direcção do sudeste - disse.
Meu Deus! - exclamou o rapaz numa voz surda.
Os três ingleses esqueceram por completo os receios, desanimados de todo, e pousaram as espingardas. Um deles, rapaz baixo e atarracado, outrora corpulento, mas agora tão magro que dir-se-ia ter apenas a pele em cima dos ossos, tirou o capacete e começou a coçar a cabeça que o calor e a sujidade tinham tornado calva. O terceiro, o mais novo, fez-se extremamente pálido e perguntou:
- Quer dizer que durante todo este tempo seguimos um caminho errado?
- Parece que sim - anuiu o primeiro.
E abotoando a blusa esfarrapada, aberta no tronco nu, perguntou a Mayli:
- Onde estão os japoneses em relação a nós?
- Passaram aqui esta manhã -- disse a jovem - e tomaram a direcção do norte e do este. Mas a que distância estarão eles agora isso é que não lhes posso dizer,
- Se estiveram aqui esta manhã - considerou o inglês
- o melhor que temos a fazer é afastarmo-nos tão depressa quanto possamos. Mas em que direcção? Há vários dias que fugimos deles. Estavam atrás de nós além - e apontava para o norte. -Pensávamos que nos tínhamos afastado e no entanto...
- Em primeiro lugar precisamos de sair da selva disse Mayli. - Não podemos ver nada enquanto aqui estivermos. vou chamar as minhas companheiras.
E erguendo a voz chamou:
- An-lan... Pansiao... Siu-chen... Hsieh-ying!
Ao som da sua voz, as raparigas que continuavam escondidas atrás das moitas, saíram, timidamente, Pansiao agarrada à mão de Hsieh-ying. Ingleses e chinesas olharam
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uns para os outros. Mayli notou que os ingleses pareciam pouco satisfeitos. Mulheres... deviam pensar intimamente... mulheres, mais um fardo que tinham de suportar.
- Podemos caminhar tão rapidamente como vós disse Mayli - estamos habituadas a seguir a tropa.
- Chegar até aqui para encontrarmos um bando de mulheres! - lamentou o mais baixo dos três.
- Cala a boca, Ride - disse o primeiro que falara. Houve um longo silêncio embaraçoso, depois acrescentou, pondo a espingarda ao ombro.
- Bem, vamos, venham todos, o melhor que temos a fazer é pormo-nos a caminho.
Deu meia volta e caminhou na direcção donde tinha vindo. Os dois homens seguiram-no e as mulheres, em fila, começaram também a andar atrás deles.
E assim estas duas espécies de seres, homens e mulheres, brancos e morenos, marcharam durante horas e horas na selva obscura e abafada, sentindo uma desconfiança recíproca e não dirigindo a palavra uns aos outros. De tempos a tempos trocavam entre si alguns comentários a respeito do outro grupo. Os ingleses, deitando às mulheres olhares de viés, falavam em voz baixa:
- A mais nova não parece ter mais de dezassete anos
- disse um. E o outro:
- Seríamos capazes de as achar bonitas se não as comparássemos às nossas mulheres.
- São muito amarelas, muito delgadas e não gosto nada dos seus olhos - afirmou o terceiro.
- Seja como for são mulheres - disse o primeiro.
- Pois claro que não se lhes pode chamar outra coisa
- declarou o outro.
As raparigas, por sua vez, falavam livremente, sabendo que os homens não compreendiam a sua língua.
- Todos os Ying são assim altos, magros e ossudos como estes? - perguntou Hsieh-ying a Mayli.
Mayli, apesar do calor e da fadiga, encontrou ainda força para sorrir.
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- Os Ying podem ser gordos ou magros, como todos os homens - afirmou.
- Metem-me medo - pronunciou Pansiao em tom de lamento. - Os seus olhos são dum azul tão frio, e o nariz parece o arado duma charrua. Por que terão assim o nariz? Servem-se dele para farejar, como os cães?
Já nascem com o nariz assim - replicou Mayli.
Têm o aspecto de frutos descascados - comentou
Siu-chen. - Por que será que a sua pele é avermelhada?
- Porque o sol os tinge de vermelho em lugar de os escurecer - explicou Mayli.
E como eram mulheres, a conversa tornou-se mais íntima.
- Estes homens serão como todos os homens? - perguntou Hsieh-ying que tinha pelo sexo masculino um fraco contra o qual era incapaz de lutar mas que por decência escondia o melhor possível.
- Decerto que são - respondeu Mayli friamente.
- Arrepia-me a ideia de me deitar com semelhantes bichos - disse Hsieh-ying.
Mayli teve um sorriso frio.
- Folgo muito em sabê-lo - declarou, e as outras desataram a rir.
Sim, riam todas de ver aqueles ingleses de pernas nuas, joelhos ossudos, grandes corpos magros, pescoço descarnado e vermelho do sol, depois dos horrores que tinham passado e apesar da situação em que se encontravam, pois eram ainda umas crianças.
- O que me desagrada mais é que sejam tão peludos
- comentou An-lan. - Nunca gostei de bichos peludos como gatos, cães e macacos e estes Ying estão cobertos de pêlos. Olhem para as barbas que trazem.
- É porque não podem barbear-se - declarou Mayli.
- Mas como podem barbear o corpo todo? - interrogou An-lan. - Reparem que os braços e as pernas são tão peludos como o queixo. E já lhes viram o peito nu? Aí os pêlos são mais espessos que no peito dos cães. Terão o corpo coberto de pêlos por baixo do vestuário?
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- Nunca vi nenhum Ying nu - disse Mayli num tom breve - nem qualquer outro homem, aliás. Mas não acho que os brancos tenham tantos pêlos como os cães.
Assim tagarelando, a marcha pareceu-lhes menos custosa durante algumas milhas, mas não podiam caminhar indefinidamente. Tinham de pensar também na comida e num abrigo para dormirem quando anoitecesse. Assim, mal principiou a escurecer, Mayli interpelou o inglês que lhe falara em primeiro lugar:
- Não seria melhor combinar o que havemos de fazer para encontrar alguma comida e um abrigo? Não chegamos ao fim da selva esta noite e precisamos absolutamente de comer e dormir.
