A morte trágica de prostituas põe em cheque a competência e honestidade da polícia e de Pitt que se vê ameaçado inclusive.
Os crimes têm as mesmas características e a polícia não tem pistas e a indignação popular cresce cada vez mais... Como sempre Pitt conta com a colaboração de sua esposa e sua cunhada que descobrem uma importante pista.
— Sinto muito, senhor — sussurrou o inspetor Ewart enquanto Pitt observava o corpo enfraquecido da mulher na longa cama, o rosto inchado por causa da morte por asfixia. — Mas convinha que desse uma olhada a isto pessoalmente.
— Não o ponho em dúvida — respondeu Pitt com tom sarcástico.
Desde sua promoção à frente da delegacia de polícia do Bow Street não se ocupava já dos roubos, fraudes ou atos violentos de rotina. O subchefe da polícia lhe tinha ordenado expressamente que concentrasse sua atenção naqueles crimes que tivessem ou pudessem chegar a ter repercussões políticas, naqueles delitos que, por acharem-se implicadas pessoas de elevada posição social, pudessem causar mal-estar nas altas esferas se não se resolviam com presteza e discrição.
Assim, o fato de que tivesse sido reclamada sua presença naquele tugúrio do Whitechapel às duas de uma noite de agosto pelo assassinato de uma prostituta exigia alguma explicação. O pálido agente que tinha ido buscá-lo na carruagem de cavalos não tinha separado os lábios em todo o trajeto para o leste da cidade por ruas cada vez mais estreitas e míseras, entre transbordantes baldes de lixo, baforadas de fumaça acre e os penetrantes eflúvios do rio.
Detiveram-se no Old Montague Street, frente à boca do Pentecost Alley, um beco sem saída. A luz do lampião de gás da esquina não chegava até ali. Sustentando em alto sua lanterna, o agente tinha guiado ao Pitt entre mendigos adormecidos e montões de refugos até a entrada do primeiro edifício do beco, uma casa de vizinhança. Depois de subir pela levantada e lhe chiem escada e cruzar uma porta de madeira imunda, seguiram por um corredor até o lugar onde o esperava Ewart. Em alguma outra parte da casa se ouviam uns soluços que delatavam medo e uma crescente histeria.
Pitt conhecia a excelente reputação do Ewart, e não albergava a menor dúvida de que se tinha solicitado sua presença ali, e com tal urgência, existia alguma razão de peso para isso. Sob nenhuma outra circunstância Ewart se teria emprestado a ceder a responsabilidade do caso a outro policial, e menos se tratando de alguém como Pitt, que tinha subido dos escalões inferiores e apenas uns meses atrás era ainda seu igual. Do mesmo modo que muitos outros veteranos do corpo de polícia, Ewart opinava que só tinha direito a aquele cargo uma pessoa destinada a ele por nascimento, como sem ir mais longe o predecessor do Pitt, Micah Drummond, um homem de elevada posição social e formação militar.
Pitt observou à mulher. Era jovem. Era difícil precisar a idade das prostitutas; sua vida era dura, e frequentemente curta. Mas naquele caso em particular a pele do peito, ali onde o rasgão do vestido vermelho e negro a deixava descoberta, não apresentava ainda os estragos do álcool e as enfermidades, e as coxas, parcialmente visíveis sob a saia levantada, conservavam ainda a firmeza.
Tinha o pulso esquerdo atado à cabeceira com uma meia, e uma liga em torno do braço, justo por cima do cotovelo, adornada com uma rosa azul de cetim. A outra meia lhe rodeava o pescoço, afundando-se na carne, quase a cortando. A metade superior do corpo e também essa parte da cama estavam empapadas de água.
Os soluços eram ainda audíveis, mas mais sossegados, e se ouviam deste modo outras vozes e passadas ligeiras e rápidas no corredor.
Pitt deu uma olhada no quarto, melhor mobiliado do que teria cabido esperar.
O papel das paredes era antigo, e face às manchas de mofo e umidade e as zonas descoloridas por efeito do sol, o desenho era ainda reconhecível. Havia uma pequena lareira, e em seu interior as cinzas esbranquiçadas de um fogo recente.
Deviam tê-lo aceso com fins puramente ornamentais, pelo desejo de sentir perto suas chamas vivas e titilantes, e não como fonte de calor. A única cadeira era de uma alegre cor vermelha, e uma almofada costurada à mão cobria o assento; frente a ela se estendia uma puída palhinha. Um pano bordado pendia da parede sobre o estreito suporte da lareira. A roupa branca se achava em um lustroso baú de madeira; inclusive as asas metálicas reluziam.
A cômoda incluía só a bacia e um lavatório.
No chão, junto à cama, estavam as botas altas e negras da moça, não uma ao lado da outra, mas meio superpostas. Os botões redondos e brilhantes da bota esquerda tinham sido abotoados às casas da bota direita. A curta distância havia um abotoador com o cabo de osso. Era um ato absurdo e retorcido, um ato que só podia haver-se realizado intencionalmente.
Pitt tomou ar e deixou escapar um suspiro. Achava-se ante um fato repugnante e triste, mas isso por si só não justificava sua presença ali. A prostituição era uma forma de vida arriscada. Naquele ofício os assassinatos não eram incomuns, e certamente não suscitavam escândalos nas altas esferas, para falar a verdade nem sequer nos bairros pobres.
Voltou-se para o Ewart, cujos olhos negros e rosto escuro eram inescrutáveis à luz da lanterna.
— Há provas — disse Ewart, respondendo à pergunta que Pitt não tinha formulado. — Muitas para passá-las por alto.
— E o que revelam? — Pitt começou a sentir um calafrio apesar da quente temperatura da noite.
— Um cavalheiro — respondeu Ewart. — De uma família muito bem relacionada.
Pitt não se surpreendeu. Temia que se tratasse de algo assim, algo gratuito e desastroso, algo sem possível solução fácil. Não perguntou ao Ewart no que se apoiava para afirmar aquilo. Preferia ver as provas e extrair suas próprias conjeturas.
Chegou um ruído do corredor, umas chirriantes pisadas, e outro homem apareceu na soleira da porta. Não contava mais de trinta anos, uns vinte menos que Ewart. Tinha a tez viçosa, os olhos grandes e de cor avelã, o rosto afiado, quase aquilino. Seus traços se formaram para o bom humor e a ternura, mas o sofrimento lhes tinha deixado já um profundo rastro, e a instável luz da lanterna se mostrava com olheiras e gasto. Afastou o cabelo da fronte em um gesto espontâneo e olhou primeiro ao Ewart e depois ao Pitt. Levava na mão uma maleta de pele marrom.
— Lennox, o médico legista — explicou Ewart.
— Boa noite, senhor — saudou Lennox com a voz um tanto empanada.
Limpou a garganta e se desculpou.
Não havia necessidade. Pitt não tinha um grande conceito dos médicos que permaneciam impertérritos ante uma morte violenta, alheios a qualquer sentimento de indignação ou perda. Retrocedeu um par de passos para que Lennox visse melhor o cadáver.
—Já a examinei — esclareceu Lennox ao advertir o gesto do Pitt. — Me avisaram ao mesmo tempo em que ao inspetor Ewart. Agora venho de atender a outras vizinhas da escada. Estão um pouco... alteradas.
— Quais são suas conclusões? — perguntou Pitt. Lennox voltou a limpar a garganta. Olhou ao Pitt de frente, decidido a afastar de sua vista à mulher que jazia na cama, a não ver sequer seu cabelo despenteado ou a chamativa rosa da liga que lhe rodeava o braço.
— Está morta há várias horas — respondeu. — Diria que das dez da noite, e em todo caso desde antes das doze e meia. Agora o quarto está relativamente fresco, mas há um momento a temperatura devia ser bastante mais alta. A cinza da lareira não esfriou ainda, e a noite é bem cálida.
— Parece muito seguro de que a morte não se produziu antes das dez — observou Pitt com curiosidade. Lennox se ruborizou.
— Desculpe. Tinha-me esquecido. Uma testemunha a viu entrar. Pitt esboçou um sorriso, ou possivelmente mais exatamente uma careta.
— E as doze e meia como hora limite? — perguntou. — Outra testemunha?
Lennox negou com a cabeça.
— A essa hora a acharam, senhor.
— Que mais pode me dizer sobre ela? — prosseguiu Pitt.
— Calculo que tinha uns vinte e cinco anos e gozava de boa saúde... até agora.
— Filhos?
— Sim... e...
— O que? —insistiu Pitt.
— Tem os dedos quebrados, senhor — explicou Lennox com o rosto perturbado pela angústia. — Três da mão esquerda e dois da direita. E três dedos do pé esquerdo deslocados.
Pitt sentiu uma gélida corrente em seu interior, como se a temperatura tivesse baixado subitamente no quarto.
— São recentes essas fraturas? — perguntou apesar de já conhecer a resposta. Se fossem lesões antigas, Lennox não as teria mencionado; provavelmente nem sequer teria reparado nelas.
— Sim, quase com toda segurança se produziram nas últimas horas. De fato, pouco antes da morte. Não apresentam inflamação.
— Compreendo. Obrigado.
Pitt se voltou para a cama. Não desejava ver aquele rosto, mas conhecia suas obrigações. Devia saber o que e quem tinha sido aquela moça, de que atrocidades tinha sido vítima naquele solitário quartinho. Sua missão era averiguar quem tinha perpetrado o crime e que razões o tinham induzido a isso.
Era uma moça de estatura média e corpo bem proporcionado. Pelo que podia intuir-se naquele estado, tinha umas feições harmoniosas, a sua maneira agradáveis. Não era fácil adivinhar a estrutura óssea do rosto sob a carne tumefacta, mas a testa era larga, o nariz reto, a linha do cabelo delicadamente curva. Possuía uma dentadura uniforme e só um pouco amarelada. Em outro tipo de vida, provavelmente teria sido uma mulher casada, com uma tranquila maturidade pela frente, possivelmente mãe de três ou quatro filhos e em espera de algum outro.
— Quais são as provas? — perguntou Pitt por fim, sem deixar de observar o cadáver. De momento o que tinha ante seus olhos revelava só que um homem tinha levado muito longe seu gosto pela dor e os medos alheios.
— Uma insígnia de um clube privado — respondeu Ewart. Interrompeu-se e respirou fundo. — Tem gravado um nome. E também umas abotoaduras.
Pitt se voltou para ele.
Lennox os olhava com os olhos muito abertos, quase hipnotizado.
— Qual é o nome? — O silêncio engoliu a voz do Pitt.
Ewart, lívido, puxou o colarinho da camisa.
— Finlay FitzJames.
No corredor as pranchas rangiam debaixo dos passos do agente de polícia, e do outro lado das escuras janelas a bruma do rio se condensava nos cristais. Voltavam a ouvir os soluços procedentes de outro quarto, mas mais tênues, mais abafados.
Pitt permaneceu calado. Tinha ouvido o nome. Augustus FitzJames era um homem influente, um banqueiro com ambições políticas e estreitas relações com várias famílias da aristocracia cujos membros tinham ocupado altos cargos no governo. Finlay era seu único filho varão, um jovem diplomático que, segundo rumores, tinha uma embaixada assegurada na Europa em um futuro não muito longínquo.
— E há testemunhas — acrescentou Ewart, olhando ao Pitt.
Pitt lhe devolveu o olhar.
— Testemunhas do que? — perguntou com cautela.
O descontentamento do Ewart era evidente. Tinha os ombros tensos e a boca arqueada em uma careta de tristeza.
—Viram-no — respondeu. — Ninguém que o conheça pessoalmente, claro está, e a descrição é bastante vaga. Concordariam com ela muitos homens. Mas sem dúvida se tratava de alguém de boa posição... — Parecia disposto a acrescentar algo mais, algum comentário possivelmente sobre os cavalheiros que frequentavam tais lugares, mas se absteve. Tanto Pitt como ele conheciam esse tipo de homens: maridos aborrecidos de suas esposas que preferiam não recorrer a mulheres de sua mesma classe por temor às censuras ou ao excesso de compromisso, ou simplesmente para experimentar a excitação do proibido, o calafrio do risco. Existiam de fato centenas de razões pelas quais esses homens iam aos bairros pobres e a quartinhos como aquele em busca de prazer.
— E as abotoaduras também o delatam — anunciou Lennox da soleira da porta com a voz ainda empanada. — São de ouro. —Deixou escapar uma risada nervosa. — Com selo de contraste.
Pitt escrutinou o quarto tentando imaginar o que tinha ocorrido ali fazia umas horas. A roupa da cama estava enrugada, como se tivesse sido usada, mas não se via nenhum rasgão. No lençol de baixo, para o centro, havia uma pequena mancha de sangue, mas podia havê-la deixado qualquer um, aquela noite ou na semana anterior. Perguntaria ao Lennox sua opinião ao respeito quando a tivesse examinado com atenção.
Percorreu com o olhar as paredes e o escasso mobiliário. Não se apreciava nenhum indício de desordem. Entretanto, a menos que uma briga fosse muito violenta e entre pessoas de peso e força equiparáveis, dificilmente deixaria marcas no velho papel pintado das paredes ou derrubaria a cadeira ou a bacia com seu vaso azul gretado e reparado.
Como se lhe adivinhasse o pensamento, Ewart explicou:
— No armário há só meia dúzia de vestidos, anáguas e uma capa; enfim, nada interessante. E o baú contém roupa interior, duas toalhas e um par de jogos de cama limpos. debaixo da cama encontramos um urinol e uma meia negra. Suponho que a puxou para o chão em algum momento e depois não a viu na escuridão. Nós mesmos não a
teríamos visto senão pela lanterna.
— Onde estavam as abotoaduras e a insígnia? —perguntou Pitt. — debaixo da cama não, imagino.
Ewart fez uma careta.
— Em realidade é uma só abotoadura, as duas peças de um dos punhos. Estava atrás dessa almofada. — Assinalou a cadeira. — Metido entre o assento e o espaldar. Provavelmente tirou a camisa e a deixou no espaldar, e depois, ao vesti-la a abotoadura ficou apanhada. Possivelmente se sentou em cima da manga ou algo assim. Ao sair, preso do pânico, não se terá dado conta de que não o levava. Naturalmente nada indica que o tenha perdido nesta mesma noite... — Interrompeu-se e olhou ao Pitt, aguardando sua resposta.
— Certamente — admitiu Pitt. Os dois eram conscientes de quão delicado seria escavar na vida de um homem da posição do FitzJames. Teria sido muito mais cômodo acossar a um cidadão comum, alguém daquele bairro, sem defensores nem poder.
Entretanto ali estavam as provas e deviam investigar—se, e a responsabilidade recaía no Pitt. Era compreensível que Ewart expunha soluções evasivas, mas de pouco serviam.
— Demonstra, não obstante, que a esta mulher a visitou alguém com gostos caros — afirmou Pitt com pessimismo. — E a insígnia revela que o próprio FitzJames ou alguém que o conhecia esteve aqui em algum momento. Onde a acharam? Também na cadeira?
De repente a atitude premente do Ewart se desvaneceu, e em seu lugar ficaram só tristeza e desgosto, visíveis nas profundas rugas de seu rosto fatigado. À luz do lampião seus escuros olhos, ladeados por marcados pés de galinha, pareciam quase negros.
—Na cama — respondeu com um fio de voz. — Debaixo do corpo. Sem mais estava acrescentar que a insígnia não tinha podido ir parar ali antes daquela noite. Isso era indiscutível.
Pitt estendeu uma mão.
Ewart tirou de um bolso de sua jaqueta uma peça de ouro com o anverso esmaltado e um alfinete no dorso e a depositou na palma do Pitt.
Este a examinou atentamente de diferentes ângulos. Era o tipo de distintivo que os homens levavam na lapela, de algo mais de meia polegada de diâmetro. Estava esmaltada de um discreto cinza, uma cor que podia passar facilmente inadvertida no tecido de um traje. Nessa face se lia CLUBE FOGO DO INFERNO e a data, 1881, nove anos atrás. Aproximou—a da luz, mas mesmo assim demorou uns instantes em distinguir o nome, FINLAY FITZJAMES, gravado com um muito fino risco no dorso, sob o cabo do alfinete. Entretanto não havia a menor dúvida: esse era o nome.
Olhou ao Ewart e depois ao Lennox, que continuava de pé na soleira da porta, com o rosto pálido, sem vida nem cor, e olhar de desolação.
— Encontrou-a você? — perguntou ao Ewart.
— Sim. O agente não a moveu. Assegura que não tocou nada. Viu que estava morta e deu a voz de alarme.
— Por que entrou aqui? O que o trouxe para este quarto? — Possivelmente não importava, mas devia averiguar todas as circunstâncias. — Conhecia-a?
—De vista — respondeu Ewart. — Se chamava Ada McKinley. Estava há cinco ou seis anos trabalhando nesta zona. O agente Binns viu sair correndo um homem aterrorizado e lhe deu o alto. Suspeitou que ocorresse algo e o obrigou a voltar para a casa, pensando que possivelmente fugia de uma briga ou tinha tentado fraudar a alguma das garotas. Conforme parece, era cliente assíduo de outra prostituta, Rose Burke, e quando partia, viu a porta da Ada aberta e, como bom intrometido, entrou para dar uma olhada. Com a esperança de ver um casal em plena ação, suponho. Certamente não imaginava o que ia achar. —Ewart enrugou o nariz em um gesto de aversão. — saiu daqui como alma que leva o diabo. Mas não pode ter sido o autor do crime. Uns segundos antes de topar-se com o agente Binns estava ainda com Rose. Ela jurou. A própria Rose é uma das pessoas que viu entrar na casa outro indivíduo, fosse quem fosse. Retivemo-la para que você a interrogue.
— E ao homem?
— Também. — Ewart deixou escapar o ar com um ligeiro grunhido. — Parece um basilisco, mas continua aqui, jurando como um carreteiro. Em realidade, a indignação é geral entre os vizinhos. —Com expressão avinagrada, acrescentou: Estas coisas são prejudiciais para o negócio.
— Não é já um pouco tarde para o negócio? —respondeu Pitt com tom pesaroso. — Quando ocorreu tudo isto?
— Quando Binns viu sair o homem apavorado. — Ewart abriu mais os olhos. — Por volta das doze e meia. Eu cheguei pouco depois da uma. Examinei por cima o quarto, e ao ver a insígnia compreendi que era um caso de sua competência, assim mandei ao agente Wardle para buscá-lo. Sinto muito, mas tal como pinta o assunto às coisas vão ficar feias. Não há escapatória. — Respirou fundo. — Embora, claro está, sempre cabe a possibilidade de que FitzJames nos ofereça uma explicação aceitável e possamos investigar em outra direção.
— Pode ser — disse Pitt com pouca convicção. — E o dinheiro? Sabe se roubaram algo?
O rosto do Ewart se iluminou de repente. Um brilho titilou por um instante em seus olhos, e vacilou em responder.
— Seu cafetão? — aventurou por fim com rosto pensativo. — Essa seria uma solução mais simples. Singela de compreender, quero dizer, de acreditar. — interrompeu-se.
— Assim, havia dinheiro? — insistiu Pitt.
— Encontrei um pequeno moedeiro de couro no baú — respondeu Ewart. — Continha uns três guinéus.
Pitt lançou um suspiro, embora em realidade não tivesse posto muitas esperanças nessa possibilidade.
— Se a moça tivesse ocultado o dinheiro a seu cafetão, não estaria ainda no moedeiro — deduziu com tristeza. — É o primeiro lugar onde ele teria olhado.
Ouviu-se o assobio de um bule na parte posterior da casa, seguido de uma colérica maldição.
— Possivelmente discutiram, e o cafetão a matou antes de revistá-la — prosseguiu Ewart com renovado entusiasmo. — Depois se assustou e fugiu. Seria mais lógico. Um castigo assim serviria de lição às outras garotas. Mais motivos teria ele para matá-la que um cliente como FitzJames.
— Mas e as botas? — perguntou Lennox com voz rouca da porta. — Posso imaginar ao cafetão torturando-a, mas por que abotoaria desse modo as botas alguém disposto a matá-la por dinheiro? Ou por que lhe poria uma liga no braço?
— Quem sabe — respondeu Ewart com impaciência. — Isso talvez seja obra do cliente anterior. Acaso o cafetão sabia que a garota estava lhe ajustando mais da conta, e entrou assim que viu partir ao cliente. Nesse caso ela não teria tido tempo de desabotoar as botas nem tirar a liga.
— Entendo que não tenha tido tempo de desabotoar as botas — disse Lennox com sutil sarcasmo. — Mas teria ido o cliente deixando-a atada à cama? Teria continuado ela assim enquanto discutia com o cafetão?
— E eu o que sei! —exclamou Ewart. — Possivelmente o cafetão a atou para procurar o dinheiro. Ou para torturá-la.
— E não o achou? — atalhou Lennox, arqueando as sobrancelhas.
— Pode ser que houvesse mais, sob o colchão talvez. Em todo caso, por que mataria a uma mulher assim um homem como FitzJames? — Ewart contemplou o corpo que jazia na cama com uma estranha mescla de compaixão e asco.
— Provavelmente pela mesma razão que recorria a seus serviços — replicou Lennox com frieza, e se voltou para o Pitt. — Não a movi. Precisa ver algo mais ou posso cobri-la?
— Cubra-a — respondeu Pitt, percebendo em seu rosto o apresso da angústia.
Lennox lhe inspirava mais simpatia que Ewart, embora compreendesse a atitude deste, seu aborrecimento, sua impassibilidade, fruto da experiência, ante tais cenas, ante aquela classe de vida e a gente que a praticava. Se alguma vez tinha albergado ilusões românticas sobre as jovens mulheres da rua, a realidade se encarregou de dissipá-las há já muito tempo. Não era indiferente a suas desgraças. Simplesmente devia moderar suas emoções pelo bem de sua própria prudência. E de um ponto de vista prático, para realizar seu trabalho e ser útil devia manter a mente fria, guiar-se pela razão e não pelos sentimentos. Nem ele nem ser humano algum podiam já ajudar a Ada McKinley, mas sim a outras mulheres como ela.
Mesmo assim, Pitt preferia a vulnerabilidade do Lennox. Emanava de certas esperanças e de um tipo diferente de preocupação.
Lennox lhe dirigiu um olhar de gratidão e cruzou o quarto. Primeiro desceu a saia da morta para lhe cobrir as pernas e depois estendeu sobre ela a colcha, lhe ocultando também o rosto distorcido.
— Acharam algo mais que não tenha mencionado ainda? — perguntou Pitt a Ewart.
— Quer uma lista dos efeitos pessoais da vítima? — disse Ewart com tom cortante.
— Ainda não. Antes falarei com o agente Binns e as outras testemunhas.
— Aqui? — perguntou Ewart, olhando ao redor mas evitando a cama.
— Há algum outro lugar disponível?
— Só os quartos das demais mulheres.
— Falarei com o Binns aqui e com as mulheres em seus respectivos quartos. Preciso formar uma ideia da distribuição da casa.
Ewart parecia satisfeito. Ele teria atuado de igual modo.
Binns era um homem de uns trinta anos, cabelo claro e rosto chato. Esfregava as mãos sem cessar, afetado ainda pela impressão. Não estava acostumado a montar guarda imóvel. Tinha os pés intumescidos, adivinhou Pitt por seu andar torpe e cauteloso.
— Senhor? — disse, colocando-se ante a Pitt e evitando a toda custo olhar para a cama.
— Me conte tudo o que viu — ordenou Pitt.
Binns ficou em posição de pé.
— Sim, senhor. Estava realizando minha ronda habitual pela zona do Spitalfields, que inclui o último lance do Whitechapel Road até o princípio de Mele End Road, e dali para o norte até o Hanbury Street, e voltei a começar. —Tomou ar sem deixar de olhar à frente. — Ao chegar à esquina do Old Montague Street vi um sujeito sair a toda pressa do Pentecost Alley, como se acabasse de cruzar-se com um fantasma ou algo assim. Ia em direção oeste, para o Brick Lane, e imaginei que se passava algo, porque se não teria caminhado de uma maneira normal, sem voltar a cabeça a cada instante como se acreditasse que o perseguia alguém. — Engoliu saliva. — Assim o agarrei pela gola da jaqueta e o detive. Gritou como se levasse o demônio no corpo, e isso me demonstrou que efetivamente tinha se passado algo. Estava morto de medo.
Pitt moveu a cabeça em um gesto de elogio. Ewart e Lennox permaneciam imóveis na escuridão, escutando com atenção.
— Obriguei-o a voltar para beco — prosseguiu Binns, deslocando o peso do corpo de uma a outra perna para estimular a circulação do sangue em seus pés intumescidos. — Pensei que devia vir desta casa, porque em frente há uma oficina. Podia ter roubado algo na oficina, claro, mas não levava nada consigo, assim entramos aqui. — Deixou vagar o olhar ao redor por um momento sem fixar-se sequer no Ewart e Lennox. — Como este é o primeiro quarto e a porta estava entreaberta , entrei. — Baixou a voz até quase um sussurro e lançou uma olhada à cama. — Essa pobre garota... Em seguida me dei conta de que estava morta, e não toquei em nada. Fechei a porta e desci à rua com a testemunha para dar o alarme com o apito. Não demoraram nem cinco minutos em me ouvir, mas me pareceu muito a uma eternidade. O agente Rogers estava no Wentworth Street e acudiu correndo. Quando chegou, enviei-o para buscar o senhor Ewart.
— A que hora ocorreu tudo isso? — perguntou Pitt.
Binns se ruborizou.
— Não sei, senhor. A princípio estava muito ocupado segurando à testemunha para olhar o relógio, e quando vi a garota, me esqueci por completo. Sou consciente de que foi pouco profissional por minha parte, mas a conhecia, sabe? E me afetou muito.
— O que pode me dizer dela? — perguntou Pitt, olhando ao Binns no rosto.
O agente voltou a balançar-se ligeiramente, mas continuou em posição firme.
— Trabalhava neste bairro desde há mais ou menos seis anos. Não sei de onde era exatamente. Dos arredores do Pinner, acredito. Em todo caso, vinha do campo, de algum lugar a muitas léguas daqui. E naquela época era linda. Tinha cor no rosto e uma pele de porcelana. — Contraiu o rosto e moveu a cabeça em um gesto de desolação. — Me contou que tinha servido em uma casa rica da Belgravia. Ali perdeu a honra — prosseguiu com voz quase inexpressiva, como se relatasse uma tragédia antiga, muito conhecida para suscitar ainda indignação. — O mordomo a deixou grávida. Ela o disse à senhora da casa, e só conseguiu que a jogassem no ato à rua. O mordomo, em troca, conservou seu posto. O menino nasceu antes do tempo, e o pobre morreu ao cabo de uns dias. Possivelmente fosse o melhor para ele. — Enrugou a frente e desviou o olhar. — A morte é melhor que o orfanato. Depois disso a desventurada se dedicou à má vida. Era preparada, e suponho que estava enojada e também ressentida. — Uma expressão séria se estendeu por seu rosto, varrendo todo indício de ternura. — Teria gostado de desforrar-se daquele mordomo.
Pitt não tinha a menor dúvida que se a moça tivesse conseguido desforrar-se, Binns teria feito a vista grossa. E possivelmente também o próprio Pitt quando era só um agente de polícia. Em sua atual posição, entretanto, não podia permitir-se esse luxo.
— Pode ser que tentasse chantagear ao mordomo — sugeriu Ewart com otimismo, falando pela primeira vez desde que Binns tinha entrado no quarto. — E a tenha matado ele.
— Com que fim ia chantageá-lo? — refutou Lennox com voz pausada. — Os senhores da casa conheciam já o ocorrido e não se importavam.
— Isso é trivial — atravessou Pitt. — Ninguém teria dado crédito a sua palavra contra a dele. Não, vivendo ela como vivia. — Com uma só frase tinha reduzido à moça ao que era, e tinha total consciência disso. O fato de que aparecesse o nome do Finlay FitzJames gravado na insígnia era o único motivo pelo que aquele assassinato requeria sua intervenção. No lugar do Ewart, outros a teriam ocultado e seguido os trâmites habituais de qualquer investigação para finalmente declarar o caso não resolvido e arquivá-lo. Possivelmente o próprio Ewart teria optado por essa via se Lennox não tivesse estado presente. Mas Lennox o tinha visto achar a insígnia sob o cadáver, e não teria guardado silêncio. Em seu rosto não se percebia a menor predisposição à discrição ou o cinismo, só evidenciava uma lacerante pena e um sentimento de derrota.
No resto da casa reinava o silêncio, mas na rua se ouviam já os primeiros transeuntes do dia e o céu começava a clarear atrás das janelas.
Pitt se voltou para o Binns.
— Isso é tudo?
— Sim, senhor. Esperei que chegasse o senhor Ewart, contei-lhe tudo o que tinha visto e feito, e deixei o assunto em suas mãos. Isso foi um pouco depois da uma.
— Obrigado. Atuou como devia.
— Obrigado, senhor — disse Binns, e saiu com os ombros retos, a cabeça erguida e os pés ainda intumescidos.
— Será melhor que vejamos já a primeira testemunha — anunciou Pitt, dirigindo um gesto ao Ewart com a cabeça. — Aqui mesmo.
Ao cabo de um momento entrou no cômodo, custodiado por outro agente, um homem magro de ombros estreitos. Vestia uma jaqueta marrom e uma calça escura com voltas na bainha, herdado sem dúvida de alguém mais alto que ele. Estava branco como o papel e tinha as feições contraídas pelo medo. Fosse qual fosse o prazer que tinha obtido ali aquela noite, tinha pago por ele um preço muito superior a seus cálculos.
— Como se chama? — perguntou Pitt.
— Ob-badiah S-skeggs — respondeu gaguejando com lábios trêmulos. — Eu não toquei e nada, Juro Por Deus que não fui eu! — exclamou, erguendo a voz para aparentar maior franqueza e conseguindo só pôr ainda mais de manifesto seu pânico. — Pergunte a Rosie! —Apontou para onde imaginava que estava Rosie nesse momento. — Ela o dirá. É uma garota de confiança. Nunca mentiria por mim. Não me conhece de nada. — Olhou para Pitt e logo para Ewart. — Juro.
Pitt sorriu contra sua vontade.
— Rosie não o conhece?
— Não.
— E então como é possível que você conheça ela?
— Eu não a conheço! Quero dizer... — Viu a armadilha, mas já tinha caído nela. Tomou ar e se engasgou com sua própria saliva.
—Não se esforce — atalhou Pitt com aspereza. — Perguntarei a Rosie de qualquer modo. Sem dúvida ela saberá se é você um cliente assíduo ou não.
— Rosie não mentiria por mim — repetiu Skeggs, desesperado, falando apressadamente e respirando entrecortadamente entre as palavras. — Nem sequer sou simpático.
— Isso já o suponho — concedeu Pitt. — Recorda a que hora chegou a esta casa?
— Não. — Não queria arriscar-se a que lhe armassem outra armadilha. — Não. Já partia quando me deteve o policial. E foi uma injustiça. Eu nunca faltei à lei. — de repente adotou um tom lastimoso. — Um homem tem direito a dar-se algum ou outro gosto, não? E sempre paguei bem. Rosie o dirá.
— Como vai saber ela? — perguntou Pitt, arqueando as sobrancelhas.
Skeggs olhou ao Pitt com rancor.
— Assim, quando viu entreaberta a porta da Ada — prosseguiu Pitt, — decidiu olhar para bisbilhotar para divertir-se um pouco mais. Mas em lugar de surpreendê-la fornicando com um cliente, achou-a morta na cama, atada à cabeceira, com uma meia ao redor do pescoço e uma liga no braço.
Skeggs proferiu uma blasfêmia de amargura.
— Logo saiu fugindo, e o agente Binns o deteve — concluiu Pitt.
— Ia dar a voz de alarme — protestou Skeggs, olhando ao Pitt com ira. Depois se voltou para o Ewart como se esperasse que ele fosse confirmar sua declaração. — Ia avisar à polícia, como era minha obrigação. Tão depressa como me permitissem as pernas. Por isso corria.
— Nesse caso, por que não informou imediatamente ao agente Binns sobre o que acabava de ver? — acossou Pitt.
Skeggs lhe lançou um olhar assassino.
— Viu a alguém mais? — continuou Pitt.
Fora a clareza era maior, e o ruído da rua aumentava cada vez mais. Os viandantes iam e vinham, chamando-se a gritos. A oficina de frente abria já suas portas.
— Refere-se ao culpado? — perguntou Skeggs com visível indignação. — Claro que não. Se o tivesse visto, já o haveria dito. Acredita que me calaria se soubesse, sendo como sou um dos suspeitos? O que acreditou? Que sou idiota, ou o que?
Pitt se absteve de responder, mas Skeggs interpretou como assentimento seu silêncio e se deu por ofendido. Quando saía do quarto atrás do agente, deu um olhar furtivo por cima do ombro, procurando ainda um comentário mordaz a replicar.
Pitt falou com Rose Burke no quarto desta, a um par de portas da de Ada McKinley. Tinha uma forma algo distinta e possivelmente media cinco ou seis palmos mais de largura, mas em essência era muito parecida. Uma ampla cama ocupava a maior parte do espaço, e era claro que tinha sido usada recentemente. Os lençóis amontoavam-se no centro e estavam em extremo enrugados. Percebia-se um forte aroma de suor e sujeira corporal. Pelo visto, Skeggs tinha tirado proveito a seu dinheiro, ao menos até que saiu daquele quarto.
Lennox estava lívido. Sua presença ali não era necessária, e Pitt se perguntou por que o tinha acompanhado. Talvez pensasse que Rose podia requerer sua atenção.
Entretanto Rose possuía uma natureza muito menos frágil. Era uma mulher de ombros largos, peito generoso e estatura média. Tinha o cabelo castanho, mas tingira uma mecha clara na parte dianteira, que lhe favorecia de maneira surpreendente. De fato era uma mulher formosa, apesar de sua pele morena estar já um tanto gasta e lhe faltavam alguns dentes. Era difícil precisar sua idade, que poderia ter sido qualquer entre vinte e cinco e quarenta anos.
Estava muito serena para fazer comentários antes de iniciar o interrogatório. Achava-se de pé no meio do aposento com os braços cruzados e olhava ao Pitt, esperando, alheia à presença do Lennox. Só o acelerado movimento de seu peito delatava certa tensão. Pitt ignorava se tal integridade era fruto da coragem ou da indiferença ante o destino da Ada. Suspeitava não obstante que, ao menos em parte, devia-se à coragem.
— Rose Burke?
— Sim — respondeu com o queixo no alto.
— Me conte tudo o que fez esta noite a partir das oito — ordenou Pitt. Ao ver aparecer em seus lábios um sorriso de desdém, esclareceu : Não tenho interesse em detê-la por prostituição. Só pretendo averiguar quem matou a Ada. O assassino esteve aqui já uma vez. Se não o impedirmos, é possível que volte. Você poderia ser a seguinte.
— Santo Deus! — exclamou Rose. Respirou fundo, e uma faísca de ódio e respeito brilhou em seus olhos.
— Preferiria que lhe dissesse que estas coisas não ocorrem duas vezes? — perguntou Pitt com maior delicadeza. — Mentiria. Esse indivíduo quebrou os dedos das mãos e os pés de Ada e depois a estrangulou com uma de suas meias. — Não mencionou as botas nem a liga. Convinha deixar algum detalhe sem especificar. — Acredita que não voltará a fazê-lo?
Lennox estremeceu e por um instante pareceu disposto a intervir, mas mudou de ideia e partiu do quarto em silêncio, fechando a porta ao sair.
Rose sussurrou o nome de Deus no que possivelmente fosse uma oração, já que, quase sem dar-se conta do que fazia, benzeu-se. Tinha empalidecido, e o ruge, embora destramente aplicado, foi de repente estridente.
Pitt aguardou.
— Recebi a um cliente às nove — começou Rose falando pausado. — É necessário que diga seu nome? Neste ofício uma mulher tem que ser discreta.
— Devo sabê-lo.
Rose vacilou apenas um instante e disse:
— Chas Newton. Esteve aqui quase até as dez.
— É muito generosa com seu tempo, não? — comentou Pitt com ceticismo. — Toda uma hora? Escasseia o trabalho ultimamente?
— Pagou dobro! — replicou Rose, ferida em seu orgulho.
Pitt acreditou. Era uma mulher desejável, e algo em seu aspecto fazia pensar que conhecia todos os segredos do ofício, que poucos gostos ou técnicas escapavam a sua aptidão.
— E o que fez quando ele se foi? — perguntou Pitt, incitando-a a continuar.
— Me vesti e sai à rua, claro está — respondeu ela com hostilidade. — O que ia fazer? Pôr-me a dormir? Desci, e quando me voltava para ir a Whitechapel Road pelo passadiço que há ao fundo do beco, vi aparecer a esse fulano do outro lado...
— Ao outro lado? — interrompeu-a Pitt. — Na entrada do beco, quer dizer?
— Não, quero dizer do outro lado do Old Montague Street, na esquina — respondeu Rose com impaciência. — Na entrada do beco não teria distinguir a Papai Noel do próprio demônio. Aí não há luz. Não observa nada?
—Viu-o passar sob a luz? — disse Pitt, e notou que a voz lhe acelerava contra sua vontade.
— Sim. — Rose continuava de pé no meio do quarto com os braços cruzados.
—Descreva-o — pediu Pitt.
— Era mais alto que eu, e menos que você. Um pouco mais alto que a média, possivelmente. Bem plantado. Parecendo jovem.
—Vinte anos? Vinte e cinco? — apressou-se a dizer Pitt.
— Não tão jovem! Uns trinta. Com a gente fina não é fácil calcular a idade. A vida os trata melhor. Quem vive entre algodões, vive mais anos.
— Como estava vestido? — perguntou Pitt, procurando ser o mais direto possível para
não lhe imbuir ideias preconcebidas.
Rose meditou por um instante.
— Usava uma boa jaqueta. Devia lhe haver custado uma ou duas libras. Chapéu não, porque vi refletir a luz em seu cabelo. Tinha-o claro e espesso. E ondulado. Tomara tivesse eu esses cachos. — Deu de ombros. — Embora o rosto não invejo, certamente. Não inspirava confiança. Possivelmente pela forma da boca. Tinha um nariz bem formado, isso sim. Um desses narizes muito masculinos. — Escrutinou o rosto do Pitt, mas imediatamente afastou qualquer especulação de seu pensamento. Para ela, as relações físicas faziam parte de seu trabalho. Não lhe produziam o menor prazer.
— Tinha-o visto antes? — perguntou Pitt, passando por cima seu olhar.
— É-me impossível dizer-lhe.
— Por quê?
— Porque não sei, claro está! — replicou com uma careta de medo e aflição. — Se soubesse quem matou a Ada, o diria. E me poria em primeira fila o dia que o enforcassem. Embora só fosse por isso, ajudá-lo-ia. Ada era ambiciosa e nos olhava às vezes por cima do ombro, mas não merecia uma coisa assim.
— Não sabe se o tinha visto antes — apressou Pitt.
— De noite todos os gatos são pardos. —Fez um gesto de desdém. — Alguma vez tinha ouvido esse dito? Além disso, eu não me fixo nos rostos dos homens; só me interessa seu dinheiro. Mas esse indivíduo não me soava de nada. Não acredito que o tenha visto antes. E como há fogo no inferno, que não sei seu nome. Se soubesse, o diria.
— Fogo no inferno — repetiu Pitt pensativamente. — Por que há dito isso?
— Porque é uma das poucas coisas que sei com toda segurança — respondeu, olhando ao Pitt de cima abaixo. — O que queria que dissesse? Que há Deus no céu? Disso já não estou tão certa. — Desviou o olhar e o deixou vagar pelo aposento, vulgar e para ela em extremo familiar. — Eu não acredito em Deus, e se existisse um céu, não seria para mim nem para a Ada. Ou se não, pergunte aos padres. Eles lhe confirmarão encantados que as mulheres como eu arderemos no inferno por corromper e se separar do bom caminho aos homens de bem. — A seguir proferiu um xingamento tão vulgar que inclusive Pitt se sobressaltou ao ouvi-lo sair daqueles lábios ainda formosos.
— Soa-lhe de algum modo o clube Fogo do Inferno? — disse Pitt.
Um sorriso iluminou o rosto do Rose.
— Não. O que é isso? A que vai aí? Queimar-se ou jogar lenha? Acredite-me, esse canalha arderá no inferno, embora tenha que levar o carvão eu mesma, seja ou não um cavalheiro.
— Era um cavalheiro? — perguntou Pitt depois de uns instantes de hesitação.
Rose o olhou nos olhos.
— Isso aparentava. Certamente não parecia um vagabundo. E como há fogo no inferno, meu senhor, asseguro-lhe que chegou aqui pouco mais ou menos à hora em que mataram a pobre Ada. Eu estive no Whitechapel Road uma meia hora, e durante esse tempo não vi entrar ninguém pelo passadiço, até que eu mesma voltei com outro cliente ao quarto.
— Mas não via o outro extremo, a entrada do beco. — Pitt indicou para a rua.
— Esse não é meu lugar — respondeu com toda lógica. — Se quer saber o que passou a esse lado, fale com o Nan.
— Disse que Ada era ambiciosa — recordou Pitt. — Roubou a você alguma vez?
—Eu não disse que fosse uma ladra — prorrompeu Rose, de novo iracunda, cravando no Pitt um olhar intenso e brilhante. — Disse que era ambiciosa. Nunca tinha suficiente. Sempre estava pensando na maneira de tirar mais fatia, mas não só para ela, mas também para todas nós. Nunca tinha visto tanto ódio em ninguém. Às vezes a consumia o rancor.
— A quem odiava?
— Ao mordomo miserável que a desonrou, suponho — respondeu com uma careta de desprezo. — Depois mentiu aos senhores da casa. Não sei o que esperava Ada que fizesse. Era um pouco ingênua, a pobre. — Voltou a contrair o rosto pela dor.
Fora se ouviu um repentino estrépito e o chocalhar de uns cascos de cavalo. Alguém gritou. Soaram passos no corredor e uma violenta portada no piso superior. Vibrou todo o quarto.
— Mencionou Ada em alguma ocasião o nome do mordomo? — quis saber Pitt.
Rose o olhou com assombro.
— Acredita que ele a matou? Por que ia fazê-lo? Ada não representava nenhuma ameaça. Por esse lado o grande canalha podia estar tranquilo.
— Não, não acredito — concordou Pitt. — assim, viu a esse homem ao redor das dez.
— Não sei a hora exata, mas sim, ao redor das dez.
— E depois o que?
— Nada especial, um par de trabalhos rápidos — respondeu com indiferença. — Meia hora cada um. O seguinte foi o pobre desgraçado do Skeggs. Custa-lhe uma hora ficar a tom. O que realmente gosta de é olhar enquanto outros o fazem. — Falava com um sotaque de asco. — Ao sair daqui, foi colocar o nariz no quarto da Ada para ver se pescava a outro idiota com as calças baixadas fazendo o ridículo. — Apoiou as mãos nos quadris. — O caso é que não se imaginava o que ia achar. Quando viu a Ada morta, pouco lhe faltou para mijar em cima.
— A que hora ocorreu isso?
— Às doze e meia. Sei por que acabava de olhar o relógio. Tinha fome, e como me tinha dado bem a noite, pensei em ir comprar um jantar como Deus manda. Descia já para me aproximar do posto de comida da esquina do Chicksand Street quando apareceu o policial e começou a animação. Tive que ficar aqui, e agora estou morta de fome.
Pitt guardou silêncio.
Rose o olhou com repentina cólera.
— Acredita que sou uma desalmada, não? — reprovou com voz severa e ressentida. — A princípio também eu estava muito afetada, mas isso faz já tempo, e não comi desde ontem. Por estes bairros a morte é coisa frequente, não como na zona alta, onde a vida é fácil e a gente morre placidamente em sua cama. Além disso, esse médico se comportou muito bem conosco. Disse-me que Ada não demorou para morrer e pediu a Nan que pusesse água a ferver e nos preparasse um chá. E depois acrescentou uma dose de conhaque. Nunca tinha conhecido um homem tão... — interrompeu-se, incapaz de achar o adjetivo adequado. Em seu vocabulário não existia uma palavra de elogio para expressar o que sentia, aquele súbito afeto, aquela sensação de que Lennox tinha concedido maior importância às emoções e a dor dela que a suas próprias. O ressentimento desapareceu de seu rosto, e Pitt viu por um instante à mulher que teria podido ser em um tempo e circunstâncias distintas.
Nan Sullivan era ao menos dez anos mais velha que Rose, e o contínuo tresnoitar e o excesso de genebra tinham apagado suas feições e arrebatado o brilho a seus olhos e a seu cabelo. Entretanto ainda se apreciava nela um resto de doçura, o vago vestígio de uma antiga delicadeza, e quando falava, ressoavam em sua voz os ecos do oeste da Irlanda. Estava sentada na cama, desalinhada, com o rosto manchado ainda pelo pranto recente, muito cansada para preocupar-se com seu aspecto.
— Sim, estava na entrada do beco — confirmou, olhando ao Pitt com indiferença. — Me custou um bom tempo achar um cliente. Tive que me aproximar até o Brick Lane. —Obviamente era uma derrota que já não se incomodava em ocultar. — Voltei justo quando chegava Ada.
— Viu, pois, seu cliente? — apressou-se a perguntar Pitt.
— Sim, claro. Vi-o por detrás, e me chamou a atenção sua jaqueta. — Suspirou, e uma ameaça de sorriso se desenhou em seus lábios. — Uma jaqueta linda. De bom tecido de gabardina. Reconheço gabardina de boa qualidade assim que a vejo. Antes trabalhava em uma fábrica, e o amo tinha uma jaqueta de gabardina. A sua era marrom, lembro, mas lhe sentava igualmente bem nos ombros. Era uma jaqueta impecável, sem rugas, sem dobras onde não devia havê-las.
— De que cor era a do homem que viu esta noite?
Pitt estava sentado na única cadeira do quarto, a um passo de Nan. As janelas davam ao pátio interior, e não se ouviam os ruídos da rua.
— De que cor? — repetiu Nan, e pensou por um momento com olhar ausente. — Azul. Ou pode ser que negra. Marrom não, certamente.
— E observou a gola da jaqueta?
— Caía-lhe bem. Fazia essa curva que não se vê em uma jaqueta barata.
— Não era de pele ou veludo? — perguntou Pitt. — Ou de couro?
Nan negou com a cabeça.
— Não, do mesmo tecido. A pele não ficaria bem com esse corte.
— Como tinha o cabelo?
— Muito abundante. — Inconscientemente passou os dedos entre o cabelo, espaçado por causa da idade e os excessos. Ao cabo de um instante acrescentou : É claro. O vi brilhar à luz das velas que saía do quarto de Ada. A pobre desgraçada. — Baixou a voz. — Não é justo o que lhe fizeram.
— Sentia simpatia por ela? —perguntou Pitt de improviso.
Nan se surpreendeu. Teve que refletir por um momento.
— Suponho que sim. Era conflitiva, mas me fazia rir. E tenho que reconhecer que soube impor-se.
Por um instante Pitt experimentou uma irracional esperança.
— A quem se impôs?
— Às vezes ia trabalhar nas ruas da zona oeste. Tinha coragem, asseguro. Não se rebaixava ante ninguém.
— E a quem se impôs, Nan?
Deixou escapar uma risada aguda e entrecortada.
— Ah, às garotas do George o Gordo, que estão perto do parque. Esse é seu território. Se a tivessem matado a navalhadas, teria dito que o assassino era Georgie, o Figurinha. Mas ele nunca a teria estrangulado, e muito menos em seu quarto. A teria matado na rua e a teria deixado ali. Além disso, a esses dois os reconheceria no ato se os visse.
Isso era indiscutível. Pitt os conhecia também. George, o Gordo era uma autêntica montanha de carne; ninguém o confundiria com outra pessoa, e menos com alguém como Finlay FitzJames. E Georgie, o Figurinha era miúdo. Por outra lado, se tivessem decidido castigar a Ada por violar sua demarcação, a teriam espancado, aleijado ou inclusive desfigurado, mas nunca se teriam arriscado a atrair a atenção da polícia com um assassinato. Isso teria prejudicado seus interesses.
— Assim, viu entrar esse homem no quarto de Ada? —continuou Pitt, voltando sobre o tema.
— Sim.
— Quer dizer que lhe abriu a porta e o fez entrar? — Pitt enrugou o sobrecenho. — Não o trouxe da rua?
— Não — respondeu Nan com certo assombro. — Agora que o diz, é verdade; não o trouxe ela. Deve ter chegado até aqui por sua conta. Possivelmente era um cliente assíduo.
— Você tem muitos clientes assíduos? — Pitt percebeu imediatamente sua falta de tato. Ada sim podia ter clientes assíduos, mas Nan não.
A julgar pela expressão de seu rosto, também ela tomou consciência de repente do fracasso em todos seus matizes, e se deu conta de que ele compreendia o que isso significava e se arrependia de ter formulado a pergunta. Sorriu. Era um sorriso forçado mas quase convincente.
— Assíduos no sentido estrito da palavra, não. Vejo as mesmas caras, mas ninguém me pede uma entrevista. Embora possa sair algum, claro está. E Ada tinha muito êxito. —Contraiu o rosto, afundou os ombros, e lhe empanaram os olhos. — Tinha faísca ao falar, a pobre, e fazia rir. — Tomou ar com uma baforada profunda e convulsa. — E às pessoas gostam de rir. — Olhou para Pitt. — Uma vez deu de presente umas botas. Calçávamos o mesmo número. Tinham um salto lindo. Aquela semana o trabalho lhe tinha ido melhor que a mim, e era meu aniversário. — As lágrimas lhe rodaram pelas faces, arrastando o ruge a sua passagem, mas suas feições não se alteraram. Havia em sua atitude uma estranha dignidade, uma genuína dor que enobrecia em certo modo o sórdido aposento com sua cama suja e revolta, a roupa de mau gosto, o fedor a lixo procedente do pátio, e inclusive seu corpo cansado, tantas vezes manuseado e tão poucas amado.
Pitt não podia fazer mais que conceder igual respeito à Ada McKinley.
— Sinto muito — sussurrou espontaneamente e apoiou suas mãos nas dela. — Farei tudo o que esteja a meu alcance para achar ao culpado e o obrigarei a dar conta de seus atos, seja quem for.
— De verdade? — perguntou Nan, e engoliu saliva com dificuldade. — Embora seja um cavalheiro?
— Embora seja um cavalheiro — prometeu Pitt.
A seguir Pitt repetiu o interrogatório a uma terceira mulher, a que ocupava o quarto contíguo ao da Ada. Chamava-se Agnes Salter. Era jovem e de aspecto comum, com o nariz largo e a boca grande, mas possuía uma vitalidade a que provavelmente poderia seguir tirando proveito ao menos outros dez anos. Quando sua pele se murchasse e sua carne perdesse firmeza, não lhe seria fácil ganhar a vida. Ela devia ser tão consciente daquilo como Pitt.
— Claro que conhecia a Ada — disse com naturalidade. Estava sentada em uma cadeira de espaldar duro com o tronco erguido e a saia arregaçada quase até os joelhos. Tinha umas excelentes pernas, sem dúvida seu melhor traço físico. Era claro que também disso era consciente. Entretanto não as exibia porque houvesse um homem ante ela. Por sua expressão, adivinhava-se que o fazia simplesmente por hábito, e possivelmente por comodidade. — Era boa garota. Um pouco presunçosa, mas boa garota — prosseguiu. — Compartilhava suas coisas com as demais. Uma vez me emprestou um liga. — Sorriu. — Sabia que eu tinha as pernas mais bonitas. E não é que ela as deixasse feias, nem muito menos. Mas o dinheiro é o dinheiro, e eu tirei boa partida daquilo. Há tipos que ficam a tom com as ligas. Suponho que as senhoras não levam essas coisas. Elas usam só espartilhos com baleias e calções de algodão.
Pitt guardou silêncio. Fora era já de dia. A oficina em frente estava em plena atividade e circulavam carruagens pelas ruas vizinhas.
— Não tenho nada que lhe dizer — continuou Agnes. — Não sei nada. Desejaria ver esquartejado a esse indivíduo. Há riscos que uma mulher já assumiu. — Seus punhos fechados e seus dedos brancos deixavam transparecer a tensão que se ocultava sob seu afetado ar de tranquilidade. — Uma mulher espera uma surra de vez em quando. Faz parte desta vida. E inclusive alguma ou outra navalhada, que pode acontecer se seu homem sai dos limites por uma bebedeira. Mas isto não é justo. Ada, a pobre, não o merecia. — Fez uma careta de ira. — Embora duvide muito que se preocupe muito. O que importa que tenham tirado do meio outra fulana? Ao fim e ao cabo, ainda ficam muitas em Londres. Talvez um puritano fanático se propôs limpar a cidade. — Soltou uma estridente gargalhada, e Pitt percebeu medo nela.
—Não acredito — disse Pitt com franqueza, embora fosse uma possibilidade que ainda não parara a considerar. Em todo caso, não devia descartá-la.
— Não? — perguntou Agnes com curiosidade. — Por quê? Ada era uma puta, como todas nós.
Pitt não se escandalizava pelo uso dessa classe de palavras. Foi sincero em sua resposta.
— Certas provas indicam que o culpado poderia ter sido um homem de dinheiro e boa posição. Ada não o trouxe da rua. Segundo Nan, veio por sua conta e ela o deixou entrar em seu quarto. Dir-se-ia, pois, que já tinha estado aqui anteriormente.
— Sim? — Agnes se surpreendeu e sentiu um relativo alívio. — Possivelmente era algum conhecido seu.
— Quais eram seus conhecidos?
Agnes refletiu por um momento. Pitt o tinha perguntado por simples diligência. Seguia convencido de que todos os indícios levariam até o Finlay FitzJames. Como se explicava, se não, o achado da insígnia do clube Fogo do Inferno sob o cadáver?
— Alguém que queria matá-la? — disse Agnes pensativamente. — Qualquer com quem brigara, suponho. Possivelmente alguma fulana a quem tivesse tirado um cliente. Mas nesse caso Ada se teria defendido e se teria armado um bom escândalo. E eu não ouvi nada. Além disso... — deu de ombros. — Uma fulana teria tentado lhe tirar os olhos com as unhas, ou quando muito, se fosse muito sanguinária, lhe teria marcado o rosto com uma navalha. Mas o teria feito na rua. Devia estar louca de raiva para segui-la até seu quarto e matá-la a sangue frio. E Ada não era tão má...
— Não era tão má — repetiu Pitt. — Mas tirava os clientes a outras mulheres...
Agnes deixou escapar uma sonora gargalhada.
— Sim, claro que sim! Quem não o faria? Era bonita e esperta. E muito brincalhona. Fazia rir os clientes. Alguns tipos gostam de rir. Assim se esquecem um pouco de que desceram ao arroio, têm a sensação de estar com uma mulher normal. Parece que com suas afetadas esposas, sempre tão engravatadas e engomadas, não riem muito. — Esboçou uma careta de desdém, mas nela se percebia um tom de lástima. — Certamente as pobres desgraçadas não riram com vontade em toda sua vida. Rir não é bem visto em uma senhora.
Pitt não fez comentários. Por sua mente passou uma dúzia de imagens, mas ela não as compreenderia, e de nada serviria tratar de explicar-lhe.
Ouviu-se uma portada no piso superior e instantes depois passos rápidos na escada. Alguém vociferou.
— E há outros que se encontram a gosto no arroio — prosseguiu Agnes com expressão carrancuda. — Como porcos entre o esterco. Tem algo que os excita. — Sua voz gotejava desprezo. — Se não necessitasse seu condenado dinheiro, despachá-los-ia eu com minhas próprias mãos.
Pitt não o punha em dúvida. Entretanto isso não contribuía com a menor luz sobre quem tinha matado a Ada McKinley sem aparente resistência por parte dela. No quarto não havia sangue, e em seu corpo mal se percebiam rastros de violência, salvo pelos dedos fraturados com deliberação e extrema crueldade. Não apresentava os arranhões nem os hematomas que sem dúvida teria causado uma prolongada briga. Tinha quebrada uma unha da mão direita, nada mais.
— A quem conhecia Ada que pudesse vir a visitá-la? — insistiu Pitt.
— Não sei. Tommy Letts, possivelmente. Esse vem por aqui. Ou melhor, dizendo, vinha. Ultimamente já não trabalhava para ele. Tinha encontrado outro melhor, dizia Ada. E veja que não alardeava, a muito Potrosa!
— Poderia ser Letts o homem que veio vê-la esta noite?
— O que vai! — Balançou os pés. — Tommy é um tipo imundo, com o cabelo negro como uma cauda de rato e pouco mais ou menos de minha estatura. O fulano desta noite era alto, tinha o cabelo encaracolado e abundante, e estava muito limpo, como um cavalheiro. E Tommy nunca levaria uma jaqueta como essa, nem mesmo roubada.
— Viu-o? —perguntou Pitt, surpreso.
— Não, o que pensa! Mas Rose sim. E Nan também. À Nan afetou muito. É muito branda, a pobre. O médico ruim se deu bem com ela. Para médico da polícia, até é médio humano. — Fez uma careta. — Embora ainda seja jovem, claro. Mudará.
Pouco ficava por indagar. Pitt insistiu em se tinha ouvido algo, mas durante as horas em que tinha tido lugar o fato Agnes estava ocupada com seus próprios clientes, e o fato de que não recordasse nenhum ruído anormal demonstrava que não se produziram gritos nem estrépito de móveis caídos. Pitt o supunha já pela natureza do crime e a relativa ordem do quarto. Quem quer que fosse o assassino, tinha pegado Ada McKinley de surpresa e tinha agido depressa. Tinha sido alguém em quem ela confiava.
Pitt se despediu do Agnes e saiu ao corredor, onde o aguardava Ewart, quem, ao ver sua expressão, soube que não havia escapatória, nenhum dado revelador que os eximisse da necessidade de visitar o Finlay FitzJames. O indício de esperança se desvaneceu em seus olhos, e todo ele pareceu encolher-se, minguar, apesar de em realidade ser um homem robusto.
Pitt moveu apenas a cabeça em um gesto de negação.
Ewart lançou um suspiro. A porta de entrada da casa estava aberta, e uma corrente de ar varria a escada. Ao pé, na escuridão esperava Lennox. Só seu rosto ficava iluminado pela luz amarelada da lanterna que segurava o agente.
— FitzJames? — perguntou Lennox com manifesto interesse.
Ewart se crispou, como se tivesse percebido entusiasmo na voz do médico. Chiaram-lhe os dentes. Parecia disposto a falar, mas se conteve, limitando-se a suspirar de novo.
— Isso temo — respondeu Pitt. — irei vê-lo a hora do café da manhã. Dar-me-á tempo de passar antes por casa para me lavar, me barbear e comer algo. Melhor será que vocês façam o mesmo. Não os necessitarei até dentro de umas horas no mínimo.
—Bem — disse Ewart, mas em sua voz não transparecia o menor alívio. O assunto ficava adiado, não resolvido.
Lennox olhava fixamente para Pitt, com os olhos muito abertos. Nas sombras, seu rosto era inescrutável, mas se apreciava tensão em seu corpo enxuto debaixo da folgada jaqueta, e por um momento Pitt teve a impressão de achar-se ante um corredor em gesto de iniciar sua corrida. Compreendia-o. Sua própria indignação era intensa, como uma brasa candente no mais fundo de sua alma.
Encarregou Ewart de postar um agente no Pentecost Alley. O quarto não tinha fechadura, e até se a tivesse, não teria proporcionado a segurança necessária. Em cem jardas ao redor havia suficientes gazuas para que o gesto de fechar uma porta com chave fosse inútil. Não existiam muitas provas que destruir, mas o corpo devia transladar-se ao depósito de cadáveres, onde Lennox levaria a cabo a penosa tarefa de examiná-lo com maior vagar. Provavelmente não contribuiria com nada de novo, mas era a norma.
Enquanto voltava para casa entre a agitação matutina das carruagens de carga, as carretas dos mercados e inclusive um rebanho de ovelhas, perguntou-se se Ada McKinley teria algum parente a quem comunicar a notícia de sua morte, alguém que a chorasse. Quase com toda certeza seria enterrada em uma vala comum. Pessoalmente tinha decidido já assistir ao enterro, embora não fosse mais que uma simples inumação.
A carruagem atravessou Spitalfields e St. Luke’s, evitando a passagem por Holbom. Eram sete e quinze.
Bloomsbury começava a despertar. Os engraxates e as criadas trabalhavam diligentes nos pátios dos porões. A fumaça subia devagar no ar quieto das lareiras. As criadas, dispostas já para a jornada, começavam a cevar o fogo nos salões.
Quando chegou a sua casa, no Keppel Street, e pagou ao cocheiro, uma nervura azul se abria no céu encapotado sobre a City e soprava uma ligeira brisa. Talvez levasse as nuvens.
A porta da rua não tinha já o ferrolho jogado, e assim que entrou percebeu o calor e o aroma da comida. Ouviram-se uns rápidos passos, e Jemima apareceu na porta da cozinha.
—Papai! —exclamou, e correu para ele com uns passos assombrosamente ruidosos para um corpo tão espigado e ligeiro.
Tinha já oito anos e era muito consciente de sua dignidade e importância, mas ainda não se sentia tão senhorita para fugir dos abraços ou presumir. Levava um vestido azul sob um avental branco recém engomado e umas botas novas, e o cabelo, castanho e encaracolado como o de Pitt, recolhido atrás em um bonito coque. Parecia recém lavada e pronta para partir para o colégio.
Pitt abriu os braços, e Jemima se lançou a eles. Estreitou-a e a levantou no ar. Cheirava a sabão e algodão limpo. Pitt afastou a Ada McKinley de seu pensamento.
— Sua mãe está na cozinha? — perguntou, deixando-a de novo no chão.
— Claro — respondeu Jemima. — Daniel perdeu as meias, e nos atrasou. Mas Gracie está preparando o café da manhã. Tem fome? Eu sim.
Dispunha-se a lhe dizer que não estava bem ser delator, mas a menina puxava já para a cozinha, assim que a ocasião tinha passado.
Na agradável cozinha se mesclavam os aromas do bacon, o pão recém feito, a madeira abrilhantada e o vapor do bule que começava a assobiar no fogão. A criada, Gracie, estava nas pontas dos pés ante o aparador, tentando pegar a caixa do chá, que Charlotte inadvertidamente tinha deixado na prateleira central. Gracie contava já quase vinte anos, mas mal tinha crescido desde que a tinham recolhido da rua com a idade de treze. Em geral, nos vestidos ainda tinham que lhe cortar as barras, apertar a cintura e preencher os ombros.
Finalmente saltou e só conseguiu empurrar a caixa até o fundo da prateleira.
Pitt se aproximou e a alcançou.
—Obrigada, senhor — disse a criada quase com brusquidão. Sentia pelo Pitt um grande respeito, que aumentava com cada novo caso, e estava de sobra acostumada a esse tipo de ajuda; mas a cozinha era seu território, não dele. Cada coisa e cada pessoa deviam manter-se em seu lugar.
Charlotte entrou sorridente. Ao vê-lo ali, dirigiu-lhe um olhar contente, mas também inquisitivo. Depois de tantos anos de matrimônio e tão estreita relação, Pitt não podia já lhe ocultar o caráter de sua saída noturna nem o efeito que tinha causado em seu ânimo. Os detalhes não tinham por que contar-lhe nem pensava fazê-lo.
Ela o olhou com atenção e percebeu imediatamente seus olhos cansados, seu rosto sem barbear, a expressão de tristeza nas rugas que rodeavam sua boca.
— Quer comer algo? — perguntou com delicadeza. — Deveria.
Pitt sabia que era o mais conveniente.
— Sim, tomarei algo.
— Cereais?
— Sim, por favor.
Pitt se sentou em uma das cadeiras de suave madeira e duro espaldar. Jemima, com as duas mãos e supremo cuidado, pegou a jarra de leite da despensa e a levou a mesa. Era de faixas azuis e brancas e em um lado se lia a palavra LEITE em letras maiúsculas.
De repente se abriu a porta de par em par e entrou Daniel, agitando suas meias triunfalmente.
— Aqui estão! —A alegria iluminou seu rosto quando viu seu pai. Frequentemente Pitt já partira quando as crianças desciam para tomar o café da manhã.
— Papai! O que acontece? Hoje não vai trabalhar? —Dirigiu a sua mãe um olhar acusador. — É festa? Disse que havia colégio!
—E há colégio — se apressou a esclarecer Pitt. — saí faz um momento, mas voltei para tomar o café da manhã porque ainda é cedo para uma visita que tenho que fazer. Agora calce e vêem a mesa para comer os cereais que lhe trará Gracie.
Daniel se sentou no chão, calçou as meias e observou atentamente as botas para decidir em que pé ia cada uma. Por fim ocupou sua cadeira e perguntou a seu pai:
— A quem vai ver?
Charlotte também o olhava, aguardando a resposta.
— A um homem que se chama FitzJames —respondeu Pitt. — Toma o café da manhã mais tarde que nós.
— Por quê? — disse Daniel com curiosidade.
Pitt sorriu. A metade da conversa do Daniel consistia em porquês.
— Perguntar-lhe-ei — prometeu.
Um gatinho rajado de pelagem loira e branca entrou correndo da copa, deteve-se em seco, arqueou o lombo e caminhou cinco ou seis passos do meio lado com o rabo arrepiado. Outro gatinho negro azeviche apareceu como uma ventania e saltou sobre o primeiro. Os dois rodaram pelo chão entre grunhidos e inócuos arranhões para deleite das crianças. Ninguém prestou atenção aos cereais e ninguém discutiu.
Pitt se reclinou contra o espaldar enquanto Jemima se agachava sob a mesa para contemplá-los e Daniel jogava sua cadeira para trás para ver melhor. Tudo era grato e corriqueiro, um mundo muito diferente de Pentecost Alley e a gente que ali vivia e morria.
Eram quase nove horas quando Pitt desembarcou de uma carruagem ante o número 38 do Devonshire Street e se dirigiu para a porta. A delegacia de polícia do Bow Street lhe tinha enviado um mensageiro com o endereço do FitzJames e uma nota do Ewart em que prometia mantê-lo à corrente de qualquer novo indício que encontrasse. Tinha previsto interrogar ao cafetão da Ada McKinley e tentar localizar aos seus anteriores clientes da noite anterior. Admitia, não obstante, que não albergava grandes esperanças.
Pitt bateu na porta e retrocedeu um passo. Levantou-se um vento do este e tinha limpado parcialmente o céu. O dia era mais claro e a temperatura mais alta. O trânsito matutino se reduzia a algum ou outro cabriolé de aluguel. As senhoras não saíam à rua tão cedo, nem sequer para visitar suas costureiras, e por isso não circulavam ainda carruagens particulares. Pela calçada passou um mensageiro assobiando e lançando ao ar uma moeda de seis pennies, sem dúvida a recompensa pela diligência mostrada em seu último serviço.
Abriu-se a porta e apareceu um mordomo de nariz largo e expressão insolitamente cordial.
— Bom dia, cavalheiro. No que posso lhe servir?
— Bom dia — saudou Pitt, desconcertado ante tanta amabilidade. Extraiu um cartão de visita, mais elegante que os que usava antes de sua promoção, onde constava seu nome mas não sua profissão. Os policiais nunca eram bem recebidos por alto que fosse sua posição. Imediatamente se apressou a explicar: Infelizmente surgiu um assunto da máxima urgência que me exige ver o senhor Finlay FitzJames.
—Muito bem — disse o mordomo, e lhe estendeu uma bandeja de prata, pequena e deliciosa em sua simplicidade.
Pitt deixou nela seu cartão. O mordomo se afastou para deixar entrar Pitt no vestíbulo revestido de magnífica madeira. Pendiam retratos das paredes, em sua maioria de homens de semblante severo e indumentária do século anterior. Havia deste modo um par de quadros que representavam os trabalhos do campo e vacas pastando sob um céu plúmbeo, que se fossem originais, pensou Pitt, deviam possuir um grande valor.
— Acredito que neste momento o senhor FitzJames está tomando o café da manhã —acrescentou o mordomo. — Se o cavalheiro for amável de aguardar no salão... Dá ao jardim, e a vista lhe fará mais grata a espera. Conhece pessoalmente ao senhor FitzJames?
Era uma maneira discreta de perguntar se FitzJames tinha a menor ideia de quem era Pitt.
— Não — admitiu Pitt. — Por desgraça se trata de um assunto urgente, e desagradável. Do contrário não teria vindo sem anunciar previamente minha visita. Sentindo muito, requer atenção imediata.
— Compreendo. Informarei ao senhor FitzJames — disse, e partiu a transmitir a mensagem de Pitt, deixando-o no fresco salão de cores marrom e azul, salpicado pelo sol.
Pitt lançou uma olhada ao redor. Já antes de entrar na casa sabia que a família FitzJames possuía uma grande fortuna, conseguida em sua maior parte mediante a especulação pelo Augustus FitzJames, quem no começo tinha utilizado o dinheiro que sua esposa tinha herdado de sua madrinha. Pitt tinha recebido essa informação da irmã mais nova de Charlotte, Emily, que antes de seu atual matrimônio com o Jack Radley tinha estado casada com o finado lorde Ashworth. De seu primeiro marido tinha conservado a fazenda e as amizades aristocráticas, assim como sua inveterada curiosidade pelos detalhes concernentes às vidas alheias, e quanto mais íntimos melhor.
O salão dos FitzJames era muito confortável, embora possivelmente um pouco frio. Não continha o habitual amontoado de troféus em vitrines, flores secas e bordados que muitas famílias relegavam a um aposento em que passavam pouco tempo. Em lugar disso havia duas excelentes estátuas de bronze, uma de um leão disposto a saltar e outra de um veado. Uma estante cobria de cima abaixo a parede do fundo, e os enviesados raios de sol que penetravam entre as entupidas cortinas de brocado não revelavam uma só bolinha de pó nas lustrosas superfícies de mogno.
Pitt se aproximou da estante e deu uma olhada aos títulos. Provavelmente os livros que FitzJames lia se achavam na biblioteca da casa; assim e tudo, seria interessante saber o que desejava que seus convidados acreditassem que lia. Viu alguns volumes de história, todos da Europa e do império britânico, biografias de políticos, textos religiosos de caráter ortodoxo, e a obra completa do Shakespeare encadernada em couro. Incluía deste modo traduções de alguns escritos do Cícero e Julio César. Não havia poesia nem novelas. Pitt sorriu inconscientemente. Essa imagem queria oferecer de si mesmo Augustus FitzJames: um homem de amplos conhecimentos que não fazia a menor concessão à imaginação ou a frivolidade.
Não tinham transcorrido mais de dez minutos quando retornou o mordomo, ainda sorridente.
— O senhor FitzJames lamenta lhe comunicar que esta manhã não dispõe de um só minuto livre, cavalheiro, mas se o assunto é tão urgente como diz, possivelmente não tenha inconveniente em reunir-se com ele agora na sala de refeições.
Não era esse muito menos o desejo do Pitt, mas não ficava alternativa. Talvez quando FitzJames descobrisse o motivo de sua visita, aceitasse falar com ele em privado.
— Obrigado — aceitou a seu pesar.
A sala de refeições era majestosa, desenhada para acomodar pelo menos a vinte pessoas com folga. As três profundas janelas estavam flanqueadas por cortinas de veludo e davam a um pequeno e sóbrio jardim. Pitt viu de esguelha arbustos e uma sebe de formas geométricas, e um caminho de pavimento uniforme. O serviço de mesa se compunha de talheres de prata, baixela de porcelana e uma toalha de linho recém engomada. No aparador próximo havia pratos de arroz com peixe, outro com bacon, embutidos e rins, e outros com ovos preparados de distintas maneiras, cada um dos quais teria bastado para saciar o apetite de meia dúzia de pessoas. O delicioso aroma de que emanavam inundou o olfato do Pitt, mas imediatamente se obrigou a manter sua mente fixa no Pentecost Alley, e se perguntou se Ada McKinley teria visto tanta comida junta alguma vez em sua vida.
Devia recordar não obstante que FitzJames não tinha por que ser o culpado.
Em torno da mesa havia quatro pessoas sentadas, e Pitt concentrou nelas sua atenção. Ocupava a cabeceira um homem de uns sessenta anos, cabeça estreita e marcadas feições. Era o rosto de um homem feito a si mesmo, sem compromissos com o passado nem possivelmente com o futuro. Era um rosto que revelava determinação e intolerância. Olhava ao Pitt com expressão desafiante por ter interrompido a paz doméstica de seu café da manhã. Junto a ele se achava uma mulher ainda formosa da mesma idade. Em seus traços se adivinhava uma grande paciência e certo grau de controle interior. Conhecia milhares de regras e estava acostumada a obedecê-las. Possivelmente supusesse que Pitt era banqueiro ou
comerciante, porque inclinou cortesmente a cabeça mas em seus separados olhos não se percebeu o menor interesse.
Seu filho se parecia com ela. Tinha a mesma testa limpa, boca longa e queixo anguloso. Rondava os trinta anos, e seu corpo mostrava já um incipiente excesso de peso, os primeiros indícios da perda da esbelteza juvenil. Aquele devia ser Finlay, e seu magnífico cabelo loiro e ondulado coincidia exatamente com a descrição oferecida por Rose e Nan.
O quarto membro da família apresentava um aspecto muito diferente. Provavelmente a filha tinha herdado seu físico de algum antepassado. Não tinha a menor semelhança com sua mãe, e muito pouco com seu pai, salvo pelo nariz alongado, embora nela fosse mais fino e proporcionava ao seu rosto excentricidade suficiente para que a sua não fosse uma beleza comum. Dava impressão de ousadia e vitalidade. Observava Pitt com vivo interesse, talvez simplesmente porque tinha interrompido a habitual monotonia do café da manhã.
— Bom dia, senhor Pitt — disse o cabeça de família com manifesta frieza, lendo o nome do Pitt no cartão que o mordomo lhe tinha entregado. — Qual é esse assunto tão urgente que deve tratar-se a estas horas?
— É com o senhor Finlay FitzJames com quem desejo falar — respondeu Pitt, ainda de pé, pois não lhe tinham oferecido assento.
— Pode dirigir-se a ele através de mim — replicou o pai sem perguntar ao Finlay. Provavelmente o tinha consultado antes de deixar entrar Pitt.
Pitt conteve um impulso de indignação. Ainda não podia permitir-se ofender aquele homem. Embora tivesse suas dúvidas, não devia descartar a possibilidade de que tudo aquilo fosse só um engano. E se suas piores suspeitas se cumpriam e finalmente Finlay era culpado, a investigação devia desenvolver-se sem que existisse o menor motivo de queixa. Cabia esperar que FitzJames apresentasse a mais inflamada batalha para proteger a seu único filho varão, o bom nome de sua família, e por conseguinte a si mesmo.
Pitt abordou a questão com suma cautela. Compreendia de sobra as razões do Ewart para aferrar-se à esperança de que uma nova prova os guiasse em outra direção.
— Conhecem vocês a um grupo que se faz chamar clube Fogo do Inferno? — perguntou com mesura.
— Para que quer sabê-lo, senhor Pitt? — FitzJames arqueou as sobrancelhas. — Melhor será que se explique. por que vamos facilitar lhe informação sobre nossos assuntos? Este... cartão... contém seu nome e nada mais. Entretanto assegura você que se trata de algo urgente e desagradável. Quem é você?
— Ocorreu algum acidente? — perguntou a senhora FitzJames com visível preocupação. — A alguém que conhecemos?
Seu marido a fulminou com o olhar e ela desviou a vista, como indicando ao Pitt que não esperava resposta.
— Sou delegado do Corpo de Polícia Metropolitana — respondeu Pitt. — Na atualidade estou à frente da delegacia de polícia do Bow Street.
— Santo céu! — exclamou a senhora FitzJames, perplexa e sem saber o que dizer. Era evidente que nunca se achara em uma situação assim. Desejava falar e ao mesmo tempo temia fazê-lo. Olhava ao Pitt como se não o visse.
Finlay tampouco saía de seu assombro.
— Eu pertencia a um clube com esse nome — declarou por fim lentamente, com a fronte enrugada. — Mas isso faz já muitos anos. Éramos só quatro, e nos separamos em... oitenta e quatro ou pouco depois.
— Compreendo. — Pitt mantinha um tom de voz cometido. — Seria amável de me dar os nomes dos outros sócios?
— Fizeram alguma atrocidade? — perguntou a senhorita FitzJames com um brilho de curiosidade no olhar. — Por que quer sabê-lo senhor... Pitt? Assim se chama, não? Deve ser algo espantoso se tiverem enviado a um delegado. Acredito que até a data só tinha visto agentes.
— Cale—se, Tallulah — ordenou FitzJames com severidade. — Ou se não, terá que se desculpar e sair da sala.
Respirou fundo disposta a protestar, mas ao ver a expressão de seu pai, pensou melhor, apertou os lábios e baixou os olhos.
FitzJames limpou a boca e deixou o guardanapo.
— Senhor Pitt, não entendo por que veio a me alarmar com uma questão assim a minha casa, e a esta hora da manhã. Teria bastado uma carta. — Fez gesto de levantar-se da mesa.
— O assunto é muito mais grave do que você pensa — replicou Pitt com tom igualmente cortante. — considerei que, por discrição, seria melhor tratá-lo aqui. Embora se o prefere, podemos falar disso no Bow Street. Tudo poderia ficar explicado sem necessidade de ir à delegacia de polícia, mas se esse é seu desejo, não tenho inconveniente em agradá-lo.
O sangue afluiu às enxutas faces do FitzJames. Imediatamente ficou em pé como se lhe incomodasse levantar a vista para olhar ao Pitt. Era um homem de considerável estatura, e os olhos de ambos ficaram quase ao mesmo nível.
— Acaso está me detendo? — disse entre dentes.
— Não era essa minha intenção, senhor FitzJames — respondeu Pitt. Não ia deixar se intimidar por aquele homem. Se mostrava fraqueza, abriria um precedente impossível de mudar no futuro. Estava à frente da delegacia de polícia do Bow Street e não tinha mais obrigações ante o FitzJames que a cortesia e a verdade. — Mas se deseja expô-lo assim, não serei eu quem o discute.
FitzJames tomou ar com veemência, decidido a contra-atacar, mas compreendeu de repente que o assunto devia ser muito mais grave do que tinha suposto a princípio, ou se não, Pitt não teria a ousadia de dirigir-se a ele naquele tom.
— Melhor será que se explique. — voltou-se para seu filho. — Finlay! Retirar-nos-emos
a meu gabinete. Não há necessidade de inquietar a sua mãe e sua irmã com isto.
A senhora FitzJames lhe lançou um olhar de súplica, mas seu marido a tinha deixado à margem, assim de nada servia protestar. Tallulah mordeu o lábio em um gesto de frustração, mas tampouco pigarreou.
Finlay se desculpou, levantou-se e saiu da sala atrás de seu pai e Pitt. Atravessaram o vestíbulo com retratos nas paredes e entraram em um amplo gabinete cheio de livros. Várias poltronas de couro avermelhado rodeavam a lareira, provida de uma tela de bronze guarnecida também de couro. Era um aposento agradável, desenhado para que quatro ou cinco pessoas pudessem conversar e ler comodamente. Sobre um aparador havia uma licoreira de prata e meia dúzia de livros extraídos das estantes com portas de vidro.
— E então? — disse FitzJames assim que fechou a porta. — A que veio, senhor Pitt? Dou por sentado que se cometeu algum delito ou se apresentou alguma prova. Seja o que for, meu filho não tem nada que ver, mas se souber algo que possa lhe ajudar, naturalmente lhe facilitará qualquer detalhe que você lhe peça.
Pitt olhou ao Finlay, mas foi incapaz de adivinhar se lhe incomodava que seu pai assumisse o controle da situação ou, pelo contrário, agradecia-o. Seu rosto delicado e atraente não revelava nenhuma emoção profunda. E certamente não parecia assustado.
Não tinha sentido andar com mais rodeios. FitzJames, com sua atitude, tinha anulado toda possibilidade de expor sutilmente o assunto e surpreendê-lo quando menos o esperasse. Pitt optou por um ataque frontal.
— Produziu-se um assassinato, no East End — respondeu com calma, olhando ao Finlay. — No lugar do crime se achou uma insígnia do clube Fogo do Inferno.
Previa alguma manifestação de medo, uma piscada ao encaixar o golpe por mais que o esperasse, ou uma repentina palidez. Entretanto não percebeu nada semelhante. Finlay permaneceu impávido.
— Poderiam tê-la perdido em qualquer momento — respondeu FitzJames sem dar importância à notícia do assassinato. Assinalou uma poltrona ao Pitt e ele ocupou a de frente. Finlay se sentou entre ambos, à esquerda de Pitt. — Suponho que considera oportuno falar com todos os que são, ou foram, sócios desse clube — continuou com frieza. — Embora pessoalmente ponha em dúvida a utilidade dessa medida. Acaso acredita que algum deles poderia ter presenciado o fato? — Arqueou ligeiramente suas retas sobrancelhas. — Se assim fosse, sem dúvida o teria denunciado já em alguma delegacia de polícia.
—As pessoas nem sempre denunciam o que vê, senhor FitzJames — disse Pitt. — Por
diversas razões. Umas vezes não se dão conta da transcendência de um fato, outras são remissos a admitir que se achavam pressentes porque os envergonha o lugar ou a companhia em que estavam, ou simplesmente porque haviam dito a suas famílias que iam a outra parte.
— Compreendo. — FitzJames se relaxou um pouco mas continuou sentado com o tronco para frente, os cotovelos apoiados nos braços da poltrona e os dedos curvados em torno dos extremos destes. Era uma atitude de autoridade e controle, e recordava às grandes estátuas do faraó Ramsés que apareciam desenhadas ou fotografadas nos jornais. — Quando ocorreu o fato que nos corresponde?
— Ontem à noite entre as nove e as doze, ou um pouco mais tarde no máximo.
FitzJames mantinha o semblante deliberadamente sereno e inexpressivo. Voltou-se para seu filho.
—Podemos resolver o assunto imediatamente. Onde esteve ontem à noite, Finlay?
Finlay pareceu desconfortável ante a pergunta de seu pai, mas mais por remorso que por medo, como se o tivesse surpreendido em uma indiscrição. Pela primeira vez Pitt albergou uma tênue duvida sobre sua implicação.
— Fora. Saí com... com o Courtney Spender. Fomos a alguns clubes e jogamos um pouco, não muito. Pensamos em ir a algum espetáculo de variedades, mas ao final mudamos de ideia. — Dirigiu ao Pitt um olhar lastimoso. — Não vi nenhum crime, inspetor. E para lhe ser franco, faz anos que não sei nada dos outros sócios do clube. Lamento não poder ajudá-lo.
Pitt não se incomodou em corrigi-lo quanto a sua posição. Tinha quase a total certeza de que mentia, não só pela insígnia, mas também porque seu físico concordava em grande medida com a descrição do nome que Rose e Nan tinham visto. Um ligeiro rubor tingia suas faces e seus olhos brilhavam de maneira anormal, mas mantinha o olhar firme.
FitzJames se revolveu em sua poltrona mas não os interrompeu, e Finlay não se voltou para ele.
—Teria a bondade de me dar o endereço do senhor Spender? — solicitou Pitt cortesmente. — Ou melhor ainda, se seu amigo tiver telefone, poderíamos esclarecer coisas agora mesmo.
Finlay ficou boquiaberto.
— Posso... posso lhe dar seu endereço. Não sei se tem... se tem telefone.
— Certamente seu mordomo sim sabe — se apressou a dizer Pitt. Dirigindo-se ao FitzJames, acrescentou : Se importa que o pergunte?
FitzJames o olhou atônito.
— Insinua que meu filho não disse a verdade, senhor Pitt?
— Nem sequer me passou pela cabeça — respondeu Pitt, sentado em igual postura que FitzJames, com as mãos apoiadas nos braços da poltrona.
Finlay, por sua parte, estava sentado na borda do assento com as costas erguidas.
FitzJames respirou fundo e pelo visto mudou de ideia. Estendeu um braço para a campainha.
—Acredito... acredito que isso foi anteontem. E lhe interessa saber o que fiz ontem à noite, não? — interrompeu-o Finlay, na aparência confuso. Moveu-se inquieto na poltrona com os punhos fechados e o rubor das faces muito mais intenso.
— Sim — confirmou Pitt. Não podia ceder. — Onde esteve ontem à noite?
— Ah, pois... verá, inspetor... para lhe ser justo... —Desviou a vista por um instante e logo voltou a olhar ao Pitt. — O caso é que... bebi muito, e não o recordo exatamente. No West End, disso sim estou certo. Não me aproximei do East End em toda a noite. Que motivo teria para ir ali? Não são bairros que eu frequente, compreende?
— Estava só?
— Não! Claro que não.
— Quem o acompanhava?
Finlay se mexeu na poltrona.
— Ah, diversas pessoas em diferentes momentos. Por Deus, não levo a conta de toda a gente que vejo! Quem mais quem menos sai uma noite de vez em quando. Vai a um clube, a um cabaré, já deve sabê-lo. Não, suponho que não sabe. — Ele mesmo não tinha certeza se esse comentário pretendia ser um insulto ou não; a incerteza se refletiu em seu rosto.
—Possivelmente possa me informar com mais detalhe se tiver a sorte de recordá-lo — disse Pitt com comedimento.
— Por quê? — prorrompeu Finlay. — Não vi nada. — Deixou escapar uma risada nervosa. — Além disso, no estado em que me achava não lhe serviria como testemunha.
Por fim FitzJames se decidiu a intervir.
— Senhor Pitt, apresentou-se você em minha casa sem prévio aviso e há uma hora inoportuna. Sustenta que se cometeu um novo assassinato no East End, uma zona muito ampla e pouco precisa. Não nos disse quem é a vítima nem que relação guarda esse crime com os membros desta família, salvo pelo fato de que foi achada uma insígnia de certo clube ao que meu filho pertenceu faz anos e já não pertence. Pelo que se vê, nem sequer existe. Necessita uma razão melhor para continuar abusando de nosso tempo.
— O assassinato teve lugar no Pentecost Alley, no Whitechapel — respondeu Pitt, e imediatamente se voltou novamente para o Finlay. — Quando se reuniram por última vez os sócios do clube Fogo do Inferno, senhor FitzJames?
— Isto é o cúmulo! — protestou Finlay, sem manifestar ainda mais sentimento que simples irritação. — Faz anos! Que importância tem? A qualquer um poderia ter lhe caído a insígnia na rua, ou em um clube, quem sabe? — Gesticulou de maneira exagerada. — Essa insígnia não demonstra nada. Poderia ter estado onde a acharam durante... não sei... meses, inclusive anos.
— Tem um alfinete bastante afiado — observou Pitt. — Imagino que uma prostituta o teria notado em sua cama em muito pouco tempo, digamos cinco minutos no máximo. E mais ainda neste caso em particular, já que a mulher jazia exatamente em cima.
— E de onde diz ela que saiu a insígnia? — perguntou FitzJames irado. — Não irá dar mais crédito à palavra de uma vulgar rameira que a de um cavalheiro? A de qualquer cavalheiro, e com certeza a de meu filho.
— Ela não disse nada. — Pitt olhou alternativamente ao pai e ao filho. — Estava morta, e tinha os dedos quebrados das mãos e os pés. Tinham-na empapado de água e estrangulado depois com uma de suas meias.
Finlay empalideceu. Cortou-lhe a respiração e a energia pareceu abandonar seu corpo.
FitzJames tomou ar lentamente, conteve-o nos pulmões enquanto se serenava e o exalou em um suspiro. Tinha branco o contorno dos lábios e dois pontos de cor nas faces. Cravou no Pitt um olhar frio e desafiante.
— É um fato lamentável. — Custava-lhe manter a voz controlada. — Mas não nos corresponde. —Não afastava seu olhar do de Pitt, como se se acreditasse capaz de hipnotizá-lo com sua força de vontade. — Finlay, facilitará ao inspetor os nomes e endereços de todos os sócios dessa desafortunada associação. Além disso, senhor Pitt, em nada podemos ajudá-lo.
Pitt olhou ao Finlay.
— A insígnia tem gravado seu nome.
— Já lhe disse que não se relaciona com essa gente há anos — disse FitzJames, erguendo cada vez mais a voz. — Sem dúvida devolveu a insígnia a quem quer que fosse o presidente disso... clube... e ele a perdeu. Não tem nada que ver com a identidade do assassino dessa desventurada. Suponho que uma morte assim é um dos salários de um ofício como o seu.
Pitt aguardou que sua repentina cólera amainasse, procurando algum comentário que desarmasse a desconsiderada arrogância daquele homem e lhe permitisse ver Ada McKinley, e todas as mulheres de sua condição, como se via a si mesmo: não formosa, não engenhosa nem inocente, mas sim ao menos como qualquer ser humano. Tinha sido tão suscetível de esperança ou dor como sua própria filha, sentada na sala de refeições com seu precioso vestido de musselina orlado de babados, com toda uma vida por diante em que provavelmente não conheceria a fome nem o temor físico, e em que seu pior pecado social seria vestir-se igual a sua anfitriã ou rir da piada indevida.
Mas não o ocorreu nada que tivesse sentido. Para as estreitas miras do FitzJames, Ada McKinley era exatamente o que ele achava.
— Sem dúvida — respondeu Pitt com frieza. — Mas a polícia não pode permitir o luxo de escolher que assassinatos investigar ou aonde lhe levam suas indagações.
Nenhum de seus dois interlocutores captou a insinuação implícita em sua frase.
— Naturalmente — concedeu FitzJames com o sobrecenho franzido. Para ele, como se adivinhava por sua expressão, aquela conversa não conduzia já a nenhuma parte. Voltou-se para o Finlay. — Pode nos dizer, se o recorda, quando viu essa insígnia por última vez?
Finlay parecia desolado. Seu soçobrar podia atribuir-se ao menos a meia dúzia de razões: o temor a ver-se envolvido no assassinato de uma mulher da rua, a confusão por ter tido que admitir que seu estado de embriaguez da noite anterior lhe impedia de recordar seus movimentos, o mal-estar ante a necessidade de dar os nomes de seus amigos e envolvê-los também. Possivelmente se devia inclusive a suspeita de que um ou vários deles estivessem de fato implicados; ou simplesmente ao presságio do sermão que receberia de seu pai assim que Pitt partisse.
—A... a verdade é... que não sei. — Olhava para Pitt no rosto e tinha os braços cruzados sobre o estômago. Possivelmente lhe havia caído mal o opíparo café da manhã de minutos antes. E muito possivelmente lhe doía à cabeça, deduziu Pitt pelo inchaço de suas pálpebras. — Faz anos, disso estou seguro — insistiu com firmeza. — Cinco no mínimo. — Evitava o gélido olhar de seu pai. — A perdi então, mas duvido que tenha ficado com algum de meus amigos a menos que fosse por acidente ou a modo de brincadeira.
Pitt estava convencido de que mentia em algo, mas quando se voltou para FitzJames esperando ver confirmada sua suspeita, achou só uma impenetrável muralha de silêncio. Em seu rosto não transparecia o menor indício de surpresa. Dava a impressão de que conhecesse de antemão a resposta. Acaso pai e filho tinham ensaiado previamente a conversa?
— E os nomes dos outros sócios? — perguntou Pitt, cada vez mais cansado. Começavam a causar brecha nele a falta de sono e o esgotamento provocado por tanta miséria, tantas ruelas escuras impregnadas de fedor a refugos e desesperança. — Necessito esses nomes. Ontem à noite alguém levava consigo essa insígnia e a deixou sob o corpo da mulher assassinada.
FitzJames fez uma careta de desgosto, mas se limitou a esticar ligeiramente os dedos em torno do extremo do braço da poltrona.
Em um lugar ressoavam com ritmo uniforme os ponteiros de relógio de um de pé. Fora do gabinete se ouviram as discretos passos de uma criada no chão de madeira.
— Éramos só quatro — respondeu Finlay por fim. — Norbert Helliwell, Mortimer Thirlstone, Jago Jones e eu. Posso lhe dar os endereços atuais do Helliwell e Thirlstone. Ignoro o paradeiro do Jones. Não sei nada dele há anos. Alguém me comentou que se ordenou sacerdote, mas provavelmente era brincadeira. Jago gostava muito de pandegas; gostava da diversão mais que outra coisa. Antes me inclinaria a pensar que partiu para a América. É o tipo de homem que iria a algum lugar remoto, como Texas ou a costa da Berbería.
— Se for amável de me anotar os outros dois endereços — pediu Pitt.
— Não acredito que lhe sirvam de nada!
— Talvez, mas serão um ponto de partida. —Pitt sorriu. — Por certo, lhe disse já que ao menos duas testemunhas viram o suposto autor do crime?
Esperava que Finlay se alterasse ao ouvir a notícia, ou possivelmente inclusive que se desmoronasse por completo. Mas se viu defraudado.
Finlay o olhou com os olhos muito abertos.
— Sério? Graças a Deus! Assim saberá que não era eu. — Depois de um instante se apressou a acrescentar: E não é que eu conheça mulheres dessa índole. — Era mentira, e nem sequer convincente. De fato pareceu a ponto de retratar-se.
Entretanto foi o rosto de seu pai o que se crispou em um fugaz indício de medo, insólito nele. Imediatamente, possivelmente porque suspeitava que Pitt o tivesse notado, o medo deu passagem à ira. Ao fim e ao cabo, era Pitt quem o tinha causado, e isso não estava disposto a perdoar.
— Duvido muito que fossem Helliwell ou Thirlstone — prosseguiu Finlay para romper o silêncio. — Mas se insistir, terá ocasião de comprová-lo você mesmo. Quanto ao Jago Jones, não me atrevo a lhe dar garantias, porque inclusive pode ser que não lhe seja fácil averiguar seus antecedentes. Nem sequer sei se tem família. Às vezes a gente não pergunta essa classe de coisas quando a resposta não é evidente. Se um tipo tiver saído de um nada, como aparentemente era o caso do Jones, por cortesia é melhor não fazer indagações.
Não havia muito mais que dizer. Pitt pensou em lhe pedir que lhe mostrasse a jaqueta que tinha levado a noite anterior, mas para isso, a menos que a destruísse, podia pedir ao valete mais tarde.
— Há outro detalhe — comentou por fim. — Uma abotoadura. Bastante peculiar. Estava também no quarto da vítima, entre a almofada e o espaldar de uma cadeira. Tem gravadas as iniciais FFJ e o selo de contraste. Suspeito que não é o tipo de objetos que possuem seus clientes normais.
FitzJames empalideceu e seus dedos brilharam ao crispar-se ainda mais seus dedos em torno do braço da poltrona. Engoliu saliva com dificuldade. Sua garganta parecia haver-se contraído, como se lhe oprimisse o colarinho da camisa.
Finlay, em troca, ficou perplexo. Seu rosto brando e bonito refletia só desconcerto.
— Eu tinha um par assim... — resmungou. — Me deu de presente minha irmã. Perdi um... mas faz anos. Sempre resisti a dizer-lhe. Foi uma estupidez por minha parte. Envergonhava-me, porque sabia que eram caros. Queria encomendar outro igual para que ela não se inteirasse.
— E como chegou até a cadeira da Ada McKinley, senhor FitzJames? — perguntou Pitt com um tênue sorriso.
—Sabe Deus — respondeu Finlay. — Como já lhe disse, não frequento lugares como esse. Nunca ouvi esse nome. É a mulher assassinada, suponho.
FitzJames avermelhou de ira e desdém.
— Valha-me Deus, moço! Como pode ser tão néscio? Claro que recorreu a mulheres como essa em seu dia! — voltou-se por volta do Pitt. — Mas essa abotoadura poderia levar anos nessa cadeira. Não há motivo algum para relacioná-lo com o que ocorreu ontem à noite. Vá procurar a esses outros jovens. Tente averiguar algo sobre essa condenada mulher. Provavelmente morreu em uma briga por dinheiro ou a matou alguma rival de mesmo ofício. Esse é seu trabalho, senhor Pitt. — ficou em pé, e por um momento seus membros permaneceram rígidos, como se por causa da tensão de conter-se lhe tivessem travado as articulações. — Lhe anotaremos esses endereços. Agora devo me ocupar de meus assuntos. Teria que estar já na City há tempo.
Dito isto, FitzJames saiu do gabinete sem olhar atrás, deixando ao Pitt a sós com seu filho.
Finlay, incômodo, hesitou por um momento. Sentia-se perturbado não só por ter sido descoberto em uma mentira, mas também pela reprimenda de seu pai em presença do Pitt. Tinha cometido uma estupidez indesculpável. Tinha sucumbido a um ato instintivo de covardia, o desejo espontâneo de desmentir tudo, de fugir, algo do que nenhum homem podia estar orgulhoso. Além disso, dispunha-se a dar ao Pitt os nomes e endereços de seus amigos, e tampouco isso podia evitar. Teria sido muito mais honroso, mais de acordo a um cavalheiro, ter opção a negar-se.
— Desconheço o paradeiro do Jago Jones — disse com satisfação. — Faz anos que não o vejo. Poderia estar em qualquer parte. Sempre foi um tanto excêntrico.
— Suponho que haverá alguma maneira de averiguá-lo — respondeu Pitt com um sombrio sorriso. — Possivelmente através dos arquivos do exército ou do Foreign Office.
Finlay o olhou com os olhos muito abertos.
— Sim, é possível.
— E quanto ao senhor Helliwell? — apressou Pitt.
— Ah, sim. Vive no Taviton Street. No número dezessete, acredito, ou talvez o quinze.
— Obrigado. — Pitt tirou um lápis e uma caderneta e anotou o endereço. — E o senhor Thirlstone?
— No Cromer Street. É uma das ruas adjacentes a Grei’s Inn Road.
— Número?
— Quarenta e tantos. Não o recordo exatamente.
Pitt tomou nota.
— Obrigado.
Finlay engoliu em seco.
— Mas eles não têm nada que ver com isto, asseguro. Não sei de onde terá saído essa maldita insígnia mas... mas lhe juro que eles não estão envolvidos. A verdade é que era um clube ridículo. A ideia de diversão desenfreada de um grupo de jovens, mas em realidade tudo era bastante inofensivo. Não fazíamos mal a ninguém, simplesmente... pois... — Fez um gesto de afetada indiferença. — Nos excedíamos com a bebida, jogávamos mais do que tínhamos... essas coisas. Pura imaturidade, suponho. Mas em essência fomos gente decente.
— Não o duvido — concedeu Pitt sem grande convicção. Muitas pessoas que alguém considerava decentes tinham um lado escuro, perverso.
— Como lhe disse, a insígnia deve ter se perdido faz anos — continuou Finlay com expressão carrancuda e olhar premente. — Não recordo quando vi a minha por última vez. Deus sabe.
— Muito bem — disse Pitt, evasivo. — Obrigado pelos endereços.
Despediu-se dele, e o mordomo, ainda cordial, acompanhou-o à porta.
Norbert Helliwell não estava em casa. Tinha saído para montar a cavalo pelo parque na primeira hora da manhã, informou ao Pitt seu mordomo, e depois de um copioso café da manhã tinha decidido ido ao seu clube. Era o clube Regency, no Albemarle Street, mas o mordomo considerava pouco aconselhável — não manifestou com palavras, mas sim com sua expressão — que Pitt fosse vê-lo ali.
Pitt parou uma carruagem e se dirigiu primeiro ao sul e logo ao oeste, para o Piccadilly. Quantas mais voltas dava ao assunto, mais firme era sua impressão de que não obteria nenhuma informação útil do Norbert Helliwell. Certos aspectos de sua visita à casa dos FitzJames o tinham surpreendido. Tinha esperado evasivas, irritação e inclusive alguma situação violenta. Tinha previsto deste modo que Augustus FitzJames fosse um homem dominante, decidido a defender a seu filho tanto se fosse inocente como se não.
Recostou-se no assento do cabriolé, que avançava rapidamente pelas concorridas ruas, adiantando-se a todo tipo de carruagens. Era já meia manhã, havia uma agradável temperatura e soprava uma brisa temperada. Elegantes damas tomavam ar, vendo às pessoas e deixando-se ver. Deixaram atrás mais de um landau descobertas e caleças. Cruzaram-se com uma pesada carreta carregada de barris de cerveja e puxada por grandes cavalos de abundantes crinas, pele lustrosa sob o sol e titilantes jaezes. Homens de negócios de semblante resoluto caminhavam pelas calçadas com passo enérgico, levantando de vez em quando a cartola para saudar algum conhecido.
Era Finlay FitzJames quem desconcertava Pitt. Sem dúvida mentia, mas não como ele tinha esperado. Claro que tinha conhecido mulheres como Ada McKinley. Negá-lo não tinha sido mais que um ato reflexo, uma reação defensiva ante um desconhecido. E sentia um profundo medo, mas não pelas razões previsíveis. Ao conhecer a morte da Ada não tinha manifestado mais emoção que o ligeiro pesar provocado em qualquer homem de sua idade por um fato semelhante. Era possível que não a considerasse humana e a ação de matá-la não o produzisse a menor lástima, nem sequer o temor de ter que pagar por seu crime?
Acaso recorrer aos serviços de uma prostituta era para ele comparável à caça da raposa, um esporte de cavalheiros onde o encanto residia na perseguição, e a morte final da presa não era mais que a conclusão lógica, e justificável inclusive, posto que possivelmente as raposas fossem animais?
Suas reflexões se interromperam ao deter o cabriolé frente à entrada do clube Regency. Apeou-se, pagou ao cocheiro e se dirigiu para a escadaria.
— É sócio? — perguntou o porteiro. Embora olhasse Pitt com rosto inexpressivo, a excessiva ênfase posta na pergunta dava a entender com clareza meridiana que sabia que não era sócio.
—Não — respondeu Pitt com um sorriso forçado. — Preciso falar com um dos sócios sobre um assunto delicado e em extremo desagradável. Talvez seja melhor que lhe transmita minha mensagem e depois nos busque um lugar onde conversar em privado, para lhe economizar assim a embaraçosa situação de me receber em público.
O porteiro o observou como se fosse um chantagista.
Pitt manteve o sorriso.
— Sou policial — esclareceu. — Da delegacia de polícia do Bow Street.
— Compreendo — disse o porteiro, embora era claro que não compreendia nada. Pitt não correspondia à sua imagem preconcebida de um policial.
— Far-me-á o favor? — acrescentou Pitt com tom um pouco mais áspero. — O sócio com quem quero falar é o senhor Norbert Helliwell. Seu mordomo me assegurou que estava aqui.
