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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A QUINTA COLUNA / Ernest Hemingway
A QUINTA COLUNA / Ernest Hemingway

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Esta peça foi escrita no outono e no início do inverno de 1937, quando todos estávamos prevendo uma grande ofensiva. Havia três importantes projetos de ataque para o Exército do Centro naquele ano, um deles tendo por objetivo a tomada de Brunete. Levado a termo, começou brilhantemente, mas resultou numa batalha terrivelmente sangrenta e inútil. Esperávamos agora que o primeiro dos outros dois se iniciasse. Isso acabou não ocorrendo, e me vali desse intervalo para escrever a peça.
Todos os dias éramos bombardeados pelos canhões postados à retaguarda de Leganés, nos contrafortes das colinas de Garabitas, e o Hotel Florida, onde vivíamos e trabalhávamos, foi atingido por mais de trinta e oito projéteis de grande poder explosivo. Por isso mesmo, se não gostarem da peça, posso botar a culpa nesse bombardeio infernal; se a acharem boa, direi que aqueles obuses de certa maneira me inspiraram a escrevê-la.
Quando me deslocava até a linha de frente, distante não mais do que mil e quinhentos metros de nosso hotel ao seu ponto mais próximo, eu sempre deixava os originais escondidos e protegidos nas dobras de meu colchão de campanha. Ao regressar, era muito agradável encontrar intactos tanto o quarto quanto eles. Terminei sua redação e os remeti para fora do país pouco antes da tomada de Teruel.
É óbvio que escrevi a peça para tê-la produzida, mas um produtor faleceu logo depois de ter assinado um contrato comigo e viajado para a Califórnia a fim de escolher o elenco. O seguinte, tendo igualmente assinado um acordo, enfrentou problemas na hora de levantar financiamento. Relendo minha peça, achei que ela resistia bem à leitura, independentemente do que pudesse ocorrer quanto à sua montagem teatral. Um dia, quem sabe, aparecerá alguém que se disponha a enfrentar os problemas de sua produção.
O título da peça tem a ver com a afirmação das forças insurretas de que havia quatro colunas militares avançando na direção de Madri, no outono de 1936, e uma quinta, integrada por simpatizantes, que já se encontrava na capital e atacaria seus defensores pela retaguarda. Se muitos membros dessa Quinta-Coluna já estão mortos hoje, é oportuno recordar que morreram em refregas onde demonstraram ser tão perigosos e determinados quanto qualquer uma das baixas sofridas pelas outras quatro colunas.
As forças inimigas que avançavam sobre Madri não tinham o hábito de poupar seus prisioneiros. Da mesma forma, os membros da Quinta-Coluna que fossem apanhados dentro da cidade nas semanas iniciais da Guerra Civil eram também eliminados sumariamente. Com o correr do tempo, passaram a ser submetidos à Justiça e condenados a trabalhos forçados ou à morte, dependendo da gravidade dos crimes que houvessem cometido contra a República. Nos primeiros dias, entretanto, eram sempre fuzilados. Mereciam isso, pelas regras de luta, e por certo o esperavam.
Alguns defensores fanáticos da República Espanhola — note-se que fanáticos jamais conseguem trazer novos adeptos para as causas que defendem — criticarão minha peça pelo fato de ela deixar claro que os membros da Quinta-Coluna eram fuzilados. Dirão também (e já o disseram muitas vezes) que ela não retrata adequadamente a nobreza e a dignidade da causa do povo espanhol. Em verdade, nem tenta fazer isso, pois muitas peças e novelas terão de ser escritas para alcançar tal propósito. As melhores delas só poderão vir a público quando a Guerra Civil tiver acabado.
Em suma: esta peça se ocupa apenas da contraespionagem em Madri, tem os defeitos de um texto escrito durante os tempos de luta e, se é que tem alguma moral da história, comprova ser impossível para alguém que pertença a determinadas organizações a manutenção de um mínimo de vida particular. Uma das personagens é uma moça chamada Dorothy, mas seu nome bem poderia ser Nostalgia.
Bem, talvez seja melhor que você comece logo a ler a peça e que eu termine de falar sobre ela. Só quero acrescentar que se os defeitos encontráveis são frutos de sua redação debaixo de fogo, tal circunstância lhe garantiu certa medida de vitalidade. Mas caberá a você, que vai lê-la, decidir sobre tal ponto. Sua perspectiva será muito melhor do que a minha.

 

 

PRIMEIRO ATO


CENA 1


São sete e meia da noite. Um corredor no primeiro andar do Hotel Florida, em Madri. Há um grande aviso em papel branco, com letras de forma escritas à mão, na porta do quarto 109, onde se lê em inglês: “Working: do not disturb”. DUAS JOVENS, acompanhadas de DOIS SOLDADOS em uniforme da Brigada Internacional, passam pelo corredor. Uma das jovens para e olha para o aviso.

PRIMEIRO SOLDADO

Vamos. Não temos a noite toda.

JOVEM

Que é que diz esse papel?

(O OUTRO CASAL já seguiu pelo corredor.)

SOLDADO

Que importa?

JOVEM

Não, leia para mim. Seja bonzinho. Leia em inglês.

SOLDADO

Veja que azar o meu! Peguei uma intelectual... Que vá para o inferno. Não leio coisa nenhuma.

JOVEM

Você não é bonzinho.

SOLDADO

Quem lhe disse que eu era?

(Recua um pouco e fita-a, as pernas inseguras.)

Será que eu pareço bonzinho? Você sabe de onde é que acabo de chegar?

JOVEM

Pouco me importa saber de onde é que você acaba de chegar. Vocês todos vêm de algum lugar horrível e voltam de novo para lá. Só lhe pedi que me lesse o aviso. Vamos, então, já que você não o quer ler.

SOLDADO

Está bem: vou ler para você. “Trabalhando: não perturbem.”

(A JOVEM ri, um riso alto, áspero.)

JOVEM

Acho bom arranjar um aviso como esse para mim também.

CORTINA


CENA 2


Interior do quarto 109. Há uma cama com um criado-mudo ao lado, duas cadeiras cobertas de cretone, um armário alto com espelho e uma máquina de escrever sobre uma mesa. Ao lado da máquina, uma vitrola portátil. Um aquecedor elétrico está ligado e brilha vivamente, e uma jovem bela, alta e loira acha-se sentada numa das cadeiras, lendo, de costas para a lâmpada colocada sobre a mesa, ao lado da vitrola. Atrás dela, duas grandes janelas com as cortinas corridas. Vê-se na parede um mapa de Madri, e um homem com cerca de trinta e cinco anos, trajando uma jaqueta de couro, calças de veludo e botas muito enlameadas, está de pé olhando o mapa. Sem levantar os olhos do livro, a jovem, cujo nome é DOROTHY BRIDGES, diz, com voz de pessoa bastante educada:

DOROTHY

Há uma coisa que você bem poderia ter feito, querido: limpar suas botas antes de entrar aqui.

(O homem, cujo nome é ROBERT PRESTON, continua a olhar o mapa.)

E me faça o favor de não pôr os dedos nesse mapa. Irá manchá-lo.

(PRESTON continua a examinar o mapa.)

Querido, você tem visto o Philip?

PRESTON

Que Philip?

DOROTHY

O nosso Philip.

PRESTON

(Ainda olhando o mapa.)

Nosso Philip estava no Chicotes com aquela moura que mordeu Rodgers, quando subi a Gran Via.

DOROTHY

Ele já estava fazendo alguma das suas?

PRESTON

(Ainda olhando o mapa.)

Ainda não.

DOROTHY

Mas fará. Ele é tão cheio de vida, tão espirituoso!

PRESTON

Os espíritos estão ficando terrivelmente azedos no Chicotes.

DOROTHY

Suas piadas são tão chatas, querido. Eu gostaria que Philip aparecesse por aqui. Estou com um tédio mortal.

PRESTON

Ora, não me venha com essa frescura de aluna do Vassar.

DOROTHY

Poupe-me de seus insultos, por favor. Não me sinto disposta a ouvi-los neste momento. E, além disso, não sou uma figura típica do Vassar. Não compreendi coisa alguma do que me ensinaram lá.

PRESTON

E você por acaso compreende alguma coisa do que está acontecendo aqui?

DOROTHY

Não, querido. Compreendo um pouquinho a respeito da Cidade Universitária, mas não muito. A Casa del Campo é um completo enigma para mim. E Usera... e Carabanchel. São horríveis.

PRESTON

Santo Deus! É por isso que me pergunto, às vezes, por que é que a amo.

DOROTHY

Também me pergunto isso, querido. Não creio que tenha realmente muito sentido. É apenas uma espécie de mau hábito que adquiri. Philip é muito mais divertido, muito mais animado.

PRESTON

Ele é muito mais animado, sem dúvida. Você sabe o que ele estava fazendo ontem à noite, antes de fecharem o Chicotes? Apanhou uma escarradeira e pôs-se a andar de um lado para outro, benzendo as pessoas com ela. Salpicando todo mundo com aquela porcaria... As chances eram de mais de dez contra um que ele acabaria levando um tiro.

DOROTHY

Isso nunca acontece com ele. Ah, eu gostaria tanto que ele passasse por aqui!

PRESTON

Não se desespere. Estará aqui assim que o Chicotes fechar.

(Alguém bate à porta.)

DOROTHY

É o Philip! Querido, garanto que é o Philip!

(Abre-se a porta e entra o GERENTE do hotel. É um homenzinho moreno e rechonchudo, que coleciona selos e fala inglês de uma maneira peculiaríssima.)

Oh, é o gerente!

GERENTE

Como está o senhor, muito bem, sr. Preston? Como vai a senhorita? Tudo bem, não é? Passei apenas para ver se não está sobrando alguma coisinha qualquer, que não queiram comer. Tudo bem? Todos estão absolutamente confortáveis?

DOROTHY

Tudo maravilhoso, agora que o aquecedor foi consertado.

GERENTE

Em matéria de aquecedor sempre temos problemas. A eletricidade é uma ciência ainda não dominada pelos operários. Além disso, nosso eletricista bebe até ficar completamente estúpido.

PRESTON

Esse tal eletricista nunca me pareceu muito inteligente.

GERENTE

Ele é inteligente. Mas a bebida. Sempre a bebida. No que bebe, perde a capacidade de se concentrar na eletricidade.

PRESTON

Então por que é que o conserva aqui?

GERENTE

E o eletricista do comitê. Francamente, é uma verdadeira catástrofe! Está agora no 113, bebendo com o sr. Philip.

DOROTHY

(Feliz.)

Então Philip está no hotel!

GERENTE

Está mais do que no hotel!

PRESTON

Que é que quer dizer com isso?

GERENTE

Difícil explicar isso diante de uma senhora.

DOROTHY

Telefone para o 113, querido.

PRESTON

Não farei isso.

DOROTHY

Então eu faço.

(Apanha o fone da parede.)

Ciento trece... Alô! Philip?... Não! Venha você para cá. Por favor. Sim. Está bem.

(Recoloca o fone no gancho.)

Ele já vem.

GERENTE

Seria preferível que não viesse.

PRESTON

Está tão ruim assim?

GERENTE

Pior. É muito inacreditável.

DOROTHY

Philip é maravilhoso. Mas de vez em quando anda em companhia de gente horrorosa. Por que será?

GERENTE

Volto mais tarde. Quem sabe, talvez, caso os amigos recebam muita comida e não consigam comer tudo, ela alegre minha casa, onde a família, constantemente com fome, não compreende a falta de comida. Muito obrigado outra vez. Adeus.

(Sai pouco antes de PHILIP chegar, indo quase de encontro a ele no corredor. Fora da porta, ouve-se o GERENTE dizer:)

Boa tarde, sr. Philip.

(Uma voz grave responde, com a maior jovialidade:)

PHILIP

Salud, Camarada Colecionador de Selos. Conseguiu algum selo valioso ultimamente?

GERENTE

(Em tom baixo:)

Não, sr. Philip. Tenho aqui gente vinda de países muito chatos ultimamente. É uma praga o que há de selos americanos de cinco centavos e franceses de três francos e meio. Precisamos é de camaradas da Nova Zelândia, que recebam cartas aéreas.

PHILIP

Oh, eles chegarão. É que estamos de fato numa época muito chata, os bombardeios prejudicam a temporada turística. Haverá muitas delegações quando os bombardeios diminuírem.

(Numa voz em que não havia gracejo:)

O que é que você está querendo?

GERENTE

Sempre quero alguma coisinha...

PHILIP

Não se preocupe. Já está tudo arrumado.

GERENTE

Me preocupo um pouco, da mesma maneira.

PHILIP

Acalme-se.

GERENTE

Não deixe de ter cuidado, sr. Philip.

(PHILIP surge à porta, grandalhão, muito bem-disposto, usando botas de borracha.)

Salud, Camarada Bastardo Preston. Salud, Chateada Camarada Bridges. Como têm passado os camaradas? Permitam-me apresentar-lhes um camarada elétrico. Entre, camarada Marconi. Não fique parado aí fora.

(Um eletricista muito pequeno e inteiramente embriagado, vestindo um macacão desbotado, alpargatas e boina azul, chega à porta.)

ELETRICISTA

Salud, camaradas!

DOROTHY

Salud, ora bolas!

PHILIP

E eis aqui uma camarada mourisca. Pode-se até dizer a camarada moura, a quase inigualável camarada moura. Mas é tremendamente tímida. Entre, Anita.

(Entra uma prostituta moura, de Cueta. Tem pele escura, é bem-feita de corpo, cabelos muito crespos, aspecto rústico e nada tímida.)

PROSTITUTA MOURA

(Defensivamente:)

Salud, camaradas!

PHILIP

Esta é a camarada que mordeu Vernon Rodgers aquela vez e o pôs fora de combate por três semanas. Uma dentada pra valer!

DOROTHY

Philip, querido, será que você não podia colocar-lhe uma focinheira enquanto a camarada está aqui conosco?

PROSTITUTA MOURA

Não desaforo!

PHILIP

A camarada moura aprendeu inglês em Gibraltar. Um lugar encantador, Gibraltar. Tive lá, certa vez, uma experiência bastante incomum.

PRESTON

Não desejamos ouvi-la agora.

PHILIP

Você é tenebroso, Preston. E não está seguindo a linha correta do Partido. Essa fase de caras sombrias já passou, você sabe. Estamos agora, praticamente, num período de júbilo.

PRESTON

Se eu fosse você, não falaria de coisas que ignoro.

PHILIP

Está bem, mas não vejo por que ficarmos sombrios. Que tal oferecermos algo de beber a estes camaradas?

PROSTITUTA MOURA

(Dirigindo-se a Dorothy:)

Vocês têm bom lugar.

DOROTHY

É bondade sua.

PROSTITUTA MOURA

Como não ser evacuados?

DOROTHY

Oh, eu apenas me aguento como posso.

PROSTITUTA MOURA

E como comem?

DOROTHY

Nem sempre comemos muito bem, mas conseguimos algumas coisas enlatadas de Paris, pela mala diplomática da Embaixada.

PROSTITUTA MOURA

Trazem o que nessa mala da Embaixada?

DOROTHY

Você sabe: coisas enlatadas. Civet de lièvre. Foie gras. Tivemos alguns Poulet de Bresse realmente deliciosos. Por intermédio do Bureau.

PROSTITUTA MOURA

Zombando de mim?

DOROTHY

Oh, não! Claro que não. Nós comemos mesmo coisas como essas...

PROSTITUTA MOURA

Eu... somente sopa. Muito rala!

(Fita DOROTHY beligerantemente.)

Que é que há? Não gosta minha cara? Acha melhor do que eu?

DOROTHY

Claro que não. Sou, provavelmente, muito pior. Preston lhe dirá que sou infinitamente pior. Mas não precisamos nos comparar, não acha? Quero dizer, em termos de guerra e tudo o mais... Como você sabe, todos estamos trabalhando pela mesma causa.

PROSTITUTA MOURA

Arranco os olhos, se você acha melhor do que eu.

DOROTHY

(Em tom súplice, mas muito lânguido:)

Philip, por favor, fale com seus amigos e faça com que se sintam felizes.

PHILIP

Anita, vamos com calma, O.K.?

PROSTITUTA MOURA

O.K.

PHILIP

Anita, a Dorothy aqui é uma mulher encantadora...

PROSTITUTA MOURA

No nosso negócio, não existe mulher encantadora.

ELETRICISTA

(Levantando-se.)

Camaradas, me voy.

DOROTHY

O que foi que ele disse?

PRESTON

Ele disse que vai embora.

PHILIP

Não acredite nele. Ele sempre diz isso.

(Para o ELETRICISTA:)

Camarada, você deve ficar.

ELETRICISTA

Camaradas, entonces me quedo.

DOROTHY

O quê?

PRESTON

Ele diz que ficará.

PHILIP

É melhor assim, meu velho. Você não daria o fora e nos abandonaria, não é certo, Marconi? Não. Com um camarada eletricista, a gente pode contar até o fim.

PRESTON

Pois eu pensava que isso somente ocorresse com os sapateiros...

DOROTHY

Querido, se disser outra piada como essa, juro que deixo você na hora!

PROSTITUTA MOURA

Ouçam. Falatório o tempo todo. Não fazem mais nada. Para que viemos aqui?

(Para PHILIP:)

Você vai ficar comigo? Sim ou não?

PHILIP

Você diz as coisas de maneira tão direta, Anita!

PROSTITUTA MOURA

Quero uma resposta.

PHILIP

Pois bem, Anita. O negócio é este: negativo!

PROSTITUTA MOURA

Negativo? De fotografia?

PRESTON

Que bela associação de ideias: quarto escuro, negativo, fotografia! Vocês veem como ela é maravilhosa? É tão primitiva!

PROSTITUTA MOURA

Tirar minha fotografia? Acha eu espiã?

PHILIP

Não, Anita. Bote as coisas no lugar. Quis dizer apenas que não ficarei mais com você. E não é só agora. Quero dizer que a coisa mais ou menos se acabou.

PROSTITUTA MOURA

Você não fica comigo?

PHILIP

Não, minha linda.

PROSTITUTA MOURA

Fica com ela?

(Sacudindo a cabeça na direção de DOROTHY.)

PHILIP

Possivelmente não.

DOROTHY

Para ficar comigo, seria necessário discutir muita coisa antes.

PROSTITUTA MOURA

O.K. Então arranco os olhos dela.

(Vai em direção a DOROTHY.)

ELETRICISTA

Camaradas, tengo que trabajar.

DOROTHY

Que foi que ele disse?

PRESTON

Disse que precisa ir trabalhar.

PHILIP

Oh, não lhe deem atenção! Ele de vez em quando tem essas ideias extravagantes. É como uma idée fixe.

ELETRICISTA

Camaradas, soy analfabetico.

PRESTON

Ele diz que não sabe ler nem escrever.

PHILIP

Camarada, quero dizer-lhe com sinceridade que se todos nós aqui também não tivéssemos ido à escola, estaríamos metidos na mesma entaladela. Não se importe com isso, meu velho!

PROSTITUTA MOURA

(Para DOROTHY:)

O.K. Sim, creio que tudo está bem. Bola fora. Cheerio. Chin chin. Sim, O.K. mas quero dizer apenas uma coisa.

DOROTHY

Que coisa, Anita?

PROSTITUTA MOURA

Tem de tirar aquele aviso.

DOROTHY

Que aviso?

PROSTITUTA MOURA

Pendurado na porta. Trabalhando todo o tempo... não é justo.

DOROTHY

Desde os tempos do colégio, meu bem, sempre tive um aviso desses na porta do meu quarto, e nunca significou coisa alguma.

PROSTITUTA MOURA

Quer dizer que tira ele?

PHILIP

Claro que sim. Não é, Dorothy?

DOROTHY

Certamente.

PRESTON

De qualquer forma, você nunca trabalha...

DOROTHY

É verdade, querido. Mas posso começar a qualquer instante. E ainda pretendo terminar aquele artigo para a Cosmopolitan, assim que conseguir compreender as coisas um pouquinho melhor.

(Ouve-se um estrondo vindo da rua, seguido de um ruído sibilante. Outro estrondo logo depois. Ouve-se também barulho de tijolos e de aço caindo, bem como o espatifar de vidraças.)

PHILIP

Estão nos bombardeando de novo.

(Diz isso de maneira muito tranquila e sóbria.)

PRESTON

Filhos da puta!

(Há rancor e um quê de nervosismo em sua voz.)

PHILIP

Seria melhor que você abrisse as janelas, minha querida Dorothy. Já não há mais vidros para vidraças e, como você sabe, o inverno se aproxima.

PROSTITUTA MOURA

Vai tirar o aviso da porta?

(DOROTHY dirige-se à porta e retira o aviso, removendo também os percevejos com uma lixa de unhas. Entrega-o a ANITA.)

DOROTHY

Fique com ele. Eis aqui também as tachinhas.

(DOROTHY aproxima-se do aquecedor elétrico e desliga-o. Depois, abre ambas as janelas. Há um som como o acorde de um banjo gigantesco e um ruído que se aproxima como um trem vindo em direção às pessoas. A seguir, uma terceira e grande explosão, seguida, dessa vez, de uma saraivada de vidros partidos.)

PROSTITUTA MOURA

Você é boa camarada.

DOROTHY

Não. Não sou, mas gostaria de ser.

PROSTITUTA MOURA

Para mim, você é O.K.

(Estão de pé, lado a lado, sob a luz que vem do corredor pela porta aberta.)

PHILIP

Deixá-las abertas as preserva da concussão. A gente pode ouvir quando as granadas saem das baterias. Preste atenção à próxima salva.

PRESTON

Detesto estes malditos bombardeios noturnos.

DOROTHY

Quanto tempo durou o último?

PHILIP

Pouco mais de uma hora.

PROSTITUTA MOURA

Dorothy, não acha que devíamos ir para o abrigo?

(Há como que outro tanger violento de banjo — um momento de silêncio e, a seguir, a aproximação de um grande zunido, dessa vez muito mais perto, e, ao explodir do pertado, o quarto se enche de fumaça e de pó de tijolos.)

PRESTON

Que diabo! Eu vou descer.

