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Series & Trilogias Literarias
Ela não se mexia mais.
Meus braços estavam tão apertados ao redor dela, que havia deixado de senti-los. A madeira fria do pé da cama pressionado em minhas costas, lançando uma onda incômoda de dor por meu corpo, era a única coisa que me dava certeza de que aquilo era real, de que não estava anestesiada num tipo de pesadelo terrível.
A virei com cuidado no colo, seu rostinho que nunca havia mudado continuava com a mesma expressão vazia... mas havia brilho em seus olhos pela primeira vez.
— Asahi? — alguém chamou do outro lado da sala, pelo som de passos, havia mais de uma pessoa lá... Nyumun, Karin e mais alguém. Eles não podiam nos ver ali, o quarto fora encantado para que ninguém descobrisse sobre ela.
— Agora está tudo bem, não é? Não dói mais! — sussurrei. Quase não ouvi minhas próprias palavras trêmulas, sufocadas pelas lágrimas que travavam minha garganta.
— Por favor, minha irmã! Nos deixe entrar! ? Karin insistiu, mas a ignorei. Aquele era um momento nosso... em que eu seria forçada a me despedir, e eu não podia sair.
— Asahi! Majestade, a senhora está aí? — houve um murmúrio, então os passos se afastaram de minha porta por fim.
A criança presa no tempo agora não dormia mais. Eu tentei... tentei protegê-la até aquele último e dolorido momento. Tentei com todas as minhas forças fazê-los acreditar em mim, fazer com que vissem que havia mais alguém por trás das cortinas. Corri o mundo atrás de algo que quebrasse aquele encantamento..., mas aquele demônio pagou com uma moeda que não o pertencia.
Ergui a mão com cuidado e fechei seus olhos.
Queria gritar! Queria poder fazer algo por ela, mas a areia na ampulheta dourada sobre a cômoda tinha derramado seu último grão.
Me levantei ainda tremendo, não mais de tristeza, mas sim de ódio, e a carreguei pelo cômodo até a sacada de meu quarto. Os sóis preparando suas descidas pelo horizonte, banhavam a cidade em luz, mesmo que ela não pudesse mais sentir a brisa morna do entardecer, a desenrolei de meu manto como se ainda pudesse fazê-la sentir aquela sensação uma última vez e abri as asas.
Tinha perdido as contas das vezes que voei com ela por cima daquela cidade, tentando fazê-la despertar... mas nunca poderia lhe mostrar aquilo de verdade.
Ele a havia tirado de mim. Tomado a única coisa boa que me dera durante todo aquele tempo.
Meu corpo tremeu quando bati as asas com força, o manto azul esvoaçou sobre o rosto da criança marcou sua silhueta ao nos atirar luz morna e dourada e disparar em direção ao horizonte, impulsionada por aquele ódio que consumira o restante de minha esperança. Voei sem rumo, seguindo meus instintos. Ela não existia para o resto do mundo, então podia livrá-la de ser cremada sobre a pedra do pátio do castelo. Podia deixar que descansasse para sempre nos campos das fadas de Vintro, se quisesse. Era para lá que eu ia. Um lugar cheio de vida e luz para alguém que jamais o teve.
— Vingança é errado... papai sempre me disse que vingança não valia o peso que carregamos depois. — murmurei contra o vento frio ao alcançar o mar e usar uma pulseira de contas mágicas para abrir um portal. — Mas ele nunca disse nada sobre fazer justiça com as próprias mãos quando ela está de olhos fechados para o mau.
Engoli aquele caroço em minha garganta.
Eu teria tempo para chorar depois.
Temi tanto o título de louca que carregaria como Fares... e agora mais aquela morte pesava em meus ombros já exaustos.
As lágrimas em meu rosto secaram com o vento.
Mas as de meu coração começaram a evaporar pela chama que agora queimava dentro de mim.
Capítulo 1
Fares:
Não devia estar tão nervoso, devia?
A luz suave daquelas luas no céu de Pollo me deixava ainda mais angustiado, pois sabia que o dia ali costumava passar tão rápido, que mal servia para aquecer o castelo que mais parecia um ossuário. As criaturas de Pollo não se comparavam aos monstros que podiam ser encontrados em Vegahn, porém... os que viviam quase sempre naquela escuridão não hesitavam em atacar por atacar, enquanto os do gelo costumavam ser hostis apenas por fome.
Em algum lugar lá fora, Kiara, Lohan, Helleon e Hestia se encontravam separados para a prova do uniforme negro. Acreditava em Kiara, sabia de sua força e tinha certeza que ela conseguiria chegar ao fim da prova com sua equipe e logo nos encontrariam no castelo.
Não sabia ao certo se estava mais preocupado com Kiara por sua tristeza escondida que podia fazê-la não ter atenção suficiente na prova, ou com Hestia. A bruxa, mesmo que pudesse controlar as feras dali e usar seu poder em sua defesa, teria sua essência luminosa aumentada pela noite longa. E isso poderia atrair tanto criaturas que foram esquecidas desde a guerra dos Doze, quanto outros venairens com intenções ruins.
Tinha que acreditar nelas!
Passei os olhos pelos outros mestres acomodados no grande salão atrás de mim, eles conversavam animadamente sobre os desafios colocados para as equipes e empolgavam-se com o fator surpresa, que eram as criaturas que perseguiriam os venairens atraídos por chamarizes presos às roupas dos mesmos.
Ederon e Lórien de pé na sacada oposta, conversavam baixo enquanto olhavam sérios em direção à cidade de pedras escuras, mas bem iluminada ao redor do castelo dos ossos, não queria saber da conversa deles, estava irritado o suficiente com Lórien para sequer querer me aproximar dela até que Kiara e Hestia voltassem sãs e salvas.
“Não se atreva a falar com elas sobre a prova e dar dicas, Fares Gadyen! Ou eu juro por tudo que me é sagrado que anularei a prova da equipe de sua irmã e atirarei você de volta em Retiro das Folhas e o deixarei trancado lá até quando eu quiser! Evite conversar com elas! Sei que as duas podem tirar o que quiserem de você, então se eu o ver com elas...” Lórien me apontou um dedo de forma ameaçadora depois disso, para evitar problemas para elas, preferi evitá-las o máximo que podia.
E por tê-las evitado, nem consegui conversar direito com minha irmã sobre o que aconteceu com a garota no pátio da escola... dizer a ela que estava tudo bem, dizer que eu teria feito o mesmo no calor do momento, que ela não era um monstro por isso.
Também não tinha estado ao lado dela quando Hasan não voltou mais dos céus, quem a amparou foram Awen e Lohan. Pelo menos ela tinha mais alguém para se apoiar, uma vez que eu falhei nisso por tantos anos deixando que acreditassem em minha loucura.
E Hestia...
Deuses! A bruxa me tirava do sério!
Lórien tinha razão. Alguns dias atrás ela esteve em minha sala durante um período vago... meu coração acelerou ao me lembrar da proximidade de seu corpo, de como seus lábios percorreram meu pescoço e desceram por entre meus seios. Era muito mais difícil controlar as sensações e o calor num corpo feminino. A forma com que ela escorregou as mãos por minha cintura... mais um pouco e eu teria dito tudo e Lórien me mataria. Foi um esforço expulsá-la da sala e ver o biquinho triste que a bruxa mostrou antes de sair.
Eu a queria, tanto que doía. Não me importava em qual forma estivesse vestido... quando elas voltassem da prova, eu daria um jeito de dizer isso a ela.
Mas por enquanto só tinha que manter o foco, esperar que tudo corresse bem, uma vez que a expectativa era de que a metade das equipes atiradas lá não conseguissem completar as provas e menos de um terço encontrar com seus colegas.
— Falta pouco. Em uma hora anunciarão aos participantes que eles estão em prova. — Shiryn comentou, aproximando-se de mim. Ainda podia sentir nele o cheiro de Kiara... e sabia o quanto ela devia ter ficado em pânico. Rosnei, fazendo com que ele se afastasse um passo. Ele sem dúvida me reconhecia nesse corpo, não tinha motivo para chegar tão perto. O filho de Melanie e Ederon, mestre de combate da ACV de Pollo bufou irritado com o passo que dei para longe.
— Elas estão bem, só as coloquei em pontos diferentes como fomos instruídos a fazer, não é como se eu tivesse as agarrado a força ou algo do tipo! — Shiryn defendeu-se num murmúrio baixo.
— Não perguntei nada. — rebati, apertando aquela adaga de vitrino no cinto em minha coxa. Kiara não podia levar armas suas para a prova, mas eu peguei suas adagas logo que elas foram trazidas da ACV para Pollo. Eu tinha a impressão... que elas seriam como um presente de boas-vindas quando minha irmã chegasse no fim do teste.
E se não chegasse...
Eu usaria as armas para atacar qualquer um que se colocasse no meu caminho para chegar até ela.
— Está nervoso demais. Imagina se ela soubesse que você tinha quase certeza de que não voltaria com vida?
— Não sabe o que está falando! — ralhei.
Ele não entendia.
Poucas pessoas entendiam direito o que era esperar por alguém que nunca mais viria. Ver a pessoa bem e depois... nunca mais. Mas naquele momento não era medo de que não conseguiriam voltar, sabia que assim que a prova começasse, mestres ficariam de olho neles para que nenhuma vida fosse perdida.
Estava em conflito com o que sentia.
Tinha e não tinha medo.
Acreditava em suas habilidades ao mesmo tempo que temia que seus sentimentos a atrapalhassem agora. Pelo que a conhecia, ela nunca tinha sido exposta a sentimentos tão intensos, mamãe a afastava e as vezes não permitia que papai ficasse por tanto tempo com ela. Kiara não era de se apegar facilmente... mas ele esteve lá desde o começo, aquilo não aconteceu rápido. Não em seu coração.
— Todos esperavam que as provas fossem daqui a um mês e meio. A maioria não está preparada para os testes. — disse depois de um longo silêncio, Shiryn continuava encarando Panmat com uma expressão tensa, distante.
— Essa é a ideia. Eles não estavam esperando pela prova agora. — Ele deu de ombros e voltou a atenção para seu pai, ainda discutindo baixo com Lórien do outro lado da sala. — Quando você está esperando por algo, sua confiança pode te fazer superestimar suas habilidades... agora quando você é pego de surpresa, você se sente despreparado e se obriga a dar o melhor de si. — Ele coçou a pequena esfera azulada em sua testa e bufou — As taxas de reprovação eram bem maiores quando eles sabiam o dia exato das provas. Quando começamos a aplicá-la de surpresa, arrastando-os dias, até meses antes da data eles melhoraram.
Assenti devagar.
Ela sobrevivera... Aquele homem que controlava o demônio a atacara outra vez, e mesmo assim Kiara conseguiu escapar... e ainda salvar Hestia e Senrys, mesmo que ele tivesse se entregado depois. Fechei os olhos apertados, eu não tive a chance de dizer a ela algo sobre aquilo também.
Cada frase que podia ter dito antes daquela maldita prova passava por minha mente agora.
— Já vai começar. — Shiryn bufou, ele tensionou os ombros e mudou de forma, a pele escura dando lugar à pelos espessos negros e brilhantes, olhos cor de vinho acesos como um farol, uma pilha letal de músculos... que eu tinha certeza que Kiara conseguiria transformar em retalhos caso realmente precisasse.
Ela sobreviveria, não só isso, venceria e voltaria para casa com mais uma vitória. E dessa vez eu faria de tudo para estar mais presente. Estava cansado de deixar que outros ocupassem o meu lugar.
O lobisomem soltou um uivo agourento que fez as paredes de ossos do palácio ressoarem como os tubos de um órgão antigo. Shiryn saltou para a noite assim como Ederon e outros mestres do mundo das sete luas e num instante, desapareceram espalhando-se pela floresta ao redor do castelo.
Nem queria pensar em quais venairens tinham chamarizes em suas roupas para atrair os lobisomens. O cheiro da erva da lua escondida no forro das roupas não poderia ser sentida por aqueles cujos poderes e sentidos mais apurados foram postos para dormir com braceletes anuladores, mas as bestas sedentas por sangue e morte em que os amaldiçoados transformavam-se, podiam sentir o cheiro a quilômetros... e quem carregasse as ervas teria um desafio a mais para enfrentar.
E pelo menos um de cada equipe carregava uma pequena quantidade de folhas. Um deles seria o chamariz, se não todos.
Reprimindo o arrepio que subiu por minha coluna ao imaginar a cena de um ataque daquelas criaturas, me aproximei de Lórien. Ela enrolava os dedos em suas tranças cor de mel e sequer reparou em minha aproximação, mas passada a surpresa de me ver ao seu lado, passou um braço ao redor de meus ombros e ergueu uma bolha de sabão dourada e luminosa nas pontas dos dedos.
“Venairens... bem-vindos à prova do uniforme negro. A partir de agora, vocês têm três dias para localizarem suas equipes completas, o objetivo de suas missões, que será entregue ao líder por um dos mestres que os encontrará a qualquer momento, e ao final do terceiro dia, precisarão estar diante dos portões do castelo dos ossos com seu objetivo em mãos. Todos conhecem as regras, e saibam que caso não consigam seus objetivos, também poderão concluir a prova tomando as missões das outras equipes. — Ela soltou um suspiro antes de continuar — Não lhes desejo sorte, pois creio que não a encontrarão aqui, mas lhes desejo força, determinação e coragem para chegarem ao final do teste. Que a noite longa não lhes façam esquecer onde buscar a luz.”
— Animador. — murmurei quando ela se calou. Lórien me encarou com aqueles olhos bicoloridos, e embora sorrisse, sentia sua tensão quase como uma segunda pele.
— Espero que tenha sido mesmo. — Ela deu um risinho e deixou a sacada indo de encontro a Medras.
Encarei as estrelas e a escuridão entre elas e fiz um único pedido:
“Não me deixem perder mais ninguém.”
Kiara:
Eu queria gritar.
Amassei aquele bilhete com o aviso sobre estar na prova do uniforme negro e o enfiei de volta no bolso. Quase dois anos no V8, um teste locam bem sucedido, passar direto para o V9, partir a cabeça de um demônio no meio e agora estava ali com o nervoso tomando cada espaço de minha mente. Devia ter deixado a prova mais para frente, ainda tinha muito o que aprender no V9, não devia ter me inscrito tão ansiosa assim.
Bom, podia ser pior.
Encarei por um instante aquele bracelete retorcido preso ao meu braço, o vitrino em meu sangue anulava o bloqueio da prata, mas de alguma forma eles conseguiram bloquear completamente minha magia. Reconhecia dois dos metais retorcidos numa espécie de trança achatada em meu pulso: o dourado era sem dúvidas aço solar, pela sensação de dormência, havia prata também mesmo em pouca quantidade, e a terceira fita escura de metal que compunha o adorno, devia ser o motivo de eu sequer conseguir invocar o gelo de meu sangue ou mudar para minha forma feral.
O teste seria adorável!
Respirei fundo e dei mais uma olhada ao redor, não havia nada nem ninguém ao longo da costa, e duvidava que houvessem poucas equipes para o teste, porém Pollo era imenso, podiam facilmente espalhar todas as equipes que se inscreveram para o teste e essas não se encontrarem... o que dificultava ainda mais a prova, uma vez que precisaríamos das equipes completas para concluir o teste.
Hestia, Lohan e Helleon estariam em algum lugar por ali.
Inferno! Queria não ter adiado por tanto tempo minhas aulas de voo com Connal e Helleon, ainda podia sentir a magia de Senrys... sua forma espreitando sobre minha pele, por não ser magia e sim uma transformação feral, ela não podia ser contida por aquela pulseira, então eu conseguiria usar as asas para voar.
Foco! Não tinha asas, não sabia voar. A única coisa a meu favor era meu treinamento e eu precisaria de cada minuto de experiência para encontrar minha equipe. As ondas quebravam cada vez mais perto da praia, o vento começou a soprar vindo do sul e Panmat brilhando tinha se movido um dedo para longe do horizonte, indicando que fazia pouco tempo que o sol de Pollo havia desaparecido.
Um dia de vinte e seis horas... e apenas três horas de sol.
Com um suspiro resignado, verifiquei mais uma vez minhas roupas, prendi a adaga em meu lado esquerdo então comecei a caminhar em direção à leste, porém não dei nem cinco passos antes de uivos medonhos soarem numa floresta ao longe que mal podia ver as copas dali por conta de meus sentidos suprimidos.
O vento mudou de direção, trazendo uma espécie de esfera dourada de luz que flutuou a alguns centímetros de meu rosto:
“Venairens... bem-vindos à prova do uniforme negro. A partir de agora, vocês têm três dias para localizarem suas equipes completas, o objetivo de suas missões, que será entregue ao líder por um dos mestres que os encontrará a qualquer momento, e ao final do terceiro dia, precisarão estar diante dos portões do castelo dos ossos com seu objetivo em mãos. Todos conhecem as regras, e saibam que caso não consigam seus objetivos, também poderão concluir a prova tomando as missões das outras equipes. Não lhes desejo sorte, pois creio que não a encontrarão aqui, mas lhes desejo força, determinação e coragem para chegarem ao final do teste. Que a noite longa não lhes façam esquecer onde buscar a luz.”
Meu interior se retorceu ao ouvir aquelas palavras.
Três dias... sendo que nossas equipes podiam estar espalhadas em qualquer lugar. A única certeza que tinha era de que estávamos no mesmo continente, mesmo assim, podia levar mais de três dias apenas para nos encontrarmos.
Podia levar um mês para encontrá-los sem magia!
Torcendo para que meus amigos tivessem a mesma ideia que eu, comecei a caminhar em direção à floresta. As copas das árvores dariam uma boa visão e assim teria noção de onde podia estar e forneceriam abrigo também.
Corria para a floresta ao mesmo tempo que me atentava a qualquer som ou movimento ao meu redor, por ter sido colocada numa área aberta sabia que podia ser vista ao longe por qualquer criatura ou até mesmo por outros venairens. E mesmo que ainda fosse cedo temer por outras equipes se aproximando para tomar nossos objetivos antes mesmo de tentarem os seus, era melhor não ficar as vistas e correr o risco de ser seguida.
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Quase na metade do caminho até a floresta, pouco tempo após o aviso Lórien, uma sombra em meio as árvores que agora podia facilmente enxergar os troncos e galhos retorcidos cobertos por folhas escuras, me fez parar abruptamente e sacar a adaga. Um lobisomem maior que um lobo de áries disparou em minha direção, saltando para fora da floresta. Ele tinha mais de dois metros e o pelo negro brilhava contra a luz da lua. Com o coração acelerado, me preparei para ser atacada, não sabia o que fazer com um lobisomem uma vez que eles eram os nativos daquele mundo, mas sabia que matar um deles poderia me desclassificar da prova. Pensei em correr na direção oposta, mas podia desacordar um deles sem matá-lo.
Porém antes que ele chegasse perto o suficiente, a criatura mudou de forma e ergueu as mãos num gesto de paz. Sem confiar muito, mantive a adaga apertada no punho e o avaliei de cima a baixo. O homem de pele escura e olhos cor de vinho se aproximou sério, os cabelos enrolados em tranças presas num coque sobre a cabeça eram de um tom ruivo escuro e em sua testa, uma meia esfera com poeira de Panmat lhe revelava a identidade.
— Shiryn, não é? Espero de coração que não tenha vindo testar minhas habilidades de luta. — murmurei baixando a adaga. O lobisomem riu e meneou a cabeça negativamente.
— Só vim lhe trazer as instruções do seu teste. Já vai ser ruim o suficiente sem que eu te dê uma surra antes! — sua voz me fez soltar um rosnado e avançar um passo em sua direção. Foi ele quem nos tirou do quarto e nos levou até ali! Como eu não sabia, Ederon e Melanie não tinham poderes.
— Acha que conseguiria me vencer só porque prendeu essa porcaria em mim? Não preciso de minha magia ou minha transformação para esfolar você! — rosnei pinçando as garras da mão metálica.
— Ei, ei! Calminha! Estava só cumprindo ordens. — Ele bufou e tirou do bolso de seu uniforme uma folha dobrada e a estendeu em minha direção com certa cautela. — Acalme os nervos, menina, Pollo é um mundo que atiça as feras!
— Nenhuma dica de onde está minha equipe? — ignorei seu comentário maldoso tentando uma chance de trapacear. Shiryn riu e meneou a cabeça negativamente.
— Quer que eu te leve nas costas até eles? Talvez uma massagem nos pés também? Gostaria de me morder e ficar de barriguinha cheia enquanto isso? — zombou, revirei os olhos para evitar socá-lo. — Não se esqueça do prazo, só ficar de olhos em Sirius no horizonte.
Dizendo isso, ele mudou de forma e soltou um uivo medonho, do tipo que arrepiou minha espinha, então correu para o outro lado numa corrida inacreditavelmente rápida. Não demorou nem o tempo de uma respiração para ouvir outros uivos vindos em meio as dunas distantes da praia. Shiryn alertou outros, denunciando minha posição, sem dúvida!
— Te desejo uma topada numa faca de prata! — gritei sabendo que mesmo já sumindo de vista, ele me ouviria.
Sem esperar que os uivos se aproximassem, continuei minha corrida em direção à floresta, primeiro procuraria um lugar seguro para em seguida ler as instruções sobre nossa prova. Sem minha primeira transformação feral, era difícil correr por aquela costa longa ainda morna. Quase não podia ver o contraste do preto das minhas botas de couro com o negro iridescente das areias.
Fui me aproximando das imensas árvores de troncos escuros retorcidos e folhas longas e acinzentadas, as cascas me lembravam vagamente cascalhos colados aos troncos largos e nodosos, mas os galhos também largos e muito altos protegidos por aquelas folhas me dariam uma boa proteção.
Agradeci silenciosamente aos deuses daquele mundo quando pisei segura na floresta, porém a gratidão foi diluída pelo gelo escorrendo em minhas veias ao ouvir uivos mais próximos e grunhidos junto com o som de garras arranhando o solo úmido coberto por folhas. Prendi a respiração e me aproximei de uma das árvores cujos galhos mais baixos eu podia alcançar num pulo, então saltei, agarrando-me ao tronco enrolado e icei meu corpo tentando ser o mais silenciosa possível. Após escalar mais alguns galhos sentindo minha palma direita arder levemente, me aproximei de um emaranhado de galhos mais finos, o ponto em que uma árvore quase se conectava com outra.
Ouvindo os grunhidos animalescos se aproximando, testei a envergadura dos galhos, por sorte era baixa e leve o suficiente para deslizar até a outra árvore sem que meu peso os fizesse ceder. Ali a folhagem era menos concentrada, então podia ver o solo assim como qualquer coisa lá embaixo poderia me ver se prestasse atenção direito... e para um mundo cheio de feras acostumadas a caçar na noite longa, sabia que era um risco maior do que queria correr. Ao olhar para baixo, minha barriga deu uma cambalhota de nervoso. Uma criatura cujo tamanho era duas vezes maior que um lobisomem adulto, com uma pele cinzenta repuxada, orelhas longas e caídas e um focinho curto achatado com presas longas apontando para diferentes direções, caminhava curvado sobre duas patas traseiras, as dianteiras mais longas estavam encolhidas contra o tronco enquanto ele farejava o chão e o ar em busca de algo, talvez sua próxima refeição.
No caso, eu.
Fiquei completamente imóvel, prendendo minha respiração e de olho nele até que a criatura se afastasse alguns passos, ela soltou um grunhido medonho, logo mais três sons iguais reverberaram por entre as árvores. Um grupo daquelas coisas horrorosas que eu sequer sabia o que eram!
Com cuidado para não quebrar ou derrubar sequer uma folha, desci para os galhos mais espessos da árvore seguinte e colei as costas no tronco, só precisava me sentar por um momento e esperar o susto passar. Nunca havia visto uma criatura como aquela, mas deveria ter lido com mais calma os bestiários de Pollo, não me lembrava o motivo de ter pulado a leitura deles, mas agora estava perdida quanto ao que poderia encontrar ali além dos lobisomens, que aliás, podia ouvir uivos se aproximando.
Peguei o papel de Shiryn para o ler antes de voltar a circular pelas copas das árvores. Ao abri-lo, algo envolveu rapidamente meu tronco prendendo meus braços e tapou minha boca. Assustada, pensei em me jogar para trás e cair com meu atacante.
Mas eu sentia as cascas da árvore roçando em minhas costas.
Com os olhos cheios d’água imaginando algum tipo de fantasma ou espectro, forcei meus braços para me soltar, mas foi em vão.
— Sem pânico, princesa! Não queremos atrair os bichinhos de volta! — a voz como uma noite mansa sussurrou em meu ouvido, o hálito morno percorreu meu pescoço, só então senti seu corpo se materializar. Lohan estava com as pernas flexionadas e me apertava contra o peito. Ele soltou minha boca e devagar, diminuiu o aperto, como se esperasse que eu não acreditasse que era realmente ele ali.
— O que são essas coisas? — mesmo que estivesse aliviada e feliz com sua presença, aquela foi a primeira coisa que escapou de meus lábios.
— Oi para você também! — virei-me com cuidado para encará-lo, ver seus olhos quase prateados rajados de negro e o meio sorriso em seu rosto era tranquilizador. — os bichinhos que estão nos caçando são chamados de Elitropos. São... predadores dos licantropos, mas também gostam de refeições mais fáceis, tipo garotas malvarmos com poderes bloqueados! — a explicação me fez arregalar os olhos. Sequer imaginava que lobisomens tinham predadores, e para uma criatura ser considerada não só inimiga, mas predadora...
— Como consegue usar seus poderes se está com um bracelete de prata cyfhen? — questionei baixo. — Como você está aqui?
— A prata dos bruxos não bloqueia o poder de um tenebris, Kiara. Ela foi criada pra conter as tormentas de Maddox e de sua filha. Nada em seu mundo bloqueia nossa escuridão — Lohan murmurou — Apenas minha tormenta foi contida. E fui deixado aqui dentro da floresta. Pelo visto sua prima esqueceu de avisar a eles para mesclar prata junto com aço solar.
— Entendo... porque não está falando em minha mente ao invés de arriscar que essa sua voz bonitinha seja ouvida por aquelas coisinhas que nos querem como janta? — ciciei.
— Porque você está com uns quatro metais de contensão diferentes, minha escuridão está solta, mas a sua não. Não consigo me conectar com você! — Lohan parecia frustrado, ele olhou com cautela ao redor, os uivos estavam se afastando, mas os Elitropos não.
— Saudade de ter uma noite inteira de sono antes de ter bestas famintas me perseguindo. — resmunguei. Como não sabia quanto tempo passei apagada na praia antes de despertar, não tinha ideia de quanto tempo havia se passado desde que o demônio de fogo atacou as tormentas.
— Por falar em besta faminta, quando foi a última vez que se enfiou as presas em alguém? — pisquei tanto para a pergunta quanto pela comparação, Lohan deu um sorrisinho.
— Hestia me alimentou um pouco antes de dormirmos. Precisava me recuperar da arma improvisada que fiz para parar nosso amigo de pedra e fogo azul. — resmunguei, encolhendo-me ao ouvir os estalos sobre galhos caídos, as criaturas faziam círculos ao redor da área onde estávamos.
— Estou escondendo nossas presenças, mas não posso fazer por muito tempo também, eles certamente sentirão nossos cheiros e se subirem nas árvores vamos perder nossa camuflagem. — Lohan aproximou-se um pouco mais.
— Voar então nem pensar. — Ele assentiu.
— Arriscaríamos ser rastreados e perdermos nosso objetivo, que é...?
Peguei o papel já esquecido em meus dedos apertados e li baixo:
“No coração da floresta do Serpentário, um leshy guarda o tesouro que buscam, o fragmento e a carta os aguardam na toca da criatura. Não recomendamos enfurecer o guardião da floresta, pois uma vez que ele desconfiar de vocês, suas chances de sair com o prêmio cairá a zero. Boa sorte!”
— Um leshy? — Lohan mordeu os lábios prendendo uma risada.
— Não estaria achando tanta graça se tivesse que enfrentá-lo sem um pingo de magia. — retruquei.
— Não passei direto para o V8 usando magia, sabe? Eles nos testam fisicamente também!
— Sua pele é tão firme quanto couro de dragão, e seu crânio duro como pedra, acredite, vai ser uma merda derrubá-lo uma vez que leshy não pode ser morto, ou a floresta que ele protege pode morrer também!
— Isso é mito. — Lohan rebateu.
— Eu que não vou arriscar, qualquer dano indevido durante a prova pode alterar nosso resultado.
— Ainda precisamos achar Hestia e Helleon. — Lohan me encarou por um longo instante, os sons das criaturas que nos circulavam se aproximavam cada vez mais. — Podemos dar um passo?
— Creio que seria contra as regras — baixei ainda mais minha voz.
— Então nos resta descer e dar um fim neles.
— Eu temia que você dissesse isso.
Lohan me lançou um sorriso, metamorfoseando duas armas de sombras, um imenso machado que colocou em minhas mãos e uma espada que manteve para si.
— Poder que não pode ser contido, não é contra as regras. — Ele piscou para mim — vamos separá-los?
— Eu que não quero enfrentar um grupinho deles antes de saber ao certo a força que podem ter — rebati, observando atenta a sombra de um deles passando não muito distante de nossa árvore. Se eles eram predadores de lobisomens... não queria nem pensar no que poderiam me fazer caso eu descuidasse.
— Está mais medrosa do que o normal hoje. — Lohan me estudou com o cenho franzido — Você arrancou metade da cabeça de um demônio de fogo e arrebentou um remorhaz no meio com as mãos, Kiara! Um remorhaz comeria um elitropo desse como se ele fosse um aperitivo!
— Meu medo não está nos monstros, Lohan, está em falhar na prova. — Ele tinha razão, eu não deveria estar com tanto medo deles... mas depois que Detéria praticamente varreu o chão de sua sala comigo...
— Até onde eu sei, o rei dos vampiros não era um adversário fácil, era um velho astuto com milênios de planos maquiavélicos em execução, então pare de achar que não vai conseguir por um que deu errado.
— Não pode ler meus pensamentos, não é? — senti meu rosto queimar.
— Não preciso ver sua mente para saber que era isso que estava pensando. — Ele sussurrou de volta, apertando meu ombro com a mão livre. Não devia ter contato sobre Somnus para ele, mas também não conseguia evitar que as verdades simplesmente saíssem quando ele se sentava para me ouvir. — Você é capaz, Kiara! Não deixe que as falhas façam você duvidar de quem é e do que é capaz! Agora vamos descer e tirar o couro daqueles bichinhos e procurar nossos companheiros, tudo bem? Vou atrair todos eles, você vai estar lá embaixo me esperando e vai partir eles no meio com essa arma de um deus bárbaro!
Assenti devagar. Ele tinha razão.
Tinha sobrevivido a coisas piores, não é porque havia perdido para um monarca vampiro que tudo estava perdido.
Lohan fez um aceno com a cabeça, uma pergunta silenciosa, então como se nada pesasse, ele se ergueu e correu pelos galhos das árvores até sumir de vista. Não se passara nem um minuto quando ouvi rosnados alucinados a vários metros de distância. O que Lohan havia feito para enfurecer os elitropos?
Não demorou mais que o tempo de soltar o ar de meus pulmões para que três das quatro criaturas corressem para mim, seguidas por um dragão negro de fumaça com os dentes longos escorrendo sangue escuro. Já sabia o motivo de só três virem em minha direção. Atenta, esperei até que eles entrassem no limite dos galhos da árvore em que estava e saltei, descendo o machado na direção da besta do meio.
Caí sobre ele partindo seu crânio ao meio, espirrando sangue nos troncos das árvores mais próximas e no tapete de folhas mortas no chão. Rolei rapidamente sobre o solo duro e me coloquei de pé num pulo, os outros dois maiores viraram-se imediatamente, abocanhando o ar onde no segundo anterior minha cabeça estivera. Os animais eram ainda maiores ali do chão, eles avançaram sem medo em minha direção uma vez que o dragão havia desaparecido.
As criaturas continuavam atacando enquanto eu desviava de suas investidas, já que não tinha espaço para manejar aquele machado em meio às árvores ali. No instante em que um deles avançou rosnando e babando, girei a lâmina num movimento vertical e empunhei a ponteira contra a garganta da criatura. A lâmina a transpassou fazendo a besta soltar um grunhido sofrido, mas a arma ficou agarrada na couraça do animal que sufocava. O outro avançou para mim, forçando-me a saltar para longe abandonando meu machado. Não podia correr, ainda escutava uivos distantes e os sons podiam chamar atenção de mais deles.
Eles eram rápidos apenas na corrida pois seus troncos curvados e patas encolhidas não lhes dava equilíbrio o suficiente, mas as bestas pareciam ter uma inteligência acima de animais comuns, pois os percebi avaliando meus movimentos.
Onde estava Lohan?
Minha distração ao procurar pelo tenebris fez com que eu pisasse em falso sobre uma raiz, o movimento não passou desapercebido pela criatura mais próxima, seus olhos negros sem pupilas observaram o passo vacilante e num rápido movimento a besta deu um bote em minha direção.
Agi por instinto, sem ter mais minha magia ou meu gelo para usar como arma e ignorando aquela adaga que fora deixada comigo, estendi os dedos da mão esquerda e a estoquei na direção da bocarra aberta quase sobre mim, garras e dedos atravessaram o céu da boca da criatura e saíram atrás de sua cabeça. A fera soltou um ganido engasgado antes de seu peso morto me desequilibrar. Com um puxão rápido, soltei meu braço do ferimento e o deixei cair no chão, sangue escuro e algo espesso e cinzento escorriam de meus dedos, pingando lentamente no chão.
— Ah! — puxei um chumaço de folhas de um galho próximo ao meu alcance e limpei o excesso, outras criaturas poderiam sentir o cheiro forte daquele sangue e me rastrear.
Lohan apareceu segundos depois na forma de um lobo negro e soltou um ganido quase parecido com uma risada. O teria chutado se não estivesse mais preocupada em sumir com os vestígios de sangue da criatura em mim.
— Onde estava? — perguntei quando ele voltou à forma humana.
— Tinha outra equipe por perto — Ele sussurrou, puxando meu braço de vitrino e o assoprando, uma poeira fina e negra fez com que o sangue ainda agarrado em algumas partes se transformasse num pó brilhante, que voou para longe com a brisa que balançava as folhas.
— Sabe há quanto tempo chegamos?
— Duas horas... duas horas desde que fomos tirados da ACV. — Lohan manteve as sombras o circulando, vigiando os arredores — Precisamos achar Hestia.
— E Helleon — completei, mas Lohan negou com um menear da cabeça.
— Já o achei, ele está a noroeste, uns vinte quilômetros daqui próximo a outro venairen, mas Hestia... eu ainda não consigo senti-la.
— Então o encontramos primeiro, Helleon talvez consiga encontrá-la pela marca do clã. — murmurei, verificando se ainda tinha meus pertences nos bolsos.
Lohan fez um movimento com o queixo para que eu o seguisse, então começamos a correr entre os troncos retorcidos e raízes altas. A floresta nos dava uma boa camuflagem, mas também atrapalhava em caso de precisarmos lutar contra monstros... ou outras equipes.
O tenebris mantinha aqueles fios de escuridão espalhados por todos os lados, sentindo tudo, ouvindo, percebendo antes de mim qualquer movimento para que não fossemos surpreendidos por nada. Me senti um pouco mal, sem ele em minha equipe, talvez eu sequer passasse por aquela prova.
— Está pensando besteira, não é? — Ele riu, saltando uma raiz e estendendo uma mão para que eu parasse, ela escondia um buraco escavado sob a árvore, certamente a toca de alguma criatura grande o suficiente para arrancar meu outro braço com uma mordida.
— Não é besteira — bufei saltando a toca, uivos não muito distantes nos fizeram reduzir a corrida e falar mais baixo. Lohan não podia amenizar nossos ruídos, não sabíamos até que ponto usar sua escuridão poderia intervir nos resultados da prova.
Paramos por um momento, escutando gritos humanos ao longe, em seguida, ganidos, mais uivos e um grito de guerra que fez minha pele arrepiar. Nem queria imaginar quem tinha venceria aquela briga. Em total silêncio com as costas coladas num tronco, observei o rosto sério de Lohan contra a luz da lua que passava através dos galhos, nem mesmo um risquinho de azul ou prata permanecia em seus olhos.
— Seus olhos estão negros também. — disse ele dando-me um sorriso curto.
— Ainda acho que você está ouvindo meus pensamentos — resmunguei — esse mundo traz o que há de mais animalesco em nossas almas para a superfície.
— Então vou torcer pra você não virar aquele monstrão de novo, não quero uma mordida sua naquela forma. — Ele tossiu uma risada.
Aqueles gritos vindos de longe cessaram e um vento forte fez as copas das árvores sacudirem, derrubando grandes folhas sobre nós:
“Equipe D-25 está desclassificada, permaneçam em seus lugares para que sejam removidos do campo de provas”
A voz de Ederon alertou, em seguida o vento desapareceu.
— Alguém quebrou as regras. — murmurei. — Então estamos realmente sendo vigiados, aparentemente sua escuridão não está contra elas.
— Falando em regras... — Lohan puxou meu braço para que voltássemos a correr, seja lá o que tenha feito a equipe ser desclassificada, os bichinhos com os quais estavam lutando podiam estar soltos agora... e procurando a próxima equipe. — Você começou o V8 em novembro... mas como passou para o V9 na prova de dezembro?
— Você também fez a prova direto pro V8 e entrou para o V9! — rebati.
— Eu fiz o teste de aptidão em setembro. — Lohan desviou de um galho quebrado empurrando-me um pouco para o lado, algumas aranhas do tamanho de minha mão fizeram teias brilhantes ali, por pouco não acabo com enfeites pegajosos nos cabelos.
— Passei quase dois anos completos no V7 — admiti, sentindo a vergonha queimar em meu rosto quando ele parou abruptamente para me olhar. — Não consegui passar na prova de julho para o V8, então depois de me matar de estudar, consegui a segunda chamada em setembro, nós certamente as fizemos em dias diferentes.
O tenebris assentiu, observou a trilha estreita à frente enquanto eu me atentava a um movimento no meio das árvores.
— Então você teria... repetido o V7?
— Não conseguia passar nas provas teóricas de venenos, línguas e anatomia — suspirei — ainda por cima nas duas provas físicas, peguei Medras como adversário. — Lohan fez uma careta.
— Achei que Hasan fosse mais forte que ele.
— E é. — um meio sorriso apareceu no rosto do tenebris.
— Ele te deixou vencer. — encolhi os ombros, mas assenti.
Lohan me fez passar entre duas árvores que quase se tocavam, porém, depois dali a trilha se abria e a floresta começava a espaçar, estávamos mais perto do campo aberto que via entre os troncos.
— Então podemos fazer as provas de novo mesmo que tenhamos acabado de passar? — Lohan perguntou depois de um tempo em silêncio em que só ouvia o farfalhar das folhas e o som de animais distantes e insetos próximos.
— Não há restrições quanto a isso, se você for bem nos testes, tendo mais de noventa por cento de acertos nas teóricas e vencendo os desafios físicos, você pode passar direto. — expliquei — tinha uma garota élfica de quatorze no V8 ano passado. Ela só não chegou ao V9 pois não conseguiu passar dos mestres em combate durante uma prova, mas fez cem por cento em todas as provas escritas.
Lohan fez uma careta, não sabia quais foram as suas notas.
— Então depois dessa prova... seremos oficialmente caçadores?
— Sim e não — suspirei frustrada — a prova do uniforme negro é um teste dentro do V9, nós receberemos os uniformes dos caçadores, mas ainda estaremos em treinamento até fazer as provas teóricas de julho ou setembro, mas poderemos aceitar missões fora da ACV e escolher nossos próprios valores de recompensas, porém ainda seremos supervisionados.
Ele bufou uma risada.
— E o locam?
— Não está vinculado as provas de níveis. É como... uma matéria extra em que você testa suas habilidades nas principais, sobrevivência, venenos, localização, combate...
Lohan cobriu minha boca e me puxou para trás, escondendo-nos com as sombras.
Algo passou correndo pela trilha onde estávamos. Algo não... alguém. Inclinando-me contra o tronco quando o tenebris me soltou, pude ver duas mulheres de pele escura, tatuagens safira nos braços, elas carregavam espadas longas de cabos de ossos e tinham metade de suas cabeças raspadas. Elas seguiram pela trilha até desaparecerem de vista.
— São soldados de Ederon. — sussurrei.
— Acho que os venairens desclassificados não cumpriram a ordem de esperar. — disse, seguindo por um caminho diferente.
— E se eles ainda estão por aí, vão tentar ferrar a prova de quem continua — conclui, seguindo-o pelas margens da floresta.
— Temos que encontrar Helleon e rápido. — Lohan mudou para a forma de um Moroodoch e me puxou para dentro com fiapos de sombras antes de escorregar por entre as árvores na mais completa escuridão.
Capítulo 2
Hasan:
Aquilo só podia ser um sonho, não havia outra explicação. Sabia que a prova do uniforme negro estaria acontecendo naquele instante... mesmo assim, não queria acordar naquele momento.
? Não devia estar aqui sozinha, Kiara ? alertei preocupado pela ausência de qualquer solaris no corredor, sempre ? SEMPRE ? haviam guardas vigiando meu quarto, Alfia não acreditava que eu não levaria Kiara até lá... mas ali estava ela. E aquela era a maior prova de que estava sonhando.
? Não estou sozinha, estou com você! ? mesmo no sonho não consegui deixar de reparar na carreira de dentes pontiagudos quando ela sorriu, esticando-se nas pontas dos pés para beijar meu pescoço.
? Se não se concentrar, não vai descobrir a charada! ? balancei o papel perto dela, preocupado com o que Alfia poderia fazer caso a visse ali assim, por sorte a rainha solaris não tinha mais suas tormentas.
Inferno! Eu era mais poderoso que ela! Não devia temer a solaris, eu não estava ali como seu prisioneiro! Mesmo... mesmo num sonho aquele tipo de medo não saía de mim.
? Não vai me oferecer nenhum prêmio? ? Ela fez um biquinho e pressionou o corpo no meu, suas mãos subiram por meu peito e com cuidado, arrastou as garras por meu pescoço, lançando um arrepio por minha coluna. Eu sentia falta daquelas provocações.
? Por favor, Kiara! ? E sem precisar dizer mais nada ela se afastou um passo, tirando as mãos de mim, mas sua expressão se mantinha tranquila.
Como a amava! Até mesmo fora da realidade, ela sabia parar quando ouvia um não.
? Sinto sua falta. ? Ela sussurrou, num minuto estava diante de mim, no outro, eu encarava o nada e meu peito se apertou.
Acordei irritado, tentando controlar as batidas rápidas de meu coração. Ficara até tarde na noite anterior ajudando Aristes a testar uma forma de curar a infertilidade de Alfia. Não era algo simples pois fora causada por magia obscura, mas não havia nada que Aristes não conseguisse reverter. A solaris ficou exultante quando lhe trouxe o tônico e até mesmo chegou a imaginar que eu a ajudaria com o restante, foi preciso toda a minha paciência para não gritar com ela.
Como fui ligado a Lumis, podia sair apenas uma vez por mês de dentro das barreiras e permanecer fora por no máximo seis horas, e havia desperdiçado aquele tempo procurando uma forma de ajudá-la. Se conseguisse que Alfia tivesse um herdeiro antes do fim que ela julgava próximo, teria os dias de minha prisão contados.
Não era um desperdício de tempo... era investimento. Precisava acreditar nisso, que os resultados me levariam de volta para casa. Preferia ter ido à Pollo monitorar a prova, ver o momento de sua finalização, mas tinha certeza de que ela viria me ver depois, uma vez que o objetivo de sua equipe era um dos fragmentos.
Sentei-me na cama e suspirei pesadamente. Precisava encontrar agora alguém disposto a ocupar a cama da rainha por uns dias. Assim talvez ela sossegasse de uma vez. Podia optar por inserção mágica, uma vez que os curandeiros ventus sabiam como fazê-lo, porém não queria que Alfia tivesse um filho meu, mesmo que eu não precisasse tocar nela para aquilo. Sabia qual era a sensação de nascer e existir com um propósito e o peso que acarretava ao não conseguir corresponder às expectativas.
Mais tarde voltaria à biblioteca, havia um registro de mestiços de solaris com outros celestes, talvez conseguisse encontrar algum mago meio solaris perdido nos outros céus.
Escutei o som de passos rápidos e junto com eles vozes exaltadas se aproximavam da porta de meu quarto.
?... pouco me importa, eu não engulo esse papinho mole, Alfia! Conheço sua alma! Não se faça de boazinha para cima de mim!
Áries!
Levantei-me num pulo e corri até a porta.
? Eu só quero que sejamos...
? Se disser a palavra amiga, rainha solaris, eu arranco sua língua aqui mesmo! ? Áries grunhiu de forma baixa e letal, gelo se espalhava ao seu redor quando abri a porta para encará-las. Minha mãe estava em sua forma real, com os cabelos louros brilhando e os olhos de um azul profundo fitando a solaris com ódio velado. Alfia mantinha uma mão no peito e sua expressão era de quem tinha apanhado, bom, era esse o efeito que as palavras de Áries tinham em qualquer um.
? Alfia, nos deixe conversar a sós, está bem? ? disse baixo, ela nos deu um sorriso sem graça e deixou o corredor em passos rápidos.
? O que essa megera está fazendo com você? ? minha mãe entrou no quarto e vasculhou o local com os olhos antes de se voltar para mim e me apertar nos braços.
? Está tudo bem, mãe. ? Ela me encarou e meneou a cabeça.
? Eu te criei, Hasan, sei quando você está bem, e você definitivamente não está. ? Ela ralhou, sentando-se na cama, reparando de cenho franzido no cheiro ? Pelos deuses! Diga que não está traindo Kiara com essa...
? Sabe que eu não faria isso! ? rebati ? Estamos dentro de um reino Solar, mãe, ela pode ter perdido sua tormenta, mas não perdeu a habilidade de mexer com a mente dos outros. ? murmurei. Ainda não entendia como aquilo era possível, havia algo errado na história de Alfia, se não fosse a completa ausência de magia solaris em seu corpo, teria certeza de que ela armara tudo aquilo.
Áries soltou um suspiro pesado e cruzou as pernas sobre a cama. Antes de perguntar como ela chegara ali sozinha, senti a presença de meu pai no castelo, o poder que se espalhou pelo lugar, fluindo como em reconhecimento ao seu lugar de origem.
? Como está Kiara? ? queria lhe perguntar sobre Neruo, sobre o bebê e a ACV, em como Lórien estaria lidando com tudo sozinha, uma vez que eu era seu conselheiro, mas foi a garota que veio em meus pensamentos primeiro. Minha mãe endureceu ainda mais a expressão e meneou a cabeça negativamente.
? Não a vejo desde que foi até Lastar falar comigo. Mas seu pai disse que o treinamento dela está mais pesado... que Arcádius a força a dobrar o tempo em todas as aulas e mantê-lo fora da magia, ela consegue dobrar cinco minutos sem iniciar o congelamento, e consegue bater de frente com Arcádius em combate físico... soube que anda usando o canto sirênio também em algumas missões ? Ela se encolheu ? Os levaram ontem à noite para Pollo, ela deve estar em prova agora.
? Kiara vai conseguir. ? soltei um suspiro cansado.
? É claro que vai, ela é forte e tem uma equipe ótima.
? Queria estar acompanhando a prova como prometi a Lórien que faria. Ela não vai dar conta daquilo sozinha. ? não me referia só a ACV. Lórien era minha melhor amiga atualmente e eu o seu amigo que não a deixava tomar decisões erradas.
Áries me encarou mais séria dessa vez.
? Aristes conseguiu algo que fará com que Alfia possa ter um herdeiro, não é? Mas não há magos solares por aqui além de você ? Áries soltou num sussurro, retirando de dentro de seu vestido azul um frasco criogênico com uma pequena esfera de luz pulsante. ? Se funcionar... em pouco menos de cinco anos você estará fora daqui, meu filho.
? Isso... ? a sensação dentro daquele vidro frio era viva, não parecia ser exatamente magia.
Ela desviou o olhar ao me entregar o frasco seu rosto se encheu de cor e ela baixou os olhos. Não precisava de uma resposta para saber o que era.
? Porque não entregou diretamente para ela? ? não precisava perguntar, sabia que a única coisa que Áries daria a ela, era uma morte lenta caso Alfia falasse um “A” errado, ainda mais se aquilo em minhas mãos fosse exatamente o que eu pensava ser. ? Mãe...
? Ele não iria deixar que você ficasse com toda responsabilidade sobre esse inferno todo. ? Ela me puxou para os braços e me apertou com força, como se tivesse guardado cada abraço que teria me dado em todos os dias que não estive perto para recebe-los e os oferecido de uma vez. ? Só precisa pedir a um curandeiro que faça o resto, não precisa chegar perto daquela... ? Ela bufou ? te quero de volta mais perto de nós.
? Pelos portais, a distância até aqui é quase a mesma ? tentei rir, mas o som não saiu.
? Aqui você fica inacessível para nós. ? Ela finalmente soltou os braços de mim e segurou meu rosto, seus olhos cristalinos como vidro azulado brilhavam ? Você é meu maior presente, Hasan. ? Ela beijou meu rosto e sorriu um pouco.
? Devia ir pra casa, descansar. Esse lugar não é bom para você ? segurei seu braço com cuidado e a guiei para a porta.
? Esse lugar não é bom para você também. ? não queria dizer que talvez não fosse bom para ninguém.
Caminhamos juntos através dos corredores ensolarados, banhados naquela suave luz morna agora com uma impressão mais receptiva, minha impressão, uma vez que era minha magia que mantinha o lugar. Áries fechou os olhos e ergueu o rosto quando passamos por um janelão cujas cortinas ametista brilhavam contra o sol e se moviam suavemente com a brisa. Sua pele brilhou e um pequeno sorriso deu o ar da graça.
? Não fica tão ruim com você por perto.
? É claro que não, nada é ruim quando estou por perto! ? brinquei, ela riu de verdade dessa vez encarando-me com admiração no olhar.
O som de seus passos diminuiu ao nos aproximarmos da sala do trono, sua expressão também se fechou à medida que assumia sua real forma novamente. Lá dentro escutei com clareza as palavras baixas de meu pai num alerta e o som de uma risadinha divertida da rainha solaris, as garras de Áries ficaram ligeiramente maiores. Tive que segurá-la junto a mim enquanto entrávamos na sala, duvidava de seu autocontrole naquele estado.
? Ah, Áries e Hasan, que bom que se juntaram a nós! ? Ela sorriu, mas teve o bom senso de afastar-se um passo de meu pai. Ele observava Áries com cautela, não por medo do que ela podia fazer à solaris, mas a agitação e o calor daquele lugar poderiam lhe fazer mal. ? Sirius me contou que vieram trazer algo para me ajudar! Fico agradecida e muito feliz pela consideração.
Áries riu baixo, o que fez meu pai dar um passo mais para perto de nós.
? Não pense nem por um minuto, majestade, que fazemos isso por você. ? com isso, meu pai se aproximou dela e a segurou contra ele.
? Precisamos ir. ? Ele me encarou por um instante antes de fechar os olhos e abrir um portal de volta para Amantia, ignorando completamente as defesas do Primeiro.
Sabia o que ele devia estar pensado, lembrando-se de quando me enviaram para Lupine, para que eu pudesse em algum momento ajudar com a maldição de Arbarus. E agora isso.
? Sinto muito por não poder ir para casa. ? Alfia murmurou. Não havia notado sua proximidade.
? Não sente não. ? coloquei o frasco em suas mãos ? Um curandeiro solaris saberá como fazer o procedimento correto.
Os olhos da rainha brilharam ao encarar a semente de luz ali, ela fechou os dedos ao redor do frasco com cuidado, foi a primeira vez que a vi tratar algo como sagrado, e era mais incômodo do que imaginava.
Kiara:
Não há nada nem ninguém se aproximando de nós!
Continuava repetindo aquilo enquanto corríamos por uma ravina com pouco mais de dois metros e meio de profundidade. Estava paranoica, mas precisávamos passar naquela prova. Os treinos do V9 com a aprovação no teste do uniforme negro seriam menos intensos uma vez que teríamos que realizar mais missões exploratórias. Isso me daria mais brechas para procurar pelos outros fragmentos.
Lohan finalmente havia me deixado sair de dentro da sua forma monstruosa de moroodoch e agora corríamos dentro de uma proteção criada por erosão. Embora eu achasse que não era tão seguro assim, uma vez que a fenda ficava no meio de um campo de centeio não muito grande, pertencente a uma vila isolada dentro da floresta, outros venairens que poderiam nos ver no meio das plantas, não conseguiriam nos surpreender ali pois os veríamos chegando primeiro.
Lohan os veria chegando.
Mesmo se eu pulasse não conseguiria ver por cima das margens da ravina e com meus sentidos quase totalmente bloqueados, permanecia quase... humana.
O tenebris ia à frente, passos rápidos e silenciosos, haviam sombras se espalhando a partir dele, mas não iam muito além de nós. Não sabíamos como os mestres estariam nos observando, mas desde a expulsão de outra equipe quase duas horas atrás, tínhamos a certeza de que tudo que fizéssemos não passaria despercebido.
? Ele não está longe, parece estar circulando a área da vila. ? A voz de Lohan chegou baixa o suficiente para que eu precisasse me aproximar mais e perguntar novamente o que havia dito, só então entendi que falava de Helleon.
? Faz sentido, outros venairens certamente evitariam as vilas, e dragões costumam procurar presas fáceis em fazendas. ? Lohan me olhou por cima do ombro com a expressão maliciosa e riu de minha comparação. ? Me referia a animais de fazenda, Lohan! Deuses eu esqueci da história sobre como os pais dele se conheceram!
Tentei não rir daquilo. O tenebris ainda meneou a cabeça outra vez e voltou a atenção para uma bifurcação na ravina. No lado que desviava para dentro da vila, pedras e um tapete de palha antiga faziam com que o terreno acidentado se elevasse. Já do outro lado, algumas tábuas formavam uma espécie de ponte improvisada e a falha ia em direção à outra floresta, com árvores altas e folhagens densas.
? Tem uma proteção sobre a vila e as fazendas que está causando um bloqueio em meu poder. ? Lohan reclamou ? Parei de sentir a presença de Helleon. Ele pode estar ao redor das fazendas...
? Ou pode estar na floresta. ? avisei.
? Por qual lado vamos? ? Lohan avaliou com cuidado a trilha entre a plantação.
? Vamos nos separar. Nos encontramos aqui dentro de uma hora com ou sem ele. ? Lohan me encarou com o cenho franzido. ? Não comece a dizer que é perigoso, não temos tempo para...
? Não ia dizer isso, queria tirar par ou ímpar para saber quem vai pra vila! ? Lohan mostrou os dentes numa risada zombeteira e estendeu a mão fechada.
? Vá você para a vila, consegue se ocultar melhor, eu vou dar um passeio na floresta e torcer pra não encontrar o lobo mau! ? disse, passando por baixo das tábuas e correndo na direção da floresta escura logo à frente.
Ao olhar de relance para trás, percebi que Lohan tinha partido.
Não podia ficar com medo agora! Inferno! Enfrentamos coisas mais assustadoras sem ninguém monitorando e ficou quase tudo bem! Morrer eu não ia, o máximo que poderia acontecer era perder a prova e isso nem de longe era tão ruim quanto virar comida de demônio.
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Dez minutos depois de deixar Lohan na bifurcação da ravina me enfiar na floresta, fui surpreendida pelo alerta de mais duas equipes desclassificadas, então as regras foram ditas mais uma vez:
“Os venairens em prova só podem recorrer à magia que não foi bloqueada para evitar acidentes e dar uma vantagem para suas equipes, desde que não a usem para obstruir o controle dos mestres e para ferir os habitantes do continente e lhes causar quaisquer problemas. Qualquer vida perdida por uso indevido de suas magias, serão pagas com suas liberdades.”
Do alerta, podia supor duas coisas: uma, alguma equipe com membros usuários de magia fez algo para impedir a vigilância de um mestre e dar uma vantagem à equipe numa trapaça, ou, atacaram mesmo que sem querer, pessoas vagando próximos a eles. Na certa, estavam todos tão preocupados de encontrarem outros venairens que atacaram civis sem querer.
Por sorte, ainda não havia topado com nenhuma outra equipe, o que era no mínimo preocupante. Pelas fichas nas salas de Lórien e os diretores da ACV de Pollo e Ciartes, sabia que deveriam haver muito mais grupos em prova do que podia imaginar.
Apertei a adaga na mão direita e dei mais alguns passos silenciosos, evitando montinhos maiores de folhas e os pequenos arbustos com teias brilhantes que se espalhavam por todos os lados esperando atrair insetos ou animaizinhos.
As árvores ali, diferente da primeira floresta, eram mais estreitas e com galhos altos e poucas folhas, o que quase não oferecia proteção ou esconderijo, precisava evitar arbustos e arvoredos, especialmente após ver as aranhas maiores que meus punhos tecendo por ali. Não que o veneno delas pudesse ser fatal, malvarmos não podiam morrer envenenados com nada, mas podia ficar fraca e até que meu corpo se livrasse do veneno, já teria sido pega por alguém.
Não havia sinal de ninguém por ali.
Porém uma sensação de arrepiar a espinha começou a tomar conta de mim enquanto caminhava pela floresta, avaliando a redondeza. Algo parecia querer me puxar para frente... para o meio onde as árvores estavam menos espaçadas e começava a ficar mais escuro, já que os galhos formando tramas fechadas impediam as luzes das luas a chegarem ali.
Parei entre alguns arbustos, onde uma árvore quebrada estava tombada sobre outras duas, liberando a vista de um pedaço do céu. O avaliei, tentando medir pelo movimento de Panmat quanto tempo havia se passado desde que deixei Lohan para trás.
Quase uma hora.
Precisava voltar rápido e torcer que tivesse encontrado Helleon, para que pudéssemos ir atrás de Hestia. Ao me virar e dar as costas àquela paisagem escura onde a luz criava uma divisão com a parte sombria da floresta, algo moveu meus cabelos e eu estaquei.
Não era Lohan. Não tinha a sensação dele.
Era frio e me lembrava dedos curtos, finos... e etéreos.
Meu coração disparou e meus olhos lacrimejaram. Virei-me para trás com a adaga em punho apenas para me dar conta de que não havia nada ali. Ah deuses! Eu preferia um lobo selvagem, um elitropo, qualquer coisa que eu pudesse enfrentar com garras e aço... menos um espirito errante. A sensação não desaparecia, sentia como se estivesse sendo observada.
Respirei fundo, tentando controlar a tremedeira em minhas pernas, e segui em frente para dentro daquela escuridão.
A sensação me seguia em cada passo vacilante adiante, minha atenção dobrou à cada ruído que escutava, cada movimento dos galhos com a brisa ou o brilho vez ou outra de fios de teias. O lugar arrepiou minha pele a ponto de deixá-la dolorida. Cada metro mais para dentro, onde a luz passava pouco por brechas altas nas copas, podia sentir mais... coisas me observando embora elas não estivessem fisicamente lá.
Meu coração acelerado começou a estabilizar, as batidas rápidas passaram a ser as comuns e meus instintos se mantinham mais alertas que antes.
Quando as sensações desapareceram nem sabia quanto tempo depois, cheguei a pensar que fora tudo impressão minha e estava prestes a voltar, frustrada... até ouvir um choro baixo e uma voz melodiosa e terrível que fez meu interior se dissolver em nada.
Devagar, evitando fazer qualquer ruído, comecei a seguir o som obscuro daquela voz, o choro de criança ficava cada vez mais baixo, embora a melodia aumentasse.
Dez passos.
Quinze passos...
Escondida pelos troncos das árvores e coberta por vegetação antiga, as paredes de uma velha cabana ficaram visíveis conforme eu me movia, observando-a. O canto vinha de lá de dentro e o choro também. Uma luz bruxuleante e esverdeada era visível pelas frestas das paredes lascadas e um cheiro enjoativo de parafina e óleo de sândalo vinha de lá... o que me fez levar muito tempo para perceber outro aroma errado.
Corpos em decomposição.
Devagar me aproximei do que parecia ser uma pilha de lenha queimada... e não era. Crânios, fêmures e ossos maiores que não foram totalmente consumidos pelo fogo se espalhavam ao redor daquele crematório improvisado, manchas de sangue e até mesmo membros apodrecendo em cordas penduradas nas árvores podiam ser encontradas por todos os lados.
Meu estômago embrulhou.
A música cantada dentro da cabana ficava mais clara conforme eu me aproximava.
“...Chegue mais perto, criança arteira
Desobedeça sua mãe e a traga para a clareira.
Venha mais perto, pequena e sapeca
Entre aqui e te darei uma boneca...”
Um cabo de espada podia ser visto bem próximo ao monte de ossos. Andei até ele com cuidado e o peguei torcendo para estar inteira ou pelo menos, com uma lâmina parcial. A puxei devagar, evitando derrubar os ossos e fazer barulho. Agradeci às divindades daquele mundo pela lâmina estar inteira e quase sem danos do tempo.
A melodia continuou:
“De pele lustrosa e olhos tão brilhantes,
Com a forma perfeita irei te deixar...
Lábios costurados e dedinhos colados.
Espero que se comporte até em minha estante estar!”
Estava testando a resistência da espada com as mãos e ao ouvir aquele versinho horrível, quase a quebrei apertando-a com o punho. Em alguma memória muito antiga, da qual eu não conseguia me lembrar direito, já havia escutado aquilo antes e um nome me veio à mente.
Mirtka.
O choro assustado da criança se tornou um gemido de dor abafado e a gargalhada cruel da criatura reverberou contra meus ossos, colocando-me em movimento. Corri até a porta da casa, escancarando-a com um chute e avancei para dentro, procurando pela criatura.
Ela estava lá, no meio do cômodo encarando-me surpresa com os olhos grandes verdes rajados de amarelo, a metade superior de seu corpo lembrava vagamente uma mulher, sua pele enrugada tinha manchas e pequenos furos de insetos. A boca grande tinha tocos de dentes podres e os cabelos ralos úmidos pelo calor da cabana se colavam ao seu rosto e ombros. Da cintura para baixo, seu corpo tornava-se verde escuro e encouraçado, duas patas largas saindo de seus quadris se apoiavam na pedra manchada e o restante do corpo desaparecia por trás da mesa improvisada, a não ser pela cauda grossa movendo-se de um lado para o outro.
A criatura abriu um sorriso terrível e moveu as mãos, fazendo-me perceber a fonte dos gemidos e chorinhos. Uma menina que não devia ter mais de cinco anos fora amarrada à pedra e a criatura havia aberto sua barriga com as garras, estava pronta para estripá-la.
Soltei um rosnado animalesco e avancei com a espada, fazendo-a se afastar da pedra. A criatura soltou grunhido e pulou para o chão, rastejando sobre as quatro patas animalescas e as mãos quase humanas com garras finas. Ela se moveu rápido, dando um bote para cima de mim. Saltei para o lado preparando um ataque com a espada, desviando das garras manchadas de sangue da criatura, mas sua cauda que girou depressa demais para que eu registrasse acertou minhas pernas, derrubando-me no chão. A espada fora parar do outro lado do cômodo, perto de um rolo de tecido enegrecido por mofo e pó.
A criatura avançou outra vez, murmurando a palavra “comida” enquanto arreganhava uma segunda boca em seu tronco, parecia que a parte réptil e a humana se soltariam, mas a carreira de presas ali mostrou como ela limpava tão facilmente aqueles ossos lá fora.
Rolei para o lado, desviando do bote quando ela projetou o corpo arqueando a coluna, consegui chutá-la com as solas dos pés, atirando-a contra uma pilha de bonecas de porcelana amontoadas no canto da sala. A criatura se debateu, tentando levantar-se outra vez.
Ao tentar me erguer, esbarrei num fogareiro com um balde metálico cheio de parafina quente e chiei, esquivando-me do líquido que espirrou. O momento de distração foi o que a criatura precisava para avançar novamente, jogando o peso de seu couro sobre minhas pernas e abocanhar meu braço esquerdo. O som metálico contra os dentes enormes da criatura fez uma onda de pânico tomar conta de mim. A criatura agarrou meus cabelos enquanto tentava mastigar o braço metálico e me puxou mais para perto de si, arrancando um grito de dor ao enterrar as garras em meu couro cabeludo.
? Esses fios... ficariam lindos nas minhas bonecas! ? Ela cantarolou com aquela voz odiosa, puxando-me na direção contrária à segunda boca, tentando arrancar o braço, percebi. A espada estava longe demais de meu alcance... mas ainda tinha algo.
? Vou estragar sua brincadeira de bonecas! ? rosnei em resposta, puxando a adaga presa em minha perna e a enterrando no olho da criatura.
Desesperada, ela guinchou e saiu de cima de mim, debatendo-se e gritando com todas as forças, arrancando a arma do olho. Sangue esverdeado jorrou e irada encarando-me com o olho bom, avançou outra vez, mas eu já estava de pé alcançando a espada caída.
Dei meio passo para o lado ao sentir o deslocamento de ar e girei a lâmina para trás, acertando o pescoço da criatura com o movimento.
Levei alguns instantes olhando a criatura se debater no chão sobre uma poça de sangue, para perceber sua cabeça caída próxima ao balde de parafina quente. Só então reparei com horror que as bonecas na casa, de tamanhos e tons de pele diferentes, eram todas crianças mortas, embalsamadas e banhadas em cera.
Meu estômago deu uma cambalhota violenta, mas engoli o horror e segui vacilante até a mesa de pedra onde a menininha continuava tremendo ao lado de um saco de estopa. O sangue escorria devagar sobre a pele escura brilhante, os olhos amendoados com longos cílios negros encaravam as vigas quebradas do telhado... não, ela encarava um fiapo de luz da lua que entrava pela brecha entre as telhas.
Tentei puxar aquele bracelete em meu pulso, porém ele lançou uma dormência terrível por meu braço e ombro, se eu forçasse a tirá-lo, talvez desmaiasse, na melhor das hipóteses. Minha magia estava bloqueada... e mesmo se não estivesse, eu não sabia curar. Ela virou o rosto devagar em minha direção, seus lábios pequenos e cheios tremeram e seus dedinhos se moveram, tentando me alcançar.
Comecei a chorar.
Mesmo que não conseguisse salvá-la, arrebentei as cordas que a prendiam e com cuidado a peguei nos braços, encolhendo-me com seu gemido de dor ao ter o corpo movido naquelas condições. Virando-me para a porta, chutei o balde cheio de parafina e o braseiro também, fazendo com que o fogo se espalhasse como um tapete líquido de chamas. O calor me fez estremecer, mas passei ao lado das chamas e saí da cabana, indo o mais longe que podia sem sair do alcance da claridade.
Bloqueei mentalmente os cheiros terríveis do lugar e sentei-me no chão de pernas cruzadas, aninhando a menina no colo.
Em poucos instantes, o fogo passava das árvores em labaredas azuis, verdes e amarelas tão altas que entregaria minha localização a qualquer venairen em prova por perto, mas a possibilidade de pensarem que era uma armadilha e não vir talvez fosse maior.
? Eu sinto muito! ? choraminguei, tirando uma mecha de cabelos encaracolados da frente de seu rostinho. A criança parecia estar sob algum tipo de sedação, seu hálito cheirava a... rosa da lua.
Ela murmurou algo e estremeceu, fechando os olhos.
Minha roupa começava a ficar morna por seu sangue.
? Kiara! ? Lohan apareceu de repente ao meu lado. ? Deuses, Kiara! O que houve aqui!
? Encontrei uma mirtka ? sussurrei ? ela... mumificava crianças. Eu a matei.
Lohan arregalou os olhos reparando na criança de olhos vidrados, mas ainda viva em meus braços. Ele usou sombras para fechar aquele corte, mas sabia que continuaria perdendo sangue, Lohan também não sabia usar magia para curar.
Helleon surgiu logo em seguida, encarou o fogo por um instante antes de voltar os olhos para a criança em meus braços.
? Havia um contrato na vila pela cabeça da cuca, várias pessoas vieram procurar a bruxa da floresta que roubava as crianças e jamais voltaram ? Ele se abaixou ao meu lado ? Essa é uma das crianças do abrigo, tinha um desenho dela no quadro de avisos.
Uma criança de um abrigo, não tinha pais.
Meu coração ficou ainda mais pesado. Ela morreria ali, sem jamais ver algo de bom na vida.
Fechei os olhos outra vez e respirei fundo. Sabia que veríamos coisas assim... até piores em nossas tarefas, mesmo assim não deixou de doer por dentro, de me fazer querer gritar contra aquela maldade.
? Transforme-a. ? a voz de Lohan me fez ter um sobressalto, ainda mais com o que pediu que eu fizesse. Ele puxou a adaga de seu cinto e a entregou a mim, seus olhos me encaravam cheios de expectativa.
? Lohan, eu não posso! ? choraminguei, lembrando-me de Senrys e de sua rejeição ao que lhe dei. ? Ela não...
? É uma criança. Acredite, vai se adaptar! E vai ser grata a você por ter uma chance!
? E o que eu faço com ela depois? A deixo numa vila com pessoas que certamente a verão como um monstro novo? ? ciciei, mesmo que... transformá-la tivesse sido a primeira ideia que tive.
? Decida depois, Kiara. Ela está sem tempo. Eu sei que você quer fazer isso, supere seu medo. ? Helleon abaixou-se ao meu lado e apoiou a mão em meu ombro.
A criança humana em meu colo respirava superficialmente, mas seu coração ainda tentava desesperadamente sobreviver.
Peguei a lâmina que Lohan me estendera e respirei fundo, criando coragem para o que faria a seguir. Pressionei a lâmina contra minha palma, abrindo um corte e deixando que o sangue escorresse sobre a lâmina de aço.
? Isso vai doer, muito mais do que as garras daquela bruxa, mas... vai te dar outra chance também. ? sussurrei mais para mim do que para ela, então, sem demora, espetei a lâmina entre suas costelas, direto em seu coração.
A criança deu um solavanco em meu coloco e inspirou fundo, mas não devia ter forças o suficiente para gritar, ela deixou um chorinho fraco escapar enquanto seu corpo tremia violentamente em meus braços.
Lohan estava ao meu lado afagando minhas costas, como se quem precisasse ser consolada fosse eu. Helleon havia desaparecido outra vez, certamente vasculhando a área ao nosso redor, evitando que outros venairens nos pegassem de surpresa.
Sem saber o que fazer além de embalar a menina nos braços e nervosa demais para conversar, comecei a cantar.
Uma cantiga doce e suave, das que meu pai cantava para que eu dormisse. Dois versos depois e a menina havia parado de se debater, estava tranquila, de olhos fechados e respiração estável. Em choque, desviei o olhar para Lohan sem parar de cantar e me dei conta de que meu amigo também estava em transe, silencioso e de olhos fechados.
Eu desejei passar segurança e tranquilidade na melodia... e meu canto sirênio fez o resto.
Pelo menos uma magia útil continuava solta.
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A cabana da cuca havia se tornado brasas incandescentes quando parei de cantar ao sentir o coração da menina mudar de ritmo. Lohan piscou tentando entender o que acontecera e Helleon voltava por entre as árvores com algumas armas nas mãos.
? Meu canto sirênio não foi preso ? Expliquei notando a confusão do tenebris ao meu lado.
? Isso é muito útil ? Ele me deu um meio sorriso.
? Ela está mudando ? sussurrei.
Lohan e Helleon curvaram-se para olhar, a cicatriz na barriga dela havia desaparecido, e sua pele negra começava a empalidecer, tornando-se branca e brilhante desde o local onde atravessei a adaga até as extremidades de seu corpinho.
? Porque... a cor muda também, quando vocês transformam alguém? ? Helleon perguntou, observando fascinado os cabelos encaracolados adquirindo a cor da neve.
? Somos predadores do gelo. Precisamos nos camuflar na neve, quando transformamos as pessoas mesmo que elas tenham cores diferentes, passam a ser nevada também, para que possam sobreviver em nossas condições. ? expliquei, acariciando de leve o rosto da menina com as costas dos dedos. Os longos cílios negros ficaram brancos e pequenas sardas brilhantes como estrelas surgiram em seu rostinho momentos antes das batidas metálicas de seu coração ritmarem.
Ela abriu os olhos vermelhos e nos encarou, curiosa, com um olhar vivo... fascinado.
E logo em seguida mordeu meu braço. Lohan bufou uma risada e se levantou, soltando a criança de mim mesmo com seus rosnados irritados e ofereceu o próprio pulso a ela, cessando sua frustração. A menina se alimentou e depois de alguns instantes o soltou.
Sangue ainda gotejava do ferimento, que eu tive que fechar uma vez que ela era ainda muito pequena para saber que aquilo não curaria sem que ela o fizesse. Lohan usou aquelas sombras para vesti-la com um vestido negro de babados e sapatinhos de boneca. Revirei os olhos, mas ele parecia satisfeito.
? Vamos sair desse lugar. ? Helleon alertou, ganhando a atenção dos olhos grandes da menina.
? Temos sorte de ninguém ter vindo até aqui atraídos pelas chamas! ? Lohan comentou, aninhando a menina nos braços. Ela levou o dedo à boca e fechou os olhos, pegando no sono quase instantaneamente. Pelo olhar triste, mas conspiratório do tenebris e a fumaça perfumada ao seu redor, soube que ele a induzira ao sono.
? Na certa... acharam que era uma armadilha. ? disse, aproximando-me alguns passos do que restara da cabana. O calor ainda era forte o suficiente para me manter distante, porém queria ter certeza que não havia restado nada daquela criatura.
Havíamos perdido pelo menos três horas ali, já que Prismath a menor lua se encontrava no meio do céu sobre nossas cabeças e Panmat descia para o lado contrário. Tínhamos que partir logo, e com mais cuidado agora que estávamos levando a menina, não via uma opção melhor, uma vez que deixá-la novamente na vila para a pegar depois poderia fazer com que ela ficasse com medo.
? Seguimos para onde? ? perguntei. ? Duvido que Hestia tenha sido deixada por perto. Você pode senti-la pela ligação do clã? ? questionei, Helleon negou com um movimento da cabeça.
? Podemos ir direto para o objetivo e achar Hestia depois ou enquanto o procuramos. ? Helleon comentou ? Hestia é uma Sorcys, minha mãe é Mardam, nossa ligação não é forte o suficiente para que eu a sinta com isso ? reclamou, balançando uma pulseira semelhante à minha, com o acréscimo de mais uma volta de metal.
? Estamos próximos a costa, no continente central. A vila de Padmus onde vimos o anúncio fica a duzentos quilômetros do castelo dos ossos. ? Helleon puxou um pequeno mapa de seu bolso, certamente alguns de nós tínhamos objetos diferentes nos bolsos, para facilitar nossas buscas quando encontrássemos uns aos outros ? Estamos na Floresta Nevoada... ela é bem grande e esconde uma vila de lobisomens e duas de humanos. Nós precisamos seguir até...?
? Floresta do Serpentário. ? me inclinei para avaliar o mapa. Helleon soltou uma risada amarga, traçando os dedos por cima das linhas emaranhadas.
? Fica a leste do castelo, a floresta beira o lago Nortrauth. Estamos a nordeste do castelo... e bem longe da floresta.
? Longe quanto ? perguntei temerosa.
? Um dia e meio... se pararmos por poucas horas para descansar e com a sorte de não bater de frente com outras equipes e mais monstrinhos.
? O que eu duvido. ? Lohan murmurou ? Posso nos ocultar pouco, ouviram os avisos, certo? ? assentimos. ? E se Hestia estiver pro outro lado?
Helleon fez uma careta, meu coração acelerou com uma ideia.
? Se meu canto sirênio não foi contido, a habilidade dela em falar com animais também não. ? quase gritei, pegando um toco de carvão e a borda do mapa de Helleon. O rasguei e escrevi uma mensagem curta, dizendo sobre nosso destino. Segui até uma teia de aranhas e colei o pedaço de pergaminho ali.
? A possibilidade que ela leia o aviso é pequeno, Kiara. ? O bruxo dragão informou.
? Eu sei... mas se ela viu as chamas, talvez venha para cá averiguar, e uma Sorcys não teria medo de meter a mão nas teias para pegar o bilhete, uma vez que as aranhas não irão picá-la. ? sorri um pouco, acenando com o queixo para a trilha na floresta. ? Vamos, precisamos acabar essa prova!
Com um último olhar para trás, torci para que encontrássemos Hestia antes do terceiro dia.
Capítulo 3
As luas maiores desapareciam no horizonte conforme avançávamos por uma área ainda nos limites da floresta em que encontrei a menina. Pelo mapa do bruxo dragão, vimos que aquela era uma das maiores áreas de floresta do continente, não era à toa que tinham nos jogado ali perto para começar a prova. Seria fácil nos perdermos e dificultar nosso trabalho.
A menina dormia tranquilamente presa à uma faixa improvisada com a capa de Helleon. Estávamos revezando carregá-la enquanto prosseguíamos por uma trilha estreita feita por animais e vez ou outra ouvíamos uivos e gritos a distância.
Oito horas...
Haviam se passado oito horas desde o começo da prova e nós sequer saímos da Floresta Nevoada.
? Precisamos parar um pouco. ? Helleon sugeriu.
Caminhávamos seguindo o som da correnteza de um rio próximo, mas não ousávamos aparecer em suas margens sem necessidade, ainda mais levando uma criança. Lohan optou por mantê-la adormecida até o fim da prova mesmo que eu fosse contra aquilo. Ele não queria a expor a mais situações ruins que poderíamos encontrar, então aquela foi a forma mais segura de levá-la conosco.
? Vou pegar água. ? Lohan se afastou, transformando-se em fumaça e desaparecendo pelo chão da floresta em direção ao rio. Helleon sentou-se num tronco caído, soltando a faixa com a menina e a passou para meu colo, esticando a coluna em seguida.
? E isso porque é jovem! ? brinquei, mesmo que ainda estivesse com aquela casa de bonecas humanas na cabeça e o terror vibrando vez ou outra em meus ossos. Helleon meneou a cabeça e franziu o cenho.
? Se eu disser que estou com um pressentimento ruim...
? Pressentimentos ruins me levaram até a menina na cabana ? o cortei rapidamente, bastava um de nós cheio de medos.
? Até agora, sete equipes foram eliminadas. ? Helleon sussurrou, encarando Ekos solitária no céu, a lua destruída de Pollo, cujos fragmentos se espalhavam ao redor de si formando um semicírculo. Era a lua que mais me fascinava, ela era uma prova de que mesmo quebradas, as coisas podiam ser belas, terem um encanto maior do que as inteiras.
? O que será que fizeram de tão errado para serem banidos? ? questionei, ajeitando a menina nos braços. Minha voz soou mais arrastada do que gostaria. Desde o ataque do demônio às Tormentas, ainda não havia dormido nem um pouco, Lohan também deveria estar muito cansado pois não parou de usar sua magia nem por um momento para nos auxiliar.
? Kiara! ? Helleon deu um salto de seu lugar, pondo-me em alerta imediatamente, mas o bruxo apenas veio para meu lado, mostrando algo no mapa que o fez ter aquela reação.
? Nós precisávamos contornar a área de Nevoada para evitar as vilas que beiram o rio, mas isso também nos faria passar muito perto do território de Adrenire, o que ficaria muito às vistas do castelo, e obviamente, de outras equipes que não conseguiram ou nem tentaram recuperar seus objetivos e estão só esperando outras equipes para atacarem.
? E tem como evitarmos isso? ? questionei, Helleon assentiu.
? Podemos atravessar o rio, com isso, ganharemos mais de meio dia de caminhada! ? Ele sorriu batendo com o indicador no ponto do mapa onde o risco largo se encontrava.
? O rio tem pelo menos duzentos metros de profundidade, e levaríamos três horas para atravessá-lo com uma embarcação segura e rápida. ? Lohan que havia reaparecido atrás de nós, comentou estendendo os cantis cheios para nós. ? A outra margem está a quarenta quilômetros de distância.
Helleon suspirou pesadamente e voltou a avaliar o mapa.
? Acha que não é um risco que deveríamos correr? ? questionei. O tenebris me encarou e meneou a cabeça negativamente.
? As águas daqui... tem mais coisas sombrias do que pude perceber, e não acho que elas nos deixariam simplesmente passar.
? Mas se optarmos por manter o curso atual, podemos não encontrar Hestia e o objetivo a tempo! ? rebati.
? Você é a líder do grupo, Kiara, é a sua escolha que vale. ? Lohan deu de ombros e sentou-se ao meu lado, pegando a menininha dos meus braços.
? Não funciona assim, somos uma equipe e as opiniões de vocês contam para mim, não estaria perguntando se não quisesse ouvir uma opinião sincera, só imporia a minha vontade e escolheria sem perguntar a vocês!
Odiava ser grossa com ele, mas estava ficando cada vez mais nervosa com o tempo passando e o rio parecia ser uma opção mais lógica. Se continuássemos à contornar para evitar as vilas e fugir do rio, levaríamos o dobro do tempo e com o acréscimo à equipe de um membro que não podia se defender, precisávamos a todo custo evitar confrontos com outros venairens, mesmo que tivesse a certeza que encontraríamos alguma em breve.
? Vamos colocar os pontos positivos de cada uma e votar! ? falei depois de alguns minutos silenciosos em que só escutávamos sons distantes das criaturas espreitando a floresta.
? Acho que não vamos ter tempo pra isso ? Helleon levantou-se, inclinando a cabeça para o lado, escutando algo que eu não podia.
? Lobisomens. ? Lohan ciciou, enrolando a menina com escuridão contra seu peito. Me atentei aos sons distantes até poder ouvir o que fez meus amigos se levantarem rapidamente.
Uivos distantes, vindos de todos os lados, mas perto o suficiente para não nos deixar seguir para o norte e desviar perto de Adrenire.
? O rio é a única opção agora ? falei.
? Ou você pode colocá-los para dormir com o canto, ou os fazer correr para longe, ou imobilizá-los para que possamos amarrá-los, os congelar...
? Estamos num mundo onde os nativos são na maioria, Licantropos. Minha habilidade de congelar também está dormente e mesmo se não estivesse, os congelar para prendê-los poderia causar danos, e isso levaria a uma desclassificação.
Lohan revirou os olhos, mudou a criança de posição no colo e puxou minha mão, pressionando meu antebraço com o polegar. Uma pequena rajada de gelo saiu de minha palma e voou para cima.
? Achei que não estivesse usando por algum motivo específico ? ele comentou, eu ainda olhava surpresa o gelo se formando em minha palma.
? Não... não conseguia invocar gelo logo que cheguei.
? Eles a doparam com pó de folhas de fogo e água de prata. Foi dado um antídoto para você acordar, mas o efeito do fogo demorou a passar. ? Helleon explicou, certamente fizeram algo parecido com todos nós, usando nossas fraquezas.
Os uivos ficaram mais próximos.
? Você decide, princesa. ? Lohan pressionou.
? Então vamos pelo rio. ? deixei que Helleon fosse à frente e segui Lohan, apertando em punho a espada que encontrei na casa de bonecas.
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Em menos de dois minutos chegamos às margens do Rio Negro e tudo que eu podia ver do outro lado era escuridão, não havia nem mesmo sombras de árvores a perder de vista, apenas água. Talvez a ideia não fosse tão boa afinal. A lua lançava ondas de brilho sobre a superfície mansa do rio, mas tinha certeza que sob aquela mansidão, teria algo pior do que os lobisomens vindo atrás de nós.
? Tem certeza? ? Lohan questionou, aproximando-se da margem, avaliado o movimento das sombras que as copas das árvores mais próximas lançavam sobre nós.
? Podemos conseguir bater de frente com eles, Lohan, mas não sem causar danos, acho que seremos desclassificados se os enfrentarmos e o meu canto só vai funcionar enquanto estiverem no alcance de minha voz, eles nos seguiriam muito mais irritados depois disso. ? O tenebris assentiu, mesmo que quisesse discordar, ele não parecia disposto a me contrariar.
? Pegue-a por favor. ? peguei a menina de seus braços e o vi conjurar as sombras para fazer uma embarcação, mas percebi também que o cheiro estava mais fraco, menos denso... e que haviam pequenas falhas em sua escuridão, ele não iria admitir, mas estava mesmo exausto.
? Lohan, deixa que eu cuido disso, está bem? ? Helleon se aproximou para pegar a menina, depois de entregá-la para ele, segurei as mãos de Lohan, interrompendo o fluxo das sombras.
Apenas um fiapo de fumaça que se estendia pela margem do rio continuou fluindo.
? Se está irritado por eu ter tomado essa decisão, pode falar! Eu acho mais seguro, e você pode discordar, sabe?
Lohan deu um meio sorriso e beijou minha testa.
? Você é teimosa, princesa, mas as águas darão uma vantagem com o seu poder, se alguma criatura vier por baixo você pode congelar o rabo dela e a afundar.
? Detesto estragar o clima amigável e fofo ? Helleon pigarreou ? mas os cachorros babões estão chegando.
? Está quase. ? Lohan murmurou, só então percebi o motivo daquele fio de fumaça ter continuado solto. Ele pegou um barco em algum lugar rio acima, a embarcação pequena, mas aparentemente segura parou a poucos metros de nós e ficou ali balançando sobre o manto de águas.
Helleon embarcou primeiro, testando a resistência da embarcação e acomodando-se com a menininha no colo, em seguida fez um sinal para que subíssemos. Lohan me colocou para cima, deu um empurrão no barco para que se afastasse da margem e saltou para cima, sentando-se na parte dos remos. Me senti mal pois desde que havíamos nos encontrado, ele me ajudou quase todas as vezes.
? Sabe que está pensando bobagem outra vez, não é? ? Lohan sorriu ? Você é fácil de ler. ? Ele lançou um olhar para a criança e piscou para mim.
Sabia o que queria dizer, eu consegui me virar bem sozinha com a cuca, mesmo assim fiquei tão nervosa dentro da casa que quase fui comida por ela.
? Tire um cochilo, eu posso remar primeiro. ? me ergui com cuidado tentando fazer com que o barco não balançasse muito, o tenebris fez uma careta, mas aceitou minha mão estendida, colocando o remo ali.
? Eu não sou incapaz, sabe? ? reclamou.
? Malvarmos só precisam dormir quatro horas por dia, estou mais descansada que você. ? menti, também me sentia exausta, com sono, tanto sono como nunca havia sentido antes. Tinha usado muito sangue para fazer a arma contra o demônio de fogo e mesmo que tivesse me alimentado de Hestia logo depois, minha energia podia não ter sido completamente restaurada.
Lohan me entregou os remos sem reclamar e com cuidado, mudou de lado no barco, se aproximou de Helleon e tirou a menina de seus braços. O tenebris então metamorfoseou-se num lobo, se aninhou entre os bancos com a menina sobre si, adormecendo mais rápido do que eu esperava.
Helleon os observou em silêncio por longos momentos em que os únicos sons eram os dos lobisomens agora nos observando das margens, distantes o suficiente para que não tentassem saltar em nossa direção, mas próximos o bastante para ainda podermos distinguir suas silhuetas entre as árvores.
As batidas suaves e ritmadas dos remos contra as águas escuras e movimentadas do rio criavam uma espécie de melodia hipnótica e o pouco brilho de Ekos contra as ondulações das águas me causavam arrepios, tinha a estranha impressão de estarmos sendo vigiados por algo além dos mestres, mesmo que não houvesse mais nada ao nosso redor... a não ser abaixo de nós.
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? Acha que não foi boa ideia? ? Helleon perguntou quase uma hora mais tarde. Cheguei a me assustar com sua voz, pois havia me acostumado com aquele silêncio absoluto.
? Era nossa melhor alternativa ? murmurei, dando uma olhada para Lohan ainda adormecido com a menina sobre si.
? Criaturas aquáticas podem ser um problema. ? Ele se inclinou sobre a borda do barco, avaliando o rio com o cenho franzido.
? Só precisamos aguentar mais duas horas ? Não tinha tanta certeza daquilo, não podia ver margens em lugar algum, mas sabia que sequer estávamos no meio do rio.
? A profundidade aqui... ? Helleon fez uma careta e voltou os olhos escuros para mim, seus cabelos encaracolados se grudavam na testa pelo suor e pequenas marcas escuras podiam ser vistas sob seus olhos.
? Está... tudo bem? ? quis saber.
? Vamos trocar um pouco, seus braços devem estar cansados. ? Ele deu um meio sorriso sem graça e se ergueu para trocar de lugar comigo. De fato, meus braços doíam a ponto de eu ter diminuído o ritmo das remadas sem nem perceber e me senti aliviada de soltar os cabos dos remos.
? Vai amanhecer em breve. Acho que chegamos em Pollo no meio da madrugada. ? disse mais para mim do que para ele, mesmo assim Helleon assentiu.
? A noite de Pollo começa ao meio dia, quando o sol se põe, depois o sol só nasce novamente às oito. Panmat é a primeira a surgir no céu depois do crepúsculo, e essa é chamada “a hora do lobo” quando os amaldiçoados que estiveram humanos durante o dia voltam as suas formas lupinas.
? Você gosta de ler os registros geográficos, não é? ? um meio sorriso apareceu em seu rosto. Helleon se movia quase mecanicamente enquanto remava, olhando para longe. Cansado também, mas de uma forma diferente. ? O que há de errado? Tem a ver com sua magia presa?
O bruxo franziu o cenho e assentiu. Uma linha de suor escorreu por sua têmpora ele não se deu o trabalho de enxugar.
? Quando nossa forma é presa... é doloroso. Incômodo. A sensação é como estar preso numa roupa muito justa que você não consegue tirar. É diferente de quando só se está em forma humana, mas sem nenhuma restrição de mudança.
Minha garganta se apertou e precisei disfarçar, toquei os dedos na água fria, movi os dedos ali, tentando não pensar no rosto rabugento de meu dragão e daquelas últimas palavras que ainda se enrolavam em volta de meu coração quando me lembrava de Senrys.
? Não precisa disfarçar, Kiara. ? Helleon me encarou ? Não é errado sentir falta das pessoas, muito menos ficar triste por elas. Errado seria se você não sentisse nada com a ausência dele.
? Só... estava pensando no que o fiz passar depois que o transformei, e o quanto ele devia estar sofrendo com aquilo, e em nenhum momento eu insisti para vê-lo. Eu deixei que ele se mantivesse afastado para sua irritação passar.
? Você fez o que pode. Eu teria feito o mesmo em seu lugar, se tivesse o seu poder. ? A sinceridade em suas palavras fez aquele nó em minha garganta se afrouxar. ? Ninguém que ama escolhe deixar as pessoas partirem sem tentar fazer algo para salvá-las, mesmo quando não há salvação.
? Obrigada ? choraminguei ? Você é mais legal do que eu me lembrava, acho que não convivi com você o suficiente para te conhecer bem!
? Quando começarmos o treinamento de voo, você vai querer retirar o elogio ? Ele riu de minha careta.
? Espero...
Não conclui minha réplica... pois algo passou raspando sob o barco, fazendo-o sacudir violentamente.
? Mas que diabos... ? Lohan mudou de forma, rosnando e envolvendo a menina numa espécie de cápsula de sombras. Me agarrei à borda e olhei para fora, não havia nada que pudesse ser visto sob as águas turvas.
Alguns segundos se passaram, nada aconteceu. Lohan espalhou a escuridão para baixo, mergulhando-as sob nós.
? Segurem-se! ? Ele alertou, no momento seguinte o barco quase virou, pois uma barbatana maior que eu o atingiu por baixo. Uma espécie de grunhido musical pode ser ouvido e as águas se moveram. ? É um cão d’água!
? Tudo aqui tem a ver com cachorros? ? gritei, procurando pela criatura outra vez. Lohan mantinha uma rede de proteção ao nosso redor, evitando que caíssemos na água conforme o barco sacudia com a movimentação da criatura.
? Eles não costumam ser agressivos, a não ser que sejam feridos.
Novamente o barco estremeceu com uma pancada forte que o empurrou para o lado, dessa vez uma rachadura apareceu na lateral perto de Helleon, quebrando inclusive o apoio do remo.
Meu coração disparou. Nós não teríamos uma embarcação para chegar ao outro lado se continuasse assim.
? Esse parece bem agressivo para mim. ? observei atenta a silhueta da criatura rondando o barco. Ela tinha o tamanho de um dragão adulto, era larga, me lembrava um peixe bagre, só que muito, muito grande! A criatura se afastou um pouco e deu uma volta em nossa direção.
? Pode prendê-lo? ? Helleon questionou, encarando Lohan com uma expressão tensa. Lohan meneou a cabeça negativamente, ele estava cansado demais para fazê-lo. Não havia um limite para sua escuridão, mas... ele tinha metais o inibindo também, sua recuperação estava comprometida e o cansaço era o que mais pesava naquela situação.
Mas provas para caçadores eram assim mesmo, elas nos queriam quebrados, cansados! Era assim que nos testavam.
O som do casco sendo arranhado arrepiou minha pele, a silhueta da criatura passou outra vez sob o barco e dessa vez, não esperei para ver o que mais ele poderia fazer, me inclinei para fora e toquei a água, lançando uma rajada de gelo na direção que vira a silhueta da criatura desaparecer. Ao ouvi um grunhido irritado, lancei ainda mais magia, tentando concentrá-la onde sentia o os movimentos da criatura através da magia até que ela parou de se mexer.
Fiquei completamente parada, olhando para a água esperando que ela só tivesse ficado muito zangada e saltasse a qualquer momento com a retaliação e comesse metade do barco numa única mordida.
? Por acaso... isso conta como nativo do mundo? ? questionei ainda com o coração acelerado. ? Acho que matei ele.
Lohan sentou-se e suspirou, pegando o embrulhinho de sombras para avaliar a menina, ela continuava dormindo como se nada tivesse acontecido.
? Preciso de um sono desses ? brinquei tentando amenizar a tensão, o que não deu muito certo pois eu mesma não parava de tremer.
O dragão avaliou a rachadura no barco e após dizer que não havia comprometido a estrutura, seguiu remando em silêncio. Lohan me lançava olhares de soslaio, sabia o que estava pensando, que deveríamos ter seguido por terra e agora eu me sentia culpada por nos ter colocado naquela situação.
O jeito era torcer para que não tivéssemos quebrado regra alguma.
Mal finalizei aquele pensamento e um círculo dourado e brilhante fez o barco parar bruscamente.
“Equipe T-17 está desclassificada, permaneçam em seus lugares para que sejam removidos do campo de provas”
? O quê?! ? gritei ? Isso... o que fizemos de errado?
Lohan fez uma careta e desviou o olhar, Helleon por outro lado, parecia estranhamente aliviado.
? Agora já foi. Nos resta aguardar o mestre vir nos buscar. ? O tenebris disse baixo.
Minhas mãos tremiam, irritação ameaçou me tomar. Queria pular a água, gritar, xingar todo mundo.
Mas a decisão de entrar no barco foi minha.
Será que tinha sido por conta do cão d’água?
O círculo dourado de luz continuou girando, brilhando ao nosso redor até que um portal se abriu e Neruo apareceu sério, estendendo a mão para que o seguíssemos para dentro da roda de luz.
? Os diretores os aguardam. ? Neruo parecia fazer força para não rir de algo, o que me fez ficar ainda mais frustrada, o sorriso escondido só mudou para uma expressão de assombro quando Lohan passou a menina transformada para meus braços e entrou primeiro.
Helleon entrou em seguida dando tapinhas em meu ombro, podia sentir seu alívio mesmo que ele tentasse escondê-lo, não pela prova, imaginei, mas por aquele aprisionamento de sua forma.
Apertei com cuidado a menina em meus braços e soube o porquê de Lohan ter a colocado sobre mim antes de atravessar, a criança em meu colo foi o que me impediu de ter um ataque e começar a gritar de frustração e enterrar as garrar em mim.
Com o coração disparado... e engolindo as lágrimas que ameaçavam descer, entrei no portal com Neruo ao meu lado, ele mantinha a mão no meio de minhas costas.
Ao chegarmos do outro lado, fomos recepcionados num salão tão grande quanto o pátio da ACV. No teto alto o bastante para que eu olhasse com o queixo erguido, crânios vermelhos pendiam das cintas feitas de ossos e de seus maxilares abertos, fitas vermelhas e negras brilhantes caíam até o meio do salão.
Vários mestres da ACV de Vegahn misturavam-se aos mestres das outras ACV’s e conversavam empolgados uns com os outros. Enquanto seguíamos para a elevação do salão onde Ederon e Melanie conversavam sentados em tronos de ossos lupinos, ouvia alguns cochichos por parte de mestres apostando a favor ou contra seus venairens.
Uma equipe inteira estava sentada perto de uma sacada, apoiados no que parecia ser um fêmur de um gigante, eles olhavam tristemente para o sol nascendo no horizonte além da floresta e do mar. Com um arrepio na coluna, percebi a atenção de vários mestres ? a maioria de Pollo ? enquanto seguíamos em frente. Só depois de ouvir vozes gritando como se estivessem dentro d’água, percebi onde estava a atenção de quase todos naquele salão. No fim, diante das portas de entrada haviam dezenas de bolhas de cristal gigantes, e essas mostravam o que as equipes estavam fazendo.
Meu rosto queimou e novamente, apertei a menina no colo e me assustei quando ela soltou um suspiro incomodado. Ela tinha acordado.
? Desculpe, achei que pudesse despertá-la agora. ? Lohan se aproximou e olhou desconfiado para Neruo, uma vez que o mestre o avaliava de cima a baixo com uma expressão que não consegui decifrar, incomoda... não era isso.
? Tudo bem ? disse sem lhe dar atenção realmente. O som de nossos passos pelo piso lustroso foi abafado por outra onda de gritos, seguida da voz de Lórien:
? Equipe Z-9 está desclassificada, permaneçam em seus lugares para que sejam removidos do campo de provas. ? Ela se mantinha ao lado de Medras, olhando irritada para as esferas. Ao seu lado, Fares ? Leonne ? me lançou um olhar encorajador e um sorriso que acalmou brevemente minha irritação com a desclassificação.
? Equipe T-17... desclassificados. ? Ederon comentou ao nos aproximarmos, fazendo breves reverências. O rei estalou a língua e moveu os dedos para que nos aproximássemos mais, Neruo estalou os dedos e uma espécie de barreira luminosa apareceu ao nosso redor, isolando-nos dos outros. Pela falta de reação das outras equipes desclassificadas, conversar daquela forma não devia ser algo inédito.
? Desculpe por minha petulância, majestade, mas gostaria muito de saber qual o motivo que nos levou à desclassificação. ? controlei meu tom de voz, não por estar diante do rei de um dos mundos, mas não queria causar uma reação negativa na menininha que me observava com os olhos atentos.
Ederon a observou e escondeu uma careta, olhou para meus colegas de equipe e por fim voltou os olhos cinzentos para mim.
? Vocês quebraram a regra de prejudicar um nativo que não deveria ser envolvido nas consequências da prova. ? Ederon sorriu maliciosamente e inclinou-se contra a almofada vermelha de seu trono. Aquelas roupas vinho e prateadas refinadas não escondiam nada do que ele era realmente. Da besta sanguinária por trás da pele que o continha.
? Quer dizer que não podíamos ter matado o cão d’água mesmo que ele estivesse prestes a virar nosso barco? ? Melanie que estivera quieta até aquele momento, suspirou profundamente e voltou a atenção que estivera nas bolhas para mim.
? Corrigindo sua defesa, Kiara, o barco de um pescador que foi tomado sem pedir autorização. ? Ela ralhou ? O mesmo foi envolvido e prejudicado ao perder parte da pesca da madrugada inteira por ter seguido até a margem do rio onde seu barco devia estar amarrado. Ao perceber que o barco não estava, ele correu pela margem procurando e seus baldes de peixes foram comidos por animais selvagens.
A encarei boquiaberta, Lohan por outro lado, desviou o olhar e suas sombras quase invisíveis ficaram mais densas. Vergonha.
? Isso... não é...
? Vão cometer erros as vezes, veja pelo lado bom, não chega a ser tão grave ou irreversível quanto várias equipes que foram banidas, o de vocês foi um dano superficial, embora o pescador tenha ficado irado com o ocorrido! ? Ederon pigarreou ? Terão uma nova chance na próxima prova. Treinem mais! E quanto a menina... ? ele a observou por um momento e disse algo à Melanie apenas com um olhar, que a fez acenar, se levantar e sair do salão em passos rápidos. ? conversaremos sobre ela no fim da prova.
Dizendo aquilo, nos dispensou para o meio do salão.
Neruo estendeu as mãos e tirou nossas pulseiras-lacre, Helleon soltou um suspiro pesado, agradecido e seguiu para a sacada, transformou-se num imenso dragão negro, assustando quase todos ali dentro e voou para o pátio do castelo.
? Vou buscar sua colega de equipe. ? Neruo se afastou em direção à Lórien e nós dois fomos até uma das sacadas e sentamos pelo chão, encostados no parapeito também feito de ossos da sacada.
Lohan sentou-se quase encostado em mim, e suspirou.
? Sinto muito, a culpa foi minha. ? Ele me tocou com o ombro ao notar que eu não queria responder.
? Você não queria ir por lá...
? Ei! Não pense que eu fiz de propósito porque não gostei da sua ideia! ? ele se defendeu antes que eu terminasse de falar.
? Não ia dizer que fez de propósito. Ia falar que mesmo não aceitando você tentou ajudar da melhor forma. Nenhum de nós imaginava que seriamos desclassificados por algo tão... ? mordi os lábios evitando o palavrão que teria dito ? ridículo.
? Evitou falar palavrão por causa da menina que nem sequer entende o que estamos falando? ? Lohan riu.
? Entendo sim! ? ela franziu o cenho para o tenebris, que piscou surpreso. Comecei a rir de sua expressão e a ajeitei em meu colo.
? Lembra do que eu disse sobre transformação e adaptação? Pois bem. ? movi os olhos na direção dela, a menina avaliava suas mãos pálidas, as unhas mais longas e azuladas e puxava mechas encaracoladas de seu cabelo, ela parecia incomodada com a ausência de cor deles.
? Qual seu nome? ? Lohan questionou, ganhando novamente a atenção dela.
? Treavin. ? Ela piscou os longos cílios na direção do tenebris.
? Crianças que nascem nos abrigos das vilas não costumam ter nomes, são chamadas pelos números correspondentes as suas ordens de nascimento. ? Shiryn comentou ao se aproximar de nós sorrateiramente. Lohan o fechou a cara para a proximidade do príncipe e se espremeu mais perto de mim. ? treavin significa treze.
? Então ela nasceu num abrigo? ? A menina olhava de mim para Shiryn, curiosa. O príncipe assentiu.
? Provavelmente ? Ele desviou os olhos para as nuvens coloridas tomando conta do céu e percebi mais do que queria com o gesto ? O que você fez... a Mirtka estava sendo procurava, mas ela vivia mudando de lugar, era difícil rastreá-la. Vai ter a recompensa prometida pela captura dela.
A menina reagiu mal ao ouvi-lo mencionar a criatura. Ela se encolheu, enrolando os braços em meu pescoço e começou a tremer. Shiryn se desculpou e afastou-se logo em seguida e Lohan mesmo cansado, espalhou um pouco daquela fumaça perfumada ao redor da menina para acalmá-la, num instante, ela voltou a dormir.
? Não devia ficar fazendo isso. ? reclamei.
? Você me agradeceu por fugir de seus pesadelos no primeiro dia no Palácio da noite, Kiara. Se considerar que esse é o primeiro dia dela como malvarmo, pode dar essa folga a ela.
? Pode tirar um cochilo. Eles certamente só nos dispensarão quando a prova acabar. ? disse passando um braço ao redor de sua cintura. O tenebris sorriu, mudando para a forma de um lobo no mesmo instante, ele apoiou a cabeça em meu colo ao lado das perninhas de Treavin e adormeceu em seguida.
Olhei na direção de meu irmão e o vi falando com Neruo, Fares não parecia muito tranquilo com a conversa, o percebi apontar para uma das esferas, que se apagou deixando mais espaço para que as outras se expandissem, então meu irmão olhou em minha direção, estalou os dedos e desapareceu num portal azul brilhante.
Para onde ele havia ido?
Não consegui pensar muito naquilo, pois a fumaça perfumada que Lohan usou para adormecer a menina me atingiu também, sem que eu permitisse meus olhos foram se fechando e adormeci.
Hestia:
Que diabos acontecia?