— Em seguida, senhor — respondeu o porteiro. Não via outra saída para uma lamentável situação que ameaçava escapar por completo das mãos. Ordenou a um moço que acompanhasse ao Pitt a uma pequena sala contígua ao vestíbulo, prevista possivelmente para casos como aquele. Não podia deixá-lo na entrada, onde existia a possibilidade de que falasse com outros sócios e complicasse ainda mais as coisas. O moço o guiou até a sala, deu meia volta e foi informar ao Helliwell de sua visita.
Norbert Helliwell era um homem de pouco mais de trinta anos e aspecto comum, em nada diferente a qualquer jovem de boa família e posição abastada.
— Bom dia. — Entrou e fechou a porta. — Me disse Prebble que se produziu algum fato desagradável a respeito do qual considera que posso ajudá-lo. Sente-se. — Apontou uma das poltronas e se sentou comodamente em outra. — Do que se trata?
Pitt nunca tinha visto um homem de aparência menos culpada.
—Posso lhe conceder dez minutos — acrescentou Helliwell com magnanimidade. — Sinto muito, logo devo me reunir com minha esposa e minha sogra. Saíram às compras. As senhoras são muito aficionadas a isso, sabe? — Deu de ombros. — Não, possivelmente não saiba. Alteram-se muito quando as fazemos esperarem. Não é absolutamente correto. Dá chão a mal-entendidos. Certamente se faz culpado. Só há duas classes de mulheres, compreende? —Sorriu. — Ao menos rondando pelas ruas. Recordará aquele deplorável fato, o de uma mulher totalmente respeitável que foi detida quando ia às compras. — Em sua voz se percebia ânimo de escárnio, e certamente o caso em questão não dizia muito em favor da polícia.
— Se é assim, não andarei com rodeios — anunciou Pitt, consciente de que estava formando uma opinião daquele homem muito depressa, prejulgando-o a partir de meras hipóteses. — Pertenceu você em outro tempo a uma associação composta por vários jovens e conhecida como o clube Fogo do Inferno?
Helliwell deu um pulo de surpresa, mas seu rosto anódino e confiante não revelou o menor alarme.
— Faz muito tempo. Por que o pergunta? Pretende alguém ressuscitá-lo? — Fez um leve gesto de indiferença. — Não era muito original. E o nome era bastante trilhado, se alguém para pensar. Recorda aos cavalheiros românticos de princípios do século, não lhe parece? —recostou—se na poltrona e cruzou as pernas. — Hoje em dia está muito mais em moda ser esteta, se a gente tiver energia emocional suficiente. Eu pessoalmente não conseguiria me apaixonar até esse ponto pela arte. Estou muito ocupado com a vida real. —Sorriu com comedimento.
Transparecia sua voz certo nervosismo, ou eram imaginações do Pitt?
— Você tinha uma insígnia mais ou menos deste tamanho? —Pitt ergueu uma mão e afastou aproximadamente meia polegada os dedos polegares e indicador. — De ouro esmaltado, com seu nome gravado ao dorso?
—Não me lembro, sinceramente — respondeu Helliwell, olhando ao Pitt nos olhos com descaramento. — É possível. Por quê? Que importância pode isso ter a estas alturas? O clube se dissolveu faz anos. Não nos vemos desde... — Tomou ar. Sem dúvida tinha empalidecido ligeiramente. — Não sei... antes de me casar. Faz seis anos no mínimo. —Voltou a sorrir, mostrando uma excelente dentadura. — Coisas de solteiros, compreende?
—Faço uma ideia. Conserva essa insígnia? — perguntou Pitt, passando por cima a incerteza do Helliwell a respeito de sua existência.
—Não saberia lhe dizer. Apesar de sua evidente perplexidade, parecia achar engraçado seu interesse. — Mas não acredito. Por quê? Olhe, melhor será que se explique. Até o momento não ouvi nada que possa qualificar-se de urgente ou importante. Disse ao porteiro que se tratava de um assunto desagradável. Vá ao ponto de uma vez, ou terei que deixá-lo. — Tirou um maciço relógio de ouro que pendia de uma corrente de ouro igualmente maciça e olhou a hora com gesto ostentoso. — Devo partir dentro de três minutos.
— Ontem à noite morreu assassinada uma mulher, e sob o cadáver encontramos uma insígnia desse clube — esclareceu Pitt, escrutinando seu rosto.
Helliwell engoliu saliva convulsivamente, mas não perdeu a compostura. Demorou uns segundos em responder.
— Sinto muito. Mas se era minha insígnia, posso lhe assegurar que não tive nada que ver. Ontem à noite jantei com meu sogro e imediatamente depois voltei para casa na carruagem. Minha esposa o confirmará, e também meus criados. Quem era essa mulher? —À medida que falava sua voz se fazia mais firme e seu rosto recuperava a cor. — Era minha insígnia? Quão mínimo posso fazer é averiguar onde a perdi, ou se me roubaram Embora duvide que lhe sirva de algo. Poderiam ter passado muitos anos.
—Não, não era sua insígnia. Mas...
Helliwell, iracundo, ficou em pé e o sangue afluiu a suas faces.
— Então por que demônios veio me importunar? — prorrompeu. — Isto é intolerável, cavalheiro! assim, de quem...? — Interrompeu-se subitamente, com uma mão erguida.
— Sim? — perguntou Pitt. — O acompanho. O que ia dizer?
— De quem...? — Helliwell voltou a engolir saliva. — De quem era a insígnia? — Deu um passo para a porta.
— Segundo a informação de que disponho, eram só quatro sócios — prosseguiu Pitt. — É isso correto?
—Ah... — Era evidente que Helliwell considerou a ideia de mentir, mas a descartou no ato. — Sim... sim, assim é. Ao menos em minha época. Eu abandonei o clube. Outros poderiam ter se unido depois, naturalmente.
Pitt se aproximou da porta e a abriu.
— Não desejaria que fizesse esperar a sua esposa e sua sogra por minha culpa.
— Não, claro. Enfim... sinto muito não ter podido ajudá-lo.
Helliwell saiu e cruzou o vestíbulo em direção à entrada, saudando o porteiro com a cabeça.
Pitt o seguiu a meio passo de distância.
— O que pode me dizer dos outros sócios dos tempos em que você pertencia ao clube? — perguntou.
Helliwell atravessou a porta principal, desceu pela escadaria e se encaminhou para Piccadilly pela ensolarada calçada do Albemarle Street.
— Ah... nada em especial. Tipos decentes. Agora terão todos mais anos e melhor senso, claro está. — Optou por desentender do assunto e renunciou a saber de quem era a insígnia.
— Mortimer Thirlstone? — insistiu Pitt, apertando o passo para não atrasar-se. Helliwell avançava a tal velocidade que esteve a ponto de tropeçar em outros pedestres; um landau com três damas de passeio não conseguiu ultrapassá-lo.
—Não o vi há uma eternidade — respondeu sem fôlego. — Não sei no que anda, na verdade.
—E Finlay FitzJames?
Helliwell se deteve em seco, e um homem com uma calça com listas caminhava na mesma direção um par de passos por trás tropeçou com ele.
— Desculpe! — disse o homem apesar de que obviamente a culpa tinha sido do Helliwell. A seguir acrescentou : Por favor, cavalheiro, tenha um pouco mais de cuidado!
— Como? — Helliwell se sobressaltou, como se não se desse conta até esse momento de que havia na rua outras pessoas além dele e Pitt. — Ah. Estava em seu caminho? Pois dê uma volta, pelo amor de Deus!
O homem arrumou o chapéu, olhou-o com expressão irada por um instante e, balançando seu guarda-chuva, seguiu adiante.
— Finlay FitzJames? — repetiu Pitt.
— Melhor será que fale com ele você mesmo — respondeu Helliwell, e de novo engoliu saliva. — Provavelmente perdeu de vista sua insígnia faz anos. Não havia necessidade de guardá-la. E agora terá que me perdoar, mas vejo já a minha família naquela esquina. Fez gestos com um braço a uma carruagem que reduzia nesse momento a velocidade. Em seu interior uma jovem muito bem vestida olhava para eles. Acompanhava-a um casal de maior idade e aspecto em extremo respeitável, ambos comodamente recostados em seus assentos. As damas estavam de rosto à frente e o cavalheiro de costas ao sentido da marcha.
Pitt inclinou a cabeça, e elas lhe devolveram a saudação. Helliwell não tinha mais alternativa que apresentar ao Pitt a sua família, ou despedi-lo no ato, gesto que se interpretaria como uma censurável descortesia e requereria posteriores explicações.
Helliwell xingou entre dentes e tomou uma decisão. Com passo brioso e um tenso sorriso no rosto, dirigiu-se para a carruagem.
— Minha querida Adeline, meus queridos sogros — saudou com postiça cordialidade. — Um dia magnífico, não lhes parece? Permitam-me que vos presente ao senhor Pitt. Encontramo-nos casualmente no clube. Temos alguns conhecidos comuns, relações de outro tempo, não atuais. Senhor Pitt, minha esposa e meus pais por afinidade, o senhor e a senhora Alcott.
Uma vez cumprimentadas as apresentações, Helliwell fez gesto de subir à carruagem.
—E o senhor Jago Jones? — disse Pitt com tom desenvolto. — Sabe onde posso encontrá-lo?
—Não tenho a menor ideia — respondeu Helliwell imediatamente. — Sinto muito, meu
amigo. Faz anos que não o vejo. Um indivíduo um tanto excêntrico. Era uma dessas relações circunstanciais, compreende? Em realidade, não tínhamos nada em comum. É me impossível ajudá-lo. — Apoiou uma mão na porta da carruagem.
—E o senhor Thirlstone? — insistiu Pitt. — Também ele era uma relação circunstancial?
Antes que Helliwell respondesse, sua esposa se inclinou no assento e olhou primeiro a seu marido e depois ao Pitt.
— Refere-se você ao Mortimer Thirlstone? Não, não é também uma relação circunstancial. Conhecemo-lo bem. De fato, não assistiu a outra noite à recepção que ofereceu lady Woodville? Sim, recordo-o claramente. Acompanhava Violet Kirk. Segundo rumores, não demorarão para celebrar seus esponsais. Para falar a verdade, ela mesma me confirmou isso.
— Não deveria divulgar essas coisas, querida — repreendeu Helliwell com voz rouca, ruborizando-se. — Não até que se anuncie oficialmente. Poderia criar situações incômodas. E se ao final não fosse verdade?
Abriu a porta da carruagem, e quando se dispunha a subir, sua esposa falou de novo, dirigindo-se ainda ao Pitt. Era uma mulher de belas feições e formoso cabelo castanho.
— Perguntava há um momento pelo paradeiro do senhor Jago Jones? — quis saber Adeline.
— Com efeito, senhora —apressou-se a responder Pitt. — O conhece?
—Não, mas certamente a senhorita Tallulah FitzJames poderia lhe informar. O senhor Jones era íntimo amigo de seu irmão, Finlay, a quem todos conhecemos. — voltou-se por um instante para o Helliwell, cujo expressivo olhar deveria havê-la feito emudecer. Entretanto conservou seu radiante sorriso e prosseguiu. — Se pergunta a ela, e lhe explica quão importante é para você localizá-lo, sem dúvida procurará ajudá-lo. É uma moça encantadora, e muito amável.
— É uma jovem leviana com quem preferiria que não se relacionasse — retificou o senhor Alcott. — Peca como generosa em suas opiniões, querida...
—Se estivesse mais atenta aos nossos comentários — acrescentou a senhora Alcott—, saberia que sua reputação desmerece à medida que passam os anos e continua solteira. Estou certa de que teve pretendentes. — Sublinhou sua afirmação com um delicado gesto. — Seu pai tem dinheiro; sua mãe é bem aparentada, e ela a sua maneira é uma moça agraciada. Se não contrair matrimônio logo, as pessoas começarão a perguntar-se qual é a razão.
— Estou de acordo — apressou-se a dizer Helliwell. — Vale mais que limite sua relação com ela ao que exige a cortesia, caso se encontrem em algum lugar, coisa pouco provável. Ela se move em círculos com os quais você não tem nada que ver. Acredito que "leviana" é um qualificativo muito benévolo para referir-se à Tallulah, querida sogra. Eu teria escolhido uma palavra muito mais contundente. — Seu tom era inapelável. Voltou-se para o Pitt. — foi um prazer conhecê-lo, cavalheiro. — Subiu à carruagem e fechou a porta. — Bom dia —acrescentou, e fez um sinal ao cocheiro para que se pusesse em marcha, deixando ao Pitt na calçada sob o sol.
A primeira vista Mortimer Thirlstone era um homem muito diferente. Era alto e magro e imitava o comportamento e a indumentária de um artista. Usava o cabelo longo e penteado com risca no meio. Vestia uma jaqueta informal, uma camisa de seda e um ondeante lenço meticulosamente amarrado em torno do pescoço. Mas oferecia o mesmo aspecto de segunda em si mesmo que Helliwell, como se fosse consciente de sua boa presença e se sentisse a gosto com a ideia de que esta seguisse lhe granjeando a cortesia a que estava acostumado.
Achava-se no centro do sinuoso atalho que atravessava o Regents Park em direção ao jardim botânico. Com a vista erguida, contemplava a brumosa luz do sol com um sorriso nos lábios. Era já primeira hora da tarde, e Pitt estava buscando-o desde a metade da manhã. Só depois de perseverantes indagações tinha conseguido localizá-lo.
— Senhor Thirlstone? — perguntou, embora estivesse já convencido de que era ele.
— O próprio, cavalheiro — respondeu Thirlstone sem descer o olhar. — Uma tarde magnífica, não lhe parece? Não cheira já os aromas de milhares de flores, nativas e exóticas, que se encontram mais à frente do alcance de nossa vista? A natureza é algo extraordinário. Não a valorizamos como merece. Dotou-nos de sentidos, e o que fazemos? Utilizá-los muito abaixo de suas possibilidades, meu senhor, muito abaixo. No que posso lhe servir, além de lhe recordar a existência de sua percepção olfativa?
— Conforme soube, faz uns anos pertenceu você a uma organização conhecida como o clube Fogo do Inferno... — começou a dizer Pitt.
— Organização? —Thirlstone desceu o olhar e sorriu ao Pitt. — Nada mais longe. O clube nunca esteve organizado. Aborreço a organização. É a antítese do prazer e criatividade. É o patético esforço dos homens por deixar seu rastro em um mundo do qual mal conhecem os rudimentos. É digna de lástima. — Um besouro voou sem rumo junto a eles. Thirlstone o observou agradado. — É a natureza quem organiza. Nós somos simples espectadores, ignorantes e frequentemente temerosos. Reverentes deveríamos ser, não temerosos. O medo atrofia nossas faculdades; é o abismo que nos separa da emoção pura. Acaso lhe interessa?
Pitt o olhou desconcertado.
— O clube Fogo do Inferno, cavalheiro! — esclareceu Thirlstone. — Lhe interessa? Foi uma loucura de juventude. Eu pessoalmente evoluí, persigo metas superiores nesta vida. Deseja unir-se ao clube? — Fez um gesto de indiferença e ergueu de novo a vista ao céu. — Não posso ajudá-lo. Inicie um por sua conta. Não espere ninguém. Parta do zero. Visite os cassinos, os cabarés, os hipódromos, as casas de má fama. Encontrará homens de inclinações afins. Terá onde escolher.
— Era esse o tipo de lugares que frequentavam? — perguntou Pitt, esforçando-se por aparentar interesse mas não ingenuidade. Não o conseguiu. Era um empenho impossível.
Thirlstone desceu o olhar e o observou como se acabasse de descobrir uma planta exótica.
— O que esperava? Horticultura? Poesia? Se seus gostos não incluírem a bebida, o jogo, os bons cavalos e as mulheres dadivosas, que busca em um clube assim?
A farsa tinha sido breve e chegava já a seu fim.
— Os nomes dos sócios fundadores e seus atuais paradeiros — replicou Pitt, ainda com certo artifício.
Thirlstone o olhou com assombro.
— Para que, meu amigo? O grupo se dispersou faz anos, ou possivelmente seria mais exato dizer que se dissolveu de comum acordo. Essa informação de nada lhe serviria agora.
Uma mariposa batia as asas sob o sol junto a eles. Um cão ladrava ao longe.
— Ontem à noite se achou uma insígnia do clube Fogo do Inferno sob o corpo de uma mulher assassinada — explicou Pitt.
—Santo Deus! É incrível! —Thirlstone ergueu suas negras sobrancelhas e enrugou a fronte em um gesto teatral. — E a você o que lhe interessa? Era de sua família? Meus mais sinceros pêsames. —Estendeu a mão em um gesto compassivo.
— Não. Não era minha parente — respondeu Pitt, incomodado.
— Então... não será polícia, não é? Não tem aspecto de polícia. Sim o é! — Pareceu achar engraçado, como se o fato entranhasse algum tipo de humor esotérico. — Que sórdido assunto! E para que demônios me necessita? Eu não sei nada. Quem era essa mulher?
— Chamava-se Ada McKinley. Era prostituta.
Um indício de lástima se refletiu no rosto do Thirlstone, algo que Pitt não tinha percebido no Finlay FitzJames nem no Helliwell. De súbito adotou uma atitude grave. A leve dissimulação de segundos antes desapareceu por completo, dando passagem a uma total concentração. Entreabriu os olhos, e por um momento permaneceu tão imóvel que Pitt de repente tomou consciência da brisa e o ligeiro vaivém das flores.
— Éramos só quatro, e cada insígnia tinha gravado o nome de seu dono. — Thirlstone falava com voz tão monótona que não parecia natural. — Devo interpretar que era minha a placa que se achou sob o corpo?
— Não.
Thirlstone não pôde dissimular seu alívio.
— Me alegro. Faz anos que não a vejo. — Engoliu saliva. — Mas nunca se sabe... — Observou ao Pitt com uma mescla de curiosidade e temor. — De quem era? Me... custa —me acreditar que qualquer dos outros fosse tão néscio para... — Deixou incompleta a frase, mas seu sentido ficou flutuando no ar, inequívoco.
Um jovem casal passou perto deles, e o cascalho rangeu sob seus pés.
— Falei já com o senhor FitzJames e o senhor Helliwell — comentou Pitt como de passagem. — Mas ainda não localizei ao Jago Jones.
—É inconcebível que Jago faça uma coisa assim — afirmou Thirlstone, e esta vez seu tom evidenciava uma total convicção.
— Por quê?
— Meu amigo, se conhecesse o Jago, não o perguntaria.
— Não o conheço. Por que lhe parece inconcebível?
— Ah, pois... —Thirlstone deu de ombros e abriu as mãos em um gesto de impotência. — Possivelmente o conheço menos do que acredito. Felizmente é você quem deve investigar, e não eu.
— Onde posso achar ao senhor Jones?
Pitt não esperava resposta, e não a recebeu.
—Sinto-o, mas não tenho a menor ideia — disse Thirlstone com um gesto de indiferença e expressão de dúvida. — Nas ruas. Nos bairros pobres. Esse foi um dos últimos comentários que lhe ouvi, mas ignoro se falava a sério.
Ergueu de novo a rosto ao sol em uma clara insinuação de que não desejava continuar falando, e Pitt se deu por informado.
Quando partia, Pitt passou junto a um oficial do exército de licença, magnificamente vestido com uma casaca vermelha de reluzentes botões e uma imaculada calça, para delícia de várias moças com vestidos de cores pastel de musselina e rendas, e inveja de uma babá com um engomado avental branco que empurrava um carrinho. Detrás das árvores chegava o som de um realejo.
Às quatro Pitt tinha tomado um almoço tardio, mas continuava tão cansado pela falta de sono que lhe ardiam os olhos e lhe doía a cabeça. Não achava que Jago Jones tivesse deixado a insígnia e a abotoadura do Finlay FitzJames no Pentecost Alley, mas devia comprová-lo, embora só fosse para descartá-lo. Ao fim e ao cabo, não era impossível.
Retornou ao Devonshire Street e perguntou ao cordial mordomo se podia falar com a senhorita Tallulah FitzJames. Sabia que há essa hora provavelmente estaria em casa, aguardando o momento de arrumar-se para sair para jantar ou a casa de alguma amiga. Entrou no salão em meio de um redemoinho de suave tecido rosado de um tom tão claro que parecia branco, com uma chamativa rosa costurada à cintura e longas fitas de cetim penduradas a um lado. Se seu rosto tivesse sido mais arredondado, menos resoluto e inteligente, seu aspecto teria produzido um efeito de enjoativa ingenuidade. Em troca, oferecia um enigmático contraste, e a julgar pelo modo em que permaneceu apoiada contra a porta, com as mãos nas costas seguras ao trinco, Pitt deduziu que também ela era consciente disso.
—Vá! — exclamou surpreendida. — Outra vez aqui? Já me inteirei da morte dessa pobre mulher, mas não acreditará que Finlay está envolvido? Seria absurdo. Por que ia fazer uma coisa assim? A minha mãe gostaria de pensar que nunca se aproximou sequer a lugares como esse, mas, já se sabe, os pais são como os bons cavalos de tiro. Cumprem à perfeição seu encargo enquanto não se rompam os arnês, ficam bem quando a gente passeia pela cidade, são a admiração dos amigos, e não vêem nada salvo o que têm em frente. Colocam-nos tapa-olhos para que não desviemos a atenção ou se assustem do que ocorre nas calçadas.
Pitt sorriu a seu pesar.
— Em realidade vim lhe pedir o endereço do senhor Jago Jones.
Pitt viu retesar-se seu corpo e endireitarem-se seus frágeis ombros sob o vestido de seda e musselina. Imaginou suas mãos segurando o trinco atrás das costas. Lentamente Tallulah se ergueu e se aproximou dele.
— Por quê? Acredita que foi Jago? Você não o conhece e naturalmente não imagina o ridículo que é essa ideia, mas lhe asseguro que eu suspeitaria do príncipe de Gales antes que dele. Muito antes, agora que o penso.
— Tem um elevado conceito do senhor Jones, vejo — disse Pitt com certa estranheza.
— Não em especial. —Voltou à cabeça, e os raios do sol iluminaram seu singular perfil: o nariz ligeiramente grande, os olhos escuros e vivos, a boca longa, disposta à risada e a emoção. — De fato é muito formal. Bastante aborrecido. — Continuava voltada para a janela, contemplando com fingido interesse os reflexos do sol nas folhas das árvores. — Mas nunca faria uma coisa assim. É da idade de meu irmão, e quando Finlay tinha vinte anos e eu dezesseis, Jago era um moço divertido. Ninguém contava as piadas melhor que ele, porque era capaz de imitar qualquer rosto e qualquer voz. — Fez um gesto de afetada indiferença, como se tais coisas não fossem com ela. — Mas agora é um homem muito devoto. Só pensa nas boas obras e na salvação das almas. Por que a pessoa se torna tão insossa quando se mete na Igreja?
— A Igreja? — repetiu Pitt sem ocultar sua surpresa.
— Não sabia? Não, imagino que não. Foi uma estupidez por parte de o Finlay simular que não sabia nada de seus antigos companheiros do clube Fogo do Inferno. Provavelmente considera que essa é a melhor maneira de protegê-los. Se o tiver feito algum deles, tem que ser Norbert Helliwell ou Mortimer Thirlstone. — Negou com a cabeça. — Não pôde ser Jago, e Finlay tampouco, certamente. Certamente essa mulher roubou a insígnia, e depois alguma outra pessoa a matou. Resulta bastante evidente, não lhe parece? — Dirigiu a Pitt um olhar desafiante. — Para começar, por que ia ficar outro dos sócios com a insígnia do Finlay? Cada um tinha a sua.
— Não teriam por que ter ficado de propósito — explicou Pitt. — O nome gravado ao dorso mal se vê. Seria fácil trocá-las por engano.
— Ah. —Tallulah respirou fundo, e a seda que envolvia seu peito e seus ombros se ergueu, refletindo a luz do sol. — Não me tinha ocorrido.
— Onde posso achar ao senhor Jones?
— Na igreja da Santa Maria, no Whitechapel.
Pitt tomou ar com uma brusca aspiração. Conhecia essa igreja. Achava-se nas cercanias do Pentecost Alley. Old Montague Street corria paralela ao Whitechapel Road até que esta passava a chamar-se Mele End.
— Bem. Obrigado, senhorita FitzJames.
— Mudou-lhe a expressão — observou Tallulah. — Santa Maria significa algo para você, vejo-o em seu rosto. Conhece-a!
Não tinha sentido mentir.
— Essa mulher foi assassinada em um beco que sai do Old Montague Street.
— Isso está perto da igreja? — perguntou ela, muito inquieta para sentir-se ofendida pelo fato de que ele tivesse podido supor que estava familiarizada com um bairro semelhante.
— Sim.
— OH! — voltou-se meio de lado. — Não importa. Já descobrirá que Jago Jones não está envolvido. Ele não se aproximaria de uma mulher assim, exceto para salvar sua alma. —Sua voz adquiriu um súbito tom de aflição, quase de ressentimento. — Não morreu de aborrecimento, suponho?
— Não, senhorita FitzJames. Morreu estrangulada.
Fez uma careta de dor.
— Se pudesse, ajudá-lo-ia — sussurrou. — Mas não sei nada.
— Proporcionou-me a direção do senhor Jones, e o agradeço. Muito obrigado por me receber a uma hora tão pouco oportuna. Boa tarde.
Tallulah FitzJames não respondeu. Ficou imóvel no meio do salão e seguiu ao Pitt com o olhar enquanto saía.
Passavam das seis quando retornou ao Whitechapel. Ao entrar na igreja da Santa Maria, o sacristão lhe anunciou que o pároco estava ausente. Tinha ido a algum lugar do Coke Street para auxiliar aos doentes. Se Pitt não o achava ali, podia experimentar no Chicksand Street, em direção oposta.
O sol poente ficava oculto atrás das altas e imundas casas de vizinhança, mas as calçadas despediam ainda o calor claustrofóbico e os aromas acres do dia. Lentos riachos de imundície corriam pelas redes de esgoto. Isso era Whitechapel, onde dois anos atrás um maníaco tinha assassinado e estripado a cinco mulheres, deixando na rua seus corpos ensanguentados. Não o tinham encontrado. Tinha desaparecido sem deixar rastro, como se o inferno o tivesse tragado.
Mesmo assim, quando Pitt se dirigia para o Coke Street, viu mulheres de pé nas soleiras das casas e entradas dos becos com esse peculiar ar de disponibilidade característico das prostitutas. Era o jeito de seus olhares, o ângulo dos quadris, tão diferente da lenta lassidão das mulheres depois de uma jornada na oficina ou fábrica, ou todo um dia colocando e tirando roupa dos caldeirões, revolvendo-a com a pá, levantando e escorrendo lençóis.
Tinham medo mas a fome as obrigava a vencê-lo? Ou se tinham esquecido já do Jack o Estripador e o pânico que tinha paralisado Londres enquanto duraram suas maldades?
Abordou-o uma moça de olhos grandes e castanhos e pele viçosa de camponesa recém chegada à cidade e o olhou de cima abaixo. Pitt sentiu um súbito acesso de repugnância e ira pelo fato de que a jovem se visse reduzida a aquilo, já fosse por circunstâncias alheias a ela ou por sua inata imoralidade. Não sem esforço, controlou-se e disse com tom sério:
— Procuro o reverendo Jones. Viu-o por aqui?
A moça o olhou com resignação.
— Sim. Está à volta da esquina. — Indicou-lhe a direção com um polegar. — Também você quer que salve sua alma, não? Boa sorte. Eu posso me pagar o jantar com meu trabalho, e a um preço mais baixo. — Dito isto, desviou sua atenção do Pitt e se afastou despreocupadamente para o Whitechapel Road em busca de algum cliente.
Pitt não sabia o que esperar do Jago Jones. Possivelmente era um sacerdote diletante, interessado na teatralidade do gesto; ou um segundo filho não apto para a carreira militar que tinha optado pela Igreja. Aquele podia ser seu primeiro passo com vistas a uma futura promoção na hierarquia eclesiástica.
Fossem quais fossem seus difusos preconceitos, de modo algum se ajustavam ao homem que achou no Coke Street, servindo conchas de sopa de caldo espesso e fumegante de uma grande leiteira em pequenas taças a uma multidão de deterioradas crianças, algumas das quais volteavam espectadores.
Jago Jones vestia uma informe roupa negra. Não se via o brilho branco do colarinho próprio de sua condição, mas tais coisas careciam de importância. Seu rosto por si só era muito impressionante para que qualquer detalhe indumentário pudesse chamar a atenção. Estava em extremo magro, quase gasto. O abundante cabelo lhe caía sobre as escuras sobrancelhas e uns olhos de extraordinária intensidade. Tinha um nariz aquilino e viril, e as profundas rugas que rodeavam sua boca davam realce a suas maçãs do rosto. Era o rosto de um homem consumido por suas emoções, e tão seguro do caminho eleito que nada nem ninguém podiam desviá-lo. Olhou ao Pitt com interesse.
— Jago Jones? — perguntou Pitt, embora sabia com toda certeza que era ele.
— Sim. No que posso lhe servir? — Não deixou de servir sopa e distribuir taças cheias entre as crianças. — Tem fome? — Era um oferecimento mais que uma pergunta. Uma simples olhada à roupa do Pitt, não só por sua qualidade, mas também por sua limpeza e seu estado de conservação, bastava para compreender que não padecia as mesmas carências que os paroquianos do Jones.
— Obrigado — disse Pitt. — Mas é melhor o uso que você está lhe dando.
Jago sorriu e seguiu com sua tarefa. Tanto sua provisão de sopa como a fila de crianças chegavam já a seu fim.
— Para que me necessita, pois?
— Meu nome é Thomas Pitt — disse Pitt, e imediatamente se perguntou por que se apresentou assim, como um homem que esperava acaso o nascimento de uma amizade, e não como um policial de serviço disposto a interrogar a uma testemunha ou talvez um suspeito.
— Tudo bem? — Jago Jones inclinou ligeiramente a cabeça. — Eu, como já sabe, sou Jago Jones, sacerdote, se não na aparência, sim ao menos em espírito. Não é você destes bairros. O que o traz por aqui?
— O assassinato da Ada McKinley no Pentecost Alley — respondeu Pitt, olhando-o no rosto.
Jago lançou um suspiro e ofereceu a última taça de sopa a um garoto agradecido. O moço observou ao Pitt, mas a fome apressava mais que a curiosidade, apesar de distinguir um policial a léguas.
— Me temia — admitiu isso Jago com tristeza, vendo afastar-se ao garoto. — A pobre desventurada! É um ofício duro, destrutivo para o corpo e a alma, embora poucas vezes de maneira tão rápida e violenta como no caso da Ada. E conforme parece, ao menos nesta ocasião, a alma de outra pessoa está em maior perigo que a dela. Não era má mulher. Um pouco ambiciosa às vezes, mas tinha valor e senso de humor, e certa lealdade com as de sua classe. Encarregar-me-ei de que tenha um enterro digno.
— Celebrará as honras fúnebres na Santa Maria? — perguntou Pitt, surpreso.
A expressão do Jago se endureceu.
— Se tiver alguma queixa a esse respeito, senhor Pitt, eleve-lhe a Deus. Ele decidirá quem merece e quem não o perdão por seus pecados e fraquezas. Não é prerrogativa sua, e sei a com certeza que tampouco o é minha.
Pitt sorriu com sincero agrado.
— Do qual me alegro profundamente — declarou. — Mas é um sacerdote pouco comum, reverendo Jones. Espero que seus paroquianos não ponham o grito no céu. Embora possivelmente estejam muito perto do lado questionável da sobrevivência e moralidade para julgar-se mutuamente.
Jago soprou, preferindo não responder. Entretanto sua ira e a tensão de seu corpo se atenuaram enquanto carregava a concha de sopa e a leiteira vazia no carrinho de mão situado atrás dele. Meia dúzia de garotos, com as taças ainda entre as mãos, aproximaram-se de novo e os observavam da esquina. Tinha corrido a voz de que um policial andava fazendo perguntas. A informação era vital naquele bairro.
— Veio me interrogar sobre o assassinato da Ada? — disse Jago ao cabo de uns segundos. — Não sei o que posso lhe explicar que lhe seja de utilidade. Provavelmente a matou algum cliente cujos demônios internos se desmandaram e se apropriaram dele. Muitos aguentamos mal a dor e a necessidade de sentir que controlamos o mundo mesmo que sejamos incapazes de nos controlar a nós mesmos.
Pitt se surpreendeu não pelo comentário, mas sim pela veemência com que o tinha expressado. Depois dessas palavras se adivinhava a profundidade de seus sentimentos, a diáfana clareza de sua percepção, como se a ira não se devesse à atrocidade perpetrada pelo assassino em um momento de alienação, mas a profundas reflexões albergadas em sua alma desde há muito tempo. Era acaso um exame de consciência? A ideia repugnou intensamente ao Pitt, mas não pôde evitá-la.
— É possível — concordou Pitt com calma.
Jago mantinha nele o olhar com firmeza.
— Vai nessa linha sua investigação?
— É a explicação mais verossímil.
— Mas não é a única possibilidade? — Jago se apoiou no carrinho de mão. — Por que veio a mim, senhor Pitt? Eu só posso lhe dizer da Ada o que provavelmente já sabe. Era uma prostituta comum, como outras muitas milhares em Londres. Quando as moças são despedidas do serviço doméstico, ou nem sequer admitidas de princípio, e não encontram ou não procuram trabalho nas oficinas e fábricas, só fica uma coisa que vender: seu corpo. —Não afastava o olhar do Pitt. — Para mim, é um pecado; para você, um delito. Mas para elas é mera sobrevivência. Ignoro a quem deve culpar-se de que ocorram estas coisas, e sinceramente as vivo muito de perto para me expor tais perguntas. Eu só vejo mulheres de carne e osso lutando por sua seguinte comida, pelo alojamento desta semana, por evitar as surras de seus clientes e seus fanfarrões, ou as navalhadas de uma rival de outra zona; mulheres que rezam a Deus com a esperança de não contrair enfermidades muito cedo. Provavelmente não chegarão a velhas, e sabem. A sociedade as despreza, e elas mesmas se desprezam também a maior parte do tempo. Ada era só uma de tantas.
Junto a eles passou uma mulher com uma cesta de roupa recém lavada no quadril.
— Conhecia-a pessoalmente? —perguntou Pitt, e foi apoiar se no outro lado do carrinho de mão. Vencia-lhe o cansaço. Deveria ter aceitado a taça de sopa.
— Sim. — Jago esboçou um tenso sorriso. — Mas não estou à corrente de sua clientela. De qualquer modo deviam ser clientes ocasionais em sua maioria. A pessoa que você procura poderia ter vindo de qualquer lugar. Às vezes Ada ia ao West End. Não está tão longe daqui como pode parecer. Era uma moça de boa aparência. Poderia ser alguém do Piccadilly ou Haymarket. Ou também poderia ter sido um marinheiro de passagem na cidade.
— Obrigado — disse Pitt com tom cortante. Tinha chegado o momento de expor o verdadeiro motivo de sua visita. Quanto mais o adiasse, mais difícil lhe resultaria. — Em realidade vim vê-lo porque você pertenceu a uma associação conhecida como o clube Fogo do Inferno.
Os músculos do Jago se retesaram sob a informe jaqueta. Na decrescente luz suas feições se tornaram anormalmente rígidas.
— Isso faz muito tempo — respondeu com serenidade. — E não é algo que recorde com orgulho. O que tem que ver com a morte da Ada? O clube se dissolveu faz seis ou sete anos. Então Ada nem sequer se instalara ainda neste bairro.
— Quando chegou?
— Fará uns cinco anos. Por quê?
— Em realidade não acredito que tenha muita importância — admitiu Pitt. — Imagino que ocorreu exatamente como você disse, a ação de um homem cuja violência e necessidades obedeciam a razões íntimas, e Ada não fez mais que despertar. Ou possivelmente fosse fruto da casualidade e pudesse haver acontecido a qualquer outra mulher que se cruzasse com ele. Acaso seu rosto, seu cabelo, um gesto ou o tom de voz desencadearam alguma lembrança na mente desse homem, e o ódio que levava dentro escapou a seu controle.
—O medo — disse Jago, e apertou os lábios. — O medo ao fracasso, o medo a não cumprir as próprias expectativas ou as de outros. — Acreditou detectar algo no rosto do Pitt, ou possivelmente só o esperava. — Não refiro a um simples medo à impotência. Refiro a um medo espiritual à debilidade da alma, essa classe de medo que nos induz a odiar porque estamos muito obcecados com nossos próprios assuntos para amar, muito absorvidos pela raiva de não ser como desejamos, de que os obstáculos do caminho nos sejam insolúveis, de que o preço seja mais alto do que imaginávamos.
Pitt permaneceu em silêncio enquanto diversas ideias formavam redemoinhos em sua mente. Até que ponto Jago Jones falava por si mesmo, pelas exigências e expectativas de sua função sacerdotal? Tinha necessitado uma mulher e recorrido a uma prostituta porque as mulheres decentes resistiam dado o papel que tinha escolhido? Riu-se então dele a prostituta, movida por sua própria decepção? Essa mulher dificilmente podia considerar o Jago mediador de Deus depois de vê-lo faltar a sua voluntária virtude. Era aquele estranho monólogo uma declaração de culpa?
— Encontramos uma insígnia do clube Fogo do Inferno sob o cadáver — disse por fim no círculo de silêncio que os envolvia. Os ruídos das carruagens e as cavalarias e as vozes de um homem do outro lado do cruzamento soavam longínquas, em outra existência.
— A minha não — respondeu Jago com cautela. — A atirei ao rio faz anos. Por que veio a mim, senhor Pitt? Não sei nada a esse respeito. Se soubesse algo, teria ido já denunciá-lo. Não teria esperado que viesse a me perguntar.
Jago Jones tinha a expressão de um homem que seguia só os ditados de sua consciência, alheio à lei e sem lhe importar o custo. Se o tivesse confessado um paroquiano, presa do terror ou o remorso, provavelmente não teria ido informar ao Bow Street nem a nenhuma outra delegacia de polícia.
—Consta-me que não era a sua — afirmou Pitt erguendo a voz. — Era a do Finlay FitzJames.
A tênue luz crepuscular não permitia já ver a cor do rosto do Jago, mas o súbito pulo e a contração de angústia em sua boca e seus olhos delataram uma violenta emoção.
O silêncio permaneceu inalterado, denso como a crescente escuridão. Que horrores inundavam a mente do Jago, agudizados de repente pela morte de uma mulher que conhecia? Era o temor pelo perigo que corria seu antigo amigo, pelos transtornos que aquilo podia lhe causar? Ou a culpa porque possivelmente tinha feito o que Thirlstone sugeria, ficar inadvertidamente com a insígnia do Finlay e deixá-la depois no cenário do crime?
— Não defende a inocência do FitzJames, senhor Jones — acrescentou Pitt em voz baixa. — Quer isso dizer que não o surpreende?
— Não... não... — Jago engoliu em seco. — Não quer dizer nada, senhor Pitt, salvo que a notícia me causar pena. Não acredito que Finlay seja culpado, mas não posso lhe oferecer uma explicação satisfatória, e certamente já teria pensado você em todas as possibilidades. —Deslocou o peso do corpo de uma a outra perna. — Possivelmente Finlay tenha estado ali em algum outro momento e lhe tenha caído à insígnia, embora estranho que continuasse levando-a, estranho muito. Possivelmente inclusive a deu a Ada a modo de... de pagamento. O fato de que a tivesse ela não implica que chegasse a suas mãos ontem à noite.
— Percebo seus esforços por ser leal a um amigo, senhor Jones — replicou Pitt com aborrecimento. — Atitude que respeito, mas não aplaudo. Naturalmente investigarei todas e cada uma das provas, e procurarei seu possível significado. Se recordar algo mais sobre a Ada McKinley ou algo que ocorresse ontem à noite, tenha a amabilidade de fazer-me saber. Deixe uma mensagem na delegacia de polícia do Bow Street.
— Bow Street? — Jago arqueou suas negras sobrancelhas. — Não Whitechapel?
— Trabalho no Bow Street. Sou delegado.
— Um delegado do Bow Street! Que interesse tem no assassinato de uma prostituta do Whitechapel? — Sua voz se converteu em um sussurro e vibrou ligeiramente com repentino medo. — Teme que tenha aparecido outro Jack o Estripador?
Pitt estremeceu, notando um frio nó no centro do estômago.
— Não. Solicitaram minha colaboração porque as provas implicavam ao senhor FitzJames.
— São muito pouco sólidas... — Jago se interrompeu e voltou a engolir em seco, olhando ao Pitt quase com expressão suplicante.
— Um homem que concorda com sua descrição foi visto, por duas testemunhas, no lugar do crime quase à hora exata.
Jago reagiu como se Pitt lhe tivesse atirado um golpe.
— Santo Deus! — sussurrou. Não usava o nome de Deus em vão; simplesmente orava.
— Reverendo Jones, sabe algo que deva me dizer?
— Não.
Pitt notou que a palavra saía de uma garganta seca e uns lábios tensos. Desejou acreditar nele, mas não pôde. A franqueza que momentos antes existia entre ambos se desvaneceu como o resplendor amarelado do céu sobre os telhados. Pitt percebeu de repente que o faroleiro tinha passado já. As artificiais luas de luz de gás reluziam a intervalos no caminho de volta ao Whitechapel Road e a casa.
— Ajudo-o com o carrinho de mão? — ofereceu Pitt solícito.
— Não, obrigado. Estou acostumado a levá-lo, e não pesa muito — recusou Jago, e se moveu por fim, inclinando-se para agarrar as varas.
Caminharam um junto ao outro pelo Coke Street e dobraram a esquina para a Santa Maria. Não voltaram a falar até achar-se frente à igreja, onde cruzaram uma lacônica despedida e se separaram.
Pitt chegou a sua casa, em Bloomsbury, cansado e anormalmente abatido. Comeu o jantar que Charlotte lhe tinha guardado e foi sentar se na sala, deixando entreabertas as portas do jardim. Temperada-a temperatura do dia baixava rapidamente e o aroma da grama cortada impregnava o ar.
Charlotte costurava sob o abajur. Tinha-lhe perguntado pelo caso que o tinha obrigado a sair tão cedo e retornar tão tarde. Pitt tinha explicado só que se tratava de um assassinato no Whitechapel e, dado que as provas implicavam a uma pessoa importante, podia ter graves repercussões políticas.
Pitt contemplou a sua esposa, seu cabelo limpo e encaracolado, reluzente como a mogno onde a luz se refletia, quase negro onde o envolvia a penumbra. Tinha a tez suave e uma leve vermelhidão nas faces. Estava relaxada e à vontade. Trazia um vestido de cor rosa intenso, e lhe favorecia tanto como qualquer outro objeto de seu vestuário. Seus dedos davam um ponto atrás de outro, cravando a agulha no tecido com a ajuda de um dedal de prata e puxando-a. Whitechapel se achava só a umas milhas dali em linha reta, e, entretanto um abismo de proporções inimagináveis afastava ambos os mundos. Charlotte vivia em um mundo seguro, limpo, com um sistema de valores estável; a honradez era fácil, e a castidade nem sequer representava um esforço. Sentia-se amada, e certamente nunca tinha duvidado desse amor. Não tinha que fazer concessões nem emitir julgamentos de valor sobre a sobrevivência. Não sabia o que era o cansaço anímico, nem a permanente incerteza, nem a aversão pela própria existência.
Não era estranho que sorrisse enquanto costurava. O que teria pensado Jago Jones dela? A teria considerado insuportavelmente satisfeita de si mesma, imperdoavelmente confortável em sua ignorância?
Charlotte seguia transpassando o tecido com a agulha, atenta ao trabalho porque não sabia trabalhar de outro modo. Gostava de ter as mãos ocupadas. Era-lhe mais fácil que estar ociosa. O dia tinha sido longo. Despertara à mesma hora que Pitt, e embora tivesse continuado deitada, já não havia voltado a conciliar o sono.
Sua irmã, Emily, tinha-a visitado no meio da amanhã. Tinha falado de trivialidades, mas Charlotte tinha notado nela uma desacostumada inquietação. Não era fruto da energia mal canalizada, mas sim da busca de algo que não era capaz de achar, ou possivelmente nem sequer determinar. Mostrou-se muito suscetível, ofendendo-se por vários comentários feitos sem má intenção. Essa conduta não era própria dela.
Charlotte se tinha perguntado se se devia ao aborrecimento de ter a sua avó alojada em casa desde as segundas núpcias de sua mãe. A avó se negara a viver sob o mesmo teto que o novo marido de Caroline, que era ator e de mais novo que Caroline. A circunstância de que fossem em extremo felizes não fazia mais que agravar a afronta.
Mas aparentemente o mal-estar de Emily não tinha uma causa concreta, e tinha partido sem dar explicações.
Pitt permanecia calado e pensativo em sua poltrona, com a testa franzida e a boca arqueada em uma careta de tristeza. Charlotte sabia que sua preocupação se devia ao novo caso. Em momentos como aquele mantinha um silêncio especial que com os anos ela tinha aprendido a discernir. Tinha os ombros caídos e as pernas cruzadas. Quando estava relaxado, apoiava os pés na tela da lareira fosse qual fosse a época do ano e estivesse ou não aceso o fogo. Em uma noite do verão como aquela, se não achasse absorto em seus pensamentos, teria caminhado até o fundo do jardim e ali, de pé sob a macieira, teria aspirado o perfume do ar. Teria esperado que ela se aproximasse, e se tivessem falado, não teria sido mais que de trivialidades.
Charlotte esteve tentada em várias ocasiões a lhe perguntar pelo caso, mas ele mantinha um semblante hermético e não tinha feito o menor comentário por própria iniciativa. Era claro que não desejava falar do tema. Possivelmente era algo tão atroz e sinistro que preferia não trazê-lo em seu lar. Ao fim e ao cabo, aquele era o único lugar onde podia liberar-se daquilo. Ou se não liberar-se por completo, ao menos não mencioná-lo se não fosse seu desejo.
Sabia que tinha ido ao Whitechapel, e sabia como eram esses bairros. Não podia esquecer as numerosas vezes em que tinha visto suas casas lúgubres e estreitas com a imundície de uma geração atrás de outra impregnada nas paredes, sua gente cansada, esfomeada e angustiada, em que tinha cheirado suas fétidas redes de esgoto.
Mas para auxiliar ao próximo a pessoa devia manter sua própria fortaleza. De nada servia compadecer-se. Para ajudar às massas se requeriam novas leis e uma mudança de sensibilidade na classe dominante. Para influir em um indivíduo se requeriam conhecimentos, e possivelmente dinheiro ou alguma aptidão adequada. Mas sobre tudo se requeria integridade e discernimento, requeria-se toda a fortaleza emocional de que alguém pudesse ter.
Assim continuou costurando em silêncio, esperando que Pitt estivesse preparado para compartilhar com ela suas preocupações, ou ao menos esquecê-las momentaneamente e desfrutar dos pequenos prazeres da vida para recuperar o ânimo.
Emily Radley, a irmã de Charlotte e ultimamente motivo de preocupação para esta, estava com efeito abatida. Seu estado de ânimo não se devia a nada em particular. Tinha tudo aquilo que considerava necessário para ser feliz. Em realidade tinha mais. Seu marido era atento, de aparência agradável e afetuoso. Não podia lhe reprovar nenhum defeito grave.
Quando se conheceram, ele era um homem de alto berço que vivia basicamente de suas qualidades como acompanhante e convidado divertido e encantador, suas deliciosas maneiras e seu agudo engenho. Emily não ignorava os riscos de apaixonar-se por ele. Chegado o momento podia ser superficial, dilapidador, ou até aborrecido passada a novidade. Em intermináveis monólogos tinha tentado convencer-se de que aquela relação era uma ninharia por sua parte, e de que inclusive existia a possibilidade de que ele a perseguisse principalmente pela fortuna que tinha herdado de seu primeiro marido, o finado Lorde Ashworth.
Sorriu ao lembrar-se de George. A memória era uma faculdade extraordinária, uma estranha mescla de tristeza, saudade, alegre recreação dos bons momentos e deliberado esquecimento dos maus.
Entretanto seus temores tinham sido infundados. Longe de ser um homem superficial, Jack tinha desenvolvido uma consciência social e um notável desejo de mudar a sociedade. Fez campanha para obter uma cadeira no Parlamento, e depois da derrota inicial havia tornado a apresentar batalha e alcançado sua meta na segunda tentativa. Na atualidade dedicava boa parte de seu tempo e suas emoções ao trabalho político.
Era Emily quem parecia um tanto insubstancial, um tanto esbanjadora.
Edward, o filho e herdeiro do George, estava no estúdio com seu preceptor, e a pequena, Evangeline, estava em seu quarto, onde a babá a cuidava, dava-lhe de comer e lhe trocava as fraldas. Portanto, a presença do Emily era em grande medida supérflua.
A manhã estava já avançada, e Jack foi a City fazia já tempo para atender vários compromissos antes da sessão na Câmara dos Comuns. Depois de ter sido testemunha de seus impetuosos esforços na seleção de candidatos para as listas eleitorais, a campanha, a derrota e a campanha seguinte, Emily sentia por ele um maior respeito, que tinha aumentado sua felicidade. Além disso, Jack consolidava sua posição rapidamente com autêntica destreza.
Assim, por que estava de braços cruzados no amplo e ensolarado salão de sua linda casa, vestida de rendas com rica cor café, e imersa naquela sensação de frustração?
Edward se achava no estúdio, Evie em seu quarto, e Jack na City, sem dúvida empenhado em reformar alguma lei que considerava antiquada. A cozinheira devia estar preparando o almoço sob a supervisão do mordomo; essa noite não era necessário servir jantar. Jack e Emily jantavam fora. Tinha encarregado já à criada que tivesse pronta sua roupa para a ocasião. Usaria um vestido novo de seda verde bosque debruado de flores de cores marfim e ouro, que entoavam bem com os tons claros de sua pele e cabelo. Estaria deslumbrante.
Tinha falado com a governanta. As contas estavam em ordem. Tinha a correspondência em dia. Não havia nada que dizer ao mordomo.
Perguntou-se o que faria Charlotte nesse momento. Provavelmente algum trabalho doméstico, costurar ou guisar. Desde a promoção de Pitt podia permitir-se mais serviço, mas havia ainda muitos afazeres dos que devia ocupar-se pessoalmente.
E Pitt no que andaria metido? Seu mundo era por completo diferente. Devia estar investigando algum delito, possivelmente só um roubo ou uma falsificação, mas talvez algo muito mais sinistro. Seus problemas eram sempre urgentes, relacionados com as paixões, a violência, a cobiça. Devia estar empregando a habilidade e imaginação que possuía, trabalhando até o esgotamento, tentando desenredar um matagal de acontecimentos e achar a verdade, discernir o bem e o mal, conseguir que se fizesse justiça ou pelo menos contribuir com uma solução.
Em outro tempo ela e Charlotte tinham colaborado com ele. Na busca do Decapitador do Hyde Park sua ajuda tinha sido considerável.
Emily sorriu sem dar-se conta. O sol entrava em torrentes pelas grandes janelas e feria as pétalas azuis e vermelhas de umas consolidas reais tardias — da segunda floração — dispostas em um vaso. Jack tinha demorado um tempo em perdoá-la pelos riscos que tinha deslocado naquele caso. Era compreensível. Poderia ter perdido a vida. Entretanto ela não tinha tratado de justificar-se; considerava que bastava uma desculpa.
Desejava que surgisse outro assunto no que ela e Charlotte pudessem participar. Ultimamente mal via Pitt. Aparentemente, desde sua promoção investigava delitos mais impessoais, delitos cujos móveis pertenciam a um mundo alheio ao Emily, tais como a traição no Foreign Office de há alguns meses.
— O que temos para o almoço? — perguntou a suas costas uma voz queixosa. — Não me incomodou em dizer isso. Em realidade não me diz nada! Trata-me como se não existisse.
Emily se deu meia volta e viu na soleira da porta a figura negra e miúda de sua avó. A anciã se havia sentido obrigada a abandonar sua própria casa quando a mãe de Emily se casara em segundas núpcias, e como Charlotte não tinha espaço para acolhê-la e Emily, em troca, dispunha de quartos e recursos de sobra, não tinha ficado alternativa razoável. Era um acerto que não agradava a nenhuma das duas, a Emily porque a anciã tinha um mau caráter insuportável, e à anciã por puro princípio. Ao fim e ao cabo, não tinha tomado ela a decisão.
— E então? — insistiu a anciã.
— Não sei o que há para o almoço — respondeu Emily. — Deixei isso em mãos da cozinheira.
—Tenho a impressão de que nunca faz nada nesta casa — reprovou a anciã, golpeando o chão com sua bengala. Era um chão de madeira com uma sianinha pintada, e não lhe parecia bem. Muito recarregado, dizia. Simples madeira teria bastado.
Vestia-se totalmente de negro, um aviso permanente-se por acaso alguém o esquecesse de que era viúva e devia ser respeitada e compadecida como tal.
— A cozinheira manda na cozinha e a governanta organiza o serviço — prosseguiu com tom crítico. — O mordomo mantém sortidas a despensa e a adega. A criada decide que roupa vai pôr. O preceptor instrui a seu filho e a babá cuida de sua filha. Fazem-lhe isso tudo, e mesmo assim não encontra um momento para falar comigo. Está muito mimada, Emily. Isso te passa por se casar primeiro com um homem de posição social superior à tua, e depois com um de posição inferior. A este passo não sei aonde vai parar o mundo.
— Disso não me cabe a menor duvida — concordou Emily. — Em realidade nunca soube muito do mundo. Para você uma metade não existia e a outra a dava por sentada.
A anciã a olhou horrorizada e se ergueu quão alta era, que não era muito.
— Como disse? — perguntou com uma voz aguda pela indignação.
— Se quer saber o que há para almoçar, toque a campainha da cozinha e inteira-se. Se gostar de algo diferente, suponho que poderão lhe satisfazer o prazer.
— Que esbanjamento! — A anciã estalou os dentes em sinal de desaprovação. — Em minha época comíamos o que nos punham no prato. É um pecado desperdiçar a comida.
E depois destas palavras de despedida, deu meia volta e saiu irada do salão. Suas ruidosas pegadas ressonaram no vestíbulo. Ao menos assim se economizavam a habitual conversa sobre as recentes aventuras de Caroline e seu egoísmo por haver-se casado pela segunda vez sem tomar em consideração o caos em que assumia à vista de outros. Ou uma nova diatribe sobre os atores em geral, ou os atores judeus em particular, e a inevitável conclusão de que, do ponto de vista social, eram ainda piores que os policiais. O único aspecto positivo daquele assunto, na estridente opinião da anciã, era que no mínimo na idade de Caroline o matrimônio já não procriaria.
Sem dúvida algum desses temas, se não todos, viriam à tona durante o almoço.
Emily dedicou a tarde a escrever cartas, mais por entretenimento que por necessidade real, e depois subiu ao piso superior para passar um primeiro momento com Evie e depois com Edward. Este a pôs à corrente de suas últimas lições e de seu complicado projeto de construir um castelo a escala como o que os templários tinham erigido em Terra Santa durante as cruzadas.
Jack chegou a casa pouco depois das seis. Tinha estado todo o dia na City, mas quando entrou no salão caminhava ainda com brio suficiente para deixar oscilando a suas costas a porta de vaivém.
— Foi um dia magnífico — anunciou com entusiasmo enquanto se inclinava a beijá-la na fronte e lhe acariciar delicadamente o cabelo. — Acredito que poderei contar com o apoio do velho Fothergill. Hoje almocei com ele. Levei-o a esse restaurante novo do Strand. É muito caro para o que servem, mas a decoração é deliciosa, e Fothergill ficou impressionado, que era do que se tratava. — Sentou-se de meio lado no braço de uma poltrona e começou a balançar a perna que pendia no ar. — A questão é que me escutou com sincera atenção. Tentei convencê-lo da importância do ensino gratuito para toda a população como investimento com vistas ao desenvolvimento industrial...
Desde sua entrada no Parlamento Jack lutava por conseguir um maior nível educativo para os pobres. Emily tinha seguido de perto as desigualdades de seu empenho.
— Me alegro muito — disse Emily, e era certo, mas seu ânimo lhe impedia de sorrir com o devido júbilo. — Possivelmente assim se decante de uma vez a balança.
Por puro amor próprio, Emily se vestiu para a noite com supremo esmero, e às oito e meia estava sentada a uma enorme mesa entre um corpulento militar com opiniões categóricas sobre a Índia e um banqueiro que estava firmemente convencido de que às mulheres interessavam-se só pela moda, fofoca e teatro, e restringia sua conversa em consequência.
Frente a ela se achava um homem de uns trinta anos cuja única preocupação era a criação de puros-sangues, mas junto a ele se sentava uma jovem de singular aspecto, com o nariz muito longo, a boca larga e uma expressão de bom humor e vitalidade que induziu ao Emily a olhá-la com frequência suficiente para atrair sua atenção e lhe fazer saber em determinados momentos da reunião que compartilhava seu aborrecimento e exasperação.
Jack, em cumprimento de suas obrigações políticas, ocupava uma cadeira próxima à cabeceira e procurava captar o interesse de pessoas influentes que pudessem dar maior impulso ao projeto de reforma educativa. Para Emily aquilo também era importante, mas ali só podia exibir seu encanto e desempenhar um papel ornamental, e a ideia seguindo desta maneira indefinidamente, cada vez a convencia menos.
A sala de jantar estava suntuosamente pintada em cores azul e ouro. Largas cortinas de veludo engalanavam as altas janelas, franzidas em abundantes dobras e esparramadas pelo chão em sua parte inferior conforme a moda do momento. Na mesa cintilavam a prata e o cristal. Os ofuscantes reflexos da luz mal permitiam ver os rostos dos comensais sentados nos extremos da mesa. Em torno dos brancos pescoços das damas os diamantes brilhavam como o fogo e as pérolas despediam seu leitoso resplendor.
Sob o rumor de vozes se ouvia o discreto tinido da prata contra a porcelana. Os lacaios enchiam uma e outra vez as taças. Os pratos iam e vinham: peças, sopa, peixe, pudim, prostre, fruta. E finalmente a anfitriã ficou em pé e convidou às senhoras a retirar-se e deixarem os homens com seu Porto e suas sérias conversas. Ao fim e ao cabo, esse era o propósito real daquele jantar.
Obediente, Emily se levantou e saiu com o resto das damas em meio de um sussurro de tecidos e um redemoinho de saias de preciosas cores. No caminho, enquanto cruzavam o vestíbulo, conseguiu situar-se ao mesmo tempo com a jovem que tinha estado sentada frente a ela durante o jantar. Olhou-a de soslaio e captou sua atenção quando entravam na recarregada sala, ornamentada com retratos de antepassados em irreais cenários campestres.
— Não é uma chateação, a noite? — resmungou a jovem, erguendo o leque para que as damas de sua esquerda não ouvissem suas palavras.
— Insuportável! — admitiu Emily também em um sussurro. — Nunca na vida me tinha aborrecido tanto. Tenho a impressão de saber o que vai dizer cada um dos pressentes antes que o diga.
— Isso é porque a última vez disseram exatamente o mesmo — afirmou a jovem com um sorriso. — Oscar Wilde sustenta que a obrigação do artista é surpreender sempre.
— Então a obrigação do político deve ser dizer e fazer sempre o que se espera dele — acrescentou Emily. — Assim nunca pega a ninguém despreparado.
—Nem diz nunca nada interessante ou engraçado. Por certo, meu nome é Tallulah FitzJames. Já sei que não nos apresentaram, mas é claro que temos espíritos afins.
— Eu sou Emily Radley.
— Ah! É a esposa do Jack Radley? — perguntou Tallulah com um indício de admiração no olhar.
— Sim — respondeu Emily com orgulho. A seguir acrescentou com franqueza : Se não fosse sua esposa, não estaria aqui.
Dirigiram-se a um sofá de dois lugares para sentar-se sós sem incorrer na descortesia de excluir ninguém de sua conversa.
— Eu não sei o que faço aqui. — Tallulah deixou escapar um suspiro. — Vim com meu primo, Gerald Allenby, porque ele me pediu isso com a ideia de cortejar à senhorita... Enfim, não recordo seu nome. O pai dela comprou uma mansão enorme no Yorkshire ou algum outro lugar. Maravilhosa no verão e como o pólo norte no inverno.
— Eu vim como figura decorativa, para sorrir às pessoas devidas — admitiu Emily com tom lastimoso.
Iluminou-se o rosto de Tallulah.
— E lhe é permitido olhar com ódio e mostrar a língua às pessoas indevidas? — perguntou esperançada.
Emily se se pôs a rir.
— Possivelmente sim, em caso de que soubesse quem são umas e outras. O problema é que quem num dia são pessoas indevidas no dia seguinte são as pessoas devidas, e então não é possível já retirar os olhares de ódio.
—Não, não é possível — concordou Tallulah com súbita seriedade. — Em realidade o fato, feito está. A gente sempre recorda, embora alguém tenha esquecido.
Emily percebeu um tom de pesar em sua voz. De improviso as emoções cobraram nova autenticidade. O resto da sala desapareceu da consciência de Emily, as vozes em afável conversa, o tinido das comedidas risadas.
— Há pessoas que esquecem — disse em voz baixa. — Esquecer é uma arte, e se quiser continuar amando a alguém, deve aprendê-la.
— Não quero continuar — respondeu Tallulah com um tenso sorriso, como zombando de si mesma. — Daria algo por saber como deixar de fazê-lo.
Emily formulou a pergunta óbvia:
— É casado?
Embora sua amargura fosse evidente, Tallulah pareceu ver um lado cômico à ideia.
Emily não desejava pecar de indiscreta, mas pressentia que aquela jovem precisava confiar a alguém intimidades que sem dúvida a afligiam e possivelmente não podia contar a sua família. Talvez seus pais não estivessem ao corrente, ou se estivessem, por acaso não o aprovassem. Em realidade, se o objeto de seu amor era um homem casado, eles pouco podiam fazer.
— Não, não é casado — respondeu Tallulah. — Ou ao menos não estava a última vez que o vi. Duvido que chegue a casar-se, e se se casar, será com uma mulher sensata e formosa, de olhar inocente e cachos naturais, e atitude sempre amável.
Emily refletiu por um instante. Não queria dizer uma rabugice, e não era fácil interpretar a verdadeira índole da aflição de Tallulah através de suas displicentes palavras. Não sabia se respondia também com ironia ou com evasivas, ou se lhe demonstrava que adivinhava a profundidade da ferida, mas não sua natureza.
No outro extremo da sala uma corpulenta mulher com o cabelo claro e a tez de cor magnólia jogou atrás a cabeça e riu com recato. A luz dos abajures de gás cintilava em um tumulto de belas cores alaranjadas, rosas e azuis em torno, e as saias de seda se desdobravam como pétalas de papoula. Atrás dos vidros das janelas caía lentamente a noite estival, e entre os ramos das árvores, por cima da taipa do jardim, viam-se ainda farrapos avermelhados.
—Eu não gostaria de estar casada com uma pessoa sempre amável — disse Emily com sinceridade. — Me sentiria inferior. Além disso, nunca teria a certeza de que pensava realmente o que dizia.
Tallulah contemplou as mãos longas e finas apoiadas no regaço.
— Jago não se sentiria inferior — respondeu. — É o melhor homem que conheci.
Emily continuava sem saber a que ater-se. Jago, quem quer que fosse, parecia um indivíduo bem aborrecido, e de fato um tanto irreal. Ou possivelmente essa fosse uma apreciação injusta. Talvez essa imagem fosse só a que Tallulah tinha dele. Mas olhando de esguelha o semblante triste da moça, custava acreditar que alguém tão bom como afirmava despertasse o mínimo interesse, salvo que se tratasse de simples curiosidade. Até imersa em suas reflexões, seu rosto transbordava vitalidade e ousadia. Tinha a boca muito larga, feita para a risada, o nariz pronunciado, mas inconfundivelmente feminino, e os olhos lindos, grandes e inteligentes. Era o rosto de uma rebelde, imprevisível, absolutamente judiciosa, possivelmente descomedida às vezes, mas sempre audaz.
— Melhor em que sentido? — perguntou Emily sem pensar muito em suas palavras.
Tallulah sorriu a seu pesar.
— Quanto à nobreza de espírito, quanto a amor ao próximo, às pessoas reais — respondeu. — E também no sentido de que trabalha tantas horas como tem o dia, renuncia a seus bens para dar de comer aos pobres, e dedica sua vida inteira a servir a outros. Se lhe parece aborrecido ou inverossímil, é só porque não o conhece.
— E tem certeza de que o conhece?
Tallulah ergueu a vista.
— Sim, claro. É pároco no Whitechapel. Eu não estive ali, naturalmente. É um lugar espantoso. Dizem que só o aroma basta para lhe revolver o estômago. Há tinas de lixo abertas por toda parte. O fedor se apalpa no ar. A gente vive na mais absoluta miséria, e estão todos sujos e gastos.
Emily recordou suas próprias experiências com a pobreza, às ocasiões em que tinha ajudado ao Charlotte e Pitt e visto com seus próprios olhos a realidade da fome: dez ou doze pessoas amontoadas em um quartinho, dormindo no chão, sempre transidas de frio, sem intimidade nem sequer para os atos mais privados. Sabia muito melhor que Tallulah do que falava. Possivelmente o tal Jago fosse realmente um bom homem.
— Como o conheceu? — perguntou. — Duvido que se mova nos mesmos círculos. Sem ir mais longe, não imagino em um lugar como este. —Desviou o olhar para as risonhas mulheres de cinturas engravatadas, saias ondeantes, ombros brancos e lustrosos, pescoços adornados com pedras preciosas. Se alguém ali tinha passado fome alguma vez, tinha sido por simples vaidade. Mas em justiça devia reconhecer-se que ao menos para as solteiras a beleza era o único meio de sobrevivência.
— Antes sim — respondeu Tallulah. Olhou ao Emily com expressão franca. — Acredita que o vejo através de um véu de romantismo, não é? Que não conheço a pessoa real, que só vejo sua vocação e sua entrega profissional. — Negou com a cabeça. — Não é assim. Tem a mesma idade que meu irmão, Finlay, e em outro tempo eram amigos. Finlay é mais velho que eu. Oito anos mais velho. Mas lembro que Jago vinha em casa frequentemente quando eu tinha dezesseis anos, pouco antes de me apresentar em sociedade. Era encantador comigo.
— Mas agora já não o é?
Tallulah a olhou com remorso.
— Claro que não. Tratar-me-ia cortesmente se nos encontrássemos por acaso, certamente. É cortês com todo mundo. Mas imagino o desdém em seu olhar. O mero fato de que me falasse através de um muro de boas maneiras, como se não fosse já uma pessoa real para ele, é prova de seu desprezo.
— Por que teria que desprezá-la? Não seria essa uma atitude bem intolerante?
A amargura voltou a apoderar-se do rosto de Tallulah, varrendo a sua passagem toda vivacidade e determinação.
—Em realidade, não. Possivelmente exagerei ao dizer "desprezo". Simplesmente não dispõe de tempo para mim. Eu vivo rodeada de luxos. Vou de festa em festa. Como deliciosos manjares que não pago com meu trabalho nem preparo com minhas mãos. —Elevou um elegante ombro. — Para lhe ser justa, nem sequer sei de onde vêm. Limito-me a pedi-los à cozinha e chegam a minha mesa, já no prato e preparados para comer. E quando esvazio o prato, alguém o leva e faz com ele o que tenha que fazer. Lavá-lo e guardá-lo, suponho. — tocou-se a saia, acariciando com as pontas dos dedos a seda suave e brilhante. — E levo magníficos vestidos, que não costuro, e se tivesse que cuidá-los eu pessoalmente, não saberia por onde começar. Inclusive tenho uma criada que me ajuda a me vestir e tirar Quando estão sujos, ela os entrega à lavadeira, salvo os melhores, como este, que os lava ela mesma. Acredito que alguns inclusive têm que descosturar-se para lavá-los devidamente, mas não tenho certeza.
— Sim, assim é — confirmou Emily. — É uma tarefa muito árdua.
— Vê-o?
— Não. Muita gente vive como você. Não gosta dessa vida?
Tallulah ergueu a cabeça e olhou fixamente para Emily com os lábios apertados.
— Sim, claro — respondeu por fim. — eu adoro! Claro que eu gosto. Você não? Não gosta de sair para jantar e dançar, arrumar-se, estar em lugares bonitos, ir ao teatro e rir as ocorrências de gente engenhosa? Não deseja às vezes ser atrevida, levar a voz cantante, fazer comentários escandalosos e passar um momento com pessoas excepcionais?
Emily a entendia perfeitamente, mas não pôde evitar um sorriso e uma olhada a um grupo de formais e afetadas damas que se achavam a uns passos delas, sentadas com as costas erguidas — algo inevitável com os espartilhos de baleias —, falando em sussurros das insignificantes falta de decoro de alguma conhecida.
—Possivelmente ele e você tenham uma ideia distinta do que é uma pessoa excepcional? — sugeriu Emily.
— Isso é claro! — respondeu Tallulah com tom cortante, mas um indício de sorriso em seus lábios revelou que compreendia a insinuação. — Para mim é excepcional Oscar Wilde. Ele nunca fala com ninguém com superioridade, salvo do ponto de vista artístico, que é algo diferente. E é sinceramente insincero, não sei se me entende?
— Pois não — admitiu Emily, aguardando uma explicação.
— Quero dizer... — Tallulah procurou as palavras. — Quero dizer que... não se engana. Não é pomposo. Diz tais disparates que alguém se dá conta imediatamente de que está rindo—se de tudo, e ao mesmo tempo tudo tem grande importância. É... é divertido. Não vai por aí tentando melhorar a ninguém nem emitindo julgamentos morais, e seus comentários são sempre engenhosos, e tem graça repeti-los em outras conversas, e não fazem mal a ninguém. — Lançou uma olhada ao redor. — Isto é tão... insuportavelmente tedioso. Ninguém pronunciou uma só palavra digna de recordar-se, e menos ainda de contar-se a outra pessoa.
Emily tinha que lhe dar razão.
— O que tanto lhe atrai em Jago? Pelo que explica, não se parece em nada ao senhor Wilde.
— Sei — reconheceu Tallulah. — eu gosto de escutar ao Oscar Wilde, mas não me casaria com ele. Isso é outra coisa.
Possivelmente não era consciente do que havia dito. Emily a olhou e viu em seu rosto sinceridade, e uma ameaça de ironia mal dissimulada, e compreendeu que tanto se desejasse expressá-lo em voz alta como se não, havia dito o que pensava.
—Não sei por que — prosseguiu Tallulah —, e acredito que prefiro não saber.
A chegada dos cavalheiros impediu-as de seguir dialogando sobre o tema. Jack tinha uma expressão muito séria. Ao entrar conversava distraidamente com um homem corado de espessas costeletas que tinha uma banda de alguma ordem sobre o peito. Olhou a Emily por um momento e continuou falando. Esse breve olhar significava que não devia ser interrompido, e Emily o aceitou.
Foi igualmente compreensiva quando uma hora mais tarde Jack se aproximou e lhe comunicou, com encarecidas desculpas, que tinha que abandonar cedo a recepção para ir ao Ministério do Interior com o cavalheiro das costeletas, e deixaria a carruagem ao seu dispor para que retornasse a casa quando quisesse. Aconselhou-lhe que não o esperasse acordada, já que ignorava quanto tempo se prolongaria aquele assunto, mas podia ser toda a noite. Sentia-o realmente.
Assim, vinte minutos mais tarde, tão aborrecida que mal podia oferecer respostas coerentes às perguntas mais corriqueiras, Emily viu contente que Tallulah FitzJames se aproximava de novo a ela.
— Já não aguento mais — sussurrou Tallulah. — Pelo visto, meu primo já tem cativada à senhorita não sei como se chama, e posso partir tranquilamente e deixá-lo que desfrute sua vitória. — Por seu tom de voz se adivinhava que concedia pouca importância a aquelas coisas. — Reggie Howard convidou a uma festa na Chelsea. Vai a classe de gente de que falávamos faz um momento, artistas, poetas, intelectuais. Tratarão dos temas mais diversos. — de repente seu entusiasmo era manifesto. — Alguns estiveram em Paris e conheceram aos escritores franceses. De fato ouvi dizer que Arthur Symons retornou dali faz um ou dois meses, e talvez nos ponha à corrente de sua entrevista com o grande Verlaine. Será incomparavelmente mais interessante que isto.
Era um claro convite, e Emily vacilou. O correto teria sido desculpar-se e voltar para casa na carruagem. Ao fim e ao cabo, sua função ali havia já concluído.
Mas estava já cansada de cumprir com seus deveres para com aqueles que não esperavam menos e em realidade a tinham muito pouco em conta. Nem Jack nem seus filhos a necessitavam. A casa marchava por si só; suas decisões eram uma mera formalidade. Perguntavam-lhe só por cortesia. A cozinheira, o mordomo e de a governanta exatamente o mesmo tanto se ela estava como se não. Sua mãe havia tornado a casar-se e se achava muito absorta em sua própria felicidade para requerer sua companhia ou suas recomendações.
Tampouco Charlotte tinha solicitado sua ajuda ultimamente. Pitt não tinha tido nenhum caso em que sua colaboração pudesse ser necessária. De fato, nem sequer sabia o que investigava nesse momento.
Tallulah FitzJames, em troca, afligia-se com um problema para o qual podia lhe oferecer úteis conselhos. À medida que pensava nisso, via cada vez mais clara a resposta. Tudo se reduzia a uma questão de prioridades e sinceridade com ela mesma. Ninguém podia o ter tudo, assim era forçoso escolher. E a escolha devia fazer-se com franqueza e coragem, e depois possuir a sensatez de compreender e aceitar as consequências.
Além disso, podia ser divertido saber o que ocorria em Paris, no campo das ideias escandalosas.
— É uma perspectiva apaixonante! —exclamou Emily com resolução. — eu adoraria ir.
—Reggie nos levará — disse imediatamente Tallulah. — Vamos, Reggie. Conhece a senhora Radley? Senhora Radley, este é Reginald Howard.
E sem lhes dar tempo mais que a saudar-se com um gesto, guiou-os até a anfitriã para despedir-se. A seguir Emily enviou sua carruagem a casa sem ela.
A festa de Chelsea era tão diferente da recepção que acabavam de abandonar como imaginar-se possa. Celebrava-se em várias salas, todas espaçosas, cheias de livros e cômodas poltronas e divãs. Uma densa neblina de fumaça de tabaco flutuava no ar, parte da qual tinha um aroma doce semelhante ao do incenso que Emily não reconhecia. Em todos os lugares as pessoas, com claro predomínio de homens, conversava animadamente.
O primeiro homem em quem Emily se fixou em particular possuía um rosto sonhador, um nariz grande, uns olhos risonhos e uma boca pequena e delicada. À luz dos lampiões de gás, seu cabelo parecia claro; levava-o tão longo que lhe roçava o branco pescoço festoneado da jaqueta de veludo.
— Acredito que esse é Richard O Gallienne — sussurrou Tallulah. — O escritor. — Olhou à frente, onde outro jovem de aspecto sério, cabelo ondulado com risco no meio e grosso bigode coroando o carnudo lábio superior dissertava sobre algo para prazer de seu extasiado público. — E esse é Arthur Symons — anunciou com entusiasmo. — Deve estar falando de sua visita a Paris. Conforme ouvi, conheceu ali todo mundo.
Saiu para recebê-las de maneira informal uma mulher de meia idade e pronunciadas feições que segurava um charuto entre seus longos dedos e vestia um traje que poderia ter saído da representação de um viajante oriental feita por um artista. Favorecia-lhe, mas era em extremo excêntrico. Aparentemente, conhecia Tallulah, e lhe agradava portanto acolher a qualquer que a acompanhasse.
Emily lhe agradeceu e lançou um olhar ao redor com interesse e certo receio. Uma enorme palmeira plantada em um vaso de barro sumia na penumbra um canto da sala, e ao lado tinha sentados dois homens jovens, tão perto um do outro que quase se tocavam. Um lia algo ao outro de um fino livro encadernado em couro. Permaneciam alheios ao resto dos pressentes.
Em um divã próximo à parede do fundo, um homem de meia idade e rosto corado dormia ou estava inconsciente.
Arthur Symons narrava sua recente viagem a Paris, onde com efeito tinha visitado Verlaine.
— Fomos a sua casa, Havelock Ellis e eu — disse acalorado sem afastar a vista de seu público um só instante —, e recebemos a mais calorosa acolhida. Não existem palavras para descrever aquela atmosfera, tudo o que vimos e ouvimos. Obsequiou-nos com um bom vinho, e fumava como uma lareira. Asseguro-lhes que o aroma de tabaco ficará ligado para sempre em minha memória a essa noite. Imaginem-no! — Elevou as mãos como se abrangesse com elas um mundo completo e precioso.
Quem se achava congregados ao redor o olhavam com encantamento. Ninguém
fazia gesto de afastar-se.
O rosto do Symons resplandecia de ardor, embora Emily não sabia se seu entusiasmo se devia à lembrança que com tão viva chama ardia em seu interior ou ao prazer de sentir-se centro da atenção e inveja de quem o escutava.
— Havelock e eu sentados na casa do próprio Verlaine! E quanto chegamos a falar! Abordamos toda classe de assuntos: filosofia, arte, poesia, o sentido da vida. Era como se nos conhecêssemos de sempre.
Produziu-se um murmúrio no pequeno círculo, um suspiro de admiração ou possivelmente de desejo. Um jovem parecia quase embriagado pela ideia de tal experiência. Com o rosto tingido de um intenso rubor, inclinava-se para o Symons como se se aproximando dele pudesse vivê-la pessoalmente.
— Convidou-nos a voltar no dia seguinte — prosseguiu Symons.
— E naturalmente foram! — disse o jovem com impaciência.
— Naturalmente — assentiu Symons. De repente apareceu em seu semblante uma curiosa expressão, mescla de ira, hilaridade e pesar. — Por desgraça, ele não estava.
Alguém respirou fundo junto à Emily.
— Partimo-nos imersos no maior desânimo — continuou Symons com o semblante de quem acaba de padecer uma tragédia. — Foi espantoso! Nossos sonhos feitos em pedacinhos, à taça quebrada quando nos roçava já os lábios. — Titubeou por puro efeito. — E no preciso momento em que saíamos, retornou ele acompanhado de um amigo
— E? — apressou alguém.
Novamente aflorou ao rosto do Symons a mescla de emoções.
— Não tinha a menor ideia de quem éramos — admitiu. — Se esqueceu de nós por completo.
A anedota suscitou diversas reações entre o público, incluídos uma abafada exclamação de assombro por parte do Reggie Howard e um arrebatamento de risada em Tallulah.
Mas Symons tinha sua atenção, e isso lhe bastava. Passou então a descrever com todo luxo de detalhes, grande colorido e indisputável graça suas aventuras por cafés, teatros, exposições e salas de concertos. Foram ver vários artistas e viajaram também aos subúrbios da cidade, onde visitaram o estúdio do Auguste Rodin, que não lhes falou, como de fato não falava com ninguém.
Deslumbrou ainda mais a seu público com o relato de sua passagem pelo Moulin Rouge, vistoso, desenfreado e indecoroso, com sua música e suas bailarinas, com sua mixórdia de classes sociais. Contou deste modo seu encontro com o genial e perverso Henri do Toulouse-Lautrec, que pintava garotas dançando o cancã e prostitutas.
Emily estava fascinada. Aquele era um mundo que ela mal concebia. Tinha ouvido aqueles nomes, é claro; corriam na boca de todos, embora alguns se pronunciassem em voz baixa. Eram os poetas e pensadores que desafiavam as convenções, que se propunham escandalizar e frequentemente o conseguiam. Idolatravam a decadência, e assim o apregoavam.
Afastou-se do carriola que atendia ao Arthur Symons e foi à sala contígua. Ali se deteve para escutar uma conversa entre dois jovens que não repararam sequer em sua presença, situação insólita para ela, já que em seus círculos se impunha a cortesia, até a custa de dissimular os sentimentos reais, e os cumprimentos eram a moeda de mudança.
Aquilo era algo totalmente alheio a seu mundo, e por isso mesmo estimulante. Ninguém falava do tempo nem dos recentes noivados. Os políticos, os banqueiros e a realeza, poderiam ter deixado de existir sem importar a ninguém. Ali só contavam a arte, as palavras, as sensações e as ideias.
— Mas ia vestido de verde! — dizia consternado um dos jovens com o rosto contraído como por efeito de uma dor física. — A música era de uma cor violeta como não ouvi jamais. Todos os tons de púrpura e malva se fundiam na escuridão. O verde era de uma insensibilidade imperdoável. Uma autêntica demonstração de ignorância.
— Disse-lhe algo? — apressou-se a perguntar o outro.
—Tentei-o — respondeu o primeiro. — Estive horas com ele. Expliquei-lhe a interrelação dos sentidos, como se complementam a cor e o som, como se combinam o gosto e o tato, mas duvido que compreendesse uma só palavra. — Gesticulava exageradamente com as mãos, abrindo e fechando os dedos. — Pretendia lhe inculcar toda uma arte. É um homem tão unidimensional. Mas o que pode fazer-se?
— A comoção é a chave! —afirmou imediatamente seu companheiro. — Ante algo tão sublime se verá obrigado a reformular todas suas convicções.
—Claro! — exclamou o outro, golpeando a fronte com a palma da mão. — Como não me ocorreu? Isso é o que diz nosso querido Oscar: o principal dever do artista é assombrar continuamente.
—A propósito — disse seu amigo, inclinando-se para ele —, leu o último número do Lippincott’s Monthly Magazine?
Ambos continuavam alheios ao Emily, de pé a um par de passos deles.
—Não, acredito que não — respondeu o jovem depois de pensar um momento. — Refere-se ao de julho? por que o diz? Havia algo interessante? Escreveu Oscar algo provocador? —Tocou ao outro no braço. —Ponha-me à corrente!
— Provocador é pouco. É extraordinário — confirmou seu amigo com veemência, quase atropeladamente. — Se trata da história de um homem jovem e arrumado. Adivinha em quem se inspirou? Enfim, o caso é que o jovem entra em relação com um dândi relaxado, um homem de maior idade e grande inteligência, a quem um dia diz que daria algo para não envelhecer, por conservar a beleza e juventude que nesse momento possui. —Arqueou as sobrancelhas. — É muito atraente, compreende?
—Isso disse. Onde está o mistério? — O jovem se voltou para trás, golpeando-se quase na cabeça com a palmeira que se erguia a suas costas. — A todos agradaria conservar a beleza da juventude. Essa ideia nem sequer é digna do engenho do Oscar, e certamente não é surpreendente.
— Mas a história sim o é! —assegurou seu companheiro. — Verá, outro homem, um respeitável artista, pinta um retrato desse jovem, e este vê completo seu desejo! Seu rosto permanece formoso. —Elevou uma mão de dedos brancos e alongados. — Entretanto sua alma se corrompe gradualmente enquanto ele se entrega à busca do prazer, indiferente ao preço que outros tenham que pagar, que é alto, às vezes inclusive a perda da vida.
— Meu amigo, continua me parecendo uma história comum. Uma simples descrição do claro. — recostou-se contra as almofadas chinesas do divã, exibindo seu aborrecimento.
— De verdade acha que Oscar escreveria algo claro? — O outro jovem arqueou ainda mais as sobrancelhas. — Que pouca imaginação tem, e que pouco conhece às pessoas!
— Possivelmente para ti não resulte claro, mas para mim sim o é.
— Adivinha, pois o final! — desafiou seu amigo.
— Não há final. São simplesmente as coisas da vida.
— Aí se equivoca! — exclamou, assinalando ao seu companheiro com um dedo acusador. — O protagonista continua tão jovem e belo como sempre. Os anos passam. Seu rosto é imune ao envelhecimento de sua alma e a dissipação de sua vida...
— Vãs ilusões.
—... mas o retrato não. Semana após semana o rosto pintado na tela se faz mais sinistro...
— Como? — disse o outro, erguendo-se de repente e atirando ao chão uma das voluptuosas almofadas.
Emily reprimiu o impulso de agachar-se para recolhê-la e pô-la em seu lugar.
— O rosto da tela se faz cada vez mais sinistro! — repetiu o jovem, consciente de que seu amigo o escutava absorto. — Todos seus pecados e sua maldade, a enfermidade de sua alma, deixam seu rastro nele, até o ponto de que sua mera visão lhe gela o sangue e lhe impede de conciliar o sono por temor a vê-lo em seus pesadelos.
—Valha-me Deus! E depois o que? Qual é o final?
— Assassina ao artista, que descobriu seu segredo — respondeu com tom triunfal. — E finalmente, horrorizado pela monstruosidade do rosto pintado, reflexo de sua alma, esfaqueia o retrato.
Emily tomou ar com uma abafada exclamação, mas nenhum dos dois a ouviu.
— E? — apressou seu companheiro.
— Mata-se a si mesmo! Sua vida está inextricavelmente ligada ao quadro. Ele é o retrato, e o retrato é ele. Morre, e seu corpo adquire a extrema fealdade do retrato, e este recupera sua inicial beleza e ingenuidade. O relato é um alarde de engenho e linguagem, como tudo o que Oscar escreve. Deu de ombros, sorridente, e se recostou contra o espaldar do divã. — Naturalmente indignou a muitas pessoas bem pensantes, que o consideram imoral e pernicioso e todas essas coisas. Mas o que caberia esperar? Uma obra de arte que aceita todo mundo está condenada ao fracasso desde o começo. Isso é em si mesmo a prova mais clara de que não contribui com nada de novo. Se não ofender a ninguém, melhor seria que não se incomodasse sequer em falar, porque obviamente não tem nada que dizer.
— Tenho que conseguir um exemplar do Lippincott’s imediatamente!
— Ouvi dizer que possivelmente publique o relato em forma de livro.
— Como se intitula? Tenho que sabê-lo.
— O retrato de Dorian Grei.
— Magnífico! Lerei-o, provavelmente várias vezes.
Também eu, pensou Emily quando se afastava dos dois homens, que começavam a discutir as implicações mais profundas da história. Mas não o direi a Jack. Talvez não o compreendesse.
Começava a sentir-se um pouco enjoada, e certamente a vencia já o cansaço. Não estava habituada a ambientes tão carregados. Na boa sociedade os cavalheiros se retiravam das estadias principais para fumar. Havia aposentos destinados especificamente a isso, a fim de não incomodar a quem não tinha o hábito, e os fumantes punham jaquetas especiais para não levar o aroma impregnado na roupa ao resto da casa.
Viu o Tallulah no outro extremo da sala. Paquerava com um jovem lânguido vestido de verde, mas ao parecer mais por simples rotina que por verdadeiro interesse. Emily não sabia que hora era, mas tudo indicava que devia ser muito tarde. Não tinha meio de transporte para voltar para casa, assim dependia de Tallulah. Não considerava prudente partir só e vagar pelas ruas em busca de um cabriolé a essas horas da madrugada. Qualquer homem ou polícia com quem se cruzasse tomaria por uma prostituta. Desde o rebuliço que se produziu quatro anos atrás em torno da prostituição e purgação da pornografia, tinham sido detidas muitas mulheres decentes que passeavam por zonas pouco recomendáveis em pleno dia, assim o risco a essas horas era muito maior.
Com passo um tanto instável cruzou a sala e se deteve junto à poltrona onde estava sentada Tallulah.
— Acredito que é hora de que nos desculpemos — disse Emily com clareza, ou ao menos isso pretendia. — foi uma noite encantadora, mas eu gostaria de estar em casa para o café da manhã.
— O café da manhã? —Tallulah piscou com expressão de incompreensão. — Ah, sim!
— exclamou, erguendo-se de repente. — Esse prosaico mundo que toma o café da manhã. Suponho que devemos retornar já. — Exalou um suspiro. Deu a impressão de que se esquecera do jovem com quem falava segundos antes, e ele não parecia desconcertado. Simplesmente desviou a atenção a outra pessoa.
Não demoraram em achar ao Reggie, quem amavelmente aceitou partir e se encaminhou para a porta com Emily num braço e Tallulah noutro. Despertou a seu cocheiro, e subiram os três à carruagem. Reggie, meio adormecido, fechou com dificuldade a porta. Ao este se via já a primeira luz da alvorada, e os mais madrugadores circulavam já pelas ruas.
Ninguém tinha perguntado para Emily onde vivia, e quando se afastaram da margem do rio, tomando para o norte, observou à luz dos lampiões o rosto do Reggie Howard, adormecido com o ranger continuado da carruagem, e hesitou em lhe pedir que primeiro a deixasse ela em sua casa. Não foram na direção correta. Teria que esperar. Detiveram-se com certa brutalidade no Devonshire Street. Reggie despertou sobressaltado.
— Ah, já chegamos! — disse, piscando. — Me permitam que as ajude.
Procurou provas o atirador da porta, mas o lacaio se adiantou, e estendeu a primeiro a mão à Tallulah e depois à Emily.
— Será melhor que fique a dormir aqui — se apressou a sugerir Tallulah ao ver que hesitava em sair da carruagem. — Não quererá chegar a sua casa a estas horas, suponho?
Emily hesitou por um instante. Possivelmente o oferecimento era também uma maneira educada de dizer que já tinham abusado bastante da amabilidade do Reggie. Em qualquer caso, Tallulah tinha razão; explicar ao Jack que tinha passado a noite em casa dela seria mais fácil que admitir que tinha estado em uma festa na Chelsea até as quatro da madrugada com artistas e escritores do movimento decadentista, tão em voga então.
— Obrigado. — Emily se apeou com mais urgência que elegância. — É muito generosidade de sua parte.
Agradeceu também ao Reggie e ao lacaio, e quando a carruagem se afastou ruidosamente, seguiu a Tallulah, que cruzou a calçada, atravessou as grades da passagem contígua à casa e entrou no pátio traseiro, onde ao que parecia a porta da copa não estava fechada com chave.
Tallulah se deteve na cozinha. Sob a fria luz do amanhecer, longe do resplendor dos lampiões de gás e os cortinados de veludo, apresentava um aspecto surpreendentemente frágil. A suas costas se achavam o aparador de madeira com pratos dispostos em fileiras, os caldeirões de cobre pendurados da parede e os potes de farinha, e a sua esquerda o fogão negro. Perto do teto havia um varal com roupa branca posta a arejar, e no ar flutuava um aroma de ervas secas e réstias de cebolas.
As primeiras criadas não demorariam a levantar-se para limpar e acender o fogão, a fim de que a cozinheira o encontrasse tudo em ponto chegado o momento de começar a preparar o café da manhã.
O mesmo ocorreria logo em casa do Emily.
Tallulah tomou ar e o deixou escapar em silêncio. Deu meia volta para guiar ao Emily para o piso superior. Esta a seguiu nas pontas dos pés para não ser ouvida pelos membros da criadagem mais madrugadores.
No patamar, Tallulah se deteve frente à porta de uma dos quartos para hóspedes.
— Emprestar-lhe-ei uma camisola — sussurrou. — E enviarei a minha criada pela manhã. — Fez uma careta. — Não será antes das oito. Ninguém tomará o café da manhã muito cedo... ou isso acredito. Em realidade... —A consternação lhe mudou subitamente o rosto. — Em realidade, atravessamos um mau momento. Aconteceu uma desgraça. —Baixou ainda mais a voz. — Foi assassinada uma mulher da rua perto do Whitechapel Road, e a polícia achou uma insígnia que pertencia a meu irmão. Inclusive vieram interrogá-lo. —estremeceu. — Ele não teve nada que ver com isso, certamente, mas me dá medo que não acreditem. — Olhou ao Emily fixamente, esperando algum comentário.
— Sinto muito — disse Emily com sinceridade. — Você e sua família devem estar passando um mau bocado. Possivelmente não demorem a descobrir ao verdadeiro culpado. — de repente a venceu sua natural curiosidade. — Onde acharam à insígnia?
— No quarto dessa mulher, onde a mataram. —Tallulah mordeu o lábio, e o temor transpareceu com toda clareza em seu semblante, acentuado pelas marcadas sombras que se formavam a tênue luz do abajur de gás situada no alto da escada e a clareza do dia que começava a penetrar pelas janelas do patamar.
—OH! — exclamou Emily.
Não achou palavras de consolo. Não a surpreendia que o irmão do Tallulah tivesse utilizado os serviços de uma prostituta. Tinha experiência suficiente da vida para saber que essas coisas ocorriam. Nem sequer podia descartar-se que a tivesse matado ele. Alguém o tinha feito, possivelmente de maneira acidental. Poderia haver-se desatado uma briga por dinheiro. Acaso a mulher teria tentado roubá-lo. Emily sabia por Pitt que tais situações eram comuns. Não requeria muita imaginação conceber o acontecido: por um lado um jovem rico, bem vestido, com objetos de ouro tais como alfinetes, abotoaduras, relógio, corta-charuto, e com dinheiro em cima para satisfazer seus apetites; por outro, uma mulher desesperada, exausta, faminta, sem saber sequer se dormiria debaixo de um teto na semana seguinte. Talvez inclusive tivesse um filho que alimentar. Em realidade, o surpreendente era que tais fatos não se produzissem com maior frequência.
Mas não podia dizer tudo isso à Tallulah naquele momento. Embora possivelmente, a julgar pela palidez de seu rosto, as olheiras de fadiga, o medo que diminuía sua vitalidade, já soubesse.
Emily lhe dirigiu um sorriso forçado, sombrio e um tanto vacilante.
— Sem dúvida passou muita gente por esse quarto — disse com deliberado otimismo. — Provavelmente a matou alguém que ela conhecia. Têm homens que ficam com seu dinheiro em troca de amparo, sabe? É possível que tenha sido ele. A polícia está à corrente disso. Certamente vieram por puro trâmite.
—Você acha? — perguntou Tallulah. — Veio um policial muito educado. Falava com correção, como um cavalheiro, mas estava desalinhado. Levava o colarinho da camisa limpo, mas torcido, e o cabelo longo e despenteado. Se não tivesse sabido que era polícia, o teria confundido com um artista ou um escritor. Mas não parecia tolo. Além disso, meu pai não o intimidava, coisa pouco comum.
Emily experimentou um repentino calafrio, uma sensação de familiaridade, como em uma cena de um sonho, em que se sabe o que vai ocorrer antes que ocorra.
—Não se preocupe — disse com todo o aprumo que pôde reunir. — Averiguará a verdade. Não se equivocará de homem. Seu irmão sairá ileso.
Tallulah permaneceu imóvel.
Fora se ouviram os assobios de um viandante e o estrepitoso estalo continuado de uma carreta. As criadas desceriam pela escada posterior de um momento a outro.
— Obrigado — disse Tallulah por fim. — Nos veremos no café da manhã. Agora mesmo lhe trago uma camisola.
Emily sorriu agradecida e decidiu procurar um telefone assim que fosse possível para informar a sua criada de que estava sã e salva, passando a noite em casa de uma amiga. Se Jack tinha retornado a casa, serviria também de explicação para ele. Se ao levantar-se pela manhã via que chegava tarde ao café da manhã, compreendê-lo-ia.
Emily despertou sobressaltada. As cortinas estavam abertas, e o sol entrava em torrentes em um quarto que nunca tinha visto. Tudo estava estampado de flores amarelas com um pouco de cinza e azul. Uma criada verteu água quente em uma bacia de porcelana e deixou toalhas limpas no espaldar da cadeira.
— Bom dia, senhora — saudou alegremente a moça. — Volta a fazer uma manhã esplêndida. Parece que teremos um dia quente e ensolarado. A senhorita Tallulah disse que se deseja usar um de seus vestidos, o emprestará com muito prazer. Que você trazia é um pouco formal para o café da manhã. — Não desviou o olhar para o traje de noite verde de Emily estendido sobre o divã com sua saia aberta em leque, suas rosas amarelas e rosas, seu pronunciado decote e seus muito leves mangas, semelhantes a flores murchas sob a intensa luz da manhã. Nem em sua expressão se notava mais que solícita cortesia. Era uma excelente criada.
— Obrigado — aceitou Emily.
Teria lhe desagradado profundamente aparecer ante Augustus FitzJames durante o café da manhã como se tivesse passado em claro a noite inteira. E o vestido de musselina de cor creme que lhe ofereceram era realmente bonito. Um tanto juvenil para ela, possivelmente, mas não isento de elegância com seu corpete fechado e seus finos bordados.
Desceu com Tallulah a fim de que sua presença fosse devidamente explicadas e cumprimentadas as oportunas apresentações.
A sala da manhã era ampla, formal e em extremo agradável, mas só teve tempo de lhe dar uma rápida olhada, porque imediatamente as três pessoas sentadas à mesa atraíram por completo sua atenção. Ocupava a cabeceira Augustus FitzJames, que lia o jornal matutino com uma expressão severa no rosto alongado e imponente. Tinha-o dobrado sobre a mesa, mas não levantou a vista até perceber uma presença imprevista.
— Bom dia, papai — saudou Tallulah com jovialidade. — Permita-me que lhe apresente à senhora Radley. Convidei-a a passar aqui a noite, porque era já tarde e seu marido se viu obrigado a levar o carruagem para atender um assunto de Estado urgente. — Mentiu com notável destreza, como se tivesse já ensaiada a história.
Augustus observou a Emily com semblante um tanto carrancudo, mas não demorou para relacionar o sobrenome com um membro do Parlamento e inclinou a cabeça em sinal de respeito.
— Bom dia, senhora Radley. Agrada—me ter tido ocasião de lhe oferecer nossa hospitalidade. Por favor, Sente-se para tomar o café da manhã conosco. —Lançou um olhar fugaz à mulher que ocupava o outro extremo da mesa, corretamente penteada, vestida com um imaculado vestido, mas sob uma grande tensão a julgar pelas rugas que sulcavam seu rosto. Com tom inexpressivo, Augustus disse: — Minha esposa.
— Muito prazer, senhora FitzJames —saudou Emily com um sorriso. — Agradeço—lhe a gentileza de me haver acolhido em sua casa esta noite passada. — Era uma simples formalidade, umas palavras com que romper o incômodo silêncio. Aloysia sequer tinha reparado nela.
— É bem-vinda — apressou-se a dizer Aloysia. — Espero que tenha dormido bem.
— Muito bem, obrigado.
Emily se sentou na cadeira que lhe indicaram enquanto a criada Punha outro talher na mesa para Tallulah.
—Meu filho — continuou Augustus, assinalando com uma mão ossuda ao jovem sentado frente a Emily.
— Muito prazer, senhor FitzJames — disse Emily, contemplando-o com maior interesse do que lhe teria despertado se Tallulah não lhe tivesse confiado sua lamentável conexão com o assassinato do Whitechapel. Procurou mostrar um sorriso alegre e despreocupado, mas não pôde resistir à tentação de escrutinar seu rosto. Era de aparência agradável, com nariz masculino, boca grande e um queixo longo e firme. Tinha o cabelo claro e formoso, penteado para trás em largas ondas. Era o rosto de um homem que nunca careceria da admiração das mulheres. Que desordenados apetites ou veladas fraquezas o tinham levado a procurar uma prostituta nada menos que no Whitechapel? Observando-o sentado à mesa com sua família, Emily pensou no pouco que podia adivinhar-se da verdadeira natureza de uma pessoa mascarada atrás de maneiras refinadas, uma indumentária tradicional e um cabelo bonito e cuidado.
— O prazer é meu, senhora Radley — respondeu Finlay com indiferença. — Bom dia, Tallulah. Passou-o bem ontem à noite?
Tallulah se sentou junto à Emily, examinou com inapetência o conteúdo de uma fruteira e finalmente optou pelas torradas e a geleia de damasco.
— Sim, obrigada — respondeu laconicamente. Seu irmão lhe tinha perguntado só por cumprir.
Ofereceram à Emily abadejo defumado e ovos, mas ela recusou, dizendo que lhe bastava também umas torradas. Devia retornar a casa assim que pudesse abandonar aquela mesa sem faltar à obrigada cortesia. Dar uma explicação satisfatória de sua ausência da noite anterior seria já por si delicada, assim não desejava agravar a situação com um maior atraso.
— Aonde foi? — perguntou Augustus ao Tallulah. Embora sem empregar um tom autoritário, tinha deixado muito claro que esperava uma resposta, e uma resposta sincera.
Tallulah não afastou a vista do prato.
— Para jantar a casa de lady Swaffham. Não o tinha mencionado?
— Sim, mencionou-o — respondeu Augustus com tom inflexível. — E certamente não esteve ali até passadas as duas da madrugada. Conheço lady Swaffham, e sei que não estenderia uma velada até essas horas.
Tallulah não havia dito a que hora tinham chegado. Cabia supor que às duas deitou-se ele, e sabia que ela não estava ainda em casa.
— Fui com o Reggie Howard e a senhora Radley a uma reunião literária na Chelsea — respondeu Tallulah, dirigindo um olhar fugaz a seu pai.
— Às duas da madrugada? — Augustus arqueou as sobrancelhas com expressão sarcástica. — Quererá dizer a uma festa em que certos jovens que se acreditam escritores adotam modos afetados e apregoam estupidez. Estava também Oscar Wilde?
— Não.
Augustus olhou ao Emily esperando que confirmasse ou desmentisse a resposta de sua filha.
— Não acredito que houvesse ali ninguém do círculo do Oscar Wilde — disse com toda franqueza. Em realidade não estava muito certa de quem fazia parte desse "círculo", e lhe incomodava ver-se na desagradável situação de ter que responder por Tallulah ou fazê-la ficar como uma embusteira.
— O jovem Howard não é de meu agrado — prosseguiu Augustus enquanto pegava outra torrada e se servia um pouco mais de chá. Não olhava a sua filha. — Não voltará a sair em sua companhia.
Tallulah respirou fundo e seu rosto se retesou.
Augustus se voltou para sua esposa.
— Já vai sendo hora de que a leve a lugares mais adequados, querida. É sua obrigação lhe achar o marido que lhe corresponde. E este mesmo ano, diria eu. Já deveria havê-lo feito. Desde que não puser em perigo seu bom nome andando em más companhias, é um bom partido. Conduta à parte, não continuará assim indefinidamente. — Augustus olhava ainda a Aloysia, não ao Tallulah, mas Emily viu ruborizar-se de humilhação à moça. — Prepararei uma lista de famílias desejáveis — concluiu, e mordeu a torrada ao mesmo tempo em que estendia a outra mão para a xícara.
— Desejáveis para quem? — replicou Tallulah, irada.
Augustus se voltou para ela. Não se percebia em seus olhos o menor indício de luz ou humor.
—Para mim, naturalmente. É minha responsabilidade procurar que não lhe falte nada e tire proveito a sua vida. Tem todo o necessário, exceto autodisciplina. Deverá exercitá-la, a partir de hoje mesmo.
