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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A QUEDA DE JOLIE / Marcia Ribeiro Malucelli
A QUEDA DE JOLIE / Marcia Ribeiro Malucelli

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

UNIVERSO UM

No campo das observações contrárias ao princípio da simetria da matéria, a quantidade de partículas ordinárias deveria ser igual à de antipartículas ordinárias. Se havia quantidades iguais de matéria e antimatéria nele, essas substâncias se cancelariam, e o Universo deveria ter se destruído imediatamente. Se isso lá fosse verdade, nós não deveríamos existir, já que uma anularia a outra.

Mas existimos, então há algo errado em tudo isso.

O problema da física e dos físicos são as leis que explicam por que o Universo funciona. Como acontece no nível macro, ele não se aplica no nível micro.

Segundo os cientistas, o Modelo Padrão da física de partículas, a teoria dominante que descreve os blocos de construção mais fundamentais do nosso Universo, e que se tem revelado bastante precisa, se esqueceram de que elétrons, muons e tau leptons deviam se comportar como tamanhos distintos produzindo evidências contrárias, já que não explicam a gravidade ou o pensamento da matéria escura que habita o espaço inabitado e invisível.

E o que toda essa confusão tem haver comigo? Até onde eu sabia nada, mas algo aconteceu comigo naquela noite de março, sob as ondas cristalinas do Mar do Caribe, no meu iate de 50 pés náuticos, objeto de desejo meu por anos seguidos, e de esforço empenhado.

Vocês vão dizer que seria impossível, mas mais impossível ainda que a física que explica os buracos de minhoca e a pluralidade dos mundos, era a que eu aos vinte e quatro anos estivesse rica, comprando um iate. A resposta para isso é a mesma que explica tais buracos, tais paredes que atapetam o Universo, que vivemos num mundo feito por regras físicas criadas por uma inteligência superior.

Pare se ter uma ideia, anos atrás, cientistas propuseram uma teoria que levava em conta as regras da mecânica quântica, que agiria sobre a ação dos buracos negros, onde para a teoria clássica, a defesa que um objeto ao passar pelo horizonte de eventos, fosse ‘sugado’ de forma suave para dentro do buraco negro, onde o objeto seria imediatamente reduzido a seus elementos fundamentais, é que na prática, seria dissolvido, capaz de reter e manter a matéria temporariamente, com a possibilidade de liberá-la depois, atravessando um túnel do tempo.

Quando Albert Einstein desenvolveu a Teoria da Relatividade indo e voltando de trem ao trabalho, imaginava que sob o ponto de vista da física quântica, o menor trajeto entre dois pontos poderia ser qualquer trajetória possível dentro do espaço. De fato, o Princípio da Incerteza de Heisenberg, termo utilizado para designar o estado de um elétron, mostrava exatamente isso.

Ao se calcular as trajetórias de uma partícula subatômica, podemos definir suas possíveis trajetórias, mas não podemos definir sua velocidade. Por outro lado, se calcularmos sua velocidade não podemos calcular sua trajetória. Tal abordagem da física quântica é a que mostra que o Universo pode ser constituído sob muitas versões.

E é aí que eu entro.

A Teoria do Multiverso prega que o Universo em que vivemos não é o único que existe. Na verdade, nosso Universo pode ser apenas um entre um número infinito de Universos que compõem um Multiverso.

Mas se o tempo realmente existir, e você há um tempo me perguntasse se o Big Bang era a resposta para a origem do Universo, e se sua origem, nos momentos primórdios da inflação e de espalhamento da energia concentrada, em um ponto quente de densidade infinita, criaria não um, mas vários Universos, eu fecharia a mão e lhe daria um soco.

Sim. Um soco. Nunca tive paciência com gente amalucada. Contudo, talvez a maluca fosse eu.

Quando a Teoria M tentou explicar o que veio antes do Big Bang, nos vimos frente a, na verdade, o choque de duas dimensões, que criaram o nosso Big Bang, depois de outros Big Bangs. Sempre criando Universos e também destruindo alguns.

Outros cientistas ainda disseram que a forma do espaço-tempo talvez fosse plana, em oposição à esférica, se estendendo infinitamente. Se o espaço-tempo dura para sempre, então deveria começar a se repetir em algum ponto, porque há um número finito de formas com as quais as partículas podem ser organizadas no espaço e no tempo.

O que nos faz pensar que se você olhar distante o suficiente encontrará outra versão de você, versões infinitas de você, com outros vocês fazendo exatamente o que você está fazendo agora, tentando entender tudo isso, enquanto outros vocês estarão com uma roupa diferente, bebendo outra marca de champanhe, navegando noutro mar que não o do Caribe, porque escolheram carreiras e fizeram escolhas de vida totalmente diferentes.

Então, se provável há outras terras, outros iates e outras festas acontecendo neles haverá também outra Jolie sendo morta. Porque acabei de ser assassinada por um homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel, que estava sobre meu corpo, segurando uma adaga com ponta de esmeralda, de onde verte o meu sangue, que cai na cama onde meu corpo jazia morto.

E a maluca sou eu? Não. Nem tanto. Porque eu me formei em Física, ou não poderia estar falando tudo isso. Havia escolhido o ramo da Física quântica, um ramo para lá de teórico, que estuda todos os fenômenos que acontecem com as partículas atômicas e subatômicas, ou seja, menores que os átomos, como os elétrons, os prótons, as moléculas e os fótons, por exemplo.

Não sei bem o que aconteceu, porque não consigo me lembrar dos detalhes, mas larguei um belo emprego no CERN, European Organization for Nuclear Research, aquele mesmo que estuda a antimatéria, num grande laboratório transfronteiras entre a Suíça e a França, que conseguiu que cada acelerador aumentasse a velocidade do feixe de partículas antes de injetar no seguinte, para tentar nada mais nada menos, que explicar a origem da massa das partículas elementares e encontrar outras dimensões do espaço.

Contudo, dali a comprar uma jazida de esmeraldas foi um grande passo, confesso. Só não sei como comprei nem como vendi para um país que nem se quer constava no Google Earth, para homens que nunca havia visto antes, comendo e bebendo do melhor no meu iate, enquanto confabulava minha morte.

E por que fui morta? Não me lembro. Mas talvez também não soubesse, já que acordei num rompante, com um homem de com cabelos espetados por gel sobre meu corpo e meu sangue vertendo da adaga de ponta de esmeralda.

Porque desesperada, com a sensação de que o assassino sabia que eu estava ali fora do corpo, olhando ele sobre o que restou de mim, saí correndo, atravessando as paredes de metal do iate, em meio a uma música que tocava, chegando à proa onde os que os homens que compraram a mina que eu vendi, e que mandaram me matar, estavam confabulando, num total de seis, vestindo também roupas negras; ou era a impressão que dava.

Nunca o medo se fez tão presente na minha vida, ou no que restou dentro de mim, como naquele momento. Porque afinal eu era só espírito atravessando paredes de metal, tentando se lembrar de afinal o que eu fazia ali, e o porquê de eu estar sendo morta.

No fim, nada me restava a não ser a luz que incendia sobre as águas do mar, aquele que poucas horas atrás, eu vislumbrava sentada no banco de napa branca, na popa do iate, sendo servida com o melhor champanhe que o dinheiro poderia comprar.

E agora só a luz, talvez uma que me levaria para lugares onde o ódio por um semelhante, toda a fúria em tirar a vida de alguém, não existisse.

Porque se acham que estou aqui e agora, relatando tudo o que se tornou um grande borrão na minha visão lógica, então se prepare, porque eu saltei nas águas cristalinas, no feixe de luz que incendia sobre ela, deslizando pela água morna, que tocava com os dedos imaginando que o espírito também continha o tato. Caindo cada vez mais para o fundo, mergulhando entre peixes iluminados, que mais pareciam lanternas, observando minha queda final.

E tudo terminou. A água morna, os peixes brilhantes, a luz que incidia há pouco ali, tudo sumiu. Porque eu estava caindo de verdade, sentindo meu estômago vir à goela, com o medo subindo e descendo nas minhas veias, com toda adrenalina, serotonina, noradrenalina, dopamina e qualquer outra amina biogênica se esparramando dentro de mim, vendo que eu estava no céu, ou que parecia ser o céu. Caindo a uma velocidade exorbitante sobre uma cidade, ou que parecia ser uma cidade, abaixo de mim, sabendo que se meu corpo, que já não era mais só um espírito, continuasse a cair naquela velocidade, eu ia me espatifar, morrer pela segunda vez.

Mas naquela dimensão, num dos muitos e múltiplos Universos, devendo existir uns ao lado dos outros, eu Jolie, talvez ainda não tivesse sido assassinada.

 

 

 


 

 

 


UNIVERSO DOIS

— Ahhh!!! — Jolie gritava sentindo a garganta secar, os cabelos erguidos e toda sua pele vibrando pela velocidade empreendida.

O que já era algo inusitado, afinal ela estava morta. Ou não estava. Nem ela sabia. Só que caía de uma altura considerável como se tivesse sido lançada de um avião, em queda livre.

Jolie ficou pensando se afinal não estava em algum setor da sua passagem post-mortem, que caía até pagar os erros, que Deus a castigava por algo. Talvez fosse o inferno, afinal ensinaram a ela que céu em cima inferno embaixo.

E só podia ser por causa daquela mina de esmeralda, que ela devia ter desconfiado que não fosse um negócio muito honesto. Que ninguém lucrava 300% como ela lucrara, vendendo àqueles homens vestidos de preto, que mandaram matá-la.

“Mas quem eram eles?” pensou enquanto caía.

— Ahhh!!! — os gritos foram ficando mais fracos, a língua secara e o som da voz parecia não mais surtir efeito.

Afinal ela ia se esborrachar em pouco tempo naquela cidade abaixo dela, com as luzes acesas como se fosse noite, porque Jolie não via mais a luz brilhante para a qual saltara da proa do iate. De todo aquele momento, só sobrou a roupa molhada, grudada a ela pelo ar gelado que provocava câimbras no corpo, que a faria se estatelar no chão em três, dois, um.

— Ahhh!!! — gritou vendo que estava a milímetros do chão, Jolie podia até dizer que cheirava o piso sob ela, se vendo suspensa no ar, pendurada ela não sabia como nem por quem.