Os ingleses pararam e esperaram que as jovens se aproximassem.
Sentaram-se nos troncos caídos, enxugaram os rostos cobertos de suor e colhendo enormes folhas começaram a abanar-se. Melgas e mosquitos esvoaçavam em redor, em espessa nuvem que eles afugentavam como podiam com o auxílio das folhas.
De repente, o mais baixo dos três deu um salto.
- Meu Deus, não posso mais! - exclamou.
E começou a bater nas pernas e nos joelhos. Nos pêlos louros que as cobriam tinham-se aninhado dezenas de insectos. Hsieh-ying olhava-o de olhos muito abertos, tendo na mão uma folha de cheiro activo; já notara que esmagando-a levemente exalava um odor ainda mais forte. Avançando para o inglês, indicou-lhe por gestos que bastava passar aquela folha pelas pernas. Ele obedeceu e logo os insectos incomodados com o cheiro o deixaram em paz.
- Você é uma boa rapariga - disse a Hsieh-ying. Mayli traduziu o agradecimento e Hsieh-ying pôs-se a
rir, escondendo a boca com a mão.
Mas aquela folha devia segregar qualquer suco venenoso, pois mal ele deixara de esfregar as pernas, sentiu nelas uma comichão doida e começou a coçá-las e a gritar:
- Esta maldita folha é venenosa!
Todas o olharam consternadas e Hsieh-ying deixou de
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rir. Entre este incidente e o tormento que lhes infligiam os insectos, decidiram continuar o seu caminho, mas desta vez Mayli e o mais alto dos três ingleses marchavam lado a lado para decidirem o destino da expedição, pois eram os chefes; os outros seguiam-nos, mas juntos e não separados como antes.
E quanto mais o inglês olhava para Mayli, mais ela lhe agradava.
- Foi uma grande sorte para nós ter encontrado alguém que sabe falar inglês -disse-lhe. - Talvez possamos ajudar-nos mutuamente.
- Não é fácil para as mulheres viajar sozinhas num país pouco hospitaleiro - respondeu Mayli.
-. Não seria melhor tentarmos estabelecer uma espécie de plano? - propôs o inglês.
- Já perguntei a mim mesma o que devíamos fazer
- afirmou Mayli. - Se pudéssemos alcançar a grande estrada que conduz à índia, talvez isso fosse melhor para nós do que seguirmos nesta direcção, pois sei que não há estradas importantes que nos levem à China, ao passo que sempre ouvi dizer que existe uma estrada magnífica que liga a Birmânia à índia.
O inglês comprimiu um contra o outro os lábios carnudos.
- Pois engana-se - disse bruscamente. - Não há nenhuma.
- Então não há uma estrada para a índia? - exclamou Mayli.
O inglês abanou a cabeça.
- É por isso que a retirada é tão difícil - .disse lentamente. - As estradas que existem são insignificantes, estreitas, sinuosas e atravancadas de gente. Além disso, nenhuma conduz directamente à índia.
Mayli ficou tão surpreendida que durante um momento não pôde responder. Ouvira falar várias vezes duma estrada fabulosa que conduzia à índia, uma estrada de cem pés de largura, de pavimento duro, feita expressamente para os exércitos motorizados.
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- Que incrível loucura a dos vossos generais - exclamou. - Mandarem assim para este país forças insuficientes para alcançarem a vitória, sabendo que não tinham possibilidades de retirar.
- Tudo quanto possa dizer não é nada que eu não tenha pensado - afirmou o inglês. - Já o disse e redisse não sei quantas vezes. Mas na realidade é assim. Dunquerque foi uma brincadeira de crianças comparado com o que se passa aqui. Estive em Dunquerque e por isso posso falar. Tínhamos de atravessar apenas algumas milhas do mar e a Inglaterra inteira correu a ajudar-nos. Além disso, sabíamos que a Inglaterra estava perto. Mas aqui... esta horrível selva que se estende por centenas de milhas... e a Inglaterra a milhares de quilómetros de distância... A própria índia...
Calou-se de repente e Mayli notou que fazia grande esforço para não chorar.
"Que viemos cá fazer?", perguntou ela de si para si. Mas o inglês continuou:
- E para que combatemos neste país maldito? É o que perguntam todos os meus camaradas. Se ganharmos a guerra, esta terra voltará para a nossa posse, como o resto. Se a perdermos, perdê-la-emos também com certeza. Não é aqui que precisamos de combater. Mesmo que sacrificássemos dezenas de milhar de homens não alcançaríamos a vitória. Não é campo de batalha próprio para tropas brancas!
Mayli não respondeu. Olhou a selva em sua volta. Não, aquilo não era um campo de batalha. As árvores estremeciam por cima das suas cabeças e as lianas enroscavam-se nos troncos. Onde as árvores se afastavam o suficiente para deixar penetrar o sol, cresciam altas plantas, bem acima das cabeças, plantas húmidas da chuva, de folhas largas como guardanapos. Mayli parou junto duma dessas folhas que retivera a chuva do último aguaceiro e ajoelhando-se, bebeu, como por uma chávena. Chovera já três vezes desde que se tinham posto em marcha o que lhes permitira dessedentarem-se. Não, aquele país não servia para campo de batalha. Mas quantos homens tinham encontrado ali a
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morte? Mayli pensou no general, em Chung, em todos aqueles cujos corpos vira nessa manhã juncar o solo, mas nem por isso sentiu vontade de dirigir censuras a esse homem cansado e desamparado que marchava ao seu lado. Não merecia mais censuras do que ela. Fora mandado para ali.e ali estava.
Continuaram a caminhar e não falaram durante algum tempo. Por fim Mayli disse com doçura:
- Vamos andar toda a noite, ou descansaremos um bocado?
- Continuaremos a avançar enquanto as pernas nos mantiverem de pé - respondeu o inglês.
A partir desse momento, não trocaram mais do que uma ou outra frase indispensável. A noite cerrou-se por completo e não puderam dar mais um passo.