Se não tivesse sabido que ninguém lhe prestava atenção, Emily teria sentido vergonha alheia, mas inclusive Finlay parecia absorto nas palavras de seu pai. Pelo visto, aquela demonstração de autoridade absoluta não surpreendia a nenhum deles. Não precisava ver Tallulah, com a cabeça encurvada, para adivinhar que a lista de pretendentes aceitáveis do Augustus FitzJames não incluiria o Jago de quem lhe tinha falado. A virtude que com tal certeza lhe atribuía não podia atrair a um pai com ambições sociais.
Para ter uma mínima opção de felicidade, Tallulah devia avaliar a fundo seus desejos e sopesar prós e contra.
Emily observou Finlay, que continuava comendo torradas com geléia e tomando chá. Se compadecia-se de sua irmã, o sentimento não se refletia em seu rosto.
De improviso Augustus se voltou para ele.
— E também vai sendo hora de que você encontre uma esposa adequada a seus interesses. Não conseguirá um posto em uma embaixada importante a menos que tenha uma esposa capaz de desempenhar seu papel. Deve possuir uma boa educação, dignidade, desenvoltura para sustentar uma conversa inteligente, e encanto suficiente para cativar, mas nem tanto que possa suscitar falatórios e especulações. É preferível uma boa saúde a uma grande beleza. E sua reputação deve ser irrepreensível, nem tem o que dizer-se. Agora mesmo me vêm à cabeça ao menos uma dúzia de candidatas idôneas.
— Neste momento... — começou a dizer Finlay, mas se interrompeu bruscamente.
Gelou-se o semblante de Augustus.
— De sobra sei que neste momento reclamam nossa atenção assuntos mais urgentes. —Tinha uma expressão tensa e dura, e não olhava ao Finlay enquanto falava. — Confio que isso fique resolvido no prazo de uns dias.
—Isso espero — disse Finlay pesaroso, com a vista fixa em seu pai como se desejasse que erguesse a cabeça e o olhasse nos olhos. — Eu não tive nada que ver! E se forem minimamente competentes, não demorarão para averiguá-lo. — Falou quase com tom de desafio, como se não esperasse que dessem crédito a suas palavras sem uma prova confiável, e entretanto Emily percebeu sinceridade em sua voz. Tallulah tinha esquecido a torrada meio comida, e o chá esfriava na xícara. Olhou a sua mãe por um instante e logo depois de novo a seu pai.
— Claro que o averiguarão! — afirmou Aloysia por dizer algo. — É um assunto desagradável, mas não há por que preocupar-se.
Augustus lhe dirigiu um olhar de profundo desprezo, e as rugas que rodeavam sua boca se fizeram mais acusadas.
— Ninguém está preocupado, Aloysia. Trata-se simplesmente de resolver o problema para que não se produzam situações desagradáveis por causa de... a incompetência ou alguma outra contrariedade que escape a nosso controle. — voltou-se para Tallulah. — Você, jovenzinha, comportar-se-á devidamente para que ninguém se escandalize e as más línguas não tenham desculpa alguma em que apoiar seus falatórios. — Olhou ao Finlay. — E você se conduzirá como um cavalheiro. Não atenderá mais que a suas obrigações e esses entretenimentos que ocupam à classe de jovens com que desejaria se casar. Pode acompanhar a sua irmã. Em Londres há muitas recepções, exposições e outros atos decorosos.
Finlay parecia desesperado.
— Do contrário — acrescentou Augustus, — este assunto poderia não ser tão fácil de cortar como desejaria.
— Eu não tive nada que ver! —protestou Finlay com um crescente tom de angústia na voz.
—Não o duvido — disse Augustus com severidade, e continuou tomando o café da manhã. A conversa tinha concluído. Não era necessário que o expressasse com palavras; a irrevogabilidade de sua voz bastava. Qualquer objeção teria sido em vão.
Tallulah e Emily terminaram de comer em silêncio e a seguir se desculparam.
Quando estavam no vestíbulo e ninguém as ouvia, Tallulah se voltou para o Emily.
—Sinto muito — disse penalizada. — Deve ter sido muito desagradável para você, porque sabia a que se referia meu pai. Tudo se esclarecerá, certamente, mas poderia demorar uma eternidade. E se não acharem ao culpado? — Sua voz se fez mais aguda à medida que o pânico se apoderava dela. — Ao fim e ao cabo, não descobriram ao outro assassino do Whitechapel. Matou cinco mulheres, e dois anos mais tarde ainda não sabem nem remotamente quem foi. Poderia ser qualquer um!
—Não, não poderia ser qualquer um — corrigiu Emily com firmeza. Eram palavras vazias, mas confiava em que Tallulah não se desse conta. — Esse outro fracasso e este assunto são casos completamente diferentes.
Estava convencida de que Pitt averiguaria a verdade, mas provavelmente toda a verdade, mas como, inclusive se Finlay era tão inocente como afirmava, podia trazer a luz informação sobre ele embaraçosa ou inúteis, ou ambas as coisas. O inconveniente de uma investigação era que desvelava os fatos mais diversos, às vezes alheios ao próprio delito, indignidades e faltas íntimas que depois era impossível esquecer.
E frequentemente a pessoa, por efeito do medo, agia de maneira abjeta. A gente espionava sua verdadeira natureza com maior clareza da desejável. Não era um simples temor que descobrisse a culpa.
— Provavelmente a matou alguém de seu entorno — prosseguiu com aparente certeza, pensando enquanto o dizia que Augustus FitzJames não estava seguro da inocência de seu filho. Por seu tenso tom de voz e pelo modo como tinha desqualificado as palavras de consolo de sua esposa, Emily tinha percebido que uma sombra de dúvida o inquietava. Por quê? por que um homem confiaria tão pouco em seu filho para admitir essa sinistra possibilidade?
—Sim, provavelmente — concedeu Tallulah. — É só que estou um pouco alterada porque meu pai pretende me obrigar a contrair matrimônio com um chato e me converter em uma esposa insossa e anódina que passa a vida fazendo imprestáveis bordados e pintando aquarelas que a ninguém interessam.
—Obrigada — brincou Emily com um sorriso.
Tallulah se ruborizou.
—Vive Deus! Quanto o sinto! Como pude ser tão desconsiderada? É imperdoável! Não queria dizê-lo.
Emily piscou ao ouvir a imprecação, mas respondeu com franqueza:
—Sim queria dizê-lo. E não me surpreende. Muitas mulheres esbanjam a vida inteira em coisas que aborrecem. Às vezes eu mesma ponho—se a chorar de aborrecimento. E estou casada com um político, e em geral é um homem interessante. Ontem à noite me sentia aborrecida porque ultimamente meu marido está tão ocupado que mal o vejo, e eu não movi um dedo para achar algo que me atraia. Necessito uma boa causa por que lutar.
O rubor abandonou gradualmente as faces de Tallulah, mas ainda parecia morta de calor.
Emily a pegou pelo braço e a levou consigo escada acima para o quarto de hóspedes que lhe tinham cedido essa noite.
— Tenho uma tia avó que não se aborrece um só dia de sua vida — continuou —, porque sempre está muito atarefada, normalmente combatendo a ignorância ou a injustiça. Nunca embarca em empresas fáceis, e, portanto tudo tende a prolongar-se.
Poderia ter mencionado também que o novo marido de sua mãe era um ator judeu dezessete anos mais novo que ela, ou que sua irmã se casara com um homem de inferior posição social, um policial, e tinha a toda a família com o coração na mão porque se envolvia em seus piores casos. Mas nesse momento teria sido pouco discreto, além de alarmante.
— De verdade? — perguntou Tallulah com interesse. — E seu marido o consente?
— Em realidade está morto, assim sua opinião não conta — admitiu Emily. — Se ainda vivesse, seria muito mais complicado. E esse Jago do que me falou ontem à noite?
— Jago! — Tallulah deixou escapar uma risada entrecortada. — Acredita que meu pai me permitiria me casar com um pároco do Whitechapel? Acabaria com apenas um par de vestidos de algodão e lã, vivendo em um quartinho com correntes de ar e goteiras no teto. Desapareceria da vida de sociedade.
— Pensava que os sacerdotes tinham vicariatos — aduziu Emily, detendo-se no ensolarado patamar adornado com tapetes e vasos de barro. Abaixo, uma criada impecavelmente vestida com touca e avental de renda cruzou o vestíbulo, ouvindo-se seu sapateio contra o parquet. Embora no Whitechapel houvesse vicariatos, o abismo entre esse mundo e o do Tallulah era insolúvel.
Tallulah mordeu o lábio.
— Sei. Mas teria que renunciar a muitas coisas. As festas, os vestidos bonitos, as conversas engenhosas como a de ontem à noite. As saídas à ópera e o teatro. Os jantares, os bailes, as noites em claro. A maior parte do tempo passaria frio e inclusive fome. E teria que lavar eu mesma a roupa!
Todo aquilo era verdade.
— Quer converter ao Jago no que não é? — perguntou Emily.
— Não! — Tallulah tomou ar lentamente. — Não, claro que não. Eu... — interrompeu-se. Não sabia o que queria. Era uma decisão difícil.
— Ninguém tem tudo — disse Emily com delicadeza. — Se o que lhe atrai nele é essa fidelidade a seus valores, deve aceitar tudo o que isso implica. Possivelmente seja momento de considerar seriamente que classe de vida levaria você a seu lado, e logo decidir em realidade o que deseja. Não a escolha a falta de alternativa. É uma questão muito importante. Toda sua vida pode depender desta decisão.
No singular rosto do Tallulah se formou uma careta zombadora, como se risse de sua própria situação, mas tinha lágrimas nos olhos.
— Não tenho nada que decidir. Jago não se fixaria em mim com esse propósito. Despreza a forma de vida que represento. A questão é como ajudar ao Finlay a sair desta situação, e a verdade é que não me ocorre nada. E por outra parte impedir que meu pai me case com um homem tão aborrecido que o tédio acabe idiotizando-me. — Respirou fundo. — Possivelmente me busque um marido muito velho, e não tarde em morrer. Assim serei uma viúva, como sua tia avó, e farei o que me agradar.
Abaixo se abriu a porta da sala do café , e saiu Finlay, que foi direito para a porta da rua com passo rápido e um tanto irado.
— Jarvis! — gritou. — Onde estão meu chapéu e minha bengala? Ontem à noite os deixei no cabide. Quem os levou?
Imediatamente apareceu um lacaio, mostrando a devida deferência.
— A bengala continua no cabide, senhor, e o chapéu levei para escová-lo.
— Ah, obrigado. —Finlay pegou a bengala. — vá trazer-me o chapéu. Mas por que levou-o? Não é preciso que me escove o chapéu cada vez que ponho isso.
— Infelizmente um pássaro... —insinuou Jarvis.
Tallulah sorriu sem querer e pegou Emily pelo braço para conduzi-la ao quarto, onde dispôs que pegassem e envolvessem seu traje de noite a fim de que pudesse transportá-lo comodamente em sua volta a casa.
Emily se despediu e voltou para casa na segunda carruagem dos FitzJames; Augustus tinha levado a outra. Não podia afastar de seu pensamento os problemas de Tallulah. Havia a possibilidade de que Finlay fosse culpado?
O que podia induzi-lo a perpetrar uma ação semelhante? O que sabia, ou suspeitava, dele seu pai para justificar tal frieza, tal desconfiança, e ao mesmo tempo tão firme propósito de defendê-lo?
Ou acaso Emily tinha interpretado erroneamente as emoções de seu rosto? Não tinha sido mais que uma simples espectadora durante o breve momento que tinha durado o café da manhã. Possivelmente estava superestimando suas opiniões e tudo aquilo não eram mais que fantasias.
Ociosamente se perguntou como seria o tal Jago para cativar daquele modo
Tallulah. Pelo visto, era o oposto de tudo o que ela entesourava em sua atual vida. Devia-se talvez a isso sua atração? Alheia à realidade, sentia-se simplesmente fascinada pelo que ele tinha de diferente? Fosse o que fosse, Tallulah lhe inspirava simpatia. Gostava dela por sua vivacidade, sua propensão a preocupar-se com outros, e porque cambaleava à beira de uns sonhos pelos quais deveria pagar durante o resto de sua vida. Merecia toda a ajuda que Emily fosse capaz de lhe dispensar, disso não havia dúvida.
Quando chegou, agradeceu ao cocheiro dos FitzJames, apeou-se e subiu pela escadaria de sua casa. O mordomo abriu a porta sem alterar-se.
— Bom dia, Jenkins — disse com calma, e entrou.
— Bom dia, senhora — saudou ele enquanto fechava. — O senhor Radley está no gabinete.
—Obrigada.
Emily lhe entregou o pacote com o traje de noite para que o desse à criada. Continuando, sentindo um tanto estranha com o vestido de musselina de Tallulah, dirigiu-se ao gabinete com a cabeça erguida para prestar contas ao Jack.
— Bom dia — disse ele com frieza ao vê-la aparecer na porta. Achava-se sentado atrás da escrivaninha com um montão de papéis em frente, uma pena na mão e expressão séria. — recebi sua mensagem. Bastante incompleta, por certo. Onde esteve?
Emily respirou fundo. Incomodava-lhe ter que dar explicações, mas se tinha feito já à ideia de que seria inevitável.
— Acessei em ir à outra festa e não me dava conta do tarde que se fazia. Os convidados eram pessoas interessantes, e conheci alguém... — interrompeu-se. Ainda não sabia se desculpar-se aduzindo seu desejo de ajudar a uma amiga em apuros ou seu intento de solicitar informação para o novo caso do Pitt. O claro descontentamento que via no rosto do Jack não lhe serviu para sair de dúvidas. Dissesse o que dissesse, mais lhe valia poder demonstrá-lo.
— Sim? — insistiu a seguir Jack com um olhar glacial.
Devia tomar uma decisão imediatamente, ou se não daria a impressão de que mentia. Era mais difícil enganá-lo do que às vezes que desejava. Em outra ocasião tinha suposto que conseguiria desviar sua atenção com um sorriso, mas se tinha equivocado.
— Estou esperando, Emily...
— Conheci uma moça de quem gostei, e a pobre estava consternada porque seu irmão foi acusado de assassinato... Thomas investiga o caso. Não podia partir, Jack! Tinha que averiguar todo o possível... por ela, pelo Thomas... e pela verdade em si.
— Já vejo. — Jack se reclinou contra o espaldar e a observou com ceticismo. — Assim passou a noite em casa dessa moça. E o que descobriu em seu generoso esforço? É culpado seu irmão?
— Não ponha sarcástico — replicou Emily com tom cortante — nem sequer eu posso resolver um assassinato durante um café da manhã. Olhou-o com um vacilante sorriso. — Me levará pelo menos até a hora do jantar... possivelmente mais inclusive.
Seus olhares se cruzaram por um instante, e Emily percebeu nos olhos do Jack um vislumbre de sorriso. No ato se deu meia volta, saiu e fechou a porta.
No corredor deixou escapar um suspiro de alívio e subiu rapidamente para trocar-se.
No preciso instante em que Emily falava com Tallulah no patamar e Finlay pegava sua bengala e seu chapéu e se dispunha a sair, um cabriolé no qual viajavam Pitt e Rose Burke entrava pelo Devonshire Street. Quando se abriu a porta do número trinta e oito e apareceu Finlay, Rose, de repente tensa, inclinou-se para aparecer por um lado da carruagem. Voltou lentamente a cabeça, seguindo ao Finlay com o olhar até que dobrou a esquina do Upper Wimpole Street, e logo se reclinou de novo.
— E então? — perguntou Pitt.
Não sabia qual desejava que fosse a resposta. Se o identificasse, teriam que atacar a desagradável tarefa de reunir provas para a detenção e a instrução do caso. A família FitzJames apresentaria batalha com todos os recursos a seu alcance. Sem dúvida aduziriam incompetência policial. A própria Rose seria alvo de seus ataques, dirigidos a escavar sua resolução, difamá-la — coisa fácil — e desacreditar seu testemunho.
Por outra parte, se não era capaz de identificá-lo com certeza (ou pior ainda, descartava que tivesse sido ele), teriam que começar de novo da abotoadura e da insígnia, procurando uma solução que explicasse a presença desses dois objetos no lugar do crime e de uma vez exclui-se ao Finlay do assassinato.
Rose voltou à cabeça, e olhou ao Pitt. Poderia ter saboreado seu momento de poder. Pitt esperava ver esse tipo de satisfação em seus olhos; entretanto viu só ira e um ódio intenso.
— Sim, era esse — declarou com voz rouca e tensa. — Esse era quem vi entrar na casa justo antes de morrer Ada. Detenha-o. Leve-o a julgamento para que o pendurem.
Pitt sentiu uma opressão no peito e o coração acelerado.
— Tem certeza?
Rose se ergueu no assento como movimento por uma mola e lhe cravou um olhar colérico.
—Sim, tenho certeza. Vai discutir isso comigo porque ele vive em uma casa elegante de um bairro fino e tem dinheiro? — reprovou com uma careta de aversão vizinha a rancor.
— Não, Rose, não é essa minha intenção — respondeu Pitt sem alterar-se. — Mas quando o levar ante o juiz, não deve haver fios soltos. Não quero que um advogado ardiloso encontre enganos e consiga a absolvição.
— Já... — Envergonhada de sua reação, voltou a reclinar-se contra o assento. — Enfim.... sim.... suponho que tem razão. Mas desta vez não o deixem escapar.
— Desta vez? — perguntou Pitt, embora intuísse com amargura o que ia responder.
— Sim. Ao fim e ao cabo, não acharam ao Jack, não? — advertia-se a rigidez de seus ombros sob o xale. — Que se saiba, anda ainda solto por aí, esperando em algum portal escuro para rachar outra mulher. Vamos ver se agora agarram a esse condenado assassino e acabam com ele antes que mate a outra pobre desgraçada.
De boa vontade lhe haveria dito que aquele crime não tinha sido obra de outro assassino em série, que não se repetiria, que tinha sido só um fato isolado, uma horrenda aberração. Mas não estava seguro. Depois daquele assassinato se adivinhava uma compulsão, uma raiva interior momentaneamente fora de controle. Se tinha ocorrido uma vez, possivelmente podia ocorrer de novo.
— Rose, se nos equivocarmos de homem, não servirá de nada — declarou Pitt, olhando a no rosto.
O medo e o ódio transpareciam em suas feições atraentes e severas, na pele ainda lisa de suas maçãs do rosto. a não ser por sua expressão e a má qualidade de sua roupa, poderia ser confundida com uma dama do Devonshire Street ou qualquer das ruas daquela parte do Mayfair.
— Não me equivoco de homem — assegurou. — Enfim, não tenho todo o dia para ficar aqui de conversa com você. Eu cobro por tempo.
— Cobra por seus serviços, Rose — corrigiu Pitt —, e eu não os quero — Me concederá todo o tempo que seja conveniente. Agora voltaremos na carruagem ao Bow Street, e uma vez ali a deixarei ao seu dispor se o desejar.
— Quem vai pagá-la? — apressou-se a perguntar.
—Eu — ofereceu Pitt com um sorriso. — Por esta vez. Poremos a conta para a próxima ocasião em que precise falar com você.
Rose guardou silêncio. Não desejava comprometer-se com palavras, mas um ligeiro vislumbre de sorriso se desenhou em seus lábios.
Pitt se inclinou e deu indicações ao cocheiro. Quando chegaram ao Bow Street, apeou-se e pagou o resto do percurso até o Whitechapel.
Rose não havia tornado a falar durante o trajeto. Estava assustada. Mantinha ainda muito viva a lembrança das atrocidades de 1888, o pânico que se tomou conta de Londres de tal modo que nem sequer nos cabarés, onde nada nem ninguém escapava às brincadeiras dos cômicos, ouviu-se uma só piada sobre o Assassino do Whitechapel. Rose necessitava da polícia, e isso em si mesmo lhe era detestável. Via os agentes da ordem como parte de uma classe dominante que a utilizava e ao mesmo tempo a desprezava.
Quatro anos atrás se aprovaram novas leis, concebidas em princípio para proteger às mulheres e frear a escalada da pornografia e a prostituição. Na hora da verdade só tinham servido para que a polícia acossasse e detivesse mais mulheres, e enquanto uns bordéis se fechavam, outros abriam. Muitos homens achavam ainda que qualquer mulher que passeasse por certas zonas, algumas do West End inclusive, estava vendendo seus favores. A pornografia corria com igual liberdade que antes. Era tudo uma descomunal hipocrisia, e Rose assim o entendia e detestava a todo aquele que a respaldasse ou se beneficiasse dela.
Pitt entrou na delegacia de polícia do Bow Street, saudou o sargento de guarda e subiu a seu escritório. Ali o aguardava Tellman, com olhar severo e uma expressão sarcástica no rosto alongado.
— Bom dia, senhor. Deixei em sua mesa um informe de um tal doutor Lennox. Passou por aqui faz um quarto de hora. Disse-lhe que não sabia exatamente quanto demoraria em chegar, assim não esperou. Parecia uma alma em pena, como se o tivessem convidado a seu próprio velório. Tem que ver com o assassinato do Whitechapel. Suponho que esse pássaro gordo é culpado, não?
— Dá essa impressão — concordou Pitt
Inclinou-se sobre a elegante escrivaninha e pegou a folha escrita com letra grande e enviesada do pano verde de couro embutida na madeira.
Tellman deu de ombros.
— Feio assunto — comentou. Percebia-se em sua voz certa satisfação, embora fosse impossível saber se se devia ao desassossego do Pitt ou à perspectiva de ver uma família como os FitzJames submetida a tal vergonha pública. Tellman tinha subido dos níveis mais baixos do escalão e tinha mais que assumido a amarga realidade da fome, da humilhação e da ideia de que a vida nunca lhe proporcionaria grandes recompensas.
Pitt tomou assento e leu o informe do Lennox. Ada McKinley tinha morrido por estrangulamento entre as dez e às doze da noite. Em seu corpo não se apreciavam hematomas ou arranhões que indicassem que havia oposto resistência ao agressor. Tinha três dedos fraturados da mão esquerda e duas da direita, e deslocados três dedos do pé esquerdo. Tinha se quebrado uma unha da mão direita, mas isso se devia provavelmente à tentativa de arrancar a meia que lhe rodeava o pescoço. O sangue achada sob as unhas procedia quase com toda segurança dos arranhões que ela mesma se fizera na garganta.
Apresentava estrias no abdômen por efeito de sua antiga gravidez, um par de hematomas na coxa e outro em um ombro que por sua cor verde amarelada não podiam haver-se produzido na noite de sua morte. Por outra parte, em vida tinha gozado de boa saúde. Por isso Lennox podia conjeturar, contava ao redor de vinte e cinco anos. Não havia muito mais que dizer.
Pitt ergueu a vista.
Tellman esperava com uma expressão sombria no tosco rosto.
— Terá que ficar um momento mais à frente da delegacia de polícia — disse Pitt com aspereza. — Vou ver o subchefe de polícia.
— Há material suficiente para praticar a detenção? — perguntou Tellman com certo tom de surpresa e desafio, olhando ao Pitt no rosto.
— Quase — respondeu Pitt.
— Não será fácil para você — observou Tellman sem o menor indício de lástima na voz. Deu meia volta com um sorriso e se dirigiu à porta. — Convém certificar-se bem. Suponho que não quererá que, por algum engano, o julgamento seja um fracasso.
Saiu com os ombros retos e a cabeça erguida.
John Cornwallis ocupava o cargo de subchefe da polícia há muito pouco tempo, de fato pouco mais de um mês. Tinham-no nomeado para cobrir a vaga deixada pela súbita marcha de seu predecessor, Giles Farnsworth, ao resolver o caso do Arthur Desmond. Cornwallis era um homem de estatura média, longas costas, figura esbelta e movimentos ágeis. Não era de aparência agradável; tinha as sobrancelhas muito espessas, o nariz muito pronunciado, os lábios finos e a boca muito grande. Contudo, sua presença impunha respeito, e fazia demonstração de uma atitude fleumática que revelava segurança em si mesmo. Logo se reparava que não tinha um só cabelo na cabeça.
— Bom dia, senhor — saudou Pitt ao entrar em seu escritório enquanto fechava a porta.
Era a segunda vez que estava ali desde sua briga com o Farnsworth. Em essência o escritório permanecia igual a antes: as altas janelas, a escrivaninha de carvalho grande e lustroso, as poltronas. Mas se percebia no ambiente a estampagem de outra personalidade. A suave fragrância dos charutos do Farnsworth tinha desaparecido, e no ar flutuavam em seu lugar os aromas do couro e a cera de abrilhantar, e também de algo vagamente aromático. Possivelmente procedia da caixa de cedro lavrado que havia em uma cantoneira. Esse detalhe era novo, assim como à luneta metálica e o sextante que pendiam da parede.
Cornwallis se achava de pé, como se tivesse estado olhando pela janela. Esperava ao Pitt. Aquela reunião tinha sido consertada previamente.
— Bom dia. Tome assento. — Cornwallis indicou as poltronas, colocadas uma frente a outra a uma cômoda distancia. O sol formava uma mancha de viva luz no desenho vermelho do tapete. — Parece que o assunto do Pentecost Alley está tomando um rumo desagradável. Matou-a ele? Sua opinião...
— Rose Burke o identificou — respondeu Pitt. — As provas são sólidas.
Cornwallis deixou escapar um grunhido e se sentou.
Pitt se acomodou na outra poltrona.
— Mas não concludentes? — perguntou Cornwallis, escrutinando o semblante do Pitt. Tinha percebido certa vacilação em sua voz e o media.
Pitt não tinha chegado a uma conclusão definitiva. Tinha dado muitas voltas ao caso depois separar-se do Rose. Aparentemente ela não albergava a menor duvida. Havia descrito ao Finlay FitzJames antes de vê-lo de novo no Devonshire Street; a descrição do Nan Sullivan também concordava. Além disso, tinham a abotoadura e a insígnia do clube Fogo do Inferno.
— A margem de dúvida é escassa — respondeu. — E até o momento não apareceu nenhum outro suspeito.
— Qual é o motivo de sua indecisão? — Cornwallis franziu o sobrecenho. Só conhecia o Pitt por suas referências. Queria sopesar seu critério, compreender o que o impedia de tomar uma determinação. — Sei que é um assunto desagradável, mas isso não deve preocupá-lo. Se esse homem for culpado, conte com todo meu apoio. Não me importa de quem seja filho.
Pitt contemplou seu rosto tenso e franco e soube que falava sinceramente. Não possuía a artéria nem a escorregadia mesquinharia do Farnsworth; mas possivelmente tampouco sua perícia diplomática nem sua habilidade para persuadir e enganar a quem se achava em posições de poder. Como homem ambicioso e propenso à mentira, Farnsworth compreendia bem aos de sua mesma índole. Cornwallis era mais suscetível de cair em ardis e enganos.
— Obrigado — disse Pitt com franqueza. — É possível que o resultado seja esse, mas ainda não tenho certeza.
— Essa mulher o identificou — indicou Cornwallis, se inclinado para frente. — O que o preocupa? Teme que o jurado não dê crédito a seu testemunho pela classe de vida que leva?
—É uma possibilidade — disse Pitt pensativamente. — Mas meu maior temor é que Rose Burke, por medo e indignação, esteja muito impaciente por tirar do meio ao assassino, que por esse urgente desejo se preste a identificar a qualquer um. Whitechapel não esqueceu ainda o Estripador. Dois anos é pouco tempo. A lembrança revive com muita facilidade, sobre tudo em mulheres de sua condição. É possível que ela conhecesse a Liz a Larga, a Mary Kelly ou a alguma das outras vítimas.
— E a insígnia? — insistiu Cornwallis. — Isso não são imaginações do Rose Burke.
— Não — admitiu Pitt com cautela. — Mas poderia ser que alguma outra pessoa a tivesse deixado no quarto, ou que ele a tivesse perdido ali tempo atrás. Não é provável, de acordo, mas isso afirma ele... que perdeu de vista a insígnia e a abotoadura faz anos.
— E você acredita nele? — perguntou Cornwallis com as sobrancelhas arqueadas e os olhos muito abertos.
— Não. Mente. Mas não o notei tão assustado como caberia esperar. — Pitt tentava analisar suas próprias impressões à medida que falava. — Há algo que ainda não descobri, algo importante. Quero investigar um pouco mais antes de detê-lo. — Cornwallis se reclinou contra o espaldar.
— Vão submeter-nos a uma grande pressão, isso sem dúvida — comentou. — De fato começaram já. Faz uma meia hora recebi uma chamada do Ministério do Interior. Advertiram-me que os riscos de cometer enganos, considerando que sou novo no cargo e possivelmente não compreenda ainda certas coisas. — Apertou os lábios, e a ira cintilou em seus olhos. — Distingo uma ameaça assim que a ouço, e também as manobras da classe governante quando fecha filas para proteger a um dos seus. O que sabe do Finlay FitzJames, Pitt? Que classe de homem é? Eu não gostaria de apresentar provas contra ele e descobrir depois que é um modelo de virtudes. Possivelmente necessitamos algo mais que provas circunstanciais de sua presença no lugar do crime. Existem indícios de algum possível motivo além do vício privado de um homem fraco e violento?
—Não — disse Pitt com calma. — E se o culpado for FitzJames, duvido que encontremos algo. Se tiver maltratado antes a uma mulher ou se permitiu a mais leve prática de sadismo, a família se haverá já assegurado de que não ficam provas. Terão silenciado a qualquer que saiba algo, bem com dinheiro, bem de alguma outra maneira.
Cornwallis dirigiu o olhar ao outro extremo do escritório e contemplou a lareira vazia com semblante pensativo. O quente sol de agosto resplandecia no tapete entre eles e uma vespa arremetia com fúria uma e outra vez contra os vidros das janelas.
—Sim, tem razão — concordou Cornwallis. — Qualquer que estivesse comprometido ou soubesse seria de seu círculo, e não o delataria. — Voltou-se de repente para o Pitt. — Que impressão lhe causou seu pai? Considera inocente ao seu filho?
Pitt guardou silêncio por um momento e repassou mentalmente a reação do Augustus: seu rosto, sua voz, a prontidão com que tinha assumido o controle do interrogatório.
— Não saberia lhe dizer. Não acredito que esteja plenamente convencido de sua inocência. Bem isso, ou não confia em nós absolutamente e teme que possamos mentir ou interpretar erroneamente as provas.
—Surpreende-me — admitiu Cornwallis. — É um homem feito a si mesmo, mas sempre demonstrou um grande respeito pelo Estado e suas instituições. E não é de estranhar. Tem muitos amigos em postos importantes. Conforme ouvi, espera que Finlay chegue algum dia às altas esferas da política, inclusive a primeiro-ministro. Procurará afogar qualquer rumor que possa representar a menor desonra para ele. Se isto se voltar contra seu filho, seria o final de seus sonhos. Possivelmente se devia a isso o temor que você percebeu.
— Ou a firme vontade de protegê-lo a toda custo — indicou Pitt. — Pode ser que para ele a morte de uma prostituta não seja mais que um lamentável acidente em uma vida pelo resto bem planejada. Não sei. Diz que tem amigos poderosos?
A expressão do Cornwallis cobrou vida de repente.
— Acredita que poderia ter também inimigos poderosos?
— Finlay? — disse Pitt com um suspiro. — Não. Acredito que é um jovem arrogante que não para em nada na hora de satisfazer seus desejos. Uma noite, em sua avidez de poder, de controle sobre outras pessoas, passou-se dos limites e matou a uma prostituta. Ao ver o que tinha feito, venceu-lhe o pânico e a deixou ali. Possivelmente não está tão assustado como seria de esperar porque dá tem claro que seu pai o tirará do apuro para proteger seus próprios sonhos. —Adotou um tom de voz mais severa. — Não se sente tão culpado como deveria porque mal vê Ada McKinley como membro da mesma espécie. Para ele é algo assim como maltratar a um cão. Lamenta-o. Não o faria a propósito. Mas tampouco vai consentir que um fato assim arruíne sua vida.
Cornwallis permaneceu imóvel por uns segundos, abstraído, com certa expressão de tristeza.
—Provavelmente está certo — disse por fim. — Mas se o acusarmos, vale mais que sejamos capazes de demonstrar sua culpa. Há alguma outra coisa que deva saber?
—Não, senhor; ainda não — respondeu Pitt, movendo a cabeça em um gesto de negação.
— Por onde vai prosseguir a investigação?
— Por Pentecost Alley. Se os indícios seguem apontando na mesma direção, e existe a menor esperança de averiguar algo mais, começarei a fazer indagações sobre a personalidade e o passado do Finlay FitzJames. Não quero afundar em sua vida antes do tempo. Indevidamente se inteirará.
Cornwallis esboçou um desgraçado sorriso.
—De fato está já em guarda, e começou a tomar medidas oportunas.
Pitt já o previa, mas possivelmente não tão cedo.
— Obrigado por me avisar, senhor. Andarei com pés de chumbo.
Cornwallis ficou em pé e lhe estendeu a mão. Foi um gesto espontâneo, e para Pitt lhe foi muito especialmente grato. Estreitou com força a mão do Cornwallis por um momento e a seguir saiu do escritório com renovado ânimo.
Ewart estava já na casa de Pentecost Alley. A plena luz do dia lhe notava tenso e cansado. Tinha amplas entradas e mechas cinza no cabelo e tinha a roupa amassada, como se por falta de tempo ou interesse descuidasse de seu aspecto pessoal.
— Alguma novidade? — perguntou Pitt ao reunir-se com o inspetor na escada que subia à porta.
— Não. Esperava algo?
Ewart ficou atrás para que Pitt subisse primeiro.
— Rose Burke identificou ao FitzJames — informou Pitt ao chegar ao alto da escada. Dentro fazia calor, o ar estava viciado, e cheirava a comida e roupa suja.
Ewart subiu atrás dele em silêncio.
— Vai detê-lo só por isso? —disse quando cruzaram a porta com voz rouca, como se lhe faltasse o fôlego. — Não deveria. É pouco provável que o jurado dê mais crédito a sua palavra que a de um homem como FitzJames. Perderemos.
Pitt se voltou para ele. Na penumbra do corredor a visibilidade era escassa, e entretanto percebeu com clareza sua expressão urgente, quase aterrorizada.
— Você acredita que é culpado? — perguntou Pitt com aparente despreocupação. Ewart o olhou fixamente.
— Essa não é a questão. O que eu acho não tem importância...
Ouviu-se uma portada ao fundo do corredor, e na rua um cocheiro gritava a alguém que obstruía o passo.
— Para mim sim — afirmou Pitt com calma.
— Como? — perguntou Ewart, desconcertado.
— Para mim sim tem importância sua opinião — repetiu Pitt.
— Ah... —Ewart soprou. — Bom, não sei o que dizer. Eu me atenho aos fatos. Até o momento parece que é culpado, mas não temos provas suficientes. Ou seja... por que ia matá-la? Mais lógico seria que a tivesse assassinado alguém que a conhecia pessoalmente. —Falava com crescente convencimento. — Devemos ter em conta o tipo de vida que leva uma mulher assim. Poderia ter criado muitos inimigos. Nos disseram que era ambiciosa. Além disso, trocou de cafetão, sabia? E conviria afundar mais nos assuntos de dinheiro, propriedades, etc. Como, por exemplo, de quem é esta casa.
Ewart tinha razão, mas Pitt suspeitava que esses dados de pouco serviriam naquele caso. Sem dúvida as prostitutas eram assassinadas por diversas razões, em sua maioria relacionadas de um modo ou outro com o dinheiro; mas detalhe como os dedos quebrados, a água ou as botas abotoadas entre si não encaixavam em um crime por cobiça, certamente Ewart era tão consciente disso como ele.
— De quem é a casa? — perguntou Pitt.
— De uma tal Sarah Barrows — respondeu Ewart com complacência. — Tem além outras três casas mais ao oeste. Esta a aluga, mas ao menos duas das outras estão dirigidas como bordéis. Aluga inclusive os vestidos. As mulheres desta casa sustentam que elas não alugam a roupa, mas isso é o de menos. Ada possivelmente trabalhava também em outras partes. Muitas o fazem, sabe? Vivem em um lugar e pegam quartos por horas nas zonas do Haymarket e Leicester Square. Poderia se haver saído de uma dessas casas sem pagar e levando o vestido alugado.
— E um homem a seguiu até aqui e a estrangulou? — disse Pitt com incredulidade.
— Por que não? — replicou Ewart. — Alguém a seguiu desde algum lugar e a estrangulou. Diga-me, se não, que explicação lhe parece mais verossímil: que a matasse um cafetão extorquido ou um cliente da posição do FitzJames.
— Exponhamos o de outra maneira — respondeu Pitt sem trocar o tom de voz. — Vejamos o que é mais provável. Que alugasse outro quarto e enganasse a madame, e depois esta a fizesse seguir... e me consta que as madames contratam a gente para seguir às garotas, embora costumam ser prostitutas imprestáveis já para o trabalho, e não homens jovens e fortes...
Uma das mulheres saiu de um quarto a sua esquerda e os observou com curiosidade por um momento. Depois passou junto a eles, desceu pela escada, dirigiu-se à entrada do beco e dobrou a esquina.
— Mas suponhamos que levou um vestido — prosseguiu Pitt— e todos seus lucros do dia e retornou aqui. E a seguiu um homem, que em lugar de avisá-la para que aquilo não voltasse a ocorrer, lhe tirar o dinheiro e o vestido, e possivelmente lhe desse uma surra para que aprendesse a lição, rompeu—lhe os dedos das mãos e os pés... — Notou que Ewart se estremecia e fazia uma careta de aversão, mas continuou. — Depois lhe tirou uma meia e a estrangulou com ela. E para acabar, quando Ada estava já morta, pôs-lhe uma liga no braço, abotoou as botas entre si, jogou uma jarra de água fria e partiu.
Ewart fez gesto de protestar, mas não achou palavras por causa da repugnância e confusão.
—Ou imaginemos que todas essas coisas formam parte da particular perversão de um cliente — sugeriu Pitt. — Um homem que gosta de ameaçar, causar um pouco de dor ou medo. Isso é o que o excita. Mas nesta ocasião vai à mão, e a garota morre. O cliente se assusta e foge. O que lhe parece?
Ewart o olhava com expressão áspera e um inconfundível indício de medo nos olhos escuros. No corredor fazia um mormaço e o ar era irrespirável. Ambos suavam copiosamente.
—Parece-me que podemos cometer um grave engano se não andarmos com cuidado — disse com aspereza. — Chegado o momento, se terá que expor-lhe diretamente, FitzJames não negará que esteve aqui no passado. Isso lhe aconselhará seu advogado. Muitos homens respeitáveis vão com prostitutas. Todos sabemos. Não cabe esperar que um homem ponha freio a seus instintos naturais durante toda sua juventude, e acaso não possa permitir um bom matrimônio até quase os quarenta anos no mínimo. É melhor não falar do assunto, mas se o trazemos a luz, ninguém se surpreenderá; só conseguiremos despertar a indignação da gente pelo mau gosto de arejar semelhantes questões. — Respirou fundo e esfregou a testa com o dorso da mão. Na rua, o cocheiro seguia vociferando. — Declarará que esteve aqui, mas não essa noite, e que ela deveu lhe roubar a insígnia. Não seria o primeiro a quem roubam em um bordel. Santo Deus, mas se antes havia lugares no Bluegate Fields e Saint Giles onde um homem podia dar-se por contente se não lhe tirassem até a camisa! —Gesticulava nervosamente. — Eu os vi sair sem calças, nus como Deus os trouxe para o mundo e morto de medos, cheios de hematomas e feridas.
— Tampouco seria o primeiro a voltar feito uma fúria e dar uma surra à ladra — comentou Pitt. — Duvido que seja muito aconselhável alegar algo assim.
—Mas não houve briga — arguiu Ewart com um repentino sorriso. Isso disse Lennox, e nós mesmos o comprovamos.
— E isso o que demonstra?
Ewart o olhou com os olhos arregalados.
— Que... que o assassino a pegou de surpresa, claro está. Que alguém a quem conhecia e não temia.
— Quer dizer, não um cliente a quem tivesse roubado.
Ewart começava a perder a paciência.
—Não sei o que demonstra, salvo que ainda fica muito por averiguar.
Deu meia volta, empurrou a porta do quarto de Ada e entrou. Pitt o seguiu. Tudo permanecia exatamente igual à outra vez, salvo o cadáver da Ada, que tinha sido já retirado. A janela estava fechada, e o calor era cansativo.
—Revistei o quarto de cima abaixo — disse Ewart com aborrecimento. — Não havia mais que o previsível. Nada que contribua com informação sobre ela. Tampouco cartas. Se tinha parentes ou amigos, não lhe escreviam ou ela não guardava a correspondência.
Pitt ficou imóvel no meio do quarto.
—Provavelmente não saibam escrever — comentou com tristeza. — Há muita gente analfabeta. Não dispõem de meio algum para manter—se em contato. Algum retrato?
Essa era outra vã esperança. As pessoas como Ada não podiam permitir o luxo de pagar a um fotógrafo ou um pintor.
— Não. — Ewart corroborou sua resposta com um gesto de negação. — Bom, há um esboço a lápis de uma mulher, mas bastante impreciso. Poderia ser qualquer. E não leva nada escrito.
Aproximou-se do baú e tirou uma caixa que, além do esboço, continha uns quantos lenços, forquilhas e um pente. Entregou o papel ao Pitt, e este o examinou. Tinha as bordas dobradas e um ângulo ligeiramente quebrado. Era um esboço muito simples, como Ewart tinha indicado, de uma mulher de uns trinta anos, rosto doce e sorridente e cabelo recolhido em um coque. Percebia-se certa harmonia nos traços, mas era só um rascunho, o trabalho rápido de uma mão inexperiente. Possivelmente fosse a mãe da Ada, a única coisa que conservava de seu passado, do tempo e o lugar em que tinha sido feliz.
De repente um sentimento de ira lhe apertou a garganta. Nesse instante ele mesmo teria batido em Finlay FitzJames tanto se tivesse matado Ada como se não, simplesmente por sua indiferença.
— Senhor? — A voz do Ewart interrompeu seus pensamentos.
— O que? — disse Pitt, erguendo a vista.
— Fiz indagações pelo bairro e reuni bastante informação sobre sua vida, a classe de clientes que recebia, que lugares frequentava, possíveis inimigos. Como sabe, não podemos descartar que as botas abotoadas e a liga no braço fossem coisas de seu último cliente, e não forçosamente de quem a matou.
— Ah, sim? E o que averiguou?
O descontentamento do Ewart era patente. Tinha o rosto contraído e a pele brilhava por causa do suor.
— Era um tanto descarada. Talvez muito para seu próprio bem — disse lentamente. — Trocou de cafetão não faz muito. Deixou-o plantado e buscou a outro. É possível que ele não o tenha tomado bem. Ada lhe dava um bom dinheiro. E possivelmente tivesse também interesse pessoal nela. Era uma mulher de boa aparência.
— Que aspecto tem esse homem? — perguntou Pitt, tentando sossegar um repentino broto de esperança. Ewart evitou seu olhar.
— É magro, moreno... — interrompeu-se. O cafetão não se parecia em nada ao homem que Rose Burke e Nan Sullivan haviam descrito. Era inútil continuar falando disso. Embora naturalmente devessem solicitar a máxima informação possível sobre a vida da Ada, e depois também sobre a do Finlay FitzJames.
— Enfim, melhor será que investigue ao novo cafetão — recomendou Pitt com cansaço. — Voltarei a interrogar às outras mulheres. Para Pitt não foi fácil despertar ninguém, mas ao cabo de um quarto de hora estava na cozinha, sentando em uma incômoda cadeira de madeira, frente a Nan Sullivan, que não se arrumou, tinha rosto de sono e não parecia recuperada dos esforços da noite anterior. Cada vez que Pitt trocava de posição, a precária cadeira se inclinava e ameaçava desabar-se. Pediu ao Nan que lhe contasse de novo tudo o que recordava da noite que Ada foi assassinada. Não esperava mais provas; só queria formar uma ideia de que impressão causaria Nan a um jurado e se dariam mais crédito a sua palavra que a do Finlay FitzJames.
Nan, incapaz de concentrar o olhar, não deixava de piscar.
— Descreva ao homem que viu entrar no quarto da Ada — disse Pitt para animá-la a começar ao mesmo tempo em que se afirmava de novo na cadeira.
Um par de moscas voava com um monótono zumbido junto à janela. Debaixo havia dois baldes tampados com panos. Provavelmente continham água.
—Cabelo loiro — respondeu Nan. — Abundante. E levava uma boa jaqueta. É o único que sei com segurança. — Evitou o olhar de Pitt. — Não o reconheceria se voltasse a encontrá-lo. Vi-o de costas. A jaqueta era cara. Sei distinguir uma boa jaqueta. — mordeu o lábio e lhe saltaram as lágrimas. — Quando meu marido morreu, fui trabalhar em uma oficina de costura. Fazia jaquetas. Mas é impossível manter vivas a duas criaturas com o que pagam. Trabalhava todo o dia e a metade da noite, e tirava só seis xelins à semana. Aonde vai alguém com isso? Poderia ter conservado a virtude e metido à pequena em uma casa berço, mas sei o que fazem ali com as crianças. Vendem-nas, e sabe Deus para que! Ou se ficarem doentes, deixam-nas morrer. Matam-nas de fome, isso fazem.
Pitt guardou silêncio. Constava-lhe que aquilo era verdade. Conhecia os salários das oficinas e tinha visto as casas berço.
Não se ouvia o menor som em toda a casa. As outras mulheres dormiam ou tinham saído. Da rua chegavam as vozes de um homem e o ruído longínquo das rodas e dos cascos dos cavalos contra os paralelepípedos. A oficina em frente se achava em plena atividade, as costureiras encurvadas sobre a agulha. Elas levavam já cinco horas de trabalho.
—Também poderia ter ido a um asilo de pobres — prosseguiu Nan lentamente. — Mas me teriam tirado às meninas, e isso não o teria resistido. Fazendo a rua, podia lhes dar de comer.
— O que foi feito de suas filhas? — perguntou Pitt com amabilidade, mas imediatamente se arrependeu. Não desejava ver-se obrigado a compartilhar sua tragédia.
Nan sorriu e levantou a vista.
—Já são maiores — respondeu. — Mary foi servir e saiu adiante. Bridget se casou com um açougueiro do Camden.
Pitt não precisava perguntar mais. Podia imaginar o que fariam as duas moças para conservar o precioso dom que sua mãe lhes tinha feito. Lembrar-se-iam dela de vez em quando, talvez inclusive tivessem uma vaga ideia do que seu bem-estar havia custado; mas por nada do mundo se aproximariam do Pentecost Alley. E melhor assim provavelmente. Nan podia imaginar sua felicidade, e as moças podiam guardar a lembrança de sua mãe quando não apresentava ainda os estragos causados pela vida.
—Parabéns — disse Pitt com toda sinceridade, tentando manter o equilíbrio ao notar que a cadeira se inclinava perigosamente.
— O filho da Ada morreu. Pobre. — Não precisou se compadecia ao menino ou à Própria Ada. — Se soubesse quem a matou, o diria. Mas não sei. — Encolheu os ombros. — Além disso, como disse o senhor Ewart, quem ia acreditar em mim?
A ira se apoderou novamente do Pitt.
— Isso lhe disse o senhor Ewart?
— Com outras palavras, mas isso era o que queria dizer. E tem razão, ou não?
— Isso depende de várias coisas — disse Pitt, fugindo da resposta. Em caso de ser sincero, ela não o teria agradecido. — Mas se não estivesse segura de poder identificá-lo, isso carece de importância. Fale-me da Ada. Se não a matou FitzJames, quem acredita que pôde ter sido?
O silêncio do Nan se prolongou tanto que Pitt pensou que não responderia. As moscas chocavam-se uma e outra vez contra os vidros. Acima se ouviu um repentino estrépito, e alguém xingou no corredor.
—Bom — disse por fim—, se não fosse pelas botas abotoadas, teria pensado que foi Costigan, o novo cafetão da Ada. É um elemento de cuidado, o asseguro. Todo um galã. —Usou a palavra com tom de repulsa. — Acredita que todas as mulheres deveriam cair rendidas a seus pés. E tem um temperamento como uma ratoeira. De momento vê só o queijo, e de repente záz!, Dispara-se a mola e lhe quebra as pernas. — Fez um gesto de aversão. — Mas é um covarde. Conheço essa classe de sujeitos. Ao vê-la morta teria temido por sua vida e teria escapado imediatamente. Não se teria se entretido com as botas nem com a liga. — Olhou ao Pitt com rosto inexpressivo. — Assim deve ser um cliente, FitzJames ou outro.
Não tinha mencionado os dedos quebrados simplesmente porque desconhecia esse detalhe.
— Possivelmente o cliente abotoou as botas e lhe pôs a liga no braço, e quando Costigan entrou, Ada não tinha tido tempo ainda de pôr ordem — sugeriu Pitt. Era uma possibilidade razoável. Nan negou com a cabeça.
— Se Ada tivesse tido duas visitas, Rosie ou eu nos teríamos informado. Ou Agnes. Talvez dê a impressão de que ninguém vê quem entra e sai destes quartos, mas não é assim. Cuidamo-nos entre nós. Temos que fazê-lo. Principalmente é a velha Madge quem vigia. Nunca se sabe aonde pode chegar um cliente. Alguns levantaram o cotovelo e ficam muito violentos. Outros pedem coisas que a uma pessoa em seu são julgamento nem lhe passariam pela mente. — Piscou, soprou o nariz e se assoou com um trapo. Isso é o estranho. O lógico é que tivesse gritado, não? Pode ser que não se desse conta até que tinha a meia ao redor do pescoço, a desventurada.
— O qual nos leva a pensar que não era um cliente novo — discorreu Pitt —, mas alguém a quem Ada já tinha atendido outras vezes, alguém de quem esperava essa classe de práticas. Era Costigan seu amante além de seu cafetão? Inclinou-se para frente esquecendo-se da cadeira, que esteve a ponto de desabar.
— Teria gostado disso — disse Nan com uma careta de desprezo. Não prestou atenção à cadeira do Pitt. Estava já acostumada. — Não acredito, mas claro, eu não sei tudo. Poderia ser. Mas se Ada o consentia, por que a matou?
— Não sei. Obrigado, Nan. Se recordar algo mais, faça-me saber... a mim ou ao senhor Ewart.
— Sim, sim, fique tranquilo.
Nan o observou enquanto se levantava. A cadeira se endireitou com um rangido.
Pitt dedicou várias horas a indagar a vida cotidiana da Ada, e pelo que averiguou, seus costumes em nada diferiam das de qualquer outra mulher que ganhasse a vida nas ruas. Levantava-se depois do meio-dia, vestia-se, tomava sua principal comida do dia e começava a rondar pelas calçadas. Normalmente permanecia nas imediações do Whitechapel. Ali havia muitos clientes. Mas algumas noites, se fizesse bom tempo, e sobre tudo no verão, visitava alguma das outras zonas tradicionais de prostituição como Windmill Street, Haymarket ou Leicester Square em busca de clientes mais ricos. Ali o público dos teatros, elegantes damas e cavalheiros, mesclava—se com prostitutas de todos os níveis e idades, das cortesãs caras e bem vestidas até meninas de dez ou doze anos que, desesperadas por embolsar uns pennies, brincavam de correr entre a gente, puxavam os homens pelas mangas e sussurravam obscenos oferecimentos.
Ada tinha recebido alguma ou outra surra, em geral de seu antigo cafetão, um tal Wayland, um homem de aspecto mesquinho que trabalhava por horas como carreteiro e arredondava seus ganhos — às vezes mediante extorsão, às vezes em troca de amparo — a custa das garotas das proximidades do Pentecost Alley. Vivia em frente ao beco e destinava a maior parte de seu tempo a rondar pela zona para assegurar-se de que ninguém incomodava às garotas na rua. Uma vez que entravam em seus quartos, correspondia-lhes defender-se de clientes violentos ou pouco honrados. Havia uma mulher, a velha Madge a quem Nan tinha aludido, prostituta em sua juventude, que se alojava na parte traseira da casa e fazia ato de presença ao menor grito. A velha Madge via mal, mas tinha um ouvido muito fino, e dirigia o pau de macarrão com destreza e toda a potência que lhe conferiam suas duzentas e oitenta libras de peso. Tinha deixado meio morto a mais de um cliente cujas exigências não tinha considerado plausíveis.
Mas como todas as demais, incluída Agnes, o inquilino do quarto contígua, não tinha ouvido nada a noite em que morreu Ada.
Wayland ficava livre de suspeita, porque podia dar conta de seu paradeiro durante toda essa noite. Uma de suas recentes aquisições, uma moça de uns dezoito anos e rosto comum cuja excelente figura proporcionava a ambos folgados lucros. E como Ewart tinha admitido não se parecia em nada ao homem que Rose e Nan haviam descrito. Era baixo e magro, de cabelo escuro e liso como brochadas de pintura negra sobre seu estreito crânio.
Ada se havia visto envolta em momentâneas rixas com outras mulheres, explosões de mau gênio seguidas de um rápido perdão. Não era rancorosa. Também recordavam dela seus impulsivos gestos de generosidade: compartilhar roupa; oferecer uma libra em momentos difíceis; desfazer-se em elogios, às vezes quando menos mereciam.
Tinha velado à velha Madge quando esta esteve doente, e lhe tinha feito recados, tinha-a lavado com água limpa e quente, tinha-lhe esvaziado os urinóis, renunciando a sair à rua para ganhar dinheiro. E Pitt, sentado novamente na instável cadeira da cozinha, contemplava o rosto avermelhado e estragado de Madge e pensava que se chegassem a achar o assassino da Ada, sairia melhor sacado a disposição da justiça que em mãos de Madge.
— Cuidou-me bem, sim senhor — disse Madge, olhando fixamente ao Pitt. — Deveria tê-la ouvido! Por que não a ouvi gritar? Teria matado a esse porco antes que deixar tocar um só cabelo a Ada. Já não sirvo para nada. — Suas carnudas faces se contraíram por causa da dor, e sua voz, em extremo aguda para uma mulher de sua corpulência, empanou-se pelo sentimento de culpa. — Já vê o que fiz por ela. Nada. Onde estava quando mais me necessitava? Aqui, meio adormecida. Igual daria se não tivesse estado. Valente inútil pareço!
—Ada não gritou — disse Pitt em voz baixa. — E deve ter ocorrido tudo muito depressa.
—Está mentindo para mim — respondeu Madge com um forçado sorriso. — Diz isso para me consolar, e o agradeço, mas já vi outras vezes gente estrangulada. Demoram o seu em morrer. E pelo menos poderia ter pegado a esse canalha. O teria fulminado com meu pau de macarrão. — Apontou o pau de macarrão que havia na mesa, perto de sua mão direita. — Então você me teria feito enforcar, e eu teria subido contente ao patíbulo.
— Não a teria feito enforcar por uma coisa assim, Madge — disse Pitt com toda sinceridade. — O teria considerado legítima defesa e teria feito vista grossa.
— Sim, é possível.
Mas embora interrogasse inclusive ao Albert Costigan — um homem insolente de uns trinta anos, muito polido e com um espesso cabelo castanho —, Pitt não descobriu nada que corroborasse ou rebatesse sua convicção de que Finlay FitzJames era culpado.
Pitt decidiu investigar a fundo o passado do Finlay. Seria difícil, e temia que a informação lhe chegasse já crivada pelo mero fato de solicitá-la. Se não fosse pela urgência do caso, teria sido a classe de investigação em que Charlotte podia ter colaborado, como em outras ocasiões tinha feito com grande acerto. Requeria sutileza e perspicácia. Só com perguntas não descobriria o que desejava saber.
Havia já indagado sobre o Finlay no corpo de polícia, e de nada tinha servido. Os outros delegados o conheciam só de nome, e sempre em conexão com seu pai. Pitt tinha consertado uma entrevista com o Micah Drummond, seu superior antes que ele herdasse o cargo. Drummond tinha partido para viver no estrangeiro com sua nova esposa, já que a vida social de Londres lhe era intolerável depois do escândalo suscitado pela morte de seu primeiro marido. Drummond voltava para a cidade de vez em quando, e felizmente a investigação coincidiu com uma de suas visitas. Ele ao menos seria sincero com o Pitt e não se deixaria influir pelas implicações políticas do caso.
Por outra parte, talvez Emily fosse a pessoa mais indicada para esclarecer algumas de suas dúvidas. Ela se acotovelava com a alta sociedade e talvez tivesse ouvido rumores que no mínimo lhe indicariam em que direção investigar. Jack não veria com bons olhos que lhe desse pé a misturar-se de novo. Mas, ao fim e ao cabo, Pitt só necessitava informação.
Pensou no Helliwell e Thirlstone. Eram eles certamente quem melhor conheciam o Finlay, mas fechariam filas, como em realidade já tinham começado a fazer. Por princípio, um cavalheiro não traía aos seus amigos. A lealdade era um requisito fundamental. Pitt não era mais que um intruso. Nunca lhe falariam mal do Finlay, à margem de quais fossem suas opiniões pessoais dele ou que soubessem de seu passado.
Entrou no edifício do Foreign Office e deu o nome do funcionário com quem tinha combinado sua primeira entrevista. Acompanharam-no ao piso superior e ali o guiaram por um largo e elegante corredor até um escritório exterior onde teve que esperar quase um quarto de hora.
Finalmente entrou um homem de aparência agradável de cabelo grisalho, expressão serena e impecavelmente vestido.
O escritório era muito acolhedor. Um quadro impressionista, todo luzes e sombras, pendia de uma das paredes revestidas de madeira. Através da janela se viam os ramos de uma árvore.
— Tome assento, delegado Pitt. Lamento lhe haver feito esperar, mas como em sua carta me explicava a razão de sua visita, queria ter preparada toda a informação que possa lhe ser útil. — Dirigiu ao Pitt um eloquente olhar. — Confio que consiga esclarecer este desafortunado assunto quanto antes.
Pitt se sentou como se tivesse a intenção de ficar ali por um longo espaço de tempo.
— Obrigado, senhor Grainger. Eu também o espero — disse Pitt. Cruzou as pernas e aguardou a que Grainger também tomasse assento.
Grainger se sentou à contra gosto, quase na beira da poltrona.
—Em realidade não sei que classe de dados podem lhe interessar — disse, franzindo o sobrecenho. — A vida privada do senhor FitzJames nunca nos deu motivo de preocupação. Naturalmente antes de considerar sua designação para um cargo diplomático conviria que contraísse matrimônio. — Deu de ombros. — Mas sem dúvida o fará. Ainda é jovem...
— Trinta e três anos — apontou Pitt.
— Exato. Uma idade ótima para dar um passo assim. E é um bom partido. O que tem tudo isto que ver com sua investigação?
— Estão considerando sua nomeação para um cargo diplomático?
Grainger titubeou. Começava a pressentir o risco de uma situação embaraçosa e preferia não oferecer informação comprometedora.
— Não? — conjeturou Pitt. — Não o acharam por completo idôneo?
— Eu não disse isso — replicou Grainger com tom cortante, irritado ante uma interpretação tão categórica de seu silêncio. — Para lhe ser justo, não é meu desejo falar com você desse assunto tão abertamente. É um assunto em extremo confidencial.
Pitt não se alterou.
— Se o senhor FitzJames for candidato a um posto diplomático, imagino, senhor Grainger, que o Foreign Office realizou indagações a respeito de sua vida privada. — Expô-lo como afirmação, não como pergunta. — Compreendo que a informação solicitada é confidencial, mas lhe economizaríamos muitos aborrecimentos ao senhor FitzJames se eu averiguasse o que preciso saber através de vocês, que ao fim e ao cabo indagaram em sua vida por uma causa muito mais honrosa, em lugar de averiguá-lo por minha conta, dado que investigo um assassinato especialmente sórdido no Whitechapel.
— Explicou-se você com toda clareza, senhor Pitt — disse Grainger com uma expressão muito mais severa. — Preferiria que não o fizesse, tanto pela vergonha que pudesse ocasionar a sua família como pelas repercussões que teria em sua carreira.
Estou certo de que você compreende.
— Naturalmente. Por isso vim a você.
—Muito bem — assentiu Grainger com resignação. — Há seis ou sete anos era um jovem imaturo e arrogante que se entregava aos prazeres sem medida. Conduzia sua carruagem à excessiva velocidade. Seu pai lhe tinha comprado um par de excelentes cavalos, e ele os punha a prova em corridas com outros jovens, frequentemente em plena rua. —Olhava ao Pitt friamente com seus olhos azuis. — Mas nunca se produziram feridos graves, e esse é um passatempo muito comum entre jovens ricos. Nem sequer dá chance a comentários. — Juntou as pontas dos dedos. — Jogava, mas sempre pagou suas dívidas; ele ou seu pai. O caso é que nunca caiu em desonra nem granjeou o rancor de ninguém. E é claro nunca fez armadilhas, o que teria sido imperdoável.
—Supunha-o — disse Pitt com um sorriso. — E quanto a sua relação com as mulheres?
— Teve seus escarcéus amorosos, como é lógico, mas pelo que sei nunca deu motivo de ofensa a ninguém. Rompeu algum ou outro coração, e ele mesmo se viu defraudado de vez em quando. Durante uma época se relacionou com uma das filhas do Rutland, conforme acredito, mas ficou em nada. Entretanto nenhum dos dois foi alvo das más línguas. Provavelmente ela recebeu uma oferta melhor.
— Em suma, pois, um jovem irrepreensível — comentou Pitt com certa ironia. Grainger respirou fundo e se esforçou por dissimular sua irritação.
— Não, claro que não. Você bem sabe, senhor Pitt, que se assim fosse, me teria limitado a dizer-lhe e o teria deixado que seguisse com sua investigação. Freqüentou algumas casas de má fama. Passou não pouco tempo no Haymarket e seus arredores, e muitas noites mais ébrio que sereno. Seus gostos eram às vezes mais acidentados do que teria sido de desejar, e seus excessos algo que é melhor esquecer. — Olhou ao Pitt com expressão de franqueza. — Mas tudo isso é água passada, delegado. Estou seguro de que também em sua juventude houve algum episódio que prefere não recordar, e que possivelmente sua esposa ignora. Claro que o houve. Também na minha — disse sem o menor indício de humor, como se se tratasse de um discurso ensaiado.
Pitt notou, surpreso, que se tinha ruborizado. Em seu passado não havia nada escandaloso, a não ser simples estupidez e ações egoístas que preferia ocultar a Charlotte; alterariam a imagem que ela tinha dele.
Podia ser também esse o caso do Finlay FitzJames?
Como se lhe adivinhasse o pensamento, Grainger acrescentou:
— Dá-se conta, delegado? Em nossas vidas há sempre parte que normalmente o destino nos permite enterrar de uma maneira discreta. Só às vezes, quando a gente tem a desgraça de achar-se no lugar e o momento menos oportunos, surgem certas circunstâncias que nos obrigam a confrontá-las de novo. Ou também, é claro, quando a gente tem inimigos... —Não terminou a frase, deixando-a no ar mais como insinuação que como afirmação, para que Pitt a completasse em sua imaginação e o efeito fosse maior.
Pitt refletiu por um instante. Cabia a possibilidade de que Finlay ou seu pai tivessem inimigos com a astúcia e a falta de escrúpulos necessárias para deixar a insígnia do Finlay no lugar do crime? Seria uma extraordinária coincidência.
Contemplou o rosto tranquilo do Grainger. Era diplomático e estava acostumado a pensar na morte como algo longínquo, um fato que ocorria em outros países e a outra gente que ele nem sequer conhecia. Possivelmente para alguém como ele, para quem os seres humanos frequentemente eram só nomes e folhas de papel, um inimigo de tais características não era inimaginável.
Um pássaro posou em um dos ramos da árvore que via pela janela.
— Inimigos capazes de assassinar a uma mulher com o único propósito de perseguir ao FitzJames? — disse Pitt com manifesto ceticismo.
— Talvez não ao Finlay — admitiu Grainger —, mas sim a seu pai. Augustus FitzJames possui uma grande fortuna, e nos inícios de sua ascensão social era um homem implacável. Estou de acordo em que assassinar a alguém só para incriminar a outra pessoa pode parecer desproporcional, mas não é impossível. — Separou as mãos por um momento e voltou às juntar com delicadeza. — Ou no mínimo, delegado, não é mais improvável que a hipótese de que um homem como Finlay FitzJames, que tem muito que perder e nada que ganhar, visitasse uma prostituta do Whitechapel e a assassinasse. Provavelmente está tão interessado em que se faça justiça como eu mesmo, e não só nos tribunais, mas também no sentido mais amplo. Uma reputação arruinada ou uma oportunidade de promoção perdida exigem algo mais que uma desculpa ou uma retratação. Suponho que é tão consciente disso como eu — concluiu, e olhou ao Pitt com os olhos muito abertos e um leve sorriso.
Pitt saiu do Foreign Office ainda com mais dúvida que a sua chegada. Almoçou com Micah Drummond, e depois os dois passearam tranquilamente pelo Centro entre damas vestidas com formosos vestidos de saias cavadas apenas por estreitas pregas, desenhadas nem tanto para dar volume, mas para franzir ligeiramente o tecido. Era a última moda. Seus amplos chapéus acrescentavam a sua indumentária uma elegância quase inimaginável. Tinham guarda-sóis e os empunhavam com garbo, quase como bengalas. Apesar de Pitt se achar ali para falar sobre Finlay FitzJames, não podia evitar olhar as de esguelha com admiração e manifesto prazer.
Isso mesmo faziam os outros homens, cavalheiros com trajes de excelente corte e cartolas altas e reluzentes, militares de uniforme com suas medalhas e galões. No ar temperado flutuavam as risadas, os longínquos acordes de um realejo e as vozes das crianças que brincavam no parque. Sob seus pés se ouvia o leve rangido do cascalho.
— Um homem implacável — disse Micah Drummond, empregando o mesmo qualificativo que Grainger para definir ao Augustus FitzJames. — Claro que tinha inimigos, Pitt, mas não entre a classe de gente que frequentaria Whitechapel ou visitaria uma casa nas vizinhança do Pentecost Alley. Para começar, a maioria é agora da mesma idade.
— Os cavalheiros amadurecidos utilizam às prostitutas como qualquer outro — replicou Pitt com certa impaciência—, e você sabe.
—Claro que sei — admitiu Drummond, enrugando o nariz. Tinha bom aspecto. Não estava já tão magro e sua pele mostrava o brilho do sol e o ar livre. — Mas não na zona do Whitechapel. Pense-o bem, Pitt. —Saudou com o chapéu a uma dama que aparentemente conhecia e se voltou de novo para o Pitt. — Se um desses inimigos matasse a uma prostituta para implicar ao FitzJames, escolheria uma mulher de melhor classe, como as que ele mesmo frequentaria, nos arredores do Windmill Street ou Haymarket. Não se aventuraria a entrar em um bairro que desconhecia e onde o recordariam facilmente por ser diferente.
— E o recordavam. Essa é a questão. Possivelmente temia que o reconhecessem se agisse em um dos lugares a que estava acostumado a ir.
— E como conseguiu a insígnia do clube Fogo do Inferno? — perguntou Drummond.
— Não sei. Possivelmente chegou a suas mãos por acaso, e isso lhe deu a ideia.
— Oportunismo? — disse Drummond, cético.
— Possivelmente — assentiu Pitt. — E talvez a possibilidade de utilizar o assassinato contra FitzJames fosse também oportunismo.
Drummond o olhou de soslaio com óbvia incredulidade.
— Em qualquer caso, me atenho às provas — admitiu Pitt. — Provavelmente a matou Finlay. Juraria que possui uma veia violenta que conseguiu manter sob controle até agora, e desta vez foi muito longe. Não seria o primeiro homem de boa família que desfruta com a dor alheia e está disposta a pagar por essa classe de diversão. — Respirou fundo. — Nem o primeiro em desmandar-se e acabar matando alguém.
Junto a eles passou um cão negro e pequeno com o rabo em alto e o focinho roçando o chão.
—Não — disse Drummond com pesar. — E temo que coincidiria com o pouco que sei dele da época em que estive no Bow Street.
Pitt parou em seco.
Drummond meteu as mãos nos bolsos e seguiu andando, embora algo mais devagar.Pitt apertou o passo para alcançá-lo.
— Faz uns anos tivemos que encobrir um par de situações desagradáveis — continuou Drummond. — Sete ou oito anos, quase. Um dos incidentes se produziu em um dos becos adjacentes ao Haymarket. Vários jovens beberam mais da conta e se viram envolvidos em uma violenta briga. Uma mulher recebeu uma brutal surra.
— Disse algumas situações desagradáveis? — perguntou Pitt, incitando-o a prosseguir.
— A outra foi uma briga com um cafetão. Este declarou que FitzJames tinha pedido algo fora do comum, e ao não sentir prazer tinha se negado a pagar. Pelo visto, a mulher lhe tinha prestado já o serviço habitual, e quando recusou satisfazer seu outra pedido, fosse o que fosse, FitzJames perdeu os estribos. Contra o que está acostumado a ocorrer em tais casos, o cafetão saiu mal parado. Na briga apareceu uma faca, mas acabaram feridos os dois, e nenhum de gravidade.
— E isso também se encobriu? — perguntou Pitt, sem saber se surpreender—se ou não. O caso piorava cada vez mais, apontando cada vez com maior clareza na direção que ele e Ewart temiam.
—Ao fim e ao cabo, não houve delito — indicou Drummond, tocando a aba do chapéu distraidamente para saudar outra conhecida. — Menos que qualifiquemos de delito uma alteração da ordem. Não tinha muito sentido empreender uma ação judicial. FitzJames se teria declarado inocente, e o alcoviteiro não era precisamente uma testemunha ideal.
— O que pediu FitzJames à garota? — quis saber Pitt, recordando as botas abotoadas entre si, a cama empapada de água e a liga em torno do braço da Ada McKinley. Era é claro que os dedos quebrados eram uma crueldade restringida a aquele incidente em particular.
— Não sei — assegurou Drummond.
— Como se chamava o cafetão? —insistiu Pitt. — Em que data ocorreu isso? Enfim, não importa; já consultarei o expediente. Redigiu um informe do fato, não?
— Não — respondeu Drummond com má consciência. — Sinto muito, Pitt. Então eu era mais ingênuo que agora.
Não acrescentou nenhum outro comentário a respeito, mas os dois pensaram em suas experiências daqueles últimos anos, os muitos casos de corrupção, abuso de poder, falta de honradez. Caminharam em silencio durante um momento, sem ouvir mais som que seus passos no cascalho.
— Recorda o nome do cafetão? — perguntou Pitt por fim.
Drummond deixou escapar um suspiro.
— Sim. Percy Manker. Mas não lhe servirá de nada. Morreu de uma overdose de ópio. A brigada fluvial o tirou do Limehouse Reach. Sinto muito.
Pitt calou. Percorreram um trecho mais sob o sol e logo voltaram sobre seus passos. Deixaram de lado ao FitzJames, e a conversa tomou por roteiros mais agradáveis, principalmente assuntos domésticos e familiares. Drummond se interessou por Charlotte e pôs ao Pitt à corrente sobre a felicidade de sua própria esposa em sua nova casa e as trivialidades de sua vida cotidiana.
Pitt não albergava a menor esperança de surrupiar informação valiosa a respeito do Finlay FitzJames de Helliwell ou Thirlstone. Sim concebia, em troca, a possibilidade de convencer ao Jago Jones de que naquele caso a verdade era mais importante que a lealdade pessoal. Também seus paroquianos tinham direito a sua lealdade, e Ada, embora em um sentido vago, tinha sido membro de sua paróquia.
Encontrou Jago só na igreja. O sol penetrava pelas vidraças e formava desenhos no chão de pedra e nos gastos bancos. Surpreendeu-se ao ver aproximar-se Pitt pelo corredor central.
— Obrigado por vir — disse.
Pitt sabia que não se referia a essa imprevista visita, mas a sua assistência dois dias atrás ao funeral da Ada. Sorriu. Não havia nada que responder.
— O que o traz de novo por aqui? — perguntou Jago, dirigindo-se para o primeiro banco, contra o qual tinha apoiada uma vassoura. — Sabe já quem matou a Ada?
— Acredito que sim.
— Mas não está seguro — disse Jago, arqueando sobrancelhas. Isso significa que não tem provas.
— Tenho sólidos indícios. O problema é que a ação em si parece tão absurda que preciso formar uma ideia mais clara do pretenso culpado para acabar de me convencer. Com respeito a Ada já formei isso.
Jago moveu a cabeça em um gesto de negação.
— Quanto a Ada possivelmente poderia lhe ter ajudado. Ao homem provavelmente não conheço. — Pegou a vassoura e começou a varrer a parte da igreja que ainda ficava por limpar. — Importa-se?
—Absolutamente — respondeu Pitt. Sentou-se em um banco e cruzou as pernas. — Se equivoca. Sim conhece esse homem, ou ao menos o conhecia.
Jago se interrompeu, ficando imóvel com a vassoura nas mãos.
— Refere-se ao Finlay? — disse sem voltar-se para olhar ao Pitt.
— Sim.
— Pela insígnia? Já lhe disse que certamente a perdeu faz anos.
— É possível, reverendo. Mas sem dúvida não a deixou na cama da Ada McKinley faz anos.
Jago guardou silêncio. Ambos descartaram tacitamente a improvável hipótese de que alguém tivesse roubado a insígnia, ou a tivesse encontrado por acaso, e casualmente a tivesse deixado na habitação da vítima, junto com a algema. Jago reatou sua tarefa, dirigindo com cuidado o pó do chão e amontoando-o em um mesmo lugar. Pitt o observou. As bolinhas flutuavam nos enviesados raios de sol.
— Há anos você o conhecia bem — disse Pitt por fim. — tornou a vê-lo depois?
— Contadas vezes. — Jago não ergueu a vista. — Não frequentamos os mesmos lugares. Eu não vou ao Mayfair ou Whitehall, e ele não vem a Santa Maria.
—Não nega entretanto que tenha vindo ao Whitechapel — indicou Pitt.
Jago sorriu.
— Essa é a questão, não?
— Viu-o alguma vez por aqui?
— Não.
— Ou lhe chegaram notícias de que tenha estado no bairro?
Jago se ergueu.
— Não, delegado. Que eu saiba não esteve aqui, nem me ocorre razão alguma pela qual pudesse ter vindo.
Pitt acreditou. Não obstante algo em sua atitude o inquietava. Transparecia nela uma aflição, um desassossego que não podia explicar-se só pela tristeza ante a morte violenta de uma pessoa que conhecia. Em sua primeira entrevista, ao inteirar-se de que tinha sido achada a insígnia do Finlay reagira como um homem apanhado em um pesadelo.
Encaminhou suas perguntas em outra direção.
— Como era Finlay na época em que se relacionou com ele?
Antes de responder, Jago arrastou o pó a um recolhedor, Deixou-o a um lado e apoiou a vassoura contra a parede.
— Mais jovem, delegado, e muito mais insensato. Como todos nós. Não me orgulho de minha conduta daqueles tempos. Era em extremo egoísta, satisfazia meus caprichos sempre que podia, sem me importar com as consequências que isso pudesse conduzir a outros. Não é uma etapa de minha vida que me agrade recordar. Suponho que a Finlay ocorre o mesmo. Alguém amadurecido. Não é possível reparar o egoísmo da juventude, mas sim deixá-lo atrás, aprender dos próprios enganos, e não julgar com precipitação ou excessiva severidade quem por sua vez incorrem neles.
Pitt não duvidava de sua sinceridade, mas tinha a impressão de que era um discurso preparado para aquela ocasião.
— Falou-me muito de você, reverendo, mas muito pouco do Finlay FitzJames.
Jago negou com a cabeça.
—Não há nada mais que dizer. Todos vivíamos sem a menor medida. Se me perguntar se Finlay também mudou, se amadureceu, o certo é que só o vi um par de vezes nos últimos três anos, assim não posso lhe responder com certeza. Imagino que sim.
—Soube que era você pároco da Santa Maria graças à irmã do Finlay. Suponho, pois, que ainda mantém o contato com ela — insistiu Pitt.
Jago riu brevemente.
— Com Tallulah? Sim, de certo modo. Ela atravessa ainda essa etapa de egoísmo e absorvente busca do prazer em que os membros do clube Fogo do Inferno se achavam imersos há seis ou sete anos. Ainda não encontra sentido em outro tipo de existência.
Embora não o disse, sua expressão de aborrecimento e seus lábios algo tensos punham de manifesto a pobre opinião que tinha dela. Era como se não desejasse desprezá-la, mas ao mesmo tempo não pudesse evitá-lo. Aborrecia sua própria vida passada e ao mesmo tempo pedia compaixão por Finlay.
Por quê? Temia acaso que Finlay em realidade não tivesse amadurecido e, como Tallulah, antepunha ainda os prazeres à honra e a responsabilidade?
— Por que se esfriou tanto a amizade entre vocês? — perguntou Pitt como se o fato lhe inspirasse só uma vaga curiosidade.
Jago não se moveu. Olhou ao Pitt sem falar. Tomou ar para responder, mas voltou a expulsá-lo.
Fora da igreja uma mulher chamava um menino, e um cão passou ao trote ante as portas abertas. Pitt aguardou.
— Suponho... suponho que tomamos... caminhos diferentes — respondeu Jago por fim com os olhos muito abertos. Sua resposta distava muito da verdade, e até antes de acabar a frase soube que Pitt se dava conta disso.
Pitt não se incomodou em discutir.
—Admiro sua lealdade, reverendo — disse com serenidade. — Mas está seguro de que é tão elogiável como aparentemente acredita? E sua lealdade a Ada McKinley, que em definitivo, à margem de seu ofício, era membro desta paróquia? Ou a tantas outras mulheres como ela? Embora sejam rameiras, se se erigiu você em seu pastor, não deveria ser fiel também à verdade e ao caminho que escolheu?
Jago empalideceu, e a pele de seu rosto pareceu aderir—se aos ossos como se tivesse nela uma desesperada tensão interior.
— Ignoro quem matou a Ada, delegado. Não sei, de verdade; a Deus ponho por Testemunha. Tampouco tenho razão alguma para pensar que Finlay estivesse no Whitechapel nem naquela nem em nenhuma outra noite. Do contrário, o diria. — Respirou fundo. — Quanto a minha amizade com os FitzJames, esfriou-se por causa de uma divergência de opiniões, ou de metas se o preferir. Finlay não entendeu minha vocação, nem meu desejo de me dedicar a ela em corpo e alma. É algo que só pode explicar-se em termos que ele não achava nem respeitava. Considera-o uma excentricidade, assim como sua irmã.
— Uma excentricidade?
Jago voltou a rir, desta vez com vontade.
— Não em um sentido admirável, é claro. Tallulah admira aos estetas, a homens como Oscar Wilde, Arthur Symons ou Havelock Ellis, que possuem uma imaginação inesgotável e sempre dizem ou fazem... ou acreditam... algo novo. Seu objetivo é comocionar e suscitar comentários, e também, suponho, induzir às pessoas a refletir. Vêem-me como outro tipo muito diferente de excêntrico. Sou um homem aborrecido, e isso é o único inadmissível até para sua extrema tolerância moral, o único pecado imperdoável. Pitt escrutinou o rosto do Jago, mas não viu nele o menor indício de autocompaixão ou ressentimento. De seu ponto de vista eram eles, e não ele, quem desconhecia a verdadeira felicidade.
Entretanto algo continuava escurecendo seu sorriso, um escuro e doloroso segredo que não estava disposto a revelar ao Pitt. Era algo relacionado com o Finlay FitzJames ou com ele mesmo? Ou acaso com um dos outros dois membros do clube Fogo do Inferno, o sensual Thirlstone ou o ufano Helliwell?
— Mantém relação com algum dos outros membros do clube Fogo do Inferno? — perguntou Pitt de improviso.
— Como? — Jago parecia surpreso. — Ah! Não. Não, em realidade não. De vez em quando me encontro com o Thirlstone, mas sempre por acaso. Quanto a Helliwell faz alguns anos que não o vejo. Vão bem as coisas, pelo que ouvi dizer. Está casado e se converteu em um homem respeitável, e rico. Uma vez que deixou suas farras, ao ar, esse era seu maior desejo.
—E Finlay que deseja?
Jago voltou a sorrir, desta vez com resignação.
—Duvido que ele mesmo saiba. Possivelmente realizar as ambições que seu pai alberga para ele, embora sem o esforço e a pressão que indevidamente suportam. Não acredito que queira ser ministro dos Assuntos Exteriores, e menos ainda primeiro-ministro. O mais provável, de qualquer modo, é que seu pai morra antes que se apresente a ocasião, e então poderá relaxar-se e ser o que realmente deseja... se é que ainda o recorda. — interrompeu-se. — Tallulah talvez encontre um bom partido e chegue a ser duquesa ou uma grande condessa. Duvido que possua a inteligência necessária para ser esposa de um político de relevo. Isso requer uma habilidade e um tato consideráveis, além de um profundo conhecimento dos temas de atualidade e da natureza humana, e não só da moda, da etiqueta e das relações sociais. Para começar, não acredito que tenha a discrição suficiente.
— Não poderia adquiri-la? — perguntou Pitt. — Ainda é jovem.
— De nada serve adquirir discrição quando a pessoa já caiu em descrédito, delegado. A alta sociedade não esquece. Melhor dizendo, esquece até certo ponto se se for homem, mas não se se for mulher. No caso dos homens, depende de qual seja a falta. — inclinou-se Contra o banco e por fim se relaxou um pouco. — conheci a algum jovem com uma conduta realmente deplorável... contínuas bebedeiras e uma atitude em extremo ofensiva... e seus camaradas o submeteram a julgamento e declarado culpado de uma infração que não pode passar-se por alto. Então lhe aconselharam que se ofereça voluntário para algum serviço no estrangeiro, por exemplo a África ou a Índia, e que não volte nunca. Pitt o contemplou atônito.
—E o jovem obedeceu — acrescentou Jago. — A alta sociedade impõe disciplina aos seus. Certas coisas não são plausíveis. — ergueu-se. — Outras em troca o são, inclusive algumas condutas que você ou eu consideraríamos abomináveis. Depende de quem seja a vítima do atropelo e de se transcender ou não à opinião pública. Se quiser que diga que Finlay nunca visitou uma prostituta, não posso. Mas isso você já sabe. Se isso fosse um delito, teria que apresentar provas contra a metade dos cavalheiros de Londres. Onde, se não, satisfariam seus apetites? Uma mulher decente veria arruinada sua reputação, e depois eles mesmos a rechaçariam.
—Sei — admitiu Pitt. — É essa a questão?
—Não — reconheceu Jago, olhando ao Pitt pensativamente. — A questão é mais que Augustus FitzJames granjeou a inimizade de muita gente, pessoas que utilizou e desprezou em sua ascensão ao poder, pessoas a quem seu triunfo produziu graves prejuízos. Mais de uma família deve a ele sua desgraça, e uma grande casa nunca perdoa sua ruína. Um indivíduo com ambições políticas receberia não poucas ajudas se corresse a voz de que contribuiu ao afundamento do FitzJames. O poder é cruel, delegado, e a inveja o é ainda mais. Antes de empreender qualquer ação contra Finlay, assegure-se de que foi ele realmente quem deixou a insígnia no Pentecost Alley, e não algum inimigo de seu pai. Custa-me muito acreditar que esse crime o cometesse o homem que eu conhecia em minha juventude... e o conhecia bem.
Pitt escrutinou seu rosto, tentando desentranhar as emoções que se ocultavam atrás de suas palavras, e viu distintas correntes enfrentadas, e sobre tudo uma firme vontade de não emitir julgamentos. Ficou em pé.
— Obrigado, reverendo. Não posso dizer que me tenha servido de grande ajuda, mas tampouco o esperava.
Despediu-se e saiu à rua, onde o aguardavam o trânsito e o bulício, os cavalos e os transeuntes correndo de um lado a outro, as vozes e a permanente capa de sujeira. Sentia ainda mais simpatia pelo Jago Jones que antes, e tinha a convicção de que em algum aspecto essencial mentia.
— E então — disse Cornwallis exasperado. — Averiguou algo mais sobre o FitzJames?
Entardecia, e o sol não era já mais que uma bola alaranjada atrás do manto de fumaça que cobria os telhados. As calçadas despediam ainda o calor do dia e no ar flutuava o intenso aroma dos excrementos de cavalo, que os varredores tinham amontoado junto aos meio-fios em espera de que as carretas passassem para recolhê-los.
Continuavam circulando carruagens e começavam a acender as luzes, já elétricas nos passeios das margens do Tamisa. As pessoas começavam a pensar nos teatros e ópera, restaurantes e festas. Viam-se as luzes das embarcações de recreio atracadas no rio e chegavam rajadas de música.
— Não — admitiu Pitt com cansaço, de pé ante a janela junto ao Cornwallis. — Jago Jones só declarará que há seis ou sete anos levavam todos uma vida desenfreada e depois só se viram casualmente alguma ou outra vez, o que não é difícil de acreditar, dado que agora ele é pároco no Whitechapel. — Esboçou um fugaz sorriso. — E Whitechapel não é precisamente o território do FitzJames. Segundo o Foreign Office, é um jovem capaz e diligente com uma conduta tão correta como a da maioria e melhor que a de alguns. E assim que encontre uma esposa adequada, provavelmente lhe atribuirá um bom posto diplomático. Sem dúvida tem talento para isso, e considerável encanto pessoal.
— Mas Rose Burke o identificou! — insistiu Cornwallis, voltando-se para olhar ao Pitt. — E temos também a insígnia e a abotoadura. Verificou-se que são deles?
—Sim.
Cornwallis o observava com expressão grave.
— O que o preocupa, pois, Pitt? Tem alguma outra prova que não mencionou? Ou acaso o intimida a pressão política? — Moveu a cabeça em um gesto de negação. — Os amigos do FitzJames pressionam cada vez mais, mas mesmo assim pode contar com meu total espaldar se estiver seguro de que é culpado e pode demonstrá-lo.
—Obrigado, senhor — disse Pitt com sincera gratidão. Era um dom inestimável ter um superior que não se arredasse ante o risco nem mesmo quando sua posição pudesse ver-se ameaçada. Não estava já tão seguro de seu bom julgamento. Sabia realmente como eram poderosos os amigos do FitzJames e o pouco que lhes importava a inocência ou a culpa do Finlay desde que nada saísse à luz pública? E tinha considerado, por outra parte, a possibilidade de que tivesse inimigos igualmente poderosos? As palavras do Jago Jones ressoavam em sua mente e não podia passá-las por alto.
— Não me respondeu — disse Cornwallis, interrompendo suas reflexões.
— Eu gostaria de ter outra testemunha que tivesse visto o Finlay no Whitechapel... qualquer testemunha — respondeu Pitt. — Não encontrei um só indício de que tenha estado ali nem essa noite nem nenhuma outra. Amanhã encarregarei ao Tellman que investigue, com a maior discrição possível.
—Não servirá de nada — assegurou Cornwallis. — Talvez normalmente frequente os bordéis do Haymarket, mas não por isso poderia descartar-se que fosse ao Whitechapel a outra noite. Perguntou aos cocheiros dos cabriolés de aluguel? A outras mulheres da rua? Aos policiais de ronda na zona?
— Disso se ocupou Ewart. Ninguém sabe quem é. Em troca, mais ao oeste o conhecem.
— Maldita seja! — exclamou Cornwallis entre dentes. — Quando viu por última vez a insígnia e a abotoadura seu valete, ou alguém cujo testemunho seja relativamente imparcial?
— O valete está a seu serviço há anos e não recorda ter visto nenhum desses dois objetos. Cornwallis digeriu a notícia em silêncio. Os faróis das cardagens se aproximavam lentamente para eles pela rua e os sons das rodas e dos cascos dos cavalos se erguiam no ar quieto.
— Qual é sua opinião, Pitt? —perguntou por fim Cornwallis.
— Acredito que é culpado, mas considero que não temos ainda prova suficientes — respondeu Pitt, surpreendendo-se a si mesmo. Acrescentou : Em todo caso, não tenho certeza.
— Pois melhor será que se certifique — disse Cornwallis com severidade. — E no transcurso da próxima semana.
—Sim, senhor — respondeu Pitt. — Farei todo o possível.
Emily passou o dia como qualquer outro da temporada do verão em Londres. Levantou-se às oito. As nove saiu a montar pelo parque, onde teve ocasião de saudar uma vintena de conhecidos, e embora todos eles fossem pessoas afáveis, com nenhum a uniam especiais laços de amizade. Fazia um dia extraordinário, o ar era fresco, e tinha um excelente cavalo. Montou a gosto e retornou a casa pouco depois das dez, cheia de energia.
Jack partira já para Whitehall e Edward estava no estúdio com seu preceptor, assim tomou o café da manhã sozinha. Evie se achava em seu quarto com a babá.
Durante as duas horas seguintes Emily se dedicou a ler e atender a correspondência, que era escassa. Basicamente procurava tarefas para matar o tempo. Decidiu o menu do dia. Depois chamou a governanta e tratou com ela sobre meia dúzia de questões domésticas, que incluíam a roupa branca, as obrigações das criadas, o rendimento da nova criada e a marca no tapete da biblioteca, descobrindo que tudo tinha ficado resolvido satisfatoriamente sem sua ajuda.
Falou depois com sua criada e comprovou que também esta tinha solucionado todos os problemas menores que tinham surgido.
— O que se passou com aquela mancha de tinta vermelha na manga de meu vestido? —perguntou em primeiro lugar. Manchou-se enquanto admirava um mapa da Índia que tinha desenhado Edward.
— Já a tirei, senhora — respondeu Gwen alegre.
— Foi-se? — disse Emily, assombrada. — A tinta vermelha?
—Sim, senhora. Vai-se com mostarda. Terá que estender um pouco de mostarda por cima da mancha antes da lavagem. Nunca falha.
— Obrigada.
— E se conseguisse umas gotas de genebra, senhora, daria brilho aos diamantes de seu bracelete. Estão um pouco empanados pelo uso. Pedi à cozinheira, mas se negou a me dar isso sem seu consentimento. Terá imaginado que a queria para beber isso.
—Sim, muito bem — respondeu Emily, sentindo-se supérflua.
Não saiu melhor parada de suas conversas com a babá e a cozinheira.
Ao meio-dia pegou sua própria carruagem e foi ver sua mãe, mas não a achou em casa. Hesitou entre ir às compras ou visitar uma galeria de arte, e finalmente se inclinou pela segunda. Aborreceu-se soberanamente. Os quadros eram todos de uma grande delicadeza, e a ela lhe pareciam muito idênticos aos da exposição do ano anterior nessa mesma sala.
Retornou a casa, onde almoçou em companhia de sua avó, que se interessou por suas atividades dessa manhã e seus planos para o resto da semana. Depois de ouvi-los, a anciã os tachou de corriqueiros, vácuos e frívolos. Criticava-a por inveja, pois ela teria desejado fazer o mesmo; mas em seu foro interno Emily estava de acordo com ela.
— Deveria apoiar ao seu marido — reprovou com aversão. — Deveria se dedicar às boas obras. Em sua idade, eu o fazia. Fazia parte do conselho de distrito para a ajuda das mães solteiras. Não imagina quantas desencaminhadas refizeram sua vida graças a mim.
— Deus as ajude — resmungou Emily.
— Como disse?
— Que sem dúvida foi uma grande ajuda — mentiu Emily a fim de evitar uma briga.
Às três e meia assistiu a um concerto com a esposa de um amigo do Jack, uma respeitável mulher com uma conversa muito limitada. Em sua opinião tudo era "reconfortante". Às quatro e meia foram juntas a uma festa ao ar livre, mas partiram ao cabo de meia hora, quando a paciência de Emily estava já a ponto de esgotar-se. Arrependeu-se de não ter ido à casa de alguma liga ou a um leilão beneficente, mas era já muito tarde.
Às seis e meia Jack retornou a casa com o tempo justo. Apressadamente tomaram um lanche e se trocaram para ir ao teatro com uns conhecidos. Às onze e meia jantaram e conversaram de trivialidades. À uma menos quarto Emily se deitou, muito cansada para pensar de maneira construtiva, mas convencida de que tinha esbanjado o dia.
Propôs-se fazer algo mais útil ao dia seguinte. Informar-se-ia por telefone de quais eram os atos sociais em que mais probabilidades tinha de achar Tallulah FitzJames. Procuraria o modo de ajudá-la a tomar uma decisão respeito ao Jago e levá-la a cabo felizmente, ou a esclarecer a inocência de seu irmão em relação com o assassinato do Whitechapel. Ou se era possível, em ambos as frentes.
Pouco depois das duas da tarde, depois do almoço, Emily colocou um elegante vestido de tarde à última moda: um brocado rosa deliciosamente talhado e guarnecido de seda no peito, na gola e nos cotovelos. Quando andava, a saia tinha um gracioso vôo. Complementou-o com um extravagante chapéu — que teria impressionado inclusive à tia Vespasia — e um guarda-sol combinando. A seguir se dirigiu ao Kensington, onde se celebrava uma amostra floral em que, segundo suas averiguações, muito provavelmente acharia Tallulah.
Chegou às três, desembarcou da carruagem e imediatamente viu várias conhecidas. Não teve mais remédio que as saudar e entrar com elas nos sucessivos pavilhões e cercados onde estavam expostas as flores, junto com as mais diversas árvores e arbustos. Entre os canteiros havia pequenas mesas brancas de ferro forjado, e dois ou três elegantes cadeiras ao redor de cada uma. Damas magnificamente vestidas passeavam de pavilhão em pavilhão, muitas delas acompanhadas de cavalheiros com paletó, calças raiadas e reluzentes cartolas. Dispostas por todo o recinto havia meninas de doze ou quatorze anos com vestidos de babados e fitas no cabelo que permaneciam imóveis em afetadas poses, ou faziam caretas quando achavam que ninguém as olhava.
Emily sentiu um repentino desânimo. Tinha esquecido quão concorridas costumavam ser as mostras florais, e o sem-fim de sinuosos caminhos que corriam entre as plantas expostas, pérgolas instaladas sob as árvores, e lugares entre as flores e sob os ramos onde a gente podia falar discretamente ou paquerar. Alguém podia ter ali uma entrevista às escondidas sem muito risco de ser vista por quem preferia evitar. Por isso sem dúvida tinha escolhido Tallulah um lugar como aquele. Era em extremo respeitável. O que haveria mais correto para uma jovem que ir a uma mostra floral? Algo tão feminino, tão encantadoramente inocente. Ali podia aprender muito sobre jardins, estufas e as diversas maneiras de decorar com bom gosto os salões de uma casa para os jantares, encontros ou qualquer outra classe de recepção. Nada mais longe dos interesses de Tallulah.
Emily, como sem lhe dar importância, perguntou entre suas conhecidas se alguém tinha visto a senhorita FitzJames, inventando uma vaga desculpa para justificar seu desejo de falar com ela: uma amiga comum, a direção de um chapeleiro.
Demorou quase uma hora para encontrá-la, e deu com ela por acaso. Ao dobrar a esquina de um amplo te arrie de rosas tardias e altos lírios de viva cor amarela, viu Tallulah em uma pérgola formada pela ramagem entretecida de uma parra. Estava recostada no banco, com as pernas estendidas sobre o assento como se fosse um divã, a saia pendendo em descuidadas dobras, a cabeça jogada para trás, o longo e grácil pescoço arqueado, o escuro cabelo parcialmente desprendido das forquilhas. Era uma postura relaxada e sedutora, graciosa e sugestiva.
O jovem sentado junto a ela a contemplava encantado, inclinando-se cada vez mais como atraído por um ímã enquanto ela o olhava languidamente por entre as pálpebras entreabertas. Emily compreendia o desejo de comportar-se de maneira atrevida. Ela nunca tinha feito nada semelhante, mas ao menos até a data, tampouco tinha experimentado a tentação.
— Tallulah, você por aqui! Que alegria vê-la! —exclamou com fingida ingenuidade, como se acabassem de tropeçar-se em um parque. — Não lhe parecem magníficas as flores? Assombra-me que tenham conseguido tantas a estas alturas do ano.
Tallulah a olhou primeiro atônita e logo consternada. Tal falta tato era indesculpável. Emily deveria haver-se ruborizado e retirado em silêncio com a devida confusão.
Entretanto permaneceu onde estava, com um amável sorriso no rosto.
— Sempre pensei que agosto é uma época difícil — prosseguiu jovialmente. — Muito tarde para umas coisas e demasiado cedo para outras.
— Me parece que há flores de sobra — disse o jovem, ruborizado. Arrumou a gravata e o colarinho da camisa, tentando dissimular.
— Disso não me cabe dúvida, cavalheiro — respondeu Emily, cravando o olhar nas mãos do jovem. — Para os homens, sempre há flores de sobra. — Deixou o comentário no ar com seu duplo sentido e se voltou para Tallulah, exibindo de novo um radiante sorriso. — estive pensando muito no tema de que falamos em nosso último bate-papo. Eu adoraria ajudá-la, e estou certa de que algo pode fazer-se.
Tallulah continuou olhando-a, e a placidez de momentos antes desapareceu gradualmente de seu rosto. Ergueu-se sem prestar atenção a seu vestido nem ao ângulo em que deslizou a saia.
— Sim? Pois as coisas se complicaram, sabe? Complicaram-se muito.
O jovem se deu conta de que a conversa tinha tomado rumo do qual nada sabia. Ficou em pé, desculpou-se com notável desenvoltura dadas as circunstâncias e, depois de inclinar cortesmente a cabeça, partiu.
Tallulah recompôs o vestido, incapaz já de ocultar sua tristeza.
— Voltei a ver o Jago — sussurrou. — Não muito tempo. Foi em um leilão beneficente. Sabia que estaria ali, arrecadando recursos para sua mísera igreja, assim me apresentei. Tratou-me como se fosse uma menina díscola com a que estava obrigado a ser cortês, como quando uma pessoa aguenta o mau comportamento dos filhos de outra pessoa sem dizer nada para não ofender aos pais. — Contraiu o rosto. — Suportando-os com paciência. Pôs-me tão furiosa que o teria esbofeteado.
Emily viu a dor em seus olhos, e o esforço por decidir se devia negar essa dor ou confrontá-la e superá-la. Era muito mais fácil tentar convencer-se de que era só raiva.
Emily se sentou no lugar que minutos antes ocupava o jovem. O perfume das flores saturava o ar, e lhe agradou notar uma suave brisa.
— Está certa de que não o quer simplesmente porque é inalcançável? — perguntou com franqueza.
Tallulah refletiu em silêncio. Voltou a sentar-se onde antes, mas esta vez com maior decoro, mantendo os pés no chão.
— Atrairia-lhe um homem que a adorasse? — disse Emily sem deixar-se desanimar.
— Não — respondeu Tallulah imediatamente, e um sorriso apareceu em seus lábios. — E a você?
— Absolutamente — admitiu Emily. — No mínimo não deve me convir, mas se, além disso, é necessário conquistá-lo, muito melhor. Quanto mais inflamada é a batalha, mais se valoriza o prêmio. Aos homens ocorre o mesmo, naturalmente. Mas em geral nós somos mais hábeis na hora de dissimular e fingir desinteresse quando de fato estamos gostando muito.
— Jago não está prendado — assegurou Tallulah com pessimismo. — Ao menos de mim. Teria mais probabilidades de despertar suas emoções se fosse uma perdida. Assim no mínimo pensaria que podia salvar minha alma.
— Isso pretendia faz um momento? — perguntou Emily com um sorriso. — Perder-se?
Mas a dor impediu ao Tallulah participar da brincadeira.
— Não, claro que não — disse com tom cortante. — Em realidade me aborrecia. Tudo eram palavras e ideias. Se conhecesse o Sawyer, entenderia a que me refiro. Sua atitude é pura pose.
Emily se reclinou um pouco para estar mais cômoda. Fazia calor na pérgola, e o aroma de tantas pétalas era quase sufocante.
— Por que não se esquece do Jago? —perguntou sem perder tempo em sutilezas. — Sua lembrança não faz mais que afligi-la. Um desafio é estimulante, mas só se existir alguma possibilidade de triunfo. Se não, é deprimente. Além disso, o que faria se conseguisse cativá-lo? Não pode casar-se com ele. Não tem dinheiro. Ou acaso só pretende vingar-se dele porque a despreza, ou isso você acha?
— Despreza-me, o asseguro.
— Assim quer vingar-se.
Tallulah a olhou fixamente. O sol se filtrava entre as folhas de parra e salpicava seu rosto realçando sua peculiar beleza, uma beleza nascida do valor e uma intensa vitalidade.
—Não. Isso seria monstruoso — respondeu com voz aguda por causa da frustração. — Não entende nada, não é? Jago é a melhor pessoa que conheci. Possui sentido da honra, e uma doçura como não vi em ninguém. É honrado. — inclinou-se. — Não me refiro só de que não se apropria de coisas que não lhe pertencem, mas sim de que ele nem sequer o deseja. Não engana a outros, mas além disso tampouco se engana a si mesmo. Isso é muito pouco comum, sabe? Eu me engano a mim mesma continuamente. E em minha família também se enganam todos, em especial em relação aos motivos de suas ações. Afirmam que obram de tal ou qual forma porque é sua obrigação quando em realidade o fazem porque assim o desejam e logo procuram qualquer desculpa. Vi-o mil vezes.
—E eu também — admitiu Emily. — Mas não sei se seria capaz de viver com alguém que dissesse sempre a verdade nua. Duvido que queira sabê-la, e estou convencida de que não quero ouvi-la. Possivelmente seja uma atitude admirável, mas preferiria admirá-la a distância... a muita distância.
Tallulah riu, mas sem alegria.
— Está me interpretando mal de propósito. Não quero dizer que Jago seja um homem cruel ou careça de tato. É só que tem uma espécie de... luz interior. É... íntegro. A maioria das pessoas têm a mente dividida em muitas peças, e cada peça vai por um lado, desejando algo diferente e mentindo às outras, desse modo tentamos o ter tudo e nos sentir além disso justificados. Ao Jago, em troca, isso não lhe ocorre.
— Como está tão segura?
— O que?
— Como está tão segura disso? — repetiu Emily. — Como sabe o que ocorre na mente do Jago?
Tallulah guardou silêncio por um momento. Frente a elas passaram duas moças, vestidas uma de rosa e outra de cor pêssego. Conversavam distraidamente, com as cabeças muito juntas e bolinhas de sol no cabelo.
— Não sei por que lhe explico tudo isto — disse Tallulah por fim. — Em realidade não pode expressar-se com palavras. Sei o que digo. Consta-me que Jago possui uma coragem da qual a maioria das pessoas carece. Faz frente às coisas verdadeiramente importantes, sem evasivas nem desculpas. Para ele, seus princípios são tudo. — Dirigiu à Emily um olhar escrutinador. — Entende?