Jolie esticou um dedo e tocou o chão. A temperatura não era quente como o inferno deveria ser. Tocou mais uma vez e mais outra e inclinou os pés, tocando o piso de temperatura normal. Inclinou mais um pouco o corpo e tentou ficar na vertical, tocando o chão com os dois pés como um ser humano tocaria; um bípede.

E o som começou a reverberar ali, no que seus pés tocaram aquela terra estranha.

Buzinas melodiosas, carros compridos feito charuto e gente indo e vindo. Jolie estava numa cidade bem movimentada àquela hora, afinal estava escuro, com as luzes das ruas acessas, e também dos edifícios, com muitas mulheres e homens, todos vestidos de calça e casaco de veludo azul marinho, com mais gente indo e vindo, carregando sacolas azuis, sob um piso azul, porque tudo ali era azul escuro, e um floco de neve caiu em seu nariz.

“Estou sonhando?” ela esticou a mão vendo a neve caindo.

Jolie olhou para cima e mais um floco, outro floco, e outro floco, e a neve surgia. Ela estava paralisada, era março, verão no Caribe, com o ar quente soprando da costa caribenha. E ali a neve desabava, com pessoas correndo, tentando se proteger, com a neve aumentando, congelando Jolie, que vestia pijama de seda azul, o mesmo com que saíra do corpo morto.

— Hei? — alguém falou atrás dela. — Vai congelar vestida assim Mulher.

Jolie se virou e viu um belo moreno vestindo uma farda, uma que não conhecia. Não que fosse especialista em fardas.

Ela piscou, piscou, e viu que ele vestia uma calça escura, azul marinho, feita de um tecido que lembrava mesmo o veludo. O homem moreno também usava um casaco, parecido com um sobretudo, porque afinal nevava. Tinha cabelos fartos, ondulados e olhos verdes.

Seu rosto era bonito, adornado por um farto bigode.

— Não estava nevando... — a voz de Jolie saiu estranha da sua boca, como se ela falasse outra língua.

Mas ela sabia o que falava, mesmo não sabendo que língua era aquela. Jolie ficou tão assustada que passou a mão pela língua.

— Que está fazendo Mulher?

— Eu? — ela o olhou sabendo que não sabia. — Nada!

— Vamos! — apontou para que ela andasse que saísse da noite fria, que caía tomando todo o piso da avenida azul marinho e iluminada, esvaziando àquela hora.

Jolie arregalou os olhos quando percebeu seus pés presos a neve. Aquilo tinha acontecido muito rápido, porque caíra numa terra que não estava coberta por neve.

“Ou estava?” porque agora, todo o piso tinha neve, como se ela tivesse caído ali há muito tempo.

Um carro tipo charuto passou por ela buzinando melodias. Tudo era azul, iluminado e feliz.

— Que horas são? — foi o que perguntou.

— Horas de sair do frio, Mulher — ele falava naquela língua diferente aos seus ouvidos, mas que o cérebro dela traduzia.

— Que estranho...

— Estranho é ver uma Mulher na neve vestida de... — e se aproximou para enxergar melhor. — Do que está vestida?

— Seda.

— Seda? O que é seda?

— O que estou vestindo.

Mas o homem moreno continuou confuso. Jolie não acreditou naquilo, ele estava mais confuso que ela, quando ele então apitou.

— Se não sair da avenida vou ter que prendê-la Mulher.

— Esplêndido!

— Esplêndido?

— Vou aproveitar e fazer uma queixa.

— Uma queixa? — o homem moreno olhou em volta e a neve caía, outro carro tipo charuto passava e o corpo de Jolie, vivo ou morto, começava a congelar. — Contra quem?

— Contra quem me matou.

O homem moreno só riu. Depois viu a cara sincera da Mulher vestida de ‘seda’, e recuou.

— Quem lhe matou?

— É o que quero saber.

— Como pode alguém ter lhe matado se está viva?

— Ai é que está. Não estou viva.

— Não está?

— Ou talvez esteja... Apenas aqui...

— Apenas aqui? — e o homem moreno voltou a rir.

Deu alguns passos para longe dela e voltou a apitar. Seguindo seu caminho de homem da lei, mantendo a cidade sob a ordem, vendo se havia pessoas na neve, e se alguma estava praticando algo ilícito, fora do comum ou atentando ao pudor. Então ele apitaria e logo tudo voltaria ao normal.

Mas Jolie correu e parou na frente dele.

— Belisque-me!

— Fazer o que?

— Belisque-me!

— Não posso fazer isso.

— Por que não?

— É contra a lei, Mulher.

— Ahhh! — Jolie olhou em volta. — Então é aqui onde fazemos as leis funcionarem? Esplêndido! Quero fazer uma queixa contra os homens de preto que estavam confabulando no meu iate — e Jolie terminou de falar para o homem moreno que arregalava os olhos verdes, sem saber se devia levá-la realmente presa. — E então? — insistiu.

— Então que eu não sei o que é um iate?

— Um barco.

— Para que?

— Navegar? Talvez?

— Mas não temos onde navegar Mulher.

Jolie escorregou um olhar em volta.

— E por que não?

— Porque o calor secou a água.

— O inferno não tem água?

— Inferno?

— Mas sabe o que é um barco não?

— Dos livros de histórias.

— De onde?

— Acho que o frio lhe atingiu Mulher.

E Jolie ficou ali piscando e piscando, tentada mesmo a pensar que estava a ponto de corroborar aquilo.

— Onde disse que ficava sua prisão?

O homem moreno apontou para frente e Jolie caminhou por uma cidade nevada, azul marinho, mas iluminada por postes, que não tinha mais mares a ser navegados porque o calor os secou, porque só os livros de histórias tinham mares. Jolie preferiu mesmo estar morta, de uma morte morrida menos complicada que aquela. Mas talvez não estivesse morta, porque a sua frente um homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel procurava algo.

Ela correu e o homem moreno ficou sem ação, correndo atrás dela.

— Mulher? Pare Mulher!

— Meu nome é Jolie...

— Mulher! Estou lhe dando ordem para parar!

Mas Jolie só parou quando alcançou a parede de um prédio úmido, como se estivesse ficado debaixo da água longos períodos.

Ela tocou os dedos da mão, uns contra os outros sentindo a umidade.

— O que disse sobre barcos em livros de história?

— Sabia que o frio... — e ele calou-se no que foi puxado para trás da mesma parede úmida em que ela se escondia.

— Veja! — apontou Jolie discretamente para o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel. — Está vendo aquele homem?

— Você é maluca, Mulher, mas estou vendo um Homem ali.

— É ele!

— Ele?

— Quem me matou.

— Como pode ter sido morta se está viva?

— Ahhh... Não consegue entender?

— Acredito que nem você Mulher.

Jolie concordava com aquilo. No fundo ainda achava que estava numa gaveta de necrotério, porque seu corpo foi encontrado inchado, no mar do Caribe, após ser morta com uma adaga, e lá desovada.

Mas sabia que talvez aquilo significasse mais, que a vida era muito mais complicada que dois mais dois. Que talvez tivesse atravessado um buraco de minhoca, que embora em algum momento toda a história pudesse ser descrita como alternativa e todo ponto de divergência ocorreu no passado, ela tenha feito com que seu futuro se desenvolvesse de maneira distinta a atual. Então, em algum momento, Jolie ficou pensando que ao se jogar no mar, ela talvez tivesse gerado uma energia tão grande, que buracos de minhocas se formaram ali para que ele alterasse sua história.

E se aquele frio todo significasse o Big Freeze, o Grande Congelamento. Porque enquanto o Universo crescesse e se expandisse, a matéria decairia e se espalharia como numa entropia, e toda a atividade no Universo cessaria, e o mundo estaria morto para sempre.

— Pode se aproximar daquele homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel e pedir-lhe identidade?

— Identidade, Mulher?

— Documentos. Coisas que comprove quem você é.

— Há muito abolimos documentos que comprove quem somos.

— Por quê?

— Porque somos poucos no mundo Mulher, após tantas guerras e destruição pelo calor.

E Jolie olhou em volta. Naquele mundo pós alguma guerra, a documentação foi abolida, pessoas se preocupavam com as outras, se vestiam de azul marinho num lugar que não havia mares, mas que congelavam no frio. Também percebeu que a cidade era limpa e organizada.

Talvez uma noite na delegacia não fosse algo tão ruim assim, se de repente o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel não olhasse para trás e visse Jolie ali escondida. Ela imediatamente entendeu o que significava aquilo, o assassino contratado para matá-la sabia que ela havia atravessado o buraco de minhoca.

Ela se virou e pegou o homem moreno pela mão e correu. Ele se viu sendo puxado por ela e apitou.

— Não!!! — gritou ela. — Vai chamar a atenção dele!

Jolie largou da mão dele e correu em direção ao homem vestido de preto e com cabelos espetados por homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel, que alertado com o barulho e ela correndo atrás dele também correu, por ruas que começavam a ser apagadas, como se uma borracha apagasse o piso por onde corriam.

— Mulher? Mulher? — o homem moreno ficou imaginando se ela não seria uma doente da mente, como tantos outros que por lá apareciam vez ou outra, e que ele precisava alertar os outros da guarda, a lei precisava ser impetrada, nada devia ficar fora do acerto.

Mas Jolie corria desesperada atrás do homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel, que ficava cada vez mais borrado, mais deletado, até que ele sumiu.

— Não!!! — gritou vendo que estava sozinha na rua iluminada tomada pela neve, quando Jolie parou de correr, viu peixes feitos lanternas se debatendo fora da água.

Todo o medo se fez presente na cabeça amalucada de Jolie.

— Mulher?! — gritou o homem moreno quando conseguiu alcançá-la, impactado ao ver peixes de livros de histórias no chão, morrendo pela falta de oxigenação. — De onde eles vieram?

— Do mar.

— Mas não existe mais mar, Mulher.

— Preciso saltar! — e correu.

— Precisa o que?

— Saltar! Saltar! Preciso saltar! — Jolie correu para um dos prédios azul marinho iluminado.