Devia ter se passado meia hora desde que anunciaram que nossa equipe fora desclassificada... então porque raios eu continuava presa ali?
Mais uma vez forcei as cordas que amarravam meus pulsos e tornozelos e nada de cederem! Sentia uma ardência incômoda onde as cerdas brilhantes tocavam minha pele, e pela luz que entrava por entre algumas fendas nas rochas daquele lugar, via claramente que a corda tinha fios de prata em sua trama.
Mesmo frustrada, com dor nas costas por estar encostada de mal jeito em longas raízes subterrâneas e não conseguir mudar de posição a horas, louca para sair daquele lugar frio, mas só conseguia imaginar como Kiara devia estar após receber o aviso da desclassificação.
Mas o que estava me matando de curiosidade era descobrir o motivo que os levou a isso. Talvez a princesa tenha rasgado a garganta de alguém por ter se metido em seu caminho, se bem que Kiara era pacifica até demais para fazer algo assim durante uma prova em que muito para ela estava em jogo.
? EEEEI! EU AINDA ESTOU AQUI! ? gritei para as paredes arredondadas. Uma caverna... em algum lugar no centro de uma floresta.
Quando me acalmava, podia sentir os animais ao redor, ouvir cantos de pássaros cujos piados jamais havia escutado antes, os sons de insetos abrindo caminhos na terra ao meu redor, os cheiros de terra úmida, frutas passadas e mofo.
E o que mais me assustava:
Os passos arrastados que moviam as raízes das árvores, e de vez em quando sua silhueta se tornava visível na entrada da caverna a alguns metros à frente.
Me vigiando.
A criatura com uma cabeça desencarnada me olhava através das órbitas verdes luminosas, seus chifres longos e retorcidos mal passavam pela entrada, mas ele vinha se certificar de que eu continuava bem presa.
Em seu pescoço largo, pendurado por um colar feito de cipós, um frasco com uma espécie de bilhete dentro tilintava contra o corpo feito de raízes. Ele me lembrava vagamente um dríade mestre, mas esses eram raros e tinham rostos anciãos e normais.
Certamente era ele quem me guardava como refém para minha equipe. Será que a criatura sabia que ninguém mais viria me buscar? Será que eles não viriam mesmo? Eu teria que me virar para sair dali?
Não importava o quanto tentasse lançar meu poder e atrair as criaturas para perto de mim, não conseguia fazê-las obedecer com aquela porcaria de gargantilha de prata envolta em tecido.
? OW BICHÃO FEIO! EU NÃO PRECISO MAIS FICAR AQUI! DÁ PRA ME SOLTAR? ? gritei outra vez, forçando meu corpo, tentando mudar de posição. Fazia horas que queria me mover pelo menos um pouquinho e só pela graça do destino que não sentia vontade de usar o banheiro.
Mas por quanto tempo?
? EEEEEEI CRIATURA DE PESADELOS INFANTIS! ME SOLTA DAQUIIIIIII! ? berrei ? MESTRES, PELO AMOR DOS DEUSES, ESTAMOS DESCLASSIFICADOS, ME SOLTEM!
Eu podia expandir meus espinhos e romper as cordas, mas e se apenas eu tivesse escutado a ordem de desclassificação e aquilo fosse de algum modo uma armadilha para que eu saísse dali e perdêssemos a prova por minha causa?
O chão vibrou, a criatura vinha rapidamente em minha direção, seus olhos verdes agora eram esferas vermelhas soltas nas órbitas daquela cabeça esquelética. Ele urrou e ergueu a mão, fazendo com que as raízes nas quais eu me encostava, me prendessem com mais força.
? Ah eu te irritei, não é? Acha que é divertido ficar presa aqui? ? reclamei, tentando esconder a dificuldade em respirar.
A criatura urrou outra vez, mas ao invés de se aproximar, um brilho azulado a cobriu, fazendo-a congelar no lugar.
Não só ela... como tudo.
A floresta silenciou, os insetos, os animais... tudo parecia travado, congelado no lugar. Algo como fios luminosos arrastaram a criatura para fora da caverna e uma silhueta brilhante apareceu.
Boquiaberta encarei o mestre que viera me buscar.
Fares usava sua forma real, ao lado de sua cabeça uma esfera de luz azul pulsava, clareando-o, ele se aproximava com um meio sorriso no rosto, moldando aqueles lábios perfeitos de forma tentadora.
? Ouvi um pedido de ajuda. ? disse ele sem jeito.
? O que... aconteceu com as coisas? ? quis saber. Fares ajeitou um cacho solto de sua trança e olhou para a entrada antes de me encarar outra vez.
? Eu congelei o tempo. ? engoli em seco, nem sabia que aquilo era possível! Quer dizer, eu sabia que Kiara podia fazer o mesmo... mas Fares?
Ele chegou mais perto, soltou as cordas que me prendiam e com cuidado me ajudou a ficar de pé.
Eu ainda o olhava boquiaberta.
? Hestia ? Fares sussurrou, ele estava perto demais, segurando-me pelos cotovelos, mas com o corpo perto demais do meu ? você está bem?
? Melhor impossível ? sorri ainda encarando-o fascinada. O tom de verde de seus olhos me arrastava para memórias de florestas vivas em plena primavera e agora sem a prata, sentia com clareza o cheiro de hortelã, chuva e neve em sua pele. Fares deu um sorriso tímido e não me soltou. Meu pulso acelerou e meu interior se derreteu com a curva daqueles lábios cheios ? deuses eu quero muito beijar você até ser obrigada a parar! ? confessei. Seu sorriso aumentou assim como a cor avermelhada tomou conta de suas bochechas e pescoço.
O calor em sua pele me fez estremecer.
? Se eu... te disser que quero o mesmo, o que você faria?
Minha resposta não foi dita. Mostrei a ele.
Enrolei seu pescoço com as mãos e o beijei. De verdade! Como queria ter feito desde a primeira vez, como fiz com sua irmã algumas vezes. Seus lábios cheios e quentes eram suaves e mesmo inexperiente uma sensação incrível e inebriante tomou conta de mim.
Eles eram diferentes como água e vinho. Kiara tinha gosto de uma noite quente de verão, uma dança extasiante ao redor da fogueira no rito da lua de sangue.
Já Fares tinha gosto de uma brisa fresca sobre a pele suada num dia ameno de primavera. Suave, mas vivo, cativante, como uma tarde de outono que não gostaria de ver o fim.
Fares deslizou a língua pela minha e suas mãos trêmulas envolveram meu quadril, erguendo-me do chão. Enlacei sua cintura com as pernas e desabotoei sua camisa sem quebrar o beijo.
? Hestia... preciso falar com você. ? Ele arfou, eu não queria conversar. Não agora pelo menos. Desabotoei suas calças, mas ele segurou meus pulsos e me puxou para cima, prendendo meus braços contra as raízes das árvores com... vento. ? É sério.
Encarei aqueles olhos brilhantes, quase assustados, então minha atenção desceu para o peito esguio, mas definido, a cintura estreita, as pernas grossas e o volume que ele sequer tentou esconder.
? Não consegue falar enquanto se move? ? brinquei. Fares fechou os olhos, sua respiração tornou-se quase eufórica. Ele deu um passo vacilante em minha direção, estendeu as mãos e começou a soltar os botões de minha blusa, escorregando os dedos levemente por minha pele a cada botão solto, mas sem tirar os olhos dos meus. Meu corpo formigou e um choramingo escapou de mim. Impaciente!
? Eu quero você ? disse ele calmamente, tirando minha blusa do caminho. ? Não só... assim ? Fares se inclinou, depositando um beijo em meu pescoço, deslizando os nós dedos sob meus seios nus.
? Deuses!
? Minha alma a quer também. ? Meu coração acelerou e tudo que fiz foi encará-lo.
? Fares... eu...
? Não precisa dizer agora. Eu queria dizer agora pois as pessoas que eu amo sempre vão embora, se afastam. E desde o momento em que essa prova começou, eu só conseguia pensar que poderia ter dito isso naquele dia na sala e não pude, e agora... ? Ele estremeceu e minha garganta se apertou.
? Fares...
? Então eu a quero, aqui e agora, até que sejamos obrigados a nos soltar. ? Algo faminto se acendeu em seu olhar e pisquei. Talvez ele não fosse louco, talvez houvesse duas pessoas diferentes dentro daquele corpo, uma que controlava um coração e outra à mente.
A magia que me mantinha presa contra as raízes não afrouxou. Mas Fares se inclinou novamente, puxando de leve minha cintura contra ele e sussurrou algo em meu pescoço: “você pediu para que eu a mordesse uma vez. Eu não esqueci” E foi o que ele fez.
A sensação fez minha visão embaçar e meu corpo pulsou com um calor extremo, algo que nunca havia sentido. A pressão de suas presas perfurando minha pele me levou ao ápice sem que sequer fosse tocada em qualquer outro lugar.
Sem conseguir me conter, um gemido ecoou pelas paredes da caverna.
Ele ergueu minhas pernas trêmulas e as enrolei em seu quadril, Agradeci a quem quer que tivesse me tirado do quarto por ter vestido uma saia longa em mim, certamente para me ajudar com o tempo que ficaria presa, pois Fares apenas puxou minha calcinha para o lado e me penetrou devagar, sem tirar as presas de meu pescoço.
Um espasmo sacudiu meu corpo. Não queria saber o motivo. Só queria mais.
Ele estava certo. Precisariam me obrigar a soltá-lo.
A magia que me prendia se soltou quando ele afastou a boca de minha pele, fechando a ferida como Kiara fazia com a língua.
Enredei os dedos em sua trança e o beijei.
? No chão. ? Ele piscou confuso pela ordem. O fiz se deitar sobre nossas roupas e o montei, então tornei a beijá-lo, devorando os gemidos que escapavam enquanto me movia sobre ele. Seus dedos apertaram meus quadris e ele suspirou, de olhos fechados, ofegante, o vi dar o sorriso mais lindo que já vira na vida.
? Eu estava muito enganada sobre você ? me inclinei para beijar seu peito ? Você é igualzinho a ela.
Fares riu e me abraçou.
? Kiara não é egoísta. Eu sim. ? Ele rebateu ainda com a respiração incerta. ? E detesto mesmo ter que dizer isso... mas eu não consigo manter o tempo parado além disso...
? E outros mestres podem vir nos procurar. ? conclui tristonha.
? Depois. ? Fares sorriu ? terminamos isso depois. ? Ele me beijou novamente, traçando uma linha com a língua de minha garganta até meu lábio inferior e então o mordeu de leve.
Mesmo sem querer, vesti minhas roupas novamente, ajeitando-as o melhor que pude, então Fares estalou os dedos e encolheu um palmo, assumindo sua forma feminina novamente, e de alguma forma apagando nossos cheiros misturados.
? Os outros mestres não podem saber ? Ele me lançou um sorriso triste.
? Na próxima... eu o quero assim! ? arrastei as mãos por seu quadril subindo até os seios fartos e ele soltou um suspiro engasgado.
? Tudo o que você quiser. ? sussurrou. Ele estendeu a mão para mim e me conduziu para fora da caverna. O monstro estava lá na mesma pose que estivera antes de Fares o congelar. Ele se aproximou da criatura e arrancou o cilindro metálico do pescoço da criatura antes de abrir um portal e me levar para dentro.
Olhei para trás por cima do ombro e vi a vida voltar para a floresta, os ventos tornarem a balançar os galhos das árvores e o som das criaturas movendo-se outra vez.
Que os deuses nos ajudassem caso Fares usasse aquilo de forma errada.
Capítulo 4
Kiara:
? Acorda! ? Hestia me sacudiu. A olhei espantada, não sabia quanto tempo tinha se passado desde que peguei no sono. Lohan ainda estava com a cabeça sobre meu colo e Treavin dormia com o dedinho na boca. Hestia olhou para ela e depois para mim umas cinco vezes. ? Quantos meses eu dormi na caverna?
Lhe dei uma cotovelada, sonolenta demais para causar algum dano.
? Eu a achei e a transformei. Longa história.
? E foi por isso que fomos desclassificados? ? Ela questionou, sentando-se ao meu lado e observou atentamente o rosto da menina. ? Ela era mestiça.
? Não foi por ela ? resmunguei ? roubamos um barco e o pescador ficou puto.
Hestia me voltou a atenção para mim e piscou incrédula.
? Tá brincando? ? esbravejou ? Um barco? Ah mas que merda!
? Você não parece nada chateada. ? murmurei percebendo que seu rosto ganhara muita cor. Hestia mordeu os lábios e se inclinou para sussurrar:
? Seu irmão foi me buscar onde eu estava presa. ? Ela deu uma risadinha ? Nós demoramos um pouco lá.
Dessa vez quem ficou espantada fui eu.
? Vocês...
? Sim! ? a bruxa quase soltou um gritinho ? Kiara! Diz pra mim, a sensação da mordida... pelos deuses o que foi aquilo! Eu fui no céu dos solaris e voltei e fui outra vez!
Meu rosto esquentou.
? Sim, a mordida de um malvarmo do sexo oposto ao seu pode causar essa sensação caso a pessoa queira ser mordida. ? Hestia fechou os olhos, mordeu os lábios e apertou minhas mãos.
? O mestre sente isso quando você o morde? ? Ela quis saber.
? É bem provável. Se comporte, Hestia! Está espalhando cheiro!
? Eu vou casar com seu irmão, você vai ver! ? Ela riu.
Fares se mantinha ao lado de Lórien em sua forma feminina, sério, calado e a aparência da tranquilidade em pessoa. Porém perceber nossa atenção, ele se voltou para nós, deu um sorriso tímido e seu rosto se encheu de cor.
? Tão amorzinho! ? Hestia suspirou.
? É melhor você sossegar se não quer que os outros percebam.
? Como você conseguia esconder? ? Ela cochichou.
? Me escondi por tanto tempo em minha vida, que ocultar coisas como sentimentos passou a ser simples. ? Hestia se encolheu e passou um braço ao meu redor.
? Venairens que foram desclassificados, me acompanhem ? Shiryn chamou do centro do salão.
O seguimos um pouco desanimadas, eu com Treavin no colo e Hestia carregando o lobo Lohan apagado quase com a língua de fora. Não sabia para onde Helleon tinha ido, mas ao olhar de relance para o pátio, percebi que ele não estava mais lá.
? Para onde estamos indo? ? Uma jovem elfa com o ombro coberto de sangue seco questionou. Sua pele cor de caramelo e as marcas avermelhadas em suas bochechas mostravam que ela certamente devia ser da ACV de Ciartes.
? Vão querer esperar mais dois dias sentados pelo salão? ? Shiryn zombou ? Quarenta equipes ainda estão em prova, se quiserem, voltamos para lá e vocês esperam para ver no que vai dar!
A garota fez um gesto vulgar no momento em que Shiryn nos deu as costas, pelo sorriso feral em seu rosto, ele não deixou de perceber o dedo erguido em sua direção.
O seguimos pelas escadarias descoloridas e sem brilho... mais ossos, enquanto a pouca luz do sol nascente começava a entrar pelas janelas e iluminar o lugar.
O modo com que o sol nascia em Pollo passava algo diferente, uma impressão de que a vida podia nascer em qualquer lugar, mesmo que num mundo tão perigoso e hostil. Diferente de Somnus que só passava a impressão de frio e falta de vida, Pollo tinha um magnetismo, talvez das luas, talvez daquelas poucas horas de luz que sabíamos ser essenciais para a manutenção da vida ali. Mesmo os lobisomens não viveriam sem ela.
Hestia cutucou minhas costelas ao alcançarmos o pátio principal, Um chafariz grande ficava de frente para as portas escuras de metal e ao contornarmos a piscina de águas translúcidas, ficamos boquiabertas ao notar uma estrada de cascalho cercada pelos dois lados por uma floresta densa, e mais adiante, vimos as formas de muralhas de pedra escura e portões ainda maiores que os do castelo.
? A ACV de Pollo. ? murmurei para a bruxa de boca aberta ao meu lado.
Continuamos seguindo Shiryn pela estrada, no momento em que entramos na parte protegida por árvores, deixando os primeiros raios de sol para trás, um aroma doce e sutil fez com que o ar frio da manhã se tornasse menos amigável.
Pluméria vermelha.
Avaliei com cuidado as pequenas flores enredadas nos galhos antigos das árvores maiores, os ninhos com as flores eram quase invisíveis se estivéssemos passando por uma área fechada, porém ali, elas nos davam um bom motivo para ter mais medo de nossos amigos peludos.
? Essas flores... são diferentes das brancas que usamos pra fazer vinho, não é? ? Hestia apontou com o queixo para a árvore mais próxima, onde uma flor excepcionalmente bonita parecia nos encarar de volta.
? São tóxicas. O perfume que elas soltam à noite deixam as pessoas mais violentas, humanos podem morrer se inalarem o perfume de muitas plantas ao mesmo tempo. ? sussurrei de volta. Hestia encolheu os ombros e olhou para Shiryn ainda conduzindo-nos. ? E a parte mais assustadora, eles são imunes.
Não se ouvia nenhum som além de pisadas sobre o cascalho da estrada conforme nos aproximávamos daquelas muralhas que bebiam a luz do sol. As pedras da construção da ACV dali eram tão escuras que as luzes dos pontos de vigia não passavam de onde os guardas estavam parados com balestras nas mãos.
Os portões levaram cerca de um minuto para se abrirem, os sons das engrenagens fizeram um arrepio subir por minha coluna, mas nem de longe assustaram tanto quanto os amassados que ficaram visíveis quando a luz alcançou o metal. Os portões eram mais espessos que os troncos das primeiras árvores que vi ali e mesmo assim tinham amassados por toda a parte.
Hestia e vários outros venairens, pelas caretas, perceberam o mesmo.
A estrutura das muralhas para dentro era quase idêntica à ACV de Vegahn, tirando o material. Tudo ali era feito de pedras escuras e foscas, o lugar cheirava a ferrugem, carvão e pinho.
Atravessamos um pátio amplo, ouvimos o alerta do despertar e vários venairens, de mais jovens a mais velhos começaram a seguir na mesma direção que nós. Shiryn nos levou até o refeitório da ACV e tivemos preferência para pegar comida. Hestia, como uma boa Mardam sequer se incomodou com o que serviram, ela pegou um prato que alimentaria quatro pessoas e sentou-se de frente para uma das janelas.
Os venairens que vieram das outras ACV’s também se sentaram naquela última longa mesa e ficaram de olho enquanto Shiryn dava ordens para que os desclassificados da ACV de Pollo voltassem aos seus dormitórios para se trocar e se preparassem para as aulas do dia.
Me aproximei devagar e olhei através do vidro escuro, sentindo meu estômago pesar como chumbo ao perceber que a ACV ficava sobre um penhasco e lá embaixo mais florestas a perder de vista.
? Sentindo falta de casa? ? Hestia deu batidinhas para que me sentasse ao seu lado. Não percebi que Lohan tinha despertado também e vinha até a mesa acompanhado de Helleon, o tenebris trazia dois pratos nas mãos e colocou um diante de mim.
? Vamos ficar aqui até que as provas acabem.
? Eles não podem simplesmente nos dispensar? ? Hestia questionou, enfiando o que parecia ser um sanduiche cheio de carne com molho na boca.
? Não enquanto as provas estão acontecendo. ? Helleon murmurou, remexendo grandes tiras de carne frita em seu prato. Ajeitei Treavin nos braços, ela estava molinha, ainda adormecida por conta da fumaça de Lohan, e eu não queria soltá-la para comer.
? Então estaremos reclusos até depois de amanhã? ? Helleon questionou.
? As equipes vindas das academias de Ciartes e Vegahn deverão permanecer dentro das muralhas até o fim da prova, que será anunciado pela diretora Malaika. Na finalização das provas, vocês serão levados de volta ao Palácio dos Ossos e de lá, guiados por seus mestres de volta às suas academias. Há quartos vagos no prédio dos mestres, dividam-nos com suas equipes, e devo-lhes avisar que os feitiços de transformação estarão ativos para evitar problemas. ? Hestia mordeu os lábios evitando rir, o que graças aos céus passou despercebido por Shiryn. ? Fiquem à vontade para acompanhar as aulas, caso queiram.
Ao terminar de explicar, o mestre saiu do refeitório e os venairens na mesa começaram a murmurar. Todos frustrados pelas desclassificações queriam voltar para casa. Não era diferente para nós... eu principalmente.
? O que vai fazer com a menina? ? A pergunta me surpreendeu, pois partiu de uma garota salamandra que eu não conhecia. Ela deu um sorriso sem graça quando não respondi. ? Victória, D-25.
? A primeira equipe a ser desclassificada ? comentei, ela se encolheu, mas assentiu.
? Eu vi... o que fez na casa da bruxa, foi muita coragem ter entrado lá desarmada, sem saber do que se tratava. ? Ela sorriu, arrumando os longos cabelos vermelhos para trás da orelha pontuda.
? É pra isso que treinamos, não é?
Ela assentiu e apresentou seus colegas de equipe, um metamorfo com uma cicatriz no olho direito, outra menina salamandra que parecia ser mais nova que eu, e um humano que não tirava os olhos do prato. Consegui desviar da conversa sobre Treavin, simplesmente me esquivei pois não sabia o que fazer com ela depois de transformá-la.
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A passagem do dia para noite me incomodou mais do que gostaria, o sol correu pelo céu como se fosse um coelho brilhante perseguido por um cão raivoso e depois desapareceu atrás das montanhas, as quatro horas mais curtas de minha vida.
Até a meia noite, mais cinco equipes foram desclassificadas e chegaram na ACV.
Já no quarto, que não tinha mais do que quatro camas, uma escrivaninha sem livros e duas janelas estreitas que tinham uma vista limitada do pátio principal, Treavin não parava de correr atrás de Hestia em sua forma de raposa, Lohan e Helleon não estavam nada à vontade ali, presos em formas femininas dentro do quarto simples, eles não tiveram opção se não aproveitar o cansaço devido à dificuldade de se manipular e controlar magia em Pollo para dormir.
Deitada, fiquei olhando para as vigas do teto tentando imaginar o que fazer a seguir. Ederon não sairia do salão até o fim das provas e ele queria conversar conosco quando ela acabasse, então aquela seria a hora de pedir o fragmento a ele. E se aquele fosse na verdade o objetivo de nossa prova e ele não me entregasse por não ter passado?
Meu coração disparou novamente.
Ele certamente me passaria outra prova.
Tinha que reorganizar minha lista de tarefas... saber o que fazer com Treavin, conseguir o fragmento de Ederon, descobrir onde estava o próximo... fechei os olhos apertados. Queria ver Hasan, poder conversar com ele. Queria que ele estivesse na ACV quando voltássemos.
E tinha mais isso para a minha listinha de tarefas.
Procurar por uma maneira de tirá-lo de lá.
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? Kiara. ? um par de mãos pequenas alisavam meu rosto ? Ei, Kiara! Eu não consigo mais dormir! ? Era Treavin. Ela pulou da cama de Hestia para a minha.
Pela posição de Panmat no céu conclui que não passava das três da manhã.
? Malvarmos dormem menos. ? sussurrei para ela, abrindo espaço para que ela se deitasse ao meu lado. A menina encarou as mãos e flexionou os dedinhos, encarando as garras azuladas que agora despontavam nas pontas deles.
? Porque eu mudei de cor?
? Porque agora você pertence à neve, se você continuasse com a sua cor, você não poderia se esconder nela. ? Ela voltou os olhos vermelhos para mim.
? O que é neve? ? Pisquei, tinha me esquecido que ali a temperatura não baixava o suficiente para ter neve. Estendi a mão, formando pequenos flocos sobre minha palma e mostrei a ela, Treavin olhou fascinada os flocos se acumulando sobre minha mão até formarem um montinho. Ela o pegou e riu, soltando-o em minha mão novamente.
? É frio!
Sorri.
? De onde eu venho, tudo fica coberto de neve assim o tempo todo.
Treavin fez um bico.
? Sempre?
Assenti.
? E você vai me levar lá? ? Ela me encarou outra vez, sua expressão parecia dividida.
? Você quer ir? ? Ela olhou para a janela, virou o rosto pensativa, depois assentiu.
? Onde eu morava, ninguém brincava comigo ? Ela cochichou, chegando mais para perto de mim ? a Mia me deixou perto das árvores grandes... onde disseram que não era pra ir.
? E você entrou na floresta? ? quis saber. Ela negou com a cabeça e se encolheu mais.
? A Mia me deu um doce e me disse para esperar que ela voltava. Eu fiquei com sono... acordei lá com as bonecas. ? Treavin começou a chorar, meu coração se espremeu, então a enrolei num abraço e a deitei do meu lado.
? Ninguém mais pode te machucar agora. ? sussurrei. ? Você gostaria de ter um nome diferente? ? O chorinho diminuiu e ela assentiu, colocando de volta o dedo na boca. ? Caelle, era o nome de uma grande guerreira de onde eu venho.
A menina parou de chorar e suspirou.
? Eu gostei, guerreiros tem espadas e matam monstros? ? Eu assenti ? Então eu gostei sim! ? Caelle sorriu e deitou o rosto sobre meu braço.
Então contei para ela histórias que ouvi a muito tempo e nem mesmo me lembrava de quem as contou para mim.
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Os dois dias restantes da prova se arrastaram.
Caelle passava o tempo todo grudada em Lohan e Hestia, perguntando tudo que podia a eles. Helleon tentava me explicar mais ou menos como seriam minhas aulas de voo, o que eu deveria esperar delas caso não conseguisse usar o instinto que podia ter recebido de Senrys. Se tudo corresse bem, nós começaríamos assim que voltássemos para casa, já que as provas finalizavam numa sexta.
Assim como Shiryn prometera, a diretora da academia de Pollo nos liberou para ir até o castelo no final do dia de aulas, informando o encerramento da prova.
O caminho de volta foi mais tenso, uma vez que soubemos por fofocas que rolavam, que um venairen morreu durante os últimos minutos de prova.
Das oitenta equipes inscritas para a prova, trinta e duas conseguiram passar, e ao vê-los diante do rei para receber suas honrarias, pude perceber que não pareciam tão felizes quanto eu estaria se estivesse no lugar deles. Todos receberam seus colares com pingentes de suas academias, em seguida, os mestres começaram a abrir portais que mostravam as ACV’s dos outros lados.
Apenas minha equipe permaneceu no fim das travessias, Ederon nos pediu para ficar. Lórien e Leonne também ficaram ali, esperando para nos levar para casa. Lóri me avaliava com curiosidade, uma vez que eu não queria soltar a menina, e ela também parecia não querer me soltar.
Melanie fez um movimento com o pulso para que nos aproximássemos e assim o fiz, mesmo um pouco temerosa.
? A menina desapareceu de um abrigo em Padmus a três dias. A mãe a deixou lá logo após a menina nascer e não foi mais vista, pelo que descobrimos, a guardiã do abrigo que já é uma senhora de idade estava dormindo e não viu a criança sair durante a noite.
Franzi o cenho. Então eles não sabiam do que Caelle tinha me contado. Que provavelmente ela foi deixada na floresta para a bruxa pegá-la. A menina estava ainda mais agarrada a mim, sem querer olhar para eles.
? Você escolheu ir pelo rio para evitar conflitos com os lobisomens e correr o risco da menina se ferir, não foi? ? Ederon questionou.
? Em parte sim. ? não menti ? queria cortar caminho também, pois precisávamos de tempo para encontrar Hestia e o rio era mais rápido e também parecia mais seguro.
? Não posso mudar os resultados da prova, princesa, mas você perdeu horas enquanto esperava a transformação ocorrer e matou uma criatura que estava causando problemas para nossos habitantes a vários anos. ? Ederon deu um meio sorriso e pediu para Leonne se aproximar. Meu irmão entregou algo ao rei e se afastou, pelo brilho pude deduzir o que era e um nó fechou minha garganta.
? Quando seu pai deixou isso comigo, pediu para que eu testasse a humanidade de quem quer que viesse buscá-lo. Ao fim do teste, um leshy guardava isso para vocês ? disse mostrando o cilindro com o fragmento de mapa ? e seu teste seria conseguir alcançar o objetivo sem sacrificar toda a floresta do serpentário, que é ligada a vida do leshy. ? Ederon suspirou e apontou para a menina o olhando desconfiada de meu colo ? Não há nada mais humano para mim do que ajudar alguém que não lhe deve nada. Você entrou naquela casa mesmo sabendo que aquilo não fazia parte de sua prova e com esse ato, salvou sabe-se deuses quantas pessoas mais.
Ele se levantou do trono e me entregou o cilindro.
? Os piratas, a bruxa... você representa o Locam muito bem! ? Ele sorriu ao fechar minha mão ao redor do frasco com o fragmento do mapa.
Nem notei que haviam lágrimas em meus olhos até Caelle as secar com suas mãos gordinhas.
Shiryn aproximou-se e tocou meu ombro.
? Podemos levá-la de volta ao abrigo, já alertamos a guardiã sobre as novas condições da menina...
? NÃO! ? Caelle começou a se debater, agarrando-se a mim ao ponto que suas garrinhas se enterraram em minha pele, umedecendo minha roupa com gotas de sangue. ? NÃO QUERO IR, NÃO QUERO FICAR COM A MIA! ? Ela começou a soluçar ? Ela vai me levar de novo, ela não gosta das crianças pequenas porque eles não levam crianças grandes iguais a Mia quando tem crianças do meu tamanho.
Caelle escondeu o rosto em meu pescoço e travou as perninhas ao redor de minha cintura. Ela não queria me soltar, seu coração acelerado parecia prestes a explodir.
E por aquela ligação tão nova da recriação... pude sentir seu medo.
? Como? ? Shiryn e Ederon a analisavam, talvez surpresos pelo surto.
? Isso tem a ver com a transformação? ? O príncipe perguntou. Neguei com um movimento da cabeça.
? Duas noites atrás... ela não estava conseguindo dormir e contou algo sobre isso, essa Mia. Ela disse que essa menina deu doces a ela e a deixou na entrada da floresta.
Ederon franziu o cenho.
? Você chegou a ver essa criança, minha rainha? ? ele perguntou à Melanie. A mulher assentiu brevemente.
? Havia uma menina lá com esse nome. É uma das mais velhas do abrigo, mas ela parecia ser gentil.
? É claro que parece, para os adultos gostarem dela e quererem levar ela embora. ? Caelle rebateu. Seus olhinhos vermelhos agora estavam negros, irritados.
? Isso é da transformação. ? Lohan riu, tentando amenizar o clima pesado.
? Essa situação certamente não irá passar em branco, será investigada o mais rápido possível. ? Melanie garantiu ? Mas... Kiara, pode levar ela com você? Quero dizer... não que não possa cuidar dela, mas... ? Ela corou, sem saber como me dizer aquilo.
? Eu vou dar meu jeito, majestade. ? sorri, mantendo os braços ao redor de Caelle.
Podia pensar nisso depois. Quando voltasse ao frio aconchegante de minha casa.
? Bom, se é assim... espero que estejam mais preparados para a próxima prova. ? Ederon sorriu. ? Boa sorte a todos!
“Não se esqueça do meu contrato, princesa.”
Assenti discretamente.
Não havia me esquecido que precisava devolver Adraph para ele. Ou no mínimo, encontrar quem o roubou. E encontrar quem controlava o demônio daria no mesmo.
Com a menina em meu colo e Lohan agarrado em meu braço com a mais pura expressão de culpa do rosto, atravessamos o portal de Lórien de volta para casa.
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Uma hora depois de chegarmos à ACV, sentei com meus amigos e abri o jogo sobre os fragmentos e a busca pela arma que meus pais haviam deixado. Conversa da qual me senti mais do que feliz por nenhum deles começar a me odiar por eu ter escondido aquilo.
Eles prometeram que me ajudariam no que eu precisasse... e que teriam ajudado mais se soubessem antes. Não comentei que Lohan sabia de tudo, não precisava que ficassem chateados com a preferência que tinha por contar as coisas a ele.
Sem que houvessem ressentimentos entre nós por causa daquele segredo, e pela prova falida, levamos Caelle para passar por uma vistoria de Glyph. Não sabia se estava tudo certo com a transformação, então Glyph era a melhor para avaliá-la. Logo após, a menina foi passear pela academia acompanhada por Eileen e Helleon. Hestia e Fares desapareceram pouco depois que a conversa acabou e eu nem queria saber para onde tinham ido.
Lórien dispensou todas as equipes que voltaram da prova até o dia seguinte à tarde, teríamos que ir até sua sala no final do dia para receber as missões. Uma quinta e sexta de folga depois daquela decepção foi bem-vinda.
? Vai continuar com esse olhar de cachorrinho triste até quando? ? questionei a Lohan, ele havia me acompanhado até a sala escondida sob o escritório de Lórien para guardar o quinto fragmento. O enigma já estava em meu bolso, ainda não tinha criado coragem para o ler.
A meia luz daquelas esferas azuis que circulavam a sala, Lohan parecia mais sombrio do que costumava ser, ou talvez fosse culpa de suas sombras agitadas, incomodadas com a presença do guardião na bacia de pedra.
O tenebris bufou e traçou uma linha com as pontas dos dedos sobre a bancada de pedra ao lado dela.
? Eu não consigo parar de pensar que a culpa foi minha.
? Mesmo que a escolha de ir pelo rio tenha sido minha? ? rebati.
? Deveria ter pensado em outra coisa. Se tivesse tentado usar sua magia dormente... te usar como fonte. Teria feito uma embarcação com sombras. ? Ele bateu o punho na pedra e o gato sombrio na bacia se agitou, mas não deixou sua posição.
Me aproximei de Lohan e segurei seu rosto entre as mãos, não havia sequer um sinal de azul ou prateado naquelas íris cor de carvão.
? Lohan, está tudo bem! ? falei ? o lado bom é que nosso motivo de desclassificação nem foi realmente grave. Você ouviu as histórias das outras equipes. Podia ter sido pior... mas Ederon tinha razão numa coisa, podemos treinar mais. Na próxima teremos uma noção melhor de como poderá ser a prova, estaremos mais bem preparados. ? Ele suspirou e fechou os olhos ? pensa nessa prova como uma amostra da próxima. Só passamos por ela como um teste de sobrevivência com Gwyndion.
O tenebris fez uma careta;
Tinha que agradecer por ninguém ter pensado em chamá-lo para dar dicas de armadilhas. Provavelmente todas as equipes seriam desclassificadas.
? Eu sei. Só... não queria errar. Não queria ser eu a tirar isso de você.
? Não tirou nada de mim, não estou com pressa de ir a lugar algum.
? Desculpe.
? Se me pedir desculpa de novo vou te dar uma joelhada. ? Lohan começou a rir.
? Vamos... vai ter um café especial, pelo que ouvi de Lórien. Acho que você deveria comer algo antes de irmos.
? Café! ? bufei uma risada ? Eu detesto essa variação de tempo! Saímos de Pollo no meio da noite! ? resmunguei e Lohan riu ? Vai ficar por lá até amanhã?
? Talvez, preciso conversar com meu pai. ? Ele suspirou e encolheu os ombros. Sabia que deveria ser algo sobre Nedyle. ? Owyn o chamou para falar sobre mim... não sei mais o que fazer.
? Nós vamos dar um jeito, eu prometo. ? Ele me deu um meio sorriso e segurou meu braço antes que eu subisse a escada. ? O quê?
? Não está esquecendo de nada? ? uma sombra puxou o papel dobrado de meu bolso e o balançou em frente ao meu rosto.
? Na verdade, eu estava fugindo disso ? murmurei ? pelo menos um pouco.
? Ou isso é uma desculpa para dizer que não decifrou, e ir até um certo mestre com a justificativa de precisar de alguém com mais conhecimento para te ajudar? ? um sorriso crescente apareceu no rosto dele.
? Você é malicioso demais. Eu não teria pensado em um joguete tão sujo assim! ? retruquei, pegando o pedaço de papel e o abrindo em seguida.
“Para cima e além. Deuses para alguns eles são, mas se não tomar cuidado, eles o devorarão. Se estiver por perto, tenha certeza de não ser visto, pois para deles, você não passa de petisco.”
? Essa... porcaria é tão óbvia que me dá raiva, então porque não consigo decifrar nenhuma delas? ? enfiei o papel no bolso ? Eu me sinto burra toda vez que leio essas charadas e não consigo solucioná-las sozinha! ? rosnei batendo os pés degraus acima.
? Não devia, o feitiço está apenas fazendo seu efeito de forma correta! ? Lohan comentou, mantendo-se um passo atrás de mim. O encarei sem entender.
? O quê? ? Lohan deu um meio sorriso e puxou a estante para o lugar ao sairmos.
? Todos os fragmentos contêm com um feitiço de confusão bem básico, que é quebrado quando duas pessoas tentam os decifrar juntas, mas aparentemente... eles deixaram uma espécie de barreira também, tinham em mente pessoas específicas para anular o feitiço. ? Ele beliscou minha bochecha ? Não percebeu pois era esse o objetivo... obrigar você ou seu irmão a procurarem ajuda, acho que em nenhum momento eles queriam que vocês os decifrassem sozinhos.
? Eu não... senti esse feitiço.
? Nem era para sentir. Eu só falei para que você pudesse parar de se autossabotar.
? Então acho que vou roubar seu plano maquiavélico e ir até o primeiro céu fazer uma visita a quem estava me ajudando. ? o resquício do incômodo causado por perder a prova, terminou de desaparecer naquele instante.
Ainda era uma boba apaixonada.
Conseguia ficar feliz só por imaginar que o veria de novo.
Mas não tinha esquecido daquele convite de casamento na mesa de Lórien.
Não sabia ao certo o que sentir... mas precisava manter a calma.
Fragmentos, encontrar o demônio, encontrar o livro, nossos pais, arrumar um lar para Caelle... minha cabeça ia explodir.
Uma coisa de cada vez. Eu precisava resolver uma coisa de cada vez.
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Antes de ir com Lohan para os céus, pedi a Hestia para que cuidasse um pouco de Caelle para mim. Nem precisou pedir, na verdade. A menina brincava em minha cama com Ira quando entrei no quarto procurando pela bruxa.
? Não demore, quero ir pra casa quando você chegar. ? murmurou ela enfiando um pedaço grande de torta de morango na boca. Ela estava com o cheiro de Fares outra vez. Notei minhas adagas sobre a cama com um bilhetinho de meu irmão também, me senti mal por não ter conseguido falar com ele desde que a prova terminou. Mas ele também não parava de escorregar de meus dedos com Hestia!
Falaria com ele depois que conseguisse mais um fragmento.
Sabia que se puxasse assunto, não conseguiria sair mais do quarto, então ouvindo Lohan resmungar que queria ir logo, apenas troquei de roupa rapidamente, verifiquei se não tinha esquecido o bilhete e parti.
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A sensação de pisar no Primeiro Céu causou um arrepio em minha espinha. A familiaridade daquela magia, o calor agradável que se espalhava vindo daquele pôr do sol eterno no horizonte. Fechei os olhos para apreciar por um momento, mas Lohan pegou meu braço e começou a me arrastar na direção do palácio.
? Sem enrolar, princesa. ? Lohan riu ? isso é estranho.
? O quê?
? Quando vocês dormem juntos, você não começa a derreter? ? ele zombou, levando uma cotovelada forte na altura das costelas e encolheu o corpo. ? Ai! Era brincadeira!
? Aqui é ainda mais cedo. ? comentei, percebendo que não haviam luas no céu.
? Muito cedo! Tente não demorar, sei que é difícil...
? Mais uma gracinha e eu congelo seu fígado! ? reclamei, seguindo na direção dos imensos portões dourados abertos. Não havia guardas sobre as muralhas ou nas guaritas, apenas duas oficiais solaris conversando perto dos portões. Ao olhar por cima do ombro, notei que Lohan desaparecera.
? Com licença. ? não precisava ter chamado a atenção delas, é claro que as oficiais me perceberam... só pareciam não querer falar comigo. ? Vim falar com Hasan.
Elas me observaram de cima a baixo com desdém, mas perceberam o símbolo da ACV bordado em minha camiseta negra. As solaris trocaram olhares significativos e uma delas entrou na frente.
? Me acompanhe, por favor. ? disse a outra através dos dentes.
Franzi o cenho, desconfiada daquela atitude. Quando estive ali para o festival, percebi que a maioria deles nos olhava com superioridade, mas aquela atitude me pareceu errada demais até para eles.
A solaris me acompanhou por um corredor longo e cheio de janelas, onde podia ver claramente as fracas mudanças no tom da luz vinda do horizonte, mesmo que aquele cenário não mudasse ao longo do dia, a temperatura e intensidade do brilho variavam conforme as horas passavam.
? Espere aqui. ? a oficial avisou, ela jogou sua trança cor de cobre para trás e seguiu pelo corredor em passos rápidos, eu fiquei ali olhando desconfiada as portas fechadas do outro corredor paralelo ao que estava.
Pensei em soltar fios de escuridão pelo lugar e procurá-lo, desconfiada da atitude das guardas, mas no momento em que juntei a magia na mão, passos me chamaram atenção.
? Sinto muito, querida! ? a voz de Alfia chegou até mim, virei-me para trás para vê-la se aproximando. Sua pele ébano emitia uma suave luminosidade conforme passava pelas janelas abertas... e tentava fechar um roupão escondendo uma camisola dourada mais do que curta. Ao terminar de arrumar o laço da roupa, ela se pôs a arrumar os cabelos com os dedos e sorriu. ? Edjine me informou que você veio procurar por Hasan, sinto muito, mas ele não pode mesmo atendê-la agora. Ele certamente está indisposto, cansado seria uma definição melhor.
Pisquei lentamente para aquelas palavras, para o sorriso levemente viperino no rosto da rainha e como um tapa no rosto, senti o cheiro dele em sua pele.
Meu coração descompassou.
? Ele é meu mestre, estava me ajudando com uma missão muito importante antes de vir para cá. ? antes de ficar preso aqui, foi o que não disse em voz alta ? Preciso da ajuda dele, não vai levar mais que cinco minutos ? mantive minha voz firme embora aquela parte que Áries queria que eu cultivasse tentasse veementemente tomar conta de mim, desejava que eu saltasse sobre aquela mulher e lhe rasgasse a garganta.
Hasan levou mais de cinquenta anos para se abrir para mim.
Duvidava que ele se abriria com ela tão facilmente.
Ou a brincadeira com Hestia tinha lhe dado uma ideia errada, ou descartara a hipótese de que ficássemos juntos futuramente. E na pior das hipóteses, ela o teria forçado. Mas um solaris com plenos poderes jamais seria forçado assim.
Alfia juntou as mãos sobre o peito e baixou os olhos.
? É melhor você não vir mais, Kiara. Não sabe o quanto sua visita o afetaria? Ele está se acostumando com os céus e ter você vindo poderia fazer essa adaptação retroceder. ? disse com aquela voz mansa, que agora me parecia ainda menos convincente ? Evite vir pelo menos por um tempo, entende? Até onde eu soube, vocês sequer tinham qualquer tipo de compromisso, então para que ficar se torturando assim? Siga em frente! E se o ama, deixe que ele tenha outra escolha, uma mais segura, já que ele não poderá sair daqui tão cedo!
Franzi o cenho e mesmo a contragosto assenti devagar. Estava fora de meu corpo. Precisei de muita, muita calma para não tremer.
Não conseguia abrir a boca para falar nada. Minha garganta se mantinha fechada por sentir o cheiro de Hasan nela, por imaginar o que teria acontecido nesse tempo para que ele cedesse a ela.
Talvez ela tivesse razão, talvez eu devesse seguir em frente. Talvez ele tenha visto nela um alguém compatível... minha cabeça doeu.
Apertei com força aquele pedaço de papel em minha mão. Só queria conversar com ele, dizer sobre a prova do uniforme negro... sobre o possível relacionamento de Fares e Hestia e lhe pedir ajuda com o fragmento. Eu queria qualquer desculpa para ouvir sua voz, escutá-lo implicar comigo por não conseguir decifrar aquilo sozinha ou me oferecer algo caso acertasse.
Alfia e a oficial ainda me observavam curiosas, não fazia ideia quanto tempo estava ali de pé olhando o nada.
Com certo esforço, dei-lhes as costas e segui pelo corredor em direção ao pátio. Antes de chegar nos portais, com minhas sombras escondidas atrás de uma das cortinas onde estive com a rainha e a guarda, a escutei ordenar que minha entrada não fosse mais permitida no palácio.
Engoli um rosnado de frustração, esqueci que queria falar com Owyn no Quinto sobre Lohan. apenas mergulhei numa fenda que abri diante de mim e segui a trilha na escuridão em direção a Lastar.
Precisava falar com Áries antes de saber com o que realmente estava lidando.
Ao pisar do outro lado, fui surpreendida não por neve, mas por uma floresta azul de árvores gigantes... e Lohan ao meu lado, segurando minhas mãos.
? Porque me trouxe aqui? ? tentei manter a voz sob controle. O tenebris deu de ombros e sorriu.
? Achei que você gostaria de tomar café em casa antes de ir furiosa falar com Áries e acabar estressando uma malvarmo velha e grávida.
? Escutou tudo? ? questionei com a voz trêmula.
? Que outro motivo teria para interferir na sua fenda e puxá-la para cá?
? Está muito engraçadinho hoje! ? rebati irritada, seguindo-o para a casa na árvore.
Hasan:
Sentado na borda da cama, ainda sentia o quarto rodando ao meu redor e meu estômago pesado parecia girar junto. Irritação me tomou ao lembrar de Alfia servindo-me aquele chá na noite anterior, comemorando pelo “presente” dado por Sirius e que em breve ela o colocaria.
Sua alegria em tirar proveito do que não era seu por direito, mesmo dado a ela, me enjoou tanto que tomei o chá apenas para sair logo de perto de Alfia. O que ela colocara nele para me apagar daquele jeito?
Um arrepio subiu por minha pele, mas não havia cheiro dela no quarto, ela não seria louca... não seria irracional a esse ponto. Eu a mataria. Se ela me tocasse sem que eu permitisse... eu a mataria! Já estava preso ali mesmo, minha energia mantinha aquele lugar.
Respirei fundo, tentando me acalmar. Eu jamais pensaria assim. Nunca deixaria que a raiva me fizesse perder a cabeça dessa forma. Porém aquele lugar me deixava irracional. O Primeiro tinha algo que fazia uma parte cruel adormecida em minha mente se agitar e querer ganhar espaço.
Não podia deixar aquilo me dominar. Não seria com Sarki ou Alfia.
Como se convocada por meus pensamentos, Alfia entrou no quarto sem bater, com um roupão aberto exibindo o corpo mal coberto por uma camisola fina na cor de seus olhos dourados.
? O que tinha naquele chá. ? rosnei erguendo-me com dificuldade. Tive que me concentrar para usar magia e tentar limpar aquela névoa de meus pensamentos.
? Óleo de raiz de purpas. Nada de mais, só um relaxante bem forte. ? Ela deu um breve sorriso e se aproximou. Sua expressão alimentou mais um pouco as brasas da irritação que tornavam a crescer dentro de mim.
? Qual sua intenção com esses joguinhos, Alfia? ? minha voz saiu num baixo rosnado, fazendo com que ela parasse seu avanço. ? Senti a presença de Kiara, onde ela está?
Alfia franziu o cenho e meneou a cabeça negativamente.
? Veio falar com você, mas já foi, esqueceu o que queria dizer. ? Ela rebateu sem me encarar.
? Kiara não sairia assim, Alfia, o que você disse a ela?
? Acho que ela ficou magoada ao perceber que você não esperou o casamento para me levar pra cama! ? Alfia sorriu.
Um arrepio subiu por minha pele e a encarei incrédulo, tentando me lembrar, sentir se ela havia realmente feito algo assim.
? O que você fez! ? rosnei.
? Eu fiz o que foi necessário para que ela fosse embora. ? num minuto, seu cheiro estava normal... no outro, senti meu cheiro nela e um frio letal tomou conta de meus sentidos. Aquela gota de gelo em minhas veias se manifestou, baixando a temperatura do ambiente, congelando o chão ao meu redor. A rainha solaris deu um passo vacilante para trás.
? Você... ? rosnei, ela levantou a mão interrompendo-me.
? Não toquei em você. Jamais faria algo assim, Hasan. Você sabe o que podemos fazer com a mente das pessoas. ? Ela crispou os lábios e encolheu os ombros ? Você a ama, acha que é justo com Kiara que ela guarde esperanças dessa maneira, pode imaginar o quão difícil deve ser para ela vir até aqui e desejar que você volte? ? Ela sussurrou ? Eu fiz o que fiz para que ela pudesse se libertar disso, Hasan. Para que você consiga ficar aqui sem que algo, alguém que o puxe para longe... e você sofra também! ? Ela ainda mantinha os olhos no gelo estalando sob meus pés.
Sentei-me de volta na cama, meu peito se apertou.
Kiara poderia desistir com algo assim? Depois de tudo? Ela havia dito que me esperaria... se eu dissesse que ainda havia chance.
E eu não respondi.
? Você não fez isso por ela ou por mim, Alfia. Fez isso por si, pelo poder que teme perder. ? ciciei ? está se tornando igual a seu pai. Ganancia, sede por controle... onde está o amor pelo qual lutou? Onde foi parar a rainha que abriu os céus para os humanos?
Alfia não baixou os olhos, ela continuou me encarando com olhar irredutível.
? Talvez aquela solaris tenha morrido ao perceber que não restou quase nada de seu povo depois dos pais daquela garota matarem quase todos nós.
? Ainda está jogando a culpa nos outros ? rebati.
? E você ainda está preso a mim e aos céus. Essa discussão acabou. ? E assim como entrou naquele quarto, ela saiu. E eu fiquei ali sem conseguir pensar direito no que fazer. Queria deixar que se virasse, que cuidasse dos próprios problemas e voltar para minha casa. Mas aqueles solaris lá fora dependiam de mim agora, eu havia dado minha palavra a eles, mesmo que a rainha merecesse ver sua casa cair.
Eu não tinha como fugir sem que alguém assumisse meu lugar.
Não podia sair sem que Alfia conseguisse colocar um herdeiro no mundo.
Ela tinha razão. Eu continuaria preso ali.
Capítulo 5
Kiara:
Sentada ao lado de Hamza, ouvindo-o contar sobre a “terrível” conversa com Owyn, que nada mais fora além de descobrir que Lohan e Awen destruíram metade da área de treinos do Quinto Céu numa briga, eu rolava o chá com leite em minha xícara, sentindo meu estômago embrulhar.
Empurrei a xícara para longe, mas não recusei o pão doce escuro coberto de castanhas que Luyen colocou em meu prato. A vernum me olhou com curiosidade, já que eu raramente recusava aquele chá. Era meu favorito.
? Não se sente bem? ? Ela questionou, colocando outro pão doce em meu prato para compensar a bebida abandonada.
? Ainda estou um pouco enjoada ? reclamei. Não era pra menos. Me controlar para não morder Alfia e arrancar até a última gota de seu sangue dourado me exigiu muito esforço.
? Está grávida? ? lancei um olhar feio para Luyen, ao contrário da expressão risonha e debochada que pensei que veria, ela parecia um pouco assustada. Até mesmo seus cabelos antes mais cinzentos mudaram para cor de chumbo. Preocupação.
? Estou me prevenindo quanto a isso! ? rebati mordiscando o pão. Lohan mordeu os lábios e Hamza ao meu lado, abriu um sorriso que fez um frio se alojar em minha barriga.
? Esse tipo de prevenção pode funcionar com você, etahi, mas com celestiais não funciona. ? Hamza alertou, afagando minha cabeça.
? Então ainda bem que eu não sou celestial ? afundei na cadeira e alcancei o outro pãozinho.
? Você não é, mas Hasan sim. ? Lohan sussurrou.
Engasguei com o pedaço de pão.
? Não tinha pensado nisso, obrigada por acrescentar mais essa preocupação na minha listinha! ? rebati frustrada. Meu coração disparou. Precisava procurar Eghan muito, muito rápido.
? Não é algo ruim! ? Hamza brincou, pegando meu chá inacabado.
? É claro que não é para você! Homens sempre ficam com a parte divertida! Não são vocês que tem que por uma criança largando raios para fora depois de horas de dor! ? Luyen ralhou, fazendo com que Lohan escapasse de fininho da mesa.
? Porque não teve mais filhos? ? perguntei, foi a vez dela me lançar um olhar feio e bufar.
? Não ouviu o que acabei de dizer da parte dolorosa? Deuses me livrem de passar por aquilo novamente. ? Hamza ria, tentando disfarçar mordendo os lábios ? Além do mais, Lohan tem você. É a irmã que ele sempre me cobrou. Se ele quer um bebê, se contente em fazer um!
? Duvido que minha mãe diria algo assim. Ela morderia qualquer mulher que tentasse chegar perto de Fares ? mas não de mim, é claro.
? Mães são mais apegadas aos filhos mais novos, elas sempre querem que eles superem suas expectativas ? Ela lançou um olhar a Hamza, o tenebris encolheu os ombros e desviou o olhar. Não tinha entendido, e provavelmente não era de minha conta também.
Mas a conversa descontraída com eles... com mais aqueles pais emprestados, tirou um pouco da inquietação de mim.
? Já sabe o que vai fazer com Caelle? ? Lohan perguntou ao voltar do quarto com um brinquedo nas mãos, uma esfera cheia de estrelinhas que quando ficava no escuro, começava a brilhar e enchia o ambiente em que estivesse com estrelas.
? Não posso ficar com ela, se é o que está perguntando. Não tenho tempo de dar atenção a ela. ? murmurei ? Tia Nyumun também não tem muita paciência com crianças...
? Porque não a leva até o vale? Sua tia não tem filhos, certo? ? Lohan colocou a esfera dentro de uma bolsa e estendeu a mão para que eu o seguisse.
? Eu não sei se...
? Com uma criança pra cuidar, ainda mais depois de ouvir a história dela, Gwendollyn passaria mais tempo cuidando da criança do que preocupada com as visões. ? Lohan deu de ombros.
? Você é muito mexeriqueiro! ? ralhei.
Em seguida despedindo-me de Hamza e Luy com um abraço apertado, agradeci por terem me recebido.
? Sabe que é sempre bem-vinda, Kiara! ? Luyen beliscou minhas bochechas e me deu um abraço apertado. ? Não fique chateada com a prova, viu! Eu sei que vocês conseguirão na próxima! É a pessoa mais empenhada em conquistar seus objetivos que conheço. ? Ela sussurrou para mim e enfiou mais dois pãezinhos doces em minha bolsa.
Me sentia em casa ali, mesmo que não tivesse passado tanto tempo com eles.
?Vai mesmo até Áries primeiro? ? Lohan questionou ao deixarmos a casa.
? Preciso entender... com o que estamos lidando. Acho que tem algo muito errado com o comportamento de Alfia.
? Ela sempre foi um pouco estranha... mas está pior de uns tempos para cá.
O tenebris me ajudou a atravessar uma pequena ponte de troncos, não sabia porque estávamos andando pela floresta se podíamos simplesmente abrir uma fenda e ir para o outro lado, mas era um desperdício não aproveitar o amanhecer naquele lugar.
Tinha coisas mais importantes para resolver. Mas algumas sensações precisam ser vividas, especialmente quando não se sabe o que o amanhã tem reservado para nós.
? Mudando de assunto... porque estava brigando com Awen?
Lohan revirou os olhos e soltou um suspiro irritado.
? Ele descobriu sobre sua mãe, nos ouviu conversando em Phantagia. Não gostou nada... mas também não disse nada ao pai. Ao que parece ele não me odeia o suficiente para contar ao rei.
? Lohan...
? Tudo bem.
? Não está!
? Você tem coisas demais para se preocupar, princesa. ? o tenebris sorriu ? vou dar o meu jeito.
? Eu prometi que ia ajudar, então nós vamos dar um jeito! ? rebati. Ele assentiu e abriu a fenda, escondendo-se em minha sombra assim que entrei pelo caminho das sombras.
Precisava ver o que Áries diria sobre Alfia primeiro.
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Ao pisar em frente às portas da fortaleza de Lastar, dei de cara com Sirius que saía por elas com o semblante de quem ia transformar alguém em cinzas. Era a primeira vez que o via com uma expressão daquelas no rosto, ele sempre aparentava a mais pura serenidade. Seus olhos estavam dourados, outro traço que jamais havia visto antes, é claro, um solaris disfarçado...
? Kiara! ? Ele surpreendeu-se e ergueu a mão grande para afagar o topo de minha cabeça, como se eu fosse um cãozinho que precisava de um chamego após ser chutado pelo dono. Talvez fosse essa expressão que eu carregava ao invés da de irritação que queria mostrar.
? Mestre. ? minha garganta oscilou.
? Soube que não passou na prova do uniforme negro, sinto muito! Lidar com os monstrinhos de Pollo não é para qualquer um, mas sei que vão conseguir na próxima. ? Seu sorriso foi quase forçado.
? Não teria chegado nem na metade do caminho sem o treinamento de vocês. ? murmurei, não conseguia sequer disfarçar que minha irritação voltou com tudo ao vê-lo e me lembrar da expressão sonsa de Alfia. O solaris franziu o cenho, agora que estava a par de sua real natureza, me perguntava se ele não vira desde o começo sobre meus sentimentos e pensamentos sobre seu filho.
A resposta veio quase que imediatamente, Sirius bufou uma risada mal disfarçada e suspirou.
? Você tinha um forte bloqueio antes, algo que nos impedia de acessar sua mente e de seu irmão. ? Ele pigarreou e desviou o olhar ? confesso que teria sido interessante descobrir isso antes.
? Interessante em que sentido? ? comecei a sentir meu rosto esquentar.
? Esqueça, imagino que tenha ido no reino solar e Alfia não te deixou falar com Hasan, certo?
? Imagina ou viu isso?
? Ei! Não sou um velho xereta! ? Sirius ralhou cruzando os braços, mas seu brilho havia aumentado um pouco, era semelhante ao que acontecia com Hasan quando ele ficava com vergonha ? dá pra ver isso em sua expressão de que deseja cometer um crime.
? Não é porque eu estou irritada, que eu quero apertar o pescoço dela até aquela expressão sonsa sair de sua cara! ? na verdade, queria sim ? Só queria... descobrir uma forma de ajudá-lo.
O solaris bufou e desviou os olhos para a neve que começava a cair do céu sobre seus ombros, os flocos não evaporavam, apenas ficaram ali enfeitando sua roupa como se ele não fosse um sol brilhante em meio a neve.
? Se quer mesmo saber, talvez deva começar procurando os podres de Sarki, duvido que ele não tivesse algo que se estendesse além dele para a filha também. ? Ele suspirou.
? Entendo... você não estava com a expressão das melhores ao sair da fortaleza também. ? Sirius sorriu de uma forma sinistra que fez meu coração descompassar.
? Alfia está mexendo com Áries ao manter Hasan lá, mesmo que pela vontade dele. ? Sirius moveu os dedos e um portal se abriu atrás de mim ? Se mexem com Áries, o fazem comigo também. Vou até Aristes para que ele me ajude em algo, preciso arrumar uns detalhes de nosso segundo plano sobre isso tudo.
Ele parecia cansado, suspirou e afagou minha cabeça outra vez antes de entrar no portal.
? Sirius ? chamei, ele se virou e me encarou sério ? Eu vou dar um jeito nisso.
Ele assentiu, realmente confiando no que eu dissera.
? Acredito em você. ? dizendo isso, desapareceu junto com seu portal.
“Procurar por podres de Sarki... isso é uma ótima ideia” Lohan murmurou enquanto eu atravessava o pátio congelado em direção às portas principais.
“É algo bem óbvio que eu devia ter pensado antes”
“Sua tia... será que ela não conseguiria te dar dicas de como fazer isso também? Ela pode ver o futuro...”
“Mas não pode falar sobre ele, Lohan!” ? rebati “A coisa sempre muda para pior!”
“Ela não precisaria dizer, você pode apenas... procurar por sinais, se vamos conseguir tirar seu solzinho do cativeiro”
“Você está realmente muito engraçadinho hoje!” ? ralhei, sentindo suas sombras fazendo cócegas em meu pescoço “Comporte-se, ou eu vou contar pra Nedyle que você fica de gracinha com as garotas na ACV”
“Cruel!” É claro que ele não se sentiria nada intimidado com aquilo, sabia que eu não diria nada!
Dentro da fortaleza, encontrei Áries em seu quarto andando em círculos, apertando algo como uma manta nas mãos, ela soltava rosnados e não percebeu minha presença até que eu estivesse a alguns passos. Ela me olhou de cima a baixo e bufou, aproximando-se um pouco.
? Está com o cheiro da casa daquela cadela.
? Ela me colocou pra correr. ? disse, Áries levantou as sobrancelhas incrédula.
? Não creio que ela ousou... não creio que você a deixou fazer isso!
? O que queria que eu tivesse feito, arrastado a cara dela no chão?
? Sim! Sim devia ter feito isso! Hasan precisa de você! ? Ela rosnou ? Não pode abandoná-lo lá!
? Se eu obedecesse aos meus instintos e arrancasse a cabeça dela, qualquer chance de tirar Hasan de lá iria pelo buraco! ? rebati ? Não o abandonaria jamais! Mas as vezes precisamos recuar para ter um olhar mais amplo da situação.
A malvarmo me encarou com os olhos negros faiscando. Então colocou as mãos na barriga, respirou fundo e deixou-se cair no sofá.
? Quero meu filho de volta, Kiara! Ele está sofrendo lá, eu sei disso! ? Áries murmurou com uma voz baixa, quase gentil. Um tom que nunca, NUNCA a ouvi usar. A malvarmo se encolheu e passou a observar as brasas crepitando na lareira acesa ? Serena... ela fez um estrago muito grande na mente dele. Meu filho esquece do que é capaz quando é preso numa coleira por uma desgraçada manipuladora como ela. Ele é gentil demais para fazer algo ruim contra ela. E algo precisa ser feito. Eu não o quero preso lá!
? Hasan não vai fazer nada que prejudique o povo do Primeiro, Áries. ? Seus olhos como carvão se voltaram para mim.
? Exatamente! Ele não fará nada que prejudique o povo, e isso inclui aceitar aos caprichos dela se for necessário! Sirius e eu... já providenciamos algo que o ajudaria, mas pode levar uns cinco anos até que ele possa ter sua magia substituída de Lumis.
? Do que está falando? ? questionei. Áries encolheu os ombros outra vez e não me encarou.
? Inseminação mágica. ? a olhei sem acreditar.
“Pelos deuses!” Lohan murmurou.
“Mas... Alfia não ficou grávida de Awen?”
“O quê? Não pode... Kiara, ela não pode ter filhos. Foi o preço que o feitiço temporal cobrou dela!”
“E se não for verdade? E se ela tiver se curado? Uma solaris poderia... perder os poderes ao ficar grávida? Assim como acontece com magas?”
“Não. Nenhuma celestial perde a magia durante a gestação. Celestiais raramente perdem os poderes.” Ele concluiu.
Não percebi que ainda tinha uma careta no rosto até Áries sacudir a mão em frente ao meu rosto.
? Não fique com essa cara, menina! ? Áries ralhou ? Não me faça sentir pior do que já estou.
? Então... do que se tratava o segundo plano de Sirius?
? Era isso. ? Ela bufou ? Levamos a semente a alguns dias até o Primeiro, mas Hasan não nos disse se ela já foi até um curandeiro para colocá-la.
? Ele me disse para procurar por podres de Sarki. ? comentei ? Enquanto vocês estiveram no centro do círculo... não viram nada de incomum lá? ? Áries soltou um rosnado de frustração e meneou a cabeça negativamente.
? Bogkhar e Treezer não eram ligados ao círculo naquela época. Não podíamos ver nada associado a eles. ? Ela suspirou, cansada ? Mas acredito que, pelo o que Honén nos contou, há muita informação escondida sobre os solaris nas bibliotecas do Sétimo e Quinto. Imagino que você possa entrar lá.
? Vou ver o que posso fazer. ? disse ? Quanto a Alfia...
? É fachada. Aquela gentileza dela não é real. Algo desestabilizou dentro dela com o feitiço em que o pai a colocou... ou talvez ela sempre tenha tido algo podre dentro de si.
? Entendi. Vou tomar cuidado, então. ? levantei-me para sair.
A conversa com Áries nem de longe me deixou mais calma como imaginei que aconteceria. Mas pelo menos agora tinha idéia de por onde começar a procurar.
? Kiara. ? Áries agarrou meu braço antes que eu me afastasse. Eu sabia quais seriam suas próximas palavras só por aquele olhar desesperado.
? Tire meu filho de lá. Isso é um contrato locam. Descubra um jeito, não importa qual seja... mas tire meu Hasan de lá. ? seus dedos eram como gelo ao redor de meu pulso. Áries não era um monstro, mesmo que parecesse com um as vezes. Talvez fosse uma das criaturas mais cheias de amor que já tinha visto.
Coloquei a mão sobre o peito e me curvei.
? Eu aceito essa missão.
Deixei a fortaleza com uma lista de tarefas em mente.
A primeira era: tentar conseguir qualquer coisa de Gwendollyn.
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Voltamos para a ACV o mais rápido que pudemos. Passava das onze quando chegamos e o cheiro do almoço se espalhava pela academia. Ao ir até o quarto procurar por Hestia, peguei um bilhetinho sobre sua cama, avisando que tinha partido para o vale com Helleon antes de nós, Fares os havia levado a pedido da bruxa.
Respirei fundo, e mesmo incomodada com aquilo, me senti estranhamente feliz. Era quase surreal conviver com meu irmão tão... lúcido, conversando, usando magia depois de todo aquele tempo em que o consideraram louco. Queria que tivessem tido a ideia de trazê-lo para a academia muito antes.
Quem sabe o quão melhor ele estaria se estivesse desde o começo dentro daquelas muralhas como eu. Queria conversar com Hestia sobre isso também... não que fosse de minha conta a relação deles. Mas eu precisava proteger meu irmão e não sabia o que a bruxa realmente tinha em mente.
Lohan me avisou que Caelle continuava na ACV. Ela estava na sala de cura, brincando sob o olhar atento de Glyph e Eileen.
? Olha! ? Caelle deu um gritinho chamando minha atenção de assim que entrei na sala. A menininha ergueu as mãos e lançou uma pequena onda de magia. Flocos de neve se espalharam ao seu redor e ela gargalhou divertidamente. Glyph fez uma careta, mas não reclamou. Eileen olhava para a menina com a expressão de um gato vendo uma bolinha de lã.
? Eu ensinei a ela como fazer ? Ele sorriu um pouco, mas fechou a expressão ao notar Lohan o avaliando com o cenho franzido.
? Não tem problema. ? dei um meio sorriso.
? Ela não pode ficar por aqui, não é muito seguro. ? Glyph murmurou, aproximando-se de mim discretamente.
? Vim buscá-la por isso.
? Vai ficar com ela?
Neguei com a cabeça.
? Mas sem quem vai. ? sussurrei ? Caelle? Quer vir comigo conhecer um lugar muito legal e cheio de crianças que vão adorar brincar com você? ? a menina parou a brincadeira e assentiu, sorrindo para mim.
O vale dos bruxos era o lugar mais mágico e incrível dos mundos.
Não tinha dúvidas de que seria muito bem cuidada lá.
? Depois preciso falar com você. ? Eileen comentou ? Sobre os treinos, sabe?
? Quando eu voltar... teremos que pegar uma missão amanhã no fim da tarde! ? disse como despedida e saí da sala com Lohan e Caelle nos braços.
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Como adorava chegar ao vale e perceber que era mais cedo que em Vegahn! Pisar na frente dos portões do vale e ser recebida pelos bruxos sorrindo e acenando era outra parte agradável. Não tinha como chegar perto daquele lugar sem querer declarar meu amor por aquele mundo inteiro dentro daquela cadeia de montanhas.
O sol ainda estava pouco acima do horizonte, mesmo assim algumas mulheres vinham pela estrada cheia de neve de fim de inverno, certamente voltando de Arizal com cestas cheias de temperos para começarem a preparar o almoço.
? Vou até a Morada da Lua, Helleon está lá! ? comentou Lohan afagando a cabeça de Caelle antes de desaparecer numa sombra negra pelo meio da floresta congelada.
Caelle em meus braços avaliava ao nosso redor, com os olhos arregalados, curiosos. As árvores desfolhadas com galhos envergados de neve, as marcas de passos fundos na estrada e os guardas sobre as torres de vigia acenando para nós de dentro de seus espessos casacos de pele. Não deixei de reparar que ela olhou para sua pouca roupa, e percebeu que não sentia o frio da mesma forma que eles.
? Olha quem vem vindo! ? sussurrei para Caelle ao perceber uma borboleta grande branca se aproximando de nós, vinda de cima dos muros.
A criança se atentou ao movimento das asas de Halles, quando ele pousou em seu ombro e com um brilho suave, mudou de forma e ficou de pé ao nosso lado.
Ela deu um gritinho assustado, então começou a rir.
? A tia avisou que eu estava chegando? ? perguntei. Halles sorriu e assentiu.
? E Hestia me avisou de sua amiguinha menor também. ? Ele estendeu a mão para ela ? Olá, Caelle! Me chamo Halles. ? o bruxo deu um sorriso largo e apertou com cuidado a mãozinha que ela estendeu de volta.
? Seus olhos são da mesma cor dos meus ? ela disse, tocando seu rosto.
? Os cabelos também. ? Ele moveu as sobrancelhas e deixou que ela pegasse sua trança. Caelle abriu um sorriso, deixando as pressinhas às vistas, então pediu colo a ele.
? Eu disse a ela que teria crianças para ela brincar. ? O avisei. Halles assentiu e com mais jeito do que imaginei, ele a pegou no colo e seguiu comigo ao seu lado para dentro do vale.
A menina parecia maravilhada com as casas e principalmente com as crianças que corriam por todos os lados, atirando neve em todos que passavam, sem exceção. Amanda e Ellyn que saíam da casa de banho, levaram uma chuva de gelo e começaram a gritar atirando neve de volta.
? Vai querer me contar sobre isso? ? Halles comentou, aproveitando a atenção da menina nas crianças para perguntar.
? Depois... queria ir vê-la primeiro. ? Ele sabia que eu estava falando de Gwen. ? Como estão as coisas?
Halles fechou os olhos e assentiu brevemente.
? Melhorando. ? sussurrou ? Você vai ver. Ela está em casa. Pode ir! Vou tomar conta dela... não só por agora, imagino.
? Obrigada, Halles! ? Ele me puxou e deu um beijo em minha testa.
Em seguida, afastei-me pela trilha de pedras quase invisível sob a neve. Assim que me aproximei, o cheiro que vinha pela fresta da janela aberta me fez mergulhar em lembranças de quando ainda era uma criança recém chegada ao Vale da Lua. Triste demais para interagir com os outros, mas começando a aceitar a nova vida.
A casa cheirava a pão de nozes recém assado, café e geléias. Entrei devagar, com o coração começando a acelerar, não sabia se devia ou não perguntar a ela sobre... sobre o tempo que Hasan continuaria lá ou se tinha algum modo de ajudá-lo. Algumas coisas quando vistas e contadas, tinham mudanças devastadoras, bruscas demais e que acabavam pior do que na primeira visão. Não se podia alterar o futuro, era essa a mensagem por trás daquilo.
Então para que ter um poder como aquele? Apenas para observar e sofrer?
Atravessei a pequena sala em silêncio, a pilha de livros ao lado do sofá crescia cada vez mais, ela não tinha espaço para guardá-los no segundo quarto, pois ele estava apinhado de roupas, tecidos e linhas. Mesmo assim não me senti culpada em acrescentar mais volume à pilha de livros, ela precisava deles, era a única coisa que mantinha sua mente sã, as histórias neles eram seu escape.
? Kiara! Sinto muito pelo teste! Sei o quanto queria passar. Mas acredite... estou feliz com quem trouxe com você! ? Tia Gwendollyn disse assim que atravessei o arco da cozinha, ela estava sorridente, inclinada sobre a mesa servindo duas xícaras de café para nós, o pão cortado em fatias ainda soltava vapor. Sua a trança loira caída por cima do ombro, destacada contra o vestido azul escuro que vestia.
? É difícil fazer uma surpresa assim! ? brinquei, sentando-me à mesa.
A janela aberta de sua cozinha deixava entrar a luz alaranjada do sol nascente vindo de uma fresta entre as montanhas, aquecendo mesmo que pouco minhas mãos na direção do feixe de luz. O sorriso dela vacilou um pouco, ela sentou-se devagar e me encarou. Seus olhos pareciam mais brilhantes que da última vez que a vi.
? O lado bom é que te poupa ter que contar as partes ruins.
Ela soprou o vapor da xícara e tomou um gole, mas não desviou o olhar de mim. O que me deixou um pouco desconfortável, nunca tive tanta intimidade com ela, embora ela sempre fosse atenciosa, o meu vínculo maior era com Ellyn e Halles.
? Nem tiveram tantas assim ? tirando quase ter visto a menina morrer estripada pela bruxa, e os elitropos. Ela certamente sabia que eu gostaria de deixar Caelle com eles, então podia deixar esse assunto por último, uma vez que Halles abraçou a causa tão facilmente.
Tomei um gole de meu café também, tentando colocar mais espaço entre o que eu queria desesperadamente perguntar. As consequências de perguntar sobre a volta de uma pessoa que não estava em risco talvez não fossem ruins... nem ousaria perguntar sobre Fares, ou meus pais... muito menos sobre o demônio de fogo que assombrava meus pensamentos.
? Tia...
? Eu sei o que vai perguntar também, Kiara. Não posso te dizer. ? Seu sorriso diminuiu, mas tinha tanto carinho em seu olhar que fui obrigada a engolir minhas palavras, a insistência.
? Gostaria de poder ajudar de alguma forma. ? Gwyn pareceu surpresa por um momento.
? Com as visões? ? ao me ver assentir, ela soltou um suspiro pesado e desviou o olhar para a fatia de pão coberta de geleia em seu prato. ? Não é um dom, sabe? Acho que seja um castigo.
? Porque acha isso?
? Eu tenho certeza. ? Ela mordiscou o pão e encarou por um momento aquela subida lenta do sol, que em segundos desapareceria atrás das montanhas, antes de subir de vez sobre a morada dos bruxos. ? Eu parei de sair do vale.
As palavras desceram por minha coluna como gelo. Só tinha a escutado falar daquele jeito uma vez, quando ela gritou com Halles dias depois de eu chegar no Vale da Lua, logo após a destruição do castelo de gelo. Ela tinha baixado a voz e dito naquele mesmo tom para ele: “A culpa é minha, eu tentei alertá-la antes.”
? Não pense assim, tia. Não é errado não querer quebrar sua rotina ? tentei amenizar, mas ela voltou os olhos faiscando para mim.
? É errado desistir de tentar, de se curar! Você foi para um castelo de monstros acima das nuvens para aprender a não ter medo. ? Ela curvou os ombros e baixou os olhos ? Eu deixei que meu medo me vencesse.
? Você queria viver em paz.
? E você não quer? ? Ela sorriu amargamente ? Sabe... depois da guerra, levou um tempo para que eu visse a Nike outra vez. Nós nos despedimos numa masmorra fria no palácio dos ossos e eu tinha certeza de que não veria mais minha irmã. Mas eu tentei seguir em frente, afinal, nós não convivemos nada, quase não trocamos mais que uma frase ou duas... então eu conseguiria ficar sem vê-la! ? Gwyn suspirou ? Nessa época, eu já via pequenos fragmentos, no começo achei que era por causa do que aconteceu. Achava que era medo... mas durante o sono eu a enxergava.
“Via sua mãe vindo até aqui e sentando-se comigo para conversar, ela me contava coisas ruins que fez, mas eu não podia ouvir... achava que eram sonhos apenas. Eu poderia abrir um portal e ir até ela, quando fecharam as passagens entre os mundos, eles deram a alguns de nós a permissão para transitar com portais. Eu nunca consegui ir até lá, no começo não conseguia sair nem por aqueles portões. ? sussurrou indicando a entrada do vale com o queixo. ? Eu sabia que ele estava morto... mas tinha medo, sentia como se fosse ser levada outra vez.
Um nó se formou em minha garganta.
?Tia...
? Eu não conseguiria pisar em Vegahn. Demorou dois anos para que Halles me convencesse a sair, passeios curtos, até Arizal, a costa através da passagem das montanhas... mas eu não conseguia ir lá.
Gwendollyn olhava para o café em sua xícara como se encarasse aquele passado. Eu sabia daquilo, que o mago negro que tentara dominar os mundos, a levou para colocar em seu corpo a alma de outra mulher e a manteve presa, ameaçando matar Halles caso ela tentasse fugir.
? Seu pai veio aqui um tempo depois de sua mãe a colocar para dormir. Ele queria que eu conversasse com ela, que ela precisava de alguém além das companhias do castelo, dele. Ele queria que ela convivesse um pouco em família e que talvez eu a convencesse a te acordar. Susano talvez não tenha visto o quanto eu andava assustada, que não tinha condições de ajudá-la.
? Ou talvez ele tenha visto que as duas precisavam uma da outra. ? a cortei sem querer ? Isso é mais a cara dele.
Ela deu um meio sorriso.
? Ele a trouxe aqui, simplesmente chegaram, vieram até minha casa. Susano a deixou aqui e foi conversar com Maddox ? Ela soltou um risinho ? parecíamos duas crianças desconhecidas tentando fazer amizade, só sentamos juntas e em silêncio até que ela disse as primeiras palavras. Depois de dois anos sem nos vermos... as primeiras palavras que ela me disse foram: Eu sou uma covarde. Eu tive um bebê e fiz algo terrível com ela, deixei que a colocassem em hibernação porque eu ainda não consigo olhar pra ela. ? Gwendollyn me encarou ? Nike me perguntou se eu a achava um monstro por isso. Eu disse que não, que monstros não sentem o suficiente para sentirem remorso.
Minha garganta apertada mal permitia o ar passar.
? Nós nos ajudamos. Passávamos horas conversando, falando sobre as coisas... ela me contou sobre seu pai... e eu sobre ser levada. ? O café na xícara entre meus dedos estava congelado ? Eu tinha ido até lá para o casamento dela, e houve algo... ele destruiu um dos mundos. Eu estava no jardim do castelo quando ele apareceu, me olhou de uma forma horrível e fez aquelas sombras me arrastarem. Halles apareceu na hora para me chamar, mas eu já tinha sido presa. Nenhum treinamento que recebi me ajudou, ele nos pegou e nos levou embora.
Tia Gwyn chorava baixinho.
? Nike me pediu desculpas por ter me deixado sozinha, por não ter avisado aos bruxos que não era seguro para nós. Ela estava tão frustrada com as coisas que seu pai havia escondido dela que não pensou em mais nada.
? Sinto muito. ? peguei suas mãos com cuidado, tia Gwyn não me encarou.
? Quando ele me levou para o mundo dos mortos, ao quebrar as barreiras que impediam uma pessoa viva de entrar, um pó brilhante caiu de onde as tramas da barreira se desfizeram e por um momento fiquei cega, sentia meus olhos ardendo e minha cabeça doía como se tivesse enfiado a cabeça embaixo d’água e respirado. Acho que aquilo... tudo tem um preço, nada vem de graça e se não é com seu sacrifício, vai ser com o de alguém.
Ela soltou um suspiro e bebeu seu café já morno. Eu apenas a observava, ela nunca se abriu tanto para mim.
? Eu posso ver o que acontecerá, posso ver o que acontece, quando e onde acontece, mas não posso falar. É como um castigo por ter entrado no mundo de descanso e ter visto o que nos espera, o que os vivos não podem ver.
Lá fora a noite caía, transformando as rochas cobertas de grama em formas que me lembravam gigantes deitados ao redor do vale, o protegendo dos ventos gelados do mar. Puxei aquela escuridão de volta para mim, por sorte, os bruxos sabiam que aquilo era meu e não pareceram se incomodar com o dia virando noite antes do meio dia, uma vez que fiz a escuridão retroceder rapidamente.
? Com o tempo eu percebi que eram visões, pois sempre que via algo, acontecia logo em seguida. Algumas coisas, as que eu contava para Halles... elas aconteciam diferente, mas não passou por minha cabeça que eu não podia revelar o que via para ninguém. Até que...
Gwendollyn fechou os olhos apertados e meneou a cabeça negativamente.
? Está tudo bem, tia.
? Eu vi vocês... estavam no gelo de noite, você seu pai e Fares. O castelo começou a pegar fogo, consumido por imensas chamas negras que vinham de todo lugar! Susano mandou que vocês corressem para Hima e não saíssem de lá até ele ir buscar vocês, então ele foi para o castelo, mas a destruição não chegou a ser tão devastadora. A única parte do castelo destruída fora a que ficava o quarto de seus pais. Nikella já estava sem vida quando ele a encontrou, o fogo fez com que ela petrificasse. ? fechei os olhos tentando não lembrar de Xiaz e Ruthyr petrificados no pátio da ACV pela explosão da salamandra, meu coração apertado doía. Tia Gwyn limpou as lágrimas e respirou fundo, acalmando-se ? Eu avisei a ela o que aconteceria. Seu pai não parecia muito abalado, mesmo não tendo ideia do que poderia ser apesar de estar desconfiado de Adraph, pois o livro seria o único modo de alguma criatura passar pelas barreiras de sua mãe, ele criou um plano de emergência para proteger vocês começou a espalhar os fragmentos que você está buscando agora.
? Então... a forma que aconteceu foi diferente ? naquela noite meu pai não quisera sair comigo para brincar, ele preferiu ficar para protegê-la e agora eu sabia o porquê.
? Sim... eu contei, e ao invés de ajudar, eu tirei seu pai também, e seu braço ? Ela baixou os olhos para o colo, eles estavam vermelhos, seu rosto trilhado de lágrimas.
? Você não controlou o monstro, tia. Não é culpada de nada. ? Ela ergueu o rosto surpresa, talvez esperando que eu a julgasse.
? Eu sinto muito, muito por não poder ajudar em tudo isso. Só não quero que as coisas piorem mais! ? Ela se inclinou sobre a mesa e acariciou meu rosto. ? Espero que continue seguindo seu coração.
? É só um conselho, certo? ? murmurei assustada, finalmente ela riu, seu rosto se iluminou e os olhos brilharam com uma pontinha de alegria.
? Sim, sim! Não arriscaria nem mesmo uma dica em enigmas!
? Então vou continuar buscando um modo de ajudar todos eles. Não pode ser tão difícil! ? precisava me convencer daquilo.
? Quando a Caelle... você a trouxe para nós, certo? ? assenti procurando-os pela janela, mas não conseguia ver os dois dali.
? Eu não consegui não fazer nada. ? disse ? achei injusto deixar que partisse... sem ter vivido algo bom.
Tia Gwendollyn sorriu.
? Ela vai ser bem cuidada, prometo. ? Ela me encarou ? Está ligado ao seu destino... pagar a dívida.
Pisquei para aquelas palavras. Tia Gwen apontou o braço com o queixo.
? Eu disse onde você estava. Então talvez o preço... o preço de você continuar aqui seja esse, dar outra chance as pessoas também. Não percebeu? As meninas no navio, agora essa.
As palavras desapareceram de mim.
Pois aquilo fazia muito sentido.
? Querer o locam não é só pra fugir um pouco, então. ? dei um risinho nervoso. O enjoo voltou e lembrando-me do que Hamza havia dito, resolvi procurar a sala de cura já que estava no vale. Eghan provavelmente estaria por ali.
? Encontro com você na hora do almoço no salão. ? Ela me deu um sorriso. Acho que confessar aquilo, sobre as visões e sobre meus pais, tenha a libertado da culpa. A expressão dela havia mudado de forma tão drástica que até mesmo seu rosto tinha mais cor.
? Certo! ? sem me demorar, deixei a casa e corri direto para a sala de cura.
Atravessei o salão lotado para o café em passos rápidos. De relance, vi Halles e Caelle no canto do salão ao lado de Amanda e Ellyn, elas estavam paparicando a nova “bruxinha” do clã. Maddox acenou quando passei quase voando ao lado dele e me enfiei pelo arco para o corredor que levava à sala de cura.
Como imaginei, Eghan estava ali, preparando um emplastro de ervas com um sorriso meio perdido no rosto.
? Andou matando o trabalho, é? ? perguntei, pegando-o de surpresa. O bruxo me deu um sorriso um pouco sem graça e se aproximou. A última vez que tinha falado com ele foi quando briguei com Glyph para acalmar os ânimos na sala de cura. Não. Foi quando ele me defendeu com o vitrino moído.
? Eu... meio que desanimei um pouco. ? Ele comentou, voltando a atenção para as ervas.
? Por causa de Glyph? ? questionei.
? Não exatamente... só aprendi algumas coisas que queria mas...
? Você sentiu falta de casa. ? Ele arregalou os olhos.
? Como sabe?
? Eu sinto também. ? sorri ? o Vale da Lua te chama de volta.
? Não é só isso. ? Ele afastou-se do balcão. Seus cabelos castanhos estavam soltos ao redor dos ombros e com a barba raspada ele tinha a aparência mais jovem. O bruxo apoiou-se numa das camas e me encarou. ? Eu... preciso estar mais presente. Tem coisas que quero fazer e só conseguirei se estiver aqui.
? Como o quê? ? quis saber.
? Como não precisar dar explicações à malvarmos curiosas!
? Ei! ? sorri ? Desculpe!
? Não quis ofender ? Ele sorriu e deu tapinhas na cama para que eu me aproximasse. Devagar como um gato aprontando o bote, me aproximei, observando a tensão em seus ombros e aquele cheiro... ele estava nervoso com algo. Mas certamente não me diria.
? Não me ofenderia com algo assim. ? murmurei. Eghan passou um braço ao meu redor e respirou fundo, seus olhos cor de mel derretido foram para a janela e se perderam em algum lugar lá fora.
Sem querer, lembrei-me da última vez que estive ali, vendo meu melhor amigo quase morto se transformar num malvarmo. Fechei os olhos apertados e suspirei. Hasan foi quem entrou por aquela porta quando estava prestes a me desfazer e me salvou.
Mais de uma vez ele me salvou, de mim mesma principalmente. E ali estava eu, sem um plano para ajudá-lo.
E o casamento deles seria em menos de um mês.
Meu estômago começou a embrulhar novamente ao lembrar do cheiro dele em Alfia.
? Você não me parece muito bem. ? Eghan tocou minha testa com a palma da mão.
? Poderia... verificar algo para mim? ? estremeci, tentando não pensar na possibilidade. Eghan deve ter lido o pânico em meus olhos, pois levantou as sobrancelhas e assentiu devagar, então espalhou aquela luz morna e branca sobre mim. Fechei os olhos e esperei alguns instantes. Só percebi que tinha começado a tremer quando a sensação morna sumiu e ele colocou a mão em meu ombro.
? Nada fora do normal.
? Eu desconfio do seu senso de normalidade, bruxo. ? murmurei. Eghan começou a rir e meneou a cabeça negativamente.
? Não está grávida. ? Ele sussurrou ? Por acaso você não toma...
? Não funciona com celestiais. ? o bruxo crispou os lábios.
? Então o que vi aquele dia na sala de cura... você e o mestre estão juntos? ? Ele piscou incrédulo ? Mãe das águas! Ele é muito velho!
Revirei os olhos.
? Podia dizer que eu sou louca por ele ser um solaris. ? Não me senti culpada em dizer aquilo. Todos sabiam que Hasan estava no Primeiro de Boghkar, transferindo sua magia para a árvore vital dos Céus.
? Isso também. ? o bruxo soltou um suspiro cansado e olhou pela janela novamente. ? Connal pediu para que a avisasse se a visse por aqui, ele quer que você vá com Helleon até Dracken. Mavis e ele estarão lá até o fim próximo do inverno, ele disse algo sobre aulas de voo.
Meu estômago deu outro salto.
Franzi o cenho e com um estalo, percebi porque me sentia mal desde o amanhecer em que fui aos céus.
Não era mesmo uma gravidez. Era algo realmente ruim que me fez soltar um rosnado de irritação. Eghan se afastou alarmado.
? Desculpe, não é com você. Só acabei de me dar conta de algo ruim. ? expliquei encarando-o ? obrigada, vou até Dracken em breve. Teremos uma semana de folga na ACV por conta do festival das luzes em Paliath.
? Ouvi falar da festa. Uma semana em que o outro continente fica completamente escuro e só luzes boreais iluminam os céus, certo?
? Vou aproveitar esses dias e vir treinar voo. Torcer também pra aprender nesse tempo! ? brinquei.
? Não creio que seja muito difícil, uma vez que você já tem o instinto, junto com a habilidade de se transformar... ? a voz de Eghan foi morrendo e ele desviou o olhar ao perceber que me retrai. ? Sabe, aquele dia... eu não quis te chamar de monstro.
Assenti sem o encarar.
? Não fique pensando nisso. ? sussurrei.
Não sabia o que responder, mas não queria sair sem dizer nada e deixar o bruxo achando que eu ainda me sentia mal com aquilo. Porém, para meu alívio, no momento seguinte uma Sorcys entrou segurando um pano enrolado em seu punho.
A garota que aparentava ser mais jovem que eu tinha os cabelos negros presos numa trança grossa e os olhos num tom verde musgo vagaram entre mim e o bruxo e seu rosto corou, destacando as sardas espalhadas sobre o nariz.
? Fran ? Eghan deu um sorriso a ela e seus olhos brilharam. Em resposta ao tom suave da voz do bruxo, os cantos dos lábios da bruxa tremeram e ela moveu a mão sem jeito, fazendo com que a roupa de couro apertada, marcando cada curva do corpo rangesse.
? Tive um probleminha durante o treino. ? Ela mordeu os lábios e me olhou outra vez, crispando os lábios. Um pedido desesperado para que eu caísse fora.
? Até mais. ? deixei a sala quase empurrada por aquele desejo nada sutil nos olhos da Sorcys.
Agradecida pela chance de sair fora, segui direto para o salão, precisava conversar com Caelle sobre sua casa nova.
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No comecinho da noite, Hestia se contorcia alegremente em sua forma de raposa sobre a cama. Sacudi a colcha, fazendo-a pular para a poltrona de madeira ao lado da janela, a bruxa voltou a sua forma humana, mantendo um imenso sorriso no rosto.
Ela tinha levado Fares para conhecer a Morada da Lua e os dragões por lá, mesmo que Connal e Mavis não estivessem, não deixava de ser fascinante conhecer os outros dragões. Porém o sorriso contente da bruxa e o cheiro de meu irmão mais intenso em sua pele me fez franzir o cenho.
? Você parece muito contente. ? comentei, arrumando o lençol na cama de Mavis. A bruxa não tinha problema conosco ocupando sua casa, desde que mantivéssemos tudo organizado depois.
Hestia mordeu os lábios, penteando os cabelos ruivos distraidamente sem me olhar. Sua atenção não estava em parte alguma, mesmo que seus olhos focassem o lago congelado brilhando à luz da lua no meio do vale.
? Hestia? ? chamei, atirando um travesseiro nela.
A bruxa soltou uma risadinha e abraçou o travesseiro, só então ganhei sua atenção.
? Seu irmão me propôs compromisso. ? estaquei no meio do quarto, deixando a manta felpuda de lã cair desajeitadamente sobre a cama, tirando o lençol do lugar sem querer.
? O quê? ? Ela me encarou, seu sorriso vacilou um pouco.
? Eu que pergunto isso, não sou boa o suficiente para ele? ? Ela questionou, alterando um pouco seu tom de voz.
? Sabe que eu não disse isso ? retruquei, sentando-me na beirada da cama o mais perto dela que pude. ? Eu só... não sei se ele se acostumaria com seu estilo de... ? mordi os lábios com força, não sabia como tocar no assunto.
Não que eu tivesse convivido o bastante com a versão adulta de meu irmão para saber, mas me lembrava que mesmo criança, Fares tinha algo de mamãe que se negava a dividir a atenção com os outros.
As memórias dele se recolhendo quando Lohan chegava com Luyen e Hamza para brincar eram bem vivas em minha mente. Fares se recolhia por não querer que eu desse atenção à outra pessoa. Ele era um pouco ciumento. Ou talvez fosse antes. Não saber dizer aquilo me incomodou.
Hestia apoiou o rosto no punho fechado, seu sorriso foi curto e um pouco sentido.
? Acha que por eu não conter meus desejos, não daríamos certo?
? Talvez ? não menti. Hestia dessa vez abriu um sorriso grande, mas de um jeito que fez minha pele se arrepiar.
Criaturas de luz uma ova!
? Eu gosto de homens, gosto de mulheres, gosto de ter prazer, Kiara, mas isso não significa que eu não queira encontrar um parceiro, me casar e ter filhos. ? disse séria, se erguendo da poltrona e sentando-se ao meu lado na cama. Seus olhos grandes se fixaram nos meus ? Não é um sacrifício abrir mão de algumas coisas menos importantes, quando algo que você quer muito lhe é oferecido.
Era a primeira vez que a via tão séria.
? Você realmente gosta dele? ? quis saber.
? Não diga isso para ninguém aqui dentro. ? Ela pediu. A olhei confusa. Hestia rapidamente subiu em meu colo, segurou meu rosto e sorriu daquela maneira que fazia quando queria aprontar.
? Meninas o jantar... ? A porta estava aberta e Ellyn apareceu como um gato ladrão, sem fazer um ruído. A bruxa estacou na porta, soltou um suspiro e desviou o olhar com o rosto ganhando um tom carmim.
? Já vamos! ? Hestia deu um risinho e fez a porta do quarto se fechar com magia. Ela então voltou seus olhos vermelhos para mim.
? Você... faz para implicar com eles? ? meu coração acelerou. A bruxa sorriu e meneou a cabeça negativamente, ela me deu um beijo de leve, como o roçar das asas de um beija-flor e escorregou para a cama, deitando-se de lado.
? Eu gosto de mulheres, tanto quanto gosto de homens. Não menti quanto a isso. ? disse brincando com as bordas soltas da colcha. ? Não tinha como fingir tudo aquilo. ? Ela me lançou um olhar malicioso.
? Realmente. ? suspirei ? Mas... porquê?
? Sabe como os bruxos escolhem seus próximos líderes, não sabe?
? Hum... os filhos dos líderes são testados força, lealdade, destreza, compaixão...
? Sim, sim e mais uma lista de coisas! ? Ela revirou os olhos ? Meus pais querem que eu seja a próxima matriarca. A bruxa-mor do clã.
? E você não quer isso, certo? ? ela negou.
? Eghan quer. ? pisquei incrédula ? Ele não é bom em combate, mas é estudioso, sabe comandar as equipes como ninguém, ele é carismático, é gentil, habilidoso com tudo que não envolva combate. Ele já tentou, sabe, mas não consegue ser bom em batalha! ? Hestia explicou, encarando a colcha de cenho franzido. ? Eu quero que ele tenha isso, essa chance de provar que pode ser um bom líder sem que só vejam o que lhe falta!
Então foi por isso que Eghan quis voltar.
Ele precisava estar dentro do Vale da Lua para mostrar do que era capaz. Hestia assentiu como se pudesse ver por onde meus pensamentos vagueavam.
? Você se faz de desordeira e irresponsável... para que eles não te escolham. ? Ela assentiu mais uma vez.
? Achava que eu era só um rostinho bonito com cabeça de vento e muito fogo no rabo? ? Ela gargalhou ? Engana-se, princesa! Exceto pela parte do fogo, ele é bem real. ? brincou. ? Eu os deixo verem algo que realmente sou... mas exagerado. Eu mostro mais do que preciso, pois quero que a atenção deles se volte para a sensatez e gentileza de Eghan.
? Mas... porque raios Ceiran e Ellyn estão pensando em um novo líder? Quero dizer, Maddox esteve à frente do clã por mais de duzentos anos, seus pais estão o quê? A sessenta? ? Hestia assentiu devagar.
? Desde que os mardans e as sorcys se reuniram, o clã cresceu muito. ? Ela apontou com o queixo para a janela ? O vale está lotado e isso tem acarretado em mais tensão. Muitos sorcys machos e mardans fêmeas também. Maddox e papai chegaram à conclusão que a única solução seria dividi-los outra vez.
? Dividir o clã... como em dois grupos?
? Exato. ? Hestia bufou
? E os dragões? ? perguntei, lembrando-me de Connal e os dragões que viviam em suas peles humanas sobre a montanha do Caos.
? Houve uma escavação no interior da montanha sob a Morada da Lua, os ninhos dos dragões continuam lá, mas Connal já deixou a Morada da Lua. Eles voltaram para Dracken. Alguns bruxos já estão lá, auxiliando os dragões que estão com ovos.
? Então.... a ideia é mandar você ou Eghan como líder para a metade do clã que vai para o palácio das bruxas...
? Eghan se encarregará de liderar o clã que vai pra Morada da Lua e meus pais continuarão aqui, ou o contrário. ? Hestia afirmou com um sorriso crescente. Ela tinha certeza de que o irmão conseguiria o que desejava.
? Me desculpe se a ofendi.
? Todos nós temos máscaras com as quais nos vestimos diante das pessoas. Nem todas as falsas versões que exibimos são para causar algum mal. Às vezes, só queremos evitar que vejam onde nos atingir.
? Seu irmão sabe? ? questionei.
? Eghan é a única pessoa até hoje que vê por trás dela.
? E ele não se ofende por você o ajudar assim? ? questionei mesmo com receio de fazer aquela pergunta.
Ela deu de ombros e meneou a cabeça negativamente.
? Ele sabe que num páreo justo, não me venceria. ? Ela sorriu maliciosamente ? Bruxas, minha amiga, nascem para liderar!
? Vou levar seu segredo para o túmulo, vossa alteza! ? fiz uma reverência zombeteira, o que levou Hestia a me acertar com o travesseiro e me derrubar ao seu lado. Nós duas começamos a rir.
? Vamos jantar antes que sua mãe pense que não temos respeito. Pode queimar sua imagem à vontade, mas a minha não!
? Kiara, você estragou sua imagem de boa menina no rito da lua de sangue! ? Ela me empurrou para fora da cama ? Todo mundo viu você entrar aqui comigo! ? Ela riu mais por causa de minha careta.
? Ainda posso culpar a disputa de vinho com Gwyndion!
Hestia piscou dissimulando.
Estava mais ferrada do que podia imaginar!
Capítulo 6
Não me senti mal ao deixar o vale na sexta à tarde com meus amigos e deixando Caelle ali. Maddox, Ellyn e Ceiran adoraram a ideia de deixá-la com Gwen para que minha tia conseguisse ter alguém para distraí-la das visões. E como bem sabia, o vale não era morada apenas de bruxos de nascimento, mas também para aqueles que aceitavam o lugar como um lar.
Meu lar favorito.
A menina me abraçou por um longo tempo, em seguida voltou sorridente para os braços de Halles. Ela havia se apegado de tal forma ao bruxo, que eu mesma me surpreendi mais do que deveria. Ele me ensinou muito, era gentil e cuidadoso, mesmo que me incentivasse a fazer coisas que não devia.
Como entrar na cozinha quando tinha quinze anos, por exemplo.
Mas com ela, sua atenção me passava a impressão de que tinham o mesmo sangue nas veias, mesmo que o dela pudesse congelar e o dele não. Ele a tratava como uma verdadeira filha. E era o que tinha se tornado em menos tempo do que esperava.
Com um sorriso no rosto e um aceno por cima do ombro, deixamos o vale pela fenda quando o sol começava a descer rumo ao horizonte.
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A ACV estava mais do que agitada naquela sexta à tarde.
Os venairens que aguardavam na fila em frente à sala de Lórien, cochichavam sobre dois celestiais solaris que estiveram na ACV no começo do dia. Sabia que não era Hasan pois eles teriam dito que o mestre viera, mas eram outros solaris. Ouvir em meio aos murmúrios o motivo da visita foi o que deixou minhas pernas moles e fez meu coração descompassar.
Eles tinham vindo trazer formalmente os convites do casamento celestial para Lórien, Honén e Neruo.
Um mês...
Teria um mês para conseguir cumprir o contrato de Áries. Três fins de semana ? Se ? Lórien deixasse minha equipe ficar alguns dias sem missões. Ou teria que oficializar o contrato de Áries sem envolver Hestia e Helleon.
Respirei fundo e ignorei as conversas, voltando minha atenção para os avisos de Helleon sobre as aulas de voo. Devia ter prestado atenção desde o começo, pois o bruxo dragão ria baixo, Hestia tentava não me olhar, mesmo mordendo os lábios para segurar o riso, e Lohan tinha os olhos brilhantes e um meio sorriso no rosto.
? O quê? ? perguntei.
? Preferiu prestar atenção nas fofocas... ? Lohan riu.
? Helleon!
? Eu estava dizendo que você ia precisar mais do que habilidade de conjurar asas pra treinar com meu pai. ? Ele pigarreou ? malvarmos podem infartar?
? Se não parou com toda essa merda... não vai parar com treinamento de voo. ? rebati. Ele fez uma careta e deu de ombros, Hestia então começou a falar sobre o tempo em que ficou presa durante a prova do uniforme negro e eu me apoiei em Lohan enquanto aguardávamos as outras equipes pegarem suas tarefas.
Quando faltavam apenas três equipes, contando com a nossa, o grupo que estava na sala de Lórien saiu e ela veio em seguida, mas ao invés de chamar a próxima, avisou:
? Equipes T-17, D-09 e E-22, voltem depois do jantar. Ainda preciso acertar uns detalhes de sua missão. ? Lórien moveu os dedos, nos dispensando. D-09 e E-22 eram as equipes de Mona e Eileen. Os dois e suas equipes trocaram olhares confusos conosco, mas foi o malvarmo que perguntou:
? Nós todos teremos a mesma missão? ? Ele franziu o cenho.
Lórien suspirou e assentiu.
? Vão passear em Vastrus. Muito território para cobrir em pouco tempo, então... já sabem, voltem depois do jantar! Menos você, Kiara! Precisamos conversar sobre o que você fez na prova em Pollo.
Meu rosto queimou, os venairens das outras equipes me olharam com as sobrancelhas erguidas.
Parecia que eu tinha matado alguém.
Entrei na sala olhando feio para Lórien, ela não conteve a expressão de divertimento ao perceber minha irritação. Sobre sua mesa de vidro e iluminado por um feixe de luz do abajur de árvore dourada, um mapa de Vastrus, mais especificamente do continente de Kathar-Giull exibia rotas rabiscadas por toda sua extensão.
Lórien o recolheu antes que eu visse do que se tratava e como desculpa, serviu uma bandeja com chá para mim.
? Sabe que eu não gosto dele. É amargo! ? resmunguei. Lórien sorriu e meneou a cabeça, perdida por um instante numa lembrança tão distante que eu sequer poderia alcançá-la se pudesse ver sua mente.
? Beba assim mesmo! É feio recusar chá.
? Você quem inventou isso. ? resmunguei aceitando o chá mesmo assim, mal toquei os lábios e o gosto se espalhou por minha língua, um aviso do que estava por vir. Lórien riu de minha careta e suspirou.
? E a menina? A deixou mesmo no Vale da Lua? ? questionou, tomando um gole de sua xícara fumegante.
? Gwendollyn e Halles gostaram dela ? encarei o chá escuro girando em minha xícara ? Caelle vai se adaptar bem lá, não tem como entrar no vale e não amar o lugar e o povo.
? Mas e você? Não queria... ficar com ela? ? Lórien mal escondia sua curiosidade atrás de cada gole.
? Estou sendo caçada por um demônio, moro sozinha numa casa dentro de barreiras escondidas, mal tenho tempo de treinar, participar das aulas e ter o mínimo de vida social! Quase preciso de alguém que tome conta de mim! Quem dirá tomar conta de uma criança que passou por algo tão ruim. ? Lórien soltou um risinho contido ? Ela precisa de muito carinho e atenção. Não tenho condições de cuidar dela no momento.
Lórien assentiu brevemente.
? O casamento de Hasan é em um mês. ? Ela soltou ? Pretende fazer algo a respeito?
Pisquei confusa.
? É claro que gostaria de fazer alguma coisa, Lórien, mas o que espera que eu faça? Entre lá e congele a bunda de Alfia?
? Não é uma má ideia!
? Tirando que de qualquer forma Hasan ficaria preso, já que não há outros magos solaris.
? Isso é o que ela diz ? Lórien deu de ombros ? Seu amigo, Awen, ele tem olhos rajados de dourado. Um mestiço com tormenta solar, não é? ? ela deu um sorriso curto, enrolando os dedos nas mechas soltas cor de mel de seus cabelos.
