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A PROVA É A TESTEMUNHA / Ilana Casoy
A PROVA É A TESTEMUNHA / Ilana Casoy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PROVA É A TESTEMUNHA

 

Sempre ouvi dos mais experientes que a vida costuma nos pregar peças e que ela, não raras vezes, nos conduz ao encontro de pessoas que acabam se tornando muito importantes pelos caminhos menos agradáveis. Isso novamente aconteceu. Quis o destino, sur­preendentemente, que eu conhecesse o trabalho de Ilana Casoy e com ela estreitasse laços de amizade em razão de uma tragédia que envolveu a morte de Isabella.

A verdade é que nosso intenso convívio dos últimos dois anos, e o apreço mútuo, ou, nas suas palavras, "uma amizade improvável para quem nos conhece, mas inquestionável para aqueles que conosco con­vivem", estão diretamente relacionadas com o infeliz episódio que comoveu o coração até mesmo dos mais insensíveis e cuja repercus­são ultrapassou as fronteiras do país.

Eu poderia citar uma dezena de razões para justificar Ilana como a pessoa mais gabaritada para escrever e relatar o que de fato acon­teceu nos cinco dias que durou o julgamento dos acusados. Perspi­cácia e inteligência para tanto não lhe faltam. Posso afirmar, ainda, que ela vivenciou passo a passo, e de forma muito intensa, todas as etapas do processo, ao mesmo tempo que aproveitou para conhecer as pessoas envolvidas no caso, mergulhando no universo dramático de cada uma.

Além disso, mostrou-se sempre disposta a discutir, com inacre­ditável paciência, toda sorte de pensamento, ouvindo minhas pon­derações com redobrada atenção, compartilhando as naturais aflições e, principalmente, auxiliando na difícil missão, reservada para pou­cos, de entender os sinuosos percursos da mente humana que levam pessoas comuns ao cometimento de crimes violentos.

É um universo que faz parte de sua história, construída com obras de conhecida reputação, que nasceram após longo tempo de dedicação e estudo.

Era final de março de 2008, início de nova estação, o mês ainda chuvoso, os julgamentos acontecendo, ao menos para mim, com a naturalidade dos vinte anos passados no Tribunal do Júri. A vida seguindo a ordem regular das coisas e, subitamente, fomos todos sacudidos por um tsunami de notícias sobre um crime chocante. A morte de uma criança de quase seis anos de idade, atirada pela ja­nela do 6º andar do prédio, figurando como suspeitos seu próprio pai e a madrasta. Num misto de perplexidade, indignação e curiosidade, torcíamos para que não fosse verdade.

Nos primeiros momentos, era incompreensível que lhe tivessem interrompido a vida daquela maneira, especialmente por aqueles que lhe deviam proteção e amor. Seu rosto meigo e alegre passou a estampar todas as capas de jornais, revistas e noticiários de televisão, logo nos primeiros dias, e o sofrimento das pessoas que verdadei­ramente a amavam marcou a vida de muitos brasileiros que por razões insondáveis passaram a viver aquela dor. A angústia coletiva, talvez gerada pela incompreensão de tão aberrante fato e pela bus­ca por respostas, era patente.

Naquela época ninguém imaginou, nem mesmo eu, que o crime se transformaria no mais emblemático caso da história jurídica do Brasil. Ao final, era fácil entender o porquê.

No início ainda me considerava mero espectador, aguardando pacientemente por informações técnicas que permitissem uma res­posta clara. Causava espanto a pressa e ansiedade da população, e também da mídia, que queriam, em curto espaço de tempo, respos­tas que não poderiam ser dadas naquele momento. Mas, para tran­qüilidade dos operadores do Direito, a prova pericial, aliada a outros importantes elementos, logo me mostrou o caminho a ser trilhado. Depois, a cada etapa processual vencida, até o julgamento popular, apenas constatei que a competência de alguns profissionais que propiciaram o esclarecimento do crime foi determinante para que uma resposta justa fosse dada.

Por essa época fui apresentado a Ilana Casoy, que, a essa altura, estava muito bem informada e com a opinião sedimentada, uma vez que tinha lido os seis volumes de inquérito policial, com a autoriza­ção do juiz, dr. Maurício Fossen. Muitas conversas, trocas de expe­riência, milhares de páginas discutidas. Dana sempre esteve presen­te. Seguiu-se uma cansativa instrução criminal, com incidentes compreensíveis em casos de repercussão. Já era possível vislumbrar que o julgamento duraria dias e geraria incomum tensão para as partes, testemunhas, familiares, juiz e, certamente, também para liana. Este seria um júri acompanhado pelo país inteiro, todos na expectativa do desfecho que selaria o destino dos acusados.

O julgamento foi restrito a poucos. O pequeno plenário comportou apenas familiares dos acusados e da vítima, convidados das partes e jornalistas, estes últimos com a dura missão de fazerem um rodízio. O livro de Ilana Casoy, de narrativa vibrante e agra­dável, nos transporta para aquele acanhado plenário e nos conta, com fidelidade, o que aconteceu no julgamento. Trata-se, sem dú­vida, de um precioso documento à disposição daqueles que qui­seram, mas não puderam estar presentes.

A leitura da obra reportou-me às sensações que experimentei quando da tensa instalação da sessão, o sorteio de cada nome dos jurados, o sofrimento estampado no rosto da mãe de Isabella, quan­do prestou depoimento, as verdadeiras aulas ministradas pelo le­gista Paulo Tieppo e pela perita Rosângela Monteiro, a segurança da delegada Renata Pontes, as desavenças que naturalmente ocor­reram com os competentes advogados de Defesa, os questionamen­tos que fiz aos acusados, muitos dos quais sem que me fossem dadas respostas ou, quando dadas, não satisfatórias, enfim, tudo foi con­tado por liana com maestria incomum, que usou de sua competência e sensibilidade nos momentos em que emitiu opiniões e fez suas pertinentes considerações.

Da noite que antecedeu o dia mais importante de todos, o decisivo, quando os debates finalmente seriam travados pelas partes, tenho poucas lembranças. Daniela, minha esposa, talvez possa con­tar melhor como foram aqueles momentos de tensão. A ela pedi ajuda:

"A semana foi intensa. Ao final de cada dia, os debates continua­vam, ora na casa de liana, ora em nossa casa. E assim foi até a véspera dos debates. Neste dia, fugindo à regra, Francisco quis ir para nossa casa, sem a companhia dos amigos. Precisava ficar sozinho. Estava rouco e cansado. Não queria nem mesmo falar sobre o interrogatório dos réus, que, para ele, era previsível. Dormiu pouco, quase nada. Após três horas de sono turbulento, levantou-se para ler mais uma vez aquilo que conhecia como ninguém. Pela manhã, perguntei se ele queria conversar sobre o júri ou sobre a sua fala. Disse-me que não. A tensão era visível. Nada que eu falasse a respeito da excelência de seu trabalho ou sobre ter cumprido a sua obrigação legal com galhardia seria suficiente para atenuar a angústia que ele sentia. O silêncio to­mava conta. Em geral, gosta de discutir os casos, de ouvir minhas ponderações, de contra-argumentar quando não concorda. Na­quela manhã, nenhuma palavra. Era como se conversasse con­sigo mesmo o tempo todo. Confesso que fiquei preocupada. Mas eu conhecia bem a prova do processo e, o mais importante, co­nhecia como ninguém a capacidade desse promotor em plenário. No júri, não me lembro de ter testemunhado alguém que conse­guisse aliar segurança, competência e poder de argumentação igual a ele. Resolvi aguardar e nada mais perguntei, até chegar­mos ao Fórum. Lá, bem... Ninguém melhor do que liana, essa talentosa e irreverente escritora para relatar o que aconteceu."

(Daniela Sollberger Cembranelli)

 

Então, caros leitores, resta-me apenas deixar que a narrativa cativante de liana Casoy possa envolvê-los e transportá-los ao jul­gamento emblemático do caso Isabella.

                Francisco J. Taddei Cembranelli

                Promotor de Justiça

 

                                                                         Denúncia

 

Íntegra da denúncia

Ministério Público do Estado de São Paulo

Excelentíssimo senhor doutor juiz de direito do II Tribunal do Júri da Capital

IP no. 0274/2008

 

Noticiam os inclusos autos de inquérito policial que no dia 29 de março de 2008 (sábado), por volta das 23 horas e 49 minutos, na Rua Santa Leocádia, no. 138, apto 62, Vila Izolina Mazzei, comarca da capital, os indiciados ALEXANDRE ALVES NARDONI e ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ, qualificados as fls. 585 e 604, respectivamente, agindo com unidade de propósito, valendo-se de meio cruel, utilizando-se de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida e objetivando garantir a ocultação de delitos anterior­mente cometidos, causaram em Isabella de Oliveira Nardoni, me­diante ação de agente contundente e asfixia mecânica, os ferimentos descritos no laudo de exame de corpo de delito de fls. 630/652, os quais foram causa eficiente de sua morte.

Consta, ainda, que alguns minutos antes e também logo após o cometimento do delito acima descrito, os denunciados inovaram artificiosamente o estado do lugar e dos objetos com a finalidade de induzir em erro juiz e perito, produzindo, assim, efeito em processo penal não iniciado.

Apurou-se que Isabella de Oliveira Nardoni era fruto de um relacionamento amoroso havido entre o denunciado Alexandre e Ana Carolina Cunha de Oliveira, estando o casal separado à época dos fatos, razão pela qual a menina passava aquele final de semana em companhia do pai e da madrasta, a indicada Anna Carolina Jatobá.

Há notícias de que o relacionamento entre os denunciados era caracterizado por freqüentes e acirradas discussões, motivadas principalmente por forte ciúme nutrido pela madrasta em relação à mãe biológica da criança. Isabella, nos finais de semana que passa­va com o casal, a tudo presenciava.

Na manhã do dia mencionado, os indiciados, em companhia de seus dois filhos e de Isabella, dirigiram-se para o vizinho muni­cípio de Guarulhos ocupando um veículo da marca Ford, tipo KAGL, placas DOG-1125.

No final da noite, após retornarem para o edifício da Rua Santa Leocádia, ocorreu forte discussão entre o casal, ocasião em que Isabella foi agredida com um instrumento contundente, fato que lhe ocasionou um pequeno ferimento na testa, provocando sangra­mento. Na seqüência, a denunciada Anna Carolina apertou o pes­coço da vítima com as mãos, praticando uma esganadura que oca­sionou asfixia mecânica, cujos ferimentos estão descritos no laudo já mencionado. O denunciado Alexandre, a quem incumbia o dever legal de agir para socorrer a própria filha, omitiu-se.

Com a criança desfalecida, porém ainda com vida, os indiciados resolveram defenestrá-la. Para tanto, a tela de proteção da janela do quarto dos irmãos da ofendida foi cortada, após o que o indiciado Alexandre subiu nas camas ali existentes, introduziu Isabella pela abertura da rede e a soltou, precipitando sua queda de uma altura de aproximadamente vinte metros.

A denunciada Anna Carolina concorreu decisivamente para a prática da conduta descrita no parágrafo acima, uma vez que a tudo presenciou, além de aderir e incentivar, prestando auxílio moral.

Apesar do socorro prestado por uma unidade do Resgate, os ferimentos provenientes da queda, aliados àqueles decorrentes do processo de esganadura, causaram a morte de Isabella, criança de cinco anos de idade.

O meio utilizado foi cruel, uma vez que a vítima, além de sofrer asfixia mecânica e já apresentando ferimentos pelo corpo, foi defenestrada ainda com vida, padecendo de sofrimento intenso.

Além de ter sido surpreendida quando da esganadura contra si aplicada, a ofendida teve, ainda, a sua defesa impossibilitada ao ser lançada inconsciente pela janela.

Os denunciados objetivaram garantir a ocultação dos delitos anteriormente praticados contra Isabella, a qual já havia sofrido uma esganadura e apresentava ferimentos.

Finalmente, os denunciados simularam que um ladrão havia invadido o apartamento da família e lançado a vítima pela abertura feita na tela da janela. Enquanto o indiciado Alexandre descia pelo elevador, sua esposa Anna Carolina permanecia no imóvel alteran­do o local do crime, como já havia feito pouco antes de a ofendida ser jogada, apagando marcas de sangue, mudando objetos de lugar e lavando peça de roupa. Ao mesmo tempo, o pai da criança, já no térreo do edifício, no momento em que Isabella estava caída no gramado, ainda com vida e necessitando de urgente socorro, preo­cupava-se em mostrar a todos que havia um invasor no prédio, fato que motivou a imediata chegada de mais de trinta policiais militares, os quais, após minuciosa varredura no local e em imóveis vizinhos, nada encontraram. Algum tempo depois da queda, a denunciada Anna Jatobá apareceu na parte térrea do edifício e passou a ofender o porteiro com palavras de baixo calão, sugerindo falta de seguran­ça no condomínio.

Em vista do exposto, denuncio a Vossa Excelência ALEXANDRE ALVES NARDONI como incurso nas sanções do artigo 121, § 1-, incisos III, IV e V c.c. o § 4S, parte final e artigo 13, § 2-, alínea a (c/ relação à asfixia), e artigo 347, § único, todos c.c. o artigo 61, inciso II, alínea e, segundo figura e 29, do Código Penal e ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ como incursa nas san­ções dos artigos 121, § 2-, incisos III, IV e V c.c. o § 4º, parte final e artigo 347, § único, ambos c.c. o artigo 29 do Código, e requeiro, após o r. e a. desta, sejam os denunciados citados para interrogatório e, enfim, para serem processados até decisão de pronúncia, julgamen­to e condenação, nos termos do artigo 394 e seguintes do Código do Processo Penal, intimando-se as testemunhas do rol abaixo objeti­vando prestarem depoimentos em juízo, sob as cominações legais.

 

SP, 07 de maio de 2008.

 

Francisco J. Taddei Cembranelli

Promotor de Justiça

II Tribunal do Júri

 

               Rol de testemunhas

 

— Ana Carolina Cunha de Oliveira — fls. 150

— Antônio Lúcio Teixeira — fls. 12

— Valdomiro da Silva Veloso — fls. 15

— Luciana Ferrari — fls. 70

— Waldir Rodrigues de Souza — fls. 92 — 951

— Alexandre de Lucca — fls. 70

— Paulo César Colombo — fls. 72

— Karen Rodrigues da Silva — fls 80

— Geralda Afonso Fernandes — fls. 93

— Rosa Maria Cunha de Oliveira — fls. 121

— Provimento 31 — fls. 520

— PM Robson Castro Santos — fls. 104 — 217

— Dra. Rosângela Monteiro — Perita — fls. 657

— Dr. Paulo Sérgio Tieppo Alves — IML — fls. 638

— Dr. José Antônio de Moraes — Perito — fls. 739

— Dra. Renata H. da Silva Pontes — fls. 1041

 

Era uma vez...

Uma menina de quase seis anos, cuja fotografia estava estampada em todas as reportagens e jornais brasileiros, Isabella de Oliveira Nardoni. Foi jogada pela janela do apartamento de seu pai, Alexandre Alves Nardoni, acusado de defenestrá-la depois de a madrasta, Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá, a esganar, em 29 de março de 2008.

Seria esse caso diferente de outros tantos que acontecem na calada da noite ou mesmo durante o dia, rompendo a barreira do sagrado? Crimes de família não são tão raros quanto se pensa. Além do horror de uma pessoa ser assassinada em meio àqueles a quem ama e em quem confia, a terça parte dessas tragédias familiares envolve uma mulher como autora do crime, e elas são maioria quando se trata de filhos assassinados (55%). Os números chegam a ser freudianos quando apontam a realidade de que pais matam, na maioria das vezes, as filhas, e as mães, os filhos. Assim se dá também quando observamos filhos que as­sassinam os próprios pais: filhas matam, na maioria das vezes, o pai, e os filhos, a mãe.

Naquele mesmo mês um juiz me havia convidado a estudar outro caso em que a mãe matara seu filho de dois anos, Élvis, en­contrado asfixiado ainda com a chupeta na boca. Não saiu nos jornais. Não saiu na televisão. Nenhuma matéria jornalística foi feita, mas não era menos impressionante do que o Caso Isabella. Por que a mídia "elege" alguns crimes para explorar, enquanto outros, com as mesmas características, são esquecidos? Já me havia feito essa per­gunta várias vezes; na reprodução simulada do Caso Richthofen havia outra simultânea, também ignorada, mas de igual teor.

Por ser especialista em crimes violentos, existe sempre a solicitação, pela imprensa, para que eu elabore o perfil desse ou daque­le acusado quando ocorre um ato desse tipo. Os jornalistas buscam incansavelmente explicações, para dar a seus leitores, das causas da criminalidade. Só é possível um trabalho sério de análise de um caso depois que se lê o processo, e, como é inviável ler todos os processos de todos os casos noticiados, é preciso selecionar os que serão estudados.

Um domingo distante, 14 de abril de 2008. Eu chegava de uma complicada viagem ao exterior, onde ficara durante quinze longos dias. Malas no chão, ligo a televisão. Só se falava no caso de uma menina jogada pela janela, provavelmente pelo pai e pela madrasta. Como sempre, crimes de família chamam a atenção de todos, mas não me ative a ele em especial, mesmo porque estava "chegando atrasada", não havia acompanhado os acontecimentos nem mesmo pelo noticiário. Cansada, no dia seguinte já começaria uma semana de trabalho difícil, assistindo a um júri, no Fórum de Santana, de um médico acusado de assassinar e esquartejar uma paciente. O caso ganhara enorme repercussão na mídia durante os últimos cin­co anos, e eu, que só o havia seguido pela imprensa, queria saber a distância entre o noticiário e a realidade do processo, porque ouço semanalmente de meus colegas juristas: "O que não está no processo não está no mundo!" Nem imaginava como seria útil essa reflexão no caso a que assistira pela televisão no dia anterior, o crime de Isabella. Eu estava interessada em conhecer a cobertura da imprensa e sua influência na formação da opinião pública nos casos de repercussão, mas não pensei que minha pesquisa seria enriquecida de forma jamais vista no país, com artigos dos mais variados estudiosos de jornalismo, comunicação, direito, psicologia, psiquiatria. Toda in­terface foi explorada.

Durante os três dias de julgamento do médico, fui interpelada por inúmeros repórteres que faziam a cobertura dos acontecimentos ali no júri, mas não para falar sobre o Caso Farah, e sim sobre o as­sassinato de Isabella Nardoni. Eu sabia pouco sobre a morte da menina, e era o que respondia, mas me sentia como quem havia chegado de outro planeta. Parecia ser a única ali a não ter uma opi­nião formada, uma convicção pessoal.

Por fim, dei uma entrevista para o jornal O Estado de S. Paulo e fui a voz ponderada da vez, chamando a atenção exatamente para o cuidado que se deve ter nessas questões de justiça. Muitos erros são cometidos, muita cautela é necessária no momento em que ain­da não saíram laudos, mandados de prisão, indiciamentos. Depois, essa entrevista foi amplamente usada por amigos dos indiciados, que me acusariam de "mudar de posição", sem perceber que aque­la ainda não era uma posição e sim um discurso de "Calma, vamos aguardar mais informações oficiais".

Dessa vez a curiosidade intelectual que me causou ver tamanha turbulência no país, nos jornais, nas televisões que transmitiam notícias sobre o caso, às vezes por mais de quarenta minutos sem interrupção, das "sinceras opiniões" espalhadas por bares e entre­vistas, estava aguçada além do limite normal. Todos pareciam saber a "verdade" sobre o crime e o analisavam até com certa displicência, sem pensar nas conseqüências de suas palavras. Uma amiga queria me apresentar o promotor responsável, dr. Francisco José Taddei Cembranelli, conhecido como um dos mais brilhantes promotores do júri, mas hesitei. Conhecer um processo utilizando um contato direto de um dos lados pode não ser confortável se você, ao final da leitura, tiver um convencimento diferente do daquele que lhe abriu as portas. Resolvi pedir a um amigo que fornecesse minhas referên­cias profissionais ao juiz do caso, que era a figura imparcial do processo. Marcamos. O dr. Maurício me recebeu muito gentilmente; um senhor quase tímido. Expliquei a ele sobre meu trabalho, minha pesquisa e pedi permissão para ler os autos. Como todos sabem, o processo de homicídio é público, mas as autoridades envolvidas devem ser respeitadas. O magistrado me autorizou a ler os volumes no cartório, sem copiá-los. Acho que nunca imaginou que eu fica­ria ali sentada pelas próximas duas ou três semanas, estudando incansavelmente cada folha. Já eram oito os volumes do Processo no. 274/08.

A cada página lida, mais intrigada eu ficava. Leio um inquérito ou processo como quem monta um quebra-cabeça, juntando as pe­ças, fazendo anotações, procurando bordas que combinam ou não, analisando cada comportamento das pessoas ou profissionais en­volvidos; examino a perícia até a exaustão. E nesse caso havia um agravante: os acusados negavam com veemência a autoria do crime. Apesar de todas as incongruências. Apesar de não se comportarem exatamente como inocentes, uma vez que desde o primeiro dia eram orientados por advogados. Apesar das contradições.

Depois de árduo trabalho, leitura concluída, me levantei, peguei o celular e liguei para minha amiga: "Pode me apresentar o promotor Cembranelli; se eu acompanhar esse caso, tem que ser pela Acusação!" Estava convencida por provas que só ganhariam notoriedade du­rante o julgamento. Mas já estavam ali desde o início.

 

                 Primeiro dia

22 de março de 2010. Quase dois anos após o assassinato de Isabella de Oliveira Nardoni, chega o dia do julgamento dos réus Alexandre Alves Nardoni e Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá.

No Fórum de Santana, diversas emissoras de rádio e televisão se posicionavam ao lado direito da pista da avenida Engenheiro Caetano Álvares, na zona norte de São Paulo. Uma equipe de apro­ximadamente trinta seguranças, entre policiais militares e guardas civis metropolitanos, se alternavam no controle dos manifestantes que tomavam quase toda a calçada. Uma equipe da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) cuidava para que o trânsito, já caótico nos dias normais, pudesse fluir com mais rapidez.

Do lado de fora do prédio havia uma multidão que disputava a todo custo uma senha para acompanhar o julgamento. Os jornalistas que improvisariam a cobertura "minuto a minuto" para mídias ele­trônicas acomodavam-se no canteiro, tentando conseguir uma sombra, já que a temperatura nesse horário já marcava mais de 30 graus.

Ansiedade era o sentimento dominante em toda a sociedade, que acompanhou o caso em seus detalhes desde o dia do crime até esse momento, quando finalmente teríamos seu desfecho.

O advogado de Defesa contratado pela família dos réus, dr. Ro­berto Podval, chega sob uma pequena manifestação de vaias, mas passa rápido pelos jornalistas e não dá nenhuma declaração à impren­sa. É incrível como a população confunde o papel do advogado e o ataca como se ele tivesse cometido o crime em questão. Será mesmo que a sociedade ficaria satisfeita com uma condenação sumária dos réus, que não teriam direito à defesa em um Tribunal do Júri? Gosta­ríamos de ter pessoas condenadas apenas pela opinião pública, sem nenhuma garantia legal, sem que o crime fosse avaliado com isenção de ânimos, pelas provas do processo? Seria um retrocesso gigantesco nos direitos de liberdade. Podval empurra um carrinho onde parece estar o processo do caso, que consta de mais de trinta volumes.

Logo após chega ao Tribunal Antônio e Cristiane Nardoni, o pai e a irmã do réu, andando a passos largos sob o som ensurdecedor de vaias, criando alvoroço do público na entrada do prédio, alguns manifestantes até proferindo palavrões para os dois.

Já dentro do Fórum, a sala de imprensa está lotada de jornalistas montando seus computadores e procurando tomadas elétricas, que são insuficientes. Em um balcão próximo à janela são servidos água e café, que naquele momento já está gelado. Na parede ao fundo da sala está pregada a lista com o revezamento dos jornalistas indicando o horário exato em que cada um vai entrar. Serão três turnos de vinte repórteres que se revezarão nas duas primeiras filas do plenário por uma hora. São 56 os veículos de comunicação ca­dastrados. A movimentação é intensa e a tensão é quase palpável.

As horas se arrastam angustiantes. Nem sempre um júri marcado acontece realmente. São comuns os adiamentos pelos motivos mais diversos e, nos dias anteriores, a grande questão é se aquele julgamento se daria na data marcada ou não.

Durante a espera, na sala do cartório, a expectativa era enorme. Tudo e todos estavam mobilizados para os próximos cinco dias de trabalho.

Daniela Sollberger Cembranelli, esposa do promotor, chega, aflita, com uma notícia inesperada para a qual pede absoluto sigilo. Seria possível o que ela relatava? Fiquei trêmula dos pés à cabeça. Que coragem se for mentira, que coragem se for verdade. Nada mais deveria me espantar, mas fiquei em choque! Um jurado do 1º Tribu­nal do Júri ligou para o promotor, dizendo que sabia que um dos jurados estava comprado. Como assim? Comprado pelo pai do réu para absolver. Conversaram por telefone e a polícia foi enviada para trazê-lo ao Ministério Público e confirmar a história diante do pro­motor. Depois esse indivíduo chegaria bêbado, acompanhado da esposa, envergonhadíssima, e a denúncia não se sustentaria. Mas assustou!

No início da tarde chega a notícia de que o júri começou. Sorteio dos jurados, juramento, recomendações. Ainda estamos fora do plenário, todos estão com os nervos aflorados. Observo as atividades de bastidores, pessoas que trabalharam nesse e em tantos casos anonimamente, agora responsáveis por todos os assuntos operacio­nais necessários para o desenrolar da história. A meu lado, no car­tório, o telefone toca pela enésima vez desde que estou ali. Era um homem que se identificava como o pai da ré, dizendo ter problemas com a senha. "O senhor pode vir falar pessoalmente?", pergunta a fun­cionária. Ele se diz impossibilitado porque "tem muitas coisas afazer", em um discurso sem sentido para alguém cujo destino da filha está para ser decidido. Não dá para saber se é ele ou não. Duas mulheres tentam pegar essa senha, dizendo que são da família da ré. Poderia ser golpe, todo cuidado é pouco, porque nenhum familiar dela che­gou até aquele momento. Sinistro.

Entrei no Plenário II do 1º Tribunal do Júri só após as dezesseis horas. A sala, mesmo acanhada em número de lugares, não perde a solenidade. Pouco mais de setenta sólidas poltronas estofadas de couro vermelho, além de algumas poucas extras, aguardam para acolher seus proprietários temporários. A minha é a de número dois, senha do Ministério Público. Entre o plenário e a platéia, uma por­tinha que não deve ser ultrapassada divide os principais personagens do público em geral. À frente, a enorme mesa de madeira escura e entalhada onde se sentará o magistrado, juiz dr. Maurício Fossen. À sua esquerda, o staff do Tribunal. À sua direita, o Ministério Público, que dará voz à vítima. A partir de minha posição, à esquerda, as sete cadeiras de espaldar alto, alinhadas em dois patamares e unidas em uma peça só, com mesa complementar, o lugar dos jurados; à minha direita, a bancada da defesa.

Estou dentro e estou emocionada. Chegou o dia, vamos lá.

Nesse momento, presente no plenário, apenas Roberto Podval, advogado de Defesa, que se aproxima de mim e conversamos. Ele achava que os réus já estavam condenados, mas daria dignidade aos trabalhos.

Pouco depois entra o promotor Francisco Cembranelli. Ele anda de um lado para o outro, com passos curtos e firmes. Vários flashes de memória se apoderam de mim. Lembrei-me de como o havia conhecido no corredor do Tribunal, por acaso, antes mesmo de sermos formalmente apresentados. Ele havia lido meu livro O quinto mandamento e fizera algumas considerações sobre o texto. Ali nasceria uma amizade profunda e duradoura. Temos uma afinidade improvável para quem nos conhece, mas indiscutível para aqueles que conosco convivem. Lembrei-me de nossas inúmeras conversas, de nossas teses, de nossos questionamentos e de nossas críticas um ao outro. Das reuniões e dos estudos, informações trocadas, apreen­sões comuns. Tudo passou como um filme diante de mim. Bem, estávamos ali. Começava o ato final.

Um mural estava encostado no plenário, esquecido, escrito com caneta hidrográfica, como todos os dias, por alguém de letra perfei­ta. Dessa vez estava escrito:

 

PROC. 274/08 Data 22/03/10

M.M. JUIZ: DR. MAURÍCIO FOSSEN

PROMOTOR: DR. FRANCISCO JOSÉ TADDEI CEMBRANELLI

ASSISTENTE DO M.P.: DRA. CRISTINA CHRISTO LEITE

DEFENSORES: DR. ROBERTO PODVAL

  1. MARCELO GASPAR GOMES RAFFAIN

DRA. ROSELLE ADRIANE SOGLIO

RÉUS: ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ

ALEXANDRE ALVES NARDONI

VÍTIMA: ISABELLA DE OLIVEIRA NARDONI

 

Entram em plenário os jurados, quatro mulheres e três homens. Cinco deles nunca participaram de um júri, o que deu início a várias teorias sobre um possível resultado. A primeira e a segunda filas de poltronas do plenário estavam reservadas para a imprensa, que entra em fila indiana e toma seus lugares.

Baptistão, ilustrador por profissão, estava à meu lado nessa hora. Fora jurado do l9 Tribunal por longos dezoito anos. Achava difícil um jurado condenar em sua primeira atuação, precisaria estar muito convencido. Segundo ele, sente-se o peso de ter um destino nas mãos. Eu contra-argumentei, dizendo que os jovens de hoje assistem a todas as séries de tevê sobre perícia e polícia, são bem-informados e estão familiarizados com um julgamento mais técnico. Outros se manifes­taram sobre os sexos, se era melhor ter mais homens para a Defesa ou mais mulheres para a Acusação. Na realidade, cada caso será um caso, com suas particularidades e características únicas.

Ouvimos então, em tom de voz elevado, a frase tão conhecida de todos que assistem a filmes de julgamentos: "Todos de pé!" Era o juiz Maurício Fossen, entrando para iniciar os trabalhos. Ele adver­tiu o público, pediu calma, disse que qualquer manifestação estava proibida, assim como as comunicações por twitter, gravador, rádio ou celular. Essa medida funcionaria muito bem operacionalmente, mas para os jornalistas, que participariam apenas de parte do julga­mento, por causa do rodízio de senhas, seria difícil ter uma visão completa do que aconteceria ali; ora a opinião da imprensa tenderia para um lado, ora para outro, mas nenhum veículo conseguiria evitar perder o fio da meada.

Em seguida o dr. Maurício informou os jurados, e por conseqüência o público, de que havia um relatório para cada um deles sobre a mesa e passou a dar a todos, então, um histórico do júri, a diferença entre crimes dolosos e culposos contra a vida, os quatro tipos de crime que vão a júri popular (aborto, homicídio, infanticídio e assistência ao suicídio), ou seja, tudo que é da competência do Tribunal do Júri.

O juiz também explicou todo o caminho da Justiça nesses tipos de crime, que reproduzo no Anexo 1.

Juiz para jurados: "Nós trabalhamos juntos. Eu sou a voz dos se­nhores aqui". Ele acabou de falar e eles passaram a ler o relatório.

Eu mal saí da sala. Ao assistir a um júri para escrever um livro, o medo de perder alguma coisa é enorme. Mais de uma hora depois eu estava no mesmo lugar, mas o primeiro turno da imprensa havia acabado, ou seja, quem saiu não viu nada acontecer.

Entram os réus, Alexandre Alves Nardoni e Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá. Ela estava vestida com calça preta e blusa branca, ele de camisa pólo azul e vermelha, jeans e uma novidade: óculos. Ambos sem algemas ficaram lado a lado atrás de uma colu­na. Entraram de maneira despercebida, quase sorrateira.

Os depoimentos iam começar. Logo no início dos trabalhos, depois de Cembranelli pedir para a mãe da vítima, Ana Carolina Cunha de Oliveira, ser ouvida primeiro e evitar assim desgaste maior, Roberto Podval levantou uma questão jurídica curiosa sobre a mãe da vítima ser testemunha. Segundo sua visão, ela é parte interessa­da na condenação, tanto que contratou uma advogada para assistir ao Ministério Público na Acusação. Está ali representada por Cris­tina Christo Leite, nomeada sua assistente, comprovando que não estava apenas interessada na Justiça, mas na versão dos fatos que acreditava ser verdade. Deveria então ser ouvida como "informan­te", que não presta compromisso, ou seja, não precisa ser imparcial nem isenta como uma testemunha deve ser. A Defesa também colo­ca em dúvida a legalidade do assistente técnico sentado à mesa da Promotoria, dr. João Baptista Optiz Júnior, que não deveria partici­par porque é medico e não advogado. O juiz logo esclarece que esse assistente técnico legalmente constituído pela família da vítima não participaria das reinquirições das testemunhas.

Os réus permanecem sentados, mãos apertadas entre os joelhos, juntos sem de fato estarem. Jatobá olha sorrateiramente para a pla­téia. Cruza seu olhar com o meu por duas vezes e volta a encarar o chão. Alexandre está alheio, olha para a frente, para o nada. Cada um tem a seu lado um policial militar. Jatobá está mais velha e mais gorda. Não é mais uma mocinha, agora é uma mulher. Nervosa, agora esfrega as mãos uma na outra. Assoa o nariz, mas não dá para saber se está chorando ou não. Usa o papel que traz nos bolsos.

Apesar de os réus não terem trocado nenhuma palavra ou olhar, sei que ficaram em celas frente a frente durante horas, aguardando o julgamento na carceragem do Tribunal.

Começa o depoimento de Ana Carolina Cunha de Oliveira, o primeiro.

Quando a mãe de Isabella entra para se sentar em frente ao juiz, Alexandre estica levemente o pescoço, como se fosse impossível conter a curiosidade. Jatobá tem um ricto na boca.

Ana Carolina Oliveira veste camisa branca e calça jeans. Ela evita olhar para os réus. Parece estar muito cansada e abatida.

Sentada de costas para a platéia e de certa forma também para os réus, ouve o juiz ler a denúncia. Jatobá chora, cruza os braços sobre o peito, cruza as pernas, enxuga as lágrimas. Alexandre segue impassível.

Ana Carolina Oliveira responde às perguntas do juiz, que é o primeiro a inquiri-la. Diz que é a mãe da vítima e tinha sua guarda, com o pai tendo direito de ficar com a filha em fins de semana alter­nados, que era o caso no fatídico fim de semana. Conta que Anna Jatobá ligou para ela gritando, dizendo: "Ela foi jogada!", sem expli­car o que estava acontecendo. A mãe da menina não entendeu, chegou a pensar que Isabella havia caído na piscina, pediu para alguém fazer respiração boca a boca. Jatobá gritava muito, e Ana resolveu ir com amigos até lá. Ao chegar, Jatobá estava na calçada. Ana subiu a escada do prédio e vislumbrou sua filha na grama.

Nessa altura do depoimento, a mãe da vítima desata a chorar compulsivamente. Para as testemunhas é um momento difícil: re­lembrar e reviver sua maior tragédia. Ela chora tanto que lhe é es­tendido um copo d'água e lenços de papel.

Emocionada, entre soluços, conta que se ajoelhou ao lado da filha, no chão, colocou a mão sobre o coração dela, que batia muito rápido. O pai da menina estava ao lado e só gritava que alguém entrara no prédio. Em estado de desespero, Ana Carolina ligou de seu celular para o socorro, que demorava a chegar, e foi informada de que o resgate já estava a caminho. Nesse momento, reparou que o menino Pietro, filho de Jatobá e Alexandre, estava ali, solto, a seu lado. Leonardo, tio da vítima, pegou a criança no colo, ciente de que aquela era uma situação da qual ele não deveria participar. Alexan­dre continuava gritando algo sobre ter entrado ladrão, Jatobá continuava aos berros, irritando Ana Carolina ao limite. A mãe via a vida se esvaindo do corpo da filha, o coração batendo cada vez mais devagar. Começou um bate-boca entre as duas, mãe e madrasta. "Ela não parava de gritar, falei para ela ficar quieta, pedi para ela calar a boca, que eu não estava aguentando mais ela gritar. Aí ela mandou eu calar a boca também, me xingou e disse que aquela situação só estava acontecendo por causa da minha filha, que aquilo era por causa dela".

A mãe da vítima chora muito, mas, entre soluços e lágrimas, explica que entrou junto na ambulância, desesperada pelo fato de o coração da filha, que no começo batia muito rápido, diminuir de ritmo de forma inexorável. Ana Oliveira fazia as mesmas perguntas repetidamente, mas ninguém da equipe de regaste tinha respostas para ela. Ao chegar ao hospital, a menina foi rapidamente retirada, mas os amigos impediram que ela fosse atrás; ela esperaria ali. Não demorou para que a médica saísse com a desesperadora notícia de que Isabella não conseguira vencer a última batalha.

O juiz pergunta se Ana Carolina Oliveira chegou a conversar com Alexandre e Jatobá depois da morte de Isabella. Ela responde que não, que nunca conversaram, que nunca lhe foi explicado o que aconteceu. Ali no hospital estavam presentes ela, sua mãe, Alexandre e o pai dele. "Ali ele não me falou nada. Aí eu saí de lá, porque eu não conseguia ficar em pé, aí eu fiquei num canto assim do hospital, isso lá fora, no chão, porque eu fiquei muito desesperada com aquela situação, eu não conseguia, eu não conseguia pensar naquela situação, eu estava com a minha filha morta..." A depoente volta a chorar copiosamente duran­te seu relato, e sua descrição é tão viva que chego a vê-la naquele canto agachada, encolhida de dor. Explica que viu o ex-marido per­to do caixão da filha, mas nunca mais manteve contato com ele.

Cembranelli se levanta. Chegou a vez de o Ministério Público inquirir a testemunha. Ele pede que ela conte como foi seu relacio­namento com Alexandre, e ela dá toda a cronologia. Conheceram-se em 1999, freqüentavam um a casa do outro, até que, depois de um ano e dois meses de relacionamento, terminaram. Dois meses depois reataram, ela engravidou, Isabella nasceu. Quando a filha estava com onze meses, em março de 2003, romperam em definitivo.

O juiz interrompe, pedindo que Ana Carolina fale mais pausadamente. O promotor prossegue, perguntando se ela suspeitou de traição, e ela conta que certa noite Alexandre ligou da faculdade dizendo que não iria para a casa dela. Era uma sexta-feira. Ela, des­confiada, esperou-o no carro, na porta da casa dele, e o viu chegan­do de madrugada. No outro dia terminaram.

Cembranelli então pede que Ana relate um episódio acontecido em uma festa de família, quando Alexandre teria brigado com um dos parentes dela. Ela descreve um homem irritadiço, orgulhoso, que diante de uma brincadeira do marido de uma prima teve reação desproporcional, assustando inclusive o bebê, que estava em seus braços, fazendo-o chorar. "Aí chegou uma hora que a Isabella começou a chorar, ele gritava demais, ela chorava de desespero, aí ela começou a chorar e eu falei para ele: Vamos embora!"

Outra situação que demonstrava a agressividade e impulsividade de Alexandre também foi perguntada a Ana, começando aí a demonstração para os jurados de que poderíamos estar lidando com um lobo em pele de cordeiro: apesar da aparência calma, Alexandre tinha um histórico de rompantes, próprios dos meninos mimados que não lidam bem com nenhuma frustração. Dessa vez a testemu­nha contou uma briga entre sua mãe, Rosa, com o réu, sobre colocar ou não Isabella na escola. Alexandre, na porta da casa dos Oliveira, gritava para Rosa: "Sai que o meu assunto é com você, é com você que eu tenho que resolver". Rosa chegou, Ana Carolina já estava lá fora e, segundo ela "era um empurra-empurra". O pai de Alexandre, Antônio, também foi chamado para acalmá-lo, já que era uma das únicas pessoas que conseguiam segurar o filho. A situação teria chegado a tal ponto que Alexandre ameaçou Rosa de morte. Foi feito um bo­letim de ocorrência, de ameaça.

Enquanto ela conta essa história, Alexandre, do banco dos réus, fica ali, balançando negativamente a cabeça.

O relato seguinte da testemunha para o promotor foi sobre o triângulo formado por Alexandre, Anna Jatobá e Ana Carolina. Em certo feriado, o casal Nardoni passou na casa de Ana Carolina para pegar Isabella, rumo a férias no Guarujá. Alexandre explicou que Jatobá queria falar com ela. A conversa, praticamente um interroga­tório, foi sobre o relacionamento do marido com a ex-mulher, sobre uma relação que, segundo a testemunha, nem existia. Com muito ciúme, Jatobá gritava sem controle. Ana respondia que a moça devia seguir a vida dela sem se preocupar, que ela não queria Alexandre. Jatobá estava tão descontrolada que, segundo Ana Carolina Olivei­ra, Alexandre a segurava pelo cós da calça, para que o bate-boca não acabasse em agressão. Ela queria saber como era o relacionamento dos dois, o que conversavam, como era sua vida. Ana Carolina, reagindo, teria respondido por duas ou três vezes: "Não estou com ele porque não quero, se quisesse não seria você que impediria". Quando todos se acalmaram, Jatobá teria pedido desculpas por seu compor­tamento e seguiram viagem com Isabella. Depois de algum tempo, foi a vez de a ex-sogra ligar do Guarujá para Ana Carolina, xingando-a sem parar. Ao fundo, podia-se ouvir também os desaforos de sua ex-cunhada. Alegavam que ela havia falado mal das duas para Jatobá: "Me deu desespero porque elas me xingando daquele jeito e minha filha presenciando..."

Quando a mãe foi buscar a filha, só conseguiu subir ao apartamento depois de ligar para a polícia, que não precisou intervir. Na opinião dela, Alexandre viu e ouviu toda a intriga ser construída, fofocas, brigas, e jamais se posicionou ou esclareceu a verdade. Sempre que dona Cida, mãe de Alexandre, e a amiga dona Rosa, mãe de Ana Carolina, se falavam pelo telefone, comentavam sobre Jatobá ser muito ciumenta e que inclusive implicava com o fato de ter o mesmo nome da ex-mulher de Alexandre. Um dos episódios que teria contado foi que certa vez, em um fim de semana em que Isabella estava com o pai, Ana Carolina teria telefonado para Ale­xandre, e Jatobá teria ficado extremamente irritada, agredindo o marido depois de ter jogado o filho Pietro na cama. O menino as­sustou-se e Isabella também, que pegou o garoto no colo para pro­tegê-lo e proteger a si mesma. Para "sossegar" Jatobá, Alexandre teria lhe dado um murro na boca do estômago, e os pais Nardoni foram chamados para controlar a situação. Quando Ana perguntou a Isabella se isso era verdade, a menina contou que pegou Pietro no colo porque Jatobá estava brigando com o pai dela.

Na bancada da Defesa, Podval escreve rapidamente em sua cópia do processo e a dra. Roselle acompanha o interesse dos jurados, olhando algumas vezes de soslaio para a assistente da Acusação.

Demonstrado o perfil de comportamento dos dois réus na visão da mãe da vítima, Cembranelli passa a perguntar sobre a questão da pensão alimentícia de Isabella. Quer que Ana explique por que entrou com uma ação na Justiça contra Alexandre Nardoni. Ela passa a contar que o esquema de pensão entre eles era informal, que ele dava aquilo que achava imprescindível, mas a menina tinha al­gumas necessidades que só estavam cobertas financeiramente por ela. Quando pressionado, Alexandre dizia não ter dinheiro para pagar. No primeiro acordo que fizeram, o avô de Isabella, sr. Antô­nio, ficou responsável por pagar mensalmente a quantia de R$ 315,00 ou R$ 325,00 reais, ela não estava certa. A quantia era referente a um seguro-saúde e pensão. Quando Ana arrumou um emprego que incluía o seguro-saúde da filha, a pensão diminuiu para um valor aproximado de R$ 140,00. Depois de muita briga, Alexandre passou a arcar com R$ 200,00 das despesas da filha. Mesmo assim, segundo a testemunha, atrasava e não atendia ao telefone. De acordo com seu relato, quando saíram da audiência que estabeleceu o valor da pensão, Alexandre saiu rindo, dizendo que ela não havia consegui­do a quantia de dinheiro que ele considerava ser para ela. Tinham estacionado os carros no mesmo estabelecimento e não foi sem re­volta que o viu ir embora em um Audi A4.

Outra questão importante levantada nesse depoimento foi a eventual agressividade de Pietro em relação a Isabella. Quando ele a beliscava ou mordia, o pai a mandava revidar, o que era diferente dos conselhos da mãe, que não concordava com essa forma de edu­car. Em uma das vezes em que o menino machucou a irmã, Alexan­dre, muito irritado, teria soltado o menino no chão de certa altura. O episódio foi contado por dona Cida para dona Rosa.

Nas perguntas subseqüentes, ficará estabelecido o retrato de Alexandre como pai após a separação, na visão de Ana Carolina Oliveira: ausente e desinformado, nada participativo. A única vez em que Isabella foi internada, Ana Carolina não conseguiu falar com ele pelo telefone. Jatobá teria atendido e dito que o avisaria da doen­ça da filha, mas isso não aconteceu e ele nunca apareceu nem retor­nou o chamado.

Dona Cida conversava bastante com a amiga Rosa sobre o ciúme da nora. Contou sobre uma briga de casal em que Jatobá teria esmurrado os vidros da lavanderia e se cortado, furiosa porque o marido não lhe respondia. A sogra temia tanto as reações da nora que pedia para a filha, Cristiane, dormir na casa do casal nos fins de semana em que Isabella estava lá, de forma que a menina não ficas­se sozinha com a madrasta.

Para finalizar, Cembranelli disse que, por ocasião do interrogatório dos acusados, eles disseram que Isabella queria morar com eles, e Ana Carolina Oliveira passou a narrar sua relação com a filha: "Ela tinha uma relação maravilhosa na minha casa, nunca teve problema nenhum, ela nunca... Ela sempre teve muito amor na minha casa, muita educação. Ela nunca demonstrou querer alguma coisa ou ficar com ele ou estar com ele além do período em que ela ia de quinze em quinze dias. Nós éramos bastante amigas, bastante companheiras, nós dormíamos juntas no mesmo quarto, muitas vezes ela queria dormir comigo na mesma cama". Ana Carolina se emociona ao se lembrar de como era ter a filha perto dela, e começa novamente a chorar. Conta as viagens das duas, sobre como faziam confidências e da pequena grande com­panheira que perdeu.

O promotor encerra sua inquirição e é passada a palavra para a dra. Cristina Christo Leite, assistente da Acusação. Ela vai se apro­fundar em alguns pontos já abordados e outros ainda não revelados para os jurados, mas expressos em depoimentos anteriores ao jul­gamento. A intenção continua sendo de que todos percebam o per­fil de Alexandre descrito pela testemunha, além da dinâmica das famílias Nardoni e Oliveira e entre ambas.

A dra. Cristina começa perguntando sobre o relacionamento de Alexandre com a família Oliveira durante os anos em que mantive­ram ligação. Ana Carolina responde que era normal e, como qualquer casal de namorados, ele dormia na casa dela nos fins de semana, era sempre bem recebido e se dava bem com todos os seus familiares. Explica que Isabella foi uma criança muito bem-vinda, tanto pelo casal quanto por suas famílias.

A dra. Cristina pede para a testemunha detalhar como se deu o processo de separação. Ana conta que a decisão foi unicamente dela e não de comum acordo, porque não superou o fato de ele en­ganá-la naquela sexta-feira, um mês antes de a filha completar um ano de idade. Alexandre a teria procurado várias vezes, querendo ficar com ela; certa vez, em viagem juntos ao Guarujá, para visitar a filha, ele tentou mais uma vez reatar, mas ela não queria mais. Alexandre dizia ainda gostar dela.

O juiz sempre interfere quando Cristina diz "acha", e pede para que ela seja mais direta, se a testemunha "ia", "fazia". Ela prossegue, perguntando sobre o relacionamento entre Alexandre e a filha. Ana Carolina explica que, quando a menina começou a freqüentar a es­cola, ele se afastou bastante e ficou um tempo sem vê-la, mas a fa­mília Nardoni não queria que isso acontecesse e a procurou. Sobre ser verdade que ela cerceava as visitas, ela explica que não, apenas não deixava que Isabella pernoitasse fora, em razão de ser um bebê ainda. Declarou que jamais impediria o convívio com o pai e os familiares, porque achava isso muito importante para a filha. Nunca existiu regulamentação de visitas, e a menina era muito bem tratada. Isabella era a primeira neta, parecia ter lugar especial na família Nardoni, todos eram muito atenciosos. Havia o comentário de que era exatamente por isso que Jatobá tinha muito ciúme dela, pois dona Cida fazia diferença no tratamento entre os netos, dando sem­pre preferência à menina.

A pergunta seguinte foi sobre os telefonemas entre Ana Carolina e Alexandre. Ela respondeu que sempre que ligava era Jatobá quem atendia e repassava a ligação para dona Cida ou para o sr. Antônio, nunca para o pai de Isabella. Ela até achava que Alexandre não estava em casa, mas a filha dizia que estava. Depois de um tempo, passou a tratar de tudo com Jatobá, para facilitar as coisas.

Outro episódio contado aos jurados foi sobre a última Páscoa. Alexandre e Jatobá estiveram em sua casa e Isabella foi até o carro falar com eles. Voltou triste do encontro, com dois brinquedos da­queles que vêm dentro do ovo nas mãos, mas sem o chocolate, que o pai teria levado embora. Segundo Ana Carolina, ele não queria que Isabella dividisse o ovo de Páscoa com seus sobrinhos ou com alguém da família Oliveira e levou-o embora.

A dra. Cristina pede então que Ana Carolina esclareça como era o relacionamento dela com Jatobá pela internet. "Ela questiona­va como era meu relacionamento com ele, falava muito da família dele, que não gostavam de mim." Ana explica que, quando entrou na Justiça com a ação de alimentos, Jatobá a questionava e parecia querer investigar coisas.

Perguntada se em algum momento Alexandre comentou diretamente com ela sobre o ciúme que Jatobá sentia em relação aos dois, ela contou que, em outra vez que foram juntos ver a filha no Gua­rujá, Alexandre lhe confessou: "Ela (Jatobá) nem pode sonhar que a gente está descendo, porque senão ela vai ficar brava, irritada, vai brigar comigo!"

Imediatamente Alexandre se agitou no banco dos réus e fez sinal para que seu advogado, dr. Marcelo Gaspar Gomes Raffain, fosse até ele. Cochicharam de forma rápida. Não pude deixar de pensar que Jatobá estava sabendo apenas naquele momento sobre esse encontro de Ana Carolina e Alexandre.

O depoimento continuou, agora com a testemunha contando que era freqüente o comentário de dona Cida com sua mãe sobre o fato de a nova nora disputar a atenção de Alexandre com Isabella. Os diálogos pelo telefone eram sempre "a três vozes", ou seja, Ana Carolina falava para Jatobá, que transmitia a Alexandre, que respon­dia para Jatobá, que retransmitia para Ana Carolina. Dessa forma, muitas vezes brigavam durante os telefonemas, pois era muito di­fícil combinar algo sem gerar mais uma briga. A testemunha relata uma delas, acontecida havia pouco tempo, cheia de mal-entendidos sobre quem iria buscar a filha na escola em certa sexta-feira. Alexan­dre, irritado, acabou dizendo a Jatobá, que retransmitiu o recado a Ana Carolina, que iria resolver as coisas de outra maneira. Ana teria respondido: "De que jeito ele vai resolver, ele vai me matar?" Jamais imaginou o desfecho final.

A dra. Cristina levanta então uma questão nunca abordada antes. O que Ana Carolina achava da proximidade das datas de nascimento do filho de Jatobá e de Isabella? Achava que era apenas uma coincidência? Isabella nasceu em 18 de abril; Cauã, no dia 17 do mesmo mês, com cinco anos de diferença entre eles. O juiz inde­feriu a pergunta: "Vamos aos fatos, doutora. Se é coincidência ou não, isso é uma opinião subjetiva".

A assistente passa então a perguntar sobre uma ex-namorada de Alexandre, Patrícia. Ana Carolina disse que foi procurada pela moça quando começou a namorar Alexandre; ela alegava ter um filho dele. Ao ser perguntado, o namorado confirmou e disse que chegou a registrar a criança, mas um teste de DNA comprovou que de fato não era seu filho. Ana explicou que a viu em uma festa, mas nunca houve nenhuma "situação" entre as duas, muito menos de briga.

O depoimento continuou, agora sobre brigas entre a ex-sogra e Anna Carolina Jatobá, em um episódio no qual se discutiu a pre­ferência de dona Cida por Isabella e a diferença de tratamento para com Pietro. Cristiane teria interferido, pois a cunhada estava muito alterada, e as duas teriam trocado tapas. Depois disso, Jatobá ficou algum tempo sem freqüentar a casa da sogra.

Ana Carolina também contou que era um outro Alexandre aquele que ia sozinho a sua casa levar ou buscar Isabella. Nessas vezes, chegava a entrar na casa da família Oliveira, sentava-se no sofá, conversava com todos. Quando ia acompanhado da esposa, o quadro se alterava. Nunca entrava ou conversava, apenas pega­va a menina e sua bagagem. E faz uma ressalva em relação à famí­lia Nardoni: eles sempre fizeram questão de se relacionar com a neta e interferiram bastante para que o filho mantivesse contato com a menina.

Mais uma informação dada por Ana Carolina nos faria pensar: quando perguntada se Isabella tinha medo de ficar sozinha, ela respondeu: "Ela não tinha medo de ficar sozinha até porque ela nunca ficou sozinha!" Explica que a filha tinha sono pesado, demorava um pouco para acordar e se situar. Ia para o quarto da avó e se deitava mais uma vez, demorando um tempo para sair da preguiça e ficar ativa.

Já passava das nove da noite. Meus dedos quase caíam de tanto escrever, e o depoimento estava se alongando, com informações que, eu sabia, seriam usadas nos debates, mas o cansaço se instala­va em todos. Tratava-se de um relato de dados; o momento emocio­nal havia passado.

Quando achei que nada mais de especial iria acontecer, a dra. Cristina entrou por um caminho que novamente traria lágrimas aos olhos de todos. Ana Carolina começou a contar que nunca conseguiu obter de volta a mochilinha da filha, que continha vários objetos de uso pessoal, que tinham significado particular para ela. Chegou a pedir para os advogados, mas nunca obteve êxito. Também disse que havia tentado, sim, ligar para Isabella no sábado, mas que o telefone de Jatobá caía sempre na caixa postal. Que, já no hospital, sua mãe questionou muito Alexandre sobre o que havia acontecido, mas ele só respondia que a porta de seu apartamento estava arrom­bada e que entraram ali. Ele não tinha resposta.

Ana Carolina passa a contar o grande sonho de sua filha, que era aprender a ler e a escrever. Chora ao contar que a menina estava sendo alfabetizada e que já sabia todas as letras: "Ela sabia soletrar e então a gente, quando ela queria escrever alguma cartinha, alguma coisa para alguém, ela me pedia ajuda, então eu ia soletrando e ela escrevendo... Ela dizia que quando ela aprendesse a escrever, que ela..." (Ana chora muito, soluça sem parar) "...ela escreveria uma carta para mim... a úni­ca coisa que ela sabia era o nome dela. Era uma coisa que ela queria muito... eu ia soletrando, ela queria que eu lesse para ela toda noite... o maior sonho dela era aprender a ler". A mãe estava inconsolável; todos esperamos que se acalmasse, mas a história prosseguiu sofrida: "Eu já tinha uma festa organizada de aniversário de seis anos. Eu tinha combinado com ela um local que tinha um brinquedo..." (chora) "...fui lá com ela, já havia pago..." (chora) "...demorei um tempo depois que aconteceu para desfazer tudo que ela queria e que não ia mais acontecer!"

A Assistência da Acusação encerra. O juiz pergunta aos jurados se eles agüentam ainda a inquirição da Defesa. Todos fazem um meneio afirmativo com a cabeça.

 

21h15 — A Defesa tem a palavra. Em muitos júris, os advogados preferem não perguntar nada à mãe da vítima, apenas apresentam sua solidariedade pela perda e dispensam a testemunha, que não está prestando compromisso, ou seja, não será acusada de falso testemunho porque não jura, não tem a obrigação de dizer a verda­de. Aqui, Podval optou por inquirir Ana Carolina Oliveira sobre alguns pontos do depoimento dela para a Acusação, mas ela estava visivelmente desconfortável e irritada por ser inquirida pela Defesa dos réus. Além do óbvio cansaço, a testemunha estava na defensiva, como se não quisesse dizer nada que pudesse ser mal interpretado, como se já houvesse dito tudo o que interessava.

Podval começa perguntando como era o dia dos Pais para Isabella. Ana Carolina responde que nunca houve festa desse tipo na escola, mas sim os presentes feitos pelas crianças para seus pais. Como ela sempre acreditou em passar bons valores e conceitos para a filha, todos os anos comprava o material necessário para que ela fizesse um presente para dar a Alexandre, porque era importante que a menina aprendesse a valorizá-lo. Ele pergunta se não houve uma comemoração quando Isabella mudou de faixa no judô e se Alexandre compareceu. Ela confirma.

O advogado muda de assunto. Pergunta quanto tempo demorou para chegar o resgate e socorrer Isabella no dia dos fatos. Ana Carolina responde que não saberia precisar, mas achava ter demo­rado entre quinze e vinte minutos. Perguntada se a filha foi entuba­da, responde que se afastou quando eles chegaram e não se lembra de ter entrado e saído da ambulância.

Podval pergunta se Isabella alguma vez ficou doente nas férias com a família Nardoni. A testemunha responde que nunca ficou sabendo, apenas uma vez houve discussão sobre a marca de um remédio que teriam que dar para a filha, diferente daquele que ela costumava usar em casa, e que ela pediu que fosse comprado.

A Defesa volta-se então para o dia de Páscoa, indagando em que horário Alexandre e Jatobá teriam passado na casa dela para ver Isabella. Ela responde: "Á noite, o horário não sei, já foi tarde".

Podval muda mais uma vez de assunto, agora perguntando, de maneira mais irônica, se ela sabe que Alexandre não sabia o nome da professora de Isabella ou se presumia. A resposta dela é seca e cortante: ele nunca foi ao colégio. Ele insiste: "A senhora sabe que ele não sabe ou a senhora presume?" Ana Carolina faz todo um raciocínio lógico para explicar por que presume. Para ela, é algo óbvio, mas tecnicamente está presumindo.

O advogado passa agora a perguntar a respeito das festas de aniversário da vítima. Sobre a primeira, que teria sido dada pela família Nardoni, Ana Carolina responde que estava com conjuntivite e não foi convidada. Perguntada, conta novamente sobre o nascimento de Isabella, quando estavam todos juntos na materni­dade: "A família inteira estava feliz".

Outro assunto é abordado. Ana Carolina é inquirida sobre o nome do primo com o qual Alexandre teria se desentendido (no episódio relatado para o promotor). "Glécio", responde, explicando novamente que ninguém riu de Alexandre, ele é que entendeu mal, saiu e voltou.

As perguntas da Defesa iam e voltavam de um assunto para outro. Não dava para entender a lógica da inquirição, teríamos de aguardar para saber como tudo aquilo seria utilizado. Podval per­gunta: "A senhora é ciumenta?". Ela responde de forma curta e seca: "Não".