Carros feitos charutos, cabeças que vez e outra saíam de suas janelas, uma música melodiosa, e Jolie correndo. O homem moreno não viu alternativa não ser correr atrás dela outra vez.

Jolie encontrou uma porta aberta. Entrou alcançando a escada, subindo com todo seu fôlego e seu pijama úmido, cheirando água salgada e neve. Viu que todas as paredes tinham papel de parede azul marinho, com balões e lanternas desenhados, que se apagavam, deletadas.

— Mulher? Mulher? — chamava andares abaixo.

Jolie não podia parar, não podia desistir, precisava subir encontrar um lugar alto, saltar. Porque tudo o que sabia era que precisava saltar, voltar ao iate, interromper sua morte. E se nosso Universo existia dentro de um tecido tridimensional de espaço-tempo, então a noção do tempo num tecido quadrimensional significava que poderiam existir inúmeros Universos invisíveis aos olhos humanos, que ela precisava atingir alcançar, fossem quantos fossem.

Mas quando chegou ao último andar toda cidade antes nevada, estava pegando fogo. Um incêndio de proporções épicas, provável destruindo tudo. Labaredas vermelhas e alaranjadas, com todo calor subindo do chão.

Nunca a ideia de inferno se fez tão presente.

— Mas que droga!!! — ela explodiu em pânico, sem fôlego, olhando tudo antes azul marinho tornar-se vermelho.

— O que está acontecendo? — o homem moreno estava atônito, vendo o fogo que nunca vira, agora tomando conta de tudo até onde olhos alcançavam.

Ele se aproximou do peitoril do edifício em que subiram e olhou para baixo, para longe e para baixo, vendo uma terra seca e alaranjada, tomando conta do piso coberto por neve; e não era a derretendo, mas a substituindo.

O homem moreno então se virou atônito para ela, a vendo em pé, no peitoril.

— Sinto muito... — foi só o que Jolie falou.

A última coisa a ser ouvida, foram os gritos dela.


UNIVERSO TRÊS

— Ahhh!!! — Jolie gritava sentindo a garganta secar, os cabelos erguidos e toda sua pele vibrando pela velocidade empreendida, como se tivesse sido lançada de um avião, em queda livre.

As labaredas ocupavam todo o terreno abaixo dela e Jolie imaginou se ao chegar embaixo ela não ia virar churrasquinho de carne morta, afinal estava morta, na cama do iate, com seu assassino sobre ela, deixando o sangue dela correr da adaga de cabo de esmeralda, com que a matou.

“Só posso estar sonhando”, pensou; se é que mortos sonham, com o chão se aproximando em três, dois, um.

— Ahhh!!! — e o piso não mais pegava fogo.

Mas era quente ao toque, que Jolie tocava com um dedo.

E o chão também era espelhado, porque Jolie se enxergava ali, como num espelho, com seu duplo a olhando, também com um dedo esticado, tocando algo, e um céu atrás dela, como o dela.

“Doppelgänger?” até achou que era.

Porque dizia uma lenda alemã que Doppelgänger é sua cópia idêntica, um ser fantástico capaz de ‘clonar’ uma pessoa e imitá-la nos mínimos detalhes. E voltou a tocar o chão vendo a outra Jolie tocando o chão dela.

Jolie ergueu os olhos, vendo a outra Jolie também erguer. E aquilo sim era assustador, já que John Donne, poeta do século 16 foi visitado por seu Doppelgänger, que na verdade apareceu para sua esposa segurando um bebe. Logo depois, a esposa teve um natimorto. Mas John estava milhares de quilômetros de distância. Como também Percy Bysshe Shelley, poeta inglês que encontrou seu Doppelgänger apontando em direção ao Mar Mediterrâneo. Pouco depois, ele morria num acidente de barco a vela, se afogando no Mar Mediterrâneo. Então a ideia de outra Jolie tentar avisar que ela iria morrer já estando morta, não fazia o menor sentido.

E achou graça tentando outra vez se colocar na vertical quando a outra Jolie fez o mesmo. Porque em algum lugar do espaço profundo, a teoria que afirma o que místicos de toda ordem já diziam, que há mundos invisíveis aos olhos materiais, habitado por almas desencarnadas, alienígenas, deuses, demônios, e outra Jolie a olhando e sorrindo.

Agora Jolie, a original, teve medo da vida, porque a chamada realidade alternativa também é conhecida como realidade espelhada, segundo a qual, um único Universo está paralelo ao nosso, contudo tudo nele são opostos aos nossos. Ela até não podia imaginar nossa pele do lado de dentro e nossos longos intestino delgado e grosso do lado de fora, como um tubo de acrílico mostrando nossa última refeição, porque estaríamos encontrando outros de nós ao contrário.

Mas era o que acontecia ali. E em dobro. Porque todos estavam em número de dois.

Jolie se virou e a outra Jolie apareceu. A Jolie original então fechou os olhos, com medo. Não havia calor, não havia sons, com ela ainda de olhos fechados. O que ia ganhar com aquilo não sabia, então abriu os olhos para ver que tudo era vermelho; o chão, as nuvens, os edifícios e os carros parecendo bolas de futebol, circulando de um lado para o outro, no ar, em dobro.

— Incrível... — escapou de sua boca.

Os prédios na verdade se resumiam a dois, um de cada lado, vez ou outra, ligados por uma ponte. E eram dois edifícios com muitas camadas de construção, entrando e saindo da fachada, com centenas, se não milhares de andares, invadindo o céu.

Os olhos de Jolie não acreditaram naquela cidade resumida em dois edifícios vermelhos, com carros vermelhos voando de um lado para outro, levando e trazendo pessoas em dobro, vestidas de roupas avermelhadas parecendo ser veludo, com os olhos saltados para fora da face e alguns ossos aparecendo.

‘Bizarro’ era a palavra melhor usada ali, tudo sob um céu vermelho-alaranjado.

“Incrível!”, porque aquilo sim era incrível quando Jolie viu sua dupla, a outra Jolie subindo.

Jolie correu, ou melhor, dizendo, subiu as escadas atrás dela, sentindo que seu corpo era leve, saltando degraus como se fosse uma pena.

As paredes eram quentes, mas nada que não permitisse tocá-la. E ela subia, subia, subia sem saber ao certo porque subia nem porque estava atrás de sua dupla. Mas subiu tanto que já não via o chão aonde chegou. Ali só um horizonte limitado, com muitas casas vermelhas um em cima da outra, dos dois lados, e um som que parecia de metal batendo.

Jolie desistiu de ir atrás dela mesma e seguiu o som.

Atravessou uma das muitas pontes que ligava um edifício ao outro e carros passavam pelos vãos, indo e vindo. Não faziam barulho de motor, nem fumaça saía dos carros de bola voadores, só o homem moreno, agora vestido de veludo vermelho, forjando uma espécie de espada pequena.

— Olá! — exclamou Jolie percebendo que o homem moreno parou de bater.

— Olá!

— Lembra-se de mim?

— Deveria?

— Deveria? — falou o segundo dele que ali apareceu.

Jolie não acreditou que tinha que conversar com dois, porque havia dois homens morenos, com dois fogos ligados e os dois batendo em algo.

— Não sei. Já nos vimos antes.

Os dois homem moreno era realmente bonito, e também tinha os olhos verdes, saltados da face era verdade, mas era o mesmo bigode farto de antes. Contudo se Jolie achava que num Universo espelho tudo era espelhado, até nossas escolhas profissionais, se enganara. Porque naquele Universo, o policial era ferreiro.

— Não me lembro — e o homem moreno voltou a forjar a espada.

— Não me lembro — e o outro homem moreno voltou a forjar a espada.

— Ahhh... — Jolie ficou sem ação, sem nada poder fazer, nem pedir ajuda já que o homem moreno, nenhum nem outro, se lembrava dela.

Mas alguém se lembrava de Jolie, um homem vestido de preto e com cabelos espetados por homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel que espreitava ali.

Os ferreiros ainda continuavam a forjar quando mergulharam uma lâmina aquecida em chamas na água e uma fumaça levantou. Eles viram Jolie lhe olhando por dentro da fumaça levantada e também tiveram uma sensação.

— O que quer Mulher? — perguntou um.

— O que quer Mulher? — perguntou outro.

— Ah! Agora se lembra de mim?

— Já disse que não Mulher — mesmo achando que sim.

— Já disse que não Mulher — mesmo o outro também achando que sim.

— Que pena!

Os homens morenos se viraram para colocar uma pedra verde no cabo das lâminas forjadas quando foi à vez de Jolie ter uma sensação, uma que fez todos os pelos do seu corpo morto arrepiar. O porquê daquela cena a deixar tão incomodada, ela não sabia, não até o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel avançar contra um dos ferreiros roubando-lhe a lâmina forjada.

— Hei?! — gritou um dos homens morenos.

— A adaga!!! — gritou Jolie correndo atrás do homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel.

Ela até aquela momento podia achar que sonhava na geladeira de um necrotério, mas a adaga que lhe mataria estar sendo forjada ali, na sua frente era demais para sua imaginação para lá de fértil.

“Mas que droga!” Jolie corria e um dos homens morenos corria atrás dela.

Eram becos estreitos, por entre casas que subiam uma em cima da outra. Tudo era vermelho e em dobro, inclusive as roupas penduradas nos varais improvisados, entre um edifício e outro, por onde o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel saltou se agarrando em um varal. Seu corpo deslizou até o outro edifício e ele começava escapar do alcance de Jolie, que corria atrás dele, se desviando de um transeunte e outro.

— Desculpe-me... Desculpe-me... Desculpe-me... — ia se chocando e se desculpando em seguida.

O homem moreno também corria atrás dela, quando saltou para um dos varais e trocou de edifício. Jolie ficou paralisada olhando para baixo, vendo que a queda seria das boas, e se estava ou não morta para saltar. Ainda mais que sabia que se saltasse e errasse o salto, poderia trocar de Universo, e a reunião que contratara o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel para matá-la já tinha acontecido. Afinal, agora o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel já tinha a adaga que a mataria. Então tinha medo de saltar e voltar ao iate, à cama onde seu corpo morria.