- Fiquemos onde estamos - propôs o inglês. - Dormiremos mesmo em cima das ervas. Mas sou de opinião que não devemos dormir todos ao mesmo tempo. Nós,, os homens, ficaremos de vigia, um de cada vez, para manter afastadas as serpentes ou quaisquer outros animais que nos possam surpreender.
- Faremos todas também o nosso quarto de vigia, excepto Pansiao - disse Mayli. - E deixaremos Pansiao dormir por ser ainda muito nova.
- Isso não faz sentido nenhum - replicou o inglês. Vocês, mulheres, precisam de descansar. Garanto-lhe...
Mas Mayli não cedeu:
- Nós as mulheres chinesas estamos habituadas a fazer o que os homens fazem.
E assim se passou aquela noite na selva, as horas de sono interrompidas pelos quartos de vigia e mal nasceu o dia prosseguiram a sua obstinada marcha.
O que dizer da jornada seguinte? A extrema fadiga obscurecia-lhes o cérebro e atenuava as suas reacções. Essa fadiga transformou-se em esgotamento tão profundo que caminhavam numa espécie de estado letárgico; não sentiam
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sequer as sanguessugas colarem-se-lhes às pernas e aos tornozelos, e os companheiros é que as viam e arrancavam. O sangue jorrava dessas feridas e nisso é que residia o perigo, pois quanto mais sangue perdiam mais iam enfraquecendo. Observavam-se portanto uns aos outros com a maior cautela. O céu foi particularmente cruel nesse dia; apenas caiu um pequeno aguaceiro; todos se sentiam fracos e sem forças, tão cansados que nem tinham vontade de comer, e apenas os consumia um desejo enorme de sal. Trocavam só as palavras indispensáveis, pois falar requeria um alento que já não tinham. O inglês conservava na mão a bússola , de Mayli e iam avançando sempre para o ocidente, sem saberem se aquela selva se prolongava mais para o norte ou para o sul, para o leste ou para o oeste. Só o que podiam fazer era continuar a avançar sempre, esperando chegar ao fim desse inferno verde o mais rapidamente possível.
Quase ao escurecer, chegaram a uma ribeira barrenta que serpenteava por entre as árvores; contornando-a, descobriram uma passagem construída de bambus. Sentiram o coração saltar-lhes do peito, pois aquilo significava que não longe dali existiam seres humanos. No entanto, podiam ser inimigos. Por isso foi com certa apreensão que se aproximaram da tosca ponte e a atravessaram. Um estreito carreiro de erva pisada, num troço de selva de vegetação baixa, corria ao longo da outra margem do ribeiro. Seguiram por ele até avistarem uma aldeia construída à beira da água. Do lado oposto, a selva fora desbravada e distinguiram pequenos campos de arroz, uns verdes e de tenros rebentos, outros prestes a ser ceifados. Fazia tanto calor naquela região durante todo o ano, que um homem podia semear num campo e recolher noutro, pois não havia propriamente estações.
Pararam à vista da aldeia para combinarem a melhor forma de agir.
O inglês propôs-se ir com os companheiros, como guarda avançada, até o povoado, mas Mayli opôs-se.
- E se forem mortos ou ficarem prisioneiros, o que será de nós? - perguntou.
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Decidiram portanto que Mayli, acompanhada do inglês responsável pela pequena tropa, fosse até a aldeia, enquanto os outros ficariam à espera. Se voltassem, é porque tudo corria bem; se não voltassem, os outros teriam de continuar o seu caminho o melhor que pudessem. Mas Pansiao, ao ouvir isto, recusou-se absolutamente a deixar Mayli e foram forçados a. levá-la com eles.
É sua irmã? - perguntou o inglês, olhando para a
pobre pequena que dera a mão a Mayli.
Mayli ia responder-lhe que não, mas pensando em Sheng que vivia constantemente no seu pensamento, afirmou:
- Sim, é minha irmã.
A aldeia era composta apenas por seis ou sete famílias, que viviam na maior paz, não sabendo nada da guerra, a não ser que se passavam, do outro lado da selva, coisas terríveis. Nem um só dos seus habitantes sabia ler ou escrever, jamais recebiam notícias do exterior, nunca ninguém os ia visitar, e não sabiam portanto o bastante para odiar certos homens e amar outros. A aldeia estava a tal ponto afastada de tudo, que apenas uma vez por ano algum dos seus habitantes se ausentava ou alguém aparecia por lá pois essa gente só cultivava os cereais de que precisava para viver e não possuía por consequência nada para vender nem precisava de comprar nada.
Mayli, Pansiao e o companheiro caminharam a passos prudentes e olhar atento. A tarde ia avançada, os homens estavam nos campos e as mulheres também, excepto alguns velhos e crianças. Ao verem os estrangeiros, começaram a gritar e homens e mulheres acorreram dos campos e rodearam os recém-chegados, trocando palavras que Mayli e os companheiros não podiam compreender. Mas esses aldeões tinham bom aspecto, eram alegres e infantis, e pareciam também perfeitamente sãos: apenas alguns apresentavam umas picadas de insectos venenosos ou feridas nas pernas adquiridas no trabalho dos arrozais. Mayli quanto mais contemplava aqueles rostos, mais se sentia tranquilizada.
- Creio que são somente camponeses - disse ao inglês.
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E sorrindo aos que a rodeavam, abriu a boca e com a mão deu-lhes a entender por gestos que tinham fome. Houve imediatamente conciliábulos entre as mulheres, as quais subiram os degraus que conduziam aos seus casinhotos, construídos sobre estacas, e voltaram logo com arroz e peixe estendido em folhas frescas. Os três viajantes sentiram a fome aumentar à vista dessa comida e começaram a devorá-la com grande satisfação dos camponeses que riam a bom rir.
- Podemos parar aqui - disse Mayli. - Estaremos em segurança.
- Também o creio - anuiu o inglês.