—Sim — respondeu Emily em voz baixa, abandonando o tom desafiante. — Só queria comprovar se seu interesse por ele é tão profundo como acredita. Não o acharia muito sério à longa? Essa extrema bondade, passado um tempo, não lhe seria muito previsível e no final inclusive aborrecida?
Tallulah voltou a cabeça em outra direção, e seu perfil se recortou contra um fundo de flores.
— Em realidade pouco importa. Sempre me verá como a frívola irmã do Finlay FitzJames, uma moça que esbanja sua vida comprando vestidos tão caros que com o que custa um só poderia alimentar-se e vestir-se durante anos uma de suas famílias do Whitechapel. — olhou a deliciosa saia e a alisou. — Este custa cinquenta e uma libras, dezessete xelins e seis pênies. A nossas melhores criadas pagamos vinte libras ao ano. As criadas e as ajudantes não cobram nem a metade. Vi-o no livro de contas da casa. E tenho uma dúzia de vestidos como este ou mais. — Encolheu os ombros e sorriu. — Mesmo assim, vou à missa os domingos e rezo, como qualquer das mulheres que conheço, e todas se vestem como eu. Não é que Jago fosse dizer-me que ajo mal. Se ninguém comprasse esta roupa, a gente que a faz ficaria sem trabalho. Simplesmente não me prestaria atenção porque me preocupo muito de meu aspecto. Mas para uma mulher solteira isso é o importante, não? — Não era uma pergunta senão uma afirmação.
Emily não discutiu, nem se incomodou em mencionar o dinheiro ou as influências familiares. Tallulah conhecia as regras tão bem como ela.
— Casar-se-ia com ele? — perguntou com delicadeza, pensando em Charlotte e Pitt.
Mas o caso do Charlotte era diferente. A diferença do Tallulah, ela nunca havia sentido a menor atração pela vida social. Era muito mordaz, e sua franqueza raramente era graciosa. Não era intencionalmente atrevida; era uma autêntica inadaptada, E para falar a verdade tampouco tinha recebido muito mais ofertas. Sua atitude desalentava aos pretendentes.
Não obstante, se Tallulah continuasse comportando-se como essa tarde ou a outra noite na Chelsea, podia não ter tampouco oferta no futuro apesar da fortuna de seu pai. Havia muitas mulheres que as pessoas consideravam divertidas, mas não achavam marido.
Tallulah suspirou e contemplou as flores que pendiam sobre sua cabeça. Em seu rosto apareceu uma estranha expressão, mescla de esperança e horror, e também possivelmente ironia ante sua própria situação.
— Se me casasse com ele, teria que viver no Whitechapel, levar vestidos de pano cinza e ser feliz distribuindo sopa entre os pobres. Teria que me mostrar educada com essas dissimuladas que acreditam que rir é um pecado e que o amor quer dizer às pessoas o que deve fazer. Comeria todos os dias o mesmo, atenderia a porta e falaria com comedimento para não ofender a ninguém. Nunca mais iria ao teatro, a ópera ou aos restaurantes, nem sairia a montar pelo parque.
— E pior ainda — acrescentou Emily —, teria que viajar de ônibus, apertada entre uma multidão de gente grossa, ofegante, cheirando a cebola. Teria que guisar e fazer contas antes de comprar algo para saber se o dinheiro lhe chegava ou não, e a maioria das vezes a resposta seria que não.
Emily pensava nos primeiros anos do matrimônio de Charlotte, quando Pitt ainda não tinha sido promovido. Foram tempos difíceis para eles. Entretanto compartilhavam tantas coisas que Emily recordava essa etapa na vida de sua irmã com certa inveja. Tinha a impressão de que ela mesma compartilhava mais coisas com o Jack antes dele ganhar sua cadeira no Parlamento, na época em que ainda ficava muito por fazer e a vitória era incerta e longínqua. Naquela época Jack a necessitava muito mais.
— Não chegaria a esse extremo — replicou Tallulah. — Meu pai me concederia uma atribuição.
— Até se se casasse com um pároco em lugar de aceitar a algum de seus candidatos? —disse Emily com ceticismo. — Tem certeza? Tallulah a olhou, abrindo desmesuradamente seus olhos castanhos, quase negros.
—Não — sussurrou. — Não. Ficaria furioso. Nunca me perdoaria isso. Gostaria que me casasse com um duque, embora em realidade bastaria um marquês ou um conde. Para lhe ser justa, não acredito que sua ambição tenha limite. Se pensasse nisso mais a fundo, dar-me-ia medo. Jamais se detém ante nada. Sempre encontra a maneira de vencer os obstáculos. Muitos tentaram lhe fazer frente, mas não lhes serviu de nada.
Atrás delas se ouviram risadas. O calor começava a ser insuportável.
— E você lhe tem feito frente? — perguntou Emily.
Tallulah negou com a cabeça.
— Nunca me encontrei na necessidade.
— E o enfrentaria para casar-se com o Jago?
Tallulah desviou o olhar.
— Não sei. Pode ser que não. Mas, como já lhe disse, isso pouco importa. Jago não me aceitaria.
— Possivelmente seja melhor assim — disse Emily com toda intenção. — Desse modo não terá que decidir que deseja realmente, se casar-se com quem seu pai escolher e desfrutar de vestidos bonitos, festas, funções de teatro, ou casar-se com um homem que de verdade ama e admira, e em quem confia, e ajudá-lo em seu trabalho vivendo em relativa pobreza. Provavelmente não chegaria a passar fome, e sempre disporia de um teto sob o qual cobrir-se, embora tivesse goteiras.
Tallulah se voltou de repente e a olhou colérica.
— Tenho certeza de que seu teto não tem goteiras, senhora Radley! — replicou. — Embora Jack Radley as tivesse, apostaria algo a que o do finado lorde Ashworth não as tem!
Era uma direta alusão ao primeiro marido do Emily e sua considerável fortuna. Emily poderia ter levado a mal o sarcasmo, mas era consciente de que tinha provocado Tallulah, e considerou justa sua reação.
— Não, não tem goteiras — disse. — Mas se na época eu tomei ou não uma decisão não é o que agora nos corresponde. A questão é que você compreenda a verdadeira natureza de suas distintas opções. Ninguém tem tudo. Nenhuma relação o proporciona tudo. Considere com atenção ao Jago. Considere deste modo as alternativas que se apresentem. Depois resolva o que deseja e lute até consegui-lo.
— Dito assim parece muito simples.
— Essa parte o é.
— Não, não o é — replicou Tallulah. Jogou o tronco para frente, acotovelou-se nos joelhos e apoiou o rosto nas Palmas das mãos. Era uma postura de profunda e angustiada introspecção.
Frente a elas passou um casal de avançada idade, a mulher arrastando um guarda-sol, o homem com o chapéu inclinado. Ela fez um comentário, e os dois puseram-se a rir.
— Se o lamentável assunto do Finlay não resolve logo — disse por fim Tallulah com ira e medo na voz — e a polícia não deixa de fazer perguntas a todo mundo sobre nós, pouco importará de qualquer modo. Arruinar-nos-ão a vida e ninguém nos dirigirá a ajusta por pouco que possa evitá-lo. Consta-me que outras famílias se viram nessa situação. Surge um rumor, começa a correr a voz, e de repente ninguém a vê. É invisível. Vai pela rua, e as pessoas voltam a cabeça em outra direção. Fala com alguém, e não a ouvem. — Elevava a voz gradualmente por efeito do pânico. — Os restaurantes onde costumava jantar nunca têm mesa livre para você. As costureiras estão muito ocupadas para recebê-la. Os chapeleiros não têm nada que fique bem. Os alfaiates não podem atendê-la. Visitas às pessoas, e nunca há ninguém em casa embora as luzes estejam acesas e as cardagens frente à entrada. É como se tivesse morrido sem se dar conta. Uma coisa assim pode ocorrer por fazer armadilhas no jogo ou não cumprir uma dívida de honra, assim imagine o que poderia acontecer se um membro da família é enforcado por assassinato.
Desta vez Emily não se precipitou em sua resposta. O assunto era muito doloroso para questionar atitudes ou exigir um exame de consciência. Teria gostado de pensar sem sombra de dúvida que Finlay era inocente; nesse caso teria sido só questão de esperar que Pitt averiguasse a verdade. Mas conhecia o Pitt há tempos e tinha presenciado suficientes tragédias humanas e situações de violência para procurar consolo em tais ilusões. As pessoas que alguém amava, as pessoas que alguém achava conhecer, podiam ocultar facetas de incontrolável amargura ou cólera, escuras necessidades que nem sequer elas mesmas compreendiam.
— Se ainda continuam investigando-o, significa que ainda não têm provas contra ele — disse, medindo as palavras.
—E que ainda acreditam que é culpado — precisou Tallulah imediatamente com um estranho brilho nos olhos. — Se não, deixariam-no em paz.
Na pérgola não se movia o ar e o calor era sufocante. As risadas soavam longínquas apesar de provir das pessoas que estavam a uns passos delas. Por cima do rumor das vozes se ouvia nitidamente o tinido do cristal e da porcelana, mas Emily e Tallulah se achavam muito absortas na conversa para pensar em refrigérios.
— Sabe por quê? — perguntou Emily.
Tallulah apertou os lábios. Obviamente tinha pensado já nisso e a resposta lhe inquietava.
— Sim. No lugar onde mataram a essa mulher apareceram dois objetos do Finlay, uma insígnia do ridículo clube ao que pertencia e uma abotoadura. Finlay lhes explicou que os tinha perdido há anos. Nem ele nem ninguém havia tornado a vê-los. — Contraiu o rosto. — Veio à casa um policial, um tipo muito ordinário, e interrogou seu valete, mas faz parte do serviço faz só uns anos e nunca tinha visto a insígnia nem a abotoadura. Asseguro-lhe que Finlay não os levava consigo essa noite. — Olhou para Emily como se a desafiasse a duvidar de suas palavras.
—Só isso? — perguntou Emily mantendo uma expressão de objetivo interesse pelos fatos.
—Não. Além disso, uma prostituta declarou que viu entrar um homem no quarto dessa mulher, e jura que se parecia com o Finlay. Mas como podem dar mais crédito a sua palavra que a do Finlay? Nenhum jurado o faria! — Procurou o olhar de Emily. — Não acha?
Emily percebia o medo de Tallulah com a mesma intensidade que o calor do sol ou o enjoativo perfume das flores. Era mais real que as vozes longínquas ou a mancha de cor em movimento que para ela era nesse instante o delicioso vestido de uma mulher que passava. Mas era medo ao menoscabo social, medo a uma condenação injusta, ou medo a que possivelmente seu irmão não fosse inocente?
— Estranharia — disse Emily com cautela. — Onde estava Finlay essa noite?
— No Beaufort Street, em uma festa. Não recordo o número, mas era no o final da rua, perto do rio.
— E não pode demonstrá-lo? — sugeriu Emily com súbita esperança. — Algum outro convidado deve recordá-lo. Provavelmente dúzias de pessoas. Imagino que já informou isso à polícia.
Tallulah pareceu sumir-se em uma profunda tristeza.
— Não esteve ali? —perguntou Emily.
— Sim... sim esteve. — Umas rugas de confusão e pesar sulcaram o rosto de Tallulah. — Eu mesma o vi ali...
Ante elas passou um garçom com uma bandeja de bebidas frias em taças de pé alto que tilintavam ao entrechocar-se. Alguém riu ao longe.
Emily adivinhou que a história não terminava aí, que entranhava algum segredo inquietante e muito pessoal. Em lugar de perguntar, limitou-se a acrescentar o final claro à frase do Tallulah:
— Mas não pode dizê-lo.
Tallulah se voltou imediatamente para ela.
— Diria-o se alguém fosse acreditar me. Não tento me proteger. Se pudesse, liberaria agora mesmo o fim das suspeitas da polícia. Mas não era uma festa comum. Todos andavam fumando ópio e essas coisas. Eu estive ali só uma meia hora e parti. Mas vi fim, embora acredite que ele não se achava já em condições de perceber minha presença. Havia muita gente, e todos riam, bêbados ou narcotizados.
— Mas você viu o Finlay, isso é o que conta! — exclamou Emily com convicção. — Não tinha bebido nem... fumado ópio?
— Não. — Tallulah respirou tremulamente. — Mas quando meu pai me perguntou onde tinha estado diante de minha mãe, os criados e o médico de minha mãe, disse que tinha ido a outra parte. Agora ninguém me acreditaria. Pensariam que minto para proteger Fim. E é lógico. Eu em seu lugar, pensaria o mesmo.
Emily teria gostado de achar um argumento contra, ou umas palavras de consolo, mas Tallulah tinha razão. Ninguém tomaria a sério seu testemunho.
Tallulah olhou as mãos apoiadas na saia.
— Maldita seja! — exclamou com veemência. — Que desastre! —Fechou os punhos. — Às vezes Fim é tão estúpido que seria capaz de odiá-lo.
Emily guardou silêncio. Dava voltas e mais voltas ao assunto, procurando um fio solto ao qual aferrar-se para ajudar Tallulah. Aquilo era um problema prático. Não resolveria deixando-se levar pelas emoções, por justificadas que estivessem.
— Lembro que de crianças Fim me parecia maravilhoso — continuou Tallulah, falando mais para si que para Emily. — Tinha ideias fascinantes. Sempre inventava jogos. Convertia nossa habitação em outro mundo: uma ilha deserta, um navio pirata, a batalha do Trafalgar, um palácio, a Câmara dos Comuns. — Seu olhar se enterneceu com a lembrança e sorriu. — Ou um bosque cheio de dragões. Eu era a donzela, e Fim me resgatava. Ele fazia-se também de dragão. Ria tanto...
Emily não a interrompeu.
— E naturalmente chegou o dia em que teve que partir para estudar — prosseguiu Tallulah. — Senti muito. Nunca me senti tão só como nessa época. Cada trimestre contava os dias que faltavam para sua volta. A princípio todo continuou igual, mas ele mudou gradualmente. Não podia ser de outro modo. Cresceu. Só queria brincar com outras crianças. Continuava comportando-se bem comigo, mas logo perdia a paciência. Tinha todos seus sonhos postos no futuro, não no passado, onde eu estava. Foi naquela época que comecei a compreender tudo o que os homens podem fazer e as mulheres não. — Posou o olhar em um grupo que passava, um homem com cartola e duas mulheres pelo braço, uma jovem e outra de maior idade com um magnífico chapéu guarnecido de penas, mas não parecia vê-lo. — Os homens podem ir ao Parlamento ou chegar a ser embaixadores. Alistar-se no exército ou na marinha. Converter-se em exploradores ou banqueiros. Jogar na bolsa ou dedicar-se à importação e a exportação. — Fez um exagerado gesto de desolação. — Podem ser dramaturgos, músicos, filósofos ou poetas. As mulheres, simplesmente nós casamos. Os homens também se casam, claro, mas para eles é um aspecto secundário da vida. Dava-me conta disso pelas distintas expectativas de nosso pai com respeito a mim e com respeito a Fim. Teria gostado de ter mais filhos varões. Minha mãe sempre lamentou não poder dar-lhe. Suponho que foi culpa dela.
Emily se representou de repente uma sombria imagem da vida em casa dos FitzJames, de uma menina consternada ao compreender o escasso controle que exercia sobre sua própria existência em comparação com seu irmão. O êxito ou o fracasso de sua mãe dependia de quantos filhos varões era capaz de trazer para o mundo, e de fato isso não decidia ela, mas a natureza. Possivelmente Tallulah esperasse o mesmo futuro, o fracasso. Só uma missão importante tinha na vida, e talvez não conseguisse levá-la a cabo.
Emily sabia que assim era sua própria vida. Tinha contraído matrimônio com um homem que desejava filhos varões para que um dia herdassem seu título, mas não tinha experimentado a mesma pressão. Não recordava ter duvidado uma só vez de suas possibilidades. Mas ela não tinha tido nenhum irmão.
— Às vezes quando Fim voltava para casa nas férias se produziam discussões horríveis. — Tallulah continuava olhando ao longe, com a mente no passado. — Nosso pai o chamava a seu gabinete, e Fim saía branco como o papel. Mas no final tudo acabava bem. Não ocorria nada grave. A princípio me assustava. Lembro que ficava sentada no patamar, atrás do corrimão, com a vista fixa no vestíbulo esperando que saísse do gabinete, pensando aterrorizada que possivelmente lhe batesse. Em realidade não sei o que temia exatamente, mas nunca ocorreu nada. Sempre acabava bem. — Alguém riu, mas Tallulah não pareceu ouvi-lo. — Nosso pai e Fim seguiram com seus planos. Fim voltou para o internato, depois foi à universidade e depois entrou no Foreign Office. Se este assunto não acabar em um escândalo, destiná-lo-ão a uma boa embaixada, provavelmente Paris. Antes terá que casar-se, mas não lhe custará achar uma esposa. Há dúzias de garotas adequadas que estariam encantadas de tê-lo como marido. —Respirou fundo e se voltou para olhar para Emily. Tinha lágrimas nos olhos. — Eu gostaria de ajudá-lo, mas não sei o que fazer. Fim não quer falar comigo disso, mas me consta que tem medo. Nossa mãe tampouco quer falar do tema, salvo para dizer que tudo se arrumará porque Fim não pode ser culpado de uma coisa assim e nosso pai não permitirá que o acusem de algo que não fez.
Emily imaginou a uma mulher assustada, que amava a seu filho, mas não o conhecia, que continuava vendo-o como o menino que tinha sido fazia muitos anos. Obstinada à decência porque toda sua existência se apoiava nela, era incapaz de ver o homem adulto que vivia em um mundo alheio a sua experiência, com apetites físicos e emocionais que escapavam a sua imaginação. O que sabia Aloysia FitzJames da realidade que existia além das seguras e elegantes paredes de sua casa?
Não era estranho que Tallulah, uma jovem moderna e atrevida, não pudesse falar com sua mãe ou lhe confiar seus temores. Sequer tentá-lo seria cruel e absurdo. A quem podia comunicar Tallulah suas inquietações? As suas amigas da alta sociedade que só pensavam em achar um bom partido? Ao círculo de estetas, inimigos do convencionalismo, que noite após noite conversavam sobre a arte e o significado da vida, idolatravam os sentidos e veneravam a beleza e o engenho? A Jago? Ele só tinha tempo para os pobres. Não percebia a solidão e o pânico que se aninhavam atrás dos vestidos caros e do rosto desafiante de Tallulah.
— Temos que fazer algo — anunciou Emily com total determinação. — Para começar nos ocuparemos dessa insígnia que, conforme dizem, pertence-lhe. Se Finlay não a deixou, deve ter deixado outra pessoa, fosse por acaso, ou de propósito.
— De propósito? — Tallulah a olhou com expressão de assombro. — Quer dizer que alguém a roubou e a deixou ali para que Finlay acabe na forca? — estremeceu a pesar do calor, já tão intenso que Emily via pequenas gotas de suor na testa de Tallulah e notava incomodada que a musselina de seu próprio vestido grudava na pele.
— Parece-lhe impossível? — perguntou Emily.
Tallulah vacilou só um instante.
— Não, em realidade não — respondeu com voz trêmula. — Meu pai tem uns quantos inimigos. Dei-me conta nestes últimos anos. Poderiam desejar golpeá-lo onde mais lhe dói, e onde é mais vulnerável. Às vezes Finlay comete loucuras. Isso é inegável. Moveu a cabeça em um gesto de lástima. — Acredito que o assusta ser embaixador e chegar logo ao Parlamento porque possivelmente não esteja à altura do que nosso pai espera dele. Quase dá a impressão que desejasse fazer algo para impedi-lo, para não ter que tentá-lo sequer. Não é que o tenha proposto — acrescentou imediatamente com um fugaz sorriso. — Atua assim só em momentos em que... em que perde a confiança em si mesmo. Todos atravessamos etapas assim.
— Quais são concretamente esses inimigos? — insistiu Emily, sacudindo uma mão para espantar uma mosca.
Tallulah pensou por um momento.
— Roger Balfour, por exemplo. Meu pai esteve a ponto de lhe danificar um negócio com o exército, uma venda de munições, acredito. E Peter Zoffany. Simpatizava com ele. Contava anedotas maravilhosas sobre suas experiências na Índia. Parece-me que a simpatia era recíproca. Durante um tempo pensei que meu pai queria me casar com ele, mas no final se aproveitou dele para conseguir algo de outra pessoa, produziu-se uma discussão espantosa, e não voltei a vê-lo. Fim nunca faria uma coisa assim. — Não acrescentou nenhuma expressão de ênfase à frase, com a que foi ainda mais categórica. Olhou para Emily com cenho. — Mas o que importa quem sejam? A única coisa que poderíamos fazer seria informar à polícia. Não teria inconveniente em dizer ao senhor Pitt se voltasse, mas a esse outro homem de aspecto mesquinho não dirigiria a palavra. Acredito que se chamava Tellman, ou Bellman, ou algo assim. Olhou-me como se tivesse a lepra. Além disso, pensaria que só tentava proteger ao Finlay.
— Não, suponho que não tem importância — admitiu Emily. — O que conta é essa insígnia do clube. Se conseguíssemos despertar dúvidas por esse lado, o caso se debilitaria grandemente.
— Mas se a acharam ali! — protestou Tallulah. — Que dúvida vai haver? Leva o nome de Fim gravado. Ele me disse isso, e eu mesma o tinha visto.
— Como é? — apressou-se a perguntar Emily. — Como é exatamente? Recorda?
— Claro. Deste tamanho pouco mais ou menos. — Separou os dedos polegares e indicador uma meia polegada. — Redonda. Com esmalte cinza, o rótulo "Clube Fogo do Inferno, 1881" em letras douradas em frente e um alfinete atrás. Por quê?
— E onde leva o nome do Finlay?
— Ao dorso, sob o alfinete. Por quê?
— Como está escrito?
— O que quer dizer?
— Com letra inglesa, gótica, redonda?
— Com... letra inglesa, como uma assinatura mais nítida. — Sua expressão cobrou vida. — Por quê? — Conteve o fôlego. — Está pensando em fazer uma cópia? Encarregar outra idêntica? Mas para que?
— Bom, se houvesse duas, ao menos ficaria a dúvida de qual era a autêntica. — Emily não fazia mais que medir possibilidades. — Uma teria que ser falsa. Por que não a que apareceu no quarto da prostituta? Assim, no mínimo, demonstraríamos que alguém pôde conseguir uma insígnia falsa e colocá-la onde tivesse vontade.
— Sim, é certo — disse Tallulah imediatamente, inclinando-se. — E onde a deixaríamos?
— Não sei. — Emily continuava pensando. — Em algum lugar onde tivesse podido cair casualmente, e onde Finlay não a encontrasse. No fundo de uma gaveta, por exemplo, ou no bolso de alguma roupa que nunca use.
— Mas se a encontramos nós — objetou Tallulah —, certamente imaginarão que nós a pusemos ali.
—Não pode encontrá-la ninguém de sua família, claro está — concordou Emily. — Mas procuraremos uma maneira de que a polícia leve a cabo uma revista para que eles mesmos a encontrem.
— Uma revista? Como vamos consegui-lo?
— Deixe-me isso. Não se preocupe. — Emily não tinha intenção de explicar que o delegado Pitt, o responsável pelo caso, era seu cunhado. — Já me ocorrerá algo.
— E não investigarão para averiguar se algum de nós encomendou uma cópia? — prosseguiu Tallulah. Isso é o que eu faria. E Tellman, por repugnante que seja, não me pareceu absolutamente tolo. Além disso, poderia voltar o senhor Pitt. Para um policial, fala muito corretamente, mas embora tenha boas maneiras, tampouco acredito que se deixe enganar.
— Então procure que você e sua mãe possam dar conta de todos seus movimentos nos próximos dias, e também Finlay se for possível — indicou Emily com decisão. — Com respeito a seu pai nada podemos fazer. Eu me encarregarei da cópia. Desenhe-me a insígnia o melhor que possa, com o tamanho preciso e o mesmo tipo de letra que se usou na original.
Tallulah a olhou alarmada.
— Não sei se a recordarei com toda exatidão.
— Nesse caso terá que informar-se. Pergunte a Finlay sem que se dê conta de que quer sabê-lo. Não vá a nenhum dos outros membros. Poderiam adivinhar seus propósitos, e mesmo que não traíssem ao Finlay intencionalmente, poderiam prejudicá-lo sem querer para salvar-se.
— Sim — disse Tallulah com maior convicção. Ficou em pé e ficou imóvel por um momento, curvada de repente pelo calor e o sufocante perfume das flores. Emily se levantou também.
— Sim. Porei mãos à obra imediatamente. — Tallulah ergueu os ombros. — Desenharei a insígnia e a enviarei por correio. Receberá-a amanhã. Obrigado... Emily! Não sei a que devo esta amostra de amizade por sua parte, mas sinto uma gratidão que não posso expressar com palavras.
Emily tirou importância com a maior gentileza possível, envergonhada porque no fundo agia daquele modo por aborrecimento e pela sensação de que não tinha feito nada útil durante meses e ninguém a necessitava.
Separaram-se à saída, surpreendidas ao ver que já partira todo mundo. Era a hora idônea para as últimas visitas do dia, ou inclusive para retornar a casa se se tinha a intenção de jantar cedo para sair logo ao teatro ou a ópera.
Tallulah cumpriu sua palavra, e no dia seguinte, na partilha do meio-dia, Emily recebeu uma carta dela, escrita de maneira apressada e pouco prolixa, e acompanhada de dois aceitáveis desenhos da insígnia, mostrando ambos tanto o verso como o reverso. Um, de maior escala para que se visse mais claramente, reproduzia com minúcia todos os detalhes; o outro era menos preciso, mas de tamanho idêntico à insígnia original. Descrevia deste modo os materiais. Tinha anexado um bilhete de cinco libras, lindamente dobrado, para cobrir o custo, e reiterava seu agradecimento.
Emily já tinha decidido onde encomendar a réplica da insígnia. Alguma ou outra amiga sua tinha requerido os serviços de um joalheiro hábil e discreto capaz de realizar uma cópia de uma peça a partir do original ou de uma fotografia ou desenho. Às vezes se produziam percalços. Uma mulher, por exemplo, tinha que empenhar uma jóia para pagar uma dívida que preferia não mencionar ao seu marido e não podia saldar com o dinheiro de sua atribuição para roupa. Ou às vezes algo se perdia. Inclusive havia situações em que não convinha ficar com uma peça original. Um joalheiro que o resto da família não conhecesse e que soubesse guardar um segredo era um amigo muito prezado.
Naturalmente Emily não revelou sua identidade. Mas o joalheiro estava habituado às damas que ocultavam seu rosto atrás de um véu, e cujos supostos nomes não apareciam em nenhum registro da alta sociedade apesar de que sua indumentária e suas maneiras indicarem que deveriam constar. Aceitou o a encomenda sem reparos e se comprometeu a ter pronta a peça no prazo de dois dias.
Retornou a casa, e pouco depois chegou Jack, que imediatamente entrou em seu toucador com aspecto nervoso e desfazendo-se em desculpas.
— Sinto muito — disse com ar sincero, e certamente parecia inquieto por algo. Notavam-se os olhos cansados e tinha torcida a jaqueta, coisa pouco comum nele, que sempre se vestia impecavelmente.
— O que acontece? — perguntou Emily, preocupada. — Ocorreu algo?
Ficou em pé e se aproximou dele, escrutinando seu rosto.
— O ministro do Interior convocou uma reunião esta noite — anunciou Jack com pesar. — Tenho que assistir, ou se não, ninguém exporá meu ponto de vista. Desculpe-me, mas se trata de algo muito importante.
— Claro que tem que assistir — concordou Emily com uma profunda sensação de alívio.
— Mas prometi levá-la a ópera. Já temos as entradas, e sei a vontade que tinha de ir.
Emily o tinha esquecido por completo. Ao lado dos problemas de Tallulah ir ou não à ópera carecia da menor transcendência. O que era uma noite de diversão comparada com o medo e a solidão que tinha visto nela na tarde anterior?
— Não se preocupe com isso — disse com um sorriso. — É uma questão de prioridades, não? Talvez vá ver Charlotte ou algo assim. Voltarão a representar a ópera.
Emily viu desaparecer a inquietação do rosto do Jack e sentiu uma pontada de culpa. Fazia já planos para o que restava da tarde.
— Obrigado, querida — disse Jack, lhe acariciando a face.
De pé junto a ele, via as finas rugas de cansaço que confluíam nas comissuras de seus olhos e seus lábios, e se deu conta com certo sobressalto do esforço que estava realizando pela primeira vez em sua vida para triunfar em algo que considerava um desafio. Perseguia uma meta por si mesmo e por ela, e temia não ser capaz de alcançá-la. Como filho menor de sua família, tinha crescido sem responsabilidades e se convertera em um jovem bonito e ocioso cujo encanto lhe permitia viver a custa de quem achava tão grata sua companhia que não duvidava em lhe oferecer hospitalidade, e andava de casa em casa sem pensar no futuro — nem no passado — mais que a muito curto prazo.
Mas ao casar-se, por seu amor a Emily e o desejo de formar parte de sua vida e seu círculo, tinha procurado em seu interior algo profundo e o tinha encontrado. Comprometera-se em uma difícil tarefa em que o fracasso era uma possibilidade muito real, e muitos interesses criados se uniam contra ele. A época do encanto fácil, de evitar os conflitos com um sorriso, tinha ficado atrás.
Emily desejou beijá-lo, mas sabia que não era o momento oportuno. Estava esgotado. Esperava-o uma noite ocupada, árdua e não muito satisfatória, e tinha a mente posta em seus problemas, tentando prevê-los e pensando o que dizer ou fazer.
Emily lhe pegou a mão e notou com surpresa e afeto que seus dedos se fechavam em torno dos dela.
— Não seja idiota — se apressou a dizer. — Não vou zangar-me me por perder uma noite na ópera quando o que o impede de ir é algo de tal transcendência. Espero não atuar nunca com semelhante frivolidade. Sei discernir o importante, sabia?
Um sorriso iluminou os olhos do Jack, e por um momento desapareceu deles o cansaço.
— Pois sim, sei discerni-lo! — afirmou com veemência. — Melhor que você!
Logo que Jack partiu para a reunião, Emily pôs um de seus vestidos mais velhos, um que já tinha descartado, subiu à segunda carruagem e indicou ao cocheiro que a levasse ao Keppel Street, no Bloomsbury.
Ao chegar, apeou-se, pediu ao cocheiro que a esperasse e bateu na porta de Charlotte. Assim que Gracie abriu, entrou como uma ventania e foi direita à sala, onde Charlotte cerzia um avental de Jemima.
— Me atenda, por favor — suplicou Emily. Sentou-se na poltrona do Pitt sem incomodar-se em alisar a saia por trás. — Conheço o caso em que Thomas está trabalhando neste momento. Tenho boa relação com a irmã do principal suspeito, e sei como poderíamos demonstrar sua inocência. — Passou por cima a expressão de surpresa de Charlotte. — me acredite, Thomas nos estaria muito agradecido. Com toda segurança não deseja processar a esse homem, mas a menos que alguém demonstre que não estava ali no momento do crime possivelmente não haverá mais remédio.
Charlotte deixou a costura e observou ao Emily com gravidade e crescente receio.
— A julgar por sua atitude, suponho que tem já um plano para demonstrá-lo, apesar da polícia não o conseguir — disse com cautela.
Emily engoliu em seco, respirou fundo e voltou à carga.
— Sim, com efeito. Ele não recorda onde esteve essa noite, mas sua irmã, Tallulah, foi a uma festa e o viu ali.
— Ah, sim? — respondeu Charlotte com ceticismo. — E por que não informou à polícia?
— Porque ninguém acreditaria.
— Exceto você, claro está.
Charlotte reatou sua costura. O assunto não tinha sentido suficiente para dedicar sua atenção.
Emily lhe arrancou o avental das mãos.
— Me escute! Trata-se de algo importante! — exclamou com tom premente. — Se Finlay foi visto nessa festa, na Chelsea, não podia estar no Whitechapel assassinando a uma prostituta. E se conseguimos demonstrá-lo, não só liberaremos ao Finlay de um desastre, mas, além disso, economizaremos ao Thomas o ingrato dever de deter o filho de um dos homens mais ricos de Londres.
Charlotte recolheu o avental e o deixou a um lado lindamente dobrado.
— E o que propõe? E essa... Tallulah, disse? E essa Tallulah por que não procura a outros convidados presentes na festa para que declarem que Finlay esteve ali? Para que necessita a você? Ou a mim?
— O problema é que já disse que ela não esteve nessa festa — explicou Emily, exasperada. — Me dê atenção, me faça o favor! Esteve ali só uns minutos, meia hora quando muito, e não recorda quem mais havia.
— Não parece uma festa muito memorável — disse Charlotte com uma expressão irônica muito próxima à risada para o mau gênio de Emily. — De verdade acredite em tudo isso, Emily? É ridículo. Ela não recorda a ninguém salvo ao Finlay, e ele não só não recorda a ninguém, incluída sua irmã, mas também nem sequer recorda ter estado ali.
— Fumavam ópio — esclareceu Emily, furiosa. — A festa era um... uma desordem. Quando Tallulah se deu conta, partiu. Não recorda a outros, porque não os conhecia. E Finlay não recorda nada, porque estava muito aturdido.
— Este último me parece acreditável — admitiu Charlotte com aspereza. — Mas até se tudo fosse verdade, o que poderíamos fazer nós?
— Ir à casa onde se deu essa festa e averiguar se realmente teve lugar e se transcorreu como Tallulah disse — respondeu Emily, embora à medida que se ouvia, a ideia lhe parecia cada vez mais desatinada. — Bom, ou ao menos poderíamos comprovar se se celebrou uma festa essa noite e se alguém recorda ter visto Tallulah ou Finlay. Isso já serviria.
— Possivelmente encontrássemos alguém... — disse Charlotte com escassa convicção. — Mas por que não vai Tallulah? É de supor que ela ao menos conhece essa gente, e nós não. —Entreabriu os olhos. — Ou os conhecemos?
— Não! Claro que não! — apressou-se a negar Emily. — Mas precisamente por isso nossa declaração teria mais valor. Somos testemunhas importantes.
— Onde está essa casa?
— No Beaufort Street, Chelsea. Melhor será que ponha algo um pouco mais formal, como se fosse a uma festa.
— Tendo em conta que a gente ali é totalmente alheia ao que lhe rodeia, não sei se vale a pena — replicou Charlotte. Mas se levantou e se dirigiu para a porta. — Em seguida disse baixo. Espero que saiba o que faz.
Emily não respondeu.
Meia hora mais tarde a carruagem se desviava da margem do rio e entrava pelo Beaufort Street.
— Que número é? — perguntou Charlotte.
— É por aqui — respondeu Emily.
— Como que "por aqui"? — disse Charlotte. — Que número é?
— Não tenho certeza. Tallulah não sabia.
— Quererá dizer que não recordava, suponho — corrigiu Charlotte com tom sarcástico. — Se Thomas detiver alguém dessa família, sempre pode alegar demência e sem dúvida será absolvido. E também nós, se a isso vamos.
— Nós não estamos fazendo nada ilegal — replicou Emily com tom cortante. Charlotte guardou silêncio.
Emily pediu ao cocheiro que parasse e, depois de lançar um olhar desafiante à Charlotte, apeou, arrumou a saia e se encaminhou para a entrada de uma casa ante a qual esperavam outras três cardagens. Quando chegou à porta, Charlotte estava já junto a ela.
— O que vai dizer? — quis saber Charlotte. — Não pode perguntar sem razão se houve aqui uma orgia na sexta-feira passada e quem estavam pressentes.
— Claro que não! —sussurrou Emily. — Direi que deixei ficar algo esquecido... uma luva.
— Duvido que fosse o tipo de reunião em que as damas levam luvas.
— Sim, mas não ia voltar para casa sem sapatos!
— Se uma pessoa podia perder aqui a memória ou o juízo, por que não um sapato? —comentou Charlotte mordazmente.
Emily não teve ocasião de responder por que nesse instante abriu a porta um lacaio de libré que media um palmo mais que ela.
— Boa tarde — saudou Emily com um deslumbrante sorriso. A seguir engoliu em seco e disse: Estive aqui em uma festa na sexta-feira de noite e acredito que deixei um... isto... um...
O olhar do lacaio poderia ter talhado o leite.
— Certamente isso foi no número dezesseis, senhora. Isto é o número seis — respondeu, e sem esperar mais comentários retrocedeu um passo e deu com a porta no nariz de Emily.
— Parece que os vizinhos do número dezesseis lavraram certa fama — disse Charlotte com um sorriso forçado.
Emily tinha ficado muda. Um rubor mescla de vergonha e raiva lhe tingia as faces.
— Bom, vamos — sugeriu Charlotte, lhe tocando o braço. — Se chegamos até aqui, bem podemos terminar o que começamos.
De boa vontade Emily teria subido de novo à carruagem e não teria posto nunca mais os pés no Beaufort Street. A expressão daquele lacaio a perseguiria em seus pesadelos.
— Vamos — apressou Charlotte, e sua voz vibrou ligeiramente, possivelmente pela risada contida.
Emily obedeceu a contra gosto, e se dirigiram rua acima para o número dezesseis. Desta vez tocou a campainha Charlotte.
Abriu um jovem de cabelo escuro caído sobre a fronte. Ia em camisa, possivelmente de seda, e levava a gola desabotoada.
— Olá — saudou com um encantador sorriso. — Nos conhecemos? Desculpem minha má memória, mas às vezes tenho a mente ausente, de viaje por outro mundo onde ocorrem coisas extraordinárias.
Observou Charlotte com sincero e cordial interesse, esperando sua resposta como se sua explicação tivesse sido absolutamente razoável.
— Não muito — respondeu ela, bordejando a verdade. — Mas acredito que esqueci aqui uma luva na sexta-feira passada. É um pouco idiota vir aqui com luvas, já sei, mas disse a meu pai que ia à ópera, assim tive que me vestir como correspondia. Vim com Tallulah FitzJames — acrescentou como de passagem.
O jovem a olhou totalmente desorientado.
— Também a conheço?
— É uma moça magra, de cabelo escuro — interveio Emily. — Muito elegante e a sua maneira formosa, de nariz... longo e olhos bonitos.
— Parece uma mulher interessante — disse ele com tom de aprovação.
— Certamente conhece você a seu irmão Finlay — acrescentou Charlotte em um último esforço.
— Ah, Fim! Sim, conheço-o — respondeu. — Querem entrar para procurar a luva?
Aceitaram e o seguiram por um longo corredor e depois por uma série de aposentos exoticamente decorados, uns de estilo chinês, outros com ar turco e outros a imitação da arte egípcia. Simularam procurar a luva e ao mesmo tempo continuaram interrogando ao jovem sobre o Finlay FitzJames, mas só conseguiram averiguar que tinha estado ali várias vezes. Não tinha a menor ideia de se uma dessas visitas tinha tido lugar na sexta-feira em que se produziu o assassinato do Whitechapel.
Agradeceram-lhe e partiram, sem a luva.
— Bem, poderia ser verdade — disse Emily assim que saíram à rua. — Foi sem dúvida a classe de festa que Tallulah descreveu.
— Acredita-a, não? — perguntou Charlotte com toda seriedade.
— Sim, acredito. — E desejo ajudá-la. Sei o que se sente quando se é suspeito de um crime que não se cometeu... e pode custar a forca.
—Sei — se apressou a dizer Charlotte, pegando sua irmã pelo braço. — Mas você realmente não era culpada.
— Acredito que ele tampouco o é — respondeu Emily. — Farei todo o possível por ajudá-los.
Na manhã seguinte Emily escreveu uma apressada nota à Tallulah lhe explicando resumidamente a outra parte de seu plano e lhe pedindo que a acompanhasse se fosse possível. Se estava de acordo, devia lhe enviar sua resposta com o mensageiro que entregaria a nota.
Ao cabo de uma hora chegou a resposta de Tallulah rabiscada em um pedaço de papel. Aprovava a ideia do Emily e se reuniria com ela às sete da tarde ante a igreja da Santa Maria, no Whitechapel. Conforme à sugestão de Emily, vestiria-se com simplicidade para não chamar a atenção, de modo que qualquer observador circunstancial tomasse por uma criada em seu dia livre, possivelmente de visita no bairro para ver sua família.
Emily, sentada em um cabriolé de aluguel em direção ao leste da cidade, viu com nervosismo como ficava atrás sua elegante rua com senhoriais janelas, calçadas longas e limpas, carruagens particulares com cocheiros e lacaios de libré, grandes portas e entradas laterais para a criadagem e comerciantes. A paisagem urbana mudou quando chegaram a City. Viam-se mais edifícios de escritórios e lojas. O trânsito se fez mais denso. Aumentou o bulício. O cabriolé teve que deter-se em várias ocasiões nas ruas mais congestionadas.
Ao cabo de um momento deixaram atrás os bancos e centros comerciais, e a enorme sombra da catedral de São Paulo se projetou sobre eles. Era uma agradável tarde de verão, e no rio, a curta distância dali, deviam navegar as embarcações de recreio; talvez a bordo tinham começado a tocar as orquestras, mas o ruído de rodas e cascos de cavalos impedia à Emily ouvir sua música.
Não demorou para chegar ao Whitechapel Road. Era uma rua mais estreita, mais cinza, com edifícios altos de janelas pequenas, com calçadas pouco mais longas que meio—fios por onde as pessoas avançavam depressa, olhando ao chão, sem tempo para passear ou conversar. Também o trânsito era diferente. Circulavam principalmente carretas e carroças, e inclusive um bando de porcos que obstruiu a passagem durante vários minutos. No ar flutuava um intenso aroma de esterco.
Apeou-se frente à Santa Maria e pagou imediatamente ao cocheiro, antes que o desânimo se apropriasse dela e a fizesse mudar de ideia. E se não achava outro carruagem para voltar? E se tinha que percorrer parte do caminho a pé? Tomariam as pessoas por uma mulher de má vida? Tinha ouvido dizer que algumas mulheres respeitáveis tinham sido detidas pelo mero fato de achar-se a sós em lugares pouco recomendáveis, inclusive no West End, assim ali o risco devia ser muito maior. O que pensaria Jack nesse caso? Nunca a perdoaria. E seria compreensível. Desculpá-la-ia se lhe explicasse que tinha ido a aquele bairro para limpar o nome de um jovem exposto à ruína por um crime que não tinha cometido? Charlotte teria feito o mesmo. Embora isso não fosse precisamente um atenuante.
Onde se tinha metido Tallulah? E se não se apresentasse?
Emily teria que retornar a casa. Ainda era de dia. De fato brilhava o sol e fazia bastante calor. Não tinha por que embrulhar-se em seu xale como se fosse pleno inverno.
— Perdeu-se, senhorita?
Emily virou de todo. Um homem de baixa estatura e rosto feio e cordial a olhava atentamente. Levava uma boina inclinada e lhe faltavam vários dentes. Tinha uma mancha no largo nariz.
— Não... obrigada. — Emily engoliu saliva e se forçou a lhe devolver o sorriso. — Procuro a alguém, mas parece que ainda não chegou. Esta é a igreja da Santa Maria, não é verdade?
— Sim, assim é. Não estará procurando o senhor Jones por acaso? O pároco? Porque está em Coke Street com Maise Wallace. A pobre perdeu a sua filha ontem. Tinha escarlatina. Está destroçada, e o pároco foi lhe fazer companhia.
— Sinto muito — se apressou a dizer Emily, notando que seus temores se dissipavam. Pensou em Evie, certamente adormecida nesse momento em seu quarto limpo, silencioso e ensolarado, com uma pessoa que a cuidava a todas as horas, e em Edward, com sua loira cabeça inclinada sobre os livros como o tinha deixado ao partir. — Sinto muito.
— Deus a abençoe, senhorita, mas essas coisas acontecem. Acontecem todos os dias a um ou outro.
— Suponho que tem razão, mas quando acontece com uma pessoa, parece o fim do mundo.
— Certamente. Tem certeza que se encontra bem? Você não é de destes bairros, não é? — perguntou o homem, entreabrindo os olhos em um gesto de preocupação.
Emily imaginou de repente o que devia estar passando por sua cabeça: que era uma mulher que fugira de seu lar, ou pior ainda, uma mulher respeitável que em um momento de desespero se jogou à rua para fazer frente a dívidas impossíveis de pagar, ou ainda mais grave, que queria abortar. Tentou lhe sorrir alegremente e dirigiu um franco olhar a seu rosto preocupado.
— Sim, estou bem — disse com firmeza. — Mas, se por acaso minha amiga não vier, importaria-se de me indicar onde posso achar uma carruagem de aluguel para voltar para casa? — Depois de uma breve pausa, apressou-se a acrescentar: Tenho o dinheiro para pagar.
— Este é bom lugar — respondeu o homem. — E se não passar nenhuma, experimente no Commercial Road. Por ali! — Estendeu o braço para lhe indicar a direção. — Bom, pois se não necessita minha ajuda, vou tomar meu chá. Fique com Deus.
— O mesmo digo — se despediu Emily efusivamente.
Observou-o afastar-se e dobrar à esquerda por um beco, e se perguntou do que viveria e como seria sua família.
Continuava olhando nessa direção quando um cabriolé de aluguel se deteve dez ou doze passos de onde se achava e do interior saiu precipitadamente Tallulah, que pagou o cocheiro e correu para ela. Ia desalinhada, e com seu simples vestido azul marinho e seu xale cinza oferecia um aspecto muito diferente.
— Desculpe o atraso! — disse sem fôlego. — Tive que dizer uma fileira de mentiras para sair de casa sem que meu pai suspeitasse de nada estranho. Estou farta de que me digam o que devo fazer.
E além disso agora minha mãe está de acordo em que devo aceitar a próxima oferta de matrimônio minimamente razoável se o pretendente tiver algum título, embora careça de dinheiro. Meu pai vai insistir. — Quase inconscientemente lançou uma olhada à igreja e se voltou de novo para Emily com apreensão no olhar. — E certamente não receberei nenhuma se Finlay é acusado. De verdade pensa que podemos impedi-lo?
— Claro que podemos — afirmou Emily com audácia, agarrando-a pelo braço. — E lhe direi que não tenho nenhuma dúvida de que o viu você na festa.
Tallulah a olhou com expressão de curiosidade.
— Quero dizer — esclareceu Emily — que não simplesmente aceito sua palavra, digna de toda confiança, mas de escassa utilidade. Ontem pela tarde fui a essa casa e conheci um jovem. Não sabia quem esteve na festa, mas conhece o Finlay.
— E isso do que serve? — perguntou Tallulah, de p em meio da calçada, com o rosto contraído pela inquietação.
— Bom, não demonstra que estivesse ali, mas sim que pôde ter estado, e que você no mínimo conhecia a casa. E imagino que, se não houver outro remédio, pode provar que não esteve onde disse a seu pai que esteve.
— Bom... sim...
— Perfeito. — Emily passou ao seguinte tema. — E quanto ao Jago, o assunto se apresenta difícil, mas tentaremos. Primeiro, não obstante, temos que achar a as desventuradas que asseguram ter visto o Finlay essa noite. Certamente estão confundidas. Viram alguém que se parecia com ele, assim simples. Possivelmente não era mais que um cavalheiro loiro. Pode ser que por aqui não haja muitos, mas no resto de Londres deve haver milhares.
— Sim, claro que há milhares de cavalheiros loiros — concordou Tallulah. Olhou à frente, dando uma olhada aos edifícios da rua. — Não lhe parece deprimente, este lugar? Acredito que Old Montague Street está por aí. — Esboçou um sorriso. — Perguntei ao cocheiro.
— Bem — aprovou Emily, ficando em marcha com passo enérgico e Tallulah a seu lado. — A mim não me ocorreu.
Cruzaram a rua e subiram pelo Osbom Street. Ao chegar ao Old Montague Street dobraram à direita. Os cinzas paralelepípedos despediam o calor acumulado durante o dia, e o fedor do lixo e das redes de esgoto saturavam o ar. Emily desejou conter a respiração, mas obviamente era impossível. Foi a sua mente o cordato de sua visita em companhia do Charlotte a uma daquelas casas imundas — parecia já muito longínquo —, onde acharam a uma mulher doente aninhada em um canto sob um montão de mantas velhas. Continuava sentindo quase com igual intensidade a lástima que a invadiu naquele momento, e o desejo de não havê-lo visto para evitar o posterior sofrimento.
Pela rua passou uma carroça puxada por cavalos suarentos. Duas mulheres se insultavam na calçada. Ao que parecia discutiam por uma tina de ostras. Um ancião dormia em um portal, possivelmente bêbado. Meia dúzia de crianças brincavam com um punhado de pedras, mantendo-as em equilíbrio no dorso da mão e lançando-as depois ao ar; quando um deles realizava a manobra com especial destreza, os outros o aclamavam e aplaudiam.
No Pentecost Alley a oficina ainda não tinha concluído sua jornada. Através das janelas abertas viram as costureiras inclinadas sobre seus trabalhos. Ficavam ainda várias horas de trabalho antes de poder partir a casa para o breve descanso da noite, que concluiria às quatro e meia, hora de iniciar a jornada do dia. De fato algumas delas viviam na oficina.
Tallulah se deteve e olhou ao Emily. Chegado o momento da verdade, as duas notaram que sua determinação se esfumava. Seriam capazes realmente de entrar naquele bordel e perguntar por alguma das mulheres? Como saberiam com quem deviam falar? Possivelmente aquela ideia era absurda depois de tudo.
Emily respirou fundo.
— Vamos. Se pararmos agora para pensar, não o faremos.
Tallulah permaneceu imóvel.
— É Finlay culpado ou inocente? — sussurrou Emily com dureza —, Estrangulou a essa pobre mulher e partiu?
— Não! Claro que não!
Tallulah fechou os punhos e subiu com decisão pela escada da casa seguida do Emily. No alto havia uma porta de madeira com manchas de umidade. Estava fechada, mas a um lado pendia uma deslustrada campainha de latão. Tallulah puxou a corda com força.
Não houve resposta, e voltou a chamar, ainda de frente à porta, sem olhar para Emily. Tremia apesar do mormaço.
Ao cabo de uns segundos a porta se abriu com um chiado e apareceu uma enorme mulher com o rosto inchado.
— Só resta um quarto, bonitas. Não há lugar para as duas. Nesta casa se trabalha.
— Não necessitamos de quarto, obrigada — respondeu Tallulah com gentileza.
Emily, atrás dela, via seus punhos apertados, as unhas cravando-se na pele.
— Viemos falar com uma das... inquilinas — prosseguiu Tallulah. — Não sabemos exatamente quem é, mas viu aqui a um homem a noite que assassinaram a pobre Ada McKinley, e desejaríamos falar com ela.
A corpulenta mulher arqueou as sobrancelhas.
— Por quê? Não são da polícia. Quem são, pois?
— Tempo atrás trabalhávamos com a Ada — mentiu Emily, antecipando-se à Tallulah. — Eu era criada na mesma casa, e Lula, aqui presente, era a lavadeira. Meu nome é Millie.
— Bom, isso é coisa do Rose. Perguntarei-lhe.
Dito isto, a mulher voltou a fechar e as deixou ali esperando.
— Foi uma ideia brilhante — disse Tallulah com admiração. — Agora confiemos que Ada servisse antes em alguma casa.
— É bastante provável — assegurou Emily —, e se não, fingiremos que nos equivocamos de pessoa.
— Se é que essa mulher aceita nos ver — matizou Tallulah.
Aguardaram em silencio durante um momento, e por fim voltou a enorme mulher, desta vez sorridente. Fê-las entrarem.
— Esse é o quarto de Rosie — disse, indicando uma porta do corredor.
— Obrigada.
Tallulah endireitou os ombros, Aproximou-se da porta indicada e bateu com golpes secos. Assim que ouviu que uma voz respondia do interior, abriu e entrou. Emily, junto a ela, segurava-a com força no cotovelo se por acaso trocasse de opinião no último instante.
A sua grosseira maneira, a habitação era opulenta, com muitos babados e tecido vermelho, e uma ampla cama com puídas colchas de viva cor rosa atadas com cordões. Aquilo serviria para estrangular a alguém, pensou Emily macabramente. Perguntou-se se seria isso o que tinha utilizado o assassino, em caso de que também os houvesse na habitação da Ada.
Rose era uma mulher de aparência agradável de uns trinta e cinco anos. Não estava maquiada ainda, e por seu aspecto relaxado se notava que tinha dormido todo o dia. Emily imaginou que em outras circunstâncias, e com a indumentária adequada, teria sido formosa. Observava-as com curiosidade, sentada na única cadeira do quarto.
— Assim conheciam a Ada, a pobre — disse friamente. — E o que querem de mim? Eu não posso fazer nada por vocês. Se tanto a apreciavam, onde estavam quando o canalha do mordomo arruinou sua vida, né?
Tallulah ficou pálida, com a mente em branco e o olhar perdido.
Emily adivinhou imediatamente a que se referia.
— Não nos contou nada — respondeu. — Tudo ocorreu nas costas das demais, e quando nos inteiramos, era já muito tarde. É verdade que viu o homem que a matou?
— Sim. — Rose trocou ligeiramente de posição, reclinando-se contra o espaldar. — Por quê? Que interesse têm vocês nisso? Conhecem esse homem? Era um tipo do West End.
— Nós trabalhamos no West End — explicou Emily. — O viu claramente?
— Sim, mais ou menos. — Rosie entreabriu as pálpebras. — Mas que mais importa a vocês?
— Pensávamos que talvez não tivesse de todo certeza, que podia ter ainda uma mínima dúvida, porque suspeitávamos que tinha sido nosso mordomo. É que tornou a fazer o mesmo com outra garota, e desta vez poderia havê-lo pago se alguém tivesse acreditado na Ada em na época.
De repente Rose começou a escutar com verdadeira atenção.
— Isso acreditam? Pela Ada, eu adoraria tirar do meio esse porco. O muito canalha!
— Mas está segura de que foi esse outro homem? — disse Emily com tom de dúvida. — Ouviu sua voz?
— O que vai! Só o vi passar.
— Poderia ter sido nosso mordomo?
— Sim, claro. Saiu essa noite?
— Sim — se apressou a responder Tallulah. Seguia rígida em meio do quarto, como se o menor movimento pudesse lhe conduzir uma desgraça.
Rose deixou escapar um longo suspiro. Brilhavam-lhe os olhos.
— Deus, como eu gostaria de acabar com esse filho da mãe! Possivelmente foi ele. Poderíamos lhe dar seu castigo.
— E o que contou já à polícia? — perguntou Emily.
— Isso é o de menos — respondeu Rose, dando de ombros. — Ainda não declarei ante o juiz. Não jurei nada. Estávamos só eu e um policial em um cabriolé. Pensei que tinha sido esse outro, mas agora já não estou tão certa. E além de mim unicamente o viu Nan, e tampouco tem certeza.
Tallulah exalou um silencioso suspiro. Por fim relaxou um pouco os ombros, embora mantivesse as costas erguidas e os pés cravados no chão.
— Obrigada — disse com veemente sinceridade. — Muito obrigada.
Ao sair, voltaram rapidamente pelo Old Montague Street sem falar nem olhar-se sequer. Mas quando dobraram pelo Osbom Street em direção ao Whitechapel Road, Tallulah parou em seco.
— Fomos capazes! — exclamou quase gritando. — Fomos capazes! — Impulsivamente rodeou ao Emily com os braços e a estreitou com tal força que por um momento não pôde respirar. — Obrigado. Não imagina agradecida que lhe estou. Não só por me ajudar a defender por Fim, mas também por me demonstrar que em realidade não existem provas contra ele. — Soltou ao Emily e retrocedeu um passo, com lágrimas nos olhos. Fundou. — Se você não tivesse tido a coragem de vir, eu continuaria em casa passeando de um lado a outro, ou teria ido a alguma festa espantosa e estaria fingindo que me divertia quando de fato não faria mais que pensar angustiada que meu irmão nunca conseguiria provar sua inocência.
— Nesse caso, nos ocupemos do seguinte problema — propôs Emily com resolução. — Se Finlay não está comprometido no crime não existem provas contra ele, seu pai a obrigará a casar-se com o próximo homem apropriado em quem desperta admiração. Está disposta a aceitá-lo?
— Provavelmente não restará outro remédio — respondeu Tallulah, e sua alegria se desvaneceu. — Jago me despreza. Não o digo por falsa modéstia, asseguro.
— Então terá que trocar sua atitude — anunciou Emily, tão eufórica por sua anterior vitória que não concebia sequer a possibilidade de uma derrota em seu seguinte empenho. — Ou pelo menos tentá-lo.
Reatou a marcha para a Santa Maria, e Tallulah a seguiu com escassa convicção.
Chegaram à igreja no preciso instante em que o reverendo Jago Jones saía. Tão absorto estava em seus assuntos que passou ao largo por seu lado. Só quando Emily se deteve e deixou escapar um grito, dirigiu para elas sua atenção. Deu meia volta e a olhou fixamente.
— Ocorre-lhe algo, senhorita? — perguntou com repentinas rugas de preocupação na testa.
Ao ver seu rosto, Emily se sobressaltou, mas imediatamente soube que deveria ter se surpreendido. Ela esperava achar um homem mais comum, mais bonito, menos imperiosamente vivo. Um homem a quem manipular e transbordar com suas mutretas. E em troca tinha ante si a um homem cuja inteligência intuía e cuja vontade não podia minar—se facilmente mediante adulações ou trivialidades. E agora que tinha atraído sua atenção, o que podia dizer?
— Não... obrigada — respondeu com tom quase de desculpa. — Estamos nesta zona... por...
Dirigiu um breve olhar ao Tallulah e não a reconheceu. Logo observou ao Emily, esperando que continuasse.
— Pela morte da pobre Ada McKinley... — prosseguiu Emily à desesperada. — Afetou especialmente... por que...
— Porque meu irmão é o principal suspeito do crime — interveio Tallulah.
— Não acredito... — começou a dizer, mas de repente franziu o sobrecenho e escrutinou seu rosto. — Tallulah? —Era mais uma pergunta que uma afirmação, e o tom agudo com que tinha saído de sua garganta revelava incredulidade.
—Olá, Jago — saudou Tallulah com a voz rouca pela emoção. — Sabia que suspeitavam do Finlay?
— Sim. Sim, sabia; mas duvido muito que seja o culpado. Seria muito... — Não terminou a frase. Fosse o que fosse que ia dizer, mudou de ideia. Seu rosto se endureceu, e de sua expressão desapareceu todo rastro de compaixão ou ternura. — Você nada pode fazer aqui. Melhor será que volte para casa antes que anoiteça. Eu tenho que ir ao Coke Street para servir dopa, mas primeiro acompanharei a você e a sua amiga a algum lugar onde podia parar um cabriolé. Vamos.
— Ajudaremos a você a servir a sopa — propôs Tallulah.
Rechaçou o oferecimento com um gesto de desdém.
— Não diga tolices! Isto não é para você. Sujar-se-á, doerão-lhe os pés, e o aroma das pessoas ofenderá ao seu olfato. Acabará cansada e aborrecida. — Em seus olhos e em sua boca se refletia uma crescente ira. — A fome dessa gente não é um passatempo. São pessoas reais, com sentimentos e dignidade, não um espetáculo que possa contemplar para contar depois aos seus amigos.
Emily se sentiu como se a tivessem esbofeteado. Tallulah não tinha exagerado quanto a seu desprezo por ela.
— Por que dá por sentado, senhor Jones, que é você o único capaz de ajudar ao próximo movido por um sincero desejo? — disse com aspereza. — Acaso a compaixão é algo de seu exclusivo domínio?
Tallulah ficou boquiaberta.
Jago respirou fundo e a pele de suas faces se crispou. Estava já muito escuro para ver se se tinha ruborizado.
— Não, senhorita...
— Radley — informou Emily. — Senhora Radley.
— Não, senhora Radley, claro que não. Conheço a senhorita FitzJames há anos. Mas não tenho direito a julgá-la pelo passado dela. Peço-lhe desculpas.
— Aceito suas desculpas — disse Emily com manifesta condescendência. — Mas deveria as estender também ao Tallulah. Ao fim e ao cabo, foi ela quem se ofereceu a ajudá-lo. E agora, se nos indicar o caminho, acompanhá-lo-emos. Quantas mais mãos haja, mais fácil será a tarefa.
Jago sorriu a seu pesar e, obediente, situou-se virtualmente no meio-fio da estreita calçada e caminhou junto a elas para o Coke Street.
Sua advertência não tinha sido infundada. O trabalho era árduo. Ao Emily doíam os pés e os braços, e tinha a sensação de que os ombros e as costas nunca recuperariam sua posição natural. As pessoas eram ruidosas, e o aroma dos corpos quentes e sujos e da roupa imunda era às vezes nauseabundo. Mas a afligia sobre tudo a visão da fome, os olhos afundados, os membros descarnados, os rostos picados de varíola e escuros por causa da sujeira incrustada. Viu mulheres exaustas com crianças doentes e sem esperança. Observou Tallulah e percebeu consternação em seu olhar. No espaço de algumas horas, a palavra "pobreza" tinha cobrado uma nova dimensão. Era realidade, dor, gente de carne e osso que amava e sonhava, que tinha medo e se cansava igual a ela, com a condição de que para eles esse era um estado quase permanente, e não uma circunstância ocasional.
E também mudou a imagem do Jago Jones. Deixou de ser uma idealização para converter-se em um homem real que sentia, que às vezes atuava com estupidez e sem querer atirava algo ao chão, que sangrava ao roçá-los dedos contra a parede enquanto manobrava com o carrinho de mão em que transportava a sopa, que ria das tolas brincadeiras das crianças, e que voltava a cabeça para ocultar sua dor quando se inteirava de que uma mulher grávida tinha perdido a seu filho.
Observando-o, Emily notou que seu desdém por o Tallulah diminuía gradualmente à medida que ela contribuía com seu esforço, reprimindo o asco que lhe produziam o aroma de sujeira e suor, e devolvendo o sorriso em nomes e mulheres trincados ou com os dentes enegrecidos, a princípio de maneira forçada, mas ao cabo de um momento quase com naturalidade, esquecendo o abismo que a afastava deles.
Quando o último mendigo recebeu sua ração, recolheram as leiteiras vazias e empurraram lentamente o carrinho de mão para a casa onde as guardavam e se preparava a comida. Procedia toda de donativos, umas vezes de gente rica, outras de pessoas que não tinham muito mais que isso para si mesmos.
Às nove e quinze, já de noite, dirigiram-se para a igreja, e uma vez ali Jago insistiu em acompanhá-las até que encontrassem um cabriolé.
— Por que veio realmente ao Whitechapel? — perguntou ao Tallulah.
Nesse momento passavam sob uma luz de gás, e no círculo de luz sua expressão parecia inocente. Não albergava malícia, nem esperava nenhuma resposta em particular. Emily percebeu com interesse que nem sequer concebia a possibilidade de que Tallulah tivesse ido até ali para vê-lo. Essa genuína modéstia aumentou mais ainda a simpatia que o pároco lhe inspirava.
— Queria ajudar ao Finlay — respondeu Tallulah ao cabo de um instante.
Emily desejava lhe dizer que calasse. Jago Jones não teria visto com bons olhos sua visita ao Rose Burke para lhe surrupiar seu testemunho. Simulou tropeçar e pegou pela manga Tallulah, puxando com força.
— Fez-se mal? — apressou-se a dizer Jago, tendendo a mão para sujeitá-la.
— Não, obrigado — respondeu Emily. Ergueu-se de novo e sorriu apesar de não se acharem já sob a luz do lampião. — Em realidade vir não foi uma ideia muito inteligente. Nós nada podemos fazer. Mas pensamos que possivelmente vendo o lugar nos ocorreria algo.
Jago moveu a cabeça em um gesto de reprovação, mas se absteve de fazer comentários. Quando se propunha, demonstrava ter tato.
Tallulah cruzou um olhar com Emily ao passar sob o seguinte lampião. Ao que parecia tinha entendido a insinuação.
Jago parou um cabriolé no Commercial Road, e depois de ajudá-la s a subir, despediu-se e lhes agradeceu com um irônico sorriso. A seguir se afastou sem olhar atrás.
Tallulah se voltou para Emily apesar de que na escuridão do cabriolé não se viam.
— Minha incerteza é ainda maior que antes — admitiu com voz tensa por causa da confusão e cansaço. — Sei que quero ao Jago, mas duvido que fosse capaz de viver aqui. O aroma é insuportável. Tudo está tão... sujo... Com quem falaria? Como pode resistir ele?
Emily não respondeu, porque em realidade não havia nada que dizer, nada que argumentar ou raciocinar. Tudo se reduzia a tomar uma decisão, e nisso ninguém podia ajudá-la.
Emily passou para recolher a nova insígnia do clube Fogo do Inferno e se reuniu com Tallulah, em prévio acordo, em uma exposição caminha organizada por uma associação feminina de criadoras de cães. Era um lugar aonde as duas podiam ir tranquilamente sem dar explicações, e encontrar-se e trocar as últimas notícias como se não fizessem mais que comparar as pontuações dos cães de cada raça, cor e tamanho. Tallulah levava um magnífico vestido de musselina estampado de margaridas e adornado com fitas de cetim. Ninguém a teria identificado como a mulher que tinha ajudado a distribuir sopa em Coke Street a noite anterior. Oferecia um aspecto risonho e despreocupado, que mudou assim que viu Emily. Imediatamente se desculpou antes seus amigos e, com rosto tenso e um indício de tristeza no olhar, Aproximou-se dela lhe estendendo a mão.
Sem mediar palavra, Emily lhe estreitou a mão e lhe entregou a insígnia com um movimento rápido e discreto. A seguir perguntou:
— Tudo bem? Alguma novidade?
— Não. —Tallulah negou com a cabeça. — Mas eu adoro esta exposição canina. Olhe-os. Não os acha belos e inteligentes?
— Aos cães ou às pessoas?
— Aos cães, claro está! — acariciou o suave tecido da saia. — E também eu adoro este vestido.
— Assenta-lhe estupendamente — disse Emily com franqueza.
— Imagina vestida assim no Whitechapel? Provavelmente custa mais do que Jago ganha em um ano. Possivelmente em dois.
— Ninguém pode decidir por você — sussurrou Emily ao mesmo tempo em que sorria e saudava com a cabeça à esposa de outro parlamentar que passeava com um grande dinamarquês tentando aparentar que era ela quem o guiava e não ao reverso. — O que nunca deve fazer é responsabilizar a outra pessoa se for você quem escolheu equivocadamente. Seja sincera consigo mesma. Se desejar uma vida como a que agora leva, com dinheiro, roupa elegante, um marido a quem talvez não ame, tome-a. — Sorriu e saudou com a mão à esposa de um ministro que detestava. — Mas se quiser ao Jago, com tudo o que isso implica, não tente mudá-lo nem culpá-lo por ser como é.
— Não pode uma mulher mudar um pouco a seu marido? — perguntou Tallulah, e não lhe faltava razão. — Por que tenho que me adaptar só eu?
— Porque assim são as regras do jogo — respondeu Emily com tom prático. — Terá que confrontar as coisas como são, não como a gente desejaria que fossem. Além disso, gostaria que Jago renunciasse a seus princípios para agradá-la? No que se converteria então?
— Pensava que o matrimônio deve melhorar aos homens, ao menos um pouco — protestou Tallulah. — Acaso não devemos procurar que sob nossa influência se se tornem mais amáveis e educados? Não é essa nossa missão? Ter filhos e proporcionar um remanso de paz, pureza e elevados ideais longe do clamor e conflitos do mundo?
Emily mordeu a língua para não responder com excessiva dureza.
— Conheceu a algum homem que queira melhorar ou ser mais educado?
— Não — respondeu Tallulah com certa surpresa. — Todos os homens que conheço procuram nas mulheres apoio, admiração e obediência. Sem dúvida isso é o que meu pai deseja e no que insiste. Em troca ele cobre todas nossas necessidades, aconselha-nos e, às vezes, protege-nos.
— Exatamente — corroborou Emily com um sorriso. — É certo que às vezes nosso comportamento acorda em um homem o desejo de melhorar e ser mais educado. Mas isso é diferente. Uma coisa é pedir algo, e outra aceitá-lo quando se oferece.
Tiveram que interromper a conversa ao aproximar-se delas um grupo de damas com dois spaniels e um setter, e começaram a falar de cães.
Ao cabo de dez minutos Emily se desculpou e voltou para carruagem. Tinham combinado que Tallulah esconderia a insígnia assim que chegasse a casa. O passo seguinte era induzir ao Pitt a realizar uma nova revista a fim de que a insígnia aparecesse. Deu ao cocheiro a direção do Charlotte no Bloomsbury e se sentou comodamente para pensar a maneira de introduzir com sutileza a sugestão na conversa. Naturalmente não explicaria ao Charlotte o verdadeiro motivo; isso lhe criaria um grave conflito de lealdades, e não queria que Pitt se inteirasse. Jogaria por terra todo o plano.
Fazia uma tarde linda, cálida e com essa luminosidade suave que só se vê no fim do verão, como se houvesse oro no ar, e que recorda que no prazo de um mês as folhas começarão a amarelar e cair, os dias serão mais curtos e as noites mais frescas.
Charlotte estava no jardim inspecionando uns crisântemos jovens e admirando as grandes flores azuis e vermelhas de uns arbustos.
— São de uma beleza perfeita — comentou Emily com sinceridade.
Charlotte a olhou com cepticismo.
— É isso o que veio me dizer?
— Não, claro que não. — Emily se perguntou se provocar uma discussão desviaria a atenção do Charlotte do assunto que em realidade queria tratar, mas descartou a ideia. Era em extremo difícil achar o modo de Charlotte convencer Pitt de levar a cabo uma nova revista em busca da insígnia sem que ela adivinhasse quais eram os verdadeiros motivos de Emily. Para medir o terreno, disse: Venho da exposição canina, e encontrei ali Tallulah FitzJames. Está muito preocupada. Sinto tal impotência que não sei o que lhe dizer. Realmente acha Thomas que seu irmão é culpado? Mencionou-lhe...? — interrompeu-se.
— Que fomos ao Beaufort Street? — Charlotte completou a frase com os olhos muito abertos. — Não, claro que não! O que ia dizer lhe? Que a irmã do Finlay o viu em uma festa, mas não recorda quem mais havia porque ninguém recorda nada do acontecimento salvo onde e quando teve lugar?
— Suponho não seria de grande utilidade — admitiu Emily com tristeza. Caminharam tranquilamente pelo jardim em direção à macieira, passando junto à madressilva, que estava ainda em flor. Com a queda da tarde, um doce aroma começava a impregnar o ar.
— Só servirá para demonstrar que Tallulah é uma irmã leal — aduziu Charlotte com delicadeza.
— O problema é a insígnia, não? — perguntou Emily, aproveitando a ocasião. — Nisso se apóiam às suspeitas. Como podia achar-se ali a insígnia se ele não esteve?
Ao chegar ao extremo do jardim, ficaram sob a sombra da macieira.
— Se ele não for culpado — prosseguiu Emily como se pensasse em voz alta —, a aparição dessa insígnia foi uma funesta casualidade, ou uma manobra de um temível inimigo. E pelo que Tallulah diz, este último não seria impossível. Ou melhor dizendo-se apressou a acrescentar para que Charlotte não a interrompesse —, um inimigo do Augustus.
— Acha que alguém roubou a insígnia, cometeu um assassinato e a deixou no lugar do crime? — perguntou Charlotte com incredulidade. — Não lhe parece desproporcional arriscar assim a própria vida só para causar um prejuízo à outra pessoa? E se o descobrissem e o condenassem à forca?
Emily tomou ar e o exalou lentamente.
— Alguém com a arrogância suficiente para fazer uma coisa assim provavelmente não conceberia sequer a possibilidade de ser descoberto. E em realidade não acredito que roubasse a insígnia do Finlay. Não poderia ter feito uma cópia? Não seria muito difícil.
— Mas e se a polícia encontrasse a peça original? Ou o próprio Finlay? — argumentou Charlotte.
— O clube se dissolveu faz anos. Certamente nem recorda quando a pôs pela última vez, e não digamos já onde.
— Mas Thomas já revistou a casa.
— Ele pessoalmente? — insistiu Emily. — Ou encarregou a tarefa a um agente pensando que se Finlay sabia onde estava, se apressaria em tirá-la?
— Possivelmente se ocupou um agente, não sei.
No céu as últimas andorinhas da temporada desciam em grupos para capturar pequenas moscas. A sombra da macieira se alongava e obscurecia à medida que os raios do sol se faziam mais oblíquos e dourados.
—Pois pergunte-lhe — sugeriu Emily, tentando dissimular seu desespero. — Ao fim e ao cabo, se aparecesse outra insígnia, tudo seria mais fácil, não? Para o Thomas, quero dizer. Assim não teria nenhuma prova de peso contra Finlay e não se veria na desagradável obrigação de acusá-lo. Não ficaria apanhado entre dois fogos quando a classe dirigente e o Ministério do Interior começarem a defender seus respectivos interesses. E, além disso, evitaria que os jornais insinuassem que tinha deixado em liberdade ao Finlay por ser filho de quem é. Sei a classe de comentários que publicariam.
— Possivelmente tenha razão — disse Charlotte pensativamente. — Comentarei com ele.
Emily pegou Charlotte pelo braço, e se encaminharam para a casa. Não se atrevia continuar falando.
Enquanto Emily tentava ajudar Tallulah, Pitt tinha seguido indagando a reputação e as relações da família FitzJames. Tinha enviado Tellman para ampliar na medida do possível a informação que já tinham sobre os outros membros do clube Fogo do Inferno, pois eram eles quem com maior probabilidade podiam ter ficado com a insígnia, tanto intencionalmente, como por acaso. Apesar de que na aparência suas vidas transcorriam longe dos bordéis do Whitechapel, era possível que os frequentassem. Era sabido que homens casados da posição do Helliwell o faziam. E certamente Thirlstone não estava fora de suspeita.
E por mais que Pitt teria gostado de acreditar que Jago Jones era o que afirmava ser, podia também adoecer de fraquezas humanas, e se sucumbia a elas, que melhor que recorrer a uma prostituta cuja companhia seria algo natural em seus trabalhos pastorais, e ninguém recearia. Ele mesmo poderia sentir-se justificado. Não teria sido o primeiro clérigo cuja relação com uma paroquiana formosa e inteligente se afastava de maneira gradual e irremediável das normas do decoro até converter-se em uma voracidade física a que era incapaz de resistir. Levava uma vida casta, solitária, trabalhosa e austera. Seria compreensível. Ao fim e ao cabo, em sua época como sócio do clube Fogo do Inferno tinha sido um homem ávido de prazeres e sempre disposto a satisfazê-los. O que o tinha feito mudar, e de modo tão radical?
E o que poderia ter-se torcido nessa relação de maneira tão calamitosa para induzi-lo a assassinar Ada? Haveria ela dito ou feito algo imperdoável? Teria zombado dele, de sua debilidade? Teria considerado ela o instrumento mediante o qual se trairia a si mesmo, a serpente e Eva encarnadas em um só corpo? Ou acaso simplesmente ela o teria ameaçado desmascará-lo? Teria lhe pedido dinheiro, submetendo-o a uma contínua chantagem? Tanto Rose Burke como Nan Sullivan tinham declarado que Ada era ambiciosa, que aproveitava a menor oportunidade.
Sem dúvida era uma possibilidade, e quanto mais a considerava, mais lhe afligia. Tinha sentido simpatia e admiração pelo Jago Jones, mas não podia descartar a ideia. Já antes lhe tinham inspirado simpatia homens que finalmente resultaram culpados.
Não sentia o menor apreço, em troca, pelo Augustus FitzJames, e quanto mais se aprofundava na probabilidade de que tivesse inimigos capazes de chegar a tal extremo para arrumar sua vida, menos digno de apreço lhe parecia.
À medida que retrocedia no passado do Augustus, mais difícil era seguir o rastro com clareza. Pelo visto, não tinha herdado nada de seu pai, um fazendeiro do Lincolnshire um tanto inconsciente que tinha hipotecado todas suas propriedades. Augustus tinha servido na marinha mercante durante um breve período, principalmente nas rotas do Longínquo Oriente. Tinha retornado a Inglaterra em 1860, pouco depois da segunda guerra do ópio, com dinheiro suficiente para começar a investir, uma arte que exercia com uma destreza vizinha às vezes à genialidade.
Na atualidade possuía um império financeiro de grandes proporções e complexidade, cujos tentáculos se estendiam por todo o longo e largo do Império britânico. Tinha investimentos na Índia, Egito, nas expedições africanas do Cecil Rhodes e nos novos territórios da Austrália. Com frequência defendia seus interesses em prejuízo de outros.
Aos ouvidos de Pitt chegaram várias anedotas tanto sobre sua generosidade como sobre sua crueldade. Ao que parecia, nunca esquecia um amigo nem um inimigo, e se dizia que tinha recordado ofensas durante décadas e se ressarcira ao apresentar-se oportunidade idônea.
Carecia de refinamento. Embora não sabia mover-se em sociedade, as mulheres o tinham achado atraente. Aloysia se tinha casado com ele por amor, e pretendentes não lhe tinham faltado, muitos outros homens com mais senso de humor e mais encanto tinham pedido sua mão. E certamente não necessitava de dinheiro. Naquela época sua fortuna era muito maior que a dele. Possivelmente a atraiu nele sua energia, sua irrefreável ambição ou a força interior que o impulsionava.
Finlay não só tinha herdado de sua mãe o rosto mais largo e as delicadas maneiras, mas também aparentemente seu caráter mais dúctil e sua inteligência menos acordada. Em conjunto parecia um jovem afável, e embora sem dúvida tivesse certa propensão para os excessos, isso era relativamente comum em sua idade, mais ainda considerando a pressão que supunham as grandes expectativas que seu pai tinha posto nele.
Ewart sustentava cada vez com maior insistência que Finlay era inocente e que algum inimigo de Augustus o tinha envolvido intencionalmente. E embora Pitt até o momento mal tinha tido em conta a possibilidade, começava a considerá-la mais a sério.
— O valete diz que nunca tinha visto essas abotoadoras — aduzia Ewart, sentado em frente a Pitt no escritório deste. — Podiam haver-se perdido faz anos, como afirma Finlay.
— E como chegou um deles à cadeira da habitação da Ada? Perguntou Pitt, embora conhecesse já a resposta do Ewart.
Ewart contraiu o rosto. Ainda notava-se ele cansado e nervoso. Levava o traje enrugado e a gravata torcida. Tinha umas marcadas olheiras, como se dormisse mal habitualmente.
—Já sei que disse que nunca tinha estado no Whitechapel — respondeu, sacudindo a cabeça. — Mas é uma mentira compreensível nestas circunstâncias. Possivelmente esteve ali há anos. Possivelmente estava bebido, e o esqueceu por completo.
Isso era plausível, e Pitt não o rebateu. Entendia deste modo sua relutância em considerar culpado ao Finlay. As provas não eram concludentes, e se o acusavam, achariam-se ante um caso em extremo desagradável e uma difícil batalha. Perdiam-se, suporia tal ignomínia que suas respectivas carreiras se ressentiriam de maneira notável.
— E a insígnia? — disse Pitt. Quase pensava em voz alta, dando voltas à conversa que tinha mantido com a Charlotte a noite anterior.
— Declarou que a tinha perdido faz anos — lhe recordou Ewart. — Estou certo de que é verdade. Certamente não podemos provar que o clube se reuniu nos últimos... ponhamos cinco ou seis anos. Todos os sócios o negaram, e duvido que mintam. Não dá a impressão de que continuem em contato. Helliwell está casado e na City vão bem as coisas. Thirlstone se move nos círculos de estetas. E Jones entrou na Igreja e vive no East End. Sinceramente, se não foi um inimigo do Augustus FitzJames, inclino-me a pensar que o culpado poderia ser Jones. Possivelmente ele e Finlay tenham pendente algum antigo ajuste de contas.
Pitt se reclinou em sua ampla poltrona. Separava-os a escrivaninha, com sua cobertura verde de couro embutida na lustrada madeira.
— E esperou seis anos para assassinar a uma prostituta e jogar a culpa ao Finlay? —disse, arqueando as sobrancelhas.
— Sim, dito assim soa ridículo. A abotoadura é uma simples casualidade. Finlay tinha esteve ali em alguma ocasião. E a insígnia foi colocada ali intencionalmente por alguma razão que em seu momento descobriremos.
Pitt expôs a ideia do Charlotte.
— Se alguém odiar até esse ponto ao Augustus FitzJames, possivelmente a insígnia que encontramos não seja a original mas uma cópia que alguém encomendou para incriminar Finlay.
Iluminou-se o rosto de Ewart, e golpeou ligeiramente a escrivaninha com o punho. — Sim! Sim, essa é a solução mais provável. Tem lógica. — de repente se escureceu seu olhar. — Mas como vamos demonstrar isso? Mandarei meus homens procurar o joalheiro imediatamente, mas provavelmente compraram seu silêncio.
— Começaremos revistando de novo os aposentos do Finlay para achar o original — indicou Pitt, embora não albergasse muitas esperanças. — Ignoro se for isso o que ocorreu, mas qualquer bom advogado defensor sugeriria a possibilidade para semear dúvidas. Para nós, essa é a principal preocupação.
Longe de desanimar-se, Ewart parecia eufórico.
— Mas a dúvida existe! — disse com entusiasmo. — Se não acharmos nada mais, não tem sentido detê-lo, à margem do que criamos.
— Não — admitiu Pitt, e era de certo modo uma concessão. Não podia evitar perguntar-se em que medida a obstinação do Ewart se devia a sua convicção na inocência do Finlay, e em que medida a simples covardia, ao temor às dificuldades e situações desagradáveis que os esperavam em caso de processá-lo por assassinato, e inclusive à ameaça que representava para sua própria carreira. Augustus FitzJames defenderia sua posição social e política. Atuaria sem compaixão, sem ater-se a mais regra que as que lhe fossem impostas pelas circunstâncias.
Pitt fiscalizou pessoalmente a nova revista em casa dos FitzJames. Chegou acompanhado de dois agentes, e os deixaram passar primeiro um tanto resistentes e depois, quando lhes explicou o motivo de sua visita, manifestamente surpreendidos.
Ao cabo de três quartos de hora acharam a insígnia no bolso interior de uma jaqueta que o valete não recordava ter visto o senhor Finlay usar. Tinha os cotovelos muito gastos e a gola um pouco puída. Pelo visto, guardava-a só por razões sentimentais, e de fato no fundo do roupeiro. Era cômoda, um objeto que usar para passear no verão sem importar muito se se rasgava ou se manchava na erva. Fazia tempo que não tinha oportunidade de recrear-se nesse tipo de recreação, assim a insígnia podia estar há anos ali. Tinha penugem no alfinete, e o esmalte estava levemente riscado.
Essas explicações as ofereceu a senhorita Tallulah FitzJames, que casualmente se achava ali aquela manhã, escrevendo a uns amigos e respondendo convites.
Pitt se achava de pé no salão e dava voltas à insígnia na palma de sua mão. Era idêntica a que a polícia tinha em seu poder. A simples vista advertia só uma ligeira diferença na bela letra inglesa com que se gravara o nome, Finlay FitzJames, sob o alfinete. Tinha-a escrito uma mão distinta. Mas não podia ser de outro modo. Para averiguar qual era a original e qual a réplica, precisava compará-las com a insígnia de um dos outros sócios. Não havia outra solução.
Mas os outros sócios asseguravam que não conservavam suas respectivas insígnias.
— O que ocorre, delegado? — perguntou Tallulah com um vislumbre de inquietação no semblante.
— Agora tenho duas insígnias com o nome de seu irmão, senhorita FitzJames. Uma delas é uma cópia. Preciso saber qual é, por que se fez, e quem o encomendou.
Tallulah o olhou sem alterar-se.
— Essa é a peça original. A que acharam no Pentecost Alley é uma cópia, e sem dúvida o mandou fazer algum inimigo de meu pai para nos afundar.
Pitt a observou. Vestia-se de branco e azul claro com fitas. Estava um pouco magra, e isso lhe conferia um aspecto frágil e muito feminino, impressão que se desvanecia no ato quando a pessoa reparava na fortaleza que revelavam suas feições e a ardente vontade que transparecia em seu olhar.
— Crie realmente que seu pai tem inimigos dispostos a assassinar a uma mulher com o propósito de vingar-se dele? — perguntou.
Era evidente que já se formulara ela mesma essa pergunta. Falou com a voz crispada pela emoção contida, mas sem hesitações.
— Sim, delegado; acredito que sim. Possivelmente você não conheça o poder que possui ou a fortuna que conseguiu nos últimos trinta anos. A inveja pode ser muito cruel. Pode apropriar-se de uma pessoa e anular sua decência e seus sentimentos. Além disso, certas pessoas não... — mordeu o lábio. — Certas pessoas não consideram um grande pecado a morte de uma prostituta. Sinto muito. Sei que é uma ideia repugnante. — Fez uma careta de dor, e Pitt teve a imediata convicção de que era sincera. Ao cabo de um instante acrescentou: Mas é a verdade.
Pitt sabia que era verdade. Se não fosse produzido no Whitechapel, e tão pouco tempo depois daquela outra série de crimes atrozes, os jornais mal teriam prestado atenção à morte da Ada McKinley.
— Talvez conviria que fizesse uma lista desses possíveis inimigos, senhorita FitzJames, incluindo as razões de seu ódio se as conhecer, embora seja vagamente. Pedirei a seu pai uma lista semelhante.
— De acordo.
Pitt agradeceu aos dois agentes que tinham colaborado na revista, saiu da casa dos FitzJames e se dirigiu para o parque pelo Devonshire Street. Comprou dois sanduíches de presunto em um posto de uma esquina e os comeu enquanto cruzava pelo Marylebone Road, entrava no parque e caminhava entre as árvores. Fazia um dia agradável. A essa hora havia no parque muita gente passeando, elegantes damas exibindo seus modelos, e casais festejando. As crianças brincavam com aros e montavam em paus com cabeça de cavalo; alguns tentavam pô-la voar suas pipas, mas não soprava vento suficiente para levantá-las.
Babás com tontos uniformes empurravam carrinhos ou levavam pela mão as crianças que tinham a seu cargo. Algumas se sentavam para mexericar nos bancos enquanto as crianças corriam ao redor. Anciões cavalheiros sentados ao sol reviviam passadas glórias. As moças riam e tagarelavam. Ao longe uma banda interpretava as peças de moda nas salas de baile.
Pitt não tinha podido explicar ao Ewart por que achava difícil de acreditar que um inimigo do Augustus FitzJames tivesse assassinado a uma prostituta e incriminado ao Finlay para vingar-se de seu pai. Não existia um só argumento contra. Simplesmente não podia dar crédito a semelhante maquinação. Por sua experiência sabia que às vezes os roubos se levavam a cabo desse modo, mas nunca os assassinatos. Nos delitos de violência, as tramas, as tentativas de culpar a outros, vinham depois. Por desumano que fosse esse suposto inimigo, Pitt não concebia que tivesse cometido deliberadamente um crime que podia lhe custar a forca se se descobrisse sua autoria.
E entretanto devia admitir que se percebia certa deliberação. A insígnia e a abotoadura constituíam uma extraordinária coincidência. Como podia haver um criminoso tão descuidado para deixar atrás de si duas provas tão claras?
Pitt devia realizar um novo intento com o Helliwell e Thirlstone, e também, muito a seu pesar, com o Jago Jones. Achar outra insígnia com a que comparar as duas que já tinham, era agora de crucial importância para determinar a inocência ou culpa do Finlay.
— Santo céu, delegado! — exclamou Helliwell com exasperação quando Pitt o abordou no Birdeage Walk depois de seu excelente almoço no Great George Street. — Asseguro—lhe que não posso ajudá-lo. Não sei nada do Finlay FitzJames e sua atual conduta. — Sua expressão se escureceu. — Achava ter deixado já bem claro que fomos amigos em outro tempo, mas no presente as coisas mudaram. Desejaria poder lhe dizer algo que limpasse definitivamente seu nome, mas não está em minhas mãos. E agora terá que me desculpar, porque me faz tarde. — Apertou o passo.
Pitt acelerou também.
— Encontrei uma segunda insígnia do clube Fogo do Inferno — anunciou, caminhando ao mesmo tempo do Helliwell.
— Não me diga! — Helliwell continuou andando sem voltar sequer a cabeça. Não perguntou onde tinha sido achada. — Em qualquer caso, não vejo no que me corresponde isso. Se for a minha, perdi-a faz anos, assim poderia estar em qualquer lugar.
Pitt escrutinou seu rosto, ligeiramente vermelho sob o sol vespertino por causa do esforço, e possivelmente também do excesso de Porto; entretanto não detectou em sua expressão o desassossego próprio da mentira. Estava indignado, mas se tinha medo, dissimulava-o com consumada habilidade, e tal grau de sutileza não concordava com sua personalidade.
—Não — respondeu Pitt. — Não era a sua. Conforme parece, era também do senhor FitzJames.
Helliwell se deteve e se voltou para o Pitt.
— Como? Isso é absurdo! Só tínhamos uma cada um. O que... o que quer dizer?
— Que alguém fez uma segunda insígnia, senhor Helliwell. Precisaria ver a sua para saber qual é a original.
— Ah! — Helliwell deixou escapar um violento suspiro. — Já. Compreendo. Por desgraça, tampouco nisso posso ajudá-lo, e sinceramente começam a me ser um tanto irritantes estes interrogatórios. — Olhou ao Pitt nos olhos para lhe dar a entender que não sentia o menor temor, e que sua indignação, em troca, crescia cada vez mais. — FitzJames e eu fomos amigos em minha época de imaturidade, que agora deixei atrás, e o que ele faça ou deixe de fazer não é de minha incumbência. Embora lhe diga que me custa muito acreditar que esteja envolvido no assassinato de uma prostituta do East End. Só uma desafortunada série de coincidências podem havê-lo induzido a conceber semelhante possibilidade. Seu trabalho seria muito mais proveitoso para todos, delegado, se se dedicasse a investigar aos conhecidos, inimigos e devedores dessa desventurada mulher. E agora, como lhe disse, tenho uma entrevista e devo me apressar, ou se não, farei esperar a sir Philip. Bom dia, delegado.
Dito isto se deu meia volta com um rápido movimento e se afastou sem olhar para trás nem para os lados.
Encontrar Mortimer Thirlstone foi mais difícil. Não participava da vida pública ou política, e ia e vinha a seu desejo. Pitt averiguou que se achava na oficina de um artista no Camberwell, era já meio da tarde quando por fim conseguiu falar com ele. A oficina era ampla, luminosa e arejada, e quando Pitt chegou, vários homens e mulheres jovens conversavam animadamente. As paredes estavam cobertas de quadros, e havia janelas nos lugares mais inverossímeis, sem dúvida não onde o arquiteto original as tinha projetado. Entretanto produzia uma impressão assombrosamente grata de espaço, clareza e prodigioso colorido. E certamente era uma impressão, como se se contemplasse com os olhos entreabertos , mais que uma imagem fotográfica.
—Vá Por Deus! — disse Thirlstone com aborrecimento ao ver Pitt, reclinando-se contra o peitoril de uma janela.
Vestia uma camisa branca de longas mangas e colarinho macio e caído adornado com um enorme laço. Oferecia um aspecto muito afetado, mas ele não parecia consciente disso.
— Boa tarde, senhor Thirlstone — saudou Pitt, e quando se dispunha a continuar, Thirlstone se ergueu.
— Você outra vez não! — exclamou, e percorreu a sala com olhar como se procurasse um lugar por onde escapar. — Meu amigo, isto começa a ser francamente tedioso. — De repente olhou Pitt no rosto. — O que quer que lhe diga? Conhecia Finlay, mas isso faz anos. Era um tipo decente, embora possivelmente um pouco amalucado. Mas então todos o éramos, suponho. Mas agora não sei nada dele, nada absolutamente. É um homem agradável, não o nego, mas também um completo ignorante. Não distingue o branco do negro. Às vezes se diria que é daltônico!
— Queria lhe pedir que procure sua insígnia do clube Fogo do Inferno — disse Pitt, percebendo desassossego em seu semblante e perguntando-se qual seria a causa. Sua presença ali não tinha por que violentá-lo. Ninguém teria adivinhado que Pitt era polícia.
— Já lhe disse que não a tenho! — replicou Thirlstone com expressão carrancuda e tom irado. — Que importância poderia ter agora?
Pitt o pôs à corrente sobre a existência de duas insígnias com o nome do Finlay.
—Ah. —Thirlstone parecia desconcertado. Engoliu em seco. Fez gesto de falar, mas mudou de ideia. Movia-se incômodo, como se alguma costura da camisa, apesar de sua folga, arranhasse-lhe a pele. — Bem.... se... se ainda a conservar, a farei chegar. Mas não é provável. — Sacudiu a cabeça com veemência. — Não imagino Finlay fazendo uma coisa assim, mas a pessoa muda...
Uma mulher de corpo escultural passou junto a eles aparando a cabeleira. Um homem situado frente à janela do extremo oposto a desenhava, e ela sabia.
— Suponho que lhe parecemos... isto... — Thirlstone fez um gesto de indiferença. — Enfim, não sei. De verdade. Não tenho a menor ideia. — Lançou um breve olhar à mulher. — Não é agradável ser desleal, mas em todo caso nada posso lhe dizer.
Pitt desejava achar uma pergunta que lhe permitisse romper aquela impenetrável fachada e averiguar o que sabiam realmente aqueles homens uns de outros, que tipo de relação tinha existido entre eles, quais tinham sido suas rivalidades, os laços que mantinham, as invejas que os dividiam, as secretas emoções ocultas sob seu comportamento externo.
— Tinha Finlay uma especial amizade com algum de vocês? — perguntou sem dar importância, como se acabasse de ocorrer-se o quando se dispunha a partir.
—Não — respondeu Thirlstone imediatamente. — Nos dávamos todos bem... bom, possivelmente se sentia algo mais unido ao Helliwell. Tinham mais afinidades, possivelmente. — de repente se ruborizou, como se acabasse de cometer uma traição e fosse muito tarde para retratar-se.
— Tinha mais dinheiro que vocês? —prosseguiu Pitt. — Seu pai é um homem muito rico.
Thirlstone experimentou um manifesto alívio ante a mudança de tema.
— Ah... sim. Sim, tinha mais dinheiro. Mais que Jago ou eu certamente. E suponho que também mais que Helliwell.
— Era generoso?
No rosto do Thirlstone apareceu uma estranha expressão, mescla de amargura e ironia, quase circunspeto pesar. Obviamente lhe desgostava falar daquilo, e isso podia dever-se à culpa por algo, ou simplesmente a que o considerava uma perda de tempo para seus interesses estéticos e preferia viver no presente.
— Era generoso? — repetiu Pitt.
Thirlstone deu de ombros.
— Sim... frequentemente.
— Jogava? — perguntou Pitt. Não lhe interessava especialmente essa questão, salvo por sua possível influencia negativa na personalidade do Finlay, mas desejava estender um pouco mais a conversa. Umas gargalhadas interromperam suas reflexões, e todos se voltaram para a carriola de onde procediam.
— Sim. Todos jogávamos — respondeu Thirlstone. — O mais, possivelmente. O jogo formava parte de sua natureza, e podia permitir-se. Olhe, delegado, nada disso tem já importância. Ignoro quem matou a essa mulher no Whitechapel. Custa-me acreditar que possa ter sido Finlay. Mas se tiver você prova de que assim foi, não ficará mais remédio que aceitá-lo. Pelo resto, opino que perde o tempo, e está em seu direito, mas também me faz perdê-lo, e eu considero precioso meu tempo. Não vi minha insígnia do clube há anos, mas se aparecer, a levarei ao Bow Street.
— Estaria-lhe muito agradecido se a buscasse, senhor Thirlstone. Poderia demonstrar a inocência do senhor FitzJames.
— Ou a culpa? — acrescentou Thirlstone, lançando ao Pitt um intenso olhar.
Charlotte tinha visitado sua mãe nesse dia, e tinha muitas notícias que contar ao Pitt quando voltasse para casa. Eram em sua maior parte divertidas e interessantes fofocas sobre o pitoresco mundo do teatro na versão do Caroline.
Mas quando o viu entrar pela porta às sete e quinze, exausto, acalorado e tentando pôr ordem em suas confusas ideias, compreendeu que não era o momento.
— Procurou outra vez a insígnia? — perguntou quando estavam sentados à mesa.
As crianças já tinham jantado e tinham subido a preparar-se para deitar-se. Gracie, que tinha aprendido a ler recentemente, dispunha-se a compartilhar com eles o capítulo seguinte de Alice através do espelho. Para os três era o melhor momento do dia.
Os dois gatinhos dormiam na cesta da roupa suja junto ao fogão da cozinha e tudo estava limpo e recolhido, salvo os pratos que eles acabavam de usar, e que podiam esperar até que Gracie descesse.
— Sim — respondeu Pitt, erguendo a vista e olhando ao Charlotte nos olhos. O sol estava já baixo, e seus raios penetravam pelas grandes janelas e se estendiam pela mesa e chão recém esfregado, formando desenhos na parede do fundo e refletindo-se na louça colocada no aparador galês e nos vasilhames de cobre pendurados em cima. — E a encontramos.
Charlotte engoliu em seco.
— Quer isso dizer que é inocente?
Pitt sorriu.
— Não. Quer dizer simplesmente que há duas insígnias e, portanto, uma deve ser falsa.
— E não seria lógico pensar que a falsa é a que apareceu no Pentecost Alley? A outra devia estar onde a encontrou, não? Onde estava?
— No bolso de uma jaqueta velha que, conforme parece, não usava desde há anos.
— E então?
Pitt levou a boca outro pedaço de empanada de frango frio. Sabia muito bem, como os tomates e o pepino que a acompanhavam.
— Thomas? — insistiu Charlotte, enrugando a fronte.
— Alguém fez uma cópia e a deixou bem na cama da Ada McKinley no Pentecost Alley, bem no bolso da jaqueta do Finlay FitzJames no Devonshire Street — respondeu Pitt, ainda mastigando.
— E não sabe qual é a cópia? — Charlotte recordou a conversa com o Emily do dia anterior, e sua insistência em que Pitt realizasse uma nova revista. Uma desagradável suspeita começou a cobrar forma em sua mente. Procurou afastá-la. Esquecendo-se de sua empanada, perguntou com tom mais premente: Sim deve sabê-lo, não?
— Não, não sei. — Pitt franziu o sobrecenho. — E não saberei a menos que possa compará-la com uma das insígnias originais de algum dos outros sócios. A letra usada nas duas que tenho não é exatamente igual. Cabe supor que as primeiras as fez todas o mesmo joalheiro. Aquela cuja letra não coincida com as anteriores será a cópia.
— E não teria que...? —começou a dizer Charlotte, mas ela mesma achou resposta a sua pergunta e se interrompeu.
— O quê?
— Dá na mesma — respondeu Charlotte. — Não tem importância.
— Alguém encarregou uma cópia bem para demonstrar sua culpa quando era inocente — explicou Pitt —, ou para demonstrar sua inocência agora que parece culpado. Neste caso, poderia ter sido qualquer membro de sua família, ou o próprio Finlay.
— Sim — admitiu Charlotte com cautela, e baixou a vista ao prato. — Sim, é possível. — Não lhe confiou a ideia que rondava por seu pensamento. Clamava em sua mente, mas Charlotte não se atrevia a expressá-la com palavras, nem sequer para si. — Quer outro tomate? — Fez gesto de levantar-se. — Há mais, e estão francamente bons.
Na manhã seguinte, assim que Pitt partiu, Charlotte deu instruções a Gracie para o resto do dia e saiu para casa do Emily em um cabriolé de aluguel. Às nove e quinze uma perplexa criada a acompanhou ao salão e anunciou que iria ver se a senhora Radley estava em casa, o que significava que estava. Se tivesse saído para montar, a criada o teria dito imediatamente. Em qualquer caso, Charlotte estava disposta a esperar o dia inteiro se fosse preciso.
Emily apareceu ao cabo de dez minutos, ainda com um folgado penhoar de seda e o cabelo solto, mostrando em todo seu esplendor aqueles cachos loiros que Charlotte sempre lhe tinha invejado. Aproximou-se do Charlotte sorridente, como se fosse beijá-la na face.
— Emily! — apressou-se a dizer Charlotte.
Emily piscou desconcertada.
— Sim? Parece uma fúria. O que aconteceu? Tem que ver com a avó?
— Não. Por que tinha tanto interesse em que Thomas procurasse outra vez a insígnia do clube Fogo do Inferno em casa dos FitzJames? — Cravou no Emily um feroz olhar que deveria havê-la convertido em pedra.
Emily vacilou apenas um instante e a seguir se sentou com naturalidade em uma das poltronas verdes.
— Porque se a encontrassem, ficaria demonstrado que Finlay FitzJames é inocente, e isso seria o melhor para o Thomas — respondeu mansamente, erguendo a vista para olhar ao Charlotte, de pé ante ela. — Ou não acredita? Augustus FitzJames é um homem muito poderoso, e não se anda com brincadeiras. Se Finlay for culpado, naturalmente terá que detê-lo, apresentar provas e tudo isso. Mas se for inocente, muito melhor para todos, em especial para o Thomas, desde que possa demonstrar antes que empreenda qualquer ação judicial contra ele. Não está suficientemente claro acaso?
— Muito claro, de fato. — Charlotte não retrocedeu um só palmo. — Conhece-o?
Emily abriu desmesuradamente os olhos, de um azul intenso sob a luz do sol que entrava pelas longas janelas.
— A quem? Ao Augustus FitzJames? Só de ouvir? Mas sei que não me equívoco. Jack me falou dele mais de uma vez. É muito poderoso, porque possui uma grande fortuna.
— Ao Finlay FitzJames — esclareceu Charlotte, esforçando-se por manter a voz controlada.
— Não — respondeu Emily, ainda com ar de inocência. — Só o vi em uma ocasião, e por muito pouco tempo. O justo para trocar uma saudação. Duvido que me reconhecesse se nos encontrássemos outra vez em algum lugar.
Charlotte procurava a conexão. Tinha que havê-la. Conhecia bem ao Emily e notava sua atitude evasiva. A culpa gotejava por todos os poros de seu corpo, e seu cândido olhar não fazia mais que corrobora-lo. Sentou-se frente a ela e a olhou nos olhos.
— Está comprometido em matrimônio?
— Não acredito; não me chegaram notícias.
Emily não lhe perguntou por que queria sabê-lo, e para essa Charlotte foi a prova definitiva. Sem dúvida mentia. Suas suspeitas se viram confirmadas.