Jolie até podia achar que estava maluca, mas estava vivendo aquilo. E se mesmo assim não acreditasse no que via, então a palavra dos cientistas do passado era mais forte, quando diziam que o mundo era geocêntrico, formulado por Aristóteles por volta de 350, com epiciclos, equantes e deferentes, e com todos os planetas, incluía-se o Sol, girando ao redor da Terra.

Porque era raro quem discordasse dessa visão. Depois tudo foi substituído pelo heliocentrismo, teoria desenvolvida por Nicolau Copérnico, que colocou o Sol no centro do Universo, com as elípticas e órbitas de Kepler, ampliado pela gravidade de Newton, para então entendermos as luas de Júpiter, as fases da lua, as órbitas excêntricas de Marte e Vênus até chegar à Relatividade Geral de Einstein, que não só reproduziu todos os sucessos de Newton, mas explicou anomalias orbitais de Mercúrio e fez previsões sobre o desvio da luz estelar por fontes gravitacionais que pode ser testado.

“E se todas essas descobertas vieram após tanto tempo, porque minhas descobertas também não seriam?” pensou Jolie sabendo que tinha que saltar no varal.

— Ahhh!!! — gritou no que seu corpo alcançou o outro edifício, já que tudo eram dois grandes edifícios feito de moradias, uma sobre as outras, com diferentes utilidades.

Jolie chegou viva, ou quase isso, e correu atrás dos dois homens, quando viu o homem moreno saltar sobre o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel e ambos brigarem, entre tapas e socos até que todo o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel começou a se apagar.

— Hei?! — gritou o homem moreno de olhos verdes saltados e bigode farto.

— Não!!! — gritou Jolie alcançando o que sobrou do homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel, que sumiu com a adaga. — Não!!! Não!!! Não!!!

— Mulher?! — gritou o homem moreno vendo Jolie olhando o homem moreno atônito por ver que o homem com quem lutava havia desaparecido.

Mas se se o Big Bang realmente aconteceu, então no momento da explosão, foi criado outro Universo temporalmente inverso ao nosso. E se o tempo não é unidirecional, e num Universo espelhado ao nosso o tempo avança na direção oposta, então a Teoria da Matéria Espelhada que parte da suposição da possibilidade da visualização do longínquo passado pela existência de uma matéria refletida, revelaria nosso próprio passado e poderia explicar a imensidão do Universo infinito por um grande jogo de espelhos.

— Sinto muito... — foi só o que Jolie falou ao homem moreno de olhos verdes saltados da face e grandes e fartos bigodes.

A última coisa a ser ouvida, foram os gritos dela ao se jogar do alto dos edifícios duplos.


UNIVERSO QUATRO

— Ahhh!!! — Jolie gritava sentindo a garganta secar, os cabelos erguidos e toda sua pele vibrando pela velocidade empreendida, como se tivesse sido lançada de um avião, em queda livre.

Abaixo dela um mundo verde, feito de cristal verde, com o chão que quase tocou totalmente esverdeado. Jolie ficou imaginando se ainda estava sonhando quando viu um par de botas verde, duas pernas com calça de veludo verde e uma malha tão verde que se quem a vestisse entrasse numa floresta seria confundido com ela.

Mas não era um homem floresta, era um homem moreno, de grandes e fartos bigodes, olhando para ela como se ela fosse um monstro ou qualquer coisa exorbitante assim. Porque seus olhos verdes estavam arregalados e a boca entreaberta no susto que levou ao ver uma Mulher vestindo ele não sabia o que, caindo do céu.

— Você está bem Mulher? — outra vez a língua era desconhecida para Jolie, mas outra vez ela entendia o que era falado.

Ela se inclinou até ficar na vertical e esperou a língua soltar do céu da boca seco pelos gritos.

— Sim...

E o homem moreno agora vestido de veludo verde apitou.

— Vamos Mulher! Você está presa por atentar contra o pudor.

Jolie escorregou um olhar para o lado. Havia pelo menos uma centena de homens e mulheres vestidos iguais a ele, com seus Doppelgänger, lhe olhando.

Ela jurava que eles não estavam ali segundos atrás.

— E por que estou atentando algo?

— Suas vestes Mulher — apontou nitidamente nervoso com o pijama dela de seda azul, sujo de vários Universos, do Mar do Caribe, colado ao corpo suado.

— Posso explicar...

— Explique na jaula.

— Onde?

— Para onde vão os que comentem crimes.

E Jolie achou até que um pouco de descanso naquelas quedas todas, não seria de mau agrado. Afinal, começava a gostar da presença dele.

Ela o seguiu vendo que ele apitava para que as pessoas abrissem caminho. Jolie também percebeu que os olhos de todos ali, homens e mulheres, também eram de cristal verde, também os dentes e os dedos das mãos. Escorregou outro olhar e viu que estava numa avenida cheia de bicicletas, apesar das rodas serem quadradas. Eram iluminadas parecendo bicicletas de Natal, com homem e mulheres a pilotando com um capacete cheio de luzes na cabeça; luzes verdes.

— Já é Natal? — Jolie perguntou.

— ‘Nata’ o que?

— Natal, uma festa que comemora o nascimento de Jesus Cristo, mas que virou sinônimo de presentes, peru e luzes.

— Não sei do que fala Mulher. Só que você deve ser maluca.

“Maluca? Devo ser!” perguntou-se e respondeu-se.

Caminharam muito até chegar numa casa verde, como a roupa dele. Dentro, só uma caixa que lembrava mesmo uma jaula, desenhada pela metade. Também um chão e quatro paredes, algumas com pedaços faltando acabamento. Jolie ficou pensando se não estava naquele processo post-mortem que aos poucos suas memórias iam sendo apagadas. Só não sabia que o entorno também se apagava também.

Mas ali tinha uma lareia com fogo quentinho e ela se sentou num banco após ser colocada na jaula, e lá ser trancada.

Ficou tentando secar a roupa da água salgada do mar caribenho, e da neve, e do suor por correr por tantas escadas.

— Como se chama?

— Homem.

— Homem? Nenhum complemento?

— 155.

— Ah! Você é o homem moreno número 155... — e Jolie olhou em volta. — Devo ter ficado maluca mesmo...

— E você?

— Jolie?

— Que número é esse?

E Jolie teve até receios de não saber responder.

— Sabe o que aconteceria se a história tivesse transcorrido de maneira diferentemente alternativa?

— ‘Alter’ o que?

— Alternativa. Diferente. Contrária.

— Não... — o homem moreno número 155 ficou na duvida se sim.

— Acho que nem eu. Mas... — olhou tudo pela metade. — Mas acho que meu tempo está se acabando.

— Acabando por quê?

— Porque preciso encontrar quem contratou a minha morte e quem roubou aquela adaga.

E o homem moreno 155 sentiu algo estranho.

— Estranho... — falou aquilo mesmo.

— O que é estranho mais estranho do que já é estranho? — Jolie parecia desacorçoada.

— Eu sonhei com isso ontem.

— Sonhou? — ela se iluminou. Nada parecido com a iluminação do lado externo era verdade, mas algo acendia dentro dela. — O que você sonhou? Vamos! Fale!

— Com uma adaga.

— Sabe o que é uma adaga?

— Não.

— Então como sabe se sonhou?

— Porque você disse que era uma adaga a que aquele homem roubava.

— Incrível! Você está se lembrando.

— Lembrando-me? Do sonho?

— Não! Se lembrando de mim.

— Mas eu não lhe conheço Mulher.

— Conhece-me sim. Porque agora você também é um policial, ou quase isso... — olhou em volta. —, se bem que agora a cadeia virou uma jaula.

O homem moreno 155 olhou em volta.

— Mas isso sempre foi uma jaula.

— Pela metade?

— Por onde?

— Pela metade! — apontou. — Não vê? Ela está meio apagada.

E o homem moreno 155 realmente não entendia aquela Mulher maluca que se vestia promovendo o atentado ao pudor.

— Mulher... — e se sentou. — Isso sempre foi uma jaula...

E Jolie quase desiste de tudo.

— A história alternativa também é chamada de ucronia, um subgênero da ficção especulativa, ou ainda como alguns chamam, de história apócrifa, recriada em pensamento como poderia ter ocorrido.

E o homem moreno 155 se interessou pelo que ela falava.

— Continue...

— A expressão surgiu em 1876 no livro Uchronie -L'Utopie dans l'histoire, de Charles Renouvier, fazendo referência a um período hipotético da história do nosso mundo, de outros, em contraste com lugares e mundos fictícios.

— Por que fictícios?

— Porque não existem.

— Mas isso aqui sempre foi uma jaula.

E Jolie ficou realmente nervosa. Estava trancada numa jaula, com sua alma presa num Universo para lá de paralelo.

— Especialistas atentam que o exemplo ucrônico de Conan, o Bárbaro, de Robert E. Howard, que vivia na Era Hiboriana, em meio a povos antigos, conviviam com monstros, feiticeiros e deuses, numa época posterior a queda de Atlântida.

— Atlântida caiu aqui também.

— Caiu?

— Sim. Por isso não temos mares.

— Ah! Aqui também não há mares? Que esplêndido!

— Nada é esplêndido. Os cristais vieram do fundo e agora tomam conta até de nós — levantou a manga da blusa de veludo verde. — Veja! Estamos nos cristalizando.

— E por quê?

— Não sabemos. Nossos melhores visionários morreram na queda de Atlântida.

E Jolie sabia que devia ter algo ali que servisse a ela.

Só não sabia o quê.

— Eu citei a história alternativa, porque baseado em extrapolação histórica que procura mostrar ao leitor o que aconteceria se determinado evento crucial houvesse acontecido de maneira diversa, então esse Universo podia ter resquícios do que quiséssemos, entende?

— Não...

— Não somos protagonistas, apenas coadjuvantes homem moreno 155, então somos nós quem decide como será nossa vida, livre-arbítrio de Santo Agostinho, porque nossas decisões datam o rumo da história.

— Mulher?