Mayli, indicando a ribeira, abriu a mão para dar a entender aos camponeses que cinco companheiros os esperavam ali, e dando meia volta dirigiu-se com Pansiao e o inglês na direcção indicada, seguidos a pouca distância pelos habitantes da aldeia. Quando estes viram os outros cinco membros do pequeno grupo, começaram a falar animadamente uns com os outros e rodearam-nos de regresso à aldeia, rindo e falando todos ao mesmo tempo, olhando com grande curiosidade para as espingardas que os três ingleses traziam na mão, mas aparentemente ignorando o uso de tais objectos.
As mulheres foram buscar mais comida e os viajantes restauraram as forças e beberam abundantemente uma água fresca e muito pura. A maior cordialidade se estabeleceu entre todos. As crianças andavam de volta deles, as mulheres riam e cochichavam na sua própria língua e os homens examinavam as espingardas. Era visível que nenhum vira uma vez sequer qualquer arma de fogo e o mais pequeno dos três ingleses, muito sorridente e querendo diverti-los, pôs a espingarda à cara e apontou para um pequeno pássaro empoleirado num ramo, que logo caiu morto aos seus pés. A vista disto, os habitantes da aldeia começaram a soltar gritos de terror e fugiram para longe dos visitantes.
- Oh! - exclamou Mayli. - Para que serve mostrar-lhes o que pode fazer com a sua espingarda?
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Foi somente para brincar - titubeou o inglês. - Supus que isso os divertia.
Nem toda a gente está disposta a matar, como você
replicou Mayli que voltando-se para o mais alto dos três
ingleses acrescentou: -Depressa... finja que ficou furioso, finja que o castiga!
O inglês aproximou-se do camarada e esbofeteou-o.
- Aguenta - disse-lhe. - E nem uma palavra. Ela tem razão... é a única coisa a fazer.
Pegando na espingarda do camarada deu-a ao decano da aldeia, mas este recusou-se a pegar-lhe e os outros camponeses continuavam a manter-se afastados. Então o inglês, pegando nas três espingardas foi pô-las ao pé duma grande árvore que se erguia perto dali. Os camponeses tiveram ainda entre eles um conciliábulo animado e evitaram cuidadosamente aproximar-se da árvore em questão, mas o perigo estava afastado.
Entretanto fez-se noite. Ofereceram-lhes mais alimentos, acenderam uma fogueira no centro da aldeia para afastar os mosquitos, e os homens, indo buscar cobertores, estenderam-se em volta do fogo, enquanto as mulheres voltavam para suas casas. Mas nenhuma delas convidou as visitantes a entrarem nelas. E assim, chinesas e ingleses estenderam-se no chão, no sentido do vento para ficarem protegidos pelo fumo, num leito de ramagens que eles próprios colheram e juntaram, e dormiram tão bem como se estivessem num verdadeiro leito, pois tinham saciado a fome e o fumo afastava deles os insectos.
Passaram três dias na aldeia a repousar e a refazerem as forças e todos se esforçaram por ajudar os camponeses na medida das suas possibilidades. Mayli empregou toda a sua habilidade a tratar as feridas de que eles sofriam e os camponeses ficaram-lhe extremamente reconhecidos. Ela não tinha medicamentos, mas ferveu água, lavou-lhes as feridas e aplicou em cima delas uma espécie de vinho que os indígenas extraem do arroz fermentado. Fez compreender
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por gestos aos que tinham tais feridas que deviam todos os dias lavá-las com água fervida, aplicar aquele vinho e expô-las ao sol. Eles seguiram docilmente os seus conselhos e em três dias verificaram notáveis melhoras. Já as mães levavam a Mayli os seus filhos doentes e um velho, apontando para o peito, indicou-lhe uma tosse cavernosa. Mas os conhecimentos de Mayli não eram ilimitados.
No entanto, antes de decorridos três dias, Mayli principiou a pensar em abandonar a aldeia, pois dois dos ingleses, não se podendo conter, começavam a agir como se fossem donos do lugar. Um deles principiou mesmo a andar atrás duma bonita rapariga e Mayli, cheia de medo, foi ter com o inglês que considerava chefe.
- Devia prevenir esse rapaz que tivesse mais juízo disse-lhe. - Os habitantes da aldeia podem levar o caso a mal.
- Fique descansada que lhe direi alguma coisa - prometeu-lhe o inglês.
Mas de que servem promessas? Mayli reparou que esses brancos, sem más intenções, vexavam os indígenas de todas as formas e feitios nas mais pequenas coisas. Eles não podiam conceber que esses homens pequenos e de pele escura eram também homens como eles, e os outros notaram isso e começaram a mostrar-se pouco satisfeitos. Assim, na manhã do terceiro dia, Mayli disse ao inglês mais alto:
- É tempo de partirmos antes que surjam dificuldades entre nós e os camponeses.
- Esses homens pequeninos são irascíveis - respondeu-lhe. - Suponho que a pimenta que absorvem lhes aquece o temperamento.
Desta vez Mayli perdeu a paciência:
- Vocês tratam-nos como servos. Esquecem-se que somos seus hóspedes?
A isto ele respondeu numa voz fria:
- Seja como for, a Birmânia pertence-nos, bem sabe. Mayli soltou uma gargalhada.
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- Vocês não compreenderam ainda que foram vencidos? - gritou.
E de súbito lembrou-se de tudo o que Sheng lhe dissera contra os brancos e deu-lhe razão. com indignação, continuou:
- Como é possível que mesmo agora não compreendam que as vossas vidas dependem desta gente? Nunca aprenderão nada? Porventura só despertam quando já estiverem mortos?
No rosto bom e sincero, de aspecto bastante jovem depois de bem barbeado graças a uma navalha emprestada por um camponês, Mayli leu uma expressão ao mesmo tempo obstinada e estupefacta. Aquele homem não compreendia o que ela queria dizer e nem a cólera nem o desprezo serviam de nada, pois ele não via a razão dessa cólera nem desse desprezo. As palavras entravam-lhe nos ouvidos mas batiam lá dentro num muro e tornavam a sair sem deixar nenhum eco.
- Vamos - disse Mayli. - Temos de prosseguir o nosso caminho, não há outra salvação para nós.
Ela não desejava também ficar sozinha com as suas assistentes naquela aldeia, pois quem podia adivinhar o que lhes sucederia nesse caso? Não, apesar de tudo, aqueles brancos eram seus aliados e não tinham outros.