— Tallulah? — disse Charlotte entre dentes. — Realmente se preocupa tanto com essa moça para me manipular com o propósito de conseguir que Thomas levasse a cabo outra revista?
Emily se ruborizou.
— Já lhe disse, Charlotte, se Finlay for inocente, Thomas...
— E como! Sabia que a insígnia estava ali, porque a puseram você ou Tallulah. Dá-se conta do que fez?
Emily hesitou entre admitir sua culpa ou negá-la. Ainda não se tinha delatado, não por completo.
— Augustus FitzJames tem inimigos implacáveis, sabia?
— E também tem amigos implacáveis, conforme parece! — exclamou Charlotte com ira. — Encomendou a insígnia pessoalmente ou o sugeriu A... Tallulah?
Emily endireitou os ombros.
— Francamente, Charlotte, acredito que, como esposa de um policial que é, não devo falar disso com você. Sentiria-se obrigada a contar tudo ao Thomas, e eu ou meus amigos poderíamos nos ver em uma situação delicada. Estou convencida de que Finlay é inocente, e fiz o que considerei correto, por ele e por Thomas. Sabe que essa identificação carece de fundamento.
— Que identificação? — de repente Charlotte não estava já tão segura de si mesma. Sem dúvida Emily tinha atuado de uma maneira irresponsável, estúpida, e provavelmente inclusive delitiva. Mas ao parecer sabia algo que ela ignorava, e possivelmente também Pitt. Repetiu: Que identificação?
Emily relaxou. Os raios do sol formavam uma auréola dourada em torno de seu cabelo. Do outro lado da porta se ouviam os plácidos passos das criadas ocupadas em seus afazeres domésticos. Em alguma parte da casa ria uma moça, provavelmente uma ajudante.
— A identificação da outra prostituta que declarou ter visto o Finlay no Pentecost Alley a noite do assassinato — respondeu Emily.
— Como? — Charlotte sentiu um nó no estômago e por um instante mal pôde respirar. — O que está dizendo?
— Não foi uma identificação confiável — explicou Emily. — Essa mulher não tem a menor certeza se era ou não Finlay. Se o caso chegar aos tribunais, está disposta a testemunhar que viu o mordomo.
— Que mordomo? — Charlotte não saía de seu assombro, ao que de repente se somou um total desconcerto. — O mordomo de quem? De onde tirou que era um mordomo?
— O mordomo que deixou Ada grávida — esclareceu Emily. — Por isso ela perdeu o emprego e acabou nas ruas.
— E você como soube isso? — perguntou Charlotte com voz mais baixa e crescente frieza.
Era muito tarde para voltar atrás.
— Porque falei com ela — sussurrou Emily.
Charlotte, um pouco enjoada, desabou-se contra o espaldar da poltrona.
— Não entendo por que se altera tanto — disse Emily, até certo ponto com razão. — As duas interviemos antes em outras investigações e sempre saímos mais ou menos graciosas. Recorda, por exemplo, o caso do Decapitador do Hyde Park...
— Nem o nomeie! — Charlotte fez uma careta de aversão. — esqueceu a reprimenda do Jack?
Emily empalideceu.
— Não. Mas disto não sabe nada. E não me coloquei em nenhuma situação de perigo... bom, não de verdadeiro perigo. Ali não havia ninguém violento. Simplesmente fui procurar informação para limpar o nome do Finlay. Não persegui a nenhum possível culpado.
— Não diga idiotices! — prorrompeu Charlotte. — Se Finlay ficar livre de suspeita, outro tem que ser o culpado. Poderia ter sido alguém do bairro. De fato, é o mais provável. Salvo que Finlay — acrescentou com tom cáustico — seja tão culpado como Jack o Estripador, o qual não deve descartar-se se tivermos em conta que segunda insígnia a puseram vocês. A insígnia autêntica é a primeira, a que se achou sob o cadáver dessa pobre mulher. Ou isso acaso nem parou para pensar?
— Claro que o pensei. Mas, embora assim seja, não teria por que havê-la deixado ali Finlay — replicou Emily. — As duas sabemos que ele nem se aproximou do Whitechapel essa noite. Estava em uma festa na Chelsea.
— Não, não sabemos! —rebateu Charlotte. — Só sabemos que Tallulah afirma que esteve ali e o viu.
— Bem, e eu acredito. E a falta de uma identificação, a insígnia os a única prova que o relaciona com o Whitechapel. Qualquer um poderia havê-la roubado ou encontrado casualmente anos atrás, e tê-la utilizado depois para vingar-se do Augustus. Ao fim e ao cabo, por que ia Finlay matar uma mulher como Ada McKinley? Ou de ato a qualquer outra pessoa?
— Alguém a matou — disse Charlotte com tom incisivo. — Provavelmente alguém que a conhecia — argumentou Emily, inclinando-se um pouco. — Uma rival, ou alguém a quem tinha roubado ou causado algum prejuízo. Possivelmente brigou com outra mulher, ou zombou de um homem, acaso um homem que a tinha amado em outro tempo e se sentiu traído por ela. —Respirou fundo. — Charlotte...
Charlotte a olhou fixamente e esperou.
— Charlotte, por favor, não conte ao Thomas sobre a insígnia. Nunca me perdoaria isso. E pode ser que não compreendesse por que o fiz. Estou convencida de que Finlay é inocente.
— Sei — disse Charlotte com tom severo. — Do contrário não teria cometido tamanha estupidez.
— Dirá ao Thomas? — perguntou Emily com um fio de voz.
— Não — respondo Charlotte, mais por lástima que por sensatez —, A menos que não fique mais remédio. Possivelmente... possivelmente descubra o que precisa saber por outros meios, e não seja preciso contar-lhe.
— Obrigada.
E em efeito Pitt descobriu ao menos parte disso quando, acompanhado do Ewart, voltou para o Pentecost Alley no meio da tarde. Nan Sullivan seguia tão indecisa como na anterior visita do Pitt, mas ainda confiava plenamente no testemunho de Rose Burke. Sua mudança de atitude o deixou perplexo.
— Não sei, a verdade — disse Rose, evitando o olhar do Pitt.
Achavam-se sentados na cozinha, e sobre a mesa havia um grande bule com o esmalte descascado e várias xícaras de louça de diferentes jogos. Por causa do calor que despedia o fogão o ambiente era cansativo. Ninguém queria abrir a janela que dava ao pátio posterior, sempre fedorento devido aos eflúvios que emanavam dos baldes de lixo e a pocilga da casa contígua.
— O que é que não sabe? — disse Pitt. — Parecia muito segura quando o viu do cabriolé no Devonshire Street. Sua certeza era tal que estava disposta a pendurá-lo você mesma.
— Estava disposta a pendurar a qualquer que tivesse feito uma coisa assim a Ada — retificou Rose obstinadamente. — E isso não quer dizer que fosse ele. Vi-o só um momento, e com pouca luz.
— Tem medo, Rose? — perguntou Pitt, procurando que em sua voz não transparecesse a ira que sentia nem o desdém que teria desejado mostrar.
— Não! — Rose lançou um olhar desafiante ao Pitt, esquecendo-se por completo do Ewart. — Não, não tenho medo. Do que vou ter medo?
— Das ameaças de alguém — respondeu Pitt. — O homem que identificou pertence a uma família muito poderosa.
— Pode ser, mas não falou comigo — disse com uma careta hostil nos lábios. — Se isso é o que acredita, está equivocado, muito equivocado. Eu só quero que agarrem ao verdadeiro culpado, ao homem que acabou com a pobre Ada. — Brincou com a colherinha, deslizando-a contra a borda da taça. — E acredito que poderia ter sido o mordomo que a deixou prenhe. Fez o mesmo com outra garota, e desta vez a senhora da casa poderia não lhe dar razão. Assim tinha motivos para desfazer-se da Ada. Os fulanos como o que vi no Devonshire Street não vêm ao Whitechapel. Procuram seu prazer no Haymarket e Windmill Street.
— Isso é certo — confirmou Ewart.
— Você declarou que Ada ia às vezes a essas zonas — indicou Pitt.
— Sim. Mas não disse que trouxesse aqui os clientes — replicou com descaramento. — Não era tão tola. Se houvesse trazido-os, Costigan não teria se conformado só com a metade do dinheiro. E por que ia seguir a um desses cavalheiros até aqui? Ada tampouco era nada excepcional. Nesses bairros há muitas mais mulheres, e aos homens dá no mesmo uma puta que outra.
— Quer dizer que o homem que viu era esse mordomo? — interrompeu-a Ewart, inclinando-se sobre a mesa. — Descreva-o.
—Não, não disse que fosse o mordomo — corrigiu Rose com cautela. — Disse que poderia ter sido ele. Mas enquanto haja alguém a quem pendurar, que importância tem que seja um ou outro?
— Para mim tem muita importância — respondeu Pitt entre dentes, contendo sua indignação. — Depois de sua convicção do outro dia, esta mudança de opinião me é em extremo suspeita. Não posso deixar de me perguntar se o provocou alguém, seja mediante ameaça, ou mediante promessas.
— Está dizendo que me pagaram para mentir? — perguntou Rose irada.
— Não — atravessou Ewart com tom conciliatório. — Ninguém disse que esteja mentindo, Rose. Simplesmente temos que nos assegurar. Não é possível trazer a Ada de novo a este mundo, e estamos falando da vida de um homem. Uma acusação errônea seria a sua maneira um segundo assassinato.
— Bom, possivelmente poderia mentir sobre algo insignificante — disse Rose com cuidado, desta vez olhando ao Ewart. — Mas não para enviar à forca a um pobre desgraçado, fosse quem fosse. Para lhe ser justa, a morte da Ada me alterou muito. —Ergueu ligeiramente os ombros em um gesto de desculpa e resignação. — Estava furiosa e assustada, e me precipitei. Queria que pendurassem a alguém, porque assim as demais ficaríamos mais tranquilas. Mais a salvo, digamos. — Tomou ar e se voltou para o Pitt. — Tentei me convencer de que sabia quem tinha sido. Agora que pensei melhor, dou-me conta de que foi uma estupidez. Tem que pagar o verdadeiro culpado, e não um pobre que se parece um pouco a ele. Não é assim?
— Sim — admitiu Pitt com tom sério. — Sim, tem que ser o verdadeiro culpado.
— Naturalmente — corroborou Ewart, e fez gesto de dar à Rose uma palmada de consolo no ombro mas mudou de ideia. — claro que sim.
Partiram do Pentecost Alley e pararam um cabriolé.
— Será melhor que encontremos a esse mordomo — disse Pitt com aborrecimento durante o trajeto. — Embora só seja para descartá-lo.
— Acredito que é o homem que procuramos — vaticinou Ewart com convicção. Olhava à frente com expressão severo enquanto avançavam em direção oeste pelo Whitechapel High Street. — Tem lógica. Deixou grávida Ada. Daquela vez ficou impune. Mentiu aos senhores da casa. Agora tornou a fazê-lo, e Ada se propunha ir à casa e contar toda a história. Acabar com ele.
— Já contou toda a história a primeira vez — indicou Pitt. — O que ia conseguir contando-a de novo?
— Vingar-se dele — respondeu Ewart como se fosse a resposta óbvia. — Esse homem era o responsável por sua desgraça. É o motivo mais antigo do mundo.
Pitt o olhou de soslaio. Ewart era um bom policial. Tinha uma excelente folha de serviços. Aspirava firmemente a uma ascensão. Era, pois, surpreendente que incorresse em enganos tão elementares. Desde o começo do caso tinha estado submetido a alguma classe de emoção. Era a lástima ou a indignação? Ou acaso o temor a que Augustus FitzJames se propusesse arruinar a existência de quem quer que acusasse a seu filho de um crime semelhante, fosse culpado ou inocente, e nem sequer sua sólida reputação no corpo de polícia bastasse para salvá-lo?
Sem dúvida seria desagradável. Mas apresentar provas contra alguém tinha sempre sua parte de tragédia. Sempre havia pessoas inocentes que sofriam as consequências, pessoas cujo único delito era amar a um marido ou um filho. Viam-se transbordadas pelos acontecimentos e depois, quando a confusão e a vergonha pública amainavam, ficavam com sua dor.
— O que teria ganhado o mordomo matando-a? — perguntou Pitt, escrutinando o sombrio olhar do Ewart e as rugas de ansiedade em torno de seus lábios. — Ada tinha contado já sua história. Morta, simplesmente a reforçava. Se esse homem matasse a alguém, seria a moça que padeceu de seus abusos desta vez, para impedir que o delatasse. O conflito entre a Ada e ele já se submeteu a julgamento, e tinha perdido ela. Ada poderia ter matado ao mordomo, mas ele não tinha motivos para matar a ela.
A expressão do Ewart se endureceu, e algo parecido ao medo, ou possivelmente a ira, obscureceu suas feições. Estava exausto e lhe tremiam um pouco as mãos. Devia lhe haver aborrecido profundamente ter que ceder seu caso a um superior como Pitt porque a ele não o considerava capaz de levar a cabo uma investigação com delicadas implicações políticas. Qualquer policial se teria sentido igual, incluído o próprio Pitt.
E Ewart estava demonstrando que tinha mais em conta as consequências políticas do caso que Pitt. Procurava qualquer solução menos a mais explosiva.
— Estou de acordo com você — disse Pitt com serenidade. — As provas contra FitzJames são pouco sólidas. A identificação não serve de nada. Ele perdeu a abotoadura há anos e a autenticidade da insígnia é duvidosa. Agora que encontramos uma segunda insígnia em sua casa, a primeira tem pouco peso. Terá que se começar de novo desde o começo. Devemos investigar mais a fundo a vida da Ada, e também a do FitzJames, para ver quem poderia estar comprometido.
Ewart se voltou para ele.
— Comprometido? — perguntou lentamente. Parecia muito cansado, muito aturdido por causa dos sucessivos golpes encaixados, para pensar com clareza.
— Se FitzJames tiver inimigos tão virulentos para deixar uma prova no lugar do assassinato a fim de incriminá-lo — explicou Pitt —, conviria...
Ewart se ergueu um pouco, compreendendo de repente o raciocínio do Pitt.
— Ah, sim. É claro. Quer que me eu ocupe disso? Começarei amanhã mesmo.
— Bem — disse Pitt. — Eu seguirei com a Ada.
Era tudo confuso e em extremo desagradável. Como ele mesmo havia dito, devia voltar ao princípio.
Pitt chegou tarde a casa, e para sua surpresa achou lady Vespasia Cumming-Gould, a tia avó do Emily por parte de seu primeiro marido, sentada na sala, tomando uma infusão e conversando com Charlotte. Tinha aberto a porta de par em par, disposto a falar, mas ao vê-la se deteve.
— Boa noite, Thomas — saudou friamente a tia Vespasia, arqueando as prateadas sobrancelhas.
Estava tão formosa como sempre. Com o tempo seu rosto, de magnífica estrutura óssea e pálpebras caídas, refinara-se e adquirira a estampagem de seu caráter. Não era já a simples beleza da juventude, a mas um atrativo em que se refletia toda uma vida única e fascinante.
Tinha autorizado ao Pitt a chamá-la por seu nome de batismo e tratá-la com intimidade como um parente mais, e ele fazia uso desse direito com sincera satisfação.
— Boa noite, tia Vespasia. Alegro-me em vê-la.
— E também o surpreendo, a julgar por sua expressão — replicou ela. — Sem dúvida terá apetite e quererá comer algo. Acredito que Gracie lhe preparou já o jantar.
Pitt fechou a porta e entrou na sala. Com efeito tinha fome e estava esgotado, mas não tinha intenção de renunciar ao prazer de sua companhia nem ao supremo interesse de sua conversa. Era claro que não os tinha visitado simplesmente porque passava por ali. Vespasia nunca fazia nada por acaso, e Bloomsbury não formava parte de seus percursos habituais. Pitt se sentou, dirigiu um olhar fugaz à Charlotte, e logo se voltou para a Vespasia.
— Conhece o Augustus FitzJames? — perguntou Pitt sem rodeios.
Vespasia sorriu.
— Não, Thomas; não o conheço. Ofenderia-me se pensasse que vim vê-lo porque tenho amizade com ele e me inteirei que está investigando esse sórdido assunto do Whitechapel no qual parece estar comprometido seu filho.
— Qualquer um que a conheça sabe que não tentaria exercer influência — respondeu Pitt com franqueza.
Vespasia abriu ainda mais seus grandes olhos cinza.
— Meu querido Thomas, qualquer um que me conheça sabe que nunca teria amizade com um arrogante novo-rico como Augustus FitzJames. Sente-se, por favor. É incômodo ter que levantar a vista para olhá-lo.
Pitt não pôde evitar sorrir apesar do cansaço e confusão que reinava em sua mente, à sensação de que não tinha chegado a nenhuma parte depois do tempo e o esforço dedicados. Sentou-se frente à Vespasia.
— Mas sim me compadeço de sua esposa — acrescentou Vespasia. — Embora não é esse o motivo de minha visita. É você quem mais me preocupa, e em segundo lugar John Cornwallis. — Franziu ligeiramente o sobrecenho. — Thomas, se levar ao Finlay FitzJames a julgamento, deve ter a total certeza de que poderá demonstrar sua culpa. Seu pai é um homem muito poderoso e não conhece a clemência. Pitt tinha chegado já a essa conclusão, mas confirmada pela Vespasia era arrepiante. O medo era estranho nela, e no passado Pitt só o tinha detectado ante o poder de sociedades secretas, e não de indivíduos. Aquilo aumentava ainda mais sua sensação de incerteza e mal-estar em relação com o assassinato do Pentecost Alley.
Charlotte o observava com inquietação.
— Começa a dar a impressão — disse Pitt — de que Finlay FitzJames não é culpado. As provas contra ele ficaram invalidadas, ou descartadas por razões de peso.
— Não me esclareceu nada — protestou Vespasia. — Melhor será que se explique.
Pitt a pôs à corrente sobre o achado da insígnia no lugar do crime, a aparição de uma segunda insígnia em posse do Finlay, e a impossibilidade de obter alguma das insígnias originais do clube para compará-las e identificar assim a cópia. Tão absorto estava em sua exposição do caso que não notou o rubor nas faces do Charlotte nem seus esquivos olhares.
— Mmm — resmungou Vespasia quando Pitt concluiu. — Não é muito satisfatório, mas salvo por um detalhe, tudo parece bastante claro.
— Que detalhe? — apressou-se a perguntar Charlotte.
— Surpreende-me que Augustus não encarregasse uma cópia imediatamente — respondeu Vespasia — e exigisse a seguir uma revista mais minuciosa. Poderia ter se feito em um ou dois dias. Se esse era seu plano, por que esperou que o mal-estar crescesse? A menos, claro está, que pretendesse dar uma lição ao Finlay, assustá-lo durante uns dias para que possivelmente assim fosse mais obediente.
— E não poderia ter feito algo assim o próprio Finlay? — sugeriu Charlotte, e imediatamente baixou a vista como se se arrependesse de ter falado.
— Não. Não tem a inteligência para idear algo assim, e além disso o pânico deve ter se apoderado dele — disse Vespasia.
Pitt recordou sua primeira entrevista com o Finlay.
— Eu não percebi o menor pânico nele — admitiu. — Sim estava surpreso, nervoso e inclusive alarmado, mas assustado não. Em todo caso, seu medo foi aumentou à medida que passavam os dias e continuávamos suspeitando dele.
— É curioso — comentou Vespasia. — Que outra prova tinha?
Pitt notou que o tinha perguntado em passado e esboçou um triste sorriso.
— A identificação de duas testemunhas — respondeu, e a informou sobre as declarações de Nan Sullivan e Rose Burke e sua posterior retratação.
Vespasia refletiu por um momento.
— Não é muito satisfatório — opinou. — Isso poderia dever-se a várias razões: possivelmente disse a verdade ao princípio e alguém a convenceu que se volte atrás ameaçando-a com algum dano ou lhe prometendo uma recompensa; ou movida por seu instinto de conservação dominou seu ódio ou sua ira; ou também poderia ter decidido que essa informação é mais valiosa se a mantiver em segredo e a utiliza em seu benefício no futuro. — Enrugou a frente. — Ou diz agora a verdade, e inicialmente se deixou arrastar em parte pelo medo, em parte pelo desejo de que alguém recebesse o castigo pela morte da Ada, e depois, ao refletir, compreendeu que não pode cometer perjúrio com uma identificação da qual não está plenamente segura. O assunto do mordomo é trágico, e sem dúvida certo, mas não guarda relação com o crime.
— Ainda pensa que o culpado é Finlay? — perguntou Charlotte em um sussurro, com rugas de inquietação na frente. — Quer dizer, as provas carecem realmente de fundamento, ou as eliminou ou invalidou seu pai?
Pitt pensou por um instante.
—Não sei — respondeu por fim. — Se tivesse que tomar uma decisão, possivelmente diria que não; mas não tenho certeza.
—É uma situação lamentável — disse Vespasia, enunciando uma verdade evidente, mas expressando ao mesmo tempo sua compaixão. — Se for inocente, ou tem um inimigo em extremo perverso, ou se produziu uma extraordinária série de coincidências que induzem a pensar em sua culpa, o que, meu querido Thomas, é muito pouco provável.
—Em efeito — concordou Pitt. — Suponho que isso me deixa na desagradável obrigação de averiguar quem são os inimigos da família FitzJames. — Exalou um suspiro. — Eu gostaria de saber ao menos se foi um inimigo do próprio Finlay ou de seu pai. Ele parece um jovem inofensivo, muito mais comum do que possivelmente desejaria...
— Muito mais — confirmou Vespasia com um irônico sorriso. — Diria que sua irmã tem maiores probabilidades de chegar a fazer algo interessante na vida, embora talvez o matrimônio se interponha em seu caminho e não se apresente sequer a oportunidade. Hoje é uma moça extremamente veleidosa e, ao que parece, não pensa mais que em divertir-se, talvez com coisas que no dia seguinte não tenham já a menor transcendência. Mas se entrega a essas frivolidades com tal ardor que talvez um dia tropece com algo que desperte seu interesse, e mude de atitude.
Charlotte abriu a boca e voltou a fechá-la.
Pitt se perguntou o que lhe tinha passado pela cabeça. Em geral, quando menos tato revelavam seus comentários, mais pertinentes eram. Perguntaria-lhe quando Vespasia partisse.
— Finlay, em troca, possui a arrogância de quem é, consciente de suas limitações —prosseguiu Vespasia, olhando ao Pitt com expressão grave —, e temem não estar à altura de suas ambições, ou das expectativas que outros têm postas neles. Quais eram os outros sócios desse infantil clube? Qualquer deles está em posição de facilitar a um joalheiro um modelo da insígnia para realizar uma cópia, e ao mesmo tempo conhece os hábitos do Finlay o suficiente para incriminá-lo com êxito.
Pitt lhe deu seus nomes.
Vespasia parecia desorientada.
— Thirlstone não me soa de nada. Conheço um James Helliwell, e pode que seu filho se chame Herbert...
— Norbert — corrigiu Pitt.
— Sim, exato. Pode ser que se chame Norbert. Mas é um indivíduo muito prosaico. Com dinheiro suficiente para sentir-se cômodo e sem a imaginação necessária para sentir-se desconfortável, a menos que se sente sobre uma tachinha. E quanto ao outro Deus sabe. O sobrenome Jones é tão frequente como Brown ou Robinson. Jago Jones poderia ser filho de qualquer deles... ou de nenhum. Pitt sorriu.
—A personalidade desse Helliwell concorda com a do homem que eu conheci, muito preocupado pela imagem que outros têm dele, em especial seus sogros, e como bem disse, começa a sentir-se muito cômodo e prefere que nada altere sua vida. Já não se mostra tão disposto a defender ao Finlay por temor a que sua má reputação o salpique. Embora certamente desejaria que deixasse de investigar sobre Finlay.
— Um possível inimigo? — perguntou Charlotte com pouca convicção.
— Não teria coragem — descartou Vespasia, olhando para Pitt com os olhos muito abertos.
— Estou de acordo — concordou Pitt, recordando o rubor do Helliwell, seu nervoso temperamento e seu manifesto desejo de desentender-se de tudo. — É evidente que carece da dignidade necessária para manter-se leal quando as coisas começam a torcer-se.
— E Thirlstone? — disse Charlotte.
— Duvido-o. — Ao mesmo tempo em que respondia, foi a sua memória o semblante apaixonado do Jago Jones. Ele sim possuía o arrojo, o ardor e a convicção necessários. Mas tinha também um motivo? Lentamente acrescentou: Acredito que devo analisar com maior vagar por que foi Ada a vítima. Por que uma prostituta do Whitechapel e não do West End? Aí é onde na aparência falha a lógica. Possivelmente exista uma razão, e se a encontramos, poderia nos levar ao culpado.
Vespasia fez gesto de ficar em pé, e Pitt se levantou imediatamente, lhe estendendo uma mão. Ela a aceitou, mas mais por cortesia que pela necessidade de apoiar-se.
— Obrigado, querido Thomas. Eu gostaria de poder dizer que parto mais tranquila, mas não é assim. — Observou ao Pitt com expressão grave, escrutinando seu olhar. — Desgraçadamente se trata de um caso muito espinhoso. Ande com cuidado. Pode ter plena confiança na honra e valentia de Cornwallis, mas suspeito que ainda reste muito por aprender da artéria da mente política. Proteja-se tanto de sua imperícia como de sua excessiva lealdade. Boa noite, queridos sobrinhos.
— Boa noite, tia Vespasia — respondeu Pitt enquanto ela se despedia de Charlotte com um beijo na face.
A seguir Vespasia, com a cabeça erguida e passo majestoso, saiu da sala em direção à porta da rua e à carruagem que a aguardava.
No dia seguinte Pitt atacou cedo suas obrigações, não com entusiasmo mas sim com renovada determinação. Ewart tinha já instruções de seguir solicitando informação sobre o Augustus e Finlay FitzJames. Tellman realizava indagações em torno dos outros sócios do clube Fogo do Inferno. Pitt, por sua parte, retornou ao Pentecost Alley para interrogar de novo às mulheres que tinham conhecido a Ada.
Não era o momento do dia mais indicado para visitá-las, mas não tinha o tempo nem a paciência para esperar até última hora da manhã, quando costumavam levantar-se da cama para iniciar a jornada.
Na oficina em frente, é claro, as costureiras costuravam afanosamente, com as portas abertas porque às nove da manhã, depois de várias horas de trabalho, começava a concentrar-se o calor.
Pitt subiu pela escada da casa de cômodos e bateu na porta. Depois de vários intentos apareceu Madge com o rosto contraído em uma careta de irritação e cansaço, seus olhos quase ocultos nas dobras de gordura de suas faces.
— Não sabe a hora que é? — protestou. — Não tem...? — Observou-o por entre as pálpebras semicerradas. — Ah, é você! O que quer a estas horas? Não tenho nada mais que lhe dizer. Nem Rose nem Nan nem Agnes tampouco.
— Talvez sim — respondeu Pitt, e tentou empurrar a porta, mas o enorme e pesado corpo da mulher era inamovível.
— Não vão pendurar a esse canalha, assim que mais importa? — disse Madge com desprezo. — Não me impressiona com seus alardes de abnegado polícia.
— Alguém matou a Ada — insistiu Pitt. — E o assassino continua em liberdade. Quer que o encontre ou não?
— Também quereria ser jovem e bonita, e ter uma casa bonita e dinheiro suficiente para comer — replicou sarcasticamente. — E a quem lhe importa o que eu queira ou deixe querer?
— Madge, não penso em partir até que averigúe tudo o que preciso saber sobre Ada — disse Pitt sem levantar a voz. — Se quer seguir fazendo seu trabalho em paz e tirar um benefício, me deixe entrar tanto se lhe parecer que serve de algo como se não.
Madge não teve que pensar muito. Cansativamente retrocedeu, abriu a porta e deu meia volta. Ouviu-o fechar com um golpe surdo e o guiou até o pequeno cômodo que usava como cozinha, sala de costura e posto de vigilância de onde permanecia atenta a qualquer briga ou chamada de socorro.
Pitt a interrogou sobre os mais ínfimos detalhes da vida da Ada. A que hora se levantava, como se vestia, quando entrava e saía, aonde ia, com quem se relacionava. Queria saber se em suas conversas tinha mencionado, embora fosse vagamente, a amigos ou inimigos, e os nomes dos clientes e possíveis aliados. Pediu-lhe deste modo uma estimativa dos ganhos da Ada a partir da roupa que levava, o modo em que se comportava e os presentes que fazia.
— Pois... — disse Madge pensativa, sentada em um tamborete com a vista fixa na mesa suja. — Quando podia permitir-se era generosa, isso terá que reconhecer-se. Qualquer um o confirmará. E nos últimos dois meses foram bem as coisas. Acabava de comprar umas botas novas no dia que a mataram, aquela mesma tarde precisamente. Estava contente e com muita alegria com suas botas. Passeou de um lado a outro do corredor para exibi-las. Recolheu a saia e me mostrou. Tinham botões de madrepérola. — Seu rosto se esticou. — Mas se esteve você aqui aquela noite, suponho que já sabia. Pitt recordou as botas, laboriosamente abotoadas entre si. Tinham um bom acabamento. Naquele momento não tinha pensado sequer em seu preço.
— Sim, lembro delas. Costumava levar calçado de tão boa qualidade?
Madge soltou uma gargalhada.
— O que vai! Arrumava-se com pouco, como todas as demais. Não, ultimamente ganhava melhor a vida, já o disse. — Entreabriu os olhos até que quase desapareceram na gordura das faces. — Ouça, não estará insinuando que fez algo que não devia para conseguir esse dinheiro?
— Não — assegurou Pitt. Apoiou os cotovelos na mesa. — Mas eu gostaria de saber de onde saiu. Essa melhoria em sua situação começou quando trocou de cafetão?
— Sim — assentiu Madge. — Por essas datas. Por quê? Bert Costigan não é melhor que o outro, se for isso o que está pensando. Sempre vai feito um figurino, mas não é precisamente um fogaréu. Nunca gostei dele. — Fez um gesto de indiferença. — Mas a verdade é que eu não gosto de nenhum cafetão. São todos uns cafajestes. Chupam o sangue. E, veja, onde estava quando Ada necessitava dele? — sorveu o nariz e as lágrimas rodaram lentamente por suas enormes faces. — Vai saber! Aqui não, certamente.
A seguir Pitt despertou ao Rose e Nan e lhes formulou as mesmas perguntas, obtendo as mesmas respostas. A essa hora Agnes se havia já levantado, e respondeu também ao interrogatório, mas não contribuiu com novidade alguma ao que Pitt já sabia, salvo quando lhe pediu uma descrição física da Ada, cujo rosto ele só tinha visto desfigurado pela morte. Suas hesitantes palavras não foram de grande utilidade, mas Pitt descobriu que possuía uma mão ágil para o desenho, e em um momento realizou um esboço que era uma caricatura mais que um retrato, mas era em extremo gráfico. Nele se adivinhava a personalidade de uma mulher com senso de humor, e inclusive corajosa. O desenho estava cheio de vida, apesar de ter como fundo as linhas do papel pautado de seu caderno. Pitt pôde perceber seu andar, o ângulo de sua cabeça e até sua voz. Isso dava uma cor ainda mais amarga a sua morte, e imaginar sua tortura era quase insuportável.
Retornou ao Bow Street, e por volta das seis comeu um sanduíche frio de carne de cordeiro acompanhado de uma taça de chá. Passou a limpo as notas que tinha tomado, ordenando-as meticulosamente, e começou a vislumbrar certas rotinas no comportamento da Ada. Principalmente trabalhava em seu setor do Old Montague Street e Whitechapel Road a primeiras horas da noite e às vezes até mais tarde, mas com certa regularidade se ausentava do bairro, e sempre em horários muito propícios para seu trabalho em que teria cabido esperar que aproveitasse plenamente as oportunidades.
Imediatamente foi a sua mente uma possível explicação. Transladava-se a uma zona mais lucrativa. Devia-se isso à influência do Albert Costigan, um homem mais ambicioso, e ela se prestou de boa vontade a melhorar sua situação? Cabia a possibilidade de que tivesse conhecido assim a algum dos inimigos do Finlay ou seu pai? Valia a pena investigar nessa direção?
Até o momento nem Tellman nem Ewart tinham descoberto nada significativo.
Pitt dedicou essa noite e as duas seguintes a perambular pelos principais núcleos de prostituição do West End: Windmill Street, Haymarket, Leicester Square e as ruas e becos adjacentes. Viu milhares de mulheres como Ada, umas vistosamente embelezadas, exibindo—se como perus reais, outras um pouco mais discretas e outras vestidas pouco menos que com farrapos. A muitas delas inclusive a tênue luz das luzes de gás, via-as já envelhecidas, com o rosto gasto e a carne flácida. Algumas possuíam ainda o viço próprio das camponesas, sem dúvida as recém chegadas, que tinham ido à cidade procurando fortuna e a tinham encontrado na fornicação apressada em quartinhos de má fama com desconhecidos frequentemente da idade de seus pais ou inclusive de seus avós.
E havia também meninas, de oito ou dez anos, que corriam atrás dos homens. Puxavam-os pela manga, e lhes sussurravam obscenidades ou lhes mostravam acidentadas fotografias pornográficas com a esperança de despertar seu interesse.
Junto a elas desfilava o público dos teatros, mulheres respeitáveis ou inclusive enriquecidas damas agarradas ao braço de seus maridos, antes ou depois de assistir a uma função. Pitt recorreu a todos seus contatos nas casas de entrevistas, fanfarrões e madamas que conhecia, mas ninguém admitiu reconhecê-la pelo desenho, e seu nome só soava a uns quantos de por tê-lo ouvido na imprensa ao aparecer a notícia de sua morte. Dado que não se fizera pública a conexão do Finlay FitzJames com o assassinato, os jornais não lhe tinham emprestado atenção. Ninguém estava informado das fraturas dos dedos das mãos e os pés salvo Lennox, Ewart, Cornwallis e ele. Já quase se dera por vencido quando lhe ocorreu experimentar nas imediações do Hyde Park. Ainda tinha um contato ao que acudir, um personagem enorme, ufano e rasteiro conhecido como George o Gordo. Controlava a suas prostitutas com mão de ferro e a permanente ameaça de seu braço direito, Georgie o Figurinha, um miúdo relaxado e com um humor de cães que à mínima tirava uma navalha de folha longa e fina que sempre levava consigo.
Encontrou ao George o Gordo em seu domicílio, uma casa de amplas proporções e provida de todas as comodidades a um passo do Inverness Terrace.
George o Gordo não se levantou; seu descomunal corpo se achava virtualmente encaixado na poltrona. O dia era quente, e levava uma folgada camisa recém lavada, em cujo colarinho posavam seus cachos cinza e gordurentos.
— Vá, senhor Pitt! — disse com sua voz sussurante e entrecortada. — O que o traz por aqui com tanta urgência? Deve tratar-se de algo muito importante para você. Sente-se, Sente-se. Não nos víamos desde aquele desagradável assunto no parque. E lhe levou seu tempo resolvê-lo. Não esteve você muito sagaz, senhor Pitt. Nem muito eficiente. — Moveu a cabeça em um gesto de repulsa, e os cachos lhe meteram no pescoço da camisa. — Não pagamos à polícia para isso. Supõe-se que velam por nossa segurança, senhor Pitt. Teríamos que poder dormir tranquilos em nossas camas, sabendo que estão vocês fora nos protegendo. — Se havia humor em seu olhar, não era perceptível.
— Só podemos resolver os crimes quando se produziram, George, não antes — respondeu Pitt, e tomou assento. — Nesta zona se cometeram muitos que você poderia ter evitado. — Entregando-lhe o desenho de Agnes, perguntou: Sabe algo desta mulher?
George o Gordo segurou a folha em sua mão pálida e sardenta, de dedos tão inchados que os ossos eram invisíveis.
— Sim, vi-a alguma vez — respondeu ao cabo de uns segundos. — Uma garota esperta e ambiciosa. Não me teria importado tê-la sob minha tutela, mas é ambiciosa. Quer ficar com todo o dinheiro que saca, e isso é perigoso, senhor Pitt, muito perigoso. É acaso a que mataram no Whitechapel? Via-se vir. Provavelmente não terá que ir muito longe para achar ao culpado, senhor Pitt.
— Ah, não?
— Não é você muito sagaz, senhor Pitt. — George moveu a cabeça e fez uma careta de decepção. — Está perdendo faculdades, temo. Meça a seu cafetão, um tal Costigan, conforme ouvi.
— Assombra-me esse espírito cívico, George — disse Pitt ironicamente —, e mais ainda a rapidez com que delatou a um dos seus.
— Esse tipo é uma desonra para mim — sussurrou George com tom sentencioso. — um pouco de disciplina não é demais. É conveniente para fazer-se respeitar. Se não, as garotas nos enganariam continuamente. Mas estrangulá-la é passar-se dos limites. Quando ocorrem essas coisas, vem por aqui gente como você, e é muito chato.
Tossiu, e seu enorme peito congestionado retumbou. Na sala fazia calor e as altas janelas estavam fechadas, criando um ambiente rançoso em apesar das cores frias, elegantes linhas e a meia dúzia de palmeiras em vasos de barro distribuídos por vários lugares.
— E por que Costigan não se limitou a castigá-la? — perguntou Pitt com as sobrancelhas arqueadas. — Matá-la ia contra seus próprios interesses. Só um néscio sacrifica seu gado. George fez uma careta de desagrado.
— Isso é uma maneira muito crua de expressar, senhor Pitt, francamente crua.
— A realidade dessas mulheres não é menos crua, George. O que o leva a pensar que esse tal Costigan sabia que Ada vinha em segredo a esta zona de vez em quando e ficava com os lucros?
George o Gordo deu de ombros, e um tremor percorreu toda a gordura de seu corpo como as ondas de um lago.
— Possivelmente a seguiu, coisa bastante comum.
— Se a tivesse seguido — argumentou Pitt —, teria se informado já a primeira vez que ela escapou do Whitechapel, e isso fazia já há várias semanas.
— Como vou eu saber? —disse George, erguendo a vista ao teto.
— Talvez alguém informou ao Costigan — sugeriu Pitt, escrutinando o rosto do George. Advertiu uma leve piscada, uma ligeira tensão na pele amarelada, mas para ele foi já suficiente. — Disse você, não é, George? — Não era uma pergunta, mas uma afirmação. — Ada McKinley veio a seu território, mas também se negou a pagar a você, e em lugar de deixar ao Georgie o Figurinha e arriscar-se a posteriores aborrecimentos, informou ao cafetão da Ada para que ele solucionasse o problema. Só que Costigan foi a mão. A culpa não é dela, naturalmente — acrescentou com tom cáustico. — Quando informou ao Costigan?
O ambiente começava a ser sufocante, como em uma selva.
George ergueu as cinzas.
— No mesmo dia que foi assassinada, mas a mim não pode me atribuir nada, senhor Pitt. Está empregando um tom muito pouco correto; em realidade, muito injusto. É você um homem injusto, senhor Pitt, e isso não está bem. Caberia esperar que a polícia fosse justa. Se a própria justiça não...
Pitt ficou em pé e olhou ao George, o Gordo com tal desprezo que este deixou incompleta a frase.
— Costigan é um problema para você, não? — disse Pitt com ira. — Uma ameaça?
— Eu não diria tanto.
George, o Gordo tentou rir, mas só conseguiu emitir um fôlego, e acabou tossindo de novo em meio de violentas sacudidas.
Pitt não sentiu a menor lástima por ele. Deu meia volta e saiu. George ficou em sua poltrona, arroxeado por falta de ar e furioso.
Pitt levou o agente Binns quando foi ver o Albert Costigan aquela tarde. Binns conhecia a zona e o achou sem dificuldade no piso que tinha alugado no Plumbers Row, muito perto do Pentecost Alley, do outro lado do Whitechapel Road. Por fora o edifício era estreito e cinza, como as demais casas de vizinhança do bairro, mas o piso estava bem mobiliado e era inclusive confortável. Costigan gostava de viver bem, e seus caros gostos ficavam manifesto em certos detalhes: abajures de gás de cristal esculpido, um tapete novo, uma preciosa mesa dobradiça de carvalho.
Costigan era um homem de estatura média, olhos grandes e azuis, nariz bem formado e dentes brancos. Tinha o cabelo castanho e encaracolado e o tinha penteado para trás. A simples vista, se a pessoa não reparasse em sua expressão defensiva e ressentida e a agressiva inclinação de seu corpo, apresentava certo semelhança com Finlay FitzJames. Se o acaso lhe tivesse proporcionado a mesma riqueza, boas maneiras e segurança em si mesmo, poderiam ter passado por parentes.
Pitt não tinha provas contra Costigan, salvo a declaração do George o Gordo, que nada equivalia a testemunho. Era a palavra de um cafetão contra a de outro. E até se revistassem o piso do Costigan, dificilmente achariam algo útil. Era natural que tivesse os efeitos pessoais da Ada, e podia explicar-se facilmente.
— Ainda andam procurando o assassino da pobre Ada? — disse Costigan com tom acusador. Com visível desprezo, acrescentou: Não acharam nada, suponho.
— Bom, em realidade tenho algumas ideias — respondeu Pitt, e se sentou na poltrona maior e cômoda, deixando ao Binns de pé junto à porta.
Costigan também permaneceu direito, observando ao Pitt com ressentimento.
— Ah, sim? Que ideias?
— Chegamos à conclusão de que sua morte está relacionado com suas visitas ao Hyde Park, onde tinha começado a trabalhar recentemente — respondeu Pitt.
Costigan deixou de deslocar o peso do corpo de um a outro pé e olhou fixamente ao Pitt.
— De onde tirou que trabalhava ali? Disse isso por acaso?
— Não irá dizer me que não sabia? — perguntou Pitt com fingida inocência. — Sua eficácia deixa muito que desejar, senhor Costigan. Uma de suas garotas vai aos bairros altos da cidade, faz ali uma clientela, e você não se inteira? Nesse caso, imagino que não via nem a metade do dinheiro que ganhava. — Sorriu. — mais de um riria a sua custa se corresse a voz.
—Claro que sabia! —apressou-se a dizer Costigan, levantando um pouco o queixo. — Toma-me por idiota? Se alguma me enganasse assim, moía-a a pauladas. Mas não a mataria. Isso seria uma estupidez. Uma garota morta não pode vender-se, não?
Não afastava de Pitt seu intenso olhar, agressivo e triunfal, como se tivesse ganho um combate entre ambos.
Pitt deu uma olhada à habitação e olhou de novo ao Costigan. Era evidente que tinha ganho bastante dinheiro com alguma das garotas. Podia estar dizendo a verdade. A única prova contra era a declaração do George o Gordo, e isso podia ser uma patranha concebida com a simples intenção de prejudicar a um rival.
— Enviou a alguma outra garota a essa zona? — perguntou Pitt, perdendo as esperanças por momentos.
Costigan titubeou, tentando decidir se lhe convinha ou não mentir.
— Não. Só a Ada. Ela tinha classe — respondeu por fim. Parecia lamentar—se de sua sorte. Lançou um breve olhar ao Binns, que anotava tudo o que dizia.
—Classe? —repetiu Pitt com expressão dúbia.
—Sim! —Costigan jogou para frente a cabeça. — Vestia-se bem. Penteava-se bem. Sabia fazer os homens rirem, e isso gostam os clientes. Há garotas muito bonitas, mas sem cérebro. Ada era inteligente e falava com graça. — Endireitou os ombros, jactancioso, sem deixar de olhar ao Pitt. — E como já lhe disse, Vestia-se bem. Não desafinava nessas zonas. Outras fulanas de por aqui, em troca, não têm a mais remota ideia de como é uma dama.
Binns deixou escapar um grunhido.
Costigan o interpretou como incredulidade.
— Ada sabia, e muito bem! — insistiu irado. — Tinha um vestido vermelho e negro tão fino como o de qualquer das fulanas do Haymarket, e umas botas novas com botões de madrepérola. Custam uma fortuna, umas botas assim. As fulanas deste bairro não têm nada nem remotamente parecido.
— Umas botas? — repetiu Pitt lentamente, pressentindo com súbita exaltação a iminente tragédia.
— Sim, umas botas — replicou Costigan sem dar-se conta do que havia dito.
— Quando viu essas botas, senhor Costigan? — perguntou Pitt, lançando um fugaz olhar ao Binns para assegurar-se de que anotava até a última palavra.
—O que? Não sei. Por quê?
—Pense! —ordenou Pitt. — Quando viu essas botas?
—Que importa? Vi-as, e já está — disse Costigan, agora com o rosto avermelhado e os olhos brilhantes. Tinha os punhos apertados aos flancos e um fino filme de suor sobre o lábio superior.
—Não duvido que as viu — respondeu Pitt. — E acredito que foi você aos arredores do Hyde Park, possivelmente com vistas a introduzir a suas garotas na zona, ou possivelmente porque suspeitava já que Ada trabalhava ali por sua conta de vez em quando, e ali se encontrou com George o Gordo. E George lhe confirmou que Ada rondava efetivamente por aquelas ruas, e ao que parece com bastante êxito. Você compreendeu que o enganava e voltou aqui para encarar-se com ela. Ada lhe disse que não o necessitava, e que se queria sua parte, podia esperar sentado. Você tentou lhe fazer um pouco de dano para que aprendesse a lição, mas ela o desafiou. Você perdeu as estribeiras e na discussão a matou. Possivelmente não era sua intenção a princípio, mas tinha o orgulho ferido. Possivelmente Ada riu de você em sua cara. Agarrou-a pelo pescoço, apertou muito, e quando se deu conta, estava já morta.
Costigan o olhava fixamente, mudo de estupefação, com o rosto contraído pelo medo.
— E quando viu que estava morta — prosseguiu Pitt —, pôs-lhe uma liga no braço e abotoou entre si as botas novas, para simular que tinha sido um cliente com inclinações fetichistas, atraído pelo sadismo ou rituais. Depois partiu.
Costigan engolia em seco convulsivamente. Tinha a boca e os lábios secos, e o rosto lívido.
—Viram-no no lugar do crime — continuou Pitt, desejando já acabar quanto antes. — Provavelmente se perguntarmos ao Rose Burke, identificará-o. E possivelmente Nan Sullivan recorde sua jaqueta. Foi costureira e tem bom olho para os tecidos. Albert Costigan, fica você detido pelo assassinato da Ada McKinley.
Costigan deixou escapar o ar dos pulmões em um grito abafado de desespero e desabou em uma cadeira, ainda incapaz de articular palavra por causa do horror.
—Graças a Deus! — exclamou Cornwallis, reclinando-se na cadeira do camarote do teatro e voltando-se para o Pitt.
Charlotte e sua mãe, Caroline, achavam-se no lado oposto do camarote, apoiadas no corrimão para observar as idas e vindas das pessoas na platéia. Estavam no intervalo. O novo marido do Caroline, Joshua Fielding, era a estrela da função. Pitt tinha albergado certas dúvidas sobre a reação do Cornwallis ante a notícia de que a sogra de Pitt se casara em segundas núpcias, e com um ator muito mais jovem que ela. Mas se Cornwallis havia sentido a menor estranheza, era muito cortês para exteriorizá-la.
Tampouco era fácil adivinhar o que opinava da obra, um drama em extremo comovedor e audaz que expunha vários temas polêmicos. Se Pitt o tivesse sabido antes, não teria convidado a seu superior. Com o Micah Drummond era diferente. Pitt conhecia bem tanto suas paixões como suas fraquezas e sabia o que o ofendia e que não. Cornwallis era ainda um desconhecido para ele. Tinham compartilhado poucas experiências, em realidade só aquele caso, que ao final tinha sido bastante comum e não tinha proporcionado nenhum dos perigos que inicialmente pressagiava. De fato a intervenção do Pitt não teria sido necessária, mas isso a princípio ninguém sabia.
Cornwallis passou a mão pela calva e esboçou um lastimoso sorriso.
— Admito que temia o pior deste caso — disse com um suspiro de alívio. — foi uma grande sorte que tudo tenha ficado em um assunto entre essa pobre mulher e seu cafetão, em certo sentido uma simples disputa familiar, por assim dizer.
Finas rugas sulcavam sua fronte. Não parecia tão relaxado como suas palavras davam a entender. Ia impecavelmente vestido com traje de gala e camisa branca, mas se apreciava tensão em seu corpo debaixo dessa elegante indumentária, como se não se sentisse de tudo cômodo.
Charlotte e Caroline continuavam sobre o corrimão do camarote.
— Foi só uma desgraçada coincidência que as suspeitas recaíssem no FitzJames? —perguntou Cornwallis em voz baixa para que ninguém o ouvisse. Deu a impressão de que não desejava falar do assunto, mas se sentia obrigado.
— Não acredito nessa espécie de coincidências — respondeu Pitt pensativamente. Também ele tinha experimentado alívio quando ao final se demonstrou tão facilmente que Costigan era o autor do crime, mas certos aspectos do caso continuavam inquietando-o, dúvidas que a detenção e processamento do Costigan não tinham dissipado.
— Qual era a insígnia autêntica? — perguntou Cornwallis como se lhe adivinhasse o pensamento. — A primeira ou a segunda? Ou o eram ambas, no sentido de que FitzJames encomendou as duas?
No camarote contíguo se ouviram risadas e uma exclamação de surpresa. Um rumor de vozes flutuava no ambiente.
— Não sei — respondeu Pitt. — Das insígnias originais as encarregou Helliwell, mas assegura que não recorda o nome do joalheiro e que não achou a sua.
— E os outros dois sócios? — insistiu Cornwallis.
— Sustentam igualmente que desconhecem o nome do joalheiro e não conservam suas insígnias. — Pitt se encolheu de ombros. — Não obstante, suspeito que FitzJames encarregou a segunda para demonstrar sua inocência, ou pelo menos para semear dúvidas sobre sua culpa.
— Assim, a insígnia que apareceu no Pentecost Alley era sua? —apressou-se a conjeturar Cornwallis, virando—se para olhar ao Pitt no rosto e abandonando todo esforço por aparentar naturalidade. — Que relação guarda isso com o Costigan? Não entendo isso.
—Eu tampouco — admitiu Pitt.
Dispunha-se a continuar quando bateram na porta do camarote, e um momento depois entrou Micah Drummond. Saudou a Charlotte e Caroline e, concluídas as formalidades, voltou-separa o Pitt e Cornwallis. Era um homem alto e magro de rosto aquilino e afável. As boas maneiras e o enraizado hábito do comando mascaravam seu inato acanhamento.
—Parabéns — disse a ambos afetuosamente. — Um caso com muitas probabilidades de causar graves transtornos resolvido da maneira mais simples possível, e além disso mantendo-o em sua maior parte oculto à imprensa, o que tem ainda mais mérito. Ouvi dizer que FitzJames está muito satisfeito. — Pôs-se a rir. — Suponho que usar a palavra "agradecido" com um homem como esse seria exagerado, mas o recordará. No futuro poderia ser um bom aliado.
—Só se nosso inimigos som também os seus —matizou Cornwallis com aspereza. — É dessa classe de homens que recordam as ofensas e esquecem os serviços. E não é que hajamos resolvido o caso com a intenção de lhe fazer um serviço —acrescentou imediatamente. — Se Pitt tivesse demonstrado que seu filho era culpado, o teria feito deter sem a menor vacilação como ao Costigan ou qualquer outro.
Micah Drummond sorriu.
—Não o duvido. Mesmo assim, agrada—me que não tenha sido necessário. — Olhou brevemente ao Pitt e logo depois de novo ao Cornwallis. — Nada pode fazer-se se uma tragédia cai sobre uma família proeminente, mas confrontar essas situações é sempre uma tarefa ingrata.
Pitt recordou a tragédia que tinha aflito a Eleanor Byam, a segunda esposa do Drummond. A tensão e a dor daquela experiência, o terrível final, e os esforços do Pitt por compreender as emoções do Drummond tinham forjado entre eles um laço que não existia ainda na relação do Pitt com o Cornwallis, apesar do profundo respeito que lhe inspirava.
Drummond se voltou para cruzar algumas palavras com Charlotte e felicitar Caroline pela interpretação do Joshua, e a seguir se desculpou e saiu do camarote.
Pitt olhou ao Cornwallis, e se dispunha a reatar a anterior conversa quando de novo se ouviram uns suaves golpes na porta, e entrou Vespasia com a cabeça erguida e senhoriais gestos. Estava deslumbrante. Tinha decidido converter o acontecimento em uma grande ocasião, e exibia um vestido de seda de cores azul lavanda e cinza metálico. Em outra mulher teria sido frio, mas nela, com seu cabelo prateado e diamantes nas orelhas e pescoço, sentava—lhe magnificamente.
Pitt e Cornwallis ficaram em pé imediatamente.
— Fascinante, querida — disse Vespasia ao Caroline. — É um homem cativante, e que presença!
Caroline se ruborizou, e ao dar-se conta disso, ruborizou-se mais ainda.
— Obrigada — respondeu quase titubeando. — Acredito que é uma boa interpretação.
— É uma interpretação excelente — corrigiu Vespasia com tom de repreensão. — Esse papel poderia ter sido escrito para ele. E mais, certamente assim foi. Boa noite, Charlotte. Boa noite, Thomas. Estará satisfeito? Boa noite, John.
— Boa noite, lady Vespasia — saudou Cornwallis com uma ligeira reverência.
Parecia ao mesmo tempo agradado e desconfortável. Pitt o observou de soslaio e adivinhou por sua expressão que estava já informado de que Vespasia tinha certo grau de parentesco ao menos com a Charlotte. Não lhe surpreendeu vê-la entrar no camarote, como do contrário teria ocorrido.
—Extraordinário — prosseguiu Vespasia, erguendo levemente um ombro e sem explicar a que se referia. Voltou-separa o Caroline com um encantador sorriso. — Me alegro de ter vindo. Não vá pensar nem por indício que estou aqui porque a única alternativa era a ópera, que hoje oferecia algo wagneriano e opressivamente solene relacionado com os deuses e o destino. Eu prefiro esses amores impossíveis em italiano, que tratam sobre as fraquezas humanas, tema que entendo, e não sobre o destino, pelo que não entendo, ou a predestinação, em que não acredito. Nego-me a acreditar nisso. Priva à humanidade de sua própria essência, se é que algum valor tem.
Caroline abriu a boca para fazer algum comentário cortês, mas desistiu. Não era necessário, e ninguém o esperava, menos ainda Vespasia.
— Por outra parte, não teria resistido ver pavonear-se ao Augustus FitzJames — prosseguiu Vespasia. — Ignoro se realmente lhe interessa Wagner ou se simplesmente o considera a máxima expressão do bom gosto nestes tempos, mas não perde uma só de suas óperas, e sempre assiste a noite da estréia com sua esposa pelo braço, que leva ao redor do pescoço meia mina de diamantes sul-africanos. A mera visão de seu rosto seria pior que ouvir durante quatro horas os alaridos da Brunilda ou Siglinda ou Isolda ou quem é. Embora tivesse sido interessante ver se entre o público há alguém com o humor especialmente azedo.
— Mas como? — perguntou Pitt, confuso. Vespasia lhe dirigiu um sombrio olhar.
— Bem sabe, querido Thomas, que alguém pôs todo seu empenho em afundar à família FitzJames e obviamente fracassou. Possivelmente esse desgraçado indivíduo, Costigan, matou com efeito à moça, mas acha sinceramente que foi sua ideia implicar ao jovem FitzJames? De onde ia tirar um homem assim a insígnia e a abotoadura? Parece-lhe que poderia existir alguma relação entre ele e Finlay FitzJames? — Não o perguntava com sarcasmo; simplesmente considerava a possibilidade.
— Não sei — respondeu Pitt. — É improvável, mas ficaram muitas dúvidas por esclarecer. Amanhã interrogarei de novo ao Costigan. Pelo que de momento sabemos, dá a impressão que Finlay FitzJames não teve nada que ver com o crime, nem direta nem indiretamente.
— Por que, pois, estavam ali sua insígnia e sua abotoadura? —perguntou Charlotte com curiosidade. — Pensa que os roubou Ada?
— Não sei — repetiu Pitt. — Possivelmente Finlay ou alguma outra pessoa os perdeu ali tempo atrás. —A imagem do Jago Jones passou fugazmente por sua cabeça, lhe deixando um intenso mal-estar.
— Eu gostaria de pensar que tudo foi uma desafortunada coincidência — disse Vespasia, negando de uma vez com a cabeça. — Ou isso acredito. Embora o certo é que considero o Augustus FitzJames o homem mais desagradável que conheço. Há muitos aspectos dele que não compreendo, mas me consta que tem alma de cafetão. ouviu-se o primeiro toque de campainha de aviso, e se abriram as portas de vários camarotes. Uma dúzia de mulheres iniciaram um desfile de sedas de cores. Uma vintena de homens se levantou, e o público retornou lentamente a suas poltronas. O ruído de vozes se reduziu a um murmúrio intermitente. Vespasia sorriu.
— Foi um prazer vê-los, mas por uma vez vim ao teatro principalmente pela representação. Proponho-me estar em meu assento quando voltar a levantar o pano de fundo.
Dito isto, despediu-se e saiu do camarote deixando detrás de si o sussurro da seda e um aroma de jasmim.
Cornwallis se sentou e se voltou para o Pitt.
— Temos que averiguar de onde procediam esses objetos do FitzJames e como chegaram ao quarto da Ada — disse com voz quase inaudível. — Agora que Costigan foi acusado do crime, FitzJames quererá saber quem tentou implicá-lo e se para isso se valeu do Costigan. Seu trabalho não terminou, temo. — Franziu o sobrecenho e se inclinou um pouco mais para o Pitt quando as luzes se apagaram. — As probabilidades de que alguém acreditasse que FitzJames tinha estado em um lugar como Pentecost Alley eram quase nulas. Para começar, como sabia esse suposto inimigo que FitzJames não teria álibi para essa noite? A maioria dos homens de sua idade e classe social passam as noites em companhia. A probabilidade de que estivesse só ou não recordasse onde tinha estado era... não sei... uma entre cem. —Baixou ainda mais a voz ao levantar o pano de fundo no cenário. — Tenho o desgraçado pressentimento, Pitt, de que isso foi obra de alguém próximo a ele. E melhor será que averigúe, na medida do possível, qual das duas insígnias era a original. — Suspirou. — E se Finlay encarregou a segunda insígnia, ou seu pai decide esquecer o assunto, não poderemos fazer nada de todo modo. — Em seu tom de voz se percebia ira e pesar. Não precisava dizer até que ponto lhe incomodava ter que renunciar assim a seus princípios. A conversa devia interromper-se pela obrigada cortesia de atender ao segundo ato da obra. Do contrário teriam ferido os sentimentos do Caroline. Dispuseram-se a desfrutar da representação, Charlotte olhando ao Pitt com visível desassossego, Caroline absorta no cenário, e Cornwallis reclinado na cadeira, sua testa limpa de rugas, o caso do Pentecost Alley momentaneamente esquecido.
—Não sei! — disse Costigan, desesperado. — Não sei nada disso! Estava sentado em sua cela do Newgate, e Pitt, de pé junto à porta, observava-o perguntando-se se dizia a verdade ou continuava mentindo, fosse por hábito, ou pela vaga esperança de evitar o castigo. Em qualquer caso, de nada lhe serviria. Iria à forca por ter assassinado a Ada. Todo o resto simplesmente constaria na ata, para resolver o resto do mistério.
Sua figura encurvada e abatida parecia muito menor sem sua roupa elegante e sua camisa engomada. Nesse momento levava uma jaqueta cinza velha e enrugada, como se não se incomodasse em pendurá-la ao deitar-se. Contemplando-o, Pitt se sentia incapaz de lhe expor cruamente a verdade. Mas ocultar a era uma estupidez. Já devia saber o que lhe esperava. Do momento em que admitiu ter visto as botas, sua sorte estava lançada. Não tinha escapatória, e o tinha compreendido imediatamente, com todas suas consequências, ao ver o rosto do Pitt e dar-se conta de que se delatara.
Mesmo assim, essa mesma verdade, ao expressar-se com palavras, entrava em um nível diferente de realidade, e toda esperança se desvanecia, inclusive a possibilidade de negar-se a confrontar os fatos.
—Não sei — repetiu Costigan com a vista fixa no chão entre seus pés. — Nunca vi essa condenada insígnia, e tampouco a abotoadura. Juro-o Por Deus.
— A abotoadura estava entre a almofada e o espaldar da cadeira — admitiu Pitt. — Mas a insígnia apareceu na cama, debaixo do cadáver. Vamos, Costigan! Quanto tempo podia levar ali sem que ninguém o notasse? Tem um afiado alfinete de um dedo de comprimento.
Costigan ergueu a cabeça.
— Então foi seu último cliente! Tem lógica. Como ia eu saber de onde saiu? Possivelmente o cliente a mostrou? Ou a mostrou Ada a ele, para alardear de como a tinha roubado?
Pitt refletiu por um momento. A primeira sugestão era improvável, porque teria sido uma extraordinária coincidência que alguém deixasse os objetos do Finlay no quarto de Ada precisamente na noite que foi assassinada, e pelo Costigan, sem premeditação. Era impossível prever que Costigan descobriria que ela o enganava e perderia as estribeiras.
Ou era possível? Poderia alguém ter pagado ao George o Gordo para que informasse ao Costigan aquele dia em concreto? E ter seguido depois ao Costigan até o Whitechapel para ver que fazia e...
— O que? — perguntou Costigan, observando com atenção o rosto do Pitt. — O que lhe passou pela cabeça? O que sabe?
Não. Nenhum homem podendo e inteligência, por grande que fosse seu ódio por FitzJames, arriscaria-se a ficar a mercê do George o Gordo utilizando-o com esse fim. Era um plano muito arrevesado, dependia de muita gente: George, o Gordo, o próprio Costigan, e uma terceira pessoa que colocasse as provas no quarto. Era muito perigoso.
—Nada — respondeu. — Ada roubava? Sugeriu que possivelmente estava lhe mostrando a insígnia a um cliente. Não lhe ensinou que não devia roubar? Não é bom para o negócio. Costigan o olhou, pálido e assustado.
— Sim, claro que o ensinei. Mas isso não quer dizer que ela seguisse sempre meus conselhos, não lhe parece? Também lhe ensinei que não devia me enganar, e já vê o que fez. A grande estúpida!
Em seu rosto apareceu uma expressão de pesar que não era só autocompaixão. Apreciava-se também verdadeira tristeza. Possivelmente a velha Madge estava certa, e Costigan se sentia atraído por Ada, ou talvez inclusive lhe tinha carinho. Nesse caso a traição lhe teria doído mais; teria sido uma questão pessoal, e não um simples problema de dinheiro. Explicaria por que tinha reagido de maneira tão violenta, assaltado sem dúvida pela sensação de que emoções que estranha vez se permitia se voltavam contra ele. Tinha sido realmente uma disputa familiar.
— Sabe se Ada tinha roubado antes? — perguntou Pitt, já sem a crispação da ira na voz. Costigan olhava de novo ao chão.
— Não. Ada era preparada, muito esperta para roubar a um cliente. Tratava-os bem. Muitos deles voltavam de vez em quando. Era uma garota divertida. Os fazia rir. Tinha classe. — As lágrimas inundaram seus olhos e caíram por suas faces. — Era boa no seu trabalho, a grande estúpida. Eu gostava. Não deveria me haver enganado. Dava-me bem com ela. Por que me obrigou a fazer uma coisa assim? Agora estamos os dois acabados.
Pitt sentia lástima. Era uma absurda tragédia provocada pela cobiça e os sentimentos feridos, e pelo temperamento acelerado de um néscio cujas ambições excediam sua aptidão. E os dois tinham sido utilizados por um homem mais ardiloso e cruel, George o Gordo, possivelmente incitado por outro homem ainda mais sagaz e desumano.
— Conhece o FitzJames? — perguntou.
— Não — respondeu Costigan, muito imerso em sua desdita para enfurecer—se. Nem sequer levantou a vista. Já tudo lhe era indiferente.
— Alguém lhe mencionou seu nome alguma vez? Pense!
— Ninguém salvo você — disse Costigan com aborrecimento. — por que tem tanto interesse no FitzJames? Não sei de onde saíram a insígnia e a abotoadura que havia no quarto da Ada. Suponho que alguém os roubou e os deixou ali. Como vou eu saber? vá perguntar a seus amigos, ou seus inimigos. Eu só sei que não os vi nunca.
Pitt não pôde lhe surrupiar nada mais. Não havia castigo pior que o que estava já destinado a receber, nem recompensa que pudesse ter a menor utilidade para ele. À parte, Pitt estava convencido de que isso era tudo o que sabia.
Saiu do úmido edifício de pedra do Newgate e o envolveu o calor daquela tarde de agosto. Entretanto sua sensação de frio demorou longo momento a desaparecer, o profundo frio interior experimentado ante o desespero e um sofrimento inimaginável.
Às cinco e meia Pitt chegou em Devonshire Street e comunicou ao cordial mordomo seu desejo de falar com o senhor Finlay FitzJames. Foi concedido imediatamente, e o mordomo o guiou pelo lustroso assoalho até o gabinete, onde o esperavam Finlay e Augustus, sentados junto à janela aberta que dava ao jardim. além do matagal de caules e flores das madressilvas se entrevia-se o vestido de musselina clara de Tallulah, que se balançava em um balanço com os olhos fechados e o rosto levantado para o sol, algo insólito em uma mulher. Não era estranho que tivesse mais cor na tez do que se considerava apropriado.
— Algo mais, delegado? — perguntou Augustus com curiosidade. Fechou seu livro, um volumoso tomo cujo título, escrito em letras muito pequenas, Pitt não conseguiu ler, e o deixou sobre o regaço para reatar em seguida a leitura.
— Só alguns detalhes — respondeu Pitt, olhando ao Finlay, que o observava com interesse. Com o Costigan detido e acusado do crime, mostrava uma total tranquilidade, e inclusive sua costumeira arrogância. Vestia de maneira informal, levava o cabelo penteado para trás em espessas ondas, e mantinha uma expressão cortês e confiante.
— Por que veio, pois, senhor Pitt? — perguntou, sem mover-se nem oferecer assento ao Pitt. — Não sabemos nada absolutamente desse lamentável assunto, o que, como recordará, é precisamente o que lhe dissemos já no primeiro momento. Estou seguro de que nem meu pai nem eu desejamos conhecer passo a passo os avanços da investigação, se é que os há. De fato é tudo muito comum, e bastante sórdido.
—É sórdido — admitiu Pitt, profundamente aborrecido pela arrogância do Finlay, que parecia desprezá-lo mais do que ele mesmo tinha desprezado a Costigan. Tomou assento por própria iniciativa e acrescentou: Mas não tem nada de comum. Ao contrário, é em extremo inusitado.
— Inusitado? — repetiu Finlay, arqueando as sobrancelhas. — Pensava que as prostitutas eram frequentemente maltratadas ou assassinadas, especialmente no East End.
Pitt conseguiu com muita dificuldade evitar que a ira que sentia se refletisse em sua voz. A indiferença ante a morte o indignava, a morte de qualquer um, da Ada, do Costigan, de qualquer um.
— Essa espécie de motivos é bastante comum, senhor FitzJames. — Embora procurasse falar com um tom neutro, um acento de sarcasmo se filtrou em sua voz. — Mas é assombroso achar no cenário de um crime dessas características efeitos pessoais de um homem como você, quando não existe conexão alguma com a vítima ou o delito.
— Pois bem, delegado, como você sabe, eu não tenho conexão alguma com esse fato. —Finlay sorria com expressão radiante. — Matou-a seu cafetão. Achava que isso estava já fora de toda dúvida. E se tiver vindo me perguntar como foi parar ali uma insígnia parecida com a minha, não sabia ao princípio e continuo sem saber agora.
Pitt apertou os dentes.
— E não o preocupa? — perguntou com a vista fixa em seu atraente rosto e seu ufano olhar de desdém. — A insígnia estava na cama, com o alfinete aberto. Não podia estar ali muito tempo, meia hora no máximo.
— Se insinua que Finlay esteve ali meia hora antes do assassinato — o interrompeu Augustus com frieza—, não só está equivocado, delegado, mas além disso é também um impertinente, e começa a abusar de sua autoridade e de nossa boa vontade.
— Nada mais longe de minha mente — respondeu Pitt. Possivelmente Finlay desconhecia o motivo de sua visita, mas certamente Augustus o tinha adivinhado já. por que, pois, fingia irritação e ignorância? Pitt não esperava seu agradecimento, mas tampouco aquela afetação. — Não tenho razões para duvidar da palavra de seu filho a respeito de suas atividades daquele dia. E é fácil compreender as causas da errônea identificação inicial.
Augustus não estava interessado naquilo, e tampouco disposto a contrair obrigações com um inferior que ao fim e ao cabo não tinha feito mais que cumprir seu dever.
— Se tiver algo importante que dizer, delegado, diga-o já. Se desejar que lhe agradeça, reconheço que resolveu o assunto com a maior discrição e lhe estou agradecido por isso. Confio em que não espere nada mais que isso.
A insinuação era em extremo ofensiva.
—Não esperava nem sequer isso — replicou Pitt. — Cumpro com meu dever por minha própria consciência, não por ninguém mais. Em nenhum momento se tratou de um favor pessoal. Mas pela mesma razão me sinto obrigado a descobrir quem deixou os objetos de seu filho no lugar do crime, cabe supor que com a intenção de no mínimo, implicá-lo em um escândalo e danificar sua reputação... e no pior dos casos enviá-lo à forca. —Pronunciou esta última palavra com toda clareza e inclusive com desfrute. — Esperava que desejasse conhecer a resposta ainda mais fervorosamente que eu.
Augustus entreabriu os olhos. Era claro que não previa uma resposta assim, e portanto sua reação não estava preparada.
—E se a insígnia do clube Fogo do Inferno que apareceu no bolso de sua jaqueta — prosseguiu Pitt, voltando-se para o Finlay, era a original, alguém teve muito trabalho para conseguir incriminá-lo. Isso expõe a dúvida não só de por que encomendaram uma segunda insígnia com seu nome, mas também de como foram capazes de realizar uma cópia quase idêntica à primeira. Nem sequer um joalheiro as distinguiria salvo por uma ligeira diferença na letra usada para o nome gravado no dorso.
Finlay perdeu a compostura. Empalideceu e o aprumo desapareceu de seu olhar, que de repente delatava um claro nervosismo. Voltou a cabeça lentamente para seu pai.
Por um momento Augustus se sentiu também desconcertado. Não sabia o que responder. Seu rancor por Pitt por havê-lo inquietado se refletia em sua boca, em seus apertados lábios.
Finlay tomou ar para falar, olhou alternativamente ao Pitt e a seu pai, e mudou de ideia.
— Encarregou você mesmo a segunda insígnia? — perguntou Pitt. — Seria compreensível dadas às circunstâncias e não requereria nenhuma explicação ante a justiça.
—N... não — respondeu Finlay gaguejando, e engoliu saliva, agora visivelmente aflito. — Não, não a encomendei eu.
Um relógio de pé encostado à parede do fundo deu um quarto de hora. Tallulah continuava balançando-se no jardim.
— Encomendei-a, delegado — afirmou Augustus por fim —, quanto à primeira insígnia, suponho que se perdeu ou foi roubada faz anos, como meu filho declarou. E o mesmo deve ter ocorrido com a abotoadura. Ninguém na casa viu nenhum desses objetos há cinco anos pelo menos. Cabe supor que os tinha a mesma pessoa.
— E casualmente recorreu aos serviços da Ada McKinley e os deixou ali os dois na mesma ocasião ou em ocasiões distintas? —disse Pitt sem poder evitar um tom de incredulidade em sua voz.
Salvo por um fugaz indício de ira, Augustus permaneceu imutável.
— Isso parece — respondeu com frieza. Pitt se voltou para o Finlay.
— Isso, pois, reduz grandemente as possibilidades — discorreu Pitt. — Não pode haver muitas pessoas que tivessem oportunidade de achar por acaso, ou lhe roubar, dois objetos tão pessoais e depois os esquecer no Pentecost Alley na noite do assassinato da Ada McKinley.
— A abotoadura podia estar ali desde há tempo — indicou Augustus com o rosto tenso pela cólera. — Você mesmo disse que não se achava à vista. Se estava entre a almofada e o espaldar de uma cadeira, podia levar anos ali.
—Assim é — admitiu Pitt. — E a insígnia só podia havê-la deixado ali o cliente anterior. Qualquer um que se deitou depois naquela cama, teria notado sua presença.
—É um verdadeiro mistério — reconheceu Augustus. — Mas nenhum membro desta família pode contribuir para esclarecê-lo. E sinceramente, dado que sabe com toda certeza quem matou a essa desventurada, suponho tem obrigações mais importantes que atender. Corresponde acaso a um policial de seu sua posição do possível roubo de uma abotoadura e uma insígnia com um valor de um ou dois guinéus no máximo, e facilmente substituível? Meu filho não apresentou queixas contra ninguém. Nem sequer denunciamos o desaparecimento em nenhum momento, e menos ainda lhe pedimos que investigue o assunto. — Voltou a pegar seu livro, mas não o abriu. — Agradeço seu interesse, mas preferiríamos que orientasse seus esforços a acautelar parte da violência que açoita nossas ruas, ou a proteger dos ladrões nossas propriedades mais valiosas. Muito obrigado pela visita, delegado.
Estendeu a mão para a campainha para chamar um criado que acompanhasse ao Pitt à porta.
— Não são as propriedades o que me preocupa — respondeu Pitt sem mover-se de seu assento —, mas o uso que se fez delas para incriminá-lo. —Olhou para Finlay. — Pelo visto, tem um inimigo muito poderoso e vingativo. A polícia desejaria lhe oferecer toda sua ajuda para descobrir quem é e, se for necessário, processá-lo.
Finlay estava branco e um fino filme de suor cobria sua pele. Engoliu saliva como se se engasgasse com algo.
—Tenho muitos inimigos, delegado — interveio Augustus com tom comedido. — É o preço do êxito. Pode ser aborrecido, mas não me assusta. O plano para arruinar a vida de meu filho fracassou. Se voltarem a tentá-lo, defenderei-me eu mesmo por meios que considerar oportunos. Sempre o tenho feito. Agradeço sua preocupação por nosso bem-estar e seu interesse na justiça. — Fez soar a campainha. — O lacaio o acompanhará à saída. Bom dia.
Pitt não ficou satisfeito a esse respeito, mas não podia dedicar mais tempo à investigação, nem lhe ocorria por onde continuar. Se Augustus tinha encomendado a segunda insígnia, esse ponto estava explicado, mas continuava sem esclarecer como tinha chegado a primeira insígnia à cama do Pentecost Alley, e como encarregou dela quem quer que a deixasse ali. Pitt custava acreditar que a insígnia e a abotoadura tivessem acabado por acaso no mesmo quarto.
Possivelmente era um inimigo do Augustus FitzJames quem tinha maquinado esse atroz e retorcido plano para vingar-se, mas parecia mais provável que a oportunidade se tivesse apresentado a um inimigo do Finlay. Os outros sócios do clube Fogo do Inferno eram os principais suspeitos. Por que se havia dissolvido o clube? Por tédio? Por uma súbita maturidade? Achou-se algum deles ante a perspectiva de uma ascensão social que requeria maior sobriedade e melhor reputação, e desse modo todos tinham chegado à conclusão de que era momento de abandonar seus excessos?
Ou se tinha produzido alguma briga?
Pitt não podia afastar de seu pensamento a ideia de que tinha sido uma briga, e de que Jago Jones era quem mais facilmente teria tido ocasião de deixar algo no quarto de Ada. Entretanto recordava ainda com toda nitidez o rosto do Jago em seu primeiro interrogatório, e sua expressão de horror ao conhecer que a insígnia achada na cama pertencia ao Finlay. Sabia Finlay acaso quem tinha tentado incriminá-lo, e também por quê? Cabia a possibilidade de que agora planejasse sua própria vingança, talvez com a ajuda de seu pai?
Por que não o dizia ao Pitt e deixava que a polícia se encarregasse do assunto? Uma demanda por roubo ou inclusive pelo mero fato de deixar objetos pessoais de outro homem no quarto de uma prostituta bastariam para arruinar a vida de Jago Jones. E também sem dúvida a Helliwell. Seus respeitáveis sogros se escandalizariam por uma coisa assim. Deixaria de existir para a boa sociedade. Seria uma tortura interminável e em extremo dolorosa. A vítima padeceria minuto a minuto, tanto pela expectativa do que estava por vir como pela lembrança do passado. Que castigo podia haver mais cruel e eficaz?
Se Augustus não o punha em prática, devia existir alguma razão. Possivelmente o desejo de manter alguém sob ameaça permanentemente? Exigir em seu momento um favor em troca, algo de tal envergadura que valia a pena renunciar ao prazer presente?
Ou acaso a vingança podia repercutir negativamente em sua família? Era a elegante e frívola Tallulah vulnerável por algum motivo?
Pitt não concebeu sequer a possibilidade de que Augustus perdoasse a ofensa.
Terminou o mês de agosto com um mormaço e começou setembro. Estava a ponto de iniciar o julgamento contra Albert Costigan. Uma tarde, quando faltavam dois dias para o começo, Pitt visitou de novo Whitechapel para falar com o Ewart e o médico legista, Lennox. Não se reuniram na delegacia de polícia, mas em uma taverna do Swan Street, e jantaram empanada de pombinhos acompanhada com cidra e plumcake de sobremesa.
Conversaram de temas agradáveis. Lennox — que além de praticar a medicina legal dava consulta-lhes contou uma divertida anedota sobre um de seus pacientes, de uma rua situada um pouco mais ao oeste, que tinha comprado uma banheira e convidava a todos os vizinhos a contemplá-la.
Ewart estava eufórico porque seu primogênito tinha entrado na universidade e superado com êxito os exames do primeiro curso. Pitt se surpreendeu que no Whitechapel tivesse podido adquirir conhecimentos suficientes para cursar depois estudos superiores, mas se calou. A seguir Ewart explicou que antes o tinha enviado a um internato, onde tinha recebido uma excelente formação.
— Isso é o mais importante na vida de um homem, a educação — afirmou com um agridoce sorriso.
Pitt imaginou os sacrifícios que teria representado aquilo para um homem com o pagamento do Ewart. Também sua esposa devia ter renunciado a muitas coisas. de repente mudou sua imagem do Ewart, e sentiu admiração por ele. Certamente tinha economizado durante toda sua vida. Mas se absteve de fazer comentários. Teria sido uma indiscrição. Sorriu ao Ewart, e este desviou o olhar, como se se envergonhasse. Não mencionaram sequer o assassinato do Pentecost Alley até que saíram da taverna e passearam tranquilamente em direção ao rio e as sombras que projetava o enorme edifício da Torre de Londres. Os dias eram mais curtos. A temperatura era ainda suave, mas anoitecia muito antes e se percebia já a iminência do outono, nas flores murchas, no pó acumulado no chão depois de um longo verão sem intensas chuvas.
Detiveram-se no montículo de erva situado sob a Torre e contemplaram o rio. O véu de fumaça e fuligem tinha ficado atrás. A luz se refletia sobre a superfície da água com um resplendor tênue e dourado, fazendo-se mais brumosa ao longe e suavizando os contornos da outra margem. A Torre de Londres se erguia sobre eles. Rio abaixo nada obstruía o caminho até mar aberto.
— Fará referência à insígnia e à abotoadura? — perguntou Pitt ao Ewart. O tema era inelutável. Tinham que subir para declarar no estrado dois dias depois.
— Não vejo razão — replicou Ewart com cautela, olhando de soslaio ao Pitt. — Não parece ter relação com o ocorrido.
— Voltei a visitar o FitzJames — anunciou Pitt, entreabrindo os olhos pelo sol. O reflexo da luz na água cobrava intensidade, uma viva mancha de cor, quase prateada onde os raios de sol feriam a esteira de uma embarcação de recreio, mais escura perto da borda. — Perguntei-lhe se ele mesmo tinha encomendado a segunda insígnia.
—Isso achei eu desde o começo — disse Lennox, e apertou os lábios. Em seu rosto se apreciava ainda melancolia, inclusive no ar quieto e dourado da tarde. A luz destacava as finas rugas que confluíam nas comissuras de seus olhos e lábios, esculpidas em sua pele pela compaixão ou a angústia. Pitt sentiu curiosidade por sua vida privada: onde viveria; se teria alguém a quem querer, alguém com quem rir e compartilhar as coisas gratas da vida, ou a quem contar ao menos em parte suas aflições.
Ewart tinha falado ao Pitt, e este não o tinha ouvido.
— Como disse? Desculpe, não escutava.
— FitzJames o confessou? — continuou Ewart. — Então tudo ficou claro, não? Foi uma estupidez de sua parte, possivelmente, mas compreensível. Razão de mais para não mencioná-lo no julgamento. Só expõe dúvidas que não podemos resolver, e que em realidade já não importam. Estou certo de que visitou essa casa alguma vez no passado e perdeu ali a insígnia e a abotoadura. A questão é que não foi essa noite, e o resto não conta.
— Não foi Finlay quem a encarregou — esclareceu Pitt. — Foi seu pai.
— Para efeitos práticos, dá no mesmo — disse Ewart, lhe tirando importância, mas em seu rosto apareceu uma fugaz expressão de ódio.
— Costigan jurou que ele não sabe nada desses objetos — acrescentou Pitt.
Aquela questão ainda o inquietava. Não lhe via sentido. Compreendia não obstante os sentimentos do Ewart, e de fato os compartilhava.
— E é muito possível que não saiba nada — disse Lennox com um fio de voz. — Continuo pensando que FitzJames tem algo que ver com a Ada, se não com sua morte, ao menos como cliente. Duvido muito que alguém lhe roubasse essas coisas. Quem ia roubá-las se não fosse a própria Ada?
— Algum de seus amigos, ou supostos amigos — respondeu Ewart ao cabo de um momento. — Possivelmente um dos sócios do clube. Em realidade não sabemos que afetos os uniam. Poderiam ter existido invejas. Finlay tinha mais dinheiro que qualquer deles, mais oportunidades na vida. Algum dia ocupará um cargo público importante, e os outros não. —Em sua voz se percebia uma ira, uma malevolência, que parecia imprópria daquela dourada tarde de verão.
Pitt pensou na extrema facilidade com que as oportunidades se apresentaram ao Finlay, e a que preço tinham tido que pagar para o filho do Ewart, com quantas privações. Não era estranho o ressentimento do Ewart pelo modo em que Finlay as desperdiçava.
— Nunca saberemos. — Ewart recuperou a calma, e a emoção desapareceu de sua voz, que se tornou de novo monótona, profissional. — Nunca chegamos a conhecer todos os aspectos de um caso. Inclusive nos mais evidentes, há sempre motivos e ações insignificantes que ficam sem explicar. Apanhamos ao verdadeiro culpado, e isso é o que importa. — Meteu as mãos nos bolsos e contemplou o rio.
Um par de barcaças tinham aceso já as luzes de navegação e avançavam quase sem levantar ondas na água.
— Mas é uma parte do crime — replicou Pitt, descontente. — Alguém deixou ali a insígnia e a abotoadura, e se não foi Costigan, havia outra pessoa presente. E um bom advogado perguntará quem era e se acolherá ao benefício da dúvida.
Lennox o olhou fixamente, e em seu rosto, uma metade em sombras e a outra metade dourada pela decrescente luz do sol, apreciou-se uma mescla de surpresa e alarme.
Ewart franziu o sobrecenho, apertou os lábios e dirigiu ao Pitt um escuro olhar.
— Não soltarão ao Costigan — disse lentamente. — É tão culpado como o demônio. Tudo concorda. Ela o enganou, e ele se inteiro. Foi procurar a parte que lhe correspondia, e ela se negou a dar-lhe e possivelmente inclusive lhe disse que fosse embora. Discutiram, e ele perdeu o controle. É um asqueroso sádico. Mas, claro, que espécie de homens vivem da prostituição das mulheres?
Lennox deixou escapar um violento e lastimoso grunhido. Tinha os ombros encurvados, como se tivessem cãibras em todos os músculos do corpo. Na metade de seu rosto iluminado pelo sol transparecia um profundo ódio; a outra metade era quase invisível.
Pitt ficou em seu lugar. Ao fim e ao cabo, ele tinha examinado o cadáver da Ada, havia-o tocado, tinha visto os claros traços de sua tortura. Deve ter imaginado ela viva, talvez inclusive pudesse formar uma ideia da dor que tinha experimentado ao lhe deslocar as articulações e lhe romper os ossos, o terror pela falta de ar. Contemplando as vivas emoções refletidas no rosto do Lennox, Pitt sentiu que sua própria compaixão por Costigan se desvanecia.
— O que penso em realidade — disse Pitt com um suspiro —, é que FitzJames sabe quem tentou incriminá-lo, ou acredita que sabe, e se tomará a vingança por sua mão.
— Se nós não o averiguamos, como iriam saber eles? — replicou Ewart com um gesto de indiferença. de repente soltou uma gargalhada cheia de surpreendente rancor. — E se conseguir seu propósito, e depois descobre e tem que pagar por isso, não serei eu quem o sinta.
No poente resplandecia o último rescaldo de sol, arrojando fogo sobre a água. As escuras sombras da Torre e a ponte envolviam já aos três homens. A maré subia depressa. Mas o ar era ainda temperado e as pessoas continuavam passeando pelas margens do Tamisa, uns sós, outros em casal e agarrados pelo braço. De algum lugar chegaram umas risadas.
Ewart deu de ombros.
— Se for assim, não podemos impedir-lhe senhor — O tratamento de "senhor" o distanciava do Pitt, resolvendo em certo modo o tema. — Se sabem, duvido muito que se enganaram de homem, e até diria que merece o castigo. Tratar de enviar à forca a alguém por um crime que não cometeu é algo repugnante.
— Tinha uma expressão dura e aspecto cansado, e a luz crepuscular acentuava suas rugas. — Em todo caso, senhor, se acreditar que pode evitar que Augustus FitzJames aplique sua própria forma de justiça a seus inimigos, desculpe-me mas vive você em outro mundo. Se se cometer um crime e nos inteiramos, nos corresponde esclarecê-lo. Mas uma vingança pessoal entre cavalheiros não nos incumbe.
Pitt guardou silêncio.
—Não podemos carregar com todo o peso do mundo — prosseguiu Ewart, encolhendo-se como se tivesse frio. — E supervalorizamos nossas possibilidades se pensássemos que podemos fazer algo a respeito, ou inclusive que devemos.
—Não aceitou nossa ajuda — informou Pitt. — A ofereci e a rechaçou com firmeza.
— Não quer que afunde muito no passado da família — disse Lennox, e se pôs-se a rir. — Pode ser que Costigan matasse à moça, mas o comportamento do Finlay não resistiria a uma investigação minuciosa, e menos se aspirar a conseguir uma embaixada. — Cuspiu a palavra como se tivesse os dentes apertados, mas Pitt não pôde ver sua expressão porque estava já muito escuro e Lennox se virou de costas à luz.
— Nesse caso, melhor será que deixe correr o assunto — aconselhou Ewart com aspereza. — Augustus FitzJames não lhe agradecerá que fareje na vida de seu filho para averiguar quem o odeia e por que. Sem dúvida descobriria condutas reprováveis, e Augustus dirigiria sua vingança contra você. E possivelmente também contra a polícia. Não tem nenhuma razão para investigar sobre o Finlay. Encontramos o culpado do crime. Agora, senhor, em interesse de todos, vale mais que o deixemos como está.
Lennox afogou um gemido, como se acabasse de tropeçar com uma pedra, mas permanecia imóvel.
Ewart estava certo. Não existia causa legal alguma para seguir investigando, e Augustus FitzJames tinha rechaçado de maneira inequívoca toda ajuda policial. A menos que Pitt deduzisse a solução a partir da informação que já possuía, o enigma ficaria sem resposta.
—Veremo-nos, pois, no tribunal depois de amanhã — disse com resignação. — Voltam vocês nessa direção? —Assinalou para a Escada da Rainha.
— Não, não; eu vou para casa — respondeu Ewart. — Obrigado, senhor. Boa noite.
— Eu o acompanho — disse Lennox.
Ambos caminharam sobre a erva em amigável silêncio para a escada e a água e depois subiram de novo ao Great Tower Hill. Era quase de noite.
Prestaram declaração com toda a exatidão possível, e tentaram em vão despojar de emoção suas palavras. Lennox em particular estava pálido, tinha os lábios secos, e falava com voz aguda por causa da tensão que atendia sua garganta. Ewart se mostrou mais realista, mas sua aparente compostura não conseguiu ocultar uma sensação de triunfo e alívio, nem um depurado aborrecimento à brutalidade, a cobiça e a estupidez que impregnava todos os aspectos do caso.
A sala não estava muito concorrida. Não era um julgamento especialmente interessante. O nome do Albert Costigan se conhecia só nas imediações do Whitechapel Road. Ada McKinley era simplesmente uma desventurada que tinha deslocado os riscos de seu ofício e encontrado uma morte que ninguém lhe teria desejado; entretanto seu final tampouco surpreendia a ninguém, e só uns poucos lamentavam sua perda. No primeiro dia Pitt viu Rose Burke entre o público, e também Nan Sullivan, surpreendentemente atraente com seu vestido negro. Não viu Agnes. Se tinha assistido, passou-lhe inadvertida entre o público. Ao que parecia, tampouco estava à velha Madge. Possivelmente, como ela havia dito, nunca abandonava a casa.
Não foi nenhum membro da família FitzJames, nem de fato Pitt o esperava. Pelo que a eles se referia, o assunto terminou assim que Finlay ficou livre de suspeita. Thirlstone e Helliwell tinham fugido desde o começo a qualquer implicação.
Sim se achava ali, em troca, Jago Jones, e a intensidade de seu assombroso rosto bastava para convertê-lo em uma presença extraordinária, apesar do traje esvaído e a ausência de colarinho, crucifixo ou qualquer outro distintivo sacerdotal. Tinha as faces afundadas, e suas marcadas olheiras faziam pensar que não dormia bem desde há semanas. Escutava absorto a todas as testemunhas. Tal era sua atenção que teria podido pensar-se que a ele, e não ao jurado, correspondia — pronunciar o veredicto.
Pitt se perguntou se seria Jago o sacerdote eleito para tentar salvar a alma do Costigan antes de seu último e breve passeio. Seria ele quem trataria de obter a confissão do réu nas horas anteriores à execução, quem o acompanharia nesses aterradores passos finais até o patíbulo às oito da manhã? Era uma missão que Pitt não teria desejado a ninguém.
O que podia dizer-se? Algo sobre o amor de Deus e o sacrifício de Cristo por todos os homens? Que sentido teriam essas palavras para o Costigan? Sabia o que era o amor? Um amor apaixonado, incondicional, infinito como o céu, um amor que não se apagava nem murchava, que permanecia imutável? Compreendia sequer o conceito de sacrifício para que outros se beneficiassem? Falaria-lhe Jago em um idioma que Costigan nunca tinha ouvido, de uma ideia tão remota para ele como o fogo que ardia nas estrelas?
Possivelmente consistia simplesmente em lhe falar com serenidade, em olhá-lo nos olhos sem desprezo nem censura, como outro homem consciente de seu terror e compreensivo com ele.
Enquanto Pitt contemplava na sala a inexorável ação da justiça, percebeu uma impiedade que também o assustou. As perucas e as togas pareciam tanto máscaras para os homens que as usavam como símbolos da majestade da justiça. Seu hipotético propósito era dar a juizes e advogados uma imagem anônima e, entretanto os revestia de uma aparência desumana.
Era pouco o que o advogado do Costigan podia aduzir em sua defesa. Era jovem, mas realizou um notável esforço por apontar circunstâncias atenuantes, entre elas que a vítima era uma mulher ambiciosa e ladina inclusive para as pautas de conduta aceitas entre as de seu mesmo ofício. Afirmou que tudo tinha começado em uma simples discussão. Costigan não pretendia matá-la, mas só assustá-la e dissuadi-la de seu comportamento, obrigá-la a respeitar seu acordo. Ao ver que ela estava inconsciente, o pânico se apropriou dele, e lhe jogou água em um vão intento para reanimá-la, pois a princípio não se deu conta de que a tinha matado.
E os ossos quebrados ou deslocados?
A crueldade e a perversão de um cliente anterior.
Ninguém acreditou.
O veredicto não ficou em duvida em nenhum momento. Pitt o adivinhou nos rostos dos membros dos jurados. Costigan também devia sabê-lo.
O juiz o escutou, arrumou-o barrete negro e o sentenciou a morte.
Pitt abandonou a sala sem a menor sensação de triunfo, e sim de alivio pelo fato de que tivesse se concluído. Nunca conheceria todos os detalhes do crime; nunca saberia quem tinha deixado a insígnia e a abotoadura do Finlay FitzJames no quarto do Pentecost Alley, nem por que um sem-fim de mentiras tinha rodeado a esses dois objetos todo o tempo. Nunca averiguaria que lembranças obcecavam ao Jago Jones.
Transcorridas as três semanas estabelecidas pela lei, Albert Costigan foi enforcado. Os jornais se limitaram publicar a notícia sem maiores comentários.
No domingo posterior à execução Pitt foi ao parque com a Charlotte e as crianças. Jemima exibia seu melhor vestido; Daniel levava um elegante traje novo branco e azul marinho. Estavam em meados de outubro, e as folhas das árvores começavam a mudar de cor. Os castanheiros, os primeiros em florescer na primavera, tinham-nas já totalmente douradas. O suave sol de princípios de outono titilava entre elas. Nas faias se formavam leques de bronze entre o verde. Não demorariam em chegar às primeiras geadas, o rastelado das folhas caídas, e o aroma de fumaça de madeira das fogueiras destinadas a queimar os refugos das árvores. No campo os caramujos adquiririam um tom escarlate, e as amoras ficariam de cor carmesim. Já não seria necessário cortar a grama.
Pitt e Charlotte passeavam lentamente, como outros muitos casais que desfrutavam dos últimos dias quentes do ano. As crianças brincavam de correr ao redor, rindo e perseguindo-se sem razão alguma, simplesmente porque lhes sobrava energia e era divertido.
Daniel achou um pau e o lançou a um cachorrinho que saltava junto a eles, ao que parecia extraviado por seu dono. O cão correu para buscá-lo e retornou triunfalmente com ele. Jemima pegou o pau e decidiu experimentar a sorte, lançando-o com todas suas forças.
Ao longe um realejo tocava uma melodia popular. Um vendedor de jornais deixou sua carga e se sentou na erva para comer um sanduíche que acabava de comprar em um posto ambulante perto dali. Um ancião fumava cachimbo com os olhos fechados. Duas criadas em seu dia livre conversavam e riam. Um homem com aspecto de contador jazia sob uma árvore lendo uma revista sensacionalista.
Charlotte pegou Pitt pelo braço e caminhou mais perto dele. Pitt diminuiu o passo.
Uns minutos mais tarde Pitt reconheceu ao longe a figura erguida e marcial do John Cornwallis, que avançava energicamente pela erva entre os passantes. Quando se achava a umas vinte jardas deles, Charlotte viu a expressão de seu rosto e se deteve em seco, voltando—se para o Pitt com manifesta inquietação.
Pitt sentiu um calafrio, mas ignorava o motivo de seu temor.
Cornwallis se aproximou deles.
— Desculpe, senhora Pitt — disse à Charlotte, e depois olhou para Pitt com o rosto tenso e pálido. — Infelizmente devo interromper seu passeio dominical. — O comentário era obviamente uma indicação para que Charlotte se desculpasse e os deixasse a sós, retirando-se a uma distância discreta.
Charlotte, em lugar disso, pegou-se ainda com mais firmeza ao braço do Pitt.
— Trata-se de algum segredo de Estado? — perguntou Pitt.
— Deus santo, tomara fosse! —exclamou Cornwallis com veemência. — Muito temo que amanhã saberá toda Londres.
— Saberá o que? — sussurrou Charlotte.
Cornwallis vacilou, olhando ao Pitt com semblante preocupado. Desejava proteger Charlotte. Não estava acostumado ao trato com mulheres. Pitt supôs que as conhecia só a distância. Só sabia o que tinha aprendido dos convencionalismos.
—Saberá o que? — repetiu Pitt.
— Foi assassinada outra prostituta — anunciou Cornwallis com voz rouca. — Exatamente igual à primeira... em todos os detalhes.
Pitt ficou atônito. Era como se de repente tivesse perdido o equilíbrio e a grama, as árvores e o céu se fundissem e girassem ao redor.
—Em uma casa de cômodos do Myrdle Street — continuou Cornwallis. — No Whitechapel. Acredito que será melhor que você vá ali imediatamente. Ewart se encontra no lugar do crime. Eu buscarei uma carruagem para a senhora Pitt e a acompanharei a sua casa. —Estava branco como o papel. — Sinto muito.
Pitt se achava na soleira da porta do aposento onde tinha sido encontrado o cadáver. Ewart, com o rosto cinzento, estava já ali. No corredor ressoavam os soluços histéricos de uma mulher, cada vez mais longos e agudos, vivos ainda em sua voz o terror e a comoção.
Pitt olhou ao Ewart nos olhos, e percebeu neles o horror que ele mesmo sentia, e uma súbita admissão de culpa. Desviou o olhar.
Na cama jazia uma moça, miúda, quase como uma menina. Tinha o cabelo esparramado sobre o travesseiro, um braço estendido sobre a cabeça, o pulso atado à cabeceira com uma meia. Uma liga com uma fita azul lhe rodeava o braço. A saia levantada de seu vestido amarelo e laranja deixava à vista as coxas. Levava as pernas nuas. Como no caso da Ada McKinley, uma meia lhe rodeava a garganta. Tinha o rosto arroxeado e torcido. E como no caso da Ada, a metade superior do corpo e essa parte da cama estavam empapadas de água.
Com o estômago revolto, pressentindo o que acharia, desceu a vista ao chão. As botas, negras e reluzentes, achavam-se abotoadas entre si.
Ergueu os olhos, e seu olhar se cruzou com o do Ewart.
Fora os soluços começavam a atenuar-se à medida que o medo dava passagem à dor.
Ewart parecia um homem que ao despertar de um pesadelo descobrisse que os mesmos horrores de seu sonho se repetiam na realidade, da qual já não havia escapatória. Um músculo lhe palpitava na têmpora, e mantinha os punhos fechados para controlar o tremor das mãos.
— Tem os dedos quebrados das mãos e pés? — perguntou Pitt, notando a garganta tensa, a boca seca, a voz quebrada.
Ewart engoliu em seco. Sem atrever-se a falar, assentiu com a cabeça de maneira quase imperceptível.
— Alguma... outra prova? — disse Pitt.
Ewart respirou fundo, seu olhar fixo no do Pitt, refletindo plena consciência do que os dois temiam.
—Ainda... ainda não olhei. —Tremia-lhe a voz. — pedi que fossem buscar a você imediatamente. Assim que Lennox me informou que o crime era idêntico, me... fui. —Voltou a tomar ar. — Hei... saí. Tinha náuseas. Se houver algo aqui, prefiro que você seja quem o encontre, e não eu, ou ao menos não só. — Cravou de novo o olhar no do Pitt. O suor lhe brilhava na fronte e sobre o lábio superior. — Só dei uma olhada. Não vi nada especial. Mas não realizei uma revista a fundo,minuciosa; não olhei atrás das almofadas das cadeiras, nem debaixo da cama.
Perguntas sem formular flutuavam no ar entre eles, a culpa e o medo de ter cometido um engano atroz e irreparável, de que em realidade Costigan não tivesse matado a Ada e o verdadeiro culpado tivesse atuado outra vez, ali, naquele quarto. Seria Finlay FitzJames? Ou Jago Jones? Ou alguém em quem nem sequer tinham pensado, alguém que se escondia na escuridão das ruas, esperando a ocasião de atirar um novo golpe, como o maníaco que dois anos atrás se fazia chamar Jack o Estripador?
Pitt voltou a cabeça e contemplou à moça estendida na cama. Tinha o cabelo escuro e denso, com cachos naturais; os ossos pequenos, quase delicados; a pele muito branca, como o marfim nos ombros que o generoso decote deixava descoberto, leitosa nas coxas. Devia ser muito jovem, de dezessete ou dezoito anos.
— Quem era? — perguntou Pitt, surpreso pelo tremor de sua própria voz.
— Nora Gough — respondeu Ewart a suas costas. — Ainda não sei grande coisa dela. Não pude tirar nada claro das outras mulheres da casa. Estão todas histéricas. Lennox tenta acalmá-las, o pobre diabo. Mas suponho que para isso são os médicos. Achava-se nesta mesma rua, a meia milha daqui. Tinha passado toda a tarde com um paciente. — Sorveu-se pelo nariz. — Ao menos chegou a tempo de ajudar às outras, se é que serve de algo.
Ouviam ainda os soluços procedentes de outro dos quartos, mas mais apagados, sem a aguda nota de histeria de minutos antes. Era melhor deixar que Lennox continuasse atendendo-as; pouca utilidade tinha interrogar umas mulheres muito horrorizadas para falar com uma mínima coerência.
— Vale mais, pois, que primeiro revistemos o quarto — propôs Pitt com profundo aborrecimento. Detestava essa tarefa, e se proporcionava alguma pista útil, provavelmente não seria de seu agrado. Em realidade temia o que pudesse achar. O único indubitável era que Costigan não podia ser o culpado. Voltando-se para o Ewart, disse: Eu começarei pela cama. Você olha no armário e no baú, atento a algo fora do comum, o que seja: cartas, papéis, objetos que pudessem não lhe pertencer, emprestados ou roubados. Algo caro.
Ewart não se moveu. Por um momento Pitt se perguntou se o horror o tinha paralisado. Tinha a pele desprovida de cor, semelhante à cera, como se estivesse já morto.
—Ewart, comece pelo baú — insistiu Pitt com delicadeza, pensando que ao menos assim estaria de costas ao cadáver.
— Não.... já... já me encarrego eu da cama — respondeu Ewart, evitando seu olhar. — É... meu trabalho. Estou... bem. — Tinha a voz empanada por um torvelinho de emoções que pareciam rasgá-lo, e entre elas, especialmente evidente, uma candente ira.
— Comece pelo baú — repetiu Pitt. — Eu me ocuparei da cama e cadeiras.
Ewart continuou imóvel. Dava a impressão de que desejasse falar e fosse incapaz de achar as palavras, ou possivelmente de tomar a decisão de dizer o que tinha que dizer. Parecia um homem desesperado.
Estavam de pé no meio do quarto silencioso, separados um do outro apenas um par de passos, com o cadáver da moça quase ao alcance da mão. O ar estava viciado. A cinzenta luz da janela revelava as zonas desgastadas do tapete.