— Não fiquei maluca. Numa sala somos o ator coadjuvante, noutra sala somos o ator principal, noutra sala somos o continuístas, noutras ala somos a figurinista, noutra sala o encarregado do som e noutra sala o diretor de nosso filme, e podemos alterar a nossa história. Então numa história alternativa Hitler ganharia a guerra, e na outra a Atlântida nunca afundaria. Então partindo desse princípio, eu nunca fui morta naquele iate, porque simplesmente não desejo ser morta naquele iate. Então o gato está vivo e morto ao mesmo tempo, como dizia Schrödinger.

— Quem?

— Ajuda-me a sair daqui e encontrar o homem dos seus sonhos.

— O homem quem roubou a adaga?

— Esse mesmo.

— Mas foi só um sonho Mulher.

— E você lá sabe o que são os sonhos?

— E você sabe?

Jolie ficou achando que não. Sentou-se desacorçoada vendo que a lareira crispava a tora quente, que as paredes meio cristalizadas e pela metade eram quentinhas e que pela primeira vez um homem sentara-se ao lado dela, para ouvi-la, ela e sua física esquisita, palavras complicadas de quem todos fugiam.

E também pela primeira vez Jolie percebeu que gostava de alguém que não lhe cobrava nada; beleza, status, dinheiro.

— A Física é uma ciência empírica, com suas estruturas construídas sobre bases sólidas, apoiada em dados da observação quando construída em sua estrutura teórica por meio do método indutivo. Então imaginar que filósofos antigos pudessem entendê-la, é tão ilógico quanto tudo isso aqui — olhou em volta. — Mas eles entenderam.

— Nossos visionários também entendiam tudo.

Jolie sorriu para ele e ele sorriu para Jolie.

— A obra essencial de Platão, para a sua cosmologia, é o Timeu, onde contrapõe claramente o nosso mundo físico ao mundo das Ideias. Um princípio em Física decorre na maior parte dos casos da observação direta do que ocorre na natureza, ditado pelo encadeamento dos fenômenos e não a consequência de nenhuma dedução lógica, o que significaria que um princípio não se explica, não se interpreta. Por isso em Timeu, Platão nos fala da ordem do mundo, mostrando que os princípios dessa ordem regem também o homem, onde era possível conhecer a Alma do Mundo.

— A alma do mundo.

— Essa que nos habita 155.

— Entendi Mulher.

— Chame-me de Jolie.

— Está bem Mulher Jolie.

E ela gostava dele. O homem então se virou e pegou um tubo que deveria ser algo como uma chaleira e colocou algo líquido que deveria ser água. Nela, jogou um pouco de pó que Jolie traduziu como chá e depois de pronto serviu num outro tubo menor que ela entendeu como xícara.

Jolie estava em paz.

— O mito é o modo que é dado ao homem de tornar o invisível inteligível... — ela prosseguiu tomando aquilo quentinho. —, Santo Agostinho dizia que o tempo nascia com a criação, e a criação a partir do nada no instante zero era tema da Sagrada Escritura.

— E o que é o tempo...

— O tempo é identificado por Santo Agostinho como sendo a própria vida da alma ou do espírito, que se estendia para o passado ou para o futuro.

— E o que é o tempo...

— “Como o futuro, que ainda não existe, pode diminuir ou esgotar-se? Como o passado que não existe mais pode aumentar, senão porque no espírito, autor dessas transformações se realiza três ações: o espírito espera, está atento e se recorda. O objeto de sua espera passa pela atenção e se transforma em lembrança” — Jolie relembrava Santo Agostinho. — “Com efeito: quem ousará negar que o futuro ainda não existe? Contudo, a espera do futuro já está no espírito. E quem poderá contestar que o passado já não existe? Contudo, a lembrança do passado ainda está no espírito”.

— E o que é o tempo... — soou pela última vez da voz de homem moreno 155 que cristalizava.

— 155?

Ele quase não se mexia. Jolie se desesperou. Ela precisava sair dali, com ele, levá-lo para longe daquele Universo, para ajudá-la, para qualquer coisa que não deixá-la sozinha nunca mais.

“Mas que droga!”

Ela se inclinou, se contorceu e passou pelas barras da jaula. Tocou homem moreno 155 percebendo que todo seu corpo perdera o calor, que ficara tão verde quanto suas roupas, quanto às paredes, quanto toda a cidade.

— Mas que droga!!! — explodiu abrindo a porta do que parecia ser mesmo uma cadeia e saiu para rua, correndo por entre bicicletas iluminadas de pessoas que cristalizavam rapidamente. — E o que é o tempo? — se perguntou sabendo que a resposta poderia ser que o tempo se adiantava, que o cerco a sua morte se apertava, e que se aproximava cada vez mais daquele homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel.

Se bem que as antigas religiões e a filosofia grega ignoravam totalmente aquela ideia. A física moderna, de 1916 em diante, se enriqueceu com a teoria da gravitação de Albert Einstein, que possibilitou o nascimento de uma nova disciplina científica, a Cosmologia Relativística. A partir das equações diferenciais da teoria covariante da gravitação de Einstein, foi possível elaborar teorias sobre a estrutura espaço-temporal do Universo e sua evolução no tempo.

Em 1927 George Lemaître raciocinou que, recuando-se para o passado, o Universo deveria encontrar-se em um estágio inicial altamente compacto o que ele chamou de Atome Primitif. Talvez Jolie tivesse era que voltar no tempo, no seu tempo, no seu Universo, mas não sabia como voltar.

Aliás, o problema que residia ali, era que não havia edifícios altos, montanhas ou qualquer coisa onde se pudesse subir e saltar. Ali era uma terra cristalizada e verde, com pessoas iluminadas que se tornavam cristais quando alguém se destacou na multidão, um homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel que levantou uma adaga sobre o corpo de Jolie que escorregou entre as pessoas de bicicletas e fugiu de ser assassinada; outra vez.

Homens e mulheres foram ao chão, quebrando-se, e Jolie arregalou os olhos vendo que talvez tenha matado aquela gente estranha. Ela correu quase perdendo o fôlego quando deu de encontro com o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel.

Sabia que não tinha como escapar, estava sem saída.

Jolie respirou profundamente se preparando para a lâmina atravessá-la outra vez quando seu Doppelgänger, a segunda Jolie a empurrou e o tropeço à fez cair. Até não foi uma queda, mas o chão se abriu e Jolie só teve tempo de ver a outra Jolie ser assassinada pelo homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel que levantou a adaga vertendo sangue enquanto ela caía.

Jolie agora teve medo da morte, num Universo totalmente distópico, com Atlântida sendo destruída. Porque mesmo Galileu buscou motivações para o esboço matemático do seu sistema cosmológico.

Ela sabia que precisava desenhar o próximo Universo às suas necessidades, mas ainda não foi o que aconteceu.

A última coisa a ser ouvida, foram os gritos dela.


UNIVERSO CINCO

— Ahhh!!! — Jolie gritava sentindo a garganta secar, os cabelos erguidos e toda sua pele vibrando pela velocidade empreendida, como se tivesse sido lançada de um avião, em queda livre.

Abaixo dela tudo era preto, de uma pretitude realmente assustadora.

Ela quase tocou o solo, mas não enxergava direito porque naquela ausência de luz aquilo ficava difícil. Mas havia pontos luminosos, que piscavam aqui e ali, até que um mundo coberto de preto, uma rua, calçadas, carros e pessoas se vestiam de veludo preto.

E Jolie as enxergava.

Como, nem ela sabia. Afinal tudo ali era extraordinário. E o porquê de ser escuro, nem seu conhecimento dava um palpite. Já que em outros Universos, as leis da física como a conhecemos poderia funcionar diferente, já que para alguns astrofísicos, o Universo terminará em um nada frio e escuro.

Provável ali.

Ela sabia que mesmo a gravidade empurrando tudo para o centro do nosso Universo, ele continuava se expandindo, era a presença de uma energia invisível e que se contrapunha à força da gravidade; uma matéria escura, já que 84% de toda matéria presente em nosso Universo não emite e sequer absorve a luz.

Mas Jolie enxergava a cidade ‘escura’, com as tais luzinhas que pipocavam de segundo em segundo, suficiente tempo para o cérebro formar uma a imagem e dar som ao movimento. Porque ali havia muitos homens e mulheres indo e vindo, dirigindo carros que mais pareciam bolas de Natal transparente, como acrílico, vestidos de calça e blusa pretas aveludadas.

Jolie ficou procurando pelo homem moreno de número 155, ele com certeza estaria ali, fosse um ferreiro ou um policial, ou até um médico ou dentistas, ele tinha que estar ali.

Mas havia algo mais sinistro acontecendo naquele mundo preto, um Universo feito de matéria composta por partículas conhecidas como WIMPs, Partículas Massivas de Interação Fraca, capazes de compor a escuridão reinante ali. E era por causa da matéria escura que os físicos propunham a existência de Universo paralelo. Por outro lado se a matéria escura existisse, tudo terminaria sendo destruído com o Big Rip, a grande ruptura, porque a aceleração da expansão seria tanta que a gravidade já não conseguiria mais manter tudo junto, e sucumbiríamos no dilaceramento do Universo.

Afinal nada é eterno nessa vida, nem mesmo o Universo. Mesmo Jolie rezando para que não fosse aquele, nem quando ela estivesse lá, quando o que era mais sinistro aconteceu; um homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel a observando.

Porque Jolie sabia que estava sendo observada.

E Jolie correu, com pernas rápidas, acelerando tanto que era capuz de passar duas vezes pelo mesmo lugar sem perceber. Ou talvez estivesse correndo lentamente, com o tempo a mantendo no mesmo lugar. Só não queria era estar na mira daquela adaga, porque não era seu Doppelgänger, Jolie era ela mesma, não muito disposta a morrer outra vez.

“Mas estou morta afinal?” sempre se perguntava quando um apito soou ali.

— 155? — toda sua estrutura se animou, ela estava a salvo, porque o homem moreno de número 155 a salvaria.

Mas foi um apito no vácuo escuro, com Jolie ainda correndo ela não sabia aonde, com pessoas em seus carros de bolas de Natal, e a lâmina na mão do homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel cortou-lhe um tufo de cabelo.

Os fios ficaram ali vagando no espaço, demorando a alcançar o piso enquanto Jolie corria, e corria, e corria, passando pela terceira vez no mesmo lugar vendo os fios caírem, até que eles tocaram o chão. Uma grande iluminação se fez e se apagou, tempo suficiente para Jolie ver que seis homens vestidos de veludo preto estavam ali confabulando.