Nessa manhã foi falar com o velho que era o decano da aldeia e pediu-lhe por sinais que lhe indicasse o caminho que deviam seguir e ele, por sinais também, respondeu-lhe que lhe daria um guia para os conduzir para fora da selva. E foi assim que nesse dia deixaram a aldeia onde tinham sido tratadas com bondade e retomaram o seu caminho embora fosse terrivelmente incerto.
Entretanto Sheng e os companheiros continuavam a avançar. A sua marcha tornara-se mais difícil por um facto extremamente curioso: o hindu principiara a manifestar um ódio poderoso ao inglês. Sheng reparou nisso e disse a Charlie:
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- Esse habitante da índia é muito capaz de fazer mal ao branco se deixarmos os dois sozinhos. Já reparaste que leva constantemente a mão ao peito, onde esconde o punhal?
O hindu tinha efectivamente um punhal duma forma estranha, curto mas muito afiado.
- Surpreendi nele esse ódio, pela maneira como olha furtivamente o inglês - disse Charlie. - É pena que nenhum de nós fale a sua língua para podermos ao menos perguntar-lhe porque o odeia tanto.
- Temos de estar muito atentos de noite e de dia afirmou Sheng - não por simpatia mas por espírito de justiça.
E foi o que fizeram, mas tal tarefa tornava-se ainda mais árdua pelo facto do inglês ignorar completamente o ódio que o hindu lhe votava, tratando-o, nas mais pequenas coisas, como se fora seu criado. O hindu obedecia-lhe sempre que ele lhe indicava alguma coisa para fazer, mas os seus olhos incendiavam-se com novo clarão de cólera.
E assim continuaram a marchar em direcção ao norte e como a selva era menos extensa para o norte do que para o oeste, o que eles ignoravam, depressa chegaram a uma excelente estrada que se dirigia para ocidente. Fizeram alto e consultaram-se para decidirem qual das duas direcções haviam de tomar: leste ou oeste. Sheng foi de parecer que se dirigissem para leste, mas a primeira aldeia que encontraram nessa direcção estava ocupada pelo inimigo. Felizmente descobriram isso a tempo, antes de nela entrarem, pois Charlie, que caminhava adiante, viu alguns soldados inimigos a beberem chá numa pequena estalagem na encruzilhada duma estrada e mal tiveram tempo de dar meia volta e afastar-se.
A estrada por onde seguiam agora era a mesma que o guia indígena indicara a Mayli e aos seus companheiros, mas como o podiam adivinhar? No entanto, a verdade é que os dois grupos avançavam pela mesma estrada e como Sheng e os companheiros caminhavam mais depressa do que o grupo de Mayli, cada dia que passava mais os
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aproximava, e havia de chegar fatalmente o momento em que se encontrassem. Esse encontro deu-se por fim, numa pequena cidade, cerca do meio-dia, mas em circunstâncias um pouco estranhas.
com o decorrer dos dias, Mayli, as enfermeiras e os ingleses acabaram por tornar-se bons amigos. Quer dizer, cada um conhecia os defeitos dos outros e conformava-se com eles. Mayli acabou mesmo por conhecer bastante bem esses rapazes e parecia-lhe que por isso compreendia agora melhor a razão porque se perdera a batalha da Birmânia e também as razões porque os ingleses não eram absolutamente .dignos de censura por a terem perdido. Chegara a essa certeza observando-os e fazendo-os falar. Notou que esses homens nunca se esforçavam, diante dos seres e das coisas, por dar mostras de compreensão, mas continuavam a ser aquilo que eram, homens nascidos na Inglaterra. Eram bons e honestos. Nunca, foi obrigada a confessá-lo, teria acreditado que homens pudessem conduzir-se com mulheres de forma tão honesta como esses rapazes se conduziam com elas, embora fossem suficientemente viris para experimentar o desejo de as possuírem se tivessem mau coração. O mais baixo, por exemplo, não podia deixar de seguir com os olhos todas as mulheres que via, mas não ia mais longe. Quanto ao mais alto, que era também o mais instruído, Mayli sentia até por ele certa simpatia. Era culto, fizera os seus estudos em boas escolas. "Em Oxford", respondera-lhe quando o interrogara a esse respeito, "e o meu pai e o meu avô andaram lá também antes de mim". Havia tanta delicadeza nesses homens, tantas ideias falsas e uma tal cegueira que às vezes pensando nele à noite, Mayli suspirava.
"As coisas seriam mais fáceis para aqueles que vivem debaixo do seu jugo, se fossem verdadeiramente maus, pois por um homem mau havia cem que eram apenas cegos e das duas coisas a cegueira era a mais difícil de suportar". Assim, ao fazer a esse jovem algumas perguntas, ouviu-o dizer:
- Temos responsabilidades a cumprir neste país.
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Ao pronunciar a palavra responsabilidade ergueu a cabeça e contemplou aquela Birmânia verdejante, através da qual se estendia a estrada como uma espada de prata.
- Por que sentem responsabilidades em relação a este país? - perguntou Mayli.
- Porque faz parte do império - respondeu ele.
- Mas por que faz parte do império? - insistiu a jovem. -Por que não deixam o povo dispordo seu próprio país e governar-se como entender?
- Não se pode abandonar assim uma coisa de que se tem a responsabilidade - respondeu o inglês. - Há para com ela um dever a cumprir.
Perante a sua expressão honesta e perturbada, ela compreendeu que ele pensava sinceramente o que dizia e que sentia o peso do dever sobre os seus ombros e sobre os de todo o seu povo.
Mayli pôs-se por sua vez a contemplar aquele país verdejante em toda a extensão que os seus olhos podiam abranger.
- O mundo seria melhor para nós - disse - se vocês não fossem tão bons.
Ele olhou-a e começou a titubear, como sempre fazia quando não compreendia as coisas muito bem.
- O que quer dizer?
