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A PRÓXIMA VÍTIMA / Michael Palmer
A PRÓXIMA VÍTIMA / Michael Palmer

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A PRÓXIMA VÍTIMA

 

10 de Janeiro

- Dois... trés... quatro.

Toby Nelrus deitou‑se de costas e contou as lâmpadas que cintilavam por cima da sua cabeça. Tinha oito anos, mas até para a sua idade era pequeno; tinha cabelos vermelho‑acastanhados e sardas que lhe atravessavam as maçãs do rosto e a cana do nariz. Pouco tempo depois de o pai ter sido transferido do Norte de Nova Iorque para a T. J. Carter Paper Company de Sterling, em New Hampshire, os colegas de Toby na escola primária de Bouquette chamavam‑lhe "cara sarapintada" e "camarão", maltratando‑o na cafetaria. Mas tudo passou a correr muito melhor desde o dia em que conseguiu aguentar uma tareia dada por Jimmy Bames, o valentão da escola.

Cinco... seis... sete...

Toby friccionou a zona do inchaço no topo da perna, próximo da pilinha onde a dor tivera início e ainda persistia. Os médicos disseram‑lhe que a injecção tiraria a dor, mas tal não aconteceu.

A música que segundo garantiram as enfermeiras, iria ajudá‑lo a descontraIr, também não fazia efeito. A canção era bonita, mas não tinha letra. Com a mão a tremer, Toby ergueu o braço e tirou os auscultadores almofadados.

Oito... nove... As luzes mudavam de branco para amarelo, rosa e por fim vermelho. Dez.. onze...

Após a luta com Jimmy, os miúdos deixaram de o maltratar e começaram a convidá‑lo para irem juntos para casa, depois das aulas. Chegaram mesmo a elegê‑lo representante da turma no conselho de alunos. Após alguns meses de doenças inventadas para ficar em casa, era agradável voltar a querer ir à escola todos os dias. Agora, por causa do inchaço, iria faltar durante uma semana inteira. Não era justo.

Doze... treze... As cintilantes luzes vermelhas tornaram‑se mais brilhantes e intensas. Toby cerrou os olhos o mais que póde, mas o vermelho tornou‑se ainda mais quente e brilhante. Tentou tapá‑los com os braços, mas a luz quente e cor de sangue atravessou‑os e começou a queimá‑los. Ele começou a chorar baixinho.

‑ Então, Toby, não é preciso chorar. O senhor doutor vai tratar desse altinho e sentir‑te‑ás muito melhor. Tens a certeza que não queres ouvir música? Quase todos os nossos doentes dizem que se sentem bastante melhor quando a ouvem.

Toby abanou a cabeça e baixou lentamente o braço. As luzes tinham desaparecido de cima de si. Em vez delas, viu o rosto da enfermeira a sorrir‑lhe. Tinha cabelo grisalho, rugas e era velha ‑ tanto quanto a tia Amelia. Os dentes eram amarelados, e a maquilhagem, em tons de vermelho‑vivo, brilhava nas faces. Enquanto a examinava, a pele do rosto dela tornou‑se mais enrugada e encovada. As rugas desapareceram e os espaços por baixo e por cima da maquilhagem, onde os olhos tinham estado, tornaram‑se escuros e ocos.

‑ Vamos, vamos, Toby... Vamos, vamos lá... Vamos, vamos...


Mais uma vez, Toby colocou um braço á frente dos olhos e mais uma vez não resultou. A pele da enfermeira tornou‑se ainda mais enrugada e começou a pelar, até aparecer o branco dos ossos. O vermelho pingou como sangue sobre o rosto esquelético e as cavidades onde os olhos tinham estado brilharam.

‑ Vamos lá... Vamos lá...

‑ Deixe‑me levantar. Por favor, deixe‑me levantar.

Toby pediu aos gritos, mas ouviu apenas um resmungar baixo, como o som de um gira‑discos, quando ele fazia rodar o disco com um dedo.

‑ Deixe‑me levantar. Por favor, deixe‑me levantar.

O lençol foi afastado do corpo e ele tremeu devido ao ar frio.

‑ Tenho frio ‑ murmurou. ‑ Por favor, tape‑me. Por favor, deixe‑me levantar. Mamã. Quero a minha mãe.

‑ Está bem, rapaz. Toca a subir.

Era uma voz de homem, profurida e lenta. Toby sentiu umas mãos em redor dos tornozelos e por baixo dos braços a levantarem‑no cada vez mais acima da cama com rodas. Acima, acima, cada vez mais acima. Ouvia‑se a mesma música no quarto. Agora, mesmo sem os auscultadores, ele ouvia‑a.

‑ Então, rapaz. Acalma-te.

Toby abriu os olhos. O rosto acima do seu estava desfocado. Pestanejou e voltou a pestanejar. O rosto, sob uma touca azul, continuou desfocado. Na verdade, nem sequer era um rosto ‑ apenas pele, onde deveriam estar os olhos, o nariz e a boca.

Toby voltou a gritar. E mais uma vez, só houve silêncio. Ele flutuava indefeso.

- Mamã, por favor, Quero a minha mãe.

‑ Toca a descer, rapaz ‑ disse o homem sem rosto.

Toby sentiu a marquesa fria sob as costas. Sentiu apertar o cinto que lhe cruzava o peito. "É só um alto", disse para consigo. "Não magoem a minha pilinha. Vocês prometeram. Por favor, não me magoem."

‑ Está bem, Toby, agora vais adormecer. Descansa, ouve a música e conta para trás a partir de cem. Assim: cem... noventa e nove... noventa e oito...

....... noventa e nove... ‑ Toby ouviu a sua própria voz dizer as palavras, mas sabia que não as dizia em voz alta. Noventa e oito... noventa e sete... ‑ Sentiu água muito gelada a ser deitada sobre o espaço entre a barriga e o topo da perna ‑, primeiro sobre o inchaço e depois sobre a pilinha. ‑ Noventa e seis... noventa e cinco. ‑ Porfavor, parem. Estão a magoar‑me. Por favor.

‑ Já está, meus senhores, já dorme. Pronto, Jack? Equipa? - A voz, de homem, era uma voz que Toby já tinha ouvido. Mas onde? Onde? ‑ Bom, Marie, aumenta ligeiramente o volume. Está óptimo. Muito bem, vamos a isto. Faca, por favor...

A voz do médico. Sim, pensou Toby. Era ele. O médico que o examinara na sala de urgências. O médico que tinha um olhar carinhoso. O médico que lhe prometera não...

Faca? Que espécie de faca? Para quê?

Então, Toby viu‑a. A luz reflectiu‑se na lâmina de uma pequena faca prateada, á medida que esta se aproximava cada vez mais do inchaço logo acima da perna. Tentou mover‑se para se afastar, mas o cinto colocado por cima do peito prendia‑lhe fortemente os braços em ambos os lados.


Por um instante, o medo de Toby foi substituido por confusão e uma curiosidade estranha. Viu a fina lâmina a descer, até tocar apenas na pele junto á pilinha. Depois a dor, diferente de todas as que sentira antes, partiu daquele ponto e espalhou‑se por todo o corpo.

‑ Estou a sentir tudo! Estou a sentir tudo ‑ gritou. ‑ Esperem! Parem! Estou a sentir tudo.

A faca cortou mais fundo, depois começou a deslocar‑se sobre o topo do inchaço e voltou em direcção à base da pilinha. O sangue jorrava em redor da lâmina, á medida que esta ia cortando a pele.

Toby fartou‑se de gritar.

‑ Já está. Sucção, agora ‑ ouviu o médico dizer calmamente.

‑ Por favor, por favor, estão a magoar‑me. Estou a sentir tudo ‑ implorou Toby, histericamente.

Esperneou e lutou com todas as forças contra o cinto.

‑ Mamã, papá. Por favor, ajudem‑me.

‑ Metzenhaums.

A lâmina da faca luzidia, agora coberta de sangue, foi retirada da incisão que acabara de fazer. No seu lugar, Toby viu as pontas de uma tesoura penetrarem no corte, primeiro abrindo, depois fechando e a seguir voltando a abrir, aproximando‑se cada vez mais da base da sua pilinha. Cada um dos movimentos causava uma dor tão intensa que quase não se sentia. Quase.

‑ Não percebem? ‑ gritou Toby, lutando para falar no tom de argumentação de um adulto. ‑ Estou a sentir tudo. Dói. Estão a magoar‑me.

A tesoura penetrou mais fundo, próximo da base da sua pilinha.

‑ Não! Não toquem aí! Não toquem aí!

‑ Esponja, preciso de uma esponja aqui. óptimo, está melhor. Está melhor.

A tesoura avançou um pouco mais. Toby sentiu a pilinha e os testículos a serem separados do corpo.

- Não façam isso... não façam isso... - As palavras foram ditas mentalmente e não em voz alta.

De novo, com todas as forças, Toby tentou empurrar o cinto colocado sobre o peito. Por cima de si, viu o médico ‑ o homem cujo olhar fora tão carinhoso, o homem que prometera não magoar. Ele tinha qualquer coisa na mão ‑ qualquer coisa ensanguentada ‑ e mostrava‑a a todos os que ali estavam presentes. Toby esforçou‑se por compreender o que era aquilo que ele mostrava, que coisa tão interessante era aquela. Então, subitamente, percebeu. Aterrorizado, olhou para o local onde o inchaço havia estado. Tinha desaparecido, mas também desaparecera a sua pilinha... e os seus testículos. No seu lugar não restava mais nada a não ser um tremendo buraco cheio de sangue.

Nesse instante, o cinto colocado sobre o peito de Toby abriu‑se em dois. Golpeando com os braços e as pernas, atirou‑se para fora da marquesa, dando pontapés nos médicos, nas enfermeiras e em tudo o que lhe aparecia pela frente. A intensa lâmpada por cima de si estilhaçou‑se. Vários tabuleiros com instrumentos de aço brilhante caíram ao chão.


‑ Apanhem‑no, apanhem‑no! ‑ ouviu o médico gritar. Toby atacou violentamente com os pés e os punhos, derrubando uma prateleira de frascos. O sangue de um deles salpicou‑lhe as pernas. Correu para a porta, para longe da mesa dura... para longe do cinto.

‑Agarrem‑no!... Agarrem‑no!

Umas mãos fortes apanharam‑no pelos braços, mas ele deu um pontapé e conseguiu libertar‑se. Momentos mais tarde, as mãos prenderam‑no de novo. Uns braços poderosos apertaram‑lhe o peito e prenderam‑lhe o queixo.

‑ Calma, Toby, calma ‑ disse o médico. ‑ Tu estás bem. Estás em segurança. Sou eu. E o papá.

Toby torceu‑se e contorceu‑se o mais que pôde.

‑ Toby, por favor. Pára. Escuta. Estás a ter um pesadelo. É só um sonho. Mais nada. Só um sonho mau.

Toby animou‑se ligeiramente, mas continuou a lutar. A voz já não era a do médico.

‑ Bem, filho, já chega. Basta. Agora, acalma‑te. E o papá:

Ninguém te vai magoar. Estás em segurança. Ninguem te vai magoar.

Toby parou de lutar. Os braços que lhe apertavam o peito e o queixo afrouxaram. lentamente, fizeram‑no rodar. Toby abriu os olhos. O rosto do pai, carregado de preocupação, estava a um palmo do seu.

‑ Toby, consegues ver‑me? É o papá. Sabes quem sou?

‑ Toby, é a mamã. Também estou aqui.

Toby Nelrus olhou primeiro para o pai e depois para o rosto preocupado da mãe. Então, sentindo um vazio horrível no peito, deixou a mão escorregar pela parte da frente da calça do pijama. A pilinha estava ali, exactamente onde era suposto estar. Os testículos também.

Terá sido um sonho?

Muito fraco e confuso para desatar a chorar, Toby caiu no chão. O quarto começou a rodopiar. Havia brinquedos e livros por todo o lado. A estante de livros tinha sido arrastada e o tampo da secretária estava vazio. O rádio estava desfeito em pedaços. O pequeno aquário, a casa de Benny, o seu peixinho‑dourado, estava estilhaçado no tapete. Benny estava morto entre os pedaços de vidro.

Bob Nelrus estendeu os braços para o filho, mas este afastou‑se.

Com os olhos ainda fixos nos pais, Toby recuou um passo e depois subiu para a cama e deitou‑se. Mais uma vez, apalpou‑se.

- Toby, estás bem? ‑ perguntou‑lhe a mãe, suavemente.

O rapaz não respondeu. Em vez disso, encolheu as pernas, voltou‑se de lado e ficou a olhar para a parede.


 

Era domingo, 30 de Junho, e o dia estava quente e entorpecedor. Na Estrada 16 de New Hampshire, o ligeiro tráfégo da estrada em forma de serpentina que partia de Portsmouth até quase à fronteira canadiana deslocava‑se lentamente através das vagas de ar quente. Lá longe, para oeste, uma mancha de escuras nuvens de tempestade emoldurava o horizonte.

A estrada do Norte em especial numa tarde como aquela, era uma das que Zack' Iversou gostava de percorrer desde há muito tempo Já ali tinha passado pelo menos umas cem vezes, mas cada passagem pelos campos de pastagem até ao Sul, as aldeias, as colinas e por último as próprias White Mountains, originava novas visões e novas sensações.

A sua carrinha, uma amolgada caravana VW, estava apinhada de caixas de roup'as e peças de mobiliário esquisitas. Empoleirado no lugar do passageiro, Cheapdog tinha o focinho apoiado na janela e saboreava a oportunidade esporádica de ver o mundo, enquanto o pêlo era soprado para trás, afastando‑se dos olhos.

Enquanto conduzia Zack estendeu um braço e afagou a parte de trás da orelha ao animal. Com Connie fora da sua vida e quase todo o mobiliário vendido, Cheapdog era um rochedo, uma ilha num mar de mudanças e incertezas.

Mudanças e incertezas. Zack sorriu, tenso. Desde há muitos anos que os dias 30 de Junho e 1 de Julho eram sinónimos daquelas palavras. Empregos de Verão em liceus, quatro anos independentes na universidade e mais quatro na faculdade de medicina; estágio em hospitais; oito anos de estágio em cirurgia e depois em neurocirurgia ‑ tantas mudanças, tantos trintas de Junho significativos. Agora, este dia seria o último dessa série - um nitido corte entre a primeira e a segunda metade da sua vida.

No ano seguinte, a data passaria provavelmente a ser um dia como outro qualquer.

A Estrada 16 estreitou‑se e deu início a uma espécie de montanha‑russa através da zona montanhosa. Zack olhou para o relógio. Duas e meia. Nesse momento, Frank e o juiz deviam estar no clube, provavelmente no quarto ou quinto buraco. O jantar só seria depois das seis. Não era preciso ter pressa. Parou numa zona de descanso.

Cheapdog, pressentindo que esta seria uma paragem substancial, agitou‑se ansiosamente no banco.

‑ Pois é, franjinhas ‑ disse Zack. ‑ Podes desaparecer por momentos. Mas primeiro...

Retirou um livro rasgado de entre os bancos e colocou‑o sobre o tablier. Imediatamente, a agitação do cão parou. A cabeça inclinou‑se.

‑ Vejo que dás valor ao preço que é preciso pagar pela liberdade de que estás prestes a gozar. Sim, cães e cadelas, chegou o momento. ‑ Tirou uma moeda de um dólar do bolso da camisa e leu a página. ‑ Chegou o momento de fazer desaparecer a moeda, ao estilo italiano.

O livro, Magia com Moedas, de Rufo, era uma reedição de 1950 que Zack encontrara casualmente numa livraria de livros em segunda mão, em Cambridge.


Surpreenda os seus amigos... Divirta a sua família... Impressione membros do sexo oposto... Aumente a sua destreza manual.

Cada uma das quatro reivindicações, gravadas a ouro na capa, causava‑lhe um certo fascínio. Mas a última do grupo era a que mais o atraía.

‑ Não percebeste? ‑ Tentara explicar a um colega neurocirurgião, enquanto executava os exercícios do Capítulo Um. - Só ficamos na SO... quanto tempo?... Algumas horas por dia, no máximo. Precisamos de algo como isto para manter as mãos ágeis, entre operações... para aumentar a nossa destreza manual. Do modo como as coisas estão, somos como atletas que nunca treinam entre os jogos, não é verdade?

Infelizmente, apesar de o princípio por trás daquela ideia ser suficientemente nobre, a implementação deu origem a um problema bastante desconcertante. Embora as mãos de Zack fossem bastante hábeis na sala de operações, mesmo para um neurocirurgião, nem sequer conseguia executar os truques mais elementares de Rufo, ficando reduzido à prática diante de espelhos, animais e crianças que não entendessem qual era a sua vocação.

‑ Muito bem, cão ‑ disse ‑, prepara‑te. Vou omitir a conversa fiada que acompanha este número, porque sei que estás de olho naqueles vidoeiros além. Bem, coloco a moeda aqui... e viro o pulso assim, e... e voilá! A moeda desapareceu. Obrigado, obrigado. Agora, passo simplesmente a minha outra mão por cima, assim, e...

A moeda de um dólar escorregou‑lhe da mão, bateu na alavanca do travão manual e foi parar debaixo do banco.

A cabeça do cão inclinou‑se para o outro lado.

‑ Merda ‑ murmurou Zack. ‑ Foi o sol. O sol afectou‑me as mãos. Bem, desculpa, cão, mas foi só um truque.

Apanhou a moeda e depois esticou o braço para abrir a porta do passageiro.

Cheapdog saltou da carrinha e, em menos de um minuto, aliviou‑se em meia dúzia de árvores, deslizou por uma íngreme ladeira cheia de ervas e atirou‑se de barriga para dentro de um regato de montanha.

Zack seguiu‑o á distância. Era um homem alto, de bonitos olhos verdes e aspecto austero, que Connie um dia descrevera como "terrivelmente bonitão... com um ar rufia".

Caminhou junto á ladeira, exercitando a perna de modo a afastar a rigidez que a condução lhe causara no joelho debilitado e vendo Cheapdog lançar‑se como um lamikaze sobre um gaio azul e falhar.

Sabes, rapaz? pensou. Sabes que o ensaio terminou? Que não voltaremos á cidade?

Desviou o olhar para as montanhas. As Rockies, as Tetons, as Smokies, as Sierras, os Apalaches setentrionais ‑ sendo um ávido alpinista desde a adolescência, escalara todas numa ou noutra ocasião. Contudo, havia algo de especial, algo intimo e particular que sentia nas White Mountains e em mais lugar algum; pareciam enviar‑lhe uma mensagem: que o mundo e a sua vida estavam exactamente onde deviam estar.


As exigências da prática cirúrgica tinham imposto um tributo em todos os aspectos da sua existência. Mas, de todos esses compromissos e sacrificios, a inevitável redução da prática de alpinismo foi aquele que aceitou com a maior relutância. Agora, com quase trinta e seis anos, sentia‑se ansioso por recuperar o tempo perdido.

Thin Air... Tumabout and Fair Play... The Widow‑Maker... Garsan's Cliff... Cada uma das escaladas seria como voltar a encontrar um velho amigo.

Zack fechou os olhos e inspirou o ar da montanha. Durante meses tinha lutado entre a escolha de uma carreira na medicina académica e a prática de medicina privada numa pequena cidade. De todas as decisões que tomara na vida ‑ a escolha da universidade, da faculdade de medicina, da especialidade, do programa de estágio ‑, esta provara ser a mais difícil.

Mesmo depois de a tomar ‑ após ter pesado todos os prós e contras, obtido o acordo de Connie e optado por regressar a Sterling ‑ a sua débil decisão foi desafiada. A tinta do contrato com a Ultramed, Corporação de Hospitais Ultramed, ainda mal secara quando Connie anunciou começar a ter dúvidas acerca da mudança de Back Bay para o Norte de New Hampshire; acrescentara que, na verdade, estava também a ficar com medo de estar comprometida com um tipo de homem que nem sequer punha em causa uma tal mudança.

Pouco menos de duas semanas depois, o anel chegou ao seu apartamento na caixa original, atada a uma garrafa de Cold Duck.

Zack suspirou e passou os dedos pelo cabelo castanho‑escuro. Eram dedos muito expressivos ‑ vigorosos e muito compridos, mesmo para as mãos de alguém com um metro e oitenta, que se habituara a encomendar luvas especiais a um fornecedor de artigos médicos em Milwaukee. Tempos antes, aqueles dedos tinham‑no destacado na sala de operações e, antes disso, na superficie rochosa.

Olhou para noroeste e jurou ter conseguido ver Mirror; uma superficie quase só de granito, tão cheia de mica que o sol de Verão se reflectia nela como uma estrela a transformar‑se numa nova.

Lion Head... Tuckerman Ravine... Wall of Tears,... Havia muita magia nas montanhas, havia tanto a descobrir. É verdade que a vida em Sterling podia ser menos estimulante do que na cidade. Mas seria pacifica e, desde que pudesse escalar, teria animação mais do que suficiente.

E, claro, haveria a prática em si: os desafios que o esperavam por ser naquela zona o primeiro neurocirurgião desde sempre.

Em menos de vinte e quatro 1~~I_~Is. estaria no seu próprio consultório, na clínica ultramoderna dos Médicos e Cirurgiões da Ultramed, adjacente ao rejuvenescido Hospital Regional UItramed‑Davis.

Após três décadas de preparação e sacrificio, estava finalmente apto a seguir o negócio da sua vida: mostrar ao mundo e a si próprio exactamente aquilo que era capaz de fazer. A perspectiva afastou suavemente as apreensões que tinha, dispersando‑as como folhas secas.

Com Connie ou sem ela, tudo iria correr bem.

 

Pão caseiro e sopa de legumes; pâté de ganso sobre pequenas bolachas de sésamo; copos para vinho e copos de pé alto em cristal Waterford; costeletas de carneiro com geleia de hortelã‑pimenta; porcelana Royal Doulton; batata‑doce e pilau; feijão‑verde com amêndoa pelada; fina roupa branca irlandesa.


A refeição foi preparada por Cinnie Iverson. Jack sentiu uma mistura de admiração e mal‑estar quando viu a mãe, com um avental bordado por ela própria, esvoaçar entre a cozinha e a sala de jantar, colocando um prato após outro sobre a enorme mesa de cerejeira, levantando a loiça, parando para entrar e sair das conversas, e até mesmo servindo água; e ao mesmo tempo hábil e resolutamente recusando a ajuda de Lisette e a sua.

A mesa estava posta para oito pessoas, embora Cinnie raramente ocupasse o seu lugar. O juiz dominava o seu imutável lugar à cabeceira. A pesada cadeira de espaldar não era muito diferente da colocada atrás da tribuna, na sua sala do tribunal municipal. Foi dado a Zack o lugar de honra, no outro extremo da mesa, de frente para o pai. Entre eles sentou‑se o irmão mais velho, Frank, a esposa, Lísetre, as filhas gémeas, Lucy e Manhe, e Arinie Doucette, a governanta dos Iverson, actualmente viúva com setenta e muitos anos e um membro da família desde o nascimento de Frank.

Em total contraste com a animação de Cinnie, como sempre, a atmosfera á mesa era formal, com períodos de silêncio interrompidos por exclamações esporádicas. Zack sorriu para consigo, imaginando o barulhento e animado caos no refeitório do Hospital Municipal de Bóston, onde nos últimos sete anos tomara a maior parte das refeições. Fora criado nesta casa e nesta cidade e, por isso, pertencia ali; mas em relação a tudo o resto, após quase dezassete anos, era como se tivesse reunido em Bóston todos os seus haveres e mudado para outro planeta.

Zack reparou que, de todos os que se encontravam á mesa, Lisette era quem mais mudara ao longo dos anos. Antigamente uma beleza vibrante, se não frívola, usava o cabelo curto, uma maquilhagem muito leve e parecia ter‑se adaptado muito bem á sua condição de mãe e esposa. Ainda era elegante e muito bonita, mas o brilho de aventura dos seus olhos, que um dia fora para ele um foco de fantasia, tinha desaparecido. Sentou‑se entre as gémeas, á frente de Frank e Arinie, e reservou a maior parte da conversa para as filhas, controlando cuidadosamente as regras de etiqueta e sorrindo quando uma ou outra entrava na conversa sem interromper.

Lisette era um ano mais nova do que Zack e durante quase dois anos ‑ desde metade do penúltimo ano deste no liceu de Sterling até à única viagem que ela fizera para o visitar em Yale ‑ fora o seu primeiro amor real. A dor e a confusão daquele fim‑de‑semana em família em New Haven, e a percepção de como apenas seis semanas os tinham afastado, marcaram um momento decisivo nas vidas de ambos.

Durante uns tempos e após o regresso de Lisette a Sterling, telefonaram‑se esporadicamente e até escreveram algumas cartas. No entanto, tudo deixara de existir.

Por fim, ela mudou‑se para Montreal onde o atraiçoou primeiro na universidade e depois ao casar ‑ com um pedicura ou oculista, pensava Zack. Após a ruptura do casamento, ela regressou a Sterling e, passado um ano, ficou noiva de Frank. Zack foi o padrinho de casamento e das gémeas.


Tal como Lisette, Annie manteve‑se bastante calada, debicando a comida mais do que a comendo e falando apenas para se lamentar, de tempos em tempos, da artrite, das crises de tonturas, ou dos tornozelos inchados, o que a impedia de dar uma maior ajuda a "madame Cinnie". Para Zack foi difícil e algo doloroso recordar a prudente e entroncada mulher da sua juventude que, no campo atrás da casa, dava uns toques na bola de futebol e a levava a seguir aos pontapés até Frank, para que este a chutasse para o irmão mais novo.

Uma das maldições de ser médico era considerar demasiadas vezes as pessoas em termos de diagnóstico e, por isso, sempre que Zack regressava a casa e via Annie Doucette, adicionava inconscientemente um ou dois sintomas à sua lista. Hoje, Annie estava mais contraída e pálida do que nunca.

De todos os que estavam na sala, Frank era quem menos

mudara ao longo dos anos. Actualmente com trinta e oito anos, estava no quarto ano como administrador do Hospital Ultramed‑Davis. Entre outras coisas, também estava mais magro, bonito e confiante do que nunca.

- Quais são as possibilidades - perguntara Zack um dia a um professor de genética - de dois irmãos não partilharem nenhum dos genes?

O velho professor sorrira e pacientemente explicara que, com milhões de genes maternais e paternais a segregarem ao acaso para o interior do óvulo e do esperma, todos os irmãos ou irmãs eram na essência cinquenta por cento iguais e cinquenta por cento diferentes.

- Um dia devia conhecer o meu irmão ‑ respondeu Zack.

‑ Se é esse o caso ‑ afirmara o professor com um piscar de olhos ‑, então talvez fosse preferível conhecer o leiteiro da família.

A ciência acabou por triunfar, embora a noção de ele e Frank serem cinquenta por cento parecidos fosse ligeiramente menos difícil de aceitar do que a possibilidade de a mãe ter tido um filho por meio de genes que não os do juiz.

Eram quase sete horas e a refeição estava prestes a terminar. As gémeas começavam a ficar impacientes mas foram obrigadas a manter‑se sentadas, devido aos olhares de Lisette e à perspectiva da tarte de maçã da avó. Embora tivessem falado das novas funções de Zack, a conversa centrara‑se no golfe. O juiz, cego ao fastio que o tema causava em qualquer um, só relatou os pormenores da história do green dezasseis do jogo com Frank.

‑ Novecentos metros ‑ disse, entornando o copo de vinho, que foi enchido pela esposa em segundos. ‑ Talvez mais de mil. Juro, Zachary, que nunca vi o teu irmão fazer um putt como aquele... Marthe, uma menina não brinca com o vestido à mesa de jantar. Ele avança para a bola, depois olha para mim e, o mais calmamente possível, diz "o dobro ou nada". - Foi quanto, Frank? Três dólares?...

‑ Cinco ‑ respondeu Frank, sem tentar esconder o tédio que sentia.

‑ Mon dieu, cinco. Bem, deixem‑me dizer que foi por apenas três que ele deu uma tacada na bola e esta atravessou o monte e o vale, caindo exactamente no centro do buraco. Que desfaçatez. Talvez possamos ir os três no próximo fim‑de‑semana.

‑ Espere aí, juiz ‑ disse Frank. ‑ Deixe o homem em paz. Ele agora é um cirurgião do Ultramed. Está escrito no contrato: nada de golfe no primeiro ano. ‑ Virou‑se para o irmão, com as mãos erguidas em ar de troça. ‑ Estou só a brincar, Zack. Alguma vez jogaste em Bóston?


‑ Só aquele jogo em que se atira para a boca da baleia e a bola sai pela cauda ‑ respondeu Zack.

Annie deu uma gargalhada sonora, engasgando‑se ligeiramente com um pedaço de aipo.

‑ Já jogámos isso, tio Zack ‑ disse Lucy, entusiasmada. - A mamã levou‑nos. A Marthe bateu com o taco na cabeça. Quando puderes, levas‑nos outra vez?

‑ Claro que sim.

‑ Não te vais embora como das outras vezes, pois não?

‑ Não, Lucy. Vou ficar aqui.

‑ Vês, Marthe. Eu bem te disse que ele desta vez não se ia embora. Também nos levas ao McDonald's? Só conseguimos lá ir quando tu nos levas.

Zack encolheu‑se na cadeira, perante os olhares reprovadores de Lisette.

‑ às vezes, elas fazem confusão... ‑ titubeou ele.

‑ Falei com o Jess Bishop ‑ continuou o juiz. ‑ Ele é o presidente dos sócios do clube. lembras‑te dele, Zachary? Bem, não interessa. O Jess diz que, por sermos teu pai e irmão e sócios consagrados, nem sequer precisas de passar pelo processo de candidatura.

‑ Graças a Deus ‑ disse Zack que, mesmo ao ouvir as suas próprias palavras, esperou que o juiz não se tivesse apercebido do tom de gracejo na sua voz. ‑ Então, quem acabou por vencer hoje?

‑ Vencer? Porquê? Eu, é claro ‑ respondeu o juiz, mexendo‑se na cadeira. O seu nome de baptismo era Clayton, mas até a sua mulher raramente o chamava de outra forma que não juiz. Tal como ambos os filhos, tinha mais de um metro e oitenta mas, anos antes, o seu corpo atlético rendera‑se ao trabalho sedentário e às iguarias. Líder cívico e presidente do conselho de administração do Hospital Regional Davis até este ser vendido à Ultramed, o juiz tinha nada menos do que seis placas pregadas no gabinete, que o proclamavam o Homem do Ano de Sterling. Apesar de ter cerca de sessenta e cinco anos, também tinha um handicap de dez. ‑ Mas foi por pouco, Frank - continuou. ‑ Garanto-te.

‑ Por pouco ‑ resmungou Frank. ‑ Juiz, foi o senhor quem nos ensinou que "por pouco" só as granadas de mão e as ferraduras.

Annie Doucette deu novamente uma gargalhada sonora e mais uma vez o riso terminou num ataque de tosse. Zack reparou que desta vez ela massajara o peito depois de recuperar o controlo, e a sua cor estava substancialmente mais pálida do que antes.

‑ Está a sentir‑se bem, Annie? ‑ perguntou.

‑ Estou bem ‑ respondeu a mulher com um sotaque a Maurice Chevalier, que nunca mostrara a menor vontade de alterar. Baixou ligeiramente a mão, mas não por completo. ‑ Vê lá se paras de olhar para mim como se quisesses tirar‑me o fígado ou outra coisa qualquer, e continua a conversa. A partir de amanhã, terás muito tempo para brincares aos médicos. Todas as minhas amigas andam a inventar problemas cerebrais, só para poderem ir visitar‑te ao consultório.


Antes de Zack poder responder, Cinnie Iverson regressou com uma tarte em cada mão e começou a ronda à mesa, insistindo para que cada um tirasse uma fatia maior do que aquela que desejava. Annie lançou a Zack um olhar de aviso: "Não te atrevas a dizer nada que possa preocupar a tua mãe." Contudo, havia algo em relação à cor e ao aspecto da cara dela que o deixavam preocupado.

à sobremesa, a conversa foi dominada pelas gémeas, que competiam uma com a outra para dar ao "tio Jacques" o relatório mais pormenorizado do que lhes tinha acontecido na vida. Totalmente ianques por um lado da família e franco‑canadianas pelo outro, as raparigas eram bilingues e, quanto mais se entusiasmavam, mais difícil era compreendê‑las. O que fascinava e perturbava Zack era a falta de reacção recíproca entre as gémeas e o pai, ou entre Frank e Lisette.

Talvez fosse da disposição dos lugares à mesa, ou talvez Frank estivesse preocupado com assuntos do hospital, em particular com a chegada do irmão mais novo como o novo neurocirurgião das redondezas. Fosse qual fosse o motivo, Zack reparou que Frank mal dirigira uma palavra às raparigas e, que ele se lembrasse, nenhuma a Lisette. Em relação a tudo o resto, Frank era Frank: cheio de planos para expandir o campo de acção e os serviços do Ultramed‑Davis e muito atento a todos os potenciais e novos desenvolvimentos imobiliários na zona.

Ao ver o homem, ao ouvi‑lo expor os riscos e os beneficios de entrar nesta altura no mercado de acções, ou as possibilidades de transformar os prados a norte da cidade numa zona comercial, Zack não pôde deixar de ficar impressionado. Frank tinha vencido um dos maiores obstáculos da vida: o sucesso prematuro. E Zack sabia que não fora fácil.

Uma lenda em três modalidades desportivas do liceu de Sterling, eleito presidente de turma e certamente bem sucedido, foi para Notre Dame a meio de uma agitação de recortes de jornais que o destacavam como um dos maiores futuros quarterbacks do país. As notas e as pontuações do liceu foram apenas médias e os hábitos de estudo fracos, mas os treinadores e a administração do liceu de Indiana prometeram dar‑lhe todo o treino e ajuda necessários para se manter em campo. E foi o que fizeram... pelo menos até os passes se tornarem mais curtos.

A meio do segundo ano de universidade de Frank, começaram a chegar a casa cartas e telefonemas furiosos. Havia quarterbacks a mais. Os treinadores já não lhe prestavam a atenção suficiente. Os professores discriminavam‑no por ele ser um atleta. A seguir surgiu uma série de lesões inoportunas, tais como as dores nas costas, uma luxação muscular, um tornozelo torcido. Finalmente, um treinador adjunto foi fazer uma visita a Cinnie e ao juiz. Embora os pais nunca tivessem relatado a conversa, Zack conseguiu juntar os pedaços e concluir que Frank tinha desenvolvido um "problema de atitude" e preferia empurrar o adversário a controlar uma ofensiva.

A meio do segundo ano de universidade, Frank regressou a Sterling, fez exercicios, queixou‑se do tratamento que teve em Notre Dame, falou com os treinadores e com a administração da Universidade de New Hampshire e foi a festas. Uma lesão no joelho a meio da primeira época, na escola estatal, pôs fim à sua carreira de atleta.


E como se esses fracassos não tivessem sido suficientes, Frank teve de suportar a ascensão do seu irmão mais novo, cuja participação em todos os desportos, excepto no alpinismo, foi limitada por uma terrível lesão de esqui. Após esse acidente, Zack atravessou um breve período de depressão e revolta e depois, calma e firmemente, conseguiu obter uma média de notas que lhe permitiram ser aceite em Yale: o primeiro pós‑graduado de Sterling a receber tal honra.

Havia muitos motivos para Frank se curvar, tornar‑se amargo e invejoso, desligar‑se de tudo. Mas não o fez. Foi preciso mais de um ano, mas conseguiu acabar o curso. Então, para surpresa de muitos, continuou a estudar e obteve o mestrado em administração de empresas.

As paredes de expectativa erigidas pelo juiz eram de vidro muito fino mas, pouco a pouco e à sua maneira, Frank escalou‑as e era agora novamente bem sucedido, pelo menos em termos de estilo de vida, poder e realização pessoal.

Cinnie Iverson serviu a última rodada de café e as gémeas foram finalmente autorizadas a sair da mesa, quando Frank se levantou e ergueu o copo meio cheio de vinho.

‑ Um brinde - anunciou. Os outros ergueram os respectivos copos e as gémeas insistiram que os delas fossem enchidos de leite, para que pudessem participar. - Ao meu irmão mais novo, Zachary, que provou que o cérebro é sempre melhor do que os músculos, no que se refere à vida neste mundo. É bom ter‑te de novo em Sterling.

‑ Amen - disse o juiz.

‑ Amen - ecoaram as gémeas.

Zack levantou‑se e ergueu o copo em direcção a Frank, perguntando a si mesmo se mais alguém à mesa, além dele próprio, teria achado a mensagem do brinde um tanto estranha. Por momentos, o seu olhar e o do irmão cruzaram‑se. Quase imperceptivelmente, Frank assentiu com a cabeça. O brinde não fora acidental. Frank achava que a sua condição social e realização em termos pessoais se sobrepunham à licenciatura em Medicina do irmão mais novo.

‑ A todos vós - disse finalmente Zack. ‑ E em especial ao meu novo parceiro no crime. Frank, estou orgulhoso por trabalhar contigo.

‑ Amen ‑ gritaram as gémeas. - Ámen.


 

Os três, pai e filhos, sentaram‑se sozinhos à mesa. Lá fora, as nuvens de tempestade tinham‑se aproximado, trazendo com elas um anoitecer prematuro. As mulheres estavam na cozinha; Annie à mesa do pequeno‑almoço, Cirinie e Lisette junto ao lava‑louça, enchendo a máquina pela segunda vez, conversando sobre a próxima venda de bolos do Clube das Mulheres, e vigiando as gémeas, que tinham levado Cheapdog a brincar no prado.

Fiel à sua crença de que os assuntos de negócio e as mulheres devem ser separados sempre que possível, o juiz mantivera a conversa ligeira até a última, Annie, ter saído da sala. Então, depois de alguns goles de café, virou‑se abruptamente para Frank:

‑ O Guy Beaulieu veio visitar‑me ontem ‑ disse.

‑E então?

‑ Diz que o Ultramed e o tal cirurgião novo, o Mainwaring, estão prestes a despedi‑lo do hospital.

‑ O Jason Mainwaring não é novo, juiz ‑ afirmou Frank, pacientemente. ‑ Já aqui está há quase dois anos. E ninguém, nem ele, nem o Ultramed, nem eu ou quem quer que seja, está a tentar despedir o Beaulieu. A não ser o próprio Beaulieu. Se ele fosse um pouco mais cooperante e um pouco mais educado com o pessoal do hospital, nada disto estaria a acontecer.

‑ O Guy é um velho diabo casmurro ‑ disse o juiz. - Posso garanti‑lo. Mas já está nesta cidade há quase tanto tempo quanto eu e ajudou muita gente.

‑ De que estão a falar? ‑ perguntou Zack. O juiz era um homem pouco espontâneo e Zack não conseguiu deixar de pensar se haveria uma razão para ele ter adiado aquela conversa até então, depois de quatro horas de golfe.

Frank e o juiz avaliaram‑se mutuamente, questionando‑se sobre qual seria a versão da história que Zack ouviria primeiro. O desafio durou apenas alguns segundos.

‑ Há alguns tempos atrás ‑ começou o juiz, obviamente sem querer conceder de forma aberta os "quase dois anos" de Frank ‑, o Ultramed‑Davis trouxe para a cidade um novo cirurgião: um tal Jason Mainwaring.

‑ Julgo, que o conheço - disse Zack. Virou‑se para Frank. ‑ É um tipo alto e louro com sotaque do Sul? ‑ Frank concordou com a cabeça. Zack achara o homem um tanto distante mas polido, veemente e, no breve contacto que haviam tido, com bastantes conhecimentos... mais próximo do que esperaria ver num professor de um centro médico universitário do que num cirurgião geral do hospital de uma comunidade de montanha.

‑ Bem ‑ continuou o juiz ‑, segundo parece, o Guy já começara a ter problemas para conseguir que os seus doentes fossem admitidos no hospital.

Frank suspirou alto e mordeu o lábio inferior, tornando claro que só por educação não interrompia para protestar contra aquela afirmação.


‑ Cada vez mais os seus doentes, em especial os franco‑canadianos pobres, eram enviados para o hospital municipal em Clarion. Depois, começaram a correr boatos por toda a cidade sobre a competência do Guy e, de repente, todos os casos de cirurgia que pudessem ser pagos, como os dos seguros ou da Caixa de Previdência, eram entregues a este Mainwaring. Eu próprio ouvi alguns dos boatos e, deixem‑me dizer, são maldosos. Bebida, exames internos desnecessários a mulheres, ingestão de medicamentos muito fortes devido a um ligeiro enfarte...

‑ Há alguma verdade em tudo isso? ‑ perguntou Zack.

No Verão entre o segundo e o terceiro ano na Faculdade de Medicina de Yale, ele trabalhara como externo no então Hospital Regional Davis, e Beaulieu fizera todos os possíveis para o levar para a sala de operações e alimentar o seu crescente interesse pela cirurgia. Foi algo que ele nunca mais esquecera.

O juiz abanou a cabeça.

‑ Segundo o Guy, nunca houve uma queixa específica. Apenas boatos. Ele diz que agora cerca de oitenta por cento do seu trabalho é de caridade no município de Clarion e que não opera ninguém que não seja franco‑canadiano no Ultramed há quase um ano. Diz que tudo não passa de uma conspiração contra si por, em primeiro lugar, se ter oposto à venda do hospital à Ultramed.

‑ Isso é ridículo ‑ disse Frank. ‑ O Mainwaring está a ficar com os casos por ser bom e trabalhar arduamente. É tão simples quanto isto. Sabe, juiz, penso não ser justo que tome o partido do Beaulieu neste assunto.

Clayton Iverson deu um murro na mesa:

‑ Nunca mais te atrevas a dizer‑me o que é justo ou não, rapaz! ‑ exclamou. ‑ Ainda falta um mês para terminar a fase provisória do nosso contrato com a Ultramed. Para já, convenci o corpo de directores a vender‑lhes e, meu Deus, as três semanas que faltam até à reunião e votação são mais do que suficientes para os convencer a pôr em prática a nossa opção e voltar a comprar o maldito hospital.

Respirou fundo e acalmou‑se.

Zack olhou para Frank. Embora estivesse a olhar impassivelmente para o pai, tinha as mãos apertadas e os nós dos dedos brancos.

‑ E que fique bem claro ‑ continuou o juiz ‑ que não tomei o partido de ninguém. Na verdade, Frank, disse‑lhe ter ficado ofendido quando ele insinuou que estavas de certa forma envolvido nos seus problemas. Pediu‑me desculpas e tentou retirar algumas das coisas que dissera, mas estava magoado e furioso. Prometi‑lhe que teria uma conversa contigo, com ambos, sobre o assunto... que vos pediria para terem os olhos e os ouvidos bem abertos. Sinto que lhe devemos isso. Eras muito novo para te lembrares, Frank, mas aquele homem salvou‑te a vida quando o apêndice rebentou.

O punho de Frank descontraiu ligeiramente, embora Zack percebesse que ele ainda se remoía com a ameaça do juiz. Os feitios chocavam‑se mas o poder vencia e, como muito bem sabia, as maquinações políticas eram tão omnipresentes na vida hospitalar quanto nos tratamentos intravenosos e as arrastadeiras. Mas também sentiu que havia algo mais em tudo aquilo... algo virulento.

‑Annie!

O grito de Cinnie foi imediatamente seguido do ruido de loiça a cair. Devido aos reflexos desenvolvidos ao longo de anos de crise, Zack levantou‑se e correu para a cozinha, enquanto Frank e o juiz apenas começavam a reagir.


Annie Douceile encontrava‑se estendida no chão. As costas e o pescoço estavam torcidos e os membros agitavam‑se descontrolados numa convulsão muito forte.

Assim que Zack se ajoelhou ao lado da mulher, sentiu a mudança apoderar‑se dele. Tempos antes ouvira outros médicos mais velhos falar do fenómeno, mas só o sentira na pele a meio do segundo ano de estágio, quando testemunhara um ataque cardíaco num doente. Naquele momento, o mundo começara subitamente a mover‑se muito devagar. O tom de voz baixara e as palavras tornaram‑se mais compassadas; sentira a pulsação descer e todos os sentidos a subir. Fora diferente de tudo o que assistira em emergências semelhantes. Os movimentos tornaram‑se automáticos e as observações e ordens, instintivas. Vários factos e variáveis processaram‑se instantânea e simultaneamente.

Mais tarde, com o doente ressuscitado e estabilizado, soubera pelas enfermeiras que tinha agido rápida, decisiva e calmamente. Só depois de ouvir o que elas lhe disseram sobre o seu desempenho, é que percebeu completamente o que tinha feito.

Desde então, a mudança fazia parte de si.

‑ Mãe, chame uma ambulância, por favor ‑ pediu, enquanto rodava Annie para um lado a fim de evitar que ela aspirasse o conteúdo do estômago, caso vomitasse. Os dedos já estavam na parte lateral do pescoço, à procura de pulsação na carótida.

à medida que a mudança se intensificava, todos os sentimentos pela mulher enquanto amiga, pessoa querida e doente, foram substituidos pelo profissionalismo. Se viesse a ser necessário magoá‑la para a curar, então magoá‑la‑ia.

‑ Frank, o meu estojo está numa grande caixa de cartão na parte de trás da carrinha. Podes ir buscá‑lo, por favor? ‑ Por favor Obrigado. Suspeitava que o emprego destas palavras durante uma crise mantinha toda a gente mais calma, incluindo ele próprio. Um ataque cardíaco com arritmia; epilepsia; hemorragia interna súbita, originando estado de choque; hipoglicemia; um simples desmaio imitando uma forte convulsão; vieram‑lhe à mente todos os diagnósticos mais prováveis, cada um dos quais acompanhado de um algoritmo de observações e reacções necessárias.

A tez de Annie começou a perder as cores. As costas continuaram torcidas e os braços e as pernas mantiveram‑se em espasmo. Os maxilares estavam demasiado cerrados para se poder meter qualquer coisa entre os dentes. Vezes sem conta, os dedos de Zack percorreram os lados da traqueia à procura de pulsação. à mesa, ela tinha sentido uma dor no peito. Agora, Zack estava certo disso. Um ataque cardíaco com batida irregular e ineficaz ou uma paragem cardíaca completa surgiram como possibilidades após todas as outras que lhe vieram à mente.

‑ Juiz, sente‑se bem para vir até aqui dar uma ajuda? óptimo. Vou deitá‑la de costas. Se ela começar a vomitar, por favor volte a virá‑la de lado, independentemente do que eu estiver a fazer. Lisette, vê as horas, por favor, e está atenta ao relógio.


Zack deitou a mulher de costas. A convulsão continuou, embora os movimentos começassem a ser menos violentos. Voltou a verificar a pulsação, primeiro no pescoço e depois em ambas as virilhas. Nada. Com os dois punhos fechados, deu uma forte pancada no centro do peito e iniciou massagens cardíacas; Frank estava a entrar, com o estojo.

‑ Juiz, dobre qualquer coisa e coloque‑a por baixo do pescoço dela, depois deite aquela cadeira e levante‑lhe os pés, se puder. Isso. Frank, no fundo da mala há algumas seringas com agulhas já colocadas. Preciso de duas. Também encontrarás uma bolsa de cabedal com frascos de medicamentos. Preciso de Valium e de adrenalina. Nesse, deve ler‑se "epinefrina". Mãe, chamou a ambulância? óptimo. Quanto tempo levam?

‑ Cinco minutos, no máximo.

‑ Frank, sabes aplicar os primeiros socorros?

‑ Fiz o curso duas vezes.

- óptimo. Substitui‑me, por favor, enquanto tento dar‑lhe medicamento para parar a convulsão. Não te preocupes

com a respiração boca‑a‑boca até ela parar. Faz apenas a massagem. Estás a fazer correctamente. Todos estão a agir correctamente. ‑ Zack colocou os dedos sobre a artéria femoral. - Com um pouco mais de força, Frank, por favor ‑ disse. - O tempo, Lisette?

‑ Pouco mais de um minuto.

Sem sequer aplicar um torniquete, Zack injectou Valium e adrenalina numa veia da curvatura do braço de Annie Doucette. Em segundos, a convulsão parou. Frank continuou a massajar, enquanto Zack se debruçou sobre a mulher e administrou meia dúzia de respirações boca‑a‑boca. Momentos mais tarde, a própria Annie respirou uma vez.

‑ Pára, Frank, por favor - pediu Zack, enquanto procurava de novo sentir alguma pulsação na carótida. Desta vez, sentiu uma... lenta e fraca, mas definitiva. Verificou‑a na virilha. As pulsações em ambas as artérias femorais eram palpáveis. De novo, a mulher inspirou e voltou a inspirar. Vamos, Annie, disse mentalmente. Respira outra vez. Só mais uma vez.

à volta do braço dela colocou uma braçadeira para medir a tensão arterial e, depois, com uma mão prendeu o estetoscópio no lugar, enquanto com a outra voltou a apalpar o pescoço da mulher.

‑ Oiço alguma pressão ‑ anunciou em voz baixa. ‑ Não é muita, mas por agora é suficiente.

A respiração de Annie ainda era fraca, mas muito mais regular. Suave, mas firmemente, ela começou a gemer. Os lábios estavam escuros, mas a terrível palidez da sua pele tinha diminuido. Nesse momento, ouviram a sirene da ambulância e, segundos mais tarde, os faróis amarelos reflectiram‑se na janela da sala de estar.

Zack olhou para o irmão mais velho, o qual estava ajoelhado do outro lado da mulher. Por instantes, recordou‑se de dois garotos, ajoelhados à frente um do outro, num terreno vazio e empoeirado, a jogar aos berlindes.

Durante dez ou vinte segundos, nenhum dos homens se moveu ou falou. Então, Frank estendeu o braço e tomou a mão do irmão.

‑ Bem‑vindo a Sterling – disse.

 

A ambulância era uma das muitas carrinhas bem equipadas que pertenciam ao Ultramed‑Davis e operadas pelo Corpo de Bombeiros de Sterling. Zack sentou‑se atrás, ao lado de Annie, vigiando o monitor enquanto o veículo descia a estreita estrada montanhosa em direcção ao hospital. Um jovem paramédico, impressionantemente eficaz, ajoelhou‑se ao seu lado, verificando a pressão arterial todos os quinze ou vinte segundos.

Sterling, em New Hampshire, era pequena em vários aspectos, mas Zack notou a influência do Ultramed na resposta da equipa de urgências. Praticava‑se a medicina das grandes cidades no mais perfeito sentido das palavras. Annie ainda estava inconsciente, apesar de a respiração parecer menos forçada e a pressão arterial estar a subir lentamente.

- Oitenta sessenta - disse o paramédico. - Começa a ser mais fácil ouvir.

Zack anuiu e ajustou o tubo intravenoso que o jovem introduzira impecavelmente e mais depressa do que ele próprio o teria feito.

Frank ficara para trás, a fim de cuidar da família e contactar um cardiologista. Encontrar‑se‑íam mais tarde no hospital.

Zack sentia‑se tenso, mas também estava emocionado e animado. Quando tudo corria bem, não havia sensação que se comparasse. Vamos, meu caro Watson! Ojogo começou. Zack gostava da citação e muitas vezes pensava se Arthur Conan Doyle, médico, não teria transferido para o herói detective a energia da sua experiência em urgêncías médicas.

Depois de um breve percurso na estrada principal, a ambulância abrandou e virou para a longa pista de circulação do hospital. Um enorme letreiro iluminado na base da pista anunciava: HOSPITAL REGIONAL ULTRAMED‑DAvIS COMUNIDADE E CORPORAÇãO AMERICANA A TRABALHAR EM CONJUNTO PARA A MELHORIA DE TODOS.

Zack sorriu e perguntou a si mesmo se seria o único a achar piada ao estilo presunçoso da declaração.

A Melhoria de Todos.

Certamente que a Corporação de Hospitais Ultramed e o Hospital Regional Davis jamais podiam ser acusados de ambição. No entanto, apesar de ter algumas preocupações quanto ao facto de trabalhar para um componente daquilo a que alguns chamavam complexo médico‑industrial, as conversas com Frank e o juiz e as investigações sobre o hospital e respectiva empresa materna não lhe forneceram motivos para duvidar da declaração, ainda que audaciosa.

O Ultramed‑Davís, actualmente um moderno estabelecimento com duzentas camas, tinha um passado invejável, que remontava à viragem do século, quando as Irmãs da Caridade, instaladas no Quebeque, colocaram dez camas numa enorme casa doada, à qual deram o nome francês de Hôpital St. Georges. Ao longo das décadas seguintes, foram acrescentadas alas de tijolo até a casa velha ser, por fim, totalmente substituida. A capacidade do hospital aumentou para cinquenta doentes e, mais tarde, para oitenta. Em 1927, foi estabelecida a Escola de Enfermagem St. Georges e antes de fechar, no início dos anos 70, formou mais de 350 enfermeiras.


Em meados de 1971, a propriedade e o controlo administrativo do St. Georges foram transferidos das Irmãs da Caridade para uma corporação comunitária sem fins lucrativos, chefiada por Clayton Iverson, que já era juiz do circuito do município de Clarion. Foi‑lhe então atribuido o nome do Reverendo Louis Davis, o pastor que doara á cidade a estrutura inicial.

Ao longo dos anos seguintes, a sucessão de administradores inaptos, a maioria dos quais utilizando o Hospital Regional Davis como trampolim para lugares superiores, originou uma série de decisões infelizes, optando com muita frequência por projectos e beneficios pessoais que pareciam progressistas, mas que não os ajudavam a subsistir financeiramente.

Gradual mas inexoravelmente, o apoio comunitário ao estabelecimento foi diminuindo e os benfeitores tornaram‑se escassos. Os médicos mais antigos começaram a reformar‑se antecipadamente, e a falta de incentivos fazia com que os jovens formados não ocupassem os seus lugares. A falência e o fecho passaram a ser mais do que meras possibilidades teóricas.

Foi então que, com os lobos a uivar à porta do hospital, a Ultramed apareceu em cena. Subsidiária da muito diversificada RIATA Internacional, a Ultramed atacou o corpo de directores do hospital com projecções de sudes, revistas, relatórios de acções, gráficos de papelão e mais informações financeiras sobre o estabelecimento, que nem mesmo o mais diligente membro do corpo de directores possuía.

Suspeitando dos forasteiros e temendo perder o controlo de um empreendimento que, durante a maior parte do século, fora o coração da comunidade, a maioria dos directores opôs‑se à venda, preferindo fazer outra união e mais uma tentativa para que tudo corresse bem.

Clayton Iverson, citando aquilo a que chamava "escrita vermelho‑sangue na parede", sabia que a comunidade não tinha alternativa senão vender. Com as suas próprias palavras animadoras, convenceu um por um os membros do corpo de directores, lísonjeando, discutindo e recolhendo indicadores. No fim, foi com orgulho que informou Zack que o voto tinha sido unânime. Unânime, isto é, excepto um. Só Guy Beaulieu continuara a opor‑se, embora por respeito ao juiz não tivesse sequer votado.

Apesar de não ser pessoa para soltar o poder, o juiz impôs duas condições à organização em troca da venda do hospital: um período provisório de quatro anos, após o qual o corpo de directores poderia voltar a comprar O estabelecimento com todos os melhoramentos que tivessem sido feitos, pelo preço original de seis milhões de dólares; e a proposta firme do filho para a posição de administrador.

Quase como Zack concluíra com base no que o pai lhe contara, a seguir a uma série de entrevistas exaustivas, a Ultramed seleccionou Frank entre uma dúzia de candidatos... grande parte deles com uma extensa experiência hospitalar.

Essa decisão, fosse qual fosse o motivo, provou ter sido brilhante.


Orquestrada por Frank e auxiliada pela prática de negócios e técnicas de relações públicas, a reviravolta no hospital foi imediata e notória. Novos equipamentos e novos médicos sublinharam o lema da organização, "Mudar para Melhor", e os restantes antagonistas do estabelecimento, principalmente nos sectores comunitários mais pobres e não assegurados, tiveram cada vez mais dificuldade em descobrir uma plataforma a partir da qual pudessem dar voz às suas preocupações.

Em apenas alguns anos, o Hospital Ultramed‑Davis passou de um lugar atrasado para a vanguarda dos cuidados de saúde.

‑ Segure‑se, doutor ‑ disse o condutor da ambulância, virando‑se para trás, para Zack. ‑ Chegámos.

Zack agarrou‑se à maca de Anie, enquanto o homem fazia uma curva apertada e recuava para o bem iluminado parque das ambulâncias. Alertados pelo rádio da ambulância, um grupo de três enfermeiras de bata azul e uma de bata branca esperavam na plataforma de cimento.

Antes mesmo de Zack poder identificar‑se, duas enfermeiras, com uma eficiência notável, retiraram da ambulância a maca de Annie e correram com ela para a ala das urgências.

Zack seguiu a maca até uma sala bem equipada onde se lia simplesmente TRAUMA e, da porta, ficou a ver a equipa transferir Annie para uma maca hospitalar, trocar os tubos de oxigénio e cabos de monitor para a consola do hospital, e iniciar um rápido acesso aos seus sinais vitais. Uma enfermeira, aparentemente a chefe, fez uma breve observação do peito de Annie e em seguida tomou o lugar aos pés da cama, supervisionando o estado dela.

‑ Minha senhora ‑ disse Zack à mulher, que trazia uma capa de laboratório por cima da bata. ‑ Posso dar‑lhe uma palavra?

A mulher voltou‑se e Zack sentiu uma imediata faisca de interesse. Segundo os seus cálculos, deveria ter trinta e pouco anos, quando muito, tinha cabelo louro‑claro, possuia traços finos e muito femininos, e uns olhos azul‑esverdeados vibrantes e quase cintilantes. Instintivamente e contra a sua maneira de ser, dada a situação, Zack olhou para a mão esquerda da mulher. Não usava anel.

‑ Sou... o doutor Iverson, Zachary Iverson - disse. Teria mesmo gaguejado? ‑ Sou um neurocirurgião prestes a fazer parte deste corpo clínico a partir de amanhã. A mulher que acabámos de trazer e... quero dizer, foi... uma espécie de minha governanta quando eu era jovem. Minha e do meu irmão Frank.

‑ Eis um nome que reconheço ‑ afirmou a mulher, inclinando a cabeça para um lado, como se estivesse a apreciar um quadro num museu.

‑ Sim ‑ disse Zack. Passaram‑se vários segundos até perceber que não tinha acabado de explicar o que queria. Pigarreou. ‑ Bem. O Frank disse que ia pedir a um cardiologista... um tal doutor Cole, julgo que foi esse o nome que ele me disse... para vir examinar a Annie. Já chegou?

‑ Não ‑ respondeu a mulher, pensativamente. ‑ Ainda não, senhor doutor.

A expressão dela tornou‑se ao mesmo tempo esquiva e desafiadora, e Zack, que normalmente não prestava atenção às tentativas de interacção não verbal das mulheres, sentiu‑se mal preparado para responder com uma expressão própria.


‑ Compreendo ‑ disse por fim, perguntando a si mesmo se pareceria tão atrapalhado e inquieto quanto se sentia. O seu ego espicaçava‑o a ser agressivo... a lembrar à mulher que, embora ela o pudesse ter afastado momentaneamente, pelo menos até à chegada do Dr. Cole era ele quem comandava. Voltou a pigarrear e, inconscientemente, tomou uma posição mais altiva. ‑ Bem, então ‑ continuou, num tom um pouco mais oficioso do que pretendia ‑, é capaz de pedir a alguém que volte a chamá‑lo? Estarei ali dentro com Mistress Doucette. Mande‑o para aqui assim que chegar. E mais: é capaz de pedir um electrocardiograma e uma radiografia torácica?

‑ Com certeza, senhor doutor ‑ respondeu a mulher, enquanto ele passava por ela e entrava na sala.

Bravo, aplaudiu o ego. Reagiste bem. Olhou por cima do ombro. A mulher ainda ali estava.

‑ Por favor, chame também alguém do laboratório ‑ ordenou, desejando que o olhar dela deixasse de lhe sorrir daquela maneira. ‑ Análises de rotina.

‑ Com certeza ‑ respondeu ela. ‑ Enzimas cardíacas também?

Maldita frieza a dela, pensou Zack:

‑ Sim, claro ‑ respondeu. ‑ Eles que tragam também tubos extra. O doutor Cole poderá pedir tudo o mais que for necessário, quando aqui chegar.

Dirigiu‑se para a cabeceira da cama, sem esperar a resposta ao seu pedido e esforçando‑se por não olhar para trás.

Os olhos de Annie, ainda fechados, começavam a mover‑se.

‑ Sou o doutor Iverson ‑ disse às duas enfermeiras que cuidavam dela. ‑ Como é que ela está?

‑ A tensão subiu para cem sessenta ‑ respondeu uma delas, uma mulher robusta e matrona de cinquenta e alguns anos. Já mexeu os braços e as pernas e parece estar prestes a acordar.

‑ óptimo ‑ disse Zack, percebendo que pelo menos uma parte do pensamento não estava focado no assunto que tinha em mãos. Colocou o estetoscópio e auscultou o coração e os pulmões de Annie. ‑ Annie, sou eu, o Zack ‑ disse‑lhe ao ouvido. ‑ Consegue ouvir‑me?

Annie Doucette gemeu. Então, quase imperceptivelmente, ela concordou com a cabeça.

‑ Você desmaiou, Annie. Agora está no hospital e vai ficar boa. Compreende? ‑ Outra concordância. ‑ Muito bem. Descontraia‑se e descanse. Está a reagir bem. ‑ Virou‑se para a enfermeira. ‑ O doutor Cole deve estar a chegar. Até lá, vamos continuar a fazer o que estávamos a fazer.

A enfermeira olhou para ele de um modo esquisito e depois fixou a porta. Zack seguiu‑lhe o olhar e deu consigo a confrontar os enigmáticos olhos azuis‑esverdeados. Desta vez, contudo, a desconcertante mulher que se encontrava atrás deles aproximou‑se e estendeu a mão.

‑ Doutor Iverson, sou a doutora Suzarine Cole ‑ disse simplesmente.

A expressão dela foi totalmente profissional, mas tinha um inconfundível olhar brincalhão.

Zack sentiu as faces a corarem quando lhe estendeu a mão e cumprimentou.

‑ Peço desculpa ‑ murmurou. ‑ Foi estupidez presumir... quero dizer, não era exactamente...


‑ Eu sei ‑ replicou ela. O seu tom de voz sugeriu um pedido de desculpas por ter permitido que ele cavasse um buraco assim para si próprio. ‑ Tenho a certeza que foram estas roupas que o confundiram. ‑ Apontou para a bata azul. ‑ Mas acabei mesmo agora de colocar um pacemaker. ‑ Com a cabeça indicou Annie, que estava totalmente desperta e começava a olhar em redor. ‑ Parece que fez um trabalho excelente para ressuscitar esta mulher, doutor Iverson. Parabéns.

 

Era quase meia‑noite. Zack Iverson sentou‑se sozinho na sala dos médicos nas traseiras da ala das urgências, bebendo uma chávena de café morno, revendo aquele que talvez tivesse sido o 30 de Junho mais notável de todos e procurando acalmar as suas fantasias descontroladas em relação a Suzanne Cole.

Foram precisas muitas horas para arranjar uma cama para Annie na unidade de cardiologia e transferi‑la para lá. Durante esse tempo, Zack ficou ao fundo a ver Suzanne trabalhar: controlava a perigosa arritmia cardíaca da mulher, procedia ao controlo de tratamentos complexos contra os efeitos secundários, verificava a leitura do monitor, revia os resultados das análises, parava subitamente para limpar a testa de Annie ou afastar‑lhe uma madeixa de cabelo da testa, ou para simplesmente debruçar‑se a fim de a encorajar com alguma palavra, murmurada ao ouvido.

Ao contrário do que Zack imaginara com base na frieza do encontro inicial, ela agia de uma forma bastante tensa e impetuosa durante os momentos críticos, movendo‑se constantemente de um lado para o outro da cama, examinando e voltando a examinar, para se certificar de que as suas ordens estavam a ser correctamente cumpridas. No entanto, apesar de muitas vezes parecer estar no limite, nunca perdeu o controlo e viu‑se claramente que as enfermeiras gostavam da sua maneira de ser e, ainda mais importante, que ela confiava nelas.

Quem és tu? interrogou‑se vezes sem conta, enquanto a via trabalhar. O que fazes aqui no mato?

O juiz e Cinnie ligaram duas vezes para saberem notícias e, por volta das dez, apareceu Frank. Parecia inquieto e irritado e, apesar de não se referir ao episódio, Zack sentiu que ainda estava bastante aborrecido com os comentários e a ameaça mal dissimulada do juiz. Apesar de mencionar a necessidade de estar junto das gémeas durante a violenta tempestade que acabara de irromper, só foi para casa meia hora mais tarde. Mas antes da sua partida, Zack arranjou uma maneira, que esperou parecesse desinteressada, de sacar dele algumas informações em relação a Suzanne Cole.

Especializada em Dartmouth e membro do corpo clínico do Ultramed‑Davis há quase dois anos, tinha trinta e três ou trinta e quatro anos, era divorciada e mãe de uma rapariga de seis anos. Além disso, juntamente com outra divorciada da cidade, era proprietária de uma pequena loja de peças de arte e artesanato.

Com algum sucesso, Zack tentou obter informações mais subjectivas sobre ela, mas Frank, distraido e ansioso por partir, nem sequer percebeu.


Agora que ficara sentado sozinho, Zack perguntou a si próprio se valeria a pena esperar mais tempo que a mulher terminasse o trabalho na unidade e, tal como lhe prometera, parasse para tomar "um pouco de cafeína". As enfermeiras tinham‑lhe dito que não era invulgar Suzanne, como a tratavam, passar a noite no hospital quando tinha um doente particularmente em risco, e nessa noite, com Annie e o caso do pacemaker, ela tinha dois.

Quem és tu? O que fazes aqui?

O estado de fascinação por uma mulher era algo com que Zack não se sentia familiarizado nem confortável. Devorador de livros durante os anos de estudo e virgem até ao penúltimo ano da universidade, tivera um número razoável de namoradas e alguns romances de curta duração depois de Lisette, mas nenhuma relação prolongada até conhecer Connie. Em tempos descrevera a sua vida social de estudante como uma sucessão de telefonemas para mulheres, um dia após elas terem conhecido alguém especial.

Connie era cinco anos mais nova do que ele, mas exibia um mundanismo e uma sofisticação que ele sentia faltarem na sua própria vida. Licenciara‑se em Administração de Empresas na Northwestern e possuía uma posição administrativa numa das maiores empresas da cidade, um apartamento na Back Bay, um BMW prateado, amigos na orquestra sinfónica e interesse por pintores impressionistas. "O Pissarro tem mais profundidade e mais energia numa única pincelada, do que o Renoir numa dúzia de telas, não achas?") e por filmes estrangeiros ("Zachary, se parasses de insistir sempre no enredo e te concentrasses mais na universalidade das personagens e no talento técnico do realizador, este filme teria mais significado para ti.").

De tempos a tempos, alguns amigos diziam‑lhe que aquilo que observavam talvez fosse uma união incompatível, mas ele discordava enumerando os novos conhecimentos que Connie lhe trouxera para a vida. Nunca teve a certeza se amava verdadeiramente a mulher ou não, mas não havia dúvida de que, durante a maior parte do tempo em que estavam juntos, ele ficava absolutamente enfeitiçado com a beleza, a autoconfiança e o estilo dela.

A decisão de interromper o noivado magoara‑O, mas não tão profundamente quanto pensara no início. E durante os meses seguintes, passara todo o tempo livre a pilotar o avião telecomandado que construíra no liceu, a fazer exercícios para poder voltar a escalar rochedos, a passear a pé com Cheapdog e a andar a cavalo com amigos à beira‑mar, em Cape... mas nem um minuto numa galeria ou fechado em combate com um filme estrangeiro.

‑ Olá.

Sobressaltado, Zack derrubou a chávena de plástico, entornando o que restava do café e formando uma pequena poça sobre o verniz da mesa.

‑ Olá ‑ respondeu, enquanto Suzanne Cole retirava um monte de guardanapos de cima de um balcão próximo e os colocava sobre o líquido entornado. Será que nunca mais acabaria com a sua inépcia diante daquela mulher?

‑ Tudo indica que talvez tenha atingido o limite de cafeína por hoje ‑ afirmou ela.

Trocara a roupa por um traje de rua, calças cinzentas e uma camisola à pescador, de lã grossa... e tinha um aspecto tão fresco como se estivesse a começar o dia.

‑ Na verdade ‑ disse ele ‑, utilizo a cafeína para anular a minha inerente hipertensão. Penso que me acalma.

Ela sorriu.


‑ Conheço a síndroma. Estou admirada por ainda o encontrar aqui, apesar de amanhã ser o seu primeiro dia de trabalho e de tudo o resto.

‑ Quis ter a certeza de que a Annie estava fora de perigo. Ela é muito especial para mim e para a minha família. Além disso, ontem terminei o meu estágio. Provavelmente passarão meses até que a minha química interna exija algo mais do que uma soneca de quinze minutos numa poltrona.

‑ lembro‑me perfeitamente dessas poltronas - disse Suzanne, apoiando‑se no balcão. - Há uma velha em castanho desbotado na sala dos doentes cardíacos de Hitchcock que, suspeito, um dia terá um letreiro a dizer: "Suzanne Cole dormiu aqui... e só aqui..." Então, está à espera de um relatório de evolução. Bem, as notícias são boas. Pelo menos por agora. A sua Annie está acordada e estável, sem qualquer deficiência neurológica que eu pudesse identificar, embora talvez você possa examiná‑la de manhã. Na verdade, penso que será a sua primeira consulta, se estiver de acordo. Disse que ia praticar neurologia e neurocirurgia, não foi?

‑ Absolutamente. Gosto quase tanto de puzzles quanto de sangue e de entranhas.

‑ Não fala como um cirurgião ‑ afirmou ela. - Os que conheço têm letreiros nas salas onde se lê: "Cortar é curar" e "Todo o mundo é pré‑operatório."

‑ Também tenho disso. Acredite. Só que, como um erudito

cirurgião do Renascimento, o meu diz: "Quase todo o mundo é

pré‑operatório." ‑ Com o pé afastou uma cadeira da mesa. - Tome, sente‑se.

‑ Desculpe, mas não posso - respondeu ela. ‑ Tenho de ir‑me embora. Mistress Doucerte foi a minha terceira admissão desta semana e amanhã será um dia muito ocupado para mim. Também devia ir dormir um pouco para estar em boa forma para a minha consulta. Agora, boa noite. - Vestiu o casaco e dirigiu‑se à porta.

‑ Espere - disse Zack que, mesmo ao ouvir a sua própria voz, percebeu que a ordem vinha de algures fora da sua sensatez... de algures no meio do rodopio das suas fantasias.

- Sim?

Virou‑se para ele. A escuridão dos olhos e a expressão do rosto alertaram‑no para não avançar mais. Ele recebeu a mensagem demasiado tarde.

‑ Eu... hum... estava a pensar se um dia destes poderiamos jantar juntos, ou algo do género.

‑ Lamento - respondeu, aborrecida. ‑ Obrigada, mas não.

As fantasias de Zack deixaram de rodopiar e começaram a flutuar até ao solo, como penas.

‑ Oh - disse, sentindo‑se subitamente muito envergonhado. ‑ Não quis... O que quero dizer é... pareceu‑me...

‑ Zack, peço‑lhe desculpas por ter sido tão brusca. Já é tarde e estou exausta. Agradeço o convite, agradeço mesmo. E sinto‑me lisonjeada. Mas... não saio com as pessoas com quem trabalho. Além disso, estou comprometida com outra pessoa.

A última pena tocou no chão.

Zack encolheu os ombros

‑ Bem, então... - Procurou mostrar‑se animado. - Penso que devo esperar que apareça muita gente no hospital com doenças cardíacas e problemas neurocirúrgicos, não é assim?

Suzanne estendeu o braço e apertou‑lhe a mão:

- Estou ansiosa por trabalhar consigo ‑ afirmou. - Sei que seremos fantásticos.


Nesse momento, no outro extremo da ala das urgências, um homem começou a gritar:

‑ Não! Eu não vou! Vou morrer. Vou morrer!

Os dois correram em direcção ao local do distúrbio; tratava‑se de um velho de setenta anos, segundo os cálculos de Zack, a quem a enfermeira, o médico das urgêncías e um guarda da segurança fardado tentavam passar da maca para uma cadeira de rodas.

O homem, de longos cabelos muito prateados e barba muito cerrada, lutava por permanecer onde estava. O olhar de Zack caiu sobre as calças de algodão saijado e camisa de flanela, manchada de areia, suor e óleo, e o par de botas esfarrapadas e sujas de óleo. O braço esquerdo do velho estava firmemente atado ao peito com um imobilizador de ombro; os tecidos das faces e em redor do olho direito estavam muito inchados devido a contusões recentes.

‑ Não! ‑ voltou a gritar. ‑ Não me tirem daqui. Vou morrer se voltar para lá esta noite. Por favor. Só uma noite.

‑ O que se passa? ‑ perguntou Zack.

O médico das urgêncías, um gorducho e antigo médico de clínica geral na cidade, chamado Wílton Marshfield, soltou a presa e o velho voltou a deitar‑se na maca.

‑ Olá, Iverson, doutora Cole ‑ disse, abanando a cabeça. - Julguei que já tivesse ido para casa.

‑ Estávamos prestes a ir ‑ disse Zack. ‑ Há algum problema?

Conhecia Marshfield, um médico relativamente competente, formado numa escola que já não existia há anos, e ficara surpreendido ao vê‑lo a trabalhar na sala de urgêncías. Durante uma conversa que tinham tido antes nessa noite, o homem explicara que Frank o convencera a não se reformar até o problema do pessoal clínico das urgências ficar resolvido. "Arrancou‑me do refugo da medicina e ofereceu‑me um salário tão bom quanto o meu melhor ano no consultório", foi como se expressou.

‑ Claro que não, tudo corre bem ‑ respondeu Marshfield. ‑ Só que aqui o velho Chris Gow não compreende que o Ultramed‑Davis é um hospital e não o raio de um hotel.

‑ O que foi que lhe aconteceu? ‑ perguntou Suzanne.

‑ Nada tão grave quanto parece ‑ respondeu Marshfield, sem disfarçar o desdém. ‑ Apenas bebeu um tanto a mais da

bebida que prepara no barracão dele e caiu nos degraus da frente. Fracturou o braço junto ao ombro, mas nada podemos fazer excepto colocar gelo e imobilizá‑lo. As radiografias dos ossos faciais dão todas resultados negativos, assim como todos os restantes exames. Temos a ambulância preparada para o levar para casa, mas o velhote não nos deixa tirá‑lo da maca sem lutar. Mas vamos tratar do assunto. Não se preocupe.

Suzanne hesitou por um momento, como se quisesse comentar a situação, mas concordou com a cabeça e recuou um passo.

Contudo, Zack passou pelo médico corpulento e aproximou‑se da cabeceira.


‑ Mister Grow, sou o doutor Iverson - disse. O velho olhou para ele, mas nada disse. O rosto, sob a barba e a sujidade, tinha uma qualidade imutável e quase serena, mas havia uma tristeza no olhar que Zack vira muitas vezes durante os anos em que cuidara dos doentes mais necessitados do Municipal de Bóston... Uma tristeza originada pela solidão e desespero. O medo que se via também não era pequeno. ‑ Tem muitas dores?

‑ Segundo ele, não ‑ respondeu o homem, ainda a respirar profundamente devido às lutas. ‑ Pergunto a mim mesmo qual foi a última vez que ele caiu nas escadas como eu e partiu o braço.

‑ Com quem vive?

O velho deu uma gargalhada de desolação, gemendo de dor. Depois virou a cara para o outro lado.

Zack olhou para Marshfield à espera de uma resposta.

‑ Vive sozinho numa barraca, no fim da antiga rua de toros de madeira, à saída da duzentos e dezanove.

‑ Tem telefone, Chris?

O homem voltou a rir.

‑ Como veio para cá?

‑ Como julga que vim?

‑ Um camionísta encontrou‑o sentado junto à estrada e trouxe‑o para cá - explicou Marshfield. ‑ Chris não é propriamente um desconhecido. Corta madeira. É chamado periodicamente e corta‑se a si mesmo em vez de cortar a madeira. ‑ Riu com a sua própria piada e pareceu não notar que mais ninguém se juntou a ele. ‑ Cosemo‑lo e mandamo‑lo para casa até à próxima vez.

Zack olhou para o velho. Haveria um estado mais triste do que estar doente ou muito ferido e viver sozinho... sem sequer poder esperar que alguém aparecesse para ajudar?

‑ Porque é que ele não pode ser admitido por um ou dois dias? - perguntou. ‑ Há camas livres?

‑ Há camas disse Marshfield ‑, mas aqui o velho CIrris não tem qualquer tipo de seguro e, a não ser que o problema seja grave, que não é, ele vai para Clarion, se o quisermos mandar para lá, ou vai para casa.

- E se um médico interno insistir em admitir alguém que não possa pagar?

Marshfield encolheu os ombros:

- Não acontece. Se acontecesse, julgo que o médico teria de responder perante a administração. Olhe, Iverson, você não estava cá quando este hospital admitiu todos os Toms, os Dicks e Harrys que apareciam por aqui, independentemente de poderem ou não pagar, mas devo dizer‑lhe que era uma terrível confusão. Semanas houve em que não se conseguia realizar os pagamentos, nem sequer adquirir equipamento novo.

- Este homem fica - afirmou Zack.

O médico das urgências tornou‑se vermelho.

- Já lhe disse que tinhamos tudo sob controlo ‑ insistiu.

Zack olhou para o velho. Mandá‑lo para casa, para uma barraca isolada sem telefone e provavelmente sem comida, era contra todos os seus instintos de médico.

‑ Sob controlo ou não ‑ declarou calmamente ‑, ele fica. Admitam‑no para mim como... má nutrição e síncope. Eu preencho a baixa.

As bochechas de Marshfield tornaram‑se rubras.

‑ É o seu maldito funeral ‑ replicou. ‑ E será você quem vai ser chamado ao tapete pela administração.

‑ Penso que o Frank irá compreender ‑ disse Zack.

Desta vez, Marshfield deu uma sonora gargalhada.

‑ Existem por aí alguns médicos à procura de emprego por terem pensado o mesmo, Iverson.


‑ Como já disse, ele é admitido.

‑ E como eu disse, é o seu funeral. Está bem, - Tommy disse ao guarda. ‑ Pode continuar as suas rondas. Aqui o doutor Serviço Social está decidido a aprender as coisas da maneira mais difícil.

Deu meia volta e afastou‑se.

‑ Chris, você vai ficar pelo menos esta noite ‑ disse Zack, pegando na mão sã do homem. ‑ Voltarei dentro de minutos para verificar como está.

O homem, perplexo com a súbita mudança da sua sorte, apenas conseguiu olhar para ele e concordar com a cabeça. Mas os cantos dos olhos brilhavam.

Zack virou‑se para Suzanne.

‑ Venha ‑ disse. ‑ Acompanhá‑la‑ei até lá fora. Bem preciso de apanhar ar fresco.

Atravessaram as portas automáticas e dirigiram‑se para a plataforma das ambulâncias. Uma chuva firme e fustigada pelo vento precipitou‑se sobre o pavimento cor de carvão.

‑ Acho que tenho de fazer alguns ajustes se quiser sobreviver aqui ‑ comentou, tremendo momentaneamente de frio.

Suzanne puxou a aba do casaco para cima da cabeça.

‑ Faça‑nos um favor ‑ disse. ‑ Não faça senão os ajustes que forem absolutamente necessários. O que fez ali dentro foi muito simpático.

‑ Com seguro ou sem ele, aquele velhote já pagou o que devia.

‑ Talvez ‑ disse Suzanne. ‑ Sim, talvez já tenha pago. Bem, vejo‑o de manhã.

‑Sim.

Ela virou‑se, deu alguns passos e tornou a virar‑se.

‑ Zack, quanto ao jantar. Que tal na quarta‑feira à noite? Em minha casa.

Zack sentiu a pulsação fugir.

‑ Julguei que não saía com os homens com quem trabalha!

‑ Não há regra sem excepção ‑ respondeu ela. ‑ Você próprio sublinhou isso ali dentro, não foi?

‑ Sim. Sim, julgo que o fiz. E o seu... outro compromisso?

Ela afastou a aba do casaco da testa e sorriu, primeiro com os olhos e depois com os lábios.

‑ Menti ‑ afirmou.


 

Lisette Iverson encontrava‑se junto às portas de vidro da varanda do seu quarto, estremecendo quando meia dúzia de relâmpagos atravessaram o céu negro sobre o vale do rio Androscoggin. Lá em baixo e para sul, Sterling incandesceu misteriosamente sob o relâmpago. Um bombardeio de trovões ressoou, e depois explodiu, abanando a elevada costa montanhosa em forma de A como se fosse um brinquedo.

Apertou o roupão e depois, nas pontas dos pés, percorreu o corredor para ver como estavam as raparigas. Misericordiosamente, após duas terríveis horas a lutar contra os fantasmas da tempestade, ambas tinham adormecido. A própria Lisette nunca conseguira suportar muito bem as tempestades e não sentia qualquer remorso por ter transmitido esse medo às filhas.

Céus!, como ela desejava que Frank viesse para a cama, ou pelo menos conversasse com ela. Era quase uma da manhã e ele ainda estava lá em baixo na "sua" toca a olhar, ela sabia, para as brasas da "sua" lareira e a ouvir vezes sem conta o álbum de jazz soturno e progressista que elegia quando se zangava com ela.

Ela sabia que, como sempre, ele levaria o seu precioso tempo a explicar‑lhe a razão.

Era o trabalho, o hospital, que o mantinha tão tenso. Lisette tinha a certeza disso. Durante um ano... não, agora era mais do que isso, dois pelo menos... fora difícil viver com ele. E com o passar de cada semana, de cada mês, parecia haver cada vez menos coisas que ela pudesse fazer para lhe agradar. No silêncio, amaldiçoou o dia em que ele fechara o negócio em Concord e regressara a Sterling, mesmo que a pequena empresa de electrónica estivesse por um fio.

Para ser franca, o sucesso dele na Ultramed dera‑lhes mais do que ela algum dia podia imaginar. Mas, enquanto reflectia sobre o arrojado sonhador por quem se apaixonara e com quem casara, Lisette disse para consigo que o preço que estavam a pagar era demasiado alto.

Durante uns tempos, ela debatera‑se sobre se devia ir simplesmente para a cama. Quando ia, claro, Frank nunca subia. Passava a noite no sofá da sua toca e já se encontrava no gabinete do hospital quando ela e as gémeas acordavam. Com um suspiro de resignação, calçou uns chinelos e dirigiu‑se ao andar inferior. De modo algum podia ignorá‑lo. Preocupava‑se, e ele, pelo menos por agora, não.

A situação era tão simples quanto isso.

 

MONTE GARFIELD

ENSAIOS OLÍMPICOS PARA JUNIORES

 

A brilhar como néon contra a neve iluminada pelo sol, a faixa vermelha e branca dizia tudo.

Do seu lugar na base da encosta principal, Frankie Iverson olhou para a gigantesca pista de slalom ‑ uma irregular série de duas dezenas de portas marcadas com bandeiras vermelhas e azuis. Mais uma volta, disse para consigo. Só mais uma volta como a última e estaria a caminho do Cobrado.


A viagem, o troféu, tudo. Após anos de treino e anos de frustração, estavam tão perto que lhes sentia o gosto.

‑ O próximo ano será teu ‑ dissera‑lhe o juiz durante a agonia e as lágrimas que se seguiram à corrida do ano anterior. ‑ No próximo ano, o Tyler será velho de mais para competir e tu serás o número um.

Tyler. Que anedota. Porque é que o pai não compreendia que fora o percurso merdoso da encosta... os malditos sulcos que lhe prenderam os esquis... que o tinham feito perder por meio segundo? Não fora Tyler.

Mais uma volta.

‑ Ei, Frankie, estás a dormir ou quê?

Abismado, Frank rodopiou. O seu irmão, Zack, calçando botas pretas e vestindo um fato de correr preto, caminhou na sua direcção, passando por cima de um pequeno monte de neve.

‑ Estou só a estudar a pista, Zack ‑ respondeu Frank.

‑ Como se precisasses. Podias esquiar de costas que ninguém neste campo conseguiria apanhar‑te.

Frank apontou um dedo para o enorme quadro onde os tempos da primeira volta eram fixados.

‑ Tu conseguias.

Zack soltou uma sonora gargalhada.

‑ Superar‑te em três segundos, quando nunca consegui bater‑te numa volta? Deves estar a brincar. Escuta, tudo o que quero é continuar de pé e conseguir o troféu do segundo lugar. Haverá muito tempo para mim no próximo ano, quando fizeres parte dos Seniores.

‑ Claro, Zack. Vou pensar no teu caso. Desde quando começaste a pensar que podias psicanalisar‑me?

E ela também estava a psicanalisar, o pequeno verme, pensou Frank.

Tinham apenas cerca de dois anos de diferença, mas Zack crescera em altura depois de fazer os treze anos e, subitamente, durante o ano seguinte, a competição entre ambos intensificara‑se em todos os desportos ‑ em especial no esqui, onde a diferença entre eles foi diminuindo ao longo de todo o Inverno.

Frank voltou a olhar para o quadro. Havia uma vasta margem entre Zack e o rapaz que estava em terceiro lugar. A última volta era uma corrida entre dois homens e o irmão sabia‑o tão bem quanto ele. É certo que estava a ser psicanalisado. Zack correria em segundo, logo a seguir a si, e estava disposto a conseguir eliminar todas as paragens.

‑ Escuta, Frankie ‑ disse Zack, naquele tom de sinceridade que Frank sabia não passar de um monte de merda. ‑ Sou sincero. Farei o meu melhor, claro. Mas também irei forçar‑te a fazeres o teu. Acredita que irei. ‑ Estendeu‑lhe a mão. ‑ Boa sorte.

Frank olhou para a mão do irmão e depois para o rosto. Havia algo no olhar de Zack que quase o fez arrepiar: uma confiança e uma determinação que nunca antes vira nele. Contudo, era um olhar que ele muito bem conhecia ‑ um olhar que enfrentara muitas vezes nos olhos do pai. Frank hesitou por uma fracção de segundo e depois tirou a luva e apertou fortemente a mão de Zack.

‑ Vai em frente ‑ disse.

‑ Irei. Encontramo‑nos no topo.

Zack sorriu‑lhe, concordou com a cabeça e foi juntar‑se a


um grupo de corredores á espera do sinal de que a segunda volta estava prestes a ser iniciada.

Frank olhou para a multidão de pais que se preparavam para ver a pontuação ao longo da pista. Nesse instante, o juiz, que conversava com vários amigos, olhou para ele. Frank sorriu envergonhado e o pai respondeu com um sentido sinal de polegares para cima.

Mais uma volta.

Ansioso por acabar com aquilo, Frank dirigiu‑se ao local onde os seus esquis e os dos outros concorrentes estavam alinhados como estacas de uma vedação. Sabia que ficara abalado com o breve encontro com o seu irmão mais novo e com o olhar deste. E o facto de o saber aborrecia‑o ainda mais.

É verdade que três segundos era muito tempo mas, pela forma como Zack se comportara ao longo das últimas semanas, tudo era possível. Por momentos, Frank chegou a brincar com a ideia de pedir‑lhe para recuar, para esperar pela sua vez.

Não era justo, pensou. Primeiro aquele maldito sulco e agora isto. Este era o seu ano. Até mesmo o juiz o dissera. Nada iria afastá‑lo daquele troféu, daquela viagem... Nada nem ninguem.

Tirou os esquis e passou a mão pela parte inferior para testar a cera.

Calma, disse para consigo. Calma, mas mantém aquela vantagem de que o juiz está sempre a falar. Aquela vantagem vencedora.

Foi então que reparou nos esquis Rossignol pretos de Zack, apoiados próximo do local onde os seus próprios tinham estado. Extasiado, colocou os seus esquis no lugar e retirou uma moeda do bolso.

Este seria o seu ano. O próximo seria de Zack. Era assim que as coisas tinham de acontecer.

Olhou em redor. Ninguém estava a olhar. Utilizando a moeda, deu duas voltas aos parafusos de um dos esquis de Zack não o suficiente para se sentir a diferença, mas o suficiente para se perder um pouco de controlo, para alargar alguns centímetros em cada curva, para conservar a sua vantagem de três segundos.

Era o seu ano. A sua última oportunidade. Na verdade, estava a fazer um favor a Zack garantindo que, caso caísse, o esqui libertar‑se‑ia, o que ajudaria a evitar uma grave lesão no tornozelo.

Porém não haveria quedas, nem lesões. Somente alguns centímetros em cada bandeira. Somente algumas fracções de segundo. Somente o suficiente. O ano seguinte era tempo suficiente para Zack. Então o juiz teria dois juniores olímpicos para se gabar. Era o melhor para todos. Era assim que as coisas tinham de acontecer. Era o seu ano... o seu ano...

‑ Frank?

As cores e as sensações desse dia desapareceram, quando a voz de Lisette entrou em cena.

Frank esfregou os olhos e depois endireitou‑se no sofá.

A fogueira que acendera para combater o frio da tempestade de

Verão reduzira‑se a algumas cinzas em brasa. A boca sabia‑lhe

mal devido aos dois uísques ‑ ou seriam três? ‑ que bebera,

e a cabeça latejava nas têmporas.

‑ Querido, estás bem?


‑ Estou bem ‑ murmurou, esfregando os olhos. ‑ Muito bem. ‑ Passaram‑se anos desde que tivera aquele pesadelo. Anos.

‑ Frank, por favor, vem para a cama. Já passa da uma e meia.

‑ Não estou cansado.

‑ Estavas a dormir.

‑ Não estava nada a dormir. Estava a pensar.

‑ Queres alguma coisa? leite? Uma sanduíche?

‑ Já disse que estou bem. Deixa‑me em paz.

Tudo vai piorar, pensou. Tinha lutado muito desde o início, mas não lutara o suficiente. A última coisa que precisava na vida era que o irmão regressasse a Sterling. E agora, graças ao juiz e ao maldito leigh Baron, ali estava Zack e já a brincar aos heróis. Devia ter lutado mais. Baron dirigia a Ultramed, mas o Davis ainda era o seu maldito hospital e devia ter lutado mais.

‑ Frank, querido ‑ disse Lisette ‑, dizes que estás bem, mas sei que não é verdade. Não me dirigiste uma única palavra decente durante toda a noite.

Tentou afastar‑lhe da testa uma madeixa de cabelo, mas ele empurrou‑lhe a mão. Depois, baixou‑se, desajeitado, atirou um toro para a lareira e empurrou‑o com o atiçador de brasas.

‑ Foi um verdadeiro espectáculo o que fizeste esta noite, Lisette ‑ disse em tom seco. ‑ Um verdadeiro espectáculo.

‑ Não sei do que estás a falar. Realmente não sei.

‑ Não me digas. Eu bem te vi ali de pé, a olhar extasiada para o meu irmão. E também tenho a certeza de que não fui o único a reparar.

‑ Querido, que loucura. Nunca...

- Tão certo como nunca teres feito amor com ele. Céus, é de admirar que nessa altura não tenhas rasgado o vestido, mesmo ali na cozinha!

‑ Frank, por favor. Estiveste a beber. Só me dizes essas coisas depois de teres estado a beber. O que sabes de mim e do Zack foi tudo o que houve entre nós. Nada mais. E certamente nada que não tivesse terminado há muitos anos. Fiquei impressionada com o que ele fez pela Annie e não fui só eu, mas todos. Além disso, não lhe dirigi três palavras durante toda a noite. Agora, por favor, vem para a cama. Deixa‑me massajar‑te as costas ou fazer qualquer coisa.

‑ Vai tu para a cama. Subirei quando estiver pronto.

‑ Frank, tu acreditas em mim, não é? Eu amo‑te.

‑ Existe apenas uma razão, uma explicação para o facto de ele ter rejeitado todas aquelas grandes oportunidades de trabalho e voltar para cá - disse, mais para si próprio do que para ela. ‑ Uma razão. E essa é para me complicar a vida.

Deitou mais uísque no copo e bebeu‑o de imediato.

- Por favor, Frank, não bebas mais ho...

- Ele é um filho da puta vingativo, Lisette. Sob aquela doce imagem de benfeitor, ele é igualmente vingativo. E, quer admita quer não, tem de acertar as contas de todos aqueles anos em que teve de ficar a ver da bancada, enquanto todos me aplaudiam. Ele quer recuperar o favoritismo da mãe, do juiz e de toda a gente desta maldita cidade... incluindo tu.

‑ Isso é uma loucura.


‑ Ai sim? Bem, logo veremos se é loucura. Encostou‑se ao braço do sofá e deixou‑se cair nele pesadamente. ‑ Pode ficar com tudo: o hospital, o juiz, o leigh Baron, todos excepto tu... mas só quando eu disser. Só depois de eu ter realizado tudo o que tenho em mente. Só depois de eu...

Os olhos fecharam‑se e a cabeça tombou para um lado. Em segundos, começou a ressonar.

Lisette pegou num cobertor e tapou‑o. Era a bebida que falava. Nada mais. Seria de admirar que de manhã Frank se lembrasse de algo do que acabara de dizer. Ele amava o irmão, tal como a amava a ela e às gémeas.

Só não sabia demonstrá‑lo muito bem.

Alguma coisa estava a incomodá‑lo... algo que nada tinha a ver com Zack.

Só depois de eu ter realizado tudo o que tenho em mente. Que raio queria ele dizer com aquilo?

Prometendo silenciosamente que tudo faria para ajudar o marido a superar o que o deixava tão tenso, Lisette deu meia volta e dirigiu‑se ao andar superior.


 

A Sala de Conferências Carter do Ultramed‑Davis, reformada pelo Ultramed mas originalmente doada ao hospital pela fábrica de papel, era um vasto espaço para todo e qualquer fim, com alcatifa de pêlo alto, uma mesa e um atril numa extremidade e cadeiras para cerca de cem pessoas. Imagens litográficas a cores e com molduras metálicas, retratando importantes momentos da história da medicina, forravam um dos lados da sala, e fotografias de antigos presidentes do corpo clínico enchiam a parede traseira junto à porta. Por baixo de cada retrato, encontrava‑se uma pequena placa dourada gravada com o nome do director e a respectiva data de nascimento e de falecimento. Por baixo das fotografias de antigos presidentes ainda vivos, já estava gravada a data de nascimento, seguida de um hifen e um espaço demoniacamente à espera.

Eram sete e meia da manhã de quarta‑feira, 3 de Julho. O corpo clínico reunia‑se normalmente na primeira quinta‑feira de cada mês; porém, devido ao feriado, decidira que a sua reunião de Julho seria antes na quarta. O caloroso debate sobre o assunto, típico em qualquer grupo de médicos, ocupara mais de metade da reunião de Junho.

Quarenta médicos, praticamente todos os médicos do Ultramed‑Davis, agruparam‑se na sala, uns trocando entre si anedotas ou histórias obscenas, outros conseguindo "consultas livres" de vários especialistas. Alguns permaneceram simplesmente à janela a olhar com ar pensativo para o radioso dia de Verão que nunca poderiam gozar.

Zack Iverson sentou‑se isolado ao canto da sala, tentando mentalmente fazer corresponder os rostos e condutas de vários médicos com a respectiva especialidade médica (cabelo grisalho de corte à escovinha, gravata de laço vermelha... pediatra; casaco comprido desportivo de tamanho quarenta e quatro, oitenta e seis centímetros de cintura, nariz ligeiramente torto... ortopedista) e meditando nos seus primeiros dois dias de trabalho.

Estes tinham passado bastante bem, com algumas consultas no consultório e muitas no hospital. Zack chegou mesmo a passar uns breves momentos na sala de operações, auxiliando um dos ortopedistas na remoção de um enorme depósito de cálcio que ficara preso no nervo cubital do cotovelo direito de um jovem carpinteiro.

Por várias vezes em ambos os dias fora visitar Annie, que progredia razoavelmente bem. Também dera alta a Cliris Gow depois de um dia e meio de bons cuidados e após fazer com que os Serviços Sociais lhe dessem assistência médica, fisioterapia e uma refeição por dia em casa. Ao contrário da lúgubre previsão de Wilton Marshfield, não houve quaisquer repreensões de Frank ou de mais alguém quanto à hospitalização do velho.

No geral, tinham sido dois dias interessantes e recompensadores ‑ daqueles que ultrapassavam as responsabilidades da medicina como profissão.

Contudo, este era o dia por que Zack tanto ansiava. Começaria com o seu primeiro caso importante na SO ‑ a remoção da hérnia do disco cervical de uma mulher ‑ e terminaria com o jantar em casa de Suzanne. Sorriu ao lembrar‑se como fora injustificada a sua apreensão quanto ao regresso a Sterlíng.


‑ Muito bem, meus senhores, sentem‑se.

O director do corpo clínico, um pálido e melífluo médico chamado Donald Norman, deu a ordem enquanto cumprimentava e abria caminho até à parte da frente da sala.

Norman entrevistara duas vezes Zack em nome da Ultramed e, na verdade, fora por causa desse homem e das suas duas sessões que Zack decidira vir para o Davis. Formado numa das faculdades de medicina das Caraíbas, Norman fora subsidiado e treinado nos hospitais da Ultramed e era um verdadeiro empresário. Grande parte das entrevistas fora constituída por pouco mais do que uma triste ladainha sobre as políticas processual e médica da Ultramed, cada uma acompanhada de um conjunto de estatísticas que consideravam as "linhas de orientação" benéficas para o bem‑estar, tanto do doente como do hospital.

Enquanto Norman enaltecia o aerodinâmico tratamento da organização como "revolucionário e indiscutivelmente necessário", Zack imaginou se tal não se resumia a cuidados de saúde para gente de boas famílias.

E disse‑o, embora isso não lhe trouxesse beneficios.

Para piorar as coisas entre os dois, a espontaneidade de Zack e a forma calma e ecléctica como exercia a medicina não agradavam muito a Norman que, embora fosse apenas mais do que um ou dois anos mais velho do que Zack, vestia um fato de três peças, fumava um retorcido cachimbo e portava‑se geralmente como uma espécie de velho padroeiro da medicina.

No final, com a decisão de Zack ainda muito no ar, muitos dos outros médicos do quadro conseguiram convencê‑lo de que o Ultramed‑Davis era muito mais flexível na sua política e filosofia do que Donald Norman gostaria de acreditar.

Norman tomou o lugar na mesa da frente e bateu com um cinzeiro, para manter a ordem na sala.

Durante a leitura dos relatórios da secretaria, da tesouraria e das várias comissões, entraram vários atrasados, incluindo Suzanne, que tinha um aspecto gracioso e divertido, de sandálias e vestido florido. Entrou acompanhada de Jason Mainwaring que, como Zack verificou, não usava aliança, embora usasse um diamante razoável num dos mindinhos. Os dois sentaram‑se no lado oposto da sala e continuaram a conversa em segredo, durante a qual o carismático cirurgião lhe tocou num braço ou numa mão pelo menos meia dúzia de vezes.

Durante um ou dois minutos, Zack tentou sem êxito captar‑lhe o olhar; depois desistiu e voltou a concentrar‑se na reuníão.

- Algum aditamento ou correcção aos relatórios da comissão? - perguntou Norman. - Se não há, serão aceites como estão. Coisas antigas?

Ergueu‑se uma mão, acompanhada de murmúrios vindos de várias partes da sala.

‑ Sim, doutor Beaulieu ‑ disse Norman, sem se esforçar por disfarçar o aborrecimento na voz.

Do seu lugar, cinco ou seis filas à frente de Zack, Guy Beaulieu levantou‑se, olhou deliberadamente em redor e por fim avançou para o atril, um movimento que originou ainda mais murmúrios.


Zack, que não via Beaulieu há três ou quatro anos, ficou chocado com a mudança física do homem. Outrora enérgico e robusto, estava agora quase patologicamente magro. O fato ficava‑lhe grande e o seu rosto macilento tinha um tom acinzentado doentio. No entanto, continuava firme como sempre e, mesmo à distância, Zack conseguia ver o brilho desafiador por trás das lentes bifocais de armação dourada.

- Obrigado, senhor director ‑ começou Beaulieu, com uma formalidade que provavelmente teria soado pouco natural e condescendente, se vinda da maioria dos presentes na sala, mas que vinda dele não o era. O seu discurso ainda continha um inconfundível sabor franco‑canadiano. ‑ Sei que muitos de vós estão um tanto fartos de ouvir as minhas declarações em nome daqueles que não são tratados nesta instituição, bem como contra alguns de vós que me caluniaram nesta comunidade. Pois bem, prometo‑vos que esta será a última vez. Assim, se me prestarem um pouco de atenção...

Retirou duas folhas de papel do bolso do casaco e abriu‑as sobre o atril. Mais uma vez, ouviu‑se um leve murmurinho de vários pontos da sala.

Zack olhou para Jason Mainwaring, que agora estava sentado sem se mexer, a olhar impassivelmente para o homem. Nesse momento, Suzaune virou‑se e cruzaram o olhar. Zack fez um cumprimento subtil com três dedos e, em resposta, ela confirmou com a cabeça. Mesmo à distância, parecia preocupada.

‑ Gostaria de informar o corpo clínico do Hospital Ultramed‑Davis - leu Beaulieu, ajustando os óculos ‑ que contratei a Empresa Nordstorm & Perry, de Concord, e que processei este hospital, a administração, o corpo clínico e a Corporação de Hospitais Ultramed em nome dos pobres e das pessoas sem seguro que vivem na área de tratamento do Ultramed‑Davis. Para reforçar a causa, juntaram‑se a mim alguns dos actuais e antigos doentes que pertencem a esse grupo, incluindo Mister Jean lemoux, Mister Ivan MacGregor e a família de Madame Yvette Coulombe.

"As acusações, que incluem faltas ilícitas e desumanas deste hospital, transferência indevida de doentes e recusa de tratamento, estão actualmente a ser revistas pela Assistência legal de New Hampshire, que prometeu decidir durante as próximas duas semanas se irá ou não juntar‑se a nós. Tal como disse tantas vezes, os cuidados médicos são um direito de todos e não um privilégio. Ao longo dos últimos três anos, a forma de agir deste estabelecimento tem sido do género: "Por que razão tem de ter cuidados médicos só porque está doente?" Pretendemos lutar contra essa política.

Zack olhou em redor da sala e catalogou numerosissimas reacções entre os médicos; uns poucos, se é que havia algum, pareciam compreensivos, mas nenhum parecia sentir‑se muito ameaçado ou aborrecido. Alguns trocavam abertamente olhares e gestos de revolta e até havia um que rodava um dedo próximo de um dos ouvidos.

- Existem por aí alguns médicos à procura de emprego por terem pensado o mesmo, Iverson. - O aviso de Wilton Marshfield em relação ao facto de ir contra as regras da Ultramed ecoaram na mente de Zack enquanto estudava o mar de expressões lívidas e reprovadoras. Reparou que Suzanne pertencia vagamente ao segundo grupo.

O próprio Beaulieu fez uma pausa e olhou em volta, mas depois continuou imperturbável.


‑ Para além das acusações descritas acima, iremos documentar a pouco ética distinção entre fornecedores e abastecedores médicos, no que respeita ao cuidado dos doentes dentro e fora deste estabelecimento, o qual tem sido comprometido. Temos provas que apoiam a nossa posição, e todos os dias conseguimos mais. Espero que aqueles que pertencem ao corpo clínico e possuam informações que possam substanciar as nossas reclamações avancem e as apresentem a mim ou ao nosso advogado, Mister Everett Perry. Garanto‑vos que essas revelações serão mantidas no mais rigoroso sigilo.

Tal como o juiz tinha dito e por toda a sua "impertinência", o homem fora corajoso, admitiu Zack. Mais uma vez, olhou em redor da sala; coragem, sim, mas sem o mínimo apoio visível.

‑ Por último ‑ continuou Beaulieu ‑, gostaria de anunciar que eu próprio iniciei uma acção legal contra um membro deste corpo clínico, assim como contra a administração deste hospital, que julgo ser responsável pelos boatos caluniosos, incorrectos e bastante prejudiciais em relação à minha conduta pessoal e profissional. Peço a todo e qualquer médico que tenha conhecimento deste assunto que avance. Mais uma vez, prometo sigilo absoluto. lembrem‑se, só os que caírem na graça de Deus Todo‑Poderoso é que merecem o céu.

"Agradeço‑vos a paciência e estou pronto para responder às vossas perguntas e comentários.

Nem um braço se ergueu. Beanheu abanou a cabeça de uma forma calma e digna e depois regressou ao seu lugar, aparentemente desatento aos muitos rostos contorcidos e enfurecidos que estavam fixos nele.

A reunião dos médicos continuou rotineiramente. No fim dos "assuntos novos", Zack foi formalmente apresentado e acolhido, com um breve e bem medido aplauso. Sentindo que eram exigidos alguns cumprimentos verbais, levantou‑se.

‑ Muito obrigado ‑ começou. ‑ Sabe bem regressar a casa e pertencer ao corpo clínico do hospital onde nasci. Tal como o doutor Norman referiu quando me apresentou, para além de exercer neurocirurgia, tentarei trabalhar como neurologista até crescermos o suficiente e conseguirmos arranjar um. Espero cuidar de todos os que necessitarem de ajuda na minha área de especialização... ‑ Olhou para Guy Beaulieu. ‑ Independentemente de poderem ou não pagar.

"Também gostaria de agradecer aos nossos radiologistas, assim como ao meu irmão Frank, pelo empenho em conseguir o aparelho de TAC. É um belo equipamento e ambos os radiologistas se excederam para conseguir saber trabalhar com ele. Muito em breve, nós os três planeamos apresentar uma espécie de curso intensivo sobre o funcionamento e limitações da técnica.

"Visto o meu substituto mais próximo se encontrar a cerca de cento e cinquenta quilómetros, estarei á disposição vinte e quatro horas por dia, excepto durante as minhas férias, que estão marcadas de três a cinco de Agosto... daqui a três anos. Obrigado.

Ouviram‑se gargalhadas e aplausos por toda a sala.


‑ Mais uma coisa ‑ acrescentou Zack, quando o silêncio regressou à sala. ‑ Julgo que surgiram alguns problemas invulgares devido á minha decisão de regressar e exercer na cidade onde nasci e fui criado. Assim, gostaria de tornar perfeitamente claro que nada existe de verdade nos boatos, penso que iniciados ali pelo doutor Blunt, que me ajudou a nascer e foi meu pediatra, e que diz que não entro na sala de operações sem o ursinho zarolho que eu teimava em levar comigo para as suas consultas.

 

Suzaune, com Jason Mainwaring a reboque, foi ter com Zack no corredor.

‑ Olá, Zack ‑ cumprimentou. ‑ Obrigada pelas gargalhadas lá dentro. Já conhece o Jason?

‑ Penso que o conheci há alguns meses ‑ respondeu Zack, apertando a mão do cirurgião. ‑ Prazer em voltar a vê‑lo.

‑ Digo o mesmo ‑ disse Mainwaring, arrastando as palavras. ‑ Foi um discurso engraçado, Iverson. Gostei especialmente da referência ao ursinho.

‑ Obrigado ‑ agradeceu Zack, perguntando a si mesmo se o homem não estaria a gozar.

‑ E até gostei daquela outra. A que se referia ás suas férias... daqui a muito tempo. Você é uma pessoa cómica.

‑ Mais uma vez, obrigado.

‑ No entanto ‑ continuou o cirurgião ‑, aconselho‑o a não fazer mais declarações inflamatórias sobre o caso Beaulieu sem conhecer todos os factos. Veja, Iverson, sou o membro do corpo clínico a quem Beaulieu se referiu lá dentro, a quem ele processou. E por mais nobre que parecesse ser no seu pequeno discurso de há pouco, você e o Beaulieu não são os únicos que praticam a caridade. Eu também opero muita gente que não pode pagar.

Zack ficou abismado com a rudeza do homem.

‑ Bem ‑ disse ‑, fico feliz por sabê‑lo. Só espero que eles dêem o dinheiro por bem empregue.

‑ Sabe ‑ opôs‑se Mainwaring ‑, sempre ouvi dizer que só os cirurgiões mais arrogantes e sádicos são eleitos para passar a sua vida profissional a aborrecer os outros...