PHILIP

Este quarto está realmente num excelente ângulo. Não estou brincando. Eu poderia mostrá-lo da rua.

DOROTHY

Acho que vou ficar aqui mesmo. Não faz diferença alguma o lugar onde a morte nos vem buscar.

ELETRICISTA

Camaradas, no hay luz!

(Diz isso em voz alta e quase profética, pondo-se subitamente de pé e abrindo os braços.)

PHILIP

Ele diz que não há luz alguma. Esse sujeito está se tornando realmente notável! Como um coro grego eletrificado.

PRESTON

Vou dar o fora daqui.

DOROTHY

Então, querido, quer fazer o favor de levar Anita e o eletricista com você?

PRESTON

Vamos embora.

(Saem no momento em que explode outro projétil. A explosão é realmente violentíssima.)

DOROTHY

(Enquanto escutam o barulho dos tijolos e dos vidros partindo, depois do impacto:)

Philip, tem certeza de que o ângulo é realmente seguro?

PHILIP

É tão bom aqui quanto em qualquer outra parte. Exatamente isso. Seguro não é bem o termo, mas quem é que ainda se preocupa com segurança?

DOROTHY

Sinto-me segura em sua companhia.

PHILIP

Procure controlar isso. Essa frase é terrível.

DOROTHY

Mas é assim mesmo, que é que eu posso fazer?

PHILIP

Esforce-se ao máximo. Seja uma boa menina.

(Ele dirige-se à vitrola e coloca a Mazurca em Dó Menor, Opus 33, nº 4, de Chopin. Ficam a ouvir a música ao clarão do aquecedor elétrico.)

PHILIP

É uma música leve e antiquada, mas é belíssima.

(Chega, então, até eles o violento ressoar de banjo dos canhões a atirar do monte Garabitas. Um projétil ruge atroadoramente e explode na rua sob a janela, lançando vivo clarão através dela.)

DOROTHY

Oh, querido, querido, querido!

PHILIP

(Tomando-a nos braços.)

Será que você não poderia usar outro termo? Já ouvi você dizer isso a tanta gente!

(Ouve-se a sirene de uma ambulância. Depois, no silêncio, a vitrola continua a tocar a Mazurca.)

CORTINA


CENA 3


Quartos 109 e 110 do Hotel Florida. As janelas estão abertas e a luz do sol inunda o ambiente. Há uma porta ligando os dois aposentos, tendo sido pregado sobre seu umbral um grande cartaz de guerra, de modo que, quando a porta se abre, a passagem é por ele bloqueada. Contudo, a porta pode ser aberta. Está aberta, agora, e o cartaz é como um grande biombo de papel colocado entre os dois quartos. Há um espaço de mais ou menos meio metro entre a extremidade inferior do cartaz e o assoalho. Na cama, no quarto 109, DOROTHY BRIDGES dorme. Na cama, no quarto 110, PHILIP RAW-LING acha-se sentado, olhando pela janela, de onde vem uma voz de homem a apregoar jornais. “El Sol! Libertad! El A.B.C. de hoy!” Ouve-se a buzina de um automóvel e, depois, o matraquear distante de uma metralhadora. PHILIP apanha o telefone.

PHILIP

Mande subir os jornais da manhã, por favor. Sim. Todos eles.

(Olha em torno do quarto e, a seguir, pela janela. Fita o cartaz de guerra, que parece transparente no vão da porta, à luz do brilhante sol matinal.)

Não.

(Sacode a cabeça.)

Isso não me agrada; é muito cedo ainda.

(Batem à porta.)

Adelante!

(Ouve-se outra batida.)

Entre! Entre!

(Abre-se a porta. É o GERENTE, carregando os jornais.)

GERENTE

Bom dia, sr. Philip. Muitíssimo obrigado. Bom dia para o senhor, mesmo. Foi horrível a noite passada, hein?

PHILIP

Todas as noites têm sido terríveis. Horrorosas!

(Sorri.)

Deixe-me ver os jornais.

GERENTE

Trazem más notícias das Astúrias. A coisa está quase acabada lá.

PHILIP

(Olhando os jornais.)

Mas não aqui.

GERENTE

Não. Mas eu sei que o senhor sabe.

PHILIP

E como! Diga-me: quando tomei este quarto?

GERENTE

Então não se lembra, sr. Philip? Não se lembra de ontem à noite?

PHILIP

Não. Não posso dizer que me lembre. Diga aí alguma coisa, para ver se consigo.

GERENTE

(Verdadeiramente horrorizado.)

Mas o senhor realmente não se lembra de nada?

PHILIP

(Alegremente:)

Não me lembro de coisa alguma. Um ligeiro bombardeio ao anoitecer. Estive antes no Chicotes. Sim. Trouxe Anita comigo, para uma boa e honesta farrinha. Espero que não tenha tido qualquer problema com ela.

GERENTE

(Sacudindo a cabeça.)

Não, não. Não com Anita. sr. Philip, o senhor se lembra do que aconteceu com o sr. Preston?

PHILIP

Não. O que foi que houve com esse soturno pobre-diabo? Espero que não tenha tentado suicidar-se.

GERENTE

Lembra-se de tê-lo posto no olho da rua?

PHILIP

Joguei-o daqui de cima?

(Olha, da cama, em direção à janela.)

Há algum sinal dele lá embaixo?

GERENTE

Não. O senhor o botou para fora pela porta de entrada mesmo, ontem à noite, quando voltou do Ministério, muito tarde, depois que foi buscar o comunicado.

PHILIP

Cheguei a machucá-lo?

GERENTE

Teve que levar pontos. Alguns pontos.

PHILIP

E por que não impediu? Por que permite que coisas assim aconteçam num hotel decente?

GERENTE

Depois, o senhor tomou o quarto dele.

(Com ar triste e desaprovador:)

Sr. Philip! Sr. Philip!

PHILIP

(Com entusiasmo, mas ligeiramente desconcertado:)

Mas que belo dia, não?

GERENTE

Oh, sim! Um dia soberbo. Um dia para piquenique no campo.

PHILIP

E que foi que Preston fez? Ele é um bocado forte, como sabe, apesar de tão soturno! Deve ter sido uma briga sensacional!

GERENTE

Ele está noutro quarto agora.

PHILIP

Onde?

GERENTE

No 113, o seu antigo quarto.

PHILIP

E eu estou aqui?

GERENTE

Sim, sr. Philip.

PHILIP

E o que é aquela coisa horrível?

(Olhando o cartaz.)

GERENTE

É um cartaz patriótico muito belo. Muito sensível. Só que daqui o estamos vendo pela parte de trás.

PHILIP

E o que está encobrindo? Para onde dá essa porta?

GERENTE

Para o quarto da senhora, sr. Philip. Agora o senhor tem uma suíte de quartos interligados, como os recém-casados felizes. Eu venho ver se está em ordem tudo que o senhor deseja.Toque a campainha que eu venho. Parabéns, sr. Philip. Mais do que parabéns, sem dúvida.

PHILIP

E a porta pode ser trancada do lado de cá?

GERENTE

Sim, claro, sr. Philip.

PHILIP

Pois tranque-a, então, e mande que me tragam café.

GERENTE

Pois não, sr. Philip. Não fique zangado num dia bonito como este.

(E, a seguir, apressadamente:)

Por favor, sr. Philip, lembre-se também da má situação de comida em Madri. Se por acaso tiver alimento demasiado, qualquer espécie, incluindo qualquer latinha de qualquer coisa, em minha casa falta sempre comida. Família agora de sete pessoas, incluindo, o senhor não acreditaria, o luxo de uma sogra. Ela come de tudo. Tudo serve para ela. Também um filho de dezessete anos, antigamente campeão de natação. Do que os senhores chamam nado de peito. Com um corpo assim...

(Faz um gesto, para mostrar peito e braços enormes.)

Se come? O senhor não acreditaria. É campeão também de comer. O senhor devia ver. E esses são apenas dois dos sete.

PHILIP

Vou ver o que posso arranjar. Tenho de ir apanhar em meu outro quarto. Se houver algum chamado telefônico, mande que liguem para cá.

GERENTE

Obrigado, sr. Philip. O senhor tem um coração grande como a rua. Dois camaradas lá fora querem ver o senhor.

PHILIP

Diga-lhes que entrem.

(Durante todo esse tempo, DOROTHY BRIDGES, no quarto contíguo, dorme profundamente. Não despertou durante a primeira troca de palavras entre PHILIP e o GERENTE, mas apenas se mexeu um pouco na cama. Agora que a porta está fechada a chave, nada pode ser ouvido de um quarto para o outro.)

(Entram DOIS CAMARADAS em uniforme da Brigada Internacional.)

PRIMEIRO CAMARADA

Tudo bem. Ele fugiu.

PHILIP

Que é que você quer dizer com “ele fugiu”?

PRIMEIRO CAMARADA

Quero dizer que ele se foi, eis tudo.

PHILIP

(Rapidamente:)

De que modo?

PRIMEIRO CAMARADA

Gostaria que alguém me dissesse.

PHILIP

Não gosto de respostas como essa.

(Voltando-se para o SEGUNDO CAMARADA, em tom muito seco:)

E você, o que me diz?

SEGUNDO CAMARADA

Que ele deu o fora.

PHILIP

E onde estava você?

SEGUNDO CAMARADA

Entre o elevador e as escadas.

PHILIP

(Para o PRIMEIRO CAMARADA:)

E você?

PRIMEIRO CAMARADA

Junto à porta a noite toda.

PHILIP

E a que horas deixaram seus postos?

PRIMEIRO CAMARADA

Em hora nenhuma.

PHILIP

Convém que vocês pensem melhor. Sabem a que estão se arriscando, não sabem?

PRIMEIRO CAMARADA

Sinto muito, mas ele se foi. E isso é tudo.

PHILIP

Oh, não, isso é o que você pensa, meu rapaz.

(Toma o telefone e chama um número.)

Nueve, siete, cero, cero, cero. Antônio? Por favor. Sim. Ainda não está aí? Não. Mande vir apanhar dois homens, por favor, no quarto 113 do Hotel Florida. Sim. Por favor.

(Pendura o fone no gancho.)

PRIMEIRO CAMARADA

Mas tudo o que fizemos foi...

PHILIP

Não se apresse. Daqui a pouco você vai precisar de uma história muito boa.

PRIMEIRO CAMARADA

Não há qualquer outra história além da que lhe contei.

PHILIP

Não se apresse. Não se afobe. Apenas sente-se e procure lembrar-se bem de tudo. Lembre-se de que você o tinha aqui, neste hotel. E de que ele não podia sair sem que você o visse.

(Põe-se a ler os jornais. Os DOIS CAMARADAS permanecem de pé, soturnos.)

(Sem olhar para eles:)

Sentem-se. Ponham-se à vontade.

SEGUNDO CAMARADA

Camarada, nós...

PHILIP

(Sem olhá-lo:)

Não use essa palavra.

(Os DOIS CAMARADAS olham um para o outro.)

PRIMEIRO CAMARADA

Camarada...

PHILIP

(Pondo de lado um jornal e apanhando outro.)

Já lhe disse para não empregar essa palavra. Ela não soa bem em sua boca.

PRIMEIRO CAMARADA

Camarada Comissário, queremos dizer...

PHILIP

Poupe suas palavras.

PRIMEIRO CAMARADA

Camarada Comissário, o senhor deve ouvir-me.

PHILIP

Eu o ouvirei mais tarde. Não se preocupe, meu rapaz. Eu o ouvirei. Quando entrou aqui, você me pareceu metido a besta.

PRIMEIRO CAMARADA

Camarada Comissário, por favor, ouça-me. Quero contar-lhe tudo.

PHILIP

Você deixou escapar um homem que eu queria. Você deixou fugir um homem de quem eu necessitava. Você deixou fugir um homem que irá matar alguém.

PRIMEIRO CAMARADA

Camarada Comissário, por favor...

PHILIP

Por favor... Isso é coisa que se ouça da boca de um soldado?

PRIMEIRO CAMARADA

Não sou soldado profissional.

PHILIP

Quando você veste um uniforme, passa a ser soldado, queira ou não.

PRIMEIRO CAMARADA

Vim lutar por um ideal.

PHILIP

Vejam só que beleza! Agora, deixe-me dizer-lhes uma coisa: um sujeito vem lutar por seu ideal, mas fica apavorado durante um ataque. Não gosta do barulho ou de algo que o valha, e há homens que morrem... O sujeito não gosta do negócio... tem medo de morrer... e dá um tiro na própria mão ou no próprio pé para cair fora o mais depressa possível, pois não aguenta mais. Bem, você será fuzilado pelo que fez, e seu ideal não irá salvá-lo, irmão.

PRIMEIRO CAMARADA

Mas sempre lutei bem. Nunca fingi ferimento algum.

PHILIP

Eu não disse isso. Estava apenas tentando explicar-lhe algo. Mas parece que não me fiz entender. Eu estava pensando — compreende? — no que irá fazer o homem que você deixou fugir, e de que maneira eu o apanharei de novo num belo lugar como este, antes que ele mate alguém. Como vê, eu precisava muito dele, e precisava dele bem vivo. Mas você o deixou fugir!

PRIMEIRO CAMARADA

Camarada Comissário, se não acredita em mim...

PHILIP

Não, não acredito em você e não sou Comissário. Sou um policial. Não acredito no que ouço e muito pouco no que vejo. Que é que quer dizer acreditar em você? Ouça. Você está sem sorte. Preciso descobrir se você fez isso de propósito. E isso não me agrada.

(Serve-se de um drinque.)

E se você for esperto, isso tampouco lhe agradará. Mas, se você não o fez de propósito, o efeito é exatamente o mesmo. Há uma única regra quanto ao dever. A gente tem de cumpri-lo. E há somente uma coisa a respeito de ordens. ELAS TÊM DE SER OBEDECIDAS. Eu poderia, se dispusesse de tempo, explicar-lhes que disciplina é bondade, mas acontece que não explico as coisas muito bem.

PRIMEIRO CAMARADA

Por favor, camarada Comissário...

PHILIP

Torne a empregar essa palavra e você me deixará puto da vida!

PRIMEIRO CAMARADA

Camarada Comissário.

PHILIP

Cale-se! Eu não tenho boas maneiras... compreende? Tive de usá-las tanto que me cansei delas. E me chateiam. Falarei com vocês quando estiver diante de meu chefe. E acabe com esse negócio de Comissário. Sou um tira. O que vocês me dizem agora não significa coisa alguma. Minha pele também está em jogo, compreendem? Se vocês não o fizeram de propósito, eu não me preocuparia muito. Preciso apenas ter certeza, entendem? Vou dizer-lhes uma coisa. Se vocês não o fizeram de propósito, dividirei a culpa com vocês.

(Ouve-se uma batida na porta.)

Adelante.

(Abre-se a porta e aparecem dois GUARDAS DAS TROPAS DE CHOQUE, com uniformes azuis, capacetes de aço, empunhando fuzis.)

PRIMEIRO GUARDA

Às suas ordens, meu comandante.

PHILIP

Leve estes dois homens para a segurança. Mais tarde vou conversar com eles.

PRIMEIRO GUARDA

Às suas ordens.

(O SEGUNDO CAMARADA dirige-se para a porta. Um GUARDA corre-lhe as mãos pelos flancos, de alto a baixo, para ver se ele está armado.)

PHILIP

Ambos estão armados. Tirem-lhes as armas e levem-nos.

(Para os DOIS CAMARADAS:)

Boa sorte.

(E acrescenta, sarcasticamente:)

Espero que se saiam bem.

(Saem os quatro e ouvem-se-lhes os passos pelo corredor. No quarto contíguo, DOROTHY BRIDGES mexe-se na cama, desperta, boceja e, estendendo o braço, puxa o cordão da sineta, dependurado junto da cama. PHILIP ouve a sineta tocar. Há uma batida em sua porta.)

PHILIP

Adelante.

(É o GERENTE, muito agitado.)

GERENTE

Dois camaradas levados presos.

PHILIP

Dois péssimos camaradas. Pelo menos um deles. Talvez o outro seja inteiramente inocente.

GERENTE

Sr. Philip, coisas demais estão acontecendo ao senhor nestes dias. Digo isso como amigo. Procure manter as coisas mais quietas. Não é muito bom tanta coisa acontecendo o tempo todo.

PHILIP

Não. Também acho que não. Apesar disso, está um belo dia, não? Ou não está?

GERENTE

Direi o que o senhor devia fazer. Num dia como este, o senhor devia fazer uma excursão e um piquenique no campo.

(No quarto contíguo, DOROTHY BRIDGES vestiu seu robe de chambre e calçou os chinelos. Desaparece no banheiro e, quando sai, está escovando os cabelos. Seus cabelos longos e claros são muito bonitos, e ela senta-se na cama, diante do aquecedor elétrico, a escová-los. Sem maquiagem, parece muito jovem. Torna a tocar a sineta e a CRIADA abre a porta. É uma mulherzinha de seus sessenta anos, com blusa azul e avental.)

CRIADA (PETRA)

¿Si puede?

DOROTHY

Bom dia, Petra.

PETRA

Buenos días, señorita.

(DOROTHY mete-se sob os lençóis e PETRA coloca a bandeja com o breakfast sobre a cama.)

DOROTHY

Não há ovos, Petra?

PETRA

Não, señorita.

DOROTHY

Sua mãe está melhor, Petra?

PETRA

Não, señorita.

DOROTHY

Você já comeu alguma coisa, Petra?

PETRA

Não, señorita.

DOROTHY

Apanhe uma xícara e tome já um pouco deste café. Depressa.

PETRA

Tomarei um pouco, depois que a señorita terminar. Foi muito feio o bombardeio ontem à noite?

DOROTHY

Que nada! Foi até encantador.

PETRA

Puxa! A señorita diz cada coisa terrível!

DOROTHY

Que bobagem, foi encantador mesmo!

PETRA

Em Progresso, no meu bairro, houve seis mortos num andar. Esta manhã, estavam retirando os corpos e removendo todo vidro quebrado que havia na rua. Não haverá mais vidraças neste inverno.

DOROTHY

Aqui, ninguém foi morto.

PETRA

O señor já está pronto para o breakfast?

DOROTHY

O señor não está mais aqui.

PETRA

Ele foi para o front?

DOROTHY

Oh, não! Ele nunca vai para o front. Apenas escreve sobre ele. Há outro señor aqui.

PETRA

(Tristemente:)

Quem, señorita?

DOROTHY

(Alegremente:)

O sr. Philip.

PETRA

Oh, señorita! Que coisa terrível!

(Afasta-se, chorando.)

DOROTHY

(Chamando-a:)

Petra! Oh, Petra!

PETRA

(Resignadamente:)

Sim, señorita.

DOROTHY

(Feliz:)

Veja se o sr. Philip já se levantou.

PETRA

Está bem, señorita.

(Petra chega à porta do sr. Philip e bate.)

PHILIP

Entre.

PETRA

A señorita me pediu para ver se o senhor já se levantou.

PHILIP

Não.

PETRA

(Junto à outra porta:)

O señor Philip disse que ainda não se levantou.

DOROTHY

Diga-lhe, por favor, Petra, que venha tomar café.

PETRA

(Junto à outra porta:)

A señorita pede para o senhor vir, embora nestes tempos haja pouca coisa para comer.

PHILIP

Diga à señorita que nunca tomo o breakfast.

PETRA

(Junto à outra porta:)

Ele diz que nunca come pela manhã, mas eu sei que ele come mais do que três pessoas juntas.

DOROTHY

Petra, ele é tão difícil! Diga-lhe, apenas, para não ser estúpido e vir aqui, por favor.

PETRA

(Junto à outra porta:)

Ela manda vir.

PHILIP

Ora, vejam só!

(Veste um robe de chambre e chinelos.)

São um tanto pequenos. Devem ser de Preston. Mas é um belo robe de chambre. Talvez me ofereça para comprá-lo.

(Apanha os jornais, abre a porta e entra no quarto contíguo, escancarando a porta ao entrar.)

DOROTHY

Entre. Até que enfim!

PHILIP

Não acha tudo isso um tanto quanto extravagante?

DOROTHY

Oh, Philip, meu cretininho querido. Onde é que você esteve?

PHILIP

Num quarto muito estranho.

DOROTHY

Como foi parar lá?

PHILIP

Não tenho a menor ideia.

DOROTHY

Você não se lembra de coisa alguma?

PHILIP

Lembro-me do aborrecimento de ter botado alguém para fora.

DOROTHY

Esse alguém era Preston.

PHILIP

Verdade?

DOROTHY

Sim, bastante verdade.

PHILIP

Devemos chamá-lo de volta. Eu não devia ter sido tão rude assim.

DOROTHY

Oh, não!, Philip. Não se preocupe. Ele se foi para sempre.

PHILIP

Frase horrível: para sempre.

DOROTHY

(Resolutamente:)

Para sempre e tudo o mais.

PHILIP

Frase pior ainda. Causa-me calafrios.

DOROTHY

Que é que você quer dizer com isso, querido?

PHILIP

Uma sensação tola que às vezes me domina, quando não sei se fiz uma burrice ou não depois de encher a cara.

DOROTHY

Você tem sempre esses tais calafrios?

PHILIP

Oh, sim. Uma vez ou outra. O pior de que me lembro foi quando tive meu quarto invadido por um batalhão de fuzileiros navais.

DOROTHY

Philip, sente-se aqui.

(Philip senta-se na cama com extremo cuidado.)

Philip, você vai me prometer uma coisa. Você não deve andar bebendo por aí, a esmo, sem qualquer objetivo na vida, sem fazer nada de útil. Você não quer bancar um playboy de Madri, quer?

PHILIP

Um playboy de Madri?

DOROTHY

Sim. Esses tipos que vivem no Chicotes. E no Miami. E nas Embaixadas, no Ministério, no apartamento de Vernon Rodgers, com aquela horrorosa Anita. Frequentar as Embaixadas, então, é realmente o fim! Philip, você não descerá a tanto, não é?

PHILIP

Mas que alternativa você me sugere?

DOROTHY

Muitas. Você podia fazer algo sério e decente. Podia fazer alguma coisa corajosa, sensata e boa. Você sabe o que lhe acontecerá, se continuar a arrastar-se de bar em bar, metendo-se com essa gente horrível? Você acabará levando um tiro. Um homem foi baleado, outra noite, no Chicotes. Foi terrível!