- Podíamos ser livres se vocês não pensassem que têm o dever de nos salvar - pronunciou Mayli com um olhar triste e malicioso. - O vosso sentido do dever transforma-os em senhores e a nós em escravos. Não podemos furtar-nos à vossa bondade. A vossa honestidade não nos deixa caminhar. Mas um destes dias desafiaremos o vosso Deus e então seremos livres.
- Você está louca - disse ele estupefacto. - Porventura sabe o que está a dizer?
- Não completamente - respondeu ela - não completamente pois não falo com a razão e sim com o coração. Mas sinto por vossa causa um tal peso aqui. - E dizendo isto pousava a mão no peito. - Sim, simplesmente por estar convosco, sinto um peso imenso aqui,
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- Lamento muito -proferiu o inglês com ar grave -- pois realmente gosto bastante de si...
- O que aliás o espanta, pois nunca pensou que pudesse sentir simpatia por uma chinesa - afirmou Mayli.
O inglês corou e disse:
- Nunca pensei semelhante coisa... Mas também não esperava encontrar uma chinesa... que...
- ...que fosse verdadeiramente humana - concluiu Mayli.
Assim conversando aproximaram-se duma cidade importante. E absorvidos, ele no que dizia, ela no que pensava, e os seus pensamentos eram vastos como o mundo, entraram na cidade descuidadamente, sem se certificarem primeiro se os habitantes seriam ou não hostis. Um jovem monge, de hábito alaranjado, viu-os e correu a prevenir a população que os ingleses tinham entrado na cidade, acompanhados de mulheres chinesas, e as suas palavras despertaram maus pensamentos, como tições incandescentes lançados sobre a erva seca, que inflamam num instante. Menos duma hora depois, enquanto tomavam-lugar em frente da mesa dum estabelecimento, prontos para comerem e beberem, a cidade inteira reuniu-se contra eles sem o saberem. Estavam sentados em bancos de madeira, na rua principal, comendo arroz e legumes e bebendo chá. Momentos antes o sossego era absoluto, nem sequer se agitava o toldo que os protegia dos ardores do sol, e depois viram-se rodeados duma multidão de rostos sombrios e expressões ameaçadoras.
- Que diabo é isto? -exclamou o inglês.
Ergueu-se dum salto, a espingarda na mão; os companheiros imitaram-no, mas Mayli pousou a mão na arma e obrigou-o a voltar o cano para baixo.
- Lá pegam vocês nas espingardas! - murmurou.
- A espingarda é o único argumento que conhecem para todas as situações. Esperem, não sejam loucos, vejamos primeiro do que se trata.
Relanceou os olhos pela multidão a ver se descobria algum rosto chinês; às vezes, em cidades daquela importância, havia comerciantes chineses; mas não viu nenhum.
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O coração batia-lhe apressadamente no peito, enquanto procurava uma maneira airosa de sair de tão más circunstâncias. Mostrando à multidão um rosto sorridente, murmurou para o inglês:
- Pouse a espingarda e diga aos seus camaradas que façam o mesmo. Sentem-se todos outra vez e continuem a comer.
Os três homens obedeceram-lhe de má vontade. Ela estendeu então as mãos para a multidão a mostrar-lhes que estavam vazias. Depois pegou numa espingarda, abanou a cabeça e pousou-a outra vez. Em seguida, apontou para a estrada, dando-lhes a entender que se iam embora. Tirou dinheiro do cinto, pagou ao dono da estalagem a despesa feita, e voltando-se para os companheiros que se esforçavam por comer, disse-lhes:
- Venham daí. Não mostrem medo. O melhor é seguirmos juntos, como se nada tivesse acontecido.
Ou fosse pela sua calma, ou pela sua voz que falava uma língua que não compreendiam, ou por causa das espingardas dos homens, o certo é que a multidão abriu alas e deixou-os passar, juntando-se logo para os seguir de perto.
Enquanto se desenrolava este incidente, Sheng e os seus companheiros entraram na cidade pelo extremo oposto. Ao passarem naquela rua, viram grande multidão e pararam.
- Serão inimigos? - perguntou Sheng a Charlie, pois a multidão era compacta e aumentava constantemente.
- Façamos meia volta e tomemos por outra rua aconselhou Charlie. - É melhor sairmos da cidade e evitarmos este ajuntamento.
E foi o que fizeram, chegando à porta da cidade alguns minutos antes dos outros; transpuseram-na e continuaram o seu caminho-. Nesse momento ouviram uma voz gritar em inglês:
- Fujamos senão agarram-nos!
- Diabos me levem! - exclamou o inglês que acompanhava Charlie e Sheng ao ouvir aquela voz.
E parou bruscamente. Os companheiros imitaram-no e voltaram-se, vendo então três ingleses que corriam para
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eles, seguidos de mulheres, e mais atrás uma multidão ululante e ameaçadora. Sheng e os companheiros, de pé no meio da estrada, deram alguns tiros para o ar. Os ingleses que rugiam atiraram também, e ao som das detonações aquela gente parou. Nenhum possuía uma espingarda, o que podiam portanto fazer contra homens armados?
Se fossem mais espertos, teriam provavelmente continuado a atacá-los, mas eram verdadeiras Crianças, barulhentas e discutidoras, mas sem grande coragem, e em vez de arriscarem a vida, preferiram dar meia volta e voltar para a cidade, rindo e falando, como se tivessem conquistado uma brilhante vitória.
Entretanto Mayli e Sheng tiveram tempo de se reconhecer e durante um instante olharam um para o outro sem se moverem. Depois Mayli, esquecendo todo o pudor, correu para ele, seguida de Pansiao.
- Sheng! - exclamou. - És de facto tu? E o teu braço... Já está curado?
-. Irmão! - gritou Pansiao. - Como conseguiste chegar aqui?
Mas Sheng ao ver Mayli em tão numerosa companhia, foi assaltado por um furioso acesso de ciúmes. Quem eram aqueles brancos com os quais aparecia Mayli? Lembrou-se, de coração apertado, a facilidade com que a via simpatizar com os brancos, e quanto ela se sentia próxima desses estrangeiros. E de novo o muro que os separava se ergueu entre os dois. Não se mexeu, tomou um ar frio, e proferiu com um sorriso forçado:
- Assim nos tornamos a encontrar. Vejo que estás acompanhada por amigos. Quanto ao meu braço, está suficientemente curado para me permitir combater.