‑ Ei, malta, o que é isto? ‑ interrompeu Suzanne. ‑ Parece o tipo de desafio que ambos deviam ter deixado para trás quando desceram das vossas casinhas na árvore e começaram o liceu. Jason, o que é que lhe deu? Foi atacado na casinha por algum neurocirurgião louco ou algo do género?

Mainwaring sorriu de um modo formal.

‑ As minhas desculpas, Iverson.

Estendeu a mão mas, com Suzanne como escudo, a hostilidade do olhar foi cortante.

‑ Ora, não foi nada, Jason. Não foi nada.

‑ óptimo. Bem, então, teremos de ver o que se pode fazer para vos arranjar um pouco de trabalho neurocirúrgico.

‑ Obrigado.

‑ Entretanto, talvez seja melhor não se meter em políticas, pelo menos até cá estar o tempo suficiente para aprender o nome de todos. ‑ Olhou para o Rolex de ouro. ‑ Suzanne, querida, julgo que ainda temos tempo para terminar o nosso assunto. Prazer em vê‑lo, Iverson. Tenho a certeza de que irá adaptar‑se bem a este pequeno lugar adormecido.

Sem esperar pela resposta, tomou o braço de Suzanne e ambos seguiram pelo corredor.

 


Andy O'Meara, de faces rosadas, barriga de cerveja e grande sorriso, passou entre as mesas do Gillie's Mountainside Tavem, apertando a mão e dando palmadas nas costas dos cerca de vinte homens que gozavam o intervalo do meio‑dia, num ambiente quente e cheio de fumo. Durante cerca de vinte anos, acabara por conhecê‑los a todos muito bem e orgulhava‑se de os considerar amigos.

‑ Andy, seu peido fedorento. Bem‑vindo!

‑ Ei, é o Super Mick. Assim é que é, Andy. Assim é que é. Nós sabíamos que havias de conseguir.

Primeiro as cartas, os bombons e as flores quando estava no hospital e agora aquela recepção. Eram um grupo fantástico. O melhor que havia. E nesse momento, Andy sentiu‑se o homem mais afortunado da Terra. O dia seguinte seria o Dia da Independência ‑ o dia para celebrar o nascimento da liberdade. Mas esse era o dia para celebrar o seu próprio renascimento.

‑ Ei, Gilhe ‑ chamou, com a melodia e o ritmo da infância passada em Kilkenny ainda a afectar‑lhe a voz. ‑ Cerveja para todos, pago eu.

Após três meses de dores e preocupações, depois de mais de doze viagens a Manchester para fazer radioterapia e depois de se sentar vezes sem conta no consultório do médico, à espera que lhe dissessem: "Não conseguimos tirar tudo", estava de novo na estrada e curado. O cancro intestinal que ameaçara a sua vida encontrava‑se dentro de um frasco na secção de patologia do Hospital Ultramed‑Davis e todas as células cancerosas que pudessem ter ficado no seu corpo tinham sido queimadas pelas espantosas máquinas de raios X. O banco de trás e a bagageira do Chevy verde encontravam‑se de novo atulhados de caixas de sapatos, botas e sapatos de ténis, que gostava de expor para os negociantes ao longo da Estrada 16, e o ritmo da sua vida tinha sido finalmente restaurado.

‑ Ao futuro dos Irlandeses ‑ proclamou, enquanto erguia acima da cabeça a gelada caneca de cerveja.

‑ E ao teu, Andy O ‑ respondeu Gilhe. ‑ Estamos felizes por te termos de volta entre os vivos.

Andy O'Meara trocou apertos de mão e abraços com cada homem que ali estava e depois pousou a caneca meio cheia sobre o balcão. Era a sua primeira cerveja gelada em mais de doze semanas e, com uma tarde repleta de telefonemas dirigidos a si, não fazia sentido testar a tolerância à bebida.

Acertou as contas com Gilhe e saiu do sombrio bar forrado de pinho para o brilhante sol da tarde. Orgulhava‑se de nunca chegar atrasado a um encontro, e a Colson's Factory Outlet ficava a cerca de trinta minutos de viagem através das montanhas.

Ligou o rádio. Kenuy Rogers admoestava‑o com o saber quando parar e quando se abster. A música country/western, normalmente a que Andy mais ouvia, parecia de certo modo não acompanhar a paz e a serenidade daquele dia. Parou junto à berma da estrada e mudou para um programa clássico na WEco, a estação pública.

Melhor, pensou. Muito melhor

A música era conhecida. Quase instantaneamente, fez surgir imagens na mente de Andy: a neve a cair suavemente... uma lareira em pedra... o crepitar do fogo... a família. Enquanto acompanhava a música, Andy tentou lembrar‑se onde ouvira aquela melodia assombrosa.

- Que criança é esta, quem a deitou no colo de Maria, a dormir?...

Ficou surpreendido por saber uma grande parte da letra.


‑ Este, este é Cristo, o Rei, a quem os pastores guardam e os anjos cantam...

Subitamente, percebeu que se tratava de uma canção de Natal. Era isso. Na Irlanda, quando criança, fora uma das suas favoritas. Que estranho ouvi‑la a meio do Verão.

Fez uma pausa para deixar passar uma camioneta. O ruído desta era quase imperceptível, quase como se não fizesse qualquer som. Andy encolheu os ombros. Embora a sensação de estar de novo na estrada fosse maravilhosa, era também um tanto estranha.

‑ Apressem‑se, apressem‑se a dizer ao mundo, o bebé, o filho de Maria...

Fechou as janelas, ligou o ar condicionado, saiu da berma e entrou na Estrada 110. O verde das montanhas parecia desconfortavelmente brilhante. Semicerrou os olhos, depois esfregou‑os e perguntou a si mesmo se não seria melhor parar algures para comprar um par de óculos de sol. Não, decidiu. Nada de paragens. Pelo menos, até chegar à Colson's.

Acalma‑te, velhote, disse para consigo. Vê lá se te acalmas.

Ajustou o sinal do rádio, acomodou‑se no banco e voltou a cantarolar.

A Estrada 110 tinha duas faixas, com uma berma estreita em ambos os lados. Tinha curvas e contracurvas, subia e descia como uma montanha‑russa, desde Groveton na fronteira de Vermont, ao longo da crista do vale do rio Ammonoosuc, até Sterling e à Estrada 16. Havia uma protecção branca riscada e baixa paralela ao lado direito de Andy, e para lá desta encontrava‑se o desfiladeiro, com duzentos metros de profundidade em certos pontos.

A sensação de desassossego e mal‑estar de Andy tornou‑se mais intensa e ele percebeu que lhe era díficil concentrar‑se. Ajustou o encosto do banco e verificou o cinto de segurança. A protecção tornou‑se algo desfocada, e a sólida linha central continuou o seu percurso sob o pneu esquerdo da frente. Apertou com força o volante e verificou o velocímetro. Setenta. Porque é que parecia ir muito depressa?

Notou que, subitamente, as árvores das montanhas tinham começado a escurecer... a desenvolver um tom avermelhado. Esfregou os olhos e, mais uma vez, forçou o carro para a faixa direita. Vinte e cinco anos de estrada sem um único acidente. Maldito fosse se ia ter um agora.

à sua frente, a paisagem escureceu. Aproximou‑se um tractor, com o sol a bater no pára‑brisas.

Subitamente, Andy apercebeu‑se de uma voz que ecoava na mente ‑ uma voz profunda, lenta, ressonante e tranquilizadora, de inicio muito baixa para perceber, depois mais alta... e ainda mais alta:

‑ Okay, Andy ‑ disse a voz ‑, agora quero que conte para trás desde cem, conte para trás desde cem... conte para trás desde cem...

Em voz alta, Andy começou a contar:

‑Cem... noventa e nove... noventa e oito...

Por cima dele, surgiu um pano azul que depois pousou sobre o seu abdómen.

‑ Noventa e sete... noventa e seis...

Apareceram umas mãos com luvas de borracha no espaço onde estivera o pano.


‑ Noventa e cinco... noventa e quatro... Porque é que não estou a dormir? ‑ perguntou‑lhe a mente. ‑ Noventa e três... noventa e dois.

‑ Bisturi eléctrico, por favor ‑ disse a voz baixa. ‑ Regulem‑no para cortar e cauterizar.

Apareceu outro par de mãos com luvas, uma delas segurando um pedaço de gaze e a outra um pequeno bastão com uma ponta metálica. lentamente, baixaram a ponta metálica em direcção à barriga.

‑ Noventa e um... noventa...

Subitamente, um ruído sonoro encheu‑lhe a mente. A ponta metálica do bastão tocou na sua pele, logo abaixo do umbigo, enviando uma cauterizante dor eléctrica até às costas e pelas pernas abaixo.

‑ Jesus Cristo, parem! ‑ gritou Andy. ‑ Não estou a dormir! Ainda não estou a dormir!

A parede da parte inferior do abdómen separou‑se sob a lâmina eléctrica, expondo uma camada amarela de gordura.

‑ Oitenta e nove... oitenta e oito!... Por amor de Deus, parem! Não está a funcionar. Estou acordado! Eu estou a sentir! Eu sinto tudo!

‑ Metzenbaum e pinças, por favor.

‑Não! Por favor, não!

A tesoura Metzenbaum cortou o peritoneu de Andy dividindo a membrana luzidia como se fosse um lenço de papel e expondo os resplandecentes rolos cor‑de‑rosa dos seus intestinos.

Mais uma vez, gritou. Mas, desta vez, o som não só veio da sua voz como do interior da mente.

A visão tornou‑se clara no momento em que o farol direito da frente do seu automóvel tocou na protecção. O Chevy, agora a cerca de 140 quilómetros por hora, cortou o aço da protecção como se este fosse cartão, atravessou um pedaço de erva e cascalho e dirigiu‑se rapidamente para a beira do desfiladeiro.

Preso do banco, Andy O'Meara viu as árvores verde‑esmeralda a passarem velozmente. No quarto segundo da queda, percebeu o que estava a passar‑se. No quinto, o Chevy caiu nas rochas em baixo e explodiu.


 

A cantina do Ultramed‑Davis, tal como grande parte do estabelecimento, fora renovada num estilo leve e moderno, embora bastante previsível. No interior havia um enorme balcão, bem abastecido de saladas, e uma parede de portas de correr envidraçadas abria‑se para um terraço de lajes e meia dúzia de mesas e bancos de cimento.

Agradavelmente exausto devido à operação de três horas ao disco cervical, Zack sentou‑se na única mesa à sombra de uma árvore e viu Guy Beaulieu a caminhar na sua direcção, atravessando a multidão que estava a almoçar.

Durante o Verão em que Zack trabalhara como externo no então Hospital Regional Davis, Beaulieu estivera extremamente ocupado a exercer as suas funções de médico e também as de director do corpo clínico. No entanto, o homem parecera ter sempre tempo suficiente para interromper e ensinar, para animar um doente assustado, ou para consolar uma família consternada.

Desde esse Verão, a combinação de pericia e compaixão do cirurgião passou a ser uma espécie de modelo para Zack.

‑ Então ‑ disse Beaulieu, enquanto pousava o tabuleiro e se sentava no banco de pedra oposto a Zack. ‑ Obrigado por teres aceite almoçar comigo.

‑ Que disparate ‑ replicou Zack. ‑ Estou ansioso por estar consigo desde que cheguei á cidade. Como está a sua esposa? E a Marie?

‑ A Clothilde, Deus a abençoe, está tão bem quanto se pode esperar, considerando as histórias nojentas que tem aturado nestes últimos dois anos. Quanto à Marie, tal como ouviste, fartou‑se de esperar que te declarasses e acabou por se casar com um escritor, um poeta, caramba!, do Quebeque.

Zack sorriu. Ele e Marie Beaulieu eram amigos desde os primeiros tempos da primária, mas nunca haviam sido namorados.

‑ Conhecendo a Marie como conheço, tenho a certeza que ele é muito especial ‑ afirmou Zack.

‑ Tens razão. Uma vez que não te pôde ter, então este homem, o Luc, é o que eu teria escolhido para ela. Numa idade em que quase todos os jovens parecem não querer saber de mais nada senão de si próprios, ele é excepcional... empenhado na necessidade de ser diferente. Trabalha num jornal de aldeia e luta contra todos os tipos de injustiça social, enquanto espera que o mundo descubra os seus poemas.

‑ Filhos?

‑ Têm dois e não sei como conseguem alimentá‑los. Mas lá vão conseguindo.

‑ E são felizes ‑ disse Zack.

‑ Sim. Pobres e a lutar, mas felizes e tão apaixonados quanto no dia do casamento, ou talvez mais.

Zack afastou as mãos.

‑ C'est tout ce qui conte, n 'est ce pas?

O sorriso de Beaulieu tornou‑se um tanto amargo.

‑ Sim ‑ respondeu. ‑ Só isso é que interessa. ‑ Fez uma pausa e continuou. ‑ Assim, o teu velho amigo Guy Beaulíeu está com falta de aliados neste local.

‑ É o que parece ‑ afirmou Zack, dando uma garfada na salada, pensativo.


Beaulieu inclinou‑se para a frente, os olhos e a voz em tom de conspiração.

‑ Passa‑se aqui muita coisa que não está correcta, chary ‑ sussurrou. ‑ Parte do que está a acontecer é simplesmente errado. Mas há muito de perverso.

Zack olhou para a ala oeste recém‑construída, para o heliporto e para os grupos de enfermeiras e médicos a gozarem o intervalo do almoço no terraço e no interior da cantina.

‑ Espero que compreenda quando digo que não vejo grandes provas disso à minha volta. É capaz de ser mais específico?

‑ O teu pai já falou contigo, não é assim?

‑Por alto.

‑ Então já sabes das mentiras.

‑ Sei qualquer coisa sobre os boatos, se é a isso que se refere.

Beaulieu inclinou‑se ainda mais.

‑ Zachary, peço‑te segredo neste assunto.

‑ Nem é preciso pedir ‑ respondeu Zack. ‑ Mas devo alertá‑lo para uma coisa. Tanto o juiz no domingo, como o senhor esta manhã, sugeriram que uma parte da vossa disputa talvez possa ser com o Frank. Quero que saiba que neste desentendimento não pretendo tomar o partido de ninguém. A sua amizade significa muito para mim. Nem sei se hoje seria cirurgião se não fosse a sua influência. Mas o Frank é meu irmão. Não consigo imaginar‑me contra ele.

‑ Mesmo que ele aja de forma errada?

‑ Com a minha experiência, Guy, certo e errado são muito mais vezes tonalidades de cinza do que preto e branco. Além disso, tentei separar as coisas nos meus anos no Municipal de Bóston. Tudo o que consegui foi uma terrível dor de cabeça do tamanho do Alasca. Devia ter armazenado uma pilha de Tylenol antes de fazer a minha primeira queixa à administração do hospital. Ouvirei se lhe apetecer falar, mas por favor não espere nada.

‑ Obrigado pelo aviso ‑ agradeceu Beaulieu. ‑ Mesmo assim, tenho uma grande admiração e respeito por ti e, como sem dúvida já calculaste, apesar de não ter grande apoio por aqui, senti relutância em partilhar contigo aquilo que sei, principalmente por causa do Frank. Mas, quando disseste o que disseste na reunião desta manhã, e refiro‑me a tratar toda a gente sem pensar se podem ou não pagar, interpretei isso como uma espécie de convite para conversarmos.

Zack suspirou.

‑ Pensou correctamente ‑ disse por fim. ‑ Luto o mais que posso, mas quando não estou a olhar, o lado de mim que não suporta ver pessoas a serem sempre prejudicadas parece subir à superficie.

‑ E verdade, soube o que fizeste àquele pobre lenhador na outra noite.

‑ Soube?

‑ Não fiques surpreendido. Neste hospital, e na verdade em toda esta cidade, existe um sistema de comunicação que deixaria o Ministério da Defesa verde de inveja. É melhor que aceites esse facto e te adaptes a ele se quiseres sobreviver aqui. Deita uma pedra para o lago e todos, mesmo todos, sentirão a ondulação. É por isso que histórias como as que se espalharam a meu respeito são tão condenadoras. Sem a menor perda de tempo, todos ouviram uma versão.

‑ Como aquele velho jogo... o telefone.


‑Como?

‑ Um jogo que costumávamos jogar em dias de festa. Todos se sentam em círculo e a primeira pessoa diz um segredo ao ouvido da que estiver ao lado. Depois, o segredo é transmitido por todo o círculo e, quando regressa á pessoa que o iniciou, mudou completamente. Incomoda‑me bastante pensar que alguém faria deliberadamente qualquer coisa para o magoar, em especial através do tipo de acusações que o juiz diz ouvirem‑se por aí.

‑ São mentiras, Zack. Todas elas, sem excepção.

Zack analisou o rosto do francês: os maxilares, a profunda tristeza que lhe engolfava os olhos.

‑ Eu sei, velho amigo ‑ disse, por fim. ‑ Eu sei que são.

....... ‑ Beanheu bateu com os dedos uns nos outros, sem saber por onde começar. ‑ O que achaste do meu pequeno discurso desta manhã? ‑ acabou por perguntar.

‑ Bem, a verdade é que achei que se controlou e expressou muito bem.

Beaulieu sorriu.

‑ Muito diplomático, meu rapaz. Mas, por favor, continua e lembra‑te que os meus sentimentos não podem ser feridos.

Zack encolheu os ombros.

‑ Está bem. Se quer mesmo saber a verdade, não consegui deixar de pensar que só faltava na cena um cavalo, uma lança, um capacete em forma de bacia e o Sancho Pança.

Desta vez, o cirurgião mais velho deu uma sonora gargalhada.

‑ Então, achas que estou a remar contra a maré, não é? Bem, meu jovem amigo, vamos então analisar a maré. Richard Coulombe. Sabes quem é?

‑ O farmacêutico? Claro que sei. Ainda ontem me aviou uma receita.

‑ E sabes que já não é o proprietário da farmácia?

‑ O letreiro diz Farmácia Coulombe.

‑ Sei o que diz o letreiro. Também sei que agora o Richard é um empregado e não o proprietário. Há cerca de dois anos, vendeu‑a a uma organização chamada Eagle Pharmaceuticaís and Surgical Supplies. Não sei como surgiu esse determinado negócio com essa determinada empresa, mas hoje posso calcular que não foi por mero acaso. O Richard não queria vender, mas precisava do dinheiro para pagar uma dívida enorme... uma conta de hospital e uma conta de um cirurgião, Zachary... efectuadas pela mulher, Yvette, hoje falecida, durante uma série de operações ao cancro.

Beaulieu mastigou um pedaço de sanduíche, enquanto analisava a reacção de Zack.

‑ Foi o senhor quem efectuou as operações? ‑ perguntou Zack.

O cirurgião abanou a cabeça.

‑ Os Coulombe foram meus doentes durante muitos anos, mas pouco depois de a Yvette começar a ter os sintomas, os boatos sobre a minha pessoa começaram a circular. Tal como muitas das outras pessoas da cidade, decidiram ou foram aconselhados... ainda não sei muito bem... a consultar um tal Jason Mainwaring. Também foram avisados de que a apólice de seguro era muito limitada mas que, caso não surgissem complicações, cobriria grande parte das contas da Yvette.

‑ Mas surgiram complicações.


‑ Quatro operações distintas, todas elas indicadas e devido a circunstâncias imprevisíveis, tanto quanto sei. Seja como for, quatro. Depois houve uma estada prolongada na Casa de Saúde de Sterling. Na verdade, a Yvette não voltou para casa antes de morrer.

‑ Como é evidente, houve ainda mais contas por causa disso. Estou a perceber.

‑ Na verdade ‑ disse Beaulieu em tom grave ‑, não estás a perceber nada... ainda. A Ultramed não só é proprietária do nosso hospital, como também é dona das duas casas de saúde da cidade. Sabias disso?

‑ Não ‑ respondeu Zack. ‑ Não sabia.

‑ O nome da organização é leeward Company. É proprietária de casas de saúde e centros de reabilitação espalhados por todo o leste e no Midwest e, há cerca de três anos, compraram as duas de Sterling. Mas o que nem muita gente sabe, incluindo eu até há apenas alguns meses, é que a leeward é uma divisão da Ultramed, comprada por eles precisamente há quatro anos. As contas das três instituições, da Ultramed‑Davis e das duas casas de saúde, são emitidas pelo mesmo computador. Não te vou dizer quem é o responsável por esse computador, mas podes adivinhar se quiseres.

‑ Não preciso ‑ respondeu Zack, imaginando a razão por que Frank nunca lhe falara de compra das duas casas de saúde. A história do Coulombe é muito triste, em especial com o fim infeliz da mulher. Mas não vejo nisso nada de perverso, ou mesmo imoral.

‑ Isso porque te falta uma peça do puzzle ‑ afirmou Beaulieu. ‑ Uma peça crucial. E lembra‑te ‑ acrescentou ‑, o que estou prestes a revelar‑te é apenas a ponta do icebergue.

‑ Continue ‑ pediu Zack, agora esperando que o homem se calasse.

Beaulieu retirou um papel dobrado e dactilografado do bolso do casaco, endireitou‑o sobre a mesa e passou‑o a Zack.

‑ Tal como disse ‑ continuou ‑, não tenho muitos aliados na minha luta. Mas tenho alguns. Um deles passou cerca de seis meses a viajar de um lado para o outro, tentando recolher informações para mim. Ainda na semana passada me trouxe esta. É uma lista dos elementos da direcção de duas companhias.

Zack examinou as listas paralelas de nomes, cujo título era simplesmente R e EPSS. Cinco dos dez nomes de cada lista eram idênticos.

‑ O que significam estas iniciais? ‑ perguntou.

O fogo nos olhos de Beaulieu intensificou‑se.

‑ O R é a inicial do RIATA de Bóston, o proprietário da Ultramed. Num certo sentido, são os nossos patrões, Zachary. Teus, meus e de todos os outros médicos da cidade.

‑ E as outras?

‑ As outras, meu a migo, são as iniciais de Eagle Pharmaceuticaís and Surgical Supplies, a organização que comprou a farmácia ao Richard Coulombe. As direcções estão interligadas.

Beaulieu ilustrou o seu ponto de vista, colocando os dedos de uma mão entre os dedos da outra.

Antes de poder responder, Zack viu um movimento pelo canto do olho. Escondeu o papel no colo, no mesmo instante em que uma sombra surgiu sobre a mesa. Ele e Beaulieu olharam.


Frank, sorrindo maliciosamente, encontrava‑se a metro e meio de distância, segurando um tabuleiro de comida.

‑ Vocês, cavalheiros, estão a ter alguma conversa particular? ‑ perguntou. ‑ Ou têm espaço para mais um na mesa?

Cuidadosamente, Zack dobrou a folha de papel e guardou‑a no bolso, embora sentisse que o movimento fora infrutífero. Frank ouvira pelo menos uma parte da conversa. Disso, tinha ele quase a certeza.

 

Ouvia‑se uma fuga de Bach no pequeno leitor de cassetes junto ao lavatório. Barbara Nelrus, a olhar taciturnamente para o espelho da casa de banho, passou um dedo sobre as estrias da testa e os pés‑de‑galinha no canto dos olhos. Ao que parecia, as rugas tinham surgido durante a noite. Instintivamente, ela pegou no estojo de maquilhagem. Depois, do mesmo modo veloz, parou a cassete, deu meia volta e saiu da casa de banho. Se se sentia cansada, se se sentia sob tensão quase até ao esgotamento e se a frustração e o medo a haviam envelhecido seis anos em seis meses, por que raio deveria ela continuar a tentar escondê‑lo?

Fruto de uma educação perfeitamente simples em Dayton, no Ohío, e quatro anos idilicos como especialista em administração de empresas e marketing no pequeno Colégio St. Mary do Missouri, ela orgulhara‑se sempre de ser uma mãe, esposa e cidadã modelo e membro da sociedade. Estava registada como democrata, votava no Partido Republicano, era funcionária no Registo de Patentes há três anos, chefe dos escuteiros, leitora na igreja, pianista e tenista acima da média e, pelo menos segundo o marido, a melhor amante que um homem podia desejar.

Porém, agora, depois de aturar durante seis meses orientadores escolares e esgotantes trabalhadores de recursos escolares, psicólogos com comportamentos evasivos e bombásticos e pediatras desnorteados, já nada disso importava. Tinha desistido de todas as comissões, há semanas que não pegava numa raqueta de ténis e não se lembrava quando fora a última vez que ela e Jim tinham feito amor.

Algo estava errado, terrivelmente errado, com o filho. E não só nenhum dos chamados especialistas que consultaram diagnosticou o problema do rapaz, como todos pareciam unidos e determinados a convencê‑la de que o assunto era do foro de outra pessoa.

As crises violentas, que inicialmente ocorriam uma vez por mês, mas que agora aconteciam cerca de uma vez por semana, tinham envolvido Toby numa nuvem de melancolia e medo tão densa que ele já não sorria, brincava ou mesmo falava, excepto monossilabos ocasionais em resposta a perguntas directas... e somente em casa.

Depressão circunstancial; autismo retardado; esquizofrenia da infância; paragem evolucionária com ideação paranóica; representação para proveito secundário; os rótulos e as explicações para o estado de Toby eram tão variados ‑ e tão inaceitáveis ‑ quanto os educadores e os especialistas clínicos que os aplicavam.

O rapaz estava doente e piorava cada vez mais.

Tinha perdido quase cinco quilos num corpo que, para começar, não possuia um grama de gordura. Parara de crescer. Tinha fracassado nas provas de passagem para a quarta classe. Evitava o contacto com as outras crianças.


Foram‑lhe receitadas vitaminas, sedativos, Torazina, Ritalina e dietas especiais. Ela levara‑o a Concord e depois a Bóston, onde fora hospitalizado durante quatro dias. Nada. Nem uma única pista objectiva. Pelo contrário, regressara da Meca médica ainda mais reservado do que antes.

Agora, enquanto se preparava para levar o filho a um outro especialista ‑ um jovem especialista, novo na cidade, chamado Brookings ‑ Barbara Nelrus sentiu os dedos gelados e muito familiares da inutilidade a tocarem‑lhe.

No inicio, as crises de Toby pareciam pesadelos horriveis. Por várias vezes, ela testemunhara‑as: vira, impotente, como os olhos do filho se abriam e se tornavam vidrados enquanto se encolhia num canto, fugindo para um mundo assustador que não partilhava com mais ninguém. Ouvira o choro dele e tentara abraçá‑lo para o consolar, recebendo em troca murros na cabeça e no rosto.

Por fim, nada mais podia fazer a não ser ficar perto dele, fazer tudo para que não se magoasse e esperar. Umas vezes, as crises duravam apenas meia hora, outras mais do que isso. Acabavam sempre com o filho calado, encolhido e esgotado.

Talvez seja hoje o dia, disse para consigo. Talvez aquele homem, Brookings, o primeiro psiquiatra a tempo inteiro no vale, tivesse a resposta.

No entanto, mesmo enquanto se concentrava nesta ideia optimista, mesmo enquanto abotoava a blusa e alisava os vincos da saia que devia ter passado a ferro, mesmo quando foi buscar o filho ao quarto para mais uma avaliação no consultório de mais um médico, Barbara Nelrus sabia que não ia conseguir nada. Nada, excepto talvez outro rótulo.

E também sabia que o tempo estava a esgotar‑se.

O percurso de casa até à Clínica de Médicos e Cirurgiões do Ultramed‑Davis levou cerca de quinze minutos. Durante a maior parte do trajecto, Barbara Nelrus manteve uma determinada conversa com o filho, uma conversa essencialmente em monólogo.

‑ O médico chama‑se Brookings, Toby. É novo na cidade e é especialista em ajudar as pessoas com ataques como os teus... Havemos de conseguir resolver isto, querido. Havemos de descobrir o que está mal e vamos remediar tudo. Compreendes?

Toby estava placidamente sentado, com os braços cruzados sobre as pernas, e olhou pela janela.

‑ Seria mais fácil para o doutor Brookings fazer o seu trabalho se conversasses com ele... lhe dissesses o que vês e sentes quando tens as crises. Achas que és capaz?... Toby, por favor, responde‑me. Vais tentar conversar com o doutor Brookings?

Quase imperceptivelmente, o rapaz concordou com a cabeça.

‑ óptimo, querido. Isso é maravilhoso. Só queremos ajudar‑te. Ninguém te vai magoar.

Barbara Nelrus julgou ter visto o filho estremecer com aquelas palavras.

Estacionou a carrinha num dos poucos lugares vagos do parque de estacionamento, trancou a porta e contornou o carro para que Toby saísse. Era um sinal prometedor que ele próprio tivesse tirado o cinto de segurança. Instantaneamente, a esperança voltou a surgir.

Talvez seja hoje o dia.


A única vez que ela e Toby tinham estado na Clínica dos Médicos e Cirurgiões do Ultramed‑Davis fora para uma breve consulta de acompanhamento com o Dr. Mainwaring. O consultório do pediatra de Toby situava‑se numa velha casa vitoriana, na zona norte de Sterling. Uma lista, emoldurada por duas árvores da borracha no brilhante vestíbulo ladrilhado, apresentava cerca de duas dúzias de médicos ao lado das respectivas especialidades. Dr. Phillip R. Brookings: Psiquiatria Infantil e Adulta, encontrava‑se no segundo dos três andares.

‑ Toby, queres subir pelas escadas ou pelo elevador?... Querido, garanto‑te que o doutor Brookings só quer conversar. Então, por onde vamos?... Está bem, então vamos pelas escadas.

Barbara pegou‑lhe na mão e conduziu‑o pelas escadas, a desejar que ele reagisse ou fizesse alguma tentativa para fugir dali. Estava estático, sem qualquer emoção. No entanto, Barbara tinha a certeza de que ele sabia perfeitamente o que estavam a fazer.

Uma pequena placa na porta da sala com o número 202 dizia DR. P. R. BROOKINGS, TOQUE UMA VEZ A CAMPAINHA E ENTRE.

A sala de espera era pequena e sem janelas, com papel de parede em relevo, uma fila de fotografias a preto e branco de paisagens montanhosas e cadeiras para apenas quatro pessoas. Num dos lados, havia uma pequena área de lazer para crianças, constituída essencialmente por revistas com folhas dobradas, blocos de construção multicolores e puzzles que não despertariam o interesse de Toby, Barbara tinha a certeza. Tinha saudades da imagem do filho antes de tudo ter começado, sentado no chão com o pai, a brincar entusiasmado com os brinquedos.

Não, pai, é assim... vira‑o assim... Vês?

às três horas em ponto, Phillip Brookings saiu do gabinete interior, apresentou‑se formalmente a Barbara com um aperto de mão e a Toby com um movimento de cabeça. Parecia mais jovem do que ela previra; não mais de trinta e dois ou trinta e três anos, calculou, embora o bigode espesso dificultasse o cálculo.

Tal como acontecera tantas vezes ao longo dos meses anteriores, Barbara deu consigo a pensar se teria envelhecido muito ou se actualmente os médicos eram cada vez mais novos.

‑ Então ‑ disse ele, sentando‑se numa das duas cadeiras vagas ‑, bem‑vindo ao meu consultório. Toby, agradeço que tenhas vindo ver‑me e espero podermos ajudar‑te a sentir melhor.

Vestia uma camisa e uma gravata, mas não trazia casaco e, apesar da sua juventude, a primeira impressão de Barbara foi positiva. Independentemente de tudo, ele começara com o pé direito ao não tratar o rapaz com condescendência. Ela observou Toby, que estava sentado a olhar impassivelmente para as fotografias na parede.

‑ Está aqui o formulário clínico que nos enviou, doutor Brookings ‑ disse ela, entregando o papel. ‑ Recebeu os relatórios que lhe enviei?

Brookings anuiu e examinou rapidamente o papel.

‑ Penso que ‑ começou ‑, se o Toby concordar, gostaria de conversar só com ele no meu gabinete. O que achas, Toby?... Se quiseres, podemos deixar a porta aberta, está bem?

levantou‑se e recuou até à porta do seu gabinete interior.


‑ Vens?

‑ Vai, querido ‑ insistiu ela. ‑ Estarei aqui. lembra‑te do que eu disse. Não precisas de ter medo de nada.

lentamente, Toby levantou‑se da cadeira.

‑ Maravilha ‑ disse Brookings. ‑ Entra. Entra.

Silenciosamente mas com todo o vigor, Barbara Nelrus incitou o filho a avançar. Ele estava a colaborar mais e a ser mais aberto para este homem do que o fora com todos aqueles a quem ela o levava desde há algum tempo.

Talvez ele estivesse finalmente pronto. Talvez...

Viu Brookings desaparecer no interior do gabinete. Do local onde estava sentada, directamente oposto à porta, pôde ver um gabinete espaçoso e confortavelmente mobilado, uma grande janela panorâmica e plantas dispostas no chão e suspensas no tecto.

- Vai, querido. Entra. Está tudo bem. Está tudo bem.

Após uma breve hesitação, Toby seguiu Brookings.

Depois, após um simples passo para tentar passar a porta, ele parou, com o olhar fixo na janela panorâmica diante de si.

‑ Entra, Toby ‑ ouviu Barbara o médico dizer. ‑ Não vou magoar‑te.

Barbara viu o corpo de Toby ficar rigido. As suas mãos, que tinham estado imóveis junto ao corpo, começaram a contorcer‑se.

Meu Deus, pensou, vai ter um ataque. Aqui mesmo. Agora mesmo.

‑ Toby, sentes‑te bem? ‑ perguntou Brookings.

Toby recuou vários passos para dentro da sala de espera, o rosto pálido, os olhos ainda fixos na janela.

‑ Querido, o que se passa? ‑ Barbara sentiu os músculos tensos. A não ser ela e o marido, nunca ninguém testemunhara um dos ataques. Assustada como estava, sentiu que uma parte de si agradecia aquilo que estava prestes a acontecer. Pelo menos mais alguém ficaria a saber o que eles tinham passado durante todos aqueles meses.

Instintivamente, olhou em redor à procura de objectos com os quais Toby pudesse magoar‑se.

Então, subitamente, o rapaz virou‑se, abriu a porta principal e correu para fora.

‑ Toby! ‑ Barbara e Brookings, que saiu do gabinete, chamaram em coro.

O psiquiatra atravessou a sala de espera e passou a porta antes de Barbara se levantar. Ela chegou ao corredor no momento em que o médico desapareceu pela porta das escadas. Era quase impossível correr com os sapatos que trazia. No topo das escadas atirou‑os para o lado e desceu até ao primeiro andar, caindo nos últimos três degraus e esfolando a pele.

Quando entrou no vestíbulo a coxear, Barbara ouviu o guincho horrível dos pneus de um automóvel e gelou, prevendo o revoltante baque do carro a bater no filho. Não se ouviu nada. Pelo contrário, através das portas de vidro, ela viu‑o a atravessar o parque de estacionamento e a correr, como não o via desde há muitos meses. Phillip Brookings estava a dez metros e aproximava‑se dele.

Barbara atravessou o parque a correr, mal evitando ela própria de ser atropelada por um carro.

‑ Toby, pára! Por favor, pára!


O rapaz já tinha atravessado o parque e corria por um campo de trinta ou mais metros de relva, em direcção à densa floresta ao fundo. Brookings encontrava‑se a não mais de alguns passos dele. Com apenas um ou dois metros até á floresta, o psiquiatra atirou‑se para diante, apanhando Toby pela cintura e prendendo‑o com força.

‑ Graças a Deus ‑ disse Barbara com voz ofegante, atravessando o parque a correr. Era a primeira vez, em todos os ataques, que Toby reagia assim. Mesmo à distância, ela percebeu que, embora estivesse preso por baixo do psiquiatra, Toby lutava. Quando se aproximou, percebeu que ele começava a acalmar‑se.

‑ Toby, pára com isso ‑ ouviu Brookings dizer, firme, mas suavemente. ‑ Pára de lutar comigo e eu soltar‑te‑ei.

Barbara aproximou‑se cautelosamente, esperando ver o tão conhecido terror distante e vítreo nos olhos do filho. Pelo contrário, o que viu foi uma violenta mistura de fúria e medo. Era quase como se ele estivesse a rosnar para o homem.

Cuidadosamente, Brookings afastou‑se, embora mantivesse o rapaz preso pelo cinto.

Quando Barbara se ajoelhou ao lado do filho, percebeu que afinal não se tratava de um dos seus ataques ‑ pelo menos, não era igual aos outros. Ele estava acordado e atento. O que quer que tivesse despertado aquilo nele encontrava‑se neste mundo e não no mundo trancado dentro da sua mente.

‑ Toby, estás bem? ‑ perguntou. ‑ O que foi que aconteceu? O que foi que te assustou?

O rapaz não respondeu.

‑ Vou soltar‑te, Toby ‑ disse Brookings. ‑ Prometes‑me que não foges?

De novo, não houve resposta.

lentamente, Brookings soltou o cinto de Toby. O rapaz, ainda ofegante, não se mexeu.

‑ O que foi que aconteceu? ‑ perguntou Barbara.

‑ Como? ‑ A camisa e os joelhos das calças castanhas de Brookings estavam sujos de relva e ele próprio ainda estava ofegante.

‑ Doutor Brookings, o Toby viu qualquer coisa na sua janela... qualquer coisa que o assustou. Este não foi um dos seus ataques. ‑ Virou‑se para o filho. ‑ Não foi, pois não, querido?

Com as lágrimas a brilhar nos olhos, Toby olhou para ela. Depois, abanou a cabeça.

‑ Sabes dizer o que foi?

Desta vez não houve resposta.

Phillip Brookings esfregou o queixo:

‑ Mistress Nelrus, não sei o que dizer. Vi o Toby a olhar para a janela e segui a sua linha de visão. Mas não havia ninguém, nada.

‑ Nada?

Brookings abanou a cabeça:

‑ Somente um enorme carvalho, um parque de estacionamento e, ao fundo, a ala das urgêncías do hospital. Nada mais. Tenho a certeza.

A ala das urgências. Barbara Nelrus viu o filho ficar rígido com as palavras.

‑ Toby, foi isso? Foi a ala das urgências?

O rapaz continuou calado.


‑ Doutor Brookings, qual é a sua opinião? ‑ perguntou. - Pode ajudar‑nos?

O psiquiatra olhou para Toby.

‑ Talvez ‑ respondeu. ‑ Com o tempo, talvez consiga. Mas, antes de começar, gostaria de insistir numa coisa.

‑ Tudo.

‑ Quero que o Toby faça uma TAC e seja examinado por um neurologista. Tudo quanto percebi ao rever o material que me enviou é que ele ainda não fez nada disso. Não é verdade?

‑Acho... que não.

‑ Bem, se os ataques dele são uma espécie de convulsão, penso que deve ser visto por um neurologista, não concorda?

‑ Doutor, disse‑lhe no primeiro telefonema que estamos dispostos a fazer tudo. Absolutamente tudo. Recomenda alguém?

Brookings concordou com a cabeça.

‑ Há um homem novo na cidade. Formado em Yale. Treinado nos hospitais de Harvard. Na verdade, é neurocirurgião mas também exerce neurologia. Chama‑se Iverson. Zachary Iverson. Vou telefonar‑lhe e voltarei para falar consigo.

Barbara afagou a testa do filho. Não havia nada na sua expressão que indicasse que tinha seguido a conversa. Por um momento, analisando as covas profundas em redor dos olhos e a pele tensa e clara das faces, sentiu como se estivesse a olhar para um cadáver.

‑ Por favor, doutor ‑ pediu. ‑ Só uma coisa.

‑ Sim?

‑ Faça‑o rapidamente.

Brookings concordou com a cabeça, levantou‑se e regressou ao seu consultório.

Barbara pegou na mão do filho e conduziu‑o para o carro. No desespero, buscou nas ideias qualquer desagrado ou dificuldade que ele pudesse ter encontrado no Ultramed‑Davis ou em qualquer outra ala de urgências. Não descobriu nada. Nada, a não ser um corte no queixo quando tinha cinco anos e, claro, a operação à hérnia, no ano anterior.

Barbara Nelrus sabia ‑ tal como o cirurgião, o Dr. Mamwaring lhe dissera ‑ que o assunto da hérnia tinha sido um caso tão rotineiro quanto a rotina o era.


 

No Norte da cidade, Suzanne Cole e a sua filha de seis anos, Jennifer, partilhavam uma pequena casa de dois pisos com um gato gordo de pêlo amarelo, chamado Gulliver ("... porque", explicara Jennifer, "ele gosta de viajar") e um cão lavrador que parecia não ter qualquer nome.

Os quartos da modesta casa estavam desarrumados e eram quentes. Sapatos da neve, bastões da neve, raquetas de ténis e até mesmo um par de estetoscópios velhos encontravam‑se pendurados nas paredes de pinho escurecido pelo fumo, intercalados com cópias e algumas pinturas originais que representavam todos os tipos de estilo. Havia um fogão na sala de visitas e um tear num dos quartos das traseiras, assim como uma espineta danificada ("A mãe costumava tocar muito, mas agora só põe a tocar os Deep Purpie") e dúzias e mais dúzias de livros.

O jantar de espaguete, sobre o qual Zack fora orgulhosamente informado, foi sobretudo uma criação de Jennifer, e esta serviu‑o com um encanto e um entusiasmo que o impressionou quase tão profundamente quanto a mãe. Era alta para a sua idade, de nariz elegante, cabelo liso castanho‑avermelhado que atingia o meio das costas e a magia dos olhos e do sorriso de Suzanne. Falou da escola, dos animais e do ballet, e parecia muito feliz por mostrar as suas colecções de rochas e de animais de peluche.

Em troca, Zack prometeu apresentá‑la a Cheapdog e ensiná‑la a fazer voar o seu avião telecomandado. Até fez um número de prestidigitação, apesar de Jennifer lhe ter sorrido carinhosamente e dito:

‑ Esse número precisa de um pouco mais de treino, Eu vi a moeda.

à sobremesa ‑ brownies de chocolate com gelado ‑ todo o acanhamento que sentira quando ali chegara tinha desaparecido e Zack deu consigo a sentir‑se mais um amigo da família do que um convidado.

Se houve algum desconforto durante todo o jantar, ele deveu‑se a Suzanne, que por vezes parecia distante, distraída e satisfeita por Jennifer manter a conversa.

Porém, sem vontade de encontrar qualquer falha na mulher, Zack percebeu que havia nas mudanças de humor dela uma introspecção e vulnerabilidade que só a tornavam ainda mais interessante e atraente.

Ela estava a regressar à mesa com um tabuleiro de café, quando Jennifer se levantou e anunciou que ia ver o M*A *S*H na televisão e lavar o cabelo.

‑ Só há uma coisa que me preocupa ‑ disse a rapariga, enquanto apertava a mão de Zack.

‑O que é?

‑ Bem, o teu cão. Nunca ouvi um nome como Cheapdog.

‑ Bem ‑ disse Zack ‑, é um nome como outro qualquer. ‑ Pelo canto do olho viu Suzanne parar e encostar‑se à parede, a ver a cena. ‑ Sabes, um dia estava a passear na praia, num lugar chamado São Diego. Sabes onde fica?

‑ Na Califórnia?

Zack concordou com a cabeça:


‑ Existe lá um jardim zoológico fantástico e também têm uma orca que faz cálculos avançados e prepara a sua própria declaração de impostos. Bem, estava um homem na praia, era mexicano e um tanto... desleixado. Conheces a palavra? Nem todos os mexicanos são de modo algum assim, mas este tipo era.

"Seja como for, ali estava ele com a sua enorme caixa de cartão e dentro desta encontravam‑se muitos cachorros, uma série de cachorrinhos rafeiros. Ele meteu a mão dentro e pegou na nuca de uma bolinha de pêlo. Assim. E manteve‑o no ar para que eu o visse.

‑ Senhor ‑ disse ‑, não quer comprar este amiguinho aqui? Dou‑lhe a minha palavra, senhor, que ele é de raça pura, a velha raça inglesa cheapdog, guardador de rebanhos. Os papéis dele estão no cofre em minha casa. Compre‑o agora e trago‑lhe os papéis amanhã. Sim?

‑ Significa sim ‑ disse Jennifer.

‑ Sim.

‑ E tu disseste?...

‑ Sim. ‑ Os três disseram a palavra em coro e desataram a rir.

‑ E foi assim que o Cheapdog recebeu o nome.

‑ Não há nele nada do velho cão inglês guardador de rebanhos? ‑ perguntou Jennifer.

‑ Deve haver ‑ respondeu Zack ‑, porque, sempre que a princesa Diana e o principe Carlos aparecem na televisão, ele levanta‑se.

‑ Que parvoice. ‑ Jennifer pensou por momentos e depois continuou. ‑ Gostei dessa história. ‑ Voltou a apertar a mão de Zack. Depois deu meia volta e correu escadas acima.

‑ Mais uma vez, obrigado pelo jantar ‑ agradeceu‑lhe Zack.

‑ Eu também gostei da história ‑ disse Suzanne, depois dos passos no andar de cima deixarem de se ouvír. ‑ Gostei muito da forma como falaste com a Jen. De pessoa para pessoa e não de adulto para criança. Sem condescendência. E podes crer que ela também gostou.

‑ Obrigado. A conversa daquela miúda não tem nada de criança, podes crer.

Suzanne anuiu com alguma tristeza:

‑ Ela teve de crescer muito num espaço de tempo

terrivelmente curto. O meu casamento e o meu divórcio foram algo, como direi, turbulentos.

‑ Sim?

Por um momento, pareceu que ela queria continuar a falar do assunto, mas de súbito abanou a cabeça:

‑ Tema para outra noite ‑ disse.

Ela mordeu o lábio inferior, apoiou o queixo numa mão e ficou a olhar para a chávena de café. Havia tristeza no seu olhar, mas Zack observou que também havia algo mais: inquietação, talvez; tensão nos músculos do rosto e do pescoço.

‑ Há algum problema? ‑ perguntou.

Suzanne hesitou e depois afastou a cadeira da mesa e levantou‑se.

‑ Penso que é melhor ficarmos por aqui ‑ disse. ‑ Amanhã tenho um dia muito ocupado e tenho muitas coisas para tratar antes de me deitar. Foste uma óptima companhia... para ambas... mas acho que preciso de ficar algum tempo sozinha.

Perplexo, Zack olhou para o relógio. Ainda não faltava um quarto para as oito.

‑ Só isso?


Ela encolheu os ombros e concordou com a cabeça. Durante alguns segundos, pareceu estar prestes a chorar.

‑ Desculpa, Zack ‑ disse por fim ‑, mas acho que não foi a melhor noite para eu ser encantadora e divertida. Meu Deus, parece que tudo o que faço perto de ti é pedir‑te desculpas. Bem, seja como for, perdoa‑me. Compensar‑te‑ei numa outra altura. Prometo.

Esperou que ele se levantasse, passou um braço pelo dele e conduziu‑o através do pátio resguardado e dos degraus de madeira. O seu perfume suave e o toque do seio contra a manga da camisa fizeram com que a súbita saída de Zack se tornasse mais confusa e dolorosa.

Caminhou ao lado dela, desejando que fosse menos inexperiente na compreensão das mulheres e sentindo‑se pouco á vontade e tolo por não saber o que dizer.

Na carrinha, ela voltou a pedir‑lhe desculpas por ter encurtado a noite e prometeu que, muito em breve, o convidaria de novo e conversariam depois do jantar. Ele pegou no puxador da porta, mas depois parou e virou‑se para ela.

‑ Sim? ‑ perguntou, olhando para ele admirada, tal como o fizera naquela primeira noite.

‑ Suzanne, eu... sei que estás preocupada com alguma coisa ‑ ouviu‑se dizer a si próprio. ‑ Quero que saibas que, seja o que for, espero que se resolva como desejas.

Ele hesitou, esperando que ela agradecesse cortesmente a sua preocupação e o mandasse embora.

Ela não fez nenhuma das duas coisas.

‑ Temo ser culpado de não prestar atenção ‑ continuou. Acho que estava demasiado ocupado a satisfazer as minhas próprias fantasias. Olha, quero que saibas que estou feliz por nos termos conhecido e agradeço aos céus por nos tornarmos amigos. ‑ Abriu a porta da carrinha. ‑ Se algum dia quiseres conversar sobre aquilo que te preocupa, estou disponível... sem nenhum compromisso. Na verdade, por um preço modesto até omito os tmques com moedas.

Avançou para lhe dar um beijo na face, mas pensou melhor e subiu para o banco do condutor da carrinha.

‑ Zack, espera um minuto ‑ chamou, quando Zack começou a fazer marcha atrás. Ele parou e pôs a cabeça fora da janela. ‑ Há um local a meio da subida, por trás da casa, de onde se vê quase todo o vale. Numa noite como esta, é muito relaxante sentarmo‑nos lá e ver as luzes da cidade a piscar. Se me deres um minuto para ir verificar se a Jen está bem e trazer um cobertor e vinho, gostaria muito de ir para lá contigo.

‑ Sabes que não é preciso ser hoje.

Ela sorriu de um modo como não fizera durante todo o jantar.

‑ Eu sei ‑ respondeu.

 

No suave ar da noite só se ouvia o barulho das cigarras e o canto de aves e grilos. Durante cerca de uma hora, deitaram‑se lado a lado no ruidoso silêncio, a olhar para as sombras da montanha a envolverem todo o vale. Lá bem no alto, um falcão solitário voou agilmente, descrevendo um arco, a sua silhueta parecendo um crucifixo escuro contra o perfeito céu azul‑acinzentado.


‑ As raparigas da SO disseram que fizeste um trabalho magnífico no pescoço daquela mulher, esta manhã ‑ disse Suzanne por fim, dando um gole no pouco que sobrava de uma garrafa de vinho chardonnay.

‑ Andaste a recolher informações a meu respeito?

‑ Claro que andei. Julgas‑te assim tão irresistível?

‑ Não ‑ respondeu, procurando ignorar a súbita batida cardíaca que parecia querer fazer o peito saltar para fora do cobertor. ‑ Penso que não.

‑ Técnica, nota alta; velocidade, nota alta; aspecto fisico, nota alta.

Ele sorriu.

‑ Ainda bem que a primeira impressão que causei nas enfermeiras foi boa. Depois de nove anos em várias salas de operação e todo esse tempo em superficies rochosas, não existe muita coisa que me deixe atrapalhado. Esta manhã, no entanto, admito que estava um pouco nervoso.

‑ Eu compreendo. Os médicos estão sempre sob uma enorme lupa de fiscalização, mas nunca como durante os primeiros meses num hospital novo. Durante um tempo após ter entrado em cena, senti‑me como se tivesse um novo corte de cabelo. Todos tinham de expressar uma opinião... O caso que tiveste está a resultar bem?

‑ Sem dores pela primeira vez num ano e a mexer todas as partes que é suposto mexerem. ‑ Zack fez figas e levantou as mãos para que ela visse.

‑ Isso é óptimo. Sabes, estou curiosa. Pareces ser do tipo que prosperaria numa casa de loucos como o Hospital de Bóston... com todo aquele movimento.

‑ Na verdade, eu gostava muito daquilo. Mas, para além disso, havia casos e traumas a mais para tratar. Eu gostava dos doentes... de conversar com eles, saber como eram as suas vidas, tornar‑me importante para eles e até mesmo travar amizade com alguns. Mas nunca me dei bem com a pressão dos grandes hospitais universitários, para me poder tornar um perito mundial nalgum cantinho da neurocirurgia.

Suzanne anuiu.

‑ E se não suportamos isso ‑ disse ‑, então acabamos por ser os peritos mundiais em ficarmos para trás nas promoções ‑ comentou ela.

‑ Exactamente. Confesso que também estava um pouco cansado de politiquices... Construir um império e apunhalar os outros pelas costas. Ter de rastejar perante um chefe de departamento ou administrador, só para conseguir a porcaria de um equipamento que o hospital já poderia ter adquirido com o dinheiro da caixa se não fosse tão pouco eficiente.

‑ E então julgaste que exercer medicina aqui seria mais interessante... que responderia mais às necessidades do hospital e dos doentes?

‑ Foi o que pensei.

‑ Respondeste como se a tua opinião já tivesse mudado.

Zack apoiou o queixo nas mãos e olhou para o vale.

‑ Não sei ‑ disse. ‑ Desde que aqui cheguei, têm acontecido algumas coisas que...


A sua voz extinguiu‑se. Ao longo de todo o dia, fora‑se apercebendo cada vez mais de que não havia nada que pudesse desmentir as afirmações de Guy Beaulieu. E se estas eram verdadeiras, se a Ultramed, Mainwaring ou Frank tinham conspirado, fosse por que razão fosse, para correrem com o velho cirurgião, então a situação em Sterling era mais virulenta, mais assustadora, mais... inaceitável do que tudo o que ele alguma vez encontrara em Bóston.

Também percebeu que, se as preocupações do seu velho mentor sobre a ética e a prática da Ultramed tivessem fundamento, de modo algum poderia voltar as costas ao problema. Tinha regressado a Sterling para exercer a melhor neurocirurgia possível, no melhor ambiente possível, e apenas isso.

‑ Ei, doutor ‑ disse Suzanne ‑, sabes que a tua última frase não chegou a sair completamente das entranhas?

Zack olhou para ela.

‑ Fica para outra noite ‑ respondeu. ‑ Não foi o que ficou estabelecido?

‑ É isso. Bom, então chega de conversa.

Suzaune deitou‑se de lado, apoiando a cara numa mão. Após algum tempo, estendeu o braço e afagou suavemente o rosto dele.

‑ És realmente muito bonito ‑ afirmou.

‑ Obrigado. Tenho dificuldade em acreditar nisso, em especial depois de passar a vida á sombra de um homem com o aspecto do Frank, mas sabe bem ouvir.

‑ Sabe bem dizer.

Zack aclarou a garganta, a qual parecia estar cada vez mais seca e áspera à medida que o tempo passava. Sentiu‑se imediatamente relutante em tocar em Suzanne e ainda mais relutante em não lhe tocar.

‑ Então ‑ conseguiu dizer, lutando por afastar o pensamento da boca perfeita dela ‑, qual foi a história de crise e resolução que te trouxe até aqui?

Ela voltou a afagar‑lhe o rosto, desta vez permitindo que as pontas dos dedos roçassem os lábios dele.

‑ Julgo que não consegui explicar‑te a lei da montanha - disse. ‑ Desde que estejamos no meu miradouro na minha montanha, sou eu quem faz as perguntas. Essa é a lei. É pegar ou largar.

‑ Mas o que é que aconteceu aos infortunados, como eu, que não têm uma montanha?

Os olhos e os cantos da sua boca atraente formaram um sorriso, que foi talvez o mais fascinante.

‑ Nesse caso ‑ disse ‑,terás de adoptar uma. Enviar‑te‑ei os papéis de manhã e pedirei à nossa assistente social para te vir entrevistar o mais cedo possível. Entretanto, reservamos todas essas entrelinhas do meu curriculum vitae para quando fores aprovado, está bem?

Zack encolheu os ombros.

‑ A montanha é tua.

‑ Exactamente. A montanha é minha. Achas que estou a ser descarada ao tocar‑te assim?

‑ Não. Descarada não. Embora seja talvez um pouco difícil de perceber, considerando que há duas horas atrás me tentaste despachar para fora da tua casa e montanha abaixo.

‑ Ah ‑ exclamou ela ‑, mas isso foi antes de dizeres a palavra mágica.

‑ Claro. A palavra mágica. Como sou estúpido. Bom, tenho utilizado tantas vezes essa maldita palavra mágica, que está a tornar‑se automática... Na verdade, desta vez foi tão automática que me saiu da boca sem eu dar por isso.


Ela tomou‑lhe o rosto nas mãos e puxou‑o para si. De novo, tal como à mesa de jantar, ele viu‑lhe nos olhos uma tristeza estranha.

‑ A palavra mágica, Zachary, foi "amigo".

Os beijos dela, primeiro nos olhos, depois em redor da boca e finalmente sobre os lábios, foram tão doces e quentes quanto o ar da montanha. Durante um minuto, ou talvez dois, ela abraçou‑o, com a língua explorando suavemente a parte inferior dos lábios, depois os dentes e o interior das faces.

Por fim, ela afastou‑se.

‑ Foi satisfatório? ‑ perguntou.

Zack engoliu em seco.

‑ Há pelo menos cem palavras que escolheria antes de dizer "satisfatório".

‑ Ainda bem. No entanto, pareces perplexo. Acho que te devo um pedido de desculpas, ou pelo menos uma explicação, por ter sido tão volúvel.

Zack passou uma mão pelos cabelos dela, depois pelas costas e depois pela parte de trás das calças de ganga. O seu corpo era mais cheio do que o de Connie, mas mais firme e muito mais excitante de tocar.

‑ Não me deves nada ‑ respondeu. ‑ O Shaw escreveu que há duas tragédias na vida. Uma é não satisfazer um desejo do coração, e a outra é satisfazê‑lo. Neste momento, penso que ele errou quanto à número dois.

- Zack, há pouco junto à carrinha disseste: "Nada de compromissos." Essa promessa aplica‑se se fizermos amor... aqui e agora mesmo?

‑ Aplica‑se. ‑ Meteu a mão por baixo da blusa dela e acariciou‑lhe o seio. O mamilo endureceu instantaneamente com o toque. ‑ Seja o que for que está a acontecer, só quero torná‑lo melhor.

‑ Estás a torná‑lo melhor ‑ disse ela.

Beijaram‑se vezes sem conta. Havia ansiedade e fome nos lábios e no toque dela. Zack percebeu que era o segredo da tristeza dela que a conduzia para os seus braços. Percebeu que, pelo menos naquela noite, ela precisava mais dele do que de fazer amor com ele.

Mas aquela noite era, pelo menos, mais do que suficiente.

Ela ajudou‑o a tirar a camisa e apoiou a cabeça contra os pelos do seu peito.

‑ lentamente ‑ pediu ela. ‑ Fá‑lo durar. Por favor fá‑lo durar.

Zack desabotoou‑lhe a blusa, fazendo uma pausa entre os botões para beijá‑la nos lábios e nos seios maravilhosos; depois, despiu‑lhe as calças de ganga. Com a ponta dos dedos acariciou os mamilos, depois a barriga, junto à borda dos pelos púbicos e finalmente o clitoris tenso.

‑ Toca‑me aí ‑ murmurou. ‑ Com dois dedos. Isso. Oh, Deus, Zachary, isso.

Momento a momento, toda e qualquer pergunta que ela tivesse desapareceu na suavidade da pele e no desejo ardente que ela tinha por ele. Em cada toque e em cada beijo, Zack sentiu‑se cada vez mais apertado por ela.

Passou os lábios pelos tornozelos e pela suavidade da parte interior das coxas e depois passou a língua uma e outra vez por toda ela.

Ela cravou‑lhe as unhas na pele das costas, apertando‑o ainda mais.


‑ Não pares. Oh, não pares agora.

Ela era um anjo... ao mesmo tempo vulnerável e entendida, virtuosa e bastante experiente. E fazer amor com ela foi diferente de tudo o que Zachary alguma vez experimentara na vida.

Suzanne puxou o rosto dele contra o seu e fê‑lo deitar‑se de costas, acariciando‑o e depois chupando‑o até ele pedir para parar.

‑ Agora, ZachHary ‑ murmurou, com os lábios a roçarem a orelha dele. ‑ És tão maravilhoso. Por favor, agora.

Fizeram amor... lentamente no início e depois com mais fervor; cada um imerso no outro; cada um concentrado em satisfazer o outro e não a si próprio.

A escuridão estendeu‑se por todo o vale. Lá longe, abaixo deles, as luzes de Sterling piscavam como estrelas, reflectindo o firmamento.

‑ Zachary, que horas são?

‑ Meia‑noite. Na verdade, um pouco mais.

Estavam seminus, enrolados no cobertor para se protegerem do ligeiro frio da madrugada. A ligação entre ambos já tinha ultrapassado a relação sexual e tornava‑se cada vez mais profunda a cada minuto e a cada segundo.

‑ Sabes ‑ disse ela ‑ que em toda a minha vida nunca me vim assim? Que formigueiro maravilhoso.

Ele beijou‑a no pescoço e depois nos lábios.

‑ Deve ter sido do chardonnay.

‑ Sim, claro ‑ afirmou ela, abotoando as calças. ‑ Que estupidez a minha esquecer‑me disso. Na próxima vez, faremos sem o vinho. Uma experiência controlada. Só para me certificar.

‑ Na minha montanha?

Ela riu.

‑ Será na tua montanha. Sabes, estou sempre a repetir, mas és realmente um homem muito gentil e muito meigo. - Beijou‑o levemente nos lábios. ‑ Só espero que de manhã ainda me respeites. Acredites ou não, fazer amor assim está um tanto além da minha primeira saída normal.

‑ Não te preocupes ‑ disse ele. ‑ Fazer o que queremos em situações como esta é a paga de todas as dores de cabeça e responsabilidades de sermos adultos.

A expressão dela tornou‑se mais carregada.

‑ Zachary, quero que saibas o que se passa... porque é que reagi de uma forma tão estranha durante toda a noite. Bem, quase toda a noite.

‑ Ouve, está tudo muito bem se...

‑ Não. Eu quero. Além disso, até amanhã á noite ficarias a saber, de uma ou de outra forma.

Deitou‑se de costas, pegou na mão dele e conduziu‑a até ao seio direito.

‑ O quadrante superior e exterior ‑ disse. ‑ Bastante profundo.

Foram precisos breves instantes para os seus dedos encontrarem o caroço ‑ uma massa em forma de disco, talvez com o diâmetro de uma moeda de meio dólar e tão duro quanto a parede lateral de um pneu, ou seja, demasiado duro. O seu primeiro impulso foi animá‑la classificando a massa de quisto. Mas sabia que não bastava. Sem uma biopsia era absolutamente impossível dizer.


Subitamente, toda a noite ‑ a distracção, as mudanças de humor, a paixão, tudo ‑ fazia sentido.

‑ Quando foi que o sentiste pela primeira vez? ‑ perguntou.

Sentiu dor ao aperceber‑se agora do que ela estava a sofrer. Se nesse momento o caroço lhe fosse apresentado para exame com uma única resposta correcta, ele teria de o considerar como problema, do principio ao fim.

E sabia que ela também.

‑ Há um mês. Seis semanas, acho ‑ respondeu. ‑ Não houve alterações durante esse período. As mamografias foram equívocas. O resultado da biopsia foi "tecido normal do seio" e, em vez de passar por esse processo uma segunda vez, preferi avançar para uma excisão e, se necessário, um radical modificado.

‑ Quando?

‑ Entro amanhã à noite. A operação está marcada para sexta‑feira de manhã e, mesmo que não notes, estou morta de medo.

Ele abraçou‑a fortemente.

‑ Agradeço‑te muito que não me tenhas mandado embora esta noite. Já arranjaste quem olhe pela Jennifer?

‑ A minha sócia da galeria fica com ela. Ela tem um filho dois anos mais velho do que a Jen.

‑ óptimo. Sabes que tudo irá correr bem.

Suzanne anuiu penosamente.

‑ Continua a recordar‑me isso. Digo‑te que, sendo médica, sei de mais. E ainda te digo outra coisa: por mais que se leia, por mais espectáculos do Donahue que se veja, é impossível imaginar o que pode acontecer.

‑ Tudo vai correr bem ‑ voltou Zack a afirmar, esforçando‑se para que a voz soasse convicta. ‑ Tens um amigo que passará contigo toda a noite de amanhã. A excisão será feita com anestesia local?

Ela abanou a cabeça.

‑ Não ‑ respondeu. ‑ Tanto o anestesista como o cirurgião recomendam a geral. E, francamente, senti‑me aliviada.

- Quem é o anestesista?

‑ Pearl. Jack Pearl.

‑ óptimo. Ele tratou o meu caso desta manhã. Acho que é um pouco esquisito, uma espécie de personagem saída de um conto de terror gótico. Mas sabe muito bem o que faz na sala de operações. E o cirurgião?

Suzanne suspirou.

‑ É o teu amigo desta manhã - respondeu. ‑ O Jason Mainwaring. Penses o que pensares, Zack, ele é de longe o melhor cirurgião das redondezas.

‑ Assim me disseram. Bem, só espero que a sua habilidade na SO seja muito mais avançada do que nas relações pessoais.

‑Oh, é.

‑ Nesse caso ‑ afirmou Zack ‑, só temos de nos preocupar com uma coisa, não é assim?


 

O gabinete de Frank Iverson era constituído por duas salas espaçosas no rés‑do‑chão da ala oeste, a nova construção adicionada ao hospital. Do local onde se encontrava, numa das três poltronas de cabedal, Zachary viu as duas secretárias do irmão a desempenharem as suas funções com a maior eficiência. Uma das mulheres era morena, de aspecto sofisticado e polido. A outra era loura e com um ar sadio e sensual. Ambas eram jovens, esbeltas e notavelmente atraentes ‑ muito aquém do habitual em qualquer ambiente, mas quase deusas segundo a média de Sterling.

Secretárias bonitas, um gabinete luxuoso, negócios de muito dinheiro, um Porsche 911, um espectacular chalé na montanha. "O homem tem mesmo estilo", pensou Zack. E, apesar desse mesmo estilo não ser o que Zack realmente desejava para si próprio, Frank tinha feito um longo percurso desde os tempos da cerveja entre amigos.

Cinquenta por cento idênticos. Cada ano que passava, parecia que os dois confirmavam cada vez menos a verdade genética.

Contudo, Zack percebeu que houvera uma época em que as tendências e as metas de ambos não eram assim tão divergentes, uma época em que os dois irmãos navegavam pelo mundo em pistas virtualmente paralelas, orientados apenas pelos faróis do sucesso prematuro: troféus, fitas, medalhas e adulação.

Para ele tornara‑se um jogo ‑ um devaneio repetitivo imaginar como seria a sua vida se não tivesse caido naquele dia de Inverno, se não tivesse sofrido uma ruptura de ligamentos no seu joelho, ainda tão jovem.

Acidentes. Doença. Os actos violentos e negligentes dos outros. Como sempre, o devaneio levava‑o a reconhecer como a vida era frágil... quão fora de controlo. Uma mancha de gelo, uma fracção de segundo e, subitamente, num instante de agonia, as vendas eram arrancadas da sua protegida visão da vida; a sua invariável pista fora transformada num trajecto de curvas e sulcos, apenas negociável com um passo incerto de cada vez.

Os olhos de Zack fecharam‑se enquanto recordava aquele dia. Estava num local perfeito, a correr atrás de Frank. Três segundos era muito, mas nada que não conseguisse ultrapassar... em especial, estando o irmão a fazer a segunda corrida de uma forma tão invulgarmente cuidadosa.

E ele queria‑o. Queria‑o mais do que algum dia admitira a alguém até mesmo a si próprio, reflectiu.

As cores, a neve acumulada, o súbito desaparecimento do vento que soprara durante todo o dia ‑ um momento que ficaria gravado para sempre na memória. As condições eram perfeitas para uma disputa, uma demonstração de que Zachary Iverson tinha subitamente ganho a merecida fama. O juiz, a mãe e grande parte da cidade, assim parecia, estavam reunidos ao longo do declive, antecipando a sua corrida.

à espera para lá das bandeirolas vermelhas e azuis que marcavam a pista de sialom encontrava‑se um maravilhoso troféu, uma viagem para as Olimpíadas dos Juniores e uma grande quantidade de elogios e notícias de jornal que vira referirem‑se ao irmão durante anos a fio.

Tinha chegado a hora. Finalmente, tinha chegado o seu momento, a sua corrida.


Verificou a pista em baixo. Não havia problemas. Alguns segundos finais para traçar mentalmente o percurso; baixou os óculos de protecção e deslizou até á porta de partida electrónica.

Então, parou de súbito.

Algo estava errado. Algo simplesmente não parecia estar bem. A bota? A cera? Não. Percebeu no último segundo possível que era o esqui ‑ o esqui direito. De alguma forma, as fitas de aperto tinham‑se soltado.

Recuou uns passos e fez o ajuste necessário no parafuso, amaldiçoando‑se por, em primeiro lugar, não ter sido mais meticuloso na preparação. O descuido podia ter sido desastroso.

Agora, porém, nada o faria parar. Era a sua corrida e não havia mais do que dois minutos de esqui entre ele e o Colorado.

Nada, isto é, excepto uma pequena mancha de gelo.

Zack estremeceu e sentiu o corpo recuar e endurecer com a recordação da dor e desamparo da queda, dos saltos e cambalhotas ao longo do declive coberto de neve.

As fitas soltas, embora nunca uma causa, tinham certamente sido um presságio.

- Doutor Iverson, deseja alguma coisa? Um café? - Era uma das secretárias de Frank, a loura, asseada e sensual. A típica filha de um fazendeiro.

A impotência e a angústia duraram um momento e depois desapareceram. Inconscientemente, Zack esfregou a cicatriz ainda hipersensível que atravessava o joelho.

- Não ‑ respondeu em voz rouca. ‑ Não, obrigado.

Verificou as horas. Quatro horas. Um quarto para as quatro, dissera Frank; tinha sido muito especifico quanto às horas.

Zack tinha um doente para consulta e um pequeno monte de papéis à espera no seu consultório. Suzanne daria entrada no hospital em menos de duas horas. A última coisa no mundo que precisava nesse momento era de uma reunião com Frank. Contudo, o convite fora feito com palavras que lhe dificultaram o pedido de adiamento, ainda que por um dia.

A espera de quinze minutos, embora aborrecida, não foi surpreendente. Frank nunca fora pessoa para prestar muita atenção aos horários dos outros.

‑ Desculpe ‑ disse Zack à secretária ‑, sabe quanto tempo mais ele irá demorar?

A mulher sorriu suavemente.

‑ Não, doutor Iverson, lamento mas não sei. Mas já não deve demorar muito mais. Mister Iverson está em linha com o computador central da Ultramed, em Bóston. Comunica com ele todos os dias. ‑ Pareceu muito orgulhosa por trabalhar com alguém que comunicava regularmente com um computador central. ‑ Tem a certeza de que não gostaria de tomar um café? Ou uma Coca‑Cola?

Zack abanou a cabeça.

‑ O que eu gostaria ‑ disse, levantando‑se ‑ era de adiar esta reunião para uma hora que ele pudesse cumprir. Diga ao meu irmão para me mandar um bip quando terminar, está bem?


‑ Não será necessário, resmungão ‑ ouviu dizer a voz de Frank no intercomunicador da secretária da loura. ‑ Estava a chamar a Armeife para que ela te mandasse entrar. A porta está aberta.

Sem explicações, sem desculpas.

Zack perguntou a si mesmo há quanto tempo estaria o intercomunicador ligado. A ideia de ser escutado às escondidas não lhe agradava nada.

‑ Senta‑te, senta‑te ‑ disse Frank quando Zack fechou a porta atrás de si. ‑ Tens a certeza de que não queres que as raparigas te tragam alguma coisa? Uma bebida? Algo para comer?

‑ Não, obrigado, mas manda vir para ti se quiseres.

O gabinete estava ricamente decorado. Uma estante do chão até ao tecto, incluindo um bar incorporado e uma aparelhagem, cobria uma parede, e uma enorme fotografia aérea do Ultramed‑Davis enchia grande parte da outra. O teclado de um computador e um monitor ocupavam apenas uma porção da secretária de mogno maciço, a qual Frank um dia lhe descrevera com orgulho como "uma maravilha ímpar".

O próprio Frank, sentado numa cadeira de costas altas em cabedal castanho e vestido com um fato de linho acastanhado, gravata de seda e camisa feita por encomenda, parecia ter saltado de uma página da Gentleman's Quarterly.

‑ Então ‑ disse, empurrando uma caixa de cigarrilhas através da secretária ‑, como vão as coisas?

Zack voltou a empurrar a caixa.

‑ Vão bem, Frank.

‑ O consultório está bem?

‑ Perfeito.

O consultório de Zack, fornecido e pago pela Ultramed por um ano ("Com a forte possibilidade de um segundo ano, se tudo corresse bem") era um elegante espaço de três gabinetes no andar superior da Clínica de Médicos e Cirurgiões do Ultramed‑Davis.

‑ Diz‑se por aí que fizeste um grande trabalho na sala de operações.

‑ É bom ouvir.

‑ Bom para nós os dois. Não são muitos os hospitais com o tamanho deste que podem reclamar um neurocirurgião a tempo inteiro, formado em Harvard. E, claro, sou considerado como uma espécie de lacocca da saúde por te ter recrutado.

‑ Frank, não tiveste de arrombar a minha porta para conseguires que eu viesse.

‑ Disparate. Apenas tive algumas... dúvidas prévias, foi tu do. Mas o juiz e o pessoal do Ultramed ajudaram‑me a ver a luz e agora estou muito satisfeito com a forma como as coisas estão a correr. Foste uma autêntica injecção para a moral deste estabelecimento.

‑ Não encontrei quaisquer problemas de moral ‑ afirmou Zack, pressentindo que a palavra era um tipo de introdução para o assunto que estava em mãos.

‑ Bem, fazemos o nosso melhor para que não haja ‑ respondeu Frank. ‑ E tal como dizes, fazemo‑lo bem. Mas, de vez em quando, surge algo ou alguém que ameaça polarizar a nossa família do Ultramed‑Davis... para tal, virando irmão contra irmão. E sabes o que se diz de uma casa dividida, não sabes?

‑ Sei, Frank.

‑ Assim, Zack... Por falar em casas, que tal achas a tua?


Oh, valha‑me Deus, quis gritar Zack. Não sou um adversário frágil com quem tens de brincar ao gato e ao rato. Sou o teu irmão. Diz apenas o que raio queres e ficamos esclarecidos. Mas ficou calado. Fechou as mãos uma na outra, cruzou as pernas e encostou‑se à cadeira. Era o espectáculo de Frank.

‑ A casa é linda, Frank ‑ respondeu mecanicamente. - Não sei como foi que a descobriste, mas ainda bem que o fizeste.

Perguntou a si próprio onde poderia estar Suzanne nesse momento, o que estaria a fazer, como se sentiria.

‑ óptimo ‑ disse Frank. ‑ Não te esqueças do que te disse sobre a nossa cave cheia de mobílias a mais. Só tens de aparecer e levar o que quiseres até arranjares a tua própria mobília, está bem?

‑ Certo.

Zack lembrou‑se que o irmão, devido a toda a sua habilidade atlética, fora sempre um perito em ocultar o verdadeiro assunto de uma reunião. Fora uma arte que aprendera com um mestre: o pai. Se Frank estava a preparar‑se para actuar, esta conversa sem importância não era mais do que casual.

‑ A renda é bastante razoável para uma casa como aquela, não concordas?

Zack deu uma gargalhada. Razoável era uma palavra demasiado inofensiva. A renda do seu pequeno apartamento em Bóston era três vezes superior à da casa, a qual tinha um enorme terreno arborizado, duas lareiras e várias vezes mais espaço do que o apartamento.

‑ Nunca digas à agência imobiliária a quem pertence - pediu Zack ‑, pois estão a arruinar‑se por causa deste negócio. Durmo com o contrato debaixo da almofada, com medo que alguém entre e o roube.

‑ Oh, nós não o faremos ‑ afirmou calmamente Frank.

‑Nós?

Zack percebeu que o assunto oculto da reunião estava prestes a subir à superficie.

‑ A Ultramed‑Davis, Zack. A Pine Bough Realty Trust é uma... como direi?... uma forma conveniente de o hospital administrar algumas propriedades que possui por aqui. Somos o teu senhorio.

Frank estava radiante, obviamente satisfeito com a forma como dera a notícia.

‑ Sabes ‑ disse Zack, agora tentando manter conscientemente o cinismo à vista ‑, de certa forma, essa pequena informação não me deixa muito surpreendido. Não que isso fizesse grande diferença, Frank, mas podias ter‑me dito quando aluguei a casa que, para além do meu salário, do meu consultório, do meu equipamento e do meu seguro, a Ultramed estava a fornecer‑me o tecto.

Frank encolheu os ombros.

‑ Este pareceu‑me o momento mais indicado.

‑ Diz‑me uma coisa: é costume um hospital desempenhar esse... como poderei dizer... desempenhar esse papel no campo da propriedade?


‑ Eu empregaria a palavra progresso, campo do progresso. ‑ Frank sorriu e piscou um olho. ‑ Sabes, Zack, a meta deste ou de qualquer outro negócio é o dinheiro. Dinero. O grande D. ‑ Enquanto desenvolvia a retórica, foi‑se entusiasmando cada vez mais e fazendo gestos mais profissionais. - É isso que os administradores e os corpos dirigentes dos hospitais espalhados por todo o país começam a perceber. Felizmente, o Ultramed reconheceu‑o há muitos anos. Elimina programas não lucrativos; aumenta os lucros e as colectas. Transforma o défice financeiro em lucro, não importa como, e o resto resolve‑se por si só. Se são os bens imobiliários, então são os bens imobiliários. Se são outros investimentos, então são outros investimentos. As universidades como Harvard e Dartmouth possuem algumas das maiores carteiras de acções e bens imobiliários que existem por aí. Porque é que os hospitais não podem seguir‑lhes o exemplo?

- Não... não sei porque não devem poder ‑ respondeu Zack. Mas dá‑me tempo, pensou Zack, e tenho a certeza que me virá á ideia alguma coisa.

O casamento entre o negócio e a medicina era um casamento que ele não conseguia aceitar ‑ pelo menos por enquanto. Pensou no novo aparelho de TAC... na incrível oportunidade que lhe fora dada pela Ultramed de exercer medicina privada. Percebeu que esse casamento merecia, se não a sua bênção, pelo menos a sua compreensão.

Talvez fosse isso que o irmão necessitava ouvir.

‑ Sabes, Frank - continuou ‑, se pareço pouco à vontade em relação a este assunto, não te esqueças de que passei os últimos oito anos num hospital onde tudo era fornecido em quantidades incrivelmente reduzidas. Tudo, isto é, excepto a dedicação das enfermeiras e médicos e o amor... julgo que não há melhor palavra... que tinham pelos doentes.

"Estou grato por me encontrar numa situação como esta. Acredita que estou. Mas existem algumas partes dos anos que passei no Municipal de Bóston que dificilmente esquecerei. Deixa‑me dizer‑te, Frank, que naquele velho e imundo lugar havia algo tão puro na forma como se cuidava dos outros, algo tão... nem sei... sagrado, que muitas vezes os doentes pareciam melhorar quando todos os factos clinicos, todas as probabilidades, diziam que não. Isto faz algum sentido?

Frank levantou as mãos.

‑ Ei, Zack - disse ‑, faz todo o sentido do mundo. Foi o que te transformou numa valiosa adição para o corpo clínico daqui. Assim, desempenha só as funções de médico e deixa que me preocupe com a política, os aparelhos de TAC e coisas do género. Desse modo todos beneficiam, certo?

Dignidade, pensou Zack, ainda imerso nos anos em Bóston. Foi ao que tudo se reduziu. A dignidade nasceu por ter‑se sido cuidado com amor e respeito: por ter‑se sido tratado como algo mais do que um crédito ou um débito numa folha de balanço.

lembrou‑se das lágrimas a brilharem nos olhos de Chris Gow ao perceber que alguém se preocupava o suficiente para responder por ele, independentemente dos custos.

‑ Certo?

‑ Hum? Oh, sim, claro.

- óptimo - disse Frank. ‑ Então espero que deixes o assunto do Beaulieu comigo.

‑ O quê? ‑ Mais uma vez, Zack preferiu manter‑se de sobreaviso. Frank era, e provavelmente seria sempre, o mais temível dos concorrentes.

‑ O Beaulieu, rapaz. Ei, estamos os dois na mesma onda ou não?

‑ Frank, ainda não disseste uma palavra sobre...


‑ Bem, sobre que outro assunto achas que estamos a falar? Deixei escapar o assunto com o velho e o Wil Marshfield porque sabia que tu ainda não tinhas tido tempo para aprender as regras daqui. Mas o Beaulieu é outra história. Zack, esse homem está a vingar‑se porque pensa que o hospital é culpado da sua incapacidade em manter a prática cirurgica. Já ouviste esse tipo de conversa paranóica de mais alguém daqui?

‑Não, mas...

‑ Nos últimos anos, sempre que entra uma nova pessoa para o corpo clínico, o Beaulieu ataca com reclamações e histórias sobre a forma como estamos a correr com ele e como obrigámos o Richard Coulombe a vender a farmácia para poder pagar as contas do hospital. Credo, admira‑me como é que ele ainda não tentou associar‑nos à merda da fome na Etiópia. Deixa‑me dizer‑te uma coisa, Zack. Ninguém tem de tentar obrigar o Guy Beaulieu a reformar‑se. Ele sozinho está a fazê‑lo perfeitamente.

"E quanto aos seus disparates sobre o Coulombe, ele não devia dinheiro só a nós, acredita. Devia dinheiro a toda a gente. Podes confirmá‑lo. O Coulombe ou vendia a farmácia ou passaria o resto dos dias numa sala de tribunal.

‑Mas... - Zack parou no último momento, antes de quebrar a promessa que fizera a Beaulieu de não se referir à ligação entre o Ultramed‑Davis e a Eagle Pharmaceuticals and Surgical Supply. Também perguntou a si mesmo se o antigo proprietário da casa que alugara não teria sido um doente do hospital.

‑ Mas o quê? - perguntou Frank. Surgiu‑lhe uma súbita dureza nos olhos e impaciência na voz.

‑ Nada ‑ respondeu Zack. Esquece.

Com o pensamento concentrado em Suzanne e nos problemas no consultório, estava disposto a fazer quase tudo para evitar um conflito.

‑ Esquece - repetiu.

Frank abanou a cabeça.

‑ Estás a esconder‑me alguma coisa, Zack. Está escrito na tua cara. Vá, diz‑me o que se passa?

‑ Já disse, nada.

Zack sentiu a pele ficar tensa na nuca.

Parte do que está a acontecer é simplesmente errado. Mas há muito de perverso... Palavras de Guy Beaulieu, notando‑se nele a fúria e a tristeza. O teu velho amigo Beaulieu está com falta de aliados neste local...

‑ Está bem, Frank ‑ ouviu‑se a si próprio dizer. ‑ Queres saber o que se passa? Eu digo‑te. Acredito no Guy. Ouvi‑o e olhei‑o nos olhos, e sei que diz a verdade. É isso o que se passa. Não sei se é o Ultramed ou aquele estúpido pomposo do Mainwaring, ou outra coisa. E garanto‑te que não sei o porquê. Mas acho que o Beaulieu está a ser corrido, como ele diz. E se isso é verdade, então fico indignado. Fico muito indignado e isso faz‑me querer fazer o que for necessário para ajudar o velho. Toma, era isso que querias ouvir?

Frank soltou uma gargalhada sonora. Depois acendeu uma cigarrilha e lançou um anel de fúmo até ao tecto.


‑ Digamos que era o que esperava ouvir ‑ disse. - Sempre foste um tanto coração mole, Zack... um empata para a causa de qualquer um. O Vietname, a supostamente roubada quota de entrada do Timmy Goyette nas Olimpíadas dos Juniores, os direitos das mulheres, puré de batata insuficiente nos almoços escolares. Contem ao rapaz uma história comovente e ele dar‑vos‑á a sua coragem... e a sua mesada. lembras‑te de tudo isso? Eu lembro‑me. Então, porque será diferente com o Guy Beaulieu e as suas histórias?

‑ Frank, quando queres és um verdadeiro filho da puta, sabes?

‑ Cuidado, rapaz ‑ disse Frank, expelindo outro anel perfeito. ‑ Estás a referir‑te à tua mãe. Além disso, desta vez estás errado. Completamente errado.

‑O quê?

- Esta é uma causa em que é preferível ficares de fora, irmão. O Beaulieu está prestes a saltar da prancha e, se estiveres muito perto dele quando o fizer, então ficarás bastante molhado. Podes ter a certeza disso.

Abriu a gaveta da secretária, retirou um sobrescrito e empurrou‑o para Zack.

‑ Tenho mantido esta carta em segredo porque ainda esperei que o Beaulieu desistisse. Agora, temo não ter outra solução senão apresentá‑la á comissão de ética. Há pessoas do corpo clinico que queriam fazer qualquer coisa há meses atrás, a fim de limitar ou reduzir os privilégios dele, mas consegui impedi‑las. Tal como o juiz disse, o velho salvou‑me a vida. Toma, lê.

A carta estava escrita à mão e não tinha outro cabeçalho a não ser a data, 17 de Junho.

 

Caro Mister Iverson

Escrevo para partilhar consigo algumas das alegações contra o Dr. Guy Beaulieu, feitas por mim e muitas outras enfermeiras da ala das urgências. Ao longo dos últimos meses, ele tem‑se tornado cada vez mais inconstante e indeciso no modo como trata os doentes. Esquece‑se muito, por vezes repetindo as mesmas ordens mais de uma vez, e outras vezes esquecendo‑se de ordenar determinados exames que seriam considerados rotineiros e básicos.

Além disso, em mais de uma ocasião o seu discurso foi indistinto e os seus modos suficientemente inconsistentes para levantarem a suspeita de drogas, álcool, ataques cardíacos ligeiros ou alguma combinação dos três. Felizmente, ele tem‑se ocupado de poucos casos e, por isso, ninguém saiu lesado ‑ pelo menos, ninguém que tivéssemos conhecimento. Contudo, achamos aconselhável haver qualquer tipo de investigação e reacção.

Estou disposta a reunir‑me consigo e discutir este assunto. Entretanto, penso que deveria ter uma conversa com o Dr. Beaulieu.

Atenciosamente

Maureen Banas, Enfermeira‑Chefe

 

Abismado, Zack leu e releu a carta em silêncio, tentando associar as acusações ao eloquente e dedicado homem a quem ouvira falar na reunião do grupo clínico e, mais tarde, ao almoço. Não havia nada nos modos, no discurso ou no conteúdo das palavras de Beaulieu que confirmasse as reclamações da enfermeira. Contudo, de modo algum se podiam ignorar essas acusações.

Do outro lado da secretária, Frank manteve‑se em silêncio, obviamente a saborear o momento.


- Isto é terrível - murmurou Zack, enquanto lia pela terceira vez e tentava lembrar‑se da enfermeira, Maureen Banas... monótona, mas eficiente... distante... inteligente... Pura e simplesmente, ainda não tinha passado o tempo suficiente com ela para fazer uma verdadeira avaliação.

- Terrível, mas verdadeiro - disse Frank. ‑ Esperei poupar ao velho idiota mais humilhações, mas depois de ouvir o discurso dele no outro dia e ver a forma como te conquistou, parece que não tenho...

- Frank, não há nada nesta carta que te pareça estranho?

Frank colocou a cigarrilha de lado e inclinou‑se para a frente.

- A que é que te referes?

Zack voltou a empurrar o papel através da secretária.

- Há uma coisa: esta mulher não apoia as acusações com um exemplo especifico.

‑ Bem, não há dúvida de que os tem. Zack, não achas que estás a agarrar‑te a palha?

- E outra coisa: tudo o que aí está é muito... muito estéril.

‑O quê?

- Olha bem para ela, Frank. Nem um pouco de sensibilidade ou comoção. Não há a menor indicação de que ela compreenda que as acusações que faz podem possivelmente mandar a vida de um homem por água abaixo... um homem que há trinta anos exerce cirurgia na sua cidade. Meu Deus! Com toda a sensibilidade que demonstra ter, ela pode muito bem escrever para se queixar que o cão de um vizinho está a cagar no seu canteiro. Quanto mais penso nisso, mais mal me cheira esta carta. Penso que se devia falar com essa mulher.

- Achas que não o fiz?

- Bem, então, quero eu fazê‑lo. É a única maneira de começar a acreditar nisto tudo.

- Falas com ela ou seja com quem for sobre este assunto - disse Frank, apontando‑lhe um dedo ‑, e serás corrido daqui para fora mais depressa do que consegues dizer "bisturi". Este assunto é meu... meu e da Ultramed. Estás mesmo decidido a complicar‑me a vida aqui dentro, não estás?

- Frank, que disparate!

- É?

Durante uns longos momentos, Zack só conseguiu ficar

sentado a olhar para o irmão. Para além do bronzeado, Frank parecia pálido, a sua expressão uma desconcertante amálgama de fúria e... o quê? Medo? Era verdade que sempre haviam tido as suas diferenças e, de tempos em tempos, algumas discussões mais acesas. Mas Zack sentiu que havia aqui algo muito mais poderoso.

‑ Frank, por favor ‑ conseguiu dizer. ‑ Pára de falar como se eu fosse o teu inimigo número um. Não sou. Apenas me preocupo com o Beaulieu e gostaria de saber que o tratam com justiça, está bem?

Uma ligeira tonalidade regressou às faces de Frank.

‑ Está bem? ‑ perguntou de novo Zack.

Frank sorriu.

‑ Claro, rapaz ‑ respondeu num tom demasiado amistoso. ‑ Eu compreendo. Vou fazer‑te uma sugestão. Porque é

que não combinamos que seja eu a informar‑te de tudo e tu a

vigiares as coisas... à distância? Desse modo, eu faço aquilo

para que me pagam e tu evitas uma queda. Prometo‑te que o


Beaulieu terá todas as oportunidades que surgirem. Está bem? Zack analisou o olhar do irmão e depois concordou com a

cabeça. A sessão já tinha ido demasiado longe.

‑ Assim, está tudo sob controlo ‑ concluiu Frank, acomodando‑se na cadeira e cruzando as mãos sobre o colo. O tom de voz e a expressão não deixavam transparecer qualquer sinal do desacordo entre ambos. ‑ Ouve, que tal jantarmos juntos este fim‑de‑semana? Vou pedir à Lisette para te ligar.

‑ Claro, Frank. Seria óptimo.

‑ Excelente. Oh, e a propósito ‑ acrescentou, levantando‑se da cadeira quando Zack se preparava para sair ‑, diz a essa tua nova conquista que todos nós rezamos para que amanhã tudo corra bem com ela.

Zack sentiu as cores fúgirem‑lhe do rosto.

‑Como é que tu...

O irmão deu‑lhe umas palmadas no ombro.

‑ Rapaz, se alguém que trabalha para mim se peida neste hospital, mais cedo ou mais tarde eu sinto o cheiro. Nunca te esqueças disso. Confia em mim e farás um favor a ambos. Ela é uma mulher fantástica. Ainda bem que começa a sair da concha. Espero que as coisas resultem entre vocês.

Com isso, apertou a mão de Zack e acompanhou‑o até à porta.


 

Perturbada pelo barulho de um carrinho que passou junto à porta do seu quarto no hospital, Suzanne Cole deitou‑se de costas, a flutuar no mundo crepuscular entre o sono e o despertar.

Durante algum tempo lutou por completar o sonho que estava a ter ‑ um sonho romântico, no qual Jason Mainwaring, vestido da cabeça aos pés com uma armadura de ébano e montado num cavalo preto, combatia com um cavaleiro também espectacularmente vestido de dourado. Os homens cruzaram‑se vezes sem conta, as lanças batendo no escudo do adversário. Em cada encontro, um ou outro quase caíam da montada, mas o cavaleiro atacado recuperava sempre e preparava‑se para mais uma investida.

A própria Suzanne encontrava‑se na tribuna de honra, envergando um gracioso vestido de seda cor‑de‑rosa e segurando uma única rosa branca.

Quem és tu?, perguntou inúmeras vezes ao cavaleiro dourado. Quem és tu? O que queres de mim?

Quando o sonho começou a desaparecer, o cavaleiro virou‑se para ela e levantou a viseira do seu capacete dourado. Como néon a piscar, o rosto do homem mudava constantemente. Num momento era Zachary Iverson e no outro Paul Cole, o professor de fisiologia, patologicamente senhor de si, que a escolhera entre a multidão de uma palestra durante o segundo ano do curso de Medicina e a arrastara para um remoinho de flores, festas e fins‑de‑semana românticos no campo.

Menos de um ano depois, estavam casados. Se existiram sinais da doença do homem durante esses meses, ela não os tinha reconhecido de todo. Mais tarde, quando as drogas, o comportamento excêntrico e as mentiras ‑ "desentendimentos", como Paul lhes chamava ‑ começaram a transparecer, ela preferiu ignorá‑los e pensar que não eram reais.

Quando percebeu que as tentativas para salvar o casamento eram um erro, apareceu Jennifer. Os anos que passou a tentar aceitar Paul por causa da filha quase custaram a carreira de Suzanne e, talvez, ainda mais do que isso.

Porquê?, voltou a perguntar. O que queres de mim?

‑           Doutora Cole, já é de manhã.

Porquê?

‑           Doutora Cole?

A voz suave da enfermeira e o toque da sua mão começaram a dispersar o que sobrava do sonho. As cores começaram a transformar‑se num mar de branco.

Há quanto tempo é que Paul não aparecia num dos seus sonhos? As discussões, as viagens, as vezes que ela tivera de desligar o telefone, os blocos de receitas que desapareciam, as visitas dos condescendentes agentes do departamento de narcóticos... Porque é que ela lhe tinha dado tantos beneficios da dúvida?

‑Doutora Cole...

Suzanne abriu ligeiramente os olhos.

‑           Olá ‑ murmurou. Instintivamente, levantou um braço e tocou no seio, apavorada com as ligaduras que esperava encontrar.


‑           São sete e um quarto ‑ disse a enfermeira. ‑ Está na hora de tomar os medicamentos pré‑operatórios.

Pré‑operatórios. Maldição, pensou. Não estava tudo terminado. Ainda estava a começar. Porque é que aquilo estava a acontecer? A vida em Sterling era tudo o que ela esperava que fosse: muito calma, sem complicações, tão boa para Jen. Agora, subitamente, tudo parecia desmoronar‑se. Porquê?

Abriu completamente os olhos.

‑           Sete e um quarto?

‑           Uh‑huh. Está marcada para daqui a vinte minutos. Isto é atropina e Demerol.

Atropina...Demerol. Uma servia para secar as secreções e o outro para ajudar a não pensar na ideia de se ficar desfigurado, ou pior. Que poções maravilhosas temos nós, médicos, na nossa mão, pensou mordazmente. Sem dúvida, que poções maravilhosas. Virou‑se de lado e gemeu quando a agulha foi espetada na nádega. Depois, voltou a deitar‑se de costas e fez um meio sorriso à enfermeira.

‑ Muito bem dada ‑ murmurou.

A enfermeira, uma mulher idosa e carinhosa, chamada Carrie Adarus, afagou‑lhe uma mão.

‑ Vai ficar boa ‑ disse. ‑ Já tirei dois quistos e a minha filha também. A parte mais difícil é a espera até que tudo termine.

‑ Tentarei lembrar‑me disso.

Mais uma vez, apesar de não estar sozinha, Suzanne ergueu um braço e tocou no seio. Tudo aquilo era uma loucura. Esse tipo de coisas só acontecia aos outros... aos doentes. Fora treinada para os ajudar a superar as crises clínicas, e não a passar ela própria por uma. Até aqui, nunca se dera por vencida, conseguindo sempre juntar muitas peças do seu mundo disperso. E agora isto.

Impotência... pânico... fúria... as suas emoções, refreadas ao longo das semanas após o terrível momento da descoberta, rodopiavam como flocos de neve soprados pelo vento.

Onde raio estava a aceitação de que os livros tanto falavam?

‑           O Demerol deve começar a fazer efeito dentro de alguns minutos ‑ disse‑lhe a mulher, como se tivesse lido os seus pensamentos.

‑ óptimo.

‑ E aqui estão os nossos auscultadores.

‑ Oh, sim ‑ disse Suzanne, pegando neles e colocando‑os sobre a cama, ao seu lado. ‑ O que é que estão a tocar hoje?

‑ Não sei ‑ respondeu a mulher ‑, mas o doutor Mamwaring está no canal... ‑ Tirou um cartão do bolso do uniforme. ‑ No Canal Três.

O sistema ‑ cassetes escolhidas pelos cirurgiões para serem reproduzidas nas salas de operações e difundidas para os auscultadores ‑ destinava‑se a reduzir os níveis de ansiedade do doente. Ao longo dos poucos anos que fora adoptada, a inovação recebera notas altas tanto de cirurgiões como de doentes. Suzanne rodou o botão para o 3 e encostou um auscultador ao ouvido.

‑ Greensleeves ‑ disse.

‑Como?


‑           Greensleeves. É a música. Uma versão muito bonita. Tome, oiça.

Passou‑lhe os auscultadores. Educadamente, a enfermeira ouviu durante alguns segundos e depois devolveu‑os.

- Muito bonita - disse. ‑ Voltarei em breve. Entretanto, descontraia‑se. Oh, a propósito, há um sobrescrito para si na mesa‑de‑cabeceira. Talvez seja melhor ler o que está lá dentro, antes de o medicamento que lhe dei começar a fazer efeito.

Suzanne agradeceu à mulher e esperou que ela saisse do quarto.

No sobrescrito, com o cabeçalho e logótipo do

Ultramed-Davis, lia‑se: Dra. Suzanne Cole. Abriu‑o, pressentindo que era de Zack. Ele passara grande parte da noite com ela, lendo‑lhe em voz alta notícias de revistas e jornais, rindo, contando histórias da sua vida e, quando não havia nada para dizer, segurando‑lhe apenas na mão. Tinha sido franco, carinhoso e compreensivo como nenhum homem que ela conhecera.

Perguntou a si própria se ele teria percebido o que ela sentia desde que entrara na sua vida. Silenciosamente, amaldiçoou‑se por tê‑lo usado como usara. Não pretendia deixar que um homem se aproximasse de mais para voltar a arruinar‑lhe a vida ‑ pelo menos, não agora. Possivelmente, nunca. Zack dissera‑lhe que podiam fazer amor sem quaisquer compromissos, mas ela sabia muito bem que os haveria sempre. Quando a operação terminasse, independentemente do resultado final, faria o que fosse necessário para criar uma distância entre eles.

Por momentos, o receio do que pudesse estar a desenvolver‑se no interior do seio pareceu‑lhe muito mais insignificante do que o receio de não poder voltar a confiar em ninguém.

 

Querida doutora.

São duas da manhã. O soporífero que te deram parece ter actuado, pois dormes profúndamente há cerca de uma hora. Por agora vou deixar‑te e espero que só acordes um ou dois minutos antes de te levarem para a sala de operações. Quero agradecer‑te a noite de quarta‑feira e, mais ainda, por me teres permitido partilhar esta noite aqui contigo. Não sei se a minha presença te ajudou, mas sem dúvida que me ajudou muito. Não é segredo que te considero alguém muito especial.

Sei como deve ser frustrante e assustador tudo isto para ti ‑ em parte, por ser frustrante e assustador também para mim. Quero que saibas que, aconteça o que acontecer, estarei contigo e ao teu lado sempre que o desejares.

Se existe alguma definição perfeita e real para "amigo", talvez seja alguém que nos ajuda a encontrar uma forma de ultrapassar este tipo de coisas, quando parecemos não conseguir encontrá‑las sozinhos. Aconteça o que acontecer, tens em mim um amigo.

Há‑de ser benigno. É tudo o que posso dizer. Há‑de ser benigno e tudo correrá bem.

Sê forte. Tens um encontro marcado na minha montanha, logo que tudo isto termine.

Zack

 


‑ Desculpa, Zack ‑ murmurou Suzanne, enquanto voltava a guardar o bilhete no sobrescrito, colocando‑o entre as páginas do romance que andava a ler há duas semanas. ‑ Lamento não ter sido mais forte...

Acomodou‑se na almofada e colocou os auscultadores. A boca tornou‑se desconfortavelmente seca devido à atropina, mas o Demerol também começava a fazer efeito e por isso não lhe deu muita importância.

Carrie Adams e uma auxiliar de enfermagem empurraram uma maca até ao quarto e ajudaram‑na a passar para cima dela.

Por favor, Deus, murmurou Suzanne para consigo, enquanto as lâmpadas fluorescentes deslizavam por cima dela. Faz com que não seja nada. Faz com que seja benigno.

Jason Mainwaring recebeu‑a na sala de operações, os olhos azul‑acinzentados atentos entre a máscara e a touca. Suzanne tirou os auscultadores. A mesma peça musical maravilhosa que estava a ouvir enchia a sala de operações.

‑ Bem‑vinda ao meu mundo, Suzanne ‑ disse ele.

Suzanne fez um ligeiro sorriso.

‑ Gostava de poder dizer que estou satisfeita por estar aqui.

‑ Eu compreendo. ‑ Afagou‑lhe um braço para a tranquilizar. ‑ Cuidaremos bem de ti. Não te preocupes.

‑ Obrigada.

‑ Gostas da minha música?

- É maravilhosa.

‑ Penso que é a mais maravilhosa música alguma vez composta. Chama‑se Fantasia on Greensíceves e é da autoria de um compositor inglês chamado Ralph Vaughan Williams. Começo todos os meus casos com ela e depois prossigo com

algumas das outras composições dele. Se quiseres, faço uma cópia para ti.

‑ Gostaria muito ‑ conseguiu dizer.

Jack Peari, o anestesista, apareceu ao lado de Mainwaring. Juntamente com uma enfermeira, ajudaram‑na a passar da maca para a fria mesa de operações. Depois, numa manobra tão rápida e indolor que ela mal se apercebeu, Pearl introduziu um tubo intravenoso na veia do pulso esquerdo.

A seguir, passaram um cinto largo sobre o abdómen e apertaram‑no.

Um ou dois gracejos finais de Mainwaring e estavam prontos para começar.

Jack Pearl apareceu no campo de visão de Suzanne, levantou o tampão de borracha do tubo intravenoso e introduziu a agulha de uma seringa cheia de líquido anestésico.

Por favor, Deus, voltou a rezar, faz com que o Zack tenha razão. Faz com que seja benigno.

‑ Muito bem, Suzanne ‑ disse Jack Pearl. ‑ Isto é só um pouco de Pentotal. ‑ Empurrou o êmbolo, esvaziando o conteúdo da seringa para dentro do tubo intravenoso. ‑ Tudo o que tens a fazer agora é contar para trás, desde cem.

Por cima, nos altifalantes, a fantasia de Ralph Vaughan Williams encheu a sala.

‑ Cem ‑ balbuciou. ‑ ... noventa e nove... noventa e oito...

Sobre si, acendeu‑se a enorme lâmpada de operações em forma de disco.

‑ Pronta ‑ ouviu alguém dizer.

 


Takashi Yoshimura era um dos sete orientais que viviam em Sterling, em New Hampshire. Os outros seis eram a mulher e cinco filhos. Embora de origem japonesa e, na verdade, apenas de nascimento, fora criado e educado na zona inferior de Manhattan e falava tanto o inglês como o japonês com o sotaque de Nova Iorque.

Tal como alguns dos novos médicos do Ultramed que Zack conhecera desde o seu regresso a Sterling, Yoshimura, um patologista que teimava em ser chamado Kash, era jovem, bem treinado e muito eficiente.

Passava pouco das oito horas da manhã. Yoshimura, de estatura baixa, cabelo cortado à escovinha e óculos à Ben Franklin, sentou‑se à secretária, com Zack a espreitar por cima do ombro. Diante deles, dentro de um prato de aço inoxidável, encontra‑se a massa de carne do tamanho de uma moeda, que acabara de ser removida do seio direito de Suzanne Cole.

No mais tenso silêncio, Zack viu o homem examinar o tecido sob uma luz intensa e uma lupa. No andar por cima deles encontrava‑se Suzanne, à deriva no mundo inferior e sem sonhos da anestesia geral. Dentro de minutos, o pequeno patologista enviaria para a SO a sua interpretação das células das secções congeladas do espécime; a incisão de Suzanne seria então fechada, ou uma grande porção do seio e nódulos linfáticos circundantes seriam removidos.

Se Kash Yoshimura estava pelo menos um pouco nervoso devido às implicações apavorantes desta faceta do seu trabalho, certamente não se notava no rosto. Cantarolava muito baixinho, enquanto examinava a superficie da massa, à procura de qualquer indicio de depressão ou descoloração. Então, com um arpejo final de satisfação, utilizou um bisturi para retirar uma fina camada do interior e entregou ao histologista o prato com o espécime exposto.

‑ Pronto, George ‑ disse ao especialista de tecidos ‑, faz a tua parte.

‑ Então? ‑ perguntou Zack, depois de o técnico ter saído.

‑ O que é que eu penso?

‑Hum, hum...

‑ Já conhece a imutável lei médica de oitenta e cinco por quinze?

Zack abanou a cabeça.

‑ Estou admirado ‑ disse Yoshimura ‑, sendo você alguém formado em Harvard e tudo o mais. Bem, posto de uma forma simples, a lei diz que todas as probabilidades na medicina são oitenta e cinco por cento prováveis, ou quinze por cento prováveis. A aplicação correcta da lei significa que não nos podemos enganar, desde que saibamos se o caso em questão parece remotamente provável ou não é tão remoto.

Zack sorriu.

‑ Calculo que tenha conseguido obter boas pontuações.

Kash Yoshimura concordou.

‑ Tenho‑me saído bem ‑ respondeu.

‑ E a biopsia é oitenta e cinco por cento provável...

‑ Benigno. Um adenoma, julgo.

‑ Maravilha. ‑ Zack fez um gesto com o punho fechado.

‑ Nesta altura, pode estar oitenta e cinco por cento entusiasmado ‑ alertou o patologista. ‑ Não mais.

‑ Compreendo.


Yoshimura estendeu um braço e deu umas palmadas de compreensão no ombro de Zack.

‑ Teremos a certeza dentro de alguns minutos ‑ disse. - Entretanto, tudo o que posso dizer é que a nossa amiga está em muitíssimo boas mãos.

‑ O Mainwaring? ‑ Zack recordou‑se do primeiro e desagradável encontro que tivera com o homem.

Kash anuiu.

‑ Vi‑o a trabalhar algumas vezes quando eu era estudante e estagiário. É um técnico fabuloso.

‑ Foi o que me disseram. Contudo, falta‑lhe diplomacia. Nos primeiros cinco minutos depois de nos conhecermos, conseguiu dizer algo ordinário sobre virtualmente todos os aspectos da minha vida.

‑ Talvez veja um novo neurocirurgião na cidade como uma ameaça para o seu ego.

‑ Talvez. Onde é que você se especializou?

‑ No Hopkins.

‑ O Mainwaring estava no Hopkins?

‑ Estava. E não era arrai a‑miúda. Era professor a tempo inteiro, se não me engano.

Zack ficou surpreendido.

‑ Que raio estará ele a fazer aqui no meio do mato? ‑ perguntou, intrigado. ‑ Em especial no mato da região norte de Nova Inglaterra. O sotaque dele coloca‑o muito abaixo da linha Mason‑Dixon.

O patologista encolheu os ombros.

‑ Quem sabe. Aparentemente, não considera os patologistas suficientemente ameaçadores para os insultar. Para além dos meus relatórios de biopsias, não tivemos conversas com mais de uma ou duas palavras desde que aqui chegou, há cerca de um ano.

‑ Na verdade ‑ disse Zack, subitamente ansioso por saber mais acerca do homem que Guy Beaulieu afirmava estar a tentar passá‑lo para trás ‑, foi há quase dois anos. Alguma vez lhe disse que o viu operar no Hopkins?

‑ Por acaso, disse‑lhe. Uma vez, pouco depois de ele aqui chegar.

‑ E o que foi que ele respondeu?

‑ Nada de especial. Olhou para mim por um momento, com aquele olhar de aço que penso que os cirurgiões praticam diante de um espelho para utilizarem com as enfermeiras, os anestesistas e pessoal do gÉnero. ‑ Sorriu. ‑ Quero dizer, alguns cirurgiões ‑ corrigiu. ‑ Depois, disse apenas "Que bom" ou algo parecido... e desapareceu.

‑ E nunca mais tocaram no assunto?

Yoshimura abanou a cabeça.

‑ Que estranho. O Mainwaring parece ser do género de quem gosta de ser elogiado. Esperava que ele se envaidecesse perante alguém da sua universidade ou do seu hospital, em especial tratando‑se de um lugar tão prestigiado como o Hopkins.

‑ Acredite ou não ‑ disse Yoshimura sem rancor ‑, ainda existem aqueles que, mesmo na nossa grandiosa profissão, não... se sentem bem com determinados aspectos de certas anatomias. ‑ Apontou para os seus próprios olhos. ‑ Seja por que motivo for, o circulo social a que pertence o Jason Mamwaring não inclui os Yoshimuras.


‑ Bem, eu teria todo o prazer se o meu incluísse ‑ disse Zack.

Kash Yoshimura olhou para ele durante um segundo e depois sorriu.