? Ele... eu não tinha pensado nisso, nunca o vi usar nada além de escuridão. A mãe dele é mestiça, então talvez ele não tenha herdado tormenta solar se ela não a tiver. ? falei, mas por curiosidade, perguntaria a Lohan sobre aquilo mais tarde.
? Como anda sentindo-se? ? Era uma daquelas conversas?
? Tirando meu coração desesperado pela situação de Hasan, com medo por Fares estar para lá e para cá com um demônio à solta, nervosa por achar os outros fragmentos... estou razoavelmente bem! ? tomei mais um gole de chá reprimindo outra careta ? Aliás... queria fazer algumas perguntas: onde colocaram o machado? Porque o demônio não está por aí destruindo tudo, tentando ser um vilão como os outros... e como não ouvimos ninguém falando sobre o ataque perto de Hima? Até mesmo o ataque às Tormentas foi abafado! Como estão escondendo isso?
Lórien afundou na cadeira pela quantidade de perguntas difíceis de serem respondidas.
? Sobre as tormentas, os sereianos espalharam que sofreram um ataque de dragões, isso não é muito incomum lá. Demétrius ordenou que não fosse dito nada sobre o demônio para evitar pânico.
? Entendo... então o machado não voltou para lá, certo? ? Lórien negou com a cabeça.
? Hasan não me disse onde o colocou. ? Ela suspirou frustrada.
? E quanto ao ataque que Hestia, Senrys e eu sofremos? Não tinha como encobrir aquilo... mesmo que ele não tenha deixado rastros! A coluna de fogo nos atingiu a uns cinquenta metros de altura.
Lórien terminou seu chá.
? Enviamos um comunicado a todos que a torre de fogo negro foi resultado de testes feitos com fogo de dragão numa área deserta para avaliar o alcance de chamas negras draconianas, nossa mentira foi reforçada pelo ataque ter ocorrido num lugar deserto e por não haver feridos, diferente do que aconteceu nas Tormentas.
Me encolhi ao lembrar de Senrys. Lórien se ergueu, contornou a mesa e sentou-se no braço da poltrona, apertando-me num abraço.
? Eu sei que dói, Kiara, sei que sente a falta dele. ? Lórien murmurou. Me senti ainda pior por estar tão focada em outros problemas que andava esquecida de meu amigo.
Mas como Hasan dissera... Alguns dias seriam mais fáceis, outros não.
E eu não estava nos dias fáceis, mas não tinha um minuto de folga para que meus pensamentos voltassem para as dores que eu não poderia mais contornar.
? Onde está o próximo fragmento, por falar nisso? ? Ela perguntou instantes mais tarde ao voltar a afundar em sua poltrona de couro e veludo.
? Não consegui decifrar. ? puxei o bilhete amassado do bolso de minha calça e o estiquei sobre o tampo, só ao recitá-lo para Lórien que a resposta óbvia apareceu em minha mente.
Gigantes.
? Ora, ora! Gillian! Está com o general dos gigantes! ? Lórien riu.
? É coincidência? ? franzi o cenho para o mapa dobrado no cato de sua mesa ? você sabia onde estava?
? Não tinha ideia! ? Ela desdobrou o mapa ? Sua equipe nem seria escalada para essa missão se vocês não tivessem um tenebris!
? O quê? ? questionei sem entender.
? Vá buscá-los, vou terminar com o mapa para explicar a vocês o que deve ser feito!
Deixei a sala correndo em direção ao refeitório.
Hasan:
Aquele era um dos momentos em que eu mais sentia falta da ACV. Com os olhos fechados, consegui visualizar com clareza a minha sala sob os prédios principais. Minha mesa de mogno com provas espalhadas, prontas para serem corrigidas. Os bonecos de treino do outro lado do vidro espelhado, espalhados pelo salão de obsidiana. Eles pareciam até espantalhos num campo recém lavrado, sem terem o que defender dos corvos famintos.
Minha mente me arrastou para outro caminho, um que eu tentava evitar a maioria das vezes, pois eram os pensamentos que me faziam querer deixar a cidade desabar e voltar para casa. Imaginei Kiara naquele sofá de couro marrom encostado contra a parede de tijolos alphos no canto de minha sala. A malvarmo sorria tentando me provocar e eu caía em sua provocação e a tomava naquele sofá.
Eu tinha imaginado aquilo muitas vezes. Estava entre as coisas que queria ter feito antes de precisar ficar preso ao Primeiro.
Queria minha vida de volta.
O que mais me incomodava, no entanto, era o fato de que houveram dois ataques do demônio de fogo, e por eu estar preso ali... não estaria com ela caso precisasse. Soltei a respiração com força. Não sabia no que estava pensando ao colocar minha magia na Lumis.
Podia levar anos até que Alfia conseguisse ter um filho que pudesse colocar sua magia no lugar da minha.
? Majestade? ? uma voz puxou-me de meus pensamentos. Encarei um par de olhos cor de âmbar e um rosto bonito de pele bronze. A garota de roupas finas e um sorriso crescente, apertava uma criança pequena adormecida nos braços.
? Não precisa me dar títulos, não uso uma coroa. ? mesmo não querendo ser rude, não podia evitar. O sorriso no rosto da mulher não vacilou mesmo assim, ela assentiu brevemente e olhou a criança nos braços.
? Se não fosse o senhor, minha casa teria caído sobre nós. Eu não consegui sair a tempo. ? A solaris deu um meio sorriso, mas ao notar que Alfia se aproximava de nós, ele vacilou em seu rosto. Ela fez uma pequena mesura e seguiu para o meio do salão, sumindo em meio aos celestiais que valsavam ao som das vozes etéreas dos ventus presentes.
? Sei que não é fácil para você permanecer aqui ? Alfia começou, acompanhando a garota com os olhos ? mas todos estão mais do que felizes, Hasan, com a sua doação. ? Alfia ainda olhava a multidão.
E eu podia sentir aquilo nela. Em sua postura ao sentar-se ao meu lado e apoiar a mão no braço do trono em que estava sentado.
Aquele sentimento de posse brilhava em seus olhos.
Afastei-me quase imperceptivelmente dela e respirei fundo.
Havia um porto seguro me aguardando além daquele castelo de luz solar e entardecer eterno. Eu só precisava visualizá-la, então poderia aguentar qualquer coisa, mesmo que fosse uma eternidade naquele lugar em que a escuridão se escondia onde não podia ser vista.
? Vá entreter seus convidados, majestade. ? disse num baixo silvo, deixando transparecer minha irritação ao notar que Alfia tentava alcançar meus dedos. Soube que ela leu o “não me toque” em meus olhos quando recolheu os dedos e sorriu sem graça para um grupo de tenebris que passavam por nós.
Não queria saber daquele baile de noivado, se pudesse, sequer teria saído de minha cama. A única coisa que valeu foi a jovem que reforçou o motivo para eu não deixar aquele lugar desabar. Haviam boas pessoas ali.
Levantei-me do trono e caminhei até o outro lado do salão, onde Hamza e Luyen conversavam com cara de quem iria sair dali a qualquer instante.
? Até onde sei, posso perambular por outros céus mesmo preso a este, não é? ? perguntei em cumprimento ao tenebris. Hamza estendeu a mão, apertando a minha erguida.
? Escolheu a pessoa certa com quem falar, já tenho uma certa experiência em fugir de festas de noivado! ? Luyen o beliscou nas costelas e ele bufou uma risada.
? Estou muito parado desde que saí de Vegahn. ? comentei. O tenebris assentiu. Luyen agarrou seu braço e eu lhe toquei o ombro e mergulhei com eles entre os véus dos mundos.
Kiara:
? Então, como vai ser? ? Mona perguntou, encostada no tronco da árvore em que estávamos. Crispei os lábios sem saber ao certo o que responder de imediato.
Olhando para baixo outra vez e desejei ter tido minhas aulas de voo antes de entrar no mundo dos gigantes. Estávamos a quarenta e cinco metros de altura sobre um galho de árvore tão largo quanto uma estrada. Tão altos que se um de nós descesse, o veríamos do tamanho de uma formiga, isso porque ficamos num dos galhos mais baixos. O vento sequer conseguia balançar a árvore.
Soltei um som engasgado e sentei-me novamente, colando as costas no tronco ao lado da elfa. Helleon me olhava com um sorriso perverso no rosto. Sorriso de quem descobriu um segredo para usar em chantagens.
Não tinha medo de altura! Só tinha medo da queda!
Hestia, longe de nós na beirada do galho, escondida entre as largas folhas porosas, observava atenta o movimento lá embaixo. O maior gigante que vimos ali tinha por volta de trinta e oito metros e caminhava em rondas curtas pela floresta ao redor do acampamento. Eles variavam de um a quatro metros de altura uns dos outros.
Dimias, o gigante da equipe de Mona continuava murmurando algo em sua língua natal, um dialeto de uma “pequena” vila das ilhas Videre, separaras da costa de Kathar-Giull por dois dias de viagem num navio. Lohan vigiava desconfiado o gigante em seu tamanho encolhido e não parecia muito confiante da traição que ele cometeria nos ajudando a espionar Gillian.
Acima de nós, separado por cinco metros entre um galho e outro, Eileen e Evenna discutiam baixinho com uma bolha de luz, certamente falando com a outra parte das equipes, os gêmeos malvarmos de sua equipe e os dois elfos do grupo de Mona. Eles foram para o outro lado da floresta monitorar o movimento dos nitries em seu território.
? Eileen? ? Mona tentou, mas o malvarmo apenas meneou a cabeça negativamente, em seguida pulou de seu galho sobre o nosso, aproximando-se de nós com uma carranca.
? Tem pelo menos oitenta deles no acampamento, dez fazem rondas pela floresta... e percebi também que quando eles voltam da área de Nilfder, estão sempre arranhados ou feridos. ? Eileen comentou ? Falias disse que quando eles passam perto da divisa entre as florestas, a flora os ataca, os nitries são protegidos por seu território.
? A tenda do general não é guardada. Ele deixou a tenda à poucos minutos e não retornou ? Hestia bufou ao chegar perto de nós também.
? Os gigantes, mesmo os guardas, acabam pegando no sono no meio da madrugada. O frio nos faz ficar lentos e com sono, não conseguimos evitar dormir no frio. ? Dimias comentou, chutando uma elevação no galho.
? E como está a tanto tempo na ACV de Vegahn? ? Hestia questionou.
? Não é hora para esse tipo de perguntas! ? Mona rebateu frustrada.
? E se baixarmos a temperatura da floresta? ? perguntei.
? No meio da tarde? Acha que eles não desconfiariam de nada? ? Eileen rebateu, engoli a seco minha vontade de chutá-lo para fora da árvore e vê-lo despencando na grama maior que ele lá embaixo. Mas só a imagem mental daquilo me fez sorrir. Lohan tossiu abafando uma risada.
? Ele tem razão, a floresta em que estamos é quente e úmida. Durante o verão ela só esfria naturalmente no meio da noite. ? disse, coçando o queixo quadrado ? Mas podemos mesmo usar essa ideia, baixar a temperatura mais que o normal e deixá-los mais lentos.
? E o que exatamente precisamos encontrar? ? Hestia questionou, uma vez que as instruções de Lórien não passavam de “descobrir sobre os planos de ataque dos gigantes, evitar que eles Invadam Nilfder e não serem pegos”
? Gillian deve ter um diário de bordo em sua tenta. As informações contidas nele é o que precisamos. ? Dimias explicou ? Precisamos entrar na tenda e...
? Não podemos confiar cem porcento no frio para colocá-los para dormir. ? Lohan interrompeu. ? Não que eles sejam um grande problema para nós, mas são muitos soldados lá.
Adicionando a quantidade deles ao fato de que gigantes são imunes à magia, tinha a impressão de que aquela missão era uma versão menos sombria do teste do uniforme negro. Menos sombria se não levasse em consideração que tinha a possibilidade de virarmos sopa caso fossemos pegos.
Nem mesmo a fumaça de Lohan poderia apagá-los. O poder do tenebris de causar pesadelos também não os afetava caso estivessem conscientes. Eileen e eu não poderíamos simplesmente explodir em gelo sem causar danos permanentes à floresta ao redor.
Os únicos ali que tinham uma boa chance eram Helleon e Dimias. O bruxo poderia enfrentá-los caso mudasse para sua forma draconiana, mas o número eles ainda seriam muito altos. Um dragão contra oitenta gigantes... Não sabia ao certo o que um tenebris podia fazer se realmente quisesse. Owyn gostava de manter segredos sobre os seus.
? Vamos mudar de forma. ? Lohan propôs à Dimias ? Se causarmos uma distração próxima ao acampamento, podemos dar tempo aos outros.
? Uma briga. A maioria deles se aproximará para assistir e deixaria o caminho livre até a tenta.
? Ainda precisaríamos chegar até lá. ? Mona alertou.
? Hestia pode nos colocar num pássaro e nos deixar sobre a lona da tenda, descer é o mais fácil ? brinquei, tentando amenizar a situação. ? Ou pousar próximos, assim evitamos chamar qualquer atenção!
? Mas eu precisaria ficar do lado de fora, aguardando um sinal para que possa invocar algum animal e tirar vocês de lá rápido caso seja necessário. ? Hestia comentou.
? E fêmeas de qualquer espécie costumam ter cheiros mais... atrativos ? o rosto de Dimias corou e ele desviou o olhar ? precisam mascarar isso com algum odor comum da região.
? Grama de mel? ? Hestia ponderou, olhando novamente para o chão muito, muito abaixo de nós ? A erva está espalhada por todos os lados ao redor do acampamento!
? Isso serve. ? Dimias avaliou outra vez o acampamento sob nós.
Eu me sentia um bonequinho preso no alto de uma arvore prestes a cair numa casa de tamanho normal. ? Agora esperamos até o anoitecer.
? Vou verificar os outros. ? Lohan transformou-se em fumaça e desapareceu por entre as copas das árvores seguindo a brisa que soprava. Mona não sabia o que fazer, ela olhava para nós e mordia os lábios indecisa, talvez querendo puxar assunto, mas sem graça por fazê-lo.
Soltei um suspiro pesado ao ver que ninguém diria mais nada e me sentei na beira do galho ao lado de Hestia, usando magia para me manter presa no lugar. A bruxa riu e passou um braço ao meu redor, então apoiou a cabeça em meu ombro.
? Lórien passou de “vou te proteger evitando que pegue missões perigosas” à “vai lá! Roube de um exército de gigantes imunes à magia na cara dura!” ? a bruxa riu ao imitar a voz de Lórien.
? Ela sempre foi bipolar. ? dei de ombros. Nem eu mesma esperava que ela mudasse tão repentinamente de atitude. Lórien parecia estranha ultimamente, mais instável. Algumas vezes cheguei a flagrá-la chorando em sua sala e apertando uma espécie de almofadinha.
Ela estava estressada, uma vez que Hasan a auxiliava com tudo na ACV. Precisava levá-lo de volta por tantos motivos... Sozinha Lórien não conseguia dar conta de seus deveres sem ele por perto. Aliás, de deveres que eram de minha mãe. Nikella tinha pulso firme e uma organização incomparável. Ela sabia reger tudo tão tranquilamente que chegava a ser assustador.
Minha mãe gostava de ordem, de ter limites e responsabilidade sobre seus ombros. Talvez usasse todo aquele trabalho para mostrar que podia dar conta de tudo.
Mas ela amava o que fazia.
Nikella adorava a ACV, era seu lugar favorito.
? Podiam ter nos mandado mais perto do fim da tarde! ? Evenna reclamou, tirando-me de meus devaneios.
? Não teríamos tempo para avaliar o ambiente e os gigantes. Sempre precisamos de tempo para traçar um plano com base em todos os detalhes que possamos reunir do lugar. ? rebati ? coisa que não conseguiríamos se chegássemos em cima da hora.
Evenna fez uma careta, mas Mona riu disfarçadamente.
? Mais três horas e começará a escurecer. ? Dimias avisou ? Nós não enxergamos muito bem no escuro, então poderemos descer daqui.
? Porque não se incomoda com isso? ? Hestia quis saber, o gigante piscou confuso ? Estamos planejando invadir e tomar planos de ataque de um general gigante, isso pode ser considerado traição de sua parte, então porque está ajudando com isso?
Dimias ganhou momentaneamente a atenção de todos nós. Por um instante tudo silenciou. Até mesmo o farfalhar escandaloso das folhas gigantes pareceu desaparecer, como se o vento tivesse parado de soprar para escutar a resposta.
? Estou seguindo as ordens do contratante. ? Ele disse baixo ? Se as ordens incluem de alguma forma trair um povo que me expulsou por eu não ser como eles, então que seja. Eles acham que estão acima de qualquer um por serem os maiores e poderem dominar tudo através de força e violência. ? Dimias franziu o cenho ao olhar para baixo mais uma vez ? Eles precisam aprender que até a menor das criaturas pode ser mortal quando não estão dispostas a se submeter.
Ele se afastou um pouco e com facilidade, se pendurou nos nós das cascas e escalou para dois galhos acima de nossas cabeças.
? Dimias nasceu antes do tempo, demorou a crescer. Acharam que ele não alcançaria o tamanho normal e o expulsaram quando ainda era criança por ser “pequeno demais”. Um malvarmo o levou pra Vegahn e o criou lá. ? Mona contou. ? Ele se tornou imune a sonolência do frio.
? E você? Tem alguma história de vida trágica? ? Eileen questionou, não havia maldade em sua voz... mas ele lançou um olhar para meu braço e Hestia mostrou a língua a ele.
? Pais comerciantes, carinhosos, sem problemas familiares, sem rixas com comerciantes rivais. Vida tranquila. ? Mona deu de ombros, mas não o encarou ? Entrei na ACV para aprender a lutar e conhecer melhor as adversidades dos mundos.
? Então a sua ideia é ser uma locam... comerciante? ? Hestia questionou e mona assentiu.
? Risco mínimo de perder a carga para bandidos e criaturas. ? Ela enrolou uma mecha longa do cabelo escuro para frente.
? Não é uma ideia ruim... ? Eileen ponderou, em seguida se afastou do grupo e foi sentar-se no meio dos galhos mais finos, escondidos pelas folhas.
? O que faremos até o anoitecer? ? Hestia quis saber.
? Vamos repassar os planos até que saibamos o que tem que fazer sem correr risco de pôr alguém em perigo. ? Mona decidiu.
Hestia revirou os olhos, porém eu não fui contra. Era a melhor coisa a fazer.
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Horas mais tarde, quando a floresta já estava mergulhada num breu e os piados estridentes de uma coruja gigante, pousada a alguns galhos de distância arrepiava minha coluna, era o momento de colocar o plano em prática.
Apertei com cuidado o frasco com prata moída e pó de flores de cicuta, uma mistura que manteria um gigante sem conseguir voltar ao seu tamanho grande por no mínimo meia hora. Cada um de nós tinha um daqueles nos bolsos, preparado e entregue por Dimias.
Ele não estava brincando quando disse que não suportava sua espécie.
Dimias e Lohan desapareceram poucos minutos antes para ir até o acampamento e causar uma distração. Helleon e Evenna foram vigiar as fronteiras da floresta juntos com o segundo grupo e nos alertar sobre qualquer movimentação estranha.
Eileen e eu nos posicionamos na beira do galho e com cuidado para não exagerarmos, espalhamos uma onda de névoa fria pelo ambiente. Por ser uma área muito grande, demorou cerca de meia hora, mas baixamos gradativamente a temperatura da área central do acampamento militar.
Hestia soltou um assobio estridente, semelhante ao piado da coruja que quase me fez ter um infarto momentos antes, então a mesma voou em nossa direção, pousando ao nosso lado no galho. Os olhos da coruja estavam completamente enevoados.
Domada.
? Vamos? ? Hestia subiu primeiro, escalando a asa da ave e montando em suas costas, estendeu a mão para mim. A coruja tinha o tamanho de um grifo muito, muito grande! Mona e Eileen subiram por último.
Os olhos de Hestia ficaram num vermelho brilhante enquanto a bruxa sussurrava algo para a coruja. O animal silencioso, voou do galho, fazendo círculos ao redor do acampamento para que pudéssemos avaliar o estado dos gigantes ali.
No terceiro rasante sobre as tendas, notamos uma briga se formando. Dimias e Lohan estavam lá, tão grandes quantos os outros. Dimias rugia, gritando algo para Lohan, mas o tenebris não parecia nada a criatura pacífica que conhecia. Ele avançou para Dimias e os dois começaram a lutar. Nisso, os gigantes no meio do acampamento se aproximaram deles e começaram a gritar, torcendo por um ou outro como animais vendo uma luta.
Hestia fez a coruja pousar escondida atrás de um arbusto, que mais parecia uma árvore de um tamanho normal nos outros mundos. A bruxa não desceu. Ela permaneceria pairando com a ave caso precisássemos sair rapidamente dali. Apenas Eileen, Mona e eu entraríamos na tenda do general, e torcia para ele não ter voltado sem que percebêssemos.
O que era quase impossível, afinal, era um gigante!
O que devia ser alguns metros do arbusto até a tenda, se tornou uma longa corrida como se tentássemos alcançar uma montanha longínqua. A única coisa agradável que me mantinha correndo era o ar gelado que circulava o acampamento, deixando-me mais alerta.
A sensação de pressão sobre minha magia aumentava a cada passo. Mesmo que ela talvez não servisse de grande coisa caso precisássemos enfrentar um gigante, ou mais de um, não podia deixar de me incomodar com a dormência.
Ao alcançarmos a beirada da tenda, quase chorei de alívio, ao notar que todas as outras tendas estavam silenciosas. Os gigantes ou tinham caído no sono pela temperatura, ou estavam entretidos demais com a distração de Lohan e Dimias para se preocuparem em fazer a vigilância noturna da tenda do general.
Uma fogueira lembrando-me uma piscina metálica de fogo iluminava a área em que estávamos, por sorte, andávamos tão perto do chão que ficamos protegidos da luz vinda dela por mais de três metros acima de nossas cabeças.
? Acho que é melhor alguém ficar e vigiar o movimento. ? Mona alertou ? Mesmo que possamos ouvir os passos, é mais fácil vê-los vindo de longe!
? Tem algo que eu preciso procurar lá dentro. ? disse sem querer ficar para trás. A chance de o fragmento estar com ele num acampamento de guerra era pequena. Mas também tinha uma chance dele já saber que os fragmentos estavam sendo recuperados, uma vez que a notícia da morte de Detéria e o roubo de objetos de valor de seu cofre se espalhou por todos os mundos.
? Eu posso vigiar. Aproveito para manter a temperatura baixa! ? Eileen se ofereceu. Não deixei de perceber um olhar preocupado em nossa direção ao se afastar para perto dos pés da fogueira.
Um péssimo lugar para um malvarmo em “miniatura” estar. Uma brasa que pulasse de lá, seria como uma bola de fogo do céu caindo sobre ele.
? Vamos rápido, a briga não deve durar muito e não sabemos onde Gillian está e quando pode voltar! ? Mona alertou. Ela passou pelo vão aberto das cortinas que fechavam a tenda e entrou. Entrei em seguida, procurando primeiro pela presença e cheiro de alguém ali. Ao notar que não parecia ter um ocupante, aliviada, passei a reparar no lugar e procurar por possíveis esconderijos.
A tenda era pelo menos três vezes maior que as dos outros soldados, obviamente pela posição de Gillian. Poucos lampiões iluminavam o ambiente que de simples não tinha nada. Uma cama imensa posicionada atrás de duas cortinas ostentava almofadas douradas e vermelhas, uma mesa ao lado dela tinha comida intocada e atrás de outra cortina maior, havia um escritório escondido.
Porém o que me chamou atenção, foi um forte aroma de ervas e algo... passado vindo detrás de outra cortina mais no fundo da tenda. Era como frutas velhas, porém mais intenso.
? Vou vasculhar o escritório. Tem alguns papéis por ali ? Mona alertou. Assenti sem saber se ela tinha visto o movimento ou não, então segui silenciosamente até aquela divisória.
A primeira coisa que notei foi a poça amarronzada no chão, que ficava esverdeada mais perto de onde aquele líquido pingava lentamente de cima da mesa, criando fios pegajosos que levavam muito tempo para chegar ao solo. Podia ver as pontas de galhos saindo pelas bordas da mesa e franzi o cenho. Aquilo não me parecia certo.
Me aproximei de uma cadeira encostada no tampo e sem muita dificuldade, consegui escalar o encosto de madeira trançado até chegar à superfície plana da mesa.
Em choque com o que encontrei ali, desviei o olhar e tentei interromper o fluxo de ar que entrava em meu corpo. A tigela do tamanho de uma piscina com ervas aromáticas fortes mascarou o cheiro do corpo o suficiente para que eu não o percebesse o que tinha de errado ao entrar na tenda.
Sem ter para onde fugir, olhei cadáver mais uma vez e minha pele se arrepiou. Ela fora pregada à mesa e morreu lentamente, muito lentamente. A pele que outrora deveria ter um tom marrom terroso estava cinzenta, drenada do sangue verde vivo, o mesmo que secava no chão sob a mesa.
A nitrie fora esmagada. Não de uma só vez, ela foi lentamente torturada. Gillian não poupou na crueldade ao fazê-lo. A fêmea teve os pequenos galhos que brotavam de seus braços arrancados um a um, o mesmo aconteceu com os brotos ao redor de sua cabeça e nas raízes dos pés.
Ela morrera recentemente pela perda de sangue causada por perfurações feitas pelos próprios ossos.
Seus olhos que antes eram lindos orbes verdes e brilhantes, foram furados com uma lâmina larga, já que haviam marcas de corte ao redor deles.
Eu queria estalar os dedos e retornar seu tempo.
Dar a ela uma chance de fugir... mas aquilo implicaria em mais do que salvá-la. Eu não teria forças para regredir tanto tempo. Colocaria a vida de meus colegas em risco.
Queria me aproximar, espalhar gelo por seu corpo e destruí-la, para que tivesse no mínimo, uma fuga daquilo. Sabia que seu espírito havia partido, mas era errado deixar seu corpo ali. Pelo menos na morte estava livre daquele tormento.
Porém gritos abafados vindos do outro lado da divisão da tenta me fizeram correr para a beirada da mesa e descer escorregando pelo encosto da cadeira. Disparei para o outro lado, procurando por Mona e o som abafado de seus gritos. Espalhei as sombras pela barraca com dificuldade, meu poder tinha uma forte sensação de dormência ali.
Uma droga de mundo resistente a magia!
Os gritos mudaram para um gemido sofrido e um soluço após o som de pancadas fortes, então a achei.
Mona tentava se arrastar para sair debaixo da mesa principal, onde vimos os documentos espalhados ao entrar. A elfa tinha sangue escorrendo dos lábios e nariz e parte de seu corpete estava rasgado.
Ao me aproximar mais um passo, vi um homem se aproximando dela, agarrando seu tornozelo e a puxando para trás. Mona olhou diretamente para mim com uma súplica nos olhos. Suas unhas deixaram marcas no chão conforme era arrastada.
A dormência foi substituída por um ódio gélido, letal.
Parei de ligar para a sensação dolorosa de usar magia naquele mundo.
Então espalhei a escuridão e fiz o tempo congelar.
Cada passo adiante, movida pela raiva que me servia de combustível, foi leve e fluido enquanto atravessava aquele véu atemporal de sombras e fragmentos de luz. O tempo não tinha apenas congelado. Sombras sussurrantes roçavam em meus ombros, murmurando coisas, dizendo o que eu podia ou não fazer com o gigante encolhido que feria Mona.
E eu permiti que as ideias entrassem. Com um sorriso que não era meu, apertei entre os dedos o frasco com prata e cicuta e me aproximei.
Sem deixar o tempo escapar por meus dedos, soltei suas mãos dos tornozelos da elfa e a afastei um pouco, não conseguiria manter o fluxo parado por muito tempo ali.
Em seguida, virei-me para o gigante e avaliei o sorriso perturbado em seu rosto com uma frieza desconhecida até então por mim. O rosto pálido com as bochechas fundas e olhos escuros encaravam o ponto em que Mona esteve, seus cabelos na altura dos ombros ainda se mantinham no ar ao redor do rosto pelo movimento repentino ao lhe dar um puxão.
Se ele não gostava de minha mãe por ela ter matado o exército de seu pai... bom. Ele me odiaria também.
Só não ia durar tanto para cultivar o sentimento.
Abri o frasco com o veneno e enrolei meus dedos em seus cabelos, preparada para o que viria no segundo seguinte, então soltei o ponteiro tempo outra vez.
Mona gritou atrás de mim, mas seu grito foi interrompido por provavelmente surpresa de não estar mais sendo arrastada.
O gigante desequilibrou para trás puxando as mãos vazias e continuou caindo com mais violência quando minha palma aberta com o frasco de pó esmagou seu rosto.
Gillian sem entender nada arfou e soltou um som engasgado, tentando levar as mãos aos pedaços de vidro que se enterraram em sua pele, criando trilhas de sangue que escorriam para o chão. Ele fez força para se levantar, sem entender o que estava acontecendo. O apertei no chão, enterrando meu joelho em seu estômago, isso o fez puxar o ar com mais força. Puxando também mais do pó para seus pulmões.
Sorri ao perceber que sua pele começara a ficar vermelha e seus olhos arregalados tinham pontos de sangue. Mona atrás de mim, se encolheu contra o pé da mesa e cobriu a boca com as mãos. Eu podia vê-la sem me virar.
? Como... chegou... ? Ele tossiu outra vez, tentando sem sucesso soltar as mãos para me atacar. Gelo envolvia seus pulsos, prendendo-o ao chão.
? Onde está o fragmento. ? perguntei. O gigante cuspiu sangue em meu rosto.
Não lhe dei um aviso. Uma advertência.
Enterrei minhas garras acima de sua clavícula, rasgando a pele, agarrando o osso e comecei a puxar.
O gigante gritou em desespero, debatendo o corpo sob meu joelho.
? Onde está o fragmento. ? questionei novamente.
? Vadia! Vadia fria e imunda! ? Ele gritou entre os grunhidos de dor.
Não era o suficiente então.
Lhe dei um sorriso dócil e puxei o osso, partindo-o com um estalo prazeroso que fez um arrepio passar por meu corpo ao sentir as sombras se agitando.
O gigante urrou, não queria que alguém entrasse para atrapalhar. Com a mão metálica livre, enfiei as garras em sua boca e segurei sua língua, rasgando-a ao meio. Gillian estremeceu e grunhiu de dor. Veias saltavam em suas têmporas enquanto ele se engasgava com o próprio sangue.
? Última vez. Onde. Está. O fragmento. ? sussurrei cada palavra.
O gigante balbuciou algo entre o borbulhar do sangue empoçando em sua boca.
? Perdeu a língua? ? zombei. Ele virou os olhos na direção de uma gaveta no alto da mesa. ? Mona?
A elfa ainda trêmula, mas sem que eu precisasse mandar, se levantou e correu até a primeira gaveta, a puxou e se pendurou nela, então subiu por elas até a última. Ao abri-la, gritei:
? É um cilindro de vitrino, com mais ou menos vinte centímetros e um pedaço de papel dentro. Deve ter uma carta também. ? Ela assentiu e entrou na gaveta. O gigante me olhava com pavor, suor escorria por seu rosto e ele tremia, soltando grunhidos doloridos. Eu ainda retorcia aquele pedaço de osso de sua clavícula entre os dedos. ? Porque guardou aquilo? Se a odiava, porque não o destruiu.
O gigante balbuciou algo, sua língua inchada e partida tremia.
Estalei a língua.
? Uma pena, jamais saberemos!
? Achei! ? Mona avisou, sacudindo o vidro com o fragmento e a carta. ? Achei o diário de bordo também. ? Ela empurrou o livro imenso sobre o tampo da mesa e o abriu. O gigante voltou a se debater, urrando alto.
Afundei as garras do outro lado, partindo a outra clavícula, olhando com atenção seus olhos revirarem de dor.
? Algo interessante? ? perguntei.
? Eles... planejam invadir a floresta dos nitries amanhã! Vão usar bombas de líquido incendiário de dragão! ? Mona murmurou, passando mais páginas.
Aquilo era tudo que precisava saber.
? Qual é a sensação? ? perguntei ao gigante, afundando mais meu joelho em seu peito ? Essa, de ser tão... pequeno? Insignificante? Não poder fazer nada pra se defender? ? sorri para ele ? Se você pudesse, me esmagaria entre os dedos, não é? Mas você não pode! Está preso nessa forma, sem ser você... tudo porque queria ver com mais clareza a dor no rosto dela quando a ferisse, estou certa? ? Gillian engasgou e tossiu mais sangue ? Um gigante... morrendo como um humano. Esmagado pelas mãos de uma garota!
? Nhmm ? ele tentou falar, ódio reluzia em seus olhos por fim. Bom, não queria matar alguém com um olhar de desespero.
Mudei de forma, deixando que minha aparência feral se soltasse da prisão de minha pele. Apertei sua cabeça contra o chão lentamente até o ponto em que ela estourou sob a pressão, espirrando sangue e massa encefálica para todos os lados. As sombras e minha forma feral desapareceram no segundo seguinte.
Mona vomitou por cima dos papeis. Depois desceu da mesa pelo outro lado.
Afastei-me de seu corpo. Alguns passos de distância me deram uma visão mais ampla do que tinha feito, o sangue esfriando em minhas mãos tinham uma sensação horrível e mesmo que fosse merecido... mesmo que ele tivesse feito pior com a fêmea de nitrie e sabe deuses com quantos outros, meu interior se retorceu com a cena.
? Precisamos sair! ? Eileen entrou na tenda e correu para nós ? Alguns estão vindo pra cá! Sentiram o cheiro de... ? suas palavras morreram ao ver o corpo de Gillian caído no chão com o crânio esmagado.
? Kiara? ? Ele chamou, porém eu continuava congelada encarando o corpo do gigante. Mona se aproximou com cuidado e tocou meu ombro com a mão quente.
? Eu faria o mesmo por você. ? Ela sussurrou ? protegeu sua equipe temporária, está dentro das regras, Kiara! Está tudo bem!
Assenti.
Senti o braço de Eileen passar em volta de minha cintura e ele me encarou por um segundo, sem julgamento, sem medo. Então nos puxou em direção à uma pequena fenda atrás da tenda. Ao sairmos para o ar frio da noite, ele assobiou alto.
Sentimos mais que ouvíamos os passos dos outros gigantes se aproximando, tremendo o chão como um terremoto. O som estrondoso de suas vozes e o barulho das armas tilintando presas em suas bandoleiras pareciam altos como sinos de um templo.
Um piado estridente nos fez pular assustados. Hestia mergulhou do meio das árvores sobre a coruja marrom, algo como uma rede de fios brilhosos estava preso nas patas da coruja e conforme ela vinha em nossa direção, aquela rede se abriu com vento.
“PULEM!” A voz de Hestia soou alta e clara em minha mente. Sem questionar, pulamos para cima e fomos capturados por aquela rede feita de teias de aranha sem que a bruxa precisasse pousar. Nem um segundo depois que alcançamos as copas das árvores, os gritos dos gigantes estremeceram o acampamento.
Capítulo 7
Estava sentada entre as pernas encolhidas de Lohan. O tenebris me mantinha envolvida num abraço desde o momento que pousamos num ninho de pardal minutos atrás. Os braços quentes e firmes ao meu redor traziam uma sensação de tranquilidade, algo que eu havia perdido ao me descontrolar e torturar Gillian até matá-lo.
Aquele crânio esmagado jamais sairia de minha mente.
? Você é gentil demais, Kiara. ? Lohan comentou baixo ao perceber meu encolher de ombros quando ouvimos Mona contanto aos outros o que havia acontecido dentro da tenda. Ela contava cada detalhe enquanto Evenna a curava, os hematomas e cortes deixados pelos golpes do gigante.
? Eu não me arrependo ? rebati rapidamente, pressionando mais as costas contra seu peito, sentindo o coração batendo ritmado e calmo, como um tambor lento das músicas dos bruxos.
? Sei que não. Não disse que você era mole, disse que é gentil. Uma pessoa gentil vai fazer justiça, e mesmo assim se pegará imaginando mil e uma outras formas de ter resolvido o problema. ? Ele suspirou e apoiou o queixo na curva de meu pescoço. ? Você não fez menos do que ele merecia. Eu não teria feito tão bem. ? Lohan esfregou as mãos em meus braços e deu um beijo em minha têmpora. Estava tão cansada! Usar magia temporal ali fora mil vezes mais cansativo do que todas as vezes em treinamento.
Todas as vezes juntas.
? Porque me sinto tão mal? ? mesmo que o tenebris tivesse nos limpado com magia assim que pisamos ali, a impressão era de que eu estava coberta com seu sangue, com toda a podridão de suas mãos e tudo de mal que ele havia feito. Queria entrar numa banheira de água quente até que minha pele ardesse.
Até que aquela sensação saísse.
? Hasan me disse que eu teria que aprender a lidar com o impulso de fazer coisas ruins as vezes. Mas não foi só isso.
Lohan suspirou e puxou minha cabeça contra seu peito.
? É mais difícil aceitar que fez algo justo, mesmo de maneira cruel, do que acreditar nas boas intenções por trás da maldade. Você podia ter optado por fazê-lo de uma maneira limpa. Rápida. Mas ele precisava sentir na pele o que fez com os outros primeiro. ? Lohan explicou ? Vai se sentir mal toda vez que matar alguém dessa maneira, pois não é o que a sua natureza pede. Você não é cruel, embora saiba ser quando é necessário, como foi necessário com ele. Então, Kiara, pare de se julgar por isso, tá bem?
Assenti.
Ele tinha razão, se Gillian tivesse alguns minutos a mais com Mona, ele não hesitaria em feri-la ainda pior, não se controlou com a fêmea de nitrie também. Ele sequer merecia aquela angústia em meu peito.
? O que vamos fazer a seguir? ? Mona questionou, lembrando-me que estávamos todos ali, espalhados sobre o galho da árvore à beira da divisa entre a floresta dos nitries e o território dos gigantes. Ainda estávamos tensos pelo que acontecera no acampamento. A briga fez com que eles se agitassem e mesmo o frio que conjuramos não foi o bastante para mantê-los letárgicos.
Por sorte, muita sorte nenhum deles voltou até a tenda do general antes que tivéssemos resolvido nossa pendência com Gillian.
O desgraçado saiu em sua forma gigante, e deve ter retornado pequeno. O porquê jamais saberíamos, pois se eles tivessem desconfiado que estavam sendo vigiados, não teriam deixado a tenda sem guarda.
Ou superestimavam seu líder, ou subestimavam seus espiões.
Os outros ainda me olhavam, aguardando uma resposta para a pergunta da elfa. Eileen, no entanto, olhava feio o tenebris e seus braços ao meu redor. A irritação com sua pose quase dominante me fez esquecer por um momento do que havia feito com Gillian.
? O diário mencionava um ataque amanhã. ? comentei ? Pela gritaria ter sido contida no acampamento ao levantarmos voo, aposto que eles tinham um segundo no comando, e é bem provável que os planos não tenham sido alterados pela morte de Gillian.
Os outros assentiram e murmuraram em concordância.
? Acho que os nitries estariam dispostos a nos ouvir ? disse Evenna, avaliando com cuidado a floresta ao nosso redor. É claro que eles poderiam nos ouvir se quisessem, isso se não estivessem esperando a chance de aparecer e dizer um “olá!”
? Vamos até eles então. ? sussurrei, levantando-me junto com Lohan.
Torcia, para o bem de todos, que planos começassem a surgir nas mentes de todos nós.
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O Vale da Lua era lindo e aconchegante, tinha um toque de magia pura e antiga que nos fazia querer ficar lá para sempre. Vegahn e seu magnetismo branco nos dava uma calmaria sem igual e um sentimento forte de nostalgia. Os céus eram deslumbrantes, tão vivos que passavam a impressão de estarmos num paraíso.
Mas a floresta de Nilfder...
Deuses! A floresta fazia meus olhos lacrimejarem.
Árvores gigantescas com seus troncos cobertos de um musgo verde, vivo e florido, eram circuladas por escadarias feitas em cipós e madeira. Com a cabeça erguida a ponto de meu pescoço doer, observei encantada as pequenas janelas, portas e sacadas entalhadas por todas as partes das árvores, desde os troncos aos galhos mais finos. De dentro, luzes douradas ondulavam iluminando a floresta, banhando o verde daquele lugar, reluzindo em ouro.
Insetos gigantes fluorescentes voam baixo e alto ao nosso redor e de vez em quando ouvíamos os distantes rangidos de troncos se movendo. Nitries se movendo. Alguns animais pastavam ao redor das árvores, outros dormiam aninhados entre as raízes expostas, criando ninhos perfeitos para cervos e antílopes.
Lohan ao meu lado, com a boca aberta, cutucava meu ombro. Ao olhar para o alto onde ele apontava, me dei conta de que as folhas nas copas das árvores também tinham um brilho próprio, como se na trama delas tivessem sido injetadas grandes doses de luz solar.
Mal podíamos ver a escuridão da noite pelos poucos espaços em que víamos o céu. Nilfder era uma fonte de luz e magia!
Porém o que me fez estacar na estrada e arrancou exclamações de admiração de meus companheiros, foi perceber que aquelas tocas luminosas eram habitadas por todos os tipos de criaturas “pequenas”.
Pessoas de todos os tamanhos e raças nos observavam curiosos de suas devidas janelinhas conforme avançávamos pela estrada de cascalho. Fadas, humanos, elfos e feéricos se empoleiravam para nos ver chegar. Eles não pareciam temerosos ou irritados com nossa invasão.
Havíamos entrado nos limites da floresta mais de uma hora atrás, não conseguimos encontrar nenhum nitrie para pedir permissão, e não podíamos esperar também. Então arriscamos depois de uma votação em que a maioria optou por entrar.
Tinha que supor que alguma criatura dali tivesse visto a outra metade de nossa equipe e soubessem que não estávamos ali para causar mal. Afinal, nenhum dos que vigiavam os limites foi atacado pela flora quando monitoravam a floresta mais cedo.
Pensei em perguntar sobre o líder dos nitries, mas antes que pudesse abrir a boca, uma ninfa saltou de uma árvore maior, batendo suas asas longas semelhantes folhas de outono cintilantes. Ela pousou diante de nós com graciosidade, deixando as asas caírem atrás do corpo, cruzando-as como um manto, então fez uma breve mesura e sorriu, encarando-nos com os olhos grandes e negros:
? Bem-vindos a Nilfder, caçadores de gigantes! ? Ela estendeu a mão. ? Diran’giath já os aguardava! Sigam-me!
Lohan sacudiu a mão na frente de meu rosto, tirando-me do choque em que a beleza etérea da ninfa me deixou. Ela ainda sorria, mostrando um pouco os dentes retos e curtos, os cabelos negros escorridos caiam ao redor do rosto como um véu e pequenas flores enfeitavam seus cabelos, assim como seu vestido nas mesmas tonalidades que suas asas.
Dei uma olhada para trás, para as equipes que aguardavam atentas minha decisão, então sem hesitar, segui a ninfa até a árvore da qual ela saiu. A subida seria longa e mesmo cansada, não me importava! Queria ver como seria aquela cidade lá de cima.
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Duas horas por degraus! Esse seria o tempo que teríamos levado para chegar ao topo pelas escadas se tivéssemos subido desde a base.
Na segunda volta, Mona começou a chorar, Evenna e Dimias olhavam para cima desanimados, Hestia, Helleon e Lohan já estavam em algum lugar lá em cima nos esperando, sem paciência, foram voando. Por fim, sabendo que não aguentaríamos subir, Gaila permitiu que eu abrisse um portal até a penúltima volta, era onde a barreira contra a magia se limitava.
Para alívio de todos, eu ainda conseguia usar magia, mas estava em meu limite. Queria dormir!
Mas ainda precisava ir até o conselho e ver como fariam com os gigantes, uma vez que o contrato não especificava que deveríamos neutralizá-los e sim descobrir os planos de ataque.
Como tinha imaginado, a visão da floresta do alto era simplesmente fantástica! Quase perto da copa da árvore, podia ver com clareza a trama de luz nos galhos inferiores e das plantas e insetos luminosos. Tudo se movia, a vida pulsava ali em forma de luz.
Haviam criaturas de todos os mundos vivendo em Nilfder: fadas de Mairdok, humanos, silfos, elfos... criaturas que jamais havia visto antes perambulavam também sobre os galhos como se esses fossem ruas, migrando de árvore em árvore para conversar com outras criaturas e nos observarem curiosos.
? O conselho dos anciãos sempre se reúne em Diran quando se trata de assuntos delicados. ? Gaila comentou ao nos guiar pela última volta das escadas, alcançando a copa. Minha equipe estava ali, sentados nos degraus conversando, nos esperando com as mais deslavadas expressões de paisagem, teria chutado Lohan se ele não tivesse se transformado num gato e subido em meu ombro, Hestia e Helleon se juntaram aos outros atrás de nós.
A princípio, não entendi completamente o que a ninfa quis dizer com “sempre se reúne em Diran”, Diran’giath não era o líder dos nitries?
Queria questionar sobre aquilo, saber se tinha entendido errado, porém as palavras desapareceram de minha mente ao entrar no salão. O espaço onde a árvore terminava era aberto, grande como o saguão do prédio principal de aulas, tinha galhos saindo de suas extremidades, curvando-se para cima, criando uma abóbada de galhos trançados e folhas luminosas sobre nós.
Aquela árvore deveria ser pelo menos duas vezes maior que a árvore do fogo.
No centro daquele salão, rodeando uma espécie de segunda árvore menor que ocupava uma grande área do local, percebi com espanto que o conselho era formado por várias criaturas mágicas.
Desde um fauno velho com fadinhas adormecidas em seus imensos chifres retorcidos, uma silfa de cabelos prateados e olhos escuros, que mesmo mantendo uma aparência jovem, podia lhe sentir o peso dos anos sobre os ombros estreitos. Uma pucca... Porém a atenção deles não se voltou para nós.
Ainda olhavam para o tronco que rodeavam.
Sem entender bem o que estava acontecendo, uma vez que esperava encontrar pelo menos um nitrie ali, olhei em dúvida para Gaila, mas ela havia se curvado levemente na direção do tronco.
? Sempre bem-vindos, venox! Que a brisa das florestas ancestrais lhes guiem! ? a voz áspera e gutural saiu o que parecia ser uma toca larga de esquilo no tronco, fazendo-nos olharmos espantados com mais atenção. Era um rosto. Um rosto elevando-se a partir do tronco polido no qual pisávamos.
Estávamos no corpo de Diran’giath.
? Mãe das águas! ? Hestia murmurou, agarrando meu braço.
? Aproximem-se. ? Diran pediu.
Ainda surpresos, nos aproximamos com cuidado, pelo menos eu estava nervosa por pisar no corpo de um nitrie vivo.
Se bem que... haviam casas dentro de seu corpo!
Deuses!
? Diran’giath ? tentei não gaguejar. Aquela criatura deveria ser tão velha quanto o continente, quanto aquele mundo. As criaturas nos avaliavam com desconfiança conforme nos aproximávamos. É claro, muitos deles estavam na lista de nossas “caças” embora talvez não entendessem que julgávamos os que eram monstros por suas ações, e não por raça.
? O vento nos trouxe uma informação... ? ela sussurrou lentamente ? Gillian está realmente morto? ? Diran questionou.
? Sim senhora. ? respondi evitando um encolher de ombros.
? Entendo... e sobre seus planos em respeito à Nilfder? O que podem me informar?
Ao contar sobre o ataque a floresta que Mona descobriu no diário de bordo e a respeito do fogo de dragão, o conselho ergueu a voz.
Todos falando ao mesmo tempo, discutindo nervosos com a possibilidade e assustados também. A única barreira deles contra os ataques dos gigantes, era a fronteira de árvores espinheiro que fechavam os galhos com espinhos venenosos. Sua madeira era tão dura que machados não eram capazes de cortá-la.
Mas fogo de dragão levaria o território inteiro às cinzas.
Aquelas lindas florestas vivas, cheias de criaturas mágicas pacificas... uma guerra vinda apenas de um lado, tudo por egoísmo dos gigantes?
? Tem algum outro motivo para o ataque além dos animais que fogem para cá? ? quis saber, a discussão do conselho cessou imediatamente e eles me encararam como se eu tivesse perguntado uma bobagem. Talvez fosse.
? Os gigantes acham que todos os territórios os pertencem, não é apenas pelos animais que eles caçam por diversão! Não há escassez em seus territórios! ? O ancião fauno bateu os cascos no chão ? Eles querem dominar cada parte, não aceitaram quando mantivemos nosso território fechado ao controle de Gillian. Depois que os soberanos dos Doze se foram, eles não respeitam mais os acordos!
? E o rei? ? Mona questionou ? A autoridade máxima compactua com isso? Não controla seu exército?
? Não há um rei desde que Susano e Nikella o eliminaram junto com o exército Gilliat. Calarrar e Gaaris deixaram seus postos vazios, mas Calarrar tinha seu filho, Gillian. Já o rei não, então os regentes se dividiram em pequenos conselhos e até hoje só resolvem assuntos burocráticos das maiores cidades. ? Ele bufou ? o restante de nós foi abandonado a própria sorte, fazendo-nos nos juntarmos também.
? E aqui estamos. ? A pucca grunhiu ? a maioria nessa sala perdeu seus territórios, e como a floresta de Nilfder tem uma área grande o suficiente, fomos acolhidos por Diran’giath.
? Entendo, desculpe. ? senti meu rosto queimar pela menção aos meus pais.
? Quanto ao ataque...
? Nosso pedido foi por investigação, venox. ? disse Diran suavemente, sua voz áspera como o ranger de galhos ao vento era pacífica e não transmitia a mesma irritação dos outros ? Agradecemos pelo serviço, vocês serão pagos, estão liberados de sua missão.
? Posso ficar e ajudar com o dia de amanhã. ? me voluntariei, dando um passo à frente. Não me ofereci como caçadora. Não envolvi as equipes nisso, porém eles se aproximaram mais e Mona emendou:
? Nós todos podemos ajudar, não temos ideia de como, mas se precisarem de ajuda para detê-los, estaremos aqui!
? É arriscado, principalmente se eles pretendem usar fogo de dragão. Muitos de vocês são malvarmos ? Gaila advertiu. Ela era uma anciã também!
? Temos um dragão bruxo na equipe. ? Helleon deu um passo à frente e sorriu, fazendo uma pequena reverência. ? Ele sabe lidar com fogo de sua própria espécie.
? Não os impediremos de ficar e ajudar, caso queiram realmente. Seremos eternamente gratos por esse auxílio! Mas saibam que nossas únicas defesas partem da magia térrea de nossos povos, e somos poucos. Eles são imunes à magia.
? O que impede os gigantes de entrarem são as árvores com espinhos venenosos, certo? ? questionei.
Os anciãos assentiram.
? Eles não têm alianças com outros povos, não os consideram dignos. Então não podem pedir que outros entrem e travem uma luta por eles.
Lohan e Helleon me lançaram olhares avaliativos, talvez o breve sorriso que dei possa tê-los assustado, ou talvez tenham conseguido ver as ideias tomando forma em minha mente.
? Acho que tenho uma ideia de como ajudar a manter esse lugar livre deles. ? comentei.
? Conte-nos seus planos então, caçadora. ? O fauno pediu.
Então contei o que pretendia fazer com o auxílio de meus colegas de equipe e o suporte dos outros.
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Após quase uma hora de conversa, consegui convencer os conselheiros que meu plano daria certo, e que, com sorte, não precisaria haver nenhuma luta. Sequer o fogo de dragão seria usado. Pouco depois da reunião, Gaila nos levou para comer em uma espécie de cozinha na árvore ao lado, que alcançamos através de uma ponte a mais de noventa metros de altura.
Senti inveja de Hell e Hestia, já que eles não precisavam se preocupar com a altura.
? Ainda temos algumas horas até o amanhecer. Poderão descansar aqui! Fica mais fácil de alcançarem as raízes ao amanhecer ? Gaila comentou ao nos guiar para um quarto escavado em Diran, próximo à base de seu corpo.
O fauno havia levado os rapazes para outro quarto, eles mantiveram as regras de separação da ACV, pelo que Gaila comentou, por respeito às nossas “tradições”.
? Agradecemos por isso. ? Mona lhe deu um sorriso curto e a ninfa saiu em seguida para que pudéssemos descansar. O quarto não era muito grande, tanto que Evenna e Samin ficaram no quarto ao lado. E o aposento deveria pertencer a fadas, pois as camas redondas parecidas com ninhos, eram feitas de fibras de bétulas cobertas por pétalas de flores enormes, o que deixava o ambiente com o aroma de um campo em pleno dia de sol.
Hestia entrou no quarto maravilhada, tocando cada um dos brotinhos de luz que crescia pelas paredes internas. De barriga cheia como uma boa bruxa e cansada por usar magia, para controlar a coruja gigante, caiu numa das camas fechando os olhos mais rápido do que imaginei ser possível.
Por algum motivo, comecei a nos imaginar como insetos parasitando o corpo da nitrie e precisei de força de vontade para me livrar da imagem mental que aquilo me proporcionou.
? Eles bem que podiam ter nos oferecido um banho, uma banheira com água quente cairia muito bem! ? Mona sussurrou ao tirar sua bolsa e colocá-la no chão ao lado de sua cama, ela testou a maciez de seu “ninho” e pela cara de surpresa, parecia ser mais confortável do que esperava. Mona teve o rosto curado, mas ainda vestia as roupas sujas do momento que enfrentara Gillian.
Sentindo-me um pouco culpada por aquilo, estalei os dedos usando o que Hasan me ensinara sobre manipular a magia para limpá-la e trocar suas roupas por um conjunto de pijamas verde-limão. Ela ergueu as sobrancelhas.
? Obrigada, acho! ? ela crispou os lábios para a cor das calças macias de veludo. ? Truque útil... especialmente vindo de alguém que até alguns meses não apresentava um pingo de magia.
Mona ergueu os olhos escuros para mim ao sentar-se de pernas cruzadas em sua cama emprestada. Um brilho podia ser visto em seus olhos, mas não era curiosidade.
Era como se ela soubesse exatamente o que eu escondia.
? Não é incomum tomar poder dos outros. ? encarei minhas unhas ao mudar de roupa também. Ainda tinha a sensação do sangue de Gillian sob elas. ? matamos muita gente no navio dos piratas.
? Sim... imagino que deve ter sido fácil conseguir matar um mago com esse nível de magia num navio de piratas. ? Mona desviou os olhos dos meus para observar os detalhes do lugar. ? Queria te agradecer... por me ajudar lá.
? Não precisa agradecer. ? respondi, torcendo para que aquela conversa não continuasse. Se ela insistisse, começaria a cantar para colocá-la num sono cheio de sonhos divertidos.
Mona alcançou sua bolsa e tirou de dentro o cilindro de vitrino e a carta fechada. Um frio passou por minha espinha, pois havia me esquecido completamente daquilo ao matar Gillian. A elfa os estendeu em minha direção, relutante, me aproximei e os peguei.
? Estou na ACV a dezesseis anos. ? Ela comentou ? encarando o cilindro até que eu o coloquei em minha bolsa sem o olhar outra vez. Mona então me encarou ? Sabia que sua mãe foi minha mestra de combate? Ela era assustadora quando usava adagas.
Pisquei incrédula.
? Não sei do que está falando ? disse mantendo a voz firme. Mona abriu um sorriso sarcástico.
? Você é a cara dela, Kiara! ? a elfa riu ? Talvez não a boca, a sua é mais cheia, seu rosto é mais oval também... e esse cabelo eu não entendo! Susano tinha o cabelo escorrido também.
Meu interior esfriou.
? Eu...
? Eu os detestava. Até pouco tempo eu não entendia como podiam achar o que eles fizeram como uma boa ação. ? Ela deitou na cama e apoiou o queixo com o pulso ? Meus avós tiveram que voltar para Amantia, já que minha tia vivia lá com dois filhos. Eles não quiseram deixá-la sozinha. Eu só os conheci quando já tinha cinco anos, por causa das aberturas dos portais. E depois de um fim de semana, eles se foram outra vez. Eu tinha raiva daquela limitação, pois minha mãe sofria com saudades dela, e mesmo assim ela dizia que era para o nosso bem.
“Demorei a entender o que eles queriam dizer com aquilo... até começar a participar ativamente das missões ano passado e ver a quantidade de problemas que tínhamos para resolver. ? Mona soltou um suspiro ? vários contratantes diziam a mesma coisa “ah, quando eles eram vivos, só tínhamos problemas com feras selvagens. Agora os bandidos sem medo voltaram para ficar!” Não achava sua mãe uma mestra ruim, mas costumava achar que ela era uma pessoa má fora da ACV. Afinal, quem limitaria passagens entre os mundos para obter bom comportamento? Hoje eu os entendo. Especialmente... depois de hoje.
Ela tornou a me encarar.
? Ela era uma pessoa ruim as vezes. Mas nada que fez depois da guerra foi por maldade. Eles só encontraram naquela dominância uma maneira de evitar mais... disso tudo. ? falei. Não adiantaria negar, de qualquer forma. ? Descobriu só pela aparência? ? quis saber.
? Muitos de nós na ACV já desconfiávamos de quem você era. Mas quando você matou Gillian... fez uma expressão de desdém que me lembrou ela, quando nós errávamos golpes. ? me encolhi. Eu realmente não suportava ser comparada com ela. Meus sentimentos ainda eram conflitantes em relação à minha mãe. Ficava na corda bamba entre ódio e amor... e depois de encontrá-los ? se os encontrasse ? não sabia para qual lado cairia.
? Desculpe pelo que eu disse no começo das aulas, sobre eles. Imagino o quanto deve sentir a falta deles.
Não lhe respondi.
Com a cabeça cheia e nervosa com o que tentaríamos fazer no dia seguinte, deitei na cama e deixei que o sono e o cansaço me puxassem para a inconsciência.
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O sol sequer havia nascido quando nos posicionamos sobre plataformas nas árvores que fechavam a floresta para o acesso dos gigantes. Mal podíamos ver as outras equipes dali, mas sabia que Mona e Eileen mantinham suas equipes espalhadas pela fronteira, para o caso de meu plano dar errado. Os malvarmos estavam sobre nitries, prontos para espalhar gelo sobre as copas e impedir que o fogo causasse estragos irreversíveis caso o meu plano principal não desse certo.
Lohan e Hestia parados em ambos os lados, mantinham suas mãos em meus ombros. Eles sabiam o que deveriam fazer.
Helleon voava ao redor da floresta, pronto para neutralizar qualquer ataque de fogo de dragão que pudesse vir antes de conseguirmos falar com o sucessor de Gillian.
A floresta, parcialmente escondida por uma densa neblina que a circulava, se mantinha silenciosa conforme esperávamos o que quer que viesse a seguir. Meu coração batia descontrolado, mas o aperto de Lohan e a fumaça adocicada que soltou ao meu redor foram o suficiente para diminuir o aperto em meu peito.
Não podia falhar com eles.
O primeiro indício da aproximação dos gigantes foi o estremecer da plataforma sob nossos pés. Vibrações irregulares cada vez mais fortes... muitos deles se aproximavam e rápido. Então não tinha chance de virem para uma conversa.
Bom, o general deles estava morto e seria enterrado sem suas honrarias, uma vez que depois de morto, não podiam reverter o efeito da cicuta. Certamente fora largado no local do acampamento para ser comido por insetos. No mínimo isso os enfureceu.
Não deveria sorrir para aquele pensamento, mas o fiz mesmo assim.
? Acho que não teremos chance de negociar um afastamento. ? O tenebris comentou, apertando um pouco mais a mão em meu ombro.
? Deveríamos fazer logo? ? quis saber. Dessa vez estava disposta a deixar que sua decisão fosse a primeira. Não queria repetir o fiasco da prova do uniforme negro. Quando Lohan assentiu, encarando-me sério, assoviei um sinal para os outros.
Helleon mergulhou no ar, mudando de forma quando estava a poucos metros de nós. Ele rolou ao pousar em sua forma mardam e tocou em meu braço também.
? Prontos? ? indaguei. Os três assentiram, então fechei os olhos e deixei que as ondas de meu oceano quebrassem para longe dos limites de minha praia. Permiti que minha magia vazasse... e fosse conduzida por eles.
Lohan, Hestia e Helleon começaram a recitar o feitiço de criação de barreira dos bruxos.
Usando minha magia como fonte de poder.
“Extenti tenebris. Eius munus est repellere. Hic non introistis et eos per omnia. Giant, giant, neque regiones pertinent illis.”
E de novo.
E mais uma vez.
Eles repetiram o feitiço como um mantra, adicionando as próprias magias para controlar o que tiravam de mim, para conduzir meu poder a criar aquela teia de luz e escuridão.
Sentia cada gota de magia que era puxada de dentro de mim, como um fio desenrolando de um carretel sem fim. A sensação era estranha, mas eu mesma não poderia conjurar uma barreira daquele tamanho sem que congelasse no início do processo.
Já servir de fonte para outros, isso eu podia fazer.
“Extenti tenebris. Eius munus est repellere. Hic non introistis et eos per omnia. Giant, giant, neque regiones pertinent illis.”
As palavras tornaram-se cantadas conforme suas vozes ondulavam ao meu redor e aos poucos, sentia a pressão da trama de magia se formando.
Os passos se aproximavam.
Urros e gritos de guerra podiam ser ouvidos. Mas aquele mantra não parou.
Eles não parariam até terem acabado o trabalho.
A mão de Hestia apertou meu ombro e sua voz saiu trêmula. Não conseguia abrir os olhos para ver o que estava acontecendo. No momento em que me ofereci como fonte, estaria vulnerável até o instante que a conjuração acabasse, era assim que as bruxas faziam.
Eu tinha um pouco de cada parte dos mundos.
Podia usar fragmentos do conhecimento de cada um.
A plataforma tremia como se estivéssemos à beira de um terremoto. E ainda assim, eles não pararam de recitar. Algo escorreu em meu rosto, frio, úmido, mas não conseguia sentir o cheiro do que era... até que uma onda de magia subiu do chão até nós, como se algo muito grande tivesse caído aos nossos pés.
Eles pararam de recitar com um “aeternum.”
Se não fosse o braço de Lohan ao redor de minha cintura eu teria desabado. O que escorria em meu rosto era sangue, meu sangue gotejava, escorrendo de meu nariz por meu queixo, caindo aos meus pés, mas sem congelar.
? Deuses... ? Hestia murmurou, olhando a mandala de palavras pretas e brancas que se estendia pelo céu a perder de vista, em uma certa altura, as palavras dissolviam-se numa trama de linhas cruzadas que desciam até o chão e brilhavam fracamente conforme pulsavam como as batidas de um coração.
? É uma área dez vezes maior que a do vale. ? Helleon murmurou, encarando-me surpreso.
Eu não conseguia sequer sorrir.
Havia um torpor em minha mente, como se a qualquer instante meus olhos fossem se fechar e eu dormiria por um mês.
? Uma barreira espiritual... e ofensiva. ? Lohan comentou ? ela age contra os gigantes, e tudo que eles enviarem com intuito destrutivo.
? Será que vai funcionar mesmo? ? minha voz parecia estar saindo do fundo de um poço. O braço do tenebris me apertou mais.
? Vamos saber a qualquer momento. ? Ele franziu o cenho. Não estavam muito distantes de nós agora.
Eles vinham por entre as árvores, balançando esferas cheias de um líquido quase gasoso lilás. Os gigantes batiam os pés no chão de forma rítmica agora, um deles, mais velho e de cabelos grisalhos no alto da cabeça começou a berrar ordens. Estava tão exausta que não conseguia entender os berros graves do gigante.
Não precisava ser muito esperto para saber o que dizia. No momento seguinte, eles começaram a atirar aquelas esferas em nossa direção. Na direção da floresta. Duvidava que estivessem nos vendo ali.
A primeira esfera com aquele líquido rodopiante atingiu uma altura bem acima da barreira e começou a descer rapidamente em nossa direção, mas eu pressentia o que viria a seguir. Ao tocar a trama de palavras, o objeto explodiu, mas líquido incendiário não pegou fogo. Ele foi absorvido pela barreira e desapareceu.
Em choque, o gigante que dera a ordem de atacar observou a barreira, como se só naquele momento tivesse tomado consciência de sua presença. Ele então gritou outra vez, e vários gigantes atiraram as esferas sobre a floresta.
O efeito foi o mesmo.
Por todas as partes, explosões de vidro e líquido roxo fizeram a barreira brilhar por breves instantes, antes de tudo ser absorvido e desaparecer como se nada tivesse acontecido.
Furiosos, os gigantes começaram a urrar e correram na direção da barreira, sem perceberem que o destino deles não seria diferente do das esferas.
? Avisamos? ? Hestia perguntou, franzindo o cenho para a atitude idiota.
? A melhor maneira de se aprender com os erros, é errando. ? falei.
? Eles não vão ter tempo de aprender. ? Helleon riu.
? Os que não se atirarem na barreira, vão! ? sorri.
Os primeiros que se aproximaram das barreiras, erguendo machados contra o brilho etéreo, atingiram seu alvo e simplesmente se transformaram em pó. Pelo menos vinte deles atingiram as barreiras, seus corpos esfarelando em vermelho, cinza e preto.
Os outros pararam abruptamente, olhando uns para os outros assustados. Um deles atirou um machado em direção a barreira e assim que a tocou, a arma desintegrou contra a trama de proteção, que só brilhou suavemente antes de estabilizar.
? A barreira impede que vocês entrem. ? Hestia anunciou, usando magia para fazer sua voz ser ouvida por eles na distância em que se encontravam. ? Ela impedirá qualquer coisa que seja enviada por vocês com intuito de causar dano ao povo ou a floresta.
? Vocês não têm o direito de interferir em nossos conflitos! ? O gigante grisalho gritou, sua voz fez a plataforma vibrar, Hestia não parecia incomodada.
? Não chamaria de conflito ? Ela deu um risinho ? Os anciãos dos povos que vivem dentro dessa barreira decidirão quem entra e quem sai. Vocês, gigantes, estão banidos dessas terras e tudo que entrar aqui por livre e espontânea vontade, pertencerá ao povo daqui.
O gigante que vinha à frente urrou, aproximando-se alguns passos, como se estivesse disposto a tentar passar. Bastou um movimento de meus dedos e a barreira pulsou, luminosa, estendendo fios de luz e escuridão na direção deles.
Que sabiamente recuaram para longe da fronteira.
Ódio brilhava nos olhos do líder conforme se afastavam lentamente sem nos dar as costas, até que desapareceram entre as árvores de seu território.
? Sabe que eles vão matar qualquer um daqui que seja pego do lado de fora, não sabe? E provavelmente tentarão impedir que outras criaturas cheguem a esse território também! ? ouvi a voz de Hestia distorcida. ? Helleon, avise aos outros que correu tudo bem. Falem com os anciãos também, os deixem avisados sobre a saída das fronteiras.
Ouvi o dragão murmurar algo antes de sentir o vento de suas asas balançar meu cabelo. Nem sabia desde quando estava sentada sobre os joelhos de Lohan, aninhada em seus braços.
Meu corpo tremia. Pelo visto a ideia de doar magia me impedia de chegar ao congelamento, mas ainda assim, podia me levar a um esgotamento rápido. Hestia passou a mão em meu rosto e falou algo com o tenebris, ambos pareciam estar discutindo.
? Diga a eles que se cuidem. ? murmurei ? estou bem, só preciso descansar um pouco. ? Não tinha ideia se haviam me escutado.
Num minuto estava nos braços de meu amigo.
No outro atravessando os véus entre os mundos.
Capítulo 8
? ... eles mandaram uma ótima recomendação! ? A voz de Lórien soou mais alegre do que escutara nos últimos tempos. Ouvia o som de papéis, o tilintar de uma xícara sobre um pires e o inconfundível suspiro de alívio dela.
? Conseguimos trabalhar muito bem juntos. ? Mona comentou, movendo-se na cadeira, ouvi Eileen murmurar em concordância, mas de meus amigos, só sentia a presença de Lohan ali. Abri os olhos devagar e me dei conta de que mais uma vez, estava deitada no sofá da direção, sobre as pernas de meu amigo.
Lórien voltou seus olhos bicoloridos para mim e sorriu ao balançar uma espécie de carta nas mãos.
? Vocês foram ótimos! ? disse sorrindo. Soltei um suspiro pesado, não me lembrava de como havia chegado ali. Lórien estalou a língua e mexeu em sua gaveta, tirando de dentro um frasquinho com líquido azul e o estendeu para mim. ? Um tônico.
Lohan o alcançou e sob o olhar analítico de Eileen, o abriu e me deu.
O malvarmo viu que eu tinha percebido e desviou o olhar, seu rosto tinha ganhado um tom azulado. Mona me observou virar o frasco num gole e me lançou um breve sorriso.
? Sentindo-se melhor? ? Lórien quis saber. O tônico realmente me despertou, fazendo com que eu me sentisse renovada. Assenti, com cuidado me levantei, mas continuei encostada em Lohan. O tenebris sorriu para mim e passou um braço ao meu redor.
Pelo visto, a parte de provocar pensamentos errados nos outros não tinha deixado seus planos.
? O que aconteceu depois que lançaram a barreira? ? perguntei.
? Depois de um terço dos gigantes se atirarem nela como mariposas nas chamas? ? Mona riu ? Voltamos até os anciãos e lhes explicamos sobre o funcionamento da barreira espiritual dos bruxos. Gaila nos deu a recompensa, uma carta de recomendação e vários presentinhos, você não ganhou nenhum porque estava apagada e eu catei a sua parte!
Eileen a beliscou, fazendo a elfa rir.
? Bom, pelo menos deu tudo certo! ? murmurei, inclinando-me para pegar a carta sobre a mesa de Lórien. Não que eu quisesse ler naquele momento, só queria parecer interessada.
? Como recompensa da minha parte, deixarei que percam as aulas de hoje! Ficarão com o fim de semana estendido. ? Lórien sorriu.
? Fim de semana? Voltamos no mesmo dia? ? quis saber. O sorriso dela vacilou.
? Vocês ficaram fora uma semana. Vastrus tem o tempo mais lento, lembra? ? meu interior começou a dissolver.
O casamento no Primeiro seria em poucos dias.
E eu não tinha nenhuma ideia de como impedir aquilo de acontecer. Não sabia nada sobre Alfia. Me movi inquieta, os outros pareciam ter percebido meu nervosismo.
? Vamos para casa, então? ? perguntei a Lohan, torcendo para que daquela vez, ele estivesse de olho em meus pensamentos. Pelo brilho compreensivo em seu olhar, ele sabia o que eu queria.
? Preciso esperar tia Honén encerrar suas aulas. Iremos ao anoitecer. ? disse, levantando-se do sofá. ? Deveríamos ir acompanhar os outros no café. ? completou com um sorriso, tentando trazer o clima descontraído de volta.
? Estou doida por qualquer coisa gostosa! ? Mona sorriu, levantando-se num pulo, pelo olhar malicioso do tenebris, não fui a única a ouvir o duplo sentido naquelas palavras também. Os dois saíram na frente. Eileen no entanto, permanecia sentado de olho em mim.
? Então... falo com você mais tarde! ? me despedi de Lórien, não tinha como conversar com ela sobre os céus com Eileen de ouvidos atentos.
Ao me levantar para sair, ele me acompanhou para fora.
? Poderíamos aproveitar o dia para treinar ? Ele comentou ao fechar a porta da direção atrás de si.
? Tenho algumas coisas importantes a resolver. ? disse afastando-me, precisava ir até o quarto, Hestia certamente teria guardado minha bolsa lá.
Eileen no entanto, segurou minha mão quando me virei para sair.
? Você disse que me ajudaria... até agora mal treinamos uma vez.
? Eileen, eu sinto muito ? afastei sua mão ? Mesmo!
? Você vai sair só ao anoitecer! Não tem um tempinho para mim? ? Ele me encarou com aqueles olhos topázio brilhando ? Eu preciso conversar com você. É algo importante. ? disse por fim. Aquelas palavras fizeram um arrepio descer por minha espinha, não tinha ideia do que ele queria... mas de alguma forma, me sentia impelida a descobrir.
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No fim de mais uma sequência de ataques naquele longo dia de treino, quando já não aguentava mais segurar a arma sem que minhas mãos tremessem. Apertei a lança em punho enquanto avaliava o sorriso contido no rosto de Eileen. Minha respiração ofegante denunciava o quão exausta estava. Não sabia dizer se por efeito do desgaste de magia mais cedo, ou se só pelo treinamento mesmo.
Treinar com Eileen era mais pesado do que com Helleon. Não fazia ideia do motivo que levou o malvarmo a me pedir ajuda com os treinamentos, uma vez que ele era claramente era mais resistente e forte que eu.
? Eileen, fale a verdade! Você inventou esse papo furado de treinamento para conseguir um amigo que não queira comer seu fígado por seus rompantes de grosseria, não é? ? ralhei tomando a arma de sua mão e a colocando de volta no armário. Eileen não escondeu o sorriso maior que surgiu em seu rosto junto com a cor que tomou conta de suas bochechas. ? Duvido que tenha ido mal nos testes físicos.
O avaliei outra vez, Eileen trançava seu cabelo e mantinha o olhar longe do meu, esquivando-se se mim como fizera o dia todo. Enrolando sem querer puxar a tal conversa importante.
? Pode ser que a professora seja boa e eu já tenha melhorado só de estar perto de você. ? ergui as sobrancelhas, aquilo parecia uma cantada ao mesmo tempo que não parecia. Eileen era estranho de alguma forma que não sabia avaliar.
? Você é um galanteador sem vergonha, e já adianto que não vai funcionar comigo se foi isso que o trouxe aqui. ? alertei, deixando a área de treino pela trilha entre as árvores. Eileen meneou a cabeça negativamente com os olhos arregalados e me seguiu em direção à casa.
? É claro que não! ? gaguejou com o rosto perdendo a cor. ? Isso é muito estranho.
? Está falando com a pessoa que tem um relacionamento com um sobrinho em segundo grau. ? lancei a questão, observando-o pelos cantos dos olhos. Não tinha me esquecido de sua reação ao me ver com Hasan sob a sala de Lórien.
Tinha também os olhares feios que ele dava a Lohan. queria o testar novamente. A expressão de Eileen se fechou e imediatamente achou um ponto entre as copas das árvores interessante o suficiente para não me encarar.
? Acho que tive uma ideia errada de você e seu amigo então. Você e Lohan vivem agarrados. ? Ele murmurou ? Sobre o... mestre, pensei que não estivessem mais juntos, ele não vai se casar com a rainha solar em alguns dias? ? estaquei quase na entrada da casa, meu coração se apertou junto com minha garganta e a expressão desesperada de Áries implorando para que eu o livrasse daquilo me voltou à mente. Tínhamos perdido muito tempo em Vastrus. Eu precisava agir rápido a respeito de Hasan... mesmo que tivesse que colocar isso no topo da minha lista de tarefas.
? Fui criada com Lohan, ele é como um irmão para mim. E qual é o seu problema com o meu relacionamento com o mestre? ? questionei percebendo que ele ainda esperava que eu dissesse algo. Entrei na casa chutando as botas para a varanda, indo direto até a cozinha. Queria comer algo... apenas para mover a boca sem que fosse para morder Eileen... ou xingá-lo.
O malvarmo fez uma careta, ajeitou as próprias botas ao lado das minhas e entrou direto para a sala, seus olhos percorreram as paredes, a coroa de minha mãe ao lado de Blumarian e por fim voltou os olhos irritados para mim.
? Tirando o fato de que relacionamentos entre mestres e venairens são proibidos? Ele é um solaris! Pode ser perigoso para você!
? Você sabe bastante sobre nós ? enterrei as garras metálicas numa lata de pêssegos enquanto o encarava desconfiada. ? E também se mete bastante, não é?
Eileen soltou o ar pesadamente e deu de ombros, se apoiou no balcão e girou a lata sob a pressão de minha mão, fazendo minhas garras cortarem o metal e a tampinha metálica afundar na calda.
? Eu presto atenção em tudo, Kiara, minha mãe conversa com os mestres e murmura bastante na sala de cura. Estou surpreso que mais alunos não saibam de você e dele ? Ele me encarou. O topázio de seus olhos quase desaparecera engolido pelo negro. ? E não estou me metendo, você foi quem puxou o assunto, eu só disse que era esquisito você achar que eu vim por interesse em... ? Eileen não terminou a frase com uma careta.
Tentei não olhar para meu braço. Mas não ligava o suficiente para me sentir ofendida com aquilo.
? Um solaris representa tanto risco para mim quanto um malvarmo. ? disse por fim ? Teve uma vez quase morri para um recém transformado, e outra em que um de sangue amarelado me envenenou e quase me matou também. Acredite, não tenho medo de pessoas que sabem se controlar.
Eileen se encolheu.
? Tem alguma roupa por aí que eu possa usar? ? reparei que sua camisa ostentava manchas úmidas de terra da pequena arena lá fora.
? Fique à vontade para procurar algo por aí. ? Ele assentiu, então seguiu direto para o corredor estreito no canto da sala e desapareceu por ele.
Peguei um potinho de vidro e servi alguns pedaços de pêssego, colocando mais calda no pote do que fruta, então comecei a vasculhar a geladeira atrás de um vidro de nata.
Lórien havia arrumado o eletrodoméstico para mim depois que voltamos de Somnus e de me ouvir comentar sobre ter gostado muito da que Lethan tinha em seu apartamento. Eu não precisava viver como um homem das cavernas só porque tinha a alma de um. Só tinha que tomar cuidado com o gerador que a mantinha ligada, o alimentava com magia de vez em quando.
Sentada no banquinho e apoiada no balcão, comia meu pêssego com creme quando Eileen voltou minutos mais tarde, limpo, vestindo uma camisa preta e calças cinza um pouco grandes, mas que por pouco não serviam perfeitamente nele.
Tinha revirado cada canto da casa e não me lembrava de ter visto aquelas roupas.
? Onde achou isso? ? Eu sequer havia lhe dito onde ficavam os quartos, ele foi direto até lá. Entre a cozinha e a sala, outro corredor levava à varanda traseira, mas ele não sabia se podia levar aos quartos também.
É claro que ele podia ter encontrado pelo cheiro, mas...
Eileen parou perto da lareira, e levou os dedos ao cabo de blumarian. Um meio sorriso tomou conta de seu rosto enquanto seus olhos mudavam para algo terno... saudoso. Algo naquela expressão me fez estremecer e levar a mão à adaga em minha coxa, mesmo que sentisse que não precisaria me defender de algo físico.
? Sua mãe detestava essa espada. Ela perguntou se eu era apegado a esse pedaço de metal barato, queria a todo custo fazer uma nova para mim. ? disse, pegando-a do suporte.
Franzi o cenho enquanto meu coração disparado ameaçava parar.
? Essa espada era de meu pai, ela ficou nessa casa por anos e duvido que minha mãe tenha o trazido aqui se nunca trouxe seus próprios filhos. ? minha voz tremeu ? Você não é tão mais velho que eu assim, se tinha dez anos quando o castelo caiu, era muito! o que você está querendo com isso? ? questionei tentando controlar meus batimentos, será que ele tinha noção de que tipo de brincadeiras eram aceitáveis?
Queria ir até ele e tomar a espada de sua mão, mas por alguma razão não consegui mover minhas pernas trêmulas.
Parecia que meu corpo tinha acreditado na brincadeira enquanto minha mente se perdia naquelas palavras.
O malvarmo me encarou outra vez, aquele azul profundo estava mais claro, brilhante dessa vez.
? Eu trouxe sua mãe aqui logo depois de sairmos da mina de Prestin. ? disse ele, colocando a espada de volta no suporte ? Ela colocou o ovo de docinho aqui, achando que tinha mais de dragão negro do que aquático. ? Ele riu ? Depois ela fez uma bolha de vitrino cheia de água e a colocou sobre o fogo para ter pressão e manteve o ovo na água fervente por horas até conseguir chocá-la.
Cada palavra que saía de sua boca fazia meu coração se apertar e mesmo que eu quisesse as negar, uma sensação estranha de reconhecimento se embolava em minha alma. Como ele sabia sobre aquilo? Docinho dissera uma vez que foi chocada por minha mãe, quando ela recriou a pressão das Fendas de Holon para poder fazê-la sair da casca, disse que meu pai estava lá quando ela nasceu. Essa foi uma daquelas conversas que surgiam do nada e chegavam em um ponto que Susano cortava o assunto olhando feio para quem estivesse falando demais. Docinho ficou irritada naquele dia e foi embora.
Apertei os olhos e sacudi a cabeça negativamente.
? Pare com isso! ? implorei contornando o balcão ? Não fique inventando essas coisas, Eileen! Não brinque com as memórias dos outros! ? minha voz não soou firme como eu queria. Como ele inventaria algo tão específico?
Eu já estava tremendo, agora meu coração disparado tentava sair pela garganta enquanto eu fazia força para engolir as lágrimas.
Eileen não me encarou.
? Nike fez Sielem para mim na cachoeira atrás da casa, usando vitrino daqui e tranças do próprio cabelo. Mesmo que os ossos metálicos de seus braços doessem por causa do calor, ela não queria deixar sua profissão. Nike era muito durona e teimosa também. ? Ele tamborilou os dedos sobre a lareira ? Foi lá também que ela me contou que não poderia ter filhos por um acidente com um Aswang na ACV de Ciartes.
Dessa vez as palavras atingiram mais fundo. Susano... meu pai já tinha me contado sobre aquilo, usando a descrença de minha mãe em sua impossibilidade de ter filhos para defender sua aversão a mim antes de eu saber a verdade.
Eileen me encarava preocupado, mas não parecia ter intenção de parar de falar mesmo que estivesse me fazendo mal. Talvez... talvez ele tenha achado algum diário escondido que tivesse aquelas informações e completou com o que Glyph podia ou não ter lhe dito. Não sabia porque ele dizia aquelas coisas ou de onde as havia tirado, mas Eileen sairia daquele vale com presas faltando se não calasse a boca.
? Já pedi para parar com isso. ? consegui dizer depois de um tempo em silêncio. Me aproximei o suficiente para lhe enterrar a adaga na barriga caso continuasse a falar sobre lembranças que não eram suas. Porém o malvarmo me encarou, olhando-me de cima com uma familiaridade tão grande no olhar que meu punho afrouxou.
? Sabe... ainda podíamos ver os mundos através do espelho sob as raízes de Cahidén lá em cima. Eu estava de olho no dia em que você nasceu e vi quando sua mãe decidiu colocá-la em hibernação. Fiquei desesperado... sabia que a culpa era minha, então pedi pra voltar. Queria fazer algo por você, queria uma chance de estar perto de você, diferente dos meus outros filhos que eu não fui presente. Mesmo que você não soubesse quem eu era, eu queria estar ao seu lado. Só não tinha ideia que levaria tanto tempo para chegar aqui.
Pisquei confusa. Então... então comecei a entender o que estava dizendo.
Uma alma regressada.
Minha garganta se fechou novamente e grossas lágrimas me impediram de vê-lo direito.
? Eu sou seu pai, Kiara. ? Ele disse devagar ? Caalin.
Me sentei no sofá, nem sabia como tinha me aproximado do móvel sem cair no meio do caminho. Não que estivesse muito longe da lareira... mas... eu não sabia o que pensar ou sentir. Mesmo que os outros no castelo soubessem que eu fui colocada para dormir, que talvez sua mãe tivesse contado algumas daquelas coisas, haviam detalhes demais no que Eileen dizia.
Não tinha motivo para desacreditar também. Não depois de ler até cansar sobre as ligações e as almas. Mesmo assim, eu precisava de uma prova.
? Me diga algo... que só ela soubesse, que você soubesse! Prove o que está me contando. ? exigi. Eileen encolheu os ombros e estendeu a mão para um pequeno enfeite metálico de aço na borda da lareira e o girou para baixo. O movimento foi seguido de um “click” metálico, em seguida o tapete sob o sofá se ergueu um pouco.
O malvarmo se movia me analisando com cautela. Ele esperou que eu entendesse o que ele queria fazer e me levantasse do sofá, então o empurrou para trás e puxou o tapete com o pé, revelando um alçapão ali.
? Casas velhas costumam ter essas coisas mesmo. ? tentei justificar ? Você pode ter vindo aqui e achado isso quando fui aos céus com Lohan no dia que o Primeiro Céu estava para desabar. ? conclui.
? Não era o alçapão. ? Ele franziu o cenho e se abaixou, havia uma espécie de trava mágica na tampa, um cadeado de impressão mágica com apenas uma entrada auxiliar de chave ? Não voltei com magia embora minha mãe tenha um pouco ? Ele coçou a cabeça ? mas a chave reserva está dentro da empunhadura de Blumarian.
Eileen continuou abaixado em frente ao alçapão, esperando que eu pegasse a chave, certamente forçando-me a reagir de algum jeito para ter certeza de que eu não estava em choque.
Me obriguei a levantar mesmo que meu corpo estivesse ficando dormente, anestesiado com a possibilidade de aquilo ser real.
Sabia que almas retornavam... mas nunca com memórias da vida anterior.
Me ergui e rapidamente peguei a espada, segurei o pomo e o torci até que a trava se soltasse por completo. No lugar de uma espiga longa até o fim do cabo, o pomo tinha uma chave forjada no lugar da trava.
Ele realmente poderia ter achado aquele alçapão em uma avaliação pela casa... mas encontrar uma chave dentro da empunhadura era algo específico demais.
Entreguei a peça a ele, que continuava me observando como se eu fosse surtar e atacá-lo. O malvarmo destrancou o cadeado e abriu o alçapão, lá embaixo uma luz fraca brilhava iluminando pouco os degraus de madeira envernizados.
? Um porão sem poeira não tem história. ? minha tentativa de humor para quebrar o clima foi frustrada pelas palavras trêmulas que deixaram meus lábios.
? Pelo menos você puxou meu humor, as brincadeiras de sua mãe costumavam fazer as pessoas quererem bater nela. ? o ouvir falar dela com tanta casualidade me incomodava. Sua revelação não fora completamente absorvida por minha mente, ainda flutuava em direção ao fundo para enfim espalhar uma nuvem de memórias e perguntas que faria se aquilo se confirmasse.
Eileen desceu na frente, o ranger dos degraus arrepiavam minha coluna, embora a sensação mais incômoda era a causada pelas palavras do malvarmo.
Ele estendeu a mão ao chegar no fim da escada e puxou uma fina corrente ao lado do corrimão, em toda a extensão do teto, pequenas esferas de luz tiveram suas capas metálicas abertas, elas foram moldadas no formato de pétalas espiraladas e quando abertas se pareciam com flores.
Atenta, reparei bem naquele ambiente que esteve sob meus pés e eu sequer desconfiava. Eileen andava devagar em minha frente, o porão aparentava ter o mesmo tamanho da casa e o teto não era muito alto, uma vez que se eu estendesse as mãos, podia facilmente pegar uma daquelas luzes de flores. Não havia nada de anormal ali, pelo menos não se levasse em conta ser a casa de um antigo guerreiro.
Mesas longas com ferramentas, algumas que causavam arrepios em minha pele pois sabia que não serviam para consertar nada, algumas plantas protegidas por redomas, armas mais simples em suportes e algumas armaduras antigas.
? Passou por muitas batalhas? ? quis saber apenas para quebrar o silêncio estranho, Eileen seguiu até uma mesa mais longa com um volume coberto por um tecido no final do porão, uma parte que estava sob o quarto principal. Eileen tocou aquele objeto oculto e olhou para as outras coisas ali, havia confusão em seu olhar.
? Não me lembro. ? sussurrou ? a memória mais distante que possuo é a de transformar Zion, cinco anos antes de minha morte.
A informação fez meu estômago se contorcer novamente.
Zion realmente fora transformada por Caalin quando era adolescente.
Queria perguntar mais... porém Eileen me encarou por cima do ombro e puxou o tecido, revelando longos blocos de madeira com encaixes. Me aproximei como um animal assustado recebendo comida de um estranho e observei o que me mostrava.
Moldes.
Eram os moldes de um machado entalhados a mão naqueles troncos. O formato das lâminas, o cabo de corrente e a ponteira imitando uma flor de lis.
Um soluço escapou de mim e comecei a chorar.
? Susano me pediu o machado uma vez. Eu disse que quando morresse, ele poderia ficar com ele. ? Eileen comentou, traçando a forma enegrecida marcada por metal derretido. ? Ela ia queimá-lo, pois nunca fazia duas armas iguais, mas eu escondi o molde, queria o guardar de lembrança, pois ela o havia feito sem nenhuma ferramenta profissional, usou apenas um formão e as garras.
Chorei mais e me apoiei na mesa, tentando me acalmar.
? Eu pedi a Susano que me desse o machado quando eu crescesse, minha mãe estava perto quando o fiz. Ela disse que eu não poderia ficar com aquele. Então pedi que fizesse outro para mim... e ela contou que o antigo dono do machado o escondeu, por isso ela não poderia fazer outro.
Eu queria ter a capacidade de parar de chorar. Queria poder me virar e começar a perguntar tudo o que imaginei que gostaria de saber desde que soube quem era realmente meu pai, mas meu coração esvaziava o mar de lágrimas acumuladas, estava chorando até o que não era destinado a aquela dor estranha apertando minha garganta.
? Você é meu pai... ? solucei virando-me para o encarar depois de me livrar das lágrimas que nublavam minha visão. Eileen assentiu, piscando para espantar a umidade de seus próprios olhos. O abracei sem pensar duas vezes, por mais estranho que aquilo fosse. Ele fechou os braços ao meu redor e suspirou, afagou minhas costas até que a tremedeira pelos soluços parasse.
Depois de um longo tempo parados ali, Eileen pegou minha mão e me guiou de volta à escada, subimos para a sala e o porão foi fechado novamente. Ele foi até a cozinha enquanto eu arrumava o tapete e o sofá no lugar e voltou instantes depois com duas xícaras de chá morno e sentou-se ao meu lado.
Achei que já estivesse calma o suficiente para conversar.
? Sua mã... Glyph sabe?
? Minha mãe. Nasci dela nessa vida, se eu esquecer de chamá-la de mãe ela quebra meus ossos e não vai fazer questão de concertá-los depois. ? um risinho nervoso escapou de mim. ? E não, nunca disse nada a ela pois duvido que ela acreditaria, e se acreditasse... acho que para uma mãe, saber que seu filho é uma alma velha e com lembranças deve ser ruim. Acho que ela não se sentiria confortável em cuidar de mim do jeito que fez desde que renasci.
? Entendo... você não passava muito tempo no castelo. ? comentei, observando suas reações. Tentando conter as minhas próprias.
? Eu queria ficar... poder conviver mais com você, mas minha mãe preferiu que eu passasse mais tempo com Mikale, a vovó é muito velha, ela precisava de companhia e eu não podia dizer não a ela... ? Ele fechou os olhos ? ela foi importante para mim na outra vida, mas não me lembro ao certo o motivo. Por estar com ela, não estive lá quando o castelo caiu.
Assenti, sentindo-me estranhamente leve, entorpecida na verdade.
? Tem algo que eu quero saber. ? a pergunta que realmente me importava. Eileen me encarou com receio, e imaginei que ele já sabia o que eu perguntaria. ? O que fez de errado com ela... para que ela passasse a me detestar tanto?
Eileen apoiou a xícara no braço de madeira do sofá e meneou a cabeça negativamente.
? Eu não confiei nela. ? disse baixo ? Nikella confiou em mim, aceitou a mão que lhe estendi quando ela mais precisou e eu estive lá para ajudar a sair de um inferno que eu ajudei a criar ao omitir coisas importantes dela. ? Eileen respirou fundo ? Ela me perdoou por coisas quase imperdoáveis, e quando precisou que eu retribuísse aquela confiança, eu a julguei por sua pouca idade, pela falta de experiência na vida e não fiquei ao seu lado. Ela se abriu para mim como nunca tinha feito com mais ninguém e eu feri seus sentimentos, mesmo que só estivesse tentando fazer o que achava ser o certo.
? Não entendo...
? Eu não a escolhi, Kiara. Eu tinha a escolha de confiar nela e lutar ao lado dela. Achei estar escolhendo isso, mas tomei um caminho diferente e a afastei. ? sua voz mudou, Eileen apertou as mãos e soltou o ar pesadamente ? E depois do que aconteceu... do que quase aconteceu com você, quando achamos que tínhamos a perdido, eu tentei pedir desculpas, e parecia estar tudo bem, mas ela foi embora novamente para que tivéssemos uma chance de concertar as coisas.
? Isso.... foi quando ela partiu com Higarath? ? Eileen assentiu, olhando para mim com os olhos marejados.
? Mas... acho que ela não suportava estar perto de você por eu ter prometido que no fim da guerra, nós iriamos para Arcádia e teríamos uma vida tranquila lá, teríamos a nossa família. ? Ele pigarreou ? acho que ela te via e lembrava das promessas, mas também das minhas mentiras, ela via em você uma parte de mim que não foi embora. Uma lembrança constante de como eu falhei com ela e com você também.
? Nenhuma mãe deveria tratar os filhos assim ? choraminguei ? eu não tinha culpa...
? Não tem! Você não tem culpa de nada do que eu fiz, mas ela também não tinha o direito de a tratar como fez. ? resmungou. ? Ela era assim desde que a conheci... não sabia pesar, ou era tudo ou nada.
? Não sei como papai a amava tanto. O que via nela. ? deixei sair sem querer. Eileen ergueu as sobrancelhas quase desdenhosamente. ? Susano quem me criou, sinto muito, ele não vai deixar de ser meu pai. Ainda tenho outros pais emprestados que entram na lista, Owyn, Ceiran, Halles... ? Eileen revirou os olhos.
? Susano já amava Nikella quando ela era uma humana raivosa na ACV de Ciartes. E eles eram ligados. ? Eileen não parecia confortável em dizer aquilo.
? Você a amou mesmo? ? quis saber. Eileen voltou os olhos brilhantes para mim e sorriu um pouco.
? Com todo meu coração, com toda minha alma mesmo ligada à outra. Nike era a chama de vida em meu inverno eterno.
O encarei por um longo momento, processando a verdade daquelas palavras.
? Ela era feliz com ele... e amava o Fares. ? Eileen assentiu.
? Susano foi aquele que nunca a decepcionou em nada. Ele deu o que prometeu, ao contrário de mim. ? Eileen se aproximou um pouco mais e receoso, passou um braço ao redor do meu. ? Mas quero que saiba... que se eu tivesse voltado antes, se não tivesse chegado tão tarde aqui, quando faltava tão pouco para você despertar... eu teria tido tempo de poder revelar que alma residia em mim, e a criaria.
? Susano ia te fazer comer o machado antes de deixar você me levar. ? afirmei, Eileen riu de uma forma que arrepiou minha coluna.
? Ele com certeza iria tentar.
? Zion... é verdade que vocês tinham um caso? ? resolvi puxar um assunto mais seguro, queria saber sobre a ligação da transformação e acabei perguntando aquilo de maneira errada. Eileen sorriu.
? Eu tinha casos com muitas mulheres antes de sua mãe, Kiara. ? o tom arrogante em sua voz me fez puxar aquela parte maldosa que herdei de minha mãe, mas que raramente usava.
? Então já sei de onde puxei essa parte. ? Eileen perdeu o pouco de cor e meneou a cabeça de olhos fechados.
? Deuses... ouvi garotas falando que viram Hasan entrar em seu quarto quando Hestia e você estavam lá e que não o viram sair depois.
? Ele não saiu. ? falei. Não me importava que tivesse a alma de meu pai e lembranças de sua vida em que o fora, Eileen que tentasse dar um de superprotetor!
? Realmente não quero saber como e quando saiu. ? Ele fez uma careta. ? Susano concordaria comigo nessa parte, sabe? Hasan...
? Eileen. ? o cortei ? eu aceito tudo o que me disse, eu entendo o que aconteceu... e fico grata que tenha voltado por mim, por querer conviver comigo. Mas se você se meter na minha vida dessa forma, eu vou o afastar. ? alertei. O malvarmo me encarou sério, e depois de alguns instantes assentiu.
? Vai ser minha amiga, então?
? Eu te deixei entrar na minha casa e fuçar roupas! Hestia só descobriu essa casa dias antes de você voltar aqui!
Ele sorriu mais abertamente dessa vez.
? Obrigado por me dar uma chance, mesmo que devesse querer me bater por estragar sua relação com sua mãe. ? meneei a cabeça negativamente.
? Obrigada por voltar por mim. ? agradeci e o abracei outra vez. ? Ela escolheu me tratar daquela forma... mesmo que eu não tivesse culpa. E mesmo assim eu não guardo mágoas. ? Acho ? Não guardaria de você também. ? sorri. Eileen assentiu e respirou fundo, talvez aliviado por aquelas palavras.
? Você é realmente muito forte. ? disse encarando a espada. ? O treino. ? assenti devagar, percebendo o quanto tinha escurecido lá fora.
? Agora acho que é boa ideia voltarmos para a ACV, preciso ir ao Quinto Céu com Lohan e investigar algo.
? Espero que não seja nada perigoso!
? Mais perigoso que pegar um mestre e outra aluna dentro das muralhas? ? Eileen soltou o que pareceu um gemido sofrido.
? Eu realmente não quero saber dessas coisas!
? Tenha maturidade, homem! ? zombei, alcançando a espada sobre a lareira e recolocando o pomo no lugar. Antes que Eileen deixasse a sala, lhe entreguei a arma ? Eu não posso lhe devolver o machado, não está comigo, mas acredito que isso seja importante, certo?
Eileen sorriu outra vez e assentiu, fechando as mãos com cuidado ao redor da espada, como se ela fosse feita de vidro.
? Glyph vai reconhecer a arma. Se ela perguntar...
? Eu me viro, vamos logo!
Deixamos o Vale do Sol pela fenda da escuridão. Aquele lugar se tornou mais vivo para mim.
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Após passar em meu quarto para tomar um banho, trocar a roupa e pegar o fragmento do mapa de dentro da bolsa que servia de travesseiro para Ira, o glácio bufou irritado e saltou para a cama de Hestia.
? Sua almofada viva não está ai! ? talvez ela estivesse jantando. Ou teria voltado correndo para o Vale, uma vez que passamos uma semana em Vastrus sem dar notícias, Hestia ia querer ir para casa ver sua família. Queria ir até Fares e mostrar o fragmento, mas ao chegar com Eileen na ACV, descobri que ele havia saído outra vez com Neruo.
E eu precisava ir até os céus. Tinha que descobrir qualquer coisa que me ajudasse a tirar Hasan do Primeiro. Minha maior esperança estava em encontrar registros de mestiços nos documentos de Owyn.
Peguei o glácio no colo e deixei o quarto com a bolsa pendurada no ombro, podia deixá-lo na enfermaria com meu... céus! Com Eileen!
Aquilo martelaria em minha mente por dias! Talvez eu jamais conseguisse absorver completamente essa verdade. Uma alma regressada.... meu pai estava ali, na AVC. Apertei Ira em meus braços e bati a porta do quarto.
? Você sabia, não é? Por isso gruda tanto nele! ? o glácio soltou uma lufada de ar em meu braço enquanto eu corria com ele escadas abaixo.
Torcia para que aquela revelação não me impedisse de agir com lógica na hora de procurar as informações que precisava.
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Depois de deixar Ira com Eileen e lembrá-lo de que não era de sua conta o que eu ia bisbilhotar nos céus, corri pela ACV, torcendo para que o tenebris não tivesse ido para casa na frente.
? Onde estão os outros? ? questionei a Lohan ao encontrar com ele e Honén saindo da sala de Lórien.
Não queria tocar em minha magia desnecessariamente por uma semana, pelo menos!
? Oi para você também ? o tenebris revirou os olhos e Honén riu, passando um braço ao redor de mim. ? Helleon e Hestia foram para o vale logo depois que você saiu com Eileen. Mona queria me agarrar.
? Deu pra perceber quando ela disse que estava doida por algo gostoso. ? Honén pigarreou e enrugou a testa. ? Desculpe!
? Kiara não tem muitos modos, tia! ? Lohan zombou, fazendo-me esticar a mão para beliscá-lo.
? Não ligue para ele. ? Honén sorriu ? Vou dar uma ajudinha com a sua tarefa! ? Ela piscou para mim com aqueles olhos prateados rajados de negro.
? Você não sabe o quanto fico feliz em ouvir isso! ? soltei com um suspiro pesado.
Lohan riu e nos guiou pelo pátio deserto, onde em frente à árvore branca, abriu uma fenda para nós, poupando-me de ter que usar magia.
Só implorava a qualquer deus que estivesse disposto a me ouvir, que fosse mais fácil tirar Hasan das garras de Alfia, do que passar pelos testes dos fragmentos.
Capítulo 9
O cheiro dos documentos parecia ter impregnado em minhas narinas. Até mesmo minha pele tinha cheiro de tinta, papel cinzento de purpas e pó. Revirei a pilha de registros outra vez, procurando por algo que talvez tivesse deixado passar. Só restaram dois arquivos que eu não tinha aberto e minha esperança se esvaia conforme estendia os dedos para alcançá-los.
A ajuda oferecida por Honén antes de ela partir para a Floresta Azul foi apenas uma dica. Porém, uma dica mais valiosa do que qualquer outra. Teria perdido tempo perguntando a Owyn, e ainda o teria me vigiando caso soubesse o que eu queria fazer. Por mais que confiasse nele, no fundo ainda tinha uma leve desconfiança que ter Hasan casado com Alfia, o deixaria esperançoso que eu aceitasse uma aliança com o Quinto, casando-me com Awen.
“Owyn sabe de tudo. Se acha que alguém esconde um segredo, pergunte e ele saberá! Mas se o segredo for dele... tenha cuidado ao procurar o que deseja, nada vem de graça da parte dele, saiba disso!”
As palavras de Honén ainda martelavam em minha mente quase dois dias depois. O casamento seria no próximo sábado e eu não estava nem perto de uma pista... e também não poderia perder mais uma semana inteira de aulas. Tínhamos perdido muito tempo em Vastrus com os gigantes.
Recostei-me na cadeira larga e estendi as pernas, sentindo meu corpo estalar. Uma rachadura apareceu ao lado de minha barriga e soltei um gemido choroso, encolhendo-me pela dor que o movimento causou.
Lohan tinha escapulido para a Floresta Azul com Honén pouco depois de chegarmos aos céus na sexta à noite. Tínhamos chegado pelo jardim de cíclames, e encontramos com Owyn e Nedyle juntos lá.
Não que estivessem fazendo algo que não deveríamos ver, os dois estavam apenas conversando, muito próximos, o que fez Lohan ter um espasmo quase imperceptível e deixar o palácio minutos depois, alegando precisar ajudar a mãe na limpeza da casa.
A magia da floresta mantinha a casa impecável.
Ele só não conseguia permanecer ali com Owyn sorriso para ele como se tivesse acabado de lhe tomar a alma. Queria gritar com Owyn... mas se Lohan não tinha tomado uma atitude, por mais que eu quisesse ajuda-lo com Nedyle, eu sabia que não deveria defendê-lo daquela maneira. Lohan seria visto como um fraco.
Nedyle tentou e fracassou não parecer abalada, mas depois de um tempo, saiu para deixar Honén e o rei a sós.
E eu...
Ainda estava ali, dois dias indo e vindo. Da biblioteca para meu quarto, de meu quarto de volta à biblioteca.
As sombras se moviam silenciosas, mas percebi desde o primeiro momento que eram apenas isso, sombras vivas, pois o lugar quase não tinha fontes de luz. O teto alto da biblioteca ostentava uma réplica do céu noturno, tinha impressão algumas vezes de que as estrelas ousavam se mover, mas por alguma razão, o lugar permanecia deserto.
Talvez porque os tenebris simplesmente apareciam ali com suas sombras os envolvendo, pegavam o que queriam e iam embora, deixando vazias as longas mesa de madeira com suas luminárias de meia lua.
Soltei um suspiro longo e barulhento.
Tinha divagado em pensamentos enquanto folheava o registro.
Nenhum mestiço solaris e tenebris, ou solaris e vernum, até mesmo solaris e ventus... nenhum tinha apresentado habilidades de um mago solar até as datas das últimas atualizações dos documentos.
Um sopro morno fez minha pele se arrepiar. Virei-me procurando pela fonte, tentando sentir algo diferente no ambiente, mas não havia nada ali. Diferente da brisa fresca que entrava pelas janelas mais altas, fora do alcance de quem andasse pelos corredores abarrotados de estantes, aquele ar morno tinha que ter vindo de algum lugar.