PHILIP

Alguém que conhecemos?

DOROTHY

Não. Apenas um pobre homem que estava pulverizando todo mundo com uma bomba de inseticida. Ele não pretendia fazer mal a ninguém. Mas alguém se ofendeu e o baleou. Eu estava lá, e foi muito deprimente. Ficou estendido de costas, o rosto muito cinzento, e estava tão alegre momentos antes. Ficamos todos detidos lá umas duas horas. A polícia cheirava revólver por revólver e mandou que não servissem mais qualquer espécie de bebida. Foi uma coisa horrível, Philip. Não cobriram o cadáver, e tivemos de mostrar nossos documentos a um homem, sentado numa mesa bem ao lado dele. Suas meias estavam imundas, os sapatos tinham as solas completamente gastas, e ele não usava sequer uma camiseta.

PHILIP

Pobre sujeito! Você sabe que a droga que hoje bebem por aí é veneno puro. Torna as pessoas inteiramente loucas.

DOROTHY

Mas, Philip, você não precisa passar por isso. E não precisa andar por aí, esperando que alguém lhe dê um tiro. Você podia ter alguma atividade política, ou militar, qualquer coisa boa e decente.

PHILIP

Não me tente. Não me torne ambicioso.

(Faz uma pausa.)

Não me abra novos horizontes.

DOROTHY

Foi uma coisa horrível o que você fez, na outra noite, com a escarradeira. Procurando armar uma pancadaria lá no Chicotes, deliberadamente provocando todo mundo, como me contaram.

PHILIP

E quem é que eu estava provocando?

DOROTHY

Não sei. E que importa quem? Você não devia provocar quem quer que fosse.

PHILIP

Não, talvez não. Mas pode acontecer que qualquer dia desses, sem que eu faça qualquer provocação, alguém me meta uma bala nas costas.

DOROTHY

Não fale de modo tão pessimista, querido, quando mal começamos nossa vida juntos.

PHILIP

Nossa...?

DOROTHY

Sim, nossa vida juntos. Oh, Philip, será que você não deseja ter uma vida longa, tranquila, feliz, num lugar assim como Saint Tropez ou, você sabe, algum lugar como Saint Tropez era, e fazer longas caminhadas, nadar, ter filhos, ser feliz e tudo o mais? Estou falando a sério. Por acaso não deseja que tudo isto aqui termine? Esse negócio de guerras, revoluções...

PHILIP

E teremos, ao breakfast, o Continental Daily Mail, brioches e geleia de morangos frescos?

DOROTHY

Claro, querido, teremos também oeuf au jambon, e você poderá ler o Morning Post, se quiser. E todo mundo nos dirá Messieur-Dame.

PHILIP

O Morning Post já não circula mais, sabe?

DOROTHY

Oh, Philip, você é tão chato! Eu queria que tivéssemos uma vida feliz assim. Você não quer filhos? Eles podem brincar nos jardins de Luxemburgo, rolar arcos, passear de barco.

PHILIP

E você poderá mostrar-lhes um mapa ou até mesmo um globo. Daremos ao menino o nome de Derek, o pior nome que conheço, e você poderá dizer: “Derek, eis aqui o Wangpoo. Siga, agora, o meu dedo e eu lhe mostrarei onde o papai está.” E Derek perguntará: “Mamãe, será que eu já vi o papai alguma vez?”

DOROTHY

Oh, não. Não será assim. Viveremos em algum lugar encantador, onde você possa escrever.

PHILIP

Escrever o quê?

DOROTHY

O que lhe agradar mais. Romances, artigos e um livro sobre esta guerra, talvez.

PHILIP

Seria um belo livro. Poderia enriquecê-lo... com ilustrações.

DOROTHY

Ou, então, você podia fazer pesquisas e escrever um livro sobre política. Alguém me disse que livros sobre política vendem sempre.

PHILIP

(Tocando a sineta.)

É, parece que sim.

DOROTHY

Você poderia estudar e escrever um livro sobre a dialética. Há sempre mercado para um novo livro sobre dialética.

PHILIP

No duro?

DOROTHY

Mas, Philip querido, antes de mais nada, você tem de começar aqui, agora, a fazer alguma coisa digna, abandonando inteiramente essa vida de playboy.

PHILIP

Engraçado, li isto num livro, mas nunca cheguei a descobrir se é verdade: a primeira coisa que uma mulher americana faz ao interessar-se por um homem é levá-lo a renunciar a alguma coisa... À bebida, a fumar cigarros Virgínia, a usar ligas, à caça, a qualquer besteira...

DOROTHY

Nada disso, Philip. Você é que constitui um problema muito sério para qualquer mulher.

PHILIP

Espero que sim!

DOROTHY

E não quero que você renuncie a coisa alguma. Quero que você adquira alguma coisa nova.

PHILIP

Ótimo.

(Beija-a.)

Farei isso. Agora, comamos alguma coisa. Preciso ir ao escritório e dar alguns telefonemas.

DOROTHY

Não vá, Philip.

PHILIP

Estarei de volta em pouco tempo, querida. E em seguida me transformarei num homem seriíssimo.

DOROTHY

Você sabe o que disse?

PHILIP

Certamente.

DOROTHY

(Muito feliz:)

Você disse querida.

PHILIP

Eu sabia que essa frescura era infecciosa, mas não imaginava que fosse contagiosa. Perdoe-me, meu bem.

DOROTHY

Meu bem me agrada muito.

PHILIP

Então, adeus, minha... doçura...

DOROTHY

Doçura! Oh, querido!

PHILIP

Até logo, camarada.

DOROTHY

Camarada! Que pena! Você tinha dito querida, antes.

PHILIP

Camarada é uma bela palavra. Acho que não devo gastá-la a três por dois.

DOROTHY

(Arrebatada:)

Oh, Philip! Você está se desenvolvendo politicamente.

PHILIP

Que Deus... seja o que ele for... nos proteja.

DOROTHY

Não blasfeme. Dá um azar danado!

PHILIP

(Apressado e um tanto sombrio:)

Adeus, minha querida, meu bem, minha doçura.

DOROTHY

Pelo menos você não me chamou de camarada desta vez...

PHILIP

(Saindo.)

Não. Como vê, estou me desenvolvendo politicamente.

(Entra no quarto contíguo.)

DOROTHY

(Toca a sineta, chamando Petra. Fala-lhe, recostada confortavelmente nos travesseiros:)

Oh, Petra, ele é tão espirituoso, tão cheio de vida, tão alegre! Mas não faz coisa alguma. Ele devia enviar despachos a algum estúpido jornal de Londres, mas, na Censura, dizem que não envia praticamente nada. Ele é um achado, depois de Preston, que estava sempre se referindo à sua mulher e aos filhos. Ele que volte para a mulher e os filhos, já que se mostra tão entusiasmado a respeito deles. Aposto que ele não o fará. Esses homens, com mulheres e filhos, que estão na guerra! São o pretexto que usam para chegar às nossas camas e, depois, passam a ser a arma com que nos agridem. E que agressões! Não sei por que razão suportei Preston durante tanto tempo. Ele é tão sombrio! Sempre à espera de que a cidade caia e tudo o mais... sempre a olhar o mapa. Olhar sempre para um mapa é um dos hábitos mais irritantes que um homem pode adquirir. Não acha, Petra?

PETRA

Eu não compreendo, señorita.

DOROTHY

Oh, Petra, gostaria de saber o que ele está fazendo agora.

PETRA

Não deve ser nada de bom.

DOROTHY

Petra, não fale assim. Você é uma derrotista.

PETRA

Não sou, não, señorita. Não penso em política. Apenas trabalho.

DOROTHY

Bem, você pode ir agora, pois acho que vou dormir um pouco mais. Sinto-me tão sonolenta e feliz esta manhã!

PETRA

Espero que descanse bem, señorita.

(Sai, fechando a porta.)

(No quarto contíguo, PHILIP atende ao telefone:)

PHILIP

Sim. Está certo. Mande-o subir.

(Há uma batida na porta, e um CAMARADA em uniforme da Brigada Internacional entra. Faz uma continência perfeita. É um rapaz moreno, bonitão, de talvez vinte e três anos.)

Salud, camarada. Entre.

CAMARADA

Mandaram-me aqui, da Brigada. Disseram que me apresentasse ao senhor, no quarto 113.

PHILIP

Houve uma mudança de quarto. Tem uma cópia da ordem?

CAMARADA

Era uma ordem verbal.

(PHILIP apanha o fone; pede um número:)

PHILIP

Ochenta, dos, cero, uno, cinco. Alô, Haddock? Não. Haddock. Hake falando. Sim. Hake. Isso. Haddock?

(Volta-se para o CAMARADA:)

Qual o seu nome, camarada?

CAMARADA

Wilkinson.

PHILIP

Alô, Haddock. Você enviou um camarada chamado Wilkinson para as Booth Fisheries? Certo. Muitíssimo obrigado. Salud.

(Dependura o fone. Volta-se para o CAMARADA e estende-lhe a mão.)

Prazer em vê-lo, camarada. De que se trata?

CAMARADA WILKINSON

Estou sob suas ordens.

PHILIP

Ah! Bem...

(Parece bastante relutante a respeito de algo.)

Qual a sua idade, camarada?

CAMARADA WILKINSON

Vinte anos.

PHILIP

Tem-se divertido bastante?

CAMARADA WILKINSON

Não estou metido nisto para me divertir.

PHILIP

Não. Claro que não. Foi apenas uma pergunta.

(Faz uma pausa. Depois, aos poucos vai abandonando a relutância inicial; fala num tom bastante marcial:)

Há uma coisa que preciso dizer-lhe. Nesta jogada em que estamos, você precisa andar armado para impor sua autoridade. Mas não deve usar a arma em circunstância alguma. Está bem claro isso?

CAMARADA WILKINSON

Nem em minha própria defesa?

PHILIP

Em circunstância alguma.

CAMARADA WILKINSON

Compreendo. E quais são suas ordens?

PHILIP

Desça e dê uma volta. Depois, retorne ao hotel, alugue um quarto e registre-se. Quando já tiver o quarto, informe-me o número dele e eu lhe direi o que fazer. Hoje, você deverá passar a maior parte do tempo em seu quarto.

(Detém-se.)

Dê uma boa caminhada. Poderá tomar um copo de cerveja, se quiser. Há cerveja hoje nas cantinas de Aguilar.

CAMARADA WILKINSON

Eu não bebo, camarada.

PHILIP

Perfeito. Excelente. Nós, da geração mais velha, temos certas manchas de vício que, a esta altura, dificilmente podem ser apagadas. Mas vocês são um exemplo para nós. Pode ir, camarada.

CAMARADA WILKINSON

Pois não, camarada.

(Faz continência e sai.)

PHILIP

(Depois que ele se foi:)

Coitado... Sim, senhor! Essa garotada me dá pena!

(O telefone toca.)

Alô! É ele quem fala. Bem. Não. Sinto muito. Mais tarde.

(Coloca o aparelho no gancho... O telefone toca outra vez.)

Alô! Oh, sinto muito, sinto realmente. Foi uma pena. Sim, sem dúvida. Sim. Mais tarde.

(Desliga. O telefone toca novamente.)

Alô. Oh, lamento muito. Sinceramente. Que é que você diz quanto a nos encontrarmos um pouco mais tarde? Não? Pois bem. Então venha cá e resolveremos logo o caso.

(Ouve-se uma batida na porta.)

Entre.

(Entra PRESTON. Tem um esparadrapo sobre uma das sobrancelhas e não parece nada bem.)

Sinto muito, já lhe disse.

PRESTON

De que vale isso? Ontem você procedeu como um canalha.

PHILIP

Certo. E, agora, que é que posso fazer?

(Fala de maneira bastante categórica:)

Já disse que sentia muito.

PRESTON

Bem, para começo de conversa você poderia tirar meu robe de chambre e meus chinelos.

PHILIP

(Tirando-os.)

Muito bem.

(Entrega-os a PRESTON.)

(Em tom pesaroso:)

Você não me venderia o robe? Gostei muito dele.

PRESTON

Não. E, agora, saia do meu quarto.

PHILIP

Será que temos de repetir tudo o que fizemos esta madrugada?

PRESTON

Se você não sair imediatamente, tocarei a sineta e farei com que o ponham para fora.

PHILIP

Isso é o que você pensa. Toque a sineta.

(PRESTON toca a sineta. PHILIP dirige-se ao banheiro. Ouve-se o ruído de água a jorrar. Há uma batida na porta e entra o GERENTE.)

GERENTE

Algum problema?

PRESTON

Quero que chame a polícia e faça com que esse homem seja retirado de meu quarto.

GERENTE

Calma, sr. Preston. Fiz a criada pôr suas coisas na mala agora mesmo. O senhor estará bem confortável no 114. Sr. Preston, o senhor é sensato o bastante para não chamar a polícia até aqui. Qual a primeira coisa que a polícia pergunta? “De quem são estas latas de leite? E estas latas de carne? Quem armazena café neste hotel? Que significa todo este açúcar no armário? E estas três garrafas de uísque? Que se passa aqui?” Sr. Preston, nunca chame a polícia para tratar de assuntos privados. Sr. Preston, eu lhe rogo.

PHILIP

(Do banheiro, em tom irônico:)

E estes três sabonetes, a quem pertencem?

GERENTE

O senhor compreende, sr. Preston? Em assuntos privados, a autoridade pública dá sempre interpretação errada. Há uma lei contra a gente ter essas coisas. É uma lei severa contra qualquer forma de armazenamento. É má interpretação policial.

PHILIP

(Do banheiro:)

Quem tem aqui três vidros de eau de cologne?

GERENTE

Está vendo, sr. Preston? Apesar de minha boa vontade, eu não posso chamar a polícia.

PRESTON

Querem saber de uma coisa? Vão para o inferno, vocês dois! Faça, pois, com que removam minhas coisas para o 114. Você não vale nada, Rawlings. Lembre-se de que eu lhe disse isso.

PHILIP

(Do banheiro:)

De quem são estes quatro tubos de creme de barbear?

GERENTE

Veja só, sr. Preston! Quatro tubos! É uma desgraça, sr. Preston!

PRESTON

Você não faz outra coisa senão pedir comida. Já lhe dei o bastante. Faça com que ponham minhas coisas nas malas e que as retirem daqui imediatamente.

GERENTE

Muito bem, sr. Preston, mas quero apenas deixar claro uma coisa. Quando, contra todas as minhas vontades, apresentei ligeira petição por alimento, desejava apenas excesso de quantidades...

PHILIP

(Do banheiro, engasgado de tanto rir:)

O que é que você está dizendo?

GERENTE

Estou dizendo ao sr. Preston que somente pedia o que lhe fosse desnecessário, e isso apenas porque carrego família de sete pessoas. Ouça, sr. Preston, minha sogra — tenho o luxo de manter uma — tem agora somente um dente na boca. O senhor entende. Um dente só. Com ele, come tudo e aprecia tudo. Quando esse dente se for, tenho de comprar dentadura completa, com a parte de cima e a parte de baixo, para ela comer coisas melhores. Dentadura que sirva para comer bifes, costeletas e aquele negócio chamado salomillo. Todas as noites eu lhe pergunto: “Como vai o dente, minha velha?” Penso, todas as noites, que, quando aquele dente se for, onde estaremos nós? Com dentes em cima e embaixo, todos os cavalos para o exército que restam em Madri não bastariam para matar sua fome. Eu lhe digo, sr. Preston, que nunca se viu mulher assim. Eu a conservo por luxo. Sr. Preston, será que o senhor não podia dispor de uma latinha qualquer que estivesse sobrando?

PRESTON

Arranje alguma coisa com o Rawlings. Ele não é seu amigo?

PHILIP

(Saindo do banheiro.)

Não há problema! Para o meu Camarada Colecionador de Selos, desapertarei uma lata de carne.

GERENTE

Oh, sr. Philip! O senhor tem um coração maior do que o hotel.

PRESTON

E duas vezes mais sujo.

(Sai.)

PHILIP

Está zangadinho, o nosso amigo!

GERENTE

O senhor tomou a senhorita dele. Ele ficou furioso. Cheio de dor de corno, como se diz.

PHILIP

Exatamente. Cheio de dor de corno. Procurei tratar disso ontem à noite. Mas não adiantou.

GERENTE

Ouça, sr. Philip. Diga-me uma coisa. Quanto tempo vai durar a guerra?

PHILIP

Muito tempo, creio eu.

GERENTE

Sr. Philip, fico chateado de ouvir o senhor dizer isso. Já faz um ano. E isso não é nada engraçado.

PHILIP

Não se preocupe. Apenas se cuide!

GERENTE

O senhor também devia ter cuidado, sr. Philip. Eu sei de tudo. Não pense que não sei.

PHILIP

É preferível não saber de tudo. Mas, saiba o que souber, mantenha fechada essa velha boca, está bem? Desse modo não haverá problemas entre nós.

GERENTE

Mas tenha cuidado, sr. Philip.

PHILIP

Estou vivo, não estou? Aceita um drinque?

(Serve uísque com água.)

GERENTE

Eu jamais toco em álcool. Mas ouça, sr. Philip. Tenha mais cuidado. O do 105 é muito mau. O do 107 é muito mau.

PHILIP

Obrigado. Sei disso. Mas perdi a fera que eu tinha no 107. Deixaram que fugisse...

GERENTE

O do 114 não passa de um maluco.

PHILIP

Sem dúvida!

GERENTE

Ontem à noite, tentei entrar no 113 para o senhor, fingindo que me enganara. Eu sei.

PHILIP

Foi por isso que não me preocupei. Tinha alguém vigiando o maluco por mim.

GERENTE

Sr. Philip, tenha muito cuidado. Gostaria que pusesse um cadeado Yale na sua porta? Um cadeado grande? Do tipo mais forte?

PHILIP

Não. Um cadeado grande não serviria para nada. Nesta atividade, ninguém trabalha com cadeados fortes.

GERENTE

O senhor deseja alguma coisa especial, sr. Philip? Alguma coisa que eu possa fazer?

PHILIP

Não. Nada de especial. Obrigado por haver despachado o idiota daquele jornalista de Valência, que queria um quarto aqui. Já temos idiotas suficientes neste hotel, incluindo você e eu.

GERENTE

Mas eu o aceitarei mais tarde, se o senhor quiser. Eu lhe disse que se vagasse um quarto, eu o informaria. Se as coisas se acalmarem, posso recebê-lo mais tarde. Sr. Philip, cuide de si mesmo. Eu sei de tudo.

PHILIP

Não se preocupe. Tenho me saído bem. Só que fico meio deprimido, às vezes.

(Enquanto isso, DOROTHY BRIDGES levanta-se da cama, dirige-se ao banheiro, veste-se e volta para o quarto. Senta-se à máquina de escrever, mas levanta-se logo a seguir e coloca um disco na vitrola. É uma sonata de Chopin em lá bemol menor, Opus 47. Philip ouve a música.)

PHILIP

(Ao GERENTE:)

Desculpe-me um momento. Você não vai retirar as coisas dele? Se alguém me procurar, diga que espere, sim?

GERENTE

Vou dizer à criada para retirar as coisas.

(PHILIP dirige-se à porta de DOROTHY e bate.)

DOROTHY

Entre, Philip.

PHILIP

Você se incomoda se eu ficar um instante com você, para tomar um drinque?

DOROTHY

Claro que não! Fique à vontade, por favor.

PHILIP

Eu gostaria de pedir-lhe duas coisas.

(O disco parou. Vê-se que, no quarto contíguo, o GERENTE saiu e a CRIADA entrou, pondo-se a amontoar sobre a cama as coisas de PRESTON.)

DOROTHY

Quais são elas, Philip?

PHILIP

Uma é mudar-se deste hotel, a outra é voltar para a América.

DOROTHY

Ora essa, seu descarado, seu impertinente! Você é pior do que Preston.

PHILIP

Insisto nos dois pedidos. Este hotel não é lugar para você. Estou falando sério.

DOROTHY

E eu que estava começando a ser feliz com você! Philip, não seja idiota. Por favor, querido, não seja idiota.

(Junto à porta aberta do quarto, vê-se o jovem CAMARADA WILKINSON em uniforme da Brigada Internacional.)

WILKINSON

(Para a CRIADA:)

O camarada Rawlings não está?

CRIADA

Entre e sente-se. Ele disse para esperar.

(WILKINSON senta-se numa cadeira, com as costas voltadas para a porta. No outro quarto, DOROTHY tornou a pôr o disco na vitrola. PHILIP levanta a agulha, e o disco fica girando no prato.)

DOROTHY

Você disse que queria um drinque. Aqui está.

PHILIP

Mudei de ideia.

DOROTHY

O que é que há, querido?

PHILIP

Você sabe que estou falando a sério. Você deve sair daqui.

DOROTHY

Não tenho medo dos bombardeios. Você sabe disso.

PHILIP

Não se trata dos bombardeios.

DOROTHY

Bem, então de que se trata, querido? Você não gosta de mim? Eu gostaria de fazê-lo muito feliz aqui.

PHILIP

Que é que posso fazer para que você dê o fora?

DOROTHY

Nada. Eu não irei.

PHILIP

Providenciarei para que você se mude para o Hotel Vitória.

DOROTHY

Você não fará nada disso!

PHILIP

Gostaria de lhe contar tudo.

DOROTHY

E por que é que não faz isso?

PHILIP

Há coisas que não posso confiar a ninguém.

DOROTHY

Mas, querido, isso não passa de uma inibição. Bastaria ir a um analista para resolver isso imediatamente. É tão fácil, tão divertido.

PHILIP

Você não tem jeito! Mas é muito bonita. Providenciarei sua mudança.

(Põe de novo a agulha sobre o disco e dá corda na vitrola.)

Lastimo ser tão sombrio.

DOROTHY

Cuide-se, querido. Tudo indica que seu fígado não está bem.