Na rua um vendedor de roupa usada apregoava sua mercadoria.
— Sabe algo sobre a morte da Ada McKinley que não me disse? — perguntou Pitt a seu pesar.
—Não — respondeu Ewart, abrindo mais os olhos.
Pitt acreditou. Fosse qual fosse o motivo de seu medo, não guardava relação com essa pergunta; sua surpresa não era fingida.
— Teme que Costigan fosse inocente?
— Você não? — perguntou Ewart.
— Sim, claro que sim. Quem a matou, pois? Finlay FitzJames?
Ewart estremeceu.
— Não — se apressou a responder, muito rápido, obviamente sem parar para pensar.
Pitt deu meia volta e começou a revistar a cama. Lennox tinha examinado já o corpo, assim não importava que o movesse. Até consciente de que era uma atitude irracional, Pitt teve a necessidade instintiva de tratá-lo com delicadeza, como se aquele envoltório carnal fosse ainda um ser humano, capaz de reconhecer a compaixão ou a dignidade.
No lado oposto achou um lenço sob o travesseiro, branco como os lençóis, e em um primeiro momento pensou que era uma ponta da capa dobrada. Mas ao puxar saiu por completo. Era de cambraia, com a prega cuidadosamente costurada e umas iniciais bordadas em um canto. Estavam em letra gótica, difícil de decifrar a simples vista. Pitt as examinou com atenção. Lia-se: FFJ. Apesar do que pressentia, ao ver confirmada a suspeita sentiu um nó no estômago e uma contração na garganta.
Olhou ao Ewart, mas estava de costas, revistando o conteúdo do baú, roupa branca e objetos de vestir que ia empilhando a um lado.
— Encontrei um lenço — sussurrou Pitt.
Ewart se voltou lentamente, com expressão de expectativa. Olhou ao Pitt nos olhos e viu neles o que temia.
— Leva umas iniciais bordadas — anunciou Pitt, respondendo à pergunta não formulada. — FFJ.
— É... é absurdo! — exclamou Ewart, travando-se o a língua. — Por que ia deixar aqui um lenço? Quem deixa um lenço na cama de uma prostituta? Não vive aqui.
—Suponho que alguém que se soou enquanto estava com ela — respondeu Pitt. — Um homem resfriado, ou um homem a quem algo lhe provocava espirros. O pó possivelmente, ou o perfume desta mulher.
— E o guardou debaixo do travesseiro? —disse Ewart, ainda resistindo a aceitá-lo.
— Obviamente não tinha um bolso à mão. Em qualquer caso, ainda não é hora para essa espécie de especulações. Continue procurando. Pode aparecer algo mais.
— Como? Acaso acredita que também aqui deixou algo mais? — perguntou Ewart erguendo a voz, quase preso do pânico. — Já não ficaria nada se fosse deixando coisas pelo Whitechapel a esse ritmo.
— Não refiro a algum outro efeito pessoal do Finlay FitzJames — esclareceu Pitt com toda a calma possível —, mas algo. Possivelmente algo que indique a presença de outro homem. Temos que revistar o quarto a fundo. —Ah. Sim, naturalmente...
Ewart deu a volta sem mais comentários e continuou tirando roupa do baú, estendendo-a, sacudindo-a, apalpando-a e por último pregando-a e deixando-a na pilha com o resto.
Pitt acabou de revistar a cama e passou a examinar o chão. Olhou primeiro ao redor da cama, e depois acendeu a vela que havia sobre a mesa, deixou-a no chão e se ajoelhou para procurar debaixo. Havia pouco pó, alguns fiapos de algodão, em sua maioria brancos, e um botão de bota que só achou ao deslizar cuidadosamente os dedos pelas pranchas e frestas. Encontrou deste modo dois grampos e uma agulha de costura. Aos pés da cama apareceram uma parte de cordão de sapato, um botão comum de camisa de homem, e outro botão, de couro, feito a mão, que dificilmente podia pertencer a alguém do Whitechapel a menos que tivesse chegado a suas mãos uma jaqueta informal de homem procedente de um recolhimento de roupa para a beneficência.
Ficou em pé com todos seus achados na mão.
Ewart tinha terminado com o baú e nesse momento revistava a pequena penteadeira com movimentos rápidos e peritos.
Pitt começou com as cadeiras, levantando as almofadas, explorando as fendas do estofo, pondo-as ao reverso e examinando a parte inferior do assento. Não achou nada mais a que atribuir algum sentido.
— Alguma outra coisa? — perguntou Ewart.
Pitt lhe mostrou os botões.
— De camisa — disse sobre o primeiro. — Poderia ser de qualquer e estar aí há meses. — Pegou o segundo e o fez virar entre os dedos polegares e indicador. Logo ergueu a vista e olhou ao Pitt nos olhos. — É de boa qualidade. Mas também poderia pertencer a qualquer um, inclusive a um vagabundo que tenha conseguido uma jaqueta em uma partilha benéfica. — Falava com tom desafiante, desafiando ao Pitt a dizer que era do FitzJames. — Vai falar agora com as outras mulheres? Parece que já se serenaram.
Com efeito a casa estava muito mais silenciosa. Quase tinha anoitecido e não se ouviam já as máquinas da fábrica de garrafas situada ao outro lado da rua. Passou uma tartana. Alguém gritou.
— Sim — respondeu Pitt. — Vejamos o que sabem.
Seguido do Ewart, saiu do quarto e foi até o final do corredor, onde se achava a cozinha, surpreendentemente ampla. Tinha um fogão negro encostado à parede do fundo e uma janela imunda que dava à parte traseira dos edifícios da rua contígua. No centro havia uma mesa com pés de distintas formas, montada obviamente com fragmentos desprezados de outras mesas, e meia dúzia de cadeiras desemparelhadas. Quatro delas ocupavam mulheres de idades compreendidas entre vinte e mais de cinquenta anos. Todas ofereciam um aspecto trágico e absurdo, com o ruge e o carmim corridos por causa do pranto, mechas de cabelo que tinham escapado das forquilhas, os olhos inchados. E ao mesmo tempo, ao rachar-se a máscara própria de seu ofício, pareciam mais jovens, humanas e individuais.
Lennox estava de pé detrás de uma das mulheres, com uma mão apoiada em seu ombro, e uma taça de chá na outra mão, que estendia a ela. Estava pálido e cansado, e as profundas rugas que partiam das comissuras de seus lábios faziam ressaltar seu nariz. Lançou ao Pitt um olhar de advertência.
— Boa noite, delegado — disse com voz rouca. — Se deseja interrogar a estas mulheres, estão já em condições de lhe responder. Basta que omita certos detalhes e tenha um pouco de paciência. Quando se está aterrorizado, não é fácil achar as palavras nem recordar.
Pitt assentiu com a cabeça e se voltou para o Ewart.
— Poderia você experimentar na vizinhança. Pergunte se alguém notou algo fora do comum, se recordam um rosto, se alguém entrou ou saiu por volta de...
Dirigiu ao Lennox um olhar interrogativo.
— Entre as quatro e as cinco — respondeu Lennox, e sorriu tristemente zombando se de si mesmo. — Não é uma brilhante dedução médica, delegado, mas uma observação das testemunhas. Pearl ouviu a voz da Nora no corredor ao redor das quatro. Pelo visto, acabava de levantar-se e chamava o Edie para lhe pedir emprestado um forro.
Pitt olhou à mulher que Lennox apontava. Pearl estava pálida e tinha um cabelo loiro de extraordinária beleza, fino como a lã de vidro e reluzente como a seda à luz das velas. Edie era corpulenta e morena, de pele azeitonada e formosos olhos castanhos.
— E lhe emprestou o reflexo? — disse Pitt.
Edie assentiu com a cabeça.
— Tinha que pegá-lo com alfinetes porque media a metade de mim, mas ficou de qualquer modo — esclareceu. Sorveu-se o nariz e com muita dificuldade pôde conter o pranto.
— E como sabe que ocorreu antes das cinco? —perguntou Pitt ao Lennox.
Lennox se voltou para outra mulher, esta de cabelo escuro, olhos juntos e linda boca. Sua cinzenta palidez destacava o ruge das faces. Levava as forquilhas meio soltas e o cabelo despenteado à força de mexer nele.
— Mabel pode lhe responder a isso.
— Meu primeiro cliente acabava de partir — explicou Mabel com um fio de voz. — passei diante da porta da Nora e resolvi dar uma olhada. Não sei por que imaginei que estava sozinha. Pelo silêncio, suponho. — Enrugou a frente, como se esse detalhe fosse importante para ela. — A vi jogada na cama com a mão atada à cabeceira. Pensei que possivelmente tinha recebido a um cliente com essa espécie de gostos, e ao ir a tinha deixado assim. Inclusive lhe falei... —sorveu-se o nariz e tragou saliva com doloroso esforço. Tremia de maneira tão incontrolável que os dedos deslizavam involuntariamente sobre a mesa.
Lennox se situou detrás dela e lhe apoiou as mãos nos ombros, atraindo-a para si para lhe insuflar sua própria força. Foi um gesto de extraordinária delicadeza. Mabel poderia ter sido uma velha amiga, e não uma mulher da rua que acabava de conhecer.
Esse suave contato a serenou, como um raio de prudência no meio do caos.
— E então lhe vi o rosto — sussurrou. — E compreendi o que tinha acontecido. O mesmo que matou a Ada McKinley a tinha matado a ela. Suponho que chiei. Ao cabo de um momento estávamos todas ali, gritando e pedindo auxílio.
— Compreendo. Obrigado. — Pitt se voltou de novo para o Ewart. — Averigúe quem se viu entrar ou sair deste edifício entre as quatro e as cinco, e procure precisar ao máximo as horas. Consiga descrições de todos eles e as compare com os clientes de cada uma destas mulheres. E repito: de todos eles. Dá na mesma se forem vizinhos, fanfarrões ou o faroleiro. De todos sem exceção.
— De acordo, senhor.
Ewart partiu, e Pitt se concentrou nas quatro mulheres. A última, Kate, continuava soluçando, apertando um lenço úmido contra a boca. Lennox se aproximou do fogão, encheu outra taça de chá e a levou. Ela pegou torpemente a taça com seus crispados dedos.
Pitt se sentou em uma desmantelada cadeira junto à mesa e começou a interrogar Pearl.
— Me conte tudo o que recorde desde ao redor das quatro, quando ouviu a Nora no corredor.
Pearl o olhou e começou com voz vacilante.
— Ouvi Nora entrar em seu quarto e chamar o Edie para que lhe deixasse o forro, mas não ouvi o que disse Edie. Estava me penteando para a noite. Ao terminar, saí. consegui um cliente em seguida, um de meus assíduos...
— Quem era?
— Como?
— Quem era esse cliente? Que aspecto tem?
Hesitou um momento, cruzando olhares com o Edie e Mabel.
— Jimmy Kale — respondeu finalmente. — Vem quase todos os domingos. Não sempre para ver-me. Às vezes o atende outra das garotas.
— E que aspecto tem?
— Alto, magro. Nariz largo. Sempre está fungando.
— Tinha visitado alguma vez a Nora? — perguntou Pitt.
— Suponho. Mas não lhe faria mal. Por que ia fazer lhe uma coisa assim? Nem sequer a conhecia, salvo por... — interrompeu-se.
Pitt admitiu que isso não era conhecê-la realmente.
— Continue. Quanto tempo passou com você Jimmy Kale?
— Meia hora.
— Que mais?
— Depois tomei um chá com Marge em uma taverna da calçada de frente. Marge vem às vezes por aqui. Seu marido sempre está lhe batendo.
— Esteve ela na casa entre as quatro e as cinco? É possível que tenha entrado pela porta da rua e passado em frente à habitação da Nora?
Pearl negou com a cabeça.
— Não. Ela salta a taipa e sobe pela escada do pátio. Assim seu marido não a vê, e ninguém a confunde com uma de nós. — pôs-se a rir. — Embora mais lhe valeria estar conosco! Se a mim alguém desse as surras que ela leva, cravaria-lhe uma faca nas tripas.
— Quando se foi? — perguntou Pitt, passando por cima a alusão à faca.
— Ao ouvir os gritos de Mabel. Os outros ruídos não lhe importam, mas notou que esta vez era diferente. Todas nos demos conta.
Engoliu em seco e lhe contraiu a garganta. Começou a tossir, e Lennox se aproximou dela, pegou-lhe a mão e lhe deu umas firmes palmadas no dorso. Ao que parecia, o contato humano a tranquilizava, o calor de um corpo que não lhe exigia nada. Tremendo, tomou ar. Por um momento deu a impressão de que ia abandonar se ao consolo do pranto e a proximidade de alguém.
Lennox retirou a mão e lhe ofereceu a xícara de chá.
Pearl ergueu de novo as costas.
—Sabíamos que passava algo grave — disse com voz serena. — Edie estava nesse momento com o Syd Allerdyce. Ele apareceu na porta com as calças nos tornozelos. Grande pinta tinha, gordo como um porco e vermelho como um tomate! Visto assim não parecia precisamente um grande senhor. — Uma careta de profunda aversão apareceu em seu rosto. Não era uma mulher que esquecesse as presunções de grandeza, ou as perdoasse. — Angie, a vizinha de cima, estava no final do corredor com um balde de água. Deixou cair e pôs tudo a perder. Suponho que alguém o terá limpado. Eu não, certamente. E Kate saiu envolta em um xale. Imagino que seu cliente continuava no quarto. Edie entrou no quarto da Nora e a viu ali estendida, e ao Mabel a seu lado, que ainda gritava. Edie lhe deu uma bofetada para fazê-la calar, e logo saiu e mandou ao Kate a avisar à polícia.
— Viu ao último cliente da Nora?
— Não. Estava ocupada.
— Onde é seu quarto?
— Ao lado do da Nora.
— Ouviu algo?
— Se ouvi algo? Ouvi-o tudo! Ouvi Syd grunhindo e resfolegando como se estivesse escalando uma montanha. Ouvi duas gatas que brigavam no beco...
— Quer dizer gatas ou mulheres? — interrompeu-a Pitt.
Lançou-lhe um olhar de indignação.
— Gatas! Esses insetos peludos que comem ratos e maculam a meia noite como todos os demônios do inferno. Por Deus! Não há gatos nos bairros altos onde você vive? Como acabam com os ratos? Ou tampouco há ratos?
— Sim há gatos. De fato eu tenho dois. — Lembrou-se com repentino prazer de Angus e Archie, adormecidos em sua cesta junto ao fogão da cozinha. Mas eles não tinham que disputar comida ou o leite. — Algo mais?
— Ouvi também Shirl, a do piso de cima, que gritava com alguém de sua janela — respondeu Pearl. — E que chiados! Parecia um porco no matadouro. Eram piores que os miados das gatas. Alguém deve tê-la extorquido. E pouco antes tinha ouvido Mabel e seu cliente, desconjuntando-os dois de risada. Certamente o tipo estava como uma Cuba. Espero que lhe tenha pagado bem, Mabel?
—Pois sim, muito bem — disse Mabel com convicção.
Pitt suspeitou que provavelmente tivesse tirado ao cliente tudo o que levava consigo, mas isso era problema dele, que ao fim e ao cabo tinha assumido o risco. Imaginou a barafunda que tinha tido lugar na casa durante a hora em que tinha sido assassinada Nora Gough. Provavelmente, até esgoelando-se, teria sido uma sorte que alguém a ouvisse no meio do clamor geral.
E, entretanto os gritos de terror do Edie tinham chamado a atenção imediatamente.
Olhou ao Lennox.
Lennox apertou os lábios e moveu a cabeça em um gesto de negação.
— É impossível saber — sussurrou. — Possivelmente o conhecia, e quando se deu conta de seu propósito, era já muito tarde.
Pitt não fez nenhum comentário. Voltou-se para as outras mulheres.
— Kate? Os nomes de seus clientes?
— Bert Moss chegou pouco antes das cinco. Bastante cedo, mas os domingos trocava de horário. Tem que voltar para casa a tomar chá. Logo veio Joe Edges. Quando Mabel começou a gritar, ainda estava aqui.
— Com você no quarto?
— Sim. Ouça, asseguro-lhe que ele não foi! Trouxe-o da rua. Nunca veio só até aqui.
Pitt assentiu com a cabeça e se voltou para o Mabel.
— Não sei como se chamava meu cliente. Nunca o pergunto. — Fez um gesto de indiferença. — Me tem sem cuidado sobre isso.
— Tinha estado antes aqui?
— Não. Não o tinha visto em minha vida.
— A que hora chegou e a que hora se foi?
— Chegou às quatro e quinze, mais ou menos, e se foi uns dez minutos antes das cinco. Quando o acompanhava à porta, vi entrar um cliente da Nora... — Tomando repentina consciência do que acabava de dizer, empalideceu. — Deus santo! Acredita que esse era...?
De repente se inclinou para frente, e Pitt pensou que ia vomitar. Começou a respirar de maneira entrecortada, com bruscas sacudidas no peito.
— Basta já! — disse Lennox imediatamente com autoridade. Agarrou a xícara de Pearl e a estendeu para Mabel. — Pegue. Beba devagar. Aos goles, não de um gole só.
Ela tentou agarrá-la, mas lhe tremiam tanto as mãos e tinha os dedos tão crispados que era incapaz de sustentá-la.
Lennox rodeou com suas mãos as dela e a ajudou a segurar a taça.
—Bebe — ordenou que. — Concentre-se, ou o derramará tudo por cima. Não a mova.
Mabel obedeceu, tomando o chá lentamente e pondo toda sua atenção na taça. Gradualmente começou a respirar com normalidade e recuperar a calma. Ao cabo de uns minutos se ergueu e deixou a taça vazia na mesa.
— Que aspecto tinha? — perguntou Pitt com maior delicadeza.
— Que aspecto? — Olhou fixamente ao Pitt. — Não sei. Comum. Loiro, com o cabelo ondulado.
— Como se vestia? — Pitt notava um crescente frio em seu interior. — O que tinha posto, Mabel?
— Não me fixei muito — respondeu Mabel com expressão de horror.
Pitt adivinhou que imagens rondavam por sua mente; devia ver-se a si mesmo na cama em lugar da Nora.
— Era roupa cara? — apontou Lennox, rompendo o silêncio.
Pitt lhe lançou um olhar fugaz, mas ele teria formulado a mesma pergunta. A ideia flutuava na mente de todos; era inelutável.
— Sim. Os homens que vêm por aqui não costumam levar roupa como essa.
— Reconheceria-o se voltasse a vê-lo? — perguntou Pitt, recordando o rosto do Rose Burke quando viu sair ao Finlay FitzJames pela porta de sua casa no Devonshire Street.
— Não sei. — Mabel estava aterrorizada. Sua pele branca e suarenta e seu corpo trêmulo não deixava dúvidas ao respeito. — Vejo centenas de homens. Não me fixo em seus rostos. Ao fim e ao cabo, é seu dinheiro o que conta, ou não? É o dinheiro quem paga a comida e o aluguel.
— Obrigado — disse Pitt. Levantou-se, afastou-se uns passos da mesa, e voltou a aproximar-se. — Podem me facilitar alguma outra informação sobre seus clientes habituais? Onde vivem? A que se dedicam? Como posso localizá-los?
— Para que? — perguntou Kate, olhando-o com os olhos entreabertos.
— Se por acaso algum viu ao tipo que matou a Nora, pedaço de idiota! — prorrompeu Edie. — Para que vai ser? — voltou-se bruscamente para Pitt. — Por favor, cavalheiro, é sua obrigação achar ao canalha que anda matando garotas por este bairro. Primeiro foi a pobre Ada no Pentecost Alley, e agora tem caído Nora. Quem será a próxima? E quem depois dessa?
Pearl se pôs-se a chorar de novo, fracamente, como uma menina.
— Por Deus, Edie! — exclamou Mabel com desespero. — Que necessidade tinha de dizer isso?
Edie se virou indignada para ela.
— Enfim, está claro que não foi o porco do Costigan, não? A esse o penduraram pelo pescoço até morrer, e agora está a seis pés clandestinamente, não? —Assinalou com o polegar para a parede e a escuridão da noite. — É algum canalha que segue aí fora, não? Um canalha que poderia apresentar-se aqui e ser seu próximo cliente, não? Já vê como acabou a pobre Nora, não? Se não nos ajudar a polícia, quem vai ajudar nos? Eu não sei quem é o assassino. Sabe você acaso?
— Alguma de vocês viu a alguém mais aqui esta tarde? — repetiu Pitt uma vez mais.
Pitt tomou nota de tudo o que disseram, mas não contribuiu com nada de novo. A meia-noite ordenou ao Ewart e ao agente Binns que continuassem procurando os clientes que as mulheres tinham mencionado e interrogando-os sobre o que tinham visto e ouvido. Isso era tarefa da delegacia de polícia do distrito.
Lennox tinha transladado o corpo da Nora Gough ao depósito de cadáveres, onde ao dia seguinte praticaria a autópsia. Pitt, não obstante, duvidava que o resultado acrescentasse novos dados a breve e triste historia que já conhecia.
Ao chegar a casa à uma menos cinco da madrugada Charlotte o aguardava no vestíbulo, ante a porta aberta da sala. Estava pálida e tinha os olhos desmesuradamente abertos.
Pitt fechou a porta. Até esse momento se esquecera por completo de que vestia ainda sua roupa de domingo e não levava casaco. Esperava voltar para casa muito antes. Tampouco tinha jantado.
— Era igual ao anterior? — perguntou com voz rouca.
— Exatamente igual — respondeu Pitt, movendo a cabeça em um gesto de assentimento.
Entrou na sala e se sentou em sua poltrona, mas inclinado, sem relaxar-se, com os cotovelos apoiados nos joelhos.
Charlotte o seguiu, fechou a porta e foi sentar se em frente a ele.
— Não me contou os pormenores do primeiro crime — disse em voz baixa. — Possivelmente deveria.
Pitt sabia que Charlotte não lhe pedia essa informação porque se acreditasse capaz de achar respostas que a ele tinham passado por cima, mas sim porque possivelmente explicando-o ele mesmo visse as coisas mais claras, como tinha ocorrido já outras vezes. O melhor que se podia fazer para pôr em ordem suas ideias era falar delas com alguém a quem não lhe importasse admitir que não compreendesse algum aspecto do problema.
Com suma atenção, aborrecendo até o último detalhe, contou-lhe como tinha sido achado o cadáver da Ada McKinley, em que estado se achava, e que torturas lhe tinham infligido. Enquanto falava, observou o rosto de Charlotte e viu dor nele, mas ela não desviou o olhar.
— E desta vez? —perguntou Charlotte. — Como se chamava a mulher?
— Nora Gough.
— E tudo coincidia exatamente?
— Sim. Os dedos quebrados de mãos e pés. A água. A liga no braço, as botas abotoadas entre si.
— Isso não pode ser uma casualidade — comentou Charlotte. — Quem conhecia todos esses detalhes além do assassino?
— Ewart, Lennox, que é o legista, Cornwallis, e o agente que achou o cadáver — respondeu Pitt. — E Tellman. Ninguém mais.
— Os jornais?
— Não.
— As mulheres que vivem na mesma casa poderiam ter falado — indicou Charlotte. — É uma reação muito comum, em especial quando a pessoa está assustada. Às vezes a angústia diminui ao compartilhá-la.
— Nem sequer elas conheciam todos os detalhes — explicou Pitt, recordando o que Rose Burke em realidade tinha visto. — Não sabiam que tinha os dedos fraturados. Tampouco Binns e Tellman sabiam, de fato.
Também ela estava jogada para frente no assento, com os joelhos e as mãos perto das do Pitt.
— Assim, foi a mesma pessoa, não? — disse com delicadeza. Não havia o menor acento de crítica em sua voz, nem medo em seu olhar, só aflição.
—Sim — respondeu Pitt, e mordeu o lábio. — Certamente.
Nenhum acrescentou que em tal caso Costigan não podia ter cometido o primeiro assassinato, mas a ideia ficou flutuando no ar, com toda sua carga de dor e culpa.
Charlotte lhe pegou as mãos.
— Foi Finlay FitzJames? — perguntou, escrutinando seu olhar.
— Não sei — respondeu Pitt com franqueza. — encontrei um lenço com suas iniciais sob o travesseiro da Nora Gough. Não eram iniciais comuns. Mas isso não prova que Finlay tenha estado ali esta tarde. —Tomou ar e o deixou escapar em um suspiro. — Não obstante, foi visto um de seus clientes. Um homem loiro e bem vestido. Em outras palavras, um cavalheiro.
— Finlay FitzJames é loiro?
— Sim. Tem um cabelo esplêndido, ondulado e muito abundante. E esta tarde a testemunha, ao descrever ao cliente da vítima, destacou esse traço em particular.
— Thomas...
A voz de Charlotte tinha mudado. Pitt soube que se dispunha a lhe dizer algo que não gostaria, algo que lhe era muito difícil revelar.
— O que?
— Emily tem a absoluta convicção de que Finlay FitzJames é inocente. Conhece sua irmã...
Pitt esperou.
— Viu-o na noite em que Ada foi assassinada — disse Charlotte, e ergueu a vista, com
a fronte franzida e os olhos muito abertos.
— Emily viu Finlay? — Pitt a olhou com incredulidade. — Por que não informou?
— Não... não. Viu-o Tallulah — corrigiu Charlotte. — Não podia contar porque já tinha mentido a seu pai sobre seu paradeiro dessa noite, já havia dito que tinha ido a outra parte. —Falava cada vez mais depressa. — Em realidade esteve em um lugar não muito recomendável. Uma festa onde a gente bebia em excesso, fumava ópio, tomava cocaína e essas coisas. Celebrou-se na Chelsea, no Beaufort Street. Não era um lugar decoroso para ela. Seu pai teria tido uma apoplexia se chegar a inteirar-se.
— Isso sim acredito — disse Pitt com convicção —, mas Tallulah viu ali Finlay? Tem certeza?
— Bom, é Emily quem tem certeza. Mas Tallulah pensava que ninguém daria crédito a sua palavra, sendo irmã do Finlay e tendo assegurado já que estava na festa de lady Swaffham.
— Mas alguém mais deve tê-lo visto! — exclamou Pitt com uma estranha e quase aterradora sensação de júbilo. Possivelmente no mínimo não se equivocou a respeito de Finlay. — Quem mais estava pressente?
— Eis aí o problema. Tallulah não conhecia ninguém, salvo ao jovem que a acompanhou, e em realidade tampouco mal o conhecia. Estava tão bebido que nem sequer recordava ter ido a essa festa.
— Sim, mas alguém deve ter visto Tallulah! — insistiu Pitt, agarrando Charlotte pelas mãos sem dar-se conta.
— Não sabe a quem perguntar. Esse tipo de festas se... enfim, celebram-se em casas particulares. Pelo visto, a pessoa perambula de sala em sala. Há biombos para maior intimidade, palmeiras em vasos de barro, gente meio ébria... Qualquer um poderia entrar e sair sem que ninguém se desse conta nem mostrasse o menor interesse. Nem sequer o anfitrião sabia quem tinham ido.
— Como soube de tudo isso? — perguntou Pitt com tom premente, tentando imaginar um ambiente como aquele. — Contou—lhe isso Emily? E suponho que a ela o disse Tallulah?
Charlotte inclinou a cabeça.
— Não acredita nisso, não é?
— Não, temo que não. Estou disposto a acreditar que Tallulah tenha estado em um lugar assim, e também Finlay, é claro. Mas me é impossível acreditar que os dois se encontrassem ali precisamente na noite que Ada McKinley morreu assassinada. Como prova de sua inocência, carece de valor.
— Isso pensou Tallulah. Mas para o Emily foi prova suficiente.
As piores suspeitas cobravam forma na mente do Pitt.
— Por que me conta isto agora, Charlotte? Quer me fazer pensar que Finlay é sem dúvida inocente? Disse que foi prova suficiente para Emily, mas não para você.
— Eu não sei o que pensar — admitiu Charlotte com franqueza. Baixou a vista por um instante e, empalidecendo, voltou a olhar para Pitt no rosto. Sentia-se desolada. — Thomas.... foi Emily quem encomendou a segunda insígnia do clube Fogo do Inferno, e Tallulah a colocou entre as coisas do Finlay para que a encontrassem.
— Como? — perguntou Pitt gritando. — O que disse?
Charlotte estava lívida mas manteve firme o olhar. Falou em voz muito baixa, quase um sussurro.
— Emily encomendou a segunda insígnia para que Tallulah a deixasse no roupeiro do Finlay.
— Santo Deus! —prorrompeu Pitt. — E você a ajudou! E logo me convenceu de que voltasse para a casa a procurá-la! Como pôde me enganar desse modo?
Era isso o que realmente lhe doía, não o fato de que tivessem introduzido provas falsas e turvado o caso, a não ser aquele engano deliberado. Charlotte nunca tinha feito algo semelhante. Era uma traição de quem jamais a teria esperado.
Charlotte, horrorizada, olhou ao Pitt com os olhos fora das órbitas, como se acabasse de esbofeteá-la.
— Eu não sabia que Emily fazia isso! — protestou.
Ao Pitt pesava muito o cansaço para encolerizar-se, e a consciência de sua própria culpa a respeito ao Costigan, e a necessidade de Charlotte e a lealdade e o consolo que pudesse lhe proporcionar, e inclusive do calor de sua presença física.
Charlotte esperava sua reação, escrutinando seu rosto. Não tinha medo, mas seu olhar refletia pesar e ansiedade. Compreendia a dor de seu marido. Agarrou-lhe a mão com ternura e firmeza.
Pitt se inclinou e a beijou uma e outra vez, e ela respondeu com a confiança e a generosidade que a caracterizavam.
Pitt lançou um suspiro.
— Embora o tivesse sabido antes, não teria retirado as queixas contra Costigan — admitiu por fim. — De fato, Augustus FitzJames declarou que ele mesmo tinha encomendado a condenada insígnia. Eu gostaria de saber por que o disse.
— Para que não continuasse investigando — sugeriu Charlotte, reclinando-se contra o espaldar.
— Mas por quê? — repetiu Pitt. Estava perplexo. Para ele não tinha sentido.
— Pelo escândalo. — Charlotte moveu a cabeça em um gesto de resignação. — É escandaloso receber à polícia em casa, seja qual for seu objetivo. Suponho que amanhã terá que voltar a visitá-lo.
— Sim — respondeu Pitt. Preferia não pensar nisso.
Charlotte ficou em pé.
— Então será melhor que nos deitemos enquanto ainda ficam umas horas de noite. Vamos.
Pitt se levantou também e apagou o abajur de gás. A seguir rodeou ao Charlotte com um braço, e subiram juntos pela escada. Ao menos durante umas horas não teria que pensar.
No dia seguinte Pitt madrugou e foi à cozinha enquanto Charlotte despertava as crianças e iniciava seus afazeres cotidianos. Gracie lhe preparou o café da manhã, lhe lançando furtivos olhares com os olhos entreabertos e um vislumbre de inquietação no rosto. Ela tinha folheado já os jornais da manhã e ouvido rumores de que se produzira um segundo assassinato no Whitechapel. Recentemente Charlotte a tinha ensinado a ler, assim sabia também quase tudo o que se escrevera a respeito, e estava disposta a defender ao Pitt ante qualquer um.
Provavelmente as edições vespertinas seriam ainda piores, pois então haveria mais notícias que oferecer, mais detalhes, mais exatidão a respeito a quem exigir responsabilidades.
Ia de um lado a outro pisando com raiva, fazendo ruído com os pratos, deixando assobiar o bule, pela indignação que lhe provocavam quem culpava ao Pitt, e pelo temor a que lhe complicassem ainda mais as coisas, e pela frustração de não saber o que fazer para ajudar. Nem sequer sabia se devia ou não mencionar o assunto.
— Gracie, acabará quebrando algo — disse Pitt com delicadeza.
— Sinto muito, senhor. —Deixou o bule com um violento golpe. — É que isto me tira do sério. Não é justo. O que têm feito eles neste assunto? Nada. Não saberiam nem por onde começar. Que tem escrito essas coisas é um estúpido, um irresponsável. — Ultimamente empregava palavras mais longas. A leitura tinha produzido grandes mudanças em seu vocabulário.
Pitt sorriu apesar de seu profundo mal-estar. A lealdade de Gracie era peculiarmente alentadora. Esperava poder estar à altura do elevado conceito que tinha dele. Mas quanto mais pensava no assunto, mais seguro estava de que tinha cometido um engano irreparável com o Costigan, de que lhe tinha passado inadvertido algo, algo importante que se tivesse compreendido a tempo teria evitado uma execução injusta.
Tomou o café da manhã sem dar-se conta sequer do que comia, e se levantou para partir quando Charlotte e as crianças entravam na cozinha. Gracie tinha escondido os jornais. Mesmo assim, pelo menos Jemima notou que ocorria algo. Olhou alternativamente a seus pais e se sentou.
— Não quero tomar o café da manhã — disse imediatamente.
Daniel se encarapitou a sua cadeira, pegou o copo de leite que Gracie lhe tinha servido e bebeu a metade. A seguir limpou a espuma branca dos lábios com a mão e anunciou que ele tampouco queria tomar nada.
— Sim vai tomar o café da manhã — se apressou a responder Charlotte.
— Há um homem na rua — disse Jemima, olhando ao Pitt. — bateu na porta, e mamãe o mandou embora. Esteve muito grosseira. Ensinou-me que não devo falar assim com ninguém. Não disse por favor, nem obrigado.
Pitt olhou para Charlotte.
— Um jornalista — esclareceu Charlotte com um forçado sorriso. — Muito impertinente. Hei-lhe dito que se fosse e não voltasse a bater na porta, ou o jogaria ao cão.
— E, além disso, mentiu — acrescentou Jemima. — Não temos cão.
Daniel parecia assustado.
— Não vai ficar com o Archie, verdade? Nem com o Angus? — perguntou, preocupado.
— Claro que não — assegurou Charlotte. Ao ver que a inquietação não desaparecia de seu rosto, acrescentou: Jogar-lhe ao cão, carinho, não quer dizer que vá fazer isso, mas sim vou ordenar lhe que lhe morda.
Daniel sorriu e estendeu o braço para o leite.
— Ah, bom! Então Archie poderia lhe arranhar — disse com otimismo.
Charlotte lhe tirou o copo.
— Se beber já todo o leite, não comerá os cereais. Esqueceu-se de seu anunciado jejum, e quando Gracie entregou a tigela de cereais, aceitou-a com entusiasmo.
Jemima estava mais preocupada. Percebia a tensão no ambiente. Brincou com a comida, e ninguém a repreendeu.
De repente soou a campainha da porta e a seguir uns fortes golpes. Gracie deixou bruscamente o bule e se encaminhou com determinação para o vestíbulo.
Charlotte olhou para Pitt, que ficou em pé, disposto a ir atrás dela.
— Alguma vez terei que enfrentar a eles — disse Pitt, desejando poder adiar até que tivesse alguma explicação que oferecer, alguma resposta ou razão. Não havia desculpas.
Charlotte abriu a boca para falar, mas guardou silêncio.
— O que acontece? — perguntou Jemima, olhando primeiro pra sua mãe e logo a seu pai. — Qual é o problema?
Charlotte apoiou uma mão no ombro da Jemima e se apressou a responder:
—Nada que deva preocupar-se. Acabe o café da manhã.
Abriu-se a porta da rua e se ouviu uma voz de homem, e imediatamente a resposta estridente e colérica de Gracie. Um momento depois soou uma portada, seguida dos retumbantes passos de Gracie no vestíbulo. Para seu pequeno tamanho, podia chegar a ser muito ruidosa quando se zangava.
—Tenha paciência! — exclamou ao entrar na cozinha, com o rosto branco e fogo nos olhos. — Quem acreditam que são? Escrevem umas quantas palavras e já se acreditam os mais preparados de Londres! Descarados!
Abriu o grifo a pleno caudal, e o jorro caiu em uma colher que havia na pia e lhe salpicou o peitilho do vestido. Tomou ar para proferir uma imprecação, mas de repente recordou que Pitt estava presente e se conteve.
Charlotte sufocou uma risada próxima à histeria.
— Suponho que era um jornalista, não Gracie?
— Sim — respondeu Gracie, tentando secar—se com um pano de cozinha sem conseguir uma melhora apreciável. — Um personagenzinho de pouca monta!
— Vale mais que vá pôr um vestido seco — sugeriu Charlotte.
— Não importa — respondeu Gracie, deixando o pano. — Aqui dentro faz calor. Não acredito que me esfrie.
Em seguida começou a mexer primeiro no pote da farinha e depois no dos frutos secos, reunindo os ingredientes para um bolo que não meteria no forno até meio-dia, mas a atividade física era uma válvula de escape para a tensão acumulada. Provavelmente depois trabalharia a massa para o pão até deixá-la fina como uma folha de papel.
Pitt sorriu com certa frouxidão, deu um beijo de despedida em Charlotte, tocou a Jemima na cabeça e ao Daniel no ombro ao passar por seu lado, e partiu para iniciar sua investigação do dia.
Jemima se voltou para a Charlotte com os olhos muito abertos.
— O que acontece, mamãe? Com quem se zangou Gracie?
— Com a gente que escreve coisas nos jornais sem conhecer toda a história — respondeu Charlotte. — Com a gente que se propõe assustar e pôr nervoso a todo mundo para vender mais jornais, sem ter em conta que com isso podem piorar muito a situação.
— Que situação?
— Que situação? — repetiu Daniel. — Está assustado e nervoso papai, como qualquer pessoa?
— Não — mentiu Charlotte, procurando com desespero a maneira de protegê-los.
O que era pior: fingir que tudo estava em ordem quando era claro que não estava, e aumentar assim seu medo porque se davam conta de que lhes mentiam; ou lhes contar parte da verdade, para que desse modo pelo menos compreendessem a causa do mal-estar e se sentissem integrados na família? Preocupariam-se e assustariam-se, mas não devido a indefinidos temores imaginários ou à sensação de estar sós e não gozar da confiança de seus pais.
Sem ter chegado a tomar uma decisão consciente, respondeu:
— Morreu outra mulher no Whitechapel, da mesma maneira que a outra que morreu faz um tempo. Possivelmente se castigou um homem que não tinha feito nada. A gente está muito desgostada por isso, e às vezes quando um se zanga ou tem medo, quer jogar a culpa em alguém. Assim tudo parece mais fácil.
Jemima estava confusa.
— Por que parece mais fácil?
— Não sei. Mas recorda quando tropeçou com a cadeira e machucou um dedo do pé?
— Sim. Pôs-me azul, amarelo e verde.
— Recorda o que sentiu?
— Doeu-me.
— Disse que tinha sido minha culpa. —Daniel entreabriu os olhos e olhou acusadoramente a sua irmã. — Não foi minha culpa. Eu não deixei ali a cadeira. Teve você a culpa, por não olhar por aonde ia.
— Mentira! — protestou Jemima, indignada.
— Vê-o ? — atravessou Charlotte. — É mais fácil zangar-se que admitir sua estupidez.
No rosto de Daniel apareceu um radiante sorriso de triunfo. Por uma vez sua mãe tinha tomado partido, e ele tinha ganhado a briga.
Jemima parecia zangada. Olhou a seu irmão com um brilho de mau gênio nos olhos.
—A questão é — prosseguiu Charlotte, compreendendo que o exemplo não tinha sido muito afortunado — que quando a gente está preocupada, acaba zangando-se. Agora estão preocupados porque morreu outra mulher, e assustados porque possivelmente castigaram ao homem que não deviam, assim, além disso, se sentem culpados. Procuram a alguém com quem zangar-se, e papai parece a pessoa mais indicada porque foi ele quem pensou que o homem que castigaram tinha matado essa mulher. E agora acreditam que não foi ele.
— Equivocou-se papai? — perguntou Jemima com uma profunda ruga entre as sobrancelhas finas e suaves.
— Ainda não sabemos. É difícil entender. Mas é possível. Todos cometemos enganos.
— Papai também? — perguntou Jemima com expressão séria.
— Claro.
— Zangarão-se muito com ele?
Charlotte vacilou. Era melhor acautelá-la? Uma mentira piedosa repercutiria negativamente nela ao cabo do tempo e agravaria a ferida? Ou estava lhes criando um temor desnecessário, esperando muito deles? Desejava protegê-los acima de tudo. Mas no que consistia o amparo? Na verdade ou na mentira?
— Mamãe? — disse Jemima. Sua voz começava a delatar medo.
Daniel a observava atentamente.
— Pode ser que se zanguem — respondeu, olhando-a nos olhos —, Mas estarão equivocados, porque papai tem feito o melhor que podia fazer-se. E se se cometeu um engano, era de todos, não só dele.
—Ah — disse Jemima. — Já o entendo.
Voltou-separa seu café da manhã e seguiu comendo pensativamente.
Daniel olhou para sua irmã e depois para sua mãe, respirou fundo e continuou também com seu café da manhã.
— Hoje lhes acompanharei eu ao colégio — anunciou Charlotte com decisão. — Faz um dia lindo, e gosto de passear.
Se havia mais jornalistas esperando fora, ou na rua ouviam alguma classe de comentários, preferia que Gracie não se encetasse em uma batalha campal estando as crianças diante. Exigiria-lhe um notável esforço não perder a calma.
Entretanto a situação não ficou realmente desagradável até que apareceram as edições vespertinas. Alguém tinha filtrado à imprensa um acidentado relato do assassinato da Nora Gough, com uma pormenorizada descrição dos sintomas e os efeitos de uma asfixia por estrangulamento. Nesta ocasião as fraturas, as botas e a água não se omitiram. Não faltava um só detalhe, e naturalmente se estabelecia um claro paralelismo com o assassinato da Ada McKinley. Os artigos incluíam grandes fotografias de Costigan com aspecto áspero e amedrontado, só que agora sua carrancuda expressão não se interpretava como depravação, mas sim como terror ante a falha da falsa justiça, debaixo de cujas rodas perecia esmagado o homem comum. Em todos eles apareciam frequentes menções ao Pitt, considerado o principal responsável pelo enforcamento do Costigan, insultando-o por isso como em nenhum momento o tinham elogiado pela detenção inicial.
Charlotte saiu à rua e avançou pela calçada consciente de que os vizinhos espiavam e murmuravam atrás das cortinas. Pouco lhe importavam os lanches a que deixaria de ser convidada, a gente que não a veria até tendo-a em frente, os súbitos e urgentes compromissos pretextados quando ela se aproximasse. Toda sua indignação se devia às consequências que aquilo conduziria ao Pitt e a seus filhos. Teria os defendido com unhas e dentes se tivesse havido alguém contra quem arremeter.
Dadas às circunstâncias, limitou-se a continuar caminhando pela calçada com a cabeça erguida, sem prestar atenção ao que ocorria a esquerda e direita, e ao dobrar a esquina quase tropeçou com o velho comandante Kidderman, que passeava com seu cão.
— Desculpe — se apressou a dizer. — Sinto muito.
Dispunha-se a seguir quando ele falou.
— As tribulações do comando, querida — disse, tocando a asa do chapéu. — É duro, mas para isso estamos — acrescentou, e sorriu timidamente.
— Obrigada, comandante. Muito obrigada por... — Não soube se lhe agradecer sua amabilidade ou sobre suas palavras. Nem o um nem o outro lhe pareceu apropriado. — Obrigada — repetiu sem convicção, mas lhe devolveu o sorriso com repentino e sincero afeto.
Recolheu a Daniel e Jemima do colégio, e juntos retornaram a casa. Uma jovem mal —encarada cruzou à outra calçada ao vê-los com expressão de profundo desagrado. Uma mulher com três crianças passou apressadamente por seu lado, evitando o olhar do Charlotte. A menor, com um vestido de babados, parou para falar com Jemima, e sua mãe lhe ordenou com severidade que seguisse adiante e não perdesse tempo.
Na esquina um vendedor de jornais gritava as últimas notícias.
— A polícia se equivocou de homem! Novo assassinato no Whitechapel! Costigan inocente! Leiam tudo sobre o caso! Outro horrível assassinato no Whitechapel! Charlotte passou rapidamente por seu lado, desviando o olhar. Embora em realidade o moço não lhe tivesse oferecido um jornal nem tivesse esperado que ela o comprasse. Caminhava tão depressa que as crianças tinham que correr para não atrasar-se. Ao chegar a sua casa, subiu precipitadamente pela escadaria e empurrou a porta com tal força que ricocheteou contra o batente do chão. Gracie estava na cozinha, com um pau de macarrão de amassar entre as mãos. Sua irritação era tal que mal podia falar. Ao ver que quem tinha entrado era Charlotte sentiu um manifesto alívio.
Charlotte pôs-se a rir, mas imediatamente a risada se converteu em pranto. As crianças passaram uns momentos de temor até que ela conseguiu controlar-se e enxugou as lágrimas. Sorveu o nariz e foi atrás de um lenço.
— Lave as mãos deles antes de lanchar — disse. — Depois podem ler um conto.
Pitt teve um dia muito mais desagradável. Primeiro passou pela delegacia de polícia do Whitechapel para saber se havia alguma novidade antes de ir falar com Finlay FitzJames. Não havia nada. Todo mundo estava pálido e abatido. Ninguém tinha duvidado da culpa do Costigan. Em realidade, muito poucos estavam a favor da forca, mas a aceitavam. Sempre tinha sido esse o preço do crime. E de repente sentiam uma estranha culpa coletiva. Responsabilizava-se do engano a todo o corpo de polícia, e não só os jornais, mas também os cidadãos comuns. Tinham cuspido a um agente; a outro o tinha seguido e insultado uma vociferante multidão de jovens indignados. Ao agente Binns tinham jogado uma garrafa de cerveja, que se tinha feito em pedacinhos contra a parede justo em cima de sua cabeça.
Naquela manhã, sob a luz fria e intensa, estavam todos muito sérios e muito confusos.
Ewart chegou mal barbeado, com um corte na face, a pele tensa e escuras olheiras.
— Alguma novidade? — perguntou Pitt.
— Não — respondeu Ewart sem voltar sequer a cabeça para olhar ao Pitt nos olhos.
— Trouxe Lennox seu informe?
— Ainda não. Está nisso.
— E quanto às outras testemunhas?
— Localizamos duas. Não muito contentes. — Ewart esboçou um amargo sorriso. — Não é fácil explicar à esposa, ou a irmã no caso do Kale, que a polícia quer interrogá-lo como possível testemunha de um assassinato em um bordel. Duvido muito que Sydney Allerdyce tenha um jantar decente na mesa durante anos. — Sua voz não refletia pesar, mas de fato certa satisfação.
— Viram alguém? — perguntou Pitt, abordando o único ponto que importava.
Ewart vacilou.
—A quem viram? — insistiu Pitt com tom premente, perguntando-se o que ocultava Ewart e temia lhe revelar. — Ao FitzJames?
Ewart deixou escapar um suspiro.
— A um jovem de cabelo loiro e abundante, estatura média, e bem vestido — respondeu, escrutinando o rosto do Pitt. — Não tem por que ser ele — acrescentou, e uma expressão de irritação apareceu fugazmente em seu rosto, irritação consigo mesmo por ter expresso esse pensamento.
— Certamente Albert Costigan não era — replicou Pitt. — Viram entrar ou sair da casa a alguma outra pessoa?
— Não. Ou ao menos não o recordam. Só às mulheres que vivem ali.
— E os vizinhos ou gente de passagem pela rua? Vendedores ambulantes ou prostitutas? Viu alguém algo?
— Nada que nos sirva — respondeu Ewart, irritado. — Interroguei a um carreteiro que esteve carregando perto dali a essa hora. Só viu gente na rua. Ninguém que entrasse ou saísse da casa. Perguntei também a um par de prostitutas, Janie Martins e Ela Baker, que rondavam pela zona procurando clientela. Só viram os homens que levaram a seus quartos, e nenhum esteve perto da casa. De fato, Ela nem sequer passou pelo Myrdle Street.
— Muito bem, mas é claro que alguém entrou e saiu. Nora Gough não pôde fazer uma coisa assim ela sozinha. Volte para a zona e siga tentando-o. Eu vou ver FitzJames. Imagino que estará me esperando.
Abriu a porta da casa do Devonshire Street o cordial mordomo de sempre, mas desta vez com expressão muito grave, embora sem chegar a ocultar por completo a natural simpatia de seu rosto.
— Bom dia, senhor Pitt — saudou, abrindo a porta de par em par para deixá-lo entrar. — Um tempo delicioso, não lhe parece? Acredito que outubro é meu mês preferido. Suponho que deseja ver o senhor FitzJames. Está no gabinete. Se for amável de me seguir?
Sem aguardar sua resposta, voltou-se e lhe mostrou uma vez mais o caminho. Passaram ante um magnífico quadro de uma cena portuária da cidade holandesa do Delft e chegaram ao corredor onde se achava o gabinete. Bateu na porta e entrou imediatamente.
— O senhor Pitt, senhor — anunciou, e se afastou para deixar passagem ao Pitt.
Augustus se achava de pé ante a lareira, apesar do o fogo não estar aceso. Pitt nunca antes o tinha visto de pé. Em suas anteriores conversas nunca se levantara. Tinha os ombros arredondados e o ventre já um pouco proeminente, levava um traje de excelente corte e o colarinho da camisa alto e engomado. Em seu alongado rosto, dominado pelo pronunciado nariz, percebia-se uma expressão hostil.
—Entre — ordenou que. — Supôs que viria, e o esperei. E agora vai dizer-me que enforcaram quem não deviam, ou vai afirmar que o crime de ontem o cometeu um segundo lunático?
— Não vou afirmar nada, senhor FitzJames — respondeu Pitt, a ponto de perder a calma. Poucas vezes tinha desejado tão intensamente responder às ofensas de alguém. Só a absoluta convicção de que depois lhe pesaria na consciência lhe permitiu conter-se.
— Surpreende-me que tenha facilitado tanta informação à imprensa — comentou Augustus com aspereza e uma curiosa expressão de brincadeira nos olhos. — Teria imaginado que por seu próprio interesse diria o menos possível. É você mais néscio do que pensava. Pitt detectou medo em sua voz. Era a primeira vez que o percebia, e se perguntou se Augustus seria também consciente. Possivelmente era essa a causa de sua cólera.
— Eu nem sequer falei com a imprensa — respondeu Pitt. — Não sei quem filtrou essa informação, e se foi uma das mulheres que vivem na casa do Myrdle Street, nada pode fazer-se. É melhor que nos dediquemos a descobrir a verdade, e demonstrá-la, que nos lamentar do conhecimento público deste segundo crime e sua semelhança com o primeiro.
Augustus o olhou fixamente, atônito tanto por sua brusquidão como por quão certas eram suas palavras. O comentário o obrigou a abandonar a discussão e confrontar a realidade de seu próprio perigo. Não podia perder tempo em recriminações, e menos contra a pessoa que mais podia ajudá-lo ou prejudicá-lo. O esforço que lhe representou ocultar seus sentimentos se refletiu claramente em suas obstinadas feições.
— É de supor que o primeiro crime foi igual — disse lentamente, olhando ao Pitt nos olhos. — Não recordo ter lido todos esses detalhes nos informe sobre a morte da Ada McKinley.
— Não se publicaram — respondeu Pitt.
— Ah. — Endireitou os ombros. — Quem mais os conhecia?
— Além do assassino — Pitt se permitiu um indício de ironia na expressão —, eu, o inspetor Ewart, o agente que achou o cadáver e o legista que a examinou.
— E as outras mulheres da casa?
— Não que eu saiba. Não tiveram ocasião de entrar no quarto.
— Tem certeza? — perguntou Augustus, erguendo a voz, como se albergasse alguma esperança. — Ao fim e ao cabo, estavam ali. Possivelmente a viram e o contaram... não sei... —Sacudiu os ombros em um gesto de irritação. — Possivelmente o contaram aos homens com quem se relacionaram Talvez alguém copiou intencionalmente o primeiro crime.
— Com que propósito? Costigan não podia ser acusado também do segundo — observou Pitt. — De todos quantos se viram implicados no caso, só dele pode afirmar-se sem dúvida que é inocente da morte da Nora Gough.
—Tome assento. — Augustus indicou uma poltrona com um gesto brusco, como se atirasse um golpe. Ele, entretanto permaneceu de pé, de costas à lareira e com as mãos cruzadas atrás. — Desconheço a razão. Talvez seja uma simples manobra para desacreditar e deixar em ridículo à polícia.
— Ninguém assassina mulheres para deixar em ridículo à polícia — respondeu Pitt, ficando de pé. — Existia uma razão pessoal para matá-la, muito pessoal de fato. Tinha os dedos das mãos e os pés fraturados ou deslocados, senhor FitzJames. Isso é muito doloroso. É uma forma de tortura. — Passou por cima a careta de aversão do Augustus. — Antes a ataram à cama com uma de suas meias, e depois lhe jogaram água por cima. As botas estavam abotoadas entre si, e tinha uma liga no braço. Ninguém faz uma coisa assim a menos que albergue em seu interior uma violenta paixão, e não uma razão indireta como deixar em ridículo a alguém. Augustus estava muito pálido, quase cinza, e tinha a enrugados pronunciado nariz e a boca, como se em questão de horas tivesse envelhecido dez anos.
— Estou de acordo, delegado, em que é uma atrocidade. Uma conduta imprópria de um homem civilizado. Anda atrás dos passos de uma espécie de animal, um ser apenas humano. Desejaria poder ajudá-lo mais, mas essa classe de assuntos escapam a meus conhecimentos. Espero que desta vez não tenha encontrado nada de meu filho? — O tom interrogativo era meramente retórico, pois se percebia certeza em sua voz.
— Infelizmente, senhor FitzJames, encontramos isto — disse Pitt. Tirou de seu bolso o lenço e o estendeu ao Augustus para que visse as iniciais bordadas.
Por um momento Pitt pensou que Augustus ia desmaiar. Balançou-se ligeiramente e estendeu um braço para o lenço, sem chegar a tocá-lo; imediatamente teve que estender também o outro braço para manter o equilíbrio.
— Vejo... vejo as iniciais, delegado — disse com voz severa e tensa. — Admito que não são comuns. Mas isso não significa que esse lenço seja de meu filho. E certamente tampouco significa que ele o deixasse ali. Espero que tenha chegado você a essa mesma conclusão. —Pela primeira vez seu tom de voz não entranhava ameaça alguma, só uma mescla de súplica e desafio, a vontade de fazer quanto estivesse a seu alcance para impedir o desastre que se abatia sobre sua família.
Apesar da antipatia pessoal que Augustus lhe inspirava, Pitt era não obstante capaz de compadecer dele. Desejou poder estar mais seguro do que achava a respeito da culpa do Finlay.
— Sou consciente disso, senhor FitzJames — admitiu. — O problema estriba em descobrir quem pôde deixar os objetos pessoais de seu filho com tal premeditação primeiro no cenário do assassinato da Ada McKinley e agora no da Nora Gough... e por que. Temo-me que será necessário realizar uma investigação a fundo sobre todos aqueles que se consideram inimigos seus. Seria absurdo pensar que seu filho foi escolhido ao acaso.
Augustus tomou ar e o expulsou em um suspiro.
— Se você o diz, delegado. — Entreabriu os olhos. — me Permita que lhe pergunte como conseguiu uma condenação contra Albert Costigan se, como agora parece, não era culpado. Não... não o digo com ânimo de crítica. Acredito que é algo que precisamos saber, ou que eu preciso saber. Esta tragédia se converteu agora em uma grave ameaça para minha família.
— Isso receio — concordou Pitt. Tirou o botão do bolso e o mostrou também ao Augustus.
Augustus o pegou e o examinou.
— Um botão muito comum — disse, e ergueu de novo a vista para olhar ao Pitt. — Acredito que eu não tenho nenhum igual, mas os vi em uma dúzia de homens pelo menos. Não demonstra nada, salvo que alguém com bom gosto esteve ali. — Seu rosto se crispou. — Ou para ser mais exato, com bom gosto no vestir.
— Também há testemunhas — continuou Pitt, atirando o golpe final. — O último cliente da vítima era um jovem de estatura média, cabelo loiro e abundante, e bem vestido.
Augustus não se incomodou em indicar que muitos jovens coincidiam com essa descrição.
— Compreendo. Como é lógico, já perguntei a meu filho onde esteve ontem à tarde. Suponho de qualquer modo que quererá ouvi-lo você mesmo dele.
— Se não lhe importar...
Augustus fez soar a campainha. Quando apareceu o mordomo, enviou-o pelo Finlay. Aguardaram em silêncio.
Finlay chegou ao cabo de uns minutos. Entrou e fechou a porta. Vestia-se com roupa informal; obviamente se tinha trocado ao retornar do Foreign Office, se é que tinha estado ali. Parecia assustado, e a cor se distribuía por sua pele de maneira irregular, como se tivesse bebido a noite anterior e padecesse ainda os efeitos. Olhou primeiro para seu pai e depois para Pitt.
— Bom dia, senhor FitzJames — saudou Pitt com calma. — Perdoe o aborrecimento, mas por desgraça me vejo na obrigação de lhe perguntar onde esteve ontem à tarde entre as três e as seis.
— No Myrdle Street não, certamente! — replicou com voz vacilante, como se não soubesse mostrar-se indignado, autocompadecer-se, ou tomar à ligeira, como se aquilo não fosse com ele. Só o medo o era evidente.
— Onde esteve? — repetiu Pitt.
— Às três não tinha saído ainda do Foreign Office — respondeu Finlay. — Parti por volta das quatro e meia, ou um pouco mais tarde. Depois fui dar um passeio pelo parque. —Ergueu o queixo e olhou ao Pitt tão diretamente nos olhos, que este esteve quase certo de que mentia. — Tinha ficado ali com uma pessoa, por razões de trabalho, mas não apareceu. Esperei um momento e depois fui a um restaurante para comer algo antes de ir ao teatro. Nem sequer me aproximei do Whitechapel.
—Pode demonstrá-lo? — perguntou Pitt, convencido de que não poderia. Se tivesse tido um álibi, Augustus o teria dito a princípio, e além disso com tom triunfal. Poderia haver-se liberado do Pitt imediatamente, sem necessidade de solicitar sua ajuda. O medo que tinha percebido em sua voz era a resposta.
—Não, acredito que não. O... o assunto era um favor a um amigo, que se tinha metido em um problema estúpido — explicou Finlay, estendendo-se mais do que o necessário. — Um problema de dinheiro, com uma mulher no meio... tudo bastante sórdido. Eu pretendia ajudá-lo a resolver a questão de uma vez por todas sem que ninguém visse manchada sua reputação. Não tinha muito interesse em que me visse nenhum conhecido. Não parei para falar com ninguém.
— Compreendo. — Pitt só compreendia a inutilidade de tudo aquilo. — Este lenço é seu, senhor FitzJames?
Estendeu-lhe o lenço achado sob o travesseiro da Nora Gough.
Finlay não o tocou.
— Poderia ser. Tenho pelo menos meia dúzia como esse, igual a quase toda a gente que conheço.
— Com as iniciais FFJ em um canto?
— Não, não.... claro. Mas... em um lenço... — Tragou saliva. — Em um lenço podem bordar-se as iniciais que a pessoa deseje. Que leve essas iniciais não quer dizer que seja meu. Encontrou-o, suponho, perto da nova vítima, não? Sabia. Vi-o em seu rosto. — Elevava gradualmente o volume de voz. — Eu não a matei, delegado! Não conhecia essa mulher de nada, e nunca estive no Myrdle Street. Algum... demente... se propôs me arruinar a vida, e antes que o pergunte, direi-lhe que não tenho a mais remota ideia de quem possa ser... nem por que o faz. Eu... —Não terminou o que ia dizer. — Possivelmente deveria indagar entre os amigos do Albert Costigan. Alguém tentou incriminar aos dois, delegado, nos fazer aparecer como assassinos, e a você como um incompetente... e de maneira indireta também como um assassino. — Em seus olhos brilhou uma faísca de vitória e desafio. — Acredito que tanto em seu interesse como no meu lhe convém averiguar quem é e levá-lo ante a justiça. Se pudesse ajudá-lo, faria-o, mas não saberia por onde começar. Sinto muito.
— Começaremos reconsiderando a todos aqueles que poderiam ter algum motivo de rancor contra você, senhor FitzJames — respondeu Pitt. — E continuaremos com aqueles para quem você possa ser um obstáculo do ponto de vista profissional ou pessoal. E possivelmente voltemos a indagar nas vidas dos sócios do clube Fogo do Inferno.
— Isso não posso fazer! — protestou Finlay com veemência, desaparecendo no ato seu momentâneo júbilo. — Fomos bons amigos. Eles não são essa espécie de gente, nada mais longe. Os amigos da juventude são... Enfim, não foi nenhum deles, asseguro. Pensarei nas outras possibilidades e lhe prepararei uma lista.
—Eu também — acrescentou Augustus. — Conte com nossa total colaboração, delegado. — A sombra de um sorriso apareceu em seus insípidos lábios. — Nos une um interesse comum, ao menos nesta ocasião.
Pitt não podia menos que estar de acordo.
—E premente — acrescentou com tristeza. — Obrigado. —voltou-se para Finlay. — Obrigado, senhor FitzJames.
Na imprensa do dia seguinte às manifestações de repulsa foram muito mais encarniçadas. Não só os jornais menos sérios publicaram manchetes sensacionalistas, mas inclusive também The Time pôs em interdição a imparcialidade do processo contra Costigan, e de passagem a eficácia da polícia e até sua honradez.
Mais adiante no mesmo jornal outro artigo voltava a analisar as provas apresentadas no julgamento, chegando à conclusão de que parte delas eram moralmente suspeitas, apoiadas mais no desejo de inculpar ao Costigan que na realidade. Toda a investigação, insinuavam, podia ter se efetuado, mais que com genuína preocupação pela justiça, com o objetivo de achar logo a um culpado, e economizar assim à polícia — e a quantos a respaldavam em benefício de sua reputação política — o abafado de sua própria inépcia. Costigan tinha sido a vítima destes interesses tão indignos de admiração.
Vários jornais menos sérios chegavam a afirmar que os policiais à frente do caso tinham sido ameaçados ou subornados para que atuassem da maneira mais expedita possível. Comparavam ao Pitt com o desventurado inspetor Abilene, que tinha sido incapaz de resolver a anterior série de assassinatos no Whitechapel, e com o Warren, o então chefe de polícia, obrigado a aposentar-se antecipadamente por esse mesmo fracasso.
Publicavam várias cartas onde se pedia que se concedesse ao Costigan a absolvição a título póstumo, e se indenizasse generosamente a seus parentes, em caso de achar a algum, por sua injusta morte.
Pitt voltou a dobrá-los depois de lê-los. Gracie os arrancou das mãos, e os teria jogado ao fogo se não soubesse que tanta cinza de papel acabaria afogando-o, com o que teria tido que limpar tudo e acendê-lo de novo.
Charlotte guardava silêncio. Sabia que Pitt era de sobra consciente de tudo o que podia dizer-se sobre aquilo, que não era muito. Sabia deste modo que tinha atuado honestamente, mas se tivesse insistido nisso naquele momento, teria dado a impressão de que no fundo o punha em dúvida. Sua maior preocupação era proteger Daniel e Jemima. Não podia fazer nada para evitar ao Pitt seu sofrimento, salvo compartilhá-lo com ele e ao mesmo tempo não exteriorizá-lo muito.
Hesitou em enviar as crianças ao colégio, ou deixá-las em casa ao menos por um dia. Se não fossem, não ouviriam comentários, nem padeceriam a perseguição ou as perguntas de outras crianças ou as pessoas da rua. Ela não podia ficar a seu lado todo o dia para defendê-los ou lhes explicar o que queriam dizer as pessoas, por que estavam zangados e qual era seu engano.
Inclusive podia levá-lo s a casa de sua mãe durante uma temporada. Ali estariam a salvo, amparados pelo anonimato. Uma ou duas semanas sem colégio não suporiam um grave atraso. Ficariam em dia assim que aquele odioso assunto terminasse, e a verdade viesse à luz.
Mas e se não chegavam a descobrir? E se ocorria o mesmo que com o Estripador, e o mistério ficava sem resolver? Era uma possibilidade. Pitt era muito sagaz. Nunca desistia. Mas não resolvia todos seus casos. Nunca tinha fracassado com um assassinato; mas tinha investigado roubos, fraudes, incêndios provocados, nos quais não se recuperaram os bens nem se praticara detenção alguma.
Não obstante, se levasse as crianças a casa de Caroline, estaria lhes ensinando que quando as coisas ficavam difíceis ou lhes davam medo, o melhor era fugir e esconder—se. A origem desse medo podia desaparecer enquanto isso, e não haver depois necessidade de confrontá-lo.
Mas se finalmente devia-se confrontá-lo de todo modo, era duplamente duro. Não só se demonstrara a outros a própria covardia, mas também a pessoa mesma chegava a acreditar que era um covarde.
— É hora de ir ao colégio — se ouviu dizer a si mesma ainda antes de saber que tinha tomado uma determinação. Ergueu a vista e viu que Pitt a observava. Seu semblante era inescrutável. Ignorava se aprovava ou não sua decisão. — Acompanharei-os eu. Vamos.
Pitt passou o dia no Whitechapel, e foi um dos piores de sua vida. Voltou a interrogar a todas as mulheres da casa do Myrdle Street em um esforço por averiguar algo mais sobre a Nora Gough. Conheciam-se acaso ela e Ada? Brigou com alguém? Tinha existido alguma relação entre ela e Costigan? Tinha emprestado ou pedido dinheiro? Tinha dado motivos a alguém para matá-la?
Seu cafetão era um indivíduo corpulento de cabelo negro e encaracolado, aspecto paternal e mau caráter. Mas várias testemunhas fidedignas podiam corroborar seu álibi. Além disso, parecia sinceramente aflito pela morte da Nora. Era sua melhor garota, proporcionava-lhe uma parte substancial de seus ganhos, e não causava problemas.
Na última hora da manhã, quando passava pelo Commercial Road East, tropeçou com uma alarmante multidão de homens e mulheres congregada frente a uma dos maiores tavernas da zona. Um deles começou a gritar:
— Uma ovação para o Bert Costigan! Três hurras pelo Albert Costigan!
— Hurra pelo Costigan! — prorrompeu outro, e imediatamente estendeu o exemplo e se ouviu um coro de aclamações.
— Morreu por culpa dos ricos que vêm aqui servir-se de nossas mulheres! — declarou outro indivíduo gritando.
— E às assassinar! — acrescentou alguém, e suas palavras foram acolhidas com entusiásticos vivas.
— Era inocente! — exclamou uma mulher de cabelo claro. — O penduraram sem razão!
— Penduraram-no por ser pobre! — retificou um homem gordo com veemência e um vislumbre de cólera. — Deve-se pendurar a eles!
—Vamos! Vamos! — O taberneiro saiu à porta com um trapo na mão e o avental torcido. — Aqui não queremos problemas. Parte para casa com os seus. Não digam disparates.
Uma jovem com falta de alguns dentes abriu passagem a empurrões até a primeira fila.
— Quem diz aqui disparates, né? Penduraram Bert Costigan por algo que não tinha feito. Isso não vai com você, né? A gente bebe e te paga seu bom dinheiro, e isso o traz sem cuidado que pendurem a um por culpa de algum ricaço filho de má mãe que vem aqui de seu elegante casa do West End e assassina nossas mulheres. Isso lhe parece bem, não?
—Eu não disse isso — protestou o taberneiro.
Mas a essas alturas tudo eram gritos e empurrões, e um moço foi derrubado com um golpe. Imediatamente se organizou uma refrega, e em questão de segundos meia dúzia de homens trocavam murros.
Pitt interveio, tentando separá-los e evitar que se fizessem feridos, especialmente entre as mulheres, que tinham começado a gritar. Em um primeiro momento pensou que era por medo, mas logo descobriu — muito tarde, quando estava já no meio do tumulto — que eram gritos de estímulo e raiva.
Alguém gritava o nome do Costigan como uma espécie de hino de guerra.
Choviam golpes em Pitt em todas as direções. O taberneiro estava no meio do torvelinho.
Soou o apito de um policial, e alguém gritou.
A briga se recrudesceu. Pitt saiu despedido para sua esquerda, chocou—se com o taberneiro e ambos caíram sobre um jovem ruivo com o nariz ensanguentado. Chegaram mais agentes de polícia, e a briga se interrompeu. Três homens e duas mulheres foram detidos. Oito pessoas ficaram feridas de diversas gravidade. Alguém tinha sofrido uma fratura de clavícula. Dois necessitaram vários pontos de sutura.
Pitt acabou com múltiplos machucados, e com o colarinho da camisa arrancado, o cotovelo da jaqueta rasgado, e coberto de pó e manchas de sangue.
Naturalmente os jornais vespertinos ecoaram o fato, adicionando abundantes comentários e críticas, além de novas petições de absolvição para o Costigan e sérias dúvidas sobre a estrutura e justificação da polícia em geral, e sobre o Pitt em particular.
Estabeleceram-se comparações entre aquele caso e os assassinatos do Whitechapel ocorridos dois anos atrás, e nenhum dos dois mereceu louvores.
Pressagiavam-se novos distúrbios e alterações da ordem pública.
Pitt voltou para casa ao redor das sete, exausto, machucado em corpo e alma, sem saber sequer para onde dirigir seus passos. Não tinha a mais vaga noção de quem tinha assassinado a nenhuma das duas mulheres, nem de onde encaixavam Costigan e Finlay FitzJames em todo aquilo, se é que encaixavam em algum lugar.
Reconheceu a carruagem da Vespasia frente à casa e não soube se alegrava-se ou se lamentava. Não desejava que o visse em suas horas baixas. Estava cansado e sujo e levava o traje feito farrapos. Atribuía-lhe um grande valor ao bom conceito que Vespasia tinha dele. Preferia que o considerasse capaz de superar uma crise e um fracasso como aqueles. Por outra parte, viria-lhe bem ouvir seus conselhos, ou simplesmente vê-la e perceber sua fortaleza e determinação. A coragem era tão contagiosa como o desespero, ou possivelmente mais. Surpreendeu-lhe, entretanto achar na sala também Cornwallis, taciturno e inquieto.
Charlotte se levantou imediatamente, sem lhe dar tempo sequer a saudar.
— Deve estar cansado e morto de fome — disse, indo direita para ele. — Acima há água quente, e o jantar estará pronto dentro de meia hora. A tia Vespasia e o senhor Cornwallis nos acompanharão. Logo teremos tempo de falar.
Era quase como se o tivesse expulsado, mas Pitt o aceitou de bom grado. Sabia que sua roupa tinha ficado impregnada do fedor do lixo, cerveja derramada, imundície da rua onde se havia visto envolvido na briga, e o suor da gente que ali formava redemoinhos. Inclusive o medo e a ira pareciam haver-se encravado nele.
Desceu ao cabo de trinta minutos, ainda exausto e intumescido, com o rosto salpicado de hematomas, mas limpo e disposto a confrontar a inevitável conversa.
Começou assim que se serviu o primeiro prato. Nenhum deles desejava andar com afetação.
— Em relação com este assunto, há duas frentes que devemos abordar — disse Cornwallis, inclinando-se ligeiramente sobre a mesa. — Devemos fazer todo o possível por descobrir e demonstrar quem matou à segunda mulher. E devemos deixar claro que a detenção do Costigan se apoiou em provas sólidas, obtidas de maneira legítima, e que o julgamento foi levado a cabo com toda imparcialidade. — Apertou os lábios. — Não sei como é possível creditar que não ocultamos provas que implicassem a outra pessoa. —Baixou a voz e cravou o olhar nas flores do vaso azul que adornava o centro da mesa. — Temo que tenhamos cometido...
— Eu não sinto especial carinho pelo Augustus FitzJames — o interrompeu Vespasia com firmeza, olhando primeiro para Pitt e depois para Cornwallis. — Mas trazer a luz as provas contra seu filho provocaria uma histeria coletiva que, além de ser injusta, dificultaria mais ainda a investigação. E deixando de lado minha opinião sobre ele, e certamente também sua moralidade, não desejo que lhe castigue por algo que não fez. —Tristemente acrescentou: Mesmo que ninguém o castigue pelo que tem feito.
Cornwallis a observou com expressão séria, sopesando suas palavras, e depois se voltou para o Pitt.
— Em que medida está comprometido Finlay FitzJames neste segundo crime? Primeiro me diga o que sabe e depois me dê sua opinião.
Começou a comer lentamente sua pequena porção de peixe. Tão atento esperava a resposta do Pitt que era impossível adivinhar se sabia o que continha seu prato.
Pitt explicou o que tinha encontrado exatamente no quarto da Nora Gough, e a que tinha dedicado Finlay a tarde do domingo, segundo sua própria versão.
Uma vez retirados os pratos, serviu-se empanada de carne e rins com verduras. Gracie ia e vinha em diligente silêncio, mas sabia quem era Cornwallis e o observava com receio, como se temesse que de um momento a outro fosse converter se em uma ameaça para sua querida família.
Cornwallis não parecia consciente dos frequentes olhares que lhe lançava, voltando para ele seu rosto miúdo e acordado. Seguia absorto nas explicações do Pitt.
— E sua opinião? — perguntou Cornwallis assim que Pitt terminou.
Pitt refletiu. Sabia que Cornwallis atribuiria grande valor a suas palavras, e possivelmente apoiaria nelas suas ações e seu parecer.
— Eu estava convencido da culpa do Costigan — respondeu ao cabo de um momento. — Não ficou demonstrada além de toda dúvida, mas ele confessou. Entretanto não cheguei a entender por que tinha agido de uma maneira tão brutal com a Ada. Essa parte a negou até o final. — Recordou o rosto do Costigan e lhe revolveu o estômago. — Era um indivíduo desprezível, pusilânime e relaxado, mas não percebi nele a veia sádica que o teria impulsionado a lhe quebrar os dedos.
— Ela ficava com uma parte dos lucros a suas custas — disse Cornwallis com receio. — Ele considerava a Ada de sua propriedade, assim devia ver o engano como uma espécie de traição. Os homens fracos podem chegar a ser muito cruéis. —Contraiu o rosto. — conheci casos assim na marinha. Certos homens, assim que possuem um pouco de poder, cometem toda classe de abusos com seus inferiores.
—Sim, Costigan era propenso aos abusos, certamente — admitiu Pitt. — Mas a liga e as botas! Isso não corresponde a uma perversidade comum. Não parece fruto do mau gênio... mas bem...
—Algo premeditado — apontou Charlotte.
— Sim.
— Assim, tinha dúvidas sobre a culpa do Costigan? — disse Cornwallis com visível desassossego, mas não com tom acusador. Tinha exercido o mando na marinha durante muitos anos, e outorgava a sua tripulação a mesma lealdade que esperava em troca deles. Com essa confiança tinha confrontado, e voltaria a confrontar, o que lhe proporcionassem as forças da natureza e os canhões inimigos.
—Não. — Pitt o olhou nos olhos com franqueza. — Não tive a menor duvida. Simplesmente pensei que me escapava algum traço de sua personalidade. — Tentou desesperadamente recordar com clareza suas próprias sensações enquanto falava com Costigan, via seu rosto, percebia seu terror e autocompaixão. Até que ponto tinha atuado honestamente? Em que medida se deixou influir pelo alívio e a determinação de resolver o caso para poder escapar da temível perspectiva de ter que processar ao filho do Augustus FitzJames? Com a vista fixa em Cornwallis, acrescentou: Costigan não negou que a tivesse matado.
A comida permanecia quase intacta nos pratos. Gracie estava de pé junto à porta da cozinha com um pano limpo na mão para sustentar os pratos quentes, mas escutava com a mesma atenção que todos outros.
— Sim negou, em troca, que a tivesse torturado — prosseguiu Pitt com esforço. — Por mais que insisti, negou qualquer conhecimento do FitzJames, a insígnia e a abotoadura.
— Acreditou nele? — perguntou Vespasia.
Pitt pensou por um longo momento antes de responder. A sala de jantar ficou em silêncio. Ninguém se moveu.
— Suponho que sim — disse Pitt por fim. — Se não, teria deixado de me preocupar essa parte do caso. Ou ao menos não achei que a esse respeito tivesse atuado só, nem que tivesse motivos para incriminar ao FitzJames.
— Quer dizer, que estamos outra vez onde tínhamos começado — concluiu Cornwallis, olhando um por um aos pressentes. — Não tem sentido. Se não foi Costigan, e sem dúvida esta segunda vez não foi, quem foi? Alguém em quem não pensamos? Ou acaso é possível, como acredito que todos tememos, que FitzJames seja culpado dos dois crimes?
— Não, não é culpado — declarou Charlotte com a vista fixa na mesa.
— Como sabe? — perguntou Vespasia com curiosidade, deixando o garfo no prato. — por que está tão segura, Charlotte?
Charlotte se sentia muito incômoda, e Pitt conhecia a razão de seu mal-estar, mas não interveio.
—Tallulah FitzJames o viu na noite que Ada McKinley foi assassinada — respondeu Charlotte, erguendo a vista para olhar para Vespasia.
—Viu-o? — disse Vespasia com cautela. — E por que não informou em seu devido momento? Teria evitado muitos transtornos.
—Não podia dizê-lo porque ela estava em um lugar onde não deveria ter estado — respondeu Charlotte. — E já tinha mentido a respeito, assim em qualquer caso ninguém a teria acreditado.
—Isso não me surpreende muito — admitiu Vespasia. — Você, entretanto acredita nela, conforme parece. Por quê?
—Bom.... em realidade é Emily quem acredita. — Charlotte mordeu o lábio. — Tudo isso contou à Emily. Finlay é um libertino, e seus méritos são bem escassos. Mas não matou a Ada.
— E não havia nesse lugar ninguém mais que pudesse testemunhar? — perguntou Cornwallis, olhando primeiro para Charlotte e depois para Pitt. — por que ninguém se ofereceu a declarar? Certamente Finlay pediu a alguém que corroborasse seu álibi. Ou se realmente não recordava onde esteve, por que sua irmã não rogou colaboração a alguém? Tudo se teria esclarecido imediatamente! — Estava perplexo e falava com um tom ligeiramente irado.
Vespasia se voltou para Charlotte, esquecendo-se por completo de seu prato.
— Que espécie de lugar era esse que ninguém está disposto a admitir sua presença ali? Pica-me a curiosidade, francamente. É possível que a gente seja tão afetada nestes tempos? Não me ocorre um só lugar onde um jovem resoluto, por reparo, negasse ter estado. O que era? Uma briga de cães, um combate de boxe a punho descoberto, uma casa de jogo clandestino, um bordel?
— Uma festa onde todo mundo andava meio bêbado e fumava ópio — respondeu Charlotte com um fio de voz.
O rosto do Cornwallis se escureceu.
Vespasia mordeu o lábio e arqueou as sobrancelhas.
— Acho isso estúpido, mas não tão extraordinário. Eu não negaria ter estado em um lugar assim se disso dependesse a vida de um homem.
Charlotte permaneceu calada, e Pitt soube que seu silêncio não se devia tanto à incerteza como à dificuldade de achar as palavras adequadas com que expressar o que pensava.
Cornwallis, que não a conhecia, olhava para Vespasia.
— Assim — disse com resolução —, se conseguíssemos dar com essa gente, poderíamos descartar ao FitzJames como autor do primeiro crime, e também, por lógica, do segundo. — Voltou-se para o Pitt. — Estava você à corrente disso? Por que não o tinha mencionado antes?
— Inteirei-me quando o fato não tinha já importância — respondeu Pitt, e viu Charlotte se ruborizar.
Tanto Cornwallis como Vespasia perceberam o cruzamento de olhares entre ambos, mas nenhum fez o menor comentário a respeito.
— Ao menos isso resolve uma dúvida — prosseguiu Cornwallis, reclinando-se contra o espaldar e pegando de novo o garfo. — Agora fica por averiguar por que alguém deixou os objetos pessoais do FitzJames no lugar do crime, e naturalmente quem foi, embora na essência essas duas questões se reduzem a uma só. Achando a resposta a uma delas teremos solucionado também a outra. —Olhou para Vespasia e depois para Pitt. — Dificilmente poderia tratar-se de alguém que viva no Whitechapel e mantivesse alguma classe de relação com essas duas mulheres. Deve ser alguém que odeia encarniçadamente ao FitzJames, um inimigo pessoal de singular natureza. E isso nos leva indevidamente a investigar de novo sobre a vida do FitzJames.
—Poderia tratar-se de uma conspiração? — perguntou Vespasia, que também continuou comendo sua porção de empanada de carne e rins, uma das especialidades de Charlotte.
Cornwallis e Pitt olharam para Vespasia.
— Quer dizer que uma pessoa cometeu o assassinato e outra proporcionou as provas que implicavam ao FitzJames ou possivelmente inclusive as colocou? — disse Pitt com escassa convicção. Era muito complicado e em extremo perigoso. Se Costigan tivesse tido um cúmplice, o teria delatado. Não teria subido só ao patíbulo.
Mas Cornwallis não afastava a vista da Vespasia.
Charlotte limpou a garganta.
— Sim? — perguntou Pitt, incitando-a a falar.
Sentia-se muito desconfortável, mas não tinha escapatória. De repente se tinha convertido no alvo de todos os olhares.
— Em realidade não é possível demonstrar que Finlay estivesse nessa festa — admitiu lentamente, reatando o tema que tinha ficado pendente minutos antes. Ruborizada, evitava o olhar de Pitt. — O caso é que.... conforme parece, todo mundo estava tão absorto em seu próprio desfrute e tão... tão afetado pela bebida ou o ópio que seus testemunhos não seriam de grande utilidade. Se alguém tivesse organizado um número equestre em plena festa, nenhum convidado estaria certo de tê-lo visto realmente ou o tinha imaginado.
— Compreendo. — Cornwallis o aceitou de bom aspecto mas não pôde ocultar sua decepção. — Mesmo assim, dá você crédito à declaração da irmã? Ela sim mantinha a cabeça o bastante limpa para saber com toda certeza que o viu ali?
—Sim, certamente — afirmou Charlotte olhando-o nos olhos. — Esteve na festa só um momento. Assim que se deu conta de que ocorria, partiu.
— E tudo isso lhe explicou Emily? — perguntou Vespasia com inocência.
Charlotte vacilou.
—Entendo — disse Vespasia, e não acrescentou observação alguma.
Charlotte baixou a vista e seguiu comendo muito devagar.
Gracie se tinha retirado à cozinha.
— Devo dar alguma resposta respeito ao simbólico indulto do Costigan — comentou Cornwallis com pessimismo. — Embora não sei até que ponto isso me corresponde como, não seja para assumir a responsabilidade do processo. O indulto é assunto do juiz e o ministro do Interior, possivelmente inclusive da rainha. Tomara tivéssemos esperado uma semana mais. Assim, esse pobre diabo estaria vivo ainda e o indulto teria algum sentido.
Pitt evitou o tema da forca. Tinha firmes opiniões a respeito, mas não era o momento de abordá-lo. E sem dúvida outros o fariam em um futuro muito próximo.
— Poderia ter sido Costigan culpado, e ter copiado o método do primeiro crime um segundo assassino? — perguntou Cornwallis olhando fixamente ao Pitt mas sem convicção nem esperança.
—Não — respondeu Pitt sem duvidar. — A menos que esse segundo assassino seja um de nós, o que é quase impossível. Só o agente Binns, o inspetor Ewart e Lennox, o legista, conheciam os detalhes do primeiro crime.
Todos aguardaram com expectativa, Cornwallis jogado para frente com as costas rígidas, Vespasia com as mãos na borda da mesa.
— Binns fazia sua ronda habitual e chamou sua atenção uma testemunha que fugia aterrorizada do Pentecost Alley — acrescentou Pitt em resposta à pergunta não formulada. — Ewart estava em casa com sua família. E Lennox atendia outro caso quando o chamaram; Achava-se perto dali, mas tinha passado toda a tarde com o paciente.
— Aparentemente, isso não deixa lugar a dúvidas — admitiu Cornwallis com visível desânimo.
Charlotte se levantou e recolheu os pratos, alguns ainda com comida. Continuando, com a ajuda de Gracie, serviu o arroz com leite, dourado por cima, salpicado de noz moscada, e acompanhado de compota de ameixa.
— Obrigado — disse Cornwallis, aceitando o prato que lhe ofereceram. Mas imediatamente voltou a concentrar—se no problema, e a expressão de pesar reapareceu em seu rosto. — Pelo visto, quão único podemos fazer é nos manter firmes, não dar desculpas, e não acusar a ninguém até que tenhamos provas concludentes. Enquanto isso prosseguiremos com a investigação sobre o FitzJames e a morte da Nora Gough tal como se não existissem suspeitos. Pitt, preferiria que se ocupasse você pessoalmente das indagações sobre o FitzJames. É um assunto de por si espinhoso e sem dúvida se complicará mais ainda. Eu gostaria de pensar que os jornais nos deixarão em paz, mas não seria muito realista por minha parte. Infelizmente temos inimigos, e não desperdiçarão uma ocasião tão propícia como esta para nos atacar. Sinto muito. — Se notava ele abatido. — Desejaria poder lhe brindar maior amparo... Pitt se obrigou a sorrir.
— Obrigado, senhor, mas sou muito consciente dos condicionamentos a que você, ou qualquer em sua posição, está submetido. Não há defesa possível.
E assim se fez. Pitt interrogou a todos aqueles que, a seu julgamento, podiam proporcionar alguma ajuda em relação com a família FitzJames, e também a quem em algum momento se viram tão prejudicados por eles que podiam desejar vingar-se. Indagou tanto a título pessoal como profissional, reunindo abundante informação sobre o Augustus FitzJames e a natureza de seu império econômico, e sobre os meios de que se valeu para forjá-lo primeiro e conservá-lo depois. Era com efeito um homem implacável. Não mostrava deferência com as lealdades ou as amizades, mas nunca saía dos limites da lei. Pagava suas dívidas na hora, mas nunca com liberalidade. Raramente emprestava dinheiro; mas quando o fazia, esperava que lhe devolvessem até o último penny.
Apesar de sua manifesta frieza, tinha certo êxito com as mulheres, e se sabia que tinha mantido idílios com levianas conhecidas. Entretanto em seu círculo isso não era um fato excepcional, e Augustus nunca tinha provocado escândalos nem certamente divórcios. Nenhuma reputação se viu empanada.
Como Cornwallis tinha pressagiado, a imprensa arremeteu com maior virulência. Costigan foi elevado rapidamente à categoria de herói popular, vítima da ineficácia e corrupção da polícia, corpo cuja criação alguns começavam a considerar um engano. Pitt aparecia mencionado em várias ocasiões. Um agitador chegou inclusive a insinuar que ele pessoalmente tinha forjado as provas que incriminavam ao Costigan e oculto as que implicavam ao verdadeiro culpado, um homem de dinheiro e boa família capaz de comprar sua imunidade.
Era uma vulgar calunia, naturalmente, mas a única maneira de defender-se de tais afirmações era demonstrar sua falsidade. E no momento isso não estava ao alcance do Pitt.
Achava-se sentado em sua escrivaninha do Bow Street a primeira hora da tarde três dias depois da morte da Nora Gough quando recebeu a visita do Jack Ridley. Vestia-se formalmente, como se acabasse de sair da Câmara dos Comuns, e apesar de suas feições suaves e agradáveis, tinha um aspecto tenso e cansado. Fechou a porta ao entrar e se dirigiu a uma das cadeiras.
— As coisas não andam bem, Thomas — disse pensativamente. — Esta manhã se tratou o assunto no Parlamento. Falou-se longamente sobre o tema.
— Imagino — respondeu Pitt com expressão taciturna. — A polícia tem inimigos.
— Também você tem inimigos pessoais — precisou Jack. — Embora nem todos estão onde teria cabido esperar.
— O Círculo Interno — disse Pitt sem vacilar. Tempo atrás o tinham convidado a ingressar nessa sociedade secreta, e ele tinha recusado. Independentemente do fato de que de vez em quando tinha desmascarado a algum de seus membros, o rechaço em si era para eles um pecado imperdoável.
— Não necessariamente. — Jack tinha os olhos muito abertos, e em seu rosto não se via o menor indício de sua habitual expressão sorridente e despreocupada. Entre suas sobrancelhas e sobre seus lábios se formavam desacostumadas rugas de inquietação. Reclinou-se na cadeira, mas permaneceu tenso e absolutamente atento. — Se não se tratasse de um problema tão grave, seria divertido observá-los enquanto decidem de que bando ficar. Os amigos do FitzJames e quem lhe teme estão de seu lado gostem ou não. E quem, por uma ou outra razão, não desejam ver o caos que originaria um engano policial ou judicial desta índole não sabem a quem responsabilizar, assim a maioria guarda silêncio.
— Quem falou, pois? — perguntou Pitt, saboreando o aspecto irônico da situação. — Os inimigos do FitzJames podendo suficiente para não lhe ter medo? Possivelmente achemos entre eles ao assassino, ou ao menos ao homem que colocou os objetos pessoais do Finlay no lugar do crime para que os encontrássemos.
— Não — respondeu Jack sem hesitações. Em sua voz se percebia uma total certeza. — Ao que parece, seus mais estridentes inimigos são quem acredita que Costigan foi condenado erroneamente, e que isso se deveu em grande medida à recente nomeação de uma pessoa para resolver os casos delicados do ponto de vista político, uma pessoa que, atendendo às indicações de seus superiores, converteu em bode expiatório um pobre infeliz do East End a fim de proteger a um jovem aristocrata ocioso e relaxado. Apesar do nome do FitzJames não aparecer nos jornais, ninguém o mencionou, e certamente só uns quantos sabem quem é o verdadeiro suspeito.
— E como sabem que há um suspeito? — perguntou Pitt.
— Conhecem sua função, Thomas. Por que se teria solicitado sua intervenção se não fosse um caso delicado do ponto de vista social ou político? Se se tratasse simplesmente de um de tantos crimes de ruas, ou dito de outro modo se não tivesse existido mais suspeito que Costigan ou outro de sua índole, por que foi ocupar-se você do assassinato, e na noite mesma em que foi descoberto?
Pitt deveria havê-lo suposto. Era bastante claro.
— Em realidade — prosseguiu Jack, estirando as pernas e cruzando os tornozelos—, quase ninguém sabe quem está comprometido, mas correm rumores. Imagino que FitzJames reclamou antigas dívidas, e por isso saiu em defesa da polícia a gente mais inesperada. —Jack deixou escapar um grunhido de indignação. — Não deixa de ser engraçado se pensarmos o muito que deve chateá-los ter que defender a você. Mas sua única alternativa seria adotar a postura liberal e pôr em tecido de julgamento a pena de morte.
Pitt o olhou com expressão de perplexidade. Certamente resultava irônico que as pessoas que menos lhe agradavam e com quem mais dissentiam estivessem obrigadas a defendê-lo, enquanto que quem despertava sua simpatia formassem a vanguarda do ataque.
—À exceção de Somerset Carlisle — acrescentou Jack com um repentino sorriso. — É um liberal convencido e estão te defendendo a capa e espada, em detrimento até certo ponto de sua reputação política. Suponho que você conhece a razão.
Ao Pitt, em meio de tantas insipidezes, a lembrança do Carlisle lhe foi estranhamente grata.
—Sim, conheço a razão — respondeu Pitt. — Lhe fiz um favor anos atrás. Foi um assunto um tanto absurdo no Resurrection Row. Ele agia por uma questão de consciência, mas duvido que alguém mais o tivesse visto desse modo. É um homem pouco ortodoxo, mas fiel a seus princípios. Somerset Carlisle sempre me foi simpático. Me... alegra-me que esteja de meu lado... tanto se seu apoio serve de algo como se não.
Pitt sorriu sem saber muito bem por que; possivelmente só pela ideia mesma daquela peculiar, tácita e férrea lealdade que se estendia de uma estranha tragédia a outra.
Por um instante Pitt pensou em dizer ao Jack que ao menos Emily acreditava firmemente na inocência do FitzJames. Mas previu o sem-fim de perguntas que Jack faria a respeito — pergunta que de momento preferia não responder — e decidiu calar.
— Temo que haja certo descontentamento no palácio — comentou Jack, olhando ao Pitt no rosto. — Suponho que algum intrometido não pôde evitar contará rainha.
Pitt se surpreendeu.
— E isso nos afeta de algum modo?
— Não sabia que fosse tão ingênuo em questões políticas, Thomas! Não é provável que a rainha intervenha, mas só a menção de seu nome mudará as coisas. Muita gente terá a necessidade de misturar-se e dar-se tom. O assunto cobrará ainda mais notoriedade, falará-se mais disso, e tudo se complicará. E sem dúvida servirá de incentivo aos colunistas dos jornais, se por acaso não estivessem já bastante exaltados.
— Eu não percebi o mesmo terror que se produziu faz dois anos —disse Pitt com cautela. — Parece mais ... indignação.
— Assim é — concordou Jack. — Indignação, e inumeráveis comentários sobre a corrupção política e policial. — Descruzou as pernas e se inclinou. — Sinto muito. Preferiria não ter tido que lhe dizer isto, mas meu silêncio nada mudaria; pior ainda, privaria-o da mínima defesa que pode te proporcionar estar prevenido. — Olhou ao Pitt nos olhos, de repente ligeiramente perturbado. — E se por acaso lhe serve de algo, acrescentarei que não acredito que tenha cometido um equívoco de tais proporções, e de sobra sei que sua honradez está fora de toda dúvida. Todos nos enganamos um pouco, vemos o que queremos ou esperamos ver; mas você menos que ninguém. E me consta que nunca se aproveitou do infortúnio de outro homem.
E antes que Pitt encontrasse palavras para responder, Jack ficou em pé, esboçou um torpe gesto de despedida e partiu.
Naquela manhã Charlotte tomou a decisão de colocar um pouco de roupa em uma mala e levar ao Daniel e Jemima com sua avó, não a modo de fuga, mas sim porque pretendia tomar cartas no assunto. Se Emily tinha trato social com o Tallulah FitzJames e gozava de sua confiança até o ponto de conhecer seus mais íntimos segredos, esse era indubitavelmente o caminho para ajudar ao Pitt. Conseguir seu propósito requereria tempo, e devia dispor da maior liberdade possível para fazer o que fosse necessário. Não poderia andar preocupando-se com o bem-estar de seus filhos.
Caroline a recebeu com uma afetuosa bem-vinda, mas não pôde ocultar seu nervosismo. Toda a casa era ao mesmo tempo familiar e estranhamente diferente desde suas bodas com o Joshua Fielding, como um velho amigo que de repente adota uma indumentária e uns gestos alheios. Também ela tinha mudado. Tinha abandonado, com gosto, as convenções que tinham regido sua vida desde a infância, mas outras novas as tinham substituído.
Os adornos entre os que Charlotte tinha crescido já não estavam. A sensação de solidez, de precisa organização mantida por circunspetos criados, tinha desaparecido. Charlotte o lamentava ao mesmo tempo em que sorria ao ver a sorte de sua mãe. A antiga ordem inspirava certa segurança. Era conhecido e estava cheio de lembranças, em sua maioria felizes.
Nos espaldares das poltronas não havia já toalhinhas. De menina lhe causavam risada, mas formavam parte da continuidade, da imutabilidade que fazia confortável aquela casa. Instintivamente dirigiu o olhar para a parede em busca das lúgubres e insípidas naturezas mortas que seu pai tinha recebido de presente de sua tia preferida. Toda a família, incluído seu pai, aborrecia-as, mas as tinham mantido ali por respeito à tia Maude.
Tinham desaparecido. Tampouco estava no cabideiro a bengala de seu pai. E era lógico. Em realidade não existia razão alguma para conservá-lo depois de sua morte; tinha permanecido ali só por esquecimento.
Aquelas ausências eram curiosamente dolorosas, como perder as raízes, romper com algo.
Ao mesmo tempo se percebiam objetos novos, como por exemplo, o vaso chinês que coroava o pedestal do vestíbulo. Antes Caroline não suportava nenhuma classe de ornamentação a China; considerava-a afetada. Havia deste modo uma caixa vermelha laqueada e meia dúzia de pôsteres de teatro. No poste do início da escada pendia descuidadamente um xale de seda de vivas cores. Não havia nada censurável em nenhum daqueles detalhes. Simplesmente pareciam deslocados.
— Como está? — perguntou Caroline, olhando a sua filha com semblante preocupado. Abraçou as crianças e as enviou à cozinha para tomar leite e bolo para poder falar a sós com Charlotte. — Tenho lido os jornais. É horrível. E muito injusto. — Uma careta irônica apareceu em seu rosto. — Embora desde que estou casada com um judeu, sou muito mais consciente do efeito das opiniões precipitadas e de quão absurdas às vezes são. Antes tinha muito em conta o que a gente pudesse pensar. Agora quase sempre me limito a fazer meu desejo e ser a pessoa que desejo ser. Em alguns momentos me parece maravilhoso e em outros me aterroriza porque penso que perderei tudo.
Charlotte contemplou a sua mãe com expressão de assombro. Nunca tinha imaginado que fosse tão consciente de sua vulnerabilidade nem que tivesse tão calculados os riscos de suas ações. Tinha dado por assentado que seu amor pelo Joshua lhe impedia de ver os sacrifícios que aquele matrimônio podia lhe representar. Mas se tinha equivocado. Caroline tinha plena consciência disso. Não tinha decidido às cegas nem se enganara quanto aos riscos.
Talvez compreendesse muito melhor do que Charlotte achava seu temor pelo Pitt. Nunca tinha considerado que ela e sua mãe se parecessem em nada. Possivelmente também nisso se enganara. Pertenciam a distintas gerações, com tudo o que isso representava quanto a experiências e valores, mas no fundo tinham mais coisas em comum que diferenças. Todas as desculpas que Charlotte tinha preparado se desvaneceram no ato.
— Cuidará do Daniel e Jemima por mim durante uns dias, por favor? —rogou Charlotte, seguindo Caroline até o velho e familiar salão. — Não me atrevo a deixá-los em casa. Gracie faria o que fosse por eles, mas se enfurece tanto com quem critica ao Thomas que poderia encetar-se em uma briga em plena rua, e mais se assustarem e ofenderem as crianças. Além disso, não seria correto esperar que ela os consolasse se ouvissem alguma atrocidade sobre seu pai.
— Você onde estará? — perguntou Caroline, dando a entender com a expressão de seu rosto que é claro podia contar com ela. Tomou assento e indicou outra poltrona à Charlotte.
— Emily conhece a irmã do homem que, segundo as suspeitas do Thomas, pode estar atrás de tudo isto — começou a explicar Charlotte, sentando-se meio de lado sem prestar atenção a sua saia. — Ou ao menos o estão sua família e seus inimigos. Tenho que ajudá-lo. Não posso ficar em casa de braços cruzados, me compadecendo. Mamãe, atacam Thomas de todos os lados. Os jornalistas e políticos liberais, precisamente quem deveria estar de seu lado porque ele pensa como eles, acusam-no de corrupção. — Charlotte notava que sua voz aumentava de volume cada vez mais, mas sua emoção era muito intensa para mantê-la sob controle. — Sustentam que apresentou provas contra Costigan e forçou sua condenação para aplacar os temores das pessoas, influenciada ainda pelos assassinatos do Whitechapel de há dois anos, e que lhe trazia sem cuidado se era ou não o verdadeiro culpado. Segundo eles, deveria ter feito averiguações sobre os jovens de boa família que vão às prostitutas em lugar de recorrer às mulheres de sua própria classe. Mas, dizem, à classe dirigente e seus representantes pouco lhes importa o que ocorra aos pobres em tão não provoque escândalos em seus próprios círculos. Se...
— Sei — interrompeu-a Caroline. — Sei, querida. Agora leio os jornais. Estou de acordo em que é uma colocação estúpida e simplista, e muito injusta, mas acaso não esperava essa espécie de comentários?
— Eu... — Charlotte se inclinou e apoiou o queixo nas Palmas das mãos. Ali, naquele entreabro semifamiliar, entre as velhas formas com novas cores, era-lhe fácil recordar seu primeiro encontro com o Pitt, como a tinha irritado, obrigado a pensar. Nem sequer em seus momentos de máxima indignação havia sentido a menor antipatia por ele. Pitt lhe tinha mostrado novos mundos, formas de dor, alegria e realidade distintas da segurança implícita nos sonhos que ela tinha albergado até então. Era-lhe intolerável vê-lo denegrido daquele modo, presenciar como destruíam o que ele com tanto esmero tinha construído, e precisamente quem acreditava lutar pela justiça e solidariedade, gente com as melhores intenções, mas profundamente equivocada. Engoliu em seco para aliviar a dor que lhe atendia a garganta, ameaçando afogá-la, e disse: Isso agora não tem importância. Não posso fazer nada para impedi-lo. Mas sim posso visitar os FitzJames, acompanhada de Emily, e averiguar muito mais sobre essa família do que Thomas poderia chegar saber por seus próprios meios. Vou à casa do Emily agora mesmo.
— Parece-me bem — concordou Caroline. — Eu me encarregarei de que Daniel e Jemima se encontrem como em sua casa. Suponho que... que é demais lhe dizer que vá com cuidado.
— Com efeito — respondeu Charlotte. — Acaso pensava me dizer isso.
— Não.
Charlotte sorriu, levantou-se, abraçou Caroline e se dirigiu à porta. Assim que pôs os pés na rua, dobrou para a esquina, onde lhe seria mais fácil achar um cabriolé de aluguel. Não tinha a menor intenção de agir com cautela por sua própria segurança, mas sim levaria supremo cuidado com a informação que adquirisse e com a forma de consegui-la.
— Conta comigo — aceitou Emily imediatamente assim que Charlotte expôs seu propósito. — Mas se queremos chegar a alguma parte, não só devemos falar com Tallulah, mas também com Finlay. Será melhor que vamos a primeira hora da tarde; provavelmente então já tenha voltado do Foreign Office. Embora, para lhe ser justa, não sei se trabalha muito ou pouco. Em todo caso, vale mais que estejamos ali antes que se vista para a noite.
—Sim, estou de acordo — assentiu Charlotte, consciente do muito que lhe custaria dominar sua impaciência até esse momento. — Devemos achar provas concludentes de que Finlay esteve nessa odiosa festa. Se demonstrarmos sua inocência no primeiro crime, ficará patente que Thomas não o levou ao julgamento porque sabia que era inocente e não porque fosse filho do Augustus FitzJames.
Achavam-se na estadia preferida de Emily, a saleta que dava ao jardim, com um tapete verde musgo e cortinas estampadas de flores. Tanto se brilhava o sol como se não, ali sempre parecia verão. Sobre a mesa baixa de palissandra havia um vaso com crisântemos.
— A seguir — prosseguiu Charlotte — indagaremos quem pôde ter matado às duas mulheres. Viviam na mesma zona; possivelmente tivessem comuns conhecidos. — Mordeu o lábio, apanhada entre o esforço de reprimir o medo, de não manifestá-lo verbalmente, e o leve consolo de compartilhá-lo com sua irmã. — Acha que foi outro lunático, Emily?