Jolie enfim encontrou seus algozes.

Mas o que eles significavam, ela não sabia, porque não conseguia formar uma ideia plausível, porque nada lá era plausível. Porque era justamente essa abordagem da física quântica que mostrava que o Universo podia ser constituído sob muitas versões, até as que ela criava se ao menos soubesse criar alguma.

Mas Jolie não criava nada, não conseguia mais saber se morrera ou não no Mar do Caribe, se estava sonhando em algum hospital post-mortem esperando sua alma se separar definitivamente do corpo morto, se era só uma questão platônica de Mundo das Ideias. Porque talvez aquilo tudo fizesse sentido, afinal em um Multiverso Quântico, mesmo sendo bem controverso e espetacular, geraria muitos Universos, com diferentes histórias de vida para cada um de nós, que existiria dependendo de nossas escolhas.

Foi o que o experimento mental de Schrödinger provou, que um gato dentro de uma caixa com um recipiente de material radioativo e um contador Geiger, que percebe sua presença e aciona um martelo, que, por sua vez, quebra um frasco de veneno, matando o gato.

De acordo com as leis da física quântica, a radioatividade podia se manifestar em forma de ondas ou de partículas, então podia manter o gato vivo ou morto. Mas que seguindo o raciocínio de Schrödinger, as duas realidades aconteceriam simultaneamente e o gato estaria vivo e morto ao mesmo tempo até que a caixa fosse aberta. A presença de um observador acabaria com dualidade e ele só poderia ver ou um gato vivo ou um gato morto.

A teoria do Multiverso pregava que o Universo em que vivemos não é o único que existe. Na verdade, nosso Universo pode ser apenas um entre um número infinito de Universos que compunha um Multiverso então ela podia para de correr sem sair do lugar, ou para de passar sempre por ali, onde seus algozes confabulavam e o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel se aproximava deles, para ser contratado.

“Mas como pode ele tentar me matar desde a primeira queda se só agora está sendo contratado?” foi uma pergunta para lá de difícil de ser respondida quando um apito se fez outra vez.

— 155! — ela precisava desesperadamente da ajuda dele.

E Jolie inclinou o corpo. Tudo inclinou com ela. Jolie voltou a sua posição vertical e tudo normalizou. Ela inclinou outra vez e tudo inclinou, ela inclinou mais e tudo ficou esticado em sua angulação. Jolie aproveitou e pulou fora daquela malha, deixando o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel preso com os seis homens vestidos de veludo preto.

Jolie agora corria para valer, vendo que todo o piso e o entorno funcionava paralelo ao que havia pulado, como cordas de um violão, coexistindo ali, dentro do mesmo Universo.

Os apitos e muitos homens e mulheres iam e vinham, ali havia um pouco mais de iluminação ou luzes piscando quando Jolie encontrou um policial. Mas dessa vez ele não a via, parecia que pular de corda não havia funcionado. Talvez sua imagem tivesse ficado presa no outro espaço paralelo.

Então ela precisava levar 155 para lá, ou trazer seu corpo para ali. Uma duvida cruel, se ao menos ela soubesse o que fazia. O que não era o caso. Jolie só sabia que a teoria das cordas era uma tentativa de unificar a Teoria da Relatividade e a Mecânica quântica, afirmando que todas as partículas do Universo são formadas por cordas, que vez e outra se entrelaçam, permitindo que trocássemos de Universo.

De acordo com a teoria das cordas, os quarks formados por pequenos filamentos de energia semelhantes a pequenas cordas, vibrariam em diferentes padrões, com frequências distintas, produzindo as diferentes partículas que compõem o nosso mundo, matematicamente funcionando em um Universo de dez dimensões de espaço e uma de tempo. Então Jolie só tinha que acertar em que dimensão pular para encontrar-se com 155 de corpo e alma.

Então pulou para terceira dimensão, e para a quarta dimensão e para a quinta dimensão, conseguindo estar completa na sexta dimensão.

— Olá! — estancou na frente do homem moreno de número 155.

— Conheço-te Mulher? — ele levou um susto daqueles.

— Sim! — Jolie ficou atenta se o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel e seus algozes também não pularam de dimensões.

— Sim?

— Dá para ser mais rápido dessa vez? Estou sendo seguida.

— Está sendo seguida? — 155 apitou, e apitou, e olhou um lado, e olhou o outro, e olhou Jolie para lá de suja, no que ele traduziu como uma roupa que nunca vira antes. — Do que está vestida Mulher?

— E o que importa o que eu visto se vou ser morta?

— Vai ser morta?

— Vou! Vou! Vou! — já estava ficando impaciente.

Mas 155 voltou a apitar.

“Mas que droga!” explodiu Jolie por dentro.

— O que está fazendo 155?

Ele paralisou o apito na boca.

— Como sabe meu número?

— Porque você me disse.

— Mas eu não lhe conheço Mulher.

— Conhece sim. Sou Jolie.

— Que número é esse?

— Ahhh!!! — ela já não tinha mais paciência com toda aquela loucura. — Venha! — o puxou.

155 era puxado pela mulher estranha e suja, vestindo não sabia o que, pela dimensão da sexta corda, quando ambos viram o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel atravessar e correr em direção a eles.

— Hei! Eu conheço aquele homem — 155 apontou para ele.

E o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel se alertou.

— Não!!! — Jolie gritou agora puxando 155 com mais força.

E ele era obediente já que corria sem fazer mais perguntas, pelo menos uma que justificasse tal corrida.

— Quem é ele? — 155 corria.

— Meu assassino! — Jolie corria.

— Como pode ele...

— Ahhh! — cortou-lhe a fala. — Corra apenas! — ordenou.

E 155 corria, e corria, sem parecer sair do lugar já que eles passavam pela segunda vez no mesmo lugar. Como o paradoxo de Zenão, um argumento lógico que leva a uma conclusão falsa, Aquiles ao propor a tartaruga uma corrida, dando-lhe um espaço de tempo para que ela se distanciasse jamais a alcançaria. Porque apesar de mais rápido, Aquiles nunca chegaria à frente da tartaruga, porque a cada distância num espaço de tempo que Aquiles chegaria, a tartaruga já havia percorrido outra distância.

Jolie jurava que queria que Zenão estivesse certo.

Contudo o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel parecia estar quebrando regras e teorias e paradoxos, já que a adaga se aproximava dos dois quando Jolie e 155 pularam para a sétima dimensão. Mas ele também pulou. Jolie e 155 pularam a para a nona, para a décima e o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel continuava atrás, pulando atrás deles.

Jolie não sabia se tinha mais saída, mas talvez a Teoria das Cordas pudesse ser substituída pela Teoria M, de que dava onze dimensões às cordas, e ela pulou com 155, travando o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel na décima dimensão.

Dali foi só correr e correr, agora correndo mesmo, se distanciando daquele mundo sombrio e confuso, com o som de um violão tocando cada vez mais longe,

— Onde estamos indo Mulher?

— Tentando voltar ao Mar do Caribe.

— Mas os mares secaram Mulher.

— É! Você já disse!

— Eu já disse? Mas... — e 155 estancou vendo que não conseguia mais correr, nem andar.

Jolie viu a mão de 155 lhe escapar e parou o observando se apagar.

— Não!!! — gritou, mas 155 sumiu.

O porquê daquilo ela não tinha tempo para se responder, por que o homem vestido de preto e com cabelos espetados por gel conseguira alcançar a décima primeira dimensão.

Jolie voltou a correr agora chorando, porque não queria ficar sozinha, não queria perder 155, nem queria morrer. Se Aquiles estava certo ou não em alcançar a tartaruga, ela não ia se dar ao luxo de descobrir. Desejou em puro arbítrio sobreviver, não morrer no corte da lâmina da adaga, voltar a Terra, a sua Terra.

E foi o que ela conseguiu ao levantar os braços, as pernas e saltar no escuro.

A última coisa a ser ouvida, foram os gritos dela.


UNIVERSO SEIS

— Ahhh!!! — Jolie gritava sentindo a garganta secar, os cabelos erguidos e toda sua pele vibrando pela velocidade empreendida, como se tivesse sido lançada de um avião, em queda livre.

Abaixo dela uma terra marrom, terra mesmo, componente químico feito de ferro, silício, magnésio, enxofre, níquel, cálcio e sabe-se lá mais o que.

E outra vez ela parou há poucos milímetros de ser achatada, em meio a rugidos que não faziam parte do repertório de Jolie, que se inclinou até ficar na vertical e tocar o solo. Um que tinha um calor vindo debaixo, do piso marrom de terra. O ar também era mais carregado que os outros aonde caíra, como uma taxa de oxigênio alta, e outro rugido alto fez o chão e Jolie estremecer, com a terra vibrando, as coisas a volta de Jolie, um monte de terra e mais terra, pular a cada rugida.

Jolie nem pensou em saber onde estava, correu vendo que ali estava sozinha, pelo menos até aquele momento, até o momento que os rugidos aumentaram em decibéis e ela encontrava uma caverna cheia de olhos arregalados, de homens e mulheres vestidos de veludo marrom, descalços e com barbas, e cabelos, e cílios, e unhas, tudo mal tratados.

Ela olhou para fora e viu um dinossauro marrom a espreita, rugindo, com o teor de oxigênio provável na faixa dos 35%, e ela vendo que se não corresse com todos aqueles homens e mulheres ali, era seria alimento de dinossauro. Não era bem aquele Universo o seu, ou pelo menos não tão passado assim. Se a mente de Jolie era uma máquina do tempo, ela estava encrencada com seu funcionamento, porque ela não funcionava lá muito bem.

Tinha que subir em algum lugar alto e saltar, talvez num dos muitos vulcões ativos ali, sair dali rapidamente, mas estava correndo com aquelas pessoas que mais pareciam Neandertais vestidos de calça e blusa de veludo marrom.

Ela pela primeira vez se achou realmente maluca quando outro rugido forte os fez ir ao chão, com um grande pteranodonte marrom ali escondido, naquela caverna, se arrastando pelos braços, ou asas, ela nunca entendeu muito bem aquilo, querendo levantar voo se outro dinossauro maior ainda não estivesse na boca da caverna, à espreita.