Ao ouvir estas palavras Mayli parou. Tudo aquilo era tão absurdo que ultrapassava quanto pudesse imaginar. Batendo com o pé no chão gritou-lhe:
- Sheng! Que queres dizer com isso? Em que estás a pensar? Como te atreves a falar-me assim?
Mas Pansiao, aproximando-se dele, pousou-lhe a mão no braço e disse:
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- Irmão, agora que nos reencontrámos, podemos deixar esses estrangeiros.
- Mas eu é que não tenho bem a certeza de que vocês os queiram deixar - disse Sheng, os grandes olhos coléricos fixos em Mayli.
Ora Mayli tinha muito calor, sentia-se extremamente cansada e essa fadiga só se apoderou de facto dela depois de ver a multidão retirar-se. Sentiu-se invadida por tal lassitude que o seu desejo era deitar-se no meio da estrada e aí morrer. Os seus lábios começaram a tremer. Charlie percebeu e disse a Sheng:
- Irmão mais velho, é altura de se mostrar zangado, depois de escaparmos a tão grande perigo?
E enquanto assim falava ia olhando furtivamente para Pansiao que o contemplava também; mas por delicadeza nem um nem outro dizia nada. Por fim, vencendo esse sentimento, Charlie disse a Pansiao:
- Está mesmo bem?
- Sim, estou bem - respondeu a jovem.
E com estas simples palavras sentiram que confessavam muitas coisas.
Durante todo este tempo os ingleses olhavam-nos bastante admirados, sem compreenderem nada do que se passava. O inglês que acompanhara Sheng e Charlie não pronunciava uma palavra e mantinha-se um pouco à parte, envergonhado por ser desertor. Mas quando o inglês mais alto o descobriu, chamou-o e dirigiu-se ao seu encontro, de mãos estendidas como os brancos costumam fazer quando se encontram.
- Vejo que também é inglês - disse-lhe.
- Pois sou - confirmou o outro com um sorriso largo, mas sem acrescentar mais nada.
- Como se encontra em companhia destes chineses?
- Por mero acaso.
- Por acaso também é que encontrámos estas mulheres - disse o primeiro. - Fomos feitos prisioneiros pelos japoneses, mas conseguimos fugir. Éramos oito, mas os outros não tiveram tanta sorte como nós.
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Bem vejo - comentou o outro, acrescentando prudentemente: - Perdi-me. Esta retirada é terrível.
com efeito é terrível - aprovou o primeiro.
Os ingleses então juntaram-se todos, apertaram as mãos, falando em voz baixa e em dado momento os dois grupos separaram-se, ingleses para um lado, chineses para outro. E todos se sentiam pouco à vontade, excepto Mayli, cujos olhares iam dum para outro grupo. Foi um momento estranho, um desses momentos que sucedem às vezes, que parecem absolutamente fora do tempo, completos em si mesmo, que não estão ligados nem ao passado nem ao futuro. Eles suportaram-no num silêncio contrafeito. Em redor estendia-se a vegetação dum verde intenso dum país que não era o de nenhum deles. No horizonte erguiam-se suaves colinas e debaixo dos seus pés desenrolava-se uma estrada poeirenta. O céu, por cima das suas cabeças, estava límpido e puro, mas para as bandas do oeste acumulavam-se as nuvens, em rolos ameaçadores, sempre mais altos acima do horizonte. Não havia um único ser vivo na estrada nem nos campos e o ar em volta estava imóvel e ardente. Sentiram-se durante esse instante separados do mundo inteiro, isolados, mas diferentes. Os ingleses conservavam-se num grupo, barbudos e sujos, inquietos e desconfiados. Os chineses formavam outro grupo, com os seus uniformes desbotados e feitos em farrapos, cabeças descobertas, pés nus, rostos queimados do sol, olhar calmo, e atrás deles o hindu ao qual ninguém prestava atenção. Mayli estava entre os dois grupos. Olhava alternadamente para Sheng e para o mais alto dos ingleses. Por fim dirigiu-se a Sheng:
- Por que não continuamos o nosso caminho?
- Continuar a andar com eles? - perguntou Sheng, franzindo as sobrancelhas negras e apontando com o queixo para o grupo dos ingleses. - Não, já estou farto.
- Mas então? - perguntou ela. - Para onde iremos?
- E eles para onde vão? - interrogou Sheng, sempre de mau humor.
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Voltando-se para os ingleses, Mayli perguntou-lhes na sua língua:
- Agora para onde vão?
Os ingleses puseram-se a combinar em voz baixa. Mayli ouviu alguns pedaços da sua discussão: "Faríamos melhor se os deixássemos... Não importa para onde, desde que encontremos compatriotas... É preciso é sair o mais depressa possível deste maldito país..."
Foi tudo quanto Mayli conseguiu ouvir. Depois, o mais alto dos três ingleses respondeu-lhe:
- Seguimos para o Ocidente, em direcção à índia.
E voltaram os olhos para Oeste, onde as nuvens se acumulavam lentamente. Pareciam debruadas de branco pela luz do sol, mas no horizonte estavam bastante negras.
- Vai haver uma tempestade - anunciou Mayli.
-- Assim o creio - anuiu o inglês - mas não será a primeira que suportamos.
Hesitaram ainda um instante. Depois o inglês, metendo a mão na algibeira, tirou a bússola que Mayli lhe confiara durante a caminhada através da selva.
Durante um rápido instante, ela sentiu a tentação de lhe dizer que a guardasse, pois aqueles ingleses tinham um ar terrivelmente desarmado, assim agrupados uns ao pé dos outros. Seriam capazes de se orientar sem bússola? Mas era uma oferta de Chung e não tinha coragem de se separar dela para sempre. Recebeu-a portanto em silêncio. O inglês tornou a pôr a espingarda ao ombro. O seu rosto estava pálido e cansado, mas o seu olhar era firme.
- Parece-me que o melhor é partirmos - disse bruscamente.