(Enquanto o disco toca, vê-se que alguém se deteve fora da porta do quarto em que a CRIADA está trabalhando e o rapaz se acha sentado. O homem usa uma boina e uma espécie de uniforme. Apoia-se no batente da porta, para atirar com mais firmeza, e alveja o rapaz na nuca com uma pistola Mauser de cano longo. A CRIADA grita “Ai” e põe-se a chorar com o rosto enfiado no avental. PHILIP, ao ouvir o grito, empurra DOROTHY em direção à cama e acerca-se da porta empunhando uma pistola. Abrindo a porta, olha para ambos os lados, conservando-se protegido; depois, sai para o corredor e entra em seu quarto. Ao vê-lo empunhando a pistola, a CRIADA torna a gritar.)

PHILIP

Sou eu, sua idiota.

(Aproxima-se da cadeira onde jaz o corpo de Wilkinson, ergue-lhe a cabeça e deixa-a cair.)

Canalhas! Filhos da puta!

(DOROTHY seguira-o até a porta. Ele a empurra para fora.)

Saia daqui.

DOROTHY

Philip, o que é que há?

PHILIP

Não olhe para ele. Este homem está morto. Alguém o baleou.

DOROTHY

Quem o baleou?

PHILIP

Talvez ele tenha se suicidado. Mas isso não é da sua conta. Dê o fora daqui. Será que nunca viu um homem morto? Afinal, você não é uma correspondente de guerra ou algo que o valha? Dê o fora daqui e escreva um artigo. Isto não é da sua conta.

(E, a seguir, para a CRIADA:)

Tire depressa essas latas e garrafas daqui.

(Começa a lançar coisas das prateleiras do armário sobre a cama.)

Todas as latas de leite. Todas as carnes enlatadas. Todo o açúcar. Toda a água-de-colônia. Todos os sabonetes. Suma com isso. Temos de chamar a polícia.

CORTINA
FIM DO PRIMEIRO ATO


SEGUNDO ATO


CENA 1


Uma sala na chefia da Seguridad. Há uma mesa simples, nua, com exceção duma lâmpada velada por um quebra-luz verde. Todas as janelas estão fechadas, com as cortinas corridas. Atrás da mesa, acha-se sentado um homem de lábios muito cerrados, nariz aquilino e rosto ascético. Tem sobrancelhas muito grossas. PHILIP está sentado numa cadeira, ao lado da mesa. O homem de rosto aquilino tem na mão um lápis. Numa cadeira, diante da mesa, está sentado um HOMEM. Está chorando, e soluços profundos sacodem-lhe o corpo. ANTÔNIO (o homem de nariz aquilino) olha-o com vivo interesse. O interrogado é o PRIMEIRO CAMARADA do Primeiro Ato, Cena 3. Tem a cabeça descoberta, está sem a sua túnica, e o cinturão, que segura suas frouxas calças da Brigada Internacional, cai-lhe ao longo das pernas. Ao erguer-se a cortina, PHILIP põe-se de pé e fita o PRIMEIRO CAMARADA.

PHILIP

(Com voz cansada:)

Gostaria de perguntar-lhe mais uma coisa ainda.

PRIMEIRO CAMARADA

Não me pergunte. Por favor, não me pergunte. Não quero que me pergunte nada.

PHILIP

Você não estava dormindo?

PRIMEIRO CAMARADA

(Com voz sufocada:)

Estava.

PHILIP

(Em tom muito fatigado e frio:)

Sabe qual é a penalidade para isso?

PRIMEIRO CAMARADA

Sei.

PHILIP

Por que não disse isso logo no começo, poupando-nos uma porção de complicações? Eu não mandaria fuzilá-lo por isso. Mas, agora... estou simplesmente decepcionado com você. Acha que as pessoas fuzilam os outros por divertimento?

PRIMEIRO CAMARADA

Eu devia ter-lhe contado. Mas estava apavorado.

PHILIP

Sim, sem dúvida. Devia ter-me contado.

PRIMEIRO CAMARADA

Sei que devia, camarada Comissário.

PHILIP

(Para ANTÔNIO, friamente:)

Acha que ele estava dormindo?

ANTÔNIO

Como é que vou saber? Quer que eu me ocupe dele?

PHILIP

Não, meu Coronel, não. Queremos informações. Não nos basta uma simples confissão.

(Para o PRIMEIRO CAMARADA:)

Ouça, o que foi que você sonhou, quando adormeceu?

PRIMEIRO CAMARADA

(Quase sufocado pelos soluços. Hesita. Depois, diz:)

Não me lembro.

PHILIP

Faça um esforço. Não se afobe. Quero apenas ter certeza, compreende? Não tente mentir. Eu saberei, se você mentir.

PRIMEIRO CAMARADA

Lembro-me, agora. Encostado à parede, eu tinha o fuzil entre as minhas pernas. Agora me lembro...

(Engasga-se.)

No sonho... eu... eu pensei que era minha garota, e que ela estava fazendo em mim uma coisa... uma coisa um tanto engraçada... Não sei bem o que era. Foi somente um sonho.

(Engasga-se.)

PHILIP

(Para ANTÔNIO:)

Está satisfeito, agora?

ANTÔNIO

Não compreendo muito bem essa história.

PHILIP

Bem, creio que ninguém a compreende perfeitamente, mas ele, agora, me convenceu.

(Para o PRIMEIRO CAMARADA:)

Qual o nome de sua garota?

PRIMEIRO CAMARADA

Alma.

PHILIP

O.K. Quando você lhe escrever, diga que ela lhe trouxe muita sorte.

(Para ANTÔNIO:)

Quanto ao que me diz respeito, o senhor pode dispensá-lo. E ler o The Worker. Conhece Joe North. Tem uma garota chamada Alma. Possui uma boa folha de serviço na Brigada e adormeceu, deixando que um cidadão passasse por ele e baleasse um rapaz chamado Wilkinson, julgando que era eu. O que temos de fazer é dar-lhe muito café forte, para que se mantenha acordado, e recomendar que deixe de manter fuzis entre as pernas. Ouça, camarada, lamento se lhe falei duro durante o cumprimento de meu dever.

ANTÔNIO

Eu também gostaria de fazer algumas perguntas a ele.

PHILIP

Ouça, meu Coronel. Se eu não fosse bom nesta espécie de trabalho, dificilmente teriam permitido que eu o executasse durante tanto tempo. Não há nada errado com este rapaz. O senhor bem sabe que, entre nós, não existe ninguém que possa ser considerado absolutamente certo. Mas este rapaz é merecedor de confiança. Ele apenas caiu no sono, e eu não sou juiz, como o senhor sabe. Estou somente trabalhando para o senhor, pela causa, pela República, e por isto e aquilo. Tivemos um presidente na América chamado Lincoln, que, como o senhor sabe, comutou sentenças de prisioneiros que deviam ser fuzilados por dormir em seus postos. De modo que, penso, não seria mau se o senhor comutasse também a sentença desse rapaz. Ele vem, como é de seu conhecimento, do Batalhão Lincoln — que é um batalhão tremendamente bom. É um batalhão tão bom e já fez tais coisas que eu lhe amoleceria o coração se lhe falasse delas. Se eu pertencesse a ele, me sentiria decente e orgulhoso, em vez de sentir o que sinto fazendo o que faço. Mas não pertenço, percebe? Sou uma espécie de “tira” de segunda classe, que finge ser um jornalista de terceira... Mas, ouça, camarada Alma...

(Voltando-se para o prisioneiro:)

Se você tornar a dormir em seu posto, enquanto estiver trabalhando para mim, eu próprio o fuzilarei, percebe? Está ouvindo? E escreva isso à Alma.

ANTÔNIO

(Tocando uma campainha. Entram dois GUARDAS DA TROPA DE ASSALTO.)

Levem-no daqui. Você fala de maneira muito confusa, Philip. Mas tem ainda certa soma de crédito a seu favor.

PRIMEIRO CAMARADA

Obrigado, camarada Comissário.

PHILIP

Não me agradeça. Numa guerra, não se diz obrigado. Mas desta vez passa, percebe? Quando escrever a Alma, diga-lhe que ela lhe trouxe muitíssima sorte.

(O PRIMEIRO CAMARADA sai com os GUARDAS DA TROPA DE ASSALTO.)

ANTÔNIO

Bem, mas explique-me agora: esse homem que fugiu do quarto 107 e baleou o rapaz por engano, pensando que fosse você, quem é ele?

PHILIP

Oh, não sei. Papai Noel, talvez. Eles não têm nomes. São numerados em código: A de um a dez, B de um a dez, C de um a dez, e baleiam gente, explodem coisas e fazem tudo aquilo que você está cansado de saber. Trabalham arduamente, mas não chegam a ser muito eficientes. Matam uma porção de gente que não deviam matar. O problema é que aprenderam tão bem as lições do antigo manual cubano que, a menos que se consiga apanhar um de seus contatos, nada se consegue. Ou se corta o mal pela raiz ou se perde tempo com panaceias. Pode corrigir-me, se eu me tornar confuso.

ANTÔNIO

E por que razão não enfrenta esse homem com força suficiente para liquidá-lo?

PHILIP

Porque não posso me dar ao luxo de fazer muito barulho e assustar os outros, que importam muito mais. Esse cara não passa dum reles assassino.

ANTÔNIO

É verdade. Mas há uma porção de fascistas nesta cidade de um milhão de habitantes, e eles agem traiçoeiramente. Os que têm coragem de agir. Devemos ter aqui, contando apenas os ativos, cerca de vinte mil.

PHILIP

Mais. Dobre isso. Mas quando a gente os apanha, eles não abrem a boca. Exceto os políticos.

ANTÔNIO

Políticos. Sim, políticos. Vi um deles caído ali naquele canto da sala, incapaz de pôr-se de pé, quando sua hora chegou... Outro, atravessou esta sala de joelhos, abraçou minhas pernas e beijou meus pés. Babava em minhas botas, quando tudo o que lhe restava fazer era simplesmente bater as suas... Vi muitos homens morrerem, mas nunca vi um político que soubesse morrer bem.

PHILIP

Eu não gosto de vê-los morrer. Está tudo bem, para quem gosta do espetáculo. Mas eu o detesto e não sei como se possa aguentá-lo... Diga-me quem é que morre bem?

ANTÔNIO

Você sabe. Não banque o ingênuo.

PHILIP

Tem razão. Creio que sei.

ANTÔNIO

Eu podia morrer de modo satisfatório. Não peço a ninguém que faça algo impossível.

PHILIP

Você é um especialista. Ouça, Tonico. Quem é que morre bem, afinal? Vamos! Diga logo. Faz-lhe bem falar a respeito de sua profissão. Falar a respeito dela você sabe, pois o melhor que se faz, logo a seguir, é esquecer tudo. Simples, não é? Fale-me sobre o que ocorria nos primeiros dias do movimento.

ANTÔNIO

(Um tanto orgulhoso:)

Quer mesmo ouvir? Quer que me refira a alguém em particular?

PHILIP

Não. Conheço alguns casos em particular. Prefiro que você os classifique por tipos ou classes.

ANTÔNIO

Fascistas, fascistas de verdade, quando jovens — esses morrem muito bem. Às vezes, até com grande estilo. Estão enganados, mas têm muito estilo. Soldados, sim, a maioria deles tem classe para morrer. Quanto aos sacerdotes, você sabe que fui contra eles durante toda a minha vida. A Igreja nos combate. Nós combatemos a Igreja. Sou socialista há muitos anos. Somos o mais antigo partido revolucionário na Espanha. Mas, quanto a morrer...

(Sacode a mão numa tríplice e rápida flexão de punho, que é o gesto espanhol de suprema admiração.)

... padres. Mas me refiro a simples padres, não a bispos.

PHILIP

Mas, às vezes, matamos por engano, não é, Antônio? Quando agimos depressa demais, talvez. Ou, quem sabe, quando apenas erramos, já que todos cometemos erros a três por dois. Eu mesmo, ontem, cometi um pequeno erro. Diga-me, Antônio: você nunca matou por engano?

ANTÔNIO

Oh, sim. Certamente. Enganos. Oh, sim, enganos. Sim. Sim. Enganos bastante lamentáveis. Não foram muitos, porém.

PHILIP

E como morreram os que foram mortos por engano?

(Orgulhoso:)

Todos muito bem.

ANTÔNIO

Ah...

PHILIP

(A exclamação soa como o ruído que um pugilista poderia fazer ao ser atingido no corpo por um golpe violento.)

E neste negócio em que estamos agora... Como é mesmo o nome idiota que lhe dão? Contraespionagem. Isso nunca te irritou?

ANTÔNIO

(Simplesmente:)

Não.

PHILIP

Quanto a mim, irrita-me há bastante tempo.

ANTÔNIO

Mas não faz tanto tempo assim que você está nesta brincadeira.

PHILIP

Doze meses infelizes, meu caro. Neste país! E, antes disso, em Cuba. Já esteve em Cuba?

ANTÔNIO

Já.

PHILIP

Foi lá que me deixei envolver por tudo isto.

ANTÔNIO

Como foi que se deixou envolver?

PHILIP

Oh, pessoas que deviam ser mais sensatas do que realmente são começaram a confiar em mim. Talvez por isso mesmo, por elas parecerem mais sensatas do que na realidade eram, foi que comecei a merecer de sua parte uma espécie de confiança. Você compreende, não uma confiança total, mas moderada. Depois, confiam na gente um pouco mais, quando você age acertadamente. Aí, sabe, a gente também começa a acreditar na coisa. Finalmente, quando você se dá conta, já começou até a gostar da coisa... É uma sensação que não sei explicar muito bem.

ANTÔNIO

Você é um bom rapaz. Trabalha bem. Todos confiam muito em você.

PHILIP

Confiam demasiado, caramba! E sinto-me também cansado, e estou, no momento, preocupado. Sabe de que eu gostaria? Gostaria de não ter que matar qualquer outro filho da puta, fosse qual fosse a razão ou fosse ele quem fosse. Gostaria de não ter mais que mentir. Gostaria de saber quem sou ao acordar. Gostaria de acordar no mesmo lugar, todas as manhãs, durante uma semana inteira. Gostaria de me casar com uma garota chamada Bridges, que você não conhece. E gostaria de me casar com ela porque possui as pernas mais longas, mais suaves, mais bem-feitas do mundo, e de não ter mais que ouvi-la me dizer que tudo isto não tem muito sentido. Eu gostaria ainda de ver como seriam nossos filhos.

ANTÔNIO

Ela é aquela loira alta que anda com o correspondente?

PHILIP

Não fale assim a respeito dela. Ela não é uma tal de loira alta com um tal de correspondente... Ela é a minha garota. E se falo demais e tomo o seu precioso tempo... ora, faça com que me cale. Você sabe que sou um sujeito extraordinário. Sei falar inglês britânico ou americano. Fui criado numa dessas línguas e me eduquei na outra. É disso que tiro o meu ganha-pão.

ANTÔNIO

(Apaziguador:)

Eu sei. Você está cansado, Philip.

PHILIP

Bem, agora estou falando americano. Bridges é igual. Só que não estou certo de que ela saiba falar americano. Ela aprendeu inglês na universidade, com algum aristocrata ordinário ou metido a literato, mas sabe o que é divertido? Eu gosto de ouvi-la falar. Não me importa o que ela diz. Como vê, agora estou mais calmo. Não bebi coisa alguma desde esta manhã, e estou muito mais bêbado do que quando bebo, e isso é um mau sinal. Não é inconveniente que um de seus cooperadores relaxe um pouco, meu Coronel?

ANTÔNIO

Você devia é ir para a cama. Você está exausto, Philip, e tem muito trabalho pela frente.

PHILIP

Tem razão. Estou exausto e tenho muito trabalho a fazer. Estou aguardando o momento de encontrar um camarada no Chicotes. Chama-se Max. Tenho, e não exagero, muito trabalho a fazer. Esse tal de Max — creio que você o conhece —, apenas para mostrar como é um sujeito distinto, nem se dá ao cuidado de ter um sobrenome, ao passo que o meu é Rawlings, exatamente o mesmo que era quando comecei. O que prova que não fui muito longe neste negócio... Mas o que é mesmo que eu estava dizendo?

ANTÔNIO

Falava de Max.

PHILIP

Max. Isso mesmo. Max. Bem, ele já está um dia atrasado. Tem estado a navegar, há coisa de duas semanas — digamos, circulando, para evitar confusão — atrás das linhas fascistas. É a sua especialidade. É ele quem o diz, e ele não mente. Eu minto. Mas não neste momento. Seja lá como for, estou muito cansado, e também desgostoso com o meu trabalho, além de me sentir nervoso como um patife porque estou preocupado, e não sou de me preocupar facilmente.

ANTÔNIO

Prossiga. Não seja temperamental.

PHILIP

Ele diz, isto é, Max diz — com os diabos, como eu gosta- ria de saber onde ele está agora — que arranjou excelente posição estratégica, ou seja, um ótimo posto de observação. Ele os vê cair, e ainda diz que é um lugar errado. Um lugar daqueles! Bem, segundo ele, o alemão comandante da artilharia que nos cerca e bombardeia costuma ir até lá, bem como um político encantador. Você sabe, uma dessas peças de museu. Ele também vai lá. E Max pensa. E eu penso que ele é um fanático. Mas ele raciocina melhor. Eu raciocino mais depressa, mas ele raciocina melhor: acha que podemos agarrar esses caras. Agora, ouça com atenção, meu Coronel, e corrija-me imediatamente. Eu acho que essa história tem um tom romântico. Mas Max o diz — e ele é alemão e muito prático, e penetra por trás das linhas fascistas com a mesma facilidade com que a gente se barbeia ou coisa que o valha. Bem, ele diz que isso é inteiramente viável. E eu pus-me a pensar. Estou, neste momento, um tanto zonzo por não ter bebido nada durante tanto tempo. Pensei que talvez devêssemos suspender os outros planos em que estamos trabalhando — suspendê-los temporariamente — e apanhar esses dois sujeitos para você. Creio que o alemão não seja, para você, de muita utilidade prática, mas ele tem, na realidade, um alto valor de troca, e esse plano, de certo modo, seduz Max. Atribua isso ao nacionalismo, digamos. Mas se conseguirmos apanhar o tal outro cidadão, o político, você terá conseguido um trunfo, meu Coronel. Porque ele é quente. Quentíssimo. Ele vive fora da cidade, mas basta que você o obrigue a falar para ficar sabendo quem está dentro da cidade. Porque todos os agentes se comunicam com ele. Eu falo demais, não acha?

ANTÔNIO

Philip?

PHILIP

Sim, meu Coronel.

ANTÔNIO

Philip, vá agora ao Chicotes, embriague-se como um bom rapaz e realize o seu trabalho — e venha cá ou me telefone quando tiver novidades.

PHILIP

E como devo falar, meu coronel? Americano ou inglês?

ANTÔNIO

O que você quiser. Não diga bobagens. Mas agora se mande, por favor... Somos bons amigos e eu gosto muito de você, mas estou muito ocupado. Ouça: é verdade o que me disse sobre o tal posto de observação?

PHILIP

É.

ANTÔNIO

Que coisa!

PHILIP

Muito fantasiosa, porém. Terrivelmente, terrivelmente fantasiosa, meu Coronel.

ANTÔNIO

Vá-se embora, por favor, e comece a trabalhar.

PHILIP

E falo inglês ou americano?

ANTÔNIO

Que besteira é essa?

PHILIP

Então, falarei inglês. Sei mentir muito mais facilmente em inglês! É lamentável!

ANTÔNIO

VÁ-SE EMBORA! VÁ-SE EMBORA! VÁ-SE EMBORA!

PHILIP

Sim, meu Coronel. Obrigado pela breve e instrutiva palestra. Vou, agora, ao Chicotes. Salud, meu Coronel.

(Faz continência, consulta seu relógio e parte.)

ANTÔNIO

(Da mesa, acompanha-o com o olhar. Depois, toca a campainha. DOIS GUARDAS DA TROPA DE ASSALTO entram. Fazem continência.)

Tragam-me, agora, aquele homem que vocês levaram daqui antes. Quero conversar um pouquinho com ele, a sós.

CORTINA


CENA 2


Uma mesa de canto no bar Chicotes. É a primeira mesa à direita, logo à entrada. A porta e a janela estão protegidas por sacos de areia até três-quartos de sua altura. PHILIP está sentado a uma mesa em companhia de ANITA. Um garçom aproxima-se deles.

PHILIP

Ainda resta algum uísque de barril?

GARÇOM

Nada resta de legítimo, exceto gin.

PHILIP

Gin bom?

GARÇOM

Rótulo amarelo, do Booth. O melhor.

PHILIP

Com bitter.

ANITA

Você não está mais amando alguém?

PHILIP

Não.

ANITA

Cometeu erro, erro sério, com aquela loira grande.

PHILIP

Que loira grande?

ANITA

Aquela loira grandona. Alta demais, uma torre. Grande como um cavalo.

PHILIP

Loira como um trigal.

ANITA

Erro! Mulher grande. Erro grande.

PHILIP

O que a leva a pensar que ela é tão grande?

ANITA

Grande? É grande como um tanque. Vai ver só quando ela tiver bebê. Grande? É um caminhão Studebaker.

PHILIP

Eis aí uma palavra encantadora, Studebaker, tal como você a diz.

ANITA

Sim. Gosto mais dela do que qualquer outra palavra em inglês que conheço. Studebaker... É linda. Por que você não está amando?

PHILIP

Não sei, Anita. As coisas mudam, você sabe.

(Consulta seu relógio.)

ANITA

Você costumava amar muito bem antes. É a mesma coisa.

PHILIP

Eu sei.

ANITA

Você gostava antes. Vai gostar de novo. É só tentar.

PHILIP

Eu sei.

ANITA

Quando a gente tem coisa boa, a gente não quer que ela se vá. Uma mulher é muita complicação. Estou na vida há muito tempo.

PHILIP

Você é uma moça excelente, Anita.

ANITA

Será que todos falam mal de mim porque mordi o sr. Vernon aquela vez?

PHILIP

Não. Claro que não.

ANITA

Juro, queria não ter feito aquilo.

PHILIP

Ora, ninguém mais se lembra disso.

ANITA

Sabe por que mordi ele? Todo mundo sabe que eu mordi, mas ninguém nunca me perguntou por quê.