Podval a faz relembrar que no episódio de sua separação ela contou que tinha ficado no carro de madrugada, na porta da casa dele, para espioná-lo. Ela esclarece que permaneceu lá por meia hora, entre 3h30m e 4h00, com o carro parado um pouco distante. Que só esperou por meia hora, vinte minutos.

A pergunta agora é sobre se Isabella voltava chorando da casa do pai para a casa da mãe. Ana Carolina explica que às vezes cho­rava, mas não era por não querer estar com a mãe, e sim porque queria ficar em uma festa ou continuar brincando com os irmãos, como qualquer criança.

Podval pede que a testemunha confirme que Alexandre Nardoni nunca foi agressivo com ela. Ela confirma. Pergunta como era o relacionamento dele com a família dela. Ela responde que, no início, a mãe ficou apreensiva, mas com o tempo se acostumou e aceitou, tratando-o sempre muito bem.

Agora a Defesa volta para o fato relatado sobre a grande briga entre Alexandre e dona Rosa, avó de Isabella, quando esta foi ma­triculada na escola. Por que não aceitaram quando a também avó da menina, dona Cida, se ofereceu para cuidar dela enquanto as Oliveira trabalhavam? Não precisariam colocá-la tão cedo na escola. Ana Carolina dá sua versão, dizendo que a filha era bastante ma­nhosa e acreditava que se relacionar com outras crianças na escola lhe faria bem. Realmente Cida havia se oferecido para ficar com Isabella, mas Oliveira não aceitou a oferta, agradecendo e explican­do a importância que acreditava ter colocar a filha na escola.

Podval começa a entrar em um assunto bem mais delicado: a sugestão de que, talvez, Ana Carolina tivesse tido a intenção de fazer um aborto ao descobrir que estava grávida de Isabella. Levan­ta a suspeita quando pergunta se era uma gravidez desejada. Ana Carolina explica que ela era muito nova e ficou com medo, não dos pais, mas de toda a situação. Só contou para a mãe quando já con­tava com três meses de gravidez; houve desespero por sua pouca idade, mas nunca a desestimularam de ser mãe.

Podval insiste: "Alexandre a ajudou a aceitar Isabella?" "Não", responde secamente Ana Carolina. Mas houve um acontecimento logo depois que soube da gravidez, sobre um remédio... Ana o in­terrompe, dizendo que não foi comprar remédio nenhum, estava desesperada e apenas foi conversar com um amigo. Termina a frase em tom cortante: "Ele (Alexandre) nunca foi contra o filho, se é isso que você quer saber!"

Depois de trocar com a mãe da vítima algumas informações sobre o que Isabella tinha na casa do pai, se gostava de ir lá, sobre o quarto dela, Podval pergunta se Jatobá foi convidada quando Ana Carolina fez a festa de aniversário da filha. Novamente, em tom irritado, dá a resposta: "Não convidei, eu não tinha relação com ela a ponto de convidá-la".

Podval então pergunta, como que afirmando, que Isabella, naquela sexta-feira, pediu para estar com Jatobá, tentando mostrar ao jurado que a menina gostava da madrasta e pedia para ficar em sua companhia. Ana Carolina de prontidão responde que a filha expressou vontade de ir à casa do pai, nunca especificou que queria ficar com um ou com outro. Mas confirma que a menina nunca re­clamou de Anna Carolina Jatobá. Deixa claro que não era só corações que a filha desenhava no vidro do boxe, durante o banho; desenhava várias coisas, gostava de fazê-lo em geral.

Durante essa parte do depoimento, Jatobá acompanha tudo atentamente, sem conter as lágrimas.

Podval diz a Ana Carolina se ela não acha que, na verdade, não era Jatobá necessariamente que não deixava que ela falasse com Alexandre pelo telefone. Se ela já havia pensado que o próprio Ale­xandre talvez não quisesse falar com ela. Ela diz com simplicidade:

"Se era isso, eu não sabia". Mais uma vez usa a lógica, dizendo que Alexandre era uma pessoa quando estava sozinho, e outra acompa­nhado da esposa, que era quem descia do carro para entregar Isabella, tirava a mala do carro e ia embora sem se deter muito.

Antes das dez da noite, a Defesa encerra a inquirição. Quando Ana Carolina vai ser dispensada pelo juiz, Podval se levanta e pede que ela fique disponível para a Justiça a fim de uma possível acarea­ção. A platéia fica emudecida. Olhares de espanto; aquilo ninguém previra. Será possível que a mãe da vítima vai ser impedida de as­sistir ao julgamento? Cembranelli rapidamente intervém, explican­do que Ana Carolina está sob tratamento e acompanhamento psico­lógico, que seria desumano "prendê-la". O juiz também interfere, perguntando a Podval se ele tem certeza de que quer isso mesmo. Podval responde que abre mão de ela ficar no Fórum, pode ir para casa, desde que mantenha a incomunicabilidade. O juiz, meio irô­nico, responde que o advogado sabe muito bem os ritos do júri e está propondo o impossível: ou ele requer a disponibilidade da testemunha ou abre mão dela, o meio-termo não existe. Mas alerta que ela está muito fragilizada psicologicamente, se Podval de fato acha necessário esse procedimento.

Podval, irritado, revela que a moça não pode estar tão mal, porque já marcou uma entrevista coletiva com os jornalistas ao final dos trabalhos do dia. O juiz, indignado, pergunta: "É esse então o motivo? O senhor não quer que ela dê entrevistas?"

O advogado nega ser esse o motivo, repete que a libera do Fórum, mas a quer disponível judicialmente. O juiz, meneando a ca­beça, repete que ele sabe que isso não é possível, e pergunta: "O senhor vai insistir nisso?" Podval responde: "Sim, vou insistir".

Ana Carolina sai do plenário arrasada, arrastando os pés e derramando lágrimas sem fim. Não vai assistir quando a justiça for feita. A Defesa contratada pelos réus não correu o risco de ela ficar na primeira fileira do Tribunal, chorando sua perda e emocionando os jurados. Mas talvez o preço a pagar tenha sido muito alto. Todos naquele plenário se condoeram de Ana Carolina, por sua fragilida­de, por sua dor sem fim, por seus olhos perdidos pedindo socorro ao entender que estava excluída do desfecho do caso.

 

                       Segundo dia

O dia 23 de março amanheceu sob um sol intenso. Ao sintonizar o rádio do carro durante o trânsito, era possível ouvir as notícias sobre o segundo dia de julgamento, e a questão discutida era a mes­ma: por que o juiz havia permitido que a mãe de Isabella ficasse incomunicável e isolada para a Defesa, impossibilitando que ela assistisse ao júri? Juristas de plantão falavam sobre a importância de uma acareação, mas questionavam se esta teria sido uma boa decisão para a estratégia da Defesa. Ao deixar o Fórum na noite anterior, o advogado Roberto Podval disse que havia sido chamado de cruel, mas quem tinha arrolado a testemunha fora a Acusação, verdadeira responsável por aquela situação. Informou ainda que passaria a noite em reunião com seus assistentes, debatendo a tática para o dia seguinte, já que outras testemunhas iriam depor.

O sr. Antônio Nardoni e sua filha Cristiane chegam ao 3º andar do Fórum faltando alguns minutos para as nove horas; o pai usava um terno impecável e ela, roupas claras, sempre apertando uma bolsa grande junto ao corpo. Ele chegou com duas sacolas que pa­reciam ser de roupas e aguardaram em um cercado de grades ama­relas, colocado antes da entrada do plenário, de forma que obrigava todos a se identificarem por meio de senha para ultrapassá-lo. Essa apresentação era conferida por, no mínimo, dois seguranças.

Um segurança explica a um grupo reunido ali que é terminantemente proibido fazer qualquer tipo de imagem, mesmo daquele local. Não seria permitido que ninguém tirasse fotografias.

Vários funcionários que trabalham naquele andar começaram a chegar, observando a intensa movimentação no corredor. Em um dos bancos de espera, as criadoras do blog "Caso Isabella Oliveira Nardoni" pedem autorização para permanecer ali com seus compu­tadores, já que são sete pessoas dividindo apenas uma senha.

Rosângela Sanches, assessora de imprensa do Tribunal, voltou a falar com os jornalistas e informou que a saída deles só seria per­mitida em conjunto, evitando assim o privilégio da notícia em primeira mão. Na sala de imprensa o clima é de agitação. Os jorna­listas circulam pela entrada entre o 2º e 3º andares, com o intuito de se encontrar com alguém que dê algum furo jornalístico. Do lado de fora, estabeleceram sinais de comunicação para quem estava dentro passar informações. Os canais noticiavam cada instante daquele dia.

Diversas pessoas procuram em salas próximas o número de seus processos que estão anexados à porta, detalhando o horário exato de suas audiências. Um rapaz diz que a sessão dele seria so­mente às 13h, mas preferiu chegar bem antes para tentar "descolar" uma senha.

Ao passar pelas grades, dois seguranças ficam ao lado de uma mesa e solicitam que todos permaneçam com a senha na mão. Logo após, seguimos por um corredor onde há um banco de espera à esquerda. Chegando até o entroncamento do corredor há um detector de metais monitorado também por um segurança. Mais adiante, passamos por duas portas da Promotoria logo à direita, até chegar­mos a outra mesa onde um funcionário iria conferir e recolher as senhas de permanência na sala do julgamento. Seguindo pelo cor­redor, ao ultrapassar a porta do plenário, foram colocadas outras duas grades, sendo proibida a passagem, já que os aposentos se­guintes eram destinados às testemunhas e aos jurados, que tinham de permanecer incomunicáveis.

9h55m — Abrem-se as portas do plenário. Entrei com Podval e a família Oliveira, Rosa e José, avós de Isabella, Leonardo e Felipe, os tios da menina. Fiquei ali sentada, refletindo. Nenhum argumen­to jurídico me convence sobre a questão de Ana Carolina estar apar­tada do julgamento dos acusados pela morte de sua filha. A vida real não é técnica, é mais do que isso. Chorar na primeira fila era seu direito e ele não deve ser contraposto a nosso direito de ouvi-la no júri. Fica assim: a acusação, ao arrolá-la, sabia do risco de isso acon­tecer. Mas, se não arrolasse, como saberíamos tudo o que ela contou ali? Sim, porque ela não é apenas a mãe da vítima, ela conhecia pro­fundamente os réus e suas famílias, sua dinâmica de funcionamento, suas brigas e desavenças. Ela pôde descrever um quadro completo de coisas que jamais saberíamos, ainda que em sua visão subjetiva, para que construíssemos a convicção da possibilidade de uma tra­gédia assim acontecer naquele meio. Não menor que esta, a conside­ração de que a mãe de Isabella estava no local do crime logo após ele ter ocorrido e foi testemunha ocular dos fatos desde sua chegada até o resgate da vítima. E que tipo de acareação se faria entre um réu, que tem o direito de mentir, e uma testemunha que não presta com­promisso? Que verdade traria? Talvez aquela ordem de perguntas elencadas pela Defesa na inquirição de Ana Carolina Oliveira fossem questões a ser levantadas nessa acareação. Pensando assim, mesmo os dois confrontados, não prestando compromisso com a verdade, poderiam ser observados em suas atitudes, tanto pelos jurados quan­to pelo juiz. De qualquer forma, mesmo que o advogado julgasse extremamente útil para a defesa dos dois réus a acareação, penso que os meios necessários para fazê-la — no caso, deixar a mãe isolada do júri —, não foram bons para ninguém. E é tão pouco provável que nessa acareação a mãe da menina se saísse mal, que ficou bastante óbvio que o verdadeiro objetivo era mesmo evitar que os jurados se emocionassem ao assistir a dor da mãe durante todo o júri.

10h — Réus entram no plenário. As maquetes do prédio e do apartamento estão instaladas na frente da sala e da primeira fila da platéia. E enorme, impressionante, e com certeza vai colocar o jura­do no local dos fatos, permitindo que perceba as proporções reais, as distâncias, sem depender da capacidade de orientação espacial de cada um.

A maquete do apartamento é mais impactante, porque tem todas as paredes de vidro e as manchas de sangue. Vai facilitar mui­to o entendimento dos jurados sobre o que aconteceu no apartamen­to 62 do Edifício London. Uma segurança do plenário comentou que a maquete, quando vista de perto, era impressionante, mas também muito triste de olhar, já que o corpo da menina, representado por uma boneca, ficava estendido no chão.

Alexandre não contém a curiosidade e espia. Está fascinado. Jatobá olha apenas para o chão, com as mãos entre as pernas. Está com os cabelos presos, nenhuma maquiagem no rosto. Fala, por um momento, bem baixinho com o marido, que assente com um movi­mento de cabeça.

A irmã de Alexandre senta-se na primeira fila e tenta a todo custo acenar para o irmão, sem conseguir sua atenção. Ela chora muito. O pai de Alexandre fica em pé do lado esquerdo e consegue que o filho o encare. Alexandre esboça um singelo sorriso triste e abaixa a cabeça, enquanto Jatobá, ao perceber essa ação, olha para o lado oposto e começa a chorar.

Depois da entrada dos jurados e do promotor, todos em pé, entra o juiz, que logo passa a conversar discretamente com Podval.

10h07m — O juiz retoma os trabalhos e chama a testemunha de Acusação Renata Helena da Silva Pontes, delegada que conduziu o inquérito do Caso Isabella. Ela entra um pouco nervosa, vestida de preto, como lhe é habitual. É advertida de que presta compro­misso, ou seja, se mentir poderá ser processada por falso testemunho. Jatobá começa a chorar...

O juiz lê a denúncia, como faz no início de cada depoimento, e pergunta: "O que sabe sobre estes fatos?"

Renata responde que, à época, estava de plantão na sala do 9º Distrito Policial quando dois policiais militares entraram e comuni­caram a ocorrência: roubo em um apartamento e que o ladrão teria arremessado uma criança do 6º andar do edifício. Segue contando como chegou ali com um investigador, entrou no hall social para ter uma visão do gramado, olhou para o local da queda, que lhe foi indicado por um policial militar, subiu ao apartamento e logo na porta, onde estava outro policial preservando o local, foi avisada: "Cuidado, doutora, que tem algumas gotas de sangue (para não pisar)".

Ela entrou com cuidado para fazer uma primeira observação do local, sem tocar em nada, como de praxe. Desceu para falar com alguns moradores informalmente, que lhe contaram ter ouvido o proprietário do apartamento 62 afirmando que houve um arrom­bamento. Falou com o síndico, que explicou seu pouco conhecimen­to dos novos vizinhos e que quase nada sabia, apenas que Jatobá ficou xingando muito e Alexandre gritava que um ladrão havia arrombado o apartamento, a porta. Ela não havia visto sinais de arrombamento.

A delegada então conta que chamou a primeira pessoa que teria ligado para o Copom, o sr. Antônio Lúcio Teixeira, além do porteiro Valdomiro da Silva Veloso, e avisou-os de que devia ou­vi-los ainda naquela madrugada, na delegacia. Naquele momento, o sr. Lúcio pediu para conversar com ela reservadamente e, muito constrangido, disse que precisava contar o que tinha ouvido e estava lhe causando muito desconforto: uma criança gritando "Papai, papai, papai!" Ele não acreditava na versão de que havia entrado ladrão no edifício, achava que o pai da menina era o res­ponsável, mas não queria julgar de forma precipitada nem causar nenhuma injustiça. Só queria contar. Essa declaração causa como­ção no plenário e um desconforto no pai de Alexandre, que segura firme na poltrona.

A dra. Renata prossegue seu relato. Enquanto realizava os pro­cedimentos de praxe no local, Alexandre Nardoni foi em sua direção um tanto ríspido, sem cumprimentá-la, logo perguntando: "Prende­ram o ladrão? Prenderam o ladrão, pegaram as impressões digitais?" Foi avisado pela delegada de que teria de comparecer à delegacia, não necessariamente naquele momento, e forneceu seu número de celu­lar para o caso de ele precisar se comunicar com ela. Ele perguntou se podia subir ao apartamento e não foi autorizado. Seguiu para a casa do pai, enquanto a dra. Renata requisitou perícia para o local de roubo com criança arremessada do 6º andar. Enquanto a delega­da fala, Alexandre sinaliza para que seu advogado se aproxime dele no banco dos réus, e mais uma vez o dr. Marcelo fica ali, agachado, ouvindo.

Renata estava dizendo que se dirigiu ao hospital para onde a criança fora levada e foi então informada que ela já havia chegado sem vida.

Dirigiu-se à delegacia para ouvir primeiramente os depoimen­tos do porteiro, da pessoa que chamou o Copom (sr. Lúcio) e do pai da menina; depois disso ouviria a mãe da vítima, mas Ana Carolina Oliveira já estava lá e, por uma questão de humanidade, resolveu ouvi-la de imediato. A história era confusa, a mãe e a madrasta da criança tinham o mesmo nome e ela não sabia quem era quem. Tudo foi explicado pela mãe da vítima em uma conversa breve, mas es­clarecedora. As roupas que a menina usava no momento da queda, que haviam sido entregues à mãe no hospital, foram repassadas para a delegada.

A dra. Renata conta que Alexandre chegou a telefonar para a delegacia, sugerindo que o porteiro poderia ter algum envolvimen­to com o acontecido. Teria dito a ela que "o porteiro havia entrado em contradição" quando falou sobre o sistema de alarme da cerca. Segundo a testemunha, quando ficou esclarecido que não ocorrera arrombamento, passou-se a falar sobre a possibilidade de as chaves do apartamento terem sido copiadas.

Alexandre e Jatobá foram ouvidos pela delegada em separado e depois juntos, para que ela entendesse o que havia acontecido e quem teria motivo para cometer o crime. Eles falavam sobre a pos­sibilidade de alguém ter feito cópias da chave do apartamento, pois elas costumavam ficar na portaria, e a delegada perguntava: "Mas por que uma pessoa entrou no seu apartamento para matar uma criança? Com certeza ninguém tem nada contra uma criança de cinco anos de idade a ponto de querer matá-la. Talvez seja uma vingança contra um de vocês dois. Vocês têm inimigos? Estão recebendo ameaça? Roubaram alguma coisa?" Todas as respostas foram negativas.

Renata explica que um crime tem de ter motivação e mostra o raciocínio da polícia: se tinha as chaves, tinha um objetivo e um motivo. Não houve ameaça ou atividade ilícita, não houve roubo. O casal então passou a falar do zelador, que teria tido comportamen­to estranho ao perguntar de quem Isabella era filha, se só de Alexan­dre ou dos dois. Renata explica que não viu nexo entre esse compor­tamento e o assassinato da menina; nada parecia tão suspeito assim.

Na seqüência, o casal Nardoni falou sobre um gesseiro, mas a delegada também não conseguiu vislumbrar ali um motivo: "Ele pode até não gostar de você, mas não vai matar sua filha por isso".

O juiz pergunta se foram ouvidas mais pessoas. Renata respon­de que ouviu Antônio Lúcio, Alexandre, Jatobá e por último Valdo­miro. A ré chama agora seu advogado, que, como fez com Alexandre minutos antes, se agacha e ouve.

A delegada prossegue seu depoimento, explicando que, quando se deslocou para o Edifício London, achava que se tratasse de roubo de apartamento com uma criança arremessada. Conta que já atendeu mais de uma centena de locais de crime e para ela tudo era possível, e nunca vai com uma opinião já formada. A partir do que vê, e aos poucos, chega a uma conclusão. No local em questão, cons­tatou que a queda não foi acidental. A tela estava cortada; não era um local desprotegido.

Renata continua seu relato ao juiz. Narra que no domingo, 30 de março, o médico-legista, dr. Laércio de Oliveira César, ligou e pediu para ir ao local da ocorrência, solicitando uma viatura. Ele foi acompanhado de um colega, pois achavam que a vítima que exami­naram tinha poucas lesões exuberantes para uma queda do 6º andar, além de uma asfixia mecânica por esganadura. Eles estranhavam também a lesão na testa da criança, que não consideravam ser de­corrente da queda. Segundo os médicos, provavelmente algo havia acontecido ainda no apartamento, alguma agressão. Isso fez a dele­gada pensar: nada foi subtraído, havia uma asfixia, tudo era estranho. Começou a raciocinar que não estava diante de um latrocínio e sim de um homicídio.

Sabendo agora que a criança havia se ferido antes da queda e que ninguém lhe havia informado nada sobre uma terceira pessoa, nem a polícia, nem o pai, nem a madrasta, e que estes últimos eram os únicos adultos a ter contato com a vítima, passaram a constar como averiguados. Se houvesse dez pessoas nessa situação, todas seriam averiguadas.

O juiz Fossen pergunta à delegada se, após essa apuração inicial, suas suspeitas se concretizaram ou se atenuaram. Renata responde que não houve, para ela, um dia de retrocesso na investigação. Tudo dava embasamento à autoria dos réus. "Absolutamente todos os dias do meu trabalho, durante a investigação, quando todas as pessoas saíam da delegacia, por volta de uma hora, duas horas da manhã, eu relia tudo que eu tinha feito, todos os depoimentos, todos os relatórios de ordem de servi­ço, fazia as ponderações... para achar uma convicção e estar indo no cami­nho certo. E, enfim, no decorrer desse trabalho veio a confirmação, eu tive 100% de certeza, convicção absoluta quanto à autoria dos dois nesse crime de homicídio e fraude processual."

O juiz questiona se ela teve contato com os advogados dos réus. A delegada responde que desde o domingo, dia posterior ao crime, o sr. Antônio Nardoni, pai de Alexandre, formalmente se apresentou como advogado, depois outros profissionais também. Por vários dias durante a semana que se seguiu tiraram cópia do inquérito, acom­panharam todas as diligências envolvendo os réus; era constante a presença deles na delegacia, tanto que chegaram a almoçar ali.

Renata continuou explicando seu trabalho de investigação: todos os dias e fatos foram relevantes, todas as informações que chegavam eram verificadas. Seu trabalho foi descrito por ela mesma como incansável, seu único objetivo era buscar a verdade e apresen­tar para a família da vítima a realidade do que havia acontecido. Sem assistir à televisão durante toda a investigação, sua única preo­cupação era com a vítima. "Quero dar o melhor de mim. Eu me coloco no lugar da pessoa. Então o meu comprometimento era buscar a verdade para a família ter resposta do que aconteceu, o respeito àquela criança, como eu tenho respeito por qualquer outra vítima, e trabalhar sempre com senso de justiça, todos os dias da investigação foram neste sentido."

Até aqui o depoimento da delegada Renata Pontes, responsável pela condução do inquérito policial no. 1985/2008, foi calmo e claro. Ela nos explicou a lógica do pensamento policial de forma encadea­da e coerente.

O juiz passa a palavra para o Ministério Público.

Cembranelli começa perguntando se algo na vítima chamou a atenção da delegada. Renata responde que sim, a lesão na testa e na perna. Descreve que Isabella tinha um semblante sereno, parecia um anjinho deitado ali. Considerando uma queda de 20 metros, ela esperava ver uma criança bastante machucada, mas Isabella parecia estar dormindo, apesar do sutil tom azulado em sua pele.

Dona Rosa, avó materna de Isabella, cobre os olhos com as mãos e começa a chorar, sendo consolada por seu marido. As árvores que circundam as janelas do prédio passam a se agitar com uma venta­nia momentânea. É uma ocasião solene.

O promotor pergunta sobre quais foram os médicos que ligaram para ela. Ela responde ter recebido telefonema do dr. Laércio, que esteve no local com o dr. Tieppo (Paulo Sérgio Tieppo Alves). Na­quele primeiro momento, os ferimentos não combinavam com o texto da ocorrência. Na segunda-feira à tarde, Renata ligou para o dr. Laércio, perguntando se ele confirmava a asfixia. Com base nes­sa informação, ela direcionaria melhor as investigações. Ele confir­mou, esclarecendo ainda que havia ocorrido antes do arremesso, e completou afirmando que o ferimento na testa não se relacionava nem com a queda nem com a esganadura. A delegada quis então marcar uma reunião na sexta-feira, 4 de abril, no Instituto Médico Legal, para maiores esclarecimentos.

Cembranelli pede a Renata Pontes que fale sobre a preservação do local do crime. Ela repete o que já havia contado ao juiz, acres­centando que quem mexe nas coisas é só o perito; ela apenas tem uma visão geral do local de crime.

O promotor segue seu rol de perguntas, agora questionando a delegada sobre Alexandre Nardoni ter mencionado a ela como sus­peito pelo crime o porteiro, o zelador, o antenista etc. Ela teria ou­vido formalmente esses suspeitos?

A delegada responde que o porteiro foi o primeiro a ver a crian­ça caída, mas, como Alexandre o citou em especial, ela deixou para ouvi-lo por último. Inquiriu não apenas o porteiro, mas também o zelador e o gesseiro sobre a cópia da chave. "Vamos investigar quem tem, quem entrou. Tudo que falaram a gente foi atrás e investigou."

Cembranelli pergunta especificamente se o sr. Antônio Lúcio e o porteiro foram ouvidos. Ela explica que era condizente o relato deles dois porque, quando a menina caiu, nenhum deles sabia quem era. O sr. Antônio Lúcio ligou para o 190 e, no meio da conversa com a atendente do Copom, vê Alexandre Nardoni lá embaixo, o associa com o rapaz do 6º andar e chega a perguntar a ela se pode ouvir Alexandre gritar.

Renata Pontes é perguntada sobre a investigação de denúncias anônimas. Ela conta alguns exemplos, como um certo Paulo, denun­ciado como autor do crime. Foi levado à delegacia, fotografado e investigado. Nada. Outro telefonema anônimo dava informações sobre uma pessoa moradora da rua Girassol. Renata Pontes foi pes­soalmente, com um investigador, a essa rua falar com o suspeito. Levou mais de três horas para localizar o local, mas tratava-se de um trote. Outro trote informava tratar-se de pessoa que estava li­gando do prédio em frente ao Edifício London, mas não havia ne­nhuma moradora com aquele nome ali. Renata explica que algumas ligações absurdas não foram averiguadas, mas que tudo o que pa­recia plausível foi apurado. Esclarece que, quando uma investigação começa, ela não tem ainda um conceito formado. No próprio local já se consegue eliminar algumas possibilidades e outras são levan­tadas, como, por exemplo, nesse caso, que não se tratava de queda acidental, mas sim de homicídio. Para haver uma terceira pessoa envolvida é necessário haver sinais e motivação, mas nada disso foi confirmado. Dessa forma, o caminho da investigação vai se afuni­lando, o que só é possível diante de provas, que já existiam.

Cembranelli novamente pergunta à delegada quem foi ouvido no inquérito policial. É evidente a preocupação do promotor em deixar claro para os jurados que a investigação não seguiu uma única linha, como tantas vezes foi acusada a polícia e a perícia pelos réus e seus familiares, que não cansavam de dizer, em entrevistas, como o pai e a madrasta logo se tornaram suspeitos e que apenas essa possibilidade era investigada e nenhuma outra. Renata serena­mente responde que ouviu todas as pessoas envolvidas com a por­ta de entrada dos apartamentos 62 e 63: quem fabricou, quem vendeu, quem era responsável pelas chaves, porque eram duas as fechaduras, a do apartamento 62 foi instalada e a do 63 foi entregue ao sr. Antô­nio Nardoni. Segundo ela, a questão da cópia das chaves da porta por uma terceira pessoa foi esgotada; chegaram inclusive a verificar se as chaves de um abria a fechadura do outro, comprovando-se que isso não era possível. Todos os citados, como o gesseiro, a equipe de trabalhadores do edifício e até mesmo o cunhado do gesseiro, foram ouvidos. Ouviram-se ainda outros moradores do edifício e da rua de trás, o porteiro da guarita do edifício em frente ao London, mo­radores de prédios vizinhos, os policiais militares que chegaram primeiro ao local do crime, outros policiais do Batalhão e divergên­cias entre eles foram esclarecidas. Também foram ouvidos os pais dos dois acusados, a irmã de Alexandre, moradores do prédio em que os réus residiram antes do Edifício London e professoras de Isabella, para saber o grau de participação do pai, da mãe e da ma­drasta na vida da menina. Os réus também fizeram uma lista com nome de pessoas que poderiam ser suspeitas, mas segundo a dele­gada era uma lista bastante confusa. Ela chegou a pedir aos advo­gados para definirem uma ordem que estabelecesse quais daquelas pessoas seriam mais importantes, pois não se conhecia o histórico de cada uma e por que figuravam naquele rol. Dessa forma, não teria de escolher aleatoriamente quem ouvir e o que perguntar, mas foi isso que aconteceu, porque os advogados não a atenderam. Re­nata ouviu sete pessoas dessa lista, prestadores de serviço alguma vez contratados por Antônio Nardoni, conforme verificou depois.

O promotor passou então para a questão da reprodução simulada, a que os réus não compareceram. A delegada respondeu que eles foram intimados e que ela mesma explicou para os advogados do casal que cada um daria sua versão dos fatos, sem que se utili­zasse nessa perícia o inquérito policial. Eles responderam formal­mente que Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá não iriam participar dos trabalhos periciais, pois não eram obrigados por lei a produzir provas contra si. Possuíam esse direito constitucional, e os advogados contratados por eles também não compareceram. Cembranelli, depois de fazer um resumo de todas as pessoas ouvi­das pela delegada, pergunta: "Os réus e seus advogados dizem que a senhora e sua equipe somente seguiram uma linha de investigação. Então isso é mentira?" Renata responde sem titubear: "Isso é mentira!"

O promotor cita as fls. 11, o telex que solicita a perícia, e o lê para os jurados. "Objetivo: elemento desconhecido — tentativa de roubo... O telex enviado era exatamente o da versão do acusado?" "Exatamente", responde a delegada.

O promotor prossegue: "Consta do interrogatório de ambos que teriam sido pressionados pelos policiais, foram chamados de assassinos, e que ninguém acreditou na história deles. Então esse telex aqui não vai de encontro a essa história, já que o que consta aqui é a versão deles, é isso?" O juiz complementa, perguntando se os réus foram pressionados, e Renata responde: "Eles foram tratados com respeito, não houve..." (Ale­xandre meneia a cabeça discordando, ri, tira os óculos e limpa-os). "O dr. Calixto chegou à delegacia", continua Renata. "Voltei ao aparta­mento para receber os legistas e também estavam presentes o delegado seccional da época, dr. João Rosa. Outro que compareceu novamente foi o perito de local, que precisava tirar fotografias do lado de fora do edifício. Havia questionamentos sobre a versão apresentada pelo casal, e resolvemos chamar um deles para explicar. Foi quando trouxeram Anna Jatobá, e ela conferiu que nada foi subtraído dali, nem a máquina fotográfica digital."

O advogado Ricardo Martins conversa com os familiares de Alexandre e faz algumas anotações, entregando-as à dra. Roselle, da Defesa. O pai do réu faz uma cara de indignação e Rogério Neres nega com a cabeça.

Cembranelli pergunta à delegada se o casal estava acompanha­do de seus advogados todo o tempo. Ela responde que sim, desde 30 de março de 2008, mas que eles estavam também sempre acom­panhados de outras pessoas. Tiveram acesso a tudo; a Defesa tinha ciência de cada passo.

O promotor pergunta se é comum uma perícia externa ou se ela ocorreu por causa da versão do casal. Renata responde que essa perícia foi requisitada apenas por causa da versão deles, para veri­ficar, entre outras coisas, o muro do prédio, com o objetivo de veri­ficar a versão apresentada pelos réus, mas que absolutamente nada apontou para a possibilidade da ação de uma terceira pessoa.

Cembranelli reforça a questão da contratação dos advogados de Defesa, citando a procuração dada a eles, às fls. 108/109 do processo, o que ocorreu no primeiro momento da investigação. Também pede confirmação sobre a presença dos advogados do casal durante seu interrogatório e se leram os depoimentos dos réus antes que fossem assinados por todos. Renata responde: "Sim, linha por linha".

A pergunta relevante agora é sobre a averiguação de denúncia anônima de um certo Paulo, verificada após a prisão temporária do casal, que provaria a dedicação da delegada à investigação, mesmo com esta "supostamente" já resolvida. Afinal, com a prisão tempo­rária já decretada, a polícia não precisava continuar a investigar mais nada.

Renata Pontes passa a relatar sua experiência profissional. Diz que passou pela Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa, onde dava pelo menos três plantões por mês, inclusive aquele durante o qual atendeu o local do crime contra o casal Richthofen. Participou de outros casos sem repercussão, mas não menos complexos. Aten­deu pelo menos 136 locais de crime de morte suspeita em sua car­reira, de homicídio e suicídio.

Cembranelli pergunta sobre a experiência do dr. Calixto, e ela responde que ele é delegado de policia há vinte anos. A Promotoria deixa claro que houve, para todos os policiais, legistas e peritos envolvidos, reconhecimento, pelo delegado-geral, dos trabalhos bem efetuados, em forma de elogio, que nunca foram revogados e per­manecem em suas folhas funcionais.

O promotor então se levanta, pedindo que Renata o acompanhe até a maquete. Ela o segue, sem olhar para o plenário, bastante compenetrada nas perguntas que serão feitas.

Os jurados são convidados a se levantar e olham atentamente a demonstração. "Onde estava a gota de sangue que o policial avisou para a senhora não pisar?" Ela mostra uma, bem na entrada, sobre a qual foi avisada logo que saiu do elevador.

Renata Pontes explica para os jurados o caminho que percorreu dentro do apartamento do casal Nardoni, tudo o que viu e observou, o que era visível e o que não era. Podval se aproxima para acompa­nhar tudo. A delegada conta que o abajur do quarto de Isabella es­tava apagado e a luz do quarto dos meninos, acesa. Explica também que o sangue ao lado do sofá não era visível. Cembranelli pede que explique essa informação.

A delegada relata que, depois de falar com os legistas, ligou para o dr. José Antônio de Moraes, diretor do Núcleo de Perícias em Crimes Contra a Pessoa do Instituto de Criminalística de São Paulo. Ele teria dito que a fralda arrecadada no apartamento estava em processo de lavagem, e o gotejamento que havia no local encontra­va-se em forma de trajetória, ou seja, a vítima já teria entrado ferida no apartamento. Ela então teria dito que precisava de uma perícia complementar, inclusive do hall de entrada, do elevador e do carro em que a vítima chegou. Relata que não era a primeira vez que usava como auxílio a perícia com reagentes químicos, para esclare­cer certos pontos, e que não havia acompanhado os trabalhos peri­ciais, pois os peritos é que têm treinamento específico para utilizar esse tipo de produto. Eles contaram sobre as outras manchas que encontraram no chão, ao lado do sofá e no carro.

Renata volta a sentar-se na cadeira das testemunhas. Os jurados, Cembranelli e Podval voltam a seus lugares. O promotor inquire a delegada sobre sua requisição, que pede o uso de um produto cha­mado Luminol. Ela responde que no último caso em que havia re­quisitado essa perícia complementar se usava o Luminol, mas que os peritos explicaram que agora utilizavam outro reagente de nome Bluestar Forensic, mais avançado tecnicamente. Explica ainda que não basta ser perito para utilizar-se desse produto químico: é preci­so ter uma especialização, para que seja possível interpretar se se trata de sangue, se é recente ou antigo, a morfologia etc. Cembranelli pergunta se é um produto vendido em gôndolas de supermercado ou pela internet, se é acessível a qualquer um. Renata responde que, pelo que sabe, é um produto fabricado em Mônaco e usado pelas polícias do mundo inteiro. Ela sabia que é produto cancerígeno?

Não, sabia apenas que é tóxico, porque requer o uso de máscara para manipulá-lo.

O promotor então pergunta: "A senhora em algum momento (do interrogatório dos réus) ouviu eles dizerem que costumam derrubar suco de cenoura, nabo, alho pela casa? Houve isso ou não? Em algum momento ouviu eles dizerem isso?" O juiz emenda: "Foi questionada alguma coisa nesse sentido para eles ou não?" A delegada responde que não, mas que fizeram exame de corpo de delito nos réus para saber se havia algum ferimento que sangrava. Cembranelli ainda pergunta: "Nem banana, que eles tinham bebê e às vezes uma bananinha cai no carro?"

"Não", responde Renata. "Absolutamente nada."

Passa-se agora à apreensão de objetos. A delegada explica que em um primeiro momento foram apreendidos o lençol, a tela, a te­soura, a faca e a fralda. Depois Ana Carolina Oliveira trouxe a rou­pa da menina. Com o resultado da marca de solado nos lençóis, posteriormente foram arrecadados calçados. Como não se sabia que roupa os réus utilizavam dentro do apartamento, viram a gravação do Sam's Club Supermercado para ter certeza sobre as peças e no­taram que Isabella usava uma blusa diferente.

Já eram 11h45 e o depoimento da dra. Renata continuava sem intervalo.

Cembranelli: "Foi somente após isso que surgiu a perícia do chinelo, coincidente com as marcas do solado nos lençóis, é isso?"

Renata Pontes: "É, a perícia do calçado foi subseqüente à constatação do vestígio no lençol, houve essa necessidade somente depois que havia a pegada, que constataram a pegada, aí é que houve a necessidade de fazer essa comparação para chegar a alguma conclusão".

Cembranelli: "E a camiseta? Foi da mesma forma, usaram equipa­mentos, apanharam as marcas e aí fizeram?"

Renata Pontes: "Correto".

O promotor faz a mesma pergunta acerca das marcas extraídas da tela. Depois questiona Renata sobre a faca e a tesoura, que ela disse já estarem descritas no boletim de ocorrência. Inquirida sobre as fibras encontradas na tesoura, Renata explica o trabalho técnico feito pelo Núcleo de Física do Instituto de Criminalística com esses instrumentos, onde uma fibra foi encontrada, o que levou à conclu­são de ser evidente que a tesoura foi usada para cortar a tela: "A pessoa voltou para deixar a tesoura lá (em cima da pia). Estavam dispos­tos de forma que foi a última coisa utilizada ali, eles não estavam num canto, não estavam guardados, não estavam dentro da pia para lavar".

Cembranelli pergunta à delegada por que, de todas as roupas espalhadas pelo apartamento, só a fralda foi apreendida. Ela res­ponde que chamou a atenção dos peritos porque por todo o local havia roupas sujas, jogadas para ser lavadas, e apenas essa peça estava em processo de lavagem. "Lavou só esta peça e as demais não? Era discrepante, chamou atenção da perícia."

O promotor pede que a testemunha o acompanhe até a maquete principal. Pede que ela aponte a localização do quartel e se os policiais foram a pé. Ela diz que sim, pois dois moradores ligaram para o 190 e 193 e um terceiro correu até a Corregedoria e os chamou. Renata continua explicando que o edifício localizado na frente do London tem seu 4º andar na altura do 6º andar, onde aconteceu o crime, e uma testemunha dali também foi ouvida, dizendo que ou­viu uma briga entre homem e mulher.

Alexandre está atento a todas as explicações que envolvem a maquete, Jatobá também, mas nem tanto.

Outras perguntas são feitas sobre alguns detalhes acerca do muro e da vizinhança, até que Cembranelli questiona a delegada sobre a acusação feita a ela de chamar o réu de assassino. Com calma, Renata explica que esse episódio, segundo foi informada, teria acon­tecido dentro da delegacia, não sabe dizer em que dia e hora. Uma delegada teria chamado Alexandre de assassino, e foi chamada à Corregedoria com o jornalista que teria ouvido o xingamento. O nome da delegada é Maria José. Cembranelli continuou: "E até hoje ouve os réus mencionando que é a senhora?" Ela responde: "Diretamen­te nunca reclamaram; na fase de interrogatórios aproveitaram essas dúvidas e imputaram esse ato a mim".

A pergunta seguinte, como todos esperavam e nesse mesmo contexto, é se o dr. Calixto chutou uma lixeira. A delegada esclarece que ele chegou à delegacia para acompanhar os trabalhos somente no domingo, e não de madrugada, portanto os advogados dos réus já estavam presentes.

Já passava de meio-dia quando o promotor, finalizando, pediu que Renata Pontes explicasse seu relatório, o qual fora elaborado após a reprodução simulada. Ela explica que ficou confeccionando-o até a terça-feira seguinte, sem parar, e que contém 43 folhas, e ali tentou resumir tudo e justificar a prisão dos réus.

Questionada sobre seus contatos ou relacionamento com a mãe de Isabella, a delegada explica que não conhecia nenhuma pessoa da família e que os familiares da vítima apareceram espon­taneamente na delegacia na noite do crime, para tentar saber o que havia acontecido. Disse que explicou o que podia, mas ainda não sabia muita coisa e estava cautelosa em relação a todos ali. Mas explica aos jurados e a todos que os núcleos familiares são, muitas vezes, mais bem informados do que todos os outros, e que, pela experiência que possui após muitos crimes investigados, sempre deixa à disposição seu número de celular para que passem qualquer informação, mesmo que esta pareça inútil. Afirma que nunca mais falou com Ana Carolina Oliveira depois da investigação; ela nun­ca mais ligou.

Depois de confirmar que Renata Pontes não recebeu nenhuma promoção ou benefício com o Caso Isabella, o Ministério Público encerra e o juiz passa a palavra para a assistente da Acusação.

A dra. Cristina Christo se levanta com o processo nas mãos e pede para a delegada confirmar se os gritos de "papai, papai, papai... para... para" ouvidos pelo sr. Antônio Lúcio também foram ouvidos pela vizinha Geralda. Renata confirma, mas ressalva que a senhora idosa não queria se envolver nessa história, apesar dos apelos da delegada, que explicou a ela a importância do que tinha ouvido, fazendo-a finalmente ir à delegacia.

Cristina passa a perguntar sobre o depoimento de outra vizinha, Luciana, e lê a parte em que, conforme escrito no processo, ela decla­ra: "Em dado momento, não sabendo precisar o horário, estando ainda com o sono leve, passou a ouvir uma discussão, vozes de homem e mulher, pessoas adultas, porém informa que praticamente só a mulher falava, ouvindo a voz masculina bem ao fundo. Dava para ouvir que ela falava muitos palavrões, dentre eles 'puta que pariu; caralho', esclarecendo que ela repetia muito essas palavras". Renata confirma, assim como outros relatos semelhantes de vizinhos do antigo edifício em que moravam os réus.

Para encerrar, a dra. Cristina pergunta se, quando a testemunha chegou pela primeira vez ao apartamento dos réus no Edifício Lon­don, o abajur do quarto de Isabella estava aceso ou apagado. Rena­ta responde: "Estava apagado, certeza absoluta, quando eu entrei era por volta de 1h10 da manhã".

Meio-dia e meia, o juiz faz um intervalo de cinco minutos. Não saí da minha cadeira. Não queria correr o risco de perder a inquiri­ção da Defesa, que começou às 12h35.

E Roberto Podval quem se levanta para fazer perguntas à delegada Renata Pontes. Ela não parece cansada, está serena e atenta. Ele segura um calhamaço de folhas de papel sulfite, com diversas anotações feitas à mão, outras coladas com post it.

O primeiro assunto em discussão é a preservação do local, porque o advogado sugere que seis ou oito policiais poderiam ter entrado no apartamento antes da chegada da dra. Renata. Ela res­ponde que pelo menos dois verificaram se havia de fato um ladrão, conforme informado pelo réu, mas que não sabia exatamente o nú­mero, e que o advogado teria de perguntar para a Polícia Militar. Podval cita uma resolução sobre locais de crime em que se estabe­lece ser obrigatório anotar o nome do policial militar que faz a preservação e o que é relatado. Renata diz que conhece a resolução da Secretaria de Segurança, mas que segue as portarias da Delegacia-Geral de Polícia, e diz que está anotado quem preservou, mas não quem entrou antes.

Agora Renata é questionada se, quando viu o corpo da vítima na Santa Casa, ela estava despida. Responde que sim e confirma as lesões que já havia relatado.

Podval pergunta à delegada em que momento viu Alexandre Nardoni pela primeira vez. Ela diz que foi depois que esteve na Santa Casa, durante a madrugada; ainda não havia amanhecido. Depois confirma que ele ficou o dia inteiro na delegacia.

A defesa questiona por que foi pedido, já naquele momento, que o pai e a madrasta fossem ao IML, fizessem exame toxicológico e de DNA. "Como uma vítima vai a delegacia e é levada ao IML para fazer exame de DNA? A senhora, naquele momento, queria constatar se o sangue era dele, era essa a razão?" O juiz interrompe, dizendo: "O senhor mencionou a vítima, doutor. A vítima estava falecida". Podval se corrige: "Desculpe, todos são vítimas nessa fatídica história. Por que é que o Alexandre e a Anna Carolina foram encaminhados para fazer o exa­me de DNA?"

Renata explica que, quando se depara com um crime de autoria desconhecida, pede exames de qualquer pessoa que se relacione com a vítima, como da mesma forma que, por exemplo, em crimes de arma de fogo, o residuográfico.

Podval pergunta: "Mas a senhora já tinha dúvidas naquele dia?" Ela responde que pede os exames antes mesmo de saber se vai uti­lizá-los diante de novas informações. "Mas mesmo o de DNA?", questiona o advogado. "Todos os exames", responde a delegada.

Podval, visivelmente insatisfeito com a resposta, muda de assunto. Pergunta se Renata conversou de maneira informal e em separado com os réus antes de formalizar a oitiva de seus depoi­mentos. Ela esclarece que conversou primeiro com Alexandre, pois Jatobá chegou depois dele, e que, sim, o casal estava na sala. Ele pergunta novamente: "Não falou com ele sozinho?" A delegada res­ponde que não se lembra, mas tenta refazer seu cronograma de ações. "A gente estava tentando entender o que tinha acontecido." Ressalva que o pai de Alexandre esteve sempre presente.

Nesse momento, o pai de Alexandre ri de forma irônica e fala para sua filha entre cochichos: "Olha como ela mente!"

Podval quer saber agora se o sr. Antônio não teria chamado os advogados porque ouvira gritos dentro da sala em que o filho esta­va. Renata responde que ele nunca falou isso.

O tema agora passa a ser a ida "informal" de Jatobá ao próprio apartamento, acompanhada de um investigador, onde se encontrou com Renata Pontes, que já estava lá. A resposta: "Diligências que a gente faz rotineiramente". Explica que não tem conhecimento da proi­bição de Jatobá ter contato com outros ou de ter sido levada coerci­tivamente para essa diligência.

Podval: "Quem estava no apartamento quando ela chegou?"

Renata: "O delegado seccional João Rosa, o dr. Calixto, eu mesma, o investigador que me levou até o local, dois legistas que já haviam saído, o perito Sérgio e uma fotógrafa".

Podval: "Algum advogado estava no apartamento?"

Renata: "Não".

O dr. Podval faz as perguntas de forma quase teatral, sempre apontando com uma caneta, e depois rabisca aquelas que já fez e as que parecem não ser mais interessantes. A inquirição continua; Ja­tobá teria ido de viatura até lá, mas a delegada não sabe se essa viatura era caracterizada ou não. Explica novamente as discrepâncias que os legistas encontraram entre corpo e texto, e por isso estavam ali. Podval pergunta então como se deu a liberação do apartamento, e a delegada responde que Sérgio, o perito, liberou o local no do­mingo pela manhã e as chaves foram entregues à família.

Podval pergunta se Antônio Nardoni teria telefonado para ela, mesmo com o apartamento já liberado, para informar que iria até lá buscar roupas. Ela responde que, com ela, não falou. O advogado também ressalta o fato de ele ter encontrado dois investigadores no apartamento, mas ela rebate: "Eu não requisitei a chave do apartamen­to de volta em momento algum!" Explica que os advogados entregaram a chave a ela porque não podiam ficar acompanhando todos os trabalhos ali.

O júri é interrompido por um celular que toca na sala. O juiz fica muito irritado e fala que, da próxima vez que isso ocorrer, vai pedir para a pessoa ser retirada do plenário.

Ainda sobre as chaves, Podval pergunta se o reagente Bluestar foi usado nelas para saber se havia sangue. Renata alega que usar o reagente nas chaves não levaria a conclusão alguma na investigação, porque ficaram pelo apartamento e poderiam ter encostado em qualquer lugar, portanto essa não era uma informação útil. "Eu nem sei se me entregaram a chave original ou uma cópia dez dias depois."

Podval diz que ela argumentou que a chave poderia ser o obje­to que causou a lesão. Renata explica da seguinte maneira a situação: o resultado seria inconclusivo; qualquer que fosse continuaria a probabilidade de ser a chave, dando positivo ou não. Podval insiste no fato de não ter sido feito o exame na chave, e o juiz interrompe, dizendo que a testemunha já havia respondido que a chave fora citada a título de exemplo.

Renata continua, dizendo que a chave era um objeto comum da residência, não seria estranho ter DNA ali. Podval pergunta se o exame foi feito na quina da mesa; a delegada responde que não era compatível com o ferimento. E anel? Não foram periciados. Renata volta a explicar que no boletim de ocorrência citou a quina da mesa genericamente, porque não sabia o que havia causado o ferimento, mas depois o legista explicou que essa não era uma maneira com­patível de causar aquele ferimento.

É interessante a maneira de Podval inquirir a testemunha, por­que lhe dá oportunidade de falar muito; e ainda, com tantas citações ao nome Ana Carolina, o dr. Cembranelli pede que se esclareça de qual delas estão falando. Estão falando de Jatobá e sobre sua ida ao apartamento, onde ela teria visto todos tomando café em sua sala. Renata explica que uma vizinha, esposa do subsíndico, fez café e serviu a eles em duas oportunidades, e que inclusive na reprodução simulada foi utilizada uma sala no térreo. Podval diz que é mentira, e Renata, irritada, diz que ninguém usou a cozinha. Cita então o nome da vizinha que teria servido o café, e Podval emenda: "Café tomado dentro do apartamento! Vocês estavam de pé, sentados..." Renata responde que não se recorda e também emenda: "Ninguém viu tevê no apartamento, a gente discutia os fatos".

A Defesa pergunta se a perícia trabalhou posteriormente a esse domingo com o reagente no local dos fatos. Renata diz que sim, mas que poderia ser dez anos depois, que o resultado seria o mesmo.

Podval pergunta se havia ovos de Páscoa no apartamento de Anna e Alexandre. Ela responde que o dr. Ricardo abriu o armário para verificar o notebook e viu ovo de Páscoa. Mas, antes mesmo de o advogado perguntar qualquer coisa, Renata já afirmou que sabia ter sido divulgado pela imprensa que teriam comido ovos de Páscoa nessa reunião. "Mas isso é ridículo, conversar e comer ovos de Páscoa... não vou mexer em casa de ninguém!"

Podval muda o discurso e o jeito. Diz a Renata que não acom­panhou a primeira fase da defesa dos réus e tem dificuldade para entender algumas coisas, por isso as perguntas. A delegada teria visto a filmagem da família saindo da casa dos pais de Jatobá na­quele sábado? Renata diz que não; o filme ficou de posse da perícia, mas ouviu o porteiro do edifício.

Outras explicações são dadas sobre os procedimentos adotados na delegacia, onde, segundo a testemunha, Alexandre e Jatobá, assim como seus acompanhantes, estavam livres para ir e vir e podiam conversar. Completa que, se algo aconteceu, não foi determinado por ela. Que, apesar do sigilo imposto ao inquérito pelo juiz, os advogados obtinham cópias dele.

Podval fala de uma testemunha que teria ouvido uma conversa telefônica entre Antônio Nardoni e a filha, testemunha esta ouvi­da no 8º DP. Renata explica que se tratava de um funcionário de bar e que achou o depoimento dele irrelevante para as investigações, que nem sabe ao certo se ela estava nesse bar ou não.

Podval passa a perguntar sobre a faca e a tesoura, se foram colhidas as impressões digitais e se foi usado cianocrilato para le­vantá-las. "O senhor tem que perguntar para a perícia", responde Re­nata Pontes. Sempre que é questionada sobre procedência da perícia, ela responde de forma incisiva, complementando com ironia que a pergunta teria de ser feita para quem elaborou o documento.

O pai do réu se mostrou apreensivo durante boa parte do depoimento. Ele coçou várias vezes a cabeça e balançou a perna frene­ticamente, enquanto conversava com a filha, que estava ao lado, dizendo: "Essa é a terceira vez que ela o rebate, não tá certo!", referindo-se às respostas secas de Renata para Podval.

Às 13h30 o juiz interrompe, perguntando se todos ainda agüen­tam continuar. A testemunha responde: "Estou com fome, mas eu agüento!" Risadas gerais, o clima já está mais descontraído.

Podval pergunta a Renata sobre a morfologia das gotas de sangue estáticas e ela responde, um pouco sarcástica, que não sabe olhar para uma gota de sangue e fazer exame de morfologia. Depois é inquirida sobre o possível vômito da criança. Estas são questões periciais que Renata Pontes utilizou em seu relatório final, e Podval pega o volume do processo onde estão e, usando um pouco de iro­nia, já que gotas estáticas e considerações sobre o vômito estão presentes naquilo que Renata escreveu, pergunta quantas reuniões ela teve com a perícia e o IML (antes de fazer o relatório, claro).

Renata responde que se reuniu uma ou duas vezes, mas que não via problema nisso.

Podval segue nessa mesma linha, citando a fralda, o exame de DNA, o sangue na cadeirinha, baseado no laudo de DNA, que, aliás, diz, "ê bastante complicado para a minha inteligência", referin­do-se ao laudo genético, e pergunta: "Onde é que está constatado no exame de DNA que o sangue que estava lá era de Isabella? Eu confesso para a senhora que não achei". Ela suspira e responde: "Tá, então eu vou dar uma explicação para o senhor. Tanto o laudo necroscópico quan­to o laudo de exame de DNA e alguns laudos do Núcleo de Física, infe­lizmente, eu não tenho capacidade técnica de dominar assuntos de gené­tica, de física e de medicina legal. Talvez lendo os laudos sozinha a minha compreensão não seria tão clara. Baseada nos laudos, no que foi concluí­do pelos peritos e obtendo a informação deles de uma forma mais didática, me foi explicado pela equipe de perícia do Instituto de Criminalística que, na cadeirinha do bebê, o que foi coletado e foi levado para exame tinha material genético de Isabella. Porém, citaram, por exemplo, que poderia haver a saliva do bebê que estava na cadeirinha, do Cauã, havia uma mistura..." Podval interrompe com cinismo: "Está citado no laudo? Na conclusão do laudo aponta a existência? Eu confesso que não vi isso no laudo!" O juiz interrompe, dizendo que isso é matéria que o advogado usará nos debates e que a delegada já explicou como chegou aos resultados.

O assunto agora são os sapatos de Jatobá, que balança a cabeça e sorri ao ouvir a delegada confirmando que viu os tamancos dela na cozinha, mas que não podia saber se depois usou outro sapato ou não. É sobre a arrecadação dos sapatos que a Defesa tenta uma "pegadinha" em Renata; havia ali uma certa confusão quanto à data de apreensão e envio para o Instituto de Criminalística, ou seja, a data do carimbo "encaminhado" é anterior à própria apreensão. Pensava-se ser um engano da própria delegada, mas ela responde que não foi ela quem encaminhou o documento e que a pergunta deveria ser feita para quem o fez.

Podval então indaga a Renata se não lhe parece estranho pai, mãe ou madrasta matarem. Ela calmamente responde que não, que para ela é comum, já trabalhou em um caso de pai que havia piso­teado o filho até matá-lo, depois o esquartejou e jogou o corpo em um lixão. Sua fala causa um murmúrio de espanto na platéia, mas continua, dizendo que estranha mais um assalto em que não há roubo do que um pai que mata uma filha. Na seqüência, o advoga­do faz algumas perguntas para esclarecer se havia constatação de violência do casal contra Isabella, e a delegada responde que não, que apenas ouviu relatos de comportamentos destemperados. Pod­val vai esclarecendo de quem Renata ouviu esses depoimentos, se havia alguma testemunha presencial desses "destemperos", até ouvir que foram relatados por Rosa, sem confirmação no depoimen­to de Cida: "A dona Cida é mãe do Alexandre, ela sempre defendeu o filho, inclusive no depoimento ela estava bastante abatida e..." Ele interrompe, dizendo: "A pergunta é: ela confirmou essa declaração da dona Rosa?" "Não, ela não confirmou isso", responde Renata Pontes.

Podval pergunta se ela ouviu Anna Jatobá na delegacia, em seu primeiro depoimento, e, enquanto a ré meneia negativamente a cabeça, a delegada explica como foram os trabalhos.

Podval volta à questão da fralda, perguntando à delegada por que o balde chamou sua atenção. Renata não explica outra vez; diz apenas a ele que pergunte aos peritos que arrecadaram a fralda. O juiz chama a atenção para o fato de o relógio já marcar 14h. Podval avisa que está acabando.

A novelista Glória Perez chega discretamente ao plenário para acompanhar o julgamento. Os jornalistas ficaram atentos à porta esperando por sua entrada. O pai de Alexandre se mostra irritado quando a vê, com ar de reprovação estampado no rosto.

As 14h os jurados parecem estar cansados e alguns até demons­tram certa impaciência. A platéia também fica mais dispersiva, distraindo-se em conversas paralelas sobre como o advogado está se portando mal e parecendo estar, por ora, sem saída. O estenotipista pede que o depoimento seja feito de forma mais ponderada, já que tem dificuldade para entender alguns termos técnicos.

Podval pega o primeiro volume, onde, às fls. 99, está o depoi­mento de uma vizinha de nome Rosemeire, moradora do Edifício London, 139 andar. Ali ela conta que ouviu um barulho de porta de incêndio batendo. Cembranelli interrompe, esclarecendo que o que ela diz é que ouviu uma batida seca, COMO SE FOSSE uma porta de incêndio batendo.

Os assistentes da Defesa que estão na platéia se movimentam, articulando perguntas em papéis e repassando ao dr. Marcelo, que nem lê o conteúdo, se direciona até o centro do plenário e os entre­ga nas mãos de Podval.

Podval segue perguntando a Renata se ela verificou a possibilidade de uma terceira pessoa ter fugido. A delegada, sarcasticamente, responde que ninguém fugiria subindo as escadas, que não teria por onde sair. E que, no entendimento dela, Rosemeire está inter­pretando o barulho da queda da menina, que teria ouvido. Renata pergunta a Podval: "O senhor conhece barulho de queda de criança do 6º andar? Eu não conheço como é, teria de explicar usando um exemplo como o que ela deu, que fala da batida da porta de incêndio, ou como o porteiro, que diz ter pensado que houve uma batida entre carros". Com ironia, a delegada confronta o advogado dizendo que ninguém, em depoi­mento, diria: "Aí ouvi um som de criança caindo!", pelo fato de não reconhecer esse som e ter de interpretá-lo. Acabou por declarar que o local foi revistado por mais de trinta policiais e que nenhum ves­tígio de invasão foi encontrado ali.

A Defesa encerra, e o juiz faz as perguntas dos jurados. "Pelo que foi apurado nas investigações periciais, foi encontrado algum vestígio de sangue na roupa da Anna Jatobá? Em alguma roupa da Anna Jatobá foi identificado sangue de Isabella? A senhora se recorda se as perícias falaram isso?" Renata responde: "Pelo que eu me recordo, não".

 

14h08: O juiz concede intervalo para o almoço. Os trabalhos estão suspensos por uma hora.