Deu meia volta e pôs-se a caminho, seguido dos outros ingleses, que tinham um ar desembaraçado apesar dos seus uniformes ressumarem suor, e afastaram-se.Naquela estrada que como esperavam os conduziria à índia, os chineses imóveis viram desaparecer as silhuetas desses bravos andrajosos que depressa se fundiram na obscuridade nascente.
Foi então que se produziu o incidente mais estranho daquele estranho momento. O hindu que durante dias e
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dias marchara em silêncio e fielmente atrás de Sheng, deu um verdadeiro salto, como se as suas pernas e todo o seu corpo fosse uma única mola de aço e deitou a correr atrás dos ingleses. Depressa desapareceu no escuro, os seus pés nus não fazendo na poeira mais ruído que os de um tigre.
Viram ainda, num relâmpago, o seu rosto selvagem, o branco dos seus grandes olhos tristes, o brilho dos seus dentes alvos, depois desapareceu.
Ficaram todos demasiado surpreendidos para poderem falar e foi Sheng quem primeiro quebrou o silêncio perguntando a Charlie:
- Esse hindu... continua a ter consigo o punhal?
- Bem sabe que o tem sempre ao alcance da mão e nunca o larga, nem de dia nem de noite.
- Então não vai ser boa companhia para os ingleses
- comentou com voz sombria.
Nesse momento começou a redemoinhar grande ventania, qual ciclone, que parecia vir das nuvens. Cresceu, ampliou-se, com um surdo rumor, e pela primeira vez na sua vida Mayli teve medo. Voltou-se então para Sheng e perguntou-lhe:
- Para onde vamos? Tenho medo desta tempestade. Parece-me diferente de todas as outras.
- Suponho que será muito violenta-concordou Sheng, olhando com ansiedade para as nuvens que cobriam o céu ao ocidente. - Sim, temos de nos afastar - acrescentou.
Olharam para leste e viram nessa direcção o céu claro e azul.
- Vamos para casa - disse Sheng bruscamente. E Pansiao ao ouvir tais palavras exclamou:
- Oh! Sim, voltemos para casa!
- Para casa... para casa... - murmuraram todos os outros com um suspiro.
- Antes de chegarmos ao nosso país há centenas de milhas de selvas, de montanhas e de rios - observou Mayli tristemente. - Podemos percorrer toda essa distância a pé?
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- Eu parto - respondeu Sheng com firmeza.
E pôs-se logo a caminho. Pansiao seguiu-o a correr. Charlie seguiu Pansiao. E a uma e uma as enfermeiras também o seguiram. Mayli ficou só, tão cansada que não podia decidir-se a empreender tão longa marcha. Lá longe, para as bandas de leste, o céu puro e brilhante ainda estava claro. Mas ela não tinha forças para caminhar. Sentiu uma vontade enorme de adormecer e morrer ali.
Sheng parou e voltou-se.
- Vens comigo? - gritou-lhe.
Ela hesitou ainda.E se nunca chegassem ao seu destino?
- Sheng! - disse. - Prometes-me..:
Ele não a deixou terminar, interrompendo-lhe a frase com palavras tão cortantes como uma chicotada.
- Não faço nenhuma promessa. Não pertenço ao número desses homens que fazem promessas.
Ela viu-o desenhado, grande e direito, no horizonte lívido. Se ficasse ali, se corresse atrás dos ingleses, não seria apanhada pela tempestade? O sol, no oriente lançava ainda os seus raios. Que outra coisa podia fazer senão seguir Sheng? E as promessas não são mais do que palavras e palavras são bolhas de ar que saem facilmente dos lábios dos homens e desaparecem como se nunca existissem. Inclinou a cabeça. Não, mesmo que ele nada prometesse...
- vou também - disse.
E iniciaram o caminho de regresso.
Bem longe dali, na casa de Ling Tan, Jade via o filho brincar ao ar livre, diante da soleira da porta. Era quase meio-dia e pouco faltava para os dois homens, Lao Ta e Lao Er, entrarem em casa para o almoço. Andavam ambos no campo, a ceifar o arroz. A colheita era boa e já duas vezes a tinham segado em segredo, como o faziam todos os camponeses na região ocupada pelo inimigo, para que os fiscais, ao examinarem os campos, não pudessem certificar-se até que ponto a colheita era abundante. O arroz assim colhido, tinham-no batido durante a noite e o grão estava escondido em arcas na cave aberta por baixo da cozinha.
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Jade cosia a roupa de Lao Er e sentia um grande desprezo pelo tecido de que era feita. Esse algodão não valia nada e era o único que o inimigo fornecia. Um dia, pensou, havia de tecer uma nova e bonita fazenda azul, tão resistente que passasse de pais para filhos, sim havia de tecê-la de novo, quando readquirissem a liberdade. Porque haviam de ser livres um dia, sabia-o perfeitamente, sentia-o. Nada lhes dava uma razão para esperarem e, no entanto, homens e mulheres, no meio das piores desgraças, voltavam a ter esperanças, tirando essa esperança do próprio coração. Saindo das suas meditações, ergueu os olhos do que estava a fazer e viu os dois homens aproximarem-se através dos campos, de foice na mão. Caminhavam lado a lado, fortes e decididos.
Ergueu-se para entrar em casa e pôr a comida na mesa. Mas parou, pois uma grande chinfrineira se elevava no sítio onde os dois gémeos brincavam. Zaragateavam, o maior contra o mais pequeno. As duas crianças não eram da mesma estatura, o último a nascer era mais pequeno. Ela dispunha-se a defendê-lo pois o miúdo gritava, chorava e estava nitidamente em dificuldade, mas conteve-se. Contentou-se em observá-los, querendo ver como acabava aquela batalha.
Bruscamente, viu o mais pequeno deixar de chorar, o rosto inflamar-se-lhe de furor e avançar para o mais crescido com todas as suas forças, a ira convulsionando-lhe as faces e armando-lhe o braço. Jade começou a rir.
- Bravo, meu filho! Vá, defende-te... defende-te sozinho!
E entrou em casa, satisfeita.

 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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