Minha cabeça doeu um instante antes de sentir o sopro em meu pescoço novamente.
? O que acontece se eu morder você? ? A voz suave de Awen sussurrou enquanto ele se materializava ao meu lado, com as mãos apoiadas em meus ombros.
? Vai quebrar os dentes, eu estou quase congelando ? rebati. O tenebris riu e sentou ao meu lado, dando tapinhas na pilha de documentos, então colocou uma xícara fumegante de vinho quente diante de mim. Agradeci com um murmúrio, deixando o calor preencher meu corpo, amenizando aquela dor incômoda.
O tenebris apoiou o rosto no punho com o cotovelo sobre o tampo lustroso da mesa e me encarou. Depois de alguns instantes de um silêncio denso, enquanto eu passava as páginas do relatório e ele brincava com as pontas metálicas de suas tranças, soltei o ar frustrada.
Não havia nada ali também.
Nenhum mestiço solar com magia.
? Já tentou nos registros dos solaris com magia do Primeiro? ? Ele questionou. Dei um tapinha na direção de uma pilha maior que estava afastada dos documentos que eu olhava.
? Foram os primeiros que vi. Imaginei que Alfia podia estar escondendo algum solaris com magia. ? resmunguei, soltando os documentos de volta na mesa com um suspiro irritado.
? É... bem a cara dela. ? Ele desviou o olhar.
? Achei que estivesse interessado. ? comentei.
? Foi só uma distração, você sabe como é! ? meu rosto queimou mesmo sem que eu permitisse. Awen tinha uma habilidade excepcional para distrair as mulheres. Queria arrastar a cadeira para longe, mas o movimento só o provocaria.
? Por falar em distração ? sacudi os papéis.
? Não vai achar nada que preste aí! Deveria simplesmente ir perguntar a ele. ? Awen se recostou na cadeira, o movimento fez as ponteiras metálicas de suas tranças estalarem e seus olhos negros rajados de dourado me avaliavam com curiosidade.
? E correr o risco de Owyn me pedir algo em troca? ? rebati. ? Nada dele vem de graça!
O olhar de Awen ficou mais intenso.
? Seria tão ruim assim... casar comigo? ? meu coração acelerou.
? Está aprendendo bem os jogos dele. Só não deixe... chegar tão longe. ? Awen abriu um sorriso largo.
? Você só percebeu porque me conhece bem!
Inclinei a cabeça para trás, apertando os punhos contra os olhos cansados.
? Eu tenho pouco tempo... preciso fazer alguma coisa! ? choraminguei.
? Quer que eu o chame aqui? ? Awen ofereceu.
? O quê?
? Quer que eu chame Hasan aqui? Ele pode ir e vir entre os céus sem restrições!
Mordi os lábios, é claro que eu o queria ali, mas isso implicaria em dar esperança a ele de tirá-lo de lá, e eu ainda não tinha certeza de como faria.
? Na semana anterior ? Awen comentou ? Hasan estava treinando com Hamza no Oitavo. Os dois no salão de treinos... com um bando de Vernuns cheias de fogo os babando! Até Luyen e Doreen estavam lá, sem piscar vendo os dois. Yoru ficou espumando de raiva!
Awen deu uma risadinha, ele estava mais perto, tocando aquela rachadura visível por baixo da blusa curta.
? É o efeito que vocês causam nas pessoas! ? brinquei ? Solaris e tenebris tem isso em comum...
As palavras foram sumindo conforme eu encarava o rajado dourado nos olhos de Awen. O mundo pareceu mais silencioso do que já estava e um misto de lembranças e ideias tomaram conta de minha mente.
? O dourado nos seus olhos. Você também tem sangue solaris. É um mestiço. ? Awen ergueu as sobrancelhas e assentiu.
Ele não só possuía sangue solaris, como provavelmente conseguia criar tormentas solares também, se não, o dourado não estaria lá... e sua mãe tinha os mesmos olhos, porém com mais dourado aparente. Mesmo assim seu nome não estava em nenhum registro de mestiços, com ou sem magia solaris.
? Disse para mais alguém sobre... aquela possível gravidez de Alfia?
Awen meneou a cabeça negativamente.
? Quando a questionei sobre isso, ela disse que não era possível. ? Awen deu de ombros ? Não fiquei lá mais tempo para saber se estava ou não esperando um filho.
? Magas perdem o poder na gravidez... pois a magia de autocura vê a gestação como uma doença. ? murmurei ? poucas vezes o poder retorna antes da criança nascer.
Awen piscou devagar, tentando entender o turbilhão que girava em minha mente.
? Isso... pode acontecer com portadoras de magias de outras raças também? ? Awen perguntou.
? Não tenho certeza... mas se não for exatamente isso, Awen, tenebris costumam devorar magia e luz, certo? O que acontece com a magia que vocês devoram?
Awen franziu o cenho, percebendo o terreno por onde meus pensamentos caminhavam.
? Nós nos fortalecemos com ela. É algo semelhante ao que você faz com o calor que toma.
? E, por alguma hipótese... você poderia, por exemplo, manter um solaris com você e se alimentar da magia dele por anos, sem que os outros soubessem? ? quis saber.
? Está me assustando com essa conversa! ? Ele se aproximou mais ? O que está pensando, Kiara?
? Só me responda! ? implorei, e mesmo a contragosto, Awen assentiu.
Me ergui rápido, ignorando os estalos do gelo ao redor de minha barriga ao fazê-lo. Uma dose de ânimo sacudiu todos os pensamentos negativos de minha mente enquanto me esforçava para não rir como uma louca.
? O que vai fazer? ? Awen perguntou ao notar que o agarrei e o arrastava para sairmos da biblioteca.
? Muitas coisas! ? sorri ? mas a primeira, é invadir o harém de seu pai, e você vai me ajudar! ? Awen arregalou os olhos e meneou a cabeça negativamente, mas eu não daria espaço para que me negasse aquele pedido.
Se estivesse certa em minhas suspeitas, não só em relação à Alfia, quanto as minhas novas suspeitas sobre Nedyle, ela tinha a aparência semelhante à de um solaris. Poucos traços, além da habilidade de conjurar escuridão era de tenebris... Owyn teria um registro dela! Porque não havia nada de sua concubina, mãe do seu primogênito ali? Até mesmo a mãe de Hawana, irmã de Awen, tinha um registro. E nem mesmo era mestiça.
? Espero que não nos meta em confusão, Kiara! ? Awen ralhou, mas parou de resistir aos meus puxões e me seguiu para fora da biblioteca.
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Hasan:
Uma semana nunca tinha se passado tão rápido em minha vida.
No dia em que desci ao Oitavo no meio da festa de noivado para escapar um pouco daquele tormento, ao voltar para o Primeiro, me deparei com Alfia chorosa, dizendo que minha atitude fora uma afronta e a deixara envergonhada. E de novo, com a paciência que andava sumindo dia após dia, a lembrei educadamente que eu estava ali por vontade própria e que eu estava lhe fazendo um favor. Não ligava para o que pensassem daquele casamento de fachada.
Alfia se enfureceu, obviamente.
E me lembrou amargamente, como fel descendo por minha garganta, que se eu decidisse sair dali, muitas pessoas sofreriam por minha animosidade a ela. Alfia parecia não entender que fora ela quem causou minha rejeição, tentando forçar algo onde não cabia, tentando manipular todos a sua vontade.
De pé em frente ao espelho do quarto, encarei meu reflexo. Não me sentia eu. Parecia que meu eu verdadeiro tinha desaparecido sob uma máscara de frieza e indiferença. E pensar que por tantos anos deixei que aquela fosse uma expressão realmente minha, e mesmo assim...
Ela vira por baixo, enxergara as camadas mais profundas e lutou para me alcançar.
Ela não estaria ali.
Pra quê? Assistir aquela humilhação? Um casamento que seria apenas uma ordem de prisão.
Por quanto tempo, não sabia. Estive tão enojado com a alegria de Alfia com aquele casamento arranjado, que não tive estômago para lhe perguntar se havia usado o “presente” de Sirius e Áries. Presente para minha liberdade, não a ela.
Meu presente...
Suspirei tentando ignorar aquilo. O peso que sentiria, imaginando que outra pessoa seria forçada a assumir aquela responsabilidade. Talvez Alfia chegasse a ser uma boa mãe, talvez para aquela criança, viver ali jamais seria um peso. Precisava levar esses pensamentos em consideração, ou não conseguiria me livrar daquela culpa.
? Senhor... ? alguém bateu na porta ? Vossa majestade o espera! A cerimônia já vai começar!
Um frio passou por minha espinha e a única coisa que continuava firme em minha mente, era a vontade de voltar para Vegahn... e ver Kiara outra vez.
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Não reparei nos convidados que aguardavam o início da cerimônia. Sentia a presença deles, sabia que muitos conhecidos estavam presentes. Owyn e seus filhos, Hamza, o rei do Oitavo... mas não havia nenhum dos meus amigos ali. Não senti a presença de Lórien, ou de meus pais... nem mesmo de Kiara. É claro que não. Alfia não a permitiria ali!
Tentei não imaginar o que estariam fazendo, mas me lembrava das expressões em seus rostos quando meu filho lhes passou minha mensagem, quando pedi que não fossem até lá. Não era uma data a ser comemorada.
Com um suspiro cansado, me esforcei para manter uma expressão tranquila, mesmo que quisesse gritar e dizer não assim que o sacerdote me perguntasse se eu aceitaria Alfia. Mas o rosto daquela solaris agradecendo por impedir que o céu caísse e centenas de outros mais, impedia-me de sair daquele salão e deixar o lugar à própria sorte.
Alfia estava de pé diante do sacerdote, aguardando-me com um sorriso lupino no rosto. Não tinha mais nada da criatura pacífica e gentil que abrira os Céus para os humanos. Me aproximei, mantendo espaço o suficiente entre nós para que apenas sua mão envolvesse meu braço.
Não era o pior que poderia acontecer. Um casamento de fachada, com uma pessoa que eu sabia detestar. Não era pior do que casar por amor e descobrir depois que não era o que esperava.
? Podemos começar. ? Alfia sorriu, apertando meus dedos com os seus.
Não prestei atenção em nada durante a cerimônia. Respondi automaticamente o que me foi perguntando. Respostas curtas, sérias, secas. Nem assim o sorriso desapareceu do rosto da solaris.
No momento em que a coroa foi colocada em minha cabeça e o sacerdote me consagrou rei do Primeiro Céu, meu estômago revirou. Pela primeira vez em anos... senti vontade de chorar. Dor, raiva, frustração, tristeza... tudo prestes a explodir para fora de mim.
Mas empurrei aquilo para o fundo e me sentei no trono ao lado de Alfia, encarando o abismo que se abria diante de mim.
Nunca em minha vida quis tanto ter sido egoísta e deixado o reino solar cair.
Alfia conversava animada com o sacerdote, após o fim da cerimônia, em seguida ela dispensaria os convidados para o pátio, onde uma grande festa que seria aberta ao povo já aguardava.
Porém, antes que os convidados começassem a se levantar, uma onda de escuridão e estrelas explodiu pelas portas do salão, trazendo um vento gelado e um perfume que fez meu interior estremecer.
Âmbar, anis e neve.
Alfia soltou um silvo ao meu lado, o burburinho entre os convidados que se perguntavam o que estava acontecendo ficou mais alto quando a escuridão ao redor dela se dissipou.
E Kiara entrou em passos decididos pelo salão. O vestido negro de crepe esvoaçava ao seu redor, destacando ainda mais a pele cor de lua e os cabelos brancos conforme se aproximava.
? Veio atrapalhar meu casamento, princesa? ? Alfia sorriu de forma zombeteira ao se recuperar do choque de vê-la ali e colocou a mão sobre a minha. Meu interior se revirou. ? Sinto lhe dizer que chegou um pouco tarde para a cerimônia. Vê? ? Ela fez um gesto sutil com os dedos na direção da coroa de aço solar em minha cabeça. ? E você não recebeu um convite. ? Alfia ciciou, encarando Kiara com os olhos estreitos.
? Alfia, por favor, já conseguiu o que queria, comporte-se! Não precisa agir assim! ? a repreendi com o coração acelerado, mas a solaris sequer olhou em minha direção.
? Não... ela tem que ouvir! ? Alfia ralhou ? O quanto a alertei, princesa? Disse que se machucaria por ficar alimentando falsas esperanças! Nós celestiais somos diferentes, especialmente para você, que não resiste a calor, era uma relação fadada ao fracasso desde o início.
? Sugiro, Alfia, não dizer tais bobagens e de novo peço que não insista nessa discussão! ? alertei, olhando novamente para Kiara, mas ela não parecia afetada pelas palavras da solaris, muito pelo contrário, um sorriso curto dava ares em seu rosto.
Dei graças por Áries não ter vindo, ou teria feito Alfia engolir gelo e vitrino até que retirasse aquelas palavras.
? Não vim aqui interromper, majestade! Jamais atrapalharia uma festa tão bonita e esperada. Fiquem à vontade para continuar a celebração se é o que desejam... ? Ela encarou as unhas, o sacerdote diante de Alfia se revirou inquieto no trono ao notar a escuridão salpicada de luz ao redor da malvarmo. ? porém não deixo de me perguntar o porquê da caçula de Sarki não estar aqui para celebrar com vocês, não é? Até onde eu conheço as tradições dos celestiais, todos os membros vivos da família têm que estar presentes em cerimônias de casamento que envolvam uma coroação e a escolha de um novo líder. Você deu a coroa a Hasan sem o consentimento de sua irmã, o que o torna superior acima apenas de suas decisões pois você quem lhe deu o poder.
Alfia soltou um silvo e moveu os olhos pela corte, que agora a encaravam confusos. Eu mesmo senti o tremor da rainha ao meu lado e perplexo, percebi as palavras de Kiara. Havia outro sangue da seiva que poderia substituí-la.
? Não há outro membro vivo da família real a não ser o tio de vossa majestade. ? O sacerdote ciciou, seus olhos âmbar fixos na garota no meio do salão com um sorriso crescente no rosto ? Se tem algo a dizer de importante, senhorita, diga para que possamos prosseguir para os festejos.
? Alfia tem uma irmã mais nova, uma maga solaris. ? os murmúrios no salão tornaram-se mais altos enquanto uns olhavam para os outros tentando entender o que acontecia. A rainha solaris mantinha os olhos em Kiara, como um animal acuado planejando um ataque para se livrar de seu atacante.
Porém Alfia apenas se endireitou e aquele sorriso doce e venenoso voltou ao seu rosto.
? Minha querida, antes tivesse qualquer um que pudesse me ajudar a liberar seu amor desse fardo tão pesado, eu sei que você se apega muito à ele e a ideia de poder ter de volta sua rotina, eu entendo que com os traumas que você viveu, não consiga aceitar bem mudanças tão bruscas. ? Alfia sorriu, estendendo a mão para me tocar, mas esquivei de seu toque. O movimento avivou algo nos olhos da malvarmo, e não era nada de bom, mas a solaris pareceu não perceber ? Você ainda é jovem, muito jovem! Não é pecado acreditar em mentiras por cultivar esperança... e quanto a Hasan, eu imagino que como saiba tanto de nossos costumes, talvez esteja disposta a aceitar ser minha co-esposa, podemos realizar a cerimônia hoje mesmo!
O silêncio tomava conta do ambiente enquanto ela falava como se eu não estivesse ao seu lado. Meu coração disparou, irritação tomava conta de mim e queria sair daquele trono, atirar aquela coroa nos braços de Alfia e poupar Kiara daquelas palavras cheias de fel, o problema é que se saísse, pessoas inocentes pagariam pela arrogância de sua rainha.
Os outros soberanos celestiais nos observavam com cautela, mas não sairiam até que algo realmente ruim acontecesse.
Um espetáculo a ser assistido, com certeza!
Devia intervir... deveria dizer algo que acabasse com aquilo de uma vez, mas sabia que Kiara poderia se ofender caso eu comprasse aquela briga, ela não teria aparecido sem estar pronta para uma batalha, mesmo que não precisasse de armas para aquela.
Porém um frio desceu por minha coluna ao encarar a princesa, pois o azul desaparecera dos olhos dela.
? Adoro quando me subestimam por minha idade ? Kiara sorriu de forma divertida e cruel, e com apenas um sussurro eles apareceram saídos das trevas. Lohan vinha acompanhado de uma mulher vestida de ouro, longos cabelos negros adornados com ponteiras metálicas e um sorriso suave. Seus olhos eram de um dourado vivo, flamejante e a pele cor de bronze cintilava, como se sob ela um sol brilhasse.
O som voltou ao salão, dessa vez, a reação era de choque. Alfia mais uma vez estremeceu.
? Nedyle, gostaria de se apresentar devidamente às cortes dos céus? ? Kiara sorriu.
Alfia olhou diretamente para Owyn ao lado de seus maridos na primeira fileira, havia algo em seu olhar que não pude perceber, mas se parecia muito com descrença.
? Então? ? o sacerdote pediu impaciente.
A mulher deu um passo à frente, soltando-se do aperto cuidadoso de Lohan, ela encarou todos nos olhos por um momento antes de dizer as palavras que seriam minha libertação:
? Meu nome é Nedyle Hellenon, filha de Sarki Hellenon V, nasci na corte de Malira Tsaus pois minha mãe, Edyl fazia pare de seu harém. ? A seguinte enxurrada de protestos e comentários foi silenciada por um rosnado assustador de Kiara, que sabe-se deuses de onde havia conjurado Sielem e apoiado o machado colossal sobre os ombros.
Não era o verdadeiro, era uma réplica de gelo. O real continuava pendurado em minha pulseira.
? Continue. ? Lohan tocou suas costas com carinho, então era ela quem tinha seu coração nas mãos. Nedyle lhe deu um sorriso e tornou a falar:
? Espere! Isso é impossível ? Alfia gaguejou, descendo os poucos degraus do púlpito até o corredor entre os bancos onde os convidados a observavam com cautela. ? Isso não pode ser verdade, a lei obriga os pais com maior poder hierárquico a levarem suas crias bastardas com eles! Meu pai a teria trazido para cá se isso fosse verdade.
? Não se ele não soubesse de minha existência ? Nedyle rebateu ? minha mãe mentiu sobre meu pai verdadeiro e pediu à uma curandeira ventus que me colocasse um selo temporário para esconder minha tormenta, assim eu não seria sentida. ? Ela encarou Owyn por um momento, que sob um olhar quase psicótico de Kiara, assentiu ? Por ter sido criada como uma tenebris sem a transformação dos pesadelos na corte de Malira, logo um dos filhos dela descobriu sobre meu poder solar oculto quando o selo perdeu a força, então em troca de me manter protegida do Primeiro e de ser levada por Sarki, passei a fazer parte do harém do príncipe Owyn, ele manteve meu poder oculto por todo esse tempo.
Dizendo isso, Nedyle ergueu as mãos e fogo solar surgiu nas pontas de seus dedos, disparando luz morna pela sala.
? Owyn? ? Kiara pediu, uma vez que ninguém mais parecia ser capaz de dizer uma palavra. O soberano tenebris suspirou pesadamente, enrolando os dedos nas tranças longas ele se levantou e colocou a mão sobre o peito.
? Eu sou testemunha da verdadeira identidade de Nedyle Hellenon, sua mãe Edyl confirmou isso em seu leito de morte. ? naquele momento os murmúrios tornaram-se gritos, o sacerdote revirou os olhos e sentou-se num dos bancos enquanto observava o que aquela discussão se tornaria.
? Se você a mantinha em seu harém, quem garante que não está dizendo isso apenas para que possa controlar o Primeiro também? ? Alfia acusou, com um sorriso viperino crescente. Outros celestiais a apoiaram, dizendo que aquilo era o tipo de coisa que se esperaria dele, até mesmo Yoru concordava com a solaris. Owyn no entanto levantou-se de seu lugar e aproximou-se lentamente da rainha.
? Eu não precisaria conquistar e controlar o Primeiro através de terceiros, Alfia, uma vez que você mesmo no seu auge, não tinha um terço do poder de seu pai! Eu poderia ter entrado aqui, devorado você e sua magia e colocado Nedyle no trono se realmente quisesse e você sequer teria tempo para gritar por ajuda! ? As palavras dele fizeram-na se encolher outra vez e voltar para o trono ? E também, minha querida Alfia, você descobriu sobre Nedyle anos antes de Kiara começar a investigar os documentos e registros de mestiços solaris e as concubinas de meu harém na semana anterior. Você descobriu quem ela era, na época após o ataque dos solaris ao Sétimo, me ofereceu um acordo para que eu mantivesse sua identidade em segredo.
As pessoas dentro da sala agora em total silêncio, encaravam incrédulos a solaris que dizia colocar o povo acima de tudo... mas que teria deixado o Primeiro desabar sobre suas cabeças apenas para não perder a posição. Owyn mexeu nas tranças, ele ainda não tinha acabado:
? Quando Kiara começou a procurar por algo ou alguém que livrasse Hasan do dever que ele claramente não queria, você ordenou que ela fosse impedida de entrar no Primeiro, mas esqueceu que ela foi criada em parte por mim, e nada, NADA, fica escondido de mim.
Kiara lançou um sorriso agradecido ao tenebris, que em resposta inclinou-se numa mesura.
Eu não sabia o que dizer.
Queria pegar Alfia pelos braços e sacudi-la, mas com o pingo de calma que me restava, virei-me para ela e perguntei:
? Porque fez isso? ? Alfia abriu e fechou a boca, pânico tomava conta de suas feições e ela se encolheu vacilante para longe.
? Eu queria... queria ter uma chance de ter uma família, ter alguém ao meu lado, de poder governar em paz...
? E para isso precisava mesmo forçar responsabilidade em alguém que não a queria? ? Nedyle acusou, aproximando-se de nós. ? Hasan, se quiser, posso ir até o tronco de lumis, eu farei a doação.
Alívio percorreu cada parte de meu corpo, a sensação de que em breve estaria livre daquilo. Alfia tinha lágrimas escorrendo no rosto, e olhava com ódio velado para Kiara, seus punhos tremiam também. Por um instante, cheguei a pensar que ela avançaria contra a malvarmo mesmo que essa ainda tivesse um imenso machado sobre os ombros. Porém Kiara ainda tinha algo nas mangas.
? Tente não ficar tão nervosa, Alfia, sei que gestações celestiais são sensíveis, duvido que queira fazer algum mal ao neto de Owyn. ? O rei tenebris arregalou os olhos quase imperceptivelmente, Nedyle porém ficou com a pele incandescente e soltou um rosnado medonho. ? Ah! Não disse a eles? Sua habilidade de reproduzir não foi realmente afetada pelo que seu pai fez... descobriu isso com Awen, não é? Foi assim que conseguiu trazer Hasan. Um bebê mestiço, solar e tenebris drenando sua magia. A impedindo de manter a barreira viva!
Awen estava quase sumindo na cadeira, mas ele ao menos não parecia irritado com a amiga. Outra chuva de comentários e sussurros irrompeu na sala, o que fez com que o sacerdote finalmente se erguesse e batesse seu cajado no chão impedindo que Nedyle saltasse sobre Alfia e rasgasse sua garganta.
? Então... como resolveremos essas questões, majestade? Precisamos comprovar se o poder de... da suposta princesa Nedyle é compatível com a Lumis.
? Espere... ? Alfia choramingou apertando meu braço. ? Eu sinto muito! Só queria...
? Chega de dar desculpas. ? rosnei ? O que você fez não condiz com o que dizia querer, o bem do seu povo e sua proteção, você agiu de forma egoísta, inconsequente e imagino o motivo de querer tanto que eu fosse para sua cama, você ainda mentiria sobre o filho que carrega! ? Alfia sacudiu a cabeça negativamente, mas agora eu via com clareza a trama de mentiras.
Estava enjoado.
Soltei meu braço de seu aperto e segurei a mão de Nedyle.
? Aceito que vá até o tronco da barreira. ? Nedyle assentiu.
? Quem quiser testemunhar, podem vir conosco. ? convocou, olhando-os um por um.
? Não, não vão! Eu não aceito! Não passarei minha coroa a uma mestiça! ? Alfia finalmente deixou a máscara cair, ela se ergueu novamente e se aproximou do sacerdote que se encolheu temeroso ? Ainda sou a rainha aqui!
? Não, não é. ? Kiara sorriu ? Hasan é o rei, me corrija se estiver errada, sacerdote Ferlyn, mas quando Alfia coroou Hasan, o poder hierárquico dele se tornou maior por ele ser homem, certo? ? O sacerdote empalideceu, perdendo o brilho de sua pele sob o olhar irado de Alfia, mesmo assim assentiu. Ela ameaçou avançar em nós, mas foi segurada por Awen, que espalhou aquela fumaça ao redor da solaris.
? Está certo. ? com um sorriso aliviado, tirei a coroa da cabeça de Alfia e a coloquei sobre os cabelos escuros de Nedyle.
? Pelo poder que me foi investido pela rainha solaris, eu lhe passo minha coroa e a declaro diante das cortes dos céus, como a atual rainha do Primeiro reino solar, Nedyle Hellenon. ? Alfia se deixou cair no trono, mas foi erguida e retirada do assento por um Awen sorridente.
? Eu aceito essa coroa e a responsabilidade que vem com o peso da mesma. ? Ela sorriu e mesmo que todos ali estivessem chocados e confusos, todos reverenciaram a nova rainha solaris, o sacerdote lhe tocou a testa com os indicadores e deixou que a magia de Nedyle se espalhasse cobrindo-a com um véu de luz dourada. ? quando voltar, anularei seu casamento. ? Ela apertou meu braço e em seguida, os soberanos que acompanharam o casamento seguiram-na para fora do palácio para ir até a barreira.
? E essa senhora? ? Awen perguntou, ele ainda segurava Alfia, cujo olhar derrotado estava na procissão que deixava o palácio atrás de Nedyle para lhe confirmar a identidade quando sua magia substituísse a minha na barreira.
? Acho que ela deveria ser levada aos seus aposentos e ter um curandeiro tenebris para acompanhar sua gestação e impedir que ela faça algo estúpido. ? alertei. Alfia sequer reagiu as palavras, mas o tenebris fez uma careta na direção de Kiara.
? Desculpe. ? Ela lhe tocou o braço. Awen deu de ombros.
? Eu teria feito o mesmo. Aprendemos isso com o mesmo mestre. ? Ele sorriu, então segurando Alfia com cuidado, deu um passo para aquela passagem escura e desapareceu. Retirei a coroa de minha cabeça e a coloquei sobre o trono de veludo dourado, senti como se um peso fosse tirado dos meus ombros.
Kiara estava em silêncio me observando, mantendo-se a alguns passos de distância.
? Está tudo bem? ? Ela perguntou, aproximando-se um pouco. Por aquela ligação do juramento, agora viva e nítida novamente, senti que ela se mantinha longe dando-me espaço... porque não queria me tocar sem que eu dissesse que estava tudo bem.
Me ajoelhei e a envolvi com meus braços, apertando-a contra mim.
? Obrigado. ? Kiara soltou um suspiro pesado e acariciou minha cabeça com as pontas dos dedos, seu toque fez meu corpo se arrepiar, relaxar e perceber o que já sabia a um bom tempo:
Ela era minha salvação.
? Parece que o jogo virou, não é? ? levantei meus olhos para observar aquele rosto perfeito sorridente. ? Dessa vez a princesa foi quem enfrentou o dragão de fogo e salvou o príncipe que se casaria com a bruxa malvada.
Uma risada abafada escapou de mim.
? Faltou o cavalo branco! ? brinquei, erguendo-me para pegá-la nos braços ? quem era o dragão?
? Alfia ? ela mordeu os lábios, seus olhos turquesa brilhavam ao me encarar.
? Achei que ela fosse a bruxa ? me inclinei, depositando um beijo suave em seu pescoço.
? Também! ? Kiara segurou meu rosto entre as mãos ? e agora falta uma coisa.
? Acho que sei o que é ? enrolei meu punho em seus cabelos e a beijei, matando a saudade do gosto de sua boca, da sensação de sua língua contra a minha, arrancando um gemido baixo dela ao puxar suas penas para cima para que ela as prendesse ao redor de meu quadril. Kiara suspirou ao sentir a parede do salão contra suas costas, ela estava arfando quando quebrei o beijo apenas para lhe tocar o pescoço com os lábios outra vez.
? Senti sua falta também. ? Ela riu.
? Eu podia dormir sem imaginar como isso acaba! ? Nedyle pigarreou e os outros soberanos tentavam esconder sorrisos maliciosos.
Fiquei tão perdido na alegria de ter Kiara de volta que não os percebi chegando, nem mesmo que a sensação da barreira ao redor do castelo havia mudado. As marcas do céu solar não estavam mais em minha pele também.
? Duvido que não gostaria de imaginar. ? Kiara brincou, quando a deixei descer, mas não a soltei, não com aquele bando de pervertidos nos olhando como se fossem nos colocar na mesa de jantar.
? Hasan Orieser, seu casamento com Alfia Helleon está anulado. ? Nedyle sorriu para nós.
? Obrigado ? me curvei um pouco. ? Acredito que será uma rainha maravilhosa.
Diversão brilhou em seus olhos dourados.
? Espero que não esteja dizendo isso só porque eu te livrei daquela louca. ? Ela riu ? mas deveria agradecer a Kiara por isso, não teria saído do Quinto se não fosse por ela.
? Estava quase ganhando esse agradecimento, mas vocês chegaram! ? Nedyle sorriu maliciosamente e arqueou as sobrancelhas.
? Bom... temos uma festa pronta no pátio! Não comemoraremos mais um casamento, mas porque não aproveitar a festa de uma coroação? Seria um desperdício não comemorar! ? Ela indicou aos outros soberanos o caminho até o salão e eles foram na frente comentando baixo uns com os outros, nos olhando enquanto saíam. Lohan se aproximou de Nedyle e beijou seu rosto, eles trocaram palavras silenciosas antes de ele desaparecer na fenda.
? Se quiserem passar a noite...
? Desculpe a grosseria, majestade, mas estou com saudade de minha casa. ? Nedyle sorriu ainda mais com minha resposta.
? Não existe lugar melhor que o nosso lar. ? Ela fez uma mesura e se aproximou de Kiara, lhe segurou o rosto nas mãos e beijou sua testa. ? Lohan me disse o que você fez para que Owyn me liberasse.
O rosto de Kiara perdeu a cor e Nedyle riu baixinho.
? Eu...
? Foi muito feio, mas é o único jeito de lidar com Owyn. E o que você fez para livrar meu filho de Nibben, fico ainda mais agradecida. Ela é horrível, só não gostei muito da parte que ele veio para cá.
? Owyn não sabia, não é? ? Kiara perguntou, Nedyle meneou a cabeça negativamente, sua pele cor de bronze brilhou um pouco, fazendo a malvarmo se encolher.
? Mas eu acredito que tudo tem um motivo para acontecer e ainda vou ter mais coisas para te agradecer no futuro, porém agora eu imagino que você também queira ir pra casa ? Ela me lançou um olhar malicioso e soltou Kiara, que estava com o rosto azulado.
? Volto depois para conversarmos mais! ? Kiara agarrou meu braço e com um estalo dos dedos, abri um portal direto para Vegahn e atravessamos.
? Pode me contar o que foi tudo isso? ? Pedi, envolvendo seus ombros com o braço, queria Kiara o mais perto de mim quanto possível.
Ela sorriu.
? Foram muitas coisas, é melhor perguntar na ordem do que quer saber!
? O que fez com o rei do Quinto Céu para Nedyle dizer que foi feio? ? Kiara sorriu e seu rosto ganhou mais cor, não deveria me preocupar com aquela expressão, mas meu coração acelerou.
? Quando descobri que Nedyle era mestiça e tinha poderes plenos de uma maga solaris, eu o chantageei. ? Ela riu ? Ameacei dizer a Awen que sua mãe por ordem de Owyn manipulou a mente de Nibben para ela agir como uma idiota com ele, assim ele a procuraria novamente e ela para não perdê-lo, teria confirmado a história. Owyn ficou zangado, disse que eu não teria coragem de fazer isso, mas eu disse que aprendi com ele que não há limites para se conseguir bons resultados. ? Ela piscou lentamente.
? Você chantageou um rei tenebris...
? Ainda estou nervosa com isso! ? Kiara riu mais, apertando minha cintura com o braço.
Encarei os limites do portal e as estrelas além.
Ela fizera aquilo por mim.
Depois de alguns instantes em que caminhávamos em silêncio, perguntei:
? E sobre a gravidez de Alfia?
? O próprio Awen me contou, aquele dia que foi a ACV. ? Ela deu de ombros. ? Demorei a ligar isso com a ausência da magia dela. Confirmei isso com Nedyle.
? Kiara... Alfia lhe disse algo para que você não voltasse mais lá... ? não sabia como chegar a aquele assunto. Ela parou de andar e me observou em silêncio ? Eu nunca... nunca estive na cama dela.
? Eu sei. ? Ela deu um meio sorriso. ? não acreditei quando ela insinuou o que tinham feito, não que você não pudesse, claro, ela é linda! ? Kiara desviou o olhar por um instante. ? mas porque imaginei que mesmo que você quisesse, não se abriria tão facilmente assim para ela.
O aperto em meu peito se aliviou.
Ela me conhecia. Reparara até mesmo em como eu agia.
? E também, percebi um pouco depois que ela estava usando magia solaris em mim, para mexer em minha mente.
? Como? Magia solaris de manipulação é quase imperceptível! ? voltamos a caminhar lentamente pelo túnel luminoso. Seu rosto outra vez ganhou mais cor e ela olhou para longe, para o fim do portal ainda distante alguns metros.
? Quando saí do palácio, Lohan me encontrou no caminho e queria me acalmar, achando que eu iria voltar e cortar a rainha em pedacinhos. Ele me levou até a casa de Luyen para tomar café com eles... e eu me senti mal. Luyen perguntou sobre uma possível gravidez... e eu voltei correndo para o vale, queria saber se podia ser.
Foi minha vez de estacar no meio do caminho, até mesmo minha pele ficou dormente. Não importava os chás, ervas ou remédios, não existiam métodos que protegessem contra a concepção de celestiais.
? Procurou a sala de cura dos bruxos? ? quis saber, ela assentiu e me encarou outra vez.
? Eu costumava treinar com Awen, e ele estava sempre tentando manipular minha mente, tentando me ensinar a perceber os sinais de quando era manipulação ou realidade. Quando acabávamos, eu ficava sempre enjoada ou com dor de cabeça. ? Ela notou que eu ainda esperava uma resposta para a primeira pergunta e mordeu os lábios ? Eghan disse que não vou ter um bebê que solta fogo pelos dedos.
Tentei não parecer aliviado com a resposta, mesmo assim ela percebeu e riu.
? Não é que eu não queira, só...
? Nem brinca! Não é hora para isso! ? Ela ralhou ? tem um demônio de fogo querendo minha cabeça, preciso me esforçar mais por nos treinamentos, tenho que achar o restante dos fragmentos, encontrar meus pais de preferência vivos... ? Kiara bufou ? Deuses! Se eu fizer uma listinha acho que vou chorar.
Não pude evitar rir.
? Eu nunca vou me arrepender de escolher te amar, Kiara. ? Ela voltou a me enrolar com o braço e sorriu.
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Ao sairmos do portal direto dentro das barreiras do Vale do Sol, Kiara seguiu quase dançante para dentro da casa. Sentei-me no sofá diante da lareira apagada, que fiz acender com um estalo dos dedos e ela se aproximou, sentando-se ao meu lado. A puxei para meu colo e a apertei nos braços, enterrando meu rosto em seu pescoço, entre os cabelos perfumados com aquele inebriante aroma de anis e neve. Ela suspirou e arqueou o corpo quando passei os lábios por sua pele, puxando o tecido do vestido para cima.
? Gostei do vestido. ? comentei, reparando na renda em formato de flocos de neve ao redor do decote quase transparente.
? Era um casamento, ia ficar feio entrar de uniforme! ? Ela riu, o humor leve me fez estremecer outra vez e apertar os dedos em seu quadril.
? Não faz ideia do quanto senti sua falta ? sussurrei. Kiara murmurou algo e enrolou os dedos em meus cabelos ? houveram dias em que eu queria deixar aquele céu cair... só para voltar para casa, para você ? E por pior que aquelas palavras soassem fora de minha mente, eu não pude evitar dizê-las, pois não era mentira. Kiara suspirou e afastou-se um pouco para me encarar.
? Posso perguntar uma coisa? ? Ela mordeu os lábios, assenti ? Aquele dia... em que fomos até lá para o festival, eu te ouvi falando com ela na sala, peguei partes da conversa ? seu rosto ganhou cor e ela se mexeu um tanto desconfortável ? você disse a ela que Neruo é um mago humano. Ele é meio solaris, já o vi conjurando fogo solar. Então porque mentiu para ela? Porque não deu a ele essa escolha? Imagino que quisesse livrar ele dessa responsabilidade, mas não acha que ele faria algo para o ajudar? ? seu coração acelerou ? me desculpe se estiver perguntando algo que não me diga respeito! Eu só... fiquei curiosa!
A encarei por alguns segundos sem saber ao certo como responder, o que a resposta podia acarretar. Sabia que Neruo diria quando se sentisse à vontade, mas sabia que Kiara o entenderia também.
? Kiara, Neruo gosta de homens. Eu jamais pediria a ele que se casasse com uma mulher por obrigação! Ainda mais uma mulher tão detestável quanto Alfia. ? Kiara piscou, seus olhos se arregalaram e seus lábios moldaram um O enquanto a informação caía em sua mente.
? Ele disse...
? Ele não me disse, mas eu sei, já percebi a muito tempo. ? a apertei mais em meu colo, traçando linhas com as pontas dos dedos em seus quadris.
? Isso não o incomoda? ? sua voz mudou assim como seu cheiro quando tornei as carícias mais longas, lascivas.
? Quero a felicidade de meu filho, não importa como seja. ? beijei seu pescoço novamente e observei atento ao arrepio que subiu por sua pele. ? devia imaginar isso, uma vez que não me incomodo com isso em você também.
Ela soltou uma risadinha e se inclinou para tocar de leve os lábios nos meus.
? Hestia agora não pode mais brincar comigo, Fares a pegou.
? Então eu tenho você só para mim. ? brinquei, mordendo de leve seus lábios. ? Ela estremeceu e soltou um suspiro pesado ao perceber que eu tirava devagar o ganchinho de seu sutiã ? Eu detesto com todas as forças... interromper você. ? Kiara segurou minhas mãos e as afastou de seu corpo, deixando um lamento escapar.
? Fiz algo errado? ? meu coração acelerou, ela meneou a cabeça negativamente e beijou minhas mãos antes de sair de meu colo.
? Áries... vá ver sua mãe primeiro. Ela sabia que eu estava nos céus e que seu casamento seria hoje, pode estar angustiada esperando que eu volte com notícias, ou com a cabeça de Alfia para enfeitar a parede dela. ? Kiara sorriu um pouco sem graça e mesmo que eu quisesse muito ficar, queria tirar aquele peso dos ombros de minha mãe também.
? Amo você. ? sussurrei dando-lhe um beijo e abrindo um portal atrás de mim.
? Não demore, mestre, precisamos rever algumas matérias que eu perdi. ? O sorriso malicioso que me deu foi o que me fez ir mais rápido para o outro lado.
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A visão que tive de minha mãe ao entrar em seu quarto poderia ter me devastado se eu fosse obrigado a voltar para o Primeiro. Áries estava dormindo encolhida sobre a poltrona perto da lareira, a barriga mal começava a ganhar uma forma levemente arredondada, mas suas mãos estavam sobre ela. Protegendo-a.
Me aproximei devagar, abaixei em sua frente e segurei suas mãos com cuidado. Áries abriu os olhos negros imediatamente, ela piscou algumas vezes, espanto e descrença brilhavam em seus olhos ao varrer meu rosto com o olhar e erguer as mãos para me tocar.
? Está... de passagem? ? suas palavras soaram fracas, mas percebi que ela estava procurando pelas marcas do Céu Solar em mim.
? Se levar em conta que preciso tirar Arcádius de minhas aulas e repor matéria, sim. ? sorri, beijando suas mãos ? Kiara foi até lá e me tirou das mãos de Alfia. ? aquilo soava bobo. Mas era a impressão que tinha, eu havia sido liberto da rainha solaris... de minha prisão com o povo do Primeiro.
Áries sorriu.
? Quero ver isso! ? Ela puxou meu rosto, pedindo permissão.
E mesmo que eu não quisesse, sabia que não conseguiria negar. Ela iria até Kiara e talvez o ponto de vista da malvarmo pudesse deixá-la mais irritada.
Após ver como foi que Kiara me livrou da coroa do Primeiro, Áries passou os braços ao meu redor, apertando-me num abraço e riu, gargalhou! Uma risada louca e infinitamente divertida!
? Eu sabia que ela não me decepcionaria! ? Áries se afastou sorrindo. Pisquei, confuso ? Ah, ela não disse? Eu a contratei para tirá-lo de lá.
? Mãe...
? É claro que ela faria algo sem que eu pedisse, mas fiz isso para que Kiara não começasse a ter ideias erradas sobre estar sendo egoísta por trazê-lo de volta. Você mesmo tinha pensamentos assim, queria voltar, mas tinha receio por se achar responsável ? Ela estalou a língua e recostou-se novamente na poltrona. Suspirei, sabia que ela estava certa, como sempre.
? Onde está meu pai? ? quis saber.
? Ele foi até Alamourtim, Asahi anda estranha ultimamente. ? Áries franziu o cenho ? desde o ataque do demônio às Tormentas, ela não sai do quarto, escutam ela falando sozinha... acho que ela não está bem. Ela lançou uma barreira ao redor do quarto e não deixa ninguém entrar. Seu pai foi tentar falar com ela.
? São muitas perdas, mãe. Se ao menos Leona e Ewren ainda aparecessem! ? A última vez que eles desceram foi um tempo antes de Nikella e Susano ruírem junto ao castelo.
? Não conseguimos falar com eles. ? Áries se encolheu. ? Talvez tenham tentado intervir quando aquilo aconteceu e ficaram presos.
? Talvez.
Desde antes do castelo de gelo cair, Asahi começou a exibir um comportamento estranho, não interagia mais com as irmãs, não saía dos limites de Alamourtim e vivia murmurando sobre alguém que a deixou, mesmo que mais ninguém soubesse de quem ela estava falando.
? Não se preocupe com isso agora! ? ela beliscou minhas bochechas, abrindo outro sorriso ? precisa espairecer um pouco! Tirar o fantasma dos dias naquele lugar horrível da cabeça!
? Obrigado. ? segurei seu rosto nas mãos e beijei sua testa ? Por ter se preocupado.
? Já disse uma vez, Hasan. Você é meu bem mais precioso! Jamais lhe entregaria de bandeja para aquela ruminante luminosa! ? comecei a rir.
? O apelido cai bem! ? levantei-me, pronto para sair. Kiara ainda devia estar esperando. ? Avise a meu pai que estarei na ACV segunda de manhã.
Áries estreitou os olhos e assentiu devagar. Minhas orelhas queimaram e tive que me segurar para não revirar os olhos por sua malícia sem limites.
Senti falta disso, de poder sorrir com pessoas que amava.
Queria ir logo até Lórien e saber se estava bem, dizer que voltaríamos ao “normal” mas sabia que ela podia esperar até segunda.
Capítulo 10
Kiara:
Depois que Hasan saiu, comecei a pensar em todas as coisas que gostaria de conversar. Tinha tanto a dizer! A prova falida, o gigante, Eileen e o fragmento mais fácil que tinha conseguido encontrar! Puxei minha bolsa ao lado do sofá e retirei de dentro os dois cilindros de vitrino. O que recuperei de Gillian ainda estava com a carta de charada dobrada,
“Pacíficas e galantes elas podem parecer, mas não deixe suas aparências enganarem você! Com seus olhos grandes e asas luminosas elas o encantarão, mas se em seus feitiços cair, jamais o libertarão!”
Se tivesse visto antes, teria chegado à conclusão que se tratava de um fragmento em Mairdok, porém ao pisar na sexta à noite na Floresta Azul, enquanto caminhava para a casa na árvore com Lohan, desejei que pudesse encontrar o próximo fragmento rápido. Como se um djinn tivesse resolvido me presentear, uma flor enorme azulada brotou no meio do caminho, fazendo-nos parar apreensivos, mas ao se abrir algo caiu de dentro dela. O cilindro de vitrino e a carta.
A única explicação possível tinha a ver com a magia de que a Floresta Azul lhe dava o que você mais precisasse. Como naquele momento eu queria o fragmento que estava em posse não de Silsiron Valeries, mas sob os cuidados de Rosalia, a rainha de Encantriz, o sexto dos sete continente das flores, a floresta atendeu ao meu pedido e o levou para mim.
A floresta Azul lhe dava o que você mais queria, desde que aquilo estivesse dentro dos limites do continente. Comida, materiais, armas... até mesmo objetos encantados, pelo visto.
Fácil! Tão fácil que senti um alívio naquele momento, pois no dia seguinte iria invadir o palácio do Sol para confrontar Alfia sobre sua negligência com o povo, mantendo Hasan lá mesmo sabendo que tinha uma irmã com magia solar.
Tinha que ter deixado os fragmentos na ACV, mas estava tarde para ir até lá, e imaginei que a qualquer momento, Hasan estaria de volta. Com cuidado, abri a dica do fragmento encontrado em Treezer e a li:
“Mestres do fogo, donos do ar. Feras astutas eles são, indomados e poderosos, jamais se curvarão. Mais do que aparência você deve buscar, pois sob suas escamas e chifres que a verdade vai encontrar.”
? O primeiro que encontro sozinha! ? resmunguei levantando-me para pegar uma garrafa de vinho na geladeira ? obrigada, pai! ? pai... Susano, Eileen que era Caalin... o que aconteceria se os dois se encontrassem? Por algum motivo louco, enquanto enchia uma taça de vinho branco gelado, comecei a imaginar uma possível situação em que eles se encontrassem.
O que será que diriam um ao outro? Não cheguei a perguntar a Eileen como era o relacionamento dos dois, ou se tinham algum. O que Eileen diria à minha mãe? Como ela reagiria? Isso não era tão difícil de imaginar, claro.
Fiquei andando pela casa, me perdendo em pensamentos até chegar à conclusão de que Áries pediria a Hasan para lhe contar tudo que acontecera no casamento, e talvez nos meses anteriores. Hasan também ia querer conversar melhor com a mãe e como eu o havia incentivado a ir até lá...
Suspirei um pouco triste.
Acabei indo tomar um banho, livrando-me do vestido preto de renda e crepe que havia encontrado nas caixas escondidas do ateliê de Frani. A costureira tinha conseguido salvar a maioria dos vestidos que fizera para minha mãe, pois ela os contrabandeava do castelo para sua casa em Hima, evitando que minha mãe destruísse todas as peças que havia ganhado quando Caalin ainda vivia com ela no castelo.
A costureira ficou exultante quando lhe mostrei o vestido de casamento que Annie escondera na árvore do fogo, prometendo que os manteria ali para mim, deixei que ela guardasse a peça e não lhe disse que não teria intenção de usá-lo. Precisava devolver o preto também, ou ela daria um chilique.
Depois de meia hora imersa em água morna e uma garrafa de vinho a menos na geladeira, escorreguei para dentro de uma camisola azul clara de veludo, sentindo meu rosto esquentar com a lembrança de Hasan me contando que era sua cor favorita.
Embora estivesse cansada pela correria dos últimos dias e o treino mais intenso de Gwyndion após ele saber que tínhamos fracassado na prova, não queria dormir. A ansiedade queria me manter acordada, mas depois de alguns momentos encarando o dossel de pedrinhas da cama, o cansaço venceu a luta.
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Fui acordada pelo deslizar do lençol sobre minha pele. Alguém o estava puxando. Um pouco atordoada pelo sono pesado causado pelo vinho, senti mãos firmes agarrarem meus tornozelos, virando-me para cima. Se não fosse o cheiro almiscarado de sua pele e aquele toque quente de cardamomo em seu perfume natural, teria transformado o intruso numa estátua de gelo sobre minha cama.
Olhos dourados encontraram os meus conforme Hasan se inclinava sobre mim, marcando minha pele com o toque úmido e quente de sua língua, que deixava um rastro ardente onde tocava. Ele continuou o caminho cada vez mais para cima, por minhas coxas, meus quadris, deslizando o tecido macio da camisola para cima, mas ao arrastar os dedos por minha barriga, ele parou de repente.
Hasan franziu o cenho e puxou a roupa para olhar, uma pequena crosta de gelo se formava ao redor de meu umbigo. Estava bem no início do congelamento. Culpa de ter me alimentado rapidamente de Fares ao voltar na segunda de manhã para a ACV.
? Quando foi a última vez que se alimentou? ? ele quis saber, sentando-se na beirada da cama.
? Fares me alimentou no início da semana antes do começo das aulas ? murmurei um pouco frustrada. Meu coração ainda se atirava contra as costelas com o toque de sua língua. Hasan tirou a blusa, arranhando o pescoço com uma garra e me puxou para o colo sem desviar aquele olhar caloroso do meu. Passei as pernas por cima das suas devagar, esfregando-me contra seu quadril, fazendo-o soltar um suspiro pesado.
Observei a linha escarlate escorrer por seu peito, então me inclinei, lambendo-a até alcançar o corte, aumentando-o um pouco com as presas para deixar mais sangue fluir. Meu corpo se contraiu e relaxou com a sensação do sangue espesso que preencheu meus sentidos.
Hasan gemeu e apertou os braços ao redor de minha cintura, podia sentir seu coração acelerado batendo contra meu peito. Com um sorriso satisfeito lambi o sangue que ainda fluía e fechei o corte. Ele estava tremendo, contendo-se, percebi. As pupilas em seus olhos dourados estavam dilatadas e ele olhava para minha boca manchada com seu sangue.
? Senti falta disso também ? ele sorriu, apertando os dedos ao redor de minhas coxas. Lambi a boca num movimento lento, provocativo e me inclinei para frente, roçando de leve meus lábios em seu queixo. Hasan envolveu minha cintura com um braço enrolou em meus cabelos com o punho livre, fazendo-me arquear o pescoço, então me beijou.
Meu corpo inteiro tremeu e se incendiou ao sentir sua língua roçar na minha, explorando minha boca com calma e devoção, levando a saudade embora, preenchendo o vazio que eu sequer sabia o quão profundo estivera. Me afastei com dificuldade, respirando rápido.
O solaris sorriu de forma maliciosa e levantou meu queixo para acariciar meu pescoço com a língua e os dentes, trazendo de volta a sensação que me fizera acordar. Meu corpo tremeu e quase me desfiz com aquele toque possessivo e sensual.
? Soube que foi contratada para me tirar do Primeiro ? Ele sussurrou contra minha pele, as palavras lançaram vibrações quentes por meu corpo, mas por um momento, meu interior congelou e minha respiração se alterou.
? Eu...
? Preciso acertar as contas, você não foi cobrar sua contratante. ? o sorriso contra minha garganta me fez relaxar outra vez.
? Vai ter que se esforçar mais, eu extorqui um rei tenebris para conseguir sua liberdade ? Hasan riu e voltou a me beijar, mordendo meus lábios, sugando minha língua, com uma mão ele começou a fazer círculos em um dos meus seios, com a outra, usando suas garras, arranhava suavemente a pele de meu quadril. Me ergui um pouco, dando espaço para seus dedos alcançarem o interior de minhas coxas. Ele escorregou os dedos para dentro e os moveu devagar ao mesmo tempo que desceu a boca para o meu pescoço novamente e me mordeu.
Alcancei um orgasmo que fez minhas pernas amolecerem e um grito abafado escapou de mim.
Hasan sorriu contra a curva de meu ombro enquanto eu tentava me lembrar como respirar.
? Mãe das águas ? sussurrei, apertando minhas pernas ao redor de sua cintura, mas ele me tirou de cima delicadamente, deitando-me contra a colcha macia de veludo e me observou ofegante. Seus olhos varreram meu corpo, e um sorriso feral tomava conta de sua expressão.
? Sonhei com você, Eish-amir. ? disse suavemente, suas palavras iam contra o brilho faminto em seus olhos ? E acho que vou tornar todos eles reais agora. ? Ele sussurrou, tirando a calça de moletom que vestia, não usava cueca por baixo. O membro ganhou liberdade e latejou quando e se inclinou sobre mim novamente, puxando minha mão para que o tocasse, enquanto fazia o caminho de volta para baixo com a boca, beijando devagar a marca turquesa de uma flor em meu ombro, um beijo sob a clavícula até sua língua quente contornar os bicos de meus seios.
Gemi e gritei de novo ao sentir os dedos me penetrarem devagar, movendo-os dentro de mim com calma, como se tivéssemos todo o tempo do mundo. Me movi contra seus dedos o incitando, apreciando aquele momento o máximo que podia.
Estava desesperada por mais daquele toque alucinante, enrolei meus dedos em seus cabelos, os soltando do coque. Hasan riu e tirou os dedos, quando protestei pedindo por mais, ele me encarou com um sorriso divertido e traçou uma linha com a língua do vale entre meus seios, circulando meu umbigo, mordendo o interior de minhas coxas, chegando cada vez mais perto de onde queria o calor de sua boca.
Ele continuou as provocações até ouvir um gemido choroso deixar minha garganta. Ele sorriu de forma cruel e só então deslizou a língua para dentro de mim.
Minha cabeça girou e meu corpo tremeu outra vez, o toque de sua boca junto com os movimentos de seus dedos, fez com que eu perdesse o controle, já nem tentava amenizar os gemidos altos. Hasan não parou até que eu alcançasse o orgasmo mais uma vez e pedisse para que parasse. Tinha perdido a força e não sabia se conseguiria me mover depois daquilo.
? Adoro o gosto que você tem, Eish-amir. ? Sussurrou puxando meu quadril, colocando-me de quatro e separando minhas pernas com os joelhos. Mal conseguia pensar ou responder. A sensação quando ele se enterrou dentro de mim numa vigorosa penetração foi como se estrelas explodissem em volta de mim, talvez fosse minha magia respondendo a ele.
Hasan começou a se mover mais rápido e com força, os dedos apertados em meu quadril, puxando-me mais para ele. Eu gemia e gritava, perdida naquele prazer, rasgando os travesseiros com as garras até que não restasse nada para me agarrar. Ele gozou sem parar de me penetrar, até que seu corpo se acalmou, então saiu de mim e se deitou ao meu lado, puxando meu corpo quase inerte e trêmulo para ele, e mordendo meu pescoço com leve pressão. Estava me marcado.
? Queria ter tido sonhos bons assim enquanto você estava fora! ? minha voz soou rouca e fraca, mas meu corpo latejava em êxtase. Hasan tremeu com a gargalhada contida, mas feliz. Ele levantou o rosto para me encarar e tirou uma mecha de cabelo da frente de meus olhos, escovando minha bochecha com o polegar.
? Estava louco para fazer isso. Esse foi só um deles. ? nem tentei esconder o riso, apenas apoiei o rosto em seu braço e fiquei ali, admirando aquele poço de raios de sol em seu olhar. A cor deles me fez lembrar de algo que notei ao falar com Nedyle, seu rosto brilhou em dourado quando descobri que ela tinha mais de solaris do que de tenebris. Ela ficara nervosa a ponto de cortar as palmas das mãos com as garras, e assustada, limpou o sangue dourado ? dourado e não vermelho ? nas roupas.
? Porque seu sangue é vermelho e não dourado? ? questionei. Hasan ergueu as sobrancelhas, surpreso.
? Eu tenho sangue dourado, Kiara. A cor vermelha que você vê surgiu... do mesmo jeito que você sempre possuiu olhos vermelhos. Magia de ilusão.
Hasan estendeu o braço, cortou uma linha fina e o sangue que verteu dessa vez parecia ouro líquido.
? É por isso que quando se alimenta de mim... seu calor dura mais ? Ele sorriu. ? O mantinha vermelho para manter o segredo. Era mais fácil me passar por salamandra com o sangue da mesma cor. Não que alguém consiga me tirar sangue fácil. ? o sorriso malicioso me fez rir um pouco mais.
Como era fácil sorrir com ele por perto.
Meu mundo se enchia de cor e luz.
? Bom saber! ? brinquei, segurando seu pulso e lambendo a linha de sangue ali. Queria saber sobre Áries, me senti um pouco mal por não ter ido vê-la antes de ir ao Primeiro, mas outra pergunta deixou meus lábios: ? Você ficou chateado... porque Áries me contratou para tirá-lo do Primeiro?
? Deveria?
? Eu não sei... podia ter causado a impressão de que eu não me importava o suficiente... que eu só fui procurar um meio para te ajudar por causa do ? Ele não me deixou terminar de falar, Hasan segurou meu rosto com as mãos quentes e me beijou com tanto carinho que meu peito se apertou.
? Eu jamais pensaria que você não se importa, Kiara! Deuses! Você esperou que eu dissesse que estava bem para se aproximar de mim quando foi me tirar de lá! ? Ele deslizou os dedos por minha bochecha e sorriu. ? Áries gosta que façam a vontade dela, na hora que ela quer. O modo dela te pedir para se apressar foi com um contrato.
? Eu queria ter ido antes do casamento. Alfia não me deixou entrar... queria ter tirado você antes, só não consegui achar um tempo! E estou me sentindo péssima por isso!
? Provas, fragmentos, testes... não se sinta mal! Eu esperaria você pela eternidade se fosse preciso. ? Ele beijou minha testa ? Ou teria perdido a paciência com Alfia e expulsado todos do Primeiro para deixá-lo desabar.
De novo, conseguiu me fazer rir.
? Queria ter visto você confrontando Owyn. ? Hasan deixou escapar de repente.
? Posso mostrar, se você quiser. ? Ele piscou e assentiu, segurando meu rosto e tocou sua testa na minha.
O momento que inundou meus pensamentos foi o de quando finalmente consegui entrar na área reservada do palácio da noite, usei magia para ocultar minha presença, uma vez que sombras seriam sentidas pelos guardas que rondavam pelo local.
“O choque ao conseguir passar por uma porta de serviço e atravessar o que parecia ser um vestíbulo lotado de vestidos pendurados, e ver o harém por dentro me fez deixar a magia escapar de meu controle. O lugar era uma espécie de paraíso particular para as concubinas. Nenhuma outra parte do castelo era tão linda!
Mesmo que aquele salão me lembrasse a sala da noite, com seu piso sem limites revelando uma noite escura e estrelada abaixo de meus pés, as pilastras do salão eram feitas de um vidro iridescente que subiam até o teto, também como uma noite com quatro luas em fases diferentes em meio aos arcos de vidro.
Uma espécie de piscina com uma cachoeira tomava uma grande parte do centro da sala, e ao redor dela, entre jardineiras cheias de cíclames e adônias lilases, muitas espreguiçadeiras forradas em veludo azul com bordados prateados se espalhavam cercados por mesinhas com o jantar das mulheres.
E haviam dezessete delas. As concubinas, entre tenebris e mestiças de solaris, pelas peles alguns tons mais claros, se dividiam em pequenos grupos, algumas conversando, outras comendo. Uma ou outra liam das pilhas de livros espalhadas pelo salão.
Todas tinham parado para me olhar, curiosas e chocadas talvez por eu ter invadido sem que percebessem.
O lado bom é que ninguém tinha gritado pelos guardas, ainda.
? Kiara? O que faz aqui? Como entrou? ? Luaya, a mãe de Hawana se aproximou, um pouco. Ela, diferente das outras, que por não ter um filho não tinham direito de comer no salão principal com o rei e seus maridos, estava ali por algum outro motivo. Nedyle não se encontrava no Harém.
Isso não parecia incomodá-las. Pela proximidade de algumas e a forma que se inclinavam para perto umas das outras, duvidava que se incomodavam também com o fato de Owyn não ter “tempo” para elas.
Até onde sabia, depois de Awen e Hawana nascerem, o rei mantinha o harém apenas por tradição, mas não fazia mais do que visitas cordiais às mulheres ali.
? Usei magia para entrar... preciso perguntar algo importante. ? comecei, lançando um olhar sério a todas elas. A maioria que sabia serem mais velhas apenas pela maior quantidade de contas presas em suas tranças, olhavam-me desconfiadas. Luaya mudou o peso do corpo para o lado direito, apoiando a mão cheia de anéis na cintura estreita, ergueu a sobrancelha para mim, como se desse permissão para questionar.
? Agora estou curiosa! ? disse depois de alguns instantes. Não sabia se hesitava por criar coragem ou por receio de mandarem chamar o rei.
O que será que Owyn faria se me pegasse bisbilhotando?
? Queria saber o quanto conhecem Nedyle... e se sabem se ela tem magia solaris. ? As mulheres olhavam umas para as outras, cochichando baixo o suficiente para que eu não as escutasse.
? Nedyle é uma boa amiga. Está conosco desde antes da guerra dos céus, muito antes. Nasceu nesta sala quando o Harém ainda pertencia à Malira. ? E com surpresa e talvez chocada, percebi que as mulheres no harém, a maioria delas, tinham marcas diferentes nos braceletes prateados que usavam, apenas duas, as com menos contas nos cabelos tinham uma gota vermelha. Porém Luaya tinha tanto um olho sem pupila feito de pequenas safiras, assim como a maioria das mulheres ali, quanto a gota feita de rubi.
Ela fez parte do harém de Malira antes de se juntar ao de Owyn.
Luaya percebeu que eu olhava as joias e sorriu um pouco.
? Owyn me manteve com ele por eu ser boa em mais coisas além da cama. ? Ela piscou, suas sombras densas roçaram de leve em meus tornozelos e por pouco, muito pouco, não desabei a seus pés.
Isso porque eu fora treinada contra a escuridão ofensiva deles.
? Hawana que o diga. ? o olhar feio que Luaya me lançou disse o bastante sobre ter entendido errado o que eu quis dizer. ? AH! Sinto muito eu não disse nesse sentido... eu falei do poder! ? gaguejei. De fato, Awen e Hawana me ajudavam com os treinamentos e a magia da garota era muito superior à do irmão.
E agora imaginava o motivo e queria descobrir se estava certa.
? Não há o que podemos dizer sobre ela que você não saiba, criança! ? disse uma das mulheres sentada próxima a fonte, ela não me encarava, mantinha os olhos escuros na purpa que cortava em tiras lentamente com as garras longas. ? Edyl, sua mãe foi trazida para o harém já carregando uma criança de um solaris, mas Malira a deixou ficar e Nedyle foi criada no meio de nós. Quando teve idade pra escolher se saía ou ficava, ela ficou, com a promessa de que seria dada a um dos príncipes. Por algum motivo, Owyn que não tinha nenhum apreço a mulheres a escolheu.
? Mas... ela nunca apresentou sinais de ter magia solar? ? quis saber, a mulher negou com a cabeça, porém não disse mais nada.
Foi então que percebi que as mulheres que estavam com a marca de Malira não me olhavam, enquanto as duas de Owyn pareciam curiosas e confusas com a pergunta.
Elas sabiam de algo, só não queriam me dizer.
Precisaria confrontar Nedyle, então.
? Sinto não pode ajudar mais do que isso. ? Luaya segurou meu braço e me conduziu pelo salão, em direção às portas da frente. Algumas criadas começavam a aparecer por outra entrada, retirando os pratos do jantar, organizando as almofadas das concubinas e colocando aromatizantes na fonte.
? Eu vou dar um jeito. ? murmurei, sentindo meu peito apertar. Duvidava que Nedyle me contaria qualquer coisa, sabia que ela chegou a amar Owyn e em respeito a esse sentimento era provável que não me dissesse nada se aquilo o prejudicasse de alguma forma.
Luaya abriu as portas principais para o corredor deserto. Os guardas não estavam mais ali, troca de turno, talvez.
? O que você pretende com isso? ? A tenebris perguntou, olhando-me com os olhos estreitos.
? Não quero fazer mal a ninguém.
? Mas... devia. Owyn só aprende quando algo lhe é tirado. ? Havia um tom rancoroso nas palavras de Luaya, ela me encarou com os olhos completamente negros por um momento, senti um arrepio na espinha, era como se estivesse lendo meus sentimentos.
Por instinto, dei um passo para longe, pensando na melhor maneira de interrogar Nedyle. Talvez usar Lohan como chantagem... Luaya chiou e soltou um risinho que não entendi. Seus olhos estavam normais.
? Quando Nedyle tinha por volta de quatorze anos, numa visita de Alfia, ela fez algo... ela iluminou esse harém, transformou nossa noite suave em dia. Obviamente a princesa do Primeiro não a viu, mas todos num raio de quilômetros puderam sentir sua tormenta. ? Ela contou, meu coração disparou ? Sabia que a proximidade de parentes aumenta o poder dos solaris? Especialmente se forem irmãos? ? Luaya sorriu de uma forma que fez minha pele se arrepiar. Não sabia, no entanto, dizer se o arrepio era pelo sorriso ou pela informação que me dera de mãos beijadas.
Aquelas palavras fizeram meu coração acelerar, tanto de choque, quanto de esperança... e também um ódio crescente de Alfia.
? Owyn veio até aqui, a levou, e quando Nedyle voltou, ela já carregava a sua marca e nenhuma gota de luz podia ser vista. ? Luaya continuou, avaliando meu silêncio.
? Porque... porque está me dizendo isso? O que a fez mudar de ideia? ? minha voz não passou de um sussurro.
? É uma merda ter que entregar nosso amor a outra. ? Ela deu de ombros ? faça o que tem que fazer, se alguém te perguntar, eu não disse nada.
Pensei em lhe responder sobre Owyn saber tudo... porém Luaya moveu os dedos, e sombras que eu nem havia sentido ao meu redor se espalharam mais, criando uma trilha para que eu deixasse a ala do harém sem ser sentida.
“Owyn me manteve com ele por eu ser boa em mais coisas além da cama.” Fazia ainda mais sentido agora. Ela podia ser furtiva até mesmo para ele.
? Obrigada. ? me curvei um pouco, a tenebris abriu um largo sorriso e acenou, fechando as portas do salão atrás de si.
Sem perder tempo, corri pelo castelo em direção ao jardim de cíclames. Era um dos lugares favoritos de Owyn e sabia que depois do jantar, ele sempre dava algumas voltas por lá antes de se recolher.
Saí para o pátio como um bicho em fuga e olhei na direção do jardim. Meu coração disparou ao vê-lo sentado, sorridente encarando as luas no céu com a pele ébano brilhante banhada por aquela luz azulada.
Owyn desviou os olhos do céu e sorriu para mim ao me ver chegando. Mal sentia que estava me aproximando, era como se meu corpo tivesse ficado dormente e apenas a coragem em minha alma me impulsionasse para frente.
? Etahi, a noite está ótima, não é? O perfume desse lugar me traz paz. ? Owyn colheu uma cíclame e inspirou seu perfume.
? Talvez fique melhor. ? disse, tentando me acalmar. A expressão de curiosidade no rosto de Owyn se acentuou. Ele começou a brincar com as pontas metálicas de seus cabelos e indicou o banco de pedra para que me sentasse ao seu lado.
Não consegui sentar, sabia que assim que dissesse o que pretendia, ele se levantaria, no mínimo chocado. Ou riria se eu estivesse errada.
? O que deseja, minha pequena?
? A mãe de Awen... Nedyle, ela é filha de Sarki, não é? ? a pergunta saiu mais firme do que eu esperava. ? Awen tem magia solar, e magia celestial não salta gerações, logo ele a herdou de Nedyle.
A expressão curiosa de Owyn dissolveu-se em algo assustador conforme ele se erguia, encarando-me com os olhos negros sérios.
? Escolheu bem sua profissão, locam lhe caiu como uma luva, etahi ? disse suavemente, mas não de uma maneira boa. Algo frio tocou minha coluna, fazendo-me dar um passo mais para perto dele. ? Qual o seu interesse em minha concubina, Kiara?
? Quero que a libere do harém para que ela possa assumir o trono do Primeiro Céu no lugar de Hasan. ? pedi.
Owyn começou a rir e bateu as palmas, a diversão brilhava intensamente naquele olhar.
? É um pedido de alto custo, etahi! Eu não a amo, mas tenho um grande apreço à mãe de meu filho! ? ele ponderou, senti o frio descer por minha espinha ? Para exigir algo assim, tem que estar preparada para pagar por isso.
? E como exatamente eu pagaria por isso? ? quis saber.
Owyn estalou a língua.
? Poderia por exemplo, me dar a aliança que pedi com Vegahn, casando-se com Awen.
Ah! Owyn queria comprar briga comigo!
? Que tal assim, anudiijn. ? as palavras soaram baixas, o que fez com que Owyn franzisse o cenho ? Você libera Nedyle do harém, a deixa livre para escolher ou não me ajudar com o primeiro, e em troca, eu não conto a Awen que você ordenou à sua mãe com poder solar para fazer com que Nibben o destratasse, assim ele terminaria o relacionamento com ela e estaria livre da garota que você detesta. ? um sorriso cruel surgiu em meu rosto ao notar o choque em seus olhos ? Imagine, em quem Awen acreditaria? Na garota que ele amava, que vai desesperadamente dizer que sentiu a presença de um solaris e que jamais teria feio algo assim, é claro, ela está louca para tê-lo de volta! ? sorri ? ou no pai, que não gosta muito de mulheres e que vê no filho e futuro rei, um destino muito maior do que uma vernum mimada?
? Teria coragem de mentir contra seu pai de criação? ? Ele estreitou os olhos, a fumaça ao seu redor estava tão densa que podia tocá-la?
? Ahh anudiijn, eu teria! Teria, pois, foi esse pai de criação que me ensinou a tomar vantagem das situações e usar até sua última moeda para conseguir o que deseja. ? rebati.
Owyn riu baixo e sem diversão, mas curvou-se um pouco.
? Aprendeu muito bem ? disse num rosnado de frustração ? Que seja, então!
Saí do jardim com um sorriso crescente no rosto.
Só precisava convencer Nedyle... e sabia muito bem qual a moeda que a compraria. Um mestiço de vernum e tenebris com olhos azuis rajados.”
A memória se desfez.
? Estou chocado. ? Hasan respirava rápido ? Irritado e chocado. Ele queria muito que você se casasse com Awen.
? Eu tinha uma moeda mais valiosa para pôr na mesa. ? sorri, virando-o para me sentar sobre ele, o beijei outra vez, arranhando seu peito de leve com as garras.
? E eu tenho mais uns sonhos para te mostrar. ? Ele sussurrou contra minha pele. Bom... tinha a noite toda pela frente!
Hasan:
Quase cinco meses não deveria parecer tanto tempo. Mesmo assim, a muito que não dormia tão bem! Me estiquei na cama, estendendo a mão para o lado, procurando por Kiara, mas ela não estava ali. Levantei-me, prestando atenção nos sons próximos, além dos cantos dos pássaros da floresta ao redor, da cachoeira a alguns metros da casa e os estalos da casa de madeira recebendo o primeiro sol da manhã.
Ouvia Kiara na cozinha, mexendo em algo.
Minhas roupas na beirada da cama, as peças que usava durante o casamento, fizeram uma sensação incômoda passar por mim, então aproveitei para tomar um banho. Tinha muito o que fazer, precisava ir até a ACV e conversar com Lórien, ver como estava, dispensar Arcádius de minhas aulas.
Não queria entrar na ACV quando Nikella ofereceu o cargo, para que eu pudesse sair um pouco de Vintro, para que ocupasse minha mente com algo além de lembranças que costumavam me tirar a paz.
Acabei descobrindo que ensinar era algo que me dava muita tranquilidade e que gostava do que fazia quando aquilo fora tirado de mim por Alfia. E por mais que me mantivesse fechado em minha própria dimensão, evitando o máximo possível interagir com os outros mestres e alunos, eu gostava de estar ali.
Desliguei o chuveiro ao ouvir uma voz conversando com Kiara na cozinha, uma voz familiar, mas que eu não conseguia me recordar no momento. Usei magia para secar os cabelos e me vestir, esperava ter um dia tranquilo com Kiara, aproveitar o domingo antes de ir até a ACV ao anoitecer, pelo visto, alguém estragaria esse dia.
?... eu não disse que era mentira! Recomeçar é bem novo para mim! ? Ele reclamou.
Recomeçar? A voz ficou mais nítida ao sair do quarto e atravessar o corredor estreito, porém foi quando entrei na sala e o vi escorado no balcão, falando com Kiara enquanto ela passava o café, que percebi algo errado naquela voz. Ela era mais familiar do me recordava.
Eileen, sentado no banco e escorado no balcão, com o cenho franzido, observava Kiara servir o café numa xícara para mim. Ela tinha preparado algo que cheirava bem, mas eu não conseguia desviar os olhos do malvarmo.
Ele se virou em minha direção, estreitando os olhos topázio ao mesmo tempo que se erguia devagar.
? O que ele está fazendo aqui?
? A casa é minha, caso tenha esquecido. ? Ela sorriu de forma cruel para ele, mas o sorriso mudou ao me observar de cima a baixo, com o rosto ganhando mais cor. Não fiz questão de colocar uma camisa, estava apenas usando uma calça de moletom escura e nem mesmo amarrei o cabelo.
? Não foi isso que quis dizer! ? Eileen a olhou feio ? Ele não estava no céu?
? O “Ele” tem nome. ? me aproximei o avaliando com cuidado, tinha algo muito estranho em sua presença na casa... como um reconhecimento.
? Não tem como eu esquecer seu nome, Hasan. ? Eileen soltou através dos dentes, ao me aproximar de Kiara e lhe dar um beijo, enrolando meus dedos em sua trança, o malvarmo soltou algo entre um chiado e um rosnado.
? Eu sinceramente gostaria de não ter que ver isso, por favor!
? Quem invadiu foi você, oras! Quem aparece para treinar num domingo de manhã? ? Kiara reclamou, colocando uma xícara de café com creme na frente dele.
Tentando entender aquela interação tão... casual entre os dois, sentei-me e peguei o prato que ela estendeu sorridente em minha direção. O prato de torradas com omelete de queijos e manjericão fez meu estômago me lembrar que eu não comia desde o dia anterior em que a criada levara o café para mim em meu quarto, e eu o recusei.
? Parece ótimo. ? comentei observando a cor tomar conta do rosto de Kiara.
? É surpreendente que tenha comida em casa. ? Eileen resmungou, olhando-me pelos cantos dos olhos. Havia um toque possessivo e ciumento naquelas palavras, Kiara no entanto, sentou-se para tomar o seu café e rebateu:
? Não é porque eu não como sempre, que não gosto de comer ou de cozinhar. É divertido! ? Ela suspirou, pegando um pedaço do pão com creme de ovos para comer ? Meu pai me ensinou a cozinhar.
Eileen soltou um suspiro irritado e desviou o olhar.
? Sua mãe nunca quis aprender, ela até tentou fazer algo uma vez, nem lembro ao certo o que era na panela, mas grudou nos dentes de ira e ele quase sufocou.
O garfo caiu de minha mão no prato e me virei completamente para encará-lo. Os olhos não eram da mesma cor, mas eram muito iguais. A expressão e o modo que movia as sobrancelhas quando se irritava... até sua aparência física, mas lembrava muito mais Ayran.
? Caalin. ? disse baixo. O malvarmo deu um sorriso de lado e assentiu.
? Só não posso dizer que é um prazer conhecê-lo novamente dada às circunstâncias ? disse fazendo um gesto em direção à Kiara com a mão.
Deixei que a magia escapasse de mim, circulando sua mente, puxando um fio para fora afim de observá-lo melhor. Mal reparei no chiado que ele soltou, incomodado pela invasão, ou o olhar curioso e ao mesmo tempo apreensivo de Kiara. A memória mais forte que consegui enxergar com clareza, devido à força com que ele tentava me expulsar de seus pensamentos, foi a lembrança de quando Nikella escapou da fortaleza de Vintro após... após achar que tinha perdido o bebê.
? O que foi isso? ? Eileen rosnou, apertando as têmporas com as mãos, olhando-me feio pela intromissão.
? Apenas... confirmando ? ainda estava chocado por perceber que era mesmo Caalin. E mais chocado por saber que ele mantinha memórias da vida anterior.
Voltar com memórias era tão raro que sequer tinha algo para comparar.
? Quando... soube? ? perguntei a Kiara.
? Era uma das coisas que ia conversar com você ontem ? Ela mordeu os lábios e desviou o olhar ? mas fiquei com a boca ocupada.
? DEUSES! EU NÃO... AH! KIARA! ? Eileen me fulminou, seus olhos estavam negros.
? Se ousar falar da idade dela, vou lembrá-lo que Nikella mal tinha completado dezoito anos quando vocês se casaram e que você tinha por volta de vinte mil anos. ? Eileen fez uma careta e Kiara arregalou os olhos. Ela não sabia de tantos detalhes, mas parecia fascinada por nossa interação. ? No entanto, estou mais curioso com o fato de que é muito raro que almas retornem com lembranças e que mesmo que chegue a nascer com elas, você as esquece antes da segunda década de vida.
O malvarmo esticou os ombros, como se o peso da idade da vida anterior ainda lhe pesasse ali. Ele passou os dedos entre os fios cinzentos e suspirou.
? Quando Higarath usou o livro para interferir e entrar em Mogyin para buscar a alma de Muriel... ele causou danos à barreira espiritual que envolve o espelho da raiz de Cahidén. Uma falha se formou sobre o espelho também ? Eileen ergueu os olhos para encontrar os de sua filha. A filha de sua alma ? Quando vi o que estava acontecendo, quis voltar, precisava pedir desculpas à Nikella, precisava corrigir as coisas e queria... ter a chance de ser presente para pelo menos um de meus filhos.
? Mas o corpo também tem barreiras que quebram as memórias e mesmo que tivesse conseguido carregá-las ao nascer nessa vida, você as teria perdido antes de ter alcançado a segunda década de vida. ? Minha afirmação fez o malvarmo se virar para mim com aquele olhar carregado de emoções.
? Eu tinha doze anos quando o castelo caiu. Estava em Madras com minha... avó, e pensei em ir até o castelo, queria fazer algo para ajudar, mas percebi que me faltavam memórias, que as mais antigas de como aprendi a lutar estavam desaparecendo. Não me lembrava mais de meus irmãos, ou de como cheguei a Vegahn. ? Ele sussurrou perdido nos próprios pensamentos. ? Quando fiz quinze, não me lembrava mais quem era a mulher que me transformou, lembrava de seu rosto e do formato, mas... eu fiquei desesperado. Percebi que esqueceria o motivo de ter voltado.
Kiara tinha estendido as mãos sobre o balcão e apertava as mãos dele nas suas.
? E como não esqueceu? ? questionei, percebendo que estava perdido demais nas lembranças.
? Procurei Urenai na floresta morta ? disse ele sério, olhando-nos com cautela. Poucos se atreviam a entrar na floresta morta e pedir algo à feiticeira que lá habitava. Kiara prendeu o ar, o encarava de olhos arregalados.
? E então? ? Eileen tornou a me encarar.
? A feiticeira me disse que as memórias antigas eram empurradas para fora conforme as novas chegavam, mas disse que podia me ajudar, que eu precisava escolher o tempo que gostaria de guardar, desde que não passasse de cinco anos de memórias.
O malvarmo suspirou, fechando os dedos ao redor dos de sua filha e sorriu um pouco. Um sorriso angustiado, cheio de dor... mas feliz.
? Eu pedi para manter os últimos cinco anos até o dia de minha morte. ? disse com uma careta. ? Lembro-me de como morri, mas não do que senti. Por alguma razão, lembro-me dos meses que passei em Mogyin também, mas é tudo borrado, como se só escutasse as vozes. A única lembrança forte de lá são as raízes da árvore e a falha... A falha está lá, e eu não voltei sozinho. Ela quis vir também, queria ver os dois outra vez de perto, mas não sei em quem voltou. ? Ele murmurou, com os olhos estreitos, como se fizesse força para lembrar-se de algo.
? Qual foi o custo? ? questionei, lembrando-me da monitora da ACV de Vegahn, ela havia feito um contrato com Urenai, mas perdeu a voz em pagamento ao que pediu.
Eileen franziu o cenho e meneou a cabeça negativamente.
? Ela me pediu para encontrar algo que perdeu a muitos anos. ? disse desviando o olhar. Senti a mentira em suas palavras, mas não o questionei.
? Por isso entrou no locam ? Kiara comentou e ele assentiu.
? E quanto a você... ? Eileen me encarou outra vez, irritação ainda tomava conta da expressão em seu rosto. O Malvarmo suspirou profundamente, como se quisesse deixar para lá. ? Ah! Quase ia esquecendo!
Ele puxou uma carta pequena do bolso de sua calça e estendeu na direção de Kiara, a garota a pegou, erguendo as sobrancelhas curiosa.
? O que é isso?
? Chegou à ACV ontem, Lórien pediu para que eu a trouxesse para você. ? disse, olhando curioso por cima do balcão. Kiara abriu a carta e mordeu os lábios ao ler as frases curtas de letras bem desenhadas.
? É de Saray, a mãe da menina sereiana que resgatamos dos piratas. Ela quer me ver hoje, na praia onde lhe devolvi sua filha ? Ela fez um bico ? vai me esperar o dia todo lá.
? É melhor ir então ? Eileen me lançou um olhar rápido. ? Vou ficar por aqui, treinar um pouco com o mestre ? o sorriso em seu rosto não era totalmente são.
? Se comporte, Eileen! ? Ela resmungou, antes de sair em direção à porta, passou por mim, dando-me um beijo no peito, onde meu coração acelerou com o gesto. Eileen revirou os olhos e passou a admirar os pratos de porcelana empilhados sobre o balcão de pedra escura no canto da cozinha.
? Tome cuidado. ? alertei roçando de leve meus lábios nos seus.
? Até mais! ? Ela saiu pela varanda e abriu uma garganta antes de terminar de descer as escadas, num instante, desapareceu por aquele túnel de escuridão.
? Então, mestre, precisamos deixar umas coisas bem claras! ? Eileen levantou-se, dando tapinhas na espada presa em seu cinto. Ele havia pego Blumarian de volta.
? Dependendo do que for, a única coisa clara que vai ver, Eileen, é o túnel de Cahidén outra vez ? o malvarmo me deu um sorriso feroz e saiu da casa, seguindo por entre as árvores para aquela área de treino na beirada do lago.
Terminei de tomar meu café e o segui, esperando que o malvarmo tivesse o bom senso de se lembrar que ele tinha renascido e não tinha mais a mesma força da outra vida.
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? Você a deixou vencer a prova, não foi? ? Eileen bufou, apoiando as mãos nos joelhos duas horas mais tarde. Os cabelos cinzentos antes presos numa trança perfeita, tinham soltado algumas mechas e me encarava irritado, guardando a espada no cinto.
? Talvez tenha deixado. ? disse, guardando as espadas que usei no suporte. Eileen franziu o cenho e sentou-se no meio da arena e atirou uma pedra no meio do lago. As águas que antes pareciam um espelho refletindo a luz dos sóis e o vermelho das folhas das árvores ao redor dele, foi desmanchando-se em pequenas ondas.
? Por que ela? Quero dizer... tantas garotas por aí, cansei de ver alunas da ACV se derretendo quando você passava... então porque logo Kiara? ? Eileen quis saber, ele agora me encarava sério esperando por uma resposta.
? Porque ela foi quem passou por minhas barreiras e chegou ao meu coração fechado e o curou. ? respondi ? Kiara viu além do que chamava atenção dos outros, e mesmo que tenha insistido quando eu não queria mais me abrir para ninguém, ela só o fez até certo ponto. Se eu tivesse sido firme e dito não, ela não teria insistido. Kiara me amou a ponto de tentar me salvar de mim.
? E você?
Ele atirou outra pedra no lago, o vento soprou uma chuva de folhas sobre nós. O feitiço do lugar era tão perfeito que fazia com que as folhas nascessem e amadurecessem rápido o bastante para que o vale não deixasse o outono partir.
? Demorei a perceber que tinha criado sentimentos por ela. Eu me apaixonei por tudo nela, e a amo mais do que imaginei que poderia amar alguém.
Eileen voltou os olhos azuis para mim, por um instante achei que ele diria algo, que tentaria arrumar um motivo para que eu me afastasse, porém ele apenas inclinou a cabeça e fechou os olhos.
? Deuses... você é meu bisneto. ? Ele meneou a cabeça negativamente ? Mas... acho que ela o merece. Você é bom, é justo... e não deixaria que nada acontecesse a ela, não é?
? Nunca.
? Certo. ? Eileen suspirou outra vez ? Kiara é uma boa menina. Ela é diferente de Nike, seu coração é mais aberto, e mesmo que tenha sido tão rejeitada pela mãe, ela aprendeu o amor com os outros que a criaram. Acho que farão bem um para o outro. ? Ergui as sobrancelhas, surpreso por ele aceitar aquilo tão fácil.
? Nada de ameaças de morte caso eu faça algo errado?
? Você não fará! ? Eileen sorriu ? Não preciso ameaçar, acredito em você, filho dos sóis. Sei que vai cuidar bem dela.
? Obrigado.
? E então, mestre, vai voltar para a ACV? ? ele quis saber.
? Amanhã mesmo estarei lá.
? Devia ir logo falar com Lórien, ela estava quase surtando quando deixei a academia hoje de manhã. Algum professor saiu, se não me engano.
Deixei o ar escapar.
Lá se ia meu domingo tranquilo com Kiara.
Capítulo 11
Hasan:
Ao chegar na ACV pelos portões traseiros e me deliciar com a sensação de estar de volta, passando os olhos pelos três prédios de salas quase desertos, atravessei o pátio branco com Eileen em meu encalço murmurando algo sobre sua equipe.
Segui pelo corredor, passando rápido pelas salas vazias até começar a ouvir Lórien e... Fares discutindo. Eileen arqueou as sobrancelhas e apertou o passo também, curioso para ver o que se passava lá. Entramos na sala de supetão e demos de cara com uma Lórien surtada, revirando cartas num montinho de baralho sobre a mesa e Fares rindo de se acabar.
? Você roubou! Onde está o Ás de copas que eu joguei? ? Ela bateu as cartas na mesa, estava no mínimo furiosa. Fares, rindo ainda mais, fez um movimento com os dedos e a carta apareceu atrás da orelha de Lórien. ? Sai daqui, moleque sem vergonha! ? Ela ralhou, só então virou os olhos em nossa direção e a irritação dissolveu-se num sorriso contido.
? Oi, Lóri. ? Ela me olhou de cima a baixo e franziu o cenho.
? Diz que não está aqui a passeio! ? questionou com a voz chorosa, erguendo-se de sua poltrona e contornando a mesa devagar.
? Fui resgatado da masmorra da rainha louca. ? brinquei. Lórien, diferente do que eu imaginava, soltou um soluço e se atirou contra mim, apertando os braços tão forte que perdi o ar.
? Ah! Deuses! Minhas preces foram ouvidas! ? Ela me puxou para beijar minhas bochechas. ? Não sabe o quanto estou feliz em te ver!
? Dá pra ver a felicidade! ? Eileen comentou, arrancando um risinho de Fares, que olhava a cena mordendo a boca.
? Ela está feliz por poder jogar alguma responsabilidade em você! ? Fares brincou, seguindo em direção à porta. ? Vou preparar minha prova de amanhã. ? dizendo isso, mudou de forma e lançou um olhar de advertência a Eileen, que não sabia até então que Leonne era um garoto.
? O que... ? ele deu um passo mais para perto de Fares, avaliando seus olhos com atenção demais, um instante depois, abriu um sorriso enorme, mostrando as presas ao fazê-lo ? Achei você! ? Ele estendeu a mão para Fares em sua forma feminina. É claro que ele já havia visto Leonne durante as aulas, mas tão perto assim... ? Você é igualzinho à sua avó.
“Achei você” O que quis dizer com aquilo?
Lórien o observou confusa. Fares só ergueu uma sobrancelha, o pensamento que passou em sua mente quase me fez rir alto.
“E o louco era eu!”
? Vai dizer algo? ? perguntei a Eileen, dando uma chance para o caso dele mesmo dizer o que queria.
? Você vai fofocar assim que eu virar as costas. ? Ele deu de ombros. ? Lórien, entreguei o bilhete à Kiara, ela já foi encontrar a sereiana. Agora preciso ir, tenho que ir buscar vovó em Madras.
O malvarmo deixou a sala em seguida, mas Fares ficou e voltou os olhos verdes para Lórien.
? Sereiana?
? Sim, sim. ? Lórien moveu as mãos o dispensando ? Ela foi até a praia próxima ao Penhasco das Cinco Lanças, falar com a mãe de uma menininha que ela resgatou na prova locam.
Fares franziu o cenho e assentiu. Sem dar explicações, o garoto abriu um portal atrás de si, ignorando a proteção da sala de Lórien e desapareceu naquele túnel colorido.
Lórien ignorou aquilo, pelo visto, os desaparecimentos do garoto se tornaram coisas corriqueiras. Ela fez um gesto para que eu me sentasse, conjurou duas canecas de chá de lavanda e anis e sorriu para mim com tanta felicidade que não pude deixar de me sentir mal.
? Estou feliz que tenha voltado! ? riu ? Arcádius nos deixou sexta à noite. ? soltou bufando ? disse que estavam tendo problemas em Amantia, Jocelinne não queria mais ficar sozinha no templo. Fora algo com a Asahi... acho que ela não está dando conta de tudo sozinha também.
? Ouvi rumores que ela anda estranha. ? comentei ? Eirien e Farah estão com ela, acredito que se fosse algo ruim, teriam nos contactado.
Lórien assentiu, sorvendo um gole de chá. Seus olhos bicoloridos se voltaram para mim.
? Sua aula está vaga. ? murmurou.
? Não está mais! ? estendi a mão sobre a mesa e a apertei.
? Hasan...
? Oi? ? tomei um gole de meu chá e a vi dar um daqueles sorrisos maliciosos.
? Promete que não vai me largar aqui sozinha de novo? Eu não aguento lidar com essa pirralhada sozinha! ? Ela choramingou limpando falsas lágrimas dos olhos. Não consegui evitar uma gargalhada.
? Prometo.
? Ótimo, agora quero saber detalhes sobre o casamento! ? Ela gargalhou, apoiando-se na mesa, pedindo silenciosamente para que eu mostrasse como “escapei”. Suspirei resignado e deixei que ela matasse sua curiosidade.
Kiara:
Poucos raios de sol passavam por entre as nuvens aquele dia, fazendo com que as pedrinhas claras da praia parecessem mais brancas do que realmente eram. Aproximei-me das águas semicongeladas devagar, sentando-me na pedra onde vi Saray a primeira vez, saindo da água desesperada para que pudéssemos procurar sua filha.
Ela não estava em parte alguma, talvez tivesse voltado para o mar. Esperaria um pouco para ver se ela voltaria.
Fiquei ali sobre a pedra com as pernas encolhidas, enrolando-as com meus braços e apoiei a cabeça no queixo.
Estava tão feliz... tinha conseguido tirar Hasan das garras de Alfia, juntar Lohan e Nedyle ao liberá-la do harém de Owyn, recuperar um fragmento facilmente.
Talvez a sorte estivesse finalmente virando a meu favor! Me sentia mais esperançosa em relação a tudo. Um sorriso se formou em meus lábios ao me lembrar da noite anterior. Eu não podia negar que no fundo parecia uma adolescente apaixonada, derretida por ser correspondida.
Fiquei ali, observando as nuvens rolando, perdida em pensamentos, ainda tinha muito que conversar. Precisava falar de Caelle para Hasan, precisava conversar com meu irmão sobre Hestia...
Um movimento súbito atrás de mim me tirou dos pensamentos. Eu tinha baixado totalmente a guarda, e antes que pudesse espalhar sombras para me proteger, um ataque veio rápido, do qual eu mal consegui saltar para fora do alcance da lâmina que abriu um corte nada superficial em meu ombro direito.
Rosnei, ao me erguer, procurando meu agressor e com raiva crescendo dentro de mim, encarei o rosto contorcido pelo ódio de Cedric.
Ele rosnava, ainda com grilhões e pedaços de correntes pendendo dos pulsos, garganta e pés. Aquelas coleiras de aço luz cheiras de espinhos que impediam um malvarmo puro mudar para sua forma feral tinham sido arrebentadas nas correntes, por isso a arma em sua mão.
? Você quem me atraiu até aqui, não foi? ? rosnei, pressionando a mão contra o corte em meu ombro, não tinha aprendido ainda a usar minha magia para me curar.
? Parabéns, rainha do óbvio! ? Ele grunhiu, as mãos tremiam contra o cabo da espada. Seus cabelos antes curtos e bem cuidados estavam desgrenhados, sujos, as olheiras fundas sob os olhos escuros lhe davam uma aparência mais velha, mais hostil também.
? Devia ter ficado quieto na prisão em Fernic. ? rosnei, pinçando as garras. Porém o movimento não fez muito efeito, sem perceber o que estava acontecendo de fato, tentei espalhar minha magia, porém ela havia adormecido em algum lugar dentro de mim.
O malvarmo riu, esfregando a lâmina da espada na manga azul escura e puída de seu uniforme de prisão. A camada de tinta sobre a lâmina laranja desapareceu.
? Sabia que os guardas tem lâminas de fogo? Eles têm métodos interessantes para nos conter. ? O malvarmo estalou a língua, observando o sangue azulado começar a ensopar minha camisa.
Meu coração batia acelerado.
Lâminas reforjadas com pó de fogo anulavam nossa magia e não permitiam que malvarmos se curassem. Ele não tinha ido ali para brincar dessa vez. E eu, idiota, estava completamente desarmada.
Cedric avançou rápido para cima de mim, movendo aquela espada em direção ao meu pescoço, por um triz me atirei para trás, desviando do ataque, mas outro veio em seguida, consegui agarrar a lâmina com meu punho metálico, porém o peso do impacto quase deslocou meu ombro, derrubando-me no chão.
O malvarmo riu e rapidamente passou as pernas por cima de mim, prendendo-me ao chão. Forcei o corpo, tentando derrubá-lo ainda segurando firme a arma, mas estava fraca pelo pó que já havia se espalhado por meu sangue através do corte.
Cedric arrancou a arma de minha mão, o som do metal arranhando o vitrino arrepiou minha pele, mas a sensação piorou quando ele puxou meus braços para cima, abrindo mais a ferida e apoiando a lâmina em minha garganta. Senti meu sangue encharcar a areia sob meu corpo e a temperatura dele estava muito errada.
? Eu pensei tantas vezes em como iria fazer isso... ? Ele inspirou profundamente, apertando mais meus pulsos conforme eu tentava me soltar. Cedric se inclinou para frente, tocando os lábios em minha orelha ao cochichar: ? Nenhuma forma me dará toda a satisfação que eu gostaria, mas não posso te matar mais de uma vez. Estou surpreso por você não ter vindo com seus amiguinhos de sombras! Facilitou minha vida, sabia?
? Desgraçado! ? esperneei, tentando derrubá-lo, mas ele pressionou mais a espada em minha garganta e por um momento, só consegui pensar nas minhas promessas não cumpridas. ? Não aguentou, não é? Chegar tão perto do poder... da minha coroa e perdê-la!
Os olhos raivosos dele brilharam.
Precisava ganhar tempo... precisava fazer com que ele me soltasse. Se eu conseguisse puxar aquela corrente do grilhão em seu pescoço... a corrente estava a centímetros de meu rosto, mas se me levantasse naquele momento, a lâmina atravessaria minha garganta.
? Foda-se a coroa, eu só quero me livrar de você, alteza! ? Ele rosnou, com as mãos tremendo, estava prestes a enterrar a lâmina em minha garganta.
Mas a lâmina não desceu.
Ela tombou ao meu lado e o peso sobre mim desapareceu.
Cedric tinha um braço feminino enrolado em seu pescoço, apertando aquelas agulhas da coleira contra sua pele. Linhas finas de sangue amarelado escorriam, surpresa e pânico se mesclavam na expressão dele.
? Fiquei sabendo de coisas interessantes por minha noiva... e sobre uma delas, eu jurei que faria algo a respeito ? Fares, em seu corpo feminino, mantinha Cedric preso junto ao próprio corpo. O malvarmo se debatia, mas não conseguia se soltar do aperto dele. ? Estava curioso para saber o que Kiara escondia em retiro das folhas? ? Ele riu.
Cedric tentou olhar para trás, o pânico em seu rosto se tornou assombro ao ver o sorriso doce de Fares para ele.
? Prazer... seu último pesadelo. ? dizendo aquilo, Fares puxou a coleira com força com a mão livre, enterrando-a na garganta dele, e com um movimento do braço ao redor do pescoço do malvarmo, a cabeça de Cedric se soltou do corpo.
Fares o chutou, transformando em pó de gelo o que restara do malvarmo.
Meu irmão rapidamente se abaixou ao meu lado e fez uma careta para o corte da espada.
? Deuses, Kiara! Como deixou isso acontecer? ? disse com a voz trêmula, mudando de forma e me pegando nos braços. Gemi e encolhi o corpo com a dor de ser movida. Me alimentar não fecharia aquilo.
? Fui idiota... sai desarmada. ? murmurei, apertando meu braço ao redor de seu pescoço. A fraqueza ficou intensa a ponto de começar a ver borrões em minha frente.
? Muito idiota! ? Fares rosnou ? Mãe das águas, tem um demônio nos caçando e você sai pra passear sem uma merda de uma arma! Eu queria te bater!
Estávamos passando por um pequeno túnel de luz.
Luzes coloridas, um misto de vermelho, azul, branco, dourado e verde giravam ao nosso redor, podia jurar que aquelas cores tinham vozes e as vozes falavam com ele. Os olhos sempre verdes e pacíficos de meu irmão estavam vermelhos e brilhantes, seu corpo tremia e ele me apertou mais ao pisar direto dentro da sala de cura da ACV.
? GLYPH! ? Ele berrou, mas quem se inclinou sobre a mesa para me olhar e perdeu a cor do rosto foi Eileen.
? O que houve? Isso é...
? Corte de lâmina de fogo. ? Fares jogou a lâmina que nem tinha o visto carregando no chão.
? Minha mãe não está ? Eileen saiu correndo da sala.
? Fares...
? Não vou sair daqui ? Ele apertou minha mão, sua voz soou trêmula.
? Noiva? ? O ouvi tossir uma risada.
? Eu pedi Hestia em casamento. Ela aceitou. Quer uns dez filhos.
Rir fez com que a dor voltasse mais forte, não conseguia manter meus olhos abertos e um calor terrível tomava conta de meu corpo, espalhando-se como ondas quebrando na praia.
Um momento depois a porta se abriu novamente e eles entraram. Lórien e Hasan, pelos cheiros que eu podia distinguir apenas por instinto, mal enxergava algo além de borrões.
? Lâmina de fogo. ? Fares choramingou. O corte ia de meu ombro até o meio de minhas clavículas. Não seria fatal... se não fosse pelo tipo de material que o causara.
? Kiara, consegue me ouvir? ? A voz de Hasan soou nervosa, quase desesperada. Duas mãos se aproximaram do ferimento, cobrindo-o com magia, mas apenas o senti queimar ainda mais. Soltei um soluço e meus sentidos foram-se apagando um a um.
Quando voltaram, minutos, talvez horas mais tarde, era Eghan que estava com as mãos sobre mim. Calor irradiava dolorosamente por meu corpo, cada junta, cada parte de meus músculos doía ao mesmo tempo que um torpor tentava arrastar minha mente para outro lugar. Minha pele parecia ser repuxada e o fogo em minhas veias não era do tipo bom.
? Acho que ela já consegue tomar o pó. ? disse ele com a voz tranquila. Uma mão quente ergueu um pouco minha cabeça e algo frio com cheiro metálico adocicado tocou meus lábios.
Água e pó de vitrino azul.
Aos poucos, meus sentidos foram voltando e a dor diminuindo. A primeira coisa que vi foi o rosto de Hasan acima do meu.
? Oi. ? murmurei, minha garganta ainda arranhava um pouco pelos pequenos cristais que desceram e agora dissolviam devagar.
Hasan passou os dedos sobre a marca deixada pela lâmina em meu ombro e suspirou pesadamente antes de fechar os olhos.
? Sua invenção contra salamandras salvou você. ? Ele sussurrou, tocando os lábios em minha testa.
? Foi fares quem me salvou. ? disse ? se ele tivesse chegado um segundo depois...
Hasan apertou os olhos e estremeceu.
? Eu devia ter ido com você. ? Ah.
? Não tinha como saber que era uma armadilha. ? murmurei, minha voz soava fraca.
? Não senti nada... não senti você ? Ele encarou a marca brilhante da corrente em seu pulso e fechou os olhos outra vez, apertando as mãos com tanta força que os nós dos dedos ficaram sem cor.
Então, sem dizer mais nada, levantou-se e saiu da sala.
Eghan que estava encostado no balcão, se aproximou um pouco e tocou a cicatriz da lâmina com cuidado. Ele franzia o cenho ao me encarar.
? Eu estava indo para a sala de cura quando ele apareceu completamente alterado e me perguntou sobre a cura de emergência do pó de vitrino. Quando eu disse para me explicar com mais calma, ele me agarrou pelo braço e me trouxe para cá.
O bruxo voltou os olhos cor de mel para os meus e suspirou.
? Fui descuidada.
? Fares disse isso. ? Ele franziu o cenho e tirou uma espécie de pomada de um potinho de louça ao lado da cama e a espalhou com cuidado em meu ombro. ? Não é permanente, a marca. Nada que uma mordida não faça desaparecer.
Sua tentativa de humor quase me fez chorar ao invés de rir.
? Obrigada.
? Você quase morreu. ? disse baixo. ? O pó se espalhou tão rápido... quando cheguei você estava pior do que aquele garoto que me ajudou a cuidar!
? Sinto muito ? choraminguei, apertando as garras em meu braço, mas com esforço, as afastei. Eghan se aproximou, passando um braço ao redor de meus ombros, ajudando-me a levantar. A dor ainda estava lá, mesmo que mais leve.
? Lórien precisou tirar seu irmão daqui, Hestia está com ele. Fares surtou quando percebeu que era mais grave do que imaginava.
? Eghan, por favor...
? Você não é descuidada assim. ? me ajudou a vestir uma camiseta preta que estava sobre a mesinha de cabeceira. ? O amor pode ser maravilhoso, mas não deixe que os sentimentos bons te façam esquecer da realidade que a cerca.
Queria bater nele, eu não tinha esquecido de todo o inferno ao nosso redor, mesmo que quisesse muito fingir que tudo estava perfeito, e que nada de mal aconteceria. Mas Eghan estava certo, nem minhas adagas tinha levado.
Pensei em perguntar sobre Eileen, mas como se invocado por meu pensamento, ele apareceu na sala, trazendo algo em um prato coberto. O bruxo revirou os olhos e seguiu para a porta, dizendo que precisava chegar a tempo de jantar no salão e murmurou um até depois sobre o ombro ao sair.
Eileen... meu pai.
Ia demorar a me acostumar com aquilo.
Ele sentou na beirada da cama, olhando torto para a cicatriz em meu ombro e descobriu o prato, revelando um pedaço grande de bolo de chocolate com morangos. Sorri quando ele cortou um pedaço do doce com o garfo e o trouxe em direção a minha boca. Queria rir e dizer que não era muito fã de doces, mas o que deixei sair foi:
? Se Glyph flagrar uma cena dessa, ela vai pensar outra coisa sobre nós. ? Eileen fez uma careta, mas deu de ombros.
? Eu me viro com ela. Além do mais, doces animam qualquer um. ? O sorriso em seu rosto tornou-se saudoso. Aceitei um pedaço do bolo, até mesmo mastigar fazia meu braço doer.
? Você não se parece tanto com ela, talvez o formato dos olhos. Porém sua mãe teria uma arma escondida quando saísse mesmo para encontrar uma amiga. ? Até ele estava disposto a me chamar a atenção.
? Eu tenho um braço de vitrino com garras afiadas. ? Rebati.
? Não serviu muito, não é? ? Ele franziu o cenho.
? O que você vai dizer a ela... se nós a encontrarmos viva? Quero dizer... você acha que ainda... ainda tentaria se aproximar? ? perguntei para desviar o assunto.
É claro que fui negligente. Só não queria ouvir aquilo de todo mundo. Abri a boca para mais um pedaço de bolo, Eileen piscou pensativo, uma mecha cinzenta do cabelo solto deslizou sobre seu ombro quando ele se inclinou um pouco, pesando minha pergunta.