PHILIP

E por que você o mordeu?

ANITA

Ele tentou tirar trezentas pesetas de minha meia. Eu ia fazer o quê? Dizer: “Sim, tira dinheiro. Está bem. Sirva-se”? Não. Eu mordi.

PHILIP

Teve toda a razão.

ANITA

Você acha? De verdade?

PHILIP

Acho.

ANITA

Oh, você é uma doçura, não tem dúvida! Mas me escuta: você não deve agora cometer um erro com aquela loira grande.

PHILIP

Sabe, Anita, acho que vou cometer, sim. É exatamente aí que está toda a complicação. Eu quero cometer um erro absolutamente colossal.

(Chama o garçom; consulta o relógio. Para o garçom:)

Que horas você tem?

GARÇOM

(Olha o relógio, por cima do balcão, bem como o relógio de PHILIP.)

A mesma hora que o senhor.

ANITA

Colossal, nenhuma dúvida.

PHILIP

Você não está com ciúmes?

ANITA

Não. Apenas ódio. Ontem à noite, procurei gostar. Disse O.K., todos são camaradas. Vem um grande bombardeio. Talvez todos morram. Todos deviam ser camaradas uns dos outros. Enterrar os ódios. Não ser egoísta. Amar um inimigo como a si próprio. Toda essa droga.

PHILIP

Você é tremenda.

ANITA

Mas essa espécie de sentimento não dura mais que uma noite. Esta manhã despertei e a primeira coisa que fiz foi odiar essa mulher. Odiei ela o dia todo.

PHILIP

Você sabe que não devia.

ANITA

Que é que ela quer com você? Ela apanha um homem como se colhe uma flor. Ela não deseja. Colhe apenas para pôr em seu quarto. Ela é exatamente como você porque você também é grande. Ouça, eu gostaria de você mesmo que fosse um anão.

PHILIP

Não, Anita. Não exagere...

ANITA

Ouça bem. Eu gostaria de você mesmo que fosse doente. Eu gostaria de você mesmo que fosse seco e feio. Eu gostaria de você mesmo que você fosse corcunda.

PHILIP

Corcundas dão azar.

ANITA

Eu gostaria de você mesmo que você fosse um corcunda azarento. Gostaria de você mesmo que você não tivesse dinheiro. Você quer dinheiro? Eu ganho dinheiro.

PHILIP

Creio que essa é uma das poucas coisas que ainda não experimentei nesta vida que levo.

ANITA

Não estou brincando. Estou falando sério. Largue ela! Venha para onde você sabe que tudo é O.K.

PHILIP

Receio não poder, Anita.

ANITA

Mas experimente. Nada mudou. Você gostou antes; tornará a gostar. Sempre acontece assim quando um homem é homem.

PHILIP

Mas você vê que eu mudo. Não é que eu queira.

ANITA

Você não muda. Sei que você é bom. Agora já faz muito tempo que conheço você. Você não é do tipo que muda.

PHILIP

Todos os homens mudam.

ANITA

Não é verdade. Às vezes ficam cansados, querem ir embora, sim. Andam por aí, sim. Ficam furiosos, sim, sim. Tratam a gente mal, sim, muito. Isso é mudar? Não. Somente começar hábitos diferentes. E um hábito é tudo. Acontece o mesmo com todas as pessoas.

PHILIP

Eu compreendo. Sim, tem razão. Mas, como você percebe, trata-se, neste caso, de a gente encontrar alguém de nosso próprio feitio, e isso nos perturba.

ANITA

Não é gente como você. É uma raça diferente de gente.

PHILIP

Não, é a mesma espécie de gente como eu.

ANITA

Ouça, aquela loira grande já fez você ficar maluco. Você já não pode pensar direito. Já não é mais o mesmo, é como se fosse sangue e tinta. Eu pareço a mesma. Lata de sangue, lata de tinta. Muito bem. Ponha tinta nas veias, em vez de sangue. Que é que você ganha? Mulher americana!

PHILIP

Você é injusta com ela, Anita. Concordo que ela seja preguiçosa e mimada, e um tanto estúpida, e enormemente imatura. Mesmo assim, ela é muito bonita, muito amiga, muito simpática e um tanto inocente... e muito corajosa, ainda por cima.

ANITA

O.K. Bonita? Que é que você quer com a beleza, depois de satisfeito? Eu conheço você. Amiga? O.K., pode ser às vezes cordial, às vezes inimiga. Encantadora? Sim. Encantadora como a serpente com a lebre. Inocente? Você me faz rir. Rá-rá-rá! A gente é inocente até que provem que a gente é culpada. Corajosa? Corajosa? Você me faz rir de novo, se é que ainda tenho algum riso em minha barriga. Corajosa? Muito bem. Eu rio: rá-rá-rá! Que é que você faz durante todo o tempo, nesta guerra, se ainda não sabe o que é ignorância e o que é coragem? Corajosa? Como a minha bunda...

(Levanta-se da mesa e dá uma palmada no próprio traseiro.)

Já disse tudo o que precisava dizer. Agora, vou embora.

PHILIP

Você está sendo muito dura com ela.

ANITA

Dura com ela? Eu gostaria de atirar uma granada de mão na cama em que ela está dormindo neste minuto. Vou dizer a verdade. Ontem à noite, tentei tudo aquilo. Todo aquele sacrifício. Toda aquela renúncia. Você sabe. Agora tenho somente um sentimento saudável. Eu a odeio.

(Vai embora.)

PHILIP

(Para o GARÇOM:)

Você não viu por aqui um camarada da Brigada Internacional perguntando por mim? Chamado Max? Um camarada com a cara meio quebrada aqui deste lado?

(Põe a mão sobre a boca e o queixo.)

Um camarada sem dentes na frente? Com umas gengivas pretas, que foi onde eles o queimaram com ferro em brasa? E com uma cicatriz aqui?

(Corre os dedos pela parte inferior do queixo.)

Não viu esse tal camarada?

GARÇOM

Não. Ele não esteve aqui.

PHILIP

Se esse tal sujeito der as caras, poderia pedir-lhe para ir ao meu hotel?

GARÇOM

Que hotel?

PHILIP

Ele sabe que hotel.

(Caminha para a porta e olha para trás.)

Diga-lhe que estive procurando por ele.

CORTINA


CENA 3


Exatamente como o Primeiro Ato, Cena 3. Os dois quartos contíguos do Hotel Florida. Está escuro fora dos quartos e as cortinas estão corridas. Não há ninguém no quarto 110, cuja luz se acha apagada. O quarto 109 está vivamente iluminado, tanto pela lâmpada de cima da mesa quanto pela lâmpada principal do teto e pela lâmpada de leitura da cabeceira da cama. O aquecedor e o fogareiro elétrico estão ligados. DOROTHY BRIDGES, usando um suéter de gola rulê, saia xadrez, meias de lã e botas de cano alto, está preparando algo numa frigideira de cabo comprido, no fogareiro. Ouve-se um ruído distante de armas de fogo através das janelas encortinadas. DOROTHY toca a sineta. Não se ouve som algum. Ela toca novamente.

DOROTHY

Oh, maldito eletricista!

(Dirige-se à porta e a abre.)

Petra! O Petra!

(Ouve-se a CRIADA vindo pelo corredor. Chega ao quarto.)

PETRA

Sim, señorita?

DOROTHY

Onde está o eletricista, Petra?

PETRA

A señorita não sabe?

DOROTHY

Não. Que foi que houve? Ele ficou de vir consertar esta campainha!

PETRA

Ele não pode vir, señorita, pois está morto.

DOROTHY

Que é que está dizendo?

PETRA

Ele foi atingido, ontem à noite, ao sair durante o bombardeio.

DOROTHY

Ele saiu durante o bombardeio?

PETRA

Sim, señorita. Esteve bebendo um pouco e foi para casa.

DOROTHY

Pobre homenzinho!

PETRA

Sim, señorita. Foi uma pena!

DOROTHY

Como é que ele foi atingido, Petra?

PETRA

Alguém atirou nele de uma janela, dizem. Eu não sei. Foi o que me disseram.

DOROTHY

Mas quem?

PETRA

O pessoal da Quinta-Coluna. A gente que luta contra nós dentro da própria cidade.

DOROTHY

Mas por que iriam atirar nele? Ele era apenas um pobre operário.

PETRA

Podiam ver, pelas suas roupas, que ele era um trabalhador.

DOROTHY

Naturalmente, Petra.

PETRA

Foi por isso que atiraram nele. São nossos inimigos. Até mesmo meus. Se eu fosse morta, eles ficariam felizes. Seria uma pessoa a menos pertencente à classe trabalhadora.

DOROTHY

Mas isso é horroroso!

PETRA

Sim, señorita.

DOROTHY

É terrível! Você quer dizer que eles atiram em pessoas que sequer sabem quem são?

PETRA

Oh, sim. Eles são nossos inimigos.

DOROTHY

São pessoas terríveis!

PETRA

Sim, señorita.

DOROTHY

E o que faremos para arranjar um eletricista?

PETRA

Amanhã poderemos arranjar outro. Mas, hoje, estão todos fechados. Se a señorita não acendesse tantas lâmpadas, quem sabe o fusível não derreteria. Use apenas a luz de que a señorita necessita para enxergar.

(Dorothy apaga-as todas, menos a lâmpada de leitura junto à cama.)

DOROTHY

Agora não posso enxergar nem para cozinhar esta droga. Mas creio que seja melhor assim. Não dizia, na lata, se a gente podia esquentá-la ou não. Sairá, provavelmente, algo terrível!

PETRA

Que é que está cozinhando, señorita?

DOROTHY

Eu não sei, Petra. Não havia rótulo algum na lata.

PETRA

(Espiando a panela.)

Parece coelho.

DOROTHY

O que se parece a coelho é gato. Mas não creio que eles tivessem o trabalho de metê-lo numa lata e enviá-lo para cá de Paris, não acha? Podem, claro, tê-lo enlatado em Barcelona, enviado a Paris e, a seguir, mandado de avião para cá. Você acha que é gato, Petra?

PETRA

Se foi enlatado em Barcelona, a gente não pode dizer o que é!

DOROTHY

Oh, estou enjoada de tudo isto! Veja se você o prepara, Petra!

PETRA

Sim, señorita. Que é que devo colocar aí?

DOROTHY

(Apanhando um livro e dirigindo-se à luz de leitura, a fim de estender-se sobre a cama.)

Ponha qualquer coisa. Abra uma lata de alguma coisa.

PETRA

Isto é para o sr. Philip?

DOROTHY

Se ele vier.

PETRA

O sr. Philip não gostaria de qualquer coisa. Seria melhor escolher com cuidado para o sr. Philip. Uma vez, ele atirou no chão toda a bandeja do breakfast.

DOROTHY

Por quê, Petra?

PETRA

Foi alguma coisa que ele leu no jornal.

DOROTHY

Foi sobre Anthony Eden, provavelmente. Ele detesta Eden.

PETRA

De qualquer forma, foi uma coisa muito violenta para alguém fazer. Eu lhe disse que ele não tinha o direito de fazer isso. No hay derecho, disse-lhe eu.

DOROTHY

E o que foi que ele fez?

PETRA

Ajudou-me a apanhar tudo do chão e, depois, me deu um tapa aqui, quando eu estava abaixada. Señorita, não gosto de vê-lo nesse quarto aí ao lado. Ele não está à sua altura, señorita.

DOROTHY

Eu o amo, Petra.

PETRA

Señorita! Por favor, não se deixe vencer por uma coisa dessas. A señorita não arrumou o quarto dele nem fez a sua cama durante sete meses, como eu. Señorita, ele é ruim. Não digo que ele não seja um bom homem. Mas é ruim.

DOROTHY

Você quer dizer que ele é perverso?

PETRA

Perverso, não. Perverso é sujo, e ele é muito limpo. Toma banho sempre, mesmo com o tempo frio. Mesmo nos dias mais frios, ele lava os pés. Mas, señorita, ele não é bom. E não vai fazer a señorita feliz.

DOROTHY

Mas, Petra, ele me fez mais feliz do que qualquer outro jamais me fez.

PETRA

Señorita, isso não é nada.

DOROTHY

Não é nada? Que é que você quer dizer?

PETRA

Aqui todo mundo pode fazer isso!

DOROTHY

Vocês não passam de uma nação de pretensiosos! Será que terei de engolir toda essa conversa sobre suas proezas de conquistadores e tudo o mais?

PETRA

Eu só quis dizer que também há maldade por aqui. Um bom homem também possui isso, talvez... Sim, um homem realmente bom, como aquele com o qual fui casada, também tem disso. Mas todos os homens maus têm isso.

DOROTHY

Você repete o que eles dizem.

PETRA

Não, señorita.

DOROTHY

(Intrigada:)

Você quer dizer que eles, realmente...?

PETRA

(Com tristeza:)

Sim, señorita.

DOROTHY

Não acredito numa só palavra do que me diz! E você acha que o sr. Philip é, realmente, um homem mau?

PETRA

(Vivamente:)

Terrível!

DOROTHY

Oh, eu bem que gostaria de saber onde é que ele está agora!

(Chega, do corredor, um ruído de botas pesadas. PHILIP e TRÊS CAMARADAS em uniforme da Brigada Internacional entram no quarto 110, e PHILIP acende a luz. PHILIP tem a cabeça nua, está todo molhado e seu aspecto é de completo desalinho. Um dos CAMARADAS é Max, o homem do rosto arrebentado. Está coberto de lama e, ao entrarem no quarto, ele se senta numa cadeira diante da mesa, voltado para o espaldar da cadeira, onde apoia as mãos e o queixo. Tem um rosto estranhíssimo. Um dos CAMARADAS traz um fuzil automático, de cano curto, pendurado no ombro. Outro tem uma longa pistola parabellum, Mauser, metida num coldre de madeira, atada à perna.)

PHILIP

Quero que bloqueiem esses dois quartos junto ao corredor. Qualquer pessoa que queira me ver, vocês a trazem aqui. Quantos camaradas vocês têm lá embaixo?

O CAMARADA DO FUZIL

Vinte e cinco.

PHILIP

Aqui estão as chaves dos quartos 108 e 111.

(Entrega uma chave a cada um.)

Conservem as portas abertas e fiquem bem perto delas, num local de onde possam observar o corredor. Não. É melhor que cada um apanhe uma cadeira e se sente dentro do quarto, em permanente observação de tudo o que se passa. Muito bem. Agora vão... camaradas!

(Eles prestam continência e saem. PHILIP aproxima-se do CAMARADA de cara estropiada. Põe a mão em seu ombro. Os espectadores já viram que ele está dormindo, mas PHILIP não notou isso.)

PHILIP

Max.

(MAX acorda, olha para PHILIP e sorri.)

Foi muito ruim a coisa, Max?

(MAX olha-o, torna a sorrir e abana a cabeça.)

MAX

Nicht zu schwer.*

PHILIP

E quando é que ele vem?

MAX

Nas noites de bombardeio pesado.

PHILIP

E onde é que ele fica?

MAX

No telhado de uma casa que fica na ladeira da estrada para Extremadura. Há uma pequena torre nesse telhado.

PHILIP

Julguei que ele viesse para Garabitas.

MAX

Eu também.

PHILIP

E quando haverá outro grande bombardeio?

MAX

Esta noite.

PHILIP

Quando?

MAX

Fiertel nach zwölf.**

PHILIP

Tem certeza?

MAX

Você devia ver os projéteis! Todos no paiol. Mas, na verdade, são uns soldados muito relaxados. Se eu não tivesse esta cara, poderia ter ficado por lá e até acabar manejando uma arma. Talvez acabassem me colocando no Estado-Maior.

PHILIP

Onde foi que mudou de uniforme? Estive à sua procura em vários lugares.

MAX

Numa casa em Carabanchel. Há uma centena delas naquele trecho, desabitadas. Cento e quatro, creio eu. Entre as nossas linhas e as deles. Tudo correu bem lá. Os soldados eram todos jovens. O único perigo era que um oficial visse a minha cara. Um oficial saberia logo de onde vêm tais caras.

PHILIP

E agora?

MAX

Creio que podemos ir esta noite. Por que esperar?

PHILIP

Como é a coisa?

MAX

Lamacenta.

PHILIP

De quantos você precisa?

MAX

Dois, apenas: você e eu. Ou de quem quer que mande comigo.

PHILIP

Eu mesmo irei com você.

MAX

Ótimo. Agora, que tal se eu tomasse um banho?

PHILIP

Excelente! Vá tomá-lo.

MAX

Depois dormirei um pouco.

PHILIP

A que horas devemos partir?

MAX

Às nove e meia.

PHILIP

Então dará mesmo para você dormir um pouco.

MAX

Você me acordará?

(Dirige-se ao banheiro. PHILIP sai do quarto, fecha a porta e bate na porta do 109.)

DOROTHY

(Da cama:)

Entre.

PHILIP

Olá, querida.

DOROTHY

Olá!

PHILIP

Está cozinhando?

DOROTHY

Estava, mas fiquei chateada. Você está com fome?

PHILIP

Faminto.

DOROTHY

Está lá na panela. Acenda o forno e esquente a comida.

PHILIP

O que é que há com você, Bridges?

DOROTHY

Onde é que esteve?

PHILIP

Aí pela cidade.

DOROTHY

Fazendo o quê?

PHILIP

Apenas andando por aí.

DOROTHY

Você me deixou o dia inteiro sozinha. Desde o momento em que o pobre homem foi morto, nesta manhã, você me deixou sozinha. Fiquei esperando o dia inteiro. Ninguém passou para me ver, a não ser Preston, e ele é tão desagradável que tive de lhe pedir para sair. Onde você esteve?

PHILIP

Por aí.

DOROTHY

No Chicotes?

PHILIP

Sim.

DOROTHY

E você viu aquela moura horrível?

PHILIP

Oh, sim, a Anita. Ela lhe mandou lembranças.

DOROTHY

Que puta descarada! Você sabe o que fazer com as lembranças!

(PHILIP despeja num prato um pouco do conteúdo da caçarola e prova-o.)

PHILIP

Que é isto?

DOROTHY

Sei lá.

PHILIP

Oh, mas está ótimo! Você mesma preparou?

DOROTHY

(Modestamente:)

Sim. Você gosta?

PHILIP

Eu não sabia que você sabia cozinhar.

DOROTHY

(Tímida:)

Verdade, Philip?

PHILIP

Palavra que está excelente! Mas que ideia foi essa de pôr arenque defumado nisto?

DOROTHY

Oh, maldita Petra! Ela abriu a lata errada!

(Há uma batida na porta. É o GERENTE. O CAMARADA do fuzil automático segura-o firmemente pelo braço.)

CAMARADA DO FUZIL

O camarada aqui disse que queria vê-lo.

PHILIP

Obrigado, camarada. Deixe-o entrar.

(O CAMARADA DO FUZIL solta o GERENTE e presta continência.)

GERENTE

É absolutamente um nada, sr. Philip. Passando pelo corredor com olfato aguçado produzido pela fome, senti cheiro de comida e parei. Instantaneamente fui apanhado por este camarada. Perfeitamente O.K., sr. Philip. Não é nada. Não se preocupe. Buen provecho, sr. Philip. Coma bem, madame.

PHILIP

Você chegou no momento exato. Tenho algo para você. Tome isto.

(Entrega-lhe com ambas as mãos a caçarola, o prato, o garfo e a concha.)

GERENTE

Não, sr. Philip. Não posso aceitar.

PHILIP

Mas deve, Camarada Colecionador de Selos!

GERENTE

Não, sr. Philip.

(Apanhando tudo.)

Não posso. O senhor me leva às lágrimas! Jamais poderia. É demais!

PHILIP

Camarada, nem mais uma palavra!

GERENTE

O senhor dissolve meu coração em sentimento. Sr. Philip, do fundo de meu coração eu lhe agradeço.

(Sai, segurando o prato com uma das mãos e a caçarola com a outra.)

DOROTHY

Philip, desculpe-me.

PHILIP

Se você não se importa, tomarei um uísque com água. Depois, você poderia abrir uma lata de carne e cortar uma cebola em fatias.

DOROTHY

Mas, Philip, querido, não suporto o cheiro de cebola!

PHILIP

É quase certo que isso não nos incomodará esta noite.

DOROTHY

Isso quer dizer que você não vai ficar aqui?

PHILIP

Tenho de sair.

DOROTHY

Por quê?

PHILIP

Com os rapazes.

DOROTHY

Sei o que isso significa.

PHILIP

Sabe?

DOROTHY

Sei. E muito bem.

PHILIP

Horrível, não?

DOROTHY

É odioso! A maneira como você desperdiça seu tempo e sua vida é não apenas odiosa, mas estúpida.

PHILIP

Logo eu, que sou tão jovem e promissor.

DOROTHY

É detestável você sair esta noite, quando podíamos ficar aqui e passar momentos encantadores como os de ontem.

PHILIP

O animal que há dentro de mim me obriga a isso.

DOROTHY

Ficarei alegre e tocarei a vitrola. Também beberei, mesmo que, depois, me dê dor de cabeça. Convidaremos uma porção de gente, se você quiser, uma porção de gente. Poderá ser uma noite barulhenta e cheia de fumaça de cigarros — tudo como você gosta. Você não precisa sair, Philip!

PHILIP

Venha cá e dê-me um beijo!

(Ele a toma nos braços.)

DOROTHY

E não coma cebolas, Philip. Se você não comer cebolas, terei mais certeza de que você me quer.

PHILIP

Muito bem. Não comerei cebolas. Você tem algum vidro de ketchup?

(Há uma batida na porta. É, de novo, o CAMARADA DO FUZIL, acompanhado do GERENTE.)

CAMARADA DO FUZIL

Este camarada está novamente por aqui!

PHILIP

Obrigado, camarada. Deixe-o entrar.

(O CAMARADA DO FUZIL presta continência e sai.)

GERENTE

Vim dizer somente que tudo está O.K., que não me ofendo com piadas, sr. Philip. Eu tenho senso de humor. O.K.

(Com tristeza na voz:)

Mas não se deve fazer piada com comida agora. Não desperdiçar humor nem comida, talvez, se a gente pensar bem. Mas está tudo certo. Aceito a brincadeira.