‑ Acho que nós também iríamos gostar ‑ afirmou.

O técnico de histologia anunciou o seu regresso batendo suavemente à porta.

‑ Ah ‑ exclamou Kash. ‑ Chegou o momento de transformarmos os nossos oitenta e cinco por quinze em algo bastante mais concreto. Secções boas?

O técnico concordou com satisfação, pousando um recipiente de cartão que continha cerca de uma dúzia de lâminas para microscópio.

Zack estava impressionado com as probabilidades da trama que se desenrolava em redor da mulher cuja qualidade de vida, e talvez mesmo a própria existência, era o centro do drama um marcado contraste relativamente ao imediatismo e à intimidade subjacentes à medicina cirúrgica.

Contudo percebeu que, nos momentos que se seguiram, Kash Yoshimura seria tão poderoso e responsável como o homem que estava na sala de operações com o bisturi nas mãos.

O patologista colocou a primeira lâmina das secções na platina do microscópio óptico e indicou a Zack o segundo par de oculares.

Silenciosamente e quase sem respirar, Zack viu as células multicolores a serem introduzidas no campo bem iluminado.

Uma a uma, Yoshimura examinou todas as láminas. Na quinta ou sexta, começou de novo a cantarolar. Por fim, parou e olhou para Zack.

‑ Tem alguma opinião formada? ‑ perguntou.

Zack concordou com a cabeça.

‑ Células do tipo uniforme, padrão uniforme, nenhum foco de necrose ‑ disse. ‑ Não sei de que tipo é, mas aposto que é benigno.

Yoshimura concordou.

‑ Se algum dia se cansar da neurocirurgia, doutor Iverson, diria que tem um grande futuro como patologista.

levantou o auscultador do telefone e marcou o número da sala de operações.

‑ Sou o doutor Yoshimura da Patologia ‑ identificou‑se. - Pode informar o doutor Mainwaring que ele extraiu um adenoma totalmente benigno e fibroso. Obrigado.

Zack apertou a mão do homem, como se fosse ele a causa do tumor não ser canceroso e não um mero intérprete do facto.

Antes mesmo de ter começado, o pesadelo de Suzanne chegara ao fim. Ansioso por estar a seu lado quando acordasse, Zack correu para a sala de recuperação.

Um piso acima, na sala de operações número 3, Jason Mainwaring recebeu impavidamente a noticia da biopsia e depois olhou para o anestesista.

‑ Bem, Jack ‑ disse ‑, se achar bem, estamos prontos para fechar.

Sob a máscara, Jack Pearl, um quarentão parecido com uma doninha, sorriu para o cirurgião. Em seguida, olhou para o rosto sereno da doente.

‑ Tudo está melhor do que bem, doutor Mainwaring - respondeu. ‑ Na verdade, está perfeito. Como sempre. Absolutamente perfeito.


Subtilmente e sem mais ninguém na sala reparar, Jason Mainwaring devolveu o sorriso e concordou com a cabeça.

Nesse momento, os dois homens concentraram‑se precisamente no mesmo pensamento: Já lá vão quatrocentos e noventa e um. Só faltam nove.


 

Ao longo dos mais de treze anos que Zack passara como estudante de Medicina e cirurgião, sem dúvida que Suzanne fora a pessoa a apresentar a mais rápida recuperação de uma anestesia geral que ele jamais encontrara.

Já se encontrava na sala de recuperação, à espera junto ao posto de enfermagem, quando a trouxeram da área de cirurgia. Estava acordada, a sorrir e totalmente desperta. O triunfante sinal que lhe fez com os polegares para cima tornou claro que também sabia muito bem o resultado da operação.

‑ Foi o despertar mais espantoso que já vi ‑ comentou

Zack com uma das enfermeiras da sala de recuperação, quando

Suzanne, quase sem ajuda, se transferiu da maca para a cama. - É difícil acreditar que ela tenha estado mesmo a dormir.

A enfermeira, uma animada jovem ruiva que Zack apenas conhecia por Kara, sorriu com orgulho.

‑ Oh, ela dormiu, sim ‑ disse. ‑ Não é maravilhoso? Quase todos os casos do doutor Pearl saem assim da sala de operações.

‑ O meu não saiu ‑ disse Zack, lembrando‑se da prolongada mas muito típica recuperação do seu caso de disco cervical.

‑ Como?

‑ Nada. Estou muito admirado, é só.

‑ Estamos todos ‑ disse a mulher. ‑ Em parte também pode ser por causa do doutor Mainwaring. Ele exige que os seus doentes sejam anestesiados assim, e o doutor Pearl é o único a quem ele permite que trabalhe consigo. Eu costumava fazer a limpeza antes de ser colocada aqui e, deixe‑me dizer, são uma grande equipa. As coisas mudaram para melhor desde que eles passaram a trabalhar juntos.

Do outro lado da sala de recuperação, Zack viu Jack Pearl examinar através de um oftalmoscópio os nervos e vasos sanguíneos das retinas de Suzanne, enquanto uma das enfermeiras verificava os sinais vitais. Era um homem franzino e pálido, de bigode muito fino e uma testa muito alta que dominava os olhos indefinidos.

‑ O que pretende dizer com "mudaram para melhor"? - perguntou Zack, uma vez que estava à procura de opiniões sobre Guy Beaulieu. ‑ Cresci em Sterling e fúi aqui estagiário. Sempre julguei que éramos bastante afortunados por termos os cirurgiões que tínhamos.

A enfermeira olhou para ele, desconfiada, julgando subitamente que talvez tivesse falado de mais para aquilo que é comum falar‑se com um estranho. Zack fez o que pôde para parecer apenas marginalmente interessado na resposta dela.

Depois de uma pequena hesitação, ela encolheu os ombros e afastou uma madeixa de cabelo da testa.

‑ O Ormesby é razoável ‑ disse ‑, pelo menos para coisas de rotina. Mas penso que chegou a hora de o doutor Beauheu se reformar, em especial com todos os problemas que está a enfrentar e com alguém tão bom como o doutor Mainwaring por aqui.

‑ É essa a impressão geral das enfermeiras? ‑ aventurou Zack.

Ela voltou a sorrir.


‑ Não sei ‑ disse por fim, embora os olhos lhe dissessem o contrário. ‑ Mas gostam de si, isso posso dizer. E todas gostamos de ter um neurocirurgião no grupo clínico. Isso faz com que o Ultramed‑Davis pareça mais... como direi... especial.

‑ Obrigado, Kara. Obrigado por me ter dito isso.

A jovem enfermeira corou.

‑ Bom, tenho de voltar ao trabalho ‑ disse. ‑ Até logo.

‑Até logo.

Zack ficou a ver a mulher regressar para junto da doente. A opinião que ela tinha de Guy Beaulieu era, suspeitou, partilhada pela maioria das enfermeiras dali. Merecida ou não, a reputação do homem no Ultramed‑Davis era má. E Zack sabia que, dada a natureza da medicina, dos mexericos e do intenso microcosmo dos hospitais, provavelmente não haveria nada que Beaulieu pudesse fazer para inverter a situação.

Contudo, apesar de todos os boatos e insinuações, apesar da veemência de Frank e da condenadora carta de Maureen Banas, Zack não deixava de acreditar que Guy estava a ser vitima de uma bem coordenada tentativa de correrem com ele. A ideia era tão triste e patética que quase desafiava a compreensão. Até certo ponto, Zack percebeu que parte de si esperava que as acusações contra Beaulieu viessem a provar‑se verdadeiras. Assim, conseguiria pelo menos ver algum sentido naquilo tudo.

Jack Pearl acabara de examinar Suzanne e já ia a caminho da sala de operações quando reparou em Zack.

‑ Bom dia, Iverson ‑ cumprimentou.

- Jack. ‑ Zack acenou com a cabeça. ‑ Como está?

‑ Teve algum caso esta manhã?

‑ Não. Passei por aqui para ver como está a Suzanne. Parece óptima.

Pearl olhou para ela.

‑ Um caso muito rotineiro ‑ afirmou.

‑ O que foi que utilizou?

Por uma fracção de segundo, a expressão do anestesista pareceu ficar tensa. Depois, à mesma velocidade, descontraiu‑se.

‑ O normal ‑ respondeu. ‑ Um pouco de Pen total, um pouco de gás. O Mainwaring não gosta que os seus doentes fiquem muito anestesiados.

‑ É o que vejo. Ela nem parece ter estado a dormir.

O rosto de Pearl voltou a ficar tenso.

‑ Bem, mas esteve ‑ disse simplesmente. Olhou para o relógio por cima do posto de enfermagem. ‑ Tenho de ir, Iverson. Um bom dia para si.

‑ Para si também, Jack.

Quando o pequeno homem taciturno desapareceu, Zack percebeu que, durante este e outros encontros anteriores, Pearl nunca o olhara de frente. Reconheceu que o facto não era assim tão surpreendente, dada a natureza da espécie. Embora as excepções fossem muito numerosas para qualquer generalização, muitos dos anestesistas que conhecera eram solitários introspectivos, mais versados na bioquímica e na psicologia do que nas artes mais subjectivas da medicina clínica, e dedicados a uma das especialidades onde a conversa e a interacção com os doentes ‑ pelo menos, acordados ‑ era mínima.


Contudo, havia algo de invulgar em Jack Pearl, algo furtivo e misterioso, que Zack achou não só curioso, como desconcertante. Perguntou a si próprio se o homem não teria tido problemas no passado e anotou mentalmente este pensamento para não se esquecer de perguntar um dia a Frank. Depois, virou‑se e aproximou‑se da cabeceira de Suzanne.

Embora um pouco pálida, mostrava‑se sorridente, radiante e totalmente desperta.

‑ Olá, minha senhora ‑ cumprimentou‑a. ‑ Alguma notícia?

‑ Oh, nada. ‑ Disfarçou um bocejo. ‑ Um pouco disto, um pouco daquilo. Tu sabes. Foi apenas mais um dia de rotina, enfadonho.

‑ Sim, o meu também.

‑ É óbvio, a avaliar por esses círculos escuros à volta dos olhos ‑ disse. ‑ Ei, antes que me esqueça, obrigada pelo bilhete. Gostei muito.

‑ Pareces estar bem. Sentes alguma dor?

‑ Nem por isso. Pelo menos, em comparação com o que sentiria se a biopsia tivesse sido positiva.

‑ Agora parece realmente mais fácil falar do caso ‑ disse Zack. ‑ Julguei que seria eu a dar‑te a boa noticia, ou pelo menos a recordar‑ta, mas saíste da SO como se nunca tivesses estado a dormir. É absolutamente incrível como, depois de uma anestesia geral, despertaste em tão pouco tempo.

‑ Eu sei. O Jason avisou‑me disso. É maravilhoso. Tirei o apêndice quando tinha dezassete anos e lembro‑me de ter ficado a dormir durante um dia inteiro. O Jack Pearl disse que, se o Jason concordasse, eu podia ir para casa esta tarde.

‑ Isso é óptimo.

‑ Zack, que Deus abençoe todas as mulheres que tenham de passar por esta loucura. Sei que é suposto acreditarmos que existe uma espécie de grande esquema cósmico a comandar a vida, mas cancro... em especial da mama... não permite facilmente a aplicação de nenhuma filosofia. Sinto‑me tão aliviada que só me apetece chorar.

‑ Então, chora à vontade. Na verdade, eu também me sinto muito aliviado. Por isso, se estiveres livre amanhã à noite, poderei aparecer com uma garrafa de vinho e uma caixa de Kleenex.

Os olhos dela escureceram.

‑ Zack, eu...

‑ Continua ‑ pediu‑lhe.

‑ Sinto‑me em dívida por teres ficado comigo da forma como o fizeste ontem à noite...

‑ Vem aí um "mas". Sinto‑o.

‑ Zack, a noite de quarta‑feira foi maravilhosa ‑ murmurou. ‑ Estou a ser muito sincera. Mas não é próprio de mim começar as coisas pelo meio. Compreendes?

‑Acho que sim.

‑ Durante semanas andei tão concentrada no meu maldito caroço, de repente apareces na minha vida e... Zack, preciso de tempo e de um pouco de espaço para arrumar as ideias. Na outra noite disseste que não esperavas nada. Espero que o tenhas dito sinceramente.

Zack engoliu em seco.

‑ Eu também espero ‑ afirmou.

Ela sorriu ligeiramente e apertou‑lhe uma mão.

‑ Obrigada por, pelo menos, tentares. Ouve, estou de folga na próxima semana. Devo à Jen um pouco de felicidade ao lado da própria mãe, e à minha sócia alguns dias de ajuda na galeria. Telefono‑te lá para o meio da semana, está bem?


‑ Meio significa terça‑feira?

‑ Zack, por favor.

‑ Está bem, desculpa. A meio da semana está óptimo. Posso pelo menos levar‑te a casa depois?

‑ Eu ficarei bem. Além disso, nem sequer sei se irei para casa mais tarde. Zack, haverá tempo. Se tiver de acontecer, haverá muito tempo.

A tristeza que viu nos olhos dela ajudou‑o a não pressionar mais.

‑ Claro que sim ‑ afirmou. ‑ Ei, só para saberes, dei de caras com o teu substituto no quarto da Annie.

Suzanne fez um grande sorriso, obviamente satisfeita com a mudança de assunto.

‑ O Don Norman? Já está assoberbado de trabalho?

‑ Nem um pouco. O Norman não parece ser o género de pessoa que se deixa intimidar pelo trabalho... Pelo menos, enquanto houver linhas de orientação e regras a seguir. E parece que o Ultramed lhe forneceu todas as linhas de orientação e regras de que ele possa precisar. Por isso não te preocupes.

‑ Não me preocupo ‑ garantiu ela. ‑ E estou plenamente de acordo. O homem é consciencioso como o raio, mas parece um robô médico. Uma Julia Childs de estetoscópio... estritamente um livro de receitas. A Annie está bem?

Zack anuiu.

‑ Quando fui vê‑la, estava a discutir com o Norman por causa da restrição do sal e por isso penso que esse é um sinal tão bom como qualquer outro. Oh, escuta esta: a meio da discussão, ele enche o peito de ar como tanto gosta de fazer... sabes como é, assim... e diz: "Mistress Douceife, acalme‑se. Quer saiba ou não, sou o director do corpo clínico deste hospital. Sei com certeza o que é melhor para os meus doentes."

‑ Que bela imitação. Excelente. O que foi que a Annie respondeu?

‑ Nada de mais. Apenas lhe deitou um daqueles grandes olhares à maneira da Annie, chamou‑lhe "Tubby" e sugeriu‑lhe que devia perder peso para que fosse um melhor exemplo para os doentes.

‑ Não me digas.

‑ Foi fantástico. O Norman ficou vermelho que nem um tomate e, por momentos, pareceu que ia saltar e apertar o nariz dela. Tendo sido criado por aquela mulher, garanto que foi uma sorte ele não o ter feito. Mesmo depois de um enfarte cardíaco, eu teria apostado na Annie. Bem, ouve, tenho de ir brincar aos médicos. Se mudares de ideias quanto à boleia para casa, manda‑me um bip.

‑ Está bem.

‑ Sabes, ainda não consigo acreditar.

‑ Em quê? ‑ perguntou ela.

‑ Que estejas tão desperta. A enfermeira com quem conversei disse‑me que todos os doentes do Mainwaring saem assim da sala de operações. Tenho de lhe pedir o segredo.

‑ Não há segredos, doutor. Apenas técnica.

Jason Mainwaring, sem máscara nem protecção de cabelo, cumprimentou‑os junto aos pés da cama.


‑ Bem - disse casualmente Zack, tentando não parecer muito admirado com aquela intrusão ‑, seja o que for, é impressionante. Gostaria de acompanhá‑lo numa operação, para aprender em primeira mão como é que se faz.

‑ Credo ‑ brincou Mainwaring ‑, um neurocirurgião que não sabe tudo. O que é que os deuses irão enviar‑nos a seguir?

‑ Espere aí ‑ contra‑atacou Zack, sentindo de novo os pelos a eriçarem‑se devido à arrogância do homem. - Não sei se é assim com todos, ou se só comigo, mas...

‑ Ei, rapaziada ‑ interrompeu Suzanne ‑, lembram‑se de mim? A doente?

Mainwaring sorriu‑lhe, como se Zack já ali não estivesse.

‑ Ainda está tudo a correr bem, minha amiga? ‑ perguntou.

‑ Perfeitamente, Jason. Não imaginas como estou satisfeita.

‑ Ainda bem. Muito bem ‑ disse, arrastando as palavras. Zack, de braços cruzados e tensos, recuou um passo da cama, sem saber se deveria despedir‑se ou simplesmente sair. Era óbvio que Jason Mainwaring, com toda a sua fama, e capacidade cirúrgica, se sentia demasiado ameaçado por ele para baixar as defesas nem que fosse por breves instantes.

A não ser que encontrasse um modo de fazer lembrar ao homem que jogavam na mesma equipa ‑ e a sua experiência com aquele tipo de ego avisou‑o que essa possibilidade era muito pouco provável ‑, os dois pareciam destinados a serem inimigos.

Bem, assim seja, pensou Zack. Tudo se tornaria bem mais fácil se, na verdade, houvesse alguma maneira de se provar que Mainwaring era responsável pelas dificuldades de Guy.

‑ Posso ir para casa esta tarde? ‑ perguntou Suzanne. Mainwaring sorriu, caminhou até à cabeceira do lado oposto ao de Zack e pegou na mão dela.

‑ Se não surgirem grandes hemorragias na incisão ‑ disse ‑, e ainda te sentires como te sentes agora, não vejo nenhum inconveniente. Ouve, tenho uma investigação urgente dentro de alguns minutos e uma vesícula biliar às duas. E se eu passar por aqui depois disso... digamos, às quatro e meia'? Nessa altura, não só te dou alta, como até te dou boleia para casa. Não preciso de desviar muito do meu caminho para lá chegar.

Os olhos de Suzanne desviaram‑se para Zack.

‑ Oh, Jason, não quero...

‑ Não. Está combinado.

- Não acha que dar boleia para casa a doentes pós‑operados é levar o tratamento um pouco longe de mais, doutor?

Zack não conseguia impedir‑se de o censurar. Já não bastava estar irritado com o homem e os seus modos; percebera também agora que tinha ciúmes dele.

Suzanne nunca escondera que ela e o cirurgião tinham uma amizade que por vezes ultrapassava o hospital. Mas também tivera o cuidado de acrescentar que Mainwaring tinha mulher e filhos a viverem algures no Sul, os quais, por qualquer razão, ainda não tinham podido juntar‑se a ele em Nova Inglaterra.

Furioso, Zack fez lembrar a si mesmo que nunca havia uma desculpa válida para o ciúme. Contudo, ciúme era o que sentia. A sua reacção também lhe fez lembrar que era muito mais agradável ameaçar do que sentir‑se ameaçado.


‑ Bem ‑ disse, aclarando a garganta, mas ainda incapaz de afastar totalmente a mágoa da voz ‑, vocês os dois parecem ter tudo sob controlo e por isso eu vou‑me embora. Vejo‑te mais tarde, Suze. Bom trabalho, Mainwaring.

Antes de ambos poderem responder, uma enfermeira, a quem Zack reconheceu como sendo da equipa das urgências, dirigiu‑se apressada a Mainwaring.

‑ Doutor ‑ disse, ofegante ‑, há problemas na sala das urgências. É o doutor Beaulieu. Ele... ‑ Olhou para Zack e para Suzaune e parou a meio da frase, sem saber o que poderia dizer mais. ‑ ... Hum... Mister Iverson pede para descer imediatamente, se puder.

‑ Claro, Sandy ‑ respondeu Mainwaring, com uma calma cortês. ‑ Diga a Mister Iverson que desço já.

‑ Obrigada, doutor. Olá, doutor Iverson. Olá, Suzanne. Como está?

‑ Estou bem, Sandy, obrigada ‑ respondeu Suzanne. - Está tudo bem.

‑ É maravilhoso. Vou levar a boa notícia a todos lá de baixo.

Ela desapareceu.

‑ Então ‑ disse Mainwaring ‑, vejo‑te às quatro e meia, está bem?

Apertou pela última vez a mão de Suzanne e saiu da sala de recuperação.

‑ Também vais lá abaixo? ‑ perguntou ela a Zack.

‑Hum, hum.

‑ Conta‑me o que se passa, está bem?

‑ Claro.

Não tentou tocar nela.

‑ Zack? ‑ chamou suavemente.

‑ Sim?

‑ Lamento não ter controlado melhor a situação. Por vezes, o Jason é um tanto dominador. Apanhou‑me desprevenida. Mas é um tipo muito decente. Não deixes que ele te incomode, está bem?

‑ Claro.

‑ Falaremos mais para o fim da semana?

‑ Certo.

Virou‑se para se retirar.

‑ Espero que o problema com o Guy não seja nada de importante ‑ declarou ela.

‑ Eu também ‑ murmurou ele.

Porém, ao dirigir‑se à ala das urgências, sem se sentir minimamente aliviado, Zack não conseguia afastar um terrível pressentimento.

 

Nada do que Zack imaginara sobre aquilo que se passava na ala das urgêncías o preparou para a realidade.

Havia um rebuliço à beira do caos. Estavam presentes os três homens da segurança do hospital, o director da enfermaria, Mainwaring, Donald Norman, o director do corpo clínico, e meia dúzia de doentes envergonhados e respectivos familiares. O epicentro da confúsão estava por trás da porta fechada do quarto de repouso dos familiares, onde breves períodos de silêncio profundo eram quebrados por explosões de fúria facilmente audíveis no inglês e francês de Guy Beaulieu.

‑ Maldito sejas, Frank, sai da minha frente antes que te bata ‑ foram as primeiras palavras que Zack ouviu. ‑ Essa mulher é minha doente e tenho todo o direito de tratar dela. Agora, sai do meu caminho!


‑ Guy, sente‑se e acalme‑se, ou juro que mando os guardas amarrarem‑no à cadeira. Não permito que faça cenas como esta no meu hospital.

‑ Teu hospital! Se o hospital é teu, senhor todo‑poderoso, então porque não vês que tudo isto é uma conspiração para correrem comigo? Também fazes parte, não fazes? É por isso. És um deles!

‑ Raios, Guy, cale‑se. Há doentes lá fora.

‑ Sei que há. Meus doentes! Agora, deixa‑me passar!

Zack dirigiu‑se ao local onde Jason Mainwaring se encontrava, encostado a uma parede próxima do quarto de repouso.

‑ O que se passa? ‑ perguntou Zack.

Mainwaring olhou para ele e depois voltou a olhar em direcção à fonte da confúsão.

‑ O velho charlatão está louco de raiva, é o que se passa ‑ respondeu friamente. ‑ Há já uns tempos que anda desequilibrado, mas pelo menos tem tido o bom senso e a inteligência de limitar as explosões e a paranóia às reuniões do grupo clínico. Isto é vergonhoso.

‑ Sabe o que aconteceu?

A resposta de Mainwaring foi cortada por outra explosão de Beaulieu, logo seguida de outra, mais comedida, da parte de Frank.

Momentos mais tarde, a porta do quarto de repouso abriu‑se e Frank saiu. Parecia estar um pouco mais perturbado do que o normal, mas continuava impecavelmente vestido e sem um único cabelo fora do lugar.

‑ Fique com ele, Henry ‑ disse a um dos guardas da segurança, um homem grande e sem pescoço, de pele cheia de cicatrizes e corte de cabelo à escovinha, que olhou para Zack como um mamute. ‑ Se voltar a gritar, prenda‑o à cadeira e coloque‑lhe um pano na boca.

‑ Mister Iverson, não magoo ninguém a não ser que me magoem. Disse‑lhes isso quando comecei a trabalhar aqui.

‑ Ouça, Henry, se quiser continuar a trabalhar aqui, terá de fazer o que digo e manter esse louco em silêncio até o chefe Cliiford e os seus homens aqui chegarem. Agora, entre e faça o seu trabalho.

Abanando a cabeça maciça, o guarda entrou no quarto de repouso e fechou a porta atrás de si. Não houve gritos de protesto de Beaulieu.

Frank olhou para os cubiculos cheios de doentes.

‑ Meu Deus ‑ murmurou. Ao reparar em Zack e em Mainwaring, aproximou‑se deles, abanando a cabeça. ‑ Isto é de loucos ‑ disse em voz baixa. ‑ E sabem que mais? A culpa é minha. Já devia ter agido de alguma maneira há muito tempo, quando a loucura dele começou. Bem, Zack, se se pode tirar algo de bom disto, é o facto de pelo menos teres conseguido vê‑lo em acção com os teus próprios olhos.

‑ O que se passa exactamente? ‑ perguntou Zack. ‑

O que foi que o enfureceu?

Frank deu uma gargalhada sardónica.

‑ Estou sempre a dizer‑te, irmão, que o Guy Beaulieu já está enfurecido há muito tempo. Isto é só um exemplo do ponto que atingiu. Vês aquela mulher ali na cama cinco? Bem, ela tem um problema intestinal qualquer.


‑ Provavelmente um divertículo rebentado ‑ interrompeu Mainwaring.

‑ Bem ‑ continuou Frank ‑, em tempos, o Beaulieu operou‑a. E penso que também operou o marido. Contudo, desta vez parece que a mulher e o seu médico conversaram e decidiram que talvez fosse melhor ser o Jason a fazer a operação.

‑ Examinei‑a pouco antes de operar a Suzanne ‑ explicou Mainwaring ‑, e está marcada a seguir para a sala de operações.

‑ Entretanto, o Beaulieu, lunático como é, percorre a ala das urgências, vê a mulher e, sem dizer uma palavra a ninguém, começa a examiná‑la e a dar ordens às enfermeiras. Desnecessário será dizer que a pobre mulher, que para começar não é de compreensão muito rápida, ficou totalmente confúsa e absolutamente aterrorizada. ‑ Frank olhou impaciente para a área das ambulâncias. ‑ Onde raio estão os malditos policias? Quando não são precisos, estão por todo o lado.

‑ Frank, não é preciso a Polícia ‑ disse Zack. ‑ Deixa‑me conversar com ele. Não vês que isso pode ser aborrecido e humilhante para ele? Eu levo‑o para fora do hospital e ele vai acalmar‑se.

‑ Seja como for, já está fora do hospital ‑ disse Frank, asperamente. ‑ Para sempre.

‑O quê?

‑ Este foi o último ataque do raio do homem. Já lhe falei da última série de queixas e mencionei também a carta da Maureen Banas. Suspendi‑lhe os privilégios.

Zack sentiu‑se entristecer.

‑ Frank, foi nessa altura que ele ficou enfurecido?

‑ Que diferença faz? ‑ perguntou Frank. ‑ Loucura é loucura. Escuta‑o só.

No interior do quarto de repouso, Beaulieu recomeçou a gritar.

‑ Seu gorila, solta‑me! Tira as patas de cima de mim, maldito! Tira as patas... ‑ Subitamente, as palavras do cirurgião foram interrompidas.

Sem esperar pela autorização de Frank, Zack avançou para o quarto de repouso e abriu a porta. O guarda, Henry, tinha uma fita vermelha na mão, preparando‑se para utilizá‑la como mordaça. Beaulieu estava sentado, com as mãos presas aos braços da cadeira. Olhava aterrorizado, não para o seu torturador, mas para um ponto abstracto da parede.

O lado direito do rosto começava a descair.

‑ Oh, meu Deus ‑ disse Zack, enquanto se ajoelhava junto ao homem. ‑ Guy, consegue falar?

Beaulieu virou‑se lentamente para ele, os olhos vidrados e rasos de lágrimas.

‑ Dói‑me... a cabeça ‑ gemeu.

As palavras sairam com dificuldade e quase imperceptíveis. A língua parecia enrolada num canto da boca.

‑ Você bateu‑lhe? ‑ perguntou Zack ao guarda.

‑ Nem sequer lhe toquei. Juro que não.

‑ Abra isto ‑ ordenou Zack, sacudindo as algemas. O homem hesitou. ‑ Raios, faça o que lhe digo!

‑ Faça, Henry ‑ disse Frank, da porta. ‑ O que se passa, Zack?

Zack virou‑se lentamente e olhou para o irmão.

‑ Está a ter um ataque, Frank ‑ disse em voz rouca. - É o que se passa. Uma hemorragia cerebral, julgo. Preciso de


uma maca, de uma enfermeira e de um sistema intravenoso.

E quero que preparem a TAC. ‑ Voltou‑se para o guarda. - Responda‑me outra vez: tocou na cabeça deste homem? - A voz soou gelada, os olhos a lançarem chamas.

‑ Não toquei em mais nada senão nos pulsos ‑ defendeu‑se o homem. ‑ Juro. Eu não magoo ninguém, a não ser que me magoem.

‑ Abra isto. Rápido!

O guarda cumpriu a ordem e, instantaneamente, como se fosse feito de trapo, o braço direito de Guy Beaulieu escorregou da cadeira e ficou pendurado, a balançar. Zack deitou‑o no chão e colocou‑lhe a cabeça no seu colo.

‑ Preciso da maca, por favor ‑ disse, mal conseguindo conter a angústia. Debruçou‑se sobre Beaulieu: ‑ Vá com calma, velho amigo ‑, sussurrou. ‑ Vá com calma.

Beaulieu abriu os olhos e, com horror e desespero, Zack notou que a pupila do olho direito já tinha começado a dilatar.

‑ Pronto, Guy ‑ sussurrou, afagando a testa e a face do homem mais velho ‑, a maca estará aqui num segundo. Aguente um pouco. Vai ficar bom.

Subitamente, durante alguns segundos gelados, os olhos de Beaulieu deixaram de se mover de um lado para o outro e focaram o rosto de Zack.

- Não. eu.. não ‑ disse, formando cada palavra com um esforço doloroso. ‑ Deus... me... ajude... Eu... não...

lentamente, fechou os olhos.

‑ Malditos sejam ‑ sibilou Zack, olhando primeiro para o guarda e depois para Frank, Mainwaring e Don Norman, que se juntaram à porta. ‑ Malditos sejam todos vocês.


 

Ao longo dos meses, desde que os ataques do filho haviam tido inicio, a forma de Barbara Nelrus cuidar da casa mudara radicalmente. Enquanto anteriormente era meticulosa até quase ao ponto da obsessão, agora mostrava‑se quase desmazelada. Nunca se sentia bem fora do alcance do rapaz por mais de cinco ou dez minutos de cada vez.

Com amas que não gostavam de ficar sozinhas com Toby e o marido a entregar‑se cada vez mais ao trabalho, o aparelho de televisão tornou‑se o seu aliado mais próximo. Só quando Toby se entretinha com os desenhos animados de sábado, ou com algum programa do canal infantil da televisão por cabo, é que se atrevia a passar mais tempo a cuidar da roupa ou a preparar as refeições.

Já passava do meio da tarde, e Barbara nem sequer tinha começado a pensar no jantar. Durante todo o dia, Toby tinha estado ainda mais inquieto e distante do que era habitual. Chegou a ler‑lhe uma história e até o levou consigo ao supermercado. Acompanhou‑o num passeio no carrinho a pedais e empurrou‑o no balouço de pneu que havia no quintal.

Agora, enquanto olhava para a pilha de louça suja que havia no lava‑louça e pensava no monte de roupa para passar a ferro que andava a evitar, fazia os possíveis para não sucumbir. Através da porta da sala de estar via o filho, deitado de costas sobre o tapete, a olhar para o tecto.

‑ Toby ‑ chamou ‑, mais cinco minutos e começa o Robin. Falhámos esta manhã, enquanto estávamos no parque. Porque não vais buscar o teu ursinho, enquanto procuro o canal?

O facto de o rapaz não reagir era preocupante. Quando Toby se encontrava numa fase pior e mais distante, a ideia de ver Robin, o Bom, normalmente causava uma reacção qualquer.

O actor que fazia de Robin era gordo de mais para o papel e

tão benevolente com as crianças, oco e monótono, como nunca

vira ninguém, mas o seu espectáculo de meia hora, que ia para o ar três vezes ao dia, era vivo e animado.

- Pronto, querido - disse ‑, então fica aí. Vou lavar a louça e depois ponho o Robin.

Olhando quase continuamente por cima do ombro, introduziu a mão no lava‑louça e partiu uma unha tão rente que sangrou.

- Raios - disse, chupando a ferida. - Raios, raios me partam.

Deixou correr água fria sobre o dedo. Então, mais por frustração do que por dor, desatou a chorar.

Pegou no telefone, marcou o número da fábrica e mandou chamar o marido, que estava numa reunião.

‑ Bob, olá, sou eu - disse.

‑ Eu sei. Ele voltou a ter uma crise?

‑ Não. Até agora não aconteceu nada. Mas não está a reagir normalmente.

- Ele nunca reage normalmente. Querida, desculpa não poder falar agora, mas estou no meio de uma reunião importante. Aconteceu alguma coisa especial?

Barbara enrolou o dedo a sangrar numa toalha.

- esperava que pudesses vir para casa mais cedo. Apetecia‑me fazer um bom jantar e estou preocupada com o Toby.


‑ Impossível - respondeu rapidamente Bob Nelrus. - Querida, acabaste de dizer que ele está bem. Os tipos de Chicago estão aqui. Tenho muitos assuntos a tratar com eles. Na verdade, ia pedir à Sharon para te ligar a avisar que chego tarde.

‑ Não podes adiar por um dia? Só desta vez?

‑ Amorzinho, sabes que, se pudesse, eu ia. Mas eles só ficam cá um dia.

‑ Por favor? ‑ murmurou, procurando um penso no armário.

‑O quê?

‑ Nada. Nada. A que horas pensas chegar?

‑ Provavelmente, muito tarde. Porque é que não levas o Toby a comer uma piza? Eu como aqui.

‑ Bob, não há maneira de poderes...

‑ Barbie, por favor. Não me dificultes ainda mais as coisas. Irei para casa assim que puder, está bem?... Está bem?... Merda, Barb, não faças isso...

lentamente, Barbara Nelrus desligou o telefone. Depois, esperou que o marido voltasse a ligar. Passou um minuto e depois outro. Por fim, colocou um penso em volta do dedo e dirigiu‑se à sala de estar.

‑ Vamos lá, meu menino ‑ disse em voz rouca ‑, está na hora do Robin.

 

Toby Nelrus deixou a mãe conduzi‑lo para a sala da televisão e depois sentou‑se no chão, junto ao sofá. Queria que ela fosse buscar o seu ursinho, mas as palavras do pedido não saíam.

‑ Pronto, Tobe ‑ disse, ligando a televisão. ‑ Estarei na cozinha. Chama‑me, se precisares.

Fica, pensou. Por favor, fica comigo.

O desenho animado que apresentava o programa de Robin, o Bom apareceu no ecrã, juntamente com a voz tão familiar que anunciou.

‑ Ei, meninos e meninas, peguem nos vossos arcos e nas vossas flechas. Está na hora de voltar a viajar para aqueles tempos muito, muito longinquos... para Sherwood Forest, junto àquele amigo dos pobres, Robin, o Bom.

Toby ficou a ver, calado, enquanto a mãe ajustava a cor e saía da sala. Pouco depois, regressou e pousou ao seu lado o ursinho esfarrapado.

‑ Diverte‑te ‑ disse, afagando‑lhe a cabeça. ‑ Estarei na cozinha.

‑ Obrigado ‑ murmurou Toby, mas ela já tinha desaparecido.

Olhou para a cozinha durante algum tempo e depois prendeu o ursinho entre as pernas e concentrou‑se na televisão. Robin, o Bom, vestindo um fato verde e um chapéu com uma pena, dançava e cantava, enquanto Alan‑a‑Dale tocava viola.

- Rapazes e raparigas, sejam bem‑vindos. Mas não tragam diamantes nem pérolas, pois tiro dos ricos para dar aos pobres. Depois, volto a sair para procurar mais... Que maravilha, meninos e meninas. Bem‑vindos a Sher'vood, onde aprender é sempre divertido, muito divertido. Hoje vamos fazer uns desenhos com o João Pequeno e andar de camelo com Lady Mariana. Mas primeiro, aqui está o frei Tuck. Diz‑nos, por favor, bom frade, que letra vamos aprender hoje?


Um homem gordo de batina castanha e careca no topo da cabeça, saltou para o ecrã.

- Olá, rapazes e raparigas - disse. ‑ Olá, Robin. Hoje, vamos aprender tudo sobre uma das minhas letras favoritas. É a letra que inicia muitas das nossas palavras favoritas, tais como caramelo e conto de fadas. É a terceira letra do alfabeto e chama‑se C. Então, aqui estão Robin e Alan para vos falarem dela.

Robin, o Bom atravessou o ecrã a balançar numa corda com folhas a crescerem dela. Depois, deixou‑se cair no chão quando Alan‑a‑Dale começou a tocar.

‑ Alan, meu amor, fazes mal ‑ cantou Robin em abandonar‑me tão descortesmente. Porque hoje canto esta canção sobre a nossa amiga, a letra C...

Toby Nelrus esfregou os olhos quando a cor da televisão começou a tornar‑se cada vez mais intensa.

- C, C, é toda a nossa alegria. C de cenoura, de carro e de cão. C, C inicia clube e céu. O que pensam disso?...

Robin, o Bom dançou em volta de uma árvore.

Sentado no chão da sala, o corpo de Toby Nelrus começou a ficar rigido. Os ombros começaram a tremer. O som da voz de Robin tornou‑se mais suave e a música mais alta. Por cima, as luzes começaram a passar. Surgiu um rosto à vista.

- Há o C de cometa e o C de caranguejo; e o C à frente do casaco que vestimos...

- Agora, Toby - disse o rosto - não há qualquer problema. Vais dormir. Descansa. Descansa e conta para trás desde cem...

Robin, o Bom cantava e saltitava no ecrã de televisão, enquanto Toby, numa voz suave e trémula, começava a contar.

Ele estava apoiado num joelho a cantarolar as últimas linhas da balada, quando Toby começou a gritar.


 

Foi um funeral magnífico, como todos concordaram mais tarde. Só havia lugares de pé. A multidão, desfalecendo sob o calor da brutalmente húmida tarde de Verão, encheu os bancos da Igreja de Sta. Ana e transbordou até ao vestíbulo. Os padres que conduziram a missa não só eram da Igreja de Sta. Ana, predominantemente franco‑canadiana, como também da paróquia de S. Sebastião, no outro lado da cidade.

- O Guy Beaulieu não era filho de Sterling - declarou monsenhor Tresche no seu louvor. - Era um dos seus pais... um cavalheiro, cujas mãos habilidosas e dedicadas tocaram em todos nós ao longo dos anos...

Nos três dias que se seguiram à morte de Beaulieu, Zack visitou várias vezes a viúva, Clothilde, e a filha, Marie Fontaine. Apesar de tudo, ficou surpreendido quando Marie lhe pediu para carregar o caixão. Embora tivesse preferido manter‑se menos intimamente envolvido no funeral de Guy do que se envolvera na sua morte, aceitar o pedido delas era o mínimo que podia fazer.

Foi devido à sua insistência desesperada que Marie e a mãe puseram de lado os preconceitos e concordaram com a autópsia.

- um homem de visão e convicção. Um homem humilde, que enfrentou inúmeras dificuldades pessoais com coragem e dignidade...

O padre continuou, mas Zack, sentado na primeira fila juntamente com os outros sete carregadores do caixão, ouviu apenas algumas referências. Como na maior parte das vezes, o pensamento estava sempre longe, na cena de agonia na sala das urgências e na igualmente desagradável experiência de assistir à autópsia.

Tal como Zack suspeitara, o homem morrera de uma grande hemorragia cerebral. Contudo, havia uma surpresa maior. As artérias do cérebro de Beaulieu, assim como as de todo o seu corpo, pareciam as de um homem dezenas de anos mais novo. O ataque mortal fora o resultado não de uma fenda num vaso endurecido, mas do rompimento de um pequeno aneurisma

um defeito do tamanho de uma ervilha numa artéria que, quase de certeza, já existia há muitos anos sem produzir qualquer sintoma.

Zack sabia que a causa do rompimento fatal só podia ter sido uma subida repentina e acentuada da tensão arterial. Esse pensamento fez com que sentisse o gosto amargo na boca, tal como acontecera várias vezes desde a autópsia. Os dois anos de dificuldades que Guy Beaulieu passara no Ultramed‑Davis, reais ou inventadas, tinham carregado a arma da sua destruição.

O humilhante conflito da ala das urgências com Mainwaring, Frank e sobretudo o guarda da segurança, premira o gatilho.

Claro que Frank viu as coisas de um modo diferente.

Emitiu declarações de comoção e consternação por parte do hospital e da Ultramed e enviou um cesto de fruta à viúva de Guy. Mas, nos poucos minutos que ficou sozinho com Zack, tornou claro que considerava a morte de Beaulieu nada mais do que um acto da Providência.


Discretamente, Zack olhou em redor da capela. Suzanne, embora trajando um vestido de seda azul e sem maquilhagem, destacava‑se no meio das duas filas de médicos do Ultramed‑Davis, que não incluía Donald Norrnan, Jack Pearl ou Jason Mainwaring. Vários bancos atrás dela, entre o juiz e Cinnie, encontrava‑se Frank, resplandecente no fato de Verão bege e, como sempre, parecendo calmo e seguro de si. Encontravam‑se presentes o presidente da Câmara Municipal, assim como várias outras personalidades, incluindo o congressista da região.

Guy Beaulieu tinha um dia descrito a Zack a sua própria pessoa como "um simples e velho canadiano de uma pequena cidade, suficientemente afortunado por ter nascido de pais que não o deixaram abandonar os estudos para trabalhar nas fábricas".

Pelo menos, foi agradável ver que tanta gente sabia como ele realmente era.

Mais tarde, Zack e os outros carregadores atravessaram a

nave da igreja com o caixão de Guy; o seu olhar e o de Frank cruzaram‑se por breves instantes. Sentia‑se tão distante dele... tão completamente afastado.

Teriam realmente crescido na mesma casa e brincado no mesmo quintal ano após ano? Teriam realmente vestido as mesmas roupas, partilhado tantos sonhos de infância? Algum dia teriam sido realmente amigos leais?

A esperança de restabelecer a amizade com o irmão pareceu subitamente ingénua. Talvez conseguissem fazer as coisas, tolerar‑se um ao outro ou até mesmo trabalhar juntos. Passariam juntos o tempo estéril gasto no desempenho das funções familiares. Mas nunca seriam íntimos.

O carro fúnebre estava coberto de flores. Zack, sentindo‑se arrasado pela tristeza e futilidade de tudo aquilo, ajudou a colocar o pesado caixão no meio delas.

‑ Com licença, doutor - disse uma voz atrás de si, quando se afastou do caixão.             - Posso falar consigo?

Zack virou‑se e ficou surpreendido ao ver diante de si Henry Flowers, o enorme guarda da segurança, que parecia pouco à vontade no fato escuro e gravata preta. Alguns passos atrás dele, encontrava‑se uma jovem simples e baixa, de vestido de renda branca, quase de certeza a sua mulher.

‑ Sim? - perguntou Zack.

O guarda parecia atrapalhado.

‑E.... Bom... quero que saiba que lamento muito o que aconteceu ao doutor Beaulieu - disse. - Uma vez, ele tratou da mãe da minha mulher, tratou‑a muito bem, e nunca me fez nada de mal... Doutor Iverson, nunca lhe toquei, a não ser para lhe prender os pulsos. Juro. Eu...

A voz esmoreceu. Só passado algum tempo é que Zack percebeu que o homem não sabia o resultado da autópsia e, se soubesse, não o compreendia.

Zack estendeu o braço e apoiou a mão no ombro do guarda. - Você não fez nada que tivesse causado a morte do Beaulieu, Henry - disse em voz suficientemente alta para que a mulher ouvisse. - Ele tinha um aneurisma na cabeça... uma espécie de bomba‑relógio... e o que aconteceu foi que explodiu quando você estava perto dele.

O alívio espalhou‑se pelo rosto do guarda.


- Doutor, doutor ‑ disse, apertando a mão de Zack como se fosse o cabo do macaco de um reboque de tractor. - Oh, meu Deus, muito obrigado. Se precisar de alguma coisa, é só pedir. Seja o que for.

Ele afastou‑se, pegou no braço da sua pequena mulher e começaram a caminhar.

Zack ficou a olhar até o casal desproporcionado desaparecer na esquina. Depois, deu meia volta e dirigiu‑se à carrinha, sentindo‑se substancialmente menos soturno. Pelo menos, entre os que haviam partilhado aqueles terríveis momentos no quarto de repouso, havia mais alguém que se sentia afectado por eles.

 

Segundo o juiz, o cortejo até ao Cemitério de Todos os Santos tivera uma dimensão como Sterling jamais vira.

Depois da missa, Zack acompanhou Frank e os pais até ao local à sombra, onde Marie Fontaine e a mãe recebiam as últimas condolências.

Marie, que parecia ter envelhecido um ano apenas nos três dias do seu regresso a casa, aceitou um abraço de Cinnie e, do juiz, um beijo na face. Contudo, antes de se afastar, mal tocou na mão estendida de Frank.

‑ Obrigada por teres vindo ‑ disse, friamente.

‑ O teu pai significou muito para nós ‑ afirmou Frank, calmamente.

Ela examinou‑o por momentos e depois pronunciou com simplicidade:

‑ É bom saber isso.

Zack olhou para os pais, mas não viu nada que sugerisse que tivessem reparado na tensão da breve troca de palavras. Marie voltou‑se para ele, pegou‑lhe nas mãos e deu‑lhe um beijo junto ao ouvido.

‑ Por favor, vai até à nossa limusina ‑ segredou.

Imperceptivelmente, Zack anuiu.

Meia hora mais tarde, Zack sentou‑se à frente de Marie Fontaine e Clothilde Beaulieu, no banco de trás do Cadillac mortuário, preto e comprido. As janelas de vidro furrado, incluindo a divisória que os separava do condutor, estavam fechadas, mas o sistema de ar condicionado da limusina mantinha afastado o calor da tarde.

O marido de Marie, um desolado homem de barba, cujo aspecto calmo fazia recordar a Zack um pouco o seu pai, ficou de fora.

‑ Queremos que saibas que estamos muito gratas por tudo o que fizeste ‑ começou Marie.

‑ O teu pai foi sempre muito bom para mim.

‑ Ele era bom para todos ‑ acrescentou. ‑ É por isso que é difícil compreender por que razão ninguém o defendeu quando estava a ser assassinado.

O impulso de Zack foi corrigi‑la, mas a intensidade dos olhos dela aconselharam‑no a não o fazer.

‑ Incomoda‑me bastante pensar que alguém possa ter decidido deliberadamente acabar com ele ‑ comentou Zack.

‑ Alguém não, meu amigo. O Ultramed.

‑O quê?

‑ Zack, sabemos que o meu pai te fez confidências. Sabemos que, apesar de o teu irmão dirigir o hospital, ele achou que lhe darias o beneficio da dúvida. Ele estava correcto?

‑ Disse‑lhe que ouviria e respeitaria as suas confidências, se é a isso que te referes.


Marie olhou para a mãe que, com a cabeça, aprovou a resposta de Zack.

‑ É exactamente a isso que nos referimos ‑ continuou. - Há muitos anos, o meu pai opôs‑se à venda do hospital à Ultramed. Ele não aceitava que se desse a uma corporação de fora uma posição tão segura nesta comunidade... pelo menos, com um envolvimento ou controlo da comunidade tão limitados. Se não fosse pela influência do teu pai, pensamos que ele teria conseguido bloqueá‑la. Mas, isso agora já não tem importância. Sabias que, pouco depois de tomar posse no hospital, a Ultramed tentou processar o meu pai para o despedir?

‑ Não ‑ respondeu Zack. ‑ Não sabia.

‑ Ele preparava‑se para os processar por sua vez, quando

eles desistiram. Segundo o meu pai, assustaram‑se com uma

decisão do tribunal na Florida, que acabou por custar milhões

a uma das outras corporações, por terem tentado fazer o mesmo

a um patologista que trabalhava no hospital comprado por eles.

"Zack, a Ultramed exige uma lealdade cega a todos os que trabalham para eles... a aceitação total das suas politicas. O meu pai combatia‑os em tudo. Pouco menos de um ano após desistirem da queixa contra ele, começaram os boatos. E alguns meses depois disso, aparece em cena um novo e petulante cirurgião, apontando defeitos ao trabalho do meu pai.

‑ Referes‑te ao Jason Mainwaring ‑ disse Zack.

‑ Exactamente.

‑ Tens alguma prova de que a Ultramed engendrou tudo isto? ‑ perguntou.

‑ Só isto. - Vasculhou por baixo do banco, retirou um grosso sobrescrito de papel‑manilha e entregou‑o a Zack. - Ontem à noite, a minha mãe e eu conversámos sobre isto. O meu pai gostava de ti e confiava em ti. E, francamente, não podemos contar com a ajuda de mais ninguém. Está aí toda a informação que ele conseguiu reunir na sua batalha contra a Ultramed. Não prova que foram os responsáveis pelo assassínio, mas mostra qualquer coisa sobre a forma como actuam... algumas das coisas que são capazes de fazer para obter lucros.

‑ O que devo fazer com isto?

Pela primeira vez, a viúva de Beaulieu falou.

‑ Doutor Iverson ‑ disse, num sotaque suave, virtualmente idêntico ao de Guy ‑, a esperança do meu marido era que a informação contida nesse sobrescrito convencesse o corpo de directores, incluindo o teu pai, a exercer a sua opção e a ordenar a reaquisição do hospital à Ultramed.

Zack olhou para ela, incrédulo.

- Místress Beaulieu, não estará a esquecer‑se que trabalho para a Ultramed? São eles que pagam o meu salário, as despesas do meu consultório, o seguro, tudo. Para não dizer que o administrador do hospital é o meu irmão. O que estão a pedir‑me para fazer não é muito justo.

‑ O meu marido está morto. Isso é justo?

Zack viu a resposta surgir nos olhos da mulher e depois desaparecer.

‑ Só te pedimos ‑ disse, pacientemente, Clothilde Beaulieu ‑ para leres o conteúdo desse sobrescrito e utilizá‑lo, ou não, como achares melhor. Garanto que não haverá ressentimentos se nos devolveres o material depois de o teres lido... ou até mesmo agora.


‑ A sério, Zachary ‑ disse Marie. ‑ É assim que pensamos.

Durante algum tempo, apenas houve silêncio. Zack olhou primeiro para uma mulher, depois para a outra e, por último, para o sobrescrito sobre o colo.

Um empecilho para a causa de qualquer um.

Teria sido a reacção de Frank contra ele tão forte e raivosa por estar muito próximo da verdade? Suzanne... as montanhas... o Juiz... a sua carreira. Qualquer conflito com a Ultramed ou com Frank estava quase de certeza destinado a ser uma causa perdida para si. E estavam coisas em jogo, muitas coisas mesmo.

O sobrescrito era uma caixa de Pandora. Uma bomba que podia ser nada mais que uma granada falhada, ou nada menos que uma explosão mortal.

Um empecilho para a causa de qualquer um.

lenta e deliberadamente, Zack colocou debaixo do braço a herança do cirurgião defunto. Em seguida, estendeu o braço e apertou a mão de ambas as mulheres.

‑ Mais tarde direi alguma coisa - disse.

 

Frank, Frank, ele é o nosso homem. Se ele não conseguir, mais ninguém consegue...

Ao longo das duas décadas, desde que concluíra o curso do liceu em Sterling, não passara um dia em que Frank Iverson não tivesse ouvido na mente o eco melodioso. Os gritos de aplauso das raparigas que dançavam nas linhas laterais, cada uma na expectativa de que Frank passasse pelo menos alguns minutos com elas na celebração da vitória, depois do jogo. Tribunas de honra repletas de pais, professores, alunos e jornalistas, todos a gritarem o seu nome, todos a implorarem‑lhe mais uma passagem, mais uma pontuação. O juiz e a mãe, aceitando com orgulho as felicitações daqueles que os rodeavam.

Ao conduzir pelas ruas de Sterling em direcção ao hospital, Frank ouviu os vivas tão claramente como se estivesse na pista a olhar para a fila dos que aplaudiam do outro lado, sabendo que dentro de alguns minutos a sua actuação iria transformá‑los em ruídos ensurdecedores.

Frank, Frank, ele é o nosso homem...

Tinham sido dias de glória para ele; dias de força e independência. Sabia bem perceber que, depois de todos os anos dificeis e humilhantes que se haviam seguido, depois de todas as oportunidades desagradáveis e os malditos discursos protectores e degradantes do pai, um regresso à estatura e influência dessa época, estava a um passo. Só faltavam duas semanas. No máximo três.

Tinha desempenhado as suas funções, e bem. Agora, tudo o que precisava era de paciência... paciência e vigilância constante. Três anos antes, cometera o erro da complacência, de confiar, e pagara muito caro. Desta vez, não repetiria o fracasso. Nada seria tomado como garantido. Nada. Além do mais, disse para consigo enquanto fazia o percurso até ao Ultramed‑Davis, havia bastantes razões para manter os olhos abertos e alerta. Um milhão de razões, para ser exacto.

Se ele não conseguir, ninguém mais consegue.


 

‑ Helene, não sei como dizer‑te isto, mas penso que chegou a hora de mudarmos a fabulosa paisagem florestal de Mister Gerard Morris da janela para um local mais atrás... como, por exemplo, o armazém.

Suzanne colocou a enorme pintura a óleo de Morris sobre um cavalete e recuou alguns passos, esperando que a alteração da luz e da perspectiva pudessem desfazer parte do que sentia pelo homem e sua obra.

‑ O homem é uma lenda ‑ gritou dos fundos Helene Meyer

‑ Na sua própria mente, é.

‑ Suzanne, quando é que abres os olhos para a realidade e percebes que os turistas não vêm até à zona norte de New Hampshire para comprar arte abstracta? Eles querem patos selvagens

‑ A pintura segundo os números ‑ murmurou Suzanne, lembrando‑se da reprimenda que recebera do pomposo artista por ter reduzido o preço de uma das suas "obras‑primas" em cinquenta dólares.

‑ O que foi que disseste?

‑ Nada. Nada.

Eram quase três horas da tarde. Suzanne e a sócia andavam ininterruptamente a fazer o inventário desde que ela regressara do flineral de Guy. Lá fora, o abafado sol da tarde filtrado através da fila de densos e centenários bordos, transformava a estrada principal numa suave obra de arte que superava de longe tudo o que Gerard Morris tinha produzido.

Compenetrar‑se no inventário e passar algum tempo com Helene tinha ajudado a afastar parte da melancolia que Suzanne andava a sentir, mas a recordação de Guy Beaulieu manteve o seu estado de espírito sombrio. Embora não o tivesse conhecido fora do hospital, partilhara com ele os cuidados de muitos doentes, até lhe terem reduzido as funções, e respeitara‑o bastante, quer como pessoa, quer como médico.

Contudo, as histórias que circulavam sobre os últimos tempos dele eram desconcertantes e, gradualmente, Suzanne acabou por concordar com os que acreditavam que seria melhor para todos se Guy se reformasse. Agora, ao reflectir sobre a opinião de Zack de que o idoso cirurgião parecia bastante capaz e mentalmente lúcido e ao perceber que o homem falecera ao defender‑se a si próprio, começava a pensar de maneira diferente.

Primeiro Guy Beaulieu e depois o velho lenhador Chris Gow: em ambos os casos ela recuara, ao tomar o partido da Ultramed com o seu silêncio. É verdade que a corporação a tinha tirado de uma situação que parecia não ter solução e dado uma oportunidade. Só por isso devia a sua lealdade à Ultramed. Contudo, sabia que tinha havido uma época em que se considerara liberal, uma campeã das vítimas da injustiça social. Houvera uma época em que teria feito tudo pelos dois homens, tal como Zack fizera. Era difícil acreditar que tivesse mudado tanto em tão poucos anos.

Enquanto erguia do chão a pintura de Morris e voltava a colocá‑la na janela, Suzanne amaldiçoou Paul Cole em silêncio pelo caos que causara na sua vida.

‑ Então?


Helene Meyer, de calças de ganga e bata com motivos azuis, saiu do armazém com um par de jarras de cerâmica, aceites à consignação, de um oleiro índio dos Miquemaques. Era uma mulher baixa, morena e enérgica, de cabelo curto e peso a mais, o suficiente para encher as faces e os braços.

‑ Então, o quê? ‑ perguntou Suzanne.

‑ Onde estão os patos do Morris?

Com a cabeça, Suzanne indicou a janela.

‑ Muito bem. Estás a aprender, garota. Estás a aprender.

A loja e galeria denominada White Mountam Olde Curiosity ocupava o rés‑do‑chão de um prédio de tijolo vermelho, com meio século e a dois quarteirões do centro da cidade. Três anos antes, quando soubera que um tio falecera e lhe deixara o local, Helene trabalhava numa empresa publicitária sem futuro de Manhattan e competia com o que pareciam ser milhões de divorciadas quarentonas, por causa de todo e qualquer homem disponível.

Considerou a herança como um presságio de mudança.

Apesar de ter "seguido a vida" juntamente com os seus dois filhos, Helene nunca desistira da ideia de que o Sr. Perfeito apareceria, a qualquer momento a um passo de si. Suzanne achava que talvez fosse por isso que a mulher tinha sempre um sorriso e uma palavra animadora, mesmo para a situação mais triste.

‑ Estás bem? ‑ perguntou Helene, pousando as jarras num par de pedestais de acrílico.

‑ Hen? Oh, sim. Estou bem.

‑ Pareces cansada.

‑ Pareço sempre cansada.

‑ Pareces sempre linda ‑ corrigiu Helene. ‑ Hoje, pareces linda e cansada.

‑ Estou bem. Só não ando a dormir muito bem.

A explicação fora incompleta. Desde que tivera alta do hospital, andava quase sempre agitada e confúsa, dormindo não mais de uma a duas horas de cada vez e acordando muitas vezes com uma profunda e intermitente ansiedade. Não era nem por sombras o estado de espírito que esperava ter, dado o resultado da operação.

‑ Precisas de sexo ‑ disse Helene.

‑ Não preciso de sexo. Essa é a tua cura para tudo.

‑ Bem, alguma vez me viste maldisposta desde que me conheces? Desde que haja cabanas de esqui e contradanças e noites de quinta‑feira de solteirões no Holiday Inn, pretendo continuar tão saudável quanto uma égua. Não achas que já é tempo de...

‑ Não. Não acho. Vamos mudar de assunto. Além de que...

Foi apanhada depois daquelas palavras, mas era tarde de mais. Helene não deixou escapar.

‑ Além de quê?

‑Nada.

‑ Oh, sim... ‑ Olhou maliciosamente para Suzanne. - Foste com ele, não foste? Na outra noite, com aquele médico novo. Como é que ele se chama?

‑ Zachary. Mas...

‑ Bom, raios me partam. Não é de admirar que estejas cansada.

‑ Julguei que isso deveria animar‑me.


‑ Não, quando é a primeira vez em muitos anos ‑ respondeu Helene. ‑ É preciso manter a forma para esse tipo de coisas. Valha‑me Deus. Ele deve ser extraordinário, é só o que posso dizer. Fala‑me dele.

‑ Não há nada para contar. É um tipo simpático. Eu estava assustada com a operação e ele foi compreensivo, e as coisas... acabaram... por se descontrolar. Foi um erro: apenas um daqueles actos impensados. Nem sequer voltaremos a ver‑nos fora do hospital.

‑ Valha‑me Deus ‑ repetiu Helene.

‑ Pára com isso.

Helene pegou Suzanne pelos ombros.

‑ Não, pára tu com isso ‑ disse. ‑ Suze, és como minha irmã. Convidar‑te para sôcia deste lugar foi a melhor coisa que fiz, à excepção talvez daquele peleiro de White Plains.

Suspirou, tristonha, e Suzanne deu uma gargalhada.

‑ Se continuo a meter‑me na tua vida ‑ continuou ‑, é porque gosto de ti. Sei que passaste um mau bocado com o malvado com quem te casaste e tudo o mais, mas isso são águas passadas. Ele desapareceu. Não podes permitir que ele continue a governar a tua vida.

‑ Não permito que ele governe a minha vida. Estou bem assim, obrigada.

‑ E tens um emprego óptimo, uma filha óptima e muitos interesses, e não precisas que alguém volte a estragar tudo. Eu sei. Eu sei. Já tinhas dito tudo isso.

‑E então...

‑ E então há mais. Está por aí alguém à espera que deixes de fugir assustada e lhe dês uma oportunidade.

‑ Helene, sou muito feliz, e a minha vida está perfeitamente sob controlo.

‑ Está bem. Mas, se quiseres saber o que penso, passavas bem com um pouco menos de controlo e um pouco mais de...

‑ Meyer, basta.

Helene ergueu os braços na defensiva.

‑ Só estou a tentar ajudar ‑ disse.

‑ Eu sei.

‑ Então, fala‑me desse Zachary que não voltarás a ver fora do hospital.

‑ Helene, julguei que nós...

‑ Alto? Um rosto tipo Clint Eastwood? Olhos bonitos? Cabelo escuro?

‑Como é que...

Nesse instante, a porta atrás de Suzanne abriu‑se. Ela virou‑se e ficou visivelmente tensa.

‑ Olá ‑ disse Zack.

‑ Foi o que pensei ‑ murmurou Helene. ‑ Valha‑me...

‑ Desculpa ter aparecido assim ‑ afirmou Zack, bebendo um gole do capuccino que Suzanne lhe preparara. ‑ Sei que disseste quarta‑feira.


‑ Não tem importância. Estava a precisar de um intervalo. Sentaram‑se nos bancos altos de cerejeira de ambos os lados de uma estante de vidro, que duplicava como um balcão de vendas ou uma vitrina de joalharia. Depois das apresentações, de conversa vulgar e de uma cotovelada que Suzanne tentou sem sucesso achar aborrecida, Helene foi fazer "recados". Do outro lado da galeria, uma turista idosa e porte nobre e o seu diminuto marido olhavam para um quadro de Gerard Morris, tipicamente intitulado: A Floresta é uma Sinfonia. A vida em Si Própria.

‑ Como vai a incisão? ‑ perguntou Zack.

‑Está bem...

A atmosfera entre eles era cerimoniosa, mas não tensa. E apesar dos esforços para se afastar, Suzanne sentiu que a ligação entre eles, acelerada na montanha atrás da sua casa e depois no quarto do hospital, não tinha diminuído. Silenciosamente, ficou de sobreaviso para não dar qualquer sinal de motivação. O acto de Helene fora bem intencionado, mas ela simplesmente não o compreendera.

‑ Lamento o que aconteceu ao Guy ‑ declarou. ‑ Era um homem simpático.

‑Sim.

Zack sentiu vontade de lhe falar do sobrescrito, mas decidiu não o fazer... em especial, porque ainda estava por abrir sobre o banco da carrinha.

‑ Tens a tarde de folga? ‑ perguntou ela.

‑ Não. Tenho de estar no meu consultório dentro de poucos minutos. Eu... hum... na verdade, vim fazer‑te uma consulta.

Olhou para ele, desconfiada.

‑ A sério ‑ insistiu ele.

Ela começou a protestar, mas calou‑se. Helene tinha razão. Ele realmente tinha olhos bonitos. Maldito sejas, Paul, pensou.

‑ A Annie? ‑ perguntou.

‑ Não, graças a Deus. O Norman parece aguentar‑se bem com ela. No entanto, ela não lhe dá muita importância. Diz que não confia nele. Não, não preciso dos conselhos da Suzanne Cole, cardiologista. Preciso da Suzanne Cole, mãe.

‑ Interessante ‑ afirmou ela. ‑ Nesse caso, deixa‑me mudar a expressão de conhecedora e segura de mim própria para intrigada, perplexa e exausta. Pronto, podes continuar.

No outro lado da galeria, a senhora idosa e o marido tinham mudado a atenção para Três Veados, Um Riacho e o Cosmos de Morris, uma vistosa combinação de estrelas luminescentes e minúsculos reflexos na água.

‑ É uma consulta que tenho de fazer para o Phil Brookings - disse Zack. ‑ Um rapaz de oito anos.

‑Nome?

Pensativamente, Suzanne pegou numa caneta e escreveu 8 anos no canto de um bloco.

‑ Nelrus. Toby Nelrus. Em cinco meses, o rapaz não disse mais de uma ou duas palavras a ninguém. O Brooking está pronto a iniciar a terapia, mas quis analisá‑lo primeiro. Penso que está aterrorizado com a ideia de passar hora após hora, fechado no consultório, com uma criança que não fala.

‑ Isso parece terrível... em especial para um psiquiatra. Mas a criança não parece estar ligada exactamente à neurocirurgia.

‑ Provavelmente, não. Mas pode estar. Segundo parece, tem tido uma espécie de crises psicomotoras.

‑ Psicomotoras?

‑ Isto é uma espécie de diagnóstico ao acaso. Não faço a menor ideia do que se passa. Com base no que o Brookings me disse, o diagnóstico mais aproximado que consigo fazer é uma variante da epilepsia lóbulo‑temporal. Durante o primeiro ataque, pouco antes de ter deixado de falar, destruiu‑lhe a sala. Desde então, tem tido vários outros.


‑ Então, porque não é epilepsia lóbulo‑temporal?

‑ Bem, por uma razão. Embora haja o componente de fúria que vemos nos doentes com epilepsia lóbulo‑temporal, existe também um enorme componente de medo. O miúdo age como se estivesse absolutamente aterrorizado com alguma coisa. Por outro lado, e isto é o mais perturbante, o tempo de recuperação está a tornar‑se cada vez mais longo em cada ataque. Parece que estes ataques, ou o que quer que sejam, estão associados a alguma pressão existente no cérebro do rapaz.

‑ Edema cerebral?

‑ Muito possivelmente.

‑ Isso é assustador.

‑ Até agora o inchaço tem sido reversível mas, como sabes, a dado momento estabelece‑se um ciclo vicioso: um edema que causa febres altas, o que o faz aumentar ainda mais, e por aí fora.

‑ Existe algum disparador?

‑ Disparador?

‑ Tu sabes, algo que dispara o ataque.

‑ Oh, não. Nada que alguém tivesse notado. O Brookings quer dar‑lhe Dilantina ou um dos medicamentos para epilepsia lóbulo‑temporal, mas primeiro quer que eu examine o rapaz. Achei que talvez pudesses dar‑me alguns conselhos sobre como lidar com crianças desta idade.

‑ Ele já fez algum electrencefalograma?

‑ Quero fazer‑lhe isso e uma TAC mas, segundo o Brookings, o garoto fica tão agitado quando se aproxima do hospital que se tornou quase impossível fazer qualquer tipo de análise técnica satisfatória.

‑ Do hospital?

‑ O Brookings jura que o miúdo olhou para o hospital através da janela do consultório e fugiu. Teve de correr atrás dele pelo parque de estacionamento e prendê‑lo nos braços.

Sem pensar, Suzanne anotou no bloco as palavras Nelrus, psicomotor e hospital.

‑ Presumo que o Brookings terá investigado o óbvio, uma má experiência no hospital ou algo parecido? ‑ perguntou.

‑ Hum, hum. Tudo o que se passou foi a correcção de uma hérnia há cerca de um ano. O trabalho foi feito pelo teu amigo Mainwaring. Revi o registo. O rapaz ficou lá uma noite, mas não surgiu nenhum problema.

Suzanne acrescentou hérnia e nenhum problema à sua lista.

‑ Foi feita com anestesia local?

‑ Julgo que foi qualquer coisa como Pen total e gás. Porquê?

‑ Nada de especial. Estou só a lançar ideias. Deram‑me a mesma anestesia e ainda falo sem parar; assim, penso que não é isso.

Do outro lado da sala, os turistas envolveram‑se numa discussão calorosa, a mulher idosa a gesticular em direcção ao Cosmos e o marido em direcção à Sinfonia.

‑ Alguma sugestão? ‑ perguntou Zack.

Suzanne sublinhou várias palavras no bloco.

‑ Principalmente uma ‑ disse ela. ‑ Não o examines no teu consultório.

‑O quê?


‑ E tenta também o mais possível não parecer um médico, ou dizer que és um "doutor"? Provavelmente ele saberá que és, mas não faz sentido realçá‑lo. Ao contrário da maioria dos adultos, as crianças não se impressionam com o nosso título. Apenas ficam com medo.

‑ Queres dizer, examiná‑lo em minha casa?

‑ Ou mesmo em casa dele. Ou ainda melhor, num lugar neutro. Que tal aquele avião de que falaste à Jen? Ela está muito interessada nisso. Há alguma maneira de montares um espectáculo para esta criança?

‑ Ideia excelente ‑ afirmou Zack. ‑ Claro que sim. Que perfeito. Sei onde o fazer. O Meadows, no topo da Gaston Street. Sabes onde fica?

‑ Sei. Já lá estivemos. Parece‑me bem. Quando pensas examiná‑lo?

‑ Quarta‑feira. Quarta à uma e meia. Escuta, já que é quarta‑feira, porque é que não nos encontramos lá, digamos, às onze e meia? Podemos almoçar... um piquenique. Podes trazer a Jen e...

‑ Não posso ‑ respondeu depressa de mais. ‑ Quero dizer, já temos planos.

‑Oh.

‑ Zack, desculpa. ‑ Porque mentia? ‑ Fica para outro dia.

Ele fez um meio sorriso.

‑ Sim, claro. Outro dia... Bem, obrigado pelo café. - Aclarou a garganta e afastou o banco. ...... hum... - Acho que é melhor regressar ao hospital.

‑Zack... ‑ chamou‑o quando já ia a sair.

Ele virou‑se.

‑ Zack, eu... lamento sinceramente o que aconteceu ao Guy.

‑ Sim ‑ respondeu, sem disfarçar a mágoa nos olhos. - Eu também.

Deu meia volta e desapareceu.

Abismada, Suzanne arrancou a folha do bloco e amarrotou‑a na mão. Talvez tivesse chegado o momento de marcar ela prôpria uma consulta com Phil Brookings. Em todos os aspectos, Sterling tinha sido o refúgio e ela esperava que continuasse a ser. Paz e beleza, um bom emprego e tempo para passar com Jen. Era tudo o que ela queria e tudo aquilo de que precisava. Porque é que aquilo estava a acontecer agora?

‑ Desculpe, miss?

A senhora idosa, com o marido a acenar atrás, aproximou‑se do banco que Zack deixara vago.

‑ Desculpe ‑ pediu Suzanne. ‑ Vejo que estão interessados no trabalho do Gerard Morris, não é assim?

‑ Sim. Ele é daqui?

‑ Da cidade ao lado. Está a tornar‑se cada vez mais popular, de ano para ano.

Por que razão lhe mentira sobre quarta‑feira? Jen tinha realmente planos com amigas, mas ela estava livre. Porque mentira?

‑ Bem ‑ disse a mulher ‑, o meu marido e eu estamos muito interessados no quadro da esquerda. O que tem aqueles veados encantadores. Pode dizer‑me o preço?

‑ Oitocentos dólares.

‑ Oh! exclamou a mulher. - Compreendo ‑ consultou as notas biográficas de Morris. ‑ Ele já fez alguma exposição fora desta área? Bóston? Nova Iorque?


‑ Não ‑ respondeu Suzanne, percebendo que apesar do seu gosto artístico, a mulher não era nenhuma principiante. - Penso que não.

Talvez a Helene tivesse razão. Talvez já fósse tempo de parar de fugir assustada.

‑ Bom ‑ disse a mulher ‑, se é esse o caso, não acha que o preço da sua obra está um pouco alto?

Durante alguns instantes, Suzanne olhou para ela e depois deitou a lista amarrotada no cesto dos papéis.

‑ Por acaso ‑ disse ‑, acho.

 

Há anos que as pessoas lhe chamavam "a bruxa da Rua 87 da zona oeste". Mas Hattie Day sabia que não era. Chamavam‑lhe Batty Hattie e fizeram‑se petições declarando que o seu apartamento desarrumado era uma ameaça para a saúde e a sua familia de gatos, ilegal. Mas Hattie não ligara importância. Nas suas frequentes idas ao supermercado, as crianças insultavam‑na e, por vezes, até lhe atiravam coisas. Mas Hattie compreendia e, apesar de tudo, amava‑as tanto quanto amava os seus gatos.

Há anos que as pessoas diziam que era maluca. Mas por saber que não era assim, Hattie sorria‑lhes apenas.

Agora, porém, desde os terríveis acontecimentos que se seguiram à sua viagem a Quebeque, Hattie já não sorria para ninguém porque sabia que agora eles tinham razão.

Eram quase duas da manhã. Exausta, mas sem sono, Hattie dirigiu‑se ao fogão, acendeu um cigarro na chama e depois colocou sobre ela uma chaleira. Tinha somente sessenta e dois anos mas, devido à palidez, ao cabelo comprido e despenteado e à magreza cadavérica, parecia ter oitenta.

Sentou‑se num cadeirão esfarrapado e analisou as mãos. Nada havia naqueles dedos ósseos manchados de nicotina e unhas compridas e curvas que sugerisse a música maravilhosa que um dia haviam produzido. Na verdade, a morte dos pais num acidente arrancara‑lhe o violino das mãos... Afastara‑se da Juilliard, a escola de música, e tinha passado por uma série de hospitais de doenças mentais. Mas ao longo dos anos conseguira ultrapassar tudo. Possuía o seu apartamento, os seus gatos e a sua amolgada aparelhagem de som estéreo, e mais do que discos suficientes para encher os dias de música.

Mas isso fora antes de Quebeque.

A tremer, Hattie apagou o cigarro, hesitou um instante e depois foi até ao fogão para acender outro. A água ainda não tinha começado a ferver.

Se ao menos tivesse recusado o convite para o casamento de Martin, pensou; se ao menos tivesse ficado em casa onde pertencia, nada daquilo teria acontecido. Mas Martin, o filho da prima. era na verdade o único membro de família que possuía. E enquanto ele estava na Juilliard, visitara‑a muitas vezes trazendo‑lhe comida e, em geral, um ou dois discos, e ficara com ela o tempo suficiente para lhe falar dos estudos. Um dia, chegara mesmo a trazer a viola e tocara para ela ‑ Bach e muitas peças maravilhosas de VilIa‑Lobos.

Hattie sorriu tristemente com a recordação.


A viagem de autocarro até ao Canadá fora suficientemente tranquila e o casamento maravilhoso ‑ em especial os grupos de câmara formados pelos amigos de Martin. Fora durante o regresso a casa que começara a dor horrível na perna. O condutor do autocarro entregou‑a ao pessoal da ambulância em Sterling, New Hampshire e, em menos de uma hora estava na sala de operações a fazer um bt'pass para desfazer um coágulo arterial na virilha.

A sua recuperação fora considerada um milagre. Após uma semana apenas no hospital e duas num sanatório, voltara para casa. Martin levara‑a de volta a Manhattan e até conseguira trazer um dos seus gatos da protectora dos animais. Um milagre.

Só tinha passado um dia desde que Martin a deixara, quando começaram os episódios assustadores. Sem avisar, a mente começava a enfraquecer. Durante mais de uma hora de cada vez, ela sentava‑se a olhar para o vazio, incapaz de se mover ou concentrar nas ideias, sabendo o que se passava mas impotente para o controlar. As cores da sala tornavam‑se desconfortavelmente vivas e todos os sons invulgarmente mudos. Por vezes, conseguia sair da cadeira. Outras, sentava‑se apenas e esperava que os terríveis episódios passassem. Por duas vezes, urinou‑se.

Sabia que estava a enlouquecer.

Então, como se os receios se confirmassem, alguns dos bizarros episódios começaram a transformar‑se em horríveis reconstituições, vividas e distorcidas, da sua operação.

A chaleira começou a apitar. Hattie levantou‑se, colocou uma saqueta de chá numa caneca de louça lascada e deitou a água a ferver. No percurso de regresso ao cadeirão, parou e colocou um dos álbuns que Martin lhe deixara ‑ música isabelina e peças de folclore inglés com Martin à viola.

Pensou que talvez valesse a pena telefonar a Martin e dizer‑lhe que estava a enlouquecer. Olhou em redor à procura de Orange, o gato que ele fora buscar. Durante o último dos seus pesadelos, tinha‑o magoado sem saber como, arrancando um dente e cortando um lábio. Desde então, o animal passava a maior parte do tempo debaixo da cama, ou atrás da estante dos livros.

Hattie afundou‑se no cadeirão. Por breves instantes, a música de Martin causou‑lhe alguma serenidade e trouxe‑lhe mesmo algumas doces recordações do seu passado longínquo. Ouviu um par de danças que tinha a certeza de ter tocado um dia num recital, e uma maravilhosa interpretação de uma canção de Thomas Stewart. A seguir veio a sua favorita, um dueto suave e persistente de flauta e viola de Greensleeves.

Pouco a pouco, os seus receios começaram a descontrolar‑se. Depois, tal como acontecera duas vezes antes desse dia, as cores da sala começaram a intensificar‑se.

Não!, gritou a mente de Hattie. Porfavor meu Deus, outra vez, não.

O som da música diminuiu e, gradualmente, fundiu‑se nos ruídos do tráfego que passava na Colombus Avenue, ali perto.

Não...

Hartie sentiu a desagradável inércia começar a instalar‑se. O brilho do candeeiro, no outro lado da sala, feria‑lhe os olhos.

Por favor meu Deus...

Desesperada e com todas as forças que possuia, conseguiu levantar‑se, pegou nos cigarros e dirigiu‑se ao fogão.

‑ Desta vez, não ‑ disse em voz alta. ‑ Maldita, desta vez, não.


Colocou um cigarro entre os lábios e, a tremer, acendeu a boca do fogão. A chama do gás começou a brilhar.

‑Hattie... Hattie, acalma‑te.

A voz, profunda e suave, parecia vir ao mesmo tempo de todos os lados. Então, por cima de si, Hattie viu os olhos azul‑acinzentados a sorrirem para ela sob a máscara.

‑ Agora, descanse. Não tem nada com que se preocupar. Nada mesmo. Quero que comece a contar para trás desde cem.

‑ Por favor...

‑ Hattie, conte!

‑ Cem... noventa e nove...

‑ óptimo, Hattie. Continue a contar. Continue a contar.

‑           Noventa e oito...

‑ Está a dormir.

‑ Noventa e sete...

‑ Pronto, gente. Vamos a isto.

‑ Noventa e seis... Não, esperem, por favor. Estão enganados. Eu não estou a dormir. Ainda não estou a dormir.

‑           Sucção preparada.

- Esperem!

‑ Bisturi, por favor.

‑ Não! Ainda não! Ainda não!

Hattie Day gritou quando o bisturi cortou a parede do abdómen inferior. Os gritos intensificaram‑se quando as chamas saltaram do fogão, fazendo arder primeiro o cabelo e depois o roupão.

‑ Pressão, por favor. Agora, outra...

Hattie atravessou o apartamento, espalhando pedaços de tecido em chamas. O tapete começou a arder. Caiu para o chão quando o bisturi cortou o abdómen e a parte superior da virilha. As chamas envolveram‑lhe o rosto e os cabelos. Começou a vomitar devido ao fumo e ao cheiro da sua própria carne queimada.

‑ Retractores prontos, por favor...

A voz ultrapassou a dor. O bisturi cortou mais fundo.

‑ Esponja. Não, aqui. Aqui mesmo!

Agora, com a roupa numa bola de fogo, Hattie Day levantou‑se e dirigiu‑se à janela.

‑ Muito bem. Agora coloquem aqui.

Dando um grito agudo e envolvida em chamas, a mulher a quem todos chamavam a bruxa da Rua 87 Oeste atirou‑se contra o vidro e projectou‑se na noite de Verão, dez andares acima da rua.


 

A manhã de terça‑feira caiu sobre Zack sob a forma de um dos seus sapatos de ténis, colocado perfeita e cuidadosamente ao lado da cara por Cheapdog.

‑ Bruto egoísta ‑ murmurou, tentando abrir um olho de cada vez. ‑ O mundo tem de se virar ao contrário só porque tens de fazer chichi.

Cheapdog respondeu à reprimenda lambendo‑lhe a boca.

‑ Está bem, está bem, cara de esfregona. Conseguiste o que querias. ‑ Zack coçou atrás de uma orelha do animal e fez mais uma das muitas promessas de o levar para ser tosquiado. - Lamento não ter‑te prestado muita atenção nos últimos tempos. meu velho. Obrigado por seres tão compreensivo.

Sentindo‑se preguiçoso e menos entusiasmado com o dia de trabalho, o que não sentia há algum tempo, tirou um par de calças de protecção cirúrgicas onde se lia PROPRiEDADE no HOsPital MUNICIPAL DE BÓSTON ‑ NÃO PODE SER LeVADA POR qualquer um, - deixou Cheapdog sair para o quintal, fez quinze minutos de atabalhoada ginástica rítmica e, por fim, pôs água ao lume para o café.

Sabia que a acentuada mudança de atitude de Suzanne parc com ele era uma das causas do seu mau humor. E por muito maravilhoso que tivesse sido fazer amor com ela, desejava agora que as coisas houvessem sido diferentes.

No entanto, talvez com maior peso nesse momento encontrava‑se o legado de Guy.

Durante a maior parte da noite anterior. o sobrescrito de Guy continuara na carrinha, por abrir. Na verdade. várias vezes ao longo do dia, Zack pensou devolvê-lo tal como estava. Contudo, acabou por perceber que a sua decisão de fazer o que podesse pelo homem já tinha sido tomada antes de se encontrar com a viúva e a filha, e até mesmo antes dos terríveis acontecimentos no quarto de repouso.

Enquanto deitava água quente no filtro Chemex e batia dois ovos com pimenta, cebola picada e pedaços de bacon, Zack meditou na impressão inicial que tivera do estranho e amargo testamento do cirurgião.

Já passava da meia‑noite quando finalmente regressou de um longo passeio a pé com Cheapdog e trouxe o sobrescrito para dentro de casa. Demasiado cansado para ler e compreender, passou duas horas a escolher o material e a separá‑lo em pilhas sobre a mesa de jantar. Pelo que pôde depreender, a corporação de Hospitais Ultramed, responsável ou não pelas dificuldades de Guy, tinha mantido um tigre preso pela cauda.

Havia dúzias de recortes de jornais e documentos oficiais, mais algumas impressões computadorizadas, várias listas dactilografadas e emendadas de funcionários da corporação e corpos de direcção, e vários sobrescritos mais pequenos cheios de anotações manuscritas e garatujadas à pressa.

Beaulieu e os seus investigadores preparavam‑se minuciosamente para a batalha. Contudo, apesar dos esforços, Zack achou que as provas que eles tinham conseguido juntar das práticas avarentas da Ultramed eram circunstanciais e vagas.


Zack tinha a certeza de que, embora os diversos documentos talvez fizessem levantar algumas sobrancelhas de directores do hospital, faltava o único e essencial ingrediente que podia transformar essa questão em votos: um exemplo em carne viva - bastava um ‑ dos perigos de tais práticas: o que Rock Hudson fora para a sida, ou a explosão do Chaílenger para os perigos da exploração espacial.

Zack sabia que, sem uma prova desse tipo, sem uma chaveta emocional, os esforços de Beaulieu estavam basicamente tão condenados quanto o próprio homem.

Para além das provas contra a Ultramed, o sobrescrito continha um diário.

Durante as primeiras horas da madrugada, Zack nada mais fez senão ler o pequeno livro de anotações de encadernação em espiral. Depois de arranjar um espaço na mesa para o

pequeno-almoço, abriu‑o ao acaso. Não foi surpreendente que a escrita, quase toda feita com caneta de tinta permanente, fosse meticulosa e precisa.

 

11 de Dezembro: Hoje vários doentes cancelaram a consulta, incluindo Clarisse LaFrenniere. Falei com ela ao telefone. Não quis contar nada. Tive de implorar. Acabou por admitir que o filho Ricky ouvira na escola que eu tinha examinado uma das raparigas da sua turma, por causa de um quisto no pescoço, e que eu a tinha despido e deitado na minha mesa de exames, dando voltas e mais voltas à mesa enquanto tocava nela. Não existe nenhuma doente nessas condições nos meus registos ou na minha memória. Fiz vários telefonemas aos pais de todas as jovens que tratei. Admitiram ter ouvido boatos, mas negaram que algum deles estivesse relacionado com as respectivas filhas. Estavam todos bastante distantes e atrapalhados. Ao contactá‑los, sinto que me prejudiquei mais do que ajudei. Liguei para o Ricky e pedi‑lhe que me dissesse o nome da rapariga. Não foi capaz, ou não quis dizer. Por fim, a Clarisse tirou‑lhe o telefone das mãos, pediu‑me para não voltar a telefonar e desligou. Não deixarei de tentar.

 

Zack leu muitas outras folhas, algumas das quais destacavam mais esforços de Guy para mergulhar no mar sombrio dos boatos. Outras descreviam conflitos com membros do corpo clínico, com o jornal local e até mesmo com certos doentes.

Em termos gerais, era uma crónica da desintegração angustiante da vida de um homem.

Alegações de negligência, nenhuma delas apoiada ou reforçada com uma acçãojudicial... cartas de reclamação dirigidas aos jornais e ao hospital, quase todas anónimas... boatos de má conduta sexual... boatos de comportamento inadequado... deserção de doentes...

Golpe após golpe, humilhação após humilhação, e apesar de tudo Guy Beaulieu recusara dar‑se por vencido. No texto de uma das páginas pareceu heróico e patologicamente obstinado. A medida que Zack lia as anotações, a linha fina que separava as duas atitudes tornava‑se cada vez menos distinta.

As hipóteses de um homem estar certo aumentam, geometricamente, com o vigor com que outros tentam provar que ele está errado.

Esse era um dos princípios favoritos de Zack e ele citara‑o

inúmeras vezes ao longo dos anos. Mas nunca o sentira no intimo, como se sentia neste momento.


Contudo, havia mais do que o instinto íntimo a ser considerado. Havia a carta acusadora de Maureen Banas, para além de outras provas condenadoras que Frank afirmara possuir. Havia também o comportamento explosivo e irracional de Guy na ala das urgências, na manhã do seu falecimento. Por último e acima de tudo, havia a falta de uma explicação realmente boa para a razão por que o homem fora, segundo parecia, o único a ser apontado para a destruição.

E claro que era possível a convicção da viúva de que a Ultramed tentava livrar‑se de um potencial desordeiro; mas a reacção parecia absurdamente exagerada para a ameaça que Guy representava: como dar um tiro numa mosca com uma arma para elefantes.

Zack foi buscar Cheapdog ao local onde se encontrava escondido, debaixo da janela da colhe não castrada de um vizinho, e prendeu‑o a uma corrente comprida no quintal. Depois, tomou um duche, vestiu‑se e dirigiu‑se ao hospital, pensando no que faria se tivesse de confrontar Marie Fontaine e a mãe com provas contundentes de que, na verdade, Guy fora irracional, instável e paranóico. Mesmo com uma autópsia negativa, o homem podia ter estado numa fase inicial da doença de Alzheimer, ou a sofrer uma doença mental não detectada.

Quando estacionou no parque só PARA MéDICOS do hospital, Zack lembrou‑se de outro ditado: pertencia a um cartaz que tinha pendurado na parede do seu apartamento de estudante de

Medicina:

Só porque és paranóico, não significa que não andem por aí atrás de ti.

 

O murmúrio matinal da ala das urgências era mais elevado do que o normal, com vários médicos particulares a fazerem exames menores e o médico das urgêncías desse dia, Wilton Marshfield, a passar, zangado, de uma para outra das quatro salas "activas", claramente aborrecido por as coisas não correrem a um passo mais calmo.

Zack parou junto à sala de espera para tomar um último café e tentava desvendar sem sucesso o truque de polegar e palma de duas raparigas vestidas às riscas, quando recebeu um bip de uma chamada exterior.

‑ Zack, fala o Brookings, Phil Brookings.

‑ Sim, Phil. Estás a ligar por causa do pequeno Nelrus, não é? Tive de adiar a consulta devido ao funeral do Guy Beaulieu. Vou vê‑lo amanhã à tarde.

Zack olhou para as raparigas, uma das quais, na sua primeira tentativa, completava um número de fácil execução com um centavo.

‑ Eu sei ‑ disse o psiquiatra. ‑ A mãe do rapaz telefonou‑me. Ela ficou, como direi, um pouco preocupada por lhe teres pedido para ir ter contigo à encosta de uma montanha qualquer. Prometi‑lhe que falaria contigo para saber se... bem... se poderei ajudar nalguma coisa.

‑ Na verdade ‑ disse Zack, sorrindo com o embaraço de Brookings ‑, fica perto da base da montanha. Não na encosta.

‑ Oh... percebo... Bem, vou ligar a Mistress Nelrus para lhe assegurar que não és, como direi, o excêntrico que ela possa pensar.

Desta vez, Zack deu uma sonora gargalhada.


‑ Phil, peço desculpas pelo meu atrevimento. A verdade é que, provavelmente, sou o excêntrico que ela pensa. Mas, pelo menos desta vez, faço apenas o que posso para evitar a dificuldade que tiveste. É um tanto complicado fazer um exame neurológico pormenorizado num alvo em movimento.

‑ Compreendo ‑ disse Brookings, embora o tom de voz sugerisse algumas dúvidas que persistiam. ‑ Falarei com a mãe do rapaz e certificar‑me‑ei de que aparecerão. E, para o caso de ser necessário, talvez fosse melhor calçares os teus sapatos de ténis. O rapaz é veloz.

‑ Obrigado, Phil. Falarei contigo mais tarde.

Zack desligou quando as raparigas de vestido às riscas, ainda a treinar, se preparavam para sair da sala.

‑ Vamos lá, garotas ‑ disse. ‑ Mais um. Este chama‑se rolo de dedos. Nele, estes vinte e cinco cêntimos americanos perfeitamente normais serão transportados por magia para o topo dos dedos e de volta à mão, sem a ajuda de um guindaste, de um bulídozer ou da minha outra mão.

Entre o segundo e o terceiro enrolamento, a moeda escorregou entre os dedos e foi cair no café.

‑ Bem, sugiro que as duas se mantenham afastadas deste truque até terem idade suficiente para trabalhar com café quente ‑ avisou.

Permaneceu junto à chávena e esperou que o par perplexo deixasse a sala, para recuperar a moeda.

‑ Eu, excêntrico ‑ murmurou, enquanto atravessava a ala das urgências. ‑ Que ridículo. Absolutamente ridículo.

Um conjunto de radiografias, cinco imagens da coluna na região cervical de uma adolescente, estava introduzido na caixa de luz, dividida em quatro painéis, que havia no corredor. Horas mais tarde, quando a tensão e a excitação tivessem desaparecido e houvesse tempo para reflectir, Zack não seria capaz de explicar a que se referiam aquelas radiografias que lhe tinham chamado a atenção.

Porém, naquele microssegundo em que ele passou por ali, algo o deteve.

Podia ter sido a largura de uma sombra, ou talvez a curva invulgar da imagem lateral. Ou talvez não fosse mais do que o exame instintivo das radiografias, contra os treze anos de estudos e só Deus sabe quantas mais espinhas em C em tantos outros estabelecimentos.

Fosse o que fosse, algo o fez parar, virar‑se e estudar mais pormenorizadamente as radiografias.

As fracturas das vértebras C‑ 1 e C‑2 estavam longe das mais evidentes que tinha visto, mas eram bem notórias ‑ e, indubitavelmente, instáveis. Se a medula espinal ainda não tinha sido afectada, um movimento brusco, uma torcedura, ou um embate contra qualquer coisa podiam ser desastrosos.

Para todos os efeitos, deviam tê‑lo chamado para tratar do caso.

Verificou o nome e a data de nascimento: Stacy Milís, 14 anos.

A seguir, atravessou a enfermaria, à procura de Wilton Marshfield. O corpulento médico estava debruçado sobre um balcão, a escrever apressadamente algumas instruções de alta. Ao lado da folha de instruções encontrava‑se um colar cervical macio.


‑ Olá ‑ cumprimentou Zack, aproximando‑se o suficiente para verificar que as instruções eram de facto para Stacy Milís. Desviou o olhar do homem para a cama número 3, onde uma bonita rapariga morena, em calções de montar e T‑shirt lilás, esperava com os pais. Estava sentada na borda da maca com as pernas pendentes e esfregava suavemente a base do crânio.

‑ Oh, olá, Iverson ‑ disse Marshfield. Olhou para ele apenas o tempo suficiente para cumprimentar e voltou à escrita. - Esta é uma manhã muito agitada. Garanto‑lhe... Vi‑o ontem, no funeral do Beaulieu... Que coisa terrível.

‑ Wilton, posso falar consigo por um instante? ‑ perguntou Zack em voz baixa.

Marshfield abanou a cabeça.

‑ Não posso parar agora ‑ disse, tirando um bloco de receitas da bata clínica. ‑ Tenho de me livrar desta rapariga e ainda tenho mais dois doentes para examinar. Estou a ficar velho para este movimento, Iverson. Demasiado velho. Diga ao seu irmão para se despachar a organizar este lugar, para que eu possa regressar às minhas trutas e aos meus netos.

‑ E sobre essa rapariga que está prestes a mandar para casa ‑ disse Zack. ‑ A Stacy Milís.

Marshfield olhou para a rapariga, em seguida pegou no colar cervical e na folha de instruções e começou a escrever uma receita para um relaxante muscular.

‑ Caiu do cavalo e magoou os músculos do pescoço - disse, enquanto escrevia. ‑ Olhe, Iverson - acrescentou de rompante ‑, desculpe ter falado asperamente consigo na outra noite. Mas, por favor, não me cause problemas hoje. Estou muito aquém de...

‑ Escute, Marshfield ‑ murmurou Zack. ‑ Acabei de ver as radiografias dela que ali estão. Tem uma fractura. Penso que duas. C‑um e C‑dois.

O homem mais velho pareceu gelado. Em movimentos lentos, a caneta escorregou‑lhe da mão e caiu sobre o balcão.

‑ Tem a certeza? ‑ perguntou, nervoso.

Zack anuiu.

‑Jesus...

‑ Venha que eu mostro‑lhe.

Pouco depois, Zack conduziu o mudo e abalado Wilton Marshfield até junto de Stacy Milís e dos pais.

‑ Olá, Stacy, Mister e Mistress Milís ‑ saudou. ‑ Chamo‑me Iverson. Zachary Iverson. Sou neurocirurgião.

Olhou de novo para Marshfield, que parecia estar a ouvir, de vendas nos olhos, a contagem final de um pelotão de fuzilamento.

Zack sorriu para dentro. Se o homem estava à espera de tiros, ele estava ali para uma surpresa agradável.

Ei, Wilton, descontraia‑se, pensou. Tudo quanto sei é que esta nossa profissão nunca foi um concurso ou um jogo. É a vida. É a banana verdadeira. Ejá é suficientemente difícil tomar a decisão certa, mesmo sem os disparates e a prepotência. Fez o melhor que pôde, e isso é o que todos fazemos... ‑ todos nós. De forma alguma eu tentaria afastá‑lo.

‑ Aqui o doutor Marshfield acabou de fazer um excelente exame das radiografias da Stacy ‑ disse. ‑ Ele reparou numa sombra de que não gostou e pediu‑me para verificar, antes de pensar em mandá‑la para casa. Lamento informar que as suas suspeitas estavam correctas. Stacy, há uma pequena fractura, um osso partido exactamente aqui.

‑ Eu sabia ‑ disse Stacy. ‑ Vês, mãe, bem te disse que tinha dores insuportáveis.


‑ É perigoso? ‑ perguntou a mãe da rapariga.

‑ Teria sido - disse Zack, colocando o colar macio no lugar ‑, se não tivesse sido detectado. Poderia acontecer um grande desastre. Mas agora está tudo sob controlo. Vais ficar boa.

Mrs. Milís estendeu o braço e apertou a mão do estupefacto Wilton Marshfield. O marido deu‑lhe uma palmada no ombro.

‑ Bem, Stacy - continuou Zack ‑, em primeiro lugar, não quero que movas a cabeça, está bem?

‑ Está bem.

‑ óptimo. Depois, há algumas coisas que tenho de explicar, a ti e aos teus pais, sobre o que fazemos nas fracturas cervicais.

‑ Doutor Iverson, por favor - pediu a mãe da rapariga. - Antes de começar, gostaria de chamar aqui a tia da Stacy, a minha irmã. Não se importa?

‑ Com certeza, mas não vejo...

‑ Ela ajuda‑me a compreender os assuntos médicos. É a chefe das enfermeiras daqui. Maureen. Maureen Banas.


 

Embora a sala de operações número 2 do Ultramed‑Davis fosse mais nova do que algumas das dezenas que Zack utilizara, o ambiente não era diferente. Os sons, a iluminação, os azulejos, o ar filtrado ‑ tingido pela mistura peculiar de anti‑séptico e talco e batas recém‑lavadas ‑ causavam‑lhe sensações tão familiares e tranquilizadoras quanto as montanhas.

A estabilização do pescoço de Stacy Milís mantinha‑se perfeita. Zack fez uma pausa junto à cabeceira da mesa para saborear as sensações: as maravilhas que conseguia fazer e a ligação que sentia com a restante equipa operatória. O sistema de som ‑ fruto da imaginação de Frank, actualmente instalado em quase todos os hospitais da Ultramed transmitia o tratamento mágico de The Holly and the Jyg, de George Winston.

‑ Tudo preparado? ‑ perguntou à enfermeira.

A mulher anuiu.

‑ Muito bem, então ‑ disse tranquilamente. ‑ Stacy, esta é a parte de que te falei. Vamos colocar aqueles quatro parafusos no lugar, na tua cabeça. Pus bastante anestésico em cada ponto para que eles não magoem, mas terás uma sensação estranha e poderás ouvi‑los ranger. Está tudo a correr bem. Sei que isto te assusta, mas não precisas de ter receio de nada.

- Não estou assustada ‑ disse a rapariga. ‑ Pelo menos, não muito.

‑ óptimo. E lembras‑te do que tens de fazer?

‑ Não me mexer ‑ respondeu.

‑Exactamente...

Zack verificou pela última vez a posição do halo cervical e colocou no lugar os quatro parafusos através das pequenas incisões que fez no couro cabeludo da rapariga.

‑ A não ser que eu peça, não te mexas.

De um local alguns metros atrás da equipa operatória, Wilton Marshfield via tudo, com um suspiro de alívio. Apesar de Zack Iverson ter publicamente ultrapassado tudo para lhe dar o crédito pela descoberta conjunta, e em privado lhe ter garantido que este era o tipo de fractura cervical mais difícil de se diagnosticar, sentiu que nunca mais voltaria a sentir‑se à vontade na ala das urgências.

Por andar entediado, ele tinha interrompido a reforma e regressado ás urgências, a pedido de Frank Iverson. Sabia que tinha chegado o momento de parar. E, graças ao irmão de Iverson, após quarenta anos de esforço, de dar o seu melhor para sobreviver, primeiro à explosão dos conhecimentos e depois á reforma e às papeladas aborrecidas, seguidas da crise de negligência e agora das malditas politicas cooperativas, pelo menos podia retirar‑se como uma espécie de vencedor.

‑ Que Deus te abençoe, rapaz ‑ disse baixinho, enquanto Zack prendia o aparelho no lugar. - Que Deus te abençoe.

‑ Bem. Stacy ‑ dizia Zack ‑, um,já está. Agora, mexe os dedos dos pés como eu te mostrei. óptimo. Agora os das mãos. Muito bem. Já falta pouco.


Recuou alguns passos e desviou a atenção da armação metálica para os traços finos e o rosto calmo da rapariga quase mulher. Biologia; química orgânica; anatomia e psicologia; quadros e mais quadros; noites e fins‑de‑semana intermináveis por estar de serviço ou ter sido chamado; inúmeras refeições de comida de refeitório ou sobras indetermináveis em recipientes de cartão; inúmeras horas na sala de operações e nas outras alas; vários dias, semanas ou mesmo meses a duvidar de si próprio: em momentos como este, as opções que tomara na vida e o preço que tivera de pagar faziam muito sentido.

E quando tudo terminasse, quando a rapariga que gostava de andar a cavalo se afastasse do hospital e da fracção de segundo que a podia paralisar para sempre ele pegaria nesse momento e guardá-lo-ia na mente como justificação para todos os anos e toda a angústia.

‑ Pronto, Stacy - disse ternamente enquanto apertava o último dos parafusos. ‑ Já está. Estás a agir perfeitamente. Todos agimos perfeitamente.

Com a operação seguinte marcada, agora com uma hora de atraso, a SO 2 ficou vaga assim que foi colocado no lugar o último parafuso e verificada a posição correcta do halo. Zack acompanhou Stacy Milís ao quarto da ala oeste onde durante dias ficaria sob observação para o caso de surgir alguma inflamação ou compressão da medula espinal.

‑ Bem, só tens de ter calma, Stacy ‑ disse. ‑ Vou falar com os teus pais e a seguir eles virão ver‑te. Voltarei a ver‑te no final do dia. Usar este aparelho não será o teu maior divertimento mas, como já disse, não será para sempre.

‑ Doutor Zack ‑ chamou a rapariga, quando ele ia a sair. - Na sala de operações eu disse que não estava com medo. Bem, agora que já tudo terminou, posso dizer‑lhe que estava e bastante. Só não queria parecer um bebé.

Zack regressou para junto da cabeceira e sorriu.

‑ Nesse caso ‑ disse ‑, tenho uma coisa para te dizer... uma coisa que nunca disse a nenhum doente. ‑ Inclinou‑se sobre a cama e segredou: ‑ Estou sempre um pouco nervoso quando opero.

‑ Está? A sério?

‑ É verdade. Acho que ajuda a minha concentração a não esquecer que é sempre possível que alguma coisa corra mal. Lá, eu disse‑o e... ei, doutora Milís, já me sinto melhor!

‑ Você é mesmo tolo, sabia?

‑ Espero que sim ‑ respondeu.

Enquanto saía do quarto da rapariga, Zack viu Maureen Banas aproximar‑se pelo corredor. Calculou que ela tinha quarenta e muitos anos ou cinquenta e poucos, com cabelos grisalhos curtos, que pareciam cortados por um amador. Embora tivesse um aspecto autoritário, a tensão desenhava‑se‑lhe no rosto, e a falta de cuidado com os cinco a sete quilos de peso a mais faziam prever uma vida que, provavelmente, não seria muito fácil.

‑ Parabéns, doutor Iverson, e obrigada ‑ declarou ela, com uma falta de emoção quase clínica. ‑ A Stacy é uma criança muito especial para muita gente. Temos todos uma grande dívida para consigo, pelo que fez.

Nesse caso, apeteceu‑lhe dizer, fále‑me do prego que ajudou a pregar no caixão do Guy Beaulieu.

‑Ouça... ‑ A resposta nada tinha a ver com o pensamento anterior. ‑ Vê‑la mover os braços, as pernas e os dedos é o


suficiente para me ajudar a ultrapassar seis meses dos habituais pesadelos neurocirúrgicos. Além disso, devia agradecer antes ao Wilton Marshfield. Apenas fui o técnico.

‑ Que disparate. Sei que ele não detectou as fracturas. Correr em defesa dele é algo muito simpático da sua parte, em especial depois da discussão que tiveram a semana passada. O Wilton é um velho amoroso, na maior parte das vezes, mas deixa escapar muita coisa.

Deixa escapar muita coisa. A abertura, embora ligeira, estava ali.

Zack olhou para a enfermeira. O corredor estava silencioso. Talvez houvesse um momento e um lugar mais apropriado; porém, um dia depois do funeral de Guy e apenas algumas horas após ter lido o seu diário, o sentimento pelo homem era demasiado vivo para Zack deixar fugir a oportunidade.

‑ Muito parecido com o caso do Guy Beaulieu, nesse aspecto ‑ disse. ‑ Não acha?

Maureen Banas olhou para ele, intrigada.

‑ Desculpe?

‑ Pedia a sua opinião sobre o Guy Beaulíeu. Como sabe, eu estava com ele quando faleceu.

‑ Claro que sei. ‑ A expressão de estranheza não desapareceu. ‑ Pensei muito no doutor Beaulieu. Morrer como ele morreu foi... muito trágico. - Desviou o olhar e, pelo canto do olho, olhou para o quarto de Stacy e prosseguiu. - Acho que é melhor ir ver a minha sobrinha e regressar à sala das urgências. Mais uma vez, obrigada, doutor.

‑ Mistress Banas, espere, por favor ‑ pediu Zack.

A mulher parou, de costas para ele e postura rígida.

‑ Por favor? ‑ voltou a pedir.

lentamente, ficou de frente para ele, com os braços cruzados e tensos junto ao peito.

‑ Sim?

‑ Mistress Banas, eu... li a carta que escreveu sobre o Guy.

As poucas cores que restavam desapareceram do rosto da enfermeira.

‑ O seu irmão não tinha o direito de andar a mostrá‑la por aí ‑ afirmou.

‑ Porquê?

A mulher olhou em redor, inquieta.

‑ Doutor Iverson, acho melhor ir‑me embora.

‑ Mistress Banas, há um minuto atrás disse que tinha uma grande dívida para comigo pelo que fiz pela Stacy. Bem, não costumo chamar a atenção para coisas deste tipo, mas preciso de saber informações sobre o Guy; que tipo de pessoa foi nestes dois últimos anos; o que foi que ele fez para a levar a escrever aquelas acusações. Por favor. É muito importante para mim... e para a família dele.

A reacção de Maureen Banas foi muito diferente da fúria ou da defesa que Zack tinha previsto. Começou a tremer e quase desatou a chorar.

‑Eu... por favor, não quero falar disso. O seu irmão disse que falaria comigo antes de mostrar aquela carta a alguém. Não tinha o direito de mostrá‑la a si.

‑ Olhe ‑ disse Zack. ‑ Não quis preocupá‑la. Estou apenas a tentar ir ao fundo da questão, a tentar saber a verdade.

Foi preciso respirar muitas vezes até a enfermeira voltar a compor‑se.


‑ Doutor Iverson, tenho três filhos, um deles com um certo atraso... e um marido que há dez anos não envia um centavo de ajuda. Lamento ter escrito aquela carta, mas... tive de o fazer. Tive mesmo. Agora, deve deixar as coisas como estão. Por mim e pela minha família, peço‑lhe que deixe as coisas como estão.

- Não posso, Mistress Banas... Maureen, não quero causar problemas nem a si nem a ninguém, mas tenho de saber se o que está naquela carta sobre o Guy é verdade... Por favor.

A mulher não respondeu.

‑ O que aconteceu? - perguntou. ‑ Alguém a obrigou a escrevê‑la? Alguém ameaçou despedi‑la?

A enfermeira mordeu o lábio inferior. Os olhos encheram‑Se de lágrimas. Nervosa, olhou em redor. Ao fundo do corredor, aproximavam‑se duas enfermeiras.

‑ Venha comigo - pediu em voz baixa.

Havia uma pequena zona de cadeiras no extremo do corredor ‑ um sofá de estilo colonial e duas cadeiras a condizer dispostas por baixo de uma ampla janela virada para sudoeste, em direcção às montanhas. Maureen Banas ocupou uma das cadeiras e indicou a Zack o extremo do sofá mais próximo dela.

‑ Doutor iverson, o que disse da minha família é verdade ‑ começou num sussurro rouco. ‑ Se contar a alguém esta nossa

conversa e eu perder o emprego, terá magoado algumas pessoas que não merecem ser magoadas.

‑ Dou‑lhe a minha palavra.

‑ Tenho... medo de fazer isto.

‑ Por favor...

‑ No início do Verão, tive uma discussão com o doutor Beaulieu na sala das urgências. Para começar, nunca nos demos muito bem, mas penso que nos respeitávamos minimamente. O motivo da discussão não tem qualquer relevância. Na verdade, o incidente não foi nada de importante. Mas houve algumas testemunhas.

"Cerca de uma semana mais tarde, colocaram um sobrescrito debaixo da porta da minha casa. Dentro dele estavam dez notas de cem dólares, uma cópia da carta que viu e instruções de que, depois de a copiar com a minha própria caligrafia e a enviar a Mister Iverson, eu receberia um segundo pagamento igual.

‑ Não tem nenhuma pista sobre quem a escreveu?

Mais uma vez, a enfermeira pareceu prestes a desatar a chorar.

‑ Nenhuma.

‑ A carta dizia o que aconteceria se recusasse?

‑ Dizia que surgiriam problemas na minha vida e que podia contar com o despedimento, doutor iverson. Sei que o que fiz foi terrível, mas... passei por tantas dificuldades com os meus filhos, e as malditas contas não paravam de aparecer, que...