? Não vou mentir e dizer que seria um nobre cavalheiro e não tentaria conquistá-la outra vez. ? Ele ponderou, esquecendo-se que estava me dando o bolo e comendo um pedaço ? Mas... ela teve sua chance de ser feliz. Eu jamais tiraria isso dela. Só quero tentar o meu perdão e se ele não vier... bom eu já serei grato por ter minha chance.
Assenti devagar, vendo-o comer o restante do bolo. Só então ele se deu conta que tinha comido tudo e sorriu envergonhado.
? Posso pegar mais na cozinha.
? Não precisa se incomodar. ? disse, levantando-me devagar, testando a mobilidade do braço.
? Quer que eu a acompanhe? ? Ele tentou, estendendo o braço como se eu precisasse ser amparada.
? Estou bem melhor. ? lhe dei um sorriso agradecido ? Mas posso me virar agora. Tenho que falar com Fares.
Tinha que ir ver Hasan, foi o que não quis dizer. Precisava tirar o peso de suas costas. Ele certamente começaria a martelar aquilo em sua mente, pregando como mais uma culpa sua.
Eileen bufou, estreitando os olhos para mim, mas ergueu as mãos em rendição.
? Preciso ir para casa, fiquei de ajudar vovó com umas coisas. ? Ele não saiu de imediato, ficou observando-me, talvez esperando que eu caísse.
Ainda me sentia um pouco fraca e as pontadas no ombro não haviam desaparecido por completo. Eileen me acompanhou para fora da enfermaria mesmo assim, guiando-me pelos corredores escuros. Não fiquei surpresa ao constatar que já havia anoitecido.
Queria procurar por Fares, porém não sabia ao certo qual seria sua reação. Ele poderia gritar comigo, ou poderia muito bem estar apagado nos braços Hestia, uma vez que a bruxa podia colocar qualquer um para dormir com magia.
Já Hasan... talvez ele também estivesse irritado comigo por ter saído desarmada. Não conseguia decidir se iria procurá-lo ou se esperaria ele voltar.
E eu precisava tanto me deitar e dormir!
No fim das contas, me peguei diante do dormitório feminino. Eileen parou antes de passar pelo véu de transformação e me deu um beijo na testa.
? Melhor ir descansar um pouco, amanhã você conversa com eles. ? Eileen se afastou devagar, olhando de vez em quando para trás enquanto eu subia os degraus quase me arrastando escadas acima.
Ao chegar em meu quarto e perceber que não havia sinal de que Hestia estivera ali, uma vez que Ira estava sobre sua cama, enchendo sua camisa preta favorita com pelos, tirei minhas botas e atirei-me na cama sem tirar a colcha.
Hasan:
Fazia um bom tempo que não pisava ali.
Na verdade, a última vez que estive na torre do castelo das Ilhas Monarcas, foi quando tentamos negociar a ajuda de Marglan. Agora as ilhas não passavam de pilhas de ruínas, abandonadas desde a guerra contra Fairin. Os caçadores humanos atacaram o lugar, exterminando grande parte dos vampiros, incendiando a cidade até que apenas as partes de pedra das construções permanecessem de pé.
As poucas que restaram, ruíam aos poucos conforme os anos passavam.
Encarei a cidade e o mar além das ilhas, até mesmo as pontes que as conectavam haviam desabado.
Com um suspiro pesado, atirei um pedregulho no mar e o observei fazer um arco no céu desaparecendo e surgindo rapidamente na frente do brilho da lua cheia antes que ela caísse no mar, perdendo-se em meio às ondas que quebravam contra as pedras.
Só queria um instante de paz.
Queria deixar que meus pensamentos se acalmassem, que aquele peso deixasse meus ombros. Porém ao fechar os olhos eu a via, como se a imagem tivesse ficado gravada em minhas retinas: o pó de fogo se espalhara por seu sangue, fazendo com que as veias em seu corpo ficassem completamente vermelhas e a borda do ferimento parecia ter sido queimada com um atiçador em brasa.
? MAS QUE INFERNO! ? rugi, quebrando uma parte do parapeito da torre, as pedras desabaram e se chocaram contra o pátio lá embaixo com um ruído alto.
Eu devia tê-la acompanhado.
Podia ter verificado se estava armada.
? Não devia estar escondido aqui, especialmente nesse lugar! ? A voz de meu pai pegou-me de surpresa. Não havia sentido sua aproximação.
Ele sentou-se no que restara do parapeito, seu olhar estava na lua subindo no horizonte, marcando o mar com uma trila prateada.
? Lórien me contou o que houve com Kiara. ? disse ao perceber que eu não diria nada.
Não sabia ao certo se queria ou não conversar. Talvez só devesse escutá-lo. Sentei-me ao seu lado, olhando na mesma direção.
? Não veio para cá à toa, não é? Foi aqui que você deixou Serena errar pela primeira vez. ? disse.
? Não devia ter deixado ela negociar com Marglan. Também não devia ter permitido Kiara entrar naquela sala com Detéria, e agora isso... Eu devia ter...
? Sabe, meu filho ? ele me cortou, apertando meu ombro ? Já parou para pensar... que você foi a única vez que nós decidimos intervir? E mesmo assim, não chegamos aqui para matar Fairin. Nós lhe demos um poder que você poderia ou não usar. Nós demos uma escolha. Sua mãe até tentou uma vez, quando Leona foi presa por Fairin... e mesmo assim, ela reconsiderou e ouviu Leona. Aceitou a promessa dela que poderia fazer algo a respeito. Sua mãe confiou em uma garota de dezoito anos que foi criada num mundo humano longe de magia.
Me virei para encará-lo.
? Sabe quantas vezes antes disso nós pesamos as consequências de uma intervenção nossa? Sabe quantas vezes pensamos “e se nós tivéssemos nos metido, aquilo teria sido diferente?” ? Seu olhar encontrou o meu, não havia um pingo de remorso ou culpa naquele olhar ? Nós preferimos confiar... e por mais que pensássemos no que teria sido diferente, escolhemos não carregar culpas que não nos cabiam, Hasan. Ficaríamos loucos se passássemos o tempo todo pensando que a culpa poderia ser nossa por não fazer algo.
? É diferente...
? Não, não é! ? Ele insistiu ? Você escolheu confiar nelas. Kiara não é igual Serena, ou Leona. Ela cresceu nesse inferno e sabe muito bem como lidar com ele. Não absorva a culpa pelas escolhas dela, apenas continue confiando. Mostre a ela que você acredita em seu potencial! Ela ainda não aprendeu a confiar em seus instintos, mas toma decisões e espera que sejam boas. Todos nós erramos, e quando o fazemos, esperamos que as pessoas que amamos estejam lá para nos apoiar. ? Ele suspirou ? Não cometa o mesmo erro novamente, Hasan.
Encolhi os ombros, entendendo o sentido escondido em suas palavras.
? Comece a confiar em si. ? Ele deu uns tapinhas em minhas costas ? Não é errado cuidar, tentar proteger, mas quando você assume um erro que não é seu, você tira a responsabilidade dela. Kiara precisa aprender a errar e a acertar, e se ela se sentir culpada por te magoar, ela vai falhar mais por medo de errar.
Assenti.
? As possibilidades as vezes falam mais alto. ? murmurei.
? Então as silencie. Você está aqui, frustrado pensando no que fez de errado, mesmo sem ter culpa, e a deixou sozinha lá quando ela precisava que você estivesse ao lado dela, dizendo que ela foi forte. “Deuses, uma mordida de dragão, uma lâmina de fogo... a morte deve te considerar uma amiga íntima, adora fazer visitinhas!”
? É por isso que mamãe tenta te bater as vezes. ? resmunguei.
? Pelo menos eu tenho humor! ? Ele riu. ? É melhor voltar, e deixe nessa torre o que for pesado demais para levar adiante. Deixe o passado no passado. ? bufou ? preciso ficar de olho em sua mãe. O bebê começou a querer mostrar que tem luz.
Dizendo aquilo, ele se ergueu e desapareceu num portal de fogo dourado.
Eu precisava daquilo. Daquelas palavras mais duras, mas também de aprender a deixar os erros para trás.
Voltei à ACV logo em seguida.
Kiara:
Um pesadelo.
Aquilo devia ser um pesadelo... mas não eram os meus olhos que a enxergavam.
A mirtka se movia acima de mim, cantando aquela canção sinistra enquanto movia a faca para frente e para trás, exibindo os dentes escuros e o olhar maníaco. O cheiro de cera e podridão enchia meus pulmões enquanto tentava continuar respirando. Porém, a dormência impedia que eu me movesse, era difícil conseguir por ar para dentro também.
Ela sorriu, enrugando ainda mais a pele e os buracos de picadas de insetos vazaram um líquido amarelo, sua risada sacudiu os cabelos ralos úmidos descolando-os de seus ombros.
A faca desceu sobre minha barriga, senti a pressão da lâmina e minha pele se rompendo...
? Kiara ? Hasan segurava meu rosto ? olhe para mim!
Ele estava em meu lado na cama, seu cheiro aos poucos me despertou de volta à realidade. Não estive na cabana da mirtka, não era meu ponto de vista. Era o de Caelle.
Tentei me erguer, mas uma pontada no ombro me fez cair sobre os travesseiros outra vez, mordendo os lábios para evitar que um gemido de dor escapasse. Hasan ainda me observava preocupado, sentado ao meu lado na cama, de frente para mim com as pernas cruzadas. Ele tirou uma mecha de cabelo da frente de meu rosto, só então notei o cheiro do quarto e o tamanho da cama não eram os mesmos que eu havia deitado para dormir.
Olhei em volta espantada, a cômoda grande com a foto de Lupine, Leona e Hasan em sua versão criança. Um abajur aceso sobre a mesa de cabeceira...
? Você me trouxe para cá? ? questionei, conseguindo me erguer e encostar na cabeceira da cama.
Hasan assentiu.
? Achei que... ? ele pigarreou ? só queria ter a certeza de que recuperaria bem.
Seus toques eram suaves, porém cautelosos, como se tivesse receio de me tocar. Talvez com medo que eu o culpasse.
? Tive um pesadelo.
? Eu percebi ? ele franziu o cenho, escorregando os dedos pela cicatriz em meu ombro, seus olhos brilhavam em dourado, irritados. ? foi com... esse momento?
? Foi com a cabana da Floresta Nevoada. ? sussurrei ? onde achei a menina. ? Hasan ergueu as sobrancelhas, não havia lhe dito sobre a prova do uniforme negro. ? Ah! Eu esqueci de te falar sobre isso. ? comecei a rir.
? Sobre o quê? ? Ele encostou-se ao meu lado na cama, e devagar, como se esperasse que eu o afastasse, me puxou para seus braços. Meu peito se apertou ao sentir que seu suspiro foi de alívio.
? Estávamos procurando por Helleon durante a prova. Eu fui para dentro da floresta e comecei a seguir um pressentimento ruim. Achei uma cabana pertencente a uma mirtka. ? Hasan fez um ruído para que eu continuasse contando ? Ela roubava crianças das vilas próximas... e as transformava em bonecas.
Ele estremeceu;
? O que houve?
? Eu ouvi um choro de criança. Invadi a cabana e ela estava... a menina estava sobre a pedra, com a barriga aberta... e um saco de estopa perto dela. ? A lembrança me fez estremecer ?Eu matei a mirtka. E transformei a menina, não conseguia curá-la, Lohan me pediu para fazê-lo.
? Vocês fizeram a prova levando uma criança recém transformada? ? pelo menos sua voz tinha mudado de receosa para curiosa.
? Não tivemos tanto trabalho. Fomos desclassificados pouco depois ? voltei a rir ? por pegar um barco.
Hasan meneou a cabeça, provavelmente sem entender o que passava em minha mente.
? Você não passou na prova?
? Foi o que acabei de dizer. ? bufei ? Tínhamos que atravessar uma floresta com uma criança, eu decidi atravessar o Rio Negro. Lohan então usou magia para puxar um barco ancorado rio acima. O dono do barco foi prejudicado e a regra era não causar nenhuma perturbação aos moradores. Fomos desclassificados por pegar um barco!
? E a menina? ? Ele quis saber.
? Caelle... eu dei esse nome a ela. Ela só tinha um número como nome, era de um abrigo, não tinha pra quem voltar. ? Ele me olhava curioso ? Eu a levei para o vale, a deixei aos cuidados de Gwendollyn. Achei que minha tia gostaria de cuidar de alguém... talvez a distraísse das visões.
? Não pensou em ficar com ela? ? Hasan deslizava os dedos por meu braço. Mordi os lábios.
? Nem passou por minha cabeça, não agora, pelo menos. Depois daquilo... ela precisa de calma, de um lugar tranquilo para viver. O Vale da Lua é o melhor lugar que pensei.
? E quanto aos fragmentos?
? Fares pegou o de Pollo. ? comentei ? Ele me levou ao fragmento de Vastrus...
Fui deixando a voz morrer ao me lembrar de Gillian.
? Então?
? Eu matei o general dos gigantes. ? dessa vez virei o corpo para encará-lo ? Eu o torturei... e esmaguei sua cabeça no chão.
O solaris piscou para a frieza em minhas palavras.
? Você matou o general Gillian?
Assenti.
? Não foi nada limpo. Mona vomitou os documentos que fomos buscar.
Hasan envolveu minha cintura com os braços, colocando-me em seu colo e suspirou, beijando a curva de meu ombro.
? Estou surpreso que Lórien não tenha te colocado numa redoma na sala dela. ? Ele acariciou meu pescoço com as pontas dos dedos.
? Achei um fragmento na floresta Azul também. O próximo está com os dragões. ? comentei.
? É uma boa oportunidade para aprender a voar.
? Não vai dizer nada como... É perigoso, melhor tomar cuidado?
? Acabou de me contar que matou o general dos gigantes, Kiara, e você foi criada com dragões. Vai ter uma vantagem muito grande!
Acabei sorrindo e o abracei apertado, ignorando a dor no ombro.
? Me desculpe por mais cedo. ? senti seu corpo ficar tenso, mas ele não me afastou ou começou a dar um sermão.
? Não tem que me pedir desculpas. ? Ele ergueu meu queixo com o polegar e o indicador, seus olhos dourados brilhavam assim como aquela luz suave emanando de seu corpo, mas não via nada além daquela calmaria de sempre.
Um peso deixou meus ombros e acabei soltando um suspiro, enrolando os braços ao redor de seu pescoço.
? Sobre o pesadelo, porque estava sonhando com o que Caelle viu?
? O vínculo da transformação, você disse que ela é uma criança... enquanto ela não souber controlar a ligação, você pode ter os sentimentos dela invadindo seus pensamentos, os sonhos dela invadindo seu sono... consequências de se transformar alguém. ? disse ele suavemente, beijando meu rosto. O calor irradiou por meu corpo, despertando o calor de outras partes.
? Prefiro ter todos os pesadelos dela, do que ter um em que eu não fiz nada para ajudar. ? murmurei.
? Quero ir conhecê-la depois. ? Hasan sussurrou, seus lábios roçaram minha orelha e meu coração deu um salto. Será que algum dia eu me acostumaria com seu toque? Com a proximidade de seu corpo... e com os sentimentos que agora dominavam livremente meu coração?
Por um momento, me apeguei imaginando um futuro juntos, um casamento bonitinho como a cerimônia dos bruxos, uma casa dentro das muralhas do vale... Coisas que nunca tinha sequer me permitido pensar, pois lá no fundo a certeza de que nunca teria minha chance era mais forte do que minhas esperanças de conseguir conquistá-lo.
? Kiara? ? Hasan me virou para que eu sentasse em seu colo, meu coração disparado, ou o desespero misturado à ansiedade que aqueles pensamentos me causaram devem ter sido sentidos através da ligação.
? Estou bem, só... me perdi um pouco em uns pensamentos não muito... ? mordi os lábios e apertei os olhos com força.
Ele estreitou os olhos e um sorriso malicioso surgiu em seus lábios... mas o sorriso mudou, assim como o brilho de seu corpo aumentou.
? Kiara... ? por um momento, percebi um vinco em sua testa, ele pigarreou e desceu as mãos para meu quadril ? Se você se alimentar, o ombro vai parar de doer.
A curiosidade sobre o que ele iria falar antes era grande, mas preferia que ele não começasse a se sentir culpado, olhando de vez em quando para a cicatriz, então o mordi.
? Preciso voltar para o meu quarto antes de amanhecer. ? murmurei, deitando-me em seu peito instantes mais tarde. Hasan deslizava lentamente as mãos por minhas costas, aumentando a sensação de peso em minhas pálpebras.
? Não se preocupe, Eish-amir, vai acordar na sua cama... mas nem por um minuto vai acreditar que isso foi um sonho. ? com um suspiro que era pra ser uma risada, o peso em meus olhos falou mais alto e o sono me venceu.
Capítulo 12
Hasan:
Tinha deixado Kiara em seu quarto pouco antes do primeiro alerta para que os poucos alunos que passavam os fins de semanas na academia se levantassem. Por um instante, me perdi em pensamentos sobre o que sentira na noite anterior, mas com esforço, mandei aqueles pensamentos para o fundo de minha mente. Precisava com urgência avaliar meu plano de aulas para a semana, pois não tinha pensado em nada por ter passado a noite toda a observando dormir.
Segui pelo corredor dos fundos no prédio dos professores, o corredor não muito largo com janelões de vidro com visão do portão principal da ACV, era uma medida de emergência, que ligava todos os quartos dos mestres à sala de Lórien.
Os guardas das muralhas removiam uma espessa camada de neve que se acumulara na noite anterior e a brisa gelada que entrava pelas frestas dos janelões pareciam um cumprimento, uma saudação de “bem-vindo de volta”. Vegahn e seu inverno eterno e imutável era mais aconchegante que qualquer palácio acima das nuvens.
Assim que abri a porta dos fundos do escritório da direção, percebi que algo estava errado. Kiara estava ali de pé em frente à mesa de vidro, diante de uma Lórien de olhos vermelhos, irritada e andando de um lado para o outro. Ela parou de andar ao me ver chegando e suspirou.
? O que aconteceu? ? quis saber, mal tinha se passado meia hora desde que deixara Kiara em seu quarto. Ela estava ali, no uniforme negro de caça, calças apertadas de couro, espartilho com escamas e as armas que Lohan lhe dera presas aos cintos. Ela ajeitou a trança, jogando-a para o lado e me lançou um olhar rápido e... preocupado.
Lórien bateu o dedo sobre a esfera de luz pulsante que girava de um lado para o outro sobre sua mesa e a mensagem que chegou aos gritos fez meu sangue esfriar:
“Lórien, as ilhas monarcas desapareceram! Moradores da Vila vermelha viram uma fumaça negra e chamas azuis durante a madrugada. Algumas horas depois ao chegarem nas ilhas... o lugar estava só em cinzas! Algumas pessoas relatavam ver também algo com asas de fogo azul cortando o céu. Sobre isso não posso afirmar a veracidade... mas vi com meus próprios olhos a destruição lá. Uma das ilhas menores afundou!”
? O demônio está atacando com mais frequência. ? murmurei.
? Mas por que as ilhas dos vampiros? Não tem nada lá a anos, aquele lugar era só ruínas! ? Lórien ralhou.
? Estive lá ontem mais cedo. ? disse baixo, olhando de soslaio para Kiara. Não tinha certeza se ela sabia sobre o que aquele lugar representava, mas se a incomodou... não deixou transparecer.
? E agora você é alvo dele também? ? Lórien questionou, fazendo a atenção da garota se voltar para mim.
? Ele deve ter seguido a impressão disso. ? puxei o pingente com o machado de minha pulseira, Kiara chiou.
? Você está com ele? ? o tom de incredulidade em sua voz e os olhos arregalados me fizeram suspeitar de que não devia ter revelado aquilo ? Estava tentando fazer o quê? Levar o demônio para um passeio nos céus?
? Só testando uma teoria... passei quase cinco meses lá, e não houveram ataques, nem lá, nem aqui. Então suspeitei que a criatura não conseguiria chegar a Boghkar.
Ela estreitou os olhos para o machado e meneou a cabeça negativamente. Podia sentir o nervosismo através da ligação. A apreensão tomava conta de sua mente... estava preocupada com o que poderia ter acontecido.
? Bom... a criatura não hesitou em atacar assim que sentiu a presença da arma e ainda por cima foi o segundo ataque em Amantia. ? Lórien ponderou ? Precisará esconder a arma outra vez, Hasan.
Assenti, evitando o olhar de Kiara.
? Tenho um bom lugar em mente. ? dizer aquilo fez a garota suspirar aliviada. Ela voltou sua atenção para Lórien.
? E quanto a mim? Porque me mandou vir pronta para uma missão? ? Kiara questionou.
? Preciso que vá atrás do próximo fragmento, vou lhe dar uma dispensa, e avisar aos mestres que as aulas que perder precisarão ser repostas. ? explicou, encarando-a com firmeza ? Quero que vá atrás dos fragmentos o mais rápido possível. Precisamos acabar com isso... antes que piore, e antes que muitos outros comecem a ver que a situação pode sair do controle e resolvam colocar as garrinhas para fora também.
Ela piscou surpresa, mas assentiu, apertando os punhos das espadas gêmeas.
? Já guardei os outros que peguei em Vastrus, Pollo e Treezer. O próximo está em Dracken, se não me engano. ? Kiara ponderou.
? Acha que pode precisar da ajuda de alguém? ? agradeci a Lórien por perguntar, não queria parecer mais preocupado do que devia estar.
? Se puder... dispensar Helleon, posso precisar de ajuda dele para ir até Dracken, nunca fui às ilhas dos dragões. ? Lórien assentiu, pegando dois papéis dentro da gaveta, colocou assinatura e data e os entregou a garota.
? Tome cuidado. ? Lórien a dispensou.
Kiara me lançou um olhar curioso por cima do ombro antes de sair da sala em passos rápidos. Por um momento, aqueles pensamentos tornaram a inundar minha mente e estremeci, os ignorando mais uma vez.
Nem podia pensar naquilo.
Lórien não teria poder para evitar que fossemos banidos da academia.
? Hasan! ? Lórien ralhou, balançando a mão na frente de meu rosto.
? Desculpe, não dormi bem. ? murmurei. Lórien assentiu devagar com um meio sorriso malicioso e os olhos estreitos.
? Sei... espero que o seu “sono” não atrapalhe nas aulas de hoje!
Ela soltou uma risadinha e se debruçou na janela, sorrindo um pouco para os sóis que despontavam no horizonte.
? Sinto que as coisas estão pra mudar, Hasan. ? Ela murmurou ? O aviso da fuga de Fernic veio tarde... talvez o que aconteceu seja um aviso para que tomemos mais cuidado.
? Era só um moleque idiota com vontade de morrer. ? rosnei evitando o pensamento que devia tê-lo matado quando o prendemos. Lórien estava certa daquela vez sobre dar chances a pessoas ruins. Por sorte... não perdemos ninguém dessa vez ? Foque nos pensamentos positivos. Nossos desejos tem tanto poder quanto a magia.
Ela balançou a cabeça e veio até mim, enrolando um braço ao redor do meu.
? Venha, vamos para a sala dos professores tomar café. Tem fofocas para colocar em dia! ? revirei os olhos, mas a acompanhei sem reclamar.
Senti falta daquilo também.
Kiara:
Chegamos à Dracken no começo da manhã. Graças ao auxílio de Helleon, pois eu não fazia ideia de como abrir um portal para lá, uma vez que nunca tinha estado nas ilhas dos dragões.
A cidade na primeira ilha, Matriadh, me lembrava uma versão mais cheia de vida de Madras, casas margeando as ruas de pedras, um comércio bem estruturado e cheio de humanos nas ruas logo cedo. E não só humanos... bruxos também! Deuses! Haviam bruxos sorcys e mardans andando pelas ruas, auxiliando as pessoas que carregavam materiais em pequenas carriolas.
Só então me lembrei do que Hestia me dissera na última vez em que estive no Vale, os dragões estavam deixando a Morada da Lua e voltando para Dracken. Era de se esperar que os bruxos os estivessem auxiliando.
E que alguns ficassem por lá também.
O sol subindo pelo horizonte, manchando o céu de rosa e laranja banhava os telhados, iluminando aos poucos aquele lugar com as cores do alvorecer. Vendo mar e céu como opostos, o laranja e dourado subindo daquele mar azul acinzentado... tinha a impressão de que o mundo terminava ou começava ali.
? Já parou de babar o lugar? ? Helleon cutucou minhas costelas, puxando-me na direção do lugar que precisávamos ir, a construção que resolvi ignorar até absorver o máximo que podia de detalhes da cidade.
O castelo colossal dos dragões.
Deuses! Nem erguendo a cabeça o máximo que podia, não conseguia enxergar o topo, onde via apenas parte das bandeiras tremulando ao vento. As pedras usadas na construção eram tão escuras que o castelo dava a impressão de ser negro.
? Nada ostentoso ? comentei.
Helleon riu e manteve um braço ao redor de meus ombros conforme caminhávamos por uma larga ponte de pedra até os portões. Alguns dragões passeavam por cima das muralhas em suas formas naturais, alguns exibindo presas do tamanho de meus antebraços e enormes línguas bifurcadas ao se espreguiçarem contra o sol nascente.
Meu rosto queimou ao pensar involuntariamente em bobagens.
? Nem preciso pensar muito para saber o motivo do seu rosto ter ficado azul. ? Helleon gargalhou, mesmo depois que lhe acertei o cotovelo com força. Ele me guiou pelos corredores gigantes, eu reparava surpresa na mobília pequena em relação às dimensões do castelo, mas o mais interessante eram as escadas que tinham pedras de cores diferentes, umas pareciam mais novas que outras.
? Mais degraus foram encaixados para diminuir o tamanho das escadas, não é? ? Helleon assentiu, ele tinha um sorriso curto nos lábios.
? Você repara tudo.
? É claro! Olha esse lugar! ? sorri ignorando a quantidade de degraus para chegar ao segundo andar. Imaginei que talvez levaria um quarto do dia para alcançar o topo das torres caso precisasse ir até lá.
? Queria ter conhecido o castelo de gelo. ? Helleon comentou ? só vi as ruínas... e o esqueleto de minha avó lá na frente.
Congelei no meio do caminho, olhando-o espantada.
? O dragão que está lá.... a mãe de docinho?
? Nem imaginava por qual motivo meu pai chamou Senrys à Morada da Lua? Ou Como Docinho e Lua Estavam lá quando ele... naquele dia? ? Helleon deve ter percebido que me encolhi, mas respirei fundo e meneei a cabeça negativamente. ? Docinho é meia-irmã de meu pai.
O encarei de boca aberta por longos instantes até que tudo se encaixasse em minha mente. Nunca os tinha associado pois a cor da pele de docinho e seus traços físicos não eram nada parecidos com os de Connal.
? Dragões negros são mais raros...
? E descendem de um único dragão. ? Helleon comentou, tornando a subir as escadas com um braço ao redor de minha cintura. Talvez por eu ter travado no meio do caminho.
? Como... quando seu pai descobriu? ? quis saber. Tínhamos acabado de passar por uma janela do tamanho dos portões do saguão da ACV. Podia ver o mar por cima das muralhas à essa altura.
? Quando foi a uma reunião junto de Ceiran algumas semanas antes do que aconteceu com o demônio ? Helleon comentou ? Ele a princípio não percebeu que se tratava de um esqueleto envolto em vitrino, mas quando viu Docinho de perto... ele soube de quem era o esqueleto e teve um pequeno ataque. Minha mãe disse que Nikella contou as circunstâncias que levaram à morte de minha avó, e pediu desculpas por deixar o esqueleto lá.
? Minha mãe pedindo desculpas... nossa! Eu queria ter visto isso! ? Comecei a rir. Helleon sorriu ? Ela prometeu que tiraria a estátua de lá... Mas devido as circunstâncias, meu pai não permitiu que ninguém mais mexesse na estátua.
? Eu... entendo.
? Você não poderia refazer o castelo? ? Ele questionou, se não estivesse levando-me com ele, eu teria estacado outra vez.
Eu podia refazê-lo.
Minha magia era mais do que suficiente para erguer aquele lugar outra vez... e talvez, talvez com a ajuda de Eileen eu poderia recriar os detalhes que esqueci com o tempo.
Mas porque o faria?
Meu coração disparou ao pensar que depois que acabássemos com o demônio de fogo, Fares poderia enfim receber a coroa de gelo que lhe fora prometida e Hestia? Estaria com ele? A bruxa deixaria o vale? Talvez aquilo forçasse Ceiran e Ellyn a escolher Eghan como líder do clã.
Eu poderia refazer o castelo... por ele. Para ele. Fares amava aquele lugar e imagino que o deixaria feliz. Ficaria ainda mais feliz se tivesse alguns rostos a mais no dia que fosse coroado rei de Vegahn.
Não percebi que Helleon ainda esperava uma resposta, porém a mesma não pode ser dada, pois estávamos diante de um par de portas grandes com o símbolo de um dragão enrolado gravado nela.
Um dragão em sua pele humana abriu as portas para nós, o reconheci de imediato por ser um dos guerreiros que acompanhava Connal... e o sem coração que me fez aprender da pior forma o que o veneno das garras de um deles poderia causar.
Coruja me deu um sorriso preguiçoso e passou lançando-me uma piscadinha que não passou despercebida por Helleon, que levantou as sobrancelhas numa pergunta silenciosa.
Apenas dei de ombros e o segui para dentro da sala, Coruja deve ter caído em algum momento daquele castelo de cabeça nas pedras lá embaixo.
Ao entrar da sala a primeira coisa que reparei foi nos grandes arcos polidos de pedra azul cruzados no teto, ostentando um lustre de aço bremar, suas cores mudavam conforme a luz do ambiente se alterava.
Atrás de uma mesa antiga, Connal nos olhava com curiosidade e Mavis com um sorriso grande no rosto usava magia para restaurar um pezinho de plumérias castigado pelo vento. Helleon foi até a mãe abraçá-la e eu fiquei ali, de frente para Connal com o papel da dica na mão.
? Kiara, como vai? ? Ele questionou, levantando-se e dando a volta na mesa para me apertar num abraço ? Não deveriam estar em aula? ? Ele olhou de mim para Helleon e ergueu uma sobrancelha.
? Não exatamente... recebi uma dispensa. Vim buscar algo que imagino estar com o senhor ? minha voz soou um pouco mais trêmula do que esperava, não fazia ideia do que esperar do teste para pegar o fragmento com ele.
Connal franziu o cenho.
? O que seria?
? O fragmento que minha mãe deixou. ? Connal olhou para Mavis e Helleon.
? Fragmento?
? Sim... o cilindro de vitrino com um pedaço de pergaminho dentro. ? Connal parecia ainda mais confuso.
? A última conversa que tive com sua mãe, Kiara, foi a respeito da ACV e da possibilidade de ela aceitar dragões como venairens também. ? disse ? Ela nunca me disse nada sobre fragmentos.
Meu estômago embrulhou.
Será que tinha lido errado?
Reli o bilhete em voz alta enquanto Connal escutava com atenção e depois lhe disse sobre os desafios dos outros que guardavam os fragmentos. Por fim o dragão me deu um sorriso divertido em resposta.
? Sua mãe jamais facilitaria sua vida entregando esse fragmento a mim, menina. Eu o entregaria sem testar você, pois conheço seu coração. ? Ele afagou minha cabeça.
? Então...
? Kyonna ? Mavis foi quem falou, fazendo uma careta para o nome.
? Quem é essa? ? Questionei, não gostando muito da expressão azeda no rosto da bruxa, especialmente depois que os olhos verde e castanho dela mudaram para cinza e chumbo.
? Minha irmã. ? Connal riu baixo. Eu conhecia aquele tipo de risada. Respirei fundo para não começar a choramingar. ? Ela recebeu uma visita de sua mãe algumas semanas antes do que houve em Vegahn. Imagino que esteja com ela o que você busca.
? E como ela é? ? perguntei, olhando para Helleon.
? Nunca a vi ? Ele deu de ombros.
? Ela é o que você imagina quando ouve contos de guerra que mencionam a vinda de dragões ? Connal me encarava com uma boa dose de pena no olhar.
? E... onde ela está?
? Kyonna governa Hortal, um reino sobre e escavado nas montanhas a extremo leste daqui, do outro lado do Mar das Feras. ? O rei dragão comentou, seu olhar de pena tornou-se mais intenso.
? O mais perto que pode chegar com magia, usando portais ou a fenda, é nas ilhas dos corvos a leste do reino de Alendal. Kyonna contratou magos e feiticeiros para espalharem barreiras por todos os lados, com receio de ataques aos ninhos ? Connal explicou, Mavis tinha uma careta ainda mais feia no rosto. ? De lá, são dois dias de voo, parando para descansar.
? E levando alguém... o tempo aumenta. ? Helleon moveu as sobrancelhas.
Meu interior se retorceu e com toda coragem que tinha, consegui perguntar:
? Quanto tempo levaria... para me ensinar a voar?
Helleon sorriu e Connal espelhou aquele sorriso com um olhar malicioso tomando conta de sua expressão.
? Depende. ? Ele ponderou ? Se você absorveu as habilidades de Senrys, voar já vai estar presente nos instintos básicos que recebeu. Você precisa por esses instintos em prática.
? E como faço isso? ? Não devia ter perguntado, Mavis começou a gargalhar.
? Venha, vamos te mostrar.
Devia ter corrido para o outro lado.
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? Não tinha um método mais seguro para testarmos isso? ? O dragão estava de pé, do lado de dentro da torre, protegido pelo parapeito de pedras. Mavis tinha um sorrisinho maldoso no rosto, olhando minhas garras fincadas, quase lascando a pedra que me agarrava.
Helleon, agachado sobre o parapeito se mantinha em sua forma humana, porém com aquelas asas negras membranosas parcialmente abertas, recebendo toda a luz do sol.
? O medo costuma despertar os instintos mais facilmente. ? Connal colocou a mão em minhas costas, rezei para que não me empurrasse.
Olhei mais uma vez para baixo, o mar estava tão longe que parecia um lençol azul movendo-se com o vento. Eu queria chorar! O único modo que não tinha medo de altura era quando estava voando com Senrys.
“Vamos, medrosa! Não se esqueça que no fundo... ele estará com você. Senrys nunca a deixaria cair.”
Pensar naquilo fez um misto de esperança e tristeza se alojarem no fundo de minha alma. Mas não era hora de tristeza... precisava das habilidades de meu amigo, ou nunca encontraria o demônio que fez aquilo com ele.
E eu precisava acertar as contas.
? Você só precisa pular. Deixe que a parte adormecida que recebeu dele desperte. ? Connal explicou.
Pensei em soltar as mãos. Meus pés estavam firmes no beiral do lado de fora da torre, mas pensar em deixar para trás daqueles últimos centímetros de firmeza e pisar no vazio do céu, só fez com que eu cravasse ainda mais as garras na pedra e sacudisse a cabeça desesperadamente. Helleon e Mavis começaram a rir.
? Você a ensinou assim? ? rosnei irritada, vendo Connal morder os lábios para não rir.
? É claro que não! Acha que ele me arriscaria assim? ? Helleon fechou os olhos apertados e deu um beliscão no braço da mãe. Connal agora ria mais alto.
? Ah! Bom saber! ? ralhei com a voz engasgada.
? Vamos, Kiara! Veja o lado bom, se cair, só tem água lá embaixo! ? Connal brincou, segurando meus braços, afastando-os das pedras. Tentei me encolher de volta, mas o dragão estava me inclinando devagar.
Deuses! Ele ia me soltar!
? Se eu cair dessa altura, vou chegar lá embaixo já em pedaços pro almoço das sereias! ? o dragão mantinha meus pulsos presos de modo que eu não pudesse enfiar as garras nele para me segurar. Helleon ficou de pé no parapeito e abriu as asas.
? Aqui não tem sereias, princesa ? Connal sussurrou ? Só dragões aquáticos famintos. Mas eles não gostam muito de malvarmos como prato principal, vocês têm sangue doce, então talvez fique pra sobremesa! ? Ele riu. Suas mãos afrouxaram ao redor de meus pulsos e meu coração vacilou uma batida.
? Vou estar bem perto, Kiara. Prometo que não vou te deixar virar sobremesa de ninguém! ? Helleon entrou na brincadeira, o que só piorou um pouco meu estado de pânico.
Altura.
Os ventos fortes.
? Instintos. Só os siga. ? O rei dragão alertou uma última vez.
? Odeio você! ? ciciei.
No segundo seguinte, Connal me soltou. E eu sequer tinha conjurado as asas!
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Ainda estava caindo.
Não tinha certeza se o som que ouvia eram meus gritos ou o vento uivando contra meus ouvidos, fazendo minha trança chicotear ao redor de mim conforme o mar chegava mais perto.
Podia sentir a presença de Helleon, mas não conseguia ver onde ele estava;
Siga os instintos! Que belo conselho para dar antes de jogar alguém de uma torre sobre o mar!
? Vamos, Kiara! ? a voz de Helleon chegou até mim.
Por um momento, ignorei o mar e olhei o horizonte além de nós.
Senti o vento e o imaginei... talvez lembrando de como meu amigo sentia o vento em suas asas.
Senti o sol.
E a liberdade.
E uma calmaria me tomou, seguida de um desejo repentino de saber qual era a sensação daquele tipo de liberdade. Ser livre do chão. Livre dos pés... livre do próprio corpo.
Ao abrir os olhos e ver o mar novamente, muito mais perto agora, desejei poder voar sobre ele, tão perto que poderia tocá-lo, mas sem cair.
Fui puxada para cima.
Por um instante, cheguei a imaginar que Helleon havia me agarrado pelas alças da blusa para diminuir a queda.
Porém, era uma parte de mim que me puxava em direção ao céu.
? Eu tinha certeza que você ia cair! ? Helleon riu, emparelhando comigo. Levei alguns instantes para sentir que os movimentos como de braços extras saídos de minhas, eram um par de asas brancas batendo. Eu tinha asas! Elas eram exatamente como as de Senrys foram um dia! Membranas brancas azuladas com pequenas e finas escamas turquesa protegendo a pele sobre ossos e as articulações das asas.
? Ainda posso cair, estou chocada demais! Posso parar de funcionar a qualquer instante! ? ri, batendo as asas mais forte, tentando ir mais rápido. Os salpicos de água salgada espirravam em mim, mas eu não me importei. Estávamos voando a poucos metros sobre o manto do mar.
MÃE DAS ÁGUAS!
Aquele exercício extra ia me matar mais tarde!
? Quando cansar, me avise. ? Helleon alertou. ? Abra uma fenda, eu vou nos guiar até as ilhas dos corvos.
Assenti, ainda olhando vez ou outra fascinada para as asas.
Helleon chamou minha atenção novamente, rindo provavelmente da minha expressão de fascínio. Então sem perder mais tempo, abri a fenda e voamos pelo vazio.
Hasan:
Sentado em minha mesa no escritório de frente para a meia parede de vidro que mostrava a área de treinos, aguardava desde antes dos sóis nascerem a primeira turma da manhã.
Arrumei as fichas dos testes sobre controle de magia e comecei a separá-los por ordem alfabética só para ter o que fazer. Tinha acordado cedo demais, ido na cozinha para pegar alguns pães e um café forte e por fim, depois de constatar que o primeiro toque matinal não havia tocado, fui para minha sala.
Suspirei irritado, olhando os bonecos de treino lá fora. Havia evitado pensar em qualquer coisa que me distraísse desde o começo da semana, pois precisara rever todos os relatórios de Arcádius sobre as técnicas aplicadas e me basear em seu progresso para continuar.
Porém, não conseguia parar de pensar em Kiara desde o sonho que tivera durante a madrugara. Ela havia partido na segunda atrás do oitavo fragmento e faltando um dia para o fim de semana, eles não deram sinal de que estavam a caminho.
Fiquei ali, folheando um livro sem conseguir me concentrar nas palavras até o segundo sinal tocar e a sala ser invadida por justamente a turma dela. Hestia e Lohan entraram por último e não pareciam muito felizes com a ausência dos colegas.
Entrei na sala e os cumprimentei, passando em seguida as instruções para atividade do dia. Esperava que já tivessem habilidade o suficiente de magia para criar esferas de luz que explodissem quando fossem tocadas, mas que pelo menos conseguissem controlar para que não detonassem ao toque de pessoas específicas, por exemplo, seus colegas.
Após os instruir como deveriam coletar as impressões mágicas uns dos outros para que não houvessem acidentes na sala, os venairens, mesmo um pouco intimidados com o exercício, começaram a coletar as impressões uns dos outros.
Pela forma que alguns murmuravam agradecimentos por eu ter explicado antes como evitar as explosões, percebi que Arcádius ensinou da pior forma que podia.
A redução de alguns alunos naquela aula também provava isso. Talvez voltariam com o meu retorno.
Vários minutos mais tarde, depois da maioria já ter coletado as impressões dos colegas, pequenas esferas de luz coloridas começaram a circular pela sala, espalhando flashes de cor e brilho por todos os lados. A graça das minas de luz estava no fato de serem bonitinhas e aparentemente inofensivas, mas quando tocadas por alguém que não devia, elas simplesmente explodiam, lançando uma descarga de magia que poderia no mínimo, causar desorientação e perda dos sentidos, no máximo, parar o coração de alguém.
Por pouco não deixei um sorriso transparecer, comparando Kiara com as bombas de luz e suas aparências inofensivas, mas que podiam ser mortais... e pensar em como ela teria espalhado bolhas de luz pela sala me fez pensar no que captei em seus pensamentos no domingo à noite.
Não me dei conta que tinha deixado meu poder vazar ao perceber uma vibração cheia de carinho e esperança pela ligação do juramento. Invadi seus pensamentos sem querer, procurando pela fonte daquelas emoções.
Os sentimentos que tomavam conta de sua mente naquele momento eram tão fortes que me invadiram como uma onda e por um instante desejei que fosse uma realidade ao invés de um sonho dela. Uma réplica do chalé do Vale do sol, só que dentro do Vale da Lua... um casamento no templo dos bruxos e uma coroa das mesmas flores que tinha colocado em suas marcas.
Deuses!
Ela queria casar comigo!
Ela me queria para uma vida inteira. Queria muito além do que tínhamos escondido pelas restrições da Academia. Será que ela estava pensando nisso a muito tempo?
Meu coração disparou outra vez.
Eu ainda não tinha me permitido sonhar tão longe. Não depois de como falhei com Serena.
Mas ali estava aquele sonho ganhando espaço em meu coração com tanta força que não tinha espaço para lutar contra ele. Não por não querer... mas ainda tínhamos a restrição, ela ainda tinha planos em relação a ACV. E eu não podia tirar isso dela, não devia querer apressar as coisas.
Mesmo que fosse algo que eu faria sem me arrepender depois.
? MESTRE! ? Hestia gritou.
O alerta me fez sair de meus pensamentos e perceber o pandemônio na sala.
Algumas das esferas haviam explodido, levando outras com elas e ondas de fogo, vento e luz tentavam escapar de uma barreira que o tenebris lançara, evitando que a magia atingisse os venairens quase espremidos contra a parede.
? Ei mestre, onde está sua cabeça? A sala está quase pegando fogo! ? Hestia brincou enquanto eu anulava aquilo, desaparecendo com as esferas restantes também.
? Aposto todas as minhas fichas que sua mente foi parar numa geleira em miniatura bem longe daqui! ? Lohan riu.
Ignorei os comentários dos dois.
? Qual a parte das instruções vocês não entenderam? ? rosnei, tirando os olhares curiosos dos rostos dos venairens, alguns começaram a murmurar desculpas.
?... as esferas explodiram ao tocar umas nas outras! ? Seiren, uma feiticeira humana resmungou baixo ? O senhor não avisou que elas podiam explodir em contato umas com as outras!
? Não podem! Elas só explodem se a impressão da magia da outra esfera não for coletada! ? rebati ? Ou seja, fizeram a tarefa pela metade! Só duas esferas explodiram, de quem eram?
Seiren e o mago que quase morrera para o exercício com as barreiras ergueram as mãos.
? Muralhas hoje à noite, os dois. Estão dispensados. ? Eles então arrastaram os pés em direção às portas, mas Hestia riu baixo, estreitando os olhos para mim.
? A culpa não foi deles, mestre, alguém não estava prestando atenção na aula, sabe? ? Lohan passou um braço ao redor dos ombros dela, e com um sorriso sarcástico crescente, assentiu.
? Que atitude nobre! ? comecei deixando-os confusos ? Vocês são muito prestativos! Oferecendo-se assim para fazer companhia aos colegas nas muralhas! Podem ter certeza de que Freya será avisada que vocês estarão nas primeiras patrulhas.
O olhar de incredulidade deles me fez rir. Porém Hestia franziu o cenho para mim e disse algo sem deixar o som escapar:
“Tenha certeza, mestre, que isso não vai ficar assim!”
Revirei os olhos e deixei que saíssem ainda me fulminando por cima dos ombros.
Precisava me concentrar, ou acabaria indo parar na sala de Lórien para ouvi-la se gabar de suas habilidades de cupido.
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Havia começado o sábado na sala de Lórien, revisando as provas que seriam dadas no mês seguinte nos testes venox. Lórien evitava me olhar, comendo seu terceiro pedaço de bolo de chocolate que Medras levara para ela antes de escapar de volta à Amantia com Nelin e Lupinus.
Ela sabia que eu queria ir até Amantia ver minha mãe também, porém não arriscaria deixá-la sozinha com a avaliação dos testes. Lórien poderia muito bem aceitar uma prova que colocaria a vida dos alunos em risco só por não estar prestando atenção como deveria.
Alguns minutos haviam se passado desde que limpara as migalhas de bolo do prato e agora bebericava o chá enquanto olhava a neve caindo lá fora, seu olhar estava perdido de novo. Começando a mostrar sinais de cansaço daquilo tudo.
Ela também devia estar preocupada com Kiara, mas... podia sentir o peso ficando pesado demais para ela.
Talvez eu devesse me oferecer para o seu cargo.
Porém antes que o fizesse, o som de passos no corredor chamou minha atenção, eu conhecia o som daquele andar e ouvi-lo fez com que uma paz tomasse conta de mim. Kiara e Helleon entraram na sala no minuto seguinte. O bruxo-dragão vinha com um sorriso discreto no rosto e Kiara de cara feia entrou em seguida, murmurando um bom dia e seguiu batendo os pés direto para a estante da passagem.
Só então notei que ela tinha pequenos galhos presos em seus cabelos, e que eles estavam completamente embolados, haviam folhas presas em suas roupas também e algumas manchas de terra.
Lórien e eu olhamos confusos para Helleon, mas ele meneou a cabeça negativamente, fazendo ainda mais força para não rir, cobrindo a boca com as mãos. Kiara soltou um rosnado irritado ao não conseguir abrir a estante e bateu a mão na parede com força suficiente para fazer as janelas atrás de Lórien vibrarem.
? Terceiro livro da quinta prateleira. ? Lórien tentou. ? O que aconteceu? ? A malvarmo a fulminou com os olhos e soltou o ar com força pelo nariz, puxando o livro certo e revelando a passagem logo em seguida.
? Não quero falar sobre isso. ? Ela ralhou, descendo as escadas ainda batendo os pés com força.
? O que houve? ? perguntei baixo a Helleon, que não aguentou e começou a rir alto.
? Kyonna tem um labirinto no vale entre as montanhas Siferath e Nevolosa. ? Ele respirou fundo ? O labirinto chega a ser maior que a Cidade do Sol em Ciartes. Ela colocou o fragmento no fim do labirinto e soltou Kiara numa das outras três entradas e exigiu que Kiara não usasse magia para achar o fragmento, que ela precisaria procurar do modo tradicional. ? Helleon sorriu e coçou a cabeça ? Kiara levou dias rodando lá dentro, voltou agora a pouco com o fragmento... mas só depois de ter ficado profundamente irritada por não achar as saídas, mudar para a forma feral bonitinha e destruir o labirinto todo.
? Queria ter visto isso! ? brinquei, evitando começar a rir também.
? Mas essa nem é a parte engraçada ? O bruxo comentou entre risos ? Ela saiu de lá parecendo uma moita viva, Kyonna ficou apavorada quando viu um montinho de folhas caminhando, até perceber que era a garota, ela começou a zombar, mandando chamar o jardineiro!
Ele voltou a gargalhar com Lórien explodindo em gargalhadas também.
? Eu dizer que não queria falar sobre isso, não significava que era pra você falar, Hell! ? Ela berrou de lá debaixo.
? Olhe pelo lado bom! Não teve que enfrentar um dragão! ? Ele comentou ainda rindo quando ela voltou trazendo o bilhete do fragmento.
? Eu ainda posso fazer isso. ? Ela ralhou em resposta.
? Não seja malvada! Eu te ensinei a voar!
? VOCÊS ME ATIRARAM DE UMA TORRE! ? Ah ela estava realmente irritada, o papel em sua mão tinha sido esmagado.
? Mas funcionou! ? Ele piscou, saindo da sala logo em seguida antes que Kiara o atacasse ? Vou para o vale, devia passar lá mais tarde.
Kiara bufou e olhou para Lórien, que ainda ria reparando no estado da garota.
? Não se atreva a sentar nos meus sofás sem um banho! ? Ela ralhou, Kiara franziu o cenho me lançou um olhar desafiador, como se esperasse que eu dissesse algo também.
A encarei de volta, sentindo um sorriso malicioso surgir em meu rosto.
? Imagino que precisa de ajuda para se livrar da fantasia de samambaia ? Ela estreitou os olhos e Lóri mordeu a boca com o rosto ganhando cor, preparando-se para o que vinha a seguir ? Infelizmente não sei podar plantas.
Lórien quase caiu da cadeira de tanto rir.
Kiara apertou os lábios com força e apontou um dedo para mim antes de sumir numa pequena fenda no escuro.
Levou quase cinco minutos para que Lórien conseguisse parar de rir, enxugando as lágrimas dos olhos.
? Eu precisava disso! ? disse ela, suspirando e conjurando uma xícara de chá. ? Ela deve ter ido para casa, não devia deixá-la lá sozinha remoendo essa irritação toda.
Lórien moveu as sobrancelhas, mordendo os lábios outra vez.
? Você é pior que minha mãe. ? resmunguei, mas no fundo estava grato por sair um pouco, não aguentava mais ler estratégias de testes.
Antes que eu deixasse a sala por um portal, Lórien gritou um “Volte antes do jantar! Quero ajuda!”
Revirei os olhos e deixei a sala em seguida.
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Ao entrar no Vale do Sol e vasculhar a casa, percebi que ela sequer tinha entrado ali, mas sentia a presença do rastro de magia, então sabia que ela deveria estar em algum lugar dentro das barreiras.
Fui até a beira do lago, onde um balanço preso num galho a uns trinta metros de altura se movia devagar com a brisa fraca. Nunca tinha o percebido ali, mas imaginei que se conseguisse pegar impulso suficiente, daria para pular no meio das águas douradas.
Mas Kiara não entrou no lago também, as águas se mantinham paradas demais para ter alguém sob elas.
A cachoeira.
Fui para os fundos da cabana, seguindo pela trilha estreita em meio as árvores, ouvindo o som da queda d’água cada vez mais forte conforme me aproximava.
Ali estava!
A cachoeira tinha uma queda de pouco mais de três metros e um bolsão pequeno também, mal dava para dar cinco braçadas até chegar à gruta escondida sob o véu d’água. Sentei numa pedra próxima a margem e a observei em silêncio.
Mal podia distinguir os cabelos brancos sob o véu de água corrente, a pele pálida brilhava conforme o sol que atravessava as copas das árvores a encontravam.
Falhei miseravelmente em não descer os olhos por seu corpo, pela cintura estreita e os quadris mais largos, as pernas torneadas... e quando ela se virou, percebendo minha presença, levei alguns instantes para desprender os olhos dos seios perfeitos cobertos pelas águas que escorriam sobre sua pele.
? Estava com pena de entrar e sujar os tapetes? ? consegui perguntar, encontrando seu olhar irritado. Ela mergulhou sem desaparecer completamente, erguendo-se quando a profundidade de água não permitia que continuasse sob ela.
Kiara torceu os cabelos ainda um pouco embolados e voltou os olhos turquesa brilhando com irritação para mim.
? Eu fiquei correndo por aquele labirinto por dias! ? Ela choramingou ? Tinha insetos enormes, dragas... cheguei a encontrar um ninho de nagas! Mas não tinha uma droga de um rio, uma queda d’agua, um bebedouro para pássaros!
? Estava a cinco dias sem banho? ? Seu rosto se encheu de cor e ela desviou o olhar.
? Kyonna não especificou que magias eu não poderia usar. Logo cheguei à conclusão de que invocar gelo e fazer uma piscina ia me impedir de pegar o fragmento.
? A transformação feral...
? Não conta exatamente como uso de magia. ? Ela deu de ombros, dando uns passos mais para perto de mim.
? Essa água devia estar gelada. ? A alcancei, envolvendo sua cintura com as mãos quentes. Minha pele chiou e vapor se soltou quando a toquei. Seus olhos estavam em minha boca.
? Talvez eu precise ser aquecida. ? sussurrou, colando o corpo no meu, desabotoando minha camisa e a tirando. ? Ou você precise de um pouco de frio...
Sem entender o sorriso malicioso em seu rosto, Kiara agarrou meu braço mais rápido do que pude perceber o que faria. Num instante estava olhando aquelas presas em seu sorriso, no outro o mundo girou e eu fui atirado na água!
Gelada era pouco para descrever a temperatura.
Me levantei atordoado, procurando incrédulo por ela, Kiara me encarava ainda com aquele sorriso. Ela vestiu minha camisa, pegou suas roupas sobre uma raiz exposta de árvore e começou a caminhar novamente em direção à casa.
? Viu? Não precisei de ajuda para tirar a fantasia! ? Ela brincou, olhando-me por cima do ombro ? Mas agora que você está mais frio... talvez queira ajuda de verdade para se aquecer novamente.
Ela piscou e sumiu pela curva da trilha.
Deixando-me ali, rindo como um idiota por ter sido enganado.
Capítulo 13
Kiara:
Embora tivesse ficado com um pouco de remorso por ter atirado Hasan na água, não demonstrei isso segui em passos calmos de volta à casa, mesmo que meu coração tenha ficado descontrolado com aquilo, mas foi merecido. Meu estado de nervos piorou ao vê-lo sentado na água e rindo.
Mal tinha chegado à varanda traseira e me sentado no sofá balanço, quando ele se aproximou, sua pele se tornou incandescente e uma pequena nuvem de vapor o circulou, fazendo com que o ar ficasse morno por alguns instantes antes que uma brisa fria levasse a nuvem embora. Hasan sentou ao meu lado, passou um braço ao redor de minha cintura e se inclinou, depositando um beijo em meu ombro.
? Desculpe por debochar. ? Ele sussurrou sem afastar os lábios de minha pele, mas os olhos negros estavam fixos nos meus. Ergui as sobrancelhas surpresa.
? Achei que fosse uma brincadeira.
? E era! ? Ele se defendeu, seu rosto ganhou mais cor.
? Então não devia se desculpar! ? enrolei meus dedos em seus cabelos e me inclinei beliscando de leve seus lábios com os dentes. ? Por exemplo... não vou te pedir desculpas por te derrubar na água!
Hasan riu, seus dedos escorregaram de minha cintura e ficaram fazendo círculos em meu quadril.
? Você não me pediu desculpas por roubar um beijo na frente de um monte de alunos. Não esperava desculpas por me atirar num laguinho quase congelado!
Por um instante, me deixei levar por todos os nãos que ouvi dele. E naquele momento, estava mais do que feliz por ouvir os conselhos de Ceiran e Amanda.
? Vai me salvar com a charada, não é? ? questionei. Hasan me encarava com tal intensidade que minha pele formigou.
? Eu sempre estarei aqui para salvar você! ? Ele não se referiu apenas ao bilhete. Meu coração disparou outra vez e para disfarçar, tateei o chão ao lado do balanço em busca do bilhete dentro do bolso de minha calça. Aproveitei também para fazê-la desaparecer com o restante de minhas roupas e botas. Hasan dessa vez conseguiu disfarçar melhor a risada, evitando que eu o acertasse com o cotovelo.
? Nem cheguei a ler, estava tão irritada que só peguei o fragmento, xinguei Kyonna e arrastei Helleon de volta. ? comentei.
? Falando nisso, e as aulas de voo? ? o solaris pegou o bilhete de minha mão e o abriu.
? Connal disse que eu poderia me aproveitar dos instintos que deveria ter passado para mim junto com a transformação, então ele me empurrou da torre de Dracken. ? Um sorriso discreto apareceu nos lábios dele.
? É o melhor jeito de aprender. ? comentou.
? Você teria feito isso comigo? ? Hasan meneou a cabeça negativamente.
? É claro que não. ? Ele riu ? Mas não deixa de ser eficiente.
Revirei os olhos, tomando o papel de seus dedos e o abri para ler, e talvez fosse a presença de Hasan, mas tinha matado a charada de primeira dessa vez também.
“Um mundo sem magia você irá encontrar. Nada de elfos, nada de fadas, nada do povo do ar. Porém os humanos tem sua própria forma de criar magia, eles a chamam de tecnologia.”
E uma nota no fim do bilhete:
“Leona não era boa em esconder suas tranqueiras.”
? Deuses! ? Hasan começou a rir outra vez. Seus olhos estavam marejados. ? Não acredito que eles esconderam um fragmento lá!
? O quê? ? pisquei confusa.
? A última frase... eu costumava contar para Susano, quando ele passava tempos comigo em Vintro, como sua mãe era quando adolescente e que eu achei o cetro e os cristais de Amantia num compartimento secreto no assoalho sob a cama dela. ? Hasan riu mais e mordeu os lábios ? Eu achava que Leona estava escondendo a mesada lá, a vi saindo de sob a cama e quando ela foi para a escola, eu corri e vasculhei tudo, tinha um jogo que eu precisava comprar. Não entendi o que eram as coisas embaixo da cama dela, mas quando contei isso para Susano, eu disse exatamente essa frase: Leona não era boa em esconder suas tranqueiras.
? O fragmento está... no mundo humano? ? Ele assentiu.
? Mais especificamente na casa onde vivi com Lupine e Leona.
? O tempo lá é muito diferente. ? comentei.
? Nós só precisaríamos ir rápido. ? Hasan comentou ? Não dá pra entrar ou sair da Terra por qualquer lugar. Existem portais específicos abertos, e não podemos usar magia de grande escala por lá. Os humanos... muitos deles começaram a desconfiar da existência de seres que chegam lá de outros mundos, mas costumam nos chamar de alienígenas. Muitos dos aparelhos construídos podem detectar a frequência de nossa magia de longe. ? Hasan franziu o cenho, pensativo. ? Se pelo menos o espelho portal de Leona não tivesse desaparecido da loja de Moan... Mas Ewren criou uma instabilidade numa plantação de cana perto de nossa casa... talvez ainda dê para abrir um portal de lá antes de sermos detectados.
? A Terra é muito resistente à magia? ? perguntei, Hasan franziu o cenho.
? Se tonou depois que Nike e Susano reforçaram as barreiras do mundo. Eles não queriam que nada passasse dos outros mundos para lá. Mas eu conheço aquilo lá muito bem, não se preocupe.
? Isso significa que você vai comigo?
? Jamais a deixaria ir até lá sozinha! Não há mal maior para o nosso tipo... do que as criaturas que vivem lá.
Hasan se encolheu, ele agora tinha um olhar perdido para as folhas caindo das árvores ao redor da casa. Me aproximei mais dele, envolvendo sua cintura com o braço e deitei a cabeça em seu peito. Hasan suspirou e beijou o topo de minha cabeça.
? Não podemos demorar lá. ? murmurei ? não quero dar chance para nada acontecer enquanto estivermos fora. ? tentando não soar pessimista, emendei: ? não quero perder mais aulas também, se eu precisar repor todos esses dias nas férias, significa que só poderei tentar a prova do uniforme negro em dezembro.
? Semana que vem teremos o festival das luzes em Paliath, lembra? Lórien deu o aviso ontem de manhã no pátio. ? disse, dando-me um sorriso ? não precisa se preocupar com o tempo, voltaremos rápido.
? E quando partimos? ? quis saber.
? Preciso ajudar Lórien com a revisão dos testes e contatar uma amiga no Rio, para deixar umas coisas prontas para nós. ? Ele ponderou ? Podemos partir amanhã ao anoitecer.
Assenti. Bom... teria tempo de ir até o vale ver como as coisas estavam. Hasan me deitou em seu colo e se inclinou sobre mim, beijando-me com tamanha gentileza e carinho que minha alma dançou livre sob a luz morna que invadiu meu coração.
Só queria que aquele já fosse o dia em que tudo estaria acabado, que nada mais nos preocuparia além de provas e testes...
Mas ainda tínhamos um demônio para caçar e duas pessoas que precisavam ver aquele mundo mais uma vez.
Hasan sorriu, sem separar os lábios dos meus e aquele olhar... era o mesmo olhar que tinha visto em seu rosto na noite antes de eu ir para Hortal.
? O que foi? ? minha curiosidade foi atiçada.
? Preciso ir, Lórien deve estar desesperada com as provas, não quero que ela aprove algum teste arriscado demais! ? Ele me deu um beijo e me levantou, desabotoou a camisa que eu ainda vestia e a colocou, sem tirar os olhos dos meus. Arqueei as sobrancelhas ? Se eu olhar para baixo, vou deixar Lórien na mão.
Ele me deu as costas e desapareceu num túnel de luz antes que eu pudesse protestar.
? E se eu tivesse que ver qualquer coisa além disso, juro que ia arrancar meus olhos! ? Lohan ralhou, aparecendo pela porta da varanda. Quando ia gritar com ele, percebi que o tenebris tinha feito um vestido preto de fumaça aparecer em mim.
? Diz que não está ai a muito tempo! ? implorei.
? Cheguei na última frase e juro que deduzi o motivo sem olhar nada! ? bufei, não acreditando em nenhuma palavra, mas para evitar constrangimentos maiores, fingi acreditar no sorriso sem vergonha em seu rosto. Ele deve ter lido isso em minha expressão azeda e ergueu as mãos ? Te juro! Sou um homem casado com uma rainha solaris, acha mesmo que arriscaria por pura curiosidade?
Ele gargalhou. Eu arregalei os olhos.
? Casado? ? Lohan sorriu, erguendo o punho para mostrar os círculos dourados gravados na pele ao redor de seu pulso e dos dedos da mão esquerda ? Você e Nedyle... ? Ele Assentiu ? E NÃO ME CHAMOU?
O tenebris gargalhou e só então me dei conta de outra coisa. Ele estava casado com a rainha solaris do Primeiro.
? Oh deuses! Vocês... eu estou com raiva e feliz! ? sorri o abraçando.
? Nunca teria acontecido sem a sua ajuda. ? Ele me apertou de volta e beijou o topo de minha cabeça. ? Agora... vamos até o Vale, acho que Hestia quer te ver, temos fofocas! ? Ele piscou, jogando as tranças negras de seus cabelos para o lado... agora com as ponteiras metálicas também! O símbolo da realiza dos Primeiro, Segundo, Quinto e Sexto Céus.
? E vai me contar sobre isso também, não é? ? apontei seus dedos.
? Com toda certeza, princesa! ? Ele enrolou o braço ao meu redor e abriu a fenda para a escuridão.
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Havíamos chegado ao vale pouco depois do café da manhã, Lohan espalhou fiapos de sombras por todos os lados, descobrindo rapidamente que Hestia estava na casa dos pais, com Caelle e Annelize... e que Fares também estava ali, só que na sala de Maddox com Ellyn e Ceiran.
A curiosidade sobre meu irmão era maior, mas o braço de Lohan ao meu redor era mais forte. Enquanto atravessávamos o vale, reparei que a neve tinha desaparecido, dando lugar a brotos jovens, folhas novinhas e grama verde.
Em breve os dias se tornariam mais longos e quentes.... e não demoraria para ver sinais dos preparativos para o Litha.
? O inverno aqui parece que dura mais. ? Lohan comentou, esfregando as mãos, eu não sentia frio algum ali... mas estava acostumada a quase não sentir frio nem nos dias mais gelados em Vegahn.
? O círculo de montanhas mantém as estações extremas por mais tempo. Primavera e Outono passam voando, enquanto verão e inverno são prolongados em algumas semanas. ? Expliquei, passando pela ponte sobre a parte mais estreita do lago, acenando para um grupo de bruxas que se dirigiam com cestas e pequenas ferramentas aos campos.
O vale parecia mais calmo também, silencioso... e espaçoso. Uma parte deles já deviam estar partindo para a Morada da Lua. Aquilo me apertou um pouco o peito e eu sequer vivia ali.
? Você gosta mais desse lugar do que de qualquer outro, não é? ? Lohan questionou, fazendo-me sair por um instante de meus pensamentos.
? Gosto de todos igualmente. ? murmurei.
? Nunca vi seus olhos brilhando assim no Quinto. ? revirei os olhos.
? Com essa comparação fica difícil negar! ? Lohan riu, apertando-me um pouco mais. Era estranho vê-lo arrumado de forma casual, com a bata cor de chumbo bordada de negro e calças escuras, e aquelas trancinhas estalando conforme caminhava.
Soltei um suspiro irritado, esperava que ele tivesse uma boa desculpa para ter se casado sem me chamar.
Um raio de sol atravessando uma fenda entre as montanhas fez minha atenção se voltar para a casa vazia de Mavis e Bianca. A sacerdotisa vivia num quarto grande dentro do templo quando Mavis não estava, e agora que a bruxa talvez demoraria mais a aparecer... imaginei que elas não se incomodariam caso eu pedisse para que me cedessem a casa. E com um pouco de magia, podia replicar a casa do Vale do Sol ali e liberar o vale para Eileen, caso ele quisesse.
Aquele pensamento fez algo em mim vibrar alegre e não consegui deixar de imaginar de novo como seria viver por ali com Hasan... se ele gostaria de viver com os bruxos. Talvez fosse por minha marca que insistia em me puxar de volta ao lar que me fora emprestado primeiro.
Lohan caminhava tranquilo, recebendo olhares mais do que curiosos das bruxas que pelas roupas grossas e amarradas, caminhavam para a casa de banho, talvez haveria um rito de marcação naquela noite.
Ao chegarmos diante da casa de Ceiran e Ellyn, escutei risadinhas e correria, e também sons abafados vindos de algum lugar da casa.
? Hestia! Estamos entrando! ? anunciei, abrindo a porta devagar. Não podia ouvir a bruxa dentro da casa, o que me fazia pensar que ela havia lançado uma barreira ao redor de onde estivesse, mas fiquei surpresa ao ver Caelle e Annelize correndo, saltando sobre os móveis numa brincadeira perigosa.
Perigosa caso Ellyn as flagrasse derrubando livros e almofadas daquela maneira!
? Kiara! ? Caelle parou de pular no sofá e saltou do móvel para cima de mim, agarrando-se ao meu pescoço, dando um beijo em meu rosto.
? Olha quem está aqui! ? sorri ? Você está maior! ? apertei suas bochechas, reparando nas diversas trancinhas em seus cabelos e os brincos pequenos de pérola que adornavam suas orelhas.
? Daqui a pouco fica maior que você, mas isso é fácil para qualquer um! ? estiquei o braço para lhe beliscar. Annelize havia parado também, mas estava sentada olhando feio para os causadores do fim de sua brincadeira. Ela era uma mini versão feminina de Gwyndion, tirando os olhos verde musgo de Amanda.
? Anne, está gostando da ACV? Onde está Hestia? ? perguntei, lembrando-me que Hestia dissera uma vez que estava na ACV para vigiar a prima. Annelize fez uma careta ainda maior e se levantou, batendo os pés até a porta.
? Papai me tirou de lá, disse que eu só posso voltar quando o monstro que fez a Hestia voltar com as asas feridas tiver morrido!
Meu estômago embrulhou.
? Ele vai sumir e você vai poder voltar. ? afirmei, colocando Caelle no chão.
? Vamos ver se mamãe nos deixa ir com ela à Arizal! ? Anne chamou, pegando a mão de Caelle.
? Até mais! ? A minha mini malvarmo me deu um sorriso grande com as presinhas aparentes, em seguida correram para fora, dando gritinhos e “ois” a todos que encontravam.
? Hestia! Vamos arrombar as portas te procurando! ? gritei, Lohan abafou uma risada, fazendo com que a bruxa saísse do banheiro com cara de poucos amigos.
? Eu avisei que comer como um glutão depois do inverno poderia fazer mal! ? Lohan implicou, mas ela só lhe mostrou a língua e se atirou ao meu redor também.
? Você sumiu! ? choramingou, apertando-me num abraço.
? Estive enrolada atrás dos fragmentos. ? A apertei num abraço e percebi mesmo que fraco um aroma diferente em sua pele, algo oculto, mas que eu não tinha ideia do que era. ? Aconteceu alguma coisa? Por que meu irmão está na sala de seus pais?
? Ah! Aquilo! ? Hestia revirou os olhos e foi sentar-se no sofá, puxando-me junto. ? Fares se ofereceu para ajudá-los a organizar a divisão dos bruxos. ? Ela deu de ombros, a princípio não acreditei em nada naquilo, Fares mal os conhecia! Mas meu irmão tinha um talento único para organização e como foi criado para substituir Aliver... talvez não fosse mentira.
Ele estava seguro ali, o demônio não podia vir atrás dele, uma vez que não tinha o machado consigo, então relaxei um pouco.
? Que tal um chá, meninas? ? Lohan ofereceu, sumindo com seu casaco e indo até a cozinha.
? Capim limão e mel, por favor! ? Hestia pediu.
? O mesmo para mim! ? o tenebris parado na porta da cozinha nos mostrou a língua e foi colocar uma chaleira sobre o fogão a lenha aceso.
? Como estão as coisas por aqui? ? quis saber, mas Hestia tinha um meio sorriso travesso no rosto.
? Contamos a ela sobre a aula de quinta? ? a bruxa provocou minha curiosidade, sabia que a única aula de quinta que poderia ter acontecido algo para que tentassem me provocar seria a de Hasan.
? O que houve na aula de quinta? ? tentei não parecer desesperadamente curiosa. O tenebris deu uma gargalhada divertida da cozinha, aumentando mais ainda minha curiosidade.
? Espera! Eu preciso ver a cara de Kiara quando dissermos.
? Vocês estão me deixando ainda mais curiosa! ? reclamei, Hestia mordeu os lábios e colocou as pernas longas sobre meu colo.
? Então, Helleon passou aqui agora a pouco, disse que estiveram em Hortal. ? Ela se esticou, alongando-se como um gato no sol ? Viu Avellar por lá?
? O filho mais velho de Kyonna? ? Ela assentiu ? Ah, com certeza o vi! ? meu rosto queimou. O dragão era bonito que doía olhar. Olhos de um negro profundo, cabelos escuros escorridos... uma versão mais jovem e bonita de Connal, mas com as mesmas esferas cheias de líquido que docinho tinha.
Docinho... tia dele. Meu peito doeu, Senrys teria gostado de conhecê-los. Chegar a Hortal com as asas que pertenceram a ele fez minha consciência pesar, eu jamais teria chegado tão longe sem ele. Sentia falta de meu amigo.
? Um espetáculo! ? Hestia riu ? Mas nem se compara a Lunne!
? Não cheguei a vê-la. ? Helleon comentou várias vezes durante a viagem sobre a beleza da jovem princesa dragão, porém ela não estava na cidade quando chegamos e não estávamos curiosos o bastante para perguntar por ela. Eu pelo menos, não sabia se Helleon teria tido a chance de vê-la.
? Então, contamos a ela sobre o mestre e onde estava sua atenção na aula? ? Lohan comentou, voltando da cozinha com três xícaras de chá para nós e um cestinho dos pães de amendoim recheados de Luyen. Hestia fez um biquinho pensativo, aceitou um pãozinho e o mordeu devagar, provocando-me ainda mais.
? Falem logo! ? ralhei. Lohan sentou-se na poltrona em minha frente com um sorriso crescente no rosto.
? Hasan nos passou um exercício para criar esferas explosivas, só que precisávamos coletar as impressões dos colegas para que elas não detonassem com o contato dos outros da sala ? Hestia mordeu outro pedaço, bebericou o chá e suspirou, ela ia enrolar o máximo que podia! ? Lohan! Agora que reparei em suas tranças! O que são esses pingentes? ? A bruxa quase saltou de meu colo, deixando-me boquiaberta e irritada por ter trocado de assunto.
? Ah! ? o tenebris brincou com as ponteiras metálicas ? São o símbolo da alta realeza do Quinto e Sexto Céus.
? Eu sempre quis entender porque não as usava antes ? suspirei, percebendo o olhar meio de lado de Hestia.
? Meu pai foi retirado do círculo real quando foi para o Oitavo Céu com tia Honén. Vovó Malira não aceitou a saída deles e fez com que fossem banidos. Eles tiveram que cortar os cabelos quando saíram, só os tenebris da realeza usam as tranças com os typks. ? Lohan suspirou, passando os dedos suavemente sobre as marcas douradas nos braços. O contraste da pele escura com o dourado era tão bonito quanto os raios prateados que envolviam o punho de seu pai.
? Não sabia que eles tinham sido banidos. ? falei baixo. Ele assentiu e Hestia o olhava de boca aberta.
? E como você os tem agora? ? Ela tirou a pergunta dos meus lábios. Lohan tentou esconder um sorriso e falhou.
? Nedyle cobrou que Owyn reconsiderasse o banimento... porque a realeza Celestial, só pode se casar com outros de posições semelhantes ou próximas. ? Ele pigarreou ? Owyn a princípio bateu o pé e disse que não o faria, mesmo que a relação dele com meu pai esteja boa agora. ? Lohan me deu um olhar cheio de significado e sorriu ? Mas eu aprendi com alguém como lidar com o rei do Quinto, e dei uma ideia a Nedyle. Ela ofertou que a criança de Alfia e Awen seja levada e criada por eles no Palácio da Noite, se Owyn retirasse o banimento e devolvesse o título ao meu pai... e assim eu também entrei na árvore de linhagens reais.
? Eu... acho que não entendi. ? Hestia franziu o cenho confusa.
? Nedyle queria que Lohan fosse um membro da família real para poder se casar com ele. ? apontei o braço de Lohan, que agora tinha um sorriso enorme no rosto. ? São aros de lenys, marcas de casamento.
A boca de Hestia se abriu num grande “O” enquanto seus olhos tornavam-se chamas vivas.
? E VOCÊ NÃO NOS CONVIDOU? ? a bruxa gritou.
? Não foi uma festa grande... Nedyle não quis plateia, ela ficou com medo de ser julgada, depois de anos no harém de Owyn. ? Ele deu de ombros ? Não ia exigir algo que a fizesse se sentir mal, mas pedi que depois pudéssemos comemorar com nossos amigos. ? Ele estendeu mais um pãozinho para mim.
? Ah! Bom! ? Hestia fez um bico e voltou a bebericar seu chá, eu estava mastigando metade do pãozinho quando a bruxa soltou ? As esferas começaram a explodir na sala de aula, e Hasan não estava prestando atenção! Foi até engraçado de se ver! Ondas de magia explodindo e o mestre olhando para o nada com um meio sorriso bobo no rosto!
Engasguei com o pãozinho e bebi quase metade da caneca de chá quente tentando parar e tossir, Lohan ria de soluçar.
? O quê? ? não acreditei naquilo.
? É sério! A sala praticamente pegando fogo, alunos gritando, correndo pro fundo da sala, e Hasan olhando para o nada! Hestia e eu que fizemos uma barreira para conter as explosões e chamamos atenção dele por um minuto inteiro até ele voltar! ? Lohan riu mais.
? Quando finalmente conseguimos que ele reagisse, apagasse as esferas de magia e nos liberasse, brincamos debochando de onde estava a atenção dele, sugerimos que estivesse numa certa malvarmo...
? E o mestre ficou tão brilhante que parecia que ele ia pegar fogo! ? Hestia abafou uma risada ? Hasan nos mandou para muralha por aquilo, mas valeu a pena!
Os dois estavam rindo, mas eu só conseguia imaginar como teria sido a cena. E agora a curiosidade era muito maior. Hasan estava agindo de forma estranha desde o dia que quase morri para a lâmina de fogo. Mil possibilidades passavam por minha mente, algumas ruins, outras boas... mas preferia esperar que ele se sentisse à vontade para falar sobre.
? Vocês também não prestam! ? Os dois riram mais, e dessa vez consegui rir com eles. Depois de terminarmos nosso chá, ficamos em silêncio por alguns instantes nos olhando.
? Então, o que querem fazer hoje? ? Hestia questionou. ? Estou afim de fazer algo divertido!
? Eu deveria ir para casa...
? Ah! Vai mais tarde! ? Hestia choramingou ? Já sei! ? A bruxa gritou de repente, fazendo-nos pular assustados enquanto ela mesma saltava do sofá com um sorriso assustador no rosto. ? Vamos encher o saco de Gwyndion e fazer outro campeonato de queimada!
? É sério? ? Lohan franziu o cenho.
? Está com medo porque não consegue jogar sem trapacear virando fumaça para a bola não te acertar? ? provoquei, Hestia bateu sua mão na minha, rindo de minha provocação.
? Vou fingir que isso não me ofendeu nem um pouco e aceitar o desafio para esfregar na sua cara que eu não preciso trapacear para vencer você. ? Lohan se ergueu, estalando os dedos.
? Ótimo, vamos! ? Hestia agarrou nossos braços e nos arrastou para fora da cabana, ainda com aquele sorriso grande no rosto. ? Vou chamar Fares também, acho que ele vai gostar de jogar.
Caminhei com eles em direção ao salão, tentando não rir da troca de farpas de Lohan e Hestia. Tinha certeza que se conseguíssemos jogar, eles seriam os primeiros a levarem boladas.
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No fim do domingo, passei a manhã fazendo companhia a tia Gwendollyn e Caelle, pois Halles havia ido até a Morada da Lua ensinar aos bruxos que haviam recém se mudado, as passagens secretas pelos bolsões que alcançavam a passagem das estrelas.
Estando por algumas horas na companhia de Gwen, percebi que ela parecia muito mais calma e feliz desde que trouxera Caelle de Pollo. Não demorei para descobrir o motivo daquela mudança, e fiquei chocada ao descobrir que Caelle tinha uma estranha habilidade de “desligar” as visões de Gwendollyn, coisa que nem mesmo a magia de anulação de Halles podia fazer.
Depois do almoço em que Hestia e eu levamos Fares à cozinha em sua forma feminina para que ele tivesse um pequeno ataque de pânico com os surtos pervertidos das bruxas, tivemos um dia divertido e tranquilo, fugindo um pouco das preocupações.
Hestia e eu apresentamos Fares a quase todos os bruxos, e o instruímos em alguns costumes, uns que eram novidade para mim também, eu estava pronta para voltar à Vegahn.
Faltava pouco para a lua surgir por entre os picos irregulares das montanhas do vale, o que significava que seria mais cedo lá... e quando chegasse, partiria direto para a Terra com Hasan.
O nervoso fazia meu estômago revirar.
Tinha receio pela passagem do tempo, mas por alguma graça do destino, Fares foi convidado a ficar no vale até a semana do festival das luzes acabar, e ele parecia ansioso para conhecer mais do lugar e das pessoas ali.
? Vai buscar o próximo fragmento? ? Fares perguntou, caminhando comigo em direção à entrada do salão para o jantar. Eu não iria entrar com ele, mas não queria partir antes de ter certeza de que ele ficaria bem ali.
? Estou preocupada com o tempo que pode levar. ? sussurrei. Embora Hasan tivesse dito que teríamos tempo suficiente para ir e voltar tranquilamente, tinha algo me incomodando em relação a ir até o mundo humano.
? Vou ficar aqui até a outra semana, se é isso que está te preocupando. ? Fares sorriu, passando o braço ao redor de meus ombros. Lhe dei um sorriso tranquilo, mas não conseguia lhe dizer qual era o problema, já que nem eu mesma sabia qual era.
? Espero que goste da estada na morada dos bruxos! ? sussurrei mudando a voz. ? E cuidado com a cozinha, hoje não foi um dia tão agitado por lá. ? O rosto de Fares se encheu de cor e ele desviou os olhos para dentro do salão.
? Eu queria que ela conhecesse... que pudesse ter visto o castelo como era. ? Fares comentou, seu olhar cintilava buscando aquele montinho de cabelos ruivos pelas mulheres que arrumavam as mesas do jantar.
? Se o castelo pudesse ser refeito... você ficaria feliz com isso? Gostaria que ele voltasse a existir? ? Fares voltou a atenção para mim, a emoção brilhou em seus olhos, assim como as lágrimas que se acumularam neles ? Quero dizer... quando Aliver te passar a coroa, imaginei que gostaria de voltar para o castelo de gelo.
? Era o que eu mais queria. ? disse baixo, apertando minhas mãos ? minhas melhores lembranças são de lá, mesmo que as piores sejam também. ? Ele encolheu os ombros, mas um sorriso fraco ainda podia ser visto em seu rosto ? Eu tinha minha família inteira lá e podia passar muito tempo com você.
Um caroço surgiu em minha garganta e precisei fazer força para esconder as lágrimas.
? Nós poderemos estar juntos lá outra vez. ? Afirmei ? E você poderá casar com Hestia no salão azul, e receberá a coroa cercado pelas pessoas que ama. ? A certeza em minhas palavras me chocou, mas o que fez com que elas se tornassem uma promessa não dita em meu coração, foi o abraço apertado de Fares... e as lágrimas quentes que ele deixou cair em meu ombro.
? Juntos?
? Juntos. ? sussurrei, apertando-o de volta.
Ao deixar Fares ali nas portas do salão e atravessar a fenda de volta à Vegahn, o medo que tinha de ir ao mundo humano havia sido substituído por uma determinação quem nem um exército de demônios de fogo poderiam derrubar.
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Ao chegar na sala de Lórien, a surpresa de encontrar o mago branco ali conversando com ela e Hasan, escorreu para algo mais sombrio ao me lembrar de sua aparência na sala escondida em sua torre. O mago arrumou os cabelos loiros ao me ver entrar, e com um sorriso grande, deu tapinhas na cadeira ao seu lado.
Hasan também sorriu para mim, o que me fez relaxar ao menos um pouco e me sentar na poltrona macia ao lado do mago atento aos meus movimentos.
? Vejo que a liberdade de sua magia fez uma grande diferença, querida! ? disse em cumprimento, servindo uma xícara de chá daquele bule transparente cheio de flores dentro e a estendendo em minha direção ? você parece... radiante! ? o sorriso que me deu não parecia nada menos que um lembrete daquela magia assombrosa que senti.
? Aristes, obrigada! ? tentei sorrir de volta, aceitando o chá.
? Infelizmente minha visita não tem motivos agradáveis, mas agora que está aqui, fico mais aliviado em poder te dizer algumas coisas antes que partam! ? disse ele, percebi que Lórien se encolheu um pouco, e Hasan apertou uma espécie de bolsinha de tecido nas mãos.
? Que seriam? ? direto ao assunto, sem enrolações.
? Só gostaria de lhes dar um alerta para o caso de conseguirem encontrar o que sua pequena trilha de migalhas aponta ? o mago deu um olhar breve a Lórien e Hasan ? já vi de perto os danos que suas magias podem causar, princesa. E algo que deixei de mencionar aquela vez que foram à torre, princesa. Além do preço que o livro exige, caso você consiga viver sem o que ofertou, cada vez que é usado o livro corrompe quem o manipula, apagando completamente o senso do bom e do correto. Tome cuidado, pois se passar dos limites com ele... especialmente com sua magia ? Ele deu uma risadinha ? Não haverá retorno.
Suas palavras desceram como ácido por minha garganta, mesmo assim, assenti devagar.
? Obrigada pelo aviso.
O mago sorriu e se levantou, pronto para partir:
? Faça o que os outros não fizeram antes, princesa, ou o ciclo será sempre renovado. Haverá sempre um mal maior a se combater após seus períodos de repouso.
Lá estava aquele olhar louco novamente nos olhos amarelos do mago quando ele se afastou, e sem despedidas, desapareceu numa coluna de luz.
? Ele sempre foi... excêntrico assim? ? quis saber, escondendo a tremedeira em minha voz.
? Está piorando com a idade. ? Lórien rebateu.
Porém as palavras dele.... elas tinham mais do que uma loucura senil.
? Bom... precisamos partir, Eish-amir. ? Hasan comentou, levantando-se do sofá, suas palavras arrancaram risadinhas e bochechas coradas de Lórien. Ele revirou os olhos e se voltou para mim ? Vou precisar mudar sua aparência novamente.
Pisquei, levando um instante para entender o que ele queria dizer.
? Ah! Tudo bem! ? lhe dei as costas, Hasan tocou naquele ponto em minha coluna, colocando minha forma malvarmo para dormir, despertando a marca de proteção dos bruxos. Dessa vez, quando a magia passou por meu corpo, senti um ardor e um calor estranho em meu braço esquerdo e ao olhar para ele, percebi que o braço metálico fora coberto por pele.
Outra vez, me senti estranhamente eufórica ao encarar as unhas redondas e pele rosada. Mas o que me chamou atenção foram os gritinhos animados de Lórien.
? Que bonitinha! Eu quero te abraçar! ? Ela pulou da cadeira e deu a volta na mesa para me ver melhor ? ELA TEM SARDAS! DEUSES QUE COISA MAIS FOFA! ? Lórien riu apertando com força minhas bochechas.
? Você vai arrancar todas elas! ? reclamei, conseguindo desvencilhar-me de seu aperto, Hasan apenas ria.
? As roupas. ? Ele comentou, usando magia para substituir o vestidão vinho que tinha pego de Ellyn não fazia ideia do porquê.
Só então notei que o Solaris já estava vestido de forma diferente: calças justas escuras de brim, enfiadas dentro de botas curtas de um couro brilhante e uma camiseta preta sem mangas, mas com um capuz e cordinhas. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo alto e havia um brinco de argola pequeno em sua orelha.
? Está babando! ? ele riu. Demorei alguns segundos para olhar minhas próprias roupas, uma saia curta preta com pequenos cortes desfiados, do mesmo tecido que sua calça, camiseta preta com um símbolo parecido com uma mandala e palavras no meio, meias pretas até os joelhos e um sapato estranho preto e branco na altura de meus tornozelos, com uma estrela nas laterais.
Hasan percebeu minha curiosidade sobre eles e sorriu outra vez.
? All star. ? foi Lórien que comentou ? Confortável, bonito, não sai de moda nunca, e se precisar, pode chutar bundas que vai machucar bastante! ? Ela riu, voltando para sua mesa.
? São mesmo muito macios. ? até que podia gostar deles. ? E o símbolo da camiseta? ? questionei. O solaris ganhou um pouco mais de cor.
? É de um mangá que eu costumava acompanhar nas redes sociais quando era Leonard. ? explicou ? Precisa pegar algo antes de irmos? ? Ele perguntou. Assenti, ia abrir a boca e pedir minhas espadas, mas ele se adiantou, colocando-as em meu pescoço como pingentes em uma fina corrente de aço escura. ? Só isso?
Lhe mostrei a língua.
? Mariane estará os esperando no local de sempre com as chaves! ? Lórien avisou, em seguida abriu o portal para nós.
? Vamos. ? Hasan segurou minha mão e entrou comigo no túnel de luz.
Capítulo 14
Hasan:
O portal de Lórien nos deixou dentro da guarita da ilha da Boa Viagem, próxima ao museu de arte contemporânea, que na minha infância costumava acreditar que era uma nave espacial que pousara ali naquele rochedo à beira da praia.
Olhei para Kiara, verificando se estava tudo bem. Ela respirou fundo algumas vezes, testando o ar do lugar. Por estarmos na ilha e por ela não estar em sua forma malvarmo, a mudança não foi tão drástica quando a que sentiu quando estivemos em Somnus.
? Sentindo-se bem? ? perguntei. ? A garota havia dado um passo à frente, descendo os primeiros degraus para fora da guarita. Kiara olhava de boca aberta a extensão da cidade à beira-mar e as montanhas verdes ao redor dela. Observou fascinada os surfistas ao redor da ilha dos Cardos, deitados sobre suas pranchas e nadando na direção da praia. Viu também um pequeno grupo de garotas banhistas amarrando cangas sobre seus biquinis prontas para deixar a praia. O inverno estava quase no fim, mesmo assim, um dia de sol era um dia de praia e mesmo com a queda da temperatura com o entardecer, as garotas sorridentes só deixaram a praia no último minuto, abraçando umas às outras e gargalhando conforme avançavam pela areia e subiam as escadas em direção ao calçadão.
Kiara piscou, sem reação por alguns instantes. Claro, ela nunca havia visto nada como aquilo! Ela encheu os pulmões com a brisa cheirando a maresia que chegou até nós e suspirou.
? Por algum motivo, achei que chegaríamos a uma versão com sol de Somnus... mas isso aqui... ? Ela ergueu os olhos para a ilha atrás de nós, e de novo para a ponte que nos levaria a praia. ? Não sei descrever isso.
? Como eu disse, Somnus evoluiu mais rápido, já que vampiros não dormem ? brinquei ? e luz solar deixa tudo mais feliz.
Ela sorriu, sem presas aparentes.
? Vamos lá? ? Ela se inclinou, tentando ver além do portão.
? Precisaremos pular o portão. ? comentei, descendo com ela os degraus restantes até o arco de concreto. ? Temos que parecer o mais normais possível. ? Ela assentiu.
Por sorte o lugar estava fechado, o que era bom e ruim ao mesmo tempo. Por um lado, ninguém nos vira chegando, por outro, se alguém nos visse da estrada, pensariam que éramos um casal tentando entrar na ilha para fazer o que não devíamos.
Coloquei as mãos na parte superior do arco, era só dar impulso e pular, depois puxá-la para cima. Devia ter a vestido com um short. Me pendurei rapidamente e dei impulso para cima, girando o corpo, sentei-me sobre o arco e estendi a mão para puxar Kiara, mas um ranger metálico me chamou atenção.
? Kiara? ? chamei.
? Estou aqui fora. ? Ela estava a alguns passos do portão, olhando com um sorriso para mim. ? Estava destrancada!
Meu rosto queimou por não ter pensado antes em verificar se estava aberto. Talvez houvesse alguém na casa lá em cima, ou limpando a igreja.
A garota riu ao me ver descer e passar pelo portão, puxando-o ao sair, ela mordeu a boca e estendeu a mão para pegar meu braço, então seguimos juntos pela ponte. Kiara não parava de olhar o sol se pondo e a cidade do outro lado, os cabelos pretos enrolados nas pontas balançavam com a brisa e seus olhos cintilavam como joias preciosas contra a luz poente.
Assim que o sol desapareceu por completo, tingindo o céu de laranja e dourado, alcançamos o calçadão. Alguns passos à frente de uma pracinha central, sob a luz recém acesa de um poste, o Jeep Wrangler de Ewren estava à espera, e a senhora que vivia em seu apartamento também.
Mariane nos olhava com curiosidade, na verdade seu olhar detinha mais em Kiara e ao reparar nas roupas da garota, a senhora apertou ainda mais seu casaquinho fino sobre os ombros e bufou, enfiando a mão no bolso.
? Hasan? ? Ela franziu o cenho reparando melhor em mim.
? Mariane! Devia ter pego um casaco mais quente! ? cumprimentei, aproximando-me para lhe dar um abraço. Ela passou os braços ao meu redor e me deu tapinhas suaves nas costas.
? Desculpe, menino! Nem o reconheci com essas roupas... de delinquente. ? Ela avaliou minhas roupas novamente, a expressão fechada foi acentuada pelas poucas rugas que não tentava esconder. Seus olhos escuros e analíticos se voltaram para Kiara, e ela até aquele momento silenciosa, sorriu para a senhora.
? Ah! Desculpe, Mariana, essa é Kiara, ela também é da família!
? É um prazer conhecê-la! ? a garota estendeu a mão. Mariana suavizou a expressão e apertou a mão estendida dela. Por um minuto, pensei que perguntaria de Serena, afinal, para ela... havia menos de dois anos que estive ali com Serena e Neruo ainda criança.
Porém, Mariana estreitou os olhos para mim com um sorrisinho conspiratório e por um instante, pude ver seus pensamentos, algo como “se deu bem” passou por sua mente.
? Prazer também, garota! ? Mariana deu um risinho, buscando a chave do carro em seu bolso e a entregando a mim. ? Pensei em chamá-los para fazer um lanche, mas imagino que tenham pressa!
? Um pouco, Mari. ? apertei suavemente sua mão ? mas prometo que volto depois para conversar! ? Ela piscou e assentiu, olhando para os lados, atravessou a rua em seguida, caminhando de volta ao seu apartamento a poucos metros dali.
? Quando vier, traga o índio rabugento e sua irmã, estou com saudades deles! ? Ela piscou e subiu a rua.
? Índio rabugento? ? Kiara ergueu as sobrancelhas.
? Indígenas, são nativos desse país. Vai ver alguns em Akakor. ? expliquei, desativando o alarme do carro. Kiara para seu crédito, não pulou de susto com o som, uma vez que algumas pessoas que faziam caminhada passavam por ali.
? Ela acha que vovô é um nativo? ? Ela se aproximou curiosa ao notar que eu havia aberto a porta do carona e fiz um gesto para que entrasse.
Um pouco desconfiada, a garota entrou e sentou, arqueando as sobrancelhas enquanto olhava tudo por dentro do carro. Ele não era muito diferente da limusine luxuosa de Lethan, mas os carros da Terra eram mais rústicos, especialmente o Jeep que mais parecia um monstro perto dos carros futuristas do mundo dos vampiros.
Devia ter tirado mais tempo para lhe contar sobre as coisas dali, ou simplesmente ter lhe passado informações do mundo humano, mas estava adorando ver suas reações de surpresa.
? Então? ? percebi ao entrar que Kiara ainda esperava a resposta para a pergunta.
? Mariana acha que somos alienígenas disfarçados e que costumamos vir na Terra para avaliar o comportamento dos humanos e estudá-los, mas que somos da paz. ? comecei a rir, colocando a chave na ignição acionando os instrumentos. Kiara se sobressaltou com o as luzes do painel e o rádio ligando na estação local.
? Preciso ligar o GPS, podem ter alterado as estradas daqui para Campos. ? comentei, digitando o endereço da antiga casa de Lupine no aparelho. Kiara observava tudo, e sorriu discretamente ao perceber que apertar o botão em sua porta fazia o vidro descer. ? O cinto.
Ela me olhou confusa, então puxei seu cinto, roçando os dedos em suas pernas antes de prendê-lo.
? Não precisa de um pretexto para me tocar! ? Ela riu, lançando-me um olhar malicioso que desapareceu ao ouvir o ronco do carro ligando. Saí com cuidado, tentando me acostumar novamente com aquilo embora não tivesse me esquecido.
Kiara olhava curiosa pela janela conforme subíamos em direção ao museu e descíamos em seguida pela praia das Flechas. O relógio digital na calçada marcava 18:26 do dia 28 de fevereiro de 2018.
? Ah! Eu tinha esquecido dessa parte. ? bufei ao parar no sinal em frente a um supermercado. Era meio de semana e no horário de saída de muitos trabalhadores. O trânsito estaria infernal.
? O quê? ? Kiara perguntou sem tirar os olhos de uma pracinha, onde duas crianças brincavam nos balanços, supervisionados por uma senhorinha de cabelos cinzentos e olhar tranquilo.
? Horário que muitas pessoas estão saindo de seus trabalhos. A estrada que vamos pegar vai estar completamente parada. ? suspirei.
? O que vamos fazer então?
Quando o sinal abriu, ao invés de seguir para o centro da cidade, segui a avenida e pouco mais à frente, virei à esquerda para voltar à praia. Já que estávamos ali e não havia como escapar sem ser perdendo horas dentro do carro... preferia levá-la para ver um pouco além de estradas e carros passando.
? Por volta de meia-noite as estradas ficam vazias. ? Kiara mordeu os lábios e voltou a atenção para a paisagem passando por sua janela conforme virava o carro na avenida à beira-mar.
Kiara:
Observando o movimento das pessoas nas calçadas, com suas roupas coloridas e finas, não conseguia acreditar que aquele era o inverno deles! E como as pessoas andavam com tranquilidade sob as luzes dos postes e prédios. Haviam pessoas na praia também, jogando bola, correndo, se exercitando... parecia um lugar tranquilo e quase perfeito para viver. Não conseguia parar de olhar como tudo ali tinha luz e vida!
Totalmente diferente do que esperava encontrar: uma versão menos feia de Somnus, mas o lugar era até bonito e agradável! Embora não pudesse me iludir, estávamos em uma cidade.
Porém, o que no momento mais me surpreendia era que Hasan estava bebendo!
O olhei novamente, o solaris ainda falava sobre como ele era obrigado por Lupine a acompanhar Leona quando ela ia em lugares como aquele, para evitar que a irmã tentasse se aproximar de algum rapaz.
? Hasan! ? o interrompi quando o vi tomar outro longo gole de sua bebida ? É sério... você não está acostumado! ? estendi a mão devagar para lhe tomar a taça grande de coquetel de frutas. Hasan sorriu ainda mais e o afastou de meu alcance.
? Isso é muito bom! ? Eu queria rir daquele sorriso, mas era tão errado!
? Já viu meu tamanho? Acha que as pessoas não vão desconfiar de algo se eu conseguir te arrastar até o carro? Fora que eu não sei dirigir aquela coisa! ? rebati, inclinando-me sobre a mesa para pegar a bebida, mas Hasan segurou meu queixo e me beijou, enfiando a língua em minha boca. O álcool se misturou ao seu gosto e o deixou ainda mais quente.
? Deuses! Hasan me devolva esse copo, agora! ? exigi, mas o solaris o virou de uma vez, fazendo-me soltar um suspiro irritado. ? Você vai acordar com uma dor de cabeça...
Hasan riu e aproximou-se um pouco mais, seus olhos escuros brilhavam enquanto a cor tomava conta de seu rosto.
? Acho que eu gosto disso.
? Tenho certeza de que você não vai gostar mais quando acordar de ressaca. ? brinquei, tomando meu drink sem álcool antes que ele o pegasse também. Esperava de coração que Hasan não começasse a soltar raios de luz pelas mãos. Isso com certeza chamaria atenção das pessoas nas outras mesas à beira do varandão de meia parede de vidro escuro.
? Sabe, eu já bebi antes. ? Ele bufou, movendo os dedos para que a garçonete que não parava de babar nele trouxesse mais uma bebida.
? Você disse que não gostava do gosto e da sensação. ? O lembrei, ele havia dito aquilo na cabana enquanto eu tomava uma garrafa de vinho sozinha.
? Eu bebi no dia do meu casamento. ? Ele murmurou em resposta, seu sorriso tinha diminuído.
? Festa de casamento sem um noivo bêbado falando besteira não é festa de verdade! ? tentei amenizar aquele sorriso ? No seu caso mais atual, você teria bebido só pra não ter que ouvir Alfia fazer um discurso igual ao de abertura do festival de novo! ? a tentativa funcionou.
? Isso é porque você não ouviu o discurso do final do festival! Owyn revirou os olhos e fingiu dormir duas vezes!
? Devia ter te arrastado para as piscinas térmicas ? brinquei.
? Você não sabe o quanto senti sua falta! ? Hasan sorriu.
? Eu imagino! Você não consegue tirar os olhos de mim!
? Tenho receio de piscar e acordar de um sonho, perceber que estou no Primeiro e que não voltei para casa ainda. ? meu coração acelerou.
? Não é um sonho, Hasan. ? afirmei ? E se você acordasse agora... saiba que estaria a um passo de ir lá te resgatar ? Ele suspirou, aliviado e voltou a olhar o mar quebrando na areia do outro lado.
? Preciso te instruir em umas regras daqui... ? ele fez um sinal, pedindo mais uma taça de coquetel. ? A primeira delas, você não pode ser pego dirigindo depois de ingerir álcool.
Ele riu ainda mais ao ver minha cara feia, mas não tinha o que fazer, tinha?
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O movimento havia diminuído bastante quando o relógio na calçada mostrava que passava das dez. A garçonete que voltava de vez em quando para oferecer mais bebidas ou qualquer outra coisa, ficou bastante decepcionada ao ver Hasan se erguer, deixando algumas notas sobre a mesa e estendeu o braço para mim.
? Vamos, o trânsito deve estar melhor a essa hora.
? Hasan, você me disse que não se pode guiar os carros depois de beber. ? resmunguei ? E você bebeu umas oito taças daquela.
? Eu não vou dirigir ? Ele piscou para mim e me conduziu para o veículo entre os prédios, onde um homem com um paninho na mão vigiava os carros. Ao chegarmos no veículo, ao invés de abrir a porta, Hasan me agarrou pela cintura, colocando-me sentada sobre a parte dianteira do mesmo.
Antes que eu perguntasse o que estava fazendo e tentando evitar que minha saia curta subisse mais, ele pressionou o corpo no meu e me beijou outra vez, arrastando os dedos quentes por minha nuca, deslizando a língua contra a minha.
Ao quebrar o beijo que quase me fez esquecer de onde estávamos e o que pretendíamos fazer, ele tocou sua testa na minha e um fluxo de memórias envolveu minha mente instruindo-me em tudo que tinha a ver com veículos, deixando aquela nova habilidade tomar conta e assentar em minha memória muscular também.
? Você vai primeiro. ? pisquei incrédula olhando a chave que colocou em minha palma. Hasan entrou pelo lado do carona e deu batidinhas no banco do motorista, esperando que eu entrasse. Encarei o Jeep um pouco temerosa, mesmo que as memórias de como fazer aquele monstro andar estivessem claras em minha mente agora.
? Hasan...
? Está com medo? ? Ele riu, mesmo que não estivesse muito bêbado, podia ouvir o tom alterado em sua voz e sorri, era bonitinho de ver.
? Vou te dar álcool mais vezes. ? brinquei, entrando no carro e avaliando o interior. Usando a chave como vi na memória, dei partida e senti o ronco do motor estremecer o veículo, meu coração acelerou, de medo ou empolgação não sabia dizer.
Hasan ativou o GPS, colocando outra vez o endereço que precisávamos ir, então a voz feminina começou a dar instruções do caminho que deveria seguir. Com o coração acelerado, e por algum motivo absurdo e desconhecido, agradecendo pelo carro ter câmbio automático, saí do meio dos prédios e conduzi o carro pela rua.
? Isso é muito incrível! ? sorri, pisando de leve no acelerador e fazendo o carro andar. Hasan estava rindo.
? Você se adapta bem a qualquer situação. ? Ele murmurou, inclinando um pouco seu banco para trás. ? Essa sua capacidade sim é incrível.
? Não é bem assim! ? retruquei, sentindo meu rosto esquentar.
? Sua pele humana cora em vermelho. ? Ele sussurrou, estendendo os dedos para tocar minha bochecha. ? Não consegue esconder quando está sem graça! ? o teria beliscado se não estivesse com medo de soltar o volante. ? Você se adaptou a situações difíceis e fez amigos onde poderia facilmente ter conseguido inimigos. Você transformou todas as situações até hoje a seu favor, e as que não conseguiu... aprendeu com elas.
Olhei para ele por um instante, sem saber como responder.
? Você entrou no meu coração e me fez.... ? suas palavras foram sumindo até não passarem de um sussurro.
Ao parar no sinal da praça onde ele se deu conta de que teríamos muito trânsito se tentasse pegar a estrada naquele horário, o olhei rapidamente, ele havia pego no sono.
? Já sei que você é dos que bebem e dorme depois! ? sorri. Mexi no rádio, tinha visto em sua mente como colocar músicas ali, e curiosa, tirei um pendrive de dentro de um porta objeto e o coloquei na entrada USB. A primeira música que começou a tocar lançou um arrepio por minha espinha, nunca tinha escutado musica assim... papai chegou a falar sobre uma vez, mas nunca teve a chance de nos mostrar.
Mesmo que não estivesse usando magia, a letra da música entrou em minha mente com palavras que eu entendia.
And I'll use you as a warning sign
That if you talk enough sense, then you'll lose your mind
Oh, and I found love where it wasn't supposed to be
Voltei minha atenção para as luzes do semáforo, com os olhos cheios de lágrimas e deixei que o GPS me guiasse pela estrada.
?????????????????