PHILIP

Apanhe duas latas dessas.

(Dá-lhe duas latas de carne, do armário.)

DOROTHY

De quem são essas latas?

PHILIP

Oh, creio que são suas.

GERENTE

Obrigado, sr. Philip. Essa foi boa piada, sem dúvida. Rá-rá! Dispendiosa, sim, talvez. Mas, obrigado, sr. Philip. Obrigado também para a senhorita.

(Sai.)

PHILIP

Ouça, Bridges.

(Abraça-a.)

Não se importe comigo, se estou um tanto chato esta noite.

DOROTHY

Querido, a única coisa que quero é que você fique aqui. Quero que tenhamos algo assim como uma vida doméstica. É bom aqui. Eu poderia arrumar seu quarto e torná-lo aconchegante.

PHILIP

Eu me senti um tanto confuso esta manhã.

DOROTHY

Eu o arranjaria de tal maneira que você gostaria de viver nele. Você poderia ter uma cadeira confortável e uma estante, uma boa luz para leitura e quadros. Eu poderia arranjá-lo de modo que ficasse realmente agradável. Por favor, fique aqui esta noite e veja como isso pode ser bom.

PHILIP

Amanhã faremos isso.

DOROTHY

Por que não esta noite, querido?

PHILIP

Oh, esta é uma daquelas noites em que a gente sente que precisa sair, andar de um lugar para outro, ver gente. E, além disso, tenho um encontro.

DOROTHY

A que horas?

PHILIP

À meia-noite e quinze.

DOROTHY

Então volte para cá logo depois.

PHILIP

Está bem.

DOROTHY

Volte a qualquer hora que quiser.

PHILIP

No duro?

DOROTHY

Sim, por favor.

(Ele a toma nos braços. Afaga-lhe os cabelos. Inclina-lhe a cabeça para trás e beija-a. Há ruído de gente a gritar e a cantar, embaixo. Depois, ouvem-se os CAMARADAS cantar O Partidário. Cantam-no do começo ao fim.)

DOROTHY

É uma bela canção.

PHILIP

Você jamais saberá quão bonita ela é.

(Os CAMARADAS agora estão cantando Bandera Rosa.)

PHILIP

Conhece essa?

(Senta-se na cama, junto dela.)

DOROTHY

Conheço.

PHILIP

As melhores pessoas que conheci morreram por essa canção.

(No quarto contíguo, pode-se ver o CAMARADA de cara estropiada dormindo. Enquanto eles estiveram a conversar, ele terminou seu banho, secou suas roupas, tirou a lama delas e deitou-se na cama. Enquanto ele dorme, a luz brilha em seu rosto.)

DOROTHY

(Ao lado de Philip, na cama:)

Philip, Philip, por favor, Philip!

PHILIP

Como vê, não me sinto muito com vontade de fazer amor esta noite.

DOROTHY

(Desapontada:)

Isso é ótimo! Isso é encantador! Mas eu gostaria da mesma maneira que você apenas ficasse aqui comigo; apenas fique e tenha um pouco de vida doméstica.

PHILIP

Sinto muito, mas preciso mesmo ir. Palavra.

(Embaixo, os CAMARADAS estão cantando a canção do Comintern.)

DOROTHY

Essa é aquela que eles sempre tocam nos enterros.

PHILIP

Mas a cantam também em outras ocasiões.

DOROTHY

Philip, por favor, não vá embora!

PHILIP

(Estreitando-a em seus braços:)

Adeus.

DOROTHY

Não, por favor, por favor, não vá!

PHILIP

(Levantando-se:)

Ouça, abra ambas as janelas, antes de ir para a cama. Não seria bom ter vidros quebrados, se houver um bombardeio ali pela meia-noite.

DOROTHY

Não vá embora, Philip. Por favor, não vá!

PHILIP

Salud, camarada!

(Não presta continência. Vai para o outro quarto. Embaixo, os CAMARADAS estão cantando de novo O Partidário. PHILIP, no quarto 110, olha MAX dormindo. Depois, aproxima-se e o acorda.)

Max!

(MAX acorda instantaneamente, olha em volta, pisca os olhos, ofuscados pela luz, e então sorri.)

MAX

Está na hora?

PHILIP

Está. Quer uma bebida?

MAX

(Levantando-se da cama, a sorrir e a apalpar suas botas que tinham ficado secando diante do aquecedor elétrico:)

Claro.

(PHILIP serve dois uísques e apanha a garrafa de água.)

Não o estrague com água.

PHILIP

¡Salud!

MAX

¡Salud!

PHILIP

Vamos.

(Embaixo, os CAMARADAS cantam a Internacional. DOROTHY BRIDGES está na cama, no quarto 109, os braços em torno dos travesseiros. Seus ombros estremecem, pois está chorando.)

CORTINA


Notas

* Não muito difícil. (N.T.)

** Meia-noite e quinze. (N. T.)


CENA 4


O mesmo que na Cena 3, mas às quatro e meia da madrugada. Ambos os quartos estão às escuras e DOROTHY BRIDGES dorme em sua cama. MAX e PHILIP passam pelo corredor. PHILIP abre a porta do quarto 110 e acende a luz. Olham um para o outro. MAX abana a cabeça. Estão ambos tão enlameados que são quase irreconhecíveis.

PHILIP

Bem, fica para outra vez.

MAX

Lamento muito.

PHILIP

Você não tem culpa. Quer tomar banho primeiro?

MAX

(A cabeça apoiada nos braços.)

Quero. Estou cansado demais.

(PHILIP dirige-se ao banheiro. Depois sai.)

PHILIP

Não há água quente. A única razão de vivermos nesta maldita ratoeira é que tínhamos água quente, mas agora nem uma gota saiu das torneiras...

MAX

(Muito sonolento:)

Estou muito triste por haver falhado. Eu estava certo de que eles viriam. Mas não vieram.

PHILIP

Tire a roupa e durma um pouco. Você é um oficial de reconhecimento estupendamente bom, e bem sabe disso. Ninguém conseguiria fazer o que você fez... Não é culpa sua que tenham adiado o bombardeio.

MAX

(Completamente exausto:)

Estou morrendo de sono. Estou com tanto sono que me sinto doente.

PHILIP

Não se preocupe. Vou botá-lo na cama.

(Puxa-lhe as botas e ajuda-o a despir-se. Depois, faz com que desabe sobre a cama.)

MAX

A cama está boa.

(Envolve o travesseiro com os braços e estende as pernas.)

Durmo com o rosto para baixo, a fim de não assustar ninguém pela manhã.

PHILIP

(Do banheiro:)

Tome a cama inteira. Vou dormir noutro quarto.

(PHILIP entra no banheiro e ouve-se o ruído da água, enquanto ele se lava. Sai de pijama e de robe de chambre, abre a porta que liga os dois quartos, encolhe o corpo por baixo do cartaz, dirige-se ao leito e mete-se nele.)

DOROTHY

Querido, você não está chegando tarde demais?

PHILIP

São quase cinco.

DOROTHY

(Muito sonolenta:)

Onde foi que você esteve?

PHILIP

Fazendo uma visita.

DOROTHY

(Que está ainda muito sonolenta:)

Você foi ao tal encontro?

PHILIP

(Rolando para um dos lados da cama, a fim de que ambos pudessem ficar de costas um para o outro.)

O homem não apareceu.

DOROTHY

(Muito sonolenta, mas ansiosa por tomar conhecimento das novidades.)

Não houve bombardeio algum, querido.

PHILIP

Ótimo.

DOROTHY

Boa noite, querido!

PHILIP

Boa noite!

(Ouve-se uma metralhadora — pop-pop-pop — muito ao longe, através da janela aberta. Ficam muito quietos na cama, mas, de repente, ouve-se PHILIP dizer:)

Bridges, você está dormindo?

DOROTHY

(Verdadeiramente sonolenta:)

Não, querido. Não, se...

PHILIP

Quero dizer-lhe uma coisa.

DOROTHY

(Sonolenta:)

Sim, meu muito, muito querido.

PHILIP

Quero dizer-lhe duas coisas. Passei horrores, e a amo.

DOROTHY

Oh, meu pobre Philip!

PHILIP

Jamais digo a qualquer pessoa quando acabo de passar por coisas horrorosas, e nunca digo que amo. Mas eu a amo, percebe? Está me ouvindo? Pode me sentir? Ouviu o que eu disse?

DOROTHY

Oh, eu o amo o tempo todo! O contato com você é maravilhoso. Assim como uma tempestade de neve, se a neve não fosse tão fria e não derretesse...

PHILIP

Eu não a amo durante o dia. Não consigo amar durante o dia. Ouça, quero dizer-lhe mais uma coisa. Você gostaria de se casar comigo, ou de ficar comigo o tempo todo, ou de ir para onde eu fosse e ser minha garota? Ouviu-me dizer isso? Pois o disse, viu?

DOROTHY

Eu gostaria de me casar com você.

PHILIP

Pois é, eu sempre digo coisas engraçadas à noite, não é?

DOROTHY

Eu gostaria que nos casássemos, trabalhássemos bastante e tivéssemos uma bela vida. Você sabe que não sou tão tola quanto pareço, pois, se o fosse, não estaria aqui. E eu trabalho, quando você não está por perto. É por isso mesmo que não sei cozinhar. Em circunstâncias normais, sempre se pode arranjar uma cozinheira. Oh, meu bem! Eu o amo com esses seus grandes ombros, seu andar de gorila e essa cara engraçada!

PHILIP

Será uma cara muito mais engraçada quando eu terminar este negócio em que estou metido.

DOROTHY

Mas esses tais horrores não estão melhorando, querido? Quer falar-me a respeito deles?

PHILIP

Oh, que vão para o inferno! Temos convivido durante tanto tempo que sentiria falta se eles se fossem. Deixe que lhe diga mais uma coisa.

(Ele diz muito baixinho:)

Eu gostaria de me casar com você, ir embora, livrar-me disto tudo. Você ouviu o que eu disse? Pois eu disse mesmo!

DOROTHY

Bem, querido, vamos fazer isso mesmo.

PHILIP

Não, não o faremos. Mesmo deitado aqui, esta noite, eu sei que não o faremos. Mas gosto de dizer isso. Oh, eu a amo! Que vá tudo pro inferno, mas eu a amo! E você tem — com os diabos! — o corpo mais encantador do mundo. E eu a adoro também. Ouviu o que eu disse?

DOROTHY

Ouvi, minha doçura, mas não é verdade quanto ao meu corpo. É apenas um corpo aceitável, mas eu gosto de ouvir você dizer isso. Fale-me a respeito dos “horrores”, assim talvez eles se dissipem.

PHILIP

Não. Cada qual tem os seus, e eu não quero divulgar os meus por aí.

DOROTHY

Não seria melhor tentar dormir, meu grandalhão bem-amado? Minha velha tempestade de neve.

PHILIP

Já é quase dia, e estou me tornando sensato novamente.

DOROTHY

Por favor, procure dormir.

PHILIP

Ouça, Bridges, vou lhe dizer mais uma coisa. Está clareando agora.

DOROTHY

(Retendo a voz:)

Está, querido.

PHILIP

Se você quiser mesmo que eu durma, basta dar-me uma martelada na cabeça.

CORTINA
FIM DO SEGUNDO ATO


TERCEIRO ATO


CENA 1


Cinco dias depois, à tarde, nos mesmos quartos 109 e 110 do Hotel Florida.

A cena está como na Cena 3 do Segundo Ato, só que a porta entre os dois quartos está aberta. Na extremidade inferior agita-se livremente o cartaz e, no quarto de PHILIP, há um vaso sobre o criado-mudo cheio de crisântemos. Há uma estante de livros ao longo da parede, à direita da cama, e forros de cretone nas poltronas. As cortinas das janelas são desse mesmo cretone. A cama tem uma coberta sobre o seu lençol branco. Todas as roupas estão cuidadosamente dependuradas nos cabides, e os três pares de botas de PHILIP, todos escovados e engraxados, estão sendo postos no armário por PETRA. DOROTHY, no quarto contíguo, o 109, está experimentando, diante do espelho, um casaco de raposa prateada.

DOROTHY

Petra, por favor, venha cá!

PETRA

(Endireitando seu pequeno e velho corpo, depois de colocar as botas no lugar.)

Sim, señorita!

(PETRA dá a volta e entra pela porta apropriada no quarto 109, batendo antes.)

PETRA

(Juntando as mãos.)

Oh, señorita, como é lindo!

DOROTHY

(Olhando-se, por sobre o ombro, no espelho.)

Não está bem, Petra. Não sei o que é que eles fizeram, mas não está bem!

PETRA

Acho encantador, señorita!

DOROTHY

Não, há qualquer coisa errada na parte superior da gola. E não sei falar espanhol tão bem que me possa fazer entender por esse peleteiro idiota. Ele é um idiota!

(Ouve-se alguém que se aproxima pelo corredor. É PHILIP. Ele abre a porta do quarto 110 e olha em torno. Tira sua jaqueta de couro e joga-a sobre a cama; depois, lança a boina no cabide existente a um canto. A boina cai no chão. Senta-se numa das cadeiras cobertas de cretone e tira as botas. Deixa-as de pé, pingando, no meio do assoalho e vai para a cama. Tira a jaqueta da cama e a joga numa cadeira. O paletó fica estendido lá, de qualquer jeito. Depois, deita-se na cama, puxa os travesseiros de sob as cobertas e os coloca debaixo da cabeça, após o que acende a lâmpada de leitura. Estende o braço para baixo, abre a porta dupla do criado-mudo ao lado da cama, apanha uma garrafa de uísque, despeja a bebida num copo que fora colocado cuidadosamente de boca para baixo no gargalo da garrafa de água e põe um pouco dela no uísque. Com o copo na mão esquerda, estende o braço em direção à estante, a fim de apanhar um livro. Fica um momento deitado de costas, imóvel; depois, encolhe os ombros e mexe-se, desconfortavelmente. Por fim, tira uma pistola do cinto e coloca-a sobre a coberta da cama, a seu lado. Encolhe os joelhos, toma o seu primeiro gole da bebida e começa a ler.)

DOROTHY

(Do quarto contíguo:)

Philip, Philip querido!

PHILIP

Que é?

DOROTHY

Venha cá, por favor.

PHILIP

Não, querida.

DOROTHY

Quero mostrar a você uma coisa.

PHILIP

(Lendo.)

Traga-a aqui.

DOROTHY

Está bem, querido.

(Lança um último olhar ao casaco, no espelho. Está belíssima nele, e não há nada de errado na gola. Chega à porta vestindo-o orgulhosamente e dá uma volta com ele, de modo muito gracioso e elegante, como o faria uma modelo.)

PHILIP

Onde foi que você conseguiu isso?

DOROTHY

Eu o comprei, querido.

PHILIP

Com quê?

DOROTHY

Com pesetas.

PHILIP

(Friamente:)

Muito bonito.

DOROTHY

Você não gosta dele?

PHILIP

(Ainda fitando o casaco:)

Muito bonito.

DOROTHY

O que é que há, Philip?

PHILIP

Nada.

DOROTHY

Você não quer que eu tenha coisa alguma que seja bonita?

PHILIP

Esse problema é exclusivamente seu.

DOROTHY

Mas, querido! É tão barato! As raposas custam apenas mil e duzentas pesetas cada.

PHILIP

Isso equivale ao soldo de cento e vinte dias para um membro das Brigadas. Vejamos. São quatro meses. Não conheço um deles sequer que em quatro meses de campanha não tenha sido ferido... ou morto.

DOROTHY

Mas, Philip, este casaco nada tem a ver com as Brigadas. Eu comprei as pesetas ao câmbio de cinquenta por dólar, em Paris.

PHILIP

(Glacialmente:)

Verdade?

DOROTHY

Sim, querido. E por que razão não deveria eu comprar raposas, se as queria? Alguém tem de comprá-las. Elas estão lá para ser vendidas, e cada pele fica por menos de vinte e dois dólares.

PHILIP

Maravilhoso, não é? Quantas raposas há aí?

DOROTHY

Cerca de doze. Oh, Philip, não fique aborrecido.

PHILIP

Você está se saindo muito bem com esta guerra, não? De que modo conseguiu contrabandear suas pesetas?

DOROTHY

Numa lata de champanhe.

PHILIP

Champanhe, oh, sim, champanhe... Que coincidência... E será que, por acaso, o champanhe tirou todo o fedor delas?

DOROTHY

Philip, você está agindo de modo espantosamente moralista!

PHILIP

Creio que sou mesmo moralista, pelo menos em área econômica. Não acredito que nem mesmo Mum — ou o que é que as outras senhoras encantadoras usam? Amolin, não é? — tiraria a nódoa dessas pesetas conseguidas no câmbio negro.

DOROTHY

Se você insiste em ser desagradável a respeito disso, eu o deixarei falando sozinho.

PHILIP

Ótimo.

(DOROTHY encaminha-se para a porta, mas detém-se, súplice.)

DOROTHY

Mas não seja desagradável quanto a isso. Faça força para ser razoável e fique satisfeito por eu ter um casaco tão bonito. Sabe o que eu estava fazendo quando você entrou? Estava pensando no que podíamos fazer, justamente a esta hora do dia, em Paris.

PHILIP

Paris?

DOROTHY

Está escurecendo, e eu me encontraria com você no bar do Ritz, vestindo este casaco. Estaria lá sentada à sua espera. Você entraria com um sobretudo trespassado, de oficial da guarda, muito justo, chapéu-coco e empunhando uma bengala.

PHILIP

Já vi que esteve lendo aquela revista americana, a Esquire. Não é para você ler o texto, compreende? Você tem de ver apenas as figuras.

DOROTHY

Você pediria um uísque com Perrier, e eu tomaria um coquetel de champanhe.

PHILIP

Isso não me agrada.

DOROTHY

O quê?

PHILIP

Essa história. Se você sente necessidade de devanear, mantenha-me fora de seus devaneios, sim?

DOROTHY

Isso não passa de brincadeira, querido.

PHILIP

Bem, eu não brinco mais.

DOROTHY

Mas você o fez, querido. E nos divertimos bastante com isso.

PHILIP

Bem, considere-me, agora, fora da brincadeira.

DOROTHY

Mas não somos amigos?

PHILIP

Oh, sim, na guerra a gente faz todos os tipos de amigos.

DOROTHY

Querido, por favor, para com isso! Por acaso não somos amantes?

PHILIP

Sim, certamente! Claro. Por que não?

DOROTHY

Mas não vamos viver juntos, divertir-nos e sermos felizes? Como você me diz todas as noites?

PHILIP

Não. Nem daqui a mil anos. Nunca acredite no que eu digo à noite.

DOROTHY

Mas por que não podemos fazer o que você, à noite, diz que iremos fazer?

PHILIP

Porque estou metido em algo onde não se entra para viver sempre com alguém, levar uma vida encantadora e ser feliz.

DOROTHY

Por que não?

PHILIP

Primeiro, porque descobri que você está sempre muito ocupada. E, em segundo lugar, porque isso não tem a menor importância quando comparado a muitas outras coisas.

DOROTHY

Mas você nunca está ocupado!

PHILIP

(Sente que está falando demais, mas prossegue:)

Não. Mas, depois que isto terminar, entrarei para um curso de disciplina, a fim de libertar-me de quaisquer hábitos anarquistas que possa ter adquirido. Provavelmente me enviarão de novo para trabalhar com pioneiros, ou algo que o valha.

DOROTHY

Não compreendo.

PHILIP

O fato de você não compreender, e jamais poder compreender, constitui a razão por que não vamos continuar a viver juntos, a ter uma vida encantadora etc.

DOROTHY

Oh, é pior do que Skull and Bones.

PHILIP

E que significa, com os diabos, Skull and Bones?

DOROTHY

É uma sociedade secreta a que pertencia um homem com quem eu tive, certa vez, o bom senso de não me casar. Um grupo realmente superior e digno que, ao admitir novos membros, diz-lhes tudo o que é necessário saber, pouco antes de o casamento se realizar. No entanto, assim que me deram suas explicações, preferi cancelar o casamento.

PHILIP

Eis aí uma excelente decisão.

DOROTHY

Não podemos continuar juntos pelo menos por enquanto, já que temos um ao outro — quero dizer, mesmo que não continuemos juntos para sempre —, e sermos amáveis, desfrutando do que temos sem trocar palavras amargas?

PHILIP

Se você quiser.

DOROTHY

Eu gostaria.

(Ela veio da porta e acha-se de pé junto à cama, enquanto falam. PHILIP olha para cima, fitando-a, e, de súbito, toma-a nos braços, ergue-a e puxa-a sobre si mesmo, na cama, com raposas prateadas e tudo.)

PHILIP

Elas são muito delicadas e macias.

DOROTHY

E não cheiram mal, não é verdade?

PHILIP

(O rosto sobre os ombros dela, afundado nas raposas:)

Não, não cheiram mal. E você fica encantadora com elas. E eu a amo, pouco me importa! Eu a amo. E ainda são apenas cinco e meia da tarde.

DOROTHY

Aproveitemos ao máximo enquanto estivermos bem, não é?

PHILIP

(Desavergonhadamente:)

São realmente maravilhosas ao tato. Alegra-me que você as tenha comprado.

(Aperta-a fortemente contra si.)

DOROTHY

Vamos tirar partido deste momento, por mais breve que ele seja?

PHILIP

Sim. Nós o aproveitaremos.

(Ouve-se uma batida na porta e a maçaneta se move para que MAX entre. PHILIP sai da cama. DOROTHY continua sentada nela.)

MAX

Incomodo?

PHILIP

Não. De modo algum. Max, eis aqui uma camarada americana. Camarada Bridges. Camarada Max.

MAX

Salud, camarada.

(Acerca-se da cama em que DOROTHY está sentada e estende-lhe a mão. DOROTHY cumprimenta-o e desvia o olhar.)

MAX

Estão ocupados?

PHILIP

Não. Absolutamente. Aceita um drinque, Max?

MAX

Não. Obrigado.

PHILIP

(Em espanhol:)

¿Hay novedades?

MAX

(Em espanhol:)

Algunas.

PHILIP

Não quer mesmo um drinque?

MAX

Não. Muitíssimo obrigado.