Há uma reunião posteriormente em uma sala reservada do Ministério Público, na outra extremidade do plenário. Passamos, a partir desse dia, a freqüentar esse espaço onde almoçávamos e po­díamos discutir sobre os últimos acontecimentos do julgamento. Nessa pausa, a discussão foi o otimismo com relação ao depoimen­to de Renata, deixando todos mais confiantes no trabalho da perícia. Nesse tempo, acessávamos a internet para saber como estavam sendo veiculadas as informações dos depoimentos. As manchetes diziam que a delegada afirmara com 100% de certeza que o casal matara Isabella.

Na sala de imprensa há uma discussão entre alguns jornalistas e a assessora de imprensa do Tribunal, pelos erros nos rodízio de senhas. Esses profissionais passam informações a seus chefes por telefone, explicando a dificuldade em relatar os acontecimentos, já que ficam pouco tempo na sala, que o som está muito baixo e que a visão do plenário é comprometida devido à maquete instalada bem no meio do local.

Na entrada do prédio, o número de manifestantes aumentou consideravelmente. Foi formada uma fila mais organizada para que os interessados pudessem acompanhar partes do julgamento. Eles próprios escrevem em papéis a ordem de chegada de cada um. Pessoas de várias partes de São Paulo, e também de outros Estados, chegavam e logo buscavam informações com outros que estavam por ali.

Revoltada por sua filha continuar arrolada pela Defesa no Fórum, dona Rosa fala com a imprensa que os assassinos de sua neta agora queriam matar sua filha. Ela posa para fotos mostrando a tatuagem que trás no braço com o nome da neta.

 

15h30 — Entram os jurados. Alexandre já está sentado, Jatobá vem logo depois. Cembranelli e Podval vestem suas armaduras, as becas. A Defesa coloca cadeiras em frente ao telão, montado pela Promotoria. A maquete agora está na frente da imprensa, e o telão, em frente aos réus. Um jornalista pergunta para o outro sobre as roupas que Alexandre e Anna Jatobá vestem, pois não conseguem ver de onde estão.

No início da sessão, novamente o juiz alerta sobre o uso de celulares e similares, sob pena de o portador de tais objetos ser reti­rado do plenário.

É chamada a próxima testemunha, o médico-legista Paulo Sér­gio Tieppo Alves. Depois da introdução de praxe, da advertência sobre falso testemunho, de ler a denúncia, o juiz pede que o médico descreva suas atividades profissionais.

Tieppo começa um dos depoimentos mais marcantes desse júri, porque não é nada fácil explicar para leigos todas as questões técni­cas que serão questionadas. Ele explica que é médico-legista do Instituto Médico Legal de São Paulo e que foi chamado para exami­nar o corpo da vítima; esteve no local e reuniu-se com peritos para concluir seu laudo.

O juiz pergunta como foi seu primeiro contato com o caso. Ele responde que foi na recepção do necrotério. Um investigador de polícia queria conversar com ele e com o dr. Cuoco, também de plantão naquele dia, a respeito do caso que havia chegado ali. De­sejava saber se o ferimento que a vítima apresentava poderia verter quantidade de sangue considerável. Os dois profissionais examina­ram o ferimento, que era em região muito vascularizada, e respon­deram afirmativamente.

Tieppo descreve a mensagem que recebeu pela intranet, solici­tando o exame "morte suspeita — queda do 6º andar". Já no primeiro contato com o corpo, encontraram sinais evidentes de asfixia mecâ­nica, o que causou discrepância entre esse histórico (o de queda) e os ferimentos encontrados no cadáver. Relata então que foram ao local para obter mais dados e solucionar seu próprio entendimento do caso, isso por volta de meio-dia do domingo. O exame já havia sido iniciado, então trabalharam em três médicos, os que finalizavam o plantão e aquele que começava outro.

Para tornar sua explicação mais didática, Tieppo dividiu os ferimentos de Isabella em três grupos: aqueles referentes à asfixia mecânica, outros ligados à queda de 20 metros de altura e ainda um terceiro conjunto, referente ao que chamou de queda-sentada.

A asfixia mecânica tinha sinais inequívocos, como a face congesta da menina, devido a uma maior quantidade de sangue nos vasos da face e coloração azulada, típica de quem sofre esse tipo de agressão. Além disso, a língua estava para fora da boca (não comum em quedas), os leitos subungueais (embaixo das unhas) arroxeados e havia manchas roxas na nuca da vítima. Internamente, Tieppo também descreveu para os jurados todos os sinais que encontrou para fazer esse diagnóstico, entre eles sangue na musculatura do pescoço anterior e lateral, petéquias, que são pequenas manchas espalhadas sobre pulmão e coração, além de sangue mais escuro e fluido. Também havia vômito nas narinas e no pulmão, resultado de bronco-aspiração, que parecia ser a mesma substância encontra­da na camiseta da vítima, alteração causada por uma constrição cervical (esganadura).

As lesões compatíveis com a queda do 6º andar eram diferentes. Na parte externa, praticamente não encontrou nada, apenas na la­teral direita do quadril (região lombar e costas). Mas isso causou estranheza, porque esperava mais ferimentos de queda dessa altura. Ao abrir o cadáver, encontrou lesões decorrentes da desaceleração, que acontece quando um corpo está em velocidade e sofre uma parada brusca: o arcabouço ósseo das costelas teria se chocado con­tra ele mesmo — e como os órgãos têm pequena mobilidade e impactam-se contra as paredes, havia sangue se espalhando pela musculatura intercostal e nas laterais dos pulmões. Essas lesões, chamadas de lesões de contragolpe, se encontravam principalmen­te do lado esquerdo.

Um terceiro grupo de ferimentos não podia ter causa no processo de asfixia nem no da queda do 6º andar. Eram quatro lesões encontradas em casos em que a vítima cai sentada: equimoses na palma das mãos com escoriações nos punhos, fratura impactada do rádio, lesões no períneo e fratura de ísquio. Nas palavras do médico:

"É aquele osso sobre o qual a gente senta. Quando a gente senta, a gente sente aquela protuberância óssea no local do assento, esse osso é o ísquio, onde ela tinha uma fratura linear incompleta". Tudo isso indicava, com exceção desta última fratura, uma queda-sentada da própria altura, quando a criança tenta se proteger com os braços e espalma as mãos. É uma atitude consciente, de defesa.

O juiz pergunta se essa conclusão advém da experiência do médico. Ele responde que essa descrição consta em livros de litera­tura médica nacional e internacional, e que havia conversado com médicos do Hospital das Clínicas especialistas em fraturas do ísquio, porque ela não é comum em quedas da própria altura; seria neces­sária maior energia para que acontecesse. A conclusão era de que se tratava de queda de uma altura maior e/ou com força adicional, como se um adulto projetasse a menina contra o solo.

O juiz faz a pergunta que todos nós tínhamos na cabeça: por que não poderia ter sido causada pela própria queda da janela? O médico responde que a dimensão da fratura é menor do que seria se tivesse caído sentada do 6º andar. Mesmo com a queda amorte­cida pela vegetação recente ali existente e a grama molhada, se a vítima tivesse caído nessa posição, essas lesões seriam muito maio­res, independentemente das condições do solo, como fraturas se­veras no antebraço, fêmur deslocado até os ombros. Se a queda fosse de pé, este poderia ter se deslocado até o quadril. Para de­monstrar o que estava explicando, Tieppo puxa uma mesa, na qual dá um tapa com a mão espalmada. Faz um barulhão, mas nenhum ferimento nele. Se ele utilizasse a mesma força para bater na mesa com a mão em posição vertical, ou seja, fazendo com que a ponta dos dedos fosse a primeira a sofrer o impacto, lesionaria muito todos os dedos.

A pergunta seguinte, se Isabella estava consciente no momento da queda, faz com que o médico nos explique a diferença entre lesões vitais, pós-mortais ou perimortais. No cadáver examinado, os feri­mentos decorrentes da asfixia e da queda-sentada eram considerados muito vitais; já aqueles causados pela desaceleração eram pouco vitais, próximos à hora da morte da menina, os chamados perimor­tais. Naquele instante, os parâmetros vitais já estavam comprome­tidos. "Um exemplo que eu acho bastante prático é o de uma mangueira. Uma mangueira conectada a uma torneira aberta, com aquele gatilho na ponta, por exemplo, sem estar vertendo água, se a torneira está aberta e a gente faz um furo nesta mangueira, existe um jato de água que sai desse furo por conta da pressão dessa água da torneira aberta. Entretanto, se a torneira está fechada e não existe essa pressão, a gente faz um furo nesta mangueira e o extravasamento de água, a saída de água da mangueira, é muito menor do que quando existe a pressão na água. Assim é com o vaso sanguíneo e com a pressão sanguínea. Quando existe pressão sanguínea normal produzida pela bomba cardíaca funcionando plenamente, adequa­damente, há um tipo de sangramento, um sangramento mais evidente, porque esse sangue, propelido por essa pressão, permeia os tecidos próximos ao local de onde ele está saindo. Por outro lado, assim como a mangueira sem pressão, a torneira fechada, verte água, o que a gente chama na medi­cina de babando o sangue, babando porque ele não tem nenhuma pressão impelindo esse sangue para fora dos vasos, ele escorre de dentro do vaso, o vaso rapidamente murcha pelo fato de o sangue sair de dentro dele, não existe a pressão, a vazão murcha e o sangramento pára. No caso em questão, havia lesões vitais e perimortais e por esse motivo, na que­da do 6º andar, não foram produzidos ferimentos exuberantes. Eram em pequena quantidade e de pouca expressão.

Um quarto grupo de ferimentos acabou sendo citado por não se encaixar em nenhuma etapa anterior: o que havia na testa da vítima e alguns na cavidade oral, que seriam explicados oportuna­mente, pois pertenciam a outro mecanismo de trauma.

Nessa hora, um jornalista da Rádio Capital que estava sentado à meu lado, Rogério Gama, não se contém e comenta: "Alexandre Nardoni observa tudo como se fosse a história de outro!"

O juiz pergunta se Tieppo identificou os momentos em que foram causados os ferimentos e suas causas. Ele responde que sim, pois se as lesões de impacto no chão, causadas pela desaceleração, tinham pouca reação vital, e as referentes à asfixia e queda-sentada tinham muita reação vital, estas últimas precederam a defenestração. O mé­dico explica que trabalhou em conjunto com a perícia de local.

Juiz: "No laudo necroscópico que foi apresentado ao final então, foi definido como causa da morte quais motivos?"

Tieppo: "A causa da morte foi asfixia mecânica e politraumatismo. A asfixia mecânica por constrição cervical, modalidade esganadura, e o politraumatismo pelo conjunto de lesões, a queda-sentada, da queda decor­rente do 6º andar, que eram pequenas. [...] O que causou o óbito dessa ví­tima foi a associação desses dois conjuntos de lesão".

Tem a palavra o Ministério Público. Cembranelli pede a Tieppo para relatar seu currículo, e ele o faz, explicando também a diferen­ça entre médico e médico-legista perito, que é especializado e tem por finalidade produzir perícias que exijam conhecimentos médicos para subsidiar órgãos judiciais, o Poder Judiciário, para compor a percepção da Justiça. Passa a discorrer sobre as atribuições do Ins­tituto Médico Legal, que não faz perícias apenas em pessoas mortas. Fala também sobre o trabalho de identificação, como o que foi feito no caso do acidente aéreo da TAM.

No Caso Isabella, o laudo necroscópico foi assinado por três médicos-legistas: ele próprio, na profissão há dezessete anos, dr. Carlos Penteado Cuoco, trabalhando há vinte anos, e dr. Laércio de Oliveira César, o mais experiente, na ativa há 33 anos. Estavam de plantão naquele fim de semana.

O dr. Cembranelli levanta uma questão discutida na imprensa nos dias que antecederam o júri, sobre o atestado de óbito ser dife­rente da certidão de óbito, no que se referia à causa da morte da vítima. Tieppo explica a diferença entre atestado de óbito e certidão de óbito. O primeiro é dado rapidamente à família e não tem finali­dade jurídica, serve para que seja apresentado ao cartório e à fune­rária, dessa forma permitindo que a vítima seja enterrada. Quando existem exames pendentes no IML para esclarecer a causa da morte e se é necessário esperar ainda resultados que podem demorar, no atestado a causa da morte aparece como "indeterminada" ou "ainda não determinada", dependendo da linguagem de cada médico que o expede. Já a certidão de óbito tem finalidade jurídica, extingue a personalidade jurídica do morto e pode ser dada posteriormente. O médico declarou que lhe causava estranheza uma dúvida como essa, que para eles é procedimento rotineiro. Se ainda pairasse alguma dúvida, era só ligar para o telefone 3088-7559 (IML-SP) e verificar as últimas trinta declarações, pois de dez a quinze seriam assim. Cembranelli completa dizendo os números das folhas no processo que provavam a existência de exames complementares nesse caso (Setores de Anatomia Patológica, Toxicologia, Radiologia, Sexologia e Fotografia), justificando então a causa da morte no atestado como indeterminada.

Nesse momento do depoimento do médico, o jornalista Antônio Carlos Prado, da revista Isto É, está na platéia. Ele é o responsável, juntamente com Rachel Costa, pela matéria jornalística que tratou dessa questão como se tivesse sido um erro, com destaque: "Docu­mentos Inéditos — O Instituto Médico Legal terá de se explicar: a causa da morte de Isabella relatada na necropsia não é a mesma que consta da certidão de óbito que registra a causa 'indeterminada'". Quando Tieppo dá o telefone do Instituto Médico Legal, o jornalis­ta anota bem depressa em uma folha de papel, mas sua verificação será tardia. O médico acabara de explicar com a máxima clareza e em detalhes os procedimentos e diferenças que facilmente engana­riam o público leigo. Verifiquei. O telefone dado é mesmo do IML.

O promotor passa a falar sobre a asfixia, mencionando seus sinais gerais e específicos na modalidade esganadura, elencadas pelos mais renomados doutrinadores da medicina legal, e pede que Tieppo confirme se estavam presentes no corpo da vítima. São citados Hé­lio Gomes, Genival Veloso de França, Higino Hércules, Flamínio Favero, José Lopes Zarzuela, Odón Ramos Maranhão, Hilário Veiga de Carvalho, Afrânio Peixoto, Delton Croce e Delton Croce Júnior, Almeida Júnior e outros mais. O médico-legista explica que esses sinais são clássicos na medicina legal.

Cembranelli pergunta se é possível fazer esse diagnóstico a distância, por exemplo, por alguém de Maceió, a três mil quilômetros daqui, fazendo referência clara ao parecer apresentado pela Defesa durante o processo, em que o Coronel-médico da Reserva da Polícia Militar de Alagoas, dr. George Samuel Sanguinetti Fellows, afirma que não houve asfixia pela esganadura e sim pela queda. Tieppo responde que os pareceres indiretos perdem muito, porque não se examina o cadáver. O exame direto é, para ele, insubstituível.

O depoimento desse médico-legista é feito em tom extremamente seguro, como se a toda hora nos dissesse que tudo era básico, que nenhum médico erraria nessas questões. Cada argumento mé­dico-legal utilizado pela Defesa nesses dois últimos anos foi, na seqüência de perguntas, sendo demolido pela inquirição do promo­tor ao médico-legista, que não titubeava em nenhuma explicação.

Sobre os ferimentos na boca da menina, o dr. Tieppo dá longa explicação em respostas às perguntas sobre o laudo odontolegal anexado aos autos. Ali estavam descritos ferimentos na boca da vítima compatíveis com os encontrados na literatura médico-legal com aqueles provenientes de situações de conflito, pela compressão da cavidade oral, ou seja, a boca foi forçosamente tampada. Cem­branelli pergunta: "O odontolegista, ele descreve também um pequeno ferimento na região dos olhos da vítima, que seria em razão também de alguém colocar uma mão para impedir que ela gritasse?" Tieppo respon­de que, quando o odontolegista ampliou as fotografias dos ferimen­tos da face, observou uma marca, tecnicamente chamada de estigma ungueal, um pouco acima da pálpebra à esquerda. "Dentro da dinâ­mica dos fatos seria a unha do dedo da mão que comprimia a face da vítima, a boca, a face, enfim", conclui o médico. O promotor explica para o legista que a Defesa, ao longo do processo, afirmou que esses feri­mentos poderiam ter sido causados pelo atendimento do resgate e questiona se isso seria possível. Tieppo discorda, explicando que não são lesões comuns nos processos de reanimação, além de terem aspectos eminentemente vitais. "Essas lesões, sem dúvida nenhuma, não são produzidas pelo atendimento."

Sobre o osso hióide não estar quebrado, o médico explica que esse osso em uma criança é cartilaginoso como uma orelha, e que ele só se calcifica entre os 25 e trinta anos de idade. Da mesma forma que não se pode "fraturar a orelha", Tieppo, mexendo na própria orelha, explica que na idade da vítima esse osso é altamente flexível, sendo rara a fratura em vítimas de esganadura.

Sobre a afirmação "em documento chamado de parecer", pergunta Cembranelli, de que Isabella teria caído "de ponta-cabeça", o que lhe teria causado asfixia, o médico-legista volta a explicar sobre o impacto na vertical, como demonstrou com a mão. Neste caso, haveria esmagamento do crânio e fratura na coluna cervical, além de outras muito mais severas. Além disso, Isabella não tinha sinal algum de hipertensão intracraniana.

O promotor, dirimindo qualquer dúvida sobre a causa da mor­te de Isabella, pergunta: "Doutor, eu gostaria que o senhor esclarecesse também, na medida do possível, de forma compreensível, uma questão trazida pela Defesa, que Isabella teria morrido em razão de uma embolia gordurosa". Tieppo discorre sobre embolia gordurosa, embolia gor­durosa maciça, síndrome da embolia gordurosa e suas diferenças, em um depoimento extremamente técnico, e, ao finalizar sua res­posta, o faz de forma a não ficar nenhuma dúvida de que, quando escreveu o laudo, tinha averiguado todas essas possibilidades, "isso não aconteceria numa vítima morta [...] tampouco numa vítima com sinais comprometidos. A circulação sanguínea não teria condição de espalhar esse material gorduroso por todos esses tecidos." Até a Defesa ouve atenta­mente as explicações de Tieppo, pois estamos assistindo a uma verdadeira aula de medicina legal.

Finalmente, às 17h45 o juiz concede um intervalo de quinze minutos.

Ao reiniciar os trabalhos, o Ministério Público decide fazer uso do telão, apresentando algumas fotografias do laudo necroscópico para os jurados, ainda durante o depoimento do médico-legista. O promotor separou estrategicamente as fotografias por grupo de feri­mentos: queda, asfixia e outros, de forma que os jurados acompa­nhassem visualmente cada explicação do legista. Isso permitiria que as pessoas leigas pudessem visualizar tudo que foi descrito em ple­nário, cada característica citada pelo profissional é mostrada ali, como que a comprovar a veracidade de seu depoimento. A única preocupa­ção é que essas fotografias nunca são fáceis de ver, principalmente ampliadas, mas evitam que o processo, folha por folha, seja passado de jurado a jurado, numa acrobacia bem pouco didática.

As primeiras duas fotografias, com e sem flash, mostram as manchas arroxeadas na nuca de Isabella, as equimoses e escoriações. Tieppo mostra inclusive os visíveis estigmas ungueais, ou seja, mar­cas de unha em forma de meia-lua deixadas no pescoço da menina. Também se vêem marcas como as de dedos formando uma luva. "[...] Seria como se fosse uma luva, são abóbadas horizontais, são sinais sugestivos de compressão." O médico chama a atenção para o fato de Isabella ter cabelos compridos, o que minimizou as lesões causadas em seu pes­coço, pois os cabelos funcionaram como uma proteção à pele. Nin­guém deixa de perceber a enorme pilha de livros de medicina legal que jazia esquecida na mesa do promotor, que descreviam as carac­terísticas clássicas, gerais e específicas de asfixia e esganadura.

A segunda fotografia mostrada tira o ar de muitas pessoas no plenário. Era o rosto da menina, onde Tieppo aponta com o laser como estava inchado, congesto e cianótico (arroxeado), principal­mente nas orelhas. Depois chama a atenção para as narinas da víti­ma, onde aparecia uma substância amarelada e grossa, realmente parecida com vômito. E acrescenta que foi essa a substância encon­trada na camiseta e nos pulmões dela. Pudemos também ver com clareza o ferimento na testa e os documentos odontolegais.

A fotografia seguinte é das mãos de Isabella, onde suas unhas pareciam pintadas com esmalte lilás. O médico explicou que essa coloração da pele que se vê através da unha aparecia dessa cor pela pouca oxigenação do sangue.

Vimos também o que ele chamava de língua profusa, ou seja, para fora da boca, como nas pessoas que são asfixiadas.

As fotografias seguintes são mais técnicas, já com o corpo da vítima aberto, portanto mais impessoais, mas não menos impressio­nantes. Mostram a face interna do pescoço e seus infiltrados hemor­rágicos e um ferimento embaixo do queixo, por dentro, na chamada musculatura submentoniana. Tieppo mostra em si mesmo, levando as mãos ao pescoço, como uma esganadura machuca a pessoa exa­tamente naquele lugar, pois ela flexiona o pescoço para se defender.

Também são mostradas as Manchas de Tardieu nos pulmões e no coração, pequenas manchas arredondadas que se formam com o esforço para respirar.

O juiz interrompe e pergunta aos jurados se está tudo em ordem, se pode continuar. Todos fazem sinal positivo com a cabeça.

Muitas outras fotografias são mostradas, sempre pertinentes ao que foi relatado pela testemunha. Durante todo o tempo dessa ex­posição, Alexandre e Jatobá estão alheios, não sei quanto de visão tinham do telão onde as fotos estavam sendo mostradas ou mesmo se conseguiram enxergar alguma coisa.

Cembranelli encerra perguntando a Paulo Sérgio Tieppo Alves se obteve alguma promoção ou teve algum ganho depois desse caso. Ele responde que continua seu trabalho no mesmo lugar, no mesmo plantão, só ganhou um elogio.

São 18h30 e a palavra é passada para a Defesa. Podval novamente vai fazer a inquirição. Ele começa perguntando a Tieppo: "Só uns esclarecimentos, nós chegamos posteriormente, nós entramos na Defe­sa posteriormente, então eu não acompanhei os laudos [...] O senhor disse aqui, se eu entendi bem, que para o senhor ou para a equipe que fez o traba­lho ficou muito evidente a asfixia. O senhor descarta a possibilidade, aí eu pergunto, descarta absolutamente a possibilidade de uma morte por embolia gordurosa?" O médico responde: "Sim, descarto absolutamente", e dá uma longa explicação técnica e complexa. Podval insiste: "Então, para entender, a embolia, essa maciça, impossível, a gente pode falar de muita pequena chance?" "Não", responde Tieppo, "seria muito evidente."

O advogado pergunta se o médico esteve no local e viu a reunião no apartamento da ré. Ele responde que sim, esteve, mas não se recorda de tê-la visto por lá. Viu Renata Pontes, o dr. Calixto e mais um delegado.

Podval então pergunta se o vômito aparece no laudo. "O senhor citou em seu depoimento, até me corrija se eu estiver enganado, com relação à constatação de vômito na blusa de Isabella, que isso teria sido constatado no laudo. Eu confesso ao senhor que nos autos, eu vi depois, eu acho que todos, eu não vi a constatação no laudo de vômito. O senhor recorda de ter visto ou pode ser..." Tieppo explica que viu as manchas na camiseta da vítima e que ela mantém semelhança com a substância do nariz, além do fato de ter sido mencionado em reunião com peritos, mas não sabe se está no laudo pericial porque não o leu.

A Defesa pergunta se Tieppo estava de plantão quando Alexan­dre e Jatobá estiveram no Instituto Médico Legal para colher mate­rial para o exame toxicológico, e ele responde que coincidentemen­te estava, mas não os havia visto, trabalhava em outra área naquele momento.

Podval agora levanta outra questão, sobre as marcas de unha no pescoço de Isabella. Tieppo responde que foram feitas quando houve a compressão do pescoço. É então questionado o porquê de não ter sido colhido material debaixo da unha de Alexandre e Jato­bá naquele dia, e o médico responde que esse exame não teria sido feito por ele, e sim pelos médicos que atendem pessoas vivas. Ele dava plantão no necrotério. Podval insiste: "Hipoteticamente, era possível se fazer um exame na pessoa com esses sinais, era possível encon­trar sinais na unha de uma pessoa com relação à esganadura? Isso é viável?" Tieppo explica que, em perícia, evita-se o "hipoteticamente" e lida-se apenas com casos concretos. Mas esclarece que, quando as pessoas examinadas são do convívio da vítima, não é muito significativo o resultado positivo desse exame, porque até ao se fazer cócegas em alguém se arrasta material genético para debaixo das unhas.

Mais uma vez Podval tenta a análise hipotética: "É provável que se tivesse uma marca maior do que um carinho, isso é provável?" Tieppo responde: "Sim, em casos de agressão a quantidade, em princípio, é maior. É como eu falei, a gente precisaria saber se..." Podval interrompe, per­guntando ao médico se, no caso de ele ser o responsável pela deter­minação da execução do exame, o teria pedido. O juiz interrompe: "Doutor, o senhor está entrando numa questão que não compete a ele".

O advogado, um pouco frustrado, encerra.

O pai de Jatobá chega para acompanhar o júri. Foi cercado pela imprensa, mas se recusou a falar com os jornalistas e se dirigiu para o plenário.

O juiz propõe então que seja trocada a ordem das testemunhas e se ouça, ainda naquele dia, o perito em manchas de sangue, dr. Luiz Eduardo de Carvalho Dorea, porque se prevê que seja mais breve. Todos concordam e os trabalhos seguem.

Luiz Eduardo Carvalho Dorea, testemunha arrolada pela assis­tente de Acusação, dra. Cristina Christo Leite, é perito criminal do Departamento de Polícia Técnica da Bahia, renomado nacionalmen­te por seu conhecimento da morfologia e dinâmica de manchas de sangue, especializado em crimes contra a pessoa e autor de três livros técnicos. Seu conhecimento se traduz, na prática, para o esclareci­mento sobre o que poderia ou não ter acontecido em locais de crime, como a tese mencionada pelos advogados de Defesa na imprensa, meses antes, de que a morte da menina poderia ter sido acidental.

 

Nesse dia, nos jornais, sem saber ao certo de quem se tratava, a imprensa noticiou que ele teria sido o primeiro policial militar a chegar ao local.

Em seu depoimento, esclareceu que "as manchas de sangue são indícios que permitem reconstituir o acontecimento no local, essa dinâmi­ca dos locais. As manchas podem ser analisadas de diversas maneiras, formamos, então, a partir da mancha, [...] a partir da leitura dessa mancha, (podemos) estabelecer a dinâmica de um crime".

Assim, seu depoimento versa sobre os diferentes tipos de man­cha, que assumem formas específicas dependendo da altura, traje­tória e velocidade da queda. Segundo o perito, pode-se saber se estamos diante de sangue arterial ou venoso e, com precisão quase exata, de que altura caiu a gota.

O dr. Dorea explica aos jurados o texto que se encontra à página 41 de seu livro As manchas de sangue como indício em local de crime:

GOTAS

Nestes casos o sangue se projeta sem sofrer qualquer outro im­pulso, obedecendo apenas à forma da gravidade, variando a forma definitiva da mancha a depender de uma relação direta entre a altu­ra do ponto de onde se precipitou o sangue e o suporte sobre o qual repousou ao final da queda. Considera-se nestes casos ainda a cir­cunstância de que a natureza daquele mesmo suporte poderá dar origem a algumas variações na forma final referida. Como conse­qüência, as gotas de sangue originadas desta maneira apresentam-se, relativamente à altura de onde caíram, os seguintes caracteres:

Forma circular, bordos regulares — Pequena altura, entre cinco e dez centímetros.

Forma estrelada, bordos irregulares — Altura de 40 centímetros aproximadamente. Um pequeno aumento desta altura além daque­le limite determinará um correspondente alongamento daqueles bordos irregulares.

Forma estrelada, bordos denteados, gotas satélites — Uma gota maior, cercada de outras menores, que lhe são satélites, indica uma queda superiora 125 centímetros.

Gotículas — Se caem de uma altura considerável (dois, três metros ou mais), as gotas de sangue se desfazem em gotículas que podem levar a uma falsa conclusão, caso o exame do local onde se encontrem seja feito apressadamente, sem considerar a verdadeira origem daqueles indícios, que podem se apresentar minúsculos, a depender da altura de onde caíram.

 

Cembranelli pede então que examine as fotografias do laudo do caso em julgamento, projetadas no telão, e analise as gotas que está vendo quanto à altura de que teriam caído, pois a perita Rosân­gela Monteiro, baseando-se em seu trabalho, estabeleceu que caíram de uma altura de 1,25m. Diante da fotografia da gota de sangue em lençol verde, na cama de um dos filhos do casal de réus, ele explica que está vendo uma gota maior, cercada de outras menores, chama­das de satélites, comprovando que caíram de uma altura de 1,25m "Não menos do que isso". A mesma dinâmica é analisada na fotografia subseqüente, que mostra outra gota em lençol cinza.

O promotor pede então que explique como a perita Delma Gama, contratada pela Defesa, usou suas obras para confeccionar um pare­cer. O dr. Dorea relata então que viu esse processo depois da audiên­cia do Caso Isabella que se deu em Salvador, cidade em que mora, por meio do advogado da OAB Domingo Arjones Neto, presente à sessão e seu amigo, mas esclareceu que a perita havia feito uso dis­torcido de seu trabalho. Delma utilizou-se do texto escrito por Luiz Eduardo Dorea sem as devidas aspas, como se fosse de autoria dela. Quando contatado pela assistente de Acusação, aceitou sem hesitar dar seu testemunho sobre a altura de que haviam caído as gotas de sangue encontradas no apartamento do casal ora em julgamento.

O promotor pergunta ao perito se ele sabe que é usado como bibliografia de cursos em São Paulo, organizados pela Associação Paulista do Ministério Público, que são coordenados pela dra. Roselle Adriane Soglio, advogada da Defesa presente no plenário. Ele responde que não sabia, que o último curso que deu em São Paulo foi a convite da dra. Rosângela Monteiro, em julho do ano anterior.

Cembranelli não deixa de comentar com os jurados que a peri­ta Rosângela Monteiro utilizou o trabalho exatamente deste perito para fundamentar seu laudo, desta vez com aspas.

Quando a palavra é passada para a Defesa, quem se levanta para a inquirição de Dorea é a dra. Roselle Adriane Soglio, que pa­rece estar emocionada pela presença de tão brilhante professor, usado como bibliografia número 1 nos cursos que ela organiza. Ela faz um discurso de admiração e passa a desconsiderar o parecer contratado pela Defesa anterior do casal Nardoni, feito por Delma Gama. Diz: "É uma honra muito grande pra mim, eu estou muito feliz com o fato de o senhor estar aqui, pra mim é uma aula sempre ter o senhor aqui!"

Começa perguntando se o piso em que está a mancha de sangue pode modificar a reação do reagente químico utilizado pela perícia. Dorea diz que essa não é sua área de atuação, os reagentes, e, por­tanto, não poderia responder a essa pergunta.

A dra. Roselle então lhe mostra fotografias do laudo, junto aos jurados, e pede que analise uma mancha no corredor e outra no parapeito da janela. Diante da dificuldade de enxergar as manchas na fotografia e mostrar detalhes para os jurados, Dorea comenta que seria ótimo se houvesse ali uma lupa. O dr. Maurício, gentil­mente, lhe empresta uma. O perito responde que a mancha do corredor tem a mesma configuração das do colchão, formando o que ele chama de "bico de pato", e dá direção à gota, apenas estava sem as satélites pela exígua quantidade de sangue. A conclusão é de que a menina já está sendo carregada. Sobre a mancha da janela, explica que essa gota caiu de uma altura menor, assumindo a con­figuração que aparenta em função do rejunte do parapeito. Real­mente, ao subir na cama, o parapeito está em altura menor em re­lação a ela do que o chão.

A Defesa pergunta se o dr. Dorea ainda trabalha como perito criminal na Bahia; ele responde que não. Depois pergunta há quan­to tempo ele se aposentou, mas esclarece que não está aposentado e sim "ocupado", de 2003 a 2007, com a Corregedoria Geral da Po­lícia Técnica e agora voltou à sua antiga profissão de jornalista, atualmente lotado na assessoria de comunicação do gabinete do secretário de Segurança Pública da Bahia.

Quando indagado se veio a pedido da assistente da Acusação, responde: "Em setembro, para minha surpresa, fui contatado pela dra. Cristina, creio que por causa de meu nome na bibliografia, e a gente está sempre disposto a trabalhar pela melhor aplicação da Justiça".

O juiz indaga se algum jurado tem perguntas para o perito. Havia: se as manchas nos lençóis são em movimento ou estáticas; ao que ele responde: "Em movimento, eu acredito que isso ficou eviden­te, elas são quase uma cópia uma da outra, pela sua posição ê como se fossem seqüenciais".

Encerram-se os trabalhos daquele dia, com a bancada da Defe­sa feliz, achando que o depoimento do perito lhe era favorável. Não deu para acompanhar o raciocínio, porque entendo que ele confir­mou tudo o que a perícia de São Paulo levantou, sendo o fato mais importante e relevante o de a menina ter sido carregada no colo apartamento adentro por um adulto, comprovada a altura das gotas de sangue, caídas a 1,25m do chão e do lençol. Além disso, como explicou o promotor, Isabella possuía 1,10m de altura e o colchão estava a 56 cm do chão, de forma que, quando caísse uma gota de sangue do ferimento em sua testa, seria de uma altura de pouco mais de 40 cm, desenhando-se no lençol um formato completamente diferente daquele encontrado.

 

                       Terceiro dia

Terceiro dia de júri. O calor no começo da manhã já beirava o insuportável. Havia previsão de chuva para aquele dia, fazendo com que a imprensa tomasse algumas providências, como a montagem de lonas, pedindo ao pessoal de apoio técnico que ficasse na parte coberta do prédio, a fim de garantir as entradas ao vivo.

O sr. Antônio Nardoni, pai de Alexandre, chegou ao Fórum e foi recebido com vaias pelos manifestantes. Em seguida houve cer­ta confusão na chegada do advogado de Defesa, dr. Podval, que dirigiu poucas palavras a alguns jornalistas, dizendo que estudava a possibilidade de acareação entre Ana Carolina Oliveira e os acu­sados. Ele também foi recebido com vaias, tendo, inclusive, recebido um chute de um dos manifestantes. E um equívoco imperdoável entender que o advogado concorda com a prática de qualquer crime apenas por estar exercendo seu papel de representar a defesa do acusado, que tem essa garantia constitucional.

Entrar no Tribunal foi um trabalho hercúleo, sem dúvida. Gló­ria Perez, novelista brasileira que viveu uma tragédia pessoal com o assassinato de sua filha e desde então apóia mães que passam pela mesma situação, é uma pessoa simples. Às vezes esquecemos a celebridade que é, como no dia anterior, quando nós duas saímos do Fórum caminhando e fomos atropeladas pela imprensa que ali aguardava, nos cegando com flashes e câmeras. Muitos do público aplaudiram Glória, numa recepção calorosa para aquela que sempre luta por justiça, independentemente de quem seja a vítima, mas não foi nada fácil chegar ao estacionamento. Dessa vez entramos pela garagem do Tribunal, para não corrermos nenhum risco físico. Ledo engano de que seria tão simples. Recebemos com alegria a come­moração de sua presença, mas passar pela guarita foi uma situação inusitada para mim! Fomos cercadas imediatamente por dezenas de jornalistas que quase chegaram a subir no capo do carro, bateram no vidro para tentar um melhor ângulo para fotos, insistindo para que Glória abrisse a janela para falar com eles.

Que se explique: Glória deu seu apoio à família Oliveira logo nos primeiros dias, não acompanhou o caso apenas nos momentos finais. E comparece a outros júris, nem sempre noticiados. Neste caso, se manteve informada sobre os trabalhos da Promotoria des­de o início, colaborou com seu conhecimento e suas reflexões; nada mais justo que acompanhasse o desfecho. Até mesmo o advogado dr. Roberto Podval, em entrevista na porta do Fórum para a Rede Globo, declarou: "É um direito dela apoiar quem quiser. Mas sou um fã dela".

 

10h15 — Todos de pé. Entra para iniciar os trabalhos o juiz dr. Maurício Fossen. Os réus já estão em suas cadeiras, sempre vestidos no mesmo estilo. Anna Carolina Jatobá, como anteriormente, está de cabelos presos em um rabo de cavalo.

Entra em plenário a perita dra. Rosângela Monteiro, para um dos mais esperados depoimentos desse júri. Foi ela quem coordenou todos os trabalhos periciais do crime em questão. Para aqueles que tinham em seu imaginário uma senhora de coque e óculos, sua figu­ra surpreende. Veste um terninho roxo elegante e é belíssima.

Os avós maternos de Isabella se entreolham no plenário. Assis­tem a tudo de mãos dadas.

Após o repertório inicial de praxe, a dra. Rosângela diz ao juiz que não é testemunha, que está ali por dever de ofício do Estado. E começa sua inquirição.

O juiz pede que explique como se desenvolveu seu trabalho. Rosângela esclarece que um perito só vai a um local de crime quan­do requisitado, o que aconteceu neste caso, e se dirigiu para lá o perito que estava de plantão naquela noite. Explica que ela é perita criminal assistente, dá suporte técnico, ficando sempre de prontidão para atender outros peritos quando estes sentem necessidade, como fez o perito Sérgio Vieira Ferreira ao solicitar seu auxílio.

Os assistentes da Defesa fazem anotações frenéticas, depois consultam o laudo como que para conferir o que está sendo dito.

O juiz pergunta como havia chegado a ela o comunicado de solicitação de perícia. Ela esclarece que foi solicitada perícia para roubo seguido de morte, com histórico de que um indivíduo des­conhecido teria entrado em um apartamento para roubar e jogou pela janela uma criança de seis anos de idade. Depois dos exames iniciais executados pelo perito Sérgio, que "apaga o fogo", ou seja, dá apenas o primeiro atendimento, o suporte realizou exames com­plementares com reagentes, análise de manchas latentes e utilização de luzes forenses. O juiz pergunta: "O que o perito Sérgio relatou?" A perita responde: "Quando chegou, constatou os vestígios existentes e coletou provas". Explica que em perícias de crimes patrimoniais, como aquele descrito na solicitação, existe o cuidado de verificar os aces­sos ao apartamento e ao edifício, sendo este o motivo de o perito ter retornado à luz do dia, para verificar, por exemplo, se havia sinal de escalada nos muros externos. Também conta que chamou muito a atenção as manchas de sangue que se encontravam logo na entrada do apartamento, no sentido de fora para dentro. "O perito queria confirmar isso comigo." Isso significava que a garota havia sido ferida em outro lugar, antes de chegar ali, mas, a olho nu, não se viam mais manchas.

O juiz pede que explique melhor sua atuação neste caso. Rosângela responde que entrou em contato com a autoridade reque­rente sobre o uso de reagentes químicos, que precisam ser utilizados no escuro. Para tanto, marcou os exames complementares para o dia 2 de abril, após as 18h, em trabalho que perdurou por quase catorze horas. Para realizar esse tipo de perícia é necessário treinamento especializado e sofisticado.

Ao ser perguntada sobre o que teria sido identificado ali, ela explica que puderam observar manchas de sangue parcialmente removidas, visualmente interrompidas, indicando a tentativa de limpeza parcial da cena do crime. Após isso, verificaram também as áreas comuns do edifício, desde a entrada do imóvel até a garagem, constatando-se sangue também dentro do veículo.

Podval acompanha com atenção e roda uma bolinha anti-estresse entre os dedos.

O juiz questiona sobre a preservação do local antes da chegada dos peritos. Rosângela responde que esse foi um dos locais mais bem preservados em que já trabalharam. Graças a isso obtiveram sucesso em conseguir coletar todos os vestígios, como sangue no piso, nos lençóis, a tela da janela, fralda, material no veículo dos réus.

A perita segue seu depoimento explicando o que foi apurado nos exames com reagente químico. Poderia ter usado das marcas Luminol ou Bluestar Forensic, e optou pela segunda, por considerá-la mais eficiente. Esclarece que estes são exames de orientação, e, onde encontrou sangue, utilizou outro produto complementar de nome Hexagon Obti, para comprovar se era sangue humano. São dois produtos usados em conjunto: o Bluestar detecta sangue, o Hexagon permite saber se o sangue é humano ou não. Das manchas visíveis foi coletado material para envio ao laboratório, com o objetivo de extrair DNA, se possível. A primeira preocupação era saber se se tratava de sangue da vítima, isto com a investigação correndo em paralelo; ninguém sabia ao certo. E um trabalho difícil porque o material encontrado era exíguo, e a utilização do reagente o diminui ainda mais.

A seguir o juiz pede que esclareça o trabalho pericial que foi executado na tela de proteção da janela por onde a menina foi defenestrada. Rosângela explica que foram coletadas faca e tesoura encontradas no local do crime e encaminhadas para o Núcleo de Física do Instituto de Criminalística. Ali se provou, inequivocamen­te, que a tesoura foi empregada para cortar a tela, pois continha filamentos em seu interior. A faca poderia não ter sido usada, mas estava no mesmo local. Também foram desenvolvidos trabalhos periciais de confronto entre marcas na camiseta do réu e a tela de proteção, foram levantadas as impressões digitopapilares, inclusive na faca e na tesoura, fazendo uso de luzes forenses, sendo este o mesmo método utilizado na janela, na porta de entrada e na maça­neta do apartamento.

O magistrado passa a palavra para o Ministério Público. Cembranelli se levanta e, de pronto, pede as credenciais da perita. Ro­sângela, formada em psicologia, descarrega um currículo dos mais completos já vistos, descrevendo inúmeras especializações, mestra­do e doutorado que fez durante os trinta anos de atuação como perita criminal, além de cargos como o de presidente da Associação Brasileira de Criminalística. Atualmente ocupa o posto de perita criminal assistente da diretoria, e termina brincando: "Não sei se lembrei de tudo!" O juiz sorri: "É o suficiente!"

O promotor pergunta então à perita se é necessário treinamen­to para fazer uso de reagentes químicos periciais e quantas pessoas teriam formação suficiente para isso. Rosângela responde que atual­mente é a pessoa mais experiente que utiliza reagentes químicos, auxiliando até mesmo peritos de outros Estados. Em São Paulo, apenas ela faz essa análise, porque, além de ser versado em reagen­tes, o perito deve também conhecer local de crime, dinâmica de manchas de sangue e luzes forenses. Cembranelli insiste: "Não há necessidade de ser somente perito, precisa ser perito treinado para isso?" Ela responde: "Exatamente, não basta ser especialista criminal para uti­lizar esse tipo de recurso". Explica que muitos peritos não conseguem diferenciar se é sangue ou não e qual foi a dinâmica do local. Trata-se de conhecimento muito específico. Passa-se por treinamento, na própria indústria responsável pela representação do reagente, e vários profissionais, norte-americanos, no caso do Luminol, ou eu­ropeus, no caso do Bluestar, ministram cursos.

Diante da informação anterior ao júri de que a advogada da Defesa dra. Roselle possuía muitos conhecimentos periciais e que se pretendia ali mesmo, em plenário, uma demonstração do uso do reagente, o promotor dispara:

Cembranelli: "[...] Há alguém na tribuna da Defesa que tenha co­nhecimento ou que tenha esse treinamento?"

Rosângela: "Ninguém".

Podval: "Excelência, eu não entendi na verdade se tenho treinamen­to em alguma coisa ou se eu não tenho treinamento, já que ela não me co­nhecei Eu não conheço a testemunha".

Juiz: "A senhora sabe informar se algum dos defensores tem conheci­mento?"

Rosângela: "Não, desconheço, nenhum deles, pois não são peritos criminais, não atuam".

Juiz: "A senhora não sabe se tem, ou não tem conhecimento se tem?"

Rosângela: "[...] Não, não tem, não tem, porque o conhecimento na utilização, ele não requer só pegar o reagente e utilizar algumas vezes em algumas coisas, pegar uma gotinha de sangue, colocar aqui para ver se reage ou não, limpar para ver se reage ou não. [...] A maioria é treinada por mim, e para se obter um resultado fidedigno tem de ser perito criminal".

A perita diz que não vê na bancada da Defesa nenhum perito criminal que já houvesse ido a um local de crime e só seria possível se tivesse sido treinado pelo próprio representante.

Cembranelli segue perguntando se esses reagentes podem ser comprados por qualquer pessoa em qualquer lugar, como na rua 25 de Março, e se é possível sair testando por aí em manchas de sangue ou na cozinha, como se fosse brincadeira de criança. Rosângela responde que se trata de um produto altamente tóxico, cancerígeno, que requer uso de óculos protetores, máscara e luvas, além de não poder ser borrifado em qualquer lugar.

O promotor pede que a perita o acompanhe até a maquete, solicitando que ela demonstre aos jurados o que encontrou. Rosân­gela passa a descrever suas observações desde a entrada do aparta­mento, que era constituída por uma única porta. Havia sangue na soleira, uma maior quantidade perto do sofá da sala, da mesa de jantar e da tábua de passar roupas que estava aberta. No corredor de distribuição dos dormitórios foram localizadas duas ou três gotas, e no primeiro quarto também mais algumas. Nos demais cômodos não havia gota de sangue visível. Ela observou que nas manchas visíveis não havia necessidade de utilização do reagente, que é feito para manchas latentes, que ela não vê. Como algumas delas estavam interrompidas, e a gota quando cai não o faz aos pedacinhos, ou existia um anteparo entre o sangramento e a gota ou ela havia sido removida. Como não havia anteparo algum, só se podia concluir pela segunda hipótese, que fundamentava a decisão pelo uso do Bluestar, em conjunto com o Hexagon.

A perita é seguida pela assistente da Defesa, dra. Roselle, que observa suas explicações atentamente, estuda a reação do plenário e dos jurados e faz algumas anotações.

Rosângela continua, e explica que nos lençóis as manchas eram visíveis e não foi necessário equipamento extra para observá-las. Fora do apartamento não existia nem sombra de mancha de sangue, mas a gota da porta de entrada apontava para o fato de a menina ter entrado já ferida. O desenho do trajeto das gotas indicava a di­reção do indivíduo, pois eram em seqüência. Por precaução utiliza­ram o reagente em outras regiões para saber se havia algum local onde ela pudesse ter sido ferida, mas não encontraram nada. Deci­diram, então, periciar o carro. A conclusão a que os peritos chegaram foi de que as manchas de sangue haviam sido em parte removidas. Como o chão do apartamento era escuro e elas se confundiam facil­mente com o desenho dos nós da madeira que o piso imitava, a pessoa certamente havia achado que limpara tudo.

O promotor pergunta se o sangue encontrado era humano. A perita confirma, e explica que seu colega que esteve inicialmente no local tomou o cuidado de coletar parte das gotas na entrada do apartamento e no corredor, mas não foi possível, com a quantidade existente, fazer o perfil de DNA do material. Começa um pingue-pon­gue sobre os testes feitos no sangue. Cembranelli cita cada local em que algum vestígio foi encontrado: no lençol verde, ela responde que era sangue humano e de Isabella; no lençol cinza, ela responde que era sangue humano e de Isabella; na tela de proteção, ela responde que era sangue humano e de Isabella. "E no carro?", pergun­ta o promotor? A perita explica que, no veículo, nada era visível a olho nu, porque a forração cinza e o carpete poderiam mascarar as gotas. Foi aplicado então o reagente e o Hexagon, inclusive nos bancos e no porta-malas. Três pequenas manchas de sangue foram encontradas: na parte posterior do banco do motorista, no chão e na cadeirinha para transporte de crianças, do lado esquerdo da alça. Nesta última amostra depois foi identificado o perfil genético de Isabella e de seus irmãos.

Nesse momento o juiz interrompe a explicação por quatro vezes, pedindo para Cembranelli falar mais devagar, e chama a atenção da perita para que esclareça melhor essas considerações. Rosângela consulta seus laudos.

E perguntada então, pelo promotor, o que ela quis dizer às fls. 674 do processo, no item A do laudo no que se refere à descrição das gotas de sangue, quando utiliza a expressão "praticamente estático" sobre o ponto hemorrágico. É uma referência clara, para nós que estamos acompanhando os trabalhos em plenário, à dúvida levan­tada no dia anterior na inquirição do perito Luiz Eduardo de Carva­lho Dorea. Rosângela explicou: "E, é exatamente esse o sentido, 'praticamente estática'. Por quê? Essa mancha tem uma característica que nós chamamos de mancha passiva ou de baixa velocidade. Então ela não é abso­lutamente estática". Elucida que não é como um conta-gotas parado em um mesmo lugar pingando, mas como uma pessoa andando lentamente e o sangue saindo de um ponto hemorrágico fixo, crian­do uma mancha "redondinha". "Quanto mais lento o caminhar", ex­plica, "menos alongada fica a mancha, como a imagem de uma lágrima."

Passam então a falar sobre a altura da queda da gota de sangue com aquela configuração, que foi estabelecida como tendo caído a partir de 1,25m. A perita fala sobre estudos nacionais e internacionais que tratam da dinâmica de uma gota de sangue para estabelecer de que altura ela caiu, como se comporta. Com base nesses estudos, publicados em livros, no manual do FBI (Federal Bureau of Investigation), em revistas forenses e outras publicações, ela fez o cálculo, esclarecendo que quando aparecem assim como essas manchas, claras, isoladas e "bonitinhas" no aspecto técnico, é muito fácil fa­zê-lo. Já quando se trata de gotejamento sobreposto o cálculo se torna bem mais difícil.

Cembranelli mostra então à testemunha a fotografia de uma gota de sangue às fls. 678 do processo (a mesma mostrada ao perito Luiz Eduardo de Carvalho Dorea). Ela responde que se trata de mancha encontrada no corredor, um pouco diferente das demais. Sua altura é a mesma das outras, como a dos lençóis, e explica o que ouvimos no dia anterior sobre gotas satélites, que se formam a par­tir de 1,25m. "Parece que estão orbitando a gota."

É mostrado então a ela o livro de Dorea, e ela comenta que é referência nacional nessa área de estudo. "Neste livro consta uma das primeiras experiências nacionais feitas pelo professor Lamartine (Lamar­tine Bizarro Mendes), que foi meu professor."

Há breve discussão entre promotor e advogado sobre a leitura da página 41 do livro, pois Podval alega que o que está ocorrendo na verdade é debate e não inquirição, uma vez que o promotor lê o livro, cita o livro; e há interferência do juiz, que diz: "Ele está confir­mando se ela levou como base para tirar uma conclusão. Ela tem que expli­car como chegou à conclusão do que está no laudo". O Ministério Públi­co prossegue perguntando se Isabella estava sendo carregada dentro do apartamento, segundo a análise das manchas de sangue. Rosân­gela diz que se aquela mancha foi projetada em baixa velocidade, com altura de 1,25m, significa que a vítima teria que estar sendo carregada. Aventam a possibilidade de a menina estar caminhando, mas, se fosse assim, a gota cairia a menos de 1,10 m, que era a altura de Isabella. A perita demonstra, em pé, que seria inferior à altura da vítima, porque a pessoa, mesmo ereta, projeta a cabeça para baixo, já que o sangue está caindo no chão e não na roupa. No caso em tela, a configuração da mancha de sangue causada por gota caída a me­nos de 1,10m de altura seria totalmente diferente.

Várias pessoas que passaram horas, ou até mesmo a noite, na fila, se acomodam na poltrona e dormem, alguns até profundamen­te. Ao se dar conta disso, o segurança vai até essas pessoas, alertando-as da proibição de dormir no plenário, falando "por entre os dentes": "isso é falta de respeito!"

Cembranelli pede que a perita o acompanhe até a maquete do edifício e é seguido também pela dra. Roselle. Ali a questiona sobre a verificação de todas as portas e entradas do prédio e sua vulnera­bilidade, se foram consideradas no laudo ou não. Ela responde que estão todas consignadas no laudo, portanto, foram examinadas, citando inclusive o fato de os muros serem muito altos.

"E as impressões digitais", pergunta o promotor, "foram verifica­das? " Rosângela sorri. Explica que é o vestígio mais básico, um dos primeiros meios de identificação, que se vê nos filmes e na mídia. É bastante simples na ficção, sempre estão todos os dedos ali mar­cados, mas infelizmente não é assim na vida real. Demonstra em plenário como costumamos pegar as coisas com a ponta dos dedos e não apertando o objeto com a digital inteira. Se for feito ainda um movimento que "esfregue" a digital, ela está estragada de forma definitiva para a perícia. Impressão digital, apesar de sim­ples, é questão bastante sutil, conclui. Constata-se não apenas o contato com os dedos, mas também plantar ou palmar, e isto foi igualmente procurado. Rosângela se indigna com a mera suposição de que esse trabalho não tenha sido feito. Segundo ela, o levanta­mento de impressões digitopapilares, principalmente em locais de crimes patrimoniais, como especificava a requisição, é primordial. Não se levantam de todos os locais, isso nem seria necessário, mas nos locais onde com maior probabilidade foram manipulados pelo criminoso, como nesse caso a porta de entrada e a janela, que teriam sido abertas e/ou fechadas. Explica ainda que as luzes forenses, quando utilizadas por uma pessoa bem treinada, obtêm excelente resultado para esse tipo de busca, mas é essencial que se saiba o que se procura ou o que se encontra. Elas foram usadas também no balde onde estava a fralda de molho e na superfície da mesa, mas, como na maioria dos casos, foram levantados apenas borrões e esfregaços. "Se alguma impressão digitopapilar inteira fosse encon­trada, seria então utilizado o pó ou a fumigação por cianoacrilato, a supercola, como vemos nos filmes da série CSI, aquele com vapor", explica a perita.

Cembranelli levanta então o assunto da impressão infantil no lençol, e Rosângela explica que não havia condição de identificar alguém por meio dela. No laudo ficou consignada a impressão da polpa de um dedo, mas ela não poderia assegurar, em termos bra­sileiros para identificação positiva, em que são necessários doze pontos de coincidência. Ainda no mesmo assunto, a testemunha é questionada sobre a marca das mãos no batente da porta de entrada do dormitório da vítima. Ela responde que, pelo tamanho da polpa, dimensão do conjunto e altura da marca, trata-se da mão de uma criança.

O próximo ponto a ser questionado mais uma vez, agora pela Acusação e de forma mais detalhada, é a preservação do local do crime, uma vez que todos os exames que ela fez aconteceram no dia 2 de abril, antes que o apartamento estivesse lacrado. A perita ex­plica que a coleta efetiva de tudo o que era necessário em um pri­meiro momento foi feita com o local preservado pela Polícia Militar. O seu trabalho, os tipos de exame que executa, só podem ser reali­zados durante a noite, e há casos de serem efetivos até dez anos depois do crime, com o uso dos mesmos reagentes. A preservação, nesse caso, não interfere no resultado. As coletas de vestígio, portanto, foram feitas no dia 30 de março, em duas vezes (noite e dia), e seus exames no dia 2 de abril, além das complementações fotográ­ficas da área externa e o levantamento topográfico, e ainda a perícia no apartamento no. 63, em frente àquele onde os fatos ocorreram. Ali foi encontrada uma camiseta manchada de sangue, sobre a qual se fez laudo separado para não confundir ninguém. Era um aparta­mento ainda em obras, em fase de acabamento, com latas de tinta espalhadas e roupas evidentemente dos trabalhadores, pois estavam com nódoas de argamassa. A camiseta, segundo a perita, realmente estava manchada de sangue, mas pela localização e morfologia parecia que a pessoa havia limpado o nariz ali. Por cautela, foi feito um exame de DNA, que comprovou ser um perfil genético do sexo masculino e não compatível com o de Alexandre Nardoni.

O promotor questiona se poderia ter havido alteração do local pelos próprios policiais nos trabalhos preliminares, provocando alterações que prejudicariam o resultado do laudo. A testemunha explica que o policial que preservou o local ficou posicionado do lado de fora do apartamento, mas que muitas vezes, ao verificar o local, alguém pode pisar em alguma prova. "Quando constatamos que houve alteração no local (pela tentativa de limpeza)", diz Rosângela,

"ela teria de ter sido feita antes da chegada da Polícia Militar, que não teria motivo para fazê-la."

O juiz interrompe, pedindo que Rosângela explique novamen­te a questão de o perito ter avaliado que aquele balde com uma fralda de molho estava fora de contexto. Ela discorre então sobre o que seria o contexto daquele local. Quando chegam para analisar cenas de crimes patrimoniais, como dizia a requisição da autorida­de policial, o local costuma estar revirado, os móveis fora de lugar, porque, nesse caso, o interesse do criminoso é roubar. Então são encontradas gavetas puxadas e coisas assim. Na residência em ques­tão os móveis estavam alinhados. Mas era notória a falta de cuidados com higiene ali, uma vez que havia roupa suja misturada com lim­pa por todo lugar, além do fato de não haver nada dentro da máqui­na de lavar roupa, apesar das muitas peças de roupa a serem lavadas. Apenas um balde jazia ali, com uma única fralda de molho, fora do contexto, ou seja, da rotina daquela casa.

Alexandre imediatamente chama o advogado, que o escuta. O promotor segue, agora pedindo que se explique como era a bagun­ça no apartamento, e a perita conta que chegaram a encontrar um absorvente usado em meio a brinquedos. Jatobá cruza os braços, parecendo furiosa. Alexandre sinaliza mais uma vez para o advo­gado, enquanto a esposa literalmente bufa. Quando volto a prestar atenção na inquirição, depois de toda essa movimentação causada pelos réus, promotor e perita falam sobre as gotas de sangue detec­tadas na fralda, acastanhadas, mas em quantidade insuficiente para obter o perfil genético por DNA que comprovasse se tratar de sangue da vítima, apesar de o reagente Bluestar ter demonstrado a configu­ração das manchas e o Hexagon ter apontado sangue humano. Ex­plica ainda que, pelo formato das manchas, por sua morfologia, a fralda foi utilizada dobrada, para tamponar o ferimento da vítima, pois elas constam dos quatro quadrantes do tecido, em cada um mais fraco que no anterior. A fotografia passa de jurado a jurado, para que constatem o que a perita está demonstrando.

Rosângela ainda explica que essa dobradinha, Bluestar-Hexagon, é necessária porque o primeiro reagente só constata se o mate­rial analisado é sangue, mas não diz se é ou não humano, resposta encontrada apenas com o uso do segundo reagente. "Atualmente os kits/a podem ser adquiridos com o reagente Bluestar mais o Hexagon. Veja bem, vêm as pastilhas do Hexagon, vêm as pastilhas do Bluestar e mais o kit de revelação do Hexagon. Ele foi desenvolvido especificamente para complementar o Bluestar." Enquanto o exame feito com o Bluestar é de orientação, o realizado com Hexagon é exame de certeza. Pode acontecer um resultado chamado falso-positivo no caso do Bluestar, ou seja, há reação em contato com outras substâncias que não sangue, mas um perito experiente sabe a diferença. Reagem ao Bluestar substâncias como vernizes, tintas e alguns alimentos, como banana, mas a reação é branca e não azul. O profissional que está manipulando o reagente tem de optar pelo local onde irá utilizá-lo, pois conhece seus limites. "Se houver vegetais, nem aplico" diz a perita. "Uma aplicação feita em local não apropriado, em vez de ajudar o perito vai acabar desorientando-o."