Hasan:
? Amo você! ? Serena sorria, apertando as mãos em meus ombros. Meu coração estava acelerado, eu sorria de volta enquanto a girava durante a valsa. Seu vestido branco perolado e o véu criavam arcos e brilhavam a cada giro contra os pontos de luz dourados que se espalhavam por todo o pátio enfeitado de flores da fortaleza.
Os cabelos castanhos cacheados estavam presos por um grampo dourado, emprestado a ela por minha mãe, embora eu tivesse precisado insistir muito para que ela o entregasse a Serena. Porém Áries o cobrou de volta no fim da festa.
Ignorei aquilo e foquei minha atenção novamente naqueles olhos cor de mel. Seu rosto corou quando a música parou e eu me inclinei para depositar um beijo em sua testa e sussurrar que a amava também.
Era difícil acreditar... enquanto era Leonard, eu sonhava em crescer e ter Lucy comigo. Agora, ali estava ela! Estava tão feliz que mal conseguia me expressar direito.
A música parou e a dança mudou. Todos batiam palmas e sorriam, contagiados por nossa alegria. Arcádius então se aproximou, oferecendo uma dança à Serena. Ela continuava agarrada ao meu braço, mas aceitou a mão estendida do mago ao me ver assentir discretamente para ela.
Aproximei-me de minha mãe, e lhe dei um beijo, afastando aquela cara feia de sempre. Ela deu um meio sorriso, e foi puxada para o centro do pátio por Sirius para mais uma dança. Eles estavam livres para ver aquilo, graças a Leona.
Por falar nela, o único ponto triste de nossa noite era minha irmã não estar ali ainda. Eirien continuava tomando conta de seu corpo no castelo de cristal, esperando que ela retornasse. Ewren, por muita insistência de Demétrius e Yurin, que disseram a ele sobre Leona gostar de assistir o casamento pelos olhos dele, estava ali e até sorria de vez em quando. Porém parecia um pouco chateado por Serena se recusar a esperar Leona acordar para fazer a festa.
? Sabe que ela não fez por mal, não é? ? tentei defendê-la, olhando-a dançar com Arcádius.
? É claro que sei... só acho que Leona vai ficar magoada com isso, elas eram melhores amigas. ? Ewren bufou.
? Ainda são! ? o corrigi ? E caso tenha se esquecido, você e Leona se casaram escondidos! ? rebati.
? Eu casei com Leona sem ela saber ? Ewren replicou irritado, olhando-me de lado ? E Eirien já nos cobrou uma festa. ? O elfo revirou os olhos e bebeu mais uma taça de vinho. Ele reparou minha atenção e estendeu uma taça para mim também.
? Nunca bebi. ? resmunguei, sentindo o cheiro do líquido. Um sorriso sarcástico apareceu no rosto de Ewren.
? Alguns meses atrás você era um moleque de quê? Oito anos?
? Doze! ? rebati, virando a taça num único gole. O líquido desceu queimando e minha careta fez Ewren rir e servir mais. ? Mas devo ter a mesma idade que você.
? Mas continua uma criança contente que conseguiu pegar a amiga da irmã ? Será que Leona me perdoaria se eu quebrasse alguns dentes de seu marido?
? Eu quero uma dança com o noivo! ? A versão feminina e mais bem humorada de Ewren apareceu, movendo as sobrancelhas numa provocação.
? Onde está Demétrius? ? perguntei.
? Saiu por aí! ? Ela riu ? Então? Vamos dançar? ? Yurin estendeu a mão, Ewren pegou minha taça para que eu a acompanhasse na dança que estava pela metade. Não sabia ao certo se por causa do álcool, mas tudo tinha ficado um pouco mais colorido de repente, assim como as luzes do pátio.
Yurin não dançava tão bem! Ela pisava em meus pés e se acabava de rir a cada volta que errava o lado, mas estava se divertindo tanto que eu ri também.
? O QUE ESTÁ FAZENDO? ? os gritos de Serena fizeram até mesmo os músicos pararem de tocar. Serena segurou o braço de Yurin, tentando afastar a elfa de mim.
? Serena? O que houve? ? quis saber, tocando seu ombro, mas ela se desvencilhou e me encarava incrédula.
? Você bebeu? ? rosnou ? está bêbado e dançando com ela?
? Ei! É uma dança! Não estou tentando roubar ele de você! ? Yurin ralhou, lançando um olhar mais do que irritado para Serena.
? Está com ciúme? ? talvez minha pergunta tivesse soado errado, o que fez Serena puxar o braço de Yurin com mais força.
? É meu casamento! ? Yurin piscou incrédula, e por um momento, pude ver um olhar de pena em minha direção.
? Serena, se acalme! Você estava dançando com Arcádius e Yurin sozinha...
? Então me disse para dançar com ele para poder ficar com ela enquanto isso? ? Serena ralhou.
Deuses. Estava acontecendo de novo!
Ela havia feito o mesmo com Mariah, com a diferença que a salamandra a havia provocado.
? Seu marido não vai poder se aproximar de outras mulheres que elas serão consideradas ameaça? ? Yurin riu. O olhar no rosto de Serena se tornou feroz e eu precisei agarrar seus braços para que ela não avançasse na garota.
? Por favor, Serena! ? implorei, mas ela me empurrou.
Num instante, Serena se soltou de mim e avançou para Yurin. A elfa não se conteve, Agarrou Serena a derrubando no chão mais rápido do que eu pudesse registrar e a imobilizou.
Ewren correu para nós, tirando Yurin de cima dela enquanto eu agarrava Serena que mais parecia um animal selvagem e tentava a todo custo se soltar.
Minha mãe estava se aproximando com aquele olhar raivoso, mas foi puxada dali por meu pai, e ambos desapareceram numa luz de teleporte no instante seguinte. Várias outras pessoas tinham sumido também, inclusive, nos minutos seguintes enquanto tentava acalmar Serena tentando entender o que realmente tinha acontecido, Ewren, Demétrius e Yurin desapareceram também.
Serena me manteve apertado em seus braços.
Chorou, pediu desculpas, disse que me amava e que não queria fazer aquilo. Ela prometeu que não faria novamente.
Era só ciúmes.
Acordei sobressaltado.
Cheiro de combustível.
Ronco de um motor audível sob a melodia agradável de....
? Shine a light, já ouvi essa música umas quatro vezes. ? Kiara sorriu. ? Foi isso que te acordou? Desculpe!
Estendi a mão e toquei em seu rosto.
Deuses...
? O que houve? ? Ela diminuiu a velocidade, estava parando o carro num posto de combustível, o ponteiro do indicador mostrava que o carro estava na reserva. Talvez já estivesse baixo quando o pegamos com Mariane. ? Hasan? Pesadelo? ? Kiara insistiu ao parar o carro na bomba de gasolina. O frentista a encarou de boca aberta, sem se lembrar que precisava pedir a chave para abrir o bocal do combustível.
? Complete, por favor. ? tirei a chave e a entreguei. O rapaz saiu sem graça e Kiara mordeu os lábios rosados para não rir.
? Não fique com ciúme, se ele me visse sem isso ? apontou para a pele rosada ? ia fugir.
? Ninguém jamais fugiria de você, Eish-amir. ? respondi, beijando de leve os nós de seus dedos. ? Vou pegar um café. ? avisei, saindo do carro e me esticando.
Suspirei pesadamente.
Fora apenas um sonho. Não um sonho... uma lembrança.
Fui até a loja de conveniência, dando-me conta de que já estávamos no posto da BR 101 fora do centro de Rio Bonito. E que passava das duas da manhã. Então era por isso que não sentia mais os efeitos do álcool.
Voltei ao carro com dois cafés, e encontrei Kiara se esticando do lado da porta.
? Quer trocar? ? perguntei, ela negou com a cabeça aceitando o café. Paguei ao frentista que ainda a observava discretamente com olhar de peixe morto. Kiara só lhe ofereceu um “boa noite” e um meio sorriso antes de entrar no carro outra vez.
? É divertido! Você pegou no sono, pegamos engarrafamento do mesmo jeito! ? ela me mostrou a língua ao ligar o carro novamente e sair devagar do posto para a pista quase vazia. ? E então?
? O quê? ? tentei fingir que havia esquecido, mas o olhar que ela me lançou era de quem conhecia o truque de disfarçar.
? Foi um sonho. ? comentei ? uma lembrança ruim.
? Quer falar sobre? ? Ela ofereceu, acelerando o veículo e ligando os faróis para a pista escura. Kiara se encaixava tão perfeitamente ali quanto na neve eterna de Vegahn.
? Não é nada demais ? dei de ombros ? Foi algo que me lembrei enquanto estávamos no restaurante e acabei sonhando com aquilo. Eu disse que bebi no dia do meu casamento, mas não contei mais nada, nem o motivo para evitar bebidas depois daquilo.
Kiara franziu o cenho e assentiu, esperando que eu continuasse
? Foi a primeira vez que... ela ficou irritada sem motivo. Eu dancei com a irmã de Ewren, mas não foi por causa da bebida e sim porque eu quis dançar com ela, não era nada demais. Yurin era divertida e Demétrius tinha saído por um momento. Serena estava do outro lado do pátio de Esperas dançando com Arcádius. ? tomei mais um gole de meu café ? Ela se aproximou de nós e brigou com Yurin, e a irmã do Ewren... bom, ela foi treinada pela rainha de Pollo. Derrubou um centauro com um golpe de espada e tem a personalidade semelhante à do irmão! ? A careta de Kiara me fez rir um pouco ? É, imagina! Estragou a festa.
? Sinto muito. ? Ela murmurou, tomando um longo gole de seu café.
? Você estraga festas de casamento também ? comentei, tentando quebrar aquela tensão que minhas palavras tinham formado. Não gostava de contar sobre Serena daquela forma. Me sentia mal por falar de alguém que não estava mais entre nós ? mas você só estraga as festas certas!
? Eu estragaria a minha também. ? Kiara riu ? Eu não ia conseguir esperar a festa acabar para te agarrar.
Ela sorrir fez aquela tensão desaparecer ao menos para mim.
? Eu te incomodo contando coisas sobre ela...
? É claro que não! ? Kiara bufou, franzindo o cenho para o farol alto de um carro vindo na pista contrária ? Fico feliz que se abra para mim.
? Quero que me conte algo também. ? comecei, Kiara ergueu as sobrancelhas ? Me conte como foi que... acabou com... o que houve com Scath?
Ela gargalhou, seu rosto se encheu de cor e meneou a cabeça, negando.
? Você não quer mesmo saber sobre isso!
? Deuses! Pelo jeito que você falou...
? Não é nada estranho! ? Ela franziu o cenho ? só não acho que seja algo que você queira saber! Vai entrar na ACV depois e sempre que olhar para ele, o que eu te disser vai passar por sua cabeça, a imagem que você tem dele vai mudar. Eu prefiro que fique assim, na inocência. ? disse séria.
? Você tem razão. ? suspirei ? E Awen?
? Hasan!
? Brincadeira! ? comecei a rir. ? Hestia? ? Ela revirou os olhos.
? Dormi com ela no dia que voltei da sua biblioteca. Eu estava com fogo e frustrada, quando cheguei ao vale ela me cobrou que eu tinha prometido que a morderia se ela acobertasse minha ida à Vintro. Ela ofereceu, porque não experimentaria? ? Ela deu de ombros.
Pisquei, incrédulo.
? De Hestia é mais fácil falar?
? Somos amigas, e estou contando sobre uma experiência de descoberta. ? Ela mordeu os lábios. ? Não acho que tenha nada que possa te dizer sobre meus relacionamentos. Se tem uma coisa boa que aprendi vivendo com muitas famílias, é como o amor deve funcionar entre um casal.
? Por exemplo?
? Com Ceiran e Ellyn, aprendi muito sobre companheirismo e amizade, Gwen e Halles, aprendi o quanto as coisas podem mudar, e que quando amamos, não importa as diferenças. ? Ela suspirou ? Owyn e seus maridos me mostraram que amor pode ter muitas formas, e que também pode ser compartilhado entre mais de duas pessoas, Luyen e Hamza continuam implicantes um com o outro depois de anos, isso quer dizer que precisamos manter o humor sempre... mas me ensinaram que há coisas que não se deve aceitar jamais. E Áries e Sirius me fizeram perceber que não há barreiras para amar.
A observei por longos instantes pesando suas palavras.
? E elas te serviram na prática? ? questionei.
? Dei um chute na bunda de Cedric quando ele quis quebrar a estátua de minha no centro do salão. É só um objeto... mas se a pessoa não tem respeito por um objeto, imagine por uma pessoa.
? Você aprendeu bem com os exemplos dos outros. ? comentei terminando o café. ? Só tive oportunidade de aprender na prática.
Um sorriso malicioso surgiu no rosto de Kiara e ela mordeu os lábios outra vez.
? Algumas coisas são melhores quando são aprendidas assim.
? Você passa o dia todo pensando bobagem! ? Ela me mostrou a língua. O GPS anunciou um pedágio à frente. ? Vamos chegar no fim da madrugada. ? comentei, tentando desviar a atenção de como sua saia deixava suas pernas à mostra... e por estar dirigindo, ela havia subido um pouco.
Foco.
Assim que chegássemos à casa vazia de Lupine, pegaríamos o fragmento e logo voltaríamos para Amantia. Torcia para terminar tudo antes do festival acabar... e ter uns dias de descanso antes do que quer que estivesse por vir.
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Entramos na divisa do Bairro imperial por volta de cinco da manhã, uma fraca claridade podia ser vista surgindo no horizonte. Lembranças de infância inundaram minha mente conforme entramos na terceira rua após a entrada da rotatória do posto.
? A quinta casa é a de Lupine. ? informei. Kiara foi parando devagar, ainda não havia ninguém na rua, nem sequer as senhoras que costumavam amanhecer o dia varrendo suas calçadas. Talvez fosse cedo demais para aquilo.
Por um momento, me peguei imaginando que tudo não seria apenas um delírio, um sonho que eu acordaria a qualquer instante e perceberia que nada dos últimos sessenta e nove anos existiram. Talvez se resumiriam a eu ter caído da janela tentando prender passarinhos e tivesse ficado em coma.
? Hasan! ? Kiara segurou meu rosto e apertou os lábios em minha testa. ? Eu posso sentir você, lembra? A ligação. ? Ela tocou meu pulso, onde a corrente não podia ser vista, mas eu a sentia ali.
? Estou bem.
Ela me analisou por alguns instantes, aguardando meu pulso se acalmar.
? Vamos, então? ? Assenti, saindo do carro em seguida. As chaves estavam em meu bolso, elas ficaram no quarto de Lupine em Lótus Vale, escondidas numa caixinha de joias junto com seu pingente de cajado, o qual eu tive muita vontade de pegar, mas que por respeito, o deixei lá.
Kiara me acompanhou em silêncio até o portão grande e metálico que fora colocado depois que fomos para Amantia. Me sentia um pouco mal por Nigel, que ficou por semanas procurando seu filho desaparecido, depois que sumi indo para a escola. Haviam fotos no jornal, a traseira borrada de um carro que saíra com o garoto em alta velocidade. Por sorte, Mariana mandara alterar a placa e os documentos do carro por algum meio ilícito.
Leona fez questão de procurar por Nigel depois que despertou em Amantia após ter retornado de Mogyin. Até onde sabia, ela o havia encontrado e apagado sua mente, dando uma nova identidade a ele. Porém não sabia ao certo se era verdade, Ewren e Leona nunca mais falaram sobre o assunto.
A casa permanecera trancada desde então, com os documentos no nome de Leona.
Os pinos de metal rangeram por falta de lubrificação quando abri a portinha no meio do portão. Kiara olhou em volta, preocupada de ter acordado alguém. Entramos com cuidado, tentando sentir qualquer presença mágica.
Mas duvidava que Susano tivesse colocado uma armadilha ali. Aliás, o que me intrigava era o fato de ter colocado uma frase que eu dissera a ele. Será que esperava que Kiara ou Fares me procurassem pedindo ajuda? Sim, ele teria pensado nisso, para que os dois não viessem à Terra sozinhos.
Após fechar o portão com cuidado para evitar o barulho, pensei ter visto algo brilhar na garagem vazia, porém com um segundo olhar, não vi nada além do quintal dos fundos. Seguimos até a varanda, onde ainda havia um banco de madeira sob a janela da sala. Abri a porta que parecia muito maior quando era só um menino preocupado em chegar da escola e assistir meus desenhos favoritos e torcer para Leona trazer a amiga para casa.
Ao entrar tive uma surpresa.
A casa estava exatamente como da última vez que a vi com as coisas em seus lugares, antes de Lupine apagar minha memória e de Nigel. Não havia poeira, até parecia que subiríamos as escadas e encontraríamos os donos dormindo lá em cima.
O sofá creme com uma manta azul clara bordada no canto da sala, a estante de livros de Lupine, uma mochila com os materiais de Leona... a gaiola vazia de cocota no canto perto da janela. Haviam fotos nossas nos quadros, minhas como Leonard, de Leona e Serena abraçadas às suas bonecas, de Lupine com um sorriso no rosto abraçando a nós três...
Leona fizera tudo voltar como era antes dela partir.
Kiara ao meu lado, desviou o olhar das fotos ao sentir minha atenção e encarou a escada.
? Lá em cima? ? questionou, assenti devagar, seguindo para os degraus de madeira escura. A primeira porta do começo do corredor, era o quarto de minha mãe emprestada, mas um nó em minha garganta me impediu de abrir aquela porta, então segui para a do meio.
Meu quarto também estava igual, com a caixa de brinquedos aberta, meu PS2 com o estojo de jogos aberto sobre a cômoda ao lado da TV, a cama arrumada e pôsteres de Piratas do Caribe na parede ao redor da janela.
Kiara permaneceu em silêncio até que entramos no quarto ao lado, o de Leona. A primeira coisa que dei falta foi o espelho na parede, ela tinha substituído o espelho comum pelo encantado, mas nunca o trouxe de Amantia quando ele a levou junto Lupine de volta. Sua cama com aquela colcha pêssego felpuda ainda tinha cheiro de amaciante e balas, sobre a cômoda, pequenos enfeites de porcelana dividiam espaço com seu aparelho de som.
A malvarmo olhava curiosa os detalhes do quarto. Mal conhecera Leona mais velha, que não curtia muito brincar com as barbies espalhadas pelas prateleiras sobre as janelas.
? Embaixo da cama ? falei, arrastando o móvel para o lado. O assoalho fora colocado bem depois da casa ser construída para que o quarto ficasse mais quente, o que fez com que houvesse espaço suficiente entre o piso novo e o concreto para colocar uma caixa de sapatos sob a tábua solta.
Ao puxá-la e revelar a caixa de sapatos ali, dei um passo para o lado, para que Kiara a pegasse. A garota tirou a caixa e abriu a tampa. Não tinha mais nenhuma das quinquilharias de Leona ali, apenas um cilindro de vitrino envolto em papel seda, junto com um bilhete e duas moedas de uma pedra azulada com o símbolo de Akakor, o mapinguari entalhado no centro.
? Tirando a dificuldade para chegar aqui sem magia... esse foi o segundo mais fácil! ? Kiara sorriu.
? O de Demétrius e da ACV não contam? ? questionei. Ela fez um bico.
? Os outros foram tão difíceis, especialmente o último, que esqueci dos fáceis! ? lá estava novamente, aquele humor capaz de me tirar de qualquer tristeza.
? Considera ficar cinco dias sem um banho mais difícil do que enfrentar um lorde vampiro?
? Você enfrentou Detéria! Eu só cai como um patinho na armadilha dele! ? ela fez um bico, e tirou o lacre do bilhete:
“Dessa vez as charadas seriam difíceis e complicadas demais para a dificuldade de chegar ao local! Hasan, se estiver acompanhando um deles, e eu espero que esteja, torço que saiba como chegar à Escola de Bruxos e Feiticeiros de Akahim. Pluma Prateada tem um dos fragmentos, mas ele os irá testar para entregar o objeto.
Para facilitar a viagem, encurtá-la na verdade... deixei uma passagem na garagem, só sigam com o carro para o quintal dos fundos. Se não puderem chegar sozinhos em Akahim, encontrem um ponto que não possam ser vistos entre a praia de Açutuba e a praia do pirata, e procurem por Kauê usando as moedas na margem do Rio Negro.
Susano.”
? Estou perdida! ? Kiara murmurou, olhando feio o papel. Então o brilho que vi na garagem não foi à toa. Era um Portal!
? Escola de Akahim, Akanis, e Akakor... é uma escola de bruxos e feiticeiros numa suposta cidade perdida na Amazônia. ? expliquei.
? Porque supostamente perdida? ? Ela questionou, avaliando as moedas com cuidado.
? Pois histórias sobre as cidades perdidas e as tribos nativas que vivem nelas não puderam ser verificadas, é um local de acesso quase impossível e muitos que tentaram chegar até lá, nunca tiveram êxito. Excursões, viagens... aviões que passam pela região tem seus instrumentos danificados...
? Imagino o motivo. ? Kiara comentou ? dá para sentir a magia vibrando nas moedas.
Assenti, encarando-as também. Um pagamento pela entrada.
? Haviam cidades e templos lá, e muitos deles eram feiticeiros e bruxos também. Mas com a chegada de conquistadores, barreiras foram erguidas, escondendo a cidade e as pirâmides, os caminhos que levavam a elas foram fechados e o local se tornou apenas lenda. Com o passar dos anos, alguns líderes espirituais das cidades escondidas recebiam relatos de outros usuários de magia, que eram caçados e mortos especialmente pela falta de controle em esconder seus poderes, por isso, os três templos foram transformados em escolas e recebem feiticeiros de todo o mundo.
? E como eles sabem sobre a escola?
? Não tenho certeza, pelo que li por altos nos relatórios de Lórien, existe um grupo de anciãos que sabem onde e quando novos magis vão nascer, e quando acontece, os pais são notificados.
? É tão... estranho, não é? ? Ela encarou as mãos, olhando para a própria aparência no espelho menor na penteadeira. ? O mundo que deu origem à magia... mas não a aceita.
? Humanos são a mais terrível criação do universo, Kiara. ? suspirei ? Eles não aceitam nada que seja diferente. Matam uns aos outros por ganância, poder, fortuna. Há desigualdade e fome por todos os lados mesmo que tenham recursos para todos, mas a maioria que detém o poder não aceita dividir.
? O que tem de tão mal em nós?
? Como eu disse, o diferente os assusta, e os fazem lembrar do quão pequenos são em relação ao todo, ao universo. Para eles, é melhor se fechar na ignorância de suas bolhas, do que aceitar que há mais, que fazem parte de um todo. Eles gostam de se sentirem os seres superiores.
Ela olhou para o nada por alguns instantes e passou os braços ao meu redor.
? E isso parece estar gravado em sua raça, não é? Já que há problemas semelhantes com humanos em outros mundos também.
? Há exceções. ? sussurrei ? Pessoas boas e cheias de amor por aí, que tornam mais amenos os males, dão sentido ao nome que têm. E são eles que mantém o mundo vivo.
Ela beijou meu rosto.
? Precisamos ir. Não temos muito tempo! ? concordei movendo a cabeça. Coloquei a caixa e a tábua de volta e arrastei a cama para o lugar, depois, deixamos o quarto.
Capítulo 15
Guiei o Jeep para dentro da garagem e esperei que Kiara fechasse o portão. Embora algumas pessoas já aparecessem em suas janelas e varandas, tinha certeza de que não desconfiariam se o carro sumisse durante a madrugada.
Me aproveitei da barreira de Susano para lançar uma pequena magia de ilusão ali, fazendo a cópia fantasma do carro sair na madrugada seguinte, assim como a ilusão de alguém abrir e fechar o portão. Só para ter certeza de não deixar problemas para trás.
Kiara pegou as chaves da casa, entrou correndo e voltou minutos mais tarde vestindo um short jeans preto e uma camiseta preta mais larga com a estampa dos sinais de The Witcher ao redor do medalhão do lobo. Comecei a rir.
? Me irritei com a saia subindo ? Kiara resmungou, ajeitando a trança do cabelo.
? Leona comprou esse short e nunca o usou, estava largo demais. ? Comentei, segurando-me para não estender os dedos e escorregá-los em suas pernas.
? Está um pouco apertado. ? Ela resmungou.
? Leona era magrinha ? ri ainda mais. ? A blusa, pegou no meu quarto? ? Ela assentiu.
? Gostei dos símbolos.
? É de um jogo sobre um bruxo ? ela gargalhou.
? É irônico que haja jogos sobre bruxos, mas se aparecesse um real, ele pararia na fogueira!
? Seria levado para estudo. ? repliquei ignorando o arrepio em minha coluna. ? Pronta? ? Ela fez que sim outra vez.
Acelerei apenas um pouco, indo devagar, não sabia como o portal ali se comportaria. Porém ao atravessar a fina membrana de magia, um solavanco me fez pisar no freio um segundo antes do carro se chocar com a roda gigante de um trator.
Kiara soltou um assovio ao ver a máquina. Eu levei alguns instantes para me dar conta de que estávamos mesmo em outro lugar. Ativei o GPS, o aparelho apitou e começou a procurar nossa localização.
“Presidente Médici. Rondônia.”
? Seu pai acaba de nos encurtar dois dias de viagem.
? Dois dias? ? Kiara piscou, olhando confusa a floresta atrás da área onde estávamos.
? Estamos a dezoito horas de Manaus. ? comentei ? se ultrapassarmos um pouco os limites de velocidade... chegamos perto do começo da madrugada.
Ela fez uma careta.
? E o tempo?
? Não podemos nos preocupar com isso agora. ? Ela assentiu e suspirou.
? Devíamos parar para comer algo, eu estou bem... mas você definitivamente precisa de um café!
? Acho justo. Um café de meio litro! ? sorri, contornando o trator para pegar a estradinha de chão até o centro da cidade, e colocando o novo destino no GPS.
Praia de Açutuba.
Esperava não demorar mais do que quatro dias.
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Kiara:
Depois de insistir bastante no começo da tarde que Hasan mudasse de lugar comigo, me deixasse guiar um pouco o carro. Tínhamos passado por estradas quase desertas o dia inteiro desde que saímos da cidade em que o portal nos deixou.
A paisagem variava entre dois extremos, trechos longos de áreas com vegetação baixa, e outras com florestas a perder de vista. O solaris tinha parado para comprar comida na última cidade que paramos, assim ele não precisava esperar encontrarmos restaurantes na estrada. Era raro vermos até mesmo casas por ali.
Por fim, quando a noite estendeu seu manto sobre a terra, ele insistiu que parássemos para descansar após ver no mapa que não haveria mais nenhum tipo de parada até o destino final. Eu não me incomodava em continuar, porém sentia o quanto ele estava incomodado em permanecer por tanto tempo na mesma posição, parando poucas vezes para esticar as pernas. Segui até uma pequena pousada após atravessarmos um rio de balsa, aquela era a última antes de enfrentarmos uma longa estrada deserta em meio ao verde.
A senhora de pele cor de mel e cabelos escuros num coque nos deu uma chave para um quarto e indicou as escadas do lado de fora. Três lances de escada até uma varanda comprida cheia de jardineiras com plantas de longas folhas verde-escuras. Elas quase fechavam o pouco espaço para passar até a porta com o número do quarto.
Ao entrarmos, Hasan seguiu direto para o banheiro e ligou o chuveiro. Teria rido de seu desespero por água fria, mas estar preso na pele humana sem usar magia o deixava vulnerável ao calor abafado que fazia ali, e para piorar, o ar-condicionado do carro não estava funcionando. Isso o fez manter as janelas abertas e murmurar agradecimentos todas as vezes que o vento entrava mais frio pela janela.
Não podia reclamar do calor, estava adorando sentir a sensação por um corpo que não era malvarmo e sabia que logo logo não o sentiria mais, embora estivesse ansiosa por me enfiar embaixo da água fria também.
Avaliei o quarto enquanto ele não estava. Uma poltrona sob a janela, que abri assim que pude, mesmo que não pudesse tirar uma espécie de telinha para evitar insetos. Uma cama não muito grande a menos de meio metro da poltrona, a colcha clara que a cobria era bem limpa e com cheio de eucalipto, certamente para evitar mosquitos, uma televisão num suporte metálico na parede e um bolinho de revistas com mulheres de roupas feias nas capas.
Sentei-me na cama e comecei a folhear uma.
Hasan saiu do banheiro minutos mais tarde, apenas com uma toalha enrolada na cintura e outra sobre os ombros. Acompanhei a linha daquele abdômen definido até o nó da toalha e torci em segredo para que ela caísse. Ele riu de meu olhar ele foi sentar-se na poltrona ao lado da janela, então começou a pentear o cabelo.
? Quanto tempo... amanhã até chegarmos lá? ? questionei.
? Umas seis horas. ? Ele disse calmamente, olhando-me de cima abaixo, com atenção demais na blusa que eu havia prendido com um elástico de cabelo. ? Sairemos no meio da madrugada. Não sei quanto tempo vai levar depois que chegarmos à praia.
? Não tinha outro meio mais rápido? ? questionei.
? Avião. ? Ele suspirou ? Porém teríamos um problema com documentos.
? E nada de mágica para fazer uns documentos aparecerem, certo? ? tentei evitar olhar demais para ele. Até mesmo o movimento de seus braços enquanto penteava aqueles longos fios ruivos me provocavam.
? Mariane teria conseguido, se tivéssemos pedido com antecedência. ? Hasan jogou os cabelos para trás e suspirou deixando uma fração de magia escapar, secando-os imediatamente ? Se quiser voltar antes, Kiara...
? Só estou preocupada com os outros. ? disse rapidamente. Não estava nem um pouco incomodada de estar ali, andando de carro com ele. Pelo contrário... sentia-me até descansada.
Ele olhou para as revistas que eu estava revirando sobre a cama e pegou uma. Ele passou algumas páginas e sorriu ao achar algo.
Meu coração disparou.
? Posso pedir que vista algo para mim? ? Hasan me observava com os olhos dourados faiscando, apoiando o rosto no punho fechado e aquela cascata de cabelos cor de fogo caindo sobre o peito, eu não tinha certeza se conseguiria responder. Ele ergueu as sobrancelhas e inclinou-se para frente, aproximando-se mais da beirada da cama.
? Depende. ? disse depois de alguns momentos, aguardando minha mente voltar para o lugar. ? Desde que não me peça pra colocar uma roupa ridícula como aquelas do desfile que vi no aparelho dentro do carro! ? Hasan gargalhou e meneou a cabeça negativamente.
Ele mordeu os lábios e abriu a revista de páginas amareladas.
? Só precisa controlar a precisão da magia. Se for bem-sucedida, nem eu aqui no quarto poderei sentir.
? Então isso é um teste? ? questionei, pegando a revista de sua mão ? O que é isso? ? quis saber, ele ergueu os olhos para mim e com um sorriso crescente, virou a página mostrando a imagem para mim. Meu rosto esquentou. ? Isso é sério?
Hasan assentiu.
? Posso perguntar o motivo? ? minha respiração acelerou.
? É uma das minhas fantasias.
? Não imagino que seja das mais comuns, certo? ? Ele negou.
? Nunca tentei antes, nem perguntei para mais ninguém. ? Hasan continuava me olhando com expectativa.
? Bom... veremos o que posso fazer! ? disse, afastando-me em direção ao banheiro, levando a revista comigo. Talvez para conseguir obter mais detalhes da roupa, ou apenas para manter as mãos trêmulas ocupadas, evitando que ele percebesse meu nervosismo.
Era algo tão simples! Mas tudo que fazia com ele... se tornava único.
Hasan:
Estava dando voltas pelo quarto, segurando meu pequeno surto nervoso. Parei perto da janela aberta e inspirei o ar fresco da noite, o hotel à beira da BR 319, a algumas horas à frente de Humaitá, me fazia lembrar de viagens que Lupine planejava nos levar e acabava desistindo no meio do planejamento.
Poucas vezes avistava faróis na estrada, sob o manto de estrelas que cobria aquele lugar. Não havia quase nada em volta, poucas cidades deixadas para trás, casas isoladas ou fazendas tão distantes umas das outras que mal víamos algo além de estrada e vegetação na maior parte do tempo.
Ainda levaríamos cerca de seis horas para chegar ao nosso destino, mas não podíamos usar magia para abrir portais ali, algumas áreas do Brasil, as mais isoladas especialmente, tinham equipes de humanos com equipamentos que captavam as ondas de magia, não podia nos expor daquela forma, não sem prejudicar a escola de bruxos que iríamos visitar.
Corria o risco de sermos rastreados até lá e para abrir um portal era necessário magia demais. Eles sentiriam facilmente.
Abrir portais para outros mundos fazia com que o sinal se perdesse e não pudessem nos localizar.
Quanto tempo fazia desde que Kiara entrara no banheiro? Talvez a ideia da brincadeira para distraí-la da monotonia da viagem no carro não tenha sido boa ideia. Ela parecia constrangida ao ver as roupas na revista. Não conseguia entender o motivo do nervosismo dela ao ver a imagem das roupas. Ela havia me agarrado num quarto com sua melhor amiga! Duvidava que as roupas fossem tão difíceis de aceitar quanto aquilo.
Por um momento, sentindo-me um pouco mal por ter lhe pedido aquilo sem saber se ela estaria confortável ou não, pensei em ir até a porta do banheiro e dizer para deixar aquilo para outra hora.
Porém antes que eu me movesse, a porta do banheiro se abriu e ela saiu de lá com as mãos no bolso do blazer e um meio sorriso nos lábios pintados de cor de café.
? Deuses! ? sussurrei, sentando-me novamente na poltrona para conseguir ver melhor sem cair. Seu sorriso aumentou. Kiara deu mais alguns passos em minha direção, o salto alto de verniz preto, silencioso sobre o carpete do quarto não chamaria atenção de vizinhos no andar inferior, se é que haviam mais pessoas hospedadas ali, uma vez que não haviam carros no estacionamento aberto.
? Pelo visto, ficou melhor do que eu esperava. ? Ela enrolou um dedo enluvado na ponta da trança lateral que fizera, roçando os dedos entre o decote acentuado da camisa branca, pois havia deixado alguns botões abertos.
A olhei novamente de cima a baixo. As meias finas escuras e a saia preta apertada na altura dos joelhos. Ela adicionara detalhes de outras peças, como um cinto largo de couro de uma calça da página seguinte. Kiara ajeitou a aba do chapéu social de feltro preto e caminhou devagar em minha direção.
? Queria perguntar o motivo desse estilo... mas não sei se você vai conseguir falar direito. ? Ela deu um risinho e sentou-se em meu colo, levando os lábios ao meu pescoço.
? Está parecendo uma chefe da máfia. ? consegui falar.
? Vou querer saber depois o que é isso? ? Ele riu, mordiscando de leve meu queixo.
? Depois...
Não honrei o tempo que ela levou para se arrumar daquele jeito. Em alguns instantes, todas as peças tinham ido parar no chão.
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No fim das contas, não dormimos quase nada.
Tivemos que sair por volta das três para evitar perder tanto tempo ali, uma vez que já teriam se passado dias em Vegahn e não tínhamos notícias de lá. Bom. Se tivesse acontecido algo, Lórien teria enviado um aviso pelo espelhinho de visões.
O sol estava próximo do centro do céu quando chegamos à Praia de Açutuba e por insistência de Kiara, paramos para almoçar antes de seguir em frente. Meu estoque de bobagens e salgadinhos tinha acabado no começo da manhã, eu não estava com fome, mas fiquei preocupado com o olhar quase psicótico da malvarmo.
Eu devia ter escutado meus instintos e não ter almoçado.
Cerca de uma hora de caminhada por uma trilha seguindo a margem do Rio Negro, encontramos uma espécie de praia escondida, onde até as águas ficavam isoladas por vegetação e árvores. O único sinal de que pessoas já estiveram ali era o cais vazio.
Ao olharmos com atenção o local, encontramos em uma árvore antiga cujo tronco se escondia atrás de outras plantas mais novas, um símbolo semelhante ao das moedas de pedra entalhado em sua casca.
? Imagino que seja por aqui. ? Kiara tirou sua moeda do bolso e a avaliou por um momento. ? Como fazemos isso...?
? Acho que precisamos jogá-las no rio e chamar o nome de quem procuramos. ? ponderei, Susano não tinha deixado instruções detalhadas sobre aquilo. Kiara franziu o cenho para as águas escuras do rio e soltou um suspiro.
? Se não for assim, você quem vai mergulhar para recuperar as moedas! ? disse, fazendo-me rir.
Subimos no pequeno cais que realmente não tinha nenhum sinal de ser usado com frequência e caminhamos com cuidado até o final onde as madeiras ainda pareciam seguras.
Estendi a mão além do cais.
? Procuramos por Kauê. ? disse mais ou menos alto, soltando a moeda no rio. Kiara fez o mesmo, ainda olhando desconfiada a moeda desaparecer entre as ondulações. Por longos momentos, não houve nada além do som das águas quebrando em pequenas ondas na prainha, o rangido da madeira contra o vento suave, e o canto de pássaros por todos os lados.
Kiara me lançou um olhar de esgueira e pressionou os lábios com força ao mesmo tempo que seu rosto ganhava mais cor.
? Eu disse... ? Antes que ela completasse a frase sarcástica, um boto cor de rosa surgiu nas águas, aproximando-se de nós. Kiara arregalou os olhos e sorriu.
? Ele é tão fofinho! ? Ela se abaixou, apoiando-se num tronco de sustentação e esticou a mão para tocar no animal, o boto guinchou e se aproximou mais, deixando que ela o tocasse.
? Não creio que seja um boto comum. ? murmurei, avaliando como ele se aproximou sem desconfiança típica de um animal para receber o carinho.
? E seria o quê? ? Ela riu, porém, o boto brilhou e mudou de forma, fazendo-a soltar um gritinho e cair para trás. ? Mãe das águas!
? É melhor deixar Iara fora disso, ela está de mal humor. ? O rapaz sorriu, ele ainda tinha metade do corpo dentro d’água, os cabelos escuros boiavam ao seu redor, mas o sorriso malicioso era dirigido a mim. ? Não são turistas comuns, não é? Saberiam das lendas do boto.
Ele sorriu mais, lançando um olhar à Kiara, que havia se endireitado do tombo e o estava analisando. Ele colocou os braços sobre o cais, deixando às vistas uma pulseira de contas vermelhas presas a tiras de couro. Doze contas... não devia ter mais que dezoito anos, era um dos estudantes, sem dúvida.
? Conheço as lendas. ? rebati, olhando-o feio ? Também sei que não é um boto, mas sim um feiticeiro, e pela metamorfose... um de alto nível.
? Mas isso não a isenta do risco. ? comentou, piscando para ela. Ah! Aquele moleque! Kiara sequer estava entendendo o que ele queria dizer.
? Você é Kauê, certo? ? Ele assentiu, voltando os olhos castanho escuros para mim ? Deixe que eu nos apresente, sou Hasan, e essa moça, Kiara, é uma venox locam da academia de caçadores venox do mundo de gelo. ? Kiara entendeu imediatamente a menção à Vegahn. Um pouco desconfiada, olhou ao redor e ao ter certeza que ninguém pularia de uma moita com uma câmera nas mãos, mordeu os lábios, deixando que sua real aparência surgisse.
O rapaz perdeu a cor ao ver as presas alongadas e o azulado de seu rosto cheio de cor.
? É um prazer! ? ela piscou de volta. Eu queria rir!
? O que querem? ? Ele se afastou um pouco, tirando as mãos do alcance dela.
? Precisamos ir até a escola, preciso falar com Pluma Prateada. ? Kiara explicou.
? O preço da passagem já foi pago. ? Ele bufou, chamando-nos com um movimento do punho para dentro do rio. Kauê ergueu as sobrancelhas ao nos ver hesitar. ? O quê? Estão com medo da água?
? Um pouco! ? Kiara admitiu, e sem me olhar para confirmar se era aquilo mesmo que precisávamos fazer, ela sentou-se na beirada do cais e escorregou para dentro d’água. Os segui logo em seguida.
Kauê nadou por alguns metros, até o local onde as árvores afunilavam o rio, ali aparecia de vez em quando um pequeno redemoinho, que não passava de duas voltas suaves e desaparecia.
? Esperem o alerta do portal e toquem nele assim que a primeira volta aparecer. ? Kauê explicou, nadando ao redor de onde o redemoinho surgia.
? A distorção na água é um portal? ? Kiara perguntou, mas não foi respondida, pois a instabilidade voltou.
? Agora! ? o feiticeiro levou a mão ao redemoinho. Imediatamente Kiara e eu fizemos o mesmo, tocando as bordas da primeira volta da instabilidade. No momento que o fizemos, um puxão fez tudo se tornar borrões ao meu redor.
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Kiara:
O portal, ou seja lá o que foi aquilo, nos levou para o fundo do rio como o vortex que usamos na prova do Locam para chegar a Paliath, porém esse era realmente um túnel-portal, pois nem cheguei a contar até três para alcançarmos a margem de um pequeno lago numa espécie de caverna.
Hasan e Kauê estavam bem próximos, saíndo da água também. Levei alguns segundos ao sair e perceber que o chão não afundou sob meus pés como esperava, e também notar que estávamos no centro de uma cadeia de túneis, semelhante à passagem das estrelas. Ao me afastar alguns passos da margem, reparei que o lago era na verdade uma piscina perfeitamente redonda num tipo de salão. Seis entradas de túneis com escadarias subindo ou descendo o circulavam e o chão de pedra era formado por rochas em padrões circulares.
Hasan se aproximou de mim, e com um estalo dos dedos, nos deixou secos e com os uniformes cerimoniais da ACV. Adorei ter meu vestido preto com botões prateados de volta, não que não tivesse gostado das roupas da Terra, mas não eram confortáveis como aquelas. Hasan vestia seu manto negro abotoado no pescoço com um botão dourado e aquele uniforme chumbo do corpo docente.
Minha atenção se voltou aos arcos que formavam as entradas dos túneis, eles também tinham aqueles estranhos desenhos entalhados, e ao chegarem no meio, rostos com grandes bocas e três olhos ficavam no interior de círculos com raios de sol pintados de dourado ao redor deles.
No teto, raízes de árvores se misturavam a mais pedras e grades metálicas com esferas de fogo dourado. Dos túneis, apenas uma das escadas que vinha de cima, tinha luminosidade, luz solar que passava por entre a vegetação e chegava minguada ali.
? Apenas uma das entradas pela superfície é aberta, e apenas os anciãos conseguem entrar por ela ? Kauê comentou ao notar minha atenção. ? Se você for para a superfície por ali, vai se perder na floresta e provavelmente nunca sairá.
? Poder até posso, mas vou causar um problemão se o fizer ? rebati. Kauê franziu o cenho e seguiu para um dos túneis.
? Estamos sob a cidade sagrada. ? Hasan sussurrou após alguns instantes de silêncio. As esferas de fogo no teto brilhavam com mais intensidade conforme ele passava sob elas e alguns fios de seus cabelos começaram a brilhar em dourado, como os veios de luz que surgiam de vez em quando em seu corpo ao usar magia.
Kauê apenas assentiu e nos guiou pela entrada de um túnel, e para baixo. Ele era apenas dois palmos mais alto que eu e seu físico esguio, porém forte realmente me lembrava um pouco o dos elfos do deserto.
Com uma daquelas esferas luminosas nas mãos, o feiticeiro nos levou pelas escadas quase intermináveis. A luz refletida nas paredes, ao passarem por alguns pontos, mostravam frases escritas num idioma desconhecido, assim como gravuras, talvez de divindades, ou de histórias antigas. Minha curiosidade aumentava a cada passo para baixo, porém ela mudou de foco ao ouvir vozes, centenas de vozes ecoando num lugar muito maior que a sala superior pela qual entramos.
? Chegamos na hora do almoço. ? Kauê comentou conforme nos aproximávamos de outro arco, só que de lá vinha muito mais claridade.
Ao entrarmos num salão com quase duas vezes o grande salão dos bruxos, fiquei maravilhada ao ver a quantidade de pessoas ali, circulando por entre dez mesas longas de pedra cheias de comida, que, assim como a variedade de pratos, havia também pessoas de todos os tipos.
Meu choque no entanto, foi ver coisas flutuando pelo salão, desde objetos, à comida, alguns daqueles feiticeiros usavam braceletes, e moviam os dedos para usar magia, outros usavam... varinhas?
? Parece uma versão menos agressiva da ACV ? comentei num sussurro com Hasan.
? É quase isso, mas eles não aprendem a matar monstros, e sim sobreviver no meio deles, escondendo suas verdadeiras naturezas. ? Hasan explicou. Algumas pessoas silenciaram ao nos ver atravessando os fundos daquele salão, porém, um pequeno grupo de garotas começaram a rir e se levantaram da mesa, vindo em nossa direção.
? Lá vem... ? Kauê fechou a cara, enfiando as mãos nos bolsos da calça jeans.
Das cinco garotas que se aproximaram, três delas eram exatamente iguais, cabelos loiros e olhos vermelhos, com pulseiras presas aos pulsos, assim como a garota de braços dados com... uma garota que parecia a versão feminina de Kauê. Mas minha atenção foi para o sorriso malicioso no rosto da garota de sardas, com cabelos castanhos e olhos escuros, agarrada a ela.
?Já voltou? ? a menina se dirigiu a Kauê.
? Não, Jezica, estou lá ainda, você está vendo minha projeção do futuro respondendo à sua pergunta idiota. ? Ele rebateu. Agarrei o braço de Hasan, arregalando os olhos. O solaris para seu crédito, não riu. Teria acabado com os olhares bonitinhos das meninas, que no momento estavam do mesmo jeito que eu. Chocadas.
A garota chamada Jezica corou, mas não desviou o olhar, pelo contrário. As palavras dele lançaram um desafio no ar: responder à altura, ou encolher-se e deixar pra lá. Ela escolheu a primeira opção.
? Porque não engasga com a própria língua e nos poupa dessa sua educação de merda? ? O sorriso maldoso de Kauê me fez pensar em todas as respostas que ele daria naquele instante, a maioria que a deixaria com vergonha de aparecer na frente dele outra vez.
Porém, a garota que se parecia com ele pigarreou e interrompeu o que poderia vir a ser uma troca de farpas que eu adoraria perder tempo para assistir.
? Kauê, vovô os viu chegar e pediu que juntássemos o mais rápido possível os outros da classe avançada de Akahim e fôssemos até o templo abandonado. ? Ela disse com calma, o rapaz assentiu e olhou feio para Jézica, que ainda tinha um sorrisinho no rosto. ? Amy, você pode guiar os visitantes até o Pagé? Ele está no solar, depois junte-se a nós no templo.
A loira do meio assentiu e deu um passo à frente.
? Eu disse Amy. Você vai buscar os morcegos, Lucy. ? A loira que vinha até nos estacou e mostrou a língua a garota, em seguida trocou de lugar com a primeira e se aproximou de nós.
? Venham! ? Ela se enfiou entre Hasan e eu e agarrou nossos braços, como se fôssemos melhores amigos. ? Olá, me chamo Amy, tenho dezessete anos, sou uma das feiticeiras mais tops daqui, tirando a Helen, que é filha da professora de combate mágico e a Jaciara, aquela coisa sensata que impediu os dois cachorros do mato de começarem a se morder. ? Ela sorriu e piscou para nós ? Ah! Fui eu que “tirei foto” sua no shopping aquele dia! ? Amy sorriu ainda mais para Hasan. ? A ideia foi tão boa que o fiz mesmo quando você virou!
Ela riu da confusão no rosto dele, soltou seu braço e puxou um aparelho do bolso, digitou algo com mais de dez cliques e depois virou o aparelho para mim, era uma imagem de Hasan olhando por cima do ombro de cara feia com uma caixa branca nas mãos.
? Menina, olha essa bunda! ? Hasan corou, mas eu não consegui conter uma gargalhada divertida, vendo-a dar um close.
? Já vi sem a roupa.
? Kiara! ? Hasan ralhou, ele estava completamente brilhante, olhando para as gravuras entalhadas no corredor, evitando manter contato visual. A Garota também tinha o rosto vermelho, ela na certa não esperava por aquela resposta.
? Gostei de você! ? Amy deu um risinho contido, porém estacou no meio do corredor, olhando para nós. Ela avaliou os uniformes, o broche em meu vestido, e a túnica chumbo com o manto negro de Hasan. Sua boca se abriu e os olhos vermelhos se arregalaram.
? Algum problema? ? questionei.
? Ele é um mestre. ? Ela apontou para Hasan ? E você é... uma aluna dele! ? sussurrou ? COMO VOCÊ O VIU SEM ROUPA?
Cobri sua boca, dando-me conta do que eu tinha dito de errado. Hasan ria enquanto eu lhe lançava um olhar com um pedido de desculpas.
? Você não é nada escandalosa! ? resmunguei, soltando-a.
? Tá, tá! Me acalmei ? Amy inspirou e respirou fundo, agarrou nossos braços novamente e tornou a nos guiar pelos corredores, que só naquele instante tinha percebido nuvens circulando pelo teto. Era quase como os teto do castelo do Sétimo e Oitavo. ? Então... como funciona? Vocês são namorados? Escondem o relacionamento? Tem planos para casar e ter filhos?
Eu queria bater na garota. Hasan mudou de cor, sua pele marrom dourada estava perto do laranja de pôr do sol.
“Deuses eu não tenho mesmo idade para isso!” o ouvi murmurar. Porém aquilo me fez pensar... que realmente não tínhamos dado nome ao que tínhamos. Não que precisasse... mas...
? O que são essas palavras nas paredes? ? perguntei, desviando drasticamente da curiosidade de Amy. Se a feiticeira percebeu minha estratégia, não demonstrou. Ela encolheu os ombros e resmungou algo.
? Entrei ano passado, mato a maioria das aulas de história e costumo dormir quando o Pagé começa a contar histórias, a voz dele me dá sono, e uns sonhos loucos também ? Ela riu, dobrando um corredor à esquerda, onde no fim dele havia uma porta larga com um sol e uma lua entrelaçados em suas luzes. ? A sala é aquela.
Queria dizer que não havia mais nenhuma porta no corredor, mas a garota puxou o aparelho do bolso novamente, abriu uma tela preta onde apareceu o rosto de Hasan, olhando-a com o cenho franzido.
? Dê um sorriso! ? Amy exigiu, fazendo uma careta para ele. O que só fez a expressão dele se fechar mais ? Ah! Vou ter que me contentar com essa. ? já estava saltitando de volta pelo corredor depois de usar aquele aparelho para tirar outra foto de Hasan.
Ele me olhou feio, mordi os lábios evitando rir mais.
? Não está incomodada com isso? ? Ele arqueou uma sobrancelha.
? Com o quê? Ela ter uma foto de um de seus melhores ângulos? ? Hasan fechou os olhos e meneou a cabeça ? Até eu queria uma daquela para olhar quando você estivesse longe!
Hasan abriu a boca para responder, mas simplesmente deixou que a resposta morresse. Porém um sorriso discreto apareceu em seu rosto.
? Se eu tivesse um treco daqueles, teria a foto que ela queria agora. ? O sorriso aumentou.
? Vamos logo, acho que passou das duas. ? Ele pegou minha mão e me acompanhou até a sala.
Hasan:
Não sentia nem uma pontada de irritação ou ciúmes vindo de Kiara desde que a menina lhe mostrara a foto, o que vinha através da ligação era apenas divertimento e uma pontada de malícia. Quando a garota sumiu pelo corredor, achei que diria algo, ou perguntaria de onde a conhecia, ou como ela tinha aquela foto. Mas Kiara simplesmente não ligou.
Ainda não sabia lidar com aquilo. Meu coração não deixava de acelerar pelo nervosismo, esperando por uma represália.
? O que foi? ? Ela questionou ao reparar que eu continuava observando-a.
? Só... não é nada. ? queria abraçá-la, mas já bastava a menina sabendo sobre nós. Nos aproximamos da porta, Kiara deu duas batidas e uma voz lá dentro pediu que aguardássemos um momento. Kiara soltou um suspiro e mudou o peso do corpo, quase encostando em mim.
Cada ponto de distância era incômodo. Desde que Kauê insinuara sobre a lenda do boto eu queria puxá-la para perto de mim, dizer o motivo porque não deixaria que ele a levasse...
Mas a pergunta de Amy me lembrou que não tínhamos deixado claro nosso relacionamento, nem para os outros, nem mesmo para nós. Ela me dera liberdade para escolher, para viver como desejasse, junto dela ou não. Mas a única pessoa que queria ter em meu coração era ela.
A porta da sala se abriu, e para minha surpresa, a garota que tinha visto no shopping com as outras três, que me lembrava Lupine, saiu da sala acompanhada de um vampiro. Ele nos fez um breve aceno, reconhecendo nossa presença ali e murmurou algo com a garota que levava pelo braço e não pareciam muito contentes.
Kiara também a olhava espantada, e ergueu as sobrancelhas numa pergunta silenciosa. Porém não havia nada demais no cheiro da garota, nada que a ligasse à sacerdotisa dos ventos ou a Leona. Os observamos até sumirem no corredor, só então uma voz soou dentro da sala, nos chamando até lá.
A sala por dentro era mais simples do que esperava. Uma mesa não muito grande de pedra, alguns tapetes com um padrão de cores terrosos e pequenos ornamentos feitos em madeira e metal espalhados por prateleiras de livros que ocupavam quase todas as paredes da sala. A cadeira atrás da mesa estava vazia, o diretor da escola de bruxos se encontrava de pé quase oculto entre as estantes de livros, alimentando um animal que se parecia muito com um gato de orelhas grandes... e três caudas.
O senhor tinha cabelos cinza-prateados presos em uma longa trança, a pele acobreada tinha pequenas rugas ao redor dos olhos e diziam muito sobre quanto tempo ele estava à frente daquela escola, e por fim o sorriso simpático em seu rosto ao nos ver era tranquilo. Talvez não houvesse uma prova tão difícil aguardando pela garota.
? Sejam bem-vindos à minha casa ? Pluma Prateada comentou, estendendo a mão para nós.
? Agradecemos a hospitalidade. ? Kiara agradeceu, apertando a mão estendida. O senhor avaliou discretamente o braço metálico, depois a aparência da garota, em seguida, seus olhos cinzentos se voltaram para mim.
? Faz pouco tempo desde que o menino dos ventos veio trazer o objeto que vocês buscam. ? Ele comentou, fazendo um gesto para que o seguíssemos. Pluma Prateada empurrou uma das estantes facilmente, revelando mais um túnel escondido ali. ? Porém creio que para vocês, tenha sido uma longa espera.
? O senhor sabe sobre a passagem de tempo? ? Kiara questionou, curiosa.
? Ah, sim! Eu conheço as histórias. Gosto de uma boa história. ? Ele sorriu de forma pacífica, estendendo a mão para Kiara. ? Princesa do gelo, você tem o mesmo olhar pacífico de seu pai.
O rosto de Kiara se encheu de cor, e mesmo temerosa, ela deu a mão ao senhor, que a guiou pelo corredor cujas esferas de luz estavam tão longes uma das outras que suas sombras se estendiam ao longe.
? E você, filho do sol e da lua. ? Pluma Prateada falou, sem olhar para trás enquanto os seguia. ? É uma grande honra tê-lo entre nós. Uma pena não termos tempo para contar boas histórias. Sei que o tempo de vocês é muito curto aqui. Espero uma visita com mais tempo livre da próxima vez que vierem!
? Com certeza voltaremos. ? falei ? gostaria de saber como tudo isso surgiu!
Kiara me deu um sorriso por cima do ombro, enquanto passávamos por um corredor repleto de espelhos de vidro escuro, que de vez em quando podia ver orbes de luz flutuando dentro de seus reflexos. Minha pele se arrepiou e eu parei de prestar atenção neles, antes que visse mais do que devia.
O corredor se estendia além do que esperávamos. Num minuto, estávamos andando em linha reta, no outro, escadarias apareceram, levando-nos cada vez mais para baixo.
As luzes diminuíam conforme o frio parecia aumentar. Kiara ao lado do Pagé, perguntava tudo que podia no limitado tempo que tínhamos, ela questionou sobre a construção subterrânea, a vida ali, os humanos que não aceitavam magia... e eu mesmo tentando não parecer preocupado, não deixava de calcular quanto tempo teria se passado em Vegahn, e se Lórien estaria pronta para me matar quando voltássemos.
Depois de alguns minutos de descida por vários lances de escadas em corredores cada vez mais largos, alcançamos uma espécie de salão. O piso de granito e quartzo negro tiraram minhas dúvidas de para que aquele lugar servia. Era um salão de treino de magia.
Várias colunas de pedra negra em espiral se espalhavam pela área, um túnel vindo do alto deixava um grande feixe de luz entrar, que refletia em espelhos dourados posicionados entre as colunas, e no centro daquele círculo de luz, vinte e três estudantes se posicionavam ao redor de uma espécie de arena demarcada pelas esferas de quartzo no chão. Kiara franziu o cenho ao ver aquilo, os alunos que estavam brigando lá em cima, também se mantinham silenciosos, olhando-nos cheios de expectativa. Uma mulher que parecia ser uma das mestras avisou para que se posicionassem ao redor do círculo, deixando apenas uma entrada entre as esferas de pedra aberta.
? Sinto muito por adiantar as coisas assim. ? Pluma Prateada se desculpou, guiando uma Kiara confusa até a entrada do círculo, deixando-me alerta.
? O que vão fazer? ? Kiara questionou com a voz falhando ao perceber que Pluma prateada fechara o círculo, com ela do lado de dentro. O pingente com minhas espadas já estava apertado em meu punho.
? Susano me instruiu a testar uma virtude que eu julgasse essencial para alguém obter um poder indescritível. ? o pagé comentou, aceitando um instrumento oferecido pela mulher ao seu lado, que soltava uma fumaça doce e enjoativa, lembrando-me a magia dos tenebris. O pagé olhou nos olhos de Kiara ao dizer: ? Então irei testar seu controle sobre si.
Kiara arregalou os olhos e deu um passo para perto das esferas, mas os bruxos tinham juntado as mãos e um fio de escuridão os envolvia, mantendo-a do lado de dentro da barreira.
? O quê? ? sua voz soou baixa ? Eu... posso machucar alguém! ? disse, dando conta do que fariam. Suas mãos tremiam apertadas.
? Não subestime os feiticeiros de Akakor! ? Pluma Prateada sorriu, puxando aquela fumaça para dentro, seus olhos tornaram-se completamente brancos. ? Não quebrem o círculo, ou ela pode arrancar a cabeça de um de vocês.
Não tinha nenhum tom de brincadeira em sua voz.
Kiara me encarou assustada.
? Você vai conseguir, confie em si. ? a encorajei mesmo que estivesse nervoso também, mas estava ali ao seu lado. Podia ajudá-la caso precisasse.
? Vamos começar! ? O pagé soprou a fumaça dentro do círculo e os feiticeiros começaram a entoar uma canção, seus corpos ganharam marcas escuras ao redor dos braços, rostos e pernas.
Kiara se curvou, tremendo, seus olhos escureceram até o azul ser engolido pelo negro e num instante ela rugiu, sua verdadeira forma foi tomando conta, fazendo com que os feiticeiros olhassem completamente atordoados a criatura de mais de dois metros coberta de espinhos de gelos e presas do tamanho de facas, soltando um urro colossal que fez seus cabelos voarem.
Aquilo podia dar muito errado... mas eu acreditava nela.
Kiara:
Entrei no círculo por instrução de Pluma prateada, mas ao passar por ele, o pagé falou:
? Susano me instruiu a testar uma virtude que eu julgasse essencial para alguém obter um poder indescritível. ? disse ele calmamente, pegando uma espécie de cachimbo oferecido pela mulher de cabelos pálidos ao seu lado. O instrumento soltou uma fumaça com perfume doce e enjoativo que me lembrava o poder de Lohan, porém o cheiro fazia minha garganta se apertar... e meu sangue pulsava, queimando através de minhas veias, minha cabeça também latejou. O pagé me encarou e continuou: ? Então irei testar seu controle sobre si.
Arquejei, não acreditando no que ele pretendia fazer.
Mudar minha forma ali, no meio daquele monte de crianças... dei um passo para perto das esferas, mas os bruxos juntaram as mãos, fechando-me ali com um lacre de escuridão ao redor de suas mãos e braços, mantendo-me do lado de dentro.
? O quê? ? sussurrei com a voz trêmula ? Eu... posso machucar alguém! ? implorei, encarando aqueles olhos tranquilos.
? Não subestime os feiticeiros de Akakor! ? Pluma Prateada sorriu, ele puxou a fumaça para dentro, seus olhos mudaram de cor, enevoando-se como se aquelas ervas o tivessem colocado num transe também. ? Não quebrem o círculo, ou ela pode arrancar a cabeça de um de vocês.
O tom sério de sua voz me fez estremecer. Eles realmente fariam aquilo. Forçariam minha transformação feral ao ponto que minha consciência humana desaparecesse.
Olhei para Hasan em busca de ajuda, torcendo para que ele dissesse algo que parasse aquela loucura.
? Você vai conseguir, confie em si. ? Ele me deu um sorriso curto, mas cheio de esperança. Então mesmo com medo, assenti.
? Vamos começar! ? Aquele foi o único aviso do pagé, logo em seguida soprou a fumaça dentro do círculo, os feiticeiros começaram ao meu redor começaram a cantar e a vibração em meu corpo e mente ficou mais intensa.
Segurei a cabeça com força, sentindo o controle sobre aquele instinto que Áries tanto tentou cultivar, finalmente começasse a se perder...
Até que eu explodisse para fora de mim.
Hasan:
Os feiticeiros continuavam entoando aquela canção, mantendo uma parede invisível de magia erguida ao redor de Kiara. A fumaça girava, espiralando em volta dela, e cada vez que inalava mais dela, Kiara se tornava mais feroz.
Os rosnados de irritação passaram a ser de raiva.
Ela atacava as barreiras com as garras, espalhando gelo pelo chão. Cada urro fazia com que os feiticeiros se encolhessem assustados. Vez ou outra, vi a barreira falhar e suas garras atravessavam o limite, nesses momentos, a fera que tinha sido liberta rugia ainda mais zangada por não poder passar.
O pagé parou de soprar a fumaça. O feiticeiro observava com atenção a expressão em seu rosto, avaliando seu olhar, percebendo talvez o que eu tinha notado desde os primeiros minutos.
Ela não conseguiria voltar sozinha.
Não sentia nada vindo dela, a ligação tinha sofrido algum tipo de interferência mágica por causa da barreira. Porém eu tinha noção do imenso vazio em sua mente, ainda conseguia estender o fio para fora e observá-lo. Kiara fora atirada tão fundo em seu interior, que talvez não achasse o caminho de volta sem alguém para guiá-la.
O ancião feiticeiro tocou um ponto da barreira, chamando por seu nome, mas a fera que ele despertou não parecia entender que era ela quem ele chamava.
Frustrada por estar presa, com o gelo começando a se espalhar além do círculo dos feiticeiros e o pior... escuridão manchada de luz começar a vazar dela, cheguei à conclusão que precisava intervir.
E precisava fazer algo rápido.
Com um grunhido baixo e letal, Kiara avançou para a barreira, atirando-se contra ela, e um dos feiticeiros se afastou assustado, quase deixando a barreira romper.
? Me deixe passar. ? Pedi, aproximando-me do grupo.
? Ela precisa achar o caminho sozinha. ? Pluma Prateada insistiu, observando-a com o cenho franzido. ? Se não passar por isso, não será digna de ter o tesouro de volta.
? Estamos nisso a quase uma hora. ? Alertei ? Seus alunos não conseguirão manter a barreira por mais tempo, e se ela se soltar por si, pode realmente ferir um deles. Como um mestre, é meu dever garantir a segurança de qualquer aprendiz, sejam meus ou não.
? Acha que ela não é capaz? ? Ele indagou, fazendo um peso ser colocado em minha mente.
? Kiara é capaz de coisas inimagináveis. Mas todos estamos fadados a falhar em algo. ? disse baixo ? dê-lhe outra prova, teste qualquer outra virtude. Mas me deixe entrar lá e ajudá-la. Kiara não foi criada por outros como ela, não vai saber voltar sozinha. As vezes todos nós precisamos de uma luz para encontrar o caminho de volta.
O pagé me encarou por alguns instantes, então assentiu. Lá dentro, Kiara rodava de um lado para outro como um animal acuado, procurando uma saída, porém ao perceber que a barreira fora aberta, ela não se aproximou pois a fecharam novamente assim que entrei.
Ela me avaliou com aqueles olhos completamente negros e mostrou os dentes, encolhendo-se contra a barreira, mas ao mesmo tempo as garras e os espinhos em seus braços aumentaram e brilharam com o gelo que se espalhava por eles.
Pronta para atacar assim que visse uma brecha.
? Kiara, preste atenção em minha voz. ? Dei um passo firme em sua direção, sem mudar de postura. Mantive-me relaxado, porém firme. Não podia parecer nem ameaçador, nem apreensivo, ela tinha que sentir confiança em mim.
A malvarmo rosnou baixo ao me vez dar mais um passo e raspou as garras com força no chão, lascando a pedra, alertando-me para não me aproximar demais.
Não me incomodei com aquilo.
? Sabia que seu pai ficou algumas horas treinando e conversando comigo no Vale do Sol? ? contei, mantendo a voz agradável, tranquila e num tom casual ? Ele ainda se parece com o rei do gelo, mesmo naquele corpo novo.
Dei mais dois passos.
Ela andou de um lado para o outro, arrastando as garras no chão. Menos de três metros nos separavam agora. Naquela forma, ela tinha minha altura.
? Vocês têm muito em comum, especialmente a teimosia, o humor, mas principalmente o fato de serem obstinados. ? Kiara urrou, mostrando as garras para mim.
Um metro.
Os feiticeiros pararam de cantar, assustados.
Pois mais um passo que dei, ela ameaçou avançar, chegando tão perto que a baforada de gelo que soltou, esfriou meu rosto. Um pulso de ansiedade vindo dela através da ligação do juramento, me fez perceber o quão perto estava de encontrar sua mente.
? Eu preciso te dizer algumas coisas, mas não tem graça se não conseguir ver a expressão no seu rosto. Suas presas enormes não me deixam saber se está rindo ou rosnando. ? Uma vibração de humor.
Ela parou de andar e baixou os braços, sua atenção estava totalmente em minha mão quando a ergui para tocar-lhe o rosto.
? Se você arrancar minha mão, eu juro pelos deuses que vou usar isso como chantagem pelo resto da vida, Eish-amir. ? brinquei, roçando os dedos por sua testa.
E com aquilo, um som que se assemelhava a uma gargalhada ou um rugido de irritação escapou dela, e Kiara desabou, mudando de forma. A amparei, fechando os braços ao seu redor. Ela tremia ao mesmo tempo que tentava não rir.
? Eu não cairia nessa chantagem. ? Ela sussurrou com a voz trêmula ? Ninguém mandou você meter a mão perto da boca de um malvarmo feral puto.
Os suspiros aliviados dos feiticeiros me fizeram querer rir. Aos poucos, eles foram se levantando, esticando as costas e murmurando coisas uns com os outros. Falando tanto da garota com um monstro sob a pele, quando do louco que resolveu se enfiar numa barreira com ela.
Por fim, quando quase todos os alunos tinham deixado a sala, me voltei para Pluma Prateada, esperando que ele dissesse qual seria a outra prova, mas fui surpreendido por sua mão estendida com o fragmento e a carta.
? E a prova? ? questionei, estendendo as mãos desconfiado para receber o prêmio.
? Você já o teve. Estava certo ao entrar lá. Às vezes nós precisamos de um guia para nos encontrar. Se perder na própria mente é como enfrentar um exército inimigo sozinho e sem arma para lutar ou escudo para se defender. ? explicou ele, dando-nos um sorriso ? Nenhuma batalha está perdida enquanto tivermos alguém do nosso lado.
? Obrigado. ? Agradeci. Kiara ainda estava fraca ao meu lado, apertei mais o braço ao redor de sua cintura. ? Se não for muita grosseria de nossa parte, tem algum local onde possamos abrir um portal sem causar problemas? Nós realmente não podemos demorar mais.
? Ah! Sim, imagino que precisem voltar logo. ? Pluma prateada moveu as mãos outra vez para que o seguíssemos até o fim do salão, onde uma estátua de uma mulher sentada sobre uma pedra, segurava um enorme espelho redondo, cuja moldura tinha enfeites de prata em formato de luas ao redor de todo o vidro espelhado.
? Um espelho portal? ? Kiara se aproximou, tocando a moldura com os dedos trêmulos.
? Ele foi colocado aqui por Susano. ? disse ele com um meio sorriso ? Explicou que se precisássemos, poderíamos ir até ele usando esse portal. ? O pagé tocou uma das luas, fazendo-a acender como uma lâmpada, então a superfície do espelho brilhou e do outro lado, uma espiral prateada girava.
? Onde ele vai parar? ? Kiara o olhou desconfiada, franzindo o cenho para o vidro que parecia líquido.
? Nunca passei por ele. ? Pluma Prateada riu, dando-nos as costas ? Espero uma visita em breve!
? Obrigada! ? Kiara mal teve tempo de terminar seu agradecimento antes que eu a puxasse para o portal.
Capítulo 16
Kiara:
Eu só queria sentar e chorar por algumas horas quando pisamos novamente em Vegahn. A sensação de estar em casa, dois fragmentos mais perto da arma deixada por meus pais.... mais perto da conclusão de todos aqueles problemas.
Mas ao me virar e dar conta de que o portal tinha nos deixado em frente às ruínas do castelo de gelo, tudo o que fiz foi me sentar perto da estátua da mãe de Docinho e Connal e respirar para não chorar. Hasan sentou ao meu lado, passando um braço ao redor de mim. Ele beijou o alto de minha cabeça e suspirou.
? Estamos bem perto agora. ? sussurrei, encarando aqueles blocos de gelo cobertos pela neve que caía suavemente sobre nós.
? Nós vamos conseguir. ? Ele afirmou, depositando outro beijo suave em meu rosto. Hasan olhava o castelo também, havia uma tristeza no fundo daquele olhar, mas logo mudou para esperança ao abrir a mão e ver o fragmento e a carta.
Meu coração acelerou.
? O outro fragmento! ? engasguei, lembrando-me que tinha deixado a bolsa com o outro fragmento no banco quando saímos, eu esperava voltar ao carro. ? DEUSES! EU ESQUECI DENTRO DO JEEP! ? me levantei de um pulo, prestes a entrar em pânico ? Não acredito que fiz isso! Ah!
Hasan começou a rir e se levantou para me abraçar. Sem que eu percebesse de onde, ele puxou a bolsa e a balançou de um lado para o outro.
? Como fez isso? ? peguei a bolsa, não acreditando que era a mesma, revirei seu interior até encontrar o outro cilindro de vitrino com a carta de meu pai. O olhei incrédula. ? Não vi você pegar a bolsa quando saímos do carro!
? Não peguei. ? Ele tirou outra coisa de dentro do bolso, um pequeno espelho de mão com o vidro brilhante. ? O porta-luvas do carro tem fundo mágico, o par desse espelho. Mas podemos pegar por ele qualquer coisa dentro do carro, ou acionar o feitiço de dúplice, que vai guiar o carro de volta à casa de Mariane. ? Eu devia estar de boca aberta.
? Mas você disse que não podíamos usar magia lá! ? reclamei.
? Portais, ou magias que podiam ser facilmente detectáveis. Isso é influência por objeto encantado, é diferente. Não está prestando atenção nas aulas, Kiara? Vou ter que te ensinar tudo de novo? ? O deboche em sua voz me fez querer chutá-lo, mas ao invés disso, me inclinei nas pontas dos pés, agarrando seu manto e beijei seu queixo.
? Não assisti nenhuma aula de magia, caso não se lembre, mestre. Só comecei a usar magia sem restrição há alguns meses.
Hasan sorriu.
? Vou te ensinar algumas coisas, então. ? sussurrou, inclinando-se para beijar minha testa. Aquele toque... me lembrou o que tinha feito a pouco, quando me trouxera de volta do mergulho na consciência feral.
Ele sentiu minha tensão e se afastou um pouco para me encarar, curioso.
? Você entrou no círculo para me ajudar, e não teve medo de mim mesmo sabendo que eu poderia te machucar naquela forma, como um... ? meu coração disparou, baixei os olhos sentindo meu rosto esquentar com sua atenção.
? Caso não se lembre, Eish-amir ? Hasan levantou meu queixo e me deu um beijo tão suave sobre os lábios que mal senti seu calor, ele suspirou ? minha mãe também é malvarmo. E ela também assume a forma feral. Ela costumava passar horas naquela forma, desde quando eu era criança. Áries me fez entender que não passava de uma pele diferente, que continuava sendo minha mãe lá dentro. Eu nunca tive medo. Nunca teria medo do que você é, eu te amo, mesmo com garras ou presas enormes. Ainda é você.
Meu rosto esquentou mais.
? Diria isso se tivesse que me beijar naquela forma? ? brinquei. Hasan começou a rir, tirando um floco de neve que caiu em meu ombro.
? Ia até facilitar, eu não ia ficar com dor nas costas, me abaixando o tempo todo! ? lhe dei um beliscão na cintura, o que só o fez rir ainda mais.
? Vamos, deixe-me ver qual o próximo fragmento! ? Peguei a carta de sua mão e a abri, para minha surpresa, aquela estava ainda mais fácil que a anterior, que ele disse explicitamente onde encontraríamos o próximo fragmento.
“O sol das forjas se apagou no dia em que seu coração congelou. Não havia outra estrela que fizesse seu núcleo reascender, pois o que ela fazia, ninguém mais conseguia fazer. Agora, em suas cinzas esquecidas, descansa o penúltimo pedaço dessa busca.”
? Já sabe? ? Hasan questionou.
? A Solaris. ? murmurei ? A loja de forjas que mamãe fez a foice. Papai me disse uma vez que ela amava fazer armas, e que ter de deixar a Solaris fechada foi a coisa mais difícil que ela teve que fazer quando se tornou rainha dos mundos. ? ri com a ironia, voltando minha atenção para o castelo com neve acumulada. Ela sofrera mais em se distanciar de uma fornalha do que de mim.
? Não pense assim. ? Ele apertou mais os braços ao meu redor ? Nikella tinha uma dificuldade grande para amar. Eu não acredito que ela não te amava. ? Hasan deu um beijo em minha têmpora. ? Nós precisamos ir até a ACV guardar esses fragmentos. Ficamos quase três dias inteiros lá, provavelmente perdemos uma semana de aulas e Lórien deve estar a ponto de explodir!
Suspirei pesadamente, apertando os cilindros nas mãos. Por mim, iria logo até Ciartes e pegaria mais um. Mas descobrir como as coisas tinham sido desde que saímos era tão importante quanto.
? Vamos então!
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Lórien pulou em cima de nós assim que passamos pelas portas de sua sala. Ela literalmente se atirou, com os braços apertados ao redor do pescoço de Hasan.
? EU TIVE QUE PEDIR A ARISTES QUE FICASSE NO SEU LUGAR! ? Ela berrou, explicando que ali haviam se passado duas semanas.
Deixei que Hasan contasse a ela sobre nossa viagem e fui guardar os fragmentos na sala escondida. Agora só restavam dois. Fechei os olhos com força antes de sair daquela sala, desejando com todas as forças poder encontrá-los vivos e bem. Implorando que não tivéssemos que nos despedir de mais ninguém no processo.
Ao subir as escadas de volta, escutei brevemente um pedido do mago, que tinha aparecido ali outra vez. Aristes aparentemente estava aguardando nosso retorno.
? ... você está no conselho desde antes de eu nascer, Aristes! ? Lórien reclamou, mas o mago apenas soltou um leve som incomodado.
? Asahi não escuta ninguém. Ela raramente sai de seu quarto, Eirien e Farah que estão governando por ela, mas as pessoas desconfiam! E Asahi não me deixa entrar! ? Ele rebateu. ? Hasan ajudou a criar aquelas meninas, ele é muito mais chegado. Creio que a ele, ela ouviria, ou pelo menos o deixaria entrar.
Hasan suspirou pesadamente.
? Vou falar com ela. ? Entrei na sala em seguida, fechando a estante atrás de mim. Hasan e Aristes já estavam de pé, prontos para saírem.
? Fares está na ACV? ? questionei inocentemente, como se três magos não pudessem simplesmente ter sentido minha presença bisbilhotando por ali.
? Ele ia até o Vale da Lua ver Hestia... não sei se já foi. Mas estava me ajudando a preparar algumas provas ? Lórien lançou um olhar irritado a Hasan, que encolheu os ombros.
? Nos vemos mais tarde ? Hasan se inclinou, depositando um beijo suave em minha testa, e sob aquele olhar estranho e louco de Aristes, eles desapareceram numa coluna de luz branca.
Olhei para Lórien... sentindo a presença dela.
E por um instante, pensei que meu coração pararia de bater.
Alguém já havia dito a ela, que os olhares de ambos eram muito parecidos?
? Foi divertido? ? Lórien perguntou, escondendo um sorriso de mim. ? Quero dizer... o passeio pelo mundo humano?
? Lórien. Eu Te conheço ? sorri ? sei que você quer saber dos extras! ? O rosto dela corou.
? Eu sou um ótimo cupido. ? Ela gargalhou ? de nada!
? Vou te fazer mais um bolo daqueles depois! ? Ela sorriu para mim, erguendo a xícara num brinde só dela.
Em seguida deixei sua sala correndo. Tinha a chance de encontrar meu irmão em sua sala... e dizer o quão perto estávamos de ter nossos pais de volta.
Parei abruptamente no meio de um corredor, sentindo meu coração martelar em meu peito. Estávamos perto de encontrá-los. Não seus corpos.
Eu tinha deixado aquela esperança me dominar com tanta força, que passara a ser uma certeza. Deuses! Eu só queria que fosse real! Só desejava que todos os nossos problemas desaparecessem com a tal arma ou escudo em mãos.
Desci pelo prédio principal e atravessei o pátio correndo em direção ao prédio das salas, corri escadas acima e ao chegar em frente à sala de meu irmão, me deparo com algo inesperado:
Ele em sua real forma masculina e Eileen, ambos se encarando irritados.
? Fares, Eileen? ? chamei, invadindo a sala pronta para separá-los, mas Fares desviou os olhos do malvarmo e sorriu para mim com aquela mesma gentileza e suavidade de sempre.
? Kiara! ? Ele passou os braços ao meu redor e beijou minha testa. ? Achei que demorariam mais a voltar!
? E eu achei que teria voltado antes ? ri, apertando-o mais.
? Desculpe... estou de saída! Preciso ver Hestia. Ela não estava muito bem nas aulas anteontem e foi para o Vale antes do último período. ? Ele resmungou, dando-me outro beijo na bochecha, e olhando com raiva uma última vez para Eileen antes de abrir um portal e desaparecer sem ao menos me deixar dizer que tínhamos encontrado dois fragmentos.
? Ele é com toda certeza, filho de sua mãe! ? Eileen bufou, aproximando-se para passar um braço ao redor de meus ombros.
? Algum motivo especial para esse mal humor repentino? ? brinquei.
Eileen revirou os olhos.
? Ele é grosso como ela. A única diferença é que a grosseria dele é mais refinada. ? comecei a rir, Eileen me olhou feio.
? Vamos, quero te levar a um lugar, preciso que me ajude em algo. ? Eileen pareceu confuso, mas não negou. Antes que ele adivinhasse o que eu queria fazer, abri um portal e nos levei para frente do castelo de gelo.
O malvarmo olhou confuso para mim, depois encarou com pesar o que restara de sua antiga morada. Sem soltar meu braço, Eileen caminhou para dentro do castelo, subindo a elevação onde outrora havia uma escada com poucos degraus. O acompanhei em silêncio, até que chegamos ao centro do salão principal.
Eileen se aproximou em passos lentos do trono de gelo e o tocou, soltando um suspiro sentido.
? Eu detestava ter que me sentar aqui. ? murmurou ? detestava estar à frente, ter a coroa pesando em minha cabeça. ? Ele sussurrou, passando uma garra sobre o trono destruído. ? No último ano que estive vivo, o que me fez aceitar esse peso, foi sua mãe.
Ele voltou os olhos topázio para mim e sorriu.
? Consegue se lembrar exatamente como era cada parte do castelo? ? quis saber. Eileen pareceu confuso, mas assentiu.
? Me lembro até dos lugares que eu passava pouco tempo. ? Ele bufou uma risada ? ou seja, todo o castelo!
Revirei os olhos.
? Me... passaria as lembranças? Para que eu o reconstruísse? Não consigo me lembrar de tudo ? pedi. Eileen me observou com tamanha surpresa no olhar, que pensei por um instante que ele se negaria.
? Não acha que chamaria... atenção de quem fez isso? ? Ele ergueu o queixo, apontando os destroços.
? Não me importo. Não estaremos aqui até que quem quer que tenha feito isso seja destruído. ? expliquei ? Mas quero tentar... fazer isso.
Eileen assentiu. Ele se aproximou de mim e segurou meu rosto, totalmente sem jeito.
? Não vim com magia dessa vez, Kiara, talvez não dê certo. ? sussurrou.
? Não custa tentar. ? repliquei, fechando os olhos... esperando pelas memórias do lugar que uma vez, quase uma vida atrás, fora meu lar.
Não demorou para que o fluxo de lembranças viesse dele para mim... mas diferente do que eu esperava, o que vi foi minha mãe, numa festa, com um longo vestido negro puxado para cima, tocando o que pareciam ser adagas em seus cintos escondidos.
Ela parecia tão jovem!
Logo em seguida, um homem apareceu perto dela, ele tinha cabelos loiros e pele cor de cobre... e a imagem desapareceu, fazendo minha cabeça doer com tanta força que pensei em me afastar de Eileen. Porém, logo em seguida, outras imagens apareceram, e junto com suas lembranças enevoadas de uma vida atrás, sorrisos, toques e cores... cada parte daquele castelo passou a fazer parte de minha mente.
Arfei, afastando-me de Eileen.
Ele sorriu um pouco sem graça.
? Desculpe, me lembrei de sua mãe.
? É... percebi. ? pigarreei. ? Acho que consigo fazer isso. ? murmurei, ajoelhando-me no chão, tocando as palmas abertas no gelo, esperando que ele respondesse a mim. Fechei os olhos, imaginando cada detalhe que Eileen me passara, então, devagar, deixei que o gelo se espalhasse, que minha magia tomasse conta do lugar, estendendo luz e gelo ao redor de cada parte que um dia foi meu lar.
A magia vibrou em meu interior, brilhando para além de minha pele enquanto ondas de gelo, vento e neve circulavam perto de nós, fazendo com que nossos cabelos voassem, soprados pelo cone de neve, luz e gelo.
Não tinha idéia de quanto tempo aquilo durou. Mas quando acabou, não havia sequer uma brisa vindo de fora.
Pois o castelo estava refeito.
Eileen sorria sentado ao meu lado no chão, encarando o piso de gelo e pedra, formando enormes desenhos em padrões que lembravam flocos de neve. As paredes gigantes azuladas nos fecharam ali, e sobre nossas cabeças, no teto que antes era de um azul safira, e agora azul turquesa, ostentava lustres de gelo cristalizado e pequenas orbes de luz. Os vitrais nas janelas agora possuíam figuras a mais, de pessoas que vieram depois de seu tempo.
Eileen olhava maravilhado o trabalho.
? Parece que acrescentou algumas coisas, não é? ? Ele sorriu, escorregando os dedos pelo trono cheio de pedras arredondadas rajadas de azul escuro. ? Não lembro dessas cores por aqui.
? É porque elas não estavam aí! ? rebati, tocando a almofada de veludo azul mais clara. A curiosidade de ver como tinha deixado os quartos e as salas de reuniões e biblioteca me venceu. Agarrei o braço de Eileen e o arrastei para fora do salão, para que pudéssemos ver mais o que havia feito de diferente pelo castelo.
? Vamos! Quero um tour diferenciado, com a sua versão de coisas que aconteceram por aqui! ? Eileen revirou os olhos.
? Não vai querer saber da maioria das coisas ou como lembro de tantos detalhes. ? Ele retrucou com malicia.
? De novo, já sei de quem eu puxei isso. ? Eileen fez uma careta, mas eu ri ainda mais, levando-o em direção as escadas.
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No fim da tarde, estávamos sentados no telhado da torre norte, olhando os sóis se porem, Eileen balançava as pernas para fora da calha e tinha um sorriso curto nos lábios. Eu, de pernas cruzadas, ainda admirava o castelo que tinha conseguido refazer, e não conseguia parar de imaginar a reação de Fares ao se deparar com ele assim.
? Sabe... estou feliz que tenha me dado uma chance de poder estar aqui. ? Eileen comentou, passando os dedos timidamente sobre minha cabeça.
? Fico feliz que tenha voltado por mim também. ? sorri para ele, vendo sua expressão se aprofundar ainda mais naquela nostalgia ao encarar o castelo sob nós.
? Eu teria te ensinado tantas coisas... teria cuidado de você. Queria ter vindo mais cedo. ? Ele bufou. Os últimos raios laranjas sumiram no horizonte, espalhando o púrpura do entardecer pelo céu.
? Já é o suficiente que tenha desejado voltar.
Ele suspirou e assentiu.
? Preciso ir. Mikale queria que eu buscasse algumas plantas para ela em Madras. ? Ele riu ? Vovó vai me bater por chegar tarde.
? O preço que você teve que pagar... para manter as lembranças ? comecei, fazendo-o me olhar surpreso ? Valeu a pena? ? Eileen me encarou por um longo momento, tão longo que o roxo do céu tinha passado a azul escuro quando respondeu.
? Mesmo se tivesse tirado meu coração e colocado uma pedra no lugar, ainda valeria poder me lembrar de quem você é. ? Ele sorriu, afastando-se na direção do alçapão da torre. ? Até depois, Kiara.
? Até mais, pai. ? Ele sorriu ainda mais e seu rosto se encheu de cor.
Eileen já tinha desaparecido quando pensei em voltar para a ACV, mas não usaria um portal.
Subi mais um pouco na torre, ficando de pé na ponta do telhado e invoquei aquela parte emprestada que tinha aprendido a usar.
As asas pálidas de Senrys. As estendi, sentindo o vento gelado da noite arrepiar minha pele ao se espalhar pelas membranas sensíveis, e sem pensar duas vezes, atirei-me da torre, ganhando altura na noite e batendo as asas para olhar de cima as luzes azuladas saindo pelas janelas, portas e sacadas do castelo.
Se o demônio estivesse de olho em nós, talvez ele saberia que o castelo fora refeito. Aquilo poderia chamar sua atenção e fazer um novo ataque acontecer.
Porém passava uma mensagem também.
Nós não estávamos mortos. Ainda haviam guardiões em Vegahn.
E nós sempre estaríamos ali por todos.
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Hasan:
Não fazia ideia do motivo que me levara a Vintro no fim da tarde depois de sair frustrado do castelo de cristal. Asahi simplesmente explodira depois de algumas horas tentando convencê-la a deixar o quarto, ou me permitir entrar, o que acabou em minha desistência temporária de tentar fazê-la me ouvir.
Caminhei pelos corredores desertos e escuros, seguindo meu trajeto no automático até a escadaria que levava ao jardim no terraço.
Queria voltar a Vegahn, ver o que causara um alvoroço de sentimentos em Kiara no começo da tarde e o que lhe fizera ficar tão feliz quando anoiteceu.
As palavras da menina na escola de feiticeiros também não deixavam minha mente, a pergunta sobre nosso relacionamento. Eu queria ter algo para dizer, mesmo sabendo que não devia, e por mais que as coisas entre nós não estivessem claras em palavras, eram mais do que perceptíveis para os outros.
Pelo menos, para quem sabia onde olhar.
Estava prestes a subir as escadas e ir até o jardim, quando ouvi o som de passos e senti o cheiro se aproximando.
Kiara vinha descendo os degraus aos pulinhos, e ao me notar ali, abriu um sorriso enorme.
? Oi! ? Ela ajeitou uma mecha solta dos cabelos na frente do rosto. ? Estava te procurando! ? Ela comentou, aproximando-se mais, passando os braços ao redor de minha cintura.
Inspirei fundo, apreciando seu perfume.
? Estava pensando em você, Eish-amir. ? comentei, dando-lhe um beijo na testa.
? Foi tudo bem com tia Asahi? ? Ela questionou, avaliando-me com curiosidade.
? Ela não está muito bem, não me deixou entrar. ? respondi ? Talvez não tenha sido um dia bom para tentar falar com ela.
Estávamos fazendo o caminho de volta pela fortaleza, que naquele momento não parecia mais escura e vazia.
? Ela sempre foi um pouco fechada, pelo menos o que me lembro dela. ? Kiara comentou ? Se algo a está incomodando, uma hora ela vai acabar se abrindo. De vez em quando preferimos ficar no nosso canto e esperar o momento certo para falar.
Não queria dizer que Asahi sempre fora a mais falante das três, a que tinha mais alegria. Mas talvez Kiara tivesse razão, sem Leona e Ewren ali, ela podia ter mudado. Aquilo talvez fosse a falta dos pais, do irmão...
Esperava que fosse algo que pudéssemos ajudar a melhorar. Uma pena termos perdido contato com Ewren e Leona depois que Susano e Nike se foram. Eles eram os únicos que podiam chegar aos portões de Mogyin, e abrir os portais para os dois.
Se a busca pelos fragmentos tivesse o resultado que esperávamos, aquela situação poderia mudar.
Talvez teríamos todos de volta.
? Senti algumas coisas interessantes pela ligação hoje, mudei de assunto, ao passarmos pelo salão de jantar, as luzes fracas vindas do arco de entrada iluminaram um sorriso contido em seu rosto.
? Enquanto você e Aristes tentavam falar com Asahi, eu e Eileen refizemos o castelo de gelo! ? Kiara comentou, ela tinha encontrado o caminho até a cozinha da fortaleza e agora revirava o lugar, em busca de algo.
Ideias começaram a surgir em minha mente. Havia um festival acontecendo no Campo de Flores, então tínhamos Esperas só para nós dois aquela noite. Kiara sorriu, encontrando uma garrafa do que parecia licor de anis numa prateleira alta sobre o balcão ao lado dos fornos.
Eu não devia dizer sobre a data em que voltamos da Terra... mas talvez ela não soubesse.
? Poderia fazer um bolo para mim? ? perguntei, ela desviou a atenção das pequenas taças e voltar os olhos turquesa para mim. ? Eu gostei muito daquele que você fez no dia do aniversário de Fares.
Kiara sorriu.
? É um bolo de aniversário. Vocês só ganharam um porque Lórien me extorquiu! ? disse rindo, arrastando uma taça longa sobre o balcão na minha direção.
? Hoje é dois de julho. Assim que der meia noite, será meu aniversário. ? falei. Kiara arregalou os olhos surpresa, então seu rosto se encheu de cor e ela baixou os olhos, mordendo os lábios.
Seu constrangimento acendeu meu desejo ainda mais.
Não conseguia tirar da cabeça a ideia de possuí-la sobre aquele balcão. Seria um presente interessante.
? Acho que não tem material de bolo por aqui. ? explicou, mas seu cheiro havia mudado... e quando ergueu o olhar novamente, a malícia neles me fez estremecer. ? Mas vi um pote de cobertura em algum lugar na geladeira. Talvez eu deva te cobrir com ela.
Meu pulso acelerou.
Kiara foi até a geladeira, mas segurei seu pulso com delicadeza, impedindo que ela a abrisse. A garota me olhou confusa.
? É meu aniversário. ? expliquei com calma. ? É injusto que você fique com a melhor parte.
E sem deixar que ela absorvesse melhor aquelas palavras, a ergui pela cintura, colocando-a sobre o balcão de pedra. Ela deixou um suspiro surpreso escapar antes de eu envolvê-la com os braços e enfiar a língua em sua boca, sentindo o sabor suave e enlouquecedor de anis e neve que ela tinha.
Sua língua deslizou contra a minha e com um gemido contido, ela ergueu as mãos. Para meu deleite, começou a desabotoar a camisa escura lentamente. Apertei o quadril conta o seu, escorregando minha boca da sua para a curva de seu ombro, provando o adocicado de sua pele, apertando as presas suavemente em seu pescoço.
? Está esquecendo de algo? ? Ela sussurrou entre os suspiros lentos. Seus olhos estavam pesados e ela mordia a boca, provocando-me.
? É claro que não! ? sorri, mostrando-lhe um frasco grande de creme que estava escondido na geladeira.
Kiara riu, mas não resistiu quando a deitei sobre a pedra, empurrando os utensílios para o chão com um barulho que teria chamado atenção demais se tivesse mais alguém por ali.
? O que será que deveria escrever aqui? ? comentei, puxando sua camisa aberta, tocando os lábios suavemente contra sua pele quase fria.
? Feliz aniversário não é bom o suficiente ? ela arfou, eu tinha puxado sua camisa, a atirado no chão e agora observava seus seios nus, arrepiados contra meu toque quente.
? Realmente... não é bom o bastante para mim. ? murmurei, mergulhando os dedos na cobertura e começado a traçar círculos em sua barriga, criando desenhos com o creme. Kiara gemeu, tinha traçado linhas desde sua barriga até os seios, e não tinha intenção de parar ali.
Desabotoei sua calça e a tirei também, ela começou a rir.
? Vai dar muito trabalho limpar esse doce todo... ? sussurrou, seus olhos fecharam e ela suspirou pesadamente ao sentir meus dedos escorregarem cada vez mais para baixo, cobrindo-a.
? Eu gosto muito de doces. ? comentei, finalizando meu trabalho. No final... cada parte de seu corpo tinha marcas circulares de creme batido e eu o admirei com certo orgulho. ? Até que conseguiria confeitar um bolo mais ou menos bem!
Kiara começou a rir, mas o riso desapareceu quando comecei a limpar todo aquele doce sobre sua pele com a língua.
Podia sentir seu pulso acelerado em cada toque. Alternava entre marcas do creme em suas pernas, pescoço, braços e barriga. A garota choramingava, ganhando cada vez mais cor. Deuses! O gosto de anis de sua pele se misturava ao sabor da cobertura e ficava cada vez mais difícil me manter fora de seu corpo, sem senti o calor dele conta o meu.
Escorreguei a língua em seus seios, nem ligava mais para a cobertura, o sabor de sua pele contra minha língua fazia meu sangue pulsar com tal intensidade que tremia, controlando-me para não acabar com a brincadeira antes da hora.
Porém meu controle acabou ao deslizar a boca por seu pescoço e ela fechar as pernas ao redor de meu quadril, soltando um gemido e um soluço alto, erguendo-se para enlaçar meu pescoço com as mãos.
? Já brincou o bastante! ? reclamou, pressionando mais o corpo contra o meu, traçando linhas com as garras em minha pele, abrindo minha calça em seguida.
? Isso é injusto ? sussurrei, estava a poucos centímetros de penetrá-la, contendo-me com toda a força de vontade que ainda tinha. Ela mordeu os lábios quando mergulhei os dedos e os movi devagar, provocando ainda mais ? Eu devia ter todo o tempo que quisesse... aniversários servem para que possamos pedir coisas que não ganharíamos em dias comuns! ? reclamei.
? Eu posso transformar todos os dias em festa se você quiser. ? Ela sussurrou.
Tinha percebido mais do que uma brincadeira naquelas palavras.
Havia uma promessa ali... e sem que tivesse controle sobre aquela parte feral que vivia ameaçando tomar conta de mim, eu me inclinei para ela, beijando a curva de seu ombro e a mordi com força, com vontade, enterrando as presas na carne macia de seu pescoço, provando a verdadeira essência dela.
Kiara soluçou, apertando as pernas ao meu redor. Ela se inclinou para cima, beijando meu ombro num pedido silencioso.
Então deixei que ela me mordesse também. E com um soluço contido e cheio de significado e emoção, ela deixou que eu me enterrasse em seu corpo, mergulhando em seu calor, com minhas presas ainda em seu pescoço, provando o anis de seu sangue e ela do meu.
? Acho... que você não tem ideia do que fez! ? Ela sussurrou, cruzando com mais força as pernas ao redor de meu quadril, aumentando aquele desejo crescente de tê-la para mim, por todo o tempo que nos fosse permitido.
? Não se esqueça que sou como você, numa parte muito, muito escondida. Então acho que sei sim. ? sussurrei, movendo-me devagar, instigando-a ? E jamais me arrependeria do que fiz.
Seu corpo tremeu contra o meu e ela murmurou algo que não consegui compreender.
? Espero que não! ? Ela riu, erguendo o rosto num suspiro contido, mas aliviado ? pois se você usar qualquer tipo de magia... todos vão saber.
? Não ligo. ? murmurei, deixando que aquele êxtase me tomasse. Que a sensação da ligação se tornasse mais forte. ? Eu quero você.... e só você, por toda a vida, por cada minuto que me restar de agora até o fim... eu não desejo nada além de que você esteja comigo.
Sua respiração falhou por um instante, então seus dedos subiram e desceram por minhas costas.
? Se isso for um sonho, farei todas as orações existentes para que se torne real. ? Ela apertou os braços ao meu redor. ? E se não for real... não vale a pena me lembrar disso.
? É real, Eish-amir. ? beijei seu pulso, puxando-o para admirar a marca dourada de um sol que aparecia em seu anelar direito, uma vez que o esquerdo não manteria a marca.
A peguei nos braços, teleportando-nos até o quarto perto do terraço, deitando-a na cama sob a luz da lua crescente que subia no céu. Sua pele pálida brilhava assim como aquele sorriso que ela tentava esconder sem conseguir. Kiara não parava de sorrir, olhando a marca cruzada em nossos pulsos.
? Não podemos... deixar Lórien saber sobre isso. ? Kiara resmungou, enterrando o rosto em meu ombro. ? Deuses, Hasan! Ela depende de você! Isso quebra as regras! Acho que todas elas! ? a garota tremeu, apertando-me ainda mais ? Lórien não vai conseguir esconder sobre isso.
? Ninguém além de nós precisa saber. ? Sussurrei, beijando suas marcas, uma por uma, escondendo-as até não sobrar mais nada além da marca que eu tinha lhe dado, aquelas flores de jade no tom turquesa de seus olhos.
? Tem certeza? ? Ela sussurrou, escorregando a perna sobre a minha, aproximando-se mais para beijar meu pescoço.
? Não consegue esconder um segredo? ? Ela gargalhou de minha pergunta.
? Escondo a quatorze anos que sou filha dos vilões que tomaram a liberdade de todos e isolaram os mundos! ? Ela rebateu ? Acha que eu não seria capaz de.... mãe das águas ? Kiara começou a rir e me apertou ainda mais ? Esconder marcas de casamento.
Dizer aquilo em voz alta, fez com que se tornasse ainda mais real.
? Quando tudo isso acabar... eu vou me casar com você diante de todos. ? minha voz soou mais baixa do que queria, mesmo assim a senti estremecer ? Quero que todos saibam... e quero poder viver com você também, por quanto tempo nos for permitido, Eish-amir.
Ela passou as pernas por cima de mim e se inclinou para me beijar com tanto carinho que meu coração disparou outra vez.
? Se alguém surtar por não termos esperado para fazer uma festa, vou jogar a culpa em você e me fingir de louca! ? sussurrou contra meus lábios.
Era impossível não rir quando estava com ela.
Kiara tinha trazido de volta a parte em mim que conseguia rir de qualquer coisa.
? Precisamos voltar para a ACV. ? Ela bufou, aninhando-se em cima de mim como um gato preguiçoso. ? Lórien te mata se perder mais aulas.
? E quanto ao fragmento de Ciartes? ? questionei.
? Acho que não vai ter nenhum tipo de desafio nesse. ? Ela mordeu os lábios. ? A loja deve estar trancada e protegida, mas não creio que seja algo realmente difícil de contornar.
? Não quer que eu já junto?
? É claro que quero! Mas e as aulas de amanhã? ? Ela apoiou o queixo nas mãos para me encarar. Comecei a traçar linhas em suas costas com as pontas dos dedos e sorri ao ver sua pele se arrepiar.
? Amanhã é dia de reunião para as provas. As aulas só voltam ao normal na terça. ? comentei.
Kiara assentiu, distraída por minhas carícias.
? Então podemos ir até lá amanhã cedo. ? disse num sussurro, erguendo o corpo para escorregar as garras suavemente por meu peito.
? Amanhã, mas só depois de você fazer um bolo para mim. Não esqueci dele. ? avisei. Ela assentiu, mordendo os lábios ? Imagino que não esteja com sono ? Kiara negou com a cabeça ? então posso comemorar um pouco mais do meu aniversário?
O sorriso em seu rosto mudou de alegre para malicioso num piscar de olhos.
? Chega de doces dessa vez! ? Ela riu ? Ainda estou toda grudenta do creme!
? Sabia que tem uma fonte termal no meio da floresta na subida da montanha? ? Seus olhos brilharam, sem perder mais tempo, me levantei, pegando-a nos braços, usando magia para nos cobrir e evitar sermos vistos por alguém voltando do festival, então abri as asas e voamos para fora da fortaleza no meio da noite.
Capítulo 17
Kiara:
“Eu detesto esse lugar, com toda força da minha alma, eu abomino esse calor infernal!” reclamei mentalmente ao passar pelos portões da segunda Cidade do Sol e caminhar quase me arrastando em direção à cidade central.
O primeiro sol mal tinha nascido, eu estava em minha pele humana, e mesmo assim, o calor do lugar já estava me fazendo sentir como um dragão aquático nos bolsões da Montanha do Caos: com calor, totalmente deslocado e louco para encontrar água.
Hasan tinha voado para a ACV assim que chegamos em frente aos portões da cidade, as reuniões sobre as provas das academias aconteciam ao mesmo tempo então a probabilidade de encontrar tia Karin por lá e falar sobre Asahi era maior. Os reis de Ciartes costumavam participar muito dos assuntos da primeira ACV.
Embora o calor ameaçasse me deixar encolhida num canto entre as paredes amareladas dos prédios, ou jogada sob as tendas do comércio na avenida principal, segui com força até a entrada da cidade central. Era o penúltimo fragmento, estava perto demais para ser detida por um calorzinho de quarenta graus.
Quarenta graus, no início da “manhã”.
Irritada, mas sem me deixar abater, segui até os arcos da cidade central. O comércio do outro lado começava a abrir naquele instante, e para minha surpresa, não haviam guardas circulando por ali, nem mesmo os guardas que costumavam controlar o fluxo para dentro da área em que o castelo se encontrava.
Olhei para a direita, onde a armaria fechada mantinha uma espécie de cortina negra nas janelas, a mando de quem não sabia dizer. Apenas o hotel de Gih continuava funcionando, mas com uma jovem salamandra na administração.
A princípio, com receio de entrar sem ser vista e autorizada, esperei ao lado dos arcos, observando os comerciantes ajeitando as fachadas de suas lojas enquanto aguardava a chegada dos guardas. Porém minha paciência não durou tanto, depois de dez minutos esperando vê-los, desisti de ficar ali ganhando mais cor e segui em passos rápidos até a porta fechada da loja.
Como esperava, a fechadura dourada em formato de empunhadura de espada estava trancada. Dei a volta na loja, passando por um beco estreito entre a ferraria e uma loja de joias que ainda não estava aberta e fui até a porta traseira, por onde certamente chegavam os materiais de trabalho.
A porta larga e alta de madeira escura não tinha adorno nenhum além de uma fechadura rústica de puxador de ferro e entrada para a chave. Precisava encontrar a chave reserva, para evitar que qualquer tipo de armadilha mágica fosse acionada ao entrar ali forçando o trinco.
Conhecia minha mãe bem o suficiente para saber que esse seria o tipo de coisa que ela faria. No mínimo sons altos que chamassem atenção dos guardas, no máximo... balestras prontas para disparar assim que a fechadura fosse puxada com força.
Porém, por conhecê-la tão bem, sabia exatamente como encontrar seus esconderijos e passei os olhos atentamente pela porta. A madeira tinha ranhuras por toda sua estrutura, de modo a confundir qualquer um que tentasse encontrar qualquer coisa diferente nela. Dei um passo para trás, avaliando-a melhor e depois de alguns minutos comparando a profundidade das ranhuras, estendi a mão, forçando uma parte da madeira para baixo, destravando um compartimento com uma pequena chave preta dentro.
? A-há! ? sorri, puxando a chave, a coloquei na fechadura e girei com cuidado, esperando ouvir mais do que um click metálico. Como era de se esperar, escutei também o som de algum mecanismo girando, em seguida a porta destravou e se abriu um pouco.