‑ Por favor, Maureen. Não tem de explicar nada ‑ disse ZaCk. ‑ Compreendo que fez o que tinha de fazer. Ainda tem essa carta?

A enfermeira abanou a cabeça.

‑Tive... medo de a guardar.

‑ Não tem a menor ideia de quem a mandou? Acha que foi o meu irmão? - Zack sentiu-se mal com a ideia

‑Eu... não penso que tenha sido ele - respondeu


‑ Porque diz isso?

‑ Bem, quem quer que me tenha escrito acrescentou no fim que, se o Frank Iverson viesse a saber que a carta não tinha partido de mim, seria despedido tão depressa quanto eu

Começou a chorar

‑ Percebe agora a razão por que não pode contar isto a ninguém?

‑ Sim, Maureen, percebo. Contar‑me o que acabou de contar foi um acto muito corajoso. Prometo‑lhe que guardarei o seu segredo.

‑ Muito obrigada.

Limpou os olhos à manga do uniforme e percorreu apressada o corredor.

Sentindo mais tristeza do que fúria para com a mulher, Zack poisou um pé sobre uma das cadeiras e olhou para o Presidential Range.

Montanhismo... alpinismo... campismo... desafios únicos no consultório e na sala de operações... A planeada vida que o trouxera de volta a Sterling parecia subitamente muito distante e ingénua.

Tudo indicava que Guy tinha razão desde o principio. Alguém da Ultramed estava decidido a obrigá‑lo a reformar‑se... e da forma mais feia. Zack agradeceu o facto de esse alguém não ser Frank mas, afinal, que importância é que isso tinha? Pelo menos em Sterling, Frank era a Ultramed. E quando chegasse a hora da verdade, era difícil imaginá‑lo a lutar contra a companhia.

A situação era incrível e muito diferente da do doente que precisa de ajuda e do médico treinado e apto a dá‑la.

Contudo, fosse bom ou mau, Zack reconheceu que tinha vindo para ficar. Tinha escolhido aquela cidade e aquele hospital. E se agora tinha de lutar contra a Ultramed para justificar essa decisão, então haveria luta.

Tudo o que precisava para completar o círculo, para se colocar de uma vez por todas no lugar de Guy Beaulieu, era de provas ‑ se não fossem de Maureen Banas, então talvez do próprio sistema da Ultramed.

Se Guy tinha razão, se a política e o clima criado pela corporação eram tão implacáveis e se preocupavam apenas com o proveito próprio, se se criavam compromissos e se encurtavam caminhos em nome dos lucros, então existia algures a tragédia clínica que uma filosofia desse tipo inevitavelmente causa. Existia algures o foco emocional que transformava as possibilidades e preocupações abstractas em algo real.

E se tal tragédia existia, jurou Zack, mais cedo ou mais tarde ele acabaria por descobrir.

 

Da sua posição no posto de enfermagem da Ala Oeste 2, Donald Norman estendeu o gráfico clínico de Annie Doucefle sobre o colo e olhou por cima dele para uma jovem enfermeira chamada Doreen Lavalley. Estava nas pontas dos pés sobre um pequeno banco, toda esticada, a procurar um saco de solução intravenosa. A saia do uniforme ia a meio da coxa e subia cada vez mais.


Doreen era a mulher mais sensual e desejável do hospital, pelo menos para o director do corpo clínico do Utramed‑Davis. Há meses que conversava com ela sobre assuntos triviais, dava‑lhe palmadas amigáveis no ombro, colocava‑lhe um braço à volta da cintura e improvisava‑lhe sessões de ensino.

Desde a sua chegada ao hospital quatro anos antes, Norman tinha feito tudo para conservar imaculada a sua reputação e por mostrar‑se como o perfeito e responsável homem de família e servidor comunitário. As autoridades da Ultramed premiavam esse tipo de comportamento com o mesmo vigor com que puniam acções que originassem uma publicidade negativa ao seu estabelecimento.

Todavia, após quatro anos consecutivos de prémios por mérito, ele acreditava que a companhia toleraria algumas escorregadelas. E com a mulher a engordar e cada vez mais envolvida nos problemas escolares e menos interessada na relação fisica deles, Doreen Lavalley transformara‑se num risco que valia a pena correr.

Além do mais, pensou Norman, dizia‑se que Frank Iverson tinha feito o mesmo com metade das mulheres de aspecto decente do hospital, sendo eleito membro do Círculo Dourado e recebido por duas vezes o mais elevado prémio de administração que a Ultramed oferecia.

Quando a saia estava prestes a atingir a base das cuecas, Doreen localizou a solução intravenosa correcta e desceu do banco.

Donald Norman amaldiçoou esse momento.

‑ Bom dia, Doreen ‑ cumprimentou, escondendo o pequeno volume que se materializara por baixo do gráfico de Annie Douceife. ‑ Como estás?

‑ Olá, doutor Norman.

‑ Eh! Já te disse ‑ segredou, com uma piscadela de cumplicidade ‑, quando não houver ninguém perto de nós, podes tratar‑me por Don. Escuta, se concordares, gostava que me acompanhasses na ronda. Mister Rolfe tem algumas coisas interessantes no peito e aquela... refilona de Mistress Doucette ainda deve ter um sopro.

A enfermeira olhou para ele.

‑ Bem, estou um pouco atrasada no meu trabalho, e...

‑ Oh, vamos lá ‑ interrompeu ele. Só tenho esses dois neste andar. Não deve demorar muito.

‑ Eu... bom, está bem. Desde que sejam só esses dois. Doutor Norman, a Annie é uma senhora simpática. Realmente e. Dê‑lhe uma oportunidade.

‑ É Don e não doutor Norman, lembras‑te? ‑ perguntou. ‑      E, quanto á Annie Doucette, pode ser uma velha simpática para ti, mas para mim tem sido uma refilona. ‑ Verificou o cartão da doente. ‑ Além disso ‑ acrescentou ‑. para todos os efeitos, nada disso interessa, pois vai sair daqui.

‑ Vai mandá‑la para casa? ‑ perguntou Doreen, incrédula.

Norman abanou a cabeça.

‑ Para casa, não ‑ respondeu. ‑ Para a Casa de Saúde de Sterling, desde que eles consigam arranjar uma cama. Não te esqueças que, segundo o sistema do Grupo de Diagnóstico Relacionado... sabes, o GDR... a Segurança Social paga pelo diagnóstico e não pela duração da estada no hospital. A nossa função é fazer com que os doentes saiam o mais rapidamente possível.


O que Norman não mencionou, apesar de nesse momento lhe estarem certamente presentes no pensamento, foram os incentivos da Ultramed para se dar alta aos doentes antes de terminado o período de GDR, e uma oferta ainda maior pela transferência para um estabelecimento que pertencesse à leeward.

‑ Não acredito que a Annie goste da ideia ‑ afirmou a enfermeira. ‑ Ela é muito independente.

‑ Assim sendo ‑ disse Norman, prendendo o gráfico dela debaixo do braço e compondo a gravata ‑, teremos de discutir o assunto com ela, não é? Traz o teu livro de instruções para o caso de ser preciso. A propósito ‑ acrescentou, enquanto caminhavam ‑, vou falar da hepatite na próxima quinta‑feira à noite. Espero que apareças.

‑ Na verdade, eu...

‑ Julgo que a Flo Bergman, a directora de enfermagem. virá de Bôston. Gostaria que ela te conhecesse. Com a directora de enfermagem da Ultramed e o director do corpo clínico do Davis ao teu lado, sabe‑se lá que oportunidades poderão surgir parati...

 

Annie Doucette desinteressou‑se do programa de adivinhas que tentava ver, ajeitou‑se na almofada e olhou para o tecto.

As dores no peito, pouco mais do que pontadas durante todo o dia anterior, começaram a intensificar‑se e, pela primeira vez desde a horrível noite em que dera entrada no hospital, sentiu‑se assustada. lembrava‑se vagamente daquela noite, mas não o suficiente para apagar a agonia e a humilhação que sentira, para não falar na preocupação que causara a Cinnie Iverson, ao juiz e à família.

Nunca devia ter aceite o convite para jantar, disse para consigo. Nunca. Após vinte e muitos anos a fazer orgulhosamente e bem o seu trabalho, a ser a estaca que mantinha erguida a casa dos Iverson, tinha‑se transformado num fardo ‑ numa imposição e numa fonte de preocupações para todos.

Se pudesse, teria falecido como fizera o marido, de uma forma rápida e indolor, enquanto dormia.

Mastigou dois Rolaids de um pacote que o filho lhe trouxera e tentou concentrar‑se nas camisolas para os netos e na colcha oriental para o bazar da igreja ‑ projectos inacabados, que estavam em casa à sua espera.

Só precisava de mais alguns dias ‑ talvez uma semana no hospital e tudo ficaria bem. Ainda não se tinha deixado vencer pelas dores nem pelos anos e ainda não seria desta vez. Fosse como fosse, os ruidos no peito talvez não passassem de má digestão.

Annie fechou os olhos, enquanto a pouco e pouco o desconforto a fazia adormecer suavemente... Uma semana... Era tudo o que precisava... Uma semana para recuperar as forças... Depois, tudo ficaria bem... tudo voltaria ao normal... Era tão bom dormir uma soneca... Tão bom adormecer.. tão bom...

‑ Então, Mistress Doucette, como estamos esta manhã? perguntou de rompante Donald Norman.

Abismada, Annie sentiu outra pontada no peito, ligeiramente mais intensa.

‑ Estamos melhor, doutor Norman ‑ respondeu Annie, abrindo os olhos só depois de se terem dissipado os últimos vapores de sono. ‑ Oh, olá, Doreen, querida.

‑Olá, Annie.

‑ E qual é o problema? ‑ perguntou Norman.


Annie pensou se devia ou não repetir o que já tinha relatado às enfermeiras sobre as dores. De qualquer modo, Donald Norman nunca prestava muita atenção às queixas dela.

‑ Sinto algumas dores ‑ acabou por dizer.

Norman folheou o gráfico dela.

‑ Olha, Doreen. Aqui está a descrição que fiz desse sopro. Ei‑la. Uma sístole de segundo grau. Vamos auscultar e ver se se alterou.

Introduziu o estetoscópio na camisa de noite de Annie, auscultou‑a durante uns instantes e depois, com um braço em redor da cintura da enfermeira, conduziu‑a até à cabeceira da cama e deu‑lhe a vez.

‑ Estás a ouvir?

A jovem olhou incomodada para Annie e concordou com a cabeça.

‑ Doutor Norman ‑ disse ‑, a Annie queixa‑se de dores intermitentes desde ontem de manhã.

‑ Claro que se queixa ‑ afirmou Norman, como se os dois estivessem sozinhos no quarto. ‑ Aposto uma fortuna em donuts como começaram assim que falei em dar‑lhe alta do hospital. É o que acontece sempre. As pessoas ficam ansiosas. Mandou fazer um electrocardiograma?

‑ Está ali à frente do gráfico.

‑ óptimo ‑ disse. ‑ Bom trabalho. ‑ Examinou o traçado. ‑ Bem, não apresenta nada de alarmante. Apenas que a mesma onda T muda nas linhas anteriores. Aqui. Vês? Exactamente aqui. Explicarei como diferem de outras mudanças de ondas T, quando terminarmos estes dois doentes. ‑ Voltou‑se de novo para Annie. ‑ Assim, se tudo o resto está bem, penso que devemos começar a planear a sua alta.

‑ Ainda não me sinto suficientemente bem para sair, doutor Norman.

‑ Eu sei, querida. Eu sei. ‑ Norman pegou na mão dela e afagou‑a, mas Annie retirou‑a. ‑ É natural que esteja nervosa com a ideia. É por isso que tratei de...

‑ Desejo ficar no hospital pelo menos mais uma semana - declarou. ‑ Então, estarei em condições de ir para casa.

‑ Mistress Doucette, não me deixou acabar. Estava a dizer‑lhe que estou a tentar arranjar uma cama para si na Casa

de... bom, no estabelecimento de convalescença de Sterling. Duas semanas lá e estará em condições de ir para casa.

‑ Não irei ‑ disse, categórica, sentando‑se na cama para enfrentar o homem. ‑ Não vai mandar‑me para nenhuma casa de saúde. Ficarei aqui mais uma semana e depois irei para a minha própria casa.

‑           Temo que isso não seja possível, Mistress Doucette.

‑           Bem ‑ disse ela ‑, falarei com Mister Frank Iverson e logo veremos o que é ou não possível.

‑ Faça o que quiser, Mistress Doucette. Mas não é o Frank Iverson quem cuida de si. Sou eu. E digo‑lhe que a sua hospitalização está prestes a terminar e não poderá ficar aqui mais uma semana. É essa a regra. Na verdade, é para manter essas outras regras que o Frank Iverson é pago. Agora, por favor, acalme‑se e tente compreender que o que estou a fazer é o melhor para si.

Antes de poder responder, Annie sentiu outra pontada sob o esterno. Por baixo dos lençóis, cerrou os punhos.


‑           Sabe, você não é muito bom médico ‑ acabou por conseguir dizer. ‑ Não só não sabe cuidar de si, como também não sabe cuidar dos seus doentes.

Donald Norman olhou para Doreen Lavalley, com o rosto corado de fúria e de vergonha. A velha era uma maldita refilona, sem qualquer sombra de dúvida. Não só estava a desperdiçar os poucos pontos extras a seu favor, como também estava a fazê‑lo passar por estúpido diante de Doreen.

‑           Mistress Doucette ‑ disse duramente ‑, falaremos disto mais tarde. Entretanto, deite‑se e procure descansar. Doreen, vem comigo, por favor.

Deu meia volta e saiu do quarto. A enfermeira olhou para Annie e, impotentemente, encolheu os ombros.

‑ Voltarei um pouco mais tarde ‑ sossegou‑a.

‑           Quero que ela tome Valium ‑ ordenou Norman, quando já estavam fora do alcance. ‑ Não, pensando melhor, não. Dê‑lhe antes Haldol, um miligrama e meio, por via oral, de oito em oito horas. Dê‑lhe a primeira dose imediatamente.

Doreen Lavally hesitou.

Norman sorriu e deu‑lhe uma palmadinha no ombro.

‑ Ei, Doreen, não te preocupes ‑ disse. ‑ Isto é mera rotina. Ninguém quer ir para uma casa de saúde, mas algumas pessoas têm de ir. E, ouve bem, não cheguei a chefe deste sistema por não cuidar dos meus doentes. Acima de tudo, preocupo‑me de mais com eles. Acredita que é o melhor. O Haldol irá acalmá‑la e, logo à noite, será mil vezes mais fácil conversar com ela. Espera e verás. Está bem?... Agora, quanto à minha palestra na próxima quinta‑feira. O que dizes de nos...


 

Fleet, o monoplano de 1938 cortou o ar quente do meio-dia como se de uma flecha se tratasse, sobrevoando a densa copa florestal e atravessando depois o vasto campo de erva. Ia e voltava como um ioiô, uma e outra vez rodando em torno do eixo longitudinal, com o sol a reflectir na tinta carmesim das asas, polidas à mão. Na extremidade oposta do prado, subiu, atravessando uma nuvem solitária do céu perfeitamente limpo.

Do ponto onde se encontrava, sobre uma enorme pedra, Zachary olhava atentamente enquanto os dedos, através de movimentos rápidos da alavanca no topo do telecomando, coreografavam o voo.

Uma perda de altura, um parafuso, uma subida, uma nova passagem sobre o campo; Zack construíra o avião quando ainda era estudante de liceu e, embora por vezes tivesse passado mais de um ano sem ter a oportunidade de o fazer voar, manteve o motor e o polimento em perfeito estado.

Com uma última e larga inclinação lateral, colocou o modelo contra o vento e fê‑lo aterrar suavemente na erva. Como sempre, o avião era fascinante de se ver e, nesse dia, com um pouco de sorte, seria mais do que um passatempo. Nesse dia, seria uma ferramenta que o ajudaria a romper o silêncio tortuoso de um garoto.

‑ Ei, As, foi um voo magnífico.

Suzanne, de calções brancos e T‑shirt. Darmouth, encontrava‑se numa pequena elevação e parecia ter acabado de tomar banhos de sol. Trazia um cobertor dobrado num dos braços e Um cesto de vime pendurado no outro.

‑ Sabes ‑ disse, olhando para ela ‑, há cerca de vinte minutos atrás, comecei a pressentir que talvez aparecesses.

‑ Temos tempo para almoçar? ‑ perguntou, descendo a encosta.

Zack olhou para o relógio.

‑ Cerca de quarenta e cinco minutos. Estou feliz por aqui estares.

Suzanne pôs‑se nas pontas dos pés e beijou‑o levemente na boca.

‑ Eu também ‑ disse. ‑ Posso tirar a comida, ou o Cheapdog está escondido por aí?

‑ Não. O cara de esfregona e ali o Fleet são inimigos confessos. Uma espécie de parentes rivais. Ele está em casa a cavar o quintal.

Ela estendeu o cobertor e espalhou pratos de galinha frita, peixe fumado e salada. Em seguida, tirou um pequeno rádio portátil, pousou‑o sobre a erva e rodou o botão até sintonizar a estação WEVO. O anunciante agradecia aos convidados por terem participado no Midday Roundtable e convidava os ouvintes a continuarem sintonizados, pois ia haver uma edição especial do Music of the Masters.

‑ Pelo modo como me tenho comportado contigo, deves pensar que sou um pouco louca ‑ disse ela, enquanto servia limonada. ‑ Quis pedir‑te desculpa.

Zack encolheu os ombros.

‑ Não é preciso ‑ disse. ‑ Tens tido algumas coisas para tratar muito mais importantes do que eu.


‑ Talvez. Seja como for, tenho agido como uma idiota e peço‑te desculpa.

Ele estendeu o braço e afagou‑lhe a face com as costas da mão.

‑ É justo ‑ afirmou. ‑ Se é disso que precisas, então aceito o pedido de desculpas. Pronto, sentes‑te melhor?

‑ Zack, eu... quero explicar‑te.

‑ Ei, não preciso de nenhuma...

‑ Não, eu quero. ‑ Olhou para as mãos. ‑ Pelo menos. acho que quero.

Ela passara grande parte da noite a conversar com Helene e a tentar libertar‑se do passado.

‑ Nada mais importa do que a verdade ‑ dissera‑lhe a amiga. ‑ Nada mais, senão o que realmente sentes. Exactamente aqui, no teu intimo. Eu saio como saio e encontro‑me com homens como faço, porque sei honestamente que bem no

fundo do coração detesto estar sozinha. Caso contrário, ficaria em casa ou juntar‑me‑ia a um qualquer grupo de bordadeiras. Acredita que o faria. Nesse aspecto, não tens de ser igual a mim ou a qualquer outra pessoa, mas apenas tu, Suze. Mas, e é um grande mas, não podes continuar a lutar contra os teus sentimentos. Não podes lutar contra quem és. Se julgas que gostas dele, diz‑lhe quem és e onde estiveste. Se ele conseguir aceitar, óptimo. Se não conseguir, o problema é dele.

Durante a conversa, tudo aquilo fazia muito sentido. Agora, Suzanne já não tinha tanta certeza. Para se ter uma vida segura, havia muito mais para dizer.

O prado, adjacente aos montes baixos do Sudoeste da cidade, resplandecia verdejante e dourado sob o seco sol da tarde. Comeram em silêncio durante algum tempo, ouvindo‑se apenas a profunda e cultivada voz do anunciante da wEvo, que exaltava as virtudes de um compositor inglês cujo nome Zack não conseguiu perceber.

‑ Zack ‑ disse Suzanne, subitamente ‑, a primeira vez que fiz amor em mais de três anos foi naquela noite.

‑ Bom, não estás nada enferrujada ‑ respondeu. ‑ Também penso que, sejam quais forem os motivos desses anos de celibato, não foi por falta de ofertas.

Ela sorriu entristecida.

‑ Tu és um doce. Na verdade, não houve assim tantas. Não consegui confiar o suficiente em nenhum homem, nem mesmo para o incentivar.

‑ Se estás a tentar fazer com que me sinta especial, estás a consegui‑lo na perfeição.

‑ Tu és especial.. Zack, o meu marido, o meu ex‑marido, conseguiu afectar profundamente a minha vida e depois abandonou‑me. As cicatrizes que se formaram parecem não querer sarar. Não o culpo só a ele pelo sucedido. Podia ter batido o pé quando percebi o que se estava a passar. Podia tê‑lo deixado, mas fiquei. Disse sempre para comigo que foi por causa da Jen mas, ao olhar para trás, percebo que simplesmente não consegui admitir a mim própria que estava cega e que tinha feito um juizo errado do homem com quem casei. E não consegui aceitar que ele não se preocupasse comigo o suficiente para mudar.

‑ Tu eras jovem.


‑ Vinte e três anos, se se pode chamar jovem. E, nesse aspecto, uns vinte e três anos não muito experientes. O Paul era médico. Brilhante, bonito e também encantador. Já era professor assistente aos trinta e cinco anos. Todas as mulheres da universidade tinham uma paixão por ele. Infelizmente, o que elas não sabiam, nem eu sabia, era como ele era doente por dentro. Era um sociopata, Zachary. Um mulherengo, um viciado em drogas e um fanfarrão, um tremendo fanfarrão mentiroso. Ele usou‑me. Usou‑me de todas as maneiras possíveis e imaginárias.

Procurou nos olhos de Zack sinais de julgamento ou reacção súbita, mas apenas viu tristeza.

- Se não quiseres, não tens de me contar mais nada disso - declarou, pegando‑lhe na mão.

- Não, estou bem. Muito melhor do que julgava estar. É realmente muito fácil conversar contigo.

"Durante muitos anos ‑ continuou ‑, o Paul roubou receitas do hospital, passou‑as ás mulheres dele, aos amigos íntimos ou a pessoas que nem sequer existiam, e assinou o meu nome. Fazia a minha assinatura ainda melhor do que eu. Foi a mais de uma dúzia de casas de venda por atacado e visitou praticamente todas as farmácias do estado.

‑ Jesus...

Suzanne desviou o olhar para as montanhas a sul e começou a esfregar os olhos.

‑ Estás bem? ‑ perguntou Zack.

- O quê?... Sim, estou bem.

Abriu a carteira e procurou os óculos de sol.

‑Onde é que eu ia?

‑ Estavas a falar das receitas. Escuta, se quiseres mudar de assunto, é perfeitamente...

‑ Não. não. É bom poder falar disso. - Meteu uma mão por baixo dos óculos e voltou a esfregar os olhos. ‑ Além disso não há muito mais para contar. De algum modo, o Paul descobriu que os tipos da OrA andavam atrás de mim porque, uma semana antes de aparecerem á nossa porta, ele esvaziou a nossa conta bancária, vendeu tudo o que tínhamos de valor e desapareceu. Não deixou um bilhete, não telefonou, nada. Nessa altura, a Jen tinha apenas dois anos. Cerca de um ano mais tarde, soube que estava a leccionar numa escola de Medicina, no México. Foi tambem visto numa conferência internacional em Milão. Mas, nessa altura, tudo o que queria era nunca mais voltar a ouvir falar dele.

- O que foi que te aconteceu?

‑ Como?

‑ Perguntei o que foi que te aconteceu. Suze, tens a certeza de que estás bem?

‑ O reflexo do sol incomoda‑te?

‑ Não. Porquê?

‑ Nada... nada. O que é que perguntaste?

‑ Suzanne, vamos deixar isso para outro dia...

‑Não! Onde é que eu ia?

Continuou a olhar para as montanhas. Os músculos do rosto tornaram‑se flácidos e inexpressivos. As mãos começaram a tremer.

Zack analisou‑a, incomodado. Olhou para o relógio. Barbara Nelrus e o filho deveriam chegar dentro de dez minutos.

‑ Suzanne?


Ela não respondeu.

‑ Escuta ‑ disse ele, desligando o rádio e voltando a guardá‑lo dentro do cesto de vime ‑, acho que já contaste o suficiente por um dia. ‑ Começou a guardar o resto da comida. ‑ Estou feliz por teres conseguido falar disso com...

‑ Sabes, por mais ridículo que pareça ‑ continuou Suzanne, fluidamente ‑, não tenho a certeza do que aconteceu exactamente a seguir...

Zack olhou para ela, intrigado. A tristeza tinha‑lhe desaparecido do rosto e da voz e estava mais animada que nunca. Lutou contra a vontade de voltar a perguntar‑lhe se estava bem.

- Num minuto, fui suspensa do hospital, visitei consultórios de advogados, lutei contra a Assistência a Menores e tentei defender‑me dos animais dos DEA, e no outro estava aqui em Sterling, a introduzir pacemakers.

Zack procurou nela algum sinal de distracção remanescente, mas não encontrou. Foi como se uma nuvem tivesse tapado o sol por breves instantes e depois, subitamente, o tivesse descoberto. Tentou esquecer a preocupação. Tal como dissera, ela parecia absolutamente bem.

- O Frank teve alguma responsabilidade nisso? ‑ conseguio perguntar.

‑ Acho que sim. Um dia telefonou‑me, no dia seguinte veio entrevistar‑me e julgo que, no outro a seguir, a pressão que caía de todos os lados sobre mim começou a desaparecer.

‑ Ainda bem para o Frank. ‑ Zack sentiu a tensão ceder. ‑ Ultimamente, não nos damos muito bem um com o outro. Acho que tenho de me esforçar um pouco mais.

‑           Não tenho a certeza absoluta se foi ele ou a Ultramed - disse ela ‑, mas alguém afastou os lobos das minhas costas.

‑           Que história horrível.

‑É, á excepção do fim.

‑           Considera essa parte como o início ‑ disse Zack.

‑           Espero que o facto de ter contado tudo isso te ajude a compreender porque tenho tido problemas em deixar que um homem volte a entrar na minha vida. E, por outro lado, porque me sinto obrigada a apoiar a Ultramed sempre que puder. Graças ao Paul, a lealdade passou para a frente de quase tudo da minha lista de qualidades importantes numa pessoa.

‑           Compreendo.

Ela beijou‑o... uma vez e depois outra. A última gota de preocupação desaparecera.

‑           Assim ‑ disse ela, ainda com o rosto dele nas mãos - tem paciência comigo, está bem?

‑           Só uma vez em mais de três anos, é?

‑Sim.

Ele guardou as últimas sobras do almoço e puxou‑a para si.

‑           Logo que tivermos um pouco de tempo, gostaria de ajudar‑te a melhorar essa média.

Ela roçou os lábios no pescoço dele.

‑           Nesse caso, não deixes de tentar. O meu horóscopo disse‑me para estar atenta a um estranho, alto e moreno, que fazia truques com moedas.

Zack passou lentamente os dedos pela parte de trás da coxa e pela barriga da perna dela.


‑           Obrigado pelo piquenique ‑ agradeceu ele.

‑           Obrigada pela sobremesa. E escuta, boa sorte com o rapaz, o Nelrus. Espero que isto resulte. Se hoje conseguires chegar a algum lado, acho que deves pensar em publicar a nossa técnica num jornal. Podemos intitular o artigo "Neurologia Pediátrica ao Ar Livre".

Levantou‑se.

Zack acompanhou‑a até ao carro e ficou a vê‑la, até desaparecer pela montanha abaixo. Depois regressou ao campo, a cantarolar distraído uma passagem da Fantasia on Greensleeves, de Ralph Vaughan Williams.

Toby Nelrus parecia um doente crónico. A pele estava pálida, com várias manchas pequenas de impetigo ao longo do nariz e nos cantos da boca. Estava magro como um órfão de guerra e caminhava com uma postura deprimida, com os olhos praticamente fixos no solo. Mas foi o olhar apático dos seus inexpressivos olhos cinzentos que mais preocupou Zack. Era um olhar de derrota total, que tantas vezes encontrara em doentes terminais: o olhar da morte.

A pedido de Zack, Barbara Nelrus abraçou o filho, prometeu regressar assim que terminasse de fazer as compras e conduziu montanha abaixo até à cidade. Se Toby ficou assustado com a partida dela, a sua expressão de indiferença escondeu‑o bem. Reparou quase imediatamente no Fleet e já tinha olhado para ele duas vezes, antes mesmo de ter começado a voar.

Zack reflectiu no que Brookings lhe dissera sobre a aterrorizada corrida da criança através do parque de estacionamento da clínica e percebeu que, pelo menos de momento, estava a progredir.

Um tumor, um problema de convulsões, uma anomalia vascular congénita e de desenvolvimento lento, uma reacção tóxica a algo que o rapaz estava a tomar sem ninguém saber ‑ Zack considerou todas as possibilidades contra o diagnóstico do psiquiatra e achou‑as todas prováveis. Chegou mesmo a dar uma pequena volta no bairro do rapaz, à procura de uma zona ou outro aspecto triste que pudesse estar a causar uma reacção química em Toby. Nada.

‑ Olá, garoto ‑ disse Zack, ajoelhando‑se na erva, a dois metros dele. ‑ Chamo‑me Zack. ‑ Havia curiosidade nos olhos do rapaz, mas nenhuma outra reacção. ‑ Sou médico, mas não vou examinar‑te nem fazer‑te análises e nem mesmo tocar‑te. Por favor, acredita nisso. Gostaria que aprendesses a saber que eu nunca te mentiria e que aquilo que digo é mesmo verdade, está bem? Vou repetir mais uma vez. Eu nunca te mentiria. Pedi á tua mãe para te trazer aqui, porque achei que seria mais fácil conhecermo‑nos fora do hospital.

Ao mencionar a palavra hospital, surgiu uma sombra de medo na expressão do rapaz.

‑ A tua mãe regressará assim que terminar de fazer as compras ‑ acrescentou Zack, apressadamente. ‑ Entretanto, podemos deitar‑nos por aí, explorar á volta ou até trepar àquele pequeno rochedo além. Este lugar chama‑se Meadows. Eu costumava brincar aqui quando era rapaz. ‑ Recordou‑se momentaneamente de Suzanne. ‑ Na verdade, ainda brinco ‑ acrescentou.

Os olhos de Toby concentraram‑se de novo no Fleet.


‑ Construí aquele avião há muito tempo ‑ explicou Zack. - É telecomandado. ‑ Levantou o comando para que o rapaz pudesse vê‑lo. - Ele faz loops, dá voltas e sobe em direcção às nuvens. Anda. Vai vê‑lo de perto.

Toby Nelrus continuou onde estava, mas indubitavelmente interessado.

‑ Vai. Não há problema. Vou ao carro buscar gasolina para o avião.

Só quando já estava junto à carrinha é que Zack olhou para trás. O rapaz estava ajoelhado ao lado do Fleet e, muito suavemente, passava os dedos sobre o verniz luzidio das asas.

 

Demasiado ansiosa para se manter afastada durante os quinze minutos previamente acordados, Barbara Nelrus desceu montanha abaixo, parou a uma determinada distância do prado e regressou silenciosamente a pé até à carrinha de Zack, um tanto na expectativa de encontrar o filho á sua espera, quase histérico. Pelo contrário, o que encontrou foi um bilhete preso no vidro de trás.

 

Mistress Nelrus,

Veja se quiser mas, por favor, tente não ser vista. O Toby ainda não disse uma palavra, mas está quase. Preciso de mais uma hora. Por favor, ligue para o meu consultório e peça á recepcionista para cuidar o melhor possível das minhas consultas. Falaremos mais tarde.

Z.        Iverson

 

Por trás de uma pequena elevação, ela conseguiu ouvir o ruído sonoro do motor do aeromodelo. Agachando‑se, conseguiu aproximar‑se. Perto do topo da pequena colina, deitou‑se sobre a erva alta e espreitou. Zachary Iverson estava sentado sozinho, de costas para ela. O filho não estava á vista.

Subitamente aterrorizada pelo facto de ter confiado num homem que pouco mais era do que uma voz ao telefone, começou a levantar‑se.

Então, com a mesma rapidez, voltou a deitar‑se.

Ali estava o rapaz, aninhado entre as pernas do médico, a partilhar a alavanca do telecomando.

‑           Isso mesmo, garoto ‑ ouviu Zack gritar, devido ao barulho. ‑ Mais um pouco, um pouquinho e... agora!

O avião, que tinha começado a rolar lentamente sobre a erva, avançou e levantou voo, subindo quase a pique em direcção á copa das árvores, no extremo oposto do prado.

‑ Isso mesmo. Já aprendeste. Agora, alivia a pressão. Alivia a pressão. Fantástico! Mantém‑no aí mesmo.

Agora bem acima das árvores, o modelo voou suavemente para sul e, devagar, começou a contornar o campo.

- Consegui! Consegui!

Foram precisos muitos segundos para Barbara Nelrus perceber que a voz excitada que acabara de ouvir era a do filho. Com um tremendo nó de emoção na garganta e lágrimas nos olhos, fez o percurso inverso e desceu a montanha.

 

Zack e Toby Nelrus deitaram‑se frente a frente sobre a erva aquecida, a alguns metros do Fleet, mastigando paus de cevada silvestre e vendo um falcão com cauda vermelha a fazer loops lá no alto, sem esforço, sob o sol quente do meio‑dia.


‑ Agora, quem é que achas que está a controlar o telecomando daquele modelo? ‑ perguntou Zack. ‑ Quem quer que seja, conseguiu construir um motor silencioso.

‑ Que parvoice ‑ disse Toby Nelrus.

‑ Claro que é. Qualquer pessoa com dois dedos de testa consegue dizer que aquilo é só um papagaio. Agora, se eu conseguisse ver o fio...

Uma vez quebrado o silêncio ‑ o medo e a falta de confiança ‑ as palavras do rapaz saíam com uma facilidade surpreendente e até mesmo com uma espontaneidade ocasional. Zack sentira‑se relutante em testar o progresso conseguido com perguntas específicas, mas agora que faltavam apenas alguns minutos para as duas horas passadas juntos, sentiu‑se suficientemente seguro para tentar.

‑           Sabes, garoto ‑ começou ‑, muita gente tem estado preocupada contigo nestes últimos meses.

‑Eu sei.

‑           E mesmo assim não falas com ninguém?

Tobby abanou a cabeça.

‑           Nem mesmo com os teus pais?

O rapaz olhou vagamente para a forma em crucifixo que planava lá no alto.

‑ Eles nunca me ajudam ‑ respondeu subitamente. - Grito por eles e peço‑lhes para impedirem o... homem de me magoar. Mas eles só aparecem quando já é tarde de mais. Nunca conseguem impedi‑lo.

‑ Que homem? ‑ perguntou Zack, sentindo de imediato repulsa e temendo a ideia de o rapaz estar a ser molestado. - Quem é que está a magoar‑te?

Toby virou a cara.

‑ Ei, garoto, desculpa. Não queria dizer nada que te aborrecesse ou assustasse.

Durante alguns momentos de ânsia, Zack temeu ter ido longe de mais e fechado a porta que, de uma forma tão cautelosa, tinha aberto.

- O homem da máscara ‑ disse Toby, sem se virar.

‑ Máscara?

O rapaz começou a ficar inquieto e encostou fortemente os joelhos aos ombros.

Zack decidiu que, por um dia, já tinha avançado o suficiente. Procurou uma moeda no bolso. Um bom truque de polegar e palma e tudo acabaria bem.

- corta‑a ‑ disse Toby, quase num murmurio. - E... e depois ela torna a crescer... depois, ele volta a cortar.

‑ Corta o quê, Toby?... Olha, sei que é difícil falar disso, mas tens de tentar.

Pensou aproximar‑se e pousar uma mão no ombro do rapaz, mas depois pensou melhor. Sentiu o coração bater apressado. Não pares agora, garoto. Não desistas de mim.

‑ A minha... pilinha. E os testículos, também.

‑ Queres dizer que ele te toca?

‑ Não, corta‑a. Ele promete que não vai magoar‑me. Promete que vai tratar do meu alto e depois corta‑a. E dói muito. Dói e eu grito, mas ele não pára. E eu grito pela minha mãe e pelo meu pai, mas eles nunca vem.

O rapaz começou a chorar, os ombros a tremerem convulsivamente a cada soluço.

De novo, Zack aproximou‑se para tocar nele mas, antes de o poder fazer, o miúdo saltou e abraçou‑se a ele.


‑ Por favor, Zack ‑ pediu, a chorar baixinho. ‑ Não o deixes magoar‑me mais.

Ele promete que vai tratar do meu alto... Subitamente, as palavras do rapaz ficaram gravadas.

- Toby - sussurrou Zack, ainda a abraçar fortemente o rapaz ‑, o alto a que te referes é a tua hérnia? Este ponto aqui onde foste operado?

O rapaz concordou com a cabeça, o corpo ainda desfeito em soluços.

- E o homem da máscara... É o médico? - Nova concordância com a cabeça.

Zack afastou‑o ligeiramente, mas continuou a abraçá‑lo pelos ombros.

‑ Toby, olha para mim. Acho que só tens tido pesadelos. Sonhos maus e horríveis, mas sonhos que normalmente desaparecem assim que vemos como realmente são. A operação foi perfeita. Tudo o que sobrou foi uma pequena cicatriz. O alto desapareceu para sempre.

‑ Não ‑ disse o rapaz, zangado. ‑ Não desapareceu. Volta a crescer. Tal como a minha pilinha e os meus testículos. Mas ele volta a cortá‑los outra vez e dói... cada vez mais.

Intimamente, Zack suspirou de alívio. O profundo distúrbio do rapaz resumia‑se a um pesadelo ‑ a expressão de medos enclausurados em redor de um procedimento efectuado há cerca de um ano. Fascinante, mas certamente não era difícil de compreender, nem era uma situação tão má quanto pensava. Pelo menos, Brookings teria algo para trabalhar.

- Não acreditas em mim, não é? ‑ perguntou Toby. - Não é um sonho. Ele corta‑os, eles voltam a crescer e então ele pega na Metzenhaums e volta a cortá‑los.

Zack sentiu um súbito arrepio violento.

- Ele pega em quê? ‑ Não conseguiu disfarçar a incredulidade na sua voz.

- A Metzenliaums. Ele pede‑a à enfermeira e espeta‑a em mim exactamente aqui e isso magoa‑me muito. Depois corta e corta.

‑ Toby, pensa bem ‑ pediu Zack, ansioso. ‑ Já ouviste mais alguém dizer essa palavra?

‑ Que palavra?

‑ Metzenhaums, Toby. No teu pesadelo, ouviste mais alguém além do médico a dizer essa palavra?

Toby Nelrus abanou a cabeça.

Zack soltou o rapaz e apoiou‑se nos braços. Algo estava errado. Algo estava muito errado. A tesoura Metzenhaums era vulgarmente utilizada em cirurgia, mas muito raramente, para não dizer nunca, antes de ser feita a incisão inicial na pele. Toby Nelrus teria de estar a dormir quando foi pedida. Anestesiado. De modo algum ele podia ter ouvido essa palavra e percebido sozinho o seu significado preciso. De modo algum.

Mas, de alguma maneira, ele ouvira.


 

Quando Zack terminou a ronda e se dirigiu ao consultório, a noite tinha caído sobre o vale. Para sudoeste, a silhueta das montanhas pareciam recortes em ébano contra o azul‑escuro do céu. Era uma noite calma e espantosa, perfeita para um passeio a pé junto ao lago Schroon, ou a cavalo até aos contrafortes para ver o nascer da Lua. Era uma noite para se celebrar a alegria de viver.

Todavia, para Zack a magia da noite perdera‑se na reflexão das lutas angustiantes de um cirurgião idoso e do apelo desesperado da enfermeira que o condenara; e preocupado com o que devia dizer aos pais de uma criança que estava a mergulhar cada vez mais fundo no inferno dos sonhos que não eram sonhos ‑ sonhos que cortavam, magoavam e mutilavam.

Quando atravessou o parque de estacionamento, Zack reparou no Porsche de Frank, estacionado no lugar que lhe era reservado. Manhãs antecipadas, noites prolongadas, fins‑de‑semana ‑ apesar de todos os defeitos e fracassos do passado, ele tornara‑se um demónio do trabalho.

Zack entendeu que, em breve, os dois teriam de conversar.

Havia coisas que Frank precisava de saber e compreender melhor: a Ultramed, Guy Beaulieu... e, especialmente agora, Toby Nelrus.

O estado do rapaz encontrava‑se claramente em espiral decrescente, e cada dia que passava era um aliado perdido na luta pela descoberta da verdade. Com a ajuda de Frank, o caminho para encontrar as respostas a tempo e horas seria consideravelmente mais curto.

Mas será que ele lhe daria ouvidos?

Ao longo dos anos, e em muitos aspectos, os dois tinham‑se afastado um do outro. O desacordo sobre Guy Beaulieu só servira para sublinhar as diferenças. No entanto, Zack não esquecera que eram irmãos, e que cada um deles tinha um papel significativo no Ultramed‑Davis e em Sterling.

Voltou a olhar para o Porsche. às sete horas dessa manhã, quando entrou de serviço, ele já ali estava. Agora, após mais de treze horas, Frank ainda estava a trabalhar. De que mais testemunhos precisava ele? O homem tinha‑se atracado à estrela do Ultramed‑Davis. Se houvesse alguma ameaça à integridade do hospital, ele daria ouvidos.

Pelo menos, Zack tinha a certeza disso. Mas também sabia que tudo o que possuía eram teorias ‑ impressões pessoais e algumas perguntas. O irmão era um homem da companhia. Se houvesse problemas no seu paraíso, seriam precisas mais do que suspeitas para se conseguir a sua ajuda... muito mais.

 

Barbara Nelrus e o marido esperavam num dos bancos de pedra que flanqueavam a entrada da Clínica dos Médicos e Cirurgiões. Bob Nelrus, bem parecido, impecavelmente vestido e de aspecto firme, tinha nitidamente vivido menos os problemas diários da doença de Toby do que a mulher. Cumprimentou Zack com um firme aperto de mão.

‑           Muito prazer em conhecê‑lo ‑ disse. ‑ A Barbara disse‑me que fez um verdadeiro progresso com o nosso filho. Isso é óptimo. É excelente. Utilizar o seu avião foi uma ideia brilhante.

‑           Obrigado, mas...


‑           Sabe, eu não sou profissional, mas desde o inicio que tento dizer à Barbara que tudo não passa de uma fase aborrecida e que, quando chegasse a hora do nosso filho ficar bom, ele ultrapassaria tudo. Tudo indica que os dois deram hoje um grande passo nesse sentido.

‑ Considere‑o como um passo de bebé ‑ disse Zack.

Apesar do ar pretensioso das palavras e dos modos de Bob Nelrus, bastou olhar para ele para Zack perceber que o homem estava a atirar às cegas. Como supervisor da fábrica, estava habituado a aceitar o fardo dos problemas dificeis e a resolvê‑los. A sua frágil negação requeria um tratamento delicado e uma percepção constante de que o estado de Toby não era menos desconcertante e assustador para Bob Nelrus do que a sua impotência para o encarar.

Enquanto entrava no elevador atrás do casal, Zack voltou a pensar no que deveria ou não dizer‑lhes. Nunca fora próprio de si esconder informações dos seus doentes ou, quando o doente estava em coma ou era jovem, dos respectivos familiares. Mas não se tratava de uma informação. Era uma mera conjectura.

E, mesmo quando testou a explicação em si próprio, pareceu‑lhe no mínimo fantasmagórico.

Mister e Mistress Nelrus, não sei como vos dizer isto, mas penso que o vosso filho não estava a dormir durante a operação à hérnia, no ano passado. Para o cirurgião e o anestesista, ele pareceu estar totalmente anestesiado. Contudo, de algum modo e até determinado ponto, ele "viu" a operação a partir do interior do seu corpo mas, segundo parece, também sentiu completamente a dor causada pela mesma.

Agora, de um modo perverso e distorcido, ele revive a operação em retrospectivas aterradoras, muito semelhantes às descritas pelos consumidores de LSD... Não, não faço a menor ideia como isso pôde acontecer.. Não, tudo quanto sei é que nunca foi comunicado um fenómeno desses com a anestesia que ele recebeu... Não, não tenho nenhuma prova real que confirme o que digo... Não, não sei o que pode possivelmente originar os ataques... Não, não faço a menor ideia... Não sei... Não sei... Não sei...

As suas suspeitas eram vagas, fantásticas e virtualmente sem provas. Revelá‑las aos pais do rapaz, quase de certeza iria precipitar uma acção prematura deles contra a Ultramed, o hospital e os médicos envolvidos na operação de Toby ‑ uma acção que Zack ainda não se encontrava em posição de poder apoiar e a qual podia muito bem conduzir ao disfarce da verdade... fosse esta qual fosse.

‑ Mister e Mistress Nelrus ‑ começou, assim que o casal se sentou diante da sua secretária ‑,lamento não ter muito para dizer nesta altura. O Toby não me contou muita coisa. Contudo, disse‑me o suficiente para suspeitar de que está a sofrer de reacções de medo muito profundo e que, enquanto ocorrem, ele torna‑se completamente incapaz de as distinguir da realidade. Por outras palavras, em poucos segundos apenas e aparentemente com um aviso insignificante, é transportado de onde se encontra para outra realidade... uma realidade muito distorcida e bastante aterradora.

‑ Está a dizer que ele enlouquece? ‑ perguntou Barbara Nelrus.


‑ Já o observaram ‑ respondeu Zack, ainda a apalpar o terreno. O que pensam?

- a insanidade é uma doença, não é? Um estado do ser. Como pode acender e apagar como uma lâmpada?

‑ E o que tem o hospital a ver com isso? ‑ acrescentou Bob Nelrus.

‑ Não sei ‑ disse Zack, imaginando quantas vezes mais teria de repetir aquela frase.

‑ Bem, qual é a sua opinião?

Zack entrelaçou os dedos, procurando ganhar mais alguns segundos para arrumar as ideias. Por mais que detestasse a decepção, este não era simplesmente o momento para manifestar a sua teoria.

‑ Presumo que ambos conhecem a epilepsia? ‑ começou. - Bom, a maior parte das pessoas considera a epilepsia como um distúrbio eléctrico do cérebro que causa ataques periódicos. Estes ataques, com os quais estamos muito familiarizados, são ataques motores, isto é, envolvem os músculos e as extremidades. Mas, supondo que a explosão eléctrica ocorre numa ou mais áreas cognitivas do cérebro, as áreas do pensamento, o que resultaria era ainda um ataque, mas seria um ataque sensório e não motor.

‑ Está a tentar dizer‑nos que o Toby sofre do petit mal ou epilepsia do lóbulo temporal? ‑ perguntou Barbara.‑ Li tudo o que consegui encontrar sobre ambas as doenças e, muito francamente, doutor Iverson, não penso que o problema do Toby se encaixe nalguma delas. Ele é agressivo como na epilepsia do lóbulo temporal, mas apenas por ficar completamente aterrorizado. E muito pouco do seu comportamento se assemelha às reacções de fuga isoladas de que li sobre o petit mal. E embora o electroicefalograma do sono não seja assim tão preciso em ambos os diagnósticos, o do Toby foi normal na única vez que o fez.

Zack sentiu corarem‑lhe as faces e ficou alerta contra quaisquer mentiras elaboradas. Barbara Nelrus estava demasiado informada e era demasiado inteligente. Estava cansada de receber evasivas de médicos e profissionais de saúde mental, e tinha estudado bem a lição.

- Não sei o que dizer, Mistress Nelrus ‑ afirmou ‑ excepto salientar que, se o caso do Toby fosse fácil de compreender e típico, alguém já o teria diagnosticado antes.

‑ E quanto ao hospital? ‑ voltou a perguntar Bob Nelrus. ‑ O rapaz não lhe disse nada que explicasse porque é que parece tão assustado?

‑ Nada específico ‑ mentiu Zack. ‑ Mas, uma vez que essa é a pista principal que possuímos, penso que é nessa direcção que a nossa investigação deve seguir.

Barbara Nelrus curvou‑se visivelmente.

‑ Doutor Iverson, tudo bem quanto às investigações, mas o senhor viu o Toby. Parece um pau. A pele começa a ficar infectada. Faz nódoas negras quase sem motivo. Fica com febre sem indícios de infecção. Ele está a morrer, doutor Iverson. Garanto‑lhe que o tempo está a esgotar‑se. O nosso filho está a morrer.

‑ Barbara, não digas isso! ‑ disse abruptamente Bob Nelrus.

O seu ímpeto tocou um ponto sensível.

- Não me digas o que devo ou não dizer ‑ gritou. ‑ Tu ficas na maldita fábrica até às sete da noite. Não o vês.


- Raios, Barbara, faço tudo o que posso. Tu é que não prestas atenção a mais nada senão ao Toby nestes últimos...

- Por favor - interrompeu Zack. ‑ Por favor. Sei que isto tem sido dífícil para ambos. Mas acusarem‑se um ao outro não ajuda ninguém, e muito menos o Toby.

O casal parou bruscamente, entreolhando‑se, envergonhados.

- Desculpe‑nos - pediu Barbara. ‑ Antigamente nunca discutíamos, nem mesmo em casa quando estávamos sozinhos. Mas isto afectou‑nos a todos... ‑ Desviou o olhar.

‑           Eu entendo, Mistress Nelrus. Só peço que ambos tentem fazer o máximo possível e que me dêem algum tempo para descansar um pouco e conversar com certas pessoas. Trabalhareio mais rápido que possa. Prometo‑vos. E conto voltar a ver-vos na próxima semana, à mesma hora e no mesmo sítio.

- E entretanto?

Zack encolheu os ombros.

 ‑ Entretanto, penso que não seja indicado qualquer tratamento específico. Em especial, por ainda não saber exactament o que se passa. Garanto‑vos que sou bastante responsável pelos meus doentes e sei perfeitamente que não temos todo o

tempo à nossa frente. Farei o meu melhor para chegar rapidamente ao fundo da questão.

Levantou‑se, esperando que a mudança atingisse um fim piedoso antes que Barbara Nelrus pudesse intrometer‑se nas incorrecções da sua explicação.

‑ Obrigado - agradeceu Bob, levantando‑se tal como Zack e apertando‑lhe a mão.

Zack acompanhou‑os até à porta exterior do consultório e voltou a prometer trabalhar o mais rapidamente possível.

‑ Doutor Iverson, posso fazer‑lhe só uma pergunta? - indagou Barbara Nelrus.

‑ Com certeza.

‑ Está a esconder‑nos alguma coisa?

Zack teve de se esforçar para continuar a olhar para a mulher. Era uma técnica na qual, ao contrário de Frank, nunca fora muito bom.

‑ Não, Mistress Nelrus - respondeu, categórico. - Não estou.

A mulher hesitou e, por instantes, pareceu decidida a desafiar a negação. Em seguida, estendeu a mão.

‑ Então, se é esse o caso, obrigada, doutor. Manter‑nos‑á informados, não é assim?

Tomou o braço do marido e afastou‑se com ele pelo escuro corredor fora.

Zack esperou até as portas do elevador se fecharem atrás deles. Doeu‑lhe ter mentido, ao lembrar‑se do poder da doença sobre a vida de famílias inteiras. Pelo olhar de despedida, também percebeu que Barbara Nelrus nunca mais lhe permitiria esconder‑se atrás de evasivas e meias verdades.

Voltaria a rever o registo de Toby Nelrus e depois contactaria a biblioteca dos Institutos Nacionais de Saúde em Bathesda, para uma pesquisa completa das reacções adversas à anestesia que ele recebera. Por último, teria uma reunião com Jack Pearl e Jason Mainwaring.


Para além desses passos, nada mais havia a fazer excepto outra sessão com o próprio Toby e depois a comunicação das suas suspeitas a Frank. Algo acontecera ao rapaz durante a sua hospitalização no Ultramed‑Davis ‑ algo devastador. Se nada mais desse resultado, Frank teria de perceber que era do interesse de todos que ele prosseguisse a investigação do assunto. Ele cooperaria, ou teria de enfrentar Barbara Nelrus e o respectivo advogado.

 

‑ Frank, não te mexas, querido, por favor. É tão bom. Quero continuar a sentir‑te, enquanto ainda estás dentro de mim. Só mais um pouco. Está bem?

A secretária de Frank, a loira, chamava‑se Annette Dolan. Tinha‑se mudado para Sterling com o filho e a mãe, e trabalhava como recepcionista do Restaurante Mountam Laurel quando Frank a vira pela primeira vez e lhe oferecera emprego. As habilitações dela para o lugar eram, pura e simplesmente, o facto de ficar melhor de camisola do que nenhuma outra mulher que ele jamais vira.

Era uma recepcionista medíocre e, como secretária, pior ainda, mas era simpática e educada com todos e provara ser um passatempo maravilhoso e nada exigente, em especial nas ocasiões em que ele conseguia satisfazer‑lhe a paixão pela cocaína.

‑ Está bem, querida ‑ respondeu, passando‑lhe os polegares sobre os mamilos. ‑ Mas despacha‑te. Já não tenho muito mais tempo.

Durante mais de uma hora, primeiro sobre o tapete oriental do gabinete e depois no sofá, Annette fez amor com ele como só ela sabia ‑ pura e apaixonadamente, sem nenhum dos principais jogos que ele tolerava, mas que detestava em mulheres mais inteligentes.

Frank aninhou os seios dela nas suas mãos, enquanto ela introduzia o extremo de uma palhinha no nariz, baixando‑a sobre o espelho que descansava em cima do peito dele.

‑ Isso ‑ murmurou ele, enquanto ela inalava o pó. ‑ Toma‑o todo, querida. Toma‑o todo.

Olhou para o relógio em acrílico Lucite sobre a estante. Oito e vinte. Faltava menos de uma hora para Mainwaring terminar. Menos de uma hora até ao começo do fim. Annette tinha sido o aperitivo perfeito para aquela sessão. Contudo, tinha chegado o momento de a despachar e mandá‑la para casa.

Frank esperou até ela ter retirado do espelho os últimos grãos de pó, passando‑os para as gengivas. Em seguida, olhou superficialmente para o espelho do outro lado da sala e puxou para si o magnífico e luzidio corpo dela. Lentamente, deixou‑se cair do sofá e ficou por cima dela no tapete.

Era linda à vista e ao toque mas, depois de uma hora e pelo preço de cem dólares de cocaína, pouco mais tinha que o excitasse. Tudo o que restava era a necessidade mecânica de atingir o climax. Agarrou‑a pelos sedosos cabelos cor de milho, apertou o peito contra os seios dela e enterrou‑se nela uma e outra vez até que, em menos de um minuto, tudo terminou.

Se pelo menos Lisette soubesse o quanto ele necessitava daquele tipo de sexo sem complicações e inquestionável, tudo seria muito melhor para eles, pensou. Muito melhor.


Levou um minuto a tocar no clitoris da mulher, em seguida, no estômago liso e macio e, por último, no seu perfeito rabo. Em seguida, sentou‑se na cadeira atrás da secretária e ficou a vê‑la vestir‑se. Uma vez por semana, ou em cada duas semanas, era perfeito o suficiente para manter a aventura viva e evitar que a mulher se cansasse.

Distraidamente, folheou os papéis que havia na secretária: papéis que incluiam a candidatura do cirurgião que viria substituir Mainwaring. Tudo decorrera como o mecanismo de um relógio, meditou Frank, tal como prometera que seria. Ele e Mainwaring tinham calculado dois anos, e haviam sido precisamente dois anos.

Agora, faltava menos de uma hora para darem início á fase final do projecto. Menos de uma hora até ao inicio do fim, até ao início de tudo o que era bom para ele.

Frank embrulhou o resto da cocaína e entregou o saco de plástico à mulher.

- Toma, querida - disse. - Aproveita.

- Prometeste experimentar um dia comigo, Frank. lembras‑te?

- Talvez um dia. Por agora, vai para casa e aproveita - respondeu. Não tenho grande utilidade para essa merda. Há coisas suficientes com as quais posso divertir‑me. Como tu, por exemplo.

É como um milhão de dólares, pensou.

 

Frank tomou um duche na casa de banho do seu gabinete, vestiu‑se e limpou todos os vestígios da sua sessão com Annette Dolan. Depois, sentou‑se diante do terminal de computador sobre a secretária. Ainda faltavam vinte minutos para Mainwaring terminar, o tempo suficiente para consultar a Mãe.

E Frank achou que era especialmente adequado que o fizesse.

Na altura em que se sentiu entre a espada e a parede, quando a falta dos duzentos e cinquenta mil dólares que tinha tirado momentaneamente da conta do hospital e perdido no absurdo negócio de terras olhavam para ele como um profundo buraco negro de condenação, a Mãe apresentou‑lhe a solução.

A Mãe era UltraMa, o computador principal da Ultramed que se encontrava na sede, em Bóston. Era a fibra que mantinha unido o império da Ultramed em expansão e fornecia a consistência, a rápida troca de informação e uma combinação de médicos aparentemente infindável.

E no momento mais escuro e de maior desespero de Frank,, oferecera‑lhe tanto Jack Pearl como Jason Mainwaring.

Frank activou o terminal, discou o número de rede e virou o interruptor do telefone. Em segundos,

 

Boa noite, bem‑vindo ao UltraMed.

Por favor, introduza o código de acesso

 

apareceu no ecrã.

Frank introduziu o código e depois, quando lhe foi pedido, a sua própria password. Dentro de cerca de uma semana, o direcctor regional receberia uma impressão dos utilizadores do UltraMed e verificaria na respectiva folha de avaliação que, às vinte e uma horas desse dia, Frank ainda estava no gabinete a trabalhar.

 

Boa noite, Mr. Iverson. Esperamos que tudo esteja bem em Sterling, New Hampshire. Deseja ver o seu menu?

 


Frank carregou na tecla 5.

Surgiu de imediato O MENu DO ADMINISTRADOR, seguido disto:

 

1.     Alterações no manual de procedimentos e políticas

2.     Médicos do corpo clínico actual da Ultramed e salários apenas do seu hospital)

3.         Médicos do corpo clínico actual da Ultramed e salários apenas da sua região)

4.         Médicos disponíveis (por especialidade)

5.         Promoções, transferências, termo de contratos (dos últimos 30dias)

6.         Notícias em destaque sobre a saúde nacional

7.         Noticias em destaque sobre a saúde regional

8.     Fornecedores e serviços preferidos (apenas na sua região)

9.     Índices de desempenho (regional)

10.      índices de desempenho (nacional)

11.    Círculo Dourado dos Administradores

 

Tal como fazia invariavelmente quando comunicava com a Mãe, Frank começou por confirmar o seu estatuto de membro do Círculo Dourado e a posição de administrador principal da região nordeste.

Administrador principal. Círculo Dourado. Tinha agora vontade de rir pelo facto de ter estado tão perto de nem sequer poder candidatar‑se ao lugar do Ultramed‑Davis. Mas, com a sua empresa de electrónica a ir por água abaixo, o juiz a recusar ajuda e Leigh Baron a insistir que seria seriamente considerado no processo de procura, apesar da falta de experiência hospitalar, não tivera realmente nada a perder.

Fora um choque ligeiro quando finalmente lhe ofereceram o lugar. E, embora não se pudesse pôr em causa o seu notável sucesso com a corporação, para ele continuou a ser um mistério a razão por que Leigh o escolhera entre muitos outros candidatos mais experientes.

Frank consultou as categorias regionais e nacionais, depois regressou ao Menu do Administrador e chamou o quarto item.

Os médicos de possível interesse para o sistema da Ultramed estavam listados por especialidade e subespecialidade, juntamente com o sumário pormenorizado, mas directo, dos estudos e experiência de trabalho.

Contudo, o quarto item pouco se assemelhava a um típico quadro de avisos de emprego. Junto a muitos dos nomes, havia um parágrafo que resumia as dificuldades profissionais e/ou pessoais que tornavam esse médico disponível.


Drogas, álcool, complicações sexuais, irregularidades financeiras, má conduta profissional de um tipo ou de outro compilar o rol era o trabalho a tempo inteiro de uma investigadora da sede, obsessivamente aplicada. Acima de todas as suas responsabilidades, estava a eliminação dos médicos para quem havia pouca ou nenhuma esperança de recuperação. Os que constavam da lista, muitos deles excelentes profissionais, tinham um interesse especial para a corporação. Com grande frequência, provavam ser empregados devotos, gratos por uma segunda oportunidade, totalmente leais à companhia e respectivas políticas, e dispostos a trabalhar por qualquer salário que fosse razoável.

Steve Baumgarten, da ala das urgências, fora recrutado através do singular quadro de avisos do UltraMed. Tal como Suzanne Cole, um verdadeiro troféu, que quase desde o início gerou um lucro várias vezes superior ao seu salário.

Mas, para Frank, foi a aposta dupla de Jack Pearl e Jason Mainwaring que fez a Mãe valer os seus megabytes em ouro.

Durante o tempo em que Frank se sentiu entre a espada e a parede, quando estava a ficar tão desesperado por causa dos duzentos e cinquenta mil dólares que já pensava pedir ajuda ao juiz, surgiu no quarto item o nome de Jack Pearl.

A descrição do problema de Pearl, que Frank conseguiu memorizar, dizia:

 

Possui a patente do que afirma ser uma nova e revolucionária anestesia geral. Licença do Texas suspensa devido a investigação de alegado teste clínico da substância e falsificação de informação sobre a utilização experimental do medicamento. Médico com nome igual pediu demissão em 1984 do Hospital Comunitário Wilkes, Akron, Hio, devido a um alegado envolvimento sexual com um rapaz de dez anos. Mais informações a serem actualmente procuradas.

 

Um tanto intrigado, Frank pensara investigar um pouco sobre o homem mas não se dedicara muito ao projecto até que, cerca de um mês depois, o UltraMed lhe oferecera um breve resumo sobre um professor de cirurgia de Baltimore. Tinha‑se descoberto que Jason Mainwaring era director e sócio de uma empresa farmacêutica e, consequentemente, tivera de se demitir devido a acusações de conflito de interesses e de utilização ilegal de um medicamento não aprovado.

Fizera várias viagens a Maryland, à Jórgia, ao Texas e ao Ohio; despendera vinte mil dólares adicionais dos fundos do Ultramed‑Davis para recolher informações e garantir a cooperação de um determinado político de Akron; e, por último, fizera uma série de negociações muito delicadas com ambos os médicos. Mas, no final, Frank conseguira forjar a chave do seu futuro. E agora, dentro das próximas duas semanas, tudo o resto estava prestes a fazer parte do passado.

Durante vários minutos, Frank examinou o rol de médicos electrónico. Como sempre, ficou admirado como muitos dos que possuíam o bilhete de acesso definitivo ao sucesso e prestigio podiam ter feito asneiras tão patéticas nas suas vidas.

Um pediatra de Hartford prestes a completar quatro meses num centro de reabilitação de alcoólicos; um ginecologista de Washington, que cancelou as consultas hospitalares a meio de uma nuvem de acusações de que os seus exames eram demasiado prolongados e incluíam visitas domésticas; um cirurgião oral que enfrentava uma revogação da licença por receitar narcóticos a mais a si próprio; Frank anotou vários nomes, juntamente com memorandos para fazer algumas chamadas preliminares.

A Ultramed e a sua corporação materna tinham o poder de fazer desaparecer as dificuldades do passado de qualquer médico, à excepção da investigação mais intensiva. Contudo, os administradores foram bastante alertados contra a utilização indiscriminada desse serviço.


Frank tinha acabado de comunicar com a Mãe quando, batendo discretamente, Jason Mainwaring entrou no gabinete. Vestia um fato de algodão claro, camisa com monograma e sapatos de lona brancos, e assemelhava‑se bastante ao proprietário de plantação que planeava ser, assim que a companhia farmacêutica tivesse produzido e comercializado com êxito o Serenil de Jack Pearl.

‑ Uma bebida? ‑ perguntou Mainwaring, pousando a mala e dirigindo‑se directamente ao pequeno bar da estante de Frank.

‑ Sim - disse Frank, silenciosamente ofendido com os modos como o homem entrara na sala e se encarregara de tudo, como sempre. ‑ Bourbon é óptimo.

O cirurgião apontou para a enorme fotografia aérea do complexo do Ultramed‑Davis.

‑ Que bela operação têm aqui, Frank ‑ afirmou. ‑ Acho que vou sentir um pouco de saudades, mas é em casa que está o coração, não é verdade?

‑ Claro ‑ respondeu Frank. ‑ Apesar de saber que já aqui estavas há demasiado tempo, apenas percebi um ligeiro sotaque ianque naquela troca de palavras do outro dia.

Mainwaring riu alto enquanto vasculhava a colecção de cassetes de Frank.

‑ Mantovani, Mantovani, Mantovani ‑ disse com desdém, pondo‑as de lado, uma a uma. ‑ Sabes, a coisa que aqui tens mais próxima do Beethoven é o Mantovani.

‑ Eu gosto do Mantovani ‑ afirmou Frank.

‑Eu sei.

Mainwaring pensou por instantes e depois abriu a mala, tirou duas cassetes e pousou‑as sobre a secretária.

‑ Sei que, provavelmente, estou a desperdiçar o meu latim ‑ disse ‑, mas eis aqui alguns exemplos de verdadeira música para ti. É o que ouço na sala de operações. Considera‑as como um presente de despedida. Esta é a Terceira Sinfonia de Beethoven. Chama‑se Eroica. E esta é de um compositor inglês, chamado Vaughan Williams. Trata‑se de uma fantasia sobre o Greensleeves. Ouve estas duas peças e suspeito que até tu irás apreciar a diferença entre a verdadeira música e a categoria de Burger King que tens estado a ouvir.

‑ Está bem, Jase ‑ anuiu Frank, guardando as cassetes na gaveta da secretária. ‑ Começarei a minha reeducação amanhã de manhã.

‑ Fazes bem.

Mainwaring sentou‑se no sofá que Frank e Annette Dolan tinham deixado vago tão recentemente e indicou a Frank o cadeirão à sua frente.

‑ Detesto fazer negócios com alguém sentado do outro lado de uma secretária ‑ explicou.

A não ser que seja a tua?, pensou Frank. Hesitou, mas acabou por fazer o que o homem lhe pediu. Nesta fase do jogo, não havia razão para complicar as coisas.

‑ Então, Jason ‑ disse. ‑ Presumo que ainda estejas satisfeito.

Mainwaring tirou uma pasta da mala e abriu‑a.


‑ Com este tipo de dinheiro envolvido ‑ disse ‑, só ficarei satisfeito depois do nosso pequeno anestésico estar em todas as salas de operações de todos os hospitais do mundo. Mas estou muito satisfeito com os... ‑ Consultou a pasta. ‑ Com os quatrocentos e noventa e seis casos que o Jack e eu completámos. Devo dizer, Frank, que cumpriste a tua palavra. Prometeste‑me quinhentos casos em dois anos, e deste‑mos.

‑ Como te disse quando nos conhecemos, Jason, conheço esta cidade.

A chave de todo o projecto fora a pronta substituição de Guy Beaulieu por Jason Mainwaring. Somente Frank e, até certo ponto, Mainwaring sabiam com que pericia Frank engendrara o feito. Pormenores: foi ao que tudo se resumiu. Atenção a retoques como a carta para Maureen Banas, ameaçando o seu próprio lugar caso ela contasse a alguém, incluindo ele mesmo, o que estavam a fazer‑lhe. O tipo de pormenores a que ele não dera importância três anos antes.

‑ É pena o que aconteceu ao velho Beaulieu ‑ disse Mainwaring em voz branda.

Frank não conseguiu dizer se o homem estava a ser cínico ou não. Mais uma vez, optou por evitar uma discussão. De manhã, Mainwaring já lá não estaria. E dentro de cerca de uma semana, voltaria para apresentar oficialmente o seu pedido de demissão e depositar um milhão de dólares na conta de Frank nas ilhas Caimãs e meio milhão de dólares na de Pearl, em troca da patente que Frank partilhava agora com Pearl e de todos os futuros direitos do Serenil.

Frank sabia que era a isso que tudo se resumia.

Finalmente, poderia eliminar os duzentos e cinquenta mil dólares que faltavam nos livros do Ultramed‑Davis, e sobraria uma soma excelente para começar a construir.

‑ Bem ‑ disse imparcialmente ‑, pelo menos, o velho não sofreu. Quando chegar a minha hora, quero morrer da mesma maneira... Assim, presumo que tens tudo o que precisas para concluir este negócio com a tua empresa em Atlanta?

Mainwaring passou os olhos pelos papéis.

‑ Parece que sim, Frank. Ah, aqui está aquele pequeno acordo que tu tanto insististe em fazer.

Entregou o documento.

Frank examinou a página, para se certificar de que incluia a confirmação de Mainwaring ter utilizado ilegalmente Serenil em quinhentos doentes. Era o seguro de Frank contra qualquer tipo de negócio feito nas suas costas. De manhã, os dois iriam depositar a confissão, juntamente com uma semelhante de Frank e Jack Pearl, num cofre de segurança do Sterling National Bank e, quando Mainwaring regressasse à cidade, os três levantariam e destruiriam juntos os documentos.

‑ Lembra‑te, Frank ‑ avisou Mainwaring ‑, que não detenho a decisão final para tudo isto. Os meus sócios ainda estão a calcular quanto nos vai custar voltar atrás e repetir todas as experiências nos animais e clínicas em que a FDA tanto insiste, e...

Frank soltou uma sonora gargalhada.

‑ Jason, por favor ‑ disse. ‑ São precisas dezenas de

milhões de experiências para desenvolver e testar medicamentos novos que nem sequer sabes se irão resultar; deixa as coisas resolverem‑se por si. Tens aqui uma mina de ouro e tu sabes disso, eu sei disso, os teus sócios sabem disso e até o Pearl, o nosso amiguinho duende, sabe disso.


"Após quinhentos casos perfeitos sem um único problema, o único dinheiro que irás gastar é o que for necessário para untar uma mão ou duas da FDA e reunir algumas pastas de experiências fictícias em animais e clínicas. Por isso, não me venhas com merdas, está bem? É impróprio para um homem da tua classe.

Mainwaring abanou a cabeça, pesaroso.

‑ Há por aqui algumas coisas das quais vou sentir saudades, Frank ‑ afirmou, dando uma intensidade propositada às palavras ‑, mas confesso que não farás parte delas. Certifica‑te de que o Jack tem a papelada e as fórmulas prontas para me entregar amanhã de manhã, ouviste? Partindo do princípio de que os meus sócios e os nossos farmacêuticos dão o seu okay, regressarei dentro de oito a dez dias. Entretanto, presumo que tu e o Jack me informarão, caso surjam quaisquer problemas.

‑ Claro, Jason, meu velho ‑ afirmou Frank. ‑ Mas, depois de dois anos e quinhentos casos, julgo que não tens de ficar junto ao telefone à espera de ouvir notícias nossas. A seguir ao nascimento, à morte e aos impostos, o Serenil é a coisa mais certa na vida... E tu sabes disso, não sabes?

Mainwaring fechou ligeiramente os olhos.

‑ O que sei ‑ respondeu calmamente ‑ é que este nosso pequeno tête‑a‑téte já se prolongou o suficiente.

Sem lhe apertar a mão, o cirurgião pegou na mala e saiu.

Só depois de a porta se fechar é que o sorriso de Frank se tornou natural. No interesse do negócio, permitira que aquele homem estúpido e pomposo passasse inúmeras vezes por cima dele, durante os últimos dois anos. O filho da mãe até tentara dizer‑lhe que música ouvir. Agora, com o trabalho terminado e com tanto êxito, já não havia motivos para ter de se submeter à opinião dele; esse facto causava‑lhe uma alegria quase hilariante.

Após anos a trabalhar á sombra de homens como Mainwaring e o juiz, chegara a hora de projectar a sua própria sombra. A sua vida tinha finalmente dado uma volta. Era uma estrela em ascensão numa corporação poderosa e, em breve, teria a independência e o prestigio que só o dinheiro pode trazer.

- Deus te abençoe, Serenil ‑ murmurou.

Suavemente no princípio e depois cada vez mais alto, o canto familiar começou a encher‑lhe o pensamento.

Frank, Frank, ele é o nosso homem. Se ele não conseguir, ninguém mais consegue...

 

A seis quilómetros para norte, Suzanne Cole gritou e deu um salto do sofá onde tinha adormecido. Uma dor intensa percorrera‑lhe o peito, a partir da parte lateral do seio direito. Banhada em suores frios, abriu a blusa e soltou os colchetes do soutien.

A cicatriz da operação estava vermelha, mas não de forma perturbadora, e o tecido por baixo dela não estava minimamente mole.

Contudo, a dor fora muito intensa, como nunca antes tinha sofrido.

Desesperada, tentou procurar na mente nublada uma explicação clínica lógica. Talvez uma neurite, pensou a única e violenta descarga eléctrica de um nervo a regenerar‑se.

Sim, claro, uma neurite. Tinha de ser isso. Nenhum outro diagnóstico fazia sentido.


Abalada mas aliviada, voltou a deitar‑se na almofada. Em seguida, olhou para o relógio. Quarenta e cinco minutos. Foi tudo o que dormira. Precisava de mais do que isso ‑ muito mais - se queria pôr em dia o sono que perdia todas as noites. Fora uma sorte ter conseguido uns dias de folga após a operação. A tensão de tudo aquilo parecia tê‑la afectado mais do que previra.

Lentamente, os olhos fecharam‑se.

Talvez devesse levantar‑se e tomar qualquer coisa, antes de voltar a adormecer. Uma aspirina, ou talvez mesmo codeina. Assim, se o nervo irritado disparasse de novo, pelo menos a dor seria muito menor.

Não, decidiu. Desde que soubesse o que era, não precisava de temer nada. Fosse como fosse, só tinha durado dez ou doze segundos. Se voltasse a acontecer, ela suportaria. Por um tempo tão curto, suportaria quase tudo. O que mais precisava era de dormir.

Descontrai‑te... Respira fundo... Respira fundo... óptimo... Isso mesmo... Isso mesmo...

Afinal, pensou enquanto adormecia, com que estava ela a sonhar?...


 

O campo do Clube de Golfe White Pines, desenhado por Robert Trent Jones, era o símbolo de orgulho, alegria e posição social dos seus selectos accionistas. Esculpido ao longo de um vale estreito entre duas escarpas de granito maciço, o traçado era curto mas bastante difícil, e os sócios ainda se deliciavam a recordar o dia, em 1962, em que Sam Snead, ao fazer uma volta de apresentação dos tees do campeonato, atirou um oitenta‑seis e perdeu duas bolas.

Era o início da tarde de sábado e, pela primeira vez em anos, Zack preparava‑se para jogar uma volta de golfe: o seu adversário, o juiz Clayton Iverson.

Inicialmente, Zack planeara passar a manhã numa reunião com Jason Mainwaring e Jack Pearl e o resto do dia não entre os íngremes rochedos de granito mas sobre eles, a escalar com um pequeno grupo do clube de alpinismo local. Contudo, Mainwaring pedira uma licença por uma semana, tendo sido substituído por Greg Ormesby, o único cirurgião‑geral que restava em Sterling, e também Pearl estava ausente até segunda‑feira de manhã.

Na verdade, por mais ansioso que Zack se sentisse por escalar, estava satisfeito com a possibilidade de passar algumas horas sozinho com o pai, pela primeira vez desde o seu regresso a Sterling.

Como era hábito, o convite do juiz para jogar fora feito com palavras que tornavam a recusa difícil. Também insinuou que talvez tivesse mais qualquer coisa na ideia do que apenas o golfe. Ele tornou claro que estariam só os dois, embora não tenha dito se Frank não podia ir ou não fora convidado.

Algum tempo antes, depois de ter feito a ronda, de voltar a examinar o gráfico de Toby Nelrus e de tentar localizar Mamwaring e Pearl, Zack tinha passado uma hora na zona de treino. Fora uma surpresa agradável descobrir que ainda conservava alguns vestígios da forma de manejar o taco, desenvolvida ao longo de várias lições durante a infância.

Como acontecia com a maioria dos desportos que implicavam fazer qualquer coisa com uma bola, para ele o golfe nunca tinha sido um grande fascínio. Mas os ondulados fairvays, os greens perfeitamente aparados e até a localização da sede do clube estilo Tudor com a sua varanda ensombrada e tapetes orientais, causaram sempre nele uma certa serenidade, em especial nas tardes quentes e sem nuvens de Verão.

‑ Então, Zachary ‑ disse Clayton Iverson, quando se aproximavam do primeiro tee ‑, até que ponto vamos tornar isto interessante?

Vestia calças brancas, uma camisa Lacoste amarela e a sua marca registada: sapatos de golfe castanhos e brancos. Embora mal se pudesse dizer que estava em forma, deslocava o seu robusto corpo com a graciosidade de um atleta nato. Adornado por uma mata retorcida de cabelos prateados, o seu rosto bronzeado e enrugado transpirava confiança e autoridade.

‑ Isso depende da urgência com que necessita do dinheiro, juiz ‑ respondeu Zack, sabendo que era infrutífero e de mau gosto discutir com o pai o valor de uma aposta.

‑ Então vamos apostar, digamos, um dólar por buraco com transporte? Dou‑te uma tacada de avanço nos buracos de par cinco e nos dois longos de par quatro.


‑Vejamos... ‑ Zack fingiu contar pelos dedos. ‑ Dezoito dólares. Acho que consigo suportar a despesa. Muito bem, sir, fica então um dólar por buraco. Presumo que, como sempre, não vai exigir muito de mim.

O juiz colocou a bola no tee e olhou para o filho com um sorriso predatório.

‑ Claro ‑ afirmou. ‑ Como sempre.

Era a verdade mais básica da relação que o homem tinha com os filhos e quase uma anedota permanente entre os dois o facto de ele nunca lhes ter dado uma só moeda de vinte e cinco cêntimos em competição alguma, quer fosse gin rummy, no qual era um jogador inveterado, golfe ou mesmo negócios. As vitórias eram para ser ganhas e não obtidas; os empréstimos, até mesmo de pequenas quantias, eram invariavelmente acompanhados de promissórias e tinham de ser pagos na totalidade e sempre com alguns juros.

Zack sabia que nesse dia, como sempre, nada seria facilitado.

A forte tacada do juiz, ao som do aplauso cortês de cerca de uma dúzia de espectadores, cortou o fairvay e rolou até parar mais adiante da discreta marcação de cento e oitenta metros.

Sabendo que se sentia menos tenso a operar um tumor cerebral do que naquele momento, a forte tacada de Zack fez a bola cair no lago de peixinhos dourados.

‑ Espero que não tenha nenhum compromisso urgente, juiz ‑ disse, colocando outra bola no tee. ‑ Talvez demoremos um pouco aqui.

‑ Dá uma tacada menos forte e deixa descair ligeiramente o ombro esquerdo ‑ aconselhou o pai.

Zack seguiu o conselho e o tiro foi tal que quase acertou na bola do juiz, ultrapassando‑a em vários metros.

‑ Obrigado pela ajuda ‑ murmurou, erguendo uma taça imaginária como resposta ao aplauso da pequena tribuna.

‑ Goza‑a ‑ disse o juiz, enquanto se afastavam do tee. - A um dólar por buraco, é tudo o que recebes.

No fim dos primeiros nove buracos, Zachary perdia sete dólares e começava a ter bolhas nas partes laterais de ambos os calcanhares, devido aos sapatos de golfe com dez anos. Contudo, a tarde era quente e calma e ele apreciava a sensação da rara experiência de ligação com o pai, segundo parecia nascida principalmente de pedaços de conversa casual e breves recordações de tardes como aquela, há muito vividas.

Clayton Iverson fez‑lhe perguntas sobre o seu novo emprego e contou anedotas do tribunal mas, tirando isso, não deu qualquer indicação de haver questões agendadas para essa tarde, para além do golfe.

Depois de uma breve paragem no clube para beberem uma cerveja, o juiz largou o carro de golfe motorizado junto ao buraco nove e apareceu no décimo tee a puxar os tacos sobre uma carreta de alumínio.

‑ Preciso de exercício ‑ explicou. ‑ Além disso, comigo a andar de carro e tu a caminhares e a procurares as bolas por todo o lado, não me pareceu que teriamos muitas oportunidades para conversar.

‑ Muito espirituoso, juiz ‑ disse Zachary. ‑ Bem, mas tenha cuidado. Para citar as palavras do general Cluster em Little Big Hom: "Ainda nem sequer começámos a lutar."


Saiu do décimo buraco com uma tacada decente, mas a do pai, mal dada, voou para a direita e desapareceu num rough alto. Enquanto procuravam a bola no meio da erva cerrada, o juiz acenou ao quarteto atrás deles para jogarem.

‑ Se não a encontramos até aqueles quatro terem dado a tacada de saída, eu perco uma.

‑ É justo.

Zack matutou na concessão amigável, a qual não era nada própria do homem.

‑ Zachary, diz‑me uma coisa ‑ continuou o juiz, ainda a procurar no meio do rough. ‑ Tiveste problemas com a Ultramed, desde que começaste a trabalhar no hospital?

‑ Problemas?

‑ Ei, sabes o que vou apostar? Aposto que a minha bola foi um pouco mais para a direita do que pensámos. Vamos procurá‑la ali.

‑ Juiz?

‑Sim?

‑ A que tipo de problemas se refere?

Clayton Iverson hesitou por instantes, aparentemente sem saber se devia ou não continuar a conversa.

‑ O Guy Beaulieu veio ver‑me alguns dias antes de falecer ‑ acabou por dizer.

‑ Sim?

‑ Foi a segunda vez que apareceu em apenas duas ou três semanas.

‑ Ele estava muito zangado e preocupado.

‑ Claro que estava ‑ disse o juiz, apoiando‑se no taco e sem fazer qualquer tentativa para procurar a bola. ‑ Ele também estava bastante decidido a provar que a Ultramed e o Frank o tinham posto de lado para poderem substitui‑lo por um homem deles, o tal Mainwaring. Ele afirmava ter provas de que essas ardilosas manobras eram típicas da companhia.

‑ Sei o que ele afirmava. O que não sei é por que raio foi ter consigo, quando o pai deixou claro o seu forte apoio ao Frank e ao excelente trabalho que ele tem feito no hospital.

Calaram‑se, enquanto cada um dos elementos do quarteto próximo executava a sua jogada. Três das bolas aterraram perfeitamente sobre o green, e a quarta, jogada por um velho grisalho que Zack calculou ser octogenário, aterrou num banco de areia. Tal como acontecia invariavelmente quando estava perto de pessoas muito idosas, Zack deu consigo a rezar para que a circulação coronária e cerebral estivessem, pelo menos naquele momento, a funcionar como a natureza impunha.

‑ A resposta à tua pergunta, Zachary ‑ disse o juiz, depois de o velho ter dado a tacada ‑, é que o Guy estava convencido que, com o Frank ou sem ele, eu não havia de querer vê‑lo condenado por actos que nunca cometera. Não te esqueças que já nos conhecíamos há bastante tempo. Não faço ideia do número de comissões e projectos que fizemos juntos durante os últimos trinta anos, lutando para erguer Sterling da pequena e moribunda cidade fabril que outrora tinha sido. Muitas vezes, ficávamos em lados opostos da barricada em relação a um assunto, mas isso nunca nos incomodou. Ambos lutámos ao máximo, mas lutámos segundo as regras.

‑ Compreendo.


‑ Assim, julgo que ele acreditava que, com base na forma como aceitávamos as nossas diferenças e no seu registo como juiz, eu ganharia qualquer causa que julgasse ser justa.

‑ E ele tinha razão?

O juiz tirou uma nova bola do saco e lançou‑a de costas, por cima do ombro.

‑ Claro que tinha ‑ respondeu. ‑ Devias saber disso tão bem quanto qualquer outra pessoa.

‑ Desculpe.

‑ O Beaulieu morreu, mas as questões contra as quais lutava, se é que realmente existiam, ainda continuam por resolver, pelo menos até passar a data limite de reaquisição do hospital. Depois disso, todos nós ficamos literalmente à mercê da Ultramed.

A reaquisição. Subitamente, Zack percebeu por que razão Frank tinha sido excluído da tarde. Em silêncio, ficou alerta para não expressar qualquer opinião até a posição do juiz se tornar um pouco mais clara. No que se referia a Clayton Iverson e ao seu herdeiro, as interacções e reacções raramente, ou nunca, haviam sido simples e directas.

Enquanto os anos de escolaridade de Zack, em especial depois do acidente, passaram calmamente e em comparação quase despercebidos, a relação entre o juiz e Frank fora algo turbulenta e volátil. O homem tinha mergulhado nas realizações pessoais do filho mais velho como uma esponja insaturável e, inevitavelmente, quando o heroismo de Frank tardava em surgir ou, pior ainda, quando fazia alguma coisa diferente da personalidade que o juiz criara para ele, havia fricção.

Ao recordar o passado, Zack imaginou se os dois algum dia haviam apreciado verdadeiramente a dinâmica daqueles choques.

Se ser o segundo filho do juiz Clayton Iverson lhe causara certos problemas, ser o primeiro provou ser uma maldição para Frank.

Lembrou‑se do dia em que Frank, na altura caloiro ou segundanista do liceu, recebeu um 5 no teste de História. A professora, nos comentários, anotou que o estilo de escrita e o conteúdo do relatório eram diferentes de tudo o que ele fizera antes.

Desconfiado da súbita melhoria, o juiz enfrentou Frank numa confrontação "olhos nos olhos", como gostava de lhe chamar. Era uma técnica que raramente fracassava na revelação de uma mentira de qualquer dos filhos, e nessa ocasião Frank foi definitivamente desmascarado. Após uma hora de confrontação, subiu ao quarto e trouxe o teste dos seniores por onde copiara.

Zack nunca esqueceu o olhar dele naquele momento, um assustador olhar de medo, ódio, humilhação e fúria.

O resultado dessa demonstração foi um zero no relatório da professora e uma suspensão por quatro jogos de basquetebol dada pelo juiz, embora este tivesse retirado o castigo depois de o treinador se queixar que a equipa sofreria mais do que Frank.

Essa confrontação e a respectiva consequência disseram muita coisa, quer sobre o pai, quer sobre o filho. O juiz, sentindo que tinha conseguido deixar claro o que pensava de qualquer tipo de desonestidade, nunca mais se referira ao incidente.


Por outro lado, Frank sentiu‑se de facto desencorajado a fazer mais atalhos académicos, mas apenas temporariamente. Em vez de reagir à tolerância do pai com uma mudança, fê‑lo com um desafio. E um dia, não muito tempo depois, revelou ao irmão mais novo que se tinha dedicado a aprender a vencer numa confrontação olhos nos olhos. No início, treinava somente diante de um espelho. A seguir surgiu uma série do que chamava "petas de teste". Com o tempo, mesmo nas situações mais criticas, conseguia enfrentar e suportar impavidamente o olhar penetrante do homem.

Nos anos imediatamente a seguir, os conflitos com o juiz reduziram‑se consideravelmente, devido em parte ao domínio da nova arte de Frank e mais ainda ás suas realizações atléticas. Depois, com os repetidos fracassos anteriores ao Ultramed‑Davis, a relação entre eles voltou a piorar.

Actualmente, após quatro anos de harmonia relativa, um choque entre os dois homens ‑ possivelmente monumental - parecia estar prestes a acontecer. E, como acontecera sempre no passado, bem no centro da questão estavam as expectativas do juiz. O desempenho de Frank tinha de ser o melhor e a sua conduta acima de qualquer censura.

O quarteto à frente deles terminou a jogada e abandonou o green. O juiz olhou para a bola mas, após vários segundos, olhou para o fairvay a fim de se assegurar que ninguém se aproximava e afastou‑se.

‑ Zachary, pareces preocupado ‑ disse. ‑ O que se passa?

‑ Não estou preocupado. É só que...

‑O quê?

Zack abanou a cabeça.

‑ Não é nada, juiz. Continue a jogada.

‑ Estás preocupado por eu estar contra o Frank. É isso?

‑ Ele é seu filho.

‑ E achas que, por essa razão, devo virar as costas à possibilidade de ele estar envolvido em algo contrário a ética, ou até mesmo desonesto.

‑Não disse isso.

‑ O quê, então?

No último momento, Zack preferiu nada dizer do legado de Cuy Beaulieu, do seu encontro com Maureen Banas e da sua crescente falta de confiança na Ultramed. Simplesmente havia ainda muitas incertezas para poder abrir as latas de minhocas, sem ter tido primeiro a oportunidade de discutir o assunto com Frank.

‑ Juiz ‑ disse, escolhendo cuidadosamente as palavras. - O Guy Beaulieu tentou de todas as formas deitar abaixo a Ultramed. Se o Frank caísse com ela, não era problema dele. Dou valor ao empenho que pôs para fazer o que era certo, mas...

‑ Mas o quê?

De novo, Zack hesitou. Um deslize, uma ideia mal expressa, e o juiz iniciaria de imediato uma das suas cruzadas.

Aos olhos de Frank, os dois alinhariam contra ele e a Ultramed, e qualquer hipótese de se conseguir a sua ajuda, quer para expor a corporação, quer para resolver o mistério de Toby Nelrus, perder‑se‑ia provavelmente para sempre.


‑ Juiz, o Frank tem os seus defeitos e as suas virtudes - acabou por dizer ‑, tal como todos nós. Mas, considerando as expectativas e as pressões que tem sido obrigado a suportar desde os tempos do liceu de Sterling, acho que tem feito coisas de que ambos devíamos sentir‑nos orgulhosos. No mínimo, devíamos fazer tudo para lhe dar o benefício da dúvida quanto a este assunto.

‑ Então, achas que estou a ser desleal ao querer saber se o meu filho e a corporação para quem ele trabalha estão a lucrar às custas da minha comunidade?

‑ Não foi isso que eu disse.

‑ E achas que é deslealdade questionar se o Frank terá tido influência na destruição da reputação de um homem?

‑ Juiz, por favor.

‑ Desculpa, Zachary, mas passei mais de trinta anos como advogado e metade desse tempo como juiz. Tudo quanto sei é que fazer o que está certo é muito mais importante do que toda a espécie dessa tal lealdade.

‑ Não discuto isso. É só que, com base no que vejo, todo este assunto não é nada simples. Sabia que, se não fosse pelo facto de o Frank ter utilizado a sua influência no hospital, o Beaulieu teria sido suspenso há já algum tempo?

O juiz pareceu abalado.

‑ Não ‑ respondeu. ‑ Não sabia.

‑ Bem, é verdade.

É claro que a história da intervenção de Frank fora contada pelo próprio, mas Zack não viu vantagens em partilhar essa informação, ou, neste caso, o seu desagrado pelo comportamento de Frank no dia da morte de Beaulieu. Estava a gostar da oportunidade de desempenhar o papel de advogado de Frank. Também sentiu que, ao defender Frank, em certos aspectos estava a criar a possibilidade de o pai reconhecer as suas próprias realizações pessoais.

O juiz pareceu surpreendido e preocupado com a sua posição.

Olhou de novo para a bola, embora, pela postura e os nós dos dedos pálidos, Zack tivesse percebido que não estava concentrado. Subitamente, Zack compreendeu: o pai tinha feito algo que não seria muito bem aceite por Frank: e agora, de um momento para o outro, tinha dúvidas.

A tacada foi apressada e mal executada. A bola, que não chegou a afastar‑se do solo, atravessou o fairvay e foi cair no banco de areia recentemente vago. Clayton Iverson mal reagiu à horrível tacada.

‑ Sabes ‑ disse, enquanto se dirigiam ao bunker ‑, desde o dia em que a tua mãe e eu soubemos que ela estava grávida do Frank, começámos a ter visões de grandeza para os nossos filhos. Penso que isso não aconteceu só connosco, mas garanto‑te, filho, que passámos muitas horas desse Inverno à lareira, a partilhar os nossos sonhos. Até lhe demos, e depois a ti, um nome de presidente; presidentes pouco conhecidos, mas que deixaram as suas marcas na história.

Intimamente, Zack suspirou. Tratava‑se de uma conversa que já tinham tido muitas vezes na vida. Franklin Pierce, o único presidente que nascera em New Hampshire, e Zachary Taylor, o malévolo guerreiro que apesar dos quatro anos de mandato não distinguidos criara o Ministério do Interior, eram os principais favoritos do juiz.

‑ Pode crer, juiz ‑ disse Zack, de uma forma que acabou por se tornar o seu padrão de resposta para a discussão ‑, que tanto o Frank como eu apreciamos os valores e a conduta que nos incutiu.


Fez uma pausa para dar uma curta tacada e colocar a bola na borda do green; depois ficou a ver o pai, agora completamente desconcentrado no jogo, a dar duas tacadas para sair do banco de areia.

No fim do buraco, Zack conseguiu reduzir o défice para seis dólares e, após dois empates e um desastroso sete por parte do juiz no décimo terceiro buraco, conseguiu reduzir mais três dólares.

‑ Juiz ‑ disse, indicando o pequeno quiosque de descanso junto ao décimo quarto tee ‑, vamos fazer um intervalo. Seja o que for que o preocupa ao ponto de jogar desta maneira, tem de ser discutido.

‑ Não estou preocupado ‑ respondeu Clayton Iverson.

‑ Está bem, não está preocupado. Tudo o que fez foi dar quatro tacadas acima do par durante todo o buraco nove, contra as oito tacadas nos primeiros quatro buracos, altura em que começou a falar deste assunto do hospital. Sente‑se àquela mesinha ali e deixe que lhe ofereça uma cerveja.

O juiz começou a protestar, mas depois cedeu.

‑ Talvez esteja um pouco preocupado ‑ murmurou.

Zack deixou‑o junto à mesa de ferro forjado e regressou com duas canecas geladas e duas garrafas de Lowenbrau.

‑ Então, o que se passa? ‑ perguntou Zack, enquanto dava um gole na cerveja.

‑ O que queres dizer com isso?

‑ Refiro‑me ao Frank, juiz. Sei que influenciou a Ultramed a escolhê‑lo para o lugar. É por isso que está a ser duro com ele? Por se sentir responsável?

‑ Zachary, a contusão que o teu irmão criou no raio da empresa de electrónica não foi o seu primeiro fiasco. Ele não tinha paciência para esse tipo de negócio. Tentava saltar constantemente do primeiro para o vigésimo passo. Teve sorte por a oportunidade da Ultramed surgir quando surgiu. Disse‑lhe que, quando ele... ‑ Clayton Iverson parou a meio da frase.

‑ Quando ele o quê, juiz?

‑ Nada. Não tem importância.

‑ Ele pediu‑lhe um empréstimo, não foi? ‑ perguntou Zack.

Subitamente, certas conversas que tivera com o irmão ao longo dos anos começaram a encaixar‑se. Embora Frank nunca lhe tivesse contado os pormenores do fracasso da empresa, deixara claro que sentia que o pai, pelo menos em parte, era responsável.

‑ Foi um pedido descabido. Ele já estava enterrado até aqui. Teria sido deitar dinheiro fora.

‑ O Frank não viu as coisas dessa maneira, juiz.

‑ Bem, mas eu vi. Concordei em ajudá‑lo a sair do buraco em que se metera, mas apenas na condição de se desfazer da empresa. O lugar do hospital deu‑lhe a oportunidade de sair daquele disparate e de mostrar a toda a cidade o que ele era capaz de fazer.

Para não dizer que o trouxe de volta para o ter debaixo de olho, pensou Zack, furioso.

‑ Assim, ele conseguiu o lugar e tem desempenhado bem as suas funções. Que mais pode querer dele?

‑ Posso querer que ele aplique na sua posição os mesmos valores que eu aplico na minha. É isso que posso querer. Posso querer que ele defenda o que está certo.

Apesar do calor da tarde, Zachary sentiu um frio súbito.


‑ E o que é que está certo? ‑ Sou eu quem tem as provas dO Beaulieu, apeteceu‑lhe gritar. - Fui eu que enfrentei a Maureen Banas. Como pode ter tanta certeza do que está certo? Pai ‑ disse ‑, o que foi que fez exactamente?

‑ Sabes, Zachary, não gosto muito desse teu tom de voz. Talvez sejas um cirurgião importante, mas ainda és meu filho.

Zack sentiu‑se fugir ao olhar do pai. Não se lembrava da última vez que tinha sido tão duro com o homem.

‑ Desculpe ‑ murmurou.

‑ Desculpa aceite. Acho que trinta anos de tribunal dão‑me mais do que a capacidade para saber quando alguém está a tentar encurralar‑me. Havia fumo a mais em redor das queixas do Beaulieu, para não haver fogo. Eu... Só soube por ti que o Frank interveio a favor dele.

Hesitou, mas meteu a mão na bolsa do saco dourado, retirou um envelope e entregou‑o ao filho.

‑ Toma ‑ disse. ‑ Lê.

 

Mrs. Leigh Baron

Directora, Operações

Ultramed‑Corporação de Hospitais

Boston Place

Bóston, Massachusetts 02108

 

Cara Mistress Baron,

O contrato que efectiva a venda do Hospital Regional Davis à Ultramed, Corporação de Hospitais Ultramed, está agora no seu quarto e último ano. Como sem dúvida sabe, o acordo contém condições para a reaquisição do estabelecimento pelo corpo de directores comunitário, do qual sou presidente, desde que este se pronuncie até cinco meses antes da data de expiração do contrato e seja deliberada por votos, nunca inferiores a 51 por cento dos membros, a devolução à Ultramed do preço de compra original ‑ valor actualmente depositado no Sterling National Bank ‑ em troca da recuperação do controlo do hospital.

Até recentemente, não tinha qualquer intenção de convocar os directores para se considerar tal votação. Contudo, desenvolveu‑se uma situação que me preocupa bastante ‑ um conflito entre o Dr. Guy Beauheu, um dos primeiros médicos a estabelecer‑se em Sterling, e a vossa corporação. Era alegação do falecido Dr. Beaulieu que a administração do hospital e, em última análise, a própria Ultramed, eram responsáveis por maquinações calculadas para o obrigarem a reformar‑se. Ele afirmou ainda ter conhecimento de acções da vossa corporação, através do Ultramed‑Davis, que eram contrárias aos melhores interesses da nossa comunidade. Sei que ele vos expressou várias vezes o que sentia e que chegou mesmo a processar tanto o hospital, como a Ultramed.

Fui contactado pela viúva do Dr. Beaulieu que me pediu para que os directores pensassem seriamente nas alegações do Dr. Beaulieu antes de terminar o nosso período provisório, ao meio‑dia do dia 19 de Julho. Pedi a Mrs. Beaulieu para que, antes dessa data, fizesse todos os esforços para me fornecer os pormenores das queixas do marido e as provas que as confirmavam.


Entretanto, agradeço que considerem esta carta como um aviso de que pretendo reunir o corpo de directores às 11 horas da manhã de sexta‑feira, dia 19 de Julho, com o propósito de discutir as nossas opções. Por outro lado, tal como consta no contrato, mandei efectuar uma auditoria completa e independente ao hospital, que julgo ter início nos próximos dias. Como sabe, de acordo com a secção 4B do nosso contrato, 15 por cento dos lucros do hospital ao longo dos últimos quatro anos deveriam ter sido canalizados para a comunidade através de tratamentos de doentes indigentes, e outros 3 por cento através de apoio a vários projectos cívicos, enumerados na secção 4C. A violação dessa secção, mesmo que descoberta depois da data limite de 19 de Julho, anulará o nosso contrato convosco.

Entretanto, se possuir quaisquer informações ou ideias sobre o assunto, estarei à sua inteira disposição.

Esperando uma resolução amigável para este assunto, subscrevo‑me,

Sinceramente Clayton C. Iverson

 

Zack ficou incrédulo. A viúva de Beaulieu e a filha não lhe haviam dado qualquer indicação de que planeavam contactar directamente o corpo de directores.

‑ Juiz, quando é que Mistress Beaulieu o contactou?

‑Bem... na verdade, ela não me contactou... eu é que a contactei.

‑ E ela já falou com outros membros do corpo?

‑É.... bem, sugeri‑lhe que o fizesse.

‑ Oh, juiz, porquê?

‑ Porque talvez o pobre Beaulieu tivesse razão, eis o porquê.

‑ Mas o Frank disse que não tinha. Porque não conseguiu dar‑lhe o beneficio da dúvida?

‑E.... achei que, se ele não tivesse cometido erros, não tinha de se preocupar com nada.

‑ Claro que tem. Ele tem de se preocupar em saber como explicar aos tipos da Ultramed porque é que o próprio pai estaria a tentar sabotar o hospital. Nem sequer sabe que espécie de ditas provas tinha o Guy, sabe?... Então, sabe?

Clayton Iverson abanou a cabeça.

‑ Foi o que pensei. Bem, eu sei, juiz. Sei exactamente o que ele tinha. No funeral, a Clothilde Beaulieu entregou‑me tudo. E garanto‑lhe que não existem provas suficientes de más acções, nem mesmo para abalar a Ultramed. Apenas coisas circunstanciais. Foi tudo o que ele conseguiu acumular. Apenas uma pilha de listas inferidas, historietas e recortes de jornal.

"Confesso que tenho algumas reservas fortes quanto a essa empresa, mas até agora não há provas sólidas de que alguém tenha sido directamente prejudicado pela política da corporação. Pelo menos não tenho conhecimento de ninguém. Porque não foi ter com o Frank? Não conversou com ele? Foi o que planeei fazer. Ele viu ao menos esta carta antes de a ter enviado?

O juiz bebeu um grande gole de cerveja e limpou a espuma dos lábios às costas da mão. Depois, sorriu.

‑ Não a enviei ‑ respondeu simplesmente.

‑Como?


‑ A carta está em poder do meu advogado em Bóston, até decidir o que devo fazer. Estava a pensar mandá‑lo à Ultramed na segunda‑feira. Mas preferi primeiro conversar contigo. Agora, ainda bem que o fiz.

Zack sentiu‑se completamente exausto: um ioiô na ponta do fio de um mestre.

‑ Em primeiro lugar, podia ter‑me dito apenas o que queria ‑ protestou. ‑ Não pode brincar com todos dessa maneira, juiz.

‑ Que disparate. Não brinquei com ninguém. Precisava da tua opinião pura e tu deste‑ma. Não estou decidido a opor‑me à entrega para sempre do hospital à Ultramed, na próxima semana. Apenas estou relutante em desistir totalmente da nossa força. Nunca se sabe quando iremos desejar que a tivéssemos. A verdade é que seria preciso muito mais do que eu soube até agora, para me virar contra o Frank e enviar a carta. Pronto, sentes‑te melhor?

‑ O que sinto ‑ disse Zack ‑ não vem ao caso.

‑ óptimo. Então, vamos ver se conseguimos jogar golfe.

O juiz pousou a cerveja, tirou um taco do saco e limpou a cabeça com um pano.

‑ Estou satisfeito com as coisas que me contaste sobre o teu irmão, Zachary ‑ declarou. ‑ Ao longo destes anos, nunca escondi o quanto ele me decepcionou. Mas desde que continue a agir em beneficio da cidade, então ele e a Ultramed não têm de se preocupar comigo. Contudo, se souberes de alguma coisa que eu deva ficar a saber, seja ela qual for, então o teu dever para com todos nós é contar‑me, raios. Percebeste?

‑ Percebi ‑ respondeu Zack, entorpecido.

‑ Incluindo qualquer coisa que conste do material do Guy.

‑Certo.

O juiz colocou a bola no tee. Novamente controlado, pareceu descontraido e confiante.

‑ Não te importas que eu seja o primeiro? ‑ perguntou.

A tacada foi larga, compacta e suave como veludo. A bola saiu como uma flecha e foi de longe a tacada mais longa do dia.

Uma hora mais tarde, Zack permanecia no green dezoito e via o pai fazer um putt de quatro metros para um birdie.

‑ Cinco buracos directos para mim ‑ disse o juiz. ‑ Isso equivale a oito dólares. Adoro este jogo! E tu?


 

Dose a dose, micrograma a micrograma, o nível de Haldol no sangue de Annie Doucette foi aumentando. A reacção dos sentidos, pouco adequada para mantê‑la até o tranquilizante começar a fazer efeito, tornou‑se fraca e distorcida. Os períodos de lucidez, mesmo nas horas do dia de mais sol e barulho, tornaram‑se cada vez mais curtos.

Agora, à medida que a tranquilidade da noite de domingo se espalhava por todo o hospital, a pouca noção de realidade que ela conseguia manter começou a escapar.

Num momento, encontrava‑se em casa no seu próprio quarto e na sua própria cama; no outro, encontrava‑se algures num local desconhecido e ao mesmo tempo familiar. Era noite e manhã. Desesperada, começou a lutar contra a loucura. Desesperada, tentou concentrar‑se. Contudo, nada estava certo... nada excepto a percepção de qu~ sem saber como, se tinha molhado e borrado.

Telefona ao Zack... Telefona á Suzanne, pediu‑lhe a mente. Pede‑lhes que te limpem. Pede‑lhes que te tirem daqui.

Virou‑se para procurar um telefone, mas uma onda de tontura e náusea obrigou‑a a deitar‑se na almofada.

Levantou o lençol e olhou para as pernas. Havia um cheiro horrível e fezes espalhadas entre as coxas. Tão nojento. Tão humilhante.

Tenho de me lavar.. Tenho de tomar um duche, antes que alguém apareça.

Com a visão toldada, Annie olhou para a porta da casa de banho. Tomar um duche... Limpar.. Depois, telefonar.. a quem? Como é que se chamava?

Esforçando-se o mais que podia, tentou virar‑se de lado. Havia barras de protecção metálicas em ambos os lados da cama. Servindo‑se de uma delas e combatendo as tonturas constantes, conseguiu levantar‑se.

Que nojento... Que humilhante...

Não havia nenhuma barra de protecção aos pés da cama. Com uma lentidão angustiante, conseguiu arrastar‑se sobre o lençol sujo de fezes. Em seguida, passou uma perna sobre o pé da cama e pisou o frio soalho de linóleo. As tonturas começaram a tornar‑se insuportáveis.

Contudo, ela sabia que tinha de se limpar.

Centímetro a centímetro, pousou a outra perna no chão. Com todas as forças que possuía, tentou levantar‑se. As pernas aguentaram momentaneamente. Mas cederam de súbito, e, por breves instantes, ela ficou a pairar no ar.

Aterrou pesada e desastradamente, deixando escapar o ar dos pulmões com um ronco sonoro. Houve também outro som... um som agudo e intenso que saiu do interior do seu corpo.

Um instante mais tarde, uma dor inimaginável atravessou‑a, vinda da anca esquerda.

Segundo a segundo, a dor intensificou‑se. Em seguida,

sentiu um peso tremendo no peito. Lentamente, a ténue luz do quarto começou a desaparecer e Annie sentiu envolvê‑la uma escuridão misericordiosa e tranquila.

 

A noite estava carregada, nublada e húmida, sem uma única brisa para aliviar. Eram quase onze horas quando Zack parou


o Chrvsler do juiz no espaçoso parque livre, junto à ala das urgências do Ultramed‑Davis. O juiz, de mãos firmemente cruzadas sobre as pernas, estava sentado a seu lado. A mãe, soturna e calada, estava no banco de trás a servir‑se do lenço que trazia numa mão, enrolado em bola.

Annie Doucette estava em perigo.

Zack teria preferido avaliar o estado da mulher antes de envolver os pais, mas uma enfermeira bem‑intencionada, por

conseguir contactar o filho de Annie em Connecticut e por ter lido no registo dela que eles eram os "patrões", telefonou‑lhes.

Uma fractura na anca e outra trombose coronária foram as únicas informações que a abalada Cinnie Iverson conseguiu recordar‑se da conversa tida para poder repetir a Zack.

‑ Zachary, querido ‑ disse‑lhe, enquanto ele a ajudava a sair do carro ‑, achas que irão operá‑la esta noite?

‑ Não sei, mãe. No entanto, duvido. Em especial, se a enfermeira com quem falei estiver certa quanto a outro ataque cardíaco.

‑ O médico dela, como é que se chama?

‑ Norman, mãe. Don Norman.

‑ Doutor Norman. Falaste com ele?

‑ Estava a tratar da Annie. Achei que não valia a pena incomodá‑lo.

‑ E o Frank disse se vinha para cá?

‑ Sim, mãe. Ele ficou à espera que a Lisette regresse de casa da irmã e depois vem para cá.

Cinnie serviu‑se do lenço pela última vez e depois guardou‑o na carteira.

‑ Bem ‑ disse ‑, só espero que a Annie esteja bem.

‑ Bem? ‑ Clayton Iverson soltou uma gargalhada desdenhosa. ‑ Credo, Cynthia, em que mundo é que tu vives? A mulher tem quase oitenta anos e acabou de cair da cama, partiu a anca e teve um ataque cardíaco. Como raio podes pensar que ela esteja bem?