Como ela sabe se é sangue ou não? Explica que depende da intensidade e da duração da luz no momento de reação. Quando é sangue, essa intensidade é tão forte que as manchas acabam até parecendo maiores do que são na realidade.

Cembranelli está cobrindo, com suas perguntas, todas as dúvidas que foram levantadas pela Defesa e, algumas vezes, pela imprensa. Rosângela está bastante tranqüila, como quem tem completo domínio sobre o assunto abordado. Mais uma vez, nesse júri, estávamos ten­do uma aula intensiva de criminalística. Para condenar ou absolver é imprescindível que se entenda, além do raciocínio de quem inves­tigou, as provas ali produzidas, se são refutáveis ou não, seja pela eficiência de sua realização, seja pela interpretação dos resultados.

Os esclarecimentos agora são sobre a construção das maquetes, feitas em parceria com o Instituto de Criminalística. Por que neces­sitaram de alguém de fora? A perita explica que eles não têm verba para tanto, mas, se a empresa fizesse essa miniatura arquitetônica sem a participação dos peritos do Instituto, não seria possível consigná-la, porque não se poderia confiar em que teria sido construída com os dados oficiais levantados no local do crime.

Sobre a reprodução simulada, Rosângela explica que ela não é feita com base nos depoimentos, porque o enfoque ali não é pericial. O que se espera é que os acusados apresentem sua versão in loco, para que ela seja confrontada com os laudos produzidos. Por esse motivo é tão importante que as partes participem. Nesse caso, os peritos não reproduziram a versão dos réus porque eles não com­pareceram aos trabalhos de reprodução simulada, apesar de terem sido esclarecidos de que aquela era a oportunidade para que sua versão fosse comprovada pela perícia. Apesar disso, a delegada requisitou a cronometragem das questões alegadas, o que foi feito.

Cembranelli pergunta à testemunha sobre a utilização de uma boneca nos trabalhos da reprodução simulada e das críticas que sofreu por não tê-la arremessado pela janela. Ela responde que dispõe de vários manequins hospitalares — idoso, criança, adulto. Eles têm órgãos internos que facilitam o entendimento em muitos casos. "Mas arremessar coisas nunca foi um procedimento científico ou pericial. O corpo é flexível, móvel, e todas as vezes que o corpo fosse arre­messado, cairia deforma diferente. Não existe esse procedimento", disse a perita.

Na pergunta seguinte teve oportunidade de esclarecer os trabalhos periciais referentes à tela de proteção da janela, durante a reprodução simulada, quando sofreram críticas de que o buraco reproduzido ali não era igual ao original. Rosângela explicou que o objetivo da reprodução simulada é verificar verdades e mentiras da versão dada. A experimentação científica do corte na tela e das mar­cas na camiseta foi realizada com os materiais originais, no Institu­to de Criminalística de São Paulo. Não seria a reconstituição dos fatos e sim sua reprodução, porque nunca é igual. Nem mesmo o autor do crime, quando participa, conseguiria fazer tudo igual, pela própria emoção que a situação real propicia. Nesse momento uma fotografia da tela é projetada no telão, e Rosângela explica a todos que ao cortar o primeiro filamento da tela tensionada ela já se de­forma, e exemplifica que, quando o crime é com arma de fogo, obviamente não se reproduz o tiro no local e sim nos laboratórios de balística.

Cembranelli continua a projetar imagens no telão, agora da experimentação científica referente à camiseta, realizada em labora­tório, enquanto a perita esclarece como isso foi feito. Segundo ela, as marcas ali eram vistas a olho nu, mas não bastava como prova apenas o fato de combinarem com o desenho da tela. O trabalho pericial deve esgotar o assunto com o ensaio, para mostrar como aquelas marcas foram deixadas ali. Rosângela explica os procedi­mentos do teste, que incluía utilizar camiseta de mesmo tamanho, tipo de fibra, espessura, modelo, características semelhantes, além de pessoa de porte físico aproximado ao do réu. Ela esclarece que ao realizar esses exames poderia obter diferentes conclusões quanto ao desenrolar dos fatos. Todos os cuidados para a credibilidade científica do teste haviam sido tomados, tais como a altura com re­lação ao piso, a tensão da tela, a medida do vão da janela, a posição das camas. Havia a necessidade de olhar para baixo em movimento espontâneo, e assim foi feito, aplicando-se pó de grafite na tela para obter-se a impressão na camiseta nas várias formas possíveis de imprimir a marca. O que mais chamou a atenção, segundo ela, foram as marcas da tela na face interna da manga da camiseta do réu, não comuns em uma aproximação normal à janela.

Alexandre observa atento a todas as respostas da perita, esticando-se para enxergar o telão, se ajeitando na cadeira e finalmente apoiando o cotovelo no joelho e a mão no queixo.

Rosângela explica como utilizou um peso de 25 kg, que era quanto a vítima pesava, e comentou a expressão facial que o perito que representou o acusado nos testes fazia naquela posição, porque não era fácil segurar esse peso através daquele buraco. Foram repe­tidas várias posições, até se obter a mesma marca impressa na ca­miseta do réu, permitindo que se pudesse entender o que aconteceu, passo a passo. Existia uma diferença na coloração das marcas, mais forte em conseqüência do uso de pó de grafite, mas o desenho encontrado era exatamente o mesmo. "Não basta só encostar na tela, efetivamente tem que se jogar o peso do corpo contra ela. Isso só é possível segurando-se um peso de 25 kg. Não existe outra possibilidade", explica de forma enfática. Para finalizar a inquirição sobre os testes da camiseta, Cembranelli mostra aos jurados a fotografia das sujidades na parede externa da fachada do edifício a partir da janela de onde a vítima foi defenestrada, que demonstram as marcas das mãos de Isabella se arrastando na vertical, sem poder se segurar em nada. É impressionante como tudo faz sentido.

A última pergunta do Ministério Público é sobre os resultados de DNA e as tabelas apresentadas nos laudos, de dificílimo enten­dimento para qualquer leigo. Já é quase uma hora da tarde e, para ser sincera, estou exausta e me questionando se esse depoimento já não está muito longo. Mas a Promotoria tem de buscar a compreen­são plena dos jurados quanto à prova, portanto, só mais um pou­quinho... Rosângela esclarece que não é ela que faz esse tipo de exame, e sim a biologia do Instituto, mas que se dispõe a explicar. E o faz com maestria. Os jurados entendem que tudo faz sentido no conjunto, quando o material genético encontrado na cadeirinha do bebê aponta para oito casas de DNA coincidentes com o material genético de Isabella, enquanto o FBI necessita de apenas cinco casas para validar o exame de confronto positivo. "É o conjunto encontrado e não o resultado de cada exame em separado (que conta)", diz a perita.

O Ministério Público encerra da mesma maneira que fez ante­riormente, esclarecendo que o diretor da Polícia Científica de São Paulo, Celso Periolli, foi condecorado nos Estados Unidos, pelo Federal Bureau of Investigation (FBI) por seus trabalhos desenvol­vidos no Brasil, e como essa perícia foi referência em nosso país e que Rosângela Monteiro não obteve nenhuma promoção com o caso e continua a trabalhar da mesma maneira que fazia quando tudo começou. Era apenas mais um caso.

 

13h07 — E passada a palavra para a assistente da Acusação. Ela questiona Rosângela se foram feitos testes técnicos de som que comprovem ser viável aos vizinhos ter escutado a briga do casal e a fala da criança. A perita responde que não foi possível a compro­vação técnica, mas pelas fotografias às fls. 2524, que demonstram a proximidade entre os edifícios, pode-se compreender que é perfei­tamente possível.

Após um intervalo de quase uma hora e meia, a equipe que compunha a Defesa do casal Nardoni inicia sua inquirição. Quem se levanta é a dra. Roselle, que homenageia o Instituto de Crimina­lística e a dra. Rosângela. Apesar desse início aparentemente cordial, a advogada na mesma hora muda de tom e passa a tratar a testemu­nha de forma ríspida, quase agressiva, ao levar o laudo até ela e perguntar-lhe se reconhecia sua própria assinatura e se tinha alguma ressalva a fazer. O tipo de questionamento e a postura são como daqueles promotores dos seriados norte-americanos que pedem ao juiz licença para tratar a testemunha como "hostil". Rosângela, pa­recendo não entender o tom e erguendo ombros e sobrancelhas, responde sem titubear que ratificava seu trabalho.

A dra. Roselle pede que vá até a maquete do apartamento e descreva a dinâmica dos fatos, como foi feito no laudo. A perita explica que as conclusões sobre a dinâmica dos acontecimentos não foram feitas apenas com base no apartamento, e sim com o exame das vestes, coleta de vestígios e sua interpretação, para oferecer à autoridade elementos que estabelecessem a autoria do crime. Para tanto, o trabalho foi conjunto, inclusive exame do carro, exames de laboratório, além de outros.

O juiz pergunta a ela se, para fazer a animação gráfica, além dos dados periciais também foi utilizado o inquérito. Rosângela explica que a dinâmica não é a reprodução, ninguém tinha essa in­formação sobre quem fez o quê. "O que sabemos: a agressão poderia ter se iniciado no veículo, pois lã havia sangue humano e DNA da vítima. Entre o veículo e a porta de entrada do apartamento não foi encontrado vestígio algum relacionado ao caso. Por motivos escapes, a partir da entra­da havia manchas de sangue que indicavam que o ferimento da vítima havia sido tamponado até ali." Rosângela complementa: "Não posso colocar o que gosto ou não gosto, penso ou não penso". Continuando seu resumo, esclarece que Isabella estava sendo transportada em baixa velocidade e que havia sangue junto ao sofá e nas vestes dela, onde morfologia específica estava presente. Pelas características da prova, a menina foi transportada, após algum tempo, da área do sofá para o quarto dos filhos do casal por um adulto, o que produziu manchas iguais às da porta de entrada, que subiu nas camas, onde existem três marcas de solado, inclusive escorregando com o pé na primeira cama. Pisou entre as duas camas ali existentes, onde deixou uma marca, e passou a vítima pelo buraco na tela de proteção; ela inclu­sive comenta sobre as sujidades encontradas na parede da fachada externa, o que comprova a queda da vítima por ali.

A dra. Roselle pergunta se foi encontrada impressão palmar na porta do quarto da menina. A perita responde: "Não, não, ali não foi encontrada uma impressão palmar. A impressão palmar foi encontrada no lençol verde. Foram encontradas manchas que poderiam ser de dedos, mas não pudemos chegar a essa conclusão, mesmo porque não conseguimos levantar os pontos".

A advogada questiona então como a perita encaixaria Isabella, incluindo-se essa impressão na porta, na dinâmica do crime. Rosân­gela responde que não se encaixava, que para ela um dos irmãos teve contato com o sangue de Isabella e fez a marca. "Sei que é dos irmãos porque não é da Isabella e não se encaixam na dinâmica." A perita explica que, para que essas manchas tivessem sido produzidas por Isabella, ela teria de estar ajoelhada ou agachada, porque elas se encontravam bem abaixo da maçaneta da porta. Também afirma que outras manchas de sangue teriam de ser encontradas, pois a menina estava ferida.

"Mas se as medidas dos irmãos não foram tomadas", questiona a Defesa, "como pode afirmar isso?" Rosângela responde que não pode afirmar, mas que havia duas crianças além de Isabella no aparta­mento, da mesma família, e pela altura da mancha da ponta dos dedos no batente da porta tratava-se de uma delas e não de Isabella. A Defesa insiste: "Esta é a conclusão da senhora?" Ela responde: "Sim, minha conclusão". A advogada continua pressionando sobre se hou­ve exame de comparação sanguínea, ou seja, se o sangue na porta era de Isabella ou não. A perita responde que ninguém requisitou, mas esclarece que, mesmo que o sangue fosse da menina, isso não levaria à conclusão direta de que ela própria havia produzido aque­la mancha, sutilmente levantando a hipótese de que um dos irmãos poderia ter tocado em Isabella e deixado ali as manchas das peque­nas polpas dos dedos manchadas de sangue.

A testemunha volta a se sentar no lugar destinado a ela. O assun­to agora é, mais uma vez, quem foi o perito que atendeu o local e quando ela entrou no caso. O juiz indefere, dizendo que tudo isso já foi falado. A Defesa prossegue questionando o fato de o laudo conter poucas fotografias do local e se isso é padrão. O juiz reforça a per­gunta, querendo saber por quê. Rosângela responde que o perito não faz fotografias, e sim uma fotógrafa. Normalmente é solicitada uma fotografia geral e de cada detalhe que ali ele considera relevante. Complementa sua explanação esclarecendo que, quando esse fato ocorreu, o Instituto de Criminalística estava em fase de transição dos equipamentos utilizados em local de crime, empregando máquinas fotográficas analógicas e digitais. Naquele plantão, a máquina ainda era analógica, não possibilitando ao perito o controle das imagens captadas pela perita-fotógrafa, o que seria possível só após a revela­ção das fotos. Por esse motivo, no caso, algumas fotografias saíram desfocadas ou veladas e não foram, obviamente, colocadas no laudo por não demonstrarem nada, não serem de relevância alguma.

A dra. Roselle continua, levantando dúvidas sobre quanto tem­po o perito teria ficado no local do crime e se há uma regra para isso, um tempo mínimo recomendado. Rosângela responde que não há uma regra, cada caso é um caso, e a decisão é apenas do perito e de acordo com seu próprio entendimento, ou seja, pode achar suficien­te desde dez minutos até dez horas.

Novamente a perita é questionada sobre as várias vezes em que a perícia esteve no apartamento e responde de forma coerente com as respostas anteriores. Também lhe é perguntado se foram exami­nadas as chaves do carro, se o veículo estava preservado, em que dia foi utilizado o reagente Bluestar no veículo. Na seqüência, a advogada quer saber qual era o conteúdo do balde e se haviam coletado o produto que estava misturado à água para saber se ele reagiria ao produto químico para constatação de sangue. Rosângela responde que só havia ali uma fralda e que exalava um forte odor de amaciante, não de cloro. "Aquele que é azulzinho, não precisa ser perito para saber isso!" Também esclarece que não adiantava coletar amostra do líquido, pois o Instituto não possui os padrões compa­rativos de amaciante, detergente ou similares para confronto. A dra. Roselle pergunta se isso não está tecnicamente errado. A perita res­ponde que não.

Roselle: "Usou o Bluestar na fralda depois de a peça voltar do labo­ratório?"

Rosângela: "Sim, porque não queria comprometer a prova".

E a perita passa a explicar que, apesar de o laboratório não conseguir resultados pelos exames tradicionais, ela os obteve com a utilização do Bluestar, comprovar que era sangue na fralda, e, com Hexagon, determinar que se tratava de sangue humano. A advoga­da pergunta por que ela não se satisfez com o resultado negativo do laboratório. Rosângela ergue as sobrancelhas e responde: "Se eu tenho outro reagente, por que não usar? Não é questão de satisfação! O reagente revelou o que outros não enxergaram. Não estou entendendo o objetivo da pergunta!" A dra. Roselle, se impondo, esclarece: "A senhora apenas responda objetivamente aquilo que eu lhe perguntar". Rosângela, sem se intimidar, declara: "Eu estou respondendo, mas para isso eu preciso en­tender!" O juiz modera as duas. "Ela está respondendo, doutora." Ro­sângela explica para o juiz que não está conseguindo entender o objetivo da pergunta. Então ele pede à advogada: "Seja mais especí­fica na pergunta, doutora. Da forma que a senhora pergunta, a senhora quer que ela contrarie uma coisa que ela já disse. Ela está insistindo no que ela já disse, então seja mais específica".

A dra. Roselle prossegue e diz que não está querendo induzir resposta ou algo do gênero e pergunta à Rosângela por que, em toda aquela desordem, o perito de local percebeu e coletou apenas aque­la fralda. Rosângela afirma que só a experiência de quem entende de local pode explicar isso, nos contando que Sérgio, o perito res­ponsável, trabalha há dezessete anos e sua decisão foi subjetiva, como um feeling. "Somos seres humanos, deveríamos ser só técnicos, mas somos humanos", diz a perita, dando a entender que a intuição advinda da experiência pode fazer diferença em um trabalho pericial, como no caso daquela fralda ali em um canto, quase despercebida.

A advogada questiona como as manchas de sangue teriam sido removidas, se procuraram ali algum pano para esse fim. A perita responde que isso não tem relevância, que poderia ter sido usado papel higiênico ou papel-toalha, depois dispensado no vaso sanitá­rio. E que, pelas características morfológicas apontadas pelo Blues­tar, não parecia ter sido a fralda utilizada para esse fim.

A Defesa volta então a perguntar sobre as datas dos procedimentos relacionados ao apartamento do Edifício London e o que foi feito em cada dia. Depois questiona especificamente sobre a confiabilidade da apreensão das roupas do casal, levadas pelos advogados deles. A perita responde que, se as roupas foram entre­gues pelos advogados do casal, não havia motivo algum para questionamentos.

Na seqüência Rosângela é inquirida sobre o provável horário em que teria acontecido a limpeza do local, se antes ou depois da queda. Ela responde que não poderia precisar, mas que a reprodução simulada indicou que a ré teria ficado ainda no apartamento, após a queda, por cerca de um minuto, e mulheres fazem duas ou três coisas ao mesmo tempo com um telefone móvel nas mãos, deduzindo-se que Jatobá poderia com facilidade limpar as manchas enquan­to dava os telefonemas para os pais.

Outras perguntas versam sobre a liberação do local, como as chaves foram entregues à delegada, o uso de gaze na perícia, o que teria provocado o ferimento na testa de Isabella e a falta de fotogra­fias do local na grama onde a menina caiu.

Volta-se ao assunto da falta de higiene no apartamento, e a perita de novo responde que se baseou no aspecto bagunçado, mas não revirado do local. Segundo ela, gavetas e móveis estavam ali­nhados, mas havia uma espessa camada de gordura, por exemplo, na cozinha.

A dra. Roselle questiona Rosângela pelo fato de não ter consta­do do laudo o uso do reagente Hexagon, apenas do Bluestar. Rosân­gela responde que para eles, peritos, o Hexagon faz parte do Blues­tar e seu uso é rotineiro. Quando questionada sobre o motivo de o Hexagon não constar da lista de compras do Instituto de Crimina­lística de São Paulo, responde que quem tem o produto é ela; para não ficar dependendo do Instituto em suas perícias, que faz suas compras por licitação e há muita burocracia; recebe-os diretamente da Safetec, representante no Brasil desses reagentes.

A advogada então pergunta: "Seja sabia pelo exame com Hexagon que era sangue humano, por que mandou a fralda novamente ao laboratório para verificar a mesma coisa?" "Eu não mandei, a senhora está enganada", responde a perita. E passa a discorrer sobre o teste Kastel-Meyer, ironicamente provocando a dra. Roselle quanto ao fato de ela mesma ter freqüentado curso ministrado pela perita e que teria ganhado, de brinde, um kit Bluestar. A advogada nega que tenha recebido o kit, mas Rosângela diz que ela presenciou então outras pessoas o rece­berem, e que era composto de Bluestar e Hexagon.

O interrogatório da perita Rosângela Monteiro está bastante repetitivo. Algumas questões foram levantadas pelo juiz, pelo pro­motor e agora também pela Defesa, tornando os trabalhos extrema­mente cansativos. As explicações são agora muito técnicas; Roselle e Rosângela se confrontando sobre a morfologia específica de man­chas de sangue nas roupas de Isabella, a advogada dizendo tratar-se de apenas uma e a perita afirmando que eram duas sobrepostas. Elas seriam provenientes de duas fontes: o ferimento na testa e outro na virilha. O primeiro teria gotejado por algum tempo no mesmo lugar, que levou à conclusão de que a menina teria ficado na mesma posi­ção, desacordada e sangrando. Do outro lado da calça, no avesso, estaria a segunda mancha, sobreposta à primeira, mas em forma de esfregaço. Tendo completo domínio do assunto, Rosângela dá uma aula sobre gotas de sangue, explicando, com o auxílio de um quadro e de uma caneta, o que acontece quando o ponto hemorrágico permanece na mesma posição durante um tempo, como isso se deu no caso em questão, a inclinação em que estava a vítima, a direção da gota, que provava a posição fie tida das pernas da vítima. Mais adiante esse assunto ainda continuaria, com a Defesa perguntando se Isabella estava consciente quando suas pernas estavam fletidas. A perita responde que apenas sabe que as pernas da menina estavam fletidas enquanto sangrava, e provavelmente viva porque o sangue gotejava, mas, apesar de ser difícil assegurar as condições da crian­ça ferida, diria que ela estava inconsciente ou imobilizada, porque permaneceu na mesma posição. A resposta não é boa para os réus, e durante a fala de Rosângela a advogada começa a fazer sinal com as mãos para que ela pare de falar, que já é suficiente.

Pararam por alguns momentos de ponderar sobre o sangue, e a perita passa a ser questionada acerca de certo bilhete cuja autoria foi atribuída à ré, sem que um exame grafotécnico fosse realizado. A perita esclarece que nada foi "atribuído" e que esse assunto havia sido bem elucidado nas respostas aos quesitos da Defesa pelo Ins­tituto, quando explicaram que foi encontrado um fragmento de papel escrito, com características de um bloco, no dormitório do casal, no qual havia, na contracapa, o nome da ré.

A dra. Roselle pede que Rosângela explique quantas vezes encontrou-se com o legista, sugerindo com malícia, pelas datas dos laudos, que foi necessário o trabalho de um para que se executasse o trabalho do outro, apesar da resposta da perita de que os trabalhos foram feitos em paralelo.

Depois é questionado o teste das marcas na camiseta. A princi­pal argumentação da Defesa é sobre o controle das variáveis do experimento feito em laboratório, onde em vez de colchão o indiví­duo subiu em uma mesa, e que a altura poderia não ser idêntica à do fato.

Passam a discutir uma questão semântica do laudo, mas a dra. Roselle não localiza no laudo as palavras que estava atestando terem sido ditas pela perita. Acaba desistindo, alegando que não há pro­blema, mas o juiz tem na face a expressão de que se ela tivesse en­contrado as palavras no laudo seria importante para corroborar sua afirmação anterior. Cembranelli limita-se a sorrir.

Às 16h07 a palavra é passada a Podval. Ele imediatamente chama Rosângela para junto da maquete do apartamento e pergun­ta a ela por que as marcas de sangue da mão da criança não estão demarcadas ali. A perita responde que está consignado no laudo; talvez fosse difícil colocá-las no acrílico (que foi o material utilizado). Podval argumenta que nessa dinâmica não aparece, que o assunto foi ignorado pela perícia. Rosângela responde que não podem ter sido causadas com a criança caminhando, porque as gotas no chão provam que estava sendo carregada. O juiz interrompe, alertando o advogado que ainda não estão na fase dos debates. "Como ela che­gou à conclusão, ela já explicou", encerra. Podval responde que só estranhou o fato de não ter sido constatado ali na maquete e sugere que o sangue poderia não ser da vítima. Rosângela, um pouco irri­tada, responde que não tem dúvida de que todo o sangue ali de­monstrado está relacionado com Isabella, é de Isabella, mas que a ciência tem seus limites.

O advogado pergunta à perita quantas pessoas entraram no apartamento depois de ele ter sido liberado. A perita responde que a delegacia informou que apenas a família, para pegar roupas, e que no tempo decorrido entre a execução do crime e a chegada do primeiro policial seria imponderável. Quando o local foi lacrado? Ela não sabe, acha que foi no dia 7 de abril. É a polícia que lacra, não ela.

Podval, sarcástico, pergunta a Rosângela se foi consignado em laudo que mulheres ao telefone podem também limpar manchas. Ela responde que se trata de percepção sua, como pessoa, mulher e mãe.

O assunto passa a ser o material genético encontrado na cadei­rinha que estava no carro. "É possível afirmar que era sangue de Isa­bella?", pergunta Podval. Rosângela responde que sim, juntamente com outros materiais. Explica que se constatou o perfil em oito loci[1], mas como não chegou a quinze, padrão de nossos laboratórios, fa­lou-se em mistura. Mas pelas tabelas norte-americanas o resultado teria sido positivo. Podval questiona essas nomenclaturas, pergun­tando se é perfil genético ou sangue. Ela responde que o laboratório de DNA não trabalha só com sangue e sempre fala em perfil gené­tico, que inclui sêmen, saliva e outros.

Novamente a Defesa volta a questionar as diferenças de corte entre a tela original e a da reprodução simulada. A resposta é a mesma, não tem valor probante técnico, serve apenas para registro fotográfico e filme. Novamente Podval questiona a realização dos exames que comprovariam a marca da tela na camiseta de Alexandre. A resposta é a mesma: o exame se iniciou no local quando ela ainda estava fixa e as medidas foram verificadas, inclusive o buraco. "O trabalho é comparado com as marcas, elas são de fato, estão lá!", diz a perita. Mas quais são as probabilidades de acerto e erro nesses ex­perimentos? Ela diz que erro sempre existe, que toda experiência científica tem sua margem, mas nada que comprometesse a conclu­são do laudo.

Mais uma vez Podval questiona que, se resultados de quedas obtidos com bonecas seriam diferentes, não poderiam ser também diferentes os resultados com outros indivíduos segurando o peso no teste da camiseta? A perita responde que o buraco era pequeno e foi escolhido um modelo para realizar o teste, com as característi­cas do agressor, o réu. E completa: "Agora que estou observando o réu assim de perto, ele se parece bastante mesmo com o modelo (utilizado para fazer o teste)!" Risos na platéia!

O questionamento passa a ser sobre as marcas de solado encon­tradas nos lençóis. Poderiam ser marcas de pés de diferentes pessoas? "Ali são encontradas três marcas do mesmo solado", responde ela. Mas são posteriores ou anteriores à queda? "São anteriores", responde. Ela explica que a marca por si só diz se tratar da sandália de Ale­xandre Nardoni e que isso, com os demais vestígios encontrados, resulta em outra configuração. "Mas os sinais seriam diferentes se a pessoa tivesse subido na cama sem segurar peso?", pergunta o advogado. "Sim", responde a perita, "e também depende da sujidade do solado da sandália." Segundo ela, as marcas ali deixadas lhe dizem COMO CAMINHOU sobre a cama, e que no momento da defenestração ele obrigatoriamente estava de joelhos, que só deixariam suas marcas se também estivessem sujos.

Podval pergunta a Rosângela se sua dinâmica incluiu os outros filhos do casal. Ela responde que, no laudo inicial, não, mas na reprodução simulada, sim. As crianças estavam lá, mas ela não poderia precisar onde e ninguém reportou ter ouvido alguma de­las gritar.

A última pergunta é do juiz, que ainda pede esclarecimentos sobre a coleta de sangue dos réus para exame de DNA, sendo que a Defesa aproveitou para também perguntar se o termo de coleta tinha sido assinado posteriormente. A perita responde que esses exames foram realizados pelo Instituto Médico Legal e que não participou de nenhum procedimento de coleta. Afirma que houve a comparação para verificação de que o sangue, custodiado no Ins­tituto de Criminalística, era dos réus, o resultado foi positivo e ali permaneceu.

A Defesa encerra. O dr. Maurício questiona se algum jurado tem perguntas. Sim, tem. A primeira refere-se à data de entrega da camiseta de Alexandre aos advogados, quando chegou à delegacia, e se ele teria usado a camiseta novamente antes disso. A perita res­ponde, consultando documentos, que foi entregue em 9 de abril de 2008, mas não sabe em que dia chegou à delegacia. Trata-se, pelas imagens da imprensa, da mesma camiseta que o réu vestia na data dos fatos.

São 16h40. Depois de cinco horas de depoimento técnico, estão todos exaustos. Mas, pelas perguntas dos jurados, percebemos que eles acompanharam em detalhe tudo o que foi explicado, e realmen­te Rosângela Monteiro deu a mais importante aula de sua vida ali, defendendo seu laudo e seu Instituto com dignidade. Nenhuma pergunta ficou sem resposta, mesmo aquelas que demonstraram falhas eventuais e cotidianas de todos os institutos de criminalística, mas que não comprometem os resultados dos laudos oficiais. As provas colhidas e analisadas pelos peritos de São Paulo são abundantes e complexas. Resta saber se foi possível traduzi-las para a linguagem popular.

 

No retorno aos trabalhos do júri, ficamos sabendo que a delegada Renata Pontes fora liberada; ela, que também havia ficado disponível para a Justiça desde seu depoimento, como a mãe de Isabella. A Defesa desistiu também de várias testemunhas; foram dispensados todos os outros três peritos criminais, dois legistas, da 9º Delegacia de Polícia, os dois investigadores do caso (um foi man­tido), o chefe deles, o delegado e ainda dois escrivães, Rogério Neres de Souza, ex-advogado do casal, uma vizinha do prédio em frente ao Edifício London e o pedreiro Gabriel, aquele que poderia ter adiado o júri caso não tivesse comparecido ali. Glória Perez comen­ta que a Defesa deve ter feito as contas e chegado à conclusão de que, se todos fossem ouvidos, o júri seria estendido e terminaria exatamente na data em que se completaria dois anos da morte de Isabella, 29 de março. Macabra coincidência.

O testemunho de Rogério Pagnan, jornalista da Folha de S.Pau­lo, arrolado pela Defesa, foi mantido, e ele entra no plenário. Um colega dele, sentado a meu lado, comenta rindo que ele merece ter recebido o "castigo" de perder os trabalhos do júri. Todos ao redor caíram na risada. Brinquei com eles se eram amigos ou inimigos do jornalista, e, sorrindo, me explicaram que ele é uma figura, que gostam dele, sim, mas que a situação do repórter era, no mínimo, irônica. Foi o único jornalista no Brasil que fez parte do caso desde o início, mas perdeu o desfecho justamente por esse motivo.

Ele explica para o juiz que fazia a cobertura do caso e que realizou uma série de reportagens sobre o assunto. Durante os dias posteriores ao crime, soube que havia um pedreiro da obra locali­zada nos fundos do Edifício London que encontrou o portão da construção aberto e arrombado, e ele achou que entrevistá-lo pode­ria ajudar na investigação policial. Afirma que foi com gravador, bloco e crachá para se identificar e entrou na construção para entre­vistar Gabriel. Confirma que o pedreiro havia dito que o portão estava arrombado, mas que depôs em juízo antes e a gravação da sua entrevista encontra-se apreendida pela Justiça, sendo melhor usar seu depoimento anterior, porque sua memória já não está tão fresca e não quer se enganar. É visível o nervosismo do jornalista, que provavelmente nunca esteve numa situação como aquela.

Pela Defesa, que agora é a primeira a fazer perguntas, uma vez que as testemunhas são suas, levanta-se o dr. Marcelo Gaspar Gomes Raffain. Pede que Pagnan o acompanhe até a maquete do edifício e mostre aos jurados onde fica a obra alegadamente invadida. Ele começa a explicar e estende o dedo para mostrar um ponto vulne­rável, mas acaba transformando sua narrativa em realidade quando quebra a chaminé da maquete para a qual estava apontando; agora sim ficou vulnerável! Risadas gerais ecoam por causa do constrangimento que se abateu sobre ele. Conta que entrevistou também uma vizinha de nome Cristiane, que tinha ouvido o barulho, mas não havia visto ninguém. A entrevista teria sido feita em 9 de abril e publicada no dia seguinte.

Depois de esclarecer para o juiz que Gabriel não havia dormido na obra no dia do crime, a Defesa continua, esclarecendo com suas perguntas que a entrevista ocorrera antes do depoimento de Gabriel na delegacia, em qual veículo de imprensa havia sido publicada (Folha de S.Paulo), explica que a obra era cercada de tapumes e, por fim, conta a todos que o jornal em que trabalha já havia sido proces­sado por matérias jornalísticas antes, por tratar-se de arma de inti­midação utilizada com o intuito de impedir outras opiniões de serem divulgadas. Cembranelli interrompe, perguntando à testemunha se ele foi processado por aquela reportagem especificamente. Pagnan responde que não tem conhecimento.

Após apenas vinte minutos de inquirição, a Defesa encerra, passando a palavra para a Promotoria. Cembranelli começa em tom bem-humorado, brincando com o nervoso jornalista, dizendo que iria inquiri-lo apesar de ele ter "quebrado a nossa maquete". Risadas no plenário. O promotor pede que explique se foi tentar, com essa matéria, uma investigação "por conta própria". O jornalista respon­de que não foi isso, que os jornais só apresentavam duas versões, a da Defesa e a da Acusação, e ninguém apurava de outro modo. Cembranelli esclarece que sua denúncia foi em data posterior à re­portagem, portanto o Ministério Público ainda não tinha uma "ver­são" dos fatos. Pagnan sai pela tangente, dizendo que não dá "para se pegar" em datas, que ele não se lembra. O promotor pergunta se ele chegou a ingressar no Edifício London e obteve a negativa da testemunha.

A Promotoria começa a inquirir Rogério Pagnan de forma a demonstrar que Gabriel não estava na obra durante a noite dos fatos e que ali nada havia sido mexido, até o "rádio de pilha (do pedreiro) estava no mesmo lugar". Deixa claro que o jornalista não entrevistou, mesmo para sua conferência, nenhum outro vizinho, apenas aquele que corroborou sua tese de arrombamento da obra, evitando outros que foram ouvidos pela polícia. A Defesa tenta interromper, mas Cembranelli, com ironia, pergunta se eles estão temendo alguma coisa e que o deixem fazer as perguntas. Enumera e lê alguns depoi­mentos de vizinhos, que falam sobre a ação do que parecia ser de policiais da Rota, que na verdade investigavam o local para procu­rar justamente o ladrão que teria invadido o apartamento do casal Nardoni. O jornalista dá seus motivos para não ter colocado essa versão em sua reportagem, dizendo que só ouviu as pessoas que dela constam e não outras, que não verificou os depoimentos porque o processo estava em segredo de Justiça, entre outras explicações.

Cembranelli arranca mais risadas no plenário ao dizer que pretende que Rogério Pagnan lhe mostre se o ponto que achou vul­nerável é o mesmo que ele próprio destruiu com o dedo, que seria melhor manter o jornalista longe da maquete. Dessa vez Pagnan não faz estragos. Antes de encerrar, ainda com ironia, o promotor per­gunta à testemunha se foi ele que processou o jornalista e acrescen­ta: "Antes que digam isso!" Pagnan confirma que não. Rindo, Cem­branelli diz: "Eu agradeço, apesar de tudo!".

 

Minutos após a saída do jornalista do plenário, entra a testemu­nha Jair Stirbulov, investigador da 9º Delegacia de Polícia que parti­cipou dos trabalhos neste caso. Homem grande, grisalho e já de certa idade, ao dizer seu nome mostra ser dono de uma voz grave, que ecoa pelo recinto. Jatobá fulmina o policial enquanto ele fala.

Depois das questões de praxe ditas pelo juiz, Jair explica para a Defesa, que passou a inquiri-lo, que, como não estava de plantão no dia dos fatos, chegou ao local apenas no domingo no final da manhã. Tinha sido chamado para uma ocorrência de roubo seguido de morte e coube a ele conversar com vários vizinhos nos dias sub­seqüentes, "sobre o que ocorreu e o que não ocorreu".

Podval pergunta se algum vizinho ouviu barulho; ele diz que não se lembra. O advogado então pede que a testemunha explique se Renata Pontes, a delegada, esteve no apartamento de Jatobá e se teria pedido a ele que levasse a ré até ali. Jair responde que a dele­gada havia pedido, sim, que Jatobá fosse levada ao local a fim de verificar se faltava alguma coisa, porque até aquele momento a moça ainda era vítima. Lá já estavam algumas pessoas, como perito, fotó­grafo e delegados.

O investigador segue esclarecendo o episódio, sempre com o cuidado de deixar claro que Jatobá foi bem tratada como vítima que era naquele momento. A história da testemunha era bem simples: a ré estava na delegacia acompanhada do marido, do sogro e dos advogados, quando a delegada ligou pedindo que ela fosse levada até o apartamento para verificar se algo havia sido roubado. O che­fe de investigações, que atendeu ao telefonema — Spindola —, de­terminou que Jair a conduzisse, e foi o que ele fez.

Jatobá está visivelmente inquieta, demonstrando com suas feições que nada do que o investigador está dizendo é verdade. Ele continua, dizendo que, no caminho, Jatobá havia dito que esquece­ra o celular na delegacia, que o assédio da imprensa incomodava bastante e que depois ela encontrou o celular no próprio bolso.

Podval faz uma pergunta delicada para a polícia: "Vocês comeram no apartamento dela?"', diz, apontando para a ré. Jair faz um discurso. Diz que não faria isso, mesmo porque havia acabado de tomar café. Que ninguém comeu nada, nem café, nem água, nada, não tomou Coca-Cola, não comeu ovo de Páscoa. Conta a Podval que chamou o advogado de sua associação para processar quem mentiu. Esclarece que tem quarenta anos de serviço e ficou indignado com o que saiu nos jornais. Não havia motivo para não tratar bem Jatobá.

A Defesa prossegue:

 

Podval: "Quem acompanhou os réus ao IML para exames?"

Jair: "Não sei informar ao senhor, porque tinha muita gente, estavam todos os investigadores da delegacia, todo mundo foi convocado devido a repercussão do fato, todo mundo foi convocado na delega­cia para auxiliar nas investigações".

Podval: "Essa investigação foi como as outras, normal, rotineira, teve al­guma coisa de diferente nesse caso do que nos outros?"

Jair: "Para mim foi uma investigação normal".

Podval: "A dra. Renata tinha uma foto da menina Isabella na mesa dela, na sala dela, isso é fato?"

Jair: "Não sei, não me recordo, doutor".

Podval: "O senhor sabe me dizer se foi coincidência ou se teve alguma razão para o interrogatório deles, na polícia, ter sido marcado na data de aniversário de Isabella? Sabe se isso foi feito intencionalmente ou por acaso?"

Jair: "Eu não entendi a pergunta do senhor".

Podval: "O senhor sabe quando foi o interrogatório deles na polícia?"

Jair: "Não, não participei".

Podval: "O senhor sabe que o interrogatório foi marcado na data do ani­versário de Isabella?"

Jair: "Não, os interrogatórios são feitos no dia em que a autoridade marca, então a pessoa se apresenta e ouve naquele dia e, na data em que está, que ouve, não tem por que ouvir um dia depois ou no dia anterior".

 

A Defesa do casal encerra. O MP não quis reperguntar. A teste­munha é dispensada.

Na seqüência, às 18h30, começa uma discussão em plenário, de cunho jurídico, sobre a possível acareação, que devia ser autorizada ou não pelo dr. Maurício. Todos estavam nervosos. O juiz explica a Podval, que insistia no confronto entre Ana Carolina Oliveira, Ale­xandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, que a primeira era testemu­nha, mas não prestava compromisso, ou seja, não era obrigada a falar a verdade, portanto não deveria ser acareada com os réus, que também não prestam compromisso. Podval mantém o pedido, dizendo ao juiz que ele negasse se quisesse. O juiz responde que o advogado argu­mentasse e o convencesse. Começa um bate-boca entre MP e Defesa. O juiz dá uma bronca, interrompendo e avisando que os debates não haviam começado. Podval reitera que existem contradições que precisam ser esclarecidas. Todos deliberam sobre a questão.

Ouço a explicação de que o Código de Processo Penal prevê acareação, inclusive com o réu, e negá-la poderia acarretar futura alegação de nulidade do júri pela Defesa. Cembranelli passa a con­versar com o juiz, com um Código nas mãos. Também ele não pretende que alguma nulidade seja cometida. Podval anda pela sala, inquieto.

Eu fico aqui ouvindo os argumentos e pensando novamente: será que a Defesa tomou a decisão certa? Qual a chance de essa acareação dar certo? Será que Jatobá vai se controlar? Ana Carolina Oliveira vai chorar e gritar? Alexandre vai reagir, coisa que parece impossível diante de sua passividade frente a tudo? Vamos assistir a uma briga ali mesmo, ao vivo e em cores? Acareação é uma coisa que a gente sabe onde começa, mas não sabe onde termina.

Os réus aguardam a decisão com expectativa. Ele sempre mais calmo que ela. Se Ana Carolina Oliveira for liberada, o júri vai ser anulado? Podval vai abandonar o plenário? O juiz Maurício Fossen se retira da sala. Quase meia hora depois e nada acontece. Jatobá chora encolhida em seu canto.

Cembranelli, Podval, Cristina Christo, Marcelo Raffain e, timi­damente, Roselle Soglio estão reunidos, de costas para o público. Vejo Podval balançar a cabeça e as orelhas de Cembranelli ficarem vermelhas.

Às 19h07 o juiz senta-se à sua mesa e passa a dar longa explanação jurídica para o impasse. Diz que, em um primeiro entendi­mento, só deixaria acontecer uma acareação entre duas testemunhas e não entre testemunha e réu. A nova lei do júri alterou exatamente esse artigo, estabelecendo novo procedimento —11689/2008. Expli­ca que se sentou para fundamentar seu despacho e durante a exe­cução deste voltou a seu gabinete para consultar os direitos consti­tucionais sobre a acareação. O dr. Maurício diz que o princípio constitucional está acima do Código Penal, que rege a amplitude da defesa. Assim, seria uma incongruência, exatamente no plenário, onde essa amplitude deve ser maior ainda, que não se pudesse fazer a acareação. Ela pode ser realizada na instrução e em juízo, portan­to no júri, onde o direito de defesa é pleno, deve ser permitida também. Sendo assim, o magistrado defere o pedido da Defesa e autoriza a acareação para o dia seguinte, quando os trabalhos reco­meçariam às nove horas da manhã.

 

                       Quarto dia

Vai começar o interrogatório dos réus. Eu e Glória também es­tamos sofrendo uma pressão constante dos seguranças, que recebem a toda hora reclamações da família dos acusados. A Polícia Judiciária, seguidamente, vem nos trazer as queixas e ficam constrangidos com o conteúdo: o fato de eu estar sentada "muito de lado", ou por dar bom-dia a algum jornalista conhecido na fila de entrada do plenário, ou que estamos na sala do Ministério Público, ou na sala do Cartório. Achamos que talvez queiram causar algum tumulto e tentamos manter a paciência para que nada atrapalhe os trabalhos ali desen­volvidos. Flávia, cunhada de Cembranelli, me olha nos olhos e diz: "Quem tem luz própria não enfrenta as trevas". E tem toda razão.

Sem que eu perceba, a mãe de Alexandre Nardoni, dona Cida, acompanhada de sua filha Cristiane, chega e as duas param ao lado de minha cadeira no plenário. Estão soluçando, fazem um sinal de amor para o réu e jogam beijos. Jatobá nem se mexe, enquanto o marido retribui os gestos para a família. Glória comenta que é pre­ferível ser mãe de vítima a de assassino.

Os réus se vestem no estilo de todos os dias até aqui, Alexandre sempre de óculos, Jatobá com os cabelos presos e as unhas feitas. Não havia percebido antes.

Pouco antes das onze horas, Podval se agacha ao lado de seus clientes para conversar com eles. Quando sai dali, Alexandre suspi­ra como quem vai fazer um arremesso livre no basquete, concen­trado. Jatobá chora, sempre limpando o rosto com as mãos. O advogado alisa a própria testa. O clima é de expectativa.

O dr. Ricardo Martins, antigo advogado do casal, está sentado na bancada da Defesa, procurando por informações e fazendo suas anotações para auxiliar Podval.

O juiz Maurício Fossen entra e todos ficam em pé no plenário. Podval logo pede que a ordem de interrogatório dos réus seja inver­tida, primeiro quer ouvir Alexandre e, depois, Jatobá. Cembranelli concorda. Jatobá é retirada do plenário.

Com o réu já acomodado em frente ao juiz, este explica que Alexandre não tem obrigação de responder, é seu direito constitu­cional de silêncio, mas aquele momento, diante do júri, é a oportu­nidade que tem para dar a sua versão dos fatos pela última vez. Passa a ler a denúncia, como fez tantas vezes antes, mas onde está escrito "Alexandre Alves Nardoni" passa a falar "o senhor". "O senhor subiu nas camas ali existentes, introduziu Isabella pela abertura da rede e a soltou." Ficou tão pessoal! O réu, ao final, se manifesta: "É falsa essa afirmação, completamente mentirosa, não existe!"

O juiz pede então que relate a sua versão dos fatos.

Os jurados estão atentos, mas a voz de Alexandre, embargada em alguns momentos, não parece convencer.

Alexandre começa a contar, como já havia feito em juízo, uma seqüência de fatos que aprendemos a conhecer:

É sábado, 29 de março de 2008. Às 9h da manhã ele saiu de casa para colocar o rastreador (GPS) em seu Ford Ka. Quando sai, as crianças e a esposa estão dormindo. Deixa o carro na Porto Seguro, vai caminhando até a casa do pai para tomar café da manhã. O pai o leva de volta para pegar o carro, comentando que passaria numa loja de acessórios para veículos. Passa novamente ali para dar "oi" ao pai. Quando chega em casa, desce com os filhos no térreo do prédio para andar com motocicletas de brinquedo. Resolvem ir para a piscina porque Isabella quer.

Agora, no júri, conta alguns detalhes que não haviam sido comentados antes, como o fato de Isabella ter ensinado Pietro a mer­gulhar nesse dia: "Ela tinha muito orgulho de ensinar os irmãos... Era louca por eles!"

Ainda ficou brincando com os filhos mais velhos enquanto Jatobá subiu para preparar o almoço e dar banho no filho menor.

Depois do banho das crianças, almoçaram e saíram. Pararam para tomar sorvete no McDonald's, em Guarulhos. Foram então fazer compras no Sam's Club e preencher formulários para adquirir o cartão dessa loja. Foram para a casa do sogro, onde estava o irmão de Jatobá, Vítor. Brincaram, dançaram, os sogros chegaram, jantaram. Desceram todos juntos na hora de ir embora. Saiu da casa do sogro entre 22h40 e 22h50. O GPS acusa que desligou o carro, em sua vaga na garagem, exatamente às 23h36m11s.

Alexandre acrescenta que o irmão de Jatobá, 14 anos, estava com medo de ficar sozinho em casa e pediu que o casal ficasse ali até que os pais dele chegassem. Também nos conta que Isabella já estava com sono e teria descido de elevador já no colo de Alexandre. Explicou ao juiz como se sentaram dentro do carro, ressaltou que não houve discussão alguma, que veio brincando com sua esposa e que os pe­quenos dormiram quase imediatamente. A certa altura do caminho, Isabella teria perguntado: "Tia Carol, posso dormir também?"

Em seguida o réu explica ao juiz que ao chegar perguntou à esposa qual filho deveria levar primeiro para cima, e resolveu por Isabella, porque estava de seu lado, atrás do banco do motorista. O juiz pergunta onde ficaram Jatobá e os outros filhos. Alexandre responde: "Ficaram no carro, não tinha como subir com todos de uma vez, estavam os três dormindo. [...] Subimos para o apartamento, não, eu subi com a Isabella, eu cheguei na porta do apartamento, abri a porta, entrei no apartamento, fechei a porta, e a Isabella no colo, entrei no apar­tamento, acendi a luz do corredor, coloquei Isabella na cama, que ela esta­va dormindo, puxei o edredom em cima dela, puxei o sapatinho dela, colo­quei no chão, cobri a Isabella, acendi o abajur dela porque ela não gostava de ficar no escuro e em seguida fui para o quarto dos meninos, dos meus dois filhos. Eu entrei, tirei os brinquedos que estavam em cima da cama, que tinha um monte de brinquedos que estava na cama, eu recolhi, coloquei numa caixinha, num suporte onde normalmente fica, deixei a cama arru­mada, para a gente colocar eles quando subisse, saí do apartamento, abri a porta, fechei a porta e desci".

Não pude deixar de notar o "ato falho" que comete neste relato, quando conjuga o verbo subir na primeira pessoa do plural — "Subimos para o apartamento" — e imediatamente se corrige — "Subi com Isabella". A pessoa se entrega na linguagem, mostra quem ela é num lapso, nos deixa vislumbrar verdades escondidas. Será? Era uma hipótese para a qual talvez jamais tenhamos resposta.

O juiz pergunta a Alexandre se a janela do quarto dos meninos, naquele momento, estava aberta ou fechada. Ele responde que es­tava "um pouquinho" aberta e ele fechou e travou, porque estava frio. Confirma que fechou a porta ao sair do apartamento.

Alexandre explica que na porta de seu apartamento faltava uma tampinha de acabamento onde estava a fechadura do tipo tetra, mas, como as chaves haviam ficado na portaria por quatro meses e ia trocá-la para ter tranqüilidade, deixou assim mesmo.

O réu prossegue: "Voltei vara o carro, a minha esposa falou: 'Espe­ra um pouquinho para a gente descer porque acabou de entrar um carro com o som alto, senão as crianças vão acordar'. Eu esperei um pouco, peguei o Pietro, minha esposa pegou o Cauã. [...] Nós subimos de novo, eu abri a porta, entrei, minha esposa entrou com o Cauã, eu fechei a porta, aia minha esposa já entrou na cozinha, colocou o tamanco dela na cozinha, nós entra­mos no corredor e quando entramos no corredor a luz do quarto da Isabella estava acesa, aí eu já perguntei: será que a Isabella caiu da cama? A hora que eu fui olhar, assim, a Isabella não estava no quarto, nem na cama e nem no quarto, e a minha esposa foi logo em seguida e olhou e eu falei: será que a Isabella foi para o quarto das crianças? Porque, sempre que ela acordava antes dos irmãos, ela ia para o quarto com os irmãos. Quando eu olhei, a janela estava toda aberta e a tela, a tela já estava furada e nisso eu já fui correndo para a janela para ver o que tinha acontecido. Eu estava com Pietro no colo ainda, para ver o que tinha acontecido, e aí eu vi que a Isabella estava lá embaixo. Nessa hora eu entrei em choque, até comecei a gritar dentro do apartamento, acordei o Pietro e o Cauã, e quando eu vi toda aquela cena eu já falei para a minha esposa: liga para o meu pai, para o seu pai, e enquanto ela foi ligando eu apertei o botão do elevador e quando o elevador veio, nós descemos junto com as crianças".

Alexandre foi ver Isabella na grama, enquanto a esposa e os filhos ficaram no hall de entrada do prédio.

Durante o processo, desde a investigação policial até o júri, Alexandre enriquece bastante sua versão, muda coisas, ajeita, acres­centa, omite outras do depoimento anterior.

Em alguns depoimentos esclarece que estava sozinho com Isabella no elevador quando subiram, que a chave estava em seu bolso direito, acrescenta que trancou o apartamento novamente antes de levar a filha para o quarto. Em outro depoimento, lembra-se de dizer que tirou o sapatinho (não mais sandália ou tamanquinho) da filha antes de cobri-la, e não depois, como havia dito antes. Já sabendo que a conta do tempo estava difícil de fechar, ele diz ter colocado os brinquedos que estavam espalhados pelo quarto dos meninos den­tro de uma caixa, que deixou na prateleira do quarto, e que retirou o abajur de dentro do armário. Não tinha falado mais em ter estica­do o edredom dos filhos, porque nas fotos do local ele está todo desarrumado, mas desta vez voltou a dizer isso. Também já havia acrescentado que subiu na cama dos meninos para fechar a janela aberta, uma vez de chinelos, outra de joelhos. É já como suspeito que surge a versão do carro preto com som alto na garagem. Antes não havia feito nenhuma referencia a isso. Na hora de entrar no apartamento, algumas vezes ele entra na frente da esposa, e não ao contrário, como havia dito antes. Fica mais detalhado também o trecho da procura por Isabella pelo chão e no quarto do casal.

A história dos telefonemas está também mais detalhada do que quando falou em audiência, mas ele afirma que ela ligou antes para o pai dele e depois para o dela, o que é desmentido pelas contas telefônicas, que dizem o inverso. Como a Promotoria desconfia que a essa altura dos acontecimentos ele já havia descido e ela estava ainda no apartamento, é bem provável que ele não soubesse mesmo a ordem das coisas. Como os réus afirmam que desceram juntos, mas as testemunhas viram Alexandre Nardoni sozinho ao chegar no térreo, em próximo depoimento ele coloca a esposa e os filhos atrás do vidro do hall.

Aqui, no plenário, também ouvi pela primeira vez que Isabella, quando acordava na casa do pai, ia para o quarto dos irmãos. É assim que justifica por que teria ido procurar a menina ali quando não a encontrou na cama dela.

Ao chegar junto à filha, verificou que o coração dela batia ace­lerado e falou: "Ô filha, calma, calma".

Foi quando o porteiro se aproximou, vindo do fundo do prédio, correndo, suado, e Alexandre reclamou: "Mas cadê você? "O porteiro teria respondido: "Não, eu fui ali". Alexandre questionou: "Mas ali onde? Mas como você foi ali? Você saiu da portaria e deixou a portaria sozinha?"

Também o sr. Lúcio (vizinho) estava na sacada e não deixou que ele mexesse em Isabella. Rapidamente chegaram os policiais, e aqui aproveita para fazer uma modificação importante em seu relato: a porta do apartamento teria ficado aberta, que a imprensa mentiu ao dizer que estava trancada, e por também faltar a tampinha metálica de acabamento na fechadura a Polícia Militar deve ter achado que se tratava de arrombamento. O juiz pergunta mais uma vez se ele não falou que alguém entrou no apartamento. O réu responde: "Não, em momento algum eu falei isso para os policiais. Quando nós descemos para pegar a minha filha, a porta ficou aberta com chave e tudo lã".

E impressionante como Alexandre não se emociona nesse trecho do depoimento, que justamente foi a parte em que a mãe de Isabella, Ana Carolina Oliveira, mais se descontrolou e nos fez chorar também. O réu conta os fatos sempre tendo em foco sua defesa, argumentan­do de forma sempre racional. O texto que está reproduzindo não combina com seu tom de voz, monocórdio, que deveria ser trágico. O juiz ainda pergunta se nesse momento toda a família já estava no gramado, e ele nega com veemência, dizendo que ainda estavam no hall de entrada.

O réu também conta que não entrou para acompanhar a filha na ambulância porque só uma pessoa podia entrar. Está tão sem emoção que um jurado esconde, com esforço, um bocejo, e faz menos de meia hora que o réu está depondo.

Ao relatar como recebeu a notícia da morte de Isabella, pela médica, inseriu frases de efeito, como "Foi o pior dia da minha vida" ou ainda "Eu não tô acreditando no que a senhora tá falando!" Outras observações surgiram, feitas com voz embargada, de quem chora: "Nós passamos um dia tão bom, brincamos o dia todo... De repente vejo minha filha na maca, parecia adormecida", mas as lágrimas não rolam, não enxuga os olhos porque, até aqui, estão secos. Funga sem parar. É a vez de mais um jurado conter seu bocejo.

Ainda respondendo ao juiz Fossen, Alexandre retoma a questão já levantada por Podval na inquirição de Ana Carolina Oliveira, só que desta vez não é uma pergunta. O réu está afirmando que a mãe pretendia abortar Isabella, não aceitava a gravidez. "Era minha princesinha, eu lutei por ela desde o começo."

Segue contando que falou para o pai "perdi tudo o que tinha de mais precioso" e que, ao receber o par de brincos da filha no hospital, entregou um deles para a mãe dela e ficou com o outro.

Fico ouvindo Alexandre Nardoni falar, como quem chora, mas me intriga que ao fazê-lo seus óculos não se embaçam como os meus quando choro. Você já chorou de óculos? Não dá para enxergar nada, a gente tem de tirá-los. Vamos aguardar e ver se isso vai acontecer. Muitos no plenário estão comentando que não cai uma lágrima sequer.

Alexandre segue sua história, confirmando que, já no térreo, quando Pietro chegou a seu lado e da filha, o irmão de Ana Caroli­na Oliveira o pegou no colo. E quando o juiz pergunta em que mo­mento Jatobá saiu do hall para fora. Ele responde que somente quando a chamou para que telefonasse para a mãe de Isabella: "Eu estava em foco na Isabella, não sei onde ela estava". Lembra-se de que a esposa também colocou o ouvido no peitinho da menina e falou que estava batendo muito rápido e ia se desacelerando, avisando-o de que não podia socorrê-la. E lembra-se também que Ana Carolina Oliveira, quando chegou, lhe perguntou: "O que aconteceu, Alexan­dre?" E ele respondeu: "Eu não sei o que aconteceu!"

O dr. Maurício pergunta quando viu novamente Ana Carolina Oliveira, e Alexandre esclarece que foi no necrotério. "Foi a pior coisa entrar e ver o que vi. Não desejo para o meu pior inimigo." Ainda tentando explicar por que nunca falou com a mãe da menina depois do ocorrido, disse que foi preso logo em seguida.

É impressionante como o réu só se refere a seu próprio sofrimento, a seu próprio choque, como ficou "sem cabeça". Em nenhum momento falou, por exemplo, coitada da minha filha, tão machuca­da, teve dor? Teve medo?

Relata ao juiz que, quando chegou do necrotério ao Edifício London, encontrou Renata Pontes e imediatamente lhe cobrou se havia "pegado" alguém ou a digital de alguém. Também alegou que houve discussão entre as diferentes polícias que atenderam o local sobre fazer varredura ou não.

Sobre a 9ª Delegacia de Polícia, seu relato foi mais longo. Contou que foi separado da esposa pela delegada logo que chegaram ali: "Jogaram um em cada sala". Denuncia uso de excesso de força. Disse que depois foi levado para uma sala no 1º andar, que estava sozinho, sempre sozinho, porque mandavam seu pai sair daquele local. "Co­locaram eu numa cadeira como estou agora, com delegado e todos em volta. Começou a sessão de xingamentos de baixo calão... Calixto me xingou com palavras de baixo calão." Descreve como o delegado bateu na mesa, chutou a lixeira em cima do réu, jogou copo e garrafa nele. Também falou que a delegada Renata ameaçou algemá-lo e que alguns dele­gados quiseram "vim pra cima de mim pra me bater", durante o longo tempo em que ficou dentro daquela sala. Também menciona que o delegado Calixto chegou a comprar um terno novo para dar entrevistas à imprensa e que teria ouvido o delegado falar: "Chama a imprensa, a gente precisa da imprensa em cima desse caso".

É interessante imaginar a cena que Alexandre está descrevendo. Ele, sentado no meio de uma roda, os delegados gritando e chutan­do: "Vamos te moer na pancada aqui". E ele respondendo: "Eu sou apenas um pai, se encostar a mão 'ni' mim vai ter que responder, só quero saber o que aconteceu com a minha filhai" Mais estranho ainda o fato de o pai dele ser advogado e, independentemente da hora em que chegaram Rogério Neres e Ricardo Martins, oficialmente, não ter feito nada para interromper a situação, já que estava ali presente. O fato é que agora sim vemos sentimento no que diz, ele está revolta­do. A repórter Tahiane Stochero, do Diário de São Paulo, observa: "Me parece que, para um pai que perdeu a filha, Alexandre não tem raiva ou revolta contra quem matou a criança... Não parece estranho? A revolta dele é contra a maneira que a polícia o tratou".

Alexandre continua seu relato. Sobre o Instituto Médico Legal, afirma que nunca colheu sangue porque era domingo e não tinham as chaves do armário de seringas, apenas recebeu um pote para encher com sua urina.