Embora já tivesse uma ideia do que me esperava ao entrar numa armaria, não pude deixar de sentir um aperto no peito ao perceber que mesmo sob o cheiro antigo de carvão, metais e umidade, ainda havia uma nota de hortelã e mel por ali.
Atravessei uma salinha pequena com cuidado, vendo duas balestras maiores que meu tronco com flechas de ponteiras de vitrino armadas e apontadas para a porta nos cantos do cômodo escuro. Ali havia apenas um armário de metal empoeirado com algumas peças de roupa dentro, e três aventais de couro de dragão desgastados, pendurados em ganchos perto do arco que levava a uma sala maior.
E foi aquela que apertou mais meu coração.
Um imenso balcão de pedra ocupava a maior parte no meio da sala, em frente a três fornalhas apagadas, e alguns suportes vazios. Ferramentas empoeiradas foram perfeitamente arrumadas sobre as prateleiras também de pedra ao redor da sala. E sobre o balcão, moldes de espadas, adagas e bainhas quase prontas continuavam ali, como se quem saiu, o tivesse feito esperando voltar logo.
Mesmo que nunca a tivesse visto ali, a imaginei naquela forma mais humana, com o cabelo amarrado dobrando metal. Podia até mesmo imaginar sua expressão ao fazê-lo. Uma alegria satisfeita, como a que tinha em seu rosto enquanto trabalhava em minhas adagas.
As apertei um pouco, quase podia sentir seu toque que não passou de um roçar das mãos ao me entregar aquelas armas. Talvez o maior gesto de carinho que pudesse ter por mim. Papai dizia que ela só dava armas de presente para pessoas com quem se importava...
Eu precisava encontrá-los. Precisava perguntar o porquê de toda aquela frieza.
Limpei as lágrimas que mal tinha sentido escorrendo por meu rosto e caminhei devagar até as fornalhas. Se não tinha ficado surpresa com as armas prontas para disparar na parede da salinha anterior, fiquei ao estender a mão para dentro da boca da fornalha do meio, e uma lâmina descer tão rápido que quase não tive tempo de puxar a mão.
Meu coração estava prestes a sair pela garganta. Me forcei a acalmá-lo, estendendo a mão metálica coberta pela ilusão de pele dessa vez, tateando as cinzas em busca de algo.
Nada naquela.
Fui até a do canto esquerdo, dessa vez, não foi uma lâmina que desceu. Ao tocar a pedra fria, um bloco de arenito escorregou de dentro, batendo no fundo da fornalha com tanta força que o chão tremeu.
? Se eu sair daqui com alguma parte faltando, mãe, juro por todos os deuses que quando eu te achar, eu vou te desafiar e te dar uma surra! ? rosnei, puxando a pedra com força para cima, tentando encontrar algo debaixo dela.
E por mais surpreendente que pudesse parecer, sob a pedra, no fundo da fornalha havia uma fenda pequena, onde um frasco frio tilintou contra meus dedos metálicos.
O puxei de dentro com o coração disparado, dando-me conta de que realmente era o fragmento com a carta enrolada dentro dele, junto com o pedaço do mapa.
? Bom... acho que dessa vez você sai ilesa! ? murmurei em resposta à minha ameaça anterior. Talvez estivesse ficando louca e falando sozinha.
Não queria demorar ali. E embora tivesse curiosidade de admirar as armas que via através de uma porta aberta atrás de um balcão de vidro na frente da loja, com sorte conseguiria seguir até o último fragmento antes do final do dia.
Deixei a loja pela mesma porta que entrei, trancando-a, colocando a chave de volta no esconderijo e o travando outra vez, porém ao me virar para deixar o local com o fragmento seguro em minha bolsa, dois guardas salamandras apareceram pelo beco:
? EI! VOCÊ AI! ? urrou o salamandra alto, que mais parecia uma parede sólida de músculos, com o pescoço mais largo que minha cintura. O outro ao lado dele, visivelmente menor, mas igualmente letal levou a mão ao punho da espada e me varreu com os olhos.
? Sim? Posso ajudar? ? perguntei educadamente.
? Essa loja é mantida fechada e vigiada por ordem do rei! Ninguém tem autorização para vir até aqui! Estava tentando entrar para roubar as armas, não é? ? o guarda menor se aproximou, ainda com a mão na espada. Não reconhecia nenhum dos dois, pelo visto eram guardas novatos. Ou não me reconheciam por causa da pele humana.
? Se a loja fosse realmente vigiada, eu não teria chegado tão perto sem que fosse impedida antes, aliás, nem mesmo os arcos de entrada estão sendo vigiados. Então antes de me acusarem de algo que não sabem, o que faziam que não estavam em seus postos? ? indaguei irritada.
O grandão de pele escura e olhos esbranquiçados rosnou, aproximando-se com passos pesados, mas nada desengonçados e agarrou meu braço.
? Está numa área proibida e querendo bancar a engraçadinha?
? Não sei se fiz piada. ? rebati ? Mas imagino que o rei não gostaria de saber que eu cheguei tão perto da entrada da loja sem sequer ser autorizada na entrada, e por não haverem guardas lá. ? O guarda rosnou em meu rosto, puxando-me mais para perto de si. O outro olhava pelo beco, e um frio desceu por minha espinha ao vê-lo deslizar a espada para fora da bainha e acenar para o grandão que me segurava.
Ele sorriu com crueldade e voltou os olhos pálidos para mim. Para minhas pernas... e as adagas ali.
? Essas armas tem o mesmo símbolo das armas que eram produzidas aqui! Você entrou e as roubou, não foi? ? ele levou a mão até uma delas, mas me desvencilhei de seu aperto e dei um passo para trás.
? São minhas, acho que você não tem idéia de com quem está falando. ? ralhei, deixando minha aparência voltar ao normal mesmo sob os protestos do gelo em meu sangue ao fazê-lo.
O salamandra franziu o cenho, então começou a rir, ele ergueu as mãos em brasa, aproximando-as de mim.
? Ah! Eu adoro fazer o seu tipo confessar! ? Ele Estalou a língua, enquanto o outro ainda fiscalizava a rua. ? Você vai começar a choramingar antes mesmo de eu tocar em você.
? Espero que não o faça, pois tirando as armas que o senhor julga não serem minhas só por eu estar perto da loja da mesma pessoa que as confeccionou, não cometi crime algum. ? disse tentando manter a calma, não precisava agir mal e dar motivos para aqueles dois fazerem qualquer coisa errada ali, não era nada sábio discutir com salamandras manipuladores de fogo e com fardas ? Além do mais, duvido que o senhor queira problemas por agir fora de sua conduta com uma venox.
Puxei de dentro da blusa meu pingente da ACV de Vegahn, o fazendo ter um espasmo de raiva. As sobrancelhas escuras se uniram num vinco no meio de sua testa e ele soltou um grunhido, que fez o outro bufar e embainhar a espada novamente.
? Nesse caso, imagino que gostaria de passar algumas horas aguardando no calabouço então. ? Ele grunhiu ? o rei irá julgá-la da forma que achar correta. Você não é da ACV de Ciartes e continua numa área proibida.
Sem esperar que eu dissesse algo, ele tomou minhas adagas, estendendo-as para o outro salamandra e agarrou meus pulsos com as mãos ainda quentes o suficiente para arrancar um grunhido de dor de mim, senti minha pele queimar e o vitrino do braço aquecer o suficiente para fazer um tremor passar por meu corpo.
? Cuidado com essas armas! ? resmunguei, vendo-o colocá-las de qualquer jeito numa bolsa a tiracolo. O guarda me ignorou com uma careta de deboche.
Então me arrastou pelo beco em direção ao centro da cidade.
Que inferno!
Eu queria me transformar e arrancar suas cabeças, mas viraria uma pedra antes disso e eles estariam com a razão.
Não era uma criminosa, e obviamente não agiria como uma. Pensar em como arrancaria fora aquelas mãos de bárbaro que me apertavam, me acalmou o suficiente para andar mais firmemente atrás dele, mesmo que meu corpo tivesse enfraquecido pelo calor.
Ao sair do beco em direção à praça, as pessoas que já estavam nas ruas nos olhavam e murmuravam, algumas que certamente me reconheciam, olhavam a cena espantados e curiosos, outros só queriam saber o motivo dos dois guardas andarem cheios de pose arrastando uma garota malvarmo em direção ao castelo.
? Não fique parando para olhar, vamos logo! Tenho mais o que fazer! ? o guarda ralhou, dando-me um puxão que quase me fez cair. Meu braço vibrou com a dor, o suficiente para meu coração acelerar.
Irritada, sentindo meu corpo pesar a cada passo, pois o desgraçado estava claramente aumentando seu calor, não consegui conter a réplica:
? Se estivesse na droga da sua posição para início de conversa, teria evitado esse papelão todo! ? ralhei, tentando afrouxar os pulsos de seu aperto.
? Cale-se, insolente! ? Ele não afrouxou o aperto, e andou mais rápido, fazendo com que eu tropeçasse atrás dele. O outro guarda que vinha atrás, lançava olhares ao redor.
Ao perceber que não haviam mais guardas além daqueles dois na cidade central, um pânico incontrolável começou a tomar conta de mim.
No beco, eles não hesitaram em partir para cima de mim, e o outro guarda também puxara a arma sem estarmos em situação de risco. Eu não tinha armas em punho, tirando meu braço de vitrino, agora preso pelo grandalhão.
Pelos uniformes mais novos, eles certamente estavam a pouco tempo em suas posições, e talvez pensassem que pegar alguém roubando, ou até mesmo matar um bandido que resistira a prisão e julgamento, poderia elevar seus status.
A certeza de que era isso que tinham em mente me fez estacar. Se me levassem ao calabouço, poderiam fazer muito pior do que disseram. Eles não iriam esperar por Ericko e Karin. Iam me torturar!
Onde estavam os guardas que eu conhecia?
E meus primos?
? Quero ir até a ACV, quero ver Niona! Tem um mestre da ACV de Vegahn que veio de lá comigo! ? tentei exigir com a voz firme, mas o pânico já havia me tomado.
Poderia ter simplesmente congelado o tempo e fugido deles. Porém o fogo tinha me deixado incapaz de usar magia!
? Está resistindo a prisão? ? o guarda rosnou ? Não tem direito de exigir nada até que prove sua inocência. ? O grandão apertou ainda mais as mãos, deixando propositalmente uma linha de fogo subir por meu braço bom fazendo-me gritar. A dor foi tanta que meu interior se revirou dessa vez não consegui evitar desabar de joelhos no chão.
O mínimo de calor podia se tornar insuportável, mas aquilo... pontas de vitrino cristalizado espetavam a pele de meu braço. O guarda tinha feito o sangue em meu braço cristalizar e petrificar!
Ah, Deuses!
Eu tremia. A dor fez com que eu enxergasse pontos pretos diante de mim. Estávamos a poucos passos do castelo, eles iriam me levar até lá, de um jeito dou de outro.
? Cuidado, Shein! ? o outro guarda chiou ao ver as pessoas murmurando e os olhando feio.
? Você está com as armas que ela roubou! Quer mais provas que isso? Não vou tratar um criminoso com gentileza! ? o guarda grunhiu ? Estava com armas roubadas, até que se prove o contrário!
Queria mandá-lo para o inferno, mas minha voz ficou presa em minha garganta. De tantas coisas idiotas que poderia nos fazer mal, tinha que ser logo fogo?
? Pelas folhas de fogo... o que estão fazendo? ? Um dos guardas do castelo tinha finalmente aparecido nos portões e vinha andando rápido em nossa direção com os olhos arregalados.
? Shein, Vladmir, soltem-na agora! ? Oliver, o guarda acompanhante de minha tia estava a poucos passos de nós e sua pele tinha perdido a cor.
? Eu a peguei roubando a Solaris. ? O tal Shein sorriu orgulhoso. Estava certa então. Eles queriam cair na graça de Ericko. O guarda ignorou o aviso de Oliver e me levantou com outro puxão, e alguns pontos da pele espetada de meu pulso se romperam com o movimento, fazendo-me gritar outra vez.
O sorriso debochado do guarda para mim não durou mais que um minuto.
Pois Apollis se apagou nos céus.
Uma escuridão e um frio de arrepiar a alma tomou conta de Ciartes, pessoas gritavam apontando para o horizonte, que onde antes havia uma estrela de fogo espalhando luz e calor pelo mundo, agora restava uma esfera negra com quase nenhum brilho.
? O que você fez? ? O guarda gritou, sacudindo-me.
? Não foi ela. Fui eu. ? Sua voz fez uma onda de alívio e temor varrer meu interior. Mesmo sem me virar para olhar para ele, sabia que Hasan era a fonte da luz que fazia os guardas cerrarem os olhos, lançando sombras longas por toda a praça escura. ? Solte-a, agora.
A ordem foi obedecida sem ser questionada. Seu calor arrepiou minha pele quando ele se aproximou, fazendo os guardas recuarem encolhidos. As pessoas que antes gritavam e corriam pela praça, estavam ajoelhadas e com as cabeças baixas.
“O filho dos sóis.” Alguns murmuraram surpresos.
Me virei para olhá-lo e se já não estivesse de joelhos, teria caído como os outros.
Hasan parecia ser feito de luz.
Ele tinha deixado sua real aparência de solaris aparecer, a pele cor de cobre reluzia como se o sol que deixara de brilhar no céu, agora brilhasse sob sua pele, subindo por seus braços e ao redor dos olhos e da testa, pequenas marcas douradas de raios brilhavam e seus cabelos eram feitos de chamas douradas e vermelhas, assim como as asas de fogo abertas.
Ele era a personificação do sol.
A luz que almejei poder alcançar por anos, sem ter coragem de tentar me aproximar.
Ele se abaixou, pegando-me nos braços, seu calor diferente do das mãos do salamandra, não feriam minha pele. Hasan olhou meu pulso ferido e rosnou, fazendo a luz ao seu redor ondular num calor ainda mais intenso. Ele mal passou um dedo sobre minha pele destruída e a luz que escorreu de sua mão a curou parcialmente, deixando apenas uma sensação morna e dolorida ali.
? Hasan? ? chamei. Ele olhava com tal ferocidade para os guardas que me fez duvidar por um instante que era a mesma pessoa que sorria a noite anterior, prometendo ficar ao meu lado.
? Hasan, está tudo bem ? afirmei, tocando seu rosto com suavidade ? devolva o sol deles. ? pedi tentando evitar que minha voz tremesse. As pessoas ainda o olhavam espantadas.
? Está tudo bem. Você veio, você me salvou. ? murmurei ao sentir por aquela ligação seu desespero, o medo de... não chegar a tempo.
O solaris fechou os olhos dourados e seu brilho diminuiu, criando um rastro de luz em direção ao céu como o disparo de uma flecha de fogo. Num instante, ele já estava em sua aparência normal, e o dia nasceu novamente sobre nós.
? Pegou o que precisava? ? Ele questionou ainda com a voz fria e grave, apertando os braços ao meu redor.
? Sim... ? murmurei, sentindo meu rosto começar a pegar fogo sob aquele olhar analítico. ? Minhas adagas, o guarda as pegou.
Ele sequer precisou olhar torto para o guarda. Vladmir, como Oliver o chamara, se aproximou trêmulo e me entregou as armas.
? Sentimos muito. ? Vladmir choramingou ? Achamos que ela estava roubando...
? Se disser mais uma palavra, vou te transformar numa pilha de cinzas antes que possa pensar em mais desculpas insignificantes. ? Hasan soltou num rosnado terrível.
Eu nunca, nunca o imaginaria tão zangado.
? Hasan...
? Que diabos aconteceu aqui? ? Ericko e Karin vinham logo atrás de Hasan, seguidos pelo grupo de guardas que eu queria que estivessem ali quando entrei na armaria.
Pelo olhar de Hasan para os guardas, e a praça subitamente vazia, onde antes haviam pessoas doidas para ter assunto para fofocar, sabia que aquilo não terminaria bem.
Hasan:
Estava sentado à mesa de reuniões na sala de Nyona na ACV de Ciartes, esperava calmamente a conversa acabar para falar com Karin. Talvez ela conseguisse me dizer o que havia de errado com Asahi, para que pudéssemos ir até a rainha de Amantia e falar com ela sem que fossemos ignorados ou na pior das hipóteses, expulsos do Castelo de Cristal.
Havia sentido um pulso de nervosismo através da ligação do juramento. Algo fizera Kiara ficar emotiva, porém depois daquilo, seus sentimentos se acalmaram novamente.
Se acalmaram até um surto de medo, pânico e dor chegarem até mim numa onda repentina, como se num minuto estivesse a bordo de um barco e no outro fosse pega numa tempestade. Uma dor intensa que pude sentir em minha pele, como se algo estivesse rasgando meu braço.
Aquele medo que senti vindo de Kiara me fez ignorar a espera pelo fim da reunião. Interrompi a conversa, avisando Ericko e Karin que havia algo errado na cidade e antes que ambos pudessem discutir ou perguntar do que se tratava, abri um portal rapidamente e mergulhei para dentro dele, abrindo as asas e cortando a distância o mais rápido que pude.
A sensação de medo e dor aumentou até sentir algo como uma dormência... semelhante ao que passava na mente de malvarmos antes de um congelamento ou pior, a petrificação por fogo.
Deuses!
Se acontecesse algo a ela...
Nem pensaria naquilo.
Mergulhei na saída túnel de luz diante dos arcos da cidade central. Ao parar ali, ouvi o grito de dor antes de senti-la, como de dezenas de facas cortando sua pele.
Um guarda salamandra com as mãos em brasas tinha espalhado fogo pelo braço de Kiara a ponto de cristalizar sua pele. Ela estava de joelhos, mordendo os lábios e o encarava com raiva, mas o olhar de deboche no rosto dele fez com que algo mudasse em mim.
E minha raiva e preocupação desapareceram.
Dando lugar a um ódio que mal pude controlar.
Ergui as mãos para o céu e sem medir as consequências do que minha ira causaria, tomei a luz do sol, absorvi seus raios, seu calor e o apaguei, mergulhando o mundo em sombras.
O pavor dos salamandras foi tamanho que ele ao invés de soltá-la, a sacudiu indagando o que ela havia feito.
? Não foi ela. Fui eu. ? rosnei aumentando minha luz fazendo-o cerrar os olhos e se encolher. Deixei que a aparência mais humana que mantinha, desaparecesse sob o brilho celestial que ocultávamos. Eu os queria com medo. ? Solte-a, agora.
No mesmo instante, como se minhas palavras o tivessem ferido, o guarda soltou seus braços. Kiara soltou um gemido e se encolheu. Aquele sinal de dor me deixou ainda mais irritado, e uma onda de calor saiu de mim, fazendo os guardas recuarem encolhidos.
Ignorei as pessoas gritando, correndo ou se ajoelhando ao meu redor.
“O filho dos sóis.” Alguém exclamou.
Kiara se virou para me encarar, e a expressão de alívio e espanto gravadas em seu rosto por pouco não me derrubou também.
Ela estava bem.
Estava viva.
Eu tinha chegado a tempo.
Me abaixei tentando não tremer ao passar os braços sob seu corpo e erguê-la. Seu braço direito tinha cristalizado em várias partes e se rompido com algum movimento súbito. Precisei de muito esforço para não gritar com aqueles idiotas!
Por sorte, não era algo tão complicado de curar quanto um ferimento por lâmina de pó de fogo. O curei o melhor que pude, mas aquilo só seria totalmente restaurado quando ela se alimentasse.
? Hasan? ? Kiara chamou baixo. Eu não conseguia desviar o olhar dos guardas.
Não conseguia imaginar o que teria feito se tivessem a ferido mais.
? Hasan, está tudo bem ? Ela estendeu os dedos e tocou meu rosto, o movimento foi lento, cuidadoso ? devolva o sol deles. ? Ela sussurrou. ? Está tudo bem. Você veio, você me salvou. ? talvez ela tivesse sentido meu desespero, pois a afirmação daquelas palavras fez o nó em minha garganta desaparecer e aquele aperto no peito diminuir.
Fechei os olhos e deixei a luz que absorvi retornar ao céu.
? Pegou o que precisava? ? foi um esforço manter a voz firme ao fazer aquela pergunta.
? Sim... ? Kiara murmurou, seu rosto tinha ganhado um tom azulado ? Minhas adagas, o guarda as pegou.
Olhei para os guardas caídos a alguns metros de nós, um deles se aproximou com as pernas trêmulas.
? Sentimos muito. ? Ele choramingou ? Achamos que ela estava roubando...
? Se disser mais uma palavra, vou te transformar numa pilha de cinzas antes que possa pensar em mais desculpas insignificantes. ? rosnei. Ele se encolheu, baixando a cabeça diante da ameaça.
Kiara tremeu em meus braços. Não queria soltá-la.
? Hasan...
? Que diabos aconteceu aqui? ? Ericko e Karin chegaram no minuto seguinte com seus guardas, olhando surpresos de mim, para a garota em meus braços, e os guardas encolhidos perto de nós.
? Sugiro rever seus novos guardas, tio, eles não gostam muito de malvarmos e ainda por cima acham que agir com crueldade vai dar algum mérito a eles. ? Kiara comentou. Chamar Ericko de tio fez os guardas perderem o restante da cor que tinham. O olhar maldoso dela a eles me fez perceber que ela os tentara alertar sobre aquilo, e provavelmente a ignoraram.
? Eles... a feriram? ? Ericko franziu o cenho, os guardas não negaram, mas também não admitiram. Kiara assentiu.
? Fui até a solaris atrás de algo que minha mãe deixou, eles me acusaram de roubar e estavam me levando para o calabouço. ? Ela contou ? Pedi que me levassem até a ACV, mostrei minha permissão e mesmo assim agiram com truculência.
Ela contou, mantendo a voz firme.
? Mas senhor! ? o guarda tentou ? A solaris está...
? Fechada por ordem minha, porém ela é filha da dona da solaris. Vocês viram alguma porta arrombada? Janela quebrada? Algum alerta foi soado? ? os guardas baixaram os rostos, confusos. ? É melhor irmos lá para dentro! ? Ericko rosnou, lançando um olhar para seus guardas pessoais. ? Levem-nos até o calabouço. Não tratamos ninguém assim.
Suspirei irritado e ao mesmo tempo aliviado.
Mas não disse nada ao seguir os dois para dentro do castelo enquanto os guardas eram levados para o outro lado, implorando por perdão.
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? Alguém vai me contar o que aconteceu? ? Karin questionou ao entrarmos na sala de reunião do castelo e pedir que uma criada nos trouxesse chás. Ainda mantinha Kiara em meus braços, o rosto da garota tinha adquirido um tom azulado brilhante e ela se encolhia diante da tentativa de Ericko de manter um sorriso inapropriado escondido.
? Você sumiu com o sol. ? o salamandra me encarou surpreso e admirado ao mesmo tempo. ? Como fez isso?
? Ele é um solaris ? Karin quem respondeu, dispensando a curiosidade de Ericko com um olhar de “te conto depois” ? o que eu quero saber é: o que aconteceu?
Kiara tocou meu braço com suavidade, quase pedindo-me que a deixasse descer e mesmo que não quisesse... eu a coloquei no chão. Ela soltou um suspiro pesado e escorregou para o sofá ao lado de Ericko. A garota mexeu o pulso, uma pontada de dor a incomodava, mas imaginei que ela gostaria de esperar para resolver aquilo, ou na verdade, não gostaria de morder ninguém com plateia.
? Minha mãe deixou algo na solaris para que eu fosse lá buscar. Encontrei uma chave escondida, entrei na loja, peguei o que precisava e saí. ? Ela se encolheu um pouco envergonhada ? Fiquei por vários minutos nos arcos, esperando pelos guardas para poder pegar autorização para entrar. Como ninguém foi até lá, eu entrei. Os guardas me pegaram saíndo pela porta dos fundos e como eu tinha duas adagas de minha mãe comigo, eles chegaram à conclusão que eu as havia roubado e não aceitaram minha explicação. Desculpem pela confusão!
? Não precisa se desculpar! ? Karin franziu o cenho, seu nervosismo era aparente, tanto que enrolava os cachos escuros dos cabelos nos dedos ? Aqueles dois passaram em testes na semana anterior, certamente estavam querendo ganhar algum status, mas agiram como idiotas, eles vão ter um corretivo!
? A culpa foi minha, tia! ? Kiara retrucou ? Eu não devia ter entrado sem permissão. Eles não tinham como adivinhar quem sou. ? Ela mordeu os lábios com força.
? Não devia estar os defendendo. ? falei ? não importa que não a reconheceram, eles agiram com crueldade. Sabiam o que o fogo faria com você, eles tinham más intenções e guardas reais, que precisam lidar com visitantes de todos os mundos, não poderiam agir assim.
Ericko concordou comigo com um aceno da cabeça e ela se encolheu contra o sofá, apertando discretamente o pulso dolorido.
? Mas... do que se trata o que você foi buscar na solaris? ? Karin questionou. Não precisei dizer a Kiara que não era uma boa ideia dar esperança sobre Susano e Nikella a eles, a garota imediatamente arrumou uma boa desculpa:
? Ela deixou algumas anotações sobre tempera de metais, eu encontrei a espada de meu pai numa caixa em sua cabana e queria tentar concertá-la, precisava saber como reforjar aço frio. ? Ela comentou, aceitando a xícara de chá morno que lhe foi oferecida.
Ericko franziu o cenho.
? E sua mãe deixou isso na solaris porque sabia que você iria vir até aqui buscar? ? o salamandra tinha prestado atenção em suas palavras. Kiara corou, mas disfarçou encolhendo os ombros e baixando os olhos.
? Me deixa fingir que ela teria se importado! ? sussurrou, puxando um papel com anotações reais sobre ligas de metais.
Teria aplaudido sua performance, se não tivesse ficado mais do que surpreso por sua capacidade de mentir.
Bom.
Ela escondia a anos seus sentimentos. Não devia ter ficado tão surpreso assim. Ericko pelo menos caiu em sua cena e passou um braço ao redor de seus ombros.
? Precisa de algo para reparar essa espada? ? Kiara meneou a cabeça negativamente.
? Vou levar a arma para os dragões reforjarem para mim. ? Ela deu um meio sorriso. ? Eu preciso mesmo ir agora, tio, tia. ? Ela me deu um olhar de esgueira ? mestre, obrigada por me ajudar.
A garota se levantou, colocando a xícara sobre a mesinha.
? Eu te dou autorização para abrir um portal, meu bem. Imagino que não queria atravessar a cidade depois do que aconteceu! ? Karin lhe deu um sorriso cheio de cumplicidade ao ouvir o suspiro aliviado de Kiara, as marcas lilases de mago acenderam-se em seu braço, assim como as da garota.
Meu coração quase parou por um momento.
Mas as marcas douradas que deveriam aparecer em seu pulso não brilharam. Kiara se envolvera em sombras assim que a magia a cobriu, dando-lhe permissão para entrar e sair dentro das barreiras de Karin ao redor da cidade.
Kiara desapareceu em seguida num passo para o corredor de sombras.
Queria ir com ela. Ter a certeza de que estava bem... mas seria suspeito demais.
? Karin... eu gostaria de falar com você sobre Asahi...
? Porque não foi junto com ela? ? Karin me cortou, fuzilando-me com aqueles olhos verdes idênticos aos de Leona. Franzi o cenho.
? O quê?
? Já sei sobre minha irmã, tio. Asahi sempre foi mais aberta com Nyu, ela não me deixou entrar quando fui até lá. ? Karin explicou calmamente, voltando os olhos para Ericko, que tinha voltado a tentar esconder um sorriso. ? O que quero saber é porque não voltou com Kiara.
? Ela veio por outro assunto.
? Se meu irmão tivesse vivo para ver isso, ele certamente o mataria. ? Karin murmurou, escondendo seu próprio sorriso atrás da xícara dourada. A olhei confuso, não tinha como ela ter visto... Kiara escondeu as marcas. Eu escondi suas marcas na noite anterior!
? Não sei do que está falando. ? retruquei mantendo a calma. Ela riu ainda mais e mordeu os lábios.
? Pode ter escondido as marcas, o cheiro, pode até tentar disfarçar na frente dos outros... mas você nunca vai conseguir disfarçar a felicidade radiante no olhar dela, Hasan. ? foi Ericko quem disse aquilo.
? Vou tentar falar com Nyu sobre Asahi. ? Karin bufou ? Vá ver se a menina está bem. Não acho que ela tenha ficado feliz em ter que ir embora sozinha. ? Karin se levantou, abrindo um portal para Vegahn. ? Vamos? ? Ela estendeu o braço para mim.
? Espero que os outros sejam menos espertos que vocês dois. ? resmunguei.
Ela mordeu a boca e negou com a cabeça.
? Vão ser descobertos mais rápido do que imagina!
Lórien atiraria suas habilidades de cupido na minha cara pelo resto de sua vida.
Capítulo 18
Kiara:
? Já consegue mexer o braço melhor? ? Glyph questionou, forçando meu pulso para cima e para baixo, avaliando as pequenas marcas onde minha pele se rompera quando o guarda me puxou.
? Está ótimo, Glyph, obrigada. ? agradeci, descendo da maca. Não esperava que ela estivesse na sala de cura, só queria pegar um chá para cortar o desconforto até poder me alimentar outra vez.
? Vai ficar ótimo só quando você enfiar os dentes em alguém e se alimentar direito. ? Ela comentou, guardando um pote pequeno com emplastro na gaveta perto do balcão de pedra. Eileen que se manteve sentado e silencioso na outra maca fez uma careta para aquelas palavras. Eu movi as sobrancelhas para ele, e sorri ao vê-lo revirar os olhos.
? Sem gracinhas, vocês dois! ? ela rosnou, apontando um dedo para mim ? Não quero ser avó tão cedo!
A careta de Eileen só piorou, o que me fez cair na gargalhada.
? Ela está com o mestre Hasan, mãe! ? Eileen contou, fazendo com que minha risada desaparecesse num engasgo. Glyph me olhou espantada. É claro que ele tinha dito aquilo por não querer imaginar o que a mãe pensava sobre nós, mesmo assim, eu queria bater nele!
? Não quer ir contar isso para Lórien também? Assim ela me expulsa! ? rosnei. Minha confirmação só fez a curandeira arregalar ainda mais os olhos.
? EU não sei de nada! Não me meto, não é minha função, vocês são loucos, vocês que se entendam! ? Ela nos agarrou pelos braços, jogando-nos para fora da sala. ? Não quero ver suas caras aqui essa semana a não ser que tenham perdido alguma parte do corpo! ? Glyph gritou, espantando-nos com sua voz aguda.
Eileen deu de ombros e começou a caminhas pelo corredor, eu o segui.
? Precisava falar aquilo? ? resmunguei.
? Eu fui interrogado por horas sobre você! ? Ele fez outra careta e bufou ? Era isso ou arrumar uma namorada para ela parar de me perseguir por sua causa, dizer que você é só uma amiga não funcionou muito bem.
Seu rosto estava completamente azulado. Queria rir, mas...
? E porque não arruma uma? ? questionei ? Vida nova, novas coisas para viver... Não está pensando em tentar... sabe, minha mãe?
Eileen meneou a cabeça negativamente.
? Já disse que não vou fazer isso. Só quero me desculpar com ela! ? Ele suspirou, passando os dedos entre os fios cinzentos do cabelo, e enfiando as mãos no bolso do moletom em seguida.
? Então?
? Quer mesmo falar sobre isso? ? Ele revirou os olhos.
? Amigos conversam sobre essas coisas, você disse que queria ser meu amigo!
Estava cada vez mais curiosa sobre o motivo de ele simplesmente não ter arrumado uma namorada. Se ele não tentaria conquistar minha mãe outra vez caso a encontrássemos... viva, o que o impedia?
? Não vai falar mesmo? ? questionei ao alcançarmos o topo das escadas para a sala de Lórien.
? Não tenho uma namorada porque não posso. ? Ele franziu o cenho ? Urenai exigiu que eu casasse com a filha dela, para que a garota não ficasse sozinha quando ela morresse e o contrato exige que eu me mantenha longe de qualquer mulher até lá.
Arregalei os olhos.
? A feiticeira... da floresta morta tem uma filha?
? Tem. ? Ele desviou o olhar.
? Como ela é? ? quis saber. Eileen revirou os olhos.
? Não a vi, Urenai cobrou que eu voltasse em dez anos para buscar a garota. Ela sabe a data de sua própria morte... e está fazendo todos os contratos que pode para manter a garota à salvo. ? Eileen suspirou ? Pelo visto, casar uma feiticeira em treinamento com um venox locam é o jeito mais fácil de mantê-la segura de outros caçadores.
O olhei sem saber o que dizer.
? Valeu... o custo valeu a pena? ? quis saber.
? É claro que sim! ? Ele respondeu imediatamente, sem querer deixar qualquer espaço para dúvidas. ? Você vale qualquer preço, Kiara. ? meu rosto queimou e eu o abracei.
? Vou torcer para que ela não seja feia! ? Eileen riu.
? Eu também!
A sala de Lórien estava deserta quando entramos para guardar o fragmento recuperado, o coloquei com os outros na bacia de pedra e então voltamos para a sala.
Faltava um. Mais um fragmento... e eu teria o mapa completo.
? O que é isso? ? Eileen puxou o papel de meu bolso, na parte da frente tinham várias anotações curtas sobre metais, atrás, a dica do último fragmento.
“O grão bruxo de luz e sombras deve enfrentar para esse último desafio conquistar. Ouça o seu coração, prove seu valor, ou tudo será em vão. Não se esqueça do que vem em primeiro lugar e antes do dever, amigos são a família que te permitiram escolher.”
Ele recitou e franziu o cenho.
? Não entendi. ? comentou, revirando o papel.
? Mas eu sim ? estendi as mãos trêmulas para o bilhete, não sabia ao certo o motivo, mas aquele bilhete foi o que me fez ficar mais apreensiva. Era óbvio que o último fragmento estava no Vale da Lua e o pior, com Ceiran.
Deuses! Tudo tem que envolver fogo? Sério?
Eileen ergueu as sobrancelhas, ainda esperando que eu lhe explicasse, porém antes que pudesse dizer sobre a morada dos bruxos, um portal se abriu e Fares passou por ele de olhos arregalados e respirando forte.
? Kiara!? ? Ele não esperava me encontrar ali.
? O que houve? ? tive medo de fazer a pergunta.
? Aconteceu algo no Vale! ? Ele agarrou meus braços com força, seus dedos tremiam. ? O bruxo... o pai de Hestia. Alguma coisa aconteceu com ele! Ele ficou como se estivesse possuído e está chamando por você!
? Se acharmos a mamãe, tenha certeza de que eu vou pegar ela pelos braços e vou sacudir até colocar o cérebro dela para funcionar normalmente! ? minha voz tremeu, peguei os pingentes de minhas espadas e os apertei nas mãos.
? Você vai até lá? ? Eileen franziu o cenho.
? É claro que sim! Preciso saber o que está acontecendo e prefiro ir até lá do que ele venha até aqui! ? rebati, aproveitando-me do portal aberto de meu irmão.
Fares agarrou meu braço.
? Kiara... eu não sei se é ima boa ideia! ? Ele estremeceu.
? Ceiran tem o último fragmento. ? o alertei, Fares ergueu as sobrancelhas.
? Então é por isso que as marcas do selo sombrio apareceram nele? Tem a ver com alguma magia de mamãe?
Soltei um gemido sofrido e apertei os olhos.
Eu ia mesmo dar uma surra nela!
? Eileen, pode avisar a Lórien que temos um problema com os bruxos? ? pedi, ele parecia inclinado a discutir, com o cenho franzido e os lábios apertados ? Ela vai voltar logo, a reunião deve estar acontecendo na sala dos professores!
? Kiara...
? Vamos! ? agarrei o braço de Fares, puxando-o comigo de volta pelo portal. deixando Eileen para trás, não esperaria para ele entender que eu só queria mantê-lo longe de um bruxo Sorcys com habilidades de fogo. O portal se fechou atrás de nós com os gritos irritados do malvarmo nos alcançando instantes antes de pularmos para dentro do vale quase em frente ao grande salão.
Não sabia se o dia tinha virado noite ali antes de Fares ir atrás de mim, mas pelo olhar assustado de meu irmão, chutei um não.
Os bruxos do lugar estavam todos correndo para dentro de suas casas, procurando abrigo do que parecia ser uma tempestade que se aproximava, porém as nuvens que envolviam o lugar eram sombras. O vento uivava, sacudindo as árvores que levavam à área de treinos. Aquelas tormentas que subiam em estrondos formando um caminho de raios até o céu, vinham de lá.
Hestia, Gwyndion e Halles vieram correndo até nós, protegendo os olhos da poeira jogada pelo vento.
? O que está acontecendo? ? questionei.
? Não sei dizer... Ceiran estava em sua sala com Ellyn, então algo aconteceu lá. Senti um poder igual ao de sua mãe. ? Halles rosnou. Gwyndion vestia aquela expressão brutal no rosto, apertando sua espada no punho.
? Então Ellyn também está lá? ? meus braços tremeram ? aquilo explicava os raios.
? Kiara, sabe o que está acontecendo? ? Hestia estreitou os olhos e todos nos encolhemos ao ouvir trovões rasgando o céu mais uma vez.
? Seu pai tem o último fragmento. Acho que... minha mãe deixou algum tipo de feitiço para ser ativado quando chegasse a vez de pegá-lo. ? me encolhi, os bruxos me olharam incrédulos ? Ei, ei! Façam essas caras feias quando encontrarem ela! Eu não tenho nada a ver com isso! ? choraminguei.
“KIARA!”
O grito ecoou entre as árvores, vindo até nós trazido por aquele vento sobrenatural, mas a voz que chegou era como de centenas de vozes gritando ao mesmo tempo.
? Preciso ir até eles. ? sussurrei, apertando os pingentes das espadas.
“Ouça o seu coração, ou tudo será em vão”
? Eles estão armados! ? Gwyndion alertou. ? Ceiran... está em sua forma real, assim como Ellyn.
? Eu posso te ajudar... ? Fares começou, mas eu não podia pedir que me ajudasse com aquilo. Mãe das águas! Eu não sabia o que fazer! Não podia enfrentá-los!
? Fares eu acho... ? Ele me encarava com uma súplica no olhar, eu não podia dizer não a ele! Mas não podia arriscá-lo sem um treinamento também!
Quando ia negar seu pedido, Hestia desmaiou. E foi rapidamente aparada por ele.
? Leve-a até a sala de cura! ? Halles rosnou a ordem para meu irmão. Fares não negaria aquilo, é claro que não! Ele pegou a bruxa no colo e saiu dali.
“Me devendo, de novo!” A voz de Hestia teria me feito rir, se eu não estivesse apavorada com o que estava por vir.
? Vamos, vou com você! ? Halles tocou meu ombro, mas estremeceu ao ouvir os trovões outra vez. Ellyn já o havia matado com sua magia uma vez.
? Eu preciso lidar com isso sozinha!
? Então faça algo rápido, mulher! Meu dia estava ótimo! ? Gwyndion rosnou, nos dando as costas e seguindo de volta para o salão. Agarrei o braço de Halles rápido o suficiente para evitar que ele batesse no bruxo.
? Acho que eu seria mais útil agora, não é? ? Lohan sussurrou, aproximando-se de nós através de uma fenda. Meus joelhos quase falharam.
? Não sabe como estou feliz em ouvir sua voz! ? soltei Halles e abracei o tenebris com força, ele riu.
? Imagino que sim! ? gargalhou ? É melhor ir pra dentro, tio, você não vai querer estar perto daquilo! ? Lohan provocou Halles, mostrando os raios que de vez em quando iluminavam o céu. Um medo ia e vinha a cada som, mas eu não temia tempestades... então.
? Caelle. ? murmurei ? Ela tem medo de tempestades. ? Halles mesmo a contra gosto, entendeu o que eu queria dizer, ele sabia que eu devia estar sentindo o medo dela.
? Tome cuidado. ? avisou antes de mudar para a forma de um lobo branco e correr por entre as casas e desaparecer de vista.
? Vamos? ? Lohan segurou meu braço.
? Preciso de um favor primeiro. ? Apertei seu pulso, meu coração disparou e o tenebris riu.
? Não mordeu seu solaris de estimação hoje? ? questionou.
? Tive um problema com uns salamandras esquentadinhos mais cedo. ? resmunguei, encolhendo-me quando os clarões ficaram mais intensos e a voz tornou a gritar. Lohan rapidamente cortou o pulso e o estendeu para mim.
Ao me alimentar, o desconforto que ainda sentia em meu braço desapareceu.
Ele me avaliou por um momento, e ao me ver assentir, seguiu comigo pelo caminho até a arena. Conforme nos aproximávamos, o vento ficava mais forte e os clarões eram vistos com mais frequência, mas foi só passar pela curva e ver a arena que meu coração parou uma batida.
Ceiran tremia parado no meio da arena com sua espada apertada no punho e fiapos de escuridão o circulavam, os cabelos pálidos cinzentos voavam ao seu redor e espinhos projetados assim como as longas garras negras brilhavam com veneno. No lugar das tatuagens com palavras em cyfhan que cobriam seus braços, marcas do selo sombrio se espalhavam por seu corpo. O sorcys rosnou ao me ver e percorreu um dedo sobre sua espada, encarando-me com os olhos vermelhos desfocados.
? Você quer algo que temos. ? Ele tombou a cabeça para o lado e bateu com uma unha sobre o cilindro de vitrino preso em seu pescoço por uma corrente de aço. ? Venha buscar.
? E a... ? Lohan não teve tempo de perguntar da bruxa que conjurava os raios pois Ellyn veio do alto, mergulhando sobre nós com suas imensas asas negras abertas. A bruxa atacou, fazendo-nos pular para lados opostos, enterrando os espinhos no chão.
? Que diabos! ? Lohan gritou, espalhando sombras ao redor dela, porém a bruxa apenas riu e partiu para cima dele com as garras ainda mais longas.
? Bruxa das sombras ? ralhei, transformando os pingentes das espadas em armas ao ver um movimento pela visão periférica. Bloqueei um ataque de Ceiran um milésimo de segundo antes que me atingisse com a lâmina negra de pedra da lua ? Não a machuque!
Alertei a Lohan, que tinha sacado aquela lança de sombras que só os havia visto usando uma única vez.
Não podia prestar atenção neles. Ceiran veio para cima com tudo!
Em dois ataques com a espada, o bruxo já havia conseguido abrir um corte de raspão em meu ombro. Ele avançava com asespada, não parecia ser o mesmo bruxo que costumava me treinar e aquilo me enfureceu! Mesmo nos treinos que pareciam mais pesados... Eles ainda me davam chances!
Ceiran brandiu a espada em direção ao meu pescoço, mas bloqueei o ataque com lâmina e pulso metálico, evitando seu segundo ataque com o punho cheio de espinhos em direção ao meu peito.
Ele deu um puxão na espada e girou rápido, dando-me uma rasteira. Saltei para fora de seu alcance, mas ele avançou rápido e por pouco parei outro ataque de sua espada, mas perdi uma de minhas lâminas que fora jogada do outro lado da arena, onde Lohan ainda esquivava dos ataques de Ellyn, transformando-se em sombras ou voando ao redor dela.
Ceiran rosnou, chamando minha atenção de volta para si. Ele apertou sua lâmina com as duas mãos, forçando-a contra meu peito. O sorriso em seu rosto não pertencia ao bruxo que em parte me criara também.
? Ataque-me, garota! ? Ele grunhiu contra meu rosto. Tentei estender a mão e pegar o cilindro, mas uma espécie de barreira espiritual me impediu de tocar o objeto.
? Ah! Que maravilha! ? gritei, explodindo gelo ao meu redor para que ele se afastasse. Minha explosão fez a escuridão ao seu redor ficar mais intensa e o bruxo mais irritado.
? Kiara! ? Lohan tinha conseguido agarrar Ellyn, os trovões morreram aos poucos até a bruxa tombar nos braços dele, pois o tenebris absorvera sua magia, deixando-a inconsciente.
? Tire-a daqui! ? gritei. Ceiran olhou na direção do tenebris e ao ver Ellyn, o bruxo teve um espasmo e rosnou como uma fera enlouquecida, porém não avançou no tenebris pois Lohan mergulhara na fenda no instante seguinte.
Ceiran voltou a atenção para mim, e parecia dez vezes mais raivoso que antes...
Porque parte de sua vida fora silenciada, mesmo que temporariamente.
“Não se esqueça do que vem em primeiro lugar e antes do dever”
Família.
Seria irônico se não estivesse naquela situação, pois o bruxo agora não media mais forças para atacar. Sua lâmina desceu impiedosamente, cada ataque me fazia tremer e o choque dos metais vibrava meus ossos, fazendo-me recuar cada vez mais.
? Ceiran! Me escute! ? gritei entre as investidas de espada, garras e espinhos, o bruxo não dava mais nenhuma brecha. Ele não esperava mais que eu atacasse, ele queria apenas me tirar do caminho e ir até Ellyn.
Algo o controlava e ficava mais forte cada vez que eu tentava ataca-lo...
Mas por Ellyn ele despertara, pelo menos um pouco.
E em sua visão deturpada pelas sombras de minha mãe, eu era um obstáculo entre ele e a bruxa.
? Ceiran! ? chamei outra vez, ignorando o sangue que fazia minha espada escorregar dos dedos trêmulos enquanto segurava sua espada com os dedos metálicos. Ele soltou a espada, mas para meu pânico, não recuou. Ele avançou com as garras em direção ao meu pescoço.
Tinha treinado o suficiente com eles para saber que sem um curandeiro muito, muito perto, o veneno de suas garras em minha garganta seria letal.
Joguei sua espada para longe e soltei a minha também, prendendo seus pulsos com as mãos, então o empurrei para trás e mergulhei numa fenda curta entre nós, indo parar atrás dele. O bruxo recuperou sua espada e sem pensar avançou para mim novamente, empunhando a espada com as duas mãos.
Baixei os braços e deixei que viesse.
O bruxo não baixou a espada. Ele iria até o fim.
Num piscar de olhos ele estava em minha frente, enterrando a espada em minha barriga, e eu apenas o envolvi com os braços, apertando-o contra mim.
? Eu abriria mão dessa busca, encontraria outro jeito de vencer o demônio se para conseguir uma arma mais fácil, precisasse ferir vocês. ? choraminguei.
Sua lâmina atravessou meu corpo.
Mas não fisicamente.
Pois eu abri uma pequena fenda diante de dele e sua espada saiu em outro portal atrás de mim.
Ceiran estremeceu e soltou o punho da espada, que caiu atrás de nós com um baque no chão arenoso. As sombras ao seu redor desapareceram assim como as marcas do selo sombrio.
? Kiara... deuses! Eu sinto muito! ? Ceiran me abraçou de volta, apertando-me com tanta força que o corte quase fechado em meu ombro voltou a sangrar. ? Eu não queria fazer isso, algo estava no controle! Podia ver você... só não conseguia... Ellyn!
? Ela está bem, Lohan só drenou sua magia ? murmurei ainda esmagada contra seu peito. Ceiran suspirou profundamente e relaxou. O bruxo beijou o topo de minha cabeça e não me soltou até que seu coração tivesse se acalmado.
? O que aconteceu? ? Ele se afastou um pouco, tirando o cilindro de vitrino do colar. Ceiran fez uma careta para o objeto ? Ele começou a brilhar dentro da gaveta, quando o peguei...
? Selo de possessão. ? comentei pegando o cilindro de suas mãos ? minha mãe deixou uma... dose de sua magia negra aí, ela o possuiu.
Ceiran fez uma careta ainda pior.
? Vou ter uma conversa séria com ela se você a achar viva. ? pisquei espantada. ? Hestia e Fares me contaram sobre a busca. ? O bruxo estremeceu outra vez, ele apertou meus braços. Por um instante achei que a possessão tinha voltado. Mas não era.
? Eles te contaram do noivado deles também? ? tentei não rir da cara de pânico dele.
? Se fosse só isso... ? Ceiran sacudiu a cabeça. ? Vamos lá pra dentro, precisamos arrumar isso, e pegar a carta que estava junto com ele na gaveta. ? Ele deu um tapinha em meu ombro ferido.
? Hoje o dia definitivamente não começou bem para mim! ? soltei num suspiro cansado.
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Sentada dentro da sala do grão bruxo, não tinha como me sentir mais sufocada.
Ceiran em sua poltrona olhava feio para Fares. Meu irmão, sentado na cadeira ao meu lado, me lançava olhares irritados por tê-lo dispensado da luta. Lohan atrás de mim sorria abertamente para meu irmão, provocando-o. E por fim, Eghan, de meu outro lado dava um sumiço na marca do corte da espada de pedra da lua, que impedira uma rápida cicatrização de meu ombro, mesmo eu tendo me alimentado logo antes da luta.
A sala era grande, mas eles ocupavam quase todo o espaço com aquele clima pesado!
Ceiran revirou a gaveta da mesa até encontrar o que queria, colocou a pequena carta sobre o tampo e a escorregou em minha direção.
? Se houver mais algum objeto enfeitiçado aqui, por favor, me avise de uma vez! ? o bruxo soltou, lançando um olhar tenso ao cilindro em meu colo.
? Se minha mãe não deixou mais nada aqui, não creio que tenha. ? Fares rebateu. Arregalei os olhos para ele, pressionando os lábios numa linha fina enquanto Lohan ria nada discretamente.
“Irmãozinho se você tivesse visto a surra que eu estava tomando, não abriria a boca assim!”
Certamente Lohan e Eghan escutaram aqueles pensamentos, pois ambos se esforçaram mais para não rir.
? De novo, Kiara, sinto muito. ? Ceiran apertou minha mão com gentileza por cima da mesa.
? Não o culpo por aquilo, não se preocupe! ? sorri um pouco, levantando-me para ir até a ACV levar o último fragmento. Lohan já estava com o braço ao redor de mim para dar um passo.
Agora que tinha o último pedaço do mapa em mãos, assim como mais aquela carta, meu coração batia freneticamente.
Um passo... estávamos um passo mais perto de nosso objetivo.
Fares agarrou meu braço pronto para voltar conosco.
? E Hestia? ? perguntei. Meu irmão me encarou com fogo nos olhos.
? Ela está ótima. ? a afirmação fez Ceiran se levantar e Eghan pular para o lado do pai e segurá-lo.
? Deuses, o que está acontecendo afinal? ? Lohan que não gostava nada de pôr lenha na fogueira, perguntou.
? Não é assunto para uma hora dessas! ? Eghan rebateu, mas notei que os nós dos dedos do bruxo estavam brancos ao apertarem os braços do pai, e que os olhos de Ceiran tinham passado do mel para o vermelho outra vez.
? Bom... nos vemos depois! ? falei, cutucando Lohan para que abrisse a fenda. Ele o fez demasiadamente lento, esperando talvez por mais alguma provocação que fizesse alguém confessar o que estava acontecendo.
A fenda nos deixou dentro da sala de Lórien.
Onde Hasan, Lórien e Eileen nos olharam surpresos.
? Você está bem? ? Hasan questionou, pela pose em que estava de pé, ele iria sair a qualquer momento. ? Senti você. ? disse com o cenho franzido.
? E não foi até lá! ? Eileen ralhou baixo, esfregando atrás das orelhas felpudas de Ira, que dormia indiferente ao barulho.
? Eu acabei de chegar. ? Hasan rebateu, sustentando o olhar irritado do malvarmo, então se voltou para mim ? Desculpe Eish-amir, fui com Karin ver Nyumun. Você estava muito longe... não senti com clareza.
? Não foi nada demais. Só tomei uma baita surra do grão bruxo sorcys possuído por magia negra para conseguir isso. ? o tom de deboche em minha voz foi ofuscado pelo último fragmento em minhas mãos.
Lórien arregalou os olhos e meneou a cabeça espantada. Eileen fez uma careta, notando minha camiseta cinza molhada de sangue azulado. Hasan também parecia ver o mesmo, então puxei um pouco o tecido para mostrar a pele curada.
? Afinal, porque Ceiran parecia querer morder você? ? Lohan quebrou o clima, encarando Fares por cima de meu ombro. Meu irmão encolheu os ombros e começou a mexer em sua trança, tentando disfarçar o tom vermelho brilhante que encheu suas bochechas de cor.
? Hestia é a caçula dele. Acho que pai nenhum costuma gostar de homens que se comprometem com suas filhas. É um clichê da vida.
Não pude deixar de reparar o olhar trocado por Eileen e Hasan.
? Bom... não sei vocês, mas eu quero ver isso! ? peguei primeiro a carta que meus pais haviam deixado com o fragmento e a abri, cheia de expectativas.
Porém franzi o cenho ao ver só uma frase no meio do papel.
“Se conseguiu chegar até aqui, não se deixe corromper por ele. Não o use além do que precisam.”
? Estou com um pressentimento péssimo sobre isso. ? Lohan murmurou, passando os olhos na frase outra vez.
? Bom... dá pra piorar? ? questionei, aproximando-me da estante para abrir a passagem.
? Dá. ? Hasan, Lohan e Eileen responderam em uníssono, fazendo-me revirar os olhos. Desci as escadas em seguida com Hasan vindo atrás de mim, mas os outros permaneceram lá em cima.
Bom... eu precisava de um pouco de espaço.
Pois não sabia se queria gritar, chorar ou começar a rir.
Abri a porta e caminhei até a bacia de pedra, mas não a toquei. Não peguei os outros fragmentos. Apenas fiquei ali observando as sombras dançando dentro da pedra.
? Kiara... ? Hasan tinha parado atrás de mim, a dois passos de distância. Sua expressão não era exatamente de preocupação, ele parecia temer algo. ? sobre Ciartes, eu sinto muito se... assustei você.
Eu esperava que ele falasse de minha imprudência.
Chamasse minha atenção por ter confiado que os guardas me reconheceriam.
Por eu não ter usado magia para escapar antes que me ferissem.
Mas nunca ? nunca ? esperaria que ele pensasse que eu pudesse ter me assustado com o que ele fez.
? Você apagou o sol com a mesma facilidade de alguém que sopra uma vela. ? comentei, deixando o frasco junto com os outros na pedra e me aproximei dele. ? E quando você apareceu atrás de mim... ? levei as mãos ao seu peito e as subi até seu pescoço, traçando linhas com as pontas dos dedos. ? pensei em muitas coisas. Em como você parecia ainda mais com a estrela que eu almejava poder tocar, imaginei que as pessoas ao redor precisariam ir pra casa limpar as calças... ? Hasan apertou os lábios, o brilho dourado de seus olhos tinha passado de temeroso a divertido ? Talvez eu tenha pensado que não me importaria de te agarrar na frente de todo mundo também.
Ele suspirou e passou os braços ao meu redor.
? Achei que depois do que ele fez...
? Eu continuo não tendo medo de fogo. Sou uma mariposa sem noção do perigo. ? Hasan segurou meu queixo e tocou os lábios de leve em minha testa.
? Eu me tornaria o vilão, Kiara, se eles tirassem você de mim.
Engoli em seco.
? E eu voltaria por você, mil vidas se precisasse, mas eu voltaria para te encontrar e te tirar de qualquer mal que tomasse seu coração de mim. ? Hasan me abraçou mais apertado.
? Espero não precisar te esperar assim nunca.
Bufei uma risada.
? Vem, vamos ver onde o mapa vai nos levar! ? me virei estendendo a mão para dentro da bacia e meu coração pulou ao sentir que os cilindros não estavam mais lá. Tateei o fundo assustada até encontrar algo, um cilindro maior e mais longo. Ao puxá-lo, percebi que as partes tinham se juntado e estavam dentro de um único frasco.
? Vamos, abra! ? Hasan incentivou. Puxei a tampa de rolha e deixei que o papel escorregar para meus dedos trêmulos.
Ao abrir o mapa sobre a mesa de pedra ao lado da bacia, franzi o cenho olhando desconfiada a imagem de um círculo parcialmente destruído, cujo interior se movia, como se a tinta se espalhasse pelo papel infinitamente, rolando pela superfície.
? Não é um mapa. ? Hasan murmurou ? É uma passagem de portal fixa.
? E isso vai me levar até...? ? observei as palavras no topo do mapa e meu interior se revirou. Hasan soltou um palavrão atrás de mim,
? Adraph. ? Ele murmurou ? Nikella e Susano realmente conseguiram o livro original. A arma que eles conseguiram... era o outro livro!
Meu coração disparou.
O livro que tentei encontrar e a arma que eles guardaram para nós eram a mesma coisa.
Capítulo 19
Corremos de volta à sala de Lórien.
Eu não conseguia acreditar no que eles haviam deixado para usarmos. O livro que Aristes cansou de nos falar o quão perigoso era, mas que eu buscava e esperava encontrar com o demônio para devolver a Ederon...
Eles o tinham também!
? Não consigo acreditar nisso. ? sussurrei, colocando o mapa com o portal sobre a mesa e desabando na cadeira em frente à mesa com o tampo de vidro. Lórien soltou um gritinho e se afastou do objeto como se estivesse diante do próprio livro.
? O livro que foi roubado de Ederon era a cópia da árvore do fogo. Eles conseguiram o original, sabe-se deuses como! Mas isso também explica o porquê de todos aqueles desafios para provar ter o coração no lugar certo. ? Hasan comentou, ele também se mantinha afastado do mapa. ? Precisavam saber que quem fosse empunhar o livro, tivesse uma boa dose de bondade.
? Está levando em consideração quais testes? ? minha voz soou tremida, não tinha certeza se queria pegar aquele livro, não depois de me sentir tão à vontade matando o general gigante. Hasan afagou gentilmente minhas costas.
Eileen e Fares inclinaram-se sobre a mesa, observando a tinta girando no papel. O glácio no colo de meu pai bufou irritado por ser movido.
? Onde esse mapa vai nos levar? ? Fares me olhou de esgueira, testando se eu o deixaria fora de ação novamente.
? A Saldazaris, se não me engano. ? Hasan comentou, traçando as bordas do círculo com os dedos. ? O mundo de Silvya foi parcialmente destruído na guerra dos Doze. Imagino que vá levar as ruínas do Sino dos Ventos.
? E vocês estão pensando em ir até lá? ? Eileen nos encarou. Fares e eu assentimos. ? Gostariam que eu os....
? Eileen! ? Glyph entrou na sala aos berros, dando uma olhada rápida em cumprimento a nós, em seguida voltou seu olhar raivoso ao malvarmo, que tinha perdido completamente a cor, se é que aquilo era possível. ? Você não ia levar as mantas de vovó à Madras? O que ainda está fazendo aqui?
O rosto de Eileen se encheu de cor.
? Mas mãe...
? Sem mais! Deuses! Você ainda não é velho o suficiente para mandar no seu nariz! ? Eu queria rir, mas minha pena foi maior do que a graça. Eileen estava completamente sem jeito, o que piorou ao notar Hasan e Fares sorrindo maldosamente para ele.
O malvarmo apontou um dedo na direção dos dois, enrolando o glácio em seu pescoço, nem isso evitou que ele ganhasse um puxão de orelha de Glyph. A malvarmo fez uma breve reverência antes de sair atrás dele, ainda gritando com Eileen.
? Você quer... ir agora? ? Fares questionou depois de alguns minutos de um silêncio tenso.
? Precisamos ir. ? sussurrei ? antes que eu perca a vontade de usar isso.
? E por falar nisso, quais são os planos? ? Lórien quis saber.
? Eu faço tudo no improviso, Lórien. ? revirei os olhos. Não queria admitir que não tinha pensado em nada quando chegássemos a isso.
? O livro é perigoso. É bem provável que Susano e Nikella o tenham usado para fazer as barreiras da ACV ? Hasan comentou, olhando-nos com o cenho franzido ? Se o demônio... ? Ele olhou para Fares e pigarreou ? ou quem o controla realmente tem a cópia do livro e a está usando, acham que podem usar o original para neutralizá-lo?
? Só podemos saber isso testando. ? Fares rebateu.
? Precisamos saber primeiro se podemos ler o livro. Não adianta pegá-lo e não conhecer o idioma. ? me meti antes que os dois começassem a discutir, pelos olhares irritados que trocavam.
? Graças a ele ? Fares apontou Hasan com o queixo, fazendo o solaris se irritar ainda mais ? Eu tenho certeza de que poderei o ler.
? Mas é melhor ter a certeza que a magia de um pode anular o outro. ? Lórien emendou.
? Aristes pode saber sobre isso. ? Hasan soltou um suspiro cansado. ? Vou até Amantia falar com ele, aproveito e falo com Nyu e Karin, ver se elas conseguiram algo com Asahi.
? E o machado? ? O solaris desviou o olhar.
? O deixei aqui dentro ? Hasan admitiu ? Achei melhor o deixar num lugar protegido contra o poder do livro, do que arriscar chamar atenção do demônio para algum lugar onde pudesse ferir as pessoas.
? Até que foi bem inteligente! ? Fares sorriu, mas a malícia em suas palavras não passou despercebida por ninguém.
Ali estava meu irmão ciumento que detestava quando Lohan ia brincar comigo.
? Você é muito parecido com sua mãe. ? Hasan resmungou, levantando-se para sair. Fares apenas o ignorou com um meio sorriso estampado no rosto ? Vou ver o que consigo com Aristes, precisamos estar preparados para nos tornarmos os caçadores dessa vez.
? Volte logo! ? pedi. Hasan sorriu e se aproximou inclinando-se sobre mim, meu coração disparou. Ele enrolou os dedos em meus cabelos e me beijou, deslizando a língua para dentro de minha boca, apertando os lábios contra os meus.
? Tomem cuidado. ? sussurrou ao se afastar, o calor deixado por sua boca foi morrendo aos poucos, os simplesmente escorreu para meu rosto, aquecendo minhas bochechas ao ver o imenso sorriso no rosto vermelho de Lórien e a careta de horror no rosto de meu irmão.
Hasan já havia desaparecido num portal quando o choque saiu de meu corpo e permitiu que eu me movesse outra vez.
? Então, vamos até lá? ? Fares se levantou, estendendo a mão para o mapa.
? Vamos. ? Lórien se afastou da mesa, para que pudéssemos tocar o portal sem que ela estivesse próxima o suficiente para talvez ser arrastada também.
Ao tocarmos o papel ao mesmo tempo, uma garganta se abriu, um poço de escuridão quase interminável com um ponto de luz no fim. Trocamos um olhar e no instante seguinte, pulamos para dentro do portal sem pensar duas vezes.
Hasan:
Sob a sombra da cerejeira no pátio do Castelo de Cristal, Aristes tomava seu chá com a maior tranquilidade do mundo enquanto me falava da devastidão que o livro poderia causar em mãos erradas.
O observei em silêncio por um longo tempo, tentando me lembrar sobre o que meus pais costumavam dizer do mago branco de Amantia, que estava lá desde antes do reinado de Haalin, e a maioria das contas não costumava bater.
Um metamorfo velho... porém o único ser em milênios cuja magia se manteve incorruptível, mesmo quando os males bateram sua porta um atrás do outro. Ninguém conseguia manter aquele tipo de magia tão pura sem cair em algum momento.
? Acha que eles conseguirão usar o livro caso o peguem? ? Aristes questionou ? Fares ou Kiara... eles são bons, mas conseguiriam não serem tocados pela malícia das páginas?
? Confio nela.
? Todos podem cair, Hasan, mesmo que tenham muito apoio e confiança. ? Aristes soltou um risinho ? Susano e Nikella são provas disso.
? Eles se fecharam, não pediram ajuda. ? rebati ? Kiara não recusa uma mão estendida, não esconde seus planos para proteger os outros. Ela se abre e aceita ajuda.
? Você acha que isso a faz imune ao poder do livro? ? Os olhos amarelos de Aristes voltaram para os meus.
Não hesitei em minha resposta:
? Sim. ? disse firmemente ? Pois por mais que se perca na escuridão dele, mesmo no fundo de um poço de sombras, ela estenderá a mão para que possamos puxá-la. Kiara não teria medo do mal sair junto com ela, ela o usaria como um degrau para sair mais rápido de lá.
O mago deu um sorriso grande, esperançoso.
Porém o sorriso fez um arrepio subir por minha coluna.
? Ela tem o perfeito equilíbrio que todos almejam conquistar. ? Suas palavras não faziam sentido.
Queria perguntar o motivo daquelas palavras.
Mas fui impedido de falar quando o dia se tornou noite e um pulso de magia estremeceu o mundo.
E dessa vez eu não tinha nada a ver com os sóis que deixaram de brilhar. O mago soltou um chiado e desapareceu numa coluna de luz branca, deixando-me ali sem entender o que estava acontecendo.
Não houve nenhum som. Por um longo momento a escuridão apenas deixou um silêncio tenso, como se todos aguardassem o que viria a seguir.
E não demorou para que a explicação viesse.
Dois rastros de luz cortaram o céu em direção ao chão, seguido de outra onda de magia, mas a luz não retornou. Não houve sol para iluminar o entardecer. Foi ali que eu entendi o que havia acontecido e meu coração disparou.
Karin e Nyumun saíram correndo do castelo para o jardim dos fundos, elas abriram as asas ao me verem fazê-lo. Voamos em direção a queda d’água que descia em direção a floresta próxima ao castelo, desaguando no meio da clareira onde Leona enterrara Amaterasu.
? O que aconteceu lá? ? questionei, desviando de algumas árvores, tentando enxergar além das folhagens verdes que protegiam o bolsão.
? Asahi não quis abrir... alguns minutos depois ela voou pra fora da sacada e aconteceu isso. ? Nyumun fechou as asas, pulando para o chão coberto de folhas secas. Karin e eu pousamos em seguida, procurando por vestígios dos traços de luz.
? Tio... isso... foi o que eu acho que foi? ? Karin tremia, seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ela apertava o cetro que sua mãe lhe dera nas mãos.
Não ouvíamos mais nada além do som da cachoeira caindo por sobre as pedras do bolsão.
? Acho que sim. ? sussurrei, lançando uma teia dourada de magia através das copas das árvores até que cada canto da floresta estivesse visível.
Então os vi.
? Mãe das águas! ? Nyumun disparou para a beirada do lago, correndo até onde os dois estavam.
? Isso... o que... ? estava em choque, não sabia o que tinha acontecido, mas tinha a certeza que ninguém assumira o lugar deles para que fossem substituídos dos céus.
Antes de correr até eles e tentar entender aquilo, juntei as palmas das mãos e criei uma esfera de magia quente e pulsante ali, que começou a crescer conforme eu forçava mais e mais de meu poder para dentro dela.
Demorei alguns instantes para perceber Karin ao meu lado fazendo o mesmo, mas com uma esfera de luz pálida e fria. As deixamos subir aos céus ao mesmo tempo, alimentando-as com magia até que ambas se expandiram e brilharam intensamente, tornando-se sóis.
O entardecer voltou, e os sons distantes foram retornando aos poucos também, como se todos tivessem silenciado esperando que algo acontecesse, mas voltaram a ilusão da normalidade assim que a luz brilhou novamente.
Karin desabou de joelhos, mas a ergui, amparando-a.
Não tinha me esgotado, embora não estivesse longe daquilo.
Então seguimos para onde Nyumun ajudava Ewren e Leona a ficarem de pé.
? Como senti a falta de vocês! ? Nyu os abraçava e chorava. Leona chorava também, quase com a mesma aparência que a vi naquela última vez na reunião no castelo de gelo, os cabelos castanhos enrolados um pouco acima dos ombros e os olhos verdes brilhando com as lágrimas, porém ambos pareciam mais... magros.
Ewren foi apertado por Karin, mas a expressão aturdida do elfo foi sendo substituída por uma fúria quase palpável. Ele tentou se erguer, mas não tinha forças. Aproximei-me, estendendo a mão para ele.
Não conseguia entender...
? Onde está Asahi? ? foram as primeiras palavras de Ewren.
? Ela... voou, não sabemos para onde. ? Karin murmurou, avaliando com cuidado o pai.
? E Kuran? ? foi Leona quem perguntou sobre ele. E por um instante, meu interior silenciou.
E as memórias que antes não estavam ali para revê-las, retornaram.
Kuran...
Asahi era casada com Kuran. Eles eram os soberanos de Amantia. Kuran, o príncipe salamandra, irmão de Ericko, irmão de Annie a falecida esposa de Susano.
Minha cabeça doía. E não parecia ser apenas comigo. O nome despertara algo em Karin e Nyumun também. As garotas se encolhiam com as mãos na cabeça.
O salamandra.
Asahi tivera uma filha dele.
E a última vez que o vimos foi um ano antes do castelo de gelo ser atacado.
? Deuses! ? arfei, procurando por qualquer sinal de Asahi no céu, mesmo sabendo que ela não estaria ali. ? Precisamos ir até o castelo.
Avisei, abrindo rapidamente um portal até o pátio do castelo, ajudando Karin e Nyu com os dois. Eles mal conseguiam ficar de pé.
Algo pior do que imaginávamos acontecia ali.
O portal se abriu quase sob a árvore de flores rosadas, as gêmeas ajudaram os pais a sentarem-se na mesa onde estive minutos antes com o mago branco.
? Karin, avise à Nicole para chamar Farah e Eirien, se não me engano, eles estão em Lastar com minha mãe. ? Ela assentiu e correu para dentro pela porta do escritório e desapareceu em seguida.
? Vocês eram os sóis guardiões! Os dois não poderiam sair de lá ao mesmo tempo... e depois de anos sem aparecer resolvem voltar? O que houve afinal? ? Indaguei.
Ewren franziu o cenho e meneou a cabeça negativamente.
? Não estávamos sob o mesmo juramento de seus pais. Nós fizemos o juramento de guardiões a Ayrana, mas não o de proteção ao círculo. Ela não nos deu o mesmo poder que Sirius e Áries, não estávamos no centro do círculo, e sim presos em Mogyin, pois sua última ordem antes de morrer foi que permanecêssemos lá até que ela nos dissesse para sair ? Ewren explicou.
Ele recostou-se em sua cadeira e alcançou os dedos trêmulos de Nyu que se agarrava a Leona.
Meu choque deve ter ficado evidente naquele momento. Eles continuaram presos por uma ordem de um juramento.
? E... porque não saíram de lá? Porque não voltaram? ? Nyu tirou a pergunta de minha boca. No momento em que Ayrana morreu, o juramento deles fora anulado.
? Não descobrimos isso da noite para o dia ? Ewren explicou com um suspiro cansado. ? Nas primeiras vezes que tentamos deixar Mogyin, éramos puxados de volta. Soubemos que a ordem perdeu a força na última vez que Susano abrira um portal para nós os visitarmos. Ficamos em Vegahn por quatro dias e nada do puxão nos chamar de volta.
? E então? ? Nyu perguntou ansiosa.
? Tinha um problema, nossos poderes eram absorvidos pelo espelho sob Cahidén, que os transformava nos sóis que vocês viam, pois não éramos fisicamente...
? Estrelas. ? completei ? os olhos dos guardiões. Os sóis não eram suas formas físicas, mas um tipo de feitiço de observação contínua, eram como... câmeras de monitoramento ligados diretamente à sua magia. ? Expliquei a Nyu.
Leona assentiu.
? Na última reunião que fomos ao castelo de gelo, quando percebemos que a ordem de Ayrana perdera a força, decidimos conjurar sóis com magia, assim como fizemos quando Fairin foi preso, para substituir o outro sol, uma vez que prendemos um no lugar onde antes estiveram dois. ? Ewren explicou.
? Nós planejávamos voltar para casa. Mas precisávamos ir uma última vez até Mogyin, tínhamos que nos despedir de algumas pessoas e lançar a magia. ? Ela apertou as pontas dos dedos nas têmporas.
? E então? ? tive medo da resposta para aquela pergunta, pois Ewren fechou a cara novamente.
? Nós fomos colocados para dormir. ? rosnou. ? Ainda víamos coisas por causa dos sóis, mas pareciam ser sonhos, pois não podíamos vê-los direito, não podíamos nos mover... nem mesmo falar com vocês.
? E... o que isso tem a ver com Asahi e Kuran? ? Nyu questionou ? Afinal... foi a primeira coisa que perguntaram!
Ewren abriu a boca, mas uma sombra de asas o fez olhar para cima, Asahi, com os olhos vermelhos de lágrimas e tremendo de raiva respondeu àquela pergunta:
? Tudo. ? Asahi rosnou ? Ele tem a ver com tudo! Kuran está por trás de tudo o que aconteceu desde o fim da guerra! Mas o mais importante agora é achar Kiara e Fares. Ele vai atrás dos dois.
E pela segunda vez naquele dia, um medo que não era meu queimou por minha garganta, fazendo-me estremecer.
? Ele já os achou.
Entrei em outro portal imediatamente, ainda sentia o toque do gelo sob ela, então sabia que ainda estariam em Vegahn.
Kiara:
Aquele lugar deveria ter sido encantador em outra vida.
Mas agora cada passo dentro daquele labirinto de cacos de vidro furta-cor tomado por hera e espinhos, cada arranhar de vidro sendo esmagado por minhas botas, dava-me a impressão de caminhar por uma tumba.
Fares andava devagar ao meu lado, prestando atenção no chão, nos cacos potencialmente perigosos que poderíamos pisar e nos móveis partidos, esses mais pareciam armadilhas com suas lascas de madeira apontadas para o alto. Já eu reparava na vastidão daquela floresta de espinhos e flores perfumadas que faziam minha cabeça doer.
Não haviam animais por ali, apenas insetos, abelhas e mariposas coloridas que davam rasantes sobre nossas cabeças, procurando talvez uma refeição diferente que pudéssemos oferecer.
O som de vidro sendo partido ou esmagado de vez em quando arrepiava minha coluna.
Aquele um dia fora o orgulho de Silvya, a rainha dos silfos. O castelo agora em pedaços, ainda tinha uma torre de vidro de pé. Pela quantidade de destroços que pareciam se encaixar na ponta perigosa que ela ostentava, essa poderia ter alcançado as nuvens escuras que mantinham o lugar à meia-luz cinzenta e deprimente.
? Está sentindo? ? Fares sussurrou tão baixo que se não estivesse quase grudado em mim, não teria ouvido sua voz.
Assenti devagar.
A vibração de algo além dos cacos de vidro, um chamado sussurrado vindo de perto.
Parei no que deveria ter sido um salão de baile um dia. Partes de vitrais ainda de pé, tinham cruzes cheias de flores vermelhas plantadas ao redor delas, e mesmo naquela fraca luz que atravessava as nuvens, podia ver que as sombras delas apontavam para um mesmo ponto.
? O trono. ? Fares murmurou.
De fato, todas as sombras amareladas das cruzes indicavam aquele ponto, uma falha sob os destroços de um trono espelhado. Caminhei até lá, ignorando a possibilidade de haverem armadilhas ali, afinal, o lugar em si já era uma armadilha gigante, cheia de possibilidades de acidentes fatais.
? Tome cuidado. ? Fares alertou ao me afastar dele e caminhar até o trono em passos calculados.
Sentia que não tínhamos muito tempo e que talvez alguém pudesse vigiar aquele lugar e nos ver ali. Não queria problemas com silfos irritados arrancando o ar de nossos pulmões.
“Deuses, por favor, sem mais armadilhas ou desafios!”
Implorei, alcançando a pedra sob o piso e a arrancando do lugar com força, estilhaçando o restante do trono. Meus dedos metálicos roçaram algo sob ela e quando a claridade atingiu a caixa de prata que estivera escondida ali, pude ver o que pareciam ser dedos de sombras tentando arranhar o selamento de sangue sobre a tampa.
? Eu juro, por tudo que é mais sagrado, que se eu abrir essa capa e alguma criatura sair daqui para nos atacar e nos fazer lutar nesse lugar, eu vou passar o resto da minha vida trancada numa cabana na floresta!
Ralhei, agarrando a caixa e a tirando do buraco.
De olhos fechados, apertando a caixa contra o peito, esperei que algo acontecesse, mas não houve nada. Fares me olhava com as sobrancelhas erguidas.
? Foi tão ruim assim, procurar pelos fragmentos? ? Ele questionou.
? Quase virei escrava de um vampiro velho, impedi uma guerra entre gigantes e nitries, fiquei presa num labirinto de um dragão cinco dias sem banho e sem dormir, tive que viver meus piores pesadelos nas mãos de Owyn, fiquei presa em minha forma feral no meio de um monte de crianças feiticeiras e queria comer todas elas... ? Fares tinha uma careta no rosto ? sim, foi horrível. ? murmurei, colocando a caixa sobre o que deveria ter sido um banquinho de pedra, mas só via hera e musgo sobre ele.
? Sinto muito não ter ajudado. ? Fares se aproximou de mim, passando os braços ao meu redor.
? Eu faria de novo, Fares. ? sussurrei ? Não importa o quão ruim tenha sido, eu fiz por você.
Ele sorriu, envergonhado.
Fares então cortou a palma da mão e tocou o tampo da caixa antes que eu protestasse, quebrou o selamento e a abriu.
O agarrei, pronta para tirá-lo de perto daquilo, porém nada aconteceu além de uma daquelas sombras em forma de gato se espreguiçar e subir para o ombro de meu irmão.
Nos inclinamos, olhando juntos para dentro da caixa e ali estava ele.
Adraph.
O livro era mais simples do que esperava, um livro grande, antigo e com uma capa de couro áspera com um padrão de letras gravadas a ferro por toda a superfície.
Fares o pegou com cuidado, avaliando-o diferente do que eu teria feito, no meu caso, eu teria o cutucado antes para ter certeza que não seria mordida. Meu irmão abriu o livro e o folheou, franzindo o cenho para as palavras que via ali.
Eu jamais vira idioma como aquele antes.
? É élfico marbh. ? Ele sussurrou.
? Isso seria...
? Élfico morto. A primeira língua dos elfos, trazida da Terra e usada antes de criarem uma língua simplificada em Amantia, que hoje é chamada de élfico bàe. Mas é o único idioma que não podemos aprender com nossa magia de reconhecimento linguístico. Nem fala, nem escrita ? Fares mostrou a língua e bufou ao perceber meu olhar chochado. Fiquei mais chocada ainda por tentar usar magia para tentar ler o texto nele, e me dar conta de que não conseguia.
? Como...?
? Foi Hasan quem me passou esse conhecimento, para eu dar aula de línguas em seu lugar ? explicou secamente.
? Não parece gostar muito dele.
? Quem tem que gostar é você, não eu. ? rebateu, queria lhe dar um beliscão, mas Fares bateu com o nó do dedo sobre a capa do livro e me encarou ? A pergunta que você deveria ter feito era: você consegue ler?
? E consegue?
Ele assentiu.
? Algumas palavras parecem um pouco... sem sentido. Mas posso entendê-las pelo contexto. Aparentemente, Sirius e Áries são velhos o suficiente para ter passado essa língua ao seu namorado.
? E isso vai bastar para que o usemos contra o demônio? ? questionei, ignorando sua alfinetada. Ele abriu a boca e a fechou, senti que evitou me dizer algo.
? Acho que deveríamos voltar, e você pegar o machado onde quer que ele esteja. Vamos testar na prática.
? Sem planos? Arriscar tudo assim? ? franzi o cenho. Fares puxou duas fitas de veludo marcando o livro que eu não havia percebido.
? Há um feitiço de incapacitação aqui. ? Ele apontou.
? Fares, fui alertada sobre as consequências do uso desse livro.
? Eu sei. ? Seu olhar tornou-se mais intenso. ? Precisamos dar um jeito de fazer com que o demônio fale onde prendeu nossos pais. Se agirmos certo... talvez nem precisemos usar o livro.
Fares apertou minha mão firmemente.
? Nós podemos fazer isso juntos. ? afirmei.
? Juntos.
Fares enrolou o braço do meu, então caminhamos de volta ao portal.
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Estranhamente, o portal fixo do mapa nos deixou do lado de fora da ACV, ao lado da estrada que levava à Hima. Fares não parecia incomodado pelo erro no feitiço.
Porém aquilo lançou uma onda de pânico por minha coluna. Estávamos a pelo menos trezentos metros da sala de Lórien, um “erro” grande demais para um feitiço preciso como aquele. E não havia sinal de que o papel com o mapa tivesse voado até ali.
? O que acha que aconteceu? ? perguntei.
? Provavelmente tem a ver com estarmos carregando o livro, uma vez que as barreiras da ACV são conjuradas contra ele. ? Fares mordeu os lábios. ? E tenho certeza de que não conseguirei entrar com ele lá sem quebrar as barreiras.
? Também imaginei isso. ? suspirei.
? Vou até Retiro das Folhas, estudar um pouco os feitiços marcados aqui. As barreiras de Thay e Ysis não o manterão do lado de fora. ? Fares avisou, dando um beijo em minha testa e abrindo um portal, podia ver a sacada de seu quarto dali.
? Certo... só tome cuidado! ? Fares piscou espantado, olhando do livro para mim. Provavelmente a incredulidade de eu o ter permitido sair dali com o livro e sem companhia o assustara. Ele ainda não estava tão acostumado a falta de supervisão. ? Procurarei o machado por aqui enquanto isso. ? Mesmo com medo de deixá-lo ir para longe com aquele livro, não tinha escolha. Precisava mostrar que confiava nele, assim como ele confiou em mim.
Antes que eu me afastasse em direção as muralhas, ele segurou meu braço.
? Peça para Lohan ficar de olho em Hestia, se puder! ? seu rosto tornou a ganhar cor.
? Vai me dizer o que está acontecendo entre vocês? ? aproveitei que estávamos sozinhos, mas Fares cutucou o livro outra vez.
? Mais tarde, prometo! ? Ele sumiu dentro do portal antes que eu protestasse.
? Claro, porque não? Adoro esses segredinhos escondidos debaixo do meu nariz! ? resmunguei como uma louca, ignorando o fato de que os guardas das muralhas poderiam me ver e passar algumas horas rindo por aquilo.
Estava prestes a me virar e seguir para as muralhas, quando aconteceu algo assustador e inesperado.
Os sóis se apagaram no céu.
E não como Hasan fizera em Ciartes.
Eles simplesmente desapareceram.
Por longos minutos, fiquei ali, travada olhando para o céu, esperando por qualquer sinal de luz, pronta para abrir um portal e correr até meu irmão.
Mas não tinha como ter sido ele, Fares mal saíra de perto de mim!
Hasan!
Também não sentia nada pela ligação.
Ouvia os guardas nas muralhas murmurando, certamente se perguntando se os guardiões haviam finalmente descido. Será que depois daquele tempo, vovô e vovó finalmente tinham voltado para nos ver?
Porém a sensação que eu tinha era errada.
E quando os sóis finalmente voltaram a brilhar no céu minutos mais tarde, senti que lhes faltava algo.
Só não tive tempo de descobrir o que era, pois um círculo com paredes de fogo apareceu ao meu redor.
Assustada por aquela prisão de fogo negro, saquei minhas espadas e olhei em volta procurando pelo dono daquelas chamas.
Alguém caminhava ao redor delas, tinha vislumbres de uma pessoa dando voltas ao redor do círculo.
? Vamos, apareça! ? gritei, batendo os pés no chão com força, levantando uma onda de ventos e neve com o poder de meu sangue, varrendo aquele fogo para longe. O homem estava de frente para mim e a expressão em seu rosto fez meu estômago revirar.
Ódio, rancor e um desejo que já podia imaginar do que era.
Os olhos vermelhos e cabelos loiros, destacando ainda mais a pele marrom avermelhada fizeram minha cabeça doer. Tinha a impressão de que alguém tentava arrancar algo de minha mente. E naquele instante, conseguiu, porém arrancou o manto escuro que cobria a única lembrança que eu tinha de seu rosto.
Eu já o tinha visto antes!
O vira nos pesadelos que Owyn me forçara a ter, mas não porque eram pesadelos, e sim por já tê-lo visto. Quando eu estava caída a metros do castelo, olhando os corpos de meus pais no gelo, pude vê-lo se abaixar perto dos dois, recolher algo de seus corpos e gritar antes de desaparecer numa coluna de fogo.
? Você... ? rosnei.
? Kuran. ? Ele fez uma mesura debochada ? vou dispensar suas apresentações, princesa. Já sabe que eu controlo os bichinhos, certo? ? Ele franziu o cenho, percebendo que meus dedos tremiam nos cabos de minhas espadas, mas tremiam de raiva.
? Você... você os matou! ? gritei.
? Ah! Então se lembra? ? Ele sorriu ? Desculpe deixá-la para trás aquele dia, achei que tivesse sangrado até a morte sem o braço. Você não era importante o suficiente para que eu verificasse uma segunda vez. ? O salamandra riu ? Mas agora é! ? O sorriso desapareceu e num estalo dos dedos as chamas voltaram.
As ignorei, eu avancei para cima dele, varrendo sua magia com outra onda de gelo, porém antes que eu me aproximasse o suficiente para enfiar minha espada entre seus olhos, ele moveu os dedos e as chamas ficaram mais intensas e próximas.
O calor me sufocou, fazendo-me dobrar o corpo para frente e gritar procurando por frio. Como ele havia me encontrado? Eu sequer carregava o machado! Encolhida no chão, tentando alcançar a magia no fundo de mim para paralisar o tempo e escapar, não conseguia estender a mão até lá, não conseguia fechar os dedos ao redor daquele fio de escuridão salpicado de luz.
? Eu adoraria ter uma conversa agradável com você, minha querida, porém meu tempo é curto, você não foi a única a se lembrar de minha existência. ? Ele então se aproximou, chutando as armas para longe de mim e agarrou meus braços.
Ao longe ouvia os guardas das muralhas gritando.
Eles não podiam nos ver dentro daquela redoma de fogo, mas temiam atacar com flechar e atingirem a mim.
? As coisas podem complicar por aqui também. Vamos, quero te levar até algumas pessoas que devem estar doidas para te ver! ? Ele rosnou, contra meu rosto, erguendo-me do chão. Uma parte daquela gaiola de chamas transformou-se num portal longo envolto em mais fogo.
O único pensamento de alívio que tomou minha mente antes de ser arrastada para dentro daquele portal, foi o de ter deixado que Fares partisse com o livro minutos antes.
Capítulo 20
Fui atirada com força no chão ao sairmos do túnel de fogo num lugar escuro. Ao bater as costas numa mesinha, inspirei com força tentando não gritar de dor, mas o salamandra já estava ali soprando pó de fogo em meu rosto.
Inalar aquilo fez com que minha magia fosse imediatamente colocada para dormir. Comecei a tossir, tentando respirar.
? Não morra ainda! Vai perder a diversão! ? Kuran segurou meu rosto com força e murmurou algo, que fez marcas negras aparecerem em seus braços. E elas não se pareciam em nada com as do selo sombrio... e sim da capa daquele livro.
O alívio de conseguir respirar durou pouco, pois logo em seguida ele se ergueu e me chutou na barriga com tanta força que minha visão embaçou.
Ele passou as pernas por cima de mim, prendendo-me ao chão, então segurou meu rosto para que eu o encarasse.
? Reconhece esse lugar? ? Ele fez um movimento com as mãos, mostrando a sala ao nosso redor.
Era o centro da biblioteca nas raízes da árvore do fogo.
? Já esteve aqui antes, seu cheiro ficou aqui. Sabe, se não tivesse vindo, eu não teria descoberto que você estava viva! ? Ele comentou, como se estivéssemos tendo uma conversa qualquer.
Tentei forçar meu canto a sair, imaginei que pudesse o controlar e fazer com que me soltasse, assim alcançaria as adagas e as enfiaria em seu coração. Porém ao cantar com a voz trêmula, o salamandra riu debochando e me silenciou, apertando minha garganta, obrigando-me a parar.
? Tive um relacionamento com uma mestiça de sereiana uma vez, ela me deu imunidade ao canto sirênio. Uma pena, não é? Você poderia ter uma chance com isso! ? Ele bufou outra risada.
A pontada da dor em minha barriga e a fraqueza causada pelo pó ainda me mantinham quase incapaz de me mover, porém ele havia chutado minhas espadas, mas não minhas adagas presas em minhas pernas. Como meus braços estavam presos para baixo, mas ele imobilizava apenas minha mão de vitrino para que eu não o ferisse com ela, ainda podia mover a outra.
Se eu movesse os dedos um pouco mais...
O salamandra não percebeu quando agarrei o cabo da adaga e o puxei contra ele, mas o movimento o fez saltar para longe de mim, permitindo que eu me levantasse.
Ele ergueu as sobrancelhas em deboche, mas eu avancei contra ele, empunhando as armas, ele se esquivou nos dois primeiros ataques, usando a mobília para saltar e se manter longe de mim com um sorriso de escárnio no rosto, o que só me enfureceu ainda mais. Não conseguia acessar minha magia, mas talvez ainda pudesse...
Ele estalou os dedos e uma corda de chamas se enrolou em mim, não queimando, mas quente o suficiente para que eu perdesse o restante das forças e caísse de joelhos, abafando um grito de dor.
Não lhe daria a satisfação de me ouvir implorar.
Kuran se aproximou novamente, tomou as adagas de minhas mãos, fazendo uma careta ao tocar o vitrino, mas diferente do que esperava que ele fizesse, o salamandra as colocou de volta em meu cinto e sorriu.
? Vou te matar de qualquer jeito, querida, e quero que esteja com essas porcarias inúteis para que saiba que mesmo armada, não poderia fazer nada contra mim. ? Ele sorriu, fechando os dedos com força em minha garganta, interrompendo parcialmente o fluxo de ar ? Que fraqueza ridícula, não é? Não pode sentar perto de uma fogueira ou fica mais fraca que um gatinho inofensivo.
? Não é tão ruim... quanto levar um arranhão de um metal de gelo e morrer envenenado ? consegui cuspir as palavras. Ele rosnou contra meu rosto novamente, apertando-me contra o chão.
? Patética. ? sussurrou com a boca perto demais de minha orelha ? Nem mesmo Nikella era tão... fraca nessa forma.
? O que fez com ela? Com meus pais! Onde eles estão?
? Susano não é seu pai! ? Ele ralhou, suas mãos esquentaram, senti a pele arder com o calor e mordi os lábios com força, arrancando sangue deles.
? Quem é você para dizer isso? ? rebati. ? Me diga! O que fez com eles? ? arfei, o ar do lugar ardia minha garganta, queimando a cada respiração.
Precisava ganhar tempo. Fares ainda podia nos encontrar!
Hasan... Ele viria.
O salamandra me encarou com uma loucura brilhante naqueles olhos vermelhos, seus dedos por um momento afrouxaram e ele olhou para frente, para além de mim.
? Quer tanto saber onde estão? O que fiz com eles? ? Kuran se ergueu, puxando-me do chão, me arrastou até uma estante de livros próxima as paredes enraizadas da sala e a empurrou para o lado, revelando um arco largo que dava para outra sala, então me empurrou para dentro, desaparecendo com a corda de chamas, mas não soltou meu braço de vitrino.
O ar ali era ainda mais carregado com aquele cheiro metálico das folhas de fogo, minha respiração ficou mais difícil e só piorou ao ajustar minha visão a escuridão da sala para perceber o que ele queria mostrar.
No centro daquela sala, que era tão grande quanto a parte central da biblioteca, em cima de uma mesa longa de pedra, dois caixões de vidro repousavam. Ao redor deles letras pintadas com sangue a muito seco começavam a descascar e em cima, preso por correntes sobre os caixões, um espelho com uma inscrição na moldura, a mesma frase escrita ao redor da árvore da ACV de Vegahn.
Dentro do espelho, duas pequenas esferas de luz giravam de um lado para o outro, inquietas, agitadas.
Meus olhos se voltaram para os caixões e a sensação de dormência me atingiu ao mesmo tempo que a verdade.
As silhuetas... os corpos dentro dos caixões eram deles.
? Porque fez isso? ? gritei soltando-me de seu aperto e corri até eles tentando firmar as pernas. Cambaleante, me apoiei nos tampos de vidro frio, e vi seus rostos. Eles ainda tinham expressões de tensão gravadas em suas faces.
Tentei sem sucesso puxar as travas que os mantinham no lugar, não acreditava no que via!
O salamandra não respondeu, ele observava minha ausência de força enquanto eu tentava sem sucesso soltar a tampa daquilo.
Eu precisava soltá-los. Deuses!
? Eles me tiraram tudo. ? A voz do salamandra soou mais ressentida do que raivosa naquele instante. Virei-me para encará-lo, aqueles olhos vermelhos carregados de angústia estavam a centímetros dos meus. ? Nikella foi a causa de eu perder tudo que tinha. Ela tirou meu pai, tirou minha irmã, minha mãe também, se considerar que ela definhou de tristeza pela filha caçula. ? Ele estendeu a mão, enrolando o punho em meu cabelo, meu corpo sequer respondia para tentar lutar contra ele. Meus pulmões pareciam estar cheios do pó das cascas da árvore, aquela sala estava impregnada com o pó, as partículas vermelhas brilhavam nos cantos de minha visão.
E para piorar, reparei num círculo de palavras pintados ao redor da sala, partindo desde a soleira da porta de um lado e se fechando do outro. Um círculo de anulação com o meu nome.
Já esperava que eu viesse.
Ele me mataria ali, sem que eu pudesse lutar contra aquilo.
? E que culpa eu e Fares temos nisso? Que culpa as pessoas das cidades que você atacou tem? Os serviçais do castelo que você matou... crianças que morreram! ? cuspi as palavras, agarrando sua mão, mas ele tinha conjurado uma luva coberta por escamas de prata e segurava minha mão metálica, agarrou a outra em seguida para que eu não puxasse as adagas novamente.
Kuran lançou um olhar ao espelho sobre os caixões.
? Eu quero que eles sintam o mesmo... que saibam o que senti quando tiraram tudo de mim!
Tentei novamente me soltar e o atacar com minhas garras de vitrino, se o acertasse, ele seria envenenado e eu teria uma chance de avisar os outros. Porém o salamandra já esperava que eu tentasse lutar, ele girou para trás punho rapidamente, prendendo-me contra o chão com o joelho e se inclinou, aproximando seu rosto bem perto do meu.
? Tem quantos anos, criança? Quanto tempo brinca de caçadora naquela academia? Saiba que tudo o que eles ensinam a você, eu já aprendi muito tempo antes de você sonhar em nascer! ? Ele riu, erguendo os olhos para o espelho, mostrando um sorriso zombeteiro para aquelas esferas de luz ainda mais agitadas.
Kuran arqueou meu pescoço puxando meus cabelos para trás e ergueu a lâmina da adaga.
Então era assim que acabaria?
Desesperada, tentei espalhar gelo, acessar minha magia... mas dentro daquele círculo de anulação e com aquele pó enfraquecendo-me eu não podia fazer nada contra ele.
Fechei os olhos, rezando para que Fares encontrasse um modo de detê-lo e soltar nossos pais.
Hasan...
Eu voltaria... havia prometido a ele.
Voltaria quantas vidas pudesse para encontrá-lo.
Uma onda de fogo dourado varreu a pequena sala, queimando as marcas do chão, subindo pelas paredes e rodopiando ali até formar uma mantícora feita de luz e raios de sol.
Kuran no susto me soltou, afastando-se para se defender do ataque de magia. Ele ergueu os braços, marcas azuis envolveram seus membros, assim como as marcas do demônio que ele podia invocar.
Ele estava fazendo de novo. Chamando a besta para vir em seu auxílio.
Porém foi impedido por um ataque rápido, um chicote de fogo que o atingiu com força no peito, atirando-o contra a parede. O chicote voltou mais uma vez, cortando o ar com um zunido semelhante ao de um relâmpago atravessando o céu e o acertou novamente, enrolando-o e o puxando para o chão. A mantícora, diferente do que imaginei, não foi até o salamandra caído para atacá-lo, ela saltou em minha direção e parou ao meu lado, abaixando-se para me auxiliar a levantar. Eu mal podia mover os braços!
Hasan entrou na sala no momento seguinte, segurando firmemente a outra ponta daquele chicote. Com os olhos dourados faiscando, e os cabelos tomados por fogo vivo, o solaris rosnou uma ordem para a mantícora e seguiu na direção do salamandra, talvez a tivesse mandado me tirar dali.
Um assobio estridente me fez encolher e não tivemos tempo de sair, a criatura saltou para o lado levando-me com ela, quando no instante seguinte o demônio de fogo aterrissou onde estávamos, abocanhando o ar furiosamente.
Do outro lado da sala, Kuran tinha conseguido invocá-lo sem sequer se soltar. Então era aquilo que Fares sempre dizia, o homem canta e o demônio ataca.
E nós não acreditávamos!
Hasan o alcançou e o puxou usando o chicote, mas o demônio avançou para ele dessa vez.
? HASAN! ? gritei em alerta com o coração disparado. A criatura o atacou, mas foi parada por um escudo dourado de luz, que a fez desmanchar em pedaços. Observei boquiaberta o solaris sumir com o chicote e avançar contra Kuran, lhe desferindo um soco certeiro no queixo.
O salamandra riu, levantando-se como se nada tivesse acontecido. Seus olhos sem íris ou pupilas se tornaram duas esferas de fogo azul, rachaduras apareceram em sua pele e delas, aquelas chamas escuras também vazavam. Kuran projetou o corpo para frente, pinçando as mãos em garras para atacar, mas o solaris desviou do golpe, evitando apenas que o salamandra acertasse os caixões ali. Kuran virou-se rapidamente e o atacou outra vez com uma espécie de espada de fumaça e sombras, mas a mesma se desfez ao tocar o corpo do solaris.
Impaciente, Hasan sacou Sielem adormecido em sua pulseira, o que gerou uma reação assombrosa em Kuran. O salamandra urrou e golpeou o ar ao lado do corpo, e uma baforada de ar quente balançou meus cabelos, a mantícora de fogo solar ao meu lado desapareceu, devorada pelo demônio num só ataque.
Hasan me encarou assustado ao ver a criatura descendo as presas de pedra e fogo em minha direção, cada vez mais lentamente... até que parou por completo com a bocarra como uma caverna flamejante a centímetros de minha cabeça. Hasan rosnou e atacou Kuran outra vez, mas se deteve quando uma lança atingiu o ombro com o braço erguido do salamandra que tentava fazer o demônio congelado obedecer.
Enaras. A lança de Susano.
Espantada olhei para a porta da sala e confusão me tomou ao ver tia Asahi entrando ali com a corrente da lança nas mãos.
Fares a seguia e mantinha Adraph aberto envolto em magia em sua mão, congelando o tempo ao redor do demônio. Com o livro em nossa posse, ele não passava de uma marionete controlada por dois mestres. Meu irmão se adiantou até mim, segurou meu rosto com as mãos e soprou algo gelado e familiar em meu rosto. A bruma fez com que meu corpo voltasse a reagir e meu poder despertou, pois minha pele começou a brilhar e pequenos raios vazavam ao redor de meus pés.
Ele soltou um suspiro e com um movimento do pulso, o demônio desapareceu novamente, fazendo Kuran gritar irado.
Asahi aproximou-se em passos decididos, seus olhos manchados de vermelho, talvez por ter chorado, transbordavam raiva, mas por algum milagre ela ainda se continha. Kuran a encarou e mostrou os dentes, perdendo aquela forma terrível quando ela pressionou mais a lança em sua carne.
? Você é um mentiroso egoísta! ? Asahi gritou, apoiando as mãos no cabo da lança. Kuran preso contra a parede, urrou tentando se livrar. Hasan num instante estava em meu lado, avaliando-me com atenção, seu peito subia e descia rapidamente, raiva e medo podiam ser vistos naquele olhar.
? Estou bem. ? sussurrei voltando minha atenção para Asahi.
? Diga em que eu menti, Asahi! ? Kuran riu, segurando a ponta da lança, tentando soltá-la de seu corpo. ? Diga que aqueles dois não... ? Ele não terminou de falar, pois a rainha de Amantia enterrou o punho em sua mandíbula, calando-o instantaneamente.
? Você é um covarde! Um cretino covarde que não aceitou ser chutado pela única conquista sua que não deu certo! Você não aceitou que a Nike amasse outra pessoa e criou essa obsessão por eles!
? Ela matou minha irmã ? Kuran rosnou de volta, limpando o sangue dos lábios.
? Lenios matou sua irmã! Nike a amava, ela teria entrado no inferno mesmo depois de ser transformada se aquilo trouxesse a Annie de volta! Você sabe que ela foi enganada, sabe que mexeram com a mente dela!
? Isso foi a versão dela...
? E Susano também mentiria depois de ter perdido a esposa? Meu irmão podia ter muitos defeitos, Kuran, mas Susano nunca, NUNCA mentiu!
E ela tinha razão. Mesmo quando ele dizia ser meu pai, ele não mentiu. As omissões jamais contariam como mentiras. Ele era meu pai pois escolheu ser, e não deixava de ser uma verdade.
Asahi tremia.
? Solte-me, agora ? Ele rosnou, erguendo a mão ensanguentava novamente, tentando puxar a lança, mas ela não permitiu. Asahi o olhava com um ódio gélido, desprezo... talvez a alma dele pudesse virar cinzas sob aquele olhar.
? Eu sempre estive lá para você! ? Asahi engasgou com as palavras, a raiva de seu olhar foi tornando-se mais intensa conforme sua dor escorria pelas bochechas em trilhas mornas de lágrimas ? Eu o apoiei! Eu o curei quando você quase nos deixou! EU DEVIA TÊ-LO DEIXADO MORRER! ? Ela gritou, como se aquilo pudesse livrá-la de alguma culpa.
Kuran a encarava perplexo.
? Eles mal esperaram suas cinzas voltarem para a terra e estavam casados! Eles aceitaram bem demais a morte dela!
? CALE A BOCA! ? Ela urrou ? Você não queria vingar a sua irmã, você teve raiva! Nunca aceitou perder! Nike era seu maior desafio e você a conquistou e perdeu e não aceitou isso, então Susano a curou e eles conseguiram se aproximar depois de toda a dor! E você não aceitou isso também, não aceitou que eles tivessem se curado de Annie e Caalin, você os matou por ódio! Você só queria acabar com as lembranças deles para se sentir melhor com a sua perda e não pensou nos outros, nas milhares de pessoas que prejudicou, que matou com esse ato egoísta!
? Nike queria se vingar de minha família....
? Nike desistiu de sua vingança muito antes de tudo isso! Pare de arrumar justificativas quando elas não existem, Kuran! ? Asahi engoliu em seco, ela secou as lágrimas que ainda escorriam com as costas das mãos ? Você é um monstro! Sacrificou a minha filha... ? Asahi soluçou apertando o peito com força ? sacrificou sua própria filha para ter esse poder!
Hasan olhou-o em choque. Fares que até então estava silencioso, começou a chorar também.
? Deuses! O que você fez! ? Fares tremeu.
? Não dirija a palavra a mim, moleque! ? Kuran rosnou, Asahi torceu a lança em seu ombro, obrigando-o a se calar novamente.
? Sabe de quem é a alma naquele corpo? ? Asahi murmurou para ele ? Sabe porque Fares era o único além de mim que podia te reconhecer mesmo com seu feitiço para que os outros o esquecessem?
Hasan e eu olhamos de Asahi para Fares sem entender uma palavra.
? Você quem a teria matado dessa vez, Kuran ? Ela sussurrou. E foi aí que entendi o que Eileen disse na cabana “eu não voltei sozinho. Ela quis vir também, queria ver os dois outra vez de perto” e depois o que falou na sala de Lórien. “Achei você!” Ele reconheceu a alma naquele corpo.
Em choque, encarei meu irmão que também não parecia saber de nada. Talvez diferente de Eileen, ele não tivesse voltado com alguma lembrança, e a expressão confusa em seu rosto me confirmou isso.
Fares tinha a alma de Annie.
Então esse era o motivo que o fazia gostar tanto de sua forma feminina, pois a alma em seu corpo era assim e não reconhecia o corpo masculino que ganhou nessa vida.
Kuran agora olhava com cautela para Fares, mas ele tornou a tentar se soltar, conseguindo se levantar dessa vez e puxar a lâmina, afastando-a de seu corpo.
? É mentira... É MENTIRA! Vocês são todos mentirosos! Todos têm esse sangue imundo correndo nas veias o sangue daquela louca que causou tudo isso!
? Você causou isso! ? Asahi rebateu ? Como ainda não consegue ver os próprios erros? Não percebe o que fez? Você matou sua filha para se vingar de algo que existia somente em sua cabeça!
Asahi choramingou, a lança tremeu em suas mãos.
? Você prendeu meus pais para que eles não intervissem! Você sabia que eles os defenderiam, que teriam feito o impossível para aquela paz continuar! Você não matou dois vilões que dominaram os mundos, Kuran, você matou seus amigos que sacrificaram suas verdadeiras faces, deixando que todos pensassem que se tornaram maus apenas para nos dar tempos de paz!