‑ Desculpa ‑ pediu Cinnie. ‑ Não é preciso falar assim - acrescentou, num murmúrio dirigido mais a si do que ao marido.

Entraram no hospital pela ala das urgências e subiram no elevador até ao segundo andar. Annie fora levada de volta para a unidade de cuidados intensivos.

‑ Porque não esperam ali dentro? ‑ perguntou Zack, conduzindo‑os a uma pequena sala de espera, junto à unidade. - Voltarei assim que souber o que se passa.

A fúria e a tensão tinham‑lhe apanhado os músculos da base do pescoço e faziam‑lhe doer o estômago. Sem dúvida que, durante os anos de estágio, tivera doentes que haviam caído da cama, apesar de se terem tomado precauções rígidas. O risco era permanente, em especial porque muitos dos doentes hospitalizados eram idosos e inválidos.

Contudo, aquela situação era diferente. Dado ter sido chamado para dar a sua opinião sobre o caso, Annie Doucette era tecnicamente sua doente; mas mais do que isso, ela era sua amiga. Em certa medida, ela cuidara tanto dele quanto Cinnie e o juiz. Além disso, havia também aquele sentimento especial que todos os médicos sentem para com um doente a quem salvaram a vida.

 

Estava nervoso e a sua imparcialidade e objectividade médicas estavam suspensas por um fio.


Desde o momento em que Cinnie lhe telefonara para dar a notícia que tentara não esquecer que, apesar de ser normal que ficasse preocupado, raramente ou nunca havia justificação para a perda de objectividade de um médico ‑ mesmo quando tivesse de enfrentar um descuido ou negligência. No microcosmo do hospital, as explosões dos médicos não ajudavam ninguém.

Quando se dirigia à unidade, Sam Christian, um dos três cirurgiões ortopédicos do corpo clínico, saiu ao seu encontro. Era um homem alto e de aspecto lúgubre com cerca de cinquenta anos, que coxeava ligeiramente. Vinte e dois anos antes, o joelho esquerdo mutilado de Zack fora um dos seus primeiros casos.

‑ Boa noite, Zack ‑ cumprimentou. Olhou para a pequena sala de espera. ‑ Juiz, Cinnie.

‑ Olá, Sam. ‑ O juiz saiu para cumprimentá‑lo. ‑ Como é que estamos?

Christian encolheu os ombros.

‑ Ela precisa de uma anca nova ‑ respondeu com um ar preocupado. ‑ Mas até a situação cardíaca ter passado, isso está fora de questão. Amanhã, se ela ainda... quero dizer, se ela tiver melhorado, colocarei alguns parafusos em volta da articulação para estabilizá‑la até podermos fazer qualquer coisa definitiva.

‑ Sabe o que aconteceu? ‑ perguntou Zack. ‑ As barras de protecção estavam puxadas para cima?

A expressão de Christian mudou.

‑ É melhor falares com o Don Norman sobre toda essa questão. Mas sim, segundo parece, as barras estavam para cima. Ela saiu pelos pés da cama.

‑ Oh, meu Deus ‑ murmurou Cinnie.

‑ Obrigado, Sam ‑ agradeceu Zack. Virou‑se para os pais. ‑ Volto já.

Quando estava a entrar na unidade, ouviu o juiz dizer:

‑ Então, Sam, agora conta‑me tudo. Quem foi que fez asneira?

Zack viu Annie por breves instantes durante a ronda da manhã. Nessa altura, ela estava acordada e a reagir, mas um pouco deprimida e mais letárgica do que antes. Ele sugeriu‑lhe que tentasse passar mais tempo fora da cama e chegou mesmo a oferecer‑se para acompanhá‑la num passeio pelo corredor. Ela recusou, queixando‑se de dor de cabeça e falta de sono.

A mudança que ela sofrera em pouco mais de catorze horas, mesmo que por acidente, era assustadora. Estava desorientada mas irritadiça; mal se conseguia perceber o que dizia. O cabelo grisalho estava colado à cabeça, devido à transpiração e a bocados de fezes.

à porta, Zack viu como Don Norman lutava para examinar o peito de Annie. O corpulento médico tirara o casaco e arregaçara as mangas, mas ainda continuava de gravata, colete e relógio de corrente. Viam‑se pequenas gotas de suor salpicar‑lhe a testa e o lábio superior.

A seu lado estava uma enfermeira jovem, de rosto tenso e pálido.

‑ Precisam de mais um par de mãos? ‑ perguntou Zack, quando Norman se afastou da cama.

O homem olhou para Annie e abanou a cabeça.

‑ Não, obrigado, doutor ‑ respondeu. ‑ Estou quase a terminar.


‑ Ela está bem?

‑ Se quer saber se ela vai morrer, a resposta é não... pelo menos, esta noite. Desde que introduzimos um tubo intravenoso e lhe demos um pouco de medicamento, a pressão subiu. Mas ela piorou do seu velho problema coronário. Não há muitas dúvidas quanto a isso. E julgo que já sabe que ela fracturou a anca.

Ela piorou do seu velho problema coronário. Ela fracturou a anca. A declaração insensível de Norman ‑ a dedução implícita de que Annie era responsável pelo seu próprio azar ‑ reacendeu instantaneamente a antipatia que Zack sentira pelo homem durante a primeira entrevista que tivera com ele muitos meses antes.

Contudo, não se podia discutir a verdade da análise cruel da situação e o prognóstico. Pneumonia, trombose, embolia, falha cardíaca; enquanto que os ortopedistas quase podiam fazer milagres com as ancas na sala de operações, os médicos e as enfermeiras sabiam demasiado bem que qualquer tipo de imobilização era o inimigo mais mortífero da idade avançada.

Zack aproximou‑se até cerca de meio metro da cama.

‑ O que ela diz faz sentido?

‑ Não. Somente uma misturada de palavras.

‑           Ataque cardíaco?

‑Penso que não.

‑           Há sinais de ter batido com a cabeça?

Norman ficou atrapalhado.

‑Eu... não cheguei a verificar ‑ respondeu. ‑ Como vê, neste momento não é fácil examiná‑la.

‑           Posso tentar?

‑           Tente o que quiser ‑ respondeu Norman em tom de desafio. Em seguida, olhou para a enfermeira.

Zack reparou no olhar e procurou ter cuidado para não fazer nada que pudesse envergonhar o homem. Pegou na mão de Annie. Instantaneamente, ela cravou‑lhe as unhas na palma.

‑ Ei, Annie, sua valente! Sou eu. Sou o Zack. Preciso dessa mão para os meus truques com moedas.

Ela olhou para ele, pestanejando como se estivesse a tentar ver através de uma névoa. Então, lentamente, abriu os dedos.

‑ Reconhece‑me? ‑ perguntou Zack, apressando‑se a fazer um exame neurológico.

Annie não respondeu.

‑ Bem, penso que sim. ‑ Examinou‑a tentando ver se havia algum alto na cabeça e inchaços no pescoço. ‑ Costumava limpar‑me o nariz e arrastar‑me para a casa de banho para lavar atrás das minhas orelhas. Lembra‑se disso?

Embora não tivesse a certeza de Annie o ter reconhecido, sem dúvida que as suas palavras a acalmaram. Ela manteve‑se quase imóvel enquanto ele lhe examinava os ouvidos e os olhos.

‑           Então? ‑ perguntou Norman, com os braços fortemente cruzados sobre o peito.

Zack afastou o cabelo grisalho da testa de Annie.

‑ Não tem quaisquer sinais neurológicos focais. Vamos até ao posto de enfermagem para conversarmos, está bem?

‑ Não... se importa que eu oiça? ‑ perguntou a enfermeira, fazendo uma pausa entre as palavras para aclarar a voz.


‑           Por mim não há problema, se o doutor Norman não se importar.

Norman hesitou e depois abanou a cabeça.

‑           Ainda não nos conhecemos ‑ continuou Zack. ‑ Chamo‑me Iverson, Zack Iverson. Sou o novo neurocirurgião deste estabelecimento.

‑           Sou a Doreen Lavalley ‑ afirmou ela. ‑ A Annie era

minha doente no quarto andar. Estou triste com o que aconteceu. Nós tínhamo‑la tapado com o lençol e puxado as barras de protecção para cima. Ela... borrou‑se. Julgo que estava a tentar ir à casa de banho quando caiu. Estávamos todas a tratar de um doente recém‑operado que tinha começado a sangrar; e a nossa visita de rotina atrasou‑se quase uma hora e... nós estávamos... mordeu o lábio inferior e desviou o olhar.

‑ Continue ‑ pediu Zack, enquanto saíam do cubículo em direcção ao posto de enfermagem.

Por um momento, pareceu que a jovem enfermeira estava prestes a chorar. Então, surgiu‑lhe no olhar uma faísca de fúria misturada com angústia.

‑ Raios ‑ disse. ‑ Eu sabia que ia acontecer uma coisa destas.

‑           O que quer dizer com isso?

Ela olhou para Donald Norman e em seguida voltou‑se para Zack.

‑           Somos poucas ‑ respondeu. ‑ É isso que quero dizer. Somos poucas enfermeiras em cada turno e em cada andar, excepto aqui na unidade. Já é assim há mais de um ano. Primeiro, eles livraram‑se do sindicato, fazendo‑nos promessas de aumento de salário, beneficios e coisas do género. Depois, lentamente, para que nenhuma de nós pudesse organizar‑se para se queixar, eles começaram a reduzir o número de enfermeiras. Eu sabia que ia acontecer uma coisa destas. Eu sabia... ‑ Fechou os punhos em sinal de frustração.

‑           Quem são "eles"? ‑ perguntou Zack.

‑ O hospital, quem mais... a administração... Mister Iverson... - Parou a meio e olhou atrapalhada para Zack. ‑ Oh, muito bem... Continua Doreen... E... é seu irmão?

Zack anuiu.

‑           Peço‑lhe desculpa ‑ pediu ela.

‑ Não peça. Don, você é o director do corpo clínico. Os médicos sabem disto que está a passar‑se?

O rosto de Norman estava vermelho de fúria. Contudo, a sua indignação era dirigida não à situação, mas à enfermeira.

‑ Se Miss Lavalley tem queixas contra o hospital ou a forma como é dirigido ‑ disse, quase de costas voltadas para ela ‑, há canais estabelecidos que ela pode utilizar para dar voz a essas preocupações. Já trabalha aqui há anos suficientes para saber disso... e saber também que atirar para o ar os seus distorcidos pontos de vista no meio desta unidade de cuidados intensivos, não é um desses canais. Bem, doutor, se não se importar, diga‑me qual é a sua opinião sobre Mistress Doucette para que eu possa continuar a tentar salvar‑lhe a vida.

A mulher percebeu a repreensão de Norman, mas nada disse.

Zack lutou contra a vontade de a defender e conseguiu uma ligeira vitória. O assunto em mãos era fazer o diagnóstico de Annie Doucette, tratá‑la e mantê‑la estável. As acusações da enfermeira, apesar de perturbadoras, podiam esperar.


Pensou telefonar para Suzanne, mas depressa afastou a ideia. Pelo menos de momento, o padrão do monitor de Annie estava regular, e Donald Norman, tão melindroso quanto estúpido, não parecia ser homem para agradecer qualquer intromissão na sua autoridade.

‑ Então? ‑ perguntou Norman, impaciente.

‑ Bem, não há sinais de ataque cardíaco ou de trauma cerebral ‑ disse Zack ‑, mas ela está nitidamente desorientada. Acho que se eu tivesse de colocar uma etiqueta no que está acontecer, diria que ela perdeu a noção das coisas. - Pelo canto do olho, Zack viu Doreen Lavalley concordar vigorosamente com a cabeça.

Perder a noção das coisas não era um diagnóstico

no verdadeiro sentido da palavra. Contudo, para qualquer pessoa que lidasse com doentes idosos e hospitalizados, a desorientação e o comportamento psicótico provenientes de ambien tes desconhecidos e da redução da sensibilidade nocturna eram um fenómeno tão real e previsível quanto um estreptococc.

‑ Excelente ‑ disse Norman, com uma expressão e tom de voz que deixavam claro que Zack nada tinha acrescentado ao seu diagnóstico. ‑ Bom trabalho. Olhe, doutor, dite uma recomendação que eu anoto no gráfico dela um pedido formal para consulta. ‑ Desenrolou as mangas e pegou no casaco. - Se não houver mais nada, vou ver outro doente. Passarei aqui quando estiver de saída.

Zack, que examinava o gráfico de Annie, não respondeu.

‑ Está à procura de quê? ‑ perguntou Norman.

- De uma explicação.

‑ Para quê?

Zack levantou os olhos.

‑ Don, esta mulher está aqui há quase duas semanas, durante as quais esteve sempre no seu juízo perfeito. Não acha um pouco estranho que ela esperasse tanto tempo para perder a noção da realidade?

‑ Pensando bem ‑ respondeu Norman ‑, é melhor esquecer a consulta. Conversaremos sobre tudo isto amanhã de manhã.

- Está aí, doutor Iverson ‑ disse a enfermeira. Norman atirou‑lhe um olhar fulminante.

O que é que está aqui? ‑ perguntou Zack.

- A explicação. Veja a folha dos medicamentos.

- Dê‑me o gráfico ‑ exigiu Norman. ‑ Miss Lavalley, não sabe reconhecer uma coisa boa quando a tem nas mãos, não é assim? Saia imediatamente daqui. Amanhã falarei consigo.

‑ Pode falar comigo hoje, doutor Norman, porque já o aturei o suficiente. Eu demito‑me.

- Haldol! ‑ exclamou Zack, dando um murro na folha. - Por que raio lhe deram Haldol?

A enfermeira já não podia conter a fúria.

- O doutor Norman, perdão, Don ‑ corrigiu em tom doce ‑, mandou dar‑lho na terça‑feira, quando ela foi contra a ideia de transferi‑la para uma casa de saúde. Ele chamou‑lhe rabugenta.

‑           Maldita ‑ gritou Norman, o rosto agora inchado e roxo.

-Uma casa de saúde? Norman, você está louco?

- Quem é que está louco? ‑ Frank Iverson, de mãos nas ancas, acabara de entrar na unidade.


Zack esfregou os olhos para afastar as marcas de fadiga e tensão que começavam a notar‑se.

‑ Todo este estabelecimento, aí está! ‑ respondeu a ninguém e a todos ao mesmo tempo. ‑ Tudo isto é de loucos.

- Calma, Zack ‑ avisou Frank. ‑ Mantém a calma. Como está a Annie?

Zack baixou a mão e olhou para o irmão.

‑ Está louca. É como ela está. Está louca porque, nos últimos cinco dias, recebeu um tranquilizante muito forte. Os niveis sanguíneos subiram e ela afastou‑se cada vez mais da realidade até que, provavelmente, ficou sem saber onde estava quando tudo isto aconteceu. Perdeu o controlo dos intestinos e tentou rastejar até aos pés da cama para ir à casa de banho, altura em que caiu. Aqui a enfermeira disse‑me que não foram vê‑la quando deviam, porque tem havido uma tal redução de pessoal que elas são poucas para tudo. Que raio de lugar é este, Frank?

- acho melhor regressar ao meu andar ‑ disse Doreen em voz baixa. ‑ Mister Iverson, o meu pedido de demissão estará no gabinete da enfermaria amanhã de manhã. - Sem esperar pela resposta, deu meia volta e saiu.

‑ Don, que raio se passa aqui? ‑ perguntou Frank.

‑ O que se passa é o seu irmão ‑ respondeu Norman. - Entra por aqui dentro, começa a examinar a minha doente sem sequer lhe ser pedido, obriga a enfermeira a fazer declarações precipitadas sobre o hospital e depois acusa‑me de ter feito a mulher cair. ‑ Virou‑se para Zack. ‑ Você tem arranjado sarilhos desde o dia em que aqui entrou e não julgue que todos nós não sabemos. Este hospital precisa de trabalhos de equipa, Iverson. Você é um empecilho. Tudo corria sobre rodas no Ultramed‑Davis até você aparecer e tudo voltará a correr depois de se ir embora.

‑ Não vou para lado algum ‑ afirmou Zack.

‑ Não o tenha como certo ‑ replicou Norman.

‑ Calma, vocês os dois ‑ disse Frank. ‑ Em primeiro lugar, digam‑me se a mulher que ali está vai morrer esta noite?

‑ Esteve quase ‑ respondeu Norman. ‑ Mas consegui pôr tudo sob controlo. Está um pouco desorientada, mas não corre um risco imediato. Vamos esperar uns dias para permitir que a sua situação cardíaca se acalme. Depois, o Sam Christian cuidará da anca.

‑ Zack?

‑O que foi?

‑ Achas que é assim?

‑ Acho ‑ respondeu Zack, aborrecido, ainda com a cabeça apoiada numa mão ‑,, acho que se devia chamar a Suzanne para tratar da Annie. É o que eu acho.

‑ Só por cima do meu cadáver, seu filho da puta arrogante ‑ atirou Norman.

‑ Cuidado, Don ‑ avisou Zack. ‑ Está a referir‑se à mãe do Frank.

‑ Vocês os dois querem fazer o favor de parar? Há enfermeiras e doentes por todo o lado. Agora, Don, mandou dar algum tranquilizante á Annie ou não? E, pelo amor de Deus, fale em voz baixa.

Donald Norman começava a perder o pouco controlo que ainda lhe restava.


‑ Em primeiro lugar, Frank ‑ disse ‑, agradeço que não me diga como devo ou não falar. Em segundo lugar, agradeço‑lhe a si e ao seu irmão que não questionem a terapia que escolho para os meus doentes. Você pode ser o administrador, mas eu sou o director do corpo clínico.

Frank avançou até o seu rosto ficar a um palmo do de Norman. Os olhos pareciam de aço.

‑ Donald, basta um telefonema meu, um só ‑ disse, apontando‑lhe um dedo para dar ênfase ‑, e terá sorte se lhe derem um lugar para esfregar as arrastadeiras. Devia saber isso. E, se julga que não tenho esse poder na Ultramed, desafie‑me. Agora, pegue nesse disparate de ser director do corpo clínico e enfie‑o pelo cu acima. Depois, diga‑me em que raio estava a pensar quando pôs a Annie Doucette sob tranquilizantes?

‑ Sim, Don ‑ intrometeu‑se Zack, em tom brusco. ‑ Diga‑lhe.

‑ Zack, queres fazer o favor de fechar a merda da tua boca por um minuto e deixar‑me ir ao fundo da questão?

Norman estava visivelmente intimidado.

- Frank ‑ defendeu‑se. ‑ Só estava a seguir a política da casa. As verbas para diagnóstico da mulher estão prestes a terminar. Tenho uma cama reservada para ela na casa de saúde. É suposto eu fazer isso. Quando lhe disse o que estava planeado, ela ficou louca de raiva. Exigiu mais tempo no hospital. Isso estava fora de questão. Você conhece as regras tão bem quanto eu.

‑ Que regras? ‑ perguntou Zack.

Frank ignorou‑o.

‑ Por isso, deu‑lhe sedativos ‑ afirmou. ‑ Meu Deus, Don Raios, ela trabalhou para a minha família. Não podia ter-me chamado?

- não achei necessário.

‑ Que regras? ‑ perguntou Zack de novo.

‑           Sim, que regras?

Os três homens voltaram‑se para a voz que se ouvira. Clayten Iverson encontrava‑se a alguns passos, calmamente avaliando‑os a todos. A expressão não era ameaçadora, mas Zack percebeu a fúria escondida sob o olhar.

‑ Juiz ‑ disse Frank. ‑ O senhor disse que esperaria lá fora com a mãe.

‑ Fiquei impaciente.

- bem, é uma boa resposta. Julgo que não é novidade para ninguém que no hospital nem sempre podemos estar de acordo em tudo. Certo?

‑ Certo.

Frank sorriu tentando mostrar uma certa animação, mas Zack sabia o quanto ele estava perturbado.

‑ Aqui o Don disse‑nos que a Annie ainda está desorientada, mas que a situação já está estabilizada. Não é assim, Zack? Oiça, juiz, porque não vai buscar a mãe? Está a fazer‑se tarde e tenho a certeza que os dois querem ir para casa.

O juiz encarou‑o numa breve confrontação de olhos nos olhos, a qual Frank suportou com facilidade.

‑ Está bem, Frank ‑ respondeu Clayton, calmamente. - Desde que tudo esteja sob controlo.

‑ O Don é um excelente médico, juiz, e a Annie está a ser muito bem tratada. Não é assim, Zack?


- É! ‑ Zack quase se engasgou com a palavra.

‑ Don, venha ‑ disse Frank. ‑ Você e eu vamos rever uns assuntos, antes de dar o dia por terminado.

Sem esperar pela resposta, Frank pegou num braço de Norman e levou‑o para fora da unidade.

- O que é que conseguiu ouvir, juiz? ‑ murmurou Zack.

Clayton Iverson olhou para Annie, que tentava desajeitadamente soltar a correia que a prendia à cama.

‑ Basta, Zachary ‑ ordenou. ‑ Ouvi o suficiente. Amanhã vou mandar enviar a carta para a Leigh Baron. Vais convencer‑me do contrário?

De novo, Zack esfregou os olhos devido ao ardor que sentia. Mesmo diante daquela nova realidade, era doloroso aceitar que a promessa do Ultramed‑Davis ‑ o brilhante estabelecimento bem equipado e o avançado tratamento médico passava de verniz. Por baixo do brilho, do novo equipamento, dos novos especialistas e do esforço intensivo das relações públicas, o hospital não tinha alma.

‑ Não, juiz ‑ disse, por fim. - Amanhã, vou deixá‑lo dar uma vista de olhos ao material que o Guy juntou contra a Ultramed. Vá em frente e faça o que achar melhor. Não vou tentar demovê‑lo de nada.

Zack esperou que o juiz saísse e depois telefonou para Suzanne.

‑ Zachary, sabes que horas são? ‑ perguntou, sonolenta.

‑Ah... não ‑ disse ‑, mas dá‑me um minuto e verei se encontro alguém que saiba.

‑ Não tem graça.

‑ Desculpa. Não pareces muito animada.

- Não estou. Tenho uma terrível dor de cabeça e os sessenta miligramas de Dalmane mal me tinham feito adormecer quando ligaste.

- Mais uma vez, desculpa.

- Eu preciso mesmo de descansar. Querias alguma coisa de especial?

- Não ‑ mentiu. ‑ Nada de especial. Apeteceu‑me saber como estavas.

- Oh... bem, podes telefonar‑me de manhã?

- Claro.

‑ Obrigada. Tenho de me deitar antes que este Dalmane se esgote.

‑óptimo...

O som da linha cortou‑lhe as palavras.

 

A atmosfera do pequeno chalé que Zack alugara à Pinehough Realty manteve‑se acolhedor e confortável devido ao aroma produzido por décadas de lenha a arder.

Era uma da manhã. Sentado numa poltrona já velha junto á lareira apagada, Zack deu um gole no chá Constant Comment, coçou distraidamente o ponto atrás da orelha de Cheapdog e esperou.

Frank pedira‑lhe que ficasse acordado para conversarem e prometera‑lhe ir ter a sua casa de imediato. Mas Zack sabia que o irmão nunca fora a lado algum senão no horário do próprio Frank Iverson.


Na verdade, pouca diferença fazia a hora a que ele chegasse. Zack estava demasiado alterado com os acontecimentos da noite para conseguir dormir. Os seus sentimentos ‑ desapontamento, fúria, frustração ‑ eram estranhamente semelhantes aos da horrível noite em que Connie por fim lhe comunicara a decisão de quebrar o noivado e não querer acompanhá‑lo para New llampshire.

‑ Não era suposto as coisas acontecerem assim, Cheap - afirmou. ‑ Não era suposto serem nada assim.

Uma grande parte do seu ser queria pegar em tudo e desaparecer dali, meter tudo na carrinha e regressar ao Municipal de Bóston. Apesar de lhe pagarem mal e trabalhar sem parar, pelo menos o lugar tinha coração. Em resumo, não havia mais nada senão pessoas doentes ou magoadas e uma equipa de enfermeiras, especialistas e médicos determinada em ajudá‑las a curar.

Porém, mesmo ao ouvir o ruído do Porsche do irmão sobre o cascalho da rua, Zack percebeu que iria continuar ali. Por Suzanne e pelas montanhas; por Guy, Toby Nelrus e todas as Stacy Milís que ainda lhe aparecessem na vida, teria de resolver tudo.

A visita de Frank não foi muito demorada.

Já tinha começado a falar mesmo antes de fechar a porta do condutor.

- Meteste‑me num grande sarilho esta noite, Zack ‑ disse ofegante. - Meteste‑me num verdadeiro sarilho.

- Senta‑te, Frank. Queres beber alguma coisa? Um chá? Uma cerveja?

Nesse momento, Zack apercebeu‑se do odor a uisque e notou os raios finos e avermelhados no canto dos olhos de Frank.

- Não quero nada a não ser o raio de um pouco de lealdade e ajuda do meu irmão - disse Frank, sem fazer um movimento para se sentar. - Uma boa enfermeira pediu a demissão; o meu pai, que por acaso também é o presidente do conselho de directores do hospital, está furioso; e o meu director do corpo clínico quer dar‑me um tiro, para já não dizer o que te

fazer a ti. Que maravilha, Zachary. Foi um belo trabalho nocturno.

- Calma, Frank! Está bem?

- Não, raios! Não está nada bem. O Norman tem razão. Desde o primeiro minuto do teu regresso, só tem havido problemas. Fazes‑te de Sir Lancelote por todo o maldito hospital, estás a minar a minha autoridade e as políticas da Ultramed e até andas a namoriscar a minha mulher. Pelo amor de Deus!

- Que ridículo! Frank, estiveste a beber. Porque não vamos dormir os dois e falamos disto amanhã?

- Eu falo hoje - respondeu Frank.

Talvez por ter visto ou ouvido o suficiente, Cheapdog rosnou ligeiramente e, algures por baixo das franjas, arreganhou os dentes.

Zack olhou para o animal. mas não tentou calá‑lo. Com

Frank já totalmente descontrolado, Cheapdog era um seguro contra uma explosão. Que o cão era basicamente um cobarde, continuaria a ser o seu segredo.

- Está bem - disse, aborrecido. - Então, fala.

Frank andava de um lado para o outro, abrindo e fechando os punhos, para depois esfregar as mãos nos lados das calças.


- Há já quatro anos, desde que caíste naquela encosta de esqui e que eu fui para o Cobrado, que estás à espera da oportunidade para te vingares de mim, para me arruinares. Sentado na bancada todos aqueles anos a gritar e a aplaudir juntamente com os outros e, ao mesmo tempo, a odiar‑me por não conseguires ficar de pé nos esquis...

- Frank, que disparate.

Tentando imaginar o quanto Frank poderia ter bebido, Zack só pôde ajeitar‑se na cadeira e ficar a ver.

- Eu disse‑lhes que as coisas estavam a correr bem por aqui - continuou Frank. - Eu disse‑lhes que não precisávamos do raio de nenhum neurocirurgião e muito menos de ti. Pois, deixa‑me dizer‑te uma coisa, Zack. Doidos mais duros do que tu tentaram foder‑me. Onde é que eles estão agora?

Deu uma volta e apontou um dedo à cara de Zack. Pelo canto do olho, Zack viu Cheapdog rosnar de novo.

- Agora ouve‑me, mas ouve‑me bem - incitou Frank. - Ou as coisas mudam por aqui, ou tu vais‑te embora. Trabalhei demasiado para conseguir pôr este lugar como eu quis. Não vou agora deixar que alguém estrague tudo, em especial alguém com uma raiva de vinte anos ao ombro. Por isso, recua. Deixa em paz o pessoal, o juiz e a Lisette, ou juro, Zack, que cairei em cima de ti como uma tonelada de tijolos.

Sem esperar pela resposta, rodou os calcanhares e abandonou a casa. Momentos mais tarde, ouviu‑se o Porsche a afastar‑se.

Zack deixou‑se ficar sentado, completamente incrédulo. Um acidente de esqui ocorrido há vinte anos; um romance inocente e insatisfeito dos tempos de liceu. Frank estava meramente bêbedo e cansado, ou verdadeiramente louco?

Deixa em paz o pessoal. Noutras circunstâncias, o aviso teria passado despercebido. Mas agora nem sequer havia espaço para diálogo ou táctica. Um rapaz de oito anos estava a caminho da insanidade ou possivelmente da morte e, consciente ou não alguém do Ultramed‑Davis sabia por que motivo.

 

Zack olhou para o relógio. Já passava das duas. Pegou num livro de palavras cruzadas que seriam suficientes para lhe fazer vir o sono e foi para o quarto.

O que ele precisava agora, mais do que qualquer outra coisa, era de dormir um pouco; porque com ou sem avisos, com ou sem Frank, ele tinha de obter algumas respostas... a começar por Jack Pearl... dentro de menos de sete horas.


 

Os cirurgiões estagiários do Municipal de Bóston referiam‑se tradicionalmente à exaustão como o "Muro" o momento em que um médico deixa de actuar, sem qualquer eficácia criativa. Ao longo de todo o estágio estava‑se perto do Muro, encostado a ele ou, quando se operava somente à base de cafeína e energia nervosa, atrás dele.

às seis horas e quarenta e cinco minutos, quando o rádio‑despertador começou a tocar os dois últimos versos de uma versão de Âu Clair de la Fontaine, Zack lembrava‑se perfeitamente de ter visto o piscar das três, quatro e cinco horas no mostrador digital. O candeeiro da mesinha‑de‑cabeceira ainda estava aceso. O livro de palavras cruzadas, preenchido em cerca de uma dúzia dos cento e trinta artigos, estava aberto sobre o peito. O lápis ainda estava entre os dedos.

Do outro lado do quarto, pronto para começar o dia, Cheapdog erguia‑se sobre as patas de trás, com as da frente apoiadas no beiral da janela e a cauda a abanar com a perspectiva de poder juntar‑se à agitação do quintal.

Não era suposto ser assim.

O primeiro pensamento da manhã era igual ao último que Zack se lembrava de ter tido na noite anterior.

Conselhos de directores... reaquisições do hospital... regras sobre o tempo de permanência... políticas sobre quem pode ser admitido e quem não pode... inimigos... aliados... bens imóveis... Circulos Dourados... directorias com as mesmas pesSoas... como se as tensões, as pressões e as crises da medicina quotidiana não bastassem.

Talvez o verdadeiro vilão da história não fosse Frank, o juiz, Norman ou até mesmo a Ultramed, pensou. Talvez fosse a sua própria ingenuidade, as suas noções idealistas da doença e da lesão e da arte de curar. Talvez fosse isso que precisava de ser rectificado.

Emocional e fisicamente esgotado, entrou na casa de banho para se barbear e tomar um duche, fazendo uma pausa para tirar uma moeda de vinte e cinco cêntimos da parte de trás da orelha de Cheapdog, antes de o deixar sair.

Sabia que o Muro estava apenas a algumas horas de distância.

 

Salvo a única bibliotecária, a sala de arquivo do Ultramed‑Davis estava deserta. Faltando ainda trinta minutos para o encontro com Jack Pearl, Zack decidiu dar uma última vista de olhos ao gráfico de Toby Nelrus.

Embora ainda se sentisse entorpecido e esgotado devido á loucura da noite anterior, pelo menos a manhã tinha começado bem.

Depois de prender Cheapdog à corrente, escolhera um percurso até ao hospital que passava por um vasto campo de lírios, alfazema e margaridas amarelas. Durante anos, Annie Doucette mal deixara passar um dia sem colocar flores frescas sobre a mesa de jantar e a lareira da casa dos Iverson. Durante a sua hospitalização, a família tentara ao máximo retribuir a atenção.

Apanhando um ramo grande, Zack divertiu‑se a fazer cartões que gostaria de juntar à jarra do cubículo da UCI.


Para Annie, com as minhas mais sinceras desculpas. Ultramed... Para Annie, a minha doente temporária: de Don, o seu médico temporário. Como retribui ção pela sua humilhação, ataque cardíaco e fractura da anca.

Em profundo contraste com o caos surrealista das primeiras horas da manhã, a unidade estava iluminada e tranquila.

Annie, com o Haldol já quase todo fora do organismo, estava totalmente consciente e até mesmo com uma certa boa disposição. Embora estivesse ensonada por causa dos analgésicos para a anca, falou pormenorizadamente do filho e dos netos, assim como da família de Zack. Das trinta e seis horas precedentes á queda não se lembrava de nada, a não ser a sua determinação em não ser mandada para nenhuma "casa de saúde da morte".

Pelo menos de momento, o livro de receitas de cardiologia de Donald Norman provara ser adequado, e o estado de Annie, embora continuasse a exigir cuidados, não era crítico.

Em termos gerais, Zack saiu da unidade com a sensação de que, se alguém com a idade dela conseguisse ultrapassar as experiências penosas que estava a passar, esse alguém era Annie Doucette.

A bibliotecária da sala de arquivo, uma jovem morena de olhos expressivos quase no fim da gravidez, pareceu feliz por ter companhia.

Zack pediu o registo de Toby e levou‑o até um dos muitos recantos de estudo, forrados a fórmica.

A pasta de papel‑manilha que pousou de lado continha as anotações e o monte de artigos que ele começara a reunir sobre as complicações mais obscuras das duas anestesias que o rapaz recebera. Nenhuma das fontes ofereceu uma única pista sobre a sua condição bizarra.

Palavra a palavra, ainda mais meticuloso do que em tentativas anteriores, examinou o gráfico. O passado da família ‑ nada de notável; o passado clínico ‑ imunizações e doenças normais da infância, nada mais de importância; exame físico normal, excepto uma hérnia inguinal; anotações da operação e anestesia rotina. Anotações das enfermeiras: "O doente saiu da SO para a sala de recuperação acordado, alerta e a sorrir; sinais vitais normais, nenhum indício de depressão respiratória; popilas iguais e reactivas; pulmões limpos."

Notável. Absolutamente notável. Zack leu e releu as anotações. A estada total de Toby na sala de recuperação durara menos de trinta minutos.

Pediu o gráfico de Suzanne. A anestesia e as doses dela, ajustadas ao peso, eram virtualmente idênticas às de Toby; tal como eram as anotações das enfermeiras da sala de recuperaÇão. Tempo total na sala de recuperação: quarenta e cinco minutos.

O embrião de uma ideia começou a enraizar‑se. Zack verificou as horas. Quinze minutos até à reunião com Jack Pearl.

- Desculpe - pediu à bibliotecária - estes registos estão

totalmente computadorizados?

- Os dos últimos cinco anos, sim - respondeu ela, pousando de lado o romance que estava a ler. - Julgo que estão a trabalhar nos cinco anos anteriores.

- Bem, suponha que eu queria uma listagem, digamos, de todos os doentes que foram operados á vesícula nos últimos três anos?


- Não há problema. Colecistectomia é um dos nossos códigos, três nove oito dois, julgo eu.

- E aqueles em que o doutor Pearl foi o anestesista? - A mulher consultou o manual.

- Doutor Jack Pearl. Médico nove um quatro. Posso obter‑lhe a impressão num minuto, mas levará mais tempo para tirar os gráficos. - Ela tocou na barriga. - Como vê, caminho por dois.

- Está no último mês?

‑ Nas últimas duas semanas, espero.

‑ Bem, se for muito trabalho...

‑ Não, não. Ambos precisamos de exercício.

‑ Detesto complicar‑lhe as coisas, mas pode tirar‑me já as primeiras? Eu voltarei mais tarde, digamos, daqui a uma hora, para ver o resto, está bem?

‑ Com certeza. A esta hora do dia, este lugar não é propriamente barulhento.

Ela estava já a carregar nas teclas do computador para dar instruções.

às oito e meia, Zack já tinha examinado nove dos trinta e um gráficos. Colocou na sua própria pasta os documentos que tirou e prometeu regressar para ver o resto. Apesar da falta de sono, sentia‑se enérgico, estimulado e muito atento.

A sua ideia não lhe fornecera respostas definitivas. Mas agora sabia que tinha finalmente algumas e boas perguntas.

 

Se Jack Pearl tinha feito alguma tentativa para arrumar o gabinete antes da chegada de Zack, fracassara completamente. O reduzido espaço sem janela, entre as salas de operações e a sala de recuperação, estava repleto de jornais e pedaços de papel e cheirava bastante a café e tabaco. Os cinzeiros meio cheios, um deles com uma beata ainda a arder, enfeitavam dois cantos da secretária, e havia caixas de lenços Kleenex envolvidas em celofane espalhadas por todo o lado.

O próprio Pearl, que vestia uma camisola toda amarrotada, estava quase escondido atrás das pilhas de revistas, livros e blocos de apontamentos que se encontravam sobre a secretária. A mão que estendeu era cadavérica.

Por melhor anestesista que Pearl fosse, era difícil a Zack imaginar como é que o seu exigente irmão tinha contratado um homem daqueles.

‑ Bom ‑ disse Pearl, a voz soando a uma mistura entre Peter Lorre e, talvez, Carol Channing ‑, vejo que também é um madrugador.

‑ Na verdade, sou mais uma pessoa do meio da tarde - replicou Zack. ‑ Obrigado por ter arranjado tempo para me atender.

‑ Não tem de quê. Quer um café? Há uma máquina mesmo ao fundo do corredor.

‑ Não. Seja como for, obrigado.

Zack reparou numa cafeteira suja, colocada na extremidade de uma prateleira da estante, mas não viu vestígios de filtros ou de café.

‑ Então, Iverson, o que deseja?


Pearl, que fungava com intervalos de vinte ou trinta segundos, apagou o que sobrava do cigarro aceso enquanto acendia outro. Era um homem que estava sempre a mexer‑se, ora a limpar o nariz, ora a fumar e a revolver os papéis da secretária. Zack achou que também era um pouco efeminado.

Apesar de terem tratado juntos de um caso e conversado brevemente depois da operação de Suzanne, esta era a primeira vez que tinham uma conversa mais substancial.

O gabinete, apesar da desordem, era de certo modo despido e estéril. Não havia diplomas nem certificados nas paredes e nenhuma fotografia ou recordação nas prateleiras. Zack sentiu de imediato uma imensa curiosidade pelo pequeno homem, mas tinha abandonado a ideia de qualquer conversa trivial... incluindo perguntas inofensivas sobre o seu passado. Nada nos modos de Pearl incitava a uma conversa desse género.

‑ Preciso de falar consigo sobre um caso - começou Zack.

‑ Está bem, vamos lá.

‑ Trata‑se de um rapaz de oito anos, chamado Toby Nelrus. O Jason Mainwaring operou‑o há cerca de um ano a uma hérnia. Você deu‑lhe a anestesia.

‑ Não me diz nada ‑ afirmou Pearl.

‑ Está aqui uma fotocópia de quase todo o gráfico dele.

Zack entregou a cópia e esperou que Pearl acabasse de ler tudo.

‑ Parece‑me muito um caso de corte e seca. ‑ Pearl hesitou e depois levantou a cabeça, intrigado. ‑ Corte e seca. Até parece uma anedota, não acha? ‑ Pensou um pouco mais. ‑ E uma anedota bem engraçada, se me permite a expressão. Muito engraçada mesmo.

A gargalhada parecia mais um cacarejo. Zack sorriu, mas nem sequer tentou imitá‑lo.

‑ Pentotal e isoflurano. É a rotina para casos como o do Toby?

‑ Rotina rotineira... ‑ respondeu Pearl. ‑ Porquê?

‑Bem... ‑ Zack esfregou o queixo e, em silêncio, contou até cinco. ‑ Tenho motivos para crer que o miúdo não estava a dormir durante a operação.

Os desatentos olhos de Pearl começaram a pestanejar.

‑ Que ridículo! ‑ afirmou bruscamente.

‑ Talvez, mas penso que é verdade. Ele lembra‑se de pormenores da operação e não há motivos para que assim seja. E, para tornar as coisas ainda mais interessantes, desde há cerca de seis meses que ele revive toda a operação.

Pearl ficou estupefacto.

‑O quê?

‑ Ele vive factos em retrospectiva, nos quais volta a ser operado, só que de um modo aterrador e distorcido. É como se os seus receios se fundissem na verdadeira operação. Em vez de ser operado à hérnia, cortam‑lhe e voltam a cortar‑lhe os testículos e o pénis. E de cada vez, Jack, ele sente a dor. Por completo.

‑Isso... é uma loucura.

‑ É?

‑ Claro que é. ‑ Nervoso, Peari fumou o cigarro e depois assoou o nariz. ‑ Ele está a mentir, ou... vê televisão a mais.

‑ Não acredito nisso, Jack. Nem tão‑pouco os pais do rapaz. Estão muito perto de meter uma acção contra o hospital e, presumo, contra você e também o Mainwaring.

‑ Está a incentivá‑los para isso?

‑ Raios, não. Pelo contrário.

‑ Bem, graças a Deus ‑ murmurou Pearl.


‑ Mas estou decidido a ir ao fundo da questão. É por isso que aqui estou. O miúdo está muito doente devido ao que tem passado. Muito doente. Na verdade, pode estar a morrer.

Pearl assobiou baixinho através dos dentes.

‑ Bom ‑ disse ‑, não posso ajudar muito, excepto dizer‑lhe que seja o que for que esteja a acontecer, nada tem a ver com a anestesia. Tratei de milhares de casos exactamente com o mesmo produto que este rapaz e... nunca aconteceu nada do género. Nada.

- Tanto quanto sabe ‑ corrigiu Zack. A expressão de Pearl era estranha.

Zack tentou comparar a reacção com as que tinha previsto. Fúria? Arrogância? Confusão? Preocupação? Defesa? Nada daquilo pareceu coincidir. Contudo, algo estava errado. Disso tinha ele a certeza.

- O homem estava... estava o quê?

‑ Veja, Iverson... ‑ Pearl apagou o cigarro e pousou as mãos na secretária. O nervosismo parou. O olhar tornou‑se mais directo ‑ Quero ajudá‑lo, quero mesmo. Quero ajudar essa criança. Mas não há nada que eu possa dizer. Ele recebeu uma anestesia de rotina e sofreu uma operação de rotina. Tão simples quanto isso. Se quer ir ao fundo do que está a suceder, então tem de seguir outra direcção, está bem?

Nesse momento, Zack percebeu.

Os músculos tornaram‑se tensos. A sensação era muito familiar. Era como se estivesse numa encosta íngreme, á procura dos suportes e fendas que o ajudariam a atravessar o rochedo, e subitamente surgísse a linha perfeita.

A tentativa de Jack Pearl em parecer preocupado e prestável, fracassara redondamente. Ele estava assustado... absolutamente branco de medo.

Quanto mais se calava e acalmava, mais Zack percebia que ele estava a contorcer‑se. Algo estava a passar‑se. A sua lâmina tinha tocado num nervo. Agora, tinha chegado o momento de a torcer.

‑ Jack, estou interessado numa coisa ‑ afirmou. ‑ A Suzanne Cole estava completamente desperta quando chegou á sala de recuperação. As anotações das enfermeiras que estão no gráfico do Toby Nelrus dizem que ele também estava. Como é que consegue isso?

Pearl encolheu os ombros.

‑ Apenas presto atenção, é só. Controlo os sinais vitais com maior frequência do que a maioria dos anestesistas, para poder manter o nível exacto de anestesia. Uma subida da pulsação ou da pressão arterial e eu aumento ligeiramente o gás. É uma questão de experiência e técnica.

‑ Mas porque é que tudo indica que só emprega essa técnica e experiência nos casos do Mainwaring?

A mão do anestesista pegou, apressada, no maço de cigarros e voltou á posição inicial. Agora estava rígido, quando minutos antes não parava de se mexer.

- Isso é um disparate ‑ respondeu.

- As enfermeiras da sala de recuperação não pensam assim. Disseram‑me que os casos dele saem todos da sala de operação mais despertos que os dos outros.

- Iverson, onde é que você quer chegar?

Tem cuidado agora, alertou‑se Zack. Um passo de cada vez. Nada de escorregadelas.


‑Veja, Jack ‑ disse. ‑ Não quero criar problemas a ninguém. Só quero ajudar esta criança.

- Bem, atirar‑me dardos não vai ajudar ninguém. Você está a descascar a árvore errada. E, francamente, as suas incinuações começam a aborrecer‑me.

Zack suspirou.

- Escute, dê‑me só mais dois minutos e deixo‑o em paz. Só quero que veja isto e me dê a sua opinião.

Com o que esperava ter sido apenas um gesto teatral, Zack tirou os apontamentos que introduzira na pasta e entregou‑os ao anestesista.

Pearl olhou por instantes para o papel e pegou nos cigarros. As mãos tremiam‑lhe, e a respiração difícil apagou o fôsforo antes que este fizesse arder todo o cigarro.

- Mas que raio vem a ser isto? ‑ perguntou.

- Você sabe o que é, Jack. É um resumo de nove casos

de vesícula que você tratou nos últimos dois anos. Tenho cerca de mais vinte gráficos a serem tirados neste momento e suspeito que confirmam o que esta lista já sugere.

Pearl parecia doente.

‑E o que é?

‑ É que, Jack, para além de seguirem o mesmo processo de receberem, pelo menos segundo as suas anotações, precisamente a mesma quantidade de anestesia, os casos do Jason Mainwaring saíram da sala de operações como se não tivessem estado a dormir, enquanto que os do Greg Ormesby foram normais. Veja os tempos da sala de recuperação. Os casos do Mainwaring foram transferidos seis horas mais depressa do que os do Ormesby... Não receberam a mesma anestesia, Jack, ou receberam?

Era uma afirmação e não uma pergunta.

‑ Você é doido ‑ gritou Pearl, devolvendo o gráfico. - Esses doentes receberam exactamente o que eu disse. Bem, porque é que não pega neste... neste lixo todo e sai daqui?

‑ Está bem, Jack. Mas você sabe que não posso passar por cima disto.

As mãos de Pearl estavam de novo fortemente apertadas sobre a secretária.

‑ Faça o que quiser, Iverson. Não tenho de me preocupar com nada, porque não fiz nada de errado.

Pela primeira vez desde o inicio da sessão, Zack começou a ter algumas dúvidas. Um rapaz estava a morrer. Ele tinha colocado tudo sobre a mesa. E no entanto Jack Pearl, mesmo que soubesse de alguma coisa, recusava‑se a arredar pé. Estaria ele assim tão errado quanto à anestesia? Quanto a toda a situação? Ou seria o pequeno e pálido anestesista um monstro qualquer?

Apenas alguns minutos antes, as respostas pareciam estar tão perto. Agora...

‑ Seja como quiser, Jack ‑ disse, erguendo‑se. ‑ Sabe como me contactar, caso se lembre de alguma coisa.

‑ Isso não vai acontecer ‑ declarou Pearl. ‑ Por isso, leve toda esse tipo de caça às bruxas para outro lado.

‑ Ele tem oito anos, Jack. Oito anos.

‑ Saia daqui.


 

Frank Iverson gostava do Porsche 911 com uma paixão e intensidade tal que era superior ao que alguma vez sentira por um ser humano, incluindo as filhas. Ele acreditava que a ligação era espiritual ‑ o homem no seu melhor e a melhor máquina do homem, ligados no estilo, flexibilidade e velocidade. Na verdade, havia alturas, como aquela tarde de segunda‑feira de céu limpo e sem vento, em que ele tinha a certeza de que a máquina sentia o seu estado de espírito e reagia segundo este.

Com um Minuet, detector de radar para estrada, e um mapa

mental dos esconderijos favoritos da Polícia Estatal, desceu a

Estrada 16 em direcção à fronteira do estado de Massachusetts e a leigh Baron, conduzindo o Porsche através de curvas a cento e quarenta quilómetros por hora, só com a ponta dos dedos.

o telefonema da directora‑geral da Ultramed a marcar um encontro no Yarilcee Seaside Inn, logo a seguir à fronteira, tinha sido feito nessa manhã, apenas minutos depois de ter sabido através da Mãe do salto de dois lugares nas categorias nacionais. Era quase certo que estava iminente uma promoção qualquer... provavelmente para director regional.

o lugar do encontro, a uma hora para norte de Bóston, fora escolhido por sugestão de Leigh, que iria participar ali num seminário de directores... pelo menos, fora o que ela lhe dissera. Havia outras possibilidades, calculou Frank, excitado.

De vez em quando, ao longo dos quatro anos da associação, a espectacular ruiva tinha dado sinais de atracção por ele. Talvez agora, com o seu estatuto a subir como um foguete na companhia, ela estivesse pronta. E que recompensa incrível ela seria. Contar com Annette Dolan, dinheiro, poder e um cérebro para o secundar: a animação máxima para o novo director regional da Ultramed.

Director regional, pensou Frank. A hora não podia ser melhor. Com o dinheiro de Mainwaring depositado no banco e o pesadelo de manobrar as contas do hospital para esconder o défice de quarto de milhão de dólares quase para trás das costas, ele necessitaria da flexibilidade dos escritórios de New Hampshire e de Bóston para fazer alguns dos negócios que tinha em mente.

Embora a região nordeste não fosse a mais lucrativa da Ultramed, era a que crescia mais depressa. Ele trabalharia no centro de publicidade da corporação. A empresa tinha estabelecido o conceito de prestígio que o envolvimento com faculdades de Medicina existentes traria, e só em New Hampshire havia dez das mais respeitadas instituições. Na realidade, há apenas um ano, a Ultramed quase perdera por um triz a compra do estabelecimento psiquiátrico de uma universidade importante.

Se conseguisse que a empresa colocasse um pé nessa porta, ele podia muito bem emitir para si próprio um bilhete para o sucesso.


E, garantiu Frank a si próprio enquanto fazia o itinerário de Portsmouth e seguia para sul em direcção a Newburyport, o primeiro negócio que faria com a sua posição recém adquirida seria despedir do Ultramed um tal Zachary Iverson. Desde que fracassara redondamente no negócio de terras que não cometera muitos erros na vida. Mas permitir que o juiz e leigh Baron o convencessem a trazer Zack de volta a Sterling fora de longe o pior erro.

Frank fez uma curva de noventa graus para entrar na estrada paralela ao oceano. Pensou que talvez valesse a pena considerar a demissão de Zack como uma condição para aceitar o seu novo lugar. Ou leigh concordaria, ou correria o risco de o perder. Com certeza valia a pena considerar uma exigência dessas ‑ se não fosse agora, seria em breve. De qualquer modo, numa questão de meses, quando o seu envolvimento com a Ultramed fosse um pouco mais do que a cobertura de açúcar do seu bolo, ele teria esse tipo de influência.

E, tal como o juiz gostava de dizer e repetia vezes sem conta, a influência era o nome do jogo.

 

O Yankee Seaside, um hotel de três pisos construído num amplo V sobre a costa irregular, era luxuoso mas não extravagante. Frank foi à casa de banho dos homens para se ajeitar ao espelho ‑ como medida de prevenção ‑ e, em seguida, subiu a escada larga e circular até ao segundo andar.

A ideia da chamada de teigh Baron poder ser social, começou a dissolver‑se no momento em que ela abriu a porta.

A suite número 200 era uma sala de reuniões ‑ ricamente decorada, com uma lareira e uma área de conversação num extremo e uma mesa de conferências oval com cadeiras para dez pessoas, colocada no V. As enormes janelas de vidro laminado revelavam uma vista do Atlântico Norte de cortar a respiração.

A própria Leigh trazia um traje de trabalho, composto por um fato leve cor de vinho e uma blusa lisa. Os seus maravilhosos cabelos ruivos estavam apanhados em rabo‑de‑cavalo e trazia uns óculos com aros de tartaruga, que ás vezes eram substituidos por lentes de contacto.

Contudo, não havia penteado nem modo de vestir que pudessem esconder a sua fisionomia espectacular. E Frank prometeu a si mesmo que, fosse como fosse, eles seriam amantes. Se não acontecesse nesse dia, então seria noutro não muito distante.

‑ Frank, bem‑vindo ‑ disse, apertando‑lhe firmemente a mão e alertando‑o com os olhos contra qualquer outro tipo de contacto. ‑ Estou satisfeita que tenha conseguido vir com um aviso tão curto.

Talvez com cerca de um metro e sessenta, ela era mais baixa do que ele em mais de quinze centímetros, mas o porte e os modos neutralizavam a diferença.

Perante a frieza do cumprimento dela, Frank perdeu a firmeza e sentiu uma certa irritação crescer dentro dele.

‑ Você ligou, eu vim ‑ afirmou, ocupando um lugar na área de conversação, do outro lado de uma mesa de café em mármore colocada à frente dela. Apontou para a sala. - Bonita.

‑ Obrigada. Pertence‑nos.

‑ A Ultramed?

‑ A uma subsidiária, a Whiteside Travel Services.

‑ Whiteside Travel? Não sabia que pertencia á Ultramed.

‑ São poucos os que sabem.


Havia uma porta à frente daquela por onde Frank entrara e, apesar de tudo, não conseguia deixar de pensar na possibilidade de esta conduzir a um quarto. Estaria de acordo com o estilo dela, pensava ele; um cumprimento muito cordial, seguido da informação sobre a sua recente subida nos quadros da Ultramed e em seguida as palavras sobre a sua promoção. Subitamente, assim que a conversa parecesse ter chegado ao fim, ela levantaria um braço e soltaria o cabelo.

- Então, Frank ‑ começou, cruzando as pernas fenomenais e ajeitando intencionalmente a saia ‑, está com bom aspecto. Como têm corrido as coisas?

- Estão a correr bem ‑ respondeu, cauteloso. ‑ Tenho tido alguns problemas com o meu irmão, mas não é nada que não possa revolver desde que a senhora e a Ultramed me apoiem.

- Damos sempre apoio aos nossos administradores, em especial àqueles que têm um tipo de passado como o seu. Presumo que viu o novo salário que acabámos de introduzir na Mãe?

Frank sorriu. O passo dois da cena que imaginara estava a desenrolar‑se.

- Eu disse‑lhes que conseguia ‑ respondeu, sentindo uma onda de confiança.

- Não, Frank ‑ corrigiu ela. ‑ Eu é que lhe disse. lembra‑se? Quero que saiba que estamos todos muito satisfeitos com o trabalho que tem feito. Especialmente eu, visto ter sido eu quem primeiro viu o seu potencial e fez com que lhe dessem o lugar. Fico bem vista com o seu sucesso.

E com a minha promoção será vista ainda melhor, pensou ele.

O perfume que emanava dela, mesmo à distância, começou a encher‑lhe a cabeça, dificultando‑lhe a concentração. Ele seria o melhor... o melhor de todos que ela alguma vez tivera.

‑           Agora ‑ disse ela ‑, o que se passa com o seu irmão?

- Oh, nada. ‑ Desejou que ela não tivesse tocado no caso

de Zack, antes de o assunto deles ter terminado. ‑ Acho que ele não tem, como poderei dizer, o espírito de equipa para continuar no Ultramed. Só tem causado problemas desde que regressou a Sterling.

‑           Que tipo de problemas?

Oh, por Cristo, não te incomodes com ele. Continua a conversa. A cento e cinquenta quilómetros de Sterling e o irmão estava a meter‑se no maldito caminho.

‑ Ei, não é nada de especial, Leigh. Tal como disse, consigo resolver o assunto.

‑ Conte‑me, por favor.

Frank suspirou.

‑ Está bem ‑ disse. ‑ O tempo é seu. O Zack está sempre a entrar em choque com outros médicos. Faz tudo o que pode para me retirar a autoridade e não dá ouvidos a ninguém. Tentei dizer‑lhe que ele seria um sarilho.

‑ Sim, lembro‑me disso.

‑ Ele foi sempre. No entanto, eu tratarei disso. Assim que terminarmos a nossa conversa, eu tratarei disso. - Apontou de novo para a sala. ‑ Sabe, este lugar faz‑me recordar uma pequena e fabulosa estalagem de Provincetown. Acho que você havia de gostar dela.

O olhar dela endureceu.


‑ Frank ‑ disse ‑, quero que me escute, e escute com muita atenção. Neste preciso momento, no que lhe diz respeito, eu sou a Ultramed. Você trabalha para mim. Se quiser continuar a trabalhar para mim, vai parar de me despir mentalmente e prestar atenção ao assunto desta reunião.

‑Mas...

‑ Isso não vai acontecer, Frank. Meta isso na sua cabeça. Tenho um marido com quem sou muito feliz. Percebeu?

Atrapalhado, Frank anuiu.

‑ óptimo. ‑ Estendeu o braço e apertou‑lhe uma mão. - Agora, ajeite‑se na cadeira e vamos ao que interessa, pois temo que tenha um problema para resolver.

A voz dela soou severa.

Frank sentiu que lhe tinham dado um murro no estômago.

‑ Que espécie de problema? - perguntou.

‑ Esta carta chegou esta manhã cedo, trazida por um mensageiro ‑ disse ela. ‑ Uma vez que ainda não a mencionou, presumo que seja uma surpresa.

Assim que Frank reconheceu o cabeçalho do endereço

do juiz, começou a formar‑se‑lhe na cabeça um gemido aborrecido. Quando acabou de a ler, o ruído transformou‑se em berro.

Examinou o documento e voltou a lê‑lo mais devagar. Tal como Leigh previra, era uma surpresa total.

Uma auditoria.. Quando?... Que loucura.

Frank esfregou as têmporas na tentativa de afastar o ruído, a fim de poder concentrar‑se e compreender o que se passava e o porquê.

Tudo aquilo era uma loucura... uma loucura de merda.

Ele conseguiria tratar da reaquisição. O juiz era um animal, mas não deixava de ser apenas um voto. Podia convencer o conselho de directores. Um membro de cada vez, ele podia convencer todos. Mas até Mainwaring se despachar, a auditoria estava fora de questão. Completamente fora!

‑ Frank?

Foi outra vez o Zack. Foi aquela maldita cena com o Norman que convenceu o juiz a...

Os dentes de Frank estavam tão cerrados que lhe faziam doer os maxilares.

Com quem julgam eles que estão a lidar?

‑ Frank, está a sentir‑se bem?

‑ Hen? Oh, sim. Estou apenas furioso, é só.

‑ Eu também não estou muito feliz. Faz ideia por que razão o seu pai não conversou consigo sobre isto?

Frank deu uma gargalhada.

‑ Dúzias delas ‑ respondeu.

Director regionaL.. Leigh... a flexibilidade... a influência... o poder...

Tinha feito a viagem com tantas esperanças. Voltaria com nada... nada a não ser dores de cabeça.

Que se danem todos eles, pensou, furioso. O juiz e o seu irmão. Que se danem os dois!

‑ Tem aqui alguma coisa que se beba? ‑ perguntou.

‑ Só café, Frank. É isso que quer?

‑           Sim, está bem. Não, esqueça.

Levantou‑se e aproximou‑se da janela, com os braços pendentes e os punhos a abrir e a fechar.


‑ Frank ‑ disse Leigh em tom autoritário ‑, tem de se acalmar. Nós precisamos de saber se podemos contar consigo para cuidar deste assunto. Neste momento, a Ultramed tem coisas a mais em jogo para recuar um passo que seja. A concorrência só está à espera de uma asneira para a poder utilizar e virar quaisquer perspectivas de aquisição contra nós. Por isso, acalme‑se. Se pensar bem, isto não é uma surpresa tão grande. Quando o seu pai insistiu na cláusula de reaquisição, esperámos que ele desse algum passo deste género. Ele sabe controlar as coisas. É a sua maneira de ser.

‑ A quem o diz ‑ disse Frank em tom amargo, ainda a olhar para o Atlântico.

‑ A questão é saber se ele está só a fazer o seu jogo, ou se pretende mesmo lutar. Tem alguma ideia sobre isso?

Frank virou‑se para ela.

‑ É um bluff ‑ respondeu.

‑ E aquele assunto da viúva do Beaulieu?

‑ Outro bluff. Se o Beaulieu tivesse alguma coisa substancial, eu já teria tido conhecimento há muito tempo. É o tipo de porcarias que o meu pai faz desde que me conheço.

‑ Consegue resolver o caso com ele?

‑ Pode ter a certeza que sim. Não vai haver porra de auditoria nenhuma.

‑ O quê?

- Disse que tratarei do assunto.

Amaldiçoou a sua língua e, em silêncio, prometeu ser mais cuidadoso.

‑ Este é mais um dos seus testes ‑ afirmou. ‑ Já passei por muitos.

Eles estavam a menosprezá‑lo. Zack, o juiz e até mesmo Leigh. Estavam a menosprezá‑lo bastante e iriam ter a resposta. Todos eles. Era mais novo e mais forte do que o pai e este ensinara‑lhe bem as lições.

‑ Contamos consigo ‑ disse Leigh. ‑ Queremos que todo este assunto fique resolvido antes da reunião dos directores.

‑ Estará.

‑ óptimo. Eu ficarei atenta. É muito importante para mim que faça tudo correctamente. E nem sequer é preciso dizer que também é importante para si, não é?

‑ Quando tudo isto tiver terminado ‑ disse Frank, friamente‑, quero o maldito do meu irmão fora do Ultramed. Eu despedi‑lo‑ia de imediato, mas até este assunto do meu pai ficar resolvido, não quero fazer nada que possa irritar ainda mais o juiz.

‑ Concordo. Acima de tudo, tem de levar tudo com calma... ‑ A voz dela tornou‑se mais suave. ‑ Ouça, Frank, trate deste assunto como deve ser e terá a nossa bênção para se livrar do seu irmão, se é isso que deseja. Na verdade, prove que consegue cuidar do seu pai e poderá considerar ilimitado o seu potencial nesta empresa. ‑ Sorriu para ele. ‑ Ilimitado, Frank...

‑ Compreendo.

‑ óptimo. ‑ Levantou‑se. ‑ Quero estar a par de tudo o que se passar. ‑ Indicou com a cabeça a carta do juiz. ‑ Não gosto de surpresas.

‑           Compreendo ‑ repetiu ele. ‑ Não haverá nenhuma.

- Nesse caso, Frank, tem um belo futuro na nossa empresa.

 

Passara um minuto desde que a porta da suite número 200 se fechara atrás de Frank. Leigh Baron preparou um uísque com água fraco, que tirou do pequeno aparador bem apetrechado. Em seguida, virou‑se para o intercomunicador, escondido num extremo da mesa.


- Tudo bem, Ed ‑ disse. ‑ Ele já saiu.

Edison Blair, o presidente da RIATA Internacional, saiu do pequeno gabinete de onde escutara tudo e dirigiu‑se directamente ao bar. Estava perto dos cinquenta anos, mas parecia ser dez anos mais novo, de cabelo louro cortado curto, uma figura magra e quase franzina e um enganador rosto agarotado.

Os seus bens pessoais, estimados por várias fontes entre cerca de vinte a trinta milhões, eram na verdade quase o dobro e cresciam tão rapidamente quanto a sua jovem corporação.

Potencial ilimitado.

- Gostei desse pequeno retoque final - afirmou. ‑ Ele achou que estavas a referir‑te a ti própria, sabes?

- Claro que sei. Escolhi as armas de que precisava para lidar com o Frank Iverson, em Homens 101. Tira‑lhe a vaidade e ele fica sem nada. Com homens como ele, é sempre preciso deixar uma cenoura.

‑ Lembro‑me disso. Então ‑ continuou ‑, o que achas?

‑ Não sei. Tenho as minhas dúvidas.

‑ Só vi uma vez este juiz Iverson, mas, daquilo que penso do homem, aposto nele.

Blair serviu‑se de uma dose de tequilha José Cuervo Gold, cheirou‑a e bebeu‑a de um só trago.

‑ Concordo - disse Leigh ‑, mas acho que vale a pena esperar um pouco, antes de fazermos a nossa jogada. Quem sabe? Talvez o Frank consiga resolver tudo. Até aqui, tem sido uma enorme surpresa... isto é, para todos menos para mim.

‑ É uma sorte não termos tantas surpresas como ele a trabalhar para nós, Leigh. Não é exactamente o melhor negócio manter um administrador que nos desvia um quarto de milhão de dólares.

‑ Vamos lá, Ed. Ele já produziu dez vezes esse valor e tu sabes disso. Os nossos contabilistas nunca mais encontraram um único centavo desde essa vez. Com base na salada que tem feito, eles julgam que ele está a ganhar tempo para repor o dinheiro, e eu também. Seja como for, é o nosso seguro no local.

‑ Então, esperamos?

‑ Esperamos.

‑ Leigh, não quero perder aquele hospital.

‑ Não vamos perder nada. Podes ter a certeza disso.

Edison Blair olhou para ela durante alguns instantes.

‑ Eu tenho ‑ afirmou.


 

Durante quase toda a vida, Jack Pearl sofrera desapontamentos e vivera tempos dificeis. Tanto quanto se lembrava, fora sempre diferente ‑ um estranho.

Por um lado ele era insone, mas um insone patológico.

Quando jovem, os pais ralharam com ele por estar na cave às quatro da manhã, a brincar com o estojo de química. Horas depois nesse mesmo dia, recebera uma repreensão e fora mandado para casa por ter adormecido nas aulas. O seu estado originara ameaças de expulsão em várias ocasiões e bem podia ter sido expulso se, graças a um QI de cerca de 160, não fosse o melhor aluno da escola.

Para tornar as coisas ainda mais dificeis para Pearl durante esses anos escolares, a sua homossexualidade começara a emergir gradualmente. E mesmo nesse aspecto ele era um jogador cauteloso, preferindo rapazes mais jovens e as fotografias destes, a envolvimentos mais arriscados.

Na universidade, o companheiro de quarto não suportava por mais de algumas semanas os seus bizarros ritmos biológicos e profunda melancolia. As paredes do seu dormitório estavam cobertas de cartazes e fotografias de heróis especiais: Napoleão, Dickens, Edison, Churchill, Kafka e Proust e, segundo o primeiro dos seus terapeutas, nenhum deles passara uma noite normal a dormir.

Que um insone acabasse por escolher a anestesia como trabalho de sobrevivência era uma das poucas e agradáveis ironias da vida de Pearl; que tivesse desenvolvido o Serenil, a quinta‑essência dos agentes sonoríferos, era entre todas a ironia máxima.

A odisseia do Serenil começara anos antes, em Iquitos, numa aldeia do mato junto ao afluente do Amazonas peruano, para onde Pearl aceitara uma missão médica de seis meses como meio de fugir a mais uma situação desastrosa num outro hospital. Poucas semanas depois da sua chegada, sentira‑se muito fascinado pelos medicamentos que os curandeiros utilizavam, em particular por uma planta alcalóide utilizada pela maioria dos "médicos" misticos da região para induzir um estado purgativo de profunda hipnose nos seus seguidores.

Logo que Pearl testemunhou a acção da substância, a falta de orientação e propósito na sua vida chegaram ao fim.

Os dois anos de dissecação meticulosa do componente activo no alcalóide e modificação da sua composição conduziram‑no á síntese do Serenil ‑ uma anestesia estruturalmente única, tão notável quanto o seu antepassado químico.

Agora, pela primeira vez desde que concebera a sua aplicação, desde que a sintetizara, patenteara e ajustara o efeito e a dosagem em situações reais nas salas de operação, o Serenil de Pearl era atacado.


Eram cinco da manhã. Uma hora antes, Pearl desistira de tentar adormecer e preparara um jarro de café. Das quase vinte e quatro horas de trabalho que haviam passado desde que tivera de confrontar Zack Iverson, dormira talvez duas. As sensações familiares de solidão e isolamento ‑ sensações que conseguira melhorar razoavelmente desde que se mudara para Sterling tinham emergido e ameaçavam asfixiá‑lo.

Os primeiros raios da manhã começavam a espalhar‑se por todo o vale enquanto ele se envolvia num cobertor, atravessava o jardim húmido e se sentava numa cadeira de tábuas. Pensou se não seria melhor tomar um soporífero qualquer. Com Mainwaring em Atlanta, a carga cirúrgica era suficientemente leve para o sócio e a enfermeira anestesista suportarem.

Podia telefonar a dizer que estava doente e tomar duas centenas de miligramas de Seconal. Tinham‑se passado anos desde que tomara qualquer medicamento ‑ detestava sentir a perda de controlo ‑ mas esta talvez fosse a altura de o fazer.

Pensara de mais, a mente a matutar sem parar na prova que o irmão de Frank lhe atirara, freneticamente a tentar calcular a extensão da ameaça e descobrir falhas na lógica do homem.

Não fora fácil sequer apontar erros potenciais no raciocínio de Zack Iverson.

Pearl acendeu o quinto cigarro daquela hora, procurou uma

caixa de Kleenex e acabou por limpar o nariz a uma ponta do cobertor. Porque seria que sempre que a vida parecia começar a sorrir‑lhe ligeiramente, sempre sem excepção, aparecia algo ou alguém para estragar tudo? Porquê?, pensou.

Para ele o mais grave era que desta vez ele tinha previsto es potenciais problemas e discutido as suas preocupações com os sócios desde o início.

Ele avisara‑os que o maravilhoso e reduzido tempo de recuperação do Serenil ‑ o mais distinto dos seus atributos também era o seu calcanhar de Aquiles. As restantes propriedades que o distinguiam das outras anestesias, injectadas ou inaladas, eram efeitos secundários que não possuía. Chegara mesmo a sugerir a utilização da anestesia nos doentes de outros cirurgiões pois, caso surgissem quaisquer problemas, o foco de qualquer suspeita seria a técnica destes e não o medicamento.

No entanto, Frank e Mainwaring tinham sido obstinados na exigência de segredo absoluto. Na verdade, os dois homens haviam zombado das suas preocupações e rido da ideia de alguém no Ultramed‑Davis poder ser suficientemente inteligente, ou interessado, para juntar as coisas.

Não tinham contado com Zachary Iverson.

Pearl sabia que tinha razão para estar preocupado. Ao longo de uma vida cheia de confusões, desenvolvera um certo sexto sentido sobre esse tipo de coisas.

Devia ter ligado a Frank assim que Zack Iverson saíra do seu gabinete. Mas precisara de tempo para pensar ‑ não tanto nos casos de vesícula que Iverson estava a rever, ou mesmo nas implicações da possível descoberta do Serenil, mas nas alterações que aquele miúdo, o tal Toby Nelrus, estava a sofrer devido a uma complicação com a sua anestesia.

O Serenil era a realização eterna de Pearl ‑ a validação de toda a sua existência caótica e apoquentada. Tinha de ser simplesmente perfeita.

Fora a promessa escrita de Mainwaring de que o mérito de Pearl acabaria por ser reconhecido que o fizera vir para Sterling. O facto de Frank Iverson lhe pagar bem pela sua descoberta quando outros ameaçaram processá‑lo por utilizá‑la, era apenas a cobertura de açúcar de um bolo.


Claro que Pearl aceitara com relutância que Frank Iverson também lhe tivesse apagado as dificuldades do passado principalmente um caso bicudo que envolvera o filho de um político de Alcron. Mas se não fosse a promessa de Mainwaring, nem mesmo a possibilidade de fugir daquela confusão seria suficiente para fazê‑lo mudar‑se para um lugar como Sterlíng, quanto mais partilhar a patente do Serenil.

E agora, gostasse ou não, Pearl sabia que tinha de conversar com Frank sobre o irmão e Toby Nelrus. Eles tinham tido em consideração todas as possíveis e imediatas complicações do Serenil ‑ efeitos renais, função hepática, função pulmonar e nada haviam encontrado. Fora um descuido não terem efectuado também uma análise retrospectiva a longo prazo.

Mas, raios, pensou Pearl, o medicamento tinha actuado sempre tão bem...

Bom, agora teria de fazer com que os sócios compreendessem que tinham cometido um erro; graças a Deus, não era um erro fatal. Só tinham de voltar atrás e fazer os estudos que deveriam ter feito logo de início.

Pearl sabia que com uma pequena investigação, apenas cerca de cem telefonemas para doentes que haviam recebido a anestesia, podia determinar se Toby Nelrus era uma coincidência ou um problema. Ninguém precisava de saber por que razão ele estava a fazer a investigação.

Porém, se houvesse um problema com o Serenil,      se se

identificasse um segundo caso como o de Toby Nelrus, quase de certeza que ele conseguiria tratar. Conhecia todas as moléculas do medicamento.

Tudo o que precisava era de uma oportunidade.

Pearl levantou‑se e começou a caminhar, nervoso, pelo jardim, sem se importar com a humidade, a qual já tinha encharcado os chinelos de pano.

Tinha um bom relacionamento com Jason Mainwaring. Em certa medida, eram aliados. O cirurgião era um patife arrogante e privilegiado, mas ladrava mais do que mordia. Na verdade, com o dinheiro da sua empresa em jogo, provavelmente exigiria que esta ponta solta fosse atada antes do negócio consumado.

Pearl apagou o cigarro na relva e, a tremer, acendeu outro.

Era de Frank Iverson que tinha medo.

Tanto quanto se lembrava, onde quer que tivesse vivido, ou o que quer que tivesse feito, tinham existido sempre Frank Iversons. Tinham‑no empurrado nos pátios da escola e chamado nomes; tinham mandado lacaios para lhe passarem rasteiras

e ficado a rir com as namoradas, enquanto ele limpava os arranhões ensanguentados dos joelhos e dos ombros; mais tarde, surgiam por trás das respectivas secretárias acenando‑lhe com os dedos bem cuidados e dizendo‑lhe que nas suas instituições não havia espaço para pessoas do "seu tipo".

E, por mais que a preocupação e intervenção deste Frank Iversom o tivesse ajudado, Pearl sabia que não podia confiar nele. Fora o Serenil e só o Serenil que mantivera o civismo e o apoio do homem.

Durante quase dois anos, o trabalho deles correra ás mil maravilhas. Seria preciso cuidado e paciência para convencer Iverson da necessidade de suspender a venda.


Mas que importância tinham algumas semanas, ou mesmo meses, comparadas com a importância da anestesia na medicina?, reflectia Pearl, desesperado. Afinal, até Frank teria de compreender isso.

Compreender. Pearl encolheu os ombros. Uma das mais desagradáveis constantes da vida, no que se referia a ele e ás coisas que lhe eram importantes, foi que os tipos como Frank Iverson nunca tinham compreendido.

Ainda faltavam muitas horas até que Frank Iverson se encontrasse no seu gabinete. Até essa altura, ele nada podia fazer.

Precisava urgentemente de descansar.

Olhando para o relógio, atravessou o jardim e entrou na cave da sua casa alugada através do alçapão metálico. A cave, cheia de poeira e ainda por acabar, era iluminada por uma única lâmpada, suspensa no tecto.

Pearl tirou uma chave de fendas da caixa de ferramentas, ajoelhou‑se atrás do atomizador de óleo e arrastou um segmento solto da parede de concreto de cinza. Uma das suas prioridades, assim que se mudara para lá, fora criar um esconderijo.

Afastou para o lado várias dúzias de frascos de Serenil e o bloco onde constava a respectiva síntese, e retirou uma das duas caixas de charutos, cheias de fotografias. A seguir, voltou a colocar a parede no lugar e dirigiu‑se ao quarto.

Sentando‑se na cama, despiu o roupão e depois, uma a uma, retirou determinadas fotografias da caixa.

Quando já ia na terceira, Pearl introduziu uma mão na parte da frente da calça do pijama e começou a acariciar‑se suavemente. Iverson tinha‑lhe exigido, não com muito bons modos, que ele se mantivesse absolutamente afastado de qualquer envolvimento com rapazes ou, neste caso, qualquer homem daquela zona. Sem as fotografias, teria enlouquecido.

As que ele escolhera nessa manhã, eram as melhores, as que ele próprio tirara.

Em minutos, a sua excitação começou a afastar um pouco os receios e a solidão. Tudo havia de acabar bem, disse para consigo. Fossem quais fossem as palavras que tivesse de encontrar para convencer Iverson, ele encontrá‑las‑ia.

Retirou uma fotografia de doze por dezoito, na qual três belos rapazes surgiam, estáticos, numa montagem que ele fizera cuidadosamente. Essa tarde na zona leste de Saint Louis fora incrível. Foi uma das melhores.

Lentamente, os olhos de Pearl fecharam‑se, os movimentos intensificaram‑se enquanto as fantasias atingiam o auge.

Não era fácil ser diferente. Nunca fora. Mas, como sempre, esforçava‑se por sê‑lo.

E por uma vez na vida, por uma vez na sua maldita e problemática vida, algo iria correr bem.

 

- És tu, Frank, entra.

O gabinete do juiz Clayton Iverson, uma enorme sala de tecto alto, painéis em madeira de carvalho e três paredes de lumes meticulosamente alinhados, era tão sombrio e intimidante quanto o próprio homem. Na parede atrás da secretária, rodeando um retrato do presidente do Supremo Tribunal, havia dúzias de fotografias emolduradas do juiz em poses idênticas de três presidentes, de meia dúzia de governadores e de praticamente todos os políticos importantes de New IIampshire nos últimos cinquenta anos.


Próximo do centro da exposição estava também uma fotografia colorida de Frank, vestindo o uniforme púrpura e dourado do Liceu de Sterling, o braço esquerdo estendido, o direito dobrado atrás da orelha, pronto para atirar.

Os cortinados estavam corridos, tapando o sol do meio‑dia. Sentado atrás da secretária de carvalho maciço, o cabelo espesso e prateado a brilhar razoavelmente na penumbra, o juiz parecia maior do que a vida.

Frank temia que tivesse sido um erro não marcar um encontro num local mais neutro. E agora, ao sentir o respeito que o acompanhava sempre nas suas visitas àquela sala, amaldiçoou‑se por não ter sido mais teimoso.

Decidiu que não teria importância. Tinha chegado a hora de um novo Iverson assumir o comando. Já tinha conseguido ultrapassar os recordes nos campos de uma dúzia de adversários diferentes; a sua actuação tinha conseguido calar os gritos do público inimigo. Encontrar‑se‑ia com o homem na sua toca, ou noutro lugar qualquer, e sairia vencedor.

- Então, juiz - começou, apertando‑lhe a mão com a mesma firmeza e depois com mais força. - Como vão as coisas? A mãe está bem?

- Ainda anda preocupada com a Annie mas, tirando isso, ela está bem. Está envolvida até à ponta dos cabelos a tratar do seu jardim.

- Realmente ela gosta daquele velho jardim. A Lisette também anda a tentar fazer um, sabe? O juiz e a mãe têm de o ver. Por falar na Annie, por acaso já a viu hoje?

- Não, só logo à noite. Prometi à tua mãe que a levaria lá.

- Bem, irão ter uma bela surpresa. Ela está a melhorar a olhos vistos. O Don Norman disse‑me que provavelmente irão operá‑la à anca antes de a semana terminar. A Suzanne Cole já regressou ao trabalho e assim a Annie recebe os cuidados de ambos os médicos.

- Ainda bem que assim é, Frank. Contudo, é lamentável, muito lamentável que tivesse caído como caiu.

Frank ficou tenso. Como sempre, o homem dera um murro certeiro. Sem bazófia, sem artimanhas. A chave para o controlar seria manter‑se calmo e não permitir que ele se irritasse.

- Ninguém se sente pior com o que aconteceu do que eu, juiz - disse. ‑ Mas o que está feito, está feito. Agora, a nossa obrigação é ajudá‑la a ficar boa, certo? E graças à Ultramed, temos um dos melhores departamentos de fisioterapia do estado.

- Não mantiveste a rédea curta àquele teu médico, Frank. Tu és o responsável. É o teu hospital, tal como esta é a minha sala de tribunal.

Oh, deixe‑se de merdas, pensou Frank.

- Tem razão, juiz - afirmou. - O seu ponto de vista está correcto. Falei com o Don e ele sabe que, daqui por diante, tem o rabo a arder. Por outro lado, está a tratar de pagar todas as despesas que a Annie tiver para ser tratada em casa, depois de ser operada.

‑ Excelente, filho. Essa é uma atitude excelente.

‑ O nosso hospital avançou bastante desde que a Ultramed tomou conta dele, juiz. Farei tudo o que for preciso para o manter na ordem.


Clayton Iverson alargou a gravata e colocou os polegares por baixo dos suspensórios pretos que sempre haviam feito parte da sua indumentária de tribunal.

‑ Presumo ‑ disse ‑ que a tua declaração de propósitos é a forma de me pedires para retirar o aviso que enviei á tua amiga, Miss Baron.

Raios... que o homem é mesmo duro.

‑ Bem, já que tocou no assunto...

O juiz levantou‑se da cadeira, tirou da parede a fotografia de Frank e olhou para ela, pensativo.

‑ Lembras‑te quando foi tirada? ‑ perguntou. ‑ Foi pouco antes do jogo para o campeonato estatal contra Bloomfield. Acho que foi a melhor partida que jamais jogaste. Os seis lances ao solo contra a equipa adversária foram considerados os melhores de sempre no estado.

‑ Cinco ‑ corrigiu Frank.

O juiz sorriu.

‑ Estás a esquecer-te da linha de área trinta do terceiro quarto de jogo, que foi considerada penalty. No jogo imediatamente a seguir, da linha de área quarenta e cinco, atiraste aquela bomba para o Brian Cullen. Cercado por três homens e tu atiraste a bola pelo campo, como... como se estivesses a jogar no quintal.

‑ Isso já foi há muito tempo, juiz. ‑ Frank ficou genuinamente surpreendido e comovido com os pormenores da memória do homem. ‑ Tem uma memória muito boa.

‑ Filho ‑ disse Clayton Iverson ‑, ficarias espantado com as coisas que recordo daqueles tempos. ‑ Contra o que era habitual, o seu tom de voz foi melancólico. ‑ Nessa altura, havia em ti uma decisão tal, Frank, uma determinação em ser o melhor. Tinhas o mundo inteiro na palma da mão. Contudo, algures pelo caminho, começaste a perder‑te, a tomar decisões erradas. Não, erradas não ‑ corrigiu ‑ terríveis. Algures pelo caminho, perdeste aquela tua vontade de ferro.

‑Mas...

‑ Ainda não terminei. O pior de tudo é que, quanto mais lutavas, menos ouvidos davas a conselhos. Corrias contra os problemas e, em vez de atravessá‑los como costumavas fazer, procuravas contorná‑los.

"Quero que sejas o meu sucessor aqui, Frank. Quero‑o muito. Mas não te vou facilitar em nada. Vou executar o que está na carta e tentar descobrir o que se passou com o Guy.

‑ Eu já lhe disse, juiz. Não se passou nada com o Guy.

‑ Espero que não, Frank. Não percebes? Quero que apareças na reunião com um caso de tal modo forte e limpo para

a Ultramed, que nenhum membro do conselho se atreva sequer

a pensar em votar contra ti. Este é um problema que terás de

enfrentar daqui para a frente, filho. E rezo a Deus para que

consigas derrotar‑me.

Frank ergueu as mãos em sinal de frustração.

‑ Juiz, só está a criar confusão por todo o lado. A investigar a minha pessoa e o hospital, a fazer auditorias aos nossos livros. Os tipos da Ultramed estão alerta. Se perceberem que nem sequer consigo dialogar com o meu pai, tudo o que ganhei nestes últimos quatro anos irá por água abaixo. Só o facto de ter sido o último a saber da sua carta, já me fez parecer um idiota.

‑ Bem, quando Miss Baron e os sócios virem o caso que arranjaste para a corporação deles, serás um herói.


‑Mas...

‑ É assim que as coisas são, Frank.

Deu meia volta e colocou a fotografia no lugar.

Frank sentiu uma fúria e frustração demasiado familiares começarem a acumular‑se. Ficou alerta contra qualquer explosão e recordou que as forças devem ser medidas com forças.

‑ Está bem, juiz ‑ disse. ‑ É óbvio que está decidido a ir em frente com isto.

‑ Estou.

‑ Bem, então gostaria pelo menos que me garantisse uma coisa: a auditoria. Só estamos preparados para a nossa auditoria geral em Fevereiro próximo. Serão precisos dias para pôr tudo em ordem e o meu pessoal vai ficar num caos. Cancele‑a ou... ou, pelo menos, adie‑a para o próximo mês.

O juiz abanou a cabeça.

‑ O Farley Berger diz que tem de ser feita dentro de um ou dois dias, para que a equipa dele possa confirmar todos os números até á reunião de sexta‑feira.

‑ Mas não existe uma cláusula no contrato que diga que a auditoria tem de ser feita pelo conselho de directores. Adie duas semanas.

Clayton Iverson pensou por um instante.

‑           Está bem, Frank ‑ condescendeu. ‑ Queres duas semanas, terás duas semanas.

Isso, juiz, pensou Frank, radiante. Isso mesmo: é tudo o que preciso.

‑           Sabe que vou derrotá‑lo, não sabe? ‑ perguntou.

‑           Assim espero, filho ‑ respondeu o juiz. ‑ Assim espero sinceramente.


 

Para Zack, o dia fora parecido com alguns do seu estágio. Teve duas consultas no hospital; teve de ajudar um dos ortopedistas num caso lombar; teve de dar baixa a uma garota de três anos que caíra do baloiço, batera com a cabeça e, em seguida, tivera uma convulsão; e por último, teve de examinar meia dúzia de doentes no consultório. Era o tipo de ritmo a que normalmente estava habituado.

Nesse dia, era tudo o que podia fazer para manter a concentração.

Tinham‑se passado seis dias desde o seu contrato inicial com Toby Nelrus e ainda não conseguira juntar as peças do diagnóstico da criança. Após a sua fracassada entrevista com Jack Pearl, tentou por uns tempos e como exercício dar o beneficio da dúvida ao anestesista ‑ inventar outra explicação que coincidisse com os factos.

Cancelara o resto das consultas do dia e fora a Bóston para falar com vários anestesistas do Hospital Municipal. Também passara quatro horas na Biblioteca Médica Countway de Harvard, a rever todos os artigos que encontrara sobre Pentotal, isoflurano e respectivas complicações.

Ao terminar a pesquisa, considerava‑se um perito na matéria. Contudo, todos os seus esforços fizeram‑no regressar à hiPótese original e a uma única palavra: Metzenbaums.

Dentro de alguns dias, iria encontrar‑se de novo com o rapaz e a mãe. Zack sabia que desta vez Barbara Nelrus não se ficaria por evasivas, nem meias verdades. A mulher estava desesperada. Tinha todo o direito de estar.

Pouco passava das quatro da tarde. Do Oeste, as escuras sombras das montanhas espalhavam‑se pelo vale em direcção a Sterling. Zack tinha acabado de ter uma conversa pormenorizada sobre a doença de Meniére com o último dos seus doentes do consultório.

‑ Sei exactamente o que tem ‑ disse ao idoso, que o foi consultar devido a tonturas intermitentes e ao zumbido persistente e quase incómodo nos ouvidos. ‑ Infelizmente, também sei que pouco podemos fazer, para além de lhe ensinar a viver com isso.

Ordenou alguns exames na esperança de que o resultado

fosse uma das raras e tratáveis causas da doença, escreveu e

entregou‑lhe a morada da associação nacional que lidava com a

doença de Meniére e expressou o quanto lamentava não poder

ajudá‑lo mais. O desapontamento do homem foi previsível e

compreensível, mas não deixou de ser doloroso para Zack. Não ficarás assim, Toby, jurou Zack enquanto via o doente

cabisbaixo sair do gabinete. Por não se poder obter uma resposta, a prática da medicina causava frustração e dor muitas vezes. No caso de Toby Nelrus, as respostas estavam ali. E de alguma forma, alguém iria fornecê‑las. Aguenta‑te, garoto. Seja o que for que se passa, seja o que for que te fizeram, não ficarás assim.


Zack mandou para casa mais cedo a enfermeira do consultório, alertou os serviços de atendimento de que estaria no pager e espalhou o processo do rapaz sobre a secretária. A maior parte do que voltava a ler já sabia de cor. Após alguns minutos, pegou no telefone e ligou para o gabinete de Frank. Não havia alternativa senão partilhar as suas suspeitas com o irmão e tentar obter a sua ajuda noutro confronto com Jack Pearl.

Frank já não se encontrava no gabinete, e a secretária não fazia ideia de onde se encontrava, ou quando regressaria.

O telefonema para o gabinete de Mainwaring foi atendido

pelos serviços de atendimento e a informação que lá tinha ‑

que o cirurgião se encontrava fora do estado até à

seguinte, foi dada por Ureg Ormesby

‑ Respostas ‑ disse em voz alta, tamborilando com o lápis na borda da secretária. ‑ Tem de haver respostas... (

estás, Jason?... Quem és?... O que sabes?

Num impulso, consultou o directório do hospital e ligou para o departamento de patologia. Takashi Yoshimura atendeu ao primeiro toque.

‑ Kash ‑ disse ‑, se puder e não causar transtornos, eu preciso de um nome...

Dez minutos mais tarde, Zack estava a falar ao telefone com um tal Dr. Darryl Tarberry, do JoIm Hopkins.

‑ Doutor Tarberrr' ‑ disse, depois de ter explicado como conseguira o nome dele e de ouvir pacientemente os elogios efusivos ao trabalho de Kash Yoshimura ‑, estou a ligar para lhe pedir uma informação, mas não sobre o doutor Yoshimura. Felizmente, já faz parte do nosso corpo clínico. O nome em que estou interessado é o do doutor Jason Mainwaring. O Kash disse‑me que talvez tivesse trabalhado com ele quando esteve no Hopkins.

Durante alguns segundos, apenas houve silêncio.

‑ Quem disse que era? ‑ perguntou por fim Darryl Tarberry.

Com base no que se lembrava do homem, Yoshimura calculara que seria agora sexagenário. Mas pelo som da voz, Zack pensou se não seria mais velho.

‑ Chamo‑me Iverson. Zachary Iverson ‑ repetiu. ‑ Sou neurocirurgião e faço parte da comissão de credenciais daqui.

Houve nova pausa.

‑ O Mainwaring está a candidatar‑se para um lugar de cirurgia no vosso hospital?

‑ Exacto.

‑ Bem, vou ser... ‑ disse Tarberry. ‑ Onde disse que ficava esse seu hospital?

‑ Em New Hampshire, sir. Não quero causar‑lhe transtornos, doutor Tarberry, mas ficamos muito gratos por qualquer informação que nos possa fornecer.

‑ Esta chamada está a ser gravada?

Zack sorriu.

‑ Não, garanto‑lhe que não.

‑ Mas não porei nada no papel.

‑ Tudo bem.

‑ O Mainwaring e os seus advogados tiveram este hospital atado durante não sei quanto tempo. Malditos advogados. Acabou por custar uma pequena fortuna ao hospital resolver o caso e, tanto quanto sei, apesar de termos cem por cento de razão. Por causa disso, um dos meus colegas desenvolveu úlceras. Pode crer. Não quero que isso me aconteça. Sou demasiado velho para esse tipo de disparates.

‑ Dou‑lhe a minha palavra.

‑ A sua palavra... Iverson, é? O nome é sueco?


- É inglês ‑ respondeu Zack, olhando para cima, como para receber algum tipo de ajuda celestial.

‑ Bem, Iversom. Não sei todos os pormenores.

‑ Não faz mal.

‑ E no que me diz respeito, nunca tivemos esta conversa.

‑ Prometido.

‑ Bem ‑ disse o homem, sublinhando cada letra da palavra ‑, deixe‑me dizer-lhe primeiro que o Mainwaring pode ser o maior filho da puta ambicioso que Deus alguma vez colocou sob uma máscara e bata, mas é um óptimo cirurgião. Talvez o melhor que jamais vi, e já vi muitos.

‑ Continue ‑ pediu Zack.

Após quinze minutos de estocadas e adulações, Zack sentiu que tinha extraído tudo do homem, pelo menos ao telefone. Sabia que havia mais coisas. Provavelmente, muito mais. Mas, fosse como fosse, uma enorme peça encaixara‑se no puzzle de Toby Nelrus.

Zack estava a terminar de escrever a síntese do interrogatório quando a porta da sala de espera se abriu e fechou.

‑ Estou aqui ‑ disse em voz alta.

‑ Que coincidência. Eu também.

Suzanne surgiu à porta do gabinete, vestindo uma bata de laboratório sobre a blusa cor de marfim e saia de madrasto até aos tornozelos.

‑ Tens um minuto? ‑ perguntou.

‑ Para ti? Anos. ‑ Colocou as anotações de Tarberry na pasta de Toby Nelrus e empurrou‑a para um lado da secretária. - Algum problema com a Annie?

‑ Não, não. Nada disso. Ela está a melhorar espantosamente. Julgo que o Sam Christían vai operá‑la amanhã.

‑ Excelente. Estou muito aborrecido com o que lhe aconteceu. Sempre que penso no que o Don Norman lhe fez, apetece‑me correr atrás dele e dar‑lhe um murro naquele seu narizinho gorducho.

‑ Zack, estou tão aborrecida com o caso da Annie como tu, mas não vejo como podes pôr todas as culpas sobre o Dom. Não fez nada com uma intenção maldosa.

‑ Isso depende da tua definição de maldosa. Ele estava a dar‑lhe um sedativo para que ela não se opusesse a ir para uma casa de saúde e a Ultramed continuasse a obter lucros com o tratamento. Se isso não é maldade, então não sei o que é.

‑ Ei, acalma‑te, está bem?

‑ O que queres dizer com isso?

‑ Essa é a tua opinião. Mas não é a de todos. Não podes deixar este lugar um pouco em paz?

‑O quê?

‑ Zack, o Frank acabou de sair do meu gabinete.

‑ Então, era lá que ele estava. Andei à procura dele.

‑ Ele está muito aborrecido contigo.

‑ Eu sei. Foi por isso que ele foi falar contigo?

‑ Por acaso, foi. Ele... pediu‑me para falar contigo... a fim de te pedir para não criticares o hospital.

‑ Podia ter vindo falar comigo e pedi‑lo pessoalmente.

‑Ele diz que tentou.

‑ Ele estava bêbedo. Ameaçou‑me. Não considero a melhor abordagem... Assim, ele preferiu envolver‑te. Isto aqui é incrível.


‑ Não vim cá acima para discutir. Só quis fazer o que podia para melhorar as coisas entre vocês os dois. Devo muito ao Frank. Julguei que o tivesses percebido, com base no que te contei sobre o que se passou comigo.

‑ Desculpa ‑ murmurou Zack. ‑ Se estou aborrecido, julgo que é por desejar que as coisas fossem diferentes entre mim e o Frank.

‑E então?

‑ Suzanne, nada posso fazer se o Frank acha que é por minha causa que o juiz está a convencer o conselho de directores a readquirir o hospital á Ultramed.

Foi claramente a primeira vez que ela ouviu falar do assunto.

‑ Meu Deus, Zack, não podes permitir que isso aconteça.

‑ Em primeiro lugar ‑ disse ‑, não tenho mais controlo sobre esse homem do que o Frank ou outra pessoa qualquer. E em segundo, porque não?

‑Bem... porque ‑ gaguejou ela ‑, se o conselho de directores mandasse a Ultramed embora, o Frank ficaria arruinado.

‑ Que disparate. Ele conhece o trabalho. Podia desempenhá‑lo da mesma maneira para uma corporação comunitária, tal como o faz para uma organização como a Ultramed. Provavelmente, ainda melhor. Suzanne, escuta‑me. Está a passar‑se algo de errado aqui. Algo terrivelmente errado.

‑ Raios, Zachary, o que é que sucede contigo? Nunca pensas em ninguém senão em ti próprio? Vim aqui pedir‑te para deixares em paz um homem que em parte é responsável pelo salvamento da minha carreira, para não falar no facto de ele ser teu irmão, e tudo o que fazes é... destruir‑lhe o hospital.

‑ O hospital não é dele. Olha, não quero começar a discutir. Tenho coisas a mais em que pensar.

‑ Como, por exemplo?

O instinto dizia‑lhe que devia mudar de assunto e guardar para si as teorias ‑ pelo menos, enquanto não passasse disso. Olhou para as mãos. As revelações de Darryl Tarberry sobre Jason Mainwaring estavam demasiado frescas na memória.

‑ Suzanne ‑ disse, lentamente. ‑ Eu tenho motivos, bons motivos, para acreditar que se fazem experiências humanas neste hospital.

‑ Isso é a coisa mais incrível...

‑ E ‑ interrompeu ele ‑ também tenho bons motivos para acreditar que talvez tenhas sido uma das cobaias.

Suzanne ouviu, incrédula, tudo o que ele contou sobre as suas experiências com Toby Nelrus e Jack Pearl, a breve análise das operações à vesícula efectuadas por Mainwaring e Greg Ormesby e, por último, a conversa que tivera com Tarberry.


‑ Segundo parece, uma mulher morreu devido a anafilaxia causada por uma anestesia local que recebeu no consultório do Mainwaring. Este afirmou que era xilocaína, mas havia documentação suficiente para provar que a mulher recebera esse medicamento em várias ocasiões, sem qualquer problema. Uma das suas enfermeiras, que ficou muito preocupada com o que aconteceu, afirmou que o Mainwaring andava a testar qualquer coisa que não era xilocaína. Embora os investigadores não tivessem conseguido provar que assim era, aparentemente descobriram que o nosso amigo Jason era um dos proprietários duma empresa farmacêutica algures no Sul.

‑ Isso é uma loucura! ‑ disse Suzanne. ‑ Por acaso esse homem do Hopkins com quem falaste sabia o nome da empresa?

‑ Ele já não se lembrava.

-já não... se lembrava... Zack, isto é exactamente o tipo de coisas contra as quais o Frank protestou. Estás a fazer acusações terríveis e destruidoras com base em provas pouco consistentes.

‑           Não estou a fazer qualquer acusação ‑ declarou, sentindo que começava a perder a compostura. ‑ Estou a partilhar com uma amiga uma teoria perturbadora, uma amiga, cujo juízo clínico eu aprecio e em que confio. Julguei que ficarias desvairada só de pensar que alguém pudesse ter andado a brincar com o teu corpo enquanto estavas a dormir.

‑           Bem, não estou desvairada, mas estou preocupada... contigo. Zack, só cá estás há algumas semanas. Durante esse tempo, já te pegaste com o Wil Marshfield, tiveste uma troca desagradável de palavras com o Jason, discutiste com o Don Norman, aborreceste o teu irmão, incentivaste a iniciativa de reaquisição do hospital e, agora, com base em nada mais do que provas circunstanciais muito frágeis, acusas o nosso melhor cirurgião e anestesista de um crime terrível.

Zack encostou‑se à cadeira.

‑           Suzanne, ouve‑me...

‑           Não, tu é que ouves. Como é que explicas o facto de não ter havido mais nenhum caso como o do Toby Nelrus?

- não sei. Talvez seja uma complicação rara do produto que eles estão a utilizar. Talvez haja pessoas que tenham sofrido crises como esta, mas que estejam noutro lugar, ou que não comunicaram ao médico. Talvez esteja envolvido algum disparador sensitivo que não existe em todas as pessoas. Tu própria disseste‑me que não te tens sentido bem, desde que foste operada.

‑           Tenho‑me sentido cansada. É muito diferente de ter um ataque psicótico.

‑           E aquele episódio no campo?

‑           A que é que te referes?

‑ Ficaste pálida.

‑ Não fiquei nada.

‑ Ficaste, sim. Foi como se alguém tivesse carregado no botão e, de repente, já não estavas ali.

‑ Zack, isto é uma loucura. Tens de parar. Tocaste neste estabelecimento como um tremor de terra.

‑ Suzanne, aquela criança está a morrer.

‑ Talvez. Mas não é devido a algo que o Jason ou o Jack Pearl lhe tenham feito. Outra coisa, Zachary. Descobre outro caso como o do Toby Nelrus e eu dar‑te‑ei ouvidos. Mesmo nessa altura, talvez não acredite em ti, mas dar‑te‑ei ouvidos. Entretanto, acho que deves dar ao teu irmão e, neste aspecto, a todos nós um pouco de espaço para respirar. ‑ Levantou‑se. - Pára, Zack. Por favor. Faz o que puderes para impedir que o teu pai destrua o que o teu irmão tanto tem trabalhado para construir, e dá‑nos a todos um pouco de paz.

Pegou na carteira e, sem esperar pela resposta, saiu do gabinete.


Por momentos, Zack deixou‑se ficar sentado, a olhar pela janela, vendo a tarde a aproximar‑se do fim. Um disparador ou uma sequência de disparadores. Talvez fosse essa a chave. Suzanne não se lembrava do episódio no Meadows durante o piquenique, mas algo de estranho lhe acontecera. Um botão fora carregado. Mas qual? Uma palavra? Um som? Um aroma?

Zack começou a tamborilar com os dedos longos na secretária. Sentia que os pensamentos não paravam de procurar

resposta, como se de uma língua de cobra se tratasse. Mas, de cada vez, não muito longe... não muito longe...

Por fim, colocou a pasta de Toby Nelrus à sua frente e. mais uma vez, abriu‑a na primeira página.

‑ Não ficarás assim, garoto ‑ murmurou. ‑ Juro que não irás ficar assim.

 

Mesmo entre as melhores estalagens da antiga Nova Inglaterra, a Granite House era especial. Os enviesados soalhos de madeira rija, os tectos com vigas e os compartimentos de feitio irregular, cada um com lareira de pedra, eram considerados pelos guias como ligeiramente menos maravilhosos do que a cozinha e o serviço.

Frank Iverson escolhera cuidadosamente o local para o primeiro encontro com os directores do Regional Davis:

um banqueiro bem sucedido de nome

Crook, e Whitey Bourque, o gerente gorducho e normalmente bem‑falante do A & P local.

A noite correra bem; melhor do que ele esperara.

Tinha orquestrado maravilhosamente a conversa, salientando os sucessos e planos da Ultramed, recordando partidas de golfe que jogara com Crook e focando algumas sugestões interessantes sobre Renée, a filha de Bourque, uma das melhores jovens amazonas da área.

Agora, enquanto se sentavam no habitualmente deserto Salão Colonial a beber conhaque e a fumar charutos digestivos, Frank sentiu‑se pronto para atacar os dois homens.

Havia vinte e um membros na direcção. Frank considerava que seis deles já estavam no papo ‑ devido ao relacionamento que tinham com ele, ou porque os seus negócios seriam prejudicados caso a Ultramed tivesse de sair de Sterling. Aceitando duas ausências na reunião ‑ e dado o historial da direcção, a qual era em média conservadora ‑ bastavam‑lhe mais três ou quatro votos para bloquear a reaquisição, independentemente da posição do juiz.

Pelo menos metade desses votos estavam ali á mesa, ao que parecia sentados na palma da sua mão. Tudo o que tinha de fazer, e sempre com muito cuidado, era fechar os dedos.

Potencial ilimitado...

Frank fez um ligeiro sorriso.

Não se afaste muito, Miss Baron, pensou, tendo os dois homens debaixo de olho. Aí vou eu.

‑ Eles sabem bem como fazer as coisas aqui, não sabem? - começou.

Bili Crook, lento devido à refeição e às bebidas, concordou em voz baixa. Era um antigo estudante de uma das faculdades com reputação de apoiar entusiasticamente as ideias dos outros, embora nunca tivesse uma própria, mesmo que insignificante.

Whitey Bourque arrotou e limpou a boca ao canto do guardanapo. Frank reparou no emaranhado de veias finas a rosarem‑lhe as faces.


‑ Bom bife ‑ disse, com a boca cheia. ‑ Nada que não tenhamos no supermercado, mas bom.

‑ A Lisette diz sempre que o seu supermercado é o único lugar da cidade onde se pode comprar a carne, Whítey ‑ disse Frank. ‑ Por falar nisso, penso mandá‑la lá amanhã para encher a nossa arca frigorífica... Bom, antes de nos separarmos e regressarmos ás nossas famílias, quero ter a certeza de que respondi a todas as perguntas que qualquer um de vós possa ter sobre o que a Ultramed tem planeado para o nosso hospital. BilI?

O banqueiro pensou por instantes e depois abanou a cabeça.

‑ Parece‑me um conjunto de objectivos bastante ambiciosos e animadores.

‑ E não se esqueçam nem por um segundo que a Ultramed Planeia financiar todos estes projectos com dinheiro local. O dinheiro do Sterling National Bank, se bem me recordo. - Whitey?

Bourque misturou três cubos de açúcar no café e bebeu‑o de um só trago.

‑ Nada a perguntar ‑ declarou.

‑ Mandarei os pormenores da nossa proposta de licitações competitivas sobre o nosso serviço dietético até ao final do mês.

‑ Isso será óptimo, Frank. óptimo.

‑ Excelente. ‑ Frank olhou para a despesa e depois entregou‑a à empregada de mesa, juntamente com o Cartão Dourado. ‑ Traga mais alguns daqueles pequenos rebuçados de mentol, querida ‑ pediu. Aclarou a garganta e voltou‑se de novo para a mesa. ‑ Assim, meus senhores, gostei de partilhar esta refeição com os dois e presumo que a Ultramed e eu podemos contar com o vosso apoio na reunião de directores, na sexta‑feira.

Os dois homens olharam um para o outro, elegendo em silêncio o porta‑voz. O escolhido foi Whitey Bourque.

‑ Bem, Frank ‑ disse ‑, tudo o que podemos dizer nesta altura é: depende.

Frank sentiu um frio súbito.

‑Depende de quê?

‑ Do que o teu pai decidir nos próximos dias. Frank, telefonou‑nos ontem e pediu que nos mantivéssemos abertos ao negócio até confirmar algumas coisas. Senti que, tendo em concideração a ajuda que deu no ano passado na angariação de fundos para a nova paróquia, era o mínimo que eu podia fazer.

‑ E eu estou em dívida para com ele devido à forma como interveio quando o meu filho Ted tomou aquele vinho tinto de fraca qualidade e teve o acidente ‑ acrescentou Crook. - sem dúvida salvou o pêlo ao rapaz.

‑ Meus senhores, por favor ‑ disse Frank, lutando para disfarçar qualquer tom de desespero na sua voz. ‑ Não discuto as boas acções do juiz nesta cidade. Por amor de Deus, isso é uma dádiva. E sinto‑me orgulhoso por ser seu filho. Mas não passam de maçãs e laranjas. O que estamos aqui a falar é do apoio para o nosso hospital e nas boas acções que nós estamos a fazer. O pulso partido da Renée, Whitey. Lembra‑se disso? Ou... e o caso do enfarte coronário que a sua mãe teve no passado, Bill? As pessoas dizem que, se não fosse a nossa nova unidade e a nossa nova cardiologista, ela teria morrido.


‑Eu... compreendo ‑ disse Crook, olhando para o copo vazio.

‑E então?

Whitey Bourque suspirou.

‑ Frank, pedimos‑te desculpa ‑ disse. ‑ Gostaríamos de te ajudar, mas demos a nossa palavra ao juiz de que esperaríamos e seguiríamos as recomendações dele. Ele é o presidente da direcção e tem tratado de tudo o que diz respeito a este assunto. Só queremos o que é melhor para Sterling. Dado que estamos todos muito ocupados para fazer qualquer pesquisa mais profunda, nós sabemos que ele nos indicará a direcção certa. Espero que tudo resulte bem. E aconteça o que acontecer, tenciono ajudar‑te a ti e ao hospital em tudo o que puder.

‑ Eu digo o mesmo, Frank ‑ acrescentou Crook.

‑ Bem, então... acho que não tenho mais nada para dizer, não é assim?

‑ Fizeste uma bela apresentação, Frank ‑ disse Bourque, levantando‑se. ‑ Uma apresentação mesmo boa. O teu pai ficaria orgulhoso.

‑ Ei, não interessa. Havemos de conseguir, Whitey. Tenho a certeza.

Frank forçou as palavras através de uma onda de fúria e frustração que lhe apertava a garganta.

Acompanhou os dois homens até ao sujo parque de estacionamento, despediu‑se amavelmente com um aperto de mãos e ficou a vê‑los até os faróis traseiros terem desaparecido na noite. Então, virou‑se e deu um valente pontapé na porta do Porsche, deixando uma amolgadela e um ligeiro raspão.

Indiferente aos danos, sentou‑se atrás do volante e saiu do parque, atirando areia e pedras a um vendedor reformado que estava com a esposa.

 

Assim que ouviu o Porsche entrar no estacionamento e a porta do condutor a bater, Lisette percebeu que iria ser mais uma daquelas noites.

Com um cumprimento entorpecido e sem sequer lhe dar um beijo na face, Frank passou por ela e foi para a biblioteca. Ela permaneceu na penumbra do corredor, á espera de ouvir o gelo a cair no copo. Frank não a desapontou.

Agora, enquanto preparava um bule de chá de ervas, que um dia Frank lhe apresentara como "a única bebida que tomo depois das dez", tentou combater a vontade de se meter na cama.