E ela e os Neandertais vestidos de veludo marrom no meio do caminho.

— Ahhh!!! — gritaram todos.

E gritos ou pareciam coisa universal ou ela outra vez entendia a linguagem daquele Universo, que até parecia ser a Terra se não tivesse errado a data da viagem. Porque afinal as Caraíbas ou karibs, do tupi Kara' ib; sábio, inteligente, eram os povos indígenas das Pequenas Antilhas, que deram o nome ao Mar do Caribe, onde ela desejara estar. Mas se dinossauros habitaram o Caribe na era Mesozoica, então o clima imprevisível, muitas vezes quente e seco, devia propor a ausência nos trópicos de grandes dinossauros.

Mas eles estavam lá fora, então Jolie outra vez falhou em seus saltos.

“Mas que droga!” esbravejou em silêncio, para não ser comida.

Contudo subir num vulcão marrom, que expelia lava marrom, em meio a dinossauros marrons não estava na ideia dela. Mesmo porque não encontrou o homem moreno 155, não havia vida muito estável ali a não ser Neandertais vestidos com roupas de veludo que Jolie não imaginava de onde vieram.

Ela precisava saltar, e saltar rápido se não quisesse se encontrar novamente com seus algozes, que já deviam ter percebido que mataram a Jolie errada e que seu assassino continuava falhando.

E Jolie parou. E parou porque pela primeira vez se perguntou o porquê deles querem matá-la.

“Pelas pedras preciosas daquela mina?”, se perguntou olhando todos correndo de um lado para outro.

— Mas por quê? O que eu ganhei exatamente com aquela venda? Um pouco de dinheiro e status? — e mais rugidos e mais Neandertais fugindo de um lado para o outro. — Mas por que afinal eu comprei aquela maldita mina? — e mais e mais rugidos ainda com mais e mais Neandertais fugindo de um lado para o outro. — Mas é claro! Foi o Victor! Aquele mal amado quem me deu a ideia de sair do CERN e comprar a mina. Porque provável queria meu emprego, minha colocação — parecia que Jolie enfim entendia todo o processo.

Mas estava entre rugidos e Neandertais fugindo de um lado para o outro.

Mas teria sido só isso. Será que em algum momento daquela compra e venda Jolie não esbarrou numa coisa maior? Uma que faz com seus assassinos quererem seu fim? E são todos assassinos, algozes e o homem vestido de preto com cabelos espetados por gel, porque afinal quem contrata e quem executa merece a mesma pena.

“Os dinossauros começaram a aparecer cerca de 230 milhões de anos atrás, mas estou na Terra?” pensava confusa ainda vendo homens e mulheres Neandertais correndo de um lado para outro agora sendo comidos.

— Será que vale a pena fugir? — falava consigo mesma em meio à carnificina que ocorria ali, digno de filme hollywoodiano. — Voltar ao iate e ser morta? — não, não valia a pena era entregar o jogo.

Jolie então correu em meio a comedores e comidinhas, e subiu pela montanha escarpada, subindo em meio a rochas pontiagudas e rugidos que ficavam cada vez mais longe, torcendo que conseguisse chegar lá em cima antes de ser comida e se jogar.

— Mulher?

Agora Jolie se assustou.

— Ah! 155! — pulou no pescoço dele. — Uhrrr! — recuou sentindo que ele fedia, com seu bigode farto sujo e suas roupas de veludo marrom rasgadas. — O que houve com você?

— Te conheço Mulher?

— Deve conhecer não?

O homem moreno 155 olhou em volta e viu dinossauros fazendo a festa lá embaixo.

— Estou confuso.

— Está?

— Não sei onde estou.

— Que esplêndido!

— Não é esplêndido não saber onde está.

— Digo que é esplêndido porque você está chegando ao mesmo patamar que eu.

— “Pata” o que?

— Vamos! — o pegou pela mão.

— Hei Mulher? Ir aonde?

— Para cima.

— Por quê?

— Para saltar.

— Mas eu já saltei atrás de você.

— Agora vai saltar comigo — e Jolie voltou a subir a encosta escarpada.

E homem moreno 155 voltou a escorregar um olhar para o banquete Dino lá embaixo e olhou para cima, vendo-a subir.

— Vamos saltar em cima deles?

— Espero mesmo que não! Vamos saltar para fora desse Universo errado.

— “Erra” o que?

— Vamos! — se inclinou e pegou a mão dele que provocou uma seção de imagens em 155, com pessoas vestindo roupas de veludo azul marinho, vermelho, verde, preto e marrom.

155 foi puxado até novos rugidos chegarem até eles.

— Não! — largou da mão dela. — Não posso acompanhá-la.

— Por que não?

— Porque não sei quem é você Mulher?

— Sou Mulher Jolie, lembra?

— Não... — e foi um ‘não’ bem fraco.

— Lembra sim.

— Não... Não lembro não...

— Conhece sim 155, porque provável você é o policial designado para descobrir quem me matou no iate.

— Quem o que... Ahhh!!! — e 155 gritou no que o corpo de Jolie saltou sobre o corpo dele e ambos despencaram dali.

Os gritos dos dois se misturaram aos rugidos dos dinossauros, e foram as últimas coisas a serem ouvidas.


UNIVERSO SETE

— Ahhh!!! — Jolie e o homem moreno 155 gritavam sentindo a garganta secar, os cabelos erguidos e toda sua pele vibrando pela velocidade empreendida, como se tivessem sido lançados de um avião, em queda livre.

Abaixo deles um piso molhado, provável feito de água, já que era de um azul cristalino.

‘Pluft!’; ambos mergulharam no mar morninho.

Quando Jolie e 155 voltaram à tona, quase sem ar, viram que havia ali um mar infinito, entrecortado por pequenas porções de terra azul, tão parecida com a água que só se percebia que havia mudado sua estrutura ao pisá-la, senti-la.

Mas o mais incrível de tudo que eles viam ali estava refletido acima de suas cabeças. Porque havia ali não dois edifícios, lado a lado, mas a continuação de onde estavam, como se o mundo fosse até um ponto e se curvasse para cima, ficando sobre suas cabeças, na forma de um ‘U’ deitado.

Jolie e 155 então chegaram até uma porção de terra azul conseguindo abrigo, se bem que provisório. Ela escorreu os grandes cabelos negros e o homem moreno secou seu bigode. Ela de pijama de seda sujo e ele de calça e blusa de veludo marrom rasgado.

Os dois se olharam e os dois desviaram os olhares.

— A teoria do Multiverso prega que o Universo em que vivemos não é o único que existe — ela o viu escorregar um olhar para ela. — Embora de difícil comprovação, teorias sobre Universos paralelos continuam a prosperar na ciência moderna.

— Do que está falando Mulher?

— Chame-me de Jolie.

— Está bem, Jolie, do que está falando?

Ela só apontou para cima. A visão do mundo dando uma volta, dependurado, o inquietou. Ele levantou e caiu assustado.

— O que é ali?

— Aqui!

— Mas estamos aqui! Como existe outro ‘aqui’ ali?

— Como eu disse, mundos paralelos, coexistindo. Veja! — voltou a apontar. — Está vendo nos dois lá em cima?

155 viu o outro 155, se bem que de ponta cabeça, o olhando lhe olhar.

— Estou maluco Jolie?

— Se você está, estou também — sorriu feliz de estar com ele, mesmo que ambos malucos. — Em 2004 a NASA descobriu uma área de 1,8 bilhão de anos-luz de diâmetro no espaço chamada Mancha Fria, com temperatura 0,00015 grau Celsius mais baixa do que seu entorno, indício de um Universo paralelo.

— Você é maluca Jolie.

— Não sou não. Nem os cientistas da Universidade de Durha, na Inglaterra.

— De onde?

— Deixa para lá... A mecânica quântica é o território das probabilidades e não dos eventos precisos e exatos, como na física clássica. A IMM, A Interpretação de muitos mundos foi formulada inicialmente por Hugh Everett para a explicação de mundos paralelos, para levantar a hipótese se associou à busca por físicos de uma “assinatura cósmica” que comprovasse que o Universo seria uma simulação computacional finita, como dizia a antiga mitologia gnóstica, morada de deuses.

— E onde eles estão?

— Lá em cima! — apontou. — Talvez alguns lá embaixo! — apontou. — Quem sabe?

— E aonde isso nos leva Jolie?

— Nos leva que no Universo de matéria escura, os homens que encomendaram minha morte já não estavam mais aqui. Então isso prova que eles estão um passo a nossa frente.

— E por que precisamos estar na frente deles?

— Para que eles não me matem.

— E como você faria isso?

— Está mesmo se lembrando de algo 155?

— Não... — ele não tinha muita certeza. — Talvez...

— Talvez 155?

— Chame-me de Raul. Esse é meu nome.

Jolie abriu um sorriso que nunca fez.

— Ok Raul 155... Eu não sei como faria, porque até agora só pulo de Universo em Universo, um mais estranho que o outro. Contudo... — Jolie deu uma pausa dramática. —, se ao menos se me lembrasse do por que comprei aquela mina de... — e parou. —, porque aquele Universo era feito de cristais...

— Que Universo?

— O de Atlântida.

— ‘Atla’ o que?

E Jolie fez uma careta.

— Os estranhos comportamentos das partículas subatômicas revelado pela mecânica quântica nada mais seriam do que os interstícios, pequeno espaço entre as partes de um todo desses mundos se encontrando.

— Ainda falamos dos assassinos ou da ‘atla’ alguma coisa?

— Falamos de tudo isso, onde jamais os dinossauros foram extintos por algum asteroide que caiu na Terra, de onde vem o princípio da Incerteza de Heisenberg, a confirmação da secreta suspeita de que o Universo é uma obra imperfeita criada por um Demiurgo.

— ‘Demi’ o que?

— Venha! — Jolie levantou-se. — Vamos que eu explico no caminho.

Raul levantou-se e seguiram por blocos de areia entrecortados pelos mares. Ou o contrário, que era igual ao que dependurava na cabeça deles, como num espelho.

— Continue...