O juiz pinça agora algumas perguntas finais. O réu afirma que não há como ficar de pé em cima da cama dos filhos por causa da altura do teto, teve que ficar envergado e de joelhos para olhar lá embaixo. Ao explicar como olhou pelo buraco da tela de proteção, Alexandre alega que ele era tão pequeno que sua cabeça não passa­va ali. Todos no plenário devem ter pensado: "Passa uma criança e não passa uma cabeça?" O juiz prossegue perguntando sobre o rela­cionamento de Alexandre com a esposa e a ex-esposa. Ele explica que nunca teve problemas com a mãe da filha dele, e que suas brigas com Jatobá são como as de um casal normal. O juiz pede que defina o que é uma briga normal. Ele responde: "Ela pode até ser que já tenha me xingado, mas eu nunca xinguei ela!"

Para finalizar, é questionado sobre quais são os "problemas" que teve com os funcionários do prédio, e mais uma vez as respos­tas chegam a ser infantis, sem relevância, como o fato de o zelador ter perguntado duas vezes a ele e duas à esposa se Isabella era filha só dele, fato que ele teria achado muito estranho.

A mãe de Jatobá está acompanhando o interrogatório. Ela está sentada ao lado do marido, tem uma expressão carregada e olha constantemente para os jurados. A irmã de Alexandre segura a foto­grafia de um santinho com a imagem de São Francisco de Assis e na outra mão acompanha as orações com um terço, chorando muito.

12h00. A Acusação tem a palavra.

Cembranelli pergunta ao réu, de supetão, o nome da pediatra de Isabella. Ele não se recorda. "E o nome da professora?" "Fernanda", ele responde. O promotor rebate: "Quando o senhor foi ouvido, dezoito dias após o crime, o senhor não se lembrava!" Alexandre tenta explicar, alegando que este interrogatório foi marcado no dia do aniversário da filha, com a fotografia dela em cima da mesa e álbum do necro­tério com fotos de Isabella morta. "Nós somos inocentes, não tô entendendo por que está me mostrando isso!", teria dito ele na ocasião.

Alexandre passa a contar uma novidade, que teria recebido na delegacia uma proposta de acordo em que "assinaria" um homicídio culposo e Jatobá ficaria livre. O juiz interrompe e pede ao promotor que repita a pergunta: "Eu perguntei só o nome da professora", diz

Cembranelli. Alexandre nem ouve e prossegue: "Me deixaram indig­nado! Não queriam saber a verdade!"

O juiz pede que ele responda a pergunta feita pelo promotor, mas emenda: "Os advogados do senhor não se manifestaram?" O réu obedece e diz que Calixto pediu que os advogados explicassem a ele a diferença entre homicídio doloso e culposo. Cembranelli, irô­nico, pergunta: "E eu e o dr. Ricardo participamos dessa negociação? O dr. Levorin, o dr. Rogério..."

Alexandre diz: "O senhor está colocando palavras na minha boca!", e afirma que todos estavam presentes na sala, inclusive o promotor. Cembranelli pede que ele se acalme e oferece um copo d'água. É no calor dessa discussão que os jornalistas têm de "trocar o turno" com outro grupo, e ficam furiosos com a situação de não poder acompa­nhar o desfecho. Quem saiu ficou sem o fim da história, quem entrou não imaginava o que havia se passado.

Segue citando seu depoimento às fls. 1351, onde declara ter feito o exame de sangue no IML. Alexandre está agressivo, irritado. O promotor pergunta por que motivo, nessa ocasião, não esclareceu esses fatos. Ficou sem resposta, disse apenas que ele não "cogitou".

A Acusação continua, agora inquirindo sobre os relatos e inter­rogatórios anteriores, em que Jatobá declarou que a televisão que tem no apartamento havia custado 10.000 reais, além de outros equipa­mentos de valor elevado. Era verdade? Sim, responde o réu, citando os três aparelhos de DVD ainda na caixa; não sabe o preço da televi­são, mas era de 50 polegadas. O promotor também pergunta sobre os laptops da marca Sony Vaio e máquina fotográfica digital, além das valiosas correntes de ouro e relógios de marca. Orgulhoso de seu status social, Alexandre confirma tudo. Podval interrompe, questio­nando os números das páginas do processo onde isso está escrito. Cembranelli procura — fls. 1464/1465 do volume 7, mas faz ar de quem acha que o advogado deveria procurar sozinho. Podval res­ponde que só quer seguir a lei. O interrogatório continua: "Quanto o senhor pagava mesmo de pensão para Isabella?" Alexandre responde que pagava 300 reais, o promotor corrige: "Ou 135 reais?" Alexandre diz que foi estabelecida pelo juiz, que era o próprio dr. Maurício, e que não lembrava se era em espécie ou não, mas o valor era de 325 reais.

"Mas, se dividia tudo, por que a mãe de sua filha teve que acioná-lo judi­cialmente?" O réu responde que também ficou surpreso e, ainda pressionado sobre o fato de o acordo ter sido feito em juízo, passa para a tentativa de explicá-los, dizendo que além do acordo dava tudo "por fora" para a filha. Cembranelli cita uma frase de Ana Ca­rolina Oliveira ("Se ele dava tudo ficava na casa dele, não entrava na mi­nha"), emendando que esperava que dessa vez a Defesa soubesse onde estava essa declaração porque não ia procurar. Alexandre es­clarece que isso só aconteceu depois que se mudou para o Edifício London, onde montou o quarto de Isabella. O promotor, franzindo o cenho, diz que tem informação de que foi a mãe do réu que montou o quarto, ao que ele responde que foram "todos juntos". Então, per­gunta Cembranelli, "quando Ana Carolina Oliveira disse essa frase ela estava mentindo?" O réu não responde, é evasivo. Resolve explicar a questão do ovo de Páscoa que Isabella ganhou, mas não levou, afir­mando que a menina disse a ele: "Olha, pai, eu não quero levar os ovos agora, deixa lá em casa que eu vou repartir com meus irmãos, eu quero comer meu ovo junto com meus irmãos, leva junto com você de volta".

As perguntas prosseguem, com o promotor demonstrando aos jurados que Alexandre Nardoni não possui nenhum bem material, tudo o que diz possuir, na verdade, é de seu pai, que o permite usar, como os carros, o apartamento. Indagado assim, item a item, e ten­do de responder que cada um está no nome do pai, Alexandre vai se irritando cada vez mais, e chega ao ponto de dizer que quer "in­deferir" essas perguntas, pois não entende qual a relevância delas. O juiz, educadamente, mas com firmeza, responde que quando achar a pergunta irrelevante ele mesmo indeferirá.

O clima no plenário começa a esquentar. Quando o promotor afirma que o réu, em seu depoimento, disse não ter falado nada sobre arrombamento de porta, mas 37 policiais militares o desmen­tem, Podval pede mais uma vez o número das folhas onde estão essas afirmações. Cembranelli diz que esperava que Podval tivesse estudado o processo. Podval fica indignado com a provocação, di­zendo que está bem preparado e que tem o direito de saber as folhas e não vai admitir ser tratado daquela maneira, não vai admitir ser maltratado. O promotor responde: "Que ele estude e venha preparado.

Eu tenho uma linha de raciocínio e estou sendo interrompido à todo mo­mento. O juiz interfere: "Ele tem o direito de perguntar ao senhor de onde o senhor tirou essa informação". Cembranelli procura, a contra­gosto, os números das folhas e não fala mais nada. Essa me parece ser uma estratégia usada pela Defesa com o objetivo de truncar o depoimento de Alexandre. A cada vez que a Acusação encadeia uma sequência perigosa para o réu, é interrompida. Se não fosse o núme­ro das folhas, provavelmente seria outro o artifício legal utilizado.

Cita as próximas folhas que vai utilizar, referentes ao depoi­mento do sr. Lúcio e do Copom, relatando que Alexandre disse a todos que seu apartamento fora arrombado. O réu retruca: "Em momento algum eu falei isso". Cembranelli aperta: "Então Valdomiro (o porteiro) e Lúcio são mentirosos?" "Não sei, mas Valdomiro não estava na portaria", responde o réu. O promotor rebate: "Mas como então o sr. Lúcio ficou sabendo de tudo? Foi ele quem ligou para o Copom!" Ale­xandre responde que Valdomiro chegou depois.

Cembranelli continua: "Quando o senhor chegou ao térreo não tinha Antônio Lúcio em sacada nem nada?" "Eu não vi ninguém", responde Alexandre.

Novamente o promotor, em um misto de ironia e irritação, procura o número da folha que vai citar: "O senhor disse que Valdo­miro apareceu depois, suado?" "Sim", responde o réu. "Eu até me lembro que achei estranho porque estava frio naquele dia."

Cembranelli: "No interrogatório policial, a corre diz que ficaram dez minutos na garagem esperando o barulho do som de um carro na garagem cessar, foi isso?"

Alexandre: "Não lembro".

Cembranelli o confronta com as fls. 615 do processo, quando Jatobá respondeu sobre isso. Ele retruca: "Eu não tava marcando". Também o questiona sobre o fato de Isabella ter sono pesado e a história, relatada por ele, segundo a qual a filha, quando acordava, ia para o quarto dos irmãos. Existe uma curiosidade aqui, porque Isabella quase não tinha ido dormir naquele apartamento, uma vez que haviam se mudado recentemente, e no outro ela dormia no mesmo quarto com os irmãos. Alexandre acaba confirmando que o sono da menina era pesado.

Novamente Cembranelli cita o interrogatório de Jatobá, quan­do ela contou que, enquanto Isabella estava caída no chão, Alexan­dre mandou que ela subisse ao apartamento para acompanhar a policia, e disse no interrogatório: "Vai ver se está faltando alguma coi­sa!". O réu respondeu: "Não lembro, porque todo instante eu tentava socorrer a minha filha. Não estava nem vendo quem estava à meu lado".

A pergunta seguinte é disparada antes de qualquer interrupção: "Ninguém falou com Ana Carolina Oliveira? Ela entregou a filha viva e a recebeu morta e o senhor nunca falou com ela o porquê?" Alexandre se mexe na cadeira, desconfortável, e inicia uma explicação confusa como "não deu tempo" porque foi preso na quinta-feira. O promo­tor pressiona: "Mas não teve tempo no domingo, na segunda, na terça e na quarta?" O réu continua dando desculpas que justificassem sua atitude, e o promotor cercando de argumentos de todos os lados. É mesmo difícil explicar o inexplicável.

A seguir o assunto passa a ser a contratação dos advogados para defender o réu nas primeiras horas após o crime e a procuração que Alexandre Nardoni assinou ainda naquele dia, dando poderes a esses profissionais para defendê-lo no inquérito policial e na even­tual ação penal. "O senhor já estava preocupado? Qual a razão?" O réu se enrola para responder, explicando que o pai teria tomado essa atitude depois de ter sido "colocado em um canto", quando foi se­parado da esposa, na delegacia. Ao ser confrontado por Cembranelli com o fato de que nunca foi tomada nenhuma providência sobre esses abusos que ele conta que teria sofrido pela polícia, Alexandre argumenta que nunca procuraram a Corregedoria por ele acreditar que "delegado não investiga delegado".

O interrogatório segue agora em outro rumo:

 

Promotor: "No depoimento do médico-legista ele nos explicou sobre o vômito. Em que momento Isabella vomitou?"

Advogado: "Excelência, da camiseta eu questionei e ele falou que não foi feito em laboratório, ele viu a olho nu e tinha uma mancha, mas que ele não poderia dizer que foi vômito".

Promotor: "São manchas amareladas na parte frontal".

Réu: "Como já foi perguntado, não vi nada disso em momento algum".

Promotor: "Isabella nunca mais se mexeu? Do jeito que caiu, ficou?

Réu: 'Não sei, o senhor que está falando!

Promotor: "Como o senhor não sabe? O senhor estava lá ou não estava?

Réu: "Eu cheguei lá e vi Isabella no chão. [...] Não tinha (marca de vômito nas narinas), ela estava com um cortinho na testa, só".

Promotor: "No depoimento da corre, ela diz que quebrava o pau todos os dias com o marido...".

 

Imediatamente o advogado interrompe, pedindo o número das folhas. O interrogatório para mais uma vez antes que Alexandre responda. Cembranelli procura e informa (fls. 607), mas diz ao juiz: "Quero que fique consignado que o advogado está fazendo isso para dar tempo ao réu de pensar na resposta!" Alexandre, não sem certa arro­gância, se manifesta: "O senhor vai ter que perguntar pra ela!"

Cembranelli continua, explorando a diferença entre "ter uma discussão" e "quebrar o pau", explicando os relatos dos antigos vizinhos do Edifício Vila Real, que se referiam a brigas tão violen­tas que os pais do casal eram chamados para apartá-los. "É verda­de?", pergunta. Podval novamente pede o número das folhas desses depoimentos. Enquanto procura, Cembranelli olha para o réu e diz: "Vá pensando..." Podval devolve a ironia, falando ao juiz: "Desculpa, Excelência, primeiro cite a folha e depois faça a pergunta, não faça teatro aqui".

O promotor detalha então o depoimento feito no dia 31 de março de 2008 pelo vizinho Alexandre de Lucca, quando disse: "As brigas entre o casal eram constantes e coincidentemente ocorriam às sextas, sábados e domingos, quando a filha de Alexandre, Isa­bella, estava na companhia do casal; que, nessas discussões, por algumas vezes eram acionados ao local os pais dele, às vezes os pais de Anna Carolina e às vezes os pais de ambos". Nesse depoi­mento, o vizinho também conta sobre uma briga tão violenta que os vidros da lavanderia foram quebrados, cortando os braços de Jatobá. Nesse dia, segundo Alexandre de Lucca, os pais vieram e Jatobá desceu com o braço enfaixado a caminho de socorro. O réu responde que "não tem conhecimento" e que o acontecido não havia sido do jeito que o promotor informa, que a esposa apenas encostou-se no vidro, que estourou sozinho. Pelo que se lembra, não havia chamado os pais.

Alexandre Nardoni está irritado, e Cembranelli continua fazen­do perguntas difíceis de responder, porque escapam à lógica, como, por exemplo, o fato de o réu nunca ter contado para o juiz os fatos graves que ele diz terem acontecido na delegacia e como, sendo seu pai advogado, nenhuma providência foi tomada, nem mesmo por seus advogados anteriores. Ríspido, Alexandre responde que Cem­branelli vai ter que perguntar a eles.

O assunto passa a ser seu depoimento à delegada Renata Pontes e se ela teria ouvido as pessoas citadas pelo réu: o zelador, o porteiro, o antenista, além de outros, questionando se ele achava que ela havia ignorado o que ele falara ou "ido atrás". O réu respon­deu um seco "Não me recordo".

Com uma falsa ingenuidade, como quem fala com uma criança que falta com a verdade, Cembranelli olha para o réu e pergunta: "O senhor nunca colheu sangue no IML?" "Sangue nenhum, a única coisa que foi coletada foi urina", responde Alexandre. "O senhor sabe explicar como é que o laboratório de DNA do Instituto de Criminalística da Polícia Científica de São Paulo conseguiu amostra de sangue, provando que Isabella era sua filha? Sabe explicar como?" O réu responde que acha que foi pela urina, e antes que o promotor continue, do alto de sua arrogância, questiona o Ministério Público: "'Onde' o senhor quer chegar? Qual a finalidade da pergunta?" Pelo menos ainda chamava o promotor de senhor!

Cembranelli sorri e prossegue: "Por que nos laudos do Instituto de Criminalística constaria que foi a partir do sangue, se não fosse? [...] O senhor sabe explicar por que seus advogados anteriores, em várias ma­nifestações que estão anexadas ao processo, inclusive algumas endereçadas ao Tribunal de Justiça de São Paulo, razões de recurso, manifestações várias, colocaram expressamente, para justificar a sua soltura, que o senhor tinha colaborado com as investigações, fazendo tantas e tantas coisas, inclusive permitindo a coleta de sangue? O senhor sabe por que os seus advogados fizeram constar isso? Quem mente, o senhor ou seus advoga­dos?" O juiz pergunta se Alexandre sabe se constou essa declaração de seus advogados. Alexandre responde: "Não sei, teria que pergun­tar para os advogados".

Cembranelli passa a perguntar agora, bastante provocativamente, sobre a declaração de Alexandre acerca do tamanho do bu­raco na tela de proteção: "O senhor falou que sua cabeça não passava pelo buraco da tela de proteção, que tinha 47 cm. Confirma?"

 

Alexandre: "Não sei se era porque Pietro estava em meu colo... Não passava".

Cembranelli: "Qual o tamanho do buraco, então?"

Alexandre: "Pergunta pros peritos!"

Cembranelli: "Sua cabeça tem mais de meio metro? [...] Está constando, eu posso indicar as folhas, antes que alguém pergunte! Nin­guém pediu, mas eu vou mostrar..."

Podval: "Faça sua obrigação, não seja bobo!"

 

O juiz interrompe: "Ironia não, doutor!". Mas o estrago estava feito e as risadas no plenário seguiam como uma onda. Que tamanho tem sua cabeça? Realmente, a questão fica com duplo sentido quando assim colocada, quase uma metáfora da causa dos acontecimentos.

O promotor continua com suas perguntas, para as quais sabe as respostas e por isso mesmo as faz, como o conhecimento do réu sobre o fato de o zelador — aquele que faz perguntas estranhas — estar até o presente momento trabalhando no Edifício London. Alexandre rebate zangado: "Não sei, porque até hoje estou preso". "E o senhor tem conhecimento que Vando (o gesseiro) também continua tra­balhando lã?", prossegue o promotor. O réu encolhe os ombros, respondendo da mesma maneira.

As perguntas feitas ao réu nesse momento estão desnudando contradições importantes, que colocam em xeque muitas de suas declarações. Isso faz com que os ânimos fiquem mais acirrados, e Alexandre já não consegue manter a atitude de moço educado e controlado, dando respostas ríspidas, curtas e inacreditavelmente prepotentes para alguém na situação dele, de uma ousadia raras vezes vista por parte de réus em plenário. É o que acontece quando Cembranelli pergunta se ele teria declarado, às folhas tais do proces­so, que a esposa era "madura, feliz e satisfeita". Ele responde: "Sim, mas pergunta pra ela!" O juiz disciplina: "Responda direito, é para o senhor a pergunta!" Ele acaba falando sobre os antidepressivos receitados para Jatobá. Logo a seguir, quando o promotor pergunta a que horas saíram de Guarulhos, ele responde que não sabe, e o juiz emenda, ajudando: "Por volta das dez, onze horas?" Alexandre enfrenta o juiz, questionando por que é ele que está perguntando e não o promotor, demonstrando que não gostou da interferência do magistrado. O juiz não se manifesta porque Cembranelli já continuou, afirmando que o GPS indica que saíram exatamente às 22h40. Alexandre se exaspera, respondendo sem responder, que foi ele que falara do GPS para a delegada, mas não sabia se constava essa informação, sugerindo que não foi da eficiência da investigação policial esse dado e sim conse­qüência da informação que ele mesmo havia dado.

Cembranelli pressiona, agora fazendo referência aos tempos citados nas declarações de Alexandre à polícia, que davam a enten­der que ele havia ficado com o carro ligado e parado na garagem durante seis minutos inteiros (o GPS marca o horário em que o car­ro é desligado), e sobre o tempo que estimara ter demorado a se­qüência de fatos que ele mesmo relatara. Alexandre explica que naquele momento já não se recordava, que foi estimando aproxima­damente, não estava marcando o horário enquanto fazia as coisas para depois responder em interrogatório. Cembranelli, sarcástico, pergunta: "Foi no dia em que todos nós queríamos fazer um acordo ou no primeiro depoimento?"

O relógio já marca mais de 13 horas e as contradições são demonstradas uma após a outra. "O senhor declarou (dá o número das folhas) que depois da queda de sua filha, para descer ao térreo, teve que chamar o elevador, verdade?" O réu confirma, mas ao ser perguntado se demorou muito não sabe responder. Qualquer um de nós teria achado que demorou uma eternidade, pois sua filha estava caída lá embaixo. Ou teria descido pelas escadas, em vez de correr o risco de aguardar o incerto.

Alexandre é confrontado com sua própria afirmação de que a única pessoa que poderia ter limpado o sangue de Isabella seria aquela que a atirara pela janela: "Afirma o interrogado que uma tercei­ra pessoa — é o senhor que está afirmando (diz o promotor) — entrou em seu apartamento, sem arrombar a porta, utilizando-se de uma cópia da chave, essa mesma pessoa feriu a sua filha na testa, provocou asfixia, cortou a tela de proteção, antes mesmo de abrir a janela do quarto, limpou o sangue de Isabella, recolheu os instrumentos utilizados para cortar a tela, saiu do apartamento, trancando a porta, e tudo dentro do tempo que o senhor este­ve ausente. É isso mesmo?" Alexandre responde com uma pergunta: "Isso fui eu que falei? Falei que deixei a porta destrancada..." "Em seu depoimento o senhor fala que trancou a porta", diz o promotor. "Nunca falei que tranquei", diz o réu. "Falou no seu depoimento, e nas fls. 603 todos assinam isso, inclusive seus advogados que estavam presentes!" Outras questões são colocadas em plenário pelo promotor, como a de que a terceira pessoa teria entrado no apartamento, asfixiado Isabella, carregado a menina pelo corredor, limpado o sangue, pego a tesoura e a faca, cortado a tela, carregado Isabella e calçado o chi­nelo do réu para subir na cama e jogá-la, pois o solado marcado no lençol era idêntico ao do dele.

O promotor pergunta com voz calma, mas seu tom vai endurecendo aos poucos, ao questionar Alexandre sobre sua declaração de que os policiais o impediram de mexer em Isabella já caída, mas que quando ele chegou ao térreo afirmara que não havia ninguém lá. "Por que então não a pegou naquele momento, quando não havia nin­guém para impedi-lo?" Alexandre responde que só verificou se ela estava viva. O tom de voz de Cembranelli sobe: "Por que não a socor­reu?". Alexandre responde: "Logo em seguida veio o porteiro". O pro­motor dispara: "O porteiro o impediu?" Alexandre hesita, meio sur­preso com o raciocínio. O promotor, muito bravo e contundente, pergunta bem alto: "POR QUE NÃO A SOCORREU?" A resposta: "Porque eu estava olhando para ela, para ver se ela estava viva". Cembranelli, olhando firme para o réu, afirma em alto e bom som: "ELA ESTAVA VIVA!" Responde o réu: "Eu estava em choque!" O promotor não perdoa. "Pergunto: POR QUE O SENHOR NÃO A SOCORREU? Pergunta objetiva..." O réu, tentando sair da situação constrangedora, argumenta: "Fiquei em choque, quando caí 'em si'..."

No mesmo tom severo, Cembranelli pergunta por que Alexan­dre jamais falou ao juiz sobre o acordo proposto a ele, mas o réu responde que também não se recorda. "Falou com seu pai? Ele fez algo?", pressiona Cembranelli. "Não sei", responde mais uma vez o réu. E completa com ironia: "Que eu me lembre, não me recordo, acho que não foi relatado, mas como o promotor estava lá, como ele é fiscal da lei..."

Já em outro tom de voz, o promotor pega um volume do processo nas mãos e procura as páginas que vai utilizar. Interroga Alexandre sobre as declarações do subsíndico e da síndica do Edi­fício Vila Real acerca das "brigas normais", corrigidas pelo réu para "discussões", que o casal tinha ali a ponto de ter sido advertido várias vezes pelo barulho e desconforto que causavam aos outros. Alexandre diz que nunca foi abordado por eles. Cembranelli corta: "É mentira deles?" O réu continua afirmando que nunca recebeu reclamações, mesmo depois de o promotor ter lido vários trechos dos depoimentos que mostram o contrário.

Depois, Cembranelli pergunta se Alexandre acha que a polícia nunca investigou outra linha (de suspeitos). Alexandre, novamente de forma arrogante, responde: "Pelo que consta... Alguém foi investi­gado?" O juiz interfere, dizendo ao réu que a pergunta é para ele!

Prosseguem, agora falando sobre o fato de o réu não ter autorização para pegar Isabella na escola (que na verdade ele nunca pediu) e sobre a data em que acabou seu relacionamento com Ana Carolina Oliveira. Alexandre responde que não se recorda. Cembra­nelli o ajuda: "Foi quando Isabella tinha onze meses, março de 2003. Mas em depoimento consta que 'ficou' pela primeira vez com Jatobá no final do ano de 2002. Então o senhor traía Ana Carolina Oliveira?" "Não traí", diz o réu, contra toda matemática possível!

Fechando o processo, Cembranelli agora olha diretamente para o réu e faz uma última série de perguntas que fizeram o plenário vir abaixo:

 

Cembranelli: "O senhor apareceu hoje de óculos aqui, uma novidade! Teve algum problema nesses dois anos, problema de visão?"

Alexandre: "Sempre usei óculos..."

Cembranelli: "Eu nunca vi".

Alexandre: "É que o senhor não acompanha minha vida".

Cembranelli: "O senhor tem problema nos olhos? Miopia, estrabismo?"

Alexandre: "De enxergar de longe, eu não consigo muito, e os meus olhos andam muito irritados".

Cembranelli: "A ponto de não saírem lágrimas quando o senhor chora?"

Juiz: "PROMOTOR! PROMOTOR! INDEFERIDA SUA PERGUNTA!"

 

                     Suspensa a sessão.

 

A dra. Cristina Christo Leite inicia sua série de perguntas para o réu Alexandre Nardoni, começando por querer saber se, ao encon­trar o buraco na tela de proteção, Jatobá também olhou por ele. O réu responde que não prestou atenção nisso, mas acha que sim.

O assunto passa a ser a pensão alimentícia de Isabella. "Quais os últimos valores?", pergunta a assistente da Acusação. Alexandre, petulante, diz que esse acordo foi feito pela própria dra. Cristina como advogada de Ana Carolina Oliveira, como se ela estivesse querendo saber a informação para ela e não para esclarecer os jura­dos sobre o assunto. Ela informa, ríspida, que não foi ela a advoga­da do caso, e o juiz interrompe, orientando o réu a se ater à pergun­ta. Ele responde que pagava 250 reais, parte em depósito bancário, parte em seguro-saúde, e quando questionado por que motivo hou­ve redução do valor, ele esclarece que sempre conversou bem com Ana Carolina Oliveira e que, ao incluir Isabella no seguro-saúde pago pelo seu empregador, aceitou a redução.

A dra. Cristina afirma que em sua qualificação consta "consultor" e pergunta qual de fato é a sua formação, ao que ele responde que é bacharel em direito. Em seguida a assistente diz a ele que até o sr. Antônio Nardoni, pai dele, reconhece o ciúme da ré em relação à sua pessoa. "Confirma?" Ele dá de ombros, dizendo: "Pergunta pra ele!" Ela continua: "Mas o senhor reconhece que ela é ciumenta?" Ale­xandre responde que tanto a esposa atual quanto a anterior têm ciúme e que ele também, porque quem gosta tem ciúme.

O interrogatório da Acusação prossegue e pede-se que o réu diga se é verdade que Jatobá fala muito alto, com vocabulário reple­to de palavrões porque o marido não dá atenção a ela. Ele, calma­mente e contra todos os depoimentos do processo, inclusive o de Jatobá, responde que nunca viu a esposa xingando "desse jeito", gritando, que ela não falava palavrões na presença dele. Ela replica que em juízo constam essas informações, mas ele mantém: "Como eu já falei pra senhora..."

O assunto passa para a alegação naquele dia, do réu, de que na delegacia havia recebido proposta de um acordo, e a dra. Cristina pergunta se Alexandre sabe a diferença entre homicídio doloso e culposo. Ele dá um meio sorriso, dizendo que é formado em direito. Por considerar que o réu afirma ter sido ouvido várias vezes até que se colocasse tudo no papel, na delegacia, ela pergunta: "Seu advoga­do leu, pediu modificações?" Ele responde: "Não me recordo, mas se está a minha assinatura..." A dra. Cristina insiste: "Mas ele disse se podia assinar ou não? Autorizou?" "Sim", responde o réu. Ela continua: "O senhor assinou alguma declaração ou depoimento quando seus advogados não estavam presentes?" "Não", respondeu Alexandre.

A assistente, por meio de perguntas, dá ciência aos jurados de que de fato Isabella só havia estado no Edifício London em um dia de semana e dois finais de semana, sendo infelizmente o último incompleto, porque moravam ali havia apenas um mês. Portanto ficou mesmo estranha a informação anterior de que Isabella tinha o costume de, quando acordava no meio da noite, ir ao "quarto dos irmãos", porque tudo era novidade, ainda não estava estabelecido um padrão de comportamento, além do fato de a mãe ter afirmado que a menina não acordava no meio da noite porque tinha sono pesado.

Para finalizar, a dra. Cristina Christo questiona Alexandre sobre o que Jatobá teria dito no telefonema aos pais de ambos, enquanto ele aguardava a chegada do elevador. Ele disse que estava no hall de entrada e não ouviu, coisa difícil de imaginar quando se observa a maquete, porque o apartamento é bem pequeno. A assistente con­tinua: "Quando Jatobá desceu, o senhor pediu que ela ligasse para Ana Carolina Oliveira?" Ele confirma. "Então o senhor pediu para que ela ligasse para os seus pais, para o pai dela, para Ana Carolina Oliveira e em nenhum momento pediu para que chamasse o resgatei", pressiona. Ele, mais uma vez, responde que só pensou nos pais, que tem esse há­bito. Quando questionado se viu ladrão pelas costas no apartamen­to, disse que não, mesmo confrontado com depoimentos de três policiais que ouviram isso dele. "Nunca vi, se tivesse visto..."

A assistência da Acusação encerra às 15h30.

A Defesa passa a interrogar seu cliente. Podval se levanta, com papéis de diversos tamanhos nas mãos e uma caneta, que utiliza para rabiscar as perguntas já feitas e, às vezes, alguma que desiste de fazer. O advogado coloca-se entre o réu e os jurados, que observam com atenção. Ele vai tentar esclarecer todos os buracos abertos pela Acusação, um a um.

Começa tentando deixar claro que Alexandre, em muitas ocasiões, não era informado ou envolvido em questões relacionadas a Isabella, como o fato de Jatobá ter sido avisada, por telefone, apenas vinte dias antes da morte da menina, que ela estava sendo levada pela mãe para fazer acompanhamento psicológico. Nunca pediram que ele fosse junto.

Podval passa para o dia do crime, refazendo o caminho de Alexandre no apartamento até a descoberta do buraco na tela de proteção, perguntando ao réu se estava com Pietro no colo e se subiu carregando-o para olhar para baixo. O réu confirma. Isso explicaria a afirmação dos peritos de que Alexandre, para marcar a camiseta daquela maneira, tinha que estar com um peso nos bra­ços, mas não podemos deixar de raciocinar que se de fato estivesse com o filho no colo na hora em que supostamente "descobriu" a morte da menina, sua camiseta teria sido marcada pelo xadrez da tela apenas de um dos lados, pois a criança impediria as marcas do outro lado.

O advogado também questiona sobre os horários informados pelo réu quanto à série de fatos ocorridos, suas estimativas de tem­po. "Você tinha como precisar? Cada minuto de cada andamento ali, fra­cionado?" "Não", responde o réu, "porque não fico marcando o tempo, foi uma aproximação."

Ao ser perguntado se chegou a avistar alguma gota de sangue, Alexandre explica que viu uma no colchão de Pietro e outra na tela. Sobre o fato de testemunhas terem dito que ele gritava "ladrão! la­drão!", diz que imaginava que alguém estivesse dentro do prédio, mas o juiz interrompe, esclarecendo ao advogado que tudo isso já foi mencionado anteriormente.

Podval prossegue perguntando sobre a dúvida que ficou sobre se ele e a esposa desceram juntos no elevador ou se não tem certeza a respeito disso. O réu confirma: "Sim, juntos". Podval insiste: "Foi informado do conflito de horário por seus advogados? "Alexandre respon­de que sim, mas que sempre falou a verdade. O advogado continua, lembrando a todos que Alexandre, sentado ao lado da filha caída, gritou que tinha gente no prédio, que jogaram a menina. Alexandre confirma que pediu socorro assim, que poderia ter alguém dentro do prédio.

Algumas perguntas rápidas são feitas pelo advogado sobre a relação familiar com Isabella, e o réu responde que a filha adorava ir à sua casa e pedia à mãe que deixasse, porque, quando ela estava com eles, tudo era feito em torno da menina, inclusive os passeios escolhidos para fazerem juntos nos finais de semana.

Podval passou a interrogar seu cliente sobre as questões policiais, como o fato alegado pelo réu de que na delegacia havia sido informado que Jatobá já confessara o crime. Alexandre explica que diziam: "Pode falar que a sua esposa já falou tudo lá!" Conta como os policiais batiam na mesa, gritando: "Assassino, filho da puta, seu va­gabundo, vou te arrebentar!"

O advogado pergunta se, sobre a mesa da delegada, havia uma fotografia de sua filha. Alexandre responde que sim, no dia 18 de abril de 2008, aniversário de Isabella e dia em que foi realizado o interrogatório. "Perguntei quem autorizou e porquê, mas ela (a delega­da) não falou!"

Podval quer saber se Ana Carolina Oliveira alguma vez reclamou de maus-tratos à menina por parte deles. "Não", responde, "ela falava que Isabella adorava estar em casa."

O assunto muda para os exames executados no IML. O advoga­do pergunta: "O dia em que o senhor foi ao IML, o senhor já disse que não chegou a tirar sangue. Chegaram a fazer algum exame na sua unha, para saber se tinha algum sinal de pêlo, alguma coisa?" "Não, doutor, nunca encostaram em mim, nem para me medir nem para fazer exame nenhum!"

Podval pede que Alexandre se levante e verifique a maquete. Ele olha tudo e comenta que o portão da entrada de serviço está errado, na verdade é embaixo da guarita, onde fica o porteiro, que pode abri-lo com chave ou por meio de um botão.

Sentam-se novamente e o advogado pede que Alexandre verifique a veracidade da animação gráfica feita pelo Instituto de Criminalística, que será mostrada no telão, para os jurados. Du­rante a exibição, o réu vai respondendo e comentando sobre a posição da família no carro, o machucado na testa de Isabella, que só viu quando ela estava caída, sobre as chaves do apartamento terem sido entregues para a polícia. "O senhor entregou a chave do apartamento, da porta do seu apartamento na delegacia, ou seu pai ou alguém entregou para a delegada?", pergunta Podval. "Doutor, quan­do nós saímos, que nós saímos correndo para ver a Isabella lá embaixo, nós não subimos mais, e a porta ficou aberta, do apartamento, junto com a chave lá, então não foi entregue, não fui eu que entreguei a chave para a delegada", comenta. Quando questionado se fizeram algum exame na chave, o réu responde que não, pois parece que permaneceu na gaveta da delegada.

Podval, de forma bem leve e educada, vai perguntando a Alexandre o que é verdade e o que é mentira naquela animação. Mas as respostas não têm emoção alguma e todos nós vamos ficando com sono. O juiz logo percebe a situação e diz que sabe como depois do almoço é difícil manter-se alerta. Pede a um jurado específico para que se sente de forma ereta, para ficar concentrado. O recado serviu para toda a platéia.

Advogado e réu prosseguem, com o último contestando o modo de carregar Isabella no colo que aparece na animação, que tenha subido com a família toda para o apartamento, que nunca entrou na cozinha para ver faca e tesoura, a queda-sentada e a esganadura. "Jamais, completamente mentiroso!" Aparece a fotografia de Isabella morta, mas o pai não demonstra nenhum sobressalto, desconforto ou alteração de comportamento. É uma análise bem fria do vídeo, poucos seriam capazes de fazê-la. Os trabalhos prosseguem. Diz que, se ficar em pé sobre a cama dos filhos, como demonstrado, bate a cabeça no teto, e que Pietro estava do lado esquerdo de seu colo quando olhou pelo rasgo da tela. Algumas pessoas da platéia cobrem a boca com a mão, tentando esconder um sorriso sobre o fato de ele não ter como ficar em pé na cama.

Alexandre aproveita para esclarecer que foi ele mesmo quem avisou à delegada que tinha GPS no carro, liberando-a para quebrar o sigilo. Ao ver a parte que mostra sua própria camiseta, confirma que era igual à sua e que foi entregue a seus advogados sem ter sido lavada, no dia seguinte aos fatos. Não se lembra da data em que a camiseta havia sido entregue, começa a tentar dizer uma data apro­ximada e Podval o interrompe, dizendo: "Se o senhor não souber ou não se lembrar, o senhor fala só o que o senhor sabe, não quero nada que o senhor não saiba".

Podval pede que o réu mostre, na maquete, de onde veio o porteiro. Refere-se à animação, dizendo: "Esta dinâmica está um pou­co confusa para mim, talvez para o senhor também. Como é que foi isso, Alexandre, eu não sei, você me diz: 'Eu vi o porteiro vir correndo'. Como é que foi isso, o porteiro, o sr. Lúcio, quem avisou, o senhor sabe me dizer exatamente como aconteceu, qual a ordem das coisas?" O juiz indefere a pergunta, explicando: "Doutor, desculpa, essa foi a pergunta do promo­tor, quem ele viu primeiro, por duas vezes, primeiro o porteiro apareceu do fundo, depois o sr. Lúcio falou com ele pela sacada. Eleja mencionou isso, doutor". Podval encolhe os ombros e pede que se acenda a luz. Aca­bou a análise da animação gráfica.

Podval enfatiza que a delegada, em seu testemunho, disse que o réu mencionou várias pessoas para serem investigadas no depoi­mento dele. Havia razão para isso? O réu responde: "Nunca apontei ninguém, ela foi perguntando e eu respondendo". O advogado questiona quem poderia ser o autor. Alexandre responde: "Não sei, gostaria de saber". "Não foi você?", pergunta, "jamais", diz o réu. "A coisa mais valiosa da minha vida foi tirada." Mas foi assim, impassível, a forma como ele negou a autoria do crime em plenário.

Podval passa a descrever como Alexandre, em tempos idos, levava a filha à faculdade, como Jatobá a tratava como uma terceira filha, ia buscá-la na escola... Como ele foi citado, então, como um pai ausente? Alexandre completa o relato, dizendo que tinha ido conversar com a professora da filha quando um menino a beliscou, e como compareceu até à festa de formatura, na troca de faixa do judô, que filmou o evento. Conta da festa que Ana Carolina Olivei­ra deu para a filha, enquanto esta, por uma conjuntivite, não foi à festa que ele preparou para Isabella.

O advogado diz que vai entrar numa "parte chata" e pede que Alexandre conte como soube da decretação de sua prisão temporá­ria. Ele responde que acha que foi pela imprensa e que se apresentou no Fórum. Também faz uma pergunta citando o depoimento de um policial, Valter, que não teria verificado a sacada do apartamento. Também obtém a resposta de Alexandre que nunca, no prédio em que morava antes, recebeu alguma notificação ou multa pelos dis­túrbios alegadamente causados.

Sobre a atitude da polícia para com os réus, Podval volta a falar do tal "acordo" que teria sido proposto e pede para o réu esclarecer por que não deram queixa, se tiveram medo, tanto eles quanto seus advogados; Alexandre responde: "O senhor chegou num ponto que eu ia falar com Vossa Excelência, com o juiz depois, que houve sim, houve até fatos de explodirem a caixa de correio do dr. Ricardo, ameaça de morte por policiais, e até hoje o meu pai é seguido e ameaçado de morte, e nós desco­brimos [...] O meu pai comentou comigo, ele comentou que estava sendo seguido por policiais, meu pai comentou que é seguido por policiais do 9º Distrito". O juiz questiona o réu se a alegada bomba colocada para atingir o dr. Ricardo (advogado) teria sido plantada por policiais. Alexandre responde que sim: "Gostaria de deixar consignado que tenho medo de retaliações, tanto eu quanto a minha esposa, os meus filhos e a minha família", diz o réu, ao que o juiz esclarece que isso é feito por procuração, para depois pedir aos seus advogados.

Podval, assim como Cembranelli o fez, reconstrói a seqüência da denúncia na pergunta seguinte para o réu. "Diante da afirmação, quando o senhor sentou aqui, foi lida a denúncia e, na denúncia, consta que você teria chegado, que teria pego a sua filha, levado-a, subiram todos jun­tos, foram para o apartamento, no apartamento a Anna teria asfixiado a Isabella, depois você a teria jogado no chão, depois teriam ido até a janela e depois teriam cortado a janela e arremessado pela janela. Essa é a acusação. Quando você foi ouvido, foi você que descreveu que não teria asfixiado, você sabia da asfixia, você sabia desse relato ou lhe passaram esse relato e você disse 'eu não fiz'?"

Alexandre responde: "Não sabia de nada do que estava acontecen­do, que foi passado isso, até falei: 'Nossa, que história mirabolante que criaram!' Depois fizeram esse filminho, que é completamente mentiroso, não sei de onde criaram essas histórias!"

Podval passa então a perguntar sobre a procuração, assinada dia 30 de março de 2008, nomeando seus advogados. Alexandre alega que não sabe, não se recorda nem como recebeu a tal procu­ração. E a dra. Renata, nas reportagens de televisão e revistas, o réu viu? Ele responde que viu, nas revistas Veja e Época, a dra. Renata vestida de preto, mas que não se recorda quando foi.

Quando questionado pelo episódio relatado por Ana Carolina Oliveira, em que teria agredido Pietro jogando-o no chão, Alexandre, bravo, nega: "jamais, nunca existiu isso!"

Podval pergunta sobre os filhos de Alexandre e como é sua vida hoje. Ele responde: "É, isso acabou da noite para o dia, foi destruída a minha família completamente, eu fui preso, minha esposa foi presa, os meus filhos ficaram com os meus pais, com meu sogro e com a minha sogra, e eles têm visitado a gente no fim de semana nos presídios".

A última pergunta da Defesa: "Você sabe me explicar o que acon­teceu naquele dia, você sabe me explicar por que razão alguém teria feito aquilo, você tem alguma explicação lógica, coerente, para aquilo tudo?" Alexandre, de cabeça erguida, responde: "Não, eu não consigo explicar, não sei explicar".

Uma hora e dez minutos depois de ter começado o interrogatório, a Defesa encerra.

Alguns jurados fazem perguntas sobre como o réu sustentava Isabella antes da pensão oficial, se lembrava-se de as marcas da tela estarem na camisa antes de entregá-la aos advogados. Ele responde que no começo fazia as compras que eram solicitadas e deixava na casa dela. Quanto à camiseta, não lembrava se viu ou não, só que a tirou para entregá-la aos advogados ainda quando a vestia, pelo que podia se recordar. Uma terceira pergunta de um dos jurados foi negada pelo magistrado, que a considerou de ordem pessoal.

Alexandre ainda pede novamente que o juiz registre a ameaça que recebeu da polícia. O juiz responde que verá depois.

 

Sem parar para intervalo, o dr. Maurício inicia o interrogatório da corre, Anna Carolina Jatobá. Alexandre é autorizado a ficar em plenário.

A mãe da ré está sentada no mesmo lugar e trouxe consigo um bloco de anotações onde escreve algumas passagens do interroga­tório. A família Nardoni se movimenta a toda hora, e o pai de Ale­xandre conversa bastante com um repórter da Rede Globo.

A denúncia é lida da mesma forma que aconteceu com Alexan­dre: "A senhora apertou o pescoço da vítima com as mãos, praticando uma esganadura que ocasionou asfixia mecânica". [...]" "A senhora praticou estes atos?" "Não", responde a ré, "é totalmente falsa a acusação." O juiz pede que conte a sua versão dos fatos.

Jatobá chora, fala muito rápido. O estenotipista tem dificuldade em acompanhar seu interrogatório. Ela também gagueja um pouco. "Isabella pediu com jeito carinhoso... (chora)" E vai contando e chorando, mas, em certo momento, o choro cessa e ela prossegue. Conta sobre os dias anteriores ao crime, sua ida à loja da avó Rosa, como deixou Pietro com Ana Carolina Oliveira, da "palhaçada" que a escola tinha feito com a questão da excursão. Fala que, na sexta-feira, Ana Caro­lina Oliveira teria ligado para ela dizendo que Isabella queria ficar com a madrasta, e como ficou feliz com isso, mas teve problemas em achar o endereço a partir da escola, porque sempre ia de casa. Ela fala muito, dando mínimos detalhes, são tantos que o juiz pede: "A senho­ra poderia narrar só os fatos mais relevantes?"

Jatobá repete, emocionada, a história do banho que já havia contado para a imprensa: "Nós duas tomávamos banho juntas e todas às vezes, quando embaçava o vidro, ela fazia o coração dela e o meu coração, ela falava que era o amor que ela sentia por mim".

A seqüência de fatos que Anna Carolina Jatobá conta não é muito diferente das versões anteriores, ressaltando que, tanto na sexta quanto no sábado, o zelador perguntou a ela e a Alexandre se Isabella era filha apenas do marido.

As diferenças dessa primeira parte é que insere que lavou as roupas escuras na máquina de lavar antes de sair de casa no sábado e as estendeu no varal, que seus pais não estavam em casa porque tinham um problema a resolver, que foi até lá porque seu irmão "Vitinho" estava com febre e dor de cabeça e aqui, em plenário, não foi sorvete que caiu na roupa de Isabella e sim Coca-Cola, dada pelo pai em um copo de vidro. Ela teria então trocado a camiseta da me­nina por outra, emprestada pela mãe e que pertencia ao irmão.

O relato continua. Voltaram para casa. Na altura do Buffet Me­diterrâneo (rua Ataliba Leonel) seu celular vibrou e ao olhar cons­tatou que eram 23h29 ou 23h30. Estava a minutos de casa. A ré pensou que fosse a mãe de Isabella, porque estranhava o fato de ela ainda não ter telefonado para saber da filha.

Também explica que no carro não tinha nenhuma fralda, aque­la que estava no balde era a que usara pela manhã, quando deu mamadeira para o filho. Fala também, como se tivesse pressa em esclarecer um ponto ao qual ainda não chegou em seu relato, que quando Alexandre desceu na garagem, depois de colocar Isabella na cama, não havia mancha nenhuma de vômito na roupa dele. "Era uma família normal, sem briga sem nada."

Prossegue a seqüência de fatos, agora falando sobre a caminho­nete preta, de como ela e o marido esperaram que o barulho do som alto que vinha do carro cessasse; Alexandre ficou do lado de fora do carro e que estava "normal": "Porque a dra. Renata Pontes informou que a camiseta dele estava com aquelas marcas, mas não estava, ele estava com a camiseta seca, normal, ele ficou bem na minha frente, eu pude observar, nós ficamos conversando..."

Quando subiram, cada um com um filho nos braços, Jatobá conta que o apartamento estava trancado. Alexandre teria tirado a chave do bolso, destrancou a porta e entraram. A ré relata que es­tranhou a luz da cozinha estar acesa, mas não falou nada. Tirou o tamanco ali, largou a bolsa na mesa da sala de jantar, enquanto Alexandre seguia pelo corredor dos quartos, estranhando que as "luzes" estavam diferentes do que havia deixado. O juiz questiona se ele comentou com ela sobre as luzes nessa hora. "Das luzes, ele falou alguma coisa das luzes ou a senhora é que acha que as luzes estavam diferentes de como ele tinha deixado?" Ela se atrapalha um pouco, por­que não poderia saber como ele havia deixado as luzes se ele havia subido sozinho, e acaba enrolando com o famoso "Que eu recorde, não, eu não lembro de ele ter falado".

Conta como, sem entrar no quarto, perceberam que Isabella não estava na cama. Anna Carolina Jatobá foi até seu quarto imaginando que a menina podia estar lá. Foram então olhar no quarto de Pietro e ela imediatamente notou a gota de sangue no lençol da cama de Pietro. Estranho não ter notado as manchas de sangue no batente da porta, aquela tão discutida por estar faltando na maquete. Falta­va também no relato do casal. Jatobá continua, explicando como Alexandre foi até a janela, colocou a cabeça para fora, se virou para ela e, branco, disse: "Anna Carolina, a Isabella está lá embaixo". Ela teria respondido: "Não, é mentira!", e começou a gritar desesperada­mente, indo conferir sem colocar a cabeça no buraco se era verdade ou não. Nesse momento o marido lhe pediu para ligar para o pai dela, e depois por conta própria ligou para o sogro. Eles permane­ciam, cada um, com um filho no colo, e ela foi telefonar do aparelho sem fio enquanto Alexandre "chamava" o elevador. O juiz pergun­ta: "Deu tempo de fazer essas duas ligações enquanto esperavam o eleva­dor?" Ela confirmou.

Jatobá conta como ficou no hall de entrada esperando com os filhos enquanto Alexandre ia ver Isabella, porque não queria que os filhos pequenos vissem a cena; viu o porteiro vindo dos fundos, gritou com ele e o xingou, mas na confusão não viu Pietro sair ao encontro do pai. Dessa vez não relata, como antes, que Pietro teria lhe perguntado por que Isabella pulou da janela dele. É muito con­fuso o relato de Jatobá. As palavras saem aos borbotões, sem uma ordem cronológica dos fatos, enquanto dois dos jurados anotam o que é falado. Minha caneta tenta também alcançar a velocidade de sua fala.

Foi a ré quem ligou para a mãe de Isabella. Sobre a chegada de Ana Carolina Oliveira ao Edifício London, esta teria entrado gritan­do: "Cadê a minha filha, cadê a minha filha!", subindo a escada deses­peradamente, acompanhada do irmão, uma amiga e o namorado. Seu sogro, Antônio Nardoni, teria chegado ali no mesmo momento. Conta também que se negou a subir ao apartamento com a polícia para ver se faltava alguma coisa, como o marido havia mandado que fizesse. Alexandre, do banco dos réus, balança a cabeça, demons­trando que não está gostando do que a esposa está dizendo. Não era para menos, pois apenas ele pensou nos bens materiais enquanto a filha estava caída no chão.

Anna Carolina Jatobá continua sua versão, explicando que andava de um lado para o outro, gritando muito. Em certo momen­to, Ana Carolina Oliveira e ela discutiram. "A Carol (Oliveira) gritou comigo, falou um monte para mim, ela mandou eu calar a boca, mandou eu ficar quieta, eu falei que estava preocupada com a filha dela, gritei bas­tante com ela também, aí chegou o resgate." Também declara que não sabia mais onde estavam seus filhos, talvez Cauã no colo de um vizinho, mas depois seus pais chegaram e ficaram com as crianças.

Quando os policiais evacuaram o prédio, ela ainda estava gritando, descalça no meio da rua. A cunhada Cristiane ligou em seu celular e chegou acompanhada do namorado logo depois. Quando Isabella seguiu com o resgate, Jatobá foi para a casa dos pais dela, saiu dali antes do desfecho da história, e recebeu a notícia da morte da menina por meio de um telefonema de Alexandre. Ele também falou que precisavam ir até a delegacia, então foram para a casa dos pais dele tomar banho e se arrumar. "Eu cheguei lá e ele estava choran­do, não conseguia falar direito, eu abracei ele, comecei a chorar com ele, aí meu pai conversou com ele, aí nós chegamos a conversar."

Foi para a delegacia acompanhada do marido, do pai, do sogro, da cunhada e do namorado dela. A dra. Renata chamou Alexandre na sala dela e esperaram por um bom tempo. O juiz pergunta o que é um "bom tempo". Ela não sabe precisar, mas diz que foi longo. Ela foi levada depois para uma sala, esperou por uma hora e pouco, e lhe pediram que desenhasse o local dos fatos. Falou então com a dra. Renata e foi encaminhada, acompanhada do pai dela, que também se chama Alexandre, para o Instituto Médico Legal, mas antes passaram na padaria para comer alguma coisa. Segundo soube, o marido já estava no IML. Foi submetida a exame de corpo de delito, mostrou as cicatrizes que já tinha e coletou urina. Quando voltou para a dele­gacia, Alexandre, seu marido, também já estava de volta.

Após algum tempo, dois policiais, Jair e Valdir, pediram que ela "descesse", e a avisaram: "Fica quietinha aí que você vai fazer uma diligência comigo!" Quando avisou que antes iria pegar seu celular, ele a segurou pelos dois braços, e de maneira grossa e estúpida falou: "Você não vai pegar nada, mocinha!"

Ao chegar ao Edifício London, os policiais pediram que ela se abaixasse para não ser vista pela imprensa, o que ela fez. Já em seu apartamento, encontrou muitos investigadores e peritos, e um deles estava vestido de jaleco e luvas, coletando sangue com uma gaze. Os policiais pediram que ela refizesse todos os passos desde que tinha entrado em casa, simulando uma reprodução. Ela notou que a pia estava cheia de louça do almoço de sábado, que não tinha sido lava­da ainda, mas a cozinha estava revirada, mais bagunçada do que havia deixado. No quarto, quando a dra. Renata pediu que mostrasse como trancava a janela, ela disse: "Mas doutora, vai ficar a minha digital na janela!" A delegada teria respondido que as digitais já haviam sido coletadas. De qualquer maneira, antes ou depois, as digitais de Jatobá estariam por todo o apartamento, porque ela morava ali. Não seria relevante para a polícia qualquer impressão digitopapilar en­contrada que combinasse com a dos moradores daquele apartamen­to; não teriam nenhum significado para a investigação.

Na sala, a delegada estava sentada no suporte da televisão, enquanto outros investigadores estavam também acomodados no sofá. Ali a pressionaram para falar que o autor do crime teria sido Alexandre; a dra. Renata dizendo o tempo todo que ele era um psi­copata, que tinha cara de psicopata. Jatobá também conta que o investigador chamado Téo, naquele momento, verificou as ligações do celular dela. Achei estranho, não entendi, afinal ela não havia dito que a impediram de levar o celular?

Também argumentaram que Alexandre tinha curso superior e ela não, que nem imaginava o que era uma cadeia, e a delegada avi­sou que iria pedir a prisão temporária do casal. Ela teria, o tempo todo, respondido: "Eu não posso falar uma coisa que eu não presenciei".

Nesse interrogatório a ré dá a entender que toda a bagunça fartamente documentada nos laudos em sua casa teria sido feita pelos próprios peritos, que até chegou a ver seu tamanco no armário do filho Pietro. Também descreve como, na cozinha, um investigador pegou uma tesoura com papel-filme e perguntou a ela: "O que é isto, mocinha?" "É a tesoura de cortar frango que uso para cortar carne." Não mostrou nenhuma faca a ela, apenas deu a tesoura para o perito, que a colocou em um saquinho e lacrou.

A ré também se refere a um pano de chão encontrado em sua casa, manchado com gotas de sangue. Ela disse que era um pano de chão novo, que ela havia dado para Pietro e Isabella brincar de lim­par o suporte de tevê da sala no sábado.

O relato de Jatobá é repleto de detalhes, tanto que o juiz pede que conte mais resumidamente: "Senão não vai ter fim o interrogatório da senhora!" Ela então continua, calculando que teria permanecido em sua casa por volta de uma hora, verificou que nenhum objeto ou equipamento de valor estava faltando, pegou algumas roupas para seus filhos e estava de volta à delegacia às 15h ou 16h. Também achou estranho o fato de a delegada a ameaçar de prisão temporária, mas com Alexandre a conversa era sobre prisão preventiva. Então, assustada, telefonou para o sr. Antônio Nardoni, dizendo que acha­va melhor ele chamar um advogado. Depois tiraram seu celular, então mais tarde conseguiu convencer o investigador Spindola a ligar para sua mãe e saber dos filhos, mas acabou utilizando esse telefonema para avisar o pai que precisava de um advogado.

O relato de Jatobá é contraditório dentro dele mesmo. O celular uma hora está com ela, outra não, e são momentos intercalados e não consecutivos. O pai dela estava na delegacia, depois não estava, depois estava. O sogro estava na delegacia com eles, mas ela telefo­nou para que chamasse um advogado. Suas explicações são muito confusas. Também chama bastante a atenção como ela se lembra dos nomes de todos os investigadores que cita.

Só deu suas declarações formais quando estava acompanhada do dr. Ricardo Martins, às 21h, sem que a dra. Renata estivesse pre­sente na sala.

O juiz passa a fazer perguntas sobre o velório e o enterro de Isabella, se teve contato com a mãe da vítima. Jatobá responde que abraçou Ana Carolina Oliveira e não sabia o que falar, que reação "tomar", e acabou falando: "Nossa, Carol, ontem você nem ligou para ela!" A mãe da menina teria dito: "Mas eu liguei..." (chorando). Jato­bá teria respondido, também chorando: "Você não ligou, Carol". De­pois, não se encontraram mais.

Ao ser perguntada sobre seu relacionamento com o marido, Jatobá diz que está com ele há sete anos e que antes de o primeiro filho nascer brigavam bastante. O juiz pede que explique o que é "brigar bastante". Ela diz que não era todo dia, mas brigava por tudo e o xingava muito.

Sobre seu relacionamento com Ana Carolina Oliveira, conta que entre os anos de 2003 e 2004 se falavam todos os dias pelo MSN e também pelo celular. Quando o juiz questiona sobre a briga ali relatada entre as duas, a ré explica que Alexandre quis colocá-las frente a frente e conta o episódio que envolveu a sogra, chamada ou não de fofoqueira na ocasião, mas completou: "Meu marido não me segurou pelo passante (da calça), porque eu não ia voar para cima dela, nunca tentei bater em ninguém, eu apenas estava falando verbal­mente!"

O juiz finalmente pergunta como era o seu relacionamento com Isabella. Jatobá ameaça chorar e fala pouco, dizendo que a menina era como uma filha e nem queria mais ir para a casa da avó nas férias, e sim ficar com ela. Também se refere à relação de Isabella com o pai como maravilhosa.

Por fim, o juiz pergunta se ela subiu nas camas com Cauã no colo para ver Isabella caída no térreo e se o fez de joelhos. Ela res­ponde: "Eu apoiei". Ele não entende, pergunta: "A senhora foi andan­do de joelhos sobre as camas?" Ela responde: "Fui". Fiquei tentando refazer a cena, o marido lhe contando que a filha estava caída lá embaixo, havia sido arremessada pela janela, ela começa a gritar desesperadamente, mas, sem pressa, resolve "andar de joelhos" até a janela para conferir, um método mais demorado de alcançar seu objetivo, mas com certeza, "mais higiênico".

São quase 18h. O dr. Maurício Fossen interrompe a sessão, dando um pequeno intervalo, antes que o Ministério Público inicie suas perguntas.

 

18h30 — O promotor Francisco Cembranelli se levanta para começar a interrogar Anna Carolina Jatobá.

Depois de um curto e seco "boa-tarde", confronta a ré sobre o fato de já ter sido ouvida em quatro ocasiões anteriores e não ter mencionado que perdeu as chaves do apartamento. Enumera quan­do foram seus depoimentos — 30 de março de 2008,18 de abril de 2008, 28 de maio de 2008 e hoje. "Em apenas um deles mencionou as chaves e não mencionou a perda hoje. Por quê?"