Colocou num tabuleiro o bule, duas chávenas, algumas rodelas de limão e alguns biscoitos, e levou tudo para a biblioteca. Frank estava em pé a um canto, de costas para ela, a ler.

‑ Olá, o que é que estás a ler? ‑ perguntou‑lhe.

‑Nada.

Voltou a colocar o volume na estante e virou‑se para ela, mas Lisette viu o suficiente para perceber. Era o almanaque do liceu.

‑ Frank, estás bem?

‑ Sim, claro, estou óptimo. Faz‑me um favor e deixa‑me ficar sozinho, não te importas? ‑ As palavras começavam já a soar enroladas.

‑ Trouxe‑te chá.

‑ Não quero a merda de chá nenhum.

‑ Frank, por favor.


‑ Já disse que não quero nenhum chá, porra!

Enfiou um braço no dela e fez o tabuleiro voar até ao outro lado da sala. O chá salpicou a parede. A fina louça de porcelana, um presente de casamento da mãe, partiu‑se em pedaços.

Estupefacta, ela olhou para a desordem.

- Frank, alguma coisa não está bem contigo ‑ disse, o mais calmamente possível. ‑ Precisas de ajuda. Por favor, querido. Eu amo‑te. As miúdas amam‑te. Por nós, tens de procurar a ajuda de alguém. ‑ Avançou para ele de braços estendidos.

‑ Não preciso de ajuda de ninguém! ‑ gritou ele. ‑

O que preciso é que me deixem ficar sozinho!

‑ Por favor.

Tentou avançar mais um passo, mas ele bateu‑lhe, com

as costas da mão deu‑lhe uma bofetada forte na face, fazendo‑a desequilibrar‑se e chocar contra uma cadeira.

‑ Não preciso de ti. Não preciso da merda do meu pai. Não preciso da maldita Ultramed. Não preciso de ninguém!

hei‑de conseguir e nenhum de vocês irá...

Parou a meio da frase e olhou para ela, como se a tivesse visto pela primeira vez. Instantaneamente, a fúria desapareceu‑lhe do rosto.

‑ Amor. Oh, meu Deus, estás bem? ‑ perguntou, aproximando‑se dela.

Lisette recuou, tentando não tocar no ardor que sentia na face.

Em seguida, deu meia volta e saiu da biblioteca.


 

Leigh Baron olhou pensativa para o telefone que tinha na mão e depois pousou‑o suavemente no descanso.

‑ O Frank acabou de me mentir, Ed ‑ disse. ‑ Não gosto disso. Não gosto mesmo nada disso.

Enquanto bebia um café, olhou pela janela do escritório no trigésimo andar, desde o cais de Bóston até ao aeroporto. Pouco passava das Oito da manhã e, como sempre, o tráfego era intenso na entrada do Túnel Summer. Ela passara a noite na cidade, a trabalhar até de madrugada em várias aquisições iminentes da Ultramed e dormindo algumas horas no sofá‑cama do escritório.

O presidente da RIATA, ainda a transpirar devido ao percurso diário de onze quilómetros, examinou a lista do conselho de directores do Hospital Regional Davis.

‑ Quais são os dois com quem ele se reuniu? ‑ perguntou ele.

- Os dois no topo da lista: Bourque e Crook. Acabou de me dizer que a reunião correu bem e que os dois homens estão no papo.

‑ Foram essas as palavras dele?

- Precisamente. O único problema é que o Stan Ogilvie, o nosso homem do conselho de directores, disse‑me ontem à noite que o juiz Iverson contactara todos eles e que tanto Bourque como Crook juraram cumprir tudo o que ele lhes recomendasse.

‑ Será que o Frank os convenceu a mudarem de ideia?

‑ É possível, mas duvido. Ed, ele está a atirar‑nos poeira para os olhos. Eu sinto‑o. Recusa‑se a admitir que está enterrado até à raiz dos cabelos. Por maior que seja a questão, continua a achar que vai conseguir vencer.

 

Ela encheu dois copos de pé alto com sumo de laranja natural e passou um deles.

‑ Este é o teu bebé, Leigh ‑ disse Blair.

Leigh anuiu, soturna. Mais três hospitais de Nova Inglaterra estavam prestes a fechar o negócio, mas todos eles tinham optado por esperar até terminar a venda do Regional Davis. Blair controlava de perto o desempenho dela, tal como ela controlava o de Frank. Mas o génio da RIATA Internacional não era pessoa que tolerasse em alguém um fracasso desta grandeza.

‑ Bem ‑ disse ela ‑, acho que chegou a hora de eu fazer uma pequena viagem até ao Norte.

‑ Minha amiga, penso que essa é uma decisão sábia. Fizeste um trabalho excelente com o Frank Iverson; um trabalho espantoso, tendo em conta tudo o que se passa. Mas está a tornar‑se cada vez mais claro que o homem é limitado. Tudo indica que ele não consegue ir mais longe.

‑ Mas é pena ‑ observou ela, suspirando.

‑ O que se passa? ‑ perguntou Blair. ‑ Não me digas que estás preocupada por puxar o tapete a um homem que, de uma forma tão espalhafatosa, colocou as suas próprias preocupações acima das tuas ou da empresa?

‑ Não ‑ respondeu ela. ‑ Mas não consigo deixar de pensar que sentirei a falta dele em todas as reuniões regionais.

‑ Falta dele?


‑ Sim. ‑ Sorriu, tristonha. ‑ O Frank Iverson talvez tenha poucos princípios e seja um tanto egocêntrico, mas tem sido uma presença muito boa.

 

A dor, persistente e vã, centrada sob a ponta do esterno, começara logo após a discussão com Lisette e intensificara‑se durante toda a noite. Vomitara várias vezes e suspeitara ‑ apesar de não ter acendido a luz da casa de banho ‑ que, na última vez, fora sangue.

Uma garrafa e meia de Maalox ajudara‑o a acalmar um pouco o ardor e permitira que se barbeasse, vestisse e chegasse ao escritório com um aspecto razoàvel, mas ele achava que era uma questão de tempo até as dores voltarem a fazer‑se sentir.

Fora exclusivamente por culpa de Lisette que ele lhe batera. Se ela tivesse sido um pouco mais paciente e compreendido melhor a pressão que ele estava a viver, teria sido uma esposa e nunca apenas mais uma tensão na vida.

Zack, o juiz, Mainwaring, Leigh Baron ‑ como se já não tivesse problemas suficientes, para Lisette começar a dar‑lhe sugestões; que raio de descaramento dizer‑lhe que precisava de pedir ajuda a alguém, quando era ela que o devia fazer. Era um milagre que o estômago não se tivesse manifestado há mais tempo.

Pegou no telefone e marcou o número da farmácia do hospital.

‑ Sammy, fala o Frank Iverson. Qual é o nome do medicamento que é bom para problemas estomacais?... Não, não, isso não, os comprimidos... Cimetidine. Sim, é isso. Ouça, pode trazer‑me a dose para uma semana de tratamento?... Sei que é preciso uma receita médica, raios. Não preciso de ouvir discursos. O que preciso é desses comprimidos... óptimo. E não conte isto a ninguém, está bem? ‑ Só faltava que se soubesse que Frank Iverson tinha uma úlcera a sangrar.

Desligou o telefone e tomou outro gole grande de Maalox. Talvez tivesse sido um erro não contar a Leigh Baron o que se passara com Bourque e Crook, mas esta batalha era entre ele e o juiz, e o encontro com aqueles dois lacaios de fraco carácter não passara de uma escaramuça. Até à reunião, teria mais do que votos suficientes para bloquear a reaquisição.

Pensou telefonar a Mainwaring para saber do relatório. Se alguma coisa podia ajudar a acalmar o estômago, eram as suas palavras animadoras. Duzentos e cinquenta mil dólares para repor na conta do Ultramed‑Davis e os restantes setecentos e cinquenta mil para investir onde quisesse. Só a ideia dessa importância já era suficiente para diminuir a sensação de enjoo.

Ele só tinha de se acalmar, ignorar o comportamento de Lisette e concentrar‑se no juiz e nos membros da direcção. O sucesso final, tanto dentro como fora da empresa, estava tão próximo que já o conseguia saborear.

Procurou na sua agenda de telefones o número de Mainwaring em Atlanta, e já tinha começado a discar o número quando a secretária o interrompeu no intercomunicador.

‑ Mister Iverson, fala a Annette.


A voz dela fez‑lhe pensar de imediato nas noites sensuais, simples e desinteressadas que haviam passado juntos ‑ noites completamente opostas ás que passava com Lisette. Annette era a mulher perfeita para aliviar a pior das tensões e Frank anotou mentalmente que devia pedir‑lhe, o mais breve possível, para ficar a trabalhar até mais tarde.

‑ Sim, Annette ‑ disse ‑, pode dizer.

‑ Mister Iverson, o doutor Jack Pearl está aqui para falar consigo. Ele sabe que não tem marcação, mas diz que é muito importante.

Pearl. Frank não conseguiu lembrar‑se de nada que o desagradável homenzinho homossexual pudesse ter para dizer que possivelmente lhe interessasse ouvir.

‑ Annette, pergunte ao doutor Pearl se o que ele tem para me dizer não pode esperar até mais tarde... Oh, esqueça. Mande‑o entrar.

Pearl, que como sempre parecia não fazer a barba há dois dias, com um molho de papéis numa mão e uma chávena de café na outra, entrou no gabinete de Frank e, de imediato, fechou a porta com o pé, entornando grande parte do café sobre o tapete persa.

‑Merda... foda‑se ‑ murmurou, ajoelhando‑se e absorvendo o líquido com um lenço que estava longe de estar limpo.

Frank estava prestes a insistir para que se levantasse e deixasse a porcaria para a mulher da limpeza. Pelo contrário, foi à casa de banho buscar uma toalha, atirou‑a a Pearl e ficou a olhar divertido para o médico de cócoras no chão, ora a praguejar para si próprio, ora a cacarejar como uma obscena e gigantesca galinha.

‑ Pare, Jack, já chega ‑ disse Frank por fim. ‑ Sente‑se. Vou pedir à Annette para lhe trazer outro café, a não ser que queira torcer aquela toalha para dentro da chávena. ‑ Deu uma valente gargalhada. ‑ Desculpe, Jack, estava a brincar. A sério, quer mais?

- não, Frank. Não, obrigado.

‑ Assim sendo, está bem. Então, que assunto tão importante é esse?

Pearl pareceu atrapalhado.

‑ Diga ‑ ordenou Frank. ‑ Não vou morder‑lhe.

‑Há... hum...

Pearl tossiu e aclarou a garganta.

‑ Surgiram algumas coisas... problemas... com o Serenil.

Os olhos de Frank tornaram‑se mais pequenos e duros.

‑ Que raio está você a dizer, Jack?

O anestesista começou a tremer.

‑ Bem ‑ conseguiu pronunciar ‑, o que quis dizer foi que, não são exactamente problemas... hum, mas... mas potenciais problemas. Eu precisava de falar consigo, Frank. Você não tem estado aqui.

‑ Negócios, Jack, tive de tratar de negócios. Pelo amor de Deus, vá directo ao assunto.

‑ Na segunda‑feira de manhã, tive uma visita no meu gabinete, Frank... ‑ As palavras começaram a sair mais facilmente. ‑ Um médico que está à beira de descobrir que o Mainwaring e eu não utilizámos a anestesia que mencionei nas minhas anotações operatórias.

‑ Isso é impossível ‑ disse Frank, com o pensamento a saltar de imediato para as implicações da descoberta naquela fase final do jogo.


Sem dúvida estranho, pensou ele; talvez dispendioso, se fosse necessário pagar para calar a boca a alguém. Mas não era catastrófico. O teste estava concluído. Todo o projecto fora calculado para deixar Mainwaring suficientemente confiante no Serenil a ponto de o comprar e, nesse aspecto, o mesmo já era um sucesso absoluto.

‑ Eu avisei que isto podia acontecer ‑ dizia Pearl. - Avisei ambos.

- De que é que você está a falar, Jack?

- Do tempo de recuperação. Eu bem o avisei a si e ao Mainwaring que alguém podia notar, mas nenhum de vocês me deu ouvidos. E agora alguém notou. ‑ As palavras, inicialmente gaguejadas e incertas, começaram a sair como uma slot machine a pagar. ‑ E ainda não é tudo. Há uma criança, a quem operámos a uma hérnia em Janeiro último, que... que está a sofrer de pesadelos e...

‑ Pronto ‑ disse Frank, erguendo os braços ‑, chega de disparates. Quero que abrande, se acalme e comece tudo desde o princípio. Percebeu?... óptimo. Agora, em primeiro lugar, Jack. a quem se refere exactamente?

‑ Bem, Frank, é... o seu irmão. O seu irmão Zachary.

Outra vez Zack! Para Frank, os minutos que se seguiram foram uma verdadeira tortura. Ouviu, impassível, lutando por conservar a concentração e a compostura aos olhos do grotesco homenzinho e a chama de ódio que lhe dilacerava as entranhas.

Analisou as anotações que Pearl lhe entregou: a revisão de Zack aos casos de vesícula e o registo hospitalar de Toby Nelrus. Em seguida, pediu a Pearl para repetir toda a história, passo a passo.

A meio desta, desculpou‑se por alguns minutos dizendo que precisava de assinar uns papéis e enviá‑los para Bóston. Depois, saiu calmamente pela porta exterior do gabinete e percorreu o corredor até uma casa de banho livre para homens, onde vomitou.

Vinte minutos mais tarde, foi buscar o Cimetidine e mais Maalox, à farmácia, e olhou‑se ao espelho noutra casa de banho para homens.

Como guarda‑redes, aprendera que raramente os jogos corriam como os treinadores previam. Um atacante tropeça e todos os outros se atrapalham; um médio pensa na discussão que teve com a namorada e falha uma defesa crucial.

Acima de tudo, o guarda‑redes tem de estar sempre atento; tem de esperar o inesperado. E era nesta área, lembrou‑se Frank - a capacidade de reflexo instintivo para reagir e ajustar ‑ que Frankie Iverson fora sempre o melhor dos melhores.

Desta vez, tal como em inúmeras situações dificeis em inúmeros campos de jogo, a sua forma de estar seria manter‑se calmo e atento. Um pouco de cada vez, percebera a história de Pearl e compreendera que as coisas ainda não estavam tão perdídas como inicialmente pensara.

Quando regressou ao gabinete, estava lavado, penteado e exteriormente calmo.

Annette Dolan, que trazia uma camisola de mangas curtas com uma fina tira de bordado com pérolas sobre os seios, estava ainda mais sedutora que o habitual.

- Há muito trabalho para fazer. Se puder fique esta noite.

Frank escreveu as palavras num pedaço de papel, assinou o bilhete com um sorriso no rosto e, quando passou, pousou‑o junto ao cotovelo dela.


Ela leu o bilhete e, quase imperceptivelmente, sorriu e concordou com a cabeça.

Aqui está, pensou Frank, enquanto abria a porta do gabinete, uma mulher compreensiva.

O gabinete estava vazio.

‑ Annette, o doutor Pearl foi‑se embora? ‑ perguntou, virando‑se para trás.

‑ Não. Só o senhor ‑ respondeu ela.

Nesse momento, ouviu‑se o autoclismo da sua casa de banho privada. Só de imaginar que Jack Pearl tinha estado sentado na sua sanita foi o suficiente para fazer a azia voltar ao estômago de Frank. Teria de mandar chamar a mulher da limpeza para limpar tudo antes de voltar a colocar um pé lá dentro.

Pearl saiu da casa de banho a limpar o nariz com uma mão e a fechar a braguilha ainda aberta, com a outra.

‑ Espero que não se importe que eu tenha utilizado a sua casa de banho, Frank ‑ disse. ‑ Tudo isto tem afectado os meus intestinos e a merda não está muito bem.

Frank fez um sorriso amargo e decidiu que, depois de terminada a venda do Serenil, mandar Jack Pearl para o mais longe possível de Sterling seria uma prioridade ligeiramente inferior à de Zachary.

‑ Não faz mal, Jack ‑ disse. ‑ Diga‑me exactamente o que pretende de mim.

Pearl aclarou a garganta.

‑ Bem, quanto mais penso nas propriedades do medicamento a partir do qual criei o Serenil, mais concluo que é possível que o seu irmão tenha razão quanto ao miúdo.

‑ Que ridículo.

‑ Porquê?

‑ Jack, você e o Mainwaring trataram de quinhentos casos. Quinhentos! Depararam com algum problema?

‑Não, mas...

‑ Mas o quê, Jack?

‑ Se o problema do miúdo se deve ao medicamento, então é uma espécie de reacção retardada. Uma reacção em retrospectiva, foi assim que o seu irmão lhe chamou. Se ele tiver razão, talvez haja outras pessoas a sofrerem do mesmo mas que não ligaram as crises à anestesia. Se tivesse a certeza que era isso, eu havia de conseguir consertar tudo, Frank. Conheço todas as moléculas do medicamento. Eu havia de conseguir.

‑ Jack, por favor ‑ pediu Frank. ‑ Tudo isso é um perfeito disparate. O miúdo está a ter pesadelos devido a qualquer coisa que viu na TV, provavelmente naquele maldito programa. Estão sempre a mostrar bebés a nascerem, pessoas a serem operadas e merdas do género, pelo amor de Deus. E É de admirar que não haja mais crianças afectadas.

‑ Frank, podemos confirmar. Com cerca de cem telefonemas, poderemos saber se alguém está a ter...

‑Não!

‑Mas...

‑ Jack, tentei ter paciência consigo, mas você acabou por esgotá-la...

Como prova do que sentia, Frank partiu um lápis em dois pedaços.


- O Mainwaring vai acabar de apresentar o Serenil aos sócios, regressar aqui e dar a cada um de nós... meio milhão de dólares, e nós vamos entregar‑lhe o medicamento. Foi assim que planeámos e é isso que vamos fazer.

‑Mas...

- Nada de mas, Jack. Se não quiser acreditar em mim quando digo que o miúdo não passa de uma mera coincidência, o problema é seu. Mas raios me partam se será meu. Agora escute, mas com muita atenção: se disser uma palavra sobre isto ao Mainwaring ou a outra pessoa, a merda de uma só palavra, as autoridades de Akron virão aqui apanhar o que sobrar de si mais depressa do que você pisca os olhos. Eu consegui afastá‑los das suas costas, mas consigo trazê‑los de volta. Percebeu?

Pearl assoou‑se ao lenço que utilizara para ensopar o café

entornado e acendeu um cigarro. Frank Iverson tinha‑o colocado entre a espada e a parede. Era uma posição que conhecia bem.

- P... percebi - respondeu.

- Espero bem que sim. - Frank apontou‑lhe um dedo enquanto falava. - Porque lhe garanto, Jack, que quero ver esse medicamento vendido e quero esse dinheiro no banco. Não estrague tudo.

- Não o farei - declarou Pearl. - Mas...

- Mas o quê?

- Frank, que mal faria fazer alguns telefonemas? Se houver algum problema com o Serenil eu posso resolvê‑lo. Eu sei que posso...

Frank contornou a secretária, pegou no anestesista pelos colarinhos e levantou‑o até ficar nas pontas dos pés.

- Merda, Jack, já disse que não!

Abanou o pequeno homem como um cão a desfazer um rato e atirou‑o para a cadeira, obrigando‑o a sentar‑se de novo.

Pearl acobardou‑se perante o ataque de fúria.

- Está bem, está bem - afirmou, protegendo o rosto com os braços.

Porque é que a sua vida terminava sempre em cenas como aquela? Porquê?

- Assim está melhor - disse Frank, dando uma palmadinha no ombro de Pearl. - Muito melhor... - Voltou a sentar‑se á secretária. - Ei, amigo, não fique tão taciturno. Tal como já disse, o miúdo não passa de uma mera coincidência. Esse seu Serenil é tão perfeito quanto me disse.

‑ E o seu irmão?

‑ Deixe o meu irmão comigo. Mantenha‑se apenas longe dele. Se ele tentar enfrentá‑lo de novo, mande‑o vir falar comigo ou... ou com o seu advogado. Tome... aqui está um nome para lhe dar. Mas, a não ser que queira umas férias prolongadas em Akron depois de uma estada prolongada numa UCI, é tudo o que vai dar‑lhe, estamos entendidos?... Então, estamos ou não?... Perfeito, Jack. Tal como essa sua anestesia, absolutamente perfeito.

‑ Está bem, Frank ‑ disse Pearl, apagando o cigarro e avançando para a porta. ‑ Você venceu.

A porta abriu e fechou, e Pearl desapareceu.

Você venceu... Exactamente, pensou Frank excitado. Venci. Ele tinha tratado brilhantemente daquele pervertido pequeno e repugnante. Depois de passar por situações dificeis com Leigh, o juiz e os dois membros da direcção, sabia‑lhe bem ser ele mais uma vez a controlar a situação.


Tudo o que tinha a fazer era manter Zack afastado e desamparado durante uma semana. E ele faria tudo o que fosse necessário para o conseguir.

Entretanto, bastava‑lhe um pouco de pressão bem aplicada em dois directores mais fracos e o futuro da Ultramed ‑ e de Frank Iverson ‑ no hospital ficaria assegurado. Depois disso, encontrar‑se‑ia em posição de poder tratar de uma forma definitiva tanto do maldito irmão vingativo, como de Pearl.

Frank, Frank, ele é o nosso homem. Se ele não conseguir..

Ouviu‑se de novo o intercomunicador.

‑ Mister Iverson, é a Annette outra vez. Está um tal Mister Curt Largent na linha três. Ele diz que é seu vizinho.

Major Curtis Largent, Exército americano, aposentado. Era o que o idoso herói tinha pintado na caixa do correio. Reduzido a uma cadeira de rodas por causa de uma granada durante uma batalha numa aldeia ou igreja italiana, Largent era o guarda de segurança não oficial da vizinhança de Frank, vigiando a área durante horas a partir da varanda do andar superior e anotando num bloco todos os movimentos suspeitos e, virtualmente, todas as matrículas dos carros que não conhecia.

Por duas vezes, a sua vigilância chegou mesmo a impedir crimes ‑ numa, o roubo de uma bicicleta, e na outra, o despejo ilegal de lixo logo a seguir á curva.

‑ Olá, major, fala o Frank Iverson. ‑ As últimas palavras dos vivas ainda lhe ecoavam na mente. ‑ Em que posso ser‑lhe útil?

Apesar dos estudos ‑ um engenheiro de qualquer coisa, pensou Frank ‑, Largent ainda falava com o sotaque do Sudeste.

‑ Bom, Frank ‑ disse ‑,telefonei essencialmente porque ninguém me disse que iam mudar de casa.

‑ Ninguém lhe disse, porque não vamos mudar.

‑ Isso é estranho, mesmo muito estranho.

‑ O quê, major? De que é que está a falar?

‑ Bem, estou aqui na minha varanda. Você sabe, onde gosto de me sentar?... Bem, ao fundo da rua, exactamente á frente da sua casa, está um camião. Estão também dois jovens a carregar coisas para dentro dele, há mais de uma hora.

‑ Tem a certeza de que é a nossa casa, major?

‑ Tão certo como estar aqui.

‑ A Lisette está lá?

‑Não... Espere aí, parece que sim... Deixe‑me ir buscar os binóculos só para ter a certeza... Oh, é ela mesmo. Está com as suas filhas junto ao camião, a vê‑los carregar.

‑ Obrigado, major ‑ disse Frank. ‑ Obrigado por me ter telefonado.

Desligou e marcou o número de casa. Deixou tocar vinte ou mais vezes, mas ninguém atendeu.

Cerca de quinze minutos mais tarde, fez a curva e subiu a montanha, em direcção á sua casa.

‑ Maldita Lisette ‑ disse várias vezes durante o percurso. ‑ Merda, maldita Lisette...

Lisette, as crianças e o camião já ali não estavam. A maior parte da casa ainda estava intacta, mas ela levara as jóias, o microndas, o aparelho de televisão maior, a cómoda dela e das gémeas, os brinquedos, as bicicletas e as camas, e deixara todas as garrafas de bebidas alcoólicas partidas em pedaços no lava‑louça, incluindo a garrafa de duzentos dólares Chateau Lafite Rothschild que ele lhe oferecera no aniversário e que estava a poupar para festejar a venda do Serenil.


O bilhete, cuidadosamente escrito no papel de carta alfazema de Lisette, estava preso a uma almofada da cama.

Nunca mais voltarás a bater‑me. Por favor, não tentes encontrar‑nos. Contactar‑te‑ei quando me sentir melhor e apta... Valeu a pena?

 

Frank atirou para o chão o candeeiro da mesinha‑de‑cabeceira, amarrotou o bilhete na mão e atirou‑o para o outro lado do quarto.

‑ Verás ‑ resmungou, furioso. ‑ A partir de agora, verás se valeu ou não a pena a merda de um milhão de dólares, sua cabra desleal.

Começou a dirigir‑se ao armário das bebidas, mas lembrou‑se subitamente da confusão no lava‑louça e, em vez disso, saiu de casa e partiu.

Enquanto conduzia pela estrada abaixo, pelo canto do olho Frank viu o major Curtis Largent, Exército americano, aposentado, sentado na varanda do andar superior, a balouçar e a vigiar.

 

A tarde parecia quase tão normal ‑ quase como as tardes eram outrora ‑ como todas as que Barbara Nelrus podia recordar. Os raios de sol entravam pelas salientes janelas da sala de estar e da cozinha, banhando a casa impecavelmente limpa. Amontoados sobre a mesa de jantar estavam os pratos que iria utilizar para servir a refeição ás primeiras visitas que ela e Bob convidavam em mais de meio ano.

Toby estava deitado de barriga para baixo sobre o tapete da sala de estar, folheando as páginas de um livro sobre aviação, de capa brilhante. Ao regressar a casa depois da sessão ao ar livre com o Dr. Iverson, Barbara parara por impulso e comprara o livro. Esse impulso provou ser inspirador.

Durante os dias que se seguiram, Toby passou horas a examinar calmamente as fotografias e os desenhos. E, ainda mais importante, nunca mais teve um único ataque. Como era de prever, Bob quis ir a correr comprar um modelo para começar a construir com o filho, mas ela pediu‑lhe para avançar mais devagar e, por ora, deixar as coisas como estavam.

Até o psiquiatra, Phil Brookings, fora uma ajuda. Embora tivesse recusado ver Toby até o Dr. Iverson ter terminado a avaliação, conversara por duas vezes com Barbara e incentivara‑a a trazer também Bob, para ouvir conselhos familiares.

Enquanto endireitava os livros da estante e polia o já luzidio relógio da lareira, Barbara reviu mentalmente a refeição que planeara e a música que ia escolher. Depois da sobremesa do café, se conseguisse fazer com que alguém lhe pedisse, talvez tocasse. Há muito tempo que ela não se permitia ter pensamentos tão mundanos.

‑ Toby - aventurou‑se ela ‑, não queres ajudar‑me a pôr a mesa para o jantar que vamos dar à mãe e ao pai do Bit.

Toby continuou a folhear o livro, estendendo ocasionalmente o braço para passar os dedos sobre um dos aviões.

- Está bem - disse ela em tom animado. - Faz o que quiseres. Quando estiveres farto do livro, avisa‑me. Estarei na cozinha.

Valera a pena tentar.


Passados alguns minutos, quando estava junto ao lava‑louça, a lavar os legumes, Barbara ouviu um som ligeiro atrás de si. Subitamente tensa, virou‑se. Toby estava à porta da cozinha com os cantos da boca curvados para cima, formando algo parecido com um sorriso. Barbara sentiu uma onda de entusiasmo.

- Olá - disse, procurando acalmar o coração acelarado. - Queres fazer um trabalho?

O rapaz hesitou e depois, numa forma quase imperceptível, anuiu.

‑ Fantástico!... Quero dizer, óptimo, querido. Preciso mesmo de ajuda. Espera, deixa‑me ir buscar o teu banquinho

Colocou o banquinho junto ao lava‑louça e entregou o descascador a Toby.

- Pronto - disse. - Tudo o que tens de fazer é raspar cenouras até ficarem como esta, vês?... Isso mesmo. Vou ao quarto da roupa para passar, dobrar algumas peças. Quando terminares as cenouras, dar‑te‑ei as batatas.

Normal. Barbara nunca sonhara gostar tanto daquela sensação. Quando se dirigiu ao quarto da roupa para passar, olhou para o relógio de parede.

- Ei, Toby - disse, regressando à cozinha ‑, adivinha do que é que está na hora.

Ligou o aparelho de trinta e seis centímetros a preto e branco, que tinha sobre o balcão para ver as novelas.

O desenho animado de apresentação de Robin, o Bom estava mesmo no fim.

Toby continuou sobre o banco a descascar as cenouras, lavando‑as debaixo da torneira de água fria, pensando em aviões e olhando de vez em quando para Robin e os seus companheiros.

‑ Agora, senhoras e senhores ‑ dizia o frei Tuck ‑, está na hora de aprenderem a Letra do Dia. Hoje, a letra é muito especial porque é a única que se escreve com um "u" a seguir.

a letra que inicia as palavras quando, quem e qual. Sabem qual é?

‑ Q - respondeu Toby, distraidamente.

‑ Quantos responderam Q? - perguntou o frei Tuck. - Bem, se responderam Q, acertaram! Assim, sem mais cerimónias, aqui estão Robin e Alan para cantarem uma canção sobre que letra? Exacto, a nossa amiga, Q.

Alan‑a‑Dale tocou várias vezes a enorme viola. Depois, Robin, o Bom saltou para cima de uma rocha gigantesca e, de mãos nas ancas, começou a cantar.

Mas, meu amor, estás a fazer‑me sofrer e eu não sei porquê? Mas eu ainda tenho de cantar a canção sobre a letra Quê...ê...ê...

às primeiras notas da música, Toby parou de descascar e começou a olhar para os azulejos da parede. O descascador caiu‑lhe das mãos e bateu no aço do lava‑louça. Ele esfregou os olhos à medida que os azulejos azuis e cinzentos se tornaram mais brilhantes.

Estava a começar a acontecer. Tal como das outras vezes, estava a começar a acontecer.

‑           Mamã...

Falou em voz alta, mas não ouviu qualquer resposta.

Eles vinham buscá‑lo. A enfermeira e o homem da máscara. Eles vinham buscá‑lo outra vez.


‑ Mamã, por favor...

Os olhos dirigiram‑se ao lava‑louça, para a água a salpicar.

Fá‑los parar!, implorou a mente. Não deixes que te toquem.

A sua mão agarrou no cabo preto de uma faca que se encontrava ao lado do descascador.

Fá‑los parar!

Quando levantou a faca, o sol reflectiu‑se sobre a lâmina larga e molhada.

Ao longo de meio ano, desde que os ataques do filho haviam tido inicio, Barbara Nelrus desenvolvera um sexto sentido. Fora como se algo no ar tivesse mudado a electricidade ou os iões. Tinha havido falsos alarmes nos momentos em que correra aterrorizada pela casa, para encontrar Toby sentado à janela a olhar para o jardim, ou deitado na sala de leitura a ver mecanicamente um programa que não lhe despertava qualquer interesse.

Houvera, porém, outros momentos, em especial a horas adiantadas, em que o encontrara a espernear violentamente no chão, ou encolhido num canto, com o corpo a tremer devido ao repetitivo horror que o envolvia interiormente.

Barbara estava a dobrar a última peça de roupa lavada quando começou a pressentir problemas. Não foi mais do que um tique na mente, uma sensação. A casa estava demasiado silenciosa e o ar muito parado. Como um veado que subitamente percebe o ruído de um motor ainda demasiado distante para qualquer ouvido humano, inclinou a cabeça para um lado e pôs‑se à escuta. Apenas conseguiu ouvir a água a correr no lava‑louça e o som da televisão.

Robin, o Bom estava a cantar a canção do alfabeto, uma série de tributos absurdos e sem ritmo para cada letra, cantados ao som de Greensleeves. Era uma melodia de que Barbara gostava muito, até conhecer a versão do corpulento actor. Agora:

arranhava, como se de giz novo se tratasse.

- Toby?... - chamou em voz alta. - Toby, estás a ouvir‑me?

Não obteve resposta.

- Toby, querido?

Pôs de lado o lençol que ia dobrar e começou a andar em direcção à porta. Depois, desatou a correr.

Olhou em redor da cozinha deserta e já ia a caminho da sala de estar quando ouviu um candeeiro a cair e o grito aterrorizado do filho.

‑ Nãoooo! Não me toquem! Não me toquem! ‑ gritou. - Se me tocarem aí, eu corto‑vos. Corto, sim... Parem! Parem!

Toby estava virado para o extremo oposto da sala, a mover furiosamente os braços para agressores que apenas ele via. Só passado vários minutos é que Barbara reparou que ele empunhava uma faca ‑ uma faca de trinchar com uma lâmina de vinte centímetros.

Foi então que viu o sangue.

Inadvertidamente, Toby tinha‑se cortado ‑ um golpe enorme na coxa, logo abaixo dos calções. O sangue corria pela perna abaixo, mas ele nem sequer o sentia.

‑Toby!


Barbara correu para ele, mas abrandou o passo quando a fúria selvática se intensificou.

‑ Fiquem longe de mim! Não me toquem!

‑ Toby, por favor. É a mamã. Por favor, dá‑me essa faca.

Ele recuou para o corredor, ainda a cortar o ar. Os lábios estavam afastados e os dentes cerrados num ricto assustador. Não havia sinais de que ele a tivesse reconhecido.

Os seus movimentos atiraram ao chão duas fotografias emolduradas que estavam na parede. O vidro partiu‑se junto aos pés dela.

‑Toby, por favor.

Tudo o que Barbara conseguia ver era o sangue, a jorrar pela perna abaixo até ao pé, deixando no tapete grandes manchas cor de carmim. Ele estava a aproximar‑se da casa de banho. Se a conseguisse alcançar e se fechasse lá dentro...

De modo algum ela podia permitir que isso acontecesse.

O corredor era demasiado estreito para qualquer ataque lateral. Concentrando‑se o mais possível na faca, que Toby movia violentamente em forma de arco, Barbara encostou‑se à parede e atirou‑se para cima dele. O bico da faca baixou, apanhando‑a exactamente na ponta do ombro e cortando‑lhe a carne e o músculo do braço.

Assustada com a intensidade da dor, caiu de joelhos, apertando a ferida com uma mão e tentando agarrar‑se à T‑shirt de Toby com a outra. O sangue jorrou‑lhe por entre os dedos.

Mais uma vez, a lâmina de vinte centímetros baixou. Num gesto reflexo, desviou o braço. O movimento da faca abriu outro golpe na pele do cotovelo. Antes de ela poder recuperar as forças, Toby fugiu e meteu‑se na casa de banho.

- Toby, não! ‑ gritou ela, quando a porta se fechou e foi trancada.

Aturdida, ajoelhou‑se e bateu à porta.

‑ Toby, abre! Abre, por favor! É a mamã.

A única resposta que obteve foi o estilhaçar de vidro contra o azulejo.

Deixando um rasto do seu próprio sangue, Barbara Nelrus rastejou até ao quarto e ligou para o 112.

‑ Chamo‑me Barbara Nelrus, trezentos e dez, Ridgeway ‑ disse, ofegante. ‑ O meu filho de oito anos fechou‑se na casa de banho. Tem uma faca e já se cortou. Por favor, mandem alguém para ajudar.

As paredes começaram a rodopiar.

Ela desligou e olhou para o braço. O golpe maior, de 7 ou oito centímetros, sangrava bastante. Via‑se o músculo caído e ensanguentado a sair pelo corte.

O quarto começou a fugir e Barbara percebeu que estava prestes a desmaiar.

Deitou‑se de costas e ligou para o hospital.

‑ Isto é uma urgência ‑ conseguiu dizer, tentando o mais possível não demonstrar histeria na voz. ‑ Por favor, ajudem‑me. Preciso de falar com o doutor Iverson. Doutor Zachar Iverson. É um caso de vida ou de morte...


 

A tarde estava demasiado quente e húmida. Para grande alívio do juiz Clayton Iverson, os vários adiamentos e uma falta de comparência fizeram com que o processo judicial do Tribunal Estatal de Clarion terminasse mais cedo do que era habitual.

Regressando ao seu gabinete, despiu a toga preta e pendurou‑a no cabide de latão junto à secretária. Com duas horas livres e imprevistas até à chegada de Leigh Baron à quinta, começou logo a pensar seriamente num duche e em tomar uma ou duas bebidas geladas.

A camisa branca estava encharcada em suor e a roupa interior parecia colada ao corpo.

Durante todo o Verão, o sistema de ar condicionado fora‑se degradando. Pior, o juiz sabia que eram muito remotas as hipóteses de ser substituido antes de passarem vários outros Verões. Houve uma altura em que ele teria rido de tais inconveniências. Mas, agora, mal conseguia deixar de pensar na sua desilusão e concentrar‑se nos casos que tinha em mãos.

Pela forma como tudo se tornara um diálogo interno e constante, pensou que talvez tivesse chegado a hora de pensar em reformar‑se.

Apesar das frequentes promessas de redução feitas à mulher e a si próprio ‑ de viajar mais e trabalhar menos ‑, o ritmo da sua vida, pelo contrário, tinha acelerado. Desde que comprara a casa em West Paím, seis anos antes, ele e Ciinníe só lá tinham passado exactamente duas semanas, acabando por alugá‑la. Não tinham grande necessidade do dinheiro da renda, mas não fazia sentido deixar a casa vaga.

O juiz sabia que, devido ao agravamento da artrite da mulher e ao facto de ter sido criada na Carolina do Norte, saltaria de alegria com a hipótese de apanhar sol e se afastar pelo menos por algum tempo, do desagradável Inverno de Hampshire. Possuíam amigos que já se tinham mudado para Sul e pareciam bastante satisfeitos com a decisão. Além do mais, bem precisava de praticar golfe mais frequentemente.

Reforma... Que ideia tão reconfortante, pensou... E realidade tão assustadora.

Uma coisa era pensar em deixar a magistratura. Fizera o que pudera e vira tudo o que era possível ver naquela condição. Mas outra coisa muito diferente era pegar em tudo e mudar‑se para a terra dos triciclos gigantes e das danças à hora do chá.

O juiz sentou‑se na cadeira e limpou as sobrancelhas ao lenço.

Pelo menos por agora, Cimmie e a sua artrite teriam que aguentar. Com o ar condicionado avariado ou não, ainda devia chegar ao ponto em que as hipóteses de desistir de tudo e partir para a Florida fossem mais importantes do que algumas dores e incómodos para ela e mais algumas partidas de golfe para ele.


Além do mais, pensou ele, entusiasmado, no futuro próximo tinha assuntos para tratar em Sterling ‑ assuntos importantes. No que podia bem transformar‑se num marco para abrandar o avanço da devoção cega á medicina corporativa, preferia considerar mais importante a reaquisição do Hospital Regional Davis à Ultramed e supervisar depois a sua reorganização e transição, de volta ao controlo comunitário.

Reuniões... políticas... acordos comerciais... reorganizações... dobrar‑se... manter‑se firme... vencer... perder... Clayton Iverson sentiu um prazer quase sexual ao pensar naquilo que esperava vir a acontecer nos meses seguintes.

Era uma ironia do destino que Leigh Baron, mesmo conhecendo a sua decisão, fizesse a viagem de quatro horas desde Bóston "só para conversar". Sabia que também era provável que não fosse a última vez que os chefes da Ultramed e da RIATA se deslocavam a Sterling para terem uma reunião com ele.

Seria interessante ver as manobras que eles tinham escolhido ‑ interessante e divertido, pois, quaisquer que elas fossem, ele não tinha a menor intenção de mudar de ideias.

Não que a decisão de convencer o conselho de directores a anular a venda do Davis tivesse sido fácil. Na verdade, fora uma das mais dificeis que tomara na vida. E a parte mais difícil de todas era Frank.

Sem deixar de pensar no filho, o juiz guardou na mala a pasta de Guy Beaulieu e alguns documentos relacionados com ele, saiu do tribunal e foi para casa.

Zack tinha razão, concordou, enquanto percorria a rua principal e saia da cidade pela rua Androscoggin, em direcção à curva para a quinta; Frank tinha feito um trabalho excelente como administrador do hospital. Não era culpa dele se trabalhava para uma empresa cujas políticas eram tão interesseiras que acabavam por causar catástrofes como a de Annie. Nem tão‑pouco era culpa dele, pelo menos segundo Zack, que a corporação tivesse deliberadamente decidido destruir Guy Beaulieu.

Controlar Frank no meio de tudo isto seria um teste... talvez o mais difícil de todos. Contudo, valia a pena o esforço. É verdade que tinha passado por grandes dificuldades e tomado algumas decisões erradas, mas contudo...

O toque inicial da buzina de aviso do camião que se aproximava penetrou na mente de Clayton Iverson como algo tão intruso quanto o zumbido familiar de uma sereia de nevoeiro á distância. Ele conduzia maquinalmente, olhando sem ver. O segundo toque, muito mais desesperado e persistente, fê‑lo despertar do sonho com uma brusquidão feia e aterrorizadora.

Na estrada de dois sentidos, o lado esquerdo do Chiysler tinha saído de mão ‑ na realidade, desviou‑se tanto que a sólida linha divisória corria exactamente sob o centro do automóvel.

O camião, um monstruoso GMC vermelho, avançava na sua direcção, os travões pneumáticos a chiar, a grelha à sua frente como se dos dentes de uma baleia se tratasse.

Nos clamorosos, surreais e gélidos momentos que se seguiram, o juiz reviu num minuto os inúmeros pormenores da cena à sua frente: os pronunciados ossos malares, de compleição eslava, do robusto camionista, que olhava para ele com os olhos muito abertos de terror e fúria... o seu boné verde... as orlas douradas... o sol a reflectir‑se no pára‑brisas do camião... a palavra Tendy's pintada a branco no deflector de vento carmesim, por cima da cabina...

A buzina... os travões pneumáticos... o rosto... a grelha... o sol.., os pneus a chiarem...


Sem saber o que fazia, Clayton Iverson virou o volante do Chrvsler para a direita, fazendo uma curva de noventa graus, depois outra, derrapando até parar na faixa de areia á beira da estrada.

Guinando e desviando‑se devido ao esforço, o gigantesco veículo passou á tangente, fazendo com que o Chrvsler abanasse terrivelmente devido ao vácuo da sua passagem.

O juiz olhou pelo retrovisor a tempo de ver o camionista

dominar o balanço e conseguir controlar gradualmente o camião. Respirando fundo, continuou a olhar para o retrovisor até o reflexo carmesim ter desaparecido a seguir a uma curva.

Em seguida, deixou‑se ficar sentado na berma, a tremer descontrolado, e à espera que o seu coração e pulmões rebentassem, ou que a adrenalina de todo o corpo resolvesse baixar.

Já tinha passado por várias situações de susto naquela estrada, embora nenhuma tivesse sido tão assustadora quanto

aquela. E, desta vez, tal como depois de todas as outras, agradeceu em silêncio a Deus Todo‑Poderoso por lhe ter dado reflexos suficientemente rápidos para compensar o facto de ser um dos condutores que mais facilmente se distraía, de entre todos que tinham alguma vez sido colocados atrás do volante de um automóvel.

Fez também um breve louvor pelo facto de ter preferido comprar um dos modelos mais pesados que circulavam na altura.

Após vários minutos, a pulsação abrandou e ele parou de tremer o suficiente para conseguir regressar á estrada. Prometeu a si próprio que faria o resto do percurso a trinta, ou no máximo quarenta quilómetros à hora.

O camionista, quem quer que fosse, tinha ganho uma passagem para o céu devido à sua hábil condução. e também a sua fora hábil, pensou...

Tirou um lenço do porta‑luvas e limpou o suor que lhe corria no rosto e nas mãos.

absolutamente hábil...

Saboreou uma inspiração profunda e depois outra. A pulsação voltara ao normal.

Bem, pensou, onde é que eu ia?... Ah, sim, o Frank...

Fora com satisfação que ouvira tanto Whitey Bourque e Bill Crook falarem do jantar que tinham tido com ele.

Que tipo fantástico. Tinham sido essas as palavras exactas

de Bourque. Inteligente, bem preparado e persuasivo como em Dickens...

Era quase como nos velhos tempos ‑ os repórteres, a malta da televisão, os telefonemas de amigos durante toda a semana...

Juiz, tem ali um grande filho... Mesmo um grande filho...Podemos tirar uma fotografia com os dois juntos?... Em que é que estava a pensar quando o seu filho partiu para um bheco sem saída como aquele?...

No que dizia respeito ao juiz, desde o momento em que Annie Doucette caíra aos pés da cama que o destino da Corporação de Hospitais Ultramed em Sterling fora selado. Mas a conversa com Bourque ajudara‑o a ver que, embora a empresa tivesse de se retirar, não havia motivos para Frank sair com eles.


Bastaram‑lhe alguns telefonemas a determinados directores para o convencer de que a direcção concordaria em manter Frank como administrador.

Agora, só precisava de convencer Frank...

O juiz já ia cerca de cem metros para lá da enorme caixa de correio prateada que marcava o caminho empoeirado para a sua quinta, quando percebeu que esta ficara para trás.

‑ Raios te partam, Iverson ‑ praguejou em voz alta.

Abrandou, pensando momentaneamente se deveria fazer uma volta em U ou fazer marcha atrás. Depois, antes de tentar qualquer uma das manobras, percorreu os quinhentos metros que faltavam até á estrada seguinte. Por duas vezes, ao tentar inverter a marcha naquele pedaço de estrada estreita, caíra na valeta. A última coisa de que necessitava nesse momento era de passar uma hora de calor sufocante empoleirado nos rails de protecção, à espera de Pierre Rousseau e do seu maldito reboque.

Ele tinha um compromisso com um duche e um gim tônico e, mais tarde, com uma encantadora mulher de negócios que iria em vão tentar convencê‑lo a reconsiderar a sua decisão.

Leigh Baron não era assim tão dura, mas era inteligente e bastante divertida. E certamente que poderia vir a ser um aquecimento razoável para os futuros encontros com os verdadeiros adversários mais pesados.

Mais uma vez, ele sentiu a cintilação ‑ o prazer ‑ do que iria acontecer daí em diante. Não lhe era difícil compreender por que razão os generais desistiam tão relutantemente dos comandos.

Reforma?... Disparate, pensou.

O jogo tinha começado, e Clayton Iverson encontrava-se bem no centro.

Depois de abrandar o Chrvsler para parar junto ao celeiro, sair do carro e examinar a quinta e as montanhas ao fundo, o juiz anotou mentalmente que tinha de enviar a renovação do contrato ao seu inquilino da Florida, antes que Cinnie percebesse que este já tinha expirado.

 

A atmosfera na unidade de cuidados intensivos estava extremamente tensa. Uma criança estava com problemas ‑ problemas graves.

As enfermeiras, com ar eficiente, passavam de um cubículo para outro, mas mais caladas do que era habitual e parando de tempos em tempos á porta do número 7, para verem se a colega, que cuidava de Toby Nelrus precisava de ajuda.

Atrás do posto de enfermagem Zack examinava as últimas análises com o pediatra Owen Walsh, um homem afável de cinquenta e muitos anos, cabelo grisalho cortado curto e profundos pés‑de‑galinha nos cantos dos olhos, que lhe davam uma expressão sempre sorridente.

Oposto a eles, no cubículo número 7, Toby estava deitado a tremer, sob um cobertor de arrefecimento, totalmente indiferente ao ambiente. A febre, apesar de todas as medidas tomadas, continuava acima dos 40 graus.

A equipa de bombeiros-salvadores conseguira derrubar a porta da casa de banho dos Nelrus e encontrara o rapaz debruçado sobre a banheira, quase inconsciente, com múltiplos cortes e ferimentos profundos nos braços, abdómen e pernas.


Barbara Nelrus encontrava‑se no quarto, consciente mas em estado de choque, com o sangue ainda a jorrar dos golpes que tinha no braço.

Zack conseguira chegar à casa a tempo de ajudar nos primeiros socorros e na aplicação de tubos intravenosos, tanto na mãe como no filho. Em seguida, acompanhara a ambulância ao hospital e entregara Barbara Nelrus, cuja pressão arterial reagira bem ao liquido introduzido, ao cirurgião geral Greg Ormesby.

Por último, depois de levar Toby para a UCI e de o pôr sob o cobertor de arrefecimento, Zack começara a cuidar dos ferimentos; nenhum deles afectara qualquer tendão ou estrutura vital. Mas, por mais assustadoras que as dilacerações parecessem, Zack sabia que eram insignificantes em comparação com a febre e a deterioração dos sistemas nervoso central e cardiovascular do rapaz ‑ um grupo de sinais que eram quase de certeza o reflexo de um problema cerebral.

‑ Está a pensar em Bóston? ‑ perguntou Owen Walsh. Tal como a maioria dos pediatras da comunidade, em especial os mais idosos, Walsh sentia‑se muito melhor a cuidar de doentes no seu consultório do que no hospital, e não se sentia nada bem a tratar de uma criança criticamente doente na unidade de cuidados intensivos.

‑ Nesta altura, nem sequer sei se ele conseguiria lá chegar - respondeu Zack ‑, embora pense que esse devia ser o objectivo de todos nós.

‑ Não sei se sabe, mas no passado ele já esteve internado lá.

‑ Eu sei, Owen. E sei que está nervoso por ele estar aqui. A verdade é que nem eu me sinto muito bem com isso. Mas acredite em mim, em como alguém que há cerca de um mês podia ter sido chamado para examinar esta criança após a sua transferência para Bôston, quando lhe digo que os nossos produtos são tão bons quanto os deles. O mesmo se aplica ao nosso cobertor de arrefecimento, ao nosso Tilenol e aos nossos esteróides. A Suzanne Cole é uma boa cardiologista. Não é que não estejamos a fazer nada. Acho que devíamos alertar o pessoal de lá sobre o que está a passar‑se e deixar de sobreaviso uma equipa operatória. Mas existe algo com que temos de nos preocupar primeiro.

‑ A anestesia?

‑ Exactamente.

Zack contara ao pediatra a história de Toby, escondendo apenas a suspeita que tinha de que talvez houvesse sido usada uma espécie de anestesia secreta durante a operação à hérnia.

‑ Pode explicar‑me tudo de novo? ‑ pediu Walsh.

‑ Claro. É só um segundo.

Zack levantou‑se e espreitou Toby. Envolto em ligaduras, rodeado pelo monitor, pranchetas, tubos intravenosos, gástricos e de oxigénio e pelo amplo cobertor de arrefecimento, a criança parecia terrivelmente frágil e vulnerável.

‑ Há alguma alteração? ‑ perguntou Zack à enfermeira encarregada.

‑ A temperatura desceu aos quarenta, doutor ‑ respondeu ela. ‑ Não há mais nenhuma alteração.

‑ As pupilas?

‑ Ainda iguais e reactivas, mas apáticas.

‑Obrigado...


Olhou para o monitor a tempo de captar várias pulsações ameaçadoras e prematuras.

‑ Veja se consegue localizar a doutora Cole, por favor - pediu á secretária da unidade. ‑ Pergunte‑lhe se pode vir aqui abaixo.

Tornou a virar‑se para o pediatra.

‑ Está bem, Owen. Se o que estamos agora a ver é uma espécie de reacção central e tóxica a uma anestesia, então tudo quanto sei é que as moléculas do medicamento, ou pelo menos a sua composição química, ainda se encontram no cérebro do Toby, obstruindo os caminhos neurológicos e, periodicamente, disparando mensagens sem pré‑aviso ou controlo da parte dele.

‑ Os ataques.

‑ Ou reacções em retrospectiva, ou o que lhes quiser chamar. Seja como for, as mensagens que estas moléculas transmitem são violentas e relacionadas com a operação.

Mas porquê?, interrogou‑se Zack, talvez pela milionésima vez. Por que razão surgem e quando surgem? Porque não acontece a todos os doentes, ou pelo menos a mais alguns? Ele estava certo de que a resposta tinha de ser uma espécie de neuroactivador ‑ um disparador ou, dada a raridade do caso, mais provavelmente uma sequência especifica de disparadores. Nenhuma outra explicação fazia sentido...

‑ Zack, o que é que disse? ‑ Owen Walsh olhava para ele, curioso.

‑ Oh, desculpe. ‑ Zack registou mentalmente que deveria ir falar com Barbara Nelrus para rever os pormenores que antecediam os ataques de Toby. Iria também anotar todos os pormenores de que se lembrava dos minutos anteriores e posteriores ao bizarro episódio de Suzanne. ‑ Conseguiu perceber tudo?

- Até agora, sim ‑ respondeu Walsh.

‑Está bem...

Numa folha de papel, Zack desenhou um esboço de várias

extremidades nervosas e utilizou o diagrama para ilustrar a sua teoria.

‑ Assim, o que devemos pensar fazer é voltar a colocar o Toby numa situação perfeitamente controlada e privada do nervo sensitivo. Um daqueles tanques de isolamento seria o ideal, mas entendo que isso não é possível por ele estar tão doente. De qualquer modo, tentaremos pôr tudo o mais escuro e calmo possível e administramos a mesma anestesia que ele recebeu originariamente.

‑ E o que tentaríamos fazer ‑ disse Walsh ‑ seria lavar literalmente as moléculas que estão a enviar mensagens sensitivas violentas e substitui‑las por moléculas que transmitem... o quê, mensagens em branco?

‑ Precisamente.

‑ Já pensou bem nisso?

‑ Na verdade ‑ respondeu Zack ‑, fez‑se qualquer coisa no género nos finais dos anos sessenta ou princípios de setenta, utilizando a técnica do tanque de isolamento em doentes que se tinham tornado psicóticos devido a reacções retrospectivas repetitivas, causadas por LSD.

‑ Quer dizer que eles tratavam as psicoses do LSD com o próprio LSD?

Zack anuiu.

‑ Um neurologista na Europa. Escócia, julgo eu.


‑ Foi bem sucedido?

‑ O suficiente para ser encorajante.

Desta vez foi Walsh quem se levantou e espreitou o doente. Os pés‑de‑galinha junto aos olhos tornaram‑se mais profundos com o que viu.

‑ Algum perigo? ‑ perguntou.

‑ Dado o desastre que se vê ali dentro ‑ disse Zack ‑, não vejo em que é que poderá piorar o facto de se dar á criança um pouco de anestesia, desde que o anestesista fique perto para o entubar, se for necessário.

‑ O Jack Pearl alinhará nisso?

‑ Essa, meu amigo, pode vir a ser a pergunta mais complicada de responder. Ele e eu não conversámos cara a cara sobre este assunto da anestesia.

Owen Walsh começou a roer uma unha.

‑ Talvez devêssemos apresentar isto aos pais do garoto e obter o seu consentimento ‑ disse ele.

‑ Posso tratar disso, desde que a mãe ainda esteja em situação estável.

‑ E talvez o seu irmão também devesse saber o que se passa. Ele é uma boa pessoa e um excelente administrador, mas não gosta de surpresas.

Zack sentiu um misto de irritação e impaciência. lembrou‑se que um dos motivos de ter optado pela cirurgia, tal como outros tinham escolhido a pediatria ou a medicina interna, coruo Walsh por exemplo, fora a velocidade que levavam a tomar decisões. Muito frequentemente, os responsáveis pelos cuidados primários e os cirurgiões acabavam por atingir as mesmas metas. Apenas chegavam a elas através de caminhos diferentes. Ele avançou em direcção ao cubículo de Toby

‑ Owen ‑ disse ‑, já não temos muito tempo para brincar com isto. Compreendo a sua relutância, mas ou fazemo‑lo ou não.

O homem voltou a hesitar.

‑ Está bem, Zack ‑ respondeu por fim. ‑ Trate você do

Pearl e da Barbara Nelrus, que eu trato de alertar Bóston, de

conseguir que o pessoal do helicóptero fique alerta e de avisar o seu irmão. Voltaremos a encontrar‑nos aqui, digamos, às seis e meia.

‑ às seis e meia, então. É, Owen?

‑Sim?

‑ É a decisão acertada.


 

Embora Clayton Iverson gostasse profundamente da sua esposa de há quase quarenta anos e tivesse passado recentemente por uma série de pesadelos em redor da sua morte prematura, a verdade é que ele nunca precisara muito de uma mulher.

Sendo o mais velho de cinco irmãos e o único rapaz, frequentara um liceu e uma universidade masculinos e não conhecera intimamente uma mulher senão na sua noite de núpcias, nem nunca conhecera outra senão Cinnie Iverson.

Muito antes de a mulher ficar grávida, já tinha escolhido os nomes dos filhos e um dia sugeriu‑lhe que, caso acontecesse o inimaginável, eles deveriam pensar em dar a uma filha sua o nome de Ruth, por inspiração do nome de Rutherford B. Hayes, o antigo presidente norte‑americano.

Apesar do orgulho em se descrever como "um liberal a emergir" no que se referia aos direitos das mulheres, o juiz ainda tinha dificuldades em pensar seriamente numa mulher a tratar de negócios importantes. E essa dificuldade manifestou‑se mais intensamente com Leigh Baron do que com qualquer outra mulher.

A noite tinha caído na quinta, trazendo com ela um chuvisco persistente e varrido pelo vento. O juiz sentou‑se com Leigh na sala de leitura, tomando café, comendo a tarte de maçã de Cinnie e referindo‑se vagamente á Ultramed e aos respectivos planos para o futuro.

Eram quase oito horas. Na sua opinião, a conversa com a mulher estava a tornar‑se algo fastidiosa. Para além da Ultramed, conversaram sobre a bolsa de valores (as ideias dela eram inovadoras mas encantadoramente ingénuas, pensou); filhos (ela e o marido, que passava a maior parte da semana de trabalho em Nova Iorque, tinham decidido não ter nenhum!); justiça criminal (as ideias dela sobre questões que diziam respeito a penas capitais eram bastante simplistas e mal substanciadas); e desporto (ela teve a temeridade de comparar o golfe ao croquete e de afirmar que pensaria em praticá‑lo só depois de se tornar fisicamente incapaz de jogar ténis).

‑ Então, minha cara amiga ‑ disse o juiz, ignorando completamente a pergunta que ela fizera sobre as diferenças que existiam na colocação de vários campos de golfe em todo o país. ‑ Presumo que os poderosos da Ultramed não enviaram alguém tão inteligente e encantador como a senhora só para passar o tempo com este velho veterano de guerra dos bosques do Norte.

‑ Não ‑ respondeu ela, sorrindo‑lhe, curiosa. ‑ Claro que não.

O juiz esperou que ela continuasse.

‑ Bom, então ‑ disse ele, aclarando a garganta. ‑ Suponho que eles lhe pediram para expor alguns dos fundamentos para a reunião de amanhã do conselho de directores.

‑ Em certa medida.

‑ É assim sempre tão evasiva e... misteriosa, mistress Baron?

‑ Juiz Iverson ‑ disse ela ‑, quem julga exactamente que eu sou?

‑ Essa é uma pergunta um tanto estranha, não acha? Claro que sei quem é.


‑ Sabe?

Havia firmeza na voz de leigh ‑ um brilho de aço nos seus olhos, que Clayton Iverson não notara antes. Contudo, a manobra de fazer perguntas em vez de responder era uma táctica amadora e que ela teria de melhorar, se o seu objectivo era controlar a conversa.

‑ Está bem ‑ disse ele depois de pensar uns instantes. - Alinho no jogo. Você é a leigh Baron, vice‑presidente da Confederação de Hospitais Ultramed. O seu departamento é, corrija‑me se estiver errado, o das operações.

‑ Juiz, espero que isto não seja um choque para si, mas já não sou vice‑presidente da Ultramed desde há alguns meses, após ter negociado o nosso acordo com o Regional Davis. Fomos reestruturados pela nossa empresa mãe. Agora, o meu título formal é o de directora‑geral. O mesmo que presidente.

Admirado, o juiz tirou da mala o gráfico organizador que Guy Beaulieu tinha compilado.

‑ Bem, então quem é... hum... um tal Blanton Richards?

leigh sorriu, enigmática.

‑ Juiz Iverson ‑ disse ela ‑, há muitos anos que o Blanton Richards não faz parte da Ultramed. Não sei quem lhe forneceu essa lista, mas presumo que tenha sido o doutor Beaulieu. Ele estava sempre a fazer listas, mas, seja como for, não trabalhou correctamente. Sei o quanto o senhor gostaria de tratar de assuntos como este com os "velhos rapazes", mas lamento informá‑lo que, no que diz respeito à Ultramed, o velho rapaz sou eu.

‑ Espere um minuto, jovem senhora...

‑ Jovem senhora... ‑ A expressão de leigh Baron não foi nem um pouco condescendente. ‑ Juiz Iverson, agradeço o elogio, agradeço sinceramente. Mas penso que tudo será mais fácil para ambos se compreender que os meus dias de jovem senhora já estão muito distantes. Tenho trinta e sete anos. Fiquei em segundo lugar no curso de Administração de Empresas em Stanford há mais de uma década, passei dois anos a estudar Economia em Oxford e executei várias operações de menor relevo para a RIATA Internacional, antes de passar para a Ultramed. No ano passado, o meu rendimento... sem contar com os bónus e as opções da bolsa, foi ligeiramente superior a meio milhão de dólares. Agora, se esse pequeno mal‑entendido já estiver esclarecido a contento, sugiro que continuemos a trabalhar. O senhor e eu temos um negócio importante a tratar.

‑ Sim ‑ afirmou ele, aclarando de novo a garganta. - Sim, julgo que temos. Que tal tomarmos primeiro mais uma chávena de café?

Subitamente, o juiz sentiu‑se nervoso e ansioso por fazer alguma coisa ‑ qualquer que fosse ‑ que quebrasse o ritmo da mulher. O que tinha previsto ser uma luta preliminar com a Ultramed, acabou por ser o acontecimento principal.

‑ Não, obrigada ‑ respondeu. ‑ Mas tome o senhor, se quiser.

‑ Acho que vou tomar.


Foi á cozinha, serviu‑se de uma chávena de café, deitou‑lhe uma boa dose de brande e bebeu um longo gole. A bebida quente e aveludada tinha o efeito de o acalmar, e animar, fazendo‑o lembrar‑se que, embora Leigh Baron o tivesse deixado bo quiaberto, este era o tipo de jogo que ele mais gostava de jogar... aquele em que geralmente ficava com todos os trunfos na mão. Ainda era o presidente do conselho de directores do hospital. E no fim, independentemente de quem fosse leigh ou de quanto ganhava, ou do que tinha para dizer, era ele que controlava os votos.

O gole seguinte esvaziou a chávena. Serviu‑se de mais uma, antes de regressar à sala.

‑ Muito bem, mistress Baron ‑ disse, dando às palavras uma ligeira ênfase ‑, qual é a sua jogada?

‑ Não há jogadas, juiz. Em palavras simples, gostaria de saber quais são os seus planos para a reunião de amanhã.

Ele tentou fazer uma expressão cómica, mas sentiu que tinha fracassado. Tinha todas as cartas na mão. Ela sabia‑o bem quanto ele. No entanto, continuou a olhá‑lo como se o que ele tivesse para dizer não fizesse a menor diferença. pensou dar mais um gole no café com brande, mas percebeu que tinha voltado a esvaziar a chávena.

‑ Você tem a minha carta ‑ disse ele. ‑ Nela, vê-se que era muito possível que os directores e a Ultramed conseguissem resolver tudo.

‑ Temos motivos para acreditar que a situação aqui, pelo menos aos seus olhos, mudou desde que a escreveu. Gostaria de saber o que se passa.

‑ Não se passa nada. Fiz o que era suposto fazer como presidente da direcção e enviei‑lhe a carta. A reunião é amanhã. Contamos que esteja presente em representação dos interesses da Ultramed. No fim da reunião vai haver uma votação. -       Estendeu as mãos, com as palmas para cima.

Leigh Baron esfregou os olhos de cansaço.

‑ Juiz, a lista que acabou de consultar foi compilada pelo doutor Beaulieu?

‑Por acaso, foi.

‑ Então, presumo que tem todo o restante material que andou a juntar contra a nossa empresa.

‑ Vocês realmente tentaram obrigá‑lo a reformar‑se.

‑ Juiz, isso é ridiculo. A Ultramed tem crescido mais depressa do que qualquer outra empresa do seu tamanho no ramo. Sabemos exactamente o que fazemos. O mesmo acontece com a nossa empresa mãe. Pode crer que, quando queremos mandar alguém embora, essa pessoa vai mesmo embora. Onde foi buscar a ideia de que faríamos uma coisa dessas?

‑ Bem, na verdade, foi o meu... Na realidade, não é da sua conta. Poderá descobrir tudo o que quiser na reunião de amanhã.

- O seu filho Zachary foi um dos que carregou o caixão no funeral do doutor Beaulieu. Foi ele quem pegou na causa do Beaulieu?

- Se foi ele, e como eu disse, poderá descobrir amanhã.

‑ Se foi ele, então está errado. Se o Guy Beaulieu estava a ser pressionado para se reformar, não era por nós.

‑ Talvez ‑ disse o juiz, sentindo que o controlo voltava a ser seu. ‑ Se isso for verdade, tambem virá à tona na reunião de amanhã.

‑ Diga‑me uma coisa, juiz. O senhor já tomou uma decisão, não é assim?

‑ Eu não diria nada disso.

Ela voltou a sorrir, perturbada.


‑ Nem precisa ‑ afirmou ela. ‑ Juiz, se o conselho de directores votar a favor da reaquisição do Ultramed‑Davis, o que planeia fazer com o Frank?

‑ Fazer? Ora bem, como é evidente pretendo mantê‑lo. Se, e repare bem que eu disse se, votarmos a favor da devolução do hospital à comunidade, iremos precisar dele. Tem feito um trabalho fabuloso. Você própria o disse.

‑ E não menti ‑ concordou leigh. ‑ Só que com uma excepção ligeiramente grande... Tome, juiz, penso que é melhor analisar isto cuidadosamente.

Ela retirou uma pasta fina da mala e entregou‑a ao juiz.

‑ Enquanto faz isso, se me pudesse indicar onde fica a casa de banho...

‑ O quê? ‑ Já tinha começado a analisar o material. - Oh, é ali. Vá pelo corredor e vire à esquerda...

‑ Obrigada.

Clayton Iverson terminou a leitura da primeira página. Escrita por uma empresa de contabilidade de Bóston, bem estabelecida e bastante conceituada, era basicamente uma explicação e o sumário do material anexo.

Antes de continuar, foi de novo à cozinha. Desta vez, deitou brande na chávena e nem sequer se incomodou em juntar café.

Quando leigh Baron regressou à sala de leitura, ele já tinha lido de novo a folha da capa e começado a analisar a lista dos números e transacções, das quais se salientava a alegação contabilista de que, cerca de três anos antes, Frank tinha desviado perto de um quarto de milhão de dólares das contas da Ultramed.

Quer fosse da hora, do brande ou da fúria cega que acumulara na garganta, o juiz tinha cada vez mais dificuldade em concentrar‑se nas manobras específicas de transferência financeira, as quais estavam caracterizadas pelos guarda‑livros como "esforços muito superficiais para esconder os fundos desaparecidos; esforços que qualquer auditoria razoável descobri ria e que, portanto, sugeriam que a intenção do Sr. Iverson era de repor o valor num futuro muito próximo."

‑ Assim ‑ disse leigh Baron ‑, e subitamente, tudo se transforma num assunto muito sério, não concorda?

‑ Porque é que não fizeram nada até agora?

‑ Ora, vamos lá, juiz. Nem parece seu fazer uma pergunta que tem uma resposta tão óbvia. Além disso, tal como já ambos dissemos, o Frank tem feito um trabalho fabuloso. Tudo indica que há três anos ele se tornou um pouco ganancioso. Realmente ele sabe ser teimoso quando quer. Mas acho que o senhor sabe disso... Bem, na verdade eu decidi que, assim que a venda da Davis à nossa empresa fosse concretizada, transformaria os duzentos e cinquenta mil dólares numa espécie de bónus pelo excelente trabalho. Afinal, qualquer um pode cometer erros...

‑ Claro, claro. E agora está a dizer que eu cometeria um erro se votasse contra a venda do hospital a vocês.

‑ Não nos deixará outra opção, juiz, senão apresentar queixa. E pode crer que as provas contra o Frank são tão sólidas como uma rocha.

Para manter a sua aparência exterior, Clayton Iverson reservara sempre as suas emoções mais fortes ‑ positivas e negativas ‑ para os homens. Mas nesse momento ele odiou a mulher que estava sentada diante de si com uma paixão mais intensa do que algum dia odiara alguém.

Quem raio julgava ela que era?


Ineficazmente, a pergunta ecoou repetidas vezes na mente dele. Ela parecia uma espécie de modelo da moda e discutia assuntos com a ingenuidade de uma colegial; e no entanto, ali estava ela sentada, a sorrir calmamente enquanto, sem hesitar, exercia chantagem sobre ele.

A vida do filho e, por conseguinte, as vidas da nora e das netas, em troca de um voto. Ele devia ter‑se reformado, pensou. Estava claro que tinha perdido o controlo. Há muito tempo que devia ter‑se afastado daquele tipo de negócios.

Sentia a cabeça andar às voltas.

- Eu... preciso de tempo para pensar ‑ afirmou.

- Compreendo... Infelizmente, só tem até amanhã.

- Eu tinha razão em querer a sua empresa fora da nossa cidade, Mistress Baron. A senhora é uma mulher muito desumana e interesseira.

‑ Não vamos baixar de nível com insultos, juiz. É muito pouco profissional. ‑ levantou‑se. ‑ Então, amanhã ao meio‑dia e um minuto, tudo estará... - encolheu os ombros ‑ exactamente como está agora. Só que mais permanente. Certo?

Clayton Iverson, cujo rosto idoso enrubesceu e o olhar se tornou fulminante, não conseguiu responder.

- Juiz ‑ disse ela ‑, há mais uma coisa. Gostava de rever esse material que o Guy Beaulieu juntou. Prometo devolvê‑lo dentro de... poucos dias.

- Não pode ‑ respondeu o juiz, duramente.

- Juiz Iverson, sei que não preciso de lhe repetir, mas vou fazê‑lo de qualquer modo. Se concordar com o nosso pedido, o seu filho será absolvido de tudo o que fez e nós completaremos a compra do hospital. Caso contrário, o seu filho acabará provavelmente na cadeia e a família ficará desgraçada. A sua influência em Sterling diminuirá bastante, se não ficar destruída, e quase de certeza acabaremos com o Ultramed‑Davis da mesma maneira.

‑ Isso é loucura!

‑ Talvez ‑ disse leigh Baron. ‑ Talvez seja... Esse material, por favor?

‑Merda...

‑ Juiz Iverson, acredite. Isso vai acontecer. O nosso acordo será consumado, tal como ficou estabelecido: fácil e sem problemas, ou com confusão por todo o lado. Mas vai acontecer. Agora...

Relutante, o juiz entregou‑lhe a pasta de Beaulieu. Leigh Baron guardou‑a dentro da mala.

‑ Tal como prometi ‑ disse ela ‑, devolvê‑la‑ei dentro de poucos dias. Não se incomode a mostrar‑me a saída. onde é?

 

Com o rosto enterrado nas mãos, Clayton Iverson ficou sozinho na sala de leitura a escutar a chuva a bater suavement nas janelas. Em todos os negócios e em todos os anos de magistratura, nunca fora tão brutal ou eficazmente manipulado como fora por leigh Baron nessa noite.

Desesperado, tentou manter a fúria sob controlo ‑ fúria rigída tanto ao filho como à CEO da Ultramed. Nessa alttura lembrou‑se que apenas tinha ouvido a história contada por leigh Baron.


Antes de dar qualquer passo, antes de falar com um membro mais da direcção, ele e Frank tinham de conversar. Se Frank conseguisse explicar adequadamente porque tirara o dinheiro, como o perdera e como planeava repô‑lo, talvez conseguissem pensar numa solução. Caso contrário...

 

Fui a casa do Frank. Por favor, não te preocupes.

Clayton colocou o bilhete para Cimmie sobre a secretária ligeiramente tonto, dirigiu‑se ao Chrysler a pensar se não tinha talvez bebido um pouco de mais.

Sentia‑se confuso enquanto tentava concentrar‑se nas possíveis opções. Precisava tanto do ar fresco de um passeio como do pão para a boca... precisava de aclarar as ideias... Precisava de confrontar Frank...

Pôs o motor a trabalhar, fez inversão do sentido de marcha com uma dificuldade maior do que o habitual e desceu o caminho cheio de curvas.

Frank teria uma explicação, pensou. Ele teria uma explicação aceitável para tudo e, juntos, encontrariam uma solução razoável.

Mas... e se não houver explicações... e se Frank não tiver mais nada para oferecer senão a ganância...

O juiz fez a curva para a rua de acesso á Androse quando  Uma carrinha que ia em direcção ao Sul desviou bruscamente, conseguindo evitar a colisão apenas por um triz.

Clayton Iverson nem sequer reparou.

De todas as coisas ingratas e desconsideradas que Frank fizera desde sempre, pensava ele, esta era sem dúvida a maior.

Talvez tivesse chegado a hora de bater o pé no chão Com ou sem prisão, com ou sem desgraça, talvez tivesse chegado a hora...

 

De olhos abertos mas sem ver, Toby Nelrus encolheu‑se sob

o cobertor de arrefecimento, sacudindo de tempos em tempos uma das mãos presas naquilo que podia ser uma tentativa para alcançar o tubo respiratório que Jack Pearl lhe introduzira na traqueia. Apesar do cobertor, da cortisona intravenosa e de várias doses de Tylenol administradas por via rectal, a sua temperatura ainda era de 39,5.

- De forma alguma ‑ dizia Pearl. ‑ De forma alguma irei colocar sob anestesia uma criança doente, só por causa de uma teoria tirada de um livro.

‑ Jack, deixe‑me explicar‑lhe tudo outra vez ‑ pediu Zack, sem tentar disfarçar a ira. ‑ O que estou a propor não é tirado de um livro. Só porque não é uma técnica muito utilizada, não significa que seja errada. Que diabo, o problema não foi suficientemente estudado para, de uma maneira ou de outra, se ter a certeza. Mas existe o artigo sobre o LSD. Acha que fiz o percurso de ida e volta até casa só para o ir buscar às minhas pastas?

‑ Nem pensar nisso ‑ declarou Pearl.

Suzanne juntou‑se aos dois médicos, junto à cabeceira da cama. Durante mais de uma hora, tivera de combater, um após outro, o ritmo cardíaco irregular no rapaz. Agora, pelo menos de momento, a situação parecia ter estabilizado, mas as manchas escuras que envolviam os olhos dela eram testemunhas mudas da tensão da luta.

‑ Então, em que é que ficamos? ‑ perguntou, dando um gole no café morno.


Ao longo de toda a crise, ela não se referira publicamente às teorias de Zack em relação a Mainwaring e Pearl, embora várias vezes a sua expressão lhe tivesse pedido ‑ ou implorado ‑ para não se confrontar com o anestesista.

‑ Bem ‑ respondeu Zack ‑, ficamos exactamente onde estávamos antes de as arritmias terem começado. Edema cerebral. Nada mais. Pode ser causado pela febre; pode ser a causa desta; podem ser ambas as coisas.

‑ Apesar de todo o esforço, as arritmias parecem estar controladas.

‑ E o esforço foi muito grande. Belo trabalho.

‑ Obrigada. Então, vocês os dois já decidiram? Vão voltar a pôr o rapaz a dormir?

Os dois homens olharam um para o outro. Depois, Pearl desviou os olhos.

‑ Vá, Jack ‑ disse Zack ‑, conte‑lhe tudo. Conte‑lhe o que nos... conte‑lhe o que você decidiu. Olhe para aquela criança, pense no que eu lhe disse e mostrei, e diga‑lhe.

‑ Zack, por favor ‑ pediu Suzanne. Virou‑se para o anestesista.

‑ Desculpe ‑ murmurou ele.

‑ Jack? ‑ chamou Suzanne.

‑ Recuso‑me a fazê‑lo ‑ disse Pearl, simplesmente. - As provas de que a anestesia da criança teve qualquer coisa a ver com a sua presente situação são, só por si, muito inconsistentes. Utilizadas como justificação para uma manobra muito mais questionável, como a que aqui o Iverson está a propor, são absurdas. Recuso‑me firmemente a fazê‑lo.

‑ A fazer o quê?

Frank Iverson apareceu junto aos pés da cama. Olhou de um médico para o outro e depois, um tanto incomodado, para o rapaz agitado.

‑ A fazer o quê, Jack? ‑ perguntou de novo.

‑ Frank ‑ disse Pearl ‑, no início da semana, fiz um relatório por escrito e queixei‑me de uma visita que aqui o seu irmão me fez. Nessa altura, ele acusou‑me de um sem‑número de coisas, incluindo de ter anestesiado indevidamente esta criança.

‑ O quê, isso é ridículo ‑ disse Zack. ‑ Eu nunca...

‑ Zack, por favor, deixa‑o terminar... Obrigado. Continue, Jack.

‑ Bom, agora o rapaz tem um edema cerebral, o mesmo que um tumor cerebral... devido sabe Deus a quê. Talvez alguma espécie de encefalite, ou algo do género. O seu irmão tem uma teoria de que, se isto for uma reacção do sistema nervoso à anestesia que ele recebeu, ao dar‑lhe de novo o mesmo medicamento pode inverter o efeito.

‑ E? ‑ perguntou Frank.

‑ E eu recuso‑me a fazê‑lo.

‑ Porquê?

‑ Porquê?! Bem, porque... não vai resultar, Frank. Eis o porquê.

‑ Zack, isto já alguma vez foi feito?

‑ Em circunstâncias análogas, sim. Eu trouxe um artigo que descreve a teoria que existe por trás.

‑ Então, Jack ‑ disse Frank, calmamente ‑, que mal poderá acontecer em pôr o rapaz outra vez a dormir, tal como o

Zack está a sugerir? Você está sempre a anestesiar pessoas criticamente lesadas e doentes, não está?

‑ Sim, mas...


‑ Suzanne, acha que esta criança consegue aguentar uma anestesia?

‑Eu... Bem, os problemas cardíacos parecem ter acalmado e ele já está num ventilador. Assim, não vejo porque não.

‑Mas...

‑ Nada de mas, Jack. Lamento não ter chegado aqui mais cedo para discutirmos tudo isto, mas estava ocupado a tentar encontrar algumas pessoas de Akron. Agora, escutem. A nossa função é ajudar as pessoas. É para isso que aqui estamos. Se o que o Zack está a sugerir tiver alguma possibilidade de ajudar esta criança, acho que devem tentar. Por vezes, o meu irmão é um chato, mas não é imprudente. Se ele diz que tem provas, então é porque tem provas.

Do local onde se encontrava, junto à cabeceira da cama de Toby e testemunhando a mudança bizarra, Zack pressentiu uma luta não verbal entre o irmão e o anestesista. Com base na expressão de Pearl, ele também conseguiu prever que o pequeno e estranho anestesista não iria continuar a opor‑se à administração do medicamento.

‑ Qual foi a anestesia? ‑ perguntou Suzanne.

‑ Pen total e isoflurano ‑ respondeu Pearl.

‑Ah, sim...

‑ Vai fazê‑lo? ‑ perguntou Zack.

‑ Durante quanto tempo acham que é preciso deixá‑lo a dormir?

‑ Oito minutos. Foi o que fizeram, segundo o artigo.

Pearl voltou a olhar para Frank.

‑ Está bem ‑ respondeu, sem entusiasmo. ‑ Dêem‑me dois minutos para ir buscar o meu equipamento.

‑ óptimo. Vou tentar preparar tudo isto aqui ‑ respondeu Zack, olhando para o homem. ‑ Jack, seja o que for que o miúdo recebeu quando foi da hérnia, é o que ele tem de receber agora. Percebeu?

‑ Ele recebeu Pentotal e isoflurano ‑ respondeu Pearl, com uma firmeza exagerada. ‑ Ora, vamos ou não fazer isto?

‑ Suzanne?

‑ Não me oponho ‑ disse ela.

‑ Então, está bem. Vamos a isso ‑ disse Zack.

A cena era de tal modo lúgubre que as pessoas presentes nessa noite na UCI jamais esqueceriam. Por toda a unidade, todas as luzes desnecessárias foram apagadas e todo o equipamento não critico que produzisse algum ruído ou vibração fora desligado. As enfermeiras sentaram‑se silenciosas e tristonhas ao lado dos seus doentes, ou no posto de enfermagem.

No cubículo número 7, as únicas luzes que se viam eram as das pequenas lanternas de Zack e Jack Pearl e dos monitores que controlavam o padrão cardíaco e a pressão arterial de Toby Nelrus.

O próprio Toby, anestesiado primeiro com Pentotal e depois com o gás isoflurano, estava imóvel e calmo, os olhos com almofadas protectoras e adesivo para se manterem fechados, os ouvidos tapados com algodão embebido em óleo e coberto por ligaduras. Os pés estavam envoltos em lã de carneiro. Dois finos cobertores de algodão estavam colocados por cima dele e, por baixo, o cobertor de arrefecimento cheio de água.


Zack verificara tanto o novo e selado frasco de Pentotal como o rótulo do depósito de isoflurano, antes de autorizar a respectiva administração. Agora, de relógio na mão, esperava sentado num canto do cubículo. A espontaneidade com que Jack Pearl administrara as duas anestesias, dispersara um pouco as suspeitas relativas a um medicamento experimental, mas a dúvida persistia.

E mesmo que este fosse o tratamento correcto, mesmo que as anestesias fossem as certas e mesmo que Jack Pearl fosse um médico tão puro e honrado quanto Galeno, Zack sabia que talvez tivessem esperado demasiado tempo. O edema cerebral era, quase sempre, uma via de sentido único.

Cinco minutos, seis... o tempo parecia interminável... Pressão arterial noventa e estável; pulsação cento e vinte... Sete minutos.

Zack viu os últimos trinta segundos passarem e olhou brevemente para Suzanne, cuja atenção estava focada no ecrã do monitor.

‑ Pronto, Jack ‑ disse ele. ‑ Já está. Oito minutos.

Correu as cortinas do quarto e mandou a enfermeira entrar.

A primeira coisa que fez foi voltar a introduzir o termómetro rectal, preso à consola do cobertor de arrefecimento.

‑ Está outra vez com trinta e nove e cinco ‑ disse ela.

lentamente, Toby começou a mexer‑se, enquanto o oxigénio eliminava o isoflurano dos pulmões e da corrente sanguínea. Zack debruçou‑se sobre ele e examinou‑lhe as pupilas. Se assim se podia dizer, elas estavam ligeiramente mais reactivas do que antes. Contudo, o exame neurológico da cabeça aos pés não apresentou qualquer alteração.

‑ Alguma coisa? ‑ perguntou Suzanne.

‑Nada.

Zack saiu do cubículo e contornou o balcão até se aproximar dela.

‑ Satisfeito? ‑ perguntou ela num sussurro.

‑ Nem por isso, mas acho que já não posso fazer mais nada.

Diante deles, Jack Pearl retirara as almofadas protectoras dos olhos de Toby e executava o seu próprio exame.

‑ Gostei muito da prudência que tiveste ao falar com o Jack.

‑Não foi fácil.

‑ Isso sei eu.

‑ Ainda não acreditas nisto tudo, não é?

Ela abanou a cabeça.

‑ Tal como disse no teu consultório ‑ murmurou, olhando primeiro o monitor e depois para Pearl ‑, descobre mais um caso e eu, pelo menos, darei ouvidos.

‑ Hei‑de descobrir.

‑ Sabes, és sem dúvida o homem mais teimoso que jamais conheci.

‑ Sou o homem mais teimoso que eu jamais conheci - afirmou ele. ‑ É o meu melhor atributo.

Ela olhou calmamente para ele.

‑ Bem, Zachary, pode ser que sim. Mas, infelizmente, também é o teu atributo mais assustador.

Passou por ele e foi‑se juntar a Pearl, à cabeceira da cama. Zack ficou sozinho no posto de enfermagem, a lutar contra


o vazio que sentia no peito e a tentar agarrar‑se à ideia de que, pelo menos de momento, tinha feito tudo o que podia por Toby Nelrus; tinha dado o seu melhor.

‑ Doutor Iverson ‑ chamou a escriturária da ala, sentada à secretária. ‑ A chamada na linha dois é para si. É Mister Iverson.

‑ Zack ‑ disse Frank, ofegante. ‑ Estou na sala das urgências. Temos problemas. Talvez problemas muito sérios.

‑ O quê?

‑ Acidente rodoviário. Dois automóveis. Ambos os condutores estão feridos.

‑ Muito?

‑ Não sei nada sobre um deles... Segundo parece, ainda estão a tentar tirá‑lo da carrinha. O Marshfield está neste momento com o outro.

‑ Deixa‑me lavar a cara e vou já para aí.

‑ Vem depressa, Zack. A pessoa que o Marshfield está a

tratar é o juiz.


 

A ala das urgências parecia um manicómio. Quase todas as camas estavam ocupadas, assim como a sala de espera. As enfermeiras, algumas das quais Zack reconheceu como tendo sido chamadas dos outros andares, corriam dos doentes para o armário dos medicamentos e para a sala dos acessórios. Os técnicos dos electrocardiogramas e das radiografias estavam no corredor, junto aos seus equipamentos. Vários membros da equipa de salvamento, vestidos de azul, auxiliavam as enfermeiras, enquanto vários outros se encontravam debruçados sobre os balcões, a preencher formulários.

Dois dos quartos pareciam ser os focos da maior parte da actividade.

‑ O juiz está ali, no oito ‑ disse Frank, enquanto ele e Zack atravessavam o vestíbulo.

‑ Que raio andava ele a fazer, conduzindo por aí a esta hora e sem a mãe?

‑ Não sei, Zack. Podes perguntar‑lhe. Está cheio de ligaduras e talas, mas está perfeitamente consciente. E deve estar mesmo. Já me disse que, se não conseguíssemos encontrar o seu querido filho cirurgião, queria ser transferido para outro hospital.

‑ Frank, não te importas de não ser mesquinho neste momento? Quem está com ele?

‑ Não tenho a certeza. Era o Marshfield, mas estou a vê‑lo ali nos traumatismos. O outro tipo do acidente acabou de dar entrada.

‑ Bem, queres ir telefonar agora á mãe, ou esperar até sabermos o que se passa?

‑ Para mim, quanto mais tarde melhor.

‑ Está bem. Talvez possas ligar à Lisette e pedir‑lhe para ir lá a casa buscar a mãe.

‑ A Lisette. Ela foi‑se embora.

Zack olhou para o relógio.

‑ E quando é que ela regressa?

‑ Não ‑ disse Frank. ‑ Foi‑se embora, abandonou a casa. É uma coisa temporária. Ouve, entra e vai ver o juiz. cuido da mãe... E... Zack?

‑ Sim?

‑ É pena que as coisas não estejam a resultar com aquele miúdo.

Sem esperar pela resposta, Frank virou‑se e atravessou a porta das urgências até ao local onde dois policias fardados falavam com um jornalista do Ilhite Mountains Gazette.

‑ Sim, Frank ‑ murmurou Zack, recordando por instantes a bizarra e confidencial troca de palavras entre o irmão e Jack Pearl. ‑ É pena.

Já ia em direcção ao quarto número 8, quando a cortina se afastou e apareceu a enfermeira, Doreen Lavalley.

‑ Oh, doutor Iverson, ainda bem que conseguiu chegar aqui tão depressa ‑ disse ela. ‑ Eles chamaram‑me porque costumava fazer o trabalho das urgências, mas já lá vão alguns anos e...

‑ Tenho a certeza que está a sair‑se muito bem. Qual é a história?


‑ Bem, tenho estado ali desde que eles trouxeram o pai. A equipa de salvamento encontrou‑o sentado contra uma árvore, a cerca de quinze metros do acidente. Eles suspeitam que foi cuspido do carro e depois andou ou rastejou até á árvore. Quase de certeza tem um pulso fracturado. A equipa de salvamento também relatou que havia um golpe enorme na parte inferior das costas, mas ninguém conseguiu tirá‑lo da maca para verificar. O doutor Marshfield teve de ir atender o condutor do outro carro. Pelo menos à distância, o tipo não parece muito bem.

Zack afastou‑se para um local junto à entrada do quarto número 8. Dali, ele conseguiu ver o pai, preso a uma maca de transferência, com a cabeça e o pescoço seguros, num excelente estilo de primeiros socorros. Um dos braços estava envolto em ligaduras e preso a uma tala; no outro havia um tubo intravenoso, colocado logo acima do pulso. O monitor estava ligado e relatava um ritmo cardíaco perfeitamente normal.

‑ O doutor Marshfield teve a oportunidade de tirar alguma radiografia?

Doreen Lavalley consultou uma folha de papel.

‑ Tirou uma micro do pescoço e outra muito próxima do local onde está o golpe. Eu mandei o laboratório fazer a contagem dos glóbulos e as outras análises.

‑ Banco de sangue, também?

‑ Sim. Pedi‑lhes para verificarem o grupo sanguíneo dele e trazerem quatro unidades compatíveis.

- Belo trabalho, Doreen. Fico satisfeito por saber que ainda está cá a trabalhar.

‑ Só por mais uma semana ‑ disse ela, num tom um tanto triste. ‑ Aceitei um emprego na Associação de Enfermeiras Domiciliárias.

‑ Bem, isso vai ser uma perda para o Davis.

‑ Obrigada. Vou ter saudades deste estabelecimento. Pelo menos de como ele era. Vou tentar ir buscar as radiografias.

 

Se Clayton Iverson sentiu um alívio ao ver o filho, não o demonstrou. Zack não se surpreendeu. Ele fora sempre assim e, independentemente das circunstâncias, também nessa noite seria.

‑Olá, juiz.

Zack encostou‑se à protecção metálica da cama para ver o pai: uma ligeira palidez perto dos lábios, as rugas ainda mais profundas nos cantos dos olhos. O homem tinha dores e provavelmente ainda estava em estado de choque. Instintivamente, Zack esticou o braço e fez aumentar a corrente intravenosa.

‑Zachary... ‑ O juiz falou por entre os dentes quase cerrados pelas ligaduras colocadas bem apertadas em volta da testa e por baixo do queixo, para estabilizar o pescoço. ‑ Achas que podes tirar‑me estas malditas coisas?

‑ Assim que tiver a radiografia do pescoço, juiz. Segundo parece, o senhor não estava muito coerente quando a Polícia o encontrou. Pode ter magoado o pescoço e não saber. Tem muitas dores?

‑ Em especial nas costas... exactamente nesta direcção... - Com a mão que estava liberta, indicou um ponto logo acima do umbigo. ‑ A tua mãe sabe que estou aqui?

‑ O Frank foi tratar disso.

‑ Pede ao Frank que diga à tua mãe para esperar em casa, que eu telefonar‑lhe‑ei mais tarde.


‑ Juiz, descanse e deixe‑nos tratar de tudo. Está bem? Agora diga‑me o que é que se passou?

‑ Não sei. Eu ia a caminho da... ah... para conversar com Frank e a Lisette sobre uns investimentos que eles estão a pensar fazer. E, quando eu ia na Cedar Street, bum!... Tudo o que me lembro a seguir é do interior da ambulância.

- Para conversar com o Frank e a Lisette? A Lisette foi‑se embora, juiz. Quem está a mentir? O Frank a si, ou o senhor a mim?

‑ Bateu com a cabeça?

‑ Que eu saiba, não.

‑ Zack? ‑ Suzanne encontrava‑se à porta, com as radiografias na mão. ‑ Desci para ver se precisam de ajuda. A enfermeira disse que estaria na porta ao lado, se precisares dela.

‑ Como está o rapaz?

‑ Não está acordado, mas a situação ainda é razoavelmente estável. O Owen Walsh está a tentar tratar da transferência mas acho que ainda não conseguiu arranjar uma cama.

‑ Ainda bem que pudeste descer. Tens as radiografias?

Só nessa altura é que ele reparou na tensão do rosto dela. Alguma coisa não estava bem nas radiografias.

‑ Coloca‑as além ‑ pediu, indicando‑lhe as duas caixas de luz na parede ao lado da maca do juiz.

Ela iluminou a radiografia do pescoço do juiz. Para se certificar de que todas as sete vértebras cervicais estavam lá Zack contou‑as e verificou depois o alinhamento e o espaço entre elas.

‑ Normal ‑ disse. ‑ Perfeito. Parece que estamos com sorte, juiz. Vamos fazer um conjunto completo de radiografias só para termos a certeza, mas suspeito que estarão todas bem. Não vejo motivos para não retirar esta armadura que eles colocaram.

Procurou a ponta da ligadura.

- Zack, talvez seja melhor esperar um pouco ‑ disse Suzanne, colocando a segunda radiografia no lugar. ‑ Havia muitos pedaços de metal no local. A Policia acha que talvez tenha caído em cima de qualquer coisa.

‑ O que é isso? ‑ perguntou o juiz.

Ainda preso à armadura, tentou virar os olhos para a esquerda,, a fim de poder ver a radiografia.

‑ É um pedaço de metal, pai ‑ disse Zack, estudando um

pedaço que era largo, em forma de cunha e pontiagudo nos três cantos. A ponta mais longa e afiada estava espetada entre duas vértebras, a décima segunda dorsal e a primeira lombar. ‑ E é também um naco bem grande. Preciso de uma radiografia lateral para saber a que profundidade se encontra. Sente formigueiro ou as pernas dormentes?

‑ Acho... que não.

‑ Bem, seja como for, acho que por agora o vou manter assim.

‑ Se tem de ser, deixa. Eu vou ficar bem?

‑ Claro que vai. Mas eu ficarei mais satisfeito quando soubermos exactamente onde está esse metal e conseguirmos alguém para o tirar.

‑ Não és tu que o vais fazer?

‑ Juiz, vamos por partes, está bem? Suzanne, podes chamar a unidade portátil para tirarem uma radiografia lateral? Entretanto, vou examinar o resto do corpo.


 

- Sucção, preciso de sucção!

- Doutor, precisa de mais um tubo?

‑ As pupilas estão a dilatar... ‑ Por Cristo, pedi uma sucção...

A troca de frases entre Wilton Marshfield e a enfermeira vinham da sala de traumatismos.

- Ele está a vomitar outra vez. Doutor, acho que ele está a ter uma convulsão...

‑ Arranje‑me dez mililitros de Valium para uma injecção intravenosa...

‑ Sabia que o doutor Iverson está aqui com o pai?

 

‑ Parece que há problemas ‑ disse o juiz. ‑ Vais para lá?

‑ Se precisarem de mim, alguém virá chamar‑me ‑ disse Zack. ‑ Não vou deixá‑lo sozinho. Suze, quando saíres não te importas de ver o que se passa? Se é o outro condutor do acidente, tenta saber quem é.

Zack estava a terminar um exame rápido, quando a cortina se abriu e Frank entrou.

‑ Irra, que jardim zoológico está aí fora ‑ disse. ‑ Polícia, jornalistas, os serviços. O que se passa aqui?

‑ Tem um pedaço de metal nas costas, vês? Parece que se espetou ali durante o acidente, mas talvez tenha caído ou rolado para cima dele. Só saberei onde está exactamente depois de ver mais algumas radiografias, mas é óbvio que tem de ser tirado.

‑ Bem, juiz ‑ disse Frank ‑, mesmo que assim seja, ficou com a melhor parte deste caso. Ali, o velho Beau, está muito mal.

‑ O Beau Robillard? ‑ Zack e o juiz disseram o nome em coro.

‑ Sim, não sabiam? A pessoa indesejável número um está na sala ao lado. Foi contra a velha e enferrujada camioneta que o senhor bateu. Ei, Zack, lembras‑te de como o Robillard e os amigos costumavam seguir‑te até casa depois das aulas, para te darem uma surra?

‑ Frank, isso foi nos tempos de liceu, pelo amor de Deus.

‑ Ele não mudou ‑ disse o juiz. ‑ Vejo‑o no tribunal. Aparece de duas em duas semanas. Ele está pior do que nunca. Ainda mais maldoso. Devia tê‑lo mandado para a cadeia na última vez que tive a oportunidade de o fazer. Estava mais alguém com ele?

‑ Não ‑ respondeu Frank. ‑ A Polícia disse que, enquanto estavam a cortar os ferros para o tirar de lá, ele não parava de gritar que o senhor passou o vermelho ao fundo da Street.

‑ Isso é ridículo.

Nesse momento, Suzanne voltou a aparecer à porta com o técnico das radiografias.

‑ Zack ‑ disse ela ‑, o Wilton perguntou se podes dar‑lhe uma ajuda na porta ao lado. O tipo da camioneta tem uma lesão feia na cabeça. Começou a ter convulsões. Chama‑se billard.

‑ Beau Robillard. Nós conhecemo‑lo. Costumava dar umas surras, quando eu andava no liceu.

‑ Ele não presta, Zachary ‑ disse o juiz. ‑ Roubos menores, assaltos, perturbações da ordem pública... Não quero que vás para lá.

‑ O quê?


‑ É isso mesmo. Diz ao Marshfield que estás ocupado aqui e não podes ajudá‑lo.

‑ Juiz, eu não posso fazer isso...

Zack fez uma pausa, à espera de ser apoiado por Frank ou por Suzanne. Nenhum deles o fez.

‑ Ouça ‑ disse por fim. ‑ Eu tenho de lá ir e pelo menos honrar o seu pedido de ajuda. Além disso, o senhor tem que fazer mais algumas radiografias e talvez uma TAC, e... e

a equipa da SO tem de se preparar. Assim que terminarem todos esses exames, eu terei acabado o meu trabalho ali, está bem?

‑ Já te disse o que pensava ‑ afirmou o juiz. ‑ Porque perguntas se está bem?

‑ Zack ‑ disse Frank ‑, vamos um minuto até lá fora para conversarmos.

‑ Está bem, é só um instante... ‑ Zack sentiu‑se abalado. - Por favor, avancem com uma radiografia lateral da região toracolombar e outra ao pulso ‑ disse ao técnico das radiografias. - Pensando melhor, esqueçam o portátil. levem‑no para cima e tirem um bom conjunto de radiografias. Suze, pode acompanhá‑los?

‑ Claro. O Owen Walsh chamar‑me‑á, caso aconteça alguma coisa na unidade.

‑ Talvez queiras fazer‑lhe o exame pré‑operatório. Penso que eles ainda não tiveram tempo para fazer um electrocardiograma completo.

‑Eu trato disso.

‑ E, se puderes, descobre também quem está na ortopedia.

‑ Zachary, o que disse em relação ao Robillard é o que eu sinto ‑ disse o juiz, enquanto Suzanne e o técnico o empurravam para fora do quarto. ‑ Nada mais do que isso.

Zack só conseguiu abanar a cabeça.

‑ Ei, ouve ‑ disse Frank, quando os dois homens ficaram sozinhos. ‑ Entra ali, vê o Robillard e faz o que tens a fazer. Deixa o juiz comigo.

‑ Frank, eu sei que ele está magoado e furioso mas, seja como for, não consigo acreditar que ele tenha falado daquela maneira. Não consigo mesmo.

‑ Estiveste longe daqui e longe do homem durante muito tempo. lembra‑te, meu caro, não é só a nós que ele está sempre a julgar. Os anos e anos a emitir vezes sem conta as mesmas sentenças acabaram por afectá‑lo. Escuta, não te preocupes com ele. Eu cuido de tudo. Entra ali e faz o teu papel de médico.

‑ Ligaste à mãe?

‑ Pedi a um dos polícias para a ir buscar.

‑ Está bem. Estarei na porta ao lado. Frank, obrigado pela ajuda. Espero que as coisas com a Lisette se resolvam.

‑ Não te preocupes. Limita‑te a entrar ali e a fazer o que tens a fazer.

Os dois sairam do quarto número 8. Zack entrou na sala de traumatismos e Frank atravessou a ala das urgências e foi à secção de radiografias.

Deitado na maca de transferência, o juiz foi levado para a mesa de radiografias.

‑ Preciso de ficar um minuto sozinho com ele ‑ disse Frank, fazendo sinais para que Suzanne e o técnico saíssem.


‑ Juiz, escute ‑ murmurou, quando os outros já se tinham afastado ‑, tentei convencer o Zack a não ver o Robillard, mas ele não me deu ouvidos. Estou do seu lado neste caso. Cem por cento. Agora descanse e deixe que eles lhe tirem radiografias. Vou continuar a fazer com que o Zack veja as coisas correctamente.

A equipa de salvamento, as enfermeiras e o médico das urgências afastaram‑se quando Zack entrou na sala de traumatismos. Antes de se aproximar da cama, programou os exames às lesões do sistema nervoso para, em seguida, poder operar.

Beau Robillard, deitado nu na maca da sala de traumatismos, estava desgrenhado, coberto de cortes e arranhões e com um aspecto ainda pior do que aquele que Zack imaginara.

- Comatoso. .. respiração difícil, minimamente eficaz... mal reage à dor intensa... pupila direita, dois milímetros; pupila esquerda, cinco milímetros, lentamente reactivas...

‑ Ele chegou a acordar, Wilton?

‑ Nunca ‑ disse Marshfield. ‑ Estava acordado quando a Polícia o encontrou, a resmungar e incoerente quando aqui chegou. Depois, teve uma convulsão.

Algum movimento despropositado no lado esquerdo, nenhum movimento do lado direito... reflexo de Babinski ausente em ambos os lados... profundo corte capilar na região parietal esquerda...

‑ Podem arranjar‑me um par de luvas, por favor? Tamanho oito. E preparem‑se para entubá‑lo. Tubo número sete ponto cinco. Wilton, posso ver as radiografias?

‑ Não tivemos tempo para as tirar, visto o seu pai ter entrado primeiro e este bandido parecer estar muito melhor do que está neste momento. Sabem quem ele é?

‑ Sim, sim ‑ disse Zack. ‑ Eu sei.

‑ Quando esta... esta coisa aqui ainda era um garoto - disse Marshfield ‑, ele e os seus companheiros deram tantas tareias no meu sobrinho, que o meu irmão acabou por ter de mandar o miúdo para a Academia em Saint Michael. Garanto‑lhe que ele era um verdadeiro bandido. Tal como eram os dois Robillard mais velhos.

Com os dedos enluvados, Zack examinou o golpe profundo do couro cabeludo e sentiu o dique distinto de fragmentos ósseos.

‑ Bom, não me interessa que ele seja a reencarnação de Jack, o Estripador, e Atíla, o Huno, numa só pessoa ‑ disse. Tem um hematoma subdural ou epidural a expandir‑se para a esquerda. Precisa de um buraco de drenagem e depressa. E vejam se conseguem pedir ao Greg Ormesby para cá vir, caso se passe alguma coisa no abdómen.

A enfermeira colocou um tabuleiro de acessórios na mão direita de Zack. Este passou para a cabeceira da maca, posicionou a lâmina de aço do laringoscópio sobre a língua de Robillard e, em segundos, introduziu o tubo respiratório de poliestireno através das cordas vocais do homem, até à traqueia.

‑ Hiperventilem‑no, por favor ‑ disse Zack, ligando um saco respiratório ao tubo e entregando‑o ao técnico dos aparelhos respiratórios.

- Buracos de drenagem! Uma hora na sala de operações. Mais, se surgírem problemas.


Zack afastou‑se da cama, sentindo no peito um aperto de indecisão. Tanto Beau Robillard como o juiz tinham de ser operados e, de todos os cirurgiões do Ultramed‑Davis, ele era de longe o mais qualificado para o fazer. De uma perspectiva meramente médica, não havia qualquer dilema, nenhuma dúvida quanto às prioridades do momento. Sem uma intervenção imediata, Robillard morreria. Tão simples quanto isso.

Porém, graças ao juiz Clayton Iverson, não era assim tão simples.

‑ Continuem a inflar ‑ murmurou Zack, esfregando a zona da dor que subitamente se materializara entre as têmporas. - Certifiquem‑se de que há duas equipas disponíveis para a SO. Eu volto já.

Olhou para o quarto número 8. Ainda estava vazio.

Por favor, pensava ele, enquanto se dirigia à secção de radiografias. Faz com que aquele pedaço de metal esteja só debaixo da pele. Faz com que esteja num local onde qualquer pessoa com um bisturi e um pouco de treino o possa tirar.

Suzanne encontrava‑se junto a uma das filas de caixas de luz da secção, a analisar as radiografias.

Mesmo à distância, Zack conseguiu ver que a posição do fragmento metálico era perigosa.

‑ Como é que ele está? ‑ perguntou.

‑ Está bem. Queixa‑se de peso nas pernas, mas acho que talvez tenhas colocado esse sintoma na cabeça dele. A tua mãe já chegou. Acho que o Frank a levou para o quarto de repouso. Aquele metal não está num local muito bom, hem?

‑ Está perto da medula, se é a isso que te referes. Vês aqui como é que lascou o extremo do processo transversal vertebral? A remoção deverá ser razoavelmente directa, mas não será um caso de pegar e sacar. A área tem de ser explorada para se ter a certeza de que não há hemorragias em redor da medula. Raios, como eu desejava que isto não estivesse a acontecer. O Robillard está por um fio. Fazer‑lhe agora um buraco de drenagem é a única hipótese e não tão promissora quanto isso.

‑ Vais fazê‑lo?

- Suzanne, não tenho outra opção. Claro que vou fazê‑lo. Descobriste quem está de serviço na ortopedia?

‑ O único que temos é o Sam Christian, mas encontra‑se na SO do Clarion. Segundo parece, acabou de iniciar uma operação complicada.

‑ Raios. Escuta, fica de olho no juiz, está bem? Vou chamar o John Burris, do Concord. É um excelente neurocirurgião e, com a avioneta que ele tem, poderá estar aqui dentro de uma hora ou menos. Entretanto, chama o radiologista e faz uma TAC da área. Vê se é possível determinar a extensão da hemorragia. Isto hoje está num caos, sabes?

- Zack?

‑O quê?

- Tanto o juiz com o Frank me descreveram o tipo de pessoa que é este Robillard. Se ele está tão mal como dizes, talvez devesses aceitar o inevitável e utilizares a tua energia para te certificares de que o teu pai está bem.

‑ Suzanne, nem acredito que tenhas dito isso.

‑ Não? Bem, e se fosse eu a pessoa ali deitada com um pedaço de metal contra a minha medula espinal? Zack, estamos a falar do teu pai.

‑ Suzanne, o homem que está ali dentro está a morrer.


‑ Sabes, neste mundo existem coisas como o amor e a lealdade. Elas são permitidas. Segundo algumas pessoas, são

mesmo virtudes que vale a pena ter. Até os médicos têm o direito de ser humanos. Esse homem que queres operar rouba e bate nas pessoas, Zachary. É isso que ele faz. A Polícia disse que a cabina da camioneta estava cheia de latas de cerveja vazias...

Zack olhou para ela.

‑ Nem acredito que tenhas dito o que disseste. Não consigo acreditar.

Virou‑se e entrou no quarto onde o pai se encontrava deitado sob o aparelho de raios X.

‑ Pai, como se sente?

‑ Doem‑me as costas e sinto um peso nas pernas.

Zack pegou no martelo de reflexos e bateu com ele nos tendões de Aquiles do juiz, o que fez dobrar cada um dos pés e

confirmou mais uma vez que os circuitos do calcanhar para a

medula e da medula para o calcanhar estavam intactos.

‑ Mexa os dedos dos pés, por favor... óptimo. O outro pé... óptimo.

- Como é que eu estou?

‑ Bem, tem o pulso partido mas vai ficar assim até o Sam Christian terminar o trabalho no Clarion. Contudo, esse pedaço de metal que tem nas costas tem de ser tirado em breve.

‑ Foi o que pensei. És tu que o vais fazer?

Zack hesitou e depois abanou a cabeça, sentindo uma dor intensa no meio dos olhos.

‑ Não, pai ‑ respondeu. ‑ Tenho de operar primeiro aquele homem, senão, ele morre. Além disso, não nos sentimos bem a operar os nossos próprios familiares e, quando podemos, evitamos. Vou chamar o John Burris, do Concord.

‑ Quero que sejas tu.

‑ Juiz, por favor, não me dificulte ainda mais as coisas. Neste momento, o senhor está bastante estável. O Robillard está a morrer.

‑ Deixa‑o morrer.

‑ Não posso fazer isso...

Clayton Iverson fixou o olhar no tecto.

No silêncio, Zack apercebeu‑se da presença de outros no quarto. Deu meia volta. Frank e Suzanne estavam junto à entrada, a olhar e a ouvir tudo.