— O termo grego demiourgos designa um artesão, e no Timeu ele seria o sinônimo de theós, Deus, pois é ele o artesão do Universo sensível. A diferença entre o Deus cristão que cria o Universo ex nihilo, do nada, onde se fez a luz, ao demiurgo platônico, é que a noção da criação ex nihilo é impossível na Grécia clássica, pois para um grego do nada, nada viria.

— O demiurgo platônico cria o mundo sensível apenas.

— Esplêndido! — exclamou animada. — Está se lembrando de algo! — acelerou. — Venha! Vamos mais rápido!

— Para onde?

— O lugar já não é mais importante. São nossas lembranças o que importam agora, são elas que vão nos tirar daqui.

— Vão?

— Vão 155! — sorriu. — Os físicos Albert Einstein e Nathan Rosen desenvolveram no século passado uma teoria pela qual seria possível ligar pontos em diferentes lugares ou momentos de existência, a chamada Ponte Einstein-Rosen que em teoria, toda massa pode curvar o espaço-tempo, já que estão entrelaçados. Pontes entre áreas do espaço que podem ser modeladas como soluções de vácuo para as equações de campo de Einstein ao combinar os modelos de um buraco negro e um buraco branco.

— Mas nada escapa da proximidade do buraco negro, nem a luz.

— Esplêndido!

— Você acha?

— Não! Quero dizer, suas lembranças — ela viu Raul fazer uma careta de quem não concordava. — Deixa para lá... Precisamos montar um buraco de minhoca.

Raul olhou em volta.

— Mas até onde meus olhos enxergam, aqui e lá em cima, só vejo areia e água.

— E árvores... E galhos... A flora do Mar das Caraíbas apresenta uma grande biodiversidade, mais de 13.000 espécies de plantas.

E Raul voltou a olhar em volta.

— Estamos no Caribe?

— Você conhece?

— Trabalho em Antígua.

E os olhos de Jolie se arregalaram.

— Em que trabalha? — começou a pegar ramos e folhas.

— Sou policial.

— Esplêndido! — ela sabia, era como se tudo ali começasse a fazer sentido, se bem que ainda não sabia por que mandaram matá-la.

Jolie prosseguiu pegando um monte de coisas ali caídas e começou a desenhar algo.

— O que está fazendo Mulher?

— Não sei muito bem, acho que não devia ter faltado em algumas aulas — ria achando graça da sua própria piada., e recuou quando Raul não revelou animação alguma. — Um buraco de minhoca, wormhole, é um buraco como os que insetos fazem em frutas e legumes; um atalho através do espaço e do tempo. Buracos de minhoca intra-Universos que conectam um local em um Universo a outro local do mesmo Universo.

— Mas estamos noutro Universo.

— Que bom que percebeu isso 155.

— Meu nome é Raul.

— Eu sei... — sorriu e voltou a desenhar algo. — Numa carta de 1955, Einstein dizia que a distinção entre passado, presente e futuro era só uma ilusão, ainda que persistente. E sabe por que ilusão? Porque poucas coisas são mais concretas que a passagem do tempo.

— Nascemos percebendo a hora passando.

— Mas Einstein descobriu que na verdade o tempo não passa igual para mim como passa para você. No mundo de verdade a gente viaja pelo tempo toda hora. Nosso próprio corpo é uma máquina do tempo, onde tempo e espaço são basicamente a mesma coisa.

— Mulher?

— Veja... — Jolie apontou para o desenho. — Aqui é nosso Universo... Aqui a Terra... E juntamos os dois numa Ponte de Einstein-Rosen, que é o mesmo que combinar os modelos de buraco negro e buraco branco. Então teoricamente entraríamos aqui e sairíamos ali... — apontava.

— Bem teoricamente mesmo.... Hei? Mulher? — Raul levou um susto quando viu uma perna de Jolie entrar no buraco desenhado e lá desaparecer.

— Você vem 155? — sorriu.

— E se cairmos num outro Universo cheio de... Cheio de... Cheio de...

— Depois de ser morta, 155, acho que não devo temer Universos algum cheio do que for — e colocou a outra perna ficando pela metade. — Você vem ou não?

— Eu vou! Afinal estou lhe seguindo já há um bom tempo.

Jolie sorriu e desapareceu no buraco. Raul 155 olhou em volta e para cima, e se viu ali também, de frente a uma desenho. Não tinha alternativa a não ser segui-la.

Dessa vez ninguém ouviu gritos.


UNIVERSO UM

Dessa vez ninguém gritou. Só o corpo de Jolie mergulhando ferida nas águas cristalinas e mornas do Mar do Caribe, na escuridão da noite, com seu sangue se espalhando, tentando entender o que acontecia afinal.

Do lado de fora, uma confusão se formava, com barcos da Polícia Costeira alcançando o iate. Um tiroteio que se iniciava entre ladrões e policiais, com o iate sendo invadido e muitos tiros mais acontecendo.

Cristais, porcelanas e bandidos sendo atingidos pelas balas, muita luta corporal entre bandidos e mocinhos, quadros quebrados, napa de bancos rasgados, com os ladrões tentando resgatar as pedras preciosas compradas, e que foram escondidas pelos seis homens vestidos de preto que atiravam e tentavam fugir numa barco a motor.

Mais policiais e mais lanchas da Polícia Costeira apareceram e impediram a fuga.

Do lado de dentro das águas cristalinas e mornas do Mar do Caribe, Jolie ouvia os zumbidos de balas como se fossem apitos. Ela ficou pensando se 155 apareceria ali para salvá-la, para tirá-la do mar onde seu corpo afundava, dizer-lhe que sempre esteve a seguindo e a salvando.

Porque Jolie afundava tanto que dava tempo para pensar na vida, nas escolhas, no livre-arbítrio de entrar num jogo perigoso de compras de pedras preciosas, fazendo negócios com pessoas escusas. Porque ficara claro naquele momento, mergulhando nas águas cristalinas e mornas do Mar do Caribe que Jolie sabia que havia errado, que ela procurara o caminho mais rápido e nem sempre seguro de enriquecer rapidamente, negociando com gente perigosa, que não tinha nada a perder, inclusive matá-la. Porque afinal, só havia ela entre as pedras e os ladrões, que não queriam ter que pagar aquela fortuna pela mina.

Não era a inveja do companheiro de trabalho do CERN, era a luxúria que tomara conta de seu coração, que não levou em conta quantos naquelas minas morreram ou perderam a saúde, para ganhar tão pouco na mineração daquelas pedras preciosas. Jolie sabia que havia recebido uma nova chance, uma de desfazer os erros, consertar a dor provocada em muitos.

Do lado de fora das águas cristalinas e mornas do Mar do Caribe, mais troteiros e três dos homens forma mortos, outros três feridos.

O policial Raul chegou ao corredor interno do iate de mão armada. Estava atrás do assassino de aluguel que se escondera num dos quartos. Houve mais trocas de tiros na proa do iate e Raul se esgueirava no andar debaixo, a procura de um homem perigoso, procurado internacionalmente, quando foi atacado por trás.

Raul caiu no chão e o assassino de aluguel levantou uma adaga com pedra de esmeralda na ponta para matá-lo. Raul deu uma voadora de pernas e derrubou o assassino de aluguel, que perdera a adaga.

Raul saltou de onde estava sentindo toda sua cabeça latejar pela pancada e tentou se aproximar da adaga quando outra vez o assassino de aluguel conseguiu resgatá-la e aproximava a lâmina na garganta de Raul, que perdia as forças perante o assassino de aluguel; um homem forte, vestido de preto, que sorria vitorioso porque afinal conseguira vencer aquele jogo, quando um tiro certeiro o derrubou.

O assassino de aluguel caiu morto.

Raul olhou para Jolie segurando uma arma, ferida, com o pijama azul de seda molhado, manchado de sangue, sorrindo para ele.

— Olá 155... — e desmaiou.


FINAL

Imagine que você coloque um gato dentro de uma caixa junto a uma cápsula de veneno, com a possibilidade de a caixa ser aberta e a cápsula estourar, matando o gato. Agora imagine que você coloque um gato dentro de uma caixa junto a uma cápsula de veneno, com a possibilidade de a caixa ser aberta, e a cápsula não estourar e portanto não matando o gato.

O gato poderia ter sido morto ou não, porque a vida é feita de escolhas. Cada escolha que nós fazemos pode ter resultados tanto bons quanto ruins. Mas até que tal escolha seja feita, podemos considerar ambos os resultados, por mais que as evidências apontem para um deles. Então antes de abrir a caixa, a probabilidade de o gato estar vivo ou morto ao mesmo tempo, daria a você a possibilidade de escolher melhor suas decisões de vida.

Foi o que Jolie fez quando saiu do hospital, com uma grande fortuna nas mãos. Afinal a compra da mina de esmeraldas foi legal, não havia nada de errado no negócio empreendido por ela, que dou 90% de toda mineradora aos mineiros, que formaram uma cooperativa, para minerar com melhores condições de trabalho no futuro.

Porque se sabemos que uma escolha tem alta probabilidade de acabar mal, e ainda assim persistimos, estamos dando valor ao erro, um que talvez não tenhamos a chance de consertar como Jolie teve.

Pode ser até que toda aquela loucura de Universos tivesse um sentido, de Universos feito bolhas se chocando, de Universos espelhos igual ao outro gerando Doppelgänger de nós mesmos, de Universos quânticos onde um bater de asa de borboleta no Brasil provoca um furacão na Austrália, porque toda teoria do caos se baseia em que uma pequenina mudança no início de um evento qualquer, pode trazer consequências enormes e absolutamente desconhecidas no futuro.

No início da década de 1960 quando o meteorologista americano Edward Lorenz descobriu que fenômenos aparentemente simples tinha um comportamento tão caótico quanto à vida, ele fundava a Teoria do Caos, porque tudo na vida são escolhas, e servem de alicerce para justificar a imprevisibilidade. Como dizia Pablo Neruda, somos livres para fazer nossas escolhas, mas somos prisioneiros das consequências.

Se bem que Jolie e Raul foram felizes para sempre, se não nesse, em algum Universo paralelo.

 

 

                                                                  Marcia Ribeiro Malucelli

 

 

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