— Não, enquanto possa evitá-lo — respondeu Emily com um sombrio sorriso. — Procuremos primeiro dissipar as suspeitas que pesam sobre o Finlay. E agora vamos almoçar. Enquanto isso pensaremos como abordar o assunto. É melhor que estejamos preparadas, e a fome não seria de grande ajuda.
Chegaram ao Devonshire Street às quatro e quinze, e Tallulah as recebeu em seu toucador. Alegrou-se ao ver o Emily, mas a desconcertou que se apresentasse acompanhada de outra mulher, e além disso uma desconhecida.
— Minha irmã, Charlotte — a apresentou Emily. — Supus que não se importaria que a trouxesse. É uma mulher de recursos, e pensei que podia nos ajudar com o dilema ante o qual nos encontramos. Está já à corrente de alguns dos detalhes.
Tallulah parecia um tanto perplexa. Obviamente a surpreendia que Emily tivesse falado de sua situação a outra pessoa.
Emily passou por cima sua expressão e foi ao ponto com fingida inocência.
— Chegou à hora de resolver o assunto de uma vez por todas. — Moveu a cabeça com ar compreensivo. — Terá que admitir que assistiu a essa abominável festa e viu Finlay.
— Ninguém me acreditará! — protestou Tallulah com exasperação. Dirigiu à Charlotte um olhar nervoso e imediatamente se voltou de novo para Emily. Estavam as três sentadas em pequenas poltronas de tapeçaria floreada, mas Tallulah permanecia incomodamente encurvada na beira da sua. — Já falamos disso. Se tivesse existido a menor possibilidade, haveria dito a princípio. Acaso acredita que teria deixado que Finlay passasse por tudo isto se tivesse podido evitá-lo? Que espécie de pessoa pensa que sou? — Brilhavam-lhe os olhos, como se os tivesse inundados de lágrimas, e mantinha os punhos fechados sobre o regaço.
Charlotte se perguntou se era a opinião do Emily o que lhe angustiava ou a de outra pessoa, possivelmente Jago Jones. Era tão pouco o que sabiam de Tallulah, de Finlay, das emoções que buliam sob a superfície das educadas relações entre pessoas que viviam em uma mesma casa, que pareciam compartilhar tantos aspectos da vida cotidiana, de seu patrimônio familiar, de sua posição na sociedade, que se conheciam de sempre e entretanto mal tinham noção do que preocupava ou doía ao outro.
Emily pensava como expressar sua resposta para não piorar uma situação por si delicada.
— Acredito que você receia pelo bem-estar de um irmão a quem quer — respondeu por fim. — Como me ocorreria também. Eu quero a minha irmã, e faria algo por salvá-la de um castigo injusto. —desculpou-se com um sorriso pela comparação. — Inclusive tentaria minimizá-lo se fosse justo. E ela faria o mesmo por mim... como em realidade já teve ocasião de demonstrar. —Olhou ao Tallulah com afeto. — Mas precisamente esse carinho me impediria de pensar com a mesma clareza com que pensaria se quem estivesse em perigo fosse uma pessoa menos próxima a mim.
Aguardou, observando Tallulah.
Tallulah se relaxou.
—Tem razão. Sinto muito. Mas este assunto é um pesadelo, e há um tempo não sou eu mesma — respondeu, e olhou ao Emily como dando a entender que este último comentário não era uma forma de falar, mas sim o dizia em sentido literal.
— E quem é, pois? — perguntou, brincando só até certo ponto.
— Uma pessoa muito mais virtuosa — explicou Tallulah, também como se não estivesse segura de se falava a sério ou em brincadeira. — Uma pessoa que não vai a festas interessantes, nem perde o tempo, nem viu roupa cara e elegante. — Suspirou. — Dito de outro modo, é uma mulher bastante insípida. Tento me comportar bem, e me converto em uma aborrecida. Por que consiste a bondade em uma lista de coisas que uma pessoa não deve fazer? E em sua maioria as que são mais divertidas. Ser virtuosa parece tão... tão medíocre... tão insosso...
— Fazer boas obras pode ser insosso — respondeu Charlotte, recordando umas palavras da tia Vespasia. — Ser bom, em troca, nunca é insosso porque implica sentimentos, uma sincera preocupação pelo que alguém faz. Não é muito menos uma atitude que possa manter-se com apatia. O egoísmo, no tempo, sim é insosso. A princípio pode não parecê-lo, mas quando descobrimos que alguém só se interessa em si mesmo, e que antepõe sempre seus caprichos a nossas necessidades, então sim é insosso. A covardia é insossa, a gente que foge e nos deixa sós quando dá a impressão de que o perigo é real e a vitória incerta. Os mentirosos são insossos, essa gente que nos diz o que queremos ouvir seja verdade ou não. A verdadeira vida reside na generosidade, na coragem, na risada e honradez.
Tallulah sorriu.
— Diz isso como se o pensasse realmente. Mamãe acredita que tento reparar minha má reputação. Papai acha que estou obedecendo-o. E Fim nem sequer se deu conta.
— E tem isso alguma importância? — perguntou Emily.
— Não, em realidade não — respondeu Tallulah com um gesto de indiferença.
— E Jago o que pensa?
Tallulah tratou em vão de sorrir.
— Que é uma pose, e bastante estúpida. Despreza-me ainda mais se couber por minha afetação. — Em seu semblante se mesclavam o pesar e a confusão. — Não me ocorre nenhuma maneira de ser melhor salvo atuar como se fosse. — Respirou fundo e estremeceu. — Às vezes acredito que Jago não gostaria que fizesse o que fizesse. — de repente se encolerizou, recrudescendo-se em seus adentros a dor do rechaço. — E, além disso, eu não quero gostar de ninguém! Quem demônios quer gostar? Isso é algo comum e corriqueiro! Eu gosto do arroz com leite!
— Por quê? — perguntou de improviso Charlotte.
Tallulah se voltou para ela.
— Como diz?
— Por que gosta do arroz com leite? — esclareceu Charlotte.
Tallulah não pôde dissimular sua impaciência.
— Porque tem um sabor agradável. Que mais dá isso? Pouco importa, não? — Interpreto que há dito que gosta do arroz com leite por contrastar um sentimento insignificante com uma verdadeira paixão — explicou Charlotte, tentando por um instante afastar de sua mente a desesperada necessidade de ajudar a Pitt e concentrar-se em Tallulah. — Mas o que pretendo lhe fazer entender é que esse "gostar" no que você pensa é algo puramente subjetivo. Em realidade o que quer dizer não é que goste do arroz com leite, mas sim desfruta com ele. Gosta das sensações que lhe produz.
Tallulah a olhou com expressão de incompreensão. Só suas arraigadas boas maneiras lhe impediram de responder com desdém.
— Quando falamos do afeto por uma pessoa — prosseguiu Charlotte como se se dirigisse a Jemima —, poderíamos aludir só às sensações que essa pessoa nos produz, mas se se trata de autêntico amor, ou inclusive de simpatia, deveríamos ter também em conta as sensações da outra pessoa. Não se diz sempre que o amor é desinteressado, que consiste em antepor o bem-estar de outra pessoa ao nosso?
Produziu-se um absoluto silêncio no aposento. Era um toucador como o de qualquer outra jovem de alto nível social e família enriquecida, onde recebia a suas visitas na intimidade. As paredes e as tapeçarias eram floreadas, em diferentes tons de rosa e azul com alguns toques de branco. De fato, para alguém da originalidade de Tallulah, era assombrosamente convencional. Possivelmente não lhe tinham permitido decorá-lo ela mesma. A julgar pelo que Emily lhe tinha contado dela, Charlotte teria esperado algo mais imaginativo, talvez com motivos orientais ou turcos, ou inclusive algum detalhe que refletisse a fascinação pelo antigo o Egito que imperava à maturação, e não aquelas convencionais flores.
—Sim... suponho — respondeu Tallulah por fim. — Não tinha pensado nisso desse ponto de vista.
Charlotte sorriu.
— Sim, sim o tinha pensado. Sua preocupação por seu irmão é desinteressada. Está disposta a passar por uma situação muito desagradável para ver Finlay livre de suspeita. Admitir que esteve você nessa festa não beneficiará em nada a sua reputação, nem ante a boa sociedade em geral, nem ante o Jago em particular. E é pouco provável que seu pai o veja com bons olhos. Possivelmente restrinja suas liberdades, ou reduza sua atribuição para roupa ou inclusive a anule por completo.
— Sim — sussurrou Tallulah, muito pálida. — Sei. Mas isso é diferente. —Tinha os punhos contraídos sobre a saia. — Fim é meu irmão. Conheço-o de toda a vida. Se não o respaldar eu, quem o fará?
—Ninguém provavelmente —respondeu Charlotte com sinceridade. — Mas, por favor, não pense tão à ligeira no fato de gostar de alguém. Tem uma grande importância. Veja-o como uma forma de carinho, e frequentemente mais duradouro que as grandes paixões. Alguém pode apaixonar-se e dasapaixonar-se. À maioria ocorre alguma vez, em especial se em realidade não sentimos verdadeiro carinho pela outra pessoa. O carinho nem sempre se converte em amor, mas sim em algumas ocasiões.
Tallulah piscou e franziu o sobrecenho.
— Gostaria de passar o resto de sua vida com alguém que não gostasse? — acrescentou Charlotte.
— Não, claro que não. — Tallulah a observou atentamente, como se tentasse discernir que espécie de mulher era. — E você se casaria com um homem que só gostasse e que, por sua vez, unicamente sentisse por você esse tipo de afeto?
Charlotte não pôde reprimir um amplo sorriso.
— Não, nem sequer consideraria a possibilidade. De fato meu matrimônio foi em extremo inadequado porque amava a meu marido com loucura, e ainda o amo.
— Bom, pois a mim Jago não ama — disse Tallulah com desespero. — E esta conversa não tem o menor sentido porque nem sequer gosta.
— Não se renda ainda — interveio Emily. — Não basta deixar de esbanjar o dinheiro e renunciar às festas. Isso é uma atitude negativa, reduz-se a não fazer coisas. Mas não pôs sua alma nisso, e Jago o nota. Deve achar alguma atividade que lhe interesse realmente, uma causa pela que lutar. Já pensaremos nisso quando tivermos ganhado esta primeira batalha. De momento temos suficiente com esses horrendos assassinatos. Se ninguém for acreditar em você, devemos dar com alguém que também assistisse a essa festa, e conservasse a lucidez suficiente para recordar a presença do Finlay, ou pelo menos a de você. Isso demonstraria que esteve ali, e possivelmente refrescaria a memória de algum outro convidado. Está disposta a isso?
— Claro que sim. — Tallulah estava branca como o papel, mas não vacilou. — Assim que Fim chegue, falaremos com ele.
Estendeu o braço e fez soar a campainha. Quando acudiu a criada, esperando que lhe pedissem um chá, Tallulah lhe ordenou que as informasse logo que o senhor Finlay voltasse.
— Sim, senhorita. Dou-lhe alguma mensagem?
— Só que tenho que vê-lo por um assunto muito urgente — indicou Tallulah. — Algo que lhe corresponde e pode lhe ser útil. Por favor, diga-lhe assim que apareça e depois me faça saber sua resposta.
Quando a criada partiu, alguém bateu na porta, e antes que Tallulah respondesse, abriu-se e entrou Aloysia FitzJames. Era uma mulher atraente de porte tranquilo e diferente. Em seu semblante se percebia serenidade, como se intencionalmente se isolou todo o desagradável e, por força de vontade, tivesse criado seu próprio mundo.
—Boa tarde — saudou quando elas ficaram em pé. — Me agrada que tenham tido a amabilidade de nos visitar.
Era já muito tarde para as visitas formais, e inclusive para as informais. Sua presença ali requeria uma explicação.
— Mamãe — disse Tallulah —, estas duas damas são a senhora Radley e sua irmã, a senhora... — Não pôde evitar uma hesitação, posto que ignorava o sobrenome de Charlotte.
— Pitt — apontou Charlotte.
Tallulah demorou só um instante em estabelecer a relação. Lançou um olhar ao Emily e percebeu consternação em seu rosto. Voltou-se para Charlotte e percebeu nela a mesma expressão. Uma repentina cólera ardeu em seu interior, uma sensação de traição que com muita dificuldade conseguiu controlar.
Aloysia não notou nada.
— Muito prazer, senhora Radley, senhora Pitt — disse com um sorriso. — Tallulah, querida, vão jantar aqui suas convidadas? Se for assim, acredito que deveríamos avisar já à cozinheira.
— Não — respondeu Tallulah entre dentes. — Tinham já um compromisso que as impede de ficar.
— Lástima! — disse Aloysia, encolhendo-se de ombros.
— Teria sido agradável manter uma interessante conversa durante o jantar. Os homens tendem a falar de política a maior parte do tempo, não acreditam?
— Sim, sem dúvida — assentiu Emily. — Meu marido é parlamentar, e não ouço falar de outra coisa.
— E seu marido, senhora Pitt? — quis saber Aloysia.
— Já conhecemos o marido da senhora Pitt — anunciou Tallulah com aversão. — É policial! — voltou-se para Charlotte. — Imagino que ouça falar dos temas mais diversos durante o jantar: ladrões, piromaníacos, prostitutas...
— E assassinos... e políticos — completou Charlotte com um crispado sorriso. — Frequentemente por separado, mas nem sempre.
Aloysia estava desconcertada, mas não perdeu a compostura. Tinha sido capaz de manter conversas tranquilas e agradáveis em situações muito piores que aquela.
— Lamento muito as mortes dessas duas mulheres — comentou, olhando primeiro para Emily e depois para Charlotte. — Possivelmente se se declarasse ilegal a prostituição, não ocorreriam essas coisas.
Tallulah a observou com expressão de assombro.
— Duvido que isso servisse de algo, senhora FitzJames — respondeu Charlotte com toda a delicadeza possível. — Não tem muito sentido promulgar uma lei que não pode fazer-se respeitar.
Aloysia a olhou com os olhos desmesuradamente abertos.
— Eu diria que a lei deve ser uma questão de ideais, senhora Pitt. Não podemos nos considerar um povo civilizado ou cristão se só aprovarmos leis sobre assuntos que nos acreditam capazes de controlar. Todo delito deve ser ilegal, ou do contrário a lei careceria de valor. Ouvi dizer isso meu marido em incontáveis ocasiões.
— Uma ação se converte em delito quando a declara ilegal — replicou Charlotte sem perder a paciência. — Existem muitas coisas consideradas faltas, tais como a mentira, o adultério, a má intenção, a inveja, os ataques de mau gênio; mas declará-las ilegais careceria de prática, porque não é possível vigiá-las, demonstrá-las ou castigar as pessoas por elas.
— Mas a prostituição é algo muito diferente, minha querida senhora Pitt — replicou Aloysia com convicção. — É absolutamente imoral. É a ruína dos homens de bem, uma traição às esposas, às famílias. É uma conduta inconcebivelmente sórdida. Duvido que você saiba do que está falando... —Respirou fundo. — Tampouco eu sei, é claro.
—Não estou fazendo apologia da prostituição, senhora FitzJames — respondeu Charlotte, reprimindo um intenso desejo de rir. Tallulah estava tão furiosa que mal podia conter-se. — Só digo que é impossível evitá-la. Se nos propuséssemos seriamente erradicar a prostituição, deveríamos nos ocupar primeiro de suas causas, quer dizer, tanto das mulheres que a praticam como dos homens que recorrem a seus serviços.
Aloysia a olhou com expressão de perplexidade.
— Não sei a que se refere.
Charlotte desistiu.
— Possivelmente não sei me explicar. Peço-lhe desculpas.
Aloysia lhes dirigiu um encantador sorriso.
— Estou certa de que não tem importância. Talvez desejem nos visitar algum outro dia. Foi um prazer conhecê-las, senhora Radley, senhora Pitt.
Dito isto, fez um comentário sobre o tempo e partiu.
Tallulah lançou um olhar de ira ao Emily, esquecendo intencionalmente a presença de Charlotte.
— Como foi capaz? — Perguntou com raiva. — Suponho que tinha planejada nossa relação desde o começo. Deve ter achado muito amenas minhas confidências, embora não especialmente instrutivas. — De repente se voltou para Charlotte. — Ainda se considera a seu marido responsável pelo enforcamento de um inocente, não? Veio a esta casa para ajudá-lo a pendurar a quem você acredita que é o verdadeiro culpado?
Emily abriu a boca para explicar-se, mas Charlotte se adiantou.
— Se você tiver dito a verdade, e eu pessoalmente acredito, é claro que seu irmão não cometeu esses assassinatos. E acaso não lhe convém mais a você que a mim que Finlay fique livre de toda suspeita? Demonstrar que se achava em outra parte quando teve lugar o primeiro crime seria um excelente começo, mas seria melhor ainda demonstrar de maneira concludente quem é o culpado. Isso poria fim a qualquer especulação. — Tomou fôlego. — Supunha que também você estaria muito interessada em saber quem pôs tanto empenho em incriminá-lo. Eu o estaria se fosse meu irmão ou qualquer pessoa que me importasse.
Tallulah a contemplou com um profundo rancor, que só se atenuou gradualmente à medida que compreendeu que Charlotte tinha razão.
—Temos interesses comuns, embora por motivos ligeiramente diferentes — atravessou Emily com prática. — E me parece que as três acreditam que Finlay é inocente?
— Eu sim acredito — respondeu Charlotte.
— Me consta que o é — afirmou Tallulah.
— Nesse caso — propôs Emily com um radiante sorriso —, atuemos como se ainda fôssemos amigas, ao menos de momento.
Tallulah aceitou com assombrosa presteza considerando sua ira de segundos antes.
Quando Finlay chegou a casa, dirigiu-se imediatamente ao toucador de sua irmã, surpreendendo-se ao ver ali às outras duas mulheres. Não conhecia Charlotte e não recordava ao Emily. Tallulah apresentou-as, omitindo o sobrenome de Charlotte e falando com toda gentileza de seu desejo de ajudar.
Finlay parecia indeciso, mas um indício de sorriso apareceu em seus olhos.
Charlotte lhe devolveu o olhar, procurando não escrutiná-lo com a curiosidade que sentia. A essas alturas Finlay devia ser muito suscetível às especulações de outros, sem dúvida, impertinentes e em alguns casos inclusive mordazes, tendo em conta o crime de que era suspeito.
Era um homem bonito, mas não possuía o aspecto que Charlotte achava atraente. Não percebia nele a fortaleza que admirava nem a transbordante imaginação que a apaixonava. Pareceu-lhe advertir nele certa vulnerabilidade, algo que se sofresse algum dano nunca se recuperaria, nunca sanaria.
Finlay afastou a vista de Charlotte. Seu nome não lhe dizia nada, e ela não despertou seu interesse.
— Obrigado por sua confiança — disse ao Tallulah, apoiando sua mão ligeiramente no ombro dela. Era um gesto habitual, mas não isento de afeto, ou possivelmente gratidão. — Realmente a vejo com coragem de confrontar a reação de papai se disser que esteve nessa festa? Pode ser que seja difícil achar a alguém mais disposto a admiti-lo. Eu não recordo nada, salvo que não pus os pés no Pentecost Alley. Depois dessa noite o primeiro que lembro é a espantosa enxaqueca da manhã seguinte. Poderia ser que isso mesmo ocorresse a quase todos outros. — Seu rosto se escureceu. — Seria incapaz de jurar ante um tribunal quem mais esteve ali.
—Possivelmente outros convidados estivessem mais sóbrios que você, Fim — indicou Tallulah.
Finlay riu sem vontades e se voltou para Emily.
— Bom, posso preparar uma lista de conhecidos que provavelmente estiveram ali. Posso lhes perguntar se recordam me haver visto. Acaso algum se preste a admiti-lo.
— É para mim a quem conviria que tivessem visto — precisou Tallulah. — Nesse caso outros me acreditarão quando disser que eu mesma o vi ali. Não tem por que fazer-se público. Ao menos... — Olhou ao Charlotte. — Ou sim? Quero dizer que não teria por que sabê-lo toda a gente de nossos círculos.
— Ou o Foreign Office — acrescentou Finlay. — Embora não sei se tem muita importância a estas alturas. —Colocou as mãos nos bolsos e passeou de um lado a outro do aposento. — Nenhuma importância, em realidade, se me acusarem do assassinato da Nora Gough. Ou inclusive se suspeitarem de mim e não descobrem ao verdadeiro culpado. Parecia desesperado. Em seu olhar se apreciava medo e perplexidade, como se soubesse que o desastre era inevitável, mas não compreendesse ainda qual era sua causa ou como tinha ocorrido a ele.
— Alguém está firmemente decidido a incriminá-lo, senhor FitzJames — disse Charlotte com extrema seriedade. — Se apropriou de seus objetos pessoais e os deixou nos cenários dos dois crimes. Deve ser alguém que o odeia com uma veemência vizinha a...
— Ou que odeia a meu pai — a interrompeu Finlay. — Me custa acreditar que alguém possa me odiar tanto. Algumas pessoas me guardam certo rancor, claro está. E possivelmente uns quantos me invejem pela riqueza de minha família ou pelas oportunidades de que disponho. Certamente há quem considera que não mereço minha posição, e muito menos uma embaixada no futuro. — Olhou para Charlotte e depois para Emily. — Mas não violei à esposa de ninguém, não deixei dívidas pendentes, não roubei nada, nem... enfim, não tenho feito nada dessa magnitude. — ficou imóvel no fundo do aposento, desafiante e indefeso, como se de repente tivesse emudecido ao tomar consciência de uma monstruosa realidade.
— Sim, possivelmente a seu pai — admitiu Charlotte. — Mas há outra questão, senhor FitzJames. Quem quer que seja possui muita informação sobre você. Tinha sua insígnia original do clube Fogo do Inferno e sua abotoadura. E não só isso, mas também sabia que seria incapaz de demonstrar onde tinha estado essa noite. De pouco terá servido tentar implicá-lo se se tivesse achado, por exemplo, jantando em casa com sua família, ou em companhia de uns amigos, ou na ópera, como teria sido muito provável. Como se inteirou essa pessoa de que não tinha álibi?
Finlay a olhou fixamente, e em seu rosto se refletiu a repentina compreensão de algo horrível.
Charlotte aguardou.
Emily o observou sem falar.
— O que acontece? — perguntou Tallulah com voz alta e aguda. — Quem é, Fim?
Finlay olhou para frente, descomposto, com medo nos olhos.
— Quem? — repetiu Tallulah, erguendo ainda mais a voz.
— Jago — sussurrou Finlay, e tossiu, resistindo a voltar à cabeça para sua irmã. — Vi o Jago Jones aquela tarde, e mencionei que essa noite iria a uma festa na Chelsea. Disse-lhe onde se celebrava. Comentei em brincadeira que não era a espécie de lugar aonde ele iria, sendo agora como é um homem de tão elevada moralidade. Ele...
— Isso é impossível! — prorrompeu Tallulah. Isso é uma infâmia... e uma estupidez. Sabe de sobra que Jago nunca faria mal a ninguém... e menos ainda... — Interrompeu-se com lágrimas nos olhos e tão pálida que parecia a ponto de desmaiar.
— Claro que não — se apressou a dizer Emily com escassa convicção. — Mas talvez Jago, sem dar importância, mencionou—o a alguma outra pessoa...
— A quem? — perguntou Tallulah, voltando-se para ela horrorizada. — Que motivos poderia ter Jago para contar a alguém que Finlay ia essa noite a uma reunião de amigos? A quem poderia conhecer Jago que haja sequer ouvido falar de Fim? — Olhou de novo a seu irmão. — A quem mais o disse? Alguém deve tê-lo convidado? Pensa! — Irada e doída, erguia cada vez mais a voz. — Não fique aí parado como um idiota! Alguém pôde vê-lo ali e partir cedo. Pelo que mais queira, Fim, usa a cabeça!
—Não sei! — replicou ele, também gritando. — Acha que me calaria se soubesse? Valha-me Deus, Tallulah, é para mim a quem vão enforcar, e não a esse condenado Jago!
— Basta já! — Ordenou Charlotte. — Não vão enforcá-lo se conseguimos demonstrar que não é culpado. Mas temos que atuar com inteligência. Atacando-nos mutuamente não chegaremos a nenhuma parte. Controle-se e pense.
Finlay a olhou boquiaberto.
— Ela tem razão — admitiu Tallulah a contra gosto. — Qualquer que estivesse ali pôde vê-lo e dar-se conta do estado em que se achava. Ou talvez simplesmente foi alguém que o conhecia o suficiente para saber que não recordaria o ocorrido essa noite, igual à maioria dos pressentes.
— E se dá também a circunstância de que talvez a maioria dos convidados sejam resistentes a admitir que estiveram na festa — acrescentou Emily.
—Tente-o com seus amigos — sugeriu Charlotte. — Algum haverá com o sentido da honra necessária para reconhecer que esteve ali e que o viu, se não à hora do crime, ao menos antes. E possivelmente saiba também quem mais se achava pressentes no começo da festa.
— E vocês o que vão fazer? —perguntou Tallulah, incluindo Emily, mas dirigindo-se principalmente à Charlotte.
Charlotte pensava a toda velocidade.
— Suponho que têm intenção de fazer algo — continuou Tallulah. — Ao fim e ao cabo, o problema é tão urgente para vocês como para nós... ou quase tão urgente.
—Duvido-o — comentou Finlay com amargura.
—Sim, sim o é — afirmou Tallulah em um arranque de mau gênio. — Se não averiguarmos quem é o culpado, sua vida ficará arruinada por causa do mistério e falatórios. Não lhe ocorrerá nada de mau, mas tampouco nada de bom.
— Sei — admitiu Finlay, transparecendo em sua voz e seu semblante um sentimento de autocompaixão.
—E também será a ruína para o marido da senhora Pitt — concluiu Tallulah —, porque mandou à forca a um inocente e foi incapaz de achar ao culpado.
Finlay contemplou ao Charlotte com os olhos arregalados, e de repente o sangue afluiu a suas faces, tingindo as de um vermelho escarlate.
— Pitt! Pitt, claro. — Falava com voz rouca. — Não o teria imaginado. Nem sequer me teria ocorrido pensar que os policiais tivessem esposas, e menos ainda que pudessem passar por damas. — pôs-se a rir, e uma crescente histeria impregnou suas gargalhadas, cada vez mais sonoras e penetrantes.
A julgar por sua expressão, Tallulah teria desejado esbofeteá-lo.
—Desculpe — disse ao Charlotte, ruborizando. — Lhes farei chegar uma mensagem assim que averigúe algo de interesse.
—Também nós — prometeu Emily não com muita sinceridade, e imediatamente ela e Charlotte saíram da casa.
Quando estavam já na carruagem e se afastavam pelo Devonshire Street, Emily comentou:
— Finlay está assustado.
— Eu também o estaria —replicou Charlotte com veemência— se tivesse um inimigo disposto a chegar a esses extremos para conseguir que me enforcassem. — Por um momento um tremor incontrolável percorreu seu corpo, e percebeu um intenso frio em seu interior. — torturou e assassinou a duas mulheres só para acabar com o Finlay. Só um demente pode odiar até esse ponto.
Emily se abraçou a si mesma.
—O que vamos fazer a seguir? —perguntou em um sussurro.
—Não sei. Indagar se existia alguma conexão entre a Ada McKinley e Nora Gough, suponho. Por que as escolheu o assassino? Por que elas e não outras?
— Possivelmente não lhe importasse quem fossem as vítimas — aventurou Emily com tristeza. — Possivelmente não haja nenhuma razão. Poderia ter sido qualquer uma. — Seu pesar pareceu aumentar ainda mais. — E se as matou Jago Jones?
— Se tiver sido ele, será horrível — respondeu Charlotte. — Mas teremos que aceitá-lo.
Emily retornou a casa resolvida a fazer o que estivesse a seu alcance para impedir a injustiça que se abatia sobre Finlay FitzJames. Possivelmente era mais por Tallulah que por ele, mas tinha percebido seu medo e sua total perplexidade. Emily teria jurado ante qualquer autoridade do mundo que Finlay não tinha a menor ideia de como tinham chegado seus objetos pessoais ao quarto da Ada McKinley nem de quem os tinha colocado ali. Só uma coisa era certa naquele nefasto e caótico quadro: a finalidade daquilo era fazer pagar a ele pelo assassinato.
Havia um inimigo em algum lugar, oculto, um inimigo implacável cujo ódio raiava à loucura. Mas qual era o motivo desse ódio? Finlay não parecia sabê-lo, e Emily estava cada vez mais convencida de que devia ser um inimigo de seu pai, não dele.
Na manhã seguinte abordou Jack durante o café da manhã, começando assim que ele se sentou à mesa.
— Pensei muito no atual caso do Thomas — anunciou sem dar tempo ao Jack sequer a pegar a fonte do bacon. — Acredito que devemos ajudá-lo na medida do possível. — Serviu-se de uma pequena porção de ovos mexidos e uma torrada. — Finlay FitzJames não é culpado, disso estamos certas...
— Não, não estamos — respondeu Jack com tom cortante. — Poderia ser culpado. Só do Albert Costigan, esse pobre diabo, podemos dizer com toda certeza que é inocente.
Com súbito desânimo, Emily compreendeu que tinha caído em sua própria armadilha. Naturalmente não tinha contado nada ao Jack de sua visita ao Beaufort Street. Ele teria desaprovado com contundência, e era lógico. No passado ele mesmo poderia ter assistido a uma festa como aquela, mas as coisas tinham mudado; atualmente era membro do Parlamento e um respeitável pai de família, e como tal devia cuidar de sua reputação.
— Ah — disse, e se apressou a pensar em uma escapatória. Não achou nenhum argumento para justificar sua afirmação. Não tinha mais remédio que desdizer-se. — Possivelmente me guio mais pela esperança que pela realidade. Me... — Era melhor não mencionar Tallulah; podia conduzir complicações. — Me custa acreditar que Thomas cometesse um engano tão...
Jack se serviu de dois ovos quentes.
— Quer dizer que Costigan era culpado? — perguntou, erguendo a vista e olhando-a no rosto.
Para Emily ainda era perturbadora a beleza de seus olhos.
— Não... não. Queria dizer que Thomas não deixaria impune ao Finlay FitzJames só por ser quem é. Não daria por sentado que é inocente e renunciaria a investigar nessa linha por... — interrompeu-se.
Jack a observava com paciente ceticismo.
— Conhece o Finlay FitzJames? — perguntou por fim.
— Vimo-nos. — Emily nunca mentia descaradamente. Existia uma grande diferença entre o engano e a discrição. — Mas só um par de vezes, e as duas por acaso. Em realidade não o conheço.
— Entretanto não alberga a menor duvida sobre sua inocência — disse Jack. Era uma afirmação, não uma pergunta.
— Pois... — Emily segurou um rápido debate consigo mesma. A justiça e a ajuda à Tallulah eram algo de suma importância para ela. Tratava-se de uma questão de responsabilidade moral. Por outra parte sua sinceridade com o Jack, a confiança entre eles, era também muito importante, muito mais do que teria pensado só cinco minutos antes. Finalmente acrescentou: Conheço sua irmã.
— E lhe disse algo que a persuadiu de sua inocência — deduziu Jack.
Emily não esperava tanta perspicácia nele.
— Sim — assentiu cada vez menos segura de si mesma.
— O quê?
— Como?
— O que lhe disse sua irmã? — esclareceu Jack.
— Ah! Só que o viu em outra parte no momento do crime. Thomas já está à corrente. Não é exatamente uma prova.
— Isso é claro — disse Jack com um tenso sorriso. Levou o garfo à boca com um pedaço de bacon e ovo.
Emily relaxou ligeiramente, comeu um pouco e passou manteiga na torrada. Só se ouvia o nítido roçar da faca contra o pão.
— Onde o viu? — prosseguiu Jack.
Emily desfaleceu.
— Em uma festa.
— Isso não explica grande coisa. Não me obrigue a puxá-la pela língua, Emily. Que espécie de festa? Uma reunião de amigos, suponho, e nenhum dos assistentes recorda ter estado, e muito menos quem mais havia?
— Assim é — disse Emily, optando por uma resposta lacônica. Cada vez que acrescentava nova informação se metia em maiores problemas. Surpreendida, tomou consciência do muito que lhe doeria perder a confiança ou o respeito do Jack. Possivelmente devia confessar sua visita ao Beaufort Street antes que ele se inteirasse por outra via.
— Informou ao Thomas disso? — perguntou Jack.
— Estava convencida de que ninguém acreditaria. Já tinha mentido sobre seu paradeiro.
— Você, entretanto acredita nela.
— Sim.
— Tiraria suas dúvidas se te perguntasse por quê?
— Provavelmente não.
Jack continuou com seu café da manhã. Emily não sabia se acreditava ou não.
— Conhece o Augustus FitzJames? — perguntou Emily esperançada.
Jack não ergueu a vista, mas seus lábios se arquearam quase como se estivesse a ponto de pôr-se a rir.
— Quer me surrupiar informação?
— Sim — admitiu ela. — Conhece-o?
— Um pouco. E não, não sei quem o odeia até o ponto de cometer tais atrocidades para vingar-se dele. Mas permanecerei alerta, em consideração ao Thomas.
— Obrigada. — Emily respirou fundo. — É tão temível como dizem?
— Augustus? Sim, isso parece. Pelo que averiguei, não atua com uma crueldade gratuita; simplesmente não se importa com as consequências de seus atos. Possui um grande sentido da família, ou da dinastia se o preferir, o que não deixa de ser curioso em um homem de uma origem relativamente vulgar. Possivelmente seja por isso. O dinheiro lhe deu tudo o que tem, e acredita que com dinheiro tudo pode comprar. E eu goste ou não, devo reconhecer que assim é na maioria dos casos.
— Mas está tentando averiguar quem são seus maiores inimigos?
— É claro. Acaso acha que não me preocupo com o Thomas tanto como você? O que ocorre é que também no Parlamento se requer um sério trabalho de defesa. Cada dia aparecem mais caluniadores.
Sombras de inquietação obscureciam seu franco olhar.
— Sairá desta, não é?
Emily estava agora realmente assustada, e não pelo Tallulah ou Finlay FitzJames, mas sim por Charlotte, e possivelmente inclusive pelo Jack se se comprometesse muito no assunto. Não se atreveu a lhe perguntar até onde estava disposto a chegar, e entretanto ao contemplar seu rosto soube a resposta. Não havia limite. Se fosse necessário, Jack poria em perigo sua carreira, aceitaria sua própria ruína inclusive, antes que deixar Pitt em maus lençóis.
Sem ter obtido ainda resposta, dirigiu-lhe um radiante sorriso com lágrimas nos olhos e rolando já por suas faces.
Jack alargou o braço sobre a mesa, pegou-lhe a mão e, lhe dando a volta, beijou-lhe na palma com suma doçura.
— Não sei — admitiu por fim, e lhe estreitou os dedos com força.
Cornwallis parecia muito alterado. Convidou ao Pitt a tomar assento, mas ele estava muito nervoso para permanecer sentado. Passeava-se de um lado a outro do escritório, detendo-se de vez em quando, obrigando-se a ficar quieto por uns instantes. Não mencionou que a campanha em favor do simbólico indulto do Costigan tomava impulso cada vez mais, mas ambos sabiam. Tampouco disse que o assunto tinha sido abordado na Câmara dos Comuns, e que não só se responsabilizava ao Pitt daquela nefasta mancha na justiça britânica, mas também a ele.
— Tem descoberto algo novo? — perguntou em um sussurro. Em sua voz não se percebia aborrecimento, nem certamente o menor acento de acusação. Era um homem que se fortalecia nas situações de crise, que deixava patente suas lealdades ante a adversidade.
— Nada de útil — respondeu Pitt com franqueza. — tornei a falar com o Thirlstone e Helliwell, mas nenhum dos dois está disposto a admitir que se produziram sérias discrepâncias entre os sócios do clube, apesar de ser cada vez mais evidente que existiam antipatias entre eles. Não se separaram cordialmente, mas ainda ignoro o motivo. Para falar a verdade — acrescentou com tristeza —, nem sequer estou seguro de que tenha muita importância.
— E o que tem sobre Jones? — perguntou Cornwallis. — A ele não o mencionou. —Seu rosto se crispou, revelando o pesar que lhe causava dizer o que estava pensando. — Sei que é clérigo e que obviamente realiza um bom trabalho no Whitechapel, mas isso não exclui a possibilidade de que albergue um ódio pessoal contra um homem como FitzJames. Ignoramos que velhas rixas tiveram lugar no passado, Pitt. —Afundou as mãos nos bolsos da calça, deformando-os. — Por outra parte, nenhum homem é imune aos apetites e a solidão, que às vezes podem ser entristecedores. Jones escolheu um caminho de serviço e abnegação, mas é jovem. Pode ocorrer que alguém se exija muito e chegado um momento sucumba a suas fraquezas.
Pitt percebeu em sua voz emoção e obrigação. Falava só do Jago Jones? O ele mesmo tinha passado largos anos na solidão do mar, agravada pelo isolamento próprio do comando. Tinha tido sob sua responsabilidade a vida de todos os tripulantes de seu navio, sem poder recorrer a ninguém durante períodos de seis meses.
— Sei — respondeu Pitt. — Deus queira que não seja ele o culpado, e pessoalmente acredito que não o é; mas compreendo que não pode descartar-se. Irei vê-lo. Depois voltarei para caminho mais direto; analisarei novamente desde o começo os indícios relacionados com a morte da Nora Gough. Quero conhecê-la mais a fundo.
— Descobrir alguma conexão entre as duas vítimas? — perguntou Cornwallis, que interrompeu de novo seu perambular, detendo-se desta vez em um quadrado de sol que se projetava no chão. — Além de que exerciam o mesmo ofício e viviam no mesmo bairro.
— Não sei. Tenho que falar com o Ewart. Possivelmente a estas alturas tenha encontrado algo.
— Ewart é um bom homem — comentou Cornwallis com seriedade. — examinei sua folha de serviços. Todo mundo fala bem dele, não só como profissional, mas também como pessoa. Possui uma excelente reputação. É discreto, consciencioso, bom pai de família. Trabalha infatigavelmente e economiza seu dinheiro. —Em sua voz se notou de repente um acento de assombro. — Tem três filhos varões e uma filha. Casou bem a sua filha, com um granjeiro do Kent. O matrimônio parte sobre rodas. Seu primogênito estuda na universidade, e os dois filhos menores vão pelo mesmo caminho. É todo um lucro. — absteve-se de acrescentar "para um policial normal e comum". Teve o tato de conter-se, mas era isso o que pensava. — Não poderíamos contar com um homem melhor.
— Assim é — concordou Pitt. — É um bom homem. E desde o começo rechaçou a ideia de que FitzJames estivesse envolvido na morte da Ada McKinley. Sempre pensou que foi alguém do bairro. Talvez tivesse razão. Poderia ter sido exatamente uma tragédia doméstica como ele dizia. Deveria lhe haver escutado, prestado maior atenção a suas opiniões. Em todo momento tirou importância à conexão com o FitzJames, e possivelmente não a tinha. Amanhã irei vê-lo.
— Assim, o assunto em definitivo não tem nada que ver com o FitzJames? — disse Cornwallis com expressão carrancuda, mais medindo uma possibilidade que expressando uma convicção. Achava-se junto à luneta e o sextante, e os raios do sol reverberavam junto a seu rosto no metal abrilhantado. — E o lenço? Poderia ser dele, mas o é? Por força tem que ser dele?
— Não. Qualquer um poderia ter encomendado um igual.
— E o botão?
— É caro, mas pode obter—se em qualquer boa alfaiataria.
— Não demonstram nada, pois, esses objetos?
— Não demonstram que FitzJames estivesse ali — corrigiu Pitt. — Demonstram que alguém desejava que pensássemos que esteve. E que esse alguém não era Costigan.
Cornwallis moveu a cabeça em um gesto de tristeza.
— O que nos leva de novo ao Jones — sussurrou. — Parece que ele é o fator comum, Pitt.
— Sei.
— Devemos confrontá-lo. Averigúe onde estava exatamente quando essas duas mulheres foram assassinadas. Siga todas as pistas. Esqueça-se das motivações. Jones pertenceu a esse desgraçado clube. Vive e trabalha no Whitechapel. Conhecia a Ada McKinley. Possivelmente conhecia também a Nora Gough. — Moveu ligeiramente a cabeça. — Me consta que tais ações não concordam com a impressão que tem você desse homem, mas o que sabe realmente dele?
—Quase nada — admitiu Pitt a seu pesar. — E duvido que averigúe muito mais. —ficou em pé. — Voltarei a interrogá-lo amanhã depois de falar com o Ewart.
Não se sentia com ânimos de visitar o Jago essa mesma tarde. Sabia onde estava: em Coke Street distribuindo sopa. Não queria interrogá-lo enquanto atendia aos pobres. Nunca tinha desejado menos interrogar a um homem, nem sido mais resistente a descobrir o rosto que se escondia atrás da máscara. Inclusive o dia seguinte desejava muito logo, mas essa tarde lhe era de todo ponto impossível.
Encontrou ao Charlotte solícita, mas pouco comunicativa. Pelo visto tinha passado fora a maior parte do dia, e sucumbido por fim à tentação de levar as crianças à casa de sua mãe para lhes evitar a desagradável experiência de ouvir comentários na rua e padecer os sarcasmos e perguntas de seus companheiros de classe. Não falaram do caso. Pitt desejava esquecer—se de tudo durante um momento. Não tinha já mais ideia, nem mais pistas que explorar, nem mais enigmas que desentranhar. Desfrutou da possibilidade de sentar-se em silêncio, de pensar em algo aprazível e cotidiano, como o jardim ou a necessidade de pintar de novo o quarto de Daniel em um estilo mais adulto agora que era um pouco mais velho. Não tinha já idade para desenhos e cores muito infantis. E possivelmente havia também chegado o momento de conceder ao Gracie outro aumento.
Na manhã seguinte foi cedo ao Whitechapel e achou ao Ewart ainda em sua mesa. Estava cansado e cabisbaixo. Pitt não precisava lhe perguntar se tinha descoberto algo valioso: a resposta estava gravada em cada ruga de seu rosto. Cortou-se ao barbear-se e tinha as feições contraídas.
— Não encontrei nada — disse sem esperar a pergunta do Pitt. — Essas provas não demonstram nada.
Reclinou-se na cadeira, muito exausto para manter-se erguido. Notava-se ele estranhamente abatido, tendo em conta que seria Pitt quem carregasse com a culpa. Nesse momento poderia haver-se alegrado de lhe haver cedido à responsabilidade do caso.
— Já sei que o botão e o lenço não demonstram nada — disse Pitt, e se sentou na única cadeira disponível. — Que mais temos?
—Nada. — Ewart estendeu as Palmas das mãos. — Tornaram a falar com todas as mulheres da casa. Sustentam que só viram um homem: jovem, de cabelo claro e encaracolado. Mas inclusive a esse respeito começam a mostrarem-se indecisas. Algumas não estão muito seguras de se realmente era loiro. Como se isso tivesse muita importância! —Seus lábios se arquearam em uma careta de desdém. — De todo modo, a luz às vezes engana. Seguimos buscando-o. Tenho vários agentes nisso, mas poderia ser qualquer um, inclusive alguém da parte oeste da cidade, e nesse caso nunca o acharíamos.
Pitt o observou com assombro. Era estranho ouvir falar com tal desânimo a um homem da posição e experiência do Ewart. Se esse era o indivíduo que tinha torturado e assassinado a duas mulheres, deviam dar com ele a toda custa. Acaso Ewart temia ainda que em realidade fosse Finlay FitzJames, com toda a insipidez que isso conduziria, as acusações de negligência no cumprimento do dever, de intolerância e até de corrupção? Podia entender sua relutância, inclusive seu acovardamento, mas não o aceitava.
Tornou-se bruscamente para frente.
— Pois se esse é o homem que matou a Nora Gough e Ada McKinley, vamos achá-lo — disse, erguendo a voz mais do que pretendia. — Alguém deve vê-lo! Entrou. Saiu. Repetiu-lhe a descrição que deram dele as mulheres do Myrdle Street às mulheres do Pentecost Alley?
— Sim. —Ewart estava muito abatido para responder com raiva. — E dizem simplesmente que se parece com o Costigan, como assim é.
— E tinha Costigan irmãos, primos ou algum parente? — perguntou Pitt.
Ewart sorriu com amargura.
— Já tinha pensado nisso. Não; não tinha família. Rose Burke e Nan Sullivan continuam convencidas de que Costigan matou a Ada McKinley.
— E quem acreditam que matou a Nora Gough? — disse Pitt com tom sarcástico.
— Não sabem. Algum louco que imitou ao Costigan.
— Com que fim, por amor de Deus? Não esperaria que jogassem a culpa ao Costigan, suponho.
— Não sei — respondeu Ewart. — Elas preferem pensar que o assassino foi Costigan e que já o enforcaram, tirado do meio. Em qualquer caso, dá na mesma o que pensem. Alguém esteve no quarto da Nora Gough, um homem jovem de cabelo abundante e encaracolado, e na casa não entrou nem saiu ninguém mais, assim deve matá-la ele. Deus sabe quem possa ser. Eu certamente não sei!
— Não entrou nem saiu ninguém mais? — repetiu Pitt.
— Ninguém. —Ewart parecia imerso na mais absoluta desdita, como se falasse de uma desgraça pessoal e não de um dos muitos fatos que devia ter presenciado ao longo de sua vida profissional. — Não há maneira de tirar as daí.
— Sabe-se algo mais a respeito desse homem? — insistiu Pitt. — Compleição? Modo de andar? Orelhas? A forma das orelhas varia muito de umas pessoas a outras. Alguma delas se fixou em algum traço peculiar? Faça-as pensar, lhes exija que recordem.
— Não me diga como devo fazer meu trabalho! — replicou Ewart com indignação. — Já lhes perguntei tudo isso. Nenhuma se fixou nele. Era um cliente mais.
— Ninguém vigia a casa? —Pitt não podia evitar seguir acossando-o. Não tinha nada mais a que agarrar-se. — Ninguém protege a essas mulheres? Não há ao menos alguém que conte aos clientes para assegurar-se de que não ficam parte dos lucros?
— Sim, e só recordam que ia bem vestido e tinha um espesso cabelo. Escute, Pitt, dei voltas e mais voltas ao assunto. — Ewart esqueceu a nova posição do Pitt e se dirigiu a ele como o que tinha sido em outro tempo, um igual. — Há vários agentes procurando a esse homem a partir de sua descrição. visitaram todos os bordéis e casas de entrevistas ao norte de Mele End, ao leste do Limehouse, e ao oeste da Torre. Na zona se viu o menos a meia dúzia de homens que concordam com a descrição. — Parecia a ponto de acrescentar algo mas mudou de ideia. — Não temos nada.
Pitt, também esgotado, recostou-se contra o espaldar de sua cadeira. Era Finlay FitzJames depois de tudo? Ou era Jago Jones, vítima de uma estranha loucura, uma amarga mescla de ódio às prostitutas, a sua vida passada, ao Finlay e a quão segredos este conhecia dele? Ou possivelmente odiava ao Finlay porque ele o tinha introduzido nessa espécie de vida? Qual era a origem de sua loucura? Acaso a convicção de que Finlay o tinha induzido a descobrir ao pecador que levava dentro, sujeito a um apetite voraz e incontrolável?
— O que ocorre? —perguntou Ewart, erguendo-se de repente e atirando uma pilha de papéis com o cotovelo. — O que sabe?
— Nada — respondeu Pitt. — Mas terei que falar de novo com o reverendo Jones.
— Jones? — repetiu Ewart surpreso, sem incomodar-se em recolher os papéis —, Acredita que pode nos dar alguma pista? Pessoalmente o duvido. É um bom homem, mas não sabe nada dos assuntos mundanos. Se estivesse informado de algo, já nos teria informado. —Ao desvanecê-la momentânea esperança, sua voz caiu de novo em sua anterior monotonia. — Em qualquer caso, falar com ele será uma perda de tempo. Não delataria a um paroquiano até se tivesse a certeza de que era culpado. Pelos votos dos clérigos e essas coisas. É melhor procurar possíveis conexões entre a Ada e Nora, averiguar quem conhecia as duas. Já comecei a investigar nessa direção. —Revolveu os papéis que acabavam de cair, afastou uns quantos e os estendeu ao Pitt. — Aí constam as pessoas que conheciam as duas mulheres e tratavam com elas por uma ou outra razão: vestidos, meias, cosméticos, medicamentos, comida, calçado, e inclusive roupa de cama. — Deixou escapar um grunhido. — Não tinha a menor ideia de que uma prostituta comprasse tanta roupa de cama. Note-se, uns quantos coincidem.
— É lógico. —Pitt pegou os papéis, embora não esperava descobrir nada de especial interesse. — Suponho que em uma zona tão reduzida como esta não há muitos comerciantes nessa espécie de artigos. Concorda algum deles com a descrição?
— De momento não. A maioria são homens de meia idade e estavam em casa com suas famílias quando se produziu o crime.
Ewart mergulhou de novo na impotência, desmoronando-se na cadeira.
— Há notícias do Lennox? — perguntou Pitt.
— Não. Nora foi assassinada exatamente da mesma maneira que Ada — respondeu Ewart com a dor escrita no rosto e uma ira incontida e devoradora. — Com idênticas torturas. Todos os detalhes coincidem, inclusive aqueles que só nós conhecíamos. Tem que ser a mesma pessoa.
— Não existe a menor diferença? —perguntou Pitt em um sussurrou. O desordenado escritório era claustrofóbico; não havia espaço suficiente para albergar tão desmesuradas emoções.
— Não, nenhuma — confirmou Ewart.
— Achou-se algo mais, além do botão e o lenço? — prosseguiu Pitt.
— Não.
— Estranho, não?
— O quê?
— Que todas as provas aparecidas nos cenários dos dois crimes impliquem ao Finlay FitzJames...
— Circunstancial — disse Ewart, apressando-se mais do que o necessário, e imediatamente, muito pálido, afundou-se de novo na cadeira.
— Queria dizer — continuou Pitt, perplexo e aborrecido— que há algo anormal. quanto mais o penso, mais clara é minha impressão de que em ambos os casos alguém colocou as provas a propósito para que as encontrássemos. Alguma das mulheres que vivem nessas duas casas conhecia o Finlay FitzJames embora fosse de vista?
Ewart se endireitou com um pulo.
— Não! — exclamou, e um raio de esperança iluminou seu rosto. — Voltarei a lhes perguntar, mas estou certo de que não. Tem razão! Seria muita coincidência que viesse a este bairro pela primeira vez e matasse a uma mulher que não conhecia de nada. Por que ia fazer algo assim a menos que estivesse louco? E no pior dos casos poderia havê-lo feito uma vez se... — Engoliu saliva com dificuldade, como se tivesse a garganta fechada pela tensão. — Se tivesse estado bêbado O... ou fora de si por causa da luxúria, a ira ou alguma outra paixão. Mas essa primeira vez bastaria para aterrorizá-lo. Não voltaria por aqui menos de dois meses depois para repetir o crime, e menos sabendo que suspeitamos dele. — Agora estava inclinado sobre a mesa, seu rosto subitamente alerta pelo entusiasmo. — Você falou com ele, Pitt. Pareceu-lhe um homem possuído por alguma forma de loucura? Ou lhe pareceu mais um jovem que no passado era incapaz de dominar-se, que de vez em quando atua nesciamente, excede-se com a bebida e não recorda o que fez na noite anterior, e que está morto de medo ante a ideia de que o acusem de um delito que não cometeu? Morto de medo por defraudar as expectativas de sua família, pela perspectiva de que seu pai o despreze e lhe faça a vida impossível durante meses, ou inclusive anos?
Essa era exatamente a impressão que Finlay tinha causado no Pitt. Ele mesmo teria sido incapaz de expressá-lo com maior precisão. Era uma caracterização em extremo perspicaz do homem que tinha conhecido. Tinha subestimado as opiniões do Ewart.
— Sua apreciação não poderia ser mais acertada — respondeu. — FitzJames reage desse modo cada vez que se sente ameaçado. — Olhou fixamente ao Ewart. — Equivocamos com o Costigan? Eu estava totalmente convencido de sua culpa. Não consegui entender o detalhe das botas e a liga, mas não tinha a menor duvida de que a matou ele.
— Tampouco eu — disse Ewart com gravidade. — E continuo pensando que foi ele. As botas e a liga devem ser coisa do cliente anterior.
— E a segunda vez, com a Nora? — perguntou Pitt. — Não seria o mesmo cliente?
— Não, isso teve que ser obra de quem colocou ali o lenço e o botão, para nos convencer de que o crime o tinha cometido a mesma pessoa. — Apertou os lábios. — Sinto dizê-lo, senhor, mas começo a suspeitar do reverendo Jones. A verdade é que tem algo de fanático. Por que, se não, um cavalheiro de boa posição renuncia de repente a tudo, toma o hábito e escolhe dever trabalhar a um lugar como Whitechapel? — Moveu a cabeça em um gesto de ceticismo. — A gente como ele não precisa trabalhar. Note-se nos outros sócios do clube Fogo do Inferno. Helliwell trabalha na City, mas só quando tem vontade. Poderia prescindir. Simplesmente gosta de viver muito bem. Tem uma esposa que manter, e suponho que agora também filhos. Passeia em sua própria carruagem, tem uma casa enorme e muitos criados, organiza festas. Provavelmente a atribuição para roupa de sua esposa supera o que Jago Jones ganha em uma década.
Pitt não podia rebater-lhe Outros pensamentos se amontoavam em sua mente.
— E aí tem ao Thirlstone — prosseguiu Ewart com desdém. — Brinca de fazer-se de artista. Isso não lhe proporciona ganhos, mas tampouco os necessita. É pura diversão. Passa de uma conversa estúpida a outra. Passeia pelo parque, visita as exposições e as oficinas dos pintores. FitzJames, por sua parte, quer ser embaixador ou parlamentar, mas em realidade não trabalha diariamente como você ou eu. Vai ao Foreign Office quando deseja muito, e seu trabalho consiste principalmente em cultivar relações úteis e deixar-se ver onde convém.
Pitt guardava silêncio. Percebia o desprezo do Ewart e o compreendia, inclusive talvez o compartilhasse.
— Jones, em troca, trabalha de sol a sol — concluiu Ewart. — Domingos incluídos. Não sei quanto lhe pagam, mas por algo ser "mais pobre que um camundongo de igreja" se considera o cúmulo da miséria. Usa roupa velha, come o mesmo que a gente do bairro, e provavelmente no inverno passa o mesmo frio. Vive pior que eu, e por quê?
— Não sei. — Pitt se levantou. — Mas estou de acordo com você: isso requer uma resposta. Enquanto isso melhor será que continue procurando o homem que viu Nora viva pela última vez.
—Já não sei a quem perguntar — protestou Ewart. — falamos com todas as mulheres que vivem na casa, com os operários da fábrica de garrafas, os vizinhos e lojistas da rua.
— Interrogue também aos mendigos e vendedores ambulantes — ordenou Pitt da porta. — Continue tentando-o. Alguém deve tê-lo visto. Não pode tê-lo engolindo a terra. — Fez virar o trinco. — A menos que lhe ocorra algo melhor.
Deixou Ewart no escritório lúgubre e revolto e voltou para o Myrdle Street. A questão do cliente que tinha desaparecido o obcecava. Tinha que ser ele quem tinha assassinado a Nora Gough, mas o fato de que ninguém admitisse havê-lo visto sair era significativo. Em realidade, tampouco o tinha visto chegar ninguém. Aquela casa era um bordel. Sempre havia gente por ali. Não só pelas idas e vindas próprias do ofício, mas sim por razões de segurança. Qualquer mulher que trabalhasse na rua conhecia os riscos de tropeçar com um cliente violento, grosseiro, remisso na hora de pagar, ou com gostos e exigências que não estava disposta a satisfazer.
Caminhou com passo enérgico pelas ruas cinzas e concorridas: homens e mulheres que andavam apressadamente pelas calçadas, comerciantes, empregados de escritório, mensageiros, vendedores, marreteiros e jornaleiros. A morte da Nora seguia ocupando a primeira página de todos os jornais, junto com A proclama da inocência do Costigan e petições de reforma. Alguns inclusive solicitavam a abolição da polícia por seu fracasso com o primeiro assassino em série do Whitechapel, e novamente com o segundo. Pitt apertou o passo, desejando olhar em outra direção e sentindo-se ao mesmo tempo atraído por eles contra sua vontade. Apesar de ter imaginado acidentadas manchetes, as reais superavam com acréscimo suas previsões. Um vendedor apregoava: "A polícia não chega a nenhuma parte! Whitechapel imerso de novo no terror!" E no pôster de um anuncio se lia: "Voltou Jack o Estripador? A polícia se revela impotente! O delegado Pitt não avança em sua investigação. Ou possivelmente sim? Acaso sabe algo que não se atreve a dizer? Quem é o assassino do Whitechapel?"
Chegou à casa do Myrdle Street tenso, deprimido e sem fôlego. Ainda não se levantara ninguém. O trabalho tinha voltado à normalidade. As dívidas não respeitavam o luto, e o fato de que se cometeu ali um assassinato não parecia dissuadir à clientela.
Depois de muito insistir conseguiu despertar ao Edie, que ao cabo de um momento se reuniu com ele na cozinha, a longa cabeleira negra emaranhada, o rosto amarfanhado pelo sono, envolta em um folgado penhoar. Seu ofício a tinha despojado de qualquer pretensão de pudor.
— Perde o tempo — disse com aspereza assim que se sentou em uma das cadeiras. — Nenhuma de nós sabe nada que não lhes tenhamos dito já. Aquela tarde não vimos entrar nem sair a ninguém salvo a nossos clientes. Não sabemos quem era o fulano do cabelo loiro que estava com a Nora, nem ouvimos nada anormal.
— Sei. — Pitt tentou conservar a paciência. — Fora da casa tampouco o viu ninguém. Não lhe parece isso um tanto estranho?
— Pois sim. E o que? Está me dizendo que foi um fantasma que entrou aqui, estrangulou a Nora e se mandou? — Percorreu-a um calafrio, e suas abundantes carnes tremeram sob o penhoar. — Está louco! Os fantasmas não existem. Alguém mente, assim simples. Alguém deve tê-lo visto, mas o cala.
— Várias pessoas, de fato — comentou Pitt pensativamente. — por que iriam mentir todas elas?
— O que sei eu! Não lhe vejo o sentido. Pessoalmente quero que apanhem a esse canalha e o levem a forca. — Cobriu o rosto com as mãos de alongados dedos. — Nora era uma fresca, mas ninguém se merece uma morte assim. Às vezes eu mesma a teria esbofeteado. Mas imagino que todas nos incomodamos alguma ou outra vez.
— A você o que a incomodava da Nora?
Edie sorriu como zombando de si mesma.
— Que era bonita, suponho. E sabia atrair aos homens. Tinha esse dom. — Olhou ao Pitt com desdém. — Não quero dizer que fosse por aí nos roubando os clientes. Refiro a nossos próprios homens. Nora se apropriou de alguns que eu gostava.
— Não clientes? — perguntou Pitt. — Não homens que pagam?
— Por Deus! Uma mulher também pode fazê-lo por diversão, sabe? — disse indignada. — Bom, não muito frequentemente talvez. Mas é agradável ter ao lado a um homem que esteja a gosto com uma. Não por dinheiro. Um homem que a trate como uma pessoa, e não como simples mercadoria. Está bem abraçar-se e rir um momento.
— Sim, certamente. E Nora lhe tirou o homem? A você e a outras mulheres?
— Né, um momento! Não acontecia todos os dias. Roubou-me isso uma vez, e era só um tipo do que me havia encarapichado, nada sério. Se tivesse sido um hábito, teríamos tido que expulsá-la. Não era má garota, Nora. E se soubesse como ajudá-los a achar ao que a matou, não pensaria isso duas vezes. Embora para o que vocês servem... — despenteou o cabelo com os dedos. — Deus santo! O que está claro é que não o fez o pobre desgraçado do Costigan. E vocês ainda não agarraram ao verdadeiro culpado, o grande filho de má mãe, e isso que já vão duas vítimas. Terá que esperar a que mate a outra, não? Agarrarão-o à terceira? Ou passará o mesmo que em oitenta e oito, e os deixará a todos com dois palmos de nariz. — Ficou em pé e arrumou o penhoar. — Já lhe disse tudo o que sei, e agora volto para a cama. Não sei para que lhes pagam. Se eu fizesse meu trabalho como vocês o seu, morreria de fome.
Pitt despertou ao Pearl e Mabel, mas tampouco elas contribuíram com informação útil. Limitaram-se a repetir o que já tinham declarado. Era a hora do almoço, e Pitt tinha fome. Dirigiu-se para o rio, à taverna mais próxima, no Swan Street, a mesma em que se tinha reunido com o Ewart e Lennox dois dias antes de celebrar o julgamento contra Costigan.
Equivocou-se a respeito do Costigan? Era tal seu desejo de achar um culpado que tinha interpretado erroneamente sua declaração? Revolveu em sua memória, mas não recordou as palavras do Costigan, a não ser só sua própria certeza de que eram uma admissão de culpa.
Aproximou-se do balcão e pediu uma jarra de cidra e um sanduíche de queijo e molho picante. Levou-o a uma mesa, sentou-se e começou a engoli-lo sem saboreá-lo sequer. A taverna estava abarrotada de moços de carga, carreteiros e pedreiros, e havia um grande vozerio salpicado por alguma ou outra gargalhada. O ar cheirava a serrim e cerveja. Transcorridos uns minutos se aproximou um homem corpulento com a jaqueta desabotoada e se plantou ante ele olhando-o com atenção.
— Poli! — disse lentamente. — Você é o Poli que pendurou ao Costigan, não?
Pitt ergueu a vista.
— Eu não o pendurei — retificou. — Eu o detive. O tribunal o processou; o jurado o declarou culpado, e o juiz o sentenciou.
Deu outro bocado ao sanduíche e desviou o olhar.
Ao redor várias pessoas deixaram de falar.
— Isso! — exclamou o homem. — Encha-a pança. Olhe em outra direção. Que mais nos dará, os pobres infelizes do Whitechapel? Pendura a um pobre desgraçado e se vai para sua casa dormir tranquilamente. — O tom de mofa se fazia mais mordaz e ofensivo. — Essas coisas não lhe tiram o sono, não é, poli? Ao Costigan tampouco, só que ele já não voltará a despertar, né? Porque você o pendurou! Mas isso não impedirá que venha um condenado tipo dos bairros altos, aproveite-se de nossas mulheres e logo as torture e as estrangule, verdade que não?
Aproximou-se outro homem com uma tensa expressão de rancor.
— Quanto lhe pagam, né, Judas?
— Judas! — gritaram ao uníssono várias gargantas.
Já ninguém comia. Todas as conversas se interromperam.
Alguém ficou em pé.
O taberneiro pediu ordem, e lhe ordenaram que fechasse a boca.
Começou a estreitar o círculo em torno da mesa do Pitt.
— A que veio? Embolsar-se outra recompensa?
— Paga-lhe esse tipo cada vez que mata a uma desventurada?
— Quanto se leva? Quanto vale para você uma de nossas mulheres, né, poli?
Pitt abriu a boca para falar, e alguém lhe lançou um murro. O golpe lhe deu só de soslaio, mas o pegou despreparado, e perdeu o equilíbrio.
Ouviram-se vivas e depois risadas.
Pitt se levantou.
Era mais alto e fornido do que seu agressor esperava. O homem retrocedeu.
Outro indivíduo ficou em guarda junto a ele, disposto a intervir. A situação piorava cada vez mais. Pitt notou uma intensa pontada de medo e começou a suar copiosamente. A briga era inevitável, mas ante tal multidão não tinha a menor possibilidade de sair gracioso. Acabaria maltratado, inclusive talvez morto.
O homem situado mais perto dele se balançava ligeiramente sobre as pontas dos pés, preparado para a luta, olhando a um lado e a outro, com o rosto brilhante por causa do suor provocado pela excitação. Pitt percebia seu penetrante aroma.
— Adiante! — respirou alguém. — A que espera?
O primeiro homem lançou uma olhada a seus companheiros para certificar-se de que não iniciaria só o ataque. Encontrou em seus olhares a confirmação que procurava e avançou com os punhos em alto.
Pitt afirmou os pés, disposto a encaixar o primeiro golpe.
— Quietos!
Todos ficaram imóveis. A voz que acabava de ouvir-se transmitia autoridade. Não tinha sido um grito, mas ressoou em tudo o taverna.
Cortou a respiração de Pitt.
Abriu-se uma brecha na multidão, e apareceu Jago Jones abrindo acontecer com cotoveladas. Seus olhos cintilavam e seu rosto resoluto parecia de ferro forjado.
— Que demônios acontece aqui? — perguntou, olhando com fúria ao redor.
— Aqui não nos faz nenhuma falta, reverendo — disse um homem com aspereza. — vá socorrer aos doentes e a quem o necessite. Aqui não o queremos!
Ouviu-se um murmúrio de conformidade. Alguém tentou empurrá-lo. Jago não se alterou.
— Isto não é assunto seu, reverendo — advertiu outro homem com tom hostil. — Ocupe-se de suas coisas e não se meta onde não o chamam.
— O que lhes propõem? — respondeu Jago, olhando fixamente ao homem que acabava de falar. — Cometer outro assassinato e demonstrar assim que somos um rebanho de brutos e ignorantes como os ricos gostariam de acreditar? Matem a um delegado de polícia que só pretende fazer seu trabalho e terão aqui ao exército antes que tenham dado meia volta.
Ouviu-se um rumor de protesto, mas todos os homens, por própria vontade ou arrastados por seus companheiros, retrocederam um por um, deixando ao Jago e ao Pitt cara a cara.
— Terminou que almoçar? — disse Jago, mas seu semblante revelava que não era uma pergunta mar uma ordem.
Pitt engoliu em seco. Ficava ainda parte do sanduíche e a metade da cidra. Levantou a jarra e a engoliu de um gole. Depois pegou o sanduíche.
— Sim.
Jago se virou para dirigir-se para a porta. Por uns segundos nem um só homem se moveu. Permaneceram apinhados, em atitude agressiva, desafiando ao Jago.
—Também vão atacar-me? — perguntou com apenas um ligeiro tremor na voz. Isto é o que vocês entendem por valentia e inteligência? Assim é como querem que os veja a gente do lado oeste da cidade? Como bestas que se enfurecem com sacerdotes e policiais?
Produziu-se um rugido de ira, mas vários homens retrocederam um passo.
Jago guiou ao Pitt entre a multidão silenciosa. Os homens cravavam neles turvos olhares, e muitos mantinham fechados os punhos. Nenhum retrocedeu nem um palmo mais para lhes deixar passagem, e Pitt de fato roçou a um par ao sair.
Fora o ar era mais frio e cheirava a bostas de cavalo e bocas-de-lobo abertas, mas Pitt o aspirou com o mesmo deleite que se fosse a brisa limpa do mar.
— Obrigado — disse com voz trêmula. — Não... não sabia que a indignação fosse tão... intensa.
— Sempre há alguém que tira proveito dos momentos de confusão — respondeu Jago, caminhando depressa em direção à igreja da Santa Maria. — Os oportunistas políticos, ou simplesmente pessoas que precisam culpar a alguém de seus próprios fracassos. Você era o alvo idôneo. Foi um tanto ingênuo de sua parte não dar-se conta.
Pitt guardou silêncio. Jago tinha razão.
Continuaram andando um junto ao outro, rapidamente. Pitt tinha ido até ali porque não conseguia livrar-se da dolorosa suspeita de que Jago era o vínculo entre o Finlay FitzJames e Whitechapel, entre o passado e o presente. Era a única pessoa que indiscutivelmente conhecia Ada e Finlay. Provavelmente conhecia também Nora Gough. Pitt aborrecia a ideia, e mais ainda ter que expor o assunto ao Jago, que acabava de resgatá-lo, correndo ele mesmo um grave risco.
Pitt tomou fôlego, e quando se dispunha a falar, Jago se deteve de repente.
Tinham subido pelo Mansell Street e se achavam na esquina do Whitechapel Road. A circulação era densa, em sua maior parte transporte de mercadorias.
— Tenho que visitar uma mulher cujo marido se afogou a semana passada — anunciou Jago, tentando fazer-se ouvir sobre o estrépito das rodas e os cascos dos cavalos. — Eu em seu lugar andaria com cuidado por estas ruas, delegado. Não fique em um mesmo lugar muito tempo. Se tiver que interrogar a um grupo numeroso de pessoas, vá acompanhado de vários agentes. Suponho que não está já... — O resto da frase ficou abafado pelo ruído de uma carreta que passava.
— Não — respondeu Pitt quando se afastou a carreta. — Não muito.
Jago lhe dirigiu um breve e radiante sorriso de fôlego, cruzou a rua desviando-se das carruagens, e desapareceu.
Pitt foi procurar ao Lennox. Cabia a possibilidade de que tivesse omitido algum detalhe, alguma mínima diferença, ou inclusive alguma percepção sobre a personalidade do homem capaz de perpetrar tais atrocidades com outro ser humano.
Encontrou-o em um refúgio feito com caixas de madeira meio podre junto à escada que descia ao rio. Atendia a um ancião que jazia em uma improvisada cama, dobrado, delirante e convulso, embora Pitt não teria sabido dizer se por efeito da febre ou do álcool puro. A Lennox, pelo visto, não importava a causa. Falava-lhe com delicadeza, tranquilizando-o, estirando as mantas enrugadas. Foi lhe buscar água e tirou de seu bolso meia fogaça de pão, que o ancião aceitou; deu um bocado e mastigou lentamente, quase incapaz de tragar.
Pitt aguardou que Lennox terminasse e depois o acompanhou pelo passeio que ladeava o rio. De vez em quando um grupo de nuvens procedente do este tampava o sol vespertino.
— Posso lhe ajudar em algo, delegado? —perguntou Lennox com curiosidade. Notava-se ele ainda tenso e cansado, mas não tanto como a última vez que Pitt o tinha visto.
— A investigação do caso não deu ainda o menor fruto — respondeu Pitt com franqueza. — Você examinou às duas vítimas. Encontrou alguma diferença, por pequena que fosse, no estado dos cadáveres?
Lennox continuou caminhando com a vista à frente.
— Não.
— Nada absolutamente? — insistiu Pitt. — Sei que as meias utilizadas no estrangulamento pertenciam às vítimas e que apresentavam o mesmo tipo de nó; mas não há muitos tipos de nó para estrangular a alguém. O que pode me dizer dos dedos de mãos e pés? Tinham sido fraturados ou deslocados os mesmos em ambos os casos?
— Sim — respondeu Lennox com expressão severa, como se ainda sentisse em sua mente a dor que tais lesões deviam ter causado. Em torno de seus lábios se formou um círculo branco e lhe palpitava um músculo na têmpora.
— Exatamente os mesmos? — repetiu Pitt.
— Sim, exatamente. Se quer demonstrar que os assassinatos são obra de dois homens diferentes, temo que não posso ajudá-lo. Sei que Costigan morreu na forca, e o lamento. Desejaria lhe oferecer algum consolo, delegado, mas me é impossível.
Caminhava com obcecada resolução, a cabeça para frente, o olhar perdido. Tão absorto se achava em suas emoções que no seguinte cruzamento, se não fosse porque Pitt lhe puxou o braço, teria descido da calçada sem prestar atenção ao trânsito. Um cabriolé passou ante eles a toda velocidade, e a rajada de ar que deixou atrás de si lhe afastou o cabelo da fronte.
— E as unhas? — perguntou Pitt quando Lennox recuperou a calma.
Não se aproximava nenhuma outra carruagem, e cruzaram juntos, andando ao mesmo tempo, até a outra calçada.
— As unhas? —repetiu Lennox.
— Sim. Ada se rompeu uma ao tentar tirar a meia do pescoço. Lutou, mas só por uns instantes. Nora apresentava pequenos machucados, e sangue em uma unha. Era uma mulher de menor estatura, muito frágil e, entretanto dá a impressão de que lutou durante mais tempo.
— É uma pergunta? — disse Lennox ao mesmo tempo em que se desviava de um montão de lixo depositado na calçada.
— Sim. — Pitt rodeou o lixo pelo outro lado. — Por que pôde Nora lutar mais tempo? Isso é uma diferença.
— Não sei. — Lennox enrugou a frente, aparentemente perplexo. — Possivelmente o assassino pegou a Ada despreparada. Há pessoas que oferecem mais resistência que outras, e não se sabe por que. Ocorre como com as enfermidades: uns pacientes sucumbem, morrem de afecções das que em teoria deveriam haver-se recuperado facilmente; outros, em troca, aferram-se à vida e superam doenças ou feridas que deveriam havê-los levado a tumba, que teriam acabado com a vida de qualquer outra pessoa. Guarda relação com a vontade, não com o tamanho ou a fortaleza física.
Pitt aguardou que continuasse, mas Lennox ficou em silêncio.
— Em todo caso, a julgar pelas provas legistas, considera que cometeu os dois assassinatos a mesma pessoa? — perguntou Pitt ao cabo de um par de minutos.
Lennox se deteve e se voltou para ele. Em seu sombrio olhar se percebia confusão e dor, e em seus lábios a tensão da lembrança.
— Não sei, delegado. Eu só posso falar do que vejo. Corresponde a você conjeturar quem é culpado e quem inocente. Nisso não me é possível ajudá-lo. Se pudesse indicar a alguém e dizer "Esse é o homem", faria-o. A esse respeito não acredito que você tenha a menor duvida. Vi a duas mulheres jovens torturadas, submetidas a vexames e um profundo terror, e assassinadas. — Lhe quebrou a voz e por um momento perdeu o controle, sucumbindo a suas violentas emoções. Tomou ar com visível esforço, engoliu em seco e tratou de recuperar pelo menos o domínio de seu semblante.
Pitt estendeu uma mão e o pegou pelo braço. Notou seus músculos duros sob o tecido da jaqueta.
— Acalme-se — sussurrou. — Sinto muito. Não deveria tê-lo pressionado. Sem dúvida as matou a mesma pessoa. Não... não posso devolver a vida ao Costigan e tampouco pelo visto achar ao verdadeiro culpado. Começo a estar desesperado.
Lennox respirou como se se dispusesse a falar, mas se limitou a olhar ao Pitt com expressão de profundo abatimento.
— Desculpe-me, doutor Lennox — disse Pitt. — adiei já muito algo que temo, mas chegou a hora de confrontá-lo. Obrigado por seu tempo. Lamento havê-lo afastado de seus pacientes.
Soltou-lhe o braço, deu meia volta e se encaminhou de novo para o Whitechapel Road e a igreja da Santa Maria. Era o momento de falar cara a cara com o Jago Jones.
Encontrou-o no Coke Street, como nas ocasiões anteriores, distribuindo taças de sopa entre os famintos e desamparados, só que esta vez o ajudava uma mulher cansada e manchada de fuligem que Pitt mal reconheceu: Tallulah FitzJames. Deteve-se uns passos deles e os observou procurando não chamar sua atenção. Tallulah não se parecia em nada a jovem frágil e despreocupada que tinha visto no Devonshire Street. Se não fosse pela singularidade de seu rosto, não teria sabido que era ela. Estava absorta no que fazia, embora Pitt via às vezes em sua rosto uma fugaz expressão de repugnância, e o esforço de apagá-la concentrando-se novamente na tarefa de encher as taças.
A um lado tinha um saco de roupa usada, e de vez em quando procurava em seu interior, extraía algo e o entregava a umas mãos ansiosas.
Para uma menina imunda e ranheta teve mais trabalho. Revolveu a roupa velha durante um momento até achar um alegre vestido com um estampado de viva cor vermelha.
— Aqui tem. Com isto estará muito bonito — disse sorrindo. Teve a delicadeza de não acrescentar que também iria mais abrigada.
A menina engoliu em seco e sorveu o nariz. Nunca antes tinha concebido a possibilidade de estar bonita. Era um sonho, algo reservado a outra classe de gente.
— Pegue-o — apressou Tallulah. — É seu.
A mãe, muda de gratidão, ergueu a vista.
A menina não achou palavras para agradecer-lhe Olhou-a com os olhos desmesuradamente abertos, avançou um passo, logo outro e por fim a rodeou com os braços.
Por um instante Tallulah ficou imóvel, rígida por causa de um instintivo asco. Com um esforço de vontade que se refletiu em seu rosto durante apenas uns décimos de segundo, sobrespondeu-se, sorriu e se agachou para abraçar também à menina.
A seguir passou a ocupar-se da seguinte pessoa da fila, mas em seu rosto permaneceu uma expressão de doçura, como se algo precioso se mostrasse ainda a seus grandes olhos.
A fila avançava lentamente. Os homens com visível ressentimento, desgostados por ter que recorrer à caridade. As mulheres, gastas, com crianças sujas nos braços, careciam desse orgulho; para elas, a fome e o frio de um filho era muito pior que qualquer forma de degradação ou a admissão de sua necessidade.
Quando terminou a sopa e Jago e Tallulah ficaram sós junto ao carrinho de mão, Pitt se aproximou deles. Tallulah recolhia o saco, já vazio, que tinha contido a roupa usada. Pitt se perguntou se a teria facilitado ela mesma, unindo ao seu trabalho uma contribuição material.
Jago saiu a seu encontro e o saudou educadamente apesar do cansaço e cautela que transparecia em seu olhar. Tallulah se achava a uns passos deles, ainda pondo ordem.
— O que posso fazer por você, delegado? Só sei o que já sabia a última vez que falamos.
— Conhecia a Nora Gough? — disse Pitt com voz tranquila. — Isso não tive ocasião de perguntar-lhe em nossa última conversa.
Jago sorriu a seu pesar.
— Não, certamente não teve ocasião. Pois sim, Conhecia-a um pouco. Uma garota linda. Muito jovem. Muito segura de si mesma. Acredito que possivelmente teria acabado casando-se e convertendo-se em uma mulher respeitável. Às vezes ocorre, sabia? —Escrutinou o rosto do Pitt em busca de incredulidade.
— Sim, sabia — afirmou Pitt. — Eu mesmo conheço alguns casos.
Jago deixou escapar um suspiro.
— Claro, como não ia saber! Desculpe-me. Não pretendia ensiná-lo.
— Disse isso sobre a Nora por alguma razão em particular?
— Não. Era só uma impressão. Pode ser que ela me comentasse algo a respeito. Por que o pergunta? Acredita que isso pode ter relação com seu assassinato?
—Não descarto nenhuma possibilidade. Sob seu travesseiro apareceu um lenço com as iniciais do Finlay.
De repente Jago empalideceu e clareou a garganta com um brusco pigarro.
— Não pensará... —Voltou a suspirar. — O que quer de mim, delegado? Não tenho a menor ideia de quem pode ter matado a essas duas mulheres. Me... custaria — me acreditar que tivesse sido Finlay, e se assim fosse, lamentá-lo-ia mais do que você imagina. — Não olhou ao Tallulah. Nesse instante não deu a impressão de que a dor dela fosse sua principal preocupação.
— Um último cliente que viram entrar na habitação da Nora era um homem parecido ao Finlay — continuou Pitt, observando atentamente ao Jago.
— E você acredita que era Finlay? —perguntou Jago. — Não conseguiram dar com esse homem? Alguém deve tê-lo visto partir do Myrdle Street. Onde se meteu? A essa hora da tarde há muita gente pela rua. Por que ia vir Finlay ao Whitechapel? É absurdo. Suponho que é incapaz de demonstrar onde se achava nesse momento, ou do contrário não teria vindo você me perguntar. — Falava em voz baixa para que Tallulah, que estava acabando de recolher, não o ouvisse.
— Não, Finlay não tem álibi — confirmou Pitt. — E ninguém voltou a ver esse homem quando partiu do Myrdle Street.
— A quem perguntaram? — disse Jago, contraindo o rosto em um gesto de concentração.
Pitt repetiu os nomes que recordava das listas que Ewart lhe tinha facilitado.
— Onde estava você essa tarde, reverendo? — perguntou por fim.
Jago se pôs a rir.
— Brincando de rã com meia dúzia de marotos no Chicksand Street. Depois voltei para o vicariato para tomar o chá em companhia de umas damas muito caridosas. Nem sequer me aproximei do Myrdle Street, e certamente não vi o Finlay... ou quem quer que fosse esse indivíduo.
— Ninguém o viu sair. —Pitt deu de ombros. — E isso é o mais inverossímil. Acaso mente todo mundo?
— Não — disse Jago com aparente convicção. — Se ninguém o viu, ou a descrição é tão vaga que não permite identificá-lo.... ou não saiu.
Pitt o olhou estupefato. Possivelmente era essa a resposta. Possivelmente o autor do crime não tinha saído da casa, mas subido ou descido pela escada, ficando em algum outro piso.
Ou talvez tinha modificado tanto seu aspecto que não parecia já um homem jovem de cabelo loiro e encaracolado, vestido com roupa de boa qualidade.
— Obrigado — disse lentamente. — Ao menos agora sei onde tentar de novo.
— Tome cuidado — advertiu Jago. — Vá acompanhado de um agente, não o esqueça. Os ânimos continuam muito alterados. Em vida, Costigan não gozava de grandes simpatias, mas agora se converteu no herói que alguns necessitavam. A ira e o desespero estão muito arraigados, e sempre há homens dispostos a lhes tirar partido, induzindo a algum pobre desgraçado a atacar à polícia por eles e carregar com a culpa, e colhendo depois os frutos políticos.
— Sei. — Pitt estava impaciente por reatar a investigação. — Tranquilize-se, andarei com cautela. Não quero ser responsável por um motim além de um enforcamento.
Um dia depois da desafortunada experiência de Pitt na taverna do Swan Street, Charlotte foi também ao East End, mas antes passou por casa do Emily e depois, em companhia desta, visitou Tallulah.
— Sabemos que não foi Finlay — declarou Emily com tom categórico, sentada junto à janela do toucador do Tallulah, que dava ao jardim. — E desgraçadamente sabemos também que não pôde ser Albert Costigan. Por diversas razões precisamos averiguar quem o fez. Devemos abordar o assunto de maneira sistemática.
— Não vejo o que podemos fazer nós que não tenha feito já a polícia — respondeu Tallulah com pessimismo. — interrogaram a todo mundo. Sei pelo Jago. Inclusive interrogaram a ele.
A julgar por sua expressão, era claro que a possibilidade de que Jago fosse culpado nem sequer lhe tinha passado pela cabeça. Tão convencida estava de sua bondade que não concebia nele a menor falha.
Charlotte evitou o olhar do Emily. As duas tinham pensado o mesmo, e embora imediatamente tinham afastado de suas mentes essa horrenda ideia, não desaparecia por completo.
— Devemos empregar a lógica — prosseguiu Emily, olhando para Tallulah. — por que mataria você a alguém?
Tallulah se sobressaltou.
— Como?
— Por que mataria alguém? — repetiu Emily. — Caso tivesse que ganhar a vida dia a dia nas ruas. Faça o esforço de imaginá-lo. O que a levaria a cometer um ato tão extremo, tão sujo e perigoso, como matar a alguém?
— Se matasse a alguém, seria em um arrebatamento de ira — respondeu Tallulah pensativamente. — Não me imagino planejando-o... a menos que se tratasse de alguém a quem temesse, e eu não tivesse a força necessária para fazê-lo de outro modo. Mas isso não é aplicável neste caso, não?
— Assim, seria capaz de matar a alguém se lhe inspirasse medo — concluiu Emily. — E por que outras razões? O que poderia enfurecê-la tanto para chegar a esse limite?
— Possivelmente se zombassem de mim — disse Tallulah lentamente. — Poderia empreendê-la a golpes com alguém, e possivelmente me passar dos limites. Todos se incomodam que riam de nós, e mais se tocarem alguma fibra especialmente sensível.
— Tanto como para matar? — insistiu Emily.
Tallulah se mordeu o lábio.
— Em realidade não... ou só possivelmente se fosse uma pessoa com o gênio muito vivo. Alguns homens perdem o controle se ficar em tecido de julgamento sua honra, ou se ofende a suas mães ou esposas.
— Isso bastaria para arremeter contra alguém, sim — concordou Charlotte. — Mas seria motivo suficiente para lhe quebrar primeiro os dedos das mãos e dos pés e depois estrangulá-lo?
Tallulah a olhou estupefata, seu rosto branco como o papel. Moveu os lábios como se fosse falar, mas de sua garganta não saiu o menor som.
Furiosa consigo mesma e aflita por um intenso sentimento de culpa, Charlotte compreendeu que, como era de supor, Tallulah não lia os jornais. E naturalmente ninguém lhe tinha explicado como tinham morrido as duas mulheres. Devia ter suposto que tinha sido um simples estrangulamento, algo rápido, uns instantes de resistência por respirar e depois a inconsciência. E de repente, com uma só frase, viu-se jogada na realidade.
— Sinto muito — sussurrou Charlotte. — esqueci que não estava inteirada disso. Deveria me haver calado.
Tallulah engoliu saliva com visível esforço.
— Por quê? — Lhe quebrou a voz. — por que teria que me proteger da verdade? Essa é a verdade, não? As... torturaram?
— Sim.
— Por quê? Por que tinham que lhes fazer uma coisa assim? A... as duas? — perguntou Tallulah, implorando ao Charlotte com o olhar que o negasse.
— Sim. Infelizmente assim foi.
— É espantoso!
Tallulah estremeceu e pareceu encolher-se, como se o alegre e cálido aposentos com seus agradáveis estampados de flores e suas refinadas cadeiras estivesse gelado apesar do sol que penetrava pelas janelas e o fogo que ardia na lareira.
— Observaram-se também outros detalhes — disse Emily, dirigindo um olhar de advertência ao Charlotte—, detalhe que indicam que o crime teve que ver com... — Vacilou, procurando a maneira de descrever aquilo sem causar ainda maior desassossego ao Tallulah, que não era uma mulher casada e, cabia supor, desconhecia muitos aspectos da vida. Por fim acrescentou: Com as relações entre homens e mulheres.
—O que... detalhe? — perguntou Tallulah com voz rouca.
Emily parecia desconfortável.
—Detalhes absurdos — prosseguiu. — Às vezes a gente tem... fantasias estranhas. Certa gente... — Interrompeu-se e procurou apoio no olhar de sua irmã.
Charlotte respirou fundo e explicou com voz serena:
— Toda relação tem seu lado estranho. Às vezes as pessoas desfrutam lançando-se comentários férreos, ou adotando uma atitude dominante. Certamente o haverá você observado em mais de uma ocasião. Entre alguns homens e mulheres essas situações chegam a um grau extremo e adquirem uma forma física. Certamente isso só se dá em uma minoria das pessoas. Mas parece que quem quer que tenha cometido estes crimes... é...
— Compreendo. —Tallulah realizou o valente esforço de aparentar Isso equanimidade significa, pois, que esse indivíduo tem uma veia de extraordinária crueldade, e que mantinha... relações físicas com as vítimas. — Deixou escapar uma risada nervosa. — Embora isso não é de estranhar, considerando o ofício dessas mulheres. Mas por que matá-las?
— Não sei — respondeu Emily. — Possivelmente o ameaçaram?
— Como? —Tallulah parecia confusa. — Eram mais fracas que ele. Por força tinham que sê-lo.
— Com uma chantagem, possivelmente — sugeriu Emily.
— As duas? —perguntou Charlotte com ceticismo. — No que podia consistir a chantagem? Em contar que tinha visitado uma prostituta? Não está acostumado a falar do tema abertamente, mas todas sabemos que os homens o fazem. Se não fosse assim, não haveria prostitutas.
— Sabemos que ocorre com outros homens — corrigiu Emily. — Mas e se for seu marido? E se alguém tão próximo a você sente essa classe de apetites? A alguns homens poderia lhes arruinar a vida. Imaginemos que alguém tem em perspectiva um matrimônio vantajoso, ou que já se casou e depende da boa vontade de seu sogro para melhorar sua posição. Ou que necessita um filho varão, um herdeiro, e teme que sua esposa o negue se chegar a descobrir sua conduta.
— Sim, isso tem sentido — concedeu Charlotte. — Mas por que as duas, Ada e Nora? E por que torturá-las? Por quê não simplesmente matá-las e partir dali o antes possível? Quanto mais tempo permanecesse no lugar do crime, maior era o risco de ser apanhado. E acaso a tortura poderia formar parte de sua perversão? Não, absolutamente. Nenhuma prostituta se prestaria a deixar-se romper os dedos das mãos e pés por mais que lhe pagassem. Deixar-se atar e jogar água fria talvez, mas não o outro.
Tallulah seguia muito pálida e estava encurvada em sua elegante cadeira.
— Provas — aventurou pensativamente. — Ada tinha provas de sua conduta, e ele a torturou para que as entregasse.
— Mas ela não as entregou... porque tinha pedido a Nora que as guardasse —conjeturou Charlotte.
— Que espécie de provas? —perguntou Emily com crescente entusiasmo na voz. Por fim tinham achado uma possibilidade com certa lógica. — Retratos comprometedores? Cartas? A declaração de uma testemunha? O quê?
— A declaração de uma testemunha — respondeu Charlotte. — Os desenhos ou pinturas não têm nenhum valor; não servem como provas. E ninguém tomaria fotografias de algo assim. Seria impossível. Terá que posar uma eternidade para fazer uma fotografia. E quem envia cartas a uma prostituta? Tem que ser algo relacionado com uma testemunha. Possivelmente tinha ocorrido já outras vezes. Talvez muitas mulheres sabem, e Ada tinha declarações escritas de todas elas.
— E onde estão agora? —Tallulah olhou alternativamente ao Charlotte e Emily. — Em poder desse homem? Ou Nora as tinha bem escondidas, e ele não conseguiu achá-las?
— O que devemos fazer — propôs Charlotte com determinação, erguendo-se na cadeira — é reunir a maior informação possível sobre a Nora e Ada. Aí está a resposta. Primeiro precisamos demonstrar que se conheciam. Devemos averiguar tudo o que tinham em comum, e logo tratar de achar a outras mulheres que conheçam esse homem. Poderiam nos dar uma descrição exata dele, ou talvez inclusive seu nome.
— Estupendo! —Tallulah ficou em pé. — Nos poremos mãos à obra imediatamente. Jago nos ajudará. Conhecia a Ada McKinley. Saberá por onde devemos começar, e até pode ser que nos ajude a granjear a confiança das pessoas para que aceitem falar conosco.
— Isto... — disse Emily, e olhou ao Charlotte, incapaz de achar o modo de expressar o que rondava por sua mente sem ferir o Tallulah de maneira irreparável.
— Sim? — perguntou Tallulah.
Charlotte começou a pensar a toda velocidade.
— Não acredita que isso seria um tanto injusto? — improvisou.
— Injusto? — repetiu Tallulah, confusa. — Com quem? Com as prostitutas? Procuramos o homem que matou duas delas. Não vejo a injustiça por nenhuma parte.
— Não com as prostitutas. Com o Jago. — Charlotte tinha ordenado já suas ideias. — É seu pároco. Não convém que ponha em perigo seu trabalho com os paroquianos deixando-se ver conosco enquanto investigamos. Ao fim e ao cabo, ele terá que ficar ali, em boas relações com eles, quando formos embora.
Não podia deixar de pensar na sinistra possibilidade de que o próprio Jago tivesse matado às duas mulheres. Quem seria mais vulnerável à chantagem que um sacerdote com fraqueza por prostitutas? Era a espécie de homem cuja imagem não sobreviveria à acusação de haver-se deitado com uma mulher da rua, ou mais de uma. Não poderia continuar com seu trabalho, nem no Whitechapel nem em nenhuma outra igreja.
— Ah! — Tallulah relaxou. — Sim, suponho que tem razão. Melhor será que vamos sozinhas. Arrumaremos isso. Mas preferiria que fôssemos ali de dia. — Ruborizou-se. — De noite poderiam...
— Naturalmente — se apressou a responder Emily. — Já será bastante complicado e desagradável sem que nos considerem rivais.
Tallulah riu nervosamente, mas as três estiveram de acordo. Reuniriam-se a primeira hora da tarde, iriam a Old Montague Street em um cabriolé de aluguel e iniciariam suas pesquisas, com o traje oportuno, é claro.
O acesso ao interior da casa do Pentecost Alley não foi simples. Madge atendeu a porta, e recordava delas claramente de sua anterior visita. Vestiam de maneira similar.
— O que querem desta vez? — perguntou, escrutinando-as pela fresta da porta entreaberta. Fixou-se em Charlotte. — E você quem é? A criada? — Contemplou seu esbelto talhe. — Pela pinta, juraria que é a criada. O que acontece? Eles jogaram todas na rua, não? Pois não vieram ao lugar indicado. Não posso aceitá-las. Só há quarto para uma, e sai caro. O preço é proporcional a seus ganhos, mas se não ganharem nada, têm que pagar igualmente o aluguel. Quem de vocês a quer?
— Entraremos para dar uma olhada — disse Charlotte imediatamente. — Obrigada.
Madge lhe lançou um olhar suspicaz.
— Por que uma garota educada como você quer fazer a rua em um bairro como este? por que não trabalha na zona oeste, onde poderia embolsar um bom dinheiro?
— Pensarei-o — respondeu Charlotte. — Mas primeiro vejamos esse quarto, por favor. Madge abriu a porta e as deixou entrar. Seguiram-na pelo corredor, que cheirava ligeiramente a umidade, como se na casa houvesse sempre gente e nunca se arejasse. Madge empurrou a segunda porta do corredor, e esta se abriu de par em par. Charlotte ia diante. Deu uma olhada ao interior, e imediatamente se arrependeu. Era um quarto muito comum, aproximadamente das mesmas proporções que o quarto que ela ocupava de menina em casa de sua família. Era muito menos bonito, mas era acolhedor. Não custava imaginar à mulher que tinha adormecido ali, que tinha realizado seu trabalho ali, e morto ali em meio de atrozes dores.
Ouviu que atrás dela Tallulah respirava fundo, e notou que a seu lado Emily ficava rígida, mas não emitia o menor som.
— Interessa-lhe? — perguntou Madge sem rodeios com voz rouca.
Charlotte se virou e viu o rosto da enorme mulher, tenso, vermelho, enrugado, choroso.
— Nos sentemos um momento para falar do assunto — propôs Emily. — vamos tomar um chá. trouxe algo para acompanhá-lo. Cedo ou tarde terá que alugar-se esse quarto. Madge as guiou sem falar com a cozinha, que se achava ao final do corredor. Estava desordenada e imunda e se destinava tanto a cozinhar como a lavar a roupa. Havia um fogão negro aceso que mal despedia calor, e ao redor uma fina capa de cinza cobria o chão. Em cima o bule fumegava já levemente. Possivelmente sempre tinham chá preparado. Na superfície de madeira que se estendia junto a pia havia tigelas sujas e dois baldes de água tampadas. Charlotte supôs que a água procedia do poço ou fornecedor mais próximo. Confiava em que a fervessem bem antes de utilizá-la para o chá. Lamentava a proposta do Emily, mas talvez não tivessem outra oportunidade de falar, e o que era um possível transtorno estomacal em comparação com o desastre que deveria confrontar Pitt se o crime ficasse sem resolver? Seria recordado como o homem que tinha enviado à forca a um inocente. Pior ainda, possivelmente também ele pensasse em si mesmo desse modo. Duvidaria de sua capacidade de discernimento, os remorsos de consciência lhe tirariam o sono. E haveria quem acreditaria que o tinha feito sabendo, a fim de proteger a outra pessoa, alguém com dinheiro ou influências capaz de recompensá-lo devidamente. Não só seria suspeito de um simples engano. Os enganos podiam perdoar-se; eram humanos. A corrupção, em troca, era algo muito mais grave; era a traição máxima.
O chá estava forte e amargo, e não levava leite. Sentaram-se as quatro à mesa em cadeiras desiguais. Emily extraiu uma garrafa com uísque de seu amplo bolso e verteu um generoso jorro em cada tigela, para assombro do Tallulah, que não obstante soube dissimular.
— A sua saúde — brindou Emily, erguendo sua xícara.
— Pela saúde de todas nós — disse Charlotte, mas mais como prece que como brinde.
— Que tal é esta zona? — perguntou Emily com interesse.
— Não está mal — respondeu Madge, e tomou um bom gole de chá fervendo e se lambeu em um gesto de elogio. — foi uma gentileza de sua parte — acrescentou, assinalando a garrafa com o queixo. — Pode-se ganhar bem a vida se estiver disposta a trabalhar firme.
— Para Ada foram bem as coisas, não? — continuou Emily. — Era preparada.
— E fazia bem seu trabalho — confirmou Madge, e jogou outro gole.
— Tomara pesquem ao canalha que a matou — disse Emily com raiva.
Madge deixou escapar um longo suspiro.
— A ela e a pobre Nora — particularizou Charlotte com voz trêmula. — Conhecia a Nora?
— E você? —perguntou Madge, olhando-a com suspicácia.
— Não. Como era?
— Bonita. Miúda, um tanto fraca para o gosto de alguns.
Considerando a imponente corpulência do Madge, esse comentário estava aberto a interpretações pessoais. Charlotte sentiu um súbito desejo de rir, que reprimiu não sem esforço.
— Mas fazia bem seu trabalho? — perguntou com a voz entrecortada por um repentino ataque de soluço.
— Sim, certamente! —respondeu Madge. — Embora, conforme ouvi, ia deixá-lo para casar-se.
— E acha que era verdade? — disse Tallulah com voz vacilante e gutural, intervindo pela primeira vez na conversa.
— Pode ser. — Madge fez uma pausa. — A vi alguma vez com o Johnny Vocês. Não é mau tipo. Possivelmente se teria casado com ela. Embora se dizia que gostava Dela Baker, outra mulher do Myrdle Street. Possivelmente a tinha deixado pela Nora. Diz Edie que viu a Nora lhe dar um beijo de despedida faz um par de semanas.
— Eu dei beijos de despedida a muitos homens, e isso não significa que vão casar se comigo — respondeu Tallulah.
— Isso faz? — Madge a observou com atenção. — Se nota que não leva muito tempo no ofício, bonita. Ande com cuidado. Este não é lugar para principiantes.
— Eu... eu não sou uma principiante — replicou Tallulah na defensiva, e de repente lançou um abafado grunhido de dor por causa do chute que Emily lhe tinha dado por baixo da mesa.
— Se for por aí beijando aos homens, é que o é — afirmou Madge, considerando-o um fato incontestável. — Os beijos são para a família, para a gente que aprecia. Os clientes recebem aquilo pelo que pagam, nada mais. Certas coisas têm que seguir sendo autênticas, terá que reservar-lhe e não as pôr em venda.
Tallulah a olhou boquiaberta, com duas manchas de cor nas faces.
— Necessita de alguém que cuide de você, que a ensine a se comportar — acrescentou Madge com doçura. — Fique com o quarto, e eu a ensinarei.
Tallulah ficou muda. Não era difícil adivinhar os pensamentos que se amontoavam em sua mente.
—Obrigada — se apressou a dizer Charlotte. — É muito amável de sua parte. Parece-me uma excelente ideia. Nós duas sempre podemos procurar em outra parte. Deve haver outras casas no bairro. Suponho que o quarto da pobre Nora estará agora em aluguel? — Não saberia lhe dizer — respondeu Madge. — Mas podem perguntar. Se estiver já ocupado, poderiam ir ver MA Baines, no Chicksand Street. Ela está acostumada a ter quartos livres. Não é o lugar ideal, mas de momento lhes tirará do apuro, e quando aparecer algo melhor, mudarão-se. Não leva muito tempo aqui, mas ouvi dizer que não se comporta mal. As roupas têm que pô-la vocês. — Voltou-se para Tallulah. — Você tem sua própria roupa, não?
— M... minha própria roupa? — repetiu Tallulah, gaguejando.
— Sim. Santo céu! Claro está que é uma principiante! — Madge moveu a cabeça em um gesto de desespero. — Mas de rosto não está mau, e tem o cabelo bonito. Ainda poderá fazer-se algo com você. —Deu-lhe uma palmada de consolo na mão e depois observou ao Charlotte e Emily sucessivamente. — Vocês podem se cuidar sozinhas. —Escrutinou ao Charlotte. — Você tem carne sobre os ossos. Servirá. E boa cabeleira. De rosto tampouco está mau.
— Obrigada — respondeu Charlotte com certa ironia.
Madge era imune ao sarcasmo. Olhou ao Emily de cima abaixo.
— Você está um pouco magra, mas tem um rosto agradável e uma pele suave. E os homens gostam das loiras, sobre tudo com uns cachos como os seus. Além disso, parece que graça não te falta. Servirá.
— Pode nos dizer onde achar ao MA Baines? — perguntou Emily, passando por cima sua avaliação pessoal e voltando para a questão que as correspondia.
— Sim, claro — respondeu Madge. — No vinte e um do Chicksand Street. É a rua seguinte a esta em direção a Mele End. Qualquer um lhes indicará o caminho.
Parecia que a conversa chegava a seu fim, e entretanto não tinham obtido ainda informação suficiente para abandonar.
— Ada e Nora se conheciam — comentou Charlotte sem rodeios. — Se pareciam em algo? Tinham amigos comuns?
Madge pestanejou, perplexa.
— E a você o que importa?
— Não quero acabar com os dedos das mãos e dos pés quebrados e estrangulada com uma de minhas meias — respondeu Charlotte com tom terminante. — Se houver por aqui um louco, eu gostaria de saber que espécie de vítimas escolhe para não estar entre elas. — Olhe, bonita, escolhe só a uma espécie de mulheres — respondeu Madge com cautela. — As mulheres que se vendem a qualquer homem porque têm que dar de comer a seus filhos, ou porque não querem trabalhar nas fábricas de fósforos para acabar com fosforismo e ver como lhes apodrece o rosto, ou nas oficinas de costura costurando saias todo o dia e meia noite em troca de um salário com o que não viveria nenhum rato. Enquanto dura, é mais fácil ganhar a vida deitada de costas.
Voltou a encher de chá as xícaras e lançou um olhar esperançado ao Emily.
Emily acrescentou de novo um jorro de uísque em cada xícara.