‑ Suzanne, por favor trata da TAC ‑ pediu Zack, tentando ignorar a desaprovação nos olhos dela. ‑ Tenho de telefonar ao Burris e ir para a SO. Vejo na tua cara o que queres dizer‑me. Não é preciso. Faço a única coisa que nos ensinaram sempre a fazer: faço o que acho certo... Juiz, eu amo‑o e estarei a par de tudo. Com um pouco de sorte, quando o Burris aqui chegar, eu já terei terminado o que tenho a fazer e poderei ajudá‑lo. Entretanto, continue como está.

Deu meia volta e saiu, roçando por Suzanne quando passou. Ela seguiu‑o durante alguns passos mas depois, abanando a cabeça, resignada e frustrada, dirigiu‑se ao gabinete de radiologia.

- A mãe está aqui - disse Frank, aproximando‑se da cama. - Lamento, juiz, eu tentei que ele visse onde estava a razão.

- Esquece, Frank - disse Clayton Iverson. - Deixa‑me estar sozinho.

- Mas, juiz...

‑ Raios, Frank. Já te disse para me deixares sozinho.


 

Nada parecia normal ou confortável. A sala, SO 4, parecia demasiado quente e a equipa cirúrgica demasiado calada. As tesouras e as brocas de perfuração e os bisturis estavam demasiado frouxos, as pinças hemostáticas e os porta‑agulhas inaceitavelmente rígidos ou soltos.

Zack tentou ignorar a dor de cabeça latejante e a suja bata cirúrgica e concentrar‑se na situação que tinha em mãos. A enfermeira auxiliar, que já não esperava por um pedido seu, limpava‑lhe o suor da testa e das faces a cada dois ou três minutos.

Já estavam há quase uma hora a efectuar o processo do buraco de drenagem em Beau Robillard, e ainda não se sabia se John Burris tinha vindo do Concord. Ao fundo do corredor, na SO 2, uma segunda equipa cirúrgica encontrava‑se a postos.

- Valerie, por favor ‑ disse Zack à auxiliar ‑, não se importa de ir às urgências tentar saber alguma coisa do doutor Burris? Ele já devia aqui estar.

Sob a máscara de papel verde, os maxilares de Zack estavam cerrados. Tinha tomado a decisão certa, raios. Ele era um médico, um cirurgião, e não o juiz e o júri. Então por que razão todos agiam como se a sua decisão tivesse sido uma espécie de pecado mortal? Com certeza que compreendiam que ele não estava a escolher a vida deste homem acima da do seu pai. A situação do juiz estava estável, perfeitamente estável. Beau Robillard estava a morrer.

- A pressão desceu um pouco - avisou Jack Pearl.

As palavras fizeram com que Zack voltasse a concentrar‑se nas mãos.

‑ Se achar necessário, faça a transfusão de uma unidade - respondeu. ‑ Aspirei uma quantidade razoável através dos buracos de drenagem, mas o cérebro não apresenta sinais de expansão. Se dentro de mais alguns minutos não houver movimento, teremos de avançar para uma craniotomia completa.

Valerie, a enfermeira auxiliar, voltou a entrar na SO, através do quarto de esterilização.

‑ Doutor Iverson ‑ disse ‑, há um problema lá em baixo.

Zack estremeceu.

‑ Sim, diga...

‑ Mandaram‑me dizer‑lhe que os pés do juiz Iverson estão dormentes. Ele não consegue mexer os dedos.

‑ Quem está com ele?

A sua voz quase soou a pânico. Olhou para o espaço existente entre o crânio de Beau Robillard e a superfície do cérebro e pediu a si próprio para se acalmar.

- A doutora Cole e o doutor Marshfield ‑ respondeu a mulher.

- E onde raio está...

Zack inspirou profundamente e expirou.

‑ Onde está o doutor Burris? ‑ perguntou mais calmamente.

Os olhos de todos os elementos da equipa cirúrgica estavam fixos nele. Todos sabiam que havia muito poucas hipóteses de Zack interromper e sair da sala de operações sem matar Robillard.

- O tempo piorou. Aparentemente. houve um problema com o avião do doutor Burris ‑ explicou a enfermeira. ‑ Ele pediu a alguém para o trazer de avião, mas perderam algum tempo.

‑ Quanto tempo falta para ele aqui chegar?


‑ Vinte minutos.

‑ Raios ‑ murmurou Zack.

Seria necessária mais uma hora para completar a craniotomia, o processo de abertura que ele agora tinha a certeza ser necessário. E mesmo assim, as hipóteses de Beau Robillard sobreviver e ficar pouco mais do que um vegetal tornavam‑se cada vez menores a cada segundo que passava.

‑ Mande dar cinco ampolas de Narcan IV ao juiz Iverson e tragam‑no já para a sala de operações.

‑ Cinco? Mas a dose normal é.

‑ Raios, eu sei qual é a dose normal. - Respirou fundo. - Desculpe, não quis descarregar para cima de si. A dose elevada serve para ajudar a evitar que a medula dilate. Pergunte também à doutora Cole se pode vir cá acima dizer‑me exactamente o que se passa.

Na verdade, Zack tinha poucas dúvidas quanto ao que estava a passar‑se. Uma hemorragia epidural, completamente imprevisível no seu exame inicial, estava a comprimir a medula espinal do juiz.

Teria ele deixado passar alguma coisa? Haveria ali algum sinal?

A incerteza e a dúvida sobre si mesmo endureceram em redor das mãos de Zack como cimento.

Com Burris a menos de vinte minutos de distância, conseguiria agora alguma mudança significativa se parasse com Robillard e fosse tratar da hemorragia do juiz?

Zack olhou para o homem, por cuja vida escolhera ser responsável. Uma vez tomada essa decisão, teria ele agora o direito de a renegar?

As portas da SO abriram‑se e Suzanne, de bata cirúrgica, avançou.

- O juiz não consegue mexer as pernas - disse ela. - O Borris deve estar prestes a aterrar. Está um carro de radiopatrulha à espera dele no aeroporto.

‑ Reflexos?

- Uma oscilação - respondeu ela. - Doutor, tudo indica que, a não ser que o John Burris consiga fazer um pequeno milagre, o seu pai pode muito bem ficar paralisado da cintura para baixo.

Nesse momento, Jack Pearl disse em voz alta:

‑ Doutor Iverson, a pulsação está a cair. Não consigo encontrar a pressão arterial.

- Dê‑lhe uma ampola de epinefrina.

‑Já dei.

‑ Preparem‑se para uma RCP.

‑ A pulsação está a cair. A cair ainda mais.

‑Raios... Iniciem a RCP.

‑ Doutor, ele não está a reagir.

‑ Outra ampola de epi. Dêem‑lhe outra ampola de epi...


 

Já passava das duas da manhã. A chuva miudinha e densa que há horas caía sobre o vale tinha afastado a maior parte do calor que restava do dia.

Zack estava escarrapachado no chão da sala de estar, sem olhar para nada em especial. A única iluminação vinha de meia dúzia de velas e das luzes vermelhas e verdes da aparelhagem estéreo.

Durante as duas horas após o seu regresso do hospital, ouviu Mendelssohn e Mahler, falou quase ininterruptamente com Cheapdog e bebeu ‑ no início várias cervejas, depois cerveja com algumas doses de wild Turkey e, por fim, Wild Turkey puro.

‑ Eu não pedi muito, sabes, Cheap?... Paz e sossego, algumas rochas para escalar, um lugar para fazer o meu trabalho sem quaisquer controvérsias, uma oportunidade para marcar a diferença... Não me olhes dessa maneira. Eu sei que já o tinha dito. E depois?... Tu é que és o cão e, por isso, só tens de te sentar e ouvir... É assim que as coisas são...

Zack podia contar pelos dedos de uma mão as vezes que bebera em exagero, mas estava determinado a juntar essa noite á lista.

Beau Robillard tinha sobrevivido aos ataques cardíacos que sofrera na mesa de operações, acabando por sofrer ainda mais ataques na sala de recuperação. Zack mandara parar a reanimação, depois de várias tentativas fracassadas para recuperar qualquer actividade cardíaca.

Em resumo, dada a extensão da contusão e hemorragia cerebral que Zack descobrira durante a operação, parecia que a sorte de Robillard fora lançada no momento em que a parte lateral da cabeça se ligara ao que quer que sobrava dela.

Infelizmente, no auge da batalha, sem tempo a perder e com uma vida por um fio, não havia maneira de ele saber com tanta antecedência.

Sabes como é a medicina, rapaz? É como se confiasses numa mulher maravilhosa que prometeu que, se a tratasses bem, estaria sempre ao teu lado quando precisasses dela.. Por isso, tratas bem ... Estudas e, por mais exausto que estejas, não cortas o caminho... E subitamente, quando mais precisas dela, quando o raio do teu pai também está envolvido, tu segues as regras, utilizas o teu juízo clínico e fazes o que é suposto fazeres, e Ela desapareceu... Evaporou‑se! Malditas mulheres... Maldita medicina...

Zack anunciou a morte de Beau Robillard no momento em que John Burris terminava a remoção do pedaço pontiagudo de metal enferrujado, espetado profundamente nos músculos das costas de Clayton Iverson. Embora não houvesse evidências de que o fragmento tivesse rasgado o revestimento epidural do canal espinal, houve aparentemente uma certa debilitação do fornecimento de sangue à medula, visto a paralisia do juiz ter progredido e ser considerada por Burris como paraplegia total.

Burris não quis especular sobre se o estado era permanente ou não, embora tanto ele como Zack soubessem muito bem que o prognóstico a seguir a um desenvolvimento desse tipo não era bom.


A decisão de Zack, a paralisia do juiz e a morte de Beau Robillard espalharam‑se pelo hospital como um rastilho de pólvora. Que o nível de álcool no sangue de Robillard estava muito abaixo dos níveis máximos permitidos pela lei, enquanto o do juiz estava 0,1 acima do limite máximo, foi um facto que se perdeu nos rumores e histórias do acidente e da condenação virtualmente universal da deslealdade de Zack para com o pai.

Subitamente, parecia que em todo o Ultramed‑Davís não havia uma única alma que não tivesse uma ou duas queixas contra Beaudelaire Robillard, Jr., ou que não tivesse sido auxiliada, numa ou noutra ocasião, pelo juiz Clayton Iverson.

Ao longo de toda a horrível noite, que terminara com uma conversa tensa e em monólogo à cabeceira do pai, Zack não ouviu da boca de ninguém uma única palavra de apoio pela dificuldade da sua posição ou pela rectidão da decisão tomada.

Com Suzanne e Owen Walsh a vigiarem Toby e John Burris a passar a noite no quarto dos convidados do hospital, não havia motivos para ele continuar por ali. Por outro lado, havia todos os motivos para ir para casa e embebedar‑se. De manhã, o mais certo seria pegar em tudo e partir. Seria bom que ele pudesse partir para sítios desconhecidos sem ter de levar consigo a sua própria pessoa.

Com o aquecedor desligado e a lareira apagada, a casa tinha começado a absorver o frio da noite. Zack levantou‑se e foi ao quarto vestir uma camisola. Ficou surpreendido ao perceber que, apesar de ter bebido mais num período tão curto do que, segundo se lembrava, algum dia tinha feito, se sentia bastante equilibrado sobre os pés.

Havia uma certa ironia por, nessa noite em particular, ele não ser capaz de desempenhar bem o trabalho de se embebedar.

Ao regressar à sala de estar acendeu uma pequena fogueira, colocou um disco ligeiramente menos monótono e serviu‑se de mais uma dose de Wild Turkey. Ele compreendera a forma impiedosa como o juiz e até mesmo a mãe o haviam castigado. Tinham todo o direito de estarem aborrecidos. Mas a reacção de Suzanne fora implacável.

Ela era médica, para não mencionar que era sua amante. Mesmo que mais ninguém o fizesse, ela deveria ter demonstrado um pouco de compaixão e compreensão pela sua situação difícil.

Serviu‑se de mais uma dose.

Anos antes, precisamente no inicio do estágio, tinha lutado contra a questão de tomar decisões em medicina e havia preferido adoptar formas de abordagem mais cuidadosas, objectivas e segundo as regras, acima de todas as tácticas bombásticas e espalhafatosas que eram adoptadas por muitos dos colegas de cirurgia.

A decisão não fora assim tão difícil.

Ele era o segundo filho, portanto num plano inferior. Tinha feito o melhor que podia com as ferramentas que possuia. Porque é que Suzanne não compreendia isso? Frank era o bucaneiro da família. Ele era um erudito. Frank dançava ao sabor do vento. Ele precisava de regras.

A sala estava a ficar abafada e desconfortavelmente quente. Se fechasse os olhos por um tempo determinado, ela começaria a rodar. Sentiu um enjoo no estômago e a cabeça como se fosse de barro de modelagem.

Talvez já tivesse bebido o suficiente. Talvez tivesse chegado a hora de...

Zack combateu as sensações desagradáveis, aproximou‑se da janela e abriu‑a ligeiramente. Soube‑lhe bem o ar fresco.


Toby Nelrus prestes a ser enviado para Bóston... O juiz, paralisado... O homem que ele escolhera tratar, morto... Ele próprio, anátema no hospital. Seria possível que as coisas pudessem ser piores?

Existem neste mundo coisas como o amor e a lealdade. Elas são permitidas...

Palavras de Suzanne. Devia ter‑lhe dado ouvidos.

Ele fora simplesmente muito obstinado, muito inflexível. Connie tinha‑lhe dito isso mais de uma vez, antes de ter saido da sua vida. Agora, Suzanne tentava dizer‑lhe o mesmo.

Regras a mais. Pessoa insuficiente.

Olhou para o jardim a brilhar, depois para lá da mata e para a parede de rocha irregular à qual dera o nome de "Além", à espera que alguém um dia lhe perguntasse porque é que a tinha escalado. A superficie de granito, talvez com noventa metros de altura e cinquenta de largura, fora o aspecto que mais o atraira quando o corretor do Pine Bough lhe mostrara a casa pela primeira vez.

Inclinada para cima, a setenta e cinco ou oitenta graus, a superficie terminava num amplo planalto de onde se tinha uma vista fabulosa do vale. A escalada, embora um tanto difícil, era uma das que ele já tinha feito várias vezes.

Todavia, percebeu subitamente que a tinha escalado sempre à luz do dia e com equipamento. Fizera‑o sempre segundo as regras...

Conseguiu testar alguns passos de calcanhar para os dedos sem qualquer dificuldade e ficar sobre um pé durante vários segundos. Decidiu que o álcool não seria um problema. Provavelmente, nem sequer tinha bebido tanto quanto julgava.

Regras... sistemas...

Zack dirigiu‑se ao armário do vestíbulo, tirou os sapatos de alpinismo com sola de borracha e o blusão de couro e guardou no bolso uma pequena mas potente lanterna.

Tinha chegado a hora de deixar de ser o segundo filho... A hora de se libertar e partir o molde... A hora de quebrar algumas regras...

‑ Porque é o Além ‑ disse Zack a rir, enquanto saía pela porta das traseiras para a noite fria. ‑ Só porque é o Além.

De que raio de outro motivo precisava ele?

O ar continha pouco mais do que vestígios da chuva fina e negra, mas ainda estava frio e pesado. Por várias vezes, enquanto Zack atravessava o jardim e abria caminho por entre a mata densa, jurou ter visto a sua própria respiração. Quando chegou à base da rocha, os sapatos de alpinismo estavam totalmente encharcados.

Escalar sozinho á noite, depois de alguns copos, á chuva... quantas regras mais poderia ele quebrar? Talvez, pensou ele, divertido, devesse subir também de olhos vendados. Não havia razão para fazer as coisas pela metade. Após um breve debate, rejeitou a ideia. O que estava a fazer já era mais do que suficiente para o momento: o primeiro de uma série de passos que acabariam por conduzi‑lo à sua transformação como pessoa e como médico.

Avançou de lado através da erva alta até localizar um ponto de partida decente; então, olhou para cima ao longo da escura superficie de granito. Acima da orla, o céu carregado de nuvens era apenas ligeiramente menos negro do que a própria rocha. Ia ser uma escalada terrível.


E quando tivesse terminado, quando tivesse provado o que tinha de provar, deitar‑se‑ia sob as árvores do planalto lá em cima e ficaria a ver o amanhecer a estender‑se por todo o vale.

Com a satisfação da aventura a percorrer‑lhe o corpo, Zack estendeu os braços e apoiou as palmas contra a rocha húmida e fria. Depois, olhando para cima pela última vez, começou a subir.

Um metro... dois... quatro... oito...

A escalada, mesmo debaixo do álcool, da escuridão e da chuva, era muito fácil.

Quinze... vinte... vinte e cinco...

Sempre que precisava de um ponto bom para se agarrar, os dedos encontravam‑no. Ele estava "zonado" ‑ a escalar com uma suavidade e sincronia maravilhosas. Se tivesse querido, podia tê‑lo feito de olhos vendados. Lá em baixo ‑ não muito em baixo ‑ podia ver as velas a piscarem nas janelas da sua casa. A estrada, a rua aos esses em direcção ao rio, o automóvel ocasional, as luzes nocturnas da cidade; de cada vez que encontrava um novo ponto para se agarrar, de cada vez que subia mais um passo, a vista tornava‑se maior.

Era uma escalada magnífica, disse para consigo... Absolutamente magnífica... Connie tinha razão... E Suzanne também... Há muito tempo que devia ter quebrado assim as regras... Embora tivesse sido sensato operar Beau Robillard ‑ sensato e clinicamente são‑, na análise final e metafisica talvez não tivesse sido correcto.

Trinta metros... trinta e cinco... talvez mais.

Em baixo, não se viam os traços da rocha escarpada e inclinada. Em cima, só havia escuridão. Ele agora avançava mais devagar, mas ainda firme. O vento estava ligeiramente mais forte e a chuva caía de novo, miudinha, salpicando‑o através da noite.

Minuto a minuto, Zack começou a sentir a respiração tornar‑se mais difícil e o domínio menos firme. Começou a sentir uma azia desagradável atravessar‑lhe a garganta até à parte de trás do nariz. Quanto é que ele tinha bebido exactamente?

Concentra‑te, implorou a si mesmo. Utiliza a tua adrenalina, e a tua experiência, e concentra‑te em...

Os pontos para se agarrar tornaram‑se mais escorregadios, pequenos e dificeis de encontrar. Passava mais tempo de um lado para o outro à procura de um local seguro, do que a subir. Os dedos começavam a ficar rijos. Atrás dele, escondida na escuridão, estava a sua casa ‑ tão atormentadoramente perto, tão incrivelmente distante. Sem cabos, descer na escuridão e debaixo de chuva estava simplesmente fora de questão.

Então, sem o menor aviso, escorregou.

O pé escorregou primeiro, derrapando na borda de um nicho que ele julgara ser seguro. Instantaneamente, a força das mãos cedeu também. Escorregou três ou quatro metros, batendo com o ombro contra uma pequena saliência e esfolando o joelho e o queixo. Reagiu instintivamente, utilizando a técnica e os anos de prática para travar a queda.

Agarrando‑se e dando pontapés numa fenda pouco profunda, conseguiu parar a queda.


Em seguida, arfando, aderiu o corpo à rocha e arrastou‑se, centímetro a centímetro, até conseguir encontrar um local mais seguro. O ombro e o joelho latejavam, mas não estavam partidos. Os pulmões ardiam. Começou a sentir ondas de cólicas desde o estômago até ás costas.

Olhou para baixo. A superficie da rocha, ou o pouco que conseguia distinguir dela, parecia quase lisa. Ou continuava a subir, ou teria de descobrir uma maneira de se prender ao local onde se encontrava e ficar ali até de manhã.

Então, lembrou‑se da lanterna. Como é que se tinha esquecido dela? Soltou uma mão e cuidadosamente baixou o braço e tocou no bolso do casaco de couro. A lanterna tinha desaparecido, provavelmente perdera‑se durante a queda.

Nesse momento, sentiu uma dor profunda no estômago e desatou a vomitar. O fétido ácido de uísque saiu‑lhe pela boca e pelo nariz, salpicando a roupa e os sapatos e escorrendo pela rocha abaixo.

Durante cinco ou dez minutos, tudo o que conseguiu fazer foi aguentar‑se e tentar respirar. Tinha quebrado as regras e estava metido em muito mais sarilhos e perigos do que alguma vez estivera na vida.

Gradualmente, a mente começou a aclarar e a respiração arfante acalmou. Calculou que estava pelo menos a cinquenta metros do solo; talvez mais. Com certeza estava a mais de metade da distância. Podia utilizar o casaco ou o cinto para se prender à rocha mas, no escuro, era impossível encontrar um bom local. A sua única opção era escalar e rezar.

Mais uma vez, ponto a ponto, centímetro a centímetro, começou a subir. A chuva e o vento eram agora factores importantes, tornando cada ponto mais traiçoeiro e cada saliência menos segura. O gosto que tinha na boca e na garganta eram abomináveis e a rigidez nos dedos, ombro e joelhos piorava a cada segundo.

No entanto, ele escalou.

Tudo aquilo era muito estúpido. Decidira escalar a rocha para... para quê? Não conseguia lembrar‑se. Tudo o que sabia era que se metera numa má situação e a tornara muito, mas muito pior.

Olhou para trás. A casa parecia um brinquedo, uma sombra, vagamente visível contra o brilho de um candeeiro de rua ali próximo. Olhando para a superficie da rocha e através da chuva que caía, quase jurou ter visto a borda do planalto.

A inclinação parecia mais íngreme e os pontos para agarrar mais pequenos. Zack examinou a superficie da rocha à sua direita, à procura de uma saliência que servisse de último segmento da sua escalada. Raios, mas ele precisava da lanterna. Fora estúpido, arrogante e descuidado em não a ter atado.

Estúpido, arrogante, descuidado... Esse pensamento fê‑lo

sorrir ligeiramente. Antes da grande decisão de se libertar dos constrangimentos pessoais, nunca fora nenhum dos três.

Avançando um membro de cada vez, procurou o caminho sobre a rocha e, com as pontas dos dedos, tacteou as alterações de superficie, que mais uma vez o guiariam para cima.

Está quase, disse para consigo. Está quase... Quase... Antes de poder corrigir ou reagir, o pé direito falhou a posição e escorregou na rocha. Os braços agarraram‑se bem. As mãos, ambas razoavelmente seguras, aguentaram; mas já estavam rígidas e enfraquecidas.


Inclinando a cabeça para trás e para um dos lados, olhou para baixo. Os pés balançavam cerca de trinta centímetros abaixo da saliência mais próxima.

Oh, Deus, era tudo o que ele conseguia pensar naquele momento. Oh, Deus... Oh, Deus...

Relutante em aumentar a pressão dos dedos enquanto lutava, levantou um pé, arrastou‑o cuidadosamente ao longo da rocha e procurou uma saliência ou uma fenda. Abaixo dele, numa inclinação quase perpendicular, a superficie do granito desapareceu na escuridão.

Oh, Deus, por favor.. Oh, Deus...

O pé encontrou a ponta de uma saliência. Num dia seco, o minúsculo espaço seria uma possível plataforma para ele... mais do que o suficiente. Mas agora, era impossível saber.

Desesperado por aliviar um pouco a pressão dos dedos, Zack apoiou a ponta do sapato na saliência e cuidadosamente descansou o peso do corpo sobre o pé.

Aguenta, maldito... Por favor aguenta...

Por um instante, o pé pareceu firme. Depois, ao aplicar mais peso, este escorregou da saliência obrigando a mão direita a soltar‑se da rocha. Durante cinco ou dez segundos, a mão esquerda aguentou.

Depois, com um estalo doloroso, os dedos cederam e ele começou a cair, batendo como um boneco de pano aqui e ali na rocha escarpada e gritando de cada vez que chocava contra uma saliência de granito, partindo um osso atrás do outro...

Nãããooo!

O seu grito final, o uivo de um animal, ecoou‑lhe na mente e misturou‑se com um outro som... uma voz... a voz de Suzanne.

‑ Zack? Por amor de Deus, Zack, consegues ouvir‑me?

Ele sentiu uma toalha fria e molhada a passar sobre o rosto.

Lentamente, abriu os olhos. Sentiu um canhão a explodir na cabeça. Estava no chão da sala de estar, coberto de vómito fétido. As luzes estavam acesas. Suzanne estava debruçada sobre ele, com uma expressão de preocupação a escurecer‑lhe os olhos.

Perto dele, tombada de lado, encontrava‑se a garrafa vazia de Wild Turkey.

Do outro lado da sala, sentado a olhar atentamente, estava Cheapdog.


 

‑ Nunca mais. Juro. Nem uma gota. Nunca mais, mesmo.

No espaço de duas horas e meia, com Suzanne como guia,

Zack passara do terror da sua alucinação induzida pelo álcool a um vale de lágrimas de auto‑reprovação, a um breve período de cómica autocensura e, finalmente, a uma ressaca abissal.

‑ Nunca mais? ‑ perguntou ela. ‑ Queres que eu escreva? Poderás assinar e pendurar na parede.

Zack apertou as têmporas.

‑ Escreve o que quiseres ‑ disse ‑, desde que a caneta não arranhe muito alto sobre o papel. Só espero que percebas que sou um perfeito amador em abusar assim do meu corpo.

‑ Oh, isso percebo eu.

Ele não se lembrava muito bem do duche, do champô ou dos primeiros goles de chá, mas sabia que Suzanne o tinha acompanhado em cada um deles. Agora, embora a cabeça ainda transformasse cada batida cardíaca em morteiro, as ideias estavam suficientemente claras para, no mínimo, manter uma conversa aceitável.

Tentou um gole maior de chá e quase chorou ao perceber que este iria permanecer no estômago.

‑ Fizeste um trabalho espantoso ao voltares a pôr‑me com um aspecto decente ‑ disse. ‑ Obrigado.

Ela sorriu tristemente.

‑ Não fiz nada de especial. Infelizmente, o meu ex‑marido fez‑me praticar bastante.

‑ Maravilha. Desculpa.

‑ Não peças. Foi mau, mas, tal como tudo o resto, acaba por passar...

‑ Estiveste acordada toda a noite?

- Hum, hum... A Helene está com a Jen. ‑ Entregou‑lhe um pano de louça molhado. ‑ Toma, limpa a cara com isto. Queres uma aspirina?

‑ Daqui a pouco. Como estão as coisas no hospital?

‑           Nenhuma alteração significativa... pelo menos, até há meia hora. O Toby ainda está em coma. A temperatura dele anda à volta dos trinta e oito e oito. O Walsh acha que consegue uma cama para ele no Hitchcock ou no Infantil, por volta do meio‑dia.

‑           E o meu pai?

‑           Tudo quanto sei, também não há alterações. Acho que aquele neurocirurgião do Concord... como é que ele se chama?

‑           Burris. John Burris.

‑           Sim, bom, acho que o John Burris também está a pensar em transferi‑lo hoje, mais tarde.

‑           Que confusão.

Suzanne afastou a cortina. Do outro lado do quintal, os primeiros raios da manhã reflectiam‑se sobre a superficie

Além.

‑           Olha ‑ disse ela, indicando com a cabeça a montanha de granito ‑, a pavorosa cena da tua escalada da meia‑noite

‑           Não tem piada nenhuma, Suzanne. Eu morri na rocha. Morri mesmo.


‑           Espero bem que sim, porque, daquilo que consegui extrair do teu balbúcio nestas últimas duas horas, acho que em primeiro lugar eu não teria gostado muito do tipo que subia por ali acima. Confuso, com ódio por si próprio, arrogante, eterna vitima: a meu ver, muito parecido com o Paul.

‑ Ei, espera aí. Eu só estava a ver as coisas tal como são. Não houve uma única pessoa naquele hospital que tivesse uma palavra para me animar. Cinquenta mil franceses e tudo mais... Bem, esses mesmos cinquenta mil franceses diziam

que eu tinha feito asneira. E não te esqueças que foste um deles

‑ Eu sei. Peço desculpa por isso...

‑ Não peças. Tinhas razão; todos vocês tinham razão. fiz asneira. Quando cheguei a casa, não suportei a pessoa

que eu era. E, alucinação ou não, quando escalei aquela montanha ali atrás eu estava sinceramente a tentar libertar‑me de mim próprio, para... me tornar, sei lá, mais flexível, mais humano no modo como encaro a medicina e não só.

‑           Eu compreendo.

‑ É?

‑ E errei ao dizer as coisas que disse. Zachary, não tens motivos para mudar. És um cirurgião excelente, um filho decente e preocupado e um amigo maravilhoso para mim. E eu não tinha o direito de insinuar o contrário. Foi egoísta e cruel da minha parte. É errado, muito errado. Foi essencialmente por isso que aqui vim, só para te dizer isso. Senti‑me tão culpada por aquilo que te disse no hospital e por ter saído da forma como o fiz, que não consegui ficar parada. Então, como não atendias o telefone, eu assustei‑me. Foi por isso que vim até aqui.

‑ Ainda bem que vieste ‑ disse ele. ‑ Mas não era preciso sentires‑te culpada. Tinhas razão.

‑ Eu estava errada, raios! Pára de dizer isso...

Respirou fundo para se acalmar e esfregou as manchas escuras que lhe envolviam os olhos.

‑ Zack, como já disse, o Paul foi... um homem muito triste e doente, sem qualquer objectivo na vida, sem qualquer perspectiva. Ele nunca me pôs a mim ou á Jen acima dele, da bebida, das drogas ou das outras mulheres. Nunca. Ainda me custa a acreditar que eu tenha feito um juízo tão errado sobre alguém. É por isso que tenho estado tão relutante em envolver‑me contigo. Mas aquilo que ontem à noite eu disse no hospital, quanto à lealdade e à possibilidade de ser eu a pessoa ali deitada, o que eu só soube apreciar depois de teres saído foi que, na verdade, eu estava a dizer tudo ao homem por quem estava a tentar não me apaixonar e não a outro médico com uma terrível decisão nas mãos. Estava a castigar‑te por seres o primeiro homem, depois do Paul, em quem eu queria confiar. Estava errada e peço desculpa.

Zack olhou para as mãos.

‑ Obrigado ‑ agradeceu ele. ‑ Mas não estavas errada. A verdade da questão é que o meu pai ficou deficiente e eu provavelmente poderia tê‑lo evitado.

‑ Zack, a verdade da questão é que fizeste o que julgaste ser correcto. Tu não puseste o teu pai deficiente; foi um acidente de automóvel e um pedaço de metal. Não vês isso? Fizeste tudo o que és capaz de fazer. Fizeste o teu melhor.


Zack só conseguiu abanar a cabeça. Não tinha ele dito um dia precisamente o mesmo a Wil Marshfield? Porque é que agora não conseguia acreditar, ao ouvi‑lo da boca dela?

- Fazer o que fazemos pela vida não é fácil ‑ dizia Suzanne. - Ninguém nos prometeu que seria. Ninguém nos prometeu que todos aqueles a quem tratamos ficariam melhor, ou que toda a decisão que tomássemos fosse a acertada. A medicina é um jogo de tabuleiro, com um determinado número de cartas e de respostas. Todas as situações são diferentes.

Zack olhou para ela, taciturno.

‑ Como raio poderei eu voltar a confiar no meu próprio juízo clínico? ‑ perguntou ele. ‑ Consegues responder‑me a isto?

‑ Meu Deus - resmungou ela. - Escuta, Zachary. Toma outra chávena de chá. A seguir, toma um duche de água fria. Depois, se quiseres continuar a castigar‑te, talvez possas realmente escalar aquela parede lá fora. No entanto, fá‑lo com as mãos atadas atrás das costas. Coloca lâminas nos sapatos. Não faz sentido facilitares as coisas.

- Ei, não há motivos para me bateres tanto.

‑ Sim, há - disse ela, parecendo prestes a desatar a chorar. ‑ Há muitos. ‑ Pegou no casaco e na carteira. ‑ Vim até aqui para ver se estavas bem, pedir‑te desculpas e dizer‑te que estava a apaixonar‑me por ti. Já fiz tudo isso. Magoa‑me bastante ficar perto de ti a ver‑te mergulhar, até desapareceres no teu pequeno charco de comiseração por ti próprio. Por isso, se me deres licença...

‑ Espera.

Suzanne virou‑se para ele. Os olhos estavam sombrios e brilhantes, e mais tristes do que nunca.

‑ O que é? ‑ perguntou, aborrecida.

‑ Desculpa.

‑ Não me peças desculpas, Zack ‑ disse ela. ‑ O que estás a fazer... fazes a ti próprio. Não tens de pedir desculpas a ninguém.

‑ Desculpa não ter ouvido o que tentavas dizer‑me.

‑ Como queiras.

‑ Suzanne, tu não compreendes.

‑ Não? Esqueces‑te que fui casada com um mestre da melancolia. Infelizmente para ti, ou para nós, compreendo muitissimo bem. Sinto‑me muito mal com o que aconteceu ao teu pai. Sentir‑me‑ia assim, fosse ele quem fosse. E não te censuro por estares aborrecido, mas deveria ser com a situação, Zack, e não contigo próprio... com os caprichos da medicina e não pelo facto de não seres perfeito. Lamento, mas depois de todos aqueles anos do Paul, não tenho paciência para este tipo de conversa. A vida é demasiado curta. Eu simplesmente não tenho paciência nenhuma para isto.

Avançou em direcção à porta.

‑ Suzanne, por favor. Não vás. ‑ Correu e pôs‑se à frente dela. ‑ Eu também não gosto dos modos que tenho demonstrado. Não gosto mesmo nada. Nunca ninguém ripostou contra mim desta maneira e...

‑E o quê?

‑E... nada. Compreendo o que dizes. Vamos deixar as coisas como estão. Tudo começa a assentar. E... eu vou ficar bem. Vou mesmo... Podes ficar? Só um bocadinho?

Ela olhou para ele, desconfiada. Depois, pela primeira vez durante toda a manhã, sorriu. Foi um sorriso cansado, das cinco da manhã, mas tinha a marca de Suzanne Cole.


‑ Sim, doutor ‑ respondeu ela. ‑ Eu posso ficar um bocadinho, se quiseres. Sabes, tudo o que vai, volta. Para mim, a definição de amigo que um dia escreveste, também funciona no sentido inverso: aquele que te ajuda a encontrar as ferramentas, quando parece que tu não consegues encontrá‑las sozinho.

Ela conduziu‑o até ao sofá e deitou a cabeça dele no seu colo.

‑ Tens de aceitar, Zack ‑ murmurou, afagando‑lhe a testa. ‑ Por mais que queiras virar as costas e por mais que estejas a sofrer, tens de voltar àquele hospital, juntar os pedaços e continuar o teu trabalho. Há muita coisa em jogo para não o fazeres. Demasiadas.

‑ Demasiadas ‑ murmurou ele.

Lentamente, ele fechou os olhos. A respiração tornou‑se mais profunda e regular. Em segundos, adormeceu profundamente.

‑ Por favor, Zachary ‑ pediu ela, suavemente. ‑ Por favor, não fujas.

Colocou‑lhe uma almofada sob a cabeça, trouxe o despertador do quarto e pó‑lo para despertar às nove horas. Um telefonema para a SO atrasaria ou adiaria tudo o que ele tivesse marcado, e outro para a enfermeira do consultório dar‑lhe‑ia mais tempo para ficar ali. O passo seguinte dependeria dele.

Ela estava a juntar os seus haveres quando reparou na cópia de uma das suas obras de medicina favoritas: um tratado clássico sobre os princípios e a arte da medicina clínica, de Davenport. A monografia fina estava na estante entre vários e enormes livros de cirurgia. Abriu‑o numa passagem que já lera um número de vezes suficiente para a saber de cor, marcou a página para Zack e saiu pela porta da frente, para a fria e enevoada manhã de Julho.

Desde que Toby Nelrus estivesse razoavelmente estável, ainda teria tempo para tomar uma chávena de café com Helene, vestir Jen e levá‑la para o acampamento diurno e tomar um duche antes de iniciar a ronda médica. Há quase vinte e quatro horas que não dormia mas, tal como dissera tantas vezes aos pais, ainda ninguém tinha morrido por falta de sono.

 


‑ Está, Whitey?... Daqui fala o Frank Iverson. Ainda bem que o encontrei. Sei que está prestes a abrir e por isso não vou empatá‑lo... Sim, bem, julgo que toda a gente de Sterling já sabe. O maldito Beau Robillard. Nunca fez uma única coisa decente em toda a sua vida e agora nem sequer pode morrer sem magoar alguém... O juiz vai bem, Whitey. O John Burris, o neurocirurgião que o operou, vai mandá‑lo de ambulância para o Concord, ao princípio da tarde... Bem, receio que tenha ouvido bem. Da maneira como as coisas estão, ele está paralisado da cintura para baixo. Mas o Burris não quer fazer prognósticos e todos nós esperamos que isto seja apenas um estado temporário. O juiz é forte, como nós bem sabemos. Se há alguém que consiga vencer isto, é ele... Bom, Whitey, na verdade telefonei por dois motivos. Primeiro para o pôr a par da situação do juiz, e segundo para lhe dizer que falei com a Sys Ryder, da dietética, sobre o pedido de fornecimento de carne do próximo mês. Ela concordou em tentar permitir que vocês cuidassem dele, em vez de passar pelo departamento de compras da Ultramed Só para ver como é que tudo resulta... Oh, não tem de quê.

- Você merece a oportunidade. Oh, oiça, há mais uma coisa. Desnecessário será dizer que o juiz não está em condições para ir à reunião desta manhã... Não, receio não haver maneira de adiar a reunião. O contrato diz que a venda terá de ser finalizada ao meio‑dia, a não ser que a direcção vote a favor da reaquisição. Falei brevemente com ele há alguns minutos e pareceu satisfeito por deixar que cada director vote segundo a sua consciencia e deixe que as coisas aconteçam como tiverem de acontecer. Mas, Whitey, uma vez que é você quem está encarregado da reunião, pode fazer‑me um grande favor. Gostaria muito que a votação no final da manhã fosse secreta... Sei que não é assim que fazem normalmente, mas não acha que essa seria a maneira mais justa? Faça isso por mim, whitey, e prometo‑lhe que esse contrato dietético será apenas o começo... Excelente, excelente. Pronto, então, encontramo‑nos na reunião. Whitey, obrigado.

Frank pousou o telefone no descanso, deu um gole no café da manhã e sublinhou cuidadosamente o nome de Whitey Bourque que constava na lista de assuntos que tinha para tratar nessa manhã.

Antes de se tornar administrador do Ultramed‑Davís, Frank nunca na vida tinha feito uma lista de coisas para fazer. As listas eram para as pessoas da manhã, para pessoas esforçadas e criados; para apanhadores e defesas, não para guarda‑redes. Eram para os cavalos de tiro que precisavam de saber com antecedência o momento exacto em que tinham de disparar e a direcção certa a seguir, não para os puros‑sangues.

Contudo, os quatro anos de exposição à capacidade e eficiência dos bancos de dados do UltraMed, para além das pressões de cuidar ao mesmo tempo de uma dúzia ou mais de situações dificeis, tinham feito com que ele mudasse. Actualmente, iniciava o dia com um programa cuidadosamente escrito.

Frank gostava de considerar a sua necessidade de criar listas de coisas que tinha para fazer como uma das manifestações mais visíveis da sua capacidade de adaptação e maturidade.

E de todas as listas que fizera, a dessa manhã era de longe a mais interessante.

Examinou o rol de membros da direcção, para ter a certeza de que tudo estava em ordem para a reunião. Tinha‑se esforçado bastante mas, com a influência do juiz praticamente neutralizada, utilizara a promessa de uma votação secreta e outros incentivos para apanhar os membros que lhe faltavam para bloquear a reaquisição. Os votos seis no total não lhe tinham saido baratos, mas ele fizera o que tinha de ser feito.

A súbita viragem dos acontecimentos deixara‑o atordoado. Tudo aquilo era inacreditável, absolutamente inacreditável:

Zack a balançar no limite do perdão do Davís, apenas à espera da mais pequena cotovelada; o juiz impossibilitado de assistir à reunião decisiva do conselho de directores.

Se tivesse tentado, não teria escrito melhor. Com a chegada de Mainwaring a qualquer momento, vindo da Jórgia, tudo se encaixava... tudo, isto é, com uma pequena excepção.

Depois de pensar por um instante, Frank tirou da gaveta um marcador preto e eliminou da lista "Ligar a Lisette".

Ela que se lixe,murmurou.


A mulher não merecia o telefonema nem as desculpas que ele pensara pedir. Na realidade, se alguém tinha de pedir desculpas era ela. Ou acabaria por ver a verdade sozinha acabaria por compreender o que o obrigara a fazer ‑ ou quem perderia era ela. A casa, o carro e até mesmo as filhas. Perderia muito. Ele tinha amigos com cargos elevados mais do que suficientes para garantir que ela pagaria pela sua deserção. Aquele não era, pura e simplesmente, o dia para tratar de uma gaja chorona e passiva como Lísette. Era um dia de triunfo. Se não escolhera estar disponível para o partilhar com ele, o problema era dela.

Pegou na lista e acrescentou cuidadosamente: "Confirmar com A. D. ref.: hoje à noite."

Perfeito, pensou. Annette Dolan era a escolha ideal para o ajudar a celebrar a notável viragem dos acontecimentos.

Carregou no botão do intercomunicador. Pouco depois, Annette Dolan bateu suavemente e entrou no gabinete. Trazia uma saia em xadrez justa e uma camisola de lã angora bege de mangas curtas, que parecia esticada na tentativa de tapar os seios.

‑           Bom dia - cumprimentou ele.

- Bom dia para ti também.

Permaneceu formalmente de pé ao lado da secretária, com as mãos fechadas à frente da saia e os braços esticados para baixo, erguendo os seios de uma maneira que os fazia parecer ainda mais espectaculares.

- Eu... hum... preciso de algumas fotocópias - conseguiu Frank dizer.

Entregou‑lhe alguns papéis.

- Vinte cópias. Não, tira antes trinta. Tu... ah... é uma bonita camisola.

- Obrigada.

- Achas que a podes vestir para trabalhar esta noite? Digamos, ás oito?

‑ Oh, Frank, não sei. A minha mãe não anda a sentir‑se muito bem.

- Lamento saber isso...

Ele hesitou, mas depois abriu a gaveta e tirou um colar de diamantes que pensara oferecer a Lisette como presente de aniversário.

‑... porque eu estava á espera que usasses isto na mesma altura.

Os olhos de Annette abriram‑se muito.

Oh, Frank, é lindo ‑ disse. ‑ É o colar mais bonito que jamais vi. És tão bom para mim.

- É por seres tão boa para mim. E logo à noite?...

Ela passou os dedos pela peça.

- Como é que poderei negar? Não sei... Como poderás?

Ele puxou‑a para si e beijou‑a, introduzindo a mão por baixo da saia e depois apertando‑lhe o seio.

- Annette, querida, não quero esperar até logo à noite. Só um bocadinho. Aqui mesmo. Agora.

- Frank, por favor - disse ela. ‑ Tens de esperar. Eu tenho trabalho para fazer e todas essas fotocópias para tirar, e a porta não está trancada. Além disso, ele pode ouvir‑nos.

‑ Quem pode ouvir‑nos?

‑ O teu irmão, claro. Eu não...? ‑ Levou a mão à boca e olhou para ele, envergonhada. ‑ Oh, perdão. Eu ia dizer‑te.


A expressão de Frank tornou‑se carregada.

‑ Há quanto tempo é que ele está aí?

‑ Há apenas alguns minutos. Desculpa, Frank.

‑ Ei, não é preciso pedires desculpa ‑ disse, apertando‑lhe o seio. ‑ Usa essa camisola logo á noite... e o colar. Está bem?

‑C... claro.

‑ Perfeito. Diz ao meu irmão que já sei que ele está aqui e que o atenderei dentro de alguns minutos.

‑ Está bem. Desculpa.

‑ Na verdade, pensando bem, ele não podia ter aparecido em melhor altura.

A recepcionista animou‑se visivelmente.

‑A sério?

‑ Sério ‑ respondeu Frank. ‑ Isto será o açúcar de cobertura do bolo.

Quando ela se virou, Frank deu‑lhe uma palmada no rabo e seguiu‑a com o olhar, enquanto ela saía do gabinete. Depois, acrescentou outro item à lista, na mesma caligrafia perfeita de todos os outros: "Despedir Z.I."

Fez uma pausa, analisou pensativo a anotação e, a seguir, desenhou ao lado uma pequena cara a sorrir.


 

- Doutor Iverson, Mister Iverson pediu para lhe dizer que sabe que o senhor está aqui e que o atenderá assim que puder. De certeza que não quer tomar nada?

- Não, obrigado.

No último instante possível, Zack conseguiu evitar reforçar a sua resposta com um abanar da cabeça. Na verdade, os tambores que andavam a ensaiar no seu cérebro tinham dado a vez ás trompas, e a tempestade do estômago tinha‑se reduzido a uma mera náusea. Fisicamente, parecia que estava a restabelecer‑se.

Com uma pequena ajuda de Cheapdog, ele acordara muito antes da hora que Suzanne marcara no seu despertador. Na mesinha ao seu lado encontrava‑se um copo de água, um pacote de Bromo Seltzer e a sua velha edição de Davenport, mantida aberta pelo seu estetoscópio e marcada com um bilhete de Suzanne, que dizia simplesmente: Sê forte.

Então, enquanto esperava que o irmão decidisse se já o tinha deixado à espera o tempo suficiente, Zack retirou a monografia da mala e voltou a ler a passagem.

 

Seja perseverante. Seja meticuloso. Seja honesto. Seja responsável por todas as variáveis. Aceite aquilo que desconhece e, na primeira oportunidade, estude‑o. Acredite em si mesmo.

São essas as nossas regras.

Honre‑as e elas servir‑lhe‑ão de apoio como uma rocha. Honre‑as, e até a morte de um doente não será um fracasso.

 

Zack sentiu‑se especialmente grato por aquelas palavras quando chegou ao hospital nessa manhã e a enfermeira de serviço particular do seu pai o informou que, à excepção da esposa, o juiz não recebia visitas, e que ele tinha incluído nesse grupo os seus filhos em especial.

Até Annie Doucette, a ter de encarar uma operação à anca daí a vinte e quatro horas, fora menos do que cordial para ele. Depois da sua entrada ter sido impedida pela enfermeira do juiz, Zack foi directamente ao quarto dela, esperando ingenuamente, afinal ser o primeiro a contar‑lhe o que se passara.

‑ Não estou satisfeita contigo, jovem ‑ disse ela. Salvas uma velha como eu, que quer morrer, e depois deixas que aconteça uma coisa destas a um homem como o teu pai. Que espécie de médico é esse?

Zack começara a responder, mas depois encolheu simplesmente os ombros e saiu. Noutra altura, talvez.

Nem o pessoal do hospital estava mais amigável. Para onde quer que fosse, havia olhares que se desviavam; todos os tipos de cumprimentos eram murmurados ou omitidos por completo. As enfermeiras e os outros médicos mudavam de direcção, quando ele se aproximava.

Decidira tolerar tudo no Davis, mas voltar a restabelecer‑se ia ser claramente uma luta árdua.

Sê forte... Sé forte... Sê...


- Annette - ouviu‑se a voz de Frank no intercomunicador ‑, não se importa de pedir ao doutor Iverson para entrar? E não passe as chamadas, a não ser que se refiram ao estado do meu pai. Obrigado.

Zack entrou no gabinete do irmão, desejando estar noutro lugar qualquer.

- Senta‑te, mano ‑ disse Frank. - Estava a imaginar quando é que irias aparecer por aqui. Onde estiveste?

- Oh, aqui e ali. Principalmente no chão ou na sanita.

‑Eu sei.

Zack olhou, curioso, para ele.

‑ Foi o John Burris quem me disse ‑ explicou Frank. Parece que ele ligou para te dar um relatório do progresso do juiz. Disse que estavas obviamente bêbedo e completamente incoerente.

‑ Ena, ele só estava a ser simpático.

‑ Zack, isto não tem graça. O Burris disse qualquer coisa sobre isso a uma das enfermeiras e todo o hospital já sabe. Uma vez perdida, não é frequente nos hospitais voltar a recuperar‑se a reputação. Pergunta ao Guy Beaulieu.

‑ E agora, quem é que está a armar‑se em engraçado, Frank?

‑ Tu sabes o que quero dizer.

‑ Bem, uma das razões de eu ter cá vindo foi para te dizer que lamentava ter causado tanta confusão neste estabelecimento. Agora compreendo que tenho de recuar um pouco se quiser continuar aqui, embora eu só tivesse feito o que achei ser certo.

-  E fizeste?

- Raios, Frank, és um excelente administrador, mas isso não significa que estejas a par de tudo o que aqui se passa.

‑ Por exemplo?

- Por exemplo, aquele anestesista inconsciente, o Pearl, e o seu companheiro inseparável, o Mainwaring. Eles andam a tramar alguma, Frank. Estão a utilizar qualquer coisa diferente daquilo que afirmam usar nas salas de operação. Juro.

- Isso é ridículo.

- Tenho provas.

- Tens?

- Bem, não propriamente. Mas tenho alguns dados sobre os tempos de recuperação, os quais são bastante sugestivos. E soube algumas coisas do passado do Mainwaring de que até tu talvez não tenhas conhecimento. Garanto‑te que existe uma ligação entre os ataques daquele pobre miúdo Nelrus e o que quer que seja que os dois têm dado aos doentes na sala de operações. Frank, este hospital pode estar em vias de se meter num grande sarilho. Temos de descobrir o que se passa.

‑ Não, não temos, Zack ‑ disse simplesmente Frank.

- O que é que estás a dizer?

- Bem, em primeiro lugar, não vamos descobrir nada, porque não há nada para se descobrir. Aqueles dois homens vieram trabalhar para cá dois anos antes da tua chegada, e não havia nem mesmo um sussurro sobre nada a não ser elogios em relação a qualquer um deles. Como explicas isso?

- Eu... não consigo. Pelo menos, por enquanto. Mas tenho razão, Frank. Eu sei que tenho. O Mainwaring tem um passado que envolve testes ilegais de medicamentos e o Pearl está a esconder qualquer coisa. Não percebeste isso na maneira como ele se comportou ontem à noite? Estava com tanto medo de ser


apanhado que preferiu pôr aquele miúdo a dormir com uma anestesia que ele nem sequer lhe tinha aplicado antes. Alguma coisa está a passar‑se e, raios, eu vou descobrir o que é.

‑ Não, não vais - voltou a dizer Frank. ‑ Não vais descobrir porque não vais causar mais problemas por aqui. E não vais causar mais problemas porque estás acabado... terminado... despedido. A partir deste momento, as tuas funções terminaram neste hospital.

Zack olhou, incrédulo, para ele. Frank também olhou, calmamente e a sorrir.

‑ Frank, isso é loucura. Sou um médico do corpo clínico. Tu não podes despedir‑me. Só o corpo clínico é que o pode fazer e só depois do processo devido.

‑ Ai sim? Toma, doutor. Aqui estão os estatutos da corporação. Tu não trabalhas para o corpo clínico. Está na página sete. Confirma. Tu trabalhas para a Ultramed. E a Ultramed pode despedir quem eles muito bem entenderem. E eu sou a Ultramed e tu estás despedido. ‑ Levantou as mãos com as palmas para cima. ‑ C'est tout, mon frêre.

Sê forte... As animadoras palavras de Suzanne tornavam‑se cada vez mais ocas.

‑ Frank, tu não podes fazer isso.

‑ Posso e fiz. Vês, mano, esse foi sempre o teu grande erro: não compreenderes que este é o meu hospital e que posso fazer o que muito bem me apetecer. Quis que o Beaulieu saísse e ele saiu. E agora quero que tu saias.

‑ Frank, esqueces‑te de que, embora talvez não quisesses o Beaulieu aqui, tu não o despediste. Ele estava a ser sistemática e deliberadamente afastado pela...

‑ Por quem?

Zack hesitou, lembrando‑se da promessa que fizera a Maureen Banas. Depois decidiu que ela teria simplesmente de compreender. A sua situação era bastante desesperada.

‑ Pela Ultramed, Frank. Ele estava a ser afastado pela Ultramed. Olha para essa carta da Maureen Banas. Só prova que não sabes tudo o que se passa por aqui. Achas que ela a escreveu de livre vontade? Ela foi obrigada, Frank, por essa empresa para quem trabalhamos. Pela Ultramed.

‑ Ah, foi?

‑ Sim, ela recebeu uma cópia dessa carta juntamente com um bilhete que dizia...

‑ Que, se dissesse que o tinha recebido, tanto ela como eu seríamos despedidos? ‑ O olhar triunfante de Frank tornou‑se desagradável e assustador.

‑ Jesus ‑ murmurou Zack.

‑ Bela jogada, não achas?

‑ Oh, Frank. Causas‑me pena. Porque é que não o despediste como estás a tentar fazer comigo?

‑ Ele era um filho da puta desordeiro, eis a razão. Não quis que ele provocasse uma grande confusão. Nessa altura eu ainda era um aprendiz, Zack, estava a aprender a ver até onde conseguia ir. Agora já sei e tudo me diz que está correcto eu despedir‑te, por isso... estás despedido. Meu Deus, como eu gosto de ouvir isto.

‑ És louco, Frank. Sabias? Estás absolutamente doido.

‑ Talvez ‑ disse Frank. ‑ Mas também estou empregado. O que é mais do que se pode dizer de ti.

‑ Irei lutar contra ti.


Frank encolheu os ombros.

‑ Faz o que quiseres. No que diz respeito à empresa ou ao corpo clínico, és um desordeiro bêbedo e desleal. Duvido que até a tua queridinha cardiologista fique do teu lado.

‑ Frank, o Guy Beaulieu morreu por causa do que lhe fizeste. Morreu! Isso não tem qualquer significado para ti?

‑ Agora, Zack, tem um bom dia.

‑ E nem sequer te incomoda que seja possível que uns doidos estejam a envenenar doentes nas salas de operações deste hospital? O que é que tu és?

‑ Vou falar com os tipos da Pine Bough Realty. Tenho a certeza de que ficarão felizes por te darem... oh, pelo menos dois ou três dias para saíres daquela casa.

‑ Jesus, eu vou àquela reunião de directores, Frank. Vou lá estar e vou dizer aos directores e à Ultramed o que aqui se passa. O juiz pode estar paralisado, mas viu o que a Ultramed e as suas políticas fizeram à Annie. Ele teve tempo para rever as provas do Beaulieu e de convencer pessoas sobre como votar. Vou lá estar para reforçar a posição dele.

‑ Bem, falei com ele esta manhã e prometeu‑me não se intrometer no assunto.

‑ Frank, isso é uma grande mentira. Eu acabei de vir de lá. A enfermeira disse‑me que o juiz não quer ver nenhum de nós.

Frank piscou um olho.

‑ Então, vamos considerar que, se ele tivesse falado comigo, seria isso que ele prometeria.

‑ És um canalha, Frank... Um canalha louco, completamente louco.

‑ Terei todo o prazer em escrever uma carta de recomendação, desde que o lugar para onde concorreres seja suficientemente longe daqui. Agora, se não te importas, tenho um hospital para dirigir.

‑ Vejo‑te mais logo na reunião.

‑ Tenta se quiseres, Zack. Se apareceres por lá, os guardas da segurança saberão exactamente como cuidar de tudo. E agora, maninho, que tal saíres, ou queres que te recorde o estado em que ficavas sempre que lutávamos atrás do celeiro? Provavelmente, eu gostaria de o fazer quase tanto como gostei de te despedir... Toma cuidado, ouviste?

Entorpecido, Zack saiu do gabinete do irmão e atravessou os movimentados corredores do hospital.

O linóleo polido, os azulejos, as enfermeiras a sair de um doente para outro nas suas batas perfeitamente brancas, os quadros pendurados em todos os quartos... Como tudo aquilo parecia tão limpo à superficie, tão perfeito. O cenário de um filme.

Zack sorriu tristemente com o pensamento. O Regional Davis tinha‑se tornado um brilhante cenário de hospital para cinema ‑ o verniz de Hollywood, sem alma. Era um pesadelo. E agora, um pesadelo pelo qual nada mais podia fazer a não ser afastar‑se. Entrou na unidade de cuidados intensivos.

Suzanne, de vestuário cirúrgico por baixo da bata de laboratório, encontrava‑se no cubículo de Toby, a mover‑se à sua volta de uma forma que só podia significar problemas. Aos pés da cama, Owen Walsh, o pediatra, via tudo com a sua expressão perpetuamente sorridente, carregada de preocupação.


‑ Olá ‑ cumprimentou ela, levantando os olhos momentaneamente. ‑ Ainda bem que vieste.

Ela analisou o monitor e, em seguida, esvaziou o conteúdo de uma seringa no tubo intravenoso de Toby.

‑ Problemas? ‑ perguntou Zack.

Tendo acabado de ser despedido do corpo clínico, ele sentiu uma estranha relutância em se aproximar da cama.

‑ Estas últimas dezasseis horas têm sido para mim como um novo curso de acidentes em farmacologia pediátrica ‑ respondeu, sem levantar a cabeça. ‑ Sempre que a temperatura sobe, o ritmo cardíaco enlouquece. O que estamos aqui a fazer resume‑se a nada mais do que a controlar a situação. Gostava muito de saber o que está a passar‑se.

Eu sei, quis ele dizer. Pelo contrário, aproximou‑se da cabeceira da cama onde fez um exame rápido às pupilas, ao fundo dos olhos e aos reflexos de Toby. Apesar de ainda não haver provas definitivas de danos irreversíveis, também não havia sinais de melhoramento.

‑ Foi‑nos prometida uma cama para ele em Bóston ‑ disse Owen Walsh. ‑ Mas só podem transferi‑lo ao fim da tarde, ou logo á noite.

Afastem‑no daqui e do Jack Pearl, e afastam‑no da única possibilidade que ele tem.

Mais uma vez, os pensamentos de Zack não foram exteriorizados.

‑ Posso fazer alguma coisa, entretanto? ‑ perguntou.

‑ Podes rever os esteróides que está a tomar. ‑ Suzanne verificou a temperatura que marcava o termómetro rectal. Voltou a descer para trinta e oito e oito. E olha, Zack, o ritmo cardíaco voltou a estabilizar. Raios, o que é que se está a passar?

‑ Se puderes sair ‑ disse ele ‑, gostaria de falar contigo por um instante.

Suzanne verificou o monitor e o peito de Toby, e olhou para Walsh.

‑ Mas não vá para muito longe ‑ pediu o pediatra.

‑ Estaremos lá fora na sala de espera, Owen ‑ replicou ela. ‑ Além disso, o senhor está a agir muito bem.

Walsh sorriu.

‑ Ela salva a vida desta criança pelo menos cinco vezes numa noite, e diz que eu é que estou a agir bem.

‑ Disparate. Eu volto já. Aguente‑se um pouco.

Assim que a porta da sala de espera da UCI se fechou, Suzanne atirou os braços ao peito de Zack e apoiou a cabeça no ombro dele.

‑ Sabia que havias de voltar ‑ disse ela. ‑ Estou tão orgulhosa de ti, de nós os dois. Escuta, assim que mandarmos Toby para Bóston, vamos jantar em minha casa. A Jen vai passar a noite com a Helene e eu tenho uma caixa de camarões no congelador e...

‑Suzanne...

‑ Não, escuta, eu sou a culpada de ter agido como agi nas urgências ontem à noite, e só o camarão salteado em manteiga de alho é que...

Ele agarrou‑a pelos ombros e afastou‑a.

‑ Suzanne, o Frank acabou de me despedir.

‑Ele o quê?

‑ Com efeito imediato.

‑ Ele não pode fazer isso.


‑ Pode e fez. Até foi suficientemente simpático para me mostrar um conjunto de leis da corporação, só para provar que pode.

Levantou o livro para que o visse. Só nesse momento é que ele percebeu como ela parecia estar exausta. O rosto estava pálido e abatido, os olhos vermelhos devido ao esforço e á fadiga.

‑ Isto é uma loucura ‑ disse ela. ‑ Que motivos alegou ele?

‑ Na verdade, segundo a página sete, ele não precisa de motivos. Mas, para ser justo, ele forneceu alguns: estar bêbedo enquanto me encontrava de serviço... tecnicamente, eu estava, percebes... Ser uma influência desordeira. Raios, nem sequer me lembro de tudo o que ele disse. Ouve, pareces mesmo estafada. Porque não procuras uma cama vazia e dormes durante uma ou duas horas? Eu vigio o Toby. O Frank nem sequer saberá que estou no hospital. E, mesmo que venha a descobrir, não fará nada. O Owen está tão assustado com a hipótese de ficar sozinho que não permite que vás descansar. Falaremos mais tarde, depois de mandarmos a criança para Bóston.

‑ Não, Zack. Eu estou bem. A sério ‑ disse ela. ‑ Mas, Zack, não podemos deixar que ele faça isto.

‑ Tu não compreendes. Isto não é um hospital como o que nos ensinaram. É uma praça de mercadorias que contrata médicos, enfermeiras e técnicos. E o Frank é o presidente dessa companhia; pelo menos, aqui em Sterling. Ele contrata e pode despedir. Excepto alguém como o Guy Beaulieu. No caso do Guy Beaulieu, o Frank não quis desafiar as ameaças dele e, por isso, decidiu tentar destruir o homem através de boatos e maquinações. Admitiu ser responsável por tudo isso.

‑A ti?

‑ Já me tinha despedido. De que é que tinha de ter medo? Na verdade, ele estava a gabar‑se quando me disse.

Suzanne sentou‑se no sofá.

‑ Oh, Zack ‑ foi tudo o que conseguiu dizer.

‑ Ouve, Suze, este problema é meu e hei‑de conseguir resolvê‑lo.

‑ Não ‑ disse ela, subitamente.

‑ O quê?

‑ Não, o problema não é teu, ou pelo menos não é só teu. É de todos nós. Do corpo clínico, quero dizer. Vamos lutar contra isto.

‑ Não quero que mais ninguém se magoe porque...

‑ Não, presta atenção. Há anos, pelo menos desde que aqui estou, que os médicos deste hospital agem como... como avestruzes. Não é a primeira vez que surge um problema entre o Frank ou o Don Norman e os médicos do corpo, Zack. Não é a primeira vez que um de nós choca com as regras daqui e é posto na rua. Não te lembras do que o Wil Marshfield disse naquela primeira noite? E eu tenho sido tão avestruz quanto todos os outros; tão grata por sair dos problemas em que me encontrava, que virei as costas a um sem‑número de decisões da empresa que talvez não tivessem ido ao encontro dos interesses dos nossos doentes. Não me senti suficientemente comprometida com nenhum assunto para fazer ondas. Mas, raios, agora sinto‑me comprometida.

‑ Suzanne, não quero que tu...


‑ Por favor. Tiveste a coragem de regressar e enfrentar o touro. E agora, raios, vou tratar de fazer com que o corpo clínico te apoie. Está na hora de defendermos esta comunidade, defendermos os nossos...

Ela levantou‑se e pegou nas mãos de Zack.

‑ Zack, espera aqui. Por favor. Fá‑lo por todos nós. Se eu conseguir que formemos uma frente unida, tenho a certeza que o corpo clínico consegue enfrentar a corporação. E se não conseguirmos que a Ultramed nos oiça, então... levamos o nosso caso á comunidade.

‑ Achas que consegues fazer isso? ‑ perguntou ele.

‑ Sou mais dura do que pareço.

Ele tocou‑lhe no queixo.

‑ Isso não é dizer muito, como sabes.

‑ Bem, então espera e verás. Consegues aguentar bem o calor?

‑ Suzanne, eu não quero sair daqui. Não te quero deixar.

‑ Então, está bem. Está decidido. Assim que terminar as minhas consultas vou começar a torcer alguns braços.

‑ Não vai ser fácil.

Ela beijou‑o levemente.

‑ Não vai ser tão difícil como pensas. Escuta, eu tenho de voltar lá para dentro. O que é que vais fazer neste momento?

‑ Acho que vou tentar ver o meu pai. Ele recusou ver‑me esta manhã, mas acho que vale a pena tentar mais uma vez. Mais logo, estava a pensar aparecer na reunião, mas o Frank prometeu ter os guardas da segurança prontos para me agarrarem, caso eu apareça.

‑ Maldito seja ele. Zack, acho que o teu irmão e eu temos de ter uma pequena troca de palavras.

‑ Farias isso?

‑ Faria e farei. Tenho demasiados amigos por aqui e dou muito a ganhar a este estabelecimento, para ele não me dar ouvidos. Tu tens de ser forte... Meu Deus, Zachary, sabe tão bem perceber que de um momento para o outro eu já não tenho medo.

‑ Tinhas medo da corporação?

‑ Não ‑ respondeu ela, beijando‑o de novo. ‑ De ti.


 

Breves anotações operatórias (anotações completas, ditadas): Golpe de dez centímetros sobre T‑l0, 11 e 12 desbridados... hemostasia atingida... ferida explorada... pedaço de metal enferrujado e dentado, de cinco por três centímetros, removido sem dificuldade... dura‑máter parece intacta... não se notou sangue acumulado... ferida irrigada copiosamente e fechada com drenagem no local. Doente enviado para sala de recuperação em condição estável, ainda incapaz de mover os dois membros inferiores. Profilaxia do tétano e antibiótica iniciada. Impressão pré‑operatória: corpo estranho, parte inferior das costas; impressão pós‑operatória: o mesmo, mais paraplegia ‑ etiologia incerta, possivelmente secundária a ruptura da medula espinal ou impedimento circulatório...

 

Sentado num dos lados do posto de enfermagem, Zack leu e releu a descrição da operação do pai e, através da concisa anotação do progresso de John Burris e outras duas anotações das enfermeiras, confirmou que tinha havido muito poucas alterações no estado do juiz desde a operação.

Dura‑máter intacta... nenhuma acumulação de sangue.

Zack começou a morder a extremidade da caneta, enquanto olhava pela janela para o Presídentíal Range. Algo não estava a funcionar. Os sintomas do juiz pareciam desproporcionados em relação à extensão da lesão ‑ muito desproporcionados. As peças do seu puzzle clínico simplesmente não se encaixavam umas nas outras.

Meras forças a lançar fibras na medula, espasmo arterial

com interrupção suficiente do fornecimento sanguíneo para causar lesão no nervo ‑ havia umas quantas explicações lógicas para a paraplegia do juiz, mas nenhuma delas se ajustava inteiramente.

Numa das extremidades do balcão de fórmica, encontrava‑se um pequeno tabuleiro de plástico com canetas e lápis, assim como um estetoscópio e várias outras peças de equipamento médico. Zack meteu no bolso um oftalmoscópio, um martelo de reflexos e um alfinete e dirigiu‑se ao quarto do pai.

Não é que ele duvidasse das descobertas e da opinião de Burris, raciocinou ele, mas só que... que um médico era ensinado a não confiar completamente nas descobertas ou conclusões de ninguém, a não ser nas suas próprias.

Agora, se ele conseguisse que o juiz lhe permitisse aproximar‑se o suficiente para fazer um exame...

 

Cinnie Iverson estava sentada numa cadeira baixa e de costas duras, que havia no corredor junto ao quarto do marido. Como sempre, estava imaculadamente vestida ‑ nesse dia trazia um vestido azul liso, com um casaco de malha branco colocado sobre os ombros. O báton e a grande quantidade de rouge não conseguiam disfarçar completamente a sua palidez. O seu eterno lenço de renda estava metido no punho, em forma de bola.

‑ Olá, mãe ‑ cumprimentou Zack, quando se aproximou. Ela levantou‑se e deixou que ele lhe desse um beijo na face. A expressão era fria, mas não de zanga, o que significava que era tão reprovadora como Zack nunca imaginara que pudesse ser.

‑ Como é que ele está? ‑ perguntou.


‑ A enfermeira está a dar‑lhe um banho na cama.

‑ Alguma alteração?

Cinnie Iverson mordeu o lábio inferior e abanou a cabeça.

‑ Mãe, eu... lamento que isto tenha acontecido. Não imagina como me sinto mal.

‑ Tenho a certeza que te sentes ‑ respondeu calmamente. - Todos nos sentimos... ‑ Hesitou e depois continuou: ‑ Zachary, tenho a certeza que, com o tempo, acabarei por ver as coisas com mais benevolência, mas neste momento, com o juiz ali deitado daquela maneira, terás de me perdoar se...

‑ Eu compreendo ‑ interrompeu ele. ‑ Só quero que saiba o mesmo que vim aqui acima dizer‑lhe a ele, ou seja, que eu apenas estava a tentar fazer o que julguei ser certo.

‑ Eu acredito. Mas não penso que ele queira falar contigo ‑ acrescentou ela. ‑ Está muito aborrecido... com todos. E está muito deprimido.

‑ Ele não tem de falar, mãe. Só tem de ouvir. Quem mandou as flores?

Zack indicou com a cabeça o enorme vaso de lírios, orquídeas e aves‑do‑paraíso que calculou ter custado cento e cinquenta dólares... ou talvez mais.

‑ Acabou de ser enviado pelo Frank ‑ disse ela. ‑ Não sei se sabes, mas deves ao teu irmão um grande obrigado. Ele foi muito prestável ao manter‑nos a todos sob controlo, ontem à noite. Bastante prestável.

- agradecer‑lhe‑ei assim que puder, mãe.

‑ Não sei o que poderiamos ter feito sem ele. ‑ Limpou o canto do olho ao lenço.

‑ Eu compreendo ‑ disse Zack, combatendo uma onda de fúria.

‑ Só desejava que a Lisette estivesse também cá. Pelo menos assim, eu saberia que ele estava a tomar uma refeição decente de vez em quando.

‑ Ele falou‑lhe da Lisette?

‑ Disse‑me que ela e as miúdas estão na Virgínia a visitar uma sua velha amiga, se é a isso que te referes.

‑ Claro, mãe ‑ disse Zack através de dentes quase cerrados. ‑ É a isso que me refiro.

Nesse momento, a enfermeira de serviço particular, uma mulher gorda, de braços com gordura pendurada e tornozelos grossos, empurrou o carrinho para fora do quarto.

‑ Ele já está pronto, querida ‑ disse ela. ‑ Peço desculpa por ter demorado tanto, mas o seu marido é um homem muito grande... ‑ Olhou desconfiada para Zack. ‑ Nada de visitas por enquanto, doutor ‑ disse ela. ‑ Lamento.

‑ Mãe, preciso de entrar para conversar com o juiz.

Cinnie levou um instante a avaliar o pedido.

‑ Está tudo bem, Mistress Caulkins ‑ disse. ‑ Eu cuido das coisas. Vá fazer o que tem a fazer. ‑ Esperou até a mulher desaparecer. ‑ Zachary, vou perguntar ao pai se aceita a visita, mas não espero que a resposta seja afirmativa.

‑ Mãe, é importante, mesmo muito importante que eu fale com ele.

Ela hesitou.

‑ Mãe, por favor...

‑ Não vais dizer nada que o aborreça?

‑ Prometo.


‑ Então, acho que deves ser autorizado a entrar e dizer o que pretendes.

‑ Mãe, obrigado.

‑Zachary... ‑ Continuou a enrolar o lenço nas mãos. - Eu sei que não quiseste que as coisas resultassem desta maneira.

‑ Exacto, mãe ‑ respondeu, sabendo que ela não notaria o que ele sentia: a ironia triste da sua voz. ‑ Garanto que não quis.

 

O sol desmaiado a entrar através das persianas quase fechadas, fornecia a única iluminação do quarto. O juiz, vestindo um pijama azul do hospital, estava deitado de costas, a olhar para o tecto. Tinha um tubo intravenoso ligado a um dos braços.

‑ Olá, juiz ‑ cumprimentou Zack.

Clayton Iverson olhou para ele e depois desviou os olhos.

‑ Tem dores?

Não houve resposta.

‑ Juiz, não dói nada falar comigo. Pode crer que não... Está bem, faça como quiser.

Zack compreendeu que talvez tivesse sido um erro ter lá ido. Já não bastava ir contra a vontade do homem para garantir um tratamento silencioso, quanto mais ir contra os seus desejos e obter resultados tão desastrosos. Ele lembrou‑se que o juiz conseguia ser tão petulante e inflexível quanto Frank.

Zack deu meia volta para sair, mas subitamente parou. Tinha coisas que precisava deitar fora ‑ se não pelo seu pai, então por ele.

‑ Está bem, juiz, não precisa de dizer uma palavra. Eu não vou demorar. Quero apenas dizer‑lhe que me sinto muito mal com o modo como as coisas evoluiram. Só fiz o que gastei tantos anos a aprender a fazer... a utilizar o meu critério e a tentar fazer o meu melhor.

Puxou uma cadeira enquanto falava e sentou‑se perto da mão do pai. O juiz continuou a olhar para o tecto.

‑ Critério, pai... é nisso que também tem de se apoiar, agora que penso nele. Talvez com o tempo, isso o ajude a compreender o dilema que eu vivi...

"Juiz, o senhor é o meu pai. Eu amo‑o por isso, pelas coisas que fez por mim, pela pessoa bondosa que me ajudou a ser. Eu nunca gostaria de o ver a sofrer. Nunca. Acredito honestamente que, se fosse necessário, daria a minha vida para o proteger. Mas esta é a minha vida...

"Seja como for, acho que o que realmente quero que saiba é que, embora lamente o modo como as coisas evoluiram e dada a informação com a qual tive de trabalhar ontem à noite, se voltasse a surgir uma situação idêntica, eu tomaria as mesmas decisões. É esse o tipo de pessoa que os meus pais me ensinaram a ser e o tipo de cirurgião que estudei para ser. Vim cá acima pedir a sua compreensão e não a sua absolvição.

Fez uma pausa, á espera de algum tipo de resposta. Não houve nenhuma. Nesse momento, decidiu não dizer nada do que se passara com Frank. De uma maneira ou de outra, o juiz em breve teria conhecimento, mas este não era o momento para atacar o mito do seu filho guarda‑redes.


‑ Muito bem, então ‑ disse. ‑ Acho que é tudo. ‑ Levantou‑se. ‑ Oh, excepto por uma questão. Eu vou à reunião de hoje para apresentar aos directores o caso do Guy. Não espero influenciar muitos votos, mas acho que o Guy tinha razão. Acho que temos de ponderar muito bem naquilo que estamos dispostos a entregar em troca de algumas peças de equipamento brilhante e tinta preta na última linha. Assim, se pudesse dizer‑me somente onde está a pasta dele, eu...

‑ Desapareceu ‑ disse Clayton Iverson em tom categórico, sem olhar para o filho.

‑O quê?

‑ Disse que a pasta desapareceu. Eu... entreguei‑a aos tipos da Ultramed para a examinarem. Está com eles. Agora,

porfavor, sai.

Zack suspirou.

‑ O senhor realmente sofreu uma grande mudança de sentimentos, pai ‑ afirmou ele.

‑ Pedi para saíres.

‑Já vou. Eu já vou.

Quando se virou, a mão de Zack roçou contra os instrumentos que tinha no bolso. Hesitou, avançou vários passos em direcção à porta e depois virou‑se para trás.

‑ Juiz, eu sei que me quer daqui para fora ‑ disse ‑ mas... mas, se me permitir, gostaria de lhe fazer dois exames antes de sair.

A medo, regressou para junto da cabeceira, à espera de ouvir um grito. Não aconteceu nada. Levantou o lençol para destapar os pés do pai.

‑ Obrigado, pai ‑ murmurou, examinando com a ponta dos dedos a tonicidade do músculo da barriga de uma das pernas. ‑ Obrigado por confiar assim tanto em mim. Isto só levará um minuto.

Na verdade, o exame de Zack, executado essencialmente com o toque e o martelo de reflexos, demorou pouco mais de cinco minutos. Em profundo silêncio, Clayton Iverson viu‑o a trabalhar, embora tivesse um brilho de curiosidade nos olhos.

Assim que Zack terminou e se deixou cair num canto da cama, abalado e mentalmente esgotado, as peças soltas do puzzle clínico tinham sido afastadas e reorganizadas num padrão bastante estranho.

- Mãe, não se importa de vir aqui, por favor? ‑ chamou, depois de se ter acalmado. ‑ Há uma coisa que quero dizer aos dois ao mesmo tempo.

Cinnie Iverson entrou, sentou‑se na cadeira ao lado do juiz e pegou‑lhe na mão.

Zack começou a andar de um lado para o outro, escolhendo cuidadosamente as palavras, subitamente temendo que o tendão e a actividade muscular que ele detectara, de modo algum fossem verdadeiros indicadores neurológicos mas apenas os fantasmas das suas próprias esperanças.

‑ Juiz, mãe ‑ começou ‑, algum de vós já ouviu falar do distúrbio de conversão?

Cinnie Iverson abanou a cabeça. Clayton não se mexeu.

‑ Há também quem lhe chame histeria, mas eu nunca gostei dessa expressão porque a histeria implica loucura, e um distúrbio de conversão é muito mais uma concentração de energia emocional, intensa e involuntária, do que qualquer coisa louca.

‑ Zachary, o que é que estás a dizer? ‑ perguntou Cinnie.

‑ Estou a dizer que, quando há uma lesão na medula espinal, existem alguns reflexos que desaparecem e outros que aparecem. O padrão que encontro agora não coincide com isso.


‑ Não sei se compreendo.

‑ Juiz, sei que talvez isto não faça muito sentido para si neste momento, mas consegui captar sinais, sinais razoavelmente fortes, de que a sua paralisia pode dever‑se a factores que nada têm a ver com uma lesão na medula espinal: factores emocionais.

‑ Factores emocionais?

Cinnie pareceu incrédula. O juiz não mostrou qualquer reacção.

‑ Sei que parece impossível ‑ disse Zack ‑, mas podem crer que não é. Acontece muitas vezes. Um dos meus primeiros casos de neurologia foi um homem que sofria de cegueira psicologicamente induzida. Não havia absolutamente nenhum problema nos olhos e, no entanto, ele não conseguia ver mesmo nada. Na verdade, depois de fazer hipnoterapia, recuperou uma grande parte da visão.

"Os ataques cardíacos em personalidades do Tipo A, as úlceras gástricas em situações de tensão extrema... as nossas emoções têm poder sobre todos os órgãos do nosso corpo. Existe mesmo uma situação bem documentada, chamada pseudociese, na qual uma mulher que anseia desesperadamente ficar grávida deixa de ser menstruada, os seus seios aumentam de volume e o abdómen dilata. Só com uma análise, ecografia ou radiografia, é que se consegue provar que ela não está grávida.

‑ E achas que o teu pai pode estar a sofrer de um destes... qual é o nome?

‑ Distúrbios de conversão. Sim, mãe, acho. Juiz, os seus exames neurológicos simplesmente não se ajustam a nenhuma outra explicação.

O juiz desviou o olhar.

‑ Mas porquê? ‑ perguntou Cinnie. Zack encolheu os ombros.

‑ Não tenho a certeza ‑ disse. ‑ A fúria que sente

contra mim é a causa mais provável. Julgo que existem outros factores que também podem estar em causa: medo, desgosto, culpa. O senhor pode preencher os espaços em branco, juiz. Mas seja o que for, é algo muito poderoso. Neste momento, talvez nem o senhor saiba. Muitas vezes, contudo, assim que a causa da conversão é identificada, os sintomas começam a desaparecer.

‑ Tens a certeza disso? ‑ perguntou Cinnie.

‑ Não, mãe, não tenho. Só que os outros diagnósticos

não coincidem com as descobertas cirúrgicas e o quadro clínico do pai, mas o distúrbio de conversão sim. Eu posso estar errado. Tudo o que posso fazer é esperar que não esteja e dizer‑lhes o que penso.

‑ Clayton? ‑ perguntou ela.

O juiz, de lábios apertados, não quis responder.

‑ Zachary ‑ disse ela ‑, agora talvez seja melhor ires. Podemos voltar a falar disto muito em breve. ‑ Ela levantou‑se e deu‑lhe um beijo na face, a sua expressão implorando para que os deixasse sozinhos e que lhes desse a oportunidade de digerir o que ele acabara de dizer.

‑ Claro que sim ‑ afirmou ele. ‑ A que horas chega a ambulância?

‑ Penso que a qualquer momento.

‑óptimo... Pai, eu... ‑ Olhou para o rosto pálido e sem emoção do pai. ‑ Pensarei em vocês dois.


Quando se aproximou da porta, Zack verificou se o irmão ou um guarda da segurança não se encontravam no corredor e dirigiu‑se a um quarto no extremo oposto. Se, tal como parecia, o tempo estava a esgotar‑se dentro das paredes do Ultramed‑Davis, utilizaria o pouco que lhe sobrava para fazer uma última tentativa para resolver um puzzle clínico que não era menos complexo do que o do seu pai e muito mais fatal.

 

‑ Eu sabia ‑ disse Barbara Nelrus, quando Zack acabou de contar a sua entrevista com o filho e as teorias que desenvolvera com base nesta. ‑ O senhor não sabe mentir muito bem, doutor Iverson. Eu consegui vê‑lo nos seus olhos, naquela noite no consultório. Raios, devia ter‑lhe chamado a atenção para isso. Sabe, esconder as coisas assim de mim foi algo muito cruel.

‑ Eu sei e peço desculpa. Mas não tinha qualquer prova.

‑ Doutor Iverson. O Toby é meu filho.

‑ Eu compreendo.

Barbara estava deitada na cama do hospital, com várias almofadas nas costas. O braço direito estava enfiado num suporte e o esquerdo estava preso a um tubo intravenoso que lhe fornecia um antibiótico potente. Apesar da palidez e das sombras escuras que envolviam os olhos, o olhar dela era penetrante.

‑ Não sei bem se compreende, doutor Iverson ‑ disse, depois de pensar alguns instantes. ‑ Mas estou disposta a dar‑lhe o beneficio da dúvida, pelo menos por agora.

‑ Obrigado.

‑ Disse que escondeu informações de mim e do meu marido porque não tinha provas para as suas teorias. Poderei concluir que a situação mudou?

Zack hesitou.

‑ Doutor Iverson, por favor ‑ pediu ela. ‑ Não tente mentir‑me de novo. Ontem, o meu filho quase me matou à facada, sem sequer perceber que eu estava ali.

‑ Pronto ‑ disse ele. ‑ Está bem. A verdade é que, no pé em que as coisas se encontram, não tenho nenhuma prova concreta. Mas as provas circunstanciais que apoiam a minha suspeita são bastante fortes, pelo menos para mim.

‑ Conte‑me.

Zack relatou as impressões que tinha dos casos de vesícula de Pearl e Mainwaring e resumiu a conversa que tivera com Tarberry, do John Hopkins. Ele notou a fúria a acumular‑se nos olhos de Barbara Nelrus. A seu tempo, quer Toby sobrevivesse ou não, ela vingar‑se‑ia. E, embora um dia aquela ideia fosse a razão por que ele lhe tinha mentido, agora fazia‑o partilhar com ela todos os pormenores. Frank tivera a oportunidade de limpar a casa, mas ignorara‑a.

‑ Não a culpo nem um pouco por ser céptica ‑ disse Zack, quando terminou a história ‑, mas é assim que vejo as coisas.

‑ Doutor Iverson ‑ respondeu Barbara Nelrus, mal conseguindo conter a fúria ‑, desde que este pesadelo começou, esta é a primeira vez que uma explicação se ajusta aos factos tal como eu os conheço. Acredito em todas as palavras que me disse. Todas as palavras.


Ela virou‑se e olhou para a janela. Apoiado na borda do suporte, o punho dela estava fechado. Lentamente, os dedos descontrairam‑se. A tensão no pescoço e nas costas diminuiu. Quando tornou a virar‑se para Zack, a fúria fora substituida pela determinação.

‑ E então, doutor Iverson ‑ perguntou ela ‑, o que posso fazer para salvar o meu filho?

Zack esperou um instante para arrumar as ideias.

‑ Bem, em primeiro lugar ‑ disse por fim ‑, ajudaria bastante se conseguissemos descobrir qual é o disparador.

‑ Quer dizer, aquilo que faz com que o Toby fique descontrolado?

‑ Exactamente.

‑ Mas como?

‑ Quero que feche os olhos, se deite, oiça a minha voz e comece a contar‑me tudo o que se lembrar dos ataques do Toby. Tudo, por mais trivial que possa parecer.

‑ Vai hipnotizar‑me?

‑ Posso fazê‑lo e fá‑lo‑ei, se for caso para isso. Mas acho que tudo o que precisa é de um pouco de ajuda. Agora, descontraia‑se o mais que puder, abra a mente e deixe‑a recuar até ao primeiro ataque do Toby

‑Ele... estava de pijama...

‑ óptimo. Continue.

‑ Foi antes da hora de dormir... Ele estava a brincar...

‑ A brincar com quê?

- não me lembro.

‑ Ele estava no quarto dele?

‑Sim... Não, não, espere. Ele acabou no quarto dele, mas acho que não começou ali. Ele... estava na sala de estar. Estava a ver televisão. Sim, exacto. Foi isso mesmo.

‑ óptimo. Muito bem. Agora, o que é que ele estava a ver?

‑ O programa?

‑ Sim.

- não me lembro.

‑ Descontraia‑se, Barbara. Está a ir muito bem... Agora, concentre‑se naquela noite e pense no que ele podia estar a ver... Veja... Descontraia‑se, concentre‑se e veja...

Os músculos do rosto de Barbara Nelrus ficaram flácidos. A respiração tornou‑se mais profunda e regular.

‑ Muito bem ‑ murmurou Zack. ‑ óptimo.

As palavras de Zack originaram um estranho e enigmático sorriso na boca de Barbara.

‑ Sei o que ele estava a ver ‑ disse ela. ‑ De cada vez, eu sei o que ele estava a ver...


 

Zack percorreu o corredor quase a correr, hesitando somente para espreitar para dentro do quarto do pai. A cama estava vazia e uma empregada da limpeza estava a lavar a capa de plástico do colchão. Ele abriu a porta das escadas e desceu para o primeiro andar.

Uma grande peça do puzzle tinha‑se encaixado no lugar, uma peça que, irrefutavelmente, ligava Toby Nelrus, Suzanne e Jason Mainwaring. Agora, Frank tinha de ouvir.

‑ O meu irmão está lá dentro? ‑ perguntou à recepcionista loura e espaventosa.

Annette Dolan olhou para ele intrigada.

‑ Está, mas...

‑ Obrigado ‑ agradeceu Zack, já a caminho da porta do gabinete de Frank.

Frank, sentado á secretária a trabalhar no computador, ergueu friamente os olhos.

‑ Tu já não trabalhas aqui ‑ disse.

‑ Frank, eu tenho de falar contigo. Acabei de saber uma coisa, algo muito importante.

‑ Mister Iverson, peço desculpa. Eu tentei impedi‑lo - disse Annette Dolan da entrada.

Frank fez‑lhe um sorriso sem emoção.

‑ Não faz mal, Annette ‑ disse. ‑ Sei como o meu irmão mais novo pode ser persistente. Tenho a certeza que fizeste tudo para o impedir. Contudo, antes de voltares ao trabalho, porque não vais para casa mudar essa camisola? Não é apropriada para o escritório.

A recepcionista hesitou um segundo, com o lábio inferior a tremer. Em seguida, deu meia volta e desapareceu.

‑ Vamos lá, então ‑ disse Frank, olhando para o relógio de pulso. ‑ O que raio pode ser assim tão importante para te impedir de arrumar as tuas coisas?

Zack avançou para se sentar, mas Frank impediu‑o levantando uma mão.

‑ Não tentes pôr‑te à vontade, rapaz ‑ disse. ‑ Diz apenas o que queres e sai. ‑ Apontou para o computador. ‑ Actualmente o número seis, Zack. Seis em quase duzentos administradores espalhados pelo país. Nada mal, devo dizer. Não, senhor, mesmo nada mal.

‑ Então, é melhor ouvires‑me, Frank, porque soube de uma coisa que pode deitar abaixo este estabelecimento, se não tomares qualquer previdência.

Não houve nada mais do que uma ponta de interesse.

‑ Sim?

‑ É aquela anestesia, Frank. Aquela da qual tentei falar‑te.

‑ Continua.

‑ Acabei de conversar com Mistress Nelrus, a mãe do rapaz que está na UCI.

‑ Sei quem ela é ‑ disse Frank.

‑ Bem, estava a rever com ela algumas das minhas preocupações e...

‑Tu o quê?

‑ Frank, acalma‑te e escuta.


‑ Não, tu é que vais escutar. Fazes ideia do prejuízo que essa mulher irá causar se lhe encheres a cabeça com todos esses teus disparates sobre experiências humanas?

‑ Frank, não são disparates. Está mesmo a acontecer e é melhor que me ajudes a fazer alguma coisa, ou este estabelecimento irá encher‑se de advogados, fiscais hospitalares e polícia. Garanto‑te.

‑ Não te atrevas a ameaçar‑me.

‑ Então, ouve‑me pelo amor de Deus. A vida da Suzanne pode estar a correr um grande risco, já para não falar do pobre do rapaz que está na UCI. Não temos muito tempo.

Frank brincou por instantes com um clipe, esticou‑o e depois partiu‑o ao meio.

‑ Está bem, mano ‑ disse por fim. ‑ Dou‑te cinco minutos.

‑ Eles andam a fazer experiências com qualquer coisa, Frank... O Mainwaring e o Pearl. Eles andam a brincar com um tipo qualquer de anestesia geral e julgam que funciona lindamente, só que não é assim. Os doentes parecem estar a dormir durante a operação e até julgam que estavam a dormir depois. Mas, a um determinado nível, logo abaixo da superficie consciente, eles estavam completamente acordados, a sentir tudo: o corte, o sangue, a dor, tudo.

- Rapaz, não acreditei em ti esta manhã e não acredito agora.

‑ Então, é melhor que o faças. Eu tenho provas.

‑Ah?

‑ E a música, Frank. Greensleeves, a música ao som da qual o Mainwaring opera.

‑ Que raio estás tu...

‑ O Mainwaring trabalha quase sempre ao som de uma determinada peça de música. É uma versão clássica do Greensieeves, tu conheces, a canção folclórica de...

‑ Conheço a música ‑ afirmou Frank, irritado.

‑ Bem, segundo Mistress Nelrus, sempre que o filho teve um ataque estava a ver um programa infantil onde tocam essa melodia.

‑ É essa a tua prova?

‑ Há mais. Na semana passada, a Suzanne e eu estávamos juntos quando de repente ela ficou abstracta, completamente abstracta.

‑ E então?

‑ Frank, o rádio estava a tocar essa música. Assim que eu o desliguei, ela regressou de onde estava e continuou a conversar como se nada tivesse acontecido. Eu não dei muita importância ao que se tinha passado, até há pouco. Ela ia a caminho, Frank. Agora tenho a certeza de que, se eu tivesse deixado o rádio a tocar um pouco mais, ela teria tido um ataque igual ao do miúdo. Ela ia a caminho de reviver a operação ao seio, provavelmente de uma forma bizarra e distorcida, tal como o Toby reviveu várias vezes a operação à hérnia.

‑ Isso é ridículo.

‑           São factos, Frank. Escuta, tens de me ajudar a encontrar o Mainwaring, ou pelo menos ajudar‑me a tentar falar com o Pearl.

‑           Nem pensar nisso.

‑           Aquela criança está a morrer. Precisamos de saber o que é que eles lhe deram.

Frank pegou no telefone e discou um número.


‑ Chefe Clifford, fala Frank Iverson ‑ disse. ‑ A ordem de restrição que lhe pedi já está pronta?

‑ Meu Deus, Frank, tu és doido - disse Zack.

‑ Isso é óptimo. Então tem validade imediata?

‑ Vou dizer ao conselho de directores o que se passa aqui, Frank; aos directores e à Ultramed. Assim que encontrar o Mainwaring, eu vou...

‑ Chefe, pode fazer‑me o grande favor de mandar dois homens para cá? Ele está aqui e recusa‑se a sair...

‑ Raios, Frank.

‑ Obrigado, Cliff... Oh, ele vai melhorando conforme pode, dadas as circunstâncias. Agradeço que me tenha perguntado. John Burris, o neurocirurgião do Concord, transferiu‑o para lá...

‑ Frank, pelo amor de Deus...

‑ Se tudo correr bem, em breve teremos um novo neurocirurgião na cidade, para que não seja preciso mandar embora quem precisa da nossa ajuda... Exactamente. Bem, mais uma vez obrigado, Cliff. Daqui a quanto tempo poderei contar com os seus homens?... Excelente. Você sabe dirigir bem as operações, Cliff É o melhor... Pode crer. Agora, adeus.

Frank pousou o telefone com uma força exagerada.

‑ Tens cerca de três minutos para desapareceres do meu hospital ‑ disse ‑, e menos de um dia para desapareceres da nossa casa. Sugiro que vás para casa fazer as malas. E garanto‑te, se puseres um pé aqui dentro, ou disseres uma palavra a qualquer dos nossos doentes, ficarás metido em sarilhos bastante grandes. Percebeste?

‑ Frank, estás a cometer um grande erro...

‑ Já disse. Percebeste?

Sem responder, Zack dirigiu‑se á porta. Quando a abriu, viu um guarda da segurança do hospital ‑ ou algo do género, ainda maior do que o guarda Henry.

‑ Há um pequeno botão exactamente aqui em baixo ‑ explicou Frank, apontando para a base da secretária. ‑ Nunca tive de o usar até agora, mas foi bem empregue. Tommy, não se importa de fazer com que aqui o doutor Iverson seja posto imediatamente fora do hospital e dos terrenos do hospital?

‑Sim, senhor.

‑Nada de paragens.

‑ Sim, senhor.

‑ Não vai resultar, Frank ‑ disse Zack.

‑ Eu corro os meus riscos.

‑ E aquele miúdo?

‑ Aquele miúdo fica muito melhor com um médico que não se embebeda quando está de serviço, rapaz. Agora, vejo no relógio da lareira que os teus cinco minutos acabaram de expirar. - Olhou pela janela para a rua. ‑ Oh, e estão lá em baixo quatro amigos da polícia; chegaram mesmo a tempo.

‑ Tu és mesmo doido, Frank. És mesmo. - Frank fez um grande sorriso.

‑ Sim ‑ disse ‑, eu sei.

 

‑ Greensleeves.


Curioso, Frank procurou na gaveta da secretária a cassete que Mainwaring lhe oferecera e colocou‑a no reprodutor de cassetes. Era uma música xaroposa e sem energia ‑ certamente muito longe de ser algum tipo de arma mortífera. Estava claro que Zack tinha passado dos limites e tentado agarrar‑se a qualquer coisa, só para estragar a melhor hora do irmão.

‑ Nem pensar, Zack ‑ murmurou Frank. ‑ Nem pensar mesmo.

Tirou a cassete e ficou á janela a ver o irmão a ser conduzido até ao carro, acompanhado de dois policias e do guarda do hospital. Era uma cena que ele jamais esqueceria. Os dias dos troféus desportivos e medalhas de escola talvez fizessem parte do seu passado, mas este triunfo tinha um sabor muito idêntico.

Enquanto seguia com o olhar a amolgada carrinha cor de laranja de Zack a descer a montanha em direcção á cidade, Frank percebeu que o último obstáculo para conseguir atingir todas as metas estava prestes a desaparecer. Com o juiz fora do caminho e tendo Bourque concordado com uma votação secreta, a aquisição final do hospital pela Ultramed era um facto consumado. E com Zack fora do caminho, não havia mais nada que pudesse interferir na conclusão satisfatória dos seus negócios com Mainwaring.

Sentiu‑se ao mesmo tempo excitado e exausto. Fora um jogo brutal, mas com o tempo a esgotar‑se ele tinha conseguido defender uma arremetida bola enérgica, recuperando‑a para o chuto seguinte. Agora, só precisava de manter a bola segura e correr contra o tempo. Olhou para o relógio de pulso. Faltava menos de uma hora para a reunião dos directores. Lembrou a si mesmo que, por mais exausto que se sentisse, não era o momento para descansar.

‑ Pontas soltas... ‑ murmurou. ‑ Pontas soltas... pontas soltas...

Ligou para a sala dos guardas e ordenou que trouxessem mais um homem para patrulhar o exterior do hospital, não fosse o irmão tentar alguma estupidez. Em seguida, telefonou para dois membros do conselho de directores para lhes informar da votação secreta e cobrar favores que lhe deviam. Por último, ligou para Atlanta e ficou a saber que Mainwaring tinha ido para Nova Inglaterra na noite anterior e regressaria a Atlanta no dia seguinte. Perfeito, pensou. Se a informação da secretária estava correcta, Mainwaring tinha de estar a planear para essa tarde a conclusão da transacção.

Frank voltou a ver as horas. De momento, não podia fazer

mais nada senão esperar. Voltou a concentrar‑se na ligação com

a UltraMed ainda em linha. Em breve, talvez dentro de um dia, o seu código de acesso seria renovado para um equivalente a

director regional e ele passaria a poder saber algumas das informações mais delicadas da Ultramed.

Director regional, com uns bons três quartos de milhão de dólares no banco. Frank Iverson estava a um passo de conseguir um feito muito especial. Ao abandoná‑lo, Lisette cometera o maior erro da vida dela. Quando a poeira assentasse, ele teria tudo: a posição, o dinheiro, a casa e, que raio, também as filhas. Ela que esperasse para ver. Ele conseguira cuidar dos directores, tratara do irmão e também conseguiria tratar dela.

Só quando as batidas à porta se tornaram mais fortes é que Frank se apercebeu delas.

‑ Quem é, Annette? ‑ perguntou através do intercomunicador. ‑ Annette?

Não obteve resposta. Então, lembrou‑se que a tinha mandado para casa e amaldiçoou‑se por ter esquecido que a sua outra secretária estava de férias.


‑ Entre ‑ disse em voz alta. ‑ Por amor de Deus, pare de bater e entre.

Jason Mainwaring, com o seu vulgar fato bege à fazendeiro, entrou de mala na mão.

‑ Estamos com falta de auxiliares de escritório, não estamos? ‑ disse, dirigindo‑se directamente ao bar de Frank.

‑ Já me conheces, Jason. Corta a gordura em excesso. Corta tudo até ao osso.

Mainwaring passou os dedos pela brilhante superfície de mogno da secretária de Frank.

‑ Sim ‑ respondeu. ‑ Vejo essa filosofia a funcionar por todos os lados.

‑ Ainda há pouco liguei para Atlanta. A tua secretária disse‑me que contava com o teu regresso amanhã. Podes utilizar a tua casa durante mais alguns dias, se quiseres.

‑ Obrigado na mesma, mas já fiquei aqui cerca de dois longos anos. Já sabes quando chega o meu substituto?

‑ Em breve. Deve chegar na próxima quarta‑feira. - Frank procurou esconder a sua ansiedade. Sabia que Mainwaring queria o Serenil da mesma maneira que ele queria o milhão de Mainwaring. Se esta era a última discussão deles, maldito fosse se não deixasse o homem sair vitorioso. Dirigiu‑se à estante e serviu‑se de um copo de água tónica. Em seguida, pôs deliberadamente de parte a cassete de Greensleeves de Mainwaring, a qual tinha estado a ouvir, e no seu lugar colocou uma de Mantovani.

O cirurgião olhou, perplexo.

‑ Iverson ‑ disse ‑, estás a querer provocar‑me?

‑ Nem pouco mais ou menos, Jason. Apenas achei que, uma vez que este talvez seja o nosso último encontro, eu devia tentar fazer com que mudasses de opinião sobre o Mantovani. Este álbum chama‑se Roman Holiday. O que é que achas?,

‑ Acho que devíamos terminar este nosso negócio. É o que eu acho. ‑ Irritado, o cirurgião levantou‑se e parou a cassete.

Frank destrancou uma gaveta da secretária e retirou um envelope espesso.

‑ Aqui está, Jason ‑ afirmou. ‑ Assinado, autenticado e pronto para entrega.

‑ Tal como tínhamos estabelecido?

‑ Tu estavas presente.

‑ Então, muito bem... ‑ Mainwaring apoiou a mala no colo e abriu‑a. ‑ Os nossos químicos aprovaram o trabalho do doutor Pearl e a minha companhia autorizou pagar‑te a soma que tínhamos acordado.

‑Eque é?

‑ E que é a soma que tínhamos acordado. Iverson, não brinques comigo, ou juro que saio por aquela porta.

‑ Nesse caso, Jason, perderás também dois anos da tua vida.

Frank sentia‑se glorioso. Era o tipo de cena que vira o seu pai desempenhar várias vezes ao longo dos anos. Agora, havia um novo Iverson a puxar os cordéis ‑ um novo Iverson no topo do monte.

Mainwaring hesitou e depois colocou um envelope sobre a secretária.


‑ Barclay's Bank, Georgetown, ilhas Caimãs ‑ disse, um tanto aborrecido. ‑ Eles não te libertarão o dinheiro até receberem uma ordem minha. Mas, se tiveres dúvidas quanto aos números das contas, podes ligar para eles.

‑ Não será necessário, Jason. Eu confio em ti. Além disso, eu pedi ao meu homem do Cayman National Bank para transferir os fundos para contas de lá, assim que eu lhe disser. Assim, se quiseres verificar esses papéis, cada um de nós pode fazer a chamada.

‑ És de longe o homem mais desagradável com quem fiz negócios na vida, Iverson.

‑ Obrigado ‑ respondeu Frank. ‑ Vindo de ti, eu considero‑o como um elogio. Agora, se não te importas...

Entregou o telefone ao cirurgião, recostou‑se na cadeira o mais calmamente possível e esperou. Quando as chamadas terminaram, meteu na gaveta o envelope de Mainwaring e ficou a vê‑lo guardar na mala a escritura de venda e os direitos da patente do Serenil. Um milhão de dólares, pensava Frank. Só assim ‑ um milhão de dólares.

‑ Espero que isto signifique que estamos prestes a ver‑nos pela última vez ‑ disse Mainwaring.

‑ Sentiremos a tua falta, Jason ‑ respondeu Frank, carrancudo. ‑ Sem sombra de dúvida.

O cirurgião levantou‑se e apertou de uma forma desdenhosa a mão estendida de Frank. Em seguida, deu meia volta e desapareceu.

Frank foi à casa de banho, lavou o rosto e analisou‑se ao espelho.

‑ Engraçado ‑ disse, ajeitando a gravata e piscando um olho à sua própria imagem ‑, não tens ar de milionário.

 

- Juiz, o senhor é meu pai. Eu amo‑o por isso, pelas coisas que fez por mim... Se fosse necesssário, daria a minha vida para o proteger..

Deitado na maca, o juiz Clayton Iverson via a copa das árvores a passarem através das janelas de trás da ambulância, enquanto reflectia nas palavras do filho. Já tinham passado por Conway há cerca de cinco ou dez minutos, calculou ele; por isso, quase de certeza, já tinham saído da Rua 16 e iam para sudoeste na 25, em direcção a Moultonborough e à margem norte do lago Winnipesaukee. A seu lado, a paramédica, uma mulher com o cabelo à Annie e um rosto quase infantil, conversava com o motorista, interrompendo ocasionalmente para verificar a pulsação e a pressão arterial.

Tudo aquilo era doloroso, pensava o juiz; muito confuso. Num momento, ele estava no topo do mundo, no outro estava a atravessar a cidade para confrontar o filho mais velho com os factos da sua desonestidade e desfalque e com a realidade de que, mais uma vez, lhe tinham sido dadas todas as oportunidades e ele fracassara. E ainda mais lastimoso era que, na verdade, a perfidia de Frank tinha cortado o controlo da situação do Ultramed‑Davis ao conselho de directores, oferecendo‑o numa bandeja a Leigh Baron.

"...A paralisia pode dever‑se a factores que nada têm a ver com uma lesão na medula espinal... Culpa, medo, desgosto. Só o senhor pode preencher os espaços em branco, juiz.."


Não havia motivos para a culpa, percebeu desesperadamente o juiz. Beau Robillard não fizera nada de valor em toda a sua vida. Clayton Iverson fora eleito "Homem do Ano de Sterling" por seis vezes. Seis! Além do mais, se fosse por uma questão de culpa, esta devia cair sobre Frank e não nele. Se não fosse por causa de Frank, o acidente não teria ocorrido. Se não fosse por causa de Frank, ele não teria bebido nem haveria falhas de concentração ou semáforos vermelhos ignorados.

Dada a informação com que tive de trabalhar ontem à noite, se voltasse a surgir uma situação idêntica, eu tomaria as mesmas decisões...

Se não fosse por causa de Frank, Zachary nunca teria de se ver na posição de tomar uma decisão tão terrível. Pelo menos, Zachary tivera a coragem de o enfrentar ‑ de o enfrentar e manter‑se firme. Porque não tinha ainda apreciado melhor o filho mais novo? Explicações, mas nada de desculpas. Isso era próprio de um verdadeiro homem. Frank tivera sempre desculpas.

Agora, por causa de Frank, a Ultramed teria sempre o controlo do Davis e, juntamente com esse controlo, uma influência em Sterling tão grande que até mesmo Clayton Iverson seria incapaz de quebrar.

Não fazia sentido continuar a chorar sobre o leite derramado que fora Beau Robillard. Para começar, esse leite já estava azedo. Mas o hospital era uma história diferente. John Burris dissera‑lhe que estava fora de questão assistir à reunião dos directores e, na verdade, ele quisera estar o mais longe possível de ambos os filhos. Mas agora...

Se pelo menos não se sentisse tão indefeso. Se pelo menos conseguisse mexer‑se...

‑ Juiz Iverson ‑ disse a paramédica.

‑Sim, o que deseja?

‑ Senhor, acabou de cruzar as pernas.

‑O quê?

Clayton Iverson olhou para os pés. Estavam de facto cruzados ‑ o tornozelo esquerdo sobre o direito. Suavemente, ele levantou a perna superior e apoiou‑a na maca. Em seguida, levantou a outra. A sua pulsação começou a acelerar.

- Que horas são? ‑ perguntou.

- Onze, senhor.

- Onde estamos?

- Logo a seguir a Moultonborough.

- Peça ao motorista para voltar para trás.

- Como?

- Volte para trás, raios. Volte para trás. Tenho de regressar ao hospital.

- Senhor, não podemos...

- Sabem quem eu sou?... Então, muito bem, mandei voltar para trás. Não tenho tempo para discutir. Eu pago esta ambulância e, garanto, se não fizerem o que digo, vocês os dois terão de pagar muito caro!

‑Mas...

‑Já!

- Sim, senhor.

A mulher ajoelhou‑se ao lado do motorista e, após uma breve troca de olhares, a ambulância foi para a berma e inverteu a marcha.

‑ Utilize as luzes e a sirene e acelere ‑ disse o juiz.

‑ Mas, senhor, não nos é permitido...

‑ A sirene, raios! Garanto‑vos que nada de mal acontecerá se o fizer, mas tudo de mal irá acontecer se não o fizer. Rápido, vamos embora.


O motorista hesitou e depois acendeu as luzes, ligou a sirene e acelerou.

Atrás dele, o juiz Clayton Iverson cruzava e descruzava as pernas vezes sem conta.

- Bem, diabos me levem - murmurou. - Diabos me levem.


 

Pouco depois de ter visto no consultório o primeiro grupo de doentes da manhã, Suzanne pediu à enfermeira para adiar o maior número possível das restantes consultas. O aspecto mais negativo da prática privada talvez residisse no facto de os doentes diurnos não poderem ajustar‑se à possibilidade de o seu médico ter passado parte ou toda a noite anterior acordado. E na verdade, era pouco provável que a maioria deles quisesse tentar. Tinham esperado dias, ou mesmo semanas para a consulta e esperavam ‑ e mereciam, na opinião de Suzanne que o seu médico fosse cem por cento deles durante o curto espaço de tempo que passavam juntos.

Em geral, mesmo depois de uma noite extenuante, ela conseguia reunir forças para as suas consultas. Nessa manhã, contudo, por mais que tentasse, pura e simplesmente, não conseguia concentrar‑se. Uma mulher de setenta e cinco anos, que estava a tomar o dobro da dose prescrita de digital, quase escorregara ao passar por ela. Uma dona de casa ficara aborrecida com ela por parecer não dar grande importância às suas queixas de fadiga. Uma farmácia telefonara‑lhe por se ter esquecido de escrever numa receita a dosagem de um medicamento cardíaco.