Jatobá fica meio atrapalhada; justifica-se dizendo que acabou esquecendo e dispara a contar uma história que se iniciava em fe­vereiro de 2008. Cembranelli ainda pergunta se não falou porque não foi perguntada. Ela se defende, que hoje não perguntaram e que era muita coisa na cabeça dela. O promotor prossegue, citando que em suas declarações de 30 de março de 2008, quando chega a men­cionar que as chaves ficaram na portaria somente enquanto o apar­tamento estava em reforma, que quatro chaves foram devolvidas e que ninguém mais tinha as chaves, exceto ela e o marido. "Quando declarou tudo isso sobre as chaves, esqueceu de falar da perda delas em fe­vereiro?" Ela responde: "Minha cabeça tava a mil, eu realmente não lembrei. [...] Lembrei quem teve contato 'com nós nos últimos dias!'"

Cembranelli muda de assunto, perguntando à ré o que quis dizer quando declarou que Alexandre "arrumou o edredom", qual o significado desse termo para ela? "Porque estava cheia de carrinhos, arrumar é esticar e abrir, como se a criança fosse deitar, deixou a cama arrumada para as crianças", respondeu.

Outro assunto, agora sobre a caminhonete que teria entrado na garagem com o som muito alto. "Quanto tempo ficaram na garagem aguardando cessar o barulho?" "Esqueci", responde Jatobá. "Esqueceu?", provoca o promotor. "Em seu depoimento afirma que foram dez minutos." Jatobá, irritada, responde: "Foi o tempo do ba-ru-lho! Hoje não lembro, aproximadamente dez minutos". "Ah, então podem ser onze minutos, oito minutos...", diz o promotor. E emenda outra pergunta tão descon­fortável quanto as anteriores, sobre o tempo que ficou aguardando o elevador junto com o marido. "Quanto tempo esperou?" Ela argu­menta que não sabe estipular, não teria sido um tempo nem longo, nem curto. Cembranelli fala, não sem certa ironia: "Então seria médio? Se não é longo nem curto..."

Nesse mesmo tom, com calma, falando baixo, mas pressionan­do sem parar, Cembranelli continua: "A história do porteiro correndo e molhado de suor só apareceu quando falou em juízo (final de maio). Antes não mencionou, quando ainda estava tudo fresco na cabeça!". Jato­bá se justificou: "Fico nervosa e quero falar muitas coisas e esqueço de falar, como o senhor pode notar!"

Cembranelli prossegue, perguntando à ré se ela considerava que falava muitos ou poucos palavrões quando brigava com o ma­rido. Ela, na defensiva, responde que não eram muitos nem para muitas pessoas, ao que o promotor contra-argumenta que os vizinhos declararam que o prédio todo ouvia. Jatobá justifica novamente, explicando que a sala de jantar era próxima à porta de entrada do apartamento e que ela costuma falar alto, mas que "não gritava como louca". Ao ser perguntada sobre as reclamações de vizinhos no Edifício Vila Real, responde que, para eles, nunca reclamaram.

O promotor cita o número das páginas do depoimento da ré, quando ela fala que Ana Carolina Oliveira "não estava nem aí para a filha". Ela justifica, explicando que, quando começou a namorar Alexandre, era o que ouvia da família dele.

Cembranelli pergunta a Jatobá se ela considerava justo o valor estabelecido para a pensão alimentícia de Isabella. Ela sai pela tan­gente, dizendo que nunca quis saber das coisas relacionadas a essa pensão, e que todos ficaram chateados quando o oficial de justiça apareceu lá, mas que ela nunca quis saber de nada. Cembranelli abre então o processo nas fls. 1445, em que, no depoimento dela mesma, explica para o juiz como nessa época (da pensão) falava pelo MSN com a mãe de Isabella, dizendo a ela que não estava mais com Ale­xandre, só para colher informações para o sogro que beneficiassem a família Nardoni na ação de alimentos movida por Ana Carolina Oli­veira, inclusive gravando as mensagens para uso futuro, caso neces­sário: "Assim a senhora não prejudicava a Isabella?" Jatobá não responde.

Cembranelli pergunta novamente se ela confirma o que havia dito. Ela diz que confirma, mas que não era em relação à pensão, tinha fi­cado três dias brigada realmente com Alexandre. O juiz olha para ela e também pergunta: "Salvava essas conversas?" Ela justifica, dizendo que seu computador salva automaticamente. O promotor pressiona mais: "Sem Ana Carolina Oliveira saber?" "Sem ela saber", responde a ré. "Isso explica a animosidade entre vocês", comenta o promotor. "Não", diz a ré, "isso foi depois que eu fui na porta da casa dela."

Cembranelli volta a falar sobre um período de muitas brigas, freqüentes, entre Jatobá e Alexandre, no tempo em que moraram no Edifício Vila Real. Jatobá responde que não se lembrava. O promotor a "ajuda", pedindo que esclareça se as brigas constantes aconteceram até o nascimento de Pietro, como ela afirmou em seu interrogatório em juízo dizendo: "Brigo por tudo!" Podval novamente pede o nú­mero das folhas do processo, mas dessa vez Cembranelli ergue as sobrancelhas e declara: "Não, até porque, doutor, eu só aceitei por uma delicadeza, não há nada na lei que me obrigue afazer isso, indicar as folhas". Podval argumenta: "Eu não pedi, foi determinado. Só quero acompanhar". E Cembranelli dá o número.

Jatobá apresenta um cronograma de moradia nesse apartamen­to muito confuso, porque sua vida com o marido é cheia de idas e vindas, separações e reconciliações. O apartamento teria ficado pronto em 13 de agosto de 2004, mas só teria ido morar ali nos finais de semana. Cembranelli diz que a conta é imprecisa. Ela segue explicando que antes do nascimento de Pietro morou com a mãe dela. O promotor pressiona que a conta não fecha. Jatobá está con­fusa e afirma que depois da briga que teve com Ana Carolina Oli­veira na porta da casa dela apenas não a cumprimentava mais. Cembranelli se refere às fls. 23; suas declarações de que tinha de­sentendimentos constantes com Ana Carolina Oliveira por ciúme do marido, até que Pietro começou a freqüentar a escola de Isabella. Ela explica que os desentendimentos eram em relação a pegar ou levar Isabella, ou as roupas da criança, mas que nos últimos dois anos não discutiu mais.

O promotor se refere à afirmação de que seu depoimento na delegacia não foi colhido pela dra. Renata Pontes. Ela confirma, diz que foi ouvida por dois investigadores e um escrivão. O promotor insiste: "Mas por que foi assinado pela dra. Renata?" "Não lembro, se eu me lembro bem ela não estava na sala", responde Jatobá. Cembranelli rapidamente confronta: "E mesmo ela ausente, mesmo o depoimento tendo sido tomado por investigador, escrivão de polícia, mesmo assim a senhora saberia explicar por que seu advogado assinou o depoimento, em que consta o nome da dra. Renata, no qual ela não teve participação nenhu­ma? A senhora saberia explicar? Porque consta a assinatura dele aqui e a assinatura dela em cima". Ela responde: "Tenho quase certeza que ela não estava". "A senhora lembra de ela assinar ou não?", pergunta o promo­tor. "Não lembro", responde Jatobá, rendida.

Cembranelli continua implacável: "Às fls. 1445, a senhora decla­rou que enquanto moravam na rua Paulo César (Edifício Vila Real) 'a gente brigava bastante' e que no apartamento novo pararam as brigas". Prossegue contrapondo as datas e declarações, pois Jatobá também disse que havia amadurecido depois do nascimento de Pietro e pa­rado de brigar tanto. No mesmo depoimento disse que "quebravam o pau todos os dias" no apartamento antigo. Mas morou ali apenas até um mês antes do crime e Pietro nasceu em fevereiro de 2005. "Uma operação aritmética simples: ou as brigas pararam em 2005 ou em 2008", diz o Cembranelli!

Podval interrompe, com o Código de Processo Penal nas mãos, trazido por uma advogada assistente, dizendo que o promotor é, sim, obrigado por lei a referir os números de páginas que está utili­zando, segundo o artigo 480. Cembranelli, irritado, responde que ele não leu direito, que o artigo se refere à hora dos debates, e, que ele saiba, ainda não chegaram lá. O juiz pede ao promotor que con­tinue a ser gentil e indique os números das páginas. Cembranelli prossegue, impassível: "Dia 20 de janeiro há registro de uma briga que a senhora teve com o acusado Alexandre, que a senhora esmurrou uma vidraça, que teria se cortado toda, um mês antes de mudar-se para o Edifí­cio London, portanto. A pergunta é: essa é uma briga normal?" Jatobá, nervosa, tenta explicar que não esmurrou a vidraça, que não estava discutindo, apenas Alexandre não lhe dava atenção. Ela então teria ido para a lavanderia e quando se encostou no vidro, este se quebrou. "Não foi com a intenção de quebrar o vidro, tenho pavor de sangue!" Mas não pude deixar de me lembrar que no interrogatório da própria Jatobá em juízo (fls. 1451), quando se cortou com o vidro da lavan­deria, Alexandre teria dito para ela: "Enquanto você não faz alguma besteira você não aprende, não é?" Essa frase explicava muita coisa.

Cembranelli pergunta: "A senhora é uma pessoa nervosa?" "Não", responde ela, "tenho gênio forte." O promotor confronta, dizendo que seu pai, Alexandre Jatobá, disse no depoimento dele que ela estava muito nervosa com a casa e os filhos para cuidar e precisava tomar um calmante. Jatobá explica que depois do nascimento de Cauã chorava muito e o pai queria levá-la ao médico. Isso se dava porque tinha a casa para cuidar e a criança chorava muito, ela também, chegando a passar as tardes na casa de sua mãe por esse motivo. O promotor novamente a coloca em situação difícil quando diz que às fls. 606 ela declara como era madura, feliz e satisfeita com a vida, mas que havia passado por consulta médica porque não parava de chorar. De forma confusa, a ré se defende, dizendo que a médica que a consultou fez várias perguntas, como se fosse psicóloga, mas que ela não tinha problema com nada e mesmo assim entrava em desespero. Receitou dois remédios, mas um era muito caro e o ou­tro só tomou uma ou duas vezes. Cembranelli pergunta se a médi­ca deu a informação de que esses remédios que foram prescritos eram para depressão. Ela diz que não se lembra nem do nome dos remédios.

Agora o assunto volta a ser a polícia. Jatobá teria relatado as pressões que sofreu para seus advogados? Respondeu que sim. "Eles denunciaram para a Corregedoria ou para o juiz?" Ela respondeu que não. Refere-se à novidade relatada por Alexandre, sobre um certo acordo na polícia para assumir homicídio culposo. Teriam oferecido para ela também? "Para mim, não", responde a ré. Só teriam induzi­do Alexandre a falar, e eles só se viram ao sair da delegacia. Ficou sabendo apenas quando o marido comentou com o pai dele, bastan­te indignado.

Assim como fez com Alexandre, o promotor faz a lista de obje­tos caros relatados por ela em depoimento e pergunta se ela sabe o valor da pensão que o marido pagava para a filha. Ela responde que não sabe.

"Em seu primeiro depoimento, a senhora não menciona preocupação com o atraso do resgate. Por quê?", pergunta o promotor. Jatobá res­ponde: "Não sei se não falei. Não recordo". Cembranelli pega o proces­so e diz que se a corre não se lembra, ele vai 1er as fls. 1480, em que está relatada a chegada de um policial ao local onde Isabella estava caída, viva, e Alexandre pedindo que alguém subisse e verificasse se faltava alguma coisa.

Cembranelli: "Isabella estava lá no chão?"

Jatobá: "Estava".

Cembranelli: "Necessitando de urgente socorro?"

Jatobá: "Estava".

Cembranelli: "E seu marido falou pra senhora 'Vai você, amor!' Isabella continuava lá, caída?"

Jatobá: "Sim".

Cembranelli: "Necessitando de urgente socorro?"

Jatobá balança a cabeça afirmativamente.

Cembranelli: "Diz em seu depoimento que falou: 'É ladrão, alguém entrou lá dentro!' E Isabella continuava caída lá, NECESSITANDO DE URGENTE SOCORRO?"

Jatobá: "Não lembro de ter falado isso daí, o que eu lembro é que o policial desceu, falou para evacuar o prédio, eu não lembro se eu falei desse jeito, mas ele falou 'sobe lá você', ele estava nervoso, desesperado, e eu falei pra ele 'não vou subir', aí ele disse 'vai lá sim!', aí eu fui".

Cembranelli: "Esse é o seu depoimento, a senhora falou isso [...] '... é ladrão, alguém entrou lá dentro'. ISABELLA CONTINUAVA CAÍ­DA ALI?"

Jatobá: "Eu não recordo".

Juiz: "Durante essa conversa que era para alguém subir, a Isabella estava caída ainda?"

Jatobá: "Sim, o Alexandre que falou pra mim subir".

Cembranelli: "O policial falou 'a porta está arrombada' e a senhora falou 'não está arrombada'. ISABELLA CONTINUAVA CAÍDA?"

Podval: "Excelência, ele vai continuar repetindo que a Isabella con­tinuava caída..."

Juiz (interrompendo): "Durante esse tempo em que vocês foram até o apartamento a pedido do policial e voltaram, a Isabella con­tinuava caída e precisava de socorro ainda?"

Jatobá: "Estava o Alexandre e a Carol do lado do corpinho dela e o pessoal no gramado".

Juiz (para Cembranelli): "Esses diálogos, doutor, qual o propósito? Eu também não estou entendendo".

 

Mas todos estavam. Toda essa conversa se dava, com direito a "amor, vai lá", enquanto a menina estava quase morrendo, caída na grama. Era impensável!

 

Cembranelli: "Eu estou lendo o depoimento dela, se eu puder continuar eu chego na pergunta. Eu estava perguntando se a Isabella es­tava lá caída, a pergunta é objetiva. A senhora disse: 'Não tinha o miolo da chave, só o buraquinho de por a chave, não tínhamos terminado de reformar o negócio da porta'. Isabella continuava caída?"

Podval: "Doutor, eu quero ter o mesmo direito que ele nas minhas perguntas!."

Juiz (para Podval): "Doutor, o senhor exibiu os filmes para o réu, é a mes­ma coisa".

Podval: '"Isabella continuava caída', é isso que ele está perguntando?" Juiz: "Pode continuar, doutor. O Ministério Público ainda tem a palavra".

Cembranelli: "Retomando, eu não consigo terminar a frase". Juiz: "Prossiga, doutor".

Podval: "Faz direito!"

Cembranelli: "Eu vou pedir um pouco de respeito à Defesa, Excelência. Retomando [...] ISABELLA CONTINUAVA CAÍDA?" Juiz:     "Durante esse diálogo que a senhora teve, esse diálogo sobre a porta, a fechadura, esse tempo todo, a menina não tinha sido socorrida?"

 

Jatobá, perdida, continua tentando dizer que achava, não se lembrava, mas achava que nessa hora a menina já havia sido socor­rida, mas Cembranelli a pressiona, porque sabe que não. O juiz pergunta se Isabella já havia sido socorrida. Ela responde que não se lembra, e repete a frase em tom diferente que aquele imitado pelo promotor, corrigindo-o, mas mantém o fato de Alexandre ter se dirigido a ela não pelo nome, mas chamando-a de "amor". Cembra­nelli emenda: "E a Isabella nesse momento estava onde?" E sem que o promotor diga nada, ouvimos o eco "Isabella estava lá, caída?" Ja­tobá responde: "Acho que estava lá". O promotor pergunta em tom de voz mais elevado, mostrando sua indignação: "Lá onde, na grama ? " Jatobá, num fio de voz: "Na grama, se não me falha a memória..." O promotor continua: "Foi nesse momento que a senhora deu pela falta de uma máquina digital?"

Todos falam ao mesmo tempo, fica ininteligível para quem está no plenário. Foi muito forte, deixando claro que essa conversa, ocorrida enquanto Isabella estava ali, com a vida se esvaindo, foi inadequada e fora de lugar.

O interrogatório de Anna Carolina Jatobá continua. Cembranelli passa a perguntar sobre os boletins de ocorrência que ela fez contra o próprio pai, descrevendo a violência doméstica, e pede confirma­ção. Jatobá responde que inventou muitas coisas e aumentou outras. Não tinha marcas no corpo, mas o pai batia nela eventualmente.

Cembranelli agora pergunta à ré se ela tinha sempre muitas fraldas para lavar. Ela responde: "Muitas!" O promotor então a questiona sobre o fato de, em meio a tantas roupas sujas, ter lavado somente aquela que estava no balde. Jatobá responde que as manchas na fralda eram de Nescau e que no balde não havia amaciante. Que a fralda foi usada dobrada para limpar o Nescau da boca do filho.

Todos nós nos lembramos da explicação da perita, sobre as manchas acastanhadas, de sangue, na fralda que teria sido utilizada dobrada para talvez tamponar o ferimento na testa de Isabella. De sangue para Nescau teria sido uma confusão e tanto! A ré continua a responder e diz que nunca deixou tantas roupas para lavar nem o apartamento do jeito que foi mostrado na televisão. Acusa a perícia de ter feito aquilo, e que o lixo estava revirado por eles, segundo o próprio investigador que foi ao apartamento com ela. Cembranelli repete o que ela mesma disse em depoimento — que não tinha em­pregada e que o apartamento "vivia de pernas para o ar". Jatobá explica que se referia às coisas das crianças, jamais àquela bagunça mostrada nas fotografias (dos laudos). Repete que o investigador a informou de que quem havia feito aquilo tinha sido a perícia. O promotor ainda pergunta se naquele sábado não estava assim, e a ré afirma ter lavado as roupas escuras.

O assunto passa a ser o fato de a ré ter afirmado em depoimen­to que o resgate havia chegado "muito tempo depois" e é pergun­tado a Jatobá se poderia precisar o que é "muito tempo". Ela respon­de nervosa que não pode; talvez vinte minutos ou meia hora. O promotor lembra o fato de que havia no local mais de trinta policiais, que pediram a todos que saíssem do prédio. Ela teria ficado gritan­do no meio da rua? Ela confirma. Alexandre a teria chamado para se pendurar no carro do resgate? Ela responde que sim: em cima do pára-choque olhando pela janelinha.

Jatobá fala tão rápido que a toda hora o estenotipista perde algo e o juiz interrompe solicitando que repita. Está sendo questionada agora sobre sua atitude de não ir à reprodução simulada dos fatos, marcada pela perícia. Ela diz que explicaram que não era obrigada a produzir prova contra si mesma e não deveria ir. "Por que motivo?", pergunta o promotor. "Só os advogados podem responder", diz a ré. "A senhora falou que queria ir?" "Não me lembro", responde. O juiz per­gunta: "Discutiu com seus advogados que tinha interesse em ir?" "Não lembro", diz mais uma vez.

Cembranelli muda radicalmente a direção do interrogatório: "A senhora corta carne com tesoura?" "Corto, sempre cortei", responde Jatobá. "Minhas facas eram ruins e eu não conseguia cortar com afaça." Um jurado sutilmente ameaça um sorriso. Na platéia também nos entreolhamos. Cortar bife com tesoura não é crime, mas que é estra­nho, isso é!

Cembranelli prossegue, perguntando sobre o afastamento de Jatobá em relação aos seus amigos, ao que ela responde que prefere ficar com a família. O promotor vai demonstrando que, a cada briga do casal, a ré voltava para a casa dos pais. Ela disse que não sabia cuidar direito das crianças e por isso pedia a ajuda da mãe.

A última pergunta de Cembranelli foi se ela ratificava a afirmação de que havia descido no elevador junto com Alexandre. Jatobá ratifica.

O Ministério Público encerra e a palavra é passada para a Assistência da Acusação.

A dra. Cristina Christo começa perguntando a Anna Carolina Jatobá quando iniciou seu relacionamento com Alexandre Nardoni, deixando clara a contradição que já havia aparecido no depoimento da corre, segundo a qual teriam "ficado" juntos antes de ele se se­parar de Ana Carolina Oliveira. A ré conserta: "É que na verdade eu comecei a namorar com ele no dia 22 de março de 2003 [...] Foi em março, eu errei, em novembro nós ficamos amigos, muito amigos, de andar juntos para todos os lados". Jatobá afirma que não sabe quem tomou a deci­são sobre a separação, nunca perguntou nem quis saber.

Acerca das idas e vindas da casa dos pais para a do marido, a ré conta novamente a confusa história do casal, mas a assistente aponta algumas contradições, contrapondo os relatos sobre a relação que foram feitos na delegacia e em juízo. De qualquer maneira, percebe-se o quanto é instável o relacionamento de Alexandre Nar­doni e Anna Carolina Jatobá. "Deixa ver se eu entendi, quando brigava com Alexandre ia para a casa de seus pais, quando brigava com seus pais ia para a casa de Alexandre?", pergunta a assistente. Ela responde: "isso. Com os meus pais não, com o meu pai".

O próximo assunto abordado é sobre os boletins de ocorrência, feitos por Jatobá em janeiro de 2004 e novembro de 2005, sobre os quais ela teria dito em juízo que havia divergências entre a realida­de e o que relatou. A ré apressadamente diz que não se lembra. A assistente esclarece impaciente: "É exatamente por isso que vou ler!"

1º B.O. — "Comparece a vítima nesta Distrital informando que, quando digitava em seu computador, por questões de somenos importância, veio a ser ofendida moralmente, agredida a socos, tapas e pontapés pelo seu genitor, o qual passou a xingá-la de vários pa­lavrões (vagabunda, filha da puta, cadela, putinha) e ainda a amea­çou de morte dizendo 'eu ainda dou um tiro na cara dessa menina' (sic), esclarecendo a vítima que isso já ocorreu outras vezes."

2º B.O. — "...que reside com seus pais e nesta data estava digitando no computador, momento em que seu genitor mandou que a declarante pegasse seu filho o qual estava chorando, momento em que a declarante disse que não iria pegar naquele momento pois ele não parava de chorar nem nos seus braços, então iniciou-se uma discussão entre as partes e quanto ao autor chamou a declarante de 'filha da puta' a qual respondeu então o autor partiu para cima da vítima cuspindo no seu rosto, com tapas, empurrões e pontapés, momento em que a declarante trancou-se no quarto e quanto ao autor ficou chutando a porta e dizia 'eu vou te matar sua vagabun­da'. Assim que a declarante teve oportunidade saiu de casa e quan­do aguardava o elevador o autor arremessou um vaso contra a mesma a qual estava com seu filho de nove meses nos braços."

A seguir, Cristina fala para a ré que, em seu depoimento para a dra. Renata Pontes, contou essa história de forma diferente, mais suave, e, enquanto a assistente lê, Jatobá vai balançando a cabeça afirmativamente. São brigas impressionantes de serem ouvidas as­sim, relatadas em linguagem de boletim de ocorrência, em que a violência não precisa ser adjetivada, está lá, nua e crua.

Cristina pergunta: "O que aponta como divergência? A senhora imputou a seu pai coisas graves que têm conseqüências. Qual deles (dos relatos) é verídico?"

Jatobá responde que vai tentar se lembrar. A assistente a ajuda: "Jogou objetos?". Jatobá assente. "Fez ofensas e ameaças?" Jatobá alega que não se lembra. "Essas brigas eram comuns?" Jatobá responde que não. Ela tenta contar a história, explica que nunca beijou ninguém na frente do pai, que era ciumento, que se dava melhor com a mãe. "Mas hoje me arrependo completamente porque, em todos os momentos da minha vida, sempre foram os dois, o meu pai e a minha mãe, que sempre estiveram presentes em todos os momentos da minha vida." Se emociona.

Os jurados observam atentamente as reações de Jatobá. O pai de Alexandre fica indignado com as declarações e reclama a todo instante com um advogado da equipe de Defesa, que está sentado logo à sua frente, e com Cristiane, que está ao seu lado. Ricardo Martins, de seu lugar na bancada, olha sempre para a platéia, ten­tando estudar suas reações.

Cristina vai adiante, citando as páginas do processo em que existe o relatório de um delegado da Polícia Federal, relacionado com um inquérito policial por estelionato, por emissão de cheques sem fundos. A assistente pede que explique o que aconteceu. A ré responde: "É coisa do meu pai, foi coisa que meu pai fez e foi com o meu nome, mas ele tinha boas condições de vida". "E mesmo assim envolveu a senhora?", pergunta a assistente. "Não sei, não tenho nada a ver com isso, é o meu pai e eu não posso te responder isso", responde Jatobá, num misto de constrangimento e raiva.

Agora a pergunta é sobre o fato de Jatobá ter o mesmo nome da ex-mulher de Alexandre, se isso a incomodava. Ela explica que só no começo, e que chegou a questionar o marido se ele a namora­va para esquecer a primeira Ana Carolina. "Incomodava ou não?" Não, não incomodava.

Quando questionada se Ana Carolina Oliveira era uma sombra em seu relacionamento, alguém de quem nunca conseguiria se des­vencilhar, ela olha espantada e responde que não entendeu a per­gunta. Cristina explica que quer saber se o fato de a ex-mulher de Alexandre ter um eterno vínculo com ele por meio de Isabella, filha, e que nunca se livraria dessa circunstância, a incomodava. Irritada, Jatobá responde: "Não, acabei de explicar". A assistente não desiste: "Isabella se parecia muito com a mãe?" Jatobá responde: "Com o pai também!"

A ré passa a ser questionada sobre o fato de a mãe de Isabella nunca conseguir falar com Alexandre, apesar da afirmação de que podia ligar à hora que quisesse para ele. Jatobá responde que era ela quem ficava com o telefone, e que só tinha ciúme de Alexandre no início do relacionamento, pela fama dele de mulherengo.

As perguntas seguintes versaram sobre o sustento de Jatobá; quem pagava suas contas (pai, mãe, avó e marido), como havia re­petido o quarto ano da faculdade e, ao longo do tempo, foi perden­do seu círculo social, ficando isolada. "Depois que começou a namorar com ele a senhora se desligou de todo mundo? Por qual motivo?", pergun­ta Cristina. Jatobá responde: "Sei lá, porque era só nós dois na faculda­de, que nós dois sentávamos juntos, eu ia no banheiro, ele ia atrás, onde eu ia, ele ia junto, eu ia atrás dele em todos os lugares também, era só eu e ele, só nós dois sempre!"

Depois de passar de modo superficial sobre a forma como edu­cava o filho quando este agredia a enteada, Cristina envereda para perguntas sobre o dia do crime. Primeiro questiona como teriam se acomodado para almoçar no sábado, obviamente se referindo ao fato de a mesa da sala estar repleta de objetos. Depois pede confir­mação sobre os telefonemas que Jatobá deu depois da queda de Isabella, para os pais dela, sogros e Ana Carolina Oliveira, pergun­tando se em algum momento a ré pensou em chamar o resgate, mesmo depois desses telefonemas. A assistente pergunta: "Então ia esperar seus pais chegarem para depois pedir socorro para Isabella?" Jato­bá responde: "Não da maneira que a senhora está falando. Na hora do desespero, a única coisa que a gente pensou foi nos nossos pais". Cristina insiste, Jatobá justifica que depois outras pessoas já haviam chama­do o resgate. Cristina pergunta se, quando se feriu com o vidro da lavanderia em briga com o marido, a iniciativa de levá-la ao hospi­tal foi dele ou dos pais. Ela responde que foi de Alexandre. "E com Isabella não?", dispara. "Ele foi impedido", responde a ré.

Cristina levanta outros fatos, como a vergonha que Alexandre sentia da mulher por ela gritar muito e exagerar na quantidade de palavrões, e que os desentendimentos dela com a mãe de Isabella se encerraram depois que Pietro começou a freqüentar a mesma escola, aproximadamente um mês antes dos fatos. A ré foi questio­nada sobre não ter devolvido para Ana Carolina Oliveira a mochila da menina, mas Jatobá responde que não sabia, nem tinha entrado no apartamento depois daquele dia.

Por fim, pressionada a explicar o motivo que a teria levado a não falar com Ana Carolina Oliveira depois dos acontecimentos, Jatobá, de modo confuso, explica que na cabeça da mãe de Isabella tinha sido ela que tirara a vida da menina. "Ela disse isso pra senhora?", pergunta a assistente. "Não", responde Jatobá, "mas todos os canais que a senhora liga, era isso!" Confrontada com o fato de que Ana Ca­rolina Oliveira só se manifestou depois da denúncia, que aconteceu em maio, que nunca havia dado sua opinião antes, foi questionada sobre com que base afirmava que não telefonou para a mãe de Isa­bella porque esta achava que era ela. Jatobá responde novamente que ouviu na televisão e que não sabe da família dela. "Estou presa, senhora!"

20h00 — É a vez de a Defesa interrogar Anna Carolina Jatobá. Ela relaxa, sabe que agora é a sua vez de falar sem ser pressionada, de dar a sua versão dos fatos nos pontos que julgaram ser impor­tantes para o esclarecimento dos jurados.

Podval fala: "Anna, faça-me um favor, fale bem calmamente, bem devagar, respire fundo, beba água devagar. Tudo muito devagar. Você está muito nervosa, falando rápido demais, eu quero que você respire e se acalme, tudo bem? Combinados?"

A primeira pergunta de Podval é forte: "Você mataria Isabella para se livrar da Ana Carolina? Você matou Isabella?" "Não, nunca, ja­mais", responde Jatobá, "sempre a tratei com muito amor e carinho." Ao ser perguntada se batia na menina ou a castigava, Jatobá responde que não, que a tratava tão bem que Isabella só queria passar as férias com ela.

Depois Podval questiona se ela tem conhecimento de que a tesoura foi periciada e não foi encontrado nenhum sinal de sangue. Ela responde que soube disso pelos advogados, mas que deveriam ter pelo menos suas digitais, porque naquele dia, como tem o hábi­to, cortou bifes em tirinhas para as crianças.

O advogado continua, perguntando se a ré participava da defesa dela com a equipe anterior, se opinava sobre o que e como de­veria ser feito. Ela responde: "Algumas vezes dei, sim"; mas não lembrava quando, nem como, nem em qual assunto.

Jatobá continua a falar muito rápido. Está sentada de frente para os jurados, e seu advogado apoiado na bancada que passou a divi­dir com eles. Podval vai como que orquestrando com as mãos a fala da ré, para que explique mais devagar e todos possam entender com clareza suas respostas.

O calor na sala é intenso, parece que o ar-condicionado não está funcionando. Algumas pessoas parecem a ponto de cochilar no plenário, inclusive encostando a cabeça no ombro de alguém conhe­cido ao lado.

O advogado agora pergunta sobre a história que relatou à delegada, da caminhonete que teria entrado na garagem fazendo muito barulho. Ela confirma, dizendo que sabe que o tal vizinho proprietário da caminhonete teria confirmado a declaração dela.

Um jurado olha discretamente para o relógio que fica na parede ao fundo do plenário e mostra sinal de impaciência.

Podval pede que esclareça por que estava descalça na rua, no dia dos fatos. Jatobá responde que tinha tirado o tamanco logo que entrou em casa e, na confusão, desceu sem eles. Foi para a casa da mãe, onde acabou por calçar tênis velhos, sem alternativa que esta­va. Os tênis acabaram sendo apreendidos e depois a dra. Renata Pontes chegou a afirmar que havia sangue no solado desse calçado, mas isso seria impossível, porque o usava havia anos e nem entrou em casa com ele. "Fiquei indignada!" Disse que, no mesmo interro­gatório, a delegada também afirmou que na camiseta de Alexandre tinha vômito de Isabella, e ela teria respondido. "Só se ele for mágico para descer com a camiseta seca!"

Novamente as medidas de tempo entram em questão, quando Podval pergunta à ré se ela sabe quanto tempo demora a chegar o elevador no prédio em que mora. Jatobá responde que nunca parou para marcar.

O advogado pede que Jatobá o acompanhe até a maquete e mostre aos jurados onde fica o hall de entrada onde permaneceu com os filhos enquanto Alexandre ia ver Isabella. Ela vai apontar e exclama: "Ai, eu quase quebrei!" Todos riram quando Podval soltou um "Pelo amor de Deus!"

Quando mostrou o local, argumenta-se que nem o sr. Lúcio, que estava na sacada do 1º andar, poderia vê-la, nem ela o enxergava. "Só via Alexandre", respondeu.

Podval pergunta então sobre a entrega das roupas que os réus usavam naquele dia. Jatobá explica que não foram pedidas de ime­diato e, portanto, foram parar no cesto de roupas sujas. Quando foram entregues ainda não haviam sido lavadas.

O advogado tenta esclarecer então a afirmação que havia feito Ana Carolina Oliveira sobre a ré ter dito, em frente ao corpo da filha caída, que aquela situação só estava acontecendo por causa da me­nina. "Não", responde Jatobá, "eu disse que eu estava preocupada com a vida da filha dela!"

Ao olhar para o quarto de Isabella reproduzido na maquete e descrevê-lo a pedido de seu advogado, Jatobá se emociona, mesmo que rapidamente, antes de contar como, em companhia de Alexan­dre, dona Cida e sr. Antônio, levou a menina para escolher tudo o que estava ali. "Esse apartamento novo, essa mudança para o novo apar­tamento, a Isa estava incluída em tudo isso, ela fazia parte dessa vida nova que era o sonho de vocês?", pergunta Podval. "Sim, foi tudo planejado com muito amor e carinho, eu e o Alexandre escolhemos nosso quarto, a cozinha, tudo do jeito que a gente queria", diz Jatobá.

A ré chora mais uma vez, ao relembrar o último almoço em família, naquele sábado fatídico. Fez macarrão alho e óleo, de que Isabella gostava, mas jogou no lixo porque ficou salgado demais, e acabou servindo para as crianças arroz com bife em tirinhas.

"Vou falar agora de uma coisa chata", disse Podval. "Foi citado aqui que seu apartamento era um nojo e havia absorvente íntimo jogado em meio aos brinquedos." O juiz interrompe imediatamente: "Nojo ninguém falou, doutor! Falou-se em bagunça, desorganização!" Jatobá passa a explicar seu procedimento ao jogar fora um absorvente usado, que o enrola várias e várias vezes em papel higiênico e emenda: "Ontem a perita falou como se eu fosse porca!" Novamente o juiz chama a aten­ção, dizendo que essa é uma interpretação que ela está dando às declarações da perita.

Alguns outros questionamentos foram feitos, como o carro que utilizaram (o Ford Ka e não o Vectra), se estava tudo normal naque­le dia (nada fora do normal), onde se apresentou quando foi decre­tada a prisão, se tinha autorização para buscar Isabella na escola (em 2008, pela agenda da menina).

Podval volta para o assunto da perícia médico-legal, perguntando a Jatobá se foi colhido material de debaixo de suas unhas, uma vez que era acusada de ter esganado Isabella. Ela responde que não foi feito esse exame em momento algum, que até perguntou à dele­gada sobre isso, mas foi dito a ela que não seria feito. Nem sua aliança foi para a perícia. E as chaves do apartamento, segundo ela, ficaram na gaveta da delegada.

Jatobá passa então a descrever o que Isabella ensinava a Pietro; coisas como mergulhar, abecedário, músicas, e se emociona duran­te o relato.

Podval passa a questionar a ré sobre o depoimento da decoradora Márcia Regina Alves Ferreira, que confirmava a história da perda das chaves e afirmava que por várias vezes entrou no Edifício London sem ser anunciada, atravessando um portão que, não raras vezes, ficava aberto e sem controle. Jatobá explica que realmente o portão ficava aberto e que ela não morava lá ainda.

Podval passa a inquiri-la sobre o tempo que passou na garagem sozinha, por aproximadamente dez minutos. Jatobá explica que não ficou sozinha, ficou com Alexandre esperando o barulho cessar. "A senhora olhou no relógio?", pergunta o advogado. "Infelizmente, não", responde a ré. Juiz e advogado pedem que ela dê uma idéia de tem­po aproximada. Para avaliar se sua medida aproximada é boa, pergunta se Jatobá sabe há quanto tempo ele está ali lhe fazendo perguntas. São 20h25. Ela responde que não sabe.

A Defesa agora pede que conte se ficou feliz com o nascimento dos filhos, para que se apague a idéia de que não eram desejados. Ela conta do nascimento de Cauã. Podval pergunta se era feliz mes­mo tendo muito trabalho com ele. Jatobá responde que sim. Fala do cansaço, de como não dormia à noite, de como o peito sangrava por causa das rachaduras provocadas pela amamentação. Podval per­gunta à queima-roupa: "Já teve vontade de matar seu filho?" Jatobá, surpresa, reage: "Quêe?" O advogado repete, esclarecendo que quer saber se já bateu neles, se já os machucou por estar tão cansada e estressada. Ela diz que isso nunca aconteceu.

A Defesa dá então a oportunidade de Jatobá explicar a situação financeira de seu pai, que ainda deve dinheiro à faculdade que ela não terminou, de como tinham um ótimo padrão de vida até que seu pai perdesse tudo. Depois passa a falar novamente sobre a his­tória dos ovos de Páscoa, e repete a mesma versão de Alexandre, que a menina teria deixado o chocolate com eles para depois dividir com os irmãos. Conta como a família do marido sempre dava mais atenção a Isabella, que sua mãe e avó a questionavam por isso. Pod­vai pergunta se Ana Carolina Oliveira tinha ciúme de Jatobá e vice-versa, se disputavam Alexandre. Ela diz que, no começo, tinha sim, ambas tinham, mas depois passou.

Com delicadeza, Podval pede que Jatobá descreva o cenário da noite dos acontecimentos. "Sei que é difícil... Quando você desceu e encontrou Isabella caída, como era o cenário?" Ela responde: "Tava todo mundo muito nervoso, falando ao mesmo tempo, gritando e desesperado, pessoas entrando e saindo, uma bagunça!" O juiz pede que não se use adjetivos. Podval lê então parte do depoimento do policial militar Jonaldo Ramos de Almeida, que corrobora exatamente o que Jatobá está falando, sobre a confusão do local de atendimento, inclusive relatando que "pessoas queriam tentar se aproximar do corpo e a preocupação do depoente era afastar as pessoas do local, determi­nando que esperassem a chegada da Unidade de Resgate que já havia sido acionada para o local". Jatobá emenda que muitos falaram para não mexer na criança. Podval segue lendo o depoimento de outro policial militar, Josenilson Pereira Nascimento, no qual há o mesmo relato sobre não deixarem que ninguém se aproximasse de Isabella, o que é feito. Jatobá confirma, contando sobre o desespero de Alexandre, que pedia socorro e falava com o porteiro para fechar o local.

A Defesa faz a pergunta que não quer calar: "Você sabe o que aconteceu naquele apartamento, naquele dia?" "É um mistério para o mundo inteiro e para mim também é um mistério", responde Jatobá. "Eu me pergunto todos os dias o que foi que aconteceu."

Jatobá é levada pelo advogado até a maquete e refaz todos os seus passos desde que entrou no apartamento com Alexandre: "[...] Peguei e vim na porta do quarto dela, olhei e estava tudo revirado, o lençol, e eu falei: calma, que ela deve estar no nosso quarto. Aí eu virei e falei, fui bem na porta do meu quarto, eu não entrei, olhei e falei: acho que está no quarto do Pietro. Nós dois viramos na mesma hora juntos, viramos e aí eu vi a tela. Aí a luz estava apagada do quarto do Pietro, eu lembro perfeita­mente que estava apagada, achei estranho que a janela estava aberta, assim que acendi a luz, o Alexandre foi para a tela, estava arrancada e eu vi o sangue no chão, o Alexandre viu a tela, subiu em cima da cama de joelhos, olhou, colocou a cabeça no buraco e eu olhei, fui aqui (em frente à cama, do lado da porta), nesse exato momento com o Cauã no colo que vi o sangue. Aí eu comecei a gritar, foi nessa hora que o Alexandre olhou e falou que a Isabella estava lá embaixo".

O assunto do interrogatório passa a ser os filhos da ré. Ela con­ta que seus pais têm a guarda das crianças e que as vê uma vez por mês. Prossegue explicando que Pietro chora sem parar, por sentir falta dela, de Alexandre e de Isabella. Pietro e Cauã tiveram de mu­dar de escola, devido à imprensa, e mudaram de nome. A ré chora, ao dizer que seus filhos não poderão carregar os sobrenomes Jatobá e Nardoni. Realmente, as crianças estão marcadas por essa infeliz história, e terão dificuldade para lidar com o estigma tanto no mun­do externo quanto no seu mundo interno, mesmo com toda a ajuda terapêutica que consigam obter.

A Defesa encerra suas perguntas. O juiz questiona os jurados sobre se eles têm perguntas, que logo chegam por escrito a suas mãos. A primeira foi realmente esquecida nesse interrogatório: "Não foi feito mesmo, em momento algum, exame de sangue?" Jatobá diz que em mo­mento algum foi feito e que ficava indignada com essa informação, sendo que não fizeram coleta. Explica que só autorizaram a coleta de cabelo, e não de sangue, na penitenciária, para provar que o sangue que estava lá não era deles, mas mesmo assim foi confirmado que era, sem que em momento algum tenham "tirado sangue".

Segunda pergunta: o jurado pede que descreva o tamanho do buraco na tela de proteção. Ela responde: "A cabeça passava inteira, tamanho de uma cabeça. Sim, até achei engraçado porque era do tamanho de uma cabeça, eu lembro perfeitamente, ainda falei até que achei estranho o tamanho do buraco (mostra com as mãos), estava esgarçada como se a pessoa tivesse feito 'assim' (mostra o movimento de puxar)", responde a ré.

Terceira pergunta: "Enquanto esperavam cessar o barulho do carro que entrou na garagem, pessoas passaram por vocês? Viram alguém?" Jatobá responde que não viu nada, apenas ouviu o barulho.

A última pergunta é sobre a tesoura usada para cortar carne naquele dia. Jatobá explica que não lavou a louça e que tudo estava dentro da pia, inclusive a tesoura que usou: pratos, talheres e outras coisas que não sabia especificar. Explica que a faca grande, que apa­rece nos laudos, não foi usada porque "não corta", estava guardada na gaveta, e por esse motivo usou a tesoura.

O juiz dr. Maurício Fossen passa então a explicar a todos que, durante os trabalhos do dia, um Oficial de Justiça o procurou para dar notícia sobre o estado de saúde da testemunha Ana Carolina Oliveira. O juiz, em face da informação, solicitou que um psiquiatra fizesse uma avaliação técnica, uma consulta médica autorizada e acompanhada por Oficial de Justiça, e ao término desta apresentou laudo. Ali constou que a testemunha estava em situação psíquica abalada e preocupante, sendo contra-indicada uma acareação. Reuniram-se juiz, Ministério Público e Defesa. Depois de rápidas pala­vras, Podval foi falar com seus clientes e acabou dispensando Ana Carolina Oliveira.

Às 21h53 o juiz encerra a fase de instrução. No dia seguinte, o último capítulo dessa história de júri será escrito, por Acusação e Defesa, nos debates.

 

                         Quinto Dia

A "última hora" vai começar. Agora terá início o embate entre promotor e defensor e poderemos assistir ao confronto final, cada qual desfilando, com suas habilidades, a versão dos fatos para o convencimento dos jurados. O processo de quase 6 mil páginas jaz espalhado sobre as mesas. Os olhos de todos se concentram em Cembranelli e Podval, como se um holofote dirigisse o facho de luz apenas sobre os dois. Qual será o discurso eleito por eles? Que provas serão selecionadas como mais importantes, tanto de serem expostas como de serem refutadas? Como cada lado vai contar a história do Caso Isabella? Quais serão os argumentos fundamentais?

Na entrada do Fórum, segundo estimativas dos seguranças, havia mais de cem pessoas lutando por uma senha para acompanhar o último dia. Alcançar o plenário foi novamente difícil. Os seguran­ças estavam atentos para que todos apresentassem suas senhas. Não seria permitido ultrapassar as grades que separam o hall dos eleva­dores e o plenário sem esse documento. A atmosfera estava bastan­te carregada.

Os pais de Ana Oliveira estavam confiantes na condenação do casal. A mãe e uma parente de Jatobá, muito parecida com ela, esta­vam na sala, mas os réus ainda não haviam chegado. O pai de Ale­xandre, conversando com alguém da família, declarou: "Eles pensa­ram que iam nos massacrar, mas nós temos o melhor advogado".

Passa das dez. Os réus entram. Nesse momento, numa atitude suspeita, um senhor que estava sentado na platéia se levanta para tentar ver melhor a chegada deles. É advertido severamente pelo segurança, que ameaça expulsá-lo do plenário. Alexandre entra primeiro, seguido de Jatobá. Ele recebe algumas instruções do fun­cionário do Fórum que colhe a assinatura de ambos. O réu está vestido com calça jeans e camiseta preta. Ao sentar-se, coloca as mãos nos joelhos e observa de relance as pessoas ali presentes. A irmã de Alexandre vai até o lado direito do plenário e acena para o irmão. Ela coloca a mão no peito e desenha um coração no ar, mandando vários beijos, sempre chorando muito. Jatobá observa essa cena e se esconde entre o telão e a pilastra. Dois policiais ladeiam cada réu.

Os advogados de Defesa se reúnem em sua bancada. A dra. Roselle manuseia os documentos dos interrogatórios do dia anterior. A mesa agora é composta por mais uma jovem advogada que até aquele dia acompanhava os trabalhos da platéia.

Podval vai até o casal e conversa demoradamente com eles, alongando-se mais com Jatobá. Ele tenta passar confiança e aperta os ombros de Alexandre, que dá um sorriso. O réu balança a cabeça, parece que concordando com o que ele fala, e logo depois limpa as mãos como se estivessem suadas.

Cembranelli entra a seguir. Vai até sua mesa, folheia alguns volumes do processo e senta-se.

Olho ao redor e vejo que a segurança é diferente neste dia, mais reforçada, como pede a situação extrema. Está disposta de forma a ter olhos por todo o lugar, dois policiais ladeando os jurados, outro ao lado da banca da Defesa, mais dois fazendo ronda da direita para a esquerda e vice-versa, outro parado observando o plenário. A por­ta de entrada também é controlada do lado de dentro e do de fora.

A maquete do apartamento está mais perto da bancada do Conselho de Sentença e a do edifício foi mais afastada do centro, possibilitando uma melhor visibilidade do telão. Entram os jurados. Alguns têm aparência de cansaço. Sentados, um deles já boceja.

Todos em pé. O dr. Maurício Fossen entra a seguir. Os réus olham para a mesa do juiz, com as mãos para trás. O magistrado explica todos os horários detalhadamente. Cada parte terá 2h30 para expor, com direito à réplica do promotor, que é optativa, mas se houver dá direito à tréplica da Defesa, estas com duração de duas horas cada uma. Os jurados não podem fazer gestos, perguntas, demonstrar reações ou se comunicar entre eles ou com terceiros. Os apartes serão permitidos conforme a nova lei do júri.

 

                             A ACUSAÇÃO

Francisco José Taddei Cembranelli se levanta. Impecável, por trás da beca se vê uma gravata listrada em tons de vermelho, cor da Promotoria, que só usa quando vai pedir condenação. Seu discurso é sempre didático e lógico, como assistimos nos quatro dias anterio­res. Quando o ouvimos falar, cada argumento nos parece uma ver­dade irrefutável; seu encadeamento de perguntas às testemunhas e aos réus nos leva sempre à conclusão almejada por ele. E o discurso lógico, no qual a exposição de argumentos e provas que foram ali, em plenário, discutidas cientificamente, leva à conclusão de que "não pode" deixar de ser certa. Sóbrio, seguro do conhecimento sobre o processo em suas mínimas linhas, o promotor tempera sua lógica implacável com a sensibilidade que apresenta todo o tempo em relação às pessoas que estão envolvidas no caso, seja qual for a verdade em que acreditam. Mesmo ao inquirir as testemunhas da Defesa ou os réus, a soma de talento e saber envolveu a todos, pois seus afiados sarcasmo e ironia são utilizados de forma bastante re­finada. Essa característica o diferencia e o faz mais forte, porque nunca humilha o réu, apenas destrói a prova ou a falta dela.

Cembranelli abre os debates e, apesar de não falar ao microfone, sua voz tem um timbre incisivo. O que parecia importar para ele, naquele momento, era que os jurados o ouvissem. O som chega muito baixo para a platéia e os jornalistas começam a reclamar, fa­zendo sinais uns aos outros de que não escutavam nada.

Suas primeiras palavras são de saudação ao juiz, à Defesa, aos funcionários do júri, à Polícia Militar, à assistência da Acusação. E completa: "Hoje espero que a justiça seja feita!"

Saúda o público e o Conselho de Sentença, dizendo que, se estão aqui, é porque a Constituição coloca nas mãos do cidadão o julgamento. "É preciso dar resposta a altura dos atos praticados. Os olhos do Brasil estão voltados para esta sala, o que onera o peso da responsabili­dade”. Diz que vai procurar fazer o que faz há 22 anos, pedir apenas justiça. "A prova ê arrasadora para as pretensões da Defesa. Pessoas do mais alto gabarito vieram aqui para esclarecer. Assim, o jurado, quando decidir a sorte dos acusados, o fará com segurança."

Cembranelli prossegue, posicionando-se de frente para os jurados, dizendo que vai contar a história do processo, o rumoroso Caso Isabella Nardoni, para que eles possam comparar com o que já ouviram: "Espero que, com a proteção de Deus, eu corresponda à expec­tativa. As pessoas não querem vingança, jurados, querem justiça!"

"jurados", diz o promotor, ficando alguns segundos em silêncio enquanto se aproxima deles, "a Promotoria sustenta uma versão que foi alvo de críticas de pessoas que não conhecem o Caso Isabella. Meu trabalho não é arbitrário, passa pelo crivo do Judiciário." Explica os recursos im­petrados pela Defesa até os Tribunais da Capital Federal, que ocorreram quase que semanalmente. "Para não dizer pior!", diz ele. Fala sobre a prisão decretada em maio de 2008. "Os argumentos enviados ao juiz até aqui (pela Defesa), no dia dos debates, não provocaram qualquer abalo, a denúncia está totalmente intacta." A prisão provisória, segundo Cembranelli, foi mantida por todas as instâncias, apesar das opiniões críticas de quem chamou de "juristas de plantão".

Prossegue, esclarecendo que com convicção e conhecimento apurado do processo valora o conjunto probatório: "Não acuso siste­maticamente os réus que aqui aparecem. Nos filmes americanos o promotor acusa mesmo ciente da inocência. Eu sou um promotor de Justiça, não estou em busca da fama. Estou no meu 1.078º júri. Não preciso disso. Nunca abandonarei o júri; não quero promoções, que poderia ter tido há um ano. Talvez me aposente aqui mesmo no Tribunal do Júri!" O promotor chama a atenção para o fato de que, na maioria das vezes em que trabalha ali, não está presente nem um único espectador, mas usa a mesma veemência, pois a perda de alguém amado é igual para todos. "Nun­ca precisei de aparecimento na mídia. Trocaria tudo para devolver Isabella a Ana Carolina."

Explica aos jurados como todos aqueles que trabalharam no caso, mais de quarenta profissionais, foram alvo de muitas críticas.

"A delegada Renata Pontes apenas respeitou a lei. Cumpriu rigorosamen­te tudo o que a lei prescreve." Conta como a delegada foi acusada de tantas mentiras, de coagir os réus, como se houvesse por parte da Promotoria ou Polícia a preocupação em eleger culpados à sua es­colha. Afirma que seria mais fácil se o assassino fosse uma terceira pessoa, pois que defesa um assaltante teria! "Possivelmente meu esta­giário faria este júri."

Cembranelli ressalta que fez questão de ouvir Renata Pontes em plenário para que contasse passo a passo o que aconteceu, e o jurado pudesse entender o raciocínio policial, como chegaram à autoria do crime. "Nos primeiros dias do caso, era incompreensível até mesmo para mim. Eu também não sabia, jurado. Respeitaria o prazo de trinta dias. Aguardei pacientemente e sem interferir, e parece que advoga­dos também não interferiram, mas estavam antes, atuando por procuração, desde o dia 30 de março para atuar em futura ação penal."

O promotor continua, explicando agora como fez questão de apresentar um dos médicos-legistas que estava de plantão quando o cadáver da menina chegou ao Instituto Médico Legal. "Vocês viram a exposição do dr. Paulo, como é a precisão de um legista. Iremos sempre atrás da perícia, não precisando incriminar um inocente. Com isso, a prova foi produzida, evitando que campanha difamatória se alastrasse. O Caso Isabella foi uma pista de pouso para projetos pessoais de vários profissionais contratados pela Defesa." Também comenta que apresentou ali em plenário a perita Rosângela Monteiro, para falar das provas de ma­neira científica. "Não irei discutir conjecturas, hipóteses e crenças, mas sim fatos. Fatos não podem ser discutidos. Pular sete ondas na virada do ano em busca de sorte é uma crença, cientificamente ninguém prova! Estes profissionais tiveram suas honras arrasadas, seus nomes enlameados, mas continuaram seu trabalho. Rosângela Monteiro não precisa da incrimina­ção de inocentes para aparecer. Essa é a grande verdade, todos que traba­lharam foram difamados, até por profissionais contratados, verdadeiros oportunistas, com projetos eleitorais pessoais que apresentaram trabalhos hoje descartados pela Defesa."

Cembranelli chama Delma Gama e George Sanguinetti, os peritos contratados pela Defesa e agora desprezados, de "perita trapa­lhona" e "aquele médico": "Será que quando viu um cadáver ele dormiu á noite?" Explica aos jurados como tentaram, apenas olhando foto­grafias do cadáver, desmoralizar os três legistas que examinaram o corpo de Isabella. Além disso, tentaram desqualificar os peritos oficiais elaborando pareceres regiamente remunerados, com conclusões pífias, que nem sequer seriam utilizados pela Defesa no júri.

Ao falar sobre o depoimento do legista, lembra a todos a discutida questão da esganadura: "Quantas e quantas páginas a imprensa gastou!" Descreve como todos nós parecíamos alunos em uma sala de aula, ouvindo a descrição pormenorizada sobre o que Isabella passou naquela noite. "Acredito que a Defesa nem ousará discutir isso... Não sei, não sei." Cembranelli apresenta as características da esgana­dura presentes nos ferimentos do pescoço que destruíram a tese ventilada pela Defesa sobre queda acidental "A asfixia aniquilaria, liquidaria esta idéia! Só faltava a culpa ser da própria menina", disse o promotor, "numa 'peraltice á noite. Seria a proposta defendida por char­latão em busca de fama imerecida, sem conhecimento algum de medicina legal."

"Outra prova trazida pela Promotoria para reduzir a escombros a tese da Defesa de queda acidental é o testemunho do perito Luiz Eduardo de Carvalho Dorea", declara o promotor.

Explica como a delegada Renata Pontes passou a ouvir todas as pessoas citadas no decorrer do inquérito, não descartando possi­bilidade alguma, mencionando Mizael, um pedreiro, Vando, o gesseiro; investigou todos os funcionários envolvidos com a porta de entrada do apartamento, desde o vendedor e entregador até o ins­talador de portas, perguntou a todos sobre as chaves e a possibili­dade de terem sido feitas cópias delas. Ouviu cada uma dessas pessoas para comparação com a versão dos acusados.

Pede aos jurados que descartem o que ouviram na mídia por pessoas que não conheciam o Caso Isabella. Lembra que a dra. Re­nata investigou denúncias anônimas, mesmo depois de a prisão ter sido decretada; mesmo com os réus já presos, continuou seu trabalho, indo atrás de denúncia anônima de certo Paulo, em Guarulhos. "Mais uma denúncia anônima infundada! Descarto que a polícia verificou apenas uma versão! Os advogados estiveram presentes o tempo todo lá e em nenhum momento os policiais direcionaram esta investigação. Reputo esta crítica como injusta!."

"E temos mais", diz o promotor. Cembranelli coloca no telão instalado em plenário um cronograma dos fatos daquela noite.

 

           23:30:00 — CELULAR DA RÉ VIBROU

           23:36:11 — FORD KA É DESLIGADO

 

As informações entram na tela uma de cada vez, linha a linha, orquestradas com a fala do promotor, que veementemente declara: "Contra estes fatos inexistem argumentos!" O desligamento da ignição na garagem, horário marcado pelo GPS — 23h36m11 — e horário definido por satélite. "Por mais que a Defesa argumente, este fato é in­contestável!"

Não há como todas as pessoas da platéia visualizarem o telão, e os jornalistas ficam desesperados, pedindo aos que estão na extre­ma esquerda da fileira que escrevam em papel a ordem dos horários e passem para eles. Alguns se recusam a fazê-lo e continuam com suas anotações.

Mais uma linha:

 

           23:49:00 — QUEDA (DENÚNCIA)

 

Aparece no slide o horário da queda de Isabella, acompanhado do som surdo de uma batida seca, feita pelo promotor, que golpeou fortemente a mesa, assustando algumas pessoas do plenário.

Outro horário entra na tela, agora aquele da ligação do vizinho Antônio Lúcio para o Centro de Operações da Polícia Militar — Copom — 23h49h59. O promotor explica que isso nos dá o horário da queda, pois o telefonema obviamente foi depois dela. Como os fatos aconteceram? Conta para os jurados como o porteiro Valdomiro, ao ouvir um forte estrondo, e, achando que se trata de colisão de auto­móveis, imediatamente abre a janela da guarita e se depara com o corpo de Isabella caído na grama. Assustado, nas palavras dele mes­mo, ligou para Antônio Lúcio. "Valdomiro não sabia de que apartamen­to era a menina, de que andar caiu", explica o promotor. Disse para Antônio Lúcio: "Caiu uma menina aqui..." Cembranelli continua nar­rando os fatos, e todos parecemos crianças ouvindo histórias de terror e suspense, porque ele encena o que está falando, dá as pausas certas, olha no olho de cada jurado. Ao ouvir suas palavras, é como se assistíssemos a um filme Ele dramatiza ironicamente a postura de alguém aflito, em pé, diante do elevador, apertando um botão ima­ginário e batendo a ponta do pé no chão enquanto "com impaciência" aguarda, seus sapatos fazendo um barulho que ecoava no plenário cada vez que batia o pé no chão e ainda imagina uma fala do réu: "O elevador não chegai" Conclui seu raciocínio: "Antônio Lúcio saiu na sa­cada e olhou para baixo. Viu uma menina. Ele também não sabia de que andar havia caído. Fez o que qualquer pessoa pensaria em fazer, menos o réu: ligou para o Copom! É por isso que o telefone de lá é extremamente fácil, 190, para usar em emergência!." O promotor, exaltado, brada: "Eu pu­laria da janela do 6º andar atrás do meu filho, eu desceria pelas escadas, não ficaria apertando o botão e esperando o elevador chegar!"

Podval, jocoso, ri e tenta brincar, dizendo que se o promotor se jogasse atrás do filho, não haveria quem socorresse a criança. E completa: "Eu ligaria para os meus pais!"

Cembranelli faz que não ouve e prossegue, não dando muita importância ao comentário do colega, logo contando que o sr. An­tônio Lúcio, que pediu socorro, tem uma neta da mesma idade e com o mesmo nome da vítima. O telefonema é encerrado às 23h51m20. Esclarece aos jurados que a hora oficial desses órgãos é alinhada com a do Brasil, determinada por satélite. "Antes que a Defesa venha dizer que o horário marcado pelo relógio pode ser diferente do dos jurados, mas entre os órgãos oficiais, não!

Enquanto Cembranelli vai apresentando sua linha do tempo, a assistente da Defesa corre para o lado dos jurados e passa a anotar todos os horários do telão. Era a primeira vez, desde o início do processo, em que a cronometria dos fatos servia como argumento. Podval se mostra apreensivo. O pai de Alexandre suspira longamen­te e aperta a mão de Cristiane, que encosta a cabeça em seu ombro.