Asahi baixou a lança.
? E sabe o que é pior? Eles confiavam em você. Susano e Nike criaram os filhos escondidos, com medo de que inimigos os encontrassem e fizessem mal a eles. ? mais uma vez, ela enxugou as lágrimas que teimavam em descer ? E quem os apunhalou pelas costas, usando as fraquezas deles, foi quem consideravam um amigo, mesmo distante, ainda o consideravam como um amigo.
A expressão do salamandra havia mudado.
Aquele foi o momento em que o peso do que realmente fez caiu sobre seus ombros. Kuran encarou as mãos abertas, olhando as marcas que o fogo negro havia deixado ao se dissiparem, ele encarou Asahi por longos momentos em que ouvia apenas nossas respirações contidas. Achei que ele diria que estava arrependido.
Achei que pediria por perdão.
Mas não foi o que fez.
Ele puxou a cópia de Adraph e com a palma da mão cortada, gritou uma ordem que gerou uma onda de vácuo, atirando-nos para longe e estremeceu a sala.
A escuridão se alastrou por todo o lugar, fogo negro tomou conta do ambiente e dessa vez, três demônios estavam de pé ao redor dois caixões de vidro, exibindo seus dentes de pedra, deixando lava azul incandescente escorrer para o chão.
Um sorriso perturbador surgiu no rosto de Kuran, ele ergueu o punho, sacando uma arma que fez um tremor violento de raiva sacudir meu corpo. Ele ergueu Siferath e assobiou. Como marionetes que tiveram as cordas puxadas abruptamente, as criaturas atacaram, saltando sobre nós.
Queria ir para cima dele. Queria tomar aquela arma que ele não tinha o direito de empunhar, mas uma das criaturas veio direto para mim, impedindo-me de seguir até ele.
Com a magia livre novamente, mesmo que não por muito tempo, consegui erguer uma barreira feita de relâmpagos e impedi o demônio de me dilacerar com garras e presas. Porém o calor que emanava do corpo de pedra incandescente da criatura tornava a me enfraquecer.
Fares de pé a poucos metros de mim estava em pior situação. Ele não tinha sequer um treino básico de combate, apenas mantinha a criatura que o atacava paralisada no ar com magia e não fazia ideia de quanto tempo ele aguentaria mantê-lo assim.
Asahi tentava a qualquer custo passar pelo demônio, atacando-o com a lança de Susano, mas a criatura parecia não se incomodar com seus golpes.
Me dei conta então de que Kuran não queria machucá-la.
Ao contrário dele, Asahi tinha um olhar quase psicótico no rosto. Ela queria chegar até onde Hasan e Kuran travavam uma luta feroz.
Fogo solar contra fogo negro.
Um celestial contra um mago com poder emprestado por uma divindade sombria.
Hasan agora havia deixado o machado de lado e usava as espadas de vitrino amarelado forjadas por minha mãe, e mesmo que Kuran tivesse a proteção daquele fogo negro ao seu redor, se alguma daquelas lâminas atravessassem sua pele num golpe mais profundo, seria seu fim.
O salamandra esquivava com certa dificuldade dos golpes, usando a foice de minha mãe para evitá-los. Ele girou a foice num movimento rápido, fazendo a lâmina passar a centímetros do peito de Hasan. O susto me fez deixar a barreira cair e a criatura que eu mantinha presa deu um bote em minha direção.
? KIARA! ? Fares gritou assustado, ele pulou em minha direção e agarrou minha mão, congelando a criatura por um instante apenas ? Vamos brincar nas sombras! ? Aqueles olhos verdes e brilhantes mudaram, tornando-se prateados.
O fluxo de memórias me arrastou para trás, fazendo com que eu me lembrasse do que tinha que fazer.
O poder de luz e sombra unido ao legado das seis almas elementais.
Nossos poderes mesclaram-se ali, gerando uma onda de magia de anulação do mesmo modo que a usávamos para nos esconder sem sermos pegos.
A onda de magia desmanchou os demônios como se não passassem de estátuas feitas de areia atingidas por uma onda do mar. Fares ofegante encarou nossas mãos unidas e sorriu para mim.
Ele estava evitando usar o livro novamente.
Asahi piscou espantada, então voltou a atenção para a luta dos dois.
Meu coração disparou. Se tinha dúvidas de que Hasan me deixou ganhar para entrar no V9, elas acabaram ali.
Kuran mesmo usando Siferath não fora capaz de acertar um só golpe em Hasan. A pele do solaris emanava uma luz dourada suave e a expressão em seu rosto era de completa calmaria enquanto atacava o salamandra, cansando-o.
Esse parecia ser o método dele. Cansar os oponentes, forçá-los ao limite.
Kuran rosnava. Ele tentava investir com a arma e não conseguia. O salamandra mal conseguia se defender, girando a foice sobre a cabeça, tentando evitar as espadas de vitrino. Parecia não se dar conta de que as armas não eram seu maior problema.
Hasan fez um movimento rápido com as espadas, cruzando-as na lateral do corpo quando o salamandra achou ver uma brecha e atacou. Porém o solaris usou o ataque com a lâmina maior da foice para desarmá-lo. O impacto da foice no X de espadas foi rápido, mas Hasan puxou as espadas para lados opostos, o que fez com que a arma fosse arrancada da mão de Kuran.
Ele tentou pular para pegar a arma, mas o solaris o agarrou pelo braço e o puxou de volta, acertando o punho fechado no estômago de Kuran. O salamandra caiu de joelhos tentando puxar o ar, mas foi pego por um gancho que o atirou no meio da sala. Kuran bateu com força contra a bancada de pedra, sangue escorria de sua boca e ele parecia não ter força para se levantar. Hasan seguiu até ele e se abaixou, agarrando seu cabelo, murmurou algo baixo o suficiente para que não ouvíssemos.
Kuran arregalou os olhos e tentou se erguer, mas o solaris pegou sua garganta e não permitiu que ele se movesse.
? Basta, Hasan. ? Asahi pediu. A olhei incrédula, não conseguia acreditar que depois daquilo, ela o deixaria viver! Eu não permitiria! ? Essa morte não é sua para reivindicá-la.
Hasan a encarou por um momento que pareceu uma eternidade, só então se afastou. Com um estalo dos dedos ele fez com que o salamandra ficasse preso num lacre de luz dourada.
O solaris veio até mim e passou um braço ao meu redor. Ele deslizou os dedos pelas marcas que as mãos em brasa de Kuran deixaram em meu pescoço e ombros. O solaris soltou um rosnado irritado e me puxou delicadamente para perto de si.
? Está tudo bem. ? disse baixo. Pelas batidas descompassadas de seu coração, percebi que as palavras foram mais para si do que para mim.
Asahi parou de pé diante de Kuran e o encarou de cima. O desprezo era tão visível em seu olhar quanto a raiva nos olhos dele.
? Kuran...
? Não vou dizer que me arrependo. ? Ele cuspiu as palavras junto com o sangue que se acumulava em sua boca ? Não me arrependo de nada que fiz.
Aquelas palavras fizeram o ódio despertar outra vez nas feições de Asahi. Suas mãos tremeram apertadas no punho da lança e ela apoiou o peso do corpo num joelho para encará-lo de frente.
? Eu esperei por tempo demais que você mudasse. ? Ela sussurrou com a voz embargada ? Eu nunca quis aceitar que você pudesse ser tão cruel assim, até o hoje quando o coração dela parou de bater.
Meu peito se apertou.
Dor, angústia, tristeza... todos ofuscados por aquela raiva vívida em seus olhos.
? Devia ter ficado longe quando ouviu o primeiro não. ? Kuran murmurou em resposta.
Até eu senti a dor que aquelas palavras causaram.
? Ela foi a única coisa boa... que você me deu. E você a tomou de mim da forma mais cruel que podia. ? Asahi engoliu as lágrimas ? Você me fez passar com ela o que sua mãe passou com Annie. Me fez passar com Susano o que você passou com sua irmã. Você me fez passar com meus pais o que você sentiu quando os seus se foram! Você não se vingou, Kuran.
Ela chorou apontando para os caixões.
? Você tirou uma parte de todos nós! Você se tornou o monstro que tentou destruir neles! A única diferença, é que lá o monstro era imaginário. E você é bem real.
O salamandra não mudou sua expressão.
Ele continuava sem sentir o que aquilo significava.
Ele não sentia que não teria outra chance.
? Vai fazer o que, rainha de Amantia? ? Kuran bufou uma risada ? Você nunca foi forte o suficiente para fazer o que tinha que ser feito. Tem tanta culpa nisso quanto eu. Você jamais tentou me impedir por medo, sabia que teria encurtado o tempo dela, e mesmo assim não teve a coragem do que fazer o que tinha que ser feito. Até o sofrimento dela você poderia ter finalizado, mas não teve coragem!
O braço de Hasan se apertou mais ao meu redor. Ele tremia tentando não ir até lá e o calar de vez. Asahi meneou a cabeça negativamente de olhos fechados.
? Tem razão. Eu podia ter feito algo e não fiz pois queria ganhar tempo para tentar salvar minha filha. ? Ela respirou fundo ? mas eu aprendo com os meus erros. Aprendi que algumas coisas não podem ser salvas.
Ele abriu um sorriso zombeteiro, duvidando dela.
? Sua alma é uma delas.
O sorriso morreu quando Asahi se moveu rapidamente, enterrando a lâmina da lança em seu coração. O salamandra sofreu um espasmo e agarrou o cabo da arma, seus dedos sujos de sangue escorregavam conforme Asahi girava aquela lâmina.
Mesmo com a dor que ela devia estar sentindo por fazer aquilo, sua expressão não mudou.
Kuran não tirou os olhos dos dela até que a luz dentro deles se apagasse.
Ela puxou a lâmina, derrubando o corpo sem vida do salamandra no chão, uma poça de sangue começava a se formar ao redor dele. Asahi se afastou alguns passos, largando a lança no chão então gritou com força, como se tivesse arrancado o próprio coração ao fazer aquilo.
? Eles eram An-hai. ? Hasan sussurrou tão baixo que eu mal percebi que as palavras foram realmente ditas. Mas aquilo me fez querer chorar outra vez. Ela talvez fosse mais forte que qualquer um de nós.
Ele foi até onde ela estava ajoelhada no chão, chorando, e a abraçou.
? Kiara ? Fares me chamou. Ele pegou a cópia de Adraph e o queimou com magia, fazendo com que uma poeira negra e brilhante se espalhasse ao nosso redor. O original, colocou em minhas mãos.
? O que quer que eu faça com ele? ? questionei ? Aristes disse que o livro é maligno, que corrompe aqueles que o usa... que nós poderíamos usá-lo com uma intenção boa, mas o livro nos envenenaria aos poucos. ? disse.
? Não dá para destruí-lo, eu tentei. ? Fares segurou minha mão ? Podemos decidir isso depois? ? Ele olhou para cima, onde os orbes dentro do espelho pareciam ter se acalmado com o fim da luta.
Não tive coragem de olhar os caixões de novo até aquele momento.
Meu irmão pegou minha mão e passo a passo, nos aproximamos dos caixões. Com cuidado, Fares conseguiu abrir o tampo de vidro usando magia. Porém quando nós as erguemos, os corpos lá dentro começaram a desmanchar.
Eles viraram pó antes mesmo que pudéssemos os ver direito.
? Não... ? minha garganta se apertou ? NÃO, NÃO! ISSO NÃO É JUSTO! ? gritei tocando aquele pó com os dedos trêmulos.
Fares não se mexeu.
? Eu ainda os sinto.
? Fares...
? Eu ainda os sinto! ? meu irmão olhou para cima. Ele então empurrou os caixões de cima da pedra, estilhaçando-os no chão. Olhei confusa para meu irmão, Asahi e Hasan o olhavam com a mesma dúvida nos olhares.
Ele subiu sobre a pedra e começou a soltar as correntes que prendiam o espelho. Ainda confusa, subi para ajudá-lo antes que ele o deixasse cair no chão. O espelho era grande e um pouco pesado, tinha letras prateadas formando palavras ao redor da moldura e de certa forma o vidro parecia maleável.
Os orbes se agitaram outra vez.
? É o espelho que trouxe a mamãe da Terra; ? Asahi soluçou. O colocamos sobre a pedra e Fares se inclinou para frente, ficando com metade do corpo a vista no reflexo.
O que me assustou foi perceber que sua aparência no espelho não era sua.
Uma garota de cabelos ruivos, olhos vermelhos e pele marrom dourada movia os olhos pela superfície do espelho, repetindo os movimentos de meu irmão. E ele parecia não perceber isso.
? Eles estão aqui ? Fares sorriu. ? São as almas deles. Estão presos aqui!
? Vocês precisam os libertar, Fares. Para que eles possam ter algum descanso ? minha garganta se apertou. Não era justo. Passamos por tudo... para não levá-los conosco para casa. Apertei meus braços com força ao redor do corpo e segurei a vontade de chorar.
Meu irmão olhou para Hasan e meneou a cabeça novamente.
? Eles precisam ter uma chance de viver o que não viveram por medo. Eu não cheguei até aqui para dar adeus. ? Fares estendeu a mão, pedindo o livro.
? Fares... o que vai fazer? ? Ele puxou o livro de meus dedos e começou a folheá-lo.
? Trazer os corpos de meus pais de volta.
? Fares, é melhor você não... ? Hasan começou, mas foi interrompido pelo olhar irritado de meu irmão.
? Hasan, agradeço por sua ajuda, mas a decisão agora é nossa. ? Fares rosnou.
? Você sabe o custo que esse livro exige. Sabe o que pode acontecer se o usar e também não sabe quais serão as consequências. ? Hasan alertou com a voz baixa.
? É, deu para ver bem o que pode acontecer, mas eu não sou como ele. ? meu irmão rebateu. Hasan franziu o cenho, mas deixou que Fares e eu nos entendêssemos. Ele se virou para sair, com um estalo dos dedos transformou o corpo de Kuran em cinzas e guiou Asahi de volta para o centro da biblioteca.
? Fares... ele tem razão.
? Sim, ele tem. Mas eu preciso tentar!
? E o que pretende sacrificar? ? ralhei ? sabe o que o livro exige!
? O livro exige dois tipos de pagamento. Uma alma viva e pura, ou algo que você não abriria mão. ? rebateu ? Eu tenho algo que não abriria mão, mas por eles, eu faria.
? Eu posso ajudar, então. ? Fares desviou os olhos do livro aberto e me encarou.
? Você colocou todo seu coração nisso, Kiara. Se arriscou a ser considerada louca por me dar ouvidos, e mesmo assim o fez. Você disse que não quebraria a promessa a mim. Me colocou acima de todos os seus desejos pessoais ? Fares sorriu tocando meu rosto com os nós dos dedos ? Eu não pediria para você fazer mais nada, Kiara.
Ele se inclinou e me abraçou forte. Mesmo que houvessem rachaduras se espalhando ao redor de minha cintura, não protestei. Deixei que me apertasse naquele abraço por quanto tempo quisesse.
Fares voltou a atenção para as páginas dos livros e o sorriso esperançoso que tinha em seu rosto diminuiu. Conforme passava os olhos pelo texto.
? O que foi? ? quis saber.
? O... o feitiço criaria um summon permanente, transformando qualquer matéria usada em carne e osso. Mas ele exige uma parte deles. Um fio de cabelo, uma unha... qualquer coisa assim. ? os olhos de meu irmão se encheram de lágrimas ? não temos!
? Temos sim. ? sussurrei, puxando as adagas de vitrino que mamãe fizera para mim dos cintos em minhas pernas e colocando-as em suas mãos. Dentro do cabo de cada uma delas, havia mechas de cabelo dos dois envoltas em vitrino.
Fares soluçou e sorriu outra vez. Colocou as lâminas sobre a pedra, ao lado do espelho onde os orbes... as almas deles aguardavam.
? Tem certeza? ? perguntei. Fares assentiu e colocou as mãos sobre o livro. Ele se concentrou nas palavras e começou a entoá-las baixinho até que sua voz mudou, foi tornando-se mais aguda.
Um brilho intenso deixou seu corpo conforme suas palavras se repetiam e algo se moldava sobre a pedra.
Alguém passou um braço ao meu redor e me afastou um pouco dele, mas não me tirou da sala. Hasan me apertou, não conseguia ver nada além daquela luz ofuscante e morna que pulsava pela sala como um coração voltando a bater.
A luz foi dissipando aos poucos até que pudesse enxergar novamente, e me assustei ao ver Fares de joelhos no chão, ofegante e como uma garota. Ele não estava mais em sua pele masculina.
? Fares? ? nervosa, desvencilhei-me dos braços de Hasan e me aproximei de meu irmão, o ajudando a ficar de pé. Aquele rosto parecia ainda mais natural nele como nunca tinha percebido antes.
Foi então que me dei conta do que ele sacrificou para fazer o feitiço.
? Hestia... disse que queria uma família grande, uns cinco ou dez filhos correndo pela casa. ? Ele sorriu um pouco sem graça.
Queria abraçá-lo. Mas minha atenção foi puxada para as duas pessoas deitadas sobre a pedra.
Eles se pareciam exatamente como os vi pela última vez naquela noite, deitados dormindo quando pedi que papai me levasse para brincar na neve.
Susano abriu os olhos primeiro. O verde como o coração de uma floresta viva se voltou para nós e lágrimas se acumularam neles.
Nikella abriu os olhos um segundo depois. Vermelhos e brilhantes, mantendo a cor de seu sangue antes dele tornar-se gelo, assim como seu coração.
Não conseguia me mover.
Não podia sequer acreditar que aquilo era real.
Fares tremia com um sorriso no rosto quando os dois, com certa dificuldade, apoiaram as mãos na pedra e ergueram os troncos.
Capítulo 21
Nike começou a chorar e atirou os braços ao redor do pescoço de Fares. Ela chorava de soluçar, assim como ele.
? Eu sabia que vocês não tinham ido embora! ? Ele choramingou ao ser abraçado por Susano também. ? Eu não esqueci os fragmentos!
? Desculpe por tê-los arrastado para isso. ? Susano sussurrou. Ele me observou, olhou o braço com uma expressão dolorida em seu rosto.
Fares se soltou dos braços dela e se virou para mim com um imenso sorriso no rosto.
? Foi a Kiara que recuperou os fragmentos. Ela que encontrou o livro. ? Ele comentou entusiasmado.
Eu continuava sem reação.
Uma parte de mim não acreditava que aquilo realmente estava acontecendo.
Mas algo me atingiu bem no fundo da alma quando mamãe me encarou e avaliou-me ainda com os olhos marejados.
Pensei em sair.
Em correr daquela sala e ir para qualquer lugar, abrir um portal e me esconder dentro do vale do sol, observar a chuva de folhas sobre o lago dourado no fim da tarde para me acalmar... mas não consegui me mover.
? Kiara... ? sua voz fez meu corpo formigar e amolecer. Meneei a cabeça negativamente, fechando os olhos com força.
? Kiara? ? Fares chamou.
Não reconhecia aquela voz. Era a voz dele, de sua forma feminina. Mas alguma coisa estava errada comigo. Me afastei um passo.
? Princesa ? A voz de papai me fez começar a chorar. Aquilo devia ser mais um pesadelo de Owyn. E eu acordaria sem que eles estivessem lá de verdade.
? É real. ? Hasan passou um braço ao redor de meus ombros e me apertou num abraço. Senti seus lábios tocando o topo de minha cabeça e sua mão afagar minhas costas. ? Eles estão ali mesmo. Vocês conseguiram. ? O solaris segurou meu rosto e tocou os lábios em minha testa.
Um rosnado de irritação me fez olhar para eles outra vez.
Papai olhava incrédulo para Hasan.
Mas quem se moveu primeiro foi Nikella. Ela se ergueu com dificuldade e apoiou-se em Fares. Suas pernas tremiam. Levava um pouco de tempo para que as almas criassem um laço completo com o corpo novo.
Ela veio em minha direção e parou a poucos centímetros onde eu podia diferenciar os tons de vermelho naqueles olhos que outrora viviam raivosos... e agora só conseguia enxergar remorso ali.
? Eu sinto muito por toda a dor que te causei. Deveria ter sido melhor para você... pelo que seu pai representou para mim. ? Ela não desviou o olhar ? Me desculpe, Kiara, por não ter te dado o amor que você merecia!
? Eu...
? Me escuta, por favor! ? Ela interrompeu ? Tive todo esse tempo para pensar no que fiz. Mesmo depois de tudo... você procurou por nós.
Queria lhe dizer que tinha feito por Fares e por meu pai, ela merecia ouvir aquilo, aquelas palavras duras. Mas não era verdade, não completamente. Eu queria encontrá-la também e confrontá-la, perguntar o motivo de ter me tratado com tamanha frieza. E agora as palavras não queriam sair.
? Eu cumpri a minha promessa. ? disse baixo. Ela olhou para Fares e entendeu o que eu quis dizer.
? Me desculpe por não ter sido com você como fui com seu irmão, eu só não conseguia... te ver como um alguém separado dele.
E ainda assim, ela não conseguia dizer o nome de Caalin.
? Eu via em você todas as minhas falhas. E naquele dia, quando a mandei fugir com docinho e proteger seu irmão... me dei conta de que eu talvez jamais pudesse me retratar por aquilo e aqui estou! ? Ela abriu os braços, trilhas de lágrimas rolavam por seus olhos, não sabia ao certo se eram sentimentos totalmente seus ou a sensibilidade que o corpo novo tinha a emoções fortes.
Preferi acreditar na primeira
? Estamos aqui pois você não desistiu.
? Não teria procurado se Fares não tivesse me convencido que estavam vivos.
? Ninguém mais acreditou em mim. Você quis acreditar. Para de tentar dar o crédito para os outros, tem que assumir seus méritos de vez em quando! ? Fares bufou e mamãe se aproximou mais um passo.
? Você me perdoa?
? É claro que perdoo, mãe. Eu perdoei faz tempo... só queria entender o motivo. ? falei.
Ela estendeu as mãos, como se fosse me abraçar, e mesmo que fosse algo que eu almejei ter, me retrai, colando o corpo em Hasan atrás de mim.
Nike que encolheu um pouco, deixando os braços caírem, mas Fares se aproximou a abraçou novamente. Ele começou a falar várias coisas, coisas que tinha acontecido, começou a contar sobre a ACV, sobre as provas e sobre Hestia.
Foi então que Susano veio para perto de mim. Ergui os olhos para encará-lo e dessa vez não consegui conter o sorriso e enrolar os braços ao seu redor.
? Pai! ? choraminguei ? Não sabe quantas vezes eu desejei te ver de novo pelo menos um pouquinho!
Susano esfregou minhas costas com as mãos quentes e beijou o topo de minha cabeça. Ainda era o mesmo abraço, ainda tinha a mesma sensação acolhedora e aconchegante de sempre. Ainda era meu pai.
? Também senti sua falta, princesa. ? Ele segurou meu rosto entre as mãos ? Eu sabia que você conseguiria. ? sussurrou, abrindo um sorriso para mim.
Poder ver aquele sorriso novamente valeu cada minuto de angústia, cada dor, ferida e tristeza que passei para vê-lo outra vez.
? Sua mãe realmente se arrependeu, sabe? ? murmurou só para mim.
? Eu sei.
? Então porque não a abraça também? ? Susano se afastou para me encarar, curioso.
? Eu ainda não consigo. ? sussurrei de volta. ? Não sei como... reagir a isso. ? fui sincera. Ele assentiu.
? Podemos sair daqui? ? Hasan ofereceu, abrindo um portal de fogo dourado atrás de si. ? Asahi voltou para Amantia a alguns minutos, ela foi ver como Leona e Ewren estão.
Fares assentiu e pegou o livro, então com um braço ao redor da cintura de mamãe, ele entrou no portal primeiro. Susano ao ver Hasan estender o braço para mim, o olhou feio e passou um braço ao meu redor, levando-me com ele para dentro do portal em seguida.
Hasan veio logo depois, ele olhava para as estrelas além do túnel curto, e quando pisamos do outro lado, fomos recebidos pelas cores do entardecer de Vintro. O céu tingido de laranja, violeta e azul em contraste com o verde escuro das árvores e o vento suave que soprava, me trouxeram de volta a realidade.
E parecia que enfim estava aceitando que não era um sonho.
Estávamos sobre a fortaleza de Esperas, naquele jardim envolto por um pequeno bosque. Mamãe olhava o pôr do sol com os olhos marejados, ela me observou e desviou o olhar, foi ali que ela tentou salvar Neruo e quase me perdeu, talvez tivesse lembrado daquilo.
Fares, agora como Leonne, continuava contanto coisas, mais falante do que jamais havia o visto, parecia ter guardado tudo para falar com ela.
Papai não me soltou. Ele manteve um braço ao meu redor conforme descíamos as escadas em espiral para dentro da fortaleza. Hasan continuava atrás de nós, silencioso, mas podia sentir algo tranquilo vindo dele através daquela ligação.
Hasan nos acompanhou até a sala de estar, onde Neruo nos recebeu com um sorriso imenso e seguiu direto até Susano para abraçá-lo. Aproveitei que fui solta e me aproximei de Hasan e o abracei. Seu cheiro despertou meus sentidos, lembrando-me que estava cheia de rachaduras pelo corpo.
Mesmo assim, eu só queria o abraçar e sentir seu cheiro um pouco mais, aquele aroma suave de cardamomo e almíscar de sua pele. As batidas calmas de seu coração que aceleraram ao deslizar os dedos novamente por aquelas marcas em meu pescoço.
? Você está trincando. ? Ele sussurrou, Hasan sentou-se no sofá de couro marrom atrás de si e não soltou minha mão. Escorreguei para o seu lado, o solaris me encarava com curiosidade, provavelmente por sentir meu nervosismo crescente. Ele então furou o pulso com as presas e o ofereceu para mim.
Não hesitei. Era provável que conversas tensas estivessem por vir e eu não queria esfarelar no meio da sala.
Hasan passou um braço ao redor de minha cintura, aproximando-me dele quando fechei os dentes ao redor daqueles furos, evitando que o sangue dourado gotejasse.
O soltei alguns instantes depois e agradeci com um meio sorriso. Com Susano... a situação era pior do que com Eileen e Hasan percebeu isso, aquele pânico crescente em mim. O dourado acendendo em seus olhos e aquele sorriso de quem tinha acabado de descobrir algo para usar contra mim o denunciou.
? Mas que raios é isso? ? Susano deu um passo hesitante em nossa direção. Nike sentou-se no sofá cor de vinho e cruzou as pernas sob seu corpo, aceitando uma caneca de chá que Neruo estendeu para ela. Ele sentou-se perto de minha mãe e sorriu.
Ótimo, talvez agora tudo começasse a pegar fogo.
? Ah, pai. ? Fares resmungou, sentando-se no braço do sofá onde mamãe estava e foi abraçado por ela ? Já vi coisas piores desses dois. Acredite.
Susano empalideceu. Seus olhos verdes e tranquilos que me lembrava não se pareciam tanto com os raivosos que via agora.
? Você... ? Ele apontou um dedo para Hasan ? Ela é minha filha! O que pensa que está fazendo? Você me criou, Hasan! Você é meu tio! Ficou maluco?
? Sabemos que o coração do corpo novo está ótimo. ? Fares brincou e levou um cutucão de Neruo. Mamãe olhava entre Hasan e eu, e não foi nada surpreendente quando a vi sorrir daquele jeito meio... perturbado que já conhecia.
Susano tremia, não sabia ao certo o que dizer, mas Hasan continuava tranquilo, com o braço ao redor de minha cintura.
? Devia se acalmar, meu sobrinho. ? disse calmamente, conjurando uma caneca de vinho morno e a colocou em minhas mãos ? Justamente por tê-lo criado, você deveria estar tranquilo com isso. Sabe bem que tipo de pessoa que sou.
? Não! Não devia estar calmo! Ela é uma menina! Você é velho! Pelos deuses, Hasan! Sai de perto da minha filha! ? Susano rosnou. Dei graças aos deuses que por causa do feitiço e da adaptação da alma ao novo corpo, seus poderes não estarem despertos, ainda.
Mamãe quase escondeu o rosto atrás da caneca. Quase. Ela estava rindo disfarçadamente. Talvez tenha alucinado vê-la sussurrar um “se deu bem” por trás da caneca.
? O pai dela era mais velho do que eu. Nike era mais nova que ela quando a ganhou. ? Hasan rebateu e mamãe engasgou com seu chá. Susano meneou a cabeça negativamente.
? Deixa eles, Su. ? mamãe ralhou. ? Acabamos de voltar, não sabemos de nada que aconteceu por aqui, não é justo com eles que comecemos a nos meter agora.
Se foi uma tentativa de me ganhar, apoiando-me, ela conseguiu um pouquinho. Susano a olhou como se Nikella estivesse louca.
? Você tem que me apoiar! ? Nike sorriu e deitou a cabeça no colo de Fares. Ela ainda o olhava daquele jeito. Como se Susano fosse o centro do universo dela.
? Pai, é melhor se acalmar. ? Fares o puxou para que sentasse no sofá também. Susano ainda nos observava como se fosse saltar sobre o solaris e arrancar um pedaço dele.
? Isso não vai ficar assim, não! ? Susano bufou ? E é melhor se afastarem um pouco. Deuses! Eu não quero ver isso! Não consigo acreditar, Hasan!
Hasan revirou os olhos, e como se quisesse terminar de atear fogo na fogueira, segurou meu queixo e me beijou, arrancando um suspiro pesado de mim.
? Ah! Eu vou matar você! ? Fares e Neruo o seguraram no lugar e mamãe ria de se acabar com a cena.
A impressão que tinha era estranha.
Parecia que tínhamos acabado de ir visitá-los para contar de um relacionamento escondido e não que havíamos acabado de soltá-los de uma prisão em que suas almas estiveram por quinze anos.
Os sons da sala ficaram cada vez mais distantes, meus olhos se fixaram nas chamas baixas da lareira de pedra do outro lado da sala. As luzes iam se acendendo sozinhas conforme o entardecer trocava de lugar com o azul escuro da noite lá fora e as estrelas apareciam calmamente no céu.
Eu queria chorar.
Finalmente estava tudo bem, então porque ainda me sentia triste? Porque uma parte de meu coração doía? Senrys não estava mais lá, ele teria gostado de conhecê-los. Eileen... Caalin teria sua chance de pedir desculpas.
? Vai demorar um pouco, Eish-amir, até essa sensação sumir. Mas está tudo bem. Lembre-se que Caelle deve ter dormido agora, ela ainda deve ter pesadelos com a casa das bonecas ? Hasan me fez voltar para o que acontecia na sala.
Era verdade. Eu me esquecia que com a ligação, podia ter sentimentos de Caelle misturados aos meus, especialmente os sentimentos negativos, até que ela aprendesse a suprimir a ligação.
Susano que finalmente tinha se acalmado, fez uma careta ao ouvir o nome da menina.
? Diz pra mim, por favor, que vocês não têm uma filha com esse nome.
? É uma menina de Pollo que a Kiara transformou. ? Fares respondeu rapidamente.
Eles olhavam para mim preocupados, todos eles. Aquela escuridão borrifada de estrelas vazava ao meu redor e eu sequer tinha a sentido.
? Desculpem. ? murmurei apertando os olhos com as costas das mãos ? Só estou cansada.
? Todos deveriam ir descansar. ? Hasan comentou erguendo-se sem me soltar. ? Vocês dois principalmente, os corpos novos precisam se adaptar. Não é como um summon comum.
Susano exalou profundamente, ainda com um olhar quase psicótico na direção de Hasan, mas assentiu.
? Amanhã conversaremos mais, ainda temos muito o que dizer, pelo visto. ? Nike se ergueu e agarrou o braço de Su. Neruo também se pôs ao lado dele, pronto para guiá-los até um dos quartos... ou segurá-lo se fosse necessário. Fares murmurou algo para os dois e abriu um portal, desaparecendo nele em seguida.
Talvez tivesse ido até o vale buscar Hestia.
? Vou avisar Asahi que estamos aqui, Leona e Ewren devem vir com ela e suas irmãs assim que amanhecer. ? O solaris segurou meu braço e gentilmente me guiou para fora da sala, por cima do ombro vi Susano com a boca apertada e punhos cerrados, ainda preso por Nike e Neruo.
Ele tinha reagido pior do que eu esperava.
Hasan me conduziu pelos corredores desertos de Esperas até o terceiro andar onde ficava o quarto que permaneci quando Senrys morreu. Não havia sequer uma alma viva ali, mas ouvia ao longe o som de batidas de tambor, música e risos.
? Os moradores da vila ao redor da fortaleza fazem uma festa quando termina o período de plantio. ? Hasan explicou ao notar que eu tinha parado de andar ao chegarmos numa pequena sacada. Podia ver ao longe a luz de fogueiras no meio da floresta, o brilho chegava espalhado até o limite das árvores, dançando contra as sombras dos troncos largos.
O vento entrando pelas janelas abertas, uivava contra as paredes cor de marfim, iluminadas pela lua crescente surgindo no céu. Ela parecia mais com um sorriso animado, como os que Fares dava desde que conseguiu o que vinha acreditando todos esses anos.
Sentei-me no parapeito da sacada e encarei a porta do quarto por um longo momento até que o solaris entrou em minha frente. Sua pele emanava uma luz morna, aconchegante, tão convidativa que não pude evitar me inclinar para frente e abraçá-lo. Hasan me pegou nos braços e levou-me para dentro do quarto.
Mesmo longe, ainda escutava Susano discutindo com alguém no andar inferior.
Hasan:
Ainda mantinha Kiara enrolada em meus braços. Ela tinha adormecido a mais de uma hora e eu não conseguia soltá-la. Seu rosto ainda tinha marcas úmidas das trilhas de lágrimas que deixara escapar silenciosamente, tentando conter o choro para que ninguém a escutasse.
Lágrimas de alívio e alegria, mas de tristeza também. Embora tivesse aceitado que os dois estivessem ali, ela não conseguia não sentir culpa pelo irmão ter perdido seu corpo masculino e talvez aquilo também estivesse ligado ao fato de não ter conseguido se aproximar da mãe quando Nike lhe estendeu os braços.
Kiara costumava absorver tudo, inclusive a culpa que não lhe cabia... assim como eu.
Escutei o farfalhar de asas do lado de fora da janela e uma sombra cortou a luz da lua que entrava pela sacada.
Com cuidado, a soltei sem querer sair de perto dela e deslizei os dedos por sua bochecha, reparando com fascínio o leve brilho iridescente de sua pele contra a luz branca vinda de fora, nos cílios pálidos longos, arqueados contra a maçã do rosto e a cascata de cabelos brancos contra o tecido escuro do travesseiro. Ela parecia um pedaço da lua que havia descido do céu para iluminar a noite que outrora ocupava meu coração.
O som das asas chamou minha atenção outra vez, e ainda incomodado em deixá-la, coloquei suas espadas encolhidas na mesinha ao lado da cama, Lohan as havia encontrado caídas da neve do lado de fora da ACV e as entregou para mim quando apareci procurando por Kiara e o machado.
Saí do quarto pela sacada abrindo as asas, atirando-me ao vento. Subi em direção ao jardim sobre a fortaleza, Susano estava lá, sentado no parapeito sobre a torre da escadaria.
Tão igual à última vez que o vi, um dia antes do castelo de gelo deixar apenas ruínas para trás. Susano, de pernas cruzadas sobre as pedras do muro me lançou um olhar de esgueira quando me sentei ao seu lado, encarando a lua também.
? Me lembro de olhar para aquele fio partido enrolado ao pulso de Kiara e perder horas pensando em como seria difícil para ela se apegar a alguém. ? Susano começou, puxando a longa trança negra de seu cabelo para o lado e eu permaneci em silêncio, escutando-o ? Eu ficava imaginando: será que uma pessoa com a alma partida consegue algum tipo de felicidade ao lado de outra pessoa que nunca a completaria? ? Ele suspirou ? E podia ser um pouco egoísta da minha parte... mas eu não queria que ela escolhesse alguém. Queria a minha princesa daquele jeito, uma menina que eu pudesse proteger do mundo e assustar os pretendentes.
Ele soltou o ar, irritado ao perceber que eu estava rindo.
? Por quê? ? Ele ciciou.
? Não basta para você que estejamos felizes? ? questionei encarando-o. Susano fez outra careta e desviou o olhar.
? Eu ainda a vejo daquele jeito, como a menina pedindo para ir brincar no gelo de noite. Mal voltei... mas não estou pronto para vê-los assim. ? Susano suspirou ? Você me criou tanto quanto meu pai! E agora... está com ela!
? Eu estava à deriva, Susano. ? disse baixo ? Perdido num vazio interminável de culpas, arrependimentos, tentando parecer inteiro para seguir em frente. Ela entrou naquele vazio e me arrastou para fora.
Susano me avaliava com cuidado. Daquele jeito que fazia quando queria saber se alguém estava mentindo, mas ele sabia que não precisava.
? Ela me mostrou como amor de verdade tem que ser. ? disse baixo ? Como você foi para a Nike quando o pai dela se foi.
O rosto dele ganhou cor e Susano desviou o olhar.
? Aprendi isso com você, caso não se lembre.
? E eu aprendi com muitos erros... mas percebi tarde que tinha chegado a um ponto que não podia concertar o que minha omissão causou.
? Vocês foram os primeiros um do outro. Tia Serena não sabia como lidar com o ciúme, e você não sabia dar confiança a ela. ? Susano ergueu o rosto para o céu e fechou os olhos ? Todos erramos. Alguns tem chance de mudar, outros não tem tempo para isso.
Não queria falar sobre aquilo. Tinha perguntas a fazer... e sabia que muitas mais surgiriam.
? Como chegaram a Adraph? ? questionei.
Susano abriu os olhos e suspirou, voltando sua atenção para mim.
? Quando o livro que Nikella pegou de Ciartes desapareceu, eu liguei o desaparecimento do livro à visão de Gwendollyn, então começamos a esperar pelo pior, por alguém com raiva o suficiente para usá-lo contra nós. ? Ele sussurrou ? E se todos os livros que estavam na árvore do fogo eram cópias, o original ainda tinha que estar em algum lugar.
Susano desviou o olhar para o céu novamente.
? Eu me lembrei da história da maldição de minha mãe, do espelho que prendeu Jocelinne, e pensei que mesmo um mago experiente não conseguiria realizar feitiços como aquele sem uma ideia de base.
? Deuses! ? as peças começaram a se encaixar. Susano assentiu.
? Nós fomos à biblioteca de Fairin em Lótus Vale. Nós o encontramos na sessão reservada... E descobrimos que Veruza o usou pra criar a maldição de Arbarus, e antes dela, Higarath o usou para invocar a alma das sombras, para bater de frente com o poder de Ayrana. ? Ele franziu o cenho ? Haalin antes deles, criou o livro e o usou para conjurar as almas elementais na própria filha para que ela criasse os mundos e ele não sofrer as consequências ou ter de pagar o preço e a enganou.
? O livro... foi a causa de tudo. ? Susano assentiu outra vez.
? Nós tentamos destruí-lo, mas nenhum tipo de magia funciona. O livro das sombras era uma piada perto desse, ele se desmanchou ao ser atirado na fenda de Holon, era uma cópia resumida e com muitas restrições. Mas Adraph... ? Ele meneou a cabeça e soltou um suspiro cansado.
? Precisamos sumir com ele, ou isso nunca vai parar. ? Ele assentiu.
Pensaríamos nisso depois.
Mas tinha que avisar a Fares para evitar usá-lo novamente.
Fares, Leonne. Não sabia como ele escolheria ser chamado. Tínhamos tanto a decidir ainda! Lórien ficaria resplandecente! Ainda mais se Nikella tivesse planos de assumir novamente a direção da ACV.
Por um momento, apenas apreciamos a noite. O vento fresco soprando as angústias pala longe.
? Eu... ? Susano pigarreou ? Nós podíamos ver o que acontecia dentro da árvore. Qualquer superfície que refletia nos mostrada o que acontecia lá dentro. Na maior parte do tempo não havia nada, mas nós a vimos um dia.
Sabia onde ele queria chegar, me lembrava daquilo pelas memórias que vi em Lohan.
? Ela costuma se machucar quando fica muito angustiada, ou quando se sente sufocada por seus sentimentos. ? franzi o cenho ? A vi fazendo aquilo ainda criança... quando ela encontrou a Reagis de Caalin e Nike brigou com ela.
Susano encolheu os ombros.
? Nike realmente se arrependeu. Percebeu seus erros e os quer reparar.
? Vai demorar para Kiara aceitar isso. ? Não falei por mal, mas Susano franziu o cenho mesmo assim. Resolvi atirar logo a lenha na fogueira ? Talvez Kiara reconsidere se Nikella aceitar as desculpas de Caalin.
Susano perdeu a cor e voltou os olhos para mim.
? Caalin...
? Ele voltou com Annie. Mas diferente dela, ele tem memórias. Voltou para cuidar da filha. ? falei ? são até bons amigos.
? E ele sabe sobre.... ? assenti ? espero que ele tenha te dado uma surra! ? Susano rosnou.
? Ah, ele tentou! ? sorri, lembrando-me de como Eileen me xingou ao perder diversas vezes na arena de treino.
? Espere eu me acostumar com o corpo. ? Ele bufou, suas asas farfalharam com um movimento incomodado.
E eu nem havia dito nada sobre o casamento.
Um sorriso se formou em meu rosto sem que eu permitisse. Um casamento... no vale dos bruxos. Talvez Ceiran nos permitisse colocar uma casa lá agora que os bruxos se dividiram entre o Vale e a Morada da lua. Kiara provavelmente devolveria a Casa de Eileen.
? Está ouvindo isso? ? Susano franziu o cenho, mas não ouvi nada, apenas senti um pulso de ansiedade através da ligação com Kiara.
? Elas estão brigando! ? Ele arregalou os olhos e levantou voo. Imediatamente o segui, só então escutei o som de metal se chocando e voei mais rápido em direção a área de treino no pátio central.
Kiara:
Acordei no meio de um pesadelo em que a casa das bonecas se transformava numa sala negra tomada por fogo. Olhei para o lado, procurando uma cama ao lado da minha, porém não estava em meu quarto na ACV.
Estávamos mesmo em Esperas.
Mãe das águas! Nós tínhamos matado o demônio. Fares e eu tínhamos recuperado nossos pais. Aquilo tudo era real. Não fora um sonho!
Me ergui procurando por Hasan pelo quarto, ele me colocou para dormir, mas percebi que ele não estava mais lá.
Levantei-me da cama ainda um pouco zonza, tentando colocar todos os meus pensamentos em ordem. Um brilho chamou minha atenção na mesa de cabeceira, e sem consegui conter um sorriso, percebi que eram minhas espadas.
Hasan as tinha fixado em uma fina corrente de pedra da lua, cada extremidade nas empunhaduras das armas. Ao tocá-las, passando um fio de magia para transformá-las, percebi que a corrente também crescia, mantendo as espadas juntas a mim.
A corrente devia ter um metro e meio, pois por um palmo não roçava no chão e no meio entre as duas armas, um pequeno cabo de vitrino com cerca de vinte centímetros servia como suporte para usá-las a distância.
Sorri para o novo acessório. Só queria descobrir onde Hasan o havia conseguido, embora tivesse percebido que o trabalho era muito igual ao das espadas.
Ao encolher as armas outra vez, as coloquei ao redor do pescoço como um colar e dei uma volta de um nó.
Deixei o quarto logo em seguida, procurando por Hasan... ou por mais alguém sem sono. Talvez conseguisse encontrar meu pai na cozinha, revirando a geladeira em busca de doces para se acalmar e mesmo que não quisesse admitir, torcia para não encontrar minha mãe até saber como conversar com ela.
Segui pelos corredores desertos e silenciosos até a cozinha olhando distraidamente pelas janelas. Tinha muito para absorver e aceitar, e não sabia ao certo como começar a fazer isso.
Bom... podia começar só com um passo de cada vez.
Porém os passos que me levaram até a cozinha, queriam que a situação pegasse fogo. Estaquei ao passar pelos arcos e dar de cara com minha mãe ali, apoiada no balcão de pedra, comendo uma fatia do bolo de laranja e chocolate branco que havia feito para Hasan. Ela ergueu os olhos vermelhos para mim e levou o garfo cheio do doce à boca. Seu cabelo negro estava trançado, caído sobre o ombro e usava um daqueles vestidos pretos até o joelho.
Pelo visto seu poder já tinha voltado.
? Você... quer? ? Ela ofereceu, seu rosto ganhou cor ao me ver menear a cabeça negativamente. ? Está muito bom. ? Ela voltou a atenção para o bolo.
? Sei que está, fui eu quem fiz. ? Não queria ser grosseira, mas não conseguia ser... gentil também. Ainda não.
Ela tornou a me encarar, dessa vez o azulado tomava conta de seu pescoço e orelhas também.
? Meu irmão costumava dizer que eu não ia me casar porque não sabia cozinhar assim. ? Ela ponderou, comendo mais um pedaço do doce. Eu nem sabia que ela tinha um irmão. ? Eu me casei duas vezes mesmo não sabendo fazer isso. Imagino o que teria conseguido se soubesse. ? Ela deu um risinho nervoso.
? Dizem que pessoas que sabem cozinhar, costumam ser bons pais. Susano sempre foi um ótimo pai para mim. ? Não consegui conter a réplica maldosa, ela encolheu os ombros.
? Eu mereço isso. ? sussurrou, mexendo com o pingente da foice preso em seu pescoço.
Uma parte minha queria lhe dar as costas e sair daquela cozinha.
A outra parte queria começar a gritar com ela.
Atirar quatorze anos de mágoas na cara.
Ela parecia um pouco tensa com o meu silêncio, trocou o peso dos pés, avaliando-me discretamente. Não me importei por estar numa camisola curta no mesmo tom de seu vestido, mas algo me incomodou no momento que seus olhos se fixaram em meu braço de vitrino.
? Quando... isso aconteceu? ? sabia que perguntaria.
Mesmo assim, a pergunta fez uma onda de raiva passar por mim.
Eu apertei os olhos, tentando não gritar com ela tudo o que eu queria.
? Quando você me mandou fugir com Fares... eu consegui usar magia para prendê-lo à Docinho, mas na explosão eu caí. Lua estava voando ao redor do castelo e tentou impedir que eu caísse direto no gelo.
Ela fez uma careta e seus braços se arrepiaram.
? Eu sinto...
? Não diga que sente muito. ? rosnei ? pois quando eu precisava que você demonstrasse qualquer amor, você me afastou como se eu tivesse uma doença contagiosa incurável. ? Ela me encarou de volta sem baixar os olhos ? Você... ? mordi os lábios com força, a escuridão vazava ao meu redor, pontilhada de luz, e minha mãe viu aquilo, mas não recuou.
Ela não estava com medo.
Bom... Nikella não tinha medo de nada, se demonstrasse algum naquele instante, eu saberia que tinham trocado as almas.
? O que quer que eu diga? ? Ela pediu.
A encarei por longos instantes enquanto tentava controlar as batidas de meu coração.
Olhei novamente para o pingente da foice.
“Vamos lá para o pátio, vou te ensinar o jeito certo de colocar isso para fora e parar de descontar nos outros!”
Aquelas palavras de Hasan voltaram à minha mente, então eu sabia como me livrar daquela enxurrada de perguntas e acusações. Sabia como lavar a alma... sem feri-la com palavras que merecia ouvir, mas nós os havíamos dado uma segunda chance para reparar os erros e viver o que não tinham vivido.
Estalei os dedos, abrindo uma fenda curta atrás dela, apenas dois passos para a arena de treinos no centro da fortaleza. Ela olhou por cima do ombro, para a área grande iluminada apenas pela lua crescente lá fora, então me encarou novamente.
Havia um desafio naquele olhar, um brilho malicioso que a marcava como quem realmente era.
? Posso adiar até outra hora, caso pretenda usar o Summon como desculpa caso perca. ? falei. Ela bufou uma risada, me deu as costas e entrou no túnel, ao pisar na arena do outro lado, Nike inspirou profundamente e puxou a foice, fazendo a arma crescer.
Caminhei até ela, parando a alguns passos, deixando que a garganta de escuridão se fechasse atrás de mim. Então puxei minhas espadas e as transformei.
Ela avaliou as armas com um meio sorriso grande, exibindo as presas para mim.
? Um belo trabalho.
? Quase tão boas quanto as suas. ? disse suavemente, posicionando-me.
O chão áspero sob meus pés e o som arenoso ao deslizar a sola por ele me deu uma estranha, mas agradável sensação de calmaria. Nikella ainda sorria ao posicionar a foice contra o calcanhar do pé direito, apoiado atrás de si. Ela não parecia nem um pouco tensa com a situação, estava mais tranquila com um convite para lutar, do que com uma conversa regada a bolo e chá.
Não que isso me surpreendesse.
Porém o sorriso desapareceu de seu rosto quando eu avancei, girando as espadas para a lateral de seu corpo tão rápido que ela mal conseguiu bloquear, ela cambaleou para o lado, mas se firmou novamente e me olhou espantada.
Não lhe dei uma chance de se preparar novamente.
Puxei as espadas e golpeei outra vez, atingindo o cabo que ela ergueu no último segundo para se defender. Nikella forçou a arma, puxando-a como uma alavanca, descendo a ponteira da lança contra mim, mas parei o golpe com minha espada, e investi com a outra, obrigando-a a pular para longe.
? Eu sempre achei que eu fosse o problema ? comecei, avançando para cima dela novamente.
Nike ergueu a foice, protegendo-se de meu primeiro ataque vindo de cima, porém o segundo passou de raspão em seu peito, obrigando-a a fazer uma finta para escapar do golpe, deixando a meia lua da foice descer e se enterrar no chão da arena.
? Tentava entender... o que havia feito de tão errado para que você não me amasse como amava Fares! ? gritei, esquivando-me da lâmina que ela girou contra mim, avançando mais uma vez com aquela ponteira de lança. Mas eu abaixei rápido, desferindo-lhe um golpe com a palma aberta em direção ao peito, fazendo-a se atirar para trás para não ser atingida. Ela conseguiu se equilibrar e defender mais um golpe.
? E só pude entender o motivo quando soube quem era meu pai biológico! ? rosnei, erguendo as espadas e acertando sua defesa com tanta força que ela se curvou para suportar o peso do golpe ? E a conclusão à qual cheguei, teria destroçado qualquer um! ? gritei.
Nike saltou para longe novamente, mas dessa vez ela veio para cima com a foice virada ao contrário. Me esquivei do ataque com um passo rápido para a direita, e com um movimento quase imperceptível, ela girou o cabo da foice e a puxou. Seus olhos estavam focados em mim, em meu modo de lutar, ela não o conhecia, mas eu conhecia o dela.
Parei a lâmina da foice erguendo o punho metálico atrás de mim, agarrando-a. Nike arregalou os olhos e chiou, e me aproveitei de sua brecha para acertá-la com uma onda de gelo, jogando-a para o outro lado da arena.
De relance, vi Hasan e papai sentados sobre um dos muros do pátio, nos observando.
Mas eles não eram loucos de intervir.
Minha mãe se levantou irritada, guardei minhas espadas de volta em meu pescoço e girei a foice entre os dedos. Ela conjurou duas espadas de gelo e correu para mim.
? Percebi que você não me amava porque eu era uma lembrança de alguém que te deixou. Uma lembrança que você não queria mais! ? Ela apertou os olhos, mas mesmo assim avançou, descendo aquelas espadas contra mim. Eu as esfarelei com um giro da foice e antes que ela pudesse criar outras armas, desci sua lâmina contra ela.
Nike parou de olhos arregalados, com a meia lua de vitrino amarelado a menos de um dedo de seu pescoço.
? Sabe qual era a coisa que mais doía nesse pensamento? Eu não tive a chance de conhecer meu pai, e saber o que ele fez para que você descontasse sua frustração em relação a ele em cima de mim. E pior, fui criada por várias outras pessoas que me deram muito mais amor que minha própria mãe jamais tentou fazer. ? sussurrei, tocando o vitrino frio em seu pescoço. Ela estremeceu, seus olhos se encheram de lágrimas. ? Eu sempre tentei conquistar o seu amor, e você me rejeitou.
Ela caiu de joelhos.
? Eu sinto muito! ? Ela cobriu o rosto e começou a chorar, seus ombros tremiam com os soluços. ? Não sabia o que fazer... ainda não sei o que fazer, Kiara! ? Ela chorou mais. ? Não sei o que dizer para que você entenda que eu me arrependi.
Susano finalmente desceu, pousando ao lado dela, tirando-a do chão. Ele a apertou nos braços e me encarou.
? Eu já disse que a perdoei. ? sussurrei ? Mas perdoar não significa que eu esqueci tudo, só que... estou disposta a aceitar a mudança pela qual você disse que passou.
Ela, enxugou as lágrimas e assentiu, mas dessa vez não conseguiu me encarar. Apenas afundou o rosto no peito de meu pai e tentou abafar um soluço.
Diferente do que eu esperava que Susano fizesse, ele não me olhou feio ou me repreendeu por ter sido dura demais com ela. Papai, tocou meu ombro e sussurrou um “descanse um pouco, princesa” Antes de abrir as asas novamente e voar, levando-a com ele.
Hasan passou os braços ao meu redor e depositou um beijo em meu pescoço, apenas um toque caloroso e suave, mas que me fez despertar daquele torpor de mágoas. Não tinha dito tudo que queria, mas de alguma forma, me sentia tão mais leve que podia sair flutuando caso ele abrisse os braços e me soltasse.
? Quando a emotividade do corpo novo passar... ela vai dizer que te deixou vencer para que você a perdoasse mais rápido. ? Hasan me fez rir.
? Espero que não, se não vou ser obrigada a fazer isso de novo para provar que posso vencê-la. ? Me virei, ficando nas pontas dos pés para beijá-lo. Hasan sorriu e se inclinou, mordendo de leve meus lábios com os seus.
? Vamos, você precisa descansar um pouco. ? sussurrou, pegando-me nos braços e abrindo aquelas enormes asas de plumas de fogo.
As únicas chamas que eu jamais temeria, eram as dele.
? Acabou mesmo, não é? ? Hasan pousou na sacada do quarto e fechou as asas, desaparecendo com elas. Ele não me respondeu logo, seu semblante sério me fez ficar nervosa outra vez. ? Hasan...
? Ainda teremos que nos desfazer do livro. ? Ele sentou na cama, apertando-me em seu colo. ? Mas veremos isso depois.
? Papai te disse algo sobre isso? ? quis saber, Hasan ficou tenso por um instante, então contou o que meu pai lhe dissera, tudo que o livro causara... desde o começo, desde a criação dos mundos.
Meu coração saltou angustiado.
? Eu sempre me perguntei, porque sempre esse desejo por mais poder? ? questionei ? Quer dizer... poder absoluto é inútil e ilógico. Você vai usar um poder que pode subjugar tudo e todos, dobrar qualquer um a sua vontade, vai conquistar tudo e no fim, voltar ao zero. Ficará sem propósito pois não haverá mais nada para conquistar, ninguém a ser vencido, todos já estarão aos seus pés o temendo. Então terá conquistado um poder inominável apenas para dominar? Inflar o próprio ego e ter a sensação que tudo lhe pertence? Poder absoluto é uma ilusão, é o mesmo que não ter poder algum.
Hasan me encarou pensativo por alguns instantes, então sussurrou que minha lógica fazia muito sentido.
Por sorte era Fares quem tinha o livro original com ele. Talvez meu irmão o tivesse levado até o vale com intuito de escondê-lo com os bruxos. Talvez fosse melhor levá-lo até os dragões... Mas mesmo que o escondêssemos, ele sempre seria achado. O livro parecia querer isso, ser encontrado e usado para causar mais mal.
Oferecer mais poder a alguém com um coração corruptível.
Deitei-me no peito de Hasan e fechei os olhos, deixando as preocupações de lado apenas por um instante. Tínhamos conseguido algo quase impossível, então podíamos nos dar ao luxo de dormir em paz pelo menos por aquela noite.
Capítulo 22
A alegria misturada com tristeza da noite interior foi substituída por uma felicidade radiante quando acordei de manhã, e ao descer com Hasan até o salão principal, encontrar uma mesa enorme de café e ver quase todos os rostos familiares ali.
Vovô e vovó, Karin, Lórien, Medras, Nyu, Siorin e Scath, meus pais, Sirius e Áries! Com exceção de meu irmão que ainda não devia ter acordado pois no Vale da Lua ainda era cedo demais, estavam quase todos lá, conversando, falando sobre tudo que tinha acontecido desde que Ewren e Leona ficaram presos no círculo. Coisas que eu estava curiosa também.
Levou vários minutos para que eu pudesse abraçar todos, especialmente vovô e vovó, mas fiz o impossível para ignorar os olhares de minha mãe a cada um que apertei um pouco.
Ouvi sobre o que tinha acontecido, fiquei sabendo da real história por trás da morte do bebê de tia Asahi, que alimentara a magia que prendia vovô e vovó com seu tempo de vida, por eles serem do mesmo sangue. O feitiço só foi quebrado quando a menininha morreu nos braços dela no dia anterior.
Aquilo me apertou o coração, Asahi não quis estar ali, ela preferiu ficar com Eirien e Farah em Alamourtim, não estava bem para participar da reunião, mas Karin garantiu que ela ficaria bem, que ela tinha uma alma boa e forte.
Mesmo assim, teria feito bem a ela saber que todos estavam ali e a apoiariam.
Quando pensei em pedir a Hasan para que fossemos buscá-la, um portal se abriu no meio da sala e Fares apareceu com Hestia agarrada a seu braço e Asahi no outro. Deuses! Seria difícil me acostumar com meu irmão naquele corpo feminino, mas ele estava tão feliz!
Ele vinha com um sorriso radiante, num vestido vermelho vibrante e os cabelos cacheados presos num rabo alto, Hestia estava mais neutra, com aqueles fios ruivos curtos e rebeldes soltos e um vestido azul escuro. Asahi parecia um pouco abatida, mas abriu um sorriso fraco ao ver todos ali.
Fares sussurrou algo para ela e esfregou seus braços antes de acomodá-la ao lado de Leona e Ewren. Pelo visto, ela ficou mais aliviada com o abraço da mãe.
Não deixei de reparar no olhar de minha mãe para mim novamente.
Porém o olhar dela se voltou para eles, para o beijo que Fares, Leonne como ela queria ser chamada, deu em Hestia. Mãe das águas! Nikella fez a mesma expressão que Ceiran tinha ao encarar meu irmão dentro da sala no dia anterior.
Susano mantinha um braço firme ao redor de sua cintura, e ela mantinha o olhar psicótico na bruxa.
? Poderia dizer que é um prazer conhecer minha futura sogra, se ela não tivesse culpa da maior parte dos traumas de minha melhor amiga. ? Hestia soltou no meio da conversa, silenciando mais da metade das pessoas na mesa.
Meu rosto queimou e a bruxa que estava ao meu lado, de frente para minha mãe, passou um braço sobre meu ombro e me deu um beijo sob a orelha, beliscando minha bochecha.
Hasan mudou de cor, adquirindo um tom ainda mais dourado nas bochechas.
Leonne também, mas ela abraçou mais a bruxa, puxando-a de perto de mim, o que fez Hestia rir. Por fim, para mudar o assunto, Leonne com um sorriso enorme no rosto contou o motivo da cara feia do grão bruxo para ele, Hestia estava grávida. Eghan tinha descoberto na noite anterior, mas não tinha dito nem mesmo para ela, só para o pai. Por isso meu irmão estava tão confuso com a expressão raivosa de Ceiran.
As duas estavam tão felizes! Pois mesmo que Fares tivesse sacrificado a sua família grande com Hestia, eles ainda tiveram aquela chance. Karin comentou sobre seus filhos adotados além dos biológicos, que não estavam na reunião por causa do começo das provas da ACV de Ciartes.
Quando questionei a Lórien sobre as aulas em Vegahn, ela riu, dizendo que havia deixado Summons para os professores que estavam ali na reunião.
As conversas mudavam de ritmo e reações conforme os assuntos variavam, entre as academias, como foram os anos desde que o castelo caíra, e até mesmo sobre futuros planos.
Minha mãe falava com Lórien sobre a possibilidade de voltar à direção da ACV assim que as férias de outubro acabassem, pois ela teria uns meses para se pôr em forma novamente. Papai parecia um pouco preocupado com a reação das pessoas ao retorno deles, porém Hasan garantiu que todos poderiam se acostumar com seus Eus verdadeiros se eles resolvessem mostrá-los.
Não mais os vilões que tomaram os mundos com sombras.
Mas os amigos que queriam o melhor dos mundos.
Lórien, é claro, ficou radiante com a notícia de poder voltar à Amantia e se livrar do fardo da ACV. Ela deu um daqueles “pitis” a lá Lórien por não precisar mais esconder os cabelos brancos de resolver problemas com alunos chatos e elaborar as provas.
Lupinus e Nelin a frustraram ao dizer que estavam pensando em abrir uma ACV em Amantia também, ali em Esperas, com a autorização de Hasan. A surpresa foi quando ele autorizou a reestruturação da fortaleza para isso, já que quase não vivia ali desde que começara a lecionar em Vegahn e não tinha intenção de sair de lá.
Ele então comentou com Hestia sobre a possibilidade de pessoas de fora viverem no vale, o que fez meu coração disparar loucamente. O Solaris me deu um sorriso divertido ao pressionar o polegar no interior de meu braço, mostrando por fim as marcas de raios dourados ao redor de meus dedos e pulso.
Papai surtou.
Ewren e Leona olhavam para Hasan chocados. Nós não havíamos dito nada sobre termos um relacionamento. Leona acabou se juntando a Susano numa guerra contra nosso relacionamento, e vovô ficou ao lado de minha mãe, nos defendendo.
Já irritada com a discussão, Áries deu uns gritos, mandando cada um cuidar de suas vidas, pois eles não sabiam o que havíamos passado, e como ninguém ? NINGUÉM ? discutia com Áries, o assunto se deu por encerrado.
Depois que a refeição acabou, quase na hora do almoço, Leonne me cutucou com os nós dos dedos como fazia quando queria que eu fosse a algum lugar com ela.
Saímos do salão de fininho enquanto a discussão que ganhava nova força era sobre o castelo de gelo ser refeito, não tinha dito ainda para ninguém além de Hasan que Eileen e eu já o tínhamos reconstruído.
Leonne abriu um portal assim que saímos da sala, levando-me para um lugar que eu não esperava.
O templo Cyfar estava deserto quando entramos. No fim do salão, sobre a pedra negra cerimonial havia uma caixa de prata, e uma barreira espiritual ofensiva, assim como um Hati circulando ao redor da mesma. O lobo farejou ela e desapareceu junto com a barreira quando Leonne acariciou suas orelhas. Ela me deu um olhar preocupado e apontou com o queixo para a caixa.
? Eu tentei tudo que podia... mas nada que eu fizesse fez o livro desaparecer! ? Leonne bufou ? Não acho que exista algum lugar seguro para escondê-lo.
? Não, não há. ? sussurrei, aproximando-me da caixa. ? Mas talvez...
“Faça o que os outros não fizeram antes, princesa, ou o ciclo será sempre renovado.” As palavras de Aristes voltaram à minha mente.
Olhei as marcas no chão do templo. Os símbolos, as marcas de mago que carregávamos e as tatuagens Cyfar que marcavam nossa pele.
Voltei a encarar minha irmã, a ideia ganhou espaço em minha mente, e soube imediatamente o que poderia fazer para que o livro não fosse mais lido.
? Eu sei o que fazer. ? murmurei, andando até o altar. Tirei o livro de dentro da caixa e o abri, colocando-o sobre a pedra negra espelhada talhada com feitiços de proteção.
? Kiara? ? Leonne franziu o cenho, eu tinha colocado ambas as mãos sobre as páginas abertas.
Eu jamais poderia aprender a ler élfico marbh. Ou aquilo tudo poderia dar muito, muito errado.
? A biblioteca do fogo replica livros escritos em seus idiomas de origem, então eles não podem ser lidos por quem não os conhece. ? sussurrei encarando as palavras nas páginas, que para mim não passavam de um emaranhado de símbolos confusos. ? Eu posso ter o livro guardado em minha mente, e ele estará seguro, pois não saberei ler.
? É arriscado. ? Leonne arquejou ao se dar conta do que eu faria. ? Kiara! ? Ela agarrou meu pulso, afastando-me do livro.
? Tão arriscado quando o pagamento que você fez para trazê-los de volta, e eu não tentei te impedir. ? Ela mordeu os lábios e fechou os olhos apertados, então deu um passo para trás, cobrindo a boca com as mãos.
Coloquei meus dedos sobre as páginas e fechei os olhos, concentrando-me no que queria fazer. Tinha que ser específica, ser mais esperta que o feitiço que certamente evitava que o livro fosse danificado.
O queria em minha mente, apenas meu, para que eu fosse a única a poder acessá-lo, mas sem jamais poder usá-lo. Eu criaria uma barreira ao redor da lembrança de cada uma de suas palavras e o isolaria no fundo de minha mente, para que nem eu mesma me sentisse tentada a abri-lo.
Senti o chão vibrar ao meu redor. Um vento me circulou assim como os raios, gelo e escuridão que giraram num cone de magia ao meu redor.
Meu coração disparou. O livro sob meus dedos começou a transformar-se em pó, um pó fino e iridescente que flutuou ao meu redor e foi absorvido por minha pele, por meus olhos, cabelos... até que uma luz branca e brilhante envolveu minha cabeça.
Então tudo acabou.
Desabei sobre a pedra cerimonial.
? Kiara? ? Leonne chamou, com a voz trêmula. Alguns bruxos curiosos apareciam nas portas do templo, tentando ver o que havia acontecido ali. Me inclinei ainda com o corpo trêmulo e encarei meu reflexo na pedra.
Marcas prateadas no mesmo idioma da capa do livro ainda brilhavam fracamente ao redor de minha testa até que desapareceram por completo.
Tentei me lembrar das palavras do livro, mas ao tentar forçar, senti como se batesse numa parede negra dentro de minha mente. Leonne se aproximou receosa, mas sorriu ao ver que o livro havia desaparecido.
? Deu certo! ? Ela exclamou, apertando-me num abraço ? Kiara, deu certo! O livro se foi! ? Ela gargalhou beijando minhas bochechas.
Ainda temerosa com qualquer custo por aquilo... tentei acessar meus poderes. Estavam lá, minha magia, minhas memórias...
A única coisa que faltava testar era a capacidade de ter crias mestiças de malvarmo e solaris. Mas isso iria deixar mais pra frente.
Um riso contido, mas divertido escapou de mim.
? Acho que agora sim estamos realmente livres. ? falei, apertando meus braços ao redor dele.
? E eu quero uma explicação sobre o que houve aqui! ? Bianca entrou no templo com Ceiran em seu encalço, ambos vieram até nós para puxar nossas orelhas pela confusão. O cone de magia pode ser visto fora do templo e o tremor no chão não foi apenas imaginação minha.
Depois de alguns minutos de explicações, e garantir que não havia acontecido nada, e que nada aconteceria mais para frente também. Leonne e eu fomos buscar tia Gwen, Halles e Caelle, eles precisavam ir até Amantia ver quem tinha voltado também.
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Fazia quase um mês desde que tínhamos os trazido de volta. Papai e Nike permaneceram em Esperas, para treinar com Leona e Ewren, pois todos precisavam de um tempo para se readaptarem à vida fora de suas prisões.
Nossa rotina tinha quase voltado à normalidade, dessa vez, uma normalidade sem o constante medo de uma besta ensandecida de fogo negro surgir para nos matar.
E a prova daquela normalidade foi o fim das aulas na sexta-feira que nos deixou exaustos.
Gwyndion se aproveitou de todas as minhas faltas para me obrigar a treinar como um cão condenado e recuperar todos os dias perdidos, mesmo que fosse em pouco tempo antes das provas de setembro.
Embora Hestia, por motivos óbvios, não comparecesse aos treinamentos físicos mais pesados, ela ainda continuava na ACV para as aulas até o fim do ano letivo. Leonne parecia mais radiante que nunca, completamente à vontade em sua forma feminina.
Lohan não ficou tão irritado ao saber de meu casamento escondido, pelo contrário, aproveitou aquilo o máximo que pode, indo até mesmo esfregar na cara de Alfia, que continuava presa no Primeiro, esperando pelo nascimento do bebê de Awen.
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No fim da noite, depois do jantar e da maioria dos alunos terem ido para suas casas, senti a presença de minha mãe antes de saber que eles resolveram fazer uma visita surpresa e saber como estavam as coisas por ali.
Isso me lembrou que ainda havia um reencontro pendente.
Passei pela sala de cura procurando por alguém antes de ir até a sala de Lórien ter uma conversa com eles.
Ao entrar lá, dei de cara com minha mãe sentada à mesa de vidro com o mapa de Blizzion. Ela tinha um sorriso contido, mas animado no rosto. Nike combinava com o ambiente de uma forma inexplicável, talvez por aquela academia ter sido fundada ali por ela e pelo seu desejo de proteger as pessoas.
Susano e Hasan, sentados sob a janela com a visão do pátio principal, conversavam tranquilos quando entrei. Hasan me deu um sorriso de lado, daqueles que prometia algo além de sua agradável presença mais tarde. Susano no entanto, revirou os olhos e perdeu sua expressão tranquila, ele não parecia que iria aceitar aquilo tão cedo.
? Kiara ? minha mãe me observou, sua expressão, porém, ficou tensa ao perceber meu nervosismo. Ela se ergueu para contornar a mesa e vir até mim.
? Aconteceu alguma coisa? ? Susano quis saber, levantando-se para vir até mim também.
? Tem uma pessoa querendo ver você. ? Encarei Nikella, ela arqueou as sobrancelhas, curiosa.
A curiosidade deu lugar ao espanto quando segurei o braço de Eileen e ele entrou na sala com Ira enrolado em seu pescoço. Nike escorregou de volta à cadeira e seus olhos vermelhos vidrados encararam Eileen sem piscar. Hasan, entendendo o que precisava ser feito, chamou Susano para dar uma volta no pátio.
A princípio achei que ele recusaria, porém ele tocou gentilmente o ombro de mamãe, ela segurou seus dedos por um instante, encarando-o intensamente. Susano assentiu e lhe eu um beijo na testa antes de deixar a sala sem olhar para trás.
Hasan me contou que dissera a ele que Caalin estava de volta, mas pelo olhar de minha mãe, eles não tinham ideia de quem era.
Mamãe ainda encarava Eileen sem piscar, mas seus olhos estavam marejados.
? Oi, Nike. ? Ele deu um meio sorriso sem jeito, coçando a cabecinha de Ira. O glacio acordou e percebeu minha mãe ali, então pulou dos ombros dele para cima da mesa e seguiu até ela, batendo a cabeça em seu braço, pedindo por carinho.
Ela coçou a cabeça do glácio com as garras sem desviar a atenção do malvarmo ao meu lado. Avaliava a pose, os olhos topázio e aquela trança cinzenta de cabelos caindo sobre o ombro. Porém sua expressão se fechou.
? Prove... diga-me algo que só nós pudéssemos saber. ? Ela exigiu. Queria rir quando ele virou os olhos para mim, lembrando que eu também havia exigido uma prova.
Eileen suspirou e se aproximou mais um pouco da mesa.
? Se disser algo constrangedor, eu vou contar em detalhes o que aconteceu naquele dia que você invadiu o vale de manhã. Tenha certeza de que não vai gostar. ? Alertei, Eileen fez uma careta e minha mãe franziu o cenho confusa.
Mas ele a encarou, sentou-se em sua frente e suspirou:
? Lembra-se do dia que fomos a Rodsen, para invadir o castelo de Hobner e tentar descobrir sobre o guardião que guardava o estoque de armas de vitrino dele? ? Minha mãe perdeu a cor ? Eu te dei uma garrafa de chocolate quente com avelãs, você disse que eu tinha ganhado muitos pontos por aquilo. E quando eu quis saber o que eu ganhava com os pontos, você disse que era surpresa e eu nunca soube qual era a surpresa.
Nikella começou a chorar. Ela cobriu a boca e chorou de soluçar movendo a cabeça para os lados, tentando negar que era real. Em dúvida se devia se aproximar ou não, Eileen ficou parado sem saber como reagir, porém a tristeza em seu rosto me fez querer chorar também.
Mas eu engoli o choro em choque, pois ela se levantou, contornou a mesa e o abraço apertado. Ira incomodado com toda a movimentação pulou para o sofá, achando uma pose emboladinha para cochilar.
? Nike... Eu queria pedir desculpas por tudo de errado que fiz, pelas escolhas que tomei e que te fizeram pensar que eu não a amava, por não ter escolhido você, mas principalmente por ter te deixado, por não ter lhe dado o que prometi. ? Ele sussurrou ? Mas também queria sacudir você! Não podia tê-la tratado assim! Era nossa filha!
? Caalin... Eu sinto muito! ? Ela se afastou apenas um pouco para conseguir encará-lo, mesmo com as grossas lágrimas que corriam por seu rosto ? Eu fiz de tudo pra proteger você, levei meu juramento de guardiã até o fim, eu fui embora pra te manter seguro dele, e no fim, quando achei que estava tudo bem, você me perdoou só pra morrer! Eu FIZ TUDO QUE PUDE E MESMO ASSIM VOCÊ MORREU! Eu não consegui proteger você! Eu falhei! ? Ela soluçou, apertando as mãos em seus braços. Com medo, percebi, dele desaparecer sem que ela dissesse aquilo.
Não eram só lágrimas, seu coração se abriu e assim como Hasan fizera ao falar sobre Serena, ela queria se livrar daquela dor que não conseguia colocar para fora.
? Eu falhei com você, e você se foi, e a deixou comigo... E eu não conseguia olhar pra ela sem me lembrar de que você não estava ali! E que eu tinha a chance de vê-la depois de quase tê-la perdido... E você não! ? Ela confessou num sussurro, suas mãos tremiam.
? Então porque a tratou daquela maneira, Nike? ? Eileen perguntou, tocando gentilmente sua bochecha.
Agradeceria mais tarde por Hasan ter tirado Susano dali.
? Porque eu não aprendi a lidar com a minha culpa e não me sentia digna te receber qualquer afeto dela quando você não poderia mais. ? Pisquei, incrédula.
Eu podia facilmente aceitar que ela não me amasse por alguma lembrança ruim de meu pai.
Mas era difícil imaginar que ela rejeitara minha aproximação por se sentir culpada e recebendo algo que outra pessoa não podia ter.
Como eu com as asas de Senrys.
? Devia ter feito o contrário. ? Eileen suspirou ? Aproveitar a chance que teve, dela ter ficado com você.
? Eu... levei muito tempo..., mas percebi isso e me arrependo, embora meu arrependimento não possa voltar o tempo. ? Nike baixou os olhos, recebendo outro abraço dele.
Ela havia se curado dele, porém fechou a ferida sem limpá-la. E agora o que doía mais era reabrir para que se curasse por completo.
Como poderia não a perdoar por aquilo?
? Você voltou apenas para se desculpar? ? Nike quis saber, Eileen no entanto riu e meneou a cabeça negativamente.
? Eu voltei também para cuidar de minha filha. Pedi para voltar no minuto que a vi colocá-la para hibernar. ? Ele retrucou ? Se tivesse chegado antes, eu a teria roubado para criá-la e ainda teria gritado com você.
Minha mãe soluçou, fechando os olhos com força.
? Susano teria te chutado de volta para Mogyin. ? Ela riu.
? Ele com certeza tentaria.
? Estou perdoada? ? Nike quis saber e pela primeira vez fiquei com pena, e me senti tentada a lhe dar um abraço. Ela o olhava com uma expressão indecifrável.
? Jamais guardaria qualquer mágoa de você. ? Ele sorriu.
Eileen se afastou, estalando os dedos para que Ira o seguisse, o glácio porém só se esticou no sofá, ignorando-o. Eileen revirou os olhos e contornou a mesa para pegá-lo, e ao passar por mim, deu um beijo em minha cabeça.
? Vá até o vale amanhã cedo! ? avisei antes que ele saísse da sala.
? Se Glyph não me arrastar para Madras ? Ele revirou os olhos e mostrou a língua quando comecei a rir ? Não riria se fosse você a andar pela cidade quando ela faz compras!
Ele saiu antes que eu encontrasse algo ruim o suficiente para comparar.
Minha mãe, no entanto, permaneceu ali de pé e respirou fundo com os olhos ainda fechados. Se pudesse ver além do visível, teria enxergado o peso de uma vida deixando seus ombros.
Quando ela os abriu, deu um passo relutante, mas cheio de esperança em minha direção.
? Não disse aquilo por achar que eu te perdoaria caso estivesse ouvindo, não é? ? Ela meneou a cabeça negativamente.
? Duvido muito que se encante com palavras. Você puxou demais dele para cair num truque desse nível. ? Ela deu de ombros. Tentando parecer menos emotiva do que estivera antes ? E você já disse que me perdoava, só que não tinha esquecido.
Ela se sentou no tampo da mesa e olhou para fora, para um par de asas de fogo que passou perto da janela, uma convocação sutil de Hasan. Nike me encarou com as sobrancelhas erguidas.
? Eu quero conhecer você, a pessoa maravilhosa que sei que é, para ter conseguido puxar ele para a superfície. ? Ela deu um meio sorriso ? O chamei para cá com a ideia de que ele pudesse se animar um pouco, longe daquela fortaleza deserta cheia de lembranças dela. Mas ele não mudou muito.
? Tem pouco tempo que ele está assim. ? comentei, na verdade, podia muito bem lhe dever aquele perdão, pois se ela não tivesse o levado para Vegahn, eu não teria minha chance. ? Vai voltar para Amantia? ? quis saber.
Ela assentiu, vendo Susano se aproximar também, voando ao redor do prédio, e acabou sorrindo para aquilo.
? Eu... preciso agradecer por isso. Por não desistir de nós e nos dar uma chance de viver outra vez. ? Nike suspirou. Eu me aproximei devagar, notando sua expressão tensa e... esperançosa.
Então a abracei apertado e meu peito ficou pequeno, espremido por segurar a vontade de chorar um pouco mais. Ela estremeceu e fechou os braços ao meu redor, mas ao invés de chorar, ela riu e apoiou a cabeça em meu ombro. Senti as lágrimas pingando em minha pele.
? Não sabe o quanto esperei pela chance de fazer isso. ? disse.
? Eu também. ? sussurrei.
Ficamos ali por alguns instantes naquele abraço, deixando morrer com ele todas as dores que nos impediam de tentar mais uma vez.
Mais um par de braços se fechou ao nosso redor. Susano beijou nossas cabeças e suspirou, apertando o suficiente para que eu perdesse o ar.
? Só não abraço também porque sei que Susano vai me empurrar. ? Hasan brincou, mantendo-se perto, mas longe do alcance das mãos dele.
? É um momento de família. ? Susano rosnou.
? Não vai mesmo querer que ele te responda a isso! ? lancei um olhar feio a Hasan, ele mordeu a boca evitando rir.
Os dois me soltaram logo em seguida, despediram-se para voltar à Amantia, uma vez que ainda precisariam continuar os treinamentos para se adaptar aos Summons e reaver as forças totais de seus corpos. Eles partiram num túnel branco, deixando a sala com um ar um pouco mais alegre que antes de chegarem.
? Você está bem? ? Hasan se aproximou, descendo os dedos por minha cintura e dando um beijo seguido de uma mordida suave em meu pescoço.
? Fica difícil dizer qualquer coisa ruim com você assim. ? Me virei e envolvi seu pescoço com os braços, lhe roubando um beijo. Ele respondeu à provocação puxando minhas pernas para prendê-las ao redor de sua cintura e meteu a língua em minha boca, fazendo-me soltar um suspiro pesado.
? Eu não consegui fazer jogo duro com ela. ? Hasan sorriu.
? Você é gentil demais para negar perdão a alguém, Eish-amir. ? Ele deslizou a boca pela curva de meu maxilar e fechou os dentes em meu queixo ? E eu acho que você precisava disso também. Dar o perdão a alguém, Kiara, é tão libertador quanto recebê-lo. ? Ele tocou os lábios quentes nos meus, tão levemente que me fez estremecer.
Seus dedos enrolaram-se em meus cabelos, arqueando meu pescoço para me beijar lentamente, numa provocação crescente e doce ao enrolar a língua na minha.
? Lórien pode voltar...
? Não tem mais ninguém além de nós e dos guardas.
? Assim fica difícil conversar. ? arfei. Ele me colocou sentada sobre a mesa e riu baixo.
? A ideia é essa, Eish-amir. ? Ele escorregou os dedos por minhas pernas, subindo-os lentamente enquanto me dava vários beijos curtos. ? Eu acidentalmente peguei um pensamento interessante seu a algum tempo, antes de você ir buscar o fragmento dos dragões. ? disse, trilhando outra linha de beijos de minha boca ao meu ombro, circulando os nós dos dedos em minhas costelas.
? Um pensamento interessante? ? murmurei prestando pouca atenção em suas palavras e mais naqueles toques.
? Sim... um muito interessante. ? Hasan colou o corpo no meu, pressionando o quadril contra mim. ? E eu gostei tanto dele, que comecei a fazer uns planos. Só estive esperando a hora certa para lhe contar.
Meu coração acelerou, ele ergueu o vestido um pouco mais.
Então me lembrei do que estava pensando naquele dia, depois do ataque de Cedric, quando conversávamos sobre Caelle e o fragmento. Meu corpo formigou, Hasan percebeu que eu estava tremendo e seu sorriso aumentou.
? Eu pedi à Ceiran que nos casasse no Vale da Lua. ? Ele sussurrou, tirando os lábios de meu pescoço para me encarar ? Numa cerimônia bonitinha dos bruxos, e ele me deu autorização para que tivéssemos uma casa lá, até escolhi um lugar. É claro que ele me pediu algo em troca, que pudéssemos auxiliar Hestia ou Eghan quando eles escolhessem um dos dois para liderar o clã.
Meu coração bateu descontroladamente.
? O quê? ? foi tudo que consegui dizer. Eu só podia estar sonhando.
? Não é sonho, Eish-amir. ? Ele garantiu ? E se fosse o sonho de alguém aqui, seria meu, pois você se permitiu criar essa esperança. Mas eu jamais sonharia em ter alguém como você. Nunca poderia sequer imaginar que poderia ter um amor assim.
? Eu... ? Ele me silenciou com um beijo, mais cheio de carinho que qualquer outro.
? Você quer casar comigo outra vez? ? seus olhos estavam dourados, brilhando ? Com aqueles votos bonitos e muito convenientes dos Cyfars, só que para todos verem?
? É claro que sim! ? comecei a rir, apertando-o tão forte que ele tossiu e riu também. ? Isso vai além de tudo que imaginei, Hasan.
? Ah! Com toda certeza! Você jamais sonharia que conseguiria me conquistar depois dos foras que eu te dei.
? Eu não esqueci deles. ? bufei. O solaris segurou meu rosto com as mãos e me beijou mais uma vez.
? Obrigado por ser teimosa e não ter desistido, Eish-amir. ? Ele me pegou no colo, tirando-me da mesa. ? Eu nunca vou me arrepender de você.
? E agora? ? quis saber, pelo visto não ia rolar nada na sala de Lórien.
? O Vale do Sol não é tão longe, podemos ir voando. Quero ver suas asas pois você nem pensou em mostrá-las para mim!
Meu rosto esquentou, então despertei aquela magia, abrindo minhas asas pálidas e azuladas, Hasan sorriu, deslizando os dedos pela membrana, fazendo-me estremecer.
? Vai ser um voo longo, ainda não me acostumei com as asas, só as usei duas vezes. ? Ele sorriu.
? Temos a noite toda, Eish-amir, e todas as outras depois dela... mas só depois que você receber o uniforme negro. ? Pisquei incrédula.
? O quê? ? Ele riu de forma cruel e me colocou no chão.
? Ah, sim! Só vamos nos casar lá se você passar pela próxima prova, se não, teremos que esperar até dezembro, ou julho do ano que vem. Regras de Lórien!
? Hasan! ? ralhei, mas ele já tinha aberto a janela e saltado para a noite. Ele planou próximo as vidraças e moveu um dedo, me chamando para fora.
? Se chegar por último no vale, vai perder minha surpresa!
? Só pode ser brincadeira! ? resmunguei, pulando da janela em direção ao pátio central, abri as asas voei, ganhando altitude até vê-lo fora das muralhas, seguindo na direção que ficava o vale. Ele tinha falado sério!
Soltei o ar irritada e o segui, tentando alcançá-lo.
Eu arrancaria a surpresa dele de um jeito ou de outro.
Epílogo:
O último dia de setembro não podia ter começado melhor.
Os sóis brilhavam acima das muralhas, transformando os pingentes congelados da árvore branca brilhando como um lustre de cristal. Até mesmo a neve fresca que caíra no fim da madrugada parecia ter um brilho especial naquela manhã.
O pátio estava lotado de venairens, uns de caras feias, outros, como eu, mais do que felizes. Não podia estar com um sorriso maior no rosto ao me posicionar ao lado de Lohan, Hestia e Helleon numa das três filas posicionadas no degrau superior em frente ao prédio principal.
Nós recebermos nossos uniformes negros e os broches do venox locam das mãos de Lórien e seríamos a última formação a fazê-lo, pois minha mãe assumiria a direção da ACV no ano seguinte.
Nikella estava na primeira fila do corpo docente ao lado de Hasan e Susano, usando um uniforme cor de chumbo e um bracelete prateado de mestre auxiliar. Gwyndion ao lado dela, de vez em quando comentava coisas que a faziam dar sorrisos assustadores, talvez contando segredos a ela sobre sua experiência como mestre, pois ela assumiria suas aulas de sobrevivência. O bruxo também não ficaria para o ano seguinte, o vale o chamava de volta.
Susano iria assumir o lugar de Leonne, por mais que minha irmã insistisse em ficar como mestra, ela receberia a coroa de gelo em breve e não poderia assumir um posto como aquele sem ter que se dividir em duas para dar conta das duas tarefas, nem sabíamos como Ederon se virava!
Isso sem contar com Hestia e o bebê que chegaria logo, a barriga grande pouco escondida pela bata que vestia provava aquilo. A bruxa quase surtou quando a levei com Leonne, para ver o castelo de gelo refeito.
Leonne chorou por longos minutos até se acalmar, mas voltou a chorar pois lhe disse que tinha recuperado o vestido de casamento de mamãe. Ela se casaria e seria coroada com ele em poucas semanas, quando Aliver estaria de volta de uma viagem.
Já eu com meu treinamento completo, sairia dali direto para o Vale da Lua. Nem conseguia mais esconder minha felicidade, pois Helleon fizera o favor de me contar que o templo estava sendo arrumado para alguma festa naquele fim de semana.
Aquilo explicava o motivo de Hasan ter me questionado sobre deixar Eileen viver no Vale do Sol, mas que ele soube disfarçar muito bem usando a vovó Mikale como desculpa. Porém Eileen ficou radiante quando fui até Catadh oferecer a casa a eles.
Glyph agradeceu por horas pelo lugar sem neve para ficar com a vovó. A elfa tinha escolhido permitir que seu tempo corresse normalmente, mas ela ainda teria muitos anos pela frente, mesmo ao deixar sua imortalidade para trás. O que lhe seria prolongado agora por ter um lugar mais ameno para estar, sem deixar seu amado mundo de gelo.
Não sabia até então que Mikale tinha sido casada com um malvarmo, do exército de Cahadris e que se desfez de sua imortalidade para poder acompanhá-lo no além. Seus filhos eram mestiços, e se casaram com outros malvarmos, por isso Glyph tinha um nível de magia de cura superior sem ser uma maga.
Voltei de meus pensamentos soltos por um beliscão de Lohan. Lórien vinha pela fila de venairens, entregando-nos os uniformes e os broches. Lohan se curvou um pouco ao receber o manto negro, e me lançou um olhar divertido:
“Nem vou poder experimentar esse, preciso ir buscar Nedyle para uma festa logo mais!”
Meu rosto esquentou e quase não tive forças nos braços para levantá-los e receber o manto.
? Mesmo com todas as minhas artimanhas, não é? Tinha mais é que estar feliz mesmo! ? Lórien deu uma risadinha e seguiu em frente, Helleon quase não teve reação ao receber suas roupas, mas Hestia deu pulinhos, abraçando o uniforme.
Mordi os lábios para evitar rir.
? Para alguns que se despedem de nós hoje, esse pode parecer o fim de seus treinamentos ? Lórien começou seu discurso de despedida para os venox formados, os que fizeram cem por cento na última prova em Ciartes ? Porém a vida vai lhes ensinar muito mais! Terão vitórias, derrotas, e principalmente escolhas difíceis que parecerão certas na hora, porém erradas quando tomadas. E está tudo bem errar, pois os erros nos ensinam mais do que os acertos, e vocês sabem disso melhor que ninguém.
Muitos riram e assentiram.
? Procurem escutar seus corações, aceitar seus erros como vitórias e não se esqueçam jamais que um grande destino só é alcançado com pequenos passos, um pé diante do outro.
Lórien nos dispensou sob os aplausos sinceros de todos nós, e deixou o pátio seguida por alguns mestres, aliviados com as férias que viriam a seguir.
Hestia e Leonne me agarraram antes que eu pudesse ir até onde Hasan conversava com Sirius, Honén e Awen. Leonne nem me deixou tentar chegar lá, ela me puxou para o lado oposto onde abriu um portal e nos arrastou para ele quase dando pulinhos de alegria.
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? Fique parada! Eu vou acabar tirando uma mecha inteira de cabelo da sua cabeça, menina! ? Ellyn ralhou enquanto tentava criar um penteado em meu cabelo sob a supervisão de Mavis. De algum modo, as bruxas tinham conseguido trabalhar uma tiara de flores de jade azuis em meus cabelos, trançando as mechas entre os pequenos caules arroxeados das flores. Hestia e Amanda discutiam sobre remover ou não a cauda de meu vestido, pelo risco de Caelle pular em cima dela quando eu entrasse no templo. Por fim, decidiram não colocar, só para evitar acidentes.
Elas não queriam me deixar ver até que eu estivesse pronta. Depois de mais de uma hora sentada para fazer o cabelo, quase chorei aliviada ao me levantarem para me colocar no vestido.
Queria abraçar quem teve a ideia dele! Porém, ao ver o corte perfeito e simétrico das várias camadas onduladas de organza negra da saia. O longo decote em “V” que ia até pouco abaixo de meu estômago cheio de pétalas azuis claras e escuras, bordadas com cristais turquesa ao redor do mesmo e na emenda da saia com o a parte superior, soube de quem era a obra de arte.
Frani.
Já estava me corroendo para olhar minha aparência no espelho, mas Hestia não me deixou levantar da poltrona em frente à penteadeira de Ellyn. Elas cobriram o espelho com uma manta e ficavam dando gritinhos empolgados só para me provocar.
Hestia estava quase terminando de pintar aquelas luas e estrelas em meu braço direito e ombro, quando Ceiran começou a gritar lá debaixo que Hasan ia me largar no altar pela demora. As bruxas o xingaram, mas quando achei que me deixariam ver como estava, elas simplesmente me guiaram para fora do quarto e dessa vez, fui eu quem comecei a dar gritinhos só que frustrada.
Saímos da casa sem pressa, mesmo que talvez estivéssemos atrasadas, afinal, o sol estava quase desaparecendo atrás das montanhas.
Em poucos minutos chegamos à ponte para o templo, a cada passo meu coração parecia prestes a parar, ou disparava enlouquecido. Podia ver pessoas olhando curiosas até pelas janelas do templo, o lugar estava cheio!
Mãe das águas.
? Continue andando, Kiara! Não se atreva a surtar agora!
? Está mais para acordar agora. ? rebati, Hestia revirou os olhos, firmando o braço ao redor de minha cintura.
? Se fosse sonho, ao invés de estar casando com Hasan, você ia chegar no altar e ia encontrar um pêssego gigante vestido com casaco de pele! ? Quase parei no meio do caminho para olhar minha amiga nos olhos. ? O quê? Já tive um sonho assim, te conto depois! ? Ela gargalhou, levando-me até a porta do templo... onde Susano me esperava com o braço estendido.
Pelo jeito, tinham adaptado pelo menos aquela tradição por ele.
Susano piscou para o vestido e seu rosto se encheu de cor.
? Eu vou é te levar embora! Nem pensar que vou te entregar para ele! ? Hestia riu e entrou no templo aos pulinhos, para sentar-se perto de Leonne e mamãe. Não podia ver quase nada lá dentro, uma vez que vários véus bordados com os símbolos das barreiras protegiam a entrada.
? Pai! ? ralhei. Ele soltou um suspiro pesado e tentou sorrir.
? Não vou fazer isso, claro, embora quisesse muito. Muito mesmo. ? revirei os olhos e por um instante, deixei que ele aceitasse o momento. Susano se inclinou para beijar minha têmpora e sussurrou algo para si antes me entregar um pequeno buquê de mais flores azuis e se posicionar ao meu lado para entrar.
O que soou como “que os deuses me ajudem”.
A primeira coisa que reparei ao passar pelos véus, foi no chão do templo coberto por um tapete de escuro e felpudo, evitando que meus pés descalços tocassem o chão. Presas aos arcos de pedra escura no teto do templo, longas tiras de tecidos leves movidas pela brisa suave, dançavam sobre as cabeças dos convidados.
Com apenas um corredor livre até o altar, os convidados que estavam sentados de pernas cruzadas sobre almofadas dispostas por todo o salão. Eles me observavam curiosos enquanto entrávamos, embalados pelo canto de Demétrius e Melanie, a melodia suave dos sereianos deixaram meus passos cada vez mais leves.
Todos estavam ali, desde Lohan, seus pais e Nedyle, Owyn e Hugre, até mesmo as trigêmeas com vovó Leona, Ewren e minha mãe ao lado de tia Gwen com Caelle nos braços. Halles também sorria espremido entre Hestia e Leonne, implicando com as duas.
Porém o que me fez abrir um sorriso grande foi a expressão de Hasan de pé diante de Bianca e Maddox.
Hasan sorriu para mim, os cabelos como fogo vivo estavam soltos, adornados por uma coroa de folhas douradas, ele usava túnica e calça branca bordados em ouro e assim como eu, estava descalço. A felicidade naquele olhar quase me fez acelerar o passo, mas Susano me manteve ao seu lado e não conseguiu esconder o riso, pelo menos daquela vez.
Susano me deixou dar os últimos passos até o altar sozinha, mal enxerguei para onde ele fora, só conseguia enxergar o solaris brilhando em minha frente.
Ellyn me explicara várias vezes sobre o casamento deles, os símbolos e elementos, e como havia visto em outros casamentos de Mardans e Sorcys, fiz uma pequena bola de luz negra surgir na palma da mão metálica, mas a esfera de luz que brilhava na mão de Hasan era dourada e quente. Sorri de volta para ele e me aproximei devagar, tentando não pular em seus braços e o abraçar até ser obrigada a soltá-lo. Ele deve ter visto isso em meus pensamentos, pois mordeu os lábios para não rir.
Bianca chamou nossa atenção discretamente, tamborilando os dedos sobre a mesa de pedra, nem ela conseguia esconder um sorriso.
Passamos por tanto... que aquele dia parecia um dia a ser comemorado por todos além de nós.
Hasan finalmente me deu a mão e permanecemos lado a lado segurando as esferas de luz em frente ao altar. Bianca, de pé diante de nós fez um breve aceno para os sereianos que cantavam. No momento em que Demétrius e Melanie silenciaram, ela começou a falar:
? Luz e trevas, juntas são as forças que unidas compõe e regem nosso mundo, duas contrárias que nos mantém vivos, dia após dia e noite após noite ? Ela colocou as mãos sob as nossas, que seguravam as esferas e as juntou, as luzes se uniram sem se misturarem, ficaram apenas circulando juntas dentro de uma esfera maior. ? Assim como a luz e a escuridão se completam sem afetar uma a outra, serão vocês, a união entre as duas forças! ? Então nos viramos de frente um para o outro. Minha alegria era tão grande que não por um momento esqueci o que vinha a seguir.
? Kiara, eu serei a sua luz do sol, o brilho que ilumina seus dias, o calor que aquece seu coração e afasta suas sombras. ? Ele apertou minha mão gentilmente, passando aquele calor suave para mim.
? Hasan, eu serei a escuridão tranquilizadora que afasta seus pesadelos, a noite refrescante do verão mais quente, a sombra nos dias de sol, a mansidão que sussurra para acalmar sua luz. ? respondi, firmando meus dedos trêmulos contra os seus.
As energias que foram colocadas dentro da bolha se transformaram em dois anéis, um negro com símbolos dourados e outro dourado com palavras negras. Nossos nomes.
Bianca se aproximou de nós, tirando os anéis da bolha. Ela colocou o anel negro na mão de Hasan e o dourado na minha. Ele deslizou aquele anel em meu dedo, por cima das marcas douradas de raios de nosso momento juntos. Lhe dei um olhar malicioso ao deslizar aquele anel negro por seu dedo, o rosto de Hasan ficou ainda mais brilhante, mas ele não desviou o olhar.
? Estão completos! ? Bianca finalizou, apertando nossas mãos juntas, passando um laço ao redor delas. Precisava manter o laço ali até o final das festividades à meia-noite. Hasan beijou nossas mãos juntas, e todos que assistiam aplaudiram e se levantaram para nos seguir até o outro lado da ponte, onde a festa de comemoração começaria em breve.
Hasan envolveu minha cintura com os braços e me ergueu, beijando-me como se fosse a primeira vez, com tanto carinho que me fez não querer sair daquele abraço.
? Não tenho palavras para dizer o quanto está linda, Eish-amir.
? Então preciso que as encontre, não deixaram que eu parasse por um segundo na frente de um espelho! ? Hasan riu, depositando um beijo suave em meus lábios. ? Amo você e vou dizer isso por quanto tempo me for permitido ter ao seu lado. ? sussurrei, ciente de que os convidados estavam impacientes, querendo cair na festa. Não me importei em fazê-los esperar algumas palavras a mais!
? Que seja por uma eternidade, então. ? Ele me pegou nos braços e me levou para fora do templo, onde a festa nos aguardava.
? E por isso, posso evitar estragar a festa dessa vez! ? Uma gargalhada divertida escapou de seus lábios.
? Vai ser a melhor eternidade de todas, Kiara!
Somnus – um ano e meio depois.
Kiara:
Tinha acabado de sair do apartamento de Lethan com a recompensa do serviço pedido por Meredith. A vampira havia me contratado para procurar informações de uma pessoa para ela, uma garota humana de um distrito isolado, fora dos limites urbanos de Somnus.
Por mais odioso que fosse ficar ali além de algumas horas, reuni tudo que pude sobre a garota, que não era tão humana assim e só entreguei as informações que pedira após ter certeza de que a vampira não faria nada demais com a garota.
Por fim, já cansada daquelas noites eternas, abri um portal imediatamente para minha casa no Vale da Lua, onde Hasan me aguardava ansioso. Podia sentir seu nervosismo a cada minuto que passei ali através da ligação, mesmo que ela estivesse quase adormecida pela distância.
Sem querer enrolar mais, dei uma última olhada para a janela no alto do prédio e desapareci, deixando que o portal se fechasse atrás de mim.
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Eles:
Na calçada do outro lado da rua onde a garota estivera um momento antes de se esconder e sumir num portal, um homem com vestes de sombra e escuridão, de olhos negros como a noite e sorriso divertido a observava em silêncio através do vidro embaçado da casa quase deserta de chá.
Ele se recostou em sua cadeira e com uma xicara na mão, aguardou sua companhia.
Não demorou para que o mago aparecesse, entrando pela porta da frente, fazendo com que o sininho avisasse sua chegada. Ajeitando os óculos sobre o nariz, ele avaliou o local, encontrando seu companheiro sob a luz minguada do lustre próximo a janela da frente do estabelecimento. O mago seguiu até ele, porém manteve sua atenção no ponto onde a magia da garota desaparecera minutos antes.
Sob o olhar do homem sombrio, o mago mudou de forma, dando lugar a uma mulher de pele cor da lua, cabelos como o sol e olhos dourados. Ela sentou-se diante dele e aguardou por um momento a atendente se aproximar com um bule e servir uma xícara fumegante para ele.
A mulher sorveu um gole e suspirou.
? Como andam as peças de seu jogo, minha filha? ? o sombrio perguntou, avaliando a divindade radiante diante de si. Ela estalou a língua e enrolou uma mecha de cabelo nos dedos.
? Interessante como sempre... eles nunca param de me surpreender! ? Ela respondeu com um sorriso crescente no rosto. ? Nunca achei que dar poder a mortais pudesse ter resultado nisso. ? Ela ergueu a mão, englobando tudo no gesto, em seguida estendeu a xícara para o pai.
? Você trapaceou desde o início da brincadeira ? Ele resmungou, servindo um pouco do creme para ela.
? Eu só passei um pouco de minha luz para Yellen! ? Ela colocou a mão no peito falsamente indignada com acusação do pai ? Fazer as Almas Elementais de minha tia acharem que tinham conseguido criar luz foi ideia sua, se não me falha memória!
Érebo bufou e assentiu.
? E dar meu poder a Higarath através do livro, foi ideia sua. Foi você quem quis deixar o livro para que Fairin e Veruza o encontrassem. ? Ele tomou mais um gole do chá. Hemera sorriu novamente, arrastando os dedos sobre o tampo da mesa. Nenhum humano ou vampiro os viam ali como eram, enxergavam apenas o metamorfo de olhos amarelos e um elfo com cara de poucos amigos ao seu lado.
? Eles não teriam sobrevivido sem luz. ? Ela afirmou.
? E não teria graça sem um pouco de sombras. ? Érebo emendou, sorrindo de forma quase cruel. ? Mas você os ajudou demais, não negue! Os salvou tantas vezes que perdi as contas! Se meteu em tudo, deu palpite em cada coisa desde que Micahl assumiu o trono de Amantia logo após a criação dos mundos. ? Ele bufou ? Mago branco conselheiro...
Hemera gargalhou sem disfarçar.
? Não tem graça observar enquanto as pessoas jogam. Você tem que viver o jogo também! Não se esqueça de que ainda veste o corpo de Haalin. ? Ela concluiu. Bebendo o restante de seu chá, levantou-se e alongou as costas.
? A diferença é que ainda estou preso, caso tenha esquecido ? Ele a olhou feio ? E o jogo acabou, a garota driblou a magia de proteção do livro, ela o absorveu.
? Ela é realmente um cristalzinho perfeito! ? Hemera sorriu com certa ternura, encarando novamente aquele ponto vazio na calçada.
? A questão é... o que pode ser feito agora? ? Ele ponderou enquanto a mesma se virara, preparada para partir, dando de ombros para a pergunta.
? Não se pode fazer nada. Se ela morrer, o livro desaparece para sempre. Ninguém mandou você tirar o conhecimento de sua mente e colocá-lo lá! De qualquer forma, o jogo acabou. ? Ela sussurrou, encarando-o com um olhar severo ? Preciso ir, Leona e Ewren estão me esperando no castelo de cristal, o bebê deles deve nascer em algumas horas.
? Você não pretende deixá-los. Será o mago branco eternamente? Não tem intenção de acabar com sua farsa? ? Ele questionou sério, Hemera sentia o olhar penetrante em suas costas.
? Pra quê? ? Ela olhou por cima do ombro. ? Não tenho nada melhor para fazer ? Hemera deu de ombros ? E já quebramos todas as regras possíveis convencendo e dando magia para sua criança mestiça criar os mundos. E também, são poucos os que comportam mau com o poder, mas muitos estão lá para evitar que esses façam o pior.
? Você se apegou, como se as crias fossem suas. ? Ele acusou, mas não parecia ligar realmente para aquilo. Afinal, dar poder para criaturas comuns e ver o que elas poderiam fazer estava sendo um passatempo para ambos.
? E de fato não são? ? Ela deu um sorriso ? Eu os adotei, todos eles. Muitos já se foram e muitos virão... mas eu vou continuar lá.
A deusa desapareceu num lampejo de luz antes que ele pudesse dizer algo a mais.
Érebo observou mais uma vez ao seu redor e suspirou, ele poderia escolher um novo corpo para habitar e participar mais uma vez daquele jogo, mesmo que sem seu instrumento de discórdia dessa vez.
De fato, era chato observar de fora.
Emilly Amite
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