E ela sabia que as suas dificuldades não se deviam apenas à fadiga. Uma criança por quem era responsável e o homem por quem estava a apaixonar‑se encontravam‑se em grandes sarilhos. O seu pensamento não parava de saltar de um para o outro. Já tinha ligado duas vezes para a unidade a fim de confirmar o estado de Toby, apesar de saber que seria contactada por Owen Walsh ou pelas enfermeiras ao primeiro sinal de perigo. Por duas vezes interrompera o dia de trabalho de alguns membros do corpo clínico, a fim de indagar o que pensavam de um certo tipo de acção laboral, caso Frank recusasse retirar a demissão de Zack.

E acima das preocupações com Zack e Toby Nelrus, estava a sua crescente indignação pelo tratamento que aparentemente Guy Beaulieu recebera de Frank e a forte probabilidade de se efectuarem no hospital experiências químicas não autorizadas. Durante mais de dois anos, a gratidão por tê‑la salvo de Paul e das suas confusões legais fizeram com que não criticasse quaisquer decisões de Frank ou as políticas da Ultramed. Tinha chegado o momento de mudar de atitude.

Tocou a campainha para chamar a enfermeira.

- Janice, já conseguiu alterar as marcações?

- Está livre na próxima hora, doutora Cole ‑ respondeu a mulher. ‑ Ainda não consegui falar com Mister Braddock nem com aquele novo doente de Hanôver, mas vou continuar a tentar.

‑ Excelente. Ouça, eu estarei na unidade de cuidados intensivos ou no pager, se precisar de mim. Preciso de fazer algumas coisas.


Saiu do consultório e atravessou a passagem envidraçada que ligava a Clínica de Médicos e Cirurgiões ao hospital principal. A caminho da UCI, passou pela Sala de Conferências Carter. Duas empregadas da cozinha estavam ocupadas a dispor as mesas para a reunião do almoço ‑ compreendeu que era quase de certeza a reunião do conselho comunitário e dos dois tipos da Ultramed. Não havia melhor hora do que agora para confrontar Frank com as suas preocupações. Ele teria de ouvir e fazer algumas concessões importantes, ou de enfrentar o embaraço e o conflito de a ver apresentar essas apreensões na reunião.

A porta exterior do gabinete de Frank estava fechada. Suzanne abriu‑a e entrou para a área deserta da recepção.

‑ Está aí alguém? Frank? ‑ chamou, enquanto batia na porta interior. ‑ Sou a Suzanne Cole... Frank?

‑ Está aberta, Suzanne. ‑ Ficou admirada ao ouvir a voz dele no intercomunicador de uma das secretárias atrás de si. - Entra. ‑ Ela abriu a porta e ele saiu detrás da secretária.

‑ Muito bem ‑ disse, apertando‑lhe a mão. ‑ Esta é uma surpresa agradável.

‑ Obrigada, Frank. Peço desculpa por ter entrado desta maneira, mas preciso de falar contigo.

Ele olhou para o relógio.

‑ Com certeza, Suzanne, mas este não é o melhor momento. Sabes, tenho um assunto...

‑ Sei o que tens, Frank ‑ disse, ocupando uma das cadeiras de braços em madeira de carvalho, que estavam diante da secretária. ‑ Tens uma reunião com o conselho comunitário e os tipos da Ultramed. Antes de ires para a reunião, acho que deves ouvir o que tenho para dizer.

‑ Oh, tens algo para dizer.

A sua expressão alegre talvez tenha gelado um pouco.

‑ Sim. Mas primeiro quero saber porque é que despediste o Zachary.

‑ Porque faço sempre o que é melhor em defesa dos interesses do meu hospital, e livrar‑me de um desordeiro bêbedo foi claramente no melhor dos interesses para o hospital. Por falar nisso, queres tomar alguma coisa?

‑ Frank, escuta, por favor. Há dois anos, ajudaste‑me a sair de uma confusão. Sinto‑me grata pelo que fizeste e desde que vim para cá tenho dado o meu melhor para te apoiar.

‑ E eu agradeço, Suze. Tens sido fantástica. Vamos combinar uma coisa: assim que a reunião terminar, vamos os dois jantar á conta da Ultramed e conversar sobre um aumento do teu salário.

Suzanne sentiu que começava a irritar‑se.

‑ Não tentes comover‑me, Frank. Vim aqui esclarecer alguns assuntos; dar voz a algumas preocupações que o Zack partilhou comigo. E, Frank, se não consegues dar resposta a essas preocupações, eu pretendo ir expô‑las na reunião.

Lamento mas não posso permitir que o faças, pensava Frank, a examinar rapidamente as opções que tinha. Os votos para finalizar a venda quase de certeza já lá estavam, mas eram indecisos. E ainda mais preocupantes eram as cláusulas que os advogados da empresa de Mainwaring tinham obrigado a incluir no contrato e que requeriam represálias legais ou a devolução imediata do investimento, caso surgisse alguma decepção ou mesmo suspeita de decepção ‑ em relação às propriedades do Serenil.

- Não senhor, minha querida, - concluiu ele, - lamento mas não posso de modo algum permitir que o faças.

Ele apoiou os cotovelos na secretária e o queixo nas mãos.

‑ Está bem, fala ‑ disse ele.

‑ Está melhor assim. Bem, tenho dois pedidos para os quais gostaria que me desses a tua palavra, Frank.


‑ Continua.

‑ Primeiro, quero que prometas que vais permitir que o corpo clínico determine se o Zack tem ou não sido desordeiro o suficiente para ser despedido do hospital.

- Feito - respondeu ele.

‑O quê?

‑ Tens a minha palavra. Logo que for possível, na próxima reunião de quarta‑feira se quiseres, apresentaremos os nossos casos ao corpo clínico e deixaremos que eles decidam. Satisfeita?

‑Acho... que sim.

‑ óptimo. E qual é o número dois?

‑ O número dois está relacionado com algumas preocupações que o Zack manifestou em relação ao Jason e ao Jack Pearl.

‑Ah, sim, a infame anestesia.

‑ Não acreditas nele?

‑ Claro que não acredito nele, Suzanne. Mas ando a investigar as suas alegações.

‑ Andas?

Frank não demonstrava nada ser o homem que Zack descrevera ter encontrado nessa manhã. E apesar de tudo, Suzanne sentiu mais uma vez uma onda de dúvida em relação ao que lhe tinha sido dito.

‑ Absolutamente ‑ dizia Frank. ‑ Já contactei os membros da comissão de ética médica, assim como o Jason e o Jack, e marquei uma reunião para o início da próxima semana. Liga para ele e confirma, se quiseres. Tenho todo o prazer em que tu e o meu irmão estejam presentes, se desejares.

‑ Desejo. E quanto ao Toby Nelrus?

‑ O que tem ele?

‑ Frank, se o que o Zack suspeita for verdade, essa criança talvez não aguente até ao início da próxima semana. Não há maneira de poderes conversar com o Jason e o Jack, só para o caso de surgirem problemas?

‑ O Jason está fora, mas, se isso te fizer sentir melhor, nós os dois podemos falar com o Jack, digamos, às cinco horas de hoje, aqui mesmo.

‑ Obrigada. Importas‑te que o Zack também esteja presente?

‑ Se assim o quiseres. Suzanne, és uma das melhores coisas que aconteceram neste estabelecimento. Farei tudo o que puder para te manter aqui e satisfeita. Mas agora, se me desculpares, há uma sala de reuniões a encher‑se de pessoas. Podemos combinar encontrar‑nos de novo às cinco horas.

Por essa altura, continuou a pensar, tenho a certeza que já tinha descoberto uma maneira mais definitiva de tratar tanto de ti como do meu irmão.

‑ Frank, agradeço‑te muito tudo isto ‑ disse, levantando‑se.

Nesse momento, inexplicavelmente, ela começou a sentir que algo estava errado... muito errado. Toda aquela sessão tinha corrido bem de mais. A diferença era muito acentuada entre o homem que Zack descrevera ao despedi‑lo e aquele que estava agora à sua frente.

‑ Ei, não tens de quê ‑ dizia Frank, com a mão estendida. ‑ Estou tão empenhado como tu em fazer deste o melhor estabelecimento possível.


Suzanne apertou‑lhe a mão e, durante alguns instantes, conservou‑a na sua. Tinha um toque pouco natural ‑ uma frieza, uma tensão.

‑ Frank, diz‑me só mais uma coisa ‑ pediu, soltando a mão mas mantendo os olhos fixos nos dele. ‑ Tu foste responsável por todos os boatos e histórias que circularam acerca do Guy?

Frank suportou o olhar sem pestanejar.

‑ Claro que não ‑ respondeu.

Nesse instante, Suzanne percebeu. A escuridão inflexível dos olhos, o ar sério do rosto... Era um olhar que já tinha enfrentado antes. Várias vezes. Era Paul!

‑ Frank, estás a mentir‑me, não estás? ‑ perguntou ela.

‑ Que disparate.

Procurou soar calmo, mas sob o fato de tecido leve ele começou a transpirar. De forma alguma, voltou a afirmar com maior intensidade, Suzanne Cole podia ir à reunião dos directores.

No fundo da gaveta da secretária estava um pequeno revólver. Cuidadosamente, Frank abriu a gaveta. Depois, parou. Se Zack tinha razão, havia uma maneira mais fácil, muito mais fácil mesmo, de controlar a situação. Com certeza valia a pena tentar.

‑ Suzanne, senta‑te, por favor ‑ disse calmamente, levantando‑se da cadeira.

Confusa, fez o que ele lhe pediu.

‑ Quero que ouças uma coisa.

‑ Está bem, mas não vejo em que...

‑Por favor.

- Está bem.

Ela seguiu‑o com os olhos enquanto ele se aproximava da aparelhagem estéreo, ligava o gravador e colocava a cassete que ouvira horas antes. Ao fim de algumas notas, ela reconheceu a música.

‑ Já alguma vez ouviste isto? ‑ perguntou Frank, regressando à secretária e abrindo mais um pouco a gaveta.

Suzanne não respondeu. Pelo contrário, começou a olhar para a enorme fotografia aérea do complexo hospitalar. As cores tornavam‑se cada vez mais intensas.

Levanta‑te!, gritava‑lhe a mente. Levanta‑te e foge!

As pernas não reagiam.

‑ Então, já ouviste? ‑ perguntou ele de novo.

A voz dele era retumbante e muda, o rosto torcido num estranho e divertido sorriso.

‑ Bem, diabos me levem ‑ ouviu‑o ela dizer.

Ela esfregou os olhos. Os sons do gabinete... a respiração de Frank e a sua própria deram lugar à música que se arrastava cada vez mais.

Então, ela ouviu a voz... lenta, paciente e animadora.

‑ Pronto, Suzanne, agora quero que contes para trás a partir de cem...

‑ Cem ‑ ouviu‑se a si própria dizer.

‑Continua... continua.

‑ Noventa e nove... noventa e oito...

O pijama azul que a cobria foi afastado, expondo os seios. Ela tremeu devido à nudez e ao frio súbito.

‑ Noventa e sete... noventa e seis...

‑ Já está, Jason.

‑ Excelente. Então, vamos começar.


‑ Não, Jason ‑ implorou ela, enquanto passavam uma anestesia castanho‑avermelhada sobre o peito. ‑ Por favor, espera. Ainda não actuou. A anestesia ainda não actuou.

‑ Aumentem a música um pouco. óptimo, está bem assim. Muito bem, bisturi.

‑ Não, esperem! Noventa e cinco!... Noventa e quatro!... Por favor, apressa‑te, por favor, actua.

Por cima da cabeça, a brilhante lâmpada em forma de disco acendeu‑se. Apareceram umas mãos enluvadas logo abaixo dos olhos azuis e assépticos de Mainwaring. Na mão direita via‑se um bisturi. Num torturante movimento lento, este desceu na direcção dela.

‑ Jason, não! ‑ gritou, quando a lâmina cortou a pele junto ao ombro, libertando uma mancha vermelha.

A dor intensificou‑se quando o bisturi começou a retirar um pequeno arco em redor da base do seio. Mas antes de poder gritar, colocaram‑lhe uma mordaça entre os dentes e apertaram‑na atrás da cabeça e, com a mesma força, prenderam‑lhe os braços aos lados do corpo.

Silenciosamente, a rezar para que caísse na inconsciência, Suzanne suportou a agonia da remoção cirúrgica do seu seio. E, quando a dissecação chegou ao fim, olhou para si própria completamente aterrorizada. Onde antigamente havia pele, tecido peitoral e um mamilo, via‑se agora apenas uma cratera profunda e cheia de sangue.

Nesse momento, a meio de um silencioso grito final, a escuridão interveio misericordiosamente.

 

Fascinado com o que estava a observar, Frank programou a aparelhagem para tocar Fantasia on Greensleeves em repetição automática e aumentou o volume. Pelo menos uma vez, o seu irmão tinha sido prestável.

Suzanne permaneceu deitada semiconsciente sobre o tapete, contorcendo‑se e estremecendo de vez em quando e gritando tanto quanto o lenço fortemente amarrado na sua boca lhe permitia. Frank soltou as mangas do casaco, que utilizara para amarrar os braços dela, e cortou uma toalha em tiras. Compreendeu que, provavelmente, seria desnecessário preocupar‑se em amarrá‑la. A xaroposa música de Mainwaring desempenhava tão bem o trabalho de a manter imobilizada quanto qualquer braçadeira. No entanto, pelo menos até ela poder ser retirada do hospital e enviada para uma casa de repouso segura ‑ e permanente ‑ valia a pena tomar precauções extra.

Rodou‑a de lado e atou‑lhe as mãos atrás das costas. Depois, voltou a rodá‑la e prendeu‑lhe os tornozelos. Os olhos continuavam fechados, mas os movimentos irrequietos aumentaram ‑ quase como reflexo da intensidade da música.

Frank ajoelhou‑se ao lado dela. Mesmo em circunstâncias tão dificeis, ela era uma verdadeira beleza. Cérebro e beleza

leigh Baron sem o olhar duro. Quando Suzanne viera para Sterling, ele fizera várias tentativas cuidadosas para iniciar uma relação entre eles. Educada mas firmemente, ela recusara sempre. Ficara furioso porque, ao fim de poucas semanas na cidade, o irmão já se metia dentro dos seus lençóis.

Pois que assim seja, pensou. Os dois mereciam‑se um ao outro.


E assim que a reunião terminasse, ele trataria de arranjar um lugar onde os dois ficassem eternamente juntos. Tinha tentado levar as coisas a bem, mas esse tipo de tratamento quase lhe explodira na cara. Eles tinham‑no obrigado a tirar as luvas e agora veriam que tipo de adversário Frank Iverson era realmente. Jogara sempre para vencer e agora havia muito mais coisas em jogo, até mesmo para pensar em recuar.

Baixou‑se e passou os dedos pelo rosto e depois pelos seios de Suzanne. Ela tinha realmente um corpo fenomenal. Fenomenal! Lisette, Suzanne... Zack era rancoroso o suficiente para planear meter‑se com as duas, se é que já não o tinha feito.

Nem pensar Zack, pensou Frank, enquanto arrastava Suzanne para a casa de banho e a colocava sobre o soalho molhado do compartimento do chuveiro. Nunca mais vais humilhar‑me dessa maneira.

Alisou o fato e penteou o cabelo. A música vibrava através das paredes de azulejo. Atrás dele, reflectida no espelho, Suzanne continuava a espernear convulsivamente.

Talvez, pensou Frank, depois da reunião e antes de preparar um acidente qualquer para ela e para o irmão, perdesse alguns minutos para gozar os favores que ela lhe tinha negado. Seria uma pena desperdiçar uma oportunidade como aquela.

Além disso, pensou, divertido, enquanto se via ao espelho e prestes a partir para a reunião dos directores, seria um crime desperdiçar uma música tão romântica.


 

‑ Desculpe, doutor Iverson, mas, como já lhe disse, Mister Iverson deu‑me instruções rigorosas para não passar nenhuma chamada sua para ninguém senão para ele.

‑ Mas tudo o que eu quero é que mande um bip à doutora Cole. Peça‑lhe para me telefonar.

Já tinha passado uma hora desde que Zack fora despedido e corrido do hospital onde ele esperara trabalhar para o resto da sua vida profissional. Com o carro‑patrulha a segui‑lo até à sua rua, conduzira até casa e tentara contactar Suzanne no consultório. Após alguns sinais de linha ocupada, ouvira uma gravação a dizer que o consultório estaria fechado até à uma. Tentou ligar para o seu próprio consultório, mas a linha já tinha sido desligada. Agora, depois de um infrutífero telefonema para a central telefónica do hospital e de uma chamada sem resposta para a casa de Suzanne, fazia a sua última tentativa com a operadora dos pagers.

‑ Compreendo o que me está a pedir, doutor ‑ disse a operadora.

‑ E se eu lhe disser que se trata de uma urgência médica, você não o faz?

‑ Mister Iverson foi muito específico.

‑ Como se chama?

‑ Janine.

‑ Muito bem, Janine, entendo que tenha recebido ordens, mas como é que Mister Iverson saberá se você passar somente esta chamada?

‑ Ficaria admirado com as coisas que Mister Iverson descobre, doutor. E se ele descobrir, eu perco o emprego. Agora, por favor, tenho de regressar á central.

‑ Janine, espere... Raios.

Zack desligou o telefone com força e voltou a pegar nele para fazer mais uma tentativa. Desta vez, parou antes mesmo de a telefonista atender. Frank tinha vedado o hospital de tal maneira que nem um simples telefonema seria passado. Para todos os efeitos, a decisão de renunciar a tratar do pai a favor do pária da cidade reduzira quase a zero a sua influência no Ultramed‑Davis.

Contudo, ele tinha de conseguir entrar no hospital e de dizer a Suzanne o que sabia do disparador e, esperou ele, conseguir a ajuda dela para confrontar Jack Pearl. Tinha desistido até de tentar falar na reunião dos directores. Frank mandá‑lo‑ia para a cadeia antes de conseguir aproximar‑se da porta. Mas Tobyl Nelrus era um assunto diferente. Sem a colaboração de Pearl, sem a sua vontade de admitir o que ele e Mainwaring andavam a fazer, tinha a certeza absoluta que para ele o rapaz era o mesmo que estar morto.

Talvez a chave fosse a reunião dos directores, começou ele a pensar. Com Frank dentro da sala de conferências e os guardas da segurança por ali, talvez houvesse alguma outra maneira não vigiada de entrar no hospital. Desenhou o edifício, o melhor que se lembrava. Tinha quase a certeza de que havia uma entrada para entregas perto do refeitório, uma entrada que tinha de estar aberta. Supondo que Suzanne estava na UCI, podia entrar no hospital através da cozinha e chegar à UCI pelas escadas das traseiras.


Verificou as horas. A reunião dos directores, se já não ia a meio, começaria a qualquer momento. Podia estacionar na auto‑estrada e seguir através do bosque até à entrada das entregas. Com ou sem policia, valia a pena tentar.

Prendeu Cheapdog à corrente, tirou a carrinha do estacionamento e desceu a montanha em direcção ao hospital, na esperança de que a hora da transferência de Toby para Bóston não tivesse sido alterada. Enquanto conduzia, imaginou o rapaz sentado de pernas cruzadas sobre o tapete da sua casa, a ver o seu herói favorito a saltitar pelo ecrã, pedindo‑lhe para se juntar a uma canção que louvava as virtudes da letra P.

Alas, meu amor, tu fazes‑me sofrer...

Quantos casos mais, Jack?, disse para consigo, treinando as palavras que empregaria. Quantas mais bombas‑relógio você e o Mainwaring plantaram nos vossos doentes?

O hospital situava‑se no lado da cidade oposto à casa de Zack. Normalmente, ele seguia pela estrada que dava para a rua principal. Hoje, perdido em pensamentos, falhou a curva e já se encontrava no centro da cidade quando se apercebeu. O trânsito estava mais intenso do que o habitual e, com base na longa fila de carros na esquina de Birch, parecia que o semáforo estava a funcionar mal. Depois de pensar um instante, recuou ligeiramente e inverteu a marcha, falhando por um triz um Oldsmobile de duas cores que passava por ali.

Só passados alguns segundos é que percebeu que o condutor do Oldsmobile era Jason Mainwaring.

Zack começou a buzinar e a acenar, mas só alguns quarteirões mais à frente é que Mainwaring se apercebeu e encostou. Confrontaram‑se num pequeno parque de berma, circunscrito por um arco de bancos de tábuas, dispostos em redor de um pedestal de mármore com o busto de um dos fundadores de Sterling. Estavam vários homens grisalhos sentados em dois dos bancos, a fumar cigarros, a ver o que se passava à sua volta e, ocasionalmente, a tomar um gole sorrateiro de um saco de papel pardo. Olharam curiosos para os dois homens bem vestidos que se aproximavam um do outro.

‑ Jason ‑ começou Zack, um tanto ofegante. ‑ Meu Deus, como estou satisfeito de o ver.

O cirurgião olhou para ele, intrigado.

‑ Desculpe, Iverson ‑ disse, após um instante ‑, mas apresentei a demissão ao Greg Ormesby. Se precisarem de conselhos cirúrgicos, lamento mas terão de...

‑ Isto não tem nada a ver com conselhos cirúrgicos. Jason, precisamos conversar. Há vários dias que ando a tentar localizá‑lo.

‑ Tenho estado em casa na...

‑ Jórgia. Eu sei. ‑ Olhou para os idosos e depois indicou o banco mais afastado deles. ‑ Por favor, Jason, o que preciso de conversar consigo é bastante urgente e muito particular. Podemos conversar ali?

‑ Bem, Iverson, estou com um pouco de pressa. Porque não nos reunimos, digamos...

‑ É sobre a anestesia.

As cores de Mainwaring fugiram.

‑ Como? ‑ perguntou ele.

‑ Vamos para ali? ‑ Zack voltou a indicar o banco.

Quando se sentaram, o cirurgião parecia tão composto como sempre.


- Vamos lá - disse ele. - De que anestesia está a falar? - A que você e o Jack Pearl têm utilizado nos vossos casos, Jason. A que permite que eles saiam da sala de recuperação três vezes mais depressa do que os casos dos outros cirurgiões.

‑ Lamento, mas não compreendo - afirmou Mainwaring.

Mas Zack percebeu no olhar que ele compreendia.

‑ Não tenho tempo para brincadeiras ‑ disse. ‑ Uma criança está a morrer e tenho razões, boas razões, para acreditar que a causa é a sua anestesia.

Por um instante, surgiu um sinal no canto do olho de Mainwaring. A expressão de conhecimento desapareceu do seu rosto. Desta vez, Zack teve a certeza que o homem estava genuinamente surpreendido.

‑ Olhe, Iverson ‑ disse ‑, não tenho tempo para este disparate. Se tem alguma coisa de que me acusar a mim e ao Jack Pearl, então sugiro que o faça através dos meios legais. Também sugiro que arranje muitas provas.

‑ Jason, por favor ‑ pediu Zack, tentando manter desesperadamente o civismo na voz. ‑ Não se trata de ética ou de acusações. Trata‑se da vida de uma criança. Por favor, ouça.

Passo a passo, contou tudo o que investigara do caso de Toby Nelrus. Mainwaring ouviu, insensível. Só quando mencionou o nome de Darrri'l Tarber'rr' é que Zack detectou alguma reacção.

‑ Então, as coisas estão neste pé ‑ concluiu. ‑ A mãe do rapaz tem a certeza que, pelo menos em várias ocasiões, ele estava a ver o programa infantil quando teve os ataques. É um programa que inclui uma versão de Greensleeves, a mesma música que você utiliza na sala de operações. Se eu conseguisse pôr as mãos na anestesia que vocês utilizaram, acho que conseguia ajudar aquele miúdo.

‑ Oh, conseguia?

‑ É um tiro às escuras, mas neste momento é a única hipótese.

‑ Então ‑ disse Mainwaring ‑ tudo indica que o rapaz não tem qualquer hipótese porque... veja, Iverson, não existe nenhuma anestesia misteriosa.

Zack olhou, incrédulo, para o homem.

- Iverson, a quem contou essas suas acusações? - perguntou o cirurgião.

-Jason, não são acusações. Uma criança está a mor...

- A quem?

‑           à mãe da criança.

‑           A mais ninguém?

à Suzanne.

‑           E ela acreditou em si?

- Escutou‑me. Mas falei com ela antes de descobrir o disparador... a música. Agora, Jason, por favor...

‑           Perguntei se ela acreditou em si.

- Não totalmente, mas depois de lhe contar o que descobri, tenho a certeza que irá...

- Não totalmente ‑ interrompeu Mainwaring, com brusquidão ‑ Iverson, espero que tenha um advogado muito bom. Contou este disparate ao seu irmão?

Zack olhou para o relógio. A reunião dos directores já estava a decorrer.


‑ Mainwaring, isto não é disparate. Se aquela criança morrer, ou se qualquer pessoa que tenha recebido esse medicamento morrer, então é assassínio.

‑ Não me ameace ‑ disse o cirurgião, apontando um dedo a Zack. ‑ Nunca mais volte a ameaçar‑me. Agora, perguntei se tinha contado esta tolice ao seu irmão.

‑ Contei. Raios, Mainwaring, nada disto tem qualquer impacte em...

‑           Quando é que lhe contou?

‑Há pouco.

‑           E qual foi a resposta dele?

‑           Mainwaring, não há tempo para isto...

‑Qual foi a resposta dele?

‑ Ignorou‑me.

‑ Tal como pretendo fazer ‑ afirmou Mainwaring. Agora, se não se importa... ‑ Levantou‑se.

‑ Mainwaring, você não pode fazer isto ‑ disse Zack em voz alta.

A curiosidade dos observadores grisalhos aumentou e um deles deu um gole no conteúdo do saco de papel pardo.

‑ Posso e vou ‑ respondeu Mainwaring no mesmo tom de voz. ‑ Agora é melhor calar‑se, Iverson, ou terá de enfrentar ainda mais acusações do que aquelas que já tem.

‑ Mainwaring, será que você é mesmo um monstro de merda?

O cirurgião virou‑se e dirigiu‑se ao carro.

‑ Então, é ou não? ‑ gritou‑lhe Zack.

Mainwaring, já dentro do carro, virou‑se e abanou‑lhe um dedo.

‑ Tem cuidado ‑ disse venenosamente. ‑ Tem muito cuidado.

 

O Sol, que passara a manhã a aparecer e a desaparecer, escondeu‑se atrás de uma densa nuvem escura, arrefecendo instantaneamente o ar. Zack estacionou a carrinha num desvio de terra batida logo a seguir à Rua Androscoggin e avançou a pé pela floresta ainda húmida, devido à chuva da noite. Sentia‑se mal devido ao encontro mal sucedido que tivera com Mainwaring e não conseguia disfarçar a fúria que sentia ‑ não só para com o cirurgião, mas com a maneira como ele próprio tratara o homem.

Fora muito agressivo? Muito contundente? Os seus argumentos seriam eficazes se tivesse simplesmente levado Mainwaring ao hospital e o deixasse ver Toby Nelrus com os seus próprios olhos? As perguntas queimavam‑lhe a mente enquanto fazia o percurso em direcção ao lado norte do hospital.

Agora, só uma coisa era certa. Com Frank como inimigo e Mainwaring sem vontade de se expor a acusações, Jack Pearl era a única esperança que a criança tinha. E sem nenhum dos dois homens para o apoiar numa confrontação com o anestesista, essa esperança era realmente muito reduzida.

Através das árvores à sua frente, Zack conseguia ver os dois andares superiores do hospital. Pela primeira vez, reparou que as enormes janelas de vidro eram suficientemente matizadas para lhes dar um aspecto de ébano. O efeito era frio e pouco atraente.


Avançou até ao limite da floresta e escondeu‑se atrás de uma faia grossa. à sua esquerda, logo a seguir a um espaço relvado e à esquina do edifício, estava o pátio do refeitório. Um grupo de enfermeiras ria‑se e conversava na única mesa que estava no seu campo de visão. Todo o lado norte do hospital estava deserto.

Cuidadosamente, avançou ao longo da linha de árvores, em direcção à esquina mais afastada do pátio. Talvez tivesse de

atravessar a correr cerca de vinte metros de relva até à porta das entregas. A partir daí, passaria, indiferente, pela cozinha, à procura de um caminho para o corredor que não o obrigasse a passar pelo próprio refeitório cheio de gente.

à sua frente, as janelas matizadas do hospital reluziam sinistramente sob o sol pálido do meio‑dia. Se houvesse rostos a olhar para ele por detrás daquelas janelas, ele não teria maneira de saber. Sentia o coração a bater nos ouvidos, com mais intensidade do que nas escaladas mais dificeis.

Um agachamento, uma última verificação da linha do edifício, e Zack avançou. Viu a sombra de movimento e cor à sua direita, exactamente no momento em que ouviu a ordem gritada.

‑ Pare! Pare onde está!

Abismado, Zack tropeçou e, batendo fortemente contra a parede de tijolo, quase caiu enquanto se virava para a voz. A menos de três metros e empunhando um cassetete pesado estava o guarda Henry, o bexigoso gigante que estivera presente tanto na morte como no funeral de (Guy.

‑ Eu segui‑o, doutor ‑ disse, passando uma mão pelo lado do pescoço quase inexistente. ‑ Daquela janela além, segui‑o durante todo o seu percurso.

‑ Meu Deus, Henry, você pregou‑me um valente susto - disse Zack ainda ofegante.

O ombro doía terrivelmente no ponto onde chocara contra o edifício. Muito devagar, ele ergueu o braço. A dor impediu‑o de o erguer acima da posição horizontal. Quase o tinha deslocado. Calculou que talvez fosse pelo menos uma distensão de primeiro grau.

‑ Não quis assustá‑lo, doutor ‑ disse o enorme guarda, baixando o cassetete para Zack mas sem tocar nele. ‑ Só quis obrigá‑lo a parar.

‑ Henry, eu tenho de entrar lá dentro ‑ afirmou Zack.

‑ Mister Iverson deu ordens rigorosas para não o deixar entrar. Foi por isso que me chamaram.

‑ Há uma criança a morrer ali dentro, Henry. Uma criança que só eu posso ajudar. Você tem de me deixar passar.

‑ Não posso ‑ disse simplesmente o homem. ‑ Se o fizer, perco o meu emprego. Nada de discussões, nada de desculpas. Foi o que o meu patrão me disse. Tenho três filhos e nada mais para os sustentar a não ser o que Deus me deu do pescoço para baixo. Os empregos como este não surgem assim tantas vezes a um homem como eu.

Zack começou a discutir mas, tal como começara, parou. Lembrou‑se do guarda no funeral de Guy: o fato azul que mal lhe servia, a sua pequena mulher calada e silenciosa. O homem tinha razão. Provavelmente o emprego era uma dádiva de Deus para eles e para os filhos. E já muita gente se tinha magoado. Ele havia de descobrir outra maneira de contactar Suzanne, ou talvez uma forma de atrair Jack Pearl para fora da protecção do edifício.

‑ Está bem, Henry - disse. ‑ Não vou discutir consigo.

Deu meia volta e começou a caminhar de regresso à floresta.


‑ Doutor, espere...

Zack olhou por cima do ombro magoado.

‑ Que idade tem a criança?

‑ Oito anos, Henry.

‑Compreendo... a minha Kenny tem quase nove... Doutor, que raio aconteceu entre o senhor e o seu irmão?

Zack riu pesarosamente.

‑ É uma história longa, Henry.

‑ Sabe, o seu irmão não é uma pessoa muito simpática.

‑ Não, Henry ‑ disse Zack. ‑ Acho que não é.

‑ Não tem muita consideração por pessoas como eu.

‑ Talvez não tenha.

Durante alguns instantes, apenas se ouviu o vento a soprar através das folhas acima deles.

‑ Doutor ‑ disse subitamente o guarda ‑, continue a ir por onde ia e faça o que tem de fazer.

Zack olhou para o homem.

‑ Está a falar a sério?

‑ Falar comigo e com a minha mulher como o senhor fez no funeral do doutor Beaulieu... foi muito simpático da sua parte.

‑ Henry, pode pôr em risco o seu emprego.

‑ Encontrarei outro, se for preciso. Sabe, eu pensei mesmo que era responsável pela morte do doutor Beaulieu. Sou grande e duro quanto baste, mas não sou mau. Não consegui comer nem dormir depois da morte dele, quero dizer, até o senhor falar comigo.

‑ Se houve alguém responsável, Henry ‑ disse Zack ‑, foi o meu irmão. Foi ele quem começou todos aqueles boatos sobre o doutor Beaulieu.

‑ Eu acredito. Entre por ali.

Zack avançou para a porta.

‑ Tem a certeza? ‑ perguntou.

‑ Faça‑o pelo doutor Beaulieu ‑ respondeu Henry.


 

Quarenta e nove anos.

Clothilde Beaulieu percebeu subitamente que, se Guy fosse vivo, celebrariam o quadragésimo nono aniversário de casamento daí a uma semana. Como era estranho que agora, de pé atrás da cadeira, a olhar para a sala cheia de rostos pálidos, cansados e benevolentes, ela se sentisse tão perto do marido como sempre estivera durante aquelas cinco décadas.

Ele tinha‑se levantado muitas vezes em salas como aquela durante os últimos dois anos, confrontando aqueles rostos ou outros parecidos. E embora ela nunca tivesse ido com ele, Clothilde sabia que se sentia exactamente como ele. Também sabia que, apesar de ter poucas ou nenhumas hipóteses de vencer, nesse momento ele estaria ao seu lado e sentir‑se‑ia orgulhoso.

- Durante muitos anos, depois de o meu marido ter começado a exercer em Sterling ‑ dizia ela ‑, foi um dos três médicos que havia na cidade e o único cirurgião numa área de quase cento e cinquenta quilómetros. Era um homem simpático, hábil e dedicado, um homem que não fez nada, absolutamente nada, para merecer o tipo de tratamento que estava a receber da administração desta instituição e da corporação cuja filosofia ele adoptou...

Sentado diante da mulher, Frank Iverson, escudado por parte da forma geométrica que executara no guardanapo, verificou as horas. Seria uma ironia cómica se a viúva de Guy Beaulieu fosse autorizada a falar até depois do prazo final do meio‑dia, tornando a votação dos directores legalmente sem significado, independentemente do seu resultado. Não, cómica não, decidiu ele: perfeita. Era tudo o que podia fazer para evitar sorrir perante a ideia.

A Sala Carter estava preparada ao estilo de conferência trinta cadeiras dispostas em redor de um rectângulo de mesas em madeira de sândalo. Ao fundo da sala, perto da galeria de antigos directores do corpo clinico, havia uma mesa com café, bolos e cestas de fruta.

Escondidas pelo pano da toalha que cobria essa mesa, à espera do inevitável, estavam várias garrafas do melhor champanhe francês a gelar dentro de baldes de gelo prateados.

O número mágico era o dez. Dos vinte e dois membros do conselho de directores do Hospital Davis, estavam presentes dezanove. Os ausentes do grupo eram: um agente imobiliário, que estava a passar umas férias na Europa; o CEO da Carter Paper Company, que nunca assistira a uma reunião desde a primeira, anos antes; e Clayton Iverson, o presidente da direcção. Na ausência do juiz, era Whitey Bourque quem presidia à reunião.

Frank sentou‑se ao lado de Leigh Baron, no canto mais afastado de Bourque. Ao lado deles estavam três advogados, dos quais dois representavam a Ultramed e o terceiro o hospital.

à frente deles estava Clothilde Beaulieu.


- Alguém tem de compreender que, numa sociedade civilizada como a nossa ‑ dizia ela ‑, o melhor tratamento médico não pode ser considerado como um privilégio. O direito de se viver a vida o mais livre de doenças possível deve estar ao alcance de todos, independentemente das possibilidades financeiras. Era crença do meu marido, e é minha, que a Corporação de Hospitais Ultramed fracassou nessa obrigação sagrada. Ao seleccionar apenas os que podem pagar o tratamento, ao influenciar as decisões terapêuticas dos médicos que estudaram tantos anos para desenvolver a sua arte, a corporação reduziu os cuidados médicos ao nível de... mecânicos de automóveis...

Frank olhou para Oary Garrison, proprietário do Oarrison's Chevrolet Sales and Service, a tempo de ver o homem sorrir e segredar um comentário ao elemento sentado ao seu lado. Mais ironias. O voto de Garrison era um dos que Frank não se assegurara completamente. Se lhe concedessem o tempo suficiente, era possível que Clothilde Beaulieu insultasse o número de membros suficiente para tornar a votação unânime.

Frank reviu a sessão pela quinta vez. Quando saira do gabinete do pai há menos de uma semana, tinha a certeza de cinco votos apenas, seis no máximo. Agora, sobretudo graças à ausência do juiz e à sua recusa em influenciar os directores, ele tinha onze ‑ mais um do que o número mágico. Gary Garrison seria o décimo segundo. E com a votação secreta que whitey Bourque lhe prometera, talvez conseguisse mais um ou dois.

‑ Parece preocupado ‑ sussurrou Leigh.

Frank sorriu.

‑ Nada de especial ‑ respondeu ele da mesma maneira.

‑ Assim espero, Frank. Contamos consigo.

‑ É isso que eu gosto de ouvir.

Ao longo dos últimos dois anos, o Guy Beaulieu lutou contra as tentativas da Ultramed o obrigar a reformar‑se. Infelizmente, como já tinha dito, grande parte das provas que ele acumulou não estão disponiveis hoje. Sem elas, fiz o melhor que pude para vos apresentar a nossa posição. Agora vou deixar‑vos com esta petição, assinada por sessenta e sete residentes desta área, pedindo o regresso do nosso hospital ao controlo comunitário.

"Agradeço muito a oportunidade que hoje me deram de poder representar os interesses do meu marido. Tal como ele, eu sei que a era dos médicos a fazer consultas domiciliárias e a partilhar os pormenores mais íntimos da vida dos seus doentes já passou há muito tempo. Mas em nome dele e dos que assinaram a petição, peço‑vos pela última vez que façam tudo o que puderem para impedir que o fascínio pela tecnologia e pelos lucros continue a retirar à medicina a maior parte da sua dignidade, compaixão e confiança sagrada. Obrigada, e Deus vos aben çoe por terem ouvido tão pacientemente esta mulher idosa

Vários membros do corpo aplaudiram levemente, e Bill Crook, sentado à direita de Clothilde, tocou‑lhe no braço.

Whitey Bourque, que olhara descaradamente meia dúzia de vezes para o relógio durante os minutos finais do discurso dela suspirou alto e bateu com o martelo na mesa enquanto se le vantava da cadeira.

‑ Muito bem ‑ disse. ‑ Aí têm. O Frank fez o seu discurso e agora foi Mistress Beaulieu. Há mais algum comentário

a fazer nos poucos minutos que nos sobram?... Muito bem. Dada a seriedade desta questão de reaquisição, foi sugerido, e eu concordei, que a votação fosse secreta. Alguma objecção?... Está bem, então. Cada um de vós encontrará um boletim de voto na vossa pasta. Coloquem uma cruz onde acharem justo e entreguem‑me a vossa votação.


Do outro lado da sala, Frank deu mentalmente a sua aprovação. Por baixo da mesa, a perna abanava de nervosismo. Depois de ter imobilizado Suzanne Cole, ligara para Annette Dolan e ordenara que ela ficasse em casa o resto do dia. A seguir, arquitectara um plano requintado para Zack e Suzanne, o qual os afastaria para sempre da sua vista e faria recair a culpa do acidente sobre o irmão.

Não podia ter planeado melhor as coisas. Primeiro o milhão de Mainwaring, agora a votação e, mais tarde, um telefonema para Zack e um teste final do Serenil ‑ desta vez, na borda do local mais alto de Christrnas Point, com cento e vinte metros de altura. Seria o final perfeito para um dia perfeito. O jogo não fora fácil, mas ele conseguira enfrentar e ultrapassar todos os obstáculos. E agora, finalmente, Frankie Iverson estava prestes a regressar ao topo.

No fruido da sua mente, o cântico da sua claque começava a ouvir‑se.

Frank, Frank, ele é o nosso homem...

 

Com Henry a verificar os corredores e as escadas à sua frente, Zack atravessou facilmente a cozinha e subiu a escada setentrional para a UCI. A dor do ombro, embora tolerável, continuava a fazer‑se sentir, em especial quando ele tentava erguer o braço.

‑ Boa sorte ali dentro, doutor ‑ disse o guarda, mal conseguindo conter o seu entusiasmo pela decisão que tomara. - Estarei por aqui, se precisar de mim. Basta enviar‑me um bip.

Zack agradeceu‑lhe com um aperto de mão.

‑ Você fez uma boa acção, Henry ‑ disse‑lhe. ‑ Uma acção muito boa. Mandar‑lhe‑ei um bip, se precisar de si...

Preparando‑se para a luta seguinte, virou‑se e entrou na

UCI.

A unidade estava exactamente como ele a tinha deixado duas horas antes, excepto o facto de nem Suzanne nem Owen Walsh ali se encontrarem. Metade dos cubículos cobertos de vidro estavam vazios e toda a actividade que ali existia continuava centrada em redor de Toby Nelrus.

As enfermeiras ficaram desconfiadas ao vê‑lo aproximar‑se.

à sua direita, viu a secretária da unidade a pegar no telefone e a desligá‑lo lentamente, como se não quisesse tomar sozinha a responsabilidade de comunicar a sua aparição no hospital.

Bennice Rimmer, a enfermeira encarregada de cuidar de Toby, tinha sido colega de Zack desde os tempos de infância até ao liceu. Ela agora era mãe de três filhos, mas parecia quase tão magra e alegre quanto fora na adolescência. Também era uma enfermeira a cem por cento: dura por fora, mas com um coração de mel... e inteligente. Zack percebeu que a presença dela nesse dia não era menos afortunada para ele do que o encontro com Henry. Se havia alguma enfermeira que lhe desse uma oportunidade, era ela.

Enquanto se aproximava, Bennice, quase como se estivesse a ler‑lhe os pensamentos, mandou sair do cubículo a auxiliar que trabalhava com ela.

‑ Olá, Bennie ‑ disse Zack.

‑ Que engraçado ‑ respondeu ela ‑, não pareces o inimigo público número um.

‑Não sou.


‑ Diz isso ao teu irmão. Sempre achei que vocês os dois não se davam muito bem, mas isto é outra conversa.

Ela retirou um papel dobrado do bolso do uniforme, alisou‑o sobre a cama de Toby e entregou‑o a Zack.

Zack não ficou surpreendido com o conteúdo do papel, mas sim com a determinação. Em resumo, Frank tinha sublinhado um conjunto de acusações que teriam enchido de orgulho Átila, o Huno, e ameaçava com demissão sumária a todos os que não comunicassem de imediato a sua presença no hospital.

‑ O Frank e eu estamos a ter alguns problemas ‑ disse.

‑ Foi o que pensei.

‑ Como está o Toby?

‑ Praticamente na mesma. A temperatura mantém‑se à volta dos trinta e oito e três. As pupilas estão na mesma. Não há alteração na consciência. ‑ Apontou para o papel. ‑ Fizeste tudo isso?

Zack abanou a cabeça.

‑ O Frank não quer acreditar que a anestesia que esta criança recebeu quando foi operada à hérnia é responsável por este problema.

‑E é?

‑Sim.

Bennice Rimnier analisou‑o por instantes, depois desviou os olhos para o doente, estendeu um braço e tocou na testa do rapaz. Por fim, olhou para trás de Zack em direcção à secretária da unidade e abanou a cabeça.

‑ E o que te propões fazer? ‑ perguntou.

Zack começou a agradecer‑lhe, mas a expressão do olhar dela fê‑lo calar‑se. Ela queria acções e não agradecimentos.

Ele efectuou um breve exame neurológico a Toby.

‑ Preciso de falar com o Jack Pearl ‑ disse.

‑ Ele está na sala de operações.

‑ Está bem, mas antes de falar com ele preciso de rever umas coisas com a Suzanne. Sabes onde ela está?

‑ Não faço ideia. Há algum tempo ela ligou a dizer que já vinha para cá, mas ainda não apareceu. Acho que o doutor Walsh lhe mandou um bip., mas tudo quanto sei é que ela não respondeu. Ele foi para o consultório dele.

‑ Podes mandar‑lhe outro bip, por favor? Tenta também as urgências, caso ela esteja presa lá.

Esperaram vários minutos que Suzanne respondesse. Depois, Zack voltou a ligar para casa dela.,

‑ Isto é muito estranho ‑ disse. ‑ É costume ela não responder aos bips?

‑ Nunca.

- Hum... Bennice, podes fazer‑me o favor de mandar um bip ao Henry Flowers, o guarda da segurança? Pede‑lhe para cá vir.

‑ Tu queres a segurança?

‑ Segurança, não. O Henry. Não há problema. E por favor agradece a todas por não terem participado a minha presença.

Henry Flowers levou menos de dois minutos a aparecer na unidade.

‑ Como estão as coisas? ‑ perguntou Zack.

O corpulento guarda encolheu os ombros.

‑ Tudo quanto sei é que ninguém sabe que está aqui.

‑ Ando à procura da doutora Cole. Sabe quem é?

‑ Claro. Acabei de ouvir um bip para ela.

‑ Era eu. Ela não respondeu.

‑E?


‑ Gostaria que começasse a procurá‑la, se puder. Acho que não me aguentaria muito tempo ali fora.

‑ Está bem.

‑ Verifique primeiro no consultório dela, nos edifícios P e 5. Depois, talvez no laboratório de cardiologia.

Henry afagou as faces bexigosas.

‑ Eu vi‑a ‑ disse, pensativo.

‑ Quando? Onde?

‑ Não foi há muito tempo. Eu... não me lembro onde foi, doutor.

‑ Tente.

‑ Vejamos... Comecei a ronda no relvado da frente, depois atravessei o vestibulo e depois... ‑ Subitamente, animou‑se. - Já me lembro. Já sei onde a vi. ‑ Então, à mesma velocidade, a sua expressão escureceu.

‑ Henry, onde? ‑ perguntou Zack.

‑ Foi na ala oeste ‑ disse vagamente. ‑ Ela... ia para o gabinete de Mister Iverson.

Zack sentiu um arrepio instantâneo.

‑ Henry, leva‑me até lá ‑ pediu. Virou‑se para a enfermeira. ‑ Bennie, não te importas de descobrir quem está na anestesia com o Jack Pearl? Liga para quem lá estiver e pede para ficarem alerta. Não lhes digas que é para mim.

Com Henri a reassumir o seu papel de guia, saíram da unidade, desceram até à subcave, atravessaram o hospital até à escada da ala oeste e subiram. Zack encostou‑se contra a parede da escada.

‑ Henry ‑ segredou ‑, penso que o meu irmão está numa reunião, mas tem duas recepcionistas.

‑ Sim, eu sei. As gémeas arrasadoras.

‑ Exactamente. Fale com elas. Veja se elas se lembram quando é que a Suzanne saiu, ou melhor, para onde poderá ter ido. Tente saber se o Frank estava com ela, quando saiu.

Inconscientemente, o enorme guarda endireitou a gravata, ajeitou as lapelas do uniforme e puxou os ombros robustos um pouco para trás. Em seguida, passou a porta da escada para enfrentar as gémeas arrasadoras.

Meio minuto depois, estava de volta.

‑ Não está ninguém ali ‑ disse.

‑ Ninguém?

‑ Não. ‑ Pareceu desapontado. ‑ Nem a loura, nem a morena. Ninguém. Até espreitei, porque havia música lá dentro. Abri a porta exterior do gabinete e encostei o ouvido à porta de Mister Iverson para ver se ouvia vozes.

‑ Música?

‑ Violinos. Uma música bonita, mas deve estar bastante alta para se poder ouvir através de duas portas fechadas.

‑ Henry, tenho de lá entrar.

‑ Está bem, mas...

Zack já tinha atravessado a porta da escada. O guarda encolheu os ombros e seguiu‑o de perto.

Junto à sala exterior do gabinete de Frank, Zack parou e escutou. Tal como Henry dissera, a música que vinha do gabinete interior estava bastante alta.

Só foram precisos uns breves segundos para Zack reconhecer a peça.


‑ Meu Deus, Henry, abra isto, por favor!

O guarda cumpriu o que lhe pediram.

A música, agora ainda mais alta, causou um aperto sufocante no estômago de Zack. Bateu à porta e chamou uma vez, mas sabia que não haveria resposta.

‑ Esta porta, Henry. Abra‑a, por favor!

‑ Não posso.

‑ Henry, é importante. Acho que a doutora Cole está lá dentro e julgo que está em sarilhos.

‑ Não tenho a chave. Só Mister Iverson é que tem a chave dessa porta.

‑ Henry, temos de conseguir entrar...

O guarda hesitou.

‑ Por favor...

‑ Bem ‑ disse por fim ‑, acho que não posso ser despedido mais de uma vez, não é?

Avançou um único passo e bateu na pesada porta com tanta força que todo o caixilho se desfez. A própria porta, amolgada no local onde o seu ombro batera, tombou no chão como se fosse uma carta de baralho.

A Fantasia on Greensleeves tocava a um nível quase ensurdecedor.

Zack parou a cassete, olhou por instantes em redor do gabinete e depois correu para a casa de banho.

‑ Henry ‑ gritou. ‑ Chegue aqui!

Sem se importar mais em ser visto, Zack correu à frente enquanto Henry transportava Suzanne através dos corredores do hospital e pelas escadas acima, até à UCI. Ela estava imóvel, impassível e completamente transpirada. O nível do coma era profundo e a temperatura notoriamente elevada.

O ar surpreendido com que Bennice Rimmer os viu chegar durou apenas alguns segundos até começar a agir, arrancando a roupa de Suzanne, colocando a almofada do esfigmomanómetro em redor do braço dela e pedindo a uma enfermeira para trazer uma solução de Rínger de aplicação intravenosa.

‑ Não te faz lembrar ninguém, Bennie? ‑ perguntou Zack. ‑ Ela recebeu a mesma anestesia que o Toby. Já acreditas em mim?

‑ Eu já tinha acreditado ‑ disse a enfermeira, auscultando o peito de Suzanne. ‑ Talvez já não te lembres, mas um dia pedi‑te para me copiares uma tradução de latim e tu recusaste. Calculei que, se naquela altura pudeste ser tão honesto, não podias ter mudado tanto agora.

‑ Quem é a ajudante do Pearl?

‑ A enfermeira anestesista. Ela está na obstetricia.

‑ Telefona para ela, por favor. Pede‑lhe para se encontrar comigo à porta da sala de operações dentro de dois minutos. Diz‑lhe que é um caso de vida ou de morte. E manda também fazer algumas análises ao sangue da Suzanne... Acho que está tudo. E dá‑lhe Decadron. Dez miligramas por via intravenosa.

‑ Já dei.

‑ Volto já... Apronta‑te, Pearl, seu canalha ‑ murmurou enquanto atravessava as portas da unidade. ‑ Esta porcaria já foi longe de mais. Vais ter de te haver comigo!


 

Ao ver Whitey Borque a separar os boletins de voto, Frank percebeu que a diferença de votos seria mais reduzida do que ele queria. Contou exactamente dez boletins numa pilha e nove noutra. Ao insistir numa votação secreta, tivera a esperança de minimizar qualquer influência que o juiz ainda pudesse ter sobre alguns membros. Agora, tudo indicava que tinha sido melhor sucedido ao minimizar a sua própria influência.

Vai á merda, Garrison, pensou, vendo o último boletim a ser aberto. A partir do próximo ano, serão Fords para este hospital. Podes ter a certeza.

‑ Bem ‑ disse Bourque, enquanto ele e o membro sentado ao seu lado terminavam a contagem dos votos. ‑ Contei dez contra nove. Foi o que também contaste, Charlie?... óptimo. ‑ Bateu com o martelo na mesa. ‑ Nesse caso, tenho o prazer de anunciar que o conselho de directores do Davis, desculpem, do Ultramed‑Davis, por dez votos contra nove, aprovou a finalização da venda deste hospital à Divisão Ultramed da RIATA Internacional.

Vários membros aplaudiram; muitos apenas encolheram os ombros. Leigh Baron aceitou as felicitações dos advogados e depois virou‑se para Frank.

‑ Foi por um triz ‑ disse ela.

Frank sorriu.

‑ Granadas de mão e ferraduras ‑ disse ele, irreflectidamente.

‑ Como?

‑ Oh, é só uma frase que o meu pai me incutiu.

‑ Bem, Frank, tudo indica que está prestes a...

‑ Desculpem, mas pergunto se o presidente em exercício pode adiar a celebração o tempo suficiente para ouvir mais um ponto de vista.

Tal como o público de uma partida de ténis, todas as cabeças se viraram ao mesmo tempo para a porta.

O juiz, com um cobertor sobre as pernas e sentado numa cadeira de rodas à entrada da sala, estava pálido mas a sorrir impiedosamente.

Whitey Bourque correu em redor das mesas e apertou‑lhe a mão.

- Meu Deus, juiz, é bom saber que já pode levantar‑se. Sente‑se bem? Quero dizer, consegue...

‑ Consigo movê‑las, Whitey. Ainda não consigo mover muito, mas mexo‑as mais a cada minuto que passa.

Contraindo‑se de dor; demonstrou o que havia dito levantando o pé direito alguns centímetros acima do apoio.

Frank, demasiado abismado com a súbita intrusão para conseguir reagir, olhou para o relógio. Faltavam oito minutos para o meio‑dia. Nesse momento, percebeu que o pai olhava para ele.

‑ Gosto de o ver, juiz ‑ conseguiu dizer em voz rouca.

O juiz acenou‑lhe com a cabeça e depois trocou um olhar prolongado com Leigh Baron.

‑ Gostava de me dirigir ao conselho, se me permitirem - disse.

‑ Claro, juiz ‑ respondeu Whitey Bourque. ‑ Deixe‑me empurrá‑lo até lá à frente.

‑ Juiz ‑ disse Frank ‑, a votação terminou.


‑ Terminou?

‑ Lamento, mas já, juiz. ‑ disse Bourque. ‑ Foram dez contra nove, a favor da Ultramed.

‑ Bem, talvez consiga mudar as ideias de um ou dois membros.

‑ Isso não é legal, senhor ‑ disse um dos advogados da Ultramed. ‑ A votação já está feita.

Clayton Iverson deitou‑lhe um olhar que teria derretido um bloco de gelo.

‑ Não se atreva a dizer‑me o que é ou não legal, jovem - replicou. ‑ Eu já era advogado e juiz quando a sua mamã ainda lhe limpava o traseiro. O nosso contrato convosco diz que temos até ao meio‑dia de hoje para readquirirmos este hospital por votação maioritária da direcção. É o que consta nele. Nem

mais, nem menos. E a não ser que o meu relógio não esteja a trabalhar bem, ainda faltam sete minutos.

Lívido, Frank viu o pai a ser empurrado para a mesa da presidência. Ansiava desesperadamente que houvesse interrupções que ele pudesse aproveitar como meio de arrastar a reunião para depois do limite do prazo. Mas antes de lhe surgir qualquer ideia sobre uma acção especifica, o juiz começou a falar.

‑ Vou ser breve ‑ começou. ‑ Prometi a muitos de vós que faria o trabalho necessário para garantir que era em benefício da nossa comunidade que se finalizaria o nosso acordo temporário com as pessoas da Ultramed. Devido ao meu acidente e por outras razões, as quais não tenho tempo nem vontade de esclarecer, decidi reservar as minhas conclusões sobre este negócio e deixar as lascas caírem onde caíssem. Bem, voltei agora para vos dizer que a minha reacção foi injusta: para convosco, caros amigos e colegas, e também para com a cidade de Sterling.

"Soube o suficiente para aparecer agora diante de vós e dizer‑vos categoricamente que, enquanto talvez tenhamos beneficiado a curto prazo do envolvimento da Ultramed com o nosso hospital, seria um erro grave entregar‑lhes para sempre o Hospital Davis. A minha governanta, Annie Doucette, quase morreu devido a um determinado tipo de política, política da Corporação Ultramed, que recompensa os médicos que transferem os doentes do hospital o mais cedo possível, e recompensa‑os ainda mais se essa transferência for para uma das casas de saúde pertencentes à Ultramed. Os doentes que ajudaram a construir este hospital estão a ser empurrados para o Hospital de Clarion por não possuírem um seguro suficiente. E há mais, muito mais. ‑ Olhou para Leigh Baron. ‑ Porém, devido à hora, peço‑vos para confiarem em mim. Só faltam três minutos para o meio‑dia. Se aqui o Whitey estiver de acordo, gostaria que houvesse outra votação sobre esta questão.

‑ Alguém se opõe? ‑ perguntou Bourque.

‑ Sim ‑ disse Frank, levantando‑se. ‑ Eu oponho‑me.

‑ Bem, lamento, Frank ‑ replicou Bourque ‑, mas você não é membro do conselho de directores e não temos tempo para qualquer objecção exterior.

Frank hesitou, mas acabou por se sentar contrariado.

‑ Muito bem, então ‑ disse Bourque. ‑ Todos têm um segundo boletim nas vossas pastas. Coloquei‑os lá por achar que, pelo menos alguns de vós, podiam enganar‑se ao preencher o primeiro.


Uma breve risada cortou o denso silêncio, enquanto os vinte membros do corpo assinalavam os respectivos boletins, os dobravam e os passavam para a frente da sala.

Leigh Baron, de costas para Frank, olhava fixamente para a galeria dos presidentes.

Quando o último boletim chegou às mãos de Bourque e foi contado, os sinos da Igreja de Santa Ana começaram a tocar as badaladas do meio‑dia.

 

Sara Newton, a enfermeira anestesista, era uma jovem parecida com um rato, com um aparelho dentário que tinha ainda de corrigir uns dentes todos encavalitados. Estava a dormir na maternidade à espera de um parto e apareceu junto às portas da ala cirúrgica alguns segundos depois de Zack, ofegante, de olhos lacrimejantes e desgrenhada.

‑ Onde é a urgência? perguntou, puxando uma prega do soutien.

‑ Na unidade de cuidados intensivos ‑ respondeu Zack.

O ombro doía‑lhe devido à corrida pelo hospital e ele recorrera a uma tala parcial, passando o polegar através de uma presilha do cinto.

‑ Na unidade? Então, vamos para lá. O senhor está bem? Parece ligeiramente pálido.

‑ Estou bem. Apenas um pouco cansado.

‑ É verdade. Foi enviado um aviso de que o senhor tinha sido despedido.

‑ Fui contratado de novo. Sara, preciso do Jack Pearl. É um caso que ele já conhece. Gostaria que cuidasse deste caso na sala de operações número um, para que me possa ir embora.

A mulher estava abismada.

‑ Doutor Iverson, não posso fazer isso.

‑ Ouça, Sara ‑ disse Zack bruscamente. ‑ Não tenho tempo para discutir. Sei que desempenha muito bem as suas funções e, se eu julgasse que podia fazer o que é preciso, não hesitaria. Mas este é um assunto do Pearl. Dele e meu. E pelo menos duas vidas estão em risco. Agora, por favor.

‑ O q... que posso fazer? ‑ perguntou ela, a tremer.

‑ Vista uma nova bata cirúrgica e esteja à porta da número um o mais depressa possível. Far‑lhe‑ei um sinal, quando puder entrar.

‑ O Jack nunca concordaria com uma coisa destas.

‑ Deixe o Jack comigo. Agora, por favor, despache‑se.

Zack correu para o vestiário dos cirurgiões e, cheio de dores, despiu‑se. Atirou a roupa para dentro do seu cacifo e vestiu uma bata cirúrgica, uma capa de papel para o cabelo, uma máscara e capas para os sapatos, passou a correr pelos lavatórios da sala de preparação e entrou na sala de operações número um. Greg Ormesby, o cirurgião que estava a operar, ergueu os olhos e levou alguns segundos a reconhecer quem ele era.

‑ Iverson? ‑ perguntou de um modo um tanto frio. - É você debaixo disso, não é?

à menção do nome de Zack, toda a actividade da sala parou por um instante. Jack Pearl, que estava debruçado sobre os seus instrumentos, levantou os olhos e empalideceu.

‑ Peço desculpa por entrar desta maneira, Greg ‑ disse Zack com uma calma forçada ‑, mas preciso de falar aqui com o Jack.


‑ Estou ocupado ‑ resmungou Pearl.

‑ Bom, seja o que for vai ter de esperar ‑ disse Ormesby. Teremos terminado daqui a meia hora. Agora, por favor, Iverson.

Zack inclinou‑se sobre Pearl e colocou a mão direita na base do pescoço do homem.

‑ Jack ‑ murmurou ‑, é a Suzanne. Ela está neste momento na UCI e está a ter uma convulsão igual à do Toby. Está a reviver a operação e só grita o seu nome. O seu e o de Jason.

Mesmo de máscara e capa para os cabelos, o frágil anestesista pareceu abatido.

‑ Não pode ser ‑ murmurou Pearl.

‑ Quero que venha já comigo.

‑Você é louco.

Zack passou os dedos em volta dos lados do pescoço de Pearl e apertou‑o ligeiramente.

‑ Ela é o segundo caso, Jack. O que você estava à espera.

‑ Não vou a lado algum. Agora, solte‑me! Está a magoar‑me!

Zack olhou no momento em que Sara Newton apareceu junto à porta. Com a cabeça, fez‑lhe sinal para entrar e apertou a mão, enterrando os dedos vigorosos nos nervos ao longo do pescoço de Pearl.

‑ Iverson, que raio está aqui a passar‑se? ‑ perguntou Ormesby. ‑ Você está louco? Chamem a segurança. Iverson, pelo amor de Deus, sobre a mesa está o raio de uma mulher aberta. Não está a ver?

‑ Lamento ter agido assim, Greg ‑ disse Zack, obrigando o pequeno anestesista a levantar‑se ‑, mas há problemas na UCI que só o Jack pode resolver.

‑ Isso é loucura! ‑ gritou Pearl. ‑ Ele é doido! Uau! Está a magoar‑me, Iverson! Solte‑me!

Greg Ormesby e a equipa cirúrgica viram, abismados, como Zack puxava o homenzinho da sua consola e indicava a Sara Newton para o substituir.

Iverson, pare imediatamente! ‑ gritou Ormesby. ‑ Está a pôr em perigo a minha doente.

‑ Disparate. Aqui a Sara é uma excelente anestesista e você sabe disso. Ela tratará muito bem da sua doente. Lamento ter agido assim, mas neste momento não tenho tempo para explicar. Contudo, hei‑de fazê‑lo, Greg. Prometo.

‑ Oh, pelo amor de Deus. Que alguém chame a segurança. Iverson, isto é uma loucura.

Zack não respondeu.

Com o ombro a doer, parcialmente dormente devido à sua própria adrenalina, arrastou Pearl para o quarto de esterilização e atirou‑o contra a fila de cacifos, prendendo‑o pelo pescoço até ele ficar nas pontas dos pés.

‑ Iverson ‑ gritou Greg Ormesby ‑, vejo agora que o que todos dizem de si é verdade. Você vai pagar por isto! Eu vou processá‑lo!

‑ Pronto, Jack ‑ disse Zack, ignorando os gritos do cirurgião. ‑ Chegou o momento. Agora diga‑me: há um medicamento experimental, não há?

Zack prendeu‑o com mais força, utilizando o braço magoado, e levantou mais um pouco o anestesista. Os dedos dos pés de Pearl afastaram‑se do tapete.

‑ Então, há ou não?


Pearl, demasiado assustado ou determinado a não responder, não se manifestou. O rosto estava roxo. Os olhos, agora quase ao nível dos de Zack, parecia saltarem das órbitas.

Nesse momento, um guarda da segurança entrou pelo vestiário adentro e, sem dizer uma palavra, bateu com o cassetete em Zack ‑ um golpe que raspou o lado da cabeça e aterrou directamente no seu ombro magoado. Dando um grito de dor, Zack caiu redondo sobre o tapete e agarrou‑se ao braço, enquanto Jack Pearl escorregou pelo cacifo e, a gemer, desfaleceu sobre uma pilha de roupa que estava ali perto.

O guarda ajoelhou‑se sobre as costas curvadas de Zack e levantou o cassetete, preparando‑se para desferir outro golpe.

‑ Pare com isso! Pare imediatamente!

Abismado, o guarda afastou‑se de Zack e virou‑se para a voz. Zack reagiu mais lentamente. Virou‑se e, através de lágrimas de dor, viu Jason Mainwaring, de mãos nas ancas, junto à porta.

‑ Mainwaring ‑ disse em voz entrecortada ‑, é Suzanne. Ela está na unidade de cuidados intensivos e...

‑ Eu sei. Acabo de vir de lá. ‑ Mainwaring virou‑se para o guarda. ‑ Isto aqui está tudo sob controlo. Pode retirar‑se.

‑Mas...

- Já disse que está tudo sob controlo.

‑ Sim, senhor.

O guarda saiu da sala, com os gélidos olhos azuis de Mainwaring a ajudarem‑no a sair mais depressa.

‑ Muito bem, Jack ‑ disse o cirurgião quando a porta se fechou ‑, dê ao Iverson o que ele quer.

‑ Jason, não posso...

‑ Raios, Jack, dê'. Há duas pessoas muitíssimo mal na unidade. Eu talvez tenha cometido alguns erros neste negócio, mas não sou um assassino. Se o Serenil é o responsável pelo estado deles, então quero que o Iverson leve o que precisar para os ajudar... E já!

Pearl levantou‑se.

Zack tentou levantar‑se, voltou a cair e fez nova tentativa... Dessa vez foi bem sucedido, embora cambaleando.

- Obrigado, Mainwaring ‑ agradeceu. ‑ Não pensei que tivesse conseguido convencê‑lo.

‑ Mas lembre‑se, Iverson, que lá porque estou aqui não significa que esteja a admitir alguma coisa. ‑ Olhou para o anestesista e continuou numa voz demasiado lenta para que o homem ouvisse bem. ‑ Não sou nenhum monstro, Iverson. Se o medicamento do Pearl magoou algumas pessoas, quero fazer tudo o que puder para as ajudar. Lembre‑se disso. Lembre‑se que eu o fiz.

‑ Claro que sim, Mainwaring ‑ disse Zack. ‑ Eu não me esquecerei.

 

Frank ficou sozinho num dos lados da Sala de Conferências Carter a ver Whitey Bourque, o último membro da direcção, a empurrar o pai para ser readmitido no hospital. A nova votação obtivera um resultado impressionante de catorze votos contra seis, a favor da reaquisição.

Quando se aproximou da porta, o juiz olhou para ele.

‑ Lamento, Frank - afirmou.


à frente de Frank, Leigh Baron terminou uma troca de palavras com os advogados e mandou‑os embora. Em seguida, virou‑se e examinou a sala quase vazia e os vestígios da reunião acabada de chegar ao fim.

- Bem, ele venceu‑o ‑ disse por fim.

‑ Ele também a venceu ‑ retorquiu Frank.

‑ Ele é dos mais dificeis com quem tive de lidar.

‑A quem o diz.

Leigh deu uns passos pela sala e depois regressou.

‑ Infelizmente ‑ disse ela ‑, isto é, infelizmente para si, as atitudes do seu pai colocaram‑me numa posição bastante delicada.

‑ Sim?

‑ Sabe, Frank, há três anos você cometeu um acto muito estúpido, algo muito amador. Você desviou‑nos dinheiro. Uma grande importância em dinheiro.

Estupefacto, Frank olhou para ela.

‑ Eu... não sei do que está a falar ‑ conseguiu dizer.

‑ Oh, Frank ‑ disse ela, sardónica ‑, você desaponta‑me muito. ‑ Atravessou a sala e pousou o relatório de contabilidade à frente dele. ‑ Estávamos um pouco preocupados com a votação de hoje ‑ explicou. ‑ E, por isso, ontem à noite fui visitar o seu pai.

‑Você o quê?

‑ Mostrei‑lhe o conteúdo dessa pasta e prometi‑lhe que seria queimado assim que a venda do hospital se completasse.

‑ Isso é loucura.

‑ Não, Frank ‑ disse ela, calmamente. ‑ É negócio.

‑ Que tipo de pessoa é você? Sabe que provavelmente foi a causadora deste acidente?

‑ Não sei nada disso. Mas o que realmente sei é que o seu pai fez a sua escolha e agora nós temos de fazer a nossa. Pode esperar por acusações de desfalque contra si no inicio da próxima semana.

‑ Não podem fazer isso.

‑ Podemos e vamos fazer ‑ disse ela.

- estava prestes a repor esse dinheiro. Eu tenho esse valor. Eu tenho‑o no banco.

‑ Demasiado tarde.

‑ Você é uma cabra... uma cabra insensível.

‑ Oh, que maravilha, Frank. Tão espirituoso, tão eloquente.

- dobro o que tirei ‑ disse ele. ‑ Quinhentos mil. Posso metê‑los nas suas mãos esta tarde.

‑ Frank, você não percebeu. Se fosse pelo dinheiro, você teria sido enterrado há três anos, assim que soubemos o que tinha feito.

‑ Nesse caso ‑ disse, vendo subitamente um raio de luz e correndo para ela ‑, se eu cair, a sua empresa cai comigo e de que maneira.

‑ De que é que você está a falar?

‑ Estou a falar de um trabalho que tem acontecido neste hospital, no vosso hospital. O teste de uma nova anestesia não aprovada. O trabalho envolve o vosso administrador, um dos vossos cirurgiões e um dos vossos anestesistas, e não tem resultado muito bem. Se precisarem de provas, passe pela UCI e verifique um miúdo chamado Nelrus. E garanto‑vos que, se me acusarem de alguma coisa, eu mancharei o nome da Ultramed até que os vossos valores não valham nem como papel higiénico.


‑ Não acredito em si ‑ disse ela.

No entanto, Frank percebeu que ela acreditava.

‑ Tal como disse, vá à unidade de cuidados intensivos. Tenho a certeza de que os pais da criança e os advogados vão adorar saber que uma empresa multimilionária é responsável pelo estado do filho.

‑ Você permitiu que isto acontecesse sem o nosso conhecimento?

Nesse momento, Frank sentiu as posições inverterem‑se.

‑ Permitir? Raios, eu tratei de tudo. Como julga que planeei obter assim tanto dinheiro? Na verdade, o trabalho já está feito. Já recebi a minha parte. E, felizmente para todos nós, só eu sei que não resultou tão bem... Agora, temos um empate à mexicana ou não?

Leigh Baron mediu‑o durante vários segundos, mas ele sabia que tinha vencido.

‑ Quantos doentes? ‑ perguntou ela.

‑ Oh, quinhentos ‑ disse ele. ‑ É pegar ou largar.

- Pretendo confirmar o que me disse.

- Como queira. Mas tenha cuidado quando o fizer. Se explodir, explodirá na sua cara.

‑ Frank, você é patético.

‑ Ah, ah! E agora, quem é que está a ser eloquente?

‑ Uma palavra, Frank, se uma só palavra sobre esta... esta estupidez chegar à Ultramed, juro que o enterro. O que você fez é horrível.

Frank sorriu abertamente.

‑ Não, não é ‑ disse, piscando um olho. ‑ É negócio.


 

O artigo, "Análise sobre a Inversão da Toxicidade Retardada da Dietilamida do Acido Lisérgico (LSD)" fora escrito por um neurologista escocês, chamado Clarkin, e publicado há quase quinze anos no pouco lido Jornal de Neuropsicologia britânico. Era um relatório anedótico e não uma análise cientifica no verdadeiro sentido da palavra. Zack encontrara casualmente o trabalho durante o seu primeiro ano de estágio e guardara‑o, porque a ideia de tratar as reacções retrospectivas de LSD com LSD haviam‑no divertido e fascinado.

Na maioria dos casos, Clarkin utilizara um tanque de isolamento de alta densidade. Mesmo assim, sem um aparelho daqueles, teriam de resolver o problema. E, apesar dos conceitos do escocês serem intrigantes, os dados apresentados eram demasiado escassos para justificar muitas das suas conclusões. Era assustador perceber que, sem outras opções promissoras, as teorias de Clarkin eram tudo aquilo com que Suzanne e Toby Nelrus podiam contar.

Enquanto via as enfermeiras a transferir Suzanne para um colchão de água -  o primeiro passo na redução ao mínimo da actividade sensitiva ‑ Zack pensou no neurologista e no seu trabalho. Que mal havia em tentar localizá‑lo? Será que ainda era vivo? Ainda exercia? Era um profissional ou uma fraude? Fora aclamado devido às suas teorias, ou menosprezado?

Mas, acima de tudo, Zack imaginou se não ia pôr em perigo os seus dois doentes, devido ao que estava a tentar fazer. Ao longo dos anos de estágio, ele desenvolvera uma confiança total e implícita no seu juízo clínico. Agora, não conseguindo concentrar‑se devido às dores no ombro e ao pesadelo das últimas vinte e quatro horas, ainda tão vivo na memória, ele tinha dúvidas.

Seja aplicado. Seja meticuloso. Seja honesto. Conte com todas as hipóteses...

Zack olhou para Suzanne, de momento presa por correias de cabedal bem apertadas. Pouco depois de chegarem à UCI, o coma dela tornara‑se menos profundo e ela começara a espernear e a ficar desorientada. Em muitos aspectos, os seus sintomas eram idênticos aos de Toby, mas claramente mais rápidos e violentos ‑ resultado da forma maldosa como Frank a tratara, Zack tinha a certeza.

Embora estivesse entorpecida devido ao Valium que lhe fora dado, era notório que ela ainda estava fechada na sua psicose, completamente afastada da realidade. A temperatura subira para cerca de 38,3.

Haveria outra solução? Antes do acidente do juiz, ele sentia‑se muito seguro de si; seguro o suficiente para entrar por ali dentro e insistir em aplicar o método incerto de Clarkin em Toby Nelrus. Agora, mesmo com Mainwaring e Pearl a validarem as suas teorias sobre o medicamento experimental, sentiu‑se no limite do pânico.

Seja meticuloso... Conte com todas as hipóteses...

Zack massajou o ombro. O inchaço estava a aumentar. Até o mais pequeno movimento do braço lhe causava uma dor profunda, que ia desde o pescoço até à ponta dos dedos. A fadiga e a tensão lutavam por lhe controlar a mente.


Diante dele, completamente resignado, Jack Pearl preparava os instrumentos e as seringas. Especado a um canto, Jason Mainwaring estava sozinho a ver.

Quando Zack terminou de colocar as almofadas protectoras sobre os olhos de Suzanne e algodão embebido em óleo nos ouvidos, Mainwaring pediu‑lhe para se aproximar. Tinha um aspecto incaracteristicamente enrugado, desolado e contraído, e a preocupação no olhar parecia ser genuína.

- Sabe, Iverson, lamento que isto esteja a acontecer - murmurou.

‑ Deve lamentar.

‑ Nunca fui pessoa para arranjar desculpas para os meus actos, mas, antes de você e o Pearl começarem, gostaria que soubessem de uma ou duas coisas.

‑Sim?

- Primeiro, a mulher a quem o Tarberry se referiu, a tal que faleceu no meu consultório...

‑Sim...

‑ Morreu por causa de um problema coronário e não de reacção alérgica. Nunca tomou mais nada senão a velha xilocama. E essa é que é a verdade. Eu tinha alguns... inimigos no hospital que souberam do meu envolvimento com uma empresa farmacêutica. Estavam decididos a apanhar‑me, e a morte infeliz de Mistress Grimes deu‑lhes a oportunidade. Não nego ter feito no meu consultório alguns trabalhos com uma anestesia local experimental, mas Mistress Grimes só tomou xilocaína.

Zack olhou para Suzanne.

‑ Mainwaring ‑ disse friamente ‑, agradeço que tenha regressado aqui da maneira como o fez. Mas não espere que eu lhe perdoe. O que vocês os dois, vocês os três, fizeram aqui foi muito mais do que estúpido e errado.

‑ Nunca fui de economizar, mas a nossa empresa estava a afundar‑se. Nós... estávamos desesperados. O Serenil ter‑nos‑ia salvo.

Zack apontou para os dois doentes em coma.

‑ Acha que eles se importam com isso? ‑ perguntou.

Mainwaring não soube responder.

‑ Zack, estamos preparados ‑ disse Bennice Rimmer.

‑Já vou.

Ao longo de toda aquela experiência penosa, a enfermeira pareceu firme como uma rocha, analisando silenciosamente as preocupações do restante pessoal da unidade e prometendo assumir a responsabilidade total, caso alguma coisa corresse mal. Foi muito rápida, eficiente e piedosa. Zack deu consigo a tentar recordar como ela tinha sido durante os anos escolares que haviam passado juntos. A única imagem que lhe vinha à memória era a de uma rapariga simples e afável, suficientemente agradável, mas muito distante do círculo de colegas. Como tudo aquilo parecia agora não ter qualquer significado.

‑ Muito bem ‑ disse ao pessoal clínico. ‑ Antes de começarmos, quero que todos saibam o quanto eu... o quanto nós os três... agradecemos o que estão a fazer. Sei que estão intrigadas com o que se está a passar aqui e prometo que, quando as coisas acalmarem, responderemos a todas as perguntas que pudermos. O plano é pôr a Suzanne a dormir com uma nova anestesia, na esperança de acabarmos com o seu ataque. Assim que acabarmos, faremos o mesmo ao Toby.


‑ O que espera exactamente que aconteça? ‑ perguntou uma das enfermeiras.

- Num plano ideal? Bem, esperamos conseguir retirar quaisquer que sejam as moléculas químicas que estão a envenenar o sistema nervoso central deles, e que ambos acordem apenas. Mas pode levar algum tempo.

‑Há perigo?

Zack olhou para Jack Pearl, que esvaziava o conteúdo de um dos seus frascos para dentro de uma seringa.

- Jack?

Pearl abanou a cabeça.

- Não - murmurou. ‑ Não há perigo. A enfermeira pareceu satisfeita.

‑ Muito bem, então - disse Zack, sentindo a pulsação a acelerar ‑, vamos a isto. Lembrem‑se, nada de luzes, nada de barulho, nada de movimentos.

As enfermeiras começaram a apagar as luzes e a reduzir ao mínimo o ruído do equipamento.

Zack chamou Pearl para um canto.

Lembre‑se, Jack ‑ afirmou. ‑ Faça tudo correctamente.

‑ O Serenil não é responsável por isto ‑ resmungou Pearl.

‑ Jack, não comece. Faça apenas tudo correctamente, raios.

‑ Não vai funcionar, Iverson. Você é louco.

‑ Tem toda a razão, Jack. ‑ De costas para os outros, Zack olhou para o homem. ‑ Sou louco e não se esqueça disso nem por um segundo, está bem?

Regressaram juntos à cabeceira de Suzanne. As enfermeiras permaneceram na escuridão, enquanto Pearl inseria a agulha no bolbo de borracha do tubo intravenoso de Suzanne. Depois, hesitou.

‑ Continue, Jack ‑ ordenou Zack. ‑ Este pode ser o seu único bilhete para sair do inferno. Pelo amor de Deus, agora continue!

As mãos do anestesista tremiam tanto que precisou de ambas para segurar a seringa.

‑ Raios, Jack...

Lentamente, Pearl carregou no êmbolo.

 

Frank sentou‑se numa das mesas da Sala de Conferências Carter e ficou a ver Leigh Baron arrumar as suas coisas. Sem

dúvida que ela iria à unidade de cuidados intensivos verificar o que ele lhe dissera de Toby Nelrus. Mas depois, com alguma sorte, ela sairia para sempre da sua vida.

O coração continuava a bater acelerado e ainda sentia um aperto persistente a raspar na garganta, mas isso era compreensível. Esquivara‑se por um triz a uma bala. No entanto, tal como aprendera muitas vezes como guarda‑redes, embora a vitória conseguida no último segundo não fosse muito agradável, uma vitória era uma vitória. E esta tinha certamente sido uma vitória. As expectativas de se tornar director regional haviam desaparecido, mas o dinheiro adicional da sua conta bancária mais do que compensava o término da sua associação com a Ultramed e Leigh Baron.


Era interessante como a mulher se tornara tão pouco atraente na derrota, divertiu‑se ele a pensar. A cana do nariz; o feitio dos lábios; a forma hirta e pouco feminina de andar. Parecia absurdo que um dia ele a tivesse achado desejável. Ele sabia escolher melhor... muito melhor.

‑ Lembre‑se, Frank ‑ disse Leigh, fechando estrondosamente a mala ‑, partindo do princípio de que o que me disse é verdade, não quero que se saiba uma só palavra na Ultramed.

‑ Claro, querida. Claro.

Até as suas ordens soavam diferentes: servis, ocas.

‑ Maldito seja, Frank ‑ resmungou ela.

Antes de ele lhe poder responder, ela virou‑se e desapareceu. Gradualmente, o aperto desagradável na garganta de Frank começou a ceder. Ficou satisfeito ao descobrir que já podia respirar fundo outra vez. Até conseguiu fazer um ligeiro sorriso. Ele sabia vencer. Tinha surgido outro desafio e ele conseguira resolvê‑lo. Contudo, ficou alerta para o facto de ainda não ser a hora de celebrar. Ainda não.

Mas seria em breve, pensou ele. Assim que Suzanne Cole e um tal Zachary Iverson tivessem sido despachados, haveria todo o tempo do mundo.

Levantou‑se da mesa e dirigiu‑se ao seu gabinete, revendo o plano que ele traçara. Tirar Suzanne do hospital era a única parte mais difícil e isso poderia ser feito facilmente com um dos cestos de roupa suja do hospital. Sempre fora um administrador do género "faz‑tudo". Não era invulgar que o vissem a transportar ferramentas para um trabalho, ou a mover uma peça de mobiliário. Assim, mesmo que o vissem com o cesto, era improvável que surgissem perguntas.

O resto era elegantemente simples: um telefonema para Zack, um encontro no Christmas Point e um acidente. Chegou mesmo a pensar ir ao centro de abastecimentos e apropriar‑se de um pouco de álcool intravenoso. Dar uma injecção intravenosa, em especial uma que só precisasse de alguns minutos não era nada de especial. Assim que Zack estivesse imobilizado com uma injecção de Serenil ou com a coronha do revólver, ele inseriria álcool suficiente para que ninguém duvidasse do que tinha acontecido ‑ em especial, desde que se encarregara de espalhar pelo hospital a bebedeira de Zack na noite anterior.

Inspirado. Elegante. Simples.

Perdido nos pensamentos, Frank percorreu o corredor do primeiro andar em direcção à ala nova, quase chocando com a cadeira de rodas do juiz, a ser empurrada para fora do gabinete de admissão. Clayton olhou duramente para ele e depois virou‑se para a jovem de bata às riscas que o estava a empurrar.

‑ Kathy, querida, este é o meu filho. Se não te importares, preciso de falar com ele. Mandarei chamar‑te, se voltar a precisar de ti. Obrigado.

Esperou que a rapariga saísse e, em seguida, utilizou a força e as suas próprias mãos para se empurrar e transpor a porta.

‑ Quero que saibas que me custou muito fazer o que tive de fazer ali dentro, Frank ‑ disse ele.

‑ Disparate, juiz ‑ afirmou Frank. ‑ Eu nunca esperaria nada menos do meu pai.

Clayton olhou para ele, surpreendido.

‑ Folgo ouvir‑te dizer isso, Frank. - Infelizmente, desejava que aquilo fosse tudo o que havia para dizer.

Mais uma vez, Frank viu um raio de luz.


‑ Pai, escute ‑ disse ele. ‑ Acabei de falar com a Leigh Baron. Eu sei o buraco em que ela o meteu.

‑ Sabes?

‑ Há três anos, uns tipos de Bóston vieram ter comigo por causa de uma oportunidade única na vida de entrar num negócio de terras. Eles eram tão certos e tão bem organizados que eu caí que nem um pato. Tirei o dinheiro emprestado do hospital, esperando repor a quantia no espaço de uma ou duas semanas. Foi... a coisa mais estúpida que jamais fiz...

Frank apoiou‑se num joelho e fez com que a voz soasse a tremer.

- Estava tão assustado e tão envergonhado que...

‑ Frank, devias ter vindo falar comigo.

‑ Eu sei, pai. Agora eu sei disso... ‑ Fácil. Nada de mais. Nada de exageros. - já me tinha ajudado a sair daquela confusão no Concord e... ‑ A voz sumiu enquanto olhava para as mãos.

‑ O que foi que a Leigh Baron disse? ‑ perguntou o juiz.

‑ Disse?

‑ Sobre o dinheiro.

‑ Oh. Bem, foi muito compreensiva, considerando tudo o que se passou. Sabe, tenho feito alguns negócios, uma segunda hipoteca da casa, a venda daquele lote em Wirmipesaukee, e consigo juntar pelo menos parte daquilo que devo. Ela compreende que eu quis repor o dinheiro e que provavelmente ficarei sem emprego. Por isso, prometeu não mexer no assunto, desde que eu apareça com a importância total nas próximas semanas.

‑ E consegues?

‑Vou... tentar.

‑ Quanto te falta?

Frank tentou disfarçar a excitação.

- Juiz, quero tratar sozinho deste assunto.

‑ E como esperas conseguir isso com uma mulher e duas filhas para sustentar e sem emprego?

‑ Eu cá me arranjo. Nós cá nos arranjaremos. Hei‑de arranjar qualquer coisa. Talvez tenha cometido um erro estúpido, mas ainda sou um bom administrador.

‑ O melhor.

‑ Obrigado por ter dito isso.

‑ E a Leigh Baron prometeu que, se repuseres o dinheiro, deixar‑te‑ia em paz?

‑ Foi o que ela me disse.

‑ Quanto?

‑ Juiz, por favor.

‑ Quanto precisas?

‑ Cerca de cem mil.

‑ Compreendo...

‑ Pai, o problema é meu.

‑ Disparate. Frank, estou muito satisfeito com a forma como estás a tratar de tudo isto. Eu estava muito furioso contigo, mas agora compreendo. Cometeste um erro, admitiste‑o e estás a tentar corrigi‑lo. É tudo o que esperava de ti. Eu tratarei de te arranjar o dinheiro assim que sair daqui.

- Mas... ‑ Frank voltou a olhar para as mãos. Primeiro Mainwaring, depois Leigh Baron e agora o próprio juiz!


‑ Nada de mas - continuou o juiz. ‑ Poderás pagar‑me quando as coisas melhorarem. Podes acreditar, valerá a pena não ter de explicar isto à tua mãe.

‑ Juiz, eu... não sei o que dizer.

‑ Bom, para começar, podes levantar‑te e prometer que, como administrador do Hospital Regional Davis, não deixarás que uma coisa destas volte a acontecer.

Devagar, Frank levantou‑se e analisou cuidadosamente todos os músculos do rosto do pai.

Quem disse que não se pode ter tudo?, pensava ele. Quem disse que não se pode ter tudo e ainda mais?

‑ Está a falar a sério? ‑ perguntou, com uma mistura de incredulidade e gratidão.

‑ Frank, acho que não há um único membro da direcção que não vote a favor da tua permanência, isto é, desde que estejas de acordo em continuar aqui.

Por fim, Frank conseguiu sorrir.

‑ Acho que consigo aceitar isso ‑ afirmou. ‑ Agora, penso que está na hora de sair dessa cadeira e se meter na cama. Está um pouco pálido. Que quarto lhe deram?

‑ Pedi o terceiro andar. Deram‑me o trezentos e um.

‑ Perfeito. O melhor da casa. Vamos. Eu levo‑o até lá.

Frank empurrou o pai até ao elevador. Quando chegaram ao corredor para a ala nova, parou.

‑ Ouça, juiz ‑ disse. ‑ Se não se importar de esperar aqui um segundo, preciso de verificar uma coisa no meu gabinete.

‑ Não há problema ‑ disse o juiz. ‑ Leva o tempo de que precisares.

A porta para o gabinete exterior de Frank ficava a menos de seis metros. Encostou a cadeira de rodas à parede, aproximou‑se da porta e meteu a chave.

No momento em que Frank se apercebeu de que não se ouvia música lá dentro, Henry Flowers apareceu no corredor, vindo das escadas.

‑ Ela não está aí, Mister Iverson ‑ disse ele.

‑Oquê?

Frank sentiu um forte e súbito arrepio.

‑ A doutora Cole. Não está aí.

Frank empurrou a porta, deixando à vista o buraco da porta interior.

‑ Está na unidade de cuidados intensivos com o doutor Mainwaring e o seu irmão ‑ explicou o guarda. ‑ E o senhor devia ter vergonha da maneira...

‑Não!

- o senhor amarrou‑a e...

Frank empurrou o homem para um lado e passou por ele.

‑ Nããão! ‑ voltou a gritar, enquanto atirava com a porta e descia as escadas.


 

‑ Dois minutos.

Sentado ao lado de Toby Nelrus, Zack pronunciou as palavras e colocou dois dedos no feixe da sua lanterna de bolso, para que Jack Pearl visse. Pearl anuiu e aliviou a infusão de Serenil.

Mantiveram Suzanne anestesiada com o medicamento durante nove minutos. Além da interrupção de todos os movimentos voluntários, o único sinal de alteração fora a queda quase imediata da pulsação, de cento e vinte para sessenta. E embora já tivessem passado mais de vinte minutos desde que haviam parado a anestesia, ela ainda não tinha acordado.

Em vez de esperar, Zack decidira deixar Bennice Rimmer ao lado dela e passar para Toby. A criança também reagira com uma queda acentuada da pulsação. Agora, estava na escuridão lúgubre, imóvel, excepto em relação à subida e descida do peito a respirar por baixo de dois cobertores finos.

Enquanto Zack controlava aquela cena surrealista, lutou contra o pressentimento cada vez maior de já ser demasiado tarde para o rapaz e possivelmente também para Suzanne. Desesperado, tentou recordar‑se de que estava muito cansado e tinha dores excessivamente fortes para manter qualquer aspecto positivo e objectivo. Talvez fossem precisas várias horas para se notar alguma alteração verdadeira. Talvez vários dias. E, seja como for, compreendeu que talvez fosse melhor esperar o pior.

‑ Um minuto.

Fez um sinal com a lanterna e olhou em redor da unidade. Mainwaring... Pearl... Suzanne... Toby... Tudo aquilo era muito bizarro, muito triste. Ele regressara a Sterling com muitas esperanças e muitas expectativas.

Trinta segundos...

Nunca mais, prometeu solenemente. Nunca mais teria expectativas.

Ouviu abrirem‑se as portas da UCI às escuras. Em seguida, ouviu passos.

‑ Quinze segundos.

Virou‑se e, através da escuridão, olhou para trás de Mamwaring, em direcção às portas. No lado de dentro dos vidros, conseguiu ver a silhueta de uma mulher em fato de negócios. à frente dela, estava Frank.

- Acorde‑o, Jack! - murmurou Zack apressadamente. - Rápido! Acorde‑o.

‑ Que raio se passa aqui? ‑ gritou Frank. ‑ Acendam as luzes! Acendam‑nas imediatamente!

Jack Pearl afastou‑se da cama de Toby. A seringa de plástico escorregou‑lhe das mãos e caiu no chão quando as luzes da unidade se acenderam.

Frank, com os punhos cerrados colocados de lado, estava junto ao posto de enfermagem.

‑ Tu foste despedido ‑ disse para Zack. ‑ Sai imediatamente deste hospital, antes que eu chame a Policia.

‑ Nem pensar, Frank.

Frank virou‑se para a secretária da unidade.

‑ Chame a segurança e depois ligue para a Policia. Diga‑lhes que um médico que foi despedido se recusa a sair do hospital.


A mulher não se mexeu.

- Faça‑o!

Sob o tom bronzeado, Frank estava lívido.

Uma das enfermeiras apressou‑se a correr as divisórias de vidro para os quartos dos outros doentes.

Zack afastou‑se do cubículo de Toby para enfrentar o irmão.

‑ Frank, ouve ‑ disse ele.

‑ Cala‑te! ‑ gritou Frank, com um olhar furioso.

Leigh Baron avançou mais alguns passos. Atrás dela, apareceu uma cadeira de rodas.

‑ Eu tentei dizer‑lhe, Frank ‑ queixou‑se Jack Pearl. Tentei dizer‑lhe que deviamos esperar...

‑ Jack, cale‑se...

‑ ... Devíamos ter feito uma análise da reacção retrospectiva...

- Maldito seja você, Jack!

- Mas você não quis dar ouvidos. Não me quis dar a oportunidade de melhorar o meu Serenil.

Frank avançou e deu um murro na cara do anestesista. A cabeça de Pearl inclinou‑se para trás. O sangue escorreu‑lhe pelo rosto enquanto ele caía no chão.

Os finos traços de Frank estavam torcidos e alterados pela fúria.

‑ Saiam! ‑ gritou. ‑ Todos vocês. Estão despedidos! Este é o meu hospital, raios! Estão todos despedidos!

‑ Frank, pára ‑ pediu Zack, calmamente. ‑ Acabou. Pára e escuta. Fizeste coisas terríveis, coisas tristes e muito terríveis... Frank, não compreendes? Olha à tua volta. Olha para toda esta gente. Não vês que está tudo acabado para ti? Acabou.

‑ Maldito sejas! ‑ gritou Frank, enquanto chocava contra uma cadeira e saltava para o irmão. ‑ Eu mato‑te! Juro que te mato!

A força do ataque atirou os dois homens contra a divisória de vidro de um cubículo vazio. Uma enfermeira gritou. O ombro magoado de Zack bateu no chão, causando uma dor agonizante. Entorpecido, rodou para um lado, sobre uma camada de vidros partidos que lhe cortaram as mãos e as costas. Levantou‑se e cambaleou. Antes de poder recuperar a visão, Frank saltou de novo para cima dele, atacou‑o como um animal e, com as mãos à volta do pescoço de Zack, empurrou‑o para trás.

Sem forças, os braços de Zack ficaram flácidos. A pressão dos dedos de Frank sobre a traqueia era implacável e, ao ouvir o ruído da sua própria laringe, Zack percebeu que ia morrer.

No momento em que as pernas cederam, ele borrou‑se todo. A dor desapareceu e ele sentiu‑se cair, desmaiando. Então, a parte de trás da cabeça bateu na esquina da armação metálica da cama. Sentiu um clarão ofuscante e cauterizante. Depois, instantaneamente, já não sentiu mais nada.

 


A luz, um brilho suave e quente, afastou a escuridão em ondas. Um a um, os rostos começaram a flutuar através do vácuo. Zack seguiu as imagens com uma curiosidade acentuada, satisfeito por distinguir no meio delas um velho professor, parente ou colega de turma. Gradualmente, os rostos tornaram‑se mais nítidos... e mais conhecidos. Um professor de anatomia de Yale... uma colega da escola mista de Wellesley, de... onde?... Um companheiro de alpinismo de Wyoming... Depois Annie Doucette... Toby... Suzanne... e por último Frank, de rosto desfigurado e vermelho de raiva, a rodopiar através da luz como um darões.

Eu mato‑te... eu mato‑te...

‑ Eu mato‑te... eu mato‑te...

No inicio, a voz era de Frank. Depois, era a do próprio Zack, a repetir as palavras, vezes sem conta.

‑ Iverson. Iverson, abra os olhos. Está tudo bem. Você sofreu uma concussão.

‑ Concussão?

‑ Exacto, Iverson. Olhe aqui.

Os olhos de Zack agitaram‑se e depois abriram‑se.

Durante vários segundos, o rosto acima dele continuou enevoado. Depois os traços tornaram‑se mais distintos.

‑ Ormesby?

O cirurgião anuiu.

‑ Você bateu com a cabeça. Esteve a dormir durante mais de uma hora.

‑ Uma hora? A Suzanne... ‑ Tentou levantar‑se, mas voltou a cair.

‑ Calma, Iverson. Calma.

Orrnesby pousou uma mão sobre o braço dele, para o acalmar.

O pensamento de Zack começou a aclarar. Estava na cama, ligado a um monitor, na unidade de cuidados intensivos. Tinha um tubo intravenoso ligado ao braço.

‑ Tive alguma convulsão?

‑ Segundo me disseram, teve. Provavelmente, devido à concussão. A TAC já está quente e à nossa espera.

‑ Não é preciso.

‑ Iverson, você aqui é o doente e não o médico. Entendeu? Mudei de ideias quanto ao facto de o julgar um louco. Não me faça mudar outra vez.

Zack anuiu humildemente. A cabeça doía‑lhe e sentia picadas de dor em meia dúzia de pontos do corpo. O desconforto ajudou‑o a aclarar a mente.

‑ A Suzanne... ‑ disse. ‑ Ela...

‑ Está ali, Iverson. Basta virar a cabeça para a direita.

Através do que pareceu ser uma breve rajada de metralhadora, Zack fez o que o cirurgião lhe pedira. Suzanne, tapada com um cobertor e com o tubo intravenoso num poste de transporte, acenou‑lhe de uma cadeira a menos de um metro e meio. Estava pálida, mas, tirando isso e dada a sua experiência penosa, não parecia muito mal.

- Olá, doutor ‑ cumprimentou ela. ‑ Vem aqui muitas vezes?

‑ Deus o abençoe, Clarkin ‑ murmurou Zack.

‑O quê?

‑ Oh, nada. Como está o Toby?

‑ Ainda está a dormir, Zack, mas não tão profundamente. Julgo que está prestes a acordar, mas é difícil ter a certeza. Os tipos de Bóston devem chegar a todo o momento para o levarem.

Atrás de Suzanne, junto ao posto de enfermagem, Zack conseguiu ver o juiz a olhar atentamente.


‑ Ouça ‑ disse Ormesby. ‑ Vou mandá‑los prepararem‑se para a sua TAC. Tenho de lhe dar mais alguns pontos.

‑ O meu ombro. Acho que...

‑ Nós sabemos. O Sam Christian já o examinou. Agora descanse, está bem?

‑ Onde está o Frank?

‑ Já deve estar na cadeia, penso eu. Você deve ao enorme guarda que ali está um grande obrigado, Iverson. Segundo parece, toda a gente ficou como que paralisada. Se ele não tivesse arrancado o Frank de cima de si quando o fez, penso que o seu bilhete de volta teria sido cancelado.

‑ Deus o abençoe, Henry ‑ disse Zack, massajando a zona do pescoço que lhe doía.

‑ Agora, fique quieto. Eu já volto.

‑ Fique quieto ‑ repetiu Zack.

Esperou que o cirurgião saísse e depois pegou na mão de Suzanne.

Ela puxou a cadeira para perto dele.

‑ Desculpa não poder levantar‑me ‑ disse ela. ‑ Quando tento, fico tonta.

‑ Porque não voltas para a cama? Falaremos mais tarde.

‑ Estás bem?

‑ Sinto‑me mal como a merda, se queres saber a verdade. Mas estou bem. O maldito do Frank quase nos matou aos dois.

‑ Quase. Mas acabou, Zack.

‑ Que horas são?

‑ Duas. Quase duas horas.

‑ Raios.

- O que foi?

‑ A reunião dos directores... Sabes o que se passou lá?

Ela apertou‑lhe a mão.

‑ Acho que o teu pai quer falar contigo sobre isso. Vejo‑te depois do teu exame.

‑ Claro. Entretanto, mantém‑te afastada da rádio.

Suzanne sorriu.

‑ Não te preocupes ‑ disse ela. ‑ Contudo, mais cedo ou mais tarde, terei de... bem... enfrentar a música.

Fez um sinal a Bennice Rumer, que trouxe uma cadeira de rodas e a empurrou para fora do quarto.

Momentos mais tarde, o juiz apareceu à cabeceira de Zack.

‑ Tinhas razão quanto às minhas pernas ‑ disse.

‑Fico feliz.

‑ Zachary, não te preocupes com o Frank.

‑ Preocupo‑me. Juiz, ele magoou muita gente. Ele está muito doente.

‑ Eu sei. Roubou ao hospital uma grande importância em dinheiro. Parece que este negócio com o Jack Pearl e o tal Mainwaring era uma tentativa para o repor.

‑Meu Deus.

‑ Só tive a certeza disso ontem, mas suspeitei que ele estava metido em sarilhos há já algum tempo. O Frank nunca foi capaz de me contar nada. Eu... não sei onde foi que nós errámos.

"No nascimento", teve Zack vontade de dizer. Olhou para a perplexidade do rosto do pai e percebeu que não ganhava nada em responder.

- Juiz, a reunião dos directores? O senhor foi?

- Fui. Já tinham votado a favor da venda, mas eu cheguei


suficientemente a tempo para virar as coisas ao contrário. Depois da votação, o Frank teve o descaramento de me perguntar se íamos mantê‑lo como administrador. Por mais que me tivesse custado, eu disse‑lhe que era absolutamente impossível.

‑ óptimo ‑ afirmou Zack, sem o menor entusiasmo.

‑ Ele devia saber que não podia ter tentado esconder‑me a verdade. Estava sempre a fazê‑lo. Nunca conseguia dizer‑me. Não tolero este tipo de decepção. Não tolero mesmo nada. - Suspirou. ‑ Tinha tantas esperanças nele. Dei todas as oportunidades ao teu irmão, Zachary. Todas as oportunidades. Sabes disso, não sabes?

Zack fechou os olhos e, instantaneamente, viu‑se num slalom, a rebolar pela neve da montanha, o joelho a latejar de dor. O acidente afastara‑o dos desportos de competição e, segundo parecia, também da maior parte dos interesses do pai. Na altura, fora a pior coisa que lhe acontecera. Hoje, ele entendia que talvez tivesse sido a sua salvação.

- Claro que deu, juiz ‑ disse, desviando os olhos. ‑ Claro que deu.


 

Como se pudessem quantificar um milagre folha a folha, os meteorologistas proclamaram o dia 10 de Outubro como o pico da estação da queda das folhas na zona centro‑norte de New Hampshire. E na verdade, à medida que o dia ‑ uma quarta‑feira ‑ avançava, com hectare após hectare de centelhas vermelhas, cor de laranja, acastanhadas e douradas sob um céu azul e sem nuvens, nem mesmo os mais idosos, que tinham sempre uma opinião diferente sobre tais questões, podiam argumentar.

No pequeno auditório em forma de átrio do Holiday Inn de Sterling, os raios de sol entravam pelos painéis de vidro, banhando os cerca de cem empregados do hospital, membros do conselho de directores e médicos, fornecendo‑lhes um calor que fazia com que o Inverno no Norte de New Hampshire parecesse ainda muito distante. Em todo o átrio, sentia‑se no ar a animação e a história. Tinham vindo de comunidades de toda a zona norte do estado e reuniam‑se há três dias em redor de mesas de conferência e salas privadas, elaborando a estrutura de um novo consórcio de hospitais.

Agora, dentro de minutos, os frutos desses esforços seriam apresentados na reunião, e começaria uma nova era na medicina comunitária. Os hospitais envolvidos ‑ sete, no total - juntar‑se‑iam de uma forma que lhes daria um enorme poder de compra, sem ser preciso sacrificar nem um pouco a autonomia.

O juiz Clayton Iverson, com a esposa a seu lado, passeou entre a multidão de espectadores, trocando cumprimentos e apertos de mão com outros participantes, a maioria dos quais sabia que ele estava prestes a ser nomeado como primeiro presidente do conselho do consórcio. A sua selecção para o lugar fora virtualmente unânime. A comissão de pesquisas considerara a experiência e a integridade absoluta como as principais qualificações para o lugar e, devido à maneira como ele resolvera o desastre entre o Regional Davis e a Ultramed, o juiz provou possuir amplamente as duas.

O que mais impressionou o grupo foi a recusa do juiz em interferir no julgamento e sentença do seu filho Frank numa infinidade de acusações, que variavam desde a co‑conspiração no teste do medicamento não autorizado, Serenil, a ataques com intenção de matar.

Depois, foi a maneira como cuidou do cirurgião, Jason Mainwaring. Depois de exigir e conseguir reter a licença médica de Mainwaring, o juiz conseguiu que as acusações contra ele fossem reduzidas em troca da extinção da sua empresa farmacêutica; em consequência, arranjar‑se‑iam fundos para ajudar os doentes que tivessem sido prejudicialmente afectados pelo anestésico.

E, por último, foi o papel que ele desempenhou nas exigências feitas pelo Hospital Regional Davis à Ultramed. O juiz não só cuidara da devolução ao controlo comunitário como, insatisfeito com o valor obtido com a venda da empresa de medicamentos de Mainwaring, convencera os directores da Ultramed da sagacidade de aumentar os fundos para o tratamento dos afectados pelo Serenil, fazendo‑os contribuir com um milhão de dólares.

Apesar de estar sempre a sorrir e parecer descontraido, entre os apertos de mão, o juiz não deixava de olhar para as portas ao fundo do vestíbulo.


‑ Consegues vê‑lo? ‑ perguntou Cinnie.

‑ Não. Falaste com a namorada, não falaste?

‑ Sim, querido, falei. Disse‑lhe que tinhas sido seleccionado e pedi‑lhe para convencer o Zack a estar presente na proclamação.

‑E?

‑ E ela disse‑me que ia tentar, mas que duvidava que ele viesse.

Cinnie puxou‑o para um canto, longe da multidão.

‑ Clayton, por favor ‑ disse ela. ‑ Ainda vais a tempo. Por favor, pensa bem nisto e vamos para a Florida. Só durante o Inverno.

‑Não.

‑ Mas porquê? A Lisette foi‑se embora com as miúdas e o Zachary raramente aparece para nos visitar. Já não sei há quanto tempo não fazemos um jantar de domingo. Temos lá amigos. Eu... Clayton, não quero passar outro Inverno aqui. Por favor.

‑ Não, definitivamente, não. O Zachary há‑de aparecer. Vais ver.

‑ Não sei. Ele tem andado muito distante, desde aquele terrível assunto com o Frank. Pergunto‑lhe o porquê quase sempre que falamos, e tudo o que me responde é que tem coisas para resolver. Diz que nem sequer tem a certeza se vai continuar em Sterling.

- Oh, ele fica. Mudou‑se para a casa da tal Suzanne. Parece‑te que ele está a planear partir?

‑ Não ‑ respondeu ela. ‑ Acho que não.

‑ Tomem os vossos lugares, meus senhores. Por favor, tomem os vossos lugares ‑ anunciou a dirigente da conferência, batendo no microfone. ‑ É disto que todos têm estado à espera.

‑ Ele virá, Cynthia ‑ disse o juiz. ‑ Vais ver. O irmão nunca soube apreciar as coisas que eu fiz por ele, mas, no fim, o Zachary há‑de saber. Ele virá para partilhar isto.

‑ Clayton, por favor...

‑ Não. E nem mais uma palavra sobre este assunto.

‑ Senhoras e senhores, é com muito prazer que anuncio oficialmente o nascimento do Consórcio Hospitalar Comunitário do Norte de New Hampshire.

Ouviu‑se um aplauso estrondoso. De novo, o juiz virou‑se para as portas.

‑ Aceita, Clayton ‑ disse Cinnie. ‑ Ele não vem.

‑ Maldito seja ‑ murmurou Clayton. ‑ O ingrato... Malditos sejam os dois.

- E, como primeira ordem de trabalhos, gostaria de vos apresentar o homem que a nossa comissão de pesquisas escolheu para chefiar o nosso consórcio. É um homem de talento e integridade, um homem conhecido por muitos dos que aqui estão presentes, pelo trabalho incansável a favor da sua comunidade e hospital. Ele é um homem devotado, dedicado inflexivelmente aos principios da justiça...

 

A dez quilómetros para sul do Holiday Inn, a repousar sobre o campo deserto e conhecido por Meadows, o motor do modelo carmesim ganhou vida. Um rapazinho corria pela erva dourada, de mãos dadas com uma garota.


‑ A Jeunifer quer aprender, Zack ‑ disse, pegando no telecomando. ‑ Posso ensinar‑lhe? Sozinho. Posso mostrar-lhe como se põe o avião a voar?

‑ Primeiro, que tal mais um truque rápido de moeda?

‑ Oh, não, quero dizer, não pode ficar para mais tarde? Zack, ela quer mesmo aprender.

Zack apoiou‑se nos cotovelos e inspirou o perfumado ar da montanha. Depois, virou‑se para Suzanne e deu‑lhe um beijo no ouvido.

‑ Acho que o miúdo está apaixonado pela tua filha ‑ sussurrou.

‑ É o que parece ‑ respondeu ela. ‑ Toby, tens carta para conduzir essa coisa?

‑Tenho o quê?

‑Nada, nada.

‑ Posso, Zack? ‑ perguntou de novo o rapaz.

‑ Claro, garoto ‑ respondeu Zack. ‑ Claro que podes.

Com Jeunifer Cole a olhar atentamente, Toby Nelrus moveu suavemente a alavanca do telecomando. Instantaneamente, o Fleet atirou‑se para a frente, atravessou o campo e subiu para o perfeito céu do meio‑ dia.

 

                                                                                            Michael Palmer  

 

                      

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