O promotor prossegue e mostra que às 23h50m01 mais um vizinho, agora o sr. José Carlos, do 3º andar, chama o socorro dos bombeiros pelo telefone de emergência 193.

 

         23:30:00 — CELULAR DA RÉ VIBROU

         23:36:11 — FORD KA É DESLIGADO

         23:49:00 — QUEDA (DENÚNCIA)

         23:49:59 — COPOM RECEBE LIGAÇÃO A. LÚCIO (fim — 23:51:20)

       23:50:01 — BOMBEIROS RECEBEM LIGAÇÃO J. C. (fim — 23:51:41)

 

Portanto, o momento em que o réu aparece no térreo é definido pelo vizinho do 1º andar, pelo do 3º e por Valdomiro, o porteiro. Há, ainda, o registro do Copom.

Cembranelli passa a ler em voz alta a degravação do Copom, fazendo vozes diferentes para o sr. Antônio Lúcio e a atendente, de forma contundente e emocionante, conseguindo prender a atenção de todos ali:

Atendente:     "Polícia Militar Emergência".

Antônio Lúcio: "Pelo amor de Deus, filha, rua Santa Leocádia um, três, oito, tem ladrão no prédio, jogaram uma criança de lá de cima, pelo amor de Deus!"

Atendente: "Leocádia número?"

Antônio Lúcio: "Um, três, oito".

Atendente: "Um, três, oito, é eles jogaram de que endereço, da altura?"

Antônio Lúcio: "Do 6º andar pelo amor de Deus, jogaram uma criança de lá de cima, tem ladrão dentro do prédio!"

 

A conversa é lida e ouvimos a única conclusão possível, de que as informações somente foram passadas para o Copom porque ele viu e ouviu o réu, uma vez que Antônio Lúcio não sabia a qual andar se referir antes disso. Ao reproduzir o diálogo, Cembranelli aponta para o fato de que, supondo a velocidade da fala utilizada, teríamos por volta de quinze segundos entre o recebimento da ligação pela atendente, quando o sr. Antônio Lúcio ainda não sabia quem era a vítima nem de que andar teria caído, até que a informação de que a criança havia caído do 6º andar e que existe um ladrão no prédio, conforme a versão que Alexandre Nardoni daria ao chegar ao local onde estava a filha.

Na tela, os fatos aparecem em ordem cronológica:

 

               23:30:00 – Celular da ré vibrou

               23:36:11 – Ford KA é desligado

               23:49:00 – Queda (Denúncia)

               23:40:59 – Copom recebe ligação A. Lúcio (fim – 23:51:20)

               23:50:01 – Bombeiros recebem ligação J. C. (fim – 23:51:41)

               23:50:32 – Ré liga p/o pai do apto. 62 (fim - 23:50:56)

                 23:51:09 – Ré liga p/o sogro do apto. 62 (fim – 23:51:41)

                 23:51:13 – Copom recebe ligação de J. C. (fim – 23:53:59)

 

Cembranelli volta no tempo com Alexandre, refazendo o traje­to invertido desde o local da queda, quando Antônio Lúcio o vê, até o apartamento, de onde Isabella caiu.

Com clareza, nos faz acompanhar seu raciocínio, pois o sr. Lú­cio só conclui que a criança caiu do 6e andar e que se trata da filha de Alexandre ao vê-lo chegar junto ao corpo da menina. Dessa for­ma, ao ler a degravação da conversa do ex-síndico com o Copom é possível estabelecer o exato momento em que Alexandre Nardoni chega ao térreo. A partir daí, explica o promotor, se usássemos a estimativa de Valdomiro e Antônio Lúcio para os peritos, de que desde o barulho da queda até a chegada de Alexandre decorreu cerca de um minuto, e contrapondo esse fato à soma do tempo de descida pelo elevador medido pela perícia (52 segundos) e o tempo que se leva para atravessar o hall de entrada, teremos pouco mais de um minuto também. "Fica demonstrado que não existe nenhuma outra possibilidade", diz em tom veemente. "No momento em que Isabella foi defenestrada eles estavam dentro do apartamento!"

Aponta o quadro, chamando a atenção para os horários das ligações de Anna Carolina Jatobá aos pais. "Desceram juntos? Como é possível, jurados ? O telefone fixo estava sendo usado no apartamento quando a ligação para o Copom já havia terminado!"

O promotor conta para os jurados que João Carlos, o vizinho que ligou para os bombeiros e para o Copom, estava tão agoniado e assustado que ficou atrás da porta segurando um espeto de chur­rasco até a polícia chegar.

A seguir, Cembranelli descreve como teria sido a ação policial na obra vizinha, enquanto o pedreiro Gabriel se divertia em um forró qualquer no município de Diadema. Ironiza sobre como seria uma ação "delicada" a de procurar um suposto bandido nas ime­diações de onde a vítima foi morta em assalto. "Vão sair de lá e deixar tudo do jeito que encontraram? Vão arrumar o local? E lá vem, na segun­da, o pedreiro Gabriel... não sabe de nada... entraram aqui! Não houve nenhum arrombamento, jurados! Houve uma investigação feita pelos po­liciais da Rota! O pedreiro Gabriel falou a verdade para o repórter Rogério Pagnan, ele é que falha na retransmissão dessas informações."

 

Mais linhas do tempo entram no telão:

 

               23:52:22 — SOLICITAÇÃO COPOM P/BOMBEIROS (23:53:38)

               23:52:50 — RÉ LIGA P/ A. NARDONI (CEL RÉU)

               23:54:04 — SOLICITAÇÃO COPOM P/BOMBEIROS

               23:55:09 — SOLICITAÇÃO COPOM P/ BOMBEIROS

               23:55:10 — RÉ LIGA P/ANA DE OLIVEIRA

 

Cembranelli passa a explicar o depoimento de um casal de vizinhos, Luciana e Waldir Ferrari, que mora no prédio ao lado, no 4e andar, alinhado em altura com o 6- andar do Edifício London. Eles ouviram uma discussão entre um homem e uma mulher, em tom acalorado. Declararam à polícia que se ouvia principalmente a voz da mulher, que gritava muitos palavrões. Depois de um período de silêncio, começaram a ouvir gritos vindos do prédio vizinho e olharam para baixo, observando uma moça que fazia ligações na lateral do prédio e falava muito alto, com um vocabulário repleto de palavrões e andando de um lado para o outro. Como se pode ver pelos registros telefônicos, realmente Jatobá deu esses telefonemas para o sogro e para a mãe de Isabella, indo até a lateral do prédio para fazer as ligações. Foi nesse momento que os vizinhos reconhe­ceram ser a mesma voz que ouviram na discussão minutos antes com um homem e que se elevava de tom no térreo do edifício de onde fora defenestrada uma menina. "Em nenhum momento os réus disseram que discutiram dez minutos antes de Isabella cair, sempre omitiram isso. A história deles não prevê discussão. Que razão teria Luciana e Waldir para mentir? Que razão teriam para incriminar duas pessoas ino­centes?", completa Cembranelli, que mostrou todo o desenrolar da cena se utilizando da maquete.

A família de Alexandre discute os horários e faz algumas anotações rápidas, que depois são entregues ao assistente da banca da Defesa. Ele ordena várias perguntas a Cristiane, que escreve veloz­mente em um pequeno caderno. Falam muito baixo, a expressão de ambos não deixa dúvidas quanto ao que sentem.

Todo esse alinhamento dos horários é argumentação nova e inesperada, principalmente para a Defesa, que agora tem de correr atrás de respostas para os jurados. Alguns advogados entram e saem do plenário, mostrando apreensão e pressa.

 

Novas linhas de tempo entram no slide:

 

           23:56:46

— LIGAÇÃO WALDIR P/ BOMBEIROS

           23:58:26

— A. NARDONI LIGA P/ CRISTIANE

           23:59:00

— CHEGADA 1ª VIATURA POLICIAL

           23:59:16

— CRISTIANE LIGA P/PAI CEL

           00:00:10

— CRISTIANE LIGA P/RÉU

           00:05:00

— CHEGADA 1ª VIATURA BOMBEIROS

           00:07:09

— CRISTIANE LIGA P/PAI

           00:08:00

— CHEGADA 2ª VIATURA BOMBEIROS

           00:18:47

— CRISTIANE LIGA P/PAI

           00:35:00

— CHEGADA VIATURA USA/RESGATE

 

Cembranelli continua implacável, rebatendo cada um dos argumentos da Defesa, demonstrando a fragilidade da versão dos réus. A cada passo vai ficando inequívoco o fato de que a história contada por Alexandre e Jatobá não resiste à realidade das provas. O próximo ponto versa sobre o fato de a Corregedoria da Polícia Militar localizar-se ao lado do endereço da ocorrência. Um vizinho mais desesperado vai até lá, bate na porta e chama por socorro. O soldado Róbson chega na primeira viatura policial. A queda acon­tecera havia dez minutos.

O primeiro a dar pronto atendimento à menina é o soldado da Polícia Militar Maurício, que vem com a primeira viatura dos bom­beiros, pouco depois da chegada de Ana Carolina de Oliveira. Ele já não sente os batimentos cardíacos da vítima ao apalpar as caróti­das dela. Não há sinais de respiração e ele constata parada cardiorrespiratória. "Tudo o que se fez a partir daí não teve efeito. Ela já havia morrido. Do jeito que caiu, ficou!"

O promotor explica a seqüência de atendimentos de socorro, que termina com a chegada da médica, dra. Rosângela. Ela tem equipamentos modernos, monitora Isabella e também constata que não há sinais de batimentos cardíacos. A medicação intravenosa que é aplicada não corre no cateter, mais um sinal de que não há circu­lação. "O coração de Isabella para de bater entre a chegada de Ana Caro­lina de Oliveira e o primeiro resgate. Apesar das tentativas e manobras de ressuscitação, Isabella é declarada morta!"

Cembranelli prossegue, afirmando que a camiseta de Isabella tinha uma secreção amarelada, compatível com a das narinas da vítima. Podval aparteia, dizendo que não foi comprovado pelos peritos que fosse vômito. Cembranelli continua explicando como a menina aspirou o próprio vômito porque foi asfixiada, porque já não tinha condições de controle, e que a secreção das narinas era com­patível com a encontrada no aparelho respiratório, demonstrando que, sim, ela vomitou.

A mãe de Jatobá sai da sala acompanhada de Cristiane Nardoni, que continua chorando sem parar.

O promotor volta para a prova mais contundente, refazendo inversamente o caminho de Alexandre, comprovando mais uma vez o inexorável, andando no plenário de costas, num passo moonwalker, sempre repetindo que aqueles dois minutos que decorreram entre a queda e o aparecimento de Alexandre no térreo é exatamente o tempo que levou para jogá-la e descer, confirmado pelo cronômetro da perita na reprodução simulada. A cada passo que dá para trás, Cembranelli repete que "aqueles dois minutos continuam contando" e ergue a voz e exclama: "Eu posso afirmar taxativamente que no momen­to da queda de Isabella o casal estava no apartamento! Isto é prova cientí­fica, não admite contestação!"

A linha do tempo fica ali, completa:

 

• 23:30:00

CELULAR DA RÉ VIBROU

• 23:36:11

FORD KA É DESLIGADO

• 23:49:00

QUEDA (DENÚNCIA)

• 23:49:59

COPOM RECEBE LIGAÇÃO A. LÚCIO (fim — 23:51:20)

• 23:50:01

BOMBEIROS RECEBEM LIGAÇÃO J. C. (fim — 23:51:41)

• 23:50:32

RÉ LIGA P/ O PAI DO APTO 62 (fim — 23:50:56)

• 23:51:09

RÉ LIGA PI O SOGRO DO APTO 62 (fim — 23:51:41)

• 23:52:13

COPOM RECEBE LIGAÇÃO DE J. C. (fim — 23:53:58)

• 23:52:22

SOLICITAÇÃO COPOM P/ BOMBEIROS (23:53:38)

• 23:52:50

RÉ LIGA P/ A. NARDONI (CEL RÉU)

• 23:54:04

SOLICITAÇÃO COPOM P/ BOMBEIROS

• 23:55:09

SOLICITAÇÃO COPOM P/ BOMBEIROS

• 23:55:10

RÉ LIGA PI ANA DE OLIVEIRA

• 23:56:46

LIGAÇÃO WALDIR P/ BOMBEIROS

• 23:58:26

A. NARDONI LIGA P/ CRISTIANE

• 23:59:00

CHEGADA 1ª VIATURA POLICIAL

• 23:59:16

CRISTIANE LIGA P/ PAI CEL

• 00:00:10

CRISTIANE LIGA P/ RÉU

• 00:05:00

CHEGADA 1ª VIATURA BOMBEIROS

• 00:07:09

CRISTIANE LIGA P/ PAI

• 00:08:00

CHEGADA 2ª VIATURA BOMBEIROS

• 00:18:47

CRISTIANE LIGA P/ PAI

• 00:35:00

CHEGADA VIATURA USA/RESGATE

• 00:42:00

CHEGADA SANTA CASA

 

A Acusação continua sua exposição de argumentos, agora explicando aos jurados sobre o teste da camiseta, e diz que afirmar que Alexandre não subiu na cama é tentar desmoralizar a dra. Rosânge­la. "Se este teste da camiseta fosse visto em um episódio da série C.S.I., seria aplaudido, maravilhoso! Se é aqui, tenta-se desmoralizar, tirar o investimento na polícia científica, desmoralizar a perita."

Começa uma intensa troca de farpas entre promotor e advogado, quando ironicamente Podval se refere à dra. Rosângela como "a perita das ossadas". Cembranelli, furioso, esclarece que a "perita das ossadas" que ele tenta desmoralizar é a dra. Norma Bonaccorso, a que manipulou a saliva e o cabelo dos réus para DNA, e brada: "Mentirosos, colheram sangue, sim! Depois o dr. Podval fica bravo quando eu digo que ele não estuda o processo!" Podval, irritadíssimo e usando de ironia, responde: "É, doutor, hoje eu vou falar com o senhor de impro­viso!." Cembranelli, desta vez, não deixa passar: "A Defesa tenta des­moralizar o profissional para desqualificar o trabalho dele. Como não pode­mos contrariar a perícia, vamos acabar com a perita!" Ainda exasperado, continua, dizendo que entende o papel do advogado, mas que anun­ciaram um "tsunami" contra a Acusação, afirmando que iriam des­mantelar a perícia, mas o que veio foi uma "marola". "Entrei apenas com quatro testemunhas, enquanto a Defesa arrolou vinte! Trouxe a dra. Renata para falar da investigação, o dr. Tieppo para falar dos ferimentos, a dra. Rosângela para falar das provas científicas e Ana Carolina de Oliveira, que conhece muito bem o histórico de vida dessas pessoas". Cembranelli passa a comentar que a Defesa, primeiramente, dispensou dez de suas testemunhas, depois mais cinco, até que restaram apenas duas. "Um repórter que não acrescentou nada e sempre será lembrado por ter vindo aqui e quebrado um pedaço da maquete, e um investigador que apenas fazia o trabalho dele. Esse é o tsunami que a Defesa iria trazer!"

O promotor continua a discorrer sobre a construção sólida da Acusação para manter a integridade da denúncia, contando ao ju­rado que a Defesa teve incontáveis habeas corpus e recursos negados, todos por votação unânime. "Quando os senhores votarem, lembrem-se que a Justiça caminha em um sentido e a Defesa pede que os senhores votem na contramão!"

Podval pede um aparte e Cembranelli pergunta se ele vai demorar muito. O advogado responde que, por lei, tem direito a três minutos, mas se o promotor quer que ele diminua... Rindo, Cem­branelli diz que vai se sentar. Na verdade, o outro está escolhendo como vai ser o júri, pois se a Promotoria for muito aparteada pode­rá fazer a mesma coisa durante a manifestação da Defesa.

Podval acusa a perícia de ter feito um trabalho que atendia ao Ministério Público, e foi interrompido por Cembranelli, que argu­mentou: "A perícia é do Juízo, é órgão oficial do Estado, não trabalha para a Acusação. Pode ser inclusive contra a Acusação!"

O promotor passa a discorrer sobre o tão discutido reagente químico Bluestar Forensic. Esclarece que é usado em noventa países, em locais de crime até cinco ou seis anos depois dos fatos e com eficiência. "Nos Estados Unidos, que é um sistema legal garantista, esta prova condena á pena de morte. Se não fosse segura não seria usada, pois incriminaria, quem sabe, uma cozinheira descuidada que derrubasse suco de cenoura no chão."

Cembranelli também completa sua explicação dizendo aos ju­rados que as gotas de sangue visíveis foram parcialmente removidas, e as manchas não visíveis compunham um trajeto, não eram isoladas, estavam dentro de um contexto.

A perícia pode ser — e foi — confrontada , mas quando a Defesa percebeu que Sanguinetti estava só tentando auto-promover-se, foi afastado. "Alguém viu ele aqui depondo?" E continuou lembrando a todos que tudo foi levado para o laboratório, e que os testes foram positivos para sangue; que Isabella entrou no apartamento sangran­do e as manchas estavam lá para comprovar e demonstrar toda a trajetória da vítima ali. "Teste positivo para sangue, teste positivo para sangue humano, teste positivo para DNA, nem os réus negam que viram sangue ao lado da cama. A Defesa quer que acreditemos que o sangue apre­sentado era suco de alho!"

Relembrou o que explicara o perito Luiz Eduardo de Carva­lho Dorea, referência no assunto "manchas de sangue", sobre a determinação da altura em que a gota de sangue caiu, prova indis­cutível de que a vítima fora carregada dentro do apartamento. "No mínimo 1,25m de altura e Isabella não tinha este tamanho, se ela vivesse certamente um dia poderia ter!" Mas não ainda, pois os dois anos que se passaram ainda não teriam sido suficientes para que a menina alcançasse essa altura.

Cembranelli também se preocupa em explicar aos jurados o que era um resultado "falso positivo" e a exata importância do reagente Hexagon nos testes efetuados, "isso existe e é válido quando efeito na Scotland Yard e no FBI, quando utilizam em São Paulo os doutores vêm aqui dizer que a perita é um lixo!"

Depois, se referindo à advogada que inquiriu a perícia, pergun­tou qual a credibilidade de alguém que tinha adquirido um kit do reagente em um congresso, material que necessitava de especializa­ção para usar, e vinha ali no júri para pingar algumas gotas em ba­nanas? Podval, insatisfeito com o rumo do discurso da Promotoria, retruca: "Vou lhe mostrar o que é uma banana!" Mas parece não ter sido ouvido, pois quem conhece Cembranelli sabe que esse comentário não passaria em branco. O promotor continua a ironizar, exemplifi­cando que, para fazer uma cirurgia cerebral, não basta apenas com­prar um bisturi, assim como um promotor não deve fazer cálculos para a construção de um viaduto, e que, se fizer, ninguém deve passar embaixo dele, assim como um médico não pode lavrar uma sentença judicial.

Cembranelli procura, no volume do processo que está em suas mãos, a reprodução simulada dos tempos encontrados pela perícia, e passa a nos contar como isso foi feito. Primeiro a perita trabalhou com Valdomiro, o porteiro, cronometrando, a partir do barulho da queda, quanto tempo ele levou para cada ação que havia relatado em seu depoimento. Fez o mesmo com o sr. Antônio Lúcio, desde o momento em que atendeu o porteiro até sua ligação para o Copom. Mediu o tempo que o elevador leva entre o térreo e o 6º andar, além daquele necessário para atravessar o hall de entrada. Ao verificar a versão de Alexandre e Jatobá, a conta não fechava, pois chegariam ao térreo depois da meia-noite. "Eles não podem ter chegado depois de Ana Carolina de Oliveira lá embaixo!"

"Eles tentaram passar a imagem de um casal normal, com brigas normais, do tipo 'amor, vai sair hoje? Não vai jogar bola?", disse Cem­branelli. Nas constantes brigas, às vezes os pais dela eram chamados; às vezes os pais dele; às vezes todos, para apartá-los. Os depoimen­tos de vários vizinhos foram lidos, em contraposição às declarações dos réus, como quando diziam que o relacionamento com a mãe de Isabella era amistoso, mas o vizinho Paulo César Colombo declarou que só se referiam a ela, durante as brigas, como "vagabunda". Também chama a atenção para a briga em que Alexandre está fa­zendo uma lista de compras enquanto Jatobá discute com ele, e, como ele não responde, ela arranca o papel em que está escrevendo e o rasga. Ele calmamente levanta e pega novo papel, ignorando-a, indiferente, e começa mais uma vez a fazer a lista. Ela, descontrola­da, vai até a lavanderia e esmurra o vidro, ferindo o braço com gravidade. "Todas as discussões eram pelo mesmo motivo, o ciúme que a madrasta de Isabella tinha da mãe da menina!" O promotor continua a ler vários depoimentos de vizinhos do prédio antigo, sobre como as brigas eram constantes e aconteciam principalmente nos finais de semana, quando a vítima estava com o casal, que agora comparecia ao júri com essa versão de vida harmoniosa. "Não me venham com essa balela que eles viviam bem. Isso é um desafio ã nossa inteligência!" Completa dizendo que Jatobá disse que em 2005, quando nasceu o filho, ficou mais madura e feliz, mas que os relatos dos vizinhos eram do ano de 2008.

Cembranelli também lê para os jurados partes dos depoimentos de um taxista e de uma antiga vizinha dos Nardoni, Benícia. O pri­meiro relatou em juízo que Jatobá foi passageira em seu táxi no mês de fevereiro de 2008, quando, em conversa informal sobre crises conjugais, contou a ele que a enteada transformava sua vida em um verdadeiro inferno, que quando estava em sua casa o marido não dava nenhuma atenção aos próprios filhos nem a ela, mas que iria resolver aquela situação. Já Benícia, ouvida na cidade de Franca, interior de São Paulo, disse ter presenciado uma briga entre o jovem casal acusado por causa de Ana Carolina de Oliveira, quando Jatobá arremessara uma ferramenta em direção à cabeça de Alexandre, que se desviou. Ele levou a esposa para dentro, onde ela teria tido um caricato ataque histérico, e vários vizinhos saíram à rua para ouvir. A mãe de Alexandre era sua amiga e lhe confidenciava várias brigas exageradas do casal, o que levou Benícia a comentar com Cida que tinha medo de que Jatobá jogasse Isabella "lá de cima" (do apartamento). Foi essa vizinha que contou sobre o cuidado da família Nardoni em mandar Cristiane, irmã de Alexandre, sempre ir dormir com o casal quando a menina estava presente, visando protegê-la. Ela também relatou ter presenciado cenas entre Jatobá e Alexandre nas quais a moça disputava a atenção do marido com a enteada, a ponto de tirar a filha do colo do pai para sentar-se, causando crises de choro na criança.

"Agora não vamos mostrar aqui uma pessoa que não existe", disse o promotor. E fez a aritmética simples, como chamou antes, a conta segundo a qual, se Jatobá "ficou" com Alexandre no final de 2002 e ele só se separou da mãe da filha em março de 2003, Alexandre ha­via, sim, traído Ana Carolina de Oliveira. "Agora vem aqui tentar enganar todos nós..."

Cembranelli passa a descrever um resumo do perfil do casal de réus, principalmente de Jatobá. Ela já apresentava um histórico de violência familiar e xingamentos, inclusive fazendo boletins de ocorrência contra o próprio pai. Durante os dois anos e meio em que moraram no Edifício Vila Real, antes de morar no Edifício London, brigavam sem parar, segundo o depoimento da própria Jatobá. "Nós quebrávamos o pau todos os dias", é a frase sintomática que utiliza. "Jatobá passou a ser dependente da família Nardoni desde a marca do papel higiênico que usavam até a comida que comiam", explicou, além do fato de Alexandre ser proibido de falar diretamente com a mãe de sua filha, sob o risco de causar grande tumulto cada vez que isso acon­tecia. Contou-se no processo até uma história em que, descontrola­da, durante uma dessas brigas, jogou seu bebê contra o berço. Foi acalmada por Isabella. O promotor também conta aos jurados sobre o bilhete de autoria da ré que, encontrado na lixeira e remontado pela perícia, mostrou ter conteúdo extremamente depressivo, dando a entender que ela levava uma vida infeliz, mulher sempre esgotada, sem empregada, sem dinheiro e com dois filhos para criar. A prova disso está na receita de dois remédios, um tranqüilizante e outro antidepressivo, para uso dela, mas que não foram adquiridos. "Ela é extrema! Quando ri, ri mesmo e quando xinga, xinga mesmo, quando chora, chora mesmo, quando agride, agride mesmo. Não me venha aqui se apresentar como um ser equilibrado!"

Depois de relembrar aos jurados, em um pequeno resumo, sobre as questões da esganadura e dos ferimentos apontados pelo odontolegista e explicados pelo dr. Tieppo, não deixando dúvida alguma de que ali nada havia de acidental, Cembranelli passa a falar sobre a possibilidade de o assassinato de Isabella ter sido co­metido por uma terceira pessoa. Com um sarcasmo impressionan­te, o promotor descreve como teria ocorrido essa ação ímpar: o indivíduo teria que entrar com as chaves, sem arrombar a porta. No intervalo de tempo em que Alexandre desceu para pegar os outros filhos, Isabella acordaria e reconheceria o intruso, que, para escapar, teria de eliminá-la. Sendo assim, ele não a deixaria morta na cama, como se estivesse dormindo, e então fugiria, de forma que talvez seu crime fosse descoberto apenas no dia seguinte. Em vez disso, prefere esganá-la, correr até a cozinha, pegar faca e tesoura, cortar a tela e arremessá-la para cair ao lado do prédio da Correge­doria da Polícia Militar, chamando bastante a atenção para sua fuga. Além disso, tiraria os sapatos para agir, porque as únicas marcas de solado encontradas eram as do pai da menina. Depois, em um gesto de solidariedade, uma vez que o apartamento estava "de pernas para o ar", resolveria limpar o sangue. Ainda com a mesma generosidade, apesar de milhares de roupas espalhadas pela casa, escolheria uma única fralda para colocar de molho em um balde. De maneira educada, sairia trancando a porta, e, ainda gentil, apa­garia as luzes.

Podval, percebendo o discurso do impossível, interrompe o relato escarnecedor do promotor, aparteando-o para dizer que a perícia consegue provar a esganadura, mas não a autoria. "Não há prova técnica que aponte a autoria! Quem asfixiou?"

Cembranelli, impassível, fala das marcas de unha no pescoço da menina, e acusa: "Ahhhhhh... mas a asfixia está provada, então se não foi ela, foi ele? Porque só estavam os dois dentro do apartamento! Olha o tamanho dele! Se fosse ele teria matado Isabella instantaneamente!".

O promotor argumenta que usou essa versão "fictícia" para mostrar que, na versão dos réus, contraposta à linha do tempo real, eles teriam chegado ao térreo depois da meia-noite. Lembrou a todos que um inocente deve se portar como um inocente e comparecer à reprodução simulada para esclarecer o que aconteceu, e não recu­sar-se, como um culpado faria, alegando o princípio de ter o direito de não produzir provas contra si mesmo. Não compareceram porque teriam de explicar o inexplicável. Justamente a cronometragem mostrava que os réus contavam uma versão impossível. As provas das pegadas sobre a cama e dos registros do Copom eram incontestáveis. "Vai xingar a dra. Rosângela? Vai xingar a dra. Norma? Mas não pode xingar o Copom, porque o registro telefônico indica exatamente o horário em que a ligação foi feita de dentro do apartamento! Me mostre um recurso da Defesa que argumente a linha do tempo! Nunca abordaram este assunto!"

Concluindo, Cembranelli explica aos jurados que esse júri é um divisor de águas. Será referência em todos os julgamentos desse momento em diante, e cada vez mais serão exigidas provas cientí­ficas, produzidas com alta tecnologia, e não veredictos apoiados em testemunhas que podem não enxergar tão bem. "Não vamos andar para trás!", diz o promotor. "O dr. Podval está aqui para dizer que a perícia é um lixo, mas até agora não conseguiram contestar as provas cien­tíficas. " Ele prossegue, fazendo um resumo rápido das provas: re­gistros telefônicos e do Copom, testemunhos do mau relacionamen­to do casal, histórico da vida pregressa, marcas da tela na camiseta do réu e do solado da sandália dele no lençol. Segue enumerando o que havia sido dito durante as últimas duas horas e meia.

Por fim, Cembranelli diz que o Ministério Público nunca tem a obrigação de acusar. Neste caso, sem conhecer ninguém da família e não sabendo nada sobre os fatos, acompanhou as investigações e, quando teve a convicção de que estavam envolvidos no crime, ofe­receu denúncia: "Hoje, minha obrigação como representante da sociedade é colocar a família Oliveira sob minha proteção e fazer com que a Justiça se cumpra!"

Cita a opção que Ana Carolina de Oliveira tinha de não acredi­tar que eles seriam capazes de fazer o que fizeram, mas, como é profunda conhecedora dessas pessoas, optou por estar ao lado da Promotoria, trazendo a dra. Cristina para acompanhar o caso porque quer justiça para sua filha.

Nos minutos finais, Cembranelli ainda relembrou a ridícula pensão paga para manter a vítima, e falou, referindo-se à duvidosa competência de Sanguinette como médico-legista: "Este cidadão de Maceió recebeu o que Isabella levaria pelo menos quinze anos para receber de pensão!"

Fecha seu discurso da mesma forma que o abriu, dizendo: "O Brasil que está lá fora olha para esta sala e espera que vocês, jurados, juízes constitucionais, façam Justiça!"

 

                     A DEFESA

É a vez e a hora de Roberto Podval. Simpático e de fala sempre elegante e dócil, dá aos oponentes a sensação de que eles estão em vantagem, mas irá contestar cada uma de suas teses sem trégua. Suas perguntas, por vezes, parecem simples e sem importância, mas logo adiante são usadas para embaralhar as idéias previamente expostas. Parece dispersivo, sempre tem papéis nas mãos, rabiscan­do de forma frenética aquilo que já usou ou o que desistiu de usar, recebendo bilhetes sem mudar o tom de voz, andando pelo plenário meio sem rumo. Não parece nada ameaçador e seduz, com sua simplicidade de ação e aparente falta de conhecimento sobre questões técnicas, o grande público, que se identifica com ele. Desde o início disse que entrou em um caso perdido, que o casal havia entrado no Tribunal do Júri condenado, mas seu olhar o trai quando lampeja a esperança de ainda absolvê-los. Seu discurso é mais dialético, como quem investiga uma hipótese, não precisa provar a inocência, basta criar dúvidas que abalem a tese da Acusação. Utiliza um raciocínio transversal, repleto de idas e vindas, buscando encontrar erros nas provas apresentadas.

Levanta-se, ajeitando a beca, e agradece ao juiz pela forma tranqüila com a qual os trabalhos se desenvolvem ali e pelo trata­mento respeitoso às famílias sofridas. Olha para Cembranelli e diz: "O senhor me intimida, tem mais de mil júris!" Conta que assistiu pela televisão como a construção do júri se realizou, que respeita o papel de cada um e percebe que a acusação não foi produzida levianamen­te e sim porque o profissional ali presente acredita nela e a faz bem. Podval deixa claro qual é o papel do promotor em um caso e quais são suas obrigações, e mostra a todos que ali não há lugar para questões pessoais. "Vi como este júri foi construído a cada pontinho. Para mim foi um grande aprendizado."

O advogado segue agradecendo aos funcionários pela forma como foi acolhido e relembra: "Quis o destino que os dois maiores júris que fiz fossem aqui". Estava se referindo ao caso do dr. Farah Jorge Farah, que defendera. Fala sobre a dificuldade de estudar os autos do Caso Isabella. "Um caso triste, feio, que machuca", explicando que a cada frase, não importa quem tenha feito o quê, lembra-se que a vítima é a menina. Comenta como a multidão que quando estava do lado de fora do Tribunal queria linchá-lo, mas os funcionários daquela casa o protegeram, ajudaram e acolheram. "Não sou de brigas e disputas, vou tentar fazer meu trabalho."

Podval, então, se movimenta mais no plenário, passando a mão pelo rosto, tirando os óculos algumas vezes, gesticulando. Agrade­ce aos membros da Ordem dos Advogados do Brasil que acompa­nharam os trabalhos, emprestando "um ombro amigo", e também àqueles das filas que vieram "aprender com o Cembranelli". Fala sobre sua gratidão para com os membros da imprensa, dentre eles alguns amigos pessoais, desenvolvendo um trabalho também difícil, dia e noite, talvez tão árduo quanto o da própria Defesa. "Trabalho honesto, aberto, mas há que se fazer uma reflexão: não chegaria aonde che­gou, porque isto se transformou no que se transformou e pode impedir al­guém de ser honestamente defendido."

Ao agradecer a sua equipe, chora. Diz que, sem eles, seria impossível; todos estavam havia cinco dias sem dormir e se dedicaram plena e integralmente. Aos jurados, apoiado na bancada deles, ex­plica como tinham uma missão das mais difíceis já presenciadas por ele em toda a sua vida: "Eu vim para este julgamento certo de que minha grande necessidade era implorar para que vocês me ouvissem, só me ouvis­sem. Com a dimensão que o caso alcançou, eu não acreditava que vocês fossem me ouvir!"

Sublinha como a sociedade foi massacrada com informações tendenciosas durante dois anos, mas ressalta que não fala isso em tom de crítica. "A gente sabe o que aconteceu. Eu não tinha nenhuma esperança... Bem, talvez um pouquinho assim", aproxima o indicador do polegar, brinca com a veracidade de suas próprias declarações.

Declara sua descrença em que alguém da sociedade se sentasse ali durante "o grande Caso Isabella Nardoni" sem ter seu voto pron­to. "Eu vim aqui para a etapa final deste processo. Durante estes cinco dias o que vi foi a esperança que cada um de vocês me deu de pelo menos me ouvir. É mais do que eu podia esperar!"

Podval começa explicando sobre a desistência das testemunhas, apontando para Cembranelli, que acompanhava o caso desde a delegacia, e repetindo as palavras do promotor de que ele não co­nhecia o processo: "Chega um pai desesperado, com um processo como este, leio em cima da hora... Eu nem sabia quem era testemunha, arrolo todos e depois vejo o que eu faço!"

O advogado diz que não vai criticar a equipe de Defesa que saiu, mas não poderia negar ajuda a um pai desesperado, apesar de ter dimensionado as enormes dificuldades que teria de transpor. "Qual sua defesa? Você vai lá falar o quê, na grande hora final, o que você vai dizer? Como vai defender?", argumenta, como se estivesse falando consigo mesmo. Explica como acabou poupando a mãe de Isabella e, dessa forma, a si mesmo, mas questiona que mágica poderia fazer em plenário, que coelho tiraria da cartola para mudar o rumo das coisas, e explica o que disse aos réus: "A única forma é ser honesto. Falem o que for bom ou ruim, são vocês, falem aquilo que não puderam falar em dois anos!"

Sempre em tom de interrogação, prossegue dizendo que este casal é o cotidiano do Brasil, gente que se casa, se separa, casam-se jovens, entram em uma rotina, brigam as brigas dos casais... Nada diferente do dia a dia de todos nós. "Só passa a ser diferente quando acontece uma tragédia na vida deles! Aí chamam o rapaz e perguntam:

'Qual é o nome da professora de sua filha?' E ele não sabe! E ele é mau pai! O que vemos aqui? Monstros?"

Podval faz referência também aos vizinhos, que nunca tiveram o menor relacionamento com os réus, nunca disseram uma palavra a eles, e aí, quando tudo acontece, vão todos à delegacia falar do que viram no elevador, que Alexandre era mal-encarado... "Mas daí a fazer isso com uma criança? Pelo amor de Deus! Mas como vou defendê-los? O que eu faço?"

Começa a descrever a situação em que ficou diante de Ana Carolina de Oliveira, mãe de Isabella, por ela ser vítima e também assistente da Acusação, além de testemunha e de seu estado psico­lógico, o fato de estar machucada e ferida, de precisar fechar esta história, mas desiste. "Vou pular a mãe."

Passa a falar da delegada, dra. Renata Pontes, criticando o fato de ela ter vindo testemunhar vestida de preto, como se estivesse enlutada. Em tom suavemente irônico, questiona que motivo ela teria para chegar ali, no prédio, e incriminar o casal. "Óbvio que não aconteceu. Diz que foi chamada, que história estranha, e é mesmo! Então, se não foram vocês, quem foi?"

Descreve como a delegada conversa com eles e investiga todo mundo, mas não encontra nada relevante. Relembra como ela ex­plicou que, em um primeiro momento, só queria saber o que estava acontecendo, mas que deixa o casal esperando durante horas na delegacia, antes de ouvi-los formalmente. "Ela diz que só queria en­tender a história, mas manda os dois para o IML colher sangue? Buscavam que informações? Naquele dia ela já tinha isso na cabeça!"

O próximo ponto debatido é o testemunho do médico-legista, como deu uma aula no plenário, desconstruindo a tese do acidente. Explica sobre o indivíduo que foi ao seu escritório e queria ser tes­temunha de que um acidente era possível. "Aí vem um médico, corre­to, digno, conta a investigação sobre asfixia, a queda, a janela, explica como Isabella foi jogada no chão. Vou tomar como verdade porque é ele quem diz. Eu não sei, mas também não sou tão burro! Aí quando ele diz que tem uma marca na nuca da Isabella..." Podval levanta a questão de não ter sido feita a coleta de material sob as unhas dos réus e um exame que comprovasse que ali não havia pele de Isabella. Continua falando sobre o médico-legista, que ele teria justificado não ser de sua res­ponsabilidade constatar isso. Imitando o jeito do médico, diz: "Não, doutor, sabe o que é, não cabe a mim, mas como eram pais, coceguinha também deixaria material genético...". Levantando a voz e de maneira mais agressiva, o advogado brada: "Não faça isso com o senhor mesmo! Um homem sério! Então tivesse feito o exame e os liberaria! Não fizeram! Tem um vazio aí!"

Podval cita novamente o testemunho da dra. Renata, dizendo como era interessante vê-la a toda hora apontar para o relatório dela, que continha conclusões técnicas, mas quando ele pedia que expli­casse essas mesmas conclusões, utilizadas para pedir a prisão dos réus, ela respondia que era necessário que se perguntasse aos técni­cos e informava que tivera uma reunião informal com eles. "O quê? Quer fazer reunião faz ata, chama, marca com a participação da Defesa! Ela aqui, tudo me indicava que este era um grande caso. Ela diz que é mais um caso. Ela ficou com eles mais de doze horas na delegacia..."

O advogado volta a se referir ao dia em que Jatobá foi levada pelo investigador até a própria casa, ironizando o que foi chamado de convite e imitando o jeito que a testemunha contou sobre essa visita: "Anna é convidada a ir à casa dela por aquele sujeito que estava aqui... Por favor... (imitando um "por favor" excessivamente delicado, como se fosse possível aquele policial ter usado um tom assim)".

Depois, nos relembra o interrogatório de Jatobá e todo seu jeito de falar: "Nós vimos aqui uma menina cuspindo as palavras, está há dois anos sem falar, porque a ordem era para não falar. Eu falo 'conta, conta'!"

Podval descreve a cena que a ré contou, ironizando o que foi descrito como "exames como aqueles feitos pelo FBI, científicos", mas que havia ali um homem de jaleco colhendo sangue enquanto todo mundo estava sentado na sala de visitas tomando café. "Olha que falta de tato, de respeito!" Passa a imitar o policial que disse não ter tomado café e completa: "Mas a delegada disse que sim! Os policiais es­tavam na casa dessa mulher ali, chamando-a de porca, que ela era suja!"

Depois passa a fazer voz de mulher, como se fosse a delegada, dizendo: '"Oh, menina, você vai ser presa, conta que foi ele, fala, diz.'

Ela, tida como louca, briga, xinga, diz: 'Eu não vi, não posso falar o que não vi'!"

Pede aos jurados que se coloquem na situação da ré e se perguntem se não se renderiam, e chama atenção para a honestidade de Jatobá, que falou bem de um policial e até o elogiou. Descreve como o pai de Alexandre ouve gritos e chutes e que chama "dois meninos", referindo-se aos advogados Rogério Neres e Ricardo Martins, que talvez não estivessem preparados para aquele turbilhão. Volta a criticar o discurso contraditório da delegada, que afirmou ser um caso comum, que não fez nada demais, mas que marcou o interrogatório policial dos réus para o dia do aniversário da menina. "Não havia a menor sensibilidade! Este caso é normal? Igual a todos? Em cima da mesa dela, a foto da menina?"

Cembranelli interrompe o debate, dizendo se sentir ofendido com as insinuações do advogado, porque participou do ato: "Não foi preparado e foi coincidência. Os advogados poderiam ter remarcado!" Podval responde que jamais imaginaria que Cembranelli fizesse uma coisa dessas, mas a autoridade policial, sim. "Foi estranho!"

O assunto passa a ser a perita Rosângela Monteiro; o tema é novamente abordado de forma jocosa pelo advogado. "Aí a gente ouve a pessoa mais esperada, mais culta, a única perita no Brasil que tem conhecimento para fazer os testes com Bluestar. Pela arrogância que tem, como se coloca, é uma sábia! Ela olhou para mim e disse 'eles não sabem'! Não me conhece e me desautoriza!"

Podval prossegue, falando sobre o reagente comprado por sua equipe. "Eu comprei o produto e como um bobo fiz o teste, como o promo­tor falou. Furei o dedinho deles (apontando para os assistentes) e fiz. Apaga a luz e brilha azul." Imitando Rosângela, prossegue: '"Eu, a única do país, sou capaz de olhar e ver que, para sangue, o brilho é diferen­te dos outros! É sangue!'"

Podval afirma acreditar que o primeiro perito de local teria feito algumas "lambanças" e que Rosângela, ao voltar de viagem, foi lá para "ajeitar" as coisas. Também questiona o fato de a inves­tigação ter ficado na 9ª Delegacia de Polícia, em vez de ser encami­nhada para o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). "Chamam-na pra ver se fecham o caso. O caso é estranho. Preci­samos fechar. Ela vem e diz que passando o produto consegue ver três gotas na entrada, mais no lençol, na grade. Eles foram honestos. Onde não viam? Onde não dava pra ver. Lembram quantas pessoas entraram? Constam de seis a oito, mas sabe-se lá? Tinham de subir na cama..."

Cembranelli interrompe: "Os policiais foram ouvidos em juízo e nunca disseram que subiram na cama!"

Podval responde que agora era a sua vez de falar, e que, mesmo que eles tivessem declarado isso, questionava a veracidade. "O que acham que aconteceu?", e descreve como seria a entrada da Polícia Militar no apartamento, sem saber se um suspeito ainda estava ali. "Em cima do que está, essas pessoas, esse movimento de pessoas, pode ter alterado as coisas? "

Depois de gerar dúvida se o local foi preservado ou não, ele começa a falar novamente sobre a perita, de como chegou às man­chas de sangue e que, depois de explicar a dinâmica dos aconteci­mentos e confrontada com a falta, na maquete, da representação das manchas de sangue das mãos de criança no batente da porta, se perde na explicação. "Minhas perguntas são simples, quase bobas porque sou leigo. Mostro as manchas de dedos na porta de Isabella, olhei onde ela apontou e disse 'aqui não tem', porque não está. Vocês se lembram o que ela respondeu? Porque é acrílico e ia estragar a maquete, ou não dava para colocar por causa do tipo de material." Podval diz que, quando chegou ao plenário nesse dia, examinou novamente a maquete e percebeu que no mesmo material, acrílico, foi, sim, colocada uma sujidade. "Então podia pôr no acrílico? Então por que não está aqui? Nos Estados Unidos ia responder processo! Olha que perigo!" O advogado continua falando sobre a ausência da mancha na maquete, mostran­do a fotografia dessas manchas para os jurados, tentando tirar a credibilidade da dinâmica reconstruída pela perita, mas correu o risco de os jurados se lembrarem de que Rosângela atribuiu essa suposta "falha" ao fato de essas manchas de sangue em particular não fazerem parte, em sua opinião, da dinâmica do crime. Aventou a possibilidade de tais marcas serem de Pietro, que poderia estar perambulando pelo apartamento.

Podval prossegue sem trégua, dando a entender que mudaram o cenário para que tudo se encaixasse. "Posso dizer que isso se compara com o trabalho nos Estados Unidos? Duas pessoas são acusadas e correm o risco de passar a vida presos e eu não posso falar do trabalho dela? Eu não tenho o que falar para vocês, vamos trabalhar com o que a Acusação traz!"

O debate da Defesa continua, questionando ponto a ponto a prova pericial, como o fato de não haver sangue nem em uma boa parte do corredor, nem no trajeto do carro até o apartamento. "Eu juro que fiquei meio confuso, eles disseram que começou no veículo, então não tem uma única gota de sangue (no caminho)!" E passa a atacar o resultado do exame da cadeirinha de bebê instalada no carro do casal, onde seriam necessários quinze pontos de ligação (loci) para que se comprovasse o perfil genético e só foram encontrados oito. "Eu pergunto: tem quinze? Não, tem oito, mas nos Estados Unidos enten­dem que isso é suficiente. Na verdade poderia ser de qualquer um da famí­lia. Ela (a perita) é muito detalhista e você acompanha tudo, mas menos em certa hora..."

Podval, então, passa a levantar dúvidas sobre as manchas na fralda, dizendo que poderiam ser sangue de carne ou frango, e que questionou a perita sobre como sabia se tratar de sangue humano, e imita a sua resposta: "'É que eu usei um produto que vem junto com o Bluestar'". Explica para os jurados que foi procurar o produto na relação de compras do Instituto de Criminalística e nos laudos, mas não encontrou. "O Estado não compra, ela compra do bolso dela!"

Cembranelli interrompe novamente, esclarecendo que Rosângela explicou tudo isso em seu depoimento em Juízo, um mês e meio depois, na frente de três advogados de Defesa. Podval dá de ombros e diz: "Então vamos considerar que ela usou!"

A argumentação passa agora a ser quanto à animação gráfica da dinâmica feita pela perícia, afirmando que ali está claro que a vítima é ferida na testa com uma chave. O promotor aparteia mais uma vez, para explicar que não falam em chave, mas em instrumen­to rombóide, que pode até ser um anel, mas Podval ignora e pros­segue: "Aí a chave estava com a delegada. Havia a possibilidade, poderia ter sido. Eu digo, olha, se você pega a chave e leva na perícia e sabe se tem sangue, pele, chegaria nos dois. Mas por que não foi feito o exame da unha, da chave... E a gente pergunta para a perita, que fala que pode fazer dez anos depois... Então até hoje pode fazer o exame na chave. Isso poderia excluí-los e não foi feito!"

Podval passa a falar da chave perdida por Jatobá e comprova a veracidade do ocorrido com o depoimento, que lê, da decoradora Márcia Regina Alves Ferreira, confirmando a história. "Ela mentiu? Tava aqui! Era verdade mesmo. A delegada viu que a chave havia sido perdida!" Cembranelli argumenta: "Nos primeiros dois depoimentos (da ré) ela não falou da chave, e eu fiz essa pergunta, e só aí surge essa decora­dora. A delegada não pode ser criticada por não investigar o que não sabia, o que a ré não contou!" Podval, alterado, responde: "Pagaram a mulher, é isso que está falando? Mas ela foi à polícia e confirmou! Ela — apontan­do para Jatobá — ficou aqui ontem respondendo durante seis horas, vocês viram como ela estava? Se eu perguntar se ela esqueceu algo ela vai dizer que sim, porque estava muito aflita!" O advogado reafirma a idéia de que, para a delegada, não tinha significado investigar qualquer outra coisa, porque já sabia quem eram os autores.

Podval passa a contar para os jurados que quando entrou no caso foi até o Instituto de Criminalística para averiguar todas as apreensões. De forma irônica, diz que a perita o fez ficar 1,5m dis­tante da mesa, a fim de que não contaminasse nada. Os lacres foram retirados um a um. Segundo o advogado, a confusão geral: "quebra o lacre, abre o saco, fotografa", enquanto alguém anotava os números de cada um dos lacres. Quando foi pegar essa lista para fazer uma retrospectiva, percebeu que os números não tinham nenhuma se­qüência, que era uma bagunça. "Num dos sacos onde estava a tela de proteção foi encontrado um fio de cabelo. A tendência é pegar esse fio, que pode ser dela ou dele, ou de alguém que não é da família, e examinar. Nin­guém se preocupou se era de um desconhecido. Já pensou que loucura? Não foi feito! E aí eu sou o maluco, porque estou questionando a 'gênia', que é a única que faz exame com Bluestar. Olha o perigo! Vamos imaginar que, por acaso, se ela não acertar..." Podval passa a ironizar o fato de, mes­mo depois de constatar o sangue humano com Hexagon, Rosângela ainda o enviava para os testes de rotina do laboratório, que por di­versas vezes não pôde confirmar o mesmo resultado pelo fato de o reagente ser mais eficiente. "Eu só não sei se nos Estados Unidos pode­riam ter as conclusões desse caso, porque certeza aqui não tem!"

Podval agora passa a rebater a linha do tempo apresentada pelo promotor. Sugere interromper o julgamento e ir até o edifício con­ferir a cronometragem do tempo do elevador. "Eu aposto que não vai bater com o que está marcado! Gente, isso não é filmei Mentaliza, gente! Sabe-se lá como pegaram aqueles tempos. Dá pra achar que isso é preciso? O dr. Cembranelli diz: 'Vamos falar dos fatos'. Eu só falei dos fatos que tirei das testemunhas dele!"

O advogado explica que só há dois fatos na linha do tempo: o horário da chegada, porque há o rastreador no carro, e a hora da queda, porque o sr. Lúcio reconhece o morador do 6º andar. Para ele, é o único espaço real, a parada do carro e a queda. "A Anna, no depoimento da polícia, dá uma informação que ninguém tem, a picape, surge uma informação que ninguém tinha, nem Alexandre. Anna descreve dois barulhos (carro chegando e saindo)." Podval passa a ler o depoi­mento de Rogério Stanco, dono da caminhonete, em que declara que realmente entrou com a sua caminhonete, como sempre faz; sua esposa desceu do carro, ele retirou seu Fiat Uno da vaga que ocupa­va, parou a caminhonete e levou o outro carro para estacionar na rua. "Provavelmente foi nesse intervalo que Alexandre chega e sobe. Aí está a maior prova que ela estava lá embaixo!"

Cembranelli sorri e confronta: "Nessa hora o doutor quer bater o tempo, mas nem assim bate! O cara entrou às 23h30 e o Alexandre nem tinha chegado ainda! O rastreador marca a chegada dele em 23h36, uma diferença de seis minutos!"

Podval parece ter se confundido a respeito da diferença de tempo, mas prossegue argumentando: "Mas como chegaram nele? Porque ela fala. Quando apertaram, ela ficou lá pensando até se lembrar e provou que ele estava lá".

O advogado fica ali de pé, conjecturando se seria possível o casal fazer o que disse ter feito nesses treze minutos. Acha que ele próprio conseguiria. Também diz que é possível ter sido uma pessoa de dentro do prédio, ou de fora, não pode afirmar que essa pessoa existe, nem que não existe. "Aí vem a vizinha, não me parece que está mentindo", diz, referindo-se a Geralda, citada pela dra. Renata Pon­tes e que teria escutado a voz de uma criança falando "Pára, pai", com interpretação diferente dos outros. "Dois outros vizinhos ouviram o pedido para o pai parar... Pode ser que ouviu depois? É, acho que ela não teria inventado, não tem por quê. Antônio Lúcio ouviu o 'Pára, pai'. A impressão que dava é que a criança estava pedindo para o pai parar. A outra vizinha acha que chamava o pai. Eu não tenho como saber, porque Isabella estava asfixiada, então quem gritou?" A conclusão é que só poderia ter sido o irmão, Pietro. "Imagino meu filho de quatro anos vendo isso. Não tem sentido, porque, se a história fosse essa, ele falaria, é possível imaginar que ele não falaria?"

Nessa hora senti uma grande tristeza, porque é, sim, possível imaginar que não falaria, ou que, ao falar, tenha sido "calado". Não pude deixar de me lembrar que, no início deste processo, muito se discutiu sobre ouvir o menino em Juízo ou não. Cembranelli optou por não fazê-lo passar por isso. Achava que tinha provas suficientes para condenar o casal, sem criar um trauma ainda maior na criança, se é que era possível. Mesmo com as mais avançadas técnicas de­senvolvidas atualmente para ouvir o testemunho de crianças, denominadas Depoimento sem Dano, ainda se discute o efeito dessa conduta. Além do mais, caso a criança relatasse algo que havia pre­senciado e isso resultasse em condenação, teria de conviver o res­tante da vida com o sentimento de culpa de ter condenado os pró­prios pais, apesar de ainda não entender as conseqüências de seus atos. E pude imaginar mais um motivo para Pietro não contar nada, mesmo que em sua fantasia: o medo de acontecer com ele mesmo o que aconteceu à irmã.

Podval prossegue seu debate, nos lembrando agora o depoimento da vizinha que escutou o barulho da porta de incêndio ba­tendo. Lê o depoimento para os jurados, e emenda: "Esse é o panora­ma, não consigo afirmar nada de ninguém. Há quem não ouviu isso ou aquilo. Dá para afirmar? Afirmar isso ou aquilo?" Cembranelli inter­rompe: "O senhor está sugerindo que o barulho da porta é do 'terceiro' fugindo do décimo andar? Para o térreo não foi, então subiu?" O advoga­do responde com várias possibilidades, como sempre. "Pode ser que a porta tenha batido, pode ser que alguém tenha fugido, pode ser que alguém tenha ido jogar o lixo, o que realmente foi eu não sei." E deixa no ar a questão da incerteza quanto aos fatos.

Podval argumenta que tem uma história estranha, que não fecha, mas que a do promotor também não fecha. Questiona qual teria sido a motivação do crime. "Por vingança, por dinheiro, por drogas, por conta da relação familiar conturbada com fatos que não valem a pena serem trazidos. Alguém mata alguém com razão, que razão? Ciúme! Ela morria de ciúme!", diz sarcasticamente. E passa a se referir ao depoimento de Ana Carolina de Oliveira, quando respondeu para Jatobá que não ficava com Alexandre porque não queria, e que tinha esperado no carro, em vigília, para saber se estava sendo traída. "Só ela tinha ciúme?", disse, apontando para a ré. "Mas a mãe soube que um dia ela jogou o bebê na cama. Como soube? A dona Cida falou para a mãe dela, que falou para ela. Dá para afirmar?" A Defesa reclama dos depoimentos indiretos, nos quais as interpretações são subjetivas, as palavras podem ser tiradas do contexto, plantando desconfiança no diz que diz.

Podval começa a descrever a sorte de Jatobá naquele júri, em que foi chamada de porca depois que a perícia virou o lixo da casa dela. "Aí fala que é deprimida. É verdade? Que não consegue dormir por­que o filho chorava muito. Daí a asfixiar a menina? O que fizeram com ela ontem foi maldade, crueldade. Trouxeram um discurso, ações de outra vara, para dizer que ela é a megera, uma louca ciumenta? E ele é um crápula, este casal é de crápulas, de assassinos? E eu sou bobo, não estudei nada, e eu digo: A PERÍCIA NÃO CHEGOU NA AUTORIA, PRESUME QUE FOI ELA! Por que foi ela e não ele? Pode ser uma terceira pessoa? Pode o fio de cabelo? Tem sentido? Tem sentido serem eles? NÃO TEM! Como não sabem o que é, é isso! Pobre da nossa sociedade!", exclamou Podval com tom de voz contundente.

O advogado passa a contar aos jurados o caso ocorrido em Portugal, quando uma criança de nome Madeleine McCann desa­pareceu de um quarto de hotel enquanto os pais jantavam no res­taurante. Faz um paralelo, porque os pais foram acusados em Portugal, mas a polícia da Inglaterra, país de residência do casal, não acatou a tese por não haver provas suficientes. Diz que nós, brasileiros, permitimos que sejam acusadas pessoas sem provas suficientes. Aponta para os réus e diz: "Hoje é com eles, amanhã sere­mos nós".

Podval diz que não pode encerrar o debate sem fazer uma referência ao penúltimo dia de vida da vítima, e que vai fazê-lo usan­do o depoimento da própria mãe de Isabella. Explica a incoerência de se afirmar que Jatobá não se relaciona bem com Ana Carolina, mas que nesse dia vai lá buscar as crianças e todos brincam juntos. Passa a descrever Jatobá como uma boa moça, que fazia tudo para agradar Isabella, levou-a para a piscina, foi buscar sua amiguinha, levou as duas para conhecer a escola da enteada. "Com a filha da outra, que vem aqui acusá-la de assassina! Foi isso que a gente viu aqui? Eu li os autos, doutor" diz a Cembranelli, "eu estudei." Continua des­crevendo o dia do casal com Isabella, todos os momentos bons que passaram juntos. "No dia seguinte, essa barbárie. Isso fecha para alguém? E o pai é o grande vilão?" Diz que a imprensa destruiu a vida de todos eles, e que não faria referência às brigas familiares porque respeita­va todos, mas achava que "colocaram um anjinho no meio de três famí­lias e ela tocou cada um. Talvez ela mude a vida de todos eles... E eles são monstros? Fez uma conta que não fecha o tempo? Mentirosos?"

O advogado de Defesa informa que havia arrolado como teste­munhas os advogados que foram contratados anteriormente pelo casal, mas eles corriam tantos riscos pelas ameaças que estavam recebendo que Podval desistiu. Fazendo referência ao mundo peri­goso em que vivemos, acrescentou: "E o London é seguro? Pelo amor de Deus!"

Cembranelli interrompe e diz: "Todos os vizinhos afirmam que o portão estava fechado! Seria um absurdo se fosse diferente! Não é verdade!" Podval devolve: "Sou mentiroso!", e pega o volume do processo onde consta o depoimento da decoradora, que disse entrar no edifício sem ser anunciada, para ser lido em plenário. O promotor pede que ele fale quem é o advogado que acompanha a decoradora. "O dr. Ricar­do!", responde. Cembranelli fala em tom cortante: "Advogado dos

Nardoni! Levaram ele lá para falarem o que queriam, e a dra. Rosângela é que não presta!"

Podval passa a ler o que a decoradora falou sobre a fragilidade da segurança do edifício para barrar a entrada de estranhos no local. Depois fala do depoimento de Rogério Pagnan, que entrevista o pedreiro Gabriel e publica uma matéria em que afirma que uma obra ao lado do local foi arrombada. "E possível? Não tem prova. Dá pra saber quem fez, quem não fez? Os profissionais que estiveram aqui não fizeram o trabalho como deveriam. Agora, com o histórico deles (dos réus) eu vou presumir? Com isso não dá! É uma decisão difícil. Eles entraram aqui condenados. Dá pra mudar? Não tenho nada, nenhuma novidade. Dá pra mudar em cinco dias de júri?"

O advogado lê a reportagem de Pagnan para a Folha de S.Paulo e o relato da Polícia Militar afirmando que ele não havia entrado naquela obra. "Eu não tenho como presumir e colocar este casal na cadeia por mais de trinta anos. Sugeriram acordos para ele", disse, apontando para Alexandre. "Ele falou 'não'!"

Cembranelli lança um olhar fulminante; a temperatura em plenário começa a subir.