DOROTHY

Vou-me embora. Não deixem que eu os incomode.

PHILIP

Não há necessidade de que você se vá.

DOROTHY

Aparecerei mais tarde, talvez.

PHILIP

Muito bem.

(Enquanto ela se retira, MAX diz, com grande polidez:)

MAX

Salud, camarada.

DOROTHY

Salud.

(Ela fecha a porta entre os dois quartos, antes de passar pela porta regular.)

MAX

(Quando estão a sós:)

Ela é de fato uma camarada?

PHILIP

Não.

MAX

Mas você a apresentou como tal.

PHILIP

Apenas uma maneira de falar. A gente chama todo mundo de camarada aqui em Madri. Todos, segundo se supõe, estão trabalhando pela mesma causa.

MAX

Mas essa não é uma boa maneira de falar.

PHILIP

Não é. Creio que não. Lembro-me de que eu mesmo já disse isso certa vez.

MAX

Essa moça... como é que ela se chama? Britches?

PHILIP

Bridges.

MAX

Ela significa algo sério para você?

PHILIP

Sério?

MAX

Sim. Você sabe o que quero dizer.

PHILIP

Eu não diria isso. Poderia julgá-lo até como cômico. De certo modo.

MAX

Você passa muito tempo com ela?

PHILIP

Algum tempo.

MAX

Que tempo?

PHILIP

O meu tempo.

MAX

Nunca o tempo do Partido?

PHILIP

Meu tempo é o tempo do Partido.

MAX

É o que eu queria dizer. Alegra-me que o compreenda com tanta facilidade.

PHILIP

Oh, eu compreendo tudo com muita facilidade.

MAX

Não fique zangado com algo que está acima de você e de mim.

PHILIP

Não estou zangado. Mas espero que não pretendam transformar-me num maldito monge.

MAX

Philip, meu camarada, você nunca se pareceu muito com um maldito monge.

PHILIP

Não?

MAX

Nem se espera que você o seja... jamais.

PHILIP

Não.

MAX

É apenas uma questão do que interfere no trabalho da gente. Essa moça... De onde é que ela vem? Qual o seu passado?

PHILIP

Pergunte a ela.

MAX

Creio que terei de fazer isso, então.

PHILIP

Por acaso não realizei satisfatoriamente meu trabalho? Por acaso alguém já se queixou?

MAX

Até agora, não.

PHILIP

E quem se queixa agora?

MAX

Eu me queixo agora.

PHILIP

Você?

MAX

Sim. Eu deveria tê-lo encontrado no Chicotes. Se você não pudesse ir, deveria deixar-me um recado. Eu cheguei ao Chicotes na hora, mas você não estava lá e não havia recado algum para mim. Venho para cá e o encontro com todo esse bando de raposas prateadas em seus braços.

PHILIP

E você nunca deseja algo assim?

MAX

Claro que sim. Desejo o tempo todo.

PHILIP

E o que é que você faz nesses momentos?

MAX

Às vezes, quando disponho de tempo e não estou cansado demais, procuro alguém que me conceda alguma coisa, enquanto olha para o outro lado.

PHILIP

E você deseja mesmo o tempo todo?

MAX

Eu gosto muito. Não sou santo.

PHILIP

Ainda há alguns santos por aí...

MAX

Existem. E outros que não o são. Só que eu estou sempre muito ocupado. Agora, vamos falar de outra coisa. Esta noite tentaremos novamente.

PHILIP

Está bem.

MAX

Você quer mesmo ir?

PHILIP

Ouça, eu concordo com você no que se refere à garota, se lhe agrada, mas não fique aí a insultar-me. E não mostre esse ar superior quanto ao trabalho.

MAX

Essa moça não cria problemas?

PHILIP

De modo algum! Talvez ela me perturbe um pouco, levando-me a gastar o meu tempo e tudo o mais, como você diz, mas é uma pessoa absolutamente correta.

MAX

Tem certeza? Garanto-lhe que jamais vi tantas raposas juntas.

PHILIP

Ela é uma perfeita idiota e tudo o mais, mas é tão correta quanto eu!

MAX

E você pode garantir que ainda é correto?

PHILIP

Penso que sim. Por acaso se nota, quando a gente não o é?

MAX

Ah, sim.

PHILIP

Então como é que eu lhe pareço?

(Fica de pé e olha-se desdenhosamente no espelho. MAX fita-o e sorri muito lentamente. Abana a cabeça.)

MAX

Para mim, você parece bastante correto.

PHILIP

Você quer mesmo interrogá-la a respeito de seu passado e tudo o mais?

MAX

Não.

PHILIP

Ela tem as mesmas características das moças americanas que vêm para a Europa com certa quantidade de dinheiro. Elas são todas iguais: acampamentos, universidade, dinheiro na família, mais ou menos dinheiro do que antes, em geral menos, homens, casos amorosos, abortos, ambições e, finalmente, casam-se e assentam, ou não se casam e também assentam. Abrem lojas, ou trabalham em lojas, algumas escrevem, outras tocam instrumentos, algumas vão para o palco, outras, para o cinema. Filiam-se todas a uma espécie de Liga Juvenil, na qual, creio eu, as virgens trabalham. Tudo para o bem público. Esta aqui escreve. Bastante bem, aliás, e não é demasiado preguiçosa. Pergunte a ela sobre tudo isso, se quiser, embora seu relato venha a ser um tanto monótono, asseguro-lhe.

MAX

Não estou interessado.

PHILIP

Julguei que estivesse.

MAX

Pensei melhor, e deixo tudo isso a seu encargo.

PHILIP

Isso tudo o quê?

MAX

Tudo a respeito dessa moça. Para tratar do caso como deveria fazer.

PHILIP

Se eu fosse você, não teria muita confiança em mim...

MAX

Eu tenho confiança em você.

PHILIP

(Com amargura:)

Eu não teria muita. Às vezes, sinto-me tremendamente cansado de todo este maldito negócio. E o odeio.

MAX

Certamente.

PHILIP

Sim. E agora, com sua conversa, você acabará me convencendo do contrário. Mas a verdade é que assassinei, outro dia, aquele bravo garoto, o Wilkinson. Apenas por falta de cuidado. Não me diga que não foi assim.

MAX

Deixe de besteira. Mas reconheço que você não foi tão cuidadoso quanto devia ter sido.

PHILIP

Foi por culpa minha que ele morreu. Deixei-o em meu quarto, com a porta aberta, sentado na minha cadeira. Não era para isso que eu pretendia utilizá-lo.

MAX

Você não o deixou lá de propósito. Não deve mais pensar nisso, agora que tudo já passou.

PHILIP

Não... Apenas uma armadilha mortal acionada por descuido de minha parte.

MAX

De qualquer modo, ele provavelmente teria sido morto mais cedo ou mais tarde.

PHILIP

Oh, sim. Claro. Isso torna tudo maravilhoso, não? Esplêndido! Como é que eu não pensei nisso?

MAX

Eu já o vi antes nesse estado de espírito. Sei que logo estará bem novamente.

PHILIP

Sim, mas sabe como eu estarei quando ficar bem de novo? Já terei tomado uma dúzia de drinques, acompanhado de alguma puta. Será muito divertido. É o que você pensa que eu faço quando estou bem.

MAX

Não é verdade!

PHILIP

Estou farto de tudo! Sabe onde eu gostaria de estar agora? Em algum lugar como Saint Tropez, na Riviera, caminhando de manhã sem que houvesse qualquer maldita guerra e tomando um café com creme feito de leite verdadeiro... brioches com geleia de morangos frescos, e oeuf plat au jambon, tudo na mesma bandeja.

MAX

E a garota?

PHILIP

Sim, e a garota também. Você tem toda a razão — a garota. Com raposas prateadas e tudo.

MAX

Já lhe disse que ela não serve para você.

PHILIP

Talvez sirva. Tenho andado metido nisto há tanto tempo que já estou inteiramente farto. Farto de tudo.

MAX

Estamos nesta maldita luta para que todos possam ter um bom breakfast como esse. A gente faz isto para que ninguém jamais tenha fome. A gente faz isto para que os homens não tenham de temer a doença ou a velhice. Em suma: para que possam viver e trabalhar com dignidade, e não como escravos.

PHILIP

Sim. Certamente. Sei disso muito bem.

MAX

Como sei que sabe, compreendo quando tem uma pequena défaillance como essa.

PHILIP

Esta não está sendo pequena, e já a venho sentindo há muito tempo. Desde quando conheci minha garota. Você não faz ideia do quanto mexe comigo...

(Ouve-se o ruído de um obus que se aproxima, seguido de sua explosão na rua. Escuta-se o grito de uma criança; primeiro, alto; depois, em gritos breves, penetrantes. Ouve-se tropel de pessoas correndo pela rua. Cai outro obus. PHILIP escancara as janelas. Depois da explosão, ouve-se de novo o barulho de gente correndo.)

MAX

Fazemos o que fazemos para que isso cesse para sempre.

PHILIP

Porcos nojentos! Escolheram justamente a hora em que terminam as sessões dos cinemas.

(Outro projétil se aproxima e explode. Ouve-se um cão descer a rua, ganindo.)

MAX

Está me ouvindo? A gente o faz por todos os homens. A gente o faz pelas crianças. E, às vezes, a gente também o faz pelos cães... Agora, vá ver um pouco a moça. Ela deve estar precisando de você.

PHILIP

Não. Deixe que ela se aguente sozinha! Ela tem suas raposas prateadas. Que tudo isto vá para o inferno!

MAX

Não. Vá logo! Ela precisa de você agora.

(Outro projétil aproxima-se zunindo e explode lá fora na rua. Desta vez, não se ouvem mais gritos ou correrias.)

MAX

Ficarei um pouco aqui, deitado. Vá vê-la, agora!

PHILIP

Está bem. Irei. Tudo o que você disser. Farei tudo o que você disser.

(Dirige-se à porta, quando se ouve o ruído sibilante de outro projétil caindo, seguido de nova explosão, desta vez longe do hotel.)

MAX

É apenas um pequeno bombardeio. O grande está reservado para esta noite.

(PHILIP abre a porta do outro quarto. Através da porta, ouve-se PHILIP falar, com voz neutra:)

PHILIP

Olá, Bridges. Como está?

CORTINA


CENA 2


Interior de um posto de observação de artilharia, nas ruínas de uma casa situada no alto da estrada para Extremadura.

Está localizado na torre de uma casa antes bastante pretensiosa, e o acesso a ela é feito por meio de uma escada de madeira, que substitui a escada em caracol, de ferro, agora destruída, que se vê dependurada e retorcida. A nova escada acha-se encostada à torre e, no seu topo, a retaguarda do posto de observação, voltado em direção a Madri. É noite, e os sacos de areia que protegem as janelas foram retirados; quando se olha através delas, não se vê nada além de escuridão, pois as luzes de Madri foram apagadas. Nas paredes, há mapas militares em grande escala, com as posições marcadas por meio de tachas e fitas coloridas; sobre uma mesa tosca vê-se um telefone de campanha. Há, ainda, um telêmetro de longo tubo, modelo alemão, colocado diante da estreita abertura existente na parede, à direita da mesa, ao lado da qual se acha uma cadeira. Há, também, um telêmetro de tubo duplo e tamanho comum, colocado na outra abertura e apoiado a uma cadeira. Há ainda outra mesa tosca, também com telefone sobre ela, à direita da sala. Ao pé da escada de madeira, vê-se uma SENTINELA com baioneta calada e, ao topo da escada, na sala, onde a altura é apenas suficiente para que permaneça de pé com seu fuzil e baioneta, há outra SENTINELA. Ao erguer-se a cortina, vê-se a cena tal como foi descrita, com as SENTINELAS em seus postos. Dois SINALEIROS acham-se debruçados sobre a mesa maior. As luzes de um automóvel brilham vivamente ao pé da escada, na base da torre. Aproximam-se cada vez mais, ofuscando a SENTINELA.

SENTINELA

Apague já essas luzes!

(As luzes continuam acesas, iluminando claramente a SENTINELA.)

SENTINELA

(Erguendo o fuzil, puxando o ferrolho e armando-o com um estalido.)

Apague essas luzes!

(Diz isso muito lenta, clara e perigosamente, e é certo que atirará. Os faróis apagam-se, e TRÊS HOMENS, dois deles em uniforme de oficial, um grande e corpulento, o outro um tanto magro e elegantemente vestido com botas de montar que brilham à luz da lanterna que o homem corpulento empunha, e, ainda, um civil atravessam o palco vindo da esquerda, onde deixaram o automóvel fora de cena, e aproximam-se da escada.)

SENTINELA

(Dando a primeira palavra da senha:)

A Vitória...

OFICIAL MAGRO

(Rápida e desdenhosamente:)

... é para aqueles que a merecem.

SENTINELA

Passem.

OFICIAL MAGRO

(Para o CIVIL:)

Suba por essa escada.

CIVIL

Já estive aqui antes.

(Os três sobem a escada. No topo da escada, a SENTINELA, vendo a insígnia no quepe do oficial alto e corpulento, apresenta armas. Os SINALEIROS permanecem sentados junto a seus telefones. O OFICIAL CORPULENTO dirige-se à mesa, seguido pelo CIVIL e pelo oficial de botas brilhantes, que é, evidentemente, seu AJUDANTE DE ORDENS.)

OFICIAL CORPULENTO

Que é que há com esses sinaleiros?

AJUDANTE DE ORDENS

(Para os SINALEIROS:)

Venham cá! Atenção! Que é que se passa com vocês?

(Os SINALEIROS ficam em posição de sentido, um tanto cansadamente.)

À vontade!

(Os SINALEIROS sentam-se. O OFICIAL CORPULENTO está examinando o mapa. O CIVIL olha pelo telêmetro e nada vê na escuridão.)

CIVIL

O bombardeio é para a meia-noite?

AJUDANTE DE ORDENS

(Falando ao OFICIAL CORPULENTO:)

A que horas começa o bombardeio, senhor?

OFICIAL CORPULENTO

(Falando com sotaque alemão:)

Você fala demais!

AJUDANTE DE ORDENS

Desculpe-me, senhor. O senhor gostaria de ver isto?

(Entrega-lhe um maço de ordens datilografadas, presas por um clipe. O OFICIAL CORPULENTO apanha-o e olha-o perfunctoriamente. Depois devolve-o.)

OFICIAL CORPULENTO

(Em tom impetuoso:)

Estou familiarizado com elas. Eu as escrevi.

AJUDANTE DE ORDENS

Perfeitamente, senhor. Julguei que talvez o senhor desejasse verificá-las.

OFICIAL CORPULENTO

Eu já as verifiquei!

(Um dos telefones toca. Um dos SINALEIROS, na mesa, atende-o.)

SINALEIRO

Sim. Não. Sim. Muito bem.

(Dirige um sinal afirmativo de cabeça ao OFICIAL CORPULENTO.)

É para o senhor.

(O OFICIAL CORPULENTO apanha o telefone.)

OFICIAL CORPULENTO

Alô. Sim. Muito bem. Você é idiota, por acaso? Não? Tal como eu ordenei. Salva de tiros significa salva de tiros.

(Desliga o telefone e consulta o relógio.)

(Para o AJUDANTE DE ORDENS:)

Que horas tem aí?

AJUDANTE DE ORDENS

Um minuto para a meia-noite, senhor.

OFICIAL CORPULENTO

Só lido com idiotas aqui. Ninguém pode dizer que comanda qualquer unidade, quando não há disciplina. Sinaleiros ficam sentados à mesa quando um general entra. Oficiais de artilharia que pedem explicação de ordens. Que hora disse que era?

AJUDANTE DE ORDENS

(Consultando o relógio:)

Trinta segundos para a meia-noite, senhor.

SINALEIRO

A Brigada chamou seis vezes, senhor!

OFICIAL CORPULENTO

(Acendendo um charuto:)

Que horas são?

AJUDANTE DE ORDENS

Quinze para, senhor.

OFICIAL CORPULENTO

Quinze para o quê?

AJUDANTE DE ORDENS

Quinze minutos para a meia-noite, senhor.

(Justamente nesse momento, ouvem-se os canhões. É um ruído muito diferente do que fazem os obuses que se aproximam. Há um pou-pou-pou violento, distinto, como o que produziria uma caçarola na qual se batesse diante de um microfone, e, a seguir, um zumbido — zás, zás, zás, chu, chu, chu, chu, chu — à medida que as peças de artilharia são disparadas, seguido de uma explosão distante. Outra bateria, mais próxima e mais ruidosa, começa a disparar, e, então, ouvem-se disparos ao longe de toda a linha de canhões, sons surdos e ressoantes, e o ar enche-se do barulho que os projéteis fazem ao partir. Através da janela aberta, vê-se, recortado no horizonte, o perfil dos edifícios de Madri, muitos deles iluminados, agora, pelos clarões. O OFICIAL CORPULENTO está de pé junto ao grande telêmetro. O CIVIL, junto ao telêmetro de dois canos. O AJUDANTE DE ORDENS olha por cima do ombro do CIVIL.)

CIVIL

Meu Deus, que belo espetáculo!

AJUDANTE DE ORDENS

Vamos matar uma porção deles esta noite. Esses marxistas filhos da puta! Isto vai apanhá-los em suas trincheiras.

CIVIL

É maravilhoso ver-se isto.

GENERAL

(Não afasta os olhos do telêmetro.)

Está indo tudo bem?

CIVIL

É uma beleza! Quanto tempo vai durar?

GENERAL

Vamos botá-los no fogo por uma hora, desta vez. Depois, uma pausa de dez minutos. Em seguida, mais quinze minutos.

CIVIL

Nenhum projétil explodirá no bairro de Salamanca, não é? É lá que está quase toda a nossa gente.

GENERAL

Algumas cairão lá.

CIVIL

Mas por quê?

GENERAL

As baterias espanholas cometem seus erros, você sabe...

CIVIL

E o que têm com isso as baterias espanholas?

GENERAL

É que elas não são tão boas quanto as nossas.

(O CIVIL se cala e os disparos continuam, embora as baterias não estejam, agora, disparando com a mesma rapidez com que começaram. Ouve-se um ruído sibilante que se aproxima e, a seguir, uma explosão, pois um projétil cai bastante perto do posto de observação.)

GENERAL

Estão respondendo um pouco ao fogo agora.

(Não há luzes no posto de observação agora, exceto a dos clarões dos disparos e a luz do cigarro que a SENTINELA ao pé da escada fuma. Vê-se que o brilho do cigarro descreve um semiarco na escuridão e há um ruído que se escuta com clareza quando a SENTINELA tomba. Escuta-se o barulho de dois disparos. Outro projétil passa com o mesmo zunido alto e, quando explode, vemos no clarão dois homens subindo a escada.)

general

(Sem se afastar do telêmetro.)

Ligue-me com Garabitas.

(O SINALEIRO tenta a ligação. Tenta novamente.)

SINALEIRO

Lamento, senhor. O fio deve ter sido danificado.

GENERAL

(Para o outro SINALEIRO:)

Ponha-me em contato com o Comando da Divisão.

SINALEIRO

Não tenho linha, senhor.

GENERAL

Faça com que alguém verifique o seu fio.

SINALEIRO

Sim, senhor.

(Levanta-se no escuro.)

GENERAL

Por que é que aquele homem está fumando? Que espécie de exército é este, que parece saído do coro da Carmen?

(Vê-se o cigarro — que estava na boca da sentinela postada no topo da escada — descrever uma longa parábola em direção ao chão, como se ele o houvesse jogado fora, e ouve-se o baque pesado de um corpo que cai. Uma lanterna de mão ilumina os três homens que se acham juntos dos telêmetros, bem como os dois sinaleiros.)

PHILIP

(Através da porta aberta no topo da escada. Em voz baixa, muito tranquila:)

Mãos ao alto e nada de heroísmo, pois estourarei seus miolos!

(Está empunhando um fuzil automático, curto, que lhe pendia das costas enquanto subia a escada.)

Refiro-me a vocês cinco! Conserve as mãos erguidas, seu gordo filho da puta!

(MAX tem na mão direita uma granada de mão e, na esquerda, a lanterna.)

MAX

Se tentarem qualquer alarme, ou se se mexerem, todos estarão mortos. Estão ouvindo?

PHILIP

Quem é que você quer?

MAX

Somente o gordo e o paisano. Amarre o resto. Você tem aí um bom esparadrapo?

PHILIP

Ja.*

MAX

Vocês estão vendo. Somos todos russos. Todos são russos em Madri! Depressa, Tovarich, e amordace-os bem com esparadrapo, pois tenho de atirar esta coisa antes de irmos embora. Como vê, já puxei o pino!

(Pouco antes de a cortina descer, enquanto PHILIP avança em direção a eles empunhando fuzil automático de cano curto, vê-se, à luz da lanterna, os rostos brancos dos homens. As baterias estão ainda atirando. De baixo e de trás da casa chega uma voz:)

Apaguem essa luz!

MAX

O.K., soldado, dentro de um minuto!

CORTINA


Nota

* Sim, em alemão. (N.T.)


CENA 3


Ao erguer-se a cortina, vê-se a mesma sala do quartel da Seguridad, que apareceu no Segundo Ato, Cena 1. ANTÔNIO, do Comissariado de Vigilância, está sentado a uma mesa. PHILIP e MAX, enlameados e apresentando péssimo aspecto, acham-se sentados em duas cadeiras. PHILIP ainda tem seu fuzil automático a tiracolo. O CIVIL do posto de observação, sem a sua boina, com a jaqueta de campanha rasgada nas costas, uma das mangas pendente, está de pé diante da mesa, entre DOIS GUARDAS DA TROPA DE ASSALTO.

ANTÔNIO

(Aos DOIS GUARDAS DA TROPA DE ASSALTO:)

Podem retirar-se.

(Eles prestam continência e saem pela direita, arrastando seus fuzis.)

(Para PHILIP:)

Onde está o outro?

PHILIP

Nós o perdemos no caminho.

MAX

Ele era muito pesado e não queria andar.

ANTÔNIO

Seria uma excelente captura.

PHILIP

A gente não pode fazer essas coisas como aparecem no cinema.

ANTÔNIO

É verdade, mas seria bom se pudéssemos tê-lo aqui!