— Obrigada — disse Madge antes de prosseguir com sua arenga. — Se queria uma vida sem perigos, deveria ter nascido rica. Pode ser que acabe pegando uma enfermidade, ou pode ser que não. Levará uma ou outra surra, inclusive alguma punhalada se lhe abandonar a sorte. Com o tempo desejará não voltar a ver um homem até o final de seus dias. —sorveu o nariz. — Mas não passará fome, nem frio assim que volte para casa da rua. E terá ocasiões de rir. — Deixou escapar um suspiro e tomou um gole de chá. — Que bons momentos passamos, Nora, Rosie, Ada e eu! Contávamo-nos anedotas e nos fazíamos passar por senhoras respeitáveis. — Sorveu o nariz. — Recordo que uma noite do verão saímos e montamos em um dos navios de recreio que sobem pelo rio, como qualquer outra pessoa. Muito arrumadas, claro está. Comemos empanada de enguias e geléia e bebemos menta. — Deve ter sido uma noite inesquecível — sussurrou Charlotte, imaginando apesar de não conhecer seus rostos.
— Que se foi! — exclamou Madge com expressão sonhadora e lágrimas nos olhos. — E às vezes nos contávamos histórias de fantasmas. Assustávamo-nos como meninas. Também houve momentos difíceis, claro; mas suponho que é então quando se descobre quem são as verdadeiras amigas. — Voltou a sorver pelo nariz e se enxugou as faces com as mãos.
—Isso é verdade — concordou Emily. — Sinto muito o da Ada, e espero que peguem quem a matou.
—Como vão pegá-lo? — disse Madge com tristeza. — Pegaram por acaso o Estripador? Por que, pois, iriam agarrar a este?
Tallulah se estremeceu. Dois anos depois, a mera menção desse assassino continuava gelando o sangue.
Charlotte sentiu também um calafrio, apesar do chá com uísque e o calor da quitinete e fechada. Na casa não se ouvia nada mais que suas próprias vozes. As outras mulheres dormiam depois de sua noite de trabalho, seus corpos exaustos, recém utilizados por desconhecidos para aliviar suas necessidades, sem amor, sem beijos, como poderia usar um urinário público.
Olhou para Tallulah e viu refletida em seu rosto uma nova tira de consciência. Da mão do Jago, dando de comer aos pobres, a mulheres respeitáveis oprimidas pela fome, frio e angústia, tinha conhecido um mundo novo para ela. E este era outro mundo, ainda muito mais escuro, com aflições distintas, com diferentes medos.
— Vêm por aqui muitos cavalheiros? — perguntou de repente, e as palavras brotaram entrecortadamente de sua garganta, como se lhe doesse pronunciá-las.
— Homens com dinheiro? — Marge soltou uma gargalhada. — Olhe, bonita, o dinheiro de um homem é tão bom como o de qualquer outro.
— Mas vêm cavalheiros? — insistiu Tallulah com o semblante tenso e o olhar fixo nos olhos de Madge.
— Não muito frequentemente. Por quê? Se você gostar dos cavalheiros, terá que ir mais ao oeste. Haymarket, Piccadilly, essa zona. Mas ali os quartos se alugam por horas e há muita competição. Vale mais que o tente aqui. Para uma principiante será mais fácil e eu cuidarei de você.
Tallulah percebeu a ternura do Madge e a comoveu profundamente. Charlotte o notou em sua expressão.
— Era... era só curiosidade —disse pesarosa, baixando a vista.
— Às vezes vem algum — respondeu Madge, observando-a.
— Foi um cavalheiro o que matou a Ada? — perguntou Tallulah. Não estava disposta a render-se. Mantinha firmemente seguro entre seus dedos crispados a xícara cheia de escuro chá e com aroma de uísque.
— Não sei. —Madge fez um gesto de indiferença com seus volumosos ombros. — Estava convencida de que tinha sido Bert Costigan, mas não deve ser ele se agora que mataram Nora da mesma maneira.
— Ou seja, que poderia ter sido um cavalheiro. — Emily olhou uma por uma às outras três mulheres. — Mas é provável? Não seria mais lógico pensar que as matou alguém que conhecia as duas?
— Talvez fosse um cavalheiro que as conhecia as duas — aventurou Charlotte, avançando um passo mais em suas deduções. — Um cavalheiro com gostos um tanto perversos.
Madge tomou o chá que ficava e deixou a xícara na mesa com um brusco golpe.
— Não vá por aí falando dessa maneira — disse com tom cortante, assinalando—a com o dedo. — Só conseguirá assustar às pessoas, e isso não serve de nada. Aqui todas temos que trabalhar tanto se houver um lunático solto como se não. Vão ver o MA Baines. Ela conhece seu trabalho. Encontrará-lhes alojamento. E não façam ruído ao sair. Minhas garotas ainda dormem, como fariam vocês se tivessem passado a noite inteira trabalhando. — Olhou a Emily —, Obrigado pela bebida. Foi muito amável de sua parte. — Sua expressão se suavizou quando, por último, voltou-se para Tallulah. — Guardarei o quarto para você até amanhã. Não posso esperar mais tempo se tiver alguma oferta.
— Obrigada — respondeu Tallulah, mas assim que saíram da casa e deixaram atrás o beco, começou a tremer violentamente e se aproximou tanto de Emily que quase a puxou da estreita calçada.
Seguindo as instruções do Madge, chegaram ao Chicksand Street e localizaram a enorme e desmantelada casa de cômodos onde MA Baines tinha seu estabelecimento. Esperavam achar a alguém como Madge, obesa, corada, suspicaz. Entretanto as atendeu uma mulher alegre de proeminente peito, quadril estreito e pernas longas. Tinha um rosto bastante comum e um espesso cabelo de um loiro descolorido que levava preso com forquilhas em iminente perigo de desprender-se.
— Sim? — disse ao ver as três mulheres.
—Comentaram-nos que poderia ter quartos livres — anunciou Charlotte sem vacilar. aproximava-se a hora da tarde em que as mulheres começavam a sair em busca de clientes.
— Nesta casa se trabalha — advertiu MA Baines. — O aluguel é caro. Não tenho lugar para costureiras. Nem sequer para uma noite, e muito menos para uma semana
—Já estávamos inteiradas disso — replicou Charlotte, obrigando-se a sorrir. — Acaso lhe parecemos costureiras?
MA Baines pôs-se a rir; era uma risada expansiva, sem ressentimento.
—Me parecem fulanas do West End, salvo pelos vestidos, que são como os das criadas em seu dia livre, muito respeitáveis e quase tão atrevidos como a esposa de um pároco.
— Não estamos de serviço — explicou Emily.
— Neste ofício sempre se está de serviço, encanto — respondeu MA Baines.
— Menos quando não se tem quarto — corrigiu Charlotte. — Eu não faço meu trabalho na rua.
MA Baines retrocedeu um passo.
— Então melhor será que entrem.
Entraram na casa. Era um espaço estreito e cheirava a fechado, mas tudo estava bastante limpo e um velho tapete cobria o chão, amortecendo seus passos quando a seguiram a uma pequena sala de estar situada ao fundo. Absurdamente, também aquela estadia recordou ao Charlotte a casa onde se criou, em concreto o quarto da governanta. MA Baines as convidou a sentar-se, e ela ocupou a poltrona maior e cômoda. Dava a impressão de que entrevistava a três candidatas a um posto de criada. Charlotte sentiu de novo o desejo de rir, uma espécie de reação histérica ante aquela loucura. Tão somente uns anos atrás sua mãe teria se desacordado ante a mera ideia de que suas filhas pudessem sequer conhecer a existência de um lugar como aquele, para não falar já de visitá-lo. Naquele momento, em troca, possivelmente o compreenderia. Seu pai simplesmente se teria negado a acreditar. E só Deus sabia o que pensaria Aloysia FitzJames se chegasse a inteirar-se de que sua filha tinha estado ali.
MA Baines falava de aluguéis e normas, e Charlotte não a tinha escutado. Fixou o olhar no rosto do MA e tratou de aparentar atenção.
—Tudo isso nos parece bem — disse Emily —, mas temos algumas duvida em relação à zona.
— Mais ao oeste lhes sairá mais caro — indicou MA. — E não há inconveniente em que vão à zona oeste daqui, desde que me entregarem a parte correspondente dos lucros e não me enganem. — Mantinha uma expressão amável, mas se percebia em seus olhos um implacável brilho de cor cinza gelo, frio como um mar no inverno.
—Não referíamos a isso — esclareceu Charlotte —, a não ser aos assassinatos que houve aqui ultimamente. Nós gostaríamos de trabalhar em um lugar onde tenhamos a segurança de que nos ouvem gritar se tropeçamos com um mau cliente. —Não acrescentou que sabia que ao produzi-las mortes da Ada e Nora havia gente perto que poderia tê-las ajudado, mas não se ouviu nenhum grito, e ninguém acudiu.
— Nesse sentido dá na mesma um lugar como outro — respondeu MA com um amargo sorriso. — Lunáticos há em todas partes; achar-lhe ou não é questão de sorte.
— Mas aqui no Whitechapel houve dois assassinatos horríveis nos últimos meses — disse Tallulah com voz baixa e trêmula, olhando fixamente ao MA Baines. — Algo assim não aconteceu em nenhum outro lugar.
— Equivoca-se! —exclamou MA de improviso. — Houve um exatamente igual a estes quando eu estava em Mele End. Faz uns seis anos, possivelmente sete.
— Igual a estes? O que quer dizer? —perguntou Charlotte com voz rouca, como se algo lhe obstruísse-a garganta.
— Exatamente igual — repetiu MA. — As mãos atadas, os dedos das mãos e os pés quebrados ou deslocados, uma liga em um braço, água por toda parte... na cabeça, ombros, cabelo...
Tallulah afogou um grito como se acabassem de lhe atirar um golpe.
Emily voltou a cabeça e olhou ao Charlotte.
Por uns segundos reinou um silêncio glacial e cortante. As pranchas do teto rangeram sob os passos de alguém que caminhava no piso superior.
— Quem o fez? — perguntou Charlotte por fim obrigando às palavras a sair por entre seus lábios paralisados.
MA se encolheu de ombros.
— Deus sabe. Não o descobriram. Ao cabo de um tempo a polícia deixou de procurar, como acontecerá esta vez quando virem que é impossível encontrá-lo.
— Como... como era a garota? — perguntou Emily, com a voz também empanada. MA moveu a cabeça em um gesto de negação.
— Não sei como se chamava. Esqueci-me. Mas lembro que era jovem, uma principiante. Não devia levar nas ruas mais de uma semana, a pobre. Era linda, e conforme disseram, tinha só dezesseis ou dezessete anos. — Por um instante suas feições se contraíram em uma expressão de lástima. — É curioso, mas então não se organizou tanto alvoroço. Os jornais apenas o mencionaram. Embora, claro está, isso foi antes do Estripador. Esta vez, entretanto se desforraram com a polícia. Tal como está o panorama, eu não gostaria de ser um deles. — Ergueu um ombro em um gesto de desdém. — Mas quem quereria ser um policial nem agora nem alguma vez? —Olhou para Emily. — Enfim, interessam—lhes os quartos ou não? Não tenho tempo para estar aqui de conversa com vocês.
—Não, obrigado — respondeu Charlotte. — por agora não. Temos que pensar com mais calma. Possivelmente não é o que nos convém neste momento.
A seguir ficou de pé e teve que apoiar-se por uns segundos no braço da poltrona para conservar o equilíbrio. Afrouxavam-lhe os joelhos. Com o Emily a um lado e Tallulah, movendo-se como em um sonho, um passo por detrás, percorreu o corredor e saiu ao Chicksand Street. O ar frio a açoitou no rosto como uma bofetada, mas mal o notou.
Pitt tinha adormecido mal a noite anterior. Tinha a impressão de ter permanecido inerte na cama meia noite, por temor a despertar Charlotte com o menor movimento. Quando estava preocupada, tinha o sonho leve. Quando uma das crianças adoecia, pelas noites ouvia os ruídos mais imperceptíveis e se levantava quase imediatamente. Desde o segundo assassinato Charlotte tinha advertido seus pesadelos e suas horas de insônia. despertava alarmada inclusive se Pitt virava com muita frequência.
Pitt jazia na escuridão, com os olhos abertos, observando o tênue desenho que formava no teto a luz das longínquas luzes de gás que se filtrava através das cortinas. Se conseguia dormir, sonhava com o semblante desesperado do Costigan, marcado pelo medo e desprezo de si mesmo. Por que se tinha declarado culpado do assassinato da Ada se não o era? Ao dizer "Eu a matei" se referia em realidade a que em certa forma se sentia responsável por seu comportamento, e em consequência de sua morte, mas só indiretamente? Tinha reconhecido que discutiram, que a golpeou. Cabia a possibilidade de que a tivesse deixado sem sentido, mas não a tivesse matado ele? Negara-se a admitir todo o referente à crueldade, aos dedos fraturados; e inclusive à liga e a água, circunstâncias que em si mesmas não constituíam um delito.
Por que essa terminante negativa se era verdade? Em sua situação pouca importância tinha. Teria sido enforcado de todo modo. E dado que os guardas do cárcere davam por com certeza que o tinha feito, seu trato não teria sido diferente em nenhum caso.
Por outro lado, Costigan não podia ser culpado da morte da Nora Gough.
Quem era o homem de cabelo loiro que, segundo os testemunhos, tinha entrado no quarto da Nora pouco antes de sua morte? Como tinha podido sair sem que nenhuma das dez ou doze pessoas que havia ali o visse?
As palavras do Jago Jones formavam redemoinhos em sua mente. Nelas residia sem dúvida a solução: ou ao sair oferecia um aspecto tão diferente que ninguém o tinha reconhecido, ou — ainda mais simples — nem sequer tinha saído.
Era o cabelo loiro e encaracolado uma peruca? Tinha saído da casa com um casaco e um cabelo diferentes? O que tinha sido, pois, do primeiro casaco? Tinha—o tirado dobrado ou ainda posto? E da peruca? Seu cabelo autêntico podia ser de qualquer cor e textura.
Pitt tinha que voltar e interrogar outra vez a todo mundo, comprovar se recordavam ter visto sair a alguém com uma peruca.
Mas como podiam dar-se conta de uma coisa assim? A pessoa podia esconder uma peruca em um bolso. Um bolso grande. No bolso de uma calça avultaria muito. Possivelmente alguém recordava o casaco. No Myrdle Street pouca gente levava casaco longo, e menos ainda de boa qualidade.
E a outra possibilidade, que não tivesse saído, mas sim ficara no edifício, em outro piso? Não lhe tinha ocorrido subir à planta seguinte. As outras mulheres podiam ter seguido trabalhando ali com quem quer que se ache já no edifício. A presença da polícia devia ter dissuadido a novos clientes, mas quem se achava já dentro bem podiam ter ocupado seu tempo em algo agradável. E provavelmente não tinham abandonado o edifício até que partiu a polícia, para evitar assim ser identificados. Desse modo não teriam que dar explicações.
Quando voltasse para o Myrdle Street na manhã seguinte, devia interrogar também a todas as mulheres do piso superior e lhes pedir as descrições de todos seus clientes daquela tarde. Deveria havê-lo feito já em um primeiro momento. Tinha sido um grave descuido.
Pitt seguia estendido de barriga para cima, contemplando a escuridão. Charlotte respirava pausadamente junto a ele. Dormia profundamente, ou possivelmente jazia imóvel igual a Pitt, fingindo dormir para não incomodá-lo, para não revelar que também ela estava insone, e preocupada, e assustada.
Cornwallis o respaldaria, mas talvez não conseguisse mantê-lo em seu posto se Costigan era indultado, ou inclusive se não o era. E possivelmente não devia sequer tentá-lo. Se Pitt tinha enviado à forca a um homem inocente, possivelmente o justo era que perdesse seu posto. Talvez não era talhado como substituto do Micah Drummond, não estava capacitado para o cargo. Farnsworth teria sorrido satisfeito ante aquilo. Ele nunca tinha considerado Pitt apto para o comando; a seu julgamento, carecia da formação e a posição social necessárias.
Vespasia o lamentaria. Sempre tinha confiado nele. Sentiria-se decepcionada. Não o diria, mas não poderia evitar senti-lo. Mas sobre tudo defraudaria à Charlotte. Tampouco ela o manifestaria, e nisso em realidade pioraria ainda mais as coisas.
Finalmente conciliou um sono ligeiro e desassossegado, e ao cabo de um momento despertou com um sobressalto.
E se tinha sido Jago Jones disfarçado com uma peruca loira? Em sua imaginação, o pároco ria dele, insinuando ele mesmo a possibilidade, porque sabia que Pitt nunca o descobriria, ou se chegava a descobri-lo, seria incapaz de demonstrá-lo.
Quase amanhecia. Pitt estava intumescido. Desejava trocar de posição e estirar os membros, ou inclusive levantar-se e passear pelo quarto para pensar com maior clareza. Mas se despertava ao Charlotte a essas horas, não poderia voltar a dormir. Seria uma atitude egoísta, desnecessária.
Continuou imóvel até as seis da manhã, e sem propor-lhe dormiu de novo. Despertou sobressaltado às sete e meia quando Charlotte o tocou suavemente.
Eram às nove e meia quando Pitt se apresentou no Myrdle Street, e sua chegada não foi bem acolhida. Como de costume, todas as mulheres dormiam depois de uma longa noite de trabalho, e nenhuma queria falar com um policial e responder a perguntas que haviam já respondido várias vezes. Começou pelo piso superior, despertando as inquilinas uma por uma e tendo que esperar que se levantassem, jogassem um pouco de água no rosto para limpar-se, cobrissem-se com uma bata ou um xale e se dirigissem a tropicões para a cozinha, onde Pitt preenchia regularmente o bule com água fervendo e formulava pacientes e intermináveis perguntas.
— Não, não tenho nenhum cliente com o cabelo loiro e encaracolado.
— Não, era calvo como um condenado ovo.
— Não. Nem sua mãe diria dele que é jovem. Se é que sua mãe vivesse, porque provavelmente está morta desde que Noé desceu da arca. Os cinquenta anos, mínimo, não os tira ninguém!
— Não, tinha o cabelo cinza.
— Poderia ter parecido loiro à luz de um lampião de gás?
— Possivelmente, mas não o tinha encaracolado. Tinha-o tão liso como a palma de minha mão.
E assim sucessivamente. Interrogou a todas as mulheres com extrema minuciosidade, mas ninguém viu nenhum homem que concordasse com a descrição que Edie tinha dado do último cliente da Nora.
Ao descer ao piso inferior achou à própria Edie, a essas horas já quase disposta a considerar a ideia de levantar-se e iniciar o novo dia. Eram três da tarde.
— Volte a descrevê-lo — disse Pitt com aborrecimento.
— Olhe, nem sequer lhe vi o rosto; Vi-o de costas quando entrava — respondeu Edie exasperada. — Mal me fixei nele. Era só um cliente como qualquer outro. Não sabia que fosse matá-la, e menos... — interrompeu-se, e um estremecimento percorreu seu carnudo corpo, apertado pelo roupão.
— Sei. Só lhe peço que feche os olhos e reviva em sua memória o que viu, embora seja brevemente. Tome um minuto ou dois. Viu você ao homem que a matou, Edie. — Falava com delicadeza, tentando não intimidá-la. Queria que tivesse a mente clara e fosse capaz de concentrar-se. — Descreva com toda exatidão o que viu. Possivelmente você seja o único caminho para apanhá-lo. —Procurou que o desespero não transparecesse em sua voz.
Ela a percebeu de qualquer modo.
— Sei — sussurrou. — Sei que sou quão única o viu, além das vítimas.
Edie apoiou os grossos cotovelos na mesa da cozinha e fechou os olhos. O roupão se esticou em torno de seu corpo e a cabeleira negra lhe caiu sobre os ombros.
Pitt esperou.
— Era bastante alto — disse por fim. — E pouco corpulento. Em realidade parecia... não sei, pouco fornido. Possivelmente por isso pensei que era jovem, pelo porte. —Abriu os olhos e olhou ao Pitt. — Mas poderia me haver equivocado. Foi só uma impressão.
—Muito bem. Siga — respirou Pitt. — Descreva como ia vestido, a forma da cabeça, tudo o que recorde. Descreva—o tal como o viu. Como era exatamente o cabelo? Como o levava, longo ou curto? Tinha costeletas, se é que as viu?
Obedientemente, fechou de novo os olhos.
— O casaco era de cor cinza esverdeada, e levava o colarinho ... levantado; de fato lhe tampava as pontas do cabelo, assim devia o ter bastante longo. Não sei como de comprimento. Em realidade, pelo que eu vi, poderia lhe haver chegado até o meio das costas. — Soltou uma repentina e estridente gargalhada. — E não sei se levava costeletas. Diria que não o vi de perfil. Mas certamente tinha um cabelo bonito. Não me importaria o ter assim. Recorda-me ao Dela Baker, que vive perto daqui. Pode ser que tenha um irmão — brincou. — E com um pouco de sorte inclusive está louco.
Pitt a olhou fixamente.
— Não tem nenhum irmão! — exclamou assombrada. — Não terá pensado que o dizia em... — de repente se interrompeu, e uma expressão de terror se apropriou lentamente de seu olhar.
— O que ocorre? — perguntou Pitt. — O que sabe, Edie?
— Ela e Nora brigaram como gatas raivosas pelo Johnny Vocês...
— Por quê? Quem é Johnny Vocês? É o homem com quem Nora ia casar se?
— Sim. Só que a princípio queria casar-se com Ela... ou ao menos isso pensava ela. De fato também eu o pensava. Mas logo se cruzou com Nora, ele se encarapichou, e ela soube lhe tirar partido. E é lógico, não? Que mulher não preferiria casar-se com um tipo decente antes que seguir ganhando-a vida desta maneira? — Tinha a vista quase fixa à frente, mas seus gestos abrangiam a desmantelada cozinha, a casa inteira, seus inquilinos e as vidas destas.
— Sim — assentiu Pitt. Não era preciso dizer nada mais. — Obrigado, Edie.
Saiu da cozinha e voltou para o quarto onde Nora tinha sido assassinada. Tudo continuava como ela o tinha deixado: a cama sem fazer, os lençóis enrugados. Só os travesseiros estavam deslocados, no meio da cama, onde o próprio Pitt os tinha jogado depois de achar o lenço.
Permaneceu imóvel no centro do quarto por uns instantes, perguntando—se o que procurava, e inclusive por onde começar. A cama? O chão?
Agachou-se e começou pelo chão, atento a qualquer detalhe que pudesse respaldar sua hipótese. Sabia que não acharia provas concludentes, mas sim possivelmente algum pequeno indício.
Não havia nada.
Levantou-se, Aproximou-se da cama e afastou as mantas. A seguir percorreu os lençóis com as mãos lenta e cuidadosamente.
Encontrou o que procurava no lençol superior. Primeiro um, logo outro, depois vários mais: cabelos loiros, muito longos, pelo menos um par de palmos, e ondulados. Cabelos que não podiam proceder da cabeça de um homem, e muito claros para ser da Nora Gough.
Ela Baker, com a cabeleira remetida sob o pescoço levantado do casaco, um casaco de um cliente ou um amigo, e uma calça de homem, possivelmente com a saia presa por cima da prega do casaco. Ao sair, deixando cair a saia e soltando o cabelo, teria passado inadvertida. Isso explicaria por que no segundo crime se produziu uma maior resistência. Ela Baker era mais alta e robusta que Nora, mas não possuía a força de um homem.
Mas que razão podia ter para matar a Ada McKinley? E qual era a causa de seu rancor por FitzJames? Podiam ser muitas: um desprezo, maus entendimentos no passado, um grave prejuízo causado a ela ou a algum ser querido, ou inclusive a perda de um filho. Talvez em outro tempo tinha trabalhado para a família FitzJames. Essa era uma possibilidade que não se deteve a considerar, e deveria havê-lo feito. Uma criada vítima de abusos e depois despedida se sentiria profundamente ofendida. Quando se inteirou de que um mordomo tinha deixado grávida a Ada, deveria ter realizado averiguações sobre todos os criados que em algum momento tinham servido em casa do FitzJames. Não seria impróprio de o Finlay seduzir a uma bela criada e pedir depois a seu pai que a expulsasse.
De repente tudo isso parecia claro.
Saiu da casa rapidamente, subiu até o Old Montague Street e tomou logo pelo Osbom Street, onde achou ao Binns de ronda. Juntos foram à casa de cômodos onde, como Binns lhe informou, vivia Ela Baker, a curta distância dali. Recordava que Ewart a tinha interrogado para saber se tinha visto sair ao suposto assassino, ou rondar pela zona ao próprio Finlay FitzJames. Segundo Ewart, notava que estava muito alterada, sem dúvida presa de uma emoção extrema. Tinha suposto que isso se devia, como no caso da maioria das outras mulheres, ao compreensível terror e a lástima causados pela notícia do assassinato, e à consternação pelo fato de que Costigan tivesse sido enforcado por um crime que aparentemente, à luz do novo acontecimento, não tinha cometido.
E, entretanto ela tinha permitido que o enforcassem. Essa culpa dupla. Devia tê-la transtornado.
Bateu com força à porta até que o cafetão, agasalhado no mesmo edifício, abriu. Ia barbear-se e cheirava a cerveja.
— O que quer? — perguntou com tom hostil, olhando ao Pitt. Não tinha visto o Binns, situado detrás. — Chega muito cedo. Não pode esperar um par de horas, filho de má mãe?
Binns deu um passo à frente.
—Polícia — anunciou Pitt com tom cortante. — Quero falar com Ela Baker agora mesmo.
Observando o rosto do Pitt e a corpulência do Binns, o homem optou por não discutir. Mal-humorado, guiou-os até a porta Dela, no segundo andar. Golpeou com os dedos e a chamou a gritos por seu nome.
Ela abriu ao cabo de uns instantes. Era uma mulher atraente, de corpo grande e marcada silhueta. Tinha umas feições pronunciadas, possivelmente um tanto toscas. Seu principal atributo era o cabelo, abundante, ondulado, da cor do trigo amadurecido, do ouro mate. Caía-lhe pelos ombros e as costas.
—Obrigado — disse Pitt ao cafetão, que entendeu a indireta e partiu irado, destrambelhando baixo.
Pitt entrou no quarto e fechou a porta; Binns ficou fora montando guarda. As janelas eram pequenas.
— O que quer a estas horas? — perguntou Ela, olhando-o com expressão carrancuda.
— Compreendo o motivo pelo que matou a Nora — afirmou Pitt com voz serena. — Tirou-lhe Johnny Vocês, quer dizer, sua única oportunidade de casar-se e abandonar esta vida. Mas por que matou a Ada McKinley? O que tinha contra ela?
de repente desapareceu a cor de seu rosto. Cambaleou-se, e por um instante Pitt pensou que estava a ponto de desmaiar, mas não fez sequer gesto de ajudá-la. Já em uma ocasião se viu surpreso por alguém que passou desse estado a um arrebatamento de fúria e arremeteu contra ele com unhas e dentes. Permaneceu onde estava, de costas à porta.
— Eu... — começou a dizer Ela, mas se interrompeu, afogando-se sua voz na secura de sua garganta. — Eu... nunca pus a mão em cima a Ada, juro-o Por Deus.
— Mas matou a Nora...
Ela guardou silêncio.
— Se se baixasse a alta gola desse vestido, veria os arranhões que Nora deixou em sua pele, tentando defender-se de você, lutando por sua vida...
— Isso é falso! —negou Ela, olhando-o com fúria. — Não tem provas!
— Equivoca-se, Ela — respondeu Pitt com calma. — Há testemunhas que a viram.
— Quem? — perguntou. — Mentem!
— Roubou o casaco de um homem, um bom casaco, e se recolheu o vestido para que não se visse a saia. Ocultou a cabeleira no casaco. Parecia um homem, mas alguém reconheceu seu cabelo. Pouca gente possui um cabelo como esse, Ela, formoso, longo, dourado. —Pitt escrutinou seu rosto lívido. — encontrei vários cabelos na cama da Nora, onde lutaram e, na luta, ela os arrancou...
— Basta já! — gritou Ela. — Sim, matei a essa rameira avarenta! Roubou um homem, e o fez com toda sua má intenção. Sabia o que sentia por ele, e me tirou isso de todos os modos. E que orgulhosa estava! Não deixava de desfrutar. Disse-me que se mudaria a Mele End e teria filhos e uma casa bonita para ela só, e que nunca voltaria a tocá-la um bêbado nenhum desses cafajestes que enganam a suas esposas.
— Assim que a atou, rompeu-lhe os dedos de mãos e pés, e a estrangulou — disse Pitt com desprezo.
Estava branca como o papel, mas tinha fogo no olhar.
— Não, eu não fiz isso! Discutimos e lhe bati. Brigamos e a agarrei pelo pescoço. Sim, estrangulei-a, mas não lhe rompi os dedos. Não sei quem fez uma coisa assim, nem por que.
Pitt não acreditava, não podia acreditar nela, e entretanto instintivamente sabia que dizia a verdade.
— Por que matou a Ada? — repetiu.
— Eu não a matei! — respondeu Ela a voz em grito. — Eu não matei a Ada! Nem sequer a conhecia. Pensava que a tinha matado Bert Costigan, igual a você. Se não foi ele, não sei quem foi.
Com um arrepiante sobressalto, Pitt recordou a veemência com que Costigan se negou a admitir que ele tivesse quebrado os dedos a Ada, sua indignação e perplexidade pelo mero fato de que o acusassem de algo semelhante. Em seus olhos tinha visto o mesmo olhar que via agora nos dela, um olhar de medo, de ira, de absoluta estupefação.
— Mas sim matou a Nora! — repetiu Pitt, procurando transmitir uma total certeza. Não era uma pergunta; era uma acusação.
— Sim.... suponho que negá-lo já não serve de nada. Mas não lhe rompi os dedos, e não tenho nada que ver com a morte da Ada. Nunca pus os pés nessa casa.
Pitt já não sabia se acreditava nela ou não. Olhando-a, ouvindo sua voz, parecia-lhe sincera; mas o cérebro lhe dizia que aquilo era absurdo. Admitia ter matado a Nora. Que sentido tinha negar que tinha matado também a Ada? O castigo não seria pior, e em qualquer caso ninguém acreditaria.
— Eu não matei a Ada! — exclamou. — E tampouco fiz essas atrocidades a Nora!
— Por que pretendia implicar ao Finlay FitzJames? — perguntou Pitt.
Olhou-o desconcertada.
— A quem?
— Ao Finlay FitzJames — repetiu Pitt. — por que deixou seu lenço e seu botão no quarto de Nora?
— Não sei do que me fala! — Não saía de seu assombro. — É a primeira vez que ouço esse nome. Quem é?
— Não trabalhou em casa dos FitzJames?
— Eu nunca trabalhei em nenhuma casa. Em toda minha vida nunca fui criada de ninguém.
Seguia sem saber se acreditava nela não.
— Possivelmente. Mas isso agora não tem muita importância. Vamos. Fica detida pelo assassinato da Nora. Se resistir, será pior. Ao menos que as outras mulheres a vejam sair com dignidade.
Ela sacudiu a cabeça e se alisou o magnífico cabelo, olhando ao Pitt com expressão desafiante. Mas a coragem não demorou para abandoná-la, e voltou a desmoronar-se, acessando a acompanhar ao Pitt.
—Graças a Deus! — exclamou Ewart com um suspiro, recostando-se em sua cadeira da delegacia de polícia do Whitechapel. — Admito que tinha poucas esperanças de que chegássemos a resolver o caso. — Olhou ao Pitt com um sorriso. A tensão que o atendia só umas horas antes parecia haver-se evaporado por completo, como se o tivessem aliviado de uma intolerável carga e de repente pudesse respirar sem restrições, livre de uma profunda angústia. Inclusive o medo que o obcecava desde o primeiro momento tinha desaparecido. Sabia que o mérito era do Pitt, e não tinha ciúme. — Embora bem terá que dizer que o resolveu você. Eu pouca coisa tenho feito, para falar a verdade. — Cruzou as mãos sobre o abdômen. — Assim era Ela Baker. Não me tinha ocorrido que pudesse ser uma mulher. Nem sequer me tinha cruzado pela mente. Deveria tê-lo pensado.
— Jura que ela não matou a Ada — disse Pitt, sentado frente a ele —, nem rompeu os dedos a Nora.
Ewart não se alterou.
— Bom, não é de estranhar; mas sua palavra não tem nenhum valor. Não sei por que se dispõe em mentir. O resultado será o mesmo.
— E sustenta que tampouco foi ela quem pretendia implicar ao Finlay FitzJames —acrescentou Pitt. — Assegura que nunca tinha ouvido falar dele, nem tinha servido em uma casa.
Ewart fez um gesto de indiferença.
— É claro que mente, embora não entendo por que. De qualquer modo, dá no mesmo. —Sorriu. — O caso fica resolvido. E sem consequências desagradáveis. É muito mais do que eu esperava — admitiu, e imediatamente, deixando entrever novamente certo desassossego, acrescentou: Desde o começo achava que FitzJames era inocente, mas me... me parecia muito difícil demonstrá-lo.
Pitt ficou em pé.
— Informará você mesmo ao FitzJames? — perguntou Ewart. — Tranquilizará à família de uma vez por todas.
— Sim. Irei dizer.
— Bem. — Ewart esboçou um peculiar sorriso agridoce. — Me alegro. Tinha-o você merecido.
— Perfeito — disse Augustus FitzJames laconicamente quando Pitt anunciou que Ela Baker tinha sido detida e acusada do assassinato da Nora Gough. — Imagino que a processarão deste modo pela morte da outra mulher?
— Não. Não há provas, e ela se nega a admiti-lo — respondeu Pitt. Uma vez mais se achavam no gabinete do FitzJames, e nesta ocasião ardia o fogo na lareira, esquentando a sala no frio anoitecer.
— Enfim, suponho que não tem importância. —Augustus não mostrou especial interesse. — Enforcarão ela igualmente pelo segundo assassinato, e todo mundo saberá que cometeu também o primeiro, posto que ao parecer os dois foram idênticos. Agradeço-lhe que tenha vindo me informar, delegado. Realizou um excelente trabalho... desta vez. É uma lástima o desse outro homem... Costigan. Mas já nada pode fazer-se. — Sua indiferença a respeito era patente. Estava de pé e se balançava ligeiramente. — E em todo caso estamos melhor sem indivíduos como esse. Um ofício repugnante, viver dos imorais ganhos das mulheres. Se não o penduram de uma corda, no mínimo lhe correspondia estar encerrado no cárcere. Teria acabado mal cedo ou tarde.
Se Pitt não tivesse sido o responsável pela morte do Costigan, teria expresso energicamente sua opinião respeito a tais ideias, o profundo horror que lhe inspiravam.
— Tinha trabalhado Ela Baker alguma vez para você, senhor FitzJames? — perguntou, preocupado ainda pelos fios soltos, as dúvidas sem esclarecer.
— Não acredito — respondeu Augustus com expressão carrancuda. — Melhor dizendo, tenho certeza de que não tinha trabalhado nesta casa. Por quê?
— Por saber como conseguiu os objetos pessoais de seu filho, e sobre tudo que razão podia ter para deixá-los nos cenários dos dois crimes.
— Não tenho a menor ideia. Roubou-os, suponho — respondeu Augustus. — Já pouco importa. Obrigado por ter vindo pessoalmente, delegado. Agrada-me comprovar que a polícia não é tão incompetente como pretendem nos fazer acreditar alguns de nossos jornais mais estridentes e pior informados. — Apertou os lábios. — E agora, se me perdoa, tenho um compromisso. Boa noite.
Pitt abriu a boca para acrescentar algo mais, mas Augustus havia já puxado o cordão da campainha para que acudisse o mordomo e acompanhasse ao Pitt à porta. Obviamente Augustus não tinha intenção de seguir falando do assunto.
— Boa noite, senhor FitzJames — se despediu Pitt, e teve que partir porque o mordomo abriu a porta e lhe sorriu.
Pitt voltou para casa tarde e esgotado, mas era o cansaço da vitória, mesmo que ficassem ainda aspectos do caso que o intrigavam profundamente e possivelmente nunca resolveria. Já tinha escurecido, e um halo de bruma envolvia a luz dos lampiões. No ar úmido se percebia o aroma das folhas em decomposição e a terra removida, e se pressagiava a iminência das primeiras geadas.
Abriu a porta de sua casa, e assim que entrou, viu Charlotte no alto da escada. Vestia uma saia e uma blusa muito simples, quase desgraciosa, e algumas mechas de cabelo escapavam das forquilhas. Baixou tão depressa que Pitt temeu que escorregasse e caísse.
— O que ocorre? — perguntou, advertindo ansiedade em seu rosto.
— Thomas. — Charlotte respirou fundo. Estava tão impaciente por lhe comunicar suas notícias que não notou que também ele tinha algo urgente que contar. — Thomas, investiguei um pouco por minha conta. Não corri nenhum risco...
O fato mesmo de que pretendesse tranquilizá-lo respeito a sua segurança revelava que tinha existido perigo.
— Como? — disse Pitt, olhando a no rosto quando chegou ao pé da escada. — O que tem feito? Suponho que te acompanhou Emily.
—Sim — respondeu Charlotte com aparente alívio, como se isso fosse a parte positiva, uma circunstância atenuante. — E também Tallulah FitzJames. Primeiro me escute, e depois se zangue se o considerar oportuno; mas averiguei algo de vital importância, e realmente terrível.
—E eu também — replicou Pitt. — Tenho descoberto quem matou a Nora Gough, e por que, e consegui uma admissão de culpa. E agora me diga, o que averiguou?
Charlotte ficou boquiaberta.
— Quem a matou? — perguntou com tom premente. — Quem foi, Thomas?
— Outra prostituta. Uma tal Ela Baker.
Explicou resumidamente que desde o começo, deixando-se enganar pelo casaco, tinham dado como claro que o assassino era um homem, e que Ela Baker, uma vez despojada de seu disfarce, tinha passado inadvertida. Seguiam ao pé da escada.
— Por que a matou? — quis saber Charlotte.
Pitt não viu refletida em seu rosto a sensação de vitória que esperava.
— Porque Nora lhe roubou o homem com o que ia casar se, e em consequência a possibilidade de escapar a esse tipo de vida. E inclusive talvez o amasse sinceramente. —Ergueu as mãos e a colheu com delicadeza pelos ombros. — me desculpe se danifiquei a notícia que ia me dar. Consta-me que queria investigar para me ajudar, e não sou um ingrato. — inclinou-se para beijá-la, mas ela se afastou com expressão carrancuda.
— E por que matou a Ada McKinley?
— Isso o negou — respondeu Pitt, consciente ao dizer o de sua própria insatisfação. Tinha sido uma exígua vitória, e quanto mais pensava nisso, menos consistente lhe parecia.
— Por quê? — perguntou Charlotte. — É absurdo, Thomas. Não podem enforcá-la duas vezes. — Estava muito pálida à luz do lustre que pendia do teto do vestíbulo. — Nem três.
—Não, certamente — concordou Pitt. — Três? O que quer dizer? Só houve dois assassinatos.
—Não — respondeu Charlotte em um sussurro quase inaudível. — Isso é o que averiguamos. Houve outro assassinato faz uns seis anos. A vítima era uma moça, uma principiante. Não estava na rua mais de uma ou duas semanas. Mataram-na em Mele End, exatamente igual à as outras duas mulheres: a liga, os dedos quebrados, as botas abotoadas entre si, inclusive a água... tudo. Não se descobriu o culpado.
Pitt ficou atônito. Por um momento interminável permaneceu imóvel, como se não tivesse compreendido realmente as palavras do Charlotte e, entretanto fosse incapaz de pensar em outra coisa. Outro assassinato, seis anos atrás, em Mele End. Tinha que ser a mesma pessoa. Era impossível que dois... três assassinos diferentes cometessem o mesmo crime atroz e absurdo. E quem era a vítima? Por que ninguém lhe tinha falado dela? Por que não estava informado Ewart?
— Sinto muito — disse Charlotte em voz baixa. — Não serve de nada, verdade?
— Quem era essa moça? Sabe algo mais dela?
— Não. Só isso, que era nova no ofício. Não averiguei seu nome.
Pitt não saía ainda de seu assombro.
— Não poderia tê-la matado também Ela Baker? —perguntou Charlotte. — Possivelmente essa moça tentou lhe roubar algo? Disse por que pretendia implicar Finlay?
— Não.
Pitt deu meia volta e se dirigiu para a sala. De repente o tinha assaltado uma sensação de frio e profundo cansaço. Desejava sentar-se perto da lareira.
Charlotte o seguiu e se sentou frente a ele, em sua poltrona de costume.
O fogo ardia baixo. Pitt jogou mais carvão e o mexeu com o atiçador para que prendesse mais depressa.
— Não — prosseguiu. — Também o negou. Sustenta que não conhece nenhum FitzJames, e Augustus diz que essa mulher nunca trabalhou para ele. — Pitt voltou a sentar-se em sua poltrona. O fogo ardia com chama mais viva ao começar a arder o carvão acrescentado, e o calor aumentava gradualmente, produzindo um comichão na pele. — E Ewart não dá importância. Alegrou-se tanto de que o caso fique resolvido, sem ter tido que deter o FitzJames, que não quer saber nada mais do assunto.
— E o senhor Cornwallis?
— Ainda não o informei. Era já tarde quando saí que casa dos FitzJames. Irei vê-lo amanhã. E voltarei a falar com Ela Baker. Possivelmente seja melhor que antes faça algumas averiguações sobre o primeiro crime. Faz seis anos?
— Sim, aproximadamente.
Pitt lançou um suspiro.
— Quer uma taça de chá? — ofereceu Charlotte. — Ou de chocolate?
— Sim.... sim, por favor.
Deixou que ela decidisse se preparar chá ou chocolate e ficou curvado na poltrona enquanto a sala se esquentava lentamente à medida que o fogo cobrava intensidade.
Na manhã seguinte, enquanto esperava entre as frias paredes do Newgate para ver ela Baker, assaltou-o a lembrança do Costigan, de seu semblante pálido e assustado. De todas as obrigações que lhe impunha seu aquela trabalho era possivelmente a mais difícil. Informar aos familiares de uma vítima lhe causava um tipo diferente de dor; era algo atroz, mas em definitivo mais limpo. Ao final a ferida cicatrizava. Entretanto visitar um réu no cárcere era uma experiência arrepiante e por mais vezes que o fizesse sempre parecia a primeira. Não conseguia acostumar—se com o tempo nem achar o menor paliativo.
Ela estava sentada em sua cela, vestida ainda com sua própria roupa, apesar de não diferir muito do uniforme carcerário. Tinha-a detido antes que se vestisse para seu trabalho.
— O que quer? —disse languidamente quando viu o Pitt. — veio desfrutar, não?
— Não. — Pitt fechou a porta da cela ao entrar. Contemplou seu rosto pálido, seus olhos afundados e sem esperança, e seu magnífico cabelo caído sobre os ombros. Curiosamente, apesar de ter visto Ada e Nora, seus dedos quebrados, seus rostos hirtos e desfigurados pela agonia final, nesse momento via só a Ela e seu desespero. — Não encontro o menor prazer nisto; sim certo alívio porque tudo terminou, mas nada mais.
— Para que veio, pois? — perguntou Ela, não muito convencida ainda, apesar de que algo no olhar ou a voz do Pitt a comovia.
— Me fale da primeira vítima, Ela — respondeu Pitt. — por que a matou? O que lhe tinha feito? Mal levava duas semanas nas ruas.
Ela o olhou com cara de absoluta incompreensão.
— Ficou louco! Não sei do que me fala. Peguei Nora, depois brigamos, e a estrangulei. Eu não lhe rompi os dedos, nem lhe joguei água, nem abotoei as botas. E não tive nada que ver com o da Ada McKinley. Nem sequer tinha ouvido seu nome até que a mataram. E quanto a essa outra, não sei a quem se refere. Que eu saiba, não houve nenhuma mais.
— Faz uns seis anos, em Mele End — esclareceu Pitt.
— Faz seis anos! — exclamou com incredulidade, e imediatamente prorrompeu em gargalhadas estridentes e roucas, cheias de dor e um medo incontrolável. — Faz seis anos eu vivia no Manchester. Casei-me e me mudei ali. Quando meu marido morreu, voltei para Londres e comecei a fazer a rua. Não tinha outra maneira de ganhar a vida, exceto a fábrica de fósforos. Minha prima morreu de fosforismo. Não estava disposta a passar por isso. Antes a forca. — De repente seus olhos se inundaram em lágrimas. — E em realidade assim foi, não?
Pitt desejou pronunciar umas palavras de consolo. Percebia os terrores que se abatiam sobre ela, uma escuridão da qual não havia escapatória. Mas não achou nada que dizer. A compaixão já de nada servia, e falar de esperança teria sido um cruel engano.
Sorriu em resposta a seu macabro humor. Revelava certa valentia e despertou sua admiração.
— Como se chamava seu marido? — perguntou.
— Joe Baker... Joseph. Vai comprová-lo? — Fungou. — Era um bom homem, Joe. Bebia mais da conta, mas não era má pessoa. Nunca me bateu. Limitava-se a dormir a bebedeira. O grande estúpido!
— A que se dedicava?
— Trabalhou nos canais. Um dia teve um acidente e se afogou. Devia estar bêbado, suponho.
— Lamento-o — Pitt. Disse-o com toda sinceridade.
Ela deu de ombros.
— Agora já não importa.
Ao sair do Newgate Pitt foi à delegacia de polícia de Mele End e perguntou pelo policial de maior posto que estivesse ali de serviço mais de seis anos. Um jovem sargento, um tanto perplexo, acompanhou-o até o reduzido escritório do inspetor Forrest, um homem magro de cabelo negro, amplas entradas, olhos escuros e olhar triste.
— Delegado Pitt! — exclamou surpreso, e ficou em pé imediatamente. — Bom dia, senhor. No que podemos ajudá-lo?
— Bom dia, inspetor. — Pitt fechou a porta ao entrar e tomou assento. — Conforme me disseram, estava você já aqui, em Mele End, há seis anos.
— Sim. Tenho lido nos jornais que resolveu o caso. —Forrest voltou a sentar-se atrás de sua escrivaninha. — Parabéns. Certamente é bastante mais do que conseguimos nós. Mas que conste que por aquelas datas eu era só sargento.
— Assim, tiveram um caso exatamente igual? — perguntou Pitt, incapaz de dissimular sua irritação.
— Sim. Pelo que eu sei, até o menor detalhe — respondeu Forrest, tornando—se para frente em sua cadeira. — Daquela vez os jornais mal o mencionaram, mas eu o recordarei enquanto viva. A pobre desventurada! Não teria mais de quinze ou dezesseis anos. E era bonita, diziam, antes que o assassino a torturasse daquele modo.
—A assassina — retificou Pitt.
— Ah! — Forrest moveu a cabeça como reprovando o descuido. — Sim... a assassina. Desculpe, é só que levo muitos anos convencido de que tinha sido um homem. Sempre tive a impressão de que se tratava de um crime de natureza sexual, obra de um desses homens que só se excitam com a humilhação e a dor alheias, que precisam sentir seu poder sobre alguém, vê-lo totalmente indefeso. Um ato perverso. Ainda me custa acreditar que uma mulher tenha cometido essa espécie de crimes. Mas se o admitiu, será verdade.
— Não, não o admitiu. Só se declarou culpado do último, o assassinato da Nora Gough. De fato, conforme disse, há seis anos vivia em Manchester.
Forrest o olhou assombrado.
— Pois tem que ser a mesma pessoa. Nem sequer em Londres, esta sentina de vícios e corrupção, pode haver dois lunáticos que andem por aí maltratando desse modo às mulheres.
— Por que não me informou a respeito desse caso? — perguntou Pitt, procurando em vão não adotar um tom acusador.
— Eu? — Forrest parecia surpreso. — por que não o informei?
— Sim. Por amor de Deus, não se dá conta de quão útil poderia nos haver sido? No mínimo devíamos estar inteirados! Poderíamos ter averiguado o que tinham em comum às vítimas e quem as conhecia as três.
— Não lhe informei por que... Não o pôs à corrente o inspetor Ewart? Ele se ocupou do caso.
Pitt ficou gelado.
— Dava como claro que ele o contaria — replicou Forrest com lógica. — Está me dizendo que não o contou? — Em seu rosto e em sua voz se percebia uma manifesta incredulidade.
O próprio Pitt não podia dar crédito a aquilo. As imagens do Ewart se amontoavam em sua mente, as lembranças de sua cólera, seu abatimento, seu temor.
Mas não tinha sentido mentir, e em todo caso a verdade era evidente.
— Não, não me tinha mencionado isso.
Desta vez foi Forrest quem emudeceu.
— Conhece Ela Baker? — perguntou Pitt. — Ou tinha ouvido falar antes dela? Soava—lhe seu nome?
— Não. E conheço a maioria das mulheres que ganham a vida nas ruas desta zona. Mas perguntarei ao Dawkins. Está aqui há muitos anos e as conhece todas. — Desculpando-se, ficou em pé e saiu do escritório. Retornou ao cabo de uns minutos acompanhado de um sargento fornido e grisalho de certa idade. — Me diga, Dawkins, sabe algo de uma mulher, uma fulana destes bairros, chamada Ela Baker? — Voltou-se para o Pitt. — Que aspecto tem essa mulher, senhor?
— Alta, rosto comum — respondeu Pitt. — Mas com uma chamativa cabeleira loira, espessa e frisada.
Dawkins pensou por um instante e por fim negou com a cabeça.
— Não, senhor. Quem mais se aproxima dessa descrição é Lottie Bridger, e morreu de sífilis no início do ano.
— Está totalmente seguro, Dawkins? — insistiu Forrest.
— Sim, senhor. Nunca tinha ouvido esse nome, nem vi por estas ruas a uma garota desse aspecto.
— Obrigado, Dawkins. Pode ir-se.
— Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Dawkins partiu, desconcertado, e fechou bruscamente a porta ao sair.
— O que quer dizer isso? — Forrest, visivelmente confuso, observou ao Pitt. — Acaso essa mulher não cometeu o assassinato de há seis anos?
— Não sei — admitiu Pitt. — Guardam algum expediente do caso ao que possa dar uma olhada?
— Naturalmente. Pedirei que o tragam. —Forrest se desculpou de novo, e transcorreu um longo e frustrante quarto de hora até que retornou com uma fina pasta. — Aqui está, senhor. Não é grande coisa.
— Obrigado.
Pitt pegou a pasta, abriu-a e leu o conteúdo. Forrest tinha razão; o expediente era muito breve, mas os detalhes do crime coincidiam plenamente com os das mortes da Ada McKinley e Nora Gough. Tudo estava ali recolhido friamente, com clínica objetividade, escrito com uma excelente caligrafia. O nome da vítima era pouco verossímil: Mary Smith. Era esse seu verdadeiro nome? Ou simplesmente não sabiam como se chamava e utilizaram um nome comum? Acabava de chegar à zona e era nova no ofício. Não se incluía nenhum outro dado sobre ela, nem lugar de nascimento, nem familiares localizados, nem lista de objetos pessoais.
Pitt leu com atenção a descrição dos objetos achados no lugar do crime. Não havia alusão a nada que pudesse considerar uma pista. E certamente não se achou nada do Finlay FitzJames ou algum outro cavalheiro.
Leu as declarações das testemunhas, mas não contribuíam nada. Tinham visto entrar e sair a vários homens, como era lógico tratando-se da habitação de uma prostituta. Não se descreviam traços pessoais dos clientes, salvo que todos eram jovens.
Tudo era em extremo inconsistente. Não era estranho que o caso tivesse ficado sem resolver. Formavam a equipe policial encarregado da investigação os agentes Trask e Porter, sob as ordens do inspetor Ewart. O legista que tinha examinado o cadáver no lugar do crime e realizado posteriormente a autópsia era Lennox.
Por que nenhum dos dois o tinha mencionado ao Pitt? Não existia nenhum motivo justificável.
— Não recordo ter lido a notícia nos jornais — comentou ao Forrest, que tinha permanecido em silêncio, com expressão de preocupação, enquanto Pitt examinava o informe.
— Não apareceu como tal — respondeu Forrest. — Publicaram só uma breve nota sobre a morte, mas não incluía os detalhes. Já sabe como são estas coisas: mantenhamo-lo em segredo se por acaso serve para apanhar ao culpado. Ewart e Lennox tinham que saber algo, ocultaram algo...
— Sim, sei — assentiu Pitt, mas a perspectiva o inquietava profundamente. Obrigava-o a confrontar suas mais desgraçadas suspeitas.
Duas horas mais tarde, quando se plantou ante o Ewart em seu escritório do Whitechapel, este o olhou atônito, como hipnotizado.
— E então? — disse Pitt. — por que demônios não me informou sobre o primeiro caso?
—Não resolvemos —respondeu Ewart, desesperado. — Não descobrimos nada que tivesse podido nos ser útil para os novos casos.
— Não diga estupidez! — Pitt deu meia volta e se aproximou da janela. Ali se virou e olhou de novo ao Ewart com fúria. — Você não sabe se tivesse podido nos ser útil ou não. Por que o calou?
— Porque só teria servido para perturbar ainda mais a atual investigação. — Ewart também começava a elevar a voz. — Nada indica que fosse a mesma pessoa. Aquilo ocorreu em Mele End faz seis anos. Há gente que cópia os crimes de outros, em especial gente que não está em seus cabais, gente malévola e estúpida que lê algo e se obceca com isso...
— Onde o lê? — interrompeu-o Pitt sem olhar. — Como você bem sabe, os detalhes daquele crime não apareceram nos jornais. Nem eu nem nenhum dos policiais que trabalhou nestes últimos assassinatos tínhamos notícia desse caso. No Whitechapel ninguém podia estabelecer a relação entre os três crimes. Ninguém salvo você! Você e Lennox!
— Tampouco eu, porque não existia tal relação — respondeu Ewart triunfalmente, satisfeito da lógica de sua conclusão. — Duvida acaso que foi Ela Baker quem matou a Nora Gough?
— Não. — Pitt se voltou de frente à janela e contemplou os edifícios cinzas e o céu outonal. — Admitiu sua culpa. E encontrei seus cabelos na cama da Nora, cabelos longos e loiros. Nora deve ter lhe arrancado na resistência.
— E então qual é o problema? — perguntou Ewart com crescente aprumo. — Eu tinha razão. Estes últimos casos e o de há seis anos não têm nada que ver.
— Como sabe que Ela Baker não matou à primeira garota, Mary Smith, ou de qualquer maneira que se chamasse em realidade?
— Não sei. Possivelmente sim a matou. Em todo caso, agora pouco importa. Não podemos demonstrar sua culpa naquele primeiro assassinato, mas irá à forca por este último.
— E sustenta que não conhece o Finlay FitzJames — acrescentou Pitt.
Ewart vacilou.
— Mente — assegurou ao cabo de um momento.
— E Augustus FitzJames diz que nunca trabalhou para ele — continuou Pitt.
Ewart não respondeu. Tomou ar e o deixou escapar silenciosamente.
— Havia algo no cenário do primeiro crime que implicasse ao Finlay? — perguntou Pitt com aspereza.
Ewart o olhou nos olhos.
— Não, claro que não. Nesse caso o teria mencionado. Teria existido uma relação. Há seis anos não encontramos uma só pista, nem um só elemento que nos permitisse seguir investigando... nada.
— Compreendo.
Mas Pitt não compreendia nada. Ao partir do Whitechapel, encaminhou-se para a City e foi diretamente ao escritório do Cornwallis.
Cornwallis lhe brindou uma calorosa acolhida, ficando em pé e dirigindo-se para ele com a mão estendida e expressão de júbilo.
— Parabéns, Pitt. Uma atuação brilhante, a sua! Reconheço que albergava já poucas esperanças de que este assunto se resolvesse de maneira satisfatória. E se por acaso fosse pouco, com admissão de culpa incluída! — Deixou cair a mão, notando de repente que algo andava mal. O sorriso se desvaneceu de seus lábios. Seu olhar se escureceu. — O que ocorre? Qual é agora o problema? Sente-se.
Assinalou uma das grandes poltronas de couro e ele ocupou o outro. tornou—se para frente, com semblante grave e total atenção.
Pitt lhe informou sobre o crime de Mele End.
Cornwallis ficou estupefato.
— E Ewart acaba de dizer-lhe perguntou. — É inconcebível!
Pitt não via a maneira de explicar o acontecido sem trazer à tona a participação do Charlotte, e não era momento para mentiras ou evasivas.
— Ewart não tinha a menor intenção de dizer me respondeu isso com pesar. — Descobriu minha esposa, e eu sei por ela.
Percebeu a expressão de assombro do Cornwallis, mas possivelmente Vespasia o tinha exposto já seus antecedentes, porque não expressou nenhuma dúvida a respeito.
— Mas depois falou com o Ewart? — disse Cornwallis com um indício de apreensão no olhar.
— Sim — respondeu Pitt. — Segundo ele, não o mencionou porque não viu relação entre os casos.
—Isso é absurdo — disse Cornwallis, consternado. — E Lennox também interveio no caso?
— Sim. Mas seu silêncio tem uma justificação. Possivelmente deu por sentado que Ewart já me tinha informado. Era dever do Ewart, não dele.
—Mas por quê? — perguntou Cornwallis com exasperação. — Não consigo entender! Que razão pôde levar ao Ewart a ocultar esse primeiro assassinato? — Tinha os punhos fechados e tensos. — Não resolveu o caso, de acordo; mas isso não era motivo para envergonhar-se. Pelo que me disse, não havia pistas a seguir. As declarações das testemunhas não contribuíam com informação útil. O que ia fazer? Pitt... — interrompeu-se, incapaz de reunir coragem para expressar o que pensava.
— Não sei — respondeu Pitt à pergunta não formulada. — Me custa acreditar que Ewart esteja envolvido em um assassinato, e menos em três. Mas devo averiguar a causa de sua conduta. Interrogarei às testemunhas originais do caso de Mele End. Tenho seus nomes e o endereço onde ocorreu. Mas essa não é minha delegacia de polícia, nem me corresponde investigar esse crime. Necessito sua autorização para interrogar ao inspetor Forrest a respeito da atuação do Ewart nesse caso.
Cornwallis estava desolado. Tinha exercido o comando muito tempo para ignorar as fraquezas dos homens, e o fato de que a coragem e a tentação, a lealdade e o engano, iam às vezes pela mesma mão.
— Concedida — sussurrou. — Devemos saber a verdade. Volte a investigar esse primeiro assassinato, Pitt. Tampouco eu acredito que Ewart seja culpado, e nos consta que não o é do segundo e o terceiro. Mas se Ela Baker não o fez, quem demônios foi? —Enrugou o sobrecenho. — Lhe parece concebível que nos achemos ante três singulares assassinatos, todos com idênticas formas de tortura e fetichismo, as botas abotoadas, a água, cometidos por três pessoas distintas?
— Essa impressão dá — respondeu Pitt. — Mas não, não acredito. Não tem sentido. Há algo essencial que ainda desconhecemos. — Ficou em pé.
Cornwallis se levantou também, foi a sua escrivaninha e escreveu uma breve nota de autorização. Entregou-a ao Pitt sem falar e lhe estreitou a mão. Olhou-o nos olhos, desejando fazer algum comentário, procurando palavras para lhe comunicar embora só fosse em parte a emoção que sentia, mas não havia nada que dizer. Tomou ar, vacilou e o deixou escapar de novo.
Pitt assentiu, deu meia volta e saiu do escritório. Na rua corria um cortante ar outonal. Parou um cabriolé e voltou a Mele End. Eram às quatro da tarde.
As cinco e quinze tinha falado já com os agentes de serviço no dia da morte da Mary Smith. Era impossível que Ewart estivesse envolvido no crime, na mesma medida que tampouco podia ter intervindo nos assassinatos da Ada McKinley e Nora Gough.
A seguir visitou a casa do Globe Road onde Mary Smith tinha morrido. Perguntou ao caseiro, um homem grisalho e sem barbear, pela primeira testemunha mencionada no informe.
— Está o senhor Oliver Stubbs?
— Não sei de quem me fala — respondeu o caseiro com brutalidade. — Procure em outra parte.
Tentou fechar a porta, mas Pitt o impediu com um pé e o olhou com tal fúria que o homem pareceu por um instante menos seguro de si mesmo.
— Né! O que faz? À parte o pé da porta ou lhe jogo o cão.
— Faça-o, e o meterei no cárcere — advertiu Pitt sem hesitações. — Estou investigando um assassinato, e se não quiser acabar na forca por cumplicidade, vale mais que me ajude. E agora me diga, se Oliver Stubbs não estiver aqui, onde posso encontrá-lo?
— Não sei! — gritou o homem indignado. — Se mandou faz dois anos. Mas nunca matou a ninguém, que eu saiba.
— Mary Smith — prosseguiu Pitt laconicamente.
— Quem? — Olhou-o com olhos arregalados. — Vamos, homem! Tem ideia de quantas Mary Smith rondam por estes bairros? Todas as fulanas que se tornam à rua experimentar sorte usam esse nome.
— Nem todas elas acabam atadas a uma cama, torturadas e estranguladas — replicou Pitt entre dentes.
— Deus! A essa Mary Smith se refere? — O homem empalideceu sob sua barba de dois dias. — Um pouco tarde, não lhe parece? Isso faz já seis ou sete anos.
—Seis. Preciso falar com as testemunhas originais. Entorpeça meu trabalho, e procurarei qualquer desculpa para detê-lo.
O caseiro voltou a cabeça e gritou para o escuro corredor.
— Marge! Venha aqui!
Não recebeu resposta.
— Venha aqui digo, pedaço de folgazona! — voltou a chamar, erguendo ainda mais a voz.
Depois de outro momento de silenciou saiu uma mulher gorda e ruiva de uma dos quartos do fundo e se aproximou.
— Sim? O que acontece? — perguntou, e olhou ao Pitt com escassa curiosidade.
— Você não estava já aqui faz seis anos? — disse o caseiro.
— Sim — respondeu a mulher. — E o que?
— Este poli quer falar com você. E trata-o bem, ou colocará a todos no xadrez.
— Por quê? — disse ela com uma careta de desdém. — Eu não tenho feito nada ilegal.
— E isso que importa, idiota? — grunhiu o homem. — Você lhe diga o que queira saber. Estava aqui faz seis anos, assim lhe responda.
— É você Margery Williams? — perguntou Pitt.
— Sim.
— Foi uma das testemunhas que declararam em relação com o assassinato da Mary Smith faz seis anos?
Parecia incômoda, mas seu olhar não vacilou.
— Sim. Contei-lhes tudo o que sabia. A que vem esse interesse a estas alturas? Está mais que claro que não agarrarão a esse tipo.
— Disse "esse tipo" — Pitt escrutinou seu rosto. — Dá como claro que a matou um homem? Ou poderia ter sido uma mulher?
Um vislumbre de profundo desprezo se desenhou em seu rosto.
— Que espécie de mulher faria isso a outra mulher? Por Deus, em que mundo vive? Claro que foi um homem. Não tem lido o que disse a outra vez? Apontaram tudo em suas folhinhas de papel. Passávamos tempo escrevendo.
O caseiro permanecia junto a ela, e os olhava alternativamente.
— Não o guardaram — disse Pitt, compreendendo com surpresa que boa parte do material devia ter acabado nos cestos de papéis quando o caso se declarou "não resolvido" e se esqueceu. — Me diga o que recorde do homem que viu, e com o maior detalhe possível.
— E que importância tem isso agora? — Enrugou o rosto e observou ao Pitt com suspicácia e curiosidade. — Não irá dizer-me que o acharam, verdade? depois de tantos anos? —ficou calada e pensativa por um instante. — Já o tenho! Acredita que a matou o mesmo que matou agora às mulheres do Whitechapel, não é isso?
A conclusão parecia tão óbvia que Pitt por um momento se maravilhou ante a estupidez da mulher. Mas de repente, sobressaltado, recordou que os detalhe do primeiro crime não tinham aparecido nos jornais. Se ela não tinha visto o cadáver com seus próprios olhos, e a polícia, Ewart em concreto, não a tinha informado sobre as particularidades do crime, possivelmente ela desconhecia que o assassino tinha utilizado o mesmo método até o menor detalhe.
— Sim — se limitou a dizer. — É possível.
— Ouvi dizer que as tinha matado uma mulher. Não é verdade, pois? — Voltou-se para o caseiro. — Esse Davey Watson é um embusteiro! Disse-me que o tinha feito outra fulana. vai se inteirar quando o agarrar, o muito vagabundo!
— A Nora Gough a matou uma mulher — informou para tranquilizá-la. — E agora faça o favor de descrever a esse homem com toda a exatidão possível, sem acrescentar nem tirar nada. Por favor.
—De acordo. —Fez um gesto de indiferença com os carnudos ombros. — Eram quatro. Chegaram juntos. Um era moreno e um tanto extravagante, com muita pose; o rosto não chamava a atenção. Era um tipo comum, salvo pelos ares que se dava. Possivelmente era pintor.
Ouviu-se um repentino estrépito em algum lugar do edifício, e uma mulher proferiu um xingamento.
— E o segundo? — perguntou Pitt, induzindo-a a seguir.
— Era pomposo como um enganador de feira; dava-se muita fritada, como se fosse alguém.
— Que aspecto tinha?
— Nada do outro mundo. Um tipo comum e moedor. — Olhou com atenção ao Pitt, tentando adivinhar por que era tanto seu interesse que inclusive lhe quebrava a voz. — Não o reconheceria se voltasse a vê-lo.
— E o terceiro? — perguntou Pitt com tom premente.
— Outro presunçoso que se achava dono do mundo — respondeu. — Arrumado, isso sim. Bonito de rosto, e com um cabelo bonito, abundante e encaracolado. Qualquer mulher lhe teria invejado aquele cabelo.
— Loiro ou moreno? — disse Pitt.
Com um nó no estômago, começou a experimentar um estranho sentimento premonitório. Ewart sabia todo aquilo. Tinha-o ouvido seis anos atrás. por que o tinha mantido em segredo? Que classe de terror ou estupidez se apropriara dele?
— Loiro — respondeu a mulher sem duvidar.
— Um cavalheiro?
— Sim. Se medirmos a um cavalheiro pela maneira de falar e a vestimenta, sim, era um cavalheiro. Eu não o teria querido nem agradável. Era um porco asqueroso. Dava mau espinho. Estava como... exaltado... como... não sei. — Desistiu.
— E o último? — Pitt não desejava ouvir a resposta, mas não podia evitá-la — o recorda?
— Sim. Era diferente. — Moveu a cabeça em um leve gesto de negação, e seu cabelo vermelho se balançou. — Bem magro, mas com um desses rostos que nunca se esquecem. E uns olhos como brasas, afundados...
— Como se estivesse louco? Ou bêbado?
— Não. — Agitou sua grosa mão em um gesto de impaciência. — Como se levasse dentro, no fundo de sua alma, algo tão importante que devia contar a todo mundo. Como um poeta, ou um músico, ou algo assim.
— Compreendo. E o que aconteceu? Disse que chegaram juntos, um por um, ou como? — perguntou Pitt, apesar de conhecer a resposta.
— Todos juntos — respondeu a mulher. — Logo cada um se meteu em um quarto. Ao final partiram também juntos. Eram muito amigos. E saíram daqui brancos como o papel. achei que lhes tinha sentado mal a bebedeira, até que me dava conta do que tinham feito... ou o que tinha feito um deles. Mas suponho que todos sabiam.
— Compreendo. E sabe qual deles entrou no quarto da Mary Smith?
— Sim. — Assentiu com a cabeça. — Começaram todos juntos com ela. Logo ficou só o loiro. E ao final voltaram a entrar todos. Não sei qual a matou, mas apostaria algo que foi o loiro. Tinha um olhar estranho.
—Compreendo. — Pitt estava aturdido, inclusive um pouco enjoado. — Obrigado, senhora Williams. Se fosse necessário, prestaria declaração?
— Onde? Em um julgamento?
— Sim.
Refletiu por um momento. Não consultou ao homem, que permanecia a seu lado com expressão áspera, consciente de seu insignificante papel.
— Sim — respondeu por fim. — Sim, se você quiser. A pobre Mary! Não o merecia. Nem ela nem nenhuma de minhas garotas. Nem nenhum ser humano, se a isso vamos. Mandarei a esse canalha à forca, se é que vocês o agarram, claro está. — Soltou uma gargalhada áspera e desdenhosa. — Algo mais, cavalheiro?
— De momento não. Obrigado.
Pitt se afastou devagar. Eram quase as seis da tarde, e escurecia o céu umas densas nuvens procedentes do este, empurradas por um cortante vento que arrastava os aromas do rio, o sal, o peixe e o esforço humano.
Não havia escapatória. Margery Williams havia descrito aos quatro jovens com tal precisão que apenas se podia albergar uma muito ligeira dúvida, apoiada mais na esperança que na razão. Tinham sido os sócios do clube Fogo do Inferno: Thirlstone, Helliwell, Finlay e Jago Jones. Uma profunda tristeza afligia ao Pitt. Encaminhou-se lentamente para o Whitechapel. Demoraria uma meia hora em chegar ao Coke Street. Lamentou que a distância não fosse ainda maior.
Adiantava-o toda espécie de gente a caminho de suas casas depois do trabalho: empregados de escritório com os ombros rígidos e manchas de tinta nos dedos, alguns com os olhos semicerrados atrás de todo um dia com a vista fixa nas letras negras sobre o papel branco; dependentes em grupos de dois ou três. Logo sairiam também os operários e iriam amontoar se nas casas de cômodos, cada um a seu estreito espaço, onde o esperava sua família e conservava seus escassos pertences.
Ao cruzar a rua esteve a ponto de ser enrolado por um cabriolé. Anoitecia, e a temperatura descia cada vez mais.
Levantou-a gola do casaco e apertou o passo sem dar-se conta. Não pretendia chegar ali mais depressa; simplesmente puxava—o a emoção, uma mescla de ira e urgência interior.
Avançava por Mele End Road, que aconteceria chamar-se Whitechapel Road no cruzamento com o Brady Street. Sua inicial relutância se transformou em um peremptório desejo de acabar quanto antes. Andava a grandes passadas, vendo apenas aos outros transeuntes. As luzes estavam já acesas. Luzes alaranjadas resplandeciam na crescente escuridão; as carruagens se converteram em meras formas em movimento com faróis de posição a ambos os lados; os cascos dos cavalos matraqueavam contra os paralelepípedos úmidos e as rodas deslizavam com um ranger.
Dobrou à esquerda no Plumbers Row, que conduzia até o Coke Street. Era o lugar e a hora em que quase com toda segurança acharia ao Jago Jones, e Pitt tinha a profunda — e possivelmente irracional — convicção de que Jones não lhe mentiria se o enfrentava à verdade.
Virou na última esquina e viu o carrinho de mão sob a luz, sua luz refletida nas varas gastas, ali onde as mãos as pegavam um dia após outro, possivelmente geração após geração. A enxuta figura do Jago Jones em seu puído traje ainda servia sopa aos últimos esfarrapados. junto a ele, trabalhando ao mesmo tempo em silêncio, Achava-se Tallulah FitzJames.
Pitt os observou, apoiado contra a parede na escuridão, até que terminaram a partilha de comida e começaram a recolher seu equipamento. Como sempre, não tinha demasiado nada.
— Reverendo Jones — chamou Pitt em voz baixa, aproximando-se dele.
Jago ergueu a vista. Já não se surpreendia de ver o Pitt. Tinha frequentado muito aquele lugar nos últimos meses.
— Sim, delegado? — disse Jago com paciência.
— Sinto muito. — Era uma desculpa sincera. Poucas vezes tinha lamentado tanto uma necessidade. — Não posso deixar correr o assunto. —Lançou um olhar à Tallulah, que continuava recolhendo os utensílios e carregando-os no carrinho de mão.
— Do que se trata agora? — perguntou Jago com rugas de perplexidade na fronte. — Não sei nada mais. Falei com Ela Baker uma ou duas vezes, mas comigo sempre se mostrou muito auto-suficiente. Não necessitava meus conselhos. — Esboçou um triste sorriso. — Ou melhor dizendo, não os desejava. Não a conhecia tanto como para perceber seu desespero. Possivelmente isso deva atribuí-lo a minhas limitações, mas ao menos pelo que a ela corresponde é já muito tarde para retificar. — À luz do lampião seu rosto revelava só pesar e uma sensação de derrota. Afastou-se uns passos para que Tallulah não o ouvisse. — Por favor, delegado, não me peça que a interrogue. Inclusive se acessasse a falar comigo, o que dissesse seria algo entre ela e Deus. Eu só poderia lhe oferecer um pingo de consolo humano, e a promessa de que Deus é às vezes um juiz mais benévolo do que acreditam, se formos sinceros; e possivelmente também mais severo se não o formos.
— Sinceros, reverendo? — repetiu Pitt, notando o tremor de sua própria voz.
Jago o olhou fixamente. Talvez tinha percebido no tom do Pitt maior ironia, perspicácia e dor que em ocasiões anteriores. Fez gesto de voltar-se para o Tallulah, mas mudou de ideia, ou acaso duvidou da utilidade de qualquer esforço por convencê-la de ficar à margem daquilo.
— O que ocorre, delegado? Pronunciou essa palavra como se para você entranhasse um profundo significado.
Pitt não tinha previsto a presença do Tallulah. Seu primeiro impulso tinha sido lhe pedir que os deixasse a sós, revelar ao Jago seu recente descobrimento em privado. Por simples consideração, parecia-lhe incorreto lhe expor aquilo cara a cara ante alguém que obviamente sentia por ele o maior respeito. Mas de repente compreendeu que Tallulah tinha direito a inteirar-se. Afetava-a diretamente. Finlay era seu irmão. O que se dissesse naquele canto úmido e escuro do Coke Street seria em último extremo igualmente devastador no salão do Devonshire Street. Embora o adiasse, não lhe economizaria o sofrimento.
— E assim é, quando surge em uma conversa entre você e eu a respeito das mortes da Ada McKinley e Nora Gough — respondeu Pitt.
Jago mantinha firme o olhar.
— Não sei nada disso, delegado.
Tallulah tinha terminado de carregar o carrinho de mão e se aproximou.
— E da morte da Mary Smith? — perguntou Pitt, com igual aprumo. — No Globe Road, de Mele End, faz uns seis anos. Vai A...? — interrompeu-se.
Jago tinha empalidecido. Inclusive sob o resplendor amarelado da luz de gás seu rosto parecia uma máscara mortuária. Não era necessário concluir a frase. Jago não mentiria. Mentir naquelas circunstâncias teria sido absurdo, uma indignidade sem redenção possível.
— Você estava ali — prosseguiu Pitt com serenidade, procurando permanecer alheio ao olhar do Tallulah, cravada nele com crescente terror. — Você, Thirlstone, Helliwell e Finlay FitzJames. — Não era uma pergunta, e sua voz não deixava lugar a dúvidas.
Jago fechou lentamente os olhos. Controlar-se exigia um esforço supremo. Dava a impressão de que se fraquejava por um instante, desmoronar-se-ia.
— Responderei por mim, delegado, mas por ninguém mais. — Engoliu saliva com dificuldade. Tremiam-lhe as mãos. — Sim, estava ali. Em minha juventude cometi muitos enganos dos que me envergonho, mas de nenhum tanto como de esse. Bebia em excesso, esbanjava o tempo e dava valor a coisas que não o tinham. Preocupava-me o que a gente pensasse de mim, e não o amor. Tampouco o respeito ou a honra. — Falava com amargura. — Nem se minha conduta feria outros. Nem se dava bom ou mau exemplo. Não fazia mais que adotar detrás, me exibir, desejando ser mais inteligente e engenhoso que qualquer outro homem.
Tallulah o olhava, mas ele parecia não perceber sua presença, absorto no desprezo pelo homem que tinha sido em outro tempo. Ela se aproximou, mas Jago seguiu sem vê-la.
— Globe Road — recordou Pitt, obrigando-o a ir ao ponto, e não só porque era o que lhe interessava, mas sim porque não correspondia a ele julgar os outros pecados do Jago, fossem quais fossem, nem desejava conhecê-los.
— Estava ali — admitiu Jago pela segunda vez. — Não matei a Mary Smith. —Sua voz se reduziu a um rouco murmúrio, como se a lembrança cobrasse vida ante seus olhos. — Mas sei o que lhe ocorreu, Deus me perdoe. Após isso dediquei minha vida a tentar pagar...
— Quem a matou? — perguntou Pitt com delicadeza. Achava que Jago era inocente, e não só porque o desejava, mas sobre tudo pelo que via refletido em seu rosto: a paixão, a tortura da culpa e a lembrança, a repugnância por seus próprios atos, mas também a coragem de ter exposto por fim a verdade e ao mesmo tempo manter intacto seu sentido da honra.
— Não o direi, delegado. Sinto muito.
Pitt vacilou só por um instante. Em realidade não havia nenhuma decisão que tomar.
— Reverendo — disse, usando intencionalmente o tratamento —, Mary Smith não só foi assassinada; antes foi torturada e humilhada. Ataram-na a sua cama, com uma de suas meias, um de seus objetos íntimos... — Percebeu no rosto do Jago a descarnado dor que sentia, mas não se deteve. — A aterrorizaram e maltrataram. Quebraram-lhe ou deslocaram os dedos das mãos e pés. Não era uma prostituta experimentada. —Notou a crescente crispação de sua voz. — Era quase uma menina, acabava de...
— Delegado! — O grito procedia do Tallulah. Avançou um passo e se colocou junto ao Jago, olhando ao Pitt. — Não é necessário que continue. Conhecemos o ocorrido a essas mulheres do Whitechapel. Aceitamos que Mary Smith foi vítima das mesmas atrocidades e nos horroriza. Ninguém, nenhuma criatura vivente, merece semelhante trato, e deve você averiguar quem o fez, e o culpado deve receber seu castigo...
— Tallulah! — exclamou Jago com voz afogada, tentando apartá-la. Tinha o rosto molhado, bem pela umidade do anoitecer, bem pelo suor provocado por uma profunda angústia. — Você não... —interrompeu-se, incapaz de seguir. — Não... — Tomou ar com uma longa e trêmula aspiração e se voltou para o Pitt. — Delegado, compreendo suas palavras, e sei melhor que você o... quão espantoso foi. Admito minha parte nisso. Eu estava ali, e contribuí para ocultar o ocorrido. Sou culpado disso. Mas não direi nada mais.
"Desde esse dia tenho feito todo o possível por me converter em um homem digno de perdão. A princípio o fazia por remorso. Agora o faço por amor ao trabalho em si. Alguém deve atender a esta gente, e minha recompensa por me ocupar deles foi incomensurável. Mas admito que fui encobridor de um assassinato. Tudo tem seu preço. Permite-me levar o carrinho de mão à cozinha antes de acompanhá-lo? Necessitarão-a amanhã. Alguém assumirá a tarefa que eu não poderei realizar.
— Eu o farei — ofereceu Tallulah imediatamente. — Billy Shaw me ajudará se o peço, e também a senhora Moss.
— Obrigado — disse Jago sem olhá-la.
— Não vou detê-lo, reverendo — respondeu Pitt lentamente. — Não acredito que assassinasse você a Mary Smith, e me consta não assassinou a nenhuma das duas mulheres do Whitechapel.
Jago permaneceu imóvel, confuso. Ainda assim, não se atrevia a olhar para Tallulah. Voltava a cabeça em outra direção, por temor ao que podia ver nos olhos dela.
Pitt estava indeciso.
—Jago — disse Tallulah com doçura, agarrando-o pelo braço. — Não pode seguir protegendo-o. Foi Finlay, não é? De algum jeito meu pai conseguiu mantê-lo oculto. Deve ter subornado à polícia.
De repente uma onda de lembranças dispersas inundou a mente do Pitt, uma multidão de pequenas impressões. O orgulho do Ewart pelos êxitos de seu filho, sua seleta educação, o vantajoso matrimônio de sua filha. Que proeza! Mas a que preço?
Recordou a impaciência do Ewart por achar a outro culpado, sua expressão cada vez que ouvia mencionar ao Augustus, a estranha mescla de medo e ódio. Compreendia agora com sinistra clareza por que tinha destruído as declarações das testemunhas do assassinato do Globe Road e arquivado o caso sem resolver, e por que não tinha informado ao Pitt. Que pesadelos deviam havê-lo assaltado quando pensou que Finlay havia tornado a cometer o mesmo crime, e que ele teria que encobri-lo de novo, mas esta vez obrigado a ceder a investigação a um superior e trabalhar sob suas ordens. Não era estranho que dormisse mal, que tivesse perdido o apetite, que chegasse à delegacia de polícia como se acabasse de aparecer ao inferno.
E finalmente Pitt tinha detido ao Albert Costigan, e sua culpa parecia fora de toda dúvida. Nem sequer ele o tinha negado. Ewart deveu pensar que se livrara daquela tortura.
Mas então se produziu outro crime, no Myrdle Street. Um segundo pesadelo para o Ewart, de novo a tortura de tentar demonstrar que Finlay era inocente, de afastar ao Pitt passo a passo do Finlay, para alguma outra explicação, qualquer outra.
E Pitt tinha dado com Ela Baker. E tampouco ela tinha negado sua culpa.
Tallulah estava muito perto do Jago, rodeando-o com o braço, quase como se o sustentasse em pé. A bruma umedecia seu rosto e escuras sombras rodeavam seus olhos. A comoção e o pesar ficavam de manifesto em cada um de seus traços. Entretanto mostrava deste modo uma fortaleza ausente até esse momento, quase uma luminosidade, como se tivesse encontrado em seu interior um dom precioso e indestrutível, e ao seu devido tempo muito mais valioso que qualquer dos luxos que Devonshire Street podia lhe oferecer, ou lhe arrebatar.
— Não pode protegê-lo — repetiu, procurando o olhar do Jago.
— Tampouco posso trai-lo — sussurrou Jago, mas se inclinou um pouco para ela, quase involuntariamente, como se não quisesse, mas não pudesse evitá-lo. — Dei minha palavra. Também eu tive minha parte de culpa. Fui ali. Conhecia as paixões que o consumiam, a ira, a necessidade de poder e, entretanto fui.
— As paixões que consumiam ao Finlay FitzJames? — perguntou Pitt.
Jago não respondeu.
Pitt sabia que era inútil insistir. Ainda não dispunha de provas suficientes para deter o Finlay pelo assassinato da Mary Smith, não sem a declaração do Jago. Margery Williams podia reconhecer aos quatro homens, mas tinham passado seis anos. E do que servia o testemunho de uma mulher como ela contra a palavra do Finlay FitzJames e o poder de seu pai?
Correria Tallulah a sua casa para pôr sobre aviso ao Finlay? Existia a possibilidade de que Pitt se apresentasse no Devonshire Street e descobrisse que Finlay partira, possivelmente à a Europa continental, ou inclusive mais longe, talvez para a América?
Os três permaneciam sob a luz da luz do Coke Street, imóveis, Jago e Tallulah juntos, ela rodeando-o com um braço, Pitt em frente. Estavam transidos por causa da pegajosa e fria umidade da noite. No rio, ao longe, reverberava sobre a água o débil lamento de uma sereia de névoa.
— Quem deixou a abotoadura e a insígnia do Finlay no quarto da Ada McKinley? —perguntou Pitt por curiosidade. — Foi você? Ou um dos outros dois?
— Eu não fui — disse Jago, surpreso. — E apostaria tudo que possuo, que não é muito, a que tampouco foi nenhum deles. Ao Helliwell o aterroriza que sua reputação possa ver-se empanada pelo menor descrédito, e não digamos já um assassinato. Thirlstone simplesmente quer esquecer o ocorrido. O clube Fogo do Inferno se dissolveu, e juramos não nos ver nunca mais.
Tallulah afastou a vista do Jago e olhou ao Pitt com o sobrecenho franzido.
— Não tem sentido, delegado. Os supostos culpados dos dois últimos assassinatos viviam no Whitechapel. Não é possível que conhecessem o Finlay, e menos ainda que tivessem acesso a seus objetos pessoais. E por que iriam fazer uma coisa assim Mortimer ou Norbert? — Estava muito pálida e tinha os olhos afundados. — E o próprio Finlay certamente não pôde ser. — Sua voz se reduziu a um sussurro. — Cometeu o primeiro crime, mas não o segundo. Sei, delegado. Juro-lhe que não foi ele. Vi-o na festa.
— Acredito —, senhorita FitzJames. Tampouco foi Ewart. Atormentava-o a possibilidade de que chegássemos a suspeitar seriamente dele, e já não digamos de acusá-lo. Pode ser que odeie a seu pai, pode ser que odeie ao Finlay, mas tem muito que perder se Finlay é declarado culpado: seu meio de vida, sua família, e inclusive sua liberdade. E pressinto que se isso ocorresse, seu pai, longe de proteger ao Ewart, destrui-lo-ia por ter fracassado.
Tallulah guardou silêncio. Não podia negá-lo, mas admiti-lo era muito doloroso. Era mais do que podia resistir.
Jago a estreitou com seu braço.
— Há um elemento crucial que ainda não tem descoberto — disse Jago, quase para si mais que para o Pitt. — Algo em torno do que excursão todo o resto.
— O que é? —perguntaram ao uníssono Pitt e Tallulah.
— Não sei — admitiu Jago. — Só sei que existe e que tem uma importância vital. Mas enquanto o ouvia, Pitt resgatou do fundo de sua mente a dúvida que o inquietava, ainda sem resolver.
— Mary Smith — disse como se pensasse em voz alta. — É um nome muito comum. Muito comum. Quem era? Como se chamava em realidade?
Jago voltou a fechar os olhos.
— Não sei. Era jovem. Era formosa, e muito infeliz. Deus nos perdoe...
— Continuo sem lhe ver o sentido — protestou Tallulah, voltando-se para Pitt. — Nos
quartos dessas mulheres se acharam vários objetos do Finlay. Quem pôde deixá-los ali, se não fosse o assassino? Tinha algo que ver Mary Smith com o Costigan e Ela Baker? —Contraiu o rosto em uma careta de perplexidade. — Como foram matar a duas mulheres só para culpar ao Finlay? É uma loucura.
Intumescido por causa do penetrante frio, sob o halo em que a bruma tinha convertido a luz do lampião, Pitt achou de repente outra resposta, trágica e absurdamente simples. Se sua suspeita se cumpria, tudo ficaria explicado.
— Devo retornar à delegacia de polícia — anunciou. Sua voz soava exatamente igual a antes, e entretanto lhe pareceu por completo distinta. Era uma resposta que não desejava confirmar, e entretanto, em que pese a havê-la vislumbrado fugazmente, cobrava intensidade em seu cérebro cada vez mais.
—Levarei Tallulah... a senhorita FitzJames... comigo a Santa Maria — disse Jago, o semblante sereno, os ombros erguidos.
Nos lábios do Pitt se desenhou a mínima expressão de um sorriso. Era um gesto afetuoso, mas apenas um trêmulo brilho onde ele teria desejado o mais vivo resplendor.
— Excelente ideia, reverendo. Será o melhor lugar para ela. Sem ânimo de me intrometer, e enquanto a decência o permita, sugiro-lhe que lhe dê proteção ali.
—Mas... — começou a dizer Jago.
— Sei onde encontrá-lo se o preciso — atalhou Pitt. — Mas não acredito que se dê o caso. Consta-me que não declarará contra Finlay, e não há ninguém que declare contra você. Continue com seu trabalho na paróquia. É um grande trabalho. Boa noite.
A seguir deu meia volta e se dirigiu para a esquina. Voltou a cabeça e olhou atrás. Viu duas figuras sob a luz, mas tão estreitamente entrelaçadas que poderiam ter sido uma só, um homem e uma mulher unidos em um abraço que os dois tinham imaginado, desejado e aguardado, até que se fez realidade e cumpriu com acréscimo seus sonhos.
Ewart se surpreendeu ao ver Pitt. Ergueu a vista detrás de sua escrivaninha com semblante sereno, sem o menor indício de suspeita, sem medo ao que se avizinhava.
— Está o doutor Lennox na delegacia de polícia? —perguntou Pitt. — Se não estiver, envie a alguém para buscá-lo.
— Encontra-se mau? —disse Ewart, mas ainda não tinha acabado a frase quando lhe mudou a expressão. Era claro que Pitt não estava doente, a não ser doído e taciturno.
— Traga aqui ao doutor Lennox — repetiu Pitt. — Conhece-o bem?
— Isto... relativamente. —O sangue tinha deixado de afluir a suas faces. — por quê?
— A que se dedicava o pai do Lennox?
— Como?
— Como ganhava a vida seu pai?
— Não... não... tenho a menor ideia. Por quê? —Ewart parecia sinceramente desconcertado. — Fez algo indevido? O que acontece, Pitt? Tem muito má cara. Sente-se. Servirei—lhe um conhaque. Doutor Lennox!
— Não quero conhaque.
Ao Pitt desgostava profundamente aquela situação. Ewart se mostrava considerado apesar de que o medo começava a apropriar-se dele. Pitt desprezava aos homens venais. Ewart havia encoberto um assassinato brutal, um dos mais repugnantes que Pitt tinha conhecido ao longo de sua carreira. Sabia Deus quantas maldades mais teria cometido a instâncias do Augustus FitzJames. A uma coação, a uma chantagem, sempre se seguiam outras. Assim que se sucumbia uma vez, não havia já possibilidade de voltar atrás, salvo admiti-lo e pagar por isso. E a polícia nunca perdoava tais atos de corrupção em um dos seus. Mary Smith, ou de qualquer maneira que se chamasse, merecia algo mais que isso.
— Traga para o Lennox! — repetiu Pitt entre dentes.
Ewart, muito pálido, foi à porta e desapareceu pelo corredor. Retornou ao cabo de um momento.
— Estará aqui dentro de quinze minutos — disse, observando ao Pitt com apreensão, hesitando se sentava ou continuava de pé.
— Acabo de falar com o reverendo Jago Jones — informou Pitt lentamente.
— Ah! — disse Ewart, sem saber se mostrava interesse ou não.
— Sobre o assassinato da Mary Smith — prosseguiu Pitt. — No Globe Road, faz seis anos.
Ewart ficou lívido. Tentou tomar ar e se engasgou. Procurou provas sua cadeira e se deixou cair devagar nela.
— Por que destruiu as declarações das testemunhas? —perguntou Pitt. — Já conheço a resposta, mas lhe darei a oportunidade de contar a verdade você mesmo, se é que ainda conserva o mínimo sentido da honra.
Ewart guardou silêncio por um momento. Seu rosto refletia claramente sua agonia, tão nua como o ódio, a dor, o fracasso e o terror internos aos que ninguém pode escapar, a própria consciência.
— Ofereceu-me dinheiro — explicou por fim com voz quase inaudível. — Dinheiro para proporcionar uma vida melhor a minha família. Meus filhos em troca do dele. Assegurou-me que tinha sido um acidente. Finlay não pretendia matar à garota. Quando se deu conta do que tinha feito, tentou reanimá-la. Por isso lhe jogaram água. Mas tinha passado dos limites. O jogo lhe tinha escapado das mãos, e a tinha abafado. Devia tê-la amordaçado para que não gritasse. A garota tinha as marcas nas faces. — debruçou-se e escondeu o rosto atrás das mãos. — Mas não matou às outras — prosseguiu com a voz empanada. — Não se equivocou você de homem. Costigan era culpado, estou certo. E também o é Ela Baker. Sabe Deus como chegaram até ali os objetos pessoais do Finlay. Esse foi um dos piores dias de minha vida, quando vi suas coisas no quarto de Ada McKinley. Senti-me como se o inferno acabasse de abrir-se ante mim.
Pitt permaneceu calado. Podia imaginar: o repentino terror, as desesperadas contorções da mente por achar uma escapatória, o crescente pânico à medida que se acumulavam as provas, e o incompreensível mistério de todo aquilo.
Não chegava som algum do corredor; só se ouviam os ruídos da rua.
Transcorreram quinze minutos de angustiante silêncio até que se abriu a porta do escritório e entrou Lennox. Estava cansado. Primeiro viu o Ewart, desabado sobre a escrivaninha, e depois Pitt, sentado em frente.
— O que ocorre? — perguntou. — Está doente o inspetor Ewart?
— Provavelmente — respondeu Pitt. — Entre e feche a porta.
Lennox obedeceu, ainda desconcertado.
Pitt não se moveu da cadeira.
— Depois do agente Binns, você foi o primeiro a chegar à habitação da Ada McKinley, não é certo, doutor?
— Sim. Por quê? — disse Lennox. Parecia surpreso, mas não preocupado.
— E também a da Nora Gough?
— Sim. Já o disse.
— Foi o primeiro que examinou os cadáveres?
Lennox o olhou com expressão de curiosidade, e seus cansados olhos avelã revelaram que começava a compreender.
— Sim. Também isso sabe.
— E depois foi oferecer consolo às testemunhas antes que as interrogássemos? — continuou Pitt.
— Sim. Estavam muito... alteradas, como é lógico.
— Também foi você o primeiro em chegar à habitação onde morreu assassinada Mary Smith?
Lennox empalideceu, mas conservou a serenidade.
— Mary Smith? — repetiu, enrugando a frente.
— No Globe Road, faz seis anos — acrescentou Pitt. — Uma moça muito jovem, de quinze ou dezesseis anos, nova no ofício. Foi assassinada da mesma maneira. Mas isso é você o mais autorizado para explicá-lo, não, doutor Lennox?
Permaneceram totalmente imóveis por uns segundos. Nem sequer lhes ouvia respirar. Finalmente Ewart, com o rosto desencaixado, levantou a vista e olhou ao Lennox. Entretanto a dor que transparecia em seus olhos não era nada em comparação com o que refletia o semblante do Lennox e de fato todo seu corpo.
— Era minha irmã — sussurrou. — Mary Lennox. Tinha dezesseis anos quando esse animal a torturou daquele modo. —Olhou ao Ewart. — E você, tendo provas, Deixou-o escapar! Quanto lhe pagou por aquilo, Ewart? Por Deus, me diga com o que se pode pagar uma coisa assim!
Ewart não respondeu. Estava muito aturdido pelo desespero e o desprezo de si mesmo para notar outro golpe.
— De modo que quando achou uma prostituta assassinada, sem feridas de arma branca — concluiu Pitt, dirigindo-se ao Lennox—, e foi o primeiro em chegar ao lugar do crime, deixou ali os objetos pessoais do Finlay FitzJames, e reproduziu até o último detalhe as circunstâncias do crime da Mary: os dedos quebrados de mãos e pés, a liga, as botas abotoadas entre si, a água. Depois se limitou a aguardar que nós fizéssemos o resto, com a esperança de que Finlay FitzJames fosse acusado do assassinato.
— Sim.
— De onde tirou a insígnia e a abotoadura?
— Roubei-as ao Ewart. Os tinha guardado quando investigava o assassinato da Mary para que não formassem parte das provas — respondeu Lennox.
— E ao ver que Finlay não era acusado e Costigan ia à forca, chegou primeiro ao quarto da Nora Gough e repetiu o processo — prosseguiu Pitt. — Também ali instruiu às testemunhas? Tentou convencê-las de que tinham visto um homem parecido ao Finlay na casa?
— Sim.
Ewart ficou em pé, balançou—se e esteve a ponto de desabar-se.
Nem Pitt nem Lennox fizeram gesto de ajudá-lo.
—Tenho que deixá-los — disse com voz rouca. — vou vomitar.
Lennox retrocedeu para lhe deixar passagem. Ewart acionou torpemente o trinco, abriu e saiu do escritório sem voltar a fechá-lo.
Lennox se voltou para o Pitt.
—Merecia a forca pelo que fez com a Mary — afirmou com voz gutural. — Apresentará agora queixas contra Finlay, ou deixará que fique impune?
— Não disponho de provas suficientes para acusá-lo —respondeu Pitt com amargura. — A menos que Ewart confesse, o qual é uma possibilidade. Outra possibilidade é que recupere a calma e se dê conta de que tenho poucas provas.
— Mas... —Lennox parecia desesperado.
— Poderíamos ver se Margery Williams identifica ao Finlay — continuou Essa Pitt é outra opção. E possivelmente também o identificassem as outras duas testemunhas. E é possível deste modo que Helliwell e Thirlstone se assustem e aceitem falar, sobre tudo se também os identificam.
— Deve fazê-lo! —Lennox se inclinou e pegou Pitt pelos braços, lhe fincando os dedos na carne. — Deve...!
Não teve ocasião de terminar a frase, porque de repente apareceu ao escritório o agente Binns, visivelmente preocupado.
—Delegado, o senhor Ewart acaba de sair daqui como alma que leva o diabo, e pegou vários cartuchos de dinamite expropriados...
Pitt ficou em pé de um salto, derrubando quase ao Lennox, afastou ao Binns e saiu ao corredor a toda pressa. de repente se deteve, deu meia volta e olhou aos outros dois homens, que o seguiam de perto.
— Binns, vá parar um cabriolé. Requisite-o se for necessário. Imediatamente!
Binns obedeceu, correu escada abaixo, e ouviram afastar-se seus sonoros passos pelo chão de madeira do vestíbulo.
Pitt olhou ao Lennox.
— Apresente agora mesmo sua demissão ao sargento de guarda. Vá-se antes que eu retorne. Não me diga aonde, e eu não o buscarei.
Lennox ficou imóvel. Em seu rosto apareceu uma expressão de gratidão, suavizando seus severos traços, e o olhos se inundaram em lágrimas.
Pitt não teve tempo para acrescentar nada mais. A toda velocidade se lançou escada abaixo, atravessou o vestíbulo e desceu pela escadaria até a rua. Binns o aguardava junto a um cabriolé com a porta aberta, suportando as queixa do indignado cocheiro.
— Ao número trinta e oito do Devonshire Street — ordenou Pitt, e saltou ao interior, seguido do Binns. — Vá tão depressa quanto puder! É uma questão de vida ou morte!
O cocheiro captou a tensão e a urgência. Seu látego estalou, e o cabriolé ficou em marcha com uma brusca sacudida. Em questão de segundos avançavam rapidamente entre o trânsito com sério perigo para tudo o que se interpusesse em seu caminho.
Nem Pitt nem Binns separaram os lábios. Sacudiam-se de um a outro lado, segurando-se como podiam aos cabos do cabriolé, com grave risco de ficarem feridos, e além disso teria sido impossível fazer-se ouvir sobre o ruído dos cascos e rodas, os chiados da madeira, e os gritos dos irados cocheiros.
Quando o cabriolé diminuiu a marcha para deter—se no Devonshire Street, Pitt abriu a porta e saltou à calçada, seguido imediatamente pelo Binns. Correu até a porta e chamou, primeiro com a campainha, quase arrancando-a, e depois com os punhos.
Binns gritava junto a ele, mas Pitt não prestava atenção a suas palavras.
A porta se abriu de par em par, e apareceu o amável mordomo, visivelmente alarmado.
— Está Ewart aqui? — perguntou Pitt com tom premente. — Um policial... o inspetor Ewart! Um homem de cabelo escuro e escasso, que levava um pacote, provavelmente uma bolsa.
— Sim, senhor. Chegou faz uns minutos. Queria ver o senhor FitzJames.
— Onde está?
O mordomo empalideceu.
— No gabinete.
— Está aceso o fogo ali? —perguntou Pitt, e a voz se quebrou por causa da extrema tensão.
— Sim, senhor. O que ocorre? Se me...
Não completou a frase. A explosão destruiu a lareira e abriu uma brecha na parede exterior do gabinete. Arrancou a porta das dobradiças e a lançou ao vestíbulo. A onda expansiva os derrubou aos três, que ficaram machucados e feridos no chão. Pitt saiu despedido para trás e foi a bater se contra a mesa do vestíbulo. Binns caiu de joelhos. Havia livros e papéis por toda parte, e no ar flutuava uma nuvem de cinza.
Seguiram uns segundos de silêncio, quebrado só pelo ruído das pedras e escombros ao depositar-se. Depois começaram os gritos.
Pitt se levantou, cambaleando, enjoado e dolorido, alheio aos arranhões e o sangue que lhe corria pelas mãos e rosto. Aproximou-se com passo instável ao gabinete e foi ao interior. Os restos de livros cobriam tudo salvo um pequeno espaço no centro onde umas brasas de carvão ardiam sobre o tapete. O corpo do Ewart jazia retorcido e ensanguentado, e a pouco mais de um passo se achava o que ficava do Augustus FitzJames, estendido sobre o montão de lascas que antes tinha sido uma mesa. No peito tinha um fragmento irregular parecido e afiado de madeira, mas já nada lhe importava.
Pitt deu meia volta e viu o mordomo de joelhos, tentando levantar-se, pálido por causa da comoção. Binns se aproximou para ajudá-lo.
Uma criada gritava sem cessar no piso superior.
Aloysia FitzJames se achava no alto da escada.
Finlay saiu do salão. Parecia não dar crédito ao que via. Lançou um olhar iracundo ao Pitt.
— Deus santo! —exclamou. — O que fez? Onde... onde está meu pai?
— Morreu — respondeu Pitt com a garganta ressecada pela fumaça. — E também o... o inspetor Ewart. Mas temos ainda seus arquivos. Finlay FitzJames, fica você detido pela tortura e o assassinato da Mary Lennox, em 12 de setembro de 1884.
Finlay, desesperado, dirigiu o olhar para o gabinete reduzido a escombros.
— Desta vez não pode ajudá-lo — disse Pitt. — Tampouco Ewart. Certas coisas podem postergar-se, senhor FitzJames, mas sempre chegam, um dia ou outro. Agora tenha a coragem de confrontá-lo. Para agir com dignidade ainda não é muito tarde.
Finlay escrutinou o rosto do Pitt por um instante, mas logo seu olhar vagou freneticamente pela casa, procurando ajuda, uma escapatória, algo menos a ameaçadora presença do Pitt.
— Não posso! Nego-me! Não...! —Sua voz se fazia cada vez mais aguda, mais penetrante. — Não pode demonstrar...
—Ewart contou tudo antes de morrer.
Aloysia desceu lentamente pela escada e se aproximou de seu filho, ficando
junto a ele sem chegar a tocá-lo. Olhou ao Pitt.
— Finlay o acompanhará com dignidade, delegado — sussurrou. — Eu irei com ele. Acabo de perder tudo o que achava possuir. Mas não sairei daqui chorando, e sejam quais forem meus sentimentos, ninguém os conhecerá.
Finlay a observava atentamente, e a incompreensão inicial se tornou em ira.
— Não pode permitir isso protestou. — Faça algo! —exigiu aterrorizado com voz acusadora. — Faça algo! Não pode consentir que me leve! Enforcarão—me! — Começou a lutar, mas Binns o segurou pelo braço com tal força, que o teria desconjuntado se tivesse seguido opondo resistência. — Mamãe! Não...
Aloysia não o escutava. Saiu parcimoniosamente da casa, e Binns a seguiu sem soltar ao Finlay, que tinha o rosto contraído pela ira e lágrimas nas faces.
Detrás deles, sujo de pó e fuligem mas ainda com sua afável expressão de sempre, o mordomo avançou cambaleando até a porta e a fechou ao sair.
Anne Perry
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