"Eu estava lá, não falei nada, mas participei? Isso é uma canalhice", gritou o promotor, indignado e exasperado. "Os advogados sabem que isso não aconteceu! O réu é bacharel e não sabe que delegado não tipifica? Não participei, nem por omissão!" Podval pede que se leia o depoimen­to de Alexandre do dia anterior, em que ele não acusou o promotor, mas Cembranelli continua: "Reafirmo o que disse, uma canalhice sem precedentes! Aí vem o réu, que não presta compromisso com coisa alguma... CANALHICE!". O juiz coloca um ponto final na fala do promotor, dizendo: "Já falou, doutor!"

Podval, meio desolado, diz que não tem muito mais o que falar e o que esperar, a não ser aguardar que façam da maneira mais cor­reta e apropriada. Termina a explanação com a frase de Chico Xavier: "Ninguém pode voltar atrás para um novo começo, mas podemos fazer um novo fim".

Muito emocionado, olha para os jurados e diz: "Eu saio daqui mais leve e vocês também, qualquer que seja a decisão".

 

                         RÉPLICA

Já são quase seis da tarde quando Francisco Cembranelli come­ça a fazer a sua réplica. E é exatamente o que vai continuar fazendo nas próximas duas horas: replicar, rebater cada argumento da De­fesa do Caso Isabella.

Os debates, no júri, são o ponto alto, e réplica e tréplica funcio­nam não apenas como contra-argumentação, mas também como um fechamento de idéias. O discurso pode ser perfeito, mas resumi-lo para que o jurado fique com os argumentos na memória é funda­mental e imprescindível. É o que ficará para a decisão de cada um daqueles que foram convocados pelo Estado para compor o conse­lho de sentença.

E a hora da derradeira manifestação da Acusação; por último fala a Defesa. E necessário que cada um reforce seus argumentos, que devem ser convincentes, contundentes, decisores.

As pessoas da platéia se ajeitam nas cadeiras. O último round vai começar. Imagino o estado emocional dos protagonistas que irão se enfrentar. A Acusação leva o peso de tornar real um resultado anunciado. Precisa dar ao jurado consistência para que dê seu voto com isenção. Nesse rumoroso caso, em que tantas vezes foi dito que "o voto já estava pronto", a responsabilidade do promotor é a de colocar prova sobre prova, para que não haja dúvida sobre o resul­tado final do trabalho.

Cembranelli se levanta. Sua expressão é de pura concentração. Sabe que nesse momento não se pode errar, o que é dito fica dito. O jurado está atento não só às palavras, mas também à linguagem corporal, à movimentação em plenário, aos olhares, às farpas troca­das. Está no chamado "estado de júri". Apoiado na bancada dos jurados e olhando em seus olhos, Cembranelli inicia quase se des­culpando: "É uma ousadia extrema pedir um pouco mais de paciência aos senhores, depois de cinco dias", mas explica que fatos muito importan­tes ainda não foram apresentados.

Seu tom de voz agora é mais alto e agressivo. Exclama que Podval já achou os culpados pela situação que se apresenta ali, e aponta para as duas primeiras fileiras da platéia, onde estão sentados os jornalistas. "A imprensa é a culpada! Ninguém inventou provas, os jornalistas apenas reproduziram as provas. É nos tratar como limitados psicologicamente, como se as pessoas não tivessem discernimento e a mídia o fizesse à revelia do processo!"

Cembranelli então questiona se também haviam tirado o discernimento dos Tribunais, recheados com habeas corpus feitos pela Defesa, onde mérito e provas foram examinados. "Como se nós tivés­semos criado a prisão preventiva do nada! Teríamos de acreditar que a so­ciedade foi enganada pela mídia, e os Tribunais, também. O único detentor da verdade é o dr. Podval!"

Cita Rui Barbosa: "Um dia, um homem de bem, de tanto ver a injustiça triunfar, vai ter vergonha de ser de bem", e disse que a Acusação de que teria arrastado ao Tribunal dois inocentes é extre­mamente ofensiva, que ser o alvo principal naqueles dois anos de processo era estafante, e ali, no último ato, houve a sugestão de que teria participado de acordo para confissão do réu nas dependências policiais. Explica a todos que qualquer estudante de Direito sabe que não é o delegado quem classifica a infração penal, e desafia os advogados anteriores do casal, dizendo que deveriam ter a coragem de vir ali desmentir essa afirmação. Diz que se tivessem presenciado o que o réu havia contado, teriam denunciado imediatamente para toda a imprensa que acompanhava o caso. "Então, há dois anos, em 18 de abril de 2008, este promotor estava participando de uma negociação escusa. Eu fui alvo de calúnias, assim como os policiais o foram, e os peri­tos também!"

Cembranelli fala sobre a asfixia da vítima. Relembra quantas vezes ouviu-se sobre a asfixia mecânica. "Como se os legistas, bisonha­mente, tivessem se equivocado. Agora, até o advogado com seus quinze colegas de tribuna admite a asfixia!"

Indignado, o promotor disse que era muito fácil vir em plenário ridicularizar o dr. Tieppo pelo exame das unhas, mas pondera que Isabella tinha cabelos longos, o que suavizou as marcas em seu pes­coço, dificultando o diagnóstico dos médicos-legistas sobre a exatidão da ocorrência de esganadura. Quando da conclusão, três semanas depois, já não era possível colher material. "Quando faz é criticado e quando não faz também. Os advogados deveriam orientar o IML!"

Sobre os aspectos que faltavam nos laudos, com desdém, o promotor faz referência à ausência da "manchinha do acrílico" da maquete. "Tem importância? O dr. Podval quer desmoralizar porque não tem a manchinha de sangue no acrílico? Está tudo fotografado, apenas não faz parte da dinâmica!"

Passa então a explicar novamente a questão do pedreiro Gabriel, que não estava na obra no dia dos fatos e da ação dos policiais nos fundos do edifício, o que só provava que procuraram, sim, por um terceiro suspeito.

Depois o promotor passou a comentar sobre o "barulho da porta de incêndio" que teria batido no décimo primeiro andar do Edifício London. "Esta sugestão é terrível! Chovia e ventava naquele dia. Esse vento poderia ter batido qualquer portal Mas o defensor insiste! O ladrão teria fugido para cima!"

O próximo ponto a ser rebatido é a questão do fio de cabelo, parecido com o de Isabella. "Poderia vir voando, esse exame não levaria a conseqüência alguma, não provaria nada. A Defesa deveria ter feito re­querimento, se achasse relevante. Calou-se, e hoje traz isso (o fio de cabe­lo), que fica boiando no plenário, para que os senhores pensem que este caso de 32 volumes e mais de 5.770 páginas poderia ser resolvido com um fio de cabelo!"

Mais uma argumentação da Defesa estava para ser derrubada, aquela que se referia à picape barulhenta que fez o casal ficar espe­rando na garagem. "Vejam como ela está falando a verdade!", bradou o promotor. "Podem ter entrado na garagem juntos, isto não importa, não prova nada", e explica detalhadamente o depoimento do proprietário do veículo, que diz ter feito manobra rápida e rotineira, sem barulho algum.

A seguir, Cembranelli explica a preservação do local, rebatendo o argumento da Defesa de que oito policiais teriam entrado no apar­tamento, prejudicando as provas. "A Defesa sugere que pisaram em tudo, mas não existe nenhuma mancha pisada." Faz referência ao depoi­mento do perito Luiz Eduardo de Carvalho Dorea sobre a configu­ração das manchas de sangue e completa que a afirmação "entrou um batalhão" é "estapafúrdia", não existe no processo. "Nós não temos a gravação da cena, não temos testemunha do crime. A lei no Brasil não exige que o perito descreva milimetricamente o local."

Cembranelli passa rapidamente por outros pontos, como a falta de relevância em saber se a menina foi machucada com chave ou anel, uma vez que se sabia ser objeto rombóide, e o depoimento da sra. Geralda, que interpreta a frase "Para, papai". "Nem vou per­der tempo lendo isso. Ela acaba imaginando coisas."

O promotor explica aos jurados como a Defesa vai trabalhar, sugerindo coisas e incutindo dúvidas, pois se assim for os réus serão absolvidos em cinco dias, ignorando o conjunto probatório apresentado.

O telão se acende e é mostrada uma fotografia do quarto dos filhos do casal. Com sarcasmo, repete a versão dada por Alexandre e Jatobá, que teria entrado no quarto, retirara os brinquedos de cima da cama, guardara-os na caixa, colocara um abajur sobre a cômoda... "Mas está todo bagunçado! Vejam como o edredom foi esticado! A perícia fotografou exatamente como encontrou!" De fato existem muitos objetos em cima da primeira cama e o edredom está completamente embo­lado ao pé da segunda.

Agora entra na tela a projeção de uma das provas mais importantes da Acusação: a fotografia do quarto de Isabella tal qual foi encontrado no dia do crime, que fala por si só. Ela destrói a versão dos fatos que o pai da vítima apresentou, desnudando uma das primeiras mentiras do processo. "Vejam se isso é cama em que se colo­que uma menina para dormir!", e descreve o que se vê. A janela está aberta, mas Alexandre diz que a fechou. Mas Isabella não foi atirada dali, portanto quem teria aberto e para quê? O travesseiro está fora da cama, em cima de um baú, enquanto em seu lugar há um rolo decorativo. Há uma boneca na parte superior da cama e outra nos pés. O mais impressionante: uma folha de papel desenhada aberta no meio do móvel, sobre a colcha que está esticada. A impressão nítida é de que a menina teria desenhado ali sábado à tarde e dei­xado ali sua arte. "Onde está o que o réu disse que fez? Essa cama nunca foi utilizada naquele dia!" Uma imagem pode valer mais do que mil palavras. O promotor segue contrapondo a versão do réu ao que se vê ali, mostrando que a dinâmica apresentada não poderia acontecer. Se a menina estivesse na cama e acordasse de repente, não teria por onde sair sem derrubar uma boneca, e do outro lado estava a pare­de: "Isso prova que ela não foi colocada na cama! Ainda que fosse um pai ausente, veria a situação do quarto!"

As fotografias seguintes mostram aos jurados como foi encontrado o apartamento naquele dia: "Cama do casal revirada! Banheiro com lixo revirado! O quarto das crianças usado da noite anterior! Na sala, vários objetos, até mesa de passar roupa! A cozinha revirada e com gordura. A lavanderia em completa desordem! Ela mesma disse que não havia arrumado a casa! Ela confirma! As camas ficaram do jeito que deixaram!"

O que a perita fez, segundo a Acusação, foi uma análise de comportamento a partir da cena do crime para compará-la à versão dos suspeitos e verificar se era possível ser inserida a dinâmica apresentada: "Se o Criminal Minds (seriado de tevê norte-americano) faz é sensacional, se a nossa perita faz é ridicularizada!"

Cembranelli prossegue, explicando aos jurados que nunca disse que o crime foi premeditado, e que 75% dos crimes não o são. Em geral, os que ocupam a cadeira dos réus saem para beber e co­metem delitos ocasionais, não são bandidos, mas sob pressão podem praticar crimes, são criminosos fortuitos. Exemplifica, dizendo que Jatobá nunca planejou jogar o bebê no berço por causa de um tele­fonema da mãe de Isabella, ou ter brigas de grandes proporções. "Ela não planejou se auto-ferir. Estava em meio a um desentendimento e não freou o comportamento!" E continua, descrevendo o instável relacionamento do casal, dizendo que Jatobá sabia da semelhança de Isabella e a rival, que as diversas brigas estão no processo e que Ana Carolina de Oliveira era quem mais conhecia essas pessoas, pois as avós mantinham comunicação estreita. "A análise do comportamento emocional de um e de outro explica. São criminosos ocasionais!" O pro­motor cita Pimenta Neves como criminoso ocasional. Também for­nece a estatística norte-americana segundo a qual mais de 90% das agressões contra crianças são de autoria de pessoas da família.

Cembranelli faz referência ao depoimento do vizinho Paulo César Colombo, que ouvia, de sua casa, Jatobá sempre chamar Ana Carolina Oliveira de "vagabunda" e outros xingamentos. "Fica fácil vir aqui e desenhar coraçãozinho na parede do boxe!"

O promotor passa a traçar o perfil de Anna Carolina Jatobá, que foi alvo de violência desde a adolescência, chegou a fazer dois bo­letins de ocorrência contra o pai, era uma escrava em casa, não tinha empregada, lavava, passava, arrumava e cozinhava, além de cuidar de duas crianças. Ele descreve o estresse diário ao qual a ré era sub­metida, como está deprimida após o nascimento do segundo filho, e completa: "Ela era um barril de pólvora que vivia explodindo! Poderia tranquilamente explodir contra Isabella!" Em contraponto, descreve a vida de Ana Carolina Oliveira, refazendo a vida, com independên­cia financeira e emocional, tendo Isabella como um anjo, amada pela família. "Isabella era a cópia em miniatura de Carol Oliveira!"

Cembranelli continua: "Não me venha com essa história de feliz e madura depois de Pietro nascer. Em um mês que morava no London, todos já conheciam sua voz! As brigas de fim de semana tinham um único motivo: o ciúme doentio que tinha da mãe de Isabella jogou sua fúria sobre a menina! Aí fica simples criticar a imprensa... Os senhores seriam o braço forte da vingança. Esse processo foi milimetricamente construído..." Podval inter­rompe, dizendo que ao falar isso se referiu ao trabalho de Cembranelli. Este segue sem responder: "Eu estava pronto para fazer este julgamento no final de 2008. Se algum dos inúmeros habeas corpus fosse acolhido e os réus fossem soltos, este julgamento aconteceria no final de 20161 Para cair no esquecimento! Foram recursos e mais recursos, todos negados por una­nimidade!". Mais uma vez o promotor analisa o perfil psicológico de Jatobá, descrevendo como jogava o bebê na cama, quebrava vidraça, e ironiza a declaração feita pelo advogado em que a ré levava a me­nina para tomar sorvete com a amiga, dizendo que Isabella represen­tava a própria Ana Carolina Oliveira, e que o taxista que depôs esta­va sob proteção até agora. Refere-se ao laudo pericial, observando que a prova construída neste processo atualmente é referência para todos os institutos de criminalística do Brasil, apesar de a Defesa ter "importado" profissionais para desqualificar os peritos e legistas.

"Aqui pode desconstruir as provas, mas mostrar as agressões não pode? O contrário não pode. Desqualificar o dr. Calixto, a delegada, o promotor. Ainda tive que ouvir isso hoje!" E volta a reafirmar que a motivação do crime, para Jatobá, seria o ciúme, usando o depoimento do mesmo vizinho de parede para mostrar que Isabella já tinha sua própria personalidade, como quando confundiram Jatobá com sua mãe e a menina respondeu: "Ela não é minha mãe!"

"Não vamos negar o óbvio, jurados! Uma menina de cinco anos de idade que ouve a mãe ser chamada de vagabunda todo dia? Não me venha a Defesa aqui mostrar que são pessoas simplórias! A ré era estressada, um barril de pólvora!"

Cembranelli começa a mostrar, com rapidez e precisão, tudo aquilo que considera "as mentiras dos réus". Inicia pela tentativa de incriminar Valdomiro, porteiro negro e pobre. Passa para a tese impossível, a do acidente. Quem teria devolvido a tesoura em cima da pia? Aponta para o fato de Isabella não ter a altura necessária para cortar a tela da maneira como foi encontrada. Explica sobre as gotas de sangue e a altura de que caíram, fala sobre o vômito na camiseta da menina, causado por asfixia, atenta para o fato de a menina não estar onde o pai disse que estava, destrói a possibilida­de de o autor do crime ser uma terceira pessoa, elenca tantas coisas que é quase impossível anotar tudo, mas a sensação de que as in­congruências entre a versão dos réus e a realidade não acabariam nunca de serem ditas por ele permanece forte, implacável. Diz que teria mais oito ou dez páginas de contradições para comentar, mas o tempo é insuficiente para tantas mentiras. "A dinâmica (de violên­cia) do Brasil, para a Defesa, é mais plausível que a do Instituto de Crimi­nalística de São Paulo!"

A Acusação não deixa de colocar para os jurados: "Não existe possibilidade de absolver um e condenar o outro. É uma única interpreta­ção do conjunto de provas para os dois. Ou ela vale para ambos os réus ou não vale para nenhum deles! Não existe meia prova válida, para condenar um, e meia prova inválida para absolver o outro acusado. São dois conde­nados ou dois absolvidos. Não existe uma terceira possibilidade!"

Aparece então no telão uma nova linha do tempo, dessa vez mais enxuta. A cada horário e ação descrita, Cembranelli repete em alto e bom som: "Fato! Fato! Fato!" A Defesa parece rir dessa demons­tração, como se soubesse algo novo, mas logo se aquieta quando aparece o último horário, o da morte da menina, que aguardou a mãe chegar a seu lado para dar o último suspiro, apesar de tão feri­da. Abaixo dele, uma singela foto da mãe e da filha num gesto de amor, encostando suas bocas num último adeus. A fotografia fica ali, pairando sobre a consciência de todos, enquanto o promotor explica rapidamente os quesitos para os jurados. É encerrada a ré­plica de forma dramática, triste.

 

                         TRÉPLICA

São mais de oito horas da noite. Todos exaustos, tantos argumentos expostos, e o advogado Roberto Podval com a responsabi­lidade de finalizar os trabalhos, de reverter o que ele mesmo dizia ser um resultado anunciado: a condenação do casal Nardoni pelo assassinato de Isabella. Exigiria um dom "além da imaginação" recriar o fato, e certamente seria improdutivo escolher agora um discurso lógico para contrapor cada prova. O que ele tinha em mãos eram as dúvidas que poderia levantar, uma vez que um advogado criminalista não tem como ônus a prova da inocência. Cabe a ele esclarecer aos jurados que não se pode condenar sem certeza abso­luta da culpa. O direito constitucional da presunção de inocência é um baluarte da democracia e o conceito "in dúbio pro reo", ou seja, na dúvida deve-se beneficiar o réu, seria o grande argumento, afinal. Como disse Voltaire: "É melhor correr o risco de salvar um homem culpado a condenar um inocente".

Podval assumiu este caso em abril de 2009, mais de um ano após o crime. Causa impopular, considerada por muitos como "já resolvida" pela "grande massa", ele seguiu as sábias palavras de Waldir Troncoso Peres: "O advogado deve acreditar no que faz e ir vara o júri com a convicção de que o homem necessita de Defesa, porque o valor supremo, do qual todos os outros dependem, é a liberdade". Durante os trabalhos em plenário, chegou a se referir sobre como foi procurado por um pai desesperado, que havia contatado vários advogados sem sucesso; nenhum aceitou defender a causa de seu filho e nora por razões variadas e que não foram expostas.

Levanta-se para fazer a sua tréplica como quem carrega o mun­do nas costas. A platéia percebeu, durante todo o júri, que Podval de fato tinha dúvidas, acreditava em seus clientes, balançava a ca­beça constantemente, como se nenhuma resposta lhe trouxesse a certeza absoluta de que os réus não mereciam o benefício da dúvida. Trouxe dignidade a uma Defesa anteriormente tantas vezes critica­da e ridicularizada, procurou esclarecimentos, lutou bravamente sem julgar o crime, pelo direito ao direito de defesa.

Roberto Podval inicia sua fala questionando se a avaliação psicológica que foi feita do casal durante os debates seria a prova de que são culpados, de que Jatobá esganou, asfixiando, e Alexandre atirou Isabella pela janela. Contrariando o que disse o promotor, afirma não ter ridicularizado ou maltratado ninguém, mas que não acredita nessa prova. Lê para os jurados o parecer médico-legal 053/2008, elaborado pelos três médicos-legistas do IML, em que explicam a evolução gradual da violência. "A criança que chega a óbito ou é vítima de uma lesão muito grave decorrente de práticas de maus-tratos dentro do ambiente doméstico, quase sem exceção, já vinha sofrendo agressões anteriores de porte mais leve, que, entretanto, foram evoluindo para uma intensidade mais severa." E esclarece que este é um histórico de pai e madrasta que batiam na criança e um dia a mataram, questionando: "Aqui não havia nenhum histórico de violência! Ela brigava, xingava, dizia que 'para incomodar ele eu grito'!" Informa que vários familiares e conhecidos foram trazidos em juízo para falar sobre o bom histórico dos dois e passa a citar uma lista de vizinhos que nunca viram qualquer atitude violenta do casal em relação aos filhos, como o do próprio Paulo César Colom­bo, quando disse que "Isabella costumava passar os finais de sema­na na casa do pai Alexandre, com a madrasta Anna Carolina e os dois 'meios-irmãos'; que nunca viu Alexandre maltratar Isabella; que nunca viu Anna Carolina maltratar Isabella; que nunca presen­ciou o casal Alexandre e Anna Carolina a bater nos filhos". Também cita o depoimento do vizinho Alexandre de Lucca, segundo o qual "nunca presenciou agressões de Anna Carolina para com os filhos e nem mesmo para com a menina e nem mesmo gritos desta com as crianças", e outros com o mesmo teor.

Em seguida, narra a situação caótica no térreo do Edifício London, na hora da queda, por meio do depoimento do policial militar Jovenaldo, que descreveu: "Havia várias pessoas transtor­nadas e desesperadas no local" e que "pessoas queriam tentar aproximar-se do corpo e a preocupação do depoente era afastar as pessoas do local, determinando que esperassem a chegada da Uni­dade de Resgate". "Qual a situação? Ela disse que nem conseguia se lembrar o telefone do pai para avisar!" E questiona o depoimento da perita Rosângela Monteiro, sobre Jatobá ter falado ao telefone sem fio ao mesmo tempo em que limpava as manchas de sangue. "Eu não ouvi falar das duas crianças! A mãe ao telefone, limpando o chão, e as crianças? Elas não aparecem durante a animação gráfica porque eles não sabem onde elas estavam!"

Podval argumenta que a agressividade relatada nas brigas de casal ou com as crianças não tem registro em lugar algum, apenas são contados por Ana Carolina Oliveira, que ouviu de Rosa, que ouviu de Cida... "Nenhum vizinho falou isso, não há nos autos nenhuma afirmação de agressão."

Depois, chama a atenção para a frase imputada a Alexandre, que ensinaria a filha a beliscar de volta quando fosse beliscada, mas ressalta: "Não é assim que se educa, mas daí a 'tirar' que a mataram?". Destaca ainda o depoimento da vizinha do apartamento 71, um andar acima do local e do lado oposto, que diz "que naquela noite não ouviu choro ou gritos de criança e nem discussões".

Podval passa então a falar novamente sobre falta do exame de existência de material genético de Isabella sob as unhas dos réus. "isso desmoraliza toda a perícia? Não, isso absolveria um, ou outro, ou os dois! O exame não foi feito — erraram! Foi uma loucura, este caso se trans­formar em um monstro, o grande Caso Isabella! Aí chega aqui, faz uma análise comportamental, daí ela matou uma criança e ele jogou pela janela? Esse é o julgamento do século? A prova é essa? Acho muito perigoso! Gen­te, pelo amor de Deus, olhem para sua família, alguém pode te pôr na cadeia porque seu comportamento é mais ou menos agressivo? O que vimos aqui? Monstros? Não. Vimos o cotidiano do Brasil: uma família que briga, grita, fala alto, nada de diferente do dia a dia de todos nós. A vida tão conturbada quanto a de tantos e tantos brasileiros..."

A Defesa passa a explicar suas dúvidas quanto aos testes efetuados com a tela de proteção, colocando em xeque a declaração da perita que se jogasse a boneca, na reprodução simulada, por quin­ze vezes, teria quinze resultados diferentes de queda. Põe também em dúvida o tamanho do buraco na tela e as marcas da camiseta, alegando que nunca tiraram as medidas de Alexandre para que o exame fosse feito; usaram proporção aleatória. "E esse vai ser o exa­me responsável por levar alguém para a prisão sabe-se lá por quanto tempo? Aí ela olha e diz 'Nunca vi ele, mas olhando agora...' Isso não é sério! Me assusta! Vai comparar com os Estados Unidos! Um teste feito em cima de uma mesa, quando lá era cama, o colchão é mole, como eu vou saber? Nem mediram, ela olhou aqui! Vamos condenar as pessoas assim? Não me sinto confortável!"

Podval critica também o "segredo" que se teria feito sobre a intimação de Luiz Eduardo de Carvalho Dorea, perito em manchas de sangue. "Eles trouxeram o professor que parece ser o mais ilustre sobre gotas de sangue. Fizeram maldade!" Se refere ao fato de o nome da testemunha aparecer apenas como Luiz E. Carvalho, e que se sou­besse de quem se tratava teria lido seu livro. "Minha sorte é que a dra. Roselle conhecia!" Passa então a discorrer sobre o depoimento do perito, quando foi perguntado sobre a altura da gota de sangue encontrada no parapeito da janela de onde Isabella foi jogada. Essa mancha é diferente das outras porque a menina está sendo segura­da a uma distância menor do parapeito daquela anterior, que era em relação ao chão. Quando Podval recorre à resposta do professor no depoimento, que seria sobre a velocidade do movimento pelo qual teria sido produzida, fica confuso entender o que queria de­monstrar. Não fica dúvida sobre o conhecimento do perito, ou a validade da perícia paulista, e sim sobre o que a Defesa acreditava ter sido algum possível erro.

Aproxima dúvida é lançada ainda sobre as manchas de sangue. "Causou-me estranheza. Com todo esse sangue encontrado no apartamento, Alexandre foi mostrado carregando Isabella, ela tinha sangue na mão. A pergunta do jurado para a perita foi: 'Encontraram algum sangue na roupa dele ou dela?' E a resposta foi: 'Não'. Não pingou nada. Que estranho, tinha sangue no apartamento inteiro e não pingou neles? Não tinha nada de san­gue, o único local era no sapato de Anna Jatobá, que nem estava lá, desceu descalça! Estranho imaginar o que possa ter acontecido..."

Podval lê o depoimento de Roberto Denis Saugo, vizinho do apartamento 113, no qual afirmou ter visto a ré descalça no dia e no local dos fatos. "A roupa dele não tinha que ter alguma coisa, um pingo, uma gota de sangue? Ele não merece a dúvida da inocência?"

Por fim, constatando que todos ali estavam bastante cansados, faz um questionamento geral: "Nosso sistema brasileiro é isso? Não posso condenar pessoas pelo comportamento delas, mas as pessoas lá fora clamam!" O advogado passa a criticar a imprensa e como esta con­duziu o caso, criando uma verdadeira armadilha para os réus e para os próprios jurados, pressionados pela população. "A gente nunca saberá o que realmente aconteceu, este caso é isso. Não posso con­denar se o comportamento não é bom, isso (absolver) é Justiça, isso é segurança para todos nós! Veja como as coisas não são necessariamente como parecem ser..."

Nesse momento, Podval e equipe viram para os jurados o painel já escrito, também com uma linha do tempo, contendo alguns horários diferentes de ligações para o Copom feitas pelo sr. Antônio Lúcio, como o das fls. 204 que marcaria 23h52 e o das fls. 321, mar­cando 23h49m59s, podendo-se constatar uma diferença de "três" minutos (na verdade dois) entre elas. "Vale a primeira ou a segunda?", pergunta o advogado. Cembranelli, sentado, apenas levanta os olhos e esclarece: "É a degravação que está com horário alinhado com o satéli­te. Vale a degravação (23h49m59s)". Podval continua a marcar núme­ros de folhas e horários diferentes para as ligações, questionando se era possível dizer que os relógios eram iguais. Cembranelli, numa atitude bastante tranqüila, mostrando a todos que aquilo não tinha nenhuma importância, comenta, a respeito da diferença entre as marcações de tempo, que por vezes chegavam a quatro minutos. "Ouviram o barulho, olharam pela janela e então deixaram passar quatro minutos? O senhor está tentando confundir os jurados!" Podval estava colocando no quadro os horários da degravação misturados àque­les de retransmissão pelo próprio Copom. "Dá pra colocá-los na cena do crime com estas diferenças? O que aconteceu neste caso, e agora vai acabar, foi muito bem demonstrado no filme A onda, em que as pessoas compraram uma idéia e foram passando de uma para a outra, em um crescente!" Ele está se referindo a filme alemão recente, sobre uma história real norte-americana em que um professor, ao fazer uma "experiência autocrática" com seus alunos, perde o controle da si­tuação pela amplitude que o jogo alcança, resultando em uma tragédia. "Por que o Caso Isabella virou um caso diferente? Por quê, do cotidiano, virou uma onda? O que aconteceu aqui? Lombroso diz que ela tem jeito de assassina? Não há prova! Vocês condenarão sem prova? Eles não merecem a dúvida da inocência? Peço a absolvição dos réus por abso­luta falta de provas!"

Podval prossegue: "Eu não menosprezo, não sou insensível com cada um dos profissionais que trabalhou neste caso, ninguém queria prejudicá-los, ninguém é louco. O negócio sai de volume, perdeu a medida! Só a dra. Ro­sângela, arrogante ela é, vai!", diz em tom de brincadeira. "Mas ninguém fez de propósito. E natural, é assim que as pessoas são. Seria sensato duvidar de Tieppo? Não tenho capacidade de discutir. Não fez de propósito, mas errou, esqueceu. Alguém é culpado, há organização para te machucar? Não!"

O advogado agora para na frente do promotor e diz a ele: "Dr. Cembranelli, me sinto incomodado com a citação que fiz contra o senhor. Nem me caberia ter trazido. Tenho o maior respeito e admiração pelo senhor e sua postura, sua crença na culpa deles, ainda que equivocada, o senhor acredita. O senhor não buscava a 'eles', buscava sua verdade". E continua, agora explicando para a platéia que o promotor de Justiça não per­seguiu pessoalmente Alexandre Alves Nardoni ou Anna Carolina Trotta Peixoto Jatobá. "Ele estava no papel dele, acreditou e acredita no que veio buscar. Não tenho a menor dúvida de tudo o que o senhor fez, é duro para todos nós, todo mundo se machuca. De coração", e coloca as mãos no próprio coração, "fez seu papel com a maior correção. Mas faltam elementos! Eu termino como comecei, não digo em pé de igualdade, eu me espelho no senhor para fazer mais júris!"

Apenas 45 minutos após ter iniciado a tréplica, Podval encerra os debates. Escolheu falar por menos tempo e assim causar maior impacto? Percebeu o cansaço dos jurados? Muitos ficaram espanta­dos com o término inesperado de suas palavras.

O juiz lê os quesitos que os jurados votarão na sala secreta e explica os procedimentos. Os réus estão sentados, ele como quem reza, ela passando as mãos no rosto, ele esfregando a testa com a ponta dos dedos, ela assoando o nariz. Uma das juradas escreve sem parar. O clima é opressivo.

O pai de Alexandre fixa um sorriso no rosto e se mostra confiante com tudo o que ouviu. Podval fica em seu lugar, girando a caneta entre os dedos. Cembranelli baixa o olhar. Os pais de Jatobá passam a rezar em sussurros.

O juiz termina a leitura às 21h11 e pede para que seja esvaziado o plenário. Todos começam a sair em silêncio.

Permaneci por mais algum tempo em minha poltrona, sabendo que ainda aguardaríamos um bom tempo pela sentença. Dois anos tinham se passado desde o crime. Fico me lembrando o quanto, entre colegas da área de Direito e Criminalística, tentamos argumen­tar "pela Defesa", na tentativa de desmontar a prova. Nunca deu certo. A prova, desta vez, foi a testemunha.

 

                       Era uma vez...

Dois jovens, no fim da adolescência, que na aventura do amor fizeram brotar uma menina-flor. Ela chega com todo o tumulto que uma história assim traz, e em meio ao turbilhão da vida nova o casal se desfaz. Cada um recompõe sua vida, o pai tem novo amor, novo lar. A filha vai, a filha vem. E, como em tantos lares, é projeção do obstáculo à felicidade para essa nova composição. Filho não se de­volve, enfrenta-se a situação quinzenalmente. O perfil do novo casal é claro: tumultos são constantes, cenas estapafúrdias a granel. A "gratidão", nesse caso a dependência total, emocional e financeira, pode levar a patamares de raiva impensáveis. Ela depende dele, vive sob controle absoluto. Ele depende do pai, vive sob controle absoluto. Até que tudo sai de controle para todos. Tragédias acontecem, às vezes de forma tão rápida que só pensamos nas conseqüências quando elas já estão diante de nós. Temos que enfrentar os resulta­dos das escolhas que fazemos. Não há caminho de volta. Aguardan­do o veredicto, só o que vejo são vidas destruídas e destinos pendu­rados no varal.

Nos corredores do Fórum, na hora que se seguiu, todos rezam pelo seu próprio resultado. A encruzilhada ali se apresenta para os que de alguma forma se envolveram nesse processo; cada um espe­ra ter comprovado a sua própria verdade. A verdade, multifacetada, depende de que lado nos é apresentada. Cada um escreveu aquilo que viveu com seu próprio olhar, com seus anseios, limitações, apreensões, histórias passadas, cada um seguiu com seu próprio arsenal de emoções.

A maior parte da minha hora é passada com Daniela Sollberger Cembranelli, companheira de jornada. A esta defensora cabem as palavras de Manoel Pimentel: "O advogado deve ter a coragem do leão e a mansidão do cordeiro; a altivez do príncipe e a humildade do escravo; a rapidez do relâmpago e a persistência do pingo d'água; a solidez do carva­lho e a flexibilidade do bambu". E assim que ela é. Olhamos uma para a outra e repetimos: Vai passar, seja qual for o resultado, vai passar. Ainda vamos olhar para trás...

A hora que esperamos era eterna, o desfecho se avizinhava. Tudo o que poderia ser feito, foi feito. Fizemos as escolhas certas? Só o futuro diria. E, como disse Arthur Lavigne, no júri que conde­nou a assassina de Daniella Perez: "A verdade tem muita força, ela sai por todas as frestas".

Uma fila silenciosa se forma na porta do plenário; vamos entrar para ouvir a sentença. O momento é solene, sombrio. Os pés se ar­rastam delicadamente pelo chão; o som é de funeral, o silêncio, ensurdecedor. Os lugares estão marcados e, a essa altura, as cartas também. Os réus são trazidos, pela primeira vez os vemos algema­dos, escancarados, desnudos, desalentados. A esperança também se mantém suspensa.

Estou assombrada, que história mais triste, sinto uma aflição imensa. Crimes de família não são como crimes comuns, do cotidia­no, da vida mundana, da maldade caricata. Crimes de família são feito sacrilégios, romperam a última barreira, tornando-os insupor­táveis, intoleráveis, incompreensíveis, impensáveis.

O juiz começa a se manifestar, os alto-falantes ressoam na rua suas palavras finais. Abaixo os olhos ao ver esse casal indo para o exílio da vida. Condenado pela lei dos homens. Ou pela sociedade. Ou por ambos. Ou por todos. Com um medo quase palpável de um futuro mais triste que o presente.

O povo ali na rua, ora gritando por justiça, ora aguardando em silêncio, em uma dança demoníaca e insana dos cegos de paixão, paixão pela justiça idealizada, por uma verdade única e incontestá­vel, indiferentes ao abstrato impossível de seu objetivo.

Vem a condenação, em uma longa mensagem, que vai sendo assimilada aos poucos, mas, antes que termine, se dissipa, já levou cada um ali para os  seus próprios pensamentos. Fica a metáfora: cada réu condenado ao tempo de prisão equivalente à sua idade, como tivessem que viver com a pena tanto tempo quanto viveram livres dela. Maktub[2]. Está escrito. História de júri não tem final feliz. Dentro do plenário, um silêncio sepulcral. Lá fora já era carnaval.

 

                                                     ANEXO 1 — SENTENÇA

 

               Íntegra

               VISTOS

 

  1. ALEXANDRE ALVES NARDONI e ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ, qualificados nos autos, foram denunciados pelo Ministério Público porque no dia 29 de março de 2.008, por volta de 23:49 horas, na rua Santa Leocadia, Vila Isolina Mazei, nesta Capital, agindo em concurso e com identidade de propósitos, teriam praticado crime de homicídio triplamente qualificado pelo meio cruel (asfixia mecânica e sofrimento intenso), utilização de recurso que impossibilitou a defesa da ofendida (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente pela janela) e com o objetivo de ocultar crime anteriormente cometido (esganadura e ferimentos praticados anteriormente contra a mesma vítima) contra a menina ISABELLA OLIVEIRA NARDONI.

Aponta a denúncia também que os acusados, após a prática do crime de homicídio referido acima, teriam incorrido também no delito de fraude processual, ao alterarem o local do crime com o objetivo de inovarem artificiosamente o estado do lugar e dos objetos ali existentes, com a fi­nalidade de induzir a erro o juiz e os peritos e, com isso, produzir efeito em processo penal que viria a ser iniciado.

  1. Após o regular processamento do feito em Juízo, os réus acabaram sendo pronunciados, nos termos da denúncia, remetendo-se a causa assim a julgamento ao Tribunal do Júri, cuja decisão foi mantida em grau de recurso.
  2. Por esta razão, os réus foram então submetidos a julgamento perante este Egrégio 2º Tribunal do Júri da Capital do Fórum Regional de Santana, após cinco dias de trabalhos, acabando este Conselho Popular, de acordo com o termo de votação anexo, reconhecendo que os acusados praticaram, em concurso, um crime de homicídio contra a vítima Isabella Oliveira Nardoni, pessoa menor de 14 anos, triplamente qualificado pelo meio cruel, pela utilização de recurso que dificultou a defesa da vítima e para garantir a ocultação de delito anterior, ficando assim afastada a tese única sustentada pela Defesa dos réus em Plenário de negativa de autoria.

Além disso, reconheceu ainda o Conselho de Sentença que os réus também praticaram, naquela mesma ocasião, o crime conexo de fraude processual qualificado.

É a síntese do necessário.

 

               FUNDAMENTAÇÃO.

  1. Em razão dessa decisão, passo a decidir sobre a pena a ser imposta a cada um dos acusados em relação a este crime de homicídio pelo qual foram considerados culpados pelo Conselho de Sentença.

Uma vez que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não se mostram favoráveis em relação a ambos os acusados, suas penas-base devem ser fixadas um pouco acima do mínimo legal.

Isto porque a culpabilidade, a personalidade dos agentes, as circuns­tâncias e as conseqüências que cercaram a prática do crime, no presente caso concreto, excederam a previsibilidade do tipo legal, exigindo assim a exasperação de suas reprimendas nesta primeira fase de fixação da pena, como forma de reprovação social à altura que o crime e os autores do fato merecem.

Com efeito, as circunstâncias específicas que envolveram a prática do crime ora em exame demonstram a presença de uma frieza emocional e uma insensibilidade acentuada por parte dos réus, os quais após terem passado um dia relativamente tranqüilo ao lado da vítima, passeando com ela pela cidade e visitando parentes, teriam, ao final do dia, investido de forma covarde contra a mesma, como se não possuíssem qualquer víncu­lo afetivo ou emocional com ela, o que choca o sentimento e a sensibili­dade do homem médio, ainda mais porque o conjunto probatório trazido aos autos deixou bem caracterizado que esse desequilíbrio emocional demonstrado pelos réus constituiu a mola propulsora para a prática do homicídio.

De igual forma relevante as conseqüências do crime na presente hipó­tese, notadamente em relação aos familiares da vítima.

Porquanto não se desconheça que em qualquer caso de homicídio consumado há sofrimento em relação aos familiares do ofendido, no caso específico destes autos, a angústia acima do normal suportada pela mãe da criança Isabella, Sra. Ana Carolina Cunha de Oliveira, decorrente da morte da filha, ficou devidamente comprovada nestes autos, seja através do teor de todos os depoimentos prestados por ela nestes autos, seja através do laudo médico-psiquiátrico que foi apresentado por profissional habilitado durante o presente julgamento, após realizar consulta com a mesma, o que impediu inclusive sua permanência nas dependências deste Fórum, por ainda se encontrar, dois anos após os fatos, em situação aguda de estresse (F43.0 — CID 10), face ao monstruoso assédio a que a mesma foi obrigada a ser submetida como decorrência das condutas ilícitas praticadas pelos réus, o que é de conhecimento de todos, exigindo um maior rigor por parte do Estado-Juiz quanto à reprovabilidade destas condutas.

A análise da culpabilidade, das personalidades dos réus e das circuns­tâncias e conseqüências do crime, como foi aqui realizado, além de possuir fundamento legal expresso no mencionado art. 59 do Código Penal, visa também atender ao princípio da individualização da pena, o qual constitui vetor de atuação dentro da legislação penal brasileira, na lição sempre lúcida do professor e magistrado Guilherme de Souza Nucci:

"Quanto mais se cercear a atividade individualizadora do juiz na apli­cação da pena, afastando a possibilidade de que analise a personalidade, a conduta social, os antecedentes, os motivos, enfim, os critérios que são subjetivos, em cada caso concreto, mais cresce a chance de padronização da pena, o que contraria, por natureza, o princípio constitucional da individualização da pena, aliás, cláusula pétrea" ("Individualização da Pena", Ed. RT, 2ª edição, 2007, pág. 195).

Assim sendo, frente a todas essas considerações, majoro a pena-base para cada um dos réus em relação ao crime de homicídio praticado por eles, qualificado pelo fato de ter sido cometido para garantir a ocultação de delito anterior (inciso V, do parágrafo segundo do art. 121 do Código Penal) no montante de 1/3 (um terço), o que resulta em 16 (dezesseis) anos de reclusão, para cada um deles.

Como se trata de homicídio triplamente qualificado, as outras duas qualificadoras de utilização de meio cruel e de recurso que dificultou a defesa da vítima (incisos III e IV, do parágrafo segundo do art. 121 do Có­digo Penal), são aqui utilizadas como circunstâncias agravantes de pena, uma vez que possuem previsão específica no art. 61, inciso II, alíneas "c"e "d"do Código Penal.

Assim, levando-se em consideração a presença destas outras duas qualificadoras, aqui admitidas como circunstâncias agravantes de pena, majoro as reprimendas fixadas durante a primeira fase em mais 1/4 (um quarto), o que resulta em 20 (vinte) anos de reclusão para cada um dos réus.

Justifica-se a aplicação do aumento no montante aqui estabelecido de 1/4 (um quarto), um pouco acima do patamar mínimo, posto que tanto a qualificadora do meio cruel foi caracterizada na hipótese através de duas ações autônomas (asfixia e sofrimento intenso), como também em relação à qualificadora da utilização de recurso que impossibilitou a defesa da vítima (surpresa na esganadura e lançamento inconsciente na defenestração).

Pelo fato do correu Alexandre ostentar a qualidade jurídica de genitor da vítima Isabella, majoro a pena aplicada anteriormente a ele em mais 1/6 (um sexto), tal como autorizado pelo art. 61, parágrafo segundo, alínea "e" do Código Penal, o que resulta em 23 (vinte e três) anos e 04 (quatro) meses de reclusão.

Como não existem circunstâncias atenuantes de pena a serem consi­deradas, torno definitivas as reprimendas fixadas acima para cada um dos réus nesta fase.

Por fim, nesta terceira e última fase de aplicação de pena, verifica-se a presença da qualificadora prevista na parte final do parágrafo quarto, do art. 121 do Código Penal, pelo fato do crime de homicídio doloso ter sido praticado contra pessoa menor de 14 anos, daí por que majoro novamen­te as reprimendas estabelecidas acima em mais 1/3 (um terço), o que re­sulta em 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão para o co-réu Alexandre e 26 (vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão para a co-ré Anna Jatobá.

Como não existem outras causas de aumento ou diminuição de pena a serem consideradas nesta fase, torno definitivas as reprimendas fixadas acima.

Quanto ao crime de fraude processual para o qual os réus também teriam concorrido, verifica-se que a reprimenda nesta primeira fase da fixação deve ser estabelecida um pouco acima do mínimo legal, já que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não lhe são favoráveis, como já discri­minado acima, motivo pelo qual majoro em 1/3 (um terço) a pena-base prevista para este delito, o que resulta em 04 (quatro) meses de detenção e 12 (doze) dias-multa, sendo que o valor unitário de cada dia-multa deve­rá corresponder a 1/5 (um quinto) do valor do salário mínimo, uma vez que os réus demonstraram, durante o transcurso da presente ação penal, pos­suírem um padrão de vida compatível com o patamar aqui fixado.

Inexistem circunstâncias agravantes ou atenuantes de pena a serem consideradas.

Presente, contudo, a causa de aumento de pena prevista no parágrafo único do art. 347 do Código Penal, pelo fato da fraude processual ter sido praticada pelos réus com o intuito de produzir efeito em processo penal ainda não iniciado, as penas estabelecidas acima devem ser aplicadas em dobro, o que resulta numa pena final para cada um deles em relação a este delito de 08 (oito) meses de detenção e 24 (vinte e quatro) dias-multa, mantido o valor unitário de cada dia-multa estabelecido acima.

  1. Tendo em vista que a quantidade total das penas de reclusão ora aplicadas aos réus pela prática do crime de homicídio triplamente qualificado ser superior a 04 anos, verifica-se que os mesmos não fazem jus ao benefício da substituição destas penas privativas de liberdade por restritivas de direitos, a teor do disposto no art. 44, inciso I do Código Penal.

Tal benefício também não se aplica em relação às penas impostas aos réus pela prática do delito defraude processual qualificada, uma vez que as condições judiciais do art. 59 do Código Penal não são favoráveis aos réus, há previsão específica no art. 69, parágrafo primeiro deste mesmo diploma legal obstando tal benefício de substituição na hipótese.

Ausentes também as condições de ordem objetivas e subjetivas previstas no art. 77 do Código Penal, já que além das penas de reclusão aplicadas aos réus em relação ao crime de homicídio terem sido fixadas em quantidades superiores a 02 anos, as condições judiciais do art. 59 não são favoráveis a nenhum deles, como já especificado acima, o que de­monstra que não faz jus também ao benefício da suspensão condicional do cumprimento de nenhuma destas penas privativas de liberdade que ora lhe foram aplicadas em relação a qualquer dos crimes.

Tendo em vista o disposto no art. 33, parágrafo segundo, alínea "a" do Código Penal e também por ter o crime de homicídio qualificado a natureza de crimes hediondos, a teor do disposto no artigo 2S, da Lei n2 8.072/90, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei n2 11.464/07, os acusados deverão iniciar o cumprimento de suas penas privativas de liberdade em regime prisional FECHADO.

Quanto ao delito de fraude processual qualificada, pelo fato das con­dições judiciais do art. 59 do Código Penal não serem favoráveis a qualquer dos réus, deverão os mesmos iniciar o cumprimento de suas penas priva­tivas de liberdade em relação a este delito em regime prisional SEMI-ABER­TO, em consonância com o disposto no art. 33, parágrafo segundo, alínea "c" e seu parágrafo terceiro, daquele mesmo Diploma Legal.

  1. Face à gravidade do crime de homicídio triplamente qualificado praticado pelos réus e à quantidade das penas privativas de liberdade que ora lhes foram aplicadas, ficam mantidas suas prisões preventivas para garantia da ordem pública, posto que subsistem os motivos determinan­tes de suas custódias cautelares, tal como previsto nos arts. 311 e 312 do Código de Processo Penal, devendo aguardar detidos o trânsito em julga­do da presente decisão.

Como este Juízo já havia consignado anteriormente, quando da pro­lação da sentença de pronúncia — respeitados outros entendimentos em sentido diverso — a manutenção da prisão processual dos acusados, na visão deste julgador, mostra-se realmente necessária para garantia da ordem pública, objetivando acautelar a credibilidade da Justiça em razão da gravidade do crime, da culpabilidade, da intensidade do dolo com que o crime de homicídio foi praticado por eles e a repercussão que o delito causou no meio social, uma vez que a prisão preventiva não tem como único e exclusivo objetivo prevenir a prática de novos crimes por parte dos agentes, como exaustivamente tem sido ressaltado pela doutrina pátria, já que evitara reiteração criminosa constitui apenas um dos aspec­tos desta espécie de custódia cautelar.

Tanto é assim que o próprio Colendo Supremo Tribunal Federal já admitiu este fundamento como suficiente para a manutenção de decreto de prisão preventiva:

 

"HABEAS CORPUS. QUESTÃO DE ORDEM. PEDIDO DE MEDIDA LIMINAR. ALEGADA NULIDADE DA PRISÃO PREVENTIVA DO PACIENTE. DECRETO DE PRISÃO CAUTELAR QUE SE APOIA NA GRAVIDADE ABSTRATA DO DELITO SUPOSTAMENTE PRATICADO, NA NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA 'CREDIBILIDADE DE UM DOS PODERES DA REPÚBLICA', NO CLAMOR PO­PULAR E NO PODER ECONÔMICO DO ACUSADO. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE PRAZO NA CONCLUSÃO DO PROCESSO."

 

"O plenário do SupremoTribunal Federal, no julgamento do HC 80.717, fixou a tese de que o sério agravo à credibilidade das instituições públicas pode servir de fundamento idôneo para fins de decretação de prisão cautelar, considerando, sobretudo, a repercussão do caso concreto na ordem pública." (STF, HC 85298-SP, 1â Turma, rei. Min. Carlos Aires Brito, julg. 29.03.2005, sem grifos no original).

Portanto, diante da hediondez do crime atribuído aos acusados, pelo fato de envolver membros de uma mesma família de boa condição social, tal situação teria gerado revolta à população não apenas desta Capital, mas de todo o país, que envolveu diversas manifestações coletivas, como fartamente divulgado pela mídia, além de ter exigido também um enorme esquema de segurança e contenção por parte da Polícia Militar do Estado de São Paulo na frente das dependências deste Fórum Regional de Santa­na durante estes cinco dias de realização do presente julgamento, tamanho o número de populares e profissionais de imprensa que para cá acorreram, daí porque a manutenção de suas custódias cautelares se mostra neces­sária para a preservação da credibilidade e da respeitabilidade do Poder Judiciário, as quais ficariam extremamente abaladas caso, agora, quando já existe decisão formal condenando os acusados pela prática deste crime, conceder-lhes o benefício de liberdade provisória, uma vez que permane­ceram encarcerados durante toda a fase de instrução.

Esta posição já foi acolhida inclusive pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, como demonstra a ementa de acórdão a seguir transcrita:

"LIBERDADE PROVISÓRIA — Benefício pretendido — Primariedade do recorrente — Irrelevância — Gravidade do delito — Preservação do interes­se da ordem pública — Constrangimento ilegal inocorrente." (In JTJ/Lex 201/275, RSE n2 229.630-3, 2ª Câm. Crim., rel. Des. Silva Pinto, julg. em 09.06.97).

O Nobre Desembargador Caio Eduardo Canguçu de Almeida, naquele mesmo voto condutor do v. acórdão proferido no mencionado recurso de "habeas corpus", resume bem a presença dos requisitos autorizadores da prisão preventiva no presente caso concreto:

"Mas, se um e outro, isto é, se clamor público e necessidade da preser­vação da respeitabilidade de atuação jurisdicional se aliarem à certeza quanto à existência do fato criminoso e a veementes indícios de autoria, claro que todos esses pressupostos somados haverão de servir de bom, seguro e irrecusável fundamento para a excepcionalização da regra cons­titucional que presumindo a inocência do agente não condenado, não tolera a prisão antecipada do acusado." E, mais à frente, arremata:

"Há crimes, na verdade, de elevada gravidade, que, por si só, justificam a prisão, mesmo sem que se vislumbre risco ou perspectiva de reiteração criminosa. E, por aqui, todos haverão de concordar que o delito de que se trata, por sua gravidade e característica chocante, teve incomum repercussão, causou intensa indignação e gerou na população incontrolável e ansiosa expectativa de uma justa contraprestação jurisdicional. A preven­ção ao crime exige que a comunidade respeite a lei e a Justiça, delitos havendo, tal como o imputado aos pacientes, cuja gravidade concreta gera abalo tão profundo naquele sentimento, que para o restabelecimento da confiança no império da lei e da Justiça exige uma imediata reação. A falta dela mina essa confiança e serve de estímulo à prática de novas in­frações, não sendo razoável, por isso, que acusados por crimes brutais permaneçam livre, sujeitos a uma conseqüência remota e incerta, como se nada tivessem feito." (sem grifos no original).

Nessa mesma linha de raciocínio também se apresentou o voto do não menos brilhante Desembargador revisor, Dr. Luís Soares de Mello que, de forma firme e consciente da função social das decisões do Poder Judiciá­rio, assim deixou consignado:

Aquele que está sendo acusado, e com indícios veementes, volte-se a dizer, de tirar de uma criança, com todo um futuro pela frente, aquilo que é o maior 'bem' que o ser humano possui —'a vida'— não pode e não deve ser tratado igualmente a tantos outros cidadãos de bem e que seguem sua linha de conduta social aceitável e tranqüila.

E o Judiciário não pode ficar alheio ou ausente a esta preocupação, dês que a ele, em última instância, é que cabe a palavra e a solução.

Ora.

Aquele que está sendo acusado, 'em tese', mas por gigantescos indícios, de ser homicida de sua 'própria filha'— como no caso de Alexandre — e 'enteada'— aqui no que diz à Anna Carolina — merece tratamento severo, não fora o próprio exemplo ao mais da sociedade.

Que é também função social do Judiciário.

É a própria credibilidade da Justiça que se põe à mostra, assim. (sem grifos no original).

Por fim, como este Juízo já havia deixado consignado anteriormente, ainda que se reconheça que os réus possuem endereço fixo no distrito da culpa, posto que, como noticiado, o apartamento onde os fatos ocorreram foi adquirido pelo pai de Alexandre para ali estabelecessem seu domicílio, com ânimo definitivo, além do fato de Alexandre, como provedor da fa­mília, possuir profissão definida e emprego fixo, como ainda pelo fato de nenhum deles ostentar outros antecedentes criminais e terem se apresen­tado espontaneamente à Autoridade Policial para cumprimento da ordem de prisão temporária que havia sido decretada inicialmente, isto somente não basta para assegurar-lhes o direito à obtenção de sua liberdade du­rante o restante do transcorrer da presente ação penal, conforme enten­dimento já pacificado perante a jurisprudência pátria, face aos demais aspectos mencionados acima que exigem a manutenção de suas custódias cautelares, o que, de forma alguma, atenta contra o princípio constitucio­nal da presunção de inocência:

"RHC — PROCESSUAL PENAL — PRISÃO PROVISÓRIA — A primariedade, bons antecedentes, residência fixa e ocupação lícita não impedem, por si só, a prisão provisória"(STJ, 6ª Turma, v.u., ROHC n2 8566-SP, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, julg. em 30.06.1999).

 

"HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRISÃO PREVENTIVA. ASSEGURAR A INSTRUÇÃO CRIMINAL AMEAÇA A TESTEMUNHAS. MOTI­VAÇÃO IDÔNEA. ORDEM DENEGADA.

 

A existência de indícios de autoria e a prova de materialidade, bem como a demonstração concreta de sua necessidade, lastreada na ameaça de testemunhas, são suficientes para justificar a decretação da prisão cautelar para garantir a regular instrução criminal, principalmente quando se trata de processo de competência do Tribunal do Júri.

Nos processos de competência do Tribunal Popular, a instrução cri­minal exaure-se definitivamente com o julgamento do plenário (arts. 465 a 478 do CPP).

Eventuais condições favoráveis ao paciente — tais como a primariedade, bons antecedentes, família constituída, emprego e residência fixa — não impedem a segregação cautelar, se o decreto prisional está devi­damente fundamentado nas hipóteses que autorizam a prisão preventiva. Nesse sentido: RHC 16.236/SP, Rei. Min. FELIX FISCHER, DJ de 17/12/04; RHC 16.357/PR, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 9/2/05; e RHC 16.718/MT, de minha relatoria, DJ de 12/2/05).

  1. Ordem denegada. (STJ, 5ª Turma, v.u., HC n2 99071 /SP, rel. Min. Ar­naldo Esteves Lima, julg. em 28.8.2008).

Ademais, a falta de lisura no comportamento adotado pelos réus du­rante o transcorrer da presente ação penal, demonstrando que fariam tudo para tentar, de forma deliberada, frustrar a futura aplicação da lei penal, posto que após terem fornecido material sanguíneo para perícia no início da apuração policial e inclusive confessado este fato em razões de recurso em sentido estrito, apegaram-se a um mero formalismo, consistente na falta de assinatura do respectivo termo de coleta, para passarem a negar, de forma veemente, inclusive em Plenário durante este julgamento, terem fornecido aquelas amostras de sangue, o que acabou sendo afastado posteriormente, após nova coleta de material genético dos mesmos para comparação com o restante daquele material que ainda estava preserva­do no Instituto de Criminalística.

Por todas essas razões, ficam mantidas as prisões preventivas dos réus que haviam sido decretadas anteriormente por este Juízo, negando-lhes assim o direito de recorrerem em liberdade da presente decisão condenatória.

 

                                 DECISÃO.

  1. Isto posto, por força de deliberação proferida pelo Conselho de Sen­tença que JULGOU PROCEDENTE a acusação formulada na pronúncia contra os réus ALEXANDRE ALVES NARDONI e ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ, ambos qualificados nos autos, condeno-os às seguintes penas:
  2. a) co-réu ALEXANDRE ALVES NARDONI:

- pena de 31 (trinta e um) anos, 01 (um) mês e 10 (dez) dias de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, tri­plamente qualificado, agravado ainda pelo fato do delito ter sido pratica­do por ele contra descendente, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final, art. 13, pará­grafo segundo, alínea "a" (com relação à asfixia) e arts. 61, inciso II, alínea "e", segunda figura e 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmen­te em regime prisional FECHADO, sem direito a "sursis"; - pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMIABER­TO, sem direito a "sursis" e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo.

  1. B) co-ré ANNA CAROLINA TROTTA PEIXOTO JATOBÁ:

pena de 26 (vinte e seis) anos e 08 (oito) meses de reclusão, pela prática do crime de homicídio contra pessoa menor de 14 anos, triplamen­te qualificado, tal como previsto no art. 121, parágrafo segundo, incisos III, IV e V c.c. o parágrafo quarto, parte final e art. 29, todos do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional FECHADO, sem direito a "sursis"; - pena de 08 (oito) meses de detenção, pela prática do crime de fraude processual qualificada, tal como previsto no art. 347, parágrafo único do Código Penal, a ser cumprida inicialmente em regime prisional SEMI-ABER­TO, sem direito a "sursis" e 24 (vinte e quatro) dias-multa, em seu valor unitário mínimo.

Após o trânsito em julgado, feitas as devidas anotações e comuni­cações, lancem-se os nomes dos réus no livro Rol dos Culpados, devendo ser recomendados, desde logo, nas prisões em que se encontram recolhi­dos, posto que lhes foi negado o direito de recorrerem em liberdade da presente decisão.

Esta sentença é lida em público, às portas abertas, na presença dos réus, dos srs. jurados e das partes, saindo os presentes intimados.

Plenário II do 2º Tribunal do Júri da Capital, às 00:20 horas, do dia 27 de março de 2.010.

Registre-se e cumpra-se.

                    MAURÍCIO FOSSEN, Juiz de Direito

 

[1] Plural da palavra latina locus, ou seja, "lugar". Em genética, é usada para indicar o local fixo em um cromossomo onde se localiza determinado gene ou marcador genético.

[2] Maktub — em árabe, "está escrito".

 

                                                                                Ilana Casoy  

 

                      

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