PHILIP

Desenharei um pequeno mapa, e poderá mandar alguém até lá para buscá-lo.

ANTÔNIO

Sim?

MAX

Ele era um soldado e jamais teria falado. Eu mesmo teria gostado de interrogá-lo, mas sei que seria inútil.

PHILIP

Quando acabarmos o nosso assunto aqui, farei um pequeno mapa, como já disse, e você poderá mandar buscá-lo. Ninguém o terá retirado de lá. Nós o deixamos num lugar apropriado.

CIVIL

(Numa voz histérica:)

O senhor o assassinou.

PHILIP

(Desdenhosamente:)

Cale essa boca!

MAX

Eu lhe garanto: ele jamais teria falado. Conheço tais homens.

PHILIP

Não esperávamos encontrar dois desses tipos ao mesmo tempo. E aquele outro espécimen era grande demais e, de modo algum, queria caminhar. Fez uma espécie de greve sentada. Não sei se você já tentou vir de lá à noite. Há alguns lugares bastante esquisitos. Como vê, não tínhamos mesmo outra alternativa.

CIVIL

(Histérico:)

E então você o assassinou! Eu o vi fazer isso!

PHILIP

Fique quietinho, sim? Ninguém pediu sua opinião.

MAX

Você precisa de nós agora?

ANTÔNIO

Não.

MAX

Acho que eu gostaria de ir embora. Isto não é coisa que me agrade muito. Faz-me lembrar de tanta coisa...

PHILIP

E de mim, você precisa?

ANTÔNIO

Não.

PHILIP

Não precisa se preocupar. Conseguirá tudo o que espera, as listas, os esconderijos, tudo. O homem é como uma fruta madura.

ANTÔNIO

Está bem.

PHILIP

Não se preocupe também com o que ele lhe contar. Como já viu, é um tipo bem falante.

ANTÔNIO

Ele é um político. Já falei com muitos políticos antes.

CIVIL

(Histericamente:)

O senhor nunca me obrigará a falar! Nunca! Nunca!

(MAX e PHILIP olham um para o outro, e PHILIP sorri.)

PHILIP

(Muito tranquilo:)

Você já está falando agora. Não percebeu ainda?

CIVIL

Não! Não!

MAX

Já que tudo está bem, eu me retiro.

(Levanta-se.)

PHILIP

Acho que também vou-me embora.

ANTÔNIO

Não querem ficar para ouvir a coisa?

MAX

Por favor, não.

PHILIP

É que estamos realmente muito cansados.

ANTÔNIO

Garanto-lhes que será muito interessante.

PHILIP

Voltarei aqui amanhã.

ANTÔNIO

Eu gostaria muito que ficassem.

MAX

Por favor. Se não se importa, peço-lhe isso como um favor.

CIVIL

Que é que vai fazer comigo?

ANTÔNIO

Nada. Quero apenas que responda a algumas perguntas.

CIVIL

Jamais falarei.

ANTÔNIO

Falará, sim. Você vai ver...

MAX

Por favor. Por favor. Quero mesmo sair, e me vou agora.

CORTINA


CENA 4


O mesmo cenário do Primeiro Ato, Cena 3, mas ao cair da tarde. Ao levantar-se a cortina, o quarto de DOROTHY BRIDGES está às escuras. O de PHILIP está aceso, as cortinas corridas. PHILIP está deitado de bruços na cama. ANITA acha-se sentada numa cadeira, junto à cama.

ANITA

Philip!

PHILIP

(Sem se voltar ou olhar em sua direção.)

Que é que há?

ANITA

Por favor, Philip.

PHILIP

Por favor o quê, com os diabos?

ANITA

Onde está o uísque?

PHILIP

Debaixo da cama.

ANITA

Obrigada.

(Olha embaixo da cama. Depois, arrasta-se um pouco, metendo quase meio corpo sob a mesma.)

Não encontro.

PHILIP

Procure, então, no armário. Alguém esteve aqui arrumando o quarto de novo.

ANITA

(Dirige-se ao armário e abre-o. Examina cuidadosamente o seu interior.)

Só há garrafas vazias.

PHILIP

Você não passa de uma pequena descobridora. Venha cá.

ANITA

Quero encontrar uísque.

PHILIP

Veja no criado-mudo.

(ANITA dirige-se ao criado-mudo, ao lado da cama, e abre-o, apanhando uma garrafa de uísque. Vai ao banheiro à procura de um copo, serve o uísque e acrescenta um pouco de água da garrafa que está junto à cama.)

ANITA

Beba. Vai se sentir melhor.

(PHILIP senta-se e olha-a.)

PHILIP

Alô, Beleza Negra! Como foi que você entrou aqui?

ANITA

Com a chave mestra.

PHILIP

Bem.

ANITA

Eu não via você. Muito preocupada. Vim aqui, me disseram você estava dentro. Bati na porta, ninguém respondeu. Bati mais. Nenhuma resposta. Disse para abrirem a porta com a chave mestra.

PHILIP

E foi o que fizeram?

ANITA

Eu disse que você tinha me chamado.

PHILIP

E eu chamei?

ANITA

Não.

PHILIP

Mesmo assim, foi muita bondade sua ter vindo.

ANITA

Você ainda está com aquela loira grande?

PHILIP

Não sei. As coisas estão um pouco confusas na minha cabeça. Estão ficando meio complicadas. Toda noite eu peço a ela que se case comigo, e na manhã seguinte digo que não falei a sério. Acho que, provavelmente, as coisas não podem continuar assim. Não, não podem mesmo continuar assim.

(ANITA senta-se ao lado dele e passa-lhe a mão pela cabeça, alisando-lhe os cabelos negros.)

ANITA

Você se sente culpado. Eu sei.

PHILIP

Quer que lhe conte um segredo?

ANITA

Quero.

PHILIP

Jamais me senti pior.

ANITA

Você me decepciona. Pensei que fosse me contar de que modo apanhou todo aquele bando da Quinta-Coluna.

PHILIP

Não foi um bando. Apanhei apenas um homem. Um tipo repulsivo, por sinal.

(Ouve-se uma batida na porta. É o GERENTE.)

GERENTE

Desculpe profundamente o incômodo...

PHILIP

Cuidado com o que diz. Há senhoras presentes.

GERENTE

Entrei só para ver se tudo está em ordem. Peço o controle das possíveis ações da jovem em caso de sua ausência ou incapacidade. Também desejo apresentar as mais sinceras e calorosas congratulações pelo admirável feito da contraespionagem publicado nos jornais da tarde falando da prisão de trezentos membros da Quinta-Coluna.

PHILIP

Isso está nos jornais?

GERENTE

Com detalhes da prisão de todo tipo de gente condenável empenhada em tiroteio, planos de assassinato, sabotagem, comunicação com o inimigo e toda forma de delits.

PHILIP

De delights?*

GERENTE

É uma palavra francesa, que se soletra D-E-L-I-T-S. Quer dizer crimes.

PHILIP

E tudo isso está nos jornais?

GERENTE

Absolutamente tudo, sr. Philip.

PHILIP

E onde é que eu entro nisso?

GERENTE

Oh, todos sabem que o senhor estava empenhado na execução de tais investigações.

PHILIP

E como foi que souberam?

GERENTE

(Em tom de censura:)

Sr. Philip, isto aqui é Madri. Em Madri, todos sabem tudo mesmo antes de o fato acontecer. Depois da ocorrência, há discussões a respeito de quem realmente fez a coisa. Apresento-lhe congratulações precedendo censuras dos insatisfeitos que perguntam: “Rá-rá! Só trezentos? Onde estão os outros?”

PHILIP

Não fique tão sombrio. Acho, porém, que diante disso preciso dar o fora daqui o quanto antes.

GERENTE

Sr. Philip, pensei nisso e vim aqui, fazendo o que espero resultará excelente proposta. Se o senhor partir, é inútil levar como bagagem alimentos enlatados.

(Ouve-se uma batida na porta. É MAX.)

MAX

Salud, camaradas.

TODOS

Salud.

PHILIP

Dê o fora agora, Camarada Colecionador de Selos. Poderemos falar nisso mais tarde.

MAX

(Para PHILIP:)

Wie gehts?**

PHILIP

Gut.*** Não demasiado gut.

ANITA

O.K. Tomo banho?

PHILIP

Mais do que O.K., querida. Mas feche a porta, sim?

ANITA

(Do banheiro:)

A água está quente.

PHILIP

Isso é bom sinal. Feche a porta, por favor.

(ANITA fecha a porta. MAX aproxima-se da cama e senta-se numa cadeira. PHILIP está sentado na cama, as pernas pendidas.)

PHILIP

Aceita alguma coisa?

MAX

Não, camarada. Voltou lá?

PHILIP

Oh, sim. Fiquei lá até o fim. Presenciei tudo. Eles queriam saber algo e me chamaram.

MAX

Como ele se portou?

PHILIP

Covardemente. Mas a coisa, durante algum tempo, só saiu aos poucos.

MAX

E depois?

PHILIP

Oh, depois, ele despejou tudo mais depressa do que uma estenógrafa poderia anotar. Eu tenho bom estômago, como sabe.

MAX

(Ignorando:)

Li nos jornais a respeito das prisões. Por que publicam essas coisas?

PHILIP

Não sei, meu caro. Por que o fazem? Macacos me mordam se eu souber por quê.

MAX

É bom para o moral. Mas seria melhor se pudéssemos apanhar todos eles. Eles trouxeram o... o... ah...

PHILIP

Oh, sim, o cadáver? Foram buscá-lo lá onde o deixei, e quando Antônio o colocou numa cadeira, a um canto, eu lhe botei um cigarro na boca e acendi-o. Foi tudo muito divertido. Só que o cigarro não permanecia aceso, claro.

MAX

Alegro-me por não ter precisado ficar.

PHILIP

Eu fiquei. Depois, saí e voltei para cá. Mais tarde, fui dar uma volta e eles tornaram a chamar-me. Estive lá até uma hora atrás — e, agora, estou livre. Por hoje, quero dizer. Haverá alguma outra coisa, amanhã.

MAX

Fizemos um bom trabalho.

PHILIP

Melhor, impossível. Foi brilhante e sensacional, mas havia por certo muitos buracos na rede, e grande parte da pescaria se perdeu. Mas eles podem lançar novamente a rede. Vocês terão, porém, de me mandar para outro lugar. Já não sirvo mais para trabalhar aqui. Muita gente já sabe o que estou fazendo. Não porque eu tenha falado, mas porque as coisas tomaram esse rumo.

MAX

Há muitos lugares para onde você poderia ir. Mas você ainda tem algum trabalho a fazer aqui.

PHILIP

Eu sei. Mas mandem-me para outro lugar tão rapidamente quanto possível, por favor. Isso aqui está me dando nos nervos.

MAX

E quanto à moça do outro quarto?

PHILIP

Oh, eu vou romper com ela.

MAX

Não estou pedindo isso.

PHILIP

Não. Mas pediria, mais cedo ou mais tarde. Não há razão para que vocês fiquem me pajeando. Estamos empenhados em cinquenta anos de guerras não declaradas, e eu me alistei para todo o tempo que isto durar. Não me lembro exatamente de quando foi, mas sei que assinei, sem a menor dúvida.

MAX

Todos assinamos. Não é uma guerra de assinaturas. E não há necessidade de falar com amargura a respeito disso.

PHILIP

Não estou sendo amargo. Apenas não quero enganar a mim mesmo. Nem deixar que as coisas grudem em alguma parte de mim, onde nada deveria ficar. Tudo isso está me perturbando bastante. Bem, sei como curá-lo.

MAX

Como?

PHILIP

Eu lhe mostrarei.

MAX

Lembre-se, Philip, de que sou um homem sensível.

PHILIP

Oh, claro! Eu também. Você precisa me ver trabalhando mais vezes.

(Enquanto os dois estavam conversando, vê-se a porta do quarto 109 abrir-se e DOROTHY BRIDGES entrar. Ela acende a luz, tira seu casaco de rua e veste o de peles de raposa. De pé, mira-se no espelho. Está muito bela esta noite. Dirige-se à vitrola e coloca a mazurca de Chopin, sentando-se, depois, junto à lâmpada de leitura com um livro.)

PHILIP

Lá está ela. Voltou, agora, para aquilo que vocês chamam... o lar.

MAX

Philip, camarada, não precisa fazer o que me disse. Francamente, não vejo sinais de que ela interfira, de qualquer modo, no seu trabalho.

PHILIP

Penso o contrário. E você, no duro, preferiria que eu rompesse logo.

MAX

Deixo isso a seu cargo, como já falei. Mas não se esqueça de ser carinhoso com ela. Para nós, que já passamos por coisas terríveis, a gentileza em tudo o que for possível é de suma importância.

PHILIP

Posso ser muito amável às vezes, como você sabe. Oh, como sou amável! Sou fantástico!

MAX

Não, não sei se você é amável. Gostaria que o fosse.

PHILIP

Espere-me um momento aqui, sim?

(PHILIP sai do quarto e bate na porta do 109. Depois de bater, empurra a porta e entra.)

DOROTHY

Olá, amor!

PHILIP

Olá! Onde é que você esteve?

DOROTHY

Estou muito bem e muito feliz, agora que você está aqui. Por onde andou? Você não voltou ontem à noite. Oh, fico contente que você esteja aqui.

PHILIP

Você tem uma bebida?

DOROTHY

Claro, querido.

(Ela prepara-lhe um uísque com água. No outro quarto, MAX está sentado numa cadeira, a fitar o aquecedor elétrico.)

DOROTHY

Onde você esteve, Philip?

PHILIP

Andando por aí. Verificando certas coisas.

DOROTHY

E como estavam essas coisas?

PHILIP

Algumas estavam bem, você sabe. E outras não tão bem assim. Creio que empataram.

DOROTHY

E esta noite você não tem de sair?

PHILIP

Não sei.

DOROTHY

Philip, meu querido, que é que se passa?

PHILIP

Nada.

DOROTHY

Philip, vamos embora daqui. Eu não preciso ficar aqui. Já enviei três artigos. Podíamos ir para aquele lugar perto de Saint Tropez; as chuvas ainda não começaram e seria encantador estarmos lá, longe das pessoas. Depois, então, poderíamos esquiar.

PHILIP

(Em tom bastante mordaz:)

Sim, e depois iríamos para o Egito, a fim de fazer amor, felizes, em todos os hotéis, onde milhares de breakfasts nos seriam trazidos, em bandejas, em milhares de belas manhãs, nos três meses seguintes — ou durante o tempo que levasse para você se cansar de mim, ou eu de você. E não faríamos outra coisa senão nos divertir. Ficaríamos no Crillon, ou no Ritz, e, no outono, quando as folhas caíssem das árvores do Bois e o tempo estivesse frio, partiríamos para as corridas de Auteuil e nos aqueceríamos junto daqueles grandes braseiros de carvão do paddock, e veríamos os animais saltar por sobre as valetas de água e os velhos muros de tijolos. Eis aí. E nos enfiaríamos num bar para um coquetel de champanhe, e, depois, voltaríamos para jantar no La Rue e, nos fins de semana, iríamos caçar faisões em Sologne. Sim, sim, isso mesmo. E voaríamos para Nairóbi e para o velho Mathaiga Club, e, no inverno, teríamos uma pequena pescaria de salmão. Sim, sim, eis aí a coisa. E todas as noites na cama, juntos. Não é isso?

DOROTHY

Oh, meu bem, pense como seria bom! Você tem tanto dinheiro assim?

PHILIP

Eu tinha. Até que me meti neste negócio.

DOROTHY

E faremos tudo isso e Saint Moritz também?

PHILIP

Saint Moritz? Não seja vulgar. Kitzbühel, você quer dizer. Em Saint Moritz, a gente encontra certos tipos como Michael Arlen.

DOROTHY

Mas a gente não precisaria estar com ele, querido. Você poderia dar-lhe um gelo. E faremos, realmente, tudo isso?

PHILIP

Você quer?

DOROTHY

Oh, meu querido!

PHILIP

Gostaria também de ir à Hungria, no outono? Pode-se alugar lá, muito barato, uma pequena fazenda e pagar somente pelo que a gente caçasse. Nas planícies do Danúbio, há grandes revoadas de gansos. E você já esteve alguma vez em Lamu, onde há uma longa e alva praia, com as embarcações de um só mastro e velas latinas ancoradas de lado, e o vento a soprar, à noite, sobre as palmeiras? E o que me diz de Malindi, onde se pode deslizar em pranchas sobre as ondas, em direção à praia, e onde a monção de nordeste é agradável e fresca, e onde a gente não usa pijamas nem cobertas à noite? Você gostaria de Malindi.

DOROTHY

Eu sei que gostaria, Philip.

PHILIP

Será que você já esteve alguma vez no Sans Souci, em Havana, numa noite de sábado, para dançar no Pátio sob as palmeiras-reais? São cinzentas e erguem-se como colunas, e a gente passa lá a noite toda jogando dados, ou na roleta, e segue, já dia claro, para Jaimanitas, a fim de tomar o breakfast. Todas as pessoas se conhecem e é muito agradável e alegre.

DOROTHY

Podemos ir para lá?

PHILIP

Não.

DOROTHY

Por que não, Philip?

PHILIP

Porque não iremos a parte alguma.

DOROTHY

Por que não, querido?

PHILIP

Você poderá ir, se quiser. Eu lhe traçarei um itinerário.

DOROTHY

Mas por que não podemos ir juntos?

PHILIP

Você pode ir. Mas eu já estive em todos esses lugares e já os deixei para trás. E para onde vou, vou sozinho, ou com outros que vão lá pela mesma razão que eu.

DOROTHY

Eu não posso ir, também?

PHILIP

Não.

DOROTHY

E por que razão não posso ir, seja lá onde for? Eu poderia aprender e não tenho medo.

PHILIP

Uma das razões é que não sei onde é. E a outra é que eu não a levaria.

DOROTHY

Por que não?

PHILIP

Porque você é realmente inútil. Você não tem cultura, você é uma inútil, além de ser tola e preguiçosa.

DOROTHY

Eu talvez seja as outras coisas, mas inútil eu não sou.

PHILIP

Por que acha que não é inútil?

DOROTHY

Você sabe... ou deveria saber.

(Está chorando.)

PHILIP

Oh, sim. Isso.

DOROTHY

E é só o que isso significa para você?

PHILIP

Essa é uma utilidade pela qual se tem de pagar um preço demasiado elevado.

DOROTHY

De modo que sou uma utilidade?

PHILIP

Sim, uma belíssima utilidade. A mais bela que jamais tive.

DOROTHY

Bem. Alegra-me ouvir você dizer isso. E alegra-me que seja dia claro. Agora, dê o fora daqui. Seu pretensioso, bêbedo pretensioso! Seu vaidoso ridículo, enfatuado! Seu utilidade! Jamais lhe ocorreu que você também seja uma utilidade? Uma utilidade pela qual não se devia pagar um preço demasiado alto?

PHILIP

(Rindo:)

Não. Mas eu o percebo, do modo como você o diz.

DOROTHY

Pois bem. Você o é! Você é uma mercadoria perfeitamente dispensável. Nunca está em casa. Passa as noites fora, sujo, enlameado, desregrado. Você é uma utilidade medonha! Apenas gostei do invólucro que a continha. Alegra-me que você vá embora.

PHILIP

Verdade?

DOROTHY

Sim, verdade. Você e sua utilidade... Mas não precisava referir-se a todos esses lugares, já que jamais iremos visitá-los.

PHILIP

Sinto muito. Isso não foi amável.

DOROTHY

Oh, não seja amável! Você é horroroso quando é amável. Somente gente amável deveria tentar ser amável. Você é horrível quando é amável. E você não tinha necessidade de referir-se a esses lugares durante o dia.

PHILIP

Desculpe-me.

DOROTHY

Oh, não se desculpe! Você é ainda pior quando se desculpa. Não suporto suas desculpas. Dê o fora daqui!

PHILIP

Bem, adeus.

(Passa-lhe o braço pela cintura, para beijá-la.)

DOROTHY

Não me beije! Você me beija e logo quer aproveitar a utilidade. Eu o conheço.

(PHILIP abraça-a fortemente e beija-a.)

Oh, Philip, Philip, Philip!

PHILIP

Adeus.

DOROTHY

Você... você... você hoje não a quer? A utilidade?

PHILIP

Não posso dar-me a tal luxo.

(DOROTHY contorce-se, afastando-se dele.)

DOROTHY

Vá-se embora, então.

PHILIP

Adeus.

DOROTHY

Oh, saia daqui!

(PHILIP cruza a porta e entra em seu quarto. MAX está ainda sentado na cadeira. No quarto contíguo, DOROTHY toca a sineta, chamando a criada.)

MAX

E então?

(PHILIP permanece de pé, fitando o fogareiro elétrico. MAX também olha o fogareiro. PETRA chega à porta do outro quarto.)

PETRA

Chamou, señorita?

(DOROTHY está sentada na cama. Tem a cabeça erguida, mas as lágrimas lhe correm pelo rosto. PETRA aproxima-se dela.)

Que é que há, señorita?

DOROTHY

Oh, Petra, ele é ruim, exatamente como você disse. Ele é malvado, malvado e mesquinho. E eu, como uma estúpida idiota, julguei que íamos ser felizes. Mas ele não presta!

PETRA

É verdade, señorita.

DOROTHY

Mas, Petra, o problema todo é que eu o amo.

(PETRA fica junto da cama em companhia de DOROTHY. No quarto 110, PHILIP está de pé junto do criado-mudo. Serve-se de uísque com água.)

PHILIP

Anita!

ANITA

(De dentro do banheiro:)

Sim, Philip.

PHILIP

Anita, venha cá assim que terminar seu banho.

MAX

Vou-me embora.

PHILIP

Não. Fique aqui.

MAX

Não. Não. Não. Por favor, preciso ir.

PHILIP

(Num tom de voz muito seco e firme:)

Anita, a água estava quente?

ANITA

(De dentro do banheiro:)

Foi um banho ótimo.

MAX

Vou-me embora. Por favor, por favor, por favor. Vou-me embora.

 

 

                                                                  Ernest Hemingway